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GOLPE DE MESTRE / Morris West
GOLPE DE MESTRE / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

GOLPE DE MESTRE

 

Aos 35 anos, Maxwell Mather podia considerar-se um homem de sorte. Tinha uma saúde excelente. O corpo era elegante e ainda se poderia considerar bem parecido. O saldo bancário era positivo. Uma convivência prolongada com pessoas ricas ensinara-lhe a ser frugal e a ter uma certa habilidade a orientar o dinheiro. Enquanto intelectual, possuía uma reputação modesta tanto no que se referia ao estudo de manuscritos antigos como no que se relacionava com a história da pintura europeia. Tinha uma protectora generosa que o alojava com um luxo discreto numa velha torre que não era senão uma das dependências da sua villa. Tinha uma profissão que o isentava de pagar impostos: era o encarregado e conservador do arquivo Palombini. Este consistia em milhares de livros, fólios, e maços de fichas amareladas, tudo isto empilhado nas caves abobadadas que haviam sido os estábulos e o depósito de armas dos guardas da propriedade.

Aquele lugar começara por se chamar "Torre Merlata", dado que fora construída para desempenhar as funções de torre de vigia, tendo para tal seteiras e canhoneiras. Contudo, as palavras foram-se encurtando e suavizando através dos séculos, passando para a forma final de, "Tor Merla" - Torre do Melro.

Era um bom nome, pois no pátio havia um castanheiro onde as aves faziam os ninhos, ficando assim a salvo dos ventos frios vindos das montanhas, já para não falar do calor abrasador dos verões da Toscânia. De manhã, Pia Palombini subia até lá acima, acabando por se instalar numa cadeira de descanso colocada num ângulo ensolarado, ficando ali a vê-lo trabalhar e a participar nas histórias registadas naquelas páginas amarelas e gastas - processos judiciais e libertinagens, cabalas e conspirações passadas no seio das mais importantes famílias, e entre elas encontravam-se os Palombini.

A noite jantava na villa, no refeitório abobadado onde as traves de pinho brilhavam à luz da enorme lareira situada por debaixo do brasão entalhado dos Palombini... "num fundo azul uma cruz de esmalte vermelho, e quatro pombas a voar." Mais tarde, depois de terem dispensado os criados, faziam amor no enorme letto matrimonio com os seus brocados e borlas douradas, e um longo historial de encontros apaixonados. Às vezes, sem qualquer aviso, Pia aborrecia-se do ritmo pastoril dos seus dias e arrastava-o para Veneza, Paris, Londres ou Madrid, locais onde faziam as compras mais extravagantes e se divertiam com todo o fausto.

Era uma existência agradável, e Mather aceitava-a sem qualquer sentimento de culpa, bem assim como sem se questionar. Tinha bom feitio e bom aspecto, era potente na cama, um acompanhante educado, um conversador inteligente, e um convidado bem aceite em qualquer festa. Inseria-se perfeitamente na imagem do damigello - o morgado, o intelectual residente, o qual ganhava o seu sustento e mantinha o seu lugar, não constituindo qualquer ameaça para os herdeiros, uma vez que a senhora bem que o podia amar mas nunca se casaria com ele.

Então, num belo dia de Primavera, Pia, que não andava a sentir-se bem, foi a Florença consultar o médico. Ele mandou-a ir de imediato a Milão, com vista a efectuar exames clínicos bastante completos. O veredicto não foi nada animador.- doença dos neurónios motores, bem assim como atrofia gradual do sistema nervoso. Não havia cura. O prognóstico enfatizou bastante este aspecto negativo. Tudo o que estava em dúvida era saber se o fim estava para breve, ou se demoraria a chegar.

Em qualquer dos casos, o progresso da doença era inexorável: relaxamento dos músculos e dos tecidos, falha progressiva do sistema nervoso, risco cada vez maior de que a paciente pudesse asfixiar ou paralisar até à morte.

Quando Pia deu a notícia a Mather, perguntou-lhe de forma desabrida se ele queria ficar ou ir-se embora. Respondeu que ficaria. Quando ela lhe perguntou porquê, conseguiu arranjar a mais elegante mentira da sua vida e disse-lhe que a amava. Ela beijou-o, irrompeu num pranto, e saiu do quarto a correr.

Nessa noite teve um sonho macabro no qual estava deitado no velho leito, algemado a um cadáver. Quando acordou, encharcado em suor e aterrorizado, o seu primeiro impulso foi fazer as malas e fugir. Foi então que compreendeu que nunca poderia viver com a vergonha daquela deserção. A indolência e o interesse conferiam força a esta convicção. Estava a viver numa bela casa. Por que razão sairia dali para passar necessidades? Pia era generosa nas suas demonstrações de gratidão. Não custava muito ser decente com ela e dispensar-lhe ternura e compaixão.

Sentava-se a seu lado durante as refeições, pronto a ajudar no caso de ela ter um ataque de paralisia, se deixasse cair o garfo ou ficasse sem fôlego. À medida que os espasmos se tornavam mais frequentes e o enfraquecimento se notava a olhos vistos, dava-lhe banho e vestia-a, levava-a a passear na cadeira de rodas, lia-lhe até ela ficar a dormitar perto da lareira. As mulheres da casa, que a princípio lhe chamavam o cachorrinho da senhora, comentavam umas com as outras, tecendo-lhe elogios. Até mesmo Matteo, o capataz, homem rude e mal-humorado, começou a chamar-lhe professore e a dizer aos amigos que encontrava na taberna que aquele era um homem de coração e de honra.

A própria Pia respondia com a afeição desesperada de uma mulher que vê a sua beleza arruinar-se, a paixão que sentia ficar entorpecida, e a vida reduzida a apenas mais alguns meses de empréstimo. Oferecia-lhe prendas caras: um relógio Tompion que pertencera ao avô inglês, um anel com sinete do século XVII, o qual mostrava as armas dos Palombini gravadas numa esmeralda, um par de botões de punho feitos por Buccellati. Cada presente era acompanhado de uma nota escrita pela sua mão, a qual já fora enérgica mas que agora começava a tremer: "Para o meu querido Max, o meu intelectual residente, cujo lar é o meu coração... Pia" "Para o Max, através de quem continuarei a viver e a amar... Pia." Todos os bilhetes traziam datas de festas - O Ferragosto, a Páscoa, o dia da santa a quem Pia fora buscar o nome, o seu próprio aniversário. Ele guardava as notas junto com as outras lembranças. Protestava com Pia a respeito dos presentes:

- São demasiados... e muito preciosos! Colocam-me numa posição falsa. Olha, tu pagas-me generosamente. Contudo, eu trabalho. Ninguém me sustenta nem eu sou homem para isso. Quando aqui cheguei, o arquivo Palombini era uma desgraça. Agora já começa a ter um ar respeitável. Se me derem tempo posso transformá-lo em algo de que a família se poderá orgulhar. É a única maneira de retribuir um pouco aquilo que te devo... Não estás zangada comigo, pois não?

Zangada? Como poderia estar zangada? Tudo o que ele fizera fora levá-la a novas formas de dependência. Havia dias em que não suportava tê-lo longe da vista. Havia noites em que lhe pedia para a levar para a cama - não a pensarem sexo mas simplesmente à procura de conforto, tal como uma criança aflita. Então, quando ele a segurava nos braços, ficava irritada e chorava, pois já não se excitava como costumava fazer.

Felizmente que aos fins-de-semana estava livre. A família de Pia vinha visitá-la - tios, tias, primos, sobrinhos, parentes por afinidade em todos os graus. Vinham mostrar o seu respeito e solicitude e certificar-se de que os seus nomes, actos e parentesco seriam lembrados no testamento. Tinham desaprovado as loucuras escandalosas de Pia, mas agora que a sua ligação sexual com Mather estava terminada, mostravam-se dispostos a aceitá-lo como um servidor da família, mais ou menos como um médico ou um confessor. Aprovavam a disposição geográfica das coisas, pois ela permanecia na villa e ele fora relegado para o celibato e a solidão da Tor Merla.

De facto, os seus fins-de-semana não eram nem celibatários nem passados em solidão. Tinha uma boa amiga em Florença, Anne-Marie Loredon, uma loura de lindas pernas natural de Nova Iorque, filha de um dos leiloeiros mais importantes da Christie's, e que se encontrava a estudar em Itália devido a uma bolsa que lhe fora dada pelas Belli Arti. Estava alojada numas águas-furtadas por detrás do Teatro Pergola, coisa que era bastante cara para um estudante.

Haviam-se encontrado quando ambos tomavam um copo no Harry's Bar, simpatizaram um com o outro, passaram a noite juntos, descobriram que também isso era agradável - presto! - as coisas aconteceram. Mather passou a instalar-se no apartamento dela como hóspede do fim-de-semana, pagando a conta com vinho, comida, e explicações eruditas sobre arte. Ambos concordavam em como o sexo era um bónus - nada de laços, de rótulos, de perguntas.

Esta relação funcionava bem. Eram dois egoístas declarados que se usavam mutuamente. Quando acabasse os estudos, Anne-Marie ficaria com o pai: um intermediário que tinha os leilões a seu cargo. De momento limitava-se a ter um acompanhante bem parecido, e uma entrada para a sociedade florentina com as suas velhas famílias de escultores e fundidores do bronze, aqueles que trabalhavam com apedra, a madeira, o couro, já para não falar nos pintores, gravadores e oleiros.

Por seu turno, Mather tinha direito a um tipo de sexo que se podia considerar seguro, uma base na cidade, um centro de mensagens, e uma identidade legítima entre os seus pares. Junto com Anne-Marie podia atirar para trás das costas as mágoas da família Palombini. Com os florentinos podia apresentar-se como sendo um erudito que trabalhava, o bibliotecário e arquivista de uma família nobre. Faltava pouco para que esta identidade assumisse uma importância vital. A sua protectora estava a morrer e teria de encontrar um novo lugar no mundo académico.

Era isto que o levava a escolher os amigos florentinos com todo o cuidado.

O primeiro de entre todos eles era o conservador de Assinaturas da Biblioteca Nacional, um sábio de cabelos brancos que lembrava Toscanini. Todos os sábados costumava levar-lhe um ou dois volumes da colecção Palombini, e discutir o seu significado e valor com o velhote, o qual se mostrava afeiçoado em relação ao discípulo mais novo.

No campo das artes, o seu amigo mais chegado era Niccoló Tolentino, um homem pequeno e com ar de gnomo que ostentava uma corcunda e tinha um belo e límpido sorriso. Nascera em Nápoles e, enquanto jovem, trabalhara para um artista famoso que vivia em Sorrento. Agora era o restaurador mais importante que trabalhava na Pitti, e tinha fama de ser um dos maiores copistas e restauradores que existiam. Mather levara-lhe um dos painéis de um tríptico bastante estragado, e pedira-lhe que o restaurasse, pois seria a sua prenda para o aniversário de Pia. O homenzinho produziu uma bela imitação de Duccio tudo em folha de ouro e azul celestial. Mather ficou encantado e pagou-lhe de imediato em dinheiro. Perante isto, Tolentino convidou-o para jantar e regalou-o com uma série de histórias de pôr os cabelos em pé a respeito de obras falsas e de embustes, sem esquecer os sinistros milionários da Grécia, Brasil e Suíça, que patrocinavam o roubo de obras-primas e a sua exportação ilegal.

Além disso, e na companhia de Anne-Marie, visitava os intelectuais mais conceituados da cidade, bem assim como os entendidos de arte. Passeavam regularmente pelas galerias. Mather fez constar que estava a trabalhar numa pequena monografia: A Economia Doméstica na Florença dos Princípios do Século XVI, Este trabalho baseava-se num dos registos menos espectaculares que se encontravam no arquivo Palombini - uma série de livros de contas da responsabilidade do camareiro da villa, e que compreendia o espaço de tempo entre 1500 e 1510. Estavam ali registadas as compras e vendas de todos os produtos possíveis e imagináveis: vinho, azeite, tecidos, cordame, sebo, gado, mobiliário, arreios e ornamentos para os cavalos. Estes eram também os volumes que ele costumava mostrar ao conservador de Assinaturas com mais frequência, pois pretendia saber a interpretação de certos nomes arcaicos, bem assim como a de algumas abreviaturas pouco comuns. A natureza da tarefa a que se propunha combinava-se perfeitamente com a imagem do estudioso confortavelmente subsidiado, contentando-se em chapinhar de forma pacata num nunca mais acabar de trivialidades históricas.

A sua liberdade terminava às oito da noite de domingo. Pia estava à sua espera, cansada e irritada depois do cerco dos parentes. Jantavam juntos - um jantar composto de chá e sanduíches inglesas. Ela ficava à espera que ele lhe resumisse as suas aventuras do fim-de-semana, resumos estes que tinham de possuir um mínimo de consistência, dado que, nos seus momentos mais desesperados, Pia era bem capaz de confirmar os pormenores com os informadores que tinha na cidade. Em Florença ainda se respeitava o nome de uma família que levara o pendão dos Médicis.

Sabia que ele ficava com Anne-Marie. Não gostava da ideia, mas aceitava a história de que o pai da rapariga era um velho amigo de Mather, e que este não tinha qualquer interesse sexual por ela, nem ela por ele. Dado que Pia não acreditaria que ele levasse uma vida afastada dos prazeres do sexo, contou-lhe que satisfazia os seus apetites numa conhecida e bem cotada casa onde o sexo era limpo, mas que se encontrava a milhas do amor apaixonado e desinteressado que sentia por ela, Pia Palombini. Dado que não havia qualquer rival a envergonhá-la, atirava isto para trás das costas como se de uma indulgência necessária se tratasse. Às vezes obrigava-o a partilhar o prazer que sentia, fazendo-o contar todas as historietas da vida e das práticas dos bordéis. Deixava-o falar até por volta da meia-noite, altura em que a levava para a cama, a colocava no meio das almofadas, seguindo depois, já bastante cansado, para a torre, a qual se recortava, escura e ameaçadora, de encontro a um céu nocturno.

Uma vez lá dentro já não tinha qualquer necessidade de mentir. Estava sozinho consigo mesmo - um estudioso assim-assim, um homem preguiçoso e venal que queimava os últimos cartuchos com uma amante moribunda, e que se interrogava a respeito da forma como organizaria a sua vida de ali para diante.

Entretanto, de dia para dia Pia Palombini aproximava-se da morte. Ainda estava lúcida, mas os espasmos paralisantes e os bloqueios respiratórios eram cada vez mais frequentes. Perdia peso rapidamente, e sempre que ele lhe pegava ao colo achava-a tão frágil como uma boneca de Dresden. Detestava vê-la sofrer, detestava ainda mais a humilhação que a doença lhe trazia. Conseguia ir buscar formas de a consolar ao mais íntimo de si. Quando ela lhe pedia que acabasse com aquela miséria, sentia-se tentado a fazê-lo de uma forma que nunca lhe parecera possível. Chegou mesmo a mencionar o facto ao médico, o qual o olhou de uma forma astuta mas compreensiva, e o avisou:

- Não estamos na Holanda, Mr. Mather. As nossas leis são mais cristãs e menos compassivas. Portanto, tire da cabeça toda e qualquer ideia de uma morte piedosa. É certo que a libertaria, mas você e eu iríamos parar à cadeia. Demonstre-lhe o seu amor durante mais algum tempo. Não falta muito para que deixe de respirar.

E foi exactamente isto que aconteceu. Numa noite invernosa, enquanto a enfermeira tricotava junto à lareira e ele estava sentado no sofá com Pia nos braços, ela levantou a mão magra e engalfinhada e tocou-lhe no rosto. Depois, tal como se o esforço fosse demasiado, deixou escapar um pequeno suspiro de cansaço, virou o rosto para o peito dele e morreu. Ele levou-a para o andar de cima, viu a enfermeira colocá-la na cama de forma conveniente, chamou o médico, a família, o pároco, e só então se sentou junto do lume que se apagava, mais solitário do que alguma vez se sentira em toda a vida. Tal como há muito o desejava, acabara por se lhe escapar. No entanto, a ironia residia no facto de que fora ela quem se escapara. Fora durante tanto tempo o foco que lhe iluminara a vida, que agora nada mais havia para onde olhar, a não ser para dentro de si, para a sua própria imagem fragmentada.

Durante o funeral tentou evitar embaraços para a família, juntando-se por isso aos outros membros do pessoal. No entanto, quando o caixão foi colocado no jazigo e os portões de bronze se fecharam, descobriu que chorava desconsoladamente. Foi então que sentiu que um braço protector lhe rodeava os ombros, e ouviu o velho Matteo recitar uma ladainha de conforto.

- Então, professore! Devia estar feliz por ela. Agora já não sofre. Voltou a ser bonita. É assim que ela quer que a lembre.

Não era difícil acreditar em tudo isto. O que não conseguia entender era aquela enorme desolação que sentia dentro de si. Quando, alguns meses atrás, lhe dissera que a amava, usara da reserva convencional que caracterizava as suas relações. Estavam apaixonados, todos os sabiam amantes, e sempre se comportaram como tal. Mas foi só na agonia, no meio das dores mais atrozes, que experimentaram o amor.

De volta à villa, apresentou as suas condolências a todos os membros da família, e, assim que a decência o permitiu, voltou para Tor Merla, onde se serviu de uma generosa dose de brande e se sentou no pátio, vendo o vento gelado arrancar as primeiras folhas de Outono. Ao fim de uma hora recebeu aí a visita de Claudio Palombini, o sobrinho que fora nomeado executor do testamento de Pia. Era um florentino bem parecido, de olhar frio, que racionava as palavras tão cuidadosamente como se estas fossem florins de ouro. Entregou-lhe uma cópia do testamento da tia - um documento holográfico ao estilo italiano.

Com um ar grave, foi então que fez o seguinte comentário:

- Mr. Mather, dá a sensação de que o senhor precisa de ser mais confortado que a família da minha tia.

- Sinto-me... - Max Mather pronunciou as frases muito devagar -, sinto-me como se estivesse fechado no jazigo e Pia tivesse fugido.

Claudio serviu-se de um brande e sentou-se numa das esquinas da mesa rústica. Saiu-se com uma desculpa formal:

- Mr. Mather, tenho de confessar que acabei por ser forçado a admirá-lo. Fez que a minha tia fosse muito feliz. Cuidou dela como poucos maridos o fariam. Estamos-lhe todos muito agradecidos.

Mather digeriu o cumprimento em silêncio, e depois respondeu friamente:

- Não tem nada que me agradecer. Eu amava a sua tia. Vou ter muitas saudades dela.

- Sabe que ela o menciona no testamento?

- Não tinha conhecimento de tal coisa.

- Vai receber dois anos de salário, pode ficar com o automóvel e com todos os presentes pessoais. Tem direito a escolher uma lembrança de entro todo o material de arquivo onde tem estado a trabalhar. Creio que a doação é razoável.

- É mais que razoável. - O tom de Mather era brusco. - Têm-me pago generosamente. Não estava à espera de outras gratificações.

- Dar-me-ia bastante prazer, isto para além de me ajudar imenso, se considerasse a hipótese de aqui permanecer e de dar continuidade ao seu trabalho no arquivo.

- Obrigado, mas declino a oferta. Sem a Pia a torre iria parecer-me terrivelmente solitária. Mas estarão por acaso dispostos a considerar uma sugestão?

- Claro.

Mather conduziu o visitante até ao interior da torre, onde, tal como se fosse um guia, lhe mostrou as pilhas de livros, manuscritos e fólios espalhados pelas câmaras abobadadas. Comentou:

- A menos que o veja com os seus próprios olhos, nunca compreenderá a quantidade de trabalho que um arquivo com estas dimensões requer.

Pegou num maço de papel atado com um cordel podre, soprou-lhe o pó e entregou-o a Palombini.

- Por exemplo, isto. O primeiro documento data de 1650. Dado que a maior parte poderia desfazer-se, não me atrevi a abrir todo o embrulho. Pode ser que lá estejam coisas valiosas, pode ser que não. O que precisa é de ser devidamente conservado, nas melhores condições... Bom, o que estou a tentar dizer é que o arquivo histórico é muito importante, mas dá trabalho... um trabalho constante e dispendioso. Mesmo que eu ficasse, nunca conseguiria fazer tudo sozinho. De per si, só a classificação é já uma tarefa imensa. A conservação é já um caso à parte, é trabalho para peritos. Porque não entregar tudo à Biblioteca Nacional? Seria um gesto principesco que ao mesmo tempo liberta a família de um pesado encargo financeiro e de uma enorme responsabilidade cultural.

Palombini reflectiu no assunto durante alguns minutos, depois acenou com vigor, mostrando assentimento.

- Muito bem! Quem sabe? Talvez haja alguma vantagem fiscal para o património, bem assim como algum ganho para a Providência.

- É muito fácil esclarecer a posição fiscal - disse Mather. - O conservador de Assinaturas é meu amigo.

- Será capaz de ficar connosco o tempo suficiente para encaminhar as coisas? Se quiser ter um amigo consigo não haverá problema. Compreende, - Preciso, de um outro serviço.

- Qual?

- Um catálogo profissional e uma avaliação das obras de arte que estão na villa.

- Será capaz de o fazer?

- Providenciar as coisas, talvez... mas não fá-las. Aconselho-o a chamar Niccoló Tolentino, da Pitti.

- Está claro que aceito o seu conselho. Mas estes são os passos mais importantes com vista à avaliação do património. Ficaria bastante satisfeito se os pudesse deixar a seu cargo.

- Dou-lhe seis semanas - disse Mather. - Depois disso vou-me embora. Tenho toda uma vida a reconstruir.

- Obrigado.

- Mas está claro que isto tem um preço - acrescentou. - Duplique o meu salário actual e junte-lhe o custo da minha transferência para os Estados Unidos. O legado não deverá ser mexido, sendo-me entregue antes de me ir embora.

- De acordo. - Palombini ficou subitamente bem disposto. - Você é um bom negociante. Gosto disso. Lamento que não nos tenhamos conhecido antes.

- Ironias do destino - comentou o outro, exibindo um sorriso forçado. Ainda mal nos cumprimentámos e já são horas de deixar a festa. Vai manter o mesmo pessoal na villa?

- De momento sim. Por que pergunta?

- Se não se importa, vou viver para a cidade e venho todos os dias até cá. Acho que dou em doido se ficar aqui durante a noite.

- Sei como se sente. - Claudio Palombini estava de novo sombrio. - É uma terra velha e sangrenta. As vinhas crescem das bocas dos mortos.

 

Naquela mesma noite, Mather foi até Florença e registou-se numa pequena pensione. Não telefonou a Anne-Marie. O pacto que existia entre ambos especificava que ele só tinha direito ao quarto durante o fim-de-semana. Em qualquer outra altura poderiam lá estar outros visitantes, e ele não estava com disposição nem para aturar desconhecidos, nem para enfrentar situações embaraçosas.

Telefonou ao conservador de Assinaturas para lhe contar sobre a sua partida iminente, não esquecendo a doação do arquivo Palombini. Apesar de o velhote se ter de imediato juntado às manifestações de pesar pela morte de Pia, é óbvio que estava encantado com a possibilidade de adquirir o arquivo para a sua instituição. Prometeu discutir o assunto com a directoria e examinar as vantagens fiscais que este acto traria ao doador. Alertou-o para a morosidade do processo, coisa que aliás acontecia com tudo o que era oficial, mas prometeu fazer todos os possíveis para que as coisas andassem.

Foi então que Mather telefonou a Niccoló Tolentino, o qual de imediato se ofereceu para o distrair das mágoas com um jantar no Gallodoro.

Era o restaurante favorito de Tolentino - uma grande cave cujas paredes brancas e tectos abobadados estavam cobertos de pinturas feitas por artistas florentinos. Por cima da porta da cozinha via-se a imagem dourada de um galo emproado, o animal a que o local fora buscar o nome. Niccoló Tolentino, o autor desta pintura, sentava-se sempre no lugar de honra - uma mesa de esquina onde se colocara uma cadeira alta e um banquinho para os pés, de forma a impedir que as pessoas menos bem nascidas olhassem o homenzinho lá do alto, pois que, e no entender dos seus pares, ele era um grande homem. Quando Mather chegou ele já estava escondido por detrás de um copo de punt e mes, e de um prato de pistáchis, tendo também o bloco e o lápis à sua frente.

Como sempre, o encontro de ambos foi emocional. "Max!", "Nicki!" Seguiu-se um abraço prolongado, e depois mais algumas exclamações que só cessaram quando puseram uma bebida à frente de Mather. A refeição já fora encomendada e o vinho decantado, sendo este um vintage principesco cujo produtor agraciara o pintor com uma adega privada. O velhote levantou o copo para fazer um brinde.

- À tua dama, Max. Requiescat.

- Que descanse em paz - murmurou.

Beberam de um só trago. O pintor pousou o copo e começou a falar com suavidade e como que ao acaso.

- Os velhos métodos ainda são os mais sensatos. Come-se e bebe-se depois de uma morte, lembram-se os bons momentos e tenta-se voltar a sorrir. Os desgostos não beneficiam ninguém, e muito menos o morto, que já deixou tudo para sempre. Estás magoado, não?

- Muito mais que o que seria de esperar, Nicki. Muito mais.

Tolentino olhou-o de esguelha e fez uma pergunta estranha:

- Max, já alguma vez estiveste preso?

- Ainda não. - Apesar de se sentir como se sentia, Mather conseguiu soltar uma gargalhada. - Por que perguntas?

- Dizem que a pior parte da pena é o dia em que te voltam a empurrar para a rua... Estiveste amarrado à Pia durante muito tempo. Ela já se libertou. Tu ainda tens de aceitar a tua alforria. Vais acabar por refazer a tua vida com uma outra mulher. Não já amanhã nem na próxima semana, mas dentro em breve será a altura de começares à procura. Alegra-te por não seres como eu, que tudo o que posso fazer é olhar! Diz-me uma coisa. Esta rapariga que visitas em Florença... a que quer ser intermediária, leiloeira?

- Anne-Marie Loredon? Que se passa com ela?

- Isso pergunto eu, Max. Que se passa com ela? Sei que ficam juntos durante o fim-de-semana. Vão juntos aos estúdios e às galerias. É evidente que não se detestam.

- Somos bons amigos. Ela gosta dos meus cozinhados. Acha-me um bom professor particular.

- E que pensas tu dela, Max?

- Penso que só se interessa pela sua futura carreira, e eu não estou incluído nos seus planos profissionais. Mas mudemos de assunto. Não tens problemas em aceitar encargos particulares?

- Claro que não. Como qualquer funcionário público em Itália, são eles que me permitem viver. Em que estás a pensar?

- Claudio Palombini quer que os quadros que estão na villa sejam catalogados e avaliados. Disse-lhe que eras a pessoa indicada para o fazer.

- E que respondeu ele?

- Que eu devia ir em frente e providenciar as coisas.

Niccoló Tolentino ficou a olhar para ele de boca aberta como se não acreditasse em nada do que ouvia, e depois foi dominado por uma explosão de riso que fez que todos os que ali estavam a jantar se virassem para ele. Riu-se até as lágrimas lhe rolarem pelo rosto abaixo, e Mather receou que ele fosse ter algum ataque. Assim que recuperou, pediu mais vinho e, por entre novos ataques de riso, comentou:

- Meu amigo, isso... isso é a anedota mais divertida que ouvi. Queres dizer que o Claudio não sabe quem eu sou?

- Pelo menos não o mostrou.

- Oh, querido irmão Max, fui eu que fiz dessa colecção aquilo que ela é hoje. Conheço toda a tralha que lá está incluída, bem assim como as poucas coisas boas que não estão à vista!

- Tens a certeza de que não te orgulhas disso?

- De certa forma sim. A tua Pia nunca te contou a história de Luca Palombini, aquele a quem chamavam l'ingannatore, o agente-duplo?

- Não, nunca.

- Bom... então, e tal como verdadeiros cavalheiros, vamos guardá-la para a sobremesa. A comida é demasiado boa para se estragar com conversas.

Foi assim que as coisas se passaram, mas a história que Niccoló Tolentino contou foi o melhor dos pratos que constavam da ementa.

 

- Durante o regime fascista e até ao fim da segunda guerra, quem se encontrava à cabeça do clã dos Palombini era um velho pirata destemido a quem chamavam "Luca l'ingannatore - Luca, o Escroque." - Niccoló Tolentino abanou o dedo como que para o advertir de alguma coisa.

- Não te deixes impressionar por este nome. Ele não só se limitou a ser o espelho perfeito da sua época, mas também o arquétipo perfeito do príncipe e mercador florentino. Coloca-o num século qualquer e teria tido a mesmíssima importância. Os Fugger ter-lhe-iam emprestado dinheiro. Cosimo, e até mesmo o próprio Lorenzo, tê-lo-iam cumulado de honras. Os franceses, os romanos e os venezianos fariam negócio com ele, não sem contarem o número de dedos que lhes restava depois de lhe terem apertado a mão. Não possuía quaisquer escrúpulos quando se tratava de conseguir aquilo que ambicionava, e no entanto tinha um encanto particular e a têmpera calma de um jogador.

"Para Luca, o mercado era o habitat natural do ser humano. Todos os homens e mulheres, todos os animais, frutos e verduras tinham um preço. Todo os preços eram passíveis de ser negociados, e Luca movia-se no passado, no presente e no futuro. A arte... entenda-se por arte aquilo que se pode vender.. pertencia ao passado, o seu valor estava na raridade, no facto de estar coberto de pátina, de a sua durabilidade ter sido comprovada, e de figurar em catálogos tais como os de Uffizi ou do Museu do Vaticano. Segundo Luca, eram os turistas quem criava o mercado de antiguidades, os novos-ricos que viajavam pelo mundo inteiro, os barões do aço e os reis do petróleo, os quais haviam sido injectados com uma educação tardia e suspeita levada a cabo por Duveen, Berenson e outros que tais.

"No entanto, e ao contrário dos produtos naturais, a arte é algo que só acontece uma vez. Não se pode reproduzir. Contudo, pode ser imitada e copiada, de forma que Luca contratou um certo jovem napolitano possuidor de bastante talento, o qual por acaso era eu, jovem, esperto e barato, para fazer cópias de todos os trabalhos mais importantes da colecção Palombini. Então, servindo-se dos mesmos meios de transporte que usava para os vinhos, as frutas, as sedas e os couros que enviava através da Europa, começou a exportar algumas das obras de arte originais para receptáculos seguros na Suíça. Ao mesmo tempo e como qualquer bom comerciante, enviou também algumas das minhas cópias, pois calculava que se o comprador não sabia distinguir entre uma bolsa de seda e uma orelha de porco, tanto lhe fazia pagar por uma coisa ou por outra.

"Quem sabia o que se passava? Nesses prósperos anos fascistas, quando o Mediterrâneo era o Mare Nostrum, os comboios andavam a horas, os camponeses da Calábria colonizavam a Eritreia, e Hitler acabara de anexar a Áustria nessa altura quem é que se importava? Luca sabia, Luca importava-se. Luca possuía capital sólido na Suíça neutra, em Portugal, no Brasil ou na Argentina. Em Nova Iorque ou no Rio, um Perugino ou um Caravaggio representavam um bem comercial mais elevado que a sua própria pátria. Mas a villa de Luca e os apartamentos que este mobilava para as amantes não apresentavam quaisquer mudanças, uma vez que Niccoló Tolentino, o pequeno corcunda de Nápoles era um pintor esplêndido, um génio na arte da reprodução...

"Mas, meu caro Max - Tolentino interrompeu a sua história para enfatizar um determinado aspecto -, nunca fui, nem nunca serei, um falsário. Nunca impingi uma cópia como se fosse o trabalho de um mestre. Não me importava quando Luca vendia as minhas cópias aos nazis a troco de protecção e somas avultadas. Detestava os filhos da mãe. Mas era ele o traficante e não eu. Quero que não te esqueças disto, pois para mim é uma questão de honra.”

- Não me esquecerei disso, Nicki - assegurou-lhe Mather -, mas mal posso esperar para ouvir o resto da história.

- A noite não chegava para ta contar na totalidade, Max. No entanto, as coisas passaram-se como se segue. Em 1939, quando rebentou a guerra, Luca mandou a mulher e os filhos para a Suíça, colocando-os ao cuidado dos seus banqueiros, e dos directores da sua filial em Genebra. Foi então que se instalou na villa rodeado de uma sucessão de namoradas animadas. Quando a guerra começou a correr mal, precaveu-se com toda a gente: os fascistas, os alemães, a igreja, os resistentes, os comunistas, e também com os agentes aliados que apareceram por toda a Toscânia e Romanha, tal qual toupeiras num relvado. Quando o governo de Mussolini se afundou e os alemães travavam a longa e sangrenta batalha de retirada da península, Luca Palombini deitou mãos a uma política seguradora extra.

"Em três dias, e com a ajuda de um dos grupos da resistência, tirou da villa todas as obras valiosas que ainda tinha, e emparedou-as nas abóbadas de Tor Merla. A nova cantaria foi coberta com estuque, tendo este, e por sua vez, sido revestido com argila, a qual lhe conferiu um aspecto mais antigo. A resistência foi recompensada com uma avultada soma, tendo-lhe também sido garantido o uso da torre como refúgio e armazém de comestíveis. Quando os alemães chegaram em força, os resistentes foram-se embora. Os soldados da Wehrmacht transformaram a torre num posto de observação, isto enquanto que, com um desconforto espartano, os oficiais jantavam na villa junto de Luca Palombini e a sua última namorada, Camilla Dandolo - uma cantora do La Scala cujo corpo era bem melhor que a voz.

"Depois do cessar-fogo, Luca reabriu as abóbadas e começou a transaccionar a maior parte das obras originais que ainda possuía, isto com vista a arranjar dinheiro para reorganizar a fortuna da família. As paredes da villa ficaram cobertas com as minhas cópias de grandes trabalhos, bem assim como os originais de terceira classe que não valia a pena vender, mas as empresas Palombini, tanto no país como no estrangeiro, estavam bem de finanças.

"Foi então que Luca mandou vir a família da Suíça. No entanto, e antes que esta chegasse, ele morreu enquanto levava a cabo um duelo com a soprano. A mulher de Luca fez um grande barulho dizendo que faltavam uma série de peças importantes, muito embora sem ter especificado quais. Jurava a pés juntos que a cabra do La Scala roubara o marido antes de o ter morto. Depois, e claro está que a conselho da família, calou-se. Luca, o Agente-Duplo, tratara bem os herdeiros. Se ele tivesse de liquidar tudo o que devia... boh! Florença tem sido sempre uma cidade de comerciantes. Portanto... stá zitta, Madonna! Esquece as perdas, conta os ganhos, e não te esqueças de ficar calada!

"E é assim que as coisas acabam, Max. Só que parece que não se ficam por aqui. Depois de todo este tempo estamos ambos aqui sentados, e tu estás a convidar-me para enumerar todas as porcarias que compõem a colecção do Luca, e ainda me vão pagar para isso. C'é una pazzia! É uma loucura!

- Tenho uma pergunta a fazer-te, Nicki.

- Força, meu caro Max.

- Se a colecção era aquilo que tu dizes... uma mistura de coisas boas e más, de originais e de cópias... por que razão teve Luca tanto trabalho em a esconder em Tor Merla?

O homenzinho riu-se e estendeu as mãos numa série de gestos eloquentes.

- Acho que já te esqueceste de como ele se chamava: Luca, o Escroque, o Agente-Duplo. Com ele as coisas nunca eram aquilo que pareciam. O simples facto de ter emparedado as coisas fez que elas se tornassem valiosas. Tinham de ser preciosas. Se o traíssem ou ele fosse descoberto, não perdia muito.

Mas, e como tal não aconteceu, se as coisas voltassem a ser devolvidas triunfalmente à luz do dia, então todas as peças, até mesmo as minhas coisas, se transformariam ipso facto numa obra-prima. Foi assim que depois da guerra ele conseguiu financiar o império da família, tanto no país como no estrangeiro...

- Então... sempre aceitas o trabalho, Nicky?

- Por ti e pelo dinheiro dos Palombini está claro que o farei. Agora, e se prometeres meter-me na cama em segurança, vamos tomar outro brande.

 

No dia seguinte, e logo pela manhã, Mather regressou a Tor Merla, preocupado mas livre dos seus fantasmas. Claudio Palombini ainda estava na villa. Ficou satisfeito por saber que era provável que o peso do arquivo lhe saísse das costas, bem assim como a possibilidade de obter várias vantagens fiscais. Encarregou Mather de dar início às negociações com a Biblioteca Nacional e de supervisionar o trabalho de Tolentino no que respeitava à avaliação de obras de arte. Entregou-lhe um cheque em que constava o pagamento de seis semanas de salário, disse-lhe que a sua parte da herança seria paga no prazo de trinta dias, e partiu para a Suíça.

Mather passeou-se pelo arquivo durante cerca de uma hora, tomando nota de tudo o que deveria ser feito para que este estivesse em ordem quando a directoria da Biblioteca Nacional o fosse inspeccionar. Precisava de cavaletes e de prateleiras para tirar as resmas de documentos do chão antes que os vermes do papel e as baratas dessem cabo de tudo. Apesar de não ter mencionado o facto a Palombini, sabia que, e devido à falta de pessoal e de espaço, a Biblioteca podia muito bem recusar a enorme quantidade de documentos ainda por examinar.

Telefonou para a villa e pediu a Matteo que desse ordens ao carpinteiro para que começasse a trabalhar na manhã seguinte. Depois, e dado que o dia estava agradável e o pátio quente, arranjou um café e instalou-se por debaixo do castanheiro junto com os livros que lhe serviam de referência, e do texto incompleto da sua monografia.

Estava a trabalhar no livro de registos do 1505, quando o mês de Outubro o confrontou com uma entrada invulgar. Notou que no dia oito do referido mês fora paga a quantia de oitenta florins a Mestre Raffaello, um pintor de Urbino, como pagamento de dois retratos: um representando Donna Delfina Palombini, esposa do Gonfaloniere Andrea Palombini, o outro exibindo a filha de ambos, a Donzela Beata. Paralelamente, encontrava-se também registada a quantia de sessenta florins que serviria de pagamento a cinco esboços destinados à pala, ao retábulo da capela de San Gabriele, sita nos terrenos da villa. A nota acrescentava que estas quantias tinham sido pagas na íntegra - o que significava que as ordens tinham sido cumpridas e os trabalhos entregues.

Esta entrada fascinou-o. Era o tipo de coisa que os negociantes de arte e os historiadores pediam aos céus que acontecesse. No entanto, não se lembrava de o catalogue raisonné dos trabalhos de Raffaello mencionar quaisquer retratos dos Palombini, bem assim como os esboços. Resolveu procurar nos livros que se encontravam nas suas prateleiras, e encontrou um Passavant e um Carli. Nenhum deles fazia qualquer referência, quer aos retratos quer ao retábulo. Portanto, mais uma vez aqui se encontrava um desses mistérios tão queridos aos estudiosos, tanto amadores como profissionais. Teriam estas obras sobrevivido aos séculos? Se assim fosse, onde se encontrariam?

Havia ainda uma outra linha por onde o inquérito podia seguir: será que aqueles livros velhos registavam mais aquisições deste tipo? Deixou arrefecer o café enquanto investigava com todo o cuidado a caligrafia antiga e as abreviaturas confusas. Ia apenas em meados de Janeiro de 1506 quando Matteo, o capataz, apareceu vindo da villa. trazendo consigo Luigi, o carpinteiro, que vinha tirar as medidas para as prateleiras e os cavaletes que eram necessários.

Tratava-se de um assunto prático e terreno, o qual requereu toda a sua atenção e respeito durante cerca de meia hora. Teve de oferecer café e um cálice de grappa. Foi forçado a escutar as queixas de Luigi, o falegname, que dizia que não era justo exigir que se executassem bons trabalhos de carpinteiro de uma hora para a outra. Mather entendeu o que lhe era pedido. Sabia que não havia maneira de combater o vento vindo dos Apeninos. Há que lhe virar as costas, tapar os ouvidos e esperar que a fúria passe. Colocou algo a marcar o livro de registos, pôs de lado as notas, e devotou-se de corpo e alma às questões relativas a prateleiras, cavaletes, e à escolha entre madeira folheada e não folheada. se aceitasse madeira não folheada, então o trabalho poderia ser feito no dia seguinte. Se quisesse o trabalho de um artesão, então teria de esperar mais duas semanas. O telefone tocou quando estava prestes a gritar que se rendia. Era Anne-Marie quem se encontrava na linha, e também ela tinha uma queixa a fazer.

- Max, acabaram de me informar a respeito da perda que sofreste. Deves estar a sentir-te pessimamente. Por que não me telefonaste?

- Para te falar com franqueza, estava demasiado embaraçado.

- A propósito de quê? Somos amigos, não somos? Para que servem os amigos se não pudermos partilhar as dores com eles? O Nicki Tolentino disse-me que estás a dormir na cidade. Que é que a minha casa tem de errado?

- Nada. Não te esqueças de que me limito a ter direito a visitar-te ao fim-de-semana.

- Que disparate! Vem até cá esta noite. Traz tu a comida e prepara-a, se isso te faz sentir melhor. De qualquer das formas temos de falar, Max. tenho uma proposta a discutir contigo. Que tal por volta das sete e meia?

- Lá estarei.

À medida que desligava sentiu-se envolvido numa onda de gratidão e de alívio. Um homem desgostoso era quase tão vulnerável como um homem apaixonado. Embora por razões diferentes, ambos tinham medo de fazer figura de parvos.

Foi então que reparou que Matteo e Luigi, o falegname, ainda estavam à espera da sua resposta - e de mais um cálice de grappa. Enquanto despejava o líquido inflamatório, respondeu com firmeza:

- Usem a madeira que tiverem. Limito-me a querer um espaço que me permita tirar as fichas e os livros do chão. Não estamos a construir um apartamento para o papa.

- Mas nós temos o nosso orgulho. - Luigi estava subitamente eloquente. Quando os senhores da Biblioteca chegarem não os podemos trazer para uma pocilga! Pela sua saúde, professore!

Nessa noite Mather preparou um jantar principesco para Anne-Marie. A cerimónia dos preparativos fez que se tornasse difícil manter uma conversa íntima, mas ela contentou-se em esperar que, a refeição ficasse pronta, tendo-se então ambos sentado junto um do outro, em silêncio, vendo a lua amarela subir acima dos campanários. Com toda a paciência, ela foi-o convencendo a falar.

- E agora, Max, que vai acontecer ao teu emprego?

- Concordei em permanecer por mais seis semanas para preparar e entregar o arquivo e uma avaliação da colecção de arte. Depois disso, quem sabe? Só agora me apercebi de como estava dependente da Pia, de como contei com a continuação do nosso relacionamento.

- Nunca me falaste sobre o tipo de relação que era.

- Nem nunca me questionei a esse respeito. Para mim as coisas eram o que pareciam ser... até ao fim, até que a Pia ficou totalmente dependente de mim. Dava-lhe de comer, dava-lhe banho, andava com ela de um lado para o outro, tal como se de uma criança doente se tratasse. Podemos dizer que morreu nos meus braços.

- Deves tê-la amado muito.

- Acho que sim. - Dirigiu-lhe um sorriso embaraçado. - Surpreende-te?

- Um pouco. Tens de ser bastante forte para fornecer esse tipo de apoio. Para falar com franqueza, nunca te achei capaz disso. Tudo o resto faz bastante sentido... uma viúva rica, um estudioso bem parecido, uma aliança de interesse e conveniência.

- Fosse o que fosse, está acabado... finita la commedia! Chega de falar a meu respeito... conta-me sobre os teus planos.

- Vou para casa, tento encontrar um local para montar uma galeria, e começo a procurar um grupo de clientes e de artistas fixos. O meu pai vai emprestar-me o dinheiro suficiente para começar as coisas.

- Sorte a tua!

- Estive a pensar, Max, estarias interessado em trabalhar para mim?

Ele considerou a proposta durante alguns momentos, depois abanou a cabeça.

- Trabalhar para ti, não. É provável que trabalhe contigo numa base que me permita ser um agente livre. Podes deixar o caso em aberto até que eu volte para Nova Iorque e o possamos discutir?

- Claro. Mas diz-mo com toda a franqueza: por que razão não consideras a hipótese de trabalhar para mim?

- Porque - respondeu ele com toda a veemência -, estou farto de patrocínios. Toda a vida dependi deles... doações, mercês, amizades, e fundos patrocinados por senhoras ricas como a Pia. Não me sinto muito mal a respeito dela, uma vez que consegui pagar um pouco do que lhe devia, mas, minha querida, de hoje em diante vou encetar uma carreira a solo. Se me espalhar, paciência. Pode não ter muita importância para ti, mas para mim é um caso de vida ou de morte. Sou bastante capaz do ponto de vista académico, muito embora tenha sido sempre demasiado preguiçoso para chegar a ser brilhante. Mas é agora ou nunca que tenho de me testar, bem assim como à fibra de que sou feito.

- Brindo a isso, Max. Estou interessada em ver como te safas. Agora diz-me uma coisa.

- O quê?

- Que contaste à Pia a meu respeito?

- Pouca coisa. Sabia que eu ficava aqui aos fins-de-semana, e que te estava a dar aulas sobre história e apreciação de arte. E para além disso mais nada.

- E ela acreditava que era tudo?

- Preferiu acreditar.

- Durante a doença dela não devem ter tido muito sexo.

- Não. Ela aceitou que eu fosse buscá-lo a outro lado, mas não faria qualquer barulho a menos que eu lhe apresentasse uma rival facilmente identificável.

- Não sei se pessoalmente eu seria tão amável.

- Era o que farias se não quisesses perder um bom cozinheiro! Já para não falar de um parceiro para a cama livre de qualquer problema.

- Isso já soa mais ao Max que conheço.

- Esse? Bom, nos últimos tempos anda para lá e para cá. Nunca sei se está aqui ou se não está.

E se descobríssemos? É uma vergonha desperdiçar uma lua destas.

 

Na manhã seguinte dormiram até tarde, de forma que já passava do meio-dia quando Mather regressou a Tor Merla. Luigi, o falegname, cumprira o prometido. As prateleiras já estavam prontas. O cavalete já estava acabado. Havia ali uma nota onde se dizia que o carpinteiro fora à procura de material para o tampo, e que voltaria depois. A caixa das ferramentas estava aberta no chão.

A primeira tarefa de Mather foi colocar as fichas em ordem na prateleira. Era um trabalho pesado e poeirento, coisa que lhe provocou um ataque de febre de fenos. Quando terminou, descobriu que as fichas não tinham estado colocadas em cima do chão de pedra, mas sim num estrado semelhante aos que se usam para empilhar tijolos ou embrulhos de um determinado tamanho. Uma observação mais detalhada permitiu concluir que não se tratava de um estrado, mas sim de um caixote de ripas com cerca de três pés de comprimento, dois de largura, e uma polegada de altura, encontrando-se repleto de palha.

Foi mais por curiosidade que por achar que encontraria ali alguma coisa que se precipitou para abrir as ripas e tirar o recheio. Lá dentro estava um saco de lona, grande e volumoso, cosido com fio de pescador e envolvido em cera castanha, de forma a que nem o ar nem a humidade o pudessem deteriorar. Pareceu-lhe que o coração deixava de bater, e por momentos tremeu e tentou recuperar o fôlego. Foi então que fechou a porta da entrada, e, com todo o cuidado, colocou a palha na caixa, voltou a pregar as ripas, e levou o saco de lona para o quarto, o qual se situava no cimo da torre.

Correu as persianas de forma a enfraquecera luz da divisão. Depois, servindo-se de uma lâmina, raspou a cera que se encontrava na aresta e, com todo o cuidado, começou a cortar os pontos. Neste momento, trabalhando devagar e com ritmo, era a perfeita imagem do profissional. Fosse o que fosse que estivesse dentro do saco, era algo precioso. Quem o guardou tivera imenso cuidado em o proteger do ar e da humidade. Estragá-lo devido a manuseamento descuidado seria uma coisa terrível. A princípio, os seus dedos exploradores sentiram dois objectos sólidos envoltos em veludo, e, por debaixo do veludo, uma outra coisa embrulhada em seda.

Foi com todas as cautelas que retirou os dois objectos envolvidos em veludo - dois painéis de madeira envelhecida, ou por outra, dois retratos, um de uma mulher e outro de uma criança. Ambos representavam a cabeça, os ombros, e o busto recortados contra um fundo composto por colinas da Toscânia e um céu de Verão. Era evidente que haviam sido limpos antes de terem sido guardados, dado que não ostentavam marcas de retoques. Ambos os modelos usavam o corpete quadrado característico do período. Pintada nos botões de um e nos bordados de outro estava a assinatura "RAFFAELLO URBINAS FEC.”

Sentiu-se tonto. Deixou-se cair de joelhos junto à cama, apoiou as pinturas de encontro à almofada e deixou-se ficar ajoelhado durante muito tempo, tal como um monge em adoração. Mas não estava a rezar. Pensava à mesma velocidade de uma serra circular. Tinha de estar tudo certo. Parecia certo, tinha de o estar... o desenho, as pinceladas... a paleta. Os olhos enevoaram-se e ele fechou-os, baixando a cabeça para a colcha.

A tontura passou. retirou o resto do tesouro - os esboços, esbatidos devido aos séculos, mas ainda legíveis, ainda a vibrar com o toque do mestre. O primeiro representava um desenho destinado a um retábulo completo: a entrada de Cristo em Jerusalém, enquanto a multidão agitava folhas de palmeira como se estas fossem estandartes, e soltava hossanas. O restante material era composto por estudos dos diversos elementos - os animais, as figuras, a arquitectura. A excepção de Cristo, todas as personagens envergavam trajes florentinos típicos da época, e as suas figuras recortavam-se contra o fundo rural da Toscânia. Os homens que agitavam as palmas eram os jovens varões Palombini, cortesãos dos Médicis. As mulheres eram as respectivas consortes.

Tudo voltava a bater certo. Os objectos correspondiam à descrição que aparecia no velho livro de registos. O papel dava a sensação de ser perfeito. A assinatura parecia ser característica do jovem mestre. Haviam sido embrulhados com todo o cuidado, mas guardados à pressa, numa emergência talvez devida à guerra, ficando escondidos por debaixo de uma pilha de papel durante quarenta anos. O único homem que poderia dar pela sua falta estava morto. Max Mather era a única pessoa no mundo que sabia que existiam. E, dado o testamento da amante, a lei autorizava-o a reclamá-los.

O direito italiano diferia do anglo-saxónico num ponto importante: dava uma maior importância à forma do documento que aos seus desígnios. E Pia fora bastante clara no que a ele se referia. Primeiro que tudo, tratava-se de um documento holográfico. Fora o próprio testador a escrevê-lo, sendo por isso, e com pouca margem para dúvidas, a total expressão dos seus desejos. Segundo, as frases em italiano eram bastante claras: " ... Ia sua propria scelta d' un oggetto ricordo dal archivio... tendo direito a escolher uma qualquer lembrança proveniente do arquivo.”

Os outros herdeiros, e desde que soubessem do facto, de imediato se oporiam às suas pretensões. Não sem razão, reclamariam que um saco contendo os trabalhos de um mestre, avaliados em muitos milhões de dólares, não poderia ser chamado de "oggetto ricordo." E óbvio que as Belle Arti interviriam, movendo um processo judicial em torno das obras, processo esse que poderia demorar anos. E no fim eram bem capazes de proibir a exportação de artigos considerados tesouros nacionais.

Assim, o mais elementar senso-comum aconselhava-o a que começasse já a tomar medidas com vista à protecção daquilo que pretendia fazer com os trabalhos, e, logo que lhe fosse possível, depositá-los com toda a segurança na Suíça. Contudo, e mesmo que fizesse isso, deveria precaver-se para que a proveniência dos artigos, até então perfeita, não fosse destruída.

Fora a família Palombini que os encomendara a Raffaello, e na família tinham continuado. Eram os próprios livros de registo da época que anotavam ter a transacção ocorrido em Outubro de 1505. Era evidente que tinham continuado na posse da família até à presente data, mas enquanto Luca, o Agente-Duplo, gerira o património, foram parar ao arquivo e ali ficaram durante mais de quarenta anos, debaixo de montes de papel poeirento.

Eis senão quando aparece Max Mather, esquadrinhando o arquivo para encontrar uma lembrança que lhe agradasse - direito que lhe fora concedido por Pia Palombini. Depara com um curioso saco de lona, o qual é mais que óbvio pertencer ao arquivo. A fantasia leva-o a querer que seja esta a sua lembrança - um pacote surpresa. Como não o abre imediatamente, continua a ignorar o que contém. É só quando se encontra em território neutro que descobre as obras e as relaciona com a tal entrada que os livros de registo da família conservam.

Mesmo assim, não tem a certeza de que sejam os originais. Sabe que Luca, o Escroque, fez que se produzissem cópias de muitas obras, de forma que estas deverão ser examinadas por peritos. Não existem motivos para disputas até ao momento em que sejam declaradas autênticas. E no meio de tudo isto nada há que o possa envergonhar, ou mesmo culpabilizá-lo. Agiu segundo os seus direitos. Posteriormente, se a sua posse em relação aos trabalhos for ameaçada, tem de o ser apenas no campo civil, nunca no judicial.

A Tudo isto parecia conferir-lhe uma óptima posição legal. É certo que Max talvez tivesse algumas dúvidas no que se referia ao aspecto moral da questão, mas não se esperaria que as tornasse públicas, granjeando assim a reputação de ganancioso e venal. Ao fim o ao cabo, também os Palombini jogavam duro. Tinham apenas uma regra: o outro que se acautele. O facto de que talvez estivessem interessados em negociar um acordo que lhes permitisse reaver os quadros não era algo que estivesse totalmente posto de parte. Se alguma vez as coisas se tomassem demasiado complicadas, esta seria uma outra situação a contemplar.

Tendo assim acalmado a consciência, o próximo passo a dar era fazer que as obras saíssem de Itália. Um cálculo instantâneo convenceu-o de que o devia fazer imediatamente. Podia meter-se no carro e ir até Milão, coisa que lhe levaria duas horas e meia, apanhar o último voo para Zurique, estar no banco logo pela manhã, deixar os quadros na caixa-forte, e voltar durante a tarde. Depois disso poderia dormir descansado e fazer planos para um futuro próspero com toda a calma.

Um a um, colocou os quadros e os esboços em cima da secretária e tirou-lhes uma série de fotografias a cores. Depois, com todos os cuidados, voltou a embrulhá-los e a colocá-los no saco. Voltou a coser a lona, derreteu a cera com o isqueiro e voltou a selar o embrulho por completo. Descobriu que cabia à justa dentro da mala que usava para levar os fatos, e que ainda deixava espaço para um casaco e umas calças. Junto com uma muda de camisas e de roupa interior, era tudo o que necessitava para viajar de um dia para o outro. Verificou a carteira - tinha dinheiro, o passaporte, cartões de crédito e traveller's cheques. Nos velhos tempos, na companhia de Pia, habituara-se a estar pronto para partir em qualquer altura.

Colocou a tira da mala ao ombro, e desceu as escadas. A saída passou por Luigi e pelo assistente, um rapazinho esguio que habitava na aldeia. Mather agradeceu-lhe o trabalho que já fora feito, e entregou-lhe meia garrafa de grappa para os encorajar a terminar as coisas no dia seguinte. Estava mesmo quase do lado de fora quando o telefone tocou. Era o conservador de Assinaturas. Parecia excitado.

- Max, meu amigo, tenho notícias importantes! O nosso director tem maior interesse em adquirir o arquivo. Gostaria de ir aí comigo para o inspeccionar, isto na próxima terça-feira, por volta das dez da manhã.

- Óptimo. Estarei à vossa espera.

- E podes dizer ao Signor Palombini que o doador tem vantagens fiscais. Vou mandar-te hoje uma carta onde elas são especificadas.

- É uma grande ajuda. Mais alguma coisa? Vou apanhar um avião.

- Mesmo assim vais ter de ouvir esta última notícia. Se a Biblioteca aceitar o arquivo, é quase certo que serei nomeado curador. Nesse caso, ficarás inscrito no nosso livro dourado na qualidade de benemérito.

- Estou bastante impressionado, meu amigo. Apenas lamento ter de me ausentar assim tão depressa, mas logo que voltar telefono-te. Não te esqueças: terça-feira às dez. Vou estender a passadeira vermelha. A presto! Ciao!

Atirou com o auscultador e precipitou-se para a garagem. Três minutos mais tarde já estava a caminho, dirigindo-se para a entrada da auto-estrada.

 

As últimas semanas que Mather esteve ao serviço dos Palombini passaram devagar. A transferência do arquivo para a Biblioteca Nacional fez que se envolvesse em discussões intermináveis com o director, fazendo telefonema exasperados para Palombini. A Biblioteca tinha falta de espaço e de facilidades de conservação. Por enquanto os documentos tinham de continuar em Tor Merla. Depois vieram os problemas do seguro, da custódia, e de quem pagaria a conta. As vantagens fiscais que advinham deste acto eram menores que aquilo que Palombini esperava, de forma que os advogados o aconselharam a contactar outras instituições. Isto tudo fez que Mather desejasse que fossem todos para o diabo, enquanto que para ele imaginava um qualquer refúgio tropical.

Niccoló Tolentino mostrou-se mais cooperante. Andava de um lado para o outro nos quartos e nos corredores da villa tendo um bloco-notas na mão, medindo telas, tomando apontamentos, tecendo apenas comentários breves ao que ia fazendo. As suas maneiras eram tão bruscas, que Mather se sentiu obrigado a perguntar se ofendera o homenzinho.

Estupefacto, Tolentino franziu a testa.

- Ofendido! Como é que me podes ter ofendido? Somos amigos... Se me estás a perguntar a razão porque estou irritado, fico sempre assim quando trabalho. Tenho de ficar sozinho. Não me posso distrair com perguntas e comentários. Discutimos as coisas mais tarde.

Depois foi a vez de Anne-Marie deixar Florença. Mather organizou uma enorme festa de despedida no Gallodoro. Vieram todos os amigos dela - eruditos, artesãos, pintores, escultores, gente das galerias - e a multidão não dispersou até às duas da madrugada. Depois disso, Mather levou-a a casa atravessando uma cidade adormecida. Era uma peregrinação estranha e nostálgica que marcava para ambos o fim de uma vida e o começo de outra.

- Foi um fim maravilhoso para um tempo igualmente maravilhoso - disse-lhe Anne-Marie. - Obrigada, Max!

- Foi a minha maneira de agradecer teres-me deixado partilhar os bons momentos.

- Em Nova Iorque haverá mais.

- Claro. Como é que te sentes por voltar?

- Satisfeita, mas também assustada. Espero ser suficientemente boa para sobreviver no meio dos traficantes.

- E és. Não ponhas dúvida. Não deixes que o medo mino as convicções que tens a teu respeito. Aqui conviveste com o que há de melhor, bebeste nas fontes da tradição. Não te limitas a adivinhar. Sabes e Não percas a confiança nos teus conhecimentos.

- Estou a escutar-te, maestro. Não te vou deixar ficar mal. E quanto aos teus planos?

- Primeiro que tudo vou até à Suíça. Tenho assuntos a tratar em Zurique. Depois vou dar-me ao luxo de passar umas férias na neve. É provável que faça um circuito turístico, encontre velhos amigos, arranje novas amizades ... bem preciso. Espero estar em Nova Iorque no fim de Janeiro.

- Vais pensar na hipótese de trabalharmos juntos?

- Já estou a magicar no assunto. Tenho a certeza de que acabaremos por arranjar alguma coisa. Em que pé estão as coisas contigo?

- Vão acontecendo coisas interessantes. Um agente imobiliário ofereceu-me o aluguer de uma galeria no Soho. Pertence a um indivíduo chamado Ed Bayard. É advogado e trabalha para a Art Dealer's Association of America. A mulher era artista e morreu há algum tempo em circunstâncias trágicas. Ele próprio é um conhecido coleccionador de arte. Quem sabe? Talvez que ao mesmo tempo encontre um senhorio e um cliente.

- Parece ser promissor.

- E é, mas... e tu? Que queres mesmo fazer, Max?

- No âmbito profissional ou pessoal?

- Em ambos.

- Já te disse. Estou cansado de ser dependente. Tenho de ser eu a controlar a minha vida. Para isso tenho de ter dinheiro, de preferência bastante. Como é que vou fazer isso? Não sou um criador. Não como os artistas ou os escritores que têm o dinheiro na cabeça. Eu tenho de me servir do que tenho em termos de conhecimentos e de experiência. É por isso que vou para a Suíça. Vou lá para que me dêem conselhos legais e financeiros sobre onde devo começar.

- Vais ficar na Europa?

- É uma opção a considerar. Como sabes, sou um sujeito versátil, sinto-me bem em qualquer lado. Por que perguntas?

- Porque contigo aqui e eu em Nova Iorque, podíamos ambos fazer bons negócios... permuta de artistas, compras e vendas nas duas direcções, importação e exportação de exposições. Pensa nisto, Max. Prometes-me que vais pensar nisto com cuidado?

- Prometo.

- Pergunto se fazes alguma ideia das saudades que vou ter de ti.

Ele parou, virou-lhe o rosto para a Lua, e beijou-lhe os lábios com suavidade.

- É claro que vais ter saudades minhas. Eu vou sentir a tua falta. Mas, querida, vamos ser honestos. O teu luto não vai demorar muito. Em Manhattan ficarás rodeada de pretendentes, e descobrirás que tens novas ambições. Mas... e dado que tanto eu como tu sabemos o significado da palavra e nunca precisámos do dicionário para saber o que esta significava, vamos ser amigos para sempre. Talvez fique aquém do que precisaríamos para sermos os melhores amantes do mundo, mas é muito mais que a maioria das pessoas consegue da vida. Por isso, o melhor, é irmos para casa depressa, antes que o frio nos apanhe e faça esfriar o calor da festa.

 

As coisas passaram-se com muito menos pompa quando Mather saiu de Florença. Rubricou a versão final do documento onde se estabelecia a doação do arquivo e mandou-o pelo correio para a Suíça, pois faltava a assinatura de Claudio Palombini. Foi então que passou a ocupar-se do inventário e da avaliação que Tolentino fizera das obras de arte do património da villa. Quando fez um qualquer comentário sobre a quantidade de peças catalogadas como "atribuídas a", "escola de", "cópias feitas por desconhecidos", "cópias provavelmente contemporâneas", Tolentino deu-lhe uma explicação maliciosa.

- É o melhor que posso fazer, Max, uma vez que o velho Luca me pagou para que, antes do mais, protegesse os seus interesses. Os comentários que faço são o suficiente para que os leiloeiros respeitáveis fiquem de pé atrás. Depois disso, cabe ao comprador tirar as suas conclusões.

- Compreendo, Nicki. Não tinha nada que perguntar. Tu é que és o perito. O documento é teu. Mas há uma coisa que me interessa, Notaste a falta de muitos artigos pertencentes à colecção?

- Alguns, mas se queres que tos enuncie, não o faço. Lembra-te de que existem pelo menos duas versões da mesma peça: o original e a minha cópia. Seria uma loucura perigosa especular a respeito do local onde cada uma se encontra, e como foi que o actual possuidor a adquiriu.

Mather riu.

- Não estás a exagerar um bocadinho?

- De maneira nenhuma. - O homenzinho mostrava-se bastante enfático. - Supõe tu que, tal como acontece frequentemente, o dono de uma importante obra de arte a empenha como contrapartida para um empréstimo bancário. Supõe tu que, com uma palavra pouco cautelosa, tu ou eu sugerimos que pode ser uma falsificação. O banco reclama o empréstimo. O crédito de quem pede emprestado fica assim destruído, ou pelo menos prejudicado... Imagina um caso ainda mais extremo. O comprador pagou um dinheirão por uma coisa que nada vale, de forma que sai de casa e abate quem lha vendeu... Mas quem pode julgar cabalmente as diferenças entre o original e a cópia? Uma pequena cátedra de especialistas que usam modernas técnicas de laboratório, e, claro está, eu mesmo. Pintei a minha cifra pessoal em todas as cópias que fiz.

- Posso saber qual é?

- Não podes. É uma marca pessoal que só eu posso identificar.

- Desculpa, Nicki. Esquece a pergunta.

- Desculpo e esqueço desde que faças que esses malditos advogados me paguem imediatamente.

- Hoje vão pagar-me a herança. Vou tentar que passem o teu cheque ao mesmo tempo.

- És um bom homem, Max. Vamos sentir a tua falta.

Era agradável ouvir isto, mas lá bem no fundo ele sabia aquilo que, depois de algum tempo em Itália, qualquer estrangeiro acaba por saber: primeiro a família, depois os amigos do peito. Os amigos estrangeiros são uma espécie de luxo, pois existem para lá da intrincada teia de direitos e deveres, de débitos e de créditos que mantêm unida a sociedade. Assim... um abraço, um até à vista, uma troca de presentes - da parte de Tolentino um esboço a lápis, da parte de Mather uma edição oitocentista de Petrarca - e a cerimónia estava completa.

No escritório dos advogados tudo se passou com uma delicadeza um tanto brusca. Sim, sem qualquer sombra de dúvida que o cheque de Tolentino seguiria no correio dessa noite.

- Mr. Mather, para o senhor há uma ordem de pagamento em dólares, e gostaríamos que nos passasse o recibo. Estamos em crer que abandonará Tor Merla logo pela manhã deixando as chaves com Matteo, o capataz.

- Querem mais alguma coisa de mim?

- Nada, Mr. Mather, salvo agradecer-lhe em nome da família os serviços que prestou, e desejar-lhe boa sorte para o futuro.

- Obrigado, cavalheiros. Passem bem.

Mal podia acreditar na sua sorte. Ninguém lhe pedira para especificar qual a recordação que tirara do arquivo, nem para assinar qualquer recibo. Já estava quase a chegar à villa quando lhe veio à mente a lógica latina da omissão. Para todos os fins, o arquivo passara para o Estado, de forma que era da competência deste ocupar-se dos seus próprios negócios. A família já não estava interessada. Durante séculos os Palombini haviam sido educados segundo a máxima de que aquilo que não valesse um florim, fosse homem ou mulher, ou até mesmo oliveira, não merecia que se perdesse tempo com ele.

Tudo isto significava que Max Mather estava na posse legal de dois quadros putativos da autoria de Raffaello, e de um conjunto de esboços, tudo impecavelmente conservado. A única sombra que pairava sobre os retratos era a possibilidade de serem cópias feitas por Niccoló Tolentino.

À medida que avançava pelo entardecer e se aproximava de Tor Merla, Max Mather teve uma explosão de riso. As coisas agora estavam bastante interessantes, e, se tudo obedecesse a um plano cuidadoso e a sorte não o abandonasse, o fim de tudo aquilo era capaz de trazer consigo uma boa fortuna.

 

Na data do primeiro aniversário da morte da mulher, Edmund Justin Bayard, advogado, tinha um encontro marcado na Frick Collection, Quinta Avenida.

A distância a percorrer não era grande: dez blocos mais acima, partindo do seu apartamento em Park Avenue, dois blocos no sentido oposto à Septuagésima Rua. Contudo, o lapso de tempo era muito maior: doze meses de uma existência passada em reclusão, dias desertos durante os quais funcionara como uma máquina: preciso, previsível, num ritmo perfeitamente desapaixonado.

No entanto, naquele dia de Inverno bastante claro, a máquina transformara-se num homem subitamente desejoso de se encontrar com os seus semelhantes. A peregrinação à Frick era o seu compromisso com qualquer que fosse a divindade hostil que governava este universo sem lógica.

Um dos grupos de câmara do Juillard ia executar o Concerto para Clarinete em Lá Maior, de Mozart. Aquela peça de música, pequena e formal, adequava-se à sua disposição elegíaca. Madeleine costumava adorar este local, bem assim como todas as suas elegantes certezas.

- É tão arrumadinho - diria ela naquela forma enfática que a caracterizava. - É como um jantar onde tudo está congelado. Podemos voltar no ano seguinte, ou ainda no outro, e encontrarmos tudo na mesma.

Para falar com franqueza, aquele local não passava de um anacronismo esplêndido. Era uma villa ao estilo italiano, cujos interiores haviam sido concebidos por um inglês pertencente ao período eduardino, e que continha uma colecção de pinturas, esculturas, mobílias e ornamentos que não reflectiam o estilo de vida principesco do seu fundador, mas sim os gostos do grande Duveen, o novo-rico da arte. Henry Clay Frick, cujo brasão ornamentava o vestíbulo, fizera fortuna em Pittsburgh com o negócio do carvão e do aço. Fora alvejado e apunhalado sob o pretexto de se tratar de um inimigo do povo, mas sobreviveu, tornando-se o seu benfeitor póstumo, legando-lhe parques, hospitais, escolas, bem assim como a sua colecção de obras de arte.

Depois de, em silêncio, ter saudado a imagem de mármore polido, Bayard deslizou através do Salão Sul até ao Salão Principal, o qual, e na opinião de Madeleine, fora sempre o ponto fulcral da colecção. Era como se naquele momento ela estivesse ao seu lado. Pintora por direito, estava tão obcecada pelos interiores como os holandeses o tinham estado, e compunha pequenas improvisações verbais para reter na visão a qualidade que aqueles possuíam.

Estou mesmo a imaginar o que deve ter sido estar sentado nesta sala numa noite de Inverno com a lareira acesa, depois de os criados se terem retirado e de o café e de o brande terem sido servidos. Lá está Henry Clay Frick em pessoa, com S. Jerónimo a olhá-lo de cima da lareira, enquanto que os dois inimigos figadais, Thomas More e Thomas Cromwell, se olham através do lume. Existem dois Ticianos que espreitam por cima do seu ombro: Aretino, que morreu rindo-se de uma piada obscena, e um jovem de capa vermelha que sonha os sonhos de um jovem, tudo isto enquanto o S. Francisco de Bellini dirige aos céus um olhar extático. A neve impede que lá fora haja qualquer ruído, e, uma vez que as pessoas não se agitam, devem estar contentes. Mr. Frick mostra tanta boa-vontade e sentimentos filantrópicos, que pode até perdoar ao anarquista que o tentou matar...

Madeleine nunca tivera tempo para perdoar. Fora apunhalada até à morte no estúdio que ocupava num armazém do Soho. Fora um crime sangrento e sem sentido, e a polícia parecia acreditar que era da autoria de um viciado que tentava arranjar droga a todo o custo. Nunca se chegara a encontrar o assassino, nem a arma por ele usada.

Foram muitas as vezes em que a recordação daquele dia levara Bayard à beira da loucura, mas agora já podia observaras coisas com um distanciamento estranho, tal como se vissem gravuras de um livro de histórias, e nada tivessem a ver com a sua vida. Ao ser representado até à exaustão, o drama acabara por se esgotar. Estivera ausente do mundo durante demasiado tempo. Estava na altura de recomeçar a viver.

- Mr. Bayard? Mr. Edmund Bayard?

Virou-se para encarar quem o chamava. À primeira vista descobriu que ela tinha uma estranha semelhança com Lady Meux, representada num retrato de Whistler que se encontrava no Salão Oval. Respondeu com alguma brusquidão:

- Sim, sou eu.

Anne-Marie Loredon. Teve a amabilidade de sugerir que nos encontrássemos aqui.

- É claro. A filha de Hugh Loredon! Já há muito tempo que não o vejo.

Encolheu os ombros depreciativamente. - Deixei de me interessar pelas coisas quando a minha mulher morreu. Hoje é o aniversário da sua morte.

- Foi amável em se encontrar comigo.

Sorriu pela primeira vez, e este facto fê-lo parecer dez anos mais novo.

- De maneira nenhuma. Estou contente por ter a sua companhia. Vamos dar uma volta por aí?

 

Quando chegaram ao Salão Oval ele já se encontrava suficientemente descontraído para a encostar ao retrato de Valerie, Lady Meux, para ver se de facto havia qualquer parecença entre ambas.

Anne-Marie protestou:

- Ela é bem mais bonita que eu.

- Não estava a pensar em beleza - disse ele com um sorriso. - Ela era do tipo indomável, e tenho a certeza de que também o é. Saiu do nada, casou-se com um barão da cerveja, e pintava a macaca onde quer que fosse. Disseram-me que certa vez apareceu numa caçada à raposa montada num elefante.

- E acha que eu seria capaz de fazer o mesmo?

- Acho que sim - respondeu ele com sinceridade. - Acho que era bem capaz.

- E pode ver tudo isso no retrato?

- Não propriamente. Estou apenas a exibir a minha bagagem de conhecimentos inúteis. - O sorriso desapareceu, e ele puxou-a para junto de si enquanto examinava a pintura. - Não tenho a certeza de que reste muito do que Whistler aí deixou. A maior parte dos materiais que usava não eram grande coisa, e as suas técnicas são questionáveis. O tempo não foi amável para com todas as obras que deixou. Por exemplo, o Montesquieu. - Calou-se subitamente, embaraçado com a sua própria pedantice.

Anne-Marie instigou-o.

- Por favor, continue. Estou realmente interessada.

Ele encolheu os ombros e declinou a proposta.

- A minha mulher é que era a artista. Eu sou apenas um coleccionador. Ela emprestou-me os olhos e a intuição. A nossa colecção foi obra de ambos.

- Gostaria de a ver.

- Prometo-lhe que a verá. Deixemos o Whistler e vamos antes falar sobre os rapazes importantes da Galeria Oeste. Enquanto andamos, pode ir contando em que lhe posso ser útil.

- É muito simples. Sei que tem um estúdio no Soho.

- Como é que sabe?

- Contou-me o agente com quem negoceia. Gostaria de o alugar.

- Com que fim?

- Para montar a minha galeria.

- É um projecto ambicioso.

- Acho que estou preparada para ele. Vivo no mundo da arte desde que me graduei. Treinei-me na Sotheby's, trabalhei na Agnew's e na Marlborough, e as Belle Arti concederam-me cursos de Verão em Roma e em Florença. Sou apenas uma novata, mas penso ter melhores qualificações que muitos que têm o nome em tabuletas na Quinquagésima Sétima Rua. Não lhe parece?

- Não estou suficientemente informado para ter uma opinião.

O tom de voz era frio e distanciado. Quando o encarou, surpreendida, descobriu o outro Edmund Bayard. o advogado de olhos duros, o terceiro na lista de sócios de uma prestigiada firma comercial, alguém cuja opinião chamava a si elevados honorários, bem como um profundo respeito.

Anne-Marie desafiou-o:

- Está a jogar pelo seguro, advogado. Por que razão não darei uma boa intermediária?

- Por nada em especial. Estava apenas a fazer notar que o ser-se educada no meio artístico é apenas o primeiro passo, tal como uma licenciatura em direito é o ponto de partida para a minha profissão. Como vê, existe em ambas um elemento fiduciário. Você vai ser o elo entre o vendedor e o comprador. Ambos têm de confiar em si. "O comprador que se acautele" é um mau princípio no negócio de arte. Tem havido demasiadas falsificações, demasiadas falsas atribuições, demasiados intermediários a vender gato por lebre. Inflacionaram os preços e desvalorizaram a moeda.

- É um belo discurso, Mr. Bayard. Preocupa-se assim tanto?

- Tenho de me preocupar. O seu pai deve ter-lhe dito que a nossa firma representa a Art Dealer's Association of America. Temos de fazer os possíveis para que tudo se passe com um mínimo de honestidade.

- Estou impressionada.

- Não precisa de estar. Falemos a respeito da sua galeria. Creio ser do seu conhecimento que demora bastante tempo a construir uma lista de clientes, bem assim como o género de reputação que faz que a imprensa e os grandes compradores reparem em si.

- O meu pai prometeu ajudar-me. Tem algum dinheiro guardado para o aluguer da galeria.

Ele olhou-a de lado.

- O seu pai já viu o edifício?

- Não. Este assunto diz-me respeito. Ele não se mete. O dinheiro vai ser à justa, mas, e depois? Vou fazer o que quero e ter prazer com isso.

Bayard fez um sinal afirmativo com a cabeça.

- É essa a chave do negócio, ter prazer. Desde que goste do que faz, nada a impedirá de o fazer bem feito. Receio bem que não me tenha divertido muito desde que mataram a minha mulher.

- Ouvi falar do caso enquanto estava em Itália. Lamento muito por si.

- Não se incomode. Já pertence à história. Mencionei o facto porque acho difícil estar com alguém servindo-me de pretextos.

Surpreendida, olhou-o.

- Que coisa tão estranha para se dizer.

- Não sei dizê-lo de outra forma. Tenho a sensação de que já não consigo comunicar de forma delicada.

- Tem vivido sozinho durante todo este tempo?

- Sozinho? Não. Solitário? Sim. Tenho um casal filipino a tomar-me conta da casa. Durante o dia estou ocupado no escritório. Vou ao teatro, a concertos, a exposições. Passo o dia acompanhado, mas afasto-me das companhias. É uma espécie de existência de sonâmbulo.

- Voluntária?

- Claro que não! - Mostrava-se subitamente veemente. - Tem de compreender... um crime deste tipo é uma maldição para o que sobrevive. Afastei-me da sociedade porque me sentia como um leproso: com uma campainha em torno do pescoço, obrigado a declarar-se impuro.

- Tal como fez comigo?

- Sim.

- Bom, nesse caso lisonjeou-me. Agradeço-lhe por isso.

- Como vai passar o resto do dia?

- Já não sobra muito. Estou aberta a sugestões.

- Vamos até minha casa. Faço tenções de lhe mostrar a minha colecção, bem como os trabalhos da Madeleine. Podemos discutir a questão do arrendamento, e depois jantar cedo no Le Cirque. Que acha?

- Gostaria muito.

Enquanto desciam Madison, ele saiu-se com a pergunta sacramental:

- Casada?

- Não.

- Comprometida?

- Não. Tenho muito que fazer e sou feliz. Prefiro estar livre enquanto construo a minha carreira.

Ele virou para um bloco de apartamentos, velho mas ainda em moda, guiou-a através da entrada sob os olhares curiosos do porteiro e meteu-a no elevador.

Esperaria algo de pesado e antiquado: talvez paredes apaineladas a carvalho, objectos pertencentes apenas a um determinado período, uma confusão de coisas caras, o espalhafato de um solteirão. Em vez disso havia muita luz, muito espaço e pouca mobília, tendo esta sido concebida para propiciar um conforto casual. Todas as paredes desnecessárias tinham sido eliminadas, de forma a que os espaços penetrassem uns nos outros, sem que, no entanto, nenhum deles perdesse os seus contornos próprios, a sua área privada. Livros, quadros, esculturas, tudo isto se dispersava de forma a acompanhar o ritmo do espaço e da luz. Anne-Marie não fez qualquer segredo da sua surpresa.

- É extraordinário. Muito diferente do que esperava. Quem o concebeu?

- Madeleine. Tinha ideias óptimas para aproveitamento do espaço em que se vivia. Costumava dizer que não eram as paredes e as portas que criavam privacidade. Uma vez resolvido o problema do aquecimento dos grandes espaços, coisa que não custa muito, por que razão fazer cubículos? Ao princípio não a acreditei, mas deixei-a fazer o que queria. O resultado é este. A única modificação que fiz foi transformar a sala-de-jantar numa galeria onde estão os quadros dela. Como verá, é uma sala enorme e ou já não dou mais jantares. Será a última coisa a ser vista.

Por um momento, Madeleine, morta há doze meses, transformou-se numa presença concreta. Anne-Marie sentiu um arrepio de medo. Os mortos deviam ser deixados onde, estavam para que os vivos tivessem a oportunidade de viver a sua própria vida. Com um distanciamento cuidadoso, perguntou:

- Onde é que Madeleine expunha?

- Nunca fez uma exposição. Os quadros eram vendidos através do Lebrun. No entanto, tenho pensado com frequência em organizar uma a título póstumo. Ao todo tenho cerca de cinquenta trabalhos. Estou interessado na opinião que fará deles depois de os ver... Bom, mas primeiro vamos dar a volta dos museus.

- Vá à frente que eu sigo-o.

Sentindo a súbita necessidade de restabelecer um contacto físico que excluísse o fantasma, estendeu a mão de forma a que ele a segurasse, conduzindo-a num circuito pelos seus domínios.

- A nossa colecção começa aqui. Esta tela é da autoria da Annibale Caracci, um dos três irmãos que pintou em Emilia na última metade do século XVI, princípios do século XVII. Como deve ser do seu conhecimento, em 1947, e pelo preço da chuva, foi vendida em Londres uma das colecções da Caracci. Encontrei este exemplar num antiquário de Devon... O quadro que se segue é um dos achados de Madeleine, uma das versões de "Seagrasses and Blue Sea", de Milton Avery. Tudo o que é americano é da responsabilidade dela. Eu fiquei encarregue de tudo o que é estrangeiro.

- Como é que explica isso? Vocês não tinham o direito de comentar as escolhas um do outro? E quanto ao dinheiro? Quem tinha a última palavra?

Bayard olhou-a de uma forma que exprimia aprovação, e sorriu.

Agora sei que dará uma boa negociante. Primeiro tem de saber quem toma as decisões, e depois quem assina os cheques.

- É uma pergunta razoável, não é?

- Claro. Vou tentar responder-lhe. Enquanto artista, Madeleine partilhava unicamente a visão da América urbana. Não importava o quanto viajava. No espírito dela, Manhattan era o seu lar. Interessava-se por história, mas apenas na medida em que esta embelezava ou explicava o presente. Mesmo assim, gostava bastante dos artistas e dos artesãos que tentavam exprimir diferentes aspectos do continente. Correspondia-se com eles. Viajava para os encontrar. Comprava-lhes os trabalhos e ajudava-os a encontrar mercado para eles. Acima de tudo, respeitava-os. Era uma relação especial na qual nunca me quis meter. Era, sou, um animal diferente.

- Estou interessada em saber - Anne-Marie estava a ser deliberadamente provocadora - que espécie de animal é.

- Por que razão não olha para os quadros em vez de olhar para mim?

A sua censura era apenas uma meia piada. - Este é um Klimt que um belo dia me veio parar às mãos, na Sotheby's.

- É uma beleza. Adoro a sedução febril das mulheres que pinta ... Tem olho para coisas com qualidade.

- Sei que sim, mas o meu bolso já não pode dar-se ao luxo de manter este tipo de qualidade. Olhe para este... é um esboço que acabou por se transformar no retrato de Madame Rivière, de Ingres. Comprei-o há dez anos por dois mil dólares. Tinha 25 anos quando comecei a coleccionar quadros. Agora tenho 50. O preço das obras de arte sofreu uma subida maior que todas as moedas sujeitas a uma grande escala de inflação. Assim, os pintores quinhentistas estão definitivamente fora do meu alcance, os impressionistas estão tão longe como Marte...

- Parece-me que se tem saído bastante bem. É uma colecção importante e de grande valor. Que foi que o fez começar?

Meditou um pouco sobre a questão.

- Acho que foi porque me apercebi bastante cedo de quanto era vulnerável.

- Vulnerável? É algo de estranho para se dizer.

- Olhe, sou um advogado, um burocrata. Era bastante fácil transformar-me num indivíduo limitado. De forma que tive sempre de encontrar outras regiões onde viver eras distantes, locais exóticos, até mesmo uma família imaginária.

- Parece ser bastante perigoso.

- E é, pois pode provocar um total divórcio da realidade, coisa que quase me aconteceu durante este último ano. Mas o meu pai ensinou-me uma outra forma de usar a imaginação. Era um adorador dos antepassados e acreditava na continuidade. Ensinou-me a forma de ler a história numa galeria de arte através da roupa, da arquitectura, e dos pormenores do quotidiano. Era médico, e fez-me conhecer as artes de curar, a sua história, desde Esculápio à tribo australiana de Arunta. Costumava dizer o seguinte: "No rio do tempo, ontem, hoje e amanhã são apenas uma coisa. Aqui e ali, tudo pertence ao mesmo país, dado que ambos coexistem numa única mente..”

- Um homem sensato. Gostaria de o ter conhecido.

- Eu adorava-o. O que mais lamento é que nem eu nem a Madeleine lhe tenhamos dado um neto enquanto foi vivo.

Era como se se tivessem aberto as comportas de uma barragem, essas recordações transbordassem num discurso fluente. Os quadros que se encontravam nas paredes ganhavam uma nova luz à medida que cada um se via investido com a aura de uma lembrança pessoal.

- Este é o esboço a lápis da minha avó francesa, feito por Tissot quando se encontrava a pintar em Londres. Foi uma mulher muito bela, muito cortejada durante a juventude; isto apesar de quando a conheci ser uma velhinha formidável que não se orgulhava muito do desastrado do neto. Acho mesmo que ela não gostava de crianças. Lembravam-lhe a idade que tinha. De facto, Tissot sabia mesmo como pintar as mulheres, não é? Repare na forma como levanta a cabeça e na subtil curvatura dos lábios. Tem muito mais subtileza que aquela que os eruditos lhe conferem. Os seus trabalhos têm sempre um acabamento perfeito. Resistem durante muito tempo.

- Você admira essa característica, não é? Um acabamento perfeito?

- Não é o acabamento. - Estava ansioso por se explicar. - É o talento, a perícia de se executar aquilo que se escolhe... um momento de bravura ou a textura elaborada que perdura durante séculos. Repare nesta pequena beleza. À primeira vista era capaz de jurar que é Monet. De facto, pertence a um japonês, Seiki Kusoda, e foi pintada por volta de 1912. Foi-me oferecida por um cliente de Quioto, para o qual tínhamos acabado de estabelecer uma filial na América. Era um homem interessante. O pai fora fabricante de tipos de madeira com os quais se fazem os livros de colorir para crianças, passando o negócio ao filho. Este fez que aquele se transformasse numa das maiores casas impressoras do Japão. Acabou por se oferecer para fazer o catálogo ilustrado da exposição sobre os trabalhos de Madeleine, isto se eu a chegar a organizar.

Ela sentiu-se invadida por um súbito desconforto. A colecção estava a produzir-lhe a mesma impressão que o homem - de certa forma era difusa, incompleta, um amontoado de peças valiosas e incoerentes. De forma abrupta, disse-lhe:

- Existem aqui demasiadas coisas para que possa vê-las de uma só vez. Gostaria de parar por aqui e dar uma vista de olhos aos trabalhos de Madeleine.

- É claro. Fui bastante descuidado. Receio ser um guia bastante aborrecido.

- Não é nada aborrecido. Pura e simplesmente não está ao corrente do impacte emocional que se cria quando nos encontramos rodeados de coisas que reflectem muito da sua vida. Se tenho de apreciar o trabalho da sua mulher, preciso de me concentrar nele.

- Se o desejar, podemos deixar isso para outro dia.

- Não, preferia fazê-lo agora.

- Então vai ter de me dispensar. Quero que seja só você a ver os quadros.

Ela sentiu-se pouco à vontade.

- Porquê?

- Já não consigo ver os quadros da Madeleine. Apenas uma imagem brutal e violenta. Gostaria que visse as coisas com um olhar crítico, um olhar de comerciante. Com toda a honestidade, diga se, e no papel de empresária, lhes daria o seu aval no mercado. Julgue-as o melhor que pode. Limite-se a ser honesta, não importa que o seu juízo não seja favorável.

A intuição dizia-lhe que aquela era uma situação perigosa, da qual poderia depender o resultado final dos seus negócios. Consciente ou inconscientemente, ele estava a testá-la, a avaliá-la segundo os valores de uma escala privada da qual ela nada sabia. Hesitou, à procura das palavras certas, depois fez-lhe uma pergunta directa:

- O que está em jogo com a minha resposta?

A resposta de Bayard foi breve e precisa:

- Ambos revelámos um determinado interesse pessoal. O seu é montar um negócio e uma galeria. O meu é uma exposição póstuma dos trabalhos de Madeleine. Estou a tentar avaliar em que medida os podemos juntar a ambos, ou se é melhor tratar de uma coisa de cada vez.

- Não. - Ela estava irritada. - Não, não, não! Já me colocou numa situação impossível. Sabe que quero a galeria. sabe que está nas suas mãos dar-me o arrendamento. Ficará mortalmente ofendido se digo que não gosto do trabalho. Se digo que gosto, estou desde já a comprometer-me... Acho melhor adiarmos as coisas por uns dias.

Ele olhou-a durante bastante tempo, e ela nada conseguia ler, quer naqueles olhos frios, quer na máscara de pedra em que estavam colocados. Acabou por dizer:

- Agora que já nos conseguiu insultar a ambos, por que não remediarmos as coisas? Vá ver os quadros da Madeleine mas guarde a opinião que fizer deles para si mesma.

- Está a manipular-me.

- Com que finalidade?

- Não sei. Sinto-me como se estivesse a abrir a última porta do castelo do Barba Azul.

Ele atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

- Depois de ter descoberto o segredo do Barba Azul, ele vai estar aqui para lhe servir uma bebida e pagar-lhe um jantar.

Abriu a porta, acendeu as luzes, e recuou para a deixar entrar na sala de jantar.

 

Assim que a porta se fechou atrás de si, Anne-Marie sentiu-se dominada pelo pânico. Fechou os olhos e encostou-se à parede, gritando em silêncio para dominar os nervos exaltados.

"De que é que estavas à espera? Era suposto estares a negociar um arrendamento. Em vez disso vais tomar um copo com um viúvo de meia-idade parecido com o Cary Grant, que fala como uma das personagens de Henry James, tem uma história familiar bastante sinistra, bem assim como uma vida sentimental adiada. Tem pelo menos seis milhões de dólares em obras de arte penduradas nas paredes, e empurra-te para este quarto porque, e segundo ele, quer uma apreciação independente do trabalho da falecida esposa. Bom, continua. Dá-lhe o que ele quer. Quanto mais depressa o fizeres, mais depressa sais deste filme de doidos ... “

Acabou por abrir os olhos e tentar focá-los nos quadros que se estendiam pelas paredes, tal como os estandartes de um velho exército.

Mais uma vez se mostrou atordoada e confundida devido a uma mostra de trabalhos tão compacta. Precisou de andar por ali de um lado para o outro, bastante devagar, até se conseguir concentrar. Acima de tudo, Madeleine Bayard era uma tradicionalista, tanto no estilo como na educação. A sua arte era impecável. As pinceladas estavam totalmente controladas. A harmonia de cores estava de acordo com os padrões clássicos. À primeira vista tudo o que estava nas telas era de tal forma sedutor, que quem as examinasse não se encontrava preparado para o choque do tema dominante.

Todas elas representavam um interior de Manhattan: águas-furtadas da parte superior da cidade, moradias do Harlem, caves, passagens de metropolitano, passagens cobertas, barracas construídas com caixotes, a cabina de um dos barcos que atravessavam o rio. Numa primeira abordagem, todos estes interiores retratavam um episódio da vida urbana, magnificamente tratados, mas, e de alguma forma, dando uma sensação de instabilidade e de desconforto. Era então que se tornava evidente que as personagens eram uma espécie de prisioneiras do seu próprio meio, e que tentavam a todo o custo sair dali. Eram arrastadas de forma irresistível - da mesma forma que o espectador o era - em direcção a um fragmento do mundo exterior: um gerânio no parapeito da janela, uma longa fila de desfiladeiros que culminavam numa nesga de céu e de mar, uma gaivota solitária pairando por sobre as águas. E havia aquele quadro maravilhoso no qual uma mulher da rua, quase morta de frio por entre as arcadas de uma igreja, olhava de forma plácida e desinteressada para uma menina que descia a rua coberta de neve.

Apesar dos cenários sombrios, a pintora colocara toda a ênfase no lado de fora das coisas e no sonho americano. Vislumbrava-se uma esperança, ainda se podia sonhar com o céu, e a liberdade era algo que se encontrava ao alcance das mãos.

Madeleine Bayard devia ter-se sentido prisioneira, caso contrário nunca teria pintado de forma tão aguda a frustração das almas enclausuradas. Mas de quê, ou por que razão, se sentiria ela presa? Tal vez devido ao seu casamento com Bayard? Talvez propalas das limitações causadas pela vida na cidade, pelo horizonte de cimento, pela luz diluída no smog, pela multidão que invadia as ruas de Manhattan. Fosse o que fosse, um assassino demente libertara-a disso. Agora era o marido que, em homenagem à sua memória, e por uma qualquer lógica invertida, usava todo o trabalho que esta produzira durante a vida para se libertar a ele. Tudo isto levou Anne-Marie a mais um monólogo interior.

Que vais dizer quando saíres deste quarto? "Obrigada por me ter deixado ver as obras da sua esposa, Mr. Bayard. São muito interessantes. E agora, se não se importa, prescindo do jantar e vou para casa lavar o cabelo ... " Sabes perfeitamente que não podes dizer isso. É um insulto à tua própria inteligência. Foste confrontada com aquele tipo de talento que aparece uma vez em cada quarto de século. Não pode, não deve ficar a ganhar verdete neste mausoléu. E não exageres no altruísmo, rapariga. Sentes o cheiro do dinheiro - de muito dinheiro - e de uma fama que pode ser construída de um dia para o outro. Assim, e como filha de um bom leiloeiro, vais sair daqui e dar tudo o que tens, mesmo o que não tens. Se Edmund Bayard quer fazer as coisas, então está tudo feito. Se ele não quiser, pelo menos ficas a saber onde estão enterrados uma série de tesouros - o que já é bastante.”

Era uma cena fácil de representar, sozinha e em silêncio, mas as coisas não eram tão fáceis quando tinha de contracenar com um actor complexo. Por tudo isto, deixou-se ficar ali por mais um bocado, contemplando a imagem fantasmagórica da trapeira embrulhada nas roupas geladas, por debaixo do arco normando de uma bela igreja. Quanto mais a contemplava, mais certeza tinha de se tratar de uma obra-prima, com a escultura soberba das feições de cera, as roupas velhas transformadas em algo de belo, o arranjo artístico entre a pedra cinzenta e a luz de Inverno, bem assim como a inocência de uma criança solitária.

Foi então que voltou a sentir um outro estremecimento de medo. A mulher que pintara este quadro era demasiado formidável para se ter como inimiga, mesmo depois de morta. Tinha de ser acalmada, elogiada, transformada em amiga e aliada. E qual a melhor forma de conseguir isto se não transformar-se na sua patrocinadora póstuma, na alma conhecedora e compassiva que revelou o seu génio ao mundo?

Respirou fundo, encaminhou-se para a porta, e dirigiu-se para a sala de estar onde se confrontou com Edmund Bayard.

Este saudou-a com uma frieza estudada.

- Que quer beber?

- Que está a tomar?

- Um vodca-martini.

- Serve perfeitamente, obrigada.

- Telefonei ao Le Cirque. Não nos arranjam mesa antes das nove.

- Isso já é bastante tarde. Porque razão não ficamos apenas pelas bebidas?

- Como queira. - Se não estava satisfeito, o certo é que não o mostrou.

Misturado ou com uma azeitona.

- Se não se importa, com uma azeitona. Deixe-me dizer-lhe o que penso sem mais rodeios: estou Impressionada com os quadros da sua mulher. Foi, continua a ser, um grande talento. A minha próxima pergunta é saber o que tenciona fazer com eles. Em suma, tenciona manter a colecção intacta, ou reparti-la e vendê-la?

- Não faria qualquer sentido se eu próprio a mantivesse. Teria de lhe arranjar um lar numa qualquer instituição. Por sua vez, esta teria de lhe criar uma reputação póstuma o depois gastar uma série de dinheiro a montar exposições itinerantes. Se me fizessem a proposta a mim, declinaria em favor de colecções mais conhecidas. Não... - mostrava uma tensão e ênfase súbitas - eu amei a minha mulher. Ela morreu, mas os quadros mantêm-na viva. Tenho de os tirar da minha casa... e o fantasma dela da minha cama.

Era um grito de puro desespero, mas Anne-Marie não lhe deu resposta. Em voz calma, disse:

- De forma que vai escolher as telas com que quer ficar, e vender as restantes. Se fizer isso, gostaria de ser a primeira a oferecer-me para organizar a exposição de venda. Contudo, há uma outra decisão que tem de tomar antes de fazer qualquer coisa.

- O quê?

- Assim que o trabalho for exposto, a história do assassinato de Madeleine voltará aos cabeçalhos dos jornais. Está preparado para enfrentar o facto?

- Parece que não tenho escolha. Talvez que uma última confrontação pública com o passado seja o remédio de que preciso.

- E até onde consegue aguentar para que as coisas funcionem?

- Não entendo.

- Uma exposição tão bem publicitada quanto esta fará que o assassínio de Madeleine se transforme numa parte da história da arte, tal como a orelha de Van Gogh.

- Isso é bastante duro.

- É a verdade. Se quiser, pode ou não aceitá-la. É a sua vida que está em jogo.

- E para si? Que está em jogo para si?

- A minha carreira. Esta exposição pode lançar-me definitivamente. Mas antes disso tenho ainda outras perguntas a fazer-lhe.

- À vontade.

- Disse-me que a sua mulher costumava vender através do Lebrun. Existe algum contrato que o ligue a ele?

- Nenhum. Ele tem uma galeria pequena, bastante exclusiva, através da qual faz chegar ao mercado quadros da escola impressionista e pós-impressionista, os quais haviam pertencido a patrimónios agora desfeitos. As suas transacções com Madeleine eram efectuadas à laia de favor pessoal, e na base de um quadro de cada vez. Não saberia o que fazer com toda a colecção. Sabe que existe, mas nem mesmo chegou a pedir para a ver.

- óptimo. E quanto ao estúdio de sua esposa...

- É um velho armazém em West Broadway. Madeleine usava os dois andares de cima. O primeiro piso está vazio. Estávamos a pensar em expandir o edifício. Quando ela morreu, arranjei um guarda e tentei esquecer-me daquele sítio.

- Já o vi. Tenho a certeza de que pode ser transformado numa galeria. Peço-lhe que mo entregue mediante um trespasse decente, uma renda razoável, bem assim como a possibilidade de o comprar. Tratarei de tudo e faço tenções de organizar a exposição no local onde Madeleine criou as obras. Uma vez que este é o tema dos quadros, vou chamar-lhe "Liberdade".

Ele encarou-a com um ar de total descrença.

- Mas isso é macabro!

Ela passou ao ataque naquele mesmo instante.

- Macabro? Por amor de Deus, que coisa mais macabra que aquele mausoléu ali ao lado, uma sala onde não se atreve a entrar? Mas isso é consigo.. Acho que me apetece outra bebida.

- Age sempre de forma tão brutal como agora?

- Só quando me sinto ameaçada.

- E eu estou a ameaçá-la?

- Sim.

- Por que razão?

- Penso que costuma manipular as pessoas. E está a tentar fazê-lo comigo.

- É a segunda vez que usa essa palavra. Começo a achá-la ofensiva.

- Então arranje outra melhor. Foi você que falou em regras básicas e interesse mútuo. Foi você que pediu um juízo comercial sobre os quadros de sua mulher. Eu dei-lho. Ofereci-me para ser eu a representá-los no mercado. Ofereci-me para alugar uma propriedade que, presentemente, nada lhe está a render. Acho que a decisão é sua.

De forma algo provocatória, Bayard respondeu:

- Parece-me que está a pedir para que eu confie no seu talento e lhe confie uma galeria, já para não falarmos na exposição inaugural.

- Não é nada disso. - A sua voz denotava uma ligeira irritação. - No que respeita à galeria, estou disposta a pagar um preço justo pelo aluguer. Quanto aos meus talentos de comerciante, arrisca neles da mesma forma que faria com um qualquer candidato. Arrisca melhor comigo, pois sou entendida no assunto e bastante ambiciosa... Pense nisso, advogado.

- É o que farei, Miss Loredon. - As suas feições rígidas descontraíram-se num sorriso. - E não se zangue comigo. Os advogados são animais cautelosos. Facto este que justifica a próxima pergunta. Partamos do princípio que consegue a galeria e organiza uma exposição de abertura. Que fará a seguir? Como irá arranjar artistas para exposições futuras?

- Viajando, trocando cartas e telefonemas. Posso informá-lo quais são os artistas do momento em Taos, Toronto e Cleveland. Sou bastante boa em fichas e arquivos, e tenho correspondentes em Londres, Paris, Florença, e Sydney, na Austrália. Não estou preocupada em termos de continuidade, isto apesar de saber que continuar com as melhores obras é algo diferente. Mesmo assim, o risco é meu e não seu.

- Se fôssemos sócios, seria.

Ela ponderou na sugestão durante alguns momentos, depois rejeitou-a categoricamente.

- Tenho de lhe falar com franqueza. É o tipo de coisa que nem me passa pela cabeça.

- E se eu fizer dela uma condição no nosso negócio?

- A resposta continuaria a ser negativa. Pense um momento. Este tipo de negócio tem sido sempre do piorio. Hoje em dia, com os preços astronómicos que se atingem nos leilões, pode bem ser fatal. Se correr o rumor, por mais pequeno que seja, que me está a patrocinar, a exposição morre na casca. A reputação de Madeleine em termos artísticos seria destruída, e a minha carreira comprometida desde o primeiro dia. Para mais, ambos sabemos as regras do jogo. Você é frágil e eu estou a construir uma carreira pessoal. É melhor não complicarmos as nossas vidas.

Gostaria bastante de ter a sua amizade.

E eu de ter a sua. Só não quero complicar uma situação comercial.

O que para si parece valer mais que outra coisa qualquer.

Neste momento é isso mesmo que se passa. Trabalhei no duro durante muito tempo para me preparar para o começo. Do lugar onde me encontro, as coisas parecem-se com uma enorme maçã vermelha mesmo no cimo da fruteira. Só tenho de estender a mão para a agarrar.

- Que aconteceria - perguntou ele - se eu de repente a tirasse: nem arrendamento, nem exposição?

- Então ficaria a saber que é um homem cruel e destrutivo, e não queria ter nada a ver consigo. Mr. Bayard, deixemo-nos de joguinhos: é pegar ou largar. Fazemos negócio?

Pareceu ter passado uma eternidade até ao momento em que a resposta chegou.

- Fazemos negócio.

 

O vento estava frio e a chuva era intensa e persistente quando, através da cidade fronteiriça de Chiasso, Max Mather entrou na Suíça. Os italianos despediram-se dele e os suíços acolheram-no com um mínimo de espalhafato. Deveria estar a sentir-se muito cansado, mas a taxa de adrenalina era bastante elevada. Dirigiu-se imediatamente para Zurique, alojou-se no Baur au Lac, e dormiu até ao meio-dia da manhã seguinte.

A primeira visita que fez depois do almoço foi a um estúdio fotográfico, onde pediu que lhe ampliassem as fotografias dos trabalhos de Raffaello.

Depois disso foi visitar o cônsul do Panamá, um cavalheiro mundano e elegante, já na casa dos 40. Falava fluentemente espanhol, inglês, francês, alemão e italiano, e as suas exposições orais eram eloquentes e não deixavam quaisquer dúvidas. Explicou-lhe que, mediante um pagamento inicial, bem assim como através de uma taxa anual, teria direito a adquirir uma companhia registada no Panamá, um grupo de directores panamianos, um livro repleto de acções, as quais constituíam o seu direito legal enquanto proprietário da companhia, e uma procuração que faria com que ele, ou outra pessoa qualquer, estivesse apto a agir em favor da firma.

Podia escolher o nome da companhia numa lista já existente, ou podia inventar um. Contudo, esta última opção implicaria atrasos administrativos. Assim Mather escolheu o nome a partir da lista - Artifax S. P.& A. Quanto às funções que esta desempenharia, podiam ser as que ele quisesse, desde prospecção petrolífera até fabricar roupa interior para senhora. Pagou em dinheiro ao consulado, e saiu dali direito à União dos Bancos da Suíça, situada na Bahnhofstrasse. Aí, depois de ter apresentado os documentos de registo e as acções, abriu uma conta em nome da companhia, servindo-se para isso dos dólares pertencentes à herança Palombini. Tendo feito isso, alugou uma caixa-forte bastante grande, também ela em nome da firma, e colocou lá dentro os quadros e os esboços, junto com os documentos de abertura de Artifax S. P. A.

Agora tinha duas identidades, uma individual e outra colectiva. Esta última funcionava quase como uma máscara perfeita, pois que a posse da companhia cabia não necessariamente ao comprador, mas ao detentor das acções, de forma que se poderia separar completamente uma identidade da outra. Para completar este divórcio, foi até ao escritório de um advogado que lhe fora recomendado pelo banco, não sem bastante relutância.

- É o género de coisas que não fazemos com frequência, Mr. Mather, mas no seu caso, um cliente novo sem nada conhecer na cidade, faremos que as regras se tornem flexíveis. É um indivíduo com bastante nomeada. Chama-se Alois Liepert.

Liepert era um quarentão bem conservado, com um sorriso agradável, um aperto de mão firme, e fluência naquilo a que se convencionou chamar Oxford English, o inglês padrão. Tinha um colega do sexo feminino, a qual dava pelo nome de Drª Gisela Mundt, assistente de jurisprudência na Universidade de Zurique. Parecia ter pouco mais de 30 anos, um riso contagiante, usava roupas caras, e falava francês, italiano, inglês, alemão, não esquecendo o dialecto suíço, o schweizerdeutsch, tudo isso na perfeição.

Mather apresentou as credenciais que o banco lhe fornecera. Alois Liepert concordou em representá-lo enquanto advogado, isto mediante o pagamento de cinco mil francos suíços, ao passo que Gisela Mundt faria as vezes de procuradora da Artifax S. P. A., gozando de poderes ilimitados. Assim, e no espaço de quinze minutos, fora criada uma ficção na qual a Artifax S. P. A. gozava de uma existência independente e legal, enquanto que os seus possuidores se escondiam por detrás de um secretismo impenetrável, e os seus fundos - talvez que no valor de milhões de dólares - se encontravam fechados num cofre de Bahnhofstrasse.

Gisela Mundt soltou uma gargalhada alegre e disse:

- Bom, Mr. Mather, agora somos seus. Que quer que lhe façamos?

- Antes do mais - respondeu ele -, gostaria de saber como funciona a representatividade legal aqui na Suíça.

- Entre o advogado e o cliente é absoluta.

- E entre advogados suíços e clientes estrangeiros?

- O caso é o mesmo - replicou Alois Liepert. - Somos um país neutro, a válvula de segurança do mundo. A nossa credencial mais valiosa é o sigilo. Duvido que sem ela conseguíssemos sobreviver.

- Nesse caso - anunciou Mather -, desejo fazer uma declaração que vocês irão autenticar e guardar no cofre-forte. Quero fazê-la conforme todas as disposições legais para que vocês, enquanto meus advogados, possam responder de boa-fé a qualquer pergunta que eventualmente o futuro vos traga, tanto a meu respeito como a respeito dos meus negócios. Estão autorizados a fazer todos os inquéritos que quiserem para verificar o que irei declarar, mas uma vez que estejam na posse dos dados, nessa altura deverão aconselhar-me e agir de forma a proteger os meus interesses. Deverão fazer que, me mantenha sempre dentro da lei, impedindo-me de penetrar em áreas pouco claras, nem fazer propostas a esse respeito. Faço-me entender?

- Claro - disse a Dr. Mundt. - Deveríamos incorporar a declaração que acaba de fazer num documento formal que mais tarde assinará. Agora, e se o desejar, pode começar a ditar... A máquina já está a funcionar.

- O meu nome é Maxwell Mather. Sou cidadão americano. O número do meu passaporte é o 9378567. Sou solteiro. Sou académico de profissão, doutorado em paleografia pela Universidade de Princeton, e tenho o mestrado na cadeira de História de Arte Europeia. Nos últimos quatro anos trabalhei como arquivista da família Palombini, na sua villa, Tor Merla, perto de Florença. Durante este tempo fui o amante reconhecido da Signora Pia Palombini, detentora de todo o património familiar. Ela morreu há seis semanas, depois de ter lutado contra uma doença do sistema motor, doença durante a qual a tratei dia e noite. Tudo o que me legou, registado no seu testamento holográfico, do qual junto uma cópia nesta declaração, traduz-se pelo seguinte: dois anos de salário pagos em dólares americanos, todas as ofertas pessoais que me tinha feito, o automóvel que comprara para que eu o usasse, e uma lembrança escolhida por mim no arquivo onde estivera a trabalhar. A família não levantou qualquer objecção a estes legados. Claudio Palombini, o testamenteiro, foi pródigo em elogios que fez ao facto de eu ter cuidado da tia. A meu conselho, doou o arquivo à Biblioteca Nacional de Florença, tendo-me pedido para tratar da transferência. Separámo-nos amigavelmente, com o maior dos respeitos mútuos. É minha intenção montar negócio na Europa e na América como intermediário e consultor de obras de arte. Tenho os fundos necessários e conto consigo, Dr. Liepert, e consigo, Drª Mundt, para me aconselharem juridicamente, coisa que, de tempos a tempos, precisarei.

- Está muitíssimo claro. - Liepert parecia intrigado.

- A única coisa que não está clara - comentou Gisela Mundt -, é a razão que o levou a fazer uma declaração tão inútil.

Respondeu sem cerimónia:

- Porque a lembrança que escolhi e que se encontrava no arquivo foi um saco de tela cosido com linha de pesca e selado com cera. Esteve debaixo de um monte de papéis desde a altura em que comecei a trabalhar no arquivo... Sou única pessoa do mundo que sabe da sua existência, bem assim como daquilo que contém.

- E que é... ? - perguntou Liepert.

- E que pode ser, repito, pode ser, dois quadros de Raffaello e um jogo completo de esboços destinados a um retábulo. Todas as peças são originárias de 1505.

- Sendo assim - disse Gisela suavemente -, pode ser um homem rico.. Nunca ninguém lhe perguntou qual a recordação que escolhera no arquivo?

- Nunca. Nem os advogados nem Claudio Palombini, tendo eu sempre contacto regular com este último.

- Não lhe pareceu estranho?

- Sim, pareceu. Depois, quando reflecti no caso, conclui que já não tinham qualquer interesse no arquivo pois este passara para a Biblioteca. A família não se preocupava com ele.

Liepert e Mundt entreolharam-se, tendo-se ele depois voltado para Mather e perguntado:

- É sua intenção reter este legado?

- Sim, é.

- Está preparado para litigiar por sua causa?

- Sim.

- Onde se encontram os quadros?

- Aqui em Zurique, numa caixa-forte.

- Como conseguiu trazê-los de Itália?

- Limitei-me a trazê-los. Tudo em conformidade com a lei.

- É ilegal exportar valores históricos sem uma autorização para isso - fez notar Gisela.

- Sei o que a lei diz, Drª Mundt. No entanto declaro, e posso até prová-lo, de que neste momento existem sérias dúvidas quanto à autenticidade dos trabalhos, e sendo assim não foi cometida qualquer infracção.

- Qual é a dúvida que paira sobre os quadros, Mr. Mather? - Mais uma vez era Gisela quem o perseguia.

Fez-lhe um resumo das conversas que travara com Niccoló Tolentino e cópias que este fizera para Luca Palombini, o Escroque. Terminou a sua narrativa fazendo um gesto apelativo.

Um de vocês que me diga qualquer coisa. Tenho a lei do meu lado ou não.

- Se tudo o que nos disse é verdade - respondeu Alois Liepert, então sem qualquer sombra de dúvida que a lei está do seu lado.

- Quanto ao facto de ter o direito do seu lado... - O sorriso de Gisela Mundt desarmava qualquer um. - Bom, isso é uma pergunta à qual vai ter de responder sozinho. Nós ocupamo-nos apenas com a lei, de forma que, Mr. Mather, o senhor pode dizer que é um homem de sorte. Pode vir a valer rios de dinheiro, e acabou de contratar os dois melhores advogados de Zurique com vista a garanti-lo.

- Sendo assim - Mather estava satisfeito -, passo por aqui amanhã para assinar a declaração. Está aqui uma cópia do testamento, o qual se encontra registado no Anagrafe, em Florença. Amanhã também lhe trarei um conjunto de fotografias das obras, sem esquecer os negativos. Sugiro que a vossa instrução fique completa com uma visita privada à caixa-forte da União de Bancos. Se não houver inconveniente, podemos fazê-lo logo depois de o documento ter sido assinado.

- E depois disso - perguntou Gisela -, qual deverá ser o nosso procedimento?

- Na altura vos direi - respondeu ele de forma agradável. - Não façam nada sem que eu vos tenha dado instruções. Agora vou tirar um mês de férias. Depois disso logo veremos... Obrigado pela vossa amabilidade. Até amanhã.

Depois de ele ter saído, Liepert e Mundt entreolharam-se. A primeira pergunta partiu dela:

- Que achas do nosso cliente, Alois?

- Acho que está a dizer a verdade. Qual a tua opinião?

Gisela parecia pensativa.

- Ele interessa-me. Penso tratar-se de um académico que nunca arriscou nada na vida. É uma andorinha. Constrói o ninho bem abrigado nos beirais. Agora anda à solta a voar no meio dos falcões, e sinto que está a gostar. Só espero que não o desfaçam.

 

À sua chegada a Nova Iorque, e depois de ter passado um mês nas pistas de esqui, Max Mather encontrava-se em forma, e bastante bronzeado. Alojou-se num apartamento sito na parte superior da zona leste, pisou os livros e os papéis, fez os telefonemas suficientes para que no circuito de Manhattan se soubesse da sua chegada, e começou a planear o próximo passo da sua campanha, que era a preparação a longo prazo de um mercado de compradores para os tesouros que supunha ter na sua posse. Ele não estaria envolvido na venda. Tudo seria negociado através da Artifax S. P. A. No entanto, tinha toda a autoridade para brindar o público com algumas revelações e especulações de carácter erudito. Niccoló Tolentino, os intermediários e peritos de Florença, bem como as viagens que fizera junto com Pia, tudo isto lhe ensinara bastante sobre o mundo da arte.

Uma parte igualmente importante do exercício era ser-lhe dada a possibilidade de agir sem comprometer o seu direito de posse, nem se envolver em qualquer litígio que pudesse comprometer a venda das peças.

Toda a operação constituía um apelo ao seu sentido de humor. Estava a representar uma fantasia que já deixara de o ser e se transformara numa fantasquerie, uma extravagância passageira igual à de um jogador que usa o dinheiro da casa e, ou ganha ou perde ou fica empatado.

A sua jogada de abertura foi um almoço com Harmon Seldes, o editor da revista Belvedere, e reconhecida autoridade do mundo das artes. Fora difícil de o fisgar. Cultivava a reputação de ser um indivíduo à parte, refinado, uma autoridade olímpica. No entanto, o encanto de Mather, acrescente-se que bastante treinado, bem como o facto de também ter sido aluno em Princeton, fez que as coisas se arranjassem, e lá se combinou o almoço.

Seldes entendia de patrocínios e de nomeações. Sendo ele próprio uma espécie de snobe, a noção de arquivista privado de uma família nobre intrigava-o. Enquanto indivíduo que não se cansava de recolher fundos, o facto de Mather ter supervisionado a doação do arquivo Palombini a uma instituição pública impressionou-o. Tinha curiosidade em saber por que razão o outro o procurara. Com uma modéstia cautelosa, Mather explicou-lhe:

- Estou a fazer uma pesquisa subordinada ao tema "A Economia Doméstica em Florença", isto no que respeita ao século XVII. Para isso, sirvo-me de um conjunto de livros de registo da época. O arquivo Palombini emprestou-mos.

- Parece interessante. - Seldes foi delicado, mas não revelou querer envolver-se no projecto.

- Muitas das coisas não têm qualquer interesse, mas acho que no fim terei algo de valor. Acontece que descobri um facto bastante curioso, e não sei o que fazer com ele... isto se devo fazer alguma coisa. Pensei em você que, com toda a sua vasta experiência e conhecimentos no campo da arte, talvez me pudesse aconselhar.

- Esse facto curioso... De que se trata precisamente?

- De dois quadros de Rafael e de cinco esboços para um retábulo. Nenhuma destas peças aparece no catalogue raisonné.

Seldes ficou a olhar para ele de boca aberta.

- Quer dizer que as viu? Foram-lhe oferecidas? Reconheceu-as como verdadeiras? O quê?

- Posso provar que foram pintadas e pagas. Posso dar-lhe a data: Outubro de 1505. Não se sabe ainda o que lhes aconteceu depois. Contudo, gostaria de lhe mostrar as provas que tenho. Não são coisas que se levem facilmente de um lado para o outro, de forma que talvez queira ir ao meu apartamento depois do almoço. Fica apenas, a alguns blocos daqui.

- Claro, claro. É uma novidade bastante importante. Pode provocar bastante alarido no nosso pequeno mundo.

- É precisamente isso que me preocupa - protestou ele vagamente e de forma algo dúbia. - Não tenho a certeza se esse tipo de publicidade será sensato. Pela parte que me toca, sei que não seria capaz de o aguentar, e detestava causar embaraços à família Palombini, a qual tem sido tão boa para mim. Acho que foi exactamente isso que me fez vir ter consigo. Saberá lidar com este caso de uma forma discreta, e, por que não dizê-lo?, académica.

- Claro. Não poderia ter dito melhor. - As palavras eram casuais, mas os olhos traíam impaciência e até um pouco de avidez. - Nesse caso, a primeira coisa a saber será o que devemos esperar: se um simples projecto de pesquisa, se uma investigação à escala mundial na pista de obras-primas desaparecidas, isto, claro está, partindo do princípio que sobreviveram ao passar do tempo. A segunda será determinar aquilo que você, e a título pessoal, espera obter do caso.

- Eu? - A gargalhada de Mather era feliz e despreocupada. - Só Deus sabe! Talvez uma nota-de-rodapé na história, uma menção honrosa por um trabalho de erudito. Pelo menos o prazer de uma caça ao tesouro.

- Isso dá-me coragem. - Seldes abanou a cabeça em sinal de aprovação. - Nada mancha mais um projecto que a esperança de obter lucros pessoais. Repare, nada nos diz que não possamos ter de fazer trabalho de investigação. A revista pode ficar encarregue dessa parte. É-me bastante fácil arranjar um subsídio que permita a alguém deslocar-se a Florença durante um ano. É provável que a solução para este problema se encontre no próprio arquivo, o qual me diz que se encontra codificado apenas em parte. Estará em condições de tomar esta investigação a seu cargo?

- Eventualmente. Tenho privilégios especiais, não só em relação à família mas também no que respeita à Biblioteca. Por outro lado, existe um impedimento concreto. - Hesitou o tempo suficiente que lhe permitisse transmitir alguma emoção. - Pia Palombini e eu estávamos ambos apaixonados. Cuidei dela durante a sua última doença. Sem ela, ser-me-ia penoso enfrentar a villa ou até mesmo a cidade.

- Peço desculpas. - Era difícil saber se Seldes estava a oferecer compaixão ou a exprimir alívio. - É claro que compreendo. Mas talvez possa oferecer auxílio a um outro investigador?

- Claro.

- Nesse caso, talvez eu mesmo me encarregue do projecto. Escreva o artigo introdutório e trace as linhas mestras do inquérito.

- A sério? - Com os olhos muito abertos, Mather era a personificação da inocência. - Era a última coisa que eu esperava.

- Mas primeiro tenho de autenticar o material que tem, verificar as fontes.

- Façamos isso imediatamente. Eu pago a conta.

 

Duas horas mais tarde, e com um cálice de brande na mão, Harmon Seldes estava recostado numa das poltronas do apartamento de Max Mather, lendo o último facto da cadeia de provas - uma carta da parte do conservador de Assinaturas endereçada a Mather.

 

Caro colega, querido amigo,

 

Tenho sentido a tua falta. Todos temos sentido. E agora que também a encantadora Miss Loredon nos deixou, estamos duplamente privados. É necessário ter amigos para que na cidade das flores se partilhe a Primavera.

Deves gostar de saber que a transferência do arquivo Palombini para a nossa alçada está finalmente completa, e que fui nomeado curador da colecção. Devo-te bastante por esta honra, a qual irá reflectir-se minha futura pensão.

O evento foi comemorado com uma cerimónia oficial. Tanto Claudio Palombini como o nosso director estiveram presentes, bem assim o presidente da Câmara, os membros mais importantes da Comune, e individualidades das Belle Arti. Teceram-se vários elogios a teu respeito. O teu nome foi inscrito no livro de honra dos nossos beneméritos.

Fizeste-me ainda outro favor. Na festa de despedida de Miss Loredon, a qual, diga-se, foi bastante animada, sugeriste-me que investigasse a vida e a época de Luca Palombini. Na altura não levei a sugestão muito a sério. Tal como a maioria dos estudiosos, sinto-me mais à vontade num passado remoto e seguro. Para além disso, tenho recordações pouco felizes do período da guerra, e não estava propriamente desejoso de as reviver. Foi uma altura de confusões morais e lealdades divididas no íntimo, a maior parte de nós sente-se culpada de algo. Contudo, a ideia não me largava e acabei por me agarrar a ela. Sei que o nosso amigo Nicki te contou algumas coisas a respeito do Luca. Mostraste-te particularmente interessado nas mulheres que partilharam a sua vida. De todas elas- e a minha lista é longa, se bem que incompleta - a menos interessante talvez fosse a mulher. Era bem nascida, foi educada num convento, e viveu toda a vida numa redoma de certezas inquestionáveis. Luca prestou-lhe as honras devidas à matrona da casa. Estimou-a, bem assim como aos filhos, mas arranjou tudo de maneira a poder viver como queria até ao fim dos seus dias. Neste aspecto, e como seria de esperar, foi tão convencional quanto a mulher.

Era generoso com as amantes, mas não excessivamente gastador. Comprava-lhes jóias, vestia-as nos melhores costureiros, alojava-as com conforto. Diz-se que era um amante cheio de energia. Era também um tirano que não tolerava cenas nem coscuvilhices. Ao mais pequeno indício de que a amante andava a espalhar segredos de alcova, a relação de ambos terminava naquele mesmo instante.

Camilla Dandolo, a cantora de ópera, parece ter sido um caso especial. Tinha uma voz medíocre. Nunca chegou a diva. No entanto, era bonita e inteligente, e Luca Palombini usou bem os seus talentos. Fiquei com a impressão de que por diversas vezes ela serviu como agente correio, sendo personagem de confiança na vida política do amante. Isto deve servir para explicar o respeito que os membros mais velhos do clã Palombini lhe devotam. Serve também para explicar a razão por que não consentiram que se envolvesse em litígio com a mulher de Luca. É óbvio que este a deixou bem amparada. Comprou-lhe um pedaço de terra na Romagna. Deixou-lhe dois lotes de acções em vários enti. Apesar de tudo, não se sabe ao certo se lhe deixou algum dos bens familiares de valor considerável. Como já deves ter reparado, caro colega, tenho sido um bisbilhoteiro ocupado e bem sucedido.

Camilla Dandolo regressou a Milão depois da morte de Luca. Já não era pretendida como cantora, mas os responsáveis do La Scala ficaram contentes por ela poder terminar o contrato. Cantou em espectáculos de beneficiência, ensaiou novos cantores, comportou-se deforma exemplar.

Então, e deforma algo surpreendente, casou-se, isto em Novembro de 1947. O noivo era um tal Franz Christian Eberhardt, um cidadão brasileiro residente no Rio de Janeiro. Para teu proveito, junto envio os registos do Ufficio Anagrafe de Milão. De acordo com a imprensa, o casal seguiu primeiro para Lisboa, onde passou a lua-de-mel, embarcando depois para o Rio.

No entanto, correm rumores não confirmados, mas que a minha velha mente perversa pensa serem verdadeiros, de que Franz Eberhardt era um dos oficiais nazis que fugiu para o sul, para Itália, e que, com a ajuda de velhos amigos na igreja e no Estado, acabou por se escapar para a América do Sul.

E é aqui, meu caro jovem colega, que a história termina, não sem resquícios de melodrama; aliás, à boa maneira italiana. Já agora, que tens para me dizer? O trabalho vai bem? Estou fascinado com o material de tese que me mandaste. Interrogas-me sobre uma velha capela situada nos terrenos da villa dos Palombini. Fiz algumas perguntas a esse respeito, e fiquei a saber que ali existiu uma capela dedicada a S. Gabriel, a qual se manteve até meados do século XVII. No entanto, foi palco da violação e do assassínio de uma camponesa, actos estes que se caracterizaram por uma extrema brutalidade. O edifício foi secularizado e completamente arrasado. A madeira e as pedras foram utilizadas nos celeiros e nas construções adjacentes à villa. Os camponeses dizem que o local ainda se encontra assombrado por uma donzela velada que espera a passagem de rapazes incautos para os destruir.

Isto é uma das coisas fascinantes da nossa profissão: vira-se uma página poeirenta e tem-se uma história completa em frente aos nossos olhos. Mas já me estou a deixar levar pelo lirismo, e quando isto acontece a minha mulher diz que fico maçador.

Escreve depressa. Estou intrigado com as tuas proezas nos campos nevados. Estou ainda mais intrigado com a dedicação que demonstras pelos desportos violentos, muito concretamente por desceres colinas a esquiar. São talentos pouco comuns nos eruditos. Ou será que esta forma de pensar revela a minha ignorância? Ao fim e ao cabo, os ingleses sempre valorizaram as façanhas desportivas e os russos transformaram-nas em instrumentos políticos. As nossas façanhas ocorrem na cama, ou então no campo de batalha. Echeu fugaces! De qualquer das maneiras, estou a ficar velho para brincadeiras.

Os melhores cumprimentos

 

Guido Valente (conservador de Assinaturas e agora curador do Arquivo Palombini.)

 

Seldes dobrou a carta com todo o cuidado e devolveu-a a Mather. Quando voltou a falar, o tom de voz revelava um respeito que antes não existira.

- Parece ter um talento especial para fazer amizades.

- Guido Valente é bastante especial: é um homem da Renascença até à raiz dos cabelos.

- Posso fazer-lhe uma pergunta, Max... não se importa que o trate por Max, pois não? Deve tratar-me por Harmon.

- Obrigado.

- Posso perguntar-lhe se revelou esta informação sobre os quadros à família Palombini ou ao seu amigo Valente? A carta dá a sensação de que o fez.

- Bem pelo contrário. Refreei-me de o fazer pelas mais variadas razões.

Seldes dirigiu-lhe um olhar de aprovação, e disse com todo o cuidado:

- Talvez me tenha enganado devido às referências à capela de S. Gabriel, as quais tanto aparecem na carta como no livro de registos.

- Deve ter sido. - Mather foi brusco. - A capela e as referências a Luca Palombini pertencem ao contexto das minhas conversas com Pia durante os últimos meses em que esta viveu. Sofria de uma doença nervosa devastadora que lhe arruinou o sistema motor. Dormia pouco e sempre apavorada, receando que um espasmo respiratório a levasse durante o sono. Costumava sentar-me a seu lado e encorajava-a a falar e a contar-me histórias acerca dos parentes e das recordações do clã. Devido à forma como falava, as narrativas eram desconexas e fragmentadas. Nos últimos tempos tenho tentado recordá-las e passá-las para o papel. Eu... bom, sei que não faz passar a dor, mas pelo menos parece que se suporta melhor.

- Compreendo - disse o outro em voz baixa. - Não o quero ofender, mas posso saber por que razão decidiu não discutir o assunto dos quadros com os Palombini? Ao fim e ao cabo, eles foram os primeiros a possuí-los.

- Por duas razões. - A resposta foi pronta mas clara. - Em primeiro lugar, esta referência chegou-me às mãos depois da morte de Pia. Em segundo lugar, Pia contara-me que existia alguma controvérsia no seio da família sobre a administração do património familiar levada a cabo por Luca durante o período fascista e a ocupação alemã. É evidente que o homem andou a comprar a sobrevivência e a apostar em todos os cavalos. Nunca pedi pormenores, e Pia nunca se ofereceu para mos dar. Éramos amantes, mas mesmo assim eu era um estranho. Contudo, e depois da sua morte, a família tornou-se bastante respeitosa e interessada. Esta relação é importante para mim. Quero mantê-la intacta. De forma que nunca me meto nos seus assuntos. Aqui, na privacidade deste quarto, confesso que me tenho perguntado se Luca usou estes e outros trabalhos perdidos, nos seus negócios com os alemães, talvez que com os agentes de arte de Goering, os quais estavam em Itália naquela altura. Mas, e como deve saber, os italianos não aceitam de ânimo leve que um estranho lhes faça esse tipo de perguntas.

- De forma que nada acerca desta passagem no livro de registos?

- Exacto. Mesmo assim, e antes que se publique alguma coisa aqui, sinto-me obrigado a informá-los do que se passa, e a convidá-los para que participem das investigações.

- Penso da mesmíssima maneira. - Era evidente que Seldes estava satisfeito. - Pode oferecer-me um outro brande? Depois tenho de ir.

Tirou os óculos e não fez qualquer protesto quando Mather lhe encheu o copo com uma quantidade generosa.

- Max, vamos ao que interessa. Gostaria de publicar alguns extractos da sua tese na Belvedere. Pagamos bem. É provável que o vá ajudar quando andar à procura de um editor. Da parte que me toca, acho que dará um tom académico a este projecto de pesquisa.

- Ficarei encantado. Está claro que precisarei do seu auxílio com vista à escolha das passagens adequadas.

- Para esse fim terá um dos nossos redactores mais experientes a ajudá-lo. Tem alguma objecção quanto ao facto de trabalhar com uma mulher?

Mather foi rápido em vislumbrar o anzol por detrás do isco. Sorriu.

- Bem pelo contrário, gosto bastante de mulheres.

- Óptimo. - Seldes pareceu aliviado. - Isso leva-me à próxima pergunta. Se as coisas são para ser feitas, e atendendo ao dinheiro que vamos gastar com isto, há que ter subsídios. Depois de ter visto o material que possui, e sabendo que há muito para ser examinado, estou certo de que conseguirei persuadir os directores da Belvedere a apoiarem o projecto. Que pensa a este respeito?

- Sinto-me lisonjeado.

- Consideraria a hipótese de se juntar a nós, digamos que com o título de "Editor Contribuinte"?

- Bom... se pensa que estou à altura...

- Meu caro Max - Seldes ficara subitamente expansivo -, você é um distinto erudito. A sua experiência, muito embora limitada, é especial. Tem uma escala de valores muito própria. Ficarei grato se a partilhar comigo. Posso até arranjar as coisas de forma a incluir uma viagem a Florença lá para fins de Maio, princípios de Junho. Se por acaso não puder ir comigo, importava-se de arranjar maneira de me apresentar?

Mather mal conseguia disfarçar a alegria que sentia. A ganância de Seldes estava bem à vista. Queria ficar com os louros da descoberta e cheirava-lhe a que depois disso poderia ter muitos lucros. Se ele assim o queria... Era uma autoridade no assunto. O dinheiro seguia-o para onde ele ia - dinheiro proveniente de galerias, de particulares, de fundos. Não importava para onde fosse, nunca, nunca conseguiria encontrar os quadros, mas todos os passos que desse serviriam para aumentar o seu valor no mercado.

É claro que Seldes também sabia isto, e era provável que se revelasse um inquisidor persistente, cheio de surpresas perigosas. Naquele momento fazia a seguinte pergunta:

- Esta Miss Loredon mencionada na carta tem alguma coisa a ver com Hugh Loredon, o homem da Christies?

- É a filha. Estava a trabalhar em Florença sob os auspícios das Belle Arti. É uma rapariga inteligente.

- Bonita?

- Muito.

- Na sua época, Hugh também foi um diabo bem parecido.

- Nunca o encontrei.

- Mas devia. Sabe bastante sobre arte e tudo sobre a forma de a vender. A propósito - já estava a falar de outra coisa -, nada dissemos a respeito da colecção Palombini em si. Conhece-a bem?

- Razoavelmente. Fui eu quem supervisionou a elaboração do catálogo feita por Niccoló Tolentino. Devo dizer-lhe que, excepto algumas peças valiosas, a maioria é lixo - cópias e originais sem qualquer valor. Posso afirmar-lhe uma coisa: não existe qualquer trabalho de Rafael. Sabemos que houve uma altura em que a família os possuiu. Assim, quando foi que se desfizeram e a favor de quem? De qualquer das formas, se chegar a ir a Florença, farei que visite a villa e veja a colecção. Arranjarei também maneira de que fique a conhecer Tolentino, Guido Valente, e uma série de gente interessante de Florença.

- É bastante generoso da sua parte, Max. Bastante generoso. Está claro que tenho amigos de longa data em Florença, mas é óbvio que gostaria de conhecer a sua gente. - Os louros olímpicos de Seldes começavam a escorregar. Quanto ao trabalho... telefone-me na segunda-feira. Arranjaremos uma altura para conversar e encontrar algumas das pessoas interessantes que conheço. Se me permite, gostaria de levar uma cópia do seu manuscrito de forma a que os editores a leiam antes do nosso encontro. Quanto aos quadros, você e eu somos as únicas pessoas a saber do assunto até termos acertado tudo. Capisce?

Mather acompanhou-o até à saída e ficou a vê-lo descer o passeio na direcção de Lexington. Podia ser um idiota pomposo, mas era bastante esperto. Em apenas algumas penadas colocara-se à frente da investigação, bem assim como da publicidade que lhe estaria ligada. Desta forma ficava a controlar todos os lucros que daí adviessem. Isto era precisamente o que Max planeara. Harmon Seldes e a sua revista contribuíam com uma outra parte da legitimidade de que o negócio precisava. Colocavam-no a grande distância dos quadros. Transformavam-no num humilde estudioso posto na sombra por outro ainda maior. Amén! Seja essa a Sua vontade. Seldes nunca seria um amigo de confiança, podendo mesmo transformar-se num inimigo perigoso de um momento para o outro, mas era bom que não fosse estrangulado ou atropelado por um táxi. Naquele momento a sua vida representava uma fortuna para Maxwell Mather.

Com este alegre pensamento borbulhando-lhe na cabeça, Mather pegou no telefone, ligou para Anne-Marie Loredon e convidou-a a ir beber uns copos e jantar ao Gino's. Os protestos dela fizeram que o auscultador tremesse.

- Max, és um monstro! Desde que chegaste que não soubeste convidar-me para sair, e agora o melhor que fazes é sugerir o Gino's.

- Que outra coisa pode ser melhor? Adoro aquele sítio, com as zebras e tudo. Abraçam-me quando entro, servem-me um Sambucca de graça antes de sair. O vinho é honesto. A comida é boa. E sempre podemos recordar o nosso italiano. A propósito, recebi uma carta do Guido Valente. Tem saudades tuas. Em Florença todos têm saudades tuas.

- Eu também sinto a falta deles.

- E de mim?

- Nem por isso. Tenho andado muito ocupada. Parece que tive sorte. Conto-te tudo quando estivermos às voltas com as bebidas.

- Tenho novidades para ti. Mas guardo-as para a hora da pasta. Adoro-te.

- É claro que não fazes nada disso, mas não deixa de ser agradável ouvir-te dizer semelhante coisa. Às sete e meia, está bem?

- Às sete e meia. Ciao bambina.

Quando pousou o telefone e começou a arrumar a secretária e a lavar os copos, deixou-se arrastar numa onda de recordações - de Tor Merla, de Pia Palombini, frágil e assustada, agarrando-se a ele à procura de conforto, de Niccoló Tolentino, o corcunda de olhos luminosos e mãos mágicas. Havia também lembranças de Anne-Marie, de acordar ao amanhecer no seu apartamento, de ouvir os sinos a tocar as ave-marias, e de se perguntar, se bem que só por alguns instantes, para onde fora a inocência das coisas, e quando se fora.

Este súbito ataque de memórias conferiu um tom de especial emoção ao seu encontro com Anne-Marie. Abraçaram-se com calor. Empoleiraram-se nos bancos do bar e pediram dois cocktails, repetiram a dose, depois sentaram-se numa mesa situada junto a uma parede cheia de zebras exuberantes. Mandaram vir pasta, vitello alla Toscana, e uma garrafa de Barolo. A medida que esperavam, Anne-Marie continuava a debitar as novidades que tinha, isto a toda a velocidade.

- Bom, o resultado final é este: tenho a galeria. Vou inaugurá-la com uma exposição de quadros de Madeleine Bayard. O próprio Bayard designou-me para tratar dos negócios dele: compras e vendas. Tem uma colecção valiosa, mas é uma grande mistura que precisa de ser apurada. Para além disso, não tenho conseguido planear nada. O Bayard não me fez nenhuma pechincha. Deu-me um arrendamento de cinco anos, tendo o prazo de três para decidir se o renovo ou não, mas insiste em como devo ficar com todo o edifício. Vou precisar de alugar os dois andares de cima para poder pagar. Tudo isto faz que fique mais apertada do que o que gostaria estar.

- Não te importavas de me alugar os dois andares?

- Que vais fazer com eles?

- Transformar um num apartamento para mim. O outro ficava como estúdio e sala de conferências. Estou a pensar convidar o Nicki Tolentino para vir a Nova Iorque dar uma série de palestras e conferências. Se a experiência resultar, convidarei outros peritos.

Anne-Marie ficou a magicar no assunto durante bastante tempo, e depois perguntou:

- Eras capaz de me emprestar o Nicki?

- Emprestar como?

- Dividimos os custos e as receitas, mas sou eu quem o apresenta sob os auspícios da galeria. Seria um cartão de visita maravilhoso... num só golpe ficávamos entre os profissionais mais credenciados.

Mather sorriu-lhe por cima do copo.

- E agora, quem é que está a fazer altos negócios? Existem algumas compensações? Pensa com todo o cuidado, pois ainda não ouviste todas as novidades.

- A que tipo de compensações estás a referir-te?

- Em Florença sugeriste que devíamos trabalhar juntos. Ainda estás interessada?

- E farias o quê?

- Exactamente o que disseste. Instalo-me na Europa. Ficas a usar-me como comprador, vendedor e fixador. Dividimos as comissões. Dado que realizo trocas entre o continente e este país, estaremos sempre em contacto.

- Negócio fechado!

- Nem sabes a sorte que tens. Acabaste de contratar o mais recente colaborador da Belvedere.

- Max, sua raposa matreira! Não acredito.

- É melhor que o faças, bambina. Almocei hoje com o Harmon Seldes.

Chegámos a acordo quanto à publicação de extractos da minha monografia Florentina. Acabou por me contratar para a equipa. De forma que, Miss Loredon, a menina tem um amigo a trabalhar no mais prestigiado jornal de arte do mundo.

- Já tinhas planeado estas coisas antes de chegares a Nova Iorque?

- Nem por isso. Sou um improvisador inspirado. incomoda-te?

- Não... Ainda bem que estás aqui. Tenho-me sentido muito exposta.

- Perante o quê? Ou será melhor dizer perante quem?

- Perante tudo, mas é o Bayard quem mais me incomoda. Tenho estado completamente dependente da sua boa vontade. E ainda estou.

Parece-me que o sujeito fez um bom negócio: alugou o prédio, fez que os quadros da mulher chegassem ao mercado, arranjou uma agente bonita e ambiciosa para tratar da sua colecção privada. Mais alguma coisa para acrescentar à lista?

- Não é da tua conta, Max!

- Tendo em conta as circunstâncias, é. Não ando à procura de um ménage à trois.

E por que não? Por aquilo que sei, sentes-te bastante à vontade nesse tipo de situações.

No mesmo instante em que as palavras eram pronunciadas, lamentou tê-las dito. A reacção dele foi estranha. Ficou calado durante muito tempo a olhar para a parte de cima das mãos. Depois respondeu-lhe, quase sem levantar a voz:

- É claro que tens razão. Sou bastante bom no que diz respeito a triângulos, isto desde que à partida saiba quais são as regras do jogo. Sou flexível, razoável, bem disposto, um indivíduo que vive e deixa viver. Consegui ficar amigo da maioria das mulheres que conheci.

Ela tomou as mãos dele nas suas.

- Por favor, Max! Fui horrível. Peço desculpa. Entre mim e o Bayard não há mais nada senão negócios. Ele tentou atirar a escada, mas isso foi só no primeiro dia. Mesmo assim, sei que o atraio, de forma que quando estou com ele estou sempre alerta. És capaz de esquecer o que eu disse? Deveríamos estar a comemorar e não a discutir.

Mather enviou-lhe um sorriso de esguelha.

- Devíamos. E é o que vamos fazer. Mas antes disso falemos um pouco, mais sobre negócios. A exposição da Madeleine Bayard. Sabes que a história do assassínio vai voltar a vir ao lume.

- Como pensas resolver o assunto?

- Explorar a situação no que valha a pena.

- O Bayard. concordará com isso?

- Já concordou.

- É maluco, e tu também.

- Regra número um, Max! Nunca me digas como devo dirigir os meus negócios.

Mather respondeu-lhe com brusquidão.

- Se andas a jogar cartadas doentias nesta cidade, não vais viver para dirigir qualquer negócio. Nunca ouviste falar em crimes repetidos? Deixa-te de brincadeiras, por amor de Deus! Estou a pensar na seguinte nota elegíaca: "A vida é breve, A arte é eterna. Madeleine Bayard encontrou a imortalidade com os seus trabalhos." É provável que tenha de escrever uma igual a teu respeito.

- Está bem, Max, está bem! Vou pensar nisso.

- Quando pensas abrir a galeria?

- Estamos em fins de Janeiro. Na pior das hipóteses quero abrir em meados de Abril. Fiz o orçamento a contar com um prémio caso os empreiteiros consigam ter as coisas prontas no primeiro de Abril.

- O que significa que antes de 4 de Julho podes apresentar duas exposições. Abres com Madeleine Bayard. Que vem a seguir?

- Oliver Swann, do Novo México. Pinta paisagens tão cheias de uma energia em bruto que não podes acreditar que existam. Ele próprio é bastante colorido. Vai sair-se bem. Depois disso, e para o período do Verão, não faço ideia.

- Pode ser a altura ideal para trazer o Niccoló Tolentino para um mês inteiro de aulas e conferências. Podes fazer bom dinheiro com as entradas. Se as coisas forem bastante publicitadas, vais ter filas de gente do lado de fora da galeria. Pensa nisso. Se achares acertado, posso entrar já em contacto com o Nicki.

Sem vir nada a propósito, Anne-Marie fez o seguinte comentário:

- Mudaste, Max. Neste momento vejo um homem diferente daquele que conheci em Florença.

- Mudei em que medida? Para melhor? Para pior? Mais ou menos?

- Estás mais activo, mais calculista. De repente transformaste-te num homem apressado. Nunca foste assim. Ias até à cidade. Divertíamo-nos. Voltavas a ir-te embora. Eu gostava disso. Agora não tenho tanto a certeza...

O empregado colocou dois pratos de fettucine à frente deles, temperou-os com pimenta e queijo ralado, deitou o vinho nos copos, desejou-lhes bom apetite e retirou-se.

Iam a meio da refeição quando Mather disse como que por casualidade:

- Ia pedir-te um favor.

- Pede.

- Apresentas-me ao teu pai? Tenho uma série de objectos valiosos que estou a pensar vender. Gostaria que me aconselhassem a este respeito, principalmente se o conselho vier de um amigo autorizado.

- Que espécie de coisas?

- Trapalhadas de família. Um relógio Tompion que dizem ser bastante valioso, um anel antigo com uma esmeralda... uma série de outras coisas parecidas. Vou precisar de capital para subsidiar o arrendamento do teu prédio.

- Não será o meu pai a avaliá-las, mas ele fará que alguém da companhia te dê uma opinião de perito. Vou dizer-lhe que lhe vais telefonar.

- Obrigado. - Ergueu o copo para fazer um brinde. - Aos velhos tempos, e a outros ainda melhores.

Comeram, beberam, falaram. Uma hora mais tarde levou-a até ao apartamento dela. Esta não o convidou a entrar. Ele não se demorou. Beijou-a em ambas as faces, à maneira italiana, e deu meia-volta.

Anne-Marie fê-lo parar.

- Max...

- Sim?

- Estás zangado comigo?

- Claro que não... mas sou capaz de ficar se continuares aí especada a explicar-me que estás com dores de cabeça. Amanhã de manhã telefono-te... e não te esqueças de telefonar ao teu pai.

- Não me esqueço. Boa noite, Max...

Atirou-lhe um beijo com a mão e desapareceu, avançando com passadas elásticas enquanto assobiava uma versão desalmada de La ci darem la mano. Não estava demasiado descontente. Um pouco de sexo depois do jantar não seria desagradável, mas para isso bastava levantar o auscultador do telefone. O que realmente importava era que a sua identidade, pouco nítida depois de uma longa ausência, estava agora a ganhar forma. A publicação do seu material dar-lhe-ia a autoridade de um erudito. Enquanto redactor de uma revista importante, poderia ir a qualquer lado e fazer as perguntas que quisesse. Como sócio de uma galeria nova e bem relacionada, todos os comerciantes se chegariam a ele.

O que agora necessitava era que o ajudassem no plano legal, e para isso nada melhor que o senhorio de Anne-Marie, advogado da Art Dealer's Association of America.

 

Edmund Justin Bayard recostou-se no cadeirão, uniu as pontas dos dedos e, olhando por cima delas, observou quem o visitava. Gostou do que viu: um indivíduo bem parecido e com um ar jovem, bem apresentado dentro de um fato concebido por um bom alfaiate, a camisa e a gravata bem talhadas, os botões-de-punho que, apesar de serem caros, nada tinham de extravagante. Perguntou-lhe:

- Quem foi que me recomendou, Mr. Mather?

- Falou-se a seu respeito anteontem, durante um jantar com Anne-Marie Loredon. Entre outras coisas, disse-me que era advogado e que trabalhava para a Art Dealer's Association of America, de forma que aqui estou.

- Em que posso ser-lhe útil?

- Em primeiro lugar, acho melhor explicar-lhe que não sou comerciante de arte. Sou um estudioso, formado em paleografia e com um interesse especial na arte europeia. Neste momento a Belvedere vai publicar algum do meu material, e também fui designado para redactor assistente da revista. Miss Loredon pediu-me para trabalhar com ela na Europa. Nunca fiz este tipo de trabalho, de forma que achei melhor familiarizar-se com os dispositivos legais que permitem a aquisição de obras de arte europeias, que sejam bastante importantes. Se vou recomendar uma compra, tenho de saber como funcionam as coisas a nível de direitos de posse, proveniência, exportações e importações. Neste campo estou completamente verde.

Bayard sorriu com tolerância.

- Não se sinta mal por causa disso, Mr. Mather. Existem alguns princípios básicos bastante simples. Depois disso vai ver-se envolvido numa série de estatutos que mudam de fronteira para fronteira.

- Pensei que talvez pudesse existir alguma brochura publicada pela Dealer's Association onde se enumerassem os principais vectores do negócio.

Bayard. soltou uma gargalhada - um som seco e parecido com um latido, o qual terminou de forma arrastada.

- Meu caro Mather, isso só vem comprovar a sua inocência. Brochura? Meu Deus! O objectivo principal de cada intermediário é publicar o menos possível, e prometer ainda menos sobre os bens que vende. Faz sempre o papel de inocente, agindo de boa fé entre um comprador solícito e um vendedor igualmente solícito. Diga-lhe que encontrou um del Sarto num leilão no Liechtenstein, e ele estará preparado para aceitar a sua palavra. Ficará felicíssimo se lhe puderem apresentar um papel comprovativo. Se alguém contestar o seu direito de posse da obra, o intermediário retira-se para a sombra e deixa-nos discutir o assunto. Mostre-lhe uma falsificação razoavelmente decente, e ele de imediato fará vista grossa, calculando as possibilidades que tem de a impingir a alguém. Não precisa de nenhum ábaco para lhe dizer quando expira o prazo que impede a circulação de uma obra roubada. Não dá qualquer garantia a respeito da proveniência, isto mesmo quando ela existe. Vende aquilo que o possuidor representa, aquilo que o comprador vê. Se o produto cair de um camião e o dono aparecer para aí aos gritos a reclamar, o intermediário lava as mãos de todas as responsabilidades.

"Falando a sério, Mr. Mather, enquanto agente ou negociante, a coisa mais segura a fazer será tratar de cada caso segundo as suas próprias características, e passar as responsabilidades ao comprador. Se existirem dúvidas quanto aos direitos de posse e proveniência, limite-se a apresentar as suas reservas. Deixe o resto por conta de Miss Loredon e do advogado que a representa.

- Que presumo ser o senhor.

- Não necessariamente, isto apesar de assim que ela seja reconhecida como membro da associação, passe a ter acesso aos meus conselhos. Como ela lhe deve ter dito, ficará encarregue de comprar e vender artigos para a minha colecção privada. De forma que é provável virem a surgir ocasiões em que você e eu estaremos directamente envolvidos.

- Estará disposto a aceitar-me como cliente?

- Se me escolher como advogado, sim.

- Gostaria bastante. - Ofereceu o seu cartão a Mather. - Encontrará aí a minha morada e o número de telefone, ambos temporários. Espero vir a subalugar os dois andares superiores do edifício de Miss Loredon.

Bayard. olhou-o com um interesse súbito.

- Dois andares? Mas isso é um espaço enorme!

- Um deles como apartamento, o outro como estúdio e sala de conferências. Propus-me a trazer cá o restaurador mais importante da Pitti de Florença, para que conduza uma série de seminários de Verão a respeito da conservação de obras de arte e assuntos afins. Miss Loredon aprovou a ideia e também gostaria de participar. Se for bem sucedida, farei que outros especialistas europeus ligados ao assunto venham até cá.

- É um projecto interessante ... bastante. Conheceu Miss Loredon em Florença?

- Sim. Ela estava sob os auspícios das Belle Arti. Eu era o arquivista de uma daquelas famílias antigas. Encontrámo-nos por acaso. Consegui apresentá-la aos artistas e artesãos locais. Visitámos juntos imensas galerias e igrejas.

- Isso tem qualquer coisa de romantismo, Mr. Mather?

- De maneira nenhuma. A senhora florentina por quem eu estava profundamente apaixonado morreu há apenas alguns meses. Ainda não me encontro pronto para outro compromisso. E Miss Loredon tem as suas próprias ambições, nas quais eu não me incluo.

- Acha que ela as conseguirá satisfazer aqui, em Nova Iorque?

- Talvez. Tem bom gosto e estudou imenso. Tem uma enorme determinação. As pessoas gostam dela. Por tudo isto, acho que tem muito mais que apenas uma hipótese. A propósito, ela ficou bastante impressionada com os quadros da sua falecida esposa.

Eu sei. Foi por isso que a encarreguei de fazer que esses trabalhos saiam para o mercado.

- Isso contribui com mais uma razão para a minha visita, mas parece-me ser difícil tocar no assunto sem parecer impertinente.

- Por favor, diga o que tem a dizer.

- Eu e Miss Loredon estivemos a discutir o assunto da exposição, bem como os inevitáveis artigos que a imprensa publicará a respeito do assassínio de sua mulher. Ela contou-me que vocês tinham discutido o assunto, acabando por decidir enfrentar a situação, chegando mesmo a tirar partido da publicidade.

- É mais ou menos isso, é.

- Eu não concordei - disse Mather bruscamente. - Disse-o a Anne-Marie.

- E?

- Primeiro mandou-me dar uma volta, depois acabou por me dizer que ia pensar no assunto.

Qual é a sua objecção?

- Um crime copiado. Contando histórias lúgubres de uma forma lúgubre, são bem capazes de incitar à perversão. Para além disso, as obras de arte em si mesmas criam um corto potencial mágico, especialmente quando se juntam pessoas para as ver.

Bayard pensou na questão durante um momento, depois acenou de forma a expressar um consentimento reservado.

- Compreendo o seu raciocínio. Voltarei a falar com Miss Loredon. Mais alguma coisa?

- Gostaria de fazer-lhe mais algumas perguntas.

- Está a pagar-mo para que lhe conceda o meu tempo. - Bayard voltara a ficar descontraído.

Para ser preciso, quais são as coisas que constituem o direito a uma obra de arte?

- Em primeiro lugar a posse. Perante a lei é o mais importante. Depois, qualquer documento que prove que se deu uma transmissão: um recibo, um registo de doação, um testamento, até mesmo um cartão de parabéns.

- Ouvi dizer que o direito de posse pode perder-se depois de um certo tempo.

Se o artigo se perdeu, foi roubado ou extraviado por um período superior a trinta anos, então pode dizer-se que o direito de posse se perdeu.

- O que quer dizer que, trinta anos depois de o ladrão o ter roubado, pode aparecer à sua porta e vender-lhe o mesmíssimo artigo que roubou?

- Precisamente. Se não concordar com a soma que lhe é oferecida, pode meter o trabalho debaixo do braço e ir-se embora sem qualquer compromisso. Repare, ele está protegido de duas maneiras. Não pode responder pelo seu crime dado que aí entra o estatuto de limitações, e depois de terem passado trinta anos o objecto pertence-lhe por direito.

Nesse caso passemos à próxima pergunta: exportações e importações.

Há países que restringem, isto senão chegam mesmo a proibir, a exportação de obras de arte importantes pois consideram-nas tesouros nacionais, não há?

- Correcto.

- No entanto, a maioria dos países consente na importação de obras exportadas através de vias ilegais.

- Não é bem assim, Mr. Mather. Postas nesses termos, as coisas têm um aspecto negativo. A maior parte dos países não acha que seja seu dever perguntar se as exportações são ou não legais, principalmente se não andar por ali nenhuma ilegalidade: por exemplo, se os objectos não se encontram nas listas da Interpol, ou se não foram roubados. Na prática acontece aquilo que lhe expliquei ao princípio - o negociante, o leiloeiro, nenhum deles faz perguntas. Satisfazem-se com o que têm. Ficam felizes se a proveniência é boa. Não se espera que se comportem como agentes alfandegários trabalhando em favor dos franceses, ingleses ou italianos. Por outro lado, revelam sensatez não se envolvendo directamente em operações de contrabando. Mais ainda, são eles que retêm todos os pagamentos até que os bens estejam em seu poder, na terra onde se propõem vendê-los.

- Parece que tenho muito para aprender. - Mather fez um sorriso enviesado.

- Tenho a certeza de que vai aprender depressa - respondeu Bayard. Agora deixe-me ser eu a perguntar-lhe uma coisa.

- Faça favor.

- Miss Loredon ofereceu-lhe alguma parte nos negócios dela?

- Não. Há alguma razão para essa pergunta?

- Uma razão muito simples. Pedi-lhe para pensar em se associar comigo. Rejeitou a proposta.

- Não leve as coisas tão a peito.

- Nem calcula como estou satisfeito por o ouvir dizer isso, Mr. Mather. Não faço segredo de que estou bastante interessado na senhora...

- Nesse caso - sorriu Mather -, vou dar-lhe um conselho pelo qual não vai precisar de pagar. Não se precipite. Ela é bastante independente.

- Não me esquecerei. Obrigado.

- Obrigado eu, Mr. Bayard.

Assim que Mather saiu, Bayard pegou no telefone e ligou um número de Murray Hill.

- Lou? Aqui Bayard. Mais um nome no círculo Loredon: Maxwell Mather. Conheceu-a em Itália. Vai estar ligado à galeria. Acho que entre ambos não existe mais nada a não ser amizade, mas gostaria de saber onde é que se situa no esquema dela. Vou dar-te a morada. O quê? Ah, sim, até agora estou bastante satisfeito. Ela está mais limpa que aquilo que eu pensava...

 

Hugh Loredon, leiloeiro, era a imagem perfeita do cavalheiro com propriedades no campo: de cabelo branco, compleição rosada, uma certa queda para os fatos de tweed e gabardinas exóticas, bom olho para mulheres, vivacidade de espírito, bastante eloquência e um instinto selvagem no que dizia respeito ao gosto e temperamento do público que assistia aos leilões. Mather, que o recebeu no seu apartamento durante a hora de almoço, passou uma boa hora ouvindo-o dissertar e contar histórias divertidas.

- Se olhar para eles do alto da tribuna, verá que são como cobras dentro de um cesto, prontas para se erguer e morder. Assim, a primeira coisa a fazer é encantá-los, fazer música, hipnotizá-los ao ritmo das ofertas. Todos eles estudaram os catálogos. Todos sabem o que querem comprar, todos perguntam a si mesmos se o dinheiro vai chegar. Depois de algum tempo começa a compreender-se os que são clientes regulares. Se conseguirmos fazer que assentem, são uma ajuda nas relações com o resto do público. Já trabalhei em Londres, Paris, Nova Iorque e Genebra. Apesar de serem públicos diferentes, acabam por ser o mesmo: gananciosos e velhacos. Por vezes pode sentir-se uma determinada corrente sexual que emana da plateia. Há uma mulher que exprime as ofertas tocando no seio esquerdo com a mão direita, uma outra que não pára de abrir e fechar as pernas como se estas fossem um fole. Bom, posso garantir-lhe que se trata de algo que nos faz perder a concentração, visto tratar-se de umas belas pernas. A propósito, esta refeição é esplêndida. Onde aprendeu a cozinhar?

- Tive aulas.

Loredon acenou, exprimindo aprovação.

- Bastante sensato. Há imensas raparigas que não gostam de cozinhar, e todas elas ficam esfomeadas.

Mather soltou uma gargalhada.

- Fala a voz da experiência?

- De uma longa experiência. O único problema que resulta do facto de se jantar em restaurantes é que a viagem de volta para o quarto demora bastante tempo... Disse que tinha umas coisas para me mostrar.

- Enquanto as vou buscar sirva-se de um cálice de Porto.

Mather afastou algumas das coisas que se encontravam na mesa, de forma a arranjar espaço para expor o seu pequeno tesouro: O relógio Tompion, a esmeralda trabalhada, uma caixa esmaltada destinada a guardar doces, e um par de pistolas de duelo datadas do século XVII, as quais vira em Brescia e Pia insistira em lhe oferecer.

Hugh Loredon puxou de uma pequena lupa e examinou as peças com cuidado. O veredicto que pronunciou foi breve.

- A menos que seja absolutamente imperioso, será uma idiotice vender este material. Será melhor colocá-lo numa caixa-forte e guardá-lo como reserva para a velhice. Este relógio é uma beleza. A inscrição diz que foi feito em 1704, o ano em que Tompion se tomou mestre da Companhia de Relojoeiros de Londres. É uma peça de museu. Deve valer qualquer coisa entre os setenta e cinco e os cem mil dólares. Há cerca de dez anos vendi um por cinquenta. A jóia... é interessante, mas não suficientemente importante para provocar uma onda de murmúrios num daqueles grandes leilões. A caixa é boa, Luís XIV. Talvez uns trinta mil. Quanto às pistolas, dez ou à volta disso. Se guardar as peças, verá o seu valor aumentar de ano para ano. É consigo. Se quiser posso fazer que os nossos as vejam com cuidado, isto para que depois fale consigo a respeito da reserva e da data apropriada para as pôr à venda. Como alternativa, podemos tentar organizar uma venda privada. A nossa lista de clientes internacional é bastante longa.

- Ponha-as em leilão - respondeu ele bruscamente. - Estou a tentar organizar a minha vida. Não que me encontre com falta de dinheiro, pelo menos por agora, apesar de isso se poder vir a verificar assim que assinar o contrato de aluguer com a Anne-Marie, e começar a arranjar o apartamento.

- Avise-me assim que estiver pronto. Diria que, comissões descontadas, se chega com facilidade aos cem mil. Num dia bom talvez se faça mais.

- Quais as coisas que fazem com que um dia seja bom?

- Só Deus sabe. Pela parte que me toca, sinto-o pela forma como pego no martelo.

- Há uma coisa que gostaria de lhe mostrar. Ninguém sabe nada a este respeito, nem mesmo a Anne-Marie. Vou publicar um artigo sobre isto na Belvedere, e gostaria que até lá não falasse muito a este respeito.

Hugh Loredon sorriu e encolheu os ombros.

- É muito confiante. Este é o negócio que mais coscuvilhice comporta. Contudo, acho que consigo guardar um segredo; pelo menos até à altura em que outra pessoa me venha contar o mesmo... Força!

Mather foi buscar os livros de registo dos Palombini e traduziu-lhe as entradas.

Intrigado, Hugh Loredon franziu o sobrolho.

- Não acha estranho? Foram pintados em 1505 por um homem que, ainda em vida, foi reconhecido como um grande mestre, e desde então nunca mais foram vistos nem se ouviu falar deles.

- Sim, é bastante estranho, mas existem casos semelhantes.

- Que pensa que irá acontecer assim que o seu artigo for publicado?

- Na melhor das hipóteses, uma resposta que indique que os quadros ainda existem. Na pior das hipóteses, o silêncio.

- Pode conseguir algo mais que aquilo que espera.

- Não compreendo.

Hugh Loredon serviu-se de mais um cálice de Porto e cortou uma pequena lasca de queijo. Colocou-a na boca e deixou-a escorregar junto com uma golada de Porto. Foi então que limpou os lábios ao guardanapo e, sem pressas, contou o seu conto admonitório.

- Max, você aqui fala de tesouros. Se os girassóis de Van Gogh chegam aos quarenta milhões durante um leilão, quanto acha que estes quadros valem? Se disser cem milhões está a ser conservador. Se forem levados a leilão, só os leiloeiros cobram percentagens de dez por cento por comprador, dez por cento por vendedor, o que perfaz vinte milhões. Isto significa que, logo à partida, estamos deveras interessados no negócio. Agora pense nas outras cobras do cesto: os intermediários, os grandes coleccionadores, as instituições, as fundações... todos se vão interessar por si. Todos vão acenar-lhe com dinheiro, querendo que fique com eles, oferecendo-lhe honorários se encontrar os quadros. Mais ainda, para onde quer que vá não vão deixar de o vigiar. Não vê? É bastante fácil. Você é o homem que tem o mapa do tesouro, um mapa perfeitamente honesto, autêntico em todos os pormenores. Até eu ficaria contente se colocasse um vigilante que seguisse o seu rasto durante doze meses, apenas para me certificar de que a minha companhia não ia perder uma comissão de vinte milhões. Até agora tenho estado apenas a referir-me aos interesses legítimos, mas e quanto aos rapazes do mercado negro? Há um armador ateniense que dá cobertura a um ladrão de obras de arte. E há um coleccionador colombiano, um cliente nosso, que é conhecido como receptador de obras roubadas. Por que razão não o deveria ser? Tem uma fortaleza na montanha e um exército privado para o proteger. Nada disto é novo. O condottieri dos velhos tempos costumava viver da pilhagem.

- Está a sugerir que não devo publicar o artigo?

- Não tenho o direito de o dizer. Você é um estudioso. Eu sou leiloeiro. Embora por razões diferentes, ambos queremos que os objectos sejam encontrados. Estou simplesmente a dizer-lhe que não se trata de um jogo palaciano... nada tem a ver com a estética e valores absolutos. Trata-se aqui de comércio, comércio de um tipo de bens raros e limitados, tão especializado como o velho tráfico de especiarias o foi, bem como o mais recente negócio de segredos comerciais. Aqui não há lugar para amadores. As recompensas são elevadas. O jogo é duro, sujo, e por vezes bastante perigoso. Mais ainda, entrar numa coisa destas pode ser bastante caro... Penso que vive bem, mas não é rico. Pelo que a Anne-Marie me disse, sei que gosta do ócio da vida académica. Estou apenas a avisá-lo de que os próximos passos que der podem metê-lo numa grande alhada.

Suponhamos - disse Mather com toda a calma -, suponhamos que decido não publicar este artigo e passo a ser eu mesmo a conduzir as pesquisas.

- Não pode. - Hugh Loredon mostrava-se enfático. - É tarde de mais.

- E por que não?

- Porque a partir do momento em que falou com o Harmon Seldes as coisas foram de imediato publicadas. Ele sabe aquilo que você sabe. Sabe de onde a informação provém. Já deve andar a conversar a este respeito com os seus amigos endinheirados. Eu sei o mesmo que ele. Sei aquilo que você sabe. Tudo o que prometi fazer foi manter o segredo até à altura em que este deixe de o ser, coisa que pode acontecer a qualquer momento. Estou a avisá-lo porque é amigo da minha filha, um excelente cozinheiro, e também porque detestava vê-lo partir o pescoço.

- Sou um idiota - disse Mather com sentimento.

- É apenas um ignorante - retorquiu o outro alegremente. - Não há nada de mal nisso. Ser estúpido é algo completamente diferente. Bom, agora é a minha vez de lhe pedir um favor.

- Diga qual é.

- Estou preocupado com a Anne-Marie e o Ed Bayard.

- Porquê?

- Ela está-lhe demasiado ligada. Ele anda a preparar alguma.

- Ela já é crescida. Sabe como dizer não.

- Isto não o preocupa?

- Por que razão devia preocupar-me?

- Pensei que vocês os dois...

- Não somos. Anne-Marie e eu passámos bons momentos em Itália. Divertimo-nos muito e nenhum de nós se arrepende. Aqui em Nova Iorque acabaram-se os divertimentos e somos apenas amigos que negoceiam juntos. É uma situação que convém a ambos. De forma que se ela quiser sair com a rainha de Maio ou com o homem do lixo, o problema é dela.

- Deixe-me expor as coisas de outra forma. - Loredon ficara subitamente sombrio, e o seu rosto rosado parecia estar cinzento e encolhido. - A esposa de Ed Bayard era uma mulher muito bela e um óptima pintora. Os ciúmes que o marido sentia por ela eram doentios. Tentava mantê-la isolada dos amigos fazendo-a sentir-se insegura a respeito do talento que possuía. Nunca consentiu que fizesse uma exposição, apenas vendas particulares. Manteve-a num estado destrutivo para qualquer artista: em dúvida permanente. É brilhante no campo do direito, mas na vida privada é um sádico refinado.

- E como é que sabe tudo isso?

- Madeleine Bayard e eu éramos amantes.

Mather deixou escapar um longo assobio de surpresa.

- Isso era do conhecimento dele?

- Acho que sim. Não o posso provar.

- E deixou a sua filha negociar com ele?

- Não a consegui impedir. Já trazia tudo arranjado quando veio ter comigo: o arrendamento assinado, a exposição contratada. Exibiu os papéis debaixo do meu nariz como se fossem um estandarte, de forma a que eu me orgulhasse dela. Qual era o interesse em trazer à baila uma historieta qualquer?

- Você é um tolo, Hugh.

- Eu sei. Deixei passar o momento oportuno.

- Disparate. Diga-lho agora. Se não o fizer, faço-o eu. A polícia nunca o interrogou a respeito do assassínio?

- Claro que sim. A única coisa que descobriram foi que a Madeleine e eu éramos amigos, e que às vezes íamos para a cama.

- Então isso está registado e não constitui segredo. Que mais lhes disse? - Nada. Tem de compreender que tentei sempre não me comprometer. Não queria escândalo. Na companhia onde trabalho as aparências são uma coisa bastante importante. Na altura mantinha mais uns quantos casos sem importância, uma vez que são as mulheres ricas quem domina a cena da arte. Nada mais tinha para dizer à polícia a não ser que Bayard fazia a mulher infeliz. Dado que ele era o marido enganado e eu o amante em part-time, acho que não fui muito convincente.

- Mas nesse caso Bayard tinha um motivo para cometer o crime.

- Talvez. Contudo, a polícia deixou de o considerar suspeito logo desde muito cedo.

Por que razão é que me está a contar tudo isto?

- Porque... porque tenho medo. Tão certo como eu me chamar Hugh Loredon, que acho que o Ed Bayard vai usar a minha filha para se vingar de mim.

- Isso talvez seja uma expressão autêntica dos seus sentimentos de culpa, mas não vejo como ajustá-la aos factos. Anne-Marie disse que foi através de um agente que ficou a saber da existência do estúdio.

- Mas assim que o negócio foi discutido, assim que Bayard soube quem ela era... não está a ver?

- Vejo por que razão está preocupado. Não vejo o que possa fazer a não ser contar-lhe a verdade.

Se o fizer, promete que vai ficar ao lado dela? Que vai tentar descobrir o que se passa entre os dois?

- Não é o meu género, Hugh.

- A minha filha conta-me uma história diferente. Diz que ficou com a sua amiga italiana até que ela lhe morreu nos braços. Que é bom na cama. Que é generoso com os amigos, não faz cenas e arruma a cozinha. Diz que em si há muito mais que aquilo que está à vista.

Isso é um daqueles truques que se fazem nas festas - disse Mather de mau humor. - Tal como tirar coelhos de dentro da cartola.

Eu sei, Max. Você sabe-o. Mas a ilusão funciona enquanto a mantivermos só para nós.

 

A tarde caía quando, depois de ter bebido um café bastante forte e de se ter deixado azedar com as recordações que vinham à baila à medida que conversavam, Hugh Loredon saiu. Mather ficou com a impressão de que se tratava de um actor envelhecido que encontrara maneira de continuar a trabalhar enquanto quisesse, mas para quem o papel que desempenhava perdera todo o interesse, já não convencendo ninguém com a sua actuação. O seu encanto e condescendente cinismo eram como que uma máscara que escondia uma solidão sem sentido.

Pela parte que tocava a Mather, o almoço fora um acontecimento proveitoso. A revista, a casa de leilões, a galeria - tudo isto eram marcas de respeito. Por outro lado, as suas ficções iam aos poucos sendo cosidas aos factos pertencentes a outras vidas, vidas estas de que, pelo menos até à data, se conseguira manter isolado.

O dilema de Hugh Loredon ilustrava algo que ele próprio aprendera através da experiência: a força e a fraqueza do cavalier' sirvente o amante profissional. A sua existência pública era uma meia vida durante a qual a amante o hasteava ao nascer do dia, descendo-o ao pôr do Sol, tal qual uma bandeira. Quanto ao resto, limitava-se a ser um dos objectos dela. Juntos, a sua vida era uma actividade secreta durante a qual prazeres sexuais e venalidade, paixão e perversão, se misturavam numa fórmula instável. O único elemento que servia para equilibrar as coisas era a privacidade da relação. Apenas o amante conhecia as rugas e as adiposidades da senhora. Só ela sabia quanto o seu acompanhante era cobarde. Esta frágil combinação tornava-se explosiva assim que outra pessoa entrava no quarto.

Mather começara por simpatizar com Loredon porque o compreendia e podia solidarizar-se com ele. Também se preocupava com Anne-Marie, que atravessava os campos minados das loucuras do pai com uma enorme confiança. Não queria participar nos seus assuntos, mas, e dado que decidira usá-los para atingir os seus próprios fins, era como um insecto que não consegue evitar ser atraído para a luz.

 

Quando o telefone tocou, andava de um lado para o outro na cozinha, empilhando pratos, secando os talheres, pensando nas coisas segundo o seu ponto de vista. Era Anne-Marie quem estava na linha.

- Max, que estás a fazer?

- De momento estou a arrumar a cozinha. O teu pai e eu almoçámos juntos. Que posso fazer por ti?

- Vou sair de casa para ir até ao estúdio. O arquitecto vai lá encontrar-se comigo. Pensei que também te devias encontrar com ele para discutir o plano relativo às tuas áreas.

- Boa ideia. Apanha-me no caminho. Estarei à tua espera no passeio.

 

A viagem até à cidade foi um pesadelo. O condutor haitiano, surdo a todos os protestos e sempre a praguejar em crioulo, conduziu-os através do trânsito exactamente como se os Tonton Macoute o perseguissem com machetes. Quando chegaram ao estúdio, Mather estava pronto a matá-lo, e Anne-Marie, completamente tonta, estava quase a vomitar.

Ele amparou-a e fê-la caminhar cerca de meio quarteirão, ao mesmo tempo que sorvia o ar em golfadas. Depois deixaram-se ficar durante um bocado a observar o exterior do armazém, cuja fachada era de ferro, fundido e moldado durante os dias opulentos dos barões do aço. A frontaria era dupla, tendo ao centro uma porta larga, e de ambos os lados janelas com barras. As portas de cada um dos níveis estavam equipadas com escotilhas através das quais as mercadorias, previamente içadas com um guincho, chegavam às áreas de armazenagem.

O interior do edifício encontrava-se despido. Havia um elevador antiquado e uma ampla escadaria. Nas traseiras de cada andar achava-se uma casa de banho e um quarto para as lavagens. Com excepção destes acrescentos, todos os andares se traduziam por um espaço vazio, apenas quebrado pelos estreitos pilares de ferro forjado que suportavam o peso das vigas de aço do chão, e também o peso do tecto.

Subiram as escadas, inspeccionaram os vários andares, descendo depois juntos no elevador. Com alguma surpresa, Mather reparou que as casas haviam sido limpas recentemente, e que o interior fora também pintado. Perguntou a Anne-Marie:

- Foste tu que fizeste isto?

- Não. Quando fiz o aluguer já estava tudo assim. O contrato diz que tenho de o entregar nas mesmas condições. Que achas, Max?

- É uma roubalheira. A estrutura é forte. O telhado não parece ter fendas, o peso do edifício é suportado por vigas de aço e pilares de ferro. A canalização é antiga mas está em bom estado. O elevador precisa de um motor novo.

Vais precisar de ar condicionado. Depois disso falta-te dividir o espaço, pintar as paredes e organizar um bom plano de iluminação. O resto são coisas superficiais... um escritório simples, casas de banho atraentes, cozinha e copa funcionais.

- E que tal te parece como galeria?

- Bom, esta área está a desenvolver-se. A população é jovem e com posses. Podes chegar aos compradores abastados da zona alta da cidade através de anúncios e circulares enviadas pelo correio. Parto do princípio de que o teu pai te possa ajudar a arranjar uma boa lista de clientes.

- Pode e vai fazê-lo. Que tal se deram vocês os dois?

- Bem. Ele gostou dos meus cozinhados. Concorda em que trabalhemos juntos, e acha que deves arranjar um vigilante.

- Começo a pensar que preciso de um.

- Por alguma razão especial?

- Não necessariamente, só que ando a gastar bastante dinheiro e ainda não vi nada, de forma que ando um bocado nervosa. E já começo a ficar farta do Ed Bayard.

- Mais alguns avanços?

- Não. Só que ele é tão... tão intenso. Ontem passei duas horas na casa dele a catalogar os quadros para a exposição. Ao fim do dia estava estoirada. Até mesmo aqui tenho uma estranha sensação de... presença.

- Isso apesar da limpeza que ele fez?

- Queres dizer que tentou apagar recordações?

- Diz-me quantos senhorios existem em Nova Iorque que se dêem ao trabalho de limpar e pintar um armazém antes de o alugarem?

- Falas como se fosse algo sinistro. Eu acho óptimo.

- Tens razão. É mesmo. Vou passar a acender-lhe uma vela todas as manhãs.

O arquitecto estava à porta com um braçado de projectos e a cabeça cheia de ideias para a galeria, a arrecadação, a sala de audiência e o apartamento de Max Mather. Duas horas mais tarde estavam sentados à mesa do jantar num dos restaurantes da vizinhança, o qual era gerido por duas raparigas vietnamitas que se autodenominavam as irmãs Turn. A comida era boa, os empregados sorridentes, e o arquitecto, um dos novos residentes do Soho, estava cheio de novidades.

- Tenho andado a falar a respeito da galeria. Estão todos muito satisfeitos por vocês irem para lá e afastarem a maldição daquela casa. Mudei-me para cá pouco antes do crime, e durante uns tempos os preços dos bens imobiliários baixaram bastante. Aquilo foi uma coisa bastante sangrenta.

- Nós sabemos - retorquiu Mather bruscamente. - Estamos a tentar esquecê-lo. Você deverá desenhar uma galeria e não um mausoléu.

- Desculpem! - O arquitecto era todo desculpas. - É a última vez que falo a este respeito. Voltemos à questão da iluminação...

E foi assim, por uma unha negra, que a refeição foi salva, mas Mather ficou com a certeza pouco agradável de que o silêncio era bem mais perigoso para Anne-Marie que a revelação crua das loucuras do pai. No entanto, e como era bastante sensível aos seus próprios interesses, decidiu não se transformar no portador de más notícias. Regra geral, estes mensageiros eram abatidos pelador que causavam, e a única recompensa que recebiam era duas moedas de cobre sobre os olhos. Pela parte que lhe tocava, a forma mais sábia de agir era manter os olhos abertos, a boca fechada, e ser amigo de toda a gente: dos Loredon, de Bayard, de Harmon Seldes, do tio Tom Cobbley, isto não esquecendo a rapariga dos anúncios de shampoo.

Nessa mesma noite, e já bastante tarde, Max sentou-se e escreveu uma carta bastante cautelosa a Claudio Palombini. Era um registo simples e directo das referências a Rafael, onde também se mencionava a futura publicação das notícias e se pedia ajuda nas futuras pesquisas:

 

... como será de esperar, a publicação dos meus achados provocará uma enorme onda de curiosidade a respeito dos quadros perdidos - isto se estão mesmo perdidos e não enterrados numa das muitas colecções obscuras que ambos sabemos existir, apesar de nunca terem sido registadas em catálogo.

É possível que saiba coisas a respeito destes trabalhos que não sejam do meu conhecimento. Se assim for, e se lhe for possível contar-mas, ficarei satisfeito em as publicar, isto com a necessária autorização.

Espero que se encontre de boa saúde, bem assim como a sua família. A recordação da minha querida Pia continua a assombrar os meus sonhos. Nesta selva de automóveis que é Nova Iorque, sinto a falta dos melros no lado de fora da minha janela.

 

Nem tudo isto era disparate. O sentimento nostálgico era quase que genuíno. O seu papel de estudioso ignorante era praticamente autêntico. A única coisa que não podia deixar transparecer era a emoção do empreendimento em que se metera, enebriante como o vinho, nem a satisfação de ver um plano de campanha tomar forma num campo de operações onde se avançava com cautela, tentando detectar as minas e as armadilhas que o infestavam.

Esfregou os olhos cansados e meteu mãos ao último trabalho da noite: a preparação das notas para o seu encontro com Harmon Seldes, na Belvedere.

 

A recepção que Seldes lhe proporcionou foi calorosa, se bem que estudada. Consistiu numa volta pelo escritório, num cálice de xerês com os directores principais, almoço com o editor, e um conselho privado onde lhe foi oferecido o lugar de redactor consultivo durante o espaço de um ano, e um ordenado cinquenta por cento mais elevado que aquilo que esperara. Depois do café, Seldes conduziu-o ao seu gabinete onde encetaram uma discussão particular sobre aquilo que ele chamava "esses seus Rafaéis".

- Pensei em tudo isto com todo o cuidado, Max. A minha proposta é esta: vamos publicar o seu trabalho no número de Abril. Temos bastante tempo à nossa frente, de forma que isto é o melhor que há a fazer. Há quem vá ficar à espera de algumas ilustrações interessantes. Bom, sugiro a Leonie Danziger para tratar do seu artigo. É freelance, uma das melhores da cidade. Já leu o seu artigo e saiu-se com algumas ideias excelentes. Trabalha em casa e espera por si esta tarde, às três horas. Há algum inconveniente?

- De maneira nenhuma.

- Quanto às referências a Rafael, proponho que as exclua do texto. Serão publicadas numa outra caixa, devidamente atribuída a si, relacionada com o material que possui, mas serei eu a introduzi-las. Desta forma terá a inteira aprovação dos directores, bem assim como todo o aval de que o seu trabalho necessita. Vê algum problema?

- Não.

- Max, devo dizer-lhe... - Seldes ficara pouco à vontade de repente neste assunto você vai ficar numa posição pouco relevante.

- Sou um hedonista satisfeito. - Mather finalizou o comentário com um encolher de ombros. - Não tenho paciência para invejas académicas.

- Interroguei-me sobre isso - comentou o outro. - Como é óbvio, investiguei a seu respeito. A informação académica é escassa mas adequada. A história social é digamos que "interessante".

Mather estendeu as mãos num gesto bem latini e fez um sorriso que desarmava qualquer um.

- Não se preocupe com isso, Harmon. Você vai publicar um artigo meu. Está a dar-me emprego. E está a perguntar-me se, e na altura do contrato, eu já tinha lido a factura.

- E que coisas diz a factura, Max?

- Que é você quem quer continuar a investigação sobre os quadros.

- E que acha a esse respeito?

- Sinto-me satisfeito, despreocupado, feliz... sem nenhum problema.

- Fico surpreendido.

- Porque razão? Fui eu quem o procurou, lembra-se? Vim ter consigo porque é uma das poucas pessoas com as qualificações necessárias para montar e dirigir uma investigação tão complicada e dispendiosa. É óbvio que estou interessado. Mas não estou disposto a trabalhar muito. Se puder ajudar enquanto vou fazendo as minhas coisas, tudo bem. Mas não ando atrás da fama, de subsídios, nem de nada do género. Ficarei satisfeito se puder partilhar consigo todas as informações que for recolhendo ao longo do percurso.

- É bastante generoso da sua parte, Max.

- Acredite que é verdade - respondeu ele com um sorriso. - Depois disso passará a dormir melhor. Contudo, há algo de que não se deve esquecer.

- De quê?

- Depois da publicação do artigo toda a gente irá em peregrinação aos sótãos à procura dos Rafaéis perdidos.

E todos terão os olhos postos em mim e na Belvedere para dar a última palavra a respeito das coisas que encontrarem. Bom, e agora que já nos entendemos, talvez seja melhor prepará-lo um pouco para a Danny Danziger. É uma jovem formidável. Disseram-me que tem preferências sexuais bastante bizarras. Mas está claro que sei tudo isto apenas de ouvido. Nunca misturo negócios com prazer.

 

De Leonie Danziger o máximo que se pode dizer é que era uma surpresa, uma trintona alta e ruiva, de olhos verdes, um perfil clássico e uma figura quê enlouqueceria os pré-rafaelitas. Vestia uma bata de brocado, óculos com armação de osso, e chinelos orientais. A sua saudação foi casual, o seu aperto de mão frio e breve.

Fê-lo entrar numas águas-furtadas atravancadas que davam para a praia de Jersey. Depois de o ter sentado a uma mesa espanhola, daquelas que são usadas nos refeitórios, foi a vez de ela se sentar, severa como uma madre-abadesa, numa cadeira de espaldar colocada na direcção oposta à dele. As suas primeiras palavras foram uma condenação frontal.

- Você é um escritor bastante aborrecido, Mr. Mather.

- Eu sei. - Mather mimoseou-a com o seu mais encantador sorriso.

Isso faz que os redactores me considerem uma bênção de Deus. Qualquer coisa que eu faça, eles fazem-na melhor.

- Tem publicado muito?

- Bastante pouco. Na prática sou um arquivista, de preferência um preguiçoso. Bom, por onde gostaria de começar?

- Explicando-lhe como trabalho. Antes do mais, pagam-me para exercer as funções de redactora, mas recebo honorários adicionais por aquilo que escrevo com vista a ser publicado. Por outras palavras, não vou assombrar o seu trabalho, mas posso entremeá-lo com comentários que me pareçam bons, e pelos quais me pagam. Se estes comentários deformarem, ou alterarem aquilo que pretende, diga. Eu modifico-os. Sou a apresentadora dos seus produtos. Compreendido?

- Claro.

- Passemos agora ao material que apresentou. O conteúdo é bastante preciso. As comparações que faz com a vida doméstica de hoje são interessantes. As suas conclusões são seguras, chegando por vezes a ser fáceis. No entanto, tudo o que escreve é monótono. Sei que a Belvedere é uma revista enfadonha, mas não é preciso ser-se assim tão enfadonho! Por tudo isto, aquilo que me propus fazer é escolher as partes melhores e mais interessantes da sua tese, e uni-las com um comentário suficientemente ligeiro.

- Como é que é possível - Mather recostou-se na cadeira e observou-a como um médico observa o paciente -, como é possível que um indivíduo descontraído como eu escreva coisas maçadoras, enquanto que uma erudita como você escreve comentários ligeiros?

Pela primeira vez aqueles olhos verdes iluminaram-se um pouco, e os cantos da boca esboçaram um sorriso.

- É a lei das compensações. Não há homem nenhum que mereça ser tão bem parecido quanto você. E não há mulher que mereça ser tão erudita quanto eu. Por tudo isto você é um escritor aborrecido e eu uma redactora hábil ... Vamos começar?

Teve de admitir que ela estava bem preparada. Pegara num manuscrito com trinta mil palavras, seleccionara uma série de sequências, dispondo-as de forma viva no mosaico que constituía a vida de uma quinta da Toscânia nos princípios do século XVI. Tinha jeito para descobrir os pormenores mais animados - como se tingia a lã e as peles eram curtidas, a forma como o grão embarcado na Sicília com destino a Pisa era trocado por queijo e vinho da Toscânia, como os barris de atum vindos da Trapânia eram pagos com ferro do Elba, a forma como as selas e os artigos de montar destinados aos nobres se trocavam por ouro em pó vindo de Djerba, e por escravos negros originários da costa da Berbéria.

Conseguira dotar a sua prosa seca com a seiva da experiência pessoal.

Mather, plenamente consciente de que entregara um trabalho desmazelado a respeito de um assunto que não o interessava, viu-se estimulado a tomar parte numa discussão crítica a respeito do mesmo. Viu que havia perdido a noção do tempo quando ela desligou o gravador e anunciou:

- Seis horas. Por hoje chega. Você fala melhor do que escreve. Talvez o devêssemos pôr no circuito das conferências. Está a apetecer-me uma bebida. Acompanha-me?

- Com prazer. Se por acaso tem, gostaria de tomar um bourbon com água.

- Mesmo ali no aparador. Para mim pode arranjar um vodca com água tónica. Há limão no cesto da fruta.

Enquanto ele preparava as bebidas, ela arrumou os papéis e contemplou-o naquele seu jeito sem cerimónia.

- Max Mather, você intriga-me.

- Porquê?

- Toda esta encenação. Você entra, eu esfrego-lhe um empadão na cara. Limpa-o e sorri para mim. Reconhece ter escrito uma tese meio idiota. As coisas são tão insípidas que não consigo ver por que razão se incomodou com elas. Depois faço-o deitar mãos ao trabalho. Olhai e vêde! Temos um outro homem: um estudioso sério em busca da perfeição, uma mente crítica aplicada às categorias clássicas. Depois disto, qual dos dois é você?

- A verdade é aquilo que está à sua frente.

- Não acredito.

- De que forma quer o limão? Em rodelas ou espremido?

- Em rodelas. Você é homossexual?

A pergunta apanhou-o de surpresa, mas conseguiu sorrir e responder:

- Não. E você?

- Eu sou, pelo menos a maior parte das vezes. O Harmon não lhe disse?

- Não tinha razão para isso.

- Ele não precisa de razões. É um intriguista nato.

Max trouxe as bebidas e levantou o copo numa saudação.

- Contudo, disse que você era uma redactora de primeira classe.

- Posso devolver-lhe o cumprimento dizendo que você é um escritor bastante cooperante.

- Óptimo. Ele precisa que lhe confirmem isso.

- Você intriga-o. Não consegue entender que não esteja a competir com ele no que respeita às referências aos Rafaéis, tudo isto porque estas podem acabar por se revelar muito importantes.

- Não para mim. Não tenciono seguir a carreira académica. Sou um estudioso que gosta da vida fácil. Seldes precisa do cheiro do dinheiro dos legados, da autoridade das grandes instituições, do poder das fundações endinheiradas. É bem recebido nesse ambiente.

- Não admira nada tê-lo chamado "o erudito cigano".

- Não me diga?! Bom, o rótulo revela inteligência, mas é um plágio descarado de Matthew Arnold.

- Ele acrescentou algo da sua autoria.

- Sim?

- O erudito cigano com um instrumento de ferro pronto a endireitar-se ao mais pequeno chamamento das senhoras.

- Que simpático da parte dele.

- Acrescentou que desde que sejam viúvas ou divorciadas com um rendimento de vários milhões.

- É um grande filho da mãe, não é?

- Do piorio. Acrescentou também que nunca ouvira ninguém queixar-se das suas actuações. Todas as mulheres parecem manter-se leais à sua memória. Depois deste bocadinho pareço estar a compreender porquê.

Mather irritou-se com aquele incitamento bastante óbvio.

- Isto tudo faz parte dos serviços editoriais?

- É a parte pela qual não cobro nada, só para meu bel-prazer. Gosto de conhecer os autores com quem trabalho: se são casados ou não, como se encontram de saúde, qual o seu estado de espírito. Enfim, coisas deste tipo.

- Sendo assim - retorquiu ele, impassível -, vamos ver se passo no exame. Casado? Não. Compromissos? Nenhum. Doenças transmissíveis? Nenhuma. E você?

- O mesmo. Estamos empatados. Por favor - ela tapou o rosto com as mãos - é melhor ficarmos por aqui. Acho que não está a gostar da brincadeira.

- É uma brincadeira mesquinha. - Bastante irritado, Mather passou ao ataque.- É frio e calculista. Miss Danziger, a senhora joga com demasiada brusquidão. Não gosto de levar com empadões na cara. Nunca encarei o sadismo como um desporto de multidões. E muito menos quando Harmon Seldes é o espectador mais interessado. Por tudo isto, aceite os meus agradecimentos pela bebida, e agora vou-me embora. Chame-me quando estiver pronta para outra sessão de trabalho. Gostei bastante dessa parte. Contarei ao Harmon que você é uma excelente profissional. Boa noite.

Já quase chegara à porta quando ela conseguiu recuperar a voz.

- Por favor, espere.

Hesitou durante uns momentos, depois virou-se com ar de desafio.

- Esperar para quê?

- Estraguei tudo. Desculpe.

- Não peça desculpas. Explique-me. A seu respeito, a respeito de Seldes, acerca de tudo.

- Nesse caso sente-se. Preciso de outra bebida. E você?

- Eu também.

Ela demorou algum tempo a preparar as bebidas, depois empoleirou-se na borda da mesa de forma a ficar a olhá-lo do alto, dando então início a uma narrativa hesitante.

- A minha história com Harmon Seldes já é uma coisa antiga. Fui sua assistente na Belvedere. Quando descobriu que eu sabia escrever começou a usar-me para lhe escrever os discursos e redigir os artigos que iam ser publicados. Dávamo-nos bem, visto ele não estar muito interessado em mulheres, e o mais das vezes eu preferir viver de forma sáfica. Continuo ligada a ele, pois nesta cidade não há quem receba melhores trabalhos. É então que você entra em cena. Ele mostra-me o seu material. Acho-o mau, mas concordo em o aceitar. Conversamos. Ele conta-me a forma como entrou em contacto com as tais referências aos quadros. A primeira coisa que lhe vem à cabeça é que você lhe está a montar uma armadilha bastante elaborada, pois, e como já lhe disse, as coisas parecem-lhe boas de mais para ser verdade. Não o pode culpar por isso. Há já muito tempo que ele está no negócio. Conhece todos os truques e mais alguns. Seja lá como for, andou a tirar informações a seu respeito.

- E como as conseguiu?

- Mandando telegramas aos Palombini e à Biblioteca de Florença. Disse que se tinha candidatado a um emprego na Belvedere, e que os citara como referência.

- Que espertinho - disse Mather em voz baixa. - O Harmon é bastante espertinho.

- Não me mostrou as respostas, mas disse-me que lhe haviam fornecido as melhores informações. Continua a não perceber como foi que você as conseguiu, mas isso é outra história. Foi então que se lembrou de desenterrar o seu passado desde que saiu de Princeton. Parece que fez carreira no papel de amante de senhoras no fim da juventude. Isto explica o erudito cigano, o instrumento de ferro e tudo o mais... o que nos traz de volta a mim.

- De facto - disse ele bruscamente. - De facto.

- Meu Deus, isto não é fácil.

- Nem pode ser. Você encheu a casa de lixo, agora vai ter de a limpar. Força.

- Sou redactora. Trabalho com todo o tipo de escritores: homens, mulheres, génios, idiotas ... enfim, de tudo um pouco. Assim, tive de desenvolver uma técnica. Desde o primeiro momento que me coloco no comando das operações. Primeiro tento abaná-los, depois acalmo-os. Foi o que fiz consigo, só que o feitiço virou-se contra o feiticeiro. Peço desculpa. Preciso de uma outra bebida.

- Deixe-se ficar onde está. Eu arranjo-lha. Ainda não acabei. Há qualquer coisa a respeito do Seldes que não consigo entender. As entradas do livro de registos que mencionam os quadros de Rafael têm quatrocentos e oitenta anos. Pense na quantidade de obras de arte que foram perdidas, roubadas ou destruídas durante aquele espaço de tempo. É fascinante e especular sobre o que lhes pode ter acontecido, mas por que razão um homem como o Seldes há-de deixar de dormir por causa disto? Ele escreve os seus artigos... há um afluxo de correspondência, algumas pistas falsas e... basta!... estamos outra vez a zero.

- É aí que se engana, Mr. Mather. Seldes tem muitos segredos fechados a sete chaves nos arquivos, e muitos que guarda na cabeça. É o consultor de uma série de milionários coleccionadores, quer europeus, quer sul-americanos. Pode dizer-lhe, mas não o fará, quais são as peças e as colecções famosas que não passam de falsificações. Isso faz que possa explorar essas informações sobre os Rafaéis de uma forma com a qual você nunca sonhou. A última coisa que ele quer é um jovem ambicioso a cheirar-lhe as botas.

- Talvez achasse melhor que ele se entretivesse com uma redactora górgone.

- Max Mather, você é mesmo um filho da mãe.

- Eu sei. Você sabe, mas, e tal como o Harmon Seldes diz, as mulheres com quem ando ficam com boas recordações a meu respeito. Com um pouco de prática talvez que nós os dois consigamos chegar a ser educados um com o outro. Obrigado pelo trabalho. Adeus.

Foi uma despedida estouvada e indelicada, e sentiu-se bastante envergonhado quando chegou ao apartamento. Enquanto tomava duche e se vestia tentou encontrar algumas palavras, algum gesto que traduzisse o quanto se arrependia.

Foi então que, sem mais nem menos, se lembrou de uma bugiganga que adquirira numa manhã qualquer, já depois da morte de Pia. Estava em Florença e andava de um lado para o outro na Ponte Vecchio, sem qualquer objectivo, divorciado do presente. Nessa altura, na montra de uma ourivesaria que se especializara em reproduções, viu um pequeno camafeu onde duas mulheres se abraçavam. Entrou na loja, regateou o preço durante meia hora, e acabou por comprar o objecto por cinquenta dólares. Foi já quando se encontrava cá fora com o embrulho na mão que se lembrou de que Pia estava morta. Desde aí o camafeu perdera todo e qualquer significado. Ficaria bem em Leonie Danziger, com aquele cabelo ruivo e aqueles ares de "donzela abençoada “

Fez um embrulho ao estilo japonês, servindo-se de um dos seus lenços de seda, e mandou um mensageiro especial entregar-lho. Incluíra também um bilhete:

 

Peço desculpas pela péssima conduta do seu cliente. Supõe-se que um erudito seja também um cavalheiro. Até à nossa próxima sessão de trabalho.

  1. M.

 

Naquela noite Anne-Marie tinha um jantar com Ed Bayard. Era um compromisso ao qual não podia fugir, uma vez que precisava de discutir o preço dos quadros da mulher dele, bem como a publicidade necessária a que fossem bem sucedidos no mercado.

Era a primeira grande prova à sua capacidade de julgar, bem como à sua perícia enquanto comerciante. Se avaliasse os quadros por um preço demasiado baixo, acabaria por perder não só dinheiro, mas também o respeito de um cliente que possuía uma importante colecção privada. Se lhes atribuísse um preço demasiado elevado, e tendo em conta que a sua galeria era nova e se situava na zona baixa da cidade, arriscava-se a um falhanço vergonhoso. O problema agravava-se, pois estava a lidar com material póstumo, da autoria de uma artista que se limitara a vender através de um intermediário especializado.

Já falara com Lebrun, que a princípio se mostrara reticente e algo hostil. Tratava-se de um francês pequeno e atarracado, de cabelo branco, mãos pequenas e expressivas, e o porte arrogante de um professor de dança dos velhos tempos. Disse que estava bastante mortificado por saber que Mr. Bayard não decidira consultá-lo directamente sobre a atribuição de preços aos quadros da mulher. Fora ele quem estimulara aquele talento, o mais das vezes debaixo de circunstâncias difíceis. Era capaz de jurar... mas então! Talvez não. Está claro que reconhecia estar Miss Loredon isenta de culpas. Era nova, no início da carreira. Ainda não estava consciente das subtis cortesias do negócio, da necessidade de alianças amigáveis. Contudo, ficou suficientemente tocado com a sinceridade e o encanto por ela demonstrados de forma a dar-lhe alguns conselhos.

Não restavam dúvidas quanto ao facto de a falecida Madeleine Bayard ter sido uma óptima pintora, provida com uma visão muito especial das coisas. Foram inúmeras as vezes em que ele lhe pedira para montar uma exposição, mas ela rejeitara sempre os seus pedidos. Tinha a sensação de que o marido era uma personagem repressiva - ciumento em relação ao trabalho da mulher, talvez com medo de a perder. Tudo isto levara Lebrun a apresentar os trabalhos dela a alguns clientes seus que se interessavam pelos novos talentos americanos. Talvez que eles estivessem interessados em aumentar as suas colecções de obras Bayard. Ficaria bastante satisfeito por os apresentar - isto sem esquecer os habituais honorários. Preços? Não foram muito altos enquanto Madeleine era viva - dois, cinco, dez mil no máximo. E claro que os preços poderiam subir com a ajuda de um vernissage bem encenado, de uma boa campanha publicitária, não esquecendo a imprensa favorável.

Miss Loredon bem que poderia considerar a hipótese de lançar no mercado apenas um dos quadros, isto pouco antes de a exposição ser anunciada, talvez que até pedindo a ajuda ao pai ou a algum dos colegas deste, de forma a fazê-lo chegar ao público dos leilões. Por vezes este tipo de acção resultava, outras não. A propósito, quais eram as intenções de Mr. Bayard? Dispersar a colecção ou reter algumas peças? Seria possível que alguns dos clientes de Lebrun vissem a exposição antes de esta abrir ao público? Um certo tratamento privilegiado era sempre bem-vindo...

Anne-Marie compreendeu tudo muito bem. Só não conseguiu entender, nem sequer perguntou, qual o significado preciso da personalidade repressiva de Bayard, nem dos seus ciúmes em relação ao talento da mulher. Foi ter com o pai e repetiu-lhe a sugestão feita pelo francês no que respeitava à apresentação de um dos quadros Bayard num leilão. Ficou surpreendida com a veemente negativa que recebeu.

- De maneira nenhuma, de maneira nenhuma! É uma manobra perigosa. Faz que fiques exposta a todos os comentários da galeria. Atira-te de cabeça, rapariga! Ou ganhas ou perdes. Os preços? Deixa que o teu cliente se envolva. Deixa que te diga aquilo que está disposto a aceitar. Bayard tem os seus próprios meios para chegar ao mercado de informações. Boa sorte!

Bayard ficou satisfeito por se ver envolvido no caso, mas, e dado que durante o dia estava ocupado no escritório, qual o melhor pretexto para um calmo jantar à deux, seguido por um pequeno passeio por entre os quadros? Desta vez era impossível recusar, de forma que às oito, com toda a pontualidade, se apresentou no apartamento dele.

Instalaram-se na sala de jantar rodeados por todos os quadros de Madeleine, só que desta vez não havia ali qualquer sentimento opressivo. Bayard estava descontraído. A refeição estava impecavelmente cozinhada e foi servida pelo casal filipino. Os vinhos eram excelentes. A conversa abrangia uma série de temas em ar casual. Ele possuía um enorme repertório de histórias animadas a respeito do mundo da arte e dos seus cidadãos mais excêntricos. Anne-Marie foi levada a pensar na sua vida em Itália. Só começaram a falar do preço dos quadros quando o café foi servido. Bayard saiu-se com uma declaração algo crua:

- Decidi vender todos os trabalhos de Madeleine... é o último acto catártico.

- A opção é sua, claro. - Anne-Marie optava por uma posição cuidadosamente neutra. - Contudo, devo dizer-lhe que do ponto de vista dos investimentos, é bem capaz de estar a cometer um erro. Se eu conseguir estabelecer um bom mercado para as obras de Madeleine, é bem capaz de perder bastante dinheiro por não ter quaisquer reservas.

Bayard sorriu com alguma tolerância.

- Ao todo, quantas telas temos?

- Cinquenta e cinco. Isto não contando com os setenta esboços e estudos dos mais variados tamanhos.

- Sendo assim, expomos vinte exemplares das peças mais importantes, e cerca de duas dúzias de trabalhos menores, isto de forma a apanharmos os compradores mais modestos. Guardamos o resto, e mais tarde fazemos que cheguem ao mercado.

Ela contou-lhe que tinha visitado Lebrun. Ele acenou, exprimindo aprovação.

- E claro que deixamos que os clientes dele vejam a exposição antes de ela abrir. São um grupo bastante fiel e confiam nos conselhos que ele dá.

- Também pedi ao meu pai para fazermos a experiência de levar um dos quadros a leilão. Ele opôs-se totalmente.

- Também eu estou contra. - Bayard revelava uma súbita tensão. - As suas relações com o seu pai só a si lhe dizem respeito. Mas é apenas você quem me representa. Não quero negócios com mais ninguém. Compreende?

- Claro. - Fora apanhada de surpresa por toda aquela veemência. - Mas sou nova nisto. Preciso de conselhos e procuro-os onde posso. O meu pai é um dos melhores profissionais neste tipo de negócio.

- Eu também não sou mau. - Bayard sorriu a acariciou-lhe a mão. - Já comprei muitos quadros por minha conta e risco. Bom, então você e eu decidimos juntos, não? Se nos enganarmos, paciência. Da próxima vez compensamos as coisas. Agora agarre lá no seu bloco-notas e vamos ver toda a colecção. É melhor começarmos com estimativas individuais, e só depois passarmos a comparações. Lembre-se de que esta primeira exposição tem uma carga extra. Você vai pagar pelo trabalho de publicidade e vai custar-lhe quase duas vezes mais que uma conta normal... e tudo aquilo que não vender vai acabar por se transformar num peso morto que se limita a ocupar espaço no armazém. Bom, na sua opinião qual o melhor quadro que aqui se encontra?

- Nunca tive dúvidas a esse respeito. Quero que "A Mulher da Rua" seja a peça central de toda a exposição.

- Muito bem. Quanto?

- Cinquenta mil.

- O seu valor é esse?

É capaz de conseguir muito mais.

- Então é melhor marcarmos setenta e cinco. Se não o despacharmos, pomos-lhe o letreiro de vendido e voltamos a armazená-lo... Bom, então começamos com setenta e cinco. Qual é o nosso preço mais baixo para uma tela acabada?

- Nunca menos de vinte e cinco.

- E quanto aos esboços e aos estudos?

- Começamos com quinze mil, mas podemos descer até aos dois.

- Óptimo. Agora vou fazer a minha lista enquanto você faz a sua. Depois comparamos os números.

O desafio entusiasmou-a. Era o seu julgamento profissional contra os conhecimentos de um advogado que aconselhava os negociantes da América, e que há mais de um quarto de século se dedicava a comprar quadros. Por outro lado, sabia também que ele a cortejava, não da forma desastrada e pouco segura do seu primeiro encontro, mas de uma maneira calma, sábia, fazendo que ela penetrasse no círculo encantado da sua vida privada.

A decisão que tomara de vender todos os quadros de Madeleine não era mais que uma manobra destinada a fazer-lhe ver que estava a exorcizar a mulher das suas recordações, e a colocar todos os seus trabalhos sob a custódia de Anne-Marie Loredon - não esquecendo os quarenta por cento de lucros que lhe iriam parar ao bolso.

À medida que avançavam em direcções opostas ao longo do aposento, podia sentir que os seus olhos a seguiam. Via troça no seu sorriso, mas interpretava-a como sendo a troça arreliadora de uma possível amante.

Houve um certo ar de triunfo quando compararam as notas e ela descobriu que as suas estimativas eram apenas cinco por cento mais baixas que as dele, e que as suas noções a respeito dos valores relativos das telas eram quase as mesmas.

- Bom, você e o vendedor - disse-lhe ela com um sorriso. - Aceitamos os valores que propõe.

- Talvez seja melhor fazermos algumas contas. - Os modos dele eram agradáveis mas profissionais. - No total temos cento e trinta peças, mas vamos expor apenas um terço delas. O valor do catálogo é de um milhão, duzentos e vinte mil dólares. Façamos uma estimativa razoável e digamos que vendemos metade. Isso faz seiscentos mil dólares. O seu lucro é de cerca de duzentos e cinquenta mil. Quanto pensa gastar com os folhetos e a publicidade em geral? Não se esqueça de que, mesmo que não se venda nem um único quadro, vai ter de pagar as contas.

- Orcei as coisas em cerca de cinquenta mil, e de cada vez que penso nisso fico com os cabelos em pé. Tenho andado louca a tentar arranjar umas quantas borlas. Mas Mather prometeu fazer os possíveis para que saia qualquer coisa na Belvedere. Ele agora é um dos redactores adjuntos da revista. O meu pai vai dar-me algumas listas valiosas para que eu possa escrever directamente. Wally Brent prometeu fotografar todas as telas ao mais baixo preço, incluindo os custos de material ... tenho de falar consigo a este respeito. Ele pode vir trabalhar para aqui? Se esperarmos até o estúdio estar pronto é capaz de não dar tempo.

- Claro. E a propósito de borlas, tenho os meus próprios conhecimentos na área dos jornais e das revistas. Pensei em dar um jantar aqui em casa antes de levarmos os quadros. Não se importará de fazer de anfitriã?

E pronto, aqui estava o golpe de mestre - magnificamente preparado, inevitável como a morte e os impostos. Pensou a este respeito durante alguns momentos e acabou por concordar.

- Sim, desde que não se esqueça daquilo que lhe disse no início deste empreendimento. Tenho de ser vista a trabalhar de forma independente. Nenhum de nós pode dar-se ao luxo de que circulem boatos a propósito de mecenato e de interesses sentimentais entre você e eu.

- Prometo-lhe que não vai haver nada disso.

- Então ficarei satisfeita por aceder ao seu pedido.

- óptimo. Vai ser uma ocasião especial. Elaboraremos juntos a lista de convidados. Lembre-se de que os nossos convidados irão ver os quadros da mesma forma que você os viu pela primeira vez. Lembre-se de que ficou bastante impressionada.

- Ainda hoje senti a mesma emoção. E claro que tem qualquer coisa a ver com esta sala, com a forma como você colocou as telas. Espero conseguir o mesmo efeito na galeria, ou que pelo menos não se perca muito. Este ponto leva-me a uma série de coisas. Já estamos a tratar do catálogo. A Artgravure concordou em o fazer por um bom preço. No entanto, aquilo de que preciso é de material pessoal e biográfico a respeito de Madeleine. Se quiserem trazer a lume a história do crime, tenho de ter outro tipo de material para fornecer à imprensa. Para mais, a personalidade dela espelha-se com tanta força nos seus trabalhos que tanto o público em geral, como os compradores em particular, quererão saber o mais possível a seu respeito.

Bayard franziu o sobrolho, e, pouco à vontade, agitou-se na cadeira. Deitou mais vinho no copo e bebeu-o de um só gole.

- O que eu e a imprensa queremos são coisas diferentes.

Anne-Marie tentou acalmá-lo.

- Olhe, bem sei que este é capaz de ser o aspecto mais doloroso de todo * projecto. Se acha que pode falar comigo, podemos trabalhar aqui com toda * calma, usando um gravador. Se isso for demasiado difícil, será que não existem notas, diários, até mesmo algum material já publicado que eu possa usar? Não sei se está a ver o meu problema.

- Estou sim. - Bayard estava a recuperar a compostura. - Acredite que a minha fragilidade me envergonha, mas acontece que não tenho capacidade para enfrentar uma sessão de perguntas, nem mesmo consigo, minha querida. Aquilo que eu realmente gostava era de uma biografia breve, escassa. Hei-de arranjá-la para si. Penso que deverão ser os trabalhos da Madeleine a dizer tudo aquilo que ela gostaria que fosse dito a seu respeito. Por favor, confie em mim.

- Se é assim que quer, tudo bem. Contudo, preciso da resposta a uma pergunta que a imprensa não deixará de me fazer. Por que razão Madeleine nunca expôs enquanto era viva?

- Nunca teve a necessária confiança no seu talento.

- E você, o marido?

- Nunca a consegui convencer do contrário.

- É muito triste.

- Bastante mais que aquilo que pode imaginar. - A voz dele trazia o sopro gélido do Inverno. - Já não éramos felizes há muito tempo. Tiraram-nos a ambos a hipótese de... de reconstruir o nosso relacionamento. Mas isso são águas passadas. Neste momento o que mais desejo é um novo começo.

Estavam a entrar em terreno perigoso. Anne-Marie não se atrevia a permanecer ali, e um Bayard melancólico era mais que aquilo que podia aguentar. Levantou-se.

- Bom, nesse caso deixemos ficar as coisas assim. Obrigada pelo esplêndido jantar e pela ajuda que me deu no trabalho de avaliação. Farei que publiquem a biografia tal e qual como ma fizer chegar às mãos. Vou mandar-lhe uma cópia do catálogo para poder dar a sua aprovação. Não nos podemos esquecer de arranjar um horário para o fotógrafo. Está claro que virei com ele.

- Você é sempre bem-vinda, querida. Sabe-o bem.

- Obrigada, Edmundo. Importa-se de chamar um táxi para mim?

- O Miguel vai levá-la. - Era de novo o velho e imperioso Bayard quem lhe respondeu. - Detesto despedidas longas. Espero que chegue o dia em que não tenhamos que as fazer.

Abraçou-a e beijou-a na boca. Ela não lhe resistiu, mas a sua resposta foi fria e desapaixonada. Bayard nada disse. Mandou chamar Miguel, o qual desceu junto com ela no elevador e a conduziu a casa no mais completo silêncio.

De volta ao apartamento, deixou-se estar na banheira durante uma hora, tentando que a água quente aliviasse a tensão que lhe percorria os músculos. No entanto, não conseguia deixar de pensar que, ou Lebrun ou Bayard lhe tinham mentido. Lebrun era um homenzinho rabugento, ofendido por não lhe terem dado a oportunidade de continuar ligado ao trabalho de Madeleine. Por outro lado, era um entusiasta que adorava quadros, respeitava o talento dos pintores, e era óbvio que gozara da confiança de Madeleine Bayard.

Ed Bayard era um homem abalado, torturado com remorsos, mais empenhado em eliminar as recordações que a mulher lhe deixara do que em perpetuá-las. Era precisamente aí que o busílis residia: devagar e com todos os cuidados, aquilo que ele estava a fazer era colocar Anne-Marie Loredon no lugar de Madeleine. Aquilo que começara por ser uma mera relação comercial estava agora a transformar-se em algo mais, numa administração de bens, numa responsabilidade pessoal para a vida e para a morte.

Apesar da fragilidade das suas emoções, Bayard era um indivíduo calculista que manipulava as pessoas e situações, e dentro dele existia uma raiva tal, que, apesar de estar quase apagada, se poderia equiparar à fornalha de um ferreiro, a qual espera apenas pelo primeiro sopro do fole para irromper em chamas. Nos locais onde a agarrara, os braços dela exibiam pequenas marcas. Os lábios ardiam-lhe devido à barba que lhe rodeava a boca. Mesmo assim, era incapaz de jurar que ele não lhe agradara, e que o rejeitaria para sempre.

 

Max Mather decidira passar a noite em casa avaliando aquilo que já conseguira, e delineando a estratégia que seguiria no futuro. Antes do mais, e mais importante que tudo, agora pertencia ao "negócio". Tinha uma identidade claramente definida. Tinha um passado. Tinha capital e rendimentos. Tinha amigos e colegas que podiam responder por ele. Estava representado legalmente em ambos os lados do Atlântico. Conduzia-se com a humildade apropriada ao rapazinho recém-chegado. Não tinha qualquer compromisso emocional coisa que era uma experiência nova e por vezes perturbadora, pois começava agora a compreender que a ganância e a ambição não demoravam muito para esfriarem a paixão sexual. Eram coisas que deixavam pouco tempo para conversas de almofada, muito pouca vontade para cultivar novas companhias.

Quanto ao futuro, as prioridades eram óbvias. Antes do mais, tinha de autenticar os quadros. Contava que o artigo a ser publicado na Belvedere fizesse aparecer todas as cópias existentes. Aquilo que realmente pretendia com a vinda de Tolentino a Nova Iorque era que os quadros fossem examinados por este, sendo depois emitido um veredicto autorizado. Mas antes disso, muito antes disso, e tal como fizera em Nova Iorque, tinha de marcar presença na Europa. Tinha de estabelecer amizades, alianças, ligações nas mais diversas áreas tribais. Quando o telefone tocou, estava a examinar uma lista de comerciantes e leiloeiros suíços.

- Mr. Mather? Aqui Danny DanzigQr. Recebi a prenda e o bilhete. Estou a telefonar para lhe agradecer. Ambas as coisas eram desnecessárias. Quem se portou mal fui eu. O camafeu é lindo, mas acho que não devo ficar com ele.

- Por favor, vai colocar-me numa situação embaraçosa se não o fizer. É uma insignificância agradável, a reprodução moderna de uma peça antiga que se encontra no museu de Florença. Chama-se "As Duas Cortesãs"...

- Colecciona coisas deste tipo?

- Não. Sou um comprador ocasional com um certo gosto por coisas exóticas. Gostava que ficasse com ele. Vamos chamar-lhe o penhor das nossas tréguas. Vamos ter de nos ver bastantes vezes. Tenho a certeza de que vamos ter uma relação profissional bastante calma.

- Seja lá quem for, Mr. Mather, houve mulheres que o ensinaram a ter óptimas maneiras. Mais uma vez, obrigada e boa noite.

Ele voltou ao trabalho divertido e satisfeito. Era mais uma pequena vitória um potencial inimigo que se transformara num aliado. Na estrada solitária que escolhera percorrer, qualquer estranho que passasse por ele era um bom encontro. Agora ficara com um contacto na rede de colaboradores e informadores de Harmon Seldes.

Pouco tempo depois, o porteiro chamou-o à recepção. Um dos motoristas da Carey Cadillac tinha uma encomenda urgente para ele, a qual só podia ser entregue em mão. Esta consistia num bilhete de numa pasta fechada, ambos da parte de Hugh Loredon, que partira nessa mesma noite para a Europa.

A nota era bastante breve:

 

Caro Max:

A combinação do fecho é a seguinte: 6543. Leia aquilo que lá está dentro e depois decida o que Anne-Marie deve saber. Terá de ser você a dizer-lhe, uma vez que eu não sou capaz. Mesmo na Europa estarei em contacto consigo. Esta viagem é bastante importante para mim.

Sinceramente, Hugh.

 

A sua primeira reacção foi de raiva para com Loredon. O homem era um belo trapalhão que se descartava das responsabilidades mais primárias. Aquilo que ele pudesse ser mais era algo que Mather decidiu não descobrir... pelo menos por enquanto. Voltou a colocar o bilhete no sobrescrito, e enfiou este último na agenda. Depois fechou a pasta no armário, arrumou os papéis que lhe pertenciam, e começou a preparar-se para ir para a cama. Estava a lavar os dentes quando o telefone voltou a tocar. Era Anne-Marie. Parecia perturbada e com medo.

- Max, passa-se algo de estranho. Cheguei a casa há cerca de uma hora, depois de ter jantado com o Ed Bayard. Foi o motorista dele quem me trouxe a casa. Um pouco mais tarde, um Ford verde e amolgado entrou na rua e estacionou praticamente no lado oposto ao meu apartamento. Ainda lá está, com o condutor ao volante. Este carro já aqui tem estado noutras noites em que chego tarde a casa. Mas hoje estou particularmente assustada.

- Porquê hoje?

- Acho que estou confusa. Ed Bayard deu um passo importante, está a tornar-se sério.

- Por amor de Deus, querida! Já és crescidinha. Sabes o suficiente para andares à chuva sem te molhares. Que raio estavas a fazer na casa dele?

- Estivemos a avaliar as telas. Dado que ele trabalha durante o dia, o trabalho teve de ser feito à noite. Não podia recusar. Não te queria incomodar, mas tinha de falar com alguém. Achas que devo chamar a polícia?

Ainda não. Deixa-te estar quieta. Acende a televisão. Dentro em breve estarei aí. Toco duas vezes. Não deixes mais ninguém entrar.

 

- Max, és um anjo.

- Estou cansado e simultaneamente tenso. Quando chegar aí, vê se és simpática comigo. Até já!

Dez minutos mais tarde, de fato treino vestido, já se encontrava na rua, descendo Madison Avenue a correr. Reconheceu o Ford, foi a correr até ao parque, voltou para trás e bateu na janela. O homem, curvado por detrás do volante, endireitou-se e ficou a olhar para ele, espantado e dando mostras de hostilidade. Quando, e através de gestos, Mather lhe indicou que abrisse a janela, desceu o vidro apenas alguns escassos milímetros e perguntou:

- Que quer?

Mather mimoseou-o com um sorriso aberto e amigável.

- É você o homem de Mr. Bayard?

- Não faço a mínima ideia do que raio está para aí a dizer.

- Sendo assim peço desculpas por o ter incomodado. Tenho um recado para o detective contratado por Edmund Bayard, o advogado. Disseram-me que estava de vigia nesta rua e que conduzia um Ford verde.

- Já o encontrou. Qual é o recado?

- Disseram-me que lhe pedisse os documentos antes de revelar a mensagem.

Com alguma relutância, o condutor meteu a mão ao bolso e tirou de lá um cartão bastante sujo. Mather observou-o por um momento e depois devolveu-o.

- Obrigado. Disseram-me que deve sair daqui e ir ao escritório de Mr. Bayard amanhã de manhã para que lhe dêem novas instruções.

- Só me dá jeito. Deixo de trabalhar mais cedo.

Mather esperou que o carro desaparecesse de vista, e só então se dirigiu para Madison. Atravessou a estrada e tocou duas vezes à campainha de Anne-Marie. Não perdeu muito tempo com os preliminares, mas exigiu um relato completo da noite que ela passara com Bayard.

Anne-Marie contou-lhe que visitara Lebrun, aquilo que este lhe dissera a propósito de Bayard ter impedido Madeleine de expor os seus trabalhos. Só depois lhe forneceu a versão do advogado, aquela em que ele nunca fora capaz de fornecer a confiança suficiente à mulher.

- E durante todo este tempo, Max, tem sido como se eu fosse uma peça num tabuleiro de xadrês, a qual ele move a seu bel-prazer. Abraçou-me e beijou-me quando se despediu de mim. Eu parecia um bloco de gelo, mas, e como estava no comando das operações, isso não teve qualquer importância para ele. Deixou-me sair sem uma palavra. Isto assustou-me tanto que tive de te telefonar. E agora descubro que ele me tem debaixo de observação, como se eu fosse... uma criminosa ou mulher vadia. Não aguento isto.

- Mas tens de aguentar.

- Que posso fazer? Tu não o conheces Max. É um indivíduo muito forte. Controla todas as situações. É mais que evidente que foi o que fez em relação à mulher. É isso que ela exprime nos quadros, a sensação de estar encurralada, o desejo de se libertar.

- O que agora tens a fazer é ver-te livre dele.

- Sabes que não posso fazer isso, Max. Temos contratos assinados. Todos os meus planos estão baseados nesta associação.

- Bom, então o que tens afazer é o seguinte: estás zangada e pouco à vontade, pois a tua privacidade foi invadida e violada. Então escreve-lhe a dizer isso. Diz-lhe que de futuro as vossas relações deverão ser orientadas com a formalidade devida aos negócios. Em suma, demarcas o teu território. Escreve-lhe enquanto eu aqui estou. Encarregar-me-ei de a fazer chegar ao escritório dele logo pela manhã. Entretanto, vou eu mesmo telefonar a esse filho da mãe. Dá-me o número de telefone da casa dele.

Marcou o número à medida que ela lho ditava, e ficou à espera até a resposta pouco amável de Bayard se fazer ouvir.

- Quem é que pode estar ao telefone? Não sabe que horas são?

- Fala Max Mather. Estou no apartamento de Miss Loredon. Você tinha alguém a vigiá-la. O nome dele era Lou Kernsak, da Agência de Investigações K . N. K.. Há já algumas noites que tem estacionado do outro lado do apartamento. Ela está assustada e perturbada. Telefonou-me. Eu falei com o Kernsak. Disse-lhe que tinha um recado da sua parte. Ele deu-me o nome e o cartão. Mandei-o embora. Irá ter consigo logo de manhã para que lhe dê novas ordens. Se não se quiser meter em sarilhos, Mr. Bayard, diga-lhe para parar.

- Mr. Mather, não sou capaz de lhe dizer o quanto lamento este incidente, mas a explicação é bastante simples...

- Guarde-a. Limite-se a ouvir. Aquilo que Miss Loredon decidir a este respeito é lá com ela. O que a aconselho a fazer é a cortar todas as ligações que tenha consigo e a processá-lo por todos os motivos que conseguir encontrar. Agora, e apenas para finalizar o seu relatório sobre as actividades desta noite, dir-lhe-ei que cheguei aqui às onze e vinte da noite a pedido de Miss Loredon, e que vou passar aqui a noite para me certificar de que não a voltam a incomodar. Boa noite, Mr. Bayard.

Pousou o auscultador e virou-se para Anne-Marie.

Tens qualquer coisa que se beba cá em casa? Acho que estamos a precisar.

Enquanto bebiam, contou-lhe a conversa que tivera com Hugh Loredon. Ela abanou a cabeça com tristeza.

- Não estou surpreendida. O meu pai passou a vida atrás das mulheres. Foi isso que acabou com o casamento dele e da minha mãe... Só não consigo entender por que razão nunca me contou nada. Nunca se mostrou reticente em relação aos seus outros casos... um dos quais até foi com uma amiga minha.

- Desta vez - respondeu Mather com firmeza -, há um crime de permeio, e um marido ciumento que é bastante poderoso no mundo da arte. Não nos podemos esquecer de que a polícia o interrogou a respeito do assassínio. É uma confissão bastante complicada para se fazer à própria filha. Bom, depois do episódio de hoje começo a acreditar que ele pode muito bem estar certo a respeito do Bayard.

- Não sei o que pensar a esse respeito. Concordo quanto ao ter de delimitar território. Não posso deixar o estúdio uma vez que já assinei o arrendamento. Contudo, não vai valer a pena lutar se ele quiser cancelar a exposição.

- Não vais perder a exposição - e aqui Mather mostrou-se enfático -, uma vez que Ed Bayard. não pode dar-se ao luxo de prejudicar a sua reputação.

Vai ter de arranjar uma desculpa que nos acalme aos dois: a ti porque tem grandes ideias a teu respeito, a mim porque sou testemunha do disparate que cometeu.

- Mas que raio de desculpa irá ele arranjar?

- Não tentes adivinhar. Vamos esperar para ver. Agora acalma-te e escreve lá esse bilhete. Breve, ofendido e ofensivo.

Enquanto ela escrevia, Max lembrou-se de que também ele estava a ser pouco honesto com Anne-Marie. Não lhe dissera nada nem a respeito da pasta, nem sobre a repentina viagem de Hugh Loredon para a Europa. A verdade é que precisava de tempo e de privacidade para examinar aquilo que o outro lhe pusera nas mãos, isto sem esquecer a liberdade de, e se fosse caso disso, negar que alguma vez vira aquele material - O assassínio de Madeleine Bayard. era ainda um processo em aberto, e assim que anunciassem a exposição o inquérito viria de novo à baila - A imprensa faria perguntas, o público responderia com uma onda de actividade, e o velho medo de um crime repetido estaria na mente de todos - incluindo a sua e a de Anne-Marie.

Este era um dos lados da questão. O outro dizia-lhe que todas as dissimulações e meias verdades corroíam cada vez mais a relação de ambos, deixando-a mais e mais isolada num mundo hostil. Assim, quando ela chegou ao fim da carta, decidiu contar-lhe os últimos acontecimentos.

- Alguns minutos antes de teres telefonado, chegou à minha casa um mensageiro da parte do teu pai, o qual parece que foi esta noite para a Europa. O mensageiro levava um bilhete e uma pasta. O bilhete apenas me autoriza a dizer-te o que acabaste de ouvir, Não sei o que se encontra na pasta, e tu não o deves saber nunca, isto para o caso de alguma vez a polícia chegar a fazer-te perguntas. A minha posição é diferente. Não tenho qualquer relação directa com o acontecimento, nem com a altura em que ocorreu. Entendes o que te estou a dizer?

- Entendo estou-te agradecida, e acho que por hoje já tive a minha conta.

- Deixa-me ver o que escreveste ao Bayard.

A veemência do protesto surpreendeu-o.

 

O facto de o senhor, um advogado respeitável, ter cometido uma tão grosseira invasão de privacidade, deixou-me de tal forma chocada que não encontro palavras para me exprimir. Não sou sua mulher. Não sou sua amante. Sou apenas inquilina num edifício que lhe pertence. Fui contratada para expor as telas da sua falecida mulher.

Não consigo imaginar porque direito, real ou imaginário, se atreveu a colocar um espião vigiando os meus movimentos. Faço tensões de protestar legalmente o mais depressa possível, isto para me proteger de futuras invasões. Entretanto, reservo todos os direitos que me assistem neste caso de intolerável violação de privacidade.

Anne-Marie Loredon.

 

Serve perfeitamente - disse-lhe ele. - A gora vai-te deitar. Fico aqui durante mais meia hora ou coisa parecida, e depois vou para casa. - Mas tu disseste que ficavas. - Mera propaganda para enganar o inimigo. - Por favor... gostava tanto que ficasses. Quando se está assustado, Manhattan é tão solitária!

 

Na manhã seguinte, quando deixou o apartamento de Anne-Marie, Max passou por uma farmácia e comprou dois pares de luvas de borracha.

Uma vez chegado a casa, ligou o telefone interno, calçou as luvas, tirou a pasta de Hugh Loredon de dentro do armário, colocando em seguida tudo o que lá estava dentro em cima da mesa.

Havia três diários, ambos de pele, fechados por um fecho de metal. Havia também meia dúzia de pequenos bloco-notas, dois cadernos escolares recheados de notas, estudos e diagramas, bem como três maços de cartas atadas com fitas rosa-vivo.

A caligrafia dos diários e dos blocos era a escrita pequena e legível do escriba. Mather, que passara grande parte da sua vida debruçado sobre manuscritos históricos, ficou de imediato fascinado com a beleza natural das páginas escritas à mão. Os esboços - feitos a caneta e a tinta, a lápis ou a pincel, alguns a cores, outros não - revelavam a mesma fluência, a mesma certeza e economia de linhas que a própria escrita. Ficou tão impressionado com o impacte rítmico das páginas, que por momentos não reparou no tema que tratavam.

Foi então que as coisas o atingiram. Estava a olhar para várias narrativas eróticas, todas elas executadas com método, se bem que com prazer. Tanto a pornografia antiga como a moderna eram do conhecimento de Mather. As diferentes colorações do acto sexual também não lhe eram desconhecidas triunfantes, violentas, ternas, perversas, destrutivas ... Contudo, aqui, o tom dominante era o prazer, orgíaco e exultante.

Foi então que reparou numa outra coisa. As figuras, os rostos e os atributos físicos eram algo que se via terem sido observados de perto, eram imagens de personagens reais numa história contínua. Uma figura báquica, repetida com regularidade, representava claramente Hugh Loredon. Uma outra era bastante semelhante a Danny Danziger. Não se encontrava uma qualquer personagem que lembrasse Edmund Bayard, nem mesmo vagamente, mas a mulher que se encontrava no centro de tudo tinha de ser a própria Madeleine.

Os blocos eram documentos profissionais na mais completa acepção da palavra: notas acerca do trabalho de outros artistas, breves advertências a respeito de composições ou harmonias de cores pouco comuns, uma ou duas frases a respeito de uma cena vista de relance no metropolitano, a qual fora ilustrada através de um esboço miniatura feito com o lápis das sobrancelhas. Aqui também se encontravam temas eróticos, apesar de não significarem mais que momentos. Era o vademécum do artesão, no qual o objecto como fora visto, a visão enquanto algo exterior ao objecto, não esquecendo os meios para alcançar e registar o visível, tudo isto era o que mais interessava ao registo.

Mather fora bastante bem treinado para não deixar de admirar a rigorosa gramática disciplinar que Madeleine impunha a si mesma. A graça fluente dos seus esboços representava um triunfo duramente conseguido. Não conseguia deixar de pensarem como este material seria valioso se fosse apresentado como introdução às peças que seriam expostas. Com alguma moleza, perguntou-se qual seria a atitude de Bayard se tudo isto aparecesse no catálogo sem mais nem menos.

Foi então que um novo e sinistro pensamento lhe surgiu. Se Bayard soubesse da existência deste material, então teria tido fortes razões para praticar o crime. Se apenas suspeitasse da sua existência, então estaria aí um bom motivo para ter alugado um edifício tão limpo, com o soalho lavado e as paredes pintadas de novo. Tentando descobrir onde o material estava escondido, rebuscara o prédio de alto a baixo. Mather fechou os bloco-notas e passou a ocupar-se dos diários.

Não eram constituídos por crónicas de acontecimentos, mas sim pelo registo de uma vida interior descrita sem cálculos ou qualquer constrangimento. A maneira directa como as emoções se exprimiam, bem como a sua intensidade, eram assombrosas. As páginas enchiam-se de frases pungentes:

 

Foi-me dado talento para revelar maravilhas, mas vivo na cidade dos cegos.

 

O que o Direito ensinou a Edmund não foi a justiça mas sim a tirania, e esta tem uma força tal, que, e apesar de tudo o que ele me tem feito, sinto-me ainda na obrigação de o amar.

Nenhum dos outros homens que dizem amar-me tem força suficiente para me libertar. Ou será que preferem que eu continue presa, visto que a escrava está mais bem treinada e joga com mais liberdade que as que são livres?

 

Há qualquer coisa de louco no meu marido. O pior de tudo é que ele reconhece o facto, alimenta-o e evoca-o sempre que quer, como que se de um demónio que lhe é familiar se tratasse. Penso que é igualmente legítimo chamarem-me louca, mas a minha loucura é feliz, o encontro de corpos disponíveis, um sono repleto de sonhos luminosos.

 

Quando mostro os meus quadros ao Hugh, ao Louis ou ao René, todos eles se aborrecem. Limitam-se a ver o meu corpo e a pensar somente no prazer que este lhes dá.

 

À medida que os seus olhos percorriam aquela bonita caligrafia, sem um borrão ou emenda, Mather sentia-se sacudido, tal como um barquito numa tempestade, entre um vaivém de emoções contraditórias: pena, indignação, desejo sexual, pasmo pelos mistérios desta mulher que clamava do lado de lá da tumba- Contudo, ela não estava a clamar. Limitava-se a escrever, tal como se os actos de escrever, desenhar e pintar encerrassem em si mesmos um sacramento de cura.

Estava demasiado perturbado para se ocupar com as cartas. Estas podiam esperar até ele ter identificado os autores dos diários, das notas e dos esboços - ou então o autor de tudo aquilo. Colocou de novo o material na pasta, e voltou a fechá-la no armário. Uma vez isso feito, tirou as luvas de borracha, preparou um café e uma sandes de queijo, e sentou-se a meditar na situação.

Em primeiro lugar tinha de dar os parabéns a Hugh Loredon. O homem era um artista perfeito. Em apenas uma manhã, colocara a filha debaixo da responsabilidade de Mather, deixara-lhe entre mãos uma prova relativa ao crime, a qual era bastante embaraçosa e perigosa, e depois sumira-se do país. Agora era Max quem segurava a batata quente. Loredon deixaria que a segurasse até que lhe desse jeito voltar a reclamá-la. É certo que, por outro lado, podia negar ter qualquer conhecimento a este respeito. Seria bastante difícil provar o contrário.

No entanto, havia sempre a outra face da moeda - um feitiço a virar contra o feiticeiro - e Mather sabia-o perfeitamente.

Anne-Marie estava prestes a apresentar ao mundo um novo talento, até então desconhecido. Se a exposição fosse bem sucedida, o preço dos trabalhos de Madeleine Bayard subiria em flecha. Haveria uma competição renhida entre pesquisadores e biógrafos à procura de material a respeito da sua vida. Os comerciantes de arte pagariam bons preços por exemplares caligráficos, cartas, e, acima de tudo, esboços e estudos.

E seria então que Max Mather apareceria em cena com uma pasta repleta de material escrito, bastante escandaloso, bem como algumas esplêndidas séries de esboços eróticos, óptimos para negociar no submundo. O que tinha a fazer era bastante óbvio: levar tudo aquilo para a Europa, fechar os originais nos cofres da Artifax, e fazer algumas cópias destinadas a servir de isco junto aos compradores endinheirados. Quanto a Hugh Loredon, assim que se apercebesse de que fizera uma enorme asneira, primeiro quando escondera aquele material, depois quando o entregara a Max, bem que podia pintar a macaca para reaver tudo aquilo.

Contudo, na peça existiam outras personagens cujos papéis precisavam de ser definidos. Começando por ele, Max Mather, acabado de regressar do exílio e que começava agora a ganhar respeitabilidade. Possuía dois quadros de Rafael e um conjunto de desenhos que precisava de fazer chegar ao mercado sem qualquer escândalo. Não podia dar-se ao luxo de que um homem, uma mulher, ou até mesmo os seus caprichos, o fizessem mandar este empreendimento pelos ares.

Depois havia Anne-Marie Loredon, companheira e amiga dos velhos dias de Florença. Era corajosa e tinha ambições, mas estava a aprender da forma mais difícil que no mercado da arte não existem nem amigos, nem almoços gratuitos.

Tudo isto levava a Edmund Bayard - o advogado cuja mulher infiel fora assassinada por uma ou várias pessoas desconhecidas, mas cujo testemunho póstumo, se alguma vez chegasse ao conhecimento da polícia, bem que podia colocar o marido em apuros. E no entanto, no entanto ... Qual seria a importância do testemunho de Madeleine? Qual seria a decisão do júri quando confrontasse a loucura que a defunta atribuía ao marido com a sua própria loucura confessa? Mas havia uma outra pergunta, mais simples e imediata: qual seria a reacção de Bayard se soubesse que Max Mather estava na posse dos papéis pertencentes à mulher? Se os reclamasse através dos meios legais ficaria numa posição difícil. Será que estava de tal forma inocente que informasse a polícia e os obrigasse a recuperá-los? Ou estaria antes pronto a matar por eles?

O telefone tocou como que para dar resposta a esta pergunta. Tratava-se de Edmund Bayard, que foi direito ao assunto.

- Mr. Mather, fiquei bastante aborrecido com a nossa conversa de ontem à noite. Reconheço que agi de forma estúpida, mas tive as minhas razões. Foi você mesmo que me avisou que um certo tipo de publicidade errada a respeito da exposição poderia fazer que as pessoas sentissem um interesse mórbido pelo caso, podendo mesmo levar à repetição do crime. Quis proteger Miss Loredon e não intrometer-me na vida dela, mas fiz as coisas de maneira errada. A minha única desculpa é de que continuo a viver na sombra do fim trágico da minha mulher. Vou enviar as minhas desculpas por escrito a Miss Loredon, e estou a telefonar-lhe para agradecer e prestar os meus respeitos pela sua pronta intervenção em defesa dos interesses dela.

- É muito amável da sua parte, Mr. Bayard. Obrigado. Fico feliz por poder esquecer o incidente.

- Infelizmente, e pela parte que me toca, não me será tão fácil esquecer. Miss Loredon escreveu-me uma carta de protesto que é bastante forte. Compreendo os seus sentimentos. Aceito-os. Mesmo assim, acho toda esta situação muito triste, e peço que me ajude a restaurar aquilo que começou por ser uma relação amigável.

- Gostava de lhe dar um conselho bastante sério.

- Por favor. - Bayard era todo ouvidos. - Tudo o que quiser.

- Faça exactamente aquilo que Anne-Marie lhe pede. Durante uns tempos deixe as coisas ficarem como estão. Crie uma certa barreira entre ambos. Deixe-a ocupar-se com a exposição. Como sabe, já é trabalho bastante. Estou certo de que ela apreciará um certo tipo de cooperação que nada tenha de emocional. Acredite-me, conheço esta rapariga. Aquilo que tem feito com que continuemos amigos é que nunca a forcei a nada. Sempre a deixei seguir o seu caminho até à decisão final.

- Nesse caso, Mr. Mather, seguirei o seu conselho, e espero que não demore muito para que as coisas mudem. Muito obrigado. Mais uma coisa...

- Sim?

- Sinto que Anne-Marie tem grande confiança na sua opinião.

- Nem por isso Mr. Bayard. Ela apenas tem uma certeza a meu respeito.

- E qual é?

- Nunca lhe pedirei nada.

- Mas acabou por lhe pedir emprego.

- Corrijo: foi ela quem mo ofereceu. Ainda antes de termos deixado Florença já ela me perguntara se eu queria trabalhar com ela. Rejeitei. As coisas ficaram assim: sou eu quem a representa na Europa, mas mantenho a minha autonomia.

Admiro a sua sensatez, Mr. Mather. Espero que um dia nos tornemos amigos. Obrigado pela sua paciência.

- Sempre às ordens, Mr. Bayard.

Cinco minutos mais tarde, descia a cidade para não faltar ao encontro com Leonie Danziger. Foi encontrá-la com o cabelo em desalinho, distraída

Com uma série de manuscritos que se encontravam à sua frente. De imediato se embrenhou no trabalho.

- Aqui... tem aqui juntos o meu comentário e o seu texto. Sente-se ali e leia-o com atenção. Faça as suas anotações na margem. Depois disso dar-lhe-ei de presente uma autêntica caixa de surpresas!

Empurrou-o para uma cadeira, e deixou-o ler e avaliar o texto. Ele teve de se amanhar através de uma floresta de marcas de imprensa e símbolos editoriais, mas valeu a pena. O documento por ela produzido - selecções do texto primitivo junto com as suas próprias anotações - era vivo, claro e com autoridade, encontrando-se bastante longe da sua insípida versão. Voltou a colocar os papéis do outro lado da mesa.

- Fez-me sentir orgulhoso. Obrigado.

- Ainda bem que gostou. Agora dê uma olhadela naquilo que o nosso amo e senhor, o grande Harmon Seldes, fez. Vai ter de lho devolver. Quando ele é bom, é mesmo muito, muito bom. Repare na disposição fotográfica. Quando disse que ia explorar a história de uma forma que nem você sonharia, era isto que queria dizer. Leia com atenção.

A primeira parte tratava-se de um editorial assinado por Seldes. De forma eloquente, anunciava o seguinte:

 

Estamos orgulhosos por neste número publicarmos extractos de um trabalho de pesquisa bastante notável da autoria de Max Mather, um jovem estudioso americano que tem trabalhado numa razoável obscuridade, protagonizando o papel de arquivista de uma família da nobreza florentina. O trabalho debruça-se sobre a economia doméstica da região da Toscânia no começo do século XVI. Tendo como fonte registos da época - livros de registo do administrador da propriedade, a correspondência da família, bem assim como documentos comerciais - resulta em algo autêntico, informativo e ligeiro. O comentário e a redacção brilhantes de Miss Leonie Danziger reduziram o texto original às dimensões apropriadas aos nossos leitores, sem que se tenha registado qualquer perca de continuidade.

Contudo, a nossa dívida para com Max Mather ultrapassa em muito o texto em si. Nos livros de registo relativos ao período, encontrou referências a um trabalho que a família Palombini encomendou ao grande Rafael, o qual constava de dois quadros e uma série de esboços destinados a um retábulo. No texto, estas entradas são reproduzidas em fac simile. Não restam dúvidas de que são autênticas.

Mr. Mather é possuidor da modéstia do verdadeiro estudioso. Apesar de não ser entendido em pintura renascentista, é versado no assunto. A sua verdadeira especialidade é a paleografia. Assim, e com bastante sensatez, decidiu que a investigação acerca dos quadros desaparecidos deveria ser colocada em mãos mais competentes. Foi então que veio ter connosco à Belvedere, à procura de conselhos sobre o modo como deveria agir. Modesto como é, desistiu de todas as pretensões e recompensas, mas, e enquanto estudioso, prometeu cooperar inteiramente no trabalho de descobrir e identificar as obras desaparecidas - isto no caso de terem sobrevivido às devastações provocadas pela passagem de quatrocentos e cinquenta anos.

Estamos satisfeitos por o receber na Belvedere com o cargo de redactor adjunto, e de recomendar o seu primeiro trabalho aos nossos leitores...

Harmon Seldes

 

Enquanto baixava a primeira folha, Danny Danziger perguntou-lhe:

- Bom, Mr. Mather, que tal?

Ele encolheu os ombros e riu.

- É um proteccionista filho da mãe. No entanto, faz-me algumas referências úteis. Sou jovem, é bom sabê-lo. Sou um verdadeiro estudioso. Sou modesto, o que significa que sei lisonjear os que são mais velhos e melhores que eu. Que mais posso querer?

- Tudo o que ele quer, e isto se estas peças chegarem mesmo a aparecer, é muita fama e bastante dinheiro.

- Isso nunca vai acontecer, querida. Há mais de quatro séculos que se perdeu o rasto delas. Limita-se a fazer figura de parvo.

- Acha que sim? Leia mais um bocadinho.

Voltou a encontrar a linha onde parara, e continuou a leitura.

 

Partindo do princípio de que estes trabalhos ainda existem, onde será possível encontrá-los? A primeira, e talvez a menos provável possibilidade, é de que se encontrem escondidos num qualquer sótão, ou pendurados na parede de uma villa em decadência, sem terem sido reconhecidos. A segunda hipótese será que se encontrem em poder de um desses ricos mas discretos apreciadores, sejam eles gregos, alemães, brasileiros, mexicanos, ou suíços, e cujas colecções são totalmente desconhecidas do público. Depois existem os comerciantes de nomeada, os senhores importantes do negócio, cujo capital em obras de arte é igualmente desconhecido, e cujos negócios são, na sua maior parte, secretos, e que conseguem através de um qualquer processo miraculoso manter um enorme stock de obras-primas, tendo também dinheiro suficiente para viverem como príncipes da Renascença...

 

- Ele quer chegar a todos, não quer? - Mather estava pensativo. - Está agarrado ao pressuposto de que os trabalhos ainda existem.

- Está a fazer muito mais que isso. Está a espicaçar os maiores tubarões do mar, os coleccionadores do submundo, e os negociantes mais poderosos, tal como Berchmans et Cie. Não se esqueça de que, na sua juventude, Seldes tentou trabalhar com o velho Berchmans, mas foi recusado. A ferida nunca sarou. Deve ter também presente que é provável que Berchmans tenha na sua posse mais obras-primas interessantes que qualquer outro comerciante do mundo. No entanto, tudo isto tem o seu ponto fraco. O preço das obras sobe todos os dias, mas não são coisas que se comam nem que se possam gastar... e uma vez vendida, a peça nunca mais vem parar às suas mãos, a menos que, claro, haja a possibilidade de poder representar o património do comprador na data da sua morte, dando de novo início ao processo de circulação. Mas Seldes sabe que existe a hipótese de, neste preciso momento, Berchmans ter os quadros consigo.

- Você faz-me sentir como um camponês de Hicksville.

- Agora repare nas ilustrações apresentadas por Seldes. Tratam-se dos seguintes quadros de Rafael: Elizabeth Gonzaga, Emilia Pia de Montefeltro, Maddalena Dormi. Quanto aos esboços, temos os estudos para a História da Madonna, o Sonho do Calvário, e a Madonna de Terranova. Todos estes trabalhos foram apresentados no período compreendido entre 1504 e 1506. Assim, o que aqui temos é um código que permite a identificação imediata dos quadros, isto se eles aparecerem. Avisei-o para que nunca o subestimasse.

Mather voltou a ler esta passagem, tentando imaginar como ficariam as coisas se as suas fotografias fossem inseridas na sequência. Voltou ajuntar as páginas e passou-as a Leonie por cima da mesa.

- Tem razão. Ele aproveitou a informação de uma forma que eu nunca seria capaz de fazer. Quanto tempo vai demorar até isto estar impresso?

- Vai ficar pronto na sexta. Depois é-me devolvido para provas.

- Certificar-se-á de que me vai chegar às mãos uma cópia de cada uma das coisas, tudo ao mesmo tempo?

- Claro. Qual é a sua ideia?

- Explico-lhe mais tarde. Por favor, passava-me o telefone?

Assim que ela lhe passou o aparelho, marcou o número da revista e pediu para falar com Harmon Seldes.

- Harmon? Aqui Max Mather. Estou com Miss Danziger. Acabei de aprovar a forma como o meu trabalho foi tratado, e ela foi suficientemente amável para me mostrar o seu material. Gostava de o felicitar. É uma excelente aproximação ao tema; nada de pretensões exageradas, a lembrança bastante a propósito de que todas as descobertas terão de concordar com o catalogue raisonné. Achei-o bastante esclarecedor. Reclamações? Nem uma. Por vezes o meu próprio trabalho deixa bastante a desejar, de forma que admiro alguém que faz tudo à primeira. Mudando de assunto... sabe das minhas relações com Anne-Marie Loredon e a sua nova galeria? Bom, agora que já acabei o artigo sobre Rafael, gostava de escrever algo a respeito da exposição inaugural que ela vai levar a cabo, a exposição póstuma relativa a Madeleine Bayard. Atendendo às circunstâncias, acho que pode tratar-se de um artigo importante. óptimo, ainda bem que gostou da ideia. Fico com a sensação de que ganho o que me é devido. Importa-se de que discuta o caso com Miss Danziger? Parto do princípio de que quer que ela fique a vigiar o meu trabalho, pelo menos durante uns tempos. Obrigado. Adeus.

Levantou os olhos e viu que Danny Danziger o observava com repugnância, tal como se ele fosse uma espécie qualquer que é vista ao microscópio.

- Bem, bem, bem, quem é que é bonzinho? Com o Seldes a querer fazê-lo passar por parvo, e você ainda lhe lambe as botas.

A resposta surgiu com um sorriso:

- Biretta in mano nonfai mai danno.

- Está a esquecer - disse ela secamente - que não falo italiano.

- É um velho provérbio romano: nunca fez mal a ninguém levar o chapéu na mão quando vai falar com o papa.

- Como não sou papista, isso não faz bastante sentido. Bom, receio bem não o poder ajudar no artigo sobre Madeleine Bayard. Tenho outros compromissos.

- Sou eu quem fica a perder, mas claro está que compreendo. Chegou a conhecer Madeleine Bayard? Está familiarizada com o trabalho dela?

- Conheci-a vagamente. Conheço o trabalho dela apenas por alto. Não me interessa o bastante para que trabalhe sobre ele.

- É bastante justo. Nesse caso tentarei fazer as coisas sozinho e testar o quanto aprendi consigo.

- Max Mather, será que nunca vai aprender? Sou a última mulher do mundo que precisa de elogios.

- E sabe porquê, Danny D.?

- Diga-me!

- Porque nunca aprendeu a aceitá-los naturalmente, o que é uma vergonha. E já agora, vai pôr-me na rua ou tenho ordem de beber qualquer coisa antes de partir?

Meia hora mais tarde saía ao encontro do áspero pôr do Sol de Manhattan. Sentia-se mais rico - ou menos pobre - por possuir uma nova informação: que Leonie Danziger representara a sua parte no drama psíquico, e simultaneamente letal, de Madeleine Bayard. Podia dar-se ao luxo de esperar pela resposta a todas as questões que derivavam daquela simples preposição. De momento sentia-se feliz com a algazarra, o bulício e os encontrões dos nova-iorquinos. A sua indiferença conferia-lhe uma certa anonimidade, mantinha-o a salvo dos olhares indiscretos. Contudo, fazia-o igualmente sentir-se desesperadamente só, tal como se fosse a única pessoa a comparecer no seu próprio velório.

Havia algumas cartas à sua espera, e o porteiro tinha um embrulho para ele. Preparou uma bebida forte e sentou-se para abrir tudo isto. Primeiro, um bilhete do arquitecto dizendo que aceitava o depósito que ele fizera, e que concordava em supervisionar a construção do apartamento. Depois havia uma carta de Claudio Palombini:

... para agradecer a amabilidade por si demonstrada com a comunicação que me fez, e para o informar, não sem grande pesar, que nada mais posso acrescentar às informações que já possui sobre os trabalhos de Rafael. É bastante claro que os meus antepassados os encomendaram e que estes lhes foram entregues, mas não o posso elucidar sobre o que lhes aconteceu a seguir. Tenho bastante pena, pois que neste momento o dinheiro que, sem qualquer sombra de dúvida, conseguiria com eles no mercado, fazia-me bastante jeito.

No entanto, e como deve saber por experiência própria, nós, os Palombini, temos sido sempre um punhado de filisteus envolvidos em coisas materiais: vinho, azeite, couro, produtos manufacturados. Por vezes compramos quadros, mas só raramente somos patronos das artes. De facto, quando o tivemos entre nós como estudioso residente, estávamos a renovar a nossa reputação. Sempre que quiser voltar pode ter a certeza de que será bem recebido.

Afectuosamente,

Claudio

 

O embrulho constituiu uma surpresa. Continha um pequeno desenho feito a lápis, que retratava um prédio em construção. Estava assinado e tinha data: Boccioni, Milano, 1910. Junto com o desenho vinha um bilhete:

 

Envio as minhas desculpas e uma pequena lembrança como prova de que estou arrependido pela indiscrição que cometi no que respeita a Miss Loredon.

Estou certo de que conhece bem o trabalho de Boccioni. Tenho um retrato e uma paisagem que ficarei satisfeito por lhe mostrar quando jantarmos juntos.

Edmund Bayard

 

Mather ficou admirado com o estilo e a fibra do indivíduo. O desenho de Boccioni - reconhecido como um dos temas desenvolvidos para "The Rising City" - era suficientemente valioso para ser considerado uma compensação honrosa, mas não tão caro a ponto de ser considerado um suborno. A escolha do artista - um futurista inovador - prestava uma grata homenagem às sua ligações italianas. O convite para jantar era uma habilidade: dado que não fora avançada qualquer data, não era necessário tomar decisões imediatas. Querendo saber a forma como Bayard tratara Anne-Marie, acabou por lhe telefonar apenas para descobrir que esta estava ansiosa por lhe contar as novidades.

- Mandou-me uma enorme carta onde se explica. Estava preocupado com a minha segurança... essa história toda. A minha casa está cheia de flores. Há um cartão que diz o seguinte: "Mas o amor é cego e os amantes não conseguem ver as belas loucuras que cometem. E. B.”

- Devia ter assinado "W. S." Isso é Shakespeare.

- Não me interessa de quem é. Aterrou aqui, junto com uma série de flores exóticas que valem mais de duzentos dólares, e eu pergunto-me como lhe hei-de responder.

- É fácil. Responde-lhe da mesma maneira: "Senhor, concedeis-me grande honra, mas o meu coração está destinado às musas... em suma, não há qualquer hipótese de nos tornarmos amantes. " A propósito, tenho notícias para ti. O Harmon Seldes concordou em publicar um artigo sobre a exposição de Madeleine Bayard.

- Max, isso é maravilhoso. Significa À partida que vamos conseguir dinheiro.

- Descobre aquilo que precisas que eu diga a respeito da senhora e depois diz-me. Eu também vou fazer as minhas pesquisas, mas preciso de todo o material biográfico para poder arranjar, incluindo fotografias das telas.

- Posso levar-te a casa do Bayard e mostrar-tas.

- Ele já me convidou para jantar, mas preciso das fotografias para me servirem de referência enquanto trabalho.

- Eu trato disso. Mais alguma coisa?

- Sim. É mais que óbvio que o homem está doido por ti, mas quanto a mim ele é completamente louco. Por tudo isto é melhor tomares um duche e esqueceres-te dele. Boa noite.

Apesar das piadas e do tom arreliador que mostravam desde que tinham passado de amantes esporádicos a amigos permanentes, Mather estava preocupado. Bayard fizera que a derrota que sofrera se começasse a transformar num triunfo. Era impossível rejeitar os passos que, tomara para fazer as pazes, e seria uma loucura se Anne-Marie transformasse um penitente poderoso num inimigo insultado.

Mais uma vez Mather via-se comprometido pelo seu próprio interesse. Estava envolvido num empreendimento paradoxal: edificar um negócio legal num acto moralmente duvidoso. Pela parte que lhe tocava, não podia dar-se ao luxo de ter inimigos ou difamadores. Tinha de ser amigo de todos. Apenas podia esperar que a teia de meias verdades onde se apoiava não se desfizesse e o lançasse num fosso.

 

Quarenta e oito horas mais tarde recebeu um telefonema de Leonie Danziger, a qual lhe comunicou uma breve mas ensaiada declaração.

- Max? Estou a telefonar-lhe para lhe dizer que mudei de ideias quanto ao caso Bayard. Posso redigi-lo para si. O dinheiro faz-me jeito. E você pode contar com a minha habilidade. Já pus no correio as provas do seu trabalho sobre a Toscânia, não esquecendo o artigo do Seldes a respeito dos Rafaéis. São seis cópias de cada. As despesas ficam a cargo da Belvedere.

- Foi muito amável da sua parte. Obrigado.

Telefonou para o escritório de Bayard, agradeceu-lhe o desenho de Boccioni, mas protestou dizendo que não o podia aceitar.

- Pertence por direito à sua colecção. No entanto, ficarei satisfeito por jantar consigo. Precisamos de conversar em privado a respeito da exposição. Seldes pediu-me para escrever um artigo a esse respeito para a Belvedere, de forma que preciso de ver os quadros e construir eu mesmo um perfil da artista. Quanto mais cedo o conseguir fazer, melhor.

- Que tal na quinta-feira? - Bayard foi enérgico mas cordial.

- Óptimo.

- Então às sete e meia na minha casa. Só nós os dois.

- Até quinta.

- E insisto para que fique com o Boccioni. Não aceito desculpas. Adeus.

Em jeito de preparação para a noite, Mather passou um dia na City Library a ler os relatórios da imprensa a respeito do assassinato de Madeleine. Leu também algumas coisas sobre Boccioni e os Futuristas, e copiou a entrada biográfica do Who's Who a propósito de Edmund Justin Bayard. Como preparação final, telefonou a Anne-Marie apenas para descobrir que este já contactara com ela.

- Ficou bastante satisfeito por teres aceite o convite. O artigo da Belvedere é algo que lhe agrada. Sente que a tua amizade e boa vontade são factores importantes. Depois dizes-me como foi o jantar?

- Claro. Mas mais importante que isso, como vão as tuas relações com ele? Que fizeste a respeito das flores?

- Mais ou menos o que me disseste: agradeci-lhe a lembrança, disse-lhe que ficaria feliz por continuar com a nossa associação, mas que não suportava quaisquer pressões emocionais.

- Ele compreendeu?

- Digamos que não discutiu, mas não tenho a certeza de até que ponto ele entendeu as coisas. Contudo, agora sinto-me melhor a trabalhar com ele.

- Mais uma pergunta: as telas que vais expor estão todas na casa dele?

- Sim.

- E quanto a outro tipo de material: esboços, notas, tentativas artísticas, projectos não acabados?

- Junto com as obras mais importantes temos cerca de setenta esboços e estudos que também vamos expor. Se existe mais alguma coisa, o Bayard não me mostrou. Perguntei-lhe se havia material escrito. A resposta foi vaga. Por que perguntas?

- Porque é o tipo de miscelânea que pode ornamentar maravilhosamente um artigo. De qualquer das formas, pergunto-lhe durante o jantar. Como vai o estúdio?

- Aquilo está numa enorme confusão, mas os canalizadores e os pedreiros estão a cumprir os prazos. O arquitecto descobriu exactamente o tipo de luz que queremos... ah, já vão bastante avançados com a tua área residencial. Temos de lá ir os dois dar uma olhadela.

- Pois temos... mas só depois do jantar com o Bayard. Engraçado, sinto que preciso mesmo de me preparar para o encontro.

- E tens razão. As coisas não podem ser feitas assim do pé para a mão. Numa determinada altura ele pode ter todo o encanto do mundo. No momento a seguir pode ser frio e intimidatório.

Tudo isto fazia que Mather se sentisse pouco à vontade, mais ou menos como um aluno que está prestes a enfrentar o júri de um exame oral. Quando as coisas aconteceram estava totalmente desarmado. Começaram de imediato a tratar-se por tu. A refeição estava excelente, os vinhos haviam sido escolhidos com cuidado. Bayard estava descontraído e mostrava-se receptivo, sendo simultaneamente um conversador cuidadoso e um bom ouvinte, que conseguia persuadir o seu convidado a dar o melhor. Foi modesto a respeito da colecção que lhe pertencia e bastante eloquente quanto ao trabalho de Madeleine. Agradeceu efusivamente o facto de a Belvedere ir publicar o tal artigo, pois considerava isto como sendo bastante bom. Quando chegaram à altura do café e do brande, Mather tinha esperanças de conseguir uma boa conversa.

Perguntou:

- Estás pronto para as perguntas?

- Penso que sim.

Mather puxou de um pequeno gravador e colocou-o na mesa situada entre eles. Deu a seguinte explicação:

- Podemos apagar de imediato tudo o que não quiseres que fique no gravador. Preciso que me dês três tipos de informação. O primeiro é para o artigo da Belvedere. Trata-se do background técnico e profissional, do estado de espírito do artista, esse tipo de coisas. O segundo consta de material que os jornais populares possam publicar: biografia, coscuvilhices, nomes, quais as celebridades que vão ser convidadas. O terceiro trata-se de refutações, isto para o caso de os boatos que circularam na imprensa sensacionalista aquando da morte da tua mulher tornarem a vir a lume.

Bayard mostrou-se desconfiado naquele mesmo instante:

Boatos? Não dei por que tivessem corrido boatos.

É compreensível. Estavas em estado de choque. É provável que tenhas feito o mesmo que a maior parte de nós: deste uma vista de olhos aos jornais, e recusaste-te a admitir que circulassem coisas desagradáveis. Aqui está um exemplo do tipo de coisas que tenho em mente... - Começou a procurar no bloco-notas. - Veio no New York Post: "Madeleine Bayard, uma mulher bela e talentosa, tinha inúmeros amigos entre as pessoas de má fama que frequentavam os cafés do Soho. A polícia não põe de parte a possibilidade de se tratar de um crime passional." Assim que a exposição for anunciada, um pequeno pormenor deste tipo pode assumir proporções gigantescas. É bem possível que nas colunas de bisbilhotice apareçam uma série de nomes sob o título "Ligados pelo Romance ... ", ou coisas semelhantes. É bem provável que apareça alguém com um esboço ou uma carta. Sabes que a imprensa sensacionalista paga bom dinheiro por isto. Como é que vamos responder na galeria?

- Não respondes - retorquiu o outro secamente. - Deixas correr. E se me sentir insultado e achar que posso ganhar, movo uma acção. Quanto ao resto, tu, Anne-Marie, e todos os outros ligados à galeria, estão fora do assunto. Não se envolveram nem na vida nem na morte de Madeleine. Apenas se preocupam com o seu génio. Olha, Max, compreendo o objectivo das tuas perguntas. Sei que precisam de ter uma certa base que vos impeça de fazerem figura de parvos. Portanto vamos começar por aí. Desliga o gravador. Isto não deve ficar registado.

- Entendido. Mas nesse caso vais ter de especificar aquilo que posso usar.

Bayard esperou durante alguns momentos, depois lançou-se numa narrativa simples e intimista, bastante mais dolorosa que aquilo que Mather esperara dele.

- Madeleine nasceu em Londres, mas os pais eram franceses. O pai era coronel das Forces Françaises Libres, e estabelecera-se em Londres como comerciante de vinhos. A mãe fazia parte do pessoal da Embaixada Francesa, e estava ligada à secção cultural. Eu estava em Londres ao serviço do velho George Bunbury, ocupado com um caso comercial transatlântico, o qual envolvia clientes americanos e canadianos. A disputa foi longa e proveitosa. Fiquei em Londres durante quatro meses. Numa determinada tarde conheci Madeleine numa exposição na Royal Academy. Ela andava a estudar na Slade. Apaixonámo-nos perdidamente. Casámo-nos antes de eu ter deixado a Inglaterra.

- E depois?

- A lua-de-mel e o regresso a casa foram óptimos. Depois começou o processo de declínio até à infelicidade. Eu era um jovem advogado ambicioso que se interessava por arte. Ela era uma artista pura, toda fogo e fantasia, que não conhecia descanso na busca do que sonhava, necessitando sempre de se libertar e de se renovar... na maior parte das vezes através de encontros sexuais. Sem que esteja elaborada, esta é a origem daquela notícia. A minha mulher era uma grande pintora, mas também uma senhora muito promíscua.

- Isso deve ter sido determinante no sentido que a polícia deu aos interrogatórios.

- Claro. E eu era o suspeito natural. Uma mulher infiel e um marido ciumento. E eu era ciumento, não ponhas qualquer dúvida. Tomei-me mórbido e tirânico. Ameacei-a, restringi-lhe a liberdade de movimentos, proibi-a de se expor. É claro que nada disto ajudou. Só fez que as coisas piorassem. Mas foi bastante fácil provar que não fora eu a assassiná-la. Estava numa conferência e pedi a uma das secretárias que telefonasse para o estúdio e dissesse a Madeleine que a ia buscar mais tarde. Ninguém respondeu. Quando lá cheguei ela já estava morta. Fiquei possesso. Chamei a polícia, peguei nela ao colo e tentei fazer que voltasse a viver. Foi assim que a polícia me encontrou... e é esse o pesadelo em que vivo.

- O que não consigo compreender é a razão que vos levou a suportar o inferno que infligiam um ao outro. Por que razão não se divorciaram?

Bayard. endereçou-lhe um estranho sorriso enviesado, e levantou a mão num gesto de derrota.

- Tu és jovem, Max. Tens todos os talentos de um solteirão à solta. Espero que nunca aprendas, pelo menos como eu o fiz, de que para algumas pessoas o inferno é preferível ao vazio. A Madeleine e eu precisávamos um do outro, compreendes? Alimentávamo-nos da miséria que criávamos um ao outro. A tensão que descobriste nos quadros dela, aquela vontade louca de se escapar, tudo isso era fruto da infelicidade. Para além disso, eu sabia que o seu melhor me pertencia. Está pendurado nas paredes que te rodeiam.

- Mas ali não se encontra o outro lado - disse Mather -, a faceta sensual e orgíaca. Ela nunca pintou nus, corpos enlaçados?

- Se os fez eu nunca os vi. Talvez seja melhor assim. Para mim, o mais difícil de suportar era saber que outros homens possuíam o seu corpo e acreditavam, tal como eu o fiz, que tudo o que ela lhes contava na cama era verdade. Sem dúvida que isso era capaz de me levar a matar. Mas teria morto os amantes, nunca ela.

- Sabias quem eles eram?

- Alguns.

- Ela retratou-os? Pintou para algum deles? Escrevia cartas?

- Não tenho a certeza de compreender a razão que te leva a fazer essas perguntas.

- Vou dizer-te directamente: existe algum material susceptível de aparecer no mercado durante a exposição e que seja capaz de criar situações embaraçosas?

- Acho que é bem provável. Mas nesse caso não podemos fazer grande coisa.

- Talvez que o pudesses comprar com alguma discrição.

- Acho que não me interesso tanto assim. Estou a tentar ver-me livre de recordações, não a adquirir mais algumas.

- Nesse caso talvez fosse preferível enterrá-las ou escondê-las em lugar seguro até que o tempo as torne inofensivas, não achas?

- Tens toda a razão. Mas raios me partam se hei-de ser eu a comprá-las!

- Nesse caso, e se aparecer alguma coisa, compro-as eu. Se a exposição for bem sucedida, a galeria há-de arranjar-lhes mercado.

- Sem dúvida - concordou o outro com ironia.

Depois de tudo o que ouvira da parte de Anne-Marie e de Hugh Loredon, Mather viu-se a braços com a tarefa de tentar fazer coincidir duas imagens do mesmo homem. O problema estava em conseguir fazer que as duas imagens diferentes coincidissem.

- Estás apaixonado pela Anne-Marie? - perguntou.

- Sabes bem que sim.

- Hugh Loredon foi um dos amantes da tua mulher?

Nesse mesmo instante Bayard retraiu-se e optou por um comportamento hostil - uma espécie de animal doméstico que se transforma em fera.

- Como foi que descobriste isso?

- O Hugh contou-me.

- Por que razão o havia de fazer?

- Ele sabe que a Anne-Marie e eu somos bons amigos. Pediu-me para olhar por ela. Diz que tem medo que a uses para te vingares dele.

- Santo Deus! - As palavras eram como que um grito de angústia. Bayard dobrou-se como se tivesse sido atingido no estômago. Enterrou o rosto nas mãos e começou a abanar-se de um lado para o outro, gemendo frases incompreensíveis. Quando se voltou a endireitar o rosto era uma máscara de dor. A voz tremia.

- A Anne-Marie sabe disto?

- Sim.

- Não admira nada que fuja. Não admira nada que tenha medo.

- Esse não é o único motivo - disse-lhe ele bruscamente. - O teu casamento deixou-te com uma série de maus hábitos; és metediço, ameaças as pessoas, és desconfiado, e para cúmulo puseste o raio de um espião atrás dela. E não me venhas para cá dizer que era para a proteger. Querias, sim, certificar-te de que não se tratava de uma outra Madeleine.

Bayard fez que sim com a cabeça, mas não falou.

Mather resolveu jogar todos os trunfos.

- É por isso que ela está zangada contigo. Quer que saias do espaço dela. Não podes culpar Hugh Loredon por esse facto.

- Acreditavas - disse Bayard devagar -, acreditavas se eu te dissesse que não o culpo de nada? Não culpo nenhum dos amantes de Madeleine por terem aceite aquilo que ela oferecia. Ao fim e ao cabo, perdi quase toda a autoconsideração quando me mantive a seu lado.

- Foi algum dos amantes que a matou?

- Talvez sim, mas é provável que não.

- Por que dizes isso?

- Ela nunca se considerou exclusiva. Então por que razão alguém teria de matar para obter aquilo que ela oferecia como se fosse uma caixa de bolos? Houve uma altura em que pensei que se deixasse de falar com todos os homens que me punham os cornos, acabava a viver como um eremita. Foi isso que fiz durante uns tempos. Só depois de ter conhecido a Anne-Marie é que voltei a viver uma vida seminormal.

- A polícia ainda se ocupa do caso?

- Se se ocupa? Bom, é bastante relativo. De vez em quando aparecem por aí com uma série de novas perguntas, bem assim como uma nova versão das antigas. É provável que não parem até bem depois da exposição.

- Já alguma vez exploraram a possibilidade de alguém ter contratado um assassino?

Bayard sorriu pela primeira vez. O seu sorriso era um esgar zombeteiro.

- Meu caro Max, assim que se aperceberam de que não fora eu quem a matara, ou seja, que eu não a podia ter morto, começaram a imaginar toda a espécie de histórias. Uma delas foi que eu contratara um assassino profissional para fazer o trabalhinho. A única coisa de errado nesta teoria é que os matadores profissionais não transformam um trabalho que pode ser feito com um único tiro num autêntico matadouro. E eu poderia ter arranjado uma série de desculpas para não estar na cidade no dia da execução... Raios, qual o interesse em voltar a encenar este caso sanguinário de novo? Tenta compreender uma coisa, Max, visto eu não a voltar a dizer. Tenta explicá-la a Anne-Marie, isto no caso de ela te dar ouvidos. Vou montar esta exposição como homenagem àquilo que Madeleine tinha de melhor, a parte que eu amava, a mulher que me manteve prisioneiro durante todos estes anos. Depois disso ela sai da minha vida. Não me quero vingar de quem a matou. Não quero odiar os seus amantes. Apenas quero esquecê-la e voltar a viver como um ser humano... com a Anne-Marie se ela me quiser, sem ela se não for o caso.

- Então aceita o conselho de um solteirão inveterado. A princípio tenta viver sem ela. Assim ela não se sentirá como se estivesse a ser encostada à parede num contrato só com um sentido.

- É a voz da experiência a falar? - O tom de Bayard sugeria um novo respeito.

- Funciona nas duas situações - retorquiu ele com sentimento. - As mulheres detestam os homens que andam à procura de uma mãe. Os homens detestam as mulheres que querem que os amantes sejam uma espécie de filhos. Apenas mais uma pergunta.

- Espero que seja mais fácil que as outras.

- Vou falar-te de negócios. Cobras-me os conselhos que me dás no campo jurídico. Que preciso de fazer para montar um consórcio de compradores de arte?

- Sediado onde?

- Sediado na Europa mas que operasse em todo o mundo.

- A que propósito?

- Vou ser o representante da galeria de Anne-Marie. Mas ela vai ser apenas um dos negociantes, com a sua política própria. Por que razão não hei-de prestar serviços a cinco, dez, vinte outros negociantes? Por que razão não hei-de ser eu a negociar por minha conta e risco?

- Por nenhuma razão. Isto desde que as tuas opiniões sejam boas, já para não mencionar o teu crédito, coisas que, até à data, parecem estar em ordem. Se quiseres, posso montar-te o tal consórcio num abrir e fechar de olhos. - Parou de falar para beber duas grandes goladas de brande. À medida que ia aquecendo o copo com as palmas das mãos, perguntou:

- És capaz de me responder a algumas perguntas, Max? Olho por olho...

- Claro. Força.

- Exactamente, qual é a tua relação com Anne-Marie?

- Ex-amante, bom amigo. Irmão emprestado, sócio. Damo-nos bem e somos livres. A próxima?

- És gigolô?

- Não. Tenho aceite o patrocínio de algumas mulheres, mas elas nunca me sustentaram. Tenho vivido dos meus rendimentos e tenho-as ajudado a gozar os delas.

- É uma definição bastante boa.

- Enquanto advogado, tenho a certeza de que compreendes.

- Quais as tuas ambições?

- Ficar rico o mais depressa possível.

- E achas que podes consegui-lo?

- Tenho a certeza.

- Acho - disse Bayard baixinho -, acho que és bem capaz.

Levantou o copo e pronunciou o velho brinde, o qual, de repente, pareceu bastante actual e relevante:

- A nós, Max! Saúde, dinheiro e amor, e que Deus nos dê tempo de gozarmos tudo isso.

Depois de terem bebido copiosamente, acharam que seria uma vergonha não o voltar a fazer. Foi então que Bayard pronunciou a sua última e hesitante bênção:

- Fico feliz por não teres conhecido a minha mulher. Se tivesses, deixarias de ser meu amigo. Ela roubou todos os meus amigos. Todos os meus melhores amigos...

 

Às nove da manhã - três da tarde segundo a hora de Paris - Harmon Seldes recebeu um telefonema de Henri Charles Berchmans, o Velho. Conversaram em francês. O discurso de Seldes era preciso, mas exagerado e pedante. Berchmans mantinha a pronúncia áspera da sua Alsácia natal.

- Aqueles papéis que me mandou ontem... que quer que eu faça com eles?

- Fazer? - Seldes estava doce como o mel. - Fazer, meu caro Henri? Agradecer-me, é claro.

- Porquê?

- Por lhe ter concedido o privilégio de dar uma olhadela naquilo que se pode transformar numa das descobertas mais provocantes do nosso tempo. Ninguém mais os viu, mas se não está interessado, é claro que podemos passar para...

- É claro que estou interessado. - Era óbvio que Berchmans, o Velho, fervia em pouca água. - Não seja estúpido. Este, tipo... Martha, Methier...

- Mather. - Seldes soletrou a palavra.

- Por amor de Deus! Não preciso que me ensine a soletrar. É dos bons? O trabalho dele é autêntico?

- Confirmei todas as suas referências com a tal família Palombini e a biblioteca de Florença. Dá a sensação de que se trata de um preguiçoso agradável, mas engana muito. O trabalho é autêntico até ao mais ínfimo pormenor. Eu mesmo inspeccionei a fonte dos documentos.

- As quais, no entanto, têm mais de quatrocentos e oitenta anos. Meu amigo, isto é fumo sem fogo.

- Nós faremos que se atirem umas quantas achas para a fogueira.

- Bom... que quer de mim?

Satisfeito, Harmon Seldes sorriu. O velho Berchmans era um homem que se dedicava às corridas de cavalos. Insistia em dar as últimas instruções aos seus jockeys.

- Vou fazer-lhe três perguntas. Primeira: entre as suas colecções existe alguma coisa que corresponda à descrição que se encontra no registo dos Palombini?

- Não.

- Segunda: consegue identificar, ou até mesmo calcular, se existe material semelhante noutras colecções?

Neste preciso momento, não.

- Terceira: está interessado em juntar-se a mim e participar na busca destes objectos, isto numa base exclusiva?

- Qual a sua definição de "participação"?

- Você entra com uma determinada quantia previamente estabelecida, com vista a iniciar as pesquisas. Eu conduzo a investigação. Se conseguirmos encontrar os objectos, trazêmo-los juntos para o mercado... e dividimos os lucros a meias.

- E se não encontrarmos nada, ou se é outra pessoa a fazer a descoberta?

- Bom, é porque estamos ambos sem sorte.

- E eu também fico sem dinheiro. É melhor eu ficar com setenta por cento e você com trinta.

- Se fizer as coisas a sessenta-quarenta, negócio fechado.

- Preciso de tempo para pensar na proposta.

- Você não tem tempo, Henri. Só lhe dou o tempo que durar este telefonema.

- Tenho de me encontrar com esse tal Mather.

- Se chegarmos a um acordo, eu trato disso.

- Qual a posição dele no meio de toda esta história?

- Já lhe disse. O trabalho dele, é bom. Quanto a ele, bom é um flâneur. Como tem fortuna pessoal, não precisa de trabalhar muito. Tem a esperteza suficiente para ver que não tem nem os mimos nem os meios nem os conhecimentos para fazer aquilo que nós podemos.

- Estará pronto a assinar um documento declarando que desiste de tudo?

- No meu ponto de vista isso seria um erro, um erro bastante grave. Se queremos que trabalhe connosco, o melhor é dar-lhe que fazer. Tenho-o ocupado enquanto redactor adjunto. É bem possível que o consiga fazer aceitar um contrato que o ate de pés e mãos e nos deixe todos os louros. Mas isso tem de ser feito com muito cuidado.

Por que não misturar uma mulher no assunto? - A gargalhada seca de Berchmans ecoou através do auscultador. - A próxima pergunta: de quanto vai precisar para dar início às investigações?

- Viagens em primeira classe e alojamento em todas as deslocações. E provável que faça a maior parte do trabalho durante as férias de Verão. Parto do princípio de que me vai deixar usar os seus escritórios, sem esquecer os batedores.

- Os escritórios sim. Quanto aos batedores, falaremos a esse respeito quando chegar a ocasião. Dê-me os números aproximados.

- Cinquenta mil para saber se estamos no caminho certo ou se andamos na pista errada.

- É demasiado - respondeu Henri Berchmans. - Faça as coisas por trinta.

- Trinta mil de começo e o grosso dos rendimentos a ser repartido numa base de sessenta-quarenta por cento.

- É a primeira vez que ouço a palavra "grosso.”

- Henri, não me vai dizer que estava à espera que ou dissesse "rendimentos líquidos"? Estou aqui a tentar prestar-lhe o maior serviço da sua vida, e mesmo assim você continua a querer esmifrar-me.

- Fiquemos então pelo grosso.

- óptimo. Negócio fechado.

- Sendo assim, por que razão não deixamos as coisas ficar por aqui? Por que razão contar a todo o mundo aquilo que nós sabemos?

- Porque nem eu nem você temos maneira de cobrir o mundo inteiro, de forma que o melhor é agitarmos as águas e contarmos as bolhas que aparecem à superfície. Você é o decano dos negociantes, de forma que existem inúmeras probabilidades de que os primeiros achados aterrem à sua porta... ou à minha, pois sou eu quem publica as notícias.

- É capaz de ter razão - retorquiu o outro, que não era pessoa para retribuir elogios. - Vejo-o em Nova Iorque dentro de uma ou duas semanas. Mantenha-me a par dos acontecimentos. Mais alguma coisa?

- Estava a perguntar-me - disse Seldes secamente -, quando é que você vai dizer "obrigado.”

Fez-se um longo silêncio antes de Berchmans responder com um desprezo deliberado:

- Temos um acordo. Cumprirei a minha parte. Você trate da sua. Se ambos encontrarmos aquilo que procuramos, o melhor será ajoelharmos e rezarmos ao deus que nos fez ricos e afortunados. À bientôt, Seldes.

 

Harmon Seldes poisou o auscultador e olhou-se ao espelho. Viu um indivíduo de maxilares acentuados que precisava não só de se barbear, mas também de cortar o cabelo, e que acabara de fechar um bom negócio. Na pior das hipóteses, já tinha quem lhe pagasse as férias. No melhor dos casos - caramba, um homem podia retirar-se do negócio com todo o luxo apenas com metade da comissão correspondente a dois quadros e cinco esboços de Rafael. Henri Charles Berchmans, o Velho, era um velho monstro sem papas na língua, mas, e tal como a maioria dos grandes comerciantes, acreditava em milagres, o milagre brilhante do génio, o qual era capaz de transformar uma tela vazia num objecto de admiração, o milagre da ganância de Midas, que era susceptível de transformar o objecto de admiração em ouro.

A melhor forma de lidar com um monstro era sacrificar-lhe uma vítima. Telefonou a Max Mather, o qual acordava naquele preciso momento com uma enorme ressaca. Tinha a cabeça a estalar, sentia os olhos cheios de areia, a boca sabia-lhe a cortiça. A resposta que deu não foi nada amável.

- Bom, Harmon, que horas são?

- Nove e meia. O pequeno Maxie meteu-se em noitadas?

- O pequeno Maxie está a morrer. E tudo por causa de Ed Bayard.

- Disseram-me que se come bem na casa dele.

- E também se bebe brande bastante bem. Que posso fazer por si?

- Quero apenas dizer-lhe que o velho Berchmans concordou em financiar as buscas para encontrar os quadros.

- Desejo a ambos a maior das sortes. Agora posso voltar a dormir?

- Ainda não. O homem gostaria de se encontrar consigo daqui a um par de semanas, quando vier a Nova Iorque.

- Não estou cá. Parto amanhã para a Europa. Mas desde que a Belvedere pague o suplemento do Concorde, posso parar em Paris e falar com ele.

- E por que razão um Concorde?

- Por que vou deixar-vos o caminho livre e serão vocês a ficar com os louros.

- Muito bem. Autorizo-o a fazer isso. Quais são os seus planos?

- Vou passar dez dias bastante calmos a trabalhar no artigo sobre Madeleine Bayard. Vi as telas ontem à noite. São incríveis. E a história pode servir-lhe às mil maravilhas. Assim que estiver pronta mando-a à Leonie para que possa trabalhar nela, e, claro está, você receberá também um exemplar adiantado. Depois de tudo isto vou até St. Moritz passar uma semana a praticar esqui. A seguir vou a Florença. Se puder fazer alguma coisa por si...

- Vou telefonar ao Berchmans e perguntar-lhe onde o pode contactar durante o fim-de-semana.

- E que quer ele?

- Examinar a sua consciência de erudito.

- Já toda a gente o fez. Mais vez menos vez é coisa que não faz diferença.

- Max, ele é importante para nós.

- Para si. Para mim, não. Contudo, e por consideração para consigo, serei simpático com ele. Há mais alguma coisa que queira ver feita enquanto estou na Europa?

- Dir-lhe-ei depois. O mais importante é que unamos os nossos esforços. Posso dar-lhe instruções a respeito daquilo que preciso, mas não devemos desperdiçar as coisas nem trabalhar com fins opostos.

- De acordo, de acordo! Agora posso desligar? É que gostava mesmo de morrer em paz.

 

Cinco minutos mais tarde Max conseguiu levantar-se, voltou a hidratar-se com sumo de Laranja e café, e só então telefonou a Anne-Marie, tendo ambos combinado ir correr para o Central Park. Hora e meia mais tarde corriam calmamente através do circuito de jogging. Foi então que ele disse:

- Parto amanhã para a Europa.

- Porquê tão depressa?

- Tenho muito que fazer. Vou encontrar-me com o Berchmans em Paris, e organizar uma companhia em Zurique, aquela que irá representar os negócios da tua galeria. Depois quero ir até St. Moritz praticar esqui. Também faço tensões de ir a Florença consultar o arquivo e fazer os preparativos com vista a trazer o Tolentino para a galeria. No meio de tudo isto tenho de arranjar tempo para escrever o artigo sobre Madeleine Bayard e mandá-lo para a editora.

- Há alguma hipótese de te encontrares com o meu pai?

- Só se ele estiverem Zurique na mesma altura que eu. Telefonarei à Christies e vejo se me sabem dizer onde ele se encontra. No entanto, não tenho ideias de andar atrás dele. Ele deve saber disso. Se por acaso telefonar, dá-lhe o recado.

Ela parou à sombra de um velho ácer e beijou-o na boca. Ele correspondeu de bom grado, depois abraçou-a e perguntou suavemente:

- Qual é a finalidade disto?

- Raios, vou ter saudades tuas!

- Eu também vou sentir a tua falta.

- Não, não vais. Estarás demasiado ocupado. Quando recomeçaram a correr ela endereçou-lhe a seguinte pergunta: - Por que será que não nos apaixonámos, Max?

- Talvez o tenhamos feito - respondeu. - Mas estávamos demasiado ocupados para darmos por isso. Vá, e agora vamos correr a próxima meia milha, está bem?

 

Edmund Justin Bayard. tinha os seus métodos para curar ressacas, as quais, e isto ele apenas admitia para si mesmo, se tinham tornado demasiado frequentes nos últimos tempos. Acontecia que, apesar de nunca tocar em álcool durante as horas de trabalho, fora disso bebia bastante: vodca martinis como aperitivo - um assim que chegava a casa, outro enquanto estava na banheira - uma garrafa de vinho para acompanhar a refeição, um brande bastante bem servido junto com o café, seguido de outro à hora de deitar. As quantidades aumentavam consideravelmente quando tinha convidados para o jantar.

Como antídoto, ia dar um passeio até um bloco de apartamentos situado no centro da cidade, onde uma senhora tailandesa assistida por três jovens fornecia sauna, banho, massagens e masturbação manual para homens de negócios sós ou de ressaca, isto sem esquecer que também se faziam barbas. O edifício era discreto, a roupa limpa, as raparigas eram simpáticas, e toda aquela operação envolvia poucos riscos. Os cubículos eram à prova de som, e cada um deles tinha telefone, de forma que durante o período de recuperação se podia tratar de negócios com relativa privacidade. Foi aqui que Ed Bayard abordou pela primeira vez com cerca de meia dúzia de amigos a ideia proposta por Max Mather a respeito do consórcio ligado à arte. Os seus argumentos eram simples, e tornavam-se cada vez mais convincentes à medida que os expunha.

- apenas dez participantes, cada um investindo capital no valor de cinquenta mil dólares. Isto faz com que tenhamos meio milhão disponível para investirmos em obras que ficarão assim à nossa disposição, isto depois de a maioria ter concordado na existência de um mercado pronto a aceitá-las. Bom, está claro que não vamos comprar obras-primas no valor de muitos milhões de dólares. Não temos maneira de competir nesse mercado. Mas todos sabemos que existem pechinchas que podem ser adquiridas nas épocas baixas e nos dias em que as ofertas não sobem muito nas salas de leilão. Acabei de encontrar o homem que pode tratar de tudo por nós. Não tem compromissos, os seus meios são modestos, e anda à procura de algo que lhe permita entrar no mundo da arte. Vai poder ver uma série de artigos de fundo da sua autoria nos números de Abril e Maio da Belvedere. O nome dele é Max Mather... sim, Mather. O melhor de tudo isto é que não será ele a controlar os fundos mas sim nós. Ele só tem de nos avisar através de, telegrama ou telex qual o artigo em questão, o preço, e qual a sua opinião. E então que, ao mesmo tempo que fazemos uma pequena pesquisa de mercado, autorizamos um depósito de capitais. Não, não temos necessidade de apresentar os cinquenta mil logo de imediato. Podemos tratar das coisas com um banco. Articles of Association? Tenho uma série de coisas para pôr à sua consideração. Esplêndido. Não lhe garanto que façamos fortuna, mas também não iremos perder dinheiro e podemos divertir-nos bastante. Obrigado! Para si também.

Quando recuperou totalmente da ressaca como da cura, tinha a promessa de cinco contribuintes, bem como outros três que lhe voltariam a telefonar mais tarde. Ligou para Mather.

- Temos negócio, Max. Até agora já arranjei cinco sócios, cada um com cinquenta mil. E estão mais três para chegar. Ainda não contactei toda a gente pois preciso de saber a tua posição neste negócio.

- É muito clara. Sou o membro trabalhador. Durante um ano trabalho gratuitamente para cobrir os cinquenta mil. Depois disso, e se quiserem que continue a trabalhar, fico com a quota já paga e fazemos um novo contrato.

- Parece-me justo, digamos que bastante generoso.

- Bom, então fica a teu cargo chegar a um acordo com todas as partes interessadas. Parto amanhã para a Europa. Mando-te um telex com a morada onde ficarei.

- Estás a mexer-te depressa.

- Tenho uma longa lista de coisas para fazer. A propósito, gostaria de usar o teu nome como referência. Apenas em termos de carácter, claro. Deixo a parte financeira para os meus banqueiros.

- Vou fazer melhor ... Escrevo uma carta de recomendação e mando-a para o teu apartamento esta noite. Ah, mais uma coisa... lembra-te de que, seja para o que for, o consórcio está de pé. Nada te impede de te referires a ele, ou até mesmo de o usares durante as tuas deslocações. As formalidades ficam a meu cargo.

- É bom saber isso. Assim que tiver a certeza dos meus movimentos, telefono-te.

- Faz boa viagem, Max.

A ressaca havia desaparecido. Sentia-se relaxado e pronto para ter um dia ocupado com as coisas da lei. Agora que Mather ia partir, tinha esperanças de poder cortejar Anne-Marie Loredon com mais eficácia. sentia-se bem, e isso envolvia-o numa aura morna. Deu uma gorgeta de vinte dólares e uma palmada amigável no traseiro da pequena tailandesa que o atendeu, e saiu ao encontro do sol poeirento de Manhattan.

 

Leonie Danziger aparentava um ar enérgico e trabalhador. Estava já ocupada com o material de fundo para o artigo de Madeleine Bayard. Entregou-lhe duas pastas atadas com cordel.

- Esta aqui contém notas de entrevistas com o investigador mais importante do distrito policial. Não pode citá-las directamente, mas farão com que fique com uma ideia bastante clara sobre a versão que a polícia sustenta a respeito do crime. Os diagramas explicam-se a si mesmos e estão aí reproduzidos.

- Como é que conseguiu arranjar isto?

- Através da prática e de uma jornalista que trabalha por conta própria e que tem bastante interesse. Dado que a polícia de Nova Iorque tem uma secção de relações públicas, ela falou-lhes da próxima exposição, do artigo que você está a escrever para a Belvedere, do inevitável ressurgir de especulações pela parte da imprensa acerca de um crime não solucionado. Apresentaram-na a um jovem simpático que a levou até à esquadra. Ela pagou o almoço aos oficiais envolvidos no caso... voilá! Não estavam dispostos a ceder fotografias, mas falaram-lhe da Red Star Agency, que tinha um fotógrafo no local alguns minutos depois da polícia. Tudo isto custou-me trezentos e cinquenta dólares, e aceito o seu pagamento quer em cheque quer em dinheiro.

- Acho que merece um bónus.

- Também aceito isso. - Ele tirou do bolso um pequeno objecto embrulhado em papel de seda. Quando o desembrulhou, Leonie encontrou a pequena figura de um bailarino de tarantella feita num material antigo. Os olhos brilharam-lhe de satisfação, mas teve o cuidado de não exagerar nos agradecimentos.

É muito bonito... e você e muito atencioso, Max. Obrigada.

Ele passou um cheque de trezentos e cinquenta dólares e entregou-lho.

- Mando-lhe a cópia o mais depressa possível. Neste momento aquilo que quero é traçar o perfil de Madeleine Bayard tal como a vejo através dos quadros, daquilo que me chegou aos ouvidos, daquilo que foi a sua vida e morte.

- E desta vez - comentou Leonie em voz doce -, desta vez vai tratar de tudo com todo o carinho, não vai? Nada de trabalhos desleixados, nada de andar às voltas com um tema mal pensado?

- Claro que não, professora - troçou ele.

- A que horas da manhã é que parte?

- Vou no Concorde da Air France. Parto às dez e trinta. Chego à noitinha. Logo na manhã seguinte, e a pedido do Harmon Seldes, tenho um encontro com o Henri Berchmans em Paris. Depois disso vou para Zurique.

- Não me diga mais nada. Estou roída de inveja. Acredita que nunca atravessei o Atlântico? Sou a Miss Manhattan? Tudo o que ganhei investi neste apartamento e na educação própria de uma intelectual.

Ele tinha um qualquer cliché na ponta da língua e teve de se controlar para o impedir de sair. Em vez disso perguntou:

- Enquanto estou fora é capaz de trabalhar para mim como uma espécie de central de mensagens? Tudo coisas profissionais, claro.

- Faz tudo parte do serviço. A propósito, leia com bastante atenção o material da polícia, e depois estude as fotografias. São terreno propício a uma série de especulações.

- Traduza.

- Quer dizer que o drogado que cometeu o crime é uma máscara para o público. A polícia diz que sabe quem é o verdadeiro criminoso, mas não tem provas suficientes que permitam a sua prisão.

- Bastante tranquilizador.

- É, não é?

Durante alguns momentos fez-se um silêncio embaraçoso, depois, e ainda reservada e formal, ela estendeu-lhe a mão.

- Olhe por si, Max. Não sei quais são os seus planos, mas desejo-lhe toda a sorte do mundo.

- Tome conta de si também. Gostava apenas...

Ela colocou-lhe um dedo nos lábios para o impedir de falar.

- Se os desejos fossem dinheiro, os pobres eram todos ricos.

- Sim, pois... Tome conta de si. Eu telefono-lhe de Zurique.

 

Henri Charles Berchmans, o Velho, recebeu-o sem grandes cerimónias nas galerias Berchmans et Cie, perto do Quai des Orfèvres. Era domingo de manhã, uma dessas manhãs cinzentas e chuvosas em que Paris e os seus habitantes pareciam gastos, infelizes e mal encarados. Para além deles, as únicas pessoas que se encontravam na galeria eram três seguranças que se pareciam com robots de meia-idade. A entrevista teve lugar num escritório desarrumado, despido de qualquer ornamento, o qual, e durante a semana, devia ser ocupado por um funcionário pouco importante.

Berchmans, um indivíduo pequeno e atarracado, de cabelo cinzento, olhos duros e mãos que nunca descansavam, transformara a rudeza numa obra de arte. Mather, cujo voo sofrera um atraso de duas horas em Nova Iorque, cuja reserva no hotel, e devido ao primeiro facto, fora cancelada, tendo sido forçado a passar a noite num quarto não muito maior e pouco mais limpo que um armário de vassouras, estava tudo menos bem disposto. A primeira pergunta de Berchmans, feita em francês, foi deveras simpática.

- Bom, Mr. Mather, que tem para me dizer?

- Nada, Mr. Berchmans. Estou a fazer-lhe esta visita a pedido de Harmon Seldes. Pus-me à sua disposição para isso. Estou à espera que me faça uma pergunta que justifique esta inconveniência.

- Muito bem. - Berchmans não se mostrava minimamente perturbado. Porquê Rafael? Por que não Caravaggio, Bellini, Boldini? Rafael está arquivado e arrumado. O código está completo. As referências que encontrou são setas que não levam a lugar nenhum. Você é bastante esperto para o saber.

- Se eu fosse esperto - respondeu o outro -, não estaria em Paris a perder esta manhã de domingo. Sou um paleógrafo. Foi por acaso que encontrei essa referência num livro de registos florentino. Dado que sou um estudioso, referi o assunto a uma revista de entendidos. Harmon Seldes disse-me que tinha feito um qualquer contrato consigo. Eu não faço parte dele. Não pedi para fazer parte. Estou a prestar-vos um favor, a si e a Seldes, e acho que você é muito mal educado. Assim, e se não se importa, vou-me embora.

- Espere! - Berchmans levantou uma mão sapuda para o reter. - Sou mal educado. Você está zangado. Voltemos ao princípio. Esses livros de registo... são verdadeiros?

- Sabe muito bem que sim.

- Eu não sei. O Seldes disse-me que eram.

- Não acredita nele?

- Gosto de estar atento.

- Esse é um problema seu. Agora, e com a sua licença...

- Fiz um acordo com o Seldes. Ele não lhe ofereceu uma parte no negócio?

- Rejeitei-a desde o primeiro dia.

- Você é parvo.

- Tenho juízo suficiente para não me meter em paradas demasiado altas. - E seria capaz de rejeitar uma boa gorjeta?

- Isso dependeria de quem ma desse.

- Talvez o dono. Não ia conseguir nada melhor, pois não?

- A menos que o jockey estivesse liquidado e o treinador numa qualquer situação crítica.

- Mr. Mather, o senhor está a ser insultuoso.

- Não, Mr. Berchmans, o senhor é que o está a ser. Primeiro tentou irritar-me, agora está a tentar comprar-me. Com que fim? No dia em que o conheci, disse a Harmon Seldes que as probabilidades de se encontrarem os quadros eram de um contra cem. Não tenho nem tempo, nem dinheiro nem energia para me juntar às buscas. Comprometi-me mesmo a passar toda e qualquer informação extra que conseguisse obter. Mas pronto, acabou-se! Tenho em vista alguns projectos interessantes. Ando a bater o terreno para uma galeria nova. Farei pequenos negócios na parte mais fraca do mercado, e continuarei com o meu programa de estudos.

- Talvez eu consiga arranjar-lhe alguns negócios. Venha.

O velhote pegou no braço de Mather e, com pouca delicadeza, levou-o para fora do escritório, fazendo-o entrar num armazém. Tirou uma tela de um cavalete e estendeu-o na direcção de Mather.

- Conseguiu identificá-la?

Ele observou o quadro durante alguns momentos, e depois emitiu um parecer algo hesitante.

- Tenta ser Frank Hals... mas não o é.

- Por que razão não o é?

- O fundo é demasiado claro, o rosto está mal desenhado, e o cabelo não encaixa aqui. O fato está bastante elaborado, mas as rendas estão fracas.

- Consegue identificar o pintor?

- Não. Posso saber a finalidade do exercício?

- É apenas para saber quais os conhecimentos que possui.

- Quer esclarecer-me quanto ao pintor?

- Não. Só lhe posso dizer que é um restaurador bastante bom, um excelente copista, e que tem trabalhado para mim.

- Confesso que já vi melhor.

- Onde?

- Niccoló Tolentino. Este Verão vou levá-lo a Nova Iorque para fazer algumas palestras.

- Também é empresário, Mr. Mather?

- Não. Sou apenas um estudioso que testa os talentos que possui em novos campos.

- Nesse caso espero que me mande um convite para ver e ouvir o Signor Tolentino.

- Com todo o prazer. Mais alguma coisa?

- Sim. Fique com o meu cartão. Telefone-me sempre que quiser, aqui ou em Nova Iorque.

- É muito amável da sua parte.

- Mr. Mather, eu nunca sou amável. É mesmo raro ser educado. Sou comerciante. O meu único objectivo é o lucro. Está fora de questão o facto de o conseguir negociando com coisas belas. Não posso comer um Poussin. Não é um Cézanne que vai alimentar os meus cavalos nem pagar ao jockey ou ao treinador. É o lucro que faz tudo isso. Tenho a impressão de que você me poderá render alguma coisa, e é só por essa razão que estou preparado para o ajudar. No caso dos Rafaéis ou em qualquer outro assunto.

- Já discutimos os Rafaéis. São um assunto entre si e Harmon Seldes.

- Por que razão é tão obstinado, Mr. Mather?

- Porque vocês andam a brincar comigo - brincadeiras de velhos, brincadeiras de ricos. Atiram-me todo o tipo de isco e ficam à espera para ver qual deles mordo. Estou sujeito à corrupção como qualquer outro homem, mas vocês ainda fazem que me torne honesto. Agora tenho de ir. Parto para Zurique às três e trinta. Volto a pé para o hotel.

- Vai ficar ensopado antes de lá chegar. Não seja tão escrupuloso. Deixe-me ser eu a levá-lo.

- Muito bem.

- Ora é mesmo assim. - Berchmans soltou um riso abafado e estendeu a mão. - Já se está a sentir melhor. Sejamos amigos. Gosto de indivíduos fortes que saibam lutar por si mesmos. é também essa a qualidade que produz os bons artistas. É preciso ser duro para sobreviver à disciplina, aos falhanços e às rejeições. Seldes contou-me que você anda a trabalhar para ele. Mantém outras ocupações?

- Aceitei trabalhar como agente de uma nova galeria de Nova Iorque. A dona é a filha de Hugh Loredon... conhece o Hugh, não é verdade?

- Claro. Há muitos anos. A filha dele é sua amiga?

- Estivemos juntos em Florença.

- E qual vai ser o vosso primeiro risco?

- Uma exposição póstuma do trabalho de Madeleine Bayard. Duvido que tenha ouvido falar dela: casada com um advogado de Nova Iorque, assassinada no estúdio.

- Acredita se lhe disser que a conheci muito bem, Mr. Mather? Comprei três dos seus quadros por intermédio do meu amigo Lebrun. Encomendei-lhe uma outra tela, mas ela morreu antes de a ter acabado. Era uma bela mulher, uma grande artista.

- Tem as telas aqui em Paris?

- Não, estão em Nova Iorque.

- Consideraria a hipótese de as expor com o resto da colecção? Seria bom para ambos.

- Talvez. Quem é o dono da exposição?

- O marido, Ed Bayard.

- Às vezes faço negócios com ele. Tem uma colecção interessante, mas, como o dono, fragmentada, idiossincrática.

- A galeria de Miss Loredon é também a representante dessa colecção.

- Nesse caso, Mr. Mather, o senhor tem companheiros respeitáveis.

- Gosto de pensar que sou um colega com utilidade.

- Tenho a certeza de que é, mas claro está que não é especialista em belas-artes.

- De maneira nenhuma. A minha especialidade são os manuscritos. Fiz alguns cursos secundários em história e avaliação de arte. A minha tradição é o humanismo, e foi por esta razão que vivi em Florença com todo o conforto. Importava-se se nos fôssemos embora agora? Tenho de tratar de outros assuntos antes de partir.

- Com certeza.

Enquanto se dirigiam para o hotel, Berchmans jogou a sua última cartada estratégica.

- A família Palombini... Presumo que foi o seu arquivista?

- Sim.

- Não conheço a sua colecção de arte.

- Não se encontra entre as mais importantes. Para ser preciso, ainda há poucos dias recebi uma carta de Claudio Palombini, na qual ele dizia que, muito embora a família comprasse algumas peças boas de vez em quando, e enquanto facto histórico, não passavam de filisteus. Escrevi-lhe contando as novidades. O comentário foi de que nunca ouvira falar dos quadros, mas que gostava bastante de os ter. Usá-los-ia como moeda.

- Vê - disse Berchmans alegremente -, não sou assim um velho com tão má índole, pois não? O seu antigo patrão também era assim.

- Nunca foi meu patrão - respondeu ele com frieza. - A tia dele era dona da casa. Fomos amantes até ao dia em que ela morreu.

- Requiescat. - O francês benzeu-se à pressa.

- Amén - retorquiu o outro.

- Até à próxima. - Era Henri Charles Berchmans.

 

Nas vertentes de Sonnenberg, debruçadas sobre a cidade e o lago de Zurique, um espírito empreendedor construíra um bloco de apartamentos destinado ao uso dos homens de negócios que por ali passavam. Cada apartamento tinha a sua própria garagem. A entrada estava um porteiro, havia uma criada para cumprir o serviço diário, e um pequeno mas confortável restaurante com cozinha típica.

Foi aqui que Mather decidiu alojar-se enquanto permanecesse em Zurique, de forma a ter casa e endereço para uso futuro. Precisava de um local só para ele, onde pudesse espalhar os seus papéis à vontade sem a constante intromissão do pessoal do hotel. Para evitar estas situações, o construtor equipara os apartamentos com um pequeno sistema de segurança, que era razoavelmente eficaz. Alugara um Mercedes numa das agências do aeroporto, facto que lhe conferia mobilidade.

O restaurante fornecia refeições de manhã, a meio da tarde e à noite, e mantinha-lhe recheada a prateleira das bebidas. Não tinha problemas de comunicação: era fluente em francês e italiano, possuía razoáveis conhecimentos de alemão. Quanto ao resto, alugara o apartamento em nome da Artifax, o que lhe conferiu anonimato. Os suíços eram um povo discreto e disciplinado, que não metia o nariz onde não era chamado e que esperava que os seus visitantes fizessem o mesmo.

Tendo em vista aquilo que lhe interessava, Mather tinha de conduzir os negócios com muita cautela. Primeiramente, tinha de estabelecer contactos com as velhas casas de Zurique e dos outros locais onde ainda se movimentavam grandes somas de dinheiro nas moedas fortes da Europa. Ao contrário do que se passava na América, estes locais não vinham anunciados nos jornais locais Aqui, a discrição era a alma do negócio. Serviam um mercado restrito onde se aceitavam bem as velhas fortunas, mas se desconfiava das novas. Não se limitavam a conhecer todos os "von" e "de" da Europa, mas podiam dizer quase que com a máxima precisão o que cada um destes títulos valia em dinheiro.

Insinuar-se neste grupo exclusivista requeria alguma diplomacia. As apresentações ficariam a cargo de Alois Liepert e Gisela Mundt. O facto de ser um estudioso conferia-lhe autoridade. Palombini, Berchmans, Harmon Seldes e a Belvedere eram referências de peso. O facto de ter acesso ao meio milhão de dólares dos fundos do consórcio também não era de pouca monta, e a sua ligação com uma galeria nova-iorquina, nova e bem relacionada transformavam-no num comprador interessado em todo o tipo de artigos.

Quando estivesse em condições de fazer com que os quadros desaparecidos entrassem no mercado, queria ser, senão um animal indígena, pelo menos um que estivesse adaptado à vida na selva. Veio-lhe à memória a imagem de Berchmans, o Velho, proclamando o evangelho do predador: "o lucro é o meu único objectivo. Está fora de questão o facto de o conseguir negociando com coisas belas.”

Berchmans era agora o elemento novo que ocupava todos os seus cálculos. Comprara e encomendara trabalhos a Madeleine Bayard. Isso já era uma garantia de valor. Se consentisse em expor as telas que comprara a título de exibição e não para venda, então tudo o que estava exposto seria vendido de imediato. O homem possuía uma autoridade enorme. A sua opinião era seguida por qualquer negociante da cidade.

Claro que o pior era que Berchmans sabia melhor que ninguém o valor que o seu nome possuía. Seria interessante observar o quanto ele cobraria pelo privilégio de o usarem. E tudo isto levava a perguntar se não haveria uma qualquer menção a Henri Charles Berchmans, o Velho, nos papéis de Madeleine Bayard.

Mather puxou das fotografias e dos relatórios da polícia e começou o trabalho de reconstruir metodicamente o assassínio.

Encontrou feita a maior parte da tarefa. Leonie Danziger transformara aquele material desconexo numa narrativa coerente, telegráfica quanto ao estilo, mas clara em todos os pormenores essenciais, de forma a não haver possibilidades de se confundirem factos concretos com especulações.

 

Você conhece o local. Tem de compreender a forma como era utilizado durante o tempo em que Madeleine Bayard o ocupou. O primeiro piso estava vazio. Ela apenas usava os dois andares superiores dado que a luz era melhor. Havia - e continuava a haver - duas entradas para o edifício. A entrada das traseiras tem apenas uma porta, que dá para uma zona onde se faziam carregamentos. A da frente tinha uma campainha e um amplificador. Podia ser aberta de qualquer um dos pisos superiores. Chegava-se a estes subindo a escada, ou então usando um elevador barulhento.

Olhe para a primeira fotografia e veja a forma como era utilizado o espaço. No segundo piso temos uma série de cavaletes para servirem de suporte a telas usadas, ou ainda por usar. Há prateleiras para o papel, materiais de desenho, aguarelas e livros, uma mesa de trabalho com uma caixa possuidora de um dispositivo para orientar um instrumento cortante, a qual servia para fazer esticadores. Existe também um estirador para a realização de esboços e desenhos geométricos, duas cadeiras e um tamborete destinado aos modelos.

A segunda fotografia mostra o terceiro piso. Vê-se uma cama enorme que era coberta com lençóis, cobertores, e uma colcha de retalhos. De acordo com a polícia - e você mesmo pode confirmar esta afirmação tanto a cama como a colcha aparecem em vários quadros. Há um aparador contendo chávenas, pratos ornamentais, objectos de vidro verde, encarnado e azul, tijelas - o tipo de coisas que o artista usa para compor uma natureza morta. Temos um frigorífico contendo coca-cola, soda e vinho branco, bem como uma garrafa de uísque (apenas meio cheia), e uma garrafa de bourbon intacta. Tanto o cavalete como o banquinho do modelo se encontram colocados de forma a receber luz, tanto das janelas da frente com das de trás. Há-de reparar que se encontra uma tela no cavalete. Foi preparada com um fundo azul e ocre onde se destaca um torso nu. A polícia ainda a tem em seu poder, bem como um certo número de esboços e estudos. A maior parte dos modelos que aparecem nestes trabalhos já foi identificada. Alguns são provenientes de uma agência no Soho, outros eram achados no café Negroni's, que é o ponto de paragem dos modelos, artistas e espécies afins que frequentam a zona.

Agora dê uma olhadela à fotografia número três. Mostra-lhe aquilo que Bayard descobriu e que a polícia teve de voltar a montar, pois ele desmanchara o cenário ao abraçar e embalar a mulher assassinada. Verá que o corpo está enrolado na roupa de cama como se de uma múmia se tratasse. Está deitado de costas. Foi apunhalado através dos lençóis e dos cobertores, de forma que apenas a cama está em desordem e com sangue.

Por debaixo de todos os cobertores o corpo estava nu. As roupas de Madeleine estavam arrumadas nas costas de uma cadeira. Não havia qualquer sinal que revelasse abuso sexual, nem marcas de que se tivesse unido com um homem. A vagina não revelava vestígios de sémen. Tanto o sangue como o estômago continham álcool e vestígios de um calmante que ela andava a tomar a conselho do médico. Parece que as coisas se passaram da seguinte maneira: o assassino encontrou-a adormecida, embrulhou-a na roupa e apunhalou-a.

A arma não foi encontrada. Os relatórios médicos descrevem-na como sendo comprida, estreita, afiada, de dois gumes - em suma, uma adaga ou qualquer faca de papel semelhante. Os golpes foram desferidos de cima, enquanto a vítima estava deitada de costas. Ao todo perfaziam três, e todos lhe atravessavam o coração. Mais uma vez os relatórios médicos descrevem esta violência como "medida de precaução", e não como fúria de mutilar.

Isto levou a polícia a perguntar-se a respeito do porquê da utilização de uma faca. Por que não uma forma de execução mais simples e mais limpa? A explicação mais simples parece apontar para o facto de se tratar de uma arma que já ali estava e que o assassino levou consigo.

Passe agora para as número quatro e cinco. São fotografias de pormenores. A mala de Madeleine fora esvaziada e os objectos espalhados no aparador. Para além do dinheiro e, eventualmente, de uma agenda, nada mais desaparecera. Em ambos os pisos os armários tinham sido esvaziados, e tudo o que continham estava no chão. Os livros tinham sido abertos antes de os terem deixado cair. De acordo com a polícia, tudo isto implica uma busca apressada, mas não violência nem vandalismo. Apesar da pressa, não se viam impressões digitais. Toda a situação fora premeditada. Mesmo assim a polícia inventou uma história a respeito de um viciado à procura de dinheiro para a droga. Admitem que tiveram de ser bastante cautelosos para vender esta informação à imprensa, sempre à espera de que esta notícia incorrecta tomasse o assassino demasiado confiante e desajeitado.

Também admitiram que aquilo que realmente os interessava era o que lá não estava: impressões digitais -, provas de violência sexual, a arma do crime, e, o mais simples de tudo, uma agenda ou um livro de números de telefone. Madeleine Bayard passava metade do tempo no estúdio. As contas de telefone eram enormes. Será que sabia todos os números de cor? Alguns dos modelos que trabalharam para ela declararam que a tinham visto usar um livro desse tipo e que andava com ele na mala.

Corroborando as informações de alguns amigos que haviam visitado o estúdio, declararam também que alguns desenhos que haviam estado pendurados nas paredes tinham desaparecido. Os desenhos foram descritos como possuindo "conteúdo sexual". Bayard declarou que talvez os tivesse visto, mas que não os tinha com ele.

Tudo isto nos conduz até Bayard. Durante muito tempo, e apesar de ter um alibi, foi considerado o principal suspeito. A primeira coisa que se alegou contra ele foi que, como advogado, deveria saber que não podia mexer em nada. A polícia ficou aborrecida com a instabilidade revelada pelo acto. Para piorar as coisas, Bayard não fez qualquer segredo acerca das infidelidades da mulher e da sua própria infelicidade, mas recusou-se a nomear amigos e conhecidos que haviam sido seus amantes.

Neste ponto específico o seu testemunho foi claro e repetitivo: "sei que ela tinha outros parceiros sexuais. Nunca procurei saber quem eram. Nunca a vi na cama com ninguém. Ela nunca mencionou nomes. Tudo o que vos pudesse dizer a este respeito seria coisas que ouvi contar e suspeitas e, em ambos os casos, tudo estaria misturado com raiva. Não posso fazer isso." É claro que o seu alibi nunca foi desfeito. Segundo a polícia ele já não é mais suspeito. No entanto, temos uma frase bastante perturbadora que um dos investigadores deixou escapar: "Temos o perfil de um homem capaz de ser violento - até mesmo extremamente violento.”

A nossa investigadora perguntou então se a polícia identificara outros suspeitos reais. Não responderam de forma directa. Começaram por dizer que nos arredores do estúdio a vida de Madeleine estava bastante bem organizada. Pintava de manhã para conseguir luz. Por volta do meio-dia, ia até ao Negroni's beber um café e comer qualquer coisa. Ficava a conversar com quem lá estivesse. Às vezes pegava num qualquer modelo masculino ou feminino que lhe interessava, levava-os consigo, fazia uma série de estudos e pagava-lhes em dinheiro. Por vezes ocorriam episódios sexuais por ela encenados. Madeleine tinha tanto de voyeur como de participante. Gostava de sexo tanto com homens como com mulheres, mas nunca teve nenhum caso importante com as suas amizades da zona. É evidente que a sua vida emocional era vivida num outro plano e com outras pessoas. Por exemplo, todos os modelos entravam pela porta da frente. Contudo, o fecho da porta das traseiras estava bem oleado e era usado com frequência. Os carros podiam estacionar na rampa das traseiras sem que dessem nas vistas, e sabe-se que o faziam.

Por vezes, mandava chamar um táxi depois do meio-dia e saía da zona. Noutras ocasiões ficava no estúdio, mas pregava sempre uma nota na porta da frente: "Disponível apenas a partir das cinco e meia da tarde.”

A nota ainda se encontrava na porta quando Bayard lá chegou no dia do crime. Tanto a porta da frente como a de trás encontravam-se ainda trancadas. Ninguém fora visto a entrar ou a sair do edifício usando a entrada principal.

Interrogaram todos os seus amigos. Alguns deles admitiram ter tido breves casos com ela, mas a polícia foi incapaz de apresentar provas contra qualquer um deles.

E pronto, Max, o resumo de tudo isto é o seguinte: uma senhora com talento não encontrava em casa satisfação para os seus desejos sexuais, foi à procura dessa satisfação e acabou na cama com um assassino. É um velho cliché envolto em trajes de artistas e passado numas águas-furtadas da Boémia. No entanto, e de uma forma ou de outra, há muitos de nós que estão envolvidos nisto, e temos os olhos postos em si para ver se nos esclarece as coisas. Ao fim e ao cabo, você também é um boémio - um erudito cigano que é bem capaz de ter pressentimentos que nos são negados a todos.

Telefone-me se precisar de mais informações - e faça bom uso destas.

Danny D.

 

Quando acabou a leitura Mather deixou-se ficar durante muito tempo com o queixo entre as mãos, a olhar para o vazio. Havia algo no tom em que a carta fora escrita que o deixava pouco à vontade, isto apesar de não fazer a mínima ideia do que poderia ser. Então, mecanicamente, voltou a colocar os papéis e as fotografias dentro do sobrescrito e colocou-o no cofre. Olhou para o relógio: eram onze e trinta. Nova Iorque estava seis horas atrasada. Ela deveria estar a acabar de trabalhar, pronta para tomar uma bebida. Pegou no telefone e marcou o número.

O telefone tocou e tocou. Ele ficou como que hipnotizado pelo som durante três minutos. Depois, morto de cansaço, pousou o auscultador e começou a preparar-se para ir para a cama.

 

No seu primeiro encontro com Liepert e Gisela Mundt, Liepert deu-lhe um bom conselho.

- Reparei que considera os intermediários e leiloeiros de Zurique como contactos desejáveis. Apesar disso, acho que deve ser bastante cauteloso na sua primeira escolha de associados. Se me é permitido dizê-lo, acho que você está mais em sintonia com a Europa que a maior parte dos americanos. Penso que será melhor negociar com aquelas companhias em que o comando passou dos mais velhos para os mais novos, os que estão em contacto com as novas modas, as novas fortunas, e que têm uma visão generalizada do mercado.

- Faz bastante sentido.

- Deixe-me fazer ainda um pouco mais. Você está bem recomendado, bem relacionado. Isso tem valor numa cidade conservadora como Zurique. Contudo, não quero que dissipe esse valor oferecendo-se em demasia, ou mostrando-se demasiado ansioso por negociar.

- Volto a estar de acordo. Quais as suas sugestões a respeito do nosso procedimento?

- Vou organizar um pequeno jantar em minha casa. Convidarei alguém de banco, dois intermediários, dois especialistas, cada um no seu próprio ramo, e um leiloeiro, suíço, claro. É assim que fazemos amigos e não rivais. Deixe-me desde já dizer-lhe que tenho os meus interesses no negócio. O leiloeiro é meu cliente. Os outros conheço-os devido a negócios, mas o banco estará interessado em tê-los como clientes. Para mim será um exercício diplomático bastante agradável com vista a criar boa-vontade. Para si será um trampolim através do qual saltará para a piscina sem qualquer esforço... É assim que se fazem negócios em Zurique. Sabe o que se diz sobre os bancos de cá. Têm coronéis suficientes para governar a América do Sul!

- Nunca tinha ouvido isso.

- É verdade. Os oficiais que gerem os bancos fizeram juntos o serviço militar, de forma que é como bons amigos que sobem juntos os degraus que levam ao cimo. Vou telefonar à minha mulher para arranjarmos uma noite.

Depois de uma rápida troca de palavras em Schweitzerdeutsch, voltou-se para Mather e perguntou:

- Quarta-feira?

- Está óptimo.

- As sete e meia ou às oito. Se quiser levar alguém, está desde já convidado a fazê-lo.

- Viajo sozinho.

- Nesse caso permita-me que lhe sugira convidar a Drª Mundt. Os outros levarão as mulheres. Como deve compreender, um jantar familiar será bem mais fácil.

- Tem a certeza de que não lhe causará transtorno, Dr. Mundt?

- De maneira nenhuma. Mr. Mather.

- Obrigado. Agora deixem-me fazer-lhes uma pergunta. Por acaso terão meios para encontrar um casal que vive no Brasil? Ela é italiana, ele é alemão naturalizado brasileiro. Casaram-se em Milão em 1947, e depois partiram para o Rio de Janeiro.

Liepert olhou-o de revés durante breves instantes.

- Posso perguntar-lhe o motivo que o leva a fazer essa pergunta?

- Tem a ver com a autenticação dos quadros. A mulher, Camilla Dandolo, foi uma cantora de ópera bastante conhecida, bem como a amante de Luca Palombini. Pensa-se que o marido foi o comandante das forças S. S. que ali estacionaram durante a guerra. Interessa saber se estas telas, ou qualquer outro objecto de arte dos Palombini, foram dadas à mulher como recompensa, ou então ao marido, como contrapartida por qualquer tipo de protecção.

- Vai ter de desculpar a minha própria questão, Mr. Mather.

- Por favor, diga.

- É judeu?

- Não. Não estou certo de entender plenamente o que quer dizer com isso, mas não, não sou judeu.

- É que às vezes coisas deste tipo vêm à baila por outras razões: tentativas de vingar o desaparecimento de parentes, crimes de guerra, recuperação de objectos levados pelos nazis. Temos de ter a certeza antes de intervir.

- Nesse caso deixe-me ser claro. - Mather meteu a mão na pasta e tirou de lá as provas dos artigos para a Belvedere, junto com as cartas de Guido Valente e Claudio Palombini. - Leia isso e já fica a saber o que quero.

Liepert leu os artigos sem grandes pressas. A medida que acabava as páginas passava-as a Gisela Mundt. A expressão desta descontraiu-se até esboçar um sorriso. Quando acabou de ler enrolou os papéis e entregou-os antes mesmo de falar.

- Bom, parece que temos um cliente bastante distinto. Os convidados do Alois também vão ficar interessados nesse material. Entretanto, posso ocupar-me dos brasileiros. Está claro que devem ser bastante idosos. Não queremos incomodá-los indevidamente, e é evidente que nem se põe a hipótese de lhes acenarmos com grandes somas de dinheiro. Por que razão não publicamos um anúncio? "Conhecido estudioso faz trabalho de pesquisa sobre as divas do La Scala. Ficará reconhecido se lhe derem informações sobre a carreira e o actual paradeiro de Camilla Dandolo, etecetera, etecetera ... " Há uma agência em Zurique que trata deste tipo de coisas.

- É isso mesmo. - Mather estava tão entusiasmado como um rapazinho da escola. - Quem sabe o que pode sair daí?

- Tem algum do seu material de pesquisa consigo?

- Todo. Também vou a Itália. Tenho de devolver o material que me emprestaram. Possuo também algumas peças que tenciono levar a leilão aqui.

- Por que razão não as mostra durante o jantar? - sugeriu Liepert. - Sei que os nossos convidados ficariam interessados.

- Tem a certeza?

- Absoluta. São todos jovens e entusiastas.

- Nesse caso é isso que farei. Se posso dar-me ao luxo de insistir... a próxima pergunta é importante: quanto aos aspectos confidenciais, sei que entre vocês e eu estão garantidos. Mas entre mim e os amigos que vou encontrar em sua casa?

- Existe a Ehrenwort. - Alois Liepert foi bastante firme. - A palavra de honra. Vivemos num país pequeno, e, em muitos aspectos, esta cidade é antiquada. Se alguém deixar de ser de confiança, está fora dos negócios.

- É agradável sabê-lo - disse Mather. As palavras saíram-lhe junto com um sorriso de arrependimento pela honradez perdida. Lá por dentro sentia-se aflito e admirado por não ser atingido por um raio, ou por as palavras não se transformarem em chumbo derretido à medida que as pronunciava. No entanto, e se o silêncio era de ouro, Liepert era eloquente.

- Mesmo assim, meu amigo, você é um estranho e nós temos de o proteger. Sendo assim, aconselho-o a seguir um protocolo rígido. Você vai e vem. Fala de negócios. Explora possibilidades. Mas faz sempre saber que o único documento susceptível de manter compromissos é uma carta da minha parte, isto enquanto seu representante legal. O seu alemão é excelente. Imagino que seja igualmente fluente em francês e italiano. No entanto, nunca se esqueça das subtilezas legais de uma língua estrangeira. Assim, nada de apertos de mão, nada de "meu caro", tal como os ingleses fazem. Diga apenas: "Deixo que, quer Alois Liepert, quer Gisela Mundt, lhe escrevam a elucidar sobre as coisas assim como a confirmá-las." Não se esqueça das palavras... auflklären und konfirmieren.

Vou gravá-las a ferro e fogo - riu ele. - Aufklären und konfirmieren. E só vocês o podem fazer por mim. Mais umas coisinhas que tenho aqui na lista: vocês podem receber dinheiro por mim e pelas companhias?

- Sim, podemos recebê-lo e pagá-lo ao seu banco. Não podemos, nem devemos, mexer nas suas contas actuais. Se quiser pode deixar-me cerca de cinco mil dólares para cobrir as despesas.

Mather reviu rapidamente os seus documentos. Faltava apenas um ponto para ser discutido com o advogado, mas era precisamente aqui que ele mais precisava de ser instruído com clareza.

- Representações que eu faça, ou que me façam, no que respeita à autenticidade, propriedade e proveniência dos objectos oferecidos para venda... Parece-me ser dose para leão.

- É mesmo uma grande dose - concordou Liepert -, e se não a digerir convenientemente, é bem capaz de ter de cumprir pena. Bom, façamos as coisas com ordem. Representações que lhe sejam feitas enquanto comprador: peça-lhes que as confirmem escrevendo-me. Eu irei investigar e aconselhá-lo-ei de acordo com os resultados. Pode atrasar o negócio. Por vezes pode até fazê-lo perder algum, mas é o único procedimento seguro. Você demonstrou estar a fazer as coisas de acordo com a lei? Nesse caso, se for cometido algum erro ou praticada alguma fraude, estará sempre a coberto.

- É consolador.

- O meu pai era juiz. Costumava dizer o seguinte: "Há sempre conforto para o homem escrupuloso." Levei bastante tempo a compreender o que ele queria dizer com isto. Passemos agora à segunda parte da pergunta, ou seja, representações que sejam feitas por si. Terá sempre de comprovar o título e o direito de posse e de venda. Quanto à proveniência... na Suíça, e dado que existe entre nós uma grande tradição de tráfico além fronteiras, encontra sempre uma vasta área de tolerância legal. Está claro que, só por si, este tráfico dá menos lucros. É por isso que o nosso governo não pergunta de onde as mercadorias vêm. Responde com bastante relutância às representações oficiais que investigam actividades criminosas, mas recusa-se terminantemente a administrar os regulamentos fiscais e aduaneiros dos países vizinhos. E assim acabará por descobrir que nos negócios de arte não só é bem aceite uma certa tolerância, como é mesmo necessária. Não será obrigado a declarar que um italiano rico lhe vendeu um quadro que fez entrar ilegalmente nas nossas fronteiras. Nem sequer é obrigado a dizer o seu nome, isto desde que o comprador se contente com o facto de você ser o fornecedor de mercadoria em ordem. Mas mais uma vez entra em acção o nosso protocolo. Os seus clientes não levarão muito tempo a apreciar a forma sábia como procede. Está claro que tudo depende daquilo que me revelar. Eu preciso de ter toda a confiança para acreditar naquilo que me disser.

A conferência chegou ao fim dez minutos depois, e Mather desceu a Bahnofstrasse para ir ao encontro do gerente do seu banco, levantar algum dinheiro, depositar a pasta de Hugh Loredon, e tocar durante, alguns segundos a lona grosseira e fechada a cera que continha os Rafaéis dos Palombini.

Precisava desse toque para ganhar coragem que lhe permitisse enfrentar o jogo no qual eles eram o prémio. As coisas só a ora tinham começado. Sabia as regras na perfeição. Era aceite no salon privé onde não havia limite para os lances e não se aceitavam mercadores. Agora precisava de mostrar aos que governavam o jogo que era digno deles, pois, se não os pudesse amansar, seriam eles a depená-lo como a uma galinha e a comê-lo ao jantar.

 

Quarenta minutos mais tarde, em Paris, Henri Charles Berchmans punha em ordem os seus recursos estratégicos e delineava o seu plano de acção. Possuía inúmeros recursos, o plano era global, e tudo isto porque Berchmans não se limitava a ser um vendedor de objectos de arte bastante caros. Antes do mais, ele recolhia informações e lidava com elas através de uma vastíssima rede de agentes e clientes.

Fazia avaliações para bancos e companhias de seguros sediadas em todos os países importantes. Dava conselhos a respeito da formação e desmantelamento de colecções. Tal como os banqueiros de Londres e de Zurique fixavam o preço diário do ouro, assim ele ajudava a fixar os preços. No que dizia respeito ao controlo do fluxo da mercadoria era tão cuidadoso como os comerciantes de diamantes da África do Sul, pois assim impedia que o seu valor descesse de mais. Se o mercado dos leilões não andava muito bem, intervinha calmamente dando alguns conselhos, ou então negociando uma qualquer venda prévia, a qual era anunciada como tendo valores astronómicos. Os peritos comentavam que se ele comprara um quadro por aquele preço era porque ele valia. Era assim que o património de Berchmans aumentava de valor, ao passo que comerciantes e leiloeiros o abençoavam.

Com os banqueiros seguia uma política expansionista, Vendia-lhes quadros a preços elevados para as salas de directoria. Organizava exposições patrocinadas por eles. Encorajava-os a aceitar hipotecas tendo como contrapartida peças singulares ou colecções inteiras. Os argumentos que utilizava eram bastante simples:

- Avaliarei o material cerca de quarenta por cento abaixo do seu custo real. Todos os trabalhos por mim avaliados têm como garantia a certeza de que os comprarei pelo preço que sugeri. Contudo, se têm de executar a hipoteca, aconselho-os, no momento oportuno, a levarem as peças a leilão e a fazerem um lucro de vinte por cento.

Com as companhias de seguros as coisas funcionavam ao contrário.

- Farei avaliações altas de forma a que vocês consigam bons prémios. Se a obra for destruída é claro que vão ter de pagar bastante. Se for roubada, é certo que mais tarde ou mais cedo acabarei por saber que a estão a oferecer no mercado negro, e, melhor que ninguém, saberei qual a mais baixa oferta que podem fazer para que vos seja devolvida. Se estiver estragada, posso arranjar-vos os melhores restauradores do mundo que trabalharão mediante preços razoáveis.

Resumindo: Henri Charles Berchmans, o Velho, era uma espécie de banqueiro que negociava num mercado limitado, com uma concorrência fortemente controlada. Tal como qualquer banqueiro, dependia de informações diárias bastante precisas. Mantinha bases de registo de dados em Paris e em Nova Iorque. Os seus escritórios estavam unidos por uma rede de computadores. Os empregados que considerava mais preciosos eram aqueles que nunca iam às salas de venda nem bajulavam os clientes, mas que, pelo contrário, passavam o tempo a reunir informações sobre mortes, casamentos, divórcios, falências e homologações de testamentos.

Por isso, enquanto Max Mather, o mais novo no negócio, descia a Bahnhofstrasse, Henri Charles Berchmans compunha uma mensagem urgente destinada a todos os seus correspondentes.

 

A informação fornecida Por Mather e Seldes é correcta. Assim, procuramos localizar dois retratos representando mulheres da família Palombini, ambos da autoria de Rafael, bem como cinco esboços. Não existem referências a estes trabalhos em nenhum catálogo. Existe uma possível razão para isto: os Palombini nunca foram grandes coleccionadores, e é provável que não tenham dado qualquer importância às obras. Como não existe qualquer descrição dos retratos, creio que, e através dos séculos, estas telas tenham sido atribuídas a outros artistas... tal como, por exemplo, “A Dama do Unicórnio” -, a qual foi atribuída a Perugino, e o "Retrato de Elizabeth Gonzaga", o, qual, e numa primeira fase, se pensou ser da autoria de Mantegna, para mais tarde ser atribuído a Giacomo Lancia, entre outros. Uma outra possibilidade que foi sugerida numa carta endereçada a Max Mather por um bibliotecário de Florença, é de que os trabalhos tenham sido entregues a um oficial S. S. como resgate ou forma de protecção. Por favor, peçam aos nossos contactos no Brasil que nos mandem informações sobre Franz Christian Eberhardt, que se casou com uma tal Camilla Dandolo em Milão, decorria o ano de 1947, tendo depois partido para o Rio de Janeiro. Os documentos de Eberhardt dizem que se trata de um cidadão brasileiro, mas é claro que pode ter adquirido a cidadania brasileira depois da guerra. A nossa seguradora e os contactos que temos nos bancos podem ajudar bastante, Peço informações com brevidade.

 

Telefonou a Seldes por volta do meio-dia, e este, completamente ensonado, queixou-se de que em Nova Iorque eram seis da manhã. Berchmans ignorou o protesto.

- Esse tal Mather. Já o conheci. Gostei dele. Você disse-me que se tratava de um académico ocioso. É bastante mais que isso. Pode ser um vadio, mas também pode ser bastante útil...

- Então use-o, Henri, dou-lhe a minha bênção. Que o levou a acordar-me?

- A exposição de Madeleine Bayard, Mather sabe tudo a esse respeito. E o seu representante.

- Ele não está aqui. Foi para a Suíça. Tem o endereço dele?

- Não, estou à espera que mo mande.

- Nesse caso pode pedir-lhe para me telefonar e para fazer com que a gente dele me envie imediatamente um catálogo, a lista dos preços e um conjunto de fotografias.

- Esteja descansado. Mais alguma coisa?

- Quem é que recomenda como a maior autoridade sobre Rafael?

- Raios, preciso que me aconselhem a esse respeito.

- Nesse caso mande-me a lista de nomes assim que esta chegar ao seu escritório.

- Que anda a tramar?

- Já lhe disse. Andamos à procura de Rafaéis. As pessoas que os têm podem pensar que são Peruginos. Normalmente você não é tão lento, Harmon.

- Não costumo tratar de negócios às seis da manhã.

- Nesse caso não adormeça ainda. Tenho ainda mais uma coisa para tratar, meu amigo. Madeleine Bayard... que aconteceu às cartas, agendas e esboços que eram dela?

- Não faço a mínima ideia. Acho que a polícia confiscou tudo o que estava no estúdio. É provável que o marido tenha ficado com o resto. De qualquer das maneiras, acho que tudo acabará por lhe ir parar às mãos. Por que pergunta?

- Comprei algumas das telas feitas pela senhora. Lebrun apresentou-ma. Sempre que ia a Nova Iorque costumava encontrar-me com ela e divertir-me um pouco. Escrevi-lhe algumas cartas que gostava de reaver...

- Mil desculpas, meu caro Henri, mas com um marido como o Ed Bayard... Nem pensar' Além disso, não acha que já é um pouco tarde?

- Talvez, Foi esta ligação entre Mather e Bayard que me fez lembrar do caso.

- Deixe-me pensar um pouco. Mather anda a escrever um artigo sobre a Madeleine. Sei que anda à procura de papéis e coisas assim. Hei-de falar-lhe a este respeito.

- Obrigado, Harmon. E não lhe dê esperanças de poder vir a arranjar dinheiro com isto. As cartas não são assim tão más... a imprensa sensacionalista já publicou outras piores!

- Farei o possível.

- Óptimo. Acho que vai ficar satisfeito por saber que já alertei toda a minha gente para os quadros dos Palombini. Agora volte lá a dormir e sonhe que somos ambos ricos.

 

Bastante satisfeito com a sua manhã de trabalho, animado pelo aperto de mão de um banqueiro que ficou bastante feliz com as dimensões do seu empreendimento, e ainda mais feliz por lhe poder oferecer facilidades para fazer saque a descoberto, isto se alguma vez precisasse, Mather decidiu ir almoçar à churrasqueira do Baur au Lac.

A comida era de primeira classe. Os empregados, já velhotes, eram eficientes e bem humorados. Os clientes eram uma mistura da classe financeira de Zurique - formais, vestidos com sobriedade, possuidores de boas maneiras, mas sempre um pouco afastados dos estrangeiros como ele. À sua volta conversava-se em diversas línguas - francês, italiano, alemão da suíça, alto alemão, sueco - e o assunto comum a todas elas era o dinheiro: taxas de juro, futuros negócios, margens, potenciais, factores positivos e negativos. Mather comeu uma refeição agradável e desfrutou a sua nova sensação de bem-estar e autoconfiança. Sentia-se ele mesmo pela primeira vez em muitos anos, fazendo os seus próprios negócios, arriscando o pescoço. Começava a compreender que isto era o que existia de verdadeiramente bom no negócio. Sentira medo durante toda a vida e refugiara-se por entre as saias das mulheres. Agora andava na corda bamba e não tinha rede. Sentia um nó na garganta devido ao medo, mas havia algo de infantil no seu grito silencioso: "Olhem! Sem mãos!”

Quando regressou ao apartamento em Sonnemberg, ainda se sentia eufórico. Numa onda de entusiasmo telefonou para Anne-Marie, despejou-lhe as notícias que tinha, e só então lhe deu algumas instruções:

- Mantém-te em contacto comigo através do Liepert. Este lugar aqui é só para dormir. Vou passar o tempo a entrar e a sair, mas ficas com o número caso precises.

"Escreve imediatamente ao Henri Berchmans. Menciona o facto de me ter encontrado com ele em Paris. Pede-lhe para ser simpático e emprestar as telas da Madeleine para a exposição. Diz-lhe que cobres o seguro e as despesas de transporte. Os custos com o catálogo e a imprensa ficam a teu cargo logo que as tenhas, manda-lhe um conjunto de fotografias, de forma a que, de facto, seja ele o primeiro a ver a exposição. Não te esqueces? Não te vais atrasar? óptimo! Olha que eu quero uma outra remessa de fotografias e de catálogos para os meus suíços. Não confies nos correios, manda tudo através de um mensageiro... estamos a marcar pontos, bambina!”

- Aquilo que eu digo? estou entusiasmada e bastante agradecida... se não pareço é porque estou preocupada com o meu pai.

Que se passa?

- Está na London Clinic. Diz que se trata apenas de um check-up.

- É provável que seja.

- Perguntou onde estavas.

- Telefona-lhe, dá-lhe o meu endereço e o número de telefone.

- Contei-lhe a respeito da mala e disse-lhe que não a tinhas aberto. O comentário dele foi que nesse caso eras mais estúpido que aquilo que parecias.

Mandou-te analisar as coisas com muita atenção. Disse que era vital. Max, que quererá ele dizer com isto?

- Não sei. Acho que vou ter de fazer o que ele diz e descobrir.

- Se quiseres falar com ele, está no quarto cento e trinta e sete.

- Fala-lhe tu. Ele contactará comigo na altura própria. Como é que o Bayard. se está a portar?

- Tenho de confessar que bastante bem. Tem sido amável e compreensivo. Passo o dia a correr de um lado para o outro e à noite estou estoirada. Ele telefona só para me cumprimentar e deixa-me, em paz. Um dia destes fomos almoçar juntos. No domingo fomos ao Whitney e demos um passeio no parque. Deixou-me cedo em casa. É aquela história de uma calma amizade e isso convém-me. Aprovou as notas do catálogo e está ansioso por ver como vai ficar o artigo. Vai ficar entusiasmado quando lhe falar sobre o Berchmans.

- É melhor não dizeres nada até ser algo definitivo.

- Isso pode ser mau, Max.

- Pode ser ainda bastante pior se o Berchmans não emprestar os quadros, coisa que tem todo o direito de fazer. Sabes bem como o Bayard fica quando acha que o enganam.

- Está bem, farei o que dizes. Estás bem?

- Nunca estive tão bem... mas preciso das fotografias e do catálogo com urgência.

- Ontem serve-lhe, senhor?

- É aceitável. Deseja-me sorte para quarta-feira.

- Toda. Ciao, Max.

O telefonema seguinte foi para Leonie Danziger. Apesar de em Nova Iorque ainda ser bastante cedo, ela não estava em casa. Deixou no gravador os números através dos quais o podiam contactar, e disse-lhe para os passar a Harmon Seldes. Depois preparou um café e sentou-se para realizar um estudo sistemático sobre os materiais a respeito de Madeleine Bayard.

Primeiro pegou nas cartas. A própria Madeleine dividira-as em três maços. O primeiro tratava de temas eróticos - desabafos em prosa colorida de homens e mulheres que haviam tido experiências sexuais com ela. Alguns mal sabiam escrever, outros eram insuportavelmente literários. Estavam todas assinadas com diminutivos ou alcunhas carinhosas: Pete, Lindy, Língua de Açúcar, Homem de Ferro. Mather perguntou-se por que razão ela se dera ao trabalho de as guardar. Foi então que entendeu a frase de Leonie Danziger: "Tinha tanto de voyeur como de participante.”

O segundo maço era composto por cartas de artistas espalhados pelo país e com os quais se correspondia regularmente, mas com quem também estabelecera diversos tipos de relacionamento sexual.

Aquilo que gosto a teu respeito, Madi, é que não tens inveja profissional. Olhas para uma peça. Gostas dela ou detesta-la, e dizes o que sentes, logo ali. O teu julgamento é duro, mas sabes aquilo que dizes pois passas os dias a pintar. Acho que é por isso que nunca esperei que exigisses no que respeita ao plano amoroso.

 

Querida Madi... (esta carta era de uma pintora do Arizona.)

Que posso dizer? Quando cheguei de Nova Iorque trazia jogo nos dedos. Ensinaste-me a pintar da mesma forma que me ensinaste a fazer amor - cores cruas misturadas na tela, a aceitação de todos os riscos, nada na manga.

 

Era agora a vez de um velho mestre, quase cego, mas que ainda pintava em Vermont:

 

Amei-te desde o dia em que te conheci. Desejei-te desde o primeiro dia em que fizemos amor no teu estúdio. Contudo, preocupo-me contigo, Madi. Preocupo-me com as duas pessoas que és - a rapariga alegre que gostava de encher as paredes de Manhattan com pinturas, e aquela pessoa sombria que tenta pintar uma saída do inferno em que vive.

 

Foi neste maço que Mather encontrou quatro cartas escritas em francês. Eram curtas, redigidas à pressa num qualquer hotel, e apresentavam uma caligrafia larga e enfática. Todas elas obedeciam à mesma forma: uma única frase bastante explícita onde se elogiava o seu desempenho sexual, um julgamento sóbrio a respeito do seu trabalho, e por fim a despedida:

 

"Quand tu m'enfourches c'est comme si je m'accouple avec un ouragan et je suis transporté au Paradis. Mais quand je te contemple dans tes peintures, je vois une agonie que je ne sais ni partager ni soulager. Quand même je te convoite nuit e jour. À bientôt, chérie... H. C. B."

 

Nota: "Quando me cavalgas é como se estivesse a unir-me a um furacão que me transportasse ao Paraíso. Mas, quando te observo nos teus quadros, vejo uma agonia que não sei nem partilhar nem aliviar. Quero-te dia e noite. Até breve, querida... H. C. B."

 

Mather demorou algum tempo a relacionar as iniciais com Henri Charles Berchmans. Quando compreendeu a ironia da situação soltou uma gargalhada abafada, depois pensou na melhor maneira de extrair daqui proveito. Não podia pensar em chantagem. Berchmans fora casado duas vezes e tivera inúmeras amantes. Uma das mulheres, bem como uma das namoradas, levara-o a tribunal. Lavou-se bastante roupa suja, mas no mês seguinte, quando Laurencin, então com 2 anos de idade, foi o vencedor em Chantilly, a multidão brindou-o com um estrondosa ovação.

Não podia dar a impressão de andar à procura de favores. De qualquer das maneiras Berchmans não ficaria muito satisfeito por saber que um jovenzinho qualquer andara a ler os bilhetes amorosos que escrevera durante a meia-idade. A maneira mais simples seria também a mais digna: "Encontrei estes papéis que agora lhe devolvo." O problema é que ele mal se atrevia a tocar nos originais até saber a razão por que Loredon lhos passara.

O terceiro maço de cartas nada tinha a ver com sexo ou com amor.

Tratava dos problemas económicos ligados à profissão, compras de quadros, convites para seminários e exposições, bolsas de estudo, prémios e coisas parecidas. Apesar de não expor, Madeleine Bayard era bastante conhecida e respeitada pelos colegas.

Agora que já lera a correspondência, os diários faziam bastante mais sentido. Conseguia situar pessoas concretas na paisagem em que a vida de Madeleine consistia. Por exemplo, as visitas de, Berchmans eram registadas com uma ternura bem humorada:

 

Henri eleva-se à minha frente, uma forma gigantesca que obscurece o Sol. Digo-lhe que temos de trocar de posições. Ele ri e diz que fica feliz por me deixar fazer o trabalho. É potente como um touro e igualmente brutal, mas nunca me deixou insatisfeita. Tal como eu estou dividida em duas, também ele está dividido em dois. No fim deixa-se ficar em silêncio a olhar para as minhas telas, depois volta-se e, com uma ternura extraordinária, dá-me uma palmadinha no rosto. Aponta para um dos cantos do quadro e diz: "Está bem feito, quase perfeito." A sua força pode ser terrivelmente destrutiva, mas para mim é como um curandeiro.

 

No que respeitava a Hugh Loredon a sua escrita era bastante dura:

 

Transformou-se num daqueles homens com quem dançamos e que passam a vida a olhar para outra pessoa por cima do nosso ombro. A sua pequena caixa-de-surpresas começa a aborrecer-me... sei que fez os mesmos elogios a mais de vinte mulheres. A sua solicitude é fingida: "Estás cansada, deixa-me relaxar-te. Conta os teus problemas ao Hugh." Não é mau na cama, mas, enquanto homem, tenta dar-me aquilo que consigo melhor com as mulheres.

 

A faceta sáfica da sua vida estava registada de forma completamente diferente:

 

A Paula veio cá hoje, Os filhos foram para o acampamento de Verão. Está satisfeita por se encontrar sozinha. Tranquei as portas e dediquei-me inteiramente a ela. Fizemos amor, dormimos, acordámos, bebemos vinho. Comecei a desenhá-la, deitada nua na colcha colorida ... fiz cerca de doze esboços a carvão e um desenho grande a aguarela. Apesar de já ter tido filhos, a pele continua macia e branca como o mármore. Quando a toco, as minhas mãos deixam marcas de tinta. Rimos as duas e começámos a pintar os nossos corpos como se fôssemos crianças.

 

Havia também uma referência a Danny Danziger, a respeito de quem escrevia de outra forma:

 

Tenta convencer-me por todos os meios a pôr em palavras aquilo que só consigo expressar na tela, ou ao fazer amor. Digo-lhe que as palavras se baralham na minha cabeça, se colam na garganta... ela recusa-se a compreender. Foi por isso que coloquei uma folha de papel na prancha, lhe enfiei um pedaço de carvão na mão e lhe disse: "Vá lá, desenha! Desenha-me, desenha a garrafa e o copo." Está claro que ela não sabe por onde começar. Então eu digo-lhe: "Tu não sabes desenhar. Eu não sei falar. Agora vamos para a cama!" Claro que a discussão anda toda à volta disto. Só que ela tem de passar por todas as fases do espectáculo para lá chegar.

 

As referências a Bayard eram tão escassas como as passas num bolo:

 

É em dias como o de ontem que quase acredito poder ser feliz com o Edmund. Levámos a Lebrun alguns dos meus trabalhos. Ele comprou-os imediatamente. Depois descemos Madison, entrámos em algumas das galerias mais pequenas até que acabámos por dar com uma loja de artesanato onde se encontram expostos trabalhos de oleiros, artistas que trabalham com a madeira, vidreiros e tecelões.

A atitude de Edmund em relação a estes trabalhos é de uma humildade extraordinária. Comenta: "Meu Deus, fazem-me sentir tão inútil, tão desajeitado. Repara naquele brilho... olha para aquela tijela de madeira, tão simples e contudo como respeita a madeira." Pergunto-me a mim mesma - nunca me atreveria a perguntar-lhe a ele - por que razão não revela o mesmo respeito em relação ao que faço. Até sei a resposta: sou uma criança desencaminhada que merece ser castigada com o não reconhecimento de nada, até mesmo das suas virtudes. Ele compreende com os olhos, não com o coração.

 

Estes esboços de personalidade eram intercalados com descrições de encontros sexuais, quer no estúdio quer nos apartamentos de amigos e conhecidos. No entanto, e à medida que Max se embrenhava nestas páginas escritas numa bela caligrafia, começou a aperceber-se aos poucos de que aquilo que estava a ler não era bem um diário, mas sim uma narrativa cuidadosamente construída, parte real, parte fictícia, tanto da sua vida real como da imaginária. A própria caligrafia era a chave para isto. Era demasiado regular, demasiado controlada - tal como um manuscrito copiado com todos os cuidados no scriptorium de um qualquer convento rabelaico. Era uma obra de arte que revelava aquilo que os seus quadros escondiam. Ela manipulava os amigos e parceiros sexuais da mesmíssima forma que fazia os modelos posar para obter a composição mais expressiva, a declaração mais dramática:

 

A Paula e a Danny têm ciúmes uma da outra. Eu saí de ao pé delas e deixei-as fazer amor com a Lindy. Foi então que o Peter se juntou à brincadeira. Expliquei-lhes vezes sem conta que o amor deve significar prazer e não fúria. Desenhei-os enquanto se divertiam. Quando olharam para os desenhos viram quanto aquilo era bonito, e foi então que começaram a ser amigos.

 

É óbvio que existiam conflitos profundos nestas relações artificiais, mas não havia nada que sugerisse um acto iminente de violência, pelo menos até quase ao fim do registo:

 

Hoje tive uma discussão terrível com o Peter. De repente tornou-se muito ciumento - para um homem tão novo - direi mesmo que obsessivo. Quer levar-me a passear, exibir-me em frente dos amigos. Eu recuso. Tenho de explicar-lhe que o meu local é privado, que não sou um objecto para ser exibido em público. Ele chama-me nomes horríveis, bate-me, atira-me para a cama e tenta violar-me. A tentativa de violação falha apenas porque sou demasiado pronta a ceder. Começo a desejar que o Henri regresse. A sua brutalidade é sempre controlada.

 

Alguns dias mais tarde regista-se um outro episódio desesperado:

 

Pedi ao Hugh que me levasse ao leilão de quinta-feira, que consta de algumas importantes peças impressionistas provenientes de uma colecção de Chicago. Ele tem-me contado histórias tão engraçadas a respeito de mulheres sensuais que aparecem nos leilões, que tenho curiosidade em vê-las. Recusa. Para ele, os dias em que há leilão são dias de negócio. Se eu quiser ir, o melhor é ir sozinha e manter-me bem longe dele.

"Não abuses da sorte, Madi. Esta cidade está cheia de gente desejosa por ir para a cama", diz ele. Dou-lhe uma bofetada. Ele dá-me outra e vai-se embora. Pergunto-me por que razão é que as coisas já não são tão divertidas como eram.

A Danny apareceu quase no fim da tarde. Também ela está desesperada. Tinha acabado de discutir com o Harmon Seldes e anda a pensar em deixar o emprego. Disse-lhe que é parva. Que deve ficar, pois o ordenado é bom e o Seldes não pode dar-se ao luxo de ficar sem ela. Aquele caso acabou por não ser mais que uma ficção criada por duas pessoas incapazes de se decidir a respeito dos seus próprios corpos.

 

Mather leu esta passagem três vezes antes de se aperceber da sua verdadeira importância. A própria Leonie dera-lhe todas as pistas. Ele só não tivera entendimento suficiente para as decifrar: a relação com Seldes e Hugh Loredon, a identificação que fizera de Madeleine como voyeur e participante, as últimas palavras do relatório: "Há muitos de nós que estão envolvidos nisto, e temos os olhos postos em si para que nos esclareça as coisas.”

Deixou o resto do diário por ler, virou-se para as reproduções dos blocos e analisou-os cuidadosamente página a página. Aquelas figuras que copulavam participando numa qualquer dança maníaca, eram agora personagens reais. Podia atribuir-lhes nomes através das cartas. A partir de certas passagens dos diários podia identificar as suas particularidades sexuais.

A primeira vez que examinara as figuras, ainda em Nova Iorque, fizera-o de uma forma precipitada, e só conseguira identificar uma imagem de Leonie Danziger. Agora ela aparecia-lhe em inúmeros quadros: num abraço sáfico com outra mulher, transformada numa bacante de cabelos selvagens perseguida numa enorme variedade de encontros por faunos violentos, os quais tinham de ser Peter e Homem de Ferro.

Deixou os desenhos abertos na secretária e levantou-se para preparar uma bebida. O telefone tocou. Era Harmon Seldes. Todo ele era boa vontade.

- Falei com o Berchmans. Você causou-lhe boa impressão.

- Sou um indivíduo que impressiona bem. Você sabe disso, Harmon.

- Como vai o artigo sobre a Madeleine Bayard?

- Devagar. É uma mulher difícil de focar.

- Que tipo de material conseguiu encontrar?

- Não muito. Baseio-me quase que exclusivamente na história que Bayard me contou, e na minha reacção em relação aos quadros. Vai sair uma coisa sentida. Nada de erudições.

- Não há papéis, cartas?

- Até agora nada. Porquê?

- Parece que o Berchmans foi amante dela em part-time. Escreveu-lhe algumas cartas.

- Sujeitinho idiota.

- Se aparecer alguma coisa, ele gostaria de as reaver.

- Aposto que sim. O meu pai tinha um ditado a esse respeito.

- Tenho a certeza de que era profundo - comentou o outro secamente.

- E era - assegurou-lhe Mather. "Faz o bem e não receies os homens. Não escrevas e não tens de recear as mulheres." Pensei que o Berchmans fosse mais esperto que isso.

- Não é preciso ser-se esperto - disse Seldes de forma sombria -, só suficientemente rico para não ligar nenhuma.

 

Num dos quartos privados da London Clinic, Hugh Loredon sentava-se apoiado às almofadas e conversava com o médico. A primeira vista poderiam ser irmãos - ambos tinham cabelo branco, rosto avermelhado, e eram tão maliciosamente eloquentes como só os irlandeses de Boston e os ingleses o sabem ser. O médico fez um gesto de impotência.

- É duro, Hugh. E ainda vai ser mais. As metástases já se estão a espalhar. O teu fígado já não aguenta muito mais...

- Quanto tempo mais? - indagou Loredon.

O médico encolheu os ombros.

- Mais ou menos um mês em que podes fazer uma vida, normal, isto se tomares precauções. Depois disso as coisas complicam-se. É claro que tentaremos aliviar as coisas, mas dou-te mais três meses.

- Não vou ficar de braços cruzados à espera que isso aconteça. - Estava zangado. - Se não fores tu a mandar-me desta para melhor, eu mesmo o farei.

- Sim, bem... - O médico examinou-o sem revelar piedade. - Compreendo como te sentes, mas, e tendo em conta as leis deste país, não posso "Mandar-te desta para melhor". És um doente ocasional, os meus livros não registam uma longa história clínica, de forma que não posso construir um relatório que seja consistente. Quanto a seres tu a mandar-te desta para melhor, isso é bastante fácil, mas deixa-me fazer-te uma pergunta. Tens seguro de vida?

- Bastante elevado - respondeu.

- A favor de quem?

- Da minha filha.

- Se te suicidares ela perde tudo. É óbvio que é a ti que cabe decidir as coisas. Apenas te estou a lembrar as consequências.

- É o que de melhor tens para me dizer?

O médico ficou durante muito tempo a olhar para as costas das suas mãos bem arranjadas. Parecia estar a falar para as unhas em vez de para o paciente.

- Há uma outra solução. É daquelas que nem sequer me atrevo a sugerir ao de leve a pessoas de fortes convicções religiosas, mas como não parece ser esse o teu caso...

- E não é - afirmou Loredon com ênfase. - Vivi toda a vida sem religião. Não é agora que me vou esconder debaixo dela, tal como se fosse uma capa que nos protege da chuva. Diz.

- Ainda te encontras em condições de viajar. Sugiro que vás para Amesterdão. Vou entregar-te uma carta dirigida a um colega meu que dirige uma clínica de ontologia destinada a casos terminais. Irá admitir-te... E quando sentires que estás pronto, ajuda-te a morrer. É rápido, não provoca dores, e na Holanda há cada vez mais e mais médicos que oferecem este tipo de serviço ao seus doentes. De qualquer das maneiras, és um caso terminal, o que faz que não haja problemas com a tua certidão de óbito. Tudo o que precisas de fazer é certificar-te de que tens dinheiro suficiente para pagar o hospital, as despesas com a cremação, e o transporte das cinzas de volta para Nova Iorque.

Hugh Loredon pensou na proposta durante alguns momentos, e depois perguntou:

- Amesterdão, não é?

- Exacto.

- Então posso apanhar o avião, transaccionar algum capital próprio proveniente dos negócios da companhia, e ir para o hospital?

- Exacto. A parte dos negócios só te diz respeito a ti.

- Isto é um quebra-cabeças, mas preferi que a minha filha não soubesse o que eu andava a fazer. Ela anda a trabalhar num projecto importante, e eu não a quero perturbar mais que aquilo que posso ajudar. Nada de grandes despedidas. Nada de voos misericordiosos através do Atlântico. Estás certo de poder garantir uma morte sem dor?

- Não te posso garantir nada - disse o médico calmamente. - És um homem bastante doente. Devias ter seguido os protocolos do tratamento. Decidiste continuar a trabalhar. Agora vais para a Holanda. Como qualquer bom médico, vou recomendar-te a um colega no caso de precisares de ajuda nalguma emergência. Vais levar a carta contigo. Descreve a tua história clínica por alto. Ficamos todos a coberto... De qualquer das formas, medita no assunto. Amanhã de manhã voltamos a falar.

- Já me decidi - respondeu o outro. - É para Amesterdão que vou.

- Muito bem. Voltarei a ver-te durante a minha visita matinal, e nessa altura dou-te a carta de referência. Podes sair daqui por volta das dez. Vais direito para o continente, não?

- Bem, sim... Talvez haja uma ou duas coisas que tenha de fazer antes de me ir embora.

- Já não tens muito tempo, Hugh. Não o gastes em ninharias. Se te fores abaixo em Londres, vais ter de suar as estopinhas até ao fim.

- Tudo bem. - Hugh Loredon estendeu-lhe a mão. - Obrigado pelos serviços prestados. Agora deixa-me fazer alguns telefonemas e ver quantos amigos tenho.

Max Mather mandara que lhe mandassem ao quarto algumas sandes e café. Estava ansioso por chegar ao fim do material que tinha sobre Madeleine Bayard e começar a esboçar a estrutura do artigo.

Quando se voltou de novo para os diários, reparou pela primeira vez na data das entradas. Era mais uma questão de consciência visual que a decisão determinada de examinar a grelha temporal. Ficou surpreendido por descobrir que as entradas finais coincidiam com a data do assassínio de Madeleine. Estava claro que naquele dia Hugh Loredon estivera no estúdio e levara consigo o material... coisa que teria de o transformar no suspeito principal, ou pelo menos cúmplice do crime.

Daí que as últimas entradas do diário tivessem uma importância particular. Mather leu-as por diversas vezes, sempre bastante devagar.

 

Esta manhã voltei a ir ao médico. Deu-me um enorme sermão. Diz que não vou conseguir manter uma vida sexual tão activa junto com o impulso criativo necessário à produção da quantidade de trabalho em que estou envolvida. Insiste em como devo ter calma e levar até ao fim a caixa de calmantes que me receitou. Acha que eu devia sujeitar-me a tratamentos, deforma a trazer alguma unidade a uma vida que se vai tornando mais e mais fragmentada. Discuto com ele, mas sei que tem razão. Só me sinto inteira quando estou em frente às telas e olho para um mundo que eu mesma criei.

Mesmo assim, as pessoas continuam a exigir de mais de mim. Por vezes sinto-me como Diana de Éfeso, com centenas de peitos que alimentam todo o mundo. Os homens são bastante maus. São bruscos e exigentes, mas desaparecem assim que se satisfazem. As mulheres- e estou a pensar na Danny e na Paula - consomem muito mais de mim. Exigem afirmações e certezas que não lhes posso dar.

O Edmund está cada vez mais preocupado. Eu sei-o, mas quando está preocupado resmunga. Quando resmunga eu porto-me como uma cabra e ele zanga-se, fica ainda mais amargo e afasta-se de mim. Há alturas em que penso que o posso levar a matar-me. Os calmantes ajudam alguma coisa. Era fácil viciar-me nessa calma sedutora que sobe por mim à medida que a dose começa afazer efeito... Se ao menos pudesse partilhá-la e esquecer as fúrias e os ciúmes...

 

Mather fechou o livro e carregou nos olhos doridos com as palmas das mãos. A escuridão momentânea aliviou-o do brilho do papel e da mancha incansável das letras ao longo das páginas, mas não havia maneira de fazer desaparecer as imagens perturbadoras evocadas naquele estéril apartamento da Suíça, a três mil milhas e a doze meses de distância do estúdio nova Iorquino de Madeleine. Dentro em breve iria viver no mesmo estúdio. Continuaria a escutar músicas antigas e a ver tecidos fantasmagóricos a esvoaçar? Continuaria a imagem de Madeleine Bayard a ser tão vívida como naquele momento, a dormir um sono artificial, o corpo branco estendido na colcha colorida, à espera de que o assassino atacasse?

Não pela primeira vez, Mather perguntou-se como é que acabara por se envolver nos assuntos desta gente doida. Assuntos a dois eram bem mais fáceis - o senhor e a amante tolerante. Anda-se na rua de mão dada. Quando se fecha aporta do quarto deixa-se o mundo lá fora. Agora já não era fácil para ele ignorar as coisas. Era como Gulliver: atirado para uma praia desconhecida, quando acorda descobre que, está rodeado de estacas e amarrado com fios tão fortes como os cabos de um navio.

De repente, e sem que esperasse, o telefone tocou. Era Hugh Loredon de Londres. Mather cumprimentou-o sem entusiasmo.

- A Anne-Marie disse-me que era provável que telefonasse. Está preocupada consigo. Qual é o problema?

- Não é nenhum problema, Max. É uma sentença de morte. Dizem que faz que a mente tenha um enorme poder de concentração.

- Hugh, meu Deus! Lamento muito. A Anne-Marie já sabe?

- Não, nem faço tenções de lhe dizer.

- Ela tem direito a sabê-lo.

- É a minha vida. - Hugh Loredon foi breve. - A última coisa de que preciso é de uma discussão.

- Há alguma coisa que eu possa fazer?

- Sim. Venha encontrar-se comigo ao Amstel Hotel em Amesterdão, na sexta-feira desta semana. Passe alguns dias comigo... iremos ver os Rembrandts, e almoçar com alguns comerciantes que você deve conhecer. Depois, na segunda, dou entrada numa clínica e nunca mais saio.

- Oh! - demorou alguns minutos a entender a mensagem. - Isso significa o que estou a pensar?

- Sim. Tenho o relatório do médico e um belo conjunto de raios-x. Depois passam-me uma certidão de óbito muito limpinha, e você será um dos executores do meu testamento. O outro será Ed Bayard.

- Por amor de Deus, por que razão nós?

- Estava a brincar. É a última e a melhor piada que consigo arranjar.

- A propósito de documentos... Já tenho a sua pasta.

- Já leu o material?

- Sim.

- Guarde-o.

- Gostaria que mo explicasse.

- Que posso dizer? Para mim está escrito na areia. O vento e a maré fá-lo-ão desaparecer. Quem se importa com quem pagou a blenorragia a Gaugin, ou que faca Van Gogh utilizou para cortar a orelha? Nada disso interessa. A morte dispensa-nos dessas coisas. Ainda não disse se vem a Amesterdão.

Na sexta-feira lá estarei.

óptimo. Já lhe reservei quarto. Você é muito confiante.

Sei muito bem que não consegue resistir a uma mulher ou a uma história de azar.

- Hugh, ouça-me. Compreendo o que está a fazer. Acho que compreendo porquê. Mas se você quer sair-se bem, vai ter de deixar a Anne-Marie partilhar consigo este último acontecimento. Se não o fizer, a sua filha sentir-se-á rejeitada, e isso será uma herança terrível para lhe deixar. Como é que lhe vou dizer que me telefonou a mim e não a ela?

- É simples, Max. Você é apenas o mensageiro contratado para dar as notícias. São as suas dores que o vão matar. - Soltou uma gargalhada que terminou num som sufocante. - Até sexta.

Quando pousou o auscultador, Mather tinha as mãos a tremer. A noção de morte opcional era-lhe nova, e de repente estava demasiado perto dele, para que pudesse encontrar conforto. Interrogou-se sobre a forma de contar tudo isto a Anne-Marie. Achou que seria intolerável passar o resto da noite. sozinho. Guardou os papéis e foi até ao Limmat Quai.

Bebeu uísque aguado num clube nocturno sombrio chamado Venus Room e pagou champanhe tinto a uma prostituta romena, fazendo depois que lhe servissem um jantar tardio, que consistiu num bife bem passado e em batatas mal cozidas. Pagou-lhe cem dólares pela estimulante conversa que manteve, sem esquecer o facto de o ter curado de possíveis desejos sexuais. Ela encontrava-se suficientemente sóbria para dizer que se todos os maricas fossem tão simpáticos como ele, o Limmat seria um local de trabalho bastante mais agradável.

Quando chegou ao apartamento estava convencido de que Hugh Loredon tinha razão. Se alguém ia acabar a vida através de um acto limpo e arrumado, Amesterdão era uma cidade bem mais animada que Zurique.

 

A casa de Alois Liepert situava-se a cerca de dez milhas da cidade. Era uma vivenda agradável e em estilo campestre, sita numa colina arborizada sobranceira ao lago. O interior revelava o cheiro a dinheiro - dinheiro novo e velho - e de uma certa discrição tradicional quanto à forma de o exibir. A mulher de Liepert era pouco mais nova que ele: elegante, do tipo desportivo, e bastante à vontade em sociedade.

Os intermediários formavam um estranho duo: o que lidava com as obras modernas tinha ar de mestre-escola novecentista. O que se ocupava de antiguidades parecia acabado de sair das páginas de uma revista de modas. O leiloeiro, que se veio a saber ser apenas um ano mais novo que Mather, e, tal como Hugh Loredon, tinha qualquer coisa de medieval. As esposas eram pessoas agradáveis, mas estavam pouco à vontade e Mather fez os possíveis para as fazer entrar na conversa. O banqueiro e a mulher eram um casal de meia-idade pertencentes ao tipo executivo e seguro.

A prática fizera que Mather se transformasse num convidado exemplar, ouvinte atraente e óptimo contador de histórias, hábil em conseguir as atenções quando se referia a coisas pouco comuns. Soube durante todo o tempo que se encontrava debaixo de observação, já para não mencionar o facto de estar a ser avaliado. Gisela Mundt, com o seu sorriso fácil e as suas traduções fluentes de uma língua para a outra quando a conversa encalhava em qualquer aspecto do vocabulário, era a única presença que o confortava.

Contudo, o facto de ser um estudioso fez com que se saísse bem. Conhecia bem o seu ofício, e fora dele não fazia afirmações bombásticas. O material para a Belvedere impressionou bastante. A promessa de transferir um fundo em dólares para o mercado de arte local foi coisa que agradou a todos. O banqueiro resumiu tudo isto numa simpática frase:

Sei que irá dar-se bem aqui, Mr. Mather. Apreciamos a solidität.

- Farei que lhe paguem bem pelo Tompion - prometeu o leiloeiro. Todos os relojoeiros tradicionais irão tentar ficar com ele.

- Assim que tiver as fotografias digo-lhe quais os Bayards com que tenciono ficar - disse o comerciante de arte moderna. - E gostava bastante que desse uma olhadela ao trabalho de Davanti... acho que está pronto a estoirar no mercado.

- Entre nós, o perito em desenhos renascentistas é Gisevius, em Basileia. - Era a vez do tradicionalista. - Assim que estiver preparado, arranjo uma entrevista e vamos vê-lo juntos. Tem um bom laboratório e é bastante conservador. Na Europa a sua palavra tem bastante peso.

O toque final veio da parte da mulher de Liepert.

- Foi um convidado encantador. Os nossos amigos adoraram-no. Seria tão amável a ponto de levar a Gisela a casa?

- Com todo o prazer.

À medida que voltavam para a cidade sentiu-se grato pela presença dela. Aquela noite selara qualquer coisa, o facto de ter sido aceite e de confiarem nele, isto numa cidade tão conservadora como aquela. Segundo a estratégia clássica das guerras antigas, ele tivera o castelo como objectivo, e conseguira tomá-lo. Dentro de alguns dias consolidaria uma aliança com um príncipe poderoso - Henri Berchmans, o Velho - usando mais uma vez o método clássico de oferecer um presente, o que eliminaria uma ameaça... Pouco faltava para que o segredo de Hugh Loredon lhe pertencesse. Já não era mais um cliente, mas sim alguém a respeitar. Deixaria de haver inquéritos. Teria tanta liberdade em termos profissionais como a que o seu vizinho gozava. Faltava muito, muito pouco, para colocar as últimas peças no cenário dos Rafaéis e começar a produção do drama.

Quando atravessaram a ponte e entraram na cidade, Gisela indicou-lhe o caminho de casa - uma pequena villa fora de moda situada perto da Universidade. Acompanhou-a até à entrada. Ele entregou-lhe as chaves e perguntou:

- Gostaria de tomar um café?

- Adorava - respondeu. - Tem a certeza de que é legal?

- Na Suíça - respondeu ela com um sorriso -, tudo o que não é proibido é legal.

Coisa que, e na opinião de Mather, era uma óptima forma de acabar a noite.

 

Logo pela manhã Mather telefonou a Berchmans. Este não se encontrava disponível, mas o empregado prometeu entregar-lhe o recado. O telefone tocou passado uma hora. Mather, que já se acostumara à sua rudeza, ficou surpreendido por descobrir que o francês se encontrava de excelente humor.

- Sim. Mr. Mather. Em que posso ser-lhe útil?

- Ontem à noite recebi um telefonema do Seldes. Disse-me que você estava interessado em alguns artigos Bayard.

- É verdade.

- Tenho-os comigo. O Seldes não faz a mínima ideia.

- Obrigado por me dar a notícia com tanta rapidez.

- Vou para Amesterdão na sexta-feira. O Hugh Loredon pediu para ir até lá encontrar-me com ele. Está às portas da morte.

- Sinto muito.

- Tenho a certeza de que irá ser discreto a este respeito. A filha dele ainda não sabe.

- Claro.

- Se lhe for conveniente, a minha proposta é a seguinte: amanhã de manhã saio bem cedo de Zurique e apanho o avião para Paris. Entrego-lhe os documentos pessoalmente, e ao fim da tarde apanho outro avião para Amesterdão.

- Nesse caso deixe que vá ter consigo a Orly, e que lhe ofereça um almoço no Veau d'Or. Fica a cerca de vinte minutos do aeroporto, de forma que posso ir lá levá-lo a tempo de partir para Amesterdão.

- óptimo... Chego às dez e trinta no voo 731 da Swissair.

- Só mais uma pergunta, Mr. Mather. Mais alguém viu a mercadoria?

- Pelo que sei, apenas a pessoa a quem eram destinadas e aquela que mas deu.

- São originais ou cópias?

- Originais.

- Obrigado. estou desejoso de que nos encontremos. Você continua a intrigar-me, Mr. Mather.

 

XXXXXX

 

Mather aterrou em Orly com meia hora de atraso e foi recebido por um agitado vento de Março, bem assim como por uma chuva miudinha. O motorista de Berchmans foi ao seu encontro e conduziu-o a um pequeno restaurante campestre na direcção de Fontainebleu. Berchmans aguardava-o numa mesa de esquina, bastante afastada das outras. Mostrou-se amável e expansivo. Ofereceu-lhe um aperitivo. Depois dissertou a respeito da ementa: badejo cozinhado com vinho branco e miolo de pão, peito de borrego com funcho, coelho com ameixas secas. A escolha dos vinhos assemelhou-se a uma cerimónia. Voltou a garantir a Max que podia muito bem apreciar a refeição com todas as calmas e chegar ao aeroporto ainda com muito tempo pela frente.

Mather estava bastante satisfeito por estar a ser mimado daquela forma, mas estava igualmente desejoso por despachar o assunto que tinha entre mãos. Assim, logo que a refeição foi encomendada, entregou ao outro um sobrescrito contendo as cartas que enviara a Madeleine Bayard.

Berchmans deu-lhes uma rápida vista de olhos e voltou a guardá-las no sobrescrito, colocando este no bolso interior do casaco. Fez um sorriso envergonhado e disse:

- Obrigado. Não há tolos iguais aos velhos.

Mather encolheu os ombros e não deu resposta.

- Onde encontrou estas cartas, Mr. Mather?

- Se fosse a si não perguntava, Mr. Berchmans. São consideradas provas num caso de assassínio que ainda está em aberto.

- É um conselho sensato - retorquiu o outro. - A última coisa que queremos fazer é estragar o sabor desta comida excelente. Além de que, num caso como este, o melhor é fazer amigos na polícia.

Depois, sem mudar em nada o tom de voz e a expressão, lançou-se numa série de anedotas incríveis que preencheram o tempo compreendido entre os hors d'oeuvres e a sobremesa.

Contou a história de Casperon, o marceneiro norueguês que se tornou tão bom a falsificar os quadros de Eduard Munch que, sob a supervisão da polícia, pintou um em três horas. Contou como ele mesmo conseguira juntar uma colecção de excelentes falsificações da autoria de um tal Jean-Pierre Schechroun, natural de Madagáscar, que estudara com Leger, e que conseguia imitar Braques e Picassos, Kupkas e Kandinskys à simples visão de um livro de cheques. Berchmans explicou que ele era bastante esperto, pois não trabalhava com os óleos, ficando-se apenas pelas aguarelas, pastéis e esboços, ou seja, as "tentativas" que todos os artistas, em todos os estúdios, fazem.

Era interessante a maneira como encarava estas fraudes.

- O efeito é mínimo na camada superior do mercado. Qualquer tentativa de falsificar uma obra-prima é imediatamente confrontada com um batalhão de exames científicos. Se o trabalho não passa de uma imitação, sucede qualquer coisa como um efeito de vaivém - quanto mais espertos os criminosos são, mais espertos são os peritos. O valor do original é proporcional ao trabalho que deu para que o tentassem falsificar.

"Nos mercados médio e inferior apenas o comprador sua as estopinhas. Se o operador quer continuar no negócio, as coisas ainda funcionam de forma caveat emptor e caveat mercator. Se pendurar uma falsificação de David Stein na sua sala de jantar, qual dos convidados lhe vai dizer que não se trata de um van Dongen? É fácil imitar os maneirismos. O génio é tão difícil de apanhar como uma borboleta. Ao fim e ao cabo, a função do génio é fazer que criemos as nossas próprias ilusões.”

Depois veio a parte difícil.

- Madeleine Bayard possuía esta forma de génio... Que vai dizer a respeito dela? Como a vai julgar?

- Ainda não estou certo de a ter compreendido. Há no seu trabalho uma qualidade esquizofrénica que ainda me confunde. Gostaria de saber o que pensa a respeito dela, a nível informal, claro.

- Mr. Mather, prometi-lhe um almoço e não uma conferência de imprensa.

- Deixe-me apresentaras coisas de outra forma. Comprou-lhe os quadros porque eram amantes, ou porque apreciava o trabalho dela?

- Porque apreciava o trabalho. Não existe qualquer confusão a esse respeito. O mundo está cheio de porcaria. Não vejo razão para dar dinheiro por ela.

- Mesmo assim, ela era uma amante excitante.

- É a segunda vez que usa essa palavra. Ela não era amante de ninguém. Era uma cortesã clássica, a poule de luxe. Dava prazer com a maior das perícias. Mas isso era o fim de tudo. Qualquer coisa mais e se a deixasse ela acabaria por o devorar. E não por dinheiro, mas apenas para se sentir segura. Era um ser faminto que estava fechado num quarto vazio, sempre à procura de uma saída, sem se importar com quem lha oferecesse, nem a que preço... - Acabou de falar e olhou para o relógio. - É a altura de irmos, Mr. Mather, isto se quiser apanhar o avião. Correr para os aeroportos é uma ocupação fatal.

Depois de ter pago, e como que por acaso, disse o seguinte:

- Só mais uma coisa, Mr. Mather.

- Sim?

- Acaba de me prestar um favor, tendo-se prejudicado por isso. Quanto lhe devo?

- Desculpas - respondeu.

Berchmans ficou a olhá-lo de boca aberta e corou até à raiz dos cabelos. Demorou uma eternidade até que voltasse a recuperar a fala.

- Tem razão. Fui bastante grosseiro. Peço desculpa. Estou-lhe grato pelo que fez. Por favor, perdoe.

Estendeu-lhe a mão. Mather aceitou o gesto. Não estava certo de ter feito um amigo, mas não via qualquer razão para ter um inimigo poderoso.

 

O avião nocturno de Paris para Amesterdão estava bastante cheio e não era muito confortável. Mather deu consigo a dormitar e a conjecturar variantes de um cenário que começava a tornar-se mais e mais plausível, desde que tivesse paciência e esperasse pela altura própria.

De momento não sofria qualquer pressão financeira. A viver só dos rendimentos podia aguentar-se pelo menos dezoito meses. Adivinhavam-se alguns lucros razoáveis. As obras-primas encerradas no cofre do banco valorizavam-se de hora a hora - e agora surgira um outro elemento a terem conta. No papel de negociante reconhecido, coadjuvado por um banqueiro conivente, podia fazer dinheiro com os quadros sem nunca os colocar no mercado. Com os empréstimos assim arranjados, podia conseguir bons lucros sem ter de se comprometer. Depois, mais tarde, podia começar a pilhar o mercado servindo-se de peças grandes. Certo ou errado, não custava nada sonhar, e antes que o sonho se desvanecesse aterraram no aeroporto de Schipol.

Apesar de a estrada para Amesterdão estar escorregadia e de a cidade se encontrar envolta em nevoeiro, o Amstel Hotel oferecia um conforto sólido e burguês. Hugh Loredon reservara-lhe um quarto contíguo à sua suite, de forma que, para além do quarto, tinha também direito a usar um salão. Como de costume, Hugh Loredon estava bem vestido e barbeado, mas o rosto outrora rosado mostrava-se agora macilento e encovado, e os globos oculares começavam a tornar-se amarelos. Mandara servir o jantar na suite, dando para isso a seguinte explicação:

- Não consigo estar junto da multidão. E, claro, proibiram-me de beber álcool. É uma coisa dos diabos, não?

- Há quanto tempo sabe disto?

- Há mais de um ano. Fui para Inglaterra porque não quis ser apanhado nos protocolos finais dos tratamentos caseiros. Não encontrei qualquer razão que me levasse a servir de cobaia... Há já alguns anos que decidi que, quando confrontado com uma doença fatal, o melhor seria pôr um fim nas coisas... e é isso que vou fazer graças a alguns membros do corpo médico holandês.

1 - Que posso dizer? - Mather fez um gesto que indicava desaprovação. É a sua vida. Mas por que razão não pode partilhar estes últimos dias com a sua filha?

- Porque não tenho o direito de a expor a esta miséria. Sou um homem completamente vazio, Max. Um actor que desempenha um único papel, e cujo contrato está a chegar ao fim. As notícias que você vai levar de volta são de que me deixou com muito bom aspecto. Que conversámos sobre negócios - há um jovem pintor holandês cujo trabalho irá ver amanhã e que poderá ser um dos candidatos à galeria de Anne-Marie. Chama-se Cornelis Janzoon. Depois, e antes de você partir, terei um colapso súbito. Assim, sem mais nem menos. Serei cremado e as minhas cinzas seguirão para casa. Simples, claro, sem confusões. A Anne-Marie não vai demorar muito a recuperar. De qualquer das formas, nunca fui muito importante na vida dela. Você é muito mais.

- Hugh, sou o velho amante, gasto mas confortável, que se usa quando tudo vai mal. Sendo assim, deixemo-nos de rodeios. Li tudo o que era de Madeleine Bayard. Encontra-se fechado num cofre da Suíça. Agora vai ter de me dizer o significado de tudo aquilo.

- Antes de o fazer - Hugh Loredon mostrava-se duro e enfático -, é melhor certificar-se de que quer mesmo saber.

- Porquê?

- Porque sabê-lo é um fardo. É como se fosse um peso nas costas e um gancho espetado no coração. E assim que fique na sua posse nunca mais se vai livrar dele. Essa é uma das razões que me levam a fazer aquilo que planeio. Depois não venha dizer-me que não o avisei.

- Estou avisado. Agora diga-me: Quem matou Madeleine Bayard?

- A pergunta não é essa, Max.

- Então qual é?

- Devia perguntar-me por que razão foi você o privilegiado com a posse dos papéis de Madi Bayard, e com a minha última confissão.

- Nesse caso, diga-me.

- Porque você é como eu, um novilho sem marca, um macho trapaceiro, e também a única pessoa que conheço que é suficientemente esperta, suficientemente dura e suficientemente desonesta para fazer o que tem de ser feito.

- Obrigado pelo elogio.

- Vá lá, rapaz, não seja sensível. Estou à beira da morte. Estou-me a borrifar para os seus sentimentos feridos. Comecemos pelo diário da Madeleine Bayard. Explica alguma coisa, mas não tudo.

- Nesse caso qual é a sua versão?

- Não é uma versão. É a outra face de uma verdade que não se assimila de imediato. Temos de começar pela própria Madeleine, pela forma como aparece a cada um de nós. Fui leiloeiro durante toda a vida. Tenho visto obras incríveis, boas, e sucata sem qualquer valor. Aprendi uma coisa: só os objectos mágicos têm valor. Despertam as nossas próprias paixões, isto já não falando da paixão que a multidão à nossa frente sente, É como... como o vento ondulando na seara. Passa-se o mesmo com os artistas. São pessoas mágicas. O ar que os rodeia está carregado de electricidade, tal como as nuvens durante uma tempestade. Carl Jung fala a este respeito algures. Chama-lhe "numen", a aura do poder. Madeleine Bayard possuía-a. Era uma feiticeira que enfeitiçava todos os que entravam em contacto com ela. Eu, por exemplo. Corri atrás das mulheres durante toda a vida. Ama-as e deixa-as, Loredon! Podia lê-las de alto a baixo, desde as pontas dos pés até às pontas dos cabelos. Mas Madi Bayard enfeitiçou-me de tal maneira que por ela era capaz de caminhar sobre o fogo.

Mesmo quando se fartou de mim - o que não demorou muito - ficava feliz por estar com ela, por ser aceite como parte do seu grupo... os rapazes, as raparigas, os que não eram jovens, os que possuíam talento, os que só enfeitavam. Lembro-me de em criança ter ouvido a história de Circe e de como Ulisses chegou ao seu castelo e a ouviu cantar enquanto tecia belos panos... Não se ria de mim, Max. Não se ria de nenhum de nós. Madi Bayard foi a nossa Circe. Teceu sonhos maravilhosos, mas fez-nos a todos prisioneiros. Tinha poder para nos levar a fazer tudo o que quisesse.

Tinha suor na testa e no lábio superior. Limpou-o e pegou num copo de água enquanto Mather esperava em silêncio.

- O problema é que a magia tanto pode ser boa como má. A nossa Circe transformava os convidados em porcos. O casamento dela era um horror. Ed Bayard. não tinha nem inteligência nem força para a dominar. Transformou-se num tirano, num tirano impertinente e amargo... Nunca o deixou porque ele acabou por ser desculpa para todas as suas aberrações. Compreende, ela detestava-se. Sabia o talento que tinha e respeitava-o. Os seus quadros eram as tapeçarias mágicas de Circe. Mas sem Ed Bayard teria de explicar a si mesma a criatura horrível que vivia dentro dela quando a feiticeira feliz se ausentava. Aquela criatura levava a cabo brincadeiras perversas e terríveis. Passava os segredos que ouvia de uma pessoa aos seus rivais. Fazia amor com uma mulher e depois ridicularizava-a perante os homens. Você leu o diário dela. Não se trata de um diário, mas sim de factos transformados em ficções. Reparou como é sempre ela quem permanece no centro do seu universo... a deusa negra que se alimentava devorando os que lhe eram devotos. Danny Danziger era uma das devotas. Trabalha como redactora para o Seldes.

- Conheço-a. Tenho trabalhado com ela - comentou ele calmamente. Não posso dizer que a conheça muito bem.

- É preciso tempo para a conhecer - retorquiu o outro. - E bem provável que eu a conheça melhor que a maioria. E bisexual, mas quando a conheci só tinha tido experiências com mulheres. Fui o seu primeiro homem, coisa de que na altura me orgulhava muito, pois era uma forma especial de vitória. Meu Deus, era tão ingénuo! O nosso relacionamento foi confuso para ambos. Originou também um enorme problema com a Madi. Ela tinha ciúmes de tudo o que não se centrasse exclusivamente nela. A mim podia ameaçar-me com bisbilhotices e difamações, mas, e dado que eu sabia de mais e estava sempre pronto a retribuir da mesma forma - até mesmo a agredi-la quando necessário, pois às vezes ela necessitava de violência como as outras mulheres necessitam de carinho - ela era bastante cautelosa.

"Contudo Danny Danziger era uma presa fácil. Lembra-se daquela passagem do diário em que ela descreve ter admitido Peter num encontro lésbico entre Danny e Paula? As coisas nem de longe se passaram como ali estão apresentadas. Peter era um modelo recrutado no Negroni's - um garanhão profissional, nada boa rez. O episódio foi bastante doloroso e humilhante para a Danny, mas a Madi deu a volta à situação, fazendo que a outra - cada vez mais embaraçada e sentindo desprezo por si mesma - se tornasse mais dependente dela.”

- Estou a ver o quadro - disse Mather. - Não é nada bonito.

- É exactamente o que ela exprimia nos quadros - comentou o outro com algum cansaço. - A fuga sem qualquer sucesso de uma habitação insustentável, de um "eu" infeliz e destrutivo. - Soltou uma pequena gargalhada destituída de alegria. - É uma boa frase. Ficarei feliz se a usar no seu artigo. Não cobro nada por ela. Limite-se a oferecer uma bebida ao meu fantasma.

- Usarei o melhor dos uísques - assegurou-lhe Mather. - Por amor de Deus, continue.

- Tudo começou com a Danny. Certa tarde, por volta da uma e meia, recebeu um telefonema da Madeleine pedindo-lhe para ir até ao estúdio. Parecia estranha - talvez que um pouco bêbada, aduladora, a falar sobre sexo. Queria que Danny fosse fazer de modelo, tomar uma bebida, fazer amor. Ela tentou desculpar-se. Não era capaz de enfrentar uma sessão longa e esgotante. Foi então que se começou a preocupar. Sabia que Madi andava a tomar calmantes. Ficou a pensar se ela não teria tomado demasiados, e foi então que decidiu ir ao estúdio.

"Foi encontrar a outra deitada nua na cama, a ressonar. Era óbvio que recebera a visita de uma mulher, pois havia manchas de batôn em dois copos, bem como os restos de uma garrafa de champanhe. No cavalete encontrava-se o quadro não terminado de uma figura masculina, mas havia também várias séries de esboços onde a visitante - alguém que ela nunca vira... talvez encontrada no Negroni's - aparecia nua. Era evidente que Madi lhe telefonara para encenar um encontro com esta mulher, mas perdera os sentidos e a outra tinha-se ido embora não sem antes lhe ter revistado a carteira e levado todo o dinheiro que esta continha.”

Interrompeu-se e, segurando o copo com ambas as mãos, bebeu mais um gole de água. Mather esperou em silêncio até o outro terminar a narrativa.

- Como é natural, a Danny ficou chocada com toda aquela cena. Disse que a Madi parecia uma boneca obscena, tombada na cama. Tremia, estremecia e murmurava durante o sono. Ela enrolou-a nos cobertores e levantou-lhe a cabeça para que não sufocasse. Disse-me que foi precisamente nessa altura que decidiu matá-la. Tirou-lhe a almofada e deixou-a ficar deitada de costas. Depois foi à casa de banho e encontrou um par de luvas de borracha que a Madi usava para proteger as mãos da aguarrás e da água-forte. Na secretária estava um presente meu, um punhal antigo, uma adaga com o punho em verga que ela usava para cortar o papel. Foi com esta arma que a Madi foi morta.

"Foi então que me telefonou. Faltavam cerca de quinze minutos para as três. Disse-lhe para limpar tudo aquilo em que tivesse tocado, pôr a arma na mala, sair dali e caminhar durante seis blocos antes de chamar um táxi que a levasse ao apartamento.

"Fui para o estúdio a toda a velocidade, estacionei na vereda e agarrei em todos os documentos incriminatórios que consegui encontrar - diários, cadernos de esboços, notas, escritos pornográficos, e, claro, a agenda dos telefones. Usei as mesmas luvas que a Danny. Depois disto fui ter com ela ao apartamento e tentei fazê-la sair do choque em que se encontrava. Tirei-lhe a adaga, limpei-a cuidadosamente e levei-a para casa. Ao fim de um ano levei-a para um leilão de armas antigas. Aquela porcaria rendeu dois mil dólares!”

- Como é que vocês os dois conseguiram aguentar doze meses de investigações policiais? - perguntou Mather.

- Primeiro porque Ed Bayard era o principal suspeito, depois porque me vi livre de toda uma série de documentos embaraçosos... mas principalmente porque Danny Danziger nunca se descontrolou. É uma mulher muito especial.

- Agora que me contou tudo isto, que espera que eu vá fazer com estas informações?

- Você vai criar um mito - respondeu-lhe Loredon com um calor inesperado. - O mito de Madeleine Bayard: uma mulher muito bela com uma alma de fogo, uma grande artista desaparecida prematuramente. É esta lenda que fará que a galeria de Anne-Marie se torne conhecida, e que as telas de Madeleine valham mais que Rothkos e Pollocks. É óbvio que tudo isto lhe trará dinheiro. Agora, enquanto você faz tudo isto, certifique-se de que Anne-Marie nunca se casa com Ed Bayard.

Admirado, Mather ficou a olhá-lo, depois começou a rir às gargalhadas.

- Hugh, você é um génio! Numa sociedade bem organizada seria enforcado. Mas não há dúvidas de que é um génio.

- Acaba de iluminar os meus últimos e sombrios dias - disse Loredon com um sorriso.

- E é também um mentiroso dos diabos!

- Que quer dizer com isso?

- Que tudo isto não passa de uma conversa privada tida num quarto de hotel. Dentro de alguns dias você estará morto e nada poderá ser provado. Está a levar a cabo o truque da informação viciada. Danny Danziger não matou Madi Bayard.

- Pode prová-lo?

Mather voltou a soltar uma gargalhada e levantou-se para preparar outra bebida. Devagar, comentou o seguinte:

- Hugh, na minha profissão existe algo a que chamamos evidência interna. Você está a trabalhar num manuscrito que se diz ser autêntico, talvez que do século III ou IV. E de repente apercebe-se de pequenos pormenores que não encaixam bem... o estilo das frases, noções que não eram comuns no período em questão, comentários e interpolações de outros textos. No preciso momento em que depara com uma destas interpolações, sabe que está a lidar com um trabalho forjado. A sua história é uma invenção... Vi as fotografias que a polícia tirou, àquilo que foi encontrado no estúdio. Mostram uma garrafa de uísque meio vazia, uma garrafa de bourbon completamente cheia, e no frigorífico havia coca-cola, soda e vinho branco. Não há qualquer referência a champanhe ou a copos com batôn. Porquê a mentira, Hugh?

Hugh Loredon encolheu os ombros e fez um sorriso que se transformou num esgar de dor.

- Porque está a ser cabeça dura, Max. Não está a pensar como deve ser. Você não deve saber nada, mesmo nada, a respeito do assassínio de Madeleine. Por amor de Deus, você e a Anne-Marie estavam em Itália. Do ponto de vista da polícia, tudo o que está na pasta é considerado como prova. Do seu ponto de vista é um tesouro recuperado... esboços, notas, estudos, diários, cartas, tudo material que dentro em breve valerá uma fortuna.

Hugh levantou-se da cadeira e foi a coxear até à porta para dar passagem ao criado que trazia o jantar.

Comeram pouco. Mather não sentia capacidade para enfrentar uma refeição pesada. Hugh Loredon não tinha sequer apetite. Contentou-se em mordiscar algumas bolachas com queijo e a fazer que a conversa se voltasse a ocupar da sua partida iminente.

- Quando se pensa no assunto vê-se que é uma loucura. Daqui a quarenta e oito horas vou pagar uma quantia perfeitamente respeitável a um médico holandês perfeitamente respeitável para que este me mate. Fui hoje encontrar-me com ele. É bastante simpático e mostrou-se compassivo. Demorou imenso tempo a certificar-se de que eu compreendia o que se vai passar, e de que trataria de tudo o que tenho a tratar.

- Como explicou ele o que vai acontecer, Hugh?

- É muito simples. Estou na cama. Ele chega, conversa comigo durante uns instantes, deseja-me boa viagem e dá-me a injecção. Diz que não provoca qualquer dor. Que é como chegar a um avião, amarrar o cinto de segurança e adormecer no mesmo instante.

- E quais os sonhos que podem aparecer?

- Não há sonhos, Max. Nada de nada. É aí que reside a beleza de tudo isto.

- Mas não acha que a Anne-Marie vai sofrer por sua causa. Não acha que os seus amigos vão sentir a sua falta?

- Duvido, Max. Duvido muito. Nos dias em que havia leilão eu era o rei da festa. Subia ao estrado com o meu martelinho e todos os olhares se fixavam em mim. Mas quando era feita a última oferta e eu descia os degraus, era como se nunca lá estivesse estado. Os compradores inspeccionavam o que tinham adquirido. Os apostadores desapontados, os papalvos e os mirones iam para casa. Aquilo de que quase sempre precisava para me lembrar que era real era de uma mulher.

- Hugh, quer que fique consigo até ao fim?

- Não. - A resposta foi bastante enfática. - De maneira nenhuma. Gostaria que ficasse em Amesterdão até que tudo acabasse. Assim fica tudo em ordem. O médico é muito pontual. Escolhe uma hora e é então que as coisas acontecem. Vá até ao bar, beba qualquer coisa por mim. Depois telefone à Anne-Marie. Diga-lhe coisas simpáticas. Você saberá o quê. Ela acabará por receber uma carta minha através do consulado dos Estados Unidos. Haverá uma para si também. Agora fale-me de si.

- Você sabe tudo o que há para saber, Hugh. Ando à procura de um lugar no mundo dos negócios. Acho que conseguirei obter lucros na Europa.

- E quanto aos Rafaéis?

- O artigo irá ser publicado no princípio de Abril. Penso que provocará uma onda de correspondência, bem como de actividades semelhantes. Entretanto, Seldes e Henri Berchmans resolveram unir esforços.

- É uma boa equipa. E onde é que você entra, Max?

- Não entro, sou a partícula flutuante. Gosto das coisas assim.

- Não flutue durante demasiado tempo, rapazinho. Acabará por se desabituar de viver com estabilidade. Sempre achei que me saía bem com as mulheres, que tinha sempre uma observação, uma anedota ou cumprimento que me garantia cama para a noite. Levei bastante tempo a compreender que precisava apenas de três palavras: "Queres? Não queres?" Isto faz que as coisas se tornem mais fáceis. No entanto, o mais difícil era saber o que lhes dizer depois. Esta noite era para o levar até à cidade, Max, mas estou estafado. É melhor deixarmos para amanhã.

 

Na manhã seguinte saíram cedo ao encontro de um sol primaveril. Percorreram a Prinsengracht e a Keizersgracht, ambas com as suas casas de tijolo vermelho e altas empenas, não esquecendo as tílias que faziam que a água oleosa ficasse cheia de manchas escuras. Foram encontrar o jovem Cornelis Janzoon num estúdio localizado numas águas-furtadas perto da velha igreja de S. Nicolau. O pintor documentava com uma exuberância hogarthiana a nova subcultura que florescera na cidade velha- drogados, chulos, prostitutas, poliglotas que traficavam cocaína, heroína, e todas as outras drogas características da farmacopeia do submundo.

Era um jovem escanzelado com cerca de 25 anos, mas os traços e as composições que produzia tinham a segurança própria dos seus antecessores, e a paleta que usava era bastante viva devido à extraordinária composição de cores modernas que pareciam vindas de um passado clássico composto por nevoeiros marítimos, tijolos expostos ao tempo, e do céu sombrio das terras baixas. A sua primeira exposição fora bastante bem sucedida, mas os críticos tinham destruído a segunda, de forma que se encontrava na defensiva e era bastante brusco.

- Dizem que aquilo que faço não passa de expressionismo antiquado. Que queres dizer com isso? Eu vivo aqui, exprimo o que conheço. Para além das palavras, que mais conhecem esses filhos da mãe? Qual será a etiqueta que usarão para descrever "A Ronda da Noite"? Reparem no quadro quando forem esta manhã ao Rijksmuseum. Não se põe rótulos numa coisa daquelas. Olha-se apenas... e também se ouve, pois chega a ser possível ouvir aquele maldito tambor.

Animou-se logo quando Mather comprou duas pequenas telas e lhe pediu que mandasse para Zurique fotografias de outros trabalhos. Dez minutos depois estavam a visitar uma jovem nascida em Aarlsmeer, a terra das tulipas, a qual transformava as recordações que tinha das flores em botão em extraordinários assaltos visuais que faziam com que de imediato se pensasse nas maravilhas primevas do acto da criação.

Quando a deixaram e se dirigiram para o Rijksmuseum, Hugh Loredon disse:

- Tenho-me perguntado por mais quanto tempo suportaria estar vivo, o que significa, acho eu, saber quantas dores estaria disposto a pagar desde que fizesse uso de um talento daqueles. O meu problema é que nunca precisei de lutar por nada... a não ser pelo dinheiro e às vezes por uma mulher. Contudo, sentia-me desapontado sempre que conseguia o que queria. Tenho a sensação de que os artistas andam sempre à procura de algo mais, de algo melhor.

"Os seus trabalhos pertencem à terra", citou Mather em voz baixa. "Quanto a eles, sei que a maior parte das vezes atingem um céu que me está vedado.”

- Browning - disse Hugh. - Andrea dei Sarto, o Pintor Perfeito. Certa vez vendi um Dei Sarto em Londres. Houve alguém que me fez conhecer o poema e eu usava-o nos meus discursos... Era meu costume dizer que aumentava o preço em cerca de trinta por cento. Estou cansado. Importa-se se apanharmos um táxi para o Rijksmuseum?

- Se, quiser podemos voltar ao hotel.

- Não, quero mesmo veros Rembrandts. São a minha prenda de despedida.

Max Mather ficou com a sensação de que aquelas eram as palavras mais tristes que ouvira em toda a vida.

 

Quarenta e oito horas mais tarde, numa clínica dos arredores de Amesterdão, uma injecção fatal punha fim à vida de Hugh Loredon. Com bastante honestidade, a morte foi atribuída a uma "paragem cardíaca". As notícias chegaram até Mather quando este se encontrava no seu quarto do Amstel Hotel. Telefonou logo a Anne-Marie. A conversa foi breve e fria.

- Max, é tão bom ouvir-te. Onde estás?

- Em Amesterdão. Ouve, receio ter de te dar más notícias.

Ouviu a forma como a respiração dela parou, e depois a sua voz, muito fraca e infantil.

- Más como?

- As piores. O teu pai perdeu a consciência a noite passada. Há muito que sofria de cancro terminal. Levei-o para uma clínica. Morreu há alguns minutos. Lamento, querida, lamento mesmo muito.

- Por que razão não me disseram antes? Por que razão ele não telefonou, ou mesmo tu, Max?

- Ele quis assim, nada de despedidas, de lutos. Amava-te demasiado para te fazer uma coisa dessas.

- Não, Max. - A voz dela revelava raiva. - Não foi nada disso. Ele pura e simplesmente não conseguia enfrentar nada de desagradável... Que vai acontecer agora? O funeral, os... os preparativos?

Está tudo pronto. O Hugh deixou tudo controlado.

- Menos eu, Max. Sou a sua filha. E não estou nada em ordem. Como é que ele pensou que eu iria enfrentar isto?

- Ele amava-te, querida. Tens de acreditar nisso.

- À maneira dele, claro. Mas não o suficiente para achar que talvez eu precisasse de lhe dar um beijo de despedida. Só isso, Max, dar-lhe um beijo de despedida. Foi a ti que ele chamou, não a mim.

- Queres que regresse a Nova Iorque? Posso estar contigo dentro de dez horas.

- Não. Fica. Mantém tudo em ordem, acima de tudo isso, mantém tudo em ordem. Agora vou desligar, Max. Preciso de chorar, mas parece que me esqueci do lugar onde deixei as lágrimas.

Desligou passados breves instantes, e Mather ficou só com a tarefa de derramar algum vinho em memória do pálido fantasma de Hugh Loredon. Foi então que, vindo de um qualquer poço escuro da memória colectiva, lhe chegou a convicção de que havia outros fantasmas a enterrar, e que o mais sinistro de todos era o de Madeleine Bayard. Era um espírito demasiado poderoso para se acalmar com vinho derramado. Tinha de ser convocado, confrontado, intimado a declarar-se bom ou mau, e depois ser exorcizado segundo todos os preceitos.

Sentou-se à enorme secretária de embutidos, puxou de um maço de folhas pertencentes ao hotel, e começou a escrever:

 

Não conheci Madeleine Bayard. Encontrei-a apenas nas telas, nas conversas que mantive com os seus amigos e a amantes, nos documentos da polícia, na austera paisagem da recordação que é agora habitada pelo marido. Apesar de tudo isto, o seu fantasma assombra-me. E como se ela fosse uma bela peneira cheia de graça, e, contudo, igualmente sinistra, que paira entre mim e o Sol.

Tenho de a convencer a descer e a pousar no meu pulso, a ficar quieto o tempo suficiente para lhe colocar a peia e fazê-la falar sobre os céus altos e azuis que lhe servem de morada, pois para mim trata-se de algo mais que um pássaro qualquer: é uma ave mágica, algo que cavalga a tempestade, e desafia o deus-sol...

 

Foi tomado por uma onda de energia e as imagens começaram a formar-se ininterruptamente no seu espírito, tal como as chamas de uma fogueira. As palavras saíam-lhe da caneta e o manuscrito avolumava-se a seu lado, tão claro como os próprios textos de Madeleine Bayard.

Três horas depois estava tudo terminado. Não voltou a ler, colocando-o de imediato num sobrescrito, junto com uma nota para Leonie Danziger:

 

Cara Leonie:

Hugh Loredon faleceu hoje em Amesterdão. Foi um fim pacífico mas demasiado solitário para um homem que gostava tanto de conviver. Tivemos uma conversa bastante longa antes da sua morte, e você encontrará ecos dela nas páginas que se seguem. Ele também falou a seu respeito. Contar-lhe-ei o que disse quando nos voltarmos a encontrar.

Aqui, escrito com sangue e lágrimas- que nem sempre me pertencem - está o artigo sobre Madeleine Bayard. Garanto-lhe que não conseguiria fazer nada melhor e mais honesto. Deixo ao seu critério decidir se deverá ou não ser publicado. Se se decidir pela publicação, deixo igualmente ao seu critério a forma de redigir. Assim que estiver satisfeita, passe as cópias a Edmund Bayard, Anne-Marie Loredon e Harmon Seldes.

Gostaria que falasse com o Seldes a respeito da possibilidade de o artigo ter maior impacte se fosse publicado no New York Times Review pois a tiragem não demora tanto como a da Belvedere. Quero que a exposição de Anne-Marie cause sensação. Seria bom que lhe telefonasse. O Hugh recusou-se a trazê-la para a Europa naquilo a que ele chamava um velório. Como é evidente, ela ainda está bastante perturbada. Todos nós precisamos de partilhar os desgostos... e é isto que me faz regressar à Madeleine.

Você conheceu-a. Dela recebeu tanto dor como alegria. No meu memorial tento respeitar a sua privacidade, bem como a de todos os outros. Espero ter composto um perfil que seja aceite por todos como autêntico.

 

Por favor, escreva ou telefone para Zurique. Amanhã parto para St. Moritz onde praticarei esqui durante vários dias, seguindo depois para Itália, onde ficarei uma semana.

Com os melhores cumprimentos.

Max

 

Desceu as escadas e entregou o sobrescrito ao porteiro para que o fizesse chegar a Nova Iorque via correio nocturno. De uma certa forma, este era um acto terminal. Já participara o suficiente nos jogos e nas festas alheias. Era altura de voltar à estrada e de tratar dos seus próprios negócios. Tinha ainda de encontrar um fim para a história, mas estava confiante a esse respeito. Primeiro tinha de aclarar as ideias, tonificar o corpo, planificar o futuro tendo em vista objectivos simples e saudáveis. O melhor local para fazer tudo isto era em Engadine, na última neve e nas últimas pistas altas do Inverno.

 

Houve alguns bons nevões naquele fim-de-semana. Badrutts Palace estava praticamente cheio. Esta era a época de que os que ali iam com regularidade mais gostavam: as últimas demonstrações do Inverno, as primeiras promessas de Primavera, isto quando o degelo ameaçava e as grandes placas de neve se começavam a soltar. Nos velhos tempos Max costumava ir até lá com Pia. Continuava a ser membro do Corviglia Club. O pessoal do hotel reconheceu-o e recebeu-o como a um convidado de honra. Não que desta vez se encontrasse sozinho. Ainda deprimido devido à experiência que tivera em Amesterdão, ainda preocupado com Danny Danziger, convidara Gisela Mundt para o acompanhar no fim-de-semana. Ela concordara que praticar esqui em St. Moritz era uma ocupação legal. Os prelúdios e posfácios deste acto talvez levantassem algumas objecções, mas não eram minimamente ilegais. Por tudo isto, sim, teria todo o prazer em o acompanhar.

Durante a viagem, e a título experimental, ela começou a propor-lhe um novo plano para dispor dos Rafaéis.

- Se estiveres disposto a isso, encara este caso como sendo de solução difícil. Apesar de eu e o Alois sermos colegas, não partilho da opinião dele quando acha que podes colocar os quadros no mercado sem que haja litígio... Já lhe disse isto. Entre nós não existem segredos. Seja qual for o preço de que falemos... cem, duzentos milhões, trata-se de um prémio elevado. Todos os maiores cérebros do mundo da lei estarão desejosos de trabalhar no caso, e juro-te que este pode durar anos a fio, e, no caso de perderes, o que bem pode acontecer se houver muitos recursos, irás à falência.

- Nesse caso que sugeres?

- Que pelo menos consideres a solução dos dez por cento.

- Qual é ela?

- A fórmula com a qual todas as companhias de seguros trabalham. É mais barato pagar dez por cento para recuperar bens perdidos ou roubados, que pagar o valor total do seguro. De facto, a escolha é bastante simples. Que preferes: ter dez ou vinte milhões garantidos, ou cem milhões empatados na precária situação que um processo judicial significa?

- Gostaria de reflectir a esse respeito - disse-lhe ele.

- És o cliente - retorquiu Gisela amigavelmente. - Eu aconselho-te, mas no fim aceito as tuas instruções.

 

No dia seguinte, já a manhã ia avançada, Mather e Gisela pegaram nos esquis e subiram até ao Corviglia Club, tencionando almoçar por lá e depois esquiar até casa. No clube teve lugar a habitual ronda de apresentações de membros vindos de Itália, França, Grã-Bretanha e Alemanha Federal. Para Max isto foi uma das maiores vinganças que o tempo lhe proporcionou. A primeira vez que ali chegara não passava do amante dependente de uma viúva rica. Agora, devido a uma qualquer estranha mudança, aceitavam-no como a um novo indivíduo - recém-nascido mas simultaneamente adulto - cujo passado, exactamente como o de muitos frequentadores do Corviglia Club, era visto apenas como uma forma natural de chegar ao presente. É certo que as fortunas e as linhagens antigas ainda tinham o seu peso, mas, e em todo o mundo, qual seria o clube capaz de sobreviver sem o dinheiro novo e o encanto das colunas sociais trazido pelos arrivistas? Mather e a sua companheira sentiam-se algures no meio termo - eram um par de letrados que compreendia os modos do clube e da corte, e que sabia comer sopa sem fazer barulho nem sujar nada.

De imediato Gisela Mundt se transformou numa atracção. Foi rodeada por um grupo de jovens membros, isto enquanto Mather era literalmente encostado à parede por um italiano já de idade cujo nome era sinónimo de vinhos, e que, de forma maçadora, lhe dava uma palestra sobre as loucuras do clã Palombini, o por que razão nenhum dos membros da geração mais nova acendia velas a Luca, o Escroque.

- Então conheceu-o? - Mather era sempre bom ouvinte.

- Bastante bem. Era quinze anos mais velho que eu, o que faria que hoje andasse na casa dos 80. Contudo, quando regressei ferido da Líbia... Dio! Já lá vai tanto tempo! ... e comecei a trabalhar no nosso património, foi bastante amável comigo. Comprou-nos muitos produtos, ajudou-me a exportá-los para Europa. Era um homem duro mas leal. Dizia que todos os tolos precisavam de uma lição, e se nada aprendessem com ela, então não havia qualquer esperança para eles. Vocês os dois dar-se-iam bem. A propósito, devo dizer-lhe o seguinte: a forma como tratou Pia é merecedora dos maiores elogios...

- Que mais podia fazer? Amava-a.

- Foi precisamente isso que levou mais tempo a compreender - retorquiu o velhote secamente.

- A propósito de Luca...

- Sim?

- Tinha uma namorada famosa, não tinha?

- Tinha muitas... às vezes duas ou três ao mesmo tempo. Estava a pensar em alguém em particular?

- Camilia Dandolo.

- A cantora de ópera? Sim lembro-me dela. Para falar com franqueza, alguns de nós lembram-se dela de uma forma especial... não era uma grande cantora, mas tinha inúmeros talentos! Que queria saber a seu respeito?

- Casou-se com um brasileiro?

- Não, com um alemão naturalizado brasileiro. Muitos de nós tivemos algo a ver com essa combinazione. Pertencia às S. S., tinha um cargo importante e era bastante incómodo. Fizemos um acordo com ele em como o faríamos sair do país e chegar à América do Sul antes de os Aliados o apanharem, desde que nos livrasse a todos. Camilla fazia parte do negócio... ela e muitas outras coisas. Ele estava maluquinho por ela, de forma que não houve qualquer problema a esse respeito. O mais extraordinário de tudo é que voltou em 1947 ou coisa parecida, e casou-se com ela. Por que razão está interessado na senhora?

- Ando a fazer umas leituras preliminares para a realização de um livro sobre as divas do La Scala e deparei com o nome dela.

- É um assunto fascinante. Pergunto-me por que razão ninguém pensou nisso antes. A próxima vez que for a Itália vá visitar-me. Tenho a certeza de poder fornecer-lhe algum material de família. Todos os nossos homens se interessaram por ópera, muito embora não pelas divas mas sim pelas jovens soprano promissoras. Deixe-me dar-lhe o meu cartão.

- Obrigado. Quanto a Camilla Dandolo... ainda é viva?

- Sim. Vive em Milão. Hoje em dia é uma velha senhora. O marido morreu há alguns anos. Depositou todo o seu património brasileiro, o qual, e segundo todos dizem, era enorme, e voltou para casa. Tenho a certeza de que ficará bastante satisfeita por o receber. Os velhos soldados gostam sempre de ter auditório.

Mais tarde, quando se sentaram para almoçar, Gisela fez notar o seguinte: - Tens ar de quem lhe está a correr tudo bem. Que aconteceu?

- Decidi aceitar o teu conselho.

- A respeito dos Rafaéis? E por que não? É como ter um bilhete de lotaria. Só podes perder depois de ter comprado um. Agora não te importas de responder a algumas perguntas?

- Sobre o quê?

- Pia Palombini. Parece que eram amantes. Amantes bastante famosos. - Famosos, não sei. Amantes, sim.

- Ela ficou doente e cuidaste dela até à hora da morte?

- sim.

- Estavas apaixonado?

- Amava-a. Não é bem a mesma coisa.

- Que idade tinha ela?

- Quarenta e seis... era onze anos mais velha que eu.

- Acho que está bem.

- O quê?

- A igualdade da oportunidade. Se ninguém leva a mal que os homens andem atrás de mulheres mais novas, aprovo a ideia de que mulheres de uma certa idade arranjem namorados mais novos. De qualquer das maneiras, a maior parte deles precisa de receber educação. Sabias que Mr. Benjamim Franklin se pronunciou a este respeito?

- Acho que sim.

- Estou a embaraçar-te, Max?

- Sim.

- Óptimo.

- Óptimo porquê?

- Porque isso só vem confirmar algo que senti na primeira vez que te vi. És alguém que durante muito tempo não confiou em si mesmo, que nunca se sentiu em condições de enfrentar os desafios. Foi por isso que sempre te viraste para mulheres mais velhas... e mais ricas.

- Acho que já foste longe demais. - Max estava tenso, - Começaste na brincadeira. Agora é maldade. Acaba de almoçar e vamos fazer a tal corrida.

Não é maldade nenhuma. - Ela colocou a mão nos seus dedos crispados. - É um elogio. Tenho à minha frente um homem cuja confiança em si mesmo cresce de minuto a minuto e se torna sólida como uma rocha. Admiro isso e fico feliz por ter vindo para Engandine contigo.

Não terás dificuldade em arranjar quem te leve a casa. - Mather brindou-a com um sorriso triste e descontraiu-se. - Não queria zangar-me. Desculpa.

Tens todo o direito a fazê-lo. O meu pai dava cabo de mim se eu me portasse mal com os meus irmãos.

- Que é que o teu pai fazia?

- Era agricultor. Isto significa que tinha de ser o homem dos sete ofícios: pedreiro, ferreiro, carpinteiro, parteiro de animais. Era também maler, um artista rústico que pintava quadros nas paredes das casas. Eu achava-o melhor que Dürer. Foi por isso que toda aquela conversa durante o jantar na casa de Alois Liepert me fascinou. - Hesitou durante um momento e depois deixou sair o seguinte: - Estou contente por pertencer, nem que seja só um bocadinho, a tudo aquilo que estás a fazer na Suíça. Não me refiro aos Rafaéis, mas sim ao resto do plano.

- Por que razão excluis os Rafaéis?

- Porque me encontro envolvida num conflito de interesses bastante difícil.

- Qual é ele?

- Face à lei tens todo o direito de fazer o que fazes. Comprometi-me a defender esse direito. Mas enquanto uma antiquada rapariga do campo, acho que a tua conduta merece ser repreendida. Pronto, já disse. Podes dispensar-me das funções de tua advogada e pôr-me no próximo comboio para Zurique.

Ele abanou a cabeça.

- Não te vais escapar com tanta facilidade. Da primeira vez que nos encontrámos disseste que tinha de me decidir sobre qual a saída moral a adoptar. Que há de novo?

- Nada. Só que a minha consciência obrigava-me a dizer isto.

- Estragaste o meu almoço - disse ele encolhendo os ombros. - Vamos andando. O caminho para casa é bastante longo.

Não se tratava de um caminho. Consistia, sim, numa espécie de transversais, cada uma com o seu próprio risco, mas quando chegaram à cidade, rosados e sem fôlego, Mather sentiu que a esperança lhe voltava. De todas as mulheres que conhecera esta era a menos complicada, a menos... (tentava encontrar a palavra apropriada)... a menos tocada pelas convenções sociais e o estranho discurso da sociedade de consumo. À medida que, carregado com os esquis de ambos, descia com dificuldade até ao hotel, deu consigo a responder às perguntas que ela lhe fazia cada vez com menos reservas.

- Que fazia o teu pai, Max?

- Era professor, um professor bastante bom.

- E que ensinava ele?

- Línguas europeias. Linguística comparada. Literatura inglesa. Era um homem versátil.

- E a tua mãe?

- A minha mãe era uma dama. Descendia de uma família de posses que sempre achou que fizera um casamento abaixo do que merecia.

- Meu Deus!

- Queria sempre mais que o que tinha. Enfernizava o meu pai sem dó nem piedade. Ele retraiu-se cada vez mais para o mundo dos estudos. Para o fim até se tornou difícil para mim aproximar-me dele. E se eu gostava dele!

- E da tua mãe?

- Também a amava. Sei que nunca consegui atingir aquilo que ela ambicionava para mim, mas a minha segurança dependia dela. Foi ela quem conseguiu o dinheiro para me mandar para Princeton mas foi o meu pai quem me preparou o espírito. Amava-os a ambos. Nunca consegui entender a razão porque nunca se fizeram felizes mutuamente.

- Tiveste muitas mulheres na tua vida, Max?

- Acho que sim. Nunca as contei.

- E agora tens-me a mim.

- Apenas para o fim-de-semana.

- Sim, apenas para o fim-de-semana e isso não conta. Com qual das tuas mulheres foste realmente feliz, Max?

- Fizeste a pergunta errada. - Mather ficou subitamente reservado. - Acho que nunca soube o que de facto era a felicidade. - Naquele mesmo instante afastou os pensamentos tristes. - Vou fazer sauna e tomar um banho.

Fazes-me companhia?

É claro que tudo isto contribuiu para tornar agradável aquela tarde de sábado, mas não resolveu nenhum dos problemas de Max Mather.

 

Nessa noite jantaram no Stübli, onde não era preciso vestir a rigor. O local estava cheio e no ar ecoava uma enorme mistura de línguas. A meio da refeição deu-se um súbito abrandamento nas conversas, e então ouviu-se falar italiano numa mesa vizinha. Aquela voz era familiar. Mather deu meia volta na cadeira e encontrou-se frente a frente com Claudio Palombini, o qual estava junto com dois homens num assento perto da janela. Pediu desculpa a Gisela, levantou-se e foi cumprimentá-lo.

- Claudio, como vão as coisas?

- Max! - Naquele mesmo instante Palombini - estava de pé a abraçá-lo. - Que surpresa! Que faz por aqui? Este é o Giarmi Ruspoli, o nosso controlador financeiro. Marcantonio, o meu primo, trata dos nossos negócios aqui. Traga a senhora e junte-se a nós. Que foi que o trouxe à Suíça?

Era fácil partilhar com eles a euforia colectiva do momento. Mostraram-se interessados quando ouviram falar no projecto da galeria, no emprego na Belvedere, no consórcio. Gisela não teve quaisquer dificuldades em entrar na conversa.

No entanto, quando Max encarava o homem a quem estava a roubar o património, era-lhe bastante difícil dominar o sentimento de culpa que sentia.

Apenas o conseguia porque tinha bastante prática em disfarçar. A conversa era generalizada, fluente e fácil, até à altura em que Mather endereçou uma pergunta a Claudio.

- Como vão os negócios? Quando me escreveu parecia estar triste.

- Bah! - A palavra produziu uma explosão de sons. O gesto que a acompanhou exprimia desespero e impotência. - Estamos aqui para falar com os gnomos. A minha querida tia, Deus a tenha em descanso, a sua amada Pia, deixou-me um ninho de víboras como herança. A nossa esperança era a colecção de arte, mas essa, como é do seu conhecimento, vale pouca coisa. Daqui a três meses estaremos metidos em apuros. Se não nos prolongarem os empréstimos ou se não tivermos uma nova injecção de capitais, é bem provável que tenhamos de vender uma das nossas propriedades. E com o mercado actual a tarefa não será fácil.

- Lamento muito. - A preocupação de Mather era genuína. - Não fazia ideia. E como podia fazer? - Nesse mesmo instante Claudio retomara a sua dignidade. - Era, continua a ser, um assunto de família.

- Tem razão. Desculpe.

- Precisamos de um milagre. - Giarmi Ruspoli tentou aliviar a tensão que se gerara. - Tal como o do pão e dos peixes.

- Ou desses Rafaéis acerca dos quais me escreveu. - Claudio riu quando disse isto, mas a gargalhada tinha um som oco. - Tenho sonhado com esses malvados quadros. Andam a dançar à minha frente, fora do meu alcance.

- Acredita que existem hipóteses de eles aparecerem?

- Depois destes séculos todos? - Marcantonio mostrava-se céptico.

Seria um milagre ainda maior que o dos pães e dos peixes! Para além disso, como é que se garante o direito de posse depois de quase cinco séculos?

- Talvez não sejam cinco séculos - disse Gisela. Todos se viraram para ela, e esta sorriu-lhes por cima dos aros dos óculos. - A primeira vez que ouvi esta história senti que terminara demasiado depressa.

Claudio pôs-se logo alerta.

- Talvez possa explicar as coisas com mais clareza, não, Signorina?

- Com certeza. Corrija-me se estiver errada. Max Mather trabalha como arquivista para os Palombini. Conjuntamente, faz pesquisas a título individual. A patroa, a sua tia Pia, morre. Fica sem emprego. Volta para os Estados Unidos mas continua com as suas pesquisas, no decorrer das quais descobre uma entrada num velho livro de registos, a qual diz respeito a uma encomenda feita ao pintor Rafaello Sanzio. Está para ser publicado um ou vários artigos a respeito da descoberta. Certo?

- Em todos os pormenores - concordou. - E agora?

- Essa é a minha pergunta. Têm-se feito trabalhos de investigação que permitam traçar a história das peças? Terão sido oferecidas como presentes? Se assim foi, a ocasião deve ter sido suficientemente importante para merecer registo. Quando foi a última vez que a colecção foi enumerada, isto se alguma vez o foi? Parece-me que vocês estão a deixar escapar o vosso bem mais precioso. Quem mais sabe tanto sobre o arquivo Palombini como Max Mather?

- Madonna Mia! Marcantonio, soltou um assobio de surpresa. - vimos aqui para Engandine e encontramos uma sibila. Ela tem razão, Claudio. Desde 1500 que aconteceram muitas coisas.

- E nos últimos tempos também - acrescentou Ruspoli. - Os fascistas, os alemães, Luca, l'ingannatore!

- Já chegamos a uma conclusão - observou Claudio de forma breve. Não vamos especular a esse respeito. - Virou-se para Mather. - Max, este é um assunto que podemos discutir em Florença. Sei que os seus compromissos e ambições o levam para outros lados, mas talvez ... ?

- É melhor discutirmos o assunto - concordou ele.

- E já que me pagas para te aconselhar - comentou Gisela em tom alegre eu redijo o contrato.

- A Signorina é advogada? - Era Marcantonio quem perguntava.

- E bastante cara. Também ensino jurisprudência. A minha especialidade são os contratos medievais e a sua evolução até ao direito actual. Se quiser, pode testar os meus conhecimentos sobre os bens móveis ... aquilo que os quadros são e as mulheres eram. Sei tudo sobre apropriação de artigos perdidos, quais os direitos de quem os encontra, não esquecendo a sua restituição. Mas vocês farão melhor negócio se ficarem com o Max. Agora vão desculpar-me, cavalheiros. Sei que têm negócios para discutir e o meu dia já vai longo. Sendo assim, boa noite.

Quando ela partiu, Palombini mandou vir mais bebidas, e até à chegada destas manteve uma conversa sobre trivialidades. Fossem quais fossem os vícios dos italianos - e tinham muitos - o estilo era a sua maior virtude. Tinham estilo na adversidade, no amor e na amizade. Podiam não ter onde cair mortos, mas os sapatos estavam sempre engraxados, o fato puído sempre engomado, a camisa imaculada, e as faces macilentas barbeadas. Quando alguém lhes tocava o coração, faziam-no pertencer à família. Quando odiavam faziam-no com grandeza.

Claudio Palombini, descendente dos porta-estandarte de Florença, estava prestes a falir, no entanto fazia-o com elegância, meio esperançado num qualquer milagre. Enquanto isto, Max Mather, erudito, homem de inteligência e respeito, tomava a sua bebida, sorria tal qual um lago, e perguntava-se se devia abençoar ou amaldiçoar Gisela Mundt.

Marcantonio passou-lhe a bebida que lhe pertencia, e começou a interrogá-lo.

- Encontrou uma rapariga esperta, Max. Que pensa da ideia dela?

- óptima em teoria. Na prática existe uma probabilidade em cem de que dê resultado. Aqui o Claudio sabe qual o aspecto do arquivo... Milhares e milhares de livros, fólios, maços de papel em decomposição. As vossas probabilidades de encontrarem qualquer coisa são de uma num milhão. Nunca poderiam pagar-me pelo trabalho que uma tarefa dessas exigiria. Mas deixem-me explicar-vos o que vai acontecer sem que nem eu nem vocês possam fazer qualquer coisa.

Seguindo uma sequência cuidadosa, explicou-lhes a forma como Seldes e Henri Berchmans se tinham unido, e, com os contactos que possuíam em todo o mundo, iriam passar o mercado a pente fino numa tentativa de descobrirem os quadros desaparecidos. Deu-lhes uma pequena lição sobre os estatutos de limitações e autenticidade, não esquecendo as dificuldades existentes em provar o direito de posse. Depois disso, disse:

- Mas assim que Seldes e Berchmans descobrirem a maneira de chegar às obras, bem podem esquecer a ideia de as reaver. Esses dois vão fazer-vos ficar pendurados durante vinte anos, e antes mesmo de vocês dizerem "Santinho!", já os Rafaéis passaram à clandestinidade. Fazem alguma ideia de quanto é que aquelas peças valem hoje em dia?

- Milhões - respondeu Ruspoli.

- Mas quantos milhões? - inquiriu Palombini, acrescentando de forma sombria: - A propósito, precisamos de vinte milhões dentro de noventa dias!

- Os retratos valem não menos de cinquenta milhões de dólares cada. Podem muito bem chegar aos cem. Os esboços não ficam por menos de milhão e meio cada um. Sendo assim, aquilo que têm de perguntar a vocês mesmos é o valor do preço ou da comissão que estão dispostos a pagar para os reaver... isto depois de terem sido considerados autênticos e de não estarem danificados. Lembrem-se de que não pode ser menos de dez por cento, pois essa é a importância que o seguro oferece por um artigo que tenha a coberto.

- Dez, quinze, vinte, que interessa? - perguntou Marcantonio. - Só se paga depois de ter resultados, e eu não me importaria nada de pagar vinte para ter oitenta milhões no meu bolso neste preciso momento. Pensa nisto, Claudio.

- Estou a pensar - respondeu o outro. - Gostaria de saber se aqui o Max também está disposto a pensar nisto.

- Talvez... sob certas condições.

- Quais?

- Apenas se existir um contrato que sirva a ambos.

- Tenho a certeza de que isso se resolve depressa.

- E só se me derem carta branca e não tenha necessidade de responder nada.

- Não entendo - objectou Gianni Ruspoli. - Se pagamos devemos ter direito a...

Não terão de pagar um tostão até que os artigos se encontrem disponíveis - interrompeu Max. - Se houver alguém com direitos sobre eles, não há outra forma de os recuperarem senão pagando o preço do mercado. Mas se os direitos dessas pessoas forem duvidosos, então talvez, e só talvez, se possa aplicar a situação dos dez por cento. Mas as condições serão sempre as mesmas: nada de perguntas, nada de respostas. É impossível trabalhar de outra maneira.

- Digamos então que a nossa última oferta é de quinze por cento - sugeriu Ruspoli.

- Não vamos dizer nada até que eu e o Max conversemos em Florença. - Claudio voltava a estar no comando. - Penso estar a compreender a posição do Max. Recusa-se a representar-nos. Tem em vista outros projectos pessoais que lhe trarão vantagens. Se o queremos, temos de ser nós a fazer a proposta. Certo, Max?

- Certo, Claudio... agora gostaria de pagar a última rodada da noite.

- E talvez nos conte a verdade a respeito da proveniência da pequena Gisela.

- Por que razão ninguém acredita em mim? - queixou-se ele. - Já vos disse. É minha advogada em Zurique.

- E eu que sempre pensei que as suíças mordiam, especialmente as advogadas suíças.

- É reconfortante não se ter preconceitos - respondeu Max. Levantou o copo. - À nossa saúde!

A medida que levava o copo à boca entendeu claramente qual a natureza da palavra danação: que era o próprio que a infligia a si mesmo, e que era irreversível. Comia-se a refeição que se tinha cozinhado, muito embora esta se transformasse em fogo quando atingia a garganta. Bebia-se a taça do traidor até à última gota, mas mesmo antes de esta ser pousada, estava de novo cheia de fel. As mentiras anteriormente contadas estavam gravadas na pedra, e era-se obrigado a levantá-las acima da cabeça como prova de que se era infame.

 

Na manhã de segunda-feira, quando chegaram à estação de Zurique, Gisela entregou-lhe um sobrescrito bastante pesado, dizendo-lhe:

- É a minha forma de agradecer um fim-de-semana maravilhoso.

- Que é?

- O produto de três horas de trabalho enquanto dormias. É a minha versão do único contrato que deverás assinar com Claudio Palombini. Acho que é um bom documento, tenho orgulho nele.

- E como te agradeço?

- Limita-te a beijar-me e telefona-me!

Fez o que lhe era pedido em primeiro lugar, e prometeu fazer o resto. Depois enfiaram-se num táxi e mantiveram-se de mãos dadas até chegarem à casa dela, onde nesse mesmo instante ela se transformou na Fraulein Doktor Mundt, advogada, professora de jurisprudência, e uma autoridade em direito europeu no que respeitava a bens móveis.

Quando chegou ao seu apartamento, Mather encontrou à sua espera cartas, mensagens e encomendas. Uma Miss Loredon, bem como um Mr. Bayard, tinham-lhe telefonado de Nova Iorque. Como agora deveriam estar a dormir, telefonar-lhes-ia mais tarde. Havia também uma nota de Paris, de Henri Berchmans:

 

Você fez-me um favor bastante especial. O mínimo que posso fazer é retribuí-lo. Por favor, informe Miss Loredon de que terei todo o prazer em expor as minhas telas de Madeleine Bayard na abertura da galeria com o estatuto de artigos não vendáveis. Espero que a ocasião chegue depressa.

 

Havia um pacote de fotografias da parte de Anne-Marie, bem como as cópias do catálogo e das notas biográficas. Mather telefonou ao jovem comerciante a quem as prometera. Este arranjou um mensageiro para as ir buscar. Ficou impressionado com a rapidez e eficiência reveladas pela resposta de Max, e faria todos os possíveis para ser igualmente enérgico. Podia partir do princípio de que, se fizessem negócio juntos, usufruiria do habitual desconto devido aos intermediários? Claro, concordou Mather, e as coisas ficaram por aí. Finalmente, havia uma carta de Leonie Danziger, a qual fora enviada no correio transatlântico.

 

Meu caro Max:

O seu artigo sobre Madeleine Bayard chegou na sexta-feira. Li-o de imediato. Depois li-o mais três vezes durante o dia. Fiquei assombrada com ele. Não consegui compreender - e ainda não consigo - como é que você, que nunca a conheceu, conseguiu agarrar com tanta rapidez e certeza a essência da natureza desta mulher, bem como a extraordinária influência que ela exercia sobre tantas pessoas, nas quais me encontro incluída.

Tenho a certeza de que nunca lhe falei da minha relação com a Madi, mas é óbvio que deve saber a esse respeito, e é ainda mais evidente que se aproximou bastante da compreensão da sua natureza complexa. Você expressou o medo que eu talvez pudesse sentir de que o seu texto me violentava. Pelo contrário, a sua compreensão enriquece-me. Não posso falar pelos outros, apenas por mim.

Tal como me pediu, entreguei uma cópia a Edmund Bayard. Entreguei-lha pessoalmente e expliquei-lhe os poderes que me dera enquanto sua redactora. Ele pediu-me para esperar no escritório enquanto lia o artigo. Este afectou-o deforma extraordinária. A sua expressão mudava constantemente. Sorria, franzia a testa, houve mesmo uma ocasião em que pensei vê-lo rebentar num pranto. Quando acabou tirou os óculos, esfregou os olhos, limpou as lentes... em suma, toda uma série de pequenos movimentos destinados a adiar o comentário. A única coisa que disse foi: "Como pode ele saber tanto?" Quando lhe disse que devia estar agradecido com um epitáfio tão elegante, limitou-se a concordar com a cabeça. Estava ainda demasiado comovido para dizer muita coisa, mas aprovou a publicação.

Tudo isto nos leva a Anne-Marie Loredon. Tal como me pediu, telefonei-lhe. Foi muito calma, muito reservada, tentando ainda aceitar o facto de o próprio pai a ter excluído do seu ritual fúnebre. Acho que seria capaz de lho explicar, isto se ela estivesse disposta a ouvir-me, mas a ferida é demasiado profunda. Está a precisar de que você compartilhe das suas dores.

O último da lista é Harmon Seldes. Expliquei-lhe que o artigo ficaria melhor no New York Times Review, e que facto seria da maior utilidade para a exposição. Ele fez o seu dramazinho do costume. Que você é um dos redactores adjuntos, que tratou tudo com ele... o que até é verdade. Também não deixa de ser verdade que ele sabe que o artigo é belíssimo, comovedor, sensacional, e não quer ficar sem ele, Discutimos durante cerca de uma hora, depois ele acabou por concordar em imprimi-lo à laia de separata na edição de Abril, isto desde que - e é aqui que vemos que não dá ponto sem nó - Anne-Marie Loredon pagasse um anúncio para a contracapa. Ela já reconheceu a importância do artigo e já concordou em fazer esta despesa, de forma que está tudo arranjado. Se quiser, pode pagar algumas reimpressões, as quais são bastante úteis para vender na província e no estrangeiro.

E eis-nos chegados à velha pergunta, meu caro Max. E agora? Para mim é mais fácil de responder que aquilo que esperava. Com a morte de Hugh Loredon já não há ninguém para troçar das minhas loucuras e fazer-me sentir inferior ao que sou. Tal como aconteceu com Madeleine Bayard, aquilo que escreveu elevou-me a um local mais alto, de onde posso ver os contornos das coisas. Encontrei uma nova amiga. Chama-se Carol e, tal como a Madi, é artista. Mudou-se para cá. Estamos a aprender a ser felizes juntas. Espero que goste dela.

Dir-lhe-ei muito mais quando o vir. Agora posso contar o que antes não podia. À minha maneira, gosto muito de si, Max. Desejo-lhe tudo de bom, até mesmo aquilo que não se atreve a desejar.

Danny

 

Era a primeira vez que ela usava o diminutivo com ele. O facto de o ver ali, na página, comoveu-o de forma estranha. Dizia-lhe que desta vez - senão pela primeira e última vez - quebrava a crosta dura da erudição e dissera uma verdade a respeito das lágrimas das coisas.

Levantou o auscultador e marcou o número do estúdio de Niccoló Tolentino, no Palácio Pitti, em Florença.

A voz que atendeu era dez vezes mais imponente que o homenzinho a quem pertencia - uma voz de barítono rica e aveludada, bastante profunda.

- Aqui Tolentino. Quem fala?

- Max Mather.

- Max, meu querido amigo! Que prazer! Onde estás?

- Em Zurique. Depois de amanhã vou até aí abaixo fazer-te uma visita. Já está tudo preparado. Vais até Nova Iorque.

- Não acredito.

- Eu prometi.

- Eu sei que prometeste, mas a maioria das promessas são como a Madame Butterfly: "um belo dia".

- Desta vez as datas são fixas, e os bilhetes serão comprados. Vais ficar no meu apartamento. Agora vou dizer-te o meu programa. Na manhã de quarta-feira apanho o avião para Milão. Faço tensões de seguir para Pisa num dos voos da tarde, depois vou de carro para Florença. Podemos jantar juntos?

- Claro. As nove. No Gallodoro. Queres que telefone ao Guido?

- Não. Desta vez somos só tu e eu. Temos muito que discutir e grandes decisões para tomar.

- É incrível! - disse Tolentino. - Logo agora que me tinha tornado um descrente convicto é que vai acontecer um milagre.

 

O próprio Max necessitava de um milagre. A chamada que fez a seguir foi para a operadora internacional em Milão, com vista a identificar na lista telefónica o nome de uma viúva cujo apelido era Eberhardt, mas que agora podia ter voltado ao nome de solteira, o qual era Dandolo, ou então a uma combinação de ambos.

Isto não era uma tarefa impossível, mas as operadoras italianas eram conhecidas pela sua falta de paciência e, ao menor indício de dificuldade ou confusão, deixavam as pessoas penduradas na linha a ensurdecer com o sinal de ocupado. Desta vez o milagre aconteceu. A operadora era atenciosa e bem disposta. Encontrou o número em cerca de vinte segundos: Signora Camilla Dandolo-Eberhardt, Via del Orso, 81. Mather anotou o número e o endereço e flirtou com a telefonista durante quinze segundos, altura em que ela soltou uma gargalhada e cortou a ligação. Depois, rezando em silêncio para que outra intervenção milagrosa sucedesse, marcou o número Dandolo-Eberhardt. Depois daquilo que pareceu uma eternidade, foi atendido por uma empregada que exigiu saber com quem estava a falar e a natureza do assunto que queria tratar. Fazendo uso da sua melhor pronúncia Toscana, Mather explicou-se:

- Um velho amigo da família Palombini... da América... estou a escrever um livro sobre as divas do La Scala... - E assim consecutivamente até que a criada, rendida à sua eloquência, consentiu em passá-lo à patroa. Camilla Dandolo parecia estar suficientemente lúcida, mas era rabugenta e desconfiada. Mather teve de passar por tudo de novo e de responder a outras vinte perguntas antes de esta consentir em o receber às onze horas de quarta-feira. Ele prometeu telefonar-lhe do aeroporto caso os voos sofressem algum atraso.

Depois disto foi até ao escritório de Alois Liepert. Conheceria ele alguma agência de viagens de confiança? Sim, conhecia. Será que podia mandar a empregada fazer uma série de reservas e arranjar-lhe um hotel em Florença? Perfeitamente, sem qualquer problema. Para terminar, perguntou ele a medo, seria possível que Alois Liepert desse uma vista de olhos ao plano de um contrato? De preferência agora? Liepert leu o documento com bastante cuidado e depois lançou-lhe um olhar zombeteiro.

Pela parte que lhe toca o contrato é óptimo. Dá-lhe a exclusividade de tratar do negócio dos Rafaéis como o representante da família Palombini. Se os encontrar pode vendê-los ou hipotecá-los, mas não tem de os entregar antes de lhe pagarem. Não é obrigado a declarar a forma como lhe vieram parar às mãos. Pode fazer o que quiser com eles, desde que não se trate de nenhum acto punível por lei... E ninguém poderá ignorá-lo e tratar directamente com a família. A única coisa que tenho a perguntar a mim mesmo é se haverá alguém suficientemente parvo para assinar consigo um contrato destes.

- Mas admite que vale a pena?

- Se o Palombini assinar pago-lhe o melhor jantar de Zurique.

- Combinado. Por favor, pode redigir-me uma pública-forma e copiá-la?

- Uma pergunta sem importância: quem o redigiu?

Mather sorriu. Teve também a gentileza de corar.

- Gisela Mundt. Passámos o fim-de-semana a praticar esqui em St. Moritz.

Alois Liepert recostou-se na cadeira e riu às gargalhadas.

- Meu Deus, afinal a minha mulher tinha razão. Disse-me que entre vocês os dois havia uma certa electricidade. Não acreditei. É uma casamenteira inveterada. Bom, que posso dizer? Estou encantado e espero que dure.

- E não se importa com o contrato?

- Claro que não. Tudo o que posso dizer é que não teria a lata de o redigir, mas se você conseguir alguma coisa, então o bolo é todo seu.

- Só se os quadros forem verdadeiros.

- Claro que essa é a grande interrogação. - Liepert voltou a rir. - Subo a aposta. Pago o jantar aos dois.

Tendo no bolso o contrato e os documentos necessários para a viagem, Mather foi até ao banco, levantou dinheiro para a viagem, e depois retirou do cofre-forte as fotografias dos quadros e dos cinco esboços que tirara há já alguns meses. Sabia que era arriscado tê-las com ele, mas se Palombini assinasse o contrato o risco desapareceria de imediato. Se não, teria de arranjar outra estratégia, e para isso era bem capaz de precisar das fotografias.

Quando regressou ao apartamento fez três telefonemas para Nova Iorque. O primeiro foi para o escritório de Ed Bayard, e a sua primeira pergunta foi a respeito de Anne-Marie.

- Como é que ela está a passar?

- Mal - respondeu Bayard com tristeza. - É muito controlada, muito retraída e bastante certinha. Por mais quanto tempo é que vais ficar fora?

- Mais algumas semanas. Aqui estamos bastante bem organizados. Já te mandei material de Amesterdão e Zurique.

- Os Janzoons são excelentes. Os preços também são bons. Assim que voltares falaremos a esse respeito. Mais uma coisa, Max.

- Sim?

- O memorial que escreveste sobre a Madeleine. Li-o. Fiquei profundamente comovido. Ainda não consigo entender como a conheces tão bem. Gostava de perguntar...

- Ed, não perguntes. Deixa o documento valer por si mesmo.

- Claro que tens razão.

- Tenho boas notícias para ti. O Berchmans deu o seu consentimento para que os quadros que possui sejam apresentados na exposição como sendo dele.

- Isso é fabuloso. É dinheiro em caixa. Como conseguiste?

- Poder de persuasão.

- Claro. Há uma coisa que deves saber, Max.

- O quê?

- Ontem recebi a visita da polícia.

- Algum motivo especial?

- Sim, vieram perguntar-me se havia alguma relação entre a minha falecida mulher e Max Mather.

- E garantiste-lhes que não.

- Claro. O que levou a este inquérito foi uma carta escrita por Hugh Loredon dois dias antes da sua morte, a qual foi depositada na Embaixada dos Estados Unidos em Haia junto com outros documentos para serem entregues posteriormente. Parece que estava lá escrito que quando voltasses aos Estados Unidos estarias em condições de revelar certas coisas que poriam um fim ao caso. Fazes alguma ideia do que isto quer dizer?

- Uma ideia bastante precisa. E não gosto nada dela.

- Posso ajudar?

- Talvez mais tarde.

- O que achas que Hugh Loredon estava a tentar fazer?

- Guardo os juízos para outra altura, e ao telefone vou mantendo a discrição. Então até à vista.

O telefonema que se seguiu foi para Anne-Marie. Não estava preparado para a súbita torrente de afecto que ocorreu quando ela atendeu.

- Max, graças a Deus que telefonaste! Estou a dar em doida. Depois da forma como me comportei no outro dia pensei que nunca mais ias querer falar comigo. Sabia que estava a agir pessimamente, mas não o consegui evitar. És a última pessoa no mundo a quem eu queria magoar. Sabes isso, não sabes?

- Claro que sei. Como te sentes agora?

- Bastante melhor depois de te ouvir.

- Tenho novidades para ti.

- Diz.

- O Berchmans vai emprestar os quadros para a abertura da exposição.

- Que maravilha!

- Acabei de mandar as fotografias para o nosso amigo suíço. Temos de lhe arranjar um desconto na galeria. Tenho a certeza de que se trata de um comprador. Em Amesterdão há um jovem expressionista chamado Cornelis Janzoon, que é excelente. Tenho a certeza de que o podemos fazer expor para nós... e na quarta-feira vou para Florença finalizar os preparativos para a visita de Tolentino.

- São óptimas notícias, Max... Obrigada.

- Como vão as coisas no prédio?

- Mais rápidas do que esperava. Já instalaram os elevadores, a canalização está pronta, bem como quase toda a parte eléctrica, os alarmes e coisas assim. O teu apartamento está quase acabado. A maior parte do que ainda está por fazer é superficial. Estaremos prontos para a abertura, que será na segunda semana de Abril.

- Vamos fazer um sucesso tremendo.

- Li o teu artigo.

- Espero que tenhas gostado.

- Essa não é a palavra certa. Comoveu-me. Fez-me sentir ciúmes. Era como se tivesses estado apaixonado por ela. Mas é um óptimo artigo e será bastante bom para a exposição. Tiraste muitas coisas do Hugh, não?

- Bastantes.

- Contou-te muitas coisas?

- Mais do que eu queria ouvir.

- E aquelas coisas que ele queria que lesses?

- Que coisas?

- Tu sabes, na... oh! - Soltou um pequeno som exprimindo surpresa, como se se tivesse lembrado de algo. - Esquece, devo ter estado apensar noutra coisa. Nestes últimos dias tenho tido muito em que pensar.

- Todos temos, querida. Como vão as coisas entre ti e o Bayard?

- Calmas. Tem-se mostrado muito protector, muito delicado. Sei que se sente aliviado por o Hugh já cá não estar, mas não o culpo por isso.

- E tu? Como te sentes?

- Até teres telefonado não sentia absolutamente nada. Deves ter funcionado como o meu despertador. A propósito, como vai a tua vida amorosa?

- Nada de bisbilhotices, irmã Anne. Lembra-te do que aconteceu no castelo do Barba Azul.

- Será que alguma vez me poderei esquecer?

Disse-o em voz baixa, mas a forma como o disse fê-lo interrogar-se sobre se o segredo de Hugh Loredon continuaria a ser segredo. Aquele maldito farsante não podia ter feito uma saída airosa para salvar a alma. Nascera para ser a parte de trás de um daqueles cavalos de pantomina, daqueles que saem do palco com um peido e um solavanco, não esquecendo o último abanar da sua maldita cauda ...

 

O voo para Milão sofreu um atraso de quinze minutos em Zurique, e um outro atraso com a mesma duração no aeroporto de Linate devido ao nevoeiro. Perdeu mais vinte minutos na alfândega, pois o visto de um visitante libanês tinha caducado. Mather teve apenas o tempo suficiente para comprar um cesto de violetas, enfiar-se num táxi cerca de dois passos à frente de uma multidão que parecia prestes a assassiná-lo, e a fazer uma chegada agitada com cerca de um quarto de hora de atraso.

O apartamento de Camilla Dandolo situava-se no segundo piso de um palacete do século XIX, o qual possuía enormes tectos abobadados e um conjunto de frias escadarias. Uma criada muito feia abriu-lhe aporta e deixou-o a arrefecer num salone recheado de mognos pesados, fotografias em molduras de prata, e paisagens românticas em caixilhos dourados.

- Tem mau aspecto, não tem? - Era Camilla Dandolo quem o interpelava da entrada. - Mas já o aluguei mobilado e o preço não está mal.

Era uma senhora muito velha, mas continuava a ser uma grande dama. Envergava uma túnica de brocado e nos pés usava chinelos dourados. O cabelo branco estava atado na nuca com uma fita dourada. A mão que, de forma imperiosa, estendera para ser beijada, estava coberta de anéis. Mather ficou à espera de ouvir uma voz celestial entoar a Celeste Aida.

Como também não era um mau actor, desempenhou o seu papel com bastante à vontade. Fez uma vénia, tocou com os lábios ao de leve naquela pele engelhada, usou um discurso impregnado de floreados. Mesmo assim, houve uma altura em que as coisas não lhe correram muito bem. Aquela não era uma senhora que se lisonjeasse com facilidade. Era esperta e irascível. Colocou a cabeça de lado, tal como se fosse um papagaio velho, e quis saber o seguinte:

- Como é que alguém tão jovem como você ouviu falar em Camilla Dandolo? Lembra-se de algum dos meus papéis, de algum dos homens com quem contracenei? Aposto que não.

Mather brindou-a com um sorriso irresistível e uma explicação pouco consistente.

- Fiquei a conhecê-la de uma forma bastante romântica, isto quando era o arquivista da família Palombini em Tor Merla. Fiquei fascinado com as histórias que os criados velhos costumavam contar sobre o seu grande romance com Luca Palombini. Na semana passada um membro do Corviglia Club de St. Moritz mencionou o seu nome, devo dizê-lo que com grande afeição. Foi ele quem me disse que o seu marido falecera, e que a senhora estava agora a viver em Milão.

- Ah, agora as coisas tornam-se mais claras. - Estava divertida e lisonjeada. - De forma que esse livro não vai ser sobre as divas mas sobre os escândalos do La Scala?

- De maneira nenhuma. Vai ser um trabalho bastante preciso. Por exemplo, sei que fez o papel de Olga na ópera Fedora, em 1939, contracenando com Gigli. Foi Guarnieri quem a dirigiu em L'Amico Fritz, e que junto com Malpiero, fez de Mimi... - Soltou uma gargalhada. - Como vê, fiz os trabalhos de casa! No entanto, o interesse que tenho por si é de uma ordem diferente. Sei que foi amiga de homens ricos e poderosos como Luca Palombini. Não se limitou a ser uma mulher bonita. À sua maneira também foi poderosa. Sei tudo isto de forma fragmentada e por ouvir dizer. Gostaria que fosse a senhora mesma a contar-mo, e de fazer uma série de entrevistas gravadas.

- Parece ser de mais para mim. Estou velha. A minha memória já não é de confiança.

- Para isso - disse ele com um sorriso -, nós os entrevistadores temos toda a espécie de truques, pequenos jogos de associação que abrem as portas da memória... Posso exemplificar o que quero dizer?

- Por favor.

- Importa-se de fechar os olhos?

Estendeu a mão, tirou de cima de um tamborete uma fotografia com a moldura em prata, e colocou-a à frente dela.

- Quando lhe pedir para abrir os olhos concentre-se no objecto que tem à frente e conte-me tudo a seu respeito. Pode abri-los.

Ela levou algum tempo a concentrar-se, depois, tal como uma rapariguinha da escola que está bem ensaiada, recitou a lição:

- É uma fotografia minha e do meu marido, Franz, na quinta que possuíamos perto de Brasília. As outras pessoas que estão connosco são o cônsul da Alemanha e a esposa. Os índios que se encontram ao fundo são trabalhadores, os edifícios são os celeiros e os telheiros para guardar as máquinas.

- Obrigado. Tentemos mais uma vez. Feche os olhos.

Desta vez colocou-lhe à frente uma das fotografias dos quadros de Rafael, o da Donzela Beata Palombini. Ela abriu os olhos, voltou a concentrar-se, fixou a imagem durante bastante tempo, e depois disse de forma vaga:

- Parece ser um dos quadros que tínhamos lá em casa.

- Vamos tentar de novo. Feche os olhos.

Segurou no retrato de Donna Delfina.

- Abra!

Desta vez não houve qualquer hesitação.

- Este é sem qualquer dúvida um dos nossos.

- Fale-me sobre ele.

Irritada, encolheu os ombros.

- Que lhe posso contar? Nunca me interessei muito por arte. O coleccionador era o meu marido.

- Nesse caso diga-me, o que sabe.

- Durante a guerra o Franz adquiriu dois quadros a Luca Palombini. Desconheço os pormenores. Quando ele estava em campanha andava sempre a comprar coisas. Levou-os para o Brasil e, quando nos casámos e fomos viver para lá, eles ainda lá se encontravam. Ficaram connosco até à altura em que o meu marido morreu. Então, e dado que eu não queria trazer a tralha toda para Itália, vendi-os junto com tudo o resto. Revelaram-se bastante valiosos. Joaquim Camões, um dos intermediários mais importantes do Rio, deu-me uma boa soma por eles.

- Vê? - Mather endereçou-lhe um sorriso de aprovação. - Vê aquilo que eu queria dizer com associação? Já quase que temos o pano de fundo de uma história completa: o seu marido, aquilo que ele fez em Itália durante a guerra e posteriormente, as relações que vocês dois mantinham com Luca Palombini. De repente é toda uma história que começa a tomar forma.

- Não tenho a certeza de que seja uma boa ideia - disse Camilla Dandolo. - Gostaria bastante de pensar a este respeito com todo o cuidado.

- É exactamente este o propósito desta visita - retorquiu Mather em voz suave. Apresentar-lhe-ei a ideia e verá como reage a ela. No caso de representar um fardo, esqueça-a. Não virá mal nenhum a ninguém por causa disso, e terei tido o prazer e a honra de a conhecer. Daqui vou direito a Florença. Quer que transmita os seus cumprimentos à família Palombini?

- Acho que não. - A velha senhora mostrava-se bastante segura. - A família de Luca acredita que os roubei. De facto, salvei-lhes a pele por mais de uma vez. Mas ainda não me disse onde arranjou essas fotografias.

- Mandou-mas; um intermediário de Paris. - Mather disse esta mentira sem a menor sombra de remorso. - Não me disse onde as arranjou, mas pediu-me para lhes descobrir a proveniência. O seu Joaquim Camões deve estar a oferecê-las ao mercado mundial.

- Mas como foi que as relacionou comigo? - Mather encontrava-se na presença de uma velha e valorosa combatente. Não deixava que nada passasse por ela sem oferecer desafio.

Ele aceitou-o com toda a coragem.

Minha cara senhora, essa é a resposta mais simples de todas. Fiquei a saber muito sobre os negócios de Luca... Tal como a senhora, também eu amei um Palombini.

- Qual?

- Pia. Faleceu no ano passado.

- Nesse caso, o melhor será deixá-la descansar em paz. O mundo não vai parar se não escrever o seu livro. Foi um prazer conhecê-lo, Mr. Mather. É uma pena eu estar demasiado velha para aprofundar o conhecimento. A minha criada indica-lhe a saída.

 

Mather tivera agora a confirmação de algo que sempre reconhecera como sendo uma possibilidade: que haviam sido feitas uma ou mais cópias dos retratos de Rafael. De momento não possuía meios de saber se as peças que tinha em seu poder eram originais ou cópias. De uma coisa tinha a certeza: assim que Fizesse chegar os quadros ao mercado, os outros apareceriam como por magia, e a inevitável luta para provar a autenticidade das peças acabaria por eclodir. Sabia que não ia ganhar a menos que tivesse trunfos na manga, de forma que decidiu jogar pelo seguro.

Tinha ainda tempo pela frente antes do seu voo para Pisa. Foi até aos correios do aeroporto de Linate e fez um telefonema para Henri Berchmans, em Paris. Berchmans estava com um cliente, e foi preciso algum trabalho para convencer a secretária a chamá-lo ao telefone. O homem estava brusco como sempre.

- Espero que isto valha o seu dinheiro e o meu tempo.

- Está outra vez a ser pouco amável, Mr. Berchmans. Prometi que lhe passava informações sobre os Rafaéis. É o que estou a fazer. Tem tempo para me ouvir?

- Claro, claro.

- Estou em Milão. No aeroporto. Acabei de visitar Camilla Dandolo, a qual voltou para Itália depois de o marido ter morrido no Brasil.

- Como descobriu isso?

- Fui esquiar para St. Moritz e encontrei um dos seus antigos apaixonados. Posso continuar?

- Com certeza.

- Depois de muitos preâmbulos, fiquei a saber que o marido adquirira dois quadros de Rafael a Luca Palombini, isto de forma pouco clara. Estas peças, junto com o resto da colecção de arte, foram vendidas a um intermediário do Rio chamado Joaquim Camões.

- Conheço-o - disse Berchmans com sentimento. - É um patife. Se lhe dessem dinheiro pelos dentes de ouro, era capaz de vender o cadáver da avó. Mais alguma coisa?

- Não. Já lhe disse muito.

- Vou a Florença visitar velhos amigos. A propósito, obrigado por emprestar os seus Bayards.

- O prazer é todo meu.

- Agora pode agradecer-me por esta chamada caríssima, e pela valiosa informação que lhe dei.

Berchmans soltou a sua gargalhada dura e crepitante.

- Você espera de mais, Mather. Mande-me a conta pelos serviços prestados. Dá muito menos trabalho.

Quando, e devido a outro atraso, se sentou no bar com uma cerveja e uma sandes seca à frente, Mather tentou descobrir qual seria o próximo passo de Berchmans. Primeiro teria de localizar os quadros no Brasil, depois adquiri-los, quer por opção, quer efectuando uma compra a pronto pagamento e, finalmente, fazê-los chegar ao mercado. E durante todo esse tempo pensaria - tal como Mather o fazia - se Luca Palombini não teria impingido uma falsificação a Franz Eberhart. Interrogar-se-ia sobre o número de cópias existentes e a velocidade a que começariam a aparecer no mercado.

Esta era a verdadeira finalidade da sua aliança com Niccoló Tolentino. Era a única pessoa no mundo que tinha autoridade suficiente para determinar a diferença entre o original e a cópia.

Claro que o problema residia no facto de que quantas mais pessoas se envolvessem no assunto, mais vulnerável seria a posição de Max Mather. Tudo isto fê-lo avançar mais um passo na direcção do mais antigo e paradoxal dos remédios: a confissão. Seria bastante simples dizer o seguinte: "Olhem, tenho sido um parvo ganancioso. Fiquem com as telas e tirem-me da manobra. Deixem-me ficar com a reputação que me pertence por direito, dêem-me uma pequena parte dos lucros conseguidos com o negócio, e eu fico satisfeito.”

Mas as coisas não eram assim tão simples. Estava sujeito à mesma ironia divina que o rabino que jogara golfe durante o sabat e conseguira acertar à primeira. O anjo que assistira a tudo pediu que o castigassem. "Espera", disse Deus. "A quem é que ele irá contar?" Assim, Mather sentia que o seu castigo era construir uma bela casa no valor de milhões de dólares, sabendo à partida que estava assente em areia e que qualquer inundação súbita a deitaria por terra.

Mas dado que estava de novo em Itália, e as árvores de fruto estavam em flor em toda a Lombardia, talvez que Palombini fosse suficientemente parvo para assinar o contrato que o tiraria de apuros, e naquela noite comeria pasta e pollo al diavolo acompanhado com vinho da Toscânia na companhia de Niccoló Tolentino, mandou as preocupações ao diabo e pediu outra bebida.

Partiu com meia hora de atraso. Quando chegou havia um engarrafamento na auto-estrada de Florença. Nos acessos à cidade registava-se uma enorme barulheira produzida por buzinas e condutores aos gritos. Quando chegou ao relativo sossego do hotel, sentiu-se como um marciano que aterra num planeta de loucos. Barbeou-se, tomou banho, envergou roupas informais, desfez as malas, mandou engomar um fato, telefonou a Palombini para marcar um almoço no dia seguinte. Depois, muito devagar, mais ou menos como um mergulhador na câmara de descompressão, voltou ao normal. Para aquela noite muniu-se com o catálogo da galeria, as provas do material da Belvedere, as fotografias dos Rafaéis, e foi a pé até ao Gallodoro.

O seu primeiro objectivo era confirmar a visita de Tolentino à América.

- A abertura da galeria é em meados de Abril. Seria maravilhoso se nessa data lá pudesses estar. Poderíamos marcar a data das conferências para dali a uma semana. Podes ficar a viver no meu apartamento ou noutro lado qualquer, a escolha é tua. Tens as passagens pagas, um vencimento de mil dólares por semana durante quatro semanas, mais cinquenta por cento dos lucros. Se conseguires qualquer comissão pessoal, esta é para ti. Que tal te soa?

- Como a música das esferas - respondeu Tolentino. - Flautas, violinos, um coro de querubins. Nunca chegarás a saber o valor daquilo que estás a fazer por mim, Max... Contudo, vais ter de me explicar o que queres que faça. Tenho de estar preparado. O meu inglês é bom mas isso não chega. Tenho de estar à tua altura e à das pessoas que vão pagar para me ouvir... não esquecendo esta cidade e todos os mestres que aqui trabalharam. Diz-me o que queres.

- Quero que expliques e demonstres. E óbvio que haverá estudantes nas palestras, - espero que bastantes, mas interessa-me conseguir a atenção dos profissionais: professores, conservadores de museus, restauradores. Vão querer partilhar da tua experiência, observar as tuas técnicas, entrar em diálogo contigo. Vão querer discutir falsificações e os seus métodos, e o papel do negociante enquanto cliente e intermediário. Aquilo que quero que faças é traçar um programa com a duração de quatro semanas, à média de três sessões por semana. Tenciono pedir bastante dinheiro, de forma que não te quero expor demasiado. Se tivermos sucesso podemos prolongar as coisas. Ficas com a totalidade do segundo piso, mesmo por cima da galeria. Cabem lá cerca de cinquenta ou sessenta pessoas à vontade. Se houver muitas reservas teremos de duplicar as sessões. Que achas? Aguentas?

- Continuo a sentir-me óptimo.

- Podes deixar a Pitti?

- A qualquer altura.

- Fantástico! Bom, posso fazer-te uma pergunta delicada?

- Com certeza. Força.

- Vais ter de pedir um visto. Existe alguma coisa que possa causar problemas?

- Por exemplo?

- Talvez um qualquer registo policial durante a juventude.

- De maneira nenhuma!

- Havia boatos, e chegámos a falar a esse respeito, sobre falsificações. Diziam que eras bastante bom naquilo.

- Os boatos dizem uma coisa. Os factos outra. Deixa-me explicar... Não, não te preocupes. Sei a razão porque precisas disto, por isso não me zango. Já antes te contei. Não sou um falsificador, sou um copista, e talvez o melhor do mundo. Se me derem os materiais certos posso copiar qualquer quadro que me ponham à frente. Posso copiá-los tão bem, que o mestre que fez o original quase que acreditaria ser aquele o seu próprio trabalho e assiná-lo. Mas isso não é uma falsificação. Esta só acontece se eu fizer passar a cópia como sendo o original. Nunca fiz isso. Talvez que outros o tenham feito com o meu trabalho, mas sem que eu disso soubesse ou nisso consentisse. Agora, espera... eu disse nunca. Durante a guerra, houve alturas em que os agentes de Goering e a gente de Himmler andavam por todo o lado a pilhar obras de arte, forçando todos a colaborar com eles. Então, sim... era bastante jovem e não tão bom como sou agora, e aí fiz algumas óptimas falsificações. Isto responde à tua pergunta?

- Sim. Obrigado. Agora posso assinar o convite formal para que entres nos Estados Unidos em associação com a galeria. Apresenta-o quando fores pedir o visto.

- Vamos brindar a isso.

- Espera pelo vinho. Tenho mais uma coisa para te mostrar. Fecha os olhos e abre-os quando eu disser.

- Estão fechados.

Mather colocou as fotografias dos dois Rafaéis em cima da mesa, mesmo em frente de Tolentino, e disse-lhe para abrir os olhos. No mesmo instante em que as viu, o seu rosto iluminou-se de prazer e reconhecimento. A sua voz profunda desceu até ao murmúrio de um conspirador.

- Meu Deus! Depois de tanto tempo és tu quem mos vem trazer! Como? Porquê? Onde estão?

- Não tão depressa, velho amigo. - Pegou nas fotografias e meteu-as no bolso. - É muito importante que façamos as coisas com método. Que representam estas fotografias?

- Dois retratos. Mãe e filha. São mulheres Palombini pintadas por Rafael em 1505.

- E agora onde estão?

- Não sei.

- Mas viste-os?

- Se os vi? Max, meu amigo, vivi com eles durante semanas a fio. Copiei-os pincelada a pincelada.

- Para quem?

- Luca Palombini.

- Na altura devias ser um rapaz.

- Tinha 26 anos. Estávamos em guerra, mas eu fora considerado inapto para o serviço militar. Tinha acabado de chegar aqui e trabalhava para o velho Cesarini. Fora um bom pintor, mas naquela altura já não tinha a mão certa nem bom olho para as cores. Foi assim que me passou o trabalho... e mesmo assim ficava com metade da comissão, valha-me Deus!

- Só fizeste uma cópia?

- É verdade.

- E que fez o Palombini com elas?

- Não sei. Não perguntei. Naquela época não era boa política fazer muitas perguntas. Acho que os impingiu a alguém.

- Se tivesse tanto os originais como as cópias em cima desta mesa, eras capaz de descobrir a diferença?

- Era, mas tu não. De facto, aposto que a maioria dos chamados peritos não conseguiria descobrir a diferença, isto a menos que fizessem experiências longas e exaustivas. A não ser, claro, que conhecessem o meu truquezinho.

Que consiste em quê? - a insistência de Max era dura. - Agora vou ter de saber, Nicki.

Tolentino puxou do seu bloco de esboços e desenhou um monograma básico.

 

NT

 

Depois explicou-o.

- Tolentino, Niccoló. São as minhas iniciais. Algures em todos os quadros que pintei aparecem estas iniciais. Como vês, esta era a minha defesa se alguém me acusasse de fazer falsificações. Copiara a obra de um mestre... era esse o meu ofício... mas, mesmo que a cópia ostentasse a sua assinatura, pois esta representava uma parte do todo, o meu trabalho era assinado por mim. Até nas restaurações o faço, com a diferença de que assino na parte de trás e da seguinte maneira:

 

RNT

 

Restauravit: Tolentino, Niccoló.

Meteu a mão no colete e tirou uma lupa.

Agora deixa-me ver outra vez as fotografias. Anda sentar-te ao pé de mim. Verás melhor.

Mather levantou-se da cadeira e deixou-se ficar por detrás do velhote, espreitando por cima dos seus ombros à medida que este usava a ponta do lápis como se fosse um ponteiro.

Comecemos pela mãe... Donna Delfina. Pus o meu monograma na paisagem de fundo, numa das árvorezinhas. Agora a filha. A minha marca deve estar na prega mais baixa do vestido.

Examinou as fotografias com todo o cuidado, tendo depois convidado Mather a examinar as marcas por ele indicadas. Max abanou a cabeça.

- Não vejo nada.

- Também não consigo ver nada - disse Tolentino. - A redução do tamanho é demasiado grande.

- Mas e se a tua marca não estiver lá?

- Então são os originais.

- Não necessariamente - objectou Mather. - Para além das tuas, podem existir mais cópias.

- Impossível. - Tolentino falava com ênfase. - Conheço de cor as pinceladas de Rafael. Digo-te ainda outra coisa. Os painéis onde fiz a cópia são diferentes dos originais. Os meus são de carvalho seco, os originais de cedro. Agora talvez me possas dizer o que tudo isto significa?

- E direi - prometeu ele. - Mas não agora. Preciso de ti sem que estejas de pé atrás, e capaz de jurar que o não estás.

- Queres dizer...

- Quero dizer que vais para Nova Iorque onde te tornarás famoso da noite para o dia, e que te vais esquecer de que viste estas fotografias até ao momento em que te ponha em frente aos quadros e te peça que digas a toda a gente se são verdadeiros ou não.

- É isso o que tens para me dizer?

- De momento é tudo o que te posso dizer. Mas assim que houver mais alguma coisa serás o primeiro a saber. Uma última pergunta: podes ir até Zurique dentro em breve?

- Podia ir agora mesmo - respondeu Tolentino com um sorriso -, mas devo-te um jantar, o jantar mais feliz da minha vida.

- Fica para amanhã - sugeriu Mather. - Ainda temos de conversar antes da minha partida. Vou trazer o Guido. Vamos comemorar juntos.

Enquanto dizia isto, murmurava uma oração silenciosa para que houvesse algo para comemorar. Se aquilo que tinha em Zurique eram as cópias, então gastara tempo e dinheiro. Se fossem os originais e Claudio Palombini não assinasse o contrato, então ficaria quase, quase, à deriva.

 

O acolhimento que Mather recebeu em Tor Merla durante o almoço foi muito menos exuberante que o que caracterizara o do Gallodoro. As mulheres da casa encontravam-se ausentes, viam-se muito menos criados. O exterior da villa tinha um ar desleixado, e o interior da casa mudara: as paredes exibiam menos quadros, a mobília era mais escassa. Foi recebido por Claudio Palombini, pelo primo, Marcantonio, e por um jovem que nunca vira antes e que lhe foi apresentado como sendo o Avvocato Stefano Stefanelli.

Claudio tentava desculpar-se.

- Vê o que está a acontecer? Estamos a racionar tudo o que podemos. Mesmo assim, é ainda a terra que nos alimenta, e a cozinheira recebe o ordenado.

Mather pediu licença para cumprimentar os empregados. Achou-os amistosos mas mudados. Também eles farejavam desgraça. Só dois o abraçaram. Matteo, o capataz, e a criada pessoal de Pia, Chiara, seca como uma ameixa, mas ainda combativa e indignada.

- Quando a Signora era viva e o senhor estava aqui, as coisas eram diferentes. Até mesmo quando ela estava a morrer, havia sempre algo que nos fazia rir. Isto agora até parece um cemitério depois da meia-noite.

Mather beijou-a, fez-lhe uma festa no rosto, e foi juntar-se aos outros à mesa. A comida continuava a ser boa. O vinho da casa envelhecia devidamente.

Claudio insistira para que não se falasse em negócios até à hora da fruta e do queijo. Depois foi ele mesmo quem deu início às negociações.

- É evidente que precisamos de alguém para representar os nossos interesses e que se dedique activamente a procurar os quadros. É igualmente óbvio que você possui qualificações importantes para isso. Tal como disse, creio estar disposto a considerar um contrato.

- Este contrato - disse Mather colocando-o em cima da mesa. - Apenas este. Esteja à vontade, leia-o. Entretanto, e se me é permitido, tomo outro café.

O documento constava apenas de meia dúzia de páginas, mas passaram dez minutos antes que alguém levantasse a cabeça e fizesse um comentário. Foi o advogado que falou primeiro.

- Vai perdoar-me, Mr. Mather, mas parece-me que este documento é bastante arbitrário.

- E é. - Mather era a imagem da brandura. - E também não está sujeito a negociações.

- Posso perguntar porquê?

- Claro. Alínea um: a descoberta dos Rafaéis e a sua devolução aos Palombini é, na melhor das hipóteses, um empreendimento altamente especulativo. Alínea dois: dadas as suas actuais condições financeiras, os Palombini não podem dar-se ao luxo de garantir sequer um centavo dos custos totais. Alínea três: assim que o meu artigo for publicado, o que ocorrerá no princípio do próximo mês, artigo este sobre o qual vocês foram devidamente notificados, haverá uma verdadeira corrida ao ouro no mercado da arte. Alínea quatro: estarei a agir numa selva, junto com toda a espécie de animais. Preciso de toda a protecção possível.

- Aceitamos tudo isso - disse Claudio Palombini. - Contudo, o nosso advogado acha que devemos estabelecer certas premissas, as quais funcionarão como preliminares ao contrato.

- Tem direito a pedi-lo. Eu tenho direito a recusar. Deixem-me chamar a vossa atenção para a forma como o contrato abre: "O referido Max Mather não dá quaisquer garantias quanto a competência, conhecimentos ou qualificações especiais relacionadas com a tarefa a que se propõe. Não solicita que este contrato seja aceite por outras partes. A única garantia que dá é que dará o melhor de si, e de que todas as despesas serão pagas por ele." Isto parece ser suficientemente claro, cavalheiros.

- De facto, é bastante claro - retorquiu Marcantonio -, mas está preparado para que lhe façamos algumas perguntas?

- Não. - Mather mostrava-se definitivo. - E tudo porque as respostas que agora desse poderiam ficar sujeitas às interpretações que no futuro lhes quisessem dar.

Claudio ofendeu-se.

- Acha que somos assim tão brutais?

- A história diz-me que sim, Claudio - comentou Mather com um sorriso. - Não vos culpo nem devemos discutir a esse respeito. Mas há séculos que vocês são mercadores à caça de pechinchas, e não vão mudar. No entanto, seria parvo se estendesse a mão e deixasse que me mordessem.

Max, você está a exagerar.

- Sim? Deixem-me lembrar-vos de que precisei de discutir com vocês para que arranjassem uma enfermeira permanente para a Pia. Tive de lutar para que o médico a viesse visitar todos os dias. Vocês não cedem facilmente. Óptimo, eu sei. Assim, este é o único contrato que faço convosco. É pegar ou largar. Vou dar um passeio até à torre. Digam-me o que decidiram quando eu voltar.

O passeio à torre foi um engano. Trouxe consigo um turbilhão de recordações: Pia oferecendo-lhe liberdade de acção, Pia prisioneira da sua própria doença, a sua fuga com os Rafaéis arrumados na bagagem, a forma como não parara de suar frio até chegar à Suíça. Quando regressou a casa, Claudio ofereceu-lhe um cálice de brande e algumas emendas ao contrato.

- Tendo em consideração os milhões envolvidos, achamos que quinze por cento é demasiado.

- Nada feito. Se alguém tem os quadros de forma ilegal, essa pessoa tem de ser assustada e paga. A importância normal que as seguradoras oferecem é de dez por cento. Depois teriam de pagar o meu trabalho. Se acham que conseguem as coisas mais baratas, eu afasto-me e deixo-os avançar sozinhos.

- Muito bem. Fica então quinze por cento. Mas tem de haver um tempo limite para que nos represente.

- Qual o prazo que sugerem?

- Se não conseguir nada até ao fim de Junho, acabou-se. Três meses?

- Por outro lado, e mesmo que ainda não se tenha efectuado a devolução das obras, se apresentar resultados é muito provável que consigam um prolongamento pela parte dos vossos banqueiros. Quero nove meses... até ao fim do ano.

Claudio olhou para o advogado. Este fez que sim com a cabeça.

- Então seja, nove meses. - Pela primeira vez, Claudio sorriu e perguntou: - Agora pode dizer-nos, Max. Quais são as suas hipóteses?

- Vamos assinar primeiro. - Mather mostrava-se insensível. - Depois digo-vos.

Agora que tinha o contrato no bolso sentia-se simultaneamente melhor e pior, tal como um doente febril que se agita entre arrepios e suores. O contrato faria que ficasse fora da prisão. Não podia ser acusado de posse indevida, conversão fraudulenta, ou de roubo enquanto se encontrava na situação de empregado. Até que lhe pagassem, nada se poderia opor a que os quadros estivessem na sua posse. Por outro lado, era obrigado a agir. Não podia escapar a uma situação que era pouco clara à partida.

À medida que, ao volante de um carro alugado que ameaçava ir-se abaixo a qualquer momento, Mather regressava à cidade, perguntava-se por que razão a situação o incomodava tanto. Porque razão uma consciência social, tão entorpecedora a ponto de quase provocar atrofia, despertara nele de forma tão viva.

Foi então que, vinda de um céu azul, lhe surgiu a figura do pai, amarelo e mirrado devido ao cancro que lhe provocara a morte, sentado à janela do seu quarto a olhar para as folhas amareladas de uma paisagem outonal. Estava a explicar-se, a pedir uma compreensão tardia.

- Soube sempre aquilo de que a tua mãe precisava, aquilo que desejava para nós. Mas o preço que eu tinha a pagar era demasiado alto. Significava a traição da única coisa que eu possuía integralmente: eu mesmo. Não o conseguiria suportar. Não conseguiria suportar olhar-me todos os dias ao espelho e ver um estranho ... ou talvez que uma imagem dupla, sem nunca conseguir saber quem era quem.

Era agora perseguido por essa imagem dupla. O Max Mather que se reflectia nos olhos das mulheres não era ele, mas sim a imagem que elas escolhiam. As imagens que Berchmans e Liepert possuíam eram diferentes da outra, e igualmente ilusórias. Agora tinha de regressar a Zurique, encarar Gisela, ver os seus olhos iluminarem-se quando lhe dissesse que o contrato fora assinado... e depois? Quando chegou ao hotel ainda não encontrara resposta para esta pergunta. Parou na recepção para dizer ao porteiro que fizesse duas reservas para Zurique, uma para ele outra para Niccoló Tolentino. Telefonou a Guido Valente convidando-o para jantar. Depois despiu-se, tomou um banho quente, e dormitou de forma irregular até à hora de sair.

Guido Valente, conservador de Assinaturas na Biblioteca Nacional, estava bem disposto. Rejubilou com a sorte do seu amigo Niccoló, que ia para a América. Ele mesmo também lá iria, se bem que não na mesma altura, num intercâmbio organizado pela Associação das Bibliotecas Americanas. Ficaria sediado em Washington mas iria viajar muito, ocupado em estudar os métodos utilizados pelos americanos nas bibliotecas, as últimas técnicas no campo da arrumação e requisição, não esquecendo os programas de intercâmbio inter-bibliotecas. Esperava não estar demasiado velho para lucrar com a experiência, mas a chegada de uma nova secretária ao seu escritório convencera-o de que sentir desejo era ainda uma feliz possibilidade.

Cheio de solicitude, perguntou por Anne-Marie. Talvez, e só talvez, chegasse a tempo de assistir à abertura da galeria. Agora, tinha boas notícias para o seu velho amigo Max. Graças à generosidade de uma certa Marchesa - uma senhora americana casada há muito com um italiano - a biblioteca estabelecera uma bolsa, uma borsa, para americanos pós-graduados. A quantia disponível era substancial, os termos aplicavam-se à disciplina de Mather. Ficaria feliz em poder recomendar o seu velho amigo para o primeiro prémio. O facto de ter sido este mesmo amigo a conseguir que o arquivo Palombini fosse parar à Biblioteca era algo que pesaria bastante. Então ... ?

Então, Max Mather ficou comovido. Prometeu pensar bastante no caso, e responder o mais depressa possível. Guido teria de compreender que neste momento tinha uma série de opções à frente, e que era uma altura crítica para ele. Era tão crítica que achava estar a precisar de mais vinho. Niccoló concordou. Mas antes de beber também ele tinha algo a anunciar. Pensara muito a respeito da prenda que deveria dar ao seu amigo Max. Finalmente decidira-se. Puxou de uma pequena caixa achatada, dentro da qual, aninhado num leito de tecido, estava um pequeno rectângulo de cobre onde se encontrava gravada a cabeça de um rapaz.

- Meu caro Max, esta é a minha primeira água-forte. A cabeça representa o meu irmão que morreu na guerra. Dou-ta porque és como o meu irmão, aberto e generoso... e aqui debaixo - levantou a placa -, estão algumas imagens numeradas de um a cinco, que fiz especialmente para ti.

Bravo! - Guido Valente assoou-se com força. - Max, continuo a dizer-te o seguinte: és um homem de quem se gosta muito.

Encharcado em vinho, Mather estava também prestes a chorar, isto enquanto o diabinho que se pendurara no seu ombro continuava a implicar com ele de forma sardónica: "Se eles soubessem, irmãozinho, se eles soubessem!"

 

Meio-dia. Era sexta-feira e estava-se em Zurique, num daqueles dias tristes de Março em que sopra um vento gélido através do lago e os transeuntes ainda se agasalham até às orelhas. O Inverno estava a acabar, mas ainda não era bem Primavera. Niccoló Tolentino estava empoleirado num pegão do cais, a desenhar. Max estava na cozinha do apartamento a preparar um almoço de carne frias e salada para Gisela Mundt. Ela avisara-o de que chegaria tarde. As aulas que dava à sexta-feira só terminavam ao meio-dia, portanto só deveria chegar por volta do meio-dia e meia. Ele decidira que aquele seria o dia da verdade - sexta-feira Negra ou Sexta-Feira Santa, dependendo dos resultados.

Não conseguia tolerar por mais tempo esta existência dividida entre as brilhantes promessas do futuro e as vozes acusadoras de um passado que se recusava a ser enterrado. Agora que o contrato dos Palombini o punha a salvo, podia começar a negociar com a sua consciência residual, se não a paz, pelo menos uma trégua.

Gisela chegou, corada e sem fôlego, exigiu um beijo e depois ofereceu-lhe uma bebida. Brindaram a eles mesmos, e depois ao contrato. Ela estava ansiosa por começar a comer, por isso Mather decidiu mergulhar de cabeça. - Vou dizer-te uma coisa.

- Ah! A hora da confissão, não?

- Se achas que sim - Tu confessas-te. Eu confesso-me.

- Não tem graça nenhuma.

- Eu sei que não. Posso ver pela tua cara que se trata de um assunto de vida ou de morte.

- É sobre os Rafaéis.

- E então?

- Já decidi. Vamos ficar-nos pela solução dos dez por cento.

- Acho que estás a ser sensato.

- Esperava - disse ele com um sorriso -, esperava que me dissesses que estava a ser bom e nobre, e que deixara de merecer repreensão.

- Como é que posso saber, Max? - Ela enviou-lhe aquele sorriso alegre e sedutor. - O teu corpo dá-me prazer, a tua companhia é deliciosa. Contudo, pouco conheço da tua alma.

A isto, ele replicou com secura:

- A esse respeito, minha cara Doutora, digo-te que se encontra à venda como a das outras pessoas, isto desde que o preço seja justo.

Naquela mesma tarde, antes da hora do fecho, Max Mather acompanhado de Gisela, Liepert e Tolentino, foi até à caixa-forte da União de Bancos, sita na Bahnhofstrasse. Aí, com as mãos a tremer, retirou a cera que fechava o saco de lona, descoseu a costura feita com o fio de sapateiro, e colocou o que lá estava dentro em cima de uma mesa com tampo de vidro, a qual se encontrava num recanto entre as filas de cofres. Manteve os esboços tapados para os proteger da luz, mas revelou os dois pequenos retratos das mulheres Palombini - Donna Delfina e a Donzela Beata.

Na agitação que se seguiu, Niccoló Tolentino segurou-os a uma certa distância e olhou-os fixamente durante bastante tempo. Depois tirou a lupa do bolso e examinou-os centímetro a centímetro. Pôs a lupa de lado e, com um pequeno canivete, raspou uma pequena área de madeira na parte de trás de cada quadro, espalhando o pó na palma da mão com todo o cuidado, isto antes de o assoprar.

Quando acabou o exame, pousou os quadros e voltou a tapá-los. Levou os esboços para um dos cantos escuros do recanto e fez que Mather se colocasse em frente à lâmpada para que a sombra fosse mais intensa. Depois, com todas as reverências, tal como se estivesse a segurar nas hóstias da Comunhão, levantou os esboços um por um para os inspeccionar. Acabou por os pousar e cobriu-os de novo. Pareceu demorar uma eternidade antes de voltar a falar, e mesmo assim a sua voz era rouca e trémula.

- Estes são os originais a partir dos quais fiz as cópias.

Começou a chorar. Mather ficou chocado com isto. Colocou um braço protector por cima daqueles ombros curvados. O velhote demorou tempo a recuperar, soltando depois uma gargalhada pouco segura.

- Son'pazzo, sou maluco. Sempre que olho para algo tão maravilhoso sei que Deus tem de existir. Senão, como poderia um bicho tão feio como o homem fazer coisas tão bonitas? Fiquei preocupado com os esboços, mas estão em bastante bom estado. O ar-condicionado destes cofres é praticamente perfeito para eles. Mas acabou-se a luz! É imperioso que não apanhem luz. Volta a guardá-los no saco, só que desta vez escusas de o selar.

Alois Liepert falou:

- O nosso próximo passo é voltarmos ao meu escritório e fazê-lo assinar uma declaração, a si, Niccoló, em como afirma ter visto e identificado estas peças, e de que elas são autênticas e se encontram em boas condições.

- Enquanto isso, tenho de telefonar ao Berchmans - disse Mather.

- Será sensato? - Liepert tinha dúvidas.

- Acho que é necessário. Se não lhe digo que as telas brasileiras são falsas, vai ficar a pensar que o enganei, e não o quero ter como inimigo.

Tenha cuidado - avisou-o Liepert. - Não lhe diga demasiado ao telefone. E se ele quiser discutir as coisas com mais profundidade, mande-o falar comigo.

- Für aufklären und konfirmieren, certo?

- Certo - concordou o outro. - A Gisela deu-me instruções precisas a seu respeito.

- Tenho uma pergunta a fazer a ambos - disse ela secamente. - Quem se responsabiliza pelo seguro destes artigozinhos?

Tolentino parecia não ouvir nada. Estava ocupado a colocar os quadros dentro das capas, tratando-os como se fossem crianças.

Mather e Liepert entreolharam-se. Depois o advogado disse:

- Discutimos isso no escritório.

A declaração que Liepert redigiu em italiano para que Tolentino assinasse, cobria um campo bastante vasto.

 

Eu, Niccoló Tolentino, cidadão da República de Itália, há trinta e sete anos a exercer as funções de copista e restaurador de quadros no Palácio Pitti, em Florença, fui neste dia à caixa-forte da União de Bancos, sita na Bahnhofstrasse, em Zurique. Acompanharam-me os advogados Alois Liepert e Gisela Mundt, e Mr. Max Mather, o representante oficial da família Palombini, de Florença. Examinei dois retratos feitos em painéis de madeira de cedro, os quais acredito terem a assinatura de Raffaello Sanzio, bem como cinco esboços do mesmo mestre. Os retratos não me eram estranhos, pois em 1941 foi-me encomendada pelo então proprietário das peças, Luca Palombini, de Florença, uma cópia dos trabalhos. Nunca tinha visto os esboços, mas, tal como aconteceu com os retratos, identifiquei-os como tendo por autor o mesmo mestre. Os referidos trabalhos estão em excelentes condições e é-lhes administrado o tratamento devido, ou seja, não estão sujeitos à humidade, a temperatura a que se encontram é estável, e a exposição à luz é mínima. Tendo em conta a consideração que nutro pela família Palombini e pelo seu representante, Mr. Mather, os meus serviços foram prestados gratuitamente.

 

Seguiu-se o telefonema de Mather a Berchmans, que estava em Paris. Desta vez a ligação foi feita através do telefone de conferências, e foi assim que o anunciaram ao francês.

- É de novo Max Mather. Estou a utilizar a linha de conferências do escritório do meu advogado em Zurique. Mr. Berchmans, apresento-lhe Mr. Liepert.

- Bom-dia, Mr. Liepert. Agora podemos prosseguir. A que se deve a formalidade?

- Aos artigos do Brasil.

- Que se passa com eles?

- São cópias. Boas, mas cópias.

- Preciso que mo provem.

- Nesse caso limito-me a aconselhar-lhe prudência até à altura em que tenha oportunidade de lhe apresentar os factos.

- A negociar com Camões a esta distância estou em desvantagem. Podemos tentar organizar um leilão onde eu forneça uma base de licitação. Por tudo isto vou ter de lhe fazer uma pergunta: a sua informação é segura?

Liepert adiantou-se rapidamente.

- Mr. Berchmans, vou dar-lhe a opinião de um advogado. A informação é de nível A. O informador é impecável.

- Nesse caso agradeço-vos a ambos. Já informaram o Harmon Seldes?

- Não. - Mather foi rápido a responder. - A minha posição em relação ao Seldes é ambígua. Ele emprega-me para que lhe preste certos serviços. A nossa comunicação ressente-se com o facto. A este propósito tenho contactado apenas consigo, mas você é livre de contar o que lhe digo a quem quiser.

- No entanto, houve uma alteração na situação pessoal de, Mr. Mather, e ele deseja comunicar-lhe o facto. - Era Liepert quem falava.

- E qual é ela?

- A família Palombini contactou-o para que mais uma vez pusesse os seus conhecimentos académicos à disposição deles, de forma a representá-los na questão dos quadros. Acabei de negociar o contrato, que, entre outras coisas, garante que neste assunto Mr. Mather é o único intermediário entre a família e o mercado. Ele quer que eu lhe diga que é o primeiro a possuir esta informação, a qual será divulgada na devida altura.

- Isso quer dizer - comentou Berchmans na sua forma desabrida - que me está a pôr de lado.

- Pelo contrário - retorquiu Mather. - Você está exactamente na mesma posição em que se encontrava, a não ser que tem mais um amigo na luta, isto se me encarar desta forma. E consigo. Nada se altera, a não ser que agora sou o ponto de referência da família, e que são eles a pagar-me, mais ninguém.

- Nesse caso - Berchmans mostrava-se relutante em bater em retirada -, obrigado por me ter dito. Devemos manter-nos em contacto.

- Seria o ideal. A bientôt, Mr. Berchmans.

À medida que pousava o auscultador, Niccoló Tolentino encheu as bochechas de ar e emitiu um som explosivo.

- Bah! Tanta conversa. Tanta ganância! Trata-se de coisas bonitas, do trabalho de um grande mestre. Não são ossos pelos quais os cães lutem. Desculpem, nos últimos tempos tenho andado irritadiço. Acho que vou dar um passeio e falar aos patos.

- Não podes - disse Mather com firmeza. - Temos de tratar da tua viagem para Nova Iorque, assinar-te os cheques, escrever uma carta para acompanhar o teu pedido de visto... Alois, a sua secretária pode vir até aqui tirar alguns apontamentos, por favor?

- Um tirano. - Tolentino levantou as mãos e os olhos para o céu. - Um tirano enlouquecido com o desejo do dinheiro.

 

Com um avanço de dez dias em relação à data de publicação, Harmon Seldes recebeu na sua secretária algumas cópias do número de Abril da Belvedere. Chamou o pessoal para dar uma vista de olhos. Todos concordaram em como se tratava de um excelente trabalho - material de primeira classe, uma disposição atraente, cores definidas. O seu editorial era bom, as fotografias tão provocantes como ele queria. O artigo de Max Mather sobre a economia doméstica da Toscânia era um pouco enfadonho, mas o comentário de Danny Danziger ajudava bastante.

A surpresa da edição consistia num destacável sobre Madeleine Bayard. Em vez de ter colocado na última página um anúncio convencional, Anne-Marie Loredon decidira preencher o espaço com uma reprodução colorida de "A Mulher da Rua", a peça central da exposição. Fazia um excelente efeito, e adaptava-se ao tom intensamente emocional do trabalho de Max Mather.

E era aqui que residia a verdadeira surpresa! De um momento para o outro, na mesma edição, o erudito maçador transformava-se num poeta. Alguns dos redactores mais importantes mencionaram o facto - muito embora tendo o cuidado de deixar a última palavra a Harmon Seldes, o homem que forjava e destruía talentos. A sociedade de admiração mútua ainda se encontrava reunida quando receberam o telefonema de um dos vice-presidentes que se encontrava na sede, o qual transmitiu a bênção e as felicitações das mais altas instâncias.

Bastava de elogios! Havia trabalho a fazer. Com excepção da secretária, com a qual daria início ao mais terrível dos passatempos, a saber, "a criação de mercado", Seldes correu com toda a gente do escritório. O "mercado" começava com todas aquelas almas privilegiadas - directores e curadores, intermediários importantes, críticos - aos quais era concedido o favor de receberem cópias adiantadas da revista, as quais eram antecedidas por uma chamada telefónica da responsabilidade do patrão.

"Charles, meu amigo! " ou "Anna, meu amor. " "Aqui Harmon Seldes. Este mês tenho óptimas surpresas para ti. Sim, neste momento já vai a caminho através dos correios. Presta especial atenção aos Rafaéis dos Palombini. É claro que nunca ouviste falar deles! São exclusivos da Belvedere. Para falar com franqueza, um exclusivo do Harmon Seldes. Mas deixemo-nos disso. A modéstia acima de tudo. Acredita no que te digo, não deves deixar passar isto ao lado. O Henri Berchmans e eu formámos equipa para prosseguir as pesquisas. Dá também uma olhadela ao destacável... Madeleine Bayard. Esta pode ser a primeira e a última oportunidade que tens para arranjar uma pechincha.”

A meio deste agradável exercício, Henri Berchmans telefonou de Paris para lhe dizer que Max Mather fora contratado para representar a família Palombini. Seldes ficou indignado.

- Ora vejam, depois de se ter declarado desinteressado! De qualquer das formas, quais são as suas qualificações? O homem é paleólogo. Não sabe nada de arte. É um cachorrinho pretensioso!

Berchmans brindou-o com a sua gargalhada sonora.

- Parece que o seu cachorrinho se transformou num mastim. As suas pesquisas têm avançado?

- Não tenho tido muito tempo. As cópias adiantadas da nossa edição de Abril chegaram à minha secretária há apenas meia hora.

- Está a ficar para trás, meu amigo. O Max Mather já localizou cópias dos dois retratos no Brasil. Estou em negociações a este respeito, mas não espere muito. O que me impressiona é a ingenuidade e a diligência que este homem demonstra.

- Gostaria de poder dizer o mesmo sobre a sua honestidade.

- Essa característica também me começa a impressionar - retorquiu Berchmans. - Tem lidado comigo de forma bastante aberta.

- Mas não comigo. - Seldes começava a ser petulante. - Ao fim e ao cabo, sou o seu editor. Sou eu quem lhe dá de comer.

- Não exija que ele lhe venha comer à mão. Ele gosta de pessoas bem educadas.

- No estado em que estou só me apetece despedi-lo.

- Isso pode ser um erro dispendioso. Preferiria que ele ficasse do nosso lado.

- Gostava de saber que outras pequenas surpresas tem ele guardadas para nós.

- Estou para saber quais as provas que tem, e quem são as suas fontes.

- Você perguntou-me quem eram as autoridades a respeito de Rafael. Passavanti é ainda o melhor e o mais actualizado perito. É capaz de só ter a lucrar se ele examinar o material do Brasil.

- Primeiro tenho de lhe deitar as mãos. O Camões é dos duros. Não cede um centímetro a menos que lhe passemos dinheiro para as mãos.

- Claro que você me podia mandar ao Rio para falar com ele.

- Vou pensar nisso. E agora acalme-se, Harmon. O nosso jovem amigo anda a fazer o trabalho todo por nós sem que nunca chegue a aproximar-se do mercado. No fim, os Palombini acabarão por vir até nós.

Seldes ainda estava a matutar neste interessante problema quando Leonie Danziger entrou no escritório e, de forma brusca, anunciou o seguinte:

- Harmon, preciso de ajuda.

- Danny, por ti farei tudo. A revista tem bom aspecto, não tem?

- óptimo. Parabéns.

- Estás aborrecida com alguma coisa?

- Estou aborrecida. Ponto parágrafo. Guardas as agendas do escritório?

- Claro. A melhor lição que aprendi foi a de guardar as agendas. Nunca se sabe quando serão precisas. Que data queres confirmar?

- 18 de Fevereiro do ano passado.

- Qual a importância dessa data?

- É o dia em que mataram Madeleine Bayard.

- Oh!

- A polícia quer saber, eu preciso de saber, as minhas actividades desde o nascer até ao pôr do Sol. Já passei por isto uma dúzia de vezes. Pareciam ter aceitado que eu não tinha alibi, mas agora voltaram à carga. Agora ainda me lembro de menos que ao princípio me lembrava. Deito fora as minhas agendas assim que elas acabam. E não me venhas com nenhum sermão, Harmon. Não era capaz de aguentar. Limita-te a procurar na agenda. Vê se me convocaste para qualquer reunião, para qualquer tarefa.

- Claro. Agora relaxa. Sabes onde estão as garrafas, serve-te.

- Não, obrigada.

Seldes abriu o armário e de imediato localizou a agenda.

- Aspen... Aspen... Aspen... a semana inteira. Já me lembro, era aquele grupo de esquiadores de Moulton. Voltei com a história a respeito da venda da sua colecção de Vanvitello, a única existente fora de Itália. Esta agora é para o Max Mather... paisagistas italianos de pouca importância pertencentes ao século XVIII...

- Por favor Harmon. Isto é um caso sério. Quais as tarefas que eu tinha naquela semana?

- Aqui não diz, Danny. E dado que não aparece aqui nada, podias estar a trabalhar em qualquer lugar, não é verdade? Eu não estava no escritório. Seja como for, tu trabalhas por conta própria. Dou-te uma tarefa. Vais-te embora. Só voltas quando tens o trabalho pronto.

- Obrigada pela ajuda, Harmon.

- Por favor! Não fiques assim. Quero ajudar. Por que razão é que a polícia se lembrou disto a estas horas?

- Não sei, mas é provável que tenham motivos fortes. - Abanou o destacável sobre Madeleine Bayard por debaixo do nariz dele. - É por isto que me estão a aborrecer. A vida amorosa de Madeleine, os seus hábitos sexuais, os amigos.

- Se bem me lembro, tu fazias parte do grupo, não?

- E quando a Madi a isso se dispunha, quem é que não fazia, Harmon?

- Não acredito que tenha sido o nosso artigo a provocar tudo isto.

- Nem eu. A polícia mencionou uma qualquer comunicação feita por Hugh Loredon. Foi escrita antes da sua morte e enviada para a Embaixada dos Estados Unidos na Holanda. Parece que a estão a utilizar para esta nova fornada de inquéritos. Também mencionaram o Max Mather, mas não há a mínima possibilidade de que ele esteja envolvido.

- O nosso menino bonito está a dar que falar - disse Seldes revelando uma notável aversão. - Ele estará de volta mais ou menos dentro de uma semana. Nessa altura vais poder ser tu mesma a perguntar-lhe. Entretanto vou fazer todos os possíveis para saber o que estavas a fazer no dia 18 de Fevereiro do ano passado. Tenta não te preocupares.

- Obrigada, Harmon. E parabéns pelo número de Abril. É de facto muito bonito.

- Obrigado, Danny, meu amor.

Mas a "Danny, meu amor" já saíra pela porta fora e dirigia-se para o elevador. Houve uma altura em que a tesoura que Seldes usava para cortar papel, e que se encontrava em cima da secretária, se assemelhara a um punhal, e a vontade de a usar fora quase irresistível.

No prédio do estúdio, no Soho, os pintores davam a última de mão nos interiores, os electricistas testavam os circuitos e colocavam no chão dispositivos de controlo da corrente para testarem os projectores. No último andar, o apartamento de Mather já possuía alcatifas e cortinados. Anne-Marie, sentada no escritório com um monte de facturas e cartas em cima da secretária, estava acompanhada por dois detectives da brigada de homicídios, que bebiam café e conversavam de forma educada, se bem que persistente. Conseguira fixar os nomes: o mais jovem e bem parecido chamava-se Sam Hartog. O outro, o mais velho e menos delicado, era Manny Bechstein. Formavam uma equipa bem treinada. Hartog comandava as operações com atitudes respeitosas e perguntas cuidadosas. Manny remexia em coisas passadas, tomava atitudes manhosas, deformava e distorcia as respostas a ponto de estas soarem como algo completamente diferente.

Sam Hartog bebericava o seu café e, com toda a paciência, ia perguntando as coisas.

- Bom, então o seu pai disse-lhe que ia fazer testes à London Clinic? E que depois seguia para Amesterdão?

- Certo.

- E que ia ele lá fazer?

- Pensei que tratar de negócios. Os bons materiais para leilão, bem como os clientes, vêm de todo o mundo. Nos intervalos dos leilões o meu pai estava sempre a viajar.

- Compreendo. Depois o seu pai pediu a Mr. Mather que fosse ter com ele a Amesterdão?

- Sim.

- Por que razão Mather e não você?

- Tal como o Max me explicou, muito embora ele se estivesse a sentir só e ameaçado, não queria incomodar-me. Sabia que eu e o Max cuidávamos um do outro... por isso chamou-o.

- Mas o seu pai escreveu-lhe uma carta que, junto com outra correspondência, foi enviada para a nossa embaixada logo que ele morreu.

- É verdade.

- Estaria disposta a mostrar-ma?

- Claro. Tenho-a aqui.

Meteu a mão na mala e tirou de lá um sobrescrito com o selo da embaixada. Sam Hartog abriu a carta, deu-lhe uma vista de olhos e passou-a a Bechstein, que abanou a cabeça e a devolveu. Hartog resumiu a mensagem em poucas palavras.

- O seu pai sabe que vai morrer. Pede desculpa por ter sido um pai indiferente. Diz-lhe que a ama e pede-lhe por tudo para que não se case com Edmund Bayard.

- Coisa que não tenciono fazer.

- Isso apesar de serem bons amigos e de terem negócios em comum?

- Melhor será dizer que precisamente por causa disso.

- Por que razão o seu pai não gostava de Bayard?

- Porque teve um caso bastante longo com Madeleine. Achava que o Ed Bayard. a tratava bastante mal, coisa que o próprio Ed admite sem discussão e que muito lamenta. O meu pai sempre o considerou um homem de temperamento instável e um marido pouco recomendável para uma mulher bastante mais nova.

- Mas não viu qualquer problema em que tratassem de negócios, lhe alugasse o estúdio e organizasse a exposição dos quadros da mulher?

- O meu pai nada teve a ver com esses negócios. Tratei de tudo sem o consultar.

- Mas tentou dissuadi-la?

- Sem sucesso, Mr. Hartog. Acho que me deve uma explicação. Tenho sido bastante franca com vocês.

- Pois tem. Apreciamos o facto.

- Por tudo isso acho que devem ser igualmente francos comigo.

Manny Bechstein quebrou o silêncio pela primeira vez.

- Minha senhora, nem sempre é possível a um oficial da polícia ser franco. Vamos dizer-lhe o que podemos. Na mesma altura em que lhe escreveu, o seu pai escreveu para a Delegacia da Polícia de Nova Iorque. Como registou a carta na embaixada, esta é um documento a ter em consideração. É um registo de assassínio de Madeleine Bayard e da sua relação com ele.

- E qual foi a sua relação?

- Cúmplice depois do facto.

- O que significa?

- Que foi outra pessoa que a matou. O seu pai ajudou essa pessoa a eliminar todas as coisas que a podiam incriminar.

- Quem a matou?

- Ainda não conseguimos descobrir isso, e ainda não conseguimos provar a acusação que fez.

- Quer dizer que ele pode ter mentido?

- É possível.

- Mas porquê? Raios, ele estava a morrer!

- O que não significa que estivesse a dizer a verdade - fez notar Manny Bechstein. - Só nessa altura é que ele podia dizer o que lhe apetecesse e escapar-se com a história.

- É por essa razão - disse Sam Hartog em voz baixa - que temos tido todo o cuidado em não revelar nomes nem em deixar escapar informações. Quando é que Mather regressa a Nova Iorque?

Dentro de uma semana.

Nessa altura falaremos com ele.

- Mas que relação...

- É o problema dos assassínios - declarou Manny Bechstein. - Envolve as pessoas menos prováveis. Obrigado pela sua ajuda, minha senhora. Nós vamos andando.

- Fique com o meu cartão para o caso de nos querer contactar - disse Sam Hartog. - Antes que me esqueça, eu e o Manny gostaríamos de ser convidados para a abertura da exposição.

- Vou mandar-vos os convites. Vão ter de usar black-tie.

- Concordo. - Esta afirmação surpreendente veio da parte de Manny Bechstein. - A minha mãe costumava dizer que é uma coisa que dá respeito. Ela também era artista. Gravava cristais para a Corning. Alguns dos seus trabalhos são dignos de figurar num museu. Até à próxima, Miss Loredon.

Depois de eles terem partido, ela encolheu os ombros com resignação e voltou a mergulhar na pilha de trabalho que tinha em cima da secretária: contas, esboços de anúncios, o projecto de uma circular sobre o seminário de Tolentino, listas de convidados, chamadas telefónicas à espera de resposta, correspondência com artistas e seus agentes. Algures, no fundo da sua mente, uma campainha de alarme começou a soar. O facto de estar viciada no trabalho, esta recusa em se interrogar sobre os seus problemas, esta fuga compulsiva ao sossego, tudo isto eram sintomas anormais. Nunca expurgara devidamente tanto o desgosto como a raiva que sentia. Nunca conseguira resolver os enigmas da sua relação com Bayard. Era por isto que as campainhas tocavam, mas ela ignorou o som e desejou que Max Mather voltasse depressa para partilhar com ele o peso da última comunicação de Hugh Loredon:

 

Sei que não tenho sido um bom pai. Nunca fui bom em nada, a não ser como leiloeiro e companheiro de cama. Mas até mesmo aí, sempre funcionei melhor com mulheres que não me levavam demasiado a sério, nem a mim nem ao que ambos fazíamos. Agora tudo se tornou demasiado sério, e o tempo é demasiado curto para fazer qualquer coisa, a não ser dizer-te na minha maneira desajeitada que sempre te amei, que sempre admirei o bom trabalho que fazias com a tua vida.

Também te devo dizer - e responsabilizar-me pelo que digo - que Bayard não é o homem certo para ti. É perverso. É inteligente, Quer ser franco e agradável. Não o consegue. Nele não há qualquer alegria. Claro que Madeleine também não ajudou. Ela também era perversa. Ambos tinham altos e baixos, mas nunca estavam em sincronia. Se ambos tivessem sido capazes, nem que fosse só por algumas vezes, de atingir a crista da mesma onda, talvez se tivessem safado.

Eu e a Madi conseguimos ter alguns bons momentos, mas nunca fui cavalo para corridas de fundo. Gostava dos galopes curtos e das súbitas mudanças de cenário. Sei que com a Madi me deixei ficar demasiado tempo, e que isso estragou muitas coisas. Escrevi uma carta à polícia, a qual espero ir esclarecer muitas coisas. Eles que fechem o processo e te deixem continuar com a tua vida.

Max Mather sabe do que estou afalar. Ele tem a resposta para as tuas perguntas. Gosto muito do Mather, mas acho que não é daqueles que ficam. E por agora é tudo. Nunca gostei muito de escrever. Assim, deixa-me dizê-lo uma vez mais: gosto muito de ti. Fiz testamento. Tudo o que tenho é teu. Não chores. Faz um brinde e depois parte o copo.

 

Hugh

A primeira vez que lera isto chorara amargamente. Agora ficou zangada. Era demasiado leve, demasiado fácil - uma actuação vistosa representada por um mau actor perante uma audiência pela qual perdera o respeito. O problema residia no facto de que ela, a sua filha, ainda não encontrara a graça que lhe permitisse perdoá-lo. O bilhete de Max Mather, escrito alguns dias mais tarde, repreendera-a com suavidade, mas também com firmeza:

O Hugh escapou-se-me no fim, pois era assim que ele decidira acabar os seus dias. Quis ficar só com o seu carrasco. Acho que nenhum de nós tem o direito de negar esta última vontade a um semelhante. Para além disso, e por muito que às vezes o queiramos, não temos o direito de possuir os pais. Eles têm tanta necessidade de se nos escapar como nós de escapar a eles. E, ao fim e ao cabo, o Hugh era um artista da fuga, um Houdini tardio. Se tens de te zangar, sorri se puderes, mas para que fiques em paz contigo mesma tens de acabar por lhe perdoar. Espero que também me perdoes, o usurpador contrafeito dos teus direitos de acompanhar a última paixão de Hugh Loredon.

 

Max

Este era o osso mais difícil de roer. Max também se lhe escapava. O querido Max, infiel e em quem não se podia confiar. O companheiro das horas descuidadas que passara na Toscânia, estava a transformar-se numa pessoa completamente diferente. Agora tinha os seus próprios objectivos e não se contentava em ser o assistente de Anne-Marie, nem mesmo de qualquer outra mulher. Se o queria agarrar, e ainda não tinha a certeza de que o fizera, então tinha de sair do seu canto e agarrá-lo antes que se fosse embora com outra mulher com aquela Leonie Danziger que telefonara a oferecer os seus préstimos, e que parecia saber bastante mais que aquilo que dissera a respeito de Hugh Loredon e dos Bayard.

Por outro lado, Anne-Marie não estava certa de querer alguém a seu lado naquela altura. Havia muito que fazer. Apesar de poder daí extrair algum consolo, não andava desejosa de sexo. Parecia que a ambição esgotava bastante adrenalina, e, para além disso, ela sempre preferira fazer amor quando este era uma coisa divertida... tal como o falecido Hugh Loredon.

 

Edmund Bayard não se surpreendeu quando a polícia recomeçou os inquéritos. Ficara claro desde o princípio que a exposição das telas de Madeleine, ainda por cima no próprio local do crime, faria com que se voltassem a verificar rumores e mexericos. Era igualmente claro que, com vista a evitar as críticas, a polícia teria de se mexer.

Também não se surpreendia com o facto de Hugh Loredon ter feito uma espécie de confissão no leito de morte. Durante toda a vida aquele homem fora um charlatão, um mulherengo, um irresponsável que se metera na vida dos outros. Fosse o que fosse que tivesse escrito - um acto de arrependimento tardio ou um último testemunho de malícia - era bem capaz de causar problemas. Mesmo assim, e a menos que fosse confirmado com outras provas, nada disto teria valor face à lei, e Bayard não acreditava que essas provas surgissem em breve. O seu próprio alibi fora confirmado e tornado a confirmar. Era ainda sólido como uma rocha.

O que o incomodava nesta nova leva de perguntas era o facto de se mencionarem alguns papéis pertencentes a Madeleine, papéis estes que não podia identificar. Sugeria-se claramente que Mather os vira e só assim conseguira escrever de uma forma tão viva sobre a vida e o trabalho de Madeleine. Dado que estes registos pessoais existiam, dado que podiam cair nas mãos da imprensa, a sua privacidade - aquele espaço de sossego que ainda existia na sua vida estava ameaçada de forma imediata. A sua frágil autoconsideração podia desvanecer-se a qualquer momento. A sua vida podia nunca mais voltar a ser o que era.

Esta era a verdadeira ameaça que, tal como as nuvens que anunciam um furacão, pairava sobre a sua vida. Madeleine fora-lhe infiel vezes sem conta. Pior ainda, fizera dele um parvo, transformara-o no objecto de escárnio dos seus amantes e amigos. Sobrevivera a tudo isso e, com Anne-Marie, quase encontrara a salvação. Mas se isso falhasse e ela não lhe desse resposta, então sim, o verdadeiro terror acabaria por chegar, e o seu mundo ficaria com o ar do Dia do Juízo Final.

Este medo já antes o atormentara. Era um dos sintomas da depressão que o afectara ciclicamente ao longo da vida, mas que só nos últimos anos fora identificada a nível clínico. Aprendera a controlar as oscilações que levam da mania à depressão, cavalgando-as tal como um pescador faz com as vagas, fazendo que caíssem sobre os seus ombros e nunca na proa do navio, subindo e descendo, mas sem nunca deixar que o mar o desfizesse... Contudo, agora o mar elevava montanhas de água à sua frente, e cada vez era mais difícil manter a sanidade mental.

Se ao menos Anne-Marie se inclinasse para ele! Se ao menos pudesse passar a barreira da afeição calculada e entrar na nascente de paixão que se estendia à sua frente! Ela tinha de ter necessidades sexuais. Não poderia viver para sempre como uma freira. Nem sempre se comportara assim. Max Mather testemunhara-o. E então? Quem seria o seu rival? Deixaria Anne-Marie em paz até à exposição. Depois tinha de a forçar a declarar-se.

Tudo isto punha-o frente a frente com Mather. Este tinha todas as qualidades do velhaco atraente: educação esmerada, bom gosto cultivado à custa de terceiros, o encanto da deferência. Um rosto atraente e um corpo atlético completavam o quadro. Era de mais para um homem só. Ainda por cima descrevera Madeleine de uma forma bastante íntima e precisa, e pintara um quadro bastante trágico do seu funesto casamento. O pior de tudo é que não havia sombra de malícia neste trabalho. Mesmo assim, toda aquela compaixão era uma afronta. Poderia ser seu cliente, amigo de Anne-Marie, e um sócio valioso para a galeria, mas naquele momento tornara-se o centro de todos os medos e desconfianças que antes haviam estado centralizados em Hugh Loredon. A razão dizia-lhe que tudo isto era uma loucura perigosa, mas não existe razão no interior da nuvem do furacão - apenas violência, escuridão, e as sementes da destruição... A campainha do telefone fê-lo voltar à realidade. Levantou o auscultador e descobriu que quem estava na linha era um dos membros do consórcio de compradores de arte.

- Ed, os rapazes deram uma olhadela às fotografias do holandês... como é que o tipo se chama, Cornelis Janzoon? Gostaram bastante do material. Querem saber quais as possibilidades de montar uma exposição em Nova Iorque, e para quando seria. A ser isto possível, acho que devemos comprar algum material e mantê-lo guardado.

- Sei que o Mather falou com o Janzoon a propósito da exposição, mas é provável que ainda não a tenha discutido com Anne-Marie. Como sabes, o pai dela morreu há pouco tempo. Deixa as coisas comigo. Eu trato de tudo. Se chegarmos a comprar, qual a quantia que o consórcio autoriza a gastar?

- Com a exposição... cinquenta mil. Sessenta no máximo.

- Vou falar com Anne-Marie e depois entro em contacto contigo. Estamos à espera que o Mather chegue mais ou menos dentro de uma semana.

- Ed, estás bem? Pareces irritado.

- Tive uma manhã não muito boa às voltas com um cliente desgastante.

- Não deixes que te levem a melhor, Ed. És o guru. Mantém-nos na ignorância e na humildade. Passa bem!

Bayard pousou o auscultador e depois ligou para o estúdio, para Anne-Marie. Fez a seguinte pergunta:

- Já teve oportunidade de observar o material que o Max mandou de Amesterdão?

- Sim. Parece ser bastante interessante.

- Suficientemente interessante para justificar uma exposição?

- É cedo de mais para decidir isso, Ed. Temos de ver como nos vamos sair com o trabalho de Madeleine. Depois estamos comprometidos com o Oliver Swann, o que perfaz dois artistas figurativos um a seguir ao outro. Acho que para a nossa terceira exposição devemos ter em conta horizontes mais alargados. Já temos várias opções. Gostaria de as manter todas em aberto. De forma que neste ponto não quero ser pressionada até à altura devida.

- Eu sei. É que os membros do nosso consórcio estão bastante interessados no Janzoon.

- E gostariam de fazer umas apostazinhas enquanto eu lhes preparo o mercado! Não entro nessas jogadas, Ed. Tenho a certeza de que o Max também não.

- Ele é um dos membros do nosso consórcio.

- Mas também é o meu representante. Por isso, e se há algum conflito de interesses, é melhor que seja declarado de imediato!

As coisas estavam a complicar-se. Bayard tentou apaziguá-la. Estou certo de que não existe nenhum. O Max agiu como deve ser. Disse aquilo que recomendava. Agora cabe ao consórcio decidir aquilo que quer comprar. E a si decidir o que, quer expor.

- Desde que todos conheçam as regras!

- Pode ter a certeza de que conhecem, Posso convidá-la para almoçar? Ou talvez para jantar?

- Gostava bastante, isto se me der um prazo até ao fim da semana. De momento não tenho mãos a medir com trabalho.

- Por que razão não contrata alguém para a ajudar?

- Porque estou a tentar evitar despesas, e sozinha faço as coisas mais depressa e por menos dinheiro. A propósito, hoje recebi a visita da polícia.

- E que raio queriam eles?

- Comentários sobre uma carta que o meu pai lhes escreveu antes de morrer.

- Mostraram-lhe a carta?

- Não.

- Nesse caso espero que se tenha recusado a fazer comentários.

- Mais ou menos. Também perguntaram quando é que o Max estaria de volta.

- Deixe que lhe volte a repetir o meu conselho. Não permita que a levem a fazer comentários ou especulações sobre material que eles não estão preparados para lhe mostrar.

- Farei como me diz.. Telefono-lhe na sexta-feira de manhã.

- Ficarei à espera. Teve notícias do Max?

- Apenas um telex bastante longo sobre Niccoló Tolentino e a lista dos assuntos que este irá tratar durante doze conferências. Aí está outra coisa que tenho de começar a promover. O Max espera chegar de Paris no domingo à tarde, num voo da Air France. Vai ser bom voltar a vê-lo.

- Bastante bom - concordou Bayard. - Bastante bom mesmo.

 

Em Zurique, a tarde chegava ao fim. Niccoló Tolentino fora abraçado, encorajado, documentado, fornecido com dinheiro para a viagem, forçado a jurar silêncio, e mandado regressar a Florença num dos voos da tarde. Naquele momento, Max Mather e Alois Liepert delineavam os próximos passos na estratégia dos Rafaéis. A recomendação do advogado era clara e enfática:

- Agora precisamos de um período de espera, de um tempo de acalmia. Sabe que os originais estão na sua posse. Pode fazê-los aparecer a qualquer altura. O Palombini só precisa de fazer contas em finais de Junho. Os artigos vão ser publicados agora. Irá verificar-se uma subida na curiosidade das pessoas, bem como um aumento do valor dos produtos no mercado. Sendo assim, Max, deixe-se estar quieto. Encha a sua alma de paciência. Você precisa de regressar à América. Parta! Deixe-me ficar com os meus poderes de advogado e posso fazer tudo o que precisa de ser feito. Dado que as companhias funcionam por procuração, podem envolver-se em actos legais sem que a sua presença seja necessária. Max, se pretende ser um bom intermediário, tem de aprender isto: a ter paciência. Tal como a história o prova, você não é muito paciente.

- Concordo consigo, Alois. Nesse caso fiquemos por aqui. Vou voltar à América. As coisas ficam por sua conta. Mas o que vou eu fazer quanto à Gisela?

- Desculpe, meu amigo, mas também aí se está a precipitar. A Gisela é uma suíça muito esperta, muito moderna, mas também muito tradicional. Ainda estamos no país da Reforma. Tanto Calvino como Zuínglio ainda passeiam por aí. A Gisela ama-o. Acha que quem se ama deve ter uma vida sexual activa. Mas retrai-se ao mais pequeno sinal de desonestidade nos negócios. Agora que temos o contrato, posso encarregar-me do assunto com os Palombini. Já encontrei clientes que me puseram em situações muito piores. Enquanto advogada, a Gisela também se encarrega das coisas. De facto, foi ela mesma que construiu a situação. Contudo, num destes dias deixou escapar uma frase que me deixou alerta. Foi o seguinte: "Num casamento, é preciso compatibilidade de consciência.”

- Estou a ver. - Mather encolheu os ombros com tristeza. - Acho que é precisamente isso que agora ando a tentar fazer: a tentar descobrir uma maneira de pagar as minhas dívidas, tanto financeiras como emocionais, sem ir à falência nem arruinar a reputação que começo agora a construir.

Liepert fez que sim com a cabeça.

- Concordo. Nas relações humanas há poucas coisas absolutas e por vezes a lei é apenas um asno a zurrar.

- Concordo plenamente. - Gisela entrou, corada e afogueada depois da caminhada que fizera vinda da universidade. Beijou-os a ambos e depois deixou-se cair numa cadeira. - Que tens aí que se beba, Alois?

- Tudo o que está no armário. Sirvam-se. Estarei de volta assim que assinar a correspondência e...

O telefone tocou. Liepert pegou no auscultador, ficou à escuta durante alguns minutos e depois passou o aparelho a Max.

- Uma chamada da América para si.

Sem pensar, Mather carregou no botão do telefone de conferências, e a voz distorcida de Leonie Danziger fez-se ouvir no aposento.

- Max, é a Danny. A polícia está aqui. Prenderam-me sob a acusação de ter morto Madi Bayard. Esta foi a única chamada que me autorizaram a fazer. Por favor, ajude-me!

- É o que farei. Agora acalme-se e responda-me com clareza. Já lhe leram os seus direitos?

- Sim.

- Então siga-os à risca. Mantenha-se calada. Não diga uma única palavra até eu lhe ter arranjado um advogado. Entendido?

- Sim.

- A Carol está consigo?

- Não. Está na escola.

- Peça ao agente que a prendeu se não a deixa escrever uma nota a contar-lhe o que se passou. Diga à Carol que eu telefono. Vou para aí assim que arranjar avião. Depois faremos os possíveis para a deixarem sair sob fiança. Qual é a acusação que lhe fazem?

- Assassínio em primeiro grau.

- Meu Deus, não é possível! Pergunte ao polícia que a prendeu se não se importa de falar comigo.

Seguiu-se uma pequena pausa, um murmúrio ininteligível, e a seguir ouviu-se uma voz neutra.

- Daqui Sam Hartog. Quem fala?

- Max Mather. Miss Danziger está certa quanto ao teor da acusação?

- Receio bem que sim. Assassínio em primeiro grau.

- Vou arranjar-lhe um advogado.

- Parece-me sensato.

- É natural que ele peça fiança.

- Claro... Quando espera estar de volta, Mr. Mather?

- Amanhã... depois de amanhã, assim que arranjar avião.

- Gostaríamos de falar consigo assim que chegasse.

- O desejo é mútuo. Dê-me o número de telefone. Obrigado. Para onde vão levar Miss Danziger?

- Para a esquadra. Quanto mais depressa contactar com o advogado dela, melhor. Gostaria de lhe voltar a falar.

- Por favor... Danny, está tudo sob controlo. Dentro de uma hora terá um advogado. Dentro em breve estarei ao pé de si. Tenha coragem!

- Max, como lhe posso agradecer?

- Mantenha a calma. Estarei consigo assim que puder. Adeus.

- Estou impressionada - disse Gisela. - Tal qual Sir Galahad, pronto a entrar ao serviço de uma donzela em apuros. Vai-nos explicar isto tudo, não?

- Vou. Agora cala-te e deixa-me continuar.

Já estava a ligar o número do escritório de Ed Bayard. A secretária informou-o de que este estava em reunião com um cliente.

- Por favor, tire-o de lá. Diga-lhe que é Max Mather a falar de Zurique e que esta é uma emergência de primeiro grau!

Bayard veio ao telefone. Mostrou-se seco e irritado.

- Que raio de emergência é esta?

Quando Mather lhe contou, o choque fê-lo ficar em silêncio.

- É por isso que preciso de um bom advogado imediatamente!

- Não te posso ajudar, Max. Formamos uma sociedade especialista em direito comercial e não em práticas Criminais.

Mather teve uma explosão de fúria.

- Que raio de resposta é essa?

- Prudente. - Bayard mostrava-se frio. - A vítima era a minha mulher. Seria não apenas sensato mas também prudente se eu não me envolvesse com a acusada, não te parece?

- Assim seja. Dá-me o número de alguém, Ed. Resolvo o resto das coisas quando regressar a Nova Iorque.

- Espera um momento.

Esperou durante três infindáveis minutos até que a secretária entrasse em linha com a informação.

- O nome que o senhor pediu é George Munsel. O indicativo é o 212, o número o 7354141. Já tomou nota?

- Sim - respondeu ele e desligou o telefone.

- Posso ajudar? - Era Gisela.

- Ainda não. Arranja uma bebida para os dois.

Discou o número que lhe fora dado, o qual pertencia à zona de Manhattan, e ficou em contacto com uma voz fria e académica, que se identificou como sendo George Munsel. Mather deu logo início a um breve relato onde se enumeravam as circunstâncias e as necessidades de Leonie Danziger. No fim de tudo, Munsel perguntou:

- E como foi que mo descobriu?

- Perguntei a Ed Bayard, o meu representante. Este invocou prudência e conflito de interesses. Deixei de contar com ele. A secretária voltou com o seu número. Tenho de sublinhar o facto de que não me foi recomendado por ele.

Munsel riu-se - um som descontraído.

- Quem vai pagar a conta? - perguntou.

- Eu. Assim que chegar aí passo-lhe um cheque.

- Fiança?

- O emprego dela é seguro e lucrativo, o apartamento onde vive pertence-lhe. Não a consigo imaginar a fugir.

- Que sabe a respeito do crime?

- Se é o que quer dizer, não estou envolvido nele. Durante os últimos dois anos estive fora do país. Envolvi-me nesta porcaria devido à minha relação com Anne-Marie Loredon e o falecido pai. Mais ainda, sou eu que tem os escritos pessoais de Madeleine Bayard.

- Onde estão eles?

- Aqui em Zurique.

- Deixe-os ficar aí. Traga um conjunto de cópias reconhecidas pelo notário. Repito: reconhecidas pelo notário.

- Tudo bem. Espero que isto queira dizer que aceita o caso.

- Primeiro vou ter de falar com Miss Danziger, e é isso que vou fazer neste momento. Telefone-me assim que chegar a Manhattan.

- Com certeza. Obrigado.

Gisela entregou-lhe uma boa dose de uísque. O telefonema que se seguiu foi para a galeria de Anne-Marie Loredon. Ela acabara de ouvir as notícias na rádio, e o choque deixara-a quase que incoerente.

- Isto é terrível para nós, Max. Estamos a três semanas da abertura da galeria, e logo vai acontecer isto! Preciso de ti aqui. Não consigo aguentar isto sozinha.

- Amanhã já aí estou. Acalma-te. Não nos deixamos intimidar com as situações. Enfrentamo-las. Assim que chegar aí vou convocar uma reunião com os nossos agentes de publicidade e as pessoas das Relações Públicas. Tens notícias de Bayard?

- Não. E tu?

- Tenho. Falei com ele... pedi-lhe para arranjar um advogado para a Danny Danziger. Escapou-se logo. Podes dizer-lhe da minha parte que ele é uma merda.

- Isto não é justo, Max. Afinal ela é acusada de lhe ter morto a mulher. Como é que podes esperar que ele aceite defendê-la?

- É melhor não discutirmos, querida! O pior ainda está para vir. Precisamos de nos manter unidos. Telefono-te assim que chegar. Vais até minha casa beber qualquer coisa, e faremos um conselho de guerra.

- Que vou dizer à imprensa?

- Que estás surpreendida, chocada, que não consegues aceitar. Esperas que se faça justiça... e há o estranho eco do drama grego, que também eles irão captar assim que virem a exposição, a qual vai abrir na data prevista. Escreve isto antes que te esqueças. Até à vista!

- E há uma outra mulher abatida que se perfila frente a este jovem cavalheiro. - Era Gisela Mundt quem falava, fazendo gestos teatrais. - Até agora são duas. Quantas mais há?

Contrafeito, Mather soltou uma gargalhada.

- Bem, posso ser obrigado a ir ter com uma das minhas viúvas ricas para arranjar o dinheiro da fiança. Se ela não o quiser arranjar, vou ter de consultar a minha agenda. A sério, isto é mesmo macabro. E a história que Hugh Loredon me contou em Amesterdão. Chamei-lhe mentiroso. Mas é evidente que a carta que ele escreveu deve dizer que foi Danny Danziger a assassina. Porquê? Por que razão há-de dizer mentiras um homem que está às portas da morte?

- Porque essa é a altura perfeita - sugeriu Gisela. - Todos acreditam no que diz. Agora é melhor telefonarmos para a Swissair e vermos quais os voos que eles têm para Nova Iorque.

Havia um lugar no voo das onze horas da manhã, que ia directo para o aeroporto Kennedy, coisa que lhe dava tempo suficiente para ir ao banco munir-se do dinheiro, cópias e documentos necessários. Alugou um automóvel para as oito e quinze da manhã, e deixou que a Swissair lhe reservasse uma limusina no aeroporto Kennedy. Tudo isto lhe deu apenas tempo para fazer mais um telefonema antes de sair do escritório de Liepert.

Mather insistiu em telefonar a Berchmans. O velhote teve uma reacção moderada.

- E acha que foi ela?

- Sei que não foi.

- Pode prová-lo?

- Espero que sim. Tenho uma coisa para lhe dizer. Vou levar cópias dos escritos e dos blocos de Madeleine. É provável que venham a ser utilizados como provas. Apesar de nunca aparecer de forma demasiado conspícua ou escandalosa, o que é certo é que você está lá.

- Não há maneira de me deixar de fora?

- Receio bem que não. Com toda a franqueza, o máximo que a imprensa pode fazer é ocupar-se com certos pormenores menos ortodoxos.

- Será que neste ponto vou ter de confiar em si, Mr. Mather?

- Receio bem que sim.

- Tudo bem. Dentro em breve estarei em Nova Iorque. Telefone para o meu escritório e eles dar-lhe-ão a data precisa. Temos de nos voltar a encontrar. Consegui fazer que os dois Rafaéis me sejam enviados de barco com vista a serem examinados. Gostaria que você os visse comigo.

- Obrigado. Nessa altura espero já estar na posse de mais informações sobre os originais.

- Os quais, claro, terão de ser verificados?

- Claro.

- Temos de falar sobre a maneira de os fazer chegar ao mercado.

- Sim, sim.

- Agora vou dar-lhe um conselho. Tenha cuidado com o Seldes. Ele não gosta de si. Tem inveja. Pode ser perigoso.

- Obrigado por mo dizer.

- Uma mão lava a outra disse Berchmans desligando a seguir.

 

George Munsel, o advogado que ficara encarregue da defesa de Leonie Danziger, era verdadeiramente surpreendente. Tinha cerca de um metro e noventa de altura, era magro como uma estaca, tinha pés e mãos grandes, um rosto quadrado do tipo escandinavo, um tufo de cabelos louros, e o sorriso revelava uma inocência infantil. O maior problema que tinha na vida parecia ser o de se acomodar à escala dos comuns mortais. Tinha de se baixar para passar pelas portas, esgueirava-se através da mobília, sentava-se nas cadeiras de pernas e braços abertos, baixava-se para escutar as pessoas. Mather ficou com a impressão de que se tratava de um antigo sábio nórdico, compassivamente curvado sobre a humanidade. Uma vez no pequeno apartamento de Mather, esticou as enormes pernas por debaixo da mesa, dispôs as notas que tirara e o bloco-de-apontamentos, e disse o que tinha a dizer numa profunda voz de barítono.

- Não há muito para dizer. A cliente aceita-me, eu aceito-a. Neste momento preciso de dez mil dólares. Até agora nada me foi revelado, mas o gabinete do Procurador Geral deve estar bastante seguro para acusar de assassínio em primeiro grau. A rapariga recusa a acusação, mas admite a existência de envolvimentos e circunstâncias comprometedoras: uma relação lésbica com a vítima, discussões, uma visita ao estúdio no dia do crime, um telefonema para Hugh Loredon. O que tenho vontade de fazer é pedir uma fiança razoável e deslindar o caso.

- Uma fiança de quanto?

- É ainda muito cedo para o dizer, e não é da sua responsabilidade arranjá-la.

- Quero ajudar no que for preciso.

- Por que ela é a sua redactora?

- Porque é uma óptima redactora. E eu estou-lhe grato por isso.

- É um ponto de vista interessante. De acordo com as suas próprias declarações, ela é lésbica.

- Isso é irrelevante - respondeu Mather. - Que há a seguir?

- Que há a seguir na sua história, Mr. Mather?

Max contou-lhe o que sabia, com calma e sem retocar nada.

À medida que o fazia ficou admirado com a forma como, em tão pouco tempo, se envolvera de forma tão profunda na vida destas pessoas. Munsel ouviu-o em silêncio durante a maior parte do tempo, interrompendo-o apenas para clarificar um qualquer elemento, ou para ter tempo de registar um determinado ponto. Depois, e por mais duas vezes, pediu a Mather que lhe contasse todos os pormenores dos encontros que tivera com Hugh Loredon, isto desde a primeira vez que almoçaram juntos até ao último aperto de mão em Amesterdão.

A seguir concentrou a sua atenção na carta que Danny Danziger escrevera, bem como nas fotografias que mandara, as quais cobriam os inquéritos da polícia. O seu comentário definiu o desconforto que Max sentira mas que não conseguira descrever quando lera o material pela primeira vez.

- Isto preocupa-me - comentou Munsel. - Ela escreve de forma totalmente impessoal, como se estivesse apenas a resumir informações de terceiros. A única concessão que faz revela-se nas frases a partir de "há muitos de nós envolvidos nisto." Resumindo, na sua essência esta carta é uma mentira total.

- Também me senti incomodado da primeira vez que a li - concordou Mather. - Mas nessa altura não sabia o que sei agora. Se ler os diários de Madeleine Bayard é capaz de encontrar a razão que levou a toda esta mentira... Demore o tempo que quiser. Vou preparar bebidas. Que deseja tomar?

- Um vodca tónico, por favor. - Nesta altura já ele, se encontrava mergulhado na leitura.

Mather serviu as bebidas e dirigiu-se para o quarto, onde fez um telefonema a Anne-Marie. Conversaram durante pouco tempo. Ela ficou radiante com a sua volta. Iria jantar com ele às oito. Ah, e se ele não se importasse de telefonar para casa do Ed Bayard? Porquê? Porque o Ed estava a sentir-se bastante mal devido à forma como procedera. Gostaria de pedir desculpas e que ambos ficassem amigos. Partindo do princípio de que tipos como Bayard eram melhores como amigos que como inimigos, Mather concordou em telefonar-lhe na manhã seguinte. Depois foi a vez de Harmon Seldes, e Max deu consigo a ser recebido de forma bastante efusiva, coisa que o surpreendeu.

- Meu caro Max! Ainda bem que voltou! Meu Deus, não podia ter escolhido melhor altura, publicámos o seu artigo sobre a Madeleine Bayard. A Danny Danziger foi presa. Claro que se trata de um engano terrível. Só pode ser. Estamos todos a torcer por ela.

- Nesse caso, estou convencido de que fará os possíveis para que a consigamos libertar sob fiança.

- E como posso fazer isso?

- Vá a tribunal. Esteja preparado para testemunhar que ela é sua empregada a título permanente, que é de extrema utilidade para a revista... esse tipo de coisas. Também ia ser bom para levantar a moral do pessoal, Harmon!

- Vou ver o que posso fazer. Agora fale-me sobre os Rafaéis. O Berchmans disse-me que você tem feito progressos consideráveis, e também que se voltou a juntar aos Palombini, sua raposa velha.

- Pediram-me que os representasse. Seria grosseiro recusar.

- Claro. Quando é que o vejo?

- A acusação não se irá manter por muito tempo. Falamos depois disso. Tenho sugestões para o prosseguimento da história dos Rafaéis.

- Temos mesmo de falar a esse respeito. Entretanto, farei os possíveis para o ajudar a conseguir a fiança. Mal posso esperar para ouvir aquilo que tem para me dizer sobre os quadros. Sei que tem falado com o Berchmans, mas ele reparte as informações como se estas fossem dinheiro... Você e eu temos de arranjar tempo para conversar. Mais uma vez: seja bem-vindo!

George Munsel continuava absorvido nos manuscritos e nos livros de esboços de Madeleine Bayard. Levantou os olhos quando Mather entrou na sala, e perguntou bruscamente:

- Por que razão Hugh Loredon lhe entregou este material?

- Nunca cheguei a perceber bem. Acho que considerava tudo isto como uma arma contra Bayard. Assim que vi no que consistia, senti-me inclinado a concordar.

- Por que razão ficou com as coisas? Por que não as devolveu?

- Ele disse-me para ficar com elas.

- Deu-lhe alguma razão para tal?

- Sim. Disse: "Para a polícia isso representa provas, para si é um tesouro." E, dadas as circunstâncias, é isso que se passa.

Munsel fez o seu sorriso, grande e infantil.

- Mas por que razão lhe deu as coisas a si e não à filha?

- Porque sabia que tínhamos sido amantes. Sempre me viu como uma espécie de protector.

- A polícia vai fazer-lhe outra pergunta.

- Qual é ela?

- Mr. Mather, sabe o que significa ocultar provas?

- Sei. Significa esconder factos de um crime.

- Sendo assim, que vai responder à polícia?

- Que os papéis de Madeleine Bayard não fazem referência a crime, apenas às loucuras dos seus amigos e dos que privavam com ela.

- Coisas que podiam ser relevantes no crime que ocorreu.

- Mas não sou, nem fui, competente para julgar essa relevância.

- É óbvio que Hugh Loredon pensou que sim.

- A sério? Como é que se pode concluir isso?

- Boa pergunta, Mr. Mather. Como foi que interpretou as intenções de Hugh Loredon?

- Não tenho a certeza de nada. Acho que ele estava a tentar proteger a filha do escândalo e dos aborrecimentos que surgiriam depois da sua morte. É bem provável que a tenha desejado enriquecer com documentos valiosos sobre Madeleine Bayard, mas não o podia fazer directamente sem a estar a envolver na tal ocultação de provas. Assim, confiante de que eu protegeria os seus interesses, voltou-se para mim.

- Gostaria de tomar um outro vodca - disse Munsel. Mas desta vez sem água tónica.

- É para já.

- Bom, agora deixe-me fazer uma pequena sugestão. Suponhamos... e fiquemo-nos apenas pelo campo das suposições... que Hugh Loredon estava a jogar a sua última cartada desleal.

- Com que finalidade?

- Destruir o homem que mais odiava e temia: Edmund Bayard.

- E para fazer isso incriminaria uma mulher inocente com uma história inventada? Não faz sentido.

- Não é bem assim. Você viu o que aconteceu depois do processo-crime. A acusação tem uma confissão autenticada que também funciona de forma acusatória. A pessoa de quem a acusação partiu está morta e não pode ser interrogada. Na ausência de outras provas, e tenho o palpite de que existem algumas, se bem que não as suficientes, eles estão numa situação difícil. Principalmente quando eu apresentar um documento de refutação tão forte como o que agora tenho entre mãos.

- Mas isso tudo aconteceu antes do facto.

- Menos para o homem que vai interpretar as coisas.

- E quem é ele?

- Você, Mr. Mather!

- Não estou a ver para onde me quer levar.

- Você é um estudioso, Mr. Mather. Investiguei a sua vida. Li os dois artigos da Belvedere que a Danny Danziger me indicou. A sua especialidade não é as belas-artes mas sim a paleografia, o estudo de documentos antigos e modernos. Segundo a minha enciclopédia, trata-se de ler de forma correcta a escrita do passado, examinar os manuscritos à luz das provas internas (conteúdo, sentido), e externas, as quais nos são fornecidas por outros documentos. Já examinou os papéis de Madeleine Bayard por mais de uma vez. Escreveu um artigo comovente e que elucida bastante. Quero que volte a examinar o mesmo material, desta vez como paleógrafo, e que procure as provas internas e externas sobre a vida e a morte de Madeleine. Se o meu palpite não falhar, acho que posso fazer de si a testemunha mais importante da defesa.

Espantado, Mather ficou a olhar para ele de boca aberta.

- Faz alguma ideia do que está a pedir? Isto não é uma brincadeira. É uma aposta pela liberdade de uma mulher, não apenas na minha perícia mas também nas extravagâncias da mente de uma mulher que já morreu, e nas fantasias por ela construídas para divertir, chocar ou enganar os outros. Acho que nem sequer estou em condições de tentar!

- Nem mesmo se eu lhe desse algumas instruções?

- Não vejo como o pode fazer.

- Nesse caso, tente isto. - Munsel avançou algumas páginas do diário até chegar às últimas duas. - É assim que começa a entrada do último dia de Madeleine: "Está um frio horrível. O estúdio parece uma tumba. Acendi todos os aquecedores. Mesmo assim, não consigo controlar os meus dedos completamente, de forma a que possam realizar convenientemente este trabalho de escriba. No entanto, hábitos antigos determinam que deve ser feito a esta hora e desta maneira, caso contrário o dia não me irá correr bem." Agora, Mr. Mather, interprete-me isto. Faça o melhor que souber. Comecemos então.

- Bom... - Mather leu as frases por mais três vezes antes de responder. - "Este trabalho de escriba". .. é exactamente isso. Nos diários usava uma caligrafia bastante formal baseada no velho estilo gótico francês, e que se chama écriture financière. Quanto à forma, esta é chamada ronde, arredondada, e dado que é redonda, vertical, e realçada nas linhas inferiores, leva mais tempo a escrever e requer bastante mais cuidado que as caligrafias cursiva ou normais. "A esta hora e desta maneira, caso contrário o dia... " Isto leva-me a pensar que ela usava o diário como uma espécie de exercício de aquecimento para desenhar e pintar. Para além disso, e depois de saber algo mais sobre a sua vida familiar, estou tentado a dizer que talvez constituísse um acto de alívio e efusão depois de uma noite de tensões conjugais. Encontramos vestígios de superstição... o ritual tem de ser levado a cabo, caso contrário o dia correrá mal. "O estúdio parece uma tumba ... " Que raio de aquecimento seria aquele? É evidente que não era central.

- Bravo! - interrompeu-o George Munsel numa explosão de aplausos solitários. - É óptimo. É precisamente disso que estou a falar. Importa-se de se ocupar do caso? Podemos encontrar-nos todos os dias, ou então dia sim dia não, e discutiremos aquilo que vai descobrindo.

- Vale a pena tentar... mas que vou dizer à polícia quando começarem a fazer perguntas?

- Antes de lhe responder, deixe-me fazer-lhe outra pergunta. Onde é que se encontram os originais desses desenhos e desses escritos?

- Num cofre-forte na Suíça.

- A quem pertencem?

- A companhia a que os entreguei. A Artifax S. P. A.

- E se a polícia pedir para os usar?

- Terei todo o prazer em os pôr em contacto com o advogado que trabalha para a companhia.

- Óptimo. E dado que estarei a seu lado durante essa entrevista, serei eu a dar-lhe as deixas. Serei também eu a telefonar à polícia e a combinar com eles a data e o ponto de encontro. Você vai encontrar-se disponível, mas bastante difícil de isolar.

- Quando poderei ver a Danny?

- Se tivermos sorte, amanhã ser-lhe-á garantida a fiança. Se não, farei que a veja imediatamente a seguir. Contudo, depois de ler tudo isto e de ouvir o que me disse, penso que o dinheiro a pagar pela caução será uma quantia razoável. A rapariga tem dinheiro suficiente para arranjar um fiador. Não gostava que você se envolvesse demasiado com ela. Preciso de si enquanto testemunha, e é nessa qualidade que o vou apresentar no tribunal.

- Faz ideia de que o meu testemunho vai atingir muita gente? O Ed Bayard em primeiro lugar, a Anne-Marie por causa do pai, já para não falar nos outros homens que aparecem nos diários e nos desenhos?

- Vamos por ordem. Ed Bayard? Esse come a sopa à medida que lha forem servindo. Não andamos a persegui-lo, estamos a defender uma cliente. Anne-Marie Loredon? Vai ser duro. É natural que o pai seja desacreditado. É capaz de perder os benefícios do seguro, isto se a companhia decidir que a morte de Loredon foi causada por suicídio. Vai ser duro, mas ela está em liberdade e a nossa cliente encontra-se na prisão e vai ter de enfrentar um julgamento. Quanto ao resto... O problema é deles, não é? É um dos problemas do circuito dos instáveis, isto para não falarmos em S.I. D. A., herpes e sífilis. São apanhados no meio de outras vidas e nunca se sabe quem, ou o quê, lhes irá bater à porta. Neste caso vai ser um homenzinho com uma intimação, oferecendo um dia divertido no tribunal.

- Que foi que lhe deu a ideia de me usar como testemunha?

- Os artigos que escreveu para a Belvedere, e a maneira como Leonie Danziger avalia os seus talentos.

- E qual é a avaliação que faz dela?

- Não tenho a certeza de ter chegado a uma conclusão, É inteligente, bem formada, apaixonada... carinhosa, o que é algo diferente. E bastante, independente, e contudo precisa desesperadamente de alguém em quem se apoiar. É igualmente capaz de afeições profundas... apesar de lésbica, é isso que sente por si... e acho-a capaz de assassinar alguém. Mas, e desde que devidamente provocados, todos seríamos capazes disso. Resumindo: é uma personagem profundamente complexa, isto apesar de não ter uma ideia precisa a seu respeito, e não faço qualquer tenção de a colocar no banco das testemunhas. Bom, agora diga-me o que sente a respeito dela, Mr. Mather.

Um tanto cansado, Mather explicou:

- Harmon Seldes deu-me a Danny para redactora. Disse-me também que se tratava de uma intelectual com preferências sexuais pouco comuns.

- E era verdade?

- Sim.

- Como foi que o confirmou?

- Ela disse-me.

- E ... ?

- E nada. Continuámos a trabalhar juntos. É uma redactora de primeira classe. Ajudou-me imenso. Não a posso abandonar numa altura destas.

- E se for considerada culpada? Sabe bem que isso pode acontecer.

- Que quer que lhe diga? Não lhe posso dizer nada.

- Dirá sim - retorquiu Munsel. - Vejo-o às dez horas no Tribunal. Obrigado pela bebida.

Juntou todos os papéis que lhe pertenciam, estendeu o corpo desprovido de carnes e deslizou para fora da divisão. Eram seis e trinta. Mather tinha apenas hora e meia para se fornecer com as necessárias provisões, e preparar uma refeição antes da chegada de Anne-Marie.

Este encontro prometia ser difícil. Não tinha qualquer intenção de que tomasse lugar num sítio público. Naquilo que dizia respeito a Anne-Marie, tudo o que ela tinha estava em risco de desaparecer: o bom nome da família, a herança, a carreira, os negócios e as relações pessoais com Ed Bayard. No que lhe dizia respeito, as coisas eram igualmente importantes. Estava a reconstruir a sua carreira servindo-se dos Rafaéis e do facto de ser o representante de uma galeria respeitável sediada em Nova Iorque. A prisão e o julgamento de Danny Danziger eram como que o primeiro estrondo provocado por um tremor de terra que poderia arruinar todos os seus projectos cuidadosamente elaborados.

Tal como um tremor de terra, o crime produzia efeitos ocasionais do mais extraordinário que havia. O assassínio de Madeleine Bayard estava a mudar a vida a pessoas que habitavam em Florença, Zurique, Paris, Rio e Nova Iorque. O caso dos Rafaéis assumia uma outra dimensão quando inserido no contexto de uma sala de audiências nova-iorquina. As suas relações casuais com Anne-Marie Loredon reflectiam-se agora na sua ligação com Gisela Mundt. Ed Bayard, a quem escolhera como conselheiro legal, revelara-se hostil de um momento para o outro, e, com igual rapidez, andava agora a tentar conseguir tréguas. George Munsel era o novo agente catalizador, desencadeando toda a espécie de reacções químicas com vista a construir a defesa da sua cliente. E o próprio Max Mather transformara-se num ser mutável, num autêntico camaleão - mudando de cor, alterando a sua configuração de forma a confundir-se com aquilo que o rodeava e a proteger-se dos predadores que pairavam sempre sobre o local da catástrofe.

Uma vez terminadas as compras, voltou para casa, pôs a mesa e começou a dispor os ingredientes na cozinha. Tratava-se de uma operação deliberada para se manter ocupado durante as jogadas de abertura com Anne-Marie. A última cena que queria representar era a de um confronto de interesses ou de opiniões. Para além disso, tencionava impregnara atmosfera de ecos de Florença, quando lhe servia cocktails na varanda e a levava para a cozinha para preparar o jantar. Era bem possível que um pouco de nostalgia servisse para varrer por completo os aspectos difíceis daquela noite. Talvez que as duras verdades daquela situação tivessem um ar menos cruel quando ditas na gíria florentina...

Toda esta encenação caiu por terra quando Anne-Marie chegou acompanhada de Ed Bayard. Mather ficou furioso, mas conseguiu ocultar a sua raiva com uma capa de frieza bem educada.

- Receio bem que só tenhas tempo para tomar uma bebida, Ed. Depois ponho-te fora. A Anne-Marie e eu temos uma série de coisas para discutir, e amanhã tenho de ir prestar declarações à polícia.

Era óbvio que Bayard se sentia embaraçado.

- Eu não me queria intrometer, Max, mas a Anne-Marie insistiu. Quero pedir desculpas pela forma como me comportei quando telefonaste de Zurique. Fui apanhado em flagrante... uma conferência difícil, notícias chocantes, o teu pressuposto de que eu seria capaz de me transformar em advogado de defesa de um momento para o outro. De qualquer das formas, lamento que tudo isto tenha acontecido. Se puder ser útil em alguma coisa...

- Obrigado, mas não. George Munsel parece-me ser bastante inteligente.

- Receio bem que não tenha sido eu a escolhê-lo, mas sim a minha secretária.

- Nesse caso, vou telefonar-lhe a agradecer.

- Ela ficará satisfeita com isso.

Seguiu-se uma pausa embaraçosa, e foi então que, a gaguejar, Anne-Marie fez o seguinte pedido...

- Max... o Ed gostaria de saber se pode dar uma olhadela ao material que o meu pai te deu.

- Receio bem que não seja possível. Não o tenho comigo.

- Nesse caso onde se encontra?

- Na Suíça.

- Max, detesto ter de insistir neste ponto - Bayard tentava a todo o custo ser delicado, mas os papéis da minha mulher fazem parte do seu património, do qual eu sou o executor. Sou obrigado a pedir que mos devolvas.

- Há duas respostas para isso, Ed. Em primeiro lugar, Hugh Loredon disse que fora Madeleine quem lhos entregara. No caso de isto ser verdade, ele tinha todos os direitos de os dar a quem os quisesse, neste caso a mim. Qualquer outra pretensão terá de ser provada em tribunal. A segunda resposta é a seguinte: uma vez, na tua casa, sugeri que talvez existisse material deste tipo perdido por aí, e que devias contemplar a possibilidade de o comprar. Se a memória não me falha, a tua resposta foi esta: "Raios partam se serei eu a comprá-lo! " Foi então que te respondi que nesse caso seria eu a comprá-lo por minha conta e risco, foram estas as minhas palavras... Lembras-te desta conversa?

- Agora sim, apesar de já me ter esquecido. Portanto queres dizer que os papéis da Madeleine são agora propriedade tua?

- Já não o são. Já não estão na minha posse. Se quiseres, posso pôr-te em contacto com os advogados que representam os actuais donos.

- Não vale a pena. É evidente que examinaste os escritos, caso contrário nunca terias sido capaz de escrever aquele artigo para a Belvedere.

- Sim, examinei-os.

- Que... que espécie de imagem dão eles a meu respeito e do nosso casamento?

- Algo de muito íntimo - respondeu Mather em voz baixa. - Intimo e, devo dizê-lo, prejudicial.

- Quer tu, quer os actuais donos têm intenções de os publicar?

- Eu não. Os presentes donos talvez, mas duvido que o façam. Contudo, acho que existem todas as probabilidades de que a defesa os utilize como provas. O George Munsel já discutiu o caso comigo.

- Por acaso já viste ou sabes aquilo que Hugh Loredon escreveu à polícia?

- Não vi nada. sei apenas aquilo que ele me disse em Amesterdão, e estou preparado apenas para o revelar à Anne-Marie.

- Mas eu quero que ele ouça, Max! - Era Anne-Marie quem se intrometia na conversa. - Tem esse direito. Tudo o que agora acontecer diz-lhe respeito. Vou vender-lhe os quadros da mulher. Sou eu quem representa a sua colecção. O testemunho do meu pai afecta-lhe a vida ... Os papéis da Madeleine foram-te entregues a ti.

- A mim. Exactamente! - Mather revelava uma hostilidade súbita.

Portanto, sou eu quem decide a quem devo contar as coisas. Acho que o Ed Bayard nada tem a ver com isto, apenas tu. Aquilo que depois lhe possas dizer é da tua conta.

- Estás a ser idiota e obstinado.

- Não, minha querida - Bayard voltara a ser quem era, contido e civilizado. - O Max está a ser perfeitamente razoável. Foi um erro eu ter vindo aqui. Telefono-te para a galeria. - Pousou o copo e dirigiu-se para a porta. - Max, devo dizer-te que mudaste muito desde a primeira vez que nos encontrámos.

- Tem sido um processo doloroso. - O sorriso de Mather tinha pouco de boa disposição. - Acho que sou daqueles que demoram a desenvolver-se.

A porta ainda mal se fechara atrás do convidado indesejado, e já Mather perdera o autocontrole e se voltara para Anne-Marie.

- Que bicho te mordeu para o trazeres cá a casa sem avisar, sem teres o meu consentimento? Por amor de Deus, estou na minha casa! Tu foste convidada. És uma amiga a quem estou a tentar ajudar. O Bayard não presta. Quero-o à distância.

- Ele só queria pedir desculpas...

- O diabo é que ele queria! Estava era interessado em saber o que foi que descobri em Amesterdão, o que está nos escritos de Madeleine, em que sarilho é que está metido. De maneira nenhuma! Fez a sua própria cama quando não levantou um dedo para me ajudar a arranjar um advogado para a Leonie Danziger. Quis manter-se à distância. Bom, conseguiu o que queria. Agora, porque não vais arranjar bebidas para os dois enquanto eu preparo o jantar?

- Não quero jantar. Quero conversar contigo.

- Nesse caso como sozinho. Podes ir falando enquanto cozinho.

- Max, o assunto é demasiado sério para arranjarmos discussões.

- Tens toda a razão. Nesse caso por que é que trouxeste o Ed Bayard para a minha sala? Para tornar as coisas piores?

- Desculpa. Na altura pareceu-me ser uma boa ideia. Max, por favor, não me ralhes mais. Não fazes a mínima ideia do que tem sido a minha vida com o Hugh morto, tu longe de mim, e eu a ter de suportar o peso de tudo. Hoje, por exemplo. Parecia estar tudo a correr bem. Despachei uma série de trabalho... o material do Tolentino, os convites para a abertura da galeria. Acho que me saí bastante bem com a imprensa. Depois decidi ir dar uma volta pelo estúdio. Está com bom aspecto, Max, a sério. Os operários têm feito um óptimo trabalho. O teu apartamento está encantador. E foi precisamente enquanto ali estava que fiquei horrorizada. Foi lá que tudo se passou. As coisas pareceram mudar mesmo à minha frente. Era como se a Madeleine ali estivesse a agarrar-se a mim, tentando dizer-me qualquer coisa. Fiquei em pânico, desci as escadas a correr e telefonei ao Ed. Ele prometeu ir ter comigo de imediato. Fui até ao Negroni's e esperei lá por ele. Depois voltámos ao estúdio, andámos por lá, e tudo me voltou a parecer normal. Quando deu a entender que queria vir junto comigo, achei a coisa mais natural do mundo. Estou cansada, Max. Tenho medo de tudo. Se me falasses com jeito, eras bem capaz de me vender a ponte de Brooklyn.

- Está bem. Vai buscar as bebidas, senta-te aqui no banco e faz-me companhia... Vou falar-te com toda a meiguice.

É claro que não se tratava de uma promessa fácil de cumprir quando a sua primeira pergunta foi tão básica e brutal:

- Como foi que o meu pai morreu?

- Era um doente terminal. Não podia suportar a ideia de ter um fim doloroso, e optou por uma morte misericordiosa numa clínica holandesa. Ofereci-me para ficar com ele, mas preferiu ficar sozinho com o médico encarregado de fazer o trabalho.

- Como é que este foi feito?

- Com uma injecção.

- Agora posso entender a razão por que ele não me quis lá. Que foi que escreveu à polícia?

- Não sei. Acho que deve ter sido mais ou menos a história que me contou.

- Tenho de saber tudo, Max.

- Tens de ter paciência enquanto te explico os antecedentes, o tipo de vida que a Madi levava, o mundo privado que construiu naquele local.

Falava à medida que trabalhava. Todos os processos automáticos de preparação dos alimentos - a lavagem, o acto de os cortar e misturar - distraíam-no da linha sombria da narrativa, mas, e por muito que tentasse, não podia evitar a sinistra conclusão a que chegara: Hugh Loredon denunciara Danny Danziger por um crime que ele mesmo cometera. Não se atrevia a expor este pensamento em palavras, mas tinha a estranha sensação de que Anne-Marie já entendera tudo.

Era um quadro estranho: Mather envergando um avental de carniceiro, por detrás do lambril, segurava uma faca de cortar carne. Anne-Marie, empoleirada num dos bancos colocados na direcção oposta à dele, estava pálida e imóvel como uma escultura de pedra.

Finalmente, e numa voz que parecia vir de muito longe, disse:

- Ouvi aquilo que disseste, Max, mas não posso... não posso aceitar tudo. Quero fazê-lo, mas não posso. Posso tomar outra bebida?

- Claro. E também podes preparar outra para mim.

Com a garrafa numa das mãos e o copo ainda por encher, perguntou:

- Isto tudo... quero dizer, vais contar isto tudo em tribunal?

- Tenho de o fazer.

- Nesse caso és tu o verdadeiro carrasco, não és? És aquele que segura no machado, pois mais ninguém sabe tanto como tu.

- Estás à espera que deixe uma mulher inocente ir parar à prisão?

- O problema é esse, Max. Ninguém está inocente. Todos têm culpas na morte da Madeleine: Bayard, Hugh, a própria Madi, já para não falarmos de todos esses amantes anónimos. Todos, Max, menos tu e eu. Mas agora, e porque vou vender os quadros da Madi, voltei a levantar esta confusão. E, dado que o meu pai te contou todas as verdades e mentiras que quis, és aquele que tem poderes de vida e de morte sobre todos.

- Mas não sobre o teu pai. Ele está fora disto tudo.

- Que achas que vai acontecer a Ed Bayard?

- Não sei. Não consigo compreender por que razão o Hugh também não o acusou. Opunha-se tanto ao teu casamento com ele, que faria tudo para o impedir.

Anne-Marie serviu as duas bebidas e entregou uma delas a Max. Parecia que ainda se encontrava mergulhada num qualquer devaneio intrigante, quase que a falar sozinha.

- O Ed Bayard é um homem triste. Nele não existe leveza, alegria. Estar junto dele é como estar do lado de fora de uma prisão e ver um rosto, um rosto gentil e bondoso, que espreita através das grades e depois desaparece. Mas quem se me escapa completamente é o meu pai. Sempre o conheci e amei como um indivíduo romântico, fogoso, indeciso, que subia para o estrado e, com o bater do martelo, vendia coisas que valiam milhões. Comprava-me prendas extravagantes, e fez-me entender o que significa ser lisonjeada enquanto mulher. Se fosses rapariga sabias que é para isto que os pais servem, Max. Mas esta outra faceta, assustada, sombria, vingativa, intriguista, não a conheço nem sei como a hei-de fazer entrar na minha vida.

- Não te preocupes - disse Mather com firmeza. Voltara a ocupar-se da comida. Cortava a vitela, batia-lhe com um maço, fazia gestos floridos de forma deliberada. - Tens de pensar no teu futuro e este está ligado à galeria. Tu e eu vamos arrasar esta cidade... a imprensa, os críticos, os compradores. Vamos transformar este maldito desastre num triunfo. Amanhã vou para o tribunal. Depois disso fico livre para trabalhar a tempo inteiro com os teus relações públicas e publicitários, bem como para me ocupar das entrevistas com a imprensa. Ambos temos fantasmas a enterrar. Vamos pô-los debaixo de terra, dizer uma oração e deixá-los entregues a Deus.

- E quanto aos vivos, Max. E quanto ao Ed Bayard?

- Ele está apaixonado por ti. Quais os teus sentimentos em relação a ele?

- Sinto-me protectora, grata... impaciente!

- E não ardente, apaixonada, sensual...

- De maneira nenhuma!

- Nesse caso andas a brincar, não andas? Andas a usá-lo como bóia de salvação. Ele não se vai contentar com isso para sempre. Já passou pelo mesmo com a Madeleine. E não te esqueças de que a última mensagem que o teu pai me deixou foi com a finalidade de se certificar de que nunca te casarias com ele. Que mais posso dizer? Já és crescidinha.

Bem que podias dizer que me amas, e que seria bom estar de volta a Florença, beber cocktails na varanda e ver o Sol pôr-se por detrás dos campanários.

- Lá poder, podia - respondeu ele em voz baixa. - Mas não seria verdade. Estou a pensar casar-me.

- Meu Deus! - Anne-Marie engasgou-se com a bebida. - Essa é de bradar aos céus. O Max Mather vai-se casar. Quem é ela, Max? Tem de ser rica. Que idade tem... conheço-a?

De repente, irrompeu num pranto incontrolável e quando ele a tentou abraçar, bateu-lhe no peito com os punhos, afastou-o, e foi a correr para o quarto, fechando a porta atrás dela.

Mather ficou chocado com esta explosão de sentimentos. Demasiados casos, e até mesmo a facilidade com que a sua relação com Anne-Marie se desenvolvera, faziam-no ter uma noção muito baixa daquilo que valia, de forma que achava normal que a rapariga o encarasse como uma peça de mobília na sua vida. Podia mudá-lo, vendê-lo, atirá-lo fora, que ele não se podia queixar. Lembrou-se de um extracto de Browning de On a Toccata of Galuppi's: "gostava de saber o que resta da alma quando o beijo tem de acabar.”

Pela primeira vez, Mather começou de facto e entender o que se passava entre si e Gisela. Não era nada de passageiro. Pelo contrário, era o desabrochar lento e seguro de uma espécie de amor que lhe era desconhecido. Gisela exigia mais dele que aquilo que outra mulher havia feito. Os beijos e a união apaixonada eram coisa que estava para lá dele, e simultaneamente no seu interior, de forma a tocar tanto o seu coração como a sua vontade.

Pela parte que lhe tocava, Mather tinha consciência de possuir novas dimensões em si mesmo. Aquela mulher tornava-o combativo. Tinha ciúmes das atenções que os outros homens lhe dispensavam. Os profundos conhecimentos por ela demonstrados incitavam-no a atingir níveis de realização pessoal mais elevados, era forçado a admitir, a envergonhar-se da maneira demasiado fácil com que encarava a vida e o amor.

Gostava bastante de Anne-Marie. Detestava que esta se sentisse magoada ou ameaçada. Contudo, com Gisela comportava-se como um amante apaixonado, um pretendente ansioso de se pôr à prova.

 

Uma hora mais tarde, quando a chamou para jantar, Anne-Marie estava de novo calma, tinha o cabelo no lugar, e já não exibia marcas de lágrimas. Estava pronta para esquecer aquela explosão.

- Precisava daquilo, Max. Compreendes, não é verdade?

- Claro.

- Não me disseste, nada a respeito da tua futura mulher.

- Por uma razão muito simples... ainda não a pedi!

- Quem é ela?

- É a minha advogada em Zurique, Gisela Mundt. É nova, inteligente, bonita. Também dá aulas de Direito na universidade. Acordou tanto o meu coração quanto a minha consciência adormecida. Que mais posso dizer?

- Acho que isso diz tudo. E ela sabe do teu passado chocante?

- Não lhe dei um sermão a respeito de todos os pormenores. Mas sim, sabe.

- Onde pensas ir viver?

- Para a Europa... Zurique ou Florença.

- O que significa que podemos continuar a trabalhar juntos?

- Claro.

- Fala-me sobre esse teu consórcio.

Contou-lhe. Foi então que ela lhe falou no pedido de Bayard para que organizasse uma exposição de Cornelis Janzoon. Mather ficou furioso.

- Meu Deus, detesto que me tratem como um cavalinho amestrado! Trota, vai a meio galope, galopa! Não tive nada a ver com esse disparate. Por outro lado, aconselho-te a apostares no Janzoon. Vem na tradição dos grandes mestres holandeses.

- Neste momento não me posso dar ao luxo de gastar mais dinheiro, Max.

Estou completamente dependente da exposição da Madeleine.

- Nesse caso é melhor falarmos na campanha. Que aconteceu ontem com a imprensa?

- A maioria das coisas passou-se através do telefone. As pessoas andam a tentar descobrir coisas numa história que já tem um ano. Disse-lhes para telefonarem ao Ed Bayard, visto o escritório dele ter um óptimo sistema de defesa.

Quanto ao que nos diz respeito, disse-lhes que assim que chegasses daríamos uma conferência de imprensa, e que as pessoas da informação teriam direito a uma ante-estreia da exposição, durante a qual se responderiam amais questões.

Vais ter de tratar disso, Max.

Não vai ser assim tão fácil. Podem fazer-te perguntas a respeito do teu pai e da relação que existia entre ele e Madeleine Bayard. Como irás responder?

Q meu pai tinha a vida dele. Eu tenho a minha.

Óptimo. Agora diga-nos, Miss Loredon, qual o papel que Ed Bayard. desempenha na sua vida?

É o meu senhorio, Estou a vender-lhe os quadros da falecida mulher, e sou a representante da sua colecção pessoal.

a - Não há nenhuma relação especial?

- Nenhuma.

- Ele afirma que se casaria consigo num abrir e fechar de olhos.

- São precisas duas pessoas para fazer um casamento. Ed Bayard é um bom amigo, e, tal como espero que ele vos venha a dizer, sou uma intermediária de arte bastante boa... Que tal me estou a sair, treinador?

- Muito bem. Continua assim.

- Bom, e qual vai ser a tua contribuição na entrevista?

- Forneço-lhes as informações relativas ao mercado: fortes interesses internacionais, oferta de novos artistas, e, claro está, Niccoló Tolentino. Gostava que tivesses em consideração a hipótese de ser ele a abrir o espectáculo.

- Com todas aquelas piranhas de Manhattan? Comiam-no vivo.

- Não contes com isso. Trata-se de um homem muito especial que passou a vida inteira na companhia dos grandes mestres, e que mesmo assim se consegue maravilhar ao ponto de chorar. Acho mesmo que as piranhas nem lhe chegarão a tocar.

- Deixa-me pensar a esse respeito. As pessoas estão à espera que a abertura decorra da forma rotineira de sempre.

- Eu sei. O copo e o canapé numa mão, o catálogo na outra, a volta do costume com um ar inteligente, os comentários idiotas de sempre, e a esperança de que alguém esteja a olhar para eles em vez de para os quadros. Está na hora de darmos algo de diferente. E quer gostes, quer não, as coisas vão ser mesmo diferentes. - Tenho medo de ficar arruinada, Max, - Não vamos deixar que isso aconteça. Talvez consigamos que as pessoas lá vão por outras razões, mas as pessoas hão-de lá ir. Como é que estás de finanças?

Ela olhou-o de esguelha, de forma inquiridora.

- Não esperava esse tipo de pergunta da tua parte, Max. Porque perguntas?

- Dá-me um minuto. O teu pai tinha seguro de vida?

- Sim. Valia cerca de meio milhão de dólares.

- Os quais, presumo, te virão parar às mãos?

- Foi o que me disseram. Porquê?

- Porque se a forma como ele morreu se tornar conhecida, a companhia de seguros é bem capaz de intentar uma acção reclamando que se tratou de suicídio, e nessa altura as tuas pretensões podem estar em perigo.

- E há alguma razão para que o facto se torne do domínio público?

- Essa razão sou eu. Vou testemunhar pela defesa no julgamento de Danny Danziger. Tenho de responder às perguntas que me fizerem. É provável que esta não apareça, mas, se aparecer, talvez que a resposta te venha prejudicar.

- Bom, de qualquer das formas não é o fim do mundo. Pode parecer surpreendente, mas tenho um fundo de duzentos e cinquenta mil dólares. Só há meia dúzia de dias, quando recebi uma carta da Lutz & Hengst, a firma de advogados depositária do fundo, é que fiquei a saber da sua existência. Parece que tenho direito aos rendimentos. Só mediante o consentimento deles é que posso tocar no capital, mas sempre é alguma coisa caso precise de realizar amortizações.

- Acho que vais ter de contar com enormes quantias de dinheiro para a publicidade e as relações públicas.

- Já pensei nisso. Se é mesmo preciso, estou preparada para o gastar.

- Quem fez o depósito?

- O meu pai. Há cerca de doze meses... o que deve ter coincidido com a altura em que soube pela primeira vez que estava ameaçado. Nessa época estávamos os dois na Europa. A tua Pia deve ter adoecido na mesma ocasião.

- À volta disso, sim.

- Ainda pensas nela, Max?

- As vezes.

- Como?

- Com muita ternura.

- É bom ouvir isso.

- É estranho... Certo dia, durante os últimos tempos, ela disse: "Sabes Max, não te dava tanto trabalho se fosse a tua mulher! " Rimo-nos com isso, mas ela tinha razão. Foi durante esses dias que estivemos mais perto do casamento.

- És um tipo estranho, Max.

- E ainda posso ser mais.

- Como por exemplo ... ?

- Amanhã, e com alguma sorte, a Danny Danziger vai sair sob fiança. Vou levá-la à abertura da galeria.

Como se não acreditasse, ela ficou a olhá-lo de boca aberta.

- Não podes!

- Posso sim. É o que vou fazer.

- Max, por amor de Deus! É a minha galeria. Trata-se do prédio do Bayard. Vamos expor os quadros da falecida mulher dele... e tu queres entrar por ali dentro com a mulher que é acusada de a ter morto? Que estás a tentar fazer-me?

- A fazer que a tua exposição seja um sucesso e não um fracasso. Tenciono fazer com que se transforme no maior sucesso escandaloso da década. Vão haver filas e filas à volta do quarteirão, e os meios de comunicação social hão-de dar cobertura a tudo e mais alguma coisa. Só falta saber se tens coragem de levar as coisas por diante.

- Tu conheces-me. Sou a Annie orfãzinha. Enfrento tudo. E quanto ao Ed Bayard?

- A pergunta é a mesma. Será que ele se aguenta por ele mesmo, ou terás de ser tu a aguentá-lo?

Passou uma eternidade até ela falar, e quando o fez não foi para responder, mas sim para fazer uma pergunta bastante lúgubre.

- Por que será que tu e eu éramos tão amigos, Max, e de repente te tornaste tão ameaçador?

 

O processo crime de Danny Danziger não constituiu um grande acontecimento. A imprensa deixou-o ao cuidado dos jornalistas que habitualmente frequentavam os tribunais, os quais, e partindo do princípio de que fora dada a devida cobertura à prisão e que tudo se resolveria mais tarde, pouca importância deram ao caso. Os únicos membros do público que se encontravam no tribunal eram Harmon Seldes, Max Mather, uma rapariga despretensiosa e anafada que envergava um fato de treino e se apresentou como sendo a Carol, e cerca de meia dúzia de palermas madrugadores que tinham entrado para se aquecer.

O promotor de justiça leu a acusação. George Munsel declarou a sua cliente inocente, prometeu uma defesa vigorosa, e depois pediu para libertar a ré sob fiança, ficando esta sob a sua custódia. Fez notar que Danny possuía um cadastro imaculado, trabalhava para uma prestigiada revista, possuía residência própria em Manhattan, e nunca pedira passaporte. A acusação não levantou objecções. Foi estipulada uma fiança de cinco mil dólares. O julgamento foi marcado para dali a três meses.

Leonie Danziger parecia atordoada. Abraçou Max Mather, agradeceu a Munsel e a Seldes, e depois entregou-se à rapariga de fato de treino da mesma forma que o doente se entrega à enfermeira. A medida que saíam do edifício, George Munsel ia dando uma série de breves instruções.

- Carol, é você que atende o telefone. A Danny não se encontra à disposição dos órgãos de comunicação social. Quero que vocês os dois, Max e Danny, estejam no meu escritório amanhã às dez. Não admito atrasos. Contem com pelo menos duas horas de discussão. Max, quero que leve os documentos sobre os quais conversámos ontem, e também preciso de uma minuta completa das conversas que você travou em Amesterdão. É tudo.

Foi-se embora - uma figura alta e esguia, elevando-se sobre os pigmeus locais. No tom firme de quem não admite disparates, Carol anunciou:

- Agora vou levar a Danny para casa.

Fez sinal a um táxi que ia a passar, empurrou Danny Danziger lá para dentro, e desapareceu sem se voltar para trás.

- A mãe galinha com o pintainho - comentou Harmon Seldes. - A nossa Danny parece bastante abatida, não acha?

- Por amor de Deus, está em choque... passar duas noites na cadeia não é brincadeira.

- A Danny é mais forte do que parece. - Seldes soltou uma gargalhada.

E você também, Max. Subestimei-o.

- Queria falar sobre os Rafaéis?

- Sim, claro.

- Que foi que o Berchmans lhe disse?

- Que você tinha localizado duas cópias no Brasil e que agora era o agente oficial dos Palombini, encarregue das negociações com vista à recuperação dos originais. Claro que não sei pormenores.

- Bom, essa nomeação foi o resultado de uma coincidência. Claudio Palombini estava em St. Moritz na mesma altura que eu. Foi ele mesmo quem o sugeriu. Eu não estava pelos ajustes. Tenho os meus próprios negócios. Contudo, ele pressionou-me e fez uma boa oferta. Eu aceitei... foi tão simples como isso.

- Mas, e as cópias do Brasil? São cópias de quê?

- Dos dois retratos. Ainda não chegou a vez dos esboços.

À medida que voltava a contar uma história que já se lhe tornara familiar, Mather enfeitava-a com imensos pormenores e episódios pitorescos, de forma a tentar desviar as atenções de Seldes da pergunta fundamental: como é que as cópias podiam ser classificadas como tal, sem serem comparadas com os originais? No entanto, Harmon Seldes era demasiado inteligente para essas fitas infantis. Inevitável como a própria morte, a pergunta surgiu. Mather respondeu de forma cautelosa.

- A chave está na posse de Niccoló Tolentino. Claro que nessa época não passava de um jovem, mas Luca encomendou-lhe as cópias dos retratos. Ele entregou a Luca tanto os originais como as cópias. Pensa que estas últimas foram para o Brasil. Parece ser bastante natural que Luca desejasse manter os originais na sua posse. Mas Tolentino tem um método infalível de identificar o seu trabalho, uma cifra pessoal colocada na própria pintura.

- E você conhece a cifra, Max?

- Sim, conheço.

- Como é isso possível se nunca viu as cópias nem os originais?

- Ah, vós, homens de pouca fé! - troçou ele. - Trata-se do homem que copiou o raio das coisas. Semanas, meses de trabalho. Desenhou-mas de cor, mostrou-me a forma de identificar a cifra e onde encontrá-la.

- Será capaz de me mostrar o mesmo?

- Mostrar-lhes-ei aos dois, a si e ao Berchmans, assim que as telas cheguem do Brasil... Mas, Seldes, você não está a passar ao lado daquilo que interessa? Ambos somos estudiosos. Ambos nos comprometemos a deslindar este caso, e até agora as nossas teorias têm-se saído na perfeição.

Seldes estava tudo menos satisfeito.

- Aquilo que mais detestaria ver, era nós comprovarmos as nossas hipóteses, e ser o Henri Berchmans a ficar com os louros.

- Não posso falar pelo Berchmans, mas não consigo entender de que forma posso constituir uma ameaça para si. A família só me pagará quando, e se o conseguir, recuperar as peças. Não conheço os pormenores do seu contrato com o Berchmans, mas parto do princípio de que deve ter como base os níveis das transacções, ou então dos leilões. Em qualquer dos casos, não vejo onde pode residir o conflito de interesses entre você e eu.

- Apenas isto, Max: sou especialista em belas-artes, na arte da Renascença. Tenho-o sido sempre. Nesse ponto sou melhor que aquilo que você alguma vez será. Foi o meu nome que emprestou autoridade ao seu artigo na Belvedere. Em qualquer dos casos, fui eu quem lhe abriu as portas da revista. Aceitei o que escreveu sobre a Madeleine Bayard e nada tenho a ver com essa sua negociata.

- Não discuto nada disso. - Mather era a imagem da mansidão. - Mas, por favor, diga-me o que quer. Está a pedir-me uma percentagem daquilo que os Palombini me vão pagar... isto se chegarem a pagar? Está a pedir um qualquer prémio ou bónus no caso de Madeleine Bayard? Como sabe, não tenho poderes para isso. Contudo, é evidente que você está insatisfeito. Que posso fazer para que se sinta melhor?

- Numa só palavra, Max, para um homem de aspirações modestas você está a subir alto de mais. Não passa de um arrivista!

- Lamento que seja assim que vê as coisas.

- Mas é mesmo assim, acredite-me. Tenho negociado com o Berchmans durante toda a vida. Junto com ele tenho ganho milhões. Agora é consigo que ele fala e não comigo. Você faz um barulho enorme com um copista da Pitti. Meu Deus, conheci e vendi os maiores nomes do nosso tempo... Pensei que o mínimo que podia fazer era indicar o meu nome aos Palombini.

- Vá lá, Harmon, acalme-se. Páre de falar e descontraia-se, antes que diga disparates. Você é um dos grandes conhecedores da Renascença. Ninguém diz o contrário. Sou um animal bastante mais modesto, um paleógrafo assim-assim. Mas em termos de método sou realmente bom... não se pode seguir a minha profissão se não o possuirmos. Não havia qualquer razão para mencionar o seu nome, o do Berchmans, ou o de qualquer um dos meus colegas suíços de quem me tornei amigo. Nesta fase, que significado têm vocês para os Palombini? Nada, a não ser que são nomes caros, daqueles que no futuro cobrariam altas comissões! Por amor de Deus, o homem é um mercador! A sua vida gira à volta de perdas e ganhos. A mim ele compreendeu-me ... Sou um velho empregado da família, uma velha lenda familiar. Sabe o lugar que ocupo, aquilo que sei, a forma como faço negócios. Resumindo: confia em mim. Confia em mim o suficiente para, se alguma vez a situação chegar, quando souber onde estão os quadros e qual a forma de os inserir no mercado, aceitar o meu conselho quando lhe disser que está na hora de chamar os peritos como você e o Berchmans, e talvez Hürliman, de Zurique. Mas essa hora ainda não chegou, Harmon. Nem sequer lhe falei sobre o Eberhardt, a Dandolo, e os quadros do Brasil. E apesar de não estar em condições para as revelar, há uma boa razão para isso. É tudo, Harmon, mas talvez seja melhor voltar a dizer-lhe que conheço o Palombini, que ele me conhece, e que acho ser esta a melhor maneira de negociar com ele. Lamento, se isso me transforma num arrivista.

- Por favor, estava a ser precipitado. No entanto, você compreende os meus receios, não?

- Claro. Agora é melhor esquecermos as nossas disputas e falarmos sobre o seguimento do artigo sobre os Rafaéis.

- Desta vez - respondeu o outro -, vou ser eu a encarregar-me dele. Terei assim possibilidade de especular de uma forma que talvez não lhe interesse, dado que é o representante da família.

- Você é o editor. Cabe-lhe a distribuição das tarefas. Está interessado em ver as minhas notas sobre um outro assunto: "Arte e Criminalidade"?

- Claro. Assim que estiverem prontas, diga-me. Depois conversamos. Tenho de voltar ao escritório. Apanhamos um táxi a meias?

- Não obrigado. Apetece-me andar. Deu-me muito em que pensar.

Aquilo que mais o atormentava era a ideia de que Harmon Seldes, com a erudição afrontada, a vaidade ferida, e uma ganância transparente, pudesse complicar-lhe a vida. Não era preciso muito para ver que assim que Seldes se começasse a imiscuir nos delicados mecanismos de informação e negociação que ele pusera em movimento, a máquina acabaria por se desintegrar.

Este pensamento ocupou-o durante meia hora. Depois disso bebeu duas chávenas de café, comeu um donut gorduroso, e dirigiu-se para o seu apartamento, pronto para telefonar a Gisela Mundt e a Alois Liepert.

 

- Não lhe escapou nada, Alois?

- Anotei tudo e mais alguma coisa. - Liepert começava a ficar cansado. O telefonema arrastava-se há vinte minutos.

- Por favor, leia-me tudo outra vez.

- Alínea um... de forma a mantê-los longe de qualquer manobra destinada a que outros se apossem deles, tanto os quadros como os esboços devem ser colocados em três cofres separados.

"Alínea dois: os esboços serão enviados para Gisevius, em Basileia, de forma a que este os reconheça, ficando depois, e a título temporário, à guarda e aos cuidados de um museu. As despesas ficam por nossa conta. Seremos nós os responsáveis pelo seguro, coisa a que neste momento não nos podemos dar ao luxo.

"Alínea três: se Gisevius aceitar a custódia, então você fica com um dos retratos no seu cofre. Aceitamos a custódia do outro.

"Alínea quatro: vou telefonar ao Palombini e dizer-lhe que penso estarmos na pista dos trabalhos. Peço-lhe que fique a postos para receber uma chamada sua, na qual o convocará para uma conferência, a qual tanto pode ser nos Estados Unidos, em Londres, ou numa qualquer cidade europeia.

"Alínea cinco: devo informar o Palombini de que será você a tratar da autenticação das obras, bem como a dirigir as negociações com os actuais donos. Será também você quem encetará as discussões preliminares com Berchmans em Nova Iorque, Hürliman em Zurique, os leiloeiros da Christies em Londres, e com outras pessoas por si consideradas autorizadas, de forma a fazê-los entrar no mercado assim que voltem a aparecer. Na altura adequada fará que ele, Palombini, participe nestas discussões, mas só quando tenha sido definida uma base negocial satisfatória.

"Alínea seis: comunicar-lhe-ei imediatamente todos os progressos e problemas. Estou autorizado a levantar dinheiro com vista a cobrir despesas e taxas.”

- A última parte é uma interpolação, Alois.

- Mas eu sei que não quer que eu morra à fome, meu caro Max.

- Claro que não, mas nada de excessos.

- Bom, agora talvez seja capaz de me explicar a razão por que está a complicar a sua e a nossa vida.

- Porque se nos acusarem de alguma coisa: de não cumprimento dos termos do contrato, ou de o estarmos a usar para fins ilegais, estamos protegidos. Tratamos de uma coisa de cada vez.

- Que coisa o fez ficar preocupado assim de forma tão súbita?

- Acho que é por estar de novo em Nova Iorque. É uma cidade bastante conflituosa. A atmosfera toma conta das pessoas com muita rapidez.

Era apenas uma meia razão, e quando pousou o telefone a outra metade apareceu-lhe à frente. Não era nada agradável. A ganância estava a apoderar-se dele. Sentia-se tão eléctrico e sensível como um galgo esfomeado, receoso de que alguém lhe levasse a tijela da comida. Precisava dos breves minutos em que trocou algumas palavras de amor com Gisela para se tornar de novo humano: a onda de emoção que ela sentiu, a sua confissão, meio a rir, meio a chorar.

- Max, quase não acreditava. Assim que te foste embora surgiu um vazio escuro na minha vida.

- Não existe qualquer vazio na minha. Apenas este quarto comigo dentro, um espelho para o qual não gosto de olhar, e uma série de pessoas que espero não ver, mas que não me largam. Gostava que estivesses aqui comigo.

- Não posso. Tens de ser tu a vir ter comigo. Conta-me o que se está a passar.

Ele contou-lhe, mas faltava veracidade à narrativa, pois de repente apercebera-se da falta de segurança das linhas telefónicas, do perigo de que se pudessem imiscuir nos seus valiosos segredos.

Gisela pareceu compreender isto e avisou-o...

- Max, tenho medo por ti. Já antes falámos a este respeito. És muito impaciente. Achas que quando alguém faz um movimento tens de lhe responder. Isso faz com que te tornes extremamente vulnerável. Senta-te em paz, descontrai-te, espera...

- Vou tentar.

- Acho que estás a agir de forma acertada quando divides os trabalhos e os deixas entregues a diferentes responsáveis. Se for preciso, eu mesma me encarrego de um lote... e se precisares de um mensageiro?

- Serás a primeira da lista. Amo-te, Gisela mia.

- Amo-te, Max. Telefona-me dentro em breve.

- Prometo.

O resto do dia estendeu-se à sua frente sem qualquer conforto, mas cheio de tarefas importantes e urgentes. Telefonou a George Munsel, e apanhou-o mesmo quando este ia a sair para o almoço. Contou-lhe o que se passara na sua sessão nocturna com Anne-Marie Loredon. Foi então que sugeriu o seguinte:

- Em primeiro lugar, é capaz de descobrir se houve alguma companhia de seguros americana, ou um qualquer grupo segurador, que tenha recusado ou adiado o pagamento dos seguros daqueles que morreram na Holanda devido a mortes provocadas? Em segundo lugar, a Anne-Marie diz que o pai fez um depósito em seu nome há cerca de doze meses, e que é administrado pela firma Lutz & Hengst. Ocorreu-me que talvez pudesse ter uma conversa de advogado para advogado, informando-se de quais as possíveis consequências provocadas por qualquer prova que eu possa fornecer sobre o caso de eutanásia. Também podia descobrir quem fez o depósito e de onde vem o dinheiro. Sabendo do elevado estilo de vida que Hugh Loredon levava, duvido que alguma vez na vida tenha tido duzentos e cinquenta mil dólares na sua posse.

- Você tem ideias estranhas, Mr. Mather. - Munsel parecia divertido. Mas vou confirmar o que me disse. Ainda bem que telefonou. Depois da nossa conversa da amanhã de manhã, temos um encontro com os dois detectives encarregados do caso. Tenho aqui os nomes deles: Hartog e Bechstein. Devemos estar despachados à uma hora. Depois disso talvez achasse boa ideia convidar-me para o almoço.

- Com todo o prazer.

- Óptimo. Tenho em meu poder o resumo das provas que estão na posse do gabinete- do promotor-geral sobre o caso Danziger. À luz daquilo que possuo, são de importância vital os registos das suas conversas em Amesterdão, bem como a interpretação dos diários.

- Estarei pronto no que respeita às notas das conversas. Os diários requerem um trabalho paciente e minucioso.

- Terá tempo para isso. O julgamento é só daqui a três meses. Até amanhã às dez, Mr. Mather.

A seguir estava na hora de ir até ao Gino's conversar um pouco no bar e comer um almoço simples, seguindo dali para a Bloomingdales com vista a comprar alguma roupa, pois ainda faltavam três meses para a chegada do calor do Verão. Por aquilo que se lembrava, esta era a primeira vez que se encontrava sem companhia feminina e tinha vergonha de ir à varanda, e de que aquele homem enrugado e de idade indistinta lhe dizia o seguinte:

- Filho, entra-se e sai-se sozinho. Passa-se a vida a tentar fugir à solidão. Nunca se consegue, até à altura em que a aceitamos. Um belo dia sentamo-nos sozinhos num sítio calmo e começamos a assobiar uma musiquinha, a cantarolar baixinho, ou então a recitarmos rimas infantis para nos animarmos. De repente já não estamos sozinhos. Há outras pessoas tão sós como nós que ouvem a mesma musiquinha, que se juntam a nós e apanham o ritmo. Vais-te embora... e elas seguem-te, Não ajuda muito porque, tal como a tua, também a cabeça deles está cheia com os seus próprios problemas. Mas deixaste de estar sozinho. Podes não ter ninguém mas não estás sozinho. Estás a compreender?

Na altura talvez não... mas, e agora? Seria bom poder pagar-lhe um copo e um prato de pasta no Gino's.

Quando chegou ao apartamento telefonou para as galerias Berchmans et Cie. Demorou dez minutos até lhe comunicarem que sim, que Mr. Berchmans chegara, que sim, que Mr. Berchmans esperava o seu telefonema, e que sim, sim. entregariam a sua mensagem a Mr. Berchmans assim que este voltasse do almoço. Foi neste interregno que Max pegou no bloco-notas -, linha por linha, começou a reconstruir os diálogos que travara com o falecido Hugh Loredon em Amesterdão.

Henri Berchmans ligou-lhe às quatro da tarde. Ficaria na galeria até às seis. Se Mr. Mather fizesse o favor de passar por lá, teria todo o prazer em o receber, e em lhe mostrar algumas coisas bonitas... o que só podia querer dizer que os quadros de Camões tinham chegado do Rio, e que Berchmans se sentia bastante satisfeito com eles. Pousou a última página dos seus diálogos de Amesterdão, enfiou umas calças cinzentas e um casaco azul, pós uma gravata, e depois desceu Madison a pé, vendo as montras para se acalmar.

Este seria um encontro crucial: a primeira vez que se avistava com um enorme tubarão branco, frente ao qual a sua força seria testada até ao último limite, e as suas fraquezas exploradas de forma impiedosa. Passou por uma pequena loja que vendia instrumentos ópticos. Movido pelo impulso, entrou e comprou uma lupa. Um quarteirão mais à frente encarou com uma loja de novidades e comprou um canivete em miniatura, que pendurou no porta-chaves. Depois, e guiado apenas pelos sentimentos, entrou numa florista e encomendou um arranjo de flores bastante caro, o qual devia ser enviado para Gisela, em Zurique, e uma pequena planta de interiores para Leonie Danziger. À laia de último gesto de desafio, comprou uma rosa vermelha e pô-la na botoeira do casaco. Depois, com um à-vontade que não sentia, subiu os degraus da galeria de Berchmans, uma mansão de pedra cinzenta situada na Septuagésima Terceira Avenida, entre Madison e a Quinta Avenida.

Um porteiro fardado recebeu-o com gravidade. Uma rapariga bastante bonita acolheu-o com um sorriso, e fez com ele a viagem de elevador até ao segundo piso, onde Berchmans o recebeu numa longa galeria da qual tinham sido retiradas todas as telas, e onde estavam dois cavaletes, cada qual coberto por um pano de veludo.

Então, meu jovem amigo. Pontual como sempre. As suas senhoras chegaram do Brasil. Vai ser-lhes apresentado esta tarde. Vamos os dois dar-lhes uma olhadela. Depois disso conversamos.

Descobriu os quadros com um gesto floreado, e conduziu Mather ao ponto onde estes podiam ser vistos do melhor ângulo. Max ficou a olhar para eles durante muito tempo, enquanto Berchmans o fitava.

- É capaz de lhes dar nomes?

- A que está à esquerda é Donna Delfina. À direita temos a filha, a Donzela Beata. Dê-me só um minuto.

Fazendo uso da lupa, examinou o retrato de Donna Delfina. No canto superior direito encontrava-se um amontoado de construções dominadas por uma torre quadrada e com ameias, cujas paredes exibiam janelas com arcos romanos. Na janela mais alta, minúsculo mas bastante claro, encontrava-se o monograma de Tolentino.

Voltou-se para o retrato da rapariga, e, na sombra da última prega do vestido, encontrou o mesmo símbolo.

- De que anda à procura? - Berchmans estava intrigado.

- Ainda não acabei. Por favor, é capaz de segurar neste?

Então, tal como vira Tolentino fazer em Zurique, raspou uma pequena área da parte de trás de cada painel, a qual tinha o tamanho suficiente para distinguir o grânulo e a textura da madeira. Tudo isto era teatro. Era incapaz de distinguir a madeira de freixo da de vidoeiro ou de carvalho, mas os monogramas haviam-lhe dito o que queria saber.

À medida que voltava a pôr os quadros nos cavaletes, Berchmans, de mau humor, comentou:

- Foi uma actuação interessante, Mr. Mather. Agora explique-me o seu significado.

Mather entregou-lhe a lupa e indicou-lhe os sítios onde devia inspeccionar.

- E de que ando eu à procura?

- Primeiro diga-me aquilo que vê.

Berchmans levou bastante tempo a focar a lente e a examinar cada um dos quadros. Repetiu o processo. Depois perguntou:

- Raspou o fundo para ver qual a madeira utilizada?

- É verdade.

- Podia ter-lhe dito de imediato. É carvalho.

- Agora diga-me o que observou nos quadros.

- Parece ser uma espécie de cifra.

- É um monograma. - Mather puxou de um cartão e desenhou-o. Assim?

- Exacto. Que significa?

- É a cifra pessoal da pessoa que fez estas cópias a partir dos originais, os quais, e a propósito, foram pintados em madeira de cedro e não em carvalho. Chama-se Niccoló Tolentino.

- Pode prová-lo?

- Você mesmo o pode fazer, Mr. Berchmans. Vou trazê-lo a Nova Iorque em meados de Abril.

- Entretanto, Mr. Mather, acho que é altura de começarmos a falar de coisas sérias.

- Penso da mesmíssima maneira.

- Vamos até ao meu escritório.

Estava prestes a lançar as capas de veludo por cima das pinturas, quando fez o seguinte comentário:

- À sua maneira, esse Tolentino é um óptimo pintor. Vai sair-se bem com ele aqui em Nova Iorque.

- Ele impõe respeito - disse Mather a meia voz. - Faz-me examinar a minha consciência.

- É um exercício pouco confortável - comentou Berchmans secamente. - Falemos antes de negócios.

Pela primeira vez desde que se haviam conhecido, Berchmans saiu da sua pose rígida o suficiente para o tratar pelo primeiro nome, e para o convidar a ir ao seu gabinete privado, local onde dispensava hospitalidade e conselhos aos clientes mais endinheirados. Era uma pequena divisão apainelada com freixo branco, nas paredes da qual se encontravam um Gaugin, um Manet, e dois Cézannes: uma natureza morta composta por ameixas e pêssegos, e uma versão dos rochedos de Estaque que Mather nunca vira. Depois de lhe terem oferecido uísque, começou à procura de água mineral.

- Então, Max, que tal vai o nosso escândalo?

- Danny Danziger saiu sob fiança. George Munsel parece ser um bom advogado de defesa. Não há maneira de evitarmos que os diários de Madi sejam citados como provas. Contudo, posso arranjar cópias das passagens que se referem a si. Pelo menos ficará prevenido.

- Fico-lhe grato.

- Nesse caso, talvez possa fazer algo por mim.

- Se estiver ao meu alcance, claro. Qual é o problema?

- Harmon Seldes. Disse-me que estava cheio de inveja. Pois ele acha, e disse-mo, que sou um arrivista que anda à caça nas suas reservas, e que me estou a aproveitar da relação que existe entre vocês os dois, a qual, e no meu entender, tem uma qualquer base financeira.

- E tem.

- Ele pensa que eu sou uma ameaça a isso. Mas não sou. Também se propôs a escrever o seguimento do artigo sobre os Rafaéis, coisa que tem todo o direito a fazer. No entanto, é capaz de fazer figura de parvo... e de o obrigar a si a fazer o mesmo.

- E que espera que eu faça a esse respeito?

- Diga-lhe o que lhe vou dizer... ou apenas aquilo que achar prudente.

- Parto do princípio de que me está a fazer uma proposta, Max?

- Não Henri. Apenas lhe vou dar algumas informações, e você vai dar-me um conselho. É bem provável, que desta troca surja uma situação lucrativa.

- Lucrativa para si ou para mim?

- Para si. O meu contrato tem unicamente a ver com os Palombini. São eles que me pagam. Só deles posso aceitar censuras, pretensões, e toda a espécie de considerações.

- Resumindo - a voz de Berchmans revelava sinais de troça -, uma situação de elevada moral.

Não propriamente. - Mather soltou uma gargalhada. - Uma situação com algumas falhas, a qual, e precisamente por isso, precisa de ser tratada de forma legal.

- Estou intrigado. Por favor, continue.

- Antes do mais, sou o agente da família, acreditado através de um contrato escrito para encontrar os Rafaéis e negociar a sua venda. No entanto, não posso elaborar o contrato final. São eles que terão de o fazer. Apresentá-los-ei quando já tivermos uma determinada base para discussão. Estou a fazer-me entender?

- De forma admirável - retorquiu Berchmans. - O que não entendo assim tão bem é a razão que levou uma antiga família de mercadores a nomeá-lo seu agente, quando eles mesmos se podiam encarregar do assunto.

- Existem várias razões. Esta geração de Palombinis desconhecia a existência dos Rafaéis até à altura em que descobri a tal referência no arquivo. Desconheciam igualmente... e preferiram fazê-lo por razões políticas... as inúmeras transacções realizadas por aquele que foi o patriarca da família durante a guerra, Luca, l'ingannatore. Este sobreviveu deitando mão a toda a espécie de estratagemas, dos quais nenhum seria hoje visto com bons olhos. A negociata com o alemão Eberhardt é apenas um caso entre muitos outros. Sendo assim, ninguém quer desenterrar os fantasmas da família. Preferem que fiquem sossegados nos túmulos. Contudo, eu sou um dos fantasmas da família. Fui o amante da última matriarca, Pia. Da minha parte não receiam chantagem. Fui o responsável por um gesto que caiu no agrado do governo italiano: a doação do arquivo Palombini à Biblioteca Nacional de Florença. Para mais, e isto é muito importante para eles, não desejam que as Belli Arti façam perguntas sobre a exportação ilegal de tesouros nacionais. É por isso que eu sou um emissário útil: varro as ruas antes da passagem da procissão!

- Compreendo. - Berchmans acenou a cabeça com gravidade. - Tanta desonestidade faz sentido. Mas então, mesmo antes de saberem onde as malditas coisas estão, por que razão falam eles em vender?

- Essa é a pergunta mais fácil de responder - retorquiu ele com um sorriso triste. - Foram afectados com a queda da Bolsa em Outubro último. Agora estão a dever vinte milhões de dólares, e têm de os pagar até Junho. Mal se interessaram pelo caso quando lhes escrevi a contar o que achara no arquivo. Mais tarde, quando nos encontrámos na Suíça por acaso, mudaram de ideias. Estão à espera que os Rafaéis sejam a sua tábua de salvação.

- Desde que sejam encontrados a tempo. Mas se a família está falida, como irão arranjar dinheiro para os comprar? E depois querem vendê-los de forma a conseguir lucro? Quem quer que os tenha deve saber o seu valor, e de certeza que trabalhou para conseguir ter direitos de posse.

Mather não fez qualquer tentativa de refutar o argumento.

- Talvez que esse direito não exista, seja muito fraco, ou, na pior das hipóteses, esteja sujeito a disputas. Sabe bem que nos últimos tempos têm ocorrido casos em que os tribunais dos Estados Unidos ordenaram a devolução de obras de arte alienadas durante a ocupação nazi. De qualquer das formas, esta é a melhor hipótese que tenho.

- E é tudo o que tem até agora, não é Max?

- Não propriamente - respondeu ele com um sorriso. - Sei onde está um dos quadros... o de Donna Delfina. Mais ainda, tenho a certeza de que o vou conseguir adquirir, ou, para ser mais correcto, certificar-me de que voltará para a família.

- A qual de imediato o porá à venda.

- Exacto.

- Como provarão eles que se trata de um original?

- Já fiz com que Tolentino o observasse. Foi a partir dele que foi feita a cópia que está lá em baixo.

- Nesse caso, que quer de mim?

- O mesmo conselho que estou a pedir a uma pequena lista de leiloeiros e intermediários: a melhor proposta para levar os Rafaéis a mercado. Será depois de eu comentar as diferentes propostas que Claudio Palombini decidirá quem vai ficar com o contrato de venda.

- E quem são aqueles que competem comigo nesta estranha lotaria?

- Um outro intermediário: Landsberg, de Zurique.

- Conheço-o. É bastante bom neste período.

- Dois leiloeiros: Christies em Londres, e Hürliman, de Zurique. Você é o representante de Nova Iorque.

- Por que razão escolheu os dois candidatos suíços, Max?

- Porque, e de acordo com as minhas informações, têm uma boa clientela e são bastante discretos nos seus negócios. A única sombra que paira sobre esta transacção é a Sovrintendenza delle Belli Arti, em Itália. Não quero que digam que os quadros têm de ser recuperados como pertença do Tesouro Nacional. Ao fim e ao cabo, os Palombini vivem lá. A última coisa que querem é um longo processo judicial com o governo. De forma que, e tal como os Palombini, estou disposto a aceitar uma proveniência pouco clara.

- O que não vai ajudar nada se quiser conseguir um bom preço no leilão.

- Mas que não constituirá necessariamente um impedimento a uma venda privada, o tipo de transacção em que você e o Landsberg são peritos. A minha pergunta é esta: estará interessado em negociar connosco em privado?

- Sim.

- Com que percentagem?

- Preciso de me informar a esse respeito.

- Claro que partindo do princípio de que o leiloeiro está a vender as obras a mim e a outros como eu, que negoceiam para as grandes instituições, tal como a Getty no Metropolitan, e às vezes, quando se trata de peças únicas, faz-se um acordo para que o preço se mantenha razoável.

- Por outras palavras, uma associação com vista à especulação.

- Meu caro Max, isso é difamatório!

- Claro. Quanto a mim, acho que a comissão do vendedor deve ser competitiva, e tem de haver um preço base para que os interesses do meu cliente sejam protegidos.

- Quando se trata de objectos deste valor e com esta raridade, talvez seja recomendável a formação de um consórcio de intermediários. Cada um dos grandes intermediários tem a sua lista exclusiva de clientes. Um consórcio significa que, sem a publicidade de um leilão, se pode atingir um mercado mais vasto. Mas tudo isto se baseia em três condições. Primeira: que a origem do quadro seja legal. Segunda: que se trate de um original. Terceira: qualquer que seja a pessoa que fique com o primeiro quadro e lhe consiga uma clientela razoável, tem direito à oferta assim que as outras peças estejam disponíveis, isto se alguma vez chegarem a estar.

- Vou aconselhar os Palombini a aceitarem essas condições, isto desde que os números da primeira comissão sejam razoáveis.

- Gostava de saber - perguntou Berchmans -, se você faz ideia daquilo que essa comissão paga?

Acho que sim. Max Mather mostrava-se respeitoso. - Para citar Whistler- "a experiência de toda uma vida, o crédito de toda uma vida." Acredite, não subestimo isso. Só espero que um dia possa ter uma fracção dessa experiência e crédito, mas para conseguir isso tenho de agir da forma como agora ajo, com vista a proteger os interesses do meu cliente. Não valho grande coisa, Henri. Desperdicei muitos anos a fazer disparates. Contudo, neste momento não ando a brincar... ando a fazer os possíveis por aprender com um mestre.

- Devo dizer que aprende depressa. - Era difícil saber se dissera isto em tom de troça ou de cumprimento. Mather esperou pelo resto. - No entanto, não aceito alunos nem aprendizes. Tenho dois filhos que herdarão os meus negócios, portanto só uso estranhos se estes trabalharem para mim. Mas aqueles que uso têm de ser merecedores da minha confiança.

- Nesse caso entendemo-nos mutuamente. Dou-lhe vinte e quatro horas para avançar com o montante da comissão. Caso contrário, parto do princípio de que não está interessado. Há ainda uma outra condição: preciso que as disposições tomadas no que respeita à passagem de fundos e à entrega das peças sejam satisfatórias.

Nesses casos o nome Berchmans costuma ser suficiente.

A assinatura que se encontra nos Rafaéis que estão no seu estúdio é perfeita... mas mesmo assim não é autêntica.

- E como é que você sabe se é perfeita, Max?

- Porque vi o original. Tive-o nas mãos. Ficará no meu cofre-forte enquanto durarem as negociações. Agora já percebe porque mencionei o facto.

- Percebo também - disse Henri Berchmans devagar - que, você sabe mais que aquilo que eu pensava. Nesse caso a minha comissão será de vinte por cento.

- Estará disponível para a formação de um consórcio?

- Com relutância, e pode bem ser que seja desnecessário. As duas cópias lá em baixo são um excelente contributo para as vendas. Pode bem dar-se o caso de que dentro em breve lhe faça uma proposta.

- Nesse caso tenho uma sugestão a fazer-lhe, algo que trará um pouco de estilo ao negócio, uma pequena bravata fora de moda.

- Que disparate tem você na cabeça, Max?

Levou algum tempo a dizer-lhe, mas Henri Berchmans ouviu-o atentamente, e no fim" Mather pensou ver um brilhozinho naqueles espertos olhos escuros.

Por outro lado, era bem provável que se tratasse apenas de um reflexo da luz.

 

Quando deixou Berchmans, a fadiga atingiu-o como se de uma pancada de martelo se tratasse. O seu campo de batalha era agora Manhattan. Cada hora significava um novo assalto, um novo combate. Junto dele já não estava uma mulher para a qual se podia voltar em busca de força ou consolo. Num qualquer café comeu uma refeição rápida e sem sabor, foi para casa, tomou um banho quente, vestiu o pijama e o roupão, e sentou-se, disposto a dar início amais uma das suas análises dos diários de Madeleine Bayard. Desta vez decidiu analisar as descrições que esta fazia das pessoas que conhecia, e comparar estas versões com a sua própria experiência. Ed Bayard era o primeiro da lista, não apenas por se tratar do marido, mas porque cada entrada no diário tinha a sua razão de ser no último encontro de ambos.

Nem todas elas eram hostis ou abrasivas. Havia momentos de serenidade e mesmo de ternura, se bem que estes fossem mais raros. O estranho era que a seguir aos encontros abrasivos se seguiam entradas vivas e alegres, enquanto que os momentos de carinho eram seguidos por explosões de raiva e frustração.

 

A noite passada foi tão simples, tão agradavelmente burguesa, que quase se tornou cómica. O Ed estava a trabalhar numa minuta, eu desenhava e ouvia Claudio Abbado interpretando um concerto para piano de Mozart. Repetia constantemente para mim mesma que esperava que nada estragasse isto. E nada estragou. Fomos para a cama, fizemos amor, adormecemos. Mas esta manhã mal podia esperar para sair de casa! Tanto aborrecimento oprime-me. É como se fosse uma capa de chumbo que me asfixia. Os desenhos que fiz ontem à noite não têm interesse, são banais e académicos. É só quando chego a este espaço vazio que me incendeio. A noite passada encarava o Ed com amor e ternura.

Hoje de manhã, durante o pequeno-almoço, quase não conseguia falar com ele de maneira educada. Gostava que fizesse algo para me irritar, mas não, amua, tal como um escultor que tenta fazer um anjo numa pedra que não presta. Tudo o que consegue fazer é invocar o diabo. Esta manhã chamei o Peter para me servir de modelo. Este é outro tipo de diabo: estúpido, vaidoso, cruel- mas tem um corpo perfeito, e enquanto lhe pagar é meu. Aprendi a domesticá-lo usando o desprezo, pois posso comprar vinte iguais a ele, e ele sabe-o.

 

Alguns dias mais tarde, o tom emocional mudara completamente.

 

Sempre que o Ed está preocupado com os negócios, exige de mim uma atenção constante. Tenho de compreender imediatamente as complexidades do problema, o choque de personalidades. Tenho de o inundar de simpatia e solicitude. Digo-lhe que não posso fazer isto. O meu espírito, as minhas emoções, nada funciona assim. De cada vez que tenho um problema com uma tela, não estou à espera que ele me venha mimar como se eu fosse uma criança. Se precisa desse tipo de conforto, pode consegui-lo numa casa de massagens ou com uma prostituta. Eu não me importava. Importo-me sim, ressinto-me com o facto, quando ele me puxa de um lado para o outro como se eu fosse uma boneca de trapos. Mas acalmo-me de novo assim que aqui chego. Telefono à Danny. Ela diz que virá posar para "A Mulher à Janela. " Conversamos enquanto posa. Conta-me os seus problemas com as mulheres e com os homens. Acalmo-a usando palavras doces. Dá-me imenso prazer ver os seus músculos tensos descontraírem-se, e aquele corpo branco começar a transmitir a sua imagem fluída na tela. Quando a sessão acaba, beijamo-nos, bebemos qualquer coisa, e fazemos amor deforma confortante.

 

Num outro passo mencionava-se o aspecto maníaco da personalidade de Bayard:

 

Não se deixa levar por um tipo de violência crua. Não bate em ninguém nem parte coisas. Às vezes penso que seria mais saudável agir assim. Em vez disso, a sua raiva volta-se para dentro e transforma-se em algo diferente - um perigo estudado igual ao dos vilões das tragédias. Só que aqui não se trata de teatro, mas sim da realidade, e fico bastante assustada. É como olhar para o rosto de Xiva, o destruidor. Tentei captar a imagem num esboço esperando exorcizá-la assim que a passasse para a tela, mas a mão falhou-me e a minha memória ficou vazia. Hoje não consigo encarar o estúdio sozinha. Devia ir-me embora, mas isso significaria que o Edmund me derrotou. Em vez disso telefonei ao Hugh Loredon. Como sempre, veio ter comigo assim que lhe fiz sinal - no entanto, sei que responderia da mesma maneira a uma qualquer mulher bonita. O Hugh não representa qualquer triunfo para mim. Posso convocá-lo como se do bobo da corte se tratasse, com a certeza de que me fará rir -às minhas custas e às dele. Contudo, quando lhe falo do Ed e das suas fúrias sombrias, abana a cabeça em desespero e diz-me: "Ouve bem o que te digo, Madi, se vocês não se separarem, um dos dois acabará morto. Não sei como aguentas esta vida. É como a infusão de uma feiticeira, a ferver por sobre o fogo." Digo-lhe que exagera, mas no fundo sei que está a dizer a verdade. Gostava que fizesse amor comigo, mas ele está com pressa de sair - diz que vai a uma inspecção, mas eu sei que se está a poupar para uma das suas clientes. Agarrá-lo é como querer agarrar o ar.

 

A única área das suas vidas que parecia estar a salvo de profanações era a sua mútua paixão pela compra de objectos de arte. Os comentários de Madeleine a respeito de uma ida às compras eram bastante elucidativos:

É como mudar de par no meio de uma dança. Assim que vê alguma coisa de que não gosta, neste caso uma tela de Georgia O'Keeffe composta por algumas rochas pálidas e a flor de um cacto, enormes, num fundo deserto, transforma-se de imediato. É como um exorcismo: os demónios vão-se embora e o homem fica a tremer, vazio e inocente. Volta-se para mim e diz: "Adoro isto. Podes viver com ele? Diz-me." Concordo sempre. Seria um monstro se fizesse outra coisa, pois o seu instinto acerta sempre. Também eu admiro aquele trabalho, mas entre nós existem as barreiras do conhecimento, e, sou forçada a dizê-lo, a inveja de um artista que cobiça os dons de outro. Tentei explicar isto a Henri Berchmans quando ele veio passar algumas horas comigo. Limitou-se a rir e a dizer: "Vocês, artistas, são os filhos mimados de Deus. Ele deixa-vos espreitar para o céu. Vocês querem continuar afazer tortas de lama no inferno." Depois fez amor comigo como se fosse o rapaz de uma quinta e estivesse no celeiro, depressa e com brutalidade. No entanto, também ele me faz rir, e, de uma forma algo estranha, ajuda-me a perdoar-me a mim mesma. É esse o problema do Edmund. Assim que o exorcismo passa e a casa fica calma e vazia, os demónios voltam outra vez - mais numerosos, e nunca com o dom do perdão.

 

Mather ficou com a sensação de que era aqui que residia a chave desta tragédia: duas pessoas que nunca se conseguiram perdoar por serem como eram. Madeleine era tão implacável quanto o marido. Até mesmo o acto de amor se transformava num acto de vingança. Todos os quadros que pintava exibiam cativos que tentavam em vão escapar. Era estranho que as únicas peças realmente felizes fossem as fantasias eróticas em que os participantes eram como companheiros de folguedos num qualquer paraíso primordial. Mas até mesmo essa ilusão era demasiado frágil para dar conforto.

 

Sei que o Edmund compra o sexo que lhe recuso, da mesma maneira que compro, ordeno ou seduzo os amantes de que preciso para o substituir. O Henri Berchmans tem razão. Somos os filhos mimados de Deus, carregados de ofertas que não sabemos partilhar. O Hugh Loredon veio ver-me hoje. Disse-me que tinha cancro e que o prognóstico não era bom. Sabia que ele precisava de conforto, e de repente nada tinha para lhe dar. A presença da doença fazia-me repeli-lo, fugi ao seu contacto. Ele ficou terrivelmente magoado. Nunca vi ninguém tão cheio de aversão. E contudo eu não podia fazer nada. Pela primeira vez desde que o conhecera, o Hugh nada tinha a dizer. Havia uma tela semi-acabada no cavalete. O modelo era uma rapariga do Negroni's, uma bailarina. Ele olhou-a em silêncio, pegou num pincel e apagou a imagem com grandes pinceladas grosseiras. Depois disse: "Um dia destes alguém te mata, Madi. Talvez que antes de morrer dê a mim mesmo esse prazer." Vindo de um homem como o Hugh, parecia uma maldição da Bíblia. Quando se foi embora, tirei o quadro do estirador e comecei outro trabalho.

 

Mather marcou esta passagem, mas, à medida que o fazia, soube que se tratava de uma explicação demasiado fácil e tentadora para a morte de Madeleine.

 

Em qualquer dos casos, o próprio Hugh Loredon deve tê-la lido, e até mesmo usado como ponto de partida para a criação da sua história. Era meia-noite. Mather tinha os olhos a arder. Estava quase a fechar o livro quando uma outra passagem lhe chamou a atenção:

 

Os rapazes e as raparigas do Negroni's andam sempre a fazer experiências com os mais variados tipos de drogas. Estabelecia regra de que dentro da minha casa nada usassem. Peter, o estúpido, tentou desafiar-me: fuma erva, aspira cocaína. Esta manhã, quando a Paula e a Danny cá estavam, exibiu-se bastante e tive de o mandar embora. Recusou-se a sair. Quando peguei no telefone e marquei o número da polícia, tentou tirar-me o aparelho da mão. Peguei na faca que costumo usar para cortar papel e encostei-lha aos testículos... ele desistiu e foi-se embora. Disse-lhe para nunca mais voltar. Isto e a cena da violação passaram dos limites.

A Paula saiu pouco depois, mas a Danny ficou. Estava muito zangada. Repreendeu-me com palavras amargas: "Eu amava-te, Madi. Faria tudo e mais alguma coisa por ti. Confiava em ti. Entrei nas tuas brincadeiras porque pensei que tinham algum significado para ambas. Achava-te a mulher mais bonita e talentosa que existia no mundo. Olha agora para ti! Estás afazer-te em pedaços, a ti e aos outros. Pareces uma desmazelada. Há semanas que não pintas nada de jeito. " Furiosa, pois sabia que ela tinha razão, voei na direcção dela e esbofeteei-a. Ela agarrou na faca e veio ao meu encontro. Baixei os braços e não me mexi. Ela ficou como que paralisada, depois colocou a arma na mesa. Supliquei-lhe que ficasse e que tomasse uma bebida comigo. Depois começaríamos tudo de novo: novos amigos. Ela abanou a cabeça e foi-se embora.

Peguei numa tela nova e comecei a preparar o fundo para pintar uma tempestade. O Edmund apareceu cerca de meia hora mais tarde. Era a primeira vez que aparecia sem se fazer anunciar. Disse: "Tinha o estranho pressentimento de que talvez estivesses em apuros. Pensei em passar por cá e levar-te comigo para casa." Agradeci-lhe e disse que estava contente por ele ter vindo, e quase pronta para partir.

 

Mather fechou o livro e colocou-o na pasta junto com o resto dos documentos que levaria para a sua conferência matinal com Munsel, e, mais tarde, para o encontro com a polícia. Estava estoirado, mas depois da leitura o seu cérebro trabalhava como se fosse uma serra eléctrica. Preparou um uísque, ligou a televisão para assistir a um western, e tentou descontrair-se. Foi então que o porteiro ligou. Era inglês, um emigrante recente que fazia os possíveis para falar com o sotaque de Manhattan. Parecia que no vestíbulo estava um tal Bayard. Mr. Mather encontrava-se em casa?

- Mande-o subir - disse ele com voz fraca.

Bayard estava um pouco bêbado, mas parecia suficientemente sóbrio, e cheirava a sabonete barato e a óleo de massagem. Disse:

- Sei que não sou convidado, mas trata-se de um con... de um conselho bíblico: "Nunca deixes o Sol baixar sobre a tua raiva." O Sol já se pôs, mas a Lua vai alta. Ontem à noite estávamos ambos zangados.

 

- E agora estamos apenas cansados. É melhor não prolongarmos a agonia, Ed. Que posso fazer por ti?

- A Anne-Marie telefonou. Disse que querias levara tal Danziger à abertura da exposição.

- É verdade.

- Só te queria dizer que concordo... é essa a palavra. Concordo do fundo do coração.

- Ainda bem que vês as coisas assim.

- É a única maneira possível, Max. Inocente até que se prove a culpa... à espera que se faça justiça... isso tudo. Muito correcto. Está a apetecer-me café. Neste sítio onde vou, as mulheres são bastante caras, mas as bebidas são de graça. Bebi bastante e não me saí lá muito bem. Sabes o que quero dizer?

- Vou buscar o café.

Sem parar de falar, Bayard seguiu-o até à cozinha.

- Concordo com a tua política no que respeita à exposição, Max. Já deitámos fogo à casa. Agora é deixá-la arder. Que temos a perder? Nada. Que temos a ganhar? Nada, a não ser dinheiro. Foi por isso que disse à Anne-Marie para ir em frente, corpo e alma! Nada de leite nem açúcar, só café! Uma outra coisa que eu queria dizer, Max...

- Vamos beber o café lá para dentro, não?

- Claro. Uma outra coisa que eu queria dizer, Max... ainda bem que já não somos rivais.

- Por aquilo que sei, nunca o fomos.

- Eu pensei que fôssemos, o que vai dar ao mesmo. Com que então vais casar-te com uma suíça?

- E depois?

- Depois, parabéns.

- Obrigado.

- Vou pedir à Anne-Marie para se casar comigo logo após a exposição.

- É melhor deixar as coisas para depois. Ela agora anda muito ocupada.

- Mas o facto de teres voltado já é uma grande ajuda, Max, uma grande ajuda. E agora a outra pobrezinha. A Danziger...

- Que há com ela?

- Não foi ela a fazê-lo.

- Eu sei que não foi, Ed, mas isso tem de ser provado em tribunal, frente a um júri nova-iorquino. Se souberes alguma coisa que possa ser útil à defesa...

- Sei que não foi ela.

- É o que dizes. Como é que sabes?

- Pela pancada, Max. Pela arma. Está tudo errado para uma mulher, principalmente para esta.

- Então por que é que me mandaste passear quando te telefonei de Zurique?

- Porque não tive tempo para pensar. Foi como se me tivesses dado com um taco de baseball nos dentes.

- E agora estás disposto a prestar declarações no tribunal?

- Max, Max, esta noite estás muito tapado. Aquilo que possuo são opiniões, não provas. Não servem de nada em tribunal. Mas digo-te se aparecer alguma coisa.

- Ed, é muito tarde, já há muito que passada hora de ir para a cama. Vieste até cá para quê?

- Isso? Sim, bom, por uma série de coisas. - Começou a contar pelos dedos. - Primeiro, pelo café, que me está a fazer muito bem. Segundo, para te contar a respeito da Anne-Marie e de mim. Terceiro, para te felicitar pelo noivado. Quarto, para te informar que preferia que não fosse o teu amigo florentino a apresentar os quadros da Madi. O Lebrun serve perfeitamente. Quinto... que raio era o quinto? Ali, sim, convidar-te para um jantar na minha casa, quarta-feira. É uma espécie de antevisão da exposição com a nata dos conhecedores de Manhattan. Vinte pessoas, black tie. A Anne-Marie será a anfitriã. Vais ter Mrs. Lois Heilbronner como par. Disse-me que houve uma altura em que vocês se conheceram bastante bem.

"Oh, meu Deus! " Mather rezava em silêncio. "Porquê agora? Porquê a mim?”

No entanto, já sabia a resposta. Deus era um brincalhão que cuidava dos bêbados e dos loucos como Bayard, mas não tinha piedade de casanovas com talento iguais a Max Mather.

 

- Miss Danziger, a senhora senta-se à cabeceira da mesa. - George Munsel estava a organizar a cena para a conferência daquela manhã. - O Max vai sentar-se a seu lado, um pouco afastado. Eu fico sentado à frente dele. De facto, vai ficar tão isolada como no tribunal, tal e qual como as testemunhas vão ficar no banco que lhes é destinado. Esta manhã, e expressamente para este exercício, nem eu nem o Max somos seus amigos. Somos inquisidores antiquados, interrogadores interessados apenas em chegar à verdade. Cada um de nós possui informações que lhe são desconhecidas, de forma que aquilo que nos disser será testado tendo em conta aquilo que já sabemos. Fiz-me entender?

- Sim.

- O interrogatório não obedece a qualquer concessão nem delicadeza. Está preparada para isso?

- Sim.

- Se eu decidir interrogá-la em tribunal... e ainda não me decidi a esse respeito... estará sob juramento. Qualquer resposta falsa será considerada perjúrio. Neste momento responda como se estivesse sob juramento. De acordo?

- De acordo.

- Há quanto tempo conhecia Madeleine Bayard?

- Há cerca de dois anos.

- Como se conheceram?

- Eu estava a trabalhar para um artigo da Belvedere chamado "Artistas e Modelos." Harmon Seldes arranjara algumas velhas fotografias e cartazes de Montparnasse, da Via Margutta em Roma, e do Café de Paris em Londres. Queria provar que o Soho e a Village estavam na mesma linha. Um dos lugares que visitei foi o Negroni's. Uma das pessoas que conheci e com quem falei foi Madeleine Bayard.

- Tornaram-se amigas?

- Sim.

- Por vezes servia-lhe de modelo?

- Sim.

- Quanto tempo passou antes de se tornarem amantes?

- Talvez dois meses.

- As suas preferências sexuais dirigem-se exclusivamente para as mulheres?

- Naquela altura não. Agora sim.

- Porquê a mudança?

- Acho que é porque já não tento ser o que não sou.

- A sua relação com Madeleine Bayard era exclusiva?

- Não. Ela tinha outros amantes.

- E você?

- Eu seguia o exemplo dela.

- E gostava de variar?

- Não. Descobri que... que não fora feita para aquilo.

- Pode explicar melhor?

- Sentia que me estava a repartir em muitos pedacinhos, mais ou menos como um bolo de noiva, e que me oferecia para que me comessem. Tinha medo de que os pedaços nunca mais se voltassem a juntar. Precisava... preciso de segurança de uma relação a dois.

- Por outras palavras, é muito possessiva?

- Sim.

- Ciumenta?

- Sim.

- Até que ponto? Muito, muitíssimo, até perder o controle?

- Muito.

- O suficiente para matar alguém?

- O suficiente para pensar se seria capaz de matar alguém.

- Contudo, e da sua livre vontade, tomou parte em vários divertimentos sexuais envolvendo pessoas de ambos os sexos. Estes divertimentos eram organizados e dirigidos por Madeleine Bayard e ocorriam no estúdio.

- É verdade que participei, mas nem sempre de livre vontade.

- Protestava?

- A maior parte das vezes ficava ofendida, em silêncio.

- Quando foi que protestou?

- Quando um homem de quem eu não gostava me obrigou a fazer coisas que eu não queria fazer.

- Isso enquanto a Madi observava?

- Sim.

- E encorajava a situação?

- Sim.

- E quando você protestou?

- Pediu uma pausa.

- E como se sentia?

- Odiei-a.

- E continuou a fazê-lo?

- Não, também não possuo esse talento. Não consigo amar ou odiar durante muito tempo nem com muita profundidade.

- Com sua licença, George - era Mather quem interrompia o interrogatório -, gostava que a Danny comentasse algumas notas que possuo. São citações dos diários de Madeleine. Sabia que ela tinha um diário, Danny?

- Sim, mas ela nunca deixou que ninguém o lesse.

- Deixe-me citar-lhe algumas passagens: "A Paula e a Danny têm ciúmes uma da outra. Saí de ao pé delas e deixei-as fazer amor com a Lindy. Foi então que o Peter se juntou à brincadeira. Expliquei-lhe vezes sem conta que o amor deve significar prazer e não fúria ... " Isto refere-se à ocasião que acaba de mencionar?

- Sim.

- Diria que se trata de um relato preciso do que aconteceu?

- De maneira nenhuma. Dito assim até parece uma brincadeira inocente, com a Madi a servir de... mestre de cerimónias. Não foi nada assim. Foi cru, cruel e... perigoso.

- Nesse caso, ouça agora esta. - Leu-lhe a longa descrição do episódio das drogas e da forma como atacara Madeleine com a adaga. - Este relato é verdadeiro?

- Não, não é. Antes do mais, a Paula não estava lá. Só o Peter, eu e a Madi. Ela mente quando diz que não permitia o uso de drogas no estúdio. Sem elas nunca seria capaz de encenar as suas festazinhas. Mas nunca as usou. Tinha medo dos efeitos que podiam ter no seu trabalho ... a única coisa que respeitava. Contudo, os miúdos do Negroni's usavam-nas ... daquela vez o Peter ofereceu-me cocaína. Recusei. Para mim o risco era igualmente grande. Dependo de um talento. Foi então que ele se começou a tornar difícil. Tinha uma espécie de rotina. A princípio lisonjeava, depois tornava-se cruel, por fim, bastante violento. A Madi limitou-se a ficar ali a ver. Peguei na faca com uma mão e num frasco de aguarrás com a outra. Atirei com a aguarrás ao rosto dele. Esta fê-lo cegar. Foi então que fugi, deixando-o aos cuidados da Madi. Não sei qual é a data dessa entrada, mas nunca mais voltei ao estúdio até que ela me chamou, no dia em que morreu.

George Munsel voltou a ocupar-se do interrogatório.

- Nesse caso, o que está a dizer é que o diário de Madeleine não é um documento de confiança?

- Estou a dizer que nem sequer é um documento. Trata-se de uma história que ela inventava todos os dias, de forma a que lhe fosse possível viver consigo mesma. Repare, sabia do meu fraco por ela, sabia das indecisões que tinha quanto à minha identidade sexual. E no entanto entregava-me àquele... àquele rufião musculoso, o Peter. É óbvio que as coisas se descontrolaram. Eu teria sido capaz de o matar, e ele de me magoar bastante.

- Teria sido capaz de matar a Madeleine?

- Algumas vezes, sim.

- E fê-lo?

- Não.

Munsel consultou as suas notas e, da mesma maneira seca e distanciada, continuou o interrogatório.

- O crime ocorreu no dia 18 de Fevereiro. Diga-me exactamente o que fez durante esse dia.

- Não lhe posso dizer com exactidão. Lembro-me do que aconteceu de manhã, mas a tarde está muito confusa.

- Então diga-me do que se lembra.

- Levantei-me às sete e fui correr até às oito. Subi a Quinta Avenida até à Septuagésima Rua, atravessei a cidade e fui para casa.

- Como é que estava o tempo?

- Bom, mas bastante frio.

- E depois?

- Tomei o duche, fiz o pequeno-almoço e fui à Biblioteca Municipal procurar uma referência.

- Sobre o quê?

- A falsificação de Miguel Ângelo.

- Desconheço esse assunto.

- Consta que a pedido de um comerciante de Milão, Miguel Ângelo envelheceu a estátua de um cupido adormecido, sendo este vendido ao cardeal San Giorgio como uma antiguidade genuína.

- Então encontrou a referência. E depois?

- Parei numa tabacaria para comprar sobrescritos e etiquetas auto-colantes. Depois fui tomar um café.

- Onde?

- Algures perto da Quadragésima Sétima Rua. Depois disso apanhei um táxi e fui para casa. Havia uma mensagem da Madi no meu gravador. Pedia-me para lhe telefonar.

- E fê-lo?

- Não imediatamente. Tinha-me visto livre dela durante uns tempos. Não queria mesmo voltar a envolver-me.

- Então por que respondeu?

- Havia algo na voz dela que me incomodou: era pouco clara e firme, tal como se estivesse bêbada. Foi então que me perguntei se ela não estaria a ter um ataque... Vi isso acontecer a uma tia minha. Lembrei-me da cena com muita nitidez.

- E então acabou por lhe telefonar?

- Sim.

- E a Madeleine respondeu?

- Sim.

- E como é que ela lhe pareceu?

- Melhor, mas continuava a não ser ela. Quando lhe perguntei o que queria, disse que não se estava a sentir bem e convidou-me para ir almoçar com ela. Perguntei se estava sozinha. Respondeu que sim. Concordei em ir visitá-la.

- Que horas seriam?

- Por volta do meio-dia.

- Antes ou depois?

- Pouco depois.

- Como é que sabe?

- Liguei o rádio assim que cheguei a casa. O noticiário do meio-dia acabara de começar.

- Como foi que chegou ao estúdio?

- De táxi.

- A que horas chegou?

- Faltavam dez minutos para a uma.

- Como é que entrou?

- Pela porta da frente. Toquei à campainha e a Madi mandou-me entrar. - - Como é que ela estava vestida?

- Como sempre num dia de trabalho: com uma bata por cima da camisola e das calças.

- Que estava ela a fazer quando você chegou? A pintar, a desenhar, a escrever... o quê?

- A pintar. O cavalete exibia uma tela por acabar.

- Mas você disse que ela não estava bem.

- Não. Disse que não parecia estar bem e que me disse isso. O rosto estava pálido e inchado, e a forma como falava não era normal.

- E depois?

- Perguntei-lhe o que se passava. Respondeu que o médico lhe receitara calmantes, mas queixou-se que estes eram demasiado fortes e a tornavam lenta. Vi a garrafa de uísque e o copo. Avisei-a de que com os calmantes não devia beber, mas ela disse que só bebera um bocadinho. Depois fi-la tirar abata e os sapatos e deitar-se. Tapei-a, sentei-me à beira da cama e fiquei a falar até que ela adormeceu. Não sabia bem o que fazer. Não queria ficar ali. Não a queria deixar. Desci as escadas e pendurei na porta a nota "Volto depois das cinco". Depois telefonei para o escritório de Mr. Bayard. Disseram-me que fora almoçar e perguntaram-me se queria deixar recado. Achei melhor não. Foi então que tentei o Hugh Loredon. Sabia que tinham discutido imenso sobre uma coisa qualquer, mas o Hugh sempre se mostrara muito protector em relação a ela... e em relação a mim também. Fizemos amor algumas vezes e, conquanto não fosse grande coisa, também não foi mau. Encontrei-o no escritório. Disse-me para não ficar ali, que apenas me certificasse de que a Madi estava tapada e os aquecedores ligados. Garantiu-me que estaria ali dentro de quinze ou vinte minutos. Fiquei contente por me poder ir embora. Desde o episódio com o Peter que desconfiava do grupo do Negroni's, por isso saí pela porta das traseiras. Percorri meia dúzia de quarteirões e apanhei um táxi.

- Com sua licença, George, gostaria de fazer uma pergunta a respeito dos aquecedores. - Mather interrompera a narrativa. - Aquele sítio é um armazém enorme e frio. Para que se tornasse habitável tivemos de instalar ar-condicionado. Que tipo de aparelhos usava Madeleine Bayard?

- Aquecedores a gás - respondeu Leonie. - Daqueles que têm uma botija colocada num atrelado. Pode-se transportá-los de um lado para o outro, ajustar a altura e concentrar o calor. Havia três no segundo piso e seis no andar superior, pois como as vigas não estavam isoladas, arrefecia muito depressa.

- Bom - disse Munsel -, deu-nos a sua versão. Agora deixe-me contar-lhe a história que a acusação irá apresentar ao júri, usando provas que a corroboram. Depois o Max tem uma outra série de variações sobre o mesmo tema. Mas antes disso, ele tem ainda uma outra pergunta a fazer.

- Mandou-me para Zurique o sumário dos relatórios da polícia e da imprensa a respeito do caso. Mandou-me as fotografias. Mas não fez qualquer menção aos factos que acaba de revelar. Porquê?

- Porque não fazia ideia de que suspeitavam de mim. Não vi qualquer razão para complicar a minha vida com revelações desnecessárias. E a nossa relação, a minha e a sua, Max, tinha uma base bastante limitada.

- Está esclarecido. Obrigado. É a sua vez, George.

- Para a acusação, e será assim que ouvirá as coisas em tribunal, o caso é o seguinte: em primeiro lugar, o tempo. Uma testemunha que estava a beber café no Negroni's dirá que você entrou no estúdio dez minutos depois das duas. O falecido Hugh Loredon, fazendo uso de uma declaração autenticada feita pouco antes de ter morrido, diz que lhe telefonou cerca de um quarto para as três, dizendo que a Madeleine estava morta. Aconselhou-a a pegar na arma, a deixar o estúdio usando a porta das traseiras, e a andar durante um bocado antes de apanhar um táxi que a levasse a casa... o resto ficava por conta dele. Mais tarde, precisamente nessa altura do dia de que você não se lembra, Loredon foi ao seu apartamento, você contou-lhe tudo o que acontecera, e ele aconselhou-a a ser firme e a nada contar, pois assim tudo acabaria em bem. É por isso que o advogado de acusação lhe irá perguntar o que tem a dizer a este respeito, Miss Danziger.

- Nada disso é verdade. Não é verdade.

- Mas como pode prová-lo? Foi vista a entrar no estúdio uma hora depois daquilo que diz ser a altura em que chegou. Admite ter telefonado ao Loredon. Ele diz que você ainda lá estava quando chegou e que confessou ter morto Madeleine. A arma era-lhe familiar. Segundo os diários, já tinha ameaçado Madeleine com ela. Até mesmo na sua versão diz ter ameaçado o Peter. Diz que primeiro telefonou ao Ed Bayard, mas, e dado que não deixou recado, não há qualquer registo da chamada. Na declaração que fez, Loredon conta que depois foi ao seu apartamento. Você diz que mal se lembra do que aconteceu nessa tarde. Porquê?

- Fui ao Roxanne’s.

- que é o Roxanne's?

- É um clube, um clube de mulheres. Chamam-lhe a Fonte Sáfica. Encontrei algumas amigas, tomámos umas quantas bebidas... demasiadas bebidas. Algumas de nós decidiram ir passear. O passeio transformou-se numa divertida visita aos bares. A única coisa de que me lembro com clareza é de ter chegado bastante tarde e de ter pedido ao porteiro para me pagar o táxi.

- E não se lembra da visita que Hugh Loredon lhe fez?

- Não.

- Voltemos a Madeleine. Diz que quando a deitou ela estava vestida?

- sim.

- A polícia afirma que estava nua e que as suas roupas estavam cuidadosamente dobradas numa cadeira. Como é óbvio, conclui-se que recebera um amante, um amante do sexo feminino, pois que não havia vestígios de que se unira a um homem. Bom, no passado vocês costumavam ter este tipo de encontros, não é verdade?

- Sim.

- E como nos contou, estes por vezes terminavam em discussões?

- Sim.

- Foi o caso deste?

- Nós não fizemos amor. As coisas passaram-se como lhe contei.

- Se não foi você quem matou a Madi, então quem foi?

- A sentinela do Negroni's. O próprio Hugh Loredon. Como posso sabê-lo?

- Quem era a sentinela do Negroni's?

- Tinha de ser o Peter. Detestava-me o bastante para me prejudicar desta maneira.

- Mas como é que ele podia saber que você estaria lá?

- Pode ter persuadido a Madi a convidar-me. Já antes o fizera. Ela andava a trabalhar numa figura masculina. É provável que fosse ele o modelo.

- Passemos agora à outra possibilidade: Hugh Loredon. Imagina-o no papel de assassino?

- Nunca o compreendi muito bem. A princípio gostava dele, todos o faziam. Do... do ponto de vista emocional, foi bastante bom para mim numa altura má. Era óptimo no que respeitava aos primeiros-socorros, mas não na convalescença. Contudo, sim, havia nele um lado oculto, e acho que às vezes a Madeleine o despertava.

Mais uma vez o diálogo sofreu a intromissão de Mather. Mostrou a George Munsel os cadernos de esboços, este assentiu em silêncio, e então Max explicou o seu conteúdo a Danny Danziger.

- Estes cadernos de esboços acompanham os diários. Já os viu?

- Acho que não.

- Nesse caso prepare-se para uma surpresa. Assim que recuperar quero que me diga os nomes das pessoas que consegue identificar em cada página.

Passou-lhe os livros. Ambos os homens a observaram atentamente quando, depois de ter recuperado do choque inicial, começou a virar as páginas com um cuidado deliberado. Acabou por os fechar e levantou os olhos. Com frieza, comentou:

- São como os diários... bem pensados, exprimindo paixão depois de esta ter passado. São como os desenhos de Beardsley: retocados com requinte, sem redundâncias, sem passos em falso. Mas se alguma vez tivessem visto as suas primeiras abordagens de um assunto, a bravura, a mestria descuidada...

Onde estarão agora esses esboços? Sei que existem, pois estava presente quando alguns deles foram feitos.

- Talvez ela mesma os tivesse destruído depois de os ter passado para a forma que acabou de ver - sugeriu Munsel com brandura.

- É possível. - Mesmo assim, parecia ter bastantes dúvidas.

- Agora - ordenou-lhe o advogado -, volte a observar os desenhos. Diga o nome dos rostos que conhece.

Quando isto chegou ao fim, Mather voltou a entrar na conversa.

- Há algo que me preocupa. Podemos postular uma razão que levasse Hugh Loredon a matar Madi Bayard. Mas por que razão iria ele colocá-la em apuros? Não, não diga nada ainda... quero ler-lhe o que ele me disse em Amesterdão. Não terão sido estas as palavras exactas, mas foi mais ou menos isto: "Fui o seu primeiro homem, facto de que me orgulhei bastante, uma espécie de vitória especial. Meu Deus, como fui ingénuo! O encontro foi desastroso para ambos." Verdade ou mentira, Danny?

- Verdade. - Apesar de fria, mostrava-se zangada. - Foi um desastre, um episodiozinho atabalhoado e humilhante. Ele troçou do caso. Era a sua maneira de ser. Eu fiquei magoada por dentro e por fora. Detestei-o, por isso. A razão por que me havia de meter em trabalhos? Desde que lhe fosse conveniente, era capaz de pôr a própria mãe em trabalhos. Mas onde é que tudo isto me vai levar? A Madi e o Hugh estão mortos. Quem falará a favor de Danny Danziger?

- Eu. - George Munsel fez um sorriso. - E o Max está a fazer um trabalho esplêndido. Para uma sessão assim tão dura, você aguentou-se bem, por isso acho que já amadureceu o suficiente para ouvir algumas palavras duras, e ao mesmo tempo não começar a construir falsas esperanças. O certo é que não queremos que este caso vá a tribunal. Ninguém sairia limpo. Muita gente ficaria marcada para toda a vida, a imprensa arranjava um nunca mais acabar de material, e não se serviria a justiça. Nesta altura a acusação não é bastante forte, mas nós também não. Antes do julgamento convinha elaborarmos um resumo, de forma a que eu o pudesse atirar para cima da mesa do advogado de acusação, convencendo-o de que seria idiota continuar com isto ... Fique sabendo que não será fácil, por isso não conte muito com isto. Mas não custa nada tentar.

- E entretanto que é que eu faço?

- Trabalha. Vive uma vida normal. Não dê nas vistas e afaste-se de lugares como o Roxanne's. Não discuta o caso com ninguém a não ser comigo.

- Nem mesmo com o Max?

- Nem mesmo com o Max. Ele é testemunha. Eu sou o seu advogado... o que significa...

- Que o advogado tem sempre razão! - disse Mather com um sorriso.

- Significa também - continuou Munsel -, que Miss Danziger vai agora passar-lhe um cheque de dez mil dólares como pagamento do dinheiro que já me adiantou.

- Está em condições de o fazer, Danny?

- Estou. Mas mesmo assim ainda fico em dívida para consigo, Max. Nunca lhe poderei agradecer o suficiente.

Mather abanou a cabeça. Tocou-lhe na mão.

- Nada de dívidas. Estamos quites. Podemos ser amigos. Para além disso, temos trabalho a fazer.

- Agora vá para casa - disse Munsel bruscamente. - O Max e eu ainda temos algumas coisas a fazer.

Ela ainda mal acabara de sair, e já o advogado mergulhava num novo tema.

- Quanto às mortes misericordiosas levadas a cabo a pedido do paciente num país estrangeiro... até agora as companhias de seguros americanas não entraram em litígio para considerarem o caso como sendo suicídio. Se a certidão de óbito emitida no local onde a morte ocorreu estiver em ordem, então o óbito será considerado normal e o seguro pago. Assim, não precisamos de ter quaisquer escrúpulos em revelar à polícia a forma como Hugh Loredon morreu. O assunto que se segue: os duzentos e cinquenta mil dólares depositados por Hugh, administrados pela Lutz & Hengst, cujos lucros revertem a favor de Anne-Marie Loredon. O depósito inicial foi de duzentos mil dólares. O resto trata-se de lucro acumulado. O doador foi Hugh Loredon.

- O que não nos ajuda muito, pois não?

- Tenha calma, meu amigo impaciente. Tenha calma! A conta foi aberta com um cheque do Citibank. E o dinheiro para pagar este cheque foi retirado da conta pessoal de Edmund Justin Bayard. A transacção data de 25 de Fevereiro.

- Uma semana depois da morte de Madeleine Bayard?

- Exacto.

- Isso quer dizer...

- Não quer dizer nada. - Munsel levantou a mão a indicar prudência.

Mas leva-nos a perguntar uma coisa: que garantias daria Hugh Loredon, conhecido gastador, a Ed Bayard para que este lhe emprestasse duzentos mil dólares.

- Isso passou-se há mais de doze meses - lembrou Max -, numa altura em que a Anne-Marie ainda estava no estrangeiro, mas o Hugh já conhecia a sua sentença de morte.

- É melhor meditarmos no assunto. Dentro em breve irá enfrentar os nossos dois detectives da brigada de homicídios, Hartog e Bechstein. A sua posição é a de cooperar o mais possível, desde que seguindo os meus conselhos.

Uma vez que vai ser apresentado como testemunha principal, vão ter de andar com jeitinho, e assim vai poder ser tão simpático como aquilo que a sua natureza amistosa lhe ditar.

- A minha natureza amistosa precisa de uma chávena de café.

- Enquanto o vou buscar, tente ver as coisas por este prisma... Hugh Loredon está arrumado. Já lhe leram a sentença de morte. Ed Bayard anda a cumprir a sua pena junto com uma mulher brilhante mas problemática. Loredon tem também problemas com a mesma senhora, de forma que propõe um contrato que não prejudique ninguém: "Dou cabo dela e tu arranjas maneira de a minha querida filha ficar bem"... Com leite e açúcar?

- Puro, por favor.

Quando Munsel regressou com o café, Mather leu-lhe a passagem do diário em que se contava a forma como Loredon anunciara estar doente: "Fugi ao seu contacto... Nunca vi ninguém a quem a raiva gelasse tanto, ninguém tão cheio de aversão... Depois disse: “Um destes dias ainda alguém te mata, Madi. Talvez que antes de morrer dê a mim mesmo esse prazer' ...”

Munsel apertou os lábios e depois exprimiu as suas dúvidas.

- Não se pode ter tudo, Max. Se diz que os diários têm muitas histórias inventadas, não pode fazer que, de repente, se transformem em provas factuais.

- Então ouça isto, George. - Voltara às suas notas. - A primeira vez que jantei em casa do Ed Bayard. falei muito com ele. Falámos a respeito do Hugh Loredon. Bayard disse: "Não o culpo de nada. Não posso culpar os amantes dela por aceitarem aquilo que ela oferecia." Pergunta: por que razão seria ele tão tolerante em relação a um homem que o corneara?

- Isso não dá para nada, Max.

- Há que tentar, irmão! Há que tentar!

- E lá tentar, você tenta. Agora vamos ter com os nossos polícias e ver como é que se aguenta com a nata nova-iorquina.

Hartog e Bechstein formavam um duo com muita prática. Mather apresentou-se como sendo um cooperante. Como bom árbitro que era, George Munsel ditou as regras do jogo.

- Mr. Mather está aqui de sua livre vontade para nos ser útil no que lhe for possível. Contudo, e dado que se trata de uma testemunha importante para a defesa, de vez em quando terei de o instruir nas respostas que dá. Entendido, meus senhores?

Estava tudo entendido. Foi Sam Hartog quem abriu o diálogo.

- Qual é a sua relação com Miss Danziger, a acusada?

- É a redactora que me foi destinada pela Belvedere, a revista para a qual trabalho. É uma óptima profissional. As nossa relações são amigáveis e produtivas.

- E o seu conhecimento com o falecido Hugh Loredon?

- Deriva de uma relação que mantive com a filha, que conheci em Itália, e com quem agora trabalho. Foi ela quem nos apresentou.

- E tornaram-se bons amigos?

- Não, mas ele sabia que eu era bastante amigo da filha. Via-me a desempenhar um... um papel protector.

- Protegendo-a de quê? - Era Bechstein quem perguntava.

- Dos erros do negócio. Ela acabara de se lançar num empreendimento arriscado.

- Sabia que ele estava doente?

- Só o soube quando me falou de Londres, antes de me juntar a ele em Amesterdão.

- Antes de deixar Nova Iorque entregara-lhe uma pasta.

- É verdade.

- Que continha o quê?

- O que mais tarde descobri serem os diários, as cartas, os bloco-notas e os cadernos de esboços que haviam pertencido a Madeleine Bayard.

- Desconhecia que, num caso de assassínio, esse material seria considerado prova?

- Na altura não se me afigurou assim. O crime ocorreu há mais de um ano, quando eu estava a trabalhar em Itália. Encarei o material como sendo uma série de documentos valiosos sobre a vida de uma excelente artista cujo trabalho estava prestes a ser exibido a título póstumo.

- De facto - disse George Munsel -, dado que a investigação culminou numa prisão e numa acusação, este material será usado pela defesa, sendo posteriormente exibido perante a acusação.

- A sua visita a Hugh Loredon na Holanda. - Era Bechstein outra vez. Como é que isso surgiu?

- Quando me falou de Londres, disse-me que estava prestes a morrer devido a um cancro. Ia morrer à Holanda. Não queria que a filha soubesse disto, nem que estivesse presente. De forma que se dirigiu a mim.

- Para fazer o quê?

- Segurar-lhe na mão, ouvir a sua última confissão.

- Como um padre, não é o que quer dizer?

- Mais ou menos.

- Então que lhe contou ele?

- Uma história sem pés nem cabeça - disse Mather secamente -, de como Danny Danziger assassinara Madeleine Bayard para depois lhe telefonar, tendo-lhe ele dito que se fosse embora e deixasse para ele o trabalho de arrumar a cena para a polícia. Isto em linhas gerais. Tenho notas pormenorizadas.

- Mas não aqui. - Era George Munsel.

- E qual foi a sua reacção a isso? - Foi Sam Hartog quem perguntou. Bechstein estava tão atento como um gato.

- Chamei-lhe mentiroso - replicou Mather. - Disse que a história dele tinha mais buracos que um queijo suíço.

- E que respondeu ele?

- Admitiu-o.

- Por que razão não nos disse nada? Sabia que estavam a decorrer investigações.

Porque sabia que no dia seguinte Hugh Loredon estaria morto. Preparara uma morte misericordiosa, ao estilo holandês. Que provas possuía eu deste diálogo? Claro que aquilo que não podia saber era que ele vos tinha escrito a denunciar Danny Danziger.

Bechstein levantou os olhos de repente.

- É uma palavra estranha, Mr. Mather... denunciar.

- Vivi muito tempo em Itália. A frase é a Seguinte: faz-se uma denúncia, entrega-se alguém. Na amiga Veneza colocava-se um bilhete anónimo na boca de um leão. Depois disso reunia-se o Conselho dos Dez.

- É uma metáfora interessante - comentou Munsel. - aquilo que os senhores têm é uma acusação escrita articulo mortis por um homem que pagava para que o matassem... e uma declaração falsa prestada por uma testemunha do Negroni's.

- Como é que vocês sabem quem é a nossa testemunha? - Era óbvio que Sam Hartog estava abalado.

- Mostrar-vos-ei um retrato. - Munsel era a imagem da brandura.

Ainda não, claro, mas assim que tivermos avançado um pouco mais. Vou avisar Mr. Mather de que já respondeu às vossas perguntas mais importantes, e que deve guardar o resto das informações para o julgamento. Isto se chegar a haver julgamento, claro.

- Que quer isso dizer? - Bechstein, como bom cão de caça, estava sempre em cima da presa.

- Os tribunais estão cheios, a magistratura não tem mãos a medir. As ruas estão cheias de ladrões e assassinos. Se realmente querem que se faça justiça, vão falar com o advogado de acusação, digam-lhe que não tem qualquer caso e ficaremos satisfeitos por lhe podermos explicar isto em privado, antes que faça figuras tristes em público.

- Quer fazer um apelo?

- Não. - George Munsel ficou carrancudo de um momento para o outro.

Nada de acordos. As vossas fontes não são limpas. Estão sentados em cima de dinamite.

- Vamos falar com o promotor - declarou Bechstein.

- Ele não vai gostar disto - concluiu Hartog.

- Já não está a gostar agora - retorquiu Bechstein. - Mas isto não quer dizer que mude de ideias. É muito teimoso. Se o encostarem a uma parede, ele fará todos os possíveis para a deitar abaixo.

- Dêem-lhe as coisas devagarinho - sugeriu Munsel alegremente. Uma colher de cada vez.

Mais tarde, quando saíram para almoçar, brindou Mather com uma asserção ligeiramente diferente.

- Dissemos palavras verdadeiras e corajosas. Contudo não são o suficiente, pois a lei não funciona assim. Eles sabem que têm um caso imperfeito entre mãos. No entanto, o promotor sabe também que não queremos que a imprensa sensacionalista se encha de histórias de orgias, lésbicas, e casamentos fracassados. Por isso, aquilo que ele vai fazer é calcular se vale a pena ir a tribunal encenar uma caça às bruxas das antigas... sexo no Soho, e coisas parecidas. Vai demorar algum tempo a fazer as contas: justiça elementar, ou um sacrifício humano bem encenado.

 

Dois dias mais tarde foi a vez de Max Mather experimentar a sua própria morte ritual - tanto ele como os seus haveres se mudaram para o apartamento-estúdio do Soho. Para tratar da mudança contratara os "simpáticos rapazes judeus" que faziam publicidade na revista New York, os quais lhe garantiram que nada aconteceria à mobília e que ao fim do dia o deixariam instalado no maior conforto.

É evidente que não foi por culpa deles que choveu, que houve engarrafamentos nas ruas da cidade, que os camiões chegaram atrasados, que dois dos empregados tiveram dores nas costas enquanto um terceiro se debatia com problemas conjugais. Também não tiveram culpa do facto de que já passava da meia-noite quando Mather deitou fora o último saco de lixo, aspirou os pêlos da alcatifa nova, e descobriu que estava só, mais ou menos como um animal perdido num terreno que não lhe era familiar.

Por debaixo de si estavam dois andares vazios que cheiravam a tinta. As grades do elevador, feitas de cobre polido e de ferro forjado, brilhavam. As portas do rés-do-chão estavam fechadas a sete chaves, as janelas tinham barras de aço. Lá fora, sob um céu desconhecido, tribos desconhecidas moviam-se em ruas hostis. Naquela noite, a sua única companhia era o fantasma frágil e sibilante de Madeleine Bayard.

Pegou num livro e começou a ler para ver se o sono chegava, mas o telefone tocou. Era Anne-Marie que estava na linha.

- Max? Onde estás? Lamento a confusão que houve com os homens das mudanças. Desculpa não te ter ajudado mas andei atarefada durante todo o dia... Sinto muito. Não consigo suportar a ideia de que vais passar a tua primeira noite sozinho nesse enorme armazém. Acabei de arranjar no Chantilly um jantar com champanhe. Vamos fazer a nossa festazinha de boas-vindas. Não te preocupes, tenho uma limusina... o condutor fica à espera até me abrires a porta. Não adormeças antes de eu chegar.

Sem muita convicção, disse a si mesmo que isto não representava o fruto proibido. Era apenas uma oferta que não fora pedida, e que seria indelicado recusar. Num mundo de cães, há que dar graças pelas pequenas alegrias, e manter sempre um lugar à mesa para os visitantes inesperados.

 

Foi uma espécie de festa para enamorados. Ficaram sentimentais quando partilharam recordações - o som dos sinos dominicais em Florença, as bebidas do Harry's Bar em Lung'arno, os passeios de veleiro que faziam durante o Verão em Porto Santo Stefano, todos os desejos partilhados que agora, de forma estranha e tortuosa, se tornavam realidade. Comeram caviar, beberam champanhe, e percorreram juntos o edifício vazio, planeando onde deveriam pendurar este ou aquele quadro e qual a melhor maneira de fazer que o auditório se parecesse com um local de reunião para professores e alunos. Subiram juntos no elevador, limparam a loiça do jantar, e, dado que não havia melhor forma de acabar a noite e de se despedirem da nostalgia, aconchegaram-se no enorme leito, apagaram as luzes, e viram a grande lua amarela descer por sobre os telhados. Fizeram amor, rindo no escuro com a lembrança de velhos encontros e hábitos. Mas depois de tudo isto uma solidão traiçoeira, junto com o silêncio de segredos não revelados, saiu ao encontro de ambos.

Anne-Marie aproximou-se e disse-lho:

- Ainda bem que fizemos isto, Max. Foi uma boa maneira de acabar, não foi?

- A melhor, cara. A melhor. Faz que possamos começar outras coisas.

- Ainda não sei, Max. Sei que tens tentado que me aguente até à exposição. Sei que quando esta acabar te vais embora e seremos apenas amigos e colegas. Mas as coisas não vão ser assim tão fáceis, Max. Não me podes deixar ficar no meio de um campo de minas, sem saber quando é que uma delas vai estourar e atingir-me no rosto. Tens de me dizer tudo, caso contrário este lugar será território inimigo até ao fim dos meus dias.

- Estás a pedir que te magoe... que te magoe muito.

- É melhor agora, Max, é melhor aqui que mais tarde, com outro homem que não compreenda.

Chegou-a bem para ele, e, sem querer suavizar as coisas, contou-lhe tudo sobre o pai, sobre Madeleine e Edmund Bayard, sobre. Leonie Danziger - até mesmo sobre aquela última suspeita que pairava sobre o depósito que o pai lhe deixara. Ela não disse palavra. A sua única resposta foram as lágrimas que molhavam o peito dele, e o tremor que lhe percorria o corpo de cada vez que recebia um choque, mais ou menos como um pugilista sob uma chuva de golpes assassinos.

Quando esta história comprida e triste chegou ao fim, ela comprimiu-se contra ele, dando a sensação de que até o mais pequeno movimento a exporia a uma nova dor. As primeiras palavras que pronunciou tinham um estranho som sibilino.

- Lembras-te do velho Guido Valente em Florença? Costumava ler-me a sina depois do jantar. Dizia que o que ali estava escrito eram os sinais de Deus, e que nós éramos demasiado estúpidos para os ler.

- Lembro-me sim. O Guido vem à abertura da exposição.

- Não sei se vou conseguir aguentar, Max.

- Vais conseguir. Tens de conseguir. O pior já passou.

- Não para o Ed. Ele perdeu tudo, não foi? Até mesmo eu. Vai pedir-me para que me case com ele... tu sabes.

- Nesse caso espera até que ele te faça o pedido, e nessa altura dizes-lhe com bons modos: não obrigada! Isso porá um fim a tudo. Agora enrosca-te e dorme. Não tarda muito é manhã.

 

Alois Liepert telefonou-lhe logo pela manhã. Estava tudo a correr de acordo com o plano. Gisevius, de Basileia, fora bastante útil no que respeitava aos esboços. Ficara tão satisfeito de os ter com ele, mesmo apesar de temporariamente, que os incluíra na sua lista de seguros sem nada terem de lhe pagar, pois, e tal como dissera, pretendia encorajar a ideia de uma futura exposição. Palombini andava a pensar numa reunião. Estava cada vez mais inquieto e curioso. Para o acalmar, Liepert tivera de o lembrar das cláusulas do contrato. Para mais, parecia que a sua inquietação se exacerbara devido a um telegrama de Harmon Seldes, o qual lhe pedira uma entrevista exclusiva para a Belvedere.

Mather explodiu.

- O grande filho da mãe! É a última coisa de que precisamos!

- Foi exactamente isso que disse ao Palombini, tendo-lhe este enviado uma recusa breve, a qual dizia para tratar de negócios apenas por seu intermédio.

- Da minha parte, ele vai ter mais que uma recusa breve.

- Tenha calma, Max. As coisas por aqui estão a correr bem. Onde é que se quer avistar com o Palombini?

- Em Zurique. Preciso que você esteja presente... amanhã telefono a dar-lhe a data. Como vai a Gisela?

- Bem... e ansiosa por ter notícias suas.

- Diga-lhe que lhe telefono logo pela manhã, hora de Zurique.

- Isso significa que anda a fazer noitadas em Nova Iorque, Max?

- Acabei de me mudar para o meu novo apartamento. Ainda não me ambientei. A propósito, telefone ao seu amigo da galeria e diga-lhe que esperamos vender bastante durante a exposição. Se ele quer reservar algum dos quadros incluídos nas fotografias que lhe mandei, deve mandar-me um telex para que a reserva seja feita. Mande também um recado à Hürliman dizendo-lhes que assim que aí chegar me avistarei com eles. Mas por enquanto não mencione o Palombini.

- Você parece ser um rapaz muito ocupado, Max.

- Mais que ocupado. Estamos quase na data da exposição. Conseguimos que a Danny Danziger saísse sob fiança, mas o caso tem de ser levado a tribuna].

- Sem ofensa, Max, mas isso deve fazer com que as vendas dupliquem.

- A sua moral é a de um profanador de sepulturas, Alois.

- É o mundo da arte, Max. Parece atrair patifes e vagabundos. Que mais quer que eu faça?

- Ponha-se em contacto com o Tolentino. Certifique-se de que consegue o visto e o bilhete. Faça-me saber as horas a que ele chega para o ir buscar ao aeroporto. Telefone para a Biblioteca Nacional de Florença e veja se consegue estabelecer um ponto de contacto com o Guido Valente, em Washington. Se ele se encontrar nos Estados Unidos, gostaria que também estivesse presente na abertura.

- A Gisela também vai?

- Sim. Só que ainda não sabe.

- É melhor você mandar todas as outras senhoras embora antes de ela aí chegar. Pode ser-lhe muito devotada, mas se o apanha a olhar para outra mulher acabará por descobrir que ela tem olhos de esmeralda e serpentes no cabelo!

- Vou lembrar-me disso. - Soltou uma gargalhada. - Obrigado pela ajuda. Manter-me-ei em contacto.

Quando telefonou a Henri Berchmans e lhe contou a indiscrição de Seldes, o francês praguejou em abundância. Mather acrescentou mais alguns comentários lapidares.

- O Palombini telegrafou-lhe dizendo para tratar de negócios exclusivamente através de mim. Se lhe telefonar, parto a loiça toda, e isso dar-lhe-á uma desculpa para me despedir. Não preciso do dinheiro, mas neste momento a minha posição na Belvedere é de grande utilidade para todos nós. útil até para ele, só que a criatura é demasiado tapada para o ver.

- Deixe-me ver se lhe consigo explicar. - Berchmans mostrava-se comedido e suave. - Aquela ocasião, aquele negócio de que conversámos... poria alguma objecção a que ele também participasse?... Seria uma forma de lisonjear a sua vaidade ferida.

- De maneira nenhuma. A menos que faça aquilo que lhe mandem.

- Deixe-me ser eu a dizer-lhe - sugeriu o outro calmamente -, de forma a que consinta em fazer o que lhe pedem.

- Fui reprovado. - Mather riu de forma amarga. - Mas mesmo assim obrigado.

- Você é novo no negócio. - Berchmans mostrava a tolerância de um professor. - Sofre do nervoso que ataca os estreantes.

Quando se dirigiu para o segundo piso para estar presente na conferência de imprensa que Anne-Marie e os seus relações públicas lhe tinham arranjado, Mather estava ainda mais nervoso. Anne-Marie parecia cansada. Tinha círculos escuros à volta dos olhos, mas mostrava-se bastante calma, havendo uma nova e distante dignidade na sua voz e no seu porte. Ele pegou-lhe na mão e levou-a para um dos* cantos da sala, onde os jornalistas não os podiam ouvir. Estes estavam agora a sentar-se.

- Que tal vão as coisas, cara?

- Estou bem, Max, garanto-te. Sou eu quem controla a situação. Os fantasmas já não me assustam.

Dentro de alguns momentos alguns deles vão levantar a cabeça. Não tenho medo, estou apenas magoada.

Como é que se chama a senhora das relações públicas?

- Chloe Childers.

- Meu Deus, não acredito.

Chloe - grande, brusca e, decidida - deu-lhe as instruções finais.

- Vão estar presentes os habituais dragões das colunas ligadas às artes, mas a maioria é nova nisto. Temos aqui todas as estações de rádio e de televisão.

Visto que vou ser a moderadora, o controlo da reunião está a meu cargo. As respostas são consigo. Tudo a postos?

- É como atirar cristãos às feras - disse ele. - Vamos andando.

Só compreendeu que dissera uma piada de mau gosto quando subiu ao estrado e viu que não tinha qualquer papel entre mãos. Os indivíduos que tinham à frente eram predadores: jovens, rápidos, e sedentos de sangue. O tom foi dado pela primeira pergunta.

- Mr. Mather, qual a sua ligação com a Liberation Gallery?

- Sou seu representante enquanto entidade que compra e vende, especialmente no mercado europeu, onde já se regista um grande interesse por esta exposição.

- Que tipo de interesse?

- Acabei de desligar o telefone. Estou à espera que me sejam confirmadas várias encomendas feitas por um intermediário suíço.

- Madeleine Bayard. foi assassinada neste edifício.

- É verdade... no último piso.

- Podemos visitar o local?

- Receio bem que não. Agora é o meu apartamento.

- Está assombrado?

Esta pergunta foi saudada com um coro de gargalhadas, mas Mather decidiu levá-la a sério.

- Sim, está. Todo este edifício está assombrado pela memória de uma mulher de temperamento trágico, possuidora de um enorme talento. Dentro de poucos dias as paredes do primeiro piso exibirão as obras que criou, algumas das quais podem ver nas fotografias que vos foram entregues. Não é muito inteligente pensar em fantasmas só em termos de terror. A beleza também nos assombra... aquilo a que Wordsworth chamou "intimações da imortalidade".

- Que nos pode dizer sobre a sua morte, Mr. Mather?

- Nada. - Mather mostrou-se breve. - Se precisarem desse tipo de informações podem encontrá-las nos vossos próprios arquivos.

- E a respeito da mulher acusada de a ter morto, Danny Danziger?

- Declarou-se inocente e saiu da prisão mediante fiança. O caso encontra-se subjudice e não tenho qualquer comentário a fazer, excepto que ela se vai encontrar aqui na noite da abertura com o estatuto de convidada da galeria, isto com o conhecimento e aprovação de Mr. Edmund Bayard.

Gostaram disto. Era o pedaço de carne crua de que necessitavam. Começaram a mostrar algum respeito em relação àquele indivíduo que lhes atirava as coisas com um desprezo mal disfarçado. Desta vez era uma mulher que dirigia o interrogatório.

- Mr. Mather, consta que Madeleine Bayard tinha uma vida sexual muito colorida e... bem, bastante promíscua. Que tem a dizer sobre isto?

- Antes do mais, minha senhora, apesar da minha juventude sou um homem bastante antiquado. Ensinaram-me a não falar de mais e a não difamar os mortos, os quais já não se podem defender. Mais ainda, temos de contar com os vivos, que, e como é do seu conhecimento, podem instaurar processos por difamação.

- Mas, Mr. Mather, não acha...

- Por favor, minha senhora, já fez a pergunta. Agora deixe-me responder.

Para falar com franqueza, a moral de Madeleine Bayard é irrelevante. Quando olha para o esplendor da Capela Sistina, preocupa-se com o facto de Miguel Ângelo ter sido um homossexual torturado? Quem é que se lembra de que Caraveggio foi um sujeito brigão e desordeiro que matou um indivíduo durante uma rixa, e morreu de forma violenta? Esse tipo de matéria é o que se usa nas colunas de mexericos... mas isto é uma galeria de arte e não um café. Aquilo que temos o privilégio de vender é o material de que os sonhos são feitos. Ao fim e ao cabo, é o que todos temos para deixar.

- A propósito de sonhos... - num murmúrio, Chloe disse-lhe que aquilo era para o New York Times -, parece que o senhor tem alguns. Parece que vai patrocinar uma série de seminários nesta galeria.

- Nesta mesma sala - respondeu. - O nosso primeiro convidado será Niccoló Tolentino, considerado um dos melhores restauradores de Itália. Fará uma série de doze palestras, durante as quais se debruçará sobre todos os aspectos do seu ofício.

- E acha que existe público para este tipo de coisas?

- Parece que sim. Desde que fizemos sair as primeiras notícias a este respeito, recebemos mais de uma centena de pedidos de inscrição... cerca de metade desses pedidos vêm de estudantes universitários, o resto de especialistas ligados a museus e instituições afins.

- Mr. Mather, a Belvedere deste mês traz um artigo da sua autoria, no qual se faz referência a trabalhos de Rafael, agora perdidos. Houve alguma resposta a isto?

- Surpreendentemente, sim. Foram descobertas e identificadas duas cópias dos dois quadros, ou seja, uma cópia de cada um.

- Quer dizer falsificações?

- Não. Quis dizer mesmo o que disse; cópias. Dado que se trata de um assunto confidencial, não vos posso dizer muito, mas espera-se que dentro em breve se possa divulgar mais alguma coisa.

- Sobre os originais?

- Esperamos que sim.

O questionário parou por alguns momentos, mas tratava-se da calma que precede a tempestade. Uma rapariga que estava no fundo da sala segurava uma folha de papel de desenho.

- Disseram-me que este esboço foi feito no seu estúdio por Madeleine Bayard. É bastante erótico, talvez haja mesmo quem o considere pornográfico. Algum comentário, Mr. Mather?

- Vou dar-lhe um conselho. Guarde-o bem guardado. Dentro em breve será bastante valioso.

- Mr. Mather, Madeleine Bayard fazia pornografia?

- Se me está a perguntar se pintava ou desenhava cenas eróticas, tenho a certeza de que o fez. Infelizmente, não temos nada desse tipo na nossa exposição, e até agora nada que pudesse ter esse título foi oferecido à galeria. Mais uma vez, não vejo qual é o interesse da pergunta. J. M. Turner, era um voyeur que costumava visitar os bordéis e desenhar as cenas que testemunhava. John Ruskin, não muito dado a assuntos de âmbito sexual, levou a cabo a tarefa de destruir esse material. Ganho ou perda? Importante? Ou apenas uma nota-de-rodapé no legado de um grande pintor? Cabe a vós decidir.

- Mr. Mather? - A voz queixosa que partira do meio da sala pertencia a uma mulher alta e angulosa, de idade indeterminada, mas a quem os maxilares acentuados emprestavam determinação. - Parece-me que nos está a pregar um sermão. Por que razão o faz?

De repente, toda a tensão acumulada se dissolveu. Sorriu, encolheu os ombros, e retractou-se com um gesto eloquente.

- Porquê? Porque sou novo no negócio e quando alguém me provoca retribuo a provocação. Contudo, a verdadeira razão está à vossa frente. - Deu alguns passos atrás, puxou o pano que cobria o cavalete, e exibiu a peça central da exposição: "A mulher da rua". - Olhem bem para isto, senhoras e senhores, e depois decidam aquilo que é relevante e o que o não é.

Enquanto descia do estrado ouviram-se alguns aplausos dispersos, seguidos por um movimento com vista a examinar o quadro, isto enquanto os homens das câmaras se acotovelavam para conseguir boas imagens. Chloe Childers levantou os polegares de forma discreta, indicando que estava tudo bem. Anne-Marie apertou-lhe a mão e agradeceu-lhe em voz baixa.

Assim, para bem ou para mal, tinham chegado ao fim. Deixou-se ficar mais um bocado para tirar fotografias junto com Anne-Marie, responder a algumas perguntas para a televisão, e também para as meninas encarregues das páginas de mexericos. Depois disto subiu as escadas, fez um telefonema a George Munsel e confessou-se.

- Acho que deve saber que ontem à noite tive uma sessão bastante longa com Anne-Marie Loredon. O Ed Bayard vai pedi-la em casamento... achei que ela devia saber de toda a história.

A reacção do advogado foi mais suave que aquilo que ele esperava.

- Duvido que tenha sido prudente. Concordo que talvez fosse necessário. Como é que ela reagiu?

- Acho que bastante bem.

- Que vai ela fazer a respeito do Bayard?

- Declinar o pedido.

- Que vamos nós fazer em relação a ele?

- Em que sentido?

- Vamos avisá-lo ou não? Mais uma vez, este é um caso de conivência em crime por não revelação. É sempre estranho, quase que uma situação limite. Você não precisa de se preocupar muito... quero apenas que saiba que serei eu a ter os pesadelos.

E não é para isso que o cliente lhe paga. George? Sou apenas uma testemunha ao serviço da justiça. Acabei agora de sair de uma cansativa conferência de imprensa.

- Posso partir do princípio de que foi discreto?

- sim.

- Terei todo o interesse em ver o que lhe fazem.

- Vão fazer-me em pedacinhos.

- Antes que o façam preciso que acabe de analisar os diários. Conte comigo se precisar de assistência computadorizada.

- Obrigado, mas prefiro fazer as coisas à moda antiga, com canetas de cores e colunas organizadas. Não sou assim tão culto, George.

- Eu sei. Você trabalha por instinto. É bastante arriscado. Bom fim-de-semana.

Isto fez que se lembrasse de que era sexta-feira. Não tinha qualquer vontade de passar um fim-de-semana solitário no Soho. Olhou para o relógio. Era quase meio-dia... seis da tarde em Zurique. Telefonou a Gisela.

- Dou em doido se passar o fim-de-semana aqui. Vou tentar arranjar um voo nocturno que me faça chegar a Zurique amanhã de manhã bem cedo. Podemos passar o fim-de-semana juntos. Até lá vou dar-te o número do telefone do Claudio Palombini. Tenta localizá-lo, não importa onde ele esteja. Diz-lhe que tem de estar em Zurique na segunda-feira... sozinho e no meu apartamento. É um caso de vida ou de morte. Não te importas de começar já, pois não, querida? Volto a telefonar-te dentro de duas horas. Sim... vou ter contigo de qualquer das maneiras. Tinhas toda a razão. Esta cidade tem demasiadas tentações para um rapaz do campo. Ali, sim! Consta que vens a Nova Iorque para a abertura da galeria... O Alois dá-te folga. Podes muito bem fazer gazeta a uma das aulas da universidade. Diz que estás doente, qualquer coisa. Vou fazer as malas. Sim, sei que estou a gastar dinheiro a rodos, mas depois de segunda-feira ou estou rico ou na prisão.

Quando falou nisto a Anne-Marie, ela ficou surpreendida, mas depois acenou, concordando.

- Compreendo. Contudo, vais voltar a tempo da festa do Ed na quarta, não vais? Sem ti não seria capaz de aguentar.

- Se tu não fosses eu também não seria. - Contou-lhe a respeito do fantasma do seu passado divertido, Mrs. Lois Heilbrunner, e ficou deliciado por a ouvir rir.

- Esse é o Max que eu conheci. Receava tê-lo perdido. Hoje de manhã foste formidável com a imprensa. Caramba, não estavam preparados para o que lhes arranjaste. A Chloe diz que, e isto apesar de alguns te poderem tratar mal, a galeria vai ser bem publicitada, e os trabalhos para a televisão vão ter um óptimo aspecto.

São as regras do jogo. - Encolheu os ombros. - Acham que tanto te podem promover como eliminar. E podem, mas só se os deixares. No fundo, o que conta é o que está pendurado nas paredes. Os sonhos são coisas bastante duráveis.

Teve discernimento suficiente para compreender que esta frase soava de forma estranha quando pronunciada por um homem que agia de forma não muito honesta para conseguir cem milhões de dólares pelos Rafaéis. À medida que fazia as malas e juntava às roupas e aos documentos os diários de Madeleine Bayard, bem como qualquer papel que lhe parecesse importante, sentiu-se ligeiramente amedrontado. Uma coisa era entrar no jogo dos publicitários de Manhattan, mas era algo completamente diferente colocar-se debaixo dos projectores e enfrentar a verdade e as suas consequências.

O voo nocturno vindo de Nova Iorque aterrou em Zurique às nove da manhã. Como sempre, Gisela esperava-o para o saudar e conduzir ao apartamento, onde tomou banho, fez amor e almoçou. Levara tempo a admiti-lo, mas uma das coisas de que mais sentira a falta durante toda a vida fora da sensação de voltar ao lar, de estar, depois de uma longa ausência, entre os deuses do seu próprio lar. Este podia mudar de lugar, mas as divindades e a figura maternal que dispunha as candeias acesas frente a elas, definiam a lareira e o coração da casa.

Gisela planeara o fim-de-semana com uma certa precisão suíça.

- Reservei o sábado para nós, só para nós. No domingo vamos até ao campo e passamos o dia na quinta onde nasci e que agora me pertence. Não sabias que eu era uma proprietária rural, pois não? O casal que lá está encarrega-se de nos servir o almoço. O Alois Liepert e a família irão lá ter connosco, pois acho que deves falar com ele antes de te encontrares na segunda-feira com o Palombini. Ele chega às dez e vem direito para aqui. O Alois quer levar-vos a almoçar ao Jägersverein. A noite de segunda-feira é só para nós dois. Já fiz as reservas para voltares a Nova Iorque na terça. Agora conta-me tudo o que tens feito...

Foi uma narrativa bastante longa e por vezes desarticulada, mas que fez que Gisela no fim perguntasse:

- Que queres mesmo fazer da tua vida, Max?

- Não é difícil responder a isso. Deixa-me ver se consigo descobrir alguma coisa junto contigo, pois só agora é que começo a saber o que quero. Falei-te do meu pai e da minha mãe, e do conflito de uma vida que se travou entre ambos. Sei que não conseguiria aguentar esse tipo de luta dentro do meu próprio casamento. Sendo assim, a solução mais simples era nunca me casar, e manter sempre a liberdade de poder afastar-me de uma relação que não me satisfizesse. Óptimo. Mas que coisas me satisfaziam realmente? Apesar de tudo, não sou um mau investigador. Tenho os conhecimentos necessários. A minha tese de doutoramento não foi má. Aprendi tudo isto com o meu pai... o respeito fundamental pelo conhecimento. Da parte da minha mãe herdei uma série de desejos insatisfeitos, e a ideia de que o mundo me devia uma vida melhor que aquela que levava... e, para falar com franqueza, fiz tudo para o conseguir. Perguntas-me o que quero fazer da minha vida. Duas coisas. Quero reparar as falhas da minha carreira universitária, e ao mesmo tempo sustentar-nos a ambos à minha custa. Gosto daquilo que faço neste momento, deste movimento, desta azáfama. E sinto-me melhor quando acredito no que tenho, como por exemplo a colecção Bayard. Compreendo o Niccoló Tolentino e o Guido Valente. Penso que te compreendo a ti, mas tu sabes que te amo. És o tipo de pessoa que faz com que indivíduos como eu se tornem honestos. Portanto, e num mundo ideal, que gostaria eu de fazer? Fazendo aquilo que faço, conseguir o dinheiro suficiente para me casar contigo e constituir família. Ter tempo suficiente para aceitar a bolsa com que o Guido me anda a acenar, e arrumar a minha vida académica... - Pouco à-vontade, parou e riu-se de si mesmo. - O plano é este. Só Deus sabe se sou capaz de o fazer funcionar.

- Tenho a certeza de que és, meu amor. - Gisela colocou uma mão fresca no rosto dele. - Mas nada disto acontecerá até que...

- Até que o preço da noiva esteja pago, e eu me tenha purificado no sangue do cordeiro! É isso que queres dizer, não é?

- Por favor, Max! Isto é cruel. Para ti e para mim.

Ela tinha os olhos cheios de lágrimas. Ele abraçou-a e manteve-a junto dele durante muito tempo, espreitando por cima do ombro dela para um futuro bastante incerto.

Claudio Palombini chegou ao apartamento de Mather na segunda-feira de manhã, quando faltava um quarto para as onze. Max esperava-o, tendo à sua frente café acabado de fazer e uma pequena pilha de notas e documentos. Serviu o café, e então, sem qualquer preâmbulo, deu início ao jogo.

- Claudio, estamos bastante perto do sucesso. Pedi que viesse, pois as últimas jogadas serão decisivas, e as partes interessadas têm de estar completamente de acordo antes de passarmos à acção. Tudo o que for dito nesta sala é confidencial e nunca poderá ser provado em tribunal. Estou a fazer-me entender?

- Aquilo que está a dizer, sim. A razão por que o diz continua um mistério. Temos um contrato assinado e autenticado... penso que não vai pedir para o alterar.

- De maneira nenhuma - retorquiu Max. - Esse é o nosso ponto de partida. Agora dê uma olhadela a isto. - Dispôs as fotografias dos dois retratos e dos cinco esboços em cima da mesa.

Admirado, Palombini ficou a olhar para ele.

- Quer dizer ... ?

- Esta é a sua antepassada, Donna Delfina. E esta é a filha, a Donzela Beata. Estes são os cinco esboços destinados ao retábulo da capela de S. Gabriel, a qual estava situada nos limites da villa Palombini.

- Nunca ouvi falar dela.

- Mas existiu. Foi palco da violação e do assassínio de, uma jovem camponesa. Foi secularizada e destruída no século XVII.

- E você sabe onde estas coisas se encontram?

- Sei. Vi-as... Autentiquei-as. Cheguei mesmo a ver cópias dos dois retratos. Entretanto, refresque a sua memória familiar com isto.

Entregou-lhe a carta de Guido Valente que recebera há já algumas semanas. Palombini leu-a devagar, depois devolveu-a sem se alterar. Comentou:

- Já uma vez disse que o tinha substimado, Max. Por favor, continue.

- O Eberhardt morreu no Brasil. Durante a nossa estada em St. Moritz ouvi dizer que Camilla Dandolo regressara de Itália e estava a viverem Milão. Fui visitá-la. Mostrei-lhe as fotografias. Identificou os dois retratos dizendo que o marido os adquirira a Luca Palombini durante a guerra. Quando enviuvou vendeu-os a um intermediário brasileiro. Encontram-se agora em Nova Iorque, onde Henri Berchmans, da Berchmans et Cie, e cujo nome lhe deve dizer alguma coisa, se prepara para os adquirir.

Palombini mostrou-se desapontado.

- Isso quer dizer que os perdemos.

- Não. Na presença de Berchmans eu mesmo verifiquei que se tratava de cópias. A cifra do copista encontra-se em ambos os quadros, e a madeira é de carvalho e não de cedro. Agora leia isto.

Entregou-lhe uma cópia da declaração que Tolentino fizera depois de examinar os retratos. Palombini leu-a e começou a bater na testa com a palma da mão.

- Estúpido, estúpido! Tudo isto na nossa cidade, debaixo do meu nariz, e não vejo nada. Começo agora a ver aquilo por que ando a pagar. Segue-se agora a grande pergunta: onde se encontram estas coisas neste momento?

- Tudo em segurança, embora em locais diferentes. Os esboços encontram-se sob cuidados especiais, em condições iguais às de um museu.

- Quem é o dono?

- Uma companhia que negoceia em obras de arte... e outras coisas.

- Estarão dispostos a vender? Estarão dispostos a fazer negócio de acordo com a taxa especificada no seu contrato, à taxa de dez por cento?

- Tenho razões que me levam a acreditar nisso.

- Nesse caso de que é que está à espera?

- Da solução para um problema ... de facto, para dois problemas, muito embora um dependa do outro. O primeiro é em relação aos direitos de posse e à proveniência. Suponhamos que adquire agora estes quadros e quer chegar a um acordo com eles no mercado... estou a falar num acordo legal, e não em negociatas no mercado negro. Os seus direitos de posse não podem deixar dúvidas. Pode prová-los a partir de um documento datado de 1505. Pode prová-lo de forma razoável até à época de Luca e da guerra. Depois disso temos um enorme fosso de mais de quarenta anos. Até mesmo numa venda privada, sem a publicidade de um leilão, esse facto vai preocupar os compradores endinheirados. Nunca terão a certeza de que os seus direitos não serão disputados. O segundo problema, que não é tão importante pois as peças encontram-se fora de Itália, é a questão que envolve a exportação de tesouros nacionais. Contudo, como existe um hiato de quarenta anos históricos, é provável que consigamos resolver esta dificuldade.

- Tenho a sensação - Claudio Palombini abanou a cabeça num gesto de aprovação -, de que você já arranjou uma solução.

- É a melhor que alguma vez conseguirá.

- Está a assustar-me. Não se esqueça de que estarei falido no fim de Junho.

- Confie em mim, Claudio... pazienza!

Max começou a dispor uma série de documentos na mesa.

- Artigo um: a carta de Guido Valente, a declaração de Tolentino, tudo isto indica claramente que durante a guerra Luca Palombini se dedicou a vários tipos de transacção. A própria família tem mantido na Suíça uma presença comercial contínua. De certa forma, isto contribui para explicar a tal história das exportações.

"Artigo dois: Pia e eu éramos amantes. De tempos a tempos oferecia-me presentes dispendiosos. Estão aqui os bilhetes que ela mesma escrevia. Encontram-se também aqui dois dos seus presentes... um relógio antigo avaliado em cerca de cem mil dólares americanos, e uma caixa Luís XIV, própria para guardar bombons, avaliada em trinta mil.

"Artigo três: a cópia do testamento holográfico de Pia, que me foi dada por si no dia em que este foi lido na villa. Vai reparar que entre as coisas que ela me deixou se encontra um objecto dos arquivos, isto desde que não se trate de um manuscrito e não prejudique a sequência da história da família.

"Artigo quarto: este é o objecto que escolhi, uma mala de lona coberta de cera e cosida com fio de pescador, a qual, e ainda selada, fiz sair do país. Ninguém, nem mesmo você, Claudio, se deu ao trabalho de me perguntar o que escolhera. A família estava preparada para entregar o arquivo à Biblioteca Nacional, e esta mala poderia ter ido com ele.

"Artigo cinco: os procuradores da companhia que de momento se encontra na posse destas obras de arte farão exactamente aquilo que os seus accionistas ordenarem.

"Assim, e se não se importar, temos aqui os direitos de posse e a proveniência. Se os quiser disputar, é claro que está a agir contra os seus próprios interesses, pois ser-lhe-á completamente impossível negociar os quadros a curto prazo, e a marca da disputa demorará décadas a desaparecer.”

Claudio Palombini ficou a olhar para os papéis e para as fotografias que tinha à sua frente. Mather voltou a encher uma chávena de café e passou-lha. Palombini beberricou o líquido morno, e depois limpou os lábios a um lenço de seda.

Finalmente, numa voz mortiça e fria, perguntou:

- O contrato original abrange tudo isto? Se não, quanto mais vou ter de pagar?

- O contrato fala em quinze por cento sobre aquilo que receber, ou seja, depois da comissão do leiloeiro ou do intermediário.

- Correcto.

- Sabe que eles ficam com vinte por cento.

- Sim.

- E por fazerem bastante menos que eu. Claudio, sem mim estas coisas teriam passado ao seu lado. Para além disso, disseram-me que estes documentos, quer dentro quer fora de Itália, dão direito a reclamar as obras. Como sabe, um testamento holográfico é um documento bastante poderoso. A bitola que regia os presentes da Pia era bastante elevada... e eu não era apenas o seu amante, era o seu fiel criado.

- Você é um mascalzone, Max, um patife.

Ele sorriu e encolheu os ombros.

- Eu posso dizê-lo, Claudio. Você não, pois os documentos dizem precisamente o contrário. Tal como você, também eu sou um negociante... um negociante manhoso, mas sempre com um pé dentro da lei e a metade do outro de fora, exactamente como Luca, l'ingannatore.

- Por amor de Deus, acabemos com esta comédia. Faça o seu preço.

- Cinco por cento.

- Isso faz vinte ao todo, e só para si.

- Concordo que é exagerado, mas sem mim você não teria nada, pois não?

- Vamos parar de discutir. Como é que tratamos disto?

- Primeiro... - Mather era a imagem da brandura -, primeiro vamos almoçar com o Alois Liepert ao Jügersverein. Depois vamos até ao escritório dele onde estão alguns documentos à espera da sua assinatura. O primeiro deles diz que os Rafaéis passaram para a minha posse, em parte como presente, em parte como legado de Pia. O segundo é um recibo de vendas onde se diz que lhe vendi os quadros pela quantia de cinco milhões de dólares. O terceiro é uma declaração assinada por ambos, na qual se diz que nenhuma das partes terá reclamações a fazer. O custo total de tudo isto é de cinco por cento do preço do mercado, apenas um terço daquilo que, sob os termos do contrato, ficou de me pagar.

Claudio Palombini ficou a olhar para ele como se não acreditasse em nada.

- Não acredito. Você está a escapar a melhor parte de dez milhões de dólares. Onde está a rasteira?

- A rasteira está naquilo que acontecerá senão fizermos isto. Tendo estes documentos como base, estou em melhores condições de reclamar as obras. Não se esqueça de que me escreveu dizendo que não sabia nada sobre os Rafaéis. Mais ainda, não tenho responsabilidades face ao governo italiano... você tem. Mesmo assim, os meus direitos estavam sujeitos a disputa, de forma o negócio era bem capaz de ir por água abaixo. Pela parte que me toca, creio ser merecido o que reclamo, pois você não poderia ter feito o que eu fiz, transformando os quadros num artigo bastante valioso. D'accordo?

- D’accordo! - concordou Palombini. - Contudo, existe ainda uma rasteira: Não tenho sequer quinhentos mil dólares, quanto mais cinco milhões!

- Isso é fácil - disse Mather com uma gargalhada. - Ficamos com os quadros até à data da sua venda. O Alois Liepert fica com os documentos e mostra-os sempre que seja necessário. No entanto, há mais uma coisa... vai ter de decidir quem se encarregará da venda, e onde esta se efectuará. Tenho algumas sugestões a esse respeito... uma delas é que vá à América.

- Guarde-as para o almoço - retorquiu Palombini. - Neste momento, aquilo de que preciso é de uma bebida forte.

- Já somos dois.

Enquanto enchia os copos, Claudio perguntou:

- Porquê, Max? Você estava à vontade. E contudo regressa e faz um negócio destes. Porquê?

- Andei a ler Dante. - Mather sorriu-lhe por detrás do copo. - "O dignitosa coscienza e netta." Acabei de descobrir a minha.

Claudio retribuiu-lhe o sorriso pela primeira vez, e levantou o copo numa saudação.

- Os Palombini pertencem a uma outra era. O nosso mentor é Maquiavel.

Ao almoço no Jügersverein seguiu-se uma visita às caves do banco para inspeccionarem o retrato de Donna Delfina, que era agora o único Rafael que ali se encontrava. A reacção de Palombini foi quase a mesma de Tolentino. Segurou no quadro e ficou a olhá-lo com as lágrimas nos olhos. Depois virou-se para eles com um sorriso tímido.

- Vão ter de me desculpar, mas neste momento ela parece um ícone milagroso, a Madonna de Eterno Socorro. Mal vos consigo dizer como me senti nestes últimos meses, vendo as empresas que os meus antepassados construíram irem por água abaixo... Tenho de pedir desculpa, Max. Chamei-lhe um nome feio. E no entanto esta é a segunda vez que você socorre a minha família.

- Sou uma alma sensível, Claudio.

- Devíamos ser todos assim sensíveis - comentou Alois Liepert.

- Vamos voltar ao escritório para assinar os documentos.

- Leve o Claudio consigo. Vou lá ter depois. Agora vou comprar um anel de noivado.

- Vá ao Barzini's - aconselhou Claudio. - Fica apenas a algumas portas à esquerda. Mostre-lhes este cartão e eles fazem-lhe um desconto decente. Sou o dono da loja... ou passarei a sê-lo assim que mestre Raffaello de Urbino pagar a hipoteca!

Naquela noite, enquanto estavam a jantar, Mather colocou o anel no dedo de Gisela, e disse em voz baixa:

- Meu amor, gostava que ficasses a saber que és a mulher mais cara que jamais tive. Hoje custaste-me dez milhões de dólares!

Ao que ela, naquele jeito sólido, respondeu:

- Tenho a certeza de que me acharás digna de todos os tostões que gastaste, e tenho a certeza absoluta de que durarei mais que qualquer uma das outras.

 

Assim que chegou ao aeroporto, Mather telefonou a Henri Berchmans e combinou encontrar-se com ele na galeria quando se dirigisse para a cidade. A conversa que mantiveram foi breve e do tipo executivo.

- Agora, e mediante pagamento em meu favor, Palombini tem todos os direitos sobre as obras de Rafael. - Era Max quem começara. Assim, continuo no controlo da situação. A proveniência é legal e documentada, muito embora achemos melhor não a divulgar.

- E os documentos são todos limpos?

- Absolutamente: um testamento holográfico, bilhetes que acompanhavam presentes, recibos de venda...

- E quanto à minha posição?

- Palombini estará presente na abertura da exposição, mas a razão principal da sua visita é vê-lo. Já o pus em contacto com os seus colegas suíços, pois mais tarde espero vir a ter negócios não só consigo, mas também com eles. Tenho sugerido que ou se trabalhe em conjunto com as três peças, ou que os trabalhos sejam divididos entre vocês. Da sua conferência com o Palombini podem resultar outras soluções. Cumpri o prometido. Agora é consigo.

- Aprecio bastante o que fez. Tem sido muito meticuloso.

- Mas há mais. Palombini trará com ele a Donna Delfina original. Terá os seus próprios guardas durante a viagem de avião, mas aqui precisará dos seus seguranças, de que ponha os seus cofres à disposição dele, e que durante a mostra a protecção seja redobrada. Pode ser que a altura lhe interesse para atrair compradores, principalmente com Tolentino por aí. Estamos de acordo quanto às medidas tomadas em relação à exposição?

- Claro.

- Mencionaremos o facto de ter generosamente cedido alguns Bayards mais antigos.

- Obrigado. Não me esquecerei de corar - respondeu Berchmans.

- Harmon Seldes não se importará de fazer as honras quando eu apresentar o Tolentino?

- A princípio mostrou-se, bastante relutante... ainda está bastante aborrecido consigo, mas agora que lhe deu o cheiro a dinheiro voltará a ser manso como um gatinho. A propósito, para novatos como você e Miss Loredon, saíram-se bastante bem na conferência de imprensa. Os registos televisivos de "A Mulher da Rua" foram esplêndidos. Já o reservei para mim.

- Nesse caso, acho que por agora as coisas não podiam estar a correr melhor.

- E como vão as coisas em relação ao resto, Max? A polícia, a Danziger, e mesmo o próprio Bayard?

- Ainda estamos a pisar terreno minado. Espero que não rebente nada até à data da exposição. Ali, quase me esquecia! Estão aqui as cópias das partes do diário de Madeleine que se referem a si, e aqui estão alguns esboços que podem ser usados como material publicitário!

Berchmans deu-lhes uma rápida vista de olhos, e depois soltou uma gargalhada sonora.

- Pelo menos ela faz justiça em relação à minha potência. Meu Deus que testemunhos!

- Ainda bem que fica satisfeito.

- Vamos pôr as coisas assim, Max: não terei de pagar para que não os revelem.

- Este é o número do voo do Palombini, não esquecendo a hora aproximada da chegada do mesmo. Se mandar a limusina e os seguranças, paramos primeiro aqui. Agora tenho de me ir embora. À bientôt!

- À bientôt ... e mais uma vez os meus cumprimentos. Você tem uma mente muito meticulosa, muito arrumadinha.

- Só uma observação, Henri.

- Sim?

- O Palombini agora está à sua mercê. Não o esprema de mais.

- Você é demasiado sensato para a idade. - Berchmans acenou-lhe à medida que se ia embora. - Vá passear macacos!

 

Anne-Marie estava ocupada, despenteada e feliz como ele já não a via há muito. Tinha agora uma assistente no escritório, uma cara jovem e fresca com um sorriso agradável e modos extrovertidos. Mostrou-lhe os primeiros recortes dos jornais, que enchiam oito páginas de um álbum. A maior parte dos artigos revelava boa disposição, alguns eram bastante lisonjeiros, e todos eles mencionavam o súbito efeito teatral provocado pela descoberta de "A Mulher da Rua".

- Não podíamos ter esperado melhor, Max... e já vendemos cinco peças. Os teus suíços compraram três. O Berchmans quer "A Mulher da Rua", e uma das pessoas que se encontrava na conferência, para além de ser um editor de arte, é também coleccionador. Comprou uma das telas mais pequenas, "O Rapaz no Pombal". Parece que começamos com sorte.

- Parece que sim. Que diz o Ed Bayard?

- Pouco. Mandou-me a lista dos convidados para o jantar. Todos eles pertencem a grandes instituições: M. O. M. A., Metropolitan, Whitney, Guggenheim, isto para além dos intermediários de peso. Reparei que não convidou o Berchmans. Gostava de saber porquê.

- Não perguntes. Disse-te mais alguma coisa a respeito do casamento?

- Não directamente. Passa o tempo a dizer que temos de conversar, que temos de ver em que ponto estamos... depois da exposição, claro. Precisa desesperadamente da tua aprovação, Max. Agora que sabe que estás noivo de outra pessoa, parece que te considera o meu irmão mais velho, ou então uma espécie de figura paterna. Disse-me também que a polícia tem insistido em falar com ele. Sabendo aquilo que sei, não me sinto nada bem.

- Não penses. Não sintas. - Mather mostrava-se imperativo. - Prometeste ficar de boca calada. Vê se é isso que fazes e continua a trabalhar.

Por que razão ele te faz ficar tão bruto, Max?

- Não fico assim por causa dele. É por tua causa. Para Anne-Marie Loredon, a piedade pode ser tão perigosa como a cicuta. Agora vem comigo lá acima para ouvires boas notícias, isto enquanto desfaço a mala. Vamos ter a melhor noite de estreia que aconteceu em Nova Iorque nos últimos anos: um duplo acontecimento...

- Não, Max, por favor.

- Não me peças por favor, mulher. Espera até ouvires o que tenho para te dizer.

Ela ouviu e protestou. Ele argumentou. Ela acabou por concordar. Haveria dois acontecimentos distintos na mesma noite. Quando todos os convidados tivessem feito os seus circuitos habituais e nada indicasse que se fosse vender mais qualquer coisa, iriam todos para o local destinado às conferências, no segundo piso, onde Niccoló Tolentino apresentaria o programa dos seus seminários.

Era arriscado. Não só a assistência estaria ensonada devido ao champanhe, aos canapés e aos mexericos, como também a reputação dos compradores de arte de Manhattan não era a melhor no que respeitava a tolerância e boas maneiras. Mesmo assim, e depois de algumas bebidas, Anne-Marie comentou:

- Com os diabos, estamos a testar a nossa sorte. Façamos uso dela até que se esgote!

E então, à laia de à-parte perverso, levantou o copo e fez um brinde.

- Acabaram por apanhar o meu Max. Desde já te digo que detesto a tua Gisela, mas desejo-vos o melhor, Max. A sério.

 

O jantar de Ed Bayard era uma metáfora do próprio homem: formal, meticuloso, cheio de talento profissional e de dinheiro, tanto do novo como do velho. A conversa era bastante elitista, e o interesse residia sempre em qualquer coisa que transcendia o parceiro. No caso de Mrs. Lois Heilbronner isto revelou-se como sendo excelente, pois ela parecia mais interessada num jovem intermediário da Quinquagésima Sétima Rua que em Max Mather, o qual relegara para o grupo honorifico dos "queridos amigos e pessoas inteligentes".

Contudo, esta gente fora bastante bem escolhida. Havia quatro intermediários importantes. O resto era composto pelos responsáveis de instituições coleccionadoras e respectivas esposas, pelos encarregados da formação de comités de angariadores de fundos, e por grupos de voluntários de guias que se prontificavam a mostrar aos iniciados o mundo das telas. Estes eram os árbitros do gosto, se não mesmo da moda. Aquilo que compravam hoje seria o mais procurado no mercado de amanhã, muito embora só o tempo viesse a decidir quais aqueles que iriam aguentar, e os que o próprio tempo acabaria por consumir.

O ritual da noite era uma cópia do ritual diplomático. Bayard e Anne-Marie recebiam os convidados, os criados ofereciam-lhes champanhe e canapés e, sem dar nas vistas, conduziam-nos ao salão onde Bayard expunha a sua colecção pessoal. Esta era suficientemente grande e variada para dividir a multidão e fornecer-lhe pretextos para emitir um ou outro comentário malicioso. Era aqui que se reconhecia a importância dos nomes. Esta era a verdadeira família de gente importante, à qual Mather se dirigia com a máxima cortesia.

- Ainda não nos conhecemos. Chamo-me Max Mather. Trabalho com Anne-Marie. - Se tinha sorte, conseguia trocar algumas palavras. Senão, tudo o que conseguia era um murmúrio delicado que o deixava em condições de se retirar para a obscuridade com uma nova taça de champanhe.

O jantar foi servido na enorme sala onde os quadros de Madeleine se encontravam expostos pela última vez - um golpe de teatro que mereceu a aprovação até dos conhecedores mais empedernidos. A atenção dos comensais dividia-se constantemente entre os pratos e os quadros, e havia um toque de calor genuíno nos cumprimentos dirigidos a Bayard, sentado num dos topos da mesa, e a Anne-Marie, esta no topo oposto. Era óbvio que faltava o discurso. Bayard encarregou-se dele entre a sobremesa e o queijo.

Caros amigos, obrigado por compartilharem comigo a última noite que passo nesta sala junto com as telas de Madeleine. Amanhã serão levadas para a galeria de Miss Loredon para que sejam expostas e postas à venda. Para mim, este acontecimento marca o fim de uma vida, mas estou confiante de que possa ser o princípio de outra melhor. Aqui todos somos amigos. Não é segredo para ninguém que Madeleine e eu fomos incapazes de produzir um casamento feliz. Contudo, e por muito estranho que pareça, era bastante estável. A partir dele cresceram os maravilhosos trabalhos que vos rodeiam, tal como papoilas num campo de batalha. O brinde que proponho fazer combina a minha saudação à mulher que os pintou, e à jovem corajosa que arriscou tudo o que tem para os exibir na sua nova galeria. Junto-as a ambas no mesmo brinde, pois o artista não consegue viver sem um patrono, e, sem o artista, este fica, tal como eu ficarei, com uma sala vazia. Adeus, Madeleine! Sê bem-vinda, Anne-Marie!

Até mesmo para Max Mather, que sabia tantos segredos, aquela foi uma actuação comovente. Algumas das mulheres choravam a bom chorar, ao passo que os homens se assoavam e repetiam a saudação num tom demasiado elevado. Mather deitou uma olhadela a Anne-Marie. O seu rosto exibia uma palidez mortal, as mãos que estavam em cima da mesa apertavam-se com força, e ela olhava para baixo, para os nós dos dedos, dos quais havia desaparecido toda e qualquer cor. Seguiu-se uma longa pausa, durante a qual ele esteve tentado a levantar-se e a fazer um breve discurso de agradecimento em nome dela, mas reflectiu melhor. Esta era a convenção pessoal de Bayard. Ele que tratasse das coisas à sua maneira. Finalmente, o homem da Whitney levantou-se, deu uma resposta curta mas adequada, e sentou-se, tendo sido aplaudido por todos de forma delicada.

O resto pareceu ser o epílogo. Serviu-se café e ofereceram-se bebidas. Ninguém quis fumar. A festa terminou com todo o decoro. Para sua surpresa, Mather reparou que Anne-Marie fora uma das primeiras a sair, sendo o motorista de Bayard a levá-la a casa. Não lhe ofereceu boleia, mas disse-lhe num murmúrio...

- Telefona-me assim que chegares a casa.

Quando Mather se preparava para partir, Bayard impediu-o.

- Por favor, não vás ainda. Preciso de falar contigo. Vai até ao meu escritório, há lá café e brande.

Não havia razão para recusar. Fez o que lhe era pedido. Alguns minutos mais tarde, quando Bayard se lhe juntou, este parecia estar suficientemente sóbrio, mas estava tenso e parecia ter os nervos esgotados.

- A Anne-Marie ficou aborrecida com o meu discurso. As suas palavras foram: zangada e embaraçada. Disse-me que precisava de ficar sozinha. Eu disse alguma coisa que a ofendesse?

- Não propriamente. Achei que fizeste um discurso apropriado e digno. Contudo, juntar as duas mulheres no mesmo brinde revelou uma certa falta de tacto.

- Oh, meu Deus, eu não vi as coisas assim. Aquilo que disse era sentido.

- Isso era óbvio.

- Particularmente no que se referia ao recomeço... é possível, não achas?

- É sempre possível de uma maneira geral.

- E no meu caso particular?

- Ed, isso é uma pergunta injusta. Que sei eu? Como posso dizer quais são as tuas necessidades e o que para ti constituiria um recomeço?

- Sabes uma coisa... o meu casamento com Anne-Marie.

- Sei que te queres casar com ela, mas acho que não é a isso que te referes, pois não? Vá lá, Ed. Já é tarde... - Tentou fazer humor com a situação. Não estou no mercado de casamentos. Ao fim e ao cabo, agora estou comprometido, e acabei mesmo de comprar um anel bastante caro para a minha Gisela, a qual irás conhecer durante a abertura da exposição.

- Espero que não seja artista.

- Não, é advogada como tu. Ensina jurisprudência em Zurique.

- Nesse caso tens hipótese. - Ed Bayard começava a perder o autocontrolo. Tanto o seu olhar como o seu discurso tinham uma intensidade doentia. - A Madi e eu não tínhamos... nem a mais pequena hipótese. Repara, Max, os artistas são diferentes de nós. Pertencem a um outro plano da existência. São sagrados, mágicos... como as prostitutas de templo ou as vestais. Isto não quer dizer que sejam bons ou maus, são diferentes. Não precisam de nós. Quando estão tristes, alegres, ou assustados, não se viram para nós. Sobem à sua torre de silêncio e contemplam paisagens que nunca conheceremos. Quando voltam estão purificados, e trazem consigo os seus trabalhos como se estes fossem talismãs que os confortassem. Mas não o são para nós, Max. Nós continuamos a sofrer por eles e pelas nossas perversões. Eu teria aguentado isso... como aliás o fiz. O que eu não podia aguentar era a separação, a diferença, o nada haver para partilhar. Sabes alguma coisa sobre mitologia, Max?

- Um pouco. Porquê?

- Némesis, Max. Némesis era mulher. Era a filha da Noite, a vingadora de todos os que eram insolentes para os deuses, que não compreendiam nem respeitavam a ordem das coisas. A Madi foi a minha Némesis. Pensei poder mudar o que estava gravado no granito desde o dia da criação. Tentei transformar o sagrado no comum, o mágico no banal. Esta noite tentei fazer o contrário, reviver de novo a magia, voltar a elevar os símbolos mágicos. Mas as coisas não funcionaram. A Filha da Noite retribuiu-me da mesma forma.

- Ed, meu amigo, já é tarde. Comemos e bebemos de mais e isto tudo é muito complicado. Vamos deixar as coisas para amanhã, eh?

- Desculpa. Claro. Temos de o fazer. Contudo, Max, preciso que me respondas a uma coisa, apenas a uma coisa.

- Pergunta.

- Se pedir à Anne-Marie que se case comigo, ela dirá sim ou não?

- Não posso responder a isso, Ed. Pergunta-lhe a ela.

- Esta noite tentei. Ela descontrolou-se e exigiu que a levassem a casa.

- Não a podes culpar. Fizeste um discurso bastante emotivo que descontrolou muita gente. Imagina o que não lhe terá feito a ela.

- E não consegues imaginar o que isto me anda a fazer? Estou de rastos, estou a implorar. Será que é demasiado pedir que me poupem uma outra humilhação? Tu sabes como ela é, Max. Ela disse-me o seguinte: "O Max compreende. Com o Max não tenho de dar grandes explicações. Ele aceita..." Diz-me, Max, tenho alguma hipótese? Vale a pena esperar?

De repente, um silêncio gelado encheu o aposento. A única coisa que Max podia ver com clareza era o rosto pálido e perturbado de Anne-Marie, sentada à mesa no lugar que pertencera a Madeleine. Tinha a boca seca. Teve de se esforçar para falar.

- Não, Ed, não tens qualquer hipótese. Ela nunca se casará contigo.

- Ela disse porquê?

- Tu e eu sabemos porquê, Ed.

- Sim. - De súbito, Bayard ficou calmo. A transformação foi arrepiante. - Sim, acho que sabemos. - Levantou-se e estendeu a mão. - Obrigado por teres vindo, Max. Obrigado por teres sido honesto comigo. Podes dizer a Anne-Marie que não a voltarei a incomodar. Vejo-te de novo durante a exposição. Nessa altura podes apresentar-me a tua dama suíça.

- Não vais supervisionar a disposição dos quadros?

- Não, não seria próprio. Agora já não se encontram nas minhas mãos... já nada se encontra nas minhas mãos. Queres que o meu motorista te leve a casa?

Não, obrigado. Vou andar durante um bocado e depois apanho um táxi. Mais uma vez, obrigado pela noite.

- Não tens de quê. Boa noite, Max.

Mather não foi direito para casa. Passou primeiro pelo apartamento de Anne-Marie. Esta estava de camisa de dormir e chinelos, sentada em frente à televisão com uma bebida ao lado. Ofereceu-lhe brande. Ele recusou e perguntou:

- Que aconteceu esta noite? Por que fugiste daquela maneira?

- Foi o discurso, Max. Era tão estranho. Era como se, com toda aquela gente ali, ele me estivesse a levar para uma teia, e eu soubesse que, uma vez lá, nunca mais poderia sair. Então, já depois do café, quando todos andavam de um lado para o outro, levou-me para o escritório e ofereceu-me aquilo a que chamou um talismã para a exposição. Era o anel de noivado da Madi ... foi a última gota da água. Tive de sair ou então tinha um ataque de histeria. Estou com medo dos próximos dias.

- Não precisas. Fiz de teu porta-voz... disse-lhe que nunca te casarias com ele.

- E como é que ele aceitou? Ficou zangado? Ferido?

- Estava bastante transtornado quando começámos, mas no fim ficou calmo. Está feito, rapariga. Não voltes atrás para tentar compor as coisas. Nunca o conseguirás pois é tudo uma grande trapalhada. Mas tu estás fora dela. Agora mantém-te onde estás. Estás a ouvir?

- Estou a ouvir. Queres ficar aqui esta noite? Tens de andar muito para chegar a casa.

- É melhor ir andando. De qualquer das formas, obrigado.

- Isso quer dizer que mudaste, Max?

- Quer dizer que estou a tentar. Tenho tido sorte e anda tudo a correr-me bem. Se estrago as coisas talvez não volte a ter outra oportunidade. Sogni d'oro, bambina. Bons sonhos!

 

Niccoló Tolentino chegou no dia seguinte e ficou alojado no quarto de hóspedes do apartamento de Mather. Passaram ambos algumas horas revendo o protocolo da noite de abertura, e a discutir o conteúdo das palestras. Depois disto Max entregou-o a Anne-Marie para que este pudesse apreciar a forma como os quadros haviam sido expostos. O velhote aprovou tudo o que viu e depois lançou-se numa série de elogios eloquentes a um talento desaparecido tão prematuramente.

Mather subiu até à parte alta da cidade para presidir ao primeiro encontro entre Palombini e Berchmans, os quais, ambos flibusteiros, se mantinham a uma distância respeitosa, situação que só se alterou quando desembrulharam Donna Delfina e a colocaram sob as luzes. Então ambos se calaram. Palombini benzeu-se. Berchmans murmurou algo parecido com uma oração.

- Mon Dieu! Quelle merveille! - Quando voltaram a falar já não o fizeram como se estivessem a travar um jogo de esgrima, mas sim a avaliar de forma quase reverente o que haviam de fazer para expor aos olhos dos compradores aquele achado maravilhoso. Vendo a sua tarefa terminada, Mather deixou-os e foi até aos escritórios da Belvedere fazer as pazes com Harmon Seldes.

O gesto teve efeito imediato - para o que muito contribuiu o facto de Seldes ser agora um dos sócios de Berchmans num negócio bastante lucrativo. Ficou igualmente lisonjeado com o convite que lhe fizeram para apresentar Tolentino - e ainda mais interessado na sugestão de Mather, o qual recomendava que a Belvedere deveria subsidiar a realização das conferências, e continuar com o projecto. A conjugação desta proposta com a descoberta dos Rafaéis deu-lhe acesso imediato aos lugares cimeiros, e Seldes prometeu não demorar a dar resposta, a qual, e a ser favorável, seria anunciada na data de abertura. Quanto ao próprio Max, e tendo em consideração os acontecimentos recentes, poderia ver a sua situação na revista sofrer consideráveis melhoras se por lá continuasse.

Mather queria continuar. Estava em maré de sorte. Não tinha outra alternativa senão aproveitá-la. A única contrariedade - por sinal bastante importante - foi o relatório de George Munsel a propósito da sua primeira conferência com a acusação.

- Até agora recusam-se a desistir. Juram que têm um óptimo caso e que estão dispostos a levá-lo até ao fim. Não se importam a que apelemos para que a acusação não seja tão grave, mas neste momento é o máximo que estão dispostos a ceder. No entanto, ainda falta muito tempo. Tem trabalhado muito na análise dos diários?

- Não. Tenho tido imensas coisas para fazer.

- Eu tenho a meu cargo a vida e a liberdade de uma mulher.

- Lamento, George. Assim que despacharmos a exposição vou dedicar-me a isto de corpo inteiro. Agora me lembro... A Gisela vem à noite de abertura. Era capaz de ir buscar a Danny Danziger e servir-lhe de par? É provável que formem um casal apropriado: advogado e cliente.

- Bastante apropriado - concordou Munsel. - Agora conte-me o que se passou no jantar do Bayard.

À medida que Mather lhe contava os acontecimentos da noite, Munsel ouvia-o atentamente. Depois pediu para que lhe voltasse a relatar o discurso e o diálogo final que se travara no escritório. O seu comentário revelava ansiedade.

- O problema do Bayard é ser um sentimental.

- Como, George?

- É uma frase que não me sai da cabeça há mais de vinte anos. George Meredith... hoje em dia ainda há quem o leia?

- Que diabo tem ele a ver com o Bayard?

- Algures, creio que em Sandra Belloni, escreveu: "O desespero é um sentimento obstinado... próprio dos mais sentimentais.”

- Que frase mais snobe!

- Será que é mesmo? - Munsel estava pensativo. - Independentemente de como lhe chame, o desespero é um acto terminal. Os religiosos antigos costumavam chamar-lhe o pecado contra o Espírito Santo. De qualquer das maneiras, veremos. Acho melhor telefonar à Danny Danziger e fazer os preparativos para a minha actuação como Príncipe Encantado.

- Teria mais hipótese no papel de princesa, George.

- Eu sei, mas não tenho estrutura para isso.

Estava-se na altura dos ensaios. Testavam-se as luzes e andava-se de um lado para o outro com os nervos em franja, a embirrar uns com os outros sem qualquer razão para tal. Munido com o caderno de esboços e a caixa de tintas, Niccoló Tolentino ausentara-se para gravar as suas primeiras impressões da Pequena Itália. Guido Valente telefonara de Washington dizendo que iria chegar tarde, mas que estaria presente. Uma pequena avaria no sistema de iluminação foi remediada com toda a prontidão, e, pendurados contra um fundo neutro, os quadros tinham um óptimo aspecto. Mather foi até ao aeroporto buscar Gisela, a qual, e assim que viu Manhattan ficou tão excitada como uma rapariguinha de escola. Anne-Marie acolheu-a melhor que aquilo que ele esperava, e de passagem murmurou:

- Bom trabalho, Max. Parabéns!

A abertura começou três horas mais tarde, quando uma carrinha Brinks estacionou do lado de fora da galeria. Depois de um pequeno exército de seguranças se ter posicionado junto às entradas e em cada piso do edifício, dois dos empregados de Berchmans levaram lá para dentro dois pacotes cuidadosamente embrulhados, os quais foram desembrulhados no segundo piso, tendo depois sido colocados em cavaletes iguais e cobertos com panos brancos de linho. No apartamento de Mather, Anne-Marie e Gisela vestiam-se num dos quartos, ao passo que no outro Mather apertava o laço de Tolentino, e se atrapalhava com os botões de pérola que lhe ornamentavam a parte da frente da camisa, cheia de goma e fora de moda. Por volta das seis e trinta os guardas estavam nos seus postos, armados e vigilantes. Os criados encontravam-se munidos de travessas de bebidas e canapés. Abriram o livro dos visitantes. Este tinha uma caneta de ouro presa por uma pequena correia, também ela de ouro. Um dos funcionários estava pronto a registar as vendas. Anne-Marie, Ed Bayard e Max Mather tomaram o seu lugar na fila dos anfitriões, isto enquanto Niccoló Tolentino dava o braço a Gisela e a levava para longe da entrada, orgulhoso como um tio italiano. Como que saídos do madeiramento, Hartog e Bechstein apareceram - Hartog elegante como um manequim, Bechstein amarrotado e muito pouco à vontade dentro de um enorme colarinho. Eis senão quando chegou a hora de o pano subir, e deu-se assim início à tragi-comédia de uma estreia em Manhattan.

Anne-Marie receara que não aparecesse ninguém. Em vez disso, quase que aconteceu um tumulto. Todos os convidados estavam presentes. A rua estava a abarrotar de mirones e basbaques, os quais haviam sido atraídos pelo espectáculo pouco comum de um acontecimento tão distinto a sul de Houston, e também pelo aparato policial. A cerimónia de abertura estava marcada para as sete mas passavam quinze minutos da hora prevista quando as portas se fecharam e Mather abriu caminho até ao microfone, dando início à sessão.

- Miss Loredon pediu-me para a substituir esta noite e dar-vos as boas-vindas à primeira exposição da Liberation Gallery. A escolha tem razão de ser: trabalho aqui, por isso tenho de merecer o que ganho. Sou mais alto e a minha voz é mais forte... isto apesar de não ser tão bonito. Por último, ela não deseja falar sobre a exposição, pois acredita que esta o faz por si. Contudo, tanto Miss Loredon como Mr. Bayard acharam apropriado abrir esta exposição em termos formais servindo-se do primeiro homem em Nova Iorque que comprou uma tela a Madeleine Bayard: Mr. André Lebrun!

Mas, e antes de conduzir Lebrun ao microfone, quis chamar a atenção de todos para o acontecimento singular que estava anunciado no programa. Ás oito horas, depois de todos terem tido oportunidade de apreciar os quadros, soaria uma campainha e seria pedido que, de forma ordenada, passassem ao piso superior, onde testemunhariam um acontecimento único e que faria história no mundo da arte. Este acontecimento fora patrocinado pela família Palombini e por Mr. Henri Berchmans, o qual tivera a gentileza de emprestar para a exposição as telas de Madeleine Bayard que possuía, cabendo as apresentações a Mr. Harmon Seldes, o editor da revista Belvedere, a qual patrocinara os próximos seminários da autoria de Tolentino. Agora, e sem mais confusões, daria a palavra a Mr. André Lebrun, para que este procedesse à abertura da exposição...

Lebrun foi um erro, mas esteve longe de ser um desastre. Estava nervoso. Foi enfadonho. Os microfones distorceram-lhe a pronúncia. Contudo, não podia haver dúvidas quanto à seriedade dos seus elogios, e do pathos subjacente à história que não podia contar. O auditório dispensou-lhe os mais calorosos aplausos antes de dispersar e continuar a ver as obras expostas.

Henri Berchmans deu uma palmadinha no ombro de Mather e emitiu a sua aprovação.

- Foi bom. Curto e conciso. Os quadros são para ser vistos e não para que se fale a seu respeito. Vemo-nos lá em cima.

Anne-Marie deu-lhe as últimas notícias:

- Já vendemos quinze quadros e ainda há movimento na secretária. Continua a fazer figas.

- Como é que está o Ed Bayard?

- Acho que está bem. Só trocámos algumas palavras, mais nada.

- O Berchmans aprova tudo.

- Eu sei. Continua a querer comprar a "Mulher da rua".

- óptimo.

- Ouço comentários favoráveis em tudo o que é lado.

- Eu também. Estás lançada, querida.

- Deus abençoe a galeria...

- ...e todos os que estão com ela.

Tocaram com os copos um no outro, e estavam a beber quando Edmund Bayard se aproximou, sorridente e descontraído.

- Podemos voltar a brindar? Gostaria de o fazer com vocês.

Voltaram a fazê-lo. Bayard disse:

- Os meus cumprimentos e agradecimentos a ambos. Está tudo esplêndido. Nunca esperei que as coisas saíssem assim tão bem.

- Estamos a usar o material da Madi, Ed.

- E uma grande dose de carinho. Parece que as vendas estão a correr bem.

- Bastante.

- Não se importam se eu me escapar antes da cerimónia lá de cima? Depois disto gostava de descansar um bocadinho... tenho a certeza de que compreendem.

- Claro. Precisas de transporte?

- Não. Tenho o motorista à espera.

Separou-se deles e esgueirou-se por entre a multidão. Foi então que apareceu George Munsel, seguido de Carol e Danny Danziger. Ele estava a sorrir e mostrava-se de bom humor, mas Danny estava tensa e inquieta.

- A Carol vai levar-me a casa. Sinto que isto é demais... primeiro os quadros da Madi, depois as pessoas a olharem-me e a comentarem quando passo.

- Não vai ficar para os Rafaéis? Ao fim e ao cabo, contribuiu bastante para que eles aqui estivessem.

- Gostava bastante, Max, mas...

- Ela já teve o suficiente - interrompeu Carol bruscamente. - Vou levá-la a casa. Parabéns pela exposição, é maravilhosa. Haverá possibilidades de falar com vocês sobre o meu trabalho?

- Em qualquer altura - respondeu Anne-Marie. - Tenha cautela a conduzir.

Mather olhou para o relógio.

- Está na hora de subir. Vou dar o sinal.

Demorou quase dez minutos a fazer com que todos subissem ao segundo piso, livres de copos e comestíveis, e a conseguir que se sentassem nas filas de cadeiras de frente para o par de cavaletes, tudo sob o olhar atento dos homens da segurança. Berchmans e Palombini estavam na última fila, conversando amigavelmente. Mather pegou em Gisela e juntou-se a eles. Palombini ficou encantado por a tornar a ver, e apareceu uma centelha de luz nos olhos escuros de Berchmans, facto que indicava aprovação. A um sinal de Mather, Harmon Seldes subiu ao estrado e, no seu estilo pomposo, relatou a história do seu primeiro encontro com Mather, e da decisão que tomara de publicar o material que aquele oferecia à Belvedere. Fez uma pequena dissertação sobre os poderes da imprensa e do alcance surpreendente de uma publicação tão eclética como a Belvedere, a qual, e estava feliz por o poder anunciar, patrocinaria os seminários.

Então, antes de descobrir os quadros, disse:

- Minhas senhoras e meus senhores, todos nós temos conhecimentos de belas-artes, uns mais, outros menos, mas todos somos capazes de decidir sobre a autenticidade e o valor de um trabalho. Vou mostrar-vos dois retratos, qualquer deles retratando a mesma matrona florentina do século XVII. Um é o original autenticado da autoria de Raffaello Sanzio de Urbino ... é uma das peças Palombini que se encontravam perdidas e às quais me acabei de referir. O outro é uma cópia realizada por um dos maiores copistas da actualidade, Maestro Niccoló Tolentino, que esta noite se encontra entre nós. Pedirei a vossa opinião convidando-os a levantar o braço quando vos perguntar qual o original e qual a cópia. Podem vir inspeccioná-los a ambos, mas, por favor, não lhes toquem. Estão prontos? Voilá!

Levantou os panos e houve um murmúrio de surpresa quando os dois painéis foram revelados. Foi uma reacção massiva, a resposta teatral a um momento essencialmente teatral. Então, escoltada pelos guardas, a audiência desfilou devagar em frente aos retratos, observando-os em silêncio. Quando todos se voltaram a sentar, Seldes pediu que levantassem os braços para indicar o original. Os votos deram o resultado de seis para quatro em favor da cópia.

Depois, Niccoló Tolentino subiu ao palco e, com uma mesura muito florentina, reconheceu a votação como sendo um tributo à sua perícia, mas, não sem pesar, passava a honra para Maestro Raffaello de Urbino. Gostaram do seu estilo. Aplaudiram. No mais absoluto silêncio, ouviram-no explicar a história da encomenda, das exigências técnicas a que a sua habilidade de pintor se sujeitou, da busca pelos pigmentos e dissolventes tradicionais, da preparação dos painéis, das diferenças entre uma madeira e a outra... das diferenças entre uma cópia e uma falsificação.

Enquanto conferencier foi um sucesso imediato. A sua pequena figura curvada irradiava força e autoridade, ao passo que o pesado sotaque conferia encanto a um discurso vivo e exótico, mas foi a sua peroração final que os deixou enfeitiçados.

- Qual a diferença entre mim e o mestre desde há muito falecido que pintou este painel? Pincelada por pincelada, linha por linha... nada. Sei tanto como ele, de facto, até mais. Tenho à minha disposição uma maior variedade de apoios, pigmentos e dissolventes. Possuo muitos mais instrumentos e técnicas. Mas mesmo assim, quando me ponho ao lado do mestre, sou um pigmeu perto de um gigante. Sou o barro primordial antes de Deus lhe ter insuflado vida. Esta noite vi-os a todos lá em baixo na galeria, a ler os catálogos, a discutir preços e leilões, e quem vendeu o quê por quanto. Quem se interessa? Que é que isso interessa? O que interessa é que vocês, tal como eu, foram tocados pelo espírito vivo de uma mulher falecida antes de o seu génio ter desabrochado completamente. Ou talvez não. Talvez que ela tivesse dito o que precisava de dizer... e quem será suficientemente rude para dizer que uma rosa aberta é mais perfeita que um botão? Presumo, sei. Vim até esta grande cidade no vosso mundo novo e atrevo-me a dar-vos sermões. Contudo, há uma razão para isso. Estou em contacto diário com as obras dos grandes mestres: um pequeno homem curvado que não se consegue lembrar de nunca ter tido um pincel na mão, e no entanto, apesar de não ser crente, faço um apelo a Deus. "Porquê, Senhor.... porquê a eles e não a mim? Apenas uma vez, apenas por uma vez antes que morra, dá-me luz!”

Depois disto, e tal como George Munsel fez notar no seu modo seco, tudo o resto se resumiu a um posfácio - perfeitamente dispensável. Os convidados saíram devagar, parando para dar mais uma volta pelos Bayard antes de se irem embora. Os seguranças voltaram para a carrinha com os Rafaéis, o verdadeiro e o falso, transportados como relíquias preciosas no centro da batalha. Os dois vigilantes do turno da noite entraram de serviço. O pessoal de Anne-Marie Loredon e a pequena família que se juntara à sua volta - a qual, e num gesto de boa vontade, incluía Hartog e Bechstein, juntou-se para uma última bebida.

Depois de tanta excitação custava a acreditar que eram só nove e meia, e tornava-se ainda mais difícil acreditar que no espaço de três horas se tinham vendido vinte telas e reservado quatro para galerias públicas. Mais notável ainda - mas nem sequer mencionado - era o facto de Berchmans e Palombini terem concordado em pedir quarenta milhões pela Donna Delfina, e que um pequeno japonês que se encontrava no auditório, tocado pela eloquência de Tolentino, o comprara por cinquenta milhões, pois a sua companhia estava a braços com uma quantia astronómica de dólares desvalorizados, os quais era urgente serem gastos rapidamente.

Palombini, à solta em Nova Iorque e satisfeito por ter descoberto que o italiano de Anne-Marie era fluente, propôs um jantar festivo na Pequena Itália, onde um parente distante era proprietário de um restaurante chamado La Cenerentola. Assim, deixando a morada aos vigilantes não fosse dar-se a possibilidade, pouco provável, acrescente-se, de alguém querer reservar uma tela, saíram para a rua onde as últimas limusinas esperavam a nova plutocracia para a levar ao local do banquete.

 

Edmund Justin Bayard encontrava-se na sala de jantar do seu apartamento e olhava à sua volta. Na ausência das telas, o papel de parede era uma manta de retalhos de rectângulos claros e escuros, criados pela exposição irregular à luz e pelos grãos de poeira produzidos pelo sistema de ar-condicionado. Tudo aquilo tinha um aspecto terrível. Decidiu que a sala estava a precisar de ser redecorada. E depois? Uma nova colecção? Qual príncipe renascentista, encomendar uma série de frescos? Nada disto era impossível, tratando-se de uma fantasia agradável para um solteirão endinheirado. Apenas um senão: com quem partilharia esta fantasia, quem se daria ao trabalho de a compreender?

Havia uma coisa boa: já nada restava de Madeleine. Era como se as cinzas tivessem sido finalmente atiradas ao vento. Mas atenção, não sem dignidade. Não sem piedade nem respeito. Aquela noite valera a pena. Acontecera algo como as antigas transladações da relíquias sagradas dos seus lugares obscuros para as grandes basílicas, de forma a serem veneradas publicamente. E Deus era testemunha de que ali houvera veneração e respeito. Aquela noite reunira uma assembleia de cirurgiões desejosos de declarar que o corpo estava morto para o começarem a desmembrar. Mas ali, no local onde morrera, Madeleine estava viva - dominando os espectadores como já o dominara a ele.

Claro que o problema residia aí. Para dominar é necessário ser-se indiferente... indiferente à dor que se inflige, à ausência de prazer, à diminuição dos direitos. Ele sempre se achara tolerante. Nas suas fúrias, Madeleine clamara que ele era um tirano. De facto, não era uma coisa nem outra. Era um homem inteligente, mas feito de uma argila demasiado frágil para arder nos fumos da paixão. Fora por isso que estalara e se enchera de fendas, ao passo que Madeleine, depois de todas as impurezas terem ardido, se transformara num perfeito vaso Sung, pai-Ting, com lágrimas no vidrado.

Já não lhe restavam lágrimas para derramar. Apenas tinha consciência de uma grande calma... da calma de um vasto deserto, frio e sem vento, por sob uma Lua branca. Todo o sentimento de culpa desaparecera. Némesis, a Filha da Noite, aceitara as suas desculpas, sabendo à partida que a multa seria paga por inteiro.

Quanto a Anne-Marie, esta era uma espécie de "o-que-poderia-ter-sido", pelo qual, e no meio de toda a calma, sentia apenas um pequeno arrepio de arrependimento. Maio e Setembro? Bom, talvez tivesse resultado. A Bela e o Monstro? Às vezes, se bem que mais raramente, também resultava.

Max Mather? Ora ali estava um indivíduo estranho. Alguém feito para andar na corda bamba, baloiçando-se no arame sem a protecção de uma rede, correndo para a segurança apenas no último momento. Talvez que fosse um homem para invejar e não um homem para ter como rival.

Assim, à medida que trocava as roupas pelo seu melhor roupão de seda, os acontecimentos pareciam finalmente ajustar-se. A Filha da Noite chamava-o. Chegara a hora do tributo final. Foi à casa de banho e do armário de medicamentos tirou um frasco de plástico cheio de comprimidos para dormir. Depois foi para o escritório, serviu-se de uísque e colocou no gravador a Nona Sinfonia de Mahler. Da estante tirou um livro que pertencera ao pai - La très joyeuse, plaisante et récréative histoire du bon chevalier de Bayard - e quando o começou a ler, abrindo caminho através de frases arcaicas, bebeu o uísque e engoliu os comprimidos.

As últimas palavras que a sua consciência esvaída registou foram as de um velho provérbio: "Quando um homem morre, há sempre alguém que lhe fica grato ... " Descobriu que este pressuposto era perfeitamente aceitável.

 

- A sua cliente continua na berlinda - Bechstein contestava tudo e mais alguma coisa. - Tinha motivos... no plano sexual fora humilhada por Madeleine e pelos seus colegas de brincadeira, era ciumenta, em suma, sofria de todo esse emaranhado de emoções. Teve oportunidade. Estava sozinha com Madeleine no momento preciso... e neste ponto mente, pois temos uma testemunha que atrasa a sua chegada em cerca de uma hora. Depois temos o testemunho escrito do falecido Hugh Loredon, que diz que Danny lhe telefonou. Ele disse-lhe para sair dali imediatamente. Mais tarde, foi até lá e encontrou Madeleine morta, pegou na arma e nos papéis que pertenciam à vítima e levou-os. Vocês têm convosco uma cópia dessa carta.

- Tenho uma pergunta. - Era George Munsel. - Por que razão é que ele se daria ao trabalho de escrever uma carta? Sabia que ia morrer. Não se limita a fazer uma confissão. Acusa Danny Danziger.

- Parece-nos que o fez pela razão que expressou a Mr. Mather. Não queria que a filha o considerasse um criminoso.

- Isso não basta. - Mather começava a irritar-se. - Isso não explica por que razão prejudicaria Danny Danziger. Enquanto acto de um homem que está prestes a deixar a vida, não faz qualquer sentido. É demasiado... demasiado insensível!

- Quanto a mim - replicou Bechstein -, é uma síndroma bastante comum: a amante ou o violador rejeitado, o macho insatisfeito por uma qualquer razão, reclama vingança pela humilhação ou morte da fêmea.

- Loredon era um mentiroso nato. Eu mesmo o chamei assim.

- E que respondeu ele, Mr. Mather?

- Tudo o que disse foi: "Prove-o.”

- E é exactamente isso que estamos a dizer. - Sam Hartog voltara à conversa. - Por amor de Deus, não estamos a tentar crucificar a rapariga, mas vocês têm de nos dar mais que aquilo que temos. O suicídio de Bayard deixou-nos em pior situação que antes. Não deixou um único bilhetinho; nem despedidas nem justificações...

- Nós vamos demonstrar-lhes porquê - disse-lhe George Munsel. - E esta prova está documentada.

- Então mostre-nos, por favor - retorquiu Bechstein numa voz cansada.

- Comece você, Max.

Este espalhou à sua frente os diários, os cadernos de esboços, o bloco-notas e os maços de cartas, identificando os vários artigos à medida que os mostrava. Ao lado de tudo isto colocou as notas que tomara sobre as conversas que travara em Amesterdão, não esquecendo a sua análise dos manuscritos. Depois, com zelo académico, começou:

- Vamos primeiro distinguir entre evidência interna, que se encontra registada ou implícita nos documentos, e evidência externa, que se procura noutras fontes. Quando ambas coincidem estamos a pisar terreno sólido. Concordam com este pressuposto?

Hartog e Bechstein fizeram que sim com a cabeça.

- Comecemos pelo período imediatamente anterior à morte de Madeleine. Tanto as evidências internas como externas concordam nos seguintes pontos: o casamento dos Bayard é uma desgraça. Madeleine tem uma vida promíscua com amantes de ambos os sexos. Hugh Loredon é um dos homens, Danny Danziger uma das mulheres. Por que razão não se divorciam os Bayard? Todas as provas apontam para uma estranha e perversa dependência que nutrem um pelo outro.... os vícios de um desculpam as falhas do outro.

Leu-lhes uma série de passagens breves referentes às suas conversas com Bayard e aos diários de Madeleine, e depois perguntou:

- Sendo assim, estamos todos de acordo em que aquilo que temos é uma situação aparentemente estável, quando de facto tanto o casamento como o mundo privado de Madeleine estão prestes a explodir?

- Sim - respondeu Bechstein. Hartog acenou afirmativamente.

- Agora - prosseguiu Mather -, examinemos de perto e com cuidado as provas internas. Primeiro as conversas de Bayard. Estamos a tratar com um advogado. Está treinado para ser muito cuidadoso quanto aos aspectos formais daquilo que diz. Por exemplo, declarou-me que não guardava rancor em relação ao Loredon, bem como a qualquer dos outros amantes da mulher, pois estes apenas aceitavam o que ela oferecia. Diz que tem uma admiração sem limites pelo talento de Madi. Mas os actos desmentem o que afirma. Não deixa Madi expor. Na vida conjugal é agressivo, amargo e destrutivo. Passemos agora a Madeleine. Os diários, o bloco-notas e os cadernos de esboços, todos nos contam a mesma história vista por um ângulo diferente. Dizem-nos a verdade.

Contudo, não nos dizem necessariamente como as coisas se passaram de facto.

- Bastante bem definido - aprovou Munsel.

- Perdi-me - disse Sam Hartog.

- Compreendi tudo perfeitamente - comentou Bechstein com ironia.

Mather retomou o fio dos seus argumentos.

- Madeleine era artista. Como todos os artistas, recriava coisas... no espírito, na tela. Mudava a luz, a ênfase, a textura, a ordem dos acontecimentos e o seu tom emocional.

De volta às notas, leu a versão do diário e a de Danny Danziger sobre o episódio da violação passado com Peter. Em seguida, folheou o caderno dos esboços e mostrou-lhes a versão pictórica do mesmo incidente. Havia sido eliminada toda e qualquer fealdade. Tudo o que restava era uma versão magnificamente desenhada e algo cómica de um frenesim libertino.

- Compreendem o que quero dizer, cavalheiros? - perguntou Mather.

- Compreendemos. Está bem visto. Mas pense um bocadinho. Madeleine encenara o seu porno-drama. Desenhou-o. Peter divertiu-se e recebeu o seu salário de modelo. Mas Danny Danziger fora violada... e arranjou uma boa razão para cometer um crime.

- O que não foi o caso - acrescentou Munsel.

- Prove - desafiou Hartog.

Mather apontou para a figura masculina do desenho.

- A vossa testemunha é este homem, não é? Este é o tipo que se prepara para jurar que a Danny chegou uma hora mais tarde que aquilo que realmente fez.

Bechstein e Hartog entreolharam-se. Foi Bechstein quem respondeu:

- É esse.

- Agora - continuou Mather -, deixem-me ler o que Madeleine escreve a respeito dele. - Linha por linha, leu-lhes a versão de Madeleine a respeito do ataque de que fora vítima pela parte de Peter, e depois voltou-se para as notas relativas à época de Amesterdão. - Sem se esquecerem disto, quero que ouçam atentamente a versão de Loredon sobre a morte de Madeleine, na qual acusa Danny de ser a assassina. - À medida que lia, os outros ouviam atentamente, trocando olhadelas furtivas. Depois começou a comentar a história.

- Hugh Loredon é bastante esperto pois continua a ser a Madi quem marca o encontro, só que desta feita com uma mulher. Reparem na forma como descreve a cena. É uma história inventada com todos os cuidados... dois copos manchados de batôn, os restos de uma garrafa de champanhe. Encontraram estas coisas quando lá foram pela primeira vez? Tenho a certeza de que não. As fotografias da polícia provam que não estavam lá. Temos depois aqueles maravilhosos pormenores sobre as luvas de borracha, a adaga, e a forma como a Danny delas dispôs. Reparei que isto tudo estava na carta que ele vos escreveu.

Segundo a sua versão, as coisas aconteceram entre as duas e meia e as três da tarde. Certo?

- Certo - concordou Bechstein.

- Que horas eram quando Bayard vos telefonou a declarar que a mulher fora assassinada?

- Cerca das seis e meia.

- E vocês chegaram lá quando?

- Cinquenta minutos mais tarde, mais ou menos.

- Bayard embalava o cadáver da mulher e estava coberto de sangue fresco?

- É verdade.

- Se o crime tivesse ocorrido há quase quatro horas, o sangue não teria coagulado o suficiente para ficar viscoso e peganhento?

- Que quer dizer com isso?

- Que o crime ocorreu muito depois das três, e que foi o Hugh Loredon quem o cometeu. Despiu Madi, a qual ainda se encontrava sob o efeito dos sedativos, arrumou as roupas na cadeira e embrulhou-a na colcha para evitar que o sangue jorrasse.- Esvaziou-lhe a carteira, vasculhou-lhe o estúdio à procura dos diários e dos cadernos de esboços, matou-a pouco depois da chegada do marido, e saiu pela porta das traseiras levando a arma consigo.

- Pode provar isso? - Era Hartog quem perguntava.

- Sim. Quando o acusei de estar a mentir e ele o admitiu, disse-me que ele mesmo levara arma e que mais tarde se vira livre dela colocando-a num leilão de armas antigas na Christies. Declarou que lhe rendeu dois mil dólares.

- Isso deve ser fácil de confirmar ... interrompeu Bechstein.

- Já o confirmei - retorquiu Max. - A peça foi comprada por um coleccionador de armas antigas do Connecticut. Ele vai colocá-la à disposição da polícia.

- Não provará nada. O importante é saber se Loredon a colocou à venda.

- E fê-lo. Existem rastos do facto.

- Isso é um ponto a favor da sua cliente. Que outros dados nos podem fornecer?

- A razão que levou Loredon a matá-la.

- Qual foi?

- Dinheiro. Estava falido como sempre, mas desta vez era diferente. Recebera uma sentença de morte e queria deixar alguma coisa a Anne-Marie. Envergonhava-o saber que não o podia fazer.

- Mas ele era o amante de Madi!

- Nesta altura um amante bastante amargurado. Também tenho algumas notas a esse respeito.

- Não se incomode, conte-nos apenas a respeito do dinheiro: quanto, quem o pagou e quando pagou?

- Duzentos mil dólares - disse George Munsel -, pagos por Ed Bayard sete dias depois da morte de Madeleine, depositados em nome de Anne-Marie Loredon, e colocados sob a administração da Lutz & Hengst.

- Pode prová-lo?

- Em todos os pormenores - retorquiu o advogado. - E Ed Bayard. sabia que sim.

- Como poderia ele sabê-lo - Bechstein era tão persistente como um furão.

- Porque - respondeu Munsel com paciência - quando a firma Lutz & Hengst me deu esta informação, disse que, agindo de acordo com o protocolo, poria Bayard. ao corrente do meu inquérito.

Hartog comentou:

- E Bayard, por ser um cavalheiro dos velhos tempos, decidiu que aquilo já era de mais e retirou-se da jogada.

- Ele não era cavalheiro nenhum. - Ao que parecia, era Bechstein quem pertencia aos velhos tempos. - O filho da mãe deixou que fossem os outros a limpar a porcaria que ele fez.

- Já chega. - Mather ficara subitamente farto da discussão. - Ele já morreu. Deixem-no aos cuidados de Deus.

- Ficarei satisfeito por o fazer - disse George Munsel -, mas primeiro preciso de ilibar a minha cliente de todas as culpas.

 

No pátio de Tor Merla, onde outrora os soldados se exercitavam e os artilheiros acendiam as suas fogueiras, o sol da manhã aquecia as velhas pedras e os melros cantavam empoleirados no castanheiro. Nas colinas distantes, os ciprestes eram formas escuras recortadas contra a alvorada. Lá em baixo, no vale, os campanários elevavam-se por entre a neblina, e o toque das ave-marias, ora distinto, ora abafado, fazia-se ouvir num contraponto de sinos.

Mather encontrava-se à janela da torre, aspirando o ar fresco da manhã e observando a paisagem - familiar em todos os cumes, ondulações e quintas. Era um momento impregnado de ternura e tristeza, e, contudo, luminoso e com poderes curativos.

Fora Claudio Palombini quem insistira que viesse... Claudio, confiante, com a fortuna restaurada, e no entanto algo diferente, com menos de metade da arrogância que costumava ter. Em Zurique, no dia em que tudo fora resolvido, com os cheques visados a mudar de mãos e o funcionário do banco, sombrio como um cangalheiro, a presidir à cerimónia, Mather sentira-se pouco à vontade, vagamente envergonhado. Claudio reparara no seu desconforto e dissera:

- Nada de discussões, Max. Estamos quites. Dizem-no os documentos. Digo-o eu. Tudo o que tem foi ganho por si. Se não ficar com ele, o homem dos impostos fica.

Mather encolhera os ombros e sorrira, pouco à vontade.

- Nesse caso, pago eu o almoço.

Mas isto não fora suficiente para Claudio. De repente transformara-se no indivíduo prático, no porta-estandarte que dispõe os homens na devida ordem.

Recuso-me a deixar ficar as coisas assim, Max. Já não se trata de dinheiro, mas de honra, família, fratellanza. Contudo, não vou ficar aqui a discutir consigo. Tem de regressar a Tor Merla. Leve a namorada. Estão ambos a precisar de uma coisa assim.

- Vou pensar nisso, Claudio, mas não sei se estou em condições de aguentar uma viagem sentimental. O casamento em si já é um projecto assustador.

- Não tem outra alternativa. Convidarei a Gisela... ela compreenderá a importância de tudo isto. Chega de discussões. Está a dever-me o almoço.

Tudo isto acontecera muitas semanas atrás, em Zurique. Agora Gisela estava à sua frente, descalça, esperando que a beijasse.

Depois do beijo, perguntou:

- Que vês aí fora, amor?

- Muitos ontens. Não estou certo de que tenha sido sensato voltar aqui.

- Estou contente por o termos feito. O Claudio tinha razão. Tínhamos ambos que fazer esta viagem.

- Continuo a não ter a certeza.

- Porquê?

- Como posso explicá-lo? - Era difícil encontrar as palavras, mas mais difícil ainda pronunciá-las. - O melhor de mim está neste lugar, sentado ali no pátio com a Pia... a ler para ela, a ouvir a música de que ela gostava, a alegrar o pouco tempo que lhe restava... O pior de mim também aqui está, saindo do portão e tomando a estrada com os Rafaéis na bagagem, um patife, sim, um patife, com medo de perder o que não lhe pertencia. Agora voltei, rico com o dinheiro que não ganhei, junto com uma mulher que não mereço.

- E és demasiado orgulhoso para aceitar isso, Max?

- Orgulhoso? Meu Deus, se ao menos soubesses...

- Eu sei. Sei que a menos que te perdoes a ti mesmo e te aceites, vais detestar o homem que vês no espelho. Quando isso se tornar maçador, como acabará por se tornar, vais começar por detestar-me, e acabaremos por repetir a história do Ed Bayard e da Madeleine.

- Deus queira que não!

- É isso mesmo, Max. Deus queira que não!

- Contudo, não te enganes. Amar o Max Mather não é tão fácil como parece.

- Quem foi que disse que o amor é fácil? Espera até estares casado comigo durante seis meses!

Nesse momento, os melros abandonaram o castanheiro e elevaram-se nos ares, uma nuvem escura que se dirigiu para as montanhas enquanto as últimas badaladas dos sinos se erguiam e extinguiam no silencioso amanhecer da Toscânia.

 

                                                                                Morris West  

 

                      

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