Qualquer um que conheça Boston, Dorchester, South Boston e Quincy, assim como as pedreiras de Quincy e o reservatório de Bill Hills, vai perceber que tomei enorme liberdade na descrição de suas características geográficas e topográficas. Isso foi absolutamente intencional. Embora essas cidades, lugares e regiões existam, eu os alterei em função das necessidades da trama e também dos meus próprios caprichos, devendo portanto ser considerados totalmente fictícios. Qualquer semelhança com acontecimentos e pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.
......
Port Mesa, Texas
Outubro de 1998
Muito antes de o sol alcançar o Golfo, os barcos de pesca adentram a escuridão. São principalmente camaroneiros, aos quais se juntam, ocasionalmente, um ou outro barco em busca de marlins ou de tarpões; nos barcos trabalham quase exclusivamente homens. As poucas mulheres que embarcam ficam quase sempre entre si. Estamos em plena costa texana, e como muitos homens tiveram uma morte trágica nesses três séculos de pesca, sua descendência e seus amigos que sobreviveram sentem que herdaram seus preconceitos, seu ódio pelos concorrentes vietnamitas, sua desconfiança em relação a qualquer mulher que faça esse trabalho horrível, lutando, na escuridão, contra grossas cordas e anzóis que dilaceram a carne.
As mulheres — diz um pescador na escuridão, pouco antes do amanhecer, enquanto o capitão diminui a marcha do motor e o mar de ardósia se agita — deviam ser todas como Rachel. Aquilo é que é mulher.
Aquilo é que é mulher, confirma outro pescador. Com certeza.
Rachel está há pouco tempo em Port Mesa. Ela apareceu em julho, com um filhinho, dirigindo uma velha caminhonete Dodge, alugou uma casinha no norte da cidade, tirou a tabuleta de “Precisa-se de empregada” da janela do Crockett’s Last Stand, um bar de marinheiros encarapitado num velho píer que avança mar adentro.
Passaram-se meses antes que se soubesse seu sobrenome: Smith.
Port Mesa atrai muitos Smith. E gente de sobrenome mais raro também. Pelo menos metade dos homens que tripulam os camaroneiros está fugindo de alguma coisa. Dormindo quando quase todo mundo está acordado, trabalhando enquanto a maioria dorme e bebendo o resto do tempo em bares onde apenas uns poucos estrangeiros se sentem à vontade, eles seguem o ritmo imposto pelas estações e pela fauna submarina, deslocam-se para o oeste até Baja, e para o sul até Key West, e são pagos em dinheiro.
Dalton Voy, o dono do Crockett’s Last Stand, paga a Rachel em dinheiro. E pagaria em lingotes de ouro, se ela quisesse. Desde que ela assumiu seu posto atrás do balcão, os lucros subiram vinte por cento. E por mais estranho que pareça, as brigas diminuíram. Em geral, quando os homens vêm do mar têm a carne e o sangue quentes do sol, o que os torna irritadiços, prontos a encerrar uma discussão brandindo uma garrafa ou quebrando um taco de bilhar. E, pela experiência de Dalton, quando há mulheres bonitas por perto... bem, eles ficam piores. Mais propensos a rir, mas também a perder o controle.
Alguma coisa em Rachel, porém, acalma os homens.
E os adverte.
É algo que está em seus olhos — um brilho fugaz, duro e glacial, que surge em seu olhar quando alguém ousa passar dos limites, demorar-se demais tocando seu punho, ou contar uma piada suja e sem graça. E está também no rosto, nos vincos que nele estão gravados, na beleza de seus traços curtidos pelo tempo, deixando entrever uma vida vivida antes de Port Mesa, pontuada por madrugadas mais sombrias e por realidades mais duras que a da maioria dos camaroneiros.
Rachel tem um revólver na bolsa. Dalton certa vez o viu por acaso, e a única coisa que estranhou naquilo foi o fato de não lhe causar nenhuma estranheza. De certo modo, ele já sabia. De certo modo todo mundo também já sabia. Ninguém nunca se aproxima de Rachel no estacionamento depois do trabalho; ninguém lhe oferece carona. Ninguém a segue até sua casa.
Mas quando aquele brilho duro desaparece de seus olhos, quando aquele ar distante deixa o seu semblante, meu amigo, ela literalmente ilumina tudo à sua volta. Ela se movimenta como uma bailarina atrás do balcão; cada um de seus movimentos, quer ela se volte, gire sobre si mesma ou pegue uma garrafa, parece gracioso e fluido. Quando ela ri, é um riso largo que se irradia pelos olhos, e todos no bar tentam contar uma nova piada, ainda melhor, só para sentir novamente o frêmito daquele riso.
E tem também o seu filhinho. Um belo menino loiro. Não se parece nada com ela, mas, quando ri, não deixa dúvida de que é filho de Rachel. Talvez tenha herdado também um pouco do humor da mãe. Às vezes dá para ver um brilho de advertência em seus olhos, o que é estranho num menino tão pequeno. Mal aprendeu a andar e já mostra ao mundo uma mensagem que diz: Não me amole.
A velha sra. Hayley, que cuida do menino enquanto Rachel está no trabalho, certa vez disse a Dalton Voy que não podia haver menino mais bem-comportado e mais afetuoso com a mãe do que ele. Ela diz que o menino vai ser alguém na vida. Presidente ou coisa assim. Herói de guerra. Grave bem o que estou dizendo, Dalton. Grave bem.
Uma vez, ao entardecer, quando fazia sua caminhada diária em Boynton’s Cove, Dalton avistou a mãe e o filho. Imersa até a cintura nas águas tépidas do Golfo, Rachel segurava o filho na altura das axilas, mergulhando-o repetidas vezes na água. À luz do ocaso, a água é dourada e sedosa, e Dalton tem a impressão de que Rachel purifica o filho no ouro, cumprindo um ritual antigo que revestirá seu corpo para que não possa ser trespassado ou dilacerado.
Os dois riem no mar cor de âmbar, e o sol se afoga em sangue atrás deles. Rachel beija o pescoço do filho e apóia as panturrilhas dele em seus quadris. O menino abandona um pouco o corpo nos braços maternos. E eles se olham nos olhos.
Dalton tem a impressão de nunca ter visto nada mais belo que aquele olhar.
Rachel não o vê, e Dalton não lhe faz nem um aceno. Na verdade, sente-se como um intruso. Mantém a cabeça baixa, e volta pelo caminho por onde veio.
Alguma coisa acontece conosco quando damos com um amor tão puro. Faz-nos sentir pequenos. Faz-nos sentir feios, envergonhados e indignos.
Observando a mãe e o filho brincando na água cor de âmbar, Dalton Voy surpreendeu-se com a revelação desta verdade de fria simplicidade: ele nunca, nem por um segundo, foi amado daquela forma em toda a sua vida.
Um amor como aquele... Diabos. Parece tão puro, é quase uma coisa criminosa.
PRIMEIRA PARTE
VERANICO, 1997
1
Todos os dias, registra-se o desaparecimento de três mil e trezentas crianças neste país.
Dessas, boa parte é seqüestrada por um dos pais separado do cônjuge, e em mais da metade dos casos não é difícil descobrir o paradeiro da criança. A maioria delas está de volta dentro de uma semana.
Outra parcela dessas três mil e trezentas crianças é composta de fugitivos. Também nesse caso, a maioria não fica desaparecida por muito tempo: ou se sabe de seu paradeiro imediatamente, ou se descobre com facilidade — o destino mais comum é a casa de um amigo.
Outra categoria de crianças desaparecidas são os excluídos, que fogem de casa e os pais não se preocupam em localizá-los. São essas crianças que em geral se encontram nos abrigos e nos terminais de ônibus, nas esquinas dos bairros mal-afamados e, finalmente, nas prisões.
Dos mais de oitocentos mil casos anuais de desaparecimento de crianças em todo o país, apenas três mil e quinhentos a quatro mil são classificados pelo Departamento de Justiça como seqüestros não familiares — aqueles casos em que a polícia logo descarta a hipótese de rapto por alguém da família, de fuga, de expulsão pelos pais, ou ainda a possibilidade de a criança estar perdida ou ferida.
O resultado final é que, a cada ano, trezentas dessas crianças desaparecidas não voltam nunca mais.
Ninguém — nem seus pais, nem seus amigos, agentes da lei, organizações de proteção à infância ou centros de busca de desaparecidos — sabe para onde essas crianças vão. Para o fundo de uma cova, provavelmente; ou mofam em porões, em poder de pedófilos; a menos que sejam tragadas pelo vazio, que desapareçam de corpo e alma num desses buracos negros que permeiam o tecido do universo — e nunca mais se ouve falar delas.
Seja lá para onde essas trezentas crianças vão, elas nunca reaparecem. Durante certo tempo, sua lembrança preocupa as pessoas estranhas que ouviram falar de seus casos; e aflige suas famílias por muitíssimo mais tempo.
Sem um corpo deixado para trás, sem provas de seu falecimento, elas não morrem. Apenas avivam nossa consciência do vazio.
E de sua eterna ausência.
“Minha irmã”, disse Lionel McCready, enquanto andava pelo nosso escritório na torre da igreja, “teve uma vida muito dura.” Lionel era um homem alto cujo rosto de traços frouxos tinha alguma coisa de canino e cujos ombros largos descaídos pareciam ceder ao peso de um fardo invisível para nós. Seu sorriso era meio tímido, mas a mão calosa dava um vigoroso aperto de mão. Estava com o uniforme marrom do serviço de entregas UPS, e amassava a pala do boné de beisebol, também marrom, em suas mãos fortes. “Nossa mãe era... bem, uma alcoólatra. E meu pai foi embora de casa quando ainda éramos crianças. Quando a gente cresce num ambiente desse, a gente... eu acho que... talvez a gente vá acumulando um bocado de raiva. Leva algum tempo para você erguer a cabeça e encontrar seu caminho. Não estou falando só de Helene. Quer dizer, eu tive problemas muito sérios, cheguei a entrar em cana lá pelos vinte. Eu não era nenhum santo.”
“Lionel...”, interveio sua mulher.
Ele levantou a mão em sua direção, como a dizer que, se tivesse de falar tudo, seria agora ou nunca. “Eu tive sorte. Conheci Beatrice, e ela endireitou a minha vida. O que quero dizer, senhor Kenzie, senhorita Gennaro, é que se lhe dão um tempinho a mais, uma pausa para respirar um pouco, você amadurece. Você se livra de toda essa porcaria. Minha irmã ainda está amadurecendo, é o que digo. Talvez. Porque a vida dela foi dura e...”
“Lionel”, disse sua mulher. “Pare de inventar desculpas para Helene.” Beatrice McCready passou a mão pelos cabelos curtos arruivados e continuou: “Querido, sente-se. Por favor”.
“Estou só tentando explicar que Helene não teve uma vida fácil”, retrucou Lionel.
“Você também não”, tornou a mulher. “E você é um bom pai.”
“Quantos filhos vocês têm?”, perguntou Angie.
Beatrice sorriu. “Um. Matt. Tem cinco anos. Nós o deixamos na casa de meu irmão e de sua mulher até encontrarmos Amanda.”
À menção de seu filho, Lionel pareceu animar-se um pouco. “É um grande garoto”, disse ele, dando a impressão de envergonhar-se um tantinho daquela manifestação de orgulho.
“E Amanda?”, perguntei.
“Ela também é ótima”, disse Beatrice. “E pequena demais para sair por aí sozinha.”
Amanda McCready desaparecera de seu bairro três dias antes. Desde então, toda a cidade de Boston, ao que parecia, estava obcecada com as buscas que se faziam para localizá-la. A polícia colocara mais agentes nessa busca que os que foram destacados para a caçada a John Salvi, depois dos atentados contra clínicas de aborto, uns quatro anos antes. O prefeito deu uma entrevista coletiva afirmando que nenhum outro problema municipal teria prioridade sobre o desaparecimento da menina, até ela ser encontrada. A cobertura da imprensa atingira o ponto de saturação: primeira página dos dois jornais da cidade todas as manhãs, matéria de destaque nos três maiores noticiários noturnos da televisão, flashes inseridos nos intervalos das novelas e dos talk shows.
E em três dias... nada. Nem sinal dela.
Amanda McCready estava neste mundo havia quatro anos e sete meses quando desapareceu. Sua mãe a pusera na cama no sábado à noite, e voltara para vê-la por volta das oito e meia. Quando entrou no quarto na manhã seguinte, pouco depois das nove, viu apenas os lençóis com a marca do corpo da filha.
As roupas que Helene McCready tirara da filha — uma camiseta cor-de-rosa, shorts jeans, meias cor-de-rosa e tênis brancos — tinham sumido, e também a boneca favorita de Amanda, batizada por ela de Pea, réplica em miniatura de uma criança loira de três anos, que tinha uma semelhança espantosa com sua dona. Não havia nenhum sinal de luta no quarto.
Helene e Amanda moravam no primeiro andar de um edifício de dois andares. Embora fosse possível, era pouco provável que ela tivesse sido seqüestrada por alguém que tivesse encostado uma escada na janela de seu quarto, abrindo em seguida a tela para então entrar. Não havia o menor indício no parapeito nem na tela da janela, tampouco marcas de escada na terra junto ao edifício.
O mais provável, se se parte da idéia de que uma criança de quatro anos não resolve sair de casa sozinha no meio da noite, é que o seqüestrador tenha entrado pela porta da frente do apartamento, sem necessidade de forçá-la nem soltá-la do batente, porque nada disso era necessário, já que não estava fechada à chave.
Quando essa informação veio a público, a imprensa não poupou críticas a Helene McCready. Vinte e quatro horas depois do desaparecimento de sua filha, o News, versão bostoniana em tablóide do New York Post, dava a seguinte manchete de primeira página:
PODE ENTRAR:
A MÃE DA PEQUENA AMANDA DEIXOU A PORTA ABERTA
Sob a manchete havia duas fotografias, uma de Amanda, a outra da porta da frente do apartamento. A porta estava escancarada. Segundo a polícia, porém, não era assim que ela estava na manhã do desaparecimento de Amanda. É certo que estava apenas encostada, mas escancarada, não.
A maioria das pessoas, contudo, não ligou a mínima para esse detalhe. Helene McCready deixara sua filha de quatro anos sozinha num apartamento aberto, enquanto visitava sua amiga Dottie Mahew, que morava ao lado. Ela e Dottie assistiram televisão — dois sitcoms e o filme especial da semana, intitulado Her father’s sins, com Suzanne Somers e Tony Curtis. Depois do noticiário, elas ainda viram metade de Entertainment Tonight Weekend Edition, e então Helene voltou para casa.
Amanda McCready ficara cerca de três horas e quarenta e cinco minutos sozinha no apartamento, que não fora fechado à chave. Nesse intervalo de tempo, supunha-se, ela saíra de casa ou fora seqüestrada.
Angie e eu acompanháramos o caso com o mesmo interesse que todo mundo, e ele nos espantava da mesma maneira que espantava todo mundo. Sabíamos que Helene McCready fora submetida ao detector de mentiras e interrogada sobre o desaparecimento da filha, e passara no teste. A polícia não conseguiu descobrir nenhuma pista; corria o boato de que eles estavam consultando médiuns. Os vizinhos que se encontravam na rua naquela noite, uma noite quente de verão em que boa parte das janelas estava aberta e as pessoas passeavam pelas ruas, não notaram nada suspeito e não ouviram nada que parecesse gritos de criança. Ninguém se lembrava de ter visto uma criança de quatro anos andando sozinha, nem uma ou mais pessoas levando uma criança ou um pacote de aparência estranha.
Pelo visto, Amanda McCready desaparecera tão completamente que era como se ela nunca tivesse nascido.
Beatrice McCready, sua tia, telefonou para nós naquela tarde. Eu lhe disse que não podíamos fazer nada que uma centena de policiais, metade das equipes de reportagem de Boston e milhares de pessoas comuns já não estivessem fazendo por sua sobrinha.
“Senhora McCready”, eu disse. “A senhora vai perder tempo e dinheiro.”
“O que não quero é perder minha sobrinha”, disse ela.
Enquanto o barulho do trânsito pesado daquela quarta-feira ia se reduzindo pouco a pouco a um ou outro toque de buzina e à ocasional aceleração de um motor, Angie e eu, sentados em nosso escritório na torre da igreja de St. Bartholomew, em Dorchester, ouvíamos a tia e o tio de Amanda defenderem sua causa.
“Quem é o pai de Amanda?”, perguntou Angie.
Os ombros de Lionel se encurvaram ainda mais, como se um novo peso tivesse vindo se juntar ao habitual. “Nós não sabemos. Achamos que é um sujeito chamado Todd Morgan. Ele deixou a cidade logo que Helene ficou grávida. Desde então, não se ouviu falar mais dele.”
“Mas a lista dos prováveis pais é bem grande”, disse Beatrice.
Lionel fitou o chão.
“Senhor McCready”, eu disse.
Ele olhou para mim. “Pode me chamar de Lionel.”
“Por favor, Lionel, queira sentar-se.”
Com certa dificuldade, ele conseguiu se ajeitar numa pequena cadeira do outro lado da escrivaninha.
“Esse Todd Morgan...”, disse Angie, enquanto terminava de anotar o nome num bloco de rascunho. “A polícia sabe por onde ele anda?”
“Mannheim, Alemanha”, disse Beatrice. “Ele está numa base militar de lá. E se encontrava na base quando Amanda desapareceu.”
“E foi tirado da lista dos suspeitos?”, perguntei. “Ele não poderia ter contratado um amigo para fazer o serviço?”
Lionel temperou a garganta e olhou novamente para o chão. “Segundo a polícia, ele afirmou sentir-se embaraçado ao falar de sua ligação com minha irmã. De qualquer modo, ele acha que Amanda não é sua filha.” Lionel olhou para mim com aqueles seus olhos mansos e desesperados. “Eles disseram que a resposta de Morgan foi: ‘Se eu quiser uma merda dum fedelho que passe o tempo todo cagando e chorando, posso arrumar um aqui’.”
Percebi a dor que sentira quando fora obrigado a repetir as palavras “uma merda dum fedelho” aplicadas a sua sobrinha e balancei a cabeça. “Fale-me de Helene”, pedi.
Não havia muito o que falar. Helene McCready era a irmã mais nova de Lionel, com uma diferença de idade de quatro anos. Isso quer dizer que tinha vinte e oito anos. Ela abandonara o curso secundário no Monsignor Ryan Memorial já no primeiro ano, e nunca tirou o diploma que dizia pretender tirar. Aos dezessete anos, fugiu com um sujeito quinze anos mais velho, e os dois moraram num camping em New Hampshire durante seis meses. Helene voltou para casa com o rosto inchado e arroxeado, depois de ter sofrido o primeiro de uma série de três abortos. Passou então por todo tipo de emprego. Trabalhou como caixa na Stop & Shop, como balconista na Chess King, como ajudante numa lavanderia a seco, como recepcionista na UPS — e nunca conseguiu ficar em nenhum deles por mais de dezoito meses. Quando sua filha desapareceu, pediu licença de seu emprego na Li’l Peach, onde trabalhava como operadora da máquina de loteria, e não dava o menor sinal de que um dia iria voltar.
“Mas ela gostava da menina”, disse Lionel.
Beatrice não parecia ser da mesma opinião, mas ficou calada.
“E onde Helene está agora?”, perguntou Angie.
“Em nossa casa”, disse Lionel. “O advogado que consultamos nos aconselhou a evitar ao máximo que ela se exponha.”
“Por quê?”, perguntei.
“Por quê?”, retrucou Lionel.
“Sim. A filha dela está desaparecida. Ela não devia estar fazendo apelos ao público? Ou pelo menos vasculhando as redondezas?”
Lionel abriu a boca, mas fechou logo em seguida e olhou para o chão.
“Helene não vai fazer isso”, disse Beatrice.
“Por que não?”, perguntou Angie.
“Porque... bem, ela é assim”, disse Beatrice.
“A polícia está monitorando o telefone da casa dela, para o caso de alguém pedir um resgate?”
“Sim”, disse Lionel.
“E ela não está lá para atender”, disse Angie.
“Seria demais para ela”, disse Lionel. “Ela precisava manter sua privacidade.” Abrindo as mãos num gesto de impotência, olhou para nós.
“Oh”, eu disse. “Sua privacidade.”
“Claro”, disse Angie.
“Ouça”, disse Lionel amassando o boné novamente. “Eu sei o que vocês devem estar pensando. Sei sim. Mas cada um tem sua maneira de expressar a dor, certo?”
Sem muita convicção, assenti com um gesto de cabeça. “Se ela fez três abortos...”, eu disse, e Lionel estremeceu, “por que resolveu ter Amanda?”
“Acho que ela chegou à conclusão de que já estava na hora.” Ele se inclinou para a frente, mostrando-se de repente mais animado. “Se você visse como ficou excitada durante o período da gravidez. Quer dizer, agora sua vida tinha um sentido, entende? Ela tinha certeza de que a criança faria tudo melhorar.”
“Para ela”, disse Angie. “Mas e para a criança?”
“Foi o que pensei na época”, disse Beatrice.
Lionel voltou-se para as duas mulheres, novamente com os olhos arregalados e com uma expressão de desespero. “A relação entre elas era boa para as duas”, disse ele. “Não tenho dúvidas quanto a isso.”
Beatrice abaixou a cabeça. Angie olhou pela janela.
Lionel olhou para mim novamente. “Era sim.”
Fiz que sim com a cabeça, e seu rosto canino relaxou, aliviado.
“Lionel”, disse Angie, ainda olhando pela janela. “Eu li as reportagens nos jornais. Parece que ninguém sabe quem poderia ter levado Amanda. A polícia está na maior sinuca, e Helene também não tem a menor idéia de quem poderia ter feito isso.”
“Eu sei”, disse Lionel balançando a cabeça.
“Tudo bem, então.” Angie desviou o olhar da janela e encarou Lionel. “O que você acha que aconteceu?”
“Eu não sei”, disse ele, repuxando o boné com tanta força que temi vê-lo rasgado entre aquelas mãos grandes. “É como se ela tivesse sumido no ar.”
“Helene estava namorando alguém?”
Beatrice deu um risinho irônico.
“Um namorado mais firme?”, perguntei.
“Não”, disse Lionel.
“A imprensa tem sugerido que ela costuma se meter com tipos suspeitos”, disse Angie.
Lionel deu de ombros, como se aquilo não tivesse nenhuma importância.
“Ela costuma freqüentar o Filmore Tap”, disse Beatrice.
“É o bar mais mal-afamado de Dorchester”, comentou Angie.
“E olhe que não são poucos os que disputam esse título”, acrescentou Beatrice.
“Não é tão ruim assim”, disse Lionel, olhando para mim como que esperando que o apoiasse.
“Eu costumo andar armado, Lionel. E confesso que fico nervoso quando entro no Filmore.”
“O Filmore é conhecido como um antro de drogados”, disse Angie. “Pelo que se sabe, lá a cocaína e a heroína circulam mais que amendoins. Sua irmã tem algum problema com drogas?”
“Você quer dizer... como heroína?”
“Eles querem dizer: qualquer porcaria desse tipo”, disse Beatrice.
“Ela fuma um pouco de maconha”, disse Lionel.
“Um pouco?”, perguntei. “Ou um bocado?”
“O que é muito, para você?”
“Ela tem uma pinça e um cachimbinho na mesa-de-cabeceira?”, perguntou Angie.
Lionel piscou os olhos.
“Ela não é dependente de nenhuma droga em especial”, disse Beatrice. “Experimenta um pouco de todas.”
“Cocaína também?”, perguntei.
Ela fez que sim, e Lionel olhou para ela estupefato.
“Pílulas?”
Beatrice deu de ombros.
“Agulhas?”, perguntei.
“Oh, não”, disse Lionel.
“Até onde sei...”, disse Beatrice. Ela pensou um pouco. “Não. Nós a vimos durante todo o verão de shorts e top. Teríamos visto as marcas.”
“Espere”, disse Lionel levantando a mão. “Espere um pouco. A gente está querendo é localizar Amanda, e não falar sobre o mau comportamento de minha irmã.”
“Precisamos saber tudo sobre Helene, seus hábitos e seus amigos”, disse Angie. “Quando uma criança desaparece, normalmente a causa está bem próxima de casa.”
Lionel levantou-se, e sua sombra cobriu o tampo da mesa. “O que quer dizer com isso?”
“Sente-se”, ordenou Beatrice.
“Não. Preciso saber o que isso significa. Vocês estão insinuando que minha irmã pode ter alguma coisa a ver com o desaparecimento de minha sobrinha?”
Angie sustentou o seu olhar. “Quem tem de dizer é você.”
“Não”, disse ele em voz alta. “Estão ouvindo? Não.” Ele abaixou a vista e olhou para a mulher. “Ela não é uma criminosa, certo? É uma mulher que perdeu a filha, está entendendo?”
Beatrice ficou olhando para ele, o rosto impenetrável.
“Lionel”, eu disse.
Ele continuava encarando a mulher, depois olhou para Angie novamente.
“Lionel”, repeti, e ele se voltou para mim. “Você mesmo disse que é como se Amanda tivesse sumido no ar. Tudo bem. Há cinqüenta policiais procurando por ela. Talvez mais. Vocês dois também andaram investigando. As pessoas da vizinhança...”
“Sim”, disse ele. “Um monte de gente. Eles foram muito bacanas.”
“Certo. Então, onde será que ela está?”
Ele olhou para mim como se eu estivesse prestes a tirá-la da gaveta da escrivaninha.
“Eu não sei”, disse ele fechando os olhos.
“Ninguém sabe”, eu disse. “E se formos investigar isso a fundo — e não estou dizendo que vamos...”
Beatrice endireitou-se na cadeira e me lançou um olhar duro.
“Mas se formos”, continuei, “temos de partir do pressuposto de que, caso tenha sido seqüestrada, terá sido por alguém de seu círculo de relações.”
Lionel se sentou. “Quer dizer então que vocês acham que ela foi seqüestrada?”
“E você não?”, disse Angie. “Uma criança de quatro anos que fugisse não passaria três dias sem ser vista.”
“É...”, disse ele, como se até então tivesse se recusado a encarar aquela verdade. “Sim, provavelmente vocês têm razão.”
“Sendo assim, o que é que devemos fazer?”, perguntou Beatrice.
“Quer que eu lhe diga francamente?”, falei.
Ela inclinou a cabeça devagar, olhando firme para mim. “Não tenho bem certeza.”
“Você tem um filho já perto de entrar na escola, certo?”
Beatrice fez que sim.
“Pegue o dinheiro com que pretende nos pagar e guarde para investir em sua educação.”
A cabeça de Beatrice ficou imóvel, ligeiramente inclinada para a direita, mas por um instante deu a impressão de ter sido esbofeteada. “Não quer pegar o caso, senhor Kenzie?”
“Acho que não ajudaria em nada.”
A voz de Beatrice se elevou, ressoando no pequeno escritório. “Uma criança está...”
“Desaparecida”, disse Angie. “Sim. Mas há um monte de gente à sua procura. A imprensa está fazendo uma cobertura completa. Todas as pessoas desta cidade e certamente da maior parte do estado viram sua fotografia. E, pode acreditar, a maioria está de olhos atentos.
Beatrice olhou para Lionel. Lionel deu de ombros discretamente. Ela desviou os olhos do marido e fixou-os em mim. Era uma mulher baixa, não teria mais de um metro e sessenta. O rosto pálido, salpicado de sardas da mesma cor dos cabelos, tinha a forma de coração e conservava alguma coisa de infantil, talvez por causa do nariz e do queixo arredondados e das maçãs do rosto pronunciadas. Não obstante, dava uma extraordinária impressão de força, como se, em seu íntimo, resignar-se fosse o mesmo que morrer.
“Eu procurei vocês”, disse ela, “porque vocês localizam pessoas. É o trabalho de vocês. Vocês encontraram aquele homem que matou um monte de gente alguns anos atrás, salvaram aquele menino e a mãe no parquinho, vocês...”
“Senhora McCready”, disse Angie levantando a mão.
“Ninguém queria que eu viesse procurá-los”, disse ela. “Nem Helene, nem meu marido, nem a polícia. ‘Vocês vão gastar dinheiro à toa’, todo mundo dizia. ‘Ela nem é sua filha’, diziam.”
“Querida”, disse Lionel, segurando a mão da esposa.
Ela puxou a mão, inclinou-se para a frente até os braços se apoiarem na escrivaninha, os olhos de safira fitando os meus.
“Senhor Kenzie, o senhor pode encontrá-la.”
“Não”, eu disse delicadamente. “Não se ela estiver muito bem escondida. Não, pois um bocado de gente tão boa quanto eu não conseguiu encontrá-la. Somos apenas mais duas pessoas, senhora McCready. Nada mais que isso.”
“E daí?”, disse ela, novamente em voz baixa, num tom glacial.
“Daí”, disse Angie, “que dois pares de olhos a mais não iam adiantar de nada.”
“E que mal haveria nisso?”, perguntou Beatrice. “Vocês podem me responder? Que mal haveria em aceitarem o caso?”
2
Do ponto de vista de um detetive, quando se descarta a hipótese de seqüestro por um parente, o desaparecimento de uma criança é semelhante a um caso de homicídio: se não for resolvido em setenta e duas horas, possivelmente nunca o será. Isso não significa necessariamente que a criança morreu, embora a probabilidade seja alta. Mas se a criança estiver viva, em geral encontra-se numa situação bem pior do que na ocasião de seu desaparecimento. Porque não existe um grande leque de atitudes possíveis de adultos que encontram crianças alheias: ou você as ajuda, ou você as explora. E embora os métodos de exploração variem — exigir resgate, colocá-las para trabalhar, abusar sexualmente delas, matá-las —, nenhuma dessas alternativas deriva da benevolência. E se a criança não morre e é finalmente encontrada, as cicatrizes são tão profundas que o veneno nunca poderá ser tirado de seu sangue.
Nos últimos quatro anos, matei dois homens. Assisti, impotente, à morte de um amigo de infância e de uma mulher que eu mal conhecia. Vi crianças serem desrespeitadas das piores formas possíveis, conheci homens e mulheres que matavam com a maior naturalidade, iniciei relacionamentos que se deterioraram pela ação da violência de que eu sempre soube me cercar.
E eu estava cansado de tudo isso.
Àquela altura, Amanda McCready já estava desaparecida havia pelo menos sessenta horas, talvez até setenta, e eu não queria encontrá-la enfiada num latão de lixo, o cabelo empapado de sangue. Eu não queria encontrá-la depois de seis meses, alucinada, olhos vazios, transformada numa espécie de zumbi por algum monstro armado de uma câmera de vídeo e de uma agenda com endereços de pedófilos. Eu não queria fitar os olhos de uma criança de quatro anos e constatar a morte de tudo o que nela houvera de puro.
Eu não queria encontrar Amanda McCready. Eu queria que outra pessoa assumisse aquela tarefa.
Mas talvez porque nos últimos dias eu estivesse tão abalado por esse caso quanto todo o resto da cidade, ou por ter acontecido no meu bairro, ou talvez porque “desaparecida” e “quatro anos de idade” não sejam expressões que combinem muito bem numa frase, concordamos em nos encontrar com Lionel e Beatrice McCready no apartamento de Helene em meia hora.
“Quer dizer então que vão aceitar o caso?”, perguntou Beatrice, no momento em que ela e o marido se levantavam.
“Isso ainda precisamos discutir entre nós”, respondi.
“Mas...”
“Senhora McCready”, disse Angie, “há algumas regras a seguir em nosso trabalho. Temos que conversar em particular, antes de aceitar qualquer caso.”
Beatrice não gostou nem um pouco daquilo, mas percebeu que nada podia fazer.
“Daqui a meia hora estaremos na casa de Helene”, eu disse.
“Obrigado”, disse Lionel, puxando a esposa pela manga.
“Sim, obrigada”, repetiu Beatrice, embora o tom de voz não parecesse muito sincero. Eu tinha a impressão de que só uma ordem presidencial destacando a Guarda Nacional para cuidar do caso poderia satisfazê-la.
Ouvimos seus passos descendo as escadas do campanário, e então olhei pela janela e os vi saindo do pátio da escola ao lado da igreja, dirigindo-se a um velho e desbotado Dodge Aires. O sol seguira sua trajetória para o oeste, saindo de meu campo de visão, e embora aquele céu de princípio de outubro ainda mostrasse uma pálida claridade de verão, já deixava entrever raias cor de ferrugem. Uma voz de criança chamou: “Vinny, espere! Vinny!”. Três andares acima, tive a impressão de haver um quê de solidão naquele som, alguma coisa inacabada. O carro de Beatrice e Lionel fizera meia-volta na avenida, e eu segui com os olhos a fumaça do escapamento até ela desaparecer.
“Eu não sei”, disse Angie recostando-se na cadeira. Ela apoiou os pés na escrivaninha e afastou os cabelos longos e espessos das têmporas. “Simplesmente não sei o que pensar dessa história.”
Ela estava com um shorts preto de Lycra e um moletom preto folgado sobre outro branco, bem justo. O moletom preto trazia na parte da frente, em letras brancas, as iniciais de sua banda favorita: NIN (Nine Inch Nails); nas costas, lia-se PRETTY HATE MACHINE, nome do primeiro álbum da banda. Angie usava esse moletom havia oito anos, mas parecia que era a primeira vez. Fazia quase dois anos que eu vivia com Angie. Até onde eu sabia, ela não cuidava de suas roupas mais do que eu das minhas, mas minhas camisetas davam a impressão de ter sido usadas para limpar o motor de um carro meia hora depois de tirada a etiqueta, e Angie tinha meias antigas, ainda da época do colégio, alvas feito os lençóis de um palácio. As mulheres e suas roupas sempre me causavam espanto, mas eu imaginava que era um daqueles mistérios que eu nunca conseguiria decifrar — como, por exemplo, que fim levou Amelia Earhart, a famosa heroína da aviação, ou o sino que um dia ocupou o nosso escritório.
“Não sabe o que pensar desse caso?”, perguntei. “Como assim?”
“Uma criança desaparecida, uma mãe que parece não se empenhar muito em sua busca, uma tia que força a barra...”
“Você acha que Beatrice está forçando a barra?”
“Não mais do que uma testemunha-de-jeová bloqueando a porta com o pé.”
“Ela está preocupada com a criança. Está arrancando os cabelos.”
“E eu sinto muito por isso”, disse ela dando de ombros. “Mas mesmo assim não gosto que forcem a barra comigo.”
“É verdade: não se pode dizer que a docilidade seja uma de suas maiores virtudes.”
Ela atirou um lápis em minha cabeça, mas pegou no queixo. Passei a mão no ponto atingido e procurei o lápis para jogar nela.
“Tudo isso é muito engraçado e divertido enquanto alguém não perde um olho”, murmurei procurando o lápis sob minha cadeira.
“Nossos negócios vão bem”, disse ela.
“Vão sim.” Pelo que eu estava vendo, o lápis não estava debaixo da mesa nem da escrivaninha.
“Ganhamos mais este ano que no ano passado.”
“E ainda estamos em outubro.” Não encontrei o lápis no soalho nem debaixo do frigobar. Talvez tenha ido fazer companhia a Amelia Earhart, Amanda McCready e ao sino.
“Ainda estamos em outubro”, concordou ela.
“Você quer dizer que não precisamos desse caso.”
“Mais ou menos isso.”
Desisti do lápis e olhei por algum tempo pela janela. As listras cor de ferrugem agora estavam vermelhas, e pouco a pouco o céu branco se tingia de azul. A primeira lâmpada amarela do anoitecer acendeu-se num apartamento do segundo andar, do outro lado da rua. O vento que entrava pela tela da janela tinha um cheiro que me lembrava o começo de minha adolescência, as partidas de beisebol na rua, os longos dias agradáveis que terminavam em longas noites agradáveis.
“Você não acha?”, perguntou Angie depois de alguns instantes.
Dei de ombros.
“Fale agora ou cale-se para sempre”, disse ela num tom divertido.
Voltei-me e olhei para ela. O ocaso tingia a janela de uma luz dourada que dançava em seus cabelos. Sua pele trigueira estava mais morena que o habitual, por causa do verão longo e seco que se estendera outono adentro; os músculos de sua panturrilha e os bíceps estavam bem pronunciados, depois de meses de jogos de basquete na área de esportes do Ryan.
Minha experiência anterior com as mulheres me ensinara que, quando você convive com uma delas por algum tempo, a primeira coisa que começa a passar batido é a sua beleza. Intelectualmente, você sabe que ela está lá, mas sua capacidade emocional de se extasiar ou se surpreender com ela, a ponto de se inebriar, diminui. Contudo, ainda me acontece todos os dias de sentir um aperto no peito, uma doce pontada, quando me perco em sua contemplação.
“O quê?”, disse ela abrindo a boca num riso.
“Não falei nada”, respondi em voz baixa.
Ela me olhou nos olhos. “Eu também te amo, Patrick.”
“É?”
“Ah, sim.”
“Dá um medão, não dá?”
“Às vezes, sim”, disse ela dando de ombros. “Às vezes nem um pouco.”
Ficamos ali sentados por um tempo, calados, e então o olhar de Angie se desviou para sua janela.
“O fato é que não sei bem se precisamos nos meter... nesse atoleiro agora.”
“E que atoleiro é esse?”
“Uma criança desaparecida. Pior: uma criança que se evaporou completamente.” Ela fechou os olhos e inspirou a brisa cálida. “Gosto de me sentir feliz.” Ela abriu os olhos mas os manteve fixos na janela. Seu queixo tremia de leve. “Você sabia?”
Já se passara um ano e meio desde que Angie e eu consumamos o que nossos amigos achavam que era um caso de amor recolhido durante décadas. E esses dezoito meses foram também os mais prósperos de nossa agência de detetives.
Pouco menos de dois anos antes, nós puséramos um fim — ou quem sabe apenas tínhamos sobrevivido — à terrível carreira criminosa de Gerry Glynn. O primeiro serial killer de Boston nos últimos trinta anos chamara muita atenção, da mesma forma que os responsáveis por sua captura. A onda de publicidade — cobertura da imprensa nacional, intermináveis reinserções nos tablóides, duas publicações na série “Histórias reais” e mais uma, bastante esperada, a caminho — fez de mim e de Angie dois dos mais famosos detetives particulares da cidade.
Durante os cinco meses que se seguiram à morte de Gerry Glynn, recusamos casos, e isso parece ter despertado ainda mais o interesse dos prováveis clientes. Depois de encerrarmos a investigação do desaparecimento de uma jovem chamada Desiree Stone, anunciamos nossa intenção de trabalhar em novos casos, e durante as primeiras semanas o pessoal fazia fila do lado de fora.
Sem nem ao menos ter combinado entre nós, recusamos de cara todos os casos que cheiravam a violência ou que deixavam entrever o lado mais negro da natureza humana. Ambos sentíamos que merecíamos uma trégua, por isso nos limitamos a aceitar casos de fraudes contra seguros, desvio de fundos, divórcios simples.
Em fevereiro, chegamos a atender ao pedido de uma velha senhora, que nos contratou para localizar o seu iguana. O nome daquele animal horroroso era Puffy. Tratava-se de um monstrengo verde iridescente, de aproximadamente trinta centímetros de comprimento, que, segundo sua própria dona, “tinha prevenção contra todo o gênero humano”. Nós o localizamos num trecho solitário dos subúrbios de Boston, quando ele avançava na área encharcada do décimo quarto buraco do campo de golfe de Belmont Hills, agitando freneticamente a cauda eriçada de espinhos, na pressa de alcançar uma réstia de sol que apontava na altura do décimo quinto buraco. O animal estava gelado e não ofereceu a menor resistência. Mas ele escapou por pouco de virar um cinturão quando aliviou os intestinos no banco de trás do carro do nosso escritório; sua dona, porém, pagou a lavagem e nos recompensou generosamente pela volta do seu querido Puffy.
Em suma, o ano foi mais ou menos assim. Não dos melhores para contar histórias de guerra no bar da esquina, mas excepcional para nossa conta bancária. E por mais potencialmente embaraçoso que tenha sido caçar um lagarto mimado num campo de golfe gelado, aquilo era muito melhor do que servir de alvo. Na verdade, muitíssimo melhor.
“Você acha que perdemos a coragem?”, Angie me perguntara recentemente.
“Com certeza”, respondi com um sorriso.
“E se ela estiver morta?”, disse Angie quando descíamos as escadas do campanário.
“Seria terrível”, respondi.
“Seria pior que terrível, se já estivéssemos profundamente enfronhados no caso.”
“Quer dizer que você prefere lhes dizer não?”, perguntei, abrindo a porta que dava para o pátio da escola.
Ela olhou para mim, a boca meio aberta, como se tivesse medo de exprimi-lo em palavras, ouvi-las ganhar o ar, e dar-se conta de que aquilo fazia dela uma pessoa que se recusava a ajudar uma criança em apuros.
“Por enquanto ainda não quero dizer sim”, ela murmurou quando nos aproximávamos do carro.
Balancei a cabeça, concordando. Eu sabia muito bem o que ela estava sentindo.
“Tudo nesse caso de desaparecimento me cheira mal”, disse Angie, enquanto descíamos a Dorchester Avenue em direção ao apartamento de Helene e Amanda.
“Eu sei.”
“Crianças de quatro anos não desaparecem sem que alguém dê uma mãozinha.”
“Claro que não.”
Ao longo da avenida, víamos as pessoas saindo de suas casas, agora que passara a hora do jantar. Algumas colocavam espreguiçadeiras nas pequenas varandas; outras andavam pela calçada, sem dúvida dirigindo-se aos bares ou indo bater uma bolinha antes do anoitecer. Senti o cheiro de enxofre deixado por rojões disparados havia pouco tempo; o ar úmido do entardecer pairava imóvel como uma respiração presa, cristalizado naquele matiz arroxeado entre o azul-escuro e o negrume total.
Angie levantou as coxas até o peito e apoiou o queixo nos joelhos. “Talvez eu tenha me tornado uma covarde, mas não me importo de caçar iguanas em campos de golfe.”
Olhei pelo pára-brisa quando saímos da Dorchester Avenue e pegamos a Savin Hill Avenue.
“Nem eu”, falei.
Quando uma criança desaparece, o espaço que ela ocupava é imediatamente invadido por dezenas de pessoas. E essas pessoas — parentes, amigos, agentes da polícia, repórteres da televisão e da imprensa escrita — criam uma atmosfera de energia ruidosa, dominada pela sensação de grande intensidade coletiva, de uma feroz determinação de compartilhar uma tarefa.
Mas em meio a todo esse barulho, nada é mais ensurdecedor que o silêncio da criança desaparecida. É um silêncio de setenta a noventa centímetros de altura, e você o sente em seu quadril e o ouve erguendo-se das tábuas do soalho, gritando para você de todos os cantos, de todos os recantos, e do rosto impassível de uma boneca caída ao lado da cama. É um silêncio diferente do silêncio que fica depois dos enterros e dos velórios. O silêncio dos mortos exprime o sentimento de conclusão; é um silêncio ao qual você sabe que terá de se acostumar. Mas o silêncio de uma criança desaparecida não é algo a que você queira se acostumar; você se recusa a aceitá-lo, por isso ele berra na sua cara.
O silêncio dos mortos diz: Adeus.
O silêncio dos desaparecidos diz: Encontrem-me.
Tinha-se a impressão de que metade da vizinhança e um quarto do Departamento de Polícia de Boston estavam no apartamento de dois quartos de Helene McCready. A sala de estar comunicava-se diretamente com a de jantar, e era nesses dois espaços que se concentrava a maior parte da agitação. A polícia instalara bancadas de telefones no chão da sala de jantar, e todos estavam ocupados; além disso, muita gente usava os próprios celulares. Um sujeito troncudo, com uma camiseta em que se lia TENHO ORGULHO DE SER MORADOR DE DORCHESTER, levantou os olhos de uma pilha de cartazes com a foto de Amanda na mesinha de centro à sua frente e disse: “Beatrice, o Channel Four quer entrevistar Helene amanhã, às seis da tarde”.
Uma mulher cobriu o fone do celular com a mão. “Os produtores de Annie in the AM ligaram. Eles querem que Helene participe do programa amanhã.”
“Senhora McCready”, chamou um policial da sala de jantar. “Precisamos da senhora aqui imediatamente.”
Depois de fazer um sinal com a cabeça para o homem troncudo e para a mulher com o celular, Beatrice nos disse: “O quarto da Amanda é o primeiro à direita”.
Balancei a cabeça, e ela abriu caminho na multidão, em direção à sala de jantar.
A porta do quarto de Amanda estava aberta. O aposento estava mergulhado no silêncio e na escuridão, como se os sons da rua lá embaixo não pudessem chegar até ali. Ouvimos o barulho de uma descarga, e um agente da polícia saiu do banheiro e olhou para nós enquanto fechava o zíper da braguilha com a mão direita.
“Amigos da família?”, perguntou ele.
“Sim.”
Ele balançou a cabeça. “Por favor, não toquem em nada.”
“Não vamos tocar”, disse Angie.
Ele balançou a cabeça e foi para a cozinha, passando pelo corredor.
Usei a chave do carro para acender a luz do quarto de Amanda. Eu sabia que todos os objetos do quarto já tinham sido examinados em busca de possíveis impressões digitais, mas sabia também o quanto os policiais se aborrecem quando você toca alguma coisa com as mãos nuas numa cena de crime.
Uma lâmpada descoberta pendia de um fio sobre a cama de Amanda. O soquete, já sem a tampa, deixava à mostra os fios empoeirados. O teto precisava ser repintado, e o calor do verão danificara os pôsteres que antes deviam estar nas paredes. Encontrei três deles no chão, enrolados e amarrotados, junto ao rodapé. Quadrados de fita adesiva dispunham-se em formações retangulares meio tortas na parede, nos lugares onde os pôsteres antes estavam fixados. Impossível saber há quanto tempo os cartazes jaziam no soalho, acumulando dobras, cobrindo-se de trincas minúsculas que pareciam veias.
Em termos de distribuição de espaço, o apartamento era igual ao meu e aos da maioria dos edifícios do bairro, e o quarto de Amanda tinha aproximadamente metade do tamanho do quarto de sua mãe. O quarto de Helene devia ficar à direita, depois do banheiro, de frente para a cozinha, com vista para o pátio nos fundos do prédio. O quarto de Amanda dava para o edifício vizinho, e certamente ao meio-dia ficava tão escuro como agora, às oito da noite.
O quarto cheirava a mofo e tinha poucos móveis. A penteadeira, do lado da cama, parecia ter sido comprada num brechó, e a cama não passava de um colchão de molas sobre um boxe rente ao chão, com roupas de cama desencontradas e um edredom do Rei Leão que fora empurrado para o lado, por causa do calor.
Uma boneca jazia ao pé da cama, fitando o teto com olhos vazios de boneca; havia um ursinho de pelúcia caído de lado, encostado no pé da penteadeira, e em cima dela um velho televisor preto-e-branco. Na mesa-de-cabeceira havia um radinho, mas não vi nenhum livro no quarto, nem mesmo livros para colorir.
Tentei imaginar a menina que dormia ali. Já conhecia sua aparência física das muitas fotos que vira nos últimos dias, mas elas nada diziam sobre a expressão de seu rosto ao entrar naquele quarto no fim do dia, ou ao acordar de manhã.
Ela teria tentado recolocar os pôsteres na parede? Teria pedido os livros de cores vivas que vira no shopping? Na escuridão e no silêncio de seu quarto, tarde da noite, quando estava acordada e sozinha, será que ela fitava o prego solitário enfiado na parede junto à cama? Ou a mancha marrom, devida à umidade, que se formara no canto esquerdo do quarto?
Olhei para os horrendos olhos brilhantes da boneca e tive vontade de fechá-los com o pé.
“Senhor Kenzie, senhorita Gennaro.” Era a voz de Beatrice, chamando da cozinha.
Angie e eu lançamos um último olhar ao quarto. Usei a chave para desligar a luz, e fomos pelo corredor em direção à cozinha.
Havia um homem recostado no fogão, mãos enfiadas nos bolsos. Pela forma como nos olhou quando nos aproximávamos, percebi que nos esperava. Ele era alguns centímetros mais baixo que eu, o corpo largo e redondo feito um tonel, e um rosto juvenil, agradável, um tanto avermelhado, como se ele passasse longos períodos ao ar livre. Paradoxalmente, o pescoço era ao mesmo tempo flácido e com dobras, típico das pessoas já próximas da aposentadoria, e a impressão geral que ele dava era a de uma dureza, de uma implacabilidade centenária, capaz de avaliar você e toda sua vida num único olhar.
“Tenente Jack Doyle”, disse ele estendendo a mão.
Apertei-lhe a mão. “Patrick Kenzie.”
Angie também se apresentou e apertou-lhe a mão, e ficamos diante dele na pequena cozinha, enquanto ele perscrutava os nossos rostos. O dele era impenetrável, mas a intensidade de seu olhar exercia tal atração que nos fazia fitá-lo, mesmo sabendo que era mais prudente desviar a vista.
Eu já o vira na televisão algumas vezes nos últimos dias. Ele comandava a Brigada de Proteção às Crianças do Departamento de Polícia de Boston. Quando ele olhava para a câmera e garantia que iria encontrar Amanda McCready, custasse o que custasse, por um momento você sentia pena do provável seqüestrador.
“O tenente Doyle queria encontrar vocês”, disse Beatrice.
“Agora nos encontramos”, respondi.
Doyle sorriu. “Vocês têm um minuto?”
Sem esperar pela resposta, dirigiu-se à porta que dava para a sacada, abriu-a, e olhou em seguida para nós, por sobre o ombro.
“Acho que sim”, disse Angie.
O gradil da sacada estava mais necessitado de uma boa mão de pintura do que o teto do quarto de Amanda. Toda vez que um de nós se debruçava sobre ele, a pintura rachada e ressecada pelo sol estalava sob nossos braços como achas numa fogueira.
Na sacada sentíamos o cheiro de churrasco que vinha de alguns edifícios mais adiante. Ouvíamos o barulho de uma festa ao ar livre no bloco vizinho, nos fundos de algum edifício — uma voz de mulher queixando-se em altos brados do sol escaldante, um rádio tocando os Mighty Mighty Bosstones, gargalhadas agudas feito cubos de gelo tilintando num copo. Difícil acreditar que era outubro. Difícil acreditar que logo viria o inverno.
Difícil acreditar que Amanda McCready ia ficando cada vez mais distante, e o mundo continuava girando.
“Então”, disse Doyle, debruçando-se no gradil. “Já resolveram o caso?”
Angie olhou para mim e revirou os olhos.
“Não”, respondi. “Mas estamos bem perto.”
Doyle deu um risinho, olhos fitos no retângulo de cimento e grama seca lá embaixo.
Angie disse: “Você aconselhou os McCready a não nos procurar, não é?”.
“Por que eu faria isso?”
“Pelo mesmo motivo que eu faria, se estivesse em seu lugar”, disse Angie, enquanto ele virava a cabeça para encará-la. “Cozinheiros demais.”
Doyle balançou a cabeça. “Esse é só um dos motivos.”
“Quais seriam os outros?”, perguntei.
Doyle entrelaçou os dedos, depois puxou as mãos com força até eles estalarem. “Essas pessoas lhe deram a impressão de nadar em dinheiro? Será que elas têm iates, que eu não notei, ou candelabros com incrustações de diamantes?”
“Não.”
“E pelo que ouvi falar, desde o caso de Gerry Glynn vocês têm cobrado honorários bem altos.”
Angie balançou a cabeça. “E temos tido despesas altas também.”
Doyle deu-lhe um pequeno sorriso, voltou-se novamente para o gradil, apoiou-se nele com as duas mãos, inclinando o corpo para trás. “Daqui até encontrarem a menina, Lionel e Beatrice correm o risco de perder até as calças”, ele continuou. “A coisa não vai custar menos de cem mil dólares. Eles são apenas tios, mas vão comprar espaço na televisão para tentar localizá-la, colocar anúncios de página inteira em todos os jornais de circulação nacional, espalhar sua foto em cartazes ao longo das estradas, contratar médiuns, xamãs e detetives particulares.” Ele se voltou outra vez para nós. “Eles vão quebrar, sabiam?”
“E esse é um dos motivos pelos quais estamos tentando recusar o caso”, eu disse.
“É mesmo?”, ele perguntou, erguendo uma sobrancelha. “Então por que vocês estão aqui?”
“Beatrice é muito insistente”, disse Angie.
Ele olhou para a janela da cozinha. “Isso para dizer o mínimo.”
“O que nos intriga é por que a mãe de Amanda não é, também.”
Doyle deu de ombros. “A última vez que a vi, ela estava dopada de calmantes, Prozac ou seja lá o que agora se dá aos pais de crianças desaparecidas.” Ele se afastou um pouco do gradil. “Enfim, pouco importa. Escutem, não quero me indispor com duas pessoas que podem me ajudar a localizar essa criança. Falo sério. Só quero garantir, primeiro, que vocês não vão me atrapalhar; segundo, que não vão dizer à imprensa que entraram na jogada porque os policiais são tontos e não sabem por onde começar; terceiro, que não vão explorar a dor dessas pessoas para ganhar dinheiro. Porque acontece que gosto de Lionel e de Beatrice. São pessoas boas.”
“Qual era mesmo o segundo item?”, perguntei com um sorriso.
Angie disse: “Tenente, como dissemos, estamos tentando não aceitar este caso. É improvável que fiquemos nele por tempo bastante para estorvar o seu trabalho”.
Ele fixou nela seu olhar duro e direto. “Então por que vocês aceitaram vir falar comigo?”
“Até agora, Beatrice se recusa a ter um não como resposta.”
“E você acha que isso tem alguma chance de mudar?”, disse ele, sorrindo mansamente e balançando a cabeça.
“Esperamos que sim”, respondi.
Ele balançou a cabeça e voltou-se novamente para o gradil. “É muito tempo.”
“O quê?”, perguntou Angie.
Seus olhos continuaram no pátio lá embaixo. “Para uma criança de quatro anos ficar desaparecida.” Ele soltou um suspiro. “É muito tempo”, repetiu.
“E vocês não têm nenhuma pista?”, perguntou Angie.
Ele deu de ombros. “Nada em que eu ousasse apostar a minha casa.”
“Algo em que você pudesse apostar um apartamentinho num conjunto popular?”, insistiu Angie.
Ele sorriu e deu de ombros.
“Isso quer dizer que na verdade não”, disse Angie.
Ele fez que sim. “Na verdade, não.” A pintura ressecada fazia o barulho de folhas quebradiças sob a pressão de suas mãos. “Vou lhes dizer como entrei nessa história de procurar crianças desaparecidas. Há uns vinte anos a minha filha Shannon desapareceu. Por um dia.” Ele se voltou para nós e ergueu o indicador. “Não foi nem um dia. Na verdade, foi mais ou menos das quatro horas da tarde até as oito da manhã do dia seguinte, mas ela tinha seis anos. E vou lhes dizer uma coisa: vocês não têm idéia de quão longa pode ser uma noite, até viver uma experiência como essa. A última vez que os amigos de Shannon a tinham visto, ela estava indo para casa de bicicleta, e alguns deles disseram que um carro a seguia bem devagar.” Perturbado por essa lembrança, ele esfregou os olhos com as costas da mão e expirou ruidosamente. “Nós a encontramos na manhã seguinte numa vala próxima a um parque. Ela caíra da bicicleta, fraturara os dois tornozelos, e a dor a fizera desmaiar.”
Ele notou a expressão aflita em nossos rostos e levantou a mão.
“Ela estava bem”, disse ele. “Fraturar os dois tornozelos dói como o diabo, e ela ficou muito assustadiça por algum tempo, mas esse foi o pior trauma que eu e minha mulher sofremos durante toda a sua infância. Que sorte, hein? Puxa vida, tremenda sorte.” Ele se benzeu rapidamente. “Mas sabem o que quero dizer? Quando Shannon ficou desaparecida e toda a vizinhança e meus colegas da polícia se puseram a procurá-la, eu e Tricia saímos feito loucos, de carro e a pé, tentando encontrá-la. A certa altura paramos para pedir um café. Para viagem, podem acreditar. Mas naqueles dois minutos em que ficamos de pé, esperando o café no Dunkin’ Donuts, eu olhei para Tricia, ela olhou para mim, e nós dois tivemos plena consciência, sem trocar nem ao menos uma palavra, de que se Shannon estivesse morta, nós também estaríamos. Nosso casamento, nossa felicidade — estaria tudo acabado. Nossa vida se resumiria a uma interminável via-crúcis. Não nos restaria mais nada. Sem a nossa filha, todas as coisas boas e auspiciosas desapareceriam para nós.”
“E foi por isso que você entrou para a Brigada de Proteção às Crianças?”, perguntei.
“Foi por isso que eu criei a Brigada de Proteção às Crianças”, disse ele. “É cria minha. Levei quinze anos, mas eu a criei. A BPC existe porque eu olhei para a minha mulher naquela doceria e tive certeza, sem a menor sombra de dúvida, de que ninguém pode sobreviver à perda de um filho. Ninguém. Nem você, nem eu, nem mesmo uma pessoa fracassada como Helene McCready.”
“Helene é uma fracassada?”, perguntou Angie.
Ele arqueou uma sobrancelha. “Sabe por que ela foi para a casa de sua amiga Dottie, e não o contrário?”
Negamos com um meneio de cabeça.
“O tubo de imagem de sua televisão estava com problemas. De vez em quando ela perdia a cor, e Helene não gostava disso. Por isso ela deixou a filha em casa e foi para o apartamento vizinho.”
“Por causa da televisão.”
Ele fez que sim. “Por causa da televisão.”
“Uau!”, disse Angie.
Ele nos fitou por um minuto, depois ajeitou a calça e disse: “Dois de meus melhores homens, Poole e Broussard, vão procurar vocês. Eles serão o seu contato. Se vocês puderem ajudar, não vou dificultar o seu trabalho”. Ele esfregou o rosto com as mãos e balançou a cabeça. “Droga, estou cansado.”
“Quando foi a última vez que você dormiu?”, perguntou Angie.
“Sem contar um cochilo?”, disse ele com um risinho. “Já faz alguns dias.”
“Você precisa ter alguém que assuma seu posto, para poder descansar”, disse Angie.
“Eu não quero descanso”, disse ele. “Eu quero essa criança. E eu a quero inteira. E a quero para ontem.”
3
Helene McCready estava vendo a si mesma na televisão quando entramos na casa de Lionel, junto com ele e Beatrice.
A Helene da televisão estava com um vestido azul-claro, casaco da mesma cor e um botão de rosa branco na lapela. Os cabelos caíam-lhe suavemente sobre os ombros. O rosto estava com excesso de maquiagem, certamente aplicada às pressas, sobretudo em volta dos olhos.
A verdadeira Helene McCready usava uma camiseta cor-de-rosa onde se lia NASCIDA PARA COMPRAR na parte da frente, e uma calça de moletom branca cortada logo acima dos joelhos. Os cabelos, amarrados num frouxo rabo-de-cavalo, pareciam ter sido tingidos tantas vezes que sua cor original ficara perdida em algum ponto entre o loiro platinado e o amarelo-palha.
Havia uma mulher sentada ao lado da Helene McCready de verdade, mais ou menos da mesma idade, porém mais corpulenta e pálida; quando ela levou o cigarro aos lábios, inclinando-se para a frente para se concentrar melhor na reportagem, a carne branca na parte inferior do braço estremeceu, revelando covinhas de celulite.
“Olhe, Dottie, olhe”, exclamou Helene de repente. “Lá estão Gregor e Head Sparks.”
“É mesmo!”, disse Dottie, apontando na tela dois homens andando atrás do repórter que entrevistava Helene. Os homens acenaram para a câmera.
“Olhe, eles estão acenando”, disse Helene com um sorriso. “Os idiotas.”
“Estão adorando”, disse Dottie.
Helene levou à boca uma lata de Miller, com a mesma mão que segurava o cigarro. Enquanto ela bebia, a enorme cinza do cigarro se encurvou em direção ao seu queixo.
“Helene”, disse Lionel.
“Espere um instantinho, um instantinho”, disse Helene, acenando com a lata de cerveja em sua direção, olhos fixos na tela. “Essa é a melhor parte.”
Beatrice voltou-se para nós e revirou os olhos.
Na televisão, o repórter perguntou a Helene quem ela achava que poderia ter sido o responsável pelo seqüestro de sua filha.
“Como responder a uma pergunta como essa?”, respondeu a Helene da televisão. “Quer dizer, quem poderia querer levar minha filhinha? Por que fazer uma coisa dessa? Ela nunca fez mal a ninguém. Ela era só uma menina com um lindo sorriso. Era isso o que ela fazia o tempo todo: ela sorria.”
“Realmente, ela tinha um belo sorriso”, disse Dottie.
“Tem”, disse Beatrice.
As duas mulheres no sofá pareciam não ter ouvido.
“Oh, foi...”, disse Helene. “Foi perfeito. Simplesmente perfeito. De cortar o coração.” A voz de Helene fraquejou, e ela largou um pouco a lata de cerveja para pegar um lenço de papel em uma caixa na mesinha de centro.
Dottie deu-lhe um tapinha no joelho e a consolou. “Calma, calma, tudo vai dar certo.”
“Helene”, disse Lionel.
As imagens de Helene na televisão foram substituídas pelas de O. J. Simpson jogando golfe em algum lugar na Flórida.
“Eu até hoje não entendo como ele conseguiu ficar impune”, disse Helene.
Dottie voltou-se para ela. “Eu sim”, disse ela, como se tivesse acabado de revelar um grande segredo.
“Se ele não fosse negro”, disse Helene, “a esta hora estaria na prisão.”
“Se ele não fosse negro”, disse Dottie, “teria pegado cadeira elétrica.”
“Se ele não fosse negro”, disse Angie, “vocês não iriam se importar.”
Elas voltaram a cabeça e olharam para nós. Pareciam um tanto surpresas em ver quatro pessoas de pé ao seu lado, como se tivéssemos aparecido ali de repente, feito os reis magos.
“O quê?”, perguntou Dottie, fitando-nos com seus olhos castanhos.
“Helene”, disse Lionel.
Helene dirigiu o olhar para o rosto dele, o rímel borrado sob os olhos inchados. “Sim?”
“Estes são Patrick e Angie, os dois detetives de que lhe falamos.”
Helene acenou molemente para nós, com o lenço de papel molhado de lágrimas. “Olá.”
“Olá”, disse Angie.
“Olá”, eu disse.
“Eu me lembro de você”, disse Dottie a Angie. “Você se lembra de mim?”
Angie sorriu delicadamente e balançou a cabeça.
“Do colégio MRM”, disse Dottie. “Eu era caloura, e você já era veterana.”
Angie pensou um pouco e balançou a cabeça novamente.
“Ah, sim”, disse Dottie. “Eu me lembro muito bem de você. A Rainha da Turma, era assim que nós a chamávamos.” Ela tomou um gole de cerveja. “Você ainda é assim?”
“Assim como?”, perguntou Angie.
“Você ainda pensa que é melhor que todo mundo?” Ela perscrutou Angie com olhos tão apertados que era difícil dizer se estavam embaçados ou não. “Sim, você era assim. A senhorita Perfeição. Senhorita...”
“Helene”, disse Angie voltando-se para concentrar a atenção em Helene McCready. “Precisamos conversar com você sobre Amanda.”
Mas Helene tinha os olhos fixos em mim, segurando o cigarro a um centímetro dos lábios. “Ele parece alguém que conheço”, disse ela. “Não parece, Dottie?”
“O quê?”, perguntou Dottie.
“Ele se parece com alguém”, continuou Helene, dando duas rápidas tragadas.
“Quem?”, disse Dottie, voltando os olhos para mim.
“Sabe?”, disse Helene. “Aquele cara. Aquele cara naquele programa, você sabe quem é.”
“Não”, disse Dottie, dirigindo-me um sorriso hesitante. “Que programa?”
“Aquele programa”, disse Helene. “Você sabe do que eu estou falando.”
“Não, não sei.”
“Sabe, sim.”
“Que programa?”, disse Dottie, voltando a cabeça para olhar para Helene. “Que programa?”
Helene piscou os olhos para a amiga, franziu o cenho e olhou para mim. “Você é a cara dele”, ela garantiu.
“Tudo bem”, eu disse.
Beatrice encostou-se no batente da porta de entrada e fechou os olhos.
“Helene”, disse Lionel. “Patrick e Angie precisam falar com você sobre Amanda. A sós.”
“O quê?”, disse Dottie. “Por acaso sou alguma espécie de monstro?”
“Não, Dottie”, respondeu Lionel prudentemente. “Eu não disse isso.”
“Será que sou uma porra duma fracassada, Lionel? Que não serve para ficar com sua melhor amiga quando ela mais precisa?”
“Ele não está falando isso”, disse Beatrice com a voz cansada, ainda de olhos fechados.
“Então...”, arrisquei.
Dottie levantou o rosto cheio de manchas vermelhas e olhou para mim.
“Helene”, Angie apressou-se em dizer. “Se você respondesse em particular a algumas perguntas, tudo seria bem mais rápido, e logo a deixaríamos em paz.”
Helene olhou para Angie. Depois para Lionel. Depois para a televisão. Por fim ela fixou o olhar na nuca de Dottie.
Dottie ainda estava olhando para mim, indecisa, sem saber se devia se enfurecer ou não.
“Dottie”, disse Helene, com ar de quem ia revelar um segredo de Estado, “é minha melhor amiga. Minha melhor amiga. Isso não é pouca coisa. Se vocês querem falar comigo, têm de falar com ela.”
Os olhos de Dottie desviaram-se de mim, voltando-se para fitar sua melhor amiga, e Helene cutucou o joelho dela com o cotovelo.
Olhei para Angie. Eu já trabalhava com ela havia tempo suficiente para resumir o significado daquele seu olhar em três palavras: Vamos cair fora.
Olhei para ela e concordei com um meneio de cabeça. A vida era curta demais para perdermos mais uma fração de segundo com Helene ou Dottie.
Olhei para Lionel, e ele deu de ombros, o corpo vergado pela resignação.
Nós teríamos ido embora imediatamente — na verdade já estávamos começando a fazer isso —, mas Beatrice abriu os olhos, fechou-nos a passagem e disse: “Por favor”.
“Não”, respondeu Angie calmamente.
“Uma hora”, disse Beatrice. “Concedam-nos pelo menos uma hora. Nós pagamos.”
“Não é uma questão de dinheiro”, disse Angie.
“Por favor”, insistiu Beatrice, desviando os olhos de Angie para fixá-los nos meus. Ela deslocou o peso do pé esquerdo para o direito, e seus ombros se curvaram.
“Só mais uma hora”, eu disse. “Nem um segundo a mais.”
Ela sorriu e balançou a cabeça.
“Patrick, não é?” Helene olhou para mim. “Seu nome não é esse?”
“Sim”, respondi.
“Você pode andar um pouquinho para a esquerda, Patrick?”, disse Helene. “Você está na frente da televisão.”
Meia hora depois, estávamos na mesma.
Lionel, depois de muitos agrados, conseguira convencer a irmã a desligar a televisão enquanto conversávamos, mas isso pareceu diminuir ainda mais a capacidade de atenção de Helene. Muitas vezes, durante nossa conversa, seus olhos desviavam-se de mim buscando a tela apagada, como se esperasse que ela de repente voltasse a funcionar por uma intervenção divina.
Dottie, depois de toda a conversa mole sobre ficar ao lado da melhor amiga, saiu da sala logo que desligamos a televisão. Podíamos ouvi-la andando pela cozinha, abrindo a geladeira para pegar mais cerveja, mexendo nos armários em busca de um cinzeiro.
Lionel sentou-se no sofá ao lado da irmã. Eu e Angie sentamo-nos no chão, de costas para o móvel onde ficavam a televisão e o aparelho de som. Beatrice sentou-se na ponta do sofá, o mais longe possível de Helene, esticou uma perna e, com as duas mãos, segurou a outra na altura do tornozelo.
Pedimos a Helene que contasse tudo sobre o dia em que sua filha desaparecera, perguntamos se houve alguma discussão entre as duas, se Helene irritara alguém que pudesse depois querer se vingar seqüestrando sua filha.
A voz de Helene mantinha o mesmo tom exasperado enquanto explicava que nunca brigara com a filha. Como poderia ela discutir com alguém que era só sorrisos? Não, ao que parecia, Amanda apenas amava sua mãe, era amada por ela, e as duas passavam a vida amando, sorrindo e sorrindo um pouco mais. Helene não se lembrava de ninguém a quem tivesse contrariado, e isso ela já dissera para a polícia, mas mesmo que tivesse feito isso, quem iria seqüestrar sua filha para vingar-se dela? Crianças dão muito trabalho, ela nos garantiu. Você tem de alimentá-las, cobri-las na hora de dormir, brincar com elas de vez em quando...
Daí todos aqueles sorrisos.
No final, ela não disse nada que já não soubéssemos pelos noticiários ou pelos relatos de Lionel e Beatrice.
Quanto à própria Helene, quanto mais me fazia perder tempo, menos eu queria ficar na mesma sala que ela. Enquanto discutíamos o desaparecimento de sua filha, deixou entrever que odiava a própria vida. Sentia-se solitária; os homens não prestavam; deviam colocar uma cerca em volta do México para impedir a saída de todos aqueles mexicanos que estavam roubando empregos aqui em Boston. Ela tinha certeza de que havia uma conspiração de esquerda para corromper todos os cidadãos americanos honestos, mas não sabia dizer que conspiração era essa. Sabia apenas que a conspiração não só a impedia de ser feliz, como se propunha a conseguir que todos os negros vivessem às custas do Estado. É verdade que ela também recebia auxílio do Estado, mas bem que se esforçara, nos últimos sete anos, para sair dessa situação.
Ela falava de Amanda como as pessoas falam de um carro roubado ou de um animal doméstico perdido: na verdade, aquilo tudo apenas a aborrecia. Sua filha desaparecera e sabe, cara, fodera com a sua vida.
Ao que parecia, Deus escolhera Helene McCready para ser a Grande Mártir da Vida. Nós, os outros, podíamos tirar o time de campo. A partida chegara ao fim.
“Helene”, eu disse no fim de nossa conversa. “Será que você pode nos dizer alguma coisa que esqueceu de contar à polícia?”
Helene olhou para o controle remoto na mesinha de centro. “O quê?”
Repeti a pergunta.
“É difícil”, disse ela. “Sabia?”
“O quê?”, perguntei.
“Criar um filho.” Ela fixou em mim os olhos baços arregalados, como se fosse compartilhar sua grande sabedoria. “É difícil. Não é como nos comerciais de televisão.”
Quando saímos da sala de estar, Helene ligou a televisão, e Dottie passou por nós com duas cervejas na mão, como se tivesse recebido a deixa.
“Ela tem uns problemas emocionais”, contou-nos Lionel quando nos sentamos na cozinha.
“É mesmo”, confirmou Beatrice, colocando café em sua caneca. “Ela é uma vaca” .
“Não diga essa palavra”, pediu Lionel. “Pelo amor de Deus.”
Beatrice colocou café na xícara de Angie e olhou para mim.
Mostrei-lhe minha caneca de Coca.
“Lionel”, disse Angie. “Sua irmã parece não se preocupar com o desaparecimento da filha.”
“Oh, ela se preocupa, sim”, disse Lionel. “Ela passou a última noite chorando. Acho que agora ela não tem mais lágrimas para derramar. Está tentando controlar sua... dor. Você sabe.”
“Lionel”, eu disse. “Com o devido respeito, só vejo autopiedade. Não vejo nenhuma dor.”
“Ela a sente”, disse Lionel, piscando os olhos e olhando para sua mulher. “Ela sente, sim. Pode acreditar.”
Angie disse: “Eu sei que já falei isso antes, mas francamente não imagino o que poderíamos fazer que a polícia já não tenha feito”.
“Eu sei”, disse Lionel. “Eu sei.”
“Talvez mais tarde”, eu disse.
“Claro”, ele concordou.
“Se a polícia empacar e abandonar o caso, quem sabe?”, disse Angie. “Talvez então a gente entre.”
“Sim.” Lionel afastou-se da parede e estendeu a mão. “Ouçam, obrigado por terem vindo. Obrigado por... tudo.”
“Não há de quê”, respondi enquanto me adiantava para apertar-lhe a mão.
A voz de Beatrice, entrecortada mas clara, me tolheu o gesto. “Ela tem quatro anos.”
Olhei para ela.
“Quatro anos de idade”, disse ela, os olhos fixos no teto. “E ela está em algum lugar. Talvez perdida. Talvez coisa pior.”
“Querida”, disse Lionel.
Beatrice balançou a cabeça devagar. Depois de olhar o café, ela o tomou de uma só vez, de olhos fechados. Colocou então a caneca vazia na mesa, depois se inclinou para a frente, mãos entrelaçadas.
“Senhora McCready...”, principiei, mas ela me interrompeu com um gesto de mão.
“Cada segundo em que as pessoas deixam de procurá-la é um segundo de desespero para ela.” Beatrice levantou a cabeça e abriu os olhos.
“Querida”, disse Lionel.
“Não me venha com ‘querida’ ”, disse ela, voltando os olhos para Angie. “Amanda está com medo. Ela está desaparecida. E a vaca da irmã de Lionel, refestelada em minha sala de estar com sua amiga gorducha, fica tomando cerveja e vendo a si mesma na televisão. E quem pensa em Amanda, hein?” Olhos vermelhos, ela fitou o marido, depois Angie, depois a mim, depois o chão. “Quem vai mostrar a essa menina que alguém se importa com a sua vida?”
Durante todo um minuto, o único som que se ouvia na cozinha era o zumbido do motor da geladeira.
Então, bem devagar, Angie disse: “Acho que nós...”.
Olhei para ela e ergui as sobrancelhas. Ela deu de ombros.
Um som esquisito, mistura de riso e de soluço, escapou dos lábios de Beatrice. Ela levou uma mão à boca e olhou para Angie enquanto as lágrimas enchiam-lhe os olhos, teimando, porém, em não cair.
4
A parte da Dorchester Avenue que atravessa nosso bairro tinha mais bares irlandeses que qualquer outra avenida fora de Dublin. Quando eu era mais jovem, meu pai participava de uma maratona nos pubs das redondezas para angariar fundos para as associações de caridade locais. Duas cervejas e uma dose de quebra-gelo em cada bar, e os homens iam para o seguinte. Eles começavam no Fields Corner, no quarteirão vizinho, depois iam subindo a avenida em direção ao norte, e o objetivo era ver qual deles conseguiria manter-se de pé por tempo suficiente para cruzar a fronteira de South Boston, a menos de três quilômetros.
Meu pai, assim como a maioria dos homens que se inscreviam na maratona, era muito bom de copo, mas durante todos aqueles anos em que ela ocorreu nenhum deles conseguiu chegar ao Southie.
A maioria daqueles bares já não existe mais, tendo sido substituída por restaurantes e mercearias vietnamitas. Batizada de Pista Ho Chi Minh, essa parte da avenida é na verdade bem mais agradável do que muitos de meus vizinhos brancos parecem achar. Andando por ela de carro, de manhã bem cedo, com freqüência podem-se ver nas calçadas alguns senhores dando aulas de tai chi a homens maduros, e transeuntes com suas túnicas tradicionais, calças de seda escura e largos chapéus de palha. Já ouvi falar das gangues, ou tongs, que atuam na região, mas nunca topei com nenhuma delas; cruzei apenas com jovens vietnamitas de cabelos eriçados, besuntados com gel, e óculos escuros panorâmicos, esforçando-se para exibir um ar cool ou para parecer durões, e achei que no fundo não eram muito diferentes de mim, quando tinha a idade deles.
Dos velhos bares que sobreviveram à última onda de emigração para o nosso bairro, os três situados na própria avenida são muito bons. Os donos e sua clientela optaram por uma atitude meio laissez-faire para com os vietnamitas, e estes pagam na mesma moeda. Nenhuma das duas culturas se mostra curiosa em relação à outra, o que parece convir a todo mundo.
O único bar próximo da Pista Ho Chi Minh fica um pouco afastado, no final de uma rua sem calçamento cujo traçado foi interrompido quando, em meados da década de 1940, o município ficou sem verba para terminar a obra. A ruela que afinal restou nunca vê a luz do sol. No lado sul, ela é atravancada pelo imenso depósito de uma empresa transportadora; ao norte, por um grupo de edifícios em formação cerrada. No final da ruela fica o Filmore Tap, tão empoeirado e aparentemente tão esquecido quanto a rua abortada em que se situa.
Nos velhos tempos da maratona da Dorchester Avenue, mesmo os homens do calibre de meu pai — todos eles valentões e beberrões — não iam ao Filmore. Era como se ele não existisse: não constava do mapa da maratona, e em toda a minha vida nunca conhecera ninguém que o freqüentasse.
Há uma grande diferença entre um bar popular para trabalhadores braçais e uma espelunca para brancos miseráveis, e o Filmore era um exemplo acabado deste último tipo. Nos bairros da classe operária, as brigas, muito comuns, em geral são resolvidas com os punhos ou, na pior das hipóteses, com uma garrafada na cabeça de um infeliz. No Filmore, as brigas explodem a cada segunda rodada de cerveja, e normalmente são resolvidas na base do canivete. Alguma coisa no bar exercia certa atração sobre pessoas que havia muito tinham perdido tudo o que lhes importava na vida. Elas iam lá para alimentar seus vícios, seu alcoolismo e sua raiva. E ainda que se possa concluir que não há muita gente se acotovelando para entrar no clube, os candidatos não são vistos com bons olhos.
O atendente nos lançou um olhar quando, deixando para trás o brilho do sol daquela tarde de quinta-feira, penetramos na penumbra esverdeada do bar. Um após outro, os quatro sujeitos no lado do balcão mais próximo da porta voltaram-se lentamente para nos encarar.
“Você sabe me dizer onde Lee Marvin se enfia quando se precisa dele?”, perguntei a Angie.
“Com Eastwood é a mesma coisa”, disse Angie. “Francamente, ficaria contente se ele aparecesse aqui agora.”
Dois sujeitos jogavam bilhar no fundo do salão. Bem, pelo menos até chegarmos. Pois a nossa chegada de certa forma atrapalhara o jogo, e um deles levantou os olhos e franziu o cenho.
O atendente voltou-nos as costas, ficou olhando a tela da televisão acima dele, concentrado num episódio de A ilha dos birutas. Skipper estava batendo na cabeça de Gilligan com seu quepe. O Professor tentava, em vão, fazê-lo parar. Os Howell riam. Maryann e Ginger não davam as caras. Talvez aquilo tivesse alguma coisa a ver com a trama.
Angie e eu nos instalamos na outra ponta do balcão, perto do balconista, e esperamos que ele se dignasse tomar conhecimento de nossa presença.
Skipper continuava batendo em Gilligan. Pelo visto ele estava furioso com alguma coisa que tinha a ver com um macaco.
“Esse é um grande episódio”, eu disse a Angie. “A certa altura eles quase deixam a ilha.”
“É mesmo?”, ela perguntou acendendo um cigarro. “E por que eles não vão embora?”
“Skipper confessa que gosta de seu companheiro, eles começam os preparativos para o casamento, e o macaco rouba o barco com todos os cocos.”
“É isso mesmo. Agora estou me lembrando.”
O atendente voltou-se e olhou para nós. “O que vão querer?”
“Uma garrafa da sua melhor cerveja”, respondi.
“Duas”, acrescentou Angie.
“Tudo bem”, disse o atendente. “Mas calem o bico até o fim do programa. Tem gente aqui que ainda não viu esse episódio.”
Depois da Ilha, a televisão do bar foi sintonizada num episódio da série Inimigos públicos, um programa sobre crimes reais em que os criminosos eram interpretados por atores tão ruins que perto deles Van Damme e Seagal seriam verdadeiros Olivier e Gielgud. O programa daquele dia era sobre um sujeito de Montana que violentara e esfaqueara os próprios filhos, matara um policial em Dakota do Norte e durante toda a sua vida procurara sacanear quem quer que lhe cruzasse o caminho.
“Se querem saber minha opinião”, disse Big Dave Strand a mim e a Angie, quando o rosto do criminoso apareceu na tela, “é esse cara que vocês deviam interrogar. De nada adianta aborrecer meus clientes.”
Big Dave Strand era proprietário e atendente do Filmore Tap. E não era à toa que era chamado de Big. Tinha quase dois metros de altura, era tão corpulento que dava a impressão de que a carne espessa se acumulara em camadas superpostas em volta do esqueleto, em vez de ir se expandindo normalmente à medida que o corpo se desenvolvia. Barba e bigodes eriçados escondiam-lhe a boca, e tatuagens verde-escuras, típicas de ex-detentos, ornavam seus bíceps. A do braço esquerdo mostrava um revólver, embaixo do qual se lia VÁ. A do braço direito parecia ser uma bala entrando num crânio, e logo abaixo estava escrito SE FODER.
O esquisito é que nunca encontrei Big Dave na igreja.
“Conheci caras como ele na cadeia”, disse Dave. Ele se serviu de mais uma caneca de Piel’s do barril. “Tarados. Eles os mantinham separados do resto da população carcerária porque sabiam o que iriam fazer. Eles sabiam.” Dave virou metade da cerveja, olhou para a televisão novamente e soltou um arroto.
Não sei por que o bar cheirava a leite azedo. E a suor. E a cerveja. E a pipoca amanteigada, que ficava em cestinhas dispostas ao longo do balcão, a cada quatro assentos. O piso do salão era de placas de borracha, e a julgar por seu estado, fazia muito tempo que Dave não usava a mangueira que tinha atrás do balcão para limpá-lo. A borracha estava coberta de pontas de cigarro e de pipocas, e eu tinha quase certeza de que os pequenos movimentos que via na penumbra, sob uma das mesas, eram de um camundongo mordiscando alguma coisa junto ao rodapé.
Interrogamos os quatro homens que estavam no bar sobre Helene McCready, e nenhum deles disse nada que pudesse nos ajudar. Eram homens mais velhos. O mais novo deles devia ter uns trinta e cinco anos, mas parecia ser dez anos mais velho. Todos mediram Angie de alto a baixo, como se ela estivesse nua, pendurada no balcão de um açougue. Não se mostraram muito hostis, mas suas informações não ajudaram em nada. Todos conheciam Helene McCready, mas não tinham nenhuma opinião a respeito dela. Todos sabiam que sua filha estava desaparecida, mas tampouco tinham o que dizer sobre o caso. Um deles, Lenny, de pele amarelada marcada de veias arroxeadas, disse: “A criança está desaparecida. E daí? Ela vai aparecer. Elas sempre aparecem”.
“Você já perdeu filhos alguma vez?”, perguntou Angie.
Lenny fez que sim. “Eles apareceram.”
“Onde eles estão agora”, perguntei.
“Um está na prisão, outro no Alasca ou em algum lugar qualquer.” Ele bateu no ombro de um sujeito que balançava a cabeça ao seu lado. “Esse aqui é o caçula.”
O filho de Lenny, um sujeito pálido e franzino, com os dois olhos roxos de pancada, disse: “Babaca”, e descansou a cabeça no braço em cima do balcão.
“Já falamos sobre isso com os policiais”, disse Dave. “Nós dissemos a eles: Sim, Helene vem aqui; não, ela não vem com a filha; sim, ela gosta de cerveja; não, ela não vendeu a filha para pagar dívida de droga.” Ele olhou para nós apertando os olhos. “Pelo menos não para ninguém que esteja aqui.”
Um dos que estavam jogando bilhar veio até o balcão. Era um sujeito magro, cabeça raspada, tatuagens baratas de cadeia nos braços. Nenhuma delas feita com atenção para o detalhe e com o fino senso estético das de Dave. Ele se pôs entre mim e Angie, ainda que houvesse um espaço equivalente a vários carros à nossa direita. Então pediu mais duas cervejas e olhou para os seios de Angie.
“Você está com algum problema?”, perguntou Angie.
“Nenhum”, disse o sujeito. “Não tenho nenhum problema.”
“Ele não tem problema”, eu disse.
O sujeito continuou a olhar para os seios de Angie com olhos mortos que pareciam ter sido atingidos por um raio.
Dave trouxe as cervejas, e ele as pegou.
“Esses dois estão perguntando por Helene”, disse Dave.
“É?” A voz do sujeito era tão apagada que a gente ficava em dúvida se seu coração ainda batia. Ele passou as duas cervejas entre a minha cabeça e a de Angie e inclinou a caneca da mão esquerda para derramar um pouco em meu sapato.
Olhei para meu sapato, depois para os olhos dele. Seu hálito fedia a meia de atleta. Ele esperou que eu dissesse alguma coisa. Como eu não disse, olhou para as canecas em suas mãos, e seus dedos se crisparam em volta das asas. Quando levantou a cabeça para me encarar, seus olhos apagados eram dois buracos negros.
“Eu não tenho nenhum problema”, ele disse. “Talvez você tenha.”
Desloquei meu peso na cadeira discretamente, de forma a apoiar o braço no balcão com mais firmeza, para o caso de precisar me abaixar ou girar o corpo, e esperei que o sujeito pusesse em execução a idéia tortuosa que crescia em seu cérebro feito uma célula cancerosa.
Ele olhou para as próprias mãos novamente. “Talvez você tenha”, repetiu em voz alta, e então se afastou de nós.
Ficamos observando-o voltar para junto do amigo ao lado da mesa de bilhar. O amigo pegou sua cerveja, e o sujeito de cabeça raspada fez um gesto em nossa direção.
“Helene é viciada em drogas?”, perguntou Angie a Dave.
“Por que diabos eu iria saber?”, disse Dave. “O que você está querendo insinuar?”
“Dave”, eu disse.
“Big Dave”, ele corrigiu.
“Big Dave”, eu disse. “Estou pouco ligando se você tem drogas debaixo do balcão. Estou pouco ligando se você as fornece para Helene McCready regularmente. O que queremos saber é se ela é viciada o bastante para ter uma grande dívida com alguém.”
Dave sustentou meu olhar por uns trinta segundos, tempo suficiente para que eu percebesse que ele era osso duro de roer. Então voltou os olhos para a televisão.
“Big Dave”, disse Angie.
Ele voltou sua cabeça de bisão.
“Helene é dependente de drogas?”
“Sabe”, disse Dave. “Você é muito sexy. Se algum dia você quiser um rala-e-rola com um homem de verdade, pode ligar pra mim.”
Angie disse: “Você conhece algum?”.
Big Dave tornou a olhar para a televisão.
Angie e eu nos entreolhamos. Ela deu de ombros. Eu fiz o mesmo. Pelo visto, o problema de atenção de que sofriam Helene e sua amiga era tão comum que podia encher um pavilhão de hospital psiquiátrico.
“Helene não tinha grandes dívidas”, disse Big Dave. “Ela me deve uns sessenta paus. Se devesse a mais alguém por... serviços prestados, eu saberia.”
“Ei, Big Dave”, disse um dos homens na ponta do balcão. “Você já perguntou a ela se ela chupa?”
Big Dave abriu os braços em sinal de impotência e deu de ombros. “Pergunte você mesmo.”
“Ei, gostosa”, falou o homem. “Ei, gostosa.”
“E namorados?”, disse Angie mantendo os olhos em Dave, a voz clara, como se nada do que aqueles babacas estavam falando tivesse a ver com ela. “Será que Helene tinha algum que pudesse ter raiva dela?”
“Ei, gostosa”, falou o homem. “Olhe pra mim. Olhe pra cá. Ei, gostosa.”
Big Dave deu um risinho e ignorou os quatro sujeitos, servindo-se de mais cerveja. “Há mulheres que podem fazer você pirar, e mulheres por quem você lutaria.” Ele sorriu para Angie por sobre o copo de cerveja. “Você, por exemplo.”
“E Helene?”, perguntei.
Big Dave sorriu para mim como se achasse que eu estava preocupado com seu assédio a Angie. Ele lançou um olhar aos outros clientes do bar e piscou para mim.
“E Helene?”, repeti.
“Você a viu, não é? Ela não é de jogar fora. Mas basta olhar pra ela pra ver que não é boa de cama.” Ele se inclinou para Angie por cima do balcão. “Agora, você, aposto que já nocauteou muitos caras, não é, minha linda?”
Ela balançou a cabeça e deu um risinho.
Os quatro caras do balcão, agora totalmente despertos, olhavam-nos com um estranho brilho nos olhos.
O filho de Lenny levantou-se e dirigiu-se à porta.
Angie abaixou os olhos para o balcão e tamborilou sobre o descanso de copo imundo.
“Não vire para outro lado quando falo com você”, disse Big Dave. Sua voz agora estava mais pastosa, como se a garganta estivesse cheia de catarro.
Angie levantou a cabeça e olhou para ele.
“Assim é melhor.” Big Dave aproximou o rosto ainda mais. Seu braço esquerdo deslizou para debaixo do balcão, procurando alguma coisa.
Ouviu-se um estalo ruidoso quando o filho de Lenny girou o trinco da porta da frente.
A coisa funciona mais ou menos assim. Uma mulher inteligente, bonita e com amor-próprio entra num lugar como esse, e os homens põem os olhos naquilo que nunca tiveram e nunca poderão ter. Então eles são forçados a encarar as deficiências de caráter que os levaram a um lugar sórdido como aquele. Imediatamente, raiva, inveja e desgosto irrompem em seus cérebros atrofiados. E eles decidem fazer que a mulher pague — por sua inteligência, por sua beleza e, principalmente, por seu orgulho. Eles resolvem dar o troco, prendê-la contra o balcão, cuspir e vomitar nela.
No vidro da máquina de cigarros, vi meu reflexo e o dos dois homens atrás de mim. Eles vinham da mesa de bilhar, tacos em punho, o careca na frente.
“Helene McCready”, disse Big Dave, os olhos ainda fixos em Angie, “não é nada. Uma fracassada. Isso quer dizer que sua filha iria pelo mesmo caminho. Então, seja lá o que for que tenha acontecido, foi melhor pra ela. O que eu não gosto é de gente que entra em meu bar e fica insinuando que sou traficante, falando como se fosse melhor do que eu.”
O filho de Lenny encostou-se na porta e cruzou os braços sobre o peito.
“Dave”, eu disse.
“Big Dave”, ele corrigiu com os dentes cerrados, os olhos sempre fixos em Angie.
“Dave”, repeti. “Pare de bancar o babaca.”
“Você ouviu o que ele falou, Big Dave?”, disse Angie, a voz um pouco trêmula. “Não seja estúpido.”
Eu disse: “Olhe pra mim, Dave”.
Dave olhou em minha direção, menos para me obedecer que para verificar a posição dos sujeitos que se aproximavam de mim pelas costas, armados de tacos, e de repente ficou paralisado ao ver o Colt Commander 45 na minha cintura.
Eu o tinha tirado do coldre escondido nas costas no momento em que o filho de Lenny se aproximou da porta para bloqueá-la. Dave levantou os olhos de minha cintura para meu rosto, e não levou muito tempo para perceber a diferença entre uma pessoa que simplesmente exibe uma arma e outra que faz isso com a intenção de usá-la.
“Se algum desses caras que estão atrás de mim der mais um passo à frente”, eu disse a Big Dave, “a situação aqui vai ficar preta.”
Dave olhou por cima de meu ombro e balançou a cabeça rapidamente.
“Mande aquele babaca se afastar da porta”, disse Angie.
“Ray”, chamou Big Dave. “Vá se sentar.”
“Por quê?”, perguntou Ray. “Que diabos eles têm com isso? Este é um país livre e toda essa baboseira, não é?”
Rocei o indicador no gatilho do 45.
“Ray”, disse Big Dave, agora com os olhos fixos em mim. “Afaste-se da porta, ou então taco a porra da sua cabeça nela.”
“Tudo bem”, disse Ray. “Tudo bem, tudo bem. Puxa, Big Dave. Que merda.” Ray fez que sim com a cabeça, mas em vez de voltar para sua cadeira, abriu a porta e saiu do bar.
“Esse Ray é um tremendo orador, hein?”, comentei.
“Vamos puxar o carro”, disse Angie.
“Claro.” Com a perna, empurrei o banquinho em que estava sentado.
Quando me voltei para a saída, vi os dois jogadores de bilhar à minha direita. Olhei para o que derramara cerveja em meu sapato. Ele segurava o taco pela ponta, com as duas mãos, o cabo encostado no ombro. Ele era estúpido o bastante para continuar ali, mas não para tentar se aproximar.
“Agora você está com um problema”, eu disse a ele.
Ele olhou para o taco, e para o suor que escurecia a madeira sob a palma de suas mãos.
Eu disse: “Largue o taco”.
Ele calculou a distância que havia entre nós e notou que meu indicador estava a um centímetro do gatilho do 45. Ele olhou para meu rosto. E então se inclinou e colocou o taco junto aos pés e recuou um pouco quando o taco de seu amigo caiu ruidosamente no chão.
Eu me voltei, afastei-me uns cinco passos e parei. Olhei então para Big Dave. “O quê?”, perguntei.
“Como?”, disse Dave olhando para minhas mãos.
“Achei que você tinha dito alguma coisa.”
“Eu não disse nada.”
“Achei que você tinha dito que talvez não tenha nos contado tudo que podia sobre Helene McCready.”
“Não”, respondeu Big Dave levantando as mãos. “Eu não disse nada.”
“Angie, você acha que Big Dave nos contou tudo?”
Encostada no batente da porta, segurando molemente o trinta-e-oito na mão esquerda, ela respondeu: “Negativo”.
“A gente acha que você está escondendo o leite, Dave”, eu disse dando de ombros. “É só um palpite.”
“Eu já disse tudo. Agora acho que vocês dois deviam simplesmente...”
“Voltar hoje à noite quando você estiver fechando o bar?”, eu disse. “Grande idéia, Big Dave. Você está querendo colaborar. Fechado, nós vamos voltar.”
Big Dave balançou a cabeça várias vezes. “Não, não.”
“Digamos... umas duas, duas e quinze?”, eu disse balançando a cabeça. “Até lá, Dave.”
Voltei-me e dei os últimos passos para sair do bar. Ninguém quis me encarar. Todos mantinham os olhos em suas cervejas.
“Ela não estava na casa de sua amiga Dottie”, disse Big Dave.
Voltamo-nos e olhamos para ele. Ele se debruçou sobre a pia do balcão e esguichou água no rosto com a mangueira.
“Coloque as mãos em cima do balcão, Dave”, disse Angie.
Dave levantou a cabeça, piscou os olhos por causa da água e pôs as mãos bem abertas em cima do balcão. “Helene...”, ele disse. “Ela não estava na casa de Dottie. Ela estava aqui.”
“Com quem?”, perguntei.
“Com Dottie. E com Ray, o filho de Lenny.”
Lenny levantou a cabeça e disse: “Cala essa porra dessa boca, Dave”.
“O sujeito assustado que estava bloqueando a porta?”, perguntou Angie. “Esse Ray?”
Big Dave fez que sim com a cabeça.
“O que eles estavam fazendo aqui?”, perguntei.
“Não diga mais uma palavra”, disse Lenny.
Big Dave olhou para ele desesperado, depois novamente para mim e Angie. “Só bebendo. Helene sabia muito bem que pegava mal deixar a menina sozinha. Se a imprensa ou os policiais soubessem que ela estava num bar, a dez quarteirões de distância, e não na casa de uma vizinha, seria ainda pior.”
“Que tipo de relação ela tem com Ray?”
“Acho que eles transam de vez em quando”, disse ele dando de ombros.
“Qual o sobrenome de Ray?”
“David!”, disse Lenny. “David, você vai fechar a...”
“Likanski”, disse Big Dave. “Ele mora em Harvest.” Dave respirou fundo.
“Você é um bosta”, Lenny gritou para Big Dave. “É isso que você é e sempre vai ser, e todos os seus descendentes, e tudo o que você toca. Bosta!”
“Lenny”, eu disse.
Lenny me deu as costas. “Se você pensa que vou dizer uma palavra a você, garoto, está viajando. Posso estar olhando pra minha cerveja, mas sei que você está com uma arma, e a moça também. Então, porra... atirem logo em mim, ou vão embora.”
Ouvimos o som de uma sirene se aproximando.
Lenny voltou a cabeça e abriu um largo sorriso. “Parece que eles estão vindo atrás de vocês, não é?” O sorriso transformou-se em uma dura e amarga gargalhada que pôs à mostra uma boca vermelha, em petição de miséria, quase sem dentes.
Ele acenou para mim quando a sirene estava próxima o bastante para eu ter certeza de que estava na ruela. “Agora, até mais. Queimem um fuminho, se vocês tiverem.”
A gargalhada amarga soava ainda mais forte, e parecia a tosse de alguém com tuberculose em estado avançado. Mais alguns segundos, e seus companheiros também se puseram a rir. Primeiro de um jeito nervoso, e logo de modo mais escancarado, quando ouvimos as portas do carro da polícia se abrirem lá fora.
No momento em que saímos do bar, parecia estar rolando uma festa lá dentro.
5
Quando saímos do bar, demos de cara com a grade do radiador de um Ford Taurus preto estacionado a poucos centímetros da porta. O mais jovem dos dois investigadores, um sujeito grandalhão que exibia um sorriso de garotinho, debruçou-se na janela do motorista e desligou a sirene.
Seu colega, que estava sentado no capô do carro, pernas cruzadas, um sorriso mais frio no rosto redondo, fez: “Uuu, uuu, uuu”. Com o indicador levantado e girando o punho, ele repetiu: “Uuu, uuu, uuu”.
“Impressionante”, eu disse. “Uma imitação perfeita.”
“Não é mesmo?”, ele devolveu, batendo as mãos uma na outra e deslizando do capô até os pés se apoiarem na grade do radiador, os joelhos quase tocando as minhas pernas.
“Você deve ser Pat Kenzie”, disse ele, estendendo a mão na direção do meu peito. “Prazer em conhecê-lo.”
“Patrick”, respondi, e apertei-lhe a mão.
Ele balançou a minha mão vigorosamente duas vezes. “Sargento investigador Nick Raftopoulos. Pode me chamar de Poole. É assim que todo mundo me chama.” Ele inclinou o rosto de traços delicados em direção a Angie. “Você deve ser Angela.”
Ela apertou sua mão. “Angie.”
“Prazer em conhecê-la, Angie. Alguém já lhe disse que seus olhos são iguais aos de seu pai?”
Angie levantou a mão um pouco acima das sobrancelhas e deu um passo em direção a Nick Raftopoulos. “Você conheceu meu pai?”
Poole pôs as mãos nos joelhos, palmas voltadas para cima. “Mais ou menos. Conhecemo-nos na condição de adversários, mas apreciei o homem, senhorita. Ele tinha classe. Para falar a verdade, senti muito o seu... passamento, se é que se pode dizer assim. Ele era uma pessoa rara.”
Angie lhe deu um sorriso afetuoso. “É muita gentileza sua me dizer isso.”
A porta do bar abriu-se às nossas costas, e senti de novo o cheiro de leite azedo.
O jovem policial lançou um olhar para a pessoa que estava atrás de nós. “Volte para dentro, cretino. Sei de uma pessoa que quer ajustar contas com você.”
O cheiro de leite azedo se dissipou, e a porta se fechou outra vez.
Poole apontou o polegar por sobre o ombro. “Esse garotão animado aí atrás é meu colega Remy Broussard.”
Saudamo-nos com um movimento de cabeça. Olhando melhor, percebia-se que era mais velho do que parecia à primeira vista. Devia ter uns quarenta e três, quarenta e quatro anos. Logo que saímos do bar, achei que ele tinha a minha idade, por causa do sorriso inocente de Tom Sawyer; mas, num segundo olhar, os pés-de-galinha em volta dos olhos, o rosto vincado e as mechas grisalhas entremeando-se nos cabelos castanho-claros encaracolados lhe acrescentavam uns dez anos. Tinha o porte de quem praticava musculação pelo menos quatro vezes por semana, uma sólida massa muscular atenuada pelo terno italiano transpassado, o colarinho desabotoado, uma gravata Bill Blass azul e amarela, com um nó um tanto frouxo.
Quando ele limpou um pouquinho de poeira da beirada de seu Florsheim esquerdo, pensei: um janota. O tipo do cara que pelo visto nunca passava na frente de um espelho sem mirar-se demoradamente. Mas quando ele se apoiou na porta do motorista, que estava aberta, para nos observar melhor, adivinhei nele um espírito bastante perspicaz, uma inteligência prodigiosa. Ele podia ficar se mirando nos espelhos, mas duvido que deixasse de notar o que se passava atrás dele nesses momentos de autocontemplação.
“Nosso caro tenente, o fervoroso Jack Doyle, disse que devíamos procurá-los”, disse Poole. “Então, cá estamos.”
“E cá estamos nós”, respondi.
“Estávamos subindo a avenida em direção ao escritório de vocês”, continuou Poole. “Aí vimos o Magrelo, Ray Likanski, saindo em disparada desta ruela. Faz tempo que conheço o pai de Ray, alcagüete da pior espécie nos velhos tempos. O detetive Broussard não seria capaz de distinguir o Magrelo Ray de Sugar Ray, mas eu disse: ‘Pare essa carroça, Remy. Aquele plebeu é Ray Likanski, o Magrelo, e ele parece estar em apuros’.” Poole sorriu e tamborilou os dedos nos joelhos. “Ray gritava que havia alguém mostrando uma arma neste fino estabelecimento.” Ele olhou para mim erguendo uma sobrancelha. “ ‘Uma arma?’, eu disse ao investigador Broussard. ‘Num clube de cavalheiros como o Filmore Tap? Não acredito...’ ”
Olhei para Broussard. Encostado na porta do motorista, braços cruzados sobre o peito, ele deu de ombros como a dizer: esse meu parceiro é uma figura.
Poole tamborilou depressa no capô do Taurus para chamar a minha atenção. Olhei para ele. Seu rosto delicado e bronzeado abriu-se novamente num sorriso de elfo. Troncudo, com certeza já próximo dos sessenta anos, cabelos cor de cinza de cigarro cortados à escovinha. Depois de passar a mão nos cabelos eriçados, apertou os olhos à luz daquele meio de tarde. “Essa suposta arma não poderia ser esse Colt Commander que estou vendo em seu quadril direito, senhor Kenzie?”
“Poderia”, eu disse.
Sempre sorrindo, Poole apontou o Filmore Tap com o queixo. “Nosso Big Dave Strand... ele continua firme e forte?”
“Da última vez que ouvi falar...”
“Você acha que devíamos prender vocês dois por agressão?”, perguntou Broussard tirando um tablete de chiclete Wrigley do invólucro e enfiando-o na boca.
“Primeiro ele vai ter de dar queixa”, eu disse.
“E você acha que ele não vai fazer isso?”, perguntou Poole.
“Temos certeza de que não”, disse Angie.
Poole olhou para nós, sobrancelhas erguidas. Depois voltou a cabeça e olhou para seu colega. Broussard deu de ombros, e os dois deram um risinho.
“Puxa, não é uma coisa espantosa?”, disse Poole.
“Big Dave tentou usar o seu charme para conquistá-la?”, perguntou Broussard a Angie.
“Tentou é a palavra exata”, disse Angie.
Ainda mascando seu chiclete, Broussard abriu um sorriso, esticou o corpo o máximo que pôde, os olhos fixos em Angie, como se a reexaminasse.
“Falando sério”, disse Poole, embora no mesmo tom descontraído. “Algum de vocês disparou sua arma aí dentro?”
“Não”, respondi.
Poole estendeu a mão e estalou os dedos.
Tirei a arma da cintura e entreguei a ele.
Ele tirou o pente, puxou o ferrolho, examinou a câmara para ter certeza de que estava desarmada antes de cheirar o cano. Então balançou a cabeça em sinal de aprovação, colocou o pente na minha mão esquerda e a arma na direita.
Recoloquei a arma no coldre, às minhas costas, e deixei cair o pente no bolso do meu casaco.
“E as suas licenças?”, perguntou Broussard.
“Em dia, em nossas carteiras”, disse Angie.
Poole e Broussard riram um para o outro novamente. Os dois ficaram nos encarando até que nos demos conta do que eles estavam esperando.
Eu e Angie pegamos nossas licenças e entregamos a Poole, que continuava no capô do carro. Poole deu uma rápida olhada nos papéis e os devolveu.
“Acha que devemos interrogar os clientes do Filmore Tap, Poole?”, disse Broussard.
Poole olhou para ele. “Estou com fome.”
“Eu também beliscaria alguma coisa”, disse Broussard.
Poole olhou para nós, erguendo as sobrancelhas. “E vocês dois? Estão com fome?”
“Não muito”, respondi.
“Tudo bem. De qualquer forma”, acrescentou Poole tocando delicadamente em meu cotovelo, “no lugar aonde pretendo levar vocês eles servem uma comida horrível. Mas a água é uma maravilha. A melhor do pedaço. Diretamente da torneira.”
O Victoria Diner era em Roxbury, bem na fronteira com o nosso bairro, e na verdade servia uma comida excelente. Nick Raftopoulos pediu costeleta de porco. Remy Broussard, um sanduíche de peru.
Angie e eu tomamos café. “Quer dizer que vocês não estão chegando a lugar nenhum?”, disse Angie.
Poole mergulhou uma costeleta de porco no molho de maçã. “Para falar a verdade, não.”
Broussard limpou a boca com o guardanapo. “Nunca nenhum de nós trabalhou num caso tão demorado e tão explorado pela mídia sem que as coisas terminassem mal.”
“Vocês acham que Helene não teve participação no desaparecimento?”, perguntei.
“A princípio, desconfiávamos dela”, disse Poole. “Minha hipótese era que ela vendera a menina ou que algum traficante, a quem Helene devia, a tinha seqüestrado.”
“O que o fez mudar de opinião?”, perguntou Angie.
Poole mastigava um bocado de comida, e cutucou Broussard para que respondesse.
“O detector de mentiras. Ela passou no teste sem problema. Além disso, sabe esse cara que está devorando costeletas de porco? É muito difícil mentir para ele e para mim quando interrogamos uma pessoa juntos. Helene está mentindo, não me entenda mal, mas não sobre o desaparecimento de sua filha. Ela realmente não sabe o que aconteceu com a filha.”
“E quanto ao lugar onde ela estava no dia do desaparecimento?”
Broussard parou o sanduíche a meio caminho da boca. “Como assim?”
“Você acredita na história que ela contou à imprensa?”, disse Angie.
“Há algum motivo pelo qual eu não deva acreditar?”, disse Poole, mergulhando o garfo no molho de maçã.
“Big Dave nos contou uma história diferente.”
Poole recostou-se na cadeira e bateu as mãos para limpar as migalhas. “E o que é que ele disse?”
“Você acredita ou não acredita na história de Helene?”, perguntou Angie.
“Não muito”, disse Broussard. “A julgar pelo detector, ela estava com Dottie, mas talvez não no apartamento da amiga. Só que ela insiste nessa mentira.”
“Onde ela estava?”, perguntou Poole.
“Segundo Big Dave, ela estava no Filmore.”
Poole e Broussard se entreolharam, depois se voltaram para nós.
“Quer dizer então que ela mentiu para nós”, disse Broussard devagar.
“Ela não queria perder seus quinze segundos”, disse Poole.
“Seus quinze segundos?”, perguntei.
“Quinze segundos de fama”, disse Poole. “Antes eram quinze minutos, hoje em dia são segundos.” Ele soltou um suspiro. “Na televisão, interpretando seu papel de mãe desconsolada, num belo vestido azul. Lembra-se daquela brasileira em Allston, cujo filho desapareceu há uns oito meses?”
“E não foi encontrado”, disse Angie, balançando a cabeça.
“Isso mesmo. Mas o que eu queria dizer é o seguinte: ela tinha a pele escura, estava malvestida e olhava meio assustada para a câmera. Depois de algum tempo o público em geral já não ligava a mínima para o desaparecimento do menino, porque não tinha simpatia por sua mãe.”
“Mas Helene McCready é branca”, disse Broussard. “E tem uma boa postura, faz boa figura para as câmeras. Não é nenhuma estrela, mas pelo menos inspira certa simpatia.”
“Não, não inspira”, disse Angie.
“Oh, pessoalmente?”, disse Broussard, balançando a cabeça. “Pessoalmente, ela é tão simpática quanto uma corda de caranguejos. Mas diante das câmeras, quando ela fala por seus quinze segundos, as lentes a amam, o público a ama. Ela deixou a filha sozinha por quase quatro horas, as pessoas se indignam um pouco, mas a maioria comenta: ‘Bem, todos nós erramos de vez em quando’.”
“E com certeza ela nunca foi tão amada em toda a sua vida”, disse Poole. “E logo que Amanda for encontrada, ou se acontecer alguma coisa que tire o caso das manchetes — e isso fatalmente acontece —, Helene voltará a ser o que era. Mas o que quero dizer é que, por enquanto, ela está aproveitando seus quinze segundos.”
“E você acha que ela está mentindo sobre onde estava só por isso?”, perguntei.
“Provavelmente”, disse Broussard. Ele limpou os cantos da boca com o guardanapo e afastou o prato. “Não nos entenda mal. Estamos indo para a casa de seu irmão, e vamos passar o maior sabão nela por ter mentido para nós. E se ela estiver escondendo mais alguma coisa, vamos descobrir.” Ele apontou a mão em nossa direção: “Graças a vocês dois”.
“Há quanto tempo estão trabalhando no caso?”, perguntou Poole.
Angie olhou para o relógio. “Desde a noite passada.”
“E já descobriram uma coisa que deixamos passar?”, disse Poole com um risinho. “Vocês devem merecer a fama que têm.”
Angie piscou os olhos. “Caramba.”
Broussard sorriu. “Às vezes eu converso com Oscar Lee. Nós dois saímos da Escola de Polícia na mesma época, um milhão de anos atrás. Depois que Gerry Glynn foi abatido no parque, há uns dois anos, perguntei a Oscar sobre vocês dois. Sabem o que ele disse?”
Dei de ombros. “Conhecendo Oscar como conheço, deve ter sido alguma grosseria.”
Broussard balançou a cabeça. “Ele disse que vocês deram com os burros n’água em quase tudo na vida.”
“Esse tipo de comentário é bem dele”, falou Angie.
“Mas disse também que quando vocês põem na cabeça que vão resolver um caso, nem Deus os faria desistir.”
“Esse Oscar é um doce”, falei.
“E agora nós estamos no mesmo caso”, disse Poole, dobrando delicadamente o guardanapo e colocando-o no prato.
“Isso os incomoda?”, perguntou Angie.
Poole olhou para Broussard, que deu de ombros.
“Em princípio, não nos incomoda”, disse Poole.
“Mas é preciso respeitar algumas regras básicas”, acrescentou Broussard.
“Por exemplo?”
“Por exemplo...”, disse Poole, tirando do bolso um maço de cigarros. Ele retirou o celofane devagar, depois o papel de alumínio, e por fim um cigarro Camel sem filtro. Ele o cheirou, inspirando bem fundo o aroma do fumo, inclinando a cabeça para trás e fechando os olhos. Então inclinou-se para a frente, apertou o cigarro apagado no cinzeiro até ele se partir em dois e tornou a colocar o maço de cigarros no bolso.
Broussard sorriu para nós, a sobrancelha esquerda meio levantada.
Poole notou que o estávamos observando. “Desculpem, parei de fumar.”
“Há quanto tempo?”, perguntou Angie.
“Há dois anos. Mas ainda preciso dos rituais.” Ele sorriu. “Os rituais são importantes.”
Angie abriu a bolsa. “Você se importa se eu fumar?”
“Oh, por Deus, não, ao contrário...”, disse Poole.
Ele manteve os olhos em Angie enquanto ela acendia o cigarro, depois inclinou ligeiramente a cabeça. Quando seu olhar cruzou novamente o meu, seus olhos tinham perdido a expressão sonhadora e pareciam capazes de sondar, num relance, as profundezas de meu cérebro e de minha alma.
“Regras básicas”, ele disse. “Não podemos deixar vazar nada para a imprensa. Vocês são amigos de Richie Colgan, do Trib, não é?”
Fiz que sim.
“Colgan não é amigo da polícia”, disse Broussard.
Angie retrucou: “Ele não é pago para ser amigo de ninguém. Ele é pago para ser um repórter”.
“E nada tenho a dizer contra isso”, disse Poole. “Mas não quero que certos elementos relativos a essa investigação sejam comunicados à imprensa contra a nossa vontade. Estamos de acordo?”
Olhei para Angie. Ela ficou examinando Poole através da fumaça do cigarro. Finalmente aquiesceu, com um gesto de cabeça. Eu disse: “De acordo”.
“Maravilha!”, exclamou Poole com um leve sotaque escocês.
“Onde você arranjou esse cara?”, perguntou Angie a Broussard.
“Eles me dão uma gratificação semanal de cem dólares para trabalhar com ele. Uma espécie de adicional de periculosidade.”
Poole inclinou-se sobre a fumaça do cigarro de Angie, e a aspirou. “Em segundo lugar”, ele disse, “vocês dois não são lá muito ortodoxos. Quanto a isso, tudo bem. Mas não podemos ter vocês nessa investigação e descobrir que estão exibindo armas de fogo para arrancar informações das pessoas na base da violência. Como no caso de Big Dave Strand, por exemplo.”
Angie reagiu: “Big Dave por pouco não me violentou, sargento Raftopoulos”.
“Entendo”, disse Poole.
“Não, não entende”, disse Angie. “Você não tem idéia do que é isso.”
Poole balançou a cabeça. “Peço desculpas. Mas vocês nos garantem que o que aconteceu com Big Dave esta tarde foi uma exceção? Que não vai se repetir?”
“Nós garantimos”, disse Angie.
“Bom, acredito na palavra de vocês. O que estão achando de nossas condições até agora?”
“Se estamos concordando em não passar informações confidenciais para a imprensa, o que, pode acreditar, vai prejudicar minhas relações com Richie Colgan, vocês terão de se comprometer a nos manter informados do que está acontecendo”, eu disse. “Se acharmos que vocês estão nos tratando como tratam a imprensa, vamos ligar para Richie Colgan.”
Broussard aquiesceu. “Não vejo nenhum problema nisso. E você, Poole?”
Poole deu de ombros, os olhos fixos em mim.
Angie disse: “Acho difícil acreditar que uma criança de quatro anos possa sumir tão completamente numa noite quente, sem que ninguém a tenha visto”.
Broussard girava a aliança no dedo. “Eu também.”
“Então, o que vocês conseguiram até agora?”, disse Angie. “Em três dias, vocês devem ter alguma coisa que não saiu nos jornais.”
“Temos doze confissões”, disse Broussard. “Elas vão desde ‘Eu peguei a menina e a comi’ até ‘Eu peguei a menina e a vendi ao pessoal da seita Moon’, que pelo visto paga muito bem.” Ele esboçou um sorriso sem alegria. “Nenhuma dessas doze confissões tem qualquer fundamento. Alguns médiuns dizem que ela está em Connecticut; ela está na Califórnia; não, ela ainda está no estado, mas numa região de bosques. Interrogamos Lionel e Beatrice McCready, e seus álibis são incontestáveis. Mandamos vasculhar as tubulações de esgoto. Interrogamos, em suas próprias casas, todos os moradores da rua, não apenas para saber o que eles viram naquela noite, mas também para verificar, como quem não quer nada, se havia algum sinal da menina. Agora sabemos quem na vizinhança usa cocaína, quem é alcoólatra, quem bate na mulher, quem bate no marido, mas não achamos nada que os ligasse ao desaparecimento de Amanda McCready.”
“Zero”, eu disse. “Na verdade vocês não têm nada.”
Broussard girou a cabeça devagar e se voltou para Poole.
Depois de um minuto olhando para nós do outro lado da mesa, girando a língua na boca e pressionando-a contra o lábio inferior, Poole tirou de uma pasta meio surrada, que estava na cadeira ao seu lado, algumas fotografias em papel brilhante. Ele nos passou a primeira por cima da mesa.
Era um close em preto-e-branco de um homem já próximo dos sessenta anos, cujo rosto dava a impressão de que a pele fora esticada sobre os ossos, repuxada e grampeada na parte de trás do crânio. Os olhos eram descorados e pareciam saltar das órbitas, e a boca pequena por pouco não desaparecia sob a sombra do nariz curvo. De tão encovadas, as faces davam a impressão de que ele acabara de chupar um limão. Dez ou doze fios de cabelo branco tinham sido penteados com os dedos no alto de sua calva pontuda.
“Já viram esse sujeito?”, perguntou Broussard.
Negamos com um meneio de cabeça.
“O nome dele é Leon Trett. Acusado de molestar crianças. Foi condenado três vezes. Na primeira, foi mandado para um hospital psiquiátrico; nas duas últimas, para a cadeia. Terminou de cumprir a terceira pena há dois anos e meio, saiu da penitenciária de Bridgewater e desapareceu.”
Poole nos passou uma segunda foto, dessa vez colorida. Era uma foto de corpo inteiro de uma mulher gigantesca, ombros de carregador, cuja corpulência e a cabeleira loira hirsuta lembravam um cão são-bernardo equilibrado nas patas traseiras.
“Meu Deus”, disse Angie.
“Roberta Trett”, disse Poole. “A encantadora esposa do supracitado Leon. A foto foi tirada dez anos atrás, e ela pode ter mudado um pouco, mas duvido que tenha encolhido. Roberta era conhecida por ter ótima mão para jardinagem. Ela sustenta a si mesma e seu amado Leon trabalhando como florista. Há dois anos e meio deixou o emprego, mudou-se de seu apartamento em Roslindale e saiu de circulação.”
“Mas...”, disse Angie.
Poole nos passou a terceira e última fotografia. Era uma foto de identificação policial de um homem de pele cor de caramelo, olho direito ligeiramente estrábico, traços mal definidos. Ele olhava para a câmera como se estivesse tentando localizá-la numa sala escura, o rosto distorcido por uma mistura de raiva impotente, nervosismo e perplexidade.
“Corwin Earle”, disse Poole. “Também condenado por pedofilia. Saiu há uma semana da penitenciária de Bridgewater. Paradeiro desconhecido.”
“Mas ele conhece os Trett, não é?”, perguntei.
Broussard confirmou com um gesto de cabeça. “Dividia a cela com Leon em Bridgewater. Depois que Leon voltou para o mundo, Corwin Earle ganhou um novo companheiro de cela: Bobby Minton, um assaltante violento de Dorchester. Este, quando não dava umas porradas em Corwin por molestar crianças, ouvia as confidências do molestador. Segundo Bobby Minton, a fantasia predileta de Corwin era a seguinte: quando saísse da prisão, iria procurar seu ex-companheiro de cela Leon e sua maravilhosa esposa Roberta, e os três iriam morar juntos como uma verdadeira família. Mas Corwin não iria bater na porta do outro de mãos vazias. Questão de educação, imagino. E segundo Bobby Minton, o presente não seria uma garrafa de Cutty para Leon e uma dúzia de rosas para Roberta. Seria uma criança. Pequena, Bobby nos contou. Corwin e Leon gostam de crianças pequenas. No máximo nove anos de idade.”
“Esse Bobby Minton telefonou para vocês?”, perguntou Angie.
Poole fez que sim. “Ele nos telefonou logo que ouviu falar do desaparecimento de Amanda McCready. Minton, ao que parece, enchera a cabeça de Corwin Earle com histórias escabrosas sobre o que a boa gente de Dorchester faz com molestadores de crianças. Dizia que Corwin não conseguiria andar dez metros na Dorchester Avenue sem que lhe cortassem o pênis e o enfiassem em sua boca. Minton acha que Corwin Earle elegeu justamente Dorchester como o lugar onde apanhar o presente para os Trett porque queria se vingar dele, Minton.”
“E onde anda Corwin Earle agora?”, perguntei.
“Foi embora. Sumiu. Pusemos sob vigilância a casa de seus pais, em Marshfield, mas até agora nada. Ele saiu da penitenciária num táxi que o levou a uma casa de strip-tease em Soughton, e depois nunca mais foi visto.”
“E esse telefonema, ou seja lá o que for, de Bobby Minton — esse é o único indício que vocês têm da possível ligação de Earle e dos Trett com o desaparecimento de Amanda?”
“É muito pouco, não é?”, disse Broussard. “Eu lhes disse que quase não temos pistas. O mais provável é que Earle não tenha colhões para fazer um seqüestro num bairro desconhecido. Em todo caso, nada em sua ficha corrobora essa possibilidade. As crianças que ele violentou estavam numa colônia de férias onde ele trabalhou há sete anos. Não houve grande violência nem seqüestro. Certamente ele estava contando vantagem para o companheiro de cela.”
“E quanto aos Trett?”, perguntou Angie.
“Bem, Roberta tem a ficha limpa. O único crime de que foi acusada foi o de cumplicidade no assalto a um depósito de bebidas em Lynn, no final da década de setenta. Cumpriu um ano de prisão, respeitou os termos de sua liberdade condicional, e desde então só passou uma noite numa prisão municipal.”
“E Leon?”
“Leon...”, cenho franzido, Broussard olhou para Poole e soltou um assobio. “Leon está mais sujo que pau de galinheiro. Condenado três vezes, acusado vinte vezes. A maioria dos casos foi abandonada, porque a vítima recusava-se a testemunhar. E não sei se você conhece o princípio que se aplica ao abuso de crianças, mas é o mesmo que se aplica a ratos e baratas: onde há um, há mais uma centena por perto. Se você pega um tarado molestando uma criança, pode ter certeza de que ele já molestou mais umas trinta, se tiver um mínimo de inteligência. Assim sendo, calculando por baixo, Leon já deve ter violentado umas cem crianças. Ele estava morando em Randolph, depois em Holbrook, na época em que muitas crianças desapareceram para sempre, por isso a polícia local e os agentes federais o consideram o principal suspeito do assassinato dessas crianças. E mais uma coisa, para que vocês tenham uma idéia do caráter desse sujeito: na última vez que foi preso, a polícia de Kingston encontrou todo um estoque de armas automáticas enterradas perto de sua casa.”
“Ele foi condenado por causa dessas armas?”, perguntou Angie.
Broussard fez que não. “Ele foi esperto o bastante para enterrá-las na propriedade de seu vizinho. A polícia de Kingston sabia muito bem a quem pertencia aquele arsenal — a casa dele estava cheia de cartas da Associação de Rifles, catálogos de armas, o livro Os diários de Turner, que é a bíblia dos neonazistas, ou seja, o equipamento habitual do paranóico armado até os dentes —, mas não tinha meios de provar isso. Não é fácil pegar Leon. Ele é muito cuidadoso e sabe desaparecer sem deixar rastro.”
“Dá para perceber”, disse Angie, num tom um tanto amargo.
Poole tocou de leve na mão de Angie. “Fiquem com as fotos. Olhem com atenção. E mantenham os olhos abertos, para o caso de cruzar com um dos três. Duvido que eles tenham alguma coisa a ver com o caso — nada indica isso, salvo a hipótese de um detento —, mas, pelo que se sabe, atualmente eles são os maiores molestadores de crianças das redondezas.”
Olhos fitos na mão de Poole, Angie sorriu. “Está bem.”
Broussard ergueu um pouco a gravata e tirou um fiapinho. “Quem estava com Helene McCready no Filmore Tap no domingo à noite?”
“Dottie Mahew”, disse Angie.
“Mais ninguém?”
Por um instante, Angie e eu ficamos calados.
“Lembrem-se”, advertiu-nos Broussard. “Jogo aberto.”
“Ray Likanski, o Magrelo”, eu disse.
Broussard voltou-se para Poole. “Conte mais sobre esse sujeito, colega.”
“O canalha!”, exclamou Poole. “E pensar que tivemos em nossas mãos sua majestade, o rei Magrelo, há menos de uma hora.” Ele balançou a cabeça. “Foi um tremendo vacilo.”
“Como assim?”, perguntei.
“Ray Magrelo é um criminoso profissional. Aprendeu com o pai. Com certeza sabe que estamos atrás dele, portanto deve ter sumido. Pelo menos por algum tempo. Ele só nos falou que vocês dois estavam brandindo armas no Filmore para que o deixássemos ir, e ele tivesse tempo de cair fora de Dodge. Os Likanski têm parentes em Allegheny, Remy. Talvez você pudesse...”
“Vou ligar para a polícia de lá”, disse Broussard. “Temos uma chance de agarrá-lo caso tenha infringido os termos de sua liberdade condicional?”
Poole balançou a cabeça. “Nos últimos cinco anos, não foi preso nenhuma vez. Não há nenhuma acusação contra ele. Não está em liberdade condicional. Ele está limpo.” Poole tamborilou na mesa com o indicador. “De qualquer modo, ele vai reaparecer. Esse tipo de verme sempre reaparece.”
“Bom, terminamos?”, disse Broussard quando a garçonete se aproximou.
Poole pagou a conta e saímos os quatro para a luz declinante daquele fim de tarde.
“Se vocês tivessem de apostar”, disse Angie aos policiais, “em que hipótese de explicação para o desaparecimento de Amanda McCready vocês apostariam?”
Broussard pegou outro tablete de chiclete, colocou na boca e começou a mascar devagar. Poole ajeitou a gravata, observando a própria imagem na janela de seu carro.
“Eu diria”, disse Poole, “que nada de bom pode ter acontecido a uma criança de quatro anos desaparecida há mais de oitenta horas.”
“E você, detetive Broussard?”
“Eu diria que ela está morta, senhorita Gennaro.” Ele contornou o carro e abriu a porta do lado do motorista. “O mundo é cruel, e nunca tratou bem as crianças.”
6
Naquele fim de tarde, o Astros disputava uma partida com o Orioles em Savin Hill Park, mas as duas equipes pareciam estar com dificuldade de seguir as regras do jogo. Quando um jogador do Astros atirou uma bola contra o defensor da terceira base do Orioles, este não a pegou porque estava ocupado em arrancar uma folha de grama junto de seu pé. Então o corredor pegou a bola e correu para a base com ela. Pouco antes de alcançá-la, jogou a bola na direção do lançador, que logo a lançou para a primeira base. O defensor a pegou, mas em vez de tocar no corredor, voltou-se para lançá-la no campo externo. O lançador de centro e o lançador de direita correram para a bola e se chocaram violentamente. O lançador da esquerda acenou para a sua mamãe.
A liga de T-ball de North Dorchester para crianças de quatro a seis anos jogava uma vez por semana no campo menor de Savin Hill Park, separado da auto-estrada por uns cinqüenta metros e uma tela de metal. O parque sobranceia a estrada e uma pequena baía chamada Malibu Beach, onde o Iate Clube de Dorchester deveria ancorar seus barcos. Morei a vida inteira no bairro, e nunca vi um iate de verdade ancorado por ali. Mas quem sabe eu tenha olhado nos dias errados.
Quando eu tinha entre quatro e seis anos de idade, a gente jogava beisebol porque na época ainda não havia o T-ball. Lembro-me dos treinadores, de pais gritando que os filhos se concentrassem, das crianças que já tinham sido iniciadas em certas manobras complexas, de nossos pais, que, do montículo, nos testavam, multiplicando as jogadas rápidas e as bolas de efeito. Jogávamos partidas de sete tempos, e tínhamos grande rivalidade com os times das paróquias vizinhas; quando entramos na Pequena Liga, com sete ou oito anos, os times de St. Bart, St. William e St. Anthony, da zona norte de Dorchester, inspiravam o maior respeito.
Enquanto estava ali nas arquibancadas com Angie, observando cerca de trinta meninos e meninas correndo atabalhoadamente e perdendo bolas porque enfiaram o boné na cabeça cobrindo os olhos ou porque estavam entretidos olhando o pôr-do-sol, tive certeza de que o método de treinamento usado quando eu tinha a idade deles preparava muito melhor uma criança para os rigores do verdadeiro beisebol... mas os meninos do T-ball pareciam estar se divertindo muito mais.
Em primeiro lugar, pelo que pude ver, não havia eliminações. Todos os jogadores das duas equipes revezavam-se nos arremessos. Uma vez que cada jogador tivesse feito seu arremesso (e todos o faziam, tendo ou não rebatido a bola), eles trocavam os tacos por luvas com o outro time. Ninguém contava os pontos. Se uma criança era esperta o bastante para pegar a bola e tocar no corredor, o treinador felicitava entusiasticamente os dois jogadores, e em seguida o corredor ficava na base. Uns poucos pais gritavam: “Pelo amor de Deus, pegue a bola, Andrea”, ou: “Corra, Eddie, corra! Não pra esse lado, não pra esse lado!”. Mas na maioria das vezes os pais e os treinadores aplaudiam qualquer trajetória que fosse além de um metro, cada bola defendida e atirada para uma zona que ainda tivesse o mesmo código postal do campo, cada corrida bem-sucedida da primeira para a terceira base, ainda que o menino passasse por cima do montículo do arremessador para chegar lá.
Amanda McCready jogava naquela liga, na equipe Orioles. Ela fora inscrita por Lionel e por Beatrice, que também a levavam aos jogos. A treinadora nos disse que ela costumava jogar na segunda base e pegava bem a bola, quando não se perdia na contemplação da figura do passarinho em sua camiseta.
“Ela perdia algumas bolas por causa disso”, disse Sonya Garabedian sorrindo e balançando a cabeça. “Ela ficava ali, no lugar onde Aaron está, e puxava a camiseta para olhar o passarinho, com quem falava de vez em quando... Nessas horas, se a bola viesse em sua direção... bem, simplesmente teria de esperar que ela acabasse de olhar o lindo passarinho.”
O menino que estava no tee, um gorduchinho meio grande para a sua idade, bateu na bola para a esquerda, e todos os jogadores do campo externo e boa parte dos da área interna correram atrás dela. No momento em que contornava a segunda base, o gordinho resolveu tentar pegá-la também; ele correu para a área externa para se juntar aos colegas que caíam no chão, rolavam uns sobre os outros, ou se chocavam violentamente como carrinhos de bate-bate.
“Isso é uma coisa que nunca vi Amanda fazer”, disse Sonya Garabedian.
“Tentar um home run?”, perguntou Angie.
Sonya balançou a cabeça. “Bem, isso também. Mas está vendo aquele empurra-empurra ali? Se não tiver alguém para acabar com aquilo, eles vão começar a brincar de guerra, esquecendo-se do que vieram fazer aqui.”
Enquanto dois pais avançavam em direção à confusão, em que os meninos saltavam feito artistas de circo, Sonya apontou para uma menininha ruiva que estava jogando na terceira base. Teria uns cinco anos, era menor que qualquer outro jogador dos dois times. A camiseta do uniforme lhe ia até as canelas. Depois de observar por algum tempo a bagunça que acontecia no campo externo, ela se ajoelhou no chão e começou a cavar a terra com uma pedra.
“Aquela é Kerry”, disse Sonya. “Não importa o que aconteça — mesmo se um elefante entrasse no campo e deixasse todas as crianças brincarem com sua tromba —, Kerry não se juntaria a elas. Simplesmente não lhe ocorreria fazer isso.”
“Ela é tímida a esse ponto?”, perguntei.
“Em parte sim”, disse ela, balançando a cabeça. “Mas é muito mais que isso. Ela simplesmente não reage da forma como as outras crianças tendem a reagir. Ela nunca fica triste, mas também nunca está feliz, entende?”
Kerry levantou os olhos do chão por um instante. Ofuscada pelo reflexo do sol poente na placa do arremessador, ela franziu o rosto cheio de sardas e voltou a cavar a terra.
“Nesse sentido, Amanda é como Kerry”, disse Sonya. “Ela não reage muito ao estímulo imediato.”
“É introvertida”, disse Angie.
“Mais ou menos, mas não que dê a impressão de que está matutando um monte de coisas em sua cabecinha. Não é que ela esteja recolhida em seu pequeno mundo. O fato é que ela também não vê nada de interessante neste nosso mundo.” Ela voltou o rosto e olhou para mim, e havia certa tristeza e severidade na maneira como crispou as mandíbulas e na fixidez do olhar. “Vocês conheceram Helene?”
“Sim.”
“O que acharam?”
Dei de ombros.
Ela sorriu. “É esse tipo de reação que ela provoca, não é?”
“Ela vinha assistir aos jogos?”, perguntou Angie.
“Certa vez ela apareceu aqui com Dottie Mahew, e como as duas estavam meio alteradas, faziam um barulho dos diabos. Acho que Amanda ficou incomodada. Ela ficou me perguntando o tempo todo quando o jogo ia acabar.” Sonya balançou a cabeça. “Nessa idade, as crianças não têm a mesma percepção do tempo que nós temos. O tempo apenas lhes parece longo ou curto. Naquele dia, o jogo deve ter parecido interminável para Amanda.”
A maioria dos pais e dos treinadores agora estava no campo, assim como a maioria dos integrantes do Astros. Ainda havia muitas crianças no bololô inicial, mas outras tantas estavam divididas em grupos, brincando de pega-pega, jogando as luvas umas nas outras ou simplesmente rolando na grama feito focas.
“Senhorita Garabedian, alguma vez você viu estranhos assistindo aos jogos?”, perguntou Angie, e em seguida mostrou as fotos de Corwin Earle, Leon e Roberta Trett.
Ela olhou as fotos, piscou diante das dimensões impressionantes de Roberta, e finalmente negou com um gesto de cabeça.
“Está vendo aquele cara corpulento ali, junto das crianças?”, ela perguntou, apontando para um sujeito alto e troncudo, mal entrado nos quarenta anos, cabelo cortado à escovinha. “Aquele é Matthew Hoagland. É fisioculturista profissional e mais de uma vez ganhou o título de Mr. Massachusetts. Uma pessoa encantadora. E ele ama as crianças. No ano passado, apareceu aqui um sujeito que parecia ter sarna; ficou assistindo ao jogo por alguns minutos, e ninguém gostou da forma como ele nos olhava. Então Matt o pôs para fora. Não sei o que Matt disse ao sujeito, mas ele ficou branco e foi embora rapidinho. Depois disso não apareceu mais nenhum estranho. Quem sabe esse tipo de... gente tenha uma rede de informações e espalhe a notícia ou sei lá o quê. Não saberia dizer. Mas não aparecem estranhos para ver os jogos.” Ela olhou para nós. “Quer dizer... até a vinda de vocês.”
Passei a mão nos cabelos. “Como está a minha sarna?”
Ela deu um risinho. “Alguns de nós o reconheceram, senhor Kenzie. A gente se lembra de como salvou aquela criança no parquinho. O senhor pode vir trabalhar como baby-sitter para nós quando quiser.”
Angie me cutucou. “Nosso herói.”
“Fique quieta”, eu disse.
* * *
Passaram-se mais uns dez minutos antes que se conseguisse restabelecer a ordem no campo externo e convencer as crianças a recomeçar o jogo.
Nesse meio tempo, Sonya Garabedian nos apresentou a alguns pais que tinham permanecido nas arquibancadas. Uns poucos conheciam Amanda e Helene, e passamos o resto da partida conversando com eles. O que resultou dessa conversa — além da confirmação de que Helene era uma pessoa preocupada exclusivamente com os próprios interesses — foi um retrato mais completo de Amanda.
Ao contrário de Helene, que descrevia a filha como uma espécie de marionete das comédias da televisão, que só sabia sorrir, aqueles pais disseram que ela raramente ria, era meio desligada e quieta demais para uma menina de quatro anos.
“Minha filha Jessica”, disse Frances Neagly, “entre os dois e os cinco anos de idade não parava quieta. E as perguntas que ela fazia? A toda hora lá vinha ela: ‘Mãe, por que os bichos não falam como a gente? Por que eu tenho dedos nos pés? Por que é que tem água quente e tem água fria?’.” Frances nos deu um sorriso cansado. “Quer dizer, era o tempo todo. Todas as mães que conheço sabem como as crianças de quatro anos podem ser exasperantes. Têm quatro anos, certo? O mundo as surpreende a cada dez segundos.”
“E Amanda?”, perguntou Angie.
Frances Neagly inclinou-se para trás e relanceou os olhos pelo campo, onde as sombras se alongavam e pouco a pouco cobriam os jogadores, dando a impressão de encolhê-los. “Fiquei cuidando dela algumas vezes. Sempre sem que nada tivesse sido combinado antes. Helene aparecia de repente e dizia: ‘Pode ficar com ela um pouquinho?’. E voltava seis ou sete horas depois para pegá-la. E o que é que a gente ia fazer? Dizer que não?” Frances acendeu um cigarro. “Amanda era muito quieta. Nunca deu problema. Nem uma vez. Mas quem espera isso de uma criança de quatro anos? Ela se contentava em ficar sentada no lugar onde você a punha, olhando para as paredes, para a televisão ou o que fosse. Não mexia nos brinquedos de meus filhos, não puxava o rabo do gato nem nada. Simplesmente ficava imóvel feito uma boneca, e nunca perguntava quando a mãe viria buscá-la.”
“Ela tem alguma deficiência mental?”, perguntei. “Quem sabe é autista?”
Ela balançou a cabeça. “Não. Se você conversasse com ela, ela respondia direitinho. Ela sempre parecia um pouco surpresa, mas se mostrava gentil e falava muito bem para a sua idade. Não, ela é uma criança inteligente. Só que um tanto apática.”
“E isso não lhe parecia muito natural”, disse Angie.
Ela deu de ombros. “Sim, acho que sim. Sabe o que é? Ela parecia estar acostumada a ser ignorada.” Um pombo veio voando e mergulhou em direção ao montículo do arremessador, e um menino jogou a luva nele, mas não acertou. Frances nos deu um pequeno sorriso. “E acho isso lamentável.”
Ela se voltou quando sua filha se aproximou da placa do arremessador, segurando o taco molemente com as duas mãos enquanto observava a bola e o montículo à sua frente.
“Jogue-a bem longe, querida”, gritou Frances. “Você consegue.”
A filha virou-se, olhou para a mãe e sorriu. Então balançou a cabeça várias vezes e jogou o taco no chão.
7
Depois do jogo, paramos para comer e tomar uma cerveja no Ashmont Grille, onde Angie teve uma reação — que eu chamaria de stress tardio — ao que nos acontecera no Filmore Tap.
O Ashmont Grille servia o tipo de comida que minha mãe costumava fazer — bolo de carne, batata e muito molho —, e todas as garçonetes também agiam como se fossem mães. Se você não raspasse o prato, elas lhe perguntavam se as criancinhas famintas da China iriam desperdiçar comida. Eu sempre tinha a impressão de que iam nos dizer que só podíamos sair da mesa depois de comer o último bocado da comida.
Caso isso acontecesse, Angie iria ficar lá até a semana seguinte, considerando-se o ritmo com que beliscou o seu frango Marsala. Embora baixa e magra, Angie tem o apetite de um chofer de caminhão recém-saído da estrada. Mas naquela noite ela enrolava o lingüine no garfo, depois parecia esquecer-se dele. Largava o garfo no prato, tomava um pouco de cerveja e ficava olhando para o vazio como se fosse Helene McCready procurando um aparelho de televisão.
Quando ela chegou ao quarto bocado, eu já terminara de comer. Angie viu nisso um sinal de que o jantar acabara, e empurrou seu prato para o meio da mesa.
“No fundo, a gente nunca conhece uma pessoa de verdade”, disse ela, olhos fitos na mesa. “Conhecê-las, entendê-las. É impossível. A gente não pode... sondar o que as faz agir como agem, pensar o que pensam. Se não coincide com o que você pensa, para você não faz o menor sentido, faz?” Ela olhou para mim, e vi que seus olhos estavam vermelhos e úmidos.
“Você está falando de Helene?”
“Helene”, disse ela temperando a garganta, “Helene, Big Dave, os caras do bar, e quem quer que tenha seqüestrado Amanda. Eles não fazem sentido. Eles não...” Uma lágrima rolou em seu rosto, e ela a enxugou com as costas da mão. “Merda.”
Segurei a sua mão, e ela ficou mordendo o lábio e olhando o teto.
“Ange”, eu disse. “Aqueles caras do Filmore são a escória da humanidade. Eles não merecem que a gente pense neles nem por um minuto.”
“Hum hum”, fez ela. Depois respirou fundo e engoliu em seco, tentando aliviar o nó na garganta. “É.”
“Ei”, eu disse, batendo de leve em seu braço com a mão. “Estou falando sério. Eles não são nada. Eles são...”
“Eles seriam capazes de me violentar, Patrick. Tenho certeza.” Ela olhou para mim e distendeu os lábios até eles se fixarem num sorriso estranho, um dos mais estranhos que ela já me deu. Então deu uns tapinhas em minha mão, e seus lábios descaíram, e logo o mesmo aconteceu com todo o seu rosto. Lágrimas brotavam de seus olhos, mas ela tentou manter o sorriso e afagou a minha mão.
Conheço essa mulher desde sempre, e posso contar nos dedos de uma mão as vezes que ela chorou em minha presença. Não entendi imediatamente o que a levara àquilo — eu já vira Angie enfrentar, sem grandes problemas, situações mais terríveis que a que enfrentáramos no bar naquele dia —, mas fosse qual fosse a causa, a dor era real, e vê-la estampada em seu rosto e em seu corpo me cortava o coração.
Quando quis me aproximar, ela fez um sinal para que me afastasse, mas fui sentar-me ao seu lado no banco, e logo ela caiu em meus braços, agarrou-se à minha camisa e chorou em silêncio em meu ombro. Afaguei seus cabelos, beijei-lhe a cabeça, apertei-a contra meu corpo. Eu sentia o sangue pulsando em suas veias enquanto seu corpo estremecia em meus braços.
“Estou me sentindo uma pateta”, disse Angie.
“Não seja ridícula”, respondi.
Fomos embora do Ashmont Grille, e Angie me pediu que parasse no Columbia Park, em South Boston. Arquibancadas em granito formavam uma espécie de ferradura que rodeava a pista poeirenta no extremo do parque, e lá nos instalamos depois de comprar meia dúzia de latas de cerveja e limpar o lugar para sentarmos.
Para Angie, o Columbia Park é um lugar sagrado. Quando o pai dela, Jimmy, desapareceu, vinte anos atrás, numa guerra de gangues, o parque foi o lugar escolhido pela mãe para dizer às filhas que ele estava morto, ainda que não tivessem encontrado o corpo. Angie sempre vem ao parque nas noites de insônia, quando os fantasmas rondam sua cabeça.
O mar ficava uns cinqüenta metros à nossa direita, e a brisa que de lá soprava nos obrigava a nos manter abraçados para não tremer de frio.
Ela se inclinou para a frente, o olhar fixo na pista e na grande extensão verde mais além. “Sabe o que é?”
“Pode falar.”
“Não entendo as pessoas que resolvem fazer mal às outras.” Ela se voltou no degrau onde estava sentada para me olhar de frente. “Não estou falando de pessoas que reagem à violência com violência. Nesse ponto não somos diferentes de ninguém. Estou falando de pessoas que maltratam as outras gratuitamente. Que se comprazem com o horror. Que têm o maior prazer em arrastar os outros para a merda em que vivem.”
“Os caras do bar.”
“Sim. Eles poderiam ter me violentado. A mim.” Ela ficou de boca aberta por um instante, como se só agora sofresse o impacto do que aquilo significava. “E depois iriam para casa comemorar. Não, não, espere...” Ela escondeu o rosto com o braço. “Não, não é isso. Eles não iriam comemorar. Isso não é o pior. O pior é que eles iriam esquecer completamente. Eles iriam devassar meu corpo, violar-me das formas mais torpes que pudessem imaginar, e depois se lembrariam do episódio da mesma forma que a gente se lembra de uma xícara de café. Não como algo a ser comemorado, apenas como mais uma coisa que se fez para ajudar a passar o dia.”
Eu não disse nada. Não havia nada a dizer. Fiquei olhando para ela, e esperei que ela continuasse.
“E Helene. Ela é quase igual àqueles caras, Patrick.”
“Com todo o respeito, acho que você está exagerando, Ange.”
Ela balançou a cabeça, os olhos bem abertos. “Não, não estou. O estupro é uma violência de momento. Uma coisa que queima por dentro, que reduz você a nada, durante o tempo que um idiota leva para enfiar o pau em você. Mas o que Helene faz com a filha...” Ela olhou para a pista empoeirada lá embaixo, tomou um gole de cerveja. “Você ouviu o que aquelas mães contaram. Você sabe como Helene está reagindo ao desaparecimento da filha. Aposto que ela violenta a filha todos os dias, não com agressão, mas com indiferença. Ela estava destruindo por dentro aquela criança, pouco a pouco, como arsênico. É isso o que ela é. Arsênico.” Ela balançou a cabeça, repetindo consigo mesma: “Arsênico”.
Segurei as suas mãos. “Posso telefonar do carro e desistir do caso. Agora mesmo.”
“Não”, disse ela, balançando a cabeça. “De jeito nenhum. Essa gente... essa gente sacana e egoísta, esses Big Daves e Helenes, eles empesteiam o mundo. E eu sei que vão pagar pelo que fizeram. E bem caro. Mas não vou a lugar nenhum antes de encontrar essa criança. Beatrice tem razão. Ela está sozinha. E não tem ninguém por ela.”
“Exceto nós.”
“Exceto nós”, disse ela, balançando a cabeça. “Vou encontrar essa menina, Patrick.”
Havia um brilho de determinação em seus olhos, intenso como eu nunca vira.
“Certo, Angie”, concordei. “Certo.”
“Certo”, disse ela, tocando sua lata de cerveja na minha.
“E se ela já estiver morta?”, perguntei.
“Não está”, respondeu Angie. “Sinto que não está.”
“Mas se estiver?”
“Não está.” Ela terminou a cerveja, jogou a lata numa sacola aos meus pés. “Ela simplesmente não está.” Ela olhou para mim. “Entendeu?”
“Claro”, eu disse.
De volta ao apartamento, toda a energia de Angie se esvaiu imediatamente, e ela adormeceu na cama, em cima da colcha. Tirei a coberta de sob seu corpo, cobri-a e apaguei a luz.
Sentei-me à mesa da cozinha, escrevi AMANDA MCCREADY numa pasta e enchi algumas páginas com anotações relativas às últimas vinte e quatro horas: nossas conversas com os McCready, com os homens do Filmore e com os pais no jogo de T-ball. Quando terminei, levantei-me, peguei uma cerveja na geladeira e fiquei de pé na cozinha enquanto a bebia. Eu não tinha fechado as venezianas das janelas da cozinha, e toda vez que olhava para uma das vidraças negras eu via o rosto de Gerry Glynn, deformado por um ricto, o cabelo ensopado de gasolina, o rosto salpicado com o sangue de sua última vítima, Phil Dimassi.
Fechei as venezianas.
Patrick, sussurrou Gerry de dentro do meu peito. Estou esperando por você.
Quando Angie, Oscar, Devin, Phil Dimassi e eu nos pusemos à caça de Gerry Glynn, de seu comparsa Evandro Arujo e de um psicopata encarcerado chamado Alec Hardiman, duvido que algum de nós tivesse idéia do que aquilo iria nos custar. Gerry e Evandro estripavam suas vítimas, decapitavam-nas, crucificavam-nas, por prazer ou por crueldade, porque Gerry Glynn sentia revolta contra Deus, ou simplesmente porque queriam. Nunca entendi os motivos que os levaram a fazer isso, e duvido que pudesse entender. Mais cedo ou mais tarde os motivos empalidecem à luz das ações a que dão origem.
Eu sempre tinha pesadelos com Gerry Glynn. Sempre ele. Nunca Evandro e nunca Alec Hardiman. Só Gerry. Provavelmente porque eu o conhecia desde menino. Na época em que Glynn ainda era policial, quando cruzava comigo durante uma ronda, sempre abria um sorriso e passava a mão em minha cabeça, como fazia com todas as crianças do bairro. Depois que se aposentou e se tornou proprietário e barman do Black Emerald, eu sempre passava lá para beber com ele. Conversávamos longamente até altas horas da noite, eu me sentia à vontade com ele, confiava nele. E durante todo aquele tempo, no curso de três décadas, ele andara matando crianças que haviam fugido de casa. Toda uma população esquecida que ninguém procurava e cuja ausência ninguém lamentava.
Meus pesadelos variavam, mas em geral Gerry Glynn matava Phil a certa altura do sonho. Na minha frente. Na realidade, eu não o vira cortar a garganta de Phil, embora estivesse a pouco mais de dois metros de distância dos dois. Eu estava no chão do bar de Gerry, tentando evitar que seu pastor alemão me furasse os olhos, mas ouvi o grito de Phil; ouvi-o dizer: “Não, Gerry, não”. Eu o tomei nos braços por um instante, e ele morreu.
Phil Dimassi fora casado com Angie durante doze anos. Até o casamento deles, era o meu melhor amigo. Depois que Angie pediu o divórcio, Phil parou de beber, conseguiu um emprego bem remunerado, e acho que estava a caminho de uma espécie de redenção. Mas Gerry acabou com tudo isso.
Gerry metera uma bala na barriga de Angie. Gerry retalhara meu queixo com uma navalha. Gerry ajudara a destruir o relacionamento que eu mantinha com uma mulher chamada Grace Cole e com sua filha, Mae.
Gerry, com o lado esquerdo do corpo em chamas, apontava uma espingarda para meu rosto quando Oscar lhe deu três tiros nas costas.
Gerry por pouco não nos destruiu a todos.
E estou esperando por você aqui embaixo, Patrick. Estou esperando.
Eu não tinha motivos para achar que nossa busca por Amanda McCready iria nos levar à carnificina que resultou de nosso embate com Gerry Glynn e seus comparsas. Não, nenhum motivo lógico. Com certeza era aquela noite que me punha essas idéias na cabeça, disse comigo mesmo. A primeira noite fria em várias semanas, trazendo pensamentos sombrios. Se fosse como a noite anterior, úmida e balsâmica, eu não estaria me sentindo desse jeito.
Mas ainda assim...
Uma certeza que nos ficou, sem nenhuma sombra de dúvida, da época em que perseguíamos Gerry Glynn, foi a que Angie expressara naquela noite: é muito difícil entender as pessoas. Somos todos seres esquivos cujos impulsos obedecem a forças diversas, muitas delas incompreensíveis até para nós mesmos.
Que motivos teria alguém para seqüestrar Amanda McCready?
Eu não tinha a mínima idéia.
O que leva uma pessoa — na verdade, muitas pessoas — a estuprar uma mulher?
Também quanto a isso eu não tinha a menor idéia.
Deixei-me ficar de olhos fechados por um momento, tentando visualizar a pequena Amanda McCready, tentando valer-me de um sexto sentido que me permitisse saber se ela estava viva ou não. Mas por trás de minhas pálpebras fechadas, a única coisa que vi foi a escuridão.
Terminei de tomar minha cerveja e fui dar uma olhada em Angie.
Ela estava deitada de bruços no meio da cama, um braço estendido na direção do meu travesseiro, do lado em que eu durmo, o outro apertado contra o peito, punho cerrado. Quis deitar-me ao seu lado e estreitá-la nos braços até apagar de sua lembrança o que acontecera no Filmore, até que o medo passasse, que Gerry Glynn passasse, até que a brisa noturna afastasse de nossos corpos enlaçados e de nossa vida toda a fealdade do mundo.
Fiquei na soleira por um bom tempo, vendo-a dormir, acalentando minhas loucas esperanças.
8
Entre o período em que estava separada de Phil e o começo de nossa ligação, Angie namorou um produtor que trabalhava para a New England Cable News Network. Na única ocasião em que o encontrei, não achei nele nada de especial, embora me lembre de que tinha bom gosto em matéria de gravatas. Mas abusava de loção pós-barba. E de fixador de cabelo. E estava saindo com Angie. Tudo somado, a chance de nos encontrarmos num fim de noite para jogar Nintendo ou num sábado para uma partida de softball não era lá muito grande.
Entretanto ele se mostrou muito útil depois, porque Angie falava com ele de vez em quando e, quando precisávamos, ele conseguia para nós gravações dos últimos telejornais locais. Sempre me impressionou em Angie a sua capacidade de manter contato, continuar sendo amiga de um sujeito com quem namorou há dois anos e conseguir que ele lhe faça favores. De minha parte, eu ficaria muito feliz se ligasse para uma ex-namorada e a convencesse a devolver minha torradeira. Com certeza ainda tenho muito que aperfeiçoar em minha técnica de rompimento.
Na manhã seguinte, enquanto Angie tomava banho, desci as escadas e fui receber uma encomenda entregue por um funcionário da FedEx, da parte de Joel Calzada, da NECN. Esta cidade tem oito canais de notícias: as principais redes nacionais, Four, Five e Seven; os canais UPN, WB e Fox; NECN; e finalmente uma pequena estação local independente. Dessas oito estações, que apresentam noticiários ao meio-dia e às seis da tarde, três botam mais um no ar às cinco da tarde; duas, às cinco e meia; quatro, às dez da noite; e quatro dão um resumo das notícias do dia às onze da noite. Além disso, elas têm algumas edições matinais, a partir das cinco, e flashes especiais de um minuto, intercalados várias vezes na programação diária.
A pedido de Angie, Joel nos enviara os videoteipes de todos os telejornais que tratavam do caso Amanda, desde a noite de seu desaparecimento. Não me pergunte como ele conseguiu isso. Quem sabe os produtores passem o tempo todo trocando fitas. Talvez Angie exerça uma extraordinária influência sobre eles. Talvez o milagre se devesse às gravatas de Joel.
Na noite anterior eu passara algumas horas relendo todos os artigos de jornal sobre Amanda, sem nenhum resultado, exceto que minhas mãos ficaram tão sujas de tinta que me diverti enchendo uma folha de papel com minhas impressões digitais antes de ir dormir. Quando um caso se nos afigura denso e cioso de seus segredos feito mármore, a única coisa a fazer é tentar uma nova abordagem, ou pelo menos uma que pareça nova. Era isso que pretendíamos com as fitas: assistir aos noticiários para ver se alguma coisa nos chamaria a atenção.
Tirei oito fitas VHS da caixa da FedEx, empilhei-as no soalho da sala de estar ao lado da televisão. Angie e eu tomamos nosso café-da-manhã na mesinha de centro, comparamos nossas anotações sobre o caso e tentamos elaborar um plano de ação para aquele dia. Mas à exceção de tentar localizar Ray Likanski e de interrogar novamente Helene, Beatrice e Lionel McCready — na vã esperança de que eles se lembrassem de alguma coisa importante, até então esquecida, sobre a noite do desaparecimento de Amanda —, não nos ocorreu quase nada.
Angie recostou-se no sofá enquanto eu recolhia o prato vazio que ela usara no café. “E aí”, disse ela, “às vezes eu me pergunto: por que não aceitei aquele emprego na companhia de eletricidade?” Ela levantou os olhos para mim no momento em que eu punha seu prato em cima do meu. “Muitos benefícios.”
“Excelente plano de previdência”, disse eu, enquanto levava os pratos para a cozinha e os colocava na lavadora.
“Horário de trabalho regular”, gritou Angie da sala de estar, e eu ouvi o barulho do isqueiro quando ela acendeu o primeiro cigarro do dia. “E assistência odontológica.”
Preparei duas xícaras de café para nós e voltei à sala de estar. Os cabelos volumosos de Angie ainda estavam molhados, e seu habitual traje matinal, calça de moletom masculina e uma camiseta folgada, fazia que ela parecesse menor e mais frágil do que na realidade era.
“Obrigada”, disse ela, pegando a xícara de minha mão e virando uma página de suas anotações sem levantar os olhos.
“Esses cigarros ainda vão matar você”, eu disse.
Ela pegou o cigarro no cinzeiro, ainda com os olhos nas anotações. “Eu fumo desde os dezesseis anos.”
“É muito tempo.”
Ela virou outra página. “E durante todo esse tempo você nunca se preocupou com isso.”
“Cada um faz o que quer com o corpo”, respondi.
Ela balançou a cabeça. “Mas agora que dormimos juntos, você considera que meu corpo é um pouco seu também, não é?”
Nos últimos seis meses, eu me acostumara com seu mau humor matinal. O mais das vezes, ela dava mostras de uma energia louca — antes mesmo que eu acordasse, ela já estava de volta de suas aulas de aeróbica e de uma caminhada a Castle Island —, mas até nos melhores dias estava muito longe de ser uma bonequinha falante de manhã. E se ela encasquetasse que tinha se mostrado vulnerável ou fraca (o que para ela era a mesma coisa) na noite anterior, uma fina bruma gelada parecia envolvê-la, como a neblina do amanhecer. Eu podia vê-la, pois ela estava ali, mas bastava desviar os olhos por um segundo para que ela desaparecesse, recolhendo-se atrás dessa nebulosidade, onde ficava escondida por algum tempo.
“Estou incomodando você?”, perguntei.
Ela olhou para mim e me deu um sorriso frio. “Só um pouco.” Ela tomou um gole de café e voltou a concentrar-se nas anotações. “Aqui não tem nada.”
“Paciência”, eu disse, ligando a televisão e colocando a primeira fita no aparelho de vídeo.
Uma contagem regressiva, de sete a zero, apareceu na tela, os números pretos com contornos mal definidos contra um fundo azul, uma legenda indicou a data do desaparecimento de Amanda — e de repente nos vimos no estúdio com Gordon Taylor e Tanya Biloskirka, os dois âncoras especiais do Channel Five. Gordon tinha muita dificuldade em evitar que os cabelos negros lhe caíssem na testa, coisa incomum nesta época de apresentadores que exibem cabeleiras petrificadas, mas seu olhar era penetrante e digno, e sua voz apresentava sempre um leve tremor de indignação, o que compensava o problema do cabelo, mesmo quando ele falava da iluminação das árvores de Natal ou de Barney, o dinossauro de pelúcia. Tanya, com seu sobrenome impronunciável, usava óculos aparentemente para ganhar um ar intelectual, mas todos os marmanjos que conheço acham que ela é uma gata — e a intenção deve ser mesmo essa.
Gordon ajeitou os punhos da camisa, e Tanya multiplicou os trejeitos sexy enquanto se ajeitava na cadeira, manuseava alguns papéis e preparava-se para ler no teleprompter. As palavras CRIANÇA DESAPARECIDA surgiram no boxe de imagem, entre os dois.
“Uma criança desaparece em Dorchester”, disse Gordon gravemente. “Tanya?”
“Obrigada, Gordon.” A câmera aproximou-se para um close. “O desaparecimento de uma menina de Dorchester, de quatro anos de idade, deixou a polícia perplexa e os vizinhos angustiados. Aconteceu poucas horas atrás. A pequena Amanda McCready desapareceu de sua residência, na Sagamore Street, sem deixar, segundo a polícia, ‘o menor vestígio’ ”, disse Tanya, inclinando-se ligeiramente para a frente e usando um tom de voz mais grave no final da frase.
Cortaram para Gordon, que não estava esperando isso. Sua mão ficou parada perto da testa, uma mecha de cabelo entre os dedos. “Para mais informações sobre esse caso chocante, vamos falar ao vivo com Gert Broderick. Gert?”
Tendo ao fundo a rua cheia de vizinhos e de curiosos, Gert, microfone em punho, transmitiu a mesma informação que Gordon e Tanya tinham acabado de dar. Uns seis metros atrás de Gert, do outro lado da fita amarela de isolamento e de policiais uniformizados, Lionel segurava uma Helene histérica, na entrada do edifício. Ela estava gritando alguma coisa, difícil de entender por causa do barulho da multidão, do zumbido dos geradores de eletricidade das equipes de reportagem, das palavras entrecortadas de Gert.
“... e é isso o que a polícia sabe até agora — praticamente nada.” Gert mantinha os olhos fixos na câmera, esforçando-se para não piscar.
Ouviu-se então a voz de Gordon Taylor. “Gert?”
Gert levou a mão ao ouvido esquerdo. “Sim, Gordon. Gordon?”
“Gert.”
“Sim, Gordon. Pode falar.”
“A pessoa atrás de você, na entrada do edifício, é a mãe da menina?”
O câmera deu um zoom na entrada do edifício, ajustou o foco e captou a imagem de corpo inteiro de Helene e Lionel. Helene estava com a boca aberta, lágrimas escorriam-lhe pelo rosto, e sua cabeça fazia um movimento desengonçado para cima e para baixo, para cima e para baixo, como a de um recém-nascido, que ainda não tem o suporte dos músculos do pescoço.
Gert disse: “Acreditamos que se trata da mãe de Amanda, embora isso ainda não tenha sido confirmado até o momento”.
Helene esmurrava o peito do irmão quando, de repente, seus olhos se abriram. Ela soltou um gemido, sua mão esquerda se ergueu por trás do ombro de Lionel, o indicador apontando para alguma coisa fora do campo de visão da câmera. O que víamos ali na entrada do edifício, ao vivo, era a miséria humana, uma feroz violação do caráter privado da dor.
“Ela parece descontrolada”, disse Gordon. Esse Gordon... não deixava passar nada.
“Sim”, concordou Tanya.
“Como o tempo é decisivo nesse caso”, disse Gert, “a polícia está em busca de toda informação que possa ajudar, alguém que talvez tenha visto a pequena Amanda...”
“Pequena Amanda?”, disse Angie, balançando a cabeça. “Que mais ela poderia ser com quatro anos de idade? A gigantesca Amanda? A idosa Amanda?”
“... quem tiver qualquer informação sobre essa menina...”
A fotografia de Amanda tomou toda a tela.
“... por favor ligue para o número que aparece no vídeo.”
O número da Brigada de Proteção às Crianças apareceu sob a foto de Amanda por alguns instantes, e em seguida cortaram novamente para o estúdio. No lugar da chamada CRIANÇA DESAPARECIDA, no boxe, inseriram imagens ao vivo, em que uma Gert Broderick em miniatura acariciava o microfone e mirava a câmera com um olhar vazio e um tanto perplexo no rosto vazio e um tanto perplexo, enquanto Helene continuava alucinada na entrada do edifício e Beatrice juntava-se ao irmão para tentar controlá-la.
“Gert”, disse Tanya. “Você conseguiu falar com a mãe?”
O imediato sorriso da repórter dissimulou o brilho fugaz de contrariedade que perpassou seu olhar vazio. “Não, Tanya. Até agora, a polícia não permitiu que ultrapassássemos o cordão que você vê atrás de mim. Portanto, repito, ainda não sabemos se a mulher descontrolada ali na entrada do edifício é de fato Helene McCready.”
“É trágico”, disse Gordon, no momento em que Helene caía nos braços de Lionel novamente, soltando um grito tão terrível que os ombros de Gert Broderick se contraíram.
“É trágico”, concordou Tanya, enquanto o rosto de Amanda e o número do telefone da Brigada de Proteção às Crianças reapareciam na tela por mais meio segundo.
“Em outro caso chocante”, disse Gordon, quando cortaram de novo para ele, “a invasão de uma casa em Lowell deixou um saldo de pelo menos dois mortos e um terceiro baleado. Estamos com Martha Torsney na cobertura desse caso. Martha?”
Cortaram para Martha, e um monte de neve apareceu na tela por uma fração de segundo, seguindo-se imediatamente uma tela escura — e nós nos preparamos para ver o resto da fita, confiantes de que Gordon e Tanya estariam ali para preencher nossas lacunas emocionais, ensinando-nos como devíamos nos sentir em relação aos acontecimentos que se desenrolavam à nossa frente.
Oito fitas e noventa minutos depois, nada tínhamos conseguido, exceto cãibras e uma impressão ainda mais negativa do jornalismo televisivo. Fora os ângulos de filmagem, nada distinguia uma reportagem das outras. Enquanto as buscas por Amanda se arrastavam, os noticiários mostravam sempre as mesmas coisas: a casa de Helene, entrevistas com ela, declarações de Broussard e de Poole, vizinhos percorrendo as ruas distribuindo folhetos com a foto de Amanda, policiais debruçados sobre a capota do carro, estudando mapas da região à luz de lanternas ou segurando a coleira de cães de busca. E todas as reportagens sempre se encerravam com os mesmos comentários lapidares e lacrimosos, a mesma expressão de consternação e de indignação virtuosa no olhar e no tom de voz dos apresentadores. E agora voltamos a nossa programação normal.
“Bem”, disse Angie, espreguiçando-se com tanto vigor que ouvi sua coluna vertebral estalar feito nozes golpeadas com uma machadinha. “Além de ver um monte de gente conhecida do bairro na televisão, o que é que fizemos esta manhã?”
Inclinei-me para a frente, e meu pescoço também estalou. Logo, logo eu e Angie poderíamos montar uma banda. “Quase nada. Eu vi Lauren Smythe. Eu achava que ela tinha mudado”, eu disse, dando de ombros. “Imagino que ela estava só me evitando.”
“É aquela que atacou você com uma faca?”
“Tesoura. E prefiro achar que se tratava apenas de um bate-bola inicial. Ela não era muito boa nisso.”
Angie bateu em meu ombro com as costas da mão. “Vamos ver. Vi April Norton e Susan Siersma, que eu não via desde o colégio, e Billy Boran e Mike O’Connor, que perdeu um bocado de cabelo, não acha?”
Fiz que sim. “Perdeu muito peso também.”
“E quem vai notar? Ele está careca.”
“Às vezes acho que você é mais superficial do que eu.”
Ela deu de ombros e acendeu um cigarro. “Quem mais nós vimos?”
“Danielle Genter”, respondi. “Babs Kerins. E o puto do Chris Mullen estava em toda parte.”
“Eu também notei. Em todas as reportagens.”
Tomei um pouco de café frio. “Ahn?”
“Ele sempre aparece ao fundo, no começo de cada fita. Mas não aparece nas últimas tomadas.”
Bocejei. “O bom e velho Chris, sempre na figuração”, eu disse, pegando a xícara vazia de Angie, pendurando-a em meu dedo pela asa, ao lado da minha. “Quer mais?”
Ela fez que não.
Fui para a cozinha, coloquei sua xícara na pia, pus mais café na minha. Quando eu estava abrindo a geladeira para pegar o creme, Angie entrou.
“Quando foi a última vez que você viu Chris Mullen aqui no bairro?”
Fechei a geladeira e olhei para ela. “Quando foi a última vez que você viu metade das pessoas que vimos nas fitas?”
Ela balançou a cabeça. “Esqueça todos os outros. Eles estão todos por aqui mesmo. Mas Chris foi morar num bairro mais chique. Comprou um apartamento numa das torres residenciais de Devonshire, acho que em 1987.”
“E daí?”, eu disse, dando de ombros.
“Daí que cabe perguntar em que Chris Mullen trabalha.”
Coloquei o pote de creme junto da minha xícara, no balcão da cozinha. “Ele trabalha para Cheese Olamon.”
“Que por sinal está na cadeia.”
“Grande surpresa.”
“Por qual motivo?”
“Por qual motivo o quê?”
“Por que Cheese Olamon está na cadeia?”
Peguei o pote de creme novamente. “Por que haveria de ser?”, perguntei, voltando-me na cozinha enquanto ouvia minhas próprias palavras, o pote de creme junto de minha coxa. “Tráfico de drogas”, eu disse bem devagar.
“Absolutamente certo.”
9
Amanda McCready não estava sorrindo. Ela olhava para mim com olhos calmos e vazios, o cabelo loiro acinzentado lhe caía molemente em volta do rosto, como se uma mão molhada os tivesse colado nos lados da cabeça. Ela herdara o queixo da mãe, quadrado e pequeno demais para o rosto oval, e os pálidos vincos sob as faces indicavam desnutrição.
Não franzia o cenho nem parecia estar zangada ou triste. Ela simplesmente estava ali, sem manifestar a mínima reação aos estímulos do ambiente. Deixar-se fotografar nada tinha de diferente de comer, vestir-se, ver televisão ou ir passear com a mãe. Ao que parecia, todas as experiências, em sua jovem vida, dispunham-se num plano horizontal, sem altos e baixos, sem nada.
Sua fotografia, ligeiramente descentrada, estava numa folha branca de papel ofício. Sob a foto, sua descrição física. Logo abaixo, lia-se: SE VIR AMANDA, POR FAVOR LIGUE PARA..., e em seguida os nomes de Lionel e Beatrice e o número do telefone deles. Depois, o número da Brigada de Proteção às Crianças e o nome do tenente Jack Doyle, que serviria de contato com o público. Depois ainda, o 911, usado em casos de emergência. No final da lista, liam-se o nome e o telefone de Helene McCready.
Havia uma pilha de cartazes no balcão da cozinha da casa de Lionel, que a deixara ali ao voltar para casa naquela manhã. Lionel passara a noite inteira na rua, colando os cartazes nos postes de iluminação, nas vigas de sustentação das estações do metrô, nos tapumes das construções e nos edifícios condenados, lacrados com pranchas de madeira. Ele cobrira o centro de Boston e Cambridge, enquanto Beatrice e uns trinta vizinhos se dividiram por toda a área suburbana. Quando amanheceu o dia, eles tinham espalhado o rosto de Amanda em todos os lugares — permitidos e não permitidos — que encontraram, num raio de trinta quilômetros em torno de Boston.
Beatrice estava na sala de estar quando nós chegamos, na sua rotina de entrar em contato com a polícia e com o pessoal da imprensa que fazia a cobertura do caso para se informar sobre o progresso das investigações. Depois disso, ela tornava a ligar para os hospitais. Por fim, telefonava para os estabelecimentos comerciais que tinham se recusado a colocar um cartaz de Amanda em suas salas de descanso e refeitórios, pedindo-lhes que explicassem o porquê da recusa.
Não sei a que horas ela ia dormir, se é que dormia.
Helene estava na cozinha conosco, sentada à mesa, comendo uma tigela de cereais, curtindo uma ressaca. Lionel e Beatrice, que certamente acharam um pouco estranho o fato de Angie e eu chegarmos à sua casa junto com Poole e Broussard, levaram-nos até a cozinha. Os cabelos de Lionel ainda estavam molhados do banho, e havia manchas de umidade em seu uniforme da UPS. No pequeno rosto de Beatrice, via-se o ar fatigado de um refugiado de guerra.
“Cheese Olamon”, disse Helene devagar.
“Cheese Olamon”, disse Angie. “Sim.”
Helene coçou o pescoço, onde uma pequena veia pulsava furiosamente, como um besouro preso embaixo da pele. “Eu não sei.”
“Não sabe o quê?”, perguntou Broussard.
“Quer dizer... o nome não me é estranho.” Helene levantou os olhos para mim e enxugou com o dedo uma lágrima que caíra na toalha de plástico da mesa.
“Não lhe é estranho?”, perguntou Poole. “Não me é estranho, senhorita McCready? Posso pôr isso em seu depoimento?”
“O quê?”, disse Helene, passando a mão nos cabelos finos. “O quê? Eu disse que o nome não me era estranho.”
“Um nome esquisito como Cheese Olamon”, disse Angie, “não parece coisa nenhuma. Ou você conhece, ou não conhece.”
“Estou pensando.” Helene passou a mão no nariz devagar, depois fechou-a e olhou para os dedos.
Poole arrastou com ruído uma cadeira no chão, colocou-a em frente a Helene e se sentou.
“Sim ou não, senhorita McCready. Sim ou não.”
“Sim ou não o quê?”
Broussard soltou um suspiro, mexeu na aliança de casamento, bateu o pé no chão.
“Você conhece Cheese Olamon?”, perguntou Poole num sussurro áspero.
“Eu não...”
“Helene!”, exclamou Angie com tal violência que até eu me assustei.
Quando Helene olhou para ela, o besourinho de seu pescoço tinha sido tomado de uma crise epiléptica. Ela tentou sustentar o olhar de Angie por um décimo de segundo, depois abaixou a cabeça. Os cabelos lhe caíram sobre o rosto, e ela emitiu um ruído rouco no momento em que cruzava os pés descalços e crispava os músculos das panturrilhas.
“Eu conheci Cheese”, disse ela. “Um pouquinho.”
“Um pouquinho ou muito?” Broussard tirou do bolso um tablete de chiclete, e o barulhinho do papel-de-alumínio sendo retirado me deu um arrepio na espinha.
Helene deu de ombros. “Eu o conheci.”
Pela primeira vez desde que entramos na cozinha, Beatrice e Lionel saíram do lugar onde estavam encostados: Beatrice foi para perto do fogão, entre mim e Broussard; Lionel sentou-se numa cadeira diante de Helene, do outro lado da mesa. Beatrice então tirou uma chaleira de ferro fundido do fogão e colocou-a sob a torneira.
“Quem é Cheese Olamon?”, perguntou Lionel, debruçando-se sobre a mesa e tirando a mão direita da irmã da frente do rosto. “Helene, quem é Cheese Olamon?”
Beatrice voltou a cabeça em minha direção. “Ele é traficante de drogas ou algo do tipo, não é?”
Ela falara baixinho e, com o barulho da torneira aberta, só Broussard e eu a ouvimos.
Levantei as mãos e dei de ombros.
Beatrice voltou-se novamente para a torneira.
“Helene”, repetiu Lionel num tom agudo, quase exaltado.
“Ele é só um cara, Lionel.” A voz de Helene, cansada e inexpressiva, soava estranhamente distante.
Lionel lançou-nos um olhar interrogativo.
Angie e eu desviamos os olhos.
“Cheese Olamon é traficante de drogas, senhor McCready”, disse Remy Broussard, depois de temperar a garganta. “Entre outras coisas.”
“Quais?”, perguntou Lionel, com uma curiosidade infantil.
“O quê?”
“Você disse ‘entre outras coisas’. Que coisas?”
Beatrice se voltou da torneira, colocou a chaleira no fogão e acendeu o fogo. “Helene, por que você não responde à pergunta de seu irmão?”
Com o rosto ainda escondido pelos cabelos, Helene respondeu no mesmo tom estranhamente distante. “Por que você não vai chupar o pau de algum crioulo, Bea?”
Lionel deu um soco violento na mesa, abrindo uma fissura que avançou pelo tampo barato como um curso d’água no fundo de um canyon.
Helene jogou a cabeça para trás, e os cabelos se afastaram do rosto.
“Escute uma coisa”, disse Lionel, o dedo trêmulo a um centímetro do nariz da irmã. “Não insulte minha mulher, e não faça comentários racistas em minha cozinha.”
“Lionel...”
“Em minha cozinha!”, bradou ele, esmurrando a mesa novamente. “Helene!”
Seu tom de voz era novo para mim. Lionel levantara a voz uma vez em nosso escritório, e aquele tom eu reconheceria. Mas agora era diferente. Um trovão. Uma força capaz de trincar o cimento e fazer tremer um carvalho.
“Quem é Cheese Olamon?”, disse ele, agarrando o canto da mesa.
“É um traficante de drogas, senhor McCready.” Poole pôs a mão no bolso e pegou um maço de cigarros. “Além de pornógrafo e proxeneta.” Ele tirou um cigarro do maço, colocou-o em pé sobre a mesa, inclinou-se para cheirar-lhe a ponta. “E ainda por cima, acredite ou não, sonega impostos.”
Lionel, que evidentemente não conhecia o ritual de Poole com o cigarro, pareceu por um instante paralisado pela visão do espetáculo. Então piscou os olhos e voltou a atenção para Helene.
“Você anda metida com um gigolô?”
“Eu...”
“Um pornógrafo, Helene?”
Helene girou o corpo para dar-lhe as costas, mantendo o braço direito apoiado na mesa, e fitou um ponto qualquer na cozinha, para não ter de encarar nenhum de nós.
“O que você fazia para ele?”, perguntou Broussard.
“Servia de mula de vez em quando.” Helene acendeu um cigarro, pôs as mãos em concha e sacudiu o palito com o mesmo movimento que se faz ao passar giz num taco de bilhar.
“Servia de mula”, disse Poole.
Ela fez que sim.
“De onde para onde?”, perguntou Angie.
“Daqui para Providence. Daqui para Filadélfia.” Ela deu de ombros. “Dependia da procura.”
“E o que você ganhava para fazer isso?”, perguntou Broussard.
“Eles me pagavam em dinheiro ou em droga”, disse ela, com novo dar de ombros.
“Heroína?”, perguntou Lionel.
Ela voltou a cabeça, olhou para ele, o cigarro pendente entre os dedos, o corpo relaxado, quase largado. “Sim, Lionel, às vezes. Às vezes cocaína, às vezes ecstasy e às vezes...”, ela balançou a cabeça, voltou-se para nós, “uma porra dessas.”
“Marcas de agulha”, disse Beatrice. “Não vimos marcas de agulha.”
Poole deu um tapinha no joelho de Helene. “Ela cheirava.” Ele abriu bem as narinas e aproximou-as do cigarro. “Não é mesmo?”
Helene fez que sim. “Assim causa menos dependência.”
Poole sorriu. “Claro que sim.”
Helene empurrou a mão de Poole de seu joelho, levantou-se, foi até a geladeira e tirou uma lata de Miller. Quando ela a abriu com o gesto brusco, a espuma da cerveja aflorou, e ela tomou um bom gole.
Olhei para o relógio: dez e meia da manhã.
Broussard chamou dois detetives da BPC e ordenou-lhes que localizassem Chris Mullen e começassem a vigiá-lo imediatamente. Além dos detetives que já estavam investigando o desaparecimento de Amanda, e dos dois que deveriam localizar Ray Likanski, toda a brigada estava trabalhando dia e noite no caso.
“Isso é estritamente confidencial”, disse ele ao telefone. “Quer dizer que só eu preciso saber o que vocês estão fazendo, entendido?”
Quando ele desligou, seguimos Helene e sua cerveja matinal até a varanda, na parte de trás do edifício. Nuvens chatas, cor de cobalto, deslizavam no céu, e a manhã arrastava-se lenta e acinzentada, enchendo o ar de uma densa umidade, anunciando chuva para o período da tarde.
A cerveja pareceu dar a Helene uma capacidade de concentração que ela normalmente não tinha. Ela se encostou na grade da varanda e nos encarou sem medo e sem autocomiseração e respondeu a nossas perguntas sobre Cheese Olamon e seu braço direito, Chris Mullen.
“Há quanto tempo você conhece Olamon?”, perguntou Poole.
Ela deu de ombros. “Há uns dez, doze anos. Aqui do bairro, mesmo.”
“E Chris Mullen?”
“Mais ou menos o mesmo tempo.”
“Desde quando você colabora com ele?”
Helene afastou a lata de cerveja da boca. “O quê?”
“Onde você conheceu esse tal de Cheese?”, perguntou Beatrice.
“No Filmore.” Ela tomou uma golada de cerveja.
“Quando você começou a trabalhar para ele?”, perguntou Angie.
Mais um dar de ombros. “Durante um tempo, fiz só alguns pequenos trabalhos para ele. Mas de uns quatro anos para cá precisei de mais dinheiro para cuidar de Amanda...”
“Meu Deus”, exclamou Lionel.
Ela lhe lançou um olhar, depois olhou novamente para Poole e Broussard. “... e aí ele me mandava fazer uma ou outra compra. Raramente uma coisa importante.”
“Raramente?”, disse Poole.
Ela piscou os olhos e confirmou com um rápido meneio de cabeça.
Poole girou a cabeça, a língua pressionando o lábio inferior pelo lado de dentro. Ao cruzar o olhar com o do colega, Broussard sacou do bolso mais um tablete de chiclete.
Poole soltou um risinho. “Senhorita McCready, sabe onde o detetive Broussard e eu trabalhamos antes de sermos chamados para a Brigada de Proteção às Crianças?”
Helene fez uma careta. “E o que eu tenho com isso?”
Broussard enfiou o tablete na boca. “Na verdade, nada. Mas só para sua informação...”
“Na Delegacia de Entorpecentes”, disse Poole.
“Como a BPC não é muito grande e tem pouco espírito de camaradagem”, disse Broussard, “a gente está sempre em contato com o pessoal da Entorpecentes.”
“Para saber como andam as coisas”, completou Poole.
Helene olhou para Poole e piscou os olhos, tentando adivinhar em que ia dar aquilo.
“Você disse que transportou drogas pelo corredor de Filadélfia”, disse Broussard.
“Hum hum”, fez Helene.
“Para quem?”
Ela balançou a cabeça.
“Senhorita McCready”, disse Poole. “Não estamos aqui para investigar tráfico de drogas. Dê-nos apenas um nome para que possamos saber se você realmente transportou drogas para Cheese Ol...”
“Rick Lembo.”
“Rick Bem-dotado”, disse Broussard com um sorriso.
“Onde vocês faziam as transações?”
“No Ramada, perto do aeroporto.”
Poole trocou um olhar com Broussard.
“Você chegou a ir a New Hampshire?”
Helene tomou um gole de cerveja e balançou a cabeça.
“Não?”, disse Broussard erguendo as sobrancelhas. “Nada para o lado de Nashua, nenhuma venda rápida para as gangues de motoqueiros?”
Mais uma vez Helene balançou a cabeça. “Não, eu não.”
“Quanto você afanou de Cheese, senhorita McCready?”
“Como?”, disse ela.
“Três meses atrás, Cheese desrespeitou as condições de sua liberdade condicional. Ele pegou de dez a doze anos.” Broussard cuspiu o chiclete por cima da grade. “Quanto você afanou quando soube que ele foi preso?”
“Nada”, disse Helene, fitando os pés descalços.
“Mentira.”
Poole aproximou-se de Helene, tirou delicadamente a lata de cerveja de sua mão, debruçou-se sobre a grade da varanda e derramou o conteúdo no corredor ao lado do edifício.
“Senhorita McCready”, disse ele. “O que andam dizendo por aí, há vários meses, é que Cheese Olamon, pouco antes de ser preso, mandou uma boa partida de droga para uns motoqueiros, num motel de Nashua. A sacola com a droga foi apreendida numa batida, mas o dinheiro não. Como os motoqueiros — todos brutamontes — ainda não tinham dividido a droga, nossos colegas, os policiais do norte, concluíram que a transação tinha sido feita alguns minutos antes da batida. Muitos deles apostam na hipótese de que a mula fugiu com o dinheiro. E isso, segundo o que se diz por aí, era novidade para os comparsas de Cheese Olamon.”
“Onde está o dinheiro?”, perguntou Broussard.
“Não sei do que vocês estão falando.”
“Você aceita submeter-se ao detector de mentiras?”
“Isso eu já fiz.”
“Dessa vez as perguntas serão outras.”
Helene voltou-se para a grade, olhou para o pequeno estacionamento de asfalto, para as árvores mirradas logo adiante.
“Quanto foi, senhorita McCready?”, disse Poole num tom tranqüilo, sem o menor sinal de ameaça ou pressa.
“Duzentos mil.”
A varanda ficou em silêncio durante um minuto.
“Quem foi seu cúmplice?”, perguntou Broussard finalmente.
“Ray Likanski.”
“Onde está o dinheiro?”
Helene se crispou. “Eu não sei.”
“Ah, mentirosa, mentirosa”, disse Poole. “Olha o nariz crescendo!”
Ela se voltou. “Eu não sei. Juro por Deus.”
“Ela jura por Deus”, disse Poole, piscando para mim.
“Bem, já que é assim, temos de acreditar nela”, ironizou Broussard.
“Senhorita McCready”, disse Poole, puxando de sob o paletó os punhos da camisa, alisando-os em seguida sobre a pele. O tom de sua voz era leve, quase musical.
“Escute, eu...”, principiou Helene.
“Onde está o dinheiro?” Quanto mais leve e melodioso era o tom de voz, mais ameaçador Poole parecia.
“Eu não...” Helene passou a mão no rosto, e seu corpo derreou-se contra a grade da varanda. “Eu estava chapada, certo? Saímos do motel. Dois segundos depois, todos os policiais de New Hampshire invadiram o estacionamento. Ray se agarrou comigo, fomos andando sempre em frente e conseguimos passar por eles. Como Amanda estava chorando, eles devem ter pensado que éramos uma família em viagem.”
“Amanda estava lá com você?”, perguntou Beatrice. “Helene!”
“Claro!”, respondeu Helene. “Você queria que eu a deixasse no carro?”
“Quer dizer então que vocês foram embora”, disse Poole. “Você estava chapada. E depois?”
“Ray parou na casa de um amigo. Ficamos lá mais ou menos uma hora.”
“Onde estava Amanda?”, perguntou Beatrice.
Helene fechou a cara. “Vou lá saber, Bea? No carro, ou na casa com a gente. Um dos dois. Eu já disse, eu estava chapada.”
“Quando vocês saíram da casa, o dinheiro estava com vocês?”, perguntou Poole.
“Acho que não.”
Broussard abriu seu bloco de anotações. “Onde era a casa?”
“Numa viela.”
Broussard fechou os olhos por um instante. “Onde fica essa rua? Dê o endereço, senhorita McCready.”
“Eu já disse, eu estava chapada. Eu...”
“Então diga o nome da porra da cidade”, disse Broussard, rilhando os dentes.
“Charlestown.” Ela inclinou a cabeça, pensando um pouco. “Sim. Tenho quase certeza. Ou então foi Everett.”
“Ou Everett”, disse Angie. “Isso limita bastante o campo das possibilidades.”
“Charlestown é a que tem aquele monumento enorme”, eu disse, com um sorriso encorajador. “Você sabe qual é. Parece com o de Washington, só que é em Bunker Hill.”
“Ele está gozando com a minha cara?”, perguntou Helene a Poole.
“Eu não saberia dizer”, disse Poole. “Mas o senhor Kenzie tem razão. Se você estivesse em Charlestown, iria lembrar do monumento, não?”
Mais uma longa pausa enquanto Helene vasculhava o que lhe restava de cérebro. Eu me perguntei se não seria o caso de pegar mais uma cerveja para ela, para agilizar as coisas.
“Sim”, disse ela devagar. “Na volta nós passamos pela colina perto do monumento.”
“Isso quer dizer que a casa era no lado leste da cidade”, disse Broussard.
“Leste?”, disse Helene.
“Você estava mais perto do conjunto habitacional de Bunker Hill, da Medford Street ou da Bunker Hill Avenue do que da Main Street ou da Warren Street.”
“Se você está dizendo...”
Broussard inclinou a cabeça, passou as costas da mão pela barba curta, depois inspirou várias vezes.
“Senhorita McCready”, disse Poole. “Além do fato de a casa ficar no fundo de uma viela, você se lembra de mais alguma coisa sobre ela? Quantos cômodos tinha?”
“Era bem pequena.”
“Digamos que dava para uma família”, disse ele, tomando notas. “De que cor?”
“Eles eram brancos.”
“Quem?”
“Os amigos de Ray. Uma mulher e um cara. Os dois eram brancos.”
“Ótimo”, disse Poole. “Mas e a casa? Qual era a cor da casa?”
Ela deu de ombros. “Não me lembro.”
“Vamos procurar Likanski”, disse Broussard. “É só irmos para a Pensilvânia. Diabos, eu vou dirigindo.”
Poole levantou a mão. “Vamos mais devagar, colega. Senhorita McCready, por favor, tente lembrar-se. Lembre-se daquela noite. Dos cheiros. Da música que Ray Likanski pôs para tocar. Qualquer coisa que a ajude a voltar àquele carro. Você foi de Nashua para Charlestown. É mais ou menos uma hora de carro, talvez um pouco menos. Você estava chapada. Vocês estacionaram na ruela, e então...”
“Não fizemos isso.”
“O quê?”
“Não paramos o carro na ruela. Como ela estava obstruída por um carro velho e quebrado, deixamos nosso carro na rua. Ficamos rodando uns vinte minutos até achar um lugar para estacionar. Estacionar ali é um problema.”
Poole balançou a cabeça. “O carro quebrado na viela tinha alguma coisa que chamasse a atenção?”
Ela fez que não. “Era só um monte de ferro velho em cima de blocos de concreto. Não tinha pneus nem nada.”
“Por isso os blocos”, disse Poole. “Mais alguma coisa?”
Helene já ia balançando a cabeça, mas parou e deu um risinho.
“Você se importa de contar a piada para o resto da classe?”, pediu Poole.
Ela olhou para ele, ainda sorrindo. “O quê?”
“De que você está rindo, senhorita McCready?”
“De Garfield.”
“James A. Garfield? O vigésimo presidente?”
“Ahn?”, fez Helene, arregalando os olhos. “Não, o gato.”
Todos voltamos os olhos para ela.
“Sim, sim, o gato!”, disse ela, abrindo as mãos. “Dos quadrinhos.”
“Hum hum”, fiz eu.
“Lembra quando todo mundo tinha um Garfield no vidro de trás do carro? Bem, aquele carro também tinha. Foi por isso que descobri que ele estava lá havia séculos. Quer dizer, quem é que ainda põe um Garfield no carro hoje em dia?”
“Tem razão”, disse Poole. “Tem razão.”
10
Quando Winthrop e os primeiros colonos chegaram ao Novo Mundo, acharam por bem ocupar uma área de um quilômetro e meio, situada em sua maior parte numa colina, que eles chamaram de Boston, como a cidade inglesa de onde tinham vindo. No primeiro inverno rigoroso que os colonos passaram ali, acharam a água estranhamente salobra, por isso cruzaram o canal, levando o nome de Boston consigo e deixando para trás o território agora sem nome, que mais tarde viria a ser Charlestown.
Desde então, Charlestown se apega a sua identidade de bastião. Irlandesa na origem, habitada por dezenas de gerações de pescadores, marinheiros mercantes e estivadores, Charlestown goza de triste fama por causa de sua lei do silêncio, por sua resistência a falar com a polícia, o que lhe valeu um índice de homicídios que, mesmo sendo baixo, tem a maior taxa de casos não resolvidos do país. Essa mania de calar o bico estende-se até as informações mais banais. Pergunte a alguém de lá onde fica tal ou tal rua, e ele vai olhar você com os olhos semicerrados. E certamente lhe responderá com um: “Que diabos você está fazendo aqui, se não sabe para onde vai?”. E se ele achar você simpático, ainda lhe mostrará o dedo médio.
Assim sendo, é muito fácil se perder em Charlestown. Placas com nomes de ruas desaparecem o tempo todo, e as casas, grudadas umas nas outras, muitas vezes escondem pequenas vielas que levam a outras casas que ficam por trás. As ruas que sobem a colina ou não têm saída, ou obrigam o motorista a dar tantas voltas que ele termina por tomar a direção contrária à que pretendia.
Além disso, cada bairro tem características muito próprias, e a transição de um para outro muitas vezes se dá de forma brusca. O conjunto habitacional Mishawum, por exemplo, dá lugar às belas casas que circundam o Edwards Park, formando uma ferradura; da mesma forma, as estradas que passam diante da Monument Square, com suas majestosas mansões coloniais com fachadas de tijolos vermelhos e remates brancos, mergulham abruptamente, sem aviso prévio nem respeito pela gravidade, na atmosfera sombria do conjunto habitacional de Bunker Hill, uma das áreas mais pobres de West Virginia.
Não obstante, salpicada nessa mistura heteróclita — de tijolo e argamassa, lambris e pedras de calçamento coloniais, tabernas pré-revolucionárias e bairros de marinheiros pós-Tratado de Versalhes — percebe-se uma noção de história difícil de encontrar no resto do país.
Apesar disso, dá nos nervos andar de carro em Charlestown.
E era o que estávamos fazendo durante a última hora, seguindo Poole e Broussard, que levavam Helene no banco de trás do Taurus, circundando Charlestown e cruzando-a em todas as direções. Já tínhamos esquadrinhado toda a colina, contornado por trás os dois conjuntos habitacionais, atravessado, nosso carro colado ao deles, os enclaves de yuppies perto do Bunker Hill Monument e no começo da Warren Street. Tínhamos margeado o cais, passado pelo navio Old Ironsides, pelos estaleiros, pelos hangares outrora sombrios, agora transformados em condomínios de luxo, sacolejamos em estradas esburacadas que circundavam antigas peixarias havia muito esquecidas e cujas ruínas calcinadas ainda avultavam na ponta de uma nesga de terra de onde mais de um jovem ajuizado contemplou pela última vez o luar banhando as águas do Mystic River, no mesmo instante em que uma bala lhe entrava no crânio.
Seguimos o Taurus pela Main Street e a Rutherford Avenue, subimos a colina até a High Street, descemos rumo à Bunker Hill Avenue, avançamos para além da Medford Street, tendo o cuidado de esquadrinhar todas as ruelas intermediárias e becos que de repente avistávamos com o canto do olho. Em busca de um carro sobre blocos de concreto. Em busca de duzentos mil dólares. Em busca de Garfield.
“Mais cedo ou mais tarde”, disse Angie, “vamos ficar sem gasolina.”
“Ora, paciência”, eu disse, enquanto Helene apontava alguma coisa pela janela do Taurus.
Pisei no freio, e mais uma vez o Taurus parou na nossa frente, Broussard saiu com Helene, os dois andaram até uma viela. Depois de darem uma olhada, Broussard perguntou alguma coisa a Helene, e ela balançou a cabeça. Voltaram então para o Taurus, e eu tirei o pé do freio.
“Por que estamos procurando esse dinheiro agora?”, perguntou Angie alguns minutos depois, enquanto descíamos a outra encosta da colina, o capô de nossa Crown Victoria apontado para baixo, os freios rangendo de forma sinistra, o pedal trepidando sob meu pé.
Dei de ombros. “Talvez porque: a, isso é a coisa mais próxima de uma pista que nos surgiu até agora; b, talvez Broussard e Poole agora estejam pensando que esse seqüestro tem a ver com tráfico de drogas.”
“Se for assim, onde está o pedido de resgate? Por que é que nem Chris Mullen nem Cheese Olamon ou um de seus comparsas entraram em contato com Helene?”
“Talvez eles estejam esperando que ela própria estabeleça uma relação entre as duas coisas.”
“Seria esperar demais de uma pessoa como Helene.”
“Chris e Cheese também não ganharam o prêmio Nobel.”
“É verdade, mas...”
Paramos novamente, e dessa vez Helene saiu do carro antes de Broussard, gesticulando feito uma louca em direção a uma caçamba de lixo na calçada. Não se via nenhum dos operários que trabalhavam na reforma da casa do outro lado da rua; mas eu sabia que deviam estar por perto, quando mais não fosse, pelo andaime erguido junto à fachada do edifício.
Puxei o freio de mão, saí do carro e logo vi por que Helene estava tão agitada. A caçamba de lixo, de um metro e meio de altura por um e vinte de largura, escondia a ruela. Logo na entrada se via o Grand Torino do final da década de 1970, sobre blocos de concreto, com um gato cor de laranja fixado no vidro de trás com botõezinhos a vácuo, patas bem abertas, sorrindo feito um idiota através do vidro sujo.
Como era impossível estacionar em fila dupla na rua sem bloqueá-la completamente, passamos mais uns cinco minutos procurando lugar para estacionar na Bartlett Street, no alto da colina. Depois nós cinco descemos andando até a viela. Nesse meio tempo, os operários da construção tinham voltado e andavam em torno dos andaimes com seus refrigerantes e litros de uísque de destilarias clandestinas. Eles assobiaram para Helene e Angie, quando vínhamos descendo a colina.
Ao nos aproximarmos do lugar onde estavam, Poole cumprimentou um deles, e o homem desviou o olhar.
“Senhor Fred Griffin”, disse Poole. “Ainda é chegado numa anfetamina?”
Fred Griffin balançou a cabeça.
“Peça desculpas a estas damas”, disse Poole naquela sua voz macia, quando entrou na viela.
Fred temperou a garganta. “Desculpem, senhoras.”
Helene lhe apontou o dedo médio, e os demais operários vaiaram.
Angie me cutucou quando nos deixamos ficar um pouco atrás dos outros três. “Você não acha que Poole está um pouco nervoso, apesar desse sorriso largo?”
“Pessoalmente”, eu disse, “não quero me meter com ele. Mas eu sou um cagão.”
“É o nosso segredo, querido.” Ela me deu um tapinha na bunda quando entramos na viela, o que provocou mais uma onda de vaias do outro lado da rua.
Fazia muito tempo que o Gran Torino não era usado. Helene tinha razão quanto a isso. Placas de ferrugem e de tinta bege manchavam os blocos de concreto sob as rodas. Os vidros estavam tão empoeirados que me perguntei como conseguíramos enxergar o Garfield um pouco antes. Sobre o painel havia um jornal cuja manchete era sobre a missão de paz da princesa Diana na Bósnia.
O pavimento da viela era de pedras, rachadas em alguns lugares, quebradas em outros, mostrando uma terra cinza meio rosada por baixo. Duas lixeiras de plástico derramavam lixo ao pé de um medidor de gás coberto de teias de aranha. A viela ficava tão espremida entre dois edifícios de dois andares que eu me perguntava como tinham conseguido fazer um carro entrar ali.
No fim da viela, a uns dez metros da rua, erguia-se um edifício térreo quadrado, que devia ser da década de 1940 ou 1950, a julgar pela pobreza de imaginação de suas linhas. Podia ter sido o alojamento do mestre-de-obras de uma construção, ou então uma pequena estação de rádio, e certamente destoaria menos num bairro menos rico do ponto de vista arquitetônico, mas nem por isso seria menos horroroso. Não havia degraus, apenas uma porta empenada, uns cinco centímetros acima dos alicerces. As ripas do telhado eram cobertas com um oleado preto, como se alguém tivesse pensado em colocar um revestimento de alumínio, tendo em seguida desistido, antes de receber o material.
“Você se lembra dos nomes das pessoas que estavam na casa?”, perguntou Poole a Helene, abrindo o coldre com um movimento do polegar.
“Não.”
“Claro que não”, disse Broussard, os olhos escrutando as quatro janelas que davam para a viela, protegidas por venezianas imundas de plástico. “Você disse que eram duas pessoas, não é?”
“Sim. Um cara e a namorada.” Ela levantou os olhos para os dois edifícios, que projetavam sua sombra sobre nós.
Uma janela atrás de nós se abriu, e ao ouvir o ruído todos nos voltamos.
“Meu Deus”, disse Helene.
Uma mulher já próxima dos sessenta anos pôs a cabeça numa janela do primeiro andar e ficou nos observando. Tinha na mão uma colher de pau, de cuja borda caiu na viela um pouco de lingüine.
“Vocês são os caras dos bichos?”
“Como?”, perguntou Poole piscando os olhos.
“Da Sociedade Protetora dos Animais”, disse ela brandindo a colher de pau. “Vocês são da SPA?”
“Nós cinco?”, perguntou Angie.
“Eu telefonei”, disse a mulher. “Eu telefonei.”
“Para falar de quê?”, perguntei.
“Pra falar dessas merdas desses gatos, porra. Eu tenho que agüentar meu neto Jeffrey chorando num ouvido e meu marido reclamando no outro. Você acha que tenho mais um ouvido na nuca para ouvir essas merdas desses gatos?”
“Não, senhora”, disse Poole. “Não estou vendo nenhum ouvido a mais.”
Broussard temperou a garganta. “É claro, daqui nós só podemos ver a senhora de frente.”
Angie tossiu, protegendo a boca com a mão. Poole abaixou a cabeça e fitou os próprios sapatos.
A mulher disse: “Dá pra notar que vocês são policiais”.
“Como você descobriu?”, perguntou Broussard.
“Pela falta de respeito pelas pessoas que trabalham”, respondeu a mulher, batendo a janela com tanta força que as vidraças estremeceram.
“Só podemos ver a parte da frente”, repetiu Poole com um risinho.
“Você gostou dessa tirada?”, perguntou Broussard, voltando-se para a casinha e batendo na porta.
Olhei para as latas de lixo abarrotadas junto do medidor de gás e vi pelo menos umas dez latas de comida de gato.
Broussard bateu novamente. “Eu respeito as pessoas que trabalham”, disse ele, sem se dirigir a ninguém em particular.
“Na maioria das vezes”, concordou Poole.
Olhei para Helene. Por que Poole e Broussard não a deixaram no carro?
Broussard bateu pela terceira vez, e um gato berrou lá dentro.
Broussard afastou-se da porta. “Senhorita McCready?”
“Sim.”
Ele apontou para a porta. “Você podia fazer o favor de girar a maçaneta?”
Helene lançou-lhe um olhar aborrecido, mas fez o que ele pediu, e a porta abriu para dentro.
Broussard sorriu para ela. “E você poderia avançar um passo para dentro da casa?”
Mais uma vez Helene obedeceu.
“Excelente”, disse Poole. “Está vendo alguma coisa?”
Ela olhou para nós. “Está escuro. Mas tem um cheiro engraçado.”
Enquanto fazia anotações, Broussard comentou: “A testemunha declarou que o local tinha um odor anormal”. Ele pôs a tampa na caneta. “Muito bem, agora pode sair, senhorita McCready.”
Angie e eu nos entreolhamos e balançamos a cabeça. Tínhamos de convir: Poole e Broussard conheciam bem o seu ofício. Pedindo a Helene que abrisse a porta e entrasse primeiro, eles não precisavam de um mandado judicial. “Odor anormal” constituía um motivo para a intervenção, e agora que Helene tinha transposto a soleira, qualquer um poderia entrar na casa sem infringir a lei.
Helene saiu para a viela e olhou para a janela de onde a mulher tinha reclamado dos gatos.
Um deles — laranja malhado, esquelético, costelas protuberantes — passou como uma flecha por Broussard, desviou-se de mim, saltou no ar, caiu em cima de uma das latas de lixo e enfiou a cabeça no monte de latas de comida de gato que eu vira.
“Rapazes”, eu disse.
Poole e Broussard, que já cruzavam o vestíbulo, se voltaram.
“Olhem as patas do gato. Tem sangue seco nelas.”
“Argh”, fez Helene.
Broussard apontou para ela. “Você fica aqui. Não se mexa até nós chamarmos.”
Ela mexeu nos bolsos procurando os cigarros. “Nem precisa insistir nisso.”
Poole enfiou a cabeça pela porta aberta e cheirou. Então se voltou, olhou para Broussard, franzindo o cenho e balançando a cabeça ao mesmo tempo.
Angie e eu nos aproximamos deles.
“Inchados”, disse Broussard. “Alguém tem aí água-de-colônia ou perfume?”
Angie e eu fizemos que não. Poole tirou do bolso um frasquinho de Aramis. Até aquele momento, eu não sabia que ainda fabricavam aquilo.
“Aramis?”, eu disse. “O Brut estava em falta?”
Poole arqueou as sobrancelhas várias vezes. “Infelizmente, o Old Spice também.”
O perfume foi passando de mão em mão, e todos o aplicamos abundantemente embaixo do nariz. Angie umedeceu um lenço com ele. Era preferível aquele cheiro nauseabundo que me queimava as narinas a aspirar sem proteção nenhuma o fedor de um inchado.
Inchados era como alguns policiais, paramédicos e médicos chamavam os defuntos encontrados algum tempo depois da morte. Uma vez liberados os gases e os ácidos, depois do estágio da rigidez, o corpo incha, infla e faz coisas de estimular o apetite.
Entramos num vestíbulo da largura do meu carro. Botas de inverno sujas de sal colocadas sobre a pilha de jornais do mês de fevereiro, uma pá com entalhes no cabo, um fogareiro enferrujado e uma sacola com garrafas de cerveja vazias. No pequeno capacho verde, rasgado em vários pontos, as patas dos gatos deixaram manchas de sangue.
Entramos em seguida na sala de estar, e a luz que passava pela janela mesclava-se ao brilho argênteo de um aparelho de televisão ligado, com o volume no ponto mais baixo. O interior da casa estava mergulhado na penumbra, e uma luz cinzenta penetrava pelas janelas laterais, enchendo os aposentos de uma espécie de bruma cor de estanho que acentuava ainda mais o aspecto sórdido do ambiente. O chão estava coberto de retalhos desencontrados de tapetes, costurados uns aos outros segundo o gosto estético de um drogado. Tufos de pêlos apontavam entre as costuras. As paredes eram cobertas de lambris de madeira compensada clara. No teto, pintado de branco, a tinta descascava. Havia um futon em farrapos no sofá encostado na parede, e pouco a pouco, à medida que nossos olhos se acostumavam à penumbra da sala, notei vários pares de olhos brilhantes no tecido rasgado.
Um leve ruído elétrico, como o de cigarras ou o de um gerador de eletricidade, elevou-se de repente do futon, e os vários pares de olhos se deslocaram em movimentos irregulares.
Então eles atacaram.
Ou pelo menos assim pareceu a princípio. Uma cacofonia de miados penetrantes precedeu a debandada geral, enquanto os gatos — siameses, malhados, tigrados e um Hemingway —, com todas as unhas à mostra, saltavam do sofá para a mesinha de centro, enroscavam-se nos pedaços de tapete, passavam entre nossas pernas, chocavam-se contra o rodapé, tal era a pressa em ganhar a porta.
“Nossa Senhora!”, exclamou Poole, pulando numa perna só.
Encostei-me na parede, Angie fez o mesmo, e uma bola de pêlos grossos deslizou por cima de meu pé.
Broussard pulou para a direita, depois para a esquerda, sacudindo freneticamente a aba do paletó.
Mas os gatos nada queriam conosco. O que eles queriam era a luz do sol.
Na rua, Helene começou a berrar quando eles saíram em disparada porta afora. “Puta que pariu! Socorro!”
“O que foi que eu disse a vocês, hein?”, gritou uma voz que reconheci como sendo a da mulher da janela. “Uma praga. Uma maldita praga na cidade de Charlestown!”
O interior da casa ficou de repente tão silencioso que comecei a ouvir o tique-taque de um relógio na cozinha.
“Gatos...”, disse Poole com desprezo, enquanto enxugava a testa com um lenço.
Broussard se abaixou para examinar a bainha das calças, tirou um tufo de pêlos de gato do sapato.
“Os gatos são inteligentes”, disse Angie afastando-se da parede. “São melhores que os cachorros.”
“Mas os cachorros trazem o jornal para nós”, retruquei.
“E os cachorros não rasgam os sofás”, acrescentou Broussard.
“Os cachorros não comem o cadáver do dono quando estão com fome”, disse Poole. “Os gatos comem.”
“Eca!”, fez Angie. “Isso não é verdade, é?”
Fomos andando devagar para a cozinha.
Logo que entramos, tive de parar um instante, recuperar o fôlego e aspirar pelas narinas dilatadas o perfume que passara acima do lábio superior.
“Merda”, disse Angie, enfiando o rosto no lenço.
Havia um homem nu amarrado a uma cadeira. A um ou dois metros dele encontrava-se uma mulher ajoelhada no chão, o queixo apoiado no peito, as alças da camisola branca, manchada de sangue, na altura dos cotovelos, punhos e tornozelos amarrados atrás das costas. Ambos os corpos, inchados de gás, estavam com a cor esbranquiçada de cinza vulcânica, agora que o sangue deixara de circular em suas veias.
O homem recebera um disparo no peito que lhe destruíra o esterno e a parte superior da caixa torácica. Pelo tamanho do rombo, concluí que fora provocado por um tiro de espingarda à queima-roupa. E, infelizmente, Poole estava com a razão no que tange aos hábitos alimentares e à lealdade duvidosa dos felinos. As chagas do homem deviam-se não apenas às balas, mas também a dentadas de gatos. Depois dos danos causados pelas balas, pelo tempo e pelos gatos, a parte superior do peito parecia ter sido aberta de dentro por bisturis.
“Aquilo não é o que eu estou pensando, é?”, perguntou Angie, os olhos fixos no buraco.
“Sinto informá-la”, respondeu Poole, “mas aquilo são os pulmões do cara.”
“Agora é oficial”, disse Angie. “Estou com vontade de vomitar.”
Poole levantou o queixo do homem com a ponta de uma caneta esferográfica e recuou. “Ora! Olá, David!”
“Martin?”, perguntou Broussard, aproximando-se do corpo.
“O próprio”, disse Poole, deixando cair o queixo do homem e tocando em seus cabelos pretos. “Você não me parece muito bem, David.”
Broussard voltou-se para nós. “David Martin. Também conhecido como Pequeno David.”
Angie tossiu no lenço. “Pra mim ele é um bocado alto.”
“O apelido não tem nada a ver com a altura dele.”
Angie lançou um olhar às virilhas do homem. “Oh.”
“Essa deve ser Kimmie”, disse Poole, passando por cima de uma poça de sangue ressecado que o separava da mulher de camisola.
Ele levantou o rosto dela com a caneta e disse: “Oh, meu Deus!”.
Uma chaga negra estendia-se como um pequeno canyon na garganta de Kimmie. O queixo e as maçãs do rosto estavam manchados de sangue ressecado, e os olhos, levantados para o céu, como se implorassem libertação, socorro ou a prova de que existia alguma coisa, qualquer coisa, além daquela cozinha.
Em seus braços se viam muitos cortes profundos, largos e cheios de sangue ressecado. Nos ombros e na clavícula havia queimaduras feitas com ponta de cigarro.
“Ela foi torturada.”
Broussard concordou com um gesto de cabeça. “Na frente do namorado. ‘Diga onde está, senão corto ela outra vez.’ Esse tipo de coisa.” Ele balançou a cabeça, lamentando. “Uma coisa repugnante. Kimmie até que era simpática para uma viciada em drogas.”
Poole afastou-se do corpo de Kimmie. “Os gatos não tocaram nela.”
“O quê?”, perguntou Angie.
Ele apontou para David. “Como você está vendo, eles comeram a carne de Martin, mas não tocaram em Kimmie.”
“Aonde você quer chegar com isso?”, perguntei.
Ele deu de ombros. “Eles gostavam de Kimmie. Não gostavam de David. Pena os assassinos não terem os mesmos sentimentos.”
Broussard parou junto do colega. “Você acha que David entregou o dinheiro?”
Com um muxoxo, Poole abaixou devagar o queixo de Kimmie até o peito. “Esse sujeito era muito ganancioso.” Ele olhou para nós por cima do ombro. “Não quero falar mal dos mortos, mas...”, acrescentou, dando de ombros.
“O Pequeno David e uma outra namorada assaltaram uma farmácia alguns anos atrás e levaram todo o estoque de Demerol, Darvon, Valium etc. Para encurtar a história, a polícia chegou, e os dois tiveram de sair pela porta dos fundos e pular da escada de incêndio, na altura do primeiro andar. A moça fraturou o tornozelo. Dave gostava tanto da namorada que a deixou no meio da rua, tendo o cuidado de antes pegar a parte dela do saque.”
Primeiro, Big Dave Strand. Agora o Pequeno Dave Martin. Está na hora de parar de batizar nossos filhos de David.
Examinei a cozinha. Os ladrilhos tinham sido arrancados, as prateleiras da despensa estavam vazias; o chão estava cheio de latas de alimentos em conserva e saquinhos de batatas fritas vazios. As ripas do telhado tinham sido retiradas e estavam empilhadas junto da mesa, cobertas de uma boa camada de poeira branca. O fogão e a geladeira tinham sido afastados da parede. As portas do guarda-louça estavam escancaradas.
Quem quer que tenha matado o Pequeno David e Kimmie, parecia bem meticuloso.
“Vamos dar o alerta?”, disse Broussard.
Poole deu de ombros. “Por que não fuçamos um pouco mais?”
Poole tirou do bolso vários pares de finas luvas de plástico. Ele as separou e passou um par para cada um de nós.
“Esta é uma cena de crime”, disse Broussard para mim e Angie. “Não a alterem.”
O quarto e o banheiro estavam no mesmo estado lamentável da cozinha e da sala de estar. Tudo fora revirado, rasgado, esvaziado no chão. Comparada ao que eu vira em casas de outros drogados, até que a situação ali não era muito pior.
“A televisão”, disse Angie.
Pus a cabeça para fora do quarto, Poole veio da cozinha, e Broussard apontou na porta do banheiro. Fomos para junto de Angie, perto da televisão.
“Ninguém se lembrou de tocar nela.”
“Provavelmente porque está ligada”, disse Poole.
“E daí?”
“É muito difícil esconder duzentos mil dólares na televisão, e ela continuar funcionando”, disse Broussard. “Vocês não acham?”
Angie deu de ombros, olhou para a tela e viu um dos convidados de Jerry Springer sendo dominado. Ela aumentou o volume.
Um dos convidados de Jerry Springer chamara uma convidada de puta, e um espectador de cachorro nojento.
Broussard suspirou. “Vou procurar uma chave de fenda.”
Jerry Springer lançou aos espectadores um olhar significativo. A platéia vaiou. Muitas palavras foram substituídas por bips.
Atrás de nós, Helene disse: “Legal, o programa do Springer”.
Broussard saiu do banheiro com uma minúscula chave de fenda com cabo de borracha vermelho. “Senhorita McCready”, disse ele. “Por favor, espere lá fora.”
Sem tirar os olhos da tela, Helene sentou-se na beira do futon rasgado. “Aquela mulher está gritando por causa dos gatos. Ela disse que vai chamar a polícia.”
“Você disse a ela que nós somos a polícia?”
Um pequeno sorriso aflorou nos lábios de Helene quando uma das convidadas de Jerry deu um soco em outra. “Eu disse a ela. Mas ela falou que ia telefonar assim mesmo.”
Broussard empunhou a chave de fenda e fez um sinal com a cabeça para Angie. Ela desligou a televisão em meio a uma série de bips.
“Merda!”, disse Helene cheirando o ar. “Que fedor!”
“Quer um pouco de perfume?”
Ela negou com a cabeça. “O trailer de meu ex-namorado fedia mais ainda. Imagine você que ele deixava meias sujas de molho na pia. E o cheiro... vou te contar...”
Poole inclinou a cabeça como se fosse dizer alguma coisa, mas então olhou para ela e mudou de idéia, soltando um suspiro fundo, desesperado.
Broussard desparafusou a tampa de trás da televisão, e eu o ajudei a retirá-la. Examinamos o interior do aparelho.
“Tem alguma coisa?”, perguntou Poole.
“Cabos, fios, alto-falantes, um motor, tubo de imagem”, disse Broussard.
Recolocamos a tampa.
“Ora”, defendeu-se Angie. “Não foi o pior palpite do dia.”
“Oh, não”, disse Poole, erguendo as mãos.
“Mas também não foi o melhor”, disse Broussard pelo canto da boca.
“O quê?”, perguntou Angie.
Broussard brindou-a com seu sorriso de um milhão de dólares. “Humm?”
“Você pode ligá-la novamente?”, disse Helene.
Poole olhou para ela com os olhos semicerrados e balançou a cabeça. “Patrick?”
“Sim?”
“Aí atrás tem um quintal. Você poderia levar a senhorita McCready para lá enquanto terminamos o trabalho aqui?”
“E o programa?”, perguntou Helene.
“Vou completar o que ficou faltando”, respondi. “Puta”, eu disse. “Seu cachorro nojento, bip.”
Helene me olhou de cara feia quando lhe estendi a mão. “Isso que você está dizendo não faz nenhum sentido.”
“U-hu”, eu fiz.
Quando nos aproximávamos da cozinha, Poole disse: “Feche os olhos, senhorita McCready”.
“O quê?”, perguntou Helene, afastando-se um pouco dele.
“Não queremos que você veja o que tem aqui dentro.”
Antes que eu ou ele pudéssemos impedir, Helene inclinou o corpo para a frente e olhou por sobre o ombro de Poole.
Ar resignado, ele afastou o corpo.
Helene entrou na cozinha e parou. Fiquei atrás dela, esperei que ela gritasse, perdesse os sentidos, caísse de joelhos ou corresse de volta para a sala de estar.
“Estão mortos?”, ela perguntou.
“Sim”, eu disse. “Bem mortos.”
Ela avançou pela cozinha, dirigindo-se à porta de trás. Olhei para Poole. Ele ergueu uma sobrancelha.
Quando Helene passou pelo Pequeno Dave, parou um pouco e olhou para seu peito.
“É como naquele filme”, ela disse.
“Que filme?”
“Aquele onde os aliens saíam do peito das pessoas e tinham ácido no lugar do sangue. Qual era o título?”
“Alien”, eu disse.
“Sim, eles saíam do peito das pessoas. Mas como era o nome do filme?”
Angie deu um pulinho no Dunkin’ Donuts e, minutos depois, foi ao quintal juntar-se a mim e a Helene, enquanto Poole e Broussard percorriam a casa empunhando câmeras e blocos de notas.
O quintal nem merecia esse nome. Era menor do que o closet do meu quarto. Dave e Kimmie tinham colocado lá uma mesa de metal enferrujado e cadeiras; nós nos sentamos e ficamos ouvindo os ruídos do bairro enquanto a tarde avançava e o ar esfriava — mães chamando os filhos, os operários da construção usando britadeiras do outro lado da rua, crianças jogando bola duas quadras mais adiante.
Helene tomava sua Coca de canudinho. “Que pena. Pareciam ser boa gente.”
Tomei um gole de café. “Quantas vezes você os encontrou?”
“Só essa vez.”
“Você se lembra de alguma coisa especial daquela noite?”, perguntou Angie.
Helene tomou mais um pouco de Coca enquanto tentava lembrar. “Todos esses gatos. Eles estavam em toda parte. Uma gata arranhou a mão de Amanda, filha-da-puta.” Ela sorriu para nós. “Estou falando da gata.”
“Quer dizer que Amanda estava na casa com você.”
“Parece que sim, não?”, disse ela, dando de ombros. “Claro.”
“Porque antes você não tinha certeza se a deixara no carro.”
Ela deu de ombros novamente, e tive de me conter para não agarrá-la pelos ombros, obrigando-a a mantê-los quietos. “É mesmo? Bem, até me lembrar de que o gato a arranhou, eu não tinha certeza. Não, ela estava na casa.”
“Você lembra de mais alguma coisa?”, perguntou Angie tamborilando com os dedos no tampo da mesa.
“Ela era um encanto.”
“Quem, Kimmie?”
Ela apontou para mim e sorriu. “Sim. Esse era seu nome: Kimmie. Ela era legal. Ela nos levou, a mim e a Amanda, ao seu quarto, mostrou-nos fotos de sua viagem a Disney World. Amanda ficou... fascinada. No caminho de volta, ela só ficava repetindo: ‘Mamãe, a gente vai ver o Mickey e a Minnie? Vamos a Disney World?’.” Ela deu um risinho de desprezo. “Ah, as crianças... Como se eu tivesse dinheiro pra isso.”
“Você estava com duzentos mil dólares quando entrou nesta casa.”
“Mas aquilo foi idéia do Ray. Quer dizer, eu nunca seria capaz de trapacear um maluco como Cheese Olamon. Ray disse que ia me pôr na jogada. Ele nunca tinha mentido pra mim, então eu pensei que se Cheese descobrisse, o problema era dele.” Mais um dar de ombros.
“Conheço Cheese há muito tempo”, eu disse.
“É mesmo?”
Fiz que sim. “Chris Mullen também. Jogávamos beisebol na liga de Babe Ruth, treinávamos juntos...”
Ela ergueu as sobrancelhas. “Fala sério?”
“Juro por Deus”, eu disse, levantando a mão direita. “Voltando a Cheese, Helene. Sabe o que ele faria se desconfiasse que alguém o trapaceou?”
Ela pegou o copo de refrigerante, mas recolocou-o na mesa imediatamente. “Escute, eu já disse que foi Ray. A única coisa que fiz foi entrar no quarto do motel com...”
“Cheese — isso quando éramos meninos, com uns quinze anos de idade — viu uma vez a namorada olhar para outro cara. Ele quebrou uma garrafa de cerveja num poste e cortou a cara dela com os cacos. Cortou o nariz dela fora, Helene. Ele já era assim quando tinha quinze anos. Como você acha que ele é agora?”
Ela ficou chupando o canudinho até só restar o gelo no fundo do copo. “Foi idéia do Ray...”
“Você acha que ele vai perder o sono se matar sua filha, Helene?”, perguntou Angie, estendendo a mão sobre a mesa e agarrando o pulso de Helene. “Você acha?”
“Cheese?”, disse Helene, a voz fraquejando. “Você acha que ele tem alguma coisa a ver com o desaparecimento de Amanda?”
Angie fitou-a por uns trinta segundos, depois balançou a cabeça, largando o punho de Helene. “Helene, deixe-me perguntar uma coisa.”
Helene esfregou o pulso e voltou a olhar o copo de refrigerante. “Sim?”
“De que diabo de planeta você veio, porra?!”
Depois disso, Helene ficou algum tempo sem dizer nada.
O outono agonizava em tecnicolor. Amarelos brilhantes e vermelhos vivos, laranjas queimados e verdes salpicados de ferrugem tingiam as folhas ainda nos galhos ou caídas no chão. O odor pungente de coisas agonizantes, tão característico do outono, impregnava o vento que penetrava em nossas roupas, fazendo-nos retesar os músculos e arregalar os olhos. Em nenhum lugar a morte sobrevém de forma tão espetacular, tão orgulhosa como na Nova Inglaterra no mês de outubro. O sol, livre das nuvens de tempestade que ameaçavam aquela manhã, transformava as vidraças em manchas de luz ofuscante e dava às casas de tijolos em volta do minúsculo quintal um tom enfumaçado que combinava com as folhas mais escuras.
A morte, refleti, não é isso. A morte está bem atrás de nós. A morte é a cozinha imunda do Pequeno David e de Kimmie. A morte é sangue escuro ressecado e gatos traiçoeiros que comem qualquer coisa.
“Helene”, eu disse.
“Sim?”
“Enquanto você estava no quarto com Kimmie olhando as fotografias da Disney World, onde estavam o Pequeno David e Ray?”
Sua boca se abriu um pouquinho.
“Rápido”, eu disse. “O que lhe vier à cabeça. Não pense.”
“No quintal”, ela respondeu.
“No quintal”, disse Angie, apontando para o chão. “Aqui.”
Helene fez que sim.
“Do quarto de Kimmie dava para ver o quintal?”, perguntei.
“Não, as venezianas estavam fechadas.”
“Então, como você sabe que eles estavam aqui?”, perguntei.
“Os sapatos de Ray estavam sujos quando a gente saiu”, disse ela devagar. “É verdade que Ray é um porcalhão”, ela acrescentou, estendendo a mão e tocando meu braço, como se fosse me revelar um grande segredo pessoal. “Mas pode acreditar, ele tem o maior cuidado com os sapatos.”
11
DUZENTOS MD + MUITA CALMA = CRIANÇA
“Duzentos MD?”, perguntou Angie.
“Duzentos mil dólares”, respondeu Broussard calmamente.
“Onde você achou essa anotação?”, perguntei.
Ele olhou para a casa por sobre o ombro. “Embolada e enfiada no elástico da calcinha rendada de Kimmie. Acho que para chamar a atenção.”
Estávamos no quintal.
“É aqui”, disse Angie, e apontou para um montinho perto de um olmo seco e mirrado. A terra fora revolvida naquele trecho, e o montículo era a única saliência numa nesga de terra lisa feito uma moeda.
“Acredito em você, senhorita Gennaro”, disse Broussard. “Assim sendo, o que nós vamos fazer?”
“Cavar”, eu disse.
“Confiscar o dinheiro e tornar do conhecimento público”, disse Poole. “E, via imprensa, relacioná-lo ao desaparecimento de Amanda McCready.”
Examinei a relva seca, coberta de folhas amareladas e retorcidas. “Já faz um tempo que ninguém mexe aqui.”
Poole concordou com um gesto de cabeça. “O que você conclui?”
“Se estiver enterrado aqui — eu disse, apontando para o montinho —, isso significa que David não abriu o bico, ainda que tenham torturado Kimmie até a morte, na sua frente.”
“Pelo que eu sei, ninguém nunca acusou Dave de fazer trabalho voluntário em instituições de caridade”, disse Broussard.
Poole andou até a árvore, pôs um pé de cada lado do montículo e olhou para ele.
Dentro da casa, sentada na sala, a menos de cinco metros dos dois cadáveres inchados, Helene via televisão. Springer dera lugar a Geraldo ou Sally, ou qualquer um desses animadores de circo, anunciando o último desfile de aberrações. A confissão ou “terapia” pública, a contínua banalização da palavra “trauma”, o cortejo interminável de idiotas gritando para o vazio, do alto do tablado.
Helene parecia não se importar. Ela reclamava apenas do fedor, e perguntou se podíamos abrir uma janela. Não vimos nenhuma razão em contrário, por isso abrimos, e a deixamos ali, o rosto banhado na luminosidade trêmula e argêntea da televisão.
“Para nós, o caso acaba aqui, não?”, disse Angie, a voz traindo uma ponta de melancolia e surpresa, a súbita sensação de anticlímax que nos acomete quando um caso se encerra abruptamente.
Refleti sobre suas palavras. Agora não havia dúvida de que se tratava de seqüestro, com um pedido de resgate, suspeitos e motivos bem definidos. O FBI iria assumir o caso, e então poderíamos acompanhá-lo pelos jornais, como todos os ociosos do estado, e esperar que Helene aparecesse no programa de Springer com outros pais que um dia perderam seus filhos.
Estendi a mão para Broussard. “Angie tem razão. Gostei de trabalhar com vocês.”
Broussard apertou minha mão, balançou a cabeça, mas não disse nada. Em seguida olhou para Poole.
Poole riscou o montinho de terra com o bico do sapato, sem tirar os olhos de Angie.
“Nós estamos fora do caso”, disse-lhe Angie. “Não estamos?”
Poole sustentou seu olhar por um instante, depois fitou novamente o montículo.
Todos ficamos em silêncio por alguns minutos. Eu sabia que estava na hora de ir embora. Angie sabia que era hora de ir embora. Mas, apesar disso, continuávamos lá, como se plantados no minúsculo quintal junto com o olmo seco.
Voltei a cabeça para a casa horrorosa atrás de nós, e dali avistei a cabeça de David e a parte de cima do encosto da cadeira onde ele fora amarrado. Teria ele sentido a pressão do vime barato e duro contra as omoplatas? Teria sido aquela sua última sensação antes que o disparo lhe abrisse o peito como se ossos e carne fossem feitos de papel de seda? Ou teria sido a sensação do sangue escorrendo para os pulsos amarrados, os dedos ficando arroxeados e entorpecidos?
As pessoas que tinham entrado naquela casa no último dia ou na última noite da vida deles vieram para matar Kimmie e o Pequeno David. O que se passara na cozinha fora uma execução sumária. Elas retalharam a garganta de Kimmie numa última tentativa de fazer David falar; mas além disso, por via das dúvidas, ela fora morta com uma faca.
Quando acontece um disparo, a vizinhança em geral imagina tratar-se de alguma outra coisa: o escapamento de um carro, por exemplo, ou, no caso de um tiro de espingarda, a explosão de um motor, um guarda-louças desabando no chão. Principalmente quando o som pode ter vindo da casa de traficantes ou viciados, gente que, como sabem todos os vizinhos, costuma fazer barulhos estranhos a qualquer hora da noite.
Ninguém quer admitir ter sido testemunha — ainda que apenas auditiva — de um homicídio.
Então os assassinos mataram Kimmie de forma rápida e silenciosa, certamente tomando-a de surpresa. Mas eles ficaram apontando uma espingarda para David por um bom tempo. Queriam que ele visse o dedo curvado em volta do gatilho, ouvisse o cão da arma percutindo a cápsula e finalmente a explosão.
E aqueles eram os caras que tinham raptado Amanda McCready.
“Você quer trocar os duzentos mil por Amanda”, disse Angie.
Pronto. Lá estava. O que eu já sabia nos últimos cinco minutos. O que Broussard e Poole não queriam dizer com todas as letras. Uma tremenda violação das regras da polícia.
Poole examinou o tronco da árvore morta. Com o bico do sapato, Broussard levantou uma folha vermelha da relva verde.
“Não é isso?”, disse Angie.
Poole suspirou. “Prefiro que os seqüestradores não abram uma valise cheia de jornais ou dinheiro marcado e matem a menina antes que a gente os pegue.”
“Isso já lhes aconteceu antes?”, perguntou Angie.
“Aconteceu nos casos que passei para o FBI”, disse Poole. “E é do que se trata aqui, senhorita Gennaro. Seqüestro é um crime da alçada federal.”
“Comunicamos a eles”, disse Broussard, “o dinheiro fica sob a guarda do Estado, e os agentes federais procedem às negociações, procurando aproveitar a oportunidade de mostrar que são muito espertos.”
Angie lançou um olhar ao quintal minúsculo, depois às flores roxas, já um tanto murchas, que cresciam do outro lado das grades e se insinuavam por entre elas. “Vocês dois querem negociar com os seqüestradores sem o FBI.”
Poole enfiou as mãos nos bolsos. “Já encontrei muitas crianças mortas dentro de closets, senhorita Gennaro.”
Ela olhou para Broussard. “E você?”
“Eu odeio os agentes federais”, disse ele com um sorriso.
Eu disse: “Isso não está me cheirando bem. Vocês vão perder o direito à aposentadoria, caras. Ou talvez coisa pior”.
Para além do quintal, um homem jogou um tapete por cima da janela do segundo andar e começou a bater nele com um taco de hóquei sem a pá da ponta. A poeira subiu em nuvens furiosas e efêmeras, e o homem continuou batendo, parecendo ignorar a nossa presença.
Poole se agachou, pegou uma folha de grama ao lado do montículo. “Vocês se lembram do caso de Jeannie Minnelli? Alguns anos atrás?”
Angie e eu demos de ombros. Era triste notar quantas coisas a gente esquece.
“Uma menina de nove anos”, disse Broussard. “Desapareceu quando estava andando de bicicleta em Somerville.”
Balancei a cabeça. Estava começando a me lembrar.
“Nós a encontramos, senhor Kenzie, senhorita Gennaro.” Com um movimento rápido, Poole partiu a folha seca que tinha nas mãos. “Num barril. Enfiada no cimento. O cimento ainda não secara, porque os gênios que a mataram puseram água demais ao preparar a massa.” Ele bateu as mãos uma na outra para tirar a terra ou o pólen, ou simplesmente porque estava a fim de fazer isso. “Encontramos um cadáver de nove anos boiando num barril de cimento mole.” Ele se levantou. “Você acha isso agradável?”
Olhei para Broussard. A lembrança fê-lo empalidecer, seus braços começaram a tremer. Para controlar o tremor, ele enfiou as mãos nos bolsos, mantendo os cotovelos junto ao corpo.
“Não”, eu disse. “Mas se essa coisa não der certo, vocês vão...”
“O quê?”, disse Poole. “Perder minha aposentadoria? Logo vou me aposentar, senhor Kenzie. Sabe o que o sindicato dos policiais é capaz de fazer contra alguém que tente tirar a aposentadoria de um oficial condecorado, com trinta anos de carreira?” Ele sacudiu o dedo em nossa direção. “É como ver um bando de cães famintos pularem num pedaço de carne pendurado nos bagos de um homem. Não é bonito de ver.”
Angie deu uma risadinha. “Você é uma figura, Poole.”
Ele tocou em seu ombro. “Sou um homem velho e acabado, que paga pensão a três ex-esposas, senhorita Gennaro. Não sou nada. Mas gostaria de sair vitorioso do meu último caso. Com sorte, agarro Chris Mullen e, ao mesmo tempo, enterro Cheese Olamon ainda mais fundo na cadeia.”
Angie olhou para as mãos dele, depois levantou os olhos para seu rosto. “E se tudo der errado?”
“Então eu me acabo de tanto beber.” Poole largou o ombro de Angie, e passou a mão nos poucos cabelos que lhe restavam. “Vodca barata. O melhor que posso ter com a aposentadoria de policial. O que você acha?”
Angie sorriu. “Acho ótimo, Poole. Acho ótimo.”
Poole voltou a cabeça e olhou por sobre o ombro o sujeito que batia no tapete, depois novamente para nós. “Senhor Kenzie, você notou aquela pá de jardinagem no vestíbulo?”
Fiz que sim.
Poole sorriu.
“Oh”, eu disse. “Certo.”
Atravessei a casa e peguei a pá. Na volta, quando estava passando pela sala, Helene disse: “Vamos embora logo?”.
“Daqui a pouco.”
Ela olhou para a pá e para as luvas sintéticas nas minhas mãos. “Vocês acharam o dinheiro?”
Dei de ombros. “Talvez.”
Ela balançou a cabeça e voltou-se novamente para a televisão.
Quando cheguei na porta da cozinha, ela falou de novo.
“Senhor Kenzie?”
“Sim.”
À luz da tela da televisão, seus olhos brilhavam de uma forma que me lembrava os olhos dos gatos. “Eles não iriam fazer mal a ela, não é?”
“Você quer dizer Chris Mullen e o resto da gangue de Cheese Olamon?”
Ela fez que sim.
Na televisão, uma mulher disse a outra: “Fique longe de minha filha, sua sapatona”. O auditório vaiou.
“Você acha que eles fariam isso?”, perguntou Helene, sem tirar os olhos da televisão.
“Sim”, respondi.
Helene voltou a cabeça bruscamente em minha direção. “Não.” Ela balançou a cabeça, como se fazendo aquilo seu desejo se tornasse realidade.
Eu devia ter dito a ela que estava brincando. Que Amanda estava bem, que seria resgatada, que as coisas voltariam ao normal e ela poderia se drogar com televisão, álcool, heroína e o que quer que lhe permitisse se proteger deste mundo podre em que vivemos.
Mas sua filha se encontrava em algum lugar, sozinha e aterrorizada, amarrada a um aquecedor doméstico ou à coluna de uma cama, a parte inferior do rosto coberta com fita adesiva para que não fizesse o menor barulho. Ou então estava morta. E em parte isso se devia à autocomplacência de Helene, à sua decisão de agir como se pudesse fazer o que quisesse, sem nenhuma conseqüência, nenhuma oposição.
“Helene”, eu disse.
Mãos trêmulas, acendeu um cigarro, mas foi a custo que o fósforo aceso conseguiu acertar o alvo. “O que é?”
“Agora você está começando a entender?”
Ela olhou para a televisão, depois novamente para mim, os olhos úmidos e avermelhados. “O quê?”
“Sua filha foi seqüestrada. Por causa do que você roubou. Os homens que a pegaram não ligam a mínima para ela. E eles podem não devolvê-la.”
Duas lágrimas rolaram pelas faces de Helene, e ela as enxugou com as costas do punho.
“Eu sei disso”, disse ela, novamente atenta à televisão. “Não sou estúpida.”
“É sim”, respondi, indo para o quintal.
* * *
Formamos um círculo em volta do montículo, para evitar que a vizinhança surpreendesse nossos movimentos. Broussard revolveu a terra com a pá várias vezes, e finalmente vimos uma parte do saco plástico verde, amassado.
Broussard cavou um pouco mais, então Poole olhou em volta, inclinou-se para a frente, puxou a sacola, tirando-a do buraco.
A boca da sacola não estava amarrada, apenas torcida várias vezes, e Poole deixou que ela girasse em sua mão. O plástico verde fazia um barulhinho à medida que as dobras cerradas se desfaziam próximo à boca e a sacola recuperava suas dimensões normais. Poole deixou-a cair no chão, e a boca da sacola se abriu.
Uma pilha de notas se derramou diante de nós, a maioria de cem e de cinqüenta dólares, velhas e macias.
“É um bocado de dinheiro”, disse Angie.
Poole balançou a cabeça. “Isto, senhorita Gennaro, é Amanda McCready.”
Antes de Poole e Broussard chamarem os legistas, desligamos a televisão da sala e expusemos a situação a Helene.
“Vocês vão trocar o dinheiro por Amanda”, disse ela.
Poole balançou a cabeça.
“E ela vai ficar bem.”
“É o que esperamos.”
“E o que mais vou precisar fazer?”
Broussard se agachou diante dela. “Você não precisa fazer nada, senhorita McCready. Só precisa optar agora mesmo. Nós quatro”, disse ele, apontando para nós, “achamos que é isso que devemos fazer. Mas se meus chefes descobrirem que pretendo resolver as coisas dessa maneira, vou ser suspenso ou demitido. Entendeu?”
Ela fez um pequeno movimento com a cabeça. “Se você contar às pessoas, vão querer prender Chris Mullen.”
Broussard balançou a cabeça. “Possivelmente. Ou então, como pensamos, o FBI vai se preocupar mais com a captura do seqüestrador do que com a segurança da sua filha.”
Mais um gesto tímido de cabeça, como se seu queixo encontrasse uma barreira invisível que interrompia o movimento para baixo.
Poole disse: “Senhorita McCready, entenda bem o seguinte: a decisão é sua. Se você quiser, avisamos imediatamente as autoridades, entregamos o dinheiro e passamos o caso”.
“Outras pessoas?”, disse ela, olhando para Broussard.
Ele tocou em sua mão. “Sim.”
“Não quero outras pessoas. Eu não...” Ela se levantou um tanto cambaleante. “O que tenho de fazer, se vocês agirem como pretendem?”
“Fique quieta”, disse Broussard levantando-se. “Não conte nada à imprensa nem à polícia. Não conte nem mesmo a Lionel e Beatrice o que está acontecendo.”
“Vocês vão falar com Cheese?”
“Com certeza é a próxima coisa que iremos fazer”, eu disse.
“Ao que parece, é o senhor Olamon que está dando as cartas no momento”, disse Broussard.
“E se vocês só... seguissem Chris Mullen? Quem sabe ele não levaria vocês a Amanda sem saber?”
“Vamos fazer isso também”, disse Poole. “Mas meu palpite é que eles já devem estar esperando por isso. Tenho certeza de que Amanda está muito bem escondida.”
“Digam a ele que sinto muito.”
“A quem?”
“A Cheese. Digam a ele que eu não pretendia fazer nada de ruim. Eu só quero minha filha de volta. Digam a ele que não a machuque. Você pode fazer isso?”, perguntou ela, olhando para Broussard.
“Claro.”
“Estou com fome”, disse Helene.
“Vamos lhe trazer...”
Ela olhou para Poole e balançou a cabeça. “Não, não sou eu. Foi o que Amanda disse.”
“O quê? Quando?”
“Quando eu a pus para dormir naquela noite. Foi a última coisa que ela me disse: ‘Mãe, estou com fome’ ”. Helene sorriu, mas seus olhos se encheram de lágrimas. “Eu disse: ‘Não se preocupe, querida. Amanhã de manhã você come’.”
Ninguém falou nada. Achávamos que a qualquer instante ela iria desmoronar.
“Quer dizer, eles tinham que dar comida a ela, não é? Helene continuou sorrindo, enquanto as lágrimas rolavam em seu rosto. “Ela não está mais com fome, está?” Olhou para mim. “Está?”
“Eu não sei”, respondi.
12
Cheese Olamon era um escandinavo loiro de um metro e noventa, cento e noventa quilos, que, por alguma razão obscura, achava que era negro.
Embora suas banhas tremessem feito geléia quando ele andava e ele gostasse de grossos blusões de lã ou de algodão, bastante apreciados por gente com excesso de peso, seria um grande erro tomar Cheese por um gordo do tipo alegre ou achar que, por ser corpulento, ele era lerdo.
Cheese ria muito e parecia ser tomado de sincera alegria na presença de certas pessoas. Além disso, embora sua linguagem obsoleta, imitação barata da que se usa no filme Shaft, intimidasse um pouco, havia nela alguma coisa estranhamente atraente e contagiante. Ouvindo-o, a gente chegava a se perguntar se sua decisão de adotar uma gíria tão pouco usada por negros e brancos — exceto nas obras de Fred Williamson/Antonio Fargas — se explicava por uma atração despropositada pela cultura negra do gueto, um racismo demente, ou os dois. Seja como for, às vezes essa linguagem tinha grande poder de comunicação.
Mas eu conhecia também o Cheese capaz de encarar um sujeito num bar, à noite, com uma maldade tão fria e calculada que, logo se percebia, a expectativa de vida do infeliz se reduzia a um minuto e meio, mais ou menos. Eu conhecia o Cheese que explorava moças tão magras e encharcadas de heroína que podiam se esconder atrás de um taco de beisebol, o Cheese que lhes tomava rolinhos de cédulas — quando elas se debruçavam na janela de seu carro — depois dava tapinhas em suas bundas ossudas e as mandava de volta ao trabalho.
Mas apesar de todas as rodadas de bebida que ele pagava no bar, de todas as notas de cinco e de dez que ele enfiava nas mãos dos bêbados, levando-os em seguida para comer no restaurante chinês mais próximo, de todos os perus de Natal que oferecia aos pobres do bairro, não podíamos esquecer os viciados que morriam em vielas, agulhas ainda enfiadas nos braços; tampouco podíamos esquecer as jovens que do dia para a noite se transformavam em velhas alquebradas, gengivas sangrando, pedindo esmolas no metrô para comprar AZT; ou os nomes que ele decidira pessoalmente eliminar do catálogo telefônico do ano seguinte.
Verdadeira aberração da natureza e da cultura, durante todo o curso elementar Cheese foi um menino mirrado e doentio; as costelas transpareciam, no peito magro, sob a camiseta branca e barata, como os dedos de um velho; às vezes tinha acessos de tosse tão violentos que chegava a vomitar. Raramente falava. Que eu lembre, não tinha nenhum amigo, e enquanto a maioria de nós levava o lanche em lancheiras Adam-12 e Barbie, Cheese levava o seu num saquinho de papel pardo. Terminado o lanche, ele dobrava o saquinho com todo o cuidado e o guardava para usá-lo novamente no dia seguinte.
Nos primeiros anos, o pai e a mãe o acompanhavam até o portão da escola. Falavam com ele numa língua estrangeira, e suas vozes ásperas chegavam até o pátio enquanto ajeitavam o cabelo do filho, endireitavam seu cachecol e abotoavam seu pesado casaco de roceiro, antes de liberá-lo. Então eles voltavam pela avenida — ambos gigantes —, o sr. Olamon com um chapéu tipo “diplomata”, fora de moda havia cinqüenta anos, com uma pena cor de laranja desbotada na fita, ambos com a cabeça ligeiramente inclinada, como se temessem que lhes lançassem insultos ou lixo das sacadas do primeiro andar dos edifícios. Cheese ficava olhando até perdê-los de vista, e acenava para a mãe quando ela parava para levantar a meia que por acaso lhe descera até o grosso tornozelo.
Não sei por quê, as lembranças que tenho de Cheese e de seus pais parecem sempre banhadas pela fria luz do inverno: instantâneos de um menininho feio num canto do pátio cheio de poças semicongeladas, olhando os pais gigantes andando, ombros encurvados, sob as negras árvores sacudidas pelo vento.
Cheese agüentou muitas agressões e muita zombaria por causa de seu leve sotaque e do sotaque muito mais carregado de seus pais, por causa de suas roupas de campônio e de sua pele amarelada, esquisita, cor de cera, que lembrava um queijo e lhe valeu o apelido.
Quando Cheese estava no sétimo ano da St. Bart, seu pai, que trabalhava como inspetor de alunos de uma escola chique do Brooklyn, foi acusado de agredir fisicamente um aluno de dez anos que cuspira no chão. O menino, filho de um neurocirurgião do hospital Mass General e professor visitante de Harvard, tivera um braço e o nariz quebrados no rápido ataque do sr. Olamon, e a pena devia ser pesada. Naquele ano, Cheese cresceu vinte e cinco centímetros em cinco meses.
No ano seguinte — ano da condenação de seu pai, que recebeu uma pena de três a seis anos de prisão — Cheese virou um gigante.
Catorze anos de pancadas galvanizaram seus músculos, catorze anos de insultos e zombarias por causa do sotaque, catorze anos engolindo raiva e humilhações resultaram numa bola de bile empedrada em seu estômago.
O verão entre a oitava série e o segundo grau foi o verão do acerto de contas de Cheese Olamon. Meninos eram esmurrados nas esquinas: mal tinham tempo de levantar os olhos, o punho poderoso de Cheese lhes atingia as costelas. Houve braços e narizes quebrados, e Carl Cox — um dos que tinham torturado Cheese da forma mais impiedosa — recebeu na cabeça uma pedra jogada do telhado de um edifício de dois andares e, entre outras coisas, perdeu metade de uma orelha e passou o resto da vida com um problema de fala.
E o alvo desses ataques não eram só os meninos da nossa classe do St. Bart; muitas meninas de catorze anos passaram aquele verão com esparadrapo no nariz ou indo ao consultório do dentista para dar um jeito nos dentes quebrados.
Já naquela época, porém, Cheese sabia adequar o método às vítimas. Aqueles que ele julgava, com razão, tímidos ou medrosos demais para reagir, podiam ver sua cara, quando os agredia. Os que sofriam as agressões mais graves — podendo portanto denunciar à polícia ou contar aos pais — não sabiam de onde vinha o ataque.
Phil, Angie e eu estávamos entre os que escaparam da vingança de Cheese, já que nunca o maltratamos, quando mais não fosse porque também nossos pais, ou pelo menos um deles, tiveram o mau gosto de ser imigrantes. E Cheese também deixou Bubba Rogowski em paz. Não lembro se alguma vez Bubba mexeu com Cheese, mas mesmo que o tivesse feito, Cheese era esperto o bastante para saber que, no caso de entrar em guerra com ele, Cheese seria o exército alemão, e Bubba, o inverno russo. Como se vê, Cheese limitou-se às batalhas que sabia poder vencer.
Embora tenha ficado mais corpulento, mais esperto e mais perigoso ao longo dos anos, Cheese continuou tendo uma atitude quase servil em relação a Bubba, chegando a cuidar de seus cães, durante as muitas viagens que Bubba fez ao exterior para comprar armas.
E Bubba é bem isso. Pessoas que dão o maior cagaço em qualquer um tomam conta dos seus cães.
“ ‘Mãe internada quando o elemento tinha dezessete anos’ ”, leu Broussard no dossiê de Cheese Olamon, enquanto Poole, ao volante, passava pela reserva ecológica de Walden Pond, a caminho da prisão de Concord. “ ‘O pai, solto de Norfolk um ano depois, desapareceu.’ ”
“Corre o boato de que Cheese o matou”, eu disse. Refestelei-me no banco de trás, cabeça encostada na janela, vendo desfilarem as magníficas árvores de Concord.
Depois que Broussard e Poole comunicaram aos colegas o duplo homicídio da casa de David, Angie e eu pegamos o saco verde com o dinheiro e levamos Helene para a casa de Lionel. Despedimo-nos dela e fomos para o depósito onde Bubba mora.
Duas horas da tarde é quando Bubba dorme o sono dos justos, e ao abrir a porta ele nos recebeu num quimono japonês vermelho vivo, com um olhar um pouco irritado naquela sua fisionomia de anjo amalucado.
“Por que vocês me acordaram?”, ele perguntou.
“Precisamos de seu cofre”, respondeu Angie.
“Vocês têm o de vocês”, disse ele, lançando-me um olhar furioso.
Tentei sustentar seu olhar. “O nosso não tem a proteção de um campo minado ao redor.”
Ele estendeu a mão, e Angie pôs o saco nela.
“O que tem aí?”, perguntou Bubba.
“Duzentos mil dólares.”
Bubba balançou a cabeça como se tivéssemos dito apenas que eram as jóias da vovó. Se disséssemos tratar-se de provas da existência de extraterrestres, sua reação ainda teria sido a mesma. Era difícil impressionar Bubba, a menos que lhe arranjássemos um encontro com Jane Seymour.
Angie tirou da bolsa as fotografias de Corwin Earle, Leon e Roberta Trett e balançou-as diante do rosto sonolento de Bubba. “Conhece algum deles?”
“Puta que pariu!”, exclamou ele.
“Conhece?”, insistiu Angie.
“Ahn?”, fez ele, balançando a cabeça. “Não. Mas puxa, como essa vaca é peluda. Ela anda com os dois pés e tudo o mais?”
Angie soltou um suspiro e guardou as fotos na bolsa.
“Os outros dois são ex-detentos”, disse Bubba. “Nunca os vi mais gordos, mas basta olhar pra saber.”
Ele bocejou, balançou a cabeça e bateu a porta na nossa cara.
“Não era bem de sua presença que eu sentia falta quando ele estava preso”, disse Angie.
“Não, era de seu papo delicioso”, respondi.
Angie me deixou em meu apartamento, onde fiquei esperando por Poole e Broussard, enquanto ela se dirigia ao condomínio onde morava Chris Mullen, para começar a vigiá-lo. Ela preferiu essa missão, porque não era muito chegada em entrar em prisões masculinas. Além do mais, Cheese tende a comportar-se de um jeito engraçado na presença de Angie, começa a corar e se põe a perguntar com quem ela está namorando. Resolvi acompanhar Poole e Broussard porque, supunha-se, Cheese seria mais receptivo a mim, já que ele nunca quis muita conversa com o pessoal da polícia.
“ ‘Suspeito da morte de um certo Jo Jo McDaniel, 1986’ ”, disse Broussard quando entramos na rodovia 2.
“O mentor de Cheese no tráfico de drogas”, eu disse.
Broussard balançou a cabeça. “ ‘Suspeito de envolvimento no desaparecimento e na morte de Daniel Caleb, 1991.’ ”
“Nunca ouvi falar nesse.”
“Contador”, disse Broussard, virando a página. “Ele teria fraudado as contas de alguns sujeitos de caráter duvidoso.”
“Cheese deve ter pego os caras no pulo.”
“É o que parece.”
Poole olhou para mim pelo espelho retrovisor. “Puxa vida, Patrick. Que afinidade você tem com o pessoal do crime, não?”
Endireitei-me no banco. “Ora, Poole, o que você quer dizer com isso?”
“Amigo de Cheese Olamon e de Chris Mullen”, disse Broussard.
“Não são meus amigos. São só caras com quem cresci.”
“Você não cresceu também com o finado Kevin Hurlihy?”* Poole parou o carro na fila da esquerda, esperando uma brecha no contrafluxo para poder cruzar a rodovia e entrar na estrada da prisão.
“Da última vez que ouvi falar, ele estava só desaparecido”, eu disse.
Broussard voltou a cabeça e riu para mim. “Sem esquecer o famigerado senhor Rogowski.”
Dei de ombros. Eu estava acostumado com a reação das pessoas à minha amizade com Bubba. Principalmente com a reação dos tiras.
“Bubba é meu amigo”, eu disse.
“E que amigo”, respondeu Broussard. “É verdade que um dos pavimentos do depósito onde ele mora é minado?”
Dei de ombros. “Dê um pulinho lá um dia desses para conferir.”
Poole deu um risinho. “Aí está uma oportunidade de adiantar a aposentadoria.” Ele entrou na estradinha de pedras de acesso à prisão. “Você mora num bairro infernal, Patrick, só isso. Um bairro infernal.”
“É que as pessoas não nos entendem”, falei. “Todos temos um coração de ouro.”
Quando saímos do carro, Broussard se espreguiçou e disse: “Oscar Lee me contou que você não é muito dado a fazer julgamentos”.
“A fazer o quê?”, perguntei, olhando para os muros da prisão. Uma coisa típica de Concord. Até a prisão tinha um aspecto convidativo.
“Julgamentos”, continuou Broussard. “Oscar diz que você odeia julgar as pessoas.”
Segui com os olhos o arame farpado no alto do muro. Pareceu-me um pouco menos convidativo, de repente.
“Ele diz que é por isso que você se dá com um psicótico como Bubba Rogowski e tem relações com gente como Cheese Olamon.”
O sol brilhante me fez piscar os olhos. “Não”, eu disse. “Não sou muito bom em julgar as pessoas. Mas infelizmente tive de julgar algumas vezes.”
“E aí?”, perguntou Poole.
Dei de ombros. “Deixou um gosto ruim em minha boca.”
“Quer dizer que você julgou errado?”, disse Poole, num tom frívolo.
Lembrei-me de ter chamado Helene de “estúpida” havia poucas horas; e de como aquela palavra a tinha ferido e a fizera encolher-se. Balancei a cabeça. “Não. Eu julguei certo. Mas fiquei com um gosto ruim na boca. Só isso.”
Enfiei as mãos nos bolsos e comecei a andar rumo ao portão da prisão, antes que Poole e Broussard tivessem tempo de pensar em mais perguntas referentes ao meu caráter ou à falta dele.
O diretor da prisão mandara postar um guarda em cada um dos dois portões de acesso ao pequeno pátio para os visitantes na prisão de Concord, e os guardas das torres voltaram a atenção para nós. Cheese já estava lá quando chegamos. Era o único preso no pátio, pois Broussard e Poole tinham pedido o máximo de privacidade possível.
“Oi, Patrick, como vão as coisas?”, gritou Cheese, quando atravessamos o pátio. Ele estava próximo a uma fonte. Ao lado daquela orca de cabelos loiros que era Cheese, a fonte parecia um tee de golfe.
“Nada mal, Cheese. Lindo dia, não?”
“Nisso concordo com você, mano.” Ele bateu o punho fechado contra o meu. “Um dia como esse é como uma gatinha família, um Jack Daniel’s e um maço de Kools, tudo num pacote só. Entende o que quero dizer?”
Não entendi, mas sorri. Era a melhor maneira de lidar com Cheese: balançar a cabeça, sorrir, e esperar que ele começasse a dizer coisa com coisa.
“Diabos!”, exclamou Cheese deslocando o próprio peso para trás. “Você veio com a lei. O Homem está na casa!”, gritou ele. “Na casa. Poole e...”, disse ele estalando os dedos, “Broussard. Certo? Pensei que vocês tinham saído da Entorpecentes.”
Os olhos levantados para o sol, Poole sorriu. “Nós saímos, senhor Cheese. Pode crer que saímos.” Ele apontou para uma comprida cicatriz negra no queixo de Cheese. Parecia um corte feito com uma lâmina dentada. “Você andou fazendo inimigos por aqui?”
“Isso aqui? Ora!” Cheese voltou os olhos para mim. “Ainda está pra nascer o filho-da-puta capaz de derrubar Cheese.”
Broussard deu uma risadinha e riscou o chão com o pé esquerdo. “Sim, Cheese, claro. Com esse seu papo black você irritou algum cara que não gosta de branco com problema de identidade, não é?”
“Aí, Poole”, disse Cheese. “O que um sujeito esperto como você está fazendo com esse babaca que não consegue achar o próprio cu, nem com um mapa?”
“Estou me misturando à gentinha”, respondeu Poole, e Broussard esboçou um sorriso.
“Ouvi falar que você perdeu uma sacola de dinheiro”, disse Broussard.
“É mesmo?”, perguntou Cheese, esfregando o queixo. “Humm. Não estou me lembrando disso, senhor agente, mas se você não sabe o que fazer com uma sacola de dinheiro, terei todo o prazer em ficar com ela. Entregue-a ao meu amigo Patrick, que ele a guardará até eu sair.”
“Oh, Cheese”, eu disse. “Que coisa tocante.”
“Ah, mano, a gente se entende porque sei que você é limpeza. Como vai meu mano Rogowski?”
“Muito bem.”
“O filho-da-puta pegou um ano na Plymouth? Os detentos de lá ainda estão tremendo. Com medo de que ele volte. Ele parecia estar se divertindo tanto na cadeia.”
“Bubba não vai voltar”, eu disse. “Ele perdeu um ano de televisão, e ainda está tentando pôr a programação em dia.”
“E os cachorros dele?”, perguntou Cheese em voz baixa, como se se tratasse de um segredo.
“Belker morreu há um mês.”
Cheese pareceu ficar abalado com a notícia. Ele levantou os olhos para o céu quando uma leve brisa lhe tocou as pálpebras. “Como ele morreu?” Olhou para mim. “Envenenado?”
Balancei a cabeça. “Não, atropelado.”
“De propósito?”
Balancei a cabeça novamente. “Uma velhinha vinha dirigindo, e Belker entrou na avenida.”
“Como Bubba está reagindo?”
“Ele tinha castrado Belker um mês antes”, eu disse, dando de ombros. “Então acha que foi suicídio.”
“Faz sentido”, disse Cheese. “Claro.”
“E o dinheiro, Cheese?”, perguntou Broussard, balançando a mão na frente do rosto de Cheese. “O dinheiro.”
“Eu não perdi nenhum dinheiro. Já lhe disse.” Cheese deu de ombros, afastou-se de Broussard, foi sentar-se num desses bancos de piquenique, e esperou que fizéssemos o mesmo.
“Cheese”, eu disse, enquanto me sentava ao lado dele. “Uma menina sumiu do nosso bairro. Você ouviu falar disso?”
Cheese tirou uma folha de grama do cadarço dos sapatos, girou-a entre os dedos rechonchudos. “Ouvi dizer. Amanda não sei de quê, não é?”
“McCready”, disse Poole.
Cheese franziu os lábios, pareceu pensar no caso por uma fração de segundo e depois deu de ombros. “Não faço a mínima idéia de quem é. E essa história de dinheiro?”
Broussard deu um risinho e balançou a cabeça.
“Podíamos considerar uma hipótese”, disse Poole.
Cheese cruzou as mãos entre as pernas e olhou para Poole com uma expressão de menininho ansioso na cara balofa. “Vamos lá.”
Poole pôs um pé no banco, perto de onde Cheese estava. “Vamos dizer, só como suposição...”
“... só como suposição”, repetiu Cheese animadamente.
“... que alguém roubou um dinheiro de um cavalheiro no mesmo dia em que este foi preso por desrespeitar as condições de sua liberdade condicional.”
“Tem peitinhos nessa história?”, perguntou Cheese. “Porque Cheese gosta de histórias em que apareçam peitinhos.”
“Vou chegar lá”, disse Poole. “Prometo.”
Cheese me cutucou, abriu um sorriso largo, virando-se em seguida para Poole. Broussard, ali ao lado, observava os guardas das torres.
“Então essa pessoa — que de fato tem seios — rouba um homem a quem não devia roubar. E alguns meses depois, sua filha desaparece.”
“Que pena”, disse Cheese. “É uma puta lástima, se quer saber minha opinião.”
“Sim”, continuou Poole. “Uma lástima. Um sócio do homem que a mulher irritou...”
“Roubou”, corrigiu Cheese.
“Desculpe-me”, disse Poole, levando a mão a um chapéu imaginário. “Um sócio do homem que foi roubado pela mulher foi visto na multidão na porta do edifício em que ela mora, na noite em que sua filha desapareceu.”
Cheese esfregou o queixo. “Interessante.”
“E o homem trabalha para você, senhor Olamon.”
Cheese ergueu as sobrancelhas. “Sério?”
“Hum hum.”
“Você disse que tinha uma multidão na porta do edifício?”
“Disse.”
“Então, escute aqui: aposto como havia um monte de gente lá que não trabalha para mim.”
“É verdade.”
“Você vai interrogar essa gente também?”
“A mãe da menina não trapaceou os caras”, eu disse.
Cheese voltou a cabeça. “Como você sabe? Uma vaca capaz de roubar de Cheese é capaz de sacanear a porra da vizinhança inteira. Não estou certo, mano?”
“Então você admite que ela o roubou?”, disse Broussard.
Cheese olhou para mim e apontou o polegar em direção a Broussard. “Eu pensei que era tudo uma suposição.”
“Claro”, disse Broussard, levantando a mão. “Desculpe-me, vossa alteza, nobilíssimo Cheese.”
“Bom, eis a proposta”, disse Poole.
“Oooh”, fez Cheese. “Uma proposta.”
“Senhor Olamon, queremos fazer tudo na maior discrição. Fica só entre nós.”
“Só entre nós”, disse Cheese, voltando os olhos para mim.
“Mas queremos a criança de volta, sã e salva.”
Cheese fitou-o por um bom tempo, um riso largo no rosto. “Vamos ver se entendi. Você está me dizendo que você — o Homem — vai deixar meu hipotético sócio pegar esse hipotético dinheiro em troca de uma hipotética criança, e depois nos despedimos amistosamente? É essa mentirada que você quer que eu engula, oficial?”
“Sargento detetive”, corrigiu Poole.
“Seja lá o que for.” Cheese bufou, fazendo um gesto impaciente com as mãos.
“O senhor conhece bem a lei, senhor Olamon. Pelo simples fato de fazer essa proposta, nós já nos comprometemos. Legalmente você pode fazer o que quiser com essa oferta, sem ser acusado de nada.”
“Mentira.”
“Não, é sério”, disse Poole.
“Cheese”, eu disse. “Quem sai perdendo com esse acordo?”
“Ahn?”
“Sério. Um lado tem seu dinheiro de volta. O outro recupera a criança. Todo mundo fica feliz.”
Ele brandiu o dedo na minha cara. “Patrick, meu irmão, não entre nesse tipo de comércio. Quem tem a perder? É isso que você está perguntando? Quem diabos sai perdendo?”
“Sim. Fale.”
“O filho-da-puta que foi roubado, esse sim!” Ele levantou as mãos no ar, depois bateu em suas coxas enormes, inclinou a cabeça na direção da minha, e por pouco elas não se tocaram. “O filho-da-puta se fode. O filho-da-puta se fode direitinho. Você acha que ele vai confiar no Homem? O Homem e sua proposta?” Ele pôs a mão em minha nuca e a apertou. “Porra, meu nego, você andou fumando a merda do crack?”
“Senhor Olamon”, disse Poole. “Como podemos convencê-lo de que estamos jogando limpo?”
Cheese soltou minha nuca. “Não podem. Vocês têm de sair dessa história, esperar a poeira baixar e deixar que as pessoas resolvam tudo entre elas.” Ele apontou o dedo grosso para Poole. “Talvez então todo mundo fique feliz.”
Poole estendeu as mãos, palmas voltadas para cima. “Não podemos fazer isso, senhor Olamon. Você deve saber disso.”
“Certo, certo”, disse Cheese, balançando a cabeça depressa. “Talvez alguém precise oferecer a certo filho-da-puta honesto uma redução de pena em troca de sua ajuda para facilitar a transação. O que acha disso?”
“Acho que isso significaria pôr o promotor na jogada”, disse Poole.
“E daí?”
“Talvez você não tenha ouvido quando dissemos que queríamos fazer tudo da forma mais discreta possível”, disse Broussard. “Pegamos a menina de volta, e vamos embora tranqüilos.”
“Bom, então se esse seu homem hipotético aceitar uma proposta dessa, ele é um estúpido. Um escroto imbecil, é isso que ele é.”
“Nós só queremos Amanda McCready”, disse Broussard. Ele pôs a mão na nuca e a massageou. “Viva.”
Cheese debruçou-se sobre a mesa de piquenique, levantou a cabeça para o sol, inspirou o ar pelas narinas tão grandes que certamente podiam aspirar montes de moedas caídas num tapete.
Poole afastou-se da mesa, cruzou os braços sobre o peito e esperou.
“Eu tinha uma galinha no meu terreiro chamada McCready”, disse Cheese finalmente. “Ela trabalhava pra mim de vez em quando, nada fixo. Não era nenhuma beldade, mas se você lhe dava o que ela pedia, ela encarava qualquer parada. Entende o que quero dizer?”
“Terreiro?”, perguntou Broussard, aproximando-se da mesa. “Você está dizendo que explorava Helene McCready para fins de prostituição, Cheese?”
Cheese inclinou-se para a frente e gargalhou. “Fins de p-p-prostituição. Puxa, até que não soa mal, não é? Vou formar uma banda e chamá-la de Fins de Prostituição. Vai ser um arraso.”
Broussard moveu rapidamente o punho e bateu no meio do nariz de Cheese com as costas da mão. Mas não chegou a ser um tapa de amor. Cheese levou as mãos ao nariz, e o sangue começou a escorrer pelos dedos. Broussard se pôs entre as pernas abertas do homenzarrão, agarrou-lhe a orelha e apertou-a até ouvir a cartilagem estalar.
“Escute aqui, seu babaca. Está ouvindo?”
Cheese fez um barulho que soava como uma afirmativa.
“Estou cagando e andando pra Helene McCready. Pouco me importaria se você a trancasse, num domingo de Páscoa, numa sala cheia de padres. Estou pouco ligando para o negócio de heroína que você continua comandando daqui de dentro. Estou preocupado com Amanda McCready.” Ele colou os lábios na orelha macetada. “Você ouviu esse nome? Amanda McCready. E se você não me disser onde ela está, seu Shaft de meia-tigela, vou pegar os nomes dos quatro maiores negões da cadeia que não vão com a sua cara. E aí dou um jeito de eles passarem uma noite na solitária com você, munidos apenas de seus caralhos e de um isqueiro. Está entendendo, ou quer que lhe dê mais uma porrada?”
Ele largou a orelha de Cheese e recuou.
O suor escurecera o cabelo de Cheese, e o som que ele emitia por trás de suas mãos em concha era igual ao que fazia quando criança, entre os ataques de tosse, em geral seguidos de vômito.
Broussard fez um gesto largo na direção de Cheese e olhou para mim. “É uma questão de discernimento”, disse ele, enxugando a mão na calça.
Cheese tirou as mãos do nariz e recostou-se no banco, enquanto o sangue gotejava sobre o lábio superior e entrava na boca. Ele respirou fundo várias vezes, os olhos sempre fitos em Broussard.
Os guardas das torres ficaram olhando para o céu. Os dois guardas que vigiavam os portões examinavam os próprios sapatos como se os tivessem recebido naquela manhã, novinhos em folha.
Eu ouvia um ruído metálico ao longe, como se alguém estivesse levantando pesos dentro da prisão. Um passarinho fez um vôo rasante no pátio dos visitantes. Era tão pequeno e movia-se com tal rapidez que nem pude ver a sua cor antes que ele alçasse vôo por sobre a muralha e o arame farpado, sumindo da minha vista.
Broussard mantinha-se afastado do banco, pernas abertas, olhando para Cheese, o olhar tão vazio de vida e de emoção que bem poderia estar examinando a casca de uma árvore. Aquele era outro Broussard, que eu ainda não conhecia.
Na qualidade de detetives, Angie e eu éramos tratados por Broussard com respeito profissional e até com certa deferência. Eu não tinha dúvida de que aquele era o Broussard que todos conheciam: um investigador de boa aparência, bem-falante, maneiras impecáveis e um sorriso de astro de cinema. Mas na prisão de Concord eu descobri nele o policial de rua, o valentão do beco, o Broussard que fazia interrogatórios na base do cassetete. Vendo-o lançar um olhar sombrio para Cheese, eu vi o guerreiro da selva, o guerrilheiro implacável, disposto a vencer a qualquer custo.
Cheese cuspiu na grama uma mistura de catarro e sangue.
“Ei, seu policial racista”, disse ele. “Vem lamber o meu cu de negão, vem!”
Broussard avançou para ele, e Poole agarrou as costas do casaco do colega, enquanto Cheese afastava o corpo enorme da mesa de piquenique.
“Você anda com uma bela dupla de desgraçados, Patrick!”
“Ei, babaca!”, gritou Broussard. “Você vai se lembrar de mim quando passar a noite na solitária, não vai?”
“Eu vou mais é te mostrar uma foto que tenho na minha cela, da sua mulher trepando com um monte de anões”, disse Cheese. “Quer ver?”
Broussard quis dar outro bote, mas Poole passou os braços em torno do peito do colega, levantou-o no ar e girou o próprio corpo para afastá-lo do banco.
Cheese começou a andar em direção ao portão dos prisioneiros, e tive de correr para alcançá-lo.
“Cheese.”
Ele voltou a cabeça, me olhou por cima do ombro e continuou andando.
“Cheese, pelo amor de Deus, ela só tem quatro anos.”
Cheese continuou andando. “Sinto muito. Diga ao seu amigo que ele precisa fazer um curso de relações humanas.”
O guarda barrou minha passagem quando Cheese passou pelo portão. Nos óculos espelhados do guarda, vi minha imagem deformada nas duas lentes, na hora em que ele me empurrou para trás. Dois reflexos minúsculos e trêmulos de mim, o mesmo olhar apatetado e aflito dos dois lados.
“Ora, vamos, Cheese. Qual é, cara.”
Cheese voltou-se para as grades, enfiou os dedos nos vãos da tela e me fitou por longo tempo.
“Não posso ajudá-lo, Patrick. Certo?”
Fiz um gesto indicando Poole e Broussard às minhas costas. “Aquela proposta era pra valer.”
Cheese balançou a cabeça devagar. “É mentira, Patrick. Policiais são como detentos, cara. Os filhos-da-puta sempre escondem algum truque.”
“Eles vão voltar com um verdadeiro exército, Cheese. Você sabe como a coisa funciona. Eles estão trabalhando sob pressão, e estão putos da vida.”
“Eu não sei de nada.”
“Sabe, sim.”
Ele abriu um sorriso largo, e o sangue já começava a coagular no lábio superior. “Prove”, disse ele, dando meia-volta. Em seguida avançou pelo caminho de pedras que cruzava um pequeno gramado, voltando para a prisão.
Passei por Broussard e Poole quando me dirigia para a saída dos visitantes.
“Bela demonstração de discernimento”, eu disse. “Um puta de um discernimento.”
(*) Personagem de Apelo às trevas, do mesmo autor, da Companhia das Letras. (N. T.)
13
Broussard me alcançou no corredor que levava ao saguão. Ele me pegou pelo braço, obrigando-me a me voltar para ele.
“Algum problema com o meu método, senhor Kenzie?”
“Que diabo de método?”, eu disse, puxando meu braço de sua mão. “Você chama aquilo que fez de método?”
Naquele instante, Poole e o guarda aproximaram-se de nós. “Aqui não, senhores”, disse Poole. “Temos de manter as aparências.”
Poole nos acompanhou enquanto avançávamos pelo corredor, passávamos pelos detectores de metal e pelo último portão. Nossas armas nos foram devolvidas por um sargento cujos cabelos formavam pequenos tufos cerrados no alto da cabeça, e em seguida entramos no estacionamento.
Broussard começou a falar logo que nossos sapatos pisaram o cascalho. “Por quanto tempo mais você ia ouvir as baboseiras daquele verme, senhor Kenzie? Hein?”
“O tempo que fosse preciso para...”
“Quem sabe você não quer voltar lá e falar sobre suicídios de cachorros e...”
“... fazer um acordo, detetive Broussard! Era isso que eu...”
“... de como vocês se entendem tão bem, você e seu camarada Cheese.”
“Senhores”, disse Poole, colocando-se entre nós.
Nossas vozes ressoavam asperamente no estacionamento e nossos rostos estavam vermelhos de tanto que gritávamos. Os tendões do pescoço de Broussard saltavam feito cordas esticadas, e eu sentia a adrenalina me agitando o sangue.
“Meus métodos são corretos”, disse Broussard.
“Seus métodos não funcionam”, retruquei.
Poole pôs a mão no peito de Broussard. Broussard baixou os olhos para ela, olhou-a por um instante, os músculos da mandíbula retesando-se sob a pele.
Atravessando o estacionamento, senti a adrenalina transformando-se em gelatina nas minhas panturrilhas, o cascalho rangendo sob os sapatos. Ouvi o canto áspero de um pássaro que cruzava os ares vindo dos lados de Walden Pond, vi o brilho do sol, cada vez mais fraco, banhando os troncos das árvores enquanto declinava no horizonte. Encostei-me na traseira do Taurus, apoiei um pé no pára-choque. Um pouco mais adiante, Poole continuava falando com Broussard, a mão em seu peito, falando ao seu ouvido.
Independentemente de toda a gritaria, eu ainda não dera mostras de meu verdadeiro caráter. Quando me enfureço de verdade, quando dá um clique em meu cérebro, minha voz perde toda a expressão, torna-se monótona, e uma bolinha vermelha luminosa atravessa meu cérebro e elimina todo o medo, toda a razão, toda a empatia. E quanto mais vermelha e quente fica a bolinha, mais gélido fica o meu sangue — até se tornar azul como um metal precioso —, e minha voz se reduz a um sussurro.
Esse sussurro — sem que nem eu nem ninguém seja avisado — é bruscamente interrompido pelo açoite do meu braço, um chute do meu pé, a fúria de um músculo galvanizado por essa mistura de calor rubro e gélido sangue metálico.
É o gênio ruim do meu pai.
Eu o conhecia antes mesmo de saber que o tinha herdado. Eu sentira seus efeitos.
A diferença fundamental entre mim e meu pai — espero — sempre residiu na passagem à ação. Ele agia no calor da hora, não importava onde nem quando. Sua cólera o dominava, da mesma forma que o álcool, o orgulho ou a vaidade domina outros homens.
Quando eu ainda era bem pequeno, naquela idade em que o filho de um alcoólatra jura que nunca vai beber, jurei nunca ceder ao avanço da bolinha vermelha, do sangue gelado, da tendência a falar aos sussurros, com voz monocórdia. Para mim, o que diferencia o homem de um animal é a capacidade de escolher. Um macaco não tem a prerrogativa de controlar o próprio apetite. Um homem sim. Meu pai, em certos momentos horríveis, era um animal. Eu me recuso a ser assim.
De modo que, ainda que entendesse a raiva de Broussard, seu desejo desesperado de resgatar Amanda, sua revolta diante da negativa de Cheese Olamon a nos levar a sério, eu não conseguia tolerar aquilo. Porque não nos levava a nada. Não levava Amanda a parte alguma — exceto, talvez, para muito mais longe de nós, e para muito mais fundo, no buraco onde certamente ela já se encontrava.
Os sapatos de Broussard apareceram de repente no cascalho, perto do pára-choque. Senti a sua sombra tapar o sol em meu rosto.
“Não posso mais fazer isso”, disse ele, com uma voz tão sumida que quase se dissipava na brisa.
“O quê?”, perguntei.
“Deixar esses filhos-da-puta maltratarem crianças e seguirem em frente, achando-se muito espertos. Não posso.”
“Então largue o emprego”, eu disse.
“Estamos com o dinheiro dele. Para consegui-lo de volta, ele vai ter de negociar conosco e devolver a criança.”
Olhei para seu rosto e nele vi estampado o medo, a louca esperança de nunca mais ver uma criança morta ou molestada de forma irremediável.
“E se ele não se importar com o dinheiro?”, perguntei.
Broussard desviou o olhar.
“Ah, ele se importa, sim.” Poole aproximou-se do carro, apoiou a mão no porta-malas, mas não parecia ter tanta certeza quanto a isso.
“Cheese tem um porrilhão de dinheiro”, eu disse.
“Você sabe como são esses caras”, disse Poole, enquanto Broussard se mantinha quieto, uma expressão de curiosidade no rosto estático. “O dinheiro nunca é bastante. Sempre querem mais.”
“Duzentos mil não é pouca coisa para Cheese”, eu disse, “mas também não é essa fortuna toda. É uma quantia que pode servir para suborno e impostos. Durante um ano. E se ele quiser fazer disso uma questão de honra?”
Broussard balançou a cabeça. “Cheese Olamon não tem princípios.”
“Tem. Ele tem, sim”, eu disse, batendo o calcanhar no pára-choque, tão surpreso quanto os outros dois com o tom exaltado de minha voz. Repeti num tom mais calmo: “Sim, ele tem. E a regra número um de seu código moral é: não sacaneie Cheese”.
Poole balançou a cabeça. “E Helene sacaneou.”
“Isso mesmo.”
“E se Cheese estiver mesmo muito puto, você acha que ele vai matar a menina e dizer ‘foda-se o dinheiro’ só para nos mandar esse recado.”
Fiz que sim. “E dormir o sono dos justos.”
O rosto de Poole adquirira um tom cinza ao avançar na sombra, entre mim e Broussard. De repente ele pareceu muito velho, com um ar não mais ameaçador, mas de quem se sente ameaçado, agora destituído de toda a sua malícia de elfo.
“E se Cheese...”, principiou ele tão baixinho que tive de me inclinar para ouvir, “quiser fazer disso um ponto de honra e também recuperar o dinheiro?”
“Usando algum truque?”, perguntou Broussard.
Poole enfiou as mãos nos bolsos e contraiu as costas e os ombros para enfrentar a brusca friagem da brisa daquele fim de tarde.
“Talvez a gente tenha aberto demais o jogo, Remy.”
“Como assim?”
“Agora Cheese sabe que, de tão desesperados para resgatar a menina, estamos dispostos a infringir as regras, deixar o distintivo em casa e fazer uma barganha do tipo ‘toma lá o dinheiro, dá cá a criança’, à revelia da lei.”
“E se ele quiser sair vitorioso...”
“Aí ninguém vai sair vivo”, disse Poole.
“Temos de ficar de olho em Chris Mullen”, eu disse. “Para ver até onde ou até quem ele nos leva. Antes que o jogo vire.”
Poole e Broussard concordaram com um meneio de cabeça.
“Senhor Kenzie”, disse Broussard me estendendo a mão. “Eu me descontrolei ainda há pouco. Deixei aquele bandido levar a melhor, correndo o risco de pôr tudo a perder.”
Apertei a mão dele. “Vamos trazê-la de volta.”
Ele apertou minha mão com mais força. “Viva.”
“Viva”, repeti.
“Você acha que Broussard está à beira de um colapso nervoso?”, perguntou Angie.
Estávamos estacionados na Devonshire Street, na divisa com o centro financeiro, de onde vigiávamos a parte traseira do edifício onde morava Chris Mullen. Os detetives da BPC que até então tinham seguido Mullen foram para casa dormir. Várias outras duplas acompanhavam os movimentos dos principais chefes da gangue de Cheese, enquanto nos ocupávamos de Mullen. Broussard e Poole, postados na Washington Street, vigiavam a entrada do edifício. Passava um pouco da meia-noite. Mullen já estava lá havia três horas.
Dei de ombros. “Você viu a cara de Broussard quando Poole falou sobre a pequena Jeannie Minnelli, encontrada morta num barril de cimento?”
Angie fez que sim.
“A reação dele foi pior que a de Poole. Parecia que ia ter uma coisa, só de ouvir aquilo. As mãos começaram a tremer, o rosto ficou branco e brilhante. O cara parecia estar muito mal.” Levantei os olhos para os três quadrados amarelos do décimo quarto andar, que sabíamos ser as janelas de Mullen, e vi um deles escurecer. “Talvez ele esteja fraquejando. Ele extrapolou com Cheese, não há dúvida.”
Angie acendeu um cigarro e entreabriu a janela do carro. A rua estava em silêncio. Ladeada por canyons de fachadas brancas e cintilantes arranha-céus de vidro azulado, parecia um set de filmagens à noite, maquete gigante de um mundo onde havia seres humanos. Durante o dia, Devonshire se enchia de uma multidão animada, um tanto alegre e um tanto agressiva, de transeuntes e corretores da Bolsa, advogados, secretárias e mensageiros de bicicleta, caminhões e táxis buzinando loucamente, pastas, belas gravatas e telefones celulares. Mas lá pelas nove da noite as coisas se acalmavam, e ficar dentro de um carro em meio àquele conjunto arquitetônico vasto e vazio nos dava a impressão de que éramos só mais uma peça de um museu gigantesco, depois do apagar das luzes e da saída dos guardas de segurança.
“Lembra aquela noite em que Gerry me deu um tiro?”, disse Angie.
“Sim.”
“Um pouco antes, lembro-me de ter lutado com você e Evandro no escuro, enquanto as velas em meu quarto cintilavam como olhos. E eu pensei: Não posso continuar nessa vida. Não posso investir mais nada de mim — por pouco que seja — em toda essa violência e toda essa... porcaria.” Ela mudou de posição no assento do carro. “Talvez Broussard esteja se sentindo assim. Quantas crianças você suporta achar em barris de cimento, antes de pirar?”
Pensei no olhar vazio de Broussard, depois que ele agrediu Cheese. Um vazio tão completo que suplantara até sua fúria.
Angie estava certa: quantas crianças mortas a gente suporta encontrar?
“Ele é capaz de incendiar a cidade, se achar que isso o levará a Amanda”, eu disse.
Angie balançou a cabeça. “Os dois fariam isso.”
“E pode ser que ela já esteja morta.”
Angie deixou cair a cinza do cigarro pela janela do carro. “Não diga isso.”
“Não dá para ignorar. É perfeitamente possível. Você sabe disso. E eu também.”
O silêncio que dominava a rua entrou por um instante em nosso carro.
“Cheese odeia testemunhas”, disse Angie finalmente.
“Odeia mesmo”, concordei.
“Se a menina estiver morta...”, principiou Angie, parando em seguida para temperar a garganta, “... com certeza Broussard vai perder a cabeça. E talvez Poole também.”
Fiz que sim. “E Deus ajude quem estiver envolvido no seqüestro.”
“Você acha que Deus vai ajudar?”
“Ahn?”
“Deus”, ela repetiu, esmagando o cigarro no cinzeiro. “Você acha que Deus vai ajudar os seqüestradores mais do que a Amanda?”
“Provavelmente não.”
“Então...”, disse ela, olhando pelo pára-brisa.
“Então o quê?”
“Se Amanda estiver morta e Broussard perder a cabeça e matar os seqüestradores, talvez Deus esteja ajudando.”
“Que Deus esquisito, não?”
Angie deu de ombros. “A gente se vira com o que tem.”
14
Eu já tinha ouvido falar do rigoroso horário de banqueiro seguido por Chris Mullen, de sua decisão de administrar atividades noturnas trabalhando durante o dia. E exatamente às 8h55 ele saiu da área das Devonshire Towers, dobrou à direita, pegando a Washington Street.
Eu estava estacionado na Washington Street, a meio quarteirão de distância dos edifícios, quando, pelo retrovisor, avistei Mullen dirigindo-se à State. Apertei o botão do walkie-talkie que estava no banco do carro e disse: “Acabou de sair pela frente do edifício”.
De seu posto de observação na Devonshire Street, onde os carros não podiam estacionar e nem mesmo circular em baixa velocidade, Angie disse: “Entendido”.
Broussard, de camiseta cinza, calça de moletom preta e um casaco esporte azul-escuro e branco, estava em frente à Pi Alley, do outro lado da rua em que eu estava. Tomava café num copinho de plástico e lia a página de esportes como um corredor qualquer que tivesse terminado sua corrida. Ele conectara um fone de ouvido a um receptor preso à cintura. O receptor e os próprios fones foram pintados de amarelo e preto, para dar a impressão de que se tratava de um walkman. Cinco minutos antes, ele respingara água na parte da frente da camiseta, imitando gotas de suor. Esses veteranos da Delegacia de Entorpecentes são verdadeiros craques na arte do disfarce.
Quando Mullen pegou a direita, na altura de uma banca de flores, na frente da Old State House, Broussard atravessou a Washington Street e começou a segui-lo. Vi-o levar o copinho à boca e mexer os lábios enquanto falava ao microfone preso à pulseira do relógio.
“Está indo na direção leste. Sigo-o de perto. Hora de entrar em cena, crianças.”
Desliguei o walkie-talkie, coloquei-o no bolso do casaco, onde deveria ficar até eu terminar de representar o meu papel. Como aquele dia seria dominado pelo tema do disfarce, eu estava metido num casaco digno de um mendigo de metrô, que eu tratara de manchar de gema de ovo, regando-o em seguida com Pepsi, no início daquela manhã. Minha camiseta suja tinha um rasgão no peito; a calça jeans e os sapatos estavam manchados de tinta e de lama. Os sapatos, abertos na parte da frente, faziam um barulhinho quando eu andava, e deixavam os dedos à mostra. Eu levantara os cabelos da testa, para em seguida secá-los, bem ouriçados, à la Don King. Para terminar, besuntara a barba com o resto do ovo que tinha usado para sujar o casaco.
Questão de estilo.
Enquanto atravessava cambaleando a Washington Street, abri a braguilha e derramei um resto de café no peito. As pessoas que vinham em sentido contrário se desviavam, para evitar meus passos trôpegos e meus braços abertos, agitando-se no ar. No momento em que empurrei as portas douradas do Devonshire Place, eu desfiava uma verdadeira ladainha de palavras que minha mãe jamais me ensinara.
Cara, o segurança ficou muito perturbado quando me viu.
O mesmo aconteceu com mais três pessoas que saíram do elevador e deram uma grande volta no piso de mármore para se desviar de mim. Olhei cinicamente para as duas mulheres do trio, sorri e acompanhei com os olhos o contorno de suas pernas deixadas à mostra por seus tailleurs Anne Klein.
“Vocês me acompanham numa pizza?”, perguntei.
O homem de negócios afastou as duas mulheres ainda mais, e o segurança falou: “Ei! Ei, você!”.
Voltei-me para ele no momento em que saía de trás de seu lustroso balcão em forma de ferradura. Era jovem e magro, e vinha de dedo em riste, apontado para mim.
O homem de negócios empurrou as mulheres para fora do edifício, sacou um celular do bolso de dentro do casaco, levantou a antena puxando-a com os dentes, mas continuou andando na Washington Street.
“Vamos”, disse o segurança. “Dê o fora daqui. Agora. Vamos.”
Cambaleei à sua frente, passei a língua na minha barba, onde havia um fragmento de casca de ovo, e comecei a mascá-lo de boca aberta, fazendo um barulhinho.
Pés bem plantados no piso de mármore, o segurança levou a mão ao cassetete. “Você”, disse ele, como se estivesse falando com um cachorro. “Vá embora.”
“Oh-oh”, fiz, cambaleando mais um pouco.
Uma sineta tocou do lado dos elevadores, anunciando que um deles chegara ao térreo.
O segurança estendeu o braço para pegar meu cotovelo, mas girei o corpo, e seus dedos agarraram o ar.
Enfiei a mão no bolso. “Tenho uma coisa pra lhe mostrar.”
O segurança tirou o cassetete da bainha. “Ei! Mantenha as mãos onde eu possa vê-las...”
“Oh, meu Deus”, disse alguém, quando a multidão saía do elevador e eu tirava uma banana do casaco, apontando-a em seguida para o segurança.
“Meu Deus, ele está com uma banana!” A voz vinha de trás de mim. Angie.
Sempre improvisando. Não conseguia ficar no script.
A multidão que saíra do elevador tentava cruzar o saguão, evitando me olhar mas tentando ver o máximo que podia do incidente, para ter a melhor história para contar na hora do intervalo do café.
“Senhor”, disse o segurança, tentando um tom autoritário mas polido, agora que vários moradores nos observavam. “Largue essa banana.”
Apontei a banana para ele. “Ganhei do meu primo. Ele é um orangotango.”
“Não é o caso de chamar a polícia?”, disse uma mulher.
“Senhora”, disse o guarda, num tom meio desesperado. “A situação está sob controle.”
Joguei a banana nele. Ele largou o cassetete e pulou para trás como se tivesse levado um tiro.
Alguém da multidão soltou um grito, e muitos correram em direção à porta.
Postada diante dos elevadores, Angie olhou para mim e apontou para o meu cabelo. “Muito sexy”, articulou ela em silêncio, entrando em seguida no elevador, e as portas se fecharam.
O segurança apanhou o cassetete e jogou a banana no chão. Parecia prestes a se lançar contra mim. Eu não sabia quantas pessoas ainda estavam atrás de mim — talvez três —, mas pelo menos uma delas podia estar pensando em bancar o herói, lançando-se contra o vagabundo.
Girei o corpo de forma a ficar de costas para o balcão e para os elevadores. Agora só restavam dois homens, uma mulher e o segurança. E os dois homens avançavam lentamente para a porta. Mas a mulher parecia fascinada. Estava de boca aberta, a mão pressionando a garganta.
“Que fim levou o Men at Work?”, perguntei.
“O quê?”, disse ela, enquanto o segurança avançava mais um passo em minha direção.
“A banda australiana”, respondi, girando a cabeça e fitando o guarda com um olhar terno e interrogativo. “Fizeram um tremendo sucesso no começo dos anos oitenta. Um sucesso enorme. Sabe que fim eles levaram?”
“O quê? Não.”
Inclinei a cabeça, continuando a olhar para ele, e cocei a têmpora. Por um bom tempo, todos os que se encontravam no saguão ficaram imóveis, a respiração suspensa.
“Oh”, eu disse finalmente. “Desculpe, pode ficar com a banana”, acrescentei, dando de ombros.
Pisei na banana a caminho da porta, e os dois homens ficaram colados à parede.
Pisquei o olho para um deles. “Vocês têm um segurança de primeira linha, hein? Se não fosse ele, eu teria acabado com isso aqui.” Abri as portas que davam para a Washington Street.
Eu estava prestes a levantar o polegar disfarçadamente para Poole, que estava no Taurus, na esquina da School Street com a Washington Street, quando duas mãos desceram sobre meu ombro, empurrando-me contra a parede do edifício.
“Fora do meu caminho, vagabundo.”
Voltei a cabeça, e mal tive tempo de ver Chris Mullen entrar pela porta giratória e indicar com um gesto a minha pessoa ao segurança paralisado, continuando a andar em direção aos elevadores.
Mergulhei no fluxo de pedestres da rua, tirei o walkie-talkie do bolso e liguei.
“Poole, Mullen voltou.”
“Positivo, senhor Kenzie. Broussard agora está entrando em contato com a senhorita Gennaro. Dê meia-volta e vá para o seu carro. Não queime nossos disfarces.” Eu via seus lábios mexendo-se através do pára-brisa, e quando ele colocou o walkie-talkie no banco do carro, me lançou um olhar duro.
Mergulhei na multidão.
Uma mulher com a aparência de inseto, óculos fundo de garrafa, cabelos esticados e presos atrás da cabeça, olhou para mim.
“Você é policial, não é?”
Levei um dedo aos lábios. “Psst.” Coloquei o walkie-talkie no bolso do casaco, deixei-a ali, de boca aberta, e voltei para o meu carro.
Quando estava abrindo o porta-malas, vi Broussard encostado na vitrine da loja Eddie Bauer. Ele levantou a mão até a altura do ouvido e falou no microfone preso ao punho.
Inclinei-me para dentro do porta-malas aberto e sintonizei para o seu canal.
“... repito, senhorita Gennaro, o elemento está indo para aí. Suspender a operação imediatamente.”
Tirei todos os fragmentos de casca de ovo de minha barba e pus um boné de beisebol na cabeça.
“Repito”, sussurrou Broussard. “Suspender a operação.”
Joguei o casaco no porta-malas, tirei meu casaco de couro preto, coloquei o walkie-talkie no bolso e fechei o casaco sobre a camiseta suja. Fechei o porta-malas, voltei por entre a multidão em direção à Eddie Bauer, olhei os manequins da vitrine.
“Ela está respondendo?”
“Não”, disse Broussard.
“O walkie-talkie dela estava funcionando?”
“Não dá pra saber. Imagino que ela me ouviu e desligou o aparelho para evitar que Mullen o ouvisse.”
“Vamos subir”, eu disse.
“Se você der um passo em direção ao edifício, eu estouro a sua rótula.”
“Ela está em perigo lá em cima. Se o walkie-talkie dela estiver quebrado, e ela não tiver ouvido o seu...”
“Eu não vou pôr esta operação a perder porque você anda dormindo com ela.” Ele se afastou da vitrine e passou por mim num andar descansado de quem acabara de fazer sua corrida matinal. “Ela é uma profissional. Que tal você começar a agir como um também?”
Ele foi andando pela rua, e eu olhei meu relógio: 9h15.
Já tinham se passado quatro minutos desde que Mullen entrara. E, para começar, por que diabos ele voltou? Será que Broussard tinha dado alguma bandeira?
Não. Broussard era bom demais para isso. Eu só consegui vê-lo porque sabia que ele estava no pedaço; além disso, ele se disfarçava tão bem que não o reconheci da primeira vez que o vi.
Consultei o relógio novamente: 9h16.
Se Angie tivesse ouvido a mensagem de Broussard no momento em que Mullen entrava no edifício, a esta altura ela deveria estar no elevador, ou pelo menos fora do apartamento do suspeito. Ela iria descer pela escada e aparecer a qualquer momento.
9h17.
Eu estava de olho na entrada do Devonshire Place. Dele saíram alguns corretores trajando belos ternos Hugo Boss, sapatos Gucci e gravatas Geoffrey Beene, cabelos tão empastados de gel que seria preciso uma britadeira para desarrumá-los. Eles deram passagem a uma mulher esguia, num elegante conjunto azul-escuro e com sofisticados óculos Revos, e não deixaram de dar uma olhada em sua bunda, na hora em que ela entrou no táxi.
9h18.
Só havia duas explicações possíveis para o fato de Angie ainda não ter saído: foi obrigada a se esconder no apartamento de Mullen, ou ele a surpreendera, dentro ou fora do apartamento.
9h19.
Ela nunca faria a bobagem de descer pelo elevador se tivesse ouvido a mensagem de Broussard, correndo o risco de dar de cara com Chris Mullen quando a porta se abrisse.
Ei, Angie, quanto tempo, hein?
É mesmo, Chris.
Que faz aqui em meu edifício?
Vim visitar um amigo.
É mesmo? Você não está trabalhando no caso daquela menina desaparecida?
Por que está apontando a arma para mim, Chris?
9h20.
Lancei um olhar à Washington Street, esquina com a School.
Poole olhou para mim e balançou a cabeça lentamente, para a esquerda e para a direita, numa negativa.
Talvez ela tivesse chegado ao saguão, mas estivesse sendo incomodada pelo segurança.
Um momento, senhorita. Não me lembro de tê-la visto aqui antes.
Acabo de me mudar para cá.
Acho que não. Ele pega o telefone, liga para a polícia...
Mas a essa altura ela já estaria na porta.
9h22.
Avancei um passo em direção ao edifício. Depois mais um. E parei.
Se não tivesse havido nenhum problema, se Angie tivesse simplesmente desligado o walkie-talkie para evitar que o chiado denunciasse a sua presença e agora estivesse num décimo quarto andar, atrás da porta da saída de emergência, observando o apartamento do suspeito pelo pequeno retângulo de vidro, e eu me precipitasse para a entrada do edifício bem na hora em que Mullen estivesse saindo, e ele me reconhecesse...
Encostei-me na parede.
9h24.
Fazia catorze minutos que Mullen me empurrara contra a parede e entrara no edifício.
O walkie-talkie no bolso do meu casaco vibrou contra meu peito. Quando o peguei, ele emitiu um pequeno bip, e ouvi: “Ele está descendo novamente”.
Era a voz de Angie.
“Onde você está?”
“Preciso agradecer a Deus pelos televisores de cinqüenta polegadas, é só o que tenho a dizer.”
“Você está dentro ?”, disse Broussard.
“Claro. Um belo apartamento, mas fechaduras facílimas de abrir, pode acreditar.”
“Por que ele voltou?”
“Veio pegar o terno. É uma longa história. Conto depois. Ele deve estar chegando à rua a qualquer momento.”
Mullen saiu do edifício trajando um terno azul, e não mais o preto com que entrara. A gravata também era outra. Eu estava observando o nó da gravata quando a cabeça dele girou na minha direção, e eu desviei o olhar para meus sapatos, sem mover a cabeça. Como esses tipos paranóicos são muito sensíveis a movimentos rápidos na multidão, preferi não me desviar.
Bem devagar, fiz uma contagem regressiva a partir de dez, abaixei o volume do walkie-talkie, mal conseguindo ouvir a voz de Broussard. “Ele está indo embora. Estou de olho nele.”
Levantei os olhos, vi os ombros de Mullen na frente de uma jovem de casaco amarelo vivo e avistei Broussard abrindo caminho por entre a multidão, no ponto em que a Court Street muda de nome para State Street, e dobrando à direita, na altura da Old State House, atravessando em seguida a ruela.
Voltei-me para a vitrine da Eddie Bauer e vi minha imagem refletida no vidro.
“Ufa!”
15
Uma hora depois, Angie abriu a porta do passageiro de nossa Crown Victoria e disse: “Ele está sob escuta, meu amigo. Sob escuta”.
Eu estacionara o carro no terceiro piso da garagem automática da Pi Alley, de frente para o Devonshire Place.
“Você colocou aparelhos de escuta em todos os cômodos?”
Ela acendeu um cigarro. “E grampeei os telefones também.”
Consultei o relógio. Ela ficou lá exatamente uma hora. “Afinal de contas, quem é você? Agente da CIA?”
Ela abriu um sorriso por trás do cigarro. “Se eu contar, vou ter de matá-lo em seguida, querido.”
“E que história é essa de terno?”
Através do pára-brisa, ela lançou um olhar sonhador à fachada do Devonshire Place e balançou a cabeça devagar.
“Os ternos. Certo. Ele fala consigo mesmo.”
“Mullen?”
Ela fez que sim. “Na terceira pessoa.”
“Será que aprendeu isso com Cheese?”
“Ele abriu a porta resmungando: ‘Que cagada, Mullen. Sair de terno preto numa sexta-feira. Onde você estava com a cabeça?’. Desse jeito.”
“Aposto como acredita em todo tipo de superstição.”
Ela deu um risinho. “Exatamente. Ele se precipitou para o quarto feito um louco, arrancou o terno, enfiando as mãos nos cabides, e por aí vai. Isso levou alguns minutos, e então ele escolheu outro terno, vestiu-o, enquanto eu pensava: que bom, logo ele sai, porque estou ficando com cãibra atrás desta televisão, metida num monte de fios que pareciam cobras...”
“E aí?”
Em situações como essa, Angie tende a divagar, daí que é preciso chamá-la ao assunto de vez em quando.
Ela me lançou um olhar aborrecido. “Tenha paciência, senhor Vamos-Ao-Que-Interessa. Aí... de repente ouvi-o falar novamente: ‘Imbecil! Imbecil! Você mesmo!’.”
“O quê?”, perguntei, inclinando-me para ela.
“Se interessou de novo, hein?”, disse ela, piscando um olho. “Pois é, achei que ele tinha me visto. Estou ferrada, frita, certo?” Seus grandes olhos castanhos pareciam ainda maiores.
“Certo.”
Ela deu uma tragada. “Que nada. Ele estava falando sozinho novamente.”
“Ele chama a si mesmo de ‘imbecil’?”
“Parece que sim, quando fica puto. ‘Ei, seu panaca, você vai usar uma gravata amarela com esse terno? Essa é boa. Essa é muito boa, panaca.’ ”
“Panaca.”
“Juro por Deus. Um vocabulário um tanto limitado, eu diria. Aí ele fica zanzando mais um pouco, pega outra gravata, coloca-a, resmungando o tempo todo. Enquanto isso, eu pensava: ele vai pôr a gravata certa, mas a meio caminho da porta vai achar que a camisa não está boa. Vou ficar com tanta cãibra que vai ser preciso um guincho para me tirar de trás desta televisão.”
“E aí?”
“Ele saiu. E eu chamei vocês.” Ela jogou o cigarro pela janela. “Fim do episódio.”
“Você estava no apartamento quando Broussard falou pelo walkie-talkie que Mullen estava voltando?”
Ela balançou a cabeça. “Estava na porta de Mullen, com as chaves falsas na mão.”
“Você está brincando...”
“O quê?”
“Você entrou no apartamento sabendo que ele estava voltando?”
Ela deu de ombros. “Me deu uma coisa.”
“Você é pirada.”
Ela deu um risinho gutural. “Pirada o bastante para manter você interessado, bonitão. É isso que eu quero.”
Eu não sabia se a beijava ou a matava.
O walkie-talkie gemeu no banco entre nós, e ouvimos a voz de Broussard: “Poole, você o segue?”.
“Positivo. O táxi está na Purchase, a caminho da auto-estrada.”
“Kenzie.”
“Sim?”
“A senhorita Gennaro está com você?”
“Positivo”, respondi num tom grave, que me valeu uma cutucada de Angie.
“Fiquem por aí. Vamos ver aonde ele está indo. Vou voltar.”
Seguiu-se um minuto de silêncio, finalmente interrompido pela voz de Poole. “Ele está na auto-estrada, seguindo na direção sul. Senhorita Gennaro?”
“Sim, Poole.”
“Todo o nosso pessoal está a postos?”
“Sem faltar ninguém.”
“Liguem seus receptores, e ponham-se a caminho. Alcancem Broussard e sigam na direção sul.”
“Certo. Detetive Broussard?”
“Estou na Broad Street, seguindo na direção oeste.”
Dei marcha à ré.
“Entendido, encontro você no cruzamento da Broad Street com a Batterymarch.”
“Entendido.”
Saímos do estacionamento, Angie ligou o receptor portátil que estava no banco de trás e aumentou o volume até ouvirmos o leve sussurro do ar no apartamento vazio de Mullen. Peguei a rampa de acesso sob o Devonshire Place, virei à esquerda na Water Street, passei pela praça do Correio e pela Liberty, e então vi Broussard encostado num poste, na frente de uma mercearia.
Quando ele entrou em nosso carro, ouvimos a voz de Poole no walkie-talkie. “Saindo da auto-estrada em Dorchester, na altura do centro comercial de South Bay.”
“De volta ao querido bairro”, disse Broussard. “Vocês de Dorchester não conseguem ficar muito tempo longe daqui.”
“É como um ímã”, respondi.
“Esqueçam o que eu falei ainda há pouco”, disse Poole. “Ele está entrando à esquerda na Boston Street, em direção ao Southie.”
“Mas não um ímã muito forte”, acrescentei.
Dez minutos depois, passamos pelo Taurus vazio de Poole na Gavin Street, no coração do conjunto habitacional Old Colony, em South Boston, e estacionamos meio quarteirão mais adiante. Em seu último comunicado, Poole dissera estar seguindo Mullen, que entrava no Old Colony a pé. Até o próximo contato, só nos restava ficar ali esperando e olhando o conjunto habitacional.
Para falar a verdade, a vista até que não é desagradável. As ruas são limpas, arborizadas, serpenteando graciosamente entre edifícios de tijolos vermelhos, com remates recém-pintados de branco. Quase todas as janelas do térreo dão para pequenos gramados quadrangulares. A grade que circunda o jardim é alta, firme e sem ferrugem. Em matéria de conjuntos habitacionais, o Old Colony é um dos mais agradáveis que existem no país.
Mas há o problema da heroína. E de suicídios de adolescentes, provavelmente por causa da droga. E o problema da droga provavelmente deriva do fato de que, ainda que você cresça no mais belo conjunto habitacional do mundo, ele não deixa de ser um conjunto habitacional; e se a heroína não é lá grande coisa, ao menos ajuda a suportar a eterna visão das mesmas paredes, dos mesmos tijolos, das mesmas grades.
“Eu cresci aqui”, disse Broussard, do banco de trás. Ele olhou com toda a atenção pela janela do carro, como se temesse que a paisagem se transformasse de repente diante de seus olhos.
“Com esse sobrenome francês? Você deve estar brincando.”
Ele sorriu e esboçou um dar de ombros. “Meu pai era da marinha mercante de New Orleans. Ou ‘Norlins’, como ele dizia. Ele teve alguns problemas lá e acabou vindo trabalhar nas docas de Charlestown e depois no Southie.” Broussard fez um gesto com a cabeça, indicando os edifícios de tijolos. “Nós nos instalamos aqui. Um em cada três meninos chamava-se Frankie O’Brien, e o sobrenome dos demais era Sullivan, Shea, Carroll ou Connelly. Quando o primeiro nome não era Frank, era Mike, Sean ou Pat.” Ele olhou para mim e arqueou as sobrancelhas.
Levantei as mãos. “Ops.”
“Então, com esse nome de Remy Broussard... Pois é, acho que isso contribuiu para que eu endurecesse.” Ele abriu um sorriso largo, contemplou o conjunto habitacional, e assobiou baixinho. “Cara, é como voltar para casa.”
“Você não mora mais no Southie?”, perguntou Angie.
Ele balançou a cabeça. “Mudei quando meu pai morreu.”
“Você tem saudade?”
Ele franziu os lábios e olhou para uns meninos correndo na calçada, gritando, jogando tampinhas de garrafa uns nos outros, sabe-se lá por quê.
“Não, na verdade não. Sempre me senti um menino da roça meio deslocado na cidade. Mesmo em New Orleans.” Ele deu de ombros. “Eu gosto mesmo é de árvores.”
Ele mexeu no dial do walkie-talkie e aproximou o aparelho dos lábios. “Detetive Pasquale, aqui é Broussard. Câmbio.”
Pasquale era um dos detetives da BPC encarregados de vigiar a prisão de Concord, controlando as visitas de Cheese. “Aqui Pasquale.”
“Alguma novidade?”
“Nenhuma. Nenhuma visita depois de vocês.”
“Algum telefonema?”
“Negativo. Olamon perdeu o direito de telefonar por causa de uma briga no pátio no mês passado.”
“Certo. Desligo.” Ele colocou o walkie-talkie no banco, levantou a cabeça e de repente concentrou a atenção num carro que entrou na rua, vindo em nossa direção. “Que temos aqui?”
Um Lexus RX 300 cinza-escuro com uma placa personalizada em que se lia PHARO, passou por nós, avançou mais vinte ou trinta metros, fez uma volta completa e estacionou em lugar proibido, bloqueando uma das vielas. Era um veículo utilitário fora-de-estrada de cinqüenta mil dólares, para viagens e para as “caçadas” que de vez em quando ocorriam naquele bairro, e cada centímetro dele brilhava como se tivesse sido polido com almofadas de seda. Ele combinava muito bem com os Escort, os Golf e os Geo estacionados ao longo do meio-fio, e até com o Buick do início dos anos 80, cujo vidro traseiro fora remendado com um saco de plástico verde colado com fita adesiva.
“O RX 300”, disse Broussard com uma voz grave de locutor de comercial. “Absoluto conforto para o traficante que não quer ser incomodado por nevascas e estradas ruins.” Então se inclinou para a frente e apoiou os braços no encosto de nossos bancos, no espaço vazio entre mim e Angie, mantendo os olhos no retrovisor. “Senhoras e senhores, apresento-lhes Pharaoh Gutierrez, o todo-poderoso senhor da cidade de Lowell.”
Um homem magro de origem hispânica saiu do Lexus. Trajava calça de linho preta e camisa verde-limão, fechada no colarinho por uma abotoadura preta, sob um fraque de seda preto cujas abas lhe chegavam até a dobra dos joelhos.
“Um verdadeiro modelo das passarelas”, disse Angie.
“Não é mesmo?”, concordou Broussard. “E você ainda não viu nada. Precisa ver quando ele sai para a balada.”
Pharaoh Gutierrez ajeitou as abas do fraque e alisou a calça na altura das coxas.
“Que diabos ele está fazendo aqui?”, perguntou Broussard em voz baixa.
“Quem é ele?”
“Ele toca os negócios de Cheese em Lowell e Lawrence, boas e velhas cidades industriais. Além disso, dizem que é o único que consegue lidar com aqueles pescadores tarados de New Bedford.”
“Agora dá para entender”, disse Angie.
Os olhos de Broussard continuaram fixos no retrovisor. “Dá para entender o quê?”
“O fato de ele se encontrar com Chris Mullen.”
Broussard balançou a cabeça. “Não, não, não. Mullen e Gutierrez se odeiam. Ouvi falar que por causa de uma mulher; já faz uns dez anos. Foi por isso que Gutierrez foi banido para a periferia e Mullen continuou na área mais central. Sua presença aqui não faz nenhum sentido.”
Gutierrez olhou para os dois lados da rua, segurando as lapelas do fraque com ambas as mãos, como faria um juiz, avançando ligeiramente o queixo. Seu nariz comprido e fino farejou o ar. Aquela sua postura rígida parecia forçada, artificial; não combinava com seu físico de aparência débil. Ele dava a impressão de um homem que não tolera insultos, mas que espera o tempo todo ser insultado. Tão inseguro que seria capaz de matar para provar o contrário.
Ele me lembrava alguns caras que conheci — em geral baixinhos, ou magros demais, mas tão decididos a provar sua macheza que nunca paravam de brigar, nunca paravam para respirar, e comiam depressa demais. Os homens desse tipo que conheci se tornaram policiais ou criminosos. Pareciam não se sentir à vontade numa zona intermediária. E muitos morreram ainda bem jovens, com um raivoso ponto de interrogação estampado no rosto.
“Ele parece ser um pé no saco”, eu disse.
Broussard pôs as mãos no encosto do banco e apoiou o queixo nelas. “Sim, é isso o que ele é. Tem muito o que provar, e pouco tempo para isso. Desconfio que qualquer dia desses ele pira, e talvez enfie uma bala na cabeça de Chris Mullen. E Cheese Olamon que se dane.”
“Talvez esse dia seja hoje”, disse Angie.
“Talvez”, concordou Broussard.
Gutierrez contornou o Lexus e se encostou no pára-lama dianteiro. Olhou para a viela que tinha bloqueado, depois consultou o relógio.
“Mullen está indo em sua direção”, disse Poole, quase num sussurro, no walkie-talkie.
“Inimigo à vista”, respondeu Broussard. “Fique onde está.”
“Entendido.”
Angie estendeu a mão e deslocou o retrovisor um pouquinho para a direita, de modo que pudéssemos ver melhor Gutierrez, o Lexus e a viela.
Mullen apontou no fim da viela. Ele passou a mão na gravata, olhou para Gutierrez e contemplou em silêncio, por um instante, o Lexus que bloqueava seu caminho.
Broussard desencostou-se do banco da frente, tirou a Glock da cintura e puxou a trava de segurança.
“Se a coisa esquentar, não saiam do carro. Liguem para a polícia.”
Mullen ergueu uma valise preta fininha e sorriu.
Gutierrez balançou a cabeça.
Broussard se abaixou no banco, já com a mão na maçaneta da porta.
Mullen estendeu a mão que estava livre, e, depois de um instante, Gutierrez a apertou. Então os dois homens se abraçaram, batendo de leve nas costas um do outro.
Broussard largou a maçaneta da porta. “Mas que interessante.”
Depois do abraço, a valise estava na mão de Gutierrez. Ele voltou para o Lexus, abriu a porta com um gesto largo e uma pequena reverência, e Mullen sentou-se no banco do passageiro. Então Gutierrez contornou o carro, entrou e deu a partida.
“Poole”, disse Broussard no walkie-talkie. “Acabamos de ver Pharaoh Gutierrez e Chris Mullen como dois irmãos que se reencontram depois de muito tempo.”
“Deixe de brincadeira.”
“Juro por Deus, cara.”
O Lexus de Gutierrez afastou-se da calçada e passou por nós.
Enquanto ele seguia pela rua, Broussard falou no walkie-talkie: “Prepare-se, Poole. Estamos seguindo um Lexus utilitário cinza-escuro dirigido por Gutierrez, com Mullen no banco do passageiro. Estão saindo do conjunto habitacional”.
Quando íamos passando pela segunda viela, Poole veio correndo. Usava um disfarce de vagabundo semelhante ao meu, ao qual acrescentara uma bandana azul-escura. Ele a retirou quando passou por trás de nosso carro, indo em direção ao Taurus, e nós seguimos o Lexus na Boston Street. Sempre na nossa mira, Gutierrez entrou à direita, passou pela Andrew Square e pegou a estrada lateral, paralela à via expressa.
“Que significa essa história de Mullen e Gutierrez andarem aos abraços?”, perguntou Angie.
“Significa um monte de merda para Cheese Olamon.”
“Cheese está na cadeia, e seus dois prepostos — até então inimigos mortais — se aliam contra ele?”
Broussard confirmou balançando a cabeça. “Para lhe tomar o império.”
“E onde é que fica Amanda nessa história?”, perguntei.
Broussard deu de ombros. “Aí pelo meio.”
“No meio de quê?”, insisti. “Na linha de fogo?”
16
Quando nos pomos a seguir essa canalha, às vezes acontece de sentirmos um pouco de inveja de seu estilo de vida.
Oh, não estou falando das coisas grandes — dos carros de sessenta mil dólares, dos apartamentos de um milhão, dos lugares privilegiados para assistir aos jogos nos estádios —, tudo isso realmente impressiona, mas pode ser bem aborrecido. Refiro-me aos pequenos privilégios do dia-a-dia, que fazem os traficantes parecerem verdadeiros alienígenas para nós, que pertencemos à classe trabalhadora.
Por exemplo, durante todo o tempo que ficamos observando Chris Mullen e Pharaoh Gutierrez, pouquíssimas vezes eles respeitaram os sinais de trânsito. O sinal vermelho, pelo visto, era para a gentinha, ordem de parar para os otários. O limite de velocidade de noventa quilômetros por hora na via expressa? Ora, por que andar a noventa, se a cento e trinta se chega bem mais rápido? Por que se arrastar pela pista normal, quando o acostamento está livre?
Além disso, havia o problema de estacionamento. Espaço para estacionar em Boston é tão comum quanto pistas de esqui no Saara. Já houve casos de velhinhas com estolas de visom trocarem tiros, disputando uma vaga para estacionar. Em meados da década de 1980 um imbecil chegou a comprar uma vaga num estacionamento em Beacon Hill por duzentos e cinqüenta mil dólares, sem contar as despesas mensais de manutenção.
Boston: uma cidade pequena, de clima frio, mas somos capazes de matar por uma vaga para estacionar. Venha e traga a família.
Gutierrez, Mullen e vários de seus sequazes que espionamos nos dias seguintes não tinham esse problema. Eles simplesmente paravam em fila dupla quando bem entendiam, e por quanto tempo quisessem.
Certa vez, na Columbus Avenue, no South End, Chris Mullen, tendo terminado de almoçar no Hammersleys, saiu do restaurante e deu de cara com um artista furioso — com o cavanhaque de praxe, três brincos numa orelha — que o esperava. Chris bloqueara o Civic imundo do artista com seu lustroso Benz preto. O artista estava acompanhado da namorada, por isso se sentiu na obrigação de armar um barraco. Do ponto de observação onde estávamos, estacionados um pouco mais adiante no mesmo quarteirão, do outro lado da rua, não conseguimos ouvir muito bem o que diziam, mas pegamos o essencial. O artista e a namorada gritavam e apontavam. Com toda a calma, Chris prendeu a ponta de sua echarpe de cashmere sob a capa preta Armani, alisou a gravata, e deu um tal pontapé na rótula do artista que o sujeito estava no chão antes que a namorada tivesse tempo de terminar sua cantilena. Àquela altura Chris estava tão perto da mulher que se podia pensar tratar-se de um casal. Ele pôs o indicador na testa da mulher e dobrou o polegar, mantendo-os naquela posição por um instante que para a mulher deve ter durado horas. Depois moveu o polegar fingindo atirar, afastou a mão do rosto da mulher, soprou na ponta do indicador e sorriu para ela. Em seguida inclinou-se para ela e lhe deu um beijinho no rosto.
Então Chris entrou em seu carro e foi embora, deixando a jovem olhando para ele perplexa, esquecida, ao que parecia, do namorado urrando de dor, contorcendo-se na calçada feito um gato com a espinha quebrada.
Além de nós, de Broussard e de Poole, vários policiais da BPC faziam esse trabalho de vigilância. Observávamos os movimentos não apenas de Gutierrez e de Mullen, mas também de vários asseclas de Cheese Olamon. Um deles era Carlos Orlando, conhecido como Navalha, que supervisionava o tráfico do dia-a-dia nos diversos conjuntos residenciais e sempre levava consigo uma pilha de revistas em quadrinhos, aonde quer que fosse. Havia também JJ MacNally, que subira na hierarquia até chegar ao cargo de cafetão-chefe de todas as prostitutas de North Dorchester, à exceção das vietnamitas; ele caíra de amores por uma vietnamita que parecia não ter mais de quinze anos. Joel Green e Hicky Vister comandavam, de um boxe no Elsinore’s — um bar de Cheese em Lower Mills —, a agiotagem e a corretagem de apostas nas corridas de cavalos; e Buddy Perry e Brian Box — dois sujeitos tão estúpidos que precisavam de mapa para achar o banheiro de casa — encarregavam-se da pancadaria.
Dava para perceber, logo à primeira vista, que não se tratava de um time de gênios. Cheese subira na hierarquia cumprindo seus deveres, mostrando respeito por quem quer que pudesse prejudicá-lo, e ocupando espaços sempre que havia um vácuo de poder. Sua maior oportunidade surgira alguns anos antes, quando Jack Rouse, chefão da máfia irlandesa de Dorchester e do Southie, desapareceu junto com seu braço direito, Kevin Hurlihy, sujeito que tinha um ninho de vespas no lugar do cérebro e ácido sulfúrico correndo nas veias. Quando eles desapareceram, Cheese fez uma proposta para a área de Dorchester e fechou negócio. Cheese era esperto, Chris Mullen também, mas um pouco menos, e Pharaoh Gutierrez se virava. O resto do bando de Cheese, porém, ilustrava bem a sua política de nunca contratar ninguém que, além de ser ganancioso — o que era considerado um dom nesse tipo de negócio —, tivesse massa cinzenta suficiente para concretizar suas ambições.
Assim sendo, ele contratava sujeitos estúpidos, obcecados por adrenalina, caras que gostavam de prender maços de dinheiro com elástico, falar como James Caan e bancar os valentões, mas sem nenhuma ambição além disso.
Toda vez que Mullen ou Gutierrez entravam em algum recinto fechado — um apartamento, depósito ou edifício de escritórios —, comunicava-se imediatamente à BPC, e nos três dias seguintes o lugar era vigiado vinte e quatro horas por dia e, se possível, infiltrado.
Os aparelhos de escuta que colocamos no apartamento de Mullen revelaram que ele toda noite ligava para a mãe às sete horas. A conversa girava sempre em torno do mesmo tema: por que ele se mostrava tão egoísta e não lhe dava netos, por que ele não namorava garotas direitas, por que ele estava sempre tão pálido, apesar do excelente emprego que tinha no Departamento Florestal. Toda noite, às sete e meia, ele assistia ao programa Jeopardy!, respondia às perguntas em voz alta, e costumava acertar uma em cada três questões. Ele era muito bom em geografia, mas uma negação quando se tratava de artistas franceses do século XVII.
Mullen falava com várias namoradas, jogava conversa fora com Gutierrez a respeito de carros, filmes e hóquei, mas, como muitos criminosos, parecia ter o saudável hábito de não falar de negócios por telefone.
Em todas as outras frentes, a busca de Amanda McCready nada rendera, e os policiais iam sendo pouco a pouco deslocados da BPC para outras áreas.
No quarto dia de vigilância, Broussard e Poole receberam um telefonema do tenente Doyle convocando-os a comparecer à delegacia em meia hora, levando a mim e Angie com eles.
“A barra pode pesar”, disse Poole, quando nos dirigíamos para o centro da cidade.
“Por que nós?”, perguntou Angie.
“É isso que quero dizer quando digo que a barra pode pesar”, respondeu Poole, e sorriu quando Angie lhe mostrou a língua.
* * *
As coisas pareciam não estar lá muito bem para Doyle. Pele meio acinzentada, olheiras fundas, o corpo inteiro fedendo a café choco.
“Feche a porta”, ordenou ele a Poole quando nós entramos.
Sentamo-nos em frente a sua escrivaninha, enquanto Poole fechava a porta atrás de nós.
Doyle disse: “Quando estava organizando a BPC e procurando bons detetives, eu evitei ao máximo o pessoal da Delegacia de Entorpecentes. Sabe por quê, Broussard?”.
Broussard mexia na própria gravata. “Por que todos temem trabalhar na área de narcotráfico.”
“E por que isso, sargento Raftopoulos?”
“Porque nós somos muito bons, senhor”, respondeu Poole, sorrindo.
Doyle fez um gesto de “isso, continuem assim”, e balançou a cabeça várias vezes, entregue aos próprios pensamentos.
“Porque os detetives da Delegacia de Entorpecentes”, disse ele finalmente, “são uns caubóis, uns pirados. Gostam de beber, gostam de grana, gostam de agitação. Gostam de fazer a coisa do jeito deles.”
Poole balançou a cabeça. “Sim, esse é sempre um lamentável efeito colateral de certas tarefas que têm de desempenhar.”
“Mas seu tenente do Zero-seis me garantiu que vocês dois sempre foram íntegros, eficientes e fiéis seguidores do regulamento. Não é isso?”
“É o que dizem, senhor”, respondeu Broussard.
Doyle lhe deu um sorriso tenso. “Você foi promovido a detetive de primeira classe no ano passado, certo, Broussard?”
“Sim, senhor.”
“Gostaria de ser rebaixado para segundo ou terceiro? Patrulheiro, talvez?”
“Ah, não, senhor. Eu não ia gostar muito.”
“Então pare de me encher o saco com esse atrevimento, investigador.”
Broussard tossiu, cobrindo a boca com a mão. “Sim, senhor.”
Doyle pegou uma folha de papel da mesa, leu-a por um instante, e recolocou-a no lugar. “Você tem metade dos homens da BPC no trabalho de vigilância dos comparsas de Cheese. Quando perguntamos por quê, você disse ter recebido uma denúncia anônima de que Olamon estava envolvido no desaparecimento de Amanda McCready.” Ele balançou a cabeça novamente, depois levantou-a e encarou Poole. “Não gostaria de retificar essa afirmação?”
“Como?”
Doyle consultou o relógio e levantou-se da cadeira. “Vou contar de dez até um. Se me contarem a verdade antes que eu chegue no um, talvez consigam manter o emprego.”
“Senhor.”
“Nove.”
“Senhor, nós não...”
“Ooh. Oito. Sete.”
“Nós achamos que Amanda McCready foi seqüestrada por Cheese Olamon para obrigar a mãe a devolver o dinheiro que ela roubou de sua quadrilha”, disse Poole, sentando-se, olhando para Broussard e dando de ombros.
“Quer dizer então que se trata de um seqüestro”, perguntou Doyle, sentando-se.
“Provavelmente”, respondeu Broussard.
“O que significa que o caso é de jurisdição federal.”
“Só se tivermos certeza de que se trata de um seqüestro”, disse Poole.
Doyle abriu a gaveta da escrivaninha, tirou um gravador e o jogou em cima da mesa. Olhou pela primeira vez para mim e para Angie desde que entráramos em seu escritório e apertou o botão PLAY.
Ouvimos o ruído da estática, o som de um telefone tocando, depois uma voz que reconhecemos como a de Lionel: “Alô”.
Do outro lado da linha, uma voz feminina falou: “Diga a sua irmã para mandar o policial velho, seu colega simpático e os dois detetives particulares à pedreira Granite Rail amanhã, às oito da noite. Diga a eles para irem pelo lado de Quincy, subindo o aclive da antiga estrada de ferro”.
“Desculpe, quem é você?”
“Diga a eles que tragam o que acharam em Charlestown.”
“Senhora, eu não sei o que...”
“Diga-lhes que o que eles acharam em Charlestown vai ser trocado pelo que achamos em Dorchester.” A voz da mulher, monótona e impessoal, se abrandou. “Entendeu, meu bem?”
“Não sei bem. Posso pegar um papel para escrever?”
Um riso gutural. “Você é mesmo uma figura, meu bem. Está tudo na fita. E agora, para o pessoal que está na escuta: se aparecer mais alguém na pedreira, além dos que mencionei, jogamos a encomenda de Dorchester do alto de um penhasco.”
“Ninguém...”
“Até mais, meu bem. Comporte-se, está ouvindo?”
“Não, espere...”
Ouvimos um clique, depois a respiração ofegante de Lionel, e em seguida o sinal do telefone.
Doyle desligou o gravador, recostou-se na cadeira, juntou os dois indicadores e ficou tamborilando com eles no lábio inferior.
Depois de alguns minutos de silêncio, ele perguntou: “O que vocês acharam em Charlestown, rapazes?”.
Ninguém disse nada.
Ele girou a cadeira e olhou para Poole e Broussard.
“Vocês querem que eu comece a contar outra vez?”
Poole olhou para Broussard. Broussard levantou a mão, palma para cima, e fez um gesto em direção a Poole.
“Muito agradecido”, disse Poole, voltando-se para Doyle. “Achamos duzentos mil dólares no quintal de David Martin e Kimmie Niehaus.”
“Os inchados de Charlestown”, disse Doyle.
“Sim, senhor.”
“E vocês declararam esses duzentos mil como prova, naturalmente.”
Poole estendeu a mão na direção de Broussard.
Broussard fitou os próprios sapatos. “Não exatamente, senhor.”
“Muito bem”, disse Doyle, pegando uma caneta, para em seguida rabiscar alguma coisa no bloco de anotações junto ao seu cotovelo. “Quando eu providenciar a expulsão de vocês de nossos quadros, em que agência de segurança vocês pretendem trabalhar?”
“Bem, considere...”
“Ou seria num bar?”, disse Doyle, com um sorriso largo. “Os paisanos adoram saber que o atendente é ex-policial. Gostam de ouvir todas aquelas histórias de guerra.”
“Escute, tenente”, disse Poole. “Com o devido respeito, gostaríamos de manter nossos empregos.”
“Não tenho dúvidas quanto a isso”, disse Doyle, escrevendo mais um pouco no bloco de anotações: “Deviam ter pensado nisso antes de se apropriar indevidamente das provas numa investigação de homicídio. Trata-se de um crime grave, cavalheiros”. Ele pegou o telefone, martelou dois números e esperou. “Michael, dê-me os nomes dos oficiais encarregados da investigação dos homicídios de David Martin e Kimmie Niehaus. Eu espero na linha.” Ele prendeu o telefone entre o ouvido e o ombro, e ficou batendo a borracha do lápis na mesa, assobiando baixinho entre os dentes. Uma vozinha distante falou no receptor, e ele recolocou o fone no ouvido. “Tudo bem.” Então rabiscou alguma coisa no bloco de anotações e desligou. “São os detetives Daniel Guden e Mark Leonard. Vocês os conhecem?”
“Vagamente”, disse Broussard.
“Posso concluir, então, que vocês deixaram de notificá-los do que foi encontrado no quintal das vítimas.”
“Sim, senhor.”
“ ‘Sim senhor’ quer dizer que vocês os notificaram, ou que não notificaram?”
“A segunda alternativa”, disse Poole.
Doyle pôs as mãos atrás da cabeça e recostou-se na cadeira novamente. “Agora me dêem um resumo de tudo o que aconteceu, senhores. Se a coisa não for tão terrível quanto está parecendo, talvez — e estou dizendo apenas talvez — vocês consigam reaver o emprego na próxima semana. E não será na BPC. Quando quero ver caubóis em ação, assisto a Rio Bravo.”
Poole lhe contou tudo, desde quando Angie e eu vimos Chris Mullen nos noticiários gravados até o momento presente. A única coisa que ele omitiu foi o pedido de resgate que eles encontraram na calcinha de Kimmie. Quando repassei mentalmente a conversa gravada de Lionel com a mulher, concluí que sem aquele bilhete não havia nenhuma prova de que a mulher estava propondo a troca do dinheiro pela criança. E não havendo provas de seqüestro, os federais ficavam fora do caso.
“Onde está o dinheiro?”, perguntou Doyle, quando Poole terminou de falar.
“Está comigo”, respondi.
“Está mesmo, não é?”, disse ele, sem olhar para mim. “Muito bonito, não, sargento Poole? Duzentos mil dólares de dinheiro roubado — que além disso constituem uma prova, aliás roubada — nas mãos de um particular cujo nome tem sido associado a três casos de homicídio não resolvidos e, segundo alguns, também ao desaparecimento de Jack Rouse e Kevin Hurlihy.”
“Eu não”, falei. “Devem estar me confundindo com outro Patrick Kenzie.”
Angie me deu um chute no tornozelo.
“Pat”, disse Doyle, inclinando o corpo para a frente e me encarando.
“Patrick”, corrigi.
“Desculpe”, disse Doyle. “Patrick, posso acusá-lo de receptação de bens roubados, obstrução da justiça, interferência em investigação de crime qualificado e ocultação de provas. Quer brincar comigo mais um pouco, para ver o que posso fazer contra você se eu ficar puto?”
Eu me mexi na cadeira.
“O quê?”, perguntou Doyle. “Eu não ouvi.”
“Não”, respondi.
Ele pôs a mão em concha atrás da orelha. “Como?”
“Não, senhor”, respondi.
Ele sorriu e tamborilou com os dedos na mesa. “Muito bem, garoto. Responda quando eu falar com você. Fora isso, fique calado.” Ele fez um gesto em direção a Angie. “Como sua sócia, aí. Sempre ouvi dizer que você era o cérebro da dupla, senhorita. Parece que é verdade.” Ele girou a cadeira outra vez, voltando-se para Poole e Broussard. “Quer dizer então que os dois gênios resolveram jogar no mesmo nível de Cheese Olamon, e trocar o dinheiro pela menina.”
“Mais ou menos isso, senhor.”
“E por que eu não deveria passar o caso para a jurisdição federal?”, perguntou ele, levantando as mãos.
“Porque não houve nenhum pedido oficial de resgate”, respondeu Broussard.
Doyle lançou um olhar para o gravador. “Então o que foi que nós acabamos de ouvir aqui?”
“Bem, senhor”, disse Poole, debruçando-se sobre a mesa e apontando para o gravador. “Se o senhor ligar o gravador novamente, vai ouvir uma mulher propondo a troca de ‘uma coisa’ encontrada em Charlestown por ‘uma coisa’ encontrada em Dorchester. Essa mulher pode muito bem estar propondo a troca de selos por figurinhas de beisebol.”
“O fato de ela ter ligado para a mãe de uma criança desaparecida não poderia intrigar os agentes do FBI?”
“Bem, a rigor...”, disse Broussard, “ela ligou para o irmão da mãe de uma criança desaparecida.”
“E falou: ‘Diga a sua irmã’ ”, completou Doyle.
“Sim, é verdade. Mas ainda assim não há provas de que se está falando de um seqüestro. E o senhor sabe como são os federais: erraram redondamente em Ruby Ridge, em Waco, fizeram acordos absurdos com a máfia de Boston, eles...”
Doyle levantou a mão. “Todos estamos sabendo das transgressões recentes do FBI, detetive Broussard.” Ele olhou para o gravador, depois para as anotações perto do seu braço. “A pedreira Granite Rail fica fora de nossa área de atuação. Está na jurisdição da Polícia Estadual e do Departamento de Polícia de Quincy. Sendo assim...”, concluiu, batendo uma mão contra a outra, “tudo bem.”
“Tudo bem?”, perguntou Broussard.
“Tudo bem significa nenhuma menção explícita à criança desaparecida e uma ação conjunta com os estaduais e a polícia de Quincy. Deixemos os federais de fora. A pessoa que ligou foi clara: os únicos policiais que devem ir à pedreira são vocês dois. Ótimo. Mas nós vamos cercar as colinas, senhores. Vamos formar um cordão em toda a volta da pedreira, e logo que a menina estiver segura, vamos cair em cima de Mullen, de Gutierrez e de quem mais estiver achando que vai pôr as mãos em duzentos mil dólares.” Ele bateu outra vez na mesa. “Certo?”
“Sim, senhor.”
“Sim, senhor.”
Doyle lhes deu aquele seu sorriso largo e frio. “Feito isso, vou transferir vocês de minha divisão e de meu distrito. Se alguma coisa der errado na pedreira amanhã à noite, transfiro vocês para o Esquadrão Antibomba. Até se aposentarem, vocês vão ficar entrando debaixo de carros torcendo para que eles não explodam na cara de vocês. Alguma pergunta?”
“Não, senhor.”
“Não, senhor.”
Mais um giro da cadeira em nossa direção. “Senhor Kenzie e senhorita Gennaro, vocês são paisanos. Não gosto de ver vocês aqui nesta sala, e muito menos que subam a colina amanhã à noite, mas não tenho muita escolha. Portanto, ouçam bem: vocês não vão trocar tiros com os suspeitos. Se houver algum confronto, vão ficar de joelhos e cobrir a cabeça. Quando tudo tiver acabado, vocês não vão revelar absolutamente nada desta missão à imprensa. E não vão escrever livros sobre o caso, entendido?”
Fiz que sim.
Angie também.
“Se vocês contrariarem qualquer uma dessas determinações, terão suas licenças e portes de arma caçados, e mando reabrir o inquérito sobre o homicídio de Marion Socia,* chamo meus amigos da imprensa e peço que investiguem o estranho desaparecimento de Jack Rouse e Kevin Hurlihy, entenderam?”
Ambos balançamos a cabeça.
“Respondam ‘Sim, tenente Doyle’.”
“Sim, tenente Doyle”, murmurou Angie.
“Sim, tenente Doyle”, repeti.
“Excelente.” Doyle recostou-se na cadeira e fez um gesto amplo em direção a nós quatro. “E agora, sumam da minha vista.”
“Sujeito metido”, disse Angie, quando chegamos à rua.
“É o tipo de cão que só ladra, não morde”, disse Poole.
“É mesmo?”
Poole me olhou como se eu estivesse cheirando cola e balançou a cabeça devagar.
“Ops”, eu fiz.
“O dinheiro está em lugar seguro, senhor Kenzie?”
Fiz que sim. “Quer ele agora?”
Poole e Broussard se entreolharam e deram de ombros.
“Não precisa”, disse Broussard. “Vamos ter um encontro amanhã com os estaduais e o pessoal de Quincy. Levem o dinheiro nessa ocasião.”
“Quem sabe?”, disse Poole. “Com o batalhão que colocamos para vigiar os comparsas de Olamon, talvez a gente surpreenda um deles saindo de casa para levar a menina à pedreira. Então a gente os prende, e está acabada a história.”
“Claro, Poole”, ironizou Angie. “Claro. Vai ser como tomar doce de criança.”
Poole suspirou e inclinou o corpo ligeiramente para trás.
“Cara”, disse Broussard. “Eu não quero trabalhar em nenhum Esquadrão Antibomba.”
Poole deu uma risadinha. “O Esquadrão Antibomba é este mesmo, rapaz.”
Sentados nos degraus da entrada da casa de Beatrice e Lionel, fizemos um resumo dos últimos acontecimentos para eles, omitindo os detalhes que mais tarde pudessem incriminá-los aos olhos das autoridades federais, caso as coisas dessem errado.
“Quer dizer então”, disse Beatrice, quando terminamos, “que tudo isso aconteceu porque Helene aprontou mais uma das suas e roubou um sujeito perigoso.”
Fiz que sim.
Lionel beliscou um grande calo que tinha de um lado do polegar, e expirou ruidosamente pela boca. “Ela é minha irmã”, disse ele finalmente. “Mas isso... isso é...”
“Imperdoável”, completou Beatrice.
Ele olhou para a mulher e em seguida olhou para mim como se tivesse levado um banho de água fria. “Sim, imperdoável.”
Angie aproximou-se da grade; eu me levantei e senti o calor de sua mão deslizando para dentro da minha.
“Se é que serve de consolo”, disse ela, “ninguém podia adivinhar a conseqüência disso.”
Beatrice cruzou a varanda e sentou-se nos degraus ao lado do marido. Ela tomou as grandes mãos dele nas suas, e os dois ficaram a contemplar a rua por um instante, os rostos tensos, cansados, irados e resignados ao mesmo tempo.
“Não consigo entender”, disse Beatrice. “Eu simplesmente não consigo entender.”
“Será que eles vão matá-la?”, perguntou Lionel, olhando para nós por sobre o ombro.
“Não”, respondi. “Não faria o menor sentido.”
Angie afagou a minha mão para evitar que eu sucumbisse ao peso daquela mentira.
De volta ao apartamento, tomei banho primeiro, para tirar do corpo todo o cansaço de quatro dias passados num carro seguindo bandidos por toda a cidade. Depois foi a vez de Angie.
Quando saiu do banho, ela ficou na soleira da porta da sala de estar, a toalha branca cingindo-lhe a pele cor de mel, escovando o cabelo e me observando sentado numa poltrona, tomando notas de nosso encontro com o tenente Doyle.
Levantei a vista, e nossos olhares se cruzaram.
Ela tem olhos deslumbrantes, grandes, cor de caramelo. Às vezes penso que podia me afogar neles. E isso não seria nada mau, podem acreditar. Seria ótimo.
“Estou com saudade”, disse ela.
“Como assim? Ficamos presos num carro por três dias e meio, e você está com saudade? De quê?”
Ela inclinou ligeiramente a cabeça e ficou me olhando até cair a ficha.
“Ah”, eu disse. “Você está com saudade de mim.”
“Sim.”
Balancei a cabeça. “Muita?”
Ela deixou cair a toalha.
“Tanto assim?”, murmurei, com um nó na garganta. “Minha nossa.”
Depois de fazer amor, mergulho por longo tempo num universo de ruídos e visões fugazes que brotam da memória. Deitado na treva úmida, com o coração de Angie batendo contra o meu, sua espinha pressionando as pontas de meus dedos ou seu quadril aquecendo a minha mão, ouço o eco de seus doces gemidos, da brusca aceleração de sua respiração, desse pequeno riso que lhe brota da garganta após o orgasmo, quando ela joga a cabeça para trás e os longos cabelos negros deslizam em seu rosto e se derramam pelas costas. Com os olhos fechados, vejo em primeiro plano os dentes superiores mordendo o lábio inferior, o contorno de sua panturrilha contra o lençol branco, a saliência de uma omoplata sob a pele, a expressão de sonho e de desejo que lhe anuvia e umedece os olhos, as unhas rosa-escuro cravadas em minha pele.
Depois de fazer amor com Angie, fico absolutamente imprestável durante mais ou menos meia hora. O mais das vezes, para conseguir teclar um número no telefone, preciso que alguém me faça um desenho mostrando os passos dessa complicada operação. Fico totalmente incapaz de fazer qualquer coisa, exceto os movimentos automáticos mais elementares. Uma conversa inteligente, nem pensar. Limito-me a flutuar num oceano de ecos e lembranças fugazes.
“Ei”, disse ela, tamborilando com os dedos em meu peito e pressionando a coxa contra a parte interna da minha.
“Ahn?”
“Acontece de você pensar...”
“Agora não.”
Ela riu, apoiou o pé em concha contra meu tornozelo para erguer um pouco o corpo e passou a língua em meu pescoço. “Vê se fica sério, só por um segundo.”
“Pode mandar”, consegui dizer.
“Acontece de você pensar, quer dizer... quando está dentro de mim, que o que estamos fazendo pode, se deixarmos, produzir uma nova vida?”
Inclinei a cabeça, abri os olhos e mergulhei meu olhar no seu. Ela ficou me olhando calmamente. Na penumbra de nosso quarto, a mancha de rímel sob seu olho esquerdo parecia um machucado.
Agora era o nosso quarto, não era? Ela ainda tinha a casa em que crescera, na Howes Street, ainda mantinha ali boa parte de seus móveis, mas já fazia quase dois anos que não passava uma noite lá.
Nosso quarto. Nossa cama. Nossos lençóis embolados em volta de nossos corpos nus enlaçados, corações batendo em uníssono, tão agarrados que a um observador seria difícil dizer onde terminava um e começava o outro. E às vezes era difícil para mim também.
“Um filho”, eu disse.
Ela fez que sim.
“Você está falando em pôr uma criança no mundo. Com a profissão que temos.”
Mais um meneio de cabeça, e dessa vez seus olhos brilharam.
“Você está querendo um filho?”, perguntei.
“Eu não disse isso”, respondeu ela num sussurro, depois se inclinou e me beijou a ponta do nariz. “Eu disse: ‘Você já pensou nisso alguma vez?’. Você já pensou no poder que temos quando fazemos amor nesta cama, as molas rangendo, e tudo parece... bem, maravilhoso, e não só por causa da sensação física, mas porque estamos muito juntos aqui, você e eu, na mais profunda intimidade?” Ela apertou a mão contra a minha virilha. “Somos capazes de criar vida, meu amor. Eu e você. Se eu esqueço de tomar a pílula uma vez — quer dizer, uma chance em... digamos... cem mil? —, posso ter uma vida crescendo dentro de mim agora mesmo. Sua. Minha.” Ela me beijou. “Nossa.”
Estendidos lado a lado daquela forma, tão próximos, tão aquecidos com o calor do outro, tão profundamente inebriados, era fácil desejar uma vida começando, naquele instante, em seu ventre. Tudo o que havia de mais sagrado e misterioso no corpo da mulher em geral, e de Angie em particular, parecia estar abrigado naquele casulo de lençóis, naquele colchão macio e naquela cama frágil. De repente tudo aquilo parecia muito claro.
Mas o mundo não era aquela cama. O mundo era frio feito pedra e cortante feito uma navalha. O mundo era cheio de monstros que um dia tinham sido bebês, que tinham começado como zigotos no útero, que tinham nascido de uma mãe, no único milagre que ainda restava no século XX — mas que chegaram à vida raivosos, perversos, ou destinados a essa metamorfose. Quantos outros amantes se deixaram ficar em casulos como aquele, em camas como aquela, sentindo o que estávamos sentindo? Quantos monstros eles geraram? E quantas vítimas?
“Fale”, disse Angie, afastando de minha testa uma mecha úmida de cabelo.
“Eu já pensei nisso”, eu disse.
“E...?”
“Isso me assusta.”
“A mim também.”
“Me apavora.”
“A mim também.”
“Muitíssimo.”
Ela apertou os olhos. “Por quê?”
“Crianças pequenas encontradas em barris de cimento, Amandas que desaparecem como se nunca tivessem existido, pedófilos vagando pelas ruas munidos de fita isolante e fio de náilon. Este mundo é um monte de merda, querida.”
Ela concordou. “E então?”
“E então?”
“Tudo bem, é um monte de merda. Mas e daí? Quer dizer, nossos pais com certeza sabiam que ele é um monte de merda, mas nos tiveram.”
“Sim, e a nossa infância foi uma verdadeira maravilha, não é mesmo.”
“Você preferia não ter nascido?”
Pus as mãos em seus quadris, e ela ergueu o corpo, afastando-se. O lençol caiu de suas costas. Sentada em minhas coxas, ela me olhava, os cabelos derramando-se por trás das orelhas, nua e bela e mais próxima da perfeição do que tudo com que jamais consegui sonhar.
“Se eu preferia não ter nascido?”
“Foi isso que perguntei”, disse ela mansamente.
“Claro que acho bom ter nascido”, respondi. “Mas será que Amanda McCready também acha?”
“Nosso filho não seria Amanda McCready.”
“Como podemos saber?”
“Porque nós não iríamos roubar traficantes que seqüestrassem nosso filho para recuperar o dinheiro.”
“Todos os dias crianças desaparecem por muito menos, e você sabe disso. Crianças desaparecem porque estão indo para a escola, porque se encontram no lugar errado, na hora errada, porque se perderam dos pais num shopping. E elas morrem, Angie. Elas morrem.”
Uma lágrima solitária caiu em seu seio, e depois de um instante deslizou pelo mamilo e caiu em meu peito, já fria quando tocou minha pele.
“Eu sei disso”, ela disse. “Mas seja como for, quero um filho seu. Não agora, e talvez nem no próximo ano. Mas eu quero. Quero gerar alguma coisa bela em meu corpo que seja nós, e ao mesmo tempo uma pessoa completamente diferente de nós.”
“Você quer ter um filho.”
Ela balançou a cabeça. “Quero um filho seu.”
A certa altura nós cochilamos.
Eu cochilei. Acordei alguns minutos depois, e ela não estava mais na cama. Levantei-me, andei no escuro até a cozinha e a encontrei à mesa, ao lado da janela, a pele banhada pelo luar que penetrava pelas frestas da veneziana.
Havia um bloco de anotações junto ao seu braço, o dossiê do caso à sua frente. Ela levantou os olhos quando entrei na cozinha. “Eles não vão deixá-la viva.”
“Cheese e Mullen?”
Ela fez que sim. “É uma manobra idiota. Eles precisam matá-la.”
“Mas a mantiveram viva até agora.”
“Como é que podemos saber? E de qualquer modo, mesmo que seja esse o caso, ela só vai viver até eles recuperarem o dinheiro. Só para garantir que o terão de volta. Mas aí eles vão ter de matá-la. Ela é um estorvo para eles.”
Concordei com um gesto de cabeça.
“Você já considerou essa possibilidade, Patrick?”, ela perguntou.
“Sim.”
“Quer dizer então que amanhã à noite...”
“Acho que vamos encontrar um cadáver.”
Ela acendeu um cigarro, e a chama do isqueiro dourou a sua pele por um instante. “Você consegue suportar esse tipo de coisa?”
“Não.” Aproximei-me dela, pus a mão em seu ombro, subitamente consciente de nossa nudez na cozinha, e me peguei pensando outra vez no poder que detínhamos em nossa cama e em nossos corpos, numa terceira vida potencial a flutuar como um espírito por entre a nossa pele nua.
“Vamos chamar Bubba?”, ela perguntou.
“Com toda a certeza.”
“Poole e Broussard não vão gostar disso.”
“Razão pela qual não vamos contar a eles de sua presença.”
“Se Amanda ainda estiver viva quando chegarmos à pedreira, e pudermos localizá-la, ou ao menos descobrir onde ela se encontra...”
“Bubba vai matar os seqüestradores como quem mata um verme e desaparecer na noite.”
Ela sorriu. “Você quer ligar para ele?”
Empurrei o telefone em sua direção. “Esteja à vontade.”
Ela cruzou as pernas enquanto discava, inclinou a cabeça, aproximando-a do fone. “Ei, meninão”, disse ela, quando ele atendeu. “Quer vir brincar conosco amanhã à noite?”
Ela ficou ouvindo por um momento, depois abriu um sorriso largo.
“Sim, Bubba, com um pouco de sorte, você vai ter a oportunidade de acertar alguém.”
(*) Personagem de Um drink antes da guerra, do mesmo autor, da Companhia das Letras. (N. T.)
17
O major John Dempsey, da Polícia Estadual de Massachusetts, distinguia-se por seu largo rosto de irlandês, chato feito uma panqueca, e os atentos e protuberantes olhos de coruja. Ele chegava a piscar feito uma coruja; uma brusca contração dos músculos oculares abaixava suas grossas pálpebras, que ficavam fechadas por mais tempo que o normal, para depois se erguerem como cortinas, desaparecendo sob as sobrancelhas.
Como muitos membros das polícias estaduais que conheci, ele parecia ter um cano de chumbo no lugar da coluna vertebral, e os lábios, pálidos e finos demais, davam a impressão de ter sido traçados com um lápis, muito de leve, na pele descorada do rosto. Suas mãos eram leitosas, os dedos longos e femininos, as unhas bem cuidadas e lisas como uma moeda. Mas as mãos eram a única coisa branda que havia nele. Todo o resto do corpo era feito de pedra: magro e tão rijo, tão seco, tão destituído de gordura que se caísse de uma pequena altura certamente se faria em pedaços.
O uniforme da Polícia Estadual sempre me perturbou, principalmente o do pessoal mais graduado. Há uma certa agressividade teutônica em todo aquele aparato de couro preto encerado com saliva, na forma saliente das dragonas, no brilho argênteo das insígnias, na dura correia do talim que cruza o peito, descendo do ombro direito ao quadril esquerdo, na aba do quepe, um pouco mais comprida que o usual, que esconde a testa e sombreia os olhos.
Os policiais municipais me lembram soldados da infantaria de filmes antigos. Por mais bem vestidos que estejam, parecem prestes a arrastar-se na praia, de barriga no chão, na invasão da Normandia, o cigarro molhado preso entre os dentes, indiferentes à chuva de terra que cai em suas costas. Mas quando vejo um típico agente estadual — maxila crispada e cabeça erguida de forma arrogante, o lustro do uniforme concebido para brilhar —, logo o imagino marchando a passo de ganso nas ruas da Polônia no outono de 1939.
O major Dempsey tirara seu amplo chapéu pouco depois que todos nos reunimos, revelando um espantoso topete cor de laranja. Cortado à escovinha, plantado no couro cabeludo feito grama artificial, causava grande espanto nas pessoas — e o dono parecia não ignorar o efeito que ele produzia. Ele alisou os lados da cabeça com as mãos, pegou o ponteiro da mesa e bateu-o contra a palma da mão, enquanto os olhos de coruja examinavam a sala perplexos, com uma ponta de desprezo. À sua esquerda, numa pequena fileira de cadeiras sob o brasão da Commonwealth,* estavam sentados o tenente Doyle e o chefe da polícia de Quincy, ambos vestidos com seus melhores trajes fúnebres. Os três homens nos encaravam com um olhar autoritário.
Estávamos na sala de reuniões da Polícia Estadual, em Milton. Todo o lado esquerdo da sala estava ocupado pelos próprios agentes estaduais, olhos de águia e rostos sem barba, quepes enfiados debaixo do braço, calças e camisas absolutamente impecáveis.
No lado direito da sala estavam os policiais de Quincy, nas fileiras da frente; nas de trás, os policiais de Boston. Os policiais de Quincy pareciam querer imitar o exemplo de seus colegas estaduais, mas eu já havia notado um ou outro uniforme ligeiramente amarrotado, e alguns quepes caídos no chão. Eram em sua maioria homens e mulheres jovens, rostos lisos e lustrosos feito percas, e eu seria capaz de apostar um bom dinheiro como nunca tinham feito um disparo sequer em serviço.
A parte do fundo, porém, parecia a sala de espera de uma sopa de caridade. Os policiais uniformizados estavam apresentáveis, mas os homens e mulheres da BPC, assim como a legião de detetives de outras divisões destacados para aquela missão, formavam um grupo heteróclito caracterizado por cores contrastantes, manchas de café, barbas malfeitas, bafo de cigarro, cabelos desgrenhados e roupas tão amarrotadas que se podia perder um eletrodoméstico em suas dobras. Muitos dos detetives estavam trabalhando no caso Amanda McCready desde o começo, e exibiam aquela atitude típica de policiais cansados de horas extras e de bater em portas demais: “Não gostou? Que se dane”. Diferentemente dos policiais estaduais e dos de Quincy, o contingente de Boston esparramava-se nas cadeiras, trocava chutes e tossia muito.
Angie e eu, tendo chegado pouco antes do começo da reunião, sentamo-nos no fundo da sala. Com sua calça jeans preta recém-lavada e seu moletom preto sob um casaco de couro marrom, Angie estava elegante o suficiente para sentar-se com os policiais de Quincy, mas eu era o próprio estilo grunge pós-Seattle, com minha camisa de flanela rasgada sobre uma camiseta branca com os Ren & Stimpy e calça jeans com manchas de tinta branca. Meus tênis, porém, eram novinhos em folha.
“Esses tênis são daqueles que inflam para se ajustar ao pé?”, perguntou Broussard, quando nos sentamo ao lado dele e de Poole.
Tirei um fiapinho de meus tênis novos. “Não.”
“Pena. Gosto daquele tipo.”
“Segundo a propaganda”, eu disse, “com eles posso saltar tão alto quanto Penny Hardaway e pegar dois brotos ao mesmo tempo.”
“Ah, então o seu dinheiro foi muito bem empregado.”
Por trás do major Dempsey, dois policiais estavam fixando na parede um grande mapa topográfico da pedreira de Quincy e do reservatório de Blue Hills. Logo que eles terminaram o trabalho, Dempsey levantou o ponteiro e bateu com ele bem no meio do mapa.
“A pedreira Granite Rail”, disse ele num tom seco. “Novos elementos na investigação do desaparecimento de Amanda McCready nos levam a supor que vai ocorrer uma operação nesse local esta noite, às oito horas. Os seqüestradores querem trocar a criança por uma sacola de dinheiro roubado que atualmente está em poder do Departamento de Polícia de Boston.” Ele descreveu com o ponteiro um amplo círculo em volta do mapa. “Como vocês podem ver, eles escolheram a pedreira provavelmente por causa da miríade de rotas de fuga possíveis que ela oferece.”
“Miríade”, disse Poole em voz baixa. “Bela palavra.”
“Mesmo com helicópteros a nossa disposição e toda uma força-tarefa esperando em pontos estratégicos em volta da pedreira e do reservatório de Blue Hills, não vai ser fácil ter o controle da área. Para dificultar ainda mais as coisas, os seqüestradores exigiram que apenas quatro pessoas se dirijam à pedreira hoje à noite. Até que se faça a troca, nossa presença tem que passar absolutamente despercebida.”
Um policial levantou a mão e temperou a garganta. “Major, como é que podemos fechar um círculo em torno da pedreira e ao mesmo tempo passar despercebidos?”
“É aí que a porca torce o rabo”, disse Dempsey, esfregando o queixo.
“Não acredito que ele disse isso”, sussurrou Poole.
“Disse sim.”
“Uau.”
“O Posto de Comando 1 tomará posição neste vale, ao pé da pista de esqui de Blue Hills. Desse ponto até o topo da pedreira Granite Rail, leva menos de um minuto de helicóptero. A maioria de nossas forças ficará lá, pronta para entrar em ação. Logo que recebermos o aviso de que a troca foi realizada, nós nos espalharemos na área do reservatório e na área externa, de forma a bloquear a Quarry Street, a Chickatawbut e a Saw Cut Notch nas duas extremidades, fechar as saídas sul e norte e as rampas de acesso à auto-estrada sudoeste, e jogar uma rede sobre a corja, sobre a cambada toda.”
“Corja”, disse Poole.
“Cambada”, disse Broussard.
“O Posto de Comando 2 ficará na estrada do cemitério de Quincy, e o Posto de Comando 3...”
Passamos mais uma hora ouvindo Dempsey expor em linhas gerais o plano do cerco e distribuir as tarefas entre os agentes estaduais e municipais. Mais de cento e cinqüenta policiais seriam dispostos em volta da pedreira e na orla de Blue Hills. Eles dispunham de três helicópteros. A elite da Equipe de Negociação de Reféns do Departamento de Polícia de Boston estaria no local. O tenente Doyle e o chefe da polícia de Quincy atuariam como “patrulheiros” — cada um em seu carro, faróis apagados, circulando em volta da pedreira na escuridão.
“Tomara que não haja uma colisão”, disse Poole.
A área das pedreiras compreendia uma grande extensão de terra. No auge da exploração de granito da Nova Inglaterra, havia mais de sessenta sendo exploradas. A Granite Rail era uma das vinte e duas que não tinham sido aterradas; as outras se espalhavam em volta da pedreira de Quincy e pelas colinas que havia entre a auto-estrada e Blue Hills. Nós chegaríamos à noite, com muito pouca luz. Mesmo os guardas-florestais que Dempsey convocou para falar sobre a região admitiram haver tantas trilhas nas colinas que algumas delas eram conhecidas apenas pelas pouquíssimas pessoas que as usavam.
Mas na verdade as trilhas não serviriam como rotas de fuga. Elas terminavam por desembocar em algum lugar: um pequeno número de estradas e um ou dois parques públicos. Mesmo que os seqüestradores conseguissem furar o cerco das colinas, fatalmente seriam presos em algum ponto mais abaixo. Se fôssemos só nós quatro e uns poucos policiais espalhados pelas colinas, os seqüestradores teriam uma boa chance de se safar. Mas com cento e cinqüenta policiais naquela área, eu não via como alguém poderia entrar e sair sem ser notado.
E por mais imbecis que os capangas de Cheese fossem, com certeza sabiam que, independentemente de suas exigências, tratando-se de uma situação em que havia um refém, o local estaria cheio de policiais.
Assim sendo, como eles planejavam escapar?
Levantei a mão quando Dempsey fez uma pausa. Tive a impressão de que, quando ele me viu, pensou em me ignorar, por isso me apressei em dizer: “Major”.
Ele abaixou os olhos para o ponteiro. “Sim.”
“Não vejo como os seqüestradores poderiam escapar.”
Muitos policiais riram, e Dempsey sorriu.
“Bem, senhor Kenzie, é isso que se pretende, não é?”
Foi a minha vez de sorrir. “Para mim isso está bem claro, mas você não acha que para os seqüestradores também?”
“Aonde você quer chegar?”
“Eles escolheram esse lugar. Devem ter imaginado que ele seria cercado, certo?”
Dempsey deu de ombros. “O crime torna as pessoas estúpidas.”
Mais uma rodada de risos moderados dos policiais.
Esperei que eles silenciassem. “Major, e se eles se prepararam para essa contingência, como é que fica?”
O sorriso dele se alargou ainda mais, mas não chegou aos seus olhos de coruja, que se semicerraram, meio perplexos, meio irritados, e se fixaram em mim. “Não há como escapar, senhor Kenzie. Eles podem pensar o que quiserem. É uma chance em um bilhão.”
“Mas eles acham que essa chance é deles.”
“Estão enganados”, disse Dempsey, olhando para o ponteiro e fechando a cara. “Mais alguma pergunta idiota?”
Às seis horas, nos encontramos com a detetive Maria Dykema, da Equipe de Negociação de Reféns, numa van estacionada perto de uma caixa-d’água a cerca de trinta metros de Ricciuti Drive, a estrada que penetrava no coração das pedreiras de Quincy. Ela era uma mulher magra e baixa, com pouco mais de quarenta anos, cabelos curtos, grisalhos, e olhos amendoados. Trajando um tailleur de cor escura, ela ficou mexendo distraidamente no brinco de pérola da orelha esquerda durante quase toda a nossa conversa.
“Se algum de vocês der de cara com o seqüestrador, que irá fazer?” Seu olhar percorreu os nossos, terminando por se fixar na parede da van, no ponto em que tinham colado uma foto recortada do National Lampoon mostrando uma mão que apontava uma pistola para um cachorro. Na legenda se lia: COMPREM ESTA REVISTA. SENÃO, MATAREMOS ESTE CÃO. “Estou esperando”, disse ela.
Broussard falou: “Nós diremos ao seqüestrador que libertem...”.
“Vocês pedem ao suspeito”, ela corrigiu.
“Nós pedimos ao suspeito que libertem a criança.”
“E se ele disser ‘foda-se’ e engatilhar a pistola?”
“Nós...”
“Vocês recuam”, disse ela. “Vocês não o perdem de vista, mas lhe dão espaço. Se ele entrar em pânico, a criança morre. Se se sentir ameaçado, idem. A primeira coisa a fazer é lhe dar a ilusão de que ele tem espaço, campo de manobra. Ele não pode achar que está dando as cartas, tampouco pode se sentir perdido. O melhor é que pense ter opções.” Ela desviou os olhos da fotografia, mexeu no brinco e olhou para nós. “Está claro?”
Fiz que sim.
“Aconteça o que acontecer, não apontem a arma para o suspeito. Não façam movimentos bruscos. Quando forem fazer qualquer coisa, avisem a ele: ‘Agora vou recuar. Agora vou abaixar a arma’ etc.”
“A gente deve mimá-lo”, disse Broussard. “É essa a recomendação.”
Ela deu um leve sorriso, os olhos na barra da saia. “Detetive Broussard, já estou na Equipe de Negociação de Reféns há seis anos, e só perdi um caso. Se o senhor pretende estufar o peito e começar a gritar ‘No chão, filho-da-puta!’ caso se encontre nessa situação, fique à vontade. Mas por favor, me deixe longe da imprensa quando o criminoso atirar no coração de Amanda McCready, salpicando sangue em sua camisa.” Ela olhou para ele e ergueu as sobrancelhas. “Certo?”
“Detetive”, disse Broussard. “Eu não estava questionando seu método de trabalho. Apenas fiz uma observação.”
Poole balançou a cabeça, solidário. “Se para salvar a menina eu tiver de mimar alguém, sou capaz de colocar o sujeito num carrinho de bebê e cantar canções de ninar. Dou a minha palavra.”
Ela soltou um suspiro e reclinou o corpo, passou a mão nos cabelos. “A chance de alguém dar de cara com o criminoso e Amanda McCready é quase nula. Mas se isso lhes acontecer, lembrem-se: o único trunfo que eles têm é a menina. Quando seqüestradores se vêem num impasse, são como ratos encurralados. Em geral têm muito medo e se tornam letais. E não culpam a si mesmos nem culpam você pela situação. Põem a culpa na vítima. E a menos que se aja com muita prudência, eles cortam a garganta dela.”
Ela se calou por um momento. Então tirou quatro cartões de visita do bolso do casaco e distribuiu entre nós. “Vocês todos têm celular?”
Fizemos que sim.
“Meu número está no verso do cartão. Se vocês se encontrarem cara a cara com o seqüestrador e não souberem o que dizer, liguem para mim e passem o telefone para ele, certo?”
Ela olhou através do vidro traseiro o vulto negro das colinas escarpadas, os afloramentos das pedreiras, as silhuetas esguias e recortadas dos picos de granito.
“As pedreiras...”, disse ela. “Quem iria escolher um lugar desse?”
“Não parece ser muito fácil escapar desse lugar”, disse Angie. “Ao menos nessas circunstâncias.”
A detetive Dykema balançou a cabeça, concordando. “E no entanto eles o escolheram. O que é que eles sabem que nós não sabemos?”
Às sete da noite, nos reunimos na unidade móvel do Departamento de Polícia de Boston, onde o tenente Doyle nos fez uma preleção destinada a levantar o nosso moral para a empreitada.
“Se vocês fizerem uma cagada, há muitas rochas de onde podem se atirar. Por isso”, disse ele, dando um tapinha no joelho de Poole, “melhor não fazer.”
“Muito estimulante, senhor.”
Doyle levou a mão a um console à sua frente, pegou uma mochila azul-clara e jogou-a no colo de Broussard. “O dinheiro que o senhor Kenzie nos entregou esta manhã. As notas foram contadas, e os números de série anotados. Há exatamente duzentos mil dólares nessa mochila. Nem um centavo a menos. Cuidem para que volte do mesmo jeito.”
O rádio, que ocupava mais ou menos um terço do console, chiou: “Tenente, aqui é a unidade Cinco-nove. Câmbio”.
Doyle pegou o receptor e apertou a tecla SEND. “Aqui é o tenente Doyle. Pode falar, Cinco-nove.”
“Mullen saiu de Devonshire Place num táxi que segue pela Storrow na direção oeste. Vamos na cola dele. Câmbio.”
“Oeste?”, disse Broussard. “Por que ele está indo para o oeste? Por que a Storrow?”
“Cinco-nove”, disse Doyle, “vocês têm certeza de que se trata de Mullen?”
“Ah...” Houve uma longa pausa, pontilhada de ruídos de estática.
“Repita, Cinco-nove. Câmbio.”
“Interceptamos uma conversa de Mullen com a empresa de táxi e o vimos saindo de Devonshire pela parte de trás. Câmbio.”
“Cinco-nove, não estou sentindo firmeza.”
“Bem, tenente, é que vimos um homem com características físicas que batem com a descrição de Mullen. Estava com um boné da equipe dos Celtics e óculos escuros... Ahn... Câmbio.”
Doyle fechou os olhos por um instante, colocou o receptor no meio da testa. “Cinco-nove, vocês fizeram ou não fizeram uma identificação segura do suspeito? Câmbio.”
Outra longa pausa cheia de estática.
“Bem, tenente, pensando bem, não. Mas temos certeza...”
“Cinco-nove, quem estava cobrindo Devonshire Place com você? Câmbio.”
“Meia-sete, tenente. Senhor, será que nós...”
Com um golpe, Doyle cortou a ligação; com mais um, fez outra.
“Meia-sete, aqui é do comando. Responda. Câmbio.”
“Aqui unidade Meia-sete. Câmbio.”
“Qual a sua posição?”
“Estou na Tremont, direção sul. Meu colega está a pé. Câmbio.”
“Meia-sete, por que está na Tremont? Câmbio.”
“Estamos seguindo o suspeito, tenente. O suspeito está a pé, passando pelo Common na direção sul. Câmbio.”
“Meia-sete, está dizendo que está seguindo Mullen na Tremont, na direção sul?”
“Positivo, tenente.”
“Meia-sete, diga ao seu colega que detenha o senhor Mullen. Câmbio.”
“Ah, tenente, nós não...”
“Diga ao seu parceiro que detenha o suspeito. Câmbio.”
“Positivo, senhor.”
Doyle pôs o receptor no console por um instante, beliscou o septo do nariz e soltou um suspiro.
Angie e eu lançamos um olhar a Broussard. Ele deu de ombros. Poole balançou a cabeça, aborrecido.
“Tenente, aqui é a unidade Meia-sete. Câmbio.”
Doyle pegou o receptor. “Pode falar.”
“Sim, tenente, bem... ahn...”
“O homem que vocês estão seguindo não é Mullen, certo?”
“Positivo, tenente. O elemento estava vestido como o suspeito, mas...”
“Desligo, Meia-sete.”
Doyle colocou o receptor no rádio com um movimento brusco, balançou a cabeça e olhou para Poole.
“Onde está Gutierrez?”
Poole cruzou as mãos no colo. “Da última vez que verifiquei, estava num quarto do Prudential Hilton. Chegou ontem à noite de Lowel.”
“Quem está cuidando dele?”
“Uma equipe de quatro homens: Dean, Gallagher, Gleason e Halpern.”
Doyle comparou a lista com a que estava junto de seu braço para saber os números de suas unidades. Então ligou o rádio.
“Unidade Quatro-nove, aqui é o tenente Doyle. Câmbio.”
“Tenente, aqui unidade Quatro-nove. Câmbio.”
“Qual a sua posição? Câmbio.”
“Dalton Street, tenente, próximo ao Hilton. Câmbio.”
“Quatro-nove, onde está...”, Doyle consultou a sua lista, “... a unidade Sete-três? Câmbio.”
“O detetive Gleason está no hall, tenente. O detetive Halpern está vigiando a saída de trás. Câmbio.”
“E onde está o suspeito? Câmbio.”
“O suspeito está em seu quarto, tenente. Câmbio.”
“Confirme, por favor, Quatro-nove. Câmbio.”
“Positivo. Daremos o retorno. Câmbio e desligo.”
Enquanto esperávamos a resposta, ficamos todos em silêncio. Nem ao menos olhávamos uns para os outros. A nossa situação era comparável à de torcedores de futebol nos últimos minutos de uma partida. Ainda que seu time tenha mantido uma grande vantagem até ali, eles desconfiam que, de um modo ou de outro, vão perder o jogo. Ali na retaguarda da unidade móvel, nós cinco desconfiávamos que, apesar de termos começado o jogo com certa vantagem, àquela altura ela já desaparecera na escuridão cada vez mais densa. Se Mullen conseguira driblar com tanta facilidade quatro detetives experientes, quantas vezes ele não teria enganado outros nos últimos dias? Quantas vezes os policiais não teriam pensado estar seguindo seus passos, quando na verdade seguiam outra pessoa? Pelo que sabíamos de Mullen, ele bem que podia ter visitado Amanda McCready. Ou preparado a rota de fuga das colinas para aquela noite. Podia estar subornando policiais para que fingissem estar olhando para o outro lado, quem sabe até selecionando os que seriam eliminados da equação, depois das oito da noite, no negrume das colinas.
Caso Mullen tenha percebido nossos movimentos desde o começo, pode muito bem ter nos deixado ver tudo o que lhe era conveniente. E enquanto estávamos atentos a isso, as coisas que ele queria esconder de nós iam se dando às nossas costas.
“Tenente, aqui unidade Quatro-nove. Temos um problema. Gutierrez desapareceu. Repito: Gutierrez desapareceu. Câmbio.”
“Há quanto tempo, Quatro-nove? Câmbio.”
“É difícil dizer, tenente. Seu carro alugado ainda está na garagem. A última vez que o vimos foi às sete da noite. Câmbio.”
“Desligo.”
Durante alguns segundos, Doyle parecia considerar a possibilidade de esmagar o receptor com as mãos, mas então colocou-o devagar e delicadamente no canto do console.
Broussard disse: “Com certeza ele já tinha outro carro na garagem um ou dois dias antes de ir para o hotel”.
Doyle concordou com um meneio de cabeça. “Se eu fizer um levantamento junto às outras equipes, quantos homens de Olamon vocês imaginam que terão sumido?”
Ninguém respondeu, mas não acho que ele estivesse esperando uma resposta.
(*) Commonwealth: termo que designa os Estados americanos de Kentucky, Massachusetts, Pensilvânia e Virgínia. (N. T.)
18
Se você vai em direção ao sul, saindo de meu bairro, e cruza o Neponset River, termina por chegar a Quincy, por muito tempo considerada pela geração de meu pai como um primeiro passo a ser dado pelos irlandeses prósperos o bastante para sair de Dorchester, mas não o suficiente para se estabelecer em Milton, o bairro chique irlandês, alguns quilômetros a noroeste. Quando se passa pela rodovia 93, vê-se no lado oeste, pouco antes de chegar a Braintree, um grupo de colinas cor de areia que parecem prestes a desmoronar a qualquer momento.
Foi naquelas colinas que os velhos pioneiros de Quincy descobriram um granito de grande valor, tão rico em silicatos negros e quartzo fumê que deve ter brilhado aos seus pés como um ribeirão de diamantes. A primeira estrada de ferro comercial do país foi construída em 1827; pinos e parafusos fixaram os trilhos no solo de Quincy, colinas acima, para que se pudesse transportar o granito para as margens do Neponset River, onde era embarcado em escunas e levado para Boston ou para Manhattan, New Orleans, Mobile e Savannah.
Esse pujante comércio de granito, fadado a durar um século, deu origem a edifícios destinados a sobreviver ao tempo e à moda: bibliotecas, palácios de governo, igrejas imponentes; prisões que abafavam o barulho, filtravam a luz e abortavam as esperanças de fuga; colunas monolíticas caneladas à entrada das residências particulares espalhadas pelo país; isso para não falar do famoso monumento de Bunker Hill. E tudo o que restou de todo aquele granito arrancado da terra foram apenas buracos. Buracos profundos. Buracos enormes. Buracos que nunca foram preenchidos por nada além da água da chuva.
Com o passar dos anos, à medida que a indústria do granito declinava, as pedreiras se tornaram um lugar onde as pessoas jogavam toda espécie de refugo: carros roubados, geladeiras e fogões velhos, corpos. A intervalos de três, quatro anos, quando uma criança desaparece depois de mergulhar nesses buracos, ou quando um detento de Walpole confessa ter jogado do alto de um penhasco uma prostituta dada como desaparecida, vasculha-se o local, e os jornais publicam mapas topográficos da região e fotografias subaquáticas que revelam uma paisagem submersa das mais acidentadas: maciços montanhosos, rochas arrebentadas, picos recortados elevando-se das profundezas, inesperados rochedos pontiagudos... Formas espectrais que lembram uma Atlântida afogada na água da chuva a trinta metros de profundidade.
Às vezes, esses corpos são encontrados. Às vezes, não. Os lagos das pedreiras, agitados de vez em quando por tempestades subaquáticas de lodo negro que provocam bruscas mudanças em seu relevo, cheio de fendas e rochedos insuspeitados, revelam seus segredos com a mesma freqüência que o Vaticano.
Enquanto subíamos penosamente o aclive da velha ferrovia, afastando galhos de nossos rostos, esmagando ervas daninhas, tropeçando em seixos na escuridão, escorregando em pedras lisas e praguejando em voz baixa, eu me peguei pensando que se fôssemos pioneiros tentando passar por essas colinas para chegar ao reservatório do outro lado de Blue Hills, àquela altura já estaríamos mortos. Um urso qualquer, um alce enfurecido ou um grupo de índios guerreiros teriam nos matado, simplesmente por termos perturbado a sua paz.
“Você podia fazer um pouco mais de barulho”, eu disse, quando Broussard escorregou no escuro, bateu a canela numa pedra, contra a qual ele acabara de desferir um furioso pontapé.
“Ei, você acha que tenho cara de Jeremiah Johnson? A última vez que entrei no mato eu estava bêbado, fazendo sexo, e de onde estava podia ver a estrada.”
“Você estava fazendo sexo?”, disse Angie. “Meu Deus.”
“Você tem alguma coisa contra o sexo?”
“Eu tenho alguma coisa contra insetos”, ela respondeu. “Argh.”
“É verdade que quando você transa no mato o cheiro atrai os ursos?”, perguntou Poole, apoiando-se no tronco de uma árvore por um instante, aspirando o ar noturno.
“Não sobrou nenhum urso por aqui.”
“A gente nunca sabe”, disse Poole, lançando um olhar ao arvoredo imerso na noite escura. Ele colocou a mochila de dinheiro no chão por um instante, tirou um lenço do bolso, enxugou o suor do pescoço e das faces afogueadas. Expirou ruidosamente pela boca e engoliu em seco várias vezes.
“Você está bem, Poole?”
Ele fez que sim. “Estou ótimo. Só um pouco fora de forma. E... bem, já não sou mais criança.”
“Quer que um de nós carregue a mochila?”, perguntou Angie.
Poole lhe fez uma careta, pegou a mochila e apontou para o caminho íngreme à sua frente. “ ‘Mais uma vez para a brecha.’ ”
“Aquilo não é uma brecha”, disse Broussard. “É uma colina.”
“Eu estava citando Shakespeare, seu ignorante.” Poole afastou-se da árvore e recomeçou a penosa marcha colina acima.
“Então você devia ter dito: ‘Meu reino por um cavalo’ ”, disse Broussard. “Teria sido mais apropriado.”
Angie respirou fundo algumas vezes, e seu olhar cruzou com o de Broussard, que estava fazendo o mesmo. “Estamos ficando velhos.”
“É, estamos ficando velhos”, concordou ele.
“Você não acha que está na hora de pendurar as chuteiras?”
“Gostaria muito.” Ele sorriu, inclinou o corpo e respirou fundo novamente. “Minha mulher sofreu um acidente de carro pouco antes de nos casarmos e fraturou alguns ossos. Ela não tinha plano de saúde. Você sabe quanto custa curar uma fratura? Eu só vou poder me aposentar quando estiver usando um andador para perseguir criminosos.”
“Alguém falou em andador?”, disse Poole, olhando o terreno íngreme que tinha pela frente. “Seria uma maravilha.”
Quando eu era garoto, subi aquela vereda muitas vezes, para chegar às lagoas formadas pela chuva nos buracos de Granite Rail ou da pedreira de Swingle. Era uma área de acesso proibido, rodeada de grades e patrulhada por guardas-florestais, mas, sabendo olhar, era sempre possível descobrir uma passagem aberta nas grades. Caso não encontrasse, você podia trazer seu equipamento para abrir a sua. O número de guardas-florestais era mínimo, mas ainda que formassem um pequeno exército seriam insuficientes para patrulhar as dezenas de pedreiras e vigiar centenas de garotos que abriam caminho colina acima nos luminosos dias de verão.
Como estava dizendo, eu já subira aquela trilha antes. Quinze anos antes. À luz do dia.
Agora era um pouco diferente. Primeiro, porque eu não tinha as mesmas condições físicas de quando era adolescente. Várias contusões e muito tempo de bar, inúmeras colisões brutais com outras pessoas e com mesas de bilhar — e, certa vez, um choque violento contra um pára-brisa e depois contra a pista que me esperava do outro lado — encheram meu corpo de rangidos, de dores e de constantes pontadas, mais próprios de um homem com o dobro da minha idade ou de um jogador de futebol.
Segundo, porque, da mesma forma que Broussard, eu não era nenhum Grizzly Adams. Minha experiência de viver num mundo sem asfalto e sem bons restaurantes por perto era limitada. Uma vez por ano eu fazia um passeio a pé, com minha irmã e sua família, no monte Rainier, perto de Washington; quatro anos atrás, uma mulher me convenceu a ir passar uns dias num camping no Maine. A tal mulher se julgava uma grande naturalista, só pelo fato de fazer compras em lojas de mercadorias excedentes das forças armadas a preços de liquidação. Deveríamos ficar lá por três dias, mas nossa permanência durou apenas uma noite e uma lata de repelente, quando então batemos em retirada para Camden, em busca de lençóis limpos e serviço de quarto.
Enquanto subia em direção à pedreira Granite Rail, eu observava meus companheiros de infortúnio. Achava que nenhum deles conseguiria passar uma só noite naquele camping. Talvez num dia de sol, com calçados apropriados, uma boa bengala e um bom teleférico, conseguíssemos avançar num ritmo razoável. Naquela noite, porém, só depois de vinte minutos de tropeções e contusões morro acima, lanternas vasculhando o chão à procura de pegadas e de um ou outro trilho meio enterrado de uma ferrovia abandonada há mais de cem anos, pressentimos a proximidade da água.
Nada mais agradável e promissor que a pureza e o frescor da água de uma pedreira. Não saberia dizer a razão disso, já que se trata apenas de chuva de muitas décadas, armazenada entre paredes de granito, alimentada e renovada por fontes subterrâneas. Mas no momento em que aquele cheiro alcançou minhas narinas, eu me senti de novo com dezesseis anos, prestes a saltar do alto de Heaven Pick, um penhasco de uns vinte metros de altura, na pedreira de Swingle, antegozando o choque, contemplando a água verde-clara estendendo-se à minha frente como uma mão aberta pronta a me acolher, dominado de repente pela sensação de ser leve, incorpóreo, puro espírito suspenso naquele vazio espantoso. Então eu me jogava, e o ar à minha volta transformava-se num tufão, elevando-se da planura cor de esmeralda para a qual eu avançava vertiginosamente, e o grafite parecia jorrar dos rochedos, das paredes de pedra e dos penhascos à minha volta, explodindo num turbilhão de vermelhos, pretos, dourados e azuis, e eu sentia o cheiro limpo, fresco, repentinamente assustador, da chuva secular, um segundo antes de tocar a água, dedos dos pés apontados para baixo, punhos colados aos quadris, descendo bem abaixo da superfície, onde jaziam carros, geladeiras e corpos.
Naquela época, em que as pedreiras reclamavam uma jovem vida a cada três ou quatro anos, sem contar todos os cadáveres jogados de cima dos penhascos na calada da noite e descobertos — quando o eram — muito tempo depois, eu cansara de ler nos jornais a pergunta perplexa de editorialistas, líderes comunitários e parentes inconsoláveis: “Por quê? Por quê?”.
Por que os meninos — ratos de pedreira, como chamávamos a nós mesmos na minha geração — sentem necessidade de pular de penhascos de trinta metros de altura, em águas com até sessenta metros de profundidade e minadas de escolhos inesperados como abrolhos, antenas de carros, toros de madeira e sabe-se lá mais o quê?
Eu não tinha a menor idéia. Eu pulava porque era criança. Porque meu pai era um sacana e minha casa vivia em pé de guerra, e eu e minha irmã passávamos a vida procurando um lugar onde nos esconder — se é que se podia chamar aquilo de vida. Porque muitas vezes, quando eu me encontrava na borda daqueles penhascos, diante daquela imensa tigela transbordante de líquido verde, esticando o pescoço para ver melhor, eu sentia um frio na barriga e tinha absoluta consciência de cada fibra de meu corpo, de cada osso, de cada vaso sangüíneo. Porque eu me sentia puro no ar e limpo na água. Eu saltava para provar algumas coisas aos meus amigos e, uma vez conseguido esse intento, viciei-me naquilo, sentia necessidade de encontrar penhascos mais altos, quedas mais demoradas. Eu pulava pela mesma razão que me levou a ser detetive particular — porque eu odeio saber exatamente o que vem pela frente.
“Preciso tomar fôlego”, disse Poole. Ele agarrou o caule de uma planta da mata à nossa frente e, sem o soltar, tentou se sentar no chão. A mochila caiu de sua mão, ele escorregou na lama, caiu em cima da mochila, ainda agarrado firmemente ao caule.
Estávamos a uns quinze metros do topo. Eu já enxergava, nas rochas sombrias e no céu azul-escuro, por trás do último pico, o leve reflexo esverdeado, como uma fina echarpe nebulosa, que indicava a proximidade do lago.
“Tudo bem, companheiro, tudo bem”, disse Broussard, estacando e amparando o colega, enquanto Poole largava a lanterna no colo e tentava recuperar o fôlego.
Na escuridão, o rosto de Poole me pareceu mais branco do que nunca. Sua pele brilhava, literalmente. Sua respiração sibilante parecia penetrar na noite e seus olhos giravam nas órbitas como se buscassem um ponto difícil de localizar.
Angie ajoelhou-se ao lado dele, pôs a mão sob seu queixo, tomou-lhe o pulso. “Respire fundo.”
Poole balançou a cabeça, olhos arregalados, e sorveu o ar.
Broussard se agachou. “Você está bem, colega?”
“Sim”, disse Poole com dificuldade. “Estou ótimo.”
O suor escorreu-lhe pelas faces, pelo pescoço, e empapou o colarinho.
“Estou velho demais para arrastar a carcaça...”, ele tossiu, “... morro acima.”
Angie olhou para Broussard. Broussard olhou para mim.
Poole tossiu mais um pouco. Apontei a lanterna para seu rosto e vi gotas de sangue em seu queixo.
“Me dêem um tempinho”, disse ele.
Fiz que não com a cabeça, e Broussard tirou o walkie-talkie do bolso do casaco.
Poole ergueu o corpo e agarrou o punho do colega. “O que você está fazendo?”
“Avisando ao comando”, disse Broussard. “Temos que tirar você desta colina, meu velho.”
Poole apertou ainda mais o punho de Broussard e tossiu com tanta força que parecia estar tendo uma convulsão.
“Você não vai chamar ninguém”, disse ele. “Combinamos que não viria ninguém além de nós quatro.”
“Poole”, disse Angie. “Você não está nada bem.”
Ele olhou para ela e sorriu. “Eu estou ótimo.”
“Mentira”, disse Broussard, desviando os olhos do queixo ensangüentado do colega.
“É verdade.” Poole mudou de posição no chão, envolveu o caule da planta com o braço. “Continuem subindo, meninos. Vão para o alto da colina.” Ele continuou sorrindo, mas os cantos dos lábios, emoldurados pelas faces pálidas e cobertas de suor, se crisparam.
Ficamos olhando para ele por alguns instantes. Parecia estar à beira da cova. A pele estava cinzenta, e os olhos não se fixavam em coisa alguma. Sua respiração lembrava o barulho da chuva batendo num pára-brisa.
A mão, porém, continuava apertando o punho de Broussard com a força de um carcereiro. Ele nos lançou um olhar e pareceu adivinhar o que estávamos pensando.
“Eu estou velho e cheio de dívidas”, disse então. “Vou melhorar. E se vocês não encontrarem essa menina, ninguém mais o fará.”
Broussard retrucou: “Mas eu não conheço essa menina, Poole, sacou?”
Poole balançou a cabeça, aumentou a pressão no pulso de Broussard até sua mão ficar avermelhada. “Fico muito grato, filho. De verdade. Qual foi a primeira coisa que ensinei a você?”
Broussard desviou o olhar, e, à luz da lanterna de Angie, até então apontada para o peito de Poole, não conseguiu esconder as lágrimas.
“Qual foi a primeira coisa que ensinei a você?”, perguntou Poole.
Broussard temperou a garganta e cuspiu no mato.
“Hein?”, insistiu Poole.
“É preciso encerrar o caso”, disse Broussard com uma voz tão sumida que se tinha a impressão de que Poole largara seu punho para lhe apertar a garganta.
“Sempre”, disse Poole. Ele voltou os olhos para o cume atrás de si. “Então, vá em frente e resolva-o.”
“Eu...”
“Não ouse ter piedade de mim, menino. Não ouse. Pegue a mochila.”
Broussard abaixou a cabeça, colou o queixo no peito. Ele tirou a mochila de baixo de Poole, limpou a sujeira do fundo.
“Vá”, disse Poole. “Agora.”
Broussard puxou o pulso de entre os dedos de Poole e se levantou. Olhos fixos na mata escura, ele parecia um menino que acabara de entender o significado da palavra solidão.
Poole olhou para mim e para Angie e sorriu. “Eu vou sobreviver. Salvem a menina, e chamem um helicóptero.”
Desviei o olhar. Poole, o melhor policial que eu conhecia, acabara de sofrer um ataque cardíaco ou um infarto. E o sangue que lhe saíra dos pulmões não prenunciava nada de bom. Eu estava diante de um homem que, se não fosse socorrido imediatamente, ia morrer.
Angie disse: “Eu fico”.
Voltamos os olhos para ela. Angie, que estava de joelhos ao lado de Poole desde que ele se sentara no chão, passou-lhe a mão na testa, deslizando-a em seguida pelo cabelo cortado rente.
“Não fica coisa nenhuma”, disse Poole, batendo na mão dela. Ele inclinou a cabeça e olhou-a de frente. “A menina vai morrer esta noite, senhorita Gennaro.”
“Angie.”
“A menina vai morrer esta noite, Angie.” Rangendo os dentes por um instante, fez uma careta por causa da dor que sentia no esterno e engoliu em seco, tentando amenizá-la. “A menos que a gente faça alguma coisa. Precisamos de cada um de vocês para poder tirá-la daqui sã e salva. Agora...”, acrescentou ele, apoiando-se pesadamente no caule da planta e conseguindo erguer um pouco o corpo, “... você vai continuar subindo em direção às pedreiras. E você também, Patrick.” Ele voltou a cabeça para Broussard. “E você, então, nem se fala. Agora vão. Já.”
Ninguém queria ir. Era evidente. Mas Poole estendeu o braço e inclinou o relógio de pulso, de modo que pudéssemos ver os ponteiros iluminados: 8h03.
Estávamos atrasados.
“Vão!”, repetiu Poole com voz sibilante.
Olhei para o alto da colina, depois para a mata escura por trás de Poole, depois novamente para ele. Largado ali, pernas estendidas e um pé tombado para o lado, parecia um espantalho arrancado do poste.
“Vão!”
Nós o deixamos ali.
Seguimos cambaleantes colina acima, com Broussard à frente, pelo caminho cada vez mais obstruído pelo mato cerrado e por espinheiros. Salvo pelo barulho que fazíamos em nossa marcha, a noite estava tão silenciosa que podíamos concluir sermos as únicas criaturas presentes ali.
A cerca de três metros do topo, deparamos com uma grade de quase quatro metros de altura, que entretanto não constituía um obstáculo. Nela se tinha aberto uma passagem da altura da porta de uma garagem, e nós passamos por ela sem nos deter.
No topo da colina, Broussard fez uma pequena pausa para ligar o walkie-talkie e sussurrar nele. “Chegamos à pedreira. O sargento Raftopoulos está passando mal. Quando eu der o sinal — repito, quando eu der o sinal —, mande um helicóptero para a trilha da encosta, a quinze metros do topo. Esperem pelo meu sinal. Entendido?”
“Positivo.”
“Desligo”, disse Broussard, colocando o walkie-talkie de volta no bolso da capa.
“E agora?”, perguntou Angie.
Estávamos num penhasco cerca de doze metros acima da água. Na escuridão, eu avistava as silhuetas de outros penhascos e rochedos, troncos retorcidos, saliências rochosas. À nossa esquerda, erguia-se outra linha de rochedos irregulares, fendidos, alguns deles elevando-se mais quatro ou cinco metros acima de onde nos encontrávamos. À nossa direita, a terra se estendia, mais ou menos plana, por cerca de sessenta metros, e então se erguia no negrume, formando um relevo irregular e errático. Lá embaixo, a água expectante, um amplo círculo de luz cinza cingido pelos negros paredões rochosos.
“A mulher que ligou para Lionel mandou que aguardássemos instruções”, disse Broussard. “Vocês estão vendo alguma indicação?”
Angie apontou o foco da lanterna para os nossos pés, fazendo-o em seguida deslizar pelas paredes de granito, pelas árvores e moitas. A luz saltitante era como um olho preguiçoso que nos dava visões rápidas e fragmentárias de um mundo denso e estranho, cambiante, capaz de se alterar bruscamente no espaço de alguns centímetros, passando da pedra ao musgo, de uma casca branca e nua a uma vegetação verde-hortelã. E em meio às árvores se viam, aqui e ali, as hastes prateadas da grade.
“Não estou vendo nenhuma indicação”, disse Angie.
Eu sabia que Bubba estava por ali, escondido em algum lugar. Com certeza ele estava nos observando naquele momento. Talvez observasse também Mullen, Gutierrez e quem quer que estivesse com eles. Talvez até Amanda McCready. Ele viera pelo lado de Milton, passando pelo Cunnigham Park, subindo por uma trilha que descobrira alguns anos antes, quando fora às pedreiras para livrar-se de armas ainda quentes, ou de um carro, ou de um corpo — seja lá o que for que caras como Bubba costumam jogar nas pedreiras.
Seu rifle dispunha de uma mira equipada com um aparelho intensificador de luz. Através do visor, com certeza dávamos a impressão de vagar numa paisagem nebulosa, cheia de algas, ou de nos movermos numa fotografia ainda em curso, não fixada, sob seus olhos.
O walkie-talkie de Broussard emitiu um bip que ressoou naquele silêncio como um grito. Com certa dificuldade, Broussard conseguiu tirá-lo da cintura, levando-o à altura da boca.
“Broussard.”
“Aqui, Doyle. O 16º Distrito acabou de receber um telefonema com uma mensagem para vocês. Parece ser a mulher que ligou para Lionel McCready.”
“Entendido. Qual é a mensagem?”
“Broussard, você deve ir para a direita, em direção aos rochedos que ficam do lado sul. Kenzie e Gennaro têm de ir para a esquerda.”
“Só isso?”
“Só isso. Desligo.”
Broussard recolocou o walkie-talkie na cintura, desviou os olhos da linha de rochedos, fixando-os na água. “Dividir para conquistar.”
Ele se voltou para nós, olhos cerrados e vazios. Parecia muito mais novo, pois a tensão e o medo subtraíram uns dez anos ao seu rosto.
“Tenha cuidado”, disse Angie.
“Vocês também”, respondeu ele.
Ainda ficamos ali por um instante, como se a nossa imobilidade pudesse adiar o inevitável, o momento em que descobriríamos se Amanda McCready estava viva ou morta, o momento em que não teríamos mais o controle de nossas esperanças e de nossas previsões, cabendo-nos apenas contar, sem a menor possibilidade de interferir, os que se perderam, os que se feriram, os que foram mortos.
“Bem”, disse Broussard. “Merda.” Ele deu de ombros e se pôs a andar pelo caminho plano, a luz da lanterna iluminando a poeira à sua frente.
Angie e eu nos afastamos uns três metros da beira do despenhadeiro e fomos andando sobre a pedra. A certa altura vimos surgir uma fenda de aproximadamente quinze centímetros, separando-nos da placa de granito do outro lado. Segurei a mão de Angie, saltamos por sobre a fenda e continuamos a andar na pedra por mais uns dez metros, quando então demos de cara com uma muralha de pedra.
Devia ter uns bons três metros de altura, e sua coloração branco-amarelada cobria-se de estrias cor de chocolate. Ela me lembrava um bolo mármore — de seis toneladas, mas ainda assim um bolo mármore.
Apontamos nossas lanternas para o lado esquerdo da muralha e não vimos nada além daquela massa rochosa perdendo-se entre as árvores. Iluminei novamente o trecho à minha frente, vi entalhes na rocha, como se em alguns pontos a pedra tivesse se descamado, num processo semelhante ao das rochas xistosas. Uma pequena saliência de uns trinta centímetros de largura abria-se na muralha como um sorriso, a uns setenta e cinco centímetros do chão. Pouco mais de um metro acima, vi um sorriso ainda mais largo.
“Você tem praticado alpinismo ultimamente?”, perguntei a Angie.
“Você não está pensando em...?”, disse ela, esquadrinhando a face da muralha com a luz de sua lanterna.
“Não vejo outra saída.” Passei-lhe minha lanterna e ergui o pé até o bico do sapato encaixar-se na primeira saliência. Olhei para Angie por cima do ombro. Se eu fosse você, não ia ficar atrás de mim. Pode ser que eu desça bem depressa.”
Ela balançou a cabeça e afastou-se um pouco para a esquerda, mantendo as duas lanternas iluminando a rocha, enquanto eu, com o bico do sapato, pressionava a saliência para cima e para baixo para testar sua resistência. Como ela não cedeu, respirei fundo e tentei agarrar a saliência superior. Meus dedos deslizaram na rocha empoeirada, e eu caí de bunda no chão.
“Nada mau”, disse Angie. “Você tem uma grande vocação para todas as modalidades esportivas.”
Levantei-me, bati as mãos para tirar a poeira, esfreguei-as na minha calça. Fiz cara feia para Angie, tentei novamente, e novamente caí de bunda no chão.
“Pena que seus nervos o atrapalhem”, disse Angie.
Na terceira tentativa, consegui manter os dedos na saliência por uns quinze segundos, antes que eles deslizassem.
A luz das lanternas de Angie brilhou em meu rosto no momento em que eu lançava um olhar atravessado àquele maldito paredão .
“Você me permite?”, disse ela.
Peguei as lanternas de sua mão e iluminei o paredão. “Esteja à vontade.”
Ela recuou alguns metros, examinou a rocha, agachou-se e levantou-se várias vezes, alongou o torso o máximo que pôde e flexionou os dedos. Antes que eu tivesse tempo de adivinhar o seu plano, ela já partia a toda a velocidade em direção ao paredão. Poucos centímetros antes de esborrachar-se contra a pedra, ao estilo do Coiote do desenho animado, numa falsa porta pintada no paredão, seu pé se apoiou na primeira saliência, sua mão direita agarrou a segunda, e seu corpo pequeno saltou mais meio metro, enquanto o braço direito alcançava o topo.
Angie ficou pendurada ali por bem uns trinta segundos, colada na rocha como se tivesse sido arremessada contra ela.
“O que você vai fazer agora?”, perguntei.
“Bom, pensei em ficar aqui um tempinho.”
“Isso me soou um pouco sarcástico.”
“Oh, você reparou?”
“A perspicácia é uma de minhas muitas qualidades.”
“Patrick”, disse ela num tom que me lembrou a minha mãe e um monte de freiras que conheci. “Venha até aqui e me empurre para cima.”
Enfiei uma lanterna na cintura, de forma que iluminasse meu rosto, e a outra no bolso de trás. E com as duas mãos empurrei o salto do sapato de Angie para cima. As duas lanternas pareciam ser mais pesadas que ela. Angie foi subindo rocha acima, e eu estiquei os braços o máximo que pude. A certa altura, seus sapatos se desprenderam de minhas mãos. Quando chegou ao topo, ela girou o corpo, se pôs de quatro e me estendeu a mão.
“Está pronto, meu campeão olímpico?”
Fingi tossir. “Satanás.”
Ela encolheu o braço e sorriu. “O que você disse?”
“Que vou pôr a outra lanterna no bolso de trás.”
“Ah, bom...”, disse Angie, estendendo a mão novamente. “Claro.”
Depois que ela me puxou para cima, examinamos o topo da rocha à luz das lanternas. Ela se estendia à nossa frente por uns vinte metros, lisa como uma bola de boliche. Estiquei a cabeça por cima da borda, iluminei o outro lado com a lanterna e vi o paredão liso e vertical que descia outros vinte metros até a água lá embaixo.
Estávamos a meio caminho do extremo norte da pedreira. Diante de nós, do outro lado do lago, erguia-se um renque de penhascos e picos emporcalhados com pichações, entre as quais avistei um pitom esquecido por algum alpinista. À luz de minha lanterna, a água tremulava contra a rocha como ondas de calor numa estrada castigada pelo sol. Era verde-clara, tal como eu guardava na lembrança, mas eu sabia que aquela cor era enganosa. No verão passado, mergulhadores que buscavam um corpo naquelas águas foram obrigados a desistir da busca, porque a alta concentração de depósitos xistosos, somada à pouca visibilidade a mais de quarenta e cinco metros de profundidade, não permitia ver nada além de meio metro à frente. Fui deslocando o foco da lanterna para o nosso lado, iluminando de passagem uma placa de carro amassada boiando na superfície, um toro de madeira que fora roído no meio por animais e lembrava uma canoa, depois uma coisa meio redonda, parecendo carne.
“Patrick”, disse Angie.
“Espere um pouco. Aponte a sua lanterna para lá.” Dirigi a luz da lanterna para a direita, onde avistara o vulto arredondado, e vi apenas a água verde.
“Depressa, Ange! Pelo amor de Deus.”
Ela se deitou na rocha ao meu lado e apontou a lanterna para um ponto próximo ao que eu estava iluminando. A vinte metros de distância, a luz ficava fraca. Além disso, o verde da água não ajudava. Nossos círculos de luz deslizavam em rotas paralelas pela água, depois para cima e para baixo, em pequenos quadrados.
“O que é que você viu?”
“Não sei. Pode ter sido uma rocha...”
A luz da minha lanterna iluminou o tronco marrom-escuro, depois novamente a placa de carro, que parecia ter sido amassada por grandes mãos enfurecidas.
Talvez fosse uma rocha. A luz branca, a água verde e o negrume em volta podiam ter pregado uma peça em minha vista. Se fosse um corpo, àquela altura já o teríamos localizado. Além disso, corpos não bóiam. Pelo menos nas pedreiras.
“Achei uma coisa.”
Dirigi a luz da minha lanterna para o ponto que Angie estava iluminando, e os dois focos se encontraram, banhando os olhos mortos e a curva da cabeça de Pea, a boneca de Amanda McCready. Ela boiava de costas na água verde, o vestido florido sujo e encharcado.
Oh, meu Deus, pensei. Não.
“Patrick”, disse Angie. “Ela pode estar lá embaixo.”
“Espere...”
“Ela pode estar lá embaixo”, repetiu Angie, girando em seguida no chão e tirando o sapato do pé esquerdo.
“Angie. Espere. Nós temos de...”
Do outro lado da pedreira, a linha de árvores por trás dos rochedos pareceu explodir. Balas despedaçavam galhos, e pontos luminosos amarelos e brancos pipocavam na noite escura.
“Caí numa armadilha! Caí numa armadilha!”, a voz de Broussard gritava no walkie-talkie. “Preciso de reforço urgente! Repito: preciso de reforço urgente!”
Uma lasca de mármore saltou do penhasco atingindo meu rosto, e de repente as árvores atrás de nós começaram a se agitar, ao mesmo tempo que fagulhas, acompanhadas de tinidos metálicos, irrompiam do paredão rochoso.
Angie e eu rolamos no chão para nos afastar da borda, e eu peguei meu walkie-talkie. “Aqui é Kenzie. Estão atirando em nós. Repito: estão atirando em nós do lado sul da pedreira.”
Rolei um pouco mais em direção à escuridão, vi minha lanterna no ponto onde a deixara, na borda do penhasco, ainda apontada para o paredão do lado oposto. Quem quer que estivesse atirando contra nós devia estar usando a luz como baliza.
“Você foi atingida?”
Angie balançou a cabeça. “Não.”
“Fique aí.”
“O quê?”
Outra rajada de balas martelou os rochedos e as árvores atrás de nós. Prendi a respiração, esperei uma pausa. Quando ela veio, num silêncio ensurdecedor, avancei cambaleante no escuro até alcançar a lanterna e com as costas da mão empurrei-a para a borda, lançando-a em direção à água lá embaixo.
“Meu Deus”, disse Angie quando fui me arrastando até ela. “O que vamos fazer?”
“Não sei. Se eles tiverem mira telescópica nos rifles, estamos fritos.”
O atirador abriu fogo novamente. As folhas pulavam das árvores atrás de Angie, as balas cravavam-se nos troncos, quebravam os galhos finos. O fogo cessou por meio segundo, o tempo de o atirador realinhar a mira, depois as balas atingiram o paredão num ponto abaixo de nós, a alguns centímetros da borda, martelando a pedra como chuva de granizo. Se o atirador levantasse um pouquinho a arma, estaríamos perdidos.
“Preciso de um helicóptero!”, gritou Broussard no walkie-talkie. “Imediatamente! Estou sob fogo cruzado!”
“Helicóptero a caminho”, respondeu uma voz em tom calmo e frio.
Apertei o botão de transmissão quando o fogo parou novamente. “Broussard.”
“Sim. Vocês estão bem?”
“Já nos localizaram.”
“A mim também.” Do outro lado da linha, ouvi uma súbita rajada de balas. De onde eu estava, eu via o clarão da boca da arma por entre as árvores.
“Filho-da-puta!”, gritou Broussard.
E então o céu se abriu e lançou sobre nós uma luz branca, quando dois helicópteros se materializaram no meio da pedreira, equipados de refletores capazes de iluminar um estádio de futebol. Por um instante, fiquei ofuscado pelo súbito clarão. Tudo perdeu a cor, dissolveu-se no branco daquela luz: arvoredo branco, paredão branco, água branca.
A fúria daquela luminosidade branca foi rompida por um objeto escuro e comprido que se elevou do arvoredo fronteiro, descreveu um amplo arco, girando no ar, para finalmente cair no despenhadeiro em direção à água. Acompanhei sua trajetória o bastante para perceber que se tratava de um rifle, mas os tiros continuavam a partir do arvoredo à nossa frente.
E então eles cessaram. Procurei a luz branca, mas a única coisa que vi foi o cabo de outro rifle voando em direção à água.
Um dos helicópteros foi descendo até o ponto em que Broussard estava. Ouvi o ruído de armas automáticas e o grito de Broussard no walkie-talkie: “Parem de atirar! Parem de atirar, bando de malucos!”.
Iluminadas pela luz branca, as copas das árvores se desintegravam, folhas e galhos voavam para todos os lados, e então o barulho dos tiros disparados do helicóptero parou, no momento em que um segundo helicóptero se inclinou lateralmente, apontando sua luz direto em meu rosto. O vento provocado pelo movimento de suas pás me fez perder o equilíbrio, mas Angie pegou o walkie-talkie imediatamente e disse: “Recuem! Estamos bem. Vocês estão na linha de fogo”.
A luz branca desapareceu por um instante. Quando minha visão se desanuviou e o vento diminuiu, vi que o helicóptero se deslocara uns dez metros; agora, pairando acima do lago, iluminava sua superfície.
A fuzilaria cessara. O furor do ruído metálico fora substituído pelo gemido das turbinas do helicóptero e o zumbido de seus rotores.
Olhei para a área iluminada e vi a água verde encapelar-se, o toro de madeira e a placa de carro batendo contra a boneca de Amanda. Voltei-me para Angie e ainda pude vê-la livrar-se do sapato do pé direito, ao mesmo tempo que tirava o moletom. Restava-lhe apenas um sutiã preto e a calça jeans. Ela tremia de frio, e tinha as faces afogueadas.
“Você não vai pular lá embaixo!”, eu disse.
“Tem razão.” Ela balançou a cabeça, inclinou o corpo em direção ao moletom e correu em disparada por trás de mim. Quando me voltei, suas pernas já se distendiam para se lançar no vazio, peito para a frente, cabeça baixa. O helicóptero inclinou-se para a direita, iluminando o corpo de Angie, que girou e se endireitou no ar.
Ela caiu como um míssil.
Sua silhueta negra se destacava contra a luz branca. Braços colados ao corpo, parecia uma estátua esguia caindo de forma inexorável.
Ela atingiu a água como uma faca de açougueiro, quase sem levantar ondas, e desapareceu.
“Há uma pessoa na água”, ouvi uma voz no walkie-talkie. “Há alguém na água.”
Na convicção de que eu faria o mesmo, o helicóptero deslocou-se de volta na direção do penhasco, virou para a direita e manteve-se ali, oscilando ligeiramente para a direita e para a esquerda, mas formando uma barreira à minha frente.
O segredo de pular dos penhascos das pedreiras está na rapidez e no impulso que se dá ao corpo. Você tem de pular o mais longe possível, para que o vento e a gravidade não o empurrem para o paredão nem para os afloramentos. Com o helicóptero à minha frente, mesmo que eu conseguisse passar por debaixo dele, as correntes de ar descendentes iriam me jogar contra o rochedo, reduzindo-me a uma mancha a mais em sua prumada.
Deitei-me de bruços e fiquei tentando avistar Angie. Pela forma como caiu na água, ainda que tenha começado a bater as pernas logo que a cabeça imergiu, ela deve ter descido bem fundo. E, sendo as pedreiras o que eram, inúmeros perigos podiam estar à espera lá embaixo: toros de madeira, uma geladeira velha empoleirada num armário submerso.
Ela emergiu a quinze metros da boneca, lançou olhares frenéticos ao redor e mergulhou novamente.
Broussard apareceu no lado sul da pedreira, no alto de uns rochedos. Ele agitou os braços, e o helicóptero que estava daquele lado se deslocou em sua direção. Broussard tentou agarrar-se ao trenó de pouso, enquanto o barulho estridente da turbina cortava a noite, mas uma brusca ventania empurrou o helicóptero para longe.
A mesma lufada atingiu também o helicóptero à minha frente, e por pouco não o atirou no despenhadeiro. Mas ele recuperou o equilíbrio, pendeu para a direita, virou no centro da pedreira e começou a voltar no momento em que eu tirava os sapatos e o casaco.
Lá embaixo, Angie emergiu novamente e nadou em direção à boneca. Ela levantou a cabeça, olhou para os helicópteros e mergulhou outra vez.
Do outro lado da pedreira, um dos helicópteros descia em direção a Broussard. Ele recuou na rocha escarpada, pareceu perder o equilíbrio, mas então levantou os braços e agarrou o trenó de pouso, e o helicóptero se afastou do penhasco, apontando o nariz em direção à água. As pernas de Broussard balançavam no ar, seu corpo subia e descia, subia e descia, e finalmente ele foi puxado para dentro da cabine.
O outro helicóptero veio em minha direção, e então percebi, quase tarde demais, que ele pretendia aterrissar. Recolhi os sapatos e o casaco, recuei tropegamente e corri para a esquerda quando a parte da frente do trenó de pouso se inclinou em direção ao chão. De repente, o aparelho subiu de novo, recuou e girou o rotor traseiro para a esquerda.
Quando ele voltou a descer, tentando pousar numa elevação um pouco mais alta, o deslocamento de ar foi tão forte que me derrubou, e o barulho das turbinas tinha em meus tímpanos o efeito de uma picareta.
Enquanto eu tentava me levantar, o helicóptero bateu contra a pedra, depois bateu uma segunda vez. Vi o rosto do piloto se crispar na cabine, enquanto ele lutava para estabilizar o aparelho. O nariz do helicóptero desceu, a cauda levantou, e por um segundo pensei que as pás do rotor iam aparar as rochas que separavam o topo do penhasco do renque de árvores.
Um policial de macacão de pára-quedista azul-escuro e capacete preto saltou da cabine. Cabeça baixa, joelhos levemente flexionados, ele correu no chão pedregoso em minha direção.
“Kenzie?”, gritou ele.
Fiz que sim.
“Venha.” Ele me pegou pelo braço e abaixou minha cabeça, enquanto o outro helicóptero se distanciava da água, orientando-se para a encosta onde deixáramos Poole. Eu sabia que não era possível aterrissar naquele lugar. A mata era muito cerrada, não havia nenhuma clareira. A única esperança de resgatá-lo era fazer descer um homem num cesto para tirá-lo dali.
O policial me empurrou para dentro da cabine enquanto os rotores continuavam açoitando o ar; mal entrei, o aparelho decolou, tomando a direção da água.
Avistei Angie no momento em que descíamos. Ela segurava a boneca de Amanda com uma mão e mantinha o corpo mergulhado na água. À medida que o helicóptero se aproximava, a água se crispava, formando ondas e remoinhos.
“Suba!”, gritei.
O co-piloto olhou para mim.
Apontei o polegar para o teto do helicóptero. “Você vai afogá-la! Suba!”
O co-piloto cutucou o piloto, que puxou a alavanca. Senti meu estômago entrar no intestino quando o helicóptero pendeu para a direita e um rochedo coberto de pichações surgiu de repente na janela da cabine, afastando-se logo em seguida, enquanto ganhávamos altura e descrevíamos um círculo completo, para depois nos deter, em vôo estacionário, uns dez metros acima do lugar onde avistáramos Angie pela última vez.
Ela subiu para a superfície, lutou contra os torvelinhos, cuspiu água, e se virou de costas.
“O que ela está fazendo?”, perguntou o policial ao meu lado.
“Indo para a margem”, respondi, vendo-a nadar de costas em direção às rochas, a boneca acompanhando os movimentos circulares que ela fazia com o braço esquerdo.
O policial balançou a cabeça e apontou o rifle para o renque de árvores.
Como no colégio de Angie não havia equipe de natação, ela entrou para uma associação esportiva feminina e, aos dezesseis anos, ganhou uma medalha de prata numa competição regional. Atualmente, apesar de tantos anos de tabagismo, ela ainda não perdeu a forma. Seu corpo deslizava pela água, levantando tão poucas ondas à sua passagem que parecia uma enguia.
“Ela vai ter de voltar a pé”, gritou o co-piloto. “Não podemos descer ali.”
Angie mal teve tempo de perceber um pequeno afloramento rochoso à sua frente, e por pouco não se chocou contra ele. Ela girou o corpo, aproximou-se boiando da margem, colocou a boneca numa fenda que havia entre as rochas e subiu numa delas.
O piloto aproximou-se o mais que pôde das rochas e falou pelo megafone instalado sobre o refletor: “Senhorita Gennaro, não podemos resgatá-la. Não há como aterrissar”.
O corpo lívido sob a luz intensa, Angie esboçou um gesto cansado, os longos cabelos negros colados às faces.
“Bem atrás dessas rochas tem uma trilha”, gritou o piloto pelo megafone. “Siga por ela e pegue sempre a esquerda. Você vai chegar na Ricciuti Drive. Vai ter alguém lá esperando você.”
Angie levantou o polegar para indicar que ouvira, sentou-se na rocha, respirou fundo e pôs a boneca no colo.
Ela pouco a pouco se transformou num pontinho claro em meio à escuridão, quando o helicóptero, depois de se inclinar lateralmente, começou a subir, ao lado do paredão rochoso, mergulhando em seguida, depressa demais para o meu gosto, rumo à antiga ferrovia, e tomando então a direção oeste, até as pistas de esqui de Blue Hills.
“Que diabos ela foi fazer lá embaixo?”, perguntou o policial ao meu lado, abaixando o rifle.
“Procurar a menina”, respondi.
“Pombas”, disse o policial. “Nós íamos voltar com mergulhadores.”
“Agora à noite?”, perguntei.
O policial me olhou pelo visor de seu capacete. “Provavelmente”, respondeu ele, um tanto hesitante. “No mais tardar de manhã.”
“Acho que ela contava encontrá-la antes”, eu disse.
O policial deu de ombros. “Cara, se Amanda McCready estiver na pedreira, só Deus sabe se vamos conseguir encontrar seu cadáver ou não.”
19
Aterrissamos na pista de esqui da reserva de Blue Hills, passando entre cabos de teleférico e observando o segundo helicóptero fazer o mesmo, pousando suavemente uns vinte metros mais adiante.
Várias ambulâncias e carros da polícia, dois veículos da Guarda Florestal e algumas unidades da Polícia Estadual esperavam por nós.
Broussard saltou do segundo helicóptero, correu para o primeiro carro da polícia e arrancou do banco do carro o policial uniformizado que se encontrava ao volante.
Corri em direção a ele e o alcancei no momento em que dava a partida. “Onde está Poole?”, perguntei.
“Não sei”, ele respondeu. “Ele não estava no lugar onde o deixamos. Tampouco estava na trilha. Acho que das duas, uma: ou ele tentou descer sozinho, ou então resolveu subir a colina quando ouviu os disparos.”
O major Dempsey cruzou o gramado correndo em nossa direção. “Broussard, que diabos aconteceu lá em cima?”
“É uma longa história, major.”
Saltei para dentro do carro e sentei-me ao lado de Broussard.
“Onde está a menina?”
“A menina não estava lá. Era uma armadilha.”
Dempsey debruçou-se na janela. “Disseram que a boneca da menina estava boiando na água.”
Broussard voltou-se para mim, olhar espantado.
“Sim”, eu disse. “Mas não vi o corpo da menina.”
Broussard engatou a primeira. “Tenho de ir procurar Poole, senhor.”
“O sargento Raftopoulos ligou dois minutos atrás. Ele está na Pritchett Street. Diz que com alguns cadáveres.”
“Quem?”
“Não sei.”
Dempsey afastou-se da janela do carro. “Uma unidade da Guarda Florestal está indo para Ricciuti Drive, ao encontro de sua sócia, senhor Kenzie.”
“Obrigado.”
“Quem foi que deu aqueles tiros todos lá em cima?”
“Não sei, senhor. Mas eles me encurralaram.”
O súbito zumbir de uma turbina ressoou na noite, e Dempsey teve de gritar para ser ouvido.
“Eles não podem escapar!”, gritou Dempsey. “Estão cercados. Não há como fugir.”
“Sim, senhor.”
“Nem sinal da menina?”, perguntou Dempsey. Ele parecia achar que, se insistisse na pergunta, mais cedo ou mais tarde ouviria a resposta que esperava.
Broussard balançou a cabeça. “Escute, senhor, com o devido respeito, o sargento Raftopoulos teve uma espécie de ataque do coração na trilha. Preciso ir buscá-lo.”
“Vá”, disse Dempsey, afastando-se e fazendo sinal a vários carros para que se alinhassem atrás de nós. Broussard enfiou o pé no acelerador, partiu a toda a velocidade em direção a um renque de árvores, passou num caminho enlameado, guinou à esquerda um pouco adiante, desceu em velocidade uma trilha esburacada até o acesso à auto-estrada que nos levaria a uma rotatória e depois à Pritchett Street.
Mais duas estradas poeirentas e entramos na Quarry Street, descendo rapidamente pelo lado sul da colina, enquanto eu via pelo retrovisor a dança das luzes vermelhas e azuis atrás de nós.
Broussard não diminuiu a velocidade ao sinal de PARE, no final da rua. Ele subiu no acostamento e entrou na rotatória pisando fundo no acelerador. Por um segundo, os quatro pneus resistiram ao seu comando. O pesado carro parecia prestes a dar um cavalo-de-pau, mas então os pneus colaram no chão, o motor potente rugiu, e nós disparamos rotatória afora. Broussard imobilizou o volante novamente, e passamos por cima de outro acostamento, jogando terra e grama em cima do capô. Passamos a toda por uma fábrica abandonada à nossa direita e vimos Poole sentado na calçada, do lado esquerdo da estrada, recostado no pára-lama traseiro do Lexus RX 300.
A cabeça de Poole pendia molemente, encostada no pára-lama. A camisa estava aberta até o umbigo, e ele levara a mão ao coração.
Broussard deu uma freada violenta, pulou do carro, escorregou na lama e caiu de joelhos ao lado de Poole.
“Parceiro! Parceiro!”
Poole abriu os olhos e esboçou um sorriso. “Estou perdido.”
Broussard tomou o pulso do colega, pôs a mão em seu coração, levantou-lhe a pálpebra esquerda com o polegar. “Tudo bem, companheiro. Tudo bem. Você vai... você vai ficar bom.”
Vários carros da polícia pararam atrás de nós. Quando um jovem policial de Quincy saiu do primeiro carro, Broussard gritou para ele: “Abra a porta traseira!”.
O policial atrapalhou-se um pouco, deixou a lanterna cair no chão e se abaixou para pegá-la.
“Abra essa porra dessa porta!”, gritou Broussard. “Já!”
O policial chutou a lanterna para debaixo do carro, recuou e abriu a porta.
“Kenzie, ajude-me a levantá-lo.”
Segurei as pernas de Poole, Broussard se pôs atrás dele, passou-lhe as mãos pelo peito. Nós o carregamos até o carro e o colocamos no banco de trás.
“Eu estou bem”, disse Poole, e seus olhos giraram para a esquerda.
“Claro que está”, disse Broussard com um sorriso. Ele se voltou para o jovem policial, que parecia muito nervoso. “Você é capaz de dirigir em alta velocidade?”
“Ahn... sim, senhor.”
Atrás de nós, armas em punho, vários policiais aproximavam-se da parte dianteira do Lexus.
“Saia do carro agora!”, gritou um deles, apontando a arma para o pára-brisa de Gutierrez.
“Que hospital fica mais perto?”, perguntou Broussard. “O de Quincy ou o de Milton?”
“Bom... daqui, senhor, é o de Milton.”
“Em quanto tempo a gente chega lá?”, perguntou Broussard ao policial.
“Em três minutos.”
“Faça em dois”, disse Broussard, batendo no ombro do policial e empurrando-o para a porta do motorista.
O policial assumiu o volante. Broussard afagou a mão de Poole e disse: “Até logo mais”.
Poole balançou a cabeça, meio sonolento.
Nós nos afastamos, e Broussard fechou a porta de trás.
“Dois minutos”, repetiu ele ao policial. Os pneus do carro espalharam cascalho e levantaram nuvens de poeira quando o policial saiu do acostamento, acendeu os faróis e partiu em tal velocidade que parecia ter sido disparado por um lança-foguetes.
“Puta que pariu!”, disse outro policial. Ele se pôs na frente do Lexus. “Puta que pariu”, repetiu.
Broussard e eu nos aproximamos do Lexus. Ele se dirigiu a dois agentes estaduais, apontando para o edifício abandonado: “Revistem aquele edifício. Agora”.
Os policiais não fizeram perguntas. Mãos nas armas à cintura, correram em direção à fábrica.
Broussard e eu abrimos caminho por entre os policiais aglomerados em frente ao pára-choque do Lexus e, através do pára-brisa, vimos Chris Mullen e Pharaoh Gutierrez. Gutierrez estava ao volante, Mullen ao seu lado. Os faróis ainda estavam acesos. O motor estava ligado. Do lado de Gutierrez, um único tiro formara uma teia de aranha no pára-brisa. Do lado de Mullen, um outro tiro com as mesmas características.
Os buracos na cabeça deles também eram iguaizinhos: ambos do tamanho de uma moeda de dez centavos, ambos com pele branca e franzida nas bordas, ambos vertendo um fiozinho de sangue que lhes escorria nariz abaixo.
Ao que parecia, Gutierrez fora baleado primeiro. Seu rosto exprimia apenas impaciência, e suas mãos, vazias, estavam postadas no assento, palmas voltadas para cima. As chaves estavam na ignição, o câmbio, em ponto morto. A mão direita de Mullen segurava a arma na cintura, e seu olhar exprimia medo e surpresa. Ele tivera meio minuto para tomar consciência de que ia morrer, talvez menos. Mas tempo bastante para que tudo ficasse em câmera lenta, mil pensamentos fervilhantes no cérebro raivoso durante o tempo que levou para tomar consciência da bala que atingiu Pharaoh, tentar sacar a arma e ouvir a segunda bala varar o pára-brisa.
Bubba, pensei.
Uns cinqüenta metros adiante do Lexus, a fábrica abandonada, com sua pequena plataforma no telhado, oferecia condições ideais para um franco-atirador.
À luz dos faróis dos carros, vi os dois agentes estaduais aproximando-se lentamente da fábrica, joelhos um pouco flexionados, armas em punho, apontadas para a plataforma do telhado. Um deles fez um sinal ao outro, e ambos aproximaram-se da porta lateral. O primeiro abriu porta, o segundo passou por ela devagar, arma apontada na altura do peito.
Bubba, pensei, espero que não tenha feito isso só por diversão. Diga-me que conseguiu resgatar Amanda McCready.
Broussard acompanhou o meu olhar. “Quanto quer apostar que o ângulo da trajetória vai indicar que os tiros foram disparados daquele edifício?”
“Não quero apostar nada.”
* * *
Duas horas depois, eles ainda estavam tentando desvendar o mistério. A noite esfriara de repente, e começou a cair uma leve chuva de granizo que batia nos pára-brisas e se metia em nossos cabelos como piolhos.
Os policiais que entraram na fábrica abandonada voltaram com um rifle Winchester 94 leve, com mira telescópica, encontrado no interior do edifício. A arma fora jogada num velho barril de petróleo no primeiro andar, à direita da janela que dava para a plataforma do telhado. O número de série tinha sido raspado. O primeiro agente da polícia técnica que a examinou desandou a rir quando alguém aventou a possibilidade de haver impressões digitais.
Outros policiais foram destacados para fazer novas buscas no edifício, mas duas horas depois não tinham achado nem cápsulas nem nada, e o pessoal da polícia técnica não achou impressões digitais no parapeito da plataforma do telhado nem nas guarnições da janela que dava para ela.
O guarda-florestal que resgatara Angie do outro lado da colina que levava à pedreira de Swingle lhe dera uma lustrosa capa de chuva cor de laranja e um par de meias grossas, mas mesmo assim ela continuava a tremer e a esfregar os cabelos com uma toalha, apesar de estarem secos, ou congelados, fazia horas. Pelo visto, o veranico dos índios desaparecera de Massachusetts da mesma forma que os próprios índios.
Dois mergulhadores tentaram fazer uma busca na pedreira Granite Rail, mas constataram que abaixo de nove metros a visibilidade era zero. Além disso, devido ao mau tempo, os sedimentos desprenderam-se das paredes de granito, turvando ainda mais a água.
Os mergulhadores encerraram as buscas às dez horas, sem ter encontrado nada a não ser duas calças jeans masculinas penduradas num rochedo cerca de seis metros abaixo do nível da água.
Quando Broussard alcançou o lado sul da pedreira, quase diretamente fronteiro ao penhasco de onde Angie e eu avistamos a boneca, havia um bilhete para ele, colocado sob uma pedrinha e iluminado por uma lanterna do tamanho de um lápis, pendurada num galho logo acima.
ABAIXE-SE
Quando ele tentou pegar o bilhete, explodiu uma grande fuzilaria no renque de árvores, e ele se jogou num platô do penhasco, levando a mão à arma e ao walkie-talkie, e deixando a mochila com o dinheiro e a lanterna para trás, junto à orla do arvoredo. Uma segunda rajada de balas obrigou-o a ficar à beira do despenhadeiro, no escuro — que àquela altura era sua única proteção. Ele apontou a arma para o renque de árvores, mas não atirou, temendo que a luz gerada pelo disparo denunciasse sua posição.
Numa busca posterior, os policiais acharam o bilhete, a pequena lanterna do seqüestrador, a lanterna de Broussard e a mochila do dinheiro, que estava aberta e vazia. Foram encontradas também mais de cem cápsulas entre as árvores e nas saliências rochosas próximo ao esconderijo de Broussard. O policial que nos comunicara pelo rádio acrescentou: “Tenho certeza de que vamos encontrar muitas mais. É como se os atiradores tivessem cagado chumbo por aqui. Pelo amor de Deus, parece que estamos em Granada”.
Os policiais e guardas-florestais que estavam naquele lado da pedreira também entraram em contato conosco para informar que tinham sido feitos pelo menos cinqüenta disparos em direção ao ponto em que estávamos ou nas árvores atrás de nós.
Um agente estadual resumiu bem a situação num comunicado que ouvimos pelo rádio. “Major Dempsey, não era para eles saírem vivos daqui. De jeito nenhum.”
Todos os caminhos de entrada e de saída das pedreiras continuavam bloqueados, mas como os tiros tinham sido disparados a partir do lado sul da pedreira Granite Rail, os agentes estaduais, os guardas-florestais e a polícia local, acompanhados de cães, receberam ordens para concentrar a busca dos suspeitos naquele ponto. Mesmo da rua onde nós estávamos, no lado norte, às vezes víamos a luz de suas lanternas nas copas das árvores.
Segundo os médicos, Poole sofrera um infarto do miocárdio, agravado por sua caminhada colina abaixo, até a Quarry Street. Ao chegar lá, já totalmente desorientado e delirante, ao que parece ele avistou Gutierrez e Mullen no Lexus, indo em direção à Pritchett Street. Poole teria então ido até lá, chegando a tempo de encontrar os dois cadáveres e avisar ao comando, usando o telefone do rádio do Lexus.
Pelo que sabíamos, ele se encontrava em estado grave, na UTI do hospital de Milton.
“Alguém já fez as contas?”, perguntou Dempsey. Estávamos debruçados no capô de nossa Crown Victoria. Broussard fumava um cigarro de Angie, Angie tremia de frio tomando café numa xícara com o logotipo da Guarda Florestal, enquanto eu passava as mãos em suas costas, tentando aquecê-la um pouco.
“Que contas?”, perguntei.
“As contas que explicam como Gutierrez e Mullen podiam estar na estrada no mesmo instante em que vocês três estavam sob fogo cerrado.” Ele mascava um palito de dentes de plástico vermelho, tocando-o de vez em quando com o polegar ou o indicador, mas sem tirá-lo da boca. “A menos que eles também dispusessem de um helicóptero. Mas acho que eles não... O que vocês acham?”
“Acho que eles não dispunham de helicóptero”, eu disse.
Ele sorriu. “Certo. Eliminando-se essa hipótese, não vejo como eles poderiam ter estado nas colinas disparando contra vocês, e um minuto depois estar passeando aqui embaixo em seu Lexus. A coisa me parece, digamos, impossível, estão entendendo?”
Batendo os dentes de frio, Angie perguntou: “Então, quem mais poderia estar lá em cima?”.
“Aí é que está a o problema, não é? Entre outros.” Ele lançou um olhar por sobre o ombro à massa negra das colinas que avultava do outro lado da auto-estrada. “Para não falar nas seguintes questões: onde está a criança? Onde está o dinheiro? Onde está a pessoa ou as pessoas que descarregaram uma partida de munições digna de um filme de Schwarzenegger? Onde está a pessoa ou as pessoas que eliminaram Gutierrez e Mullen com tanta categoria?” Ele descansou o pé no pára-lama, tocou mais uma vez no palito e ficou olhando os carros passando em velocidade na auto-estrada, do outro lado do Lexus. “A imprensa vai ter com que se esbaldar.”
Broussard deu uma longa tragada no cigarro e soprou a fumaça ruidosamente. “Você está naquela de TCR, não é Dempsey?”
Dempsey deu de ombros, os olhos de coruja ainda fitos na auto-estrada.
“TCR?”, perguntou Angie, batendo os dentes.
“Tirar o Cu da Reta”, disse Broussard. “O major Dempsey não quer que o vejam como o policial responsável pela perda de Amanda McCready, de duzentos mil dólares e de duas vidas numa só noite. Certo?”
Dempsey voltou a cabeça até o palito de dentes apontar diretamente para Broussard. “É verdade. Não quero que pensem que o responsável por isso sou eu, detetive Broussard.”
“Então quem vai ser responsabilizado sou eu”, disse Broussard, balançando a cabeça.
“Você perdeu o dinheiro”, disse Dempsey. “Nós lhe demos carta-branca, e veja no que deu.” Sobrancelhas arqueadas, ele observou por um instante os dois assistentes do legista tirando Gutierrez do banco do motorista, para colocá-lo num saco plástico preto que tinham estendido à margem da estrada. “O tenente Doyle está ao telefone desde as oito e meia, falando com o chefe da polícia, tentando explicar a situação. Na última vez que o vi, ele estava tentando defender vocês, mas eu lhe disse que era perda de tempo.”
“O que exatamente se esperava que Broussard fizesse”, principiou Angie, “quando abriram fogo daquela maneira? Que tivesse a presença de espírito de agarrar a mochila e pular na água com ela?”
Dempsey deu de ombros. “Bem, essa era uma das possibilidades, não há dúvida.”
“Não acredito numa porra dessa”, disse Angie, agora já sem bater os dentes. “Ele arriscou a vida por...”
“Senhorita Gennaro”, disse Broussard, pousando a mão no joelho dela. “O major Dempsey só está dizendo o que o tenente Doyle com certeza vai dizer.”
“Ouça o que o detetive Broussard está dizendo, senhorita Gennaro”, falou Dempsey.
“Alguém vai ter que pagar por toda essa zorra”, disse Broussard. “E eu fui o escolhido.”
Dempsey deu um risinho. “Você é o único candidato ao cargo.”
Ele se afastou de nós e dirigiu-se a um grupo de agentes estaduais, falando no walkie-talkie e lançando um olhar às colinas às suas costas.
“Isso não está certo”, insistiu Angie.
“Sim”, disse Broussard. “Está sim.” Ele jogou no chão o cigarro que fumara até o filtro. “Eu fiz uma cagada.”
“Nós fizemos uma cagada”, corrigiu Angie.
Ele balançou a cabeça. “Se ainda estivéssemos com o dinheiro, eles não se importariam com o fato de Amanda continuar desaparecida ou até estar morta. Mas sem o dinheiro? Nós bancamos os palhaços. Por culpa minha.” Ele cuspiu no chão, balançou a cabeça e bateu o calcanhar no pneu que estava junto de seu pé.
Angie viu um agente da polícia técnica colocar a boneca de Amanda num saco plástico e lacrá-lo, anotando em seguida alguma coisa com uma caneta hidrográfica preta.
“Ela está lá, não está?”, perguntou, olhando para as colinas mergulhadas na sombra.
“Ela está lá”, respondeu Broussard.
20
Ainda não tínhamos ido embora quando amanheceu o dia e um guincho veio rebocar o Lexus ao longo da Pritchett Street, entrando na rotatória rumo à auto-estrada.
Policiais subiam e desciam as colinas, voltando com sacolas cheias de cápsulas e fragmentos de balas recolhidos da superfície rochosa e dos troncos das árvores. Um dos policiais trouxe também o moletom e os sapatos de Angie, mas ninguém soube dizer qual fora o policial nem o que ele fizera com as peças encontradas. Enquanto estávamos em vigília, um policial de Quincy colocara um cobertor nos ombros de Angie, mas ela ainda tremia de frio, e seus lábios assumiam uma coloração azulada à luz da rua, dos faróis e dos refletores usados para iluminar a cena do crime.
O tenente Doyle desceu das colinas em torno de uma da manhã, e chamou Broussard, fazendo um gesto com o indicador. Os dois foram andando até a fita amarela que cercava a fábrica abandonada, delimitando a cena do crime. Quando eles pararam, endireitaram os ombros em atitude de mútuo desafio, e Doyle explodiu. Não dava para ouvir o que ele dizia, mas era evidente que berrava, e dava para perceber, quando ele apontou o indicador na cara de Broussard, que uma resposta do tipo “Nós tentamos, porra!” de nada serviria para acalmá-lo. Broussard permaneceu a maior parte do tempo de cabeça baixa, mas a coisa se prolongou pelo menos por vinte minutos, e Doyle parecia ficar cada vez mais agitado. Passado o destempero, Broussard levantou os olhos. Doyle olhou para ele e balançou a cabeça de tal modo que, mesmo a uma distância de cinqüenta metros, dava para perceber a mensagem de fria reprovação. Ele deixou Broussard ali parado e entrou na fábrica abandonada.
“Pelo que vejo, temos más notícias”, disse Angie, quando Broussard filou mais um de seus cigarros do maço que estava em cima do capô do carro.
“Vou ser suspenso amanhã, enquanto espero a instauração de um processo administrativo.” Broussard acendeu o cigarro e deu de ombros. “Minha última missão oficial vai ser comunicar a Helene McCready que não conseguimos resgatar sua filha.”
“E o tenente que autorizou a operação? Qual é a responsabilidade dele nessa história?”
“Nenhuma”, disse Broussard, encostando-se no pára-lama do carro. Ele deu uma tragada e soprou um fiozinho de fumaça azul.
“Nenhuma?”, perguntou Angie.
“Nenhuma”, respondeu Broussard, jogando a cinza no chão. “Assumo toda a culpa e responsabilidade, confesso ter sonegado informações importantes para ficar com a glória pela captura dos seqüestradores, e não perco o distintivo.” Ele deu de ombros. “Assim é a política no departamento.”
“Mas...”, principiou Angie.
“Ah, ia me esquecendo...”, interrompeu Broussard, voltando-se para encará-la. “O tenente deixou bem claro que se vocês comentarem esse caso com alguém, ele vai... — deixe-me ver se me lembro — ‘implicar vocês até o pescoço no assassinato de Marion Socia’.”
Desviei os olhos para a porta da fábrica, por onde Doyle entrara. “Ele está blefando.”
Broussard balançou a cabeça. “Ele nunca blefa. Se diz que pode colocá-los contra a parede, é porque pode mesmo.”
Pensei um pouco sobre aquilo. Quatro anos antes, Angie e eu tínhamos matado a sangue-frio Marion Socia, um traficante de crack e cafetão, sob um pontilhão da auto-estrada sudeste. Usamos armas não registradas e não deixamos impressões digitais.
O problema é que deixamos uma testemunha, um aspirante a gângster chamado Eugene. Nunca soube o seu sobrenome, e tenho certeza de que, na ocasião, se eu não tivesse matado Socia, ele teria matado Eugene. Não naquele momento, mas logo depois. Cheguei à conclusão de que Eugene deve ter sido preso algumas vezes ao longo desses anos — pois me parecia improvável que tivesse feito carreira numa corretora de investimentos —, e numa dessas temporadas na cadeia deve ter nos dedurado em troca de uma sentença mais branda. Dada a falta de quaisquer outras provas de nosso envolvimento na morte de Socia, com certeza a promotoria resolveu dar o caso por encerrado, mas alguém passou a informação a Doyle.
“Quer dizer que ele nos agarrou pelos colhões.”
Broussard olhou para mim, depois para Angie, e sorriu. “Eufemisticamente falando, claro. Mas é isso mesmo, vocês estão nas mãos dele.”
“Que idéia reconfortante”, disse Angie.
“Esta semana foi cheia de pensamentos reconfortantes”, disse Broussard, jogando o cigarro fora. “Vou procurar um telefone, ligar para minha mulher e lhe dar as boas-novas.”
Ele seguiu em direção aos policiais e às vans paradas em volta do Lexus de Gutierrez, os ombros descaídos, mãos enfiadas nos bolsos, os passos um tanto trôpegos, como se o chão estivesse mais instável do que meia hora atrás.
Angie tremia de frio, e eu também.
Os mergulhadores voltaram à pedreira, enquanto a manhã, despontando por sobre as colinas, tingia o céu de diversas gradações de roxo e de rosa-escuro. Os policiais, já pensando no trânsito pesado das primeiras horas da manhã, isolaram a Quarry Street e a Pritchett Street com fitas amarelas e cavaletes. Um bom contingente de policiais formou uma barreira humana em volta da colina. Às cinco da manhã, vários agentes continuaram postados nos pontos de acesso às rodovias mais importantes, mas permitiu-se a passagem, depois do devido controle, e abriram-se os acessos à auto-estrada. Imediatamente, como se estivessem esperando na curva, as vans das emissoras de televisão e os repórteres da imprensa escrita se instalaram na auto-estrada, ocupando o acostamento, assestando seus refletores em nós e nas colinas à sua frente. Várias vezes algum deles vinha perguntar a Angie por que ela estava descalça. E todas as vezes ela respondia abaixando a cabeça e levantando o dedo médio, sem tirar a mão do regaço.
A princípio, os jornalistas apareceram porque correu a notícia de que alguém tinha feito centenas de disparos com uma arma automática nas pedreiras de Quincy, e dois corpos tinham sido encontrados na Pritchett Street, no que parecia ser uma execução feita por profissionais. Então, sabe-se lá como, o nome de Amanda McCready desceu a colina com a brisa da manhã, e o circo começou.
Um dos repórteres que estavam na auto-estrada reconheceu Broussard, seguido depois pelos outros, e logo todos nos sentimos como escravos acorrentados, quando eles começaram a gritar.
“Detetive, onde está Amanda McCready?”
“Ela morreu?”
“Ela está na pedreira?”
“Onde está o seu parceiro?”
“É verdade que os seqüestradores de Amanda McCready foram mortos a tiros na noite passada?”
“É verdade que o dinheiro do resgate sumiu?”
“O corpo de Amanda McCready foi retirado da pedreira? É por isso que está descalça, senhorita?”
No mesmo instante, um policial atravessou a Pritchett Street com um saco de papel e o entregou a Angie. “Suas coisas, senhorita. Eles mandaram isso para cá, junto com algumas balas disparadas.”
Angie manteve a cabeça abaixada e agradeceu, tirou seus Doc Martens do saco e os calçou.
“O moletom vai ser mais difícil de vestir”, disse Broussard, com um leve sorriso.
“Ah é?”, disse Angie, desencostando-se do capô e dando as costas para os jornalistas, enquanto um deles tentava pular a cerca de segurança, sendo contido por um policial, que usava um comprido cassetete.
Angie tirou o cobertor e a capa dos ombros, fazendo que várias câmeras apontassem para sua pele nua e para as alças do sutiã preto.
Ela olhou para mim. “Você acha que eu devia fazer um striptease e rebolar um pouco?”
“Você é a dona do espetáculo”, respondi. “Está chamando a atenção de todo mundo.”
“Até a minha”, disse Broussard, olhando abertamente a renda preta esticada contra os seios de Angie.
“Que alegria...”, disse ela, fazendo uma careta, enfiando o moleton pela cabeça e puxando-o até a cintura.
Alguém que estava na auto-estrada aplaudiu; outro assobiou. Angie continuou de costas para eles enquanto retirava espessas mechas de cabelo do colarinho.
“Dona do espetáculo?”, disse ela, com um sorriso triste e balançando a cabeça levemente. “O espetáculo é deles, cara. Todo deles.”
O estado de saúde de Poole passara de crítico a grave logo depois do amanhecer, e, sem mais nada a fazer, fomos embora da Pritchett Street e seguimos o Taurus de Broussard em direção ao hospital de Milton.
No hospital, discutimos com a enfermeira sobre quantos de nós poderiam entrar na UTI, visto que ninguém era parente consangüíneo de Poole. Um médico que passou por nós lançou um olhar a Angie e perguntou: “Já notou que sua pele está azul?”.
Depois de conversarem um pouco, Angie acompanhou o médico a uma salinha fechada por uma cortina para ver se estava com hipotermia, e a enfermeira, a contragosto, nos permitiu entrar na UTI para ver Poole.
“Infarto do miocárdio”, disse ele, apoiando as costas nos travesseiros. “Que diabo de palavra, hein?”
“São três palavras”, disse Broussard, estendendo a mão e afagando timidamente o braço de Poole.
“Que seja. O que aconteceu mesmo foi uma porra dum ataque do coração.” Ele mexeu o corpo novamente, sentiu uma dor súbita e soltou um assobio agudo.
“Relaxe”, disse Broussard. “Pelo amor de Deus.”
“Que diabos aconteceu lá?”, perguntou Poole.
Contamos a ele o pouco que sabíamos.
“Dois atiradores no mato e um no chão?”, perguntou ele, quando terminamos de lhe contar.
“É o que parece”, respondeu Broussard. “Ou um atirador com dois rifles no mato e um na plataforma do telhado.”
Poole fez uma cara de quem engolia aquela história da mesma forma que acreditava na hipótese de um atirador isolado no assassinato de John Kennedy. Ele mexeu a cabeça no travesseiro e olhou para mim. “Você viu mesmo dois rifles sendo jogados lá embaixo?”
“Não tenho dúvida”, eu disse. “Aquilo foi uma loucura.” Dei de ombros e balancei a cabeça. “É, tenho certeza. Dois rifles.”
“E o atirador da fábrica abandonada deixou a arma lá mesmo?”
“Sim.”
“Mas as cápsulas não.”
“Certo.”
“E o atirador ou atiradores que estavam no mato deram um fim nos rifles, mas deixaram as cápsulas por toda parte.”
“Isso mesmo”, disse Broussard.
“Meu Deus”, disse ele. “Não dá para entender.”
Naquele momento Angie entrou na enfermaria, passando um chumaço de algodão no braço, flexionando-o de vez em quando contra o bíceps. Ela se aproximou da cama de Poole e sorriu para ele.
“O que o médico disse?”, perguntou Broussard.
“Hipotermia moderada”, disse ela, dando de ombros. “Ele me injetou canja de galinha ou coisa parecida na veia, para eu não perder os dedos das mãos e dos pés.”
Ela recuperara a cor. Não totalmente, mas estava bem melhor. Angie sentou-se na cama ao lado de Poole e disse: “Poole, nós dois estamos parecendo um casal de fantasmas”.
Lábios ressecados, ele esboçou um sorriso. “Ouvi dizer que você imitou os famosos mergulhadores das ilhas Galápagos, minha cara. Os que saltam dos penhascos.”
“Acapulco”, corrigiu Broussard. “Ninguém salta de penhascos em Galápagos.”
“Nas ilhas Fiji, então”, disse Poole. “E pare de me corrigir. Mas, voltando à vaca-fria, rapazes: que diabos está acontecendo?”
Angie afagou-lhe o rosto levemente. “Você é que deve nos contar. O que aconteceu com você?”
Ele franziu os lábios por um instante. “Não sei muito bem. Não sei por quê, a certa altura me vi descendo a colina. Mas o problema foi que deixei para trás o walkie-talkie e a lanterna.” Ele ergueu as sobrancelhas. “Um lance de gênio, não? E quando ouvi toda aquela metralha, tentei pegar o caminho de volta, mas para onde quer que eu fosse, parecia que me afastava do barulho, em vez de me aproximar dele.” Ele balançou a cabeça. “O mato é assim mesmo... Depois só me lembro de estar no cruzamento da Quarry Street com a saída da auto-estrada, e de ter visto o Lexus passar em alta velocidade. Então fui andando atrás dele. Quando cheguei, nossos amigos já tinham tomado uma bala na cabeça, e eu estava me sentindo um pouco tonto.”
“Você se lembra de ter ligado para o comando?”, perguntou Broussard.
“Eu liguei?”
Broussard fez que sim. “Do telefone do carro.”
“Uau!”, fez Poole. “Sou muito esperto, hein?”
Angie sorriu, tirou um lenço do carrinho ao lado da cama de Poole e enxugou-lhe a testa.
“Meu Deus”, disse Poole com voz pastosa.
“O que é?”
Seus olhos giraram nas órbitas por um instante, depois voltaram a nos fitar. “Ahn? Nada. É que eles me encheram de drogas. É difícil me concentrar.”
A enfermeira abriu a cortina ao lado de Broussard. “Vocês precisam ir. Por favor.”
“O que aconteceu lá em cima?”, perguntou Poole com a voz sumida.
“Vão agora”, insistiu a enfermeira, enquanto seu paciente, incapaz de fixar o olhar, tentava umedecer os lábios secos e piscava os olhos. “O senhor Raftopoulos não está em condições de continuar conversando.”
“Não”, disse Poole. “Esperem.”
Broussard deu um tapinha no braço dele. “Não se preocupe, companheiro. Nós vamos voltar.”
“O que aconteceu lá em cima?”, perguntou Poole num fio de voz, já caindo no sono.
Boa pergunta, pensei, enquanto saíamos da UTI.
Logo que voltamos ao nosso apartamento, Angie tomou uma ducha quente, e eu telefonei para Bubba.
Ele atendeu: “O que é?”.
“Diga-me que está com ela.”
“O quê? Patrick?”
“Diga-me que está com Amanda McCready.”
“Não. Como assim? Por que ela estaria comigo?”
“Você pegou Gutierrez e...”
“Não, eu não.”
“Bubba”, eu disse. “Você pegou, sim. Só pode ter sido você.”
“Gutierrez e Mullen? De jeito nenhum, mano. Passei duas horas com a cara na terra, no Cunningham Park...”
“Você nem esteve lá em cima?”
“Eles me acertaram. Tinha uma pessoa me esperando, Patrick. Bateram em minha cabeça com uma marreta ou algum troço desse tipo, e eu perdi os sentidos. Nem cheguei a sair do parque.”
“Certo”, eu disse, sentindo nuvens negras se formarem em minha cabeça. “Conte tudo novamente. Devagar. Você foi ao Cunningham Park...”
“Lá pelas seis e meia. Peguei minhas ferramentas e cortei caminho pelo parque em direção às pedreiras. Eu estava quase alcançando as árvores para tomar o rumo das colinas quando ouvi uma coisa. Comecei a me voltar e... crau!, alguém me deu um golpe na nuca. Pra começar, você sabe como isso me aborrece, mas aquilo ferrou com minha visão também, e quando me abaixei... crau! Caí com um joelho no chão, e recebi uma terceira pancada. Devo ter recebido mais uma, mas só me lembro de acordar numa poça de sangue, mais ou menos às oito e meia. Quando tentei alcançar as árvores outra vez, o mato estava cheio de agentes da Polícia Estadual. Dei meia-volta e fui procurar o doutor Risadinha.”
Doutor Risadinha era um médico viciado em éter que Bubba e boa parte dos bandidos da cidade procuravam para curar seus ferimentos, dentro da maior discrição.
“Você está bem?”, perguntei.
“Tenho a impressão de estar com uma sirene dentro da cabeça, e as coisas ficam pretas e depois ficam claras de novo, mas vou ficar bom. Quero pegar esse filho-da-puta, Patrick. Ninguém me derruba, tá sabendo?”
Eu sabia. E de tudo o que eu ouvira naquelas últimas dez horas, aquilo era, de longe, o mais desanimador. Um sujeito capaz de tirar Bubba da jogada era muito, mas muito bom de serviço.
E outra: se você faz uma coisa dessa com Bubba, por que deixá-lo vivo? Os seqüestradores mataram Mullen e Gutierrez, tentaram matar Broussard, Angie e a mim. Por que não mataram Bubba a tiros, de longe?
“O doutor Risadinha disse que mais uma pancada, e os tendões da minha nuca teriam se rompido. Eu estou muito puto.”
“Quando eu souber quem foi”, falei, “vou acabar com ele.”
“Já estou fazendo minhas investigações, sabe? O doutor Risadinha me falou sobre Pharaoh e Mullen, e então pedi ao Nelson que desse alguns telefonemas. Ouvi dizer também que os policiais perderam o dinheiro.”
“Pois é.”
“E nada da menina.”
“Nada da menina.”
“Desta vez você está enfrentando gente da pesada, meu velho.”
“Eu sei.”
“Sabe de uma coisa, Patrick?”
“O quê?”
“Cheese nunca cairia na besteira de mandar uma pessoa me acertar uma paulada na cabeça.”
“De caso pensado, não. Talvez ele não soubesse que você estaria ali.”
“Cheese sabe que somos unha e carne. Ele deve ter imaginado que você iria me chamar para dar cobertura.”
Ele tinha razão. Cheese era esperto demais para não calcular que Bubba entraria na jogada. E ele devia saber muito bem que Bubba seria capaz de atirar uma granada em todo um grupo de comparsas seus, se houvesse uma pequena chance de matar o sujeito que o agrediu. Assim sendo, se Cheese deu a ordem... por que não mandou logo acabar com a raça de Bubba? Se Bubba morresse, não haveria retaliação. Mas deixando Bubba vivo, a única alternativa de Cheese, se quisesse continuar com seu bando ao sair da cadeia, era entregar a Bubba o nome de pelo menos um dos sujeitos que aprontaram com ele naquela noite. A menos que ele tivesse outras opções que não podíamos imaginar.
“Meu Deus!”, exclamei.
“Tenho mais uma bomba pra você”, disse Bubba.
Eu não sabia ao certo se podia agüentar mais um petardo em minha mente debilitada, mas falei: “Pode mandar”.
“Anda rolando um boato aí sobre Pharaoh Gutierrez.”
“Eu sei. Ele estava de xaveco com Mullen para tomar o negócio de Cheese.”
“Não, não é isso. Todo mundo já sabe disso. O que andam dizendo é que Pharaoh não era um de nós.”
“E o que é que ele era?”
“Era policial, Patrick”, disse Bubba, e eu senti tudo em meu cérebro deslizar para a esquerda. “Dizem que ele era da Delegacia de Entorpecentes.”
21
“Delegacia de Entorpecentes?”, disse Angie. “Você está brincando.”
Dei de ombros. “Foi o que disseram a Bubba. Você sabe como são essas conversas de rua: pode ser tudo mentira, pode ser tudo verdade. Ainda é cedo para dizer.”
“Mas como? Gutierrez passa seis anos infiltrado no bando de Olamon, envolve-se no seqüestro de uma criança de quatro anos, e não conta nada aos seus superiores?”
“Isso não faz sentido, não é?”
“Não. Mas qual é a novidade?”
Recostei-me na cadeira da cozinha, e tive de me controlar para não socar a parede. Aquele era um dos casos mais irritantes em que eu já trabalhara. Nada fazia o menor sentido. Uma menina de quatro anos desaparece. A investigação nos faz supor que a criança foi raptada por traficantes de drogas que tinham sido ludibriados pela mãe. Uma mulher que se supõe trabalhar para os traficantes faz um pedido de resgate. O dinheiro do resgate se perde numa emboscada. Os traficantes são mortos. Um deles pode ser, ou não, um agente federal infiltrado na quadrilha. A criança continua desaparecida, ou no fundo de uma pedreira.
Angie debruçou-se sobre a mesa e pôs sua mão quente em meu pulso. “Temos de tentar dormir ao menos algumas horas.”
Virei o pulso e tomei sua mão na minha. “Há alguma coisa em toda essa história que faça algum sentido para você?”
“Agora que acabaram com Gutierrez e Mullen? Não. Não há ninguém do bando de Cheese que tenha condições de assumir o comando. Porra, não tem ninguém no bando dele capaz de ter tramado um golpe desse.”
“Espere um pouco...”
“O quê?”
“Você mesma acabou de dizer. Agora há um vácuo na quadrilha de Olamon. E se esse fosse o nó da questão?”
“Ahn?”
“E se Cheese descobriu que Mullen e Gutierrez estavam planejando um golpe? Ou então que Mullen estava planejando e que Gutierrez não era o que dizia ser?”
“Então Cheese armou tudo — o seqüestro, o pedido de resgate etc. — para tirar Mullen e Gutierrez da jogada?” Ela largou a minha mão. “Você está falando sério?”
“É uma hipótese.”
“Uma hipótese idiota”, disse ela.
“O quê?”
“Não, pense um pouco. Por que ter todo esse trabalho, sendo que ele podia ter contratado uns caras para acabar com Mullen e Gutierrez quando estivessem dormindo?”
“Mas ele está puto também com Helene, e quer seus duzentos mil de volta.”
“Então ele manda Mullen raptar a menina, arma esse elaborado estratagema do resgate, e manda alguém matar Mullen?”
“Por que não?”
“Porque aí falta explicar um monte de coisas: onde está Amanda? Onde está o dinheiro? Quem estava atirando de dentro da mata ontem à noite? Quem atacou Bubba? Como é que Mullen não tinha desconfiado de nada? Quantos homens Cheese precisaria colocar numa operação enorme e complicada como essa? E Mullen não era nenhum trouxa. Ele era o sujeito mais esperto da quadrilha de Cheese. Você não acha que, se um plano desse estivesse em curso, ele desconfiaria?”
Esfreguei os olhos. “Puxa, estou com dor de cabeça.”
“Eu também. E você não está ajudando em nada.”
Olhei para Angie de cara feia, e ela sorriu.
“Tudo bem”, disse ela. “Voltemos à estaca zero. Amanda foi seqüestrada. Por quê?”
“Por causa dos duzentos mil que sua mãe roubou de Cheese.”
“Por que em vez disso Cheese não mandou alguém ameaçá-la? Tenho certeza de que ela iria ceder. Eles também sabiam disso.”
“Eles podem ter levado três meses para descobrir que o dinheiro não foi apreendido pela polícia na batida contra os motoqueiros.”
“Certo. Mas aí eles podiam agir depressa. Lembra que Ray Likanski estava de olho roxo naquele dia em que o encontramos?”
“Você acha que aquilo foi obra de Mullen?”
“Mullen teria feito muito mais que isso se desconfiasse que Likanski o roubara. O que quero dizer é o seguinte: se Mullen desconfiasse que Likanski e Helene tinham roubado sua quadrilha, não iria seqüestrar a filha de Helene. Ele mataria Helene, e pronto.”
“Pode ser então que o raptor não tenha sido Cheese?”
“Talvez não.”
“E a grana roubada foi uma coincidência?” Inclinei minha cabeça, levantando maliciosamente uma sobrancelha.
“Você quer dizer uma grande coincidência.”
“Quero dizer uma coincidência do tamanho do estado de Vermont. Ainda mais que o bilhete encontrado na calcinha de Kimmie dizia que os duzentos mil eram o preço da devolução da criança.”
Ela balançou a cabeça, pegou a asa da xícara e ficou brincando com ela, empurrando-a para a frente e para trás. “Certo. Então voltamos a Cheese e à questão de saber por que ele teria se disposto a todo esse trabalho.”
“O que — concordo com você — não faz nenhum sentido, e não tem nada a ver com os métodos de trabalho dele.”
Ela levantou os olhos da xícara. “Então, onde é que ela pode estar, Patrick?”
Toquei em seu braço, passei a mão sob a manga de seu roupão de banho. “Ela está na pedreira, Angie.”
“Por quê?”
“Não sei.”
“Alguém rapta a menina, recebe o resgate e a mata. A coisa é tão simples?”
“Sim.”
“Por quê?”
“Porque ela viu a cara dos seqüestradores? Porque a pessoa ou as pessoas que estavam nas pedreiras perceberam a presença da polícia e sacaram que estávamos fazendo jogo duplo? Não sei. Porque tem gente que mata crianças.”
Ela se levantou. “Vamos atrás de Cheese.”
“Que tal dar uma cochilada?”
“Nós podemos dormir quando estivermos mortos.”
22
O granizo, que já fizera uma aparição na noite passada, voltou de manhã, e quando estávamos chegando à prisão de Concord ele martelava o capô do carro feito uma chuva de moedas.
Dessa vez eu não estava com dois homens da polícia, por isso Cheese foi levado para o locutório, de onde nos via através de um vidro espesso. Angie e eu pegamos um fone em nosso cubículo, e Cheese pegou o dele.
“Ei, Ange”, disse ele. “Você está ótima.”
“Olá, Cheese.”
“Quem sabe, quando eu sair daqui, a gente podia tomar um chocolate com malte ou uma coisa assim?”
“Chocolate com malte?”
“Claro.” Ele fez um movimento com os ombros. “Ou uma bebidinha leve, não alcoólica. Uma coisa assim.”
Ela apertou os olhos. “Claro, Cheese. Claro. Dê uma ligadinha quando for solto.”
“Diabos!”, disse Cheese, batendo com a mãozorra aberta no vidro grosso. “Pode contar com isso.”
“Cheese”, eu disse.
Ele arqueou as sobrancelhas.
“Chris Mullen morreu.”
“Estou sabendo. Uma pena.”
Angie disse: “Você não parece estar muito abalado”.
Cheese recostou-se na cadeira, ficou nos examinando por um instante, coçando o peito devagar. “Vocês sabem como são as coisas nesse tipo de negócio. Os filhos-da-puta morrem cedo.”
“Pharaoh Gutierrez também.”
“Sim”, disse Cheese, balançando a cabeça. “Sinto por Pharaoh. Aquele filho-da-puta sabia se paramentar. Entende o que quero dizer?”
“Corre o boato de que ele não trabalhava para você”, comentei.
Cheese ergueu uma sobrancelha e, por um instante, pareceu surpreso. “O que é que você falou?”
“Ouvi dizer que Pharaoh era agente federal.”
“Mentira.” Cheese abriu um largo sorriso e balançou a cabeça, mas os olhos permaneceram arregalados, e o olhar, um tanto ausente. “Se você acredita em tudo o que lhe dizem na rua, está pronto pra ser um filho-da-puta dum tira.”
A piada era bem fraca, e ele sabia disso. Boa parte do poder de influência de Cheese estava em sua fala mansa, esperta e engraçada, mesmo quando proferia ameaças. E ficou claro, com aquela tirada chocha, que até então nunca lhe passara pela cabeça a possibilidade de Pharaoh ser um policial.
Eu sorri. “Um tira, Cheese. Em sua organização. Pense no que isso vai custar à sua reputação.”
Os olhos de Cheese recobraram a expressão de divertida curiosidade, ele se recompôs e recostou-se na cadeira. “Seu amiguinho Broussard veio me visitar há uma hora para me dizer que não tem mais nada contra Mullen e Gutierrez. Ele acha que fui eu que mandei acabar com eles. E disse que sou responsável por sua suspensão e pela doença de seu colega. Quer saber? Ele me deixou puto.”
“Sinto muito, Cheese”, eu disse, inclinando o corpo em direção ao vidro. “Tem mais alguém que ficou muito puto.”
“É mesmo? Quem?”
“Nosso amigo Rogowski.”
Cheese parou de coçar o peito. As pernas dianteiras de sua cadeira, até então suspensas no ar, voltaram para o chão. “Por que Rogowski está puto?”
“Alguém de seu pessoal deu várias porretadas na cabeça dele.”
Cheese balançou a cabeça. “Do meu pessoal não, cara. Do meu pessoal não.”
Olhei para Angie.
“É lamentável”, disse ela.
“Sim”, concordei. “Péssimo.”
“O quê?”, disse Cheese. “Você sabe que nunca levanto a mão contra nosso amigo Rogowski.”
“Lembra daquele cara?”, disse Angie.
“Que cara?”, perguntei.
“Aquele de uns anos atrás, figurão da máfia irlandesa, você sabe quem é...” Ela estalou os dedos.
“Jack Rouse”, eu disse.
“Sim. Ele era uma espécie de chefão irlandês ou algo assim, não era?”
“Esperem”, disse Cheese. “Ninguém sabe o que aconteceu com Jack Rouse. Parece que ele aborreceu o pessoal da família Patriso ou alguma coisa do tipo.”
Ele nos lançou um olhar através do vidro, e ambos balançamos a cabeça devagar.
“Esperem um pouco... Vocês querem dizer que Jack Rouse foi morto por...”
“Psiu”, eu fiz, levando um dedo aos lábios.
Cheese colocou o fone na mesa por um minuto e ficou olhando para o teto. Quando olhou para nós novamente, parecia ter encolhido uns trinta centímetros, e o suor que lhe empapava os cabelos, colando-os na testa, fazia que parecesse dez anos mais novo. Ele pegou o fone novamente.
“A história da pista de boliche?”, sussurrou.
Alguns anos antes, Bubba, um assassino de aluguel chamado Pine, eu e Phil Dimassi encontráramos Jack Rouse e seu braço direito, o pirado Kevin Hurlihy, numa pista de boliche abandonada, em pleno quarteirão dos sadomasoquistas. Das seis pessoas que entraram no edifício, apenas quatro saíram. Rouse e Hurlihy, amarrados, amordaçados e torturados por Bubba e algumas bolas de boliche, não tiveram nenhuma chance de se safar. A execução fora autorizada por Freddy Constantine, o chefão da máfia italiana de Boston, e ao sair dali todos nós sabíamos que ninguém ia encontrar os cadáveres nem ia ser louco de procurá-los.
“É verdade?”, perguntou Cheese, ainda sussurrando.
Respondi com um olhar vazio.
“Bubba precisa saber que não tenho nada a ver com as porretadas que deram nele.”
Olhei para Angie. Ela soltou um suspiro, olhou para Cheese, depois para o balcãozinho abaixo do vidro.
“Patrick”, disse Cheese, já sem o tom despreocupado e divertido de ainda há pouco. “Vocês têm de dizer a Bubba.”
“Dizer o quê?”, perguntou Angie.
“Que não tenho nada a ver com isso.”
Angie sorriu e balançou a cabeça. “Sim, Cheese, claro. Claro.”
Ele bateu no vidro com as costas da mão. “Ouçam o que estou dizendo! Não tenho nada a ver com isso.”
“Não é o que Bubba pensa, Cheese.”
“Então, digam a ele.”
“Por quê?”, perguntei.
“Porque é verdade.”
“Não caio nessa, Cheese.”
Cheese avançou a cadeira e apertou o fone com tanta força que por pouco não o partiu em dois. “Ouçam o que estou dizendo, seus bostas. Se aquele maluco pensa que eu mandei dar um pau nele, o melhor que tenho a fazer é esfaquear um carcereiro para que me mandem para a solitária pelo resto da vida. O sujeito é uma sentença de morte ambulante. Então digam a ele...”
“Vá se foder, Cheese.”
“O quê?”
Repeti, bem devagar.
Então acrescentei: “Procurei você há dois dias e pedi pela vida de uma criança de quatro anos. Agora ela está morta. Por culpa sua. E você quer que a gente tenha peninha de você? Vou dizer a Bubba que você pede desculpas por ter mandado lhe darem umas porradas”.
“Não.”
“Vou dizer a ele que você sente muito. E que qualquer dia desses você vai voltar às boas com ele.”
“Não”, disse Cheese, balançando a cabeça. “Você não pode fazer isso.”
“Olhe pra mim, Cheese.”
Afastei o fone do ouvido para desligá-lo.
“Ela não morreu.”
“O quê?”, perguntou Angie.
Pus o fone no ouvido novamente.
“Ela não morreu”, disse Cheese.
“Quem?”, perguntei.
Cheese revirou os olhos e inclinou a cabeça em direção ao guarda postado à porta.
“Você sabe quem.”
“Onde ela está?”, perguntou Angie.
Cheese balançou a cabeça. “Me dê um prazo de alguns dias.”
“Não”, eu disse.
“Você não tem escolha.” Ele voltou a cabeça, olhou por sobre o ombro, depois aproximou-se bem da janelinha e sussurrou no fone. “Uma pessoa vai procurar você. Pode confiar. Primeiro tenho que resolver algumas coisas.”
“Bubba está com muita raiva”, disse Angie. “E ele tem amigos”, acrescentou, lançando um olhar às paredes do locutório.
“Sem sacanagem”, disse Cheese. “Dois homens dele, os desgraçados dos irmãos Twoomey, foram presos por assalto a banco em Everett. Vão ser trazidos para cá na próxima semana, antes da transferência definitiva. Portanto, parem de me assustar. Já estou apavorado, certo? Mas preciso de tempo. Para chamar os cachorros de volta. Vocês vão receber uma mensagem minha. Prometo.”
“Como você tem certeza de que ela está viva?”
“Eu sei, certo?”, disse ele, com um sorriso amargo. “Vocês não têm idéia do que está se passando, sabiam?”
“Já percebemos”, eu disse.
“Vocês vão convencer Bubba de que eu não tenho nada a ver com o que aconteceu com ele. Vocês me querem vivo, certo? Sem mim, adeus, menina. Estão entendendo? Gone, baby, gone”, ele cantarolou.
Recostei-me na cadeira, examinei-o por um instante. Ele parecia falar a verdade, mas Cheese é muito bom nisso. Ele fez carreira descobrindo que coisas têm o poder de escravizar uma pessoa e então procurando gente louca por essas coisas. Cheese precisa dessa gente. Ele sabe balançar papelotes de heroína na frente de mulheres viciadas, fazer que matem pessoas que elas não conhecem, e depois lhes dá só metade do prometido. Ele sabe como embalar policiais e promotores com meias-verdades, fazer que assinem na linha pontilhada, para então lhes entregar um arremedo do que prometera.
“Preciso de mais que isso”, eu disse.
O guarda bateu na porta e falou: “Sessenta segundos, prisioneiro Olamon”.
“Mais? Que porra você quer mais?”
“Quero a menina”, respondi. “Quero a menina agora.”
“Não posso lhe dizer...”
“Foda-se”, gritei, esmurrando o vidro. “Onde ela está, Cheese? Onde ela está?”
“Se eu disser, eles vão saber que fui eu que contei, e amanheço morto”, disse ele recuando, mãos estendidas, o horror estampado nas feições grosseiras.
“Dê-nos uma coisa mais efetiva. Uma coisa que eu possa verificar, então.”
“A possibilidade de corroboração por parte de um terceiro”, disse Angie.
“Possibilidade de quê?”
“Trinta segundos”, disse o guarda.
“Dê-nos alguma coisa, Cheese.”
Ele olhou por sobre os ombros desesperado, depois para as paredes que o confinavam, o vidro grosso que nos separava.
“Entenda...”, suplicou.
“Vinte segundos”, disse Angie.
“Não. Ouçam...”
“Quinze.”
“Não, eu...”
“Tique-taque”, eu fiz. “Tique-taque.”
“O namorado da piranha”, disse Cheese. “Você conhece?”
“Ele se mandou da cidade”, disse Angie.
“Vão atrás dele, então”, disse Cheese, rangendo os dentes. “É só o que tenho. Perguntem a ele o que fez na noite em que a menina desapareceu.”
“Cheese...”, principiou Angie.
O guarda chegou por trás de Cheese e lhe pôs a mão no ombro.
“Seja lá o que for que vocês estejam pensando, estão muito longe de saber o que aconteceu. É como se vocês estivessem na Groenlândia, entenderam?”
O guarda se inclinou sobre Cheese e tirou o fone de sua mão.
Cheese levantou-se, e se deixou puxar até a porta. Quando o guarda a abriu, Cheese olhou para nós e articulou em silêncio uma palavra:
“Groenlândia.”
Ele ergueu e abaixou as sobrancelhas várias vezes, e então o guarda o fez passar pela porta, para fora de nossas vistas.
No dia seguinte, pouco depois do meio-dia, os mergulhadores que trabalhavam na pedreira Granite Rail encontraram um pedaço de pano preso a uma lasca de granito que se projetava como um pico de gelo de uma saliência rochosa no paredão sul, uns quatro metros e meio abaixo da superfície da água.
Às três horas, Helene identificou o pano como um pedaço da camiseta que sua filha estava usando na noite do desaparecimento. O pedaço fora tirado da parte de trás da camiseta, próximo ao colarinho, e nele se liam as iniciais A. McC., escritas com caneta hidrográfica.
Depois de identificar o tecido da camiseta na sala de estar de Beatrice e Lionel, Helene ficou observando Broussard recolocar o retalho cor-de-rosa no saco das provas materiais, e de repente o copo de Pepsi que estava em sua mão rebentou.
“Meu Deus”, disse Lionel. “Helene...”
“Ela está morta, não é?”, disse Helene, cerrando o punho, e os fragmentos de vidro penetraram mais fundo em sua mão. Grossas gotas de sangue caíram no soalho de madeira-de-lei.
“Senhorita McCready”, disse Broussard, “não temos a confirmação disso. Por favor, deixe-me ver sua mão.”
“Ela morreu”, repetiu Helene, erguendo o tom de voz. “Não morreu?” Ela afastou a mão de Broussard, e o sangue salpicou a mesinha de centro.
“Pelo amor de Deus, Helene”, disse Lionel, tocando o ombro da irmã e segurando-lhe a mão ferida.
Helene tentou afastar-se dele, perdeu o equilíbrio, caiu no chão, e deixou-se ficar ali afagando a mão ferida, os olhos fitos em nós. Seu olhar cruzou com o meu, e lembrei-me de quando a chamei de estúpida na casa do Pequeno Dave.
Ela não era estúpida, ela estava anestesiada — contra o mundo em geral, contra o perigo em que sua filha se encontrava, e até contra os cacos de vidro que penetravam sua carne, seus tendões e suas artérias.
Mas a dor já começava. Finalmente. Seu olhar cruzou com o meu, e vi seus olhos se arregalarem e se iluminarem, no momento em que se impunha a ela uma brusca revelação. Era um despertar terrível, uma verdadeira explosão nuclear de lucidez em suas pupilas, e com ela a consciência de que sua negligência lhe custara a própria filha, e dos terríveis sofrimentos a que a criança ficara exposta — visões de pesadelo socadas em seu pequeno crânio a marretadas.
Então Helene abriu a boca e articulou um grito silencioso.
Ela se sentou no chão, o sangue escorrendo da mão rasgada na calça jeans. Todo o seu corpo tremia sob o efeito do abandono, do pesar e do horror. Com a cabeça inclinada para um lado, olhos fixos no teto, as lágrimas escorrendo-lhe pelas faces, ela se balançava para a frente e para trás, continuando a esboçar um grito silencioso.
Às seis da tarde, antes que tivéssemos oportunidade de falar com Bubba, ele e Nelson Ferrare entraram no bar de propriedade de Cheese, em Lower Mills. Eles mandaram que o balconista e os três beberrões que lá se encontravam fizessem uma pausa para o almoço. Dez minutos depois, o bar quase inteiro explodia, e uma grande quantidade de destroços foi parar no estacionamento. Um balcão inteiro destruiu a porta da frente e o Honda Accord que um vereador estacionara, irregularmente, numa vaga para deficientes. Os bombeiros que acorreram ao local tiveram de colocar máscaras. A explosão fora tão forte que eliminara a possibilidade de um incêndio: dentro do bar, havia pouca coisa em combustão. No porão, contudo, os bombeiros deram com um monte de heroína pura em chamas; os dois primeiros a entrar no porão começaram a vomitar, e os outros resolveram recuar e deixar a droga se consumir até terem em mãos os equipamentos de proteção adequados.
Eu poderia ter mandando uma mensagem a Cheese informando-o de que Bubba agira por conta própria, mas às seis e meia daquela mesma tarde, na prisão de Concord, ele escorregou no chão recém-encerado. Foi um baita escorregão. Cheese perdeu totalmente o equilíbrio e, não se sabe como, caiu por cima da mureta de segurança do terceiro piso, despencou de uma altura de doze metros sobre uma laje, bateu a cabeçorra amarela recheada de idiotices e morreu.
SEGUNDA PARTE
INVERNO
23
Cinco meses se passaram, e Amanda McCready continuava desaparecida. Sua fotografia — a que a mostrava com olhos apáticos e vazios, cabelos escorridos em torno das faces —, em geral rasgada ou estragada pelo mau tempo, estava pregada nos tapumes dos canteiros de obras, nos postes telefônicos, e, de vez em quando, aparecia num ou noutro noticiário. E quanto mais olhávamos a foto, mais ela parecia embaçar-se, mais Amanda parecia uma ficção. Sua imagem era apenas uma entre tantas outras mostradas nos outdoors ou na televisão, até o ponto de saturação em que os transeuntes olhavam os seus traços com uma melancolia apática, incapazes de lembrar quem era ela e por que sua foto estava pregada no poste de iluminação junto ao ponto de ônibus.
Os que lembravam certamente procuravam tirá-la da memória, enfiavam a cabeça na página de esportes ou a levantavam para ver se o ônibus estava vindo. O mundo é um lugar terrível, pensavam eles. Todo dia acontecem desgraças. Meu ônibus está atrasado.
Um mês de buscas nas pedreiras resultaram em nada, e elas foram interrompidas quando os ventos de novembro começaram a varrer as colinas e a temperatura caiu vertiginosamente. Os mergulhadores voltariam na primavera, e mais uma vez se falou em drenar e aterrar as pedreiras, mas os vereadores de Quincy, preocupados com os milhões de dólares necessários para aquela operação, receberam o inesperado apoio de ambientalistas. Estes achavam que o aterramento das pedreiras prejudicaria o meio ambiente, destruiria muitas paisagens interessantes para andarilhos e excursionistas, privaria o povo de Quincy de lugares de grande importância histórica e de excelentes escarpas para a prática de alpinismo.
Poole retornou ao trabalho em fevereiro, faltando seis meses para completar trinta anos de carreira, mas voltou a integrar a equipe da Delegacia de Entorpecentes, tendo sido rebaixado, discretamente, ao posto de detetive de nível mais raso. Em comparação com Broussard, porém, ele podia se considerar um sujeito de sorte. Broussard fora rebaixado de detetive de primeira classe a patrulheiro, submetido a um período de observação de seis meses e ficara restrito à administração da frota de viaturas. Nós nos encontramos num bar no dia seguinte ao seu rebaixamento, pouco mais de uma semana depois de nossa expedição noturna a Granite Rail, e foi com um sorriso amargo que ele contemplou o palito de plástico com que mexia seu Tanqueray com tônica.
“Então Cheese disse que ela está viva, e outra pessoa disse que Gutierrez era da Delegacia de Entorpecentes.”
Fiz que sim. “Quanto a Amanda estar viva, Cheese disse que Likanski podia confirmar.”
O sorriso amargo de Broussard tingiu-se de desesperança. “Mandamos circulares de alerta para que Likanski seja procurado aqui e na Pensilvânia. Se vocês quiserem, providencio para que sejam renovadas.” Depois de um leve dar de ombros, ele acrescentou: “Acho que não vai atrapalhar em nada”.
“Você acha que Cheese estava mentindo”, disse Angie.
“Nessa história de dizer que Amanda está viva?” Ele tirou o palito de plástico do copo, sorveu um restinho de gim que havia nele e colocou-o na borda do guardanapo de papel. “Sim, senhorita Gennaro, acho que ele estava mentindo.”
“Por quê?”
“Porque ele era um criminoso, e é isso que eles fazem. Porque ele sabia que vocês engoliriam qualquer balela, tal era o desejo de que a menina estivesse viva.”
“Quer dizer que no dia em que você o visitou, ele não falou nada disso?”
Broussard balançou a cabeça e tirou um maço de Marlboro do bolso. Agora ele fumava sem parar. “Ele fingiu surpresa ao ouvir que Mullen e Gutierrez tinham sido mortos, e eu lhe disse que ia foder com a vida dele, nem que fosse a última coisa que eu fizesse. Ele deu uma gargalhada. No dia seguinte, ele morreu.” Broussard acendeu um cigarro, fechando um olho por causa do calor da chama do fósforo. “Juro por Deus, gostaria de tê-lo matado. Porra, ou então encarregado outro detento de fazer isso. Falo sério. Eu queria que ele morresse pelas mãos de alguém preocupado com a menina, que ele soubesse por que estava morrendo, e que esse pensamento o acompanhasse durante todo o caminho até o inferno.”
“Quem o matou?”, perguntou Angie.
“Ouvi dizer que desconfiam daquele rapaz maluco de Arlington, recém-condenado por duplo homicídio.”
“O rapaz que matou suas duas irmãs no ano passado?”, perguntou Angie.
Broussard confirmou. “Peter Popovich. Ele ficou um mês lá, esperando a transferência definitiva, e parece que teve um desentendimento com Cheese no pátio. Ou foi isso, ou então Cheese realmente escorregou no chão.” Ele deu de ombros. “Seja como for, pra mim está tudo bem.”
“Você não acha curioso o fato de Cheese nos dar a informação sobre Amanda e ser assassinado no dia seguinte?”
Broussard tomou mais um gole. “Não. Escute, vou ser franco com você. Não sei o que aconteceu com a menina, e isso me irrita, e muito. Mas não acho que ela esteja viva, como não acho que Cheese Olamon fosse capaz de falar a verdade, ainda que isso pudesse ajudá-lo.”
“E o que você acha dessa história de Gutierrez ser policial?”, perguntou Angie.
Ele balançou a cabeça. “De jeito nenhum. A esta altura já teriam nos informado disso.”
“Então...”, disse Angie, com toda a calma. “O que aconteceu com Amanda McCready?”
Broussard fitou a mesa por um instante, raspou a cinza do cigarro na borda do cinzeiro. Quando levantou o rosto, lágrimas brilhavam nas bolsas avermelhadas sob seus olhos.
“Não sei”, disse ele. “Quem me dera ter feito tudo diferente... Eu devia ter chamado os federais. Se eu tivesse...” Sua voz fraquejou, ele balançou a cabeça e cobriu o olho direito com as costas da mão. “Se eu tivesse...”
Ele engoliu em seco, e o pomo-de-adão fez um movimento brusco. Depois respirou fundo, mas não falou mais nada.
Naquele inverno, eu e Angie pegamos outros casos, mas nenhum que tivesse relação com o desaparecimento de crianças. Não que os pais estivessem fazendo fila para nos contratar. Afinal de contas, não tínhamos conseguido resgatar Amanda McCready, e a impressão desagradável daquele fracasso parecia nos acompanhar quando saíamos à noite no bairro ou quando fazíamos compras no supermercado no sábado à tarde.
Ray Likanski também continuava sumido, e era isso que mais me incomodava. Até onde ele sabia, nada o incriminava nesse caso; não havia motivo para continuar escondido. Por alguns meses, de vez em quando nos dava na telha de passar um dia e uma noite inteiros vigiando a casa de seu pai, sem conseguir nada além do gosto de café frio, músculos e ossos emperrados depois de horas e horas sentados no banco do carro. Em janeiro, Angie grampeou o telefone de Lenny Likanski, e durante duas semanas ouvimos a gravação de ligações suas para os telefones de emergência e serviços de entrega de pizzas, mas ele não fez nem recebeu nenhuma chamada do filho.
Um dia não agüentamos mais e viajamos a noite inteira, de carro, para Allegheny, Pensilvânia. Localizamos os parentes de Likanski na lista telefônica e os seguimos durante um fim de semana. Os irmãos Yardak, Leslie e Stanley eram primos em primeiro grau de Ray. Os três trabalhavam numa fábrica de papel que lançava no ar rolos de fumaça cujo cheiro lembrava o do toner das máquinas Xerox. Os três bebiam toda noite no mesmo bar, flertavam com as mesmas mulheres, depois voltavam sozinhos para a casa onde moravam.
Na quarta noite, Angie e eu seguimos Stanley até uma viela, onde ele comprou um pouco de cocaína de uma mulher numa moto imunda. Assim que a moto saiu da viela, enquanto Stanley fazia uma boa carreira nas costas da mão e cheirava, cheguei por trás dele, toquei no lobo de sua orelha com meu 45 e perguntei-lhe onde estava o primo Ray.
Stanley urinou nas calças; um vapor subiu do chão gelado entre seus sapatos. “Eu não sei. Já faz dois verões que não o vejo.”
Engatilhei a arma e cravei-a em sua têmpora.
“Pelo amor de Deus, não”, ele implorou.
“Você está mentindo, Stanley. Por isso vou matar você agora, certo?”
“Não faça isso! Eu não sei! Juro por Deus! Ray, Ray, faz quase dois anos que não vejo Ray. Por favor, por Jesus Cristo, acredite!”
Por sobre seu ombro, olhei para Angie, que lhe perscrutava o rosto. Ela olhou para mim e balançou a cabeça. Stanley estava falando a verdade.
“O pó faz você ficar de pau mole”, disse-lhe Angie. Então saímos da viela, entramos no carro e fomos embora da Pensilvânia.
Uma vez por semana, íamos à casa de Beatrice e Lionel. Nós quatro fazíamos um balanço das coisas que sabíamos e das que ignorávamos, e estas últimas sempre pareciam ser muito mais numerosas e importantes que as primeiras.
Certa noite, em fins de fevereiro, estávamos saindo de sua casa enquanto eles, tremendo de frio, nos observavam da entrada para ter certeza de que entraríamos no carro sem nenhum imprevisto. Então Beatrice falou: “Tenho pensado em lápides”.
Ao chegarmos à calçada, paramos e olhamos para ela.
Lionel perguntou: “O quê?”.
“À noite”, disse Beatrice, “quando não consigo dormir, me pergunto o que deveríamos escrever em sua lápide. Eu me pergunto se não seria o caso de providenciarmos uma para ela.”
“Querida, não...”
Ela o interrompeu com um gesto, ajeitando melhor o casaco de lã para se proteger do frio. “Eu sei, eu sei. Fica parecendo que estou entregando os pontos, como se admitisse que ela morreu, quando queremos acreditar que está viva. Mas, sabe... nada indica que ela viveu aqui.” Ela apontou para a varanda. “Nada indica que ela esteve aqui. Nossa memória é ruim, sabe? As lembranças vão se apagar.” Ela balançou a cabeça como para si mesma. “Elas vão se apagar”, repetiu, e entrou em casa.
Vi Helene uma vez, no final de março, quando eu e Bubba estávamos jogando dardos na Kelly’s Tavern, mas ela não me viu — ou fingiu não ter visto. Estava sentada no canto do balcão, sozinha, e lá ficou bebericando, durante uma hora, um único drink, fitando o copo como se Amanda a estivesse esperando no fundo dele.
Bubba e eu tínhamos chegado tarde, e depois dos dardos começamos uma partida de sinuca, ao mesmo tempo que um monte de fregueses se apressava em fazer o último pedido. Dez minutos depois, estavam todos aglomerados na frente do balcão, em pelo menos três fileiras. Após o aviso de que o estabelecimento ia fechar, eu e Bubba terminamos nossa partida e nossa cerveja e, a caminho da porta, colocamos as garrafas vazias no balcão.
“Muito obrigada.”
Voltei-me, olhei para o balcão e vi Helene sentada no canto, rodeada pelas cadeiras que o balconista já empilhara na superfície de mogno. Não sei por quê, eu achava que ela já tinha ido embora.
Ou talvez essa fosse a minha esperança.
“Obrigada...”, repetiu ela com voz branda, “... por tentar.”
Fiquei plantado ali no piso de borracha, sem saber o que fazer com as mãos. Ou com os braços. Ou com qualquer outra parte do meu corpo. Eu me sentia totalmente embaraçado, sem jeito.
Helene continuava olhando para o copo, os cabelos despenteados caindo-lhe sobre o rosto, uma figura minúscula entre todas aquelas cadeiras de ponta-cabeça, sob a luz fraca que ainda iluminava o bar na hora de fechar.
Eu não sabia o que dizer. Nem se seria capaz de falar. Minha vontade era a de aproximar-me dela, abraçá-la e pedir desculpas por não ter salvo sua filha, por não ter encontrado Amanda, por ter fracassado, por tudo. Eu tinha vontade de chorar.
Em vez disso, dei meia-volta e me dirigi à porta.
“Senhor Kenzie.”
Parei, ainda de costas para ela.
“Eu faria tudo diferente”, ela disse. “Se eu pudesse, eu... nunca a perderia de vista.”
Não sei se balancei a cabeça ou se dei algum sinal de que a ouvira. Só sei que não olhei para trás. E que saí de lá como se tivesse mil demônios em meu encalço.
Na manhã seguinte, acordei antes de Angie, preparei café na cozinha, tentei tirar Helene McCready de minha cabeça, e as palavras horríveis que ela dissera:
“Muito obrigada”.
Desci pelas escadas para pegar o jornal, meti-o debaixo do braço e voltei para o apartamento. Peguei uma xícara de café e fui até a sala de jantar. Abri o jornal e vi a notícia do desaparecimento de outra criança.
Chamava-se Samuel Pietro e tinha oito anos.
Fora visto pela última vez sábado à tarde, despedindo-se de seus amigos num playground de Weymouth antes de ir para casa. Estávamos na manhã de segunda-feira. A mãe só notificara o desaparecimento no domingo.
Era um menino bonito, de grandes olhos escuros que me lembravam os de Angie, e tinha um sorriso largo e amistoso na fotografia, certamente recortada do álbum dos alunos da terceira série. Seu rosto respirava confiança, juventude, esperança.
Considerei a possibilidade de esconder o jornal de Angie. Desde o episódio em Allegheny, quando saímos da viela e perdemos toda a energia e todo o ânimo, ela ficara ainda mais obcecada por Amanda McCready. Mas não era uma obsessão canalizada para a ação, pois não havia muito a fazer. Em vez disso, Angie lia e relia as anotações sobre o caso, traçava quadros e diagramas retrospectivos, e conversava durante horas com Broussard ou com Poole, sempre repisando as mesmas coisas, sempre andando em círculos.
Nenhuma hipótese nova ou sacada repentina resultou dessas longas noites ou daqueles diagramas, mas nem por isso ela deixava de insistir neles. E toda vez que uma criança desaparecia e ia para o noticiário nacional, ela acompanhava, fascinada, os mínimos detalhes do drama.
Angie chorava quando elas apareciam mortas.
Fazia isso em silêncio, sempre a portas fechadas, quando me imaginava no outro extremo do apartamento, sem poder ouvir-lhe os soluços.
Só muito recentemente eu tinha me dado conta do quanto a morte de seu pai a abalara. Acho que não a morte em si. O pior era o fato de não saber ao certo como ele morrera. Sem um corpo para identificar, para baixar à terra num último adeus, talvez para ela o pai não tivesse morrido de verdade.
Eu estava ao seu lado quando, certa vez, ela perguntou a Poole sobre o pai. Pude perceber nos olhos dele o medo de estar sendo inconveniente, enquanto explicava mal ter conhecido o pai dela, pois na verdade cruzara com ele umas poucas vezes na rua, ou o surpreendera em uma ou outra batida em salas de jogo clandestinas. Era sempre o mesmo Jimmy Suave, sempre um perfeito cavalheiro, plenamente consciente de que os policiais estavam fazendo seu trabalho, da mesma forma que ele fazia o seu.
“Essa coisa continua a incomodá-la, hein?”, disse Poole.
“Às vezes”, respondeu Angie. “O problema é ter de admitir, mentalmente, que uma pessoa se foi, embora seu coração nunca aceite por completo essa circunstância.”
E o mesmo se dava com Amanda McCready. E ainda com todas aquelas crianças que desapareciam no país inteiro e não eram encontradas, vivas ou mortas, naqueles longos meses de inverno. Certa vez me perguntei se não me tornara detetive particular porque detestava saber o que aconteceria no momento seguinte. Talvez Angie tenha tomado a mesma decisão pela razão contrária: ela precisava saber.
Olhei a foto do menino sorridente, confiante, olhos que pareciam querer nos atrair para dentro deles, da mesma forma que os de Angie.
Eu bem sabia que esconder o jornal era uma bobagem. Sempre haveria outros jornais, a televisão, o rádio, as pessoas comentando nos supermercados, nos bares e nos postos de gasolina.
Talvez quarenta anos atrás fosse possível furtar-se às notícias, mas hoje em dia não. Elas estão por toda parte, nos informando, nos golpeando, e quem sabe até nos esclarecendo. Mas estão sempre aí. O tempo todo. Não há como escapar. Não há como se esconder.
Com a ponta do indicador, acompanhei os contornos do rosto de Samuel Pietro, e pela primeira vez em quinze anos, fiz uma prece silenciosa.
TERCEIRA PARTE
O MÊS MAIS CRUEL
24
Em princípio de abril, Angie passava quase todas as noites com seus gráficos, anotações sobre Amanda McCready, e o pequeno altar que ela erigira para o caso no segundo quarto do apartamento, uma peça minúscula que, antes disso, eu usava para guardar minhas malas, caixas para dar ao Exército da Salvação e eletrodomésticos cobertos de poeira, que eu não lembrava de mandar consertar.
Angie levara para o quartinho um televisor e um vídeo, e ficava revendo interminavelmente os noticiários de outubro. Nas duas semanas seguintes ao desaparecimento de Samuel Pietro, ela passava pelo menos cinco horas por noite no quarto, sob o olhar apático de Amanda, cujas fotos cobriam a parede acima do aparelho de televisão.
Eu entendo a obsessão no sentido geral em que a maioria de nós entende, e achava que aquilo não estava fazendo muito mal a Angie — pelo menos por enquanto. No curso daquele longo inverno, eu terminara por aceitar o fato de que Amanda estava morta, encolhida em algum desvão, a cinqüenta metros de profundidade, no lago da pedreira, cabelos loiros ondulando ao sabor do brando movimento da água. Mas essa convicção não era tão forte a ponto de me permitir olhar com condescendência quem ainda acreditasse que Amanda estava viva.
Angie apegava-se à afirmação de Cheese de que Amanda estava viva, à esperança de que alguma pista de seu paradeiro se encontrasse em uma dessas anotações ou nos relatórios da polícia. Ela convencera Broussard e Poole a lhe ceder cópias de suas anotações, de seus relatórios diários e a transcrição dos interrogatórios feitos pelos policiais da BPC que atuavam no caso. E me garantia que, mais cedo ou mais tarde, toda essa papelada e todas as imagens de vídeo acabariam revelando a verdade.
A verdade, eu lhe disse um dia, era que alguém do bando de Cheese acabara com Mullen e Gutierrez, depois que eles jogaram o corpo de Amanda do alto de um penhasco. E que essa pessoa tinha se mandado, levando os duzentos mil dólares.
“Não era o que Cheese pensava”, disse ela.
“Broussard estava certo quanto a isso. Cheese era um mentiroso profissional.”
Ela deu de ombros. “Permita-me discordar.”
E à noite ela voltava a recapitular o outono, e tudo o que dera errado, e só me restava ler, ver um filme antigo no vídeo ou jogar sinuca com Bubba — o que, aliás, eu estava fazendo quando ele disse: “Quero que você vá comigo até Germantown”.
Como até ali eu só havia tomado meia cerveja, tive certeza de que ouvira muito bem as suas palavras.
“Como é que é, Bubba? Você quer que eu o acompanhe numa transação?”
Fiquei olhando Bubba do outro lado da mesa de sinuca, enquanto algum bárbaro escolhia uma música dos Smiths na jukebox. Odeio os Smiths. Eu preferiria ser amarrado numa cadeira e obrigado a ouvir uma seleção de canções de Suzanne Vega e Natalie Merchant, tendo à minha frente grandes gênios da arte conceitual coçando o saco, a ouvir, por alguns segundos que fosse, Morrissey e os Smiths chorando a sua angústia de ex-alunos de belas-artes, dizendo que são humanos e precisam de amor. Talvez eu seja um cínico, mas, se você quer ser amado, pare de se lamentar e terá alguma chance de transar, o que pode ser um primeiro passo bem mais promissor.
Bubba voltou a cabeça em direção ao balcão e gritou: “Quem foi o veado que pôs essa merda?”.
“Bubba”, falei.
“Espere um pouco”, disse ele, levantando um dedo e voltando-se em seguida para o balcão. “Quem pôs essa música, hein?”
“Acalme-se, Bubba”, disse o balconista.
“Eu só quero saber quem pôs essa música para tocar.”
Gigi Varon, uma alcoólatra de trinta anos que parecia não ter menos de quarenta e cinco, levantou a mão timidamente, do canto do balcão. “Eu não sabia, senhor Rogowski. Desculpe. Eu vou desligar.”
“Ah, Gigi!”, disse Bubba, fazendo-lhe um grande aceno. “Ora! Não, não se preocupe. Tudo bem.”
“Vou mesmo.”
“Não, não, docinho”, disse Bubba, balançando a cabeça. “Paulie, dê dois drinks a Gigi, por minha conta.”
“Obrigada, senhor Rogowski.”
“Pode deixar, Gigi. Mas esse Morrissey enche o saco. Sério. Pergunte a Patrick. Pergunte a qualquer um.”
“É sim, Morrissey enche o saco”, disse um dos velhos, que foi secundado por muitos outros clientes do bar.
“Depois vou colocar os Amazing Royal Crowns”, disse Gigi.
Alguns meses antes, eu chamara a atenção de Bubba para os Amazing Royal Crowns, e agora essa era sua banda favorita.
Bubba abriu bem os braços. “Paulie, sirva três drinks a ela.”
Estávamos no Live Bootleg, um barzinho na fronteira do Southie com Dorchester, que não tinha tabuleta na frente. A fachada de tijolos era pintada de preto, e o nome do bar, rabiscado com tinta vermelha, aparecia apenas no canto inferior direito da parede que dava para a Dorchester Avenue. Para todos os efeitos, o bar era de Carla Dooley, também conhecida como “A Encantadora Carlota”, e de seu marido, Tremedeira, mas na verdade ele pertencia a Bubba. Todas as vezes que estive lá, nunca vi uma cadeira desocupada, e a bebida sempre rolava solta. E a clientela também era boa. Desde que Bubba o abrira, havia três anos, nunca ocorrera uma briga, nem fila na porta do banheiro por causa de algum drogado que demorasse demais para tomar seu pico. Naturalmente, todos os que iam lá sabiam quem era o verdadeiro dono, e todos sabiam qual seria a sua reação se alguém desse motivo para a polícia baixar ali. Assim sendo, apesar de seu interior sombrio e de sua má reputação, o Live Bootleg era tão perigoso quanto uma quermesse na paróquia de St. Bart, na quarta-feira à noite. E na maioria das vezes a música era melhor.
“Não entendi por que você deu aquela bronca toda em Gigi”, eu disse. “A jukebox é sua. Foi você quem pôs o CD dos Smiths.”
“Eu não pus nenhuma merda de Smiths”, disse Bubba. “É uma dessas seleções dos melhores dos anos oitenta. Tive que engolir uma música deles porque nesse disco tem ‘Come on, Eileen’ e um monte de outras coisas legais.”
“Katrina and the Waves?”, perguntei. “Bananarama? Bandas de verdade como essas?”
“Ei”, disse ele. “Tem Nena, por isso cale a boca.”
“99 Luftballoons”, eu disse. “Tá bom, tudo bem.” Inclinei-me sobre a mesa, matei a bola sete. “Agora me diga que história é essa de acompanhar você numa transação?”
“Preciso de cobertura. Nelson está viajando, e os irmãos Twoomey estão amargando uma cana de dois a seis anos.”
“Por uma nota de cem, um milhão de caras iam querer te ajudar”, eu disse, tentando matar a seis, mas ela tocou na dez de Bubba, e eu me afastei da mesa.
“Bem, tenho dois bons motivos.” Ele se inclinou sobre a mesa, tentou acertar a nove com a bola branca e fechou os olhos quando esta caiu na caçapa lateral. Para um sujeito que vive jogando sinuca, Bubba é uma negação.
Pus a branca de novo na mesa, na posição para matar a quatro na caçapa lateral. “Motivo número um?”
“Confio em você, e você me deve favores.”
“Você me deu dois.”
“É um só. Cale a boca e jogue.”
Matei a bola quatro, e a branca foi rolando devagar, afastando-se da dois.
“Motivo número dois”, disse Bubba, passando o giz na ponta do taco e provocando rangidos. “Quero que você veja os caras que compram de mim.”
Encaçapei a dois, mas enfiei a branca atrás de uma das bolas de Bubba. “Por quê?”
“Confie em mim. Vai ser interessante.”
“Você não podia me dizer por quê?”
“Não sei se eles são o que penso que são, por isso você tem de vir comigo para ver.”
“Quando?”
“Logo que eu ganhar essa partida.”
“É perigoso?”, perguntei.
“Não mais que o de sempre.”
“Ah”, eu disse. “Muito perigoso, então.”
“Deixe de covardia e jogue.”
Germantown fica engastada no porto que separa Quincy de Weymouth. Recebeu esse nome em meados do século XVIII, quando um fabricante de vidro mandou virem empregados da Alemanha, sob contrato, e dotou a cidade de ruas largas e grandes praças inspiradas na tradição germânica. A fábrica faliu, e os alemães ficaram entregues à própria sorte quando se percebeu que deixá-los livres por aí era menos dispendioso que mandá-los para qualquer outro lugar.
Seguiu-se uma longa série de reveses, que pareciam rondar a pequena cidade portuária e as gerações descendentes daqueles primeiros operários. Os dois séculos seguintes assistiram ao florescimento e ao declínio de atividades industriais, como a produção de cerâmica, chocolate, meias, derivados de óleo de baleia, sal medicinal e salitre. Por algum tempo, as indústrias de pesca de bacalhau e de baleia tiveram certo sucesso, mas também elas expandiram-se demais e deslocaram-se mais para o norte, em direção a Gloucester, ou mais para o sul, em direção a Cape Cod, em busca de águas melhores, mais piscosas.
Germantown se transformou numa faixa de terra esquecida, cujas águas circundantes, separadas dos habitantes por altas grades, eram poluídas por resíduos dos estaleiros de Quincy, de uma central elétrica, de tanques de armazenamento de petróleo e da fábrica Procter & Gamble, que formavam as únicas silhuetas em seu horizonte. Uma primeira experiência de conjunto habitacional, destinada a veteranos de guerra, deixara o litoral desfigurado por conjuntos de edificações inacabadas cor de pedra-pomes, cada uma com quatro blocos de dezesseis unidades; e, curvadas umas sobre as outras como ferraduras, estruturas metálicas de varais, semelhantes a esqueletos, erguiam-se de poças de ferrugem no asfalto gretado.
A casa na frente da qual Bubba estacionara seu Hummer ficava a uns cem metros da orla, e as casas ao redor estavam condenadas, caindo aos pedaços. Na escuridão, aquela casa também parecia querer ruir, e embora eu não pudesse distinguir os detalhes, ela dava uma forte impressão de decadência.
O velho que atendeu à porta tinha uma barba grisalha curta, que lhe cobria a linha do maxilar mas recusava-se a crescer na cova do queixo comprido, deixando exposto um círculo róseo de pele que piscava feito um olho. Teria entre cinqüenta e sessenta anos, mas seu corpo pequeno e encurvado fazia que parecesse muito mais velho. Usava um surrado boné de beisebol dos Red Sox que parecia pequeno demais mesmo para sua minúscula cabeça, uma camiseta amarela cortada que deixava à mostra a barriga branca e enrugada e uma calça preta de malha que ia até os tornozelos e pés descalços, tão apertada nas virilhas que seu pênis parecia um punho.
O homem abaixou ainda mais a pala do boné e perguntou a Bubba: “Você é Jerome Miller?”.
“Jerome Miller” era o pseudônimo favorito de Bubba. Era o nome do personagem interpretado por Bo Hopkins em Assassino de elite, um filme que Bubba vira umas onze mil vezes, sendo capaz de repetir cada uma de suas falas.
“O que você acha?” O corpo maciço de Bubba dominava o franzino interlocutor, escondendo-o de minha vista.
“Eu estou perguntando”, disse o homem.
“Eu sou o coelhinho da Páscoa, parado em sua porta com uma mochila cheia de armas.” Bubba inclinou-se sobre ele. “Porra, vai deixar a gente entrar ou não?”
O homem deu passagem, e entramos numa sala de estar escura, empesteada pelo cheiro de cigarro. Ele pegou um cigarro aceso de dentro de um cinzeiro abarrotado na mesinha de centro, levou-o aos lábios úmidos, soltou uma baforada e nos olhou através da fumaça, os olhos claros brilhando fracamente na escuridão.
“Vamos, mostre”, disse o homem.
“Quer acender a luz?”, perguntou Bubba.
“Nada de luz aqui”, respondeu o homem.
Bubba lhe deu um sorriso largo, frio, deixando os dentes à mostra. “Leve-me para onde tenha luz.”
O homem sacudiu os ombros ossudos. “Se você quer assim...”
Enquanto eu os seguia pelo corredor estreito, notei que as tiras do boné de beisebol não estavam presas, pois as pontas ficavam muito longe uma da outra. Visto por trás, o boné dava uma impressão estranha, como se flutuasse em sua cabeça. Fiz um esforço para descobrir quem aquele sujeito me lembrava. Como não conheço muitos velhos que usam camisetas cortadas e calças de malha apertadas, achei que a lista das possibilidades seria bem pequena. Mas havia alguma coisa familiar naquele cara, e tive a impressão de que a barba ou o boné estavam me confundindo.
O corredor cheirava a água de banho suja, estagnada há dias, e as paredes tinham cheiro de bolor. No corredor, que levava direto à porta dos fundos, havia quatro portas. Acima de nós, no primeiro andar, alguma coisa fez um ruído surdo. O teto vibrava como se alguém tivesse posto o aparelho de som na maior altura, ainda que a própria música soasse bem baixinho — na verdade, um mero murmúrio, que bem podia vir de uma casa nas vizinhanças. Isolamento acústico, concluí. Talvez eles tivessem uma banda, um grupo de terceira idade com calções e camisetas cortadas balançando o esqueleto e tocando velhas canções de Muddy Waters.
Aproximamo-nos das duas primeiras portas, que ficavam no meio do corredor. Olhei para uma delas, à minha esquerda, e vi apenas uma sala escura com silhuetas negras que pareciam ser uma poltrona reclinável e pilhas de revistas ou de livros. Da sala saía um forte cheiro de fumaça de cigarro entranhada havia anos. A porta da direita nos levou a uma cozinha banhada numa luz tão forte que logo vi tratar-se de uma lâmpada fluorescente, dessas que se usam em garagens de caminhão, mas não em residências. Em vez de iluminar a cozinha, ela a apagava. Tive de piscar várias vezes para recuperar a visão.
O homem pegou um pequeno objeto do balcão e jogou-o em nossa direção. Pisquei sob a luz ofuscante, e vi o objeto voando a baixa altura, em minha direção, à direita. Estendi a mão e o agarrei. Era um saquinho de papel, e eu o segurei pelo fundo. Maços de cédulas por pouco não caíram no chão antes que eu levantasse o saquinho e colocasse as notas dentro dele. Voltei-me então para Bubba e lhe entreguei o dinheiro.
“Boa pegada”, disse o homem. Ele olhou para Bubba e lhe deu um sorriso amarelo de tabaco. “Me passe a mochila, senhor.”
Bubba jogou a mochila no peito do homem, e o peso o fez cair de bunda no chão. Estatelado no piso de ladrilhos pretos e brancos, braços abertos, apoiou-se na palma das mãos para se levantar.
“Péssima pegada”, disse Bubba. “E se eu simplesmente colocasse a mochila na mesa?”
O homem olhou para ele, balançou a cabeça e piscou sob a luz forte que incidia em seu rosto.
Acabei descobrindo que era o nariz dele, com sua curva aquilina, que me dava a impressão de já o ter visto. O nariz emergia do rosto chato, depois começava uma descida tão abrupta que a ponta projetava uma sombra nos lábios do homem.
Ele se levantou do chão, sacudiu a poeira dos fundilhos e bateu as mãos uma na outra enquanto se sentava sobre a mesa e observava Bubba abrir o zíper da mochila. Nos olhos do homem acenderam-se luzinhas cor de laranja, como um par de faróis traseiros brilhando no escuro, enquanto ele olhava dentro da mochila, pequenas gotas de suor escorrendo-lhe no lábio superior.
“Até que enfim meus bebezinhos chegaram”, disse o homem quando Bubba abriu as dobras da mochila, revelando quatro pistolas automáticas Calico M-110, com a liga de alumínio preta reluzente de óleo. A Calico M-110 é uma das armas mais estranhas que já vi. Ela dispara cem balas do mesmo carregador helicoidal que se usa em rifles. Com cerca de quarenta centímetros de comprimento, sendo vinte só para o cano e o punho, e o ferrolho e a maior parte da estrutura projetando-se para trás, essa arma se parecia um pouco com aquelas que, quando crianças, eu e meus companheiros fabricávamos com elástico, prendedores de roupa e palitos de picolé, para atirar clipes uns nos outros.
Mas com elástico e palitos de picolé, só conseguíamos atirar uns dez clipes por minuto. A M-110 pode atirar até cem balas em cerca de quinze segundos.
O velho pegou uma pistola da mochila, sopesou-a erguendo e abaixando a mão, os olhos claros brilhando como se, à semelhança da arma, também tivessem sido azeitados. Ele estalou os beiços, parecendo saborear a arma.
“Municiando-se para uma guerra?”, perguntei.
Bubba me olhou de cara feia e começou a contar o dinheiro do saco de papel.
O homem sorria para a arma como para um gatinho. “Perseguições existem o tempo todo, meu caro. Temos de estar preparados.” Ele deslizou as pontas dos dedos pela pistola. “Gracinha, gracinha, gracinha”, falou com ternura.
E foi nesse instante que o reconheci.
Leon Trett, o estuprador de crianças de quem Broussard me falara na época do desaparecimento de Amanda McCready. O homem suspeito de estuprar cinqüenta crianças e sumir com duas.
E nós acabávamos de armá-lo até os dentes.
Que bom!
Ele olhou para mim de repente, como se soubesse o que eu estava pensando, e eu me senti esfriar e diminuir à luz daquele olhar intenso.
“E os carregadores?”, perguntou.
“Quando eu for embora”, disse Bubba. “Não atrapalhe minha contagem.”
Ele deu um passo em direção a Bubba. “Não, não. Quando você for embora não”, disse Leon Trett. “Agora.”
Bubba disse: “Cale a boca. Estou contando”. Eu o ouvia recitar bem baixinho: “... quatrocentos e cinqüenta, sessenta, sessenta e cinco, setenta, setenta e cinco...”.
Leon Trett balançou a cabeça várias vezes, como se com isso pudesse fazer os carregadores aparecerem, ou obrigar Bubba a ser razoável.
“Agora”, disse Leon Trett. “Agora. Quero a munição agora. Eu paguei por ela.”
Ele avançou a mão para pegar o braço de Bubba. Bubba bateu com as costas da mão em seu peito, derrubando-o sobre uma mesinha ao lado da janela.
“Filho-da-puta”, disse Bubba, parando de contar e agarrando o maço inteiro nas mãos. “Agora vou ter que começar de novo.”
“Quero a munição”, disse Trett. Seus olhos estavam úmidos, e sua voz, fraca e trêmula como a de um menino de oito anos. “Me dê a munição.”
“Não enche!”, disse Bubba, recomeçando a contar as notas.
Com lágrimas nos olhos, Trett dava tapinhas na arma que tinha nas mãos.
“O que foi que aconteceu, filhinho?”
Voltei a cabeça em direção àquela voz e deparei com a mulher mais enorme que já vi em toda a minha vida. Não era exatamente uma amazona, mas antes uma versão feminina do Abominável Homem das Neves, gigante, imensa, com cabelos grisalhos que se erguiam uns dez centímetros acima da cabeça, tombando em seguida pelos lados, escondendo as maçãs do rosto e os cantos dos olhos, e amontoando-se como barba-de-velho em seus ombros largos.
Estava vestida de marrom-escuro da cabeça aos pés. Postada à soleira da porta da cozinha, segurava frouxamente um trinta-e-oito na mãozorra que mais parecia uma pata. Sob as dobras do vestido folgado, a massa imponente de suas carnes tremia de raiva.
Roberta Trett. Decididamente, a fotografia não fazia justiça àquele colosso.
“Eles não querem me dar os carregadores”, disse Leon. “Eles pegaram o dinheiro, mas não querem me dar os carregadores.”
Roberta avançou um passo na cozinha, examinou-a com um lento girar da cabeça da direita para a esquerda. O único que não tomou conhecimento de sua presença foi Bubba. Ele continuou no meio da cozinha, cabeça baixa, tentando contar o dinheiro.
Com certa displicência, Roberta apontou o revólver em minha direção. “Passe os carregadores.”
Dei de ombros. “Não estou com eles.”
“Você”, disse ela, fazendo um gesto em direção a Bubba. “Ei, você.”
“... oitocentos e cinqüenta”, recitava Bubba, “oitocentos e sessenta, oitocentos e setenta...”
“Ei!”, disse Roberta. “Olhe pra mim quando eu estiver falando.”
Bubba voltou a cabeça lentamente para ela, mas continuou com os olhos fitos no dinheiro. “Novecentos. Novecentos e dez, novecentos e vinte...”
“Senhor Miller”, disse Leon, desesperado. “Minha mulher está falando com o senhor.”
“... novecentos e sessenta e cinco, novecentos e setenta...”
“Senhor Miller!” O grito de Leon foi tão estridente que ficou zumbindo em meus tímpanos e penetrou em meu cérebro.
“Mil.” Bubba interrompeu a contagem e colocou o que já tinha contado no bolso do casaco.
Leon soltou um ruidoso suspiro de alívio.
Bubba olhou para mim como a esperar que eu lhe explicasse que diabos estava acontecendo.
Roberta abaixou a arma. “Agora, senhor Miller, agora a gente pode...”
Bubba passou a língua no polegar, puxou a primeira nota do novo maço e recomeçou a contar. “Vinte, quarenta, sessenta, oitenta, cem...”
Leon Trett parecia estar à beira de uma embolia. Seu rosto pálido enrubesceu e inchou ligeiramente, enquanto ele manipulava inquieto a pistola sem munição, contorcendo o corpo como se estivesse precisando ir urgentemente ao banheiro.
Roberta Trett ergueu o trinta-e-oito outra vez, e agora não havia o menor traço de displicência em seu gesto. Ela engatilhou a arma e apontou diretamente para a cabeça de Bubba.
Sob a luz intensa da cozinha, os contornos da giganta e de Bubba pareciam destacar-se ainda mais: a estatura de ambos era mais própria de algo que se escala com o auxílio de cordas e pinos do que de seres gerados no ventre de uma mulher.
Peguei meu 45 da parte de trás da cintura, dissimulei-o atrás de minha perna direita e puxei a trava de segurança.
“Duzentos e vinte...”, contava Bubba, enquanto Roberta avançava mais um passo em sua direção. “... duzentos e trinta, duzentos e quarenta, vamos, dispare logo essa merda, duzentos e cinqüenta, duzentos e sessenta...”
Roberta Trett parou, inclinou a cabeça levemente para a esquerda, como se não tivesse certeza de ter ouvido direito. Ela parecia não saber bem como reagir. Parecia também não estar acostumada a essa sensação.
Eu me perguntava se alguma vez em sua vida ela fora ignorada.
“Senhor Miller, o senhor vai parar de contar agora.” Ela estendeu o braço até enrijecê-lo ao máximo. A pressão de sua mão contra o aço negro fazia os nós dos dedos perderem a cor.
“... trezentos, trezentos e dez, trezentos e vinte, eu já disse para atirar, sua piranha, trezentos e trinta...”
Agora ela não tinha dúvida do que ouvira. Um tremor sacudiu-lhe o punho, fazendo a arma estremecer.
“Largue essa arma, minha senhora”, eu disse.
Seus olhos giraram nas órbitas, e ela viu que eu não me mexera, que não estava apontando nada para ela. Notou então que não via minha mão direita, e foi aí que, com o polegar, engatilhei a arma. Naquele espaço iluminado por uma luz cegante, onde a única coisa que se ouvia era o zumbido do neon, o ruído soou como um tiro.
“... quatrocentos e sessenta, quatrocentos e setenta...”
Roberta Trett olhou para Leon por sobre o ombro de Bubba, o trinta-e-oito tremeu um pouco mais, e Bubba continuou contando.
Ouviu-se, então, o rápido abrir e fechar de uma porta, em algum lugar da casa. O ruído vinha dos fundos, do final do longo corredor que cindia a casa.
Roberta também o ouviu. Seu olhar deslocou-se para a direita por um instante, depois fixou-se novamente em Leon.
“Faça ele parar”, disse Leon. “Faça ele parar de contar. Dá nos nervos.”
“... seiscentos”, disse Bubba, e sua voz aumentou um pouco de volume. “Seiscentos e dez, seiscentos e vinte, seiscentos e vinte e cinco — puxa, tem muitas notas de cinco —, seiscentos e trinta...”
Passos leves ressoaram no corredor, e Roberta enrijeceu o corpo.
Leon disse: “Pare com isso. Pare de contar”.
Um sujeito ainda mais baixo do que Leon entrou na cozinha e logo ficou paralisado, perplexo, olhos arregalados. Tirei a arma de trás da perna e apontei-a para o meio de sua testa.
Seu peito era tão sumido que parecia ter sido produzido ao contrário: o esterno e a caixa torácica encurvavam-se para dentro, enquanto a barriguinha projetava-se para a frente feito a de um pigmeu. O olho direito, levemente estrábico, afastava-se de nós como um barco à deriva numa tempestade. Havia arranhões um pouco acima do mamilo direito, que assumiam uma coloração avermelhada sob a luz intensa da cozinha.
Cobria-lhe o corpo apenas uma toalha felpuda azul, e a pele brilhava de suor.
“Corwin”, disse Roberta. “Volte para o seu quarto agora.”
Corwin Earle. Quer dizer então que ele finalmente encontrara sua família.
“Corwin vai ficar aqui”, eu disse, estendendo o braço e aproximando o 45 de seu olho normal.
Corwin balançou a cabeça, os braços caídos ao longo do corpo.
Todos os olhares, à exceção do meu, voltaram-se para Bubba, concentrando nele a atenção.
“Dois mil!”, exclamou ele radiante, levantando o maço de notas numa mão.
“Bem, você recebeu o combinado”, disse Roberta Trett, a voz trêmula como a arma em sua mão. “Agora complete a transação, senhor Miller. Entregue os carregadores.”
“Entregue os carregadores!”, guinchou Leon.
Bubba olhou para ele por sobre o ombro.
Corwin Earle recuou um passo, e eu disse: “Não, não”.
Ele engoliu em seco. Eu indiquei com a arma um ponto à sua frente, e ele acompanhou o movimento.
Bubba deu um risinho. Foi apenas um leve eh, eh, eh, mas bastou para que a nuca de Roberta Trett se crispasse.
“Os carregadores”, disse Bubba, voltando-se para Roberta, agindo como se só então tivesse visto o trinta-e-oito apontado para ele. “Claro.”
Ele franziu os lábios e mandou um beijo para Roberta. Ela piscou os olhos e recuou um pouco, como se aquilo fosse venenoso.
Bubba fingiu levar a mão ao bolso do casaco e, de repente, jogou o braço para trás.
“Ei!”, disse Leon.
Roberta tombou para trás quando Bubba bateu seu punho no dela. O trinta-e-oito voou de sua mão, passou por cima da pia, em direção ao balcão.
Todos, menos Bubba, se jogaram no chão.
O trinta-e-oito bateu na parede, um pouco acima do balcão, e, com o impacto, disparou.
A bala abriu um buraco no painel barato de fórmica atrás da pia e penetrou na parede, ao lado da janela junto à qual Leon se refugiara.
A arma caiu no balcão com um ruído seco, o cano girou um pouco e parou, apontando para o escorredor de pratos empoeirado.
Bubba olhou o buraco na parede. “Legal”, disse ele.
Todos nos levantamos, exceto Leon, que se sentou no chão, pôs a mão no coração, e pela dureza do olhar percebi que ele era menos frágil do que fazia crer seu comportamento enganosamente servil enquanto Bubba contava o dinheiro. Era apenas uma máscara, um papel que ele desempenhava, concluí, para fazer que nos esquecêssemos dele — e a máscara lhe caíra do rosto no momento em que ele se sentou no chão. Agora ele olhava para Bubba com um ódio sem disfarce.
Bubba enfiou o segundo maço de dinheiro no bolso. Então se aproximou mais de Roberta e ficou batendo o pé no chão na frente dela até ela levantar a cabeça e olhar para ele.
“Você estava com uma arma apontada para mim, Xena, a Grande.” Ele esfregou o queixo com a mão, enchendo a cozinha com o ruído dos calos contra a barba nascente.
Roberta pôs as mãos nos quadris.
Bubba sorriu para ela.
Ele disse brandamente: “Você acha que eu devia matá-la agora?”.
Roberta fez que não com a cabeça.
“Tem certeza?”
Roberta assentiu, bem mais decidida.
“Mas você apontou aquela arma para mim.”
Roberta assentiu outra vez. Ela tentou falar, mas soltou apenas um murmúrio.
“Que história foi essa, hein?”, perguntou Bubba.
Ela engoliu em seco. “Desculpe-me, senhor Miller.”
“Ah”, fez Bubba, balançando a cabeça.
Ele piscou para mim, e vi dançar em seus olhos o brilho verde e furioso que eu já vira antes, indicando que tudo podia acontecer. Tudo.
Leon apoiou-se na mesa da cozinha para levantar-se atrás de Bubba.
“Escute, projeto de homem”, disse Bubba, sem tirar os olhos de Roberta. “Se você pegar essa Charter 22 pregada embaixo da mesa, vou descarregá-la em seus bagos.”
A mão de Leon afastou-se da borda da mesa.
O suor escorria dos cabelos de Corwin, fazendo-o piscar. Corwin apoiou as mãos no batente da porta para levantar-se.
Bubba veio em minha direção e, sem tirar os olhos da cozinha, sussurrou em meu ouvido: “Eles estão armados até os dentes. Vamos sair no maior pau, entendeu?”.
Fiz que sim.
Quando ele se aproximou novamente de Roberta, vi o olhar de Leon deslizar pela mesa, depois pelo armário, pela lavadora de louça enferrujada, com a porta toda suja, que provavelmente não lavava louça nenhuma desde o tempo em que eu estava no colégio.
Surpreendi Corwin Earle fazendo o mesmo; seus olhares se cruzaram por um instante, e o medo se dissipou.
Tive de concordar com o que Bubba dissera. Ao que parecia, estávamos em plena Tombstone. Tão logo baixássemos a guarda, os Trett e Corwin Earle iam pegar suas armas e nos mostrar a sua contundente versão de OK Corral.
“Por favor”, disse Roberta Trett a Bubba. “Vá embora.”
“E os carregadores?”, disse Bubba. “Você queria os carregadores. Ainda quer?”
“Eu...”
Bubba tocou no queixo dela com a ponta dos dedos. “Sim ou não?”
Ela fechou os olhos. “Sim.”
“Sinto muito”, disse Bubba, abrindo um sorriso. “Não é possível. Preciso ir.”
Ele olhou para mim e inclinou a cabeça em direção à porta.
Corwin colou-se à parede, e eu continuei com a arma apontada para a cozinha enquanto seguia Bubba. Vi o ódio no olhar de Leon Trett, e sabia que eles viriam atrás de nós feito cães danados.
Peguei Corwin Earle pela nuca e empurrei-o para o meio da cozinha, junto de Roberta. Então meus olhos cruzaram com os de Leon.
“Eu mato você, Leon”, eu disse. “Não saia da cozinha.”
Quando ele falou, já não foi com a vozinha chorona de menino de oito anos. Sua voz era surda, ligeiramente rouca, fria como sal-gema.
“Você precisa chegar à porta da frente, rapaz. E daqui até lá é um bom pedaço.”
Recuei para o corredor, o 45 ainda apontado para a cozinha. Bubba estava alguns passos mais adiante, assobiando.
“Você acha que a gente deve sair correndo?”, sussurrei pelo canto da boca.
Ele olhou por cima do ombro. “Acho que sim.”
Ele disparou em direção à porta como um bólido, martelando com as botas o velho soalho de madeira, rindo feito um louco, soltando um Ah-ah-ah ! que ressoava pela casa inteira.
Abaixei a arma e corri atrás dele. Eu tinha a impressão de que o corredor e a sala de estar, mergulhados na escuridão, balançavam para um lado e para outro, enquanto corríamos desabalados em direção à porta.
Eu os ouvia agitando-se e tropeçando na cozinha, o ruído da lavadora de louça sendo aberta, dobradiças rangendo. Eu sentia as armas apontadas para minhas costas.
Bubba não parou para abrir a porta de tela que havia entre nós e a liberdade. Passou direto por ela. A armação de madeira estourou com o impacto, e a tela verde cobriu-lhe a cabeça como um véu.
Ao chegar à soleira, arrisquei uma olhadela para trás e vi Leon Trett aparecer no corredor, braço estendido. Apontei meu 45 para ele, mas aí eu já estava fora, e ficamos por um instante nos encarando com as armas apontadas.
Então ele abaixou a dele e balançou a cabeça. “Fica pra próxima”, gritou.
“Isso aí”, eu disse.
Atrás de mim, no gramado, Bubba fazia uma barulheira dos diabos enquanto tirava os restos da porta de sua cabeça, soltando a sua gargalhada louca.
“Ah-ah-ah! Eu sou Conan!”, gritava ele, abrindo os braços. “Grande matador de gnomos malvados. Ninguém ousa desafiar meu ânimo ou minha força na batalha! Ah-ah-ah!”
Cheguei ao gramado e corri em direção ao seu Hummer. Fiquei de costas para o Hummer, os olhos na casa, segurando a arma com as duas mãos enquanto Bubba abria a porta do carro. Tudo estava quieto na casa.
Entrei no carrão, e Bubba saiu em disparada antes que eu tivesse tempo de fechar a porta.
“Por que você não lhe deu os carregadores?”, perguntei, quando já havia um quarteirão entre nós e os Trett.
Bubba passou por um sinal fechado. “Eles me irritaram e não me deixaram contar direito.”
“Foi por isso? Por isso você não entregou os carregadores?”
Ele fechou a cara. “Eu odeio que as pessoas me atrapalhem quando estou contando. Pode acreditar, odeio mesmo.”
“A propósito”, eu disse, quando dobrávamos uma esquina. “Que história é essa de gnomos malvados?”
“O quê?”
“Não existem gnomos malvados em Conan.”
“Tem certeza?”
“Claro.”
“Merda.”
“Sinto muito.”
“Por que você sempre tem de estragar tudo?”, disse ele. “Cara, você corta o barato.”
25
“Ange!”, gritei, no momento em que entrava esbaforido em meu apartamento, acompanhado de Bubba.
Ela pôs a cabeça para fora do quartinho em que trabalhava. “Que está acontecendo?”
“Você tem acompanhado o caso de Pietro, não é?”
Um brilho de dor perpassou-lhe os olhos. “Sim.”
“Venha até a sala”, eu disse, puxando-a pelo braço. “Venha, venha.”
Ela olhou para mim, depois para Bubba, que balançava o corpo para a frente e para trás, uma enorme bola de chiclete Bazooka entre os lábios grossos e elásticos.
“O que vocês dois andaram bebendo?”
“Nada”, respondi. “Venha.”
Acendi a luz da sala de estar e contei-lhe a nossa expedição à casa dos Trett.
“Vocês dois são uns estúpidos”, disse ela quando terminamos de contar. “Dois garotos pirados que vão brincar com a família mais pirada ainda.”
“Ótimo, ótimo”, eu disse. “Ange, o que Samuel Pietro estava usando quando desapareceu?”
Ela se recostou na cadeira. “Calça jeans, casaco vermelho sobre uma camiseta branca, capa azul e vermelha, luvas pretas e tênis.” Ela apertou os olhos. “E daí?”
“Só isso?”, perguntou Bubba.
Ela deu de ombros. “Sim. Isso e um boné de beisebol dos Red Sox.”
Olhei para Bubba, ele balançou a cabeça e levantou as mãos.
“Não posso voltar lá. Minhas armas estão com eles.”
“Não tem problema”, eu disse. “Vamos ligar para Poole e Broussard.”
“Ligar para Poole e Broussard para quê?”, perguntou Angie.
“Você viu Trett usando um boné dos Red Sox?”, perguntou Poole, sentado à mesa de um café da rede Wollaston.
Fiz que sim. “Pequeno demais para a cabeça dele.”
“E isso o faz pensar que o boné pertence a Samuel Pietro.”
Balancei a cabeça novamente.
Broussard olhou para Angie. “Você também acredita nisso?”
Ela acendeu um cigarro. “Os dados batem. Os Trett moram em Germantown, perto de Weymouth, a uns três quilômetros do playground de Nantasket Beach, onde Pietro foi visto pela última vez antes de desaparecer. E as pedreiras... as pedreiras não ficam muito longe de Germantown e...”
“Ah, por favor!”, disse Broussard, amassando uma carteira de cigarros vazia e jogando-a em cima da mesa. “Lá vem você com Amanda McCready de novo! Você acha que só porque Trett mora a uns oito quilômetros das pedreiras é óbvio que ele deve ter matado a menina? Está falando sério?”
Ele olhou para Poole, e os dois balançaram a cabeça.
“Você nos mostrou as fotos dos Trett e de Corwin Earle”, disse Angie. “Lembra? Você nos disse que Corwin Earle gostava de pegar crianças para os Trett. Você nos disse para ficarmos de olho nele. Foi você quem disse isso, não foi, detetive Broussard?”
“Patrulheiro Broussard”, ele corrigiu. “Não sou mais detetive.”
“Bem, se você der uma fuçada pros lados da casa dos Trett, talvez volte a ser.”
A casa de Leon Trett ficava a uns dez metros da rua, em meio à grama alta e descurada. Por trás da cortina de chuva cor de âmbar, a pequena casa branca parecia embaçada e coberta de sujeira. Próximo aos alicerces, porém, alguém plantara um pequeno jardim, e as flores começavam a abotoar ou desabrochar. Essa visão deveria despertar admiração, mas era perturbador ver aquele canteiro tão bem cuidado de açaflores violáceos, galantos brancos, tulipas de um vermelho vivo e delicadas forsítias amarelas vicejando à sombra de uma casa tão suja e decadente.
Lembrei-me de que Roberta Trett trabalhara como florista, e pelo visto era bastante talentosa, pois conseguira extrair aquelas cores da terra dura e do longo inverno. Mas eu não entendia como aquela mulher corpulenta que no dia anterior apontara o trinta-e-oito para a cabeça de Bubba, engatilhando-o em seguida, podia ter talento e delicadeza para fazer brotar aquelas pétalas suaves, de frágil beleza.
A casa era um pequeno sobrado, e as janelas do andar de cima que davam para a rua estavam lacradas com pranchas de madeira escura. Abaixo dessas janelas, o lambri da parede estava estragado em muitos pontos, em outros faltavam tábuas, de forma que a parte mais alta da casa parecia um rosto triangular com olhos roxos e um sorriso de dentes estragados ou quebrados.
Mas, independentemente do jardim, a casa, tal como na noite anterior, me pareceu imersa numa atmosfera de decadência que a permeava como um odor.
Uma cerca alta encimada de arame farpado separava o quintal dos Trett do quintal do vizinho. À direita e à esquerda da casa estendiam-se dois quintais invadidos pelo mato, duas casas abandonadas, e nada mais.
“Só dá para entrar pela porta da frente”, disse Angie.
“Parece que é isso mesmo”, concordou Poole.
A porta de tela que Bubba destruíra na noite anterior jazia aos pedaços na grama, mas a porta principal, de madeira branca com rachaduras no meio, continuava no lugar. Poucas pessoas se aventuravam a andar por aquele local ermo, que parecia abandonado. Durante o tempo que ficamos ali, só passou um carro.
Abri a porta de trás da Crown Victoria, e Broussard entrou e sentou-se ao lado de Poole, balançando a cabeça para sacudir a água da chuva, salpicando o queixo e as têmporas do colega.
Poole enxugou o rosto. “Agora você virou um cachorro?”
Broussard arreganhou os dentes. “Estou encharcado.”
“Dá pra notar”, disse Poole, tirando um lenço do bolso da camisa. “Mas me responda: agora você virou um cachorro?”
“Ruff ”, fez Broussard, sacudindo a cabeça novamente. “A porta dos fundos fica no lugar onde Kenzie disse que era. Mais ou menos na mesma posição que a porta da frente. Há uma janela no lado leste, uma no lado oeste e uma atrás. Todas fechadas com pranchas de madeira. As janelas de baixo são todas fechadas por grossas cortinas. Três metros à esquerda da porta de trás, há uma entrada para o porão, trancada a chave.”
“Algum sinal de vida lá dentro?”, perguntou Angie.
“Com aquelas cortinas, não dá pra saber.”
“O que vamos fazer, então?”, perguntei.
Broussard pegou o lenço de Poole, enxugou o rosto e jogou-o de volta no colo do colega. Poole baixou os olhos, fitando o lenço com um misto de surpresa e asco.
“Fazer?”, disse Broussard. “Vocês dois?” Ele ergueu as sobrancelhas. “Nada. Vocês são paisanos. Se passarem por aquela porta ou derem alguma bandeira que alerte os Trett, eu prendo vocês. Eu e meu ex e futuro parceiro vamos bater na porta daquela casa para ver se o senhor Trett e sua mulher querem levar um papo. Se eles nos mandarem embora, nós voltamos e pedimos reforço ao Departamento de Polícia de Quincy.”
“Por que não chamar reforço agora?”, disse Angie.
Broussard olhou para Poole. Ambos olharam para ela e balançaram a cabeça.
“Me desculpem por ser retardada”, disse Angie.
Broussard sorriu. “Não posso chamar reforço sem um motivo plausível, senhorita Gennaro.”
“Mas quando você bater na porta vai ter um motivo plausível?”
“Se um deles for estúpido o bastante para abri-la”, disse Poole.
“Por quê?”, perguntei. “Você acha que bastará olhar por uma fresta para ver Samuel Pietro lá dentro, segurando um cartaz em que pede socorro?”
Poole deu de ombros. “É impressionante o que se pode ouvir por uma porta entreaberta, senhor Kenzie. Ora, conheço policiais que tomaram o apito de uma chaleira por gritos de criança. É uma vergonha quando se tem de arrombar portas, quebrar móveis e maltratar moradores por causa de um engano como esse, mas tudo isso ainda está dentro dos limites de um motivo plausível.”
Broussard levantou as mãos. “O sistema judiciário é cheio de furos, mas a gente faz o que pode.”
Poole tirou uma moeda de vinte e cinco centavos do bolso, colocou-a na unha do polegar e falou para Broussard. “Escolha.”
“Que porta?”, perguntou Broussard.
“Estatisticamente”, respondeu Poole, “a porta da frente é a que tem mais poder de fogo.”
“Estatisticamente”, disse Broussard, examinando a casa através da chuva.
Poole balançou a cabeça. “Mas nós dois sabemos que é um bom pedaço até a porta de trás.”
“E tendo de avançar a descoberto.”
Poole aquiesceu novamente.
“Quem perder vai bater na porta de trás.”
“Por que não vão os dois bater na porta da frente?”, perguntei.
Poole revirou os olhos. “Porque lá dentro estão pelo menos três deles, senhor Kenzie.”
“Dividir para conquistar”, disse Broussard.
“E quanto ao monte de armas que tem lá dentro?”, perguntou Angie.
“As armas que seu amigo misterioso viu na casa?”, disse Poole.
Fiz que sim. “Isso mesmo... Ele acha que eram Calico M-110.”
“Mas sem carregadores.”
“Isso na noite passada”, eu disse. “Quem garante que eles não conseguiram arranjar alguns nas últimas dezesseis horas?”
Poole balançou a cabeça. “Se eles tiverem carregadores, é artilharia pesada.”
“Bom, a gente vê o que faz quando chegar a hora.” Broussard voltou-se para Poole. “Eu sempre perco no cara-ou-coroa.”
“Quem sabe desta vez sua sorte muda?”
Broussard soltou um suspiro. “Cara.”
Poole jogou a moeda para cima, ela rodopiou na penumbra do interior do carro, refletiu por um segundo a luz cor de âmbar filtrada pela chuva, brilhando feito ouro. A moeda caiu na palma da mão de Poole, que logo a passou para as costas da mão.
Broussard olhou para a moeda e fez uma careta. “Não prefere uma melhor de três?”
Poole balançou a cabeça e pôs a moeda no bolso. “Peguei a porta da frente. Você vai bater na de trás.”
Broussard recostou-se na cadeira, e por um minuto ficamos todos calados, olhando a pequena casa imunda através da chuva oblíqua. Na verdade, ela não passava de uma espécie de caixa. A varanda avariada, as tábuas que faltavam e as janelas cegas davam uma forte impressão de decadência.
Olhando para aquela casa, era impossível imaginar pessoas fazendo amor em suas camas, crianças brincando em seu jardim, risos ressoando em seu interior.
“Levamos espingardas?”, perguntou Broussard finalmente.
Poole fez que sim. “À moda do velho oeste, parceiro.”
Broussard levou a mão à maçaneta.
“Não quero estragar seu momento John Wayne”, disse Angie, “mas se vocês levarem espingardas, os moradores da casa não vão desconfiar que não se trata apenas de fazer perguntas?”
“Eles não vão ver as espingardas”, disse Broussard, enquanto abria a porta e saía para a chuva. “Foi para isso que Deus criou as capas impermeáveis.”
Broussard atravessou a rua e foi abrir o porta-malas do Taurus. Eles tinham estacionado o carro junto a uma árvore tão velha quanto a cidade; grande, disforme, com raízes protuberantes que levantavam a calçada à sua volta, a árvore impedia que o carro fosse visto da casa de Trett.
“Quer dizer então que estamos desarmados”, disse Poole baixinho, no banco de trás.
Broussard tirou uma capa do porta-malas e a vestiu. Voltei a cabeça e olhei para Poole.
“Se alguma coisa der errado, pegue o celular e ligue para a polícia.” Ele se inclinou para a frente, ergueu o indicador à altura de nossos rostos. “Aconteça o que acontecer, não saiam deste carro, entenderam?”
“Entendi”, eu disse.
“Senhorita Gennaro?”
Angie balançou a cabeça.
“Bom, tudo bem então.” Poole abriu a porta e saiu para a chuva.
Ele atravessou a rua e foi até onde estava Broussard, atrás do Taurus. Broussard assentiu a alguma coisa que Poole lhe disse, olhou para nós e enfiou uma espingarda por debaixo da capa.
“Caubóis”, disse Angie.
“Essa é a chance que Broussard tem de voltar ao posto de detetive. É natural que ele esteja agitado.”
“Agitado demais?”, perguntou Angie.
Broussard parecia ter lido nossos lábios. Ele nos sorriu através do riacho d’água que descia pelos vidros do carro e deu de ombros. Voltou-se então para Poole, disse-lhe alguma coisa ao ouvido. Poole deu-lhe um tapinha nas costas, e Broussard afastou-se do Taurus, foi andando pela rua sob a chuva oblíqua, entrou pelo lado leste do quintal de Trett, avançou por entre o mato crescido, aproximando-se dos fundos da casa.
Poole fechou o porta-malas e puxou as abas da capa de chuva até cobrir a espingarda, enfiada entre o braço direito e o peito. Com a mão esquerda, segurava uma Glock às costas, enquanto avançava na rua, a cabeça levantada, voltada para as janelas obstruídas.
“Está vendo aquilo?”, perguntou Angie.
“O quê?”
“A janela à esquerda da porta da frente. Acho que a cortina se mexeu.”
“Tem certeza?”
Ela negou com a cabeça. “Eu disse ‘acho’.” Angie tirou o celular do bolso e colocou-o no colo.
Poole aproximava-se dos degraus da entrada. Ele levantou o pé esquerdo para pisar no primeiro degrau, mas deve ter notado alguma coisa de que não gostou, porque ergueu um pouco mais a perna, pisou no segundo degrau e logo chegou à varanda.
A plataforma em que ele se encontrava tinha uma funda depressão no meio. O corpo de Poole inclinava-se para a esquerda, a chuva a escorrer-lhe entre os pés, na calha formada pela depressão.
Ele levantou os olhos para a janela à esquerda da porta, ficou com a cabeça voltada para lá por um instante, depois voltou-se para a janela da direita.
Peguei meu 45 no porta-luvas.
Angie inclinou-se sobre mim e pegou seu trinta-e-oito, sacudiu o punho, examinou o tambor e recolocou-o no lugar.
Poole aproximou-se da porta, levantou a mão que segurava a Glock, bateu na madeira com os nós dos dedos, deu um passo atrás e esperou. Virou a cabeça para a direita, depois para a esquerda, e em seguida para a porta. Inclinou-se para a frente e bateu outra vez.
A chuva caía quase sem ruído, em diáfanas cortinas oblíquas, e afora o gemido do vento, a rua continuava em silêncio.
Poole girou a maçaneta para a direita e para a esquerda. A porta continuava fechada. Ele bateu pela terceira vez.
Passou por nós um utilitário Volvo bege, com bicicletas no bagageiro, uma mulher com uma faixa cor de pêssego na cabeça, expressão nervosa e aflita por trás do volante. Vimos os faróis traseiros se acenderem quando ela parou no semáforo, cem metros mais adiante. Depois o carro dobrou à esquerda e desapareceu.
O disparo de uma espingarda no fundo da casa e o ruído de vidro estilhaçado sobrepuseram-se por um instante ao uivo do vento. Um guincho agudo, semelhante ao ruído de freios danificados, ergueu-se em meio ao murmúrio da chuva.
Poole olhou para nós por um instante, levantou o pé com a intenção de chutar a porta e desapareceu numa explosão de lascas de madeira, fogo e luz — sob o trepidar de uma arma automática.
A descarga jogou-o com tanta força contra o corrimão da varanda que este vergou e se desprendeu como um braço arrancado do ombro. A Glock soltou-se de sua mão e caiu no canteiro de flores, enquanto a espingarda despencava pelos degraus.
Então a fuzilaria parou, tão de repente quanto começara.
Por um instante, ficamos paralisados dentro do carro, mergulhados no eco do tiroteio. A espingarda de Poole deslizou do último degrau, o cabo mergulhou na grama alta, enquanto o cano, negro e molhado, brilhava no cimento ao pé da escada. Uma rajada de vento soprou a chuva com mais força, e a pequena casa gemia e rangia com a ventania fustigando seu telhado e sacudindo as janelas.
Saí do carro, abaixei o corpo e corri em direção à casa. Em meio ao leve sibilar da chuva, eu ouvia o ruído surdo de minhas solas de borracha no asfalto molhado e no cascalho.
Angie vinha correndo ao meu lado, o celular no ouvido direito e no canto da boca. “Policial abatido na Admiral Farragut Road, 322, em Germantown. Repito: policial abatido na Admiral Farragut Road, 322, em Germantown.”
Enquanto corríamos no caminho de acesso à escadinha da entrada, meus olhos iam das janelas à porta, da porta às janelas. A porta tinha sido eviscerada, como se enormes animais ferozes a tivessem atacado com garras afiadas. A madeira estava cheia de buracos; em vários pontos dava para ver dentro da casa, distinguir cores e luzes embaciadas.
Quando chegamos aos degraus, os buracos de repente escureceram. Com a mão direita, empurrei Angie com toda a força, jogando-a na grama, e me atirei em seguida para a esquerda.
O universo pareceu explodir. Nada nos prepara para o fragor de uma arma que dispara sete balas por segundo. Através da porta de madeira, o furor das balas parecia quase humano; era a cacofonia de uma fúria feroz e assassina.
Poole estava caído sobre o lado direito do corpo, enquanto as balas continuavam pipocando na varanda. Estendi a mão, agarrei o cabo de sua espingarda. Pus meu 45 no coldre e ergui-me sobre um joelho. Apontei a arma para a porta através da chuva, atirei, e a madeira soltou fumaça. Quando a fumaça se dissipou, vi um buraco do tamanho do meu punho no meio da porta. Ao tentar me levantar, escorreguei na grama molhada e ouvi um tilintar de vidro à minha esquerda.
Girei o corpo e atirei na janela, por sobre o corrimão da varanda, estilhaçando a vidraça e os caixilhos e abrindo um buraco na cortina.
Dentro da casa, alguém gritou.
A fuzilaria cessou. Em minha cabeça ecoavam os disparos de espingarda e o trepidar da arma automática.
Angie estava de joelhos ao pé da escada, o rosto crispado numa careta, apontando o trinta-e-oito para o buraco da porta.
“Você está bem?”, perguntei.
“Meu tornozelo está fodido.”
“Levou um tiro?”
Ela negou com a cabeça, mantendo os olhos na porta. “Acho que ele dançou quando você me jogou no chão.” Ela respirou fundo pela boca contorcida.
“Está fraturado?”
Ela fez que sim, respirando fundo novamente.
Poole gemeu, o sangue escorreu-lhe pelo canto da boca num fio rápido e reluzente.
“Tenho de afastá-lo da varanda”, eu disse.
Angie aquiesceu. “Eu dou cobertura.”
Deixei a espingarda na grama molhada, levantei a mão e agarrei a parte de cima do corrimão que vergara sob o impacto do corpo de Poole. Forcei a base da varanda com o pé, senti o corrimão soltar-se da madeira podre. Empurrei com mais força: o corrimão e metade do parapeito se desprenderam da varanda. Poole caiu em cima de mim, derrubando-me na grama molhada.
Ele gemeu outra vez, contorceu-se em meus braços. Deslizei de sob seu corpo e vi a cortina da janela da direita se mexer.
Eu disse “Angie”, mas ela já se voltara. Ela disparou três balas na janela, a vidraça estourou, e choveram estilhaços na varanda.
Agachei-me na grama alta junto ao alicerce da casa. Ninguém respondeu ao fogo, e de repente Poole teve um espasmo, seu corpo se arqueou, e seus lábios verteram sangue.
Angie abaixou a arma, lançou um último olhar à porta e às janelas e avançou de joelhos em nossa direção, evitando forçar o tornozelo esquerdo. Mantive o 45 levantado acima de sua cabeça enquanto ela avançava penosamente, depois me desloquei para o outro lado de Poole.
Ouvimos novos disparos de arma automática nos fundos da casa.
“Broussard.” Poole dissera o nome do parceiro agarrando o braço de Angie, os pés agitando-se nervosamente na grama.
Angie olhou para mim.
“Broussard”, repetiu Poole, um horrível som gorgolejante saindo-lhe da garganta, o corpo arqueando-se sobre a grama.
Angie tirou o moletom e o colocou contra o buraco sangrento e escuro no meio do peito de Poole. “Psiu”, fez ela, colocando a mão em seu rosto. “Psiu.”
Quem quer que estivesse atirando nos fundos da casa devia ter um enorme carregador. Ouvi o matraquear da arma durante vinte segundos. Houve uma pequena pausa, depois a coisa recomeçou. Eu não sabia ao certo se era a Calico ou alguma outra arma automática, mas isso não fazia muita diferença. Uma metralhadora é uma metralhadora.
Fechei os olhos por um segundo, engoli em seco e senti a adrenalina me invadir o sangue como um combustível tóxico.
“Patrick”, disse Angie. “Nem pense nisso.”
Eu sabia que se me voltasse para olhar para ela, nunca sairia da grama. Em algum lugar, nos fundos daquela casa, Broussard estava acuado, ou em situação ainda pior. Samuel Pietro podia estar lá dentro, as balas voando em volta de seu corpo como vespas.
“Patrick!”, gritou Angie, mas eu já vencera de um salto os três degraus da varanda, indo parar na fenda para a qual convergiam os dois lados da varanda arruinada.
A maçaneta estourara no ataque contra Poole. Abri a porta com um pontapé e atirei, no nível do peito, na escuridão da sala à minha frente. Girei para a direita, depois para a esquerda, esvaziei o carregador, tirei-o do cabo, encaixei outro enquanto o primeiro caía no chão. A sala estava vazia.
“Precisamos de ajuda imediatamente”, gritava Angie no celular, atrás de mim. “Há um policial ferido! Policial ferido!”
O cinza-escuro do interior da casa combinava com a cor do céu lá fora. Vi um rastro de sangue no chão, deixado por alguém que se arrastara em direção ao corredor. No outro extremo do corredor, a luz se infiltrava pelos buracos da porta de trás. A própria porta pendia para o chão, pois a dobradiça de baixo se soltara do batente.
No meio do corredor, o rastro de sangue entrava à direita e desaparecia na porta da cozinha. Entrei na sala de estar, perscrutei a escuridão, vi os vidros quebrados sob as janelas, as lascas de madeira e a cortina varada pelas balas, um sofá velho soltando o enchimento, coberto de latas de cerveja vazias.
A arma automática emudecera desde que entrei na casa, e por um instante ouvi apenas a chuva caindo na varanda atrás de mim, o tique-taque de um relógio em algum lugar nos fundos da casa e o som de minha própria respiração, curta e entrecortada.
As tábuas do soalho rangeram quando cruzei a sala de estar e segui o rastro de sangue em direção ao corredor. O suor escorria pelo meu rosto e empapava minhas mãos, enquanto meus olhos saltavam da porta no fim do corredor para as outras quatro portas que se alinhavam à minha frente, à direita e à esquerda do corredor estreito. A que estava três metros adiante, à minha direita, era a da cozinha. Pela da esquerda vinha uma luz amarela até o corredor.
Colei-me à parede da direita e fui avançando devagar até conseguir ter uma visão parcial e sofrível da peça que ficava à esquerda. Parecia ser uma espécie de sala de estar. Havia uma cadeira de cada lado de um armário de vinhos embutido na parede. Uma delas era a poltrona reclinável que eu enxergara na penumbra na noite anterior. A outra fazia par com ela. O armário ficava no meio da parede, e suas portas de vidro tinham sido removidas. As prateleiras estavam cheias de jornais e de revistas coloridas, e havia pilhas de revistas no chão junto das cadeiras. Vi dois cinzeiros antigos, de estanho, colocados sobre banquinhos de três pés, ao lado dos braços das poltronas. Num deles havia um cigarro fumado até a metade, ainda aceso. Continuei colado à parede, a arma apontada para o lado direito da sala, procurando sombras em movimento, atento a rangidos nas tábuas do soalho.
Nada.
Avancei dois passos no corredor, colei-me à outra parede e apontei a arma para a cozinha.
O piso de ladrilhos pretos e brancos brilhava com rastros de sangue e vísceras. Marcas de mãos sujas, que adquiriam uma coloração laranja sob a luz forte, manchavam as portas do guarda-louça e da geladeira. Vi uma sombra surgir do lado direito da sala e ouvi uma respiração entrecortada que não era a minha.
Respirei fundo, devagar, fiz uma contagem regressiva a partir de três, atravessei o vestíbulo de um salto e vi que a sala de leitura à minha direita estava vazia. Apontei o cano de minha arma para Leon Trett, que estava sentado no balcão da cozinha, olhos fixos em mim.
Uma das Calico M-110 estava bem no meio do vestíbulo. Ao entrar, num gesto rápido, chutei-a para debaixo da mesa à minha direita.
Um ricto de dor no rosto, Leon mantinha os olhos fixos em mim enquanto eu me aproximava. Ele fizera a barba. O brilho doentio de sua pele flácida, amarelada, dava a impressão de que ela fora esfregada com uma escova de metal e depois untada com óleo, podendo ser descolada dos ossos com a ajuda de uma colher. Sem a barba, seu rosto parecia mais comprido que na noite anterior. As faces eram tão encovadas que a boca formava uma oval permanente.
O braço esquerdo pendia ao longo do corpo, inutilizado, com um buraco no bíceps vertendo sangue. Leon segurava a barriga com o braço direito, tentando evitar que o intestino se derramasse no chão. A calça marrom estava empapada do seu próprio sangue.
“Veio trazer meus carregadores?”, perguntou ele.
Fiz que não com a cabeça.
“Me virei pra arranjar alguns hoje de manhã”, disse ele.
Dei de ombros.
“Quem é você?”, perguntou ele com voz mansa, a sobrancelha direita erguida.
“Deite-se no chão”, eu disse.
Ele resmungou. “Querido, você está vendo que estou segurando minhas tripas? Como posso me mexer sem deixá-las cair?”
“Isso não é problema meu”, respondi. “Deite-se no chão.”
Ele apertou as mandíbulas. “Não.”
“Deite-se no chão, porra!”
“Não”, repetiu ele.
“Leon. Faça o que estou mandando.”
“Foda-se. Atire em mim.”
“Leon...”
Seus olhos voltaram-se apenas por um segundo para a sua esquerda, e suas mandíbulas relaxaram. Ele disse: “Tenha um pouco de piedade, menino. Por favor”.
Vi os olhos dele brilharem novamente, vi o esboço de um sorriso em seus lábios e me joguei no chão no exato momento em que Roberta Trett disparou em minha direção, atingindo a cabeça do próprio marido com uma descarga interminável de sua M-110.
Ela soltou um grito de horror e de surpresa quando o rosto de Leon explodiu como um balão furado por um alfinete. Rolei no chão, deitei-me de costas, disparei um tiro que atingiu seu quadril direito, jogando-a num canto da cozinha.
Ela se virou para mim, a grande massa de cabelos grisalhos caindo-lhe nas faces. Infelizmente ela continuava empunhando a M-110. Seu dedo suado deslizava sem parar pela arma, procurando o gatilho, a mão livre cobrindo o ferimento do quadril, os olhos fixos no corpo decapitado do marido. Vi a boca da arma deslocando-se em minha direção e tive certeza de que a qualquer momento Roberta se recuperaria do choque e acharia o gatilho.
Joguei-me no corredor e rolei para a direita enquanto Roberta fazia um giro completo, a Calico apontada para mim. Levantei-me, corri em direção à porta dos fundos, da qual eu me aproximava rapidamente, quando ouvi Roberta entrando no corredor atrás de mim.
“Você matou o meu Leon, seu filho-da-puta. Você matou o meu Leon!”
Um terremoto pareceu sacudir o corredor quando ela apertou o gatilho.
Sem olhar o que estava fazendo, joguei-me na sala à esquerda e descobri, tarde demais, que não se tratava de uma sala, mas de uma escada.
Minha testa se chocou violentamente contra o sexto ou sétimo degrau, e o impacto de madeira contra osso refluiu pelos meus dentes como uma descarga elétrica. Os passos surdos de Roberta continuavam avançando em direção à escada.
Ela não estava atirando, o que me assustava ainda mais.
Ela sabia que eu estava encurralado.
Subindo desabalado, senti uma dor lancinante quando minha tíbia bateu na quina de um degrau, mas prossegui aos tropeços escada acima. Vi uma porta de metal no topo e pedi a Deus que estivesse aberta.
Roberta chegou ao pé da escada, e eu me lancei rumo à porta, bati no meio dela com a palma da mão e a senti ceder como uma explosão de oxigênio irrompendo de meus pulmões.
Meu peito bateu no chão no momento em que Roberta recomeçou os disparos. Rolei para a esquerda e bati a porta atrás de mim, contra uma chuva de chumbo que martelava o metal feito granizo num teto de flandres. A porta era espessa e pesada como a de um refrigerador industrial ou a de uma caixa-forte, e era munida de grossos ferrolhos, quatro deles com cerca de um metro e meio de altura e quinze centímetros de largura. Fechei-os um após o outro, enquanto as balas continuavam a assobiar e a pipocar do outro lado. A porta era à prova de balas, e os ferrolhos, protegidos por placas de aço, não podiam ser estourados pelas descargas.
“Você matou o meu Leon!”
Os disparos cessaram, e Roberta uivava do outro lado da porta. Eram uivos tão violentos, desvairados e dilacerados, tão reveladores da súbita tomada de consciência da solidão total que senti um aperto no coração.
“Você matou meu Leon! Você o matou! Você vai morrer! Você vai morrer, porra!”
Alguma coisa pesada bateu contra a porta, e logo imaginei que se tratava da própria Roberta Trett lançando nela seu corpanzil, como um aríete, repetidas vezes, uivando, guinchando, gritando o nome do marido e — bam, bam, bam — se jogando contra a única coisa que a separava de mim.
Ainda que ela tivesse perdido a arma e eu ainda estivesse com a minha, eu sabia que ela acabaria comigo com as mãos nuas, independentemente dos tiros que eu disparasse contra ela.
“Leon! Leon!”
Tive a impressão de ouvir o som de sirenes, o chiado de walkie-talkies, o berro de um megafone. Com certeza a polícia estava chegando à casa.
Foi quando me dei conta de que eu não conseguia ouvir nada além de Roberta, e isso porque ela estava do outro lado da porta.
Uma lâmpada de quarenta watts iluminava o cômodo, e quando me voltei e olhei em volta, senti o sangue gelar-me nas veias com a violência de uma barragem que se rompe.
Era um quarto grande que dava para a rua. As janelas estavam vedadas com pranchas de madeira, grossas pranchas escuras embutidas nas esquadrias, e, em cada janela, umas quarenta cabeças chatas de parafusos, olhos de prata cegos olhando arregalados para mim.
O piso era nu, e estava coberto de excremento de ratos. Havia saquinhos de batata frita e de outros salgadinhos espalhados pelos cantos, com restos derramando-se no soalho. Vi três colchões sujos de excremento, de sangue e de sabe Deus mais o que encostados nas paredes. Estas eram forradas de grandes placas de espuma sintética cinza, à prova de som, do tipo que se usa em estúdios de gravação. Só que aquele lugar não era um estúdio de gravação.
Fixadas na parede, hastes de metal serviam de suporte a pequenas argolas das quais pendiam algemas. No canto oeste da sala uma cestinha de metal guardava toda uma variedade de chicotes, açoites, pênis de borracha cravejados de espinhos, tiras de couro. O quarto inteiro cheirava a carne tão aviltada, tão corrompida que com certeza maculava também o coração e envenenava o cérebro.
Roberta parara de bater na porta, mas eu ainda ouvia seus gemidos abafados na escada.
Andei em direção ao extremo leste do quarto, onde, a julgar por uma saliência de gesso e poeira que ainda havia no soalho, tinham derrubado uma parede para ganhar espaço. Um rato gordo, de pêlos eriçados, passou correndo por mim e desapareceu numa fenda na parede.
De arma em punho, avancei pisando em saquinhos de batatas fritas, boletins da associação pedófila NAMBLA e latas de cerveja vazias mofadas na abertura. Revistas impressas em papel lustroso barato jaziam abertas, escancaradas: meninos, meninas, adultos — e até animais — entregues a práticas que pouco tinham a ver com sexo, embora pudessem dar essa impressão. Aquelas fotos me queimaram o cérebro numa fração de segundo, antes que eu pudesse desviar o olhar, e o que elas fixaram no papel nada tinha a ver com interação humana normal, apenas com o câncer — mentes, corações e órgãos cancerosos.
Cheguei perto da abertura na qual o rato desaparecera, um pequeno espaço sob os beirais da casa, de onde o telhado inclinava-se em direção às calhas. Um pouco além, havia uma portinha azul.
Corwin Earle estava diante da porta, o corpo abaixado por causa da inclinação do teto, uma besta na altura do rosto, o cabo encostado no ombro, o olho esquerdo tentando fazer pontaria, piscando por causa do suor. O olho direito, estrábico, procurava fixar-se em mim, mas, cada vez que tentava, girava para a direita como se puxado por uma mola. Ele finalmente o fechou, apoiando de novo o cabo da arma contra o ombro. Corwin estava nu, o peito e a barriga proeminente ensangüentados. Um ar de fracasso e de profundo cansaço marcavam aquele rosto sombrio em ruínas.
“Os Trett não têm coragem de lhe dar uma metralhadora, Corwin?”
Ele fez que não com um leve movimento da cabeça.
“Onde está Samuel Pietro?”, perguntei.
Ele balançou a cabeça novamente, dessa vez mais devagar, e curvou os ombros sob o peso da besta.
Olhei para a ponta da flecha, vi que tremia ligeiramente, notei os tremores que percorriam os braços de Corwin Earle.
“Onde está Samuel Pietro?”, repeti.
Ele balançou a cabeça outra vez, então atirei em sua barriga.
Ele não emitiu nenhum som. Seu corpo dobrou-se na cintura, e ele caiu no chão. Caiu de joelhos, encolheu o corpo em posição fetal, a língua pendurada como a de um cachorro.
Passei por cima dele, abri a porta azul, entrei num banheiro do tamanho de um pequeno closet. Vi a janela vedada com pranchas escuras, uma cortina de banheiro rasgada sob a pia, sangue nos ladrilhos, na privada, tingindo as paredes como se tivesse sido jogado com um balde.
Dentro da pia, uma cuequinha branca de algodão, encharcada de sangue.
Olhei para a banheira.
Nem sei quanto tempo fiquei ali, cabeça baixa, boca entreaberta. Senti um líquido quente escorrer pelo meu rosto, e só depois de uma eternidade a contemplar o corpinho nu encolhido junto ao ralo da banheira, percebi que estava chorando.
Saí do banheiro e vi Corwin Earle de joelhos, braços cruzados sobre o ventre, de costas para mim, tentando se arrastar no soalho apoiando-se nos joelhos.
Postei-me atrás dele e esperei, arma apontada, seu cabelo preto eriçado na linha de mira.
Enquanto se arrastava, ele arquejava, emitindo um uf-uf-uf semelhante ao ruído de um gerador portátil.
Quando alcançou a besta e estendeu a mão para segurar o cabo, eu disse: “Corwin”.
Ele olhou para mim por sobre o ombro, deu com minha arma apontada para ele e fechou os olhos. Voltou então a cabeça, agarrando firmemente a besta com a mão ensangüentada.
Dei-lhe um tiro na nuca e continuei andando, ouvi o ruído da cápsula caindo na madeira do soalho e do corpo de Corwin estatelando-se no chão. Dobrei à esquerda, entrei novamente no quarto e avancei para a porta blindada. Comecei a abrir os ferrolhos um a um.
“Roberta”, chamei. “Você ainda está aí? Está me ouvindo? Agora vou matar você, Roberta.”
Abri o último ferrolho, escancarei a porta e dei de cara com o cano de uma arma.
Remy Broussard abaixou a espingarda. Entre as pernas dele, vi Roberta caída de bruços nos degraus, um buraco vermelho-escuro, do tamanho de um prato, bem no meio das costas.
Broussard apoiou o corpo no corrimão, o suor quente inundava-lhe a fronte.
“Para entrar na casa, tive de arrombar a porta externa do porão”, explicou. “Desculpe por ter demorado tanto.”
Balancei a cabeça.
“Está tudo bem por aqui?”, perguntou ele, respirando fundo e me lançando um olhar sombrio.
“Sim”, respondi, temperando a garganta. “Corwin Earle está morto.”
“Samuel Pietro”, ele arriscou.
Fiz que sim. “Acho que é Samuel Pietro.” Baixei os olhos e vi que minha arma tremia junto com meu braço. Meu corpo era sacudido por uma série de pequenos espasmos. Olhei para Broussard, senti as lágrimas quentes escorrendo-me pelo rosto outra vez. “É duro dizer”, falei, e minha voz fraquejou.
Broussard balançou a cabeça. Notei que ele também estava chorando.
“No porão”, disse ele.
“O quê?”
“Esqueletos. Dois esqueletos. De crianças.”
Não reconheci minha voz quando falei: “Não sei o que dizer”.
“Nem eu”, disse ele.
Ele olhou para o cadáver de Roberta, encostou a espingarda em sua nuca e pôs o dedo no gatilho.
Esperei, achando que ele ia estourar o cérebro dela, espalhando fragmentos por toda a escada.
Um instante depois, ele recolheu a arma e soltou um suspiro. Então levantou o pé, apoiou-o na cabeça de Roberta e delicadamente a empurrou escada abaixo.
E foi com essa cena que os policiais de Quincy depararam nas escadas: o enorme cadáver de Roberta Trett escorregando em sua direção, e dois homens lá no alto chorando como crianças porque até aquele momento ignoravam que o mundo pudesse ser tão cruel.
26
Só vinte horas depois se pôde confirmar que o corpo encontrado na banheira era de fato de Samuel Pietro. Os Trett e Corwin Earle mutilaram de tal forma o rosto do menino que a única identificação segura era o exame da arcada dentária. Gabrielle Pietro estava em estado de choque desde que um repórter do News, informado por um contato seu, ligara para ela antes que a polícia a tivesse procurado e lhe pedira uma declaração sobre a morte de seu filho.
Quando encontrei o corpo, Samuel Pietro estava morto havia quarenta e cinco minutos. O legista constatou que durante as duas semanas em que estivera desaparecido, o menino fora sodomizado várias vezes, chicoteado nas costas, nádegas e pernas. As algemas maltrataram-no tanto que o punho direito ficara com os ossos à mostra. Durante o tempo que durou o seqüestro, ele se alimentara apenas de batatas fritas, salgadinhos industrializados e cerveja.
Menos de uma hora antes de entrarmos na casa dos Trett, Corwin Earle ou um dos Trett, ou talvez os três juntos — quem diabos poderia saber, e, além do mais, que diferença faria? — esfaquearam o coração do menino, depois lhe passaram a faca na garganta, cortando-lhe a carótida.
Passei aquela manhã e a maior parte da tarde em nosso escritório, no alto do campanário da igreja de St. Bartholomew, sentindo a massa do grande edifício à minha volta, as flechas buscando o céu. Olhei pela janela, tentando não pensar. Sentindo uma leve palpitação no peito, a cabeça a latejar, fiquei bebendo xícaras e xícaras de café frio.
O tornozelo de Angie fora engessado no pronto-socorro do New England Medical Center. Naquela manhã ela saíra do apartamento quando eu estava acordando, tomara um táxi e fora consultar seu médico, para que ele examinasse o trabalho do residente e dissesse quando ela poderia tirar o gesso.
Depois de receber de Broussard informações sobre o caso de Samuel Pietro, saí do escritório no campanário, desci as escadas e cheguei à capela. Eu me sentei no primeiro banco, e lá fiquei mergulhado na penumbra, sentindo o aroma remanescente de incenso e dos botões de crisântemos. Contemplei os santos que me olhavam de seus vitrais com olhos brilhantes como pedras preciosas, a luz das pequenas velas votivas refletindo-se na balaustrada de mogno diante do altar, perguntando-me por que se permitira que uma criança vivesse oito anos aqui na Terra, apenas para sofrer o que nela há de mais terrível.
Olhei para o Cristo do vitral, braços abertos acima do tabernáculo de ouro.
“Oito anos”, sussurrei. “Explica-me isso.”
Não posso.
Não podes ou não queres?
Nenhuma resposta. Deus às vezes se fecha em copas, e nessas ocasiões essa pode ser a sua melhor resposta.
Tu pões uma criança neste mundo, lhe dás oito anos de vida. Permites que seja seqüestrada, que passe fome, que seja torturada durante catorze dias — mais de trezentas e trinta horas, dezenove mil e oitocentos longos minutos —, e então, como última imagem, lhe dás a dos rostos daqueles monstros que lhe trespassaram o coração, laceraram-lhe as faces e abriram-lhe a garganta no chão de um banheiro.
Aonde queres chegar?
“E tu?”, perguntei em voz alta, ouvindo em seguida o eco de minha voz nas paredes de pedra.
Silêncio.
“Por quê?”, sussurrei.
Mais silêncio.
“Não existe uma maldita duma resposta, não é?”
Não blasfemes. Estás numa igreja.
Agora eu sabia que a voz em minha cabeça não era de Deus. Era provavelmente de minha mãe, talvez de uma freira já morta, duvido que Deus se preocupasse com detalhes técnicos daquele tipo, quando uma de suas ovelhas passava por tão grande provação.
Mas que sei eu? Talvez Deus, se existisse, fosse tão mesquinho e banal como a maioria de nós.
Se fosse assim, esse não era o Deus que eu gostaria de seguir.
Não obstante, eu continuava sentado no banco, incapaz de me mexer.
Eu acredito em Deus porque... por quê?
O talento — do tipo que Van Gogh ou Michael Jordan, Stephen Hawking ou Dylan Thomas possuem — sempre me pareceu uma prova da existência de Deus. Assim como o amor.
Então, tudo bem, acredito em Ti. Mas não sei bem se gosto de Ti.
Problema teu.
“O que poderia resultar de bom do seqüestro e assassinato de uma criança?”
Não faças perguntas cujas respostas teu cérebro é limitado demais para entender.
Fiquei por algum tempo contemplando o bruxulear das velas, inspirei algumas vezes para me imbuir da serenidade do ambiente, fechei os olhos para desfrutá-la e esperei pela transcendência, por um estado de graça, de paz ou seja lá o que for que as freiras tenham me dito que eu devia esperar quando o mundo ficasse duro demais de agüentar.
Abri os olhos um minuto depois. Essa era provavelmente a razão que me fazia um não-católico: eu não tinha paciência.
A porta de trás do edifício se abriu, e ouvi o ruído das muletas de Angie batendo contra a madeira, seguido de um sonoro “Merda!”. A porta se fechou, e ela apareceu no espaço entre a capela e a escada do campanário. Ela notou a minha presença no momento em que ia voltar-se para a escada. Então girou o corpo penosamente, olhou para mim e sorriu.
Vencendo com esforço os dois degraus acarpetados, Angie desceu para o pavimento da capela, passou pelos confessionários e pela pia batismal. Parou em frente ao meu banco, sentou-se na balaustrada diante do altar e nela encostou as muletas.
“Oi”, disse ela.
“Oi”, respondi.
Ela levantou os olhos para a pintura da Santa Ceia do teto, depois olhou para mim. “Você está dentro da capela, e ela ainda está de pé.”
“Veja só”, eu disse.
Ficamos ali sentados por um instante, sem dizer nada. Angie inclinou a cabeça para trás para observar o teto, perdendo-se na contemplação dos detalhes da moldura no alto da coluna mais próxima.
“Qual o veredicto sobre sua perna?”
“O médico disse que se trata de uma fratura na seção inferior do perônio esquerdo.”
Sorri. “Você tem o maior prazer em dizer isso, não é?”
“Seção inferior do perônio esquerdo?”, disse ela, abrindo um largo sorriso. “Sim. Tenho a impressão de estar num episódio de Plantão Médico. Vou mandar fazer uma análise dos sinais vitais e exames completos de sangue. O mais breve possível.”
“O médico deve ter recomendado que não se apóie nessa perna, não?”
Ela deu de ombros. “Sim, mas isso é o que sempre dizem.”
“Quando você vai poder tirar o gesso?”
“Daqui a três semanas.”
“Não vai poder fazer aeróbica.”
Ela deu de ombros novamente. “Não vou poder fazer um monte de coisas.”
Baixei os olhos para os meus sapatos, depois olhei outra vez para ela.
“Qual é o problema?”, ela perguntou.
“Estou muito mal com essa história de Samuel Pietro. Não consigo parar de pensar nisso. Quando Bubba e eu fomos àquela casa, ele ainda estava vivo. Ele estava lá em cima, e estava... nós...”
“Vocês estavam numa casa com três sujeitos criminosos, paranóicos, armados até os dentes. Vocês não podiam ter...”
“O corpo dele”, eu disse. “Ele...”
“Já se confirmou que o corpo era mesmo de Pietro?”
Fiz que sim. “Era tão pequeno... tão pequeno”, sussurrei. “Estava nu e retalhado e... Meu Deus, meu Deus, meu Deus.” Enxuguei com as costas da mão uma lágrima ardente e inclinei a cabeça para trás.
“Você já conversou com alguém?”, perguntou Angie brandamente.
“Com Broussard.”
“Como ele está se sentindo?”
“Mais ou menos como eu.”
“Alguma notícia de Poole?”, perguntou ela inclinando-se ligeiramente para a frente.
“Ele está mal, Ange. Os médicos acham que ele não vai resistir.”
Ela abaixou a cabeça e ficou balançando no ar a perna sã.
“O que você viu no banheiro, Patrick? Quer dizer... o que você viu exatamente?”
Balancei a cabeça.
“Diga”, pediu ela suavemente. “Eu consigo suportar.”
“Mas eu não”, respondi. “De novo não. De novo não. Quando penso naquilo por um segundo e revejo aquele quarto, tenho vontade de morrer. Não quero carregar isso comigo. Quero morrer para que aquelas imagens desapareçam.”
Angie deslizou o corpo com cuidado até o chão e aproximou-se de mim, apoiando-se no banco. Afastei-me um pouco do lugar onde estava, e ela se sentou ao meu lado. Ela segurou meu rosto entre as mãos, mas eu não conseguia sustentar o seu olhar. Eu sabia que, ao ver o calor e o amor que havia nele, iria me sentir ainda mais conspurcado, mais desorientado.
Ela me beijou a testa, depois as pálpebras, e enquanto as lágrimas secavam em meu rosto, encostou minha cabeça em seu ombro e beijou a minha nuca.
“Não sei o que dizer”, ela sussurrou.
“Não há o que dizer.” Temperei a garganta, enlacei-lhe a cintura e senti seu coração batendo. Ela representava para mim tudo o que havia de mais belo, de mais justo, de mais maravilhoso no mundo. Mesmo assim, eu continuava querendo morrer.
Naquela noite tentamos fazer amor, e no começo foi prazeroso, ou melhor, divertido, por causa das trapalhadas com o gesso e dos risinhos de Angie, provocados pelo excesso de analgésicos. Mas quando estávamos os dois nus, sob a luz da lua que penetrava pela janela de meu quarto, associei a imagem de seu corpo à imagem do cadáver de Samuel Pietro. Afaguei seu peito e vi a barriga balofa de Corwin Earle ensangüentada, passei a língua em suas costelas e me veio à mente a parede do banheiro tingida de sangue, como se tivesse sido jogado com um balde.
De pé diante daquela banheira, entrei em estado de choque. Vi tudo, e foi o bastante para me fazer chorar, mas uma parte do meu cérebro se fechara, num reflexo de autoproteção, e com isso não registrei todo o horror à minha frente. Era uma coisa atroz, sanguinolenta e inconcebível — eu tinha plena consciência disso —, mas as imagens permaneciam isoladas, pairando sobre um oceano de porcelana branca e ladrilhos pretos e brancos.
Nas trinta horas seguintes, meu cérebro juntou todos os fragmentos, e me vi sozinho naquela banheira com o cadáver nu, torturado e aviltado de Samuel Pietro. A porta do banheiro estava fechada, e eu não podia sair.
“Qual o problema?”, perguntou Angie.
Afastei-me dela e olhei a lua pela janela.
Sua mão cálida tocou em minhas costas. “Patrick?”
Um grito sufocou-se em minha garganta.
“Vamos, Patrick, fale comigo.”
O telefone tocou, e eu atendi.
Era Broussard. “Como vai?”
Senti um grande alívio ao som de sua voz, a sensação de que não estava sozinho.
“Muito mal, e você?”
“Estou fodido, se é que me entende.”
“Entendo sim”, eu disse.
“Não consigo nem falar com minha mulher, e olhe que costumo lhe contar tudo.”
“Entendo o que quer dizer.”
“Escute... Patrick, ainda estou aqui no centro. Com uma garrafa. Quer vir tomar um trago comigo?”
“Sim.”
“Estou no parque Ryan. Tudo bem pra você?”
“Claro.”
“Até mais, então.”
Ele desligou, e eu me virei para Angie.
Ela se cobrira com o lençol e esticara o corpo em direção à mesa-de-cabeceira para pegar os cigarros. Angie colocou o cinzeiro no colo, acendeu o cigarro e olhou para mim através da fumaça.
“Era Broussard”, eu disse.
Ela balançou a cabeça e deu mais uma tragada.
“Ele quer conversar.”
“Com nós dois?”
“Só comigo.”
Ela balançou a cabeça outra vez. “Então é melhor ir andando.”
Inclinei-me para ela. “Ange...”
Ela levantou a mão. “Não precisa se desculpar. Pode ir.” Lançou um olhar cobiçoso ao meu corpo nu e sorriu. “Mas primeiro ponha uma roupa.”
Peguei minhas roupas do chão e vesti-as enquanto Angie me observava por trás da fumaça do cigarro.
Quando eu ia saindo do quarto, ela esmagou o cigarro no cinzeiro e disse: “Patrick”.
Pus a cabeça na porta.
“Quando você estiver pronto para conversar, estarei pronta para ouvir. Tudo o que quiser dizer.”
Balancei a cabeça.
“E se você não quiser falar, você é quem sabe. Entendeu?”
Fiz que sim.
Ela recolocou o cinzeiro na mesa-de-cabeceira, e o lençol escorregou, descobrindo a parte superior de seu corpo.
Por um bom tempo, ficamos os dois calados.
“Só para que as coisas fiquem bem claras entre nós”, disse ela finalmente. “Não quero ser como aquelas mulheres de policiais dos filmes.”
“Como assim?”
“Resmungando e pedindo ao marido que fale.”
“Não espero esse tipo de coisa de você.”
“Essas mulheres nunca sabem a hora de ir embora.”
Inclinei-me em direção ao quarto e olhei bem para ela.
Ela ajeitou os travesseiros às suas costas. “Você pode apagar a luz quando sair?”
Apaguei a luz, mas fiquei ali um pouco mais, sentindo os olhos de Angie fitos em mim.
27
O policial que fui encontrar no parque Ryan estava caindo de bêbado. E só ao entrar no parque, quando o vi brincando num balanço de criança, sem gravata, paletó amarrotado por baixo do sobretudo sujo de areia do playground, um sapato desamarrado, me dei conta de que era a primeira vez que o via desalinhado. Mesmo após o episódio das pedreiras, depois de saltar para pendurar-se no trenó de pouso do helicóptero, ele se manteve impecável.
“Você é como Bond”, eu disse.
“Ahn?”
“James Bond”, repeti. “Você é James Bond, Broussard. A perfeição em pessoa.”
Broussard sorriu e terminou de esvaziar uma garrafa de Mount Gay. Ele jogou o casco na areia, tirou outra garrafa cheia do sobretudo, rompeu o lacre e, usando o polegar, jogou a tampa na areia. “Às vezes me pesa ser tão bonito. Eh-eh.”
“Como vai Poole?”
Broussard balançou a cabeça várias vezes. “Tudo na mesma. Ele mal se mantém vivo. Ainda está inconsciente.”
Sentei no balanço ao lado do seu. “E o prognóstico?”
“Não é nada bom. Nas últimas trinta horas ele sofreu vários ataques cardíacos que lhe privaram o cérebro de oxigênio. Segundo os médicos, ainda que sobreviva, vai ficar parcialmente paralisado e com certeza não poderá falar. E nunca mais vai poder sair da cama.”
Lembrei-me da tarde em que conheci Poole, da primeira vez que assisti ao estranho ritual em que ele cheirava um cigarro e em seguida o partia em dois. Lembrei-me de como sorrira maliciosamente diante de minha perplexidade, explicando: “Desculpem, parei de fumar”. E quando Angie lhe perguntou se se incomodava que ela fumasse, ele respondera: “Oh, por Deus, não, ao contrário”.
Merda. Até aquele momento eu não tinha me dado conta do quanto gostava dele.
Agora, não haveria mais Poole. Nem comentários engraçados, pontuados com um brilho irônico no olhar.
“Sinto muito, Broussard.”
“Remy”, corrigiu Broussard, passando-me um copinho de plástico. “A gente nunca sabe. Ele é o sacana mais durão que conheci em minha vida. Tem uma puta vontade de viver. Talvez ele resista a essa. E você?”
“Ahn?”
“Como vai sua vontade de viver?”
Esperei enquanto ele enchia meu copo de rum.
“Já foi maior”, eu disse.
“A minha também. Não entendo isso.”
“Isso o quê?”
Ele levantou a garrafa, brindamos em silêncio e bebemos.
“Não entendo por que o que aconteceu naquela casa me perturbou tanto. Quer dizer, eu já tinha visto muita coisa terrível antes.” Ele inclinou o corpo para a frente no balanço e olhou-me por sobre o ombro. “Coisas pavorosas, Patrick. Bebês tomando drogas na mamadeira, crianças sufocadas, sacudidas até a morte, tendo apanhado tanto que não se podia dizer a cor de sua pele.” Ele balançou a cabeça devagar. “Um monte de merda. Mas alguma coisa naquela casa...”
“Massa crítica”, eu disse.
“Ahn?”
“Massa crítica”, repeti. Tomei mais um gole de rum. Ainda não estava descendo redondo, mas faltava pouco. “Esses horrores todos você foi vendo separadamente. Ontem, nós vimos toda uma série de horrores ao mesmo tempo, que logo atingiram a massa crítica.”
Ele fez que sim. “Nunca vi uma coisa tão pavorosa quanto aquele porão”, disse. “E o menino na banheira?” Broussard balançou a cabeça. “Em quase vinte anos de trabalho eu nunca...” Ele tomou mais um gole, e o álcool o fez estremecer. Ele me deu um leve sorriso. “Sabe o que Roberta estava fazendo quando atirei nela?”
Neguei com a cabeça.
“Arranhando a porta feito um cachorro. Juro por Deus. Arranhando a porta, gemendo e chorando por seu Leon. Eu acabara de sair daquele porão, onde encontrara dois pequenos esqueletos semi-enterrados em calcário e cal — aquele pavoroso porão saído de um filme de terror —, e vi Roberta lá no alto da escada. Cara, nem olhei para ver se ela estava com uma arma. Simplesmente descarreguei a minha.” Ele cuspiu na areia. “Foda-se ela. O inferno é bom demais para aquela piranha.”
Ficamos calados por algum tempo, ouvindo o rangido das correntes dos balanços, o zumbido dos carros passando na avenida, o raspar e o bater dos tacos manipulados pelas crianças que jogavam hóquei no estacionamento de uma fábrica de componentes eletrônicos, do outro lado da rua.
“Os esqueletos...”, murmurei depois de algum tempo.
“Não identificados. A única coisa que o legista pôde constatar é que um é de uma menina, e o outro, de um menino, e que nenhum dos dois tem mais de nove anos nem menos de quatro. Só daqui a uma semana vai ser possível ter mais informações.”
“E os exames das arcadas dentárias?”
“Os Trett deram um jeito nisso. Os exames revelaram a presença de ácido clorídrico em ambos os esqueletos. O legista acha que os Trett cozinharam os corpos das crianças nessa merda, arrancaram os dentes quando eles amoleceram e enterraram os ossos em caixas de cal no porão.”
“Mas por que os deixaram no porão?”
“Talvez para poder contemplá-los?”, disse Broussard, dando de ombros. “Vai saber.”
“Um deles pode ser de Amanda McCready.”
“Exato. A menos que ela esteja nas pedreiras.”
Por um instante, fiquei pensando em Amanda e naquele horrendo porão. Em seus olhos apagados, em seu parco interesse pelas coisas que entusiasmavam as outras crianças, em seu corpinho sem vida mergulhado numa banheira cheia de ácido, os cabelos soltando-se do crânio como papel machê.
“Mundo desgraçado”, murmurou Broussard.
“É isso mesmo, Remy. Este mundo é foda, sabe?”
“Se você me dissesse isso há dois dias, eu ia discordar. Tudo bem, sou um policial, mas tenho motivos para estar contente. Tenho uma mulher maravilhosa, uma bela casa, e soube aplicar meu dinheiro ao longo do tempo. Quando completar vinte anos de serviço, peço minha aposentadoria e largo todo esse horror.” Ele deu de ombros. “Mas aí... meu Deus... aparece uma coisa como aquela criança retalhada na banheira, e a gente começa a pensar: bom, tudo bem, minha vida está ótima, mas para a maioria das pessoas o mundo ainda é um monte de merda. Mesmo que em meu mundinho tudo esteja bem, o mundo é um monte de merda, entende?”
“Tudo”, eu disse. “É isso mesmo.”
“Nada presta.”
“Como assim?”
“Nada presta”, disse ele. “Você não percebe isso? Os carros, as máquinas de lavar, as geladeiras e a primeira casa própria, as merdas dos sapatos e roupas e... nada presta. Nem mesmo as escolas.”
“Pelo menos as públicas”, eu disse.
“Só as públicas? Veja esses imbecis que saem de escolas particulares de hoje em dia. Você já tentou conversar com um desses cretinos revoltados? Você pergunta a eles o que é a moral, eles respondem que é um conceito. Você pergunta o que é honestidade, eles respondem que é uma palavra. Veja esses garotos ricos que, por estarem drogados ou simplesmente porque gostam, matam bêbados no Central Park. As escolas não prestam porque os pais não prestam, porque os seus pais já não prestavam, porque nada presta. Se é assim, por que gastar energia ou dedicar amor a essas coisas, quando a gente sabe que tudo vai dar em nada? Meu Deus, Patrick, nós não prestamos também. O menino estava com eles há duas semanas; ninguém conseguiu encontrá-lo. Ele estava naquela casa, nós suspeitamos disso horas antes de ele ser morto, e nos deixamos ficar numa doceria conversando sobre o caso. Cortaram-lhe a garganta quando já devíamos ter enfiado o pé na porta muito tempo antes.”
“Somos o país mais rico e mais desenvolvido da história da civilização”, eu disse. “Apesar disso, não conseguimos evitar que uma criança seja retalhada numa banheira por três pirados. Por quê?”
“Não sei.” Ele balançou a cabeça e chutou a areia à sua frente. “Simplesmente não sei. Toda vez que a gente aponta uma saída, tem sempre alguém a lhe dizer que você está errado. Você acredita que a pena de morte seja uma solução?”
Estendi-lhe o copo. “Não.”
Ele começou a me servir, mas de repente parou. “O quê?”
Dei de ombros. “Não acho. Desculpe. Mas continue a pôr rum, por favor.”
Ele encheu meu copo e mamou na garrafa por um instante. “Você deu um tiro na nuca de Corwin Earle, e está me dizendo que não acredita em pena de morte?”
“Não acho que a sociedade tenha o direito ou inteligência para isso. Primeiro ela precisa provar ser capaz de pavimentar as ruas eficientemente. Só então vou achar que pode decidir sobre a vida ou a morte dos criminosos.”
“Sim, mas você executou uma pessoa ontem.”
“A rigor, ele estava com uma arma na mão. Além disso, eu não sou a sociedade.”
“Que diabos você quer dizer?”
Dei de ombros. “Confio em mim mesmo. Eu assumo meus atos. Mas não confio na sociedade.”
“É por isso que você virou detetive particular, Patrick? O cavaleiro solitário e toda essa bobagem?”
Fiz que não. “Estou cagando e andando pra isso.”
Ele riu.
“Sou detetive particular porque... não sei, talvez porque seja viciado no grande ‘E agora?’. Talvez eu goste de derrubar fachadas. Isso não faz de mim um cara legal. Só faz de mim um sujeito que odeia gente que dissimula, que finge ser o que não é.”
Ele levantou a garrafa, e eu brindei, batendo de leve nela com meu copo.
“E se alguém finge ser uma coisa por causa das exigências da sociedade, embora seja outra, por causa de suas próprias exigências?”
Balancei a cabeça, tentando dissipar os efeitos do álcool. “Você pode repetir?” Levantei-me e vi que minhas pernas não estavam muito firmes. Andei até o trepa-trepa que ficava em frente aos balanços e me empoleirei numa barra de metal.
“Se a sociedade não presta, como é que nós, que nos consideramos pessoas honradas, devemos viver?”
“Nas margens”, eu disse.
Ele balançou a cabeça. “Exatamente. Não obstante, temos de atuar dentro da sociedade, senão... em que vamos nos transformar? Nuns bostas duns milicianos, caras com roupas militares que reclamam o tempo todo dos impostos enquanto rodam em estradas construídas pelo governo, certo?”
“Acho que sim.”
Ele se levantou, cambaleou um pouco, agarrou-se à corrente do balanço, depois balançou para trás, mergulhando na sombra atrás do arco dos balanços. “Uma vez eu incriminei um sujeito plantando provas em seu carro.”
“Você fez o quê?”
Ele voltou à área iluminada. “É verdade. Era um canalha chamado Carlton Volk. Fazia meses que ele andava violentando prostitutas. Meses. Alguns gigolôs tentaram impedi-lo de fazer isso, mas o tal Volk acabou com eles. Carlton era psicopata, faixa preta de caratê, campeão da sala de musculação da prisão. Não dava para conversar com ele. E nosso amigo Ray Likanski ligou para mim e me deu todos os detalhes da história. Ao que parece, Likanski Magrelo estava apaixonado por uma das prostitutas. Mas pouco importa. O fato é que fiquei sabendo que Carlton Volk andava molestando-as, mas quem iria acusá-lo? Mesmo que uma das moças se dispusesse a testemunhar — o que na verdade nenhuma delas faria —, quem iria acreditar? Para a maioria das pessoas, uma prostituta dizer que foi violentada é uma piada. É como matar um cadáver; uma coisa impossível. Então descobri que, depois de duas condenações, Carlton estava em liberdade condicional; coloquei alguns gramas de heroína e duas armas de fogo não registradas no porta-malas de seu carro, bem debaixo do estepe, para que ele não os visse. Depois troquei o selo de inspeção da placa do carro por outro, já vencido. Quem é que olha a placa do próprio carro, a menos que esteja na época de licenciar?” Por um instante, Broussard entrou novamente na zona de sombra. “Duas semanas depois, pararam o carro de Carlton por causa da plaqueta de inspeção, os policiais revistaram etc. etc. Para encurtar a história, ele pegou vinte anos de cadeia, sem direito a condicional.”
Esperei que ele voltasse à área iluminada para responder.
“Você acha que agiu certo?”
Ele deu de ombros. “Para as prostitutas, sim.”
“Mas...”
“Sempre tem um ‘mas’ quando a gente conta uma história como essa, não é?” Ele suspirou. “Mas um sujeito como Carlton viceja na prisão. Provavelmente ele terá muito mais oportunidades de violentar rapazes presos por roubo ou pequeno tráfico de drogas do que teria com as prostitutas. Sendo assim, será que fiz bem para a população como um todo? Provavelmente não. Será que fiz bem para algumas prostitutas, para quem ninguém liga a mínima? Talvez.”
“Você faria isso novamente?”
“Patrick, deixe eu lhe perguntar uma coisa: o que você faria com um sujeito como Carlton?”
“Voltamos à questão da pena de morte, não é?”
“A questão pessoal”, disse ele. “Não a social. Se eu tivesse peito para matar Volk, ele nunca mais violentaria ninguém. Não dá para relativizar isso. É preto no branco.”
“Mas os rapazes da prisão vão ser violentados por outros.”
Ele fez que sim. “Para cada solução, um problema.”
Tomei mais um gole de rum, vi uma estrela solitária pairando acima das finas nuvens noturnas e do nevoeiro da cidade.
Eu disse: “Quando me vi diante do corpo do menino, alguma coisa se partiu dentro de mim. Não me importava mais o que aconteceria comigo, com a minha vida, com nada”. Levantei as mãos e acrescentei: “Eu só queria...”.
“Ajustar contas.”
Fiz que sim.
“Aí você enfiou uma bala na nuca de um cara que estava de joelhos.”
Confirmei outra vez.
“Ouça, Patrick. Não estou julgando você, cara. Estou dizendo que às vezes a gente age certo, mas nossos argumentos não são válidos no tribunal. Eles não resistiriam ao exame da...”, ele traçou um par de aspas no ar, “ ‘sociedade’.”
Tive a impressão de ouvir o uf-uf-uf ofegante de Corwin Earle, de ver o jato de sangue que lhe jorrou do pescoço, de ouvir o ruído surdo do corpo caindo no chão e da cápsula quicando no piso de madeira.
“Nas mesmas circunstâncias”, eu disse, “eu faria o mesmo.”
“Isso o faria ter razão?”, perguntou Remy Broussard, vindo até mim e colocando mais rum em meu copinho de plástico.
“Não.”
“Tampouco tiraria a sua razão, não é?”
Olhei para ele, sorri e balancei a cabeça. “Também não.”
Ele se encostou no trepa-trepa e bocejou. “Seria muito bom se tivéssemos todas as respostas, não é mesmo?”
Examinei o seu perfil como que gravado contra a escuridão ao meu lado, e senti alguma coisa se mexendo na parte de trás de minha cabeça, picando-me como um pequeno anzol. O que, entre as coisas que ele dissera, estava me incomodando?
Olhei para Remy Broussard e senti que o anzol se entranhava ainda mais em minha cabeça. Vi-o fechar os olhos e, não sei por quê, tive vontade de bater nele.
Em vez disso, falei: “Estou contente”.
“Por quê?”
“Por ter matado Corwin Earle.”
“Eu também. Por ter matado Roberta.” Ele pôs mais rum em meu copo. “Dane-se tudo o mais, Patrick. Estou satisfeito porque nenhum daqueles putos doentes saiu daquela casa vivo. Vamos brindar a isso?”
Olhei para a garrafa, depois para Broussard, examinando o seu rosto para tentar descobrir o que estava me incomodando. E até me assustando. Não pude descobrir em meio à escuridão e ao álcool, então levantei o copo de plástico e brindei com ele batendo de leve na garrafa.
“Que eles sintam na própria carne, por toda a eternidade, o sofrimento que infligiram às suas vítimas”, disse Broussard. Ele ficou erguendo e abaixando as sobrancelhas. “Você não diz amém, cara?”
“Amém, cara.”
28
Por longo tempo deixei-me ficar na penumbra, sentado em minha cama banhada pelo luar, contemplando Angie adormecida. Repassando várias vezes a conversa que tivera com Broussard, tomando golinhos do grande copo de café que comprara num Dunkin’ Donuts a caminho de casa, sorri quando Angie murmurou o nome do cachorro que ela tinha quando criança e deu um tapa no travesseiro.
Talvez a coisa toda tenha sido desencadeada pelo trauma que sofri na casa dos Trett. Talvez tenha sido o rum. Talvez tenha sido apenas o fato de que, quanto mais me resolvo a evitar as coisas dolorosas, mais tendo a me fixar em pequenas coisas, em minúcias, uma frase ou palavra dita ao acaso que fica girando em minha cabeça sem parar. Seja como for, o fato é que naquela noite, no playground, eu descobrira uma verdade e uma mentira. Ao mesmo tempo.
Broussard tinha razão: nada presta.
E eu também: as fachadas, por melhor que tenham sido construídas, acabam caindo.
Angie girou o corpo, deitou-se de costas, soltou um gemido e chutou o lençol enrolado aos seus pés. Deve ter sido esse esforço — de chutar com uma perna engessada — que a fez despertar. Ela piscou os olhos, levantou a cabeça, olhou para o gesso, virou-se e me viu.
“Ei. O que você está...”, disse ela, sentando-se, estalando os lábios e afastando uma mecha de cabelo dos olhos. “O que você está fazendo?”
“Estou sentado aqui”, eu disse. “Pensando.”
“Você está bêbado?”
Levantei o copo de café. “Nem tanto.”
“Então venha deitar-se”, disse ela, estendendo a mão.
“Broussard mentiu para nós.”
Angie se apoiou na mão para encostar-se na cabeceira da cama. “O quê?”
“No ano passado”, eu disse. “Quando Ray Likanski saiu do bar e desapareceu.”
“E então?”
“Broussard disse que mal conhecia o cara. Disse que Poole ocasionalmente usava Ray como informante.”
“Sim, e daí?”
“Esta noite, encharcado de rum, ele disse que Ray trabalhava como informante para ele próprio, Broussard.”
Ela estendeu a mão até a mesa-de-cabeceira e acendeu a luz. “O quê?”
Confirmei com um gesto de cabeça.
“Então... talvez ele tenha cometido um engano no ano passado. Talvez a gente tenha ouvido mal.”
Lancei-lhe um olhar significativo.
Ela levantou a mão, voltando-se para pegar o maço de cigarros na mesa-de-cabeceira. “Você tem razão. Nós nunca ouvimos as coisas errado.”
“Pelo menos não os dois ao mesmo tempo.”
Ela acendeu um cigarro, cobriu a perna com o lençol e coçou a pele acima do gesso. “Por que ele teria mentido?”
Dei de ombros. “Eu estava aqui pensando justamente nisso.”
“Talvez ele quisesse manter sigilo sobre a condição de informante de Ray.”
Bebi um pouco de café. “É possível, mas parece uma coisa muitíssimo conveniente, não? Ray pode ser uma testemunha-chave no caso do desaparecimento de Amanda McCready; e Broussard diz que não o conhece. Isso me parece...”
“Suspeito.”
Fiz que sim. “Um pouco. E tem outra coisa.”
“O quê?”
“Broussard logo vai se aposentar.”
“Logo quando?”
“Não sei bem. Parece que não demora muito. Ele disse que vai se aposentar com vinte anos de serviço. E quando completar esse tempo, ele pendura as chuteiras.”
Ela deu uma tragada e me olhou por sobre a brasa do cigarro. “Bom, então ele vai se aposentar. E o que tem isso?”
“No ano passado, pouco antes de subirmos a pedreira, você fez uma brincadeira com ele.”
Ela bateu no próprio peito. “Eu?”
“Sí. Você disse: ‘Talvez esteja na hora de nos aposentarmos’.”
Os olhos dela brilharam. “Não, eu disse: ‘Talvez esteja na hora de pendurarmos as chuteiras’.”
“E o que ele respondeu?”
Ela inclinou o corpo para a frente, cotovelos apoiados nos joelhos, tentando se lembrar. “Ele disse...” Ela agitou o cigarro no ar várias vezes. “Ele disse que não podia se dar ao luxo de se aposentar. Falou alguma coisa sobre despesas com saúde.”
“Com a mulher dele, não é?”
Ela fez que sim. “Ela sofrera um acidente de carro pouco antes de seu casamento, e não tinha plano de saúde. Por isso ele devia uma boa grana ao hospital.”
“Então o que aconteceu com essas dívidas? Você acha que o pessoal do hospital falou: ‘Você é um cara legal. Esqueça essa dívida’?”
“Improvável.”
“Muitíssimo. Então um policial mente dizendo não conhecer uma figura-chave no caso Amanda McCready, e seis meses depois esse policial tem dinheiro bastante para se aposentar — não o dinheiro que um policial economiza em trinta anos, mas o que ele economiza em vinte.”
Ela ficou mordendo o lábio inferior por um instante. “Me passa uma camiseta?”
Abri a cômoda, peguei uma camiseta verde-escura do grupo Saw Doctors da gaveta e passei a ela. Ela a vestiu, livrou-se dos lençóis, olhou ao redor procurando as muletas. Olhou para mim, viu que eu estava rindo baixinho.
“O que é?”
“Você está muito engraçada.”
Ela fechou a cara. “Como assim?”
“Aí sentada com minha camiseta e a perna engessada”, eu disse, dando de ombros. “Fica engraçado, só isso.”
“Ah”, ela fez. “Ah-ah. Onde estão minhas muletas?”
“Atrás da porta.”
“Você poderia fazer a gentileza...?”
Levei-as para ela. Angie firmou-se nelas com dificuldade, e eu a segui pelo corredor escuro até a cozinha. O mostrador digital do microondas marcava 4h04. Dava para sentir o adiantado da hora em minhas articulações e na nuca, mas não na mente. Quando Broussard mencionou Ray Likanski no playground, senti um estalo no cérebro, ele começou a funcionar a mil, e conversar com Angie só aumentou minha agitação.
Enquanto ela preparava para nós meia cafeteira de café descafeinado e tirava creme da geladeira e açúcar do armário, comecei a repassar a noite na pedreira. Lembrei-me de quando chegamos à conclusão de que Amanda McCready estava perdida para sempre. Eu sabia que muitas das informações que eu tentava lembrar se encontravam no dossiê sobre o caso, mas no momento não estava disposto a relê-las. Repassá-las só nos levaria ao ponto em que nos encontrávamos seis meses antes, ao passo que tentar evocá-las na cozinha poderia nos dar uma nova perspectiva.
O seqüestrador exigira que quatro pessoas levassem o dinheiro de Cheese Olamon para trocá-lo por Amanda McCready. Por que nós quatro? Por que não um só?
Submeti a questão a Angie.
Ela se encostou no forno, cruzou os braços e ficou ali matutando. “Nunca pensei sobre isso. Meu Deus, como pude ser tão estúpida?”
“Você é que está dizendo.”
Ela franziu o cenho. “Você não questionou nada.”
“Eu sei que sou estúpido”, eu disse. “O que estamos tentando saber agora é se você é.”
“Foi feita uma varredura completa nas colinas”, disse ela, “todos os acessos foram fechados, e não se encontrou ninguém.”
“Talvez os seqüestradores soubessem por onde escapar. Talvez tenham comprado alguns policiais.”
“Talvez não houvesse mais ninguém lá, além de nós, naquela noite”, disse ela com um súbito brilho nos olhos.
“Puta que pariu!”
Ela mordeu o lábio inferior, ergueu e abaixou as sobrancelhas várias vezes. “Você acha...?”
“... que Broussard disparou contra nós?”
“Por que não? Dali a gente não podia ver nada. Vimos o clarão na boca das armas. Nós ouvimos Broussard dizer que estavam atirando nele. Mas durante todo aquele tempo nós o vimos?”
“Negativo.”
“Então, fomos levados para lá apenas para confirmar a história dele.”
Recostei-me na cadeira, passei a mão nos cabelos das têmporas. Será que a coisa podia ser tão simples? Ou antes: a coisa podia ser tão tortuosa?
“Você acha que Poole também estava na jogada?”, perguntou Angie, afastando-se do balcão, quando a cafeteira atrás dela começou a lançar vapor.
“Por que você está perguntando isso?”
Ela bateu a caneca de café na própria coxa. “Foi ele quem disse que usava Likanski como informante, e não Broussard. E não se esqueça de que ele era o parceiro de Broussard. Você sabe como a coisa funciona. Quer dizer, pense em Oscar e Devin — eles são mais próximos do que marido e mulher. E muitíssimo mais leais um ao outro.”
Pensei um instante sobre aquilo. “E qual teria sido o papel de Poole nessa história?”
Ela se serviu de café enquanto a máquina ainda estava passando o pó. Algumas gotas escuras caíram na chapa quente e ficaram chiando. “Sabe o que estava me incomodando”, perguntou, enquanto punha café na xícara, “durante todos esses meses?”
“Diga.”
“A mochila vazia. Quer dizer... Imagine que você é o seqüestrador. Você encurrala um policial ao pé de um rochedo e se aproxima dele para tomar o dinheiro.”
“Certo. E daí?”
“Aí você pára para abrir a mochila e tirar o dinheiro? Por que não pega a mochila simplesmente?”
“Não sei. De qualquer forma, que diferença isso faz?”
“Não muita”, disse ela, afastando-se do balcão e me encarando. “A menos que a mochila já estivesse vazia.”
“Eu vi a mochila quando Doyle a deixou com Broussard. Estava inchada de tanto dinheiro.”
“E quando nós chegamos à pedreira?”
“Ele tirou o dinheiro enquanto subíamos a colina? Como?”
Ela franziu os lábios e balançou a cabeça. “Não sei.”
Levantei-me da cadeira, peguei uma xícara no guarda-louça. Ela escorregou de minha mão, resvalou na quina do balcão e caiu no chão. Deixei-a lá.
“Poole”, eu disse. “Aquele filho-da-puta. Foi Poole. Quando ele teve o ataque do coração, ou seja lá o que for, caiu em cima da mochila. Antes de seguirmos em frente, Broussard tirou a mochila de sob o corpo dele.”
“Aí Poole desceu a colina”, Angie apressou-se em completar, “e passou a mochila a uma terceira pessoa.” Ela parou um instante. “Ele matou Mullen e Gutierrez?”
“Você acha que eles colocaram outra mochila junto da árvore?”
“Não sei.”
Eu também não sabia. Eu podia admitir que Poole garfara os duzentos mil dólares do resgate. Mas daí a executar Mullen e Gutierrez era uma grande distância.
“Estamos de acordo quanto ao fato de haver uma terceira pessoa.”
“Provavelmente. Alguém tinha de levar o dinheiro dali.”
“Então quem teria sido?”
Ela deu de ombros. “A mulher misteriosa que ligou para Lionel?”
“Possivelmente.” Peguei a xícara de café do chão. Ela não se quebrara. Depois de examiná-la para ver se havia algum fragmento, enchi-a de café.
“Meu Deus”, disse Angie, com uma risadinha. “Mas isso é uma loucura!”
“O quê?”
“Essa história toda. Quer dizer.. você atentou para o que estávamos dizendo? Broussard e Poole teriam bolado todo esse esquema? Por quê?”
“Por causa do dinheiro.”
“Você acha que, por causa de duzentos mil, caras como Poole e Broussard seriam capazes de matar Amanda McCready?”
“Não.”
“Então por quê?”
Tentei achar uma resposta, mas não me ocorreu nada.
“Responda francamente, Patrick: você acha que eles seriam capazes de matar Amanda McCready?”
“As pessoas são capazes de tudo.”
“Sim, mas certas pessoas são definitivamente incapazes de fazer determinadas coisas. Aqueles dois? Matar uma criança?”
Lembrei-me da expressão de Broussard e da voz de Poole quando este nos contou da criança achada no cimento ainda mole. Eles podiam ser grandes atores, mas, supondo-se que os dois fossem tão indiferentes à morte de uma criança quanto à de uma formiga, aquelas interpretações eram dignas de De Niro.
“Hum...”, eu fiz.
“Eu sei o que isso significa.”
“O quê?”
“Esse seu ‘hum’ significa que você está absolutamente perplexo.”
Fiz que sim. “Estou absolutamente perplexo.”
“Bem-vindo ao clube.”
Tomei um pouco de café. Caso um décimo do que estávamos imaginando fosse verdade, um puta dum crime tinha sido cometido sob os nossos olhos. Não perto de nós. Não no mesmo bairro. Nós estávamos ajoelhados ao lado dos criminosos. Eles estavam bem debaixo do nosso nariz.
Eu já contei que trabalhamos como detetives particulares?
Bubba veio ao meu apartamento pouco depois do amanhecer.
Ele estava sentado com as pernas cruzadas no chão da sala de estar, assinando o gesso de Angie com uma caneta hidrográfica preta. Em seus enormes garranchos de quem fugiu da escola, ele escreveu:
Angie
Quebrou uma perna. Que pena. Ou duas. Ah-ah.
Ruprecht Rogowski
Angie tocou no rosto dele. “Oh... Você assinou ‘Ruprecht’, que amor.”
Bubba corou, bateu na mão dela e me lançou um olhar sombrio. “O que foi?”
“Ruprecht”, eu disse, rindo. “Eu quase tinha esquecido.”
Bubba levantou-se, e sua sombra se estendeu sobre todo o meu corpo e boa parte da parede. Ele esfregou o queixo e deu um riso crispado. “Lembra a primeira vez que eu lhe dei uma porrada, Patrick?”
Engoli em seco. “Foi no primeiro ano.”
“Você lembra o motivo?”
Dei uma tossidinha. “Porque tirei sarro do seu nome.”
Bubba inclinou o corpo sobre mim. “Quer experimentar outra vez?”
“Ah, não...”, respondi, girando o corpo e acrescentando: “Ruprecht”.
Com um salto, fugi do bote de Bubba, e Angie disse: “Rapazes! Rapazes!”.
Bubba estacou e, durante essa trégua, passei para o outro lado da mesinha de centro.
“Será que a gente pode tratar do assunto que nos interessa?”, perguntou ela, abrindo no colo o caderno de anotações e tirando a tampa da caneta com os dentes. “Bubba, você pode bater em Patrick outra hora.”
Bubba pensou um pouco na sugestão. “Isso é verdade.”
“Tudo bem”, disse Angie, pondo-se a rabiscar no caderno, depois de me lançar um olhar duro.
“Ei”, disse Bubba, apontando para o gesso. “Como você faz para tomar banho com esse troço?”
Angie soltou um suspiro. “O que você descobriu?”
Bubba sentou-se no sofá e apoiou as botas de soldado em cima da mesinha de centro, coisa que normalmente não admito, mas eu já estava pisando em ovos com ele por causa do nome Ruprecht, então deixei pra lá.
“O que descobri, com o que restou do bando de Cheese, é que Mullen e Gutierrez não sabiam nada da criança desaparecida. Até onde sei, eles foram para Quincy naquela noite para se abastecer.”
“Abastecer de quê?”, perguntou Angie.
“Daquilo de que os traficantes normalmente se abastecem: drogas. Corria o boato de que, depois de uma tremenda seca, o mercado ia ser inundado de heroína.” Ele deu de ombros. “Isso não aconteceu.”
“Tem certeza?”, perguntei.
“Não”, disse ele devagar, como se falasse com um menino retardado. “Falei com alguns caras do bando de Olamon, e todos disseram que Mullen e Gutierrez nunca falaram em levar criança nenhuma às pedreiras. E ninguém do bando de Cheese viu criança nenhuma no pedaço. Portanto, se Mullen e Gutierrez estavam com ela, a parada era só deles. E se eles foram a Quincy naquela noite para se livrar da menina, o problema também era só deles.”
Ele olhou para Angie e apontou o polegar para mim. “Você não acha que ele já foi mais esperto?”
Ela sorriu. “Acho que ele atingiu seu ponto máximo no curso secundário.”
“Outra coisa”, disse Bubba. “Não consigo entender por que simplesmente não me mataram naquela noite.”
“Eu também não”, eu disse.
“Todos do bando de Cheese me juraram de pés juntos que não têm nada a ver com a agressão que sofri. Eu acredito neles. Eles têm medo de mim. Mais cedo ou mais tarde, se algum deles estivesse envolvido, teria falado.”
“Então a pessoa que pegou você...”
“Com certeza não é uma pessoa que costuma matar...” Ele deu de ombros. “Bom, é só um palpite.”
O telefone tocou na cozinha.
“Quem será que está ligando pra cá às sete da manhã?”, resmunguei.
“Com certeza ninguém que conheça nossos hábitos de sono”, disse Angie.
Fui até a cozinha e peguei o telefone.
“Oi, cara.” Era Broussard.
“Oi”, eu disse. “Sabe que horas são?”
“Sei, desculpe por ligar a esta hora. Preciso de um favor. Um grande favor.”
“O que é?”
“Um de meus rapazes quebrou o braço tentando pegar um suspeito na noite passada, e agora estamos com um jogador a menos para o jogo.”
“Que jogo?”, perguntei.
“De futebol americano”, disse ele. “Roubos e Homicídios contra Entorpecentes, Costumes e BPC. Posso ter sido rebaixado a administrador da frota de viaturas, mas continuo jogando no time da Entorpecentes, Costumes e BPC.”
“E o que eu tenho com isso?”, perguntei.
“Preciso de um jogador.”
Soltei uma tal gargalhada que Bubba e Angie voltaram a cabeça na sala de estar e me olharam por sobre os ombros.
“É tão engraçado assim?”, perguntou Broussard.
“Remy”, eu disse. “Sou branco e já passei dos trinta. Tenho uma lesão permanente no nervo de uma mão, e não jogo futebol desde que tinha quinze anos.”
“Oscar Lee me disse que você fazia atletismo e jogava beisebol na faculdade.”
“Para custear meus estudos. Mas nos dois casos, sempre fiquei no segundo time.” Balancei a cabeça e ri. “Procure outro. Sinto muito.”
“Não tenho tempo. O jogo é às três horas. Vamos, cara. Por favor. Estou lhe pedindo. Preciso de alguém capaz de enfiar a bola debaixo do braço e correr uns poucos metros, pra jogar na defesa. Deixe de história. Oscar diz que você é um dos brancos mais rápidos que ele conhece.”
“Pelo jeito, Oscar vai estar lá também.”
“Ah, sim. Jogando contra nós, naturalmente.”
“E Devin?”
“Amronklin?”, disse Broussard. “É o treinador deles. Por favor, Patrick. Se você não nos ajudar, estamos fritos.”
Lancei um olhar à sala de estar. Bubba e Angie olhavam para mim perplexos.
“Onde vai ser o jogo?”
“No Harvard Stadium. Às três da tarde.”
Fiquei calado por um instante.
“Escute, cara, se é que isso ajuda, vou jogar recuado, armando o jogo pra você e cuidando pra que você saia sem um arranhão.”
“Três horas”, eu disse.
“Harvard Stadium. Nos vemos lá.”
Ele desligou.
Liguei imediatamente para Oscar.
Ele só conseguiu parar de rir depois de um minuto. “Ele engoliu essa?”, disse finalmente.
“Engoliu o quê?”
“Essa história que eu inventei sobre você ser veloz”, disse ele às gargalhadas, e depois teve um acesso de tosse.
“Qual é a graça?”
“Puxa!”, disse Oscar. “Puxa! Ele vai pôr você pra jogar na defesa?”
“Foi isso o que ele disse.
Oscar riu mais um pouco.
“Qual é a graça?”, perguntei.
“A graça”, disse Oscar, “é que é melhor você manter distância do lado esquerdo.”
“Por quê?”
“Porque vou começar a atacar pela esquerda.”
Fechei os olhos e encostei a cabeça na geladeira. De todos os objetos da cozinha, a geladeira era o mais adequado a isso, numa situação como aquela. Ela era mais ou menos da mesma altura, forma e peso de Oscar.
“A gente se vê no campo.” Oscar me deu umas boas vaias, depois desligou.
A caminho do meu quarto, passei pela sala.
“Para onde você está indo?”, perguntou Angie.
“Para a cama.”
“Por quê?”
“Tenho um grande jogo à tarde.”
“Que tipo de jogo?”, perguntou Bubba.
“Futebol americano.”
“O quê?”, perguntou Angie, perplexa.
“Foi isso mesmo que você ouviu”, respondi. Fui para o quarto e fechei a porta atrás de mim.
Eles ainda estavam rindo quando caí no sono.
29
Parecia que todos os caras das delegacias de Entorpecentes, Costumes e da BPC se chamavam John. Havia John Ives, John Vreeman e John Pasquale. Um dos zagueiros era John Lawn, e um dos armadores chamava-se John Coltraine, mas todos o conheciam como Jazz. Johnny Davis, da Entorpecentes, um sujeito alto, magro e com cara de bebê, jogava no ataque e na defesa. John Corkery, chefe da ronda noturna do 16º Distrito, o único cara, além de mim, que não pertencia aos quadros das delegacias de Entorpecentes, de Costumes e da BPC, era o treinador. Fora isso, um terço dos Johns tinha irmãos na mesma equipe; John Pasquale, por exemplo, jogava no ataque, e seu irmão Vic, como armador. John Vreeman jogava na esquerda, e seu irmão Mel, na direita. John Lawn era considerado um excelente zagueiro, mas ficava o tempo todo passando a bola para o irmão, Mike, por isso era alvo de zombarias.
Depois de dez minutos, desisti de chamar as pessoas pelo nome e passei a chamar todo mundo de John, até que alguém me corrigisse.
Os demais jogadores do time dos Justiceiros, como eles chamavam a si mesmos, embora com outros nomes, tinham todos a mesma aparência, independentemente da estatura ou da cor da pele. Era o jeitão de policial, a maneira de andar ao mesmo tempo relaxada e cautelosa, o brilho desafiador nos olhos, mesmo quando sorriam, a sensação que davam de que podiam passar de amigos a inimigos numa fração de segundo. Pouco importa de que maneira, o fato é que uma vez tomada a decisão quanto a isso, eles começavam imediatamente a agir de acordo com ela.
Conheci inúmeros policiais, andei muito com eles, bebi com eles, cheguei a considerar alguns como amigos. Mas mesmo quando tinha amizade com algum deles, era uma amizade diferente da que temos entre civis. Nunca me senti completamente à vontade com policiais, nunca tive muita certeza do que estavam pensando. Os policiais estão sempre escondendo alguma coisa, exceto, imagino, quando estão entre seus pares.
Broussard bateu a mão em meu ombro e me apresentou ao pessoal do time. Troquei apertos de mão com vários deles, recebi alguns sorrisos e rápidos acenos com a cabeça, um “Bom trabalho com o tal de Corwin Earle, Kenzie”, e então todos nos aglomeramos em volta de John Corkery, enquanto ele nos explicava a estratégia do jogo.
Na verdade, não era bem uma estratégia. Em resumo, ele disse que o pessoal da Roubos e Homicídios não passava de um bando de maricas e que nós devíamos jogar essa partida na intenção de Poole, que pelo visto só teria alguma chance de sair da UTI vivo se déssemos uma surra no adversário. Se perdêssemos, a morte de Poole iria pesar em nossa consciência.
Enquanto Corkery falava, olhei para os jogadores do time adversário, que estavam do outro lado do campo. Oscar viu que eu estava olhando e acenou animadamente, abrindo um enorme sorriso carniceiro, do tamanho do Merrimack Valley. Devin cruzou o olhar com o meu e também sorriu, cutucou um monstro ao lado dele, com cara de pequinês, e apontou para mim. O monstro balançou a cabeça. Os demais integrantes da Roubos e Homicídios não eram tão altos quanto os do nosso time, mas pareciam mais vivos e ágeis, e tinham aquela espécie de magreza que lembra mais o vigor físico que a delicadeza.
“Cem paus para quem puser o primeiro deles fora de campo”, disse Corkery, batendo uma mão contra a outra. “Vamos cair matando nos filhos-da-puta.”
Aquilo devia funcionar como a chave de ouro de seu discurso encorajador, porque os jogadores, até então curvados para a frente, endireitaram o corpo, trocaram tapinhas e bateram as mãos.
“Onde estão os capacetes?”, perguntei a Broussard.
Um dos Johns ouviu o que eu disse, bateu nas costas de Broussard e comentou: “Esse cara é muito engraçado, Broussard. Onde você o achou?”.
“Sem capacetes”, eu disse.
Broussard confirmou com um gesto de cabeça. “É um jogo maneiro. Nada de jogo pesado.”
“Deus tá vendo”, eu disse. “Claro.”
A Roubos e Homicídios, ou os Batedores, como eles chamavam a si mesmos, ganhou no cara-ou-coroa e escolheu jogar na ofensiva. Enquanto tomávamos posição, Broussard apontou para um negro magro dos Batedores e falou: “Aquele é Jimmy Paxton. Você tem de grudar nele feito um carrapato”.
O centroavante dos Batedores jogou a bola entre as pernas, o zagueiro recuou três passos, jogou a bola sobre a minha cabeça, e Jimmy Paxton a pegou na altura da linha 25. Não tenho idéia de como Paxton passou por mim, muito menos de como chegou à linha 25, mas pulei de qualquer jeito e consegui tocar em seu tornozelo na linha 29, e as duas equipes se deslocaram para a linha de confronto.
“Eu disse como um carrapato”, falou Broussard. “Você ouviu isso?”
Seu olhar era de pura raiva. Então ele sorriu, e pensei em quanto aquele sorriso lhe fora útil pela vida afora. Era aquele sorriso bom, jovial, americano e puro.
“Vou tentar melhorar”, eu disse.
Os Batedores se dispersaram, e eu vi Devin trocar um aceno com Jimmy Paxton na linha lateral.
“Eles agora vão vir pra cima de mim novamente”, eu disse a Broussard.
John Pasquale, o zagueiro, disse: “Você precisa melhorar, hein?”.
Os Batedores lançaram a bola, Jimmy Paxton correu para a linha lateral, e eu atrás dele. A certa altura, ele me lançou um olhar rápido e ergueu o corpo no ar dizendo: “Tchau, branquelo”. Saltei junto com ele, girei o corpo, estiquei o braço, dei um soco no ar, toquei na bola e joguei-a para fora do campo.
Jimmy Paxton e eu caímos pesadamente no chão. Aquele, pensei, era apenas o primeiro de uma série de impactos que com certeza me obrigariam a ficar na cama durante todo o dia seguinte.
Levantei-me primeiro e estendi a mão a Paxton. “Pensei que você estava indo a algum lugar.”
Ele sorriu e aceitou a minha ajuda. “Continue falando, branquelo. Você já está ficando sem fôlego.”
Enquanto andávamos em direção à linha de confronto, eu disse: “Só pra que você não continue a me chamar de branquelo e eu não seja obrigado a chamá-lo de neguinho, abrindo um conflito racial em Harvard, eu me chamo Patrick”.
Ele bateu em minha mão. “Jimmy Paxton.”
“Prazer em conhecê-lo, Jimmy.”
Devin lançou a bola em minha direção outra vez, e outra vez desviei a bola das mãos de Jimmy Paxton.
“Que bando de brutamontes essa sua equipe, Patrick”, disse Jimmy Paxton enquanto andávamos para a linha de confronto.
Concordei com um gesto de cabeça. “Eles acham que vocês são uns maricas.”
Jimmy balançou a cabeça. “Não somos maricas, mas também não somos um bando de caubóis furiosos como aqueles loucos. Entorpecentes, Costumes e BPC.” Ele soltou um assobio. “Quando se arromba uma porta, são os primeiros a entrar, porque adoram a porra.”
“A porra?”
“A ação, o orgasmo. Com esses caras, nada de preliminares. Eles vão logo botando pra quebrar, entende?”
No lance seguinte, Oscar tomou posição na retaguarda, pôs três jogadores em linha, permitindo que o running back avançasse por uma abertura do tamanho do pátio do meu edifício. Mas um dos Johns — Pasquale ou Vreeman, àquela altura eu já estava confundindo tudo — pegou o ball carrier pelo braço na linha 36, e os Batedores optaram por chutar a bola para o alto.
Cinco minutos depois, começou a chover, e o resto do primeiro tempo se transformou numa confusão no estilo Marty Schottenheimer e Bill Parcells. Tropeçando, escorregando e deslizando na lama, nenhum time conseguiu fazer grande coisa. Jogando como running back, ganhei umas doze jardas, quatro vezes com a bola na mão; jogando na retaguarda, fui esmagado duas vezes por Jimmy Paxton, mas consegui desarmar duas bombas e fiz uma marcação tão cerrada que o zagueiro preferiu lançar a bola para outros jogadores.
No final do primeiro tempo, o placar ainda marcava zero a zero, mas estávamos pressionando o adversário. Estávamos no campo de defesa dos Batedores na segunda vez que a bola foi posta em jogo, faltando apenas vinte segundos para o fim da primeira etapa; os Justiceiros mudaram de estratégia, e John Lawn lançou a bola para mim; vi uma imensa abertura na minha frente, sem nada mais adiante senão o gramado verde, contornei um zagueiro, entrei na abertura, enfiei a bola embaixo do braço, abaixei a cabeça, e então Oscar apareceu do nada, o hálito formando nuvenzinhas sob a chuva fria, e se chocou contra mim com tal força que tive a impressão de trombar com um 747.
Quando me levantei, o primeiro tempo já tinha acabado, e meu rosto estava sujo de lama. Oscar se inclinou sobre mim, estendeu as suas mãozorras e me ajudou a levantar, dando risadinhas.
“Você vai vomitar?”
“Estou pensando no caso”, respondi.
Ele me deu um tapinha amistoso nas costas que quase me jogou de cara na lama outra vez.
“Pelo menos você tentou”, disse ele, voltando ao banco dos jogadores.
“Cadê o jogo maneiro?”, perguntei a Remy nas laterais, quando a equipe dos Justiceiros abriu uma caixa cheia de cerveja e soda.
“Quando alguém faz o que o sargento Lee fez, as regras vão pro espaço.”
“Quer dizer que vamos ter capacetes no segundo tempo?”
Ele balançou a cabeça e tirou uma cerveja da caixa. “Nada de capacetes. Mas vamos jogar mais duro.”
“Já houve alguma morte num desses jogos?”
Ele sorriu. “Ainda não. Mas pode ser que aconteça. Vai uma cerveja?”
Balancei a cabeça, esperando que ela parasse de zumbir. “Vou tomar água.”
Ele me passou uma garrafa de Poland Spring, pôs a mão em meu ombro e foi me levando ao longo da linha lateral. Parou alguns metros mais adiante, longe dos outros jogadores. Nas arquibancadas, tinham se aglomerado algumas pessoas — corredores, em sua maioria — que depararam com aquela partida quando se preparavam para fazer o aquecimento subindo os degraus. Havia um sujeito sentado sozinho num canto, as pernas compridas apoiadas no alambrado, boné de beisebol cobrindo-lhe os olhos.
“Na noite passada...”, disse Broussard, deixando as três palavras suspensas na chuva.
Tomei um pouco de água.
“Eu disse umas coisas que não devia ter dito. Muito rum, minha cabeça não estava boa.”
Contemplei por um instante a fileira de grandes colunas gregas que se erguiam para além das arquibancadas. “Que coisas?”
Ele parou à minha frente, os olhos brilhantes, febris. “Não tente fazer esse jogo comigo, Kenzie.”
“Patrick”, eu disse, dando um passo para a direita.
Ele me acompanhou, o nariz a poucos centímetros do meu, os olhos inquietos e brilhantes. “Nós dois sabemos que deixei escapar uma coisa que não devia. Vamos deixar tudo como está e fingir que não houve nada.”
Dei-lhe um sorriso amistoso, perplexo. “Não sei do que você está falando, Remy.”
Ele balançou a cabeça devagar. “Não tente continuar nesse jogo, Kenzie. Entendeu?”
“Não, eu...”
Não vi sua mão se mexendo, mas senti um súbito calor em minhas falanges, e de repente minha garrafa de água estava caída no chão, derramando o conteúdo na lama.
“Esqueça a noite passada, e continuaremos amigos.” Os olhos já não estavam inquietos, mas o brilho se tornara mais intenso, como se houvesse brasas dentro das pupilas.
Olhei para a garrafa de água que afundava na lama. “E se eu não quiser esquecer?”
“Você tem todo o interesse em excluir a possibilidade desse ‘se’.” Ele inclinou a cabeça, fitou meus olhos como se visse neles algo que talvez devesse ser extirpado, talvez não; ele ainda não tinha certeza. “Estamos entendidos?”
“Sim, Remy”, eu disse. “Estamos entendidos. Claro.”
Ele sustentou meu olhar por um bom tempo, respirando ruidosamente pelas narinas. Por fim, levou a cerveja aos lábios e tomou um longo gole da lata.
“Agente Broussard”, corrigiu ele, entrando em seguida no campo.
O segundo tempo do jogo foi uma verdadeira guerra.
A chuva, a lama e o cheiro de sangue despertaram os instintos assassinos de ambos os times; e na carnificina que se seguiu, três Batedores e dois Justiceiros saíram de campo definitivamente. Um deles — Mike Lawn — teve de sair carregado, depois que Oscar e um detetive da Delegacia de Roubos chamado Zeke Monfriez se chocaram com o corpo dele, cada um de um lado, e quase o partiram em dois.
Eu sofrera contusões em duas costelas e um forte golpe na altura dos rins, que certamente me faria urinar sangue na manhã seguinte, mas em vista daquelas caras ensangüentadas, dos narizes arrebentados e de um sujeito cuspindo dois dentes logo de saída, podia me considerar um sujeito de muita sorte.
Broussard passou a jogar recuado e não se aproximou mais de mim até o fim do jogo. Ele sofreu um corte no lábio inferior em uma das jogadas, mas dois lances depois ele estendeu o braço no momento em que o responsável por seu ferimento se precipitava em sua direção, atingindo-lhe a garganta com tamanha violência que o sujeito ficou caído no campo tossindo e vomitando por um minuto, ao cabo do qual conseguiu equilibrar-se nas pernas, mas tão precariamente que lembrava a quilha de uma escuna sacudindo em alto-mar. Depois de tê-lo derrubado, Broussard ainda lhe deu de quebra uns bons pontapés, e os Batedores ficaram mordidos. Broussard se colocou por trás de uma barreira de seus próprios homens, enquanto Oscar e Zeke tentavam agarrá-lo, chamando-o de sacana filho-da-puta. A certa altura seu olhar cruzou com o meu, e ele deu um riso radiante de menino de três anos.
Ele ergueu um dedo sujo de sangue coagulado e o apontou para mim.
Ganhamos com três pontos de vantagem.
Para alguém que, como eu, à semelhança de todo jovem americano, cresceu sonhando em ser um atleta e ainda continua a desmarcar a maioria dos compromissos para as tardes de domingo no outono, era de esperar que estivesse vibrando depois daquela que devia ser a minha última experiência num esporte disputado em equipe. Eu devia sentir o êxtase da vitória, a intensidade viril do combate. Eu devia estar sentindo vontade de gritar, olhos cheios de lágrimas, vendo-me no meio-de-campo do primeiro estádio de futebol americano construído neste país, olhando as colunas gregas, enquanto a chuva caía sobre os bancos das arquibancadas, sentindo o último aroma hibernal morrendo na chuva de abril, o odor metálico da própria chuva, o avanço inelutável do crepúsculo no frio céu púrpura.
Mas eu não sentia nada disso.
Eu sentia como se não passássemos de um bando de homens bobos e patéticos, inconformados com o fato de estarmos envelhecendo, dispostos a quebrar ossos e rasgar a carne de outros homens só para poder lançar uma bola marrom alguns metros, pés ou polegadas mais adiante, no campo de futebol.
Além disso, olhando Remy Broussard na lateral, derramando cerveja no dedo ensangüentado, banhando com ela o lábio cortado e batendo a mão contra as mãos dos camaradas que vinham felicitá-lo, eu senti medo.
“Falem-me dele”, pedi a Devin e Oscar, que estavam encostados no balcão do bar, ao meu lado.
“De Broussard?”
“Sim.”
Ambos os times tinham combinado de fazer uma comemoração num bar da Western Avenue, em Allston, a uns oitocentos metros do estádio. O bar chamava-se Boyne, nome de um rio da Irlanda que serpenteava por entre a aldeia em que minha mãe cresceu, perdeu o pai, que trabalhava como pescador, e dois irmãos, vítimas da letal combinação de dois líquidos: uísque e mar.
Era iluminado demais para um bar irlandês, e a luminosidade era acentuada pelas mesas de madeira clara, pelas cabines bege-claras e pelo balcão lustroso, também de madeira clara. Quase todos os bares irlandeses, mergulhados na penumbra, davam preferência ao mogno, ao carvalho e aos soalhos escuros; sempre achei que se devia à escuridão a atmosfera aconchegante que minha raça acha indispensável para beber o enorme volume de álcool que bebemos.
No ambiente excessivamente iluminado do Boyne, podia-se perceber o quanto a batalha que acabáramos de travar no campo se prolongava no bar. Os caras da Roubos e Homicídios concentraram-se no balcão e nas mesinhas diante dele. Os integrantes da Entorpecentes, Costumes e BPC ocuparam o fundo do bar, recostando o corpo no encosto das cabines, ou formaram pequenos grupos junto ao minúsculo palco próximo à saída de emergência, falando tão alto que a banda irlandesa de apenas três integrantes parou de tocar depois da quarta música.
Não tenho idéia do que a gerência achava daqueles cinqüenta homens ensangüentados que invadiram o bar, àquela altura com poucos clientes. Não sei se dispunha de uma equipe de leões-de-chácara de reserva, esperando na cozinha, e de comunicação direta com a polícia de Brighton, mas o certo é que estavam faturando bem, servindo sem parar cerveja e inúmeras doses de outras bebidas, tentando dar conta dos pedidos do fundo do bar, mandando empregados para o meio do salão, a fim de recolher as garrafas quebradas e os cinzeiros virados.
Broussard e John Corkery se instalaram no fundo, suas vozes elevando-se em brindes ruidosos às proezas dos Justiceiros, enquanto Broussard encostava ora uma garrafa de cerveja gelada, ora um guardanapo no lábio cortado.
“Pensei que vocês eram chegados”, disse Oscar. “Que aconteceu? Suas mães proibiram vocês de brincar juntos, ou houve alguma briga?”
“Foi o lance das mães”, respondi.
“É um grande policial”, disse Devin. “Um pouco exibicionista, mas todos os caras da Entorpecentes e da Costumes são.”
“Mas Broussard é da BPC. Diabos, nem isso ele é mais. Ele agora está no controle da frota de viaturas.”
“Ele era novato na BPC”, disse Devin. “Estava lá havia apenas dois anos. Antes disso ele passou uns cinco anos na Costumes e cinco na Entorpecentes.”
“Foi mais do que isso”, disse Oscar, soltando um arroto. “Saímos da Escola de Polícia na mesma época, passamos um ano usando uniforme, então ele ingressou na Costumes, e eu, na Crimes Hediondos. Isso foi em 1983.”
Remy voltou a cabeça no momento em que dois colegas seus lhe cochicharam algo ao ouvido, olhou para Oscar, para Devin e para mim. Ele levantou a garrafa de cerveja e balançou a cabeça.
Nós levantamos as nossas.
Ele sorriu, continuou a nos olhar por um minuto, depois voltou-se novamente para seus colegas.
“Uma vez da Costumes, sempre da Costumes”, disse Devin. “Que bela cambada!”
“Vamos pegá-los no próximo ano”, garantiu Oscar.
“Não vão ser os mesmos caras”, disse Devin, em tom de pesar. “Broussard já está indo embora, Vreeman também. Corkery completa trinta anos de trabalho em janeiro. Ouvi dizer que até já comprou uma propriedade no Arizona.”
Cutuquei seu cotovelo. “E você? Você já deve estar completando os trinta anos de casa.”
Ele bufou. “Eu, me aposentar? Pra fazer o quê?” Ele balançou a cabeça e virou um copinho de Wild Turkey.
“Só podemos sair do trabalho de maca”, disse Oscar. Ele e Devin brindaram.
“Por que esse interesse em Broussard?”, perguntou Devin. “Pensei que vocês dois eram unha e carne depois da história da casa dos Trett.” Ele voltou a cabeça e bateu em meu ombro com as costas da mão. “O que, aliás, foi um ótimo trabalho.”
Ignorei o cumprimento. “Eu me interesso por ele, só isso.”
Oscar disse: “Isso é porque ele arrancou a garrafa de água da sua mão?”.
Olhei para Oscar, pois estava certo de que Broussard escondera o gesto com o próprio corpo.
“Você viu o lance?”
Oscar balançou a cabeçorra. “Vi também o olhar que ele lhe lançou depois de derrubar Rog Doleman.”
Devin disse: “E eu estou vendo que ele não tira os olhos de nós enquanto levamos esse papinho tão amigável e casual”.
Um dos Johns abriu caminho até nós e pediu duas garrafas de cerveja e três doses de Beam. Ele olhou para mim, o cotovelo quase tocando em meu ombro, depois para Devin e Oscar.
“Como vão as coisas, rapazes?”
“Vá se foder, Pasquale”, disse Devin.
Pasquale caiu na gargalhada. “Eu sei que você diz isso da forma mais carinhosa.”
“Mas claro”, disse Devin.
Pasquale riu para si mesmo quando o garçom trouxe as garrafas de cerveja. Inclinei-me de modo que ele pudesse passá-las para John Lawn. Ele se voltou e esperou as doses de Beam tamborilando com os dedos no balcão.
“Vocês ouviram falar do que nosso amigo Kenzie fez na casa dos Trett?”, disse ele, piscando para mim.
“Por alto”, respondeu Oscar.
Pasquale então disse: “Pelo que ouvi dizer, Roberta Trett estava com a arma apontada para Kenzie na cozinha. Mas Kenzie se jogou no chão, e Roberta estourou a cara do marido”.
“Belo mergulho”, disse Devin.
Pasquale recebeu a bebida, deixou algumas notas no balcão. “Ele é bom nessa coisa de se jogar no chão”, disse ele, o cotovelo roçando a minha orelha enquanto pegava os copinhos. Quando se voltou, seu olhar cruzou com o meu. “Essa coisa de se jogar no chão é mais sorte que talento, não acha?” Ele foi saindo, dando as costas a Oscar e Devin, enquanto virava um dos copos. “E o problema da sorte, cara, é que ela sempre vira.”
Devin e Oscar voltaram-se em seus bancos e ficaram olhando Pasquale afastar-se por entre a multidão, em direção ao fundo do bar.
Oscar tirou do bolso da camisa um charuto meio fumado, acendeu-o, os olhos vazios fitos em Pasquale. Quando ele sugou o charuto, o tabaco escuro estalou.
“Sutil”, disse ele, jogando o fósforo no cinzeiro.
“O que é que está havendo, Patrick?”, perguntou Devin em tom neutro, olhos fitos no copo vazio que Pasquale deixara no balcão.
“Eu não sei bem”, respondi.
“Você arranjou inimizade com os caubóis”, disse Oscar. “Não foi nada esperto de sua parte.”
“Não foi intencional”, eu disse.
“Você tem alguma coisa contra Broussard?”, perguntou Devin.
“Talvez”, respondi. “Sim.”
Devin balançou a cabeça, sua mão desceu do balcão e segurou firme meu cotovelo. “Seja lá o que for”, disse ele, sorrindo levemente, os olhos voltados para Broussard, “esqueça.”
“E se eu não puder fazer isso?”
A cabeça de Oscar assomou por trás do ombro de Devin, e ele me olhou com seu olhar vazio. “Tire o corpo fora, Patrick.”
“E se eu não puder fazer isso?”, repeti.
Devin soltou um suspiro. “Então talvez em breve você não possa fazer mais nada.”
30
Com uma vaga esperança de conseguir alguma coisa, resolvemos fazer uma visita a Poole.
O New England Medical Center, cujos vários edifícios e passarelas servem de ligação entre Chinatown, o quarteirão dos teatros e o que restou da antiga boca-do-lixo, estende-se por dois quarteirões.
Nas manhãs de domingo, mesmo bem cedo, já é difícil encontrar lugar para estacionar em volta do hospital: numa quinta à noite, é impossível. O Schubert apresentava a enésima montagem de Miss Saigon, e o Wang, a última criação pomposa de Andrew Lloyd Webber ou outra grande produção musical do mesmo calibre, pesada, extravagante e amaneirada; a Tremont Street, por sua vez, estava atulhada de táxis, limusines, black-ties, casacos de peles de cores claras, guardas furiosos apitando e fazendo de tudo para o trânsito fluir em meio a um monte de carros parados em fila dupla.
Nós nem tentamos dar a volta no quarteirão. Simplesmente entramos no estacionamento do hospital, pegamos nosso tíquete e subimos seis andares antes de achar uma vaga. Saí do carro, abri a porta para Angie, que desceu equilibrando-se nas muletas, fechei a porta às suas costas, enquanto ela se metia por entre as fileiras de carros.
“Pra que lado fica o elevador?”, ela gritou para mim.
Um jovem alto e musculoso como um jogador de basquete apontou para a esquerda e disse: “Por aqui”. Encostado no porta-malas de um Chevy Suburban preto, ele fumava um charuto fino ainda com o anel vermelho da marca Cohiba.
“Obrigada”, disse Angie, e ambos demos sorrisos amistosos ao passar por ele.
Ele correspondeu aos nossos sorrisos e fez um pequeno movimento com o charuto.
“Ele morreu.”
Nós paramos, voltei-me e olhei para o sujeito. Ele usava um casaco de lã azul-marinho com colarinho de couro marrom sobre um pulôver preto de gola em V e calça jeans da mesma cor. As botas pretas de caubói eram surradas como as de um peão de rodeio. Ele bateu a cinza do charuto, recolocou-o na boca e olhou para mim.
“Agora cabe a você perguntar: ‘Quem morreu?’ ”, disse ele, baixando a vista para as botas.
“Quem morreu?”, perguntei.
“Nick Raftopoulos”, ele respondeu.
Angie deu uma volta completa, equilibrando-se nas muletas. “O quê?”
“Vocês vieram para visitá-lo, não foi?” Fez um gesto largo com as mãos e deu de ombros. “Bem, vocês não vão poder fazer isso porque ele morreu há uma hora. Parada cardíaca devido a trauma causado por tiros recebidos na varanda da casa de Leon Trett. Perfeitamente natural, dadas as circunstâncias.”
Angie avançou com suas muletas, e eu dei alguns passos, até nos encontrarmos diante do homem.
Ele sorriu. “A próxima fala de vocês é: ‘Como você sabe que viemos aqui para visitá-lo?’ ”, disse ele. “Vamos lá, qualquer um dos dois pode falar.”
“Quem é você?”, perguntei.
Ele me estendeu a mão. “Neal Ryerson. Pode me chamar de Neal. Eu gostaria de ter um apelido legal, mas alguns de nós não têm essa sorte. Você é Patrick Kenzie, e você é Angie Gennaro. E tenho que reconhecer, senhorita, que mesmo descontando o efeito do gesso e tudo o mais, a fotografia não lhe faz justiça. Você é o que meu pai chamaria de um pedaço de mau caminho.”
“Poole morreu?”, perguntou Angie.
“Sim, senhorita. Parece que sim. Patrick, você pode apertar a minha mão? É um pouco cansativo mantê-la estendida desse jeito.”
Cumprimentei-o de leve, e ele estendeu a mão a Angie. Apoiada nas muletas, ela a ignorou, fitando o rosto de Neal Ryerson. Então balançou a cabeça.
Ele olhou para mim. “Ela está com medo de pegar piolhos?”
Ele retirou a mão e meteu-a no bolso interno do casaco.
Levei a mão ao coldre às minhas costas.
“Calma, senhor Kenzie, calma.” Ele tirou do bolso uma carteirinha, abriu-a e mostrou-nos um distintivo de prata e sua carteira de identidade. “Agente especial Neal Ryerson”, disse ele, num tom grave de barítono. “Departamento de Justiça. Voilà ! ” Ele fechou a carteira e recolocou-a no bolso. “Divisão de Crime Organizado, se é que querem saber. Puxa, como vocês dois gostam de conversar.”
“Por que está nos importunando?”, perguntei.
“Porque, senhor Kenzie, pelo que vi no jogo de hoje à tarde, você está carente de amigos. E eu estou no ramo de amizades.”
“Não estou procurando amigos.”
“Talvez você não tenha escolha. Tenho de ser seu amigo, quer queira, quer não. Sou muito bom nisso. Vou ouvir suas histórias de guerra, assistir a partidas de beisebol com você, acompanhá-lo em rondas noturnas pelos lugares mais moderninhos.”
Olhei para Angie, e nos pusemos a andar em direção ao nosso carro. Fui primeiro à porta de Angie, estendi a mão para abri-la.
“Broussard vai matar vocês”, disse Ryerson.
Lançamos um olhar a ele. Ele soltou uma baforada de seu Cohiba, afastou-se da traseira do Suburban e veio gingando em nossa direção com passos largos e frouxos, como se estivesse saindo do campo no final de uma partida de basquete.
“Ele é muito bom nessa história de matar gente. Em geral não age diretamente, mas planeja muito bem. É um planejador de primeira linha.”
Peguei as muletas de Angie e, abrindo a porta para jogá-las no banco traseiro, empurrei Ryerson para trás. “A gente sabe se cuidar, agente especial Ryerson.”
“Não tenho dúvida de que Chris Mullen e Pharaoh Gutierrez também achavam isso.”
Angie se encostou na porta aberta. “Pharaoh Gutierrez pertencia à Delegacia de Entorpecentes?” Ela enfiou a mão no bolso e tirou o maço de cigarros.
Ryerson balançou a cabeça. “Negativo. Era informante da Divisão de Crime Organizado.” Ele passou por trás de mim e acendeu o cigarro de Angie com um Zippo preto. “Era meu informante. Eu o moldei. Eu o treinei por seis anos e meio. Ele ia me ajudar a derrubar Cheese e sua organização. Depois disso, eu iria atrás do fornecedor de Cheese, um sujeito chamado Ngyun Tang.” Ele apontou para o lado leste do estacionamento. “O manda-chuva de Chinatown.”
“Mas aí...?”
“Mas aí”, disse ele dando de ombros, “Pharaoh se deixou matar.”
“E você acha que o responsável foi Broussard?”
“Acho que foi Broussard quem planejou o crime. Ele não os matou pessoalmente, porque estava muito ocupado fingindo estar sob fogo cerrado na pedreira.”
“Então quem matou Mullen e Gutierrez?”
Ryerson levantou os olhos para o teto do estacionamento. “Quem pegou o dinheiro nas colinas? Quem foi a primeira pessoa a ser encontrada perto das vítimas?”
“Espere um pouco”, disse Angie. “Poole? Você acha que Poole foi o responsável pelos disparos?”
Ryerson encostou no Audi estacionado ao lado de nosso carro, fumou longamente o charuto e soprou anéis de fumaça em direção às lâmpadas fluorescentes.
“Nicholas Raftopoulos. Nascido em Swampscott, Massachusetts, em 1948. Entrou para o Departamento de Polícia de Boston em 1968, pouco depois de voltar do Vietnã, onde foi condecorado com a Cruz de Prata e se destacou — surpresa! — como atirador de elite. O tenente de sua companhia disse que o cabo Raftopoulos era capaz, e agora cito suas próprias palavras, ‘de acertar o cu de uma mosca tsé-tsé a cinqüenta metros de distância’.” Ele balançou a cabeça. “Esses militares... têm uma linguagem tão expressiva.”
“E você acha...”
“Eu acho, senhor Kenzie, que nós três precisamos conversar.”
Recuei um passo. Ele media cerca de um metro e noventa. Os cabelos castanhos impecavelmente penteados, os modos desenvoltos e o corte de suas roupas denunciavam sua origem abastada. E então o reconheci: era o espectador solitário que estava no Harvard Stadium à tarde, as pernas compridas apoiadas no alambrado, o corpo largado, boné de beisebol cobrindo-lhe os olhos. Dava para imaginá-lo em Yale, tentando decidir-se entre o curso de direito e um cargo no governo. Ambas as opções lhe propiciariam a garantia de uma carreira política, logo que lhe aparecessem algumas mechas grisalhas nas têmporas, mas se ele optasse pelo governo, carregaria uma arma. Formidável. Sim senhor.
“Foi um prazer conhecê-lo, Neal”, eu disse, dando a volta no carro e me dirigindo à porta do motorista.
“Eu não estava brincando quando disse que ele vai matar vocês.”
Angie deu um risinho. “E você vai nos salvar, não é?”
“Sou do Departamento de Justiça”, disse Neal. Ele pôs a mão aberta no peito. “À prova de balas.”
Lancei-lhe um olhar por sobre o teto da Crown Victoria. “Você se acha o grande protetor das pessoas só porque vive atrás delas, Neal.”
“Oooh”, fez ele, girando a mão no peito. “E dos melhores, Pat.”
Angie entrou no carro, e eu fiz o mesmo. Quando liguei o motor, Neal Ryerson bateu de leve na janela de Angie com os nós dos dedos. Ela franziu o cenho e olhou para mim. Dei de ombros. Ela abaixou o vidro devagar, e Neal Ryerson dobrou o corpo e apoiou um braço na janela do carro.
“Vou lhes dizer uma coisa: acho que vocês estão cometendo um grande erro em não me ouvir”, advertiu-nos.
“Já cometemos outros antes”, disse Angie.
Ele recuou um pouquinho, fumou o charuto, soprou a fumaça e inclinou-se novamente em nossa direção.
“Quando eu era menino, meu pai me levou para caçar nas montanhas, não muito longe de onde cresci, um lugarejo chamado Boone, na Carolina do Norte. E meu pai sempre me dizia — em todas as viagens que fizemos desde que eu tinha oito anos até os dezoito — que a gente devia ficar de olho mesmo era nos outros caçadores, e não nos alces ou nos cervos.”
“Profundo”, disse Angie.
Ele sorriu. “Sabe, Pat, Angie...”
“Não o chame de Pat”, disse Angie. “Ele detesta.”
Ele levantou a mão com o charuto preso entre os dedos. “Mil desculpas, Patrick. Como posso lhes explicar? O inimigo é ‘nós’, plural, vocês entendem? E logo ‘nós’ virá atrás de vocês.” Ele apontou o charuto fino para mim. “ ‘Nós’ já deu uma palavrinha com você, Patrick. Quando será que ele vai dobrar a aposta? Ele sabe que, ainda que você ensaie uma retirada, mais cedo ou mais tarde vai voltar à carga, fazendo as perguntas erradas. Diabos, foi pra isso que você veio ver Nick Raftopoulos esta noite, não foi? Na esperança de que ele estivesse lúcido o bastante para responder a algumas de suas perguntas erradas. Agora vão embora. Não posso fazer nada. Mas ele vai atrás de vocês. E a coisa vai piorar um bocado.”
Olhei para Angie. Ela olhou para mim. A fumaça do charuto de Ryerson entrara no carro, indo direto para os meus pulmões, e lá ficou, presa como fios de cabelo no sifão de uma pia.
Angie voltou-se para ele e, com um rápido movimento com o punho, o fez desencostar-se da janela. “Você conhece o Blue Diner?”, ela perguntou.
“Seis quadras adiante.”
“A gente se vê lá”, disse ela, enquanto eu arrancava o carro em direção à rampa de saída.
À noite, a fachada do Blue Diner impressiona. Única mancha de neon da Kneeland Street, na entrada do bairro gay, com uma grande xícara sobre o painel luminoso, numa zona comercial, o estabelecimento surge, pelo menos visto da auto-estrada, como algo saído diretamente dos devaneios de Edward Hopper, envolto numa atmosfera noturna.
Mas não sei bem se Hopper estaria disposto a pagar seis mil dólares por um hambúrguer. Não que os preços do Blue Diner cheguem a isso tudo, mas não estão muito longe. Já comprei carros mais em conta que uma xícara do café deles.
Neal Ryerson nos garantiu que a despesa seria paga pelo Departamento de Justiça, então fizemos uma extravagância: tomamos café e pedimos duas Cocas. Eu pediria um hambúrguer, mas me lembrei de que a receita do Departamento de Justiça vinha dos meus impostos; em outras palavras, a generosidade de Ryerson não lhe custava muito.
“Vamos começar do começo”, ele disse.
“Sem dúvida”, disse Angie.
Ele pôs um pouco de creme em seu café, e passou-o para mim. “Como começou a história toda?”
“Com o desaparecimento de Amanda McCready”, respondi.
Ele balançou a cabeça. “Não. Isso foi quando vocês entraram.” Ele mexeu o café, tirou a colher da xícara e apontou-a para nós. “Três anos atrás, Remy Broussard, da Delegacia de Entorpecentes, surpreendeu Cheese Olamon, Chris Mullen e Pharaoh Gutierrez em plena operação de controle de qualidade num laboratório de refino em South Boston.”
“Eu achava que o refino da droga era feito fora do país”, disse Angie.
“ ‘Refino’ é um eufemismo. Eles estavam adulterando a droga — cocaína, no caso —, misturando-a com Similac. Broussard e seu parceiro, Poole, mais alguns caras da Entorpecentes, pegaram Olamon, nosso amigo Gutierrez e um bando de outros. Mas não os prenderam.”
“Por que não?”
Ryerson tirou outro charuto do bolso, e franziu o cenho quando notou um cartaz em que se lia NÃO FUME CHARUTOS NEM CACHIMBOS AQUI. Ele resmungou, colocou o charuto na mesa e começou a mexer no invólucro de celofane.
“Eles não os prenderam porque, uma vez queimadas as provas, não havia motivo para prendê-los.”
“Eles queimaram o pó”, eu disse.
Ele fez que sim. “Segundo Pharaoh, eles queimaram. Há vários anos corre o boato de que existe um esquadrão paralelo da Entorpecentes, com ordens para atacar os traficantes em seu ponto mais vulnerável. Não prendendo-os numa batida, o que lhes valeria a admiração da gentinha, a cobertura da imprensa, e uma condenação bastante improvável. Não. Esse esquadrão propunha-se a destruir o que fosse encontrado com os traficantes, obrigando-os a assistir ao espetáculo. Como vocês devem lembrar, dizia-se que era uma guerra contra as drogas. E alguns dinâmicos policiais de Boston resolveram fazer uma guerra de guerrilhas. Esses caras, diziam, eram os verdadeiros intocáveis. Não podiam ser comprados. Não se podia levar um papo com eles. Eram fanáticos. Eles acabaram com o negócio de um monte de pequenos traficantes, e expulsaram da cidade um bom número de sujeitos que estavam entrando no negócio. Os grandes traficantes — como Cheese Olamon, os caras da gangue de Winter Hill, os italianos, os chineses — logo consideraram aquelas operações como um preço a pagar para poder salvar seus negócios, e no final da história, como todo o mercado da droga entrou em baixa, e as batidas não se revelaram tão terríveis assim, o esquadrão teria sido extinto.”
“E Broussard e Poole foram transferidos para a BPC.”
Ele confirmou com um gesto de cabeça. “Outros também foram transferidos, ficaram na Entorpecentes ou ainda passaram para a Costumes, e sei lá mais para onde. Mas Cheese Olamon nunca esqueceu. E nunca perdoou. Ele jurou que um dia ia pegar Broussard.”
“Por que Broussard, e não os outros caras?”
“Segundo Pharaoh, Cheese se sentiu pessoalmente ofendido por Broussard. Não exatamente por queimar sua mercadoria, mas pelo fato de zombar dele enquanto o fazia, humilhando-o diante de seus comparsas. Cheese levou para o lado pessoal.”
Angie acendeu um cigarro e estendeu o maço a Ryerson.
Ele olhou para o próprio charuto, depois para o cartaz que o proibia de fumá-lo, e disse: “Claro. Por que não?”.
Ele fumou o cigarro como se fosse um charuto, sem tragar, apenas tirando baforadas, deixando que a fumaça lhe envolvesse a língua por um instante, para em seguida soprá-la.
“No outono passado”, disse ele, “Pharaoh quis falar comigo. Nós nos encontramos, ele disse que Cheese afirmava ter uma informação confidencial sobre o policial que comandara aquela operação alguns anos antes; Cheese, ele me garantiu, ia se vingar, e Mullen dera a entender para Pharaoh que todos os caras presentes no ‘laboratório de refino’ — obrigados a ver Broussard e seus parceiros queimarem a droga rindo na cara deles — iam gostar muito de ver aquilo. Agora, além de tudo, ainda não consegui entender como, de repente, Mullen e Pharaoh ficaram tão íntimos a ponto de Mullen lhe fazer confidências dessa linha. Pharaoh me veio com um papo do tipo ‘o que passou passou’, mas eu não engoli. Acho que só havia uma coisa capaz de unir aqueles dois: a ganância.”
“Quer dizer então que estava em curso uma conspiração”, eu disse.
Ele fez que sim. “Infelizmente para Pharaoh, Cheese ficou sabendo.”
“E que informação Cheese tinha contra Broussard?”, perguntou Angie.
“Pharaoh não me contou. Disse que Mullen não quisera lhe contar porque estragaria o efeito surpresa. A última vez que falei com Pharaoh foi na tarde do dia em que ele foi morto. Pharaoh disse que ele e Mullen andaram seguindo policiais pela cidade inteira durante uma semana e que iam meter a mão em duzentos mil, humilhar o policial e voltar para casa. Terminada a operação, quando soubesse exatamente o que Broussard tinha feito, ele me entregaria os dois, Mullen e Broussard; oferecendo-me a grande chance de minha carreira, ele ficaria quites comigo de uma vez por todas. Pelo menos era o que ele pensava.” Ryerson esmagou o cigarro. “O resto a gente já sabe.”
Angie olhou para ele, franzindo o cenho. “Não sabemos porra nenhuma. Agente Ryerson, você chegou a alguma teoria sobre o que o seqüestro de Amanda McCready tem a ver com essa história toda?”
Ele deu de ombros. “Talvez o próprio Broussard a tenha seqüestrado.”
“Por quê?”, perguntei. “Um belo dia ele acordou e resolveu seqüestrar uma criança?”
“Já ouvi falar de coisas mais estranhas.” Ele se debruçou sobre a mesa. “Escutem, Cheese tinha algo contra ele. O que poderia ser, então? De um modo ou de outro, estamos sempre voltando ao desaparecimento da menina. Portanto, vamos encarar essa possibilidade. Broussard a seqüestra, talvez para forçar a mãe a entregar os duzentos mil que, segundo Pharaoh me disse, ela roubara de Cheese.”
“Espere um pouco”, eu disse. “Isso sempre me incomodou: por que Cheese não mandou Mullen dar um aperto em Helene McCready e Ray Likanski para saber onde estava o dinheiro, meses antes do desaparecimento de Amanda?”
“Porque Cheese só soube da tramóia no dia em que Amanda desapareceu.”
“O quê?”
Ele confirmou com um gesto de cabeça. “A grande sacada de Likanski — embora de fôlego curto, reconheço — foi prever que todo mundo iria imaginar que o dinheiro fora apreendido junto com a droga, na casa dos motoqueiros. Cheese levou três meses para descobrir a verdade. Ele descobriu no mesmo dia em que Amanda McCready desapareceu.”
“Isso quer dizer”, concluiu Angie, “que o seqüestrador deve ser Mullen.”
Ele fez que não. “Não engulo essa. Acho que Mullen ou alguém a mando de Cheese foi procurar Helene naquela noite para dar-lhe uma boa surra e descobrir onde estava o dinheiro. Mas antes de poder fazer qualquer coisa, essa pessoa vê Broussard levando a menina. Com isso, Cheese tem algo contra Broussard. Ele o chantageia. Mas Broussard faz jogo duplo: ele diz à polícia que Cheese raptou a menina e está pedindo resgate. E ao pessoal de Cheese, que vai levar o dinheiro para a pedreira e entregá-lo a Mullen, já sabendo que ele pretende traí-los e fugir com o dinheiro. Ele...”
“Isso é absurdo”, eu disse.
“Por quê?”
“Por que Cheese concordaria em se passar pelo seqüestrador de Amanda McCready?”
“Ele não concordou. Broussard atribuiu a ele a responsabilidade do seqüestro sem lhe dizer nada.”
Balancei a cabeça. “Broussard disse a ele sim. Eu estava presente. Fomos à prisão de Concord em outubro para interrogar Cheese sobre o desaparecimento. Se ele estivesse de conluio com Broussard, ambos teriam de concordar que a responsabilidade cairia sobre os homens de Cheese. Por que Cheese faria uma coisa dessa se, como você diz, ele tinha Broussard nas mãos? Por que assumir a responsabilidade pelo seqüestro e assassinato de uma criança de quatro anos, quando poderia evitar isso?”
Ele apontou para mim o charuto apagado. “Para enganar você, senhor Kenzie. Vocês nunca se perguntaram por que lhes permitiram envolver-se tão profundamente numa investigação? Por que vocês foram indicados para estar na pedreira naquela noite? Vocês eram testemunhas. Era esse o papel de vocês. Broussard e Cheese armaram um espetáculo para vocês na prisão de Concord. Poole e Broussard armaram outro na pedreira. O que se esperava de vocês era apenas que vissem o que eles queriam que vissem e engolissem tudo como verdade.”
“A propósito”, disse Angie. “Como Poole poderia fingir um ataque cardíaco?”
“Cocaína”, disse Ryerson. “Já vi isso antes. É arriscadíssimo, porque o pó pode provocar um infarto real. Mas se você desconsidera a presença da droga... um cara com a idade e a profissão de Poole? Poucos médicos iriam pensar na possibilidade do pó, concluindo imediatamente pelo ataque cardíaco.”
Passaram doze carros pela Kneeland Street antes que algum de nós falasse.
“Agente Ryerson, vamos recapitular”, disse Angie. Seu cigarro queimara até o fim, formando uma longa curva de cinza branca no cinzeiro, e ela empurrou o filtro para dentro dele. “Estamos de acordo em que Cheese via Mullen e Gutierrez como uma ameaça. E se ele achasse que devia eliminá-los? E se ele obrigou Broussard a cumprir o trato, ameaçando revelar informações gravíssimas que o comprometeriam?”
“Para obrigá-lo a cumprir o acertado?”
Ela fez que sim.
Ryerson recostou-se no assento, e ficou mirando pela janela os negros edifícios da esquina da South Street. Olhando por sobre seu ombro, vi na Kneeland Street uma caminhonete da empresa de serviços postais UPS, quadrada, marrom-clara, com o pisca-alerta ligado — uma cena urbana bastante familiar —, estacionada na entrada de uma ruela cujo acesso ela bloqueava, enquanto o motorista abria a traseira do veículo, pegava um carrinho de duas rodas, tirava várias caixas e as empilhava nele.
“Quer dizer que na sua opinião”, disse Ryerson a Angie, “enquanto Cheese pensava livrar-se de Mullen e de Gutierrez, Broussard planejava eliminar os três.”
“Talvez”, ela respondeu. “Talvez. Temos informação de que Mullen e Gutierrez achavam que iam pegar drogas na pedreira naquela noite.”
Vi o cara da UPS passando depressa pela janela do bar, e me perguntei quem estaria recebendo encomendas em hora tão avançada. Escritórios de advocacia fazendo hora extra para fechar um negócio milionário? Gráficas correndo contra o relógio para entregar um trabalho no prazo, talvez. Empresa de informática de alta tecnologia, fazendo seja lá o que for que fazem as empresas de informática, enquanto o resto do mundo está indo para a cama.
“Mas... mais uma vez”, disse Ryerson, “volta a questão dos motivos. Admitamos que o trunfo de Cheese era saber que Broussard tinha raptado a menina. Tudo bem. Mas por que ele teria feito isso? O que Broussard pretendia quando foi àquela casa à noite, para tirar da mãe uma menina que ele nunca vira? Isso não faz sentido.”
O cara da UPS logo passou de volta, prancheta embaixo do braço, andando ainda mais rápido, agora que o carrinho estava vazio.
“E outra coisa”, disse Ryerson. “Se a gente admite a hipótese de que um policial condecorado, que trabalha na busca de crianças desaparecidas, seria capaz de fazer a loucura de roubar uma menina de sua casa, cabe a pergunta: como ele faria isso? Será que ele usaria seu tempo livre para esperar que a mãe saísse, imaginando que ela deixaria a porta aberta? Não, isso seria estúpido.”
“Mas mesmo assim você acha que foi isso que aconteceu”, disse Angie.
“Sim, eu sinto que foi ele. Sei que Broussard raptou a menina. Mas não tenho a mínima idéia dos motivos que o levaram a isso.”
O cara da UPS entrou na caminhonete, passou na frente da janela, entrou na ruela da esquerda, e desapareceu da minha vista.
“Patrick?”
“Ahn?”
“Você ainda está aí?”
“Não com passagem pela polícia. É impossível.”
Angie tocou em meu braço. “O que você acabou de dizer?”
Eu não sabia que tinha pensado em voz alta. “Você não consegue trabalhar na UPS se tiver passagem pela polícia.”
Ryerson piscou os olhos e me encarou como se estivesse prestes a sacar um termômetro para ver se eu estava com febre. “De que diabos você está falando?”
Olhei para a Kneeland Street, depois novamente para Ryerson e em seguida para Angie. “Na primeira vez que veio ao nosso escritório, Lionel disse que já tinha ido parar na cadeia uma vez — por coisa pesada —, mas que depois se regenerou.”
“E daí?”
“Daí que, se ele foi em cana, devia haver um registro em sua ficha. E se havia um registro, como ele pôde arranjar emprego na UPS?”
Ryerson disse: “Não consigo entender...”.
“Psiu”, fez Angie, levantando a mão e me olhando nos olhos. “Você não está achando que Lionel...”
Eu me acomodei no assento, afastei minha xícara de café frio. “Quem tinha acesso ao apartamento de Helene? Quem podia abrir a porta com uma chave? Com quem Amanda concordaria em sair docilmente, sem abrir o berreiro?”
“Mas ele veio nos procurar.”
“Não”, eu disse. “Foi a mulher dele. Ele só ficava repetindo: ‘Obrigado por ter nos escutado, e blablablá’, querendo a todo custo se ver livre de nós. Foi Beatrice quem insistiu em nos contratar. O que foi que ela disse quando veio ao nosso escritório? ‘Ninguém queria que eu viesse aqui. Nem Helene, nem meu marido.’ Foi Beatrice quem se empenhou para que aceitássemos o caso. E Lionel... ele gosta da irmã, é claro. Mas ele é cego? Ele não é estúpido. Sendo assim, como ele poderia ignorar as relações de Helene com Cheese? Como ele poderia ignorar que ela é viciada em drogas? Ele fingiu cair das nuvens quando ouviu dizer que ela usava cocaína, caramba! Eu falo com minha irmã uma vez por semana, vejo-a uma vez por ano, mas sei que ela é viciada em drogas. Ela é minha irmã.”
“Voltando a essa coisa de ter ficha na polícia”, disse Ryerson. “Qual a relação que tem com o nosso caso?”
“Digamos que foi Broussard quem o prendeu, lhe fez um favor e agora Lionel está nas mãos dele. Quem sabe?”
“Mas por que diabos Lionel seqüestraria a própria sobrinha?”
Refleti sobre aquilo, olhos fechados para melhor evocar Lionel na minha frente. Aquela cara meio canina, os olhos tristes, aqueles ombros que pareciam carregar o peso de uma metrópole, a dor sincera em sua voz, a voz de um homem que não entendia como as pessoas podiam se mostrar tão mesquinhas, tão negligentes. Ouvi novamente aquela voz raivosa, exaltada, com uma ponta de ódio, que se elevara contra Helene na cozinha quando a interrogamos sobre suas relações com Cheese. Ele nos disse que sua irmã amava a filha, que a tratava bem. Mas e se ele estivesse mentindo? E se ele achasse o contrário? E se ele tivesse uma opinião mais negativa que a de sua mulher quanto à aptidão da irmã para educar uma criança? Mas Lionel, ele próprio filho de pais alcoólatras e irresponsáveis, aprendeu a mascarar as coisas, a esconder sua raiva; para se tornar o tipo de pai, o tipo de cidadão que era, ele não teve escolha.
“E se Amanda McCready tiver sido raptada não por alguém que quisesse explorá-la ou abusar dela?”, eu disse em voz alta. O olhar de Ryerson era levemente cético, o de Angie, curioso, cheio de excitação. “E se Amanda McCready tiver sido raptada para o seu próprio bem?”
Ryerson respondeu devagar, num tom cauteloso. “Você acha que o tio seqüestrou a menina...”
Fiz que sim. “Para salvá-la.”
31
“Lionel viajou”, disse Beatrice.
“Viajou?”, perguntei. “Para onde?”
“Para a Carolina do Norte”, ela respondeu, afastando-se da porta. “Por favor, entrem.”
Ela nos conduziu até a sala de estar. Matt, seu filho, levantou os olhos quando entramos. Deitado de bruços no meio da sala, rodeado de canetas e lápis, ocupava-se em desenhar num bloco de papel. Era uma criança adorável que, embora tivesse herdado um pouco da papada canina do pai, fora poupada do peso que este carregava nos ombros. Quanto aos olhos, cujas íris cor de safira brilhavam sob as sobrancelhas negras e os cabelos cacheados, eram iguais em tudo aos de sua mãe.
“Oi, Patrick. Oi, Angie.” Ele olhou para Neal Ryerson com interesse e curiosidade.
“Olá”, disse Ryerson, agachando-se ao seu lado. “Eu sou Neal. Como é seu nome?”
Matt apertou a mão de Ryerson sem hesitação, fitou-o nos olhos com o desassombro de uma criança a quem se ensinou o respeito aos adultos, mas não o temor.
“Matt”, ele disse. “Matt McCready.”
“Prazer em conhecê-lo, Matt. O que você está desenhando aí?”
Matt virou o bloco de desenho para que todos pudéssemos vê-lo. Figurinhas de várias cores tentavam entrar num carro três vezes mais alto que elas e comprido feito um avião de carreira.
“Muito bom”, disse Ryerson, erguendo as sobrancelhas. “O que é isso?”
“Uns caras tentando entrar num carro”, disse Matt.
“E por que não conseguem?”, perguntei.
“Está fechado”, ele respondeu, como se isso explicasse tudo.
“Mas eles querem esse carro”, disse Ryerson. “Não é?”
Matt confirmou com a cabeça. “Causo do...”
“Por causa, Matthew”, corrigiu Beatrice.
Ele olhou para ela, a princípio embaraçado, mas logo sorriu. “Certo. Por causa da televisão, dos Game Boys, videogames e... ahn, latas de Coca que tem dentro dele.”
Ryerson disfarçou o sorriso passando a mão no rosto. “Só coisas legais.”
Matt sorriu para ele. “É.”
“Bom, continue o desenho”, disse Ryerson. “Está ficando bonito.”
Matt balançou a cabeça e virou o bloco de desenho para si. “Agora vou colocar prédios. Precisa ter prédios.”
E como se não passássemos de figuras de um sonho, ele pegou um lápis e voltou-se para o bloco de desenho com tal concentração que, não tenho dúvida, nós e tudo o mais que havia na sala desaparecemos.
“Senhor Ryerson”, disse Beatrice. “Acho que não nos conhecemos.”
Sua mão pequena sumia na mãozorra dele. “Neal Ryerson, minha senhora. Trabalho no Departamento de Justiça.”
Beatrice olhou para Matt, abaixou a voz. “Quer dizer então que vamos falar de Amanda?”
Ryerson deu de ombros. “Queríamos checar algumas coisas com seu marido.”
“Que coisas?”
Antes de sairmos do bar, Ryerson deixara bem claro que não devíamos de forma alguma assustar Lionel e Beatrice. Se Beatrice avisasse ao marido que ele estava sob suspeita, ele sumiria de vez, e com ele qualquer chance de encontrar Amanda.
“Vou ser franco com a senhora. O Departamento de Justiça tem uma divisão de proteção a menores e prevenção da delinqüência juvenil. Trabalhamos em estreita colaboração com o Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas, e também com a Organização de Busca de Crianças Desaparecidas, fornecendo-lhes informações para sua base de dados. Só informações de ordem geral.”
“Quer dizer então que não há nenhuma novidade no caso?”, perguntou Beatrice, amassando a fralda da camisa e escrutando o rosto de Ryerson.
“Não, minha senhora, eu gostaria que houvesse. Como eu disse, queremos apenas fazer algumas perguntas para a nossa base de dados. Como seu marido foi o primeiro a chegar à cena do crime na noite em que sua sobrinha desapareceu, eu gostaria de recapitular com ele os acontecimentos. Quem sabe ele não notou alguma coisa — um pequeno detalhe aqui ou ali — que possa lançar uma nova luz sobre o caso?”
Quando ela aquiesceu, quase estremeci ao ver com que facilidade ela engolia as mentiras de Ryerson.
“Lionel está ajudando um amigo, Ted Kenneally, que vende antigüidades. Ele e Lionel são amigos desde o curso primário. Ted é dono do Antiquário Kenneally, no Southie. Quase todo mês eles vão a Wilson, uma cidadezinha da Carolina do Norte.
Ryerson balançou a cabeça. “O principal centro de antigüidades do país, minha senhora”, disse ele com um sorriso. “Sou daquelas bandas.”
“Ah. Posso ajudar em alguma coisa? Lionel vai estar de volta amanhã à tarde.”
“Sim, claro que pode ajudar. Não se importaria de ouvir um monte de perguntas chatas que já deve ter ouvido mil vezes?”
Ela balançou a cabeça depressa. “Não. De modo algum. Se isso ajudar, posso passar a noite inteira respondendo perguntas. Que tal se eu preparar um chá?”
“Seria ótimo, senhora McCready.”
* * *
Enquanto Matt continuava a desenhar, tomamos chá, e Ryerson fez a Beatrice um rosário de perguntas que já tinham sido respondidas havia muito tempo: sobre a noite do desaparecimento de Amanda, sobre a competência de Helene como mãe, sobre aqueles dias tumultuados que se seguiram ao desaparecimento de Amanda, quando Beatrice organizou buscas, manteve contato com a mídia, colou cartazes nas ruas com a foto da sobrinha.
De vez em quando Matt nos mostrava os acréscimos que ia fazendo no desenho, arranha-céus com quadradinhos irregulares representando janelas, algumas nuvens, cachorros.
Comecei a me arrepender de ter ido lá. Estava me sentindo um espião no lar daquela família, um traidor, procurando encontrar provas que levariam o marido de Beatrice e pai de Matt à prisão. Pouco antes de sairmos, Matt perguntou a Angie se podia assinar em seu gesso. Quando ela disse sim, claro, seus olhos brilharam, e ele levou uns trinta segundos procurando a caneta certa. No momento em que ele se ajoelhou ao lado de Angie e, com todo o cuidado, escreveu no gesso seu nome completo, senti uma pontada por trás dos olhos e uma funda tristeza aninhando-se em meu peito, e fiquei imaginando o que seria da vida daquela criança se nossa hipótese sobre seu pai estivesse certa, se a lei interferisse e separasse sua família.
Ainda assim, a preocupação que o caso me inspirava era forte o bastante para abafar até minha vergonha.
Onde estaria ela?
Diabos. Onde estaria ela?
Quando saímos, paramos diante do Suburban de Ryerson, enquanto ele retirava o invólucro de celofane de outro charuto, usando um corta-charutos de prata de lei para aparar a ponta. Ele lançou um olhar à casa enquanto o acendia.
“É uma mulher encantadora.”
“Sim, é.”
“E o garoto é muito simpático.”
“Sim, muito simpático”, concordei.
“Que situação mais chata”, disse ele, encostando a chama no charuto e sugando-o para acendê-lo.
“É mesmo.”
“Vou ficar vigiando a loja de Ted Kenneally. Ela fica... a um quilômetro e meio daqui?”
“Fica a uns quatro quilômetros e meio”, disse Angie.
“Droga, não pedi o endereço.”
“Só existem umas poucas lojas de antigüidades no Southie”, eu disse. “A de Kenneally fica na Broadway, em frente a um restaurante chamado Amrheins.”
Ele balançou a cabeça. “Não querem me acompanhar? Talvez seja a opção mais segura, agora que Broussard está na cola de vocês.”
“Claro”, disse Angie.
Ryerson olhou para mim. “E você, Kenzie?”
Lancei um olhar à casa de Beatrice, aos retângulos iluminados das janelas da sala de estar, e pensei no furacão que ameaçava seus ocupantes, sem que eles nem ao menos suspeitassem do turbilhão que ia se formando, cada dia mais forte.
“Eu encontro vocês lá”, respondi.
Angie me olhou surpresa. “O que está havendo?”
“Eu encontro vocês lá”, repeti. “Tenho de fazer uma coisa.”
“O quê?”
“Não é nada importante”, eu disse, pondo as mãos nos ombros de Angie. “Encontro vocês lá, certo? Por favor, me dêem um tempo.”
Depois de me fitar longamente nos olhos, ela concordou. Angie não gostou nada daquilo, mas ela entende minhas teimosias, assim como eu entendo as suas. E ela sabe que não adianta discutir comigo em certas ocasiões, da mesma forma como eu sei quando não dá para discutir com ela.
“Não vá fazer nenhuma besteira”, disse Ryerson.
“Ah, não”, respondi. “Eu não.”
A chance de obter algum resultado era mínima, mas valeu a pena.
Às duas da manhã, Broussard, Pasquale e alguns outros jogadores do time dos Justiceiros saíram do Boyne. Pela forma como se abraçavam no estacionamento, deduzi que tinham sabido da morte de Poole, e sua dor era sincera. Em geral, os policiais só caem nos braços uns dos outros quando um deles tomba na linha de fogo.
Pasquale e Broussard ficaram conversando um pouco no estacionamento depois que os outros foram embora, e então Pasquale abraçou Broussard uma última vez, dando-lhe tapinhas nas costas, e finalmente se separaram.
Pasquale foi embora num Bronco, e Broussard foi andando, naquele passo cuidadoso dos bêbados, até um Volvo. Ele deu ré na Western Avenue e tomou a direção leste. Mantive-me a distância na avenida quase vazia, e quase o perdi de vista quando seus faróis traseiros desapareceram no Charles River.
Meti o pé no acelerador, porque naquele cruzamento ele podia pegar a Storrow Drive, em direção a North Beacon, ou a auto-estrada Mass Pike, na direção leste ou oeste.
Esticando o pescoço, terminei por localizar o Volvo no momento em que passava sob a forte iluminação do pedágio, tomando a direção oeste.
Diminuí a velocidade e cruzei o guichê do pedágio cerca de um minuto depois dele. Passados três quilômetros, localizei o Volvo novamente. Ele ia pela pista da esquerda, a uns noventa por hora, e eu me coloquei uns cem metros atrás dele, avançando na mesma velocidade.
Os policiais de Boston são obrigados a morar na área metropolitana, mas sei de muitos que burlam o regulamento, sublocando o apartamento em Boston a amigos ou parentes e indo morar mais longe.
Broussard, vim a descobrir, era um desses. Depois de mais de uma hora de viagem, às vezes tendo de seguir por estradinhas vicinais escuras, finalmente chegamos à cidade de Sutton, incrustada à sombra da reserva de Purgatory Chasm, muito mais próxima de Rhode Island e da fronteira de Connecticut do que de Boston.
Quando Broussard virou à esquerda, numa bifurcação em declive abrupto, e parou na frente de um pequeno pavilhão marrom, estilo Cape Cod, cujas janelas escondiam-se por trás de árvores e arbustos, segui em frente até chegar a um cruzamento onde a estrada terminava numa imponente floresta de pinheiros. Dei meia-volta, traçando com os faróis um arco luminoso nas sombras da noite, muito mais escura que a noite na área urbana — temendo que a qualquer momento o foco de luz revelasse criaturas sinistras, em incursões predatórias, cujos olhos verdes fosforescentes, surgidos de repente na escuridão, fizessem meu coração parar.
Voltei e encontrei outra vez o pequeno pavilhão, avancei mais uns setenta metros, e meus faróis iluminaram uma casa com venezianas fechadas. Subi uma alameda juncada de folhas do outono passado, escondi a Crown Victoria atrás de um renque de árvores, e fiquei refletindo por um instante. O estridular dos grilos e o sussurro do vento nas árvores eram os únicos sons que se ouviam no que me parecia ser o coração do mais absoluto silêncio.
Ao acordar, na manhã seguinte, dei com dois magníficos olhos castanhos fitos em mim. Eram doces, tristes e profundos como o poço de uma mina de cobre. E não piscavam.
Estremeci em meu assento quando o focinho marrom e branco inclinou-se em direção à minha janela, e o movimento foi suficiente para espantar o animal curioso. Mal tive tempo de me perguntar se aquilo não fora um sonho, quando o cervo atravessou o gramado aos saltos, enfiando-se no meio das árvores. Ainda avistei sua cauda branca entre dois troncos, e então ele sumiu.
“Meu Deus!”, exclamei em voz alta.
Outra mancha colorida atraiu minha atenção, agora no lado oposto ao das árvores, na frente do pára-brisa. Era uma cintilação marrom-clara, e quando olhei pela abertura à minha direita, vi o Volvo de Broussard passando pela estrada. Eu não sabia se ele estava pegando a estrada para comprar leite ou para voltar a Boston, mas de qualquer forma eu não ia perder aquela oportunidade.
Peguei no porta-luvas um molho de chaves falsas, pendurei a máquina fotográfica no ombro, sacudi a cabeça para me desembaraçar de umas teias de aranha que tinham se formado durante a noite e saí do carro. Fui subindo a ladeira sempre pelo lado esquerdo, apreciando o primeiro dia quente do ano, que descia até mim de um céu tão azul, tão limpo de poluição que eu mal podia acreditar que ainda estava em Massachusetts.
Quando me aproximava da alameda que levava à casa de Broussard, uma mulher alta, esguia, de cabelos longos e castanhos, segurando a mão de um menino, surgiu logo adiante, junto ao grosso tronco de um pinheiro. Ela se inclinou para pegar o jornal que o menino apanhara no chão.
Eu estava perto demais para parar. Ela levantou os olhos, ergueu a mão para protegê-los do sol e deu um sorriso hesitante. O menino teria uns três anos, e os cabelos loiros, brilhantes, a pele clara não pareciam ter sido herdados da mulher nem de Broussard.
“Olá”, disse a mulher, erguendo-se, pegando a criança e apoiando-a no quadril, enquanto o pequeno chupava o polegar.
“Olá.”
Era uma mulher admirável. Seus lábios grandes, de traçado ligeiramente irregular, distendiam-se para a esquerda, e havia alguma coisa de sensual nisso — o esboço de um sorriso de desencanto, talvez. Um rápido olhar à boca e às maçãs do rosto, ao brilho exuberante de sua pele, e eu poderia tomá-la por uma ex-modelo ou pela esposa decorativa de algum milionário. Mas então olhei em seus olhos. E fiquei perturbado com aquele brilho de inteligência pura, implacável. Aquela não era uma mulher que se deixaria exibir como um troféu, conduzida por um homem. Na verdade, logo tive certeza de que aquela mulher nunca se deixaria conduzir para lugar nenhum.
Notando a máquina fotográfica, ela perguntou: “Interessa-se por pássaros?”.
Olhei para a máquina, balancei a cabeça. “Interesso-me pela natureza em geral. Não há muito disso no lugar de onde vim.”
“Boston?”
Fiz que não. “Providence.”
Ela balançou a cabeça, lançou um olhar ao jornal e o sacudiu para tirar o orvalho. “Antes eles o colocavam num saquinho plástico para não molhar”, disse ela. “Agora tenho de pendurá-lo no banheiro por uma hora, só para ler a primeira página.”
Sonolento, o menino encostou a cabeça em seu peito e me olhou com olhos límpidos como o azul do céu.
“O que você tem, coração?”, ela perguntou, beijando-lhe a cabeça. “Está cansado?” Ela beliscou de leve o rosto rechonchudo do menino, e o amor em seu olhar era uma coisa palpável, e também intimidante.
Quando ela olhou para mim novamente, a expressão amorosa tinha se dissipado. Por um instante, senti que estava com medo ou desconfiada. “Ali adiante tem uma floresta”, disse ela, apontando. “Fica na reserva de Purgatory Chasm. Acho que lá você vai ter material para belas fotos.”
Balancei a cabeça. “Ótimo. Obrigado pela dica.”
Talvez o menino tenha desconfiado de alguma coisa. Talvez simplesmente estivesse cansado. Talvez o seu gesto se devesse apenas ao fato de ser um menininho, e de ser assim que eles fazem. O fato é que ele de repente abriu a boca e começou a berrar.
“Oh-oh”, fez ela, depois sorriu e beijou-lhe a cabeça de novo, mudando-o de posição no quadril. “Está tudo bem, Nicky. Tudo bem. Vamos, mamãe vai lhe dar alguma coisa para beber.”
Sem mais demora, ela tomou o caminho de casa, sacudindo de leve o menino em seu quadril e acariciando-lhe o rosto, o corpo esguio movendo-se como o de uma bailarina em sua blusa quadriculada vermelha e preta e sua calça jeans.
“Boa sorte em sua incursão à natureza”, ela gritou por sobre o ombro.
“Obrigado.”
Ela entrou numa curva da estradinha de acesso à casa e desapareceu, com o menino, por trás do mato que esconde a casa de quem olha da estrada.
Mas eu ainda a ouvia.
“Não chore, Nicky. Mamãe te adora. Mamãe vai ajeitar tudo.”
“Quer dizer que ele tem um filho”, disse Ryerson. “E daí?”
“Eu nunca soube disso”, eu disse.
“Nem eu”, completou Angie. “E passamos muito tempo juntos em outubro do ano passado.”
“Eu tenho um cachorro”, disse Ryerson. “Vocês nunca ouviram falar nisso, certo?”
“Não faz nem um dia que nós o conhecemos”, retrucou Angie. “E um cachorro não é um filho. Se você tem um filho e passa vários dias num trabalho de investigação com outras pessoas, você acaba falando dele. Ele falou muito da mulher. Nada tão importante. Apenas: ‘Preciso ligar para minha mulher’. ‘Minha mulher vai me matar se eu não aparecer para jantar outra vez.’ E assim por diante. Mas nunca, nem uma vez, ele falou de um filho.”
Ryerson olhou para mim pelo retrovisor. “O que você acha disso?”
“Eu acho que é estranho. Posso usar seu telefone?”
Ele passou o telefone, eu disquei, olhei para a loja de antigüidades de Ted Kenneally, onde se via o cartaz de FECHADO pendurado na vitrine.
“Aqui sargento Lee.”
“Oscar”, eu disse.
“Salve o nosso grande campeão! Como vai o esqueleto?”
“Doendo pra burro.”
Seu tom de voz mudou. “E aquela outra história?”
“Bem, quero lhe fazer uma pergunta.”
“Do tipo ‘dedure seus colegas’?”
“Não necessariamente.”
“Manda bala. Eu vejo se quero responder.”
“Broussard é casado, certo?”
“Sim, com Rachel.”
“Uma morena alta?”, perguntei. “Muito bonita?”
“Isso mesmo.”
“E eles têm um filho?”
“Como?”
“Broussard tem um filho?”
“Não.”
Senti uma leve pressão em meu cérebro, e as dores que eu sentia desde aquele jogo desapareceram como por encanto.
“Tem certeza?”
“Claro que tenho. Ele não pode ter filhos.”
“Ele não pode ou resolveu não ter?”
A voz de Oscar ficou ligeiramente abafada, e imaginei que ele protegia o fone com a mão. Ele falava num sussurro. “Rachel é estéril. É um grande problema para eles. Eles queriam ter filhos.”
“Por que não adotam?”
“Quem iria deixar uma ex-prostituta adotar crianças?”
“Ela estava na prostituição?”
“Sim, foi assim que ele a conheceu. Nessa época ele estava na Homicídios, como eu. Essa história acabou com a carreira dele, ele ficou enterrado na Entorpecentes até que Bailey o tirou de lá. Mas ele a ama. E ela é uma boa mulher. Uma grande mulher.”
“Mas nada de filhos.”
Agora a voz não estava mais abafada. “Quantas vezes eu tenho de lhe dizer, Kenzie? Não, porra de filho nenhum.”
Eu disse obrigado e até mais, desliguei e devolvi o telefone a Ryerson.
“Ele não tem nenhum filho, não é?”, disse Ryerson.
“Ele tem um filho”, respondi. “Definitivamente, ele tem um filho.”
“E onde foi que ele arrumou esse filho?”
Sentado no Suburban, contemplei novamente a loja de antigüidades. Tudo parecia se encaixar de repente.
“Quanto você quer apostar”, principiei, “que os pais biológicos de Nicholas Broussard, fossem eles quem fossem, não estavam à altura de sua missão?”
“Puta que pariu!”, disse Angie.
Ryerson debruçou-se sobre o volante, olhos vazios fixados num ponto além do pára-brisa, com um ar completamente atordoado. “Puta que pariu.”
Tornei a ver aquele menino loiro no quadril de Rachel Broussard, o olhar transbordante de ternura que ela lançava ao rostinho do menino enquanto o acariciava.
“É isso aí”, eu disse. “Puta que pariu.”
32
Em abril, nos finais de tarde, depois de o sol declinar no horizonte, mas antes do cair da noite, a cidade se tinge de um cinza brando e indeciso. Outro dia se foi, sempre mais rápido do que se esperava. Fracas luzes amarelas e laranja brilham nos retângulos das janelas e nos faróis dos carros, e a escuridão que se aproxima prenuncia a queda da temperatura. As crianças sumiram das ruas para lavar as mãos antes do jantar, para ligar os aparelhos de televisão. Os supermercados e lojas de bebidas estão quase vazios. As lojas de flores e os bancos estão fechados. Ouvem-se buzinas de vez em quando; aqui e ali, na entrada de estabelecimentos comerciais, portas de metal são abaixadas com um forte rangido. E a gente observa de perto o rosto dos pedestres e dos motoristas parados nos semáforos, e pode ler em seu abatimento o peso das esperanças matinais frustradas. Depois eles se vão, deslocando-se com dificuldade para os seus lares, seja lá qual for o tipo de lar que eles têm.
Lionel e Ted Kenneally demoraram a voltar, só chegaram lá pelas cinco da tarde. Alguma coisa se desconcertou na expressão do rosto de Lionel quando ele viu que nos aproximávamos. E quando Ryerson lhe mostrou o distintivo e disse: “Gostaria de lhe fazer algumas perguntas, senhor McCready”, sua expressão se perturbou ainda mais.
Ele balançou a cabeça muitas vezes, antes para si mesmo que para nós, e disse: “Há um bar ali adiante. Por que não vamos até lá? Não quero fazer isso em casa”.
O Edmund Fitzgerald era um bar um pouquinho maior que uma caixa de fósforos. Na entrada do pequeno salão que se abria à nossa direita, havia espaço apenas para quatro mesas e um balcão, que ficava sob a única janela. Infelizmente, tinham enfiado uma jukebox naquele canto, de forma que só cabiam duas mesas, e ambas estavam vazias quando nós quatro entramos. O balcão comportava sete pessoas sentadas, no máximo oito, e havia seis mesas encostadas na parede à sua frente. O salão prolongava-se um pouco mais para o fundo, onde dois sujeitos atiravam dardos por sobre uma mesa de bilhar tão próxima da parede que, em três de seus quatro lados, o jogador, em vez de taco, teria de usar uma bengalinha. Ou um lápis.
Quando sentamos a uma mesa no meio do salão, Lionel disse: “Machucou a perna, senhorita Gennaro?”.
“Vai sarar”, disse Angie, enfiando a mão na bolsa para pegar os cigarros.
Lionel olhou para mim. Quando desviei os olhos, tive a impressão de que o peso que ele suportava nos ombros aumentara. Às pedras que ele já carregava normalmente, tinham-se acrescentado alguns paralelepípedos.
Ryerson abriu um bloco de anotações na mesa e tirou a tampa de sua caneta. “Sou o agente especial Neal Ryerson, senhor McCready. Trabalho no Departamento de Justiça.”
“Ah, sim?”, falou Lionel.
Ryerson lançou-lhe um olhar rápido. “Isso mesmo, senhor McCready. Governo federal. O senhor nos deve alguns esclarecimentos, não acha?”
“Em relação a quê?”, perguntou Lionel, voltando a cabeça para trás e lançando um olhar em volta.
“Sua sobrinha”, respondi. “Escute aqui, Lionel, já não estamos mais para mentiras.”
Ele olhou para a direita, em direção ao balcão, como se ali houvesse alguém para ajudá-lo.
“Senhor McCready”, disse Ryerson. “A gente pode passar meia hora brincando de ‘eu-não-fiz/sim-você-fez’, mas seria uma perda de tempo para todo mundo. Sabemos que você está envolvido no desaparecimento de sua sobrinha e que estava de conluio com Remy Broussard. Ele vai pagar caro por isso, muito caro. Quanto a você, estou lhe oferecendo uma oportunidade de esclarecer as coisas, e quem sabe, no fim, até uma certa complacência.” Ele bateu a caneta na mesa, no ritmo do tique-taque de um relógio. “Mas se você mentir para mim, vou arrancá-lo daqui na porrada. E você vai apodrecer atrás das grades por tanto tempo que quando sair seus netos já terão carteira de motorista.”
A garçonete se aproximou e anotou nossos pedidos: duas Cocas, uma água mineral para Ryerson e um uísque duplo para Lionel.
Enquanto esperávamos que ela voltasse, todos ficamos calados. Ryerson continuava a usar a caneta como um metrônomo, batendo-a com força na borda da mesa, o olhar neutro, impassível, fixo em Lionel.
Lionel parecia não notar. Olhava para o descanso de copos à sua frente, mas acho que não o via; seu olhar ia muito mais longe, para além da mesa ou do bar, e havia um leve brilho de suor em seu queixo e em volta da boca. Eu tinha a impressão de que no final daquela longa jornada interior ele contemplava a consumação de sua triste ruína, a dissipação de sua própria vida. Ele via a prisão. Ele via os papéis do divórcio sendo entregues em sua cela e as cartas enviadas ao filho, ainda fechadas, sendo devolvidas. Ele via uma interminável sucessão de décadas em que ele se encontrava sozinho com sua vergonha, ou seu remorso, ou simplesmente a loucura de um homem que fizera uma bobagem que a sociedade expôs à luz crua dos refletores, servindo-a como repasto ao público. Sua foto sairia nos jornais, seu nome ficaria associado ao rapto, sua vida daria assunto para talk shows, para a imprensa marrom e para piadinhas ofensivas que seriam lembradas até muito depois de os humoristas que as contaram terem caído no esquecimento.
A garçonete trouxe nossas bebidas, e Lionel disse: “Há onze anos, eu estava com uns amigos num bar no centro da cidade. A certa altura entrou um grupo de rapazes. Estavam todos completamente bêbados. Um deles estava procurando briga. Ele me provocou. Bati nele. Foi um golpe só. Ele bateu a cabeça no chão e sofreu uma fratura. O problema foi que não o esmurrei. Bati nele com o taco de bilhar”.
“Agressão à mão armada”, disse Angie.
Ele confirmou com um meneio de cabeça. “Na verdade, foi pior que isso. O sujeito tinha me dado uns empurrões, e acho — não me lembro bem — que disse a ele: ‘Afaste-se, senão eu mato você’.”
“Tentativa de assassinato”, eu disse.
Outro meneio de cabeça. “Fui parar no tribunal. Era a palavra de meus amigos contra a dos amigos dele. Eu sabia que iria em cana, porque ele estudava na universidade e alegou que, por causa da pancada que eu lhe dera, não conseguia mais estudar, não podia se concentrar. Apresentou médicos que afirmaram que ele sofrera lesão cerebral. Pelo jeito como o juiz me olhou, vi que estava frito. Mas um cara que estava no bar naquela noite, desconhecido dos dois grupos, testemunhou que fora o outro que tinha me ameaçado de morte, tinha dado o primeiro soco e tudo o mais. Fui solto porque a tal testemunha era um policial.”
“Broussard.”
Ele me olhou com um riso amargo e tomou um gole de uísque. “Sim. Broussard. E sabe de uma coisa? Ele mentiu no tribunal. Posso não me lembrar de tudo o que aquele sujeito disse, aquele em quem eu bati, mas sei que o primeiro golpe foi dado por mim. Na verdade nem sei por quê. Ele estava me zoando, rindo da minha cara, e eu fiquei puto.” Lionel deu de ombros. “Naquela época eu era diferente.”
“Quer dizer então que Broussard mentiu, você foi solto, e se sentiu em dívida com Broussard.”
Ele levantou o copo de uísque, mudou de idéia e recolocou-o no descanso. “Acho que sim. Ele nunca tocou no assunto, e com o passar dos anos ficamos amigos. A gente se cruzava de vez em quando, vez por outra ele me ligava. Só há pouco tempo, pensando retrospectivamente, é que me dei conta de que ele me vigiava. Ele é assim. Não me entendam mal, ele é um bom sujeito, mas está sempre vigiando as pessoas, examinando-as para ver se algum dia poderão lhe ser úteis.”
“Muitos policiais são assim”, disse Ryerson, tomando um gole de água mineral.
“Você também?”
Ryerson pensou um pouco. “Sim, acho que sim.”
Lionel tomou outro gole de uísque e enxugou os lábios com o guardanapo de papel. “Em julho passado, minha irmã e Dottie levaram Amanda à praia. Era um dia muito quente, sem nuvens, e Helene e Dottie encontraram uns caras que tinham um pouco de maconha ou alguma porcaria do tipo, não sei bem.” Ele desviou os olhos de nós, tomou um bom gole de uísque. Quando recomeçou a falar, a voz e a expressão do rosto estavam transtornadas. “Amanda adormeceu na praia, e eles... eles a deixaram lá durante horas, sozinha, sem ninguém para cuidar dela. A menina literalmente fritou, senhor Kenzie, senhorita Gennaro. Sofreu queimaduras nas costas e nas pernas, queimaduras quase de terceiro grau. Um lado do rosto ficou tão inchado que parecia ter sido picado por abelhas. A puta desgraçada escrota da minha irmã deixou que a filha se queimasse. Elas a levaram para casa, e Helene ligou para mim porque Amanda, nas palavras dela, ‘estava fazendo o maior escândalo’. Ela não parava de chorar. Não deixava Helene dormir. Fui até lá e vi que aquela menininha de quatro anos estava toda queimada, gritando de dor. E quer saber qual foi o remédio que minha irmã lhe aplicou?”
Esperamos enquanto ele agarrava o copo de uísque, abaixava a cabeça, a respiração ofegante.
Ele levantou a cabeça. “Ela derramou cerveja nas queimaduras de Amanda. Cerveja. Para refrescar. Não pôs aloés, nem xilocaína, e nem lhe passou pela cabeça levá-la ao hospital. Não. Ela jogou cerveja na menina, mandou-a para a cama e aumentou o volume da televisão para não ouvir seu choro.” Ele ergueu o punho à altura do ouvido, como se fosse dar um murro na mesa. “Eu poderia ter matado minha irmã naquela noite. Em vez disso, levei Amanda para o pronto-socorro. E procurei desculpar Helene. Disse que ela e a menina estavam exaustas e que ambas tinham adormecido na praia. Argumentei com a médica e terminei por demovê-la da idéia de ligar para o Conselho Tutelar e denunciá-la por negligência. Não sei por quê, mas eu tinha certeza de que eles levariam Amanda embora. Eu apenas...” Ele engoliu em seco. “Protegi Helene. Como tenho feito a vida inteira. Naquela noite eu levei Amanda para minha casa, e ela dormiu comigo e com Beatrice. A médica dera-lhe um remédio para fazê-la dormir, mas eu fiquei acordado. Pousei a mão em suas costas e fiquei sentindo a temperatura baixar. Era como... pôr a mão numa carne que acabara de sair do forno. Fiquei contemplando a menina adormecida e dizendo para mim mesmo: isso não pode continuar. Isso tem de acabar.”
“Mas Lionel”, disse Angie. “E se você tivesse denunciado Helene ao Conselho Tutelar? Se você a tivesse denunciado certo número de vezes, tenho certeza de que conseguiria autorização da justiça para adotar Amanda.”
Lionel riu, e Ryerson balançou a cabeça devagar, olhando para Angie.
“O que é?”, disse Angie.
Ryerson cortou a ponta de um charuto. “Senhorita Gennaro, com exceção dos casos em que a mãe é lésbica, em estados como Utah ou Alabama, é praticamente impossível revogar os direitos parentais.” Ele acendeu o charuto e balançou a cabeça. “Deixe-me corrigir: é impossível.”
“Mesmo que os pais se mostrem negligentes o tempo todo?”, perguntou Angie.
Outro meneio de cabeça de Ryerson. “Neste ano, em Washington D.C., uma mãe biológica obteve a guarda de uma criança que ela mal conhecia. A criança estava vivendo com pais adotivos desde o nascimento. A mãe biológica a dera à luz quando estava em liberdade condicional. Ela fora condenada por assassinar outra filha sua — um bebê de apenas seis semanas. A criança estava chorando de fome: a mãe achou que aquilo era demais, jogou-a num latão de lixo e foi a um churrasco. Agora a mulher tem mais dois filhos, um dos quais está sendo criado pelos avós paternos, e o outro se encontra num lar de adoção. Cada filho é de um pai diferente, e a mãe, que pegou apenas dois anos de cadeia por matar a outra filha, retomou a guarda daquela primeira criança, tirando-a dos amorosos pais adotivos, e agora é ela quem cuida da menina, com todo o carinho, sem dúvida.” Ryerson acrescentou: “E olhe que isso aconteceu de verdade”.
“Só pode ser mentira”, disse Angie.
“Não, é verdade”, retrucou Ryerson.
“Como é possível...?”, disse Angie, deixando cair as mãos de sobre a mesa e fitando o vazio.
“Isto aqui é a América”, respondeu Ryerson. “Um lugar onde toda pessoa adulta tem o direito pleno e inalienável de devorar os filhos.”
Angie parecia ter recebido um soco no estômago e, de quebra, um tapa na cara ao dobrar o corpo para a frente.
Lionel fez os cubos de gelo tilintarem no copo. “O agente Ryerson tem razão, senhorita Gennaro. Não se pode fazer nada quando pais irresponsáveis se recusam a abrir mão dos filhos.”
“Mas isso não livra a sua cara, senhor McCready”, disse Ryerson, apontando o charuto para ele. “Onde está sua sobrinha?”
Lionel fitou por um instante a cinza do charuto de Ryerson e finalmente fez que não com a cabeça.
Ryerson balançou a cabeça, rabiscou alguma coisa no bloco de anotações, levou a mão à cintura, sacou um par de algemas e jogou-o na mesa.
Lionel empurrou a cadeira para trás.
“Continue sentado, senhor McCready. Senão a próxima coisa que vou sacar vai ser minha arma.”
Lionel agarrou com força os braços da cadeira, mas não se mexeu.
Eu falei: “Quer dizer então que você ficou furioso por causa das queimaduras de Amanda. O que aconteceu depois?”.
Troquei um olhar com Ryerson, ele piscou levemente e balançou a cabeça de forma quase imperceptível. Abordar de cara a questão do paradeiro atual de Amanda não estava dando certo. Lionel podia se fechar em copas, assumir a responsabilidade pelo rapto da menina, e ela continuaria desaparecida. Mas se conseguíssemos que ele continuasse falando...
“O caminho que faço para a UPS”, disse ele afinal, “atravessa o distrito de Broussard. Foi por isso que continuamos mantendo contato ao longo dos anos. De qualquer forma...”
Uma semana depois do incidente na praia, Lionel e Broussard saíram para tomar um drink. Broussard ouviu Lionel falar de suas preocupações em relação à sobrinha, da raiva que tinha da irmã, da sua certeza de que a chance de Amanda vir a ser uma pessoa diferente da mãe ficava cada dia mais distante.
Broussard pagou todos os drinks, sendo também bastante generoso no que diz respeito às quantidades. Quase no fim da noite, quando Lionel estava bêbado, ele pôs o braço em seu ombro e disse: “E se eu lhe disser que pode haver uma saída?”.
“Não há saída possível”, argumentou Lionel. “A justiça, os...”
“Foda-se a justiça”, respondeu Broussard. “Fodam-se todas as possibilidades em que você pensou. Que tal se houvesse uma maneira de dar a Amanda um lar acolhedor e pais amorosos?”
“Qual é o truque?”
“O truque é: ninguém nunca vai saber o que aconteceu com ela. Nem a mãe dela, nem sua mulher, nem seu filho. Ninguém. Ela simplesmente desaparece.”
Broussard estalou os dedos.
“Puf. Como se nunca tivesse existido.”
Lionel levou alguns meses para se decidir. Nesse meio tempo, ele foi duas vezes à casa da irmã e encontrou a porta aberta e Helene ausente, na casa de Dottie, enquanto Amanda dormia sozinha em casa. Certa vez, em agosto, Helene chegou em estado lamentável na casa do irmão e de Beatrice, que estavam fazendo um churrasco no quintal. Ela andara dando voltas com Amanda no carro de um amigo; estava tão bêbada que, brincando com Amanda e Matt, derrubou sem querer a filha do balanço, caindo ela própria na cadeirinha. Ela se deixou ficar no balanço, rindo às gargalhadas, enquanto a filha se levantava, limpava a terra dos joelhos e examinava o próprio corpo para ver se se ferira.
Ao longo daquele verão, a pele de Amanda se empolou e se cobriu de manchas em vários lugares, porque Helene de vez em quando se esquecia de passar a pomada que o médico do pronto-socorro receitara.
E em setembro Helene falou em deixar o estado.
“O quê?”, eu disse. “É a primeira vez que ouço falar nisso.”
Lionel deu de ombros. “Olhando agora para trás, vejo que provavelmente era apenas mais uma de suas idéias estúpidas. Uma amiga de Helene que se mudara para Myrtle Beach, na Carolina do Sul, arranjara um emprego numa loja de camisetas e lhe contara que lá fazia sol o tempo todo, e que havia bebida a rodo. Adeus neve, adeus frio. Bastava ficar na praia e vender umas camisetas de vez em quando. Durante mais ou menos uma semana, ela não falou de outra coisa. Em circunstâncias diferentes, eu não lhe teria dado ouvidos. Ela vivia falando que queria morar em outro lugar e estava certa de que algum dia ia ganhar na loteria. Mas dessa vez, não sei... entrei em pânico. Só me vinha uma coisa na cabeça: ela vai levar Amanda. Ela vai deixar Amanda sozinha nas praias, deixá-la sozinha num apartamento sem fechá-lo a chave — e eu e Beatrice não estaremos por perto para segurar a barra. Aí eu simplesmente... perdi a cabeça. Liguei para Broussard. Conheci umas pessoas que queriam cuidar de Amanda.”
“E quais eram seus nomes?”, disse Ryerson, com a caneta suspensa acima do bloco de anotações.
Lionel o ignorou. “Eles eram ótimos. Perfeitos. Um belo lar. Gostavam muito de crianças. Já tinham educado uma muitíssimo bem, mas agora ela se mudara, e eles estavam se sentindo vazios. Eles são muito bons para ela”, disse ele com voz calma.
“Quer dizer que você a viu”, concluí.
Ele fez que sim. “Ela está feliz. Agora ela sorri de verdade.” Dominado pela emoção, ele engoliu em seco. “Ela não sabe que eu a vejo. A primeira regra de Broussard é que todo o seu passado deve ser apagado. Ela tem quatro anos. Com o tempo, esquecerá. Na verdade”, disse ele devagar, “ela agora tem cinco anos, não é?”
Uma sombra lhe obscureceu o olhar quando ele se deu conta de que Amanda comemorara um aniversário sem que ele estivesse presente. Num gesto rápido, ele balançou a cabeça. “Em suma, fui até lá às escondidas e a vi com seus novos pais, e ela parece estar ótima. Vê-se...” Ele temperou a garganta, desviou os olhos de nós. “Vê-se... que ela é amada.”
“O que aconteceu na noite em que ela desapareceu?”, perguntou Ryerson.
“Entrei pelos fundos do edifício. Levei-a dizendo que era uma espécie de jogo. Ela adorava jogos. Talvez porque quando Helene a levava a um bar, dizia-lhe coisas do tipo: ‘Vá jogar Pac-Man, querida’.” Lionel chupou o gelo do copo e o triturou com os dentes. “Broussard estava com o carro estacionado na rua. Esperei na entrada do edifício e disse a Amanda que ficasse quieta, bem quieta. A única vizinha que nos poderia ter visto era a senhora Driscoll, do outro lado da rua. Ela estava sentada na varanda de sua casa, bem na nossa frente. Ela saiu da varanda por um instante, entrou em casa para pegar mais uma xícara de chá ou alguma outra coisa, e Broussard me deu o sinal verde. Levei Amanda para seu carro, e fomos embora.”
“E ninguém viu nada”, eu disse.
“Nenhum dos vizinhos. Mas depois descobrimos que Chris Mullen tinha visto. Ele estava estacionado na rua, vigiando a casa, esperando a volta de Helene, tentando descobrir onde ela escondera o dinheiro. Ele reconheceu Broussard. Cheese Olamon usou essa informação para chantageá-lo e conseguir recuperar o dinheiro desaparecido. Broussard deveria também roubar drogas apreendidas pela polícia e entregá-las a Mullen na pedreira.”
“Vamos voltar à noite em que Amanda desapareceu”, eu disse.
Com seus dedos grossos, ele pegou mais um cubo de gelo do copo e triturou-o com os dentes. “Eu disse a Amanda que meu amigo ia levá-la para conhecer umas pessoas muito legais. Eu lhe disse que iria buscá-la algumas horas depois. Ela se limitou a balançar a cabeça. Estava acostumada a ser largada em casa de pessoas estranhas. Desci do carro alguns quarteirões mais adiante e fui para casa a pé. Eram dez e meia. Minha irmã levou quase doze horas para notar o desaparecimento da filha. O que vocês acham disso?”
Por um instante, ficamos em tal silêncio que eu ouvia o barulho dos dardos penetrando no painel de cortiça no fundo do bar.
“Eu pretendia contar a Beatrice, no momento certo. Ela entenderia. Não imediatamente, é claro. Talvez com o passar dos anos. Não sei. Não tinha refletido muito sobre esse ponto. Beatrice odeia Helene e adora Amanda, mas uma coisa como essa... Ela acredita na lei, nos regulamentos, entendem? Ela nunca aceitaria participar de uma coisa desse tipo. Mas eu tinha a esperança de que, quem sabe, depois de um bom tempo...” Ele levantou os olhos para o teto e balançou a cabeça num gesto rápido. “Quando ela resolveu procurar vocês dois, entrei em contato com Broussard, e ele me aconselhou a tentar dissuadi-la da idéia, mas sem insistir demais. Deixe que ela os procure, se quiser. No dia seguinte ele me disse que, caso nos criassem problemas, ele tinha um trunfo contra vocês dois. Alguma coisa relacionada ao assassinato de um cafetão.”
Erguendo uma sobrancelha, Ryerson me lançou um sorriso frio, inquisitivo.
Dei de ombros, desviei o olhar, e foi então que vi o sujeito usando uma máscara de Popeye. Ele entrou pela saída de emergência, braço estendido, empunhando um 45 automático.
Seu comparsa, armado de uma espingarda, usava uma máscara de Halloween. Ele irrompeu na sala, passando pela porta da frente, e bradou por trás da máscara de Gasparzinho, o Fantasminha Camarada: “Mãos sobre a mesa! Todo mundo! Já!”.
Popeye foi empurrando os dois jogadores de dardos que estavam diante dele, e eu voltei a cabeça a tempo de ver Gasparzinho trancar o ferrolho da porta da frente.
“Você!”, Popeye gritou para mim. “Você é surdo? Mãos em cima da mesa, porra!”
Pus minhas mãos na mesa.
O balconista falou: “Merda. Que maluquice é essa?”.
Gasparzinho puxou um cordão junto à janela, fazendo descer uma pesada cortina preta.
Ouvi a respiração ofegante de Lionel ao meu lado. Suas mãos, bem abertas em cima da mesa, estavam absolutamente imóveis. Ryerson enfiou a mão embaixo da mesa, e Angie fez o mesmo.
Popeye deu um murro nas costas de um dos jogadores de dardos. “Deitados! No chão. Mãos na nuca. Mãos na nuca. Agora!”
Os dois caíram de joelhos, levando as mãos à nuca. Arma engatilhada, Popeye olhou para eles por um momento. Um momento atroz, cheio de possibilidades terríveis. Popeye podia fazer o que bem quisesse. Matá-los a tiros, matar-nos a tiros, cortar a garganta deles. Qualquer coisa.
Ele deu um pontapé na base da coluna do mais velho.
“De joelhos, não. Deitado. Já.”
Os homens se deitaram de bruços perto de mim.
Popeye voltou a cabeça devagar, parou em nossa mesa.
“Ponham as mãos na porra dessa mesa”, disse ele num sussurro. “Senão vocês morrem.”
Ryerson tirou a mão de debaixo da mesa, ergueu as duas no ar para mostrar que estavam desarmadas e colocou-as bem abertas em cima da mesa. Angie fez o mesmo. Gasparzinho aproximou-se do balcão à nossa frente e apontou a espingarda para o balconista.
Duas mulheres de meia-idade, com certeza secretárias ou funcionárias de algum escritório, a julgar pelos uniformes, estavam sentadas em bancos bem na frente de Gasparzinho. Quando ele levantou a espingarda, o cano roçou no cabelo de uma delas. Ela contraiu os ombros, inclinando a cabeça para a esquerda. Sua companheira gemeu.
A primeira disse: “Oh, meu Deus. Oh, não”.
Gasparzinho tranqüilizou-as: “Fiquem calmas, senhoras. Num instante isso acaba”. Ele tirou do bolso do casaco de couro um saco de lixo verde e jogou-o no balcão, na frente do balconista. “Encha esse saco. E não esqueça o dinheiro do cofre.”
“Não tem grande coisa”, disse o balconista.
“Ponha o que tiver”, ordenou Gasparzinho.
Popeye, encarregado de controlar os fregueses, estava com as pernas abertas uns quarenta centímetros e os joelhos levemente dobrados. Seu 45 traçava um arco para a direita, depois para a esquerda, e novamente para a direita. A pouco mais de três metros de distância dele, eu conseguia ouvir sua respiração por trás da máscara, calma e regular.
Gasparzinho mantinha-se em postura idêntica, espingarda apontada para o balconista, mas tinha os olhos atentos, vigiando o espelho por trás do balcão.
Os caras eram profissionais. De verdade.
Além de Gasparzinho e de Popeye, havia mais doze pessoas no bar: o balconista e a garçonete atrás do balcão, os dois caras deitados no chão, Lionel, Angie, Ryerson e eu, as duas secretárias e dois caras que pareciam caminhoneiros no lado do balcão mais próximo da entrada. Um deles estava com um blusão verde dos Celtics, o outro com um casaco de brim e zuarte surrado e amarrotado. Ambos eram fortes e deviam estar na casa dos quarenta. No balcão, na frente deles, havia uma garrafa de Old Thompson entre dois copos.
“Vá com calma”, disse Gasparzinho ao balconista quando ele se ajoelhou atrás do balcão e começou a mexer no que imaginei ser o cofre. “É só ir devagar, como se nada estivesse acontecendo, que você não vai errar os números da combinação.”
“Por favor não façam nada conosco”, disse um dos homens que estavam no chão. “Nós temos família.”
“Cale a boca”, disse Popeye.
“Ninguém vai se machucar, se vocês ficarem quietos”, disse Gasparzinho. “É só ficarem quietos. Muito simples.”
“Você sabe de quem é essa porra desse bar?”, disse o cara de blusão dos Celtics.
“O quê?”, perguntou Popeye.
“Você me ouviu, porra! Você sabe de quem é esse bar?”
“Por favor, por favor”, disse uma das secretárias. “Acalmem-se.”
Gasparzinho voltou a cabeça. “De um herói.”
“Um herói”, disse Popeye, lançando um olhar ao idiota.
Dando a impressão de não mexer os lábios, Ryerson sussurrou: “Onde está sua arma?”.
“Nas costas”, eu disse. “E a sua?”
“No colo.” Sua mão direita se deslocou alguns centímetros para a borda da mesa.
“Não”, sussurrei, no momento em que Popeye virou a cabeça, voltando a apontar a arma em nossa direção.
“Caras, vocês estão fodidos”, disse o caminhoneiro.
“Por que você continua falando?”, perguntou a secretária, sem tirar os olhos do balcão.
“É uma boa pergunta”, disse Gasparzinho.
“Fodidos, sacaram? Seus putos, seus desgraçados, seus...”
Gasparzinho avançou quatro passos e deu-lhe um soco no meio da cara.
O caminhoneiro caiu para trás, e sua cabeça bateu com tamanha força no chão que ouvimos o estalido do crânio rachando.
“Algum comentário?”, perguntou Gasparzinho ao amigo do cara.
“Não”, disse o amigo, baixando os olhos para o balcão.
“Mais alguém se habilita?”, insistiu Gasparzinho.
O balconista levantou-se e pôs o saco de lixo em cima do balcão.
O bar estava silencioso como uma igreja antes de um batismo.
“O quê?”, disse Popeye, avançando três passos em direção à nossa mesa.
Demorei alguns segundos para perceber que ele estava falando conosco, e outros tantos para perceber que as coisas iam acabar bem depressa e muito mal.
Nenhum de nós se mexeu.
“O que você disse?”, perguntou Popeye, apontando a arma para a cabeça de Lionel. Por trás da máscara, seu olhar passou rapidamente pelo rosto impassível de Ryerson, voltando em seguida para o de Lionel.
“Temos mais um herói?”, disse Gasparzinho, pegando o saco do bar e aproximando-se de nossa mesa com a arma apontada para minha garganta.
“Esse cara fala demais”, disse Popeye. “Está falando merda.”
“Você tem algo a dizer?”, perguntou Gasparzinho, apontando a espingarda para Lionel. “Hein? Vamos, pode falar.” E voltando-se para Popeye: “Vigie os outros três”.
O 45 de Popeye ficou apontado para mim, e o olho negro do cano da arma parecia me fitar.
Gasparzinho avançou mais um passo em direção a Lionel. “Você fala, fala... não é?”
“Por que vocês ficam desafiando esses caras? Eles estão armados”, disse uma das secretárias.
“Quieta”, sussurrou sua companheira.
Lionel levantou os olhos para a máscara, os lábios cerrados, as pontas dos dedos tamborilando no tampo da mesa.
Gasparzinho disse: “Vá em frente, campeão. Vá em frente. Continue falando”.
“Não quero ouvir as besteiras que ele diz”, falou Popeye.
Gasparzinho encostou a boca da espingarda no nariz de Lionel. “Cale o bico! ”
Os dedos de Lionel tremeram, e ele piscou os olhos por causa do suor.
“Ele simplesmente se recusa a ouvir”, disse Popeye. “Insiste em continuar falando bobagens.”
“É mesmo?”, disse Gasparzinho.
“Vamos ficar calmos”, pediu o balconista, as mãos levantadas.
Lionel não tinha dito nada.
Todas as testemunhas presentes no bar, porém, tomadas pelo pânico, certas de que iam morrer, se lembrariam da cena da forma como os pistoleiros queriam que se lembrassem: Lionel e nós todos que estávamos naquela mesa tínhamos falado, desafiando sujeitos perigosos, e por isso nos mataram.
Quando Gasparzinho puxou o ferrolho da espingarda, o barulho soou como um tiro de canhão. “Você quer provar que é macho, não é?”
Lionel abriu a boca. “Por favor”, ele implorou.
Eu disse: “Espere”.
A espingarda voltou para mim seus olhos negros, a última paisagem que me seria dado ver.
“Detetive Remy Broussard!”, gritei, de forma que todo o bar pudesse me ouvir. “Ouviram bem esse nome? Remy Broussard!” Através da máscara, vi medo e perplexidade nos olhos azuis do policial.
“Não faça isso, Broussard”, disse Angie.
“Vai calar a boca, porra!” Dessa vez era Popeye quem falava, e ele já estava começando a se descontrolar. Os músculos de seu braço estavam visivelmente tensos, saltados, enquanto ele tentava vigiar a nossa mesa.
“Está tudo acabado, Broussard, tudo acabado. Nós sabemos que foi você quem seqüestrou Amanda McCready.” Virei a cabeça para o balcão. “Vocês ouviram esse nome? Amanda McCready?”
Quando voltei a cabeça novamente, senti a boca gelada da espingarda em minha testa, e meus olhos deram com um dedo vermelho crispado no gatilho. Assim de perto, o dedo parecia um inseto ou um verme vermelho e branco. Parecia ter um cérebro.
“Feche os olhos”, disse Gasparzinho. “Feche bem.”
“Senhor Broussard”, disse Lionel. “Por favor, não faça isso. Por favor.”
“Aperte essa porra de gatilho!”, disse Popeye, voltando-se para o comparsa. “Aperte!”
Angie disse: “Broussard...”.
“Pare de falar esse nome, porra!”, gritou Popeye, dando um pontapé numa cadeira, lançando-a contra a parede.
Mantive os olhos abertos, sentindo a pressão do metal contra a minha testa, o cheiro de graxa e de pólvora, vendo o dedo contraído no gatilho.
“Acabou”, eu repeti, e aquela palavra, saída de minha garganta e de minha boca secas, soou como um coaxo. “Acabou.”
Por um tempo que me pareceu interminável, ninguém disse palavra. Naquele silêncio absoluto, eu podia ouvir o mundo inteiro rangendo em seu eixo.
Quando Broussard se recompôs, sua máscara de Gasparzinho inclinou-se um pouco para um lado, e nas pupilas do policial reconheci o mesmo brilho que tinha visto no dia anterior, durante o jogo — aquele brilho implacável, vibrante e ardente.
E logo se seguiu um abatimento que foi se espalhando lentamente pelo corpo. Ele abaixou a arma, afastando-a de minha testa, enquanto o dedo se apartava do gatilho.
“Sim”, disse ele com a voz sumida. “Acabou.”
“Você está de sacanagem comigo?”, disse o comparsa. “Temos que fazer isso. Temos que fazer isso, cara. Temos ordens. Você tem que fazer. Agora!”
Broussard balançou a cabeça. A cara redonda e o sorriso infantil da máscara de Gasparzinho acompanharam pateticamente o movimento. “Nada disso. Vamos embora.”
“Nada disso é o cacete! Você não tem coragem de acabar com esses filhos-da-puta? Pois eu tenho!”
Popeye levantou o braço e apontou a arma para o meio do rosto de Lionel, a mão de Ryerson desceu ao colo, e o primeiro disparo, amortecido pelo tampo da mesa, atingiu a coxa esquerda de Popeye.
Ele tombou para trás, e sua arma disparou sozinha. Lionel soltou um grito, levou a mão a um lado da cabeça e caiu da cadeira.
A arma de Ryerson varreu o que havia sobre a mesa, e ele acertou duas vezes o peito de Popeye.
Quando Broussard puxou o gatilho, ouvi distintamente, num milionésimo de segundo, o silêncio que houve entre o encaixe da bala na câmara da espingarda e o disparo que explodiu em meus ouvidos com um barulho infernal.
O ombro esquerdo de Neal Ryerson se esfacelou e desapareceu numa explosão de fogo, sangue e ossos, em meio a um fragor semelhante ao de um jato supersônico. Fragmentos de carne sangrenta foram lançados contra a parede; Ryerson caiu da cadeira, levando a mesa em sua queda, enquanto Broussard levantava outra vez o braço em meio à fumaça. A nove milímetros soltou-se de sua mão, bateu numa cadeira e caiu no chão.
Angie, agora de arma em punho, se jogou no chão quando viu Broussard girar o corpo.
Fui para cima dele, atingindo-lhe o estômago com a cabeça, envolvendo-o com os braços, empurrando-o contra o balcão. Ele soltou um rugido surdo quando sua coluna bateu contra a madeira, mas de repente golpeou a minha nuca com o cabo da espingarda.
Caí de joelhos, meus braços tombaram inertes, e Angie gritou: “Broussard!”, disparando seu trinta-e-oito.
Ele jogou a espingarda nela, enquanto eu sacava meu 45; a espingarda bateu no peito de Angie, derrubando-a no chão.
Como um verdadeiro atleta, ele saltou por cima dos jogadores de dardos e disparou em direção à porta.
Fechei o olho esquerdo, apontei bem e, no momento em que ele chegava à porta do bar, atirei duas vezes. Vi sua perna direita vibrar com o impacto, arrastar-se um pouco, e logo em seguida ele abriu o ferrolho, cruzou o vestíbulo e mergulhou na noite.
“Angie!”
Voltei-me e a vi sentada no meio de um monte de cadeiras viradas. “Eu estou bem.”
Ryerson gritou: “Chamem uma ambulância! Chamem uma ambulância!”.
Olhei para Lionel. Mãos na cabeça, dedos banhados em sangue, ele rolava no chão gemendo.
Olhei para o balconista. “Uma ambulância!”
Ele pegou o telefone e discou.
Ryerson, encostado na parede, ombro esfacelado, olhos fitos no teto, gritava sem parar, o corpo sacudido por convulsões frenéticas.
“Está em estado de choque”, eu disse a Angie.
“Eu cuido dele”, disse ela, voltando-se para Ryerson. “Quero todas as toalhas do bar! Agora!”
Imediatamente, uma das secretárias foi procurá-las do outro lado do balcão.
“Beatrice”, gemeu Lionel. “Beatrice.”
Quando o comparsa de Broussard caiu, com o esterno destroçado pelas balas de Ryerson, o elástico de sua máscara de Popeye se soltou. E eu vi diante de mim o rosto de John Pasquale. Ele estava morto, e estava certo quando, no dia anterior, comentara: “A sorte sempre vira”.
Meu olhar cruzou com o de Angie no momento em que ela apanhava a toalha que a secretária lhe jogara por cima do balcão. “Pegue Broussard, Patrick! Pegue-o!”
Balancei a cabeça, enquanto a outra secretária corria em direção a Lionel, para aplicar-lhe outra toalha no ferimento.
Procurei no bolso outro carregador e saí do bar.
33
Fui seguindo a pista de Broussard ao longo da Broadway, depois da C Street, uma rua sinuosa que atravessa o bairro dos depósitos e empresas transportadoras. Não era muito difícil seguir-lhe a pista. Ele se livrara da máscara de Gasparzinho logo à saída do bar. Quando saí, lá estava ela, sorriso congelado, sem dentes, olhando-me com aqueles olhos vazios. Gotas de sangue tão frescas que brilhavam sob a iluminação da rua indicavam a trajetória em ziguezague. Elas iam ficando cada vez mais espessas e maiores, à medida que me conduziam, pelo asfalto gretado, ao coração da massa parcamente iluminada dos armazéns sombrios, das áreas de carga e descarga, dos minúsculos bares de caminhoneiros com cortinas abaixadas, indicados por pequenos sinais luminosos de neon, aos quais faltava metade dos tubos. Semi-reboques de partida para Buffalo ou Trenton sacolejavam e chacoalhavam pelas ruas esburacadas; ao passarem, seus faróis iluminavam o lugar onde os rastros se interrompiam, o lugar onde Broussard parara por tempo bastante para forçar uma porta. O sangue que escorria por um orifício de seu corpo formara uma poça e manchara a porta de finas estrias. Nunca pensei que uma perna pudesse sangrar tanto, mas talvez o tiro que disparei contra ele tivesse quebrado o fêmur ou cortado artérias importantes.
Antes de entrar, contemplei o edifício, que tinha seis andares. Fora construído com tijolos cor de chocolate — do tipo que se costumava usar no começo do século XX. As ervas daninhas subiam até o parapeito das janelas do térreo, vedadas com pranchas de madeira rachadas e pichadas. Considerando suas grandes dimensões, o edifício podia ter servido de depósito para objetos volumosos ou como lugar de fabricação e montagem de máquinas.
Montadora, pensei ao entrar. A primeira coisa que vi foi a silhueta de uma esteira rolante de linha de montagem, roldanas e correntes pendentes de vigas seis metros acima dela. A esteira propriamente dita, assim como os cilindros de rolagem que outrora devia haver sob ela, tinha sumido, mas a estrutura principal ainda estava lá, fixada ao chão por parafusos. Os ganchos na ponta das correntes pareciam dedos encurvados, fazendo sinal para que eu me aproximasse. O resto do pavimento estava vazio, pois certamente todas as coisas de valor tinham sido roubadas por vagabundos e moleques, ou arrancadas e vendidas pelos últimos donos.
À direita, uma escada de ferro batido levava ao pavimento imediatamente superior. Eu subia devagar, pois já não conseguia seguir o rastro de sangue no escuro, perscrutando o negrume para evitar buracos cavados nos degraus pela ferrugem, apoiando-me com todo o cuidado no corrimão a cada passo, torcendo para que meus pés pisassem o metal, e não algum rato faminto e furioso.
Pouco a pouco meus olhos foram se acostumando à escuridão, e quando cheguei ao primeiro andar vi apenas um imenso espaço vazio, a silhueta de alguns estrados virados, o fraco reflexo das luzes da rua nas vidraças quebradas a pedradas. As escadas se sucediam exatamente na mesma posição em cada pavimento, de modo que para continuar a subir eu precisava dobrar à esquerda diante da parede e retroceder cerca de três metros. Lancei um olhar sobre os grossos degraus de ferro até enxergar a abertura retangular lá no alto.
Naquele instante, ouvi um choque surdo alguns andares acima — sem dúvida de uma pesada porta de aço que girou nos gonzos, batendo contra o cimento.
Subi os degraus dois a dois, tropeçando algumas vezes, e corri para a escadaria seguinte. Como meus pés já estavam entrando no ritmo, e eu conseguia localizar melhor os degraus, pude avançar mais rapidamente na escuridão.
Os pavimentos estavam todos vazios. À medida que eu ia atingindo os andares mais altos, mais iluminados eles se mostravam, pois a luz do porto e do centro da cidade penetrava pelos janelões que tomavam toda a parede. As escadarias continuavam às escuras, exceto pelas aberturas retangulares lá no alto, e quando cheguei à última, banhada pelo luar e descortinando o céu, Broussard gritou para mim do telhado.
“Ei, Patrick, se eu fosse você, ficava aí mesmo.”
Gritei de volta: “Por quê?”.
Ele tossiu. “Porque estou apontando uma arma para essa abertura. Se você puser a cabeça aí, arranco um pedaço dela.”
“Oh”, eu disse, encostando-me no corrimão e respirando o ar fresco da noite, carregado de odores do canal portuário, que entrava pela abertura. “O que você está planejando fazer aí em cima? Chamar o helicóptero de resgate?”
Ele deu uma risadinha. “Uma vez na vida já basta. Não. Eu só resolvi ficar sentado aqui por um tempinho, olhando as estrelas.” E acrescentou rangendo os dentes: “Porra, cara, você atira mal pra burro”.
Olhei através da moldura do luar. Pelo som de sua voz, eu sabia que ele devia estar à esquerda da abertura.
“Atiro bem o bastante para acertar você”, eu disse.
“A bala ricocheteou, seu panaca”, ele respondeu. “Estou tirando lascas de ladrilho que se alojaram em meu tornozelo.”
“Você quer dizer que a bala bateu no piso e as lascas dos ladrilhos atingiram você?”
“Isso. Quem era aquele cara?”
“Que cara?”
“O cara que estava no bar com vocês.”
“O cara em quem você atirou?”
“Esse mesmo.”
“É do Departamento de Justiça.”
“Sério? Ele parecia ser uma espécie de agente secreto. Estava calmo demais. Acertou três tiros em Pasquale como quem pratica tiro ao alvo. Com a maior naturalidade. Quando o vi naquela mesa, logo desconfiei que as coisas iam terminar mal.”
Ele tossiu novamente, e apurei bem os ouvidos. Fechei os olhos enquanto ele sofria um acesso de tosse seca que durou uns vinte segundos. Aí tive quase certeza de que ele se encontrava mesmo à esquerda, a uns dez metros da abertura.
“Remy?”
“Ahn?”
“Vou subir.”
“Vou enfiar uma bala em sua cabeça.”
“Não vai, não.”
“Tem certeza?”
“Claro.”
O tiro rompeu o silêncio da noite, e a bala atingiu o corrimão fixado à parede. O metal faiscou como se tivessem riscado um fósforo nele, e eu colei o corpo às escadas enquanto a bala zunia por cima de minha cabeça e ricocheteava em uma placa de metal, terminando por alojar-se com um leve assobio na parede à minha esquerda.
Continuei deitado por um instante, o coração entalado no esôfago e não muito contente com essa nova localização, batendo contra as paredes e tentando voltar para o seu lugar.
“Patrick?”
“Sim?”
“A bala pegou em você?”
Fui erguendo o corpo devagar, até ficar ajoelhado. “Não.”
“Eu disse a você que ia atirar.”
“Obrigado por avisar. Você é tão gentil.”
Mais um acesso de tosse seca, seguido de um sonoro gorgolejo, quando ele tentou engolir o ar, para em seguida cuspir.
“Essa tosse não me parece nada saudável”, eu disse.
Ele soltou uma riso áspero. “Eu também não pareço nada bem. Cara, acho que sua sócia é a atiradora da família.”
“Ela acertou você?”
“Ah, sim. Me aplicou um tratamento contra o fumo. Foi o que ela fez.”
Apoiei as costas no corrimão, apontei a arma para o telhado e fui avançando bem devagar pela escadaria.
“De minha parte”, disse Broussard, “acho que eu não atiraria nela. Em você, sim. Mas nela? Não sei. Atirar em mulheres, sabe, não é uma coisa que se deseje para o próprio necrológio. ‘Oficial do Departamento de Polícia de Boston, pai e marido amoroso, excelente jogador de boliche, capaz de matar mulheres sem pestanejar...’ Sabe, isso soa... muito mal.”
Agachei-me no quinto degrau antes da abertura, mantendo a cabeça abaixo dela, e respirei fundo algumas vezes.
“Eu sei o que você está pensando: Mas Remy... você atirou em Roberta Trett pelas costas. É verdade. Mas quer saber? Roberta não era uma mulher. Ela era...” Ele soltou um suspiro e tossiu. “Bem, eu não sei o que ela era. Mas, no caso dela, ‘mulher’ me parece um termo muito restrito.”
Enfiei o corpo na abertura e, com os braços estendidos à frente, apontei a arma para Broussard.
Ele nem mesmo olhava em minha direção. Estava sentado, o corpo apoiado contra o tubo de ventilação, a cabeça inclinada para trás, a silhueta dos edifícios do centro da cidade descortinando-se diante de nós, numa mistura de amarelo, azul e branco, cintilando sob o céu azul-escuro.
“Remy.”
Ele voltou a cabeça e estendeu o braço, apontando a Glock para mim.
Ficamos assim por um bom tempo, sem saber ao certo como aquilo iria acabar, nos perguntando se um olhar oblíquo, uma contração de músculos ou um tremor involuntário devido à adrenalina e ao medo não fariam de repente um dedo se crispar, disparando uma bala, num súbito clarão. Broussard piscou os olhos inúmeras vezes, respirou fundo para controlar a dor, enquanto uma imensa rosa vermelha espalhava-se em sua camisa como se, com graça imperturbável, inalterável, fosse abrindo suas pétalas e enfim desabrochasse.
Segurando a arma com firmeza, o dedo no gatilho, ele disse: “De repente não dá a impressão de que a gente está num filme de John Woo?”.
“Odeio os filmes de John Woo.”
“Eu também”, disse ele. “Pensei que fosse o único.”
Balancei a cabeça devagar. “Um Peckinpah requentado, sem a dimensão emocional.”
“Não sabia que você era crítico de cinema.”
Dei um sorriso crispado.
“Adoro filmes melosos”, disse ele.
“Como?”
“É verdade.” Atrás da Glock, seus olhos giraram nas órbitas. “Eu sei que parece meio besta. Talvez por eu ser policial, quando vejo filmes de ação fico falando o tempo todo: ‘Não tem nada a ver’. Mas se você puser no vídeo Entre dois amores ou A malvada, aí sim, cara, estarei lá na mesma hora.”
“Você é uma caixa de surpresas, Broussard.”
“Sou mesmo.”
É cansativo manter por tanto tempo uma arma apontada para uma pessoa. Se tivéssemos a intenção de atirar, àquela altura já o teríamos feito. Naturalmente, é isso que muitos caras pensam, alguns segundos antes de levar uns balaços. Observei que a pele de Broussard ia pouco a pouco ficando cinza, e que o suor lhe escurecia as mechas das têmporas. Ele não ia conseguir resistir por muito tempo. Aquilo me cansava, claro, mas eu não tinha uma bala no peito e fragmentos de ladrilho alojados no tornozelo.
“Vou abaixar a minha arma”, eu disse.
“Problema seu.”
Tentei escrutar seus olhos, e, talvez por saber que eu os estava observando, ele me lançou um olhar neutro, impenetrável.
Levantei a arma, tirei o dedo do gatilho, segurei-a na palma da mão e subi os últimos degraus. De pé sobre o cascalho espalhado pelo terraço, baixei os olhos e o encarei, erguendo uma sobrancelha.
Broussard sorriu.
Ele descansou a Glock no colo e encostou a cabeça no tubo de ventilação.
“Você pagou a Ray Likanski para que saísse com Helene, afastando-a de casa”, eu disse. “Certo?”
Ele deu de ombros. “Não precisei pagar nada a ele. Bastou prometer livrá-lo de uma condenação. Nada mais.”
Avancei até ficar diante de Broussard. De onde estava, eu via nitidamente o círculo escuro na parte superior de seu peito, o lugar onde a rosa desabrochava. Ficava bem no centro, e o sangue ainda escorria, mas bem devagar.
“É o pulmão?”, perguntei.
“Acho que a bala pegou nele de raspão.” Ele balançou a cabeça. “O puto do Mullen. Se ele não estivesse lá naquela noite, tudo teria corrido sem problemas. Aquele imbecil do Likanski não me disse que tinha roubado Olamon. Isso teria mudado muito as coisas, sem dúvida. Pode acreditar.” Ele mudou de posição, gemendo com o esforço. “Resultado: fui obrigado — justo eu! — a me associar a uma anta como Cheese. Ainda que eu planejasse enganá-lo, vou lhe dizer uma coisa, aquilo feria meu ego.”
“Onde está Likanski?”, perguntei.
Ele inclinou a cabeça em minha direção. “Vire um pouco para a direita e olhe para trás.”
Eu olhei. O canal de Fort Point surgia de uma faixa de terra branca e poeirenta, corria sob pontes, sob a Summer Street e a Congress Street, prolongando-se em seguida em direção à cidade, aos píeres e à angra azul-escura do porto de Boston.
“Ray está dormindo com os peixes?”, perguntei.
Broussard me deu um sorriso lasso. “Parece que sim.”
“Desde quando?”
“Encontrei-o naquela noite de outubro, logo depois que vocês entraram no caso. Ele estava arrumando as malas. Perguntei sobre o golpe que ele aplicara em Cheese. Justiça seja feita, ele não disse uma palavra sobre onde estava o dinheiro. Nunca pensei que fosse capaz de tanta firmeza, mas imagino que duzentos mil enchem certas pessoas de coragem. Seja como for, ele estava disposto a se mudar, e eu era contra. E saímos no pau.”
Ele tossiu violentamente, curvando-se para a frente, apertando a mão no buraco no peito, agarrando com força a arma em seu colo.
“Precisamos sair deste terraço.”
Ele levantou os olhos para mim, enxugou a boca com as costas da mão que segurava a Glock. “Acho que não vou a parte alguma.”
“Ora, vamos. Não faz sentido morrer.”
Ele me deu aquele seu maravilhoso sorriso juvenil. “Engraçado, agora estou propenso a provar o contrário. Você tem um celular para chamar uma ambulância?”
“Não.”
Ele pôs a arma no colo e enfiou a mão no casaco de couro e tirou um Nokia fininho. “Eu tenho”, disse ele, voltando-se e jogando-o de cima do terraço.
Ouvi o barulho longínquo quando ele se arrebentou na calçada, seis andares abaixo.
“Não se preocupe”, disse ele com um risinho. “Eles vendem esse troço com uma puta garantia.”
Dei um suspiro e sentei-me à sua frente, perto da borda do terraço.
“Você está decidido a morrer aqui em cima”, perguntei.
“Estou decidido a não ir para a cadeia. Responder um processo?”, disse ele balançando a cabeça. “Comigo não, meu caro.”
“Então me diga com quem está a menina, Remy. Assim você vai com a consciência tranqüila.”
Ele arregalou os olhos. “Quer dizer que você quer retomar a menina? Trazê-la de volta para aquela coisa que a sociedade chama de mãe? Aqui pra você, ó! Amanda vai continuar desaparecida, entendeu? Ela continuará feliz. Ela continuará bem alimentada, limpa e bem cuidada. Terá uma chance na vida e o direito de sorrir. Você pirou completamente se acha que vou lhe dizer onde ela está, Kenzie.”
“Os que estão cuidando dela são seqüestradores.”
“Ah, não. Negativo. O seqüestrador sou eu. Aquelas pessoas apenas a acolheram.” Ele piscou os olhos várias vezes por causa do suor que lhe banhava o rosto na noite fria, sorveu o ar num hausto cheio que ecoou em seu peito. “Você esteve em minha casa hoje de manhã. Minha mulher me ligou.”
Confirmei com um gesto de cabeça. “Foi ela quem ligou para Lionel para pedir o resgate, não foi?”
Ele deu de ombros e olhou para a silhueta dos edifícios recortada contra o céu. “Um sujeito como você em minha casa”, disse ele. “Meu Deus, isso me deixou puto.” Ele fechou os olhos por um instante, depois os abriu. “Você viu meu filho?”
“Ele não é seu.”
Ele piscou os olhos. “Você o viu?”
Contemplei as estrelas por um momento, uma coisa rara por estas bandas, ainda mais com um brilho tão radioso numa noite fria. “Eu vi seu filho”, respondi.
“Grande garoto. Sabe onde o encontrei?”
Fiz que não.
“Eu estava conversando com um informante no conjunto habitacional de Somerville. Então ouvi os gritos de um bebê. Ele gritava como se estivesse sendo mordido por cachorros. E o informante, as pessoas que passavam pelo corredor não ouviam nada. Eles simplesmente não escutavam. Isso porque eles ouvem gritos e toda sorte de coisas estranhas todos os dias. Mandei o informante dar o fora e, guiado pelos gritos, abri com um pontapé a porta daquele apartamento, que cheirava a merda, e encontrei o menino nos fundos. O apartamento estava vazio. Meu filho — sim, ele é meu filho, Kenzie, e foda-se você se acha que não — estava morrendo de fome. Estava deitado num berço, tinha seis meses de idade, e passava fome. Dava para ver suas costelas. Sua fralda estava cheia, vazando pelos cantos, de forma que ele estava colado... ele estava colado ao colchão, Kenzie !”
Os olhos de Broussard se arregalaram, e todo o seu corpo parecia estar em luta consigo mesmo. Ele tossiu sangue na camisa, limpou-o com a mão e lambuzou o queixo.
“Um bebê...”, disse ele finalmente, e sua voz agora era quase um sussurro, “... preso ao colchão pelas próprias feridas e fezes. Abandonado num quarto durante três dias, gritando sem parar. E ninguém se importa.” Ele levantou a mão esquerda banhada em sangue e deixou-a cair no cascalho. “Ninguém se importa”, repetiu em voz baixa.
Coloquei minha arma no colo e lancei um olhar ao horizonte da metrópole. Talvez Broussard tivesse razão. Uma cidade inteira de gente que não está nem aí. Um estado inteiro. Quem sabe um país inteiro.
“Então eu o levei para minha casa. Conhecia, de outros tempos, muitos caras que falsificavam registros de nascimento, e comprei os seus serviços. Agora meu filho tem uma certidão de nascimento com o meu sobrenome. Todos os documentos referentes à laqueadura feita por minha mulher foram substituídos por outros, segundo os quais ela consentiu em submeter-se à operação depois do nascimento de nosso filho, Nicholas. E a única coisa que eu precisava fazer era agüentar mais alguns meses e em seguida me aposentar. Então eu mudaria de estado, arrumaria um emprego de consultor numa agência de segurança e criaria meu filho. E seria feliz, muito feliz.”
Cabeça baixa, deixei-me ficar olhando para meus sapatos e para o cascalho por um instante.
“Ela nem ao menos notificou o desaparecimento do menino”, disse Broussard.
“Quem?”
“A drogada que pariu meu filho. Ela nunca procurou por ele. Eu sei quem ela é, e por muito tempo pensei em meter-lhe uma bala na cabeça. Mas me contive. E ela nunca procurou pelo filho desaparecido.”
Levantei a cabeça e fitei seu rosto. Havia nele uma expressão altiva, indignada, profundamente tocada pelos negros desvãos da alma humana que lhe fora dado ver.
“Eu quero Amanda de volta.”
“Por quê?”
“Porque o meu trabalho é esse, Remy. Fui contratado para isso.”
“E eu fui contratado para servir e proteger, seu imbecil. Entende o que quero dizer? É um juramento. Proteger e servir. E eu o cumpri. Protegi muitas crianças. E as servi e lhes dei bons lares.”
“Quantas?”, perguntei. “Quantas foram?”
Ele apontou para mim o dedo ensangüentado. “Não, não, não.”
Sua cabeça tombou para trás de repente, e o corpo inteiro se enrijeceu, apoiando-se no tubo de ventilação. O pé esquerdo se ergueu do chão, e a boca se abriu num grito silencioso.
Ajoelhei-me ao seu lado, mas nada podia fazer senão observá-lo.
Instantes depois, seu corpo se distendeu, suas pálpebras relaxaram, e voltei a ouvir sua respiração.
“Remy.”
Ele abriu um olho cansado. “Você ainda está aqui”, disse ele frouxamente. Então apontou um dedo para mim. “Sabe de uma coisa, Patrick, você é um puta dum cara sortudo.”
“Como assim?”
Ele sorriu. “Você não ouviu falar?”
“O quê?”
“Eugene Torrel morreu na semana passada.”
“Quem é...?” Recuei o corpo, e seu sorriso se alargou ainda mais quando me lembrei: Eugene, o rapaz que nos viu matar Marion Socia.
“Ele foi morto em Brockton, por causa de uma mulher.” Broussard fechou os olhos novamente, e seu sorriso se abrandou, deslizando para um lado do rosto. “Você tem muita sorte. Não consta nada contra você, salvo o depoimento sem valor de um pobre-diabo que já morreu.”
“Remy.”
Ele reabriu os olhos, a arma soltou-se de sua mão e caiu no cascalho. Ele inclinou a cabeça, como para recuperá-la, mas a mão continuou no colo.
“Vamos, cara. Faça uma coisa certa antes de morrer. Suas mãos estão cheias de sangue.”
“Eu sei”, disse ele com esforço. “Kimmie e David. Você nem imaginava que eu fosse o responsável pela morte deles.”
“Nas últimas vinte e quatro horas eu estava começando a desconfiar”, eu disse. “Você e Poole?”
Sem se desencostar do tubo, ele balançou a cabeça, num gesto que mal se percebia. “Poole não. Pasquale. Poole nunca foi um matador. Ele não ia além de certo ponto. Não ofenda a sua memória.”
“Mas Pasquale não estava na pedreira naquela noite.”
“Ele estava nas cercanias. Quem você acha que macetou Rogowski no Cunningham Park?”
“Mas Pasquale não teria tido tempo de chegar ao outro lado da pedreira e matar Mullen e Gutierrez.”
Broussard deu de ombros.
“A propósito: por que Pasquale não matou Bubba de vez?”
Broussard franziu o cenho. “Cara, nunca matamos ninguém que não fosse uma ameaça direta para nós. Rogowski não estava sabendo de nada, por isso poupamos sua vida. Você também. Você acha que eu não poderia tê-lo atingido do ponto em que me encontrava na pedreira? Não, Mullen e Gutierrez constituíam uma ameaça direta. Da mesma forma David, Likanski e, infelizmente, Kimmie.”
“E não vamos nos esquecer de Lionel.”
Broussard franziu ainda mais o cenho. “Nunca tive a intenção de atingir Lionel. Mas alguém se apavorou.”
“Quem?”
Ele deu um riso breve, que deixou minúsculas gotas de sangue em seus lábios, e fez uma careta de dor. “Só não se esqueça disto: Poole não era um matador. Não vá querer manchar sua reputação.”
Ele podia estar mentindo para mim, mas francamente eu não via razão nenhuma para isso. Se não fora Poole que matara Pharaoh Gutierrez e Chris Mullen, eu tinha de rever minha interpretação dos fatos.
“A boneca”, eu disse, dando um tapinha em sua mão. Ele abriu um olho. “E o farrapo da camiseta de Amanda encontrado na pedreira?”
“Fui eu que coloquei”, ele esclareceu, abaixando as pálpebras e estalando os lábios. “Eu, eu, eu e eu.”
“Você não é tão talentoso nem tão esperto.”
Ele balançou a cabeça. “Não mesmo?”
“Não mesmo”, confirmei.
Quando ele reabriu os olhos, havia neles a expressão de uma fria lucidez. “Chegue um pouquinho para a esquerda, Kenzie. Deixe-me ver a cidade.”
Saí de sua frente, e ele contemplou a silhueta dos edifícios contra o céu, sorriu diante do espetáculo das luzes tremeluzindo atrás das janelas, do piscar das bóias luminosas e das torres das emissoras de rádio.
“É tão bonita”, disse ele. “Sabe de uma coisa?”
“O quê?”
“Adoro crianças”, ele declarou, com muita simplicidade e brandura.
Sua mão direita procurou a minha, apertou-a, e ambos mergulhamos o olhar no coração da cidade cintilante, de suas luzes, que continham a promessa de uma escuridão macia como veludo, fazendo-nos imaginar existências glamourosas, uma multidão de pessoas elegantes, bem nutridas e bem assistidas, protegidas pela barreira dos vidros e de seus privilégios, por trás de tijolos vermelhos, pelo ferro e pelo aço, escadas em caracol e a visão da água banhada pela luz da lua — essa água que circundava as ilhas e penínsulas que formavam nossa metrópole, protegendo-a da feiúra e da dor.
“Uau”, murmurou ainda Remy Broussard, e sua mão escorregou de dentro da minha.
34
“... quando então o homem identificado posteriormente como o detetive Pasquale respondeu: ‘Temos que fazer isso. Temos ordens. Você tem de fazer. Agora’.” A promotora assistente Lyn Campbell tirou os óculos e franziu o cenho. “A descrição está correta, senhor Kenzie?”
“Sim, senhora.”
“Prefiro que me chame de senhorita Campbell.”
“Sim, senhorita Campbell.”
Ela recolocou os óculos no nariz, e me lançou um olhar através das lentes ovais. “E como você interpretou essas palavras?”
“Entendi que alguém dera ordens ao detetive Pasquale e ao agente Broussard para matar Lionel McCready e provavelmente também a todos nós que estávamos junto com ele no bar.”
Ela folheou suas anotações, as quais — no curso das seis horas em que eu me vi encerrado na sala de interrogatório 6A, do 6º Distrito — foram se avolumando até tomar metade do caderno. O ruído das folhas que ela ia virando, folhas amarfanhadas por seu furioso trabalho com uma esferográfica de ponta fina, lembrava o farfalhar de folhas secas no meio-fio, no fim do outono.
Além de mim e da promotora-assistente Campbell, havia na sala dois detetives da Homicídios, Janet Harris e Joseph Centauro, que não gostavam nem um pouquinho de mim, e meu advogado, Cheswick Hartman.
Cheswick observou por um instante a promotora Campbell virando as páginas, depois falou: “Senhorita Campbell”.
Ela levantou os olhos. “Ahn?”
“Entendo perfeitamente que se trata de um caso importante, que com certeza vai ter ampla cobertura da imprensa. Até agora, meu cliente e eu procuramos colaborar. Mas esta foi uma longa noite, não acha?”
Ela virou mais uma página amarfanhada. “O Estado não está preocupado com o déficit de sono de seu cliente, senhor Hartman.”
“Bom, problema do Estado, porque eu estou.”
Ela descansou a mão no bloco de notas e olhou para ele. “O que o senhor espera que eu faça aqui, senhor Hartman?”
“Espero que a senhorita saia por aquela porta e fale com o promotor Prescott. Espero que diga a ele que não há mais dúvidas sobre o que aconteceu no Edmund Fitzgerald, que meu cliente agiu como qualquer pessoa decente agiria, não sendo, portanto, suspeito da morte do detetive Pasquale nem da do agente Broussard, e que ele deve ser liberado. Observe também, senhorita Campbell, que até agora nossa cooperação foi total, e continuará sendo, desde que a senhorita se disponha a nos dar mostras da mais elementar cortesia.”
“Esse sujeito aí matou um policial”, disse o detetive Centauro. “A gente vai deixar ele ir embora? Acho que não.”
Cheswick cruzou as mãos sobre a mesa, ignorou Centauro e sorriu para Campbell. “Estamos esperando, senhorita Campbell.”
Ela virou mais algumas páginas de suas notas, esperando encontrar alguma coisa, qualquer uma, que servisse de pretexto para me reter.
Cheswick continuou na sala por mais cinco minutos, verificando a situação de Angie, enquanto eu esperava nos degraus da entrada. Os olhares raivosos que os policiais que entravam e saíam me lançavam acabaram me convencendo de que durante algum tempo eu deveria evitar ao máximo ser multado por excesso de velocidade. Talvez pelo resto da vida.
Quando Cheswick veio ao meu encontro, perguntei: “O que vai acontecer agora?”. Ele deu de ombros. “Por algum tempo, Angie não vai poder ir a parte alguma.”
“Por que não?”
Ele olhou para mim como se eu estivesse precisando de uma injeção de Ritalina. “Ela matou um policial, Patrick. Legítima defesa ou não, ela matou um policial.”
“Bem você não devia...”
Ele me interrompeu com um gesto. “Você sabe quem é o melhor advogado criminal desta cidade?”
“Você.”
Ele balançou a cabeça. “Meu sócio, Floris Mansfield. E é ele quem está cuidando do caso de Angie, certo? Portanto, fique frio. Floris é um craque, entendeu? Angie está em boas mãos. Mas ela ainda tem longas horas pela frente. E se ele pegar pesado demais, o promotor vai dizer: ‘Foda-se’, e encaminhar o caso para o grande júri, só para mostrar que está do lado deles. Mas se em vez disso nos dispusermos a obedecer e colaborar, todos vão começar a esfriar e se cansar, percebendo que quanto mais cedo esse troço terminar, melhor.”
Íamos andando pela West Broadway às quatro da manhã. O vento noturno do mês de abril brincava em nossos pescoços como mãos geladas.
“Onde está seu carro?”, perguntou Cheswick.
“Na G Street.”
Ele balançou a cabeça. “Não vá para casa. Metade dos jornalistas desta cidade está lá. E não quero que você fale com eles.”
“E por que os repórteres não estão aqui?”, perguntei, voltando a cabeça e indicando o distrito policial.
“Foram enganados. O sargento da guarda insinuou que vocês todos estavam sendo mantidos na sede do Departamento de Polícia. O truque vai funcionar até o amanhecer; e aí eles virão para cá.”
“Para onde eu vou então?”
“É uma boa pergunta. Você e Angie, intencionalmente ou não, causaram o maior dano à imagem da polícia de Boston desde Charles Stuart e Willie Bennet. Se eu fosse você, mudaria de estado.”
“Eu quis dizer agora, Cheswick.”
Ele deu de ombros, acionou o controle remoto que ficava junto com as chaves do carro. Ouvimos um bip, e as portas do Lexus dele se abriram.
“Que se dane”, eu disse. “Vou para a casa de Devin.”
Ele se voltou para mim. “Amronklin? Você está maluco? Vai se refugiar na casa de um policial?”
“No ventre da fera”, respondi, confirmando com um gesto de cabeça.
Às quatro da manhã, a maioria das pessoas está dormindo, mas Devin não. Ele raramente dorme mais de três ou quatro horas por dia, e em geral nas últimas horas da manhã. O resto do tempo, fica trabalhando ou bebendo.
Devin abriu a porta de seu apartamento, em Lower Mills, e o cheiro de bourbon me indicou que ele não estava trabalhando.
“Ora, ora, o senhor Celebridade”, disse ele, voltando as costas para mim.
Segui-o até a sala de estar, onde vi um folheto de palavras cruzadas aberto na mesinha de centro, entre uma garrafa de Jack Daniel’s, um copo meio cheio e um cinzeiro. A televisão estava ligada, mas com volume bem baixo, e dos alto-falantes nos vinha a voz abafada de Bobby Darin cantando “The good life”.
Devin usava um roupão de flanela sobre uma calça de moletom e um pulôver da Academia de Polícia. Ele se sentou no sofá, ajeitou bem as abas do roupão, pegou o copo, tomou um gole e fitou-me com um olhar que, embora opaco, nem por isso era menos implacável.
“Pegue um copo na cozinha.”
“Não estou muito a fim de beber”, eu disse.
“Patrick, eu só bebo sozinho quando estou sozinho, sacou?”
Peguei o copo, trouxe-o para a sala, e ele me serviu uma boa dose de bourbon. Então levantou o próprio copo.
“Aos assassinos de policiais!”, disse ele, bebendo em seguida.
“Eu não matei um policial.”
“Sua sócia matou.”
“Devin”, eu disse. “Se você vai me tratar assim, eu vou embora.”
Ele ergueu o copo e fez um gesto em direção ao vestíbulo. “A porta está aberta.”
Joguei o copo na mesinha de centro, derramando um pouco de bourbon, levantei bruscamente da cadeira e avancei em direção à porta.
“Patrick.”
Com a mão na maçaneta, voltei a cabeça.
Ficamos ambos calados, enquanto a voz macia de Bobby Darin enchia a sala. Tudo o que minha amizade com Devin tinha de não dito parecia estar suspenso entre nós, enquanto Darin cantava tristemente o abismo que há entre o que se deseja e o que se alcança.
“Pode voltar”, disse Devin.
“Por quê?”
Ele olhou para a mesinha de centro, tirou a caneta de cima do folheto de palavras cruzadas, fechou-o, colocou o copo sobre ele e contemplou através da janela o negrume que precede o amanhecer.
Ele deu de ombros. “Além de policiais e de minhas irmãs, você e Ange são os únicos amigos que tenho.”
Voltei para a cadeira e, com a manga do casaco, limpei os pingos de bourbon na mesinha de centro. “A coisa ainda não acabou, Devin.”
Ele concordou com um meneio de cabeça.
“Alguém encarregou Broussard e Pasquale de nos liquidar.”
Ele se serviu de mais Jack Daniel’s. “Você acha que sabe quem é, não?”
Recostei-me na cadeira, tomei um gole bem pequeno: nunca morri de amores por bebidas fortes. “Broussard disse que Poole não era um matador. Ora, para mim, foi ele quem pegou o dinheiro naquela noite, matou Mullen e Pharaoh e depois passou a grana para uma terceira pessoa. Mas nunca consegui imaginar quem poderia ser essa outra pessoa.”
“Que dinheiro? De que diabos você está falando?”
Passei a meia hora seguinte contando-lhe tudo.
Quando terminei, ele acendeu um cigarro e disse: “Broussard seqüestrou a criança; Mullen o viu. Olamon o chantageia, obrigando-o a recuperar e lhe entregar os duzentos mil. Broussard faz jogo duplo, encarrega alguém de eliminar Mullen e Gutierrez, e outra pessoa de matar Cheese na prisão. É isso?”.
“Matar Mullen e Gutierrez fazia parte do acordo com Cheese”, eu disse. “No mais, é isso mesmo.”
“E você pensava que o matador tinha sido Poole.”
“Até a conversa no terraço com Broussard.”
“Quem teria sido, então?”
“Bem, o problema não é só a morte de Mullen e Gutierrez. Alguém tinha de pegar o dinheiro de Poole e fazê-lo sumir nas barbas de uns cento e cinqüenta policiais. Nenhum tira seria capaz de tal façanha. Tinha de ser alguém do alto comando. Alguém acima de qualquer suspeita.”
Ele levantou a mão. “Ei, espere um pouco. Se você está achando que...”
“Quem autorizou Poole e Broussard a infringir o regulamento e fazer a barganha sem pedir a intervenção federal? Quem dedicou a vida a ajudar crianças, achar crianças desaparecidas, salvar crianças? Quem ficou vagando pelas colinas naquela noite — acrescentei —, sem que ninguém soubesse exatamente onde?”
“Puta que pariu”, ele disse. Então tomou mais um gole, e fez uma careta ao engolir. “Jack Doyle? Você acha que Jack Doyle está metido nessa história?”
“Sim, Devin. Acho Jack Doyle está por trás disso.”
“Puta que pariu”, disse Devin mais uma vez. Depois disso, ouvíamos apenas o leve tilintar dos cubos de gelo fundindo-se em nossos copos.
35
“Antes de criar a BPC”, disse Oscar, “Doyle era da Delegacia de Costumes. Broussard e Pasquale eram seus subordinados. Ele aprovou a transferência deles para a Entorpecentes e os integrou à BPC alguns anos depois, quando foi promovido a tenente. Foi Doyle quem impediu que Broussard fosse transferido para a academia, para trabalhar como instrutor, quando ele se casou com Rachel e os chefões ficaram putos com ele. Eles queriam rebaixá-lo a zero. Queriam que ele fosse embora. Para o pessoal do departamento, casar com uma prostituta é como confessar ser homossexual.”
Filei um cigarro de Devin. Mal o acendi, minha cabeça começou a rodar, e minhas pernas fraquejaram.
Oscar fumou o charuto já meio castigado, colocou-o no cinzeiro e virou mais uma página do bloco de anotações. “Todas as transferências, recomendações e condecorações recebidas por Broussard foram assinadas por Doyle. Ele era o guru de Broussard. E de Pasquale também.”
O dia tinha clareado, mas não se podia perceber isso da sala de estar de Devin. As pesadas cortinas estavam bem fechadas, e na sala ainda se respirava o cheiro ligeiramente metálico do ar noturno.
Devin levantou-se do sofá, tirou um CD de Sinatra do aparelho de som e pôs em seu lugar Dean Martin’s greatest hits.
“O pior de tudo”, disse Oscar, “não é eu estar aqui ajudando a acabar com um policial. O pior é fazer isso ouvindo uma merda dessa.” Por sobre o ombro, Oscar observou Devin recolocar o CD de Sinatra no porta-CDS. “Francamente, você podia pôr aí Luther Allison, ou o álbum de Taj Mahal que lhe dei no Natal — qualquer coisa, menos isso. Droga, eu prefiro aquele lixo que Kenzie costuma ouvir, aqueles branquelos raquíticos com tendências suicidas. Pelo menos eles têm um pouco de sentimento.”
“Onde Doyle mora?”, perguntou Devin, aproximando-se da mesinha de centro para pegar uma caneca de chá. Ele parara de tomar uísque depois de ligar para Oscar.
Oscar franziu o cenho quando Dino começou a cantar “You’re nobody till somebody loves you”.
“Doyle?”, disse Oscar. “Ele tem uma casa em Neponset. A pouco menos de um quilômetro daqui. Se bem que certa vez fui a uma festa surpresa, quando ele completou sessenta anos, em outra casa, numa cidadezinha chamada West Beckett.” Ele olhou para mim. “Kenzie, você acha mesmo que a menina está com ele?”
Fiz que não com a cabeça. “Não tenho certeza. Mas se ele está envolvido nessa história, aposto como tem alguma criança roubada em casa.”
Angie foi liberada às duas da tarde. Eu a esperava na porta dos fundos, para evitar a multidão de jornalistas concentrada na entrada do edifício. Entramos na Broadway e nos encontramos com Devin e Oscar. Depois de desligarem o pisca-alerta, eles avançaram pela ponte em direção a Mass Pike, e nós os seguimos.
“Ryerson com certeza vai sobreviver”, eu disse. “Mas eles não sabem ainda se dá para salvar o braço.”
Ela acendeu um cigarro e balançou a cabeça. “E Lionel?”
“Perdeu o olho direito. Ainda está sob o efeito de sedativos. O caminhoneiro agredido por Broussard sofreu um trauma grave, mas vai se recuperar.”
“Eu gostava dele”, disse Angie, entreabrindo a janela.
“De quem?”
“De Broussard. Gostava mesmo. Sei que ele foi ao bar para matar Lionel, e talvez para nos matar também. E ele estava com a espingarda apontada para mim quando atirei...” Ela levantou as mãos, mas logo as deixou descansar no colo outra vez.
“Você fez o que tinha de fazer.”
Ela balançou a cabeça. “Eu sei. Eu sei que fiz.” Ela fitou o cigarro, que tremia em sua mão. “Mas eu... só queria que não tivesse terminado assim. Eu gostava dele. Só isso.”
Entrei na auto-estrada para Mass Pike. “Eu também gostava dele.”
West Beckett era um quadro de Rockwell no coração das Berkshire Mountains. Campanários brancos emolduravam a cidade como suportes para livros, e a rua principal era ladeada de lojas de antigüidades e de decoração. Circundada por colinas verde-escuras salpicadas de restos de neve que pairavam como nuvens sobre todo aquele verde, a cidadezinha se aninhava no fundo do pequeno vale como uma peça de porcelana no côncavo de uma mão.
A casa de Jack Doyle, como a de Broussard, ficava um pouco afastada da estrada e no alto de um aclive coberto de árvores. A dele, porém, internava-se mais profundamente no bosque, no final de uma estradinha de uns quatrocentos metros. A casa mais próxima, de venezianas fechadas e chaminé inativa, ficava uns bons cinco acres a oeste.
Escondemos os carros a cerca de vinte metros da estrada principal, a meio caminho da propriedade da qual nos aproximamos devagar e com muito cuidado, não apenas porque temos pouco contato com a natureza, mas também porque era mais difícil para Angie andar de muletas num terreno em aclive. Paramos a uns dez metros da clareira onde ficava a casa térrea de Doyle, estilo rancho, toda avarandada, com bastante lenha empilhada sob a janela da cozinha.
A entrada para carros estava vazia, e a casa também parecia estar vazia. Ficamos observando por quinze minutos, e não vimos nenhum movimento por trás das janelas. Tampouco saía fumaça da chaminé.
“Vou até lá”, eu disse finalmente.
“Se ele estiver na casa”, disse Oscar, “tem o direito de atirar em você tão logo ponha o pé na varanda.”
Maquinalmente, levei a mão ao revólver, mas, no instante em que meus dedos tocaram o coldre vazio, lembrei-me de que ele fora apreendido pela polícia.
Voltei-me para Devin e Oscar.
“Negativo”, disse Devin. “Nada de matar mais policiais. Nem mesmo em legítima defesa.”
“E se ele sacar uma arma contra mim?”
“Confie no poder da oração”, respondeu Oscar.
Balancei a cabeça, estendi a mão para abrir caminho entre os arbustos à minha frente, levantei a perna para avançar, e ouvi a voz de Angie: “Espere”.
Parei; todos apuramos o ouvido e escutamos o barulho do motor vindo em nossa direção. Olhamos para a direita e vimos um velho jipe Mercedes-Benz, ainda com uma lâmina limpa-neve fixada à grade do radiador, que subia o aclive aos solavancos e acabou parando na clareira. O jipe estacionou junto aos degraus, o lado do motorista voltado para nós. A porta se abriu, e uma mulher redondinha, expressão franca e simpática, desceu do carro. Ela aspirou o ar, depois lançou um olhar às árvores, mas parecia estar olhando diretamente para nós. Tinha olhos encantadores — o azul mais límpido que já vi em minha vida — e o rosto saudável e radioso de quem respira o ar das montanhas.
“É a mulher dele”, sussurrou Oscar. “Tricia.”
Ela se voltou para pegar alguma coisa no carro, e a princípio pensei que tinha pegado uma sacola de compras, mas de repente senti meu coração saltar dentro do peito.
O queixo de Amanda McCready tombou no ombro da mulher, e seu olhar sonolento parecia me fitar por entre as árvores, polegar na boca, a cabeça coberta por um gorro vermelho e preto com orelheiras.
“Eu sei de gente que dormiu no caminho de casa”, disse Tricia Doyle. “Não foi?”
Amanda voltou a cabeça e encostou-a no pescoço da sra. Doyle. A mulher tirou o gorro de Amanda, passou a mão em seus cabelos, muito brilhantes — quase dourados — sob o verde das árvores e a luminosidade do céu.
“Quer me ajudar a fazer o almoço?”
Vi os lábios de Amanda se mexerem, mas não ouvi o que ela disse. Ela apoiou o queixo novamente, e o sorriso tímido que aflorou em seus lábios era tão contente, tão encantador que abriu meu peito como se fosse um machado.
Ficamos observando-as por mais duas horas.
Na cozinha, elas fizeram sanduíches de queijo fundido. A sra. Doyle manejava a frigideira, e Amanda lhe passava o queijo e o pão. As duas comeram à mesa, e eu, trepado numa árvore, de pé sobre um galho, as observava.
Elas conversavam enquanto comiam os sanduíches e tomavam sopa, uma na frente da outra, gesticulando com as mãos e rindo de boca cheia.
Depois do almoço, as duas lavaram a louça, e Tricia Doyle sentou Amanda no balcão, pôs-lhe novamente o casaco e o chapéu, lançando-lhe um olhar de aprovação quando ela, calçando os tênis sobre o balcão, amarrou os cadarços.
Tricia foi para o interior da casa, imagino que para pegar o próprio casaco e sapatos, e Amanda continuou no balcão. Ela olhou pela janela, e pouco a pouco seu semblante foi sendo dominado por uma expressão de abandono. Ela parecia contemplar alguma coisa para além da janela, para além dos bosques, das montanhas, e eu não saberia dizer se o que desfigurava o seu rostinho eram as sombras assustadoras do passado ou a incerteza esmagadora de seu futuro — futuro no qual, com certeza, ela ainda não acreditava. Naquele instante reconheci nela a filha de sua mãe — a filha de Helene —, e lembrei-me de onde tinha visto aquela expressão antes. Eu a vira no rosto de Helene, na noite em que ela me encontrou no bar e me garantiu que, se tivesse uma segunda chance, nunca mais deixaria Amanda longe de sua vista.
Tricia Doyle voltou para a cozinha: uma nuvem de perplexidade — trazendo a sombra de velhas e novas feridas — turvou o rosto de Amanda, antes de transformar-se num sorriso hesitante, oscilando entre a esperança e a prudência.
No momento em que eu estava descendo da árvore, elas saíram para a varanda, agora acompanhadas de um buldogue parrudo, de pêlo marrom e branco, que combinava com a cor da colina que se via ao fundo — uma extensão de terra devassada e nua protegida por uma crista de neve ainda congelada, assentada entre dois rochedos.
Amanda rolou no chão com o cachorro, gritou de alegria quando ele saltou sobre ela, molhando seu rosto de baba. Ela saiu correndo, e ele a seguiu e pulou em suas pernas.
Tricia Doyle mandou que o cão se deitasse e mostrou a Amanda como escovar seu pêlo, o que ela fez de joelhos, delicadamente, como se penteasse os próprios cabelos.
“Ele não gosta disso”, ouvi-a dizer.
Era a primeira vez que eu ouvia sua voz. Era clara, vibrante de curiosidade e inteligência.
“Ele gosta mais quando é você quem escova”, disse Tricia. “Sua mão é mais leve do que a minha.”
“É mesmo?”, perguntou ela, fitando o rosto de Tricia Doyle e continuando a escovar o pêlo do buldogue com movimentos lentos e regulares.
“É sim. Muito mais leve. Com estas minhas mãos de velha, tenho de segurar com tanta força que às vezes quem paga o pato é o nosso velho Larry.”
“Por que ele se chama Larry?” Amanda perguntou isso com voz cantante, acentuando um pouco a segunda sílaba.
“Essa história eu já lhe contei”, disse Tricia.
“Conta de novo, por favor?”
Tricia Doyle deu um risinho. “Quando me casei com o senhor Doyle, ele tinha um tio parecido com um buldogue. Ele tinha umas bochechas grandes, caídas.”
Com a mão livre, Tricia Doyle puxou as próprias bochechas para baixo, aproximando-as do queixo.
Amanda riu. “Ele se parecia com um cachorro?”
“Parecia sim, meu bem. E às vezes ele até latia.”
Amanda riu outra vez. “É mesmo?”
“Ah, sim. Ruff! ”
“Ruff! ”, repetiu Amanda.
A essa altura, o cão resolveu entrar na brincadeira. A sra. Doyle o soltou, Amanda largou a escova, e os três ficaram alguns instantes no chão, latindo uns para os outros.
Ali entre as árvores, nenhum de nós se mexeu nem falou pelo resto da tarde. Ficamos olhando-as brincar com o cachorro e uma com a outra, construir uma miniatura da casa com velhos bloquinhos de construção. Vimos as duas sentadas num banco encostado às grades da varanda, protegendo-se do frio com um xale, o cachorro a seus pés, a sra. Doyle falando, o queixo apoiado na cabeça de Amanda, que lhe respondia com a cabeça encostada em seu peito.
Acho que nós todos, escondidos ali no mato, nos sentíamos indignos, mesquinhos e estéreis. Sem filhos. Incapazes e não desejosos, pelo menos até então, de aceitar os sacrifícios requeridos pelo papel de pais. Burocratas perdidos no meio do mato.
Elas já tinham entrado na casa de mãos dadas, o cão nos seus calcanhares, quando Jack Doyle apareceu na clareira. Ele saiu de seu Ford Explorer trazendo debaixo do braço uma caixa cujo conteúdo, fosse qual fosse, fez Tricia Doyle e Amanda gritarem quando ele a abriu, dentro de casa, alguns minutos depois.
Os três foram para a cozinha. Amanda, empoleirada no balcão, falava sem parar, as mãos reproduzindo o gesto de escovar Larry, os dedos agarrando as bochechas, imitando a descrição que Tricia fizera das bochechas do velho tio Larry. Jack Doyle jogou a cabeça para trás numa gargalhada, apertando a menina contra o peito. Quando ele se sentou no balcão, ela se agarrou a ele, esfregando o rosto contra sua barba nascente.
Devin enfiou a mão no bolso, pegou o celular e discou para a telefonista. Quando ela atendeu, ele disse: “Escritório do xerife de West Beckett, por favor”. Ele repetiu em voz baixa o número que ela lhe disse e digitou os algarismos no teclado do celular.
Antes que tivesse tempo de apertar SEND, Angie pôs a mão em seu pulso. “O que você está fazendo, Devin?”
“O que você está fazendo, Angie?”, disse ele, olhando para a mão dela.
“Você vai prendê-los?”
Ele olhou para a casa, depois para ela, e respondeu de cara fechada: “Sim, Angie. Vou prendê-los”.
“Você não pode fazer isso.”
Ele puxou o braço. “Claro que posso.”
“Não. Ela...”, disse Angie, apontando por entre as árvores. “Você não estava vendo? Eles são muito carinhosos com ela. Eles... por Deus, Devin, eles a amam.”
“Eles a seqüestraram”, disse ele. “Você se esqueceu dessa parte?”
“Devin, não. Ela está...” Angie abaixou a cabeça por um instante. “Se nós os prendermos, eles vão devolver Amanda para Helene. Ela vai acabar com a vida da menina.”
Sem acreditar no que ouvia, ele a encarou por alguns instantes. “Escute aqui, Angie. Aquele cara ali é um policial. Não gosto de prender policiais. Mas, caso você tenha esquecido, aquele policial está implicado na morte de Chris Mullen, Pharaoh Gutierrez e Cheese Olamon. Se não diretamente, pelo menos de forma tácita. Ele ordenou a execução de Lionel McCready e, provavelmente, também a de vocês. Suas mãos estão sujas do sangue de Broussard e de Pasquale. Ele é um assassino.”
“Mas...”, disse ela, lançando um olhar desesperado à casa.
“Mas o quê?”, perguntou Devin, o semblante dominado pela raiva e pela perplexidade.
“Eles amam a menina”, disse Angie.
Devin acompanhou o olhar de Angie e viu Jack e Tricia Doyle na cozinha, cada um segurando uma das mãos de Amanda, balançando-a no ar.
A expressão do rosto de Devin suavizou-se, e me pareceu que em seu peito nascia uma dor surda, quando uma sombra lhe perpassou o rosto e os olhos se abriram um pouco mais, como que apanhados por uma brisa.
“Helene McCready vai destruir aquela vida”, disse Angie. “Não há dúvida. Você sabe disso. Você também sabe disso, Patrick.”
Desviei o olhar.
Devin respirou fundo, e sua cabeça inclinou-se bruscamente para o lado, como se tivesse levado um soco. Então ele balançou a cabeça, apertou os olhos, deu as costas para a casa e apertou a tecla SEND do celular.
“Não”, disse Angie. “Não.”
Sob nossos olhares, Devin levou o fone ao ouvido, e ouvimos o telefone chamar do outro lado da linha. Depois de algum tempo ele tirou o aparelho do ouvido e apertou a tecla END.
“Não tem ninguém lá. Numa cidade desse tamanho, o xerife também serve de carteiro. Com certeza saiu para entregar a correspondência.”
Angie fechou os olhos e respirou fundo.
Um falcão levantou vôo por sobre as copas das árvores, cortou o ar frio com seu grito agudo, um som lancinante que sempre me faz pensar numa súbita explosão de cólera, provocada por um ferimento.
Devin enfiou o telefone no bolso e tirou o distintivo. “Foda-se. Vamos lá.”
Voltei-me para a casa, e Angie agarrou meu braço, obrigando-me a encará-la. Cabelos caídos sobre os olhos, ela tinha um ar feroz, dilacerado.
“Patrick, Patrick, não, não, não. Por favor, pelo amor de Deus. Não. Fale com ele. Não podemos fazer isso. De jeito nenhum.”
“É a lei, Ange.”
“É um absurdo! É... injusto. Eles amam a menina. Doyle agora não é mais ameaça para ninguém.”
“Você pirou”, disse Oscar.
“Quem?”, exclamou Angie. “Quem estaria em perigo? Agora que Broussard está morto, ninguém sabe quem participou do seqüestro. Ele não tem nada a proteger. Ninguém representa uma ameaça para ele.”
“Nós somos uma ameaça!”, disse Devin. “Você está drogada ou o quê?”
“Mas só se resolvermos agir”, disse Angie. “Se formos embora agora e não contarmos nada a ninguém, a coisa morre aqui.”
“Ele está com uma criança seqüestrada”, disse Devin, o rosto a poucos centímetros do de Angie.
Ela se voltou bruscamente para mim. “Ouça, Patrick. Ouça. Ele...” Ela esmurrava meu peito. “Não faça isso. Por favor. Por favor!”
A lógica e a razão pareciam tê-la abandonado. Não havia nela senão desespero, medo, um desejo ardente. E dor. Rios de dor.
“Angie”, eu disse num tom brando. “A menina não lhes pertence, Angie. Pertence a Helene.”
“Helene é um veneno para ela, Patrick. Eu já lhe disse isso há muito tempo. Ela vai destruir tudo o que essa criança tem de vital. Ela vai encarcerá-la. Ela...” Lágrimas rolavam-lhe pelas faces, acumulando-se nos cantos dos lábios, sem que ela se desse conta. “Helene é a encarnação da morte. Se vocês tirarem a menina dessa casa, essa é a sentença que estarão dando a ela. Uma morte lenta.”
Devin olhou para Oscar, depois para mim. “Não agüento mais ouvir isso.”
“Por favor! ” As palavras saíram da boca de Angie como o silvo de uma chaleira, e todo o seu rosto contraiu-se num ricto de dor.
Pus as mãos em seus braços. “Angie”, eu disse suavemente. “Talvez você esteja enganada em relação a Helene. Ela aprendeu a lição. Ela tem consciência de que foi uma mãe relapsa. Se você a tivesse visto na noite em que eu...”
“Vá se foder!”, disse ela, num súbito tom glacial. Empurrou minhas mãos de seus braços e enxugou as lágrimas num gesto brusco. “Não me venha com essa história de que você a viu, e que ela estava morrendo de tristeza. Onde você a encontrou, Patrick? Num bar, não foi? Foda-se você e essa história de que ‘as pessoas aprendem’. As pessoas não aprendem. As pessoas não mudam.”
Ela se afastou de nós para pegar os cigarros na bolsa.
“Não temos o direito de julgar”, argumentei. “Não temos...”
“E quem é que tem?”, perguntou Angie.
“Eles com certeza não”, respondi, apontando do meio das árvores para a casa. “Aquela gente resolveu julgar se determinadas pessoas estavam aptas para criar os filhos. Quem dá a Doyle o direito de decidir isso? E se ele encontrar uma criança que está sendo educada numa religião de que ele não gosta? E se ele não gostar de pais que são gays, negros ou têm tatuagens? Hein?”
Uma sombra de fúria glacial anuviou seu rosto. “Não estamos falando sobre isso, e você sabe muito bem. Estamos falando sobre este caso bem determinado, de uma criança determinada. Não me venha com toda essa lengalenga filosófica de que os jesuítas o empanturraram. Você não tem colhões para fazer o que é justo, Patrick. Nenhum de vocês tem. Só isso. Vocês não têm colhões.”
Oscar ficou olhando por entre as árvores. “Talvez a gente não tenha mesmo.”
“Vão”, disse ela. “Vão prendê-los. Mas eu não vou ficar aqui olhando.” Ela pegou o cigarro, e suas costas se enrijeceram. Então colocou o cigarro entre os dedos e agarrou as muletas com força.
“Vou odiar vocês três por isso.”
Nós a seguimos com o olhar, enquanto ela avançava claudicante entre as árvores, em direção ao carro.
Durante toda a minha carreira de detetive particular, nada foi mais terrível e mais desgastante do que ver Oscar e Devin prenderem Jack e Tricia Doyle na cozinha de sua casa.
Jack nem ensaiou uma resistência. Sentou-se numa cadeira junto à mesa da cozinha, trêmulo. Ele chorou, Tricia arranhou Oscar quando ele arrancou Amanda de seus braços, e Amanda esperneou e esmurrou Oscar aos gritos: “Não, vovó! Não! Não deixe ele me levar! Não deixe!”.
Na segunda vez que Oscar telefonou, o xerife atendeu, e apareceu na estrada de acesso à casa alguns minutos depois. Ao entrar na cozinha, pareceu desconcertado ao ver Amanda inerte, desamparada, nos braços de Oscar, e Tricia Doyle, que apoiara a cabeça de Jack em seu ventre, ninando-o, enquanto ele soluçava baixinho.
“Oh, meu Deus”, murmurava Tricia Doyle, vislumbrando de repente o fim de sua vida com Amanda, o fim da liberdade, o fim de tudo.
“Oh, meu Deus”, sussurrou ela novamente, e me peguei perguntando a mim mesmo se Ele a ouvira, se Ele ouvira Amanda gemer no peito de Oscar, se ouvira Devin ler para Jack seus direitos legais. Se é que Ele ouvira alguma coisa.
EPÍLOGO
O REENCONTRO DE MÃE E FILHA
“O reencontro de mãe e filha”, como dizia a manchete do News da manhã seguinte, foi transmitido ao vivo às 8h05 da noite, por todas as emissoras locais, no dia 7 de abril.
Sob a forte luz dos refletores, Helene desceu rapidamente a escadinha da entrada da casa, por entre a multidão de repórteres, e tomou Amanda dos braços da assistente social. Ela soltou um grito e, com lágrimas a escorrer-lhe pelas faces, beijou o rosto, a testa, os olhos e o nariz de Amanda.
Amanda cingiu o pescoço da mãe, encostou o rosto em seu ombro, e ouviu-se o aplauso entusiástico dos vizinhos. Helene, parecendo ter sido despertada pelo barulho, ficou perplexa por um instante, sorriu acanhada, piscou ante as luzes dos refletores, afagou as costas da filha, e o sorriso se abriu ainda mais.
Bubba, na frente da televisão de minha sala de estar, olhou para mim.
“Agora está tudo bem, certo?”
Olhei para a televisão e balancei a cabeça. “Parece que sim.”
Ele se voltou quando Angie veio pelo corredor carregando mais uma caixa, colocando-a diante da porta de entrada e voltando em seguida ao nosso quarto.
“Por que ela está indo embora?”
Dei de ombros. “Pergunte a ela.”
“Já perguntei. Ela não quer me dizer.”
Dei de ombros novamente. Eu não tinha coragem de responder.
“Ei, cara”, ele disse. “Não gosto de ajudar a mulher de ninguém a mudar, sabe? Mas ela me pediu.”
“Tudo bem, Bubba. Tudo bem.”
Na televisão, Helene disse a um repórter que se considerava a mulher mais feliz do mundo.
Bubba balançou a cabeça, saiu da sala, pegou a pilha de caixas que estava no vestíbulo e desceu as escadas com ela.
Encostei-me à porta do quarto e fiquei olhando Angie tirar blusas do closet, jogando-as na cama.
“Você vai ficar bem?”, perguntei.
Ela estendeu o braço, pegou alguns cabides pelo cabo. “Vou ficar bem, sim.”
“Acho que devíamos conversar sobre isso.”
Ela alisou as dobras da blusa que estava no alto da pilha. “Já falamos sobre isso. Lá no bosque. Não tenho mais nada a dizer.”
“Pois eu sim.”
Angie abriu uma bolsa de viagem, colocou dentro dela uma pilha de roupas e fechou o zíper.
“Pois eu sim”, repeti.
Ela disse: “Alguns desses cabides são seus. Depois eu devolvo”.
Então pegou as muletas e veio em minha direção.
Continuei onde estava, impedindo a passagem.
Ela abaixou a cabeça, fitou o chão. “Você vai ficar aí pra sempre?”
“Não sei. O que você acha?”
“Eu só quero saber se largo as muletas ou não. Quando fico parada, meus braços começam a ficar dormentes.”
Afastei-me um pouco, ela passou pela porta e encontrou Bubba, que já estava de volta.
“Tem mais uma bolsa na cama”, disse Angie. “É a última.”
Ela se dirigiu às escadas, e logo depois ouvi o barulho das muletas quando ela as segurou com uma mão, apoiando-se com a outra no corrimão para descer os degraus.
Bubba pegou a bolsa da cama.
“Cara”, ele disse. “O que é que você fez com ela?”
Lembrei-me de Amanda sentada no banco da varanda nos braços de Tricia Doyle, as duas envoltas no xale por causa do frio, entregues à sua conversa tranqüila, íntima.
“Parti seu coração”, respondi.
Nas semanas seguintes, Jack Doyle, sua mulher, Tricia, e Lionel McCready foram acusados, por um tribunal federal, de seqüestro, encarceramento de menor, negligência e de colocar em risco a vida de uma criança. Jack Doyle foi acusado também da morte de Christopher Mullen e Pharaoh Gutierrez e de tentar matar Lionel McCready e o agente federal Neal Ryerson.
Ryerson teve alta do hospital. Os médicos salvaram-lhe o braço, mas este ficou mole e inerte, talvez temporariamente, talvez para sempre. Ele voltou para Washington, onde passou a trabalhar no Programa de Proteção a Testemunhas.
Fui intimado a comparecer diante do grande júri e dar meu testemunho sobre o caso que a imprensa batizou de “O escândalo de copnapping”.* Ninguém parecia notar que o próprio termo sugeria policiais como vítimas de seqüestro, e não como seqüestradores, e ele logo passou a ser usado para designar aquele caso momentoso, da mesma forma como o termo Watergate foi usado para designar as falcatruas e a corrupção do governo Nixon.
No tribunal, meu depoimento sobre a conversa que tive com Broussard em seus últimos minutos de vida não foi levado em conta porque não havia como provar. Pediram que eu relatasse apenas o que observara e anotara em meu dossiê sobre o caso.
Ninguém foi responsabilizado pelos assassinatos de David Martin, Kimmie Niehaus, Sven “Cheese” Olamon e Raymond Likanski, cujo corpo nunca foi encontrado.
O promotor federal me disse duvidar que Jack Doyle fosse condenado pela morte de Mullen e Gutierrez, mas como era evidente que estava envolvido nos crimes, pegaria uma pena pesada pelo seqüestro, e nunca mais sairia da prisão.
Rachel e Nicholas Broussard sumiram, não se sabe com que destino, na noite da morte de Remy; a promotoria supõe que ela tenha levado os duzentos mil dólares que pertenciam a Cheese.
Descobriu-se que os esqueletos encontrados no porão da casa de Leon e Roberta Trett eram do menino de cinco anos que desaparecera de Vermont ocidental dois anos antes e de uma menina de sete anos que ainda não fora identificada nem reclamada por ninguém.
Em junho, fui visitar Helene.
Ela me deu um abraço apertado, e seus pulsos ossudos me machucaram o pescoço. Ela cheirava a perfume e usava um batom vermelho brilhante.
Amanda estava sentada no sofá da sala de estar, assistindo a uma sitcom sobre um pai solteiro com dois gêmeos precoces de seis anos. O pai era governador, senador ou algo assim. Ele parecia estar o tempo todo no trabalho, e, até onde pude ver, não havia babá. Um agregado da casa, de origem hispânica, aparecia de vez em quando, reclamando o tempo todo da esposa, Rosa, que vivia com dor de cabeça. Suas piadas tinham sempre alguma alusão sexual, e os gêmeos riam com ar de entendidos, enquanto o governador tentava ficar sério e disfarçava um sorriso. O público adorava aquilo. A cada piada, morria de rir.
De sua parte, Amanda não se manifestava. Estava vestida com uma camisola rosa que precisava urgentemente de lavagem, e não me reconheceu.
“Querida, esse é Patrick, amigo da mamãe.”
Amanda olhou para mim e fez um aceno com a mão.
Respondi ao aceno, mas ela já estava de olhos pregados na televisão.
“Ela adora esse programa, não é, queridinha?”
Amanda não respondeu.
Helene andava pela sala, cabeça inclinada, enquanto punha um brinco na orelha. “Sabe, Bea odeia você pelo que fez com Lionel, Patrick.”
Eu a segui, enquanto ela pegava objetos da mesa, colocando-os em sua bolsa.
“Deve ser por isso que não pagou meus honorários.”
“Você podia processá-la, não? Podia, não?”
Fingi que não ouvi. “E você?”, perguntei. “Você me odeia?”
Ela balançou a cabeça, ajeitando os cabelos com as mãos, dos dois lados da cabeça. “Você está brincando? Lionel roubou minha filha. É meu irmão, mas... foda-se. Ela podia se ferir, sabe?”
Notei um leve tremor na face de Amanda quando a mãe disse “foda-se”.
Helene enfiou nos braços três braceletes de plástico de cores vivas e sacudiu as mãos para ajustá-los ao pulso.
“Você vai sair?”, perguntei.
Ela sorriu. “Sabe, tem um cara que me viu na televisão e pensa que sou... uma espécie de estrela.” Ela desatou a rir. “Não é um barato? Bom, pra encurtar a história, ele me convidou pra sair. Ele é bacana.”
Olhei para a criança sentada no sofá.
“E Amanda?”
Helene abriu um largo sorriso. “Dottie vai ficar com ela.”
“Dottie já sabe disso?”, perguntei.
Helene deu um risinho. “Ela vai chegar dentro de uns cinco minutos.”
Olhei para Amanda e vi a imagem de um abridor de latas elétrico refletida em seu rosto. Vi a lata se abrindo como uma boca em sua testa, o queixo quadrado banhado em azul e branco, os olhos abertos olhando sem interesse enquanto tocava o jingle. O abridor foi substituído por um setter que passou num salto pela testa de Amanda e rolou no gramado.
“O caviar da comida para cães”, disse uma voz. “Por que seu cão não pode ser tratado como um membro da família?”
Depende do cão, pensei. Depende da família.
Uma sensação repentina de doloroso cansaço me apertou o peito, cortando-me a respiração, e sumiu tão de repente como surgira, deixando uma dor lancinante nas articulações.
Tive de fazer um esforço para atravessar a sala. “Até logo, Helene.”
“Ah, você já vai? Até mais!”
Parei na porta. “Tchau, Amanda.”
Os olhos de Amanda permaneceram fixos na televisão, o rosto mergulhado em seu brilho estanhado. “Tchau”, ela disse, e me pareceu que bem podia estar falando com o agregado hispânico, naquela altura a caminho de casa, para encontrar-se com Rosa.
Já na rua, fiquei andando por algum tempo, e terminei parando no parque Ryan. Sentei-me no banco onde me sentara com Broussard e contemplei a fonte inacabada perto da qual Oscar e eu salvamos uma criança da sanha assassina de Gerry Glynn.
Mas o que tínhamos feito agora? Que crime tínhamos cometido no bosque de West Beckett, na cozinha em que arrancamos uma criança das mãos de um casal sem direitos legais sobre ela?
Levamos Amanda McCready de volta para casa. Foi isso que fizemos, eu disse para mim mesmo. Não cometemos nenhum crime. Nós a devolvemos à sua legítima dona. Nada mais. Nada menos.
Foi isso que fizemos.
Nós a levamos de volta para casa.
(*) Copnapping: aglutinação de cop, policial, e nap, forma reduzida de kidnap, seqüestrar. (N. T.)
Port Mesa, Texas
Outubro de 1998
Naquela noite, no Crockett’s Last Stand, Rachel Smith ouvia uma conversa de bêbados sobre as coisas pelas quais vale a pena morrer.
A pátria, disse um rapaz recém-saído do serviço militar, e todos fizeram um brinde.
O amor, disse outro cara, provocando risos zombeteiros.
Os Dallas Mavericks!, gritou alguém. A gente sofre com eles desde que entraram na NBA.
Sonoras gargalhadas.
Existem muitas coisas pelas quais vale a pena morrer, diz Rachel Smith, aproximando-se da mesa, copo de uísque na mão, depois de terminado o expediente. Todos os dias pessoas morrem, diz ela. Por causa de cinco dólares. Por cruzar o olhar com a pessoa errada, na hora errada. Por causa de camarões.
Morrer não é uma boa medida do valor de uma pessoa, diz ela.
Então o que é?, pergunta alguém.
Matar, diz Rachel.
Há um momento de silêncio enquanto os homens do bar observam Rachel, e o tom duro e calmo de sua voz combina com o brilho estranho que às vezes se vê em seu olhar, o brilho que deixa você nervoso se olhar muito de perto.
Elgin Bern, capitão do Blue’s Eden, o melhor camaroneiro de Port Mesa, finalmente pergunta: O que a faria matar, Rachel?
Rachel sorri, levanta o copo de uísque, de forma que a luz da lâmpada fluorescente acima da mesa de bilhar se reflete nos cubos de gelo.
Minha família, diz Rachel. E só minha família.
Alguns rapazes riem nervosamente.
Sem pestanejar, ela acrescenta. Sem olhar para trás.
Sem a menor piedade.
Dennis Lehane
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