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GÓRGIAS I — Na guerra e no combate, Sócrates, segundo o provérbio, é que é preciso proceder dessa maneira. Sócrates — Será que chegamos atrasados e, como se diz, depois da festa? Cálicles — Sim, e uma festa citadina! Agora mesmo, Górgias nos expôs um mundo de coisas belas. Sócrates — A culpa, Cálicles, é do nosso amigo Querefonte, que nos reteve na ágora. Querefonte — Não faz mal, Sócrates; vou reparar o dano. Como amigo meu, que é, Górgias falará para nós, ou agora, ou noutra ocasião, conforme preferires. Cálicles — Que estás dizendo, Querefonte! Sócrates deseja ouvir Górgias? Querefonte — Para isso é que estamos aqui. Cálicles — Então, quando quiserdes, ide a minha casa, pois Górgias hospedou- se comigo e vos falará. Sócrates — É muita gentileza de tua parte, Cálicles. Mas, dispor-se- á ele, de fato, a conversar conosco? Desejo perguntar- lhe em que consiste a força de sua arte e o que é que ele professa e ensina. Quanto ao resto da exposição, poderá ficar, como disseste, para outra oportunidade. Cálicles — Não há como falares tu mesmo, Sócra tes. Isso, aliás, faz parte de sua exposição. Neste momento, convidou as pessoas ali presentes a lhe dirigirem as perguntas que quisessem, comprometendo- se a responder a todas. Sócrates — Ótimo, Querefonte . Então, fala -lhe. Querefonte — Que devo perguntar- lhe? Sócrates — O que ele é. Querefonte — Que queres dizer com isso? Sócrates — Se ele, por exemplo, fabricasse sapatos, responderia que trabalhava com couro. Ou não compreendes o que eu falo?
II — Querefonte — Compreendo e vou perguntar- lhe. Dize -me, Górgias: é verdade o que afirmou o nosso amigo Cálicles, que te comprometes a responder a seja o que for que te perguntarem? Górgias — É verdade, Querefonte; foi isso mesmo que declarei há pouco, e posso assegurar- te que há muitos anos ninguém me apresentou uma questão nova. Querefonte — Tanto mais fácil, Górgias, para responderes. Górgias — Depende apenas de ti, Querefonte, fazer a experiência. Polo — Sim, por Zeus. Mas, se estiveres de acordo, Querefonte, faze a experiência comigo. Acho que Górgias deve estar cansado de tanto falar. Cálicles — Como assim, Polo? Pensas que podes responder melhor do que Górgias? Polo — E o que vai nisso? Basta que seja suficiente para ti. Cálicles — Nada me vai nisso. Então, se assim preferes, responde. Polo — Pergunta. Cálicles — Vou perguntar. Se Górgias fosse profissional da arte que seu irmão Heródico exerce, por que nome certo o designaríamos? O mesmo que damos àquele, não é verdade? Polo — Perfeitamente Cálicles — Se disséssemos, portanto que ele era médico, ter- nos -íamos expressado com correção. Polo — Sim. Cálicles — E caso ele fosse perito na arte de Aristofonte, filho de Aglaofonte, de que modo lhe chamaría mos com acerto? Polo — Pintor, evidentemente. Cálicles — E agora, de que arte ele entende e por que nome certo devemos denominálo?
Polo — Querefonte, no mundo há muitas artes experimentais que a experiência descobriu. A experiência faz que nossa vida seja dirigida de acordo com a arte, e a inexperiência a entre ga ao acaso. Uns são proficientes numas; outros, noutras; cada um a seu modo; os me lhores o são nas melhores. Górgias é um destes e participa da mais nobre das artes. Sócrates — Górgias, parece que Polo tem muita prática de falar; porém não cumpre o que prometeu a Que refonte. Górgias — Como assim, Sócrates?
Sócrates — O que digo é que ele não responde exa tamente ao que lhe é perguntado. Górgias — Então, se quiseres, tu mesmo podes in terrogá- lo. Sócrates — Não; porém, se não te aborreceres de responde r, com a maior satisfação te dirigirei as perguntas. Do que Polo falou, tornou-se- me evidente que ele se tem dedicado mais à arte denominada retórica do que à da conversação. Polo — Como assim, Sócrates? Sócrates — Porque, Polo, te havendo perguntado Querefonte em que arte Górgias é experiente, elogias a sua arte como se alguém a tivesse diminuído, porém não declaraste qual ela seja. Polo — Não respondi que é a mais bela? Sócrates — Respondeste; mas ninguém te interpelou sobre o valor da arte de Górgias, porém qual seja ela e que nome, por isso, devemos dar a Górgias. Assim como respondeste antes a Querefonte, com clareza e concisão quando ele se dirigiu a ti, declara -nos agora qual é a arte de Górgias e que nome devemos dar a este. Mas é preferível, Górgias, que tu mesmo fales. Por que modo deves ser designado, como profissional de que arte? Górgias — De retórica, Sócrates. Sócrates — Então, teremos de dar- te o nome de orador? Górgias — E excelente orador, Sócrates, o que só de nomear me envaidece, se quiseres aplicar no meu caso a linguagem de Homero. Sócrates — É isso mesmo que eu quero. Górgias — Então, chama- me assim. Sócrates — E não devemos também dizer que podes ensinar tua arte a outras pessoas? Górgias — E é o que, de fato, anuncio, não apenas a qui como em outras localidades. Sócrates — E não consentirias, Górgias, em prosseguir numa troca de perguntas e respostas, assim como estamos conversando, e em deixar para outra ocasião os discursos prolixos que Polo iniciou? Porém cumpre o que nos prometeres e dispõe- te a responder por maneira concisa às perguntas que te forem apresentadas. Górgias — Há respostas, Sócrates, que exigem exposição mais particularizada. Contudo, procurarei esforçar- me em ser breve, pois um dos pontos de que me gabo é de ninguém dizer as mesmas coisas com maior concisão do que eu. Sócrates — Isso é que é preciso, Górgias; dá- me uma amostra desse teu talento, a breviloquência, e deixemos para outra ocasião os discursos estirados. Górgias — Assim farei, para que venhas a confessar que nunca ouviste ninguém falar com maior concisão.
IV — Sócrates — Então, comecemos. Já que te apresentas como entendido na arte da retórica e também como capaz de formar oradores: em que consiste particularmente a arte da retórica? Assim, por exemplo, a arte do tecelão se ocupa com o preparo das roupas, não é verdade? Górgias — Sim. Sócrates — E a música, com a composição do canto? Górgias — Sim. Sócrates — Por Hera, Górgias! Tuas respostas me agradam; mais concisas não poderiam ser. Górgias — Eu também, Sócrates, acho que estou respondendo como é preciso. Sócrates — Dizes bem. Então, responde -me da mesma forma a respeito da retórica: qual é o objeto particular do seu conhecimento? Górgias — Os discursos. Sócrates — De que discursos, Górgias? Porventura os que indicam aos doentes o regime a ser seguido para sararem? Górgias — Não. Sócrates — Logo, a retórica não diz respeito a todos os discursos. Górgias — É claro que não. Sócrates — No entanto, ela ensina a falar. Górgias — Sim. Sócrates — E, por conseguinte, também a compreender os assuntos sobre que ensina a falar. Górgias — Como não? Sócrates — E a medicina, a que nos referimos há pouco, não deixa também os doentes capazes de pensar e de falar? Górgias — Necessariamente. Sócrates — Sendo assim, a medicina, ao que parece, também se ocupa com discursos? Górgias — Sim. Sócrates — Os que se referem às doenças? Górgias — Exatamente.
Sócrates — E a ginástica, não se ocupará também com discursos relativos à boa ou má disposição do corpo? Górgias — Sem dúvida. Sócrates — O mesmo se dá com as demais artes, Górgias, ocupando- se cada uma com discursos relativos ao objeto de que seja propriamente arte. Górgias — É evidente. Sócrates — Então, por que não dás o nome de retó rica às outras artes, se todas ela s se ocupam com discursos, e chamas à retórica arte dos discursos? Górgias — É porque nas outras artes, Sócrates, todo o conhecimento, por assim dizer, diz respeito a trabalhos manuais ou a práticas do mesmo tipo, ao passo que a retórica nada tem que ver com a atividade das mãos, sendo alcançados por meio de discursos todos os seus atos e realizações. E por isso que eu considero a retórica arte do discurso, e com razão, segundo penso. V — Sócrates — Será que compreendi tua definição? Daqui a pouco ficarei sabendo isso melhor. Responde -me ao seguinte: temos artes; não é verdade? Górgias — Sim. Sócrates — Entre essas artes, quero crer, algumas há em que predomina a atividade, podendo ser exercidas em silêncio, como se dá com a pintura, a escultura e mais algumas. São essas, segundo penso, que tu dizes não terem nenhuma relação com a retórica. Ou não? Górgias — Apanhaste muito bem o meu pensamento, Sócrates. Sócrates — Porém artes há que tudo realizam por meio da palavra, sem recorrerem de nenhum modo, por assim dizer, à ação, ou muito pouco, como a aritmética, o cálculo, a geometria, o gamão e muitas mais, em que os discursos se equilibram com as ações; mas, na maioria, eles predominam, de forma que toda a eficiência de suas realizações depende essencialmente da palavra. Entre essas, quero crer, é que incluis a retórica. Górgias — É muito certo. Sócrates — Todavia, creio que não dás o nome de retórica a nenhuma das artes mencionadas, embora te nhas dito expressamente que a retórica é a arte cuja força consiste no discurso. Se algum trocista quisesse especular com tuas palavras, poderia perguntar- te: Então, Górgias, é à aritmética que dás o nome de retórica? Porém quero crer que não denominas retórica nem a aritmética nem a geometria. Górgias — Estás certo, Sócrates, e interpretas bem o meu pensamento. VI — Sócrates — Cabe -te, agora, completar a resposta á pergunta que te apresentei.
Uma vez que a retó rica é dessas artes que se valem principalmente da pala vra, e havendo outras nas mesmas condições, procura explicar agora como atinge sua finalidade por meio da palavra a arte da retórica? É como se alguém me interpelasse acerca de qualquer das artes que mencionei: Sócrates, que é a aritmética? Eu responderia como o fizeste há pouco, que é uma arte que se exerce por meio da palavra. E se ele voltasse a perguntar: com relação a quê?
responderia: Com relação ao conhecimento do par e do ímpar e à quantidade de cada um. E no caso de insistir: E como dizes que seja a arte do cálculo? responderia que é também uma arte que tudo realiza por meio da palavra. E se tornasse a perguntar: Com relação a quê? eu me expressaria como os redatores de decretos das assembléias do povo: Tudo o mais como antes. O cálculo é como a aritmética, pois diz também respeito ao par e ao ímpa r, diferençando- se o cálculo em não considerar apenas em si mesmo o valor numérico do par e do ímpar, mas também em suas relações recíprocas. E se, depois de interrogar- me a respeito da astronomia e de eu dizer que ela também consegue tudo por meio da palavra, insistisse essa pessoa: E com que se relacionam os discursos da astronomia, Sócrates? dir- lhe- ia que se relacionam com o curso dos astros, do sol e da lua, e de suas relativas velocidades. Górgias — E terias respondido com muito acerto, Sócrates. Sócrates — É tua, agora, a vez, Górgias. A retórica está incluída entre as artes que se exercem e atingem sua finalidade por meio de discursos, não é verdade? Górgias — É isso mesmo. Sócrates — Então, dize a respeito de quê. A que classe de coisas se referem os discursos de que se vale a retórica? Górgias — Aos negócios humanos, Sócrates, e os mais importantes. VII — Sócrates — Mas isso, Górgias, também é ambíguo e nada preciso. Creio que já ouviste os comensais entoar nos banquetes aquela cantilena em que fazem a enumeração dos bens e dizer que o melhor bem é a saúde; o segundo, ser belo; e o terceiro, conforme se exprime o poeta da cantilena, enriquecer sem fraude. Górgias — Já ouvi; mas, a que vem isso? Sócrates — E que poderias ser assaltado agora mesmo pelos profissionais dessas coisas elogiadas pelo autor da cantilena, a saber, o médico, o pedótriba e o economista, e falasse em primeiro lugar o médico: Sócrates, Górgias te engana; não é sua arte que se ocupa com o melhor bem para os homens, porém a minha. E se eu lhe perguntasse: Quem és, para falares dessa maneira? sem dúvida responderia que era médico. Queres dizer com isso que o produto de tua arte é o melhor dos bens? Como poderia, Sócrates, deixar de sê- lo, se se trata da saúde? Haverá maior bem para os homens do que a saúde? E se, depois dele, por sua vez, falasse o pedótriba: Muito me admiraria, também, Sócrates, se Górgias pudesse mostrar algum bem da sua arte maior do que eu da minha. A esse, do meu lado, eu perguntara: Quem és, homem, e com que te ocupas? Sou professor de ginástica, me diria, e minha atividade consiste em deixar os homens com o corpo belo e robusto. Depois do pedótriba, falaria o economista, quero crer, num tom depreciativo para dois primeiros: Considera bem, Sócrates, se podes encontrar algum bem maior do que a riqueza, tanto na atividade de Górgias como na de quem quer que seja. Como! decerto lhe perguntáramos: és fabricante de riqueza? Responderia que sim. Quem és, então? Sou economista. E achas que para os homens o maior bem seja a riqueza? voltaríamos a falar- lhe. Como não! me responderia No entanto, lhe diríamos, o nosso Górgias sustenta que a arte dele produz um bem muito mais importante do que a tua. E fora de dúvida que, a seguir, ele me perguntaria: Que espécie de bem é esse? Górgias que o diga. Ora bem, Górgias; ima gina que tanto ele como eu te formulamos essa pergunta, e responde- nos em que consiste o que dizes ser para os homens o maior bem de que sejas o autor.
Górgias — Que é, de fato, o maior bem, Sócrates, e a causa não apenas de deixar livres os homens em suas próprias pessoas, como também de torná- los aptos para dominar os outros em suas respectivas cidades. Sócrates — Que queres dizer com isso? Górgias — O fato de por meio da palavra poderem convencer os ju ízes no tribunal, os senadores no conselho e os cidadãos nas assembléias ou em toda e qualquer reunião política. Com semelhante poder, farás do médico teu escravo, e do pedótriba teu escravo, tornando- se manifesto que o tal economista não acumula riqueza para si próprio, mas para ti, que sabes falar e convencer as multidões. VIII — Sócrates — Quer parecer- me, Górgias, que explicaste suficientemente o em que consiste para ti a arte da retórica. Se bem te compreendi, afirmaste ser a retórica a mestra da persuasão, e que todo o seu esforço e exclusiva finalidade visa apenas a esse objetivo. Ou tens mas alguma coisa a acrescentar sobre o poder da retórica, além de levar a persuasão à alma dos ouvintes? Górgias — De forma alguma, Sócrates; acho tua definição muito boa. A persuasão é, de fato, a finalidade precípua da retórica. Sócrates — Górgias, escuta aqui. Estou convencido, podes ter certeza disso, de que se há uma pessoa que inicie um diálogo com a intenção sincera de compreender o assunto em discussão, sou eu; o mesmo afirmarei a teu respeito. Górgias — Sócrates, a que vem isso? Sócrates — Vou já dizer- te. O que seja propria mente essa persuasão a que te referiste, conseguida pela retórica, e a respeito de que assunto se manifeste, fica sabendo que ainda não percebo com segurança o de que se trata, muito embora suspeite o que pensas tanto de uma como de outra coisa. Mas, nem por isso deixarei de continuar a perguntar- te o que seja, no teu modo de ver, a persuasão conseguida pela retórica e sobre que objetos ela se manifesta. Por que motivo, então, uma vez que tenho essa suspeita, continuo a interrogar- te, em vez de eu mesmo expor o teu pensamento? Não é por tua causa que o faço, mas no interesse do nosso próprio argumento, para que ele avance e se nos patenteie com luz meridiana o assunto em discussão. Considera se não tenho razão de continuar a interrogar- te. Por exemplo, se te houvesse perguntado que espécie de pintor é Zêuxis e me tivesses respondido que é pintor de figuras, não me acharia com o direito de perguntar- te: que espécie de figuras, e onde se encontram? Górgias — Perfeitamente. Sócrates — Não será porque há também outros profissionais que pintam um sem número de figuras diferentes? Górgias — Sim. Sócrates — Mas, no caso de que ninguém mais as pintasse a não ser Zêuxis, tua resposta teria sido boa. Górgias — Por que não?
Sócrates — Então fala -me também a respeito da retórica, se és de opinião que a retórica seja a única arte capaz de persuadir, ou se outras artes conseguem a mesma coisa? O que digo é o seguinte: Quem ensina seja lá o que for, persuade os outros a respeito do que ensina. Ou não? Górgias — Sim, persuade, Sócrates; sobre isso não há a menor dúvida. Sócrates — Se voltarmos agora para as artes a que há pouco nos referimos: não nos ensina a aritmética o que se relaciona com os números, e não faz o mesmo aritmético? Górgias — Perfeitamente. Sócrates — Logo, ela também nos persuade. Górgias — Sim. Sócrates — Nesse caso, a aritmética também é mestra da persuasão? Górgias — Parece que sim. Sócrates — Por conseguinte, se alguém nos perguntasse de que persuasão se trata e a respeito de que, decerto lhe responderíamos que se trata da persuasão ensina a conhecer a grandeza do par e do ímpar. Da mesma forma, com relação às artes de que falamos há pouco, poderíamos demonstrar que são mestras da persuasão, sua modalidade e a que se aplicam. Ou não? Górgias — Exato. Sócrates — Sendo assim, a retórica não é a única mestra da persuasão. Górgias — É muito certo. IX — Sócrates — Uma vez que ela não é a única realizar esse trabalho, havendo outras que alcançam mesmo resultado, com todo o direito, depois disso, poderíamos, como o fizemos com relação ao pintor, interpelar quem apresentou aquela proposição: Que espécie de persuasão é a retórica e sobre que se manifesta? Ou não consideras lícito formular semelhante pergunta? Górgias — Considero. Sócrates — Então, responde a ela, Górgias, que pensas desse modo. Górgias — A meu ver, Sócrates, essa persuasão é a que se exerce nos tribunais e demais assembléia s, como disse há pouco, e que se relaciona com o justo e o injusto. Sócrates — Eu já desconfiava, Górgias, qual fosse a persuasão a que te referias e sobre que se manifesta. Mas, para que não venhas a admirar- te se dentro de instantes eu voltar a apresentar pergunta idêntica sobre o que parece tão claro, retomo o mesmo assunto. Pois, como disse, ao formular essas perguntas, não tenho em mira a tua pessoa, mas apenas dirigir com método a discussão, e também para que não adquiramos o sestro de antecipar os pensamentos um do outro, como se os tivéssemos adivinhado. O que é preciso é que tu mesmo desenvolvas tua idéia como melhor te parecer.
Górgias — Acho que procedes com acerto, Sócrates. Sócrates — Então, prossigamos, e consideremos o seguinte: não dizes por vezes que alguém aprendeu alguma coisa? Górgias — Sim. Sócrates — E também que acreditou em algo? Górgias — Perfeitamente. Sócrates — E és de parecer que ter aprendido e ter crido sejam a mesma coisa que conhecimento e crença? Ou são diferentes? Górgias — A meu ver, Sócrates, são diferentes. Sócrates — É certo o que dizes. Tens a prova no seguinte: Se alguém te perguntasse: Górgias, há crença falsa e crença verdadeira? responderias afirmativa mente, segundo penso. Górgias — Sim. Sócrates — E conhecimento, há também falso e verdadeiro? Górgias — De forma alguma. Sócrates — O que prova que saber e crer são dife rentes. Górgias — É certo. Sócrates — Apesar disso, tanto os que aprendem como os que crêem ficam igualmente persuadidos. Górgias — Exato. Sócrate s — Podemos, então, admitir duas espécies de persuasão: uma, que é a fonte da crença, sem conhecimento, e a outra só do conhecimento? Górgias — Perfeitamente. Sócrates — De qual dessas persuasões se vale a retórica nos tribunais e nas demais assembléias, relativamente ao justo e ao injusto? Da que é fonte de crença sem conhecimento, ou da que é fonte só de conhecimento? Górgias — Evidentemente, Sócrates, da que dá origem à crença. Sócrates — Então, ao que parece, a retórica é obreira da persuasão que promove a crença, não o conhecimento, relativo ao justo e ao injusto? Górgias — Exato. Sócrates — Sendo assim, o orador não instrui os tribunais e as demais assembléias a respeito do justo e do injusto, mas apenas lhes desperta a crença nisso. Em tão curto prazo não lhe fora possível instruir tamanha multidão sobre assunto dessa magnitude.
Górgias — Não, de fato. X — Sócrates — Vejamos, então, que diremos com acerto sobre a retórica, pois eu mesmo não chego a compreender o que falo. Quando a cidade se reúne para escolher médicos ou construtores navais, ou qualquer outra espécie de artesãos, o orador, evidentemente, não será chamado para opinar. E fora de dúvida que em cada uma dessas eleições só deverão ser escolhidos os entendidos na matéria. Nem, ainda , quando se tratar da construção de muralhas, ou de portos, ou de arsenais, porém os arquitetos. Do mesmo modo, sempre que a reunião versar sobre a escolha de um general, a tática de um exército diante do inimigo, ou um asssalto a determinado ponto, só poderão opinar os estrategos, nunca os oradores. Qual é o teu modo de pensar, Górgias, a esse respeito? Uma vez que tu próprio te consideras orador e capaz de formar oradores, é óbvio que é a ti que terei de dirigir -me para informar- me a respeito de tua arte. Podes ficar certo de que com isso estou zelando também dos teus interesses. É possível haver aqui dentro quem pretenda tornar- se teu aluno, como, de fato, percebo em muitos esse desejo, mas têm acanhamento de falar- te. Assim, interrogado por mim, faz de conta que são eles que te formulam estas perguntas: Que viremos a ser, Górgias, se passarmos a estudar contigo? A respeito de que assunto ficaremos capazes de aconselhar a cidade? Apenas a respeito do justo e do injusto, ou também dos assuntos a que Sócrates se referiu há pouco? Agora procura responder a eles. Górgias — Então, Sócrates, vou tentar revelar- te toda a força da oratória, pois tu mesmo indicaste o caminho com muita precisão. Creio que deves saber que os arsenais e as muralhas dos atenienses, e as construções do porto, em parte são devidas aos conselhos de Temístocles, em parte aos de Péricles, não a sugestões de construtores. Sócrates — Dizem, realmente, isso de Temístocles, Górgias. Quanto a Péricles, eu mesmo o ouvi, quando nos aconselh ou a respeito do levantamento do muro me diano. Górgias — E sempre que é tomada, Sócrates, uma dessas decisões a que te referiste há pouco, terás percebido que são os oradores que aconselham nesses assuntos, saindo sempre vencedora sua maneira de pensar. Sócrates — E, por isso mesmo que tal fato me causa admiração, Górgias, é que há muito te venho interrogando sobre a natureza da retórica. Afigura-se- me algo sobre -humano, quando a considero por esse prisma. XI — Górgias — Quanto mais se soubesses tudo, Sócrates;: a retórica, por assim dizer, abrange o conjunto das artes, que ela mantém sob sua autoridade. Vou apresentar- te uma prova eloqüente disso mesmo. Por várias ve zes fui com meu irmão ou com outros médicos à casa de doentes que se recusavam a inge rir remédios ou a deixar- se amputar ou cauterizar; e, não conseguindo o médico persuadi- lo, eu o fazia com a ajuda exclusivamente da arte da retórica. Digo mais: se na cidade que quiseres, um médico e um orador se apresentarem a uma assembléia do povo ou a qualquer outra reunião para argumentar sobre qual dos dois deverá ser escolhido como médico, não contaria o médico com nenhuma probabilidade para ser eleito, vindo a sê- lo, se assim o desejasse, o que soubesse falar bem. E se a competição se desse com representantes de qualquer outra profissão, conseguiria fazer eleger- se o orador de preferência a qualquer outro, pois não há assunto sobre que ele não possa discorrer com maior força de persuasão diante do público do que qualquer profissional. Tal é a natureza e a força da arte da retórica! Contudo, Sócrates, a retórica precisa ser usada como as demais artes de competição; essas artes não devem ser empregadas indiferentemente contra toda a gente; o pugilista, o pancratiasta ou o lutador armado, porque em sua arte contam com a prática e se tornaram nesse terreno superiores a amigos e inimigos, não deverão, só por isso, bater nos amigos, feri- los, nem matá -los. Nem, por Zeus! no caso de haver alguém freqüentado o estádio e se tornado robusto e hábil boxador, e que depois venha a bater no pai ou na mãe, ou em qualquer parente ou amigo, não é por isso, dizia, que devemos perseguir os professores de ginástica e de esgrima, e expulsá- los da cidade. Pois estes transmitiram a outros seus conhecimentos para serem usados com justiça contra inimigos e ofensores, e apenas em defesa própria, não para atacar. Os alunos é que perverteram esses ensinamentos e empregaram mal a própria força e habilidade. Os professores não são ruins nem é má em si mesma a arte, ou responsável por tais abusos, mas, segundo penso, os que não a exercem devidamente. Idênticos argumentos va lem para a arte da retórica. É fora de dúvida que o orador é capaz de falar contra todos a respeito de qualquer assunto, conseguindo, por isso mesmo, convencer as multidões melhor do que qualquer pessoa, e, para dizer tudo, no assunto que bem lhe parecer. Porém não será por isso que ele irá privar o médico de sua fama — o que lhe seria possível — nem qualquer outro profissional. Pelo contrário, deverá usar a retórica com justiça, como qualquer outro gênero de combate. Se um indivíduo que se tornou orador vier a fazer mau uso da força e da habilidade, não é seu professor, quero crer, que deverá ser perseguido e expulso da cidade. O professor transmitiu seus conhecimentos para serem bem aplicados; foi o aluno que fez mau uso deles. Esse, por conseguinte, que os aplicou mal, é que merece ser perseguido, expulso ou morto, não o professor. XII — Sócrates — Presumo, Górgias, que tu também já assististe a bastantes discussões, e que deves ter observado não ser fácil para os interlocutores que discorrem sobre determinado assunto defini- lo com harmonia de vistas, nem terminar a reunião com proveito para ambas as partes. Pelo contrário, havendo desacordo e incriminando um deles o opositor de ser pouco veraz ou nada claro, mostram- se agastados e atribuem o reparo a sentimento de inveja, alegando todos que o antagonista se deixa arrastar pelo amor à discussão, sem procurar elucidar o problema em debate. Alguns, até, acabam separando- se por maneira indigna, com impropérios de parte a parte, dizendo e ouvindo, a um tempo, tão pesados doestos, que os próprios assistentes se sentem envergonhados de terem dado ouvidos a tipos de tal jaez. E por que me manifesto desse modo? Porque tenho a impressão de que o que afirmaste agora não está de acordo nem concerta com o que disseste a respeito da retórica. Receio contestar- te, para que não penses que falo menos pelo prazer de esclarecer o assunto em discussão do que por motivos pessoais. Se fores como eu, de muito bom grado te interrogarei; caso contrário, fiquemos aqui mesmo. E em que número me incluo? Entre as pessoas que têm prazer em ser refutadas, no caso de afirmarem alguma inverdade, e prazer também em refutar os outros, se não estiver certo, do mesmo modo, o que disserem, e que tanto se alegram com serem refutadas como em refutarem. Do meu lado, considero preferível ser refutado, por ser mais vantajoso ver- se alguém livre do maior dos males do que livrar dele outra pessoa. No meu modo de pensar, não há nada de tão nocivas conseqüências para o homem como admitir opinião errônea sobre o assunto com que nos ocupamos. Se me declarares que tu também és assim, poderemos conversar; mas se fores de parecer que convém ficarmos por aqui, demos por terminado o assunto e suspendamos o colóquio. Górgias — Eu também, Sócrates, me incluo no número das pessoas a que te referiste.
Mas talvez seja preciso, ao mesmo passo, levar em consideração os presentes. Muito antes de chegardes, havia eu feito para eles uma longa exposição. Remanesce, portanto, o perigo de nos alongarmos demais, se continuarmos a conversar. E sobre isso que devemos refletir, para não retermos quem porventura necessite ocupar- se com outra coisa.
XIII — Querefonte — Vós mesmos, Górgias e Sócrates, percebeis o rumor de ansiedade dos presentes, indício seguro de que estão desejosos de continuar a ouvir- vos. No que me diz respeito, faço votos para não ser solicitado por nenhum assunto urgente que me force a deixar um diálogo deste nível e tão bem conduzido, para ocupar- me seja com o que for de mais utilidade. Cálicles — Pelos deuses, Querefonte! Eu, também, que já assisti a muitas discussões, não sei de outra que me proporcionasse tão grande prazer como a presente. Para mim será delicioso se vos dispuserdes a conversar o dia inteiro. Sócrates — De minha parte, Cálicles, não faço ne nhuma objeção, uma vez que esteja Górgias de acordo. Górgias — Depois disto, Sócrates, fora vergonhoso não concordar contigo, visto haver eu mesmo me prontificado a responder a qualquer pergunta que me quisessem dirigir. Se é, portanto, do agrado dos presentes, fala e formula as perguntas que entenderes. Sócrates — Então escuta, Górgias, o que me causa admiração no que nos declaraste. E possível que estejas com a razão e que eu não tenha apreendido bem o teu pensamento. És capaz, disseste, de fazer orador de quem se dispuser a seguir tuas lições? Górgias — Sou. Sócrates — E de deixá- lo apto, sobre qualquer assunto, a conquistar as multidões, não por meio da instrução, mas por força da persuasão? Górgias — Perfeitamente. Sócrates — Chegaste mesmo a afirmar que, em matéria de saúde, o orador tem maior força convincente do que o médico. Górgias— Sim, disse; porém diante das multidões. Sócrates — Diante das multidões, quer dizer: diante de ignorantes? Pois é de presumir que diante de entendidos não sejas mais persuasivo do que o médico. Górgias — Exato. Sócrates — E se ele tem maior poder de persuasão que o médico, também terá maior do que quem sabe ? Górgias — Perfeitamente. Sócrates — Apesar de não ser médico, não é verdade? Górgias — Sim. Sócrates — Porém quem não é médico terá de ignorar o que o médico conhece. Górgias — É evidente.
Sócrates — Nesse caso, o ignorante tem maior poder de persuasão junto de ignorantes do que o sábio, se o orador for mais convincente do que o médico. Será essa a inferência certa, ou queres outra? Górgias — Pelo menos, neste caso, é assim mesmo. Sócrates — E com relação às demais artes, o orador e a retórica não se encontram nas mesmas condições? Ele não terá necessidade de saber como as coisas são em si mesmas e bastará recorrer a algum artifício para parecer aos ignorantes que em tudo é mais entendido do que os sábios. XIV — Górgias — E não é grande vantagem, Sócrates, não precisar uma pessoa aprender nenhuma arte, a não ser aquela, e não vir a ficar por baixo dos conhecedores das outras artes? Sócrates — Se o orador, pelo fato de conhecer a sua arte, é superior ou inferior aos demais profissionais, é o que examinaremos dentro de pouco, caso haja nisso algum proveito para a discussão. Por enquanto, consideremos apenas se em relação ao justo e o injusto, ao feio e o belo, ao bem e o mal, o orador se encontra nas mesmas relações em que se acha com referência à saúde e aos objetos das demais artes? Em outros termos: se sem conhecer as coisas em si mesmas e sem saber o que é o ‘bem e o mal, o belo e o feio, o justo e o injusto, dispõe de um método especial de persuasão que aos olhos dos ignorantes o faça parecer mais sábio do que os entendidos? Ou será necessário conhecer essas coisas, por havê- las aprendido antes de procurar- te para estudar retórica? Se não for o caso, na qualidade de professor de retórica, nada terás de ensinar a quem te procurar, a respeito desse assunto, pois não faz isso parte de tua profissão, cumprindo- te apenas deixá- lo em condições de parecer às multidões que conhece tudo isso, embora o desconheça, e passe por homem de bem, ainda que o não seja? Ou te será absolutamente impossível ensinar- lhe retórica, se antes ele não ficou conhecendo a verdade sobre todos esses assuntos? Como se passam, realmente, as coisas neste domínio, Górgias? Por Zeus! Desejaria que me revelasses, conforme me prometeste há pouco, em que consiste a força da retórica. Górgias — Sim, Sócrates, suponho que se o aluno ignora essas matérias, ele as aprenderá também comigo. Sócrates — Basta! Falaste muito bem. Se tiveres de fazer de alguém um orador, forçosamente essa pessoa terá de conhecer o que é justo e o que é injusto, quer o tenha aprendido antes, quer aprenda depois contigo. Górgias — Perfeitamente. Sócrates — E então? Quem aprender a arte de construir é arquiteto, não é verdade? Górgias — Sim. Sócrates — E quem aprender música é músico? Górgias — Exato. Sócrates — E quem aprender medicina é médico? E com tudo o mais não passa exatamente o mesmo: quem aprender alguma coisa fica sendo o que esse conhecimento faz dele?
Górgias — Sem dúvida nenhuma. Sócrates — O homem justo pratica ações justas. Górgias — Sim. Sócrates — Será, portanto, forçoso que o orador seja justo e, como tal, queira praticar ações justas. Górgias — Parece que sim. Sócrates — E nunca o justo há de querer cometer alguma injustiça. Górgias — Forçosamente. Sócrates — De acordo com o nosso raciocínio, o orador necessariamente terá de ser justo. Górgias — Sim. Sócrates — Nunca, por conseguinte, há de querer o retórico cometer uma injustiça. Górgias — Nunca. XV — Sócrates — Deves estar lembrado do que há momentos disseste do pedótriba, que não devemos afastá- lo nem expulsá- lo da cidade, no caso de não fazer o pugilista uso lícito dos punhos. Da mesma forma dá- se com o orador: vindo a usar indevidamente a retórica, não devemos culpar seu professor nem expulsá- lo da cidade, porém o próprio criminoso que fez mau uso da retórica. Isso foi dito ou não? Górgias — Foi. Sócrates — E não admitimos, também, que o referido orador nunca poderá cometer injustiça? Ou não? Górgias — É certo. Sócrates — Ficou também esclarecido, Górgias, na primeira parte do nosso diálogo, que a retórica não se ocupa com discursos relativos ao par e ao ímpar, porém com os que se relacionam com o justo e o injusto, não é verdade? Górgias — Sim. Sócrates — Ao ouvir- te afirmar semelhante coisa, entendi que jamais poderia a retórica ser algo in justo, pois todos os seus discursos tratam exclusivamente da justiça. Mas quando, pouco depois, te ouvi dizer que o orador pode usar injustamente a retórica, fiquei surpreso, e foi por ter notado contradição em tuas palavras que fiz aquela declaração, de só levarmos adiante nossa conversa no caso do considerares como- eu que é mais vantajoso ser refutado; na hipótese contrária, seria preferível dá- la por encerrada. Posteriormente, no decurso de nossa investigação, tu mesmo poderás verificar que voltamos a reconhecer não ser possível ao orador fazer uso indevido da retórica ou consentir em ser injusto. Pelo cão! para nos safarmos desta enleada, Górgias, será pre ciso uma conversa muito longa.
XVI — Polo — Como assim, Sócrates! Essa é a opinião que fazes da retórica? Pensas mesmo, porque Górgias teve acanhamento de não concordar contigo, que o orador conhece o justo, o belo e o bem, e admitiu que se alguém o procurasse sem conhecer essas coisas, ele mesmo lhas ensinaria, tendo talvez surgido, pelo fato dessa afirmativa, no decurso da conversa, qualquer contradição — com o que tanto te deleitas, sendo que tu foste o que dirigiste a discussão para esse ponto... — Acreditas, mesmo, que haja quem confesse não conhecer o justo nem poder ensiná- lo aos outros? É dar mostras de rusticidade conduzir a conversa desse modo. Sócrates — Meu lindíssimo Polo, para isso mesmo é que nos provemos de amigos e de filhos: para que, quando ficarmos velhos e tropeçarmos, vós moços estejais perto a fim de endireitar- nos, tanto nos atos como nos discursos. Assim agora: se em nossa discussão, eu e Górgias tropeçamos, achas- te perto para nos dar a mão. É justo que assim procedas. Pela minha parte, declaro- me pronto a retratar- me naquilo que julgares que o nosso acordo não foi como devia ser. Porém com uma condição. Polo — Qual é? Sócrates — Absteres- te, Polo, dos discursos estirados, como te comprazias no começo. Polo — Como assim? Então, não me é permitido falar quanto quiser? Sócrates — Seria, em verdade, muito duro, meu caro, se, ao chegares a Atenas, a cidade da Hélade em que há plena liberdade da palavra, fosses a única pessoa que dela não pudesse fazer uso. Mas, admite a hipótese contrária: se disparares a falar, sem te resolveres a responder às questões apresentadas, não seria também crítica a minha posição, por não me ser permitido retirar- me e não ouvir- te? Por isso, se estás, realmente, interessado em nossa discussão e desejas repô- la em seus devidos termos, retoma, como disse há momentos, a questão que bem te parecer e, ora perguntando, ora respondendo, como fizemos eu e Górgias, refuta -me ou deixa -te refutar. Gabas- te de saber tanto quanto Górgias, não é verdade? Polo — É certo. Sócrates — Nesse caso, tu também te colocas à disposição de qualquer pessoa para responder às perguntas que lhe aprouver dirigir- te? Polo — Perfeitamente. Sócrates — Escolhe, pois, o que quiseres: responder ou perguntar. XVII — Polo — É o que vou fazer. Então responde- me, Sócrates: já que és de parecer que Górgias não soube dizer o que é retórica, que achas que ela seja? Sócrates — Perguntas que espécie de arte eu presumo que ela seja? Polo — Justamente. Sócrates — Não é arte de espécie alguma, Polo, para dizer a verdade. Polo — Então, que te parece que seja?
Sócrates — Algo a respeito do que afirmaste que tinhas feito uma arte, segundo li recentemente num escrito teu. Polo — Que queres dizer com isso? Sócrates — É uma espécie de rotina. Polo — Achas, então, que a retórica seja uma rotina? Sócrates — É o que penso, se não tiveres nada a objetar. Polo — Rotina, de que espécie? Sócrates — Para produzir prazer e satisfação. Polo — E não te parece uma bela coisa a retórica, se é capaz de proporcionar prazer aos homens? Sócrates — Que é isso, Polo! Já me ouviste dizer o que na minha opinião é a retórica, para me perguntares agora se não a considero uma bela coisa? Polo — Não fiquei sabendo que a consideras uma espécie de rotina? Sócrates — Já que tanto gostas de comprazer aos outros, não quererás porventura proporcionar- me um pequenino prazer? Polo — Com todo o gosto. Sócrates — Então, pergunta -me que espécie de arte, a meu ver, é a culinária. Polo — É o que passo a fazer: que arte é a culinária? Sócrates — Nenhuma, Polo. Polo — Que é, então? Explica- te. Sócrates — Direi que é uma espécie de rotina. Polo — Rotina, de que jeito? Fala. Sócrates — Pois direi, Polo, que proporciona prazer e satisfação. Polo — Então, culinária é a mesma coisa que retórica? Sócrates — De forma alguma; ambas são partes da mesma atividade. Polo — A que atividade te referes? Sócrates — Contanto que não seja falta de educação dizer a verdade! Vacilo em declará- lo só por causa de Górgias, para que ele não pense que estou zombando de sua profissão. Se a retórica praticada por Górgias é realmente desse tipo, não saberei dizê- lo, pois em nossa recente conversação não ficou bem clara a sua maneira de pensar. O que denomino retórica é apenas uma parte de certa coisa que está longe de ser bela.
Górgias — Que coisa, Sócrates? Fala sem receio de melindrar- me. XVIII — Sócrates — O que me parece, Górgias, é que se trata de uma prática que nada tem de arte, e que só exige um espírito sagaz e corajoso e com a disposição natural de saber lidar com os homens. Em conjunto, dou- lhe o nome de adulação. A meu ver, essa prática compreende várias modalidade s, uma das quais é a culinária, que passa, realmente, por ser arte, mas que eu não considero tal, pois nada mais é do que empirismo e rotina. Como partes da mesma, incluo também a retórica, o gosto da indumentária e a sofística: quatro partes com quatro campos diferentes de atividade. No caso de Polo querer, agora, interrogarme, pode fazê- lo, pois ainda não ficou sabendo que parte da adulação em julgo ser a retórica; sem ter percebido que eu não lhe havia ainda respondido, passou a perguntar se não a considerava bela. Porém não lhe direi se acho bela ou feia a retórica antes de lhe haver respondido o que ela seja. Não ficaria bem, Polo. Caso queiras, pergunta -me agora que parte da adulação eu digo que é a retórica. Polo — Então, pergunto. Responde- me que parte ela é. Sócrates — Será que vais apanhar bem minha resposta? Segundo o meu modo de pensar, a retórica é o simulacro de uma parte da política. Polo — Como assim? E afirmas que é bela ou que é feia? Sócrates — Feia, é o que digo. Ao ruim dou o nome de feio, para responder- te como se já soubesses o que quero dizer. Górgias — Por Zeus, Sócrates! Eu também não compreendo o que queres dizer. Sócrates — É natural, Górgias, pois ainda não me exprimi claramente; porém Polo é novo e fogoso. Górgias — Bem, deixa isso e declara- me por que disseste que a retórica é um simulacro de uma parte da política. Sócrates — Vou tentar explicar o que a meu ver é a retórica. Se não for o que penso, o nosso Polo me refutará. Denominas alguma coisa corpo e alma? Górgias — Como não? Sócrates — E não admites, também, que haja em ambos uma condição de bem- estar? Górgias — Sem dúvida. Sócrates — É uma condição de aparente bem- estar, mas que o não seja? O que digo é o seguinte: Há muita gente que aparenta saúde, visto não ser fácil a todo o mundo perceber que se encontra em condições precárias, com exceção do médico ou do professor de ginástica. Górgias — É certo o que dizes. Sócrates — No corpo e na alma digo que a mesma coisa se passa, o que faz que o corpo e a alma pareçam estar em boas condições, embora na realidade não o estejam. Górgias — É isso mesmo.
XIX — Sócrates — E agora vou ver se me será possível explicar com mais clareza meu pensamento. Como são dois domínios diferentes, para mim há também duas artes. À que se relaciona com a alma dou o nome de política; para a que diz respeito ao corpo não posso encontrar uma denominação única, por dividir novamente em duas partes o todo uniforme da cultura do corpo: a ginástica e a medicina. Do mesmo modo, distingo na política a le gislação, que se contrapõe à ginástica como a medicina se contrapõe à justiça. Visto relacionarem- se as artes de cada grupo com os mesmos objetos, apresentam todas elas pontos de contacto: a medicina com a ginástica, e a justiça com a legislação; mas em alguma coisa diferem umas das outras. Ora, percebendo que há essas quatro artes, que só visam ao bem- estar do corpo e da alma, duas a duas, respectivamente, a adulação, não porque chegasse a conhecê- las, digo, mas por simples conjectura, dividiu- se em quatro, assumiu a forma de cada uma das partes e se faz passar pelas artes cuja aparência usurpou. Com os interesses superiores do homem não se preocupa no mínimo, mas vale -se do prazer como de isca para a ignorância, enganando-a a ponto de parecer- lhe de muito maior valia. Foi assim que a culinária se insinuou na medicina, pretendendo conhecer os mais saudáveis alimentos para o corpo, de forma que se o médico e o cozinheiro tivessem de entrar num concurso em que crianças fossem juízes, sobre quem mais entendesse da excelência ou da nocividade dos alimentos, o cozinheiro ou o médico, este morreria de fome. Chamo a isso bajulação, Polo — é a ti que me dirijo neste momento — e da pior espécie, pois só visa ao prazer, sem preocupar- se com o bem. Nego que seja arte; não passa de uma rotina, pois não tem a menor noção dos meios a que recorre, nem de que natureza possam ser, como não sabe explicar a causa deles todos. Não dou o nome de arte ao que carece de razão. Se quiseres contestar o que afirmei, estou pronto a defender meus argumentos. XX — Na medicina, como disse, insinuou- se a baju lação culinária; na ginástica, seguindo o mesmo processo, a capelista, falsa, nociva, ignóbil e indecorosa, que, por meio das formas, das cores, dos esmaltes e da indumentária, de tal modo seduz os homens que, andando sempre estes no encalço da beleza estranha, descuidam da que lhes é própria e que só se obtém por meio da ginástica. Para não ser prolixo, vou usar a linguagem dos geômetras — talvez assim possas acompanhar- me — para dizer que o gosto da indumentária está para a ginástica como a culinária está para a medicina, ou melhor: a indumentária está para a ginástica assim como a retórica está para a legislação; e também: a culinária está para a medicina como a retórica está para a justiça. Essa, como disse, é a diferença natural de todas elas; mas, em conseqüência da vizinhança, sofistas e oradores se misturam e passam a ocupar- se com as mesmas coisas, sem que eles próprios saibam qual seja, ao certo, seu fim, e muito menos os homens. De fato, se a alma não estivesse sobreposta ao corpo e este se governasse a si mesmo, e se aquela não tivesse discernimento e não separasse da medicina a culinária, e apenas o corpo tivesse de julgar, de acordo com os prazeres que pudesse auferir de cada uma delas, predominaria, meu caro Polo, aquilo de Anaxágoras — isto é matéria de teu conhecimento — a saber: todas as coisas se confundiriam sem que fosse possível distinguir a medicina, a saúde e a culinária. Ficaste sabendo, agora, o que penso a respeito da retórica: é a antítese para a alma do que a cozinha é para o corpo. É possível que minha conduta seja inconseqüente, pois, tendo- te proibido discursos estirados, eu próprio me alonguei desta maneira. Porém acho que meu caso é desculpável. Enquanto me exprimi em termos curtos, não me compreendias nem sabias interpretar minhas respostas e exigias sempre explicações. Por isso, se eu também me mostrar incapaz de aproveitar tuas respostas, espicha, do mesmo modo, teus discursos. Mas, se tal não se der, permite que faça delas o uso que entender; é meu direito. E agora, se minha resposta te servir para alguma coisa, faze o que quiseres.
XXI — Polo — Como assim? Achas que a retórica seja bajulação? Sócrates — Uma parte da bajulação, foi o que eu disse. Com essa idade, Polo, já estás esquecido? Como ficarás depois de velho? Polo — És, então, de parecer que nas cidades os bons oradores são tidos na conta de bajuladores e não gozam de nenhuma consideração? Sócrates — Apresentas- me uma pergunta ou inicias um discurso? Polo — É uma pergunta. Sócrates — Sou de opinião que eles não são considerados. Polo — Como não são considerados? Não gozam de grande influência nas cidades? Sócrates — Não, se compreenderes por influência algo bom para quem a exerce. Polo — Essa é, justamente, a minha maneira de pensar. Sócrates — Então, acho que de todos os cidadãos são os oradores os que têm menor poder. Polo — Como assim? Não podem matar, como os tiranos, a seu bel- prazer, não confiscam os bens alheios e não expulsam das cidades quem eles querem? Sócrates — Pelo cão! Continuo em dúvida, Polo, a cada palavra do que dizes, se tu mesmo falas e apresentas tua maneira de pensar, ou se me estás interrogando. Polo — Sim, interrogo- te. Sócrates — Muito bem, amigo. Nesse caso, apresentaste duas perguntas ao mesmo tempo. Polo — Como duas? Sócrates — Há pouco não disseste mais ou menos que os oradores, tal como os tiranos, podem matar quem bem quiserem, confiscar os bens alheios ou banir qualquer pessoa? Polo — Disse. XXII — Sócrates — Por isso, declaro- te que se trata de duas questões distintas, e vou responder separadamente a ambas. Afirmo- te, portanto, Polo, que os oradores e os tiranos são os que menos podem nas cidades, conforme disse há pouco, pois não fazem o que querem, por assim dizer, mas apenas o que se lhes afigura melhor. Polo — E não é isso, justamente, poder muito? Sócrates — Não; pelo menos foi o que Polo disse. Polo — Eu disse não? O que eu disse foi sim.
Sócrates — Por... isso, não; o que afirmaste foi que o poder é um bem para quem o possui. Polo — É o que digo, de fato. Sócrates — E achas que seja um bem para qualquer pessoa fazer o que lhe parece ser o melhor, quando está privado da razão? Julgas que isso é poder muito? Polo — Penso que não. Sócrates — Logo, para me contestares, terás de provar que os oradores têm bom senso e que a retórica é uma arte, não simples bajulação. Porém, se não conseguires refutar- me, nem os oradores, que fazem nas cidades o que bem lhes apraz, nem os próprios tiranos possuirão, com isso, nenhum bem, no caso de ser o poder um bem, como tu mesmo o disseste, e ser um mal, conforme também concordaste, fazer alguém o que lhe aprouver, quando privado de bom senso. Ou não? Polo — De acordo. Sócrates — Como, então, poderão ser os oradores todo poderosos nas cidades, ou os tiranos, se Polo não provou a Sócrates que eles podem fazer o que querem? Polo — Esse homem... Sócrates — Nego que possam fazer o que querem. Contesta- me isso. Polo — Não acabaste de dizer que eles fazem o que lhes parecer ser o melhor! Sócrates — E continuo a sustentar o que disse. Polo — Então, fazem o que querem. Sócrates — Nego. Polo — Apesar de fazerem o que lhes apraz? Sócrates — Sim. Polo — Defendes absurdos, Sócrates; verdadeiros disparates. Sócrates — Não me acuses, caríssimo Polo, por falar- te em teu próprio estilo. Se fores capaz de interrogar- me, prova que estou enganado; caso contrário, passarás a responder. Polo — Prefiro responder, para vir, afinal, a saber o que queres dizer. XXIII — Sócrates — Que te parece que os homens queiram, quando fazem alguma coisa: o que fazem propriamente, ou o que têm em vista quando fazem o que fazem? Por exemplo, os que tomam remédio por indicação do médico, és de parecer que querem o que fazem, a saber, tomar remédio e sofrer, ou querem sarar, em vista do que o tomam? Polo — Sarar, evidentemente, em vista do que o tomam.
Sócrates — O mesmo acontece com os que viajam ou empreendem qualquer negócio lucrativo: não querem nunca o que fazem a cada momento, pois quem é que deseja corre r os riscos de uma viagem e ter trabalhos? O que todos querem, segundo penso, é aquilo por causa do que navegam: ficar ricos. Com a mira na riqueza é que viajam. Polo — Perfeitamente. Sócrates — E com tudo o mais não é da mesma maneira? Quem faz alguma coisa visando a determinado fim, não quer aquilo que faz, mas o fim que tinha em vista, quando fez o que fez. Polo — É certo. Sócrates — E entre tudo o que existe, não haverá o que, não sendo bom nem sendo mau, forma precisamente um meio -termo, nem bom nem ma u? Polo — Necessariamente, Sócrates. Sócrates — Não dirás que a sabedoria é um bem, como também o são a saúde, a riqueza, e tudo o mais do mesmo gênero? E que seus opostos são outros tantos males? Polo — Sem dúvida. Sócrates — E as coisas que não são nem boas nem más, não achas que sejam as que ora participam do bem, ora do mal, ora de nenhum deles, como sentar- se, andar, correr, viajar, ou, ainda, como a pedra, a madeira e tudo o mais do mesmo gênero? Não é essa a tua maneira de pensar? Ou dizes que haja outras coisas que não são nem boas nem más? Polo — Não; são essas mesmas. Sócrates — Quando são feitas essas coisas indiferentes, o são em vista das boas, ou as boas é que o são em vista das indiferentes? Polo — As indiferentes, sem dúvida, em vista das boas. Sócrates — Assim, em vista do bom é que andamos, quando andamos, no pressuposto de que é melhor dessa maneira; e quando, pelo contrário, paramos, paramos para o mesmo fim, o bem. Ou não? Polo — Isso mesmo. Sócrates — E não matamos alguém, se é que ma tamos, ou banimos, ou lhe confiscamos os bens, na convicção de que é melhor para nós assim proceder, do que deixar de fazê- lo? Polo — Perfeitamente. Sócrates — Então, quem faz todas essas coisas, só as faz tendo em vista o bem. Polo — De acordo.
XXIV — Sócrates — E já não admitimos que quando fazemos alguma coisa em vista de um determinado fim, não é essa coisa que queremos, mas o que tínhamos em vista quando a fizemos? Polo — Sem a menor dúvida. Sócrates — Logo, não queremos degolar ninguém, ou expulsá- lo da cidade, nem despojá -lo de seus bens assim sem mais nem menos; quando isso nos pode ser de alguma utilidade, então queremos fazê- lo; porém se nos for prejudicial, não o queremos. Pois só queremos o bem, conforme afirmaste; o que não é nem bom nem mau não queremos; como também não queremos o que é mau. Não é isso? Não achas que estou certo, Polo? Sim ou não? Por que não respondes? Polo — Estás certo. Sócrates — Uma vez que estamos de acordo neste ponto, se alguém matar outra pessoa, ou a expulsar da cidade, ou lhe arrebatar os bens, quer seja tirano, quer seja orador, convencido de que disso auferirá vantagens, quando, realmente, só vem a ser prejudicado, este só faz, de fato, o que lhe apraz, não é verdade? Pólo— Sim. Sócrates — Porém fará, realmente, o que quer, se o que ele fizer lhe for nocivo? Por que não respondes? Polo — Não me parece que faça o que quer. Sócrates — De que modo, então, essa pessoa poderá ter grande poder na cidade, se, de acordo com tua concessão, ser poderoso é um bem? Polo — Não seria possível. Sócrates — Então eu disse a verdade, quando afirmei que um homem pode fazer na cidade o que bem entenda sem dispor de grande força nem fazer o que quer. Polo — Como se tu também, Sócrates, não preferisses ter a liberdade de fazer na cidade o que bem te parecesse a não poder fazê- lo, e não tivesses inveja de quem vês matar alguém, ou privá- lo de seus bens, ou pô- lo a ferros. Sócrates — De que jeito entendes isso: com justiça ou injustamente? Polo — De qualquer forma que seja, em ambos os casos não é para invejar? Sócrates — Não digas isso, Polo! Polo — Como assim? Sócrates — Porque não devemos invejar nem os que não são para invejar, nem os infelizes, porém compadecermo- nos deles. Polo — Como! Achas que estão nesse caso as pessoas a que me referi?
Sócrates — Como não? Polo — Então, és de opinião que o indivíduo que mata quem bem lhe apraz, se o faz com justiça é infeliz e digno de piedade? Sócrates — Isso não; porém não me parece digno de inveja. Polo — Não disseste agora mesmo que era infeliz? Sócrates — Sim, meu caro; se matar alguém injustamente; mais, ainda: é digno de piedade. Quem o faz com justiça não é para invejar. Polo — A ser assim, quem morre injustamente é que é infeliz e digno de piedade? Sócrates — Menos do que quem o mata, Polo, e menos ainda do que o que morre justamente. Polo — Como assim, Sócrates? Sócrates — É que o maior dos males é cometer alguma injustiça. Polo — Esse é o maior? Não é sofrer injustiça? Sócrates — De forma alguma. Polo — Então, preferirias sofrer alguma injustiça a praticá- la? Sócrates — Por meu gosto, nem uma coisa nem outra; porém, se me visse obrigado a optar entre praticar alguma injustiça ou sofrê- la, preferiria sofrê- la, não praticá- la. Polo — Então, não aceitarias ser tirano? Sócrates — Não, se por tirano entendes o mesmo que eu. Polo — O que entendo por isso é o que disse há pouco: o poder de fazer alguém o que quiser na cidade: matar, exilar e agir a seu bel- prazer. XXV — Sócrates — Meu caro Polo, depois de eu falar, poderás refutar- me. Imaginemos que na hora em que o mercado está mais cheio de gente, com um punhal debaixo do braço eu te dissesse: Polo, neste momento adquiri um poder maravilhoso e me tornei tirano. Se eu achar que deve morrer imediatamente qualquer destes homens que vês aí, no mesmo instante ele morrerá; se for de parecer que é preciso partir a cabeça de qualquer deles, na mesma hora ficará com a cabeça quebrada; ou. rasgar- lhe as roupas, e estas serão rasgadas, tão grande é o meu poder na cidade. E se pusesses em dúvida minhas palavras e eu te mostrasse o punhal, decerto me observarias: Desse modo, Sócrates, não há quem não seja poderoso, pois com semelhante força conseguirias incendiar a casa de qualquer pessoa, os arsenais e as trirremes dos atenienses, e todos os navios, assim públicos como particulares. Porém dispor de um grande poder não é fazer cada um o que lhe apraz. Que te parece? Polo — Desse jeito, não, evidentemente. Sócrates — Poderás dizer- me sob que aspecto condenas semelhante poder?
Polo — Posso. Sócrates — Qual é? Fala. Polo — Porque forçosamente seria punido quem procedesse dessa maneira. Sócrates — E ser punido não é um mal? Polo — Sem dúvida. Sócrates — Assim, varão admirável, volta a parecer- te que tem grande poder quem faz o que quer e disso aufere vantagens. Nisso consiste, quero crer, ser poderosos. Caso contrário, é um mal e deixa de ser poder. Consideremos também o seguinte: Não reconhecemos que às vezes é melhor fazer tudo aquilo que dissemos: matar os outros, banilos, confiscar- lhes os bens, e às vezes não fazê- lo? Polo — Perfeitamente. Sócrates — Pelo que se vê, nesse ponto estamos de acordo. Polo — Sim. Sócrates — Na tua opinião, quando é melhor proceder dessa maneira? Polo — Prefiro, Sócrates, que tu mesmo respondas a essa pergunta. Sócrates — Então, Polo, se te é mais agradável ouvir- me falar, direi que é melhor quando alguém procede com justiça, sendo um mal, quando se trata de um ato injusto. XXVI — Polo — Difícil coisa é contestar- te; mas até uma criança não poderia refutarte neste caso? Sócrates — Ficarei gratíssimo a essa criança, como também a ti, se me refutardes e me desembaraçardes de minha tolice. Por isso, não tenhas como incômodo fazer bem a um amigo; refuta -me. Polo — Então, Sócrates, não haverá necessidade de rebater com fatos antigos o que afirmas. Os acontecimentos de ontem e de anteontem serão suficientes para refutar- te e mostrar que são felizes muitas pessoas que cometem injustiça. Sócrates — Que acontecimentos são esses? Polo — Não vês Arquelau, filho de Perdicas, governar a Macedônia? Sócrates — Pelo menos, tenho ouvido falar nele. Polo — Como te parece que seja? Feliz ou infeliz? Sócrates — Não posso sabê- lo, Polo. Nunca convivi com ele. Polo — Como! Se tivesses convivido com ele, saberias; e por outras pessoas, daqui mesmo, não poderás saber se ele é feliz?
Sócrates — Não, por Zeus. Polo — Pelo visto, Sócrates, vai dizer que não sabes nem mesmo se o Grande Rei é feliz. Sócrates — E só diria a verdade, pois sou de todo ignorante no que respeita à sua educação e à justiça. Polo — Como assim! A felicidade só consiste nis so? Sócrates — É como digo, Polo; considero feliz quem é honesto e bom, quer seja homem, quer seja mulher; o desonesto e mau é infeliz. Polo — Nesse caso, de acordo com o teu modo de pensar, Arquelau é infeliz? Sócrates — Sim, amigo; se for injusto. Polo — E como poderá deixar de ser injusto? Não tinha nenhum direito ao trono que ora ocupa, por haver nascido de uma escrava de Alcetas, irmão de Perdicas. Por lei, ele era também escravo de Alcetas, e se quisesse proceder honestamente, continuaria servindo Alcetas, e seria feliz, de acordo com tua doutrina. Ao invés disso, tornou- se infelicíssimo, por haver cometido as maiores injustiças. Para começar, mandou chamar o seu senhor e tio, sob o pretexto de restituir- lhe o trono que Perdicas lhe havia usurpado; depois de hospedá- lo e a seu filho Alexandre, de quem era primo e da mesma idade que ele, embriagou- os e, metendo- os numa carreta, removeu- os durante a noite, matou- os e fez desaparecer os seus corpos. Cometido esse crime, não se apercebeu de que se havia tornado o mais infeliz dos homens, nem teve remorsos. Pouco tempo depois, apoderou- se do seu próprio irmão, filho legítimo de Perdicas, menino de uns sete anos de idade, que por lei viria a herdar o trono, e em vez de permitir que se tornasse feliz e de educá- lo, como de justiça, para depois passar- lhe o poder, jogou- o num poço e o afogou, indo, após, contar a Cleópatra, sua mãe, que ele caíra no poço e se afogara, quando corria atrás de um ganso. Presentemente, lo nge de ser o mais feliz dos Macedônios, é o mais infeliz, havendo decerto muitos atenienses, a começar por ti, que prefeririam ser qualquer outro Macedônio a ser Arquelau. XXVII — Sócrates — Polo, no começo de nossa conversa, eu te elogiei por me teres dado a impressão de possuir sólidos conhecimentos de retórica, conquanto te descuidasses do diálogo. E agora, será esse o famoso argumento com que até uma criança conseguiria refutarme, que me deixa convencido, segundo crês, por teu raciocínio, de que eu estava errado, quando afirmei que o homem injusto não poderia ser feliz? Como poderá ser isso, meu caro, se não estou de acordo com nenhuma de tuas proposições? Polo — Isso porque não queres; mas no íntimo pensas justamente como estou dizendo. Sócrates — Criatura bem- aventurada! Procuras convencer- me com recursos de oratória, como nos tribunais costumam fazer os advogados. E assim que uma das partes julga ter refutado o adversário, quando é capaz de trazer em apoio de sua tese muitas testemunhas de grande reputação, ao tempo em que a outra parte só consegue uma, e, às vezes, nem isso. Mas essa espécie de prova carece inteiramente de valor diante da verdade, pois algumas vezes pode alguém ser vitima de depoimento de testemunhas inidôneas, porém tidas na conta de pessoas de bem. É o que se dá no presente caso; a respeito do que afirmaste, quase todos os atenienses e os estrangeiros concordarão contigo; e se quiseres aduzir testemunhas para provar que eu não tenho razão, ai tens Nícias, filho de Nicerato, e seus irmãos, que fizeram o donativo das trípodes que se encontram dispostas em fila no santuário de Dioniso, e também, caso queiras, Aristócrates, filho de Célias, e dono, também, da bela oferenda que se acha no templo de Apoio; e se ainda não te bastarem, tens toda a casa de Péricles, ou quantas famílias aqui de Atenas te aprouver escolher. Eu, porém, embora sozinho, não me rendo; não me convences. Com todo esse teu séquito de testemunhas falsas, só visas a privar- me de meu bem e da verdade. Ao passo que se eu não obtiver o teu depoimento a favor do que eu disser, embora se trate de uma única testemunha, não me deixarei embalar com a ilusão, de que fiz alguma coisa para resolver a questão com que nos ocupamos, como também nada terás conseguido, se não me obtiveres como única testemunha a teu favor e mandares passear todas as outras. Há, de fato, certo modo de refutação que tu aceitas e, contigo, muita gente; mas há outro, também, a que, por meu lado, me apego. Comparemo- los, para vermos em que diferem. O assunto sobre que discutimos não é de valor somenos, mas talvez mesmo o que mais nos importa investigar e fora vergonhoso desconhecer. Pois sua essência própria consiste em conhecermos ou ignorarmos quem é ou quem não é feliz. Para voltarmos ao nosso te ma: és de opinião que pode ser feliz quem pratica o mal e é injusto, tal como Arquelau, que consideras feliz, apesar de seus crimes. Podemos admitir que essa é a tua maneira de pensar? Polo — Perfeitamente. XXVIII — Sócrates — Pois afirmo que isso é impossível; nesse ponto, estamos em desacordo. Muito bem. Quem comete injustiça poderá ser feliz, na hipótese de vir a ser punido e castigado? Polo — De forma alguma, pois nesse caso seria infeliz ao máximo. Sócrates — E se porventura o criminoso não recebesse nenhuma punição, de acordo com o que disseste, seria feliz? Polo — É o que afirmo. Sócrates — Pois segundo a minha maneira de pensar, Polo, o homem injusto ou que comete injustiça, de qualquer forma é infeliz, e mais infeliz será, ainda, se não for punido, porém algum tanto menos se for castigado e punido pelos deuses e pelos homens. Polo — É absurdo, Sócrates, o que afirmas. Sócrates — Vou tentar, companheiro, convencer- te da minha maneira de pensar.
Considero- te meu amigo. São os seguintes os pontos sobre que não concordamos. Examina tu mesmo. Em qualquer parte de minha exposição, afirmei que é pior cometer alguma injustiça do que ser vítima de injustiça. Polo — Perfeitamente. Sócrates — Tu, porém, que é ser vitima de injustiça. Polo — Isso mesmo. Sócrates — Disse, também, que são infelizes as pessoas que cometem injustiça, o que foi refutado por ti.
Polo — Sim, por Zeus. Sócrates — Pelo menos, Polo, pensas desse modo. Polo — E com razão, quero crer. Sócrates — Por tua vez, afirmaste serem felizes os que cometem injustiça, no caso de escaparem ao castigo. Polo — Exatamente. Sócrates — E eu digo que são esses, precisamente, os mais infelizes, sendo- o um pouco menos os que recebem castigo. Não queres rebater também esse ponto? Polo — Essa proposição é mais difícil de refutar do que a outra, Sócrates. Sócrates — Não é bem isso, Polo; é impossível; a verdade nunca poderá ser contestada. Polo — Que disseste? Se um indivíduo é apanhado e detido na tentativa criminosa de apoderar-se do poder, é posto a tratos e mutilado; queimam- lhe os olhos, e depois de lhe infligirem as maiores e mais variadas tortu ras, e de ver ele que a mulher e os filhos são tratados da mesma maneira, por último é colocado na cruz ou be suntado com breu e queimado vivo: esse indivíduo será mais feliz do que se não for descoberto, conseguir tornarse tirano e, como senhor absoluto da cidade, continuar durante toda a vida a fazer o que bem lhe parecer, objeto de inveja e de admiração tanto dos seus concidadãos como dos estrangeiros? Isso é que consideras impossível de refutar? XXIX — Sócrates — Tornas a lançar mão de um espantalho, meu bravo Polo, porém não me refutas. Há pouco recorreste a testemunhas. De qualquer forma, aju da- me a avivar a memória sobre uma coisinha de nada. A tentativa injusta de apoderar- se do poder, não foi isso o que disseste? Polo — Exatamente. Sócrates — Pois eu sou de parecer que nem um nem outro pode ser considerado mais feliz, nem o que alcançou injustamente a tirania, nem o que foi preso e castigado, porque entre dois desgraçados nenhum pode ser feliz; todavia, o mais infeliz é o que escapou e se tornou tirano. Que é isso, Polo, estás rindo? Será essa uma nova modalidade de refutação, rir de alguém que afirma alguma coisa, sem opor- lhe qualquer argumento? Polo — Não te consideras refutado, Sócrates, depois de afirmares coisas que nenhum homem poderia admitir? Basta perguntares a qualquer dos presentes. Sócrates — Não sou político, Polo; sim, no ano passado, fui eleito para o conselho, e como minha tribo exercesse o pritanato e eu tivesse de recolher os votos, pus- me a rir, sem saber como fazer. Não me concites, portanto, a contar os votos dos presentes, e se não dispões de melhor processo de refutação, cede -me o teu lugar, conforme sugeri há pouco, e faze a experiência da argumentação que me parece indicada. De minha parte, só sei aduzir a favor do que afirmo uma única testemunha, justamente a pessoa com que estiver argumentando, sem dar maior importância à opinião da maioria; só conheço o modo de obter esse único voto; às demais pessoas não me dirijo. Vê, portanto, se concordas em deixar que eu conduza a argumentação e em responder a minhas perguntas. Estou convencido de que tanto eu como tu, e os homens em geral, consideramos pior cometer uma injustiça do que sofrê- la, como é pior não ser punido do que sê- lo. Polo — Pois eu afirmo que nem eu nem ninguém compartilha essa opinião. Sendo assim, preferirias sofrer alguma injustiça a praticá- la? Sócrates — Tal qual como tu e como todo o mundo. Polo — De jeito nenhum; nem eu, nem tu, nem ninguém. Sócrates — Estás resolvido a responder- me? Polo — Perfeitamente. Estou ansioso para saber o que vais dizer. Sócrates — Nesse caso, responde- me como se só agora eu te interrogasse: Polo, que te parece pior, come ter alguma injustiça ou sofrer injustiça? Polo — Na minha opinião, sofrer injustiça. Sócrates — E agora, que é mais feio: cometer injustiça ou sofrê- la? Responde. Polo — Cometer injustiça. XXX — Sócrates — Então, por ser mais feio, é também um mal maior. Polo — De jeito nenhum. Sócrates — Compreendo; não aceitas como equivalentes o belo e o bom, o mau e o feio. Polo — Não, de fato. Sócrates — É o seguinte: a todas as belas coisas: corpos, cores, figuras, sons, ocupações, dás o nome de belas sem nenhuma referência a qualquer outra coisa? Para começarmos pelos corpos belos, não os qualificas de belos com vista à utilidade em suas respectivas aplicações, ou com relação ao prazer particular que possam proporcionar às pessoas que os contemplam? Afora isso, saberás dizer mais alguma coisa a respeito dos corpos belos? Polo — Não posso. Sócrates — E com relação a tudo o mais, as figuras e as cores, não é por causa do prazer, ou da utilidade, ou por ambas as coisas que lhes dás o nome de belas? Polo — Perfeitamente. Sócrates — E o mesmo não se passa com os sons e tudo o que se relaciona com a música? Polo — Sim.
Sócrates — E também no que respeita às leis e às ocupações, nenhuma é bela, por outro motivo, mas apenas por ser útil, ou agradável, ou por ambas as coisas. Polo — É também como penso. Sócrates — E o mesmo não se dá com a beleza das ciências? Polo — Sem dúvida; tua explicação, Sócrates agora é muito mais bonita, com definires o belo por meio do prazer e do bem. Sócrates — Logo, o feio será definido por meio de seus contrários, a dor e o mal? Polo — Necessariamente. Sócrates — Então, sempre que entre duas coisas belas uma é superior à outra, é que a ultrapassa por uma dessas qualidades, ou por ambas, vindo a ser mais bela ou pelo prazer, ou pela utilidade, ou por esses dois fatores ao mesmo tempo. Polo — Sem dúvida. Sócrates — E entre duas coisas feias, quando uma é mais feia do que a outra, é porque a ultrapassa em sofrimento ou em maldade, para ser mais feia. Não é a conclusão que se nos impõe? Polo — Sim. Sócrate s — E agora, que estávamos a dizer a respeito de cometer injustiça ou sofrer injustiça? Não disseste que sofrer injustiça é pior, mas que é mais feio cometer injustiça? Polo — Disse. Sócrates — Ora, se cometer injustiça é mais feio do que sofrer injustiç a, será também mais doloroso, vindo a ser mais feio, justamente, por ultrapassar o outro em sofrimento, ou em maldade, ou em ambas as coisas. Não somos forçados a aceitar também essa conclusão? Polo — Como não? XXXI — Sócrates — Examinemos, então, em primeiro lugar, se é mais molesto praticar injustiça do que ser vitima dela, e se mais sofrem os que a praticam do que suas vitimas. Polo — Quanto a isso, não, Sócrates. Sócrates — Não é, portanto, pelo sofrimento que eles as ultrapassam. Polo — Não, evidentemente. Sócrates — Se não é pelo sofrimento, também não será por ambos. Polo — E claro. Sócrates — Então será pelas outras qualidades.
Polo — Sim. Sócrates — Pelo mal. Polo — É possível. Sócrates — Ora, se eles as ultrapassam em malda de, cometer injustiça é pior do que sofrer injustiça. Polo — É mais do que claro. Sócrates — Ora, não é admitido pela maioria dos homens, e não concordaste há pouco, que é mais feio cometer injustiça do que ser vítima de injustiça? Polo — Sim. Sócrates — Como também vimos que é maior mal. Polo — Parece que sim. Sócrates — E tu, preferirias o pior e mais feio ao que o for menos? Não hesites em responder, Polo; em nada te prejudicarás; entrega -te com confiança à discus são, como se o fizesses a um médico, e responde sim ou não ao que eu te perguntar. Polo — Não o preferiria, Sócrates. Sócrates — E haverá quem o preferisse? Polo — Penso que não, de acordo com a maneira por que foi formulada a questão. Sócrates — Eu tinha, portanto, razão de dizer que nem eu, nem tu, nem ninguém preferiria cometer injustiça a ser vítima dela, por ser dos dois males o maior. Polo — Parece que sim. Sócrates — Como estás vendo, Polo, confrontados nossos argumentos, revelaram- se muito desiguais. Com o teu, todo o mundo está de acordo, menos eu, ao passo que, de meu lado, me dou por satisfeito de seres a única pessoa que concorda comigo e de testemunhares a meu favor; recolho o teu sufrágio e abandono os demais. Demos isso por assentado. Passemos agora ao exame do outro ponto sobre que estávamos em desacordo: se o maior mal para quem comete injustiça é ser punido, conforme sustentas, ou escapar ao castigo, de acordo com o meu modo de pensar? Consideremos a questão da seguinte maneira: sofrer pena por alguma falta ou ser punido justamente, não te parece que seja a mesma coisa? Polo — Sem dúvida. Sócrates — E não poderias afirmar que tudo o que é justo é belo, enquanto justo? Reflete antes de falar. Polo — Parece- me que é assim mesmo, Sócrates.
XXXII — Sócrates — Considera também o seguinte: se alguém faz alguma coisa, não é forçoso haver quem sofra os efeitos do seu ato? Polo — Penso que sim. Sócrates — E quem sofre a ação do agente, não ficará como o outro faz? O que digo é o seguinte: se alguém bate, não é forçoso haver alguma coisa batida? Polo — Necessariamente. Sócrates — E se quem bate o faz com força e de pressa, não ficará batida do mesmo modo a coisa batida? Polo — Sim. Sócrates — Logo, o sofrimento da coisa batida será como a ação de quem bate? Polo — Perfeitamente. Sócrates — E não será também certo que se alguém queima, alguma coisa ficará queimada? Polo — Como não? Sócrates — E se ele queimar em excesso e a ponto de produzir muita dor, a coisa queimada ficará conforme queima o queimador? Polo — Perfeitamente. Sócrates — E se alguém cortar, não se dará a mesma coisa? Algo ficará cortado. Polo — Sim. Sócrates — E no caso de ser grande o corte, profundo e doloroso, não ficará a coisa cortada de acordo com o corte que lhe infligiu o cortador? Polo — É claro. Sócrates — Vê agora se concordas, em tese, com o que eu disse há pouco, que conforme seja a ação do agente, assim será o sofrimento do paciente. Polo — Concordo. Sócrates — Concedido esse ponto, dize- me se ser punido é sofrer ou agir? Polo — Sofrer, Sócrates; forçosamente. Sócrates — Da parte de alguém que atua? Polo — Como não? Da parte de quem castiga. Sócrates — E quem castiga com razão, castiga justamente?
Polo — Sim. Sócrates — E pratica uma ação justa, ou não? Polo — Justa. Sócrates — Então, quem é castigado em punição de alguma falta, sofre justamente? Polo — Parece que sim. Sócrates — E não concordamos que o justo é também belo? Polo — Perfeitamente. Sócrates — Nesse caso, quem castiga comete uma ação bela, e a pessoa punida sofre essa mesma ação? Polo — Sim. XXXIII — Sócrates — Mas, se é bela, é também boa, por ser agradável e útil? Polo — Necessariamente. Sócrates — Então, quem é punido sofre o que é bom? Polo — Parece. Sócrates — E tira vantagem disso? Polo— Sim Sócrates — Será a vantagem que imagino, por tornar- se melhor sua alma, no caso de ser ele punido justa mente? Polo — Com toda a probabilidade. Sócrates — Então, fica livre da maldade da alma quem é punido? Polo — Sim. Sócrates — Nesse caso, fica livre do maior dos ma les? Examina a questão da seguinte maneira: Para quem acumula riqueza, achas que pode haver outro mal além da pobreza? Polo — Não; é a pobreza mesmo. Sócrates — E com relação às condições do corpo, não dirias que a fraqueza seja um mal, ou as doenças, ou a feiúra e tudo o mais da mesma espécie? Polo — Sem dúvida. Sócrates — E não és de opinião que na alma pode haver maldade? Polo — Como não?
Sócrates — E não classificas como tal a injustiça, a ignorância, a cobardia e seus semelhantes? Polo — Perfeitamente. Sócrates — Assim, para a riqueza, o corpo e a alma, por serem três, indicaste três modalidades de males: pobreza, doença e injustiça. Polo — Sim. Sócrates — E agora, qual desses males é o mais feio? Não será a injustiça e, de modo geral, os vícios da alma? Polo — Sem comparação. Sócrates — Sendo a mais feia, terá de ser também a pior? Polo — Por que dizes isso, Sócrates? Sócrates — É o seguinte: em todos os casos, o que é feio só chega a ser isso ou por proporcionar a maior ou o maior dano, ou por ambas as coisas, de acordo o que assentamos antes. Polo — É certo. Sócrates — E agora mesmo, não concordamos que o que há de mais feio é a injustiça e os vícios da alma em geral? Polo — Concordamos, de fato. Sócrates — Logo, é mais feio por ser molesto e doloroso em alto grau, ou por causar dano, se não o for por ambas as coisas? Polo — Necessariamente. Sócrates — E ser intemperante, injusto, cobarde e ignorante, não é mais doloroso do que ser pobre ou doente? Polo — Não me parece, Sócrates, aceitável essa conclusão. Sócrates — Para que a maldade da alma ultrapasse e todas as outras em ser a mais feia, se não é por ser a mais dolorosa, como disseste, sê- lo- á pela grandeza do dano ou pelo mal prodigioso que pode causar. Polo — É claro. Sócrates — Mas o que se destaca pelos maiores danos que possa causar, tem de ser o maior mal que existe. Polo — Sim. Sócrates — A injustiça, a intemperança e os demais vícios da alma, não são os maiores males do mundo?
Polo — Parece que sim. XXXIV — Sócrates — E agora, qual é a arte que nos livra da pobreza, não é a economia? Polo — É. Sócrates — E da doença? A medicina? Polo — Necessariamente. Sócrates — E da maldade e da injustiça? Se te atrapalhas com o problema assim formulado, considera o seguinte: para onde e para quem levamos os doentes do corpo? Polo — Para os médicos, Sócrates. Sócrates — E os que cometem injustiça ou são intemperantes? Polo — Referes- te aos juízes? Sócrates — Para receberem castigo, não é verdade? Polo — De acordo. Sócrates — E não é usando de alguma justiça que punem com razão os que punem? Polo — E evidente. Sócrates — Logo, a economia livra da pobreza; a medicina, da doença; e o castigo, da intemperança e da injustiça. Polo — Parece. Sócrates — E de todas elas, qual será a mais bela? Polo — A que te referes? Sócrates — Economia, medicina, justiça. Polo — Sem comparação, Sócrates, a justiça. Sócrates — Não é por proporcionar o maior prazer, ou as maiores vantagens, ou por ambas as coisas, visto ser a mais bela? Polo— Sim. Sócrates — Será porventura agradável ficar sob tratamento médico, e os que estão sendo tratados alegram- se com isso? Polo — Penso que não. Sócrates — Isso, porém, tem sua utilidade. Ou não tem?
Polo — Sim. Sócrates — Pois liberta de um grande mal, valendo a pena, por conseguinte, suportar dor para recuperar a saúde. Polo — Como não? Sócrates — E quando será mais feliz o homem, no que diz respeito ao corpo: quando se acha sob tratamento médico, ou quando não sofre de nenhuma doença? Polo — Evidentemente, quando não sofre de nada. Sócrates — É que a felicidade, ao que parece, não consiste em livrar- se alguém dos males, mas em conservar- se de todo livre deles. Polo — É isso mesmo. Sócrates — E então? De dois doentes do corpo e da alma, qual é o mais infeliz: o que se submete a trata mento e se liberta da doença, ou o que não é tratado e continua com ela? Polo — A meu ver, o que não é tratado. Sócrates — Já não dissemos que receber castigo é libertar- se do maior mal, a maldade? Polo — Realmente. Sócrates — É que o castigo nos deixa mais prudentes e justos, atuando a justiça como a medicina da malda de. Polo — Sim. Sócrates — Felicíssima, por conseguinte, é a pessoa isenta de vício na alma, pois já vimos ser isso o maior dos males. Polo — É evidente. Sócrates — Em segundo lugar, vem a pessoa que ficou livre do vício. Polo — Parece que sim. Sócrates — Isto é, a pessoa que admoestamos, ou repreendemos, ou que foi punida. Polo— Sim. Sócrates — Nas piores condições, portanto, vive quem é injusto e não se libertou de sua injustiça. Polo — É o que se conclui. Sócrates — E não virá a ser, precisamente, quem, tendo cometido os maiores crimes e procedendo da maneira mais injusta, não é advertido, nem condenado, nem punido, como disseste que se dá com Arquelau e os tiranos em geral, os oradores e potentados?
Polo — Parece que sim. XXXV — Sócrates — O procedimento dessas pessoas, meu caro, pode ser comparado ao de quem sofresse das mais graves doenças e se arranjasse de modo que não pagasse a penalidade ao médico pelos vícios do corpo e se furtasse ao tratamento, por ter medo, como as crianças, dos cautérios e das incisões, visto serem dolorosos. Não te parece que seja assim? Polo — Perfeitamente. Sócrates — Por desconhecerem o valor da saúde e do vigor corpóreo. Coisa semelhante, Polo, de acordo com o que assentamos até agora, é o que talvez aconteça com os que se furtam ao castigo. Só vêem o que nele é doloroso, mas são cegos para o que tem de saudável, por ignorarem que é muito mais de lastimar a convivência com uma alma doente do que com um corpo nas mesmas condições, uma alma, digo, corrompida, injusta e ímpia. Por isso, esforçam- se por todos os meios para não virem a sofrer castigo nem ficarem livres do maior dos males, cuidando apenas de acumular riquezas, angariar amigos e falar com o maior grau possível de persuasão. Se estamos certos, Polo, no que argumentamos até aqui, percebes o que se infere de nossa conversa, ou queres tu mesmo tirar a conclusão? Polo — Se não fores de parecer diferente. Sócrates — Não ficou demonstrado que o maior mal é a injustiça e o procedimento injusto? Polo — É evidente. Sócrates — E mais: que a maneira de alguém vir a ficar livre desse mal é cumprir a pena combinada? Polo — Parece que sim. Sócrates — E que o não cumprimento da pena implica a continuação do mal? Polo— Sim. Sócrates — Logo, cometer injustiça é o segundo mal em importância; o maior de todos é cometer alguma injustiça e não ser punido. Polo — Parece que sim. Sócrates — E não era em torno desse ponto, amigo, que girava nossa discussão? Consideravas Arquelau feliz e por haver perpetrado os maiores crimes sem sofrer penalidade alguma, enquanto eu, de minha parte, era de parecer que não só Arquelau, mas qualquer indivíduo que não for punido pelos crimes praticados deve ser considerado em especial como o mais infeliz dos homens, e que em qualquer circunstância quem comete alg uma injustiça é mais infeliz do que a vitima dessa injustiça, como também é mais infeliz quem se exime do castigo do que quem cumpre a pena cominada. Não foi isso que eu disse? Polo — Foi. Sócrates — E não ficou demonstrado que eu estava com a razão?
Polo — Ficou. XXXVI — Sócrates — Muito bem. Mas, se tudo isso é verdade, Polo, qual vem a ser a grande utilidade da retórica? O que é preciso, de acordo com o que assenta mos até aqui, é esforçar- se ao máximo toda a gente para não cometer injustiça, pois isso acarretaria bastante mal. Ou não? Polo — Perfeitamente. Sócrates — Mas, se ele mesmo, ou alguém por quem se interesse, vier a praticar alguma malfeitoria, será preciso ir, por vontade própria, onde possa ser castigado o mais depressa possível, a saber, ao juiz, como iria ao médico, esforçando- se para que a doença da injustiça não se torne crônica e venha a transformar- se numa úlcera incurável da alma. Ou que diremos, Polo, se nossas proposições continuam de pé? Não é certeza precisar ficar a conclu são em exclusiva consonância com elas? Polo — Que mais poderíamos dizer, Sócrates? Sócrates — Para defender- se alguém de alguma falta por si próprio praticada ou por seus pais, amigos ou filhos, ou de qualquer decisão injusta da pátria, de nenhuma utilidade, Polo, poderá ser a retórica, a menos que admitamos exatamente o oposto, a saber, que é preciso começar cada um por acusar a si mesmo, depois aos parentes e demais amigos que possam ter praticado alguma injustiça, e também não encobrir qualquer falta, mas expô- la à luz do dia, a fim de vir a expiá -la e recupe rar a saúde, fazer violência a si mesmo e aos demais para não se acobardarem e avançar com coragem e de olhos fechados, como se fossem procurar o médico para ser amputado ou cauterizado, tendo em mira exclusivamente o bem e o belo, e sem levar a dor em conta. Se a falta cometida é das que exigem pena de açoite, apresente -se para ser vergastado; se for prisão, deixe- se prender; se for multa, paguea; se for exílio, expatrie -se, e em caso de pena capital, deixe- se executar, sendo sempre o primeiro acusador de si mesmo e dos demais parentes, e só fazendo uso da retórica para que se torne manifesto o crime e ele próprio se livre do maior mal, a injustiça. Diremos isso, Polo ou não? Polo — Tudo o que disseste, Sócrates, se me afigura muito estranho, porém será forçoso convir que está de acordo com o que admitimos antes. Sócrates — Assim, ou teremos de abandonar o que dissemos, ou aceitar a conclusão. Polo — De fato; não há outra alternativa. Sócrates — Figuremos o caso oposto, de ser preciso fazer mal a alguém, ou se trate de inimigo ou de quem quer que seja, com a exceção de nada vir a sofrer por parte do inimigo, de quem será preciso precatar- se. Se foi outra pessoa, portanto, que o inimigo prejudicou, urge fazer todo o possível, por meio de atos ou de pala vras, para que ele não seja punido nem compareça à presença do juiz. Caso venha a comparecer, terá de arranjar meios de escapar do adversário ou de não ser castigado; de modo tal, que se roubou ouro em grande quantidade, não deverá restitui- lo, porém ficará com ele e o gastará consigo mesmo ou com os seus, por modo injusto, e ímpio; se o seu crime reclama pena de morte, não deverá morrer, sendo melhor, ainda, se nunca vier a morrer: permaneça imortal com sua maldade, ou, pelo menos, viva o mais tempo possível tal como é. Na minha opinião, Polo, em casos dessa natureza é que a retórica é de vantagem, pois, para quem não se dispõe a praticar injustiça, não vejo em que possa ter utilidade, se é que tem alguma, o que de nenhum jeito ficou demonstrado em nossa discussão. XXXVII — Cálicles — Dize- me uma coisa, Querefonte: Sócrates está falando sério ou é brincadeira? Querefonte — Penso, Cálicles, que ele está falando com toda a seriedade. Mas o melhor será dirigires- te a ele mesmo. Cálicles — Pelos deuses, é também o que desejo. Dize- me, Sócrates, devemos acreditar que estás falando sério, ou é brincadeira? Se é sério e for verdade tudo o que disseste, então a vida dos homens está completa mente revirada, e nós agimos, ao que parece, exatamente ao contrário de como fora preciso proceder. Sócrates — Cálicles, se não houvesse entre os homens identidade de sentimentos, comuns a todos, embora com diferenças individuais, não seria fácil a ninguém explicar aos outros o que se passa consigo mesmo. Digo isso, por haver observado que eu e tu nos encontramos presentemente nas mesmas condições, pois ambos somos duplamente apaixonados: eu, de Alcibíades, filho de Clínias, e da filosofia, e tu, do demo ateniense e de Demo, filho de Pirilampo. Ora, tenho observado que, apesar de seres um orador veemente, digam o que disserem os teus amados, e seja qual for a sua maneira de expressar- se, nunca te atreves a contradizê- los, mas a todo o instante mudas de parecer, ora assim ora assado. Se na assembléia emites alguma opinião e o demo ate niense se manifesta em contrário, na mesma hora te retratas e passas a afirmar o que ele quer; de igual modo te comportas com relação a esse belo rapaz, o filho de Pirilampo: nunca tens coragem de opor- te às opiniões e às palavras de teu apaixonado; de forma que se alguém se admirasse das coisas absurdas que afirmas cada vez que falas para ser agradável a ambos, poderias retrucar- lhe, se quisesses dizer a verdade, que se ninguém puder impedir os teus amados de dizerem o que dizem, não poderás também evitar de falar como falas. A mesma coisa, agora, terás de preparar- te para ouvir de mim, sem te admirares de eu falar como falo; o que te cumpre é fazer que minha amada, a filosofia, pare também de falar. E ela, caro amigo, que não cessa de dizer- me o que me ouves expor neste momento, sendo de notar que ela é muito menos volúvel do que os outros amados; o filho de Clínias, em verdade, ora fala de um jeito, ora de outro; mas a filosofia diz sempre a mesma coisa. Foi ela quem disse tudo isso que te pareceu absurdo; estavas presente quando ela se manifestou. Por conseguinte, ou terás agora de refutá -la, como observei há pouco, para provar que cometer alguma injustiça e ficar impune não é o maior dos males, ou então, no caso de deixares sem réplica semelhante assertiva, pelo cão, deus dos Egípcios, jamais, Cálicles, poderá Cálicles concordar contigo, vindo a ficar em desarmonia contigo para o resto da vida. Eu, pelo menos, meu caro, sou de parecer que me fora preferível ter a lira desafinada e desarmônica, ou um coro por mim dirigido, sim, e até mesmo não concordar com minhas opiniões a maioria dos homens, e combatê- las, a ficar em desarmonia comigo mesmo e vir a contradizer- me. XXXVIII — Cálicles — Sócrates, dás -me a impressão de que te exibes em teus discursos como o fazem os oradores populares. Mas só declamas dessa forma por haver Polo incidido no mesmo erro que ele censurou em Górgias, quando da discussão deste contigo. Com efeito, Polo disse que Górgias, ao lhe formulares a hipótese de procurá- lo alguém que não conhecesse a justiça, para estudar retórica com ele, se lha ensinaria, respondera afirmativamente por simples modéstia e consideração à opinião dos homens, que protestariam no caso de alguém dar resposta diferente. Com semelhante concessão, viu- se Górgias forçado a contradizer- se, que é com o que mais te deliciais. Naquela altura, com toda a razão, a meu falta idêntica; eis por que não posso mostrar- me satisfeito com Polo, por haver ele concordado que é mais feio cometer injustiça do que ser vítima de injustiça. Foi justamente por causa dessa concessão que ele se viu enleado na discussão contigo e obrigado a calar- se, por ter acanhamento de dizer o que pensa. Tu, Sócrates, que te apresentas como adepto da verdade, é que expões teus argumentos por maneira vulgar e indecorosa, sobre o que não é belo por natureza, mas apenas segundo a lei. Pois, na maioria das vezes, acham- se em oposição a natureza e a lei. Assim, ver-se- á forçado a contradizer- se quem, por acanhamento, não se atrever a dizer o que pensa. Percebeste isso muito bem, e daí procurares tirar partido na discussão. Se alguém se refere à lei, metes na conversa a natureza, e se é sobre a natureza que ele fala, passam tuas perguntas a girar em torno da lei. Foi o que se deu há pouco com relação a praticar alguém ato injus to ou ser vitima de injustiça: enquanto Polo se referia ao que há de mais feio segundo a lei, tu o assediavas referin do- te à natureza. Pois, segundo a natureza, tudo o que é mais feio é também pior, como, por exemplo, sofrer injustiça, enquanto, segundo a lei, será cometer algum ato injusto. Nem é condição normal do homem sofrer injustiça, mas apenas de escravo, a quem melhor fora morrer do que viver, pois, ofendido e espezinhado, não é capaz de defender- se nem de amparar os que lhe são caros. No meu modo de pensar, as leis foram instituídas pelos fracos e pelas maiorias. É para eles e no interesse próprio que são feitas as leis e distribuídos elogios, onde haja o que elogiar, ou censuras, sempre que houver algo para censurar. E para incutir medo nos homens fortes e, por isso mesmo, capazes de alcançar mais do que eles, e impedir que tal consigam, declaram ser feio e injusto vir alguém a ter mais do que o devido, pois nisto, precisamente, é que consiste a injustiça; querer ter mais do que os outros. Conscientes da sua própria inferioridade, contentam- se, quero crer, em ter tanto quanto os outros. XXXIX — Por isso, de acordo com a lei, é denominado feio e injusto querer ter mais do que a maioria, ao que foi dado o nome de injustiça. Mas a própria natureza, segundo creio, se incumbe de provar que é justo ter mais o indivíduo de maior nobreza do que o vilão, e o mais forte do que o mais fraco. Com abundância exemplos, ela mostra que as coisas se passam desse modo e que tanto entre os animais como entre os homens, nas cidades e em todas as raças, manda a justiça que os mais fortes dominem os inferiores e tenham mais do que eles. De fato, com que direito invadiu Xerxes a Hélade ou o pai dele a Cítia? Fora fácil citar milhares de exemplos semelhantes. A meu ver, toda essa gente assim procede segundo a natureza, porém não, decerto, segundo as leis que nós mesmos arbitrariamente instituímos O impomos aos melhores e mais fortes do nosso meio, dos quais nos apoderamos desde os mais tenros anos, como fazemos com o leão, para domesticá- lo com encantamentos ou fórmulas mágicas, e convencê- los de que devem contentar- se com a igualdade, pois nisso, precisamente, consiste o belo e o justo. Na minha opinião, porém, quando surge um indivíduo de natureza bastante forte para abalar e desfazer todos esses empecilhos e alcançar a liberdade, pisa em nossas fórmulas, regras e encantamentos, e todas as leis contrárias à natureza, e, revoltando- se, vemos transformar- se em dono de todos nós o que antes era nosso escravo: é quando brilha com o seu maior fulgor o direito da natureza. Quer parecer- me que Píndaro afirma isso mesmo na Ode em que diz: Rainha é a lei de tudo o que há no mundo: dos deuses, dos mortais. ela, acrescenta, que com seu pulso de ferro justifica os mais violentos atos. Como prova, de Héracles cito os feitos. Sem comprado ter nenhum... O sentido é mais ou menos esse; não sei de cor a Ode. O que ele quer dizer é que, sem ter comprado nem ganho os bois de Gerião, tocou- os por diante, como coisa muito natural, e que, por direito, pertencem ao superior e mais forte os bois e demais haveres dos fracos. XL — Essa é a verdade, que tu mesmo reconhecerias se deixasses de lado a filosofia e te dedicasses a ocupações mais importantes. A filosofia, Sócrates, é de fato, muito atraente para quem a estuda com moderação na mocidade, porém acaba por arruinar quem a ela se dedica mais tempo do que fora razoável. Por bem dotada que seja uma pessoa, se prosseguir filosofando até uma idade avançada, forçosamente ficará ignorando tudo o que importa conhecer o cidadão prestante e bem- nascido que ambicionar distinguir -se. De fato, não somente desconhecerá as le is da cidade, como a linguagem que será preciso usar no trato público ou particular, bem como carecerá de experiência com relação aos prazeres e às paixões e ao caráter geral dos homens. Logo que procuram ocupar- se com seus próprios negócios ou com a política, tornam- se ridículos, como ridículos, a meu ver, também se tornam os políticos que se dispõem a tomar parte em vossas reuniões e vossas disputas. Aplicam-se- lhes as palavras de Eurípides, quando diz que todo indivíduo brilha naquilo Em que aplica a ma ior parte de seus dias e entre todos os outros se distingue. Mas evita e critica aquilo em que é inferior, elogiando o oposto, levado pelo sentimento de parcialidade, o que é uma maneira de elogiar a si mesmo. No meu modo de pensar, o certo será ocupar-se com ambas as coisas. É belo o estudo da filosofia até onde for auxiliar da educação, não sendo essa atividade desdouro para os moços. Mas prosseguir nesse estudo até idade avançada, é coisa supinamente ridícula, Sócrates, reagindo eu à vista de quem assim procede como diante de quem se põe a balbuciar e brincar como criança. Quando vejo uma criança na idade de falar dessa maneira, balbuciando e brin cando, alegro- me e acho encantador o espetáculo, digno de uma criatura livre e muito de acordo com aquela fase da existência; porém se ouço uma criaturinha articular com correção as palavras, doem- me os ouvidos e acho por demais forçado essa maneira de falar, que se me afigura linguajar de escravos. Falar um adulto, pelo contrário, ou brincar como criança é procedimento ridículo, indigno de homens e merecedor de açoites. É precisamente isso que se dá comigo com relação aos que se dedicam à filosofia. Alegra -me o espetáculo de um adolescente que se aplica no estudo dessa matéria; assenta -lhe bem semelhante ocupa ção, muito própria de um homem livre, como considero inferior e incapaz de realizar alguma ação bela e generosa quem nessa idade descura da filosofia. Mas, quando vejo um velho cultivá- la a destempo, sem renunciar a tal ocupação, um homem nessas condiçõe s, Sócrates, para mim é merecedor de açoites. Como disse há pouco, quem assim procede, por mais bem- dotado que seja, deixa de ser homem; foge do coração da cidade e das assembléias, onde, exclusivamente, no dizer do poeta, os homens se distinguem, para meter- se num canto o resto da vida, a cochichar com três ou quatro moços, sem jamais proferir um discurso livre, grande ou generoso. XLI — A teu respeito, Sócrates, tenho a melhor disposição, parecendo- me que meus sentimentos podem ser comparados aos de Zeto com relação a Anfião, na peça de Eurípides a que há pouco me referi. Sinto- me também inclinado a falar como ele falava para o irmão, e dizer- te que descuras, Sócrates, do que devias cuidar e estragas tua alma tão superiormente dotada com a adoção de gestos pueris, e que nas deliberações da justiça és incapaz de falar como convém, por maneira clara e persuasiva, ou de apresentar em causa estranha algum conselho aproveitável. Por tudo isso, meu caro Sócrates — não te ofendas com o que eu disser, pois a amizade que te dedico é que me leva a falar dessa maneira — não consideras vergonhoso teres chegado ao estado em que te vejo e, contigo, os que prolongam desse modo o estudo da filosofia? Agora mesmo, se alguém te detivesse ou a algum dos teus iguais, e te metesse na prisão sob o pretexto de algum crime que não houvesses cometido, terás de confessar que não saberias como haver- te, mas ficarias com vertigens e de boca aberta, sem achares o que dizer no instante de te apresentares ao tribunal, e, por mais insignificante e desprezível que fosse o teu acusador, virias a perder a vida, se lhe aprovesse pedir para ti a pena capital. Ora, que sabedoria pode haver numa arte, Sócrates, que se apodera de um indivíduo bem- dotado e o deixa inferior, incapaz não só de defender- se e de livrar- se a si mesmo dos perigos, como a qualquer outra pessoa, ou que o expõe a ser despojado de seus haveres pelos adversários, ou forçado a viver desonrado na pátria? Um indivíduo nessas condições — se me permites uma expressão um tanto grosseira — fora lícito esbofeteá- lo impunemente. Por isso, atende- me, caro amigo; pára com essas demonstrações e cultiva a bela ciência da vida prática, para adquirires reputação de sábio, deixando para os outros essas sutilezas, quer mereçam ser chamadas tolices, quer palavrório sem valor, e que acabarão por fazer- te morar numa casa despovoada. Não procures imitar os que se afanam em pós dessas futilida des, mas apenas os que sabem adquirir riqueza, fama e grande cópia dos mais variados bens. XLII — Sóc rates — Se eu tivesse a alma de ouro, Cálicles, não achas que me fora sumamente grato encontrar uma dessas pedras de toque, a melhor de todas, com a qual eu faria a aferição de minha alma, para ver se esta va bem cuidada e, uma vez obtida essa certeza, dis pensaria qualquer outra prova desse gênero? Cálicles — Por que me fazes semelhante pergunta, Sócrates? Sócrates — Vou dizer- te. É que estou convencido de que, encontrando- te, encontrei em tua pessoa semelhante jóia. Cálicles — Como assim? Sócrates — Sei muito bem que se concordares comigo sobre as opiniões de minha alma, é certeza estar eu com a verdade. De fato, considero que, para tirar a prova completa que permita saber se uma alma vive bem ou mal, são necessários três requisitos que em ti vejo reunid os: conhecimento, boa vontade e franqueza. Já encontrei muitas pessoas que não se acham em condições de pôr- me à prova, por não serem tão sábias como tu; outros são sábios, porém não se dispõem a dizer- me a verdade, por isso mesmo que não têm por mim o interesse que revelas. Os dois forasteiros aqui presentes, Górgias e Polo, são, realmente, sábios e meus amigos, porém carecem de franqueza, além de se mostrarem mais tímidos do que fora necessário. E, como poderia ser de outra maneira, se a timidez os le va a se contradizerem reciprocamente, por acanhamento, diante de numerosa assis tência, e isso em assunto de tamanha relevância? Em ti, porém, reúnem- se todas essas qualidades que faltam nos demais. Tua instrução é das mais sólidas, o que poderão atestar muitos atenienses, além de seres bem intenciona do a meu respeito. Que prova aduzirei? Vou revelar- te. Sei perfeitamente, Cálicles, que vós quatro: tu, Tisandro de Afidna, Andrão filho de Androtião, e Nausícides colargense vos associastes para estudar filo sofia. De uma feita, cheguei a ouvir quando determináveis até que ponto seria aconselhável cultivar a sabedoria, tendo certeza de que prevaleceu a opinião de que não é conveniente prolongar demais semelhante estudo. Chegastes, até, a tomar o compromisso uns com os outros de não vos tomardes sábios além da conta, para não virdes a vos arruinar involuntariamente. Por isso, quando vejo que me aconselhas como fizeste com teus amigos mais chegados, encontro a mais eloqüente prova de que és, de fato, bem intencionado a meu respeito. Que sabes ser franco sem acanhamento, tu próprio o declaraste, o que, aliás, é confirmado pelo teu discurso de há pouco. De tudo isso, o que se infere até o presente momento é que a proposição em que estiveres de acordo comigo deverá ser considerada como suficientemente comprovada por ambos, sem que nenhum de nós necessite aduzir novos argumentos como reforço. Pois é evidente que não poderias concordar comigo nem por carência de sabedoria nem por excesso de timidez, muito menos com o propósito de enganar- me, visto seres meu amigo, conforme tu mesmo o declaraste. Assim, é fora de dúvida que tudo aquilo em que estivermos de acordo representa a. mais alta expressão da verdade. Não há mais belo tema de estudo, Cálicles, do que isso mesmo que mereceu censura de tua parte, a saber, o que o homem deve ser e a que deve aplicar- se, e até que ponto será preciso fazê- lo, ou seja na velhice ou na mocidade. No que me diz respeito, se eu cometo na vida alguma falta, podes estar certo de que não o faço de caso pensado, porém por ignorância. Por isso, uma vez que começaste, não pares de admoestar- me; indica- me claramente a que tenho de aplicar- me e qual a maneira de consegui- lo, e, no caso de vires que me declaro agora de acordo contigo sobre algum ponto, mas que de futuro não procedo conforme prometi, podes qualificar- me de pusilânime e nunca mais me aconselhes, uma vez que me revelei indigno de teus esforços. Volte mos a considerar o assunto do começo: que é o que tu e Píndaro entendeis por justiça natural? O direito do mais poderoso de tomar à viva força os bens do mais fraco, ou o de dominar o melhor sobre o pior, ou de ter mais o nobre do que o que vale menos? É outro o teu conceito de justiça, ou fui fiel em minha definição? XLIII — Cálicles — Foi isso mesmo que eu disse há momentos e ainda sustento. Sócrates — No teu modo de ver, o homem que consideras melhor é o mesmo que o mais forte? Há pouco não apreendi bem o teu pensamento. Será que denominas melhores os mais fortes, sendo preciso, portanto, que os mais fracos se submetam aos mais fortes, como quer parecer- me que o demonstraste, ao afirmares que as grandes cidades atacam as pequenas por direito natural, por serem mais poderosas e mais fortes, no pressuposto de que mais poderoso, mais forte e melhor são conceitos que se eqüivalem, ou dar-se- á o caso de poder ser melhor o inferior e mais fraco, ou ser mais poderoso o pior? Ou será uma única definição a do melhor e a do mais poderoso? Explica- me com clareza se há diferença ou identidade entre o mais poderoso, o melhor e o mais forte? Cálicles — Então, digo- te francamente que tudo isso é uma só coisa. Sócrates — E a maioria, não é por natureza mais forte do que um só homem, já que ela institui leis contra este, conforme há pouco te expressaste? Cálicles — Como não? Sócrates — Logo, as leis da maioria são também leis dos mais fortes? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E também dos melhores, pois, de acordo com o que disseste, os mais fortes também são me lhores. Cálicles — Sim. Sócrates — Então, por natureza são belas essas leis, por serem leis dos mais fortes.
Cálicles — Exato. Sócrates — E a maioria não é também de parecer, conforme não faz muito o declaraste, que a justiça consiste na igualdade e que é mais feio praticar injustiça do que ser vítima de injustiça? É assim mesmo, ou não? Acautela -te, agora, para também não ficares acanhado. A maioria pensa ou não pensa desse modo, a saber, que é justo ter tanto quanto os outros, não mais, e que é mais feio cometer injustiça do que vir a sofrê- la? Não me prives de tua resposta, Cálicles, neste passo, pois, no caso de estares de acordo comigo, sentir- me- ei reforçado por teu intermédio, por haver alcançado o assentimento de pessoa tão judiciosa. Cálicles — Sim, a maioria pensa desse modo. Sócrates — Não é, portanto, apenas em virtude da lei que é mais feio praticar algum ato injusto do que ser vítima de injustiça, e que a justiça consiste na igualdade, mas também por natureza. Por conseguinte, é possível que não tivesses dito antes a verdade e me acusasses sem razão, quando afirmaste que a natureza e a lei se contrapõem e que eu disso tinha pleno conhecimento no de senrolar da discussão, porém procedia de má fé, apelando para a lei, quando alguém falava segundo a natureza, ou para a natureza, quando se referia à lei. XLIV — Cálicles — Este homem não pára de falar despropósitos. Diz -me uma coisa, Sócrates: não te envergonhas, na idade a que chegaste, de lançar- te à caça de palavras e, se, alguém comete um lapso de linguagem, considerares isso um achado de importância? Pensas, realmente, que o que eu disse não foi que é a mesma coisa o mais forte e o melhor? Ou achas que sou de parecer que se se reunir uma malta de escravos ou de indivíduos da mais heterogênea procedência, carecentes inteiramente de préstimo, salvo serem dotados de força muscular, o que então disserem deverá ser considerado Sócrates — Está bem, sapientíssimo Cálicles; é assim que pensas? Cálicles — Perfeitamente Sócrates — Há muito tempo, prezado amigo, eu suspeitava que era mais ou menos isso que tu entendias por mais forte, e se insistia em minhas perguntas era para ficar sabendo com segurança a tua maneira de pensar. É evidente que não podes ser de opinião que dois homens são melhores do que um, nem que teus escravos são melhores do que tu , só por terem mais força. Então, voltemos para o começo e explica- me o que entendes por melhor, uma vez que não se trata do mais forte. Porém instrui- me, admirável amigo, com um pouco mais de brandura, para que eu não tenha de fugir de tua escola. Cálicle s — Estás com ironia, Sócrates. Sócrates — Não, Cálicles; juro por Zeto, a quem tanto recorreste há pouco para troçar de mim. Afinal, quais são os que consideras melhores? Cálicles — Os de mais valor, é o que digo. Sócrates — Não percebes que só estás empregando palavras e que nada esclareces? Poderás dizer- me se por melhor e superior entendes o mais judicioso? Ou que vem a ser? Cálicles — Sim, por Zeus; é isso mesmo que digo. Perfeitamente.
Sócrates — De acordo, portanto, com tuas palavras, muitas vezes pode dar- se que um indivíduo sensato valha mais do que mil destituídos de senso, cabendo- lhe, por isso, comandar, como aos demais obedecer, e ter mais o que manda do que os comandados. Era isso, quero crer, que te propunhas dizer — não estou caçando palavras —a ser verdade que um homem sozinho vale por mais de mil. Cálicles — Foi isso mesmo que eu disse. Pois, segundo penso, decorre do direito natural que o melhor e mais sensato comande e tenha mais do que os inferiores. XLV — Sócrates — Pára aí um pouco! Q ue achas do seguinte: Se estivéssemos, como agora, reunidos num mesmo lugar, muitos homens e dispuséssemos em comum de grande cópia de alimentos e de bebidas, indivíduos da mais variada constituição, uns fortes, outros fracos, e que entre nós, na qualidade de médico, um fosse mais entendido nessas questões, tendo de ser natu ralmente, mais forte do que uns e mais fraco do que outros: esse indivíduo, por ser o mais sábio do grupo, seria também o melhor e o mais forte a esse respeito? Cálicles — Sem dúvida nenhuma. Sócrates — Nesse caso, ele terá de ganhar maior porção das provisões do que nós, por ser o melhor de todos? Ou, pelo próprio fato de sua autoridade, precisará fazer a distribuição de tudo aquilo? Porém no que respeita ao consumo das provisões e ao uso para o seu próprio corpo, terá de acautelar- se para não gastar mais do que os outros e não vir a ser punido; sua porção será maior ou menor do que a dos demais, conforme o caso, mas, se for o mais fraco do grupo, há de ser a menor, Cálicles, apesar de toda a sua superioridade. Não estou certo, caro amigo? Cálicles — Falas de bebidas, comeres, médicos e outras tolices. Não é a isso que me refiro. Sócrates — De qualquer forma, não admitiste que o mais sábio é o melhor? Respondeme sim ou não. Cálicles — Sim. Sócrates — E não afirmaste que o melhor terá de ter uma porção maior? Cálicles — Não, porém, de comidas e bebidas. Sócrates — Compreendo; talvez de roupas; e quem souber tecer com mais perícia obterá um manto mais amplo e andará por toda a parte com as melhores e mais vistosas roupas. Cálicles — Roupa, coisa nenhuma! Sócrates — Então, com relação a sapatos, é fora de dúvida que obterá maior porção quem for mais entendido e os fabricar melhor. Decerto o sapateiro fará seus passeios com sapatos maiores do que as outras pessoas e terá deles uma grande coleção. Cálicles — A que vem agora esse sapato! Quanta bobagem estás a dizer! Sócrates — Bem; se não te referes a essas coisas, talvez queiras dizer o seguinte: o lavrador de grandes conhecimentos, que saiba cuidar da terra, obterá, sem dúvida, maior porção de sementes do que os outros, e empregará o maior número possível delas em seu terreno particular. Cálicles — Falas sempre do mesmo jeito, Sócrates. Sócrates — Não apenas do mesmo jeito, Cálicles, como também a respeito das mesmas coisas. Cálicles — Pelos deuses! Só falas em sapateiros, pisoeiros, cozinheiros e médicos, como se isso tivesse alguma coisa que ver com a nossa discussão. Sócrates — Então, não te resolves a dizer a respeito de que o mais forte e mais sábio terá de ficar com maior porção do que os outros? Além de não te manifestares, não admites que te sugira alguma coisa? Cálicles — Mas, há muito tempo eu venho insistindo nisso mesmo! Para começar, quando me refiro aos melhores, não tenho em mira sapateiros nem cozinheiros, mas os entendidos nos negócios da cidade e que sabem como bem dirigi- los, e que, além de assisados, são corajosos, porque capazes de porem em execução algum plano, sem virem a desfalecer por moleza de alma. XLVI — Sócrates — Não reparaste, meu excelente Cálicles, como não é a mesma coisa o que repreendes em mim e o que censuro em ti? Dizes que eu repito sempre o mesmo ponto e me repreendes por isso; mas a teu respeito é justamente do contrário que me queixo, de nunca dizeres as mesmas coisas sobre o mesmo assunto; ora declaras que os melhores e mais poderosos são os mais fortes, ora os mais sensatos; agora, porém, vens com outra novidade, pois afirmas que os corajosos é que são os melhores e mais fortes. Por isso, caro amigo, explica- me de uma vez por todas, quem consideras melhor e mais poderoso, e de que modo se manifesta essa supe rioridade. Cálicles — Já o disse: os que entendem dos negócios públicos e são corajosos. A esses é que compete governar as cidades, mandando a justiça que tenham mais do que os outros, os governantes mais do que os governados. Sócrates — E com relação a eles próprios, amigo: são governantes ou governados? Cálicles — Que queres dizer com isso? Sócrates — Digo que cada um deve comandar a si mesmo. Ou não haverá necessidade de ninguém comandar- se a si mesmo, mas apenas aos outros? Cálicles — Que entendes por comandar a si mesmo? Sócrates — Não se trata de nada abstruso; a esse respeito penso como todo o mundo: ser temperante e dono de si mesmo, e domin ar em si próprio os prazeres e os apetites. Cálicles — Como és engraçadinho! Aos simplórios é que dás o nome de temperantes? Sócrates — Como assim? Não há quem não perceba que não foi isso que eu disse. Cálicles — Foi isso, precisamente, Sócrates. Pois como poderá ser feliz quem for escravo do que quer que seja? O belo e justo por natureza, digo- o sem o menor constrangimento, é que quem quiser viver de verdade, longe de reprimir os apetites, terá de permitir que se expandam quanto possível, e quando se encontrarem no auge, ser capaz de alimentá- los com denodo e inteligência e de satisfazer a todos eles à medida que se forem manifestando. Mas isso, justamente, segundo penso, é que não é para toda a gente; eis porque a maioria dos homens censura as pessoas capazes de assim viver, por se envergonharem da própria debilidade, que procuram esconder, e qualificam de feia a intemperança, para escravizarem, conforme disse há pouco, as pessoas bem- dotadas por natureza. Sendo incapazes de satisfazerem suficientemente suas paixões, elogiam a temperança e a justiça com base em sua própria pusilanimidade. Pois para os que nasceram filhos de reis, ou que por natureza sejam capazes de conquistar algum império ou o poder e qualquer domínio: haverá nada mais vergonhoso e prejudicial do que a temperança para semelhantes indivíduos? Tendo a possibilidade de gozar de todos os bens, sem que ninguém se lhes atravesse no caminho, iriam impor a si mesmos um déspota, a saber, a lei da maioria, e o falatório dos outros, e as censuras? Quão infelizes não se tornariam, pelo fato mesmo da beleza da justiça e da temperança, se não pudessem dar mais aos amigos do que aos inimigos, e isso apesar de serem donos de suas próprias cidades? O certo, Sócrates, é que a verdade que tu presumes procurar é simplesmente isto: o luxo, a intemperança e a liberdade, quando devidamente amparados, é que constituem ao certo a virtude e a felicidade. Tudo o mais, todos esses enfeites e convenções contrárias à natureza, não passam de palavrório sem valor. XLVII — Sócrates — Não denota baixa estirpe, Cálicles, a franqueza com que desenvolves teu argumento, pois dizes com toda a clareza o que os outros pensam, porém não se atrevem a manifestar. Só te peço que não cedas em nenhum ponto, para que realmente s e torne manifesto como é preciso viver. Dize- me uma coisa: afirmas que não deve refrear as paixões quem quiser ser o que deseja ser, porém deixar que cresçam elas ao máximo, procurando satisfazê- las de todo o jeito, e que nis so consiste a virtude? Cálicle s — E o que sustento. Sócrates — Erram, portanto, os que apregoam que felizes são os que de nada necessitam. Cálicles — Nesse caso, as pedras e os cadáveres seriam felicíssimos. Sócrates — Ainda assim, tal como a defines, terrível coisa é a vida. Não me admirarei se falou certo Eurípides, quando disse: Quem nos dirá que não é morte a vida, e estar morto, viver? É possível, até, que estejamos mortos; eu próprio já ouvi certo sábio declarar que estamos realmente mortos e temos por sepultura o corpo, e que a porção da alma em que residem os desejos é facilmente sugestionável e conduzida de um lado para o outro, de onde veio a um sujeito espirituoso e criador de mitos — provavelmente siciliano ou itálico — jogando com as palavras, a idéia de dar o nome de pipa à alma, por deixar- se facilmente encher de sugestões; os infensos ao estudo chamou de não iniciados, e a porção da alma dos não iniciados em que se localizam as paixões, justamente por ser incontentável e nada reter, comparou a um tonel furado, por isso mesmo que nunca revela saciedade. Ao contrário de tuas conclusões, Cálicles, essa pessoa nos mostra que no mundo das sombras — o mundo invisível, conforme ele se exprime — os mais infelizes são os não iniciados, pois carregam água para o tonel furado num crivo também cheio de furos. Por esse crivo ele entendia a alma, como me explicou quem me contou a história. Comparou a alma dos insensatos a um crivo que é cheio de furos, pois nada consegue reter, visto carecer de fé e memória. Tudo isto, sem dúvida, é bastante caprichoso, mas é quanto chega para ilustrar o que eu desejara de monstrar- te, se me fosse possível, que deverias resolver- te a mudar de opinião, e em vez de uma vida intemperante e insaciável preferires a bem ordenada e que se satisfaz com o que o dia presente lhe oferece. Mas, em que ficamos? Cheguei a convencer- te, a ponto de aceita res a opinião de que os indivíduos comedidos são mais felizes do que os intemperantes? Ou nada consegui, e ainda mesmo que te apresentasse mil histórias desse tipo, em nada alterarias a tua maneira de pensar? Cálicles — É mais certo, Sócrates, o que disseste por último. XLVIII — Sócrates — Assim sendo, vou propor- te outra imagem da mesma procedência que a anterior. Vê se te é possível comparar essas duas modalidades de existência — isto é, a temperante e a incontinente — ao caso de dois homens que particularmente possuíssem muitas barricas. Um as tinha em bom estado e cheias de vinho, ou de mel, ou de leite, afora muitas mais, também cheias de líquidos diferentes, colhidos em fontes escassas e de difícil acesso, e adquiridos com trabalho e dificuldade. Porém uma vez cheio o vasilhame, não se preocuparia o nosso amigo com renovar- lhes o conteúdo, deixando- se ficar tranqüilo a esse respeito. O outro indivíduo disporia das mesmas fontes que o primeiro, nas quais poderia abastecer- se, embora com dificuldade; mas todos os seus tonéis eram quebradiços e apresentavam rachas, o que o obrigava a enchê- los dia e noite sem interrupção, para não vir a sofrer o pior. Ora bem, se me aceitas a comparação entre o procedimento desses dois indivíduos e aquelas duas maneiras de viver, dirás que a vida do intemperante é mais feliz do que a do moderado? Consegui convencer- te com minha exposição, de que a vida do indivíduo equilibrado é melhor do que a do licencioso? Ou não? Cálicles — Não, Sócrates; não me convenceste. O tal homem dos tonéis cheios já não sente nenhum prazer. Isso é o que se chama, como disse há pouco, viver como as pedras; depois de cheio, não sente nem prazer nem dor. A vida verdadeiramente agradável consiste em prover os tonéis ao máximo. Sócrates — Mas se for muito o que despejamos ne les, muito também é o que se escoa, sendo forçoso haver grandes furos para dar vazão ao que sai. Cálicles — Exato. Sócrates — Então, o que descreves é a vida de uma tarambola, não dos mortos nem das pedras. Responde -me ao seguinte: dizes que há fome e que, havendo fome, é preciso comer? Cálicles — É isso mesmo. Sócrates — E sede, também? E, havendo sede, be ber? Cálicles — Sim, e que também é preciso ter todos os outros apetites e poder satisfazêlos, para sentir pra zer com isso e viver feliz. XLIX — Sócrates — Muito bem, meu caro. Continua como até agora, sem te acanhares de falar. o que também procurarei fazer. E, para começar, dize -me se no caso do sarnento que sente comichão e tem vontade de coçar- se, nessas condições, também, a vida deve ser considerada feliz?
Cálicles — Que despropósito, Sócrates! Isso é recurso de orador da plebe. Sócrates — Graças a isso, Cálicles, foi que eu intimidei Polo e Górgias e os deixei envergonhados; tu, porém, nem te acanhas nem te deixas intimidar, por seres decidido. Cuida, portanto, de responder. Cálicles — Então direi que até mesmo o indivíduo que se coça pode viver agradavelmente. Sócrates — Se vive agradavelmente, também vive feliz. Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — Porém só no caso de sentir comichão na cabeça, ou poderei formular- te outras perguntas? Que responderias, Cálicles a quem te interrogasse, por ordem, sobre tudo o que decorre desse começo? Passando- se as coisas assim mesmo, que me dizes: a vida de um devasso não é intolerável, vergonhosa e infeliz? Ou terás cora gem de afirmar que esses indivíduos também são felizes por terem em abundância tudo o que desejam? Cálicles — Não te enve rgonhas, Sócrates, de levar a discussão para esse lado? Sócrates — Sou eu que a levo para esse lado, meu caro, ou quem declara, sem maiores explicações, que a felicidade consiste no prazer, seja de que natureza for, sem distinguir entre os prazeres bons e os maus? Porém dize mais uma vez se consideras a mesma coisa o bom e o agradável, ou se admites que possa haver coisas agradáveis que não sejam boas? Cálicles — Para não ficar em contradição com o que afirmei antes, se disser que são
diferentes, respondo que são iguais. Sócrates — Assim, Cálicles, desmanchas o nosso convênio e te desqualificas para investigar comigo a verdade, se externares algo contra a tua maneira de pensar. Cálicles — O mesmo se dá contigo, Sócrates. Sócrates — Nem eu estou certo se assim procedo realmente, nem tu. Mas considera, meu caro, que talvez o bem não consista em ter prazer de qualquer modo; se for o caso, seguir-se- ão as conseqüências vergonhosas a que me referi há pouco e muitas outras mais. Cálicles — Tu, pelo menos, pensas desse modo, Sócrates. Sócrates — E tu, Cálicles, persistes em tua afirmativa? Cálicles — Perfeitamente. L — Sócrates — Queres, então que prossigamos a discussão, como se estivesses falando sério? Cálicles — Falo com toda a seriedade. Sócrates — Muito bem; já que pensas desse modo, explica- me o seguinte: existe algo a que dás o nome de conhecimento?
Cálicles — Sem dúvida. Sócrates — E não disseste agora mesmo que de par com o conhecimento vai uma espécie de coragem? Cálicles — Disse. Sócrates — E por teres distinguido do conhecimento a coragem, dizes que diferem entre si? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E então? O prazer e o conhecimento são idênticos ou diferentes? Cálicles — Diferentes, sem dúvida, varão sapientíssimo. Sócrates — E a coragem, também difere do prazer? Cálicles — Como não? Sócrates — Então não nos esqueçamos de que o acarniense Cálicles disse que o agradável e o bem são, de fato, uma só coisa, e que o conhecimento e a coragem, além de diferirem entre si, são diferentes do bem. Cálicles — Com o que Sócrates, da terra das raposas, não concorda. Ou concordará? Sócrates — Não concorda, o que também fará Cálicles, quero crer, quando examinar melhor a questão. Dize- me uma coisa: os que vivem bem e os que vivem mal, não te parece que se encontram em condições opostas? Cálicles — Sem dúvida. Sócrates — Ora, se eles se opõem entre si, necessariamente se acham nas mesmas relações que a saúde e a doença? Pois ninguém é são e doente ao mesmo tempo, nem se livra de uma só vez da saúde e da doença. Cálicles — Que queres dizer com isso? Sócrates — Toma a parte do corpo que quiseres e reflete. Quando alguém tem os olhos doentes, que sofre de oftalmia? Cálicles — Como não? Sócrates — Então, essa pessoa não pode ter os olhos ao mesmo tempo sãos e doentes. Cálicles — De jeito algum. Sócrates — E então? Quando se vir livre da oftalmia, ver-se- á também livre da saúde dos olhos, acabando por livrar- se de ambas? Cálicles — De modo nenhum.
Sócrates — Fora espantoso, quero crer, e absurdo, não é verdade? Cálicle s — Demais. Sócrates — Mas é alternadamente, segundo penso, que adquire ou perde uma das duas. Cálicles — É certo. Sócrates — Acontecendo o mesmo com a força e a fraqueza? Cálicles — Sim. Sócrates — E com a velocidade e a lentidão. Cálicles — Perfeitamente . Sócrates — E para os bens e a felicidade, e seus contrários, os males e a desgraça, não é também alternadamente que adquire ou perde uns e outros? Cálicles — É muito certo. Sócrates — Ora, se encontramos alguma coisa que o homem possa ao mesmo tempo ter e não ter, é mais do que claro que não seria nem o bem nem o mal. Aceitaremos essa proposição? Só respondas depois de refletires. Cálicles — Estou de inteiro acordo. LI — Sócrates — Voltemos então a considerar o que admitimos antes. Sustentas que a fome é agradável ou desagradável? Refiro- me à fome em si. Cálicles — É desagradável; porém é agradável comer quando se está com fome. Sócrates — Compreendo. Mas a fome em si mesma é desagradável, não é? Cálicles — De acordo. Sócrates — E também a sede? Cálicle s — Muito! Sócrates — Convirá continuar perguntando, ou concordarás que todas as necessidades e todos os desejos são desagradáveis? Cálicles — Concordo; pára com essas perguntas. Sócrates — Muito bem. Contudo, afirmaste que é agradável beber quando se está com sede. Cálicles — Afirmei. Sócrates — Mas, no que disseste, a expressão Ter sede eqüivale a alguma coisa? Cálicles — Sim.
Sócrates — Porém, sendo satisfação de uma necessidade, o fato de beber é prazer? Cálicles — Sim. Sócrates — Logo, pelo que disseste, quem bebe sente prazer? Cálicles — Sem dúvida. Sócrates — Quando está com sede? Cálicles — De acordo. Sócrates — Quando sofre, portanto? Cálicles — Sim. Sócrates — E não percebes a conclusão que se nos impõe, ao afirmares que bebemos quando temos sede, isto é, que o prazer e a dor são simultâneos? Ou isso não acontece no mesmo lugar e ao mesmo tempo, na alma ou no corpo, como queiras? Para mim, não há diferença. Não é isso mesmo? Cálicles — É. Sócrates — No entanto, viver bem e, ao mesmo tempo, viver mal, segundo disseste, não é possível. Cálicles — Disse, realmente. Sócrates — Por outro lado, concordaste que é pos sível sofrer e sentir prazer ao mesmo tempo. Cálicles — Parece que sim. Sócrates — Do que se colhe que sentir prazer não é viver bem, como não é viver mal sentir dor. Assim, o bem e o agradável diferem entre si. Cálicles — Não acompanho tuas sutilezas, Sócrates. Sócrates — Acompanhas, Cálicles, porém te fazes desentendido. Avança um pouco mais do ponto a que chegaste, para veres com que sabedoria procuras corrigir- me. Cada um de nós deixa ao mesmo tempo de ter sede e de sentir prazer em beber? Cálicles — Não sei aonde queres chegar. Górgias — Assim não, Cálicles. Em atenção a nós mesmos, será melhor responderes, para podermos levar a discussão até ao fim. Cálicles — Sócrates é sempre o mesmo, Górgias; apresenta e refuta umas questões mínimas e carecentes Inteiramente de valor. Górgias — Que importa, Cálicles? Isso em nada te prejudica. Deixa que Sócrates argumente como melhor lhe parecer.
Cálicles — Então, continua a propor as tuas questões sem importância, já que esse é o parecer de Górgias. LII — Sócrates — És bem- aventurado, Cálicles, por teres sido iniciado nas coisas grandes antes de o seres nas pequenas. Pensava que isso não fosse permitido. Então, responde do ponto em que paraste, se cada um de nós não deixa ao mesmo tempo de sentir sede e prazer? Cálicles — De acordo. Sócrates — E o mesmo não se dá com a fome e os demais apetites, que também cessam com o prazer? Cálicles — É certo. Sócrates — Sendo assim, o prazer e a dor cessam ao mesmo tempo? Cálicles — Sim. Sócrates — Porém os bens e os males não cessam ao mesmo tempo, conforme tu mesmo admitiste. E agora, já não o admites? Cálicles — Admito. E daí? Sócrates — O que se conclui disso, caro amigo, é que o bem não é a mesma coisa que o agradável, nem o mal o mesmo que o desagradável, porque uns cessam ao mesmo tempo, e outros não, por serem diferentes. Pois como poderia o agradável ser idêntico ao bem, e o desagradável ao mal? Se preferire s, considera o problema pelo seguinte prisma, pois estou certo de que não concordarás com o que afirmei. Presta atenção: Não admites que os bons sejam bons por causa da presença do bem, tal como se dá com relação ao belo e à presença da beleza? Cálicles — Admito. Sócrates — E então? Dás o nome de bons aos insensatos e aos pusilânimes? Antes, pelo menos, não o fazias, mas aos corajosos e aos judiciosos. Não são esses que denominas bons? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E então? Nunca viste uma criança pouco desenvolvida mentalmente revelar alegria? Cálicles — Já. Sócrates — Nem nunca encontraste algum adulto nas mesmas condições e que se mostrasse alegre? Cálicles — Creio que sim. Mas, a que vem isso? Sócrates — A nada. Basta que me respondas.
Cálicles — Já encontrei. Sócrates — Não é verdade? E um indivíduo com entendimento são revelar alegria e tristeza? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — Qual dos dois sente mais vivamente ale gria ou tristeza: os sensatos ou os débeis mentais? Cálicles — A meu parecer, não haverá grande diferença. Sócrates — Isso me basta. Mas na guerra já viste algum cobarde? Cálicles — Como não? Sócrates — Ora bem; numa retirada dos inimigos, quais te pareciam mais alegres: os cobardes ou os corajosos? Cálicles — Estaria a dizer que todos me pareciam igualmente alegres; se havia diferença era pequena. Sócrates — Não importa. Então os cobardes também se alegram? Cálicles — E muito! Sócrates — E também os insensatos, ao que parece. Cálicles — Sim. Sócrates — E no caso de se aproximarem os inimigos, são os cobardes os únicos a sofrer, ou também os corajosos? Cálicles — Ambos. Sócrates — Igualmente? Cálicles — Os cobardes talvez um pouco mais. Sócrates — E com a retirada, também se mostravam mais alegres? Cálicles — É possível. Sócrate s — Sendo assim, os insensatos e os judicio sos, os cobardes e os corajosos alegram- se e sofrem mais ou menos no mesmo grau, porém os cobardes mais do que os corajosos? Cálicles — De acordo. Sócrates — E não são bons os judiciosos e os cora josos, e maus os cobardes e os insensatos? Cálicles — Sim.
Sócrates — Nesse caso, os bons e os maus sentem dores e alegrias mais ou menos com a mesma intensida de? Cálicles — É isso. Sócrates — Então, são igualmente bons e maus os que são bons e os que são maus, ou serão os maus supe riores aos bons tanto em bondade como em maldade? LIII — Cálicles — Por Zeus, não sei o que queres dizer. Sócrates — Não sabes que disseste que os bons são bons em virtude da presença do bem, e os maus, por causa da presença do mal? E que os bens são os prazeres e os males as tristezas? Cálicles — Sim. Sócrates — Então, os que se alegram é porque têm consigo os bens ou prazeres, visto ficarem alegres? Cálicles — Como não? Sócrates — Logo, estando o bem presente, são bons os que se alegram? Cálicles — Sim. Sócrates — E então? Os que estão tristes não terão consigo males, ou sejam, dores? Cálicles — Sem dúvida. Sócrates — É a presença do mal, segundo disseste, que deixa maus ou maus. Ou retiras o dito? Cálicles — Não; mantenho o que disse. Sócrates — Bons, portanto, são os que sentem ale gria, e maus os que estão tristes? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — Os que mais sentem são melhores; menos bons os que menos sentem, e igualmente bons os que sentem com a mesma intensidade? Cálicles — Sim. Sócrates — Ora, não disseste que os judiciosos e os insensatos, os cobardes e os corajosos sentem alegria ou tristeza em grau mais ou menos igual, e que os cobardes até o sentem mais? Cálicles — Disse. Sócrates — Agora raciocina comigo, para vermos o que se segue do que admitimos até aqui, pois é bom, como dizem, repetir e considerar duas ou três vezes as coisas belas. Dissemos que é bom o indivíduo judicioso e corajoso, não é verdade?
Cálicles — Sim. Sócrates — E mau o insensato e pusilânime. Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E bom, novamente, o que se alegra? Cálicles — Sim. Sócrates — E mau o que sente dor? Cálicles — Necessariamente. Sócrates — O bom e o mau, disseste, sentem igualmente alegrias e tristezas; porém o mau talvez em grau um pouquinho maior. Cálicles — Sim. Sócrates — Donde se colhe que o indivíduo mau é tão bom e tão mau quanto o bom, ou talvez até me lhor? Não é a conclusão que se tira, como também a anterior, uma vez admitido que o bem e o agradável são a mesma coisa? Não é forçoso aceitarmos essa conclusão, Cálicles? LIV — Cálicles — Há bastante tempo, Sócrates te escuto e concordo contigo, por haver observado que se alguém te faz a menor concessão, ainda que seja por brincadeira, tu a apanhas com alegria verdadeiramente infantil. Acreditas mesmo que eu, como toda a gente não admito que alguns prazeres sejam melhores, e outros piores? Sócrates — Hui, Cálicles! Como és altivo e me tratas como uma criança! Ora dizes que as coisas são de um jeito, ora de outro, só para enganar- me. No entanto, no começo eu não acreditava que tivesses essa intenção, por te dizeres meu amigo. Verifico que neste ponto esta va iludido e que me será forçoso, segundo antigo provérbio, arranjar- me com o que tenho e aceitar o que me deres. Ao que parece, afirmas agora que alguns prazeres são bons, e outros maus, não é isso? Cálicles — Sim. Sócrates — Os bons serão úteis, e os maus prejudiciais? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — Os úteis são os que produzem algum bem, e os prejudiciais os que ocasionam algum mal? Cálicles — É isso mesmo. Sócrates — Decerto, referes- te aos prazeres como os de que falamos há pouco com relação ao corpo, no ato de beber e de comer: bons são os que promovem a saúde do corpo, ou a robustez, ou qualquer outra qualidade física, e maus os que produzem o contrário disso? Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — E com as dores não se dará a mesma coisa? Umas são benéficas e outras nocivas? Cálicles — Como não? Sócrates — Sendo assim, o que devemos escolher e fomentar são os prazeres e as dores úteis? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — Não os prejudiciais? Cálicles. — É claro. Sócrates — Pois todos os nossos atos devem ser pautados só em vista do bem, como eu e Polo reconhe cemos, se é que ainda te recordas. E tu, concordarás conosco que o bem deve ser a meta exclusiva de nossos atos e que tudo deve ser feito por amor dele, não o bem por amor de tudo o mais? Darás teu voto — o terceiro — para nossa causa? Cálicles — Sim. Sócrates — Tudo, portanto, deve ser feito, até mesmo o agradável, em vista do bem, não o bem em vista do agradável. Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — Mas compete a qualquer pessoa conhe cer entre as coisas agradáveis as que são boas e as que são más, ou para cada grupo é necessário alguém especia lizado? Cálicles — Sim, alguém especializado. LV — Sócrates — Voltemos agora ao que eu disse a Polo e Górgias. Disse- lhes, se ainda estás lembrado, que há determinados processos que visam apenas ao prazer e só o prazer promovem, ignorando o que seja o melhor ou pior, enquanto outros conhecem o que é bom e o que é ruim. Na primeira classe, a dos processos que só visam ao prazer, incluí a pratica culinária, que não considero arte, e entre os que visam ao bem, a arte da medicina. E agora, pelo deus da amizade, Cálicles, pára com tuas cachorrices e não me respondas ao acaso e contra tuas próprias convicções, nem tomes como brincadeira o que eu disser. Como estás vendo, é de suma importância o assunto de nossa discussão, um dos mais sérios com que possa ocupar- se qualquer pessoa, até mesmo de pouca inteligência, a saber, de que maneira é preciso viver: do modo por que me concitavas, para conduzir- se alguém como homem e falar diante do povo, cultivando a retórica e dedicando- se à política, tal como o fazeis presentemente, ou se é preferível aplicarse ao estudo da filosofia, e em que essa maneira de viver difere da anterior? Talvez o que de melhor tenhamos a fazer seja o que eu tentei há pouco: distinguir e, depois de chegarmos à conclusão de que se trata de duas maneiras diferentes de viver, considerar em que uma se diferença da outra e qual delas devemos adotar. É possível que ainda não tenhas apanhado o meu pensamento. Cálicles — Não, de fato.
Sócrates — Vou expressar- me com mais clareza. De pois que concordamos, eu e tu, que há algo bom e também algo agradável, e que o agradável é diferente do bem, e que para a aquisição de cada um deles há uma espécie de exercício e de preparação: de uma parte a caça ao agradável, de outra, ao bem... Mas, a esse respeito, declara primeiro se estás ou não de acordo comigo. Estás? Cálicles — Estou. LVI — Sócrates — Então prossigamos, e começa por declarar- me se o que eu disse há pouco a estes aqui te parece acertado, O que lhes disse foi que para mim a culinária não é arte, porém simples rotina, o que não se dá com a medicina, que é arte, firmado em que ela só trata da doença depois de estudar a sua natureza e conhecer a maneira por que atua, e no fato de poder apresentar a razão de ser de tudo isso, a medicina, enquanto a outra, que só visa ao prazer, procede sem arte na prossecução de sua finalidade, e não examina nem a natureza do prazer nem sua causa, por maneira inteiramente irra cional, por assim dizer, e sem calcular coisa alguma, só alcançando pela prática e pela rotina uma noção vaga do que é costume fazer- se, com o que, precisamente, proporciona prazer. Inicialmente, concito- te a considerar se há fundamento no que eu disse e se não existirão processos idênticos com relação à alma, alguns, de fato, baseados em arte e preocupados em promover os mais eleva dos interesses da alma, outros negligenciando de todo esses interesses e só cuidando, como no caso anterior, do prazer da alma e de que modo possa ser alcançado, mas sem distinguir entre os prazeres bons e os maus, com o que não se preocupam no mínimo, pois têm em vista apenas a produção do prazer, pouco importando se é para o bem ou para o mal. A meu ver, Cálicles, existem esses processos, que não sei definir a não ser como adulação, tanto em relação ao corpo como à alma, ou onde quer que sejam empregados com vistas à produção do prazer, sem considerarem se é em proveito ou detrimento próprio. A esse respeito, como te comportas: estás de acordo com nossa maneira de pensar ou a rejeitas! Cálicles — Não, não rejeito; pelo contrário: concordo, não só para ser agradável a Górgias, como para que chegues ao fim de tua demonstração. Sócrates — E isso é válido só para uma alma, não o sendo para duas ou para muitas? Cálicles — Não; vale também para duas e para muitas. Sócrates — Sendo assim, é possível o desejo de agradar a um grande número de almas, sem cogitar de seus verdadeiros interesses. Cálicles — Creio que sim. LVII — Sócrates — E agora, poderás dizer- me quais são as ocupações que produzem esse efeito? Ou melhor, se estiveres de acordo, vou interrogar- te, e quando te parecer que uma se inclui nessa categoria, responde sim; na outra hipótese, dirás não. Comecemos por examinar a auletrística: não te parece, Cálicles, que é uma dessas artes que só visam ao prazer, sem preocupar- se com mais nada? Cálicles — Exato. Sócrates — E não acontecerá coisa igual com as artes do mesmo gênero, tal como a citarística nas competições festivas?
Cálicles — Sim. Sócrates — E então? Que dizes da instrução dos coros e da poesia ditirâmbica, não te parece que se incluem no me smo gênero? Ou és de opinião que Cinésias, filho de Méleto, quando diz alguma coisa, se preocupa, por pouco que seja, com o aproveitamento dos que o ouvem, ou apenas com o que deva agradar à multidão dos espectadores? Cálicles — É evidente, Sócrates, que com Cinésias se dá isso mesmo. Sócrates — Muito bem. E Melétides, seu pai, tem em vista o bem, quando toca cítara?
Ou nem sequer se preocupa em agradar, sendo seu canto, como é, tão molesto aos ouvintes? Considera o seguinte: não te parece que toda a poesia ditirâmbica e a arte de tocar cítara foram criadas exclusivamente com vistas ao prazer? Cálicles — É também o que penso. Sócrates — E então? E essa poesia augusta e admirável, a tragédia, em pós de que se afana tanto? Qual te parece ser a sua finalidade e todo o seu esforço? terá o fito exclusivo de agradar os espectadores, ou poderá ir contra eles, na hipótese de apresentar algo agradável a todos e muito grato, porém pernicioso, que ela faça questão de silenciar, proclamando e cantando, pelo contrario, só o que for útil, porém desagradável, quer se alegrem com isso os ouvintes, quer se aborreçam? Dessas duas disposições qual imaginas que seja a da tragédia? Cálicles — É evidente, Sócrates, que ela visa mais ao prazer e ao agrado dos espectadores. Sócrates — E há pouco não dissemos, Cálicles, que isso tem o nome de adulação? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E se tirarmos de qualquer poesia a melodia, o ritmo e o metro, não sobrarão apenas os discursos? Cálicles — Necessariamente. Sócrates — E esses discursos não são ditos para uma multidão de pessoas? Cálicles — De acordo. Sócrates — Então, a arte poética é uma espécie de oratória popular? Cálicles — É o que parece. Sócrates — Logo, como oratória, não passa de retórica. Ou não achas que sejam retóricos os poetas nos teatros? Cálicles — São, realmente. Sócrates — Assim, encontramos uma modalidade de retórica que se dirige ao povo, esse composto de crianças, mulheres e homens, de escravos e de cidadãos livres num só todo, retórica que não nos agrada, por a termos na conta de adulação.
Cálicles — Sem dúvida. LVIII — Sócrates — Muito bem. E com relação à retórica que se dirige ao povo ateniense e ao de outras cidades de homens livres, que diremos que seja? És de parecer que os oradores falam sempre com a finalidade precípua do maior bem e que só têm em mira, com seus discursos, deixar virtuosos, quanto possível, os cida dãos? Ou, pelo contrário, só desejam agradar aos cidadãos e descuidam, no interesse próprio, dos interesses da comunidade, além de tratarem as multidões como a crianças, por só pensarem em lhes ser agradável, sem se preocuparem, no mínimo, se desse jeito eles virão a ficar melhores ou piores? Cálicles — Essa pergunta não é simples. Há oradores que dizem o que dizem no interesse dos cidadãos, e há outros como acabaste de descrever. Sócrates — Isso me basta. Se há, portanto, duas maneiras de falar ao povo, uma delas é adulação e oratória da pior espécie; a outra é algo belo, porque se preocupa com deixar boa quanto possível a alma dos cida dãos, esforçando- se para dizer o que é melhor, quer agrade quer não agrade ao auditório. Porém nunca viste ora tória dessa espécie; e se já encontraste algum orador com semelhantes características, por que não declaraste quem ele seja? Cálicles — Não, por Zeus! Não conheço nenhum orador nessas condições, pelo menos entre os modernos. Sócrates — Como assim? E entre os antigos, poderás citar algum de quem seja lícito afirmar que tivesse deixado melhores os atenienses, de ruins que eram antes, depois que começara a falar para o povo? Eu, pelo menos, não sei quem possa ser. Cálicles — Como! Nunca ouviste dizer que Temístocles foi homem de merecimento, e Cimão, e Milcíades, e esse Péricles falecido há pouco tempo, que tu mesmo tiveste oportunidade de ouvir? Sócrates — Será como dizes, Cálicles, no caso de consistir a verdadeira virtude tanto em satisfazer as paixões próprias como as dos outros. Mas, se não for assim, pois já fomos forçados a admitir que é preciso satisfazer apenas os desejos cuja realização de ixa melhores os homens, não os que os deixam piores, e que para isso é de mister uma verdadeira arte: podes afirmar que qualquer desses oradores preenchia aqueles requisitos? Cálicles — Já não sei o que responder. LIX — Sócrates — Se procurares com empenho, acharás o que dizer. Consideremos calmamente se algum dos que mencionamos há pouco se encontrava nessas condições. Não é verdade que o homem correto só tem em mira o bem quando discursa, sem nunca falar ao acaso, mas com determinado fim? Comporta -se como os demais artesãos, que, sem perderem de vista o próprio trabalho, nunca reúnem por acaso o material de que se servem, mas sempre com a intenção de imprimir uma forma particular em tudo o que manipulam. É o que poderás ver nos pintores, nos arquitetos, nos cons trutores de navios e em qualquer outro trabalhador que entenderes, pois coloca no lugar preciso a peça de que lança mão e a obriga a justar- se e a ficar em harmonia com as mais próximas, até compor um todo bem feito e equilibrado. Isso se observa com todos os artesãos, particularmente com aqueles a quem há pouco nos referimos e que tratam do corpo. Aceitamos que é assim mesmo, ou não? Cálicles — Não tenho nenhuma objeção a apresentar.
Sócrates — Uma casa, portanto, em que haja regula ridade e ordem, é boa; se houver desordem, será má? Cálicles — De acordo. Sócrates — O mesmo vale para um navio? Cálicles — Sim. Sócrates — E não é também o que dizemos com relação ao nosso corpo? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E a alma? Será boa quando nela predominar a desordem, ou quando estiver em ordem e harmonia? Cálicles — A última hipótese é que decorre necessariamente do que dissemos antes. Sócrates — E que nome damos no corpo ao efeito resultante da ordem e da harmonia? Cálicles — Referes- te, sem dúvid a, à saúde e à robustez? Sócrates — Isso mesmo. E o efeito da harmonia e da ordem na alma? Como no caso anterior, esforça- te para encontrar o nome e enunciá -lo. Cálicles — Por que tu mesmo não o dizes, Sócrates? Sócrates — Se assim o preferes, vou fazê- lo. Mas só concordes comigo se achares que estou certo; caso contrário, refuta -me e manifesta o teu desacordo. Segundo o meu modo de pensar, o nome de são é o que convém à ordem regular do corpo, de que decorre saúde e as outras virtudes corpóreas. Está certo, ou não? Cálicles — Está. Sócrates — A ordem e a harmonia da alma têm o nome de legalidade e lei, que é o que deixa os homens justos e ordeiros, e vem a ser, precisamente, justiça e temperança. Aceitas isso, ou não? Cálicles — Pode ser. LX — Sócrates — Com isso em mira é que o orador honesto e competente deverá dirigir seus discursos à alma dos homens, sempre que lhes falar, e todos os seus atos; e quer lhes dê ou tire alguma coisa, deverá pensar e sempre no modo de fazer nascer a justiça na alma de seus concidadãos e de banir a injustiça, de implantar nela a temperança e de afastar a intemperança. Concordas comigo neste ponto, ou não? Cálicles — Concordo. Sócrates — De que serviria, Cálicles, dar a um corpo doente e em péssimas condições alimentos agradáveis em abundância, ou bebidas, ou seja o que for, que talvez nem lhe faça nenhum proveito, e que, pelo contrário, para falar com acerto, pode até prejudicá- lo? Não é isso mesmo?
Cálicles — É Sócrates — Pois quer parecer- me que só há desvantagem para o homem viver com um corpo de condições tão miseráveis; forçosamente terá de levar também uma vida miserável, não é verdade? Cálicles — É Sócrates — E com o indivíduo são, não é certo permitirem geralmente os médicos satisfazer os apetites, tal como comer o que quiser e beber quando sentir sede, ao passo que com os doentes não os deixam nunca, por assim dizer, comer à vontade seja o que for? Estás também de acordo comigo neste ponto? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E com relação à alma, meu caro, não s e passará a mesma coisa? Enquanto for má, por mostrar- se irracional, incontinente, injusta e ímpia, não será preciso refreá- la em seus apetites, sem nunca permitir que os favoreça, só consentindo fazer o que possa deixá- la melhor? Admites ou rejeitas isso? Cálicles — Admito. Sócrates — Por ser assim de vantagem para ela própria, a alma? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E refreá- la nos seus apetites não será castigá- la? Cálicles — Sim. Sócrates — Pois o castigo é melhor para a alma do que a incontinênc ia, como antes sustentavas. Cálicles — Não compreendo o que queres dizer, Sócrates; será preferível interrogares outra pessoa. Sócrates — Este homem não quer permitir- se a vantagem do que constitui justamente o argumento da conversa, a saber: sujeitar-se ao castigo. Cálicles — Não me preocupo no mínimo com o que dizes, e só te respondi em deferência a Górgias. Sócrates — Pois que seja. E que faremos agora? Deixamos a conversa em meio? Cálicles — Isso é contigo. Sócrates — Mas, como se diz, não é bom deixa r por acabar nenhuma história; é preciso acrescentar- lhe a cabeça, para que não se ponha a andar por aí sem cabeça. Por isso, responde ao que ainda falta responder, para que nossa conversa venha a adquirir cabeça. LXI — Cálicles — Como és impertinente, Sócrates! Se aceitasses meu parecer, interromperíamos agora mesmo nosso argumento, ou passarias a discutir com outro.
Sócrates — E qual dos presentes consentiria nisso? Para não deixarmos inacabada a discussão. Cálicles — E não poderias terminar sozinho a conversa, ou seja falando de seguida, ou respondendo ao que tu mesmo perguntares? Sócrates — Para dar- se comigo aquilo da frase de Epicarmo: O que dois homens falaram antes, terei de falar sozinho? Talvez não haja outro remédio. Mas, se assim resolvermos, sou de parecer que devemos esforçar- nos para descobrir o que há de verdadeiro ou de falso na matéria debatida. E de proveito para todos fazer- se luz sobre a questão. Vou, portanto, prosseguir como me parece certo; mas se algum de vós achar que me permito conclusões indevidas, interrompa -me e refute- me. Pois não falo como quem sabe o que diz; o que faço é procurar juntamente convosco, de forma que, se me parecer que o meu contraditor tem razão no que disser, serei o primeiro a concordar com ele. Digo isso para o caso de estardes de acordo em levarmos a conversa até o fim; porém se o preferirdes, interrompamola e separemo- nos. Górgias — Eu, pelo menos, Sócrates, sou de opinião que não nos retiremos e que precisas completar a tua exposição, querendo parecer- me que todos os presentes pensam do mesmo modo. Estou ansioso para ver o que possas ainda acrescentar. Sócrates — De minha parte, Górgias, eu continuaria prazerosamente a argumentar com Cálicles, até dar- lhe um discurso de Anfíone, como réplica à tirada de Zeto. Mas, uma vez, Cálicles, que não queres levar o debate até ao fim, ao menos presta atenção e interrompe- me sempre que te parecer que não estou certo no que digo. Se me provares que errei, não me zangarei, como se deu contigo a meu respeito, mas te in screverei entre os meus maiores benfeitores. Cálicles — Deixa isso, bom homem, e termina o que começaste. LXII — Sócrates — Então, escuta a recapitulação que vou fazer de todo o argumento.
Será uma só coisa o agradável e o bom? Não, de acordo com a conclus ão a que eu e Cálicles chegamos. Devemos fazer o agradável em vista do bem, ou o bem em vista do agradável? O agradável em vista do bem. Agradável, porém, não será aquilo cuja presença nos deixa bons pelo fato de sua presença? Perfeitamente. Ora, não somos bons, nós e tudo o mais que é bom, pela presença de alguma virtude? É o que me parece incontestável, Cálicles. Mas, a virtude de qualquer coisa, seja instrumento, corpo ou alma, seja criatura viva, não lhes vem por acaso e já completa; é o resultado de uma certa ordem, de retidão e da arte adaptada à natureza de cada um. Será assim mesmo? Eu, pelo menos, o afirmo. Logo, é por meio da ordem que se promove devidamente a virtude de cada coisa? Responderia do mesmo modo. Por isso, uma espécie de ordem inerente a cada coisa é que a deixa boa com a sua presença? É o que me parece. E a alma que tem a sua ordem peculiar, não é melhor do que a que for desordenada? Necessariamente. E a alma em que há ordem, não é bem regulada? Como poderia deixar de sê- lo? E a bem regulada, não é temperante? Seguramente. Logo a alma temperante é boa. Eu, pelo menos, meu caro Cálicles, nada tenho a objetar contra semelhante proposição. Se tiveres algo a dizer, ensina- me. Cálicles — Continua, amigo. Sócrates — Digo, portanto, que se a alma temperante é boa, a que for conformada por maneira contrária à dela, será má, a saber, insensata e desregrada. Perfeita mente, O indivíduo temperante só faz o que é direito, tanto em relação aos deuses como aos homens, pois deixaria de ser temperante se procedesse de outro modo. Necessariamente será assim. Porém, fazendo o que é direito com relação aos homens, procede com justiça, e, em relação aos deuses, com piedade. Ora, quem procede com justiça e piedade, forçosamente será justo e pio. E certo. E não terá de ser, da mesma forma, corajoso? Pois não é próprio do indivíduo temperante ir em pós do que não deve, sejam acontecimentos ou pessoas, prazeres ou trabalhos, que ele procurará ou evitará de ânimo firme, sempre, onde for o seu dever. Por tudo isso, Cálicles, é forçoso que o indivíduo temperante, sendo, como vemos, justo, corajoso e pio, seja protótipo da bondade; o homem bom fará bem e com perfeição tudo o que faz, e quem vive bem e feliz é bem- aventurado, ao passo que o indivíduo ruim, que vive mal, é miserável. O indivíduo nessas condições é o oposto, justamente, do temperante; é o intemperante, cujo elogio acabaste de fazer. LXIII — Isso, pelo menos, é o que afirmo, insistin do em que é a expressão da verdade.
Sendo expressão da verdade, acrescentarei que quem quiser ser feliz terá de procurar a temperança e viver de acordo com ela, e de fugir da intemperança quanto nossas pernas o permitirem, esforçando- se, antes de tudo, por não vir nunca a ser castigado; porém, no caso de merecer castig o, ou ele mesmo ou qualquer dos seus familiares, particular ou da cidade, então faça- se justiça e seja castigado, se quisermos que seja feliz. A meu parecer, essa é a meta que devemos ter em vista para dirigirmos nossa vida, e tanto nos negócios particula res como nos públicos devemos envidar esforços para que impere a justiça e a temperança, se quisermos ser felizes, não permitindo que os apetites fiquem desenfreados nem procurando satisfazê- los, o que seria um mal imenso, verdadeira vida de bandoleiro. Um indivíduo nessas condições não será nem amigo dos homens nem de Deus, como não conseguirá viver em sociedade; e onde não há sociedade não pode haver amizade. Afirmam os sábios, Cálicles, que o céu e a terra, os deuses e os homens são mantidos em harmonia pela amizade, o decoro, a temperança e a justiça, motivo por que, camarada, o universo é denominado cosmo, ou ordem, não desordem nem intemperança. Quer parecer- me, porém, que não dás importância a esse particular, apesar de toda a tua sabedoria, esquecido de que a igualdade geométrica tem muita força, tanto entre os deuses como entre os homens; tu, porém, és de opinião que cada um deve esforçar- se para ter mais do que os outros. E que descuras da geometria. Pois que seja. Agora, ou terá de ser refutada nossa proposição, que os felizes só são felizes pela posse da justiça e da temperança, como são miseráveis os miseráveis pela presença do vicio, ou, no caso de ser ela verdadeira, teremos de considerar suas conseqüências. Ora, essas conseqüências, Cálicles, são todas as proposições anteriores a respeito do que me perguntaste se eu estava falando sério, quando afirmei que era preciso acusar a si mesmo, ou os próprios filhos e os familiares, no caso de praticar qualquer deles alguma injustiça, para o que lançará mão da retórica. Assim, era verdade o que imaginaste haver Polo concordado por simples acanhamento, a saber, que quanto for mais feio cometer injustiça do que ser vítima dela, tanto mais prejudicial será, e que para ser orador de verdade é preciso ser justo e ter o conhecimento da justiça, o que Górgias, por sua vez, segundo Polo, só admitira por falso acanhamento. LXIV — Sendo tudo assim mesmo como disse, passemos a examinar os pontos de que me fazes carga, se tinhas ou não razão de afirmar que não me encontro em condições de socorrer nem a mim mesmo, nem aos amigos, nem aos familiares, ou de livrá- los dos grandes perigos, e que, no jeito dos indivíduos sem honra, estou à mercê de quem quiser fazer de mim o que bem lhe parecer, ou bater- me na cara — segundo tua vigorosa expressão —, privar- me dos bens e expulsar- me da cidade, ou fazer o pior, que é matar- me, e que semelhante situação é o que de mais vergonhoso se possa imaginar, conforme o que disseste. Minha opinião, pelo contrário, já bastantes vezes expendida, nada impede que eu torne a manifestá -la. Nego, Cálicles, que ser esbofeteado injustamente é o que haja de mais vergonhoso, ou cortarem- me os membros ou a bolsa. Não; baterem- me ou mutila rem- me injustamente, a mim e aos meus, é um mal nocivo e vergonhoso, tirarem o que tenho, escravizarem- me ou arrombarem minha propriedade, em resumo, qualquer malfeitoria praticada contra mim e os meus é pior e mais vergonhosa para quem a pratica do que para mim, que sou a vitima. Essas verdades, que se tornaram manifestas em nosso discurso anterior, como digo, estão firmes e chumbadas — se me for permitido usar uma expressão um tanto grosseira — por argumentos de ferro e diamante, como parece, e se não conseguires quebrá- los, tu ou alguém de mais decisão, não será possível empregar linguagem diferente da minha, que está certa. Do meu lado, continuo a afirmar a mesma coisa, que eu, de fato, não sei explicar, mas o certo é que nunca encontrei uma pessoa — como a ti neste momento — que falasse de outro modo sem cair no ridículo. Torno a dizer, portanto, que as coisas se passam dessa maneira. Mas, se é assim mesmo, e o maior mal é a injustiça para quem a comete, e maior, ainda, se possível, do que esse mal maior, é não vir a ser punido o culpado: qual é a ajuda que, não podendo alguém prestar a si mesmo, o expõe ao ridículo? Não será justamente a que é capaz de afastar de nós o maior prejuízo? Necessariamente, o mais vergonhoso será não poder uma pessoa prestar essa ajuda a si mesma e aos seus amigos e familiares; em segundo lugar, a que nos protege do segundo mal; em terceiro, a que nos ampara contra o terceiro, e assim sucessivamente; de acordo com a grandeza do mal, é belo poder combatê -lo nas mesmas proporções, e vergonhoso não estar em condições de fazê- lo. As coisas se passam ou não se passam como eu disse, Cálicles? Cálicles — Não se passam de outra maneira. LXV — Sócrates — Dos dois males, portanto, cometer injustiça ou ser vítima de injustiça, afirmamos que cometer injustiça é maior do que ser vítima de injustiça. De que precisará, então, prover- se alguém para vir a auferir as duas vantagens: não cometer injustiça nem vir a ser vítima de injustiça? Necessitará de poder ou de vontade? Quero dizer o seguinte: para não sofrer injustiça, basta querer, para, de fato, não vir a sofrê- la, ou precisará do poder de não sofrer injustiça, para não vir a ser vitima dela? Cálicles — É claro: precisará dispor desse poder. Sócrates — E com relação a cometer injustiça? Bastará força de vontade a uma pessoa, para não cometer nenhuma, ou será preciso para isso adquirir algum poder e ou determinada arte, que, na hipótese de não ser adquirida nem exercitada, o levará àquela prática? Por que não respondes, Cálicles, a essa pergunta em especial? Não és de parecer que eu e Polo, em nossa conversação anterior, concluímos com acerto, quando dissemos que ninguém comete injustiça por vontade, e que todos os que praticam o mal procedem sem o querer? Cálicles — Isso também poderá ser admitido, Sócrates, para que chegues a terminar a tua exposição. Sócrates — Será preciso, portanto, ao que parece, adquirir certa capacidade, ou determinada arte, para não vir a cometer injustiça. Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E que arte poderá ser, que precisamos conhecer, para preservar- nos de que sejamos vítima de injustiça, senão de todo, o mínimo possível? Vê se pensas como eu. O que penso é o seguinte: ou essa pessoa precisará governar a cidade, senão mesmo tornar- se tira no dela, ou ficar amigo do governo estabelecido. Cálicles — Poderás ver, Sócrates, como estou sempre disposto a elogiar- te, quando proferes algo razoável. Isso que disseste se me afigura muito certo. LXVI — Sócrates — Considera, então, se o seguinte também te parece certo. No meu modo de ver, qualquer indivíduo será tanto mais amigo de outro, quanto mais se lhe assemelhar, à maneira do que os antigos sábios disseram da aproximação dos semelhantes entre si. Não pensas também desse modo? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — Logo, onde quer que um tirano domine grosseiros e sem educação, se houver na cidade alguém muito melhor do que ele, é fora de dúvida que o tirano se arreceará dessa pessoa e nunca poderá tornar-se- lhe amigo de todo o coração. Cálicles — Está certo. Sócrates — O mesmo se dará no caso de alguém muito pior do que ele: o tirano o desprezará, sem mos trar- lhe jamais a deferência devida aos amigos. Cálicles — Isso também é verdade. Sócrates — Resta -lhe, portanto, como único amigo digno de menção quem tiver o mesmo caráter que ele, gostos e aversões idênticos, e que se disponha a obede cer- lhe e a submeter- se à sua autoridade. Um indivíduo nessas condições gozará de grande influência na cidade, sem que ninguém consiga ofendê- lo impunemente. Não é assim mesmo? Cálicles — É. Sócrates — Do mesmo modo, no caso de dizer a sós consigo um dos jovens da cidade:
De que jeito poderei alcançar influência, para que ninguém me venha a causar mal? o caminho a seguir, ao que parece, seria habituar- se desde moço a amar e a odiar as mesmas coisas que o tirano, e a procurar assemelhar-se- lhe tanto quanto possível. Não é verdade? Cálicles — É. Sócrates — Um indivíduo nessas condições, conforme dizeis, é que conseguirá pôr- se ao abrigo de qualquer malfeitoria e exercer grande influência na cidade. Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E porventura não praticará também nenhuma injustiça? Ou estará longe disso, uma vez que terá de ser semelhante ao seu mestre, que é injusto, e de ter grande influência junto dele? No meu modo de pensar, ao contrário, ele disporá as coisas para que possa praticar as maiores malfeitorias, sem vir, por isso, a ser punido. Ou não? Cálicles — É certo. Sócrates — Logo, trará consigo o maior dos males, tornando-se- lhe a alma perversa e corrompida pelo poder e imitação do amo.
Cálicles — Não sei como consegues, Sócrates, torcer de tantas maneiras teus argumentos. Pois não sabes que esse imitador poderá matar, se assim o resolver, quem não imitar o tirano, e apoderar- se de seus bens? Sócrates — Sei, meu bom Cálicles; precisaria que eu fosse surdo, pois isso mesmo já ouvi de ti e de Polo mais de uma vez, e de quase toda a gente da cidade. Mas, escuta também o seguinte: ele o matará se quiser; mas será um facinoroso que mata um homem de bem. Cálicles — E não é isso, justamente, o mais revoltante? Sócrates — Não para quem for judicioso, como está a indicar nosso raciocínio. Ou és de parecer que todo o esforço do homem deve consistir em viver o mais tempo possível e praticar apenas as artes que sempre nos livram dos perigos, como é o caso da retórica, que me aconselhas a cultivar e que nos salva nos tribunais? Cálicles — Sim, por Zeus; e foi um bom conselho. LXVII — Sócrates — E que me dizes, caro amigo: a arte de nadar não te parece também uma excelente arte? Cálicles — Não, por Zeus. Sócrates — No entanto, ela salva os homens da morte, quando se vêem na contingência de precisar conhecê- la. Se a consideras sem valor, vou indicar- te outra mais importante, a arte do piloto, que não somente salva dos maiores perigos a alma dos homens, como também os corpos e os haveres, tal como o faz a retórica. No entanto, é uma arte humilde e retraída, sem nenhuma pretensão ou jactância em seu comportamento, como quem fizesse algo notável. E muito embora realize o mesmo que a eloquência dos tribunais, quando transporta são e salvo alguém de Egina até aqui, só recebe, segundo penso, dois óbolos; se é do Egito ou do Ponto, por um serviço tão grande de salvar, como disse, o passageiro, a mulher, os filhos e seus bens, ao deixá- los no porto cobrará, quando muito, duas dracmas, e o indivíduo que possui essa arte e que realizou tudo isso desembarca e passeia na praia perto do navio, com aparência modesta. Saberá refletir, segundo penso, que não é possível conhecer a quais passageiros ele prestou, realmente, serviço, por não deixar que se afogassem, e a quais talvez prejudicou; sabe perfeitamente que nenhum deles desembarcou melhor do que era quando tomou o navio, tanto no corpo como na alma. Refletirá do seguinte modo: Se não pereceu afogado quem sofria de doença grave e incurável do corpo, é apenas de lastimar não ter morrido, e não lhe fiz nenhum bem com isso; o indivíduo que tem na alma, que é muito mais preciosa do que o corpo, um sem- número de doenças incuráveis, esse não precisa continuar vivendo, nem lhe prestei ne nhum benefício com salvá- lo do mar, ou dos tribunais, ou do que quer que fosse, pois sabe perfeitamente que para um homem flagicioso não é vantagem viver, pois só terá de viver mal. LXVIII — Essa a razão de não costumar jactar- se o piloto, muito embora nos salve a vida, o mesmo acontecendo, meu admirável amigo, com o construtor de fortificações, o qual, por vezes, pode salvar coisas tão importantes, já não digo quanto o piloto, mas quanto o general, ou quem quer que seja, pois salva a cidade inteira. Não te parece que ele é comparável ao orador dos tribunais? No entanto, Cálicles, se quisesse enaltecer, como vós, a causa própria, ele vos enterraria sob uma montanha de palavras, concitando- vos em sua exposição a vos tornardes construtores de fortificações, e que ao la do de sua profissão as demais nada valem. Argumentos não lhe faltariam. Mas, nem por isso deixarias de menosprezá- lo e à sua arte, e poderias mesmo, por troça, cha mar- lhe mecânico, como decerto não darias tua filha para casar- se com o filho dele, nem permitirias que teu filho tomasse a dele em casamento. No entanto, a avaliar pelas razões por ti aduzidas no elogio de tua profissão, com que direito desprezas o construtor de fortificações e todos os outros a que há momentos me referi? Sei que vais dizer que és melhor que eles todos e oriundo de família nobre. Porém se Melhor não for o que eu digo, e se a virtude consiste apenas em salvar a si próprio e os bens, seja qual for o caráter dessa pessoa, tornas- te ridículo com denegrir o construtor de fortificações e o médico e os demais profissionais das artes inventadas para salvar- nos. Considera, amigo, se o bem e a nobreza da alma não consistem em alguma coisa mais do que em salvar e ser salvo, e se o homem verdadeiramente homem não deverá desfazer- se, justamente, da preocupação de viver o mais tempo possível, e em vez de apegarse à vida, entregar isso à divindade e crer, como dizem as mulheres, que ninguém foge ao seu destino, para cuidar da maneira de viver o melhor possível, o tempo que terá de viver, adaptando- se às instituições políticas da cidade em que se achar, tal como terás de proceder, para te tornares o mais semelhante possível ao povo ateniense, se pretendes ser estimado e alcançar influência na cidade. Considera se para nós dois há alguma vantagem nisso, para que não aconteça conosco, caro amigo, como dizem que se dá com as mulheres da Tessália, que atraem a lua; será à custa do que temos de mais caro que atrairemos para nós a possibilidade de virmos a mandar na cidade. Mas, se acreditas que alguém pode ensinar- te uma arte qualquer para que adquires influência nesta cidade, sendo tu diferente de suas instituições, seja para melhor, seja para pior, no meu modo de pensar, Cálicles, estás enganado. Se desejas, de fato, obter a amizade do demo ateniense, e, por Zeus, também a do filho de Pirilampo que tem esse mesmo nome, não te bastará imitá- los, porém ser naturalmente igual a eles. Quem conseguir deixar- te inteiramente igual a eles é que fará de ti o que ambicionas ser: político e orador. Todos gostam dos discursos acomodados a seus hábitos e se aborrecem dos que lhes são contrários, a menos, caro amigo, que sejas de parecer diferente. Teremos alguma coisa que dizer a esse respeito, Cálicles? LXIV — Cálicles — Não sei explicar porque me parece bem o que disseste, Sócrates; porém comigo se dá como com quase toda a gente: não chegas a convencer- me. Sócrates — O amor do demo, Cálicles, que trazes na alma, é que trabalha contra mim; mas é provável que se voltássemos a considerar o mesmo assunto mais a miúde e com profundidade, deixar- te- ias convencer. Como quer que seja, lembra- te que dissemos haver duas maneiras de cultivar o corpo e a alma: uma só tem em vista o prazer; a outra, o bem, sem procurar agradar, mas lutando para alcançar o seu objetivo. Não fizemos acima essa distinção? Cálicles — Fizemos. Sócrates — Uma delas, a que só visa ao prazer, é vil e baixa, não passando de simples adulação, não é verda de? Cálicles — Que seja, se assim o queres. Sócrates — A outra, porém, só se esforça para deixar o melhor possível o objeto de seus cuidados, ou seja o corpo, ou seja a alma. Cálicles — Perfeitamente.
Sócrates — E não será dessa maneira que devemos esforçar- nos em tratar a cidade e os cidadãos, para que estes se tornem tão perfeitos quanto possível? Pois, sem isso, como descobrimos antes, é absolutamente inútil qualquer outro benefício que lhes prestemos, se não forem belos e nobres os sentimentos dos que devem adquirir riquezas, ou domínio sobre outras pessoas, ou poder de qualquer natureza. Admitiremos que as coisas se passam dessa maneira? Cálicles — Perfeitamente, se isso te agrada. Sócrates — E se nós, Cálicles, ingressássemos nos negócios públicos e nos exortássemos mutuamente a nos ocuparmos com construções, ou fossem de muros e estaleiros, ou dos importantes edifícios dos templos, não deveríamos examinar- nos antes e verificar primeiro se conhecemos ou não essa arte, a arquitetura, e com quem a aprendemos? Teríamos que fazer isso, ou não? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — Em segundo lugar, se em alguma ocasião já construímos edifício particular, ou para amigos ou para nós mesmos, e se essa construção ficou bem feita ou defeituosa. E se as investigações revelassem que tínhamos tido, de fato, professores competentes e famosos e que construímos muitos e belos edifícios sob a direção desses professores, e também muitos outros com nossos próprios recursos, depois de nos havermos separado deles: nessas condições caberia, como pessoas sensatas, ocupar- nos com a construção de obras públicas. Mas, se não pudéssemos apontar nem professor nem construções, ou muitas destas, realmente, porém carecentes de valor, seria insensatez empreender a direção de obras da cidade e exortar- nos reciprocamente nesse sentido.
Concluiremos que isso está bem dito, ou não? Cálicles — Perfeitamente. LXX — Sócrates — O mesmo se dá com tudo o mais. Por exemplo, se nos concitássemos mutuamente a exercer funções públicas, no pressuposto de sermos médicos competentes, antes, quero crer, nos examinaríamos, eu a ti e tu a mim. Vejamos, pelos deuses, como vai de saúde o próprio Sócrates! Já terá curado alguém de alguma doença, ou fosse escravo ou cidadão livre? Eu, do meu lado, também acho que instituiria idêntica investigação a teu respeito. E se verificássemos que não tínhamos deixado ninguém com o corpo em melhores condições, tanto entre os forasteiros como entre os moradores da cidade, nem homem nem mulher, por Zeus, Cálicles, não seria verdadeiramente irrisório revelar um homem tão grande insensatez, antes de haver tratado particularmente de muitos casos, fossem eles quais fossem, e de ter curado muita gente, para adquirir prática nessa arte, por querer, como diz o provérbio, começar pela jarra o aprendizado da arte do oleiro, visto pretender exercer aquela função pública e concitar outras pessoas a fazerem o mesmo? Não te parece rematada loucura proceder dessa maneira? Cálicles — Parece. Sócrates — E agora, varão meritíssimo, recente mente iniciado na carreira pública, que me animas nesse sentido e me repreendes por eu não seguir o teu exemplo: não terá chegado a hora de nos examinarmos? Vejamos! Qual cidadão Cálicles já deixou melhor? Haverá algum que antes fosse ruim, injusto, intemperante e in sensato, e que, por influência de Cálicles, se tivesse tornado pessoa de bem, forasteiro ou cidadão, escravo ou homem livre?
Dize- me, Cálicles, que responderias a quem te formulasse semelhante pergunta? Quem mostrarias, que se tivesse tornado melhor com a tua convivência? Hesitas em responder, se podes, de fato, apre sentar algum caso de tua vida particular, ocorrido antes de te haveres iniciado nos negócios públicos? Cálicles — És opiniático, Sócrates. LXXI — Sócrates — Mas não é por amor à disputa que te interrogo, senão pelo desejo sincero de saber como pensas que entre nós deve ser administrada a cidade. Uma vez que te achas à frente dos negócios públicos, vais cuidar de outra coisa que não seja esforçar- te para que nós outros, cidadãos, nos tornemos melhores? Já não admitimos muitas vezes que esse é o dever do homem político? Admitimos isso, ou não? Responde. Sim, admitimos, respondo em teu lugar. Se é isso que o homem de bem deve realizar em sua própria cidade, reflete um pouco e declara se és mesmo de parecer que foram bons cidadãos os homens a que há momentos te referiste: Péricles, Cimão, Milcíades e Alcibíades. Cálicles — Acho que foram. Sócrates — Se foram bons cidadãos, é evidente que cada um deles, individualmente, deixou melhores uns tantos cidadãos, que antes eram ruins. Cálicles — Como, de fato, deixaram. Sócrates — Logo, quando Péricles começou a falar em público, os atenienses eram piores do que quando ele pronunciou seu último discurso. Cálicles — Talvez. Sócrates — Não é Talvez o termo exato, meu caro, porém Forçosamente, de acordo com a nossa conclusão, se é verdade que aquele cidadão foi bom político. Cálicles — E daí? Sócrates — Nada. Mas responde -me também se é em geral admitido que os atenienses, de fato, ficaram melhores graças a Péricles, ou se foi justamente o inverso: foram corrompidos por ele. Eu, pelo menos, ouço dizer que Péricles deixou os atenienses preguiçosos, pusilânimes, faladores e ávidos de dinheiro, por ter sido quem instituiu o estipêndio popular. Cálicles — Ouviste isso, Sócrates, de algum desses indivíduos de orelhas rasgadas. Sócrates — Uma coisa, no entanto, não ouvi, porém sei com certeza, como tu também sabes, que no começo Péricles gozava de bom nome e que os atenienses, justa mente quando eram ruins, não levantaram contra ele nenhuma queixa infamante; porém, depois que se tornaram bons graças à sua influência, já no fim da vida de Péricles, acusaram- no de peculato e por pouco não o condenaram à morte, o que se deu, evidentemente, por o terem na conta de desonesto. LXXII — Cálicles — E daí? Devemos concluir que Péricles foi ruim? Sócrate s — Pelo menos seria considerado mau o guardador de mulos, ou de bois, que recebesse animais que não dessem coices, nem chifradas, nem mordessem, e os deixasse selvagens a ponto de fazerem tudo isso. Ou não consideras mau guardador de animais, sejam estes quais forem, quem os recebe mansos e os devolve mais selvagens do que eram quando os recebeu? Que me dizes? Cálicles — Posso concordar contigo, para ser- te agradável. Sócrates — Então, faze -me também a gentileza de responder ao seguinte: se o homem também faz parte dos animais? Cálicles — Como não? Sócrates — E não foi Péricles condutor de homens? Cálicles — Foi. Sócrates — E então? E de acordo com o que acabamos de assentar, não deveriam estes tornar- se mais justos sob a sua direção, de injustos que eram antes, se ele os dirigia na qualidade de chefe político modelar? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — E os justos não são mansos, como diz Homero? Que achas? Não é assim mesmo? Cálicles — É. Sócrates — No entanto, ele os deixou mais selvagens do que eram q uando os recebeu, e isso contra ele próprio, que é o que ele menos desejava. Cálicles — Queres que concorde contigo? Sócrates — Se julgares que tenho razão. Cálicles — Pois que seja. Sócrates — Se ficaram mais selvagens, tornaram- se também injustos e piores do que eram. Cálicles — Concordo, também. Sócrates — Logo, de acordo com o que dissemos, Péricles não foi bom político. Cálicles — Não; tu, pelo menos, afirmas isso. Sócrates — E tu também, por Zeus, de acordo com o que admitiste antes. Porém voltemos a falar de Cimão. Não o votaram ao ostracismo os mesmos cidadãos de que ele cuidava, para que durante dez anos não tivessem de ouvir- lhe a voz? E com Temístocles, não fizeram a mesma coisa, com a agravante da pena de exílio? E com Milcíades, o vencedor de Maratona, não decretaram que seria precipitado no báratro, o que teria acontecido se não fosse a intervenção dos prítanes? Ora, se todos eles foram pessoas excelentes, como afirmas, não teriam sido tratados dessa maneira. Pelo menos, com os bons cocheiros não é de praxe não serem jogados no começo fora do carro, para virem a cair depois de haverem tratado dos cavalos por algum tempo e de ficarem mais hábeis em sua profissão. Isso não acontece nem na arte de conduzir carros nem em qualquer outra. Não pensas também dessa maneira? Cálicles — Penso. Sócrates — Sendo assim, parece que tínhamos razão em nossa argumentação anterior, de dizer que nesta cidade, pelo que sabemos, nunca houve político perfeito. Tu próprio admitiste que presentemente não há, porém houve no passado, e a esses emprestaste relevo especial. Contudo, esses mesmos se nos revelaram em tudo iguais aos do nosso tempo, de forma que no caso de terem sido bons oradores não empregaram nem a verdadeira retórica — sem o que não teriam caído — nem a aduladora. LXXI II — Cálicles — Porém os de hoje, Sócrates, estão muito longe de haver realizado os empreendimentos que conseguiu levar a cabo qualquer dos antigos que quiseres apontar. Sócrates — Mas, meu grande amigo, eu também não os censuro como servidores da cidade; pelo contrário, parece mesmo que foram mais diligentes do que os de agora e mais hábeis no empenho de alcançar para a cidade o que ela desejasse. Porém, no que diz respeito a mudar esses desejos e a resistir- lhes, valendo- se da persuasão e da violência na adoção de medidas indicadas para deixar melhores os cidadãos, para ser franco, em nada se diferençaram dos de hoje; no entanto, esse é o único oficio do verdadeiro cidadão. Com relação a construir navios, muralhas, estaleiros e tudo o mais do mesmo gênero, estou de acordo contigo, que na sua consecução foram mais hábeis do que os de agora. Porém estamos nós tornando ridículos, eu e tu, com esta dis cussão: durante todo o tempo em que conversamos, não paramos de girar em torno do mesmo ponto, sem entender nenhum de nós o que o outro queria dizer. Contudo, estou certo de que por mais de uma vez concordaste e reconheceste que há dois modos de tratar o corpo e a alma; um é servil, e consiste em obter o de que necessita o corpo: alimentos, se tem fome; bebidas, quando manifesta sede; roupas, cobertas, calçados, quando sente frio, e assim tudo o mais que o corpo possa desejar. Muito de caso pensado recorro sempre aos mesmos exemplos, para que me compreendas com facilidade. Os indivíduos que fornecem todos esses artigos, quer seja o comerciante a varejo ou o atacadista, quer seja o fabricante de todos eles: o padeiro, o cozinheiro, o tecelão, o sapateiro, o curtidor, não seria de admirar que se considerem e sejam considerados pelos outros como encarregados dos cuidados do corpo, a saber, por todos os que ignoram que além dessas artes há a da ginástica e da medicina, que zela verdadeiramente do corpo e à qual compete comandar todas as outras artes e empregar os seus produtos, visto conhecer o que nos alimentos e nas bebidas é vantajoso ou prejudicial para a integridade do corpo, o que todas as outras ignoram. Por isso mesmo, todas elas são consideradas servis, baixas e verdadeiramente escravas no que respeita ao tratamento do corpo, ao passo que a ginástica e a medicina, com todo o direito, são tidas na conta de senhoras das demais. Estou certo de que me compreendes, quando afirmo que o mesmo é válido para a alma, e que concordas comigo como quem apreendeu bem o meu pensamento. No entanto, pouco depois vens dizer- me que em nossa comunidade há cidadãos nobres e capazes; mas quando te peço que nos apontes, indicas pessoas que se comportam com relação à política exata mente como, se à minha pergunta a respeito da ginástica, que homens capazes possuímos para o tratamento do corpo, me indicasses com toda a seriedade Teário, o padeiro, e Miteco, o cozinheiro que escreveu o Livro da Cozinha Siciliana, e Sarambo, o taberneiro, como sendo todos eles habílissimos zeladores do corpo, porque um prepara admiravelmente pães, o outro comidas, e o terceiro, vinho.
LXXIV — Certamente te revoltarias se eu te dissesse: Amigo, de ginástica não entendes patavina; só me enumeras indivíduos servis, que apenas cuidam de favorecer os apetites dos homens, mas que nada sabem do que seja bom e belo a esse respeito, podendo acontecer que encham e engordem o corpo de seus clientes e até sejam elogiados por eles, mas acabarão por estragar- lhes as carnes que tinham antes. Estes, também, por ignorância, não incriminaram os que os tratam dessa maneira, para considerá- los causadores de suas doenças e da perda da antiga corpulência. Porém, se acontecer qualquer de seus conhecidos dar- lhes algum conselho, depois de ter sido provocada a doença por tanto abuso contra a saúde, a esses é que eles acusam e repreendem, e até mesmo maltratam, se se lhes oferecer oportunidade para isso, ao passo que só tem elogios para os outros, os verdadeiros causadores de seus males. Neste passo, Cálicles, procedes exatamente como eles. Elogias os homens que alimentavam da maneira que eu disse os cidadãos e satisfaziam a todos os seus desejos, e aos quais atribuem a glória de haver deixado grande esta cidade. Porém que se trata de inchação, e que internamente ela se encontra ulcerada, isso os cidadãos não percebem. Pois, sem pensar na temperança e na justiça, aqueles encheram a cidade de portos, estaleiros, muralhas, tributos e outras nugas do mesmo gênero. Mas, quando ocorrer o surto da doença, todos acusarão as pessoas que lhes derem conselhos, e só terão elogios para Temístocles, Cimão e Péricles, que foram, no entanto, os verdadeiros causadores de todas essas calamidades. É até possível que te inculpem, se não te precatares, ou ao meu amigo Alcibíades, logo que as novas aquisições fizerem que eles percam as antigas, conquanto não sejais, realmente, fomentadores de seus ma les, porém, quando muito, cúmplices. Ademais, observo que presentemente ocorre algo despropositado de que também tenho ouvido falar, com respeito aos homens do passado. Verifico que quando a cidade ataca um desses políticos suspeitos de malfeitorias, eles se mostram indignados e se queixam como se estivessem sendo horrivelmente maltratados. Prestaram à cidade serviços sem conta, é o que todos dizem, e agora ela o arruina injusta mente. Porém tudo isso é falso; nunca nenhum governa dor de cidade foi perseguido injustamente pela própria cidade a que ele preside. O caso dos indivíduos que se fazem passar por chefes políticos parece ser igual ao dos que se apresentam como sofistas. Pois os sofistas, conquanto em tudo o mais sejam sábios, procedem neste particular por maneira insensata. Dizendo- se professores de virtude, muitas vezes acusam os discípulos de serem injustos para com eles, por se negarem a pagar o que lhes devem e mostrarem- se mal agradecidos pelos benefícios recebidos. Poderá haver alegação mais absurda? Indivíduos que se tornaram bons e justos por os ter deixado o professor livres da injustiça e plantado neles a justiça, estarão em condições de proceder mal, precisamente por meio da injustiça que já não está neles? Não achas isso absurdo, camarada? Obrigaste -me a proferir um verdadeiro discurso, Cálicles, por não responderes às minhas perguntas. LXXV — Cálicles — E não saberás falar se ninguém te responder? Sócrates — É possível. Em todo caso, pelo menos agora alonguei consideravelmente minha fala, por não me quereres responder. Mas, pelo deus da bondade, caro amigo, dize -me se não te parece absurdo afirmar alguém que deixou boa outra pessoa, e depois de haver ela che gado a ser o que é graças aos seus esforços, censurá- la por ser má? Cálicles — Penso que sim. Sócrates — E não tens ouvido isso mesmo da boca dos que se gabam de ensinar virtude aos homens? Cálicles — Já ouvi. Mas, por que mencionas essa gente tão carecente de valor?
Sócrates — E tu, que dirás desses supostos dirigentes da cidade, empenhados em deixá- la o melhor possível, e que, no entanto, quando se lhes oferece ocasião, a acusam de ser péssima? Percebes alguma diferença entre uns e outros? Meu caro, sofista é a mesma coisa que orador, ou, pelo menos, são vizinhos e aparentados, como eu disse a Polo. Mas, por desconhecimento do assunto, consideras a retórica como algo belo e desprezas a sofistica. A verdade, porém, é que a sofística é mais bela do que a retórica quanto a legislação é mais do que a jurisprudência e a ginástica mas do que a medicina. A meu pensar, os oradores políticos e os sofistas são os únicos que não têm o direito de queixar- se das pessoas que eles acusam de serem ruins para eles, pois isso é o mesmo que acusarem a si próprios de não terem feito nenhum bem aos que eles se gabavam de haver deixa do bons. Não é assim mesmo? Cálicles — Perfeitamente. Sócrates — A eles, unicamente, como se vê, é que competia prestar serviços sem exigir remuneração, se for certo o que proclamam. Quem recebe benefício de qualquer modalidade, digamos, por haver aprendido com um pedótriba a correr, poderá deixar de pagar a remuneração devida, no caso de permitir o professor que se vá embora e de não lhe haver notificado antes que o paga mento deveria ser feito logo que lhe houvesse comunicado agilidade. Não é pela lentidão, quero crer, que os homens procedem injustamente, mas pela injustiça, não é verdade? Cálicles — Sim. Sócrates — Ora, se o professor lhe tira precisamente isso, a injustiça, não há perigo de vir a sofrer dele alguma malfeitoria, por ser o professor a única pessoa capaz de prestar bons serviços sem combinação prévia, se em verdade for capaz de formar homens virtuosos, não é assim mesmo? Cálicles — Exato. LXXVI — Sócrates — Essa é a razão, parece, de não ser considerado vergonhoso receber dinheiro nas outras espécies de conselho, digamos, com relação à arquitetura ou a qualquer outra arte. Cálicles — É o que parece, de fato. Sócrates — Porém no que diz respeito à maneira de tornar- se alguém tão bom quanto possível, ou de dirigir a própria casa ou a cidade, é considerado vergonhoso condicionar seu conselho a determinado pagamento, não é verdade? Cálicles — É. Sócrates — E a razão disso, evidentemente, é que essa modalidade de beneficio é à única que desperta em quem o recebe o desejo de recompensar o benfeitor. Daí ser tido como bom sinal receber recompensa o promotor do beneficio, e mau indicio o caso contrário. Não é isso mesmo? Cálicles — É. Sócrates — Qual das duas maneiras de tratar a cidade aconselhas- me a adotar?
Explica- me isso. Deverei esforçar- me, como o médico, para que os atenienses se tornem tão bons quanto possível, ou como quem só procura servi- lo e fazer suas vontades? Dize- me a verdade, Cálicles. Uma vez que começaste usando de franqueza comigo, é justo que continues a dizer o que pensas. Fala, portanto, com desembaraço e lealdade.] Cálicles — Então direi que deverás servi- los. Sócrates — Aconselhas- me, varão generosíssimo, a ser adulador? Cálicles — Ou mísio, caso prefiras esse nome, Sócrates; porque, se não fizeres o que digo... Sócrates — Não repitas o que já me disseste muitas vezes, que quem quiser poderá matar- me, para que eu também não tenha de responder que na qualidade de homem mau é que ele matará um bom; nem que me espoliarão dos bens, para que, do meu lado, não volte a dizer- te que o espoliador não saberá o que fazer com eles, e que por mas haver tomado injustamente, só poderá usá- los injustamente, e que se for por modo inju sto, é indigno, e, sendo indigno, é mau. LXXVII — Cálicles — Dás- me a impressão, Sócrates, de que não acreditas que possas vir a sofrer isso, por morares afastado e nunca poderes ser levado aos tribunais por qualquer indivíduo desclassificado e mau. Sóc rates — Fora preciso ser verdadeiramente insensato, Cálicles, para não estar certo de que não há o que não possa acontecer nesta cidade a qualquer pessoa. Mas uma coisa eu também sei, e é que se eu for chamado ao tribunal e correr um dos riscos a que te referiste, meu acusador terá de ser um indivíduo muito ruim, pois ja mais um homem bom acusará um inocente. Não seria, portanto, de admirar se eu fosse condenado à morte. Queres que te diga porque admito essa possibilidade? Cálicles — Quero. Sócrates — Creio ser um dos poucos atenienses, para não dizer o único, que se dedica à verdadeira arte política, e que ninguém mais, senão eu, presentemente a pratica. Visto nunca entabular conversação com qualquer pessoa com o intuito de adquirir- lhe as boas graças e só ter em mira o que é mais útil, não o mais agradável, e como não me resolvo a fazer todas essas maravilhas a que me aconselhas, nada saberei dizer diante dos juízes. Meu caso é precisamente como o que figurei para Polo: serei julgado como um médico acusado diante de crianças por um cozinheiro. Considera o que poderia alegar em defesa própria quem se visse em semelhante situação e fosse acusado nos seguintes termos: Meninos, este homem vos tem causado males sem conta; ele deforma a todos vós, e até os de menos idade ele corta e cauteriza e os reduz ao desespero, fazendo- os emagrecer e sufocando- os, além de dar- lhes a beber remédios amargos e de obrigá- los a passar fome e sede, ao invés de fazer como eu, que vos regalo com quantidade de coisas boas e variadas. Como imaginas que se defenderia o médico que se visse em conjuntura tão critica? Se dissesse a verdade: Fiz tudo isso, meninos, em benefício de vossa saúde, qual não seria, a teu ver, o clamor levantado por seme lhantes juízes? Enorme, não? Cálicles — Decerto; teremos de aceitá- lo. Sócrates — E não ficaria em grande perplexidade, por não ter o que dizer? Cálicles — Perfeitamente.
LXXVIII — Sócrates — Da mesma forma eu seria tratado, tenho certeza, se fosse levado ao tribunal, pois não poderia mencionar nenhum prazer que lhes tivesse proporcionado e que eles consideram benefícios e vantagens, apesar de eu mesmo não ter inveja nem dos que lhos ensejaram nem dos que os receberam. Se me acusarem de corromper os moços, com deixá- los desorientados, ou de desrespeitar as pessoas mais velhas por dirigirlhes palavras amargas, tanto em público como em particular, não poderia nem dizer- lhes a verdade, a saber: Falo tudo aquilo por amor à justiça, e se assim procedo, juízes, é no vosso próprio benefício, nada mais podendo acrescentar. Nessas condições, terei de conformar- me com o que vier a acontecer- me. Cálicles — E consideras mesmo, Sócrates, bom para alguém ficar numa situação dessas, sem possibilidade de defesa? Sócrates — Desde que não lhe falte, Cálicles, a defesa que já tantas vezes admitiste e de que ele se premunira com nunca ter dito ou feito nada injusto, nem contra os homens nem contra os deuses. Pois essa é a melhor defesa que alguém pode preparar para si mesmo, como já reconhecemos várias vezes. Se alguém me demonstrasse que eu era incapaz de obter essa espécie de defesa para mim próprio ou para terceiros, sentir -me- ia envergonhado, quer me visse refutado diante de muitas pessoas, quer de poucas, ou mesmo em conversa só comigo, como ficaria basta nte aborrecido se tivesse de morrer por essa incapacidade. Quanto a morrer por falta da retórica bajuladora, estou certo de que me verias suportar facilmente a morte. Em si mesma, a morte não é de temer, salvo por quem for insensato e pusilânime. O que é de temer é cometer injustiça. A maior infelicidade é chegar ao Hades com a alma pejada de malfeitorias. Caso queiras, contar- te- ei uma história em que se prova que é assim mesmo. Cálicles — Uma vez que já terminaste o resto, finaliza também isso. LXXIX — Sócrates — Então ouve, como se diz, uma bela história, que decerto tomarás como fábula, segundo penso, mas que eu digo ser verdadeira, pois insisto em que é a pura verdade tudo o que nela se contém. Conforme Homero nos relata, Zeus, Posido e Plutão dividiram entre si o poder que tinham recebido do pai. Ora, no tempo de Crono havia uma lei relativa aos homens, que sempre vigorou e que ainda se conserva entre os deuses, a saber: que o homem que houvesse passado a vida com justiça e santidade, depois de morto iria para a Ilha dos Bem- aventurados, onde permaneceria livre do mal, em completa felicidade, e que, pelo contrário, quem tivesse vivido impiamente e sem justiça, iria para o cárcere da punição e da pena, a que dão o nome de Tártaro. No tempo de Crono, e mesmo depois, no começo do reinado de Zeus, os juizes eram vivos e julgavam aos vivos no próprio dia em que deveriam morrer. Esse o motivo de ser o julgamento cheio de falhas; por isso, Plutão e os zeladores da Ilha dos Bem- aventurados foram a Zeus e lhe comunicaram que para ambos os lugares chegavam homens de todo em todo indignos. Então Zeus lhes falou: Vou remediar tal inconveniente. As sentenças, realmente, têm sido mal dadas, porque as pessoas são julgadas com vestes, uma vez que ainda estão vivas. Desse modo, continuou, muitos homens de alma ruim são adornados de belos corpos, posição e riqueza, aparecendo por ocasião do julgamento infinitas testemunhas que afirmam terem eles vivido com justiça. Nessas circunstâncias os juízes ficam perturbados, tanto mais que eles também julgam vestidos, servindo- lhes de véu para a alma os olhos, os ouvidos e todo o corpo. Tudo isso atua como empecilho, tanto as suas próprias vestimentas como as dos que vão ser julgados. Em primeiro lugar, disse ele, será preciso tirar dos homens o conhecimento da morte, pois presentemente eles têm notícia dela com antecedência; nesse sentido, já foram dadas instruções a Prometeu. Em segundo lugar, passarão a ser julgados desprovidos de tudo, a saber, só depois de mortos.
O juiz, ta mbém terá de estar morto e nu, para examinar apenas com sua alma as demais almas, logo após a morte de cada um, que estará desassistido de toda a parentela e depois de haver deixado na terra todos aqueles adornos, para que o julgamento possa ser justo. Percebi esses inconvenientes antes de vós, e como juízes nomeei três de meus filhos, sendo dois da Ásia: Minos e Radamanto, e um da Europa: Éaco. Depois de morrerem, julgarão no prado que se acha na altura da encruzilhada dos dois caminhos: o que vai dar na Ilha dos Bemaventurados e o que vai para o Tártaro. Radamanto julgará os que vierem da Ásia; Éaco, os da Europa. A Minos darei o privilégio de pronunciar- se por último, nos casos de indecisão dos outros dois, para que seja o mais justo possível o julgamento que decide da viagem dos homens. LXXX — Eis, Cálicles, o que ouvi contar e creio ser verdade. Dessa história eu tiro a seguinte conclusão: a morte, conforme penso, nada mais é do que a separação de duas coisas: a alma e o corpo. Uma vez separados um do outro, nem por isso deixa nenhum deles de apresentar a mesma constituição do tempo em que ainda vivia o homem. O corpo conserva sua natureza e os sinais de quanto pudesse ter feito, bem como os tratamentos a que foi submetido, tudo facilmente reconhecível. Se um indivíduo foi em vida corpulento, ou por natureza ou por sua maneira de viver, ou por ambas as causas, depois de morto será também grande o seu cadáver; se era gordo, o cadáver será gordo, e assim com tudo o mais. Se gostava de deixar crescer os cabelos, o cadáver também apresentará cabelos soltos. Por outro lado, se apresenta va no corpo cicatrizes de azorrague, ou marcas de sevícias, ou de ferimentos outros, recebidos em vida, será possível perceber tudo isso no cadáver. E se, porventura, tivesse em vida algum membro fraturado ou defeituoso, isso mesmo se poderá reconhecer depois de morto. Numa palavra: tudo por que em vida o corpo passou continua por algum tempo visível, em sua quase totalidade, depois da morte. A mesma coisa, Cálicles, penso que se passa com relação à alma; tudo nela se torna visível, depois de despida do corpo, tanto suas caracte rísticas, naturais como as modificações supervenientes, no empenho do homem de alcançar isto ou aquilo. Ao se apresentarem diante do juiz — os da Ásia vão para Radamanto — coloca- os em sua frente Radamanto e examina alma por alma, sem saber a quem pertenceram, a não ser, por vezes, quando acontece tomar a do Grande Rei ou a de qualquer outro soberano ou potentado, e verificar não haver nela nada são, por estar cheia de lanhos e de marcas de perjuros e de injustiças, que as diferentes ações foram deixando na alma, e de encontrar tudo retorcido pela mentira e pela vaidade, sem estar nada direito, visto ter sido criada sem a verdade; e como conseqüência da licença, da luxúria, da insolência e da incontinência de conduta, mostra- se a alma cheia de deformidades e de feiúra. Contemplando- a desse jeito, envia -a Radamanto ignominiosamente para a prisão, onde terá de sofrer o castigo merecido. LXXXI — A pena merecida para quem recebe castigo, quando é punido com justiça; é tornar- se melhor e tirar algum proveito com o castigo, ou servir de exemplo para outros, a fim de que estes, vendo- os sofrer o que sofrem, se atemorizem e se tornem melhores. Os que aproveitam com o seu próprio castigo, seja ele imposto pelos deuses, seja pelos homens, são os que come tem faltas remediáveis. Todavia, esse proveito só é alcançado por meio de dores e sofrimento, tanto aqui na terra como no Hades; não há outro modo de limpar- se da injustiça. Os culpados dos piores crimes, que, por isso mesmo, são incuráveis, são os que ficam para exemplo, sem que eles próprios tirem a menor vantagem disso, visto não serem passíveis de cura. Para os outros, porém, é proveitoso vê- los expiar eternamente os próprios erros por meio dos maiores, mais dolorosos e mais terríveis suplícios, expostos para exemplo na prisão do Hades, espetáculo e advertência, a um tempo, para quantos criminosos ali chegarem. Arquelau será um desses, é o que eu digo, se for verdade o que Polo nos contou, e bem assim todos os tiranos iguais a ele. Estou convencido de que a maioria de tais exemplos é tirada da classe dos tiranos, dos reis, dos potentados e dos demais administradores dos bens públicos, por serem, justamente, os que têm a possibilidade de cometer os maiores e mais ímpios crimes. Homero é testemunha disso, pois nos mostra reis e potentados a sofrer castigos eternamente no Hades: Tântalo, Sísifo e Tício. Tersites, ou qualquer outro vilão de maus costumes, ninguém nos apresenta como sujeito a penas eternas, por incurável. É que, no meu modo de pensar, carecia de poder para isso, motivo por que era mais feliz do que os que dispuseram desse poder. De fato, Cálicles, é entre os tiranos que se encontram os tipos mais perversos; porém nada impede que entre eles também se nos deparem homens virtuosos, dignos em todo o ponto de nossa admiração. Pois é sumamente difícil, Cálicles, e grandemente merecedor de elogios, levar vida de justo quem tem o poder de fazer o mal.
Porém são poucos os homens nessas condições. Todavia, tanto aqui como alhures, tem havido, e no futuro, quero crer, não faltarão homens excelentes na virtude de administrar honestamente o que lhes confiarem. Um, até, já se tornou famoso em toda a Hélade, Aristides, filho de Lisímaco. Porém a maioria dos potentados, caro amigo, é gente criminosa. LXXXII — Como disse, quando aquele Radamanto recebe um tipo desses, ignora tudo a seu respeito, quem seja ou de que família provém; sabe apenas que é um celerado. Vendo isso, envia -o para o Tártaro, não sem o ter previamente assinalado, para indicar se é ou não passível de cura. Uma vez lá chegado, o criminoso recebe o castigo merecido. Mas, quando acontece perceber uma alma que viveu santamente e na verdade, de um s imples particular ou de quem quer que seja, mas principalmente, Cálicles, segundo penso, de algum filósofo que durante a vida só se ocupou com seus interesses, sem ingerir- se nos negócios dos outros, mostra- se satisfeito e o encaminha para a Ilha dos Bem- aventurados. O mesmo faz Éaco. Ambos julgam com um bastão na mão. Minos se conserva à parte, sentado, e é o único que empunha um cetro de ouro, como em Homero no- lo declara Odisseu, que o viu com cetro de ouro na mão, assentado, e entre os mortos a distribuir justiça. Eu, Cálicles, de minha parte, dou crédito a essa narrativa e me esforço para apresentar- me diante do juiz com a alma tão limpa quanto possível. Não dou nenhuma importância às honrarias que a maioria dos homens tanto preza; empenhando- me na busca da verdade, procurei tornar- me o melhor possível enquanto viver, e assim também morrer, quando chegar a minha hora. Exorto também os demais homens, na medida das minhas forças, a fazerem o mesmo, como te exorto, em retribuição aos teus conselhos, a adotar esse modo de vida e a tomar parte nessa luta, a mais importante, sem nenhuma dúvida, que se trava aqui na terra, e te lastimo por saber- te incapaz de defender- te quando te vires diante daquele julgamento e da sentença a que há pouco me referi. Quando chegares à frente do teu juiz, filho de Egina, e ele puser a mão em ti e levar- te para o julgamento, ficarás de boca aberta e com vertigens, tal como eu aqui, sendo possível mesmo que alguém te esbofeteie ignominiosamente e te inflija toda a sorte de ultrajes. LXXXIII — É possível que consideres tudo isso uma simples história de velhas, que só merece o teu desprezo. Não fora nada extraordinário que nós também a desprezássemos, se em nossas investigações encontrás semos algo melhor e mais verdadeiro. Mas, como viste, vós três, os mais sábios Helenos do nosso tempo, tu, Polo e Górgias, não fostes capazes de demonstrar que devemos viver uma vida diferente desta, que se nos revelou vantajosa até mesmo no outro mundo. Entre tantos argumentos desenvolvidos, to dos foram refutados, tendo sido este o único que se manteve firme, a saber, que devemos com mais empenho precaver- nos de cometer injustiça do que de ser vítima de injustiça, e que cada um de nós deve esforçar- se, acima de tudo, não para parecer que é bom, mas para sê- lo realmente, tanto na vida particular como na pública. Se alguém se tornar mau sob qualquer aspecto, deverá ser castigado, sendo esse o segundo bem depois do de ser justo, que é tornar se justo por meio do castigo e da expiação da culpa; que toda adulação deve ser evitada, tanto com relação a si próprio como a estranhos, quer sejam poucos, quer muitos, e que tanto a faculdade de bem falar como os demais recursos desse gênero só devem ser empregados a serviço da justiça. Aceita, portanto, meu conselho, e acompanha- me para onde, uma vez chegado, serás feliz, assim na vida como na morte, conforme nosso argumento o certifica. Deixa que te desprezem como insensato, que te insulte quem quiser insultar, sim, por Zeus, recebe sem perturbar- te até mesmo aquele tapa ignominioso; não virás a sofrer mal nenhum, se fores um homem verdadeiramente bom e se praticares a virtude. E depois de a termos praticado em comum, se julgarmos conveniente, dedicar- nos -emos à política ou ao que melhor nos parecer, o que decidiremos oportunamente, quando para isso ficarmos mais aptos do que estamos agora. Pois é vergonhoso, sendo nós o que mostramos ser neste momento, blasonar como se valêssemos alguma coisa, quando nem sequer pensamos do mesmo modo sobre qualquer assunto, principalmente os de mais importância, tão grande é nossa ignorância! Tomemos como guia a verdade que acaba de nos ser revelada e que nos indica ser a melhor maneira de viver a que consiste na prática da justiça e das demais virtudes, na vida como na morte. Aceitemos essa norma de vida e exortemos os outros a fazer o mesmo, não aquela em que confias e que me aconselhaste a seguir. Porque essa, Cálicles, é carecente de valor.
Platão
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