Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GRANDE HOTEL
GRANDE HOTEL

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

  

13

 

Kringelein, o automobilista, o aviador, o vencedor, continuava sua corrida, nesse dia em que se sentia viver. Talvez os artistas malabaristas que fazem o looping the loop, chegando à beira da morte, se sintam também como ele. Kringelein principiou a atirar-se de cabeça para baixo num círculo, e agora é arrastado de acordo com leis que ele não tem mais o poder de controlar. Tomar a direção contrária significaria a queda, e por isso ele continua a correr, para a frente, para baixo, para cima, ele não sabe mais para onde, porque perdeu a direção. Transformou-se em um pequeno cometa, a zumbir pelo espaço, que em breve vai se dispersar em átomos.

O automóvel buzina outra vez ao longo do Kaiserdam, novamente eles se encontram no entroncamento de uma moderna Berlim, o facho de luz da torre da emissora vai circulando, a cortar trechos claros da cidade; diante do Sportpalast aglomera-se gente, lembrando uma nuvem escura como abelhas diante do orifício de entrada da colmeia, com um zumbido ritmado e ativo. Kringelein nunca vira um ambiente tão grande como esse estádio, nem tanta gente reunida num lugar só. Atrás de Gaigern, que caminha diante dele como uma torre, ele é arrastado até o seu lugar, na frente, bem perto da claridade crua do quadrado iluminadíssimo, ao qual se dirigem catorze mil pares de olhos. Gaigern vai explicando muitas coisas, mas Kringelein não compreende nada. Sente medo de novo, meu Deus, tem medo, porque não gosta de ver sangue, nem luta ou brutalidade. Com horror ele se recorda nesse momento do seu trabalho como auxiliar de enfermeiro, que lhe reservaram na guerra, porque não era apto para outra coisa. Timidamente, admira os homens musculosos a desfilar, vê-os despir os roupões de banho e expor sua carne rija, ouve com respeito o alto-falante, e bate palmas quando todos batem palmas. "Quando ficar muito impressionante, eu olho para outro lado", pensa ele em segredo, ao começar o primeiro round. Mas, no início, tem a impressão de que aqueles dois sujeitos lá em cima, de porte delicado e magro, e nariz achatado, estão apenas brincando. Brincando como gatinhos novos, diz a si mesmo, começando a sorrir com certo alívio. Gaigern, pelo contrário, está tão sério e concentrado que Kringelein fica impressionado. O estádio está silencioso, e os pugilistas também; às vezes, pode-se ouvi-los respirar cautelosamente pelo nariz, e seus passos de bailarinos, com os sapatos delicados de pugilistas, são quase inaudíveis. Depois, em meio ao silêncio, o som abafado e redondo da luva de couro — e a sala, pela primeira vez, ruge de alto a baixo, até lá em cima na atmosfera enfumaçada onde a galeria, com milhares de rostos, desaparece por sob o vigamento do teto. "Mais", pensa Kringelein, a quem o rumor do soco encheu de uma satisfação doce e febril, que imediatamente se transforma em ânsia. Pancada de gongo, homens saltando por cima das cordas, baldes, cadeiras, esponjas, toalhas voam por sobre as cordas, os pugilistas estão caídos nos seus cantos e respiram de línguas pendentes como cães perseguidos; borrifam água neles, água que não é para ser engolida. A água chega perto do lugar de Kringelein, que enxuga respeitosamente as gotas da sua capa, com um sentimento de companheirismo esquisito pelo homem que está ali no canto. Gongo. Imediatamente o foco de luz se dirige de novo para a luta, o estádio cessa de súbito o seu murmúrio e todos prestam atenção. Soco, soco, soco. Gritos na galeria, silêncio. Soco. O primeiro sangue corre sobre o olho de um deles, e o homem ri-se. Soco, soco, e um arquejar. Kringelein sente seus pulsos contraídos nos bolsos da capa, como dois objetos duros, estranhos. Gongo. Novamente movimento nos cantos, as toalhas voando, as batidas, as massagens; os corpos já estão luzidios de suor, cá embaixo todos os rostos são verdes e frios ao reflexo da luz, e os homens se levantam de suas cadeiras e discutem, excitados.

— Agora vai começar, finalmente — disse Gaigern, logo após começar o terceiro round, e Kringelein ouve com um leve arrepio esse aviso de Gaigern, que faz prever acontecimentos excitantes. Os pugilistas lá em cima — ele não consegue distinguir um do outro, porque os dois têm o osso do nariz quebrado, e só na pausa ele toma partido a favor do homem no canto perto dele. Os dois, agora, atiram-se como selvagens um de encontro ao outro, agarram-se violentamente, e por vezes isso causa a impressão de uma carícia furiosa e impertinente.

— Arrebenta! — grita o estádio por catorze mil gargantas. Kringelein também grita. Aqueles dois sujeitos lá em cima devem dar murros, e não ficar apoiados à corda, cambaleantes. Por tudo desta vida ele deseja ouvir de novo aquele rumor abafado e cheio, redondo, com que a luva atinge a carne.

— Blynx está grogue. Não aguenta por muito tempo — murmurou Gaigern, e sua dentadura perfeita de cão fica visível por sob o lábio superior que se eleva. Lá em cima o juiz, de camisa de seda branca, pula entre os corpos musculosos e ensanguentados, separando-os sempre. Kringelein acha muito amável que os homens suportem essa intervenção. Fica de olhos grudados no homem que parece estar grogue, expressão técnica para um final completamente inconsciente. Esse homem, o Blynx, tem agora uma bolha azul, pendente como um fruto sobre seu olho direito, suas costas e seus ombros estão lambuzados de sangue, e às vezes ele cospe sangue diante dos pés do juiz. Conserva a cabeça completamente inclinada, o que pode estar certo, mas causa ao inexperiente Kringelein a impressão de extrema covardia. Cada vez que esse tal de Blynx recebe um soco, Kringelein se alegra de um modo excessivo e bestial, que sobe das profundezas de seu sangue. Tudo o que está vendo ainda é pouco para ele. Cada soco em cheio ele acompanha com um gritinho de alívio, para ficar à espera imediatamente, de boca aberta e cabeça estendida, do próximo soco. Gongo. Pausa. Gongo. Round. Gongo. Pausa. Round. Pausa. Round.

No sétimo round Blynx foi derrotado. Cambaleou para a frente, caiu no chão, virou de costas e ficou estatelado. As vinte e oito mil mãos do estádio vibravam numa saraivada de aplausos. Kringelein ouviu sua própria voz a uivar, rouca, e viu suas próprias mãos aplaudindo de um modo maluco. O que se passava lá em cima, no ringue, ele só compreendia em parte. O homem de camisa de seda colocou-se sobre o derrotado e contou com um braço que parecia um martelo. Em certo momento Blynx fez um movimento, como os cavalos tombados no gelo escorregadio, mas não conseguiu erguer-se. Nova gritaria na sala. O povo trepava nas cordas, abraços, beijos, ruído de alto-falante, tumulto na galeria. Quando Blynx foi arrastado dali, Kringelein, completamente exausto, caiu sobre a cadeira dura. O esforço que fizera fora demasiado, os ombros e braços lhe doíam.

— Então, o senhor está completamente sufocado de entusiasmo — disse-lhe Gaigern. — Isso contagia a gente, hein?

Kringelein recordou-se de certa noite, mil anos atrás.

— Isso é bem diferente da Grussinskaia, ontem — respondeu ele, pensando com uma compaixão rebarbativa no teatro vazio, nas ninfas fantasmagóricas e melancólicas, a girar em círculo, na pomba ferida ao clarão do luar e nos minguados aplausos, acompanhados dos comentários de Otternschlag.

— A Grussinskaia! — disse Gaigern. — Ah, sim, é completamente diferente. — Começou a rir interiormente. — Faziam muito fricote em torno da Grussinskaia — disse ainda, vendo-a diante de si, como se fosse real, sentada em seu camarim, em Praga, repousando, a pensar que a noite passada a cansara, de fato, mas a rejuvenescera e lhe dera coragem.

— Esta luta de agora não foi grande coisa. O principal vem agora — disse ele a Kringelein. Kringelein contentou-se com esse ensinamento. Ele próprio tinha a impressão de que devia vir algo mais, socos ainda mais vibrantes, arquejos ainda mais fortes, sensações mais ruidosas ainda. "Avante", pensou ele. "Avante. Avante, vamos!"

Avante. Dois grandes gigantes entram no ringue, um branco e um preto. O preto é alto, esguio, com uma pele aveludada, que reflete a luz prateada. O branco é cheio de corpo, com uma almofada de músculos nos ombros, e uma cara quadrada de animal. Kringelein gostou logo do negro. Todo o estádio gosta do negro. Apresentação pelo alto-falante. O estádio fica imerso em completo silêncio, para assistir à luta. Então tudo recomeça, a brincadeira, os passos de dança, os pulos, o humilhante aproximar-se de mansinho e os saltos elásticos para trás, o entrelaçar-se dos corpos branco e negro na luta corpo a corpo, excitada e séria como no amor, soco após soco, entremeados apenas pelo gongo, para tomar respiração. Três minutos de luta, um minuto de respiração, três minutos, um minuto, quinze vezes, durante uma hora, três minutos de luta, um minuto de respiração. Mas desta vez a luta é completamente diferente, mais rápida, como um relâmpago, com súbitos ataques do preto, com uma selvageria impulsiva do branco, ardente como um fogo forte.

Kringelein se derrete todo. Kringelein não está mais sozinho, não mora mais dentro de si mesmo como uma habitação arruinada. Kringelein é um dos catorze mil indivíduos que estão ali, é um rosto esverdeado e desfigurado entre os incontáveis rostos do estádio, seus gritos se unem ao grito poderoso que sai da garganta de todos. Ele respira quando os outros respiram, e contém a respiração quando o estádio inteiro arqueja com os pugilistas. Suas orelhas estão queimando, ele fecha os punhos, tem os lábios secos, o estômago frio, e engole a doce saliva do entusiasmo, que lhe desce pela garganta já rouca. Avante, avante!

Nos dois últimos rounds parece que o negro de Kringelein está em vantagem. Seus pulsos tamborilam curtas séries de socos nos músculos do branco, que por duas vezes cai sobre as cordas, de braços abertos. Ambos riem, como narcotizados. A respiração sai de seus corpos como a respiração de máquinas. O último round é acompanhado de um berreiro incessante e uma trovejante pateada. Kringelein berra e bate os pés. Gongo. Depois tudo cessa. Kringelein senta-se, completamente coberto de suor. O alto-falante pede silêncio. O alto-falante fala. O alto-falante anuncia a vitória do branco.

— Como? O quê? É revoltante! — berra Kringelein. Ele berra por catorze mil gargantas, sobe na cadeira, e todos os outros sobem nas cadeiras e berram:

— Marmelada, marmelada!

A sala endoidece. Kringelein endoidece. Avante, mais ainda! Avante! Avante! A galeria urra, assobia, guincha. Vão despencar, essas galerias de madeira, em meio à poeira, às exalações e à comoção da multidão descontente. Os pugilistas, de encontro às cordas brancas, apertam-se as mãos desajeitadamente, com as luvas de boxe, sorriem como se os estivessem fotografando. Começa a chover no estádio. Chovem caixinhas, pacotes vazios de cigarros, maçãs, e finalmente copos e garrafas; o ringue antes tão limpo cobre-se de objetos amassados, sob a coberta o assobio continua, lá atrás algumas pessoas já começam a distribuir pancadaria. Parece gente em pânico, aquela multidão de catorze mil pessoas a se movimentar em confusão. Kringelein recebe na cabeça uma pancada forte e pesada, mas nem a percebe.

Kringelein está de punhos cerrados. Sente vontade de bater, de lutar, de dar pancada no juiz injusto. Procura Gaigern com os olhos. Gaigern está bem próximo do ringue, rindo como alguém que a chuva primaveril molha, meio sedento e pouco satisfeito. Kringelein, no estado em que estava, com os sentidos completamente dispersos, é tomado por uma simpatia violenta por esse homem que tem o aspecto da própria vida. Gaigern puxa-o e arrasta-o para fora do estádio endoidecido. Por trás dele Kringelein vai andando, como se o protegesse um escudo cálido e resistente.

Avante! A Gedaechtniskirche, com seus muros brancos em que se refletem os milhares de luzes em seu redor, traços brilhantes de rodas dos veículos no asfalto cheio de gasolina, homens que parecem negros diante das vitrinas iluminadas da Tauentzinstrasse. Depois, de repente, o silêncio e a escuridão por sob as árvores do Bayenviertel, pequenas praças a delinear-se nas trevas, com seu pedregulho, seus roseirais e suas lanternas. Avante!

O cassino. Os enormes aposentos de uma antiga residência de Berlim, que transformaram em clube. Um vago cheiro de gente, nas paredes atapetadas. Gente silenciosa, de smoking, apresentações. Muitas capas num vestiário de azulejos. Kringelein reconhece um homem pálido, magro e de aparência distinta, vestido de preto, que afasta da testa os fios de cabelo; é ele próprio. O encontro consigo mesmo no espelho o surpreende. "Sou muito resistente", pensa ele. Durante um segundo pensa em seu amigo Kampmann, o tabelião, como se tivesse algum dia sonhado com ele. Uma curta parada em uma sala com abajures de pé, e uma lareira falsa, onde apenas se conversa e se bebe. Na outra sala há algumas mesas com partidas de bridge. "Não é muito mais elegante do que o Skat", pensa Kringelein, ávido de sensações novas.

— Nós vamos lá para os fundos — disse Gaigern a um senhor. — Venha, Diretor Kringelein, vamos lá para os fundos.

Para os fundos significa o fim de um corredor estreito e feio, com inúmeras portas. Atrás da última portinha marrom, há uma salinha imersa numa sombra pardacenta, de modo que mal se podem ver suas paredes. Só em uma mesa no centro da sala há uma luz, como no estádio acima do ringue. Algumas pessoas estão de pé ou sentadas à mesa, não muitas, doze ou catorze, com uma expressão séria e preocupada, e trocam entre si frases curtas, que Kringelein não compreende.

— Quanto o senhor quer arriscar? — pergunta Gaigern, que se aproximou de um balcão ao lado, onde uma senhora vestida de preto, com ar de governanta, está sentada diante de uma caixa. — Quanto o senhor estava pensando?

Kringelein pensou em dez marcos.

— Não sei muito bem, senhor barão — disse ele indeciso.

— Digamos então, para começar, quinhentos marcos — aconselhou Gaigern. Kringelein, incapaz de uma contradição, tirou do bolso a velha carteira e colocou na mesa dez notas de cem. Colocaram-lhe na palma da mão um punhado de fichas coloridas, verdes, azuis e vermelhas. Ouviu objetos semelhantes a esses caírem com um ruído seco na mesa, sob a luz do abajur verde, quadrado. "Avante", pensou ele com impaciência.

— Agora jogue como quiser — disse Gaigern. — Não adianta eu lhe explicar. Jogue como quiser e quanto quiser. Quem joga pela primeira vez em geral ganha.

Quantas vezes nesse dia Kringelein já estivera diante do perigo? Ele já sabe que com a vida as coisas não são diferentes. O arrepio de medo faz parte do prazer como a casca pertence à noz, isso ele já sabe. Tem o pressentimento de que ali, em poucos segundos, pode perder a mesma quantia que ganhou nos quarenta e sete anos de vida gotejante em Fredersdorf. Sabe que nessa sala a meia-luz, com lacônicos senhores inclinados sobre o pano verde, ele apenas poderá deixar que as coisas passem zunindo em disparada como até agora, para perder no jogo as três ou quatro semanas de uma existência cigana que lhe falta viver até o fim. E Kringelein, de cima do seu looping the loop, tem quase curiosidade de ver como as coisas vão continuar, avante — avante.

Suas orelhas e seus lábios ficaram brancos, quando ele se aproximou da mesa e começou a jogar. Tem a impressão de estar com as mãos cheias de areia. Joga. Uma pazinha se aproxima e leva suas fichas verdes em meio a outras fichas. Alguém diz qualquer coisa que ele não entende. Joga de novo, dessa vez em outro lugar. Perde. Joga, perde, joga, perde. Gaigern, do outro lado da mesa, joga também, ganha uma vez, depois perde. Kringelein lança-lhe um olhar rápido e suplicante, mas ele não presta atenção. Ali cada um só se preocupa consigo mesmo. Os olhares cravam-se no pano verde como pregos. Cada um concentra suas forças e sua vontade, para ganhar.

— Que falta de sorte! — diz alguém.

É uma frase fantasmagórica, sob a lâmpada de mesa de bilhar, na sala marrom lá dos fundos. Kringelein, tendo que contar apenas consigo mesmo, dirige-se à senhora de preto e pede mais quinhentos marcos de fichas. Volta à mesa, onde um outro senhor remexe com a pazinha as fichas, que se chocam com um tique-taque e são colocadas em montinhos por mãos pedantes e excitadas. Kringelein toma a sua parte com a mão esquerda, e joga com a direita, sem escolher onde, quase inconsciente. Joga, perde. Joga, ganha. Fica surpreendido ao ver que suas fichas verdes retornam com uma vermelha. Joga, ganha. Joga, ganha. Joga, ganha. Coloca no bolso algumas fichas, porque não sabe o que fazer delas. Joga, perde, perde, perde. Faz uma pausa de alguns minutos. Gaigern não está jogando, mas se conserva de pé, fumando de mãos nos bolsos.

— Chega por hoje — diz ele. — Meu dinheiro acabou.

— Permita-me, senhor barão — diz Kringelein, enfiando na mão de Gaigern, que este tira hesitante do bolso, as duas fichas vermelhas que lhe sobraram.

— Hoje estou muito desanimado para jogar — murmura Gaigern.

Ele pressente a sorte, que faz parte da sua duvidosa profissão, e no momento não está com sorte — caso não se queira dar o nome de sorte à aventura íntima com a Grussinskaia. Kringelein volta de novo à mesa. Avante!

Um relógio rouco bateu uma hora quando Kringelein, com um motorzinho a girar por trás da testa, parou de jogar, e trocou na caixa as suas fichas. Tinha ganho três mil e quatrocentos marcos. Sentiu que seus pulmões amoleciam e queriam tremer, mas dominou-se com bravura. Ninguém se importava com ele e com o seu lucro. Kringelein ganhou um ano de ordenado de Fredersdorf. Meteu tudo dentro da carteira de couro gasto.

Gaigern, ao seu lado, boceja e o observa.

— Estou agora órfão, senhor diretor. O senhor precisa cuidar de mim. Não tenho um Pfennig sequer — diz ele com um tom de voz indiferente. Kringelein, com a carteira entre as mãos, fica ali parado, sem saber o que fazer, nem o que querem dele.

— Amanhã preciso lhe pedir um grande empréstimo — diz Gaigern.

— Por favor — replica Kringelein com elegância. — E agora, que vamos fazer?

— Oh, senhor! Que perseverança, a sua! Agora o que falta é embriagar-se ou procurar mulheres — replica Gaigern.

Kringelein retira-se, pálido e desfigurado, da frente do espelho em que colocara o chapéu. Põe cinquenta Pfennige na palma da mão de um adolescente que lhe abre a porta. Apanha a carteira de novo, e desta vez pega uma nota de cem marcos, que dobra e coloca na mão do groom, quando eles já se encontram na rua escura e silenciosa. Sente-se desorientado. Não sabe mais o valor do dinheiro. Num mundo em que a gente gasta mil marcos pela manhã e de noite ganha três mil, o guarda-livros Kringelein, de Fredersdorf, erra num labirinto, como se caminhasse por uma floresta encantada, sem luz nem veredas. Debaixo de uma lanterna espera-os o carrinho de quatro lugares, calado e sem vida, e há algo da paciência de um cão bonzinho na sua atitude fiel, que Kringelein percebe, comovido e grato. Avante! Avante! Está chovendo. O limpador de para-brisa se move em seu semicírculo diante dos olhos de Kringelein, para lá, para cá, para lá, para cá. O cheiro de gasolina já se tornou quase uma coisa costumeira, agradável e conhecida. Longas listras vermelhas, azuis e amarelas refletem-se no asfalto úmido. Labaredas vivas, diante de operários escuros, soldam um trilho, com atividade febril, no meio da noite adiantada. O automóvel vai muito devagar, devagar demais, é o que Kringelein acha. Olha Gaigern de lado, Gaigern está fumando, Gaigern olha para a rua, e seus pensamentos só Deus sabe onde andam. O aspecto da cidade, à uma e meia da manhã, é o de quando houve um desastre. Está completamente animada, cheia de gente, talvez mais cheia ainda do que de dia, inúmeros automóveis buzinam na esquina desprotegida, agora sem guarda de trânsito. Acima deles o céu está vermelho, um céu incendiado de catástrofe, onde passa com regularidade o clarão do projetor circular da torre da emissora. Avante! Avante!

Uma escada cheia de gritaria e de música, que sobe três andares. Bandeirolas e serpentinas embaixo, a meia altura espelhos baços com molduras de gesso dourado, pessoas desconhecidas, algumas bêbadas, outras melancólicas. Moças de carne frouxa, com olheiras escuras, em cujas costas cheias de pó de arroz Kringelein roça ao subir a escada. Toda a casa está cheia de fumaça de cigarro, que pende espessa e azul dos abajures da escadaria, com pretensão a modernos. Embaixo o ruído é grosseiro, no primeiro andar ouve-se por detrás dos reposteiros uma música delicada; estão dançando, lá dentro. No andar superior está tudo em silêncio. Uma moça de calças de um verde tóxico está sentada num degrau da escada com um copo na mão, e finge dormir quando passam por ela. Seus ombros nus roçam o terno novo de Kringelein, o que o faz ficar cheio de ansiedade. Atrás de uma porta há um aposento comprido, quase às escuras. Apenas no chão há algumas lanternas cobertas de papel, cintilando com luz pálida. Ali também há música, que Kringelein ouve, mas não consegue enxergar nada. Ao clarão das lanternas dançam pernas de moças, nítidas até os joelhos; para cima tudo mergulha na escuridão. Kringelein tem vontade de segurar a mão de Gaigern, como um menininho. Ali é tudo confuso e vago; o que se passa por trás das paredes pintadas a óleo, separando bancos acolchoados e mesinhas baixas, só é possível pressentir. Kringelein percebe que está bebendo champanha. Tem a visão de inúmeros corpos, que o penetram de um sentimento estranho, inquietante e doce. Canta com sua voz elevada de tenor a melodia invisível de dois violinos. Balança para lá e para cá, sua cabeça repousa na curva fresca do braço de uma moça.

— Mais uma garrafa? — pergunta um garçom severo.

Kringelein pede mais uma garrafa. Tem piedade do garçom, que parece tuberculoso, quando seu rosto ressalta no meio da escuridão e se inclina sobre o balcão, aos reflexos da lanterna. Kringelein se torna sentimental, tem uma piedade maluca do garçom, das moças tão alegres, que só têm pernas e precisam dançar a horas tão tardias da noite, tem uma piedade maluca de si mesmo. Repousa em seu regaço a carne flácida, morna, completamente desconhecida, de uma moça, e, com os joelhos trêmulos, ele procura o rosto dela. Uma melancolia bêbada e entusiástica se apossa dele, ao cheiro de pó de arroz dessa pele desconhecida. Pode-se ouvir sua voz, cantando. Gaigern, mergulhado em especulações, sentado muito ereto numa cadeira de vime, como a montar guarda, ouve-o cantar com voz aguda e tremulante:

— "Alegrai-vos com a vida, enquanto a lâmpada ainda está acesa."

"Que caipirão!", pensa Gaigern, zangado. "Quando nos retirarmos eu lhe tiro a carteira, e depois vou direto a Viena", pensa ele, unindo as sobrancelhas, a oscilar à beira da sua existência arriscada.

Kringelein encontra-se num pequeno e abafado toalete, e lava o rosto, que está sempre de novo se cobrindo de um suor frio. Tira do bolso o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, e toma três goles, cheio de esperanças. "Não estou cansado", diz a si mesmo, "em absoluto, não sinto o mínimo cansaço." Tem ainda grandes planos para essa noite. Esmaga na língua o gosto de canela do bálsamo, e volta de novo à moça, à meia-luz acolchoada. Avante! Avante! Avante!

Kringelein atinge uma boca, como se chegasse a uma ilha incompreensível e esquisita. E ali fica encalhado com os lábios. Pequeninas e bêbadas vagas o vão transportando.

— Seja bonzinho, menino — diz-lhe alguém. Ele fica imóvel, ouvindo no seu íntimo, ouvindo. Durante um momento de sonho, sentiu as mãos cheias de amoras maduras, vermelhas e sumarentas, as amoras da mata de Mickenau, e em seguida sente uma coisa aproximar-se, apavorante, como uma espada, um relâmpago, asas ardentes.

De repente Gaigern ouve-o gemer. Um som claro e irreal, de medo e de angústia.

— Que é isso? — perguntou, assustado.

— Oh, estou sentindo uma dor — vem uma voz surda da escuridão que cerca o rosto de Kringelein. Gaigern suspendeu uma das lanternas e colocou-a na mesa. Viu então Kringelein sentado, muito teso no banco acolchoado, com as mãos contorcidas como cadeias. Como a lâmpada era azul, seu rosto parecia também azul, com uma boca redonda, grande e escura, que gemia. Gaigern conhecia essa máscara, do tempo da guerra, dos feridos graves. Colocou depressa o braço debaixo da cabeça de Kringelein, e apertou fraternalmente seus ombros trêmulos.

— Está bêbado? — perguntou a moça, que era quase uma criança, e tinha um aspecto vulgar no seu vestido de lantejoulas pretas.

— Deite-se, já! — respondeu Gaigern. Kringelein levantou os olhos para ele, atormentado, desesperado de dor, e com um esforço penoso e heroico tentou manter uma atitude elegante.

— Agora estou grogue — foi o que disse com seus lábios azulados, querendo exprimir assim a embriaguez, a quase inconsciência em que se encontrava, o seu estado aflitivo e desesperador. Era uma dor penosa, bastante valente, que o atingia de chofre e terminava em gemidos.

— Mas o que é que está sentindo? — perguntou Gaigern, assustado.

E Kringelein respondeu com uma voz quase inaudível:

— Eu acho que... acho que estou... morrendo...

É uma invenção idiota dizer que as camareiras de hotel espiam pelos buracos das fechaduras. As camareiras de hotel não se interessam em absoluto pelas pessoas que estão por trás dos buracos das fechaduras. Têm muito que fazer, estão cansadas de tanto trabalhar, todas elas são um tanto resignadas, e estão ocupadíssimas com a sua própria vida. Ninguém se importa com os outros naquele enorme hotel, cada um está sozinho consigo mesmo nessa enorme gaiola que o Dr. Otternschlag comparava, com uma certa razão, à vida em geral. Cada um habita por trás de portas duplas, tendo por único companheiro sua própria imagem no espelho, ou sua sombra na parede. Nos corredores, um roça pelo outro, no hall as pessoas se cumprimentam, por vezes chega-se a conversar um pouco, uma conversa de parcas palavras vazias, usual nos nossos tempos. Lançam-se olhares que não chegam até os olhos, conservando-se presos apenas à roupa. Talvez aconteça que um corpo se aproxime de outro no pavilhão amarelo. Talvez alguém se esgueire à noite do seu quarto para entrar num quarto alheio. Isso é tudo. Por trás disso há uma solidão profunda. Em seu quarto cada um está só com seu próprio eu, e os tu são imperscrutáveis e incompreensíveis. No meio do casal em viagem de núpcias do 134, está deitado no leito o vazio vidrado das palavras que não foram ditas. Muitos pares de sapatos de casais, colocados à noite diante das portas, denunciam claramente o ódio mútuo em seus rostos de couro; muitos deles dão a impressão de despreocupação, apesar de terem perdido as esperanças e estarem de orelhas murchas. O criado que os vai buscar está metido em uma história feia de alimentos — a quem interessa isso? A camareira do segundo andar começou um namoro com o chofer do Barão von Gaigern, mas o chofer desapareceu por completo, o que muito a ofendeu — ninguém vai imaginar que ela vá olhar ainda pelos buracos das fechaduras; à noite ela tem vontade de refletir um pouco, mas tem sono demais; também não consegue dormir, porque a camareira que dorme na outra cama está com qualquer coisa no pulmão, senta-se na cama, acende a luz e tosse. Cada pessoa, entre as suas paredes, tem o seu segredo; também a senhora com um ar inexpressivo do 28, que está sempre a cantarolar, também o senhor do 154, que gargareja com tanto frenesi e é um simples caixeiro-viajante. Até o groom 18 tem um segredo atrás da sua testa, com os cabelos molhados e bem penteados, um segredo feio e penoso: ele encontrou uma tabaqueira de ouro, que o Barão von Gaigern esqueceu no jardim de inverno, e não a entregou; por enquanto, de medo do controle, deixou-a entre o encosto e o assento de uma cadeira maple, enterrada como um tesouro, e em sua alma de catorze anos há uma luta amarga entre a ética e o orgulho proletário. Herr Senf, o porteiro, não tira os olhos do rapaz — que se chama Karl Nispe, quando está sem número —, porque ele se deixa ficar muito moleirão ao lado da porta giratória, distraído e com olheiras. Mas Herr Senf também pensa em outras coisas. É que sua mulher já está há dias no hospital, não pode mais ser um parto normal, as dores pararam e ela tem cãibras esquisitas, mas ouvem-se ainda as batidas do coração da criança, e estão à espera de uma intervenção cirúrgica. Senf esteve ao meio-dia no hospital, mas não o deixaram entrar no quarto da mulher, porque ela se encontrava num estado quase inconsciente de fraqueza, que os médicos chamavam de sono. Isso se passa com o porteiro Senf, muito atarefado entre o quarto das chaves e o seu livro, dentro da sua gaiola de mogno. Rohna lhe deu licença, mas o porteiro não quer licença nenhuma, está contente de estar preso ali, e não precisar pensar. O que se passa com o próprio Rohna, esse esforçado Conde Rohna, que trabalha catorze horas por dia, como um sujeito corajoso, mas desclassificado para sempre, ninguém sabe. Talvez se orgulhe de estar ali, talvez se envergonhe cada vez que um indivíduo da sua esfera assina o livro de hóspedes — seu rosto inteligente e magro, com a pele avermelhada dos louros, nada deixa transparecer, tornou-se uma máscara.

Às duas horas da madrugada sete cavalheiros aparentando um abatimento pouco comum, exaustos e tristonhos, com estojos pretos nas mãos, saíram do Grande Hotel pela entrada 2. Eram os membros da Eastman Jazzband, que voltavam para seus lares com as camisas suarentas, descontentes com o seu ordenado, como todos os demais músicos do mundo. Diante do portão 5 os automóveis rodaram, um pouco mais tarde os refletores se apagaram. O hall esfriou, porque haviam diminuído um pouco o aquecimento central. O Dr. Otternschlag, que ainda estava lá sentado, quase sozinho, estremeceu e bocejou. Logo depois Rohna também bocejou no seu boxe, fechou algumas gavetas e retirou-se para o quinto andar, para dormir suas cinco horas de sono. O porteiro da noite pôs em ordem os jornais do dia seguinte, trazidos por um mensageiro ensopado pela chuva, o qual agora se retirava com botas fatigadas e enlameadas, pela porta giratória. Duas americanas falando em voz alta foram dormir, e depois tudo ficou em silêncio no hall. A metade das luzes foi apagada. O telefonista tomou café para se conservar acordado.

"Vamos agora para cima?", perguntou a si mesmo o Dr. Otternschlag, esvaziando seu copo de conhaque. "Sim, acho que agora podemos ir", respondeu a si mesmo. Precisou mais ou menos de dez minutos para se decidir. Depois que se pôs de pé sobre seus sapatos de verniz ficou um pouco mais animado, e empreendeu sua caminhada costumeira, ao longo das paredes do hall até o porteiro da noite.

— Não há nada para o senhor doutor — disse este sem o menor tato, sacudindo a mão, quando Otternschlag ainda se encontrava a três metros de distância dele.

— Se alguém perguntar por mim, diga que fui para o meu quarto — declarou Otternschlag; apanhou um jornal úmido e leu rapidamente os títulos.

— Foi para o quarto — repetiu o porteiro mecanicamente, fazendo uma marca de giz no quadro das chaves. Da porta giratória veio uma correnteza de ar frio, com cheiro de poeira úmida. Otternschlag virou-se para trás.

— Aaah! — disse apenas, depois que seu olho são avistou o que se passava. Chegou a abrir a boca, num sorriso torto. Avistou Gaigern, grande, forte e saudável, com um ar que procurava exprimir seriedade, empurrando o pequeno Kringelein, cambaleante, quase inconsciente de dor, gemendo e se lamentando baixinho. O Dr. Otternschlag sabia perfeitamente diferençar um bêbado de um doente grave, apesar de ambos apresentarem um aspecto igual de abatimento. O porteiro da noite, pouco experimentado, lançou um olhar severo e atento aos dois hóspedes que chegavam.

— Chaves 69 e 70 — disse Gaigern a meia voz; — este senhor está se sentindo mal. Chame um médico, se possível imediatamente!

Segurou Kringelein com uma das mãos e com a outra apanhou a chave; depois levou Kringelein até o elevador.

— Sou médico. Mande leite quente ao 70, imediatamente — disse num tom vivo o Dr. Otternschlag ao porteiro. E seguiu os dois homens. — Vou cuidar de Kringelein — disse a Gaigern, enquanto subiam. — Não gema, Herr Kringelein. Vai passar logo.

Kringelein, que mal compreendeu o que ele dizia, parou de gemer; sentado no banquinho do elevador com o tronco dobrado para a frente, dominou as dores violentas.

— Vai terminar? — murmurou respeitosamente. — Tão depressa? Mal começou...

— O senhor foi precipitado demais. Tudo de uma vez é demais — disse Otternschlag; estava muito sentido com Kringelein, mas pegou sua mão e controlou as batidas do seu coração.

— Que absurdo, Kringelein. Que terminar, que nada. O senhor tomou muito champanha gelado — declarou Gaigern, animado.

O solavanco que o elevador deu ao parar terminou essa conversa cheia de mal-entendidos. No corredor Kringelein caiu de joelhos no chão, e a camareira ficou a observá-lo, assustada. Gaigern levantou o leve corpo de Kringelein e o levou para a cama. Enquanto Gaigern lhe despia as peças de roupa cheirando a fumo, e lhe abotoava o pijama novo, o Dr. Otternschlag desapareceu com expressão preocupada.

— Um momento — disse ele retirando-se, com movimentos duros mas vivos.

Quando voltou, encontrou Kringelein imóvel na cama, com as mãos apertadas às coxas, como um soldado apresentando-se a um superior. Com um esforço extremo conseguira deixar de gemer. Quando Kringelein partira à procura da "vida", fizera tenção de morrer com coragem e sem se incomodar muito, ao chegar a hora. Era uma espécie de honorário que ele pensava dever a qualquer força desconhecida, pela leviandade dissoluta de seus últimos dias. Apegou-se a isso em sua cama de metal, enquanto as dores e o pavor da morte punham um suor frio em sua testa e faziam pressão sobre sua nuca. Gaigern tirou do bolso o lenço de seda perfumado com alfazema e enxugou o rosto pequeno e amarelo de Kringelein. Tirou-lhe também com cuidado o pince-nez do nariz fino, e Kringelein teve então, durante um segundo, a sensação de alívio de estar morto, de tudo ter acabado, e a impressão de que a manopla de Gaigern logo iria lhe fechar os olhos. Enquanto isso, Gaigern afastou-se de novo do leito, dando lugar a Otternschlag.

Otternschlag tirou de um pequeno estojo preto uma seringa de injeção, descobriu não se sabe onde uma ampola cintilante, cuja ponta quebrou como um prestidigitador, sem sequer olhar para ela, e a encheu com uma das mãos, com agilidade fora do comum, enquanto tirava com a outra o braço de Kringelein da manga do pijama e o esfregava com sublimado.

— O que é isso? — perguntou Kringelein, apesar de conhecer esse paliativo, do hospital.

— Uma coisa muito boa. Um bombom gostoso — respondeu Otternschlag, com a voz cantante de uma ótima ama-seca, enquanto pegava entre dois dedos a carne branda de Kringelein e enfiava a agulha sob a pele.

Gaigern olhou para ele.

— Que bom que o senhor já tenha isso assim à mão — disse ele.

Otternschlag ergueu a seringa de encontro à luz, bem perto do seu olho de vidro.

— É — replicou. — É a minha mala de viagem. Está sempre pronta, compreende? Estar preparado... é isso, naturalmente, como Shakespeare diz de modo tão belo. Pronto para viajar... a qualquer minuto, compreende? É este o grande segredo desta pequenina valise.

E foi enxugando a seringa, colocou-a no estojo e apertou o fecho, que deu um estalido. Gaigern tirou o pequeno objeto preto da mesa e sentiu seu peso na mão, com expressão de espanto e de incompreensão no rosto. "Como será isso?", pensou ele.

— Está se sentindo melhor? — perguntou o Dr. Otternschlag na direção da cama.

— Estou, sim — respondeu Kringelein, que fechara os olhos, e estava sentado em uma nuvem, com a qual se afastou em giros rápidos e leves, enquanto ele e a sua dor se dissolviam, transformando-se em algo nebuloso, a girar.

— Então, está vendo? — ouviu ainda o doutor dizer, enquanto tudo se lhe tornava indiferente, e o pavor da morte também se afastava dele como um animal negro. — Bem — disse Otternschlag, pondo após um momento a mão de Kringelein novamente sobre o cobertor. — Por enquanto está repousando.

Gaigern, que arrumara nesse meio tempo as roupas novas de Kringelein, aproximou-se da cama de metal e observou a respiração curta e fraca sob o pijama azul-claro.

— Por enquanto? — perguntou Gaigern num murmúrio. — Isso não é... não vai acontecer nada? Não é... não é perigoso?

— Não. O nosso amigo ainda vai se movimentar bastante. Ainda vai sofrer muitas danças como essa, antes de repousar em paz. O coração... veja o senhor... o coração ainda está vivo, ainda bate, ainda quer. É uma máquina com pouco uso, o coração de Herr Kringelein. Em torno dele está tudo estragado, mas o coração faz valer os seus direitos. A marionete ainda tem de saltar no seu último fio... um cigarro?

— Obrigado — disse Gaigern distraído, aceitando. Sentou-se sob a natureza morta com o faisão, levou alguns minutos pensando nas palavras de Otternschlag. — Então ele está muito mal? E apesar disso não morre? Isso é mesmo uma judiação! — disse em seguida.

Otternschlag, que concordou com a cabeça a cada frase, respondeu:

— É isso mesmo. Sim, senhor. É por isso que eu gosto do meu estojinho. É que nós só podemos suportar o que nos espera neste mundo quando sabemos que a qualquer momento podemos pôr fim a isso, entende? A vida é uma coisa miserável, pode me acreditar. Gaigern não pôde deixar de sorrir.

— Mas eu... eu gosto de viver — disse inocentemente.

Otternschlag virou rapidamente para ele a parte de seu rosto que enxergava.

— É, o senhor gosta de viver. Gente como o senhor gosta de viver. Conheço-o. Conheço-o muito bem.

— A mim?

— Sim, ao senhor especialmente, conheço-o pessoalmente. — Otternschlag estendeu a mão e apontou com o dedo pesado e amarelo de fumo para o rosto de Gaigern, que se afastou para trás. — Daqui eu tirei uma vez um lindo estilhaço de granada. Essa bonita cicatriz, que lhe fica tão bem, fui eu quem a costurou... o senhor não se lembra?... Em Fromelles? Gente como o senhor se esquece de tudo. Mas as pessoas como eu reparam em tudo, não podem libertar-se de nada, de nada.

— Ah! Em Fromelles? Naquele hospital de campanha medonho, não é verdade? Não, não me lembro disso, naquela época eu sabia muito pouco sobre minha própria pessoa. Eu afrouxei. Naquele tempo eu pensava que quando a gente é ferida deve perder os sentidos, e então desmaiei.

— Mas eu o observei bem, porque o senhor foi o soldadinho mais jovem que me caiu entre os dedos. Da espécie dos que "morrem cantando". É possível também que não fosse o senhor, mas gente da mesma espécie, sabe? E agora o senhor gosta de viver. Era de esperar. Alegra-me ouvi-lo dizer isso. Só que, o senhor há de concordar comigo, a porta giratória precisa ficar aberta.

— Como? — perguntou Gaigern, confuso.

— A porta giratória, foi o que eu disse. Sente-se no hall e observe a porta giratória durante o espaço de uma hora. Movimenta-se como louca. Para dentro, para fora, para dentro, para fora, para dentro, para fora. É uma coisa engraçada, uma porta giratória. Às vezes a gente fica com o estômago enjoado, quando olha muito para ela. Mas agora, preste atenção. O senhor entra por exemplo pela porta giratória, mas quer ter a certeza de que poderá sair novamente por essa porta. A certeza de que ela não será fechada diante do seu nariz, deixando-o preso no Grande Hotel.

Gaigern sentiu um friozinho subir-lhe à garganta, a palavra "preso" deu-lhe a impressão de uma ameaça oculta.

— Naturalmente — disse ele angustiado.

— Então nós estamos de acordo — explicou Otternschlag. Tinha tirado de novo a seringa do estojo, e brincava, encantado, com o vidro liso e o metal niquelado. — A porta giratória precisa ficar aberta. A saída tem que estar pronta a qualquer momento. Precisamos morrer quando melhor nos aprouver. Quando quisermos.

— E quem quer morrer? Ninguém — disse Gaigern depressa, com convicção.

— Bem... — disse Otternschlag engolindo em seco. Kringelein, em seu leito de hotel, murmurou umas

palavras incompreensíveis por sob o bigode murcho.

— Bem... por exemplo, olhe para mim — disse Otternschlag. — Observe-me com atenção. Sou um suicida, compreende? Em geral nós vemos os suicidas só depois que eles abriram o tubo de gás ou se mataram com um tiro. Pois eu, tal como estou aqui, sou um suicida antecipado. Em uma palavra: sou um suicida vivo, uma raridade, o senhor há de concordar. Um belo dia, tiro desta caixa dez ampolas, injeto-as nas veias, e então serei um suicida morto. Saio pela porta giratória para passear, e o senhor pode ficar sentado no hall, esperando.

Gaigern, admirado, sentiu que o Dr. Otternschlag, esse amalucado, parecia ter por ele uma espécie de ódio.

— Isso é uma questão de gosto — disse ele sem refletir. — Eu não tenho tanta pressa assim. É que eu gosto mesmo da vida. Acho a vida uma coisa magnífica.

— Ah! O senhor acha magnífica a vida? O senhor também esteve na guerra. Depois voltou para casa, e acha a vida magnífica? Homem de Deus, como é que vocês todos podem viver? Vocês se esqueceram de tudo? Está bem, está bem, não vamos falar do que se passou na guerra, todos nós estamos fartos de saber. Mas como é possível isso? Como é possível voltar da guerra e ainda dizer: "Eu gosto da vida!"? E onde está a vida de todos vocês? Eu já a procurei e não consegui encontrá-la. Às vezes penso: já estou morto, uma granada me arrancou a cabeça, e o meu cadáver está, durante todo o tempo que passou, abandonado no abrigo da Cruz Vermelha. Pois é esta a impressão que a vida me causa, desde que voltei da guerra.

— Ah! — disse Gaigern, comovido pelo tom apaixonado das palavras de Otternschlag. Tornou a repetir: — Ah! — Levantou-se e aproximou-se da cama. Kringelein estava dormindo, apesar de seus olhos não estarem bem fechados. Gaigern voltou nas pontas dos pés para perto de Otternschlag. — Sim, suas palavras contêm um pouco de verdade — disse ele em voz baixa. — Ao voltar, não foi fácil a vida. Quando falamos "na guerra", pensamos mais ou menos "na pátria"... é mais ou menos isso. Agora estamos na Alemanha como se estivéssemos dentro de calças que alargaram. Tornamo-nos indivíduos desenfreados, e não encontramos mais lugar para nós. Que podemos fazer da vida? Ir para o Exército? Disciplina? Ir apaziguar brigas? Obrigado, não. Aviador, piloto? Tentei isso. Duas vezes por dia voar de acordo com o horário de viagens: Berlim - Colônia - Berlim. Viagens de pesquisas, expedições, tudo isso já é coisa gasta e não apresenta perigo. Veja, é isso: a vida precisaria ser um pouco mais perigosa do que é, então seria bom viver. Mas a gente aceita as coisas como elas são.

— Qual nada. Não é isso o que eu penso — disse Otternschlag, aborrecido. — Mas talvez sejam apenas nuanças pessoais. Talvez eu visse as coisas tão simples quanto o senhor, se houvessem costurado o meu rosto como eu costurei o seu. Mas quando a gente olha o mundo através de um olho de vidro, ele apresenta um aspecto bem estranho, eu lhe garanto. Então, o que está acontecendo, Herr Kringelein?

De repente Kringelein sentou-se na cama. Tinha a muito custo arrancado os pesados olhos da morfina, e procurava qualquer coisa. Suas mãos tateavam o cobertor com as pontas dos dedos, que a morfina tornara insensíveis.

— Onde está o meu dinheiro? — sussurrou Kringelein. Ele acabava de chegar diretamente de Fredersdorf, onde havia brigado com Anna, e encontrara extrema dificuldade em voltar ao quarto de mogno do Grande Hotel. — Onde está o meu dinheiro? — perguntou de novo, com a boca seca. No primeiro instante só avistou os dois homens como enormes sombras movediças sentadas nos fauteuils de veludo.

— Ele está perguntando onde está o dinheiro dele

— participou Otternschlag ao barão, como se este último fosse surdo.

— Ele depositou o dinheiro no cofre do hotel — disse Gaigern.

— O senhor depositou o dinheiro no cofre do hotel

— repetiu Otternschlag como um intérprete. Kringelein custou a coordenar essa resposta em sua cabeça pesada. — O senhor ainda sente dores? — perguntou Otternschlag.

— Dores? Por quê? — perguntou Kringelein, pairando nas nuvens.

Otternschlag riu, entortando a boca.

— Já se esqueceu de tudo — disse. — Já se esqueceu das dores. O alívio que sentiu também já está esquecido. Amanhã pode continuar tudo... senhor artista da vida

— disse ele em tom francamente sarcástico.

Kringelein não compreendeu uma só sílaba.

— Onde está o meu dinheiro? — perguntou, teimoso.

— Aquele montão de dinheiro. O dinheiro que eu ganhei.

Gaigern acendeu um cigarro e sorveu a fumaça num trago que foi até os pulmões.

— Onde está o dinheiro dele? — perguntou Otternschlag.

— Na carteira — declarou Gaigern.

— Está na sua carteira — transmitiu Otternschlag.

— E agora trate de dormir de novo. Não se anime demais, porque pode doer.

— Quero a minha carteira — pediu Kringelein, estendendo os dedos abertos.

No estado obnubilado em que se encontrava, ele não podia se exprimir direito, e só sentia, em sua consciência meio adormecida, que tinha que pagar com dinheiro contado cada minuto da vida, com dinheiro contado e a um preço alto. Em sonhos ele vira ambos sumirem — o dinheiro e a vida — a toda velocidade e numa correnteza pedregosa, como o ribeirão de Fredersdorf, que seca no verão.

Otternschlag suspirou, enfiou os dedos nos bolsos do paletó de Kringelein, que Gaigern colocara no encosto de uma cadeira, e retirou as mãos vazias. Gaigern estava de pé ao lado da janela, fumando, de costas para o interior do aposento, com o rosto virado para a rua, que se estendia muito calma em meio à noite, ao reflexo da luz branca das lâmpadas elétricas.

— Nos bolsos não há nenhuma carteira — disse Otternschlag, deixando os braços penderem diante do corpo, como após um enorme esforço.

De repente Kringelein pulou da cama para o meio do quarto, metido nas calças de tecido fino e balouçante, com os músculos do rosto tensos, ofegante.

— Onde está a minha carteira? — gritou ele, num gemido. — Onde está ela? Onde está todo aquele dinheiro? Onde está aquele montão de dinheiro? Quero a minha carteira! Quero a minha carteira!

Gaigern, que há muito tempo tinha surrupiado a carteira, tentou fechar os ouvidos, ao ouvir esses lamentos agudos e rouquenhos de sono. Ouviu do lado de fora o elevador andando, escutou passos no corredor, que em seguida silenciaram por trás das portas. Ouviu — pareceu-lhe ouvir — alguém respirar no quarto ao lado, no 71. Ouviu seu relógio de pulso tiquetaquear, e seu coração bater calmamente. Mas ouviu também o medo de Kringelein; nesse momento odiou Kringelein, com um ódio selvagem, e gostaria de poder matá-lo. Voltou-se excitado para a porta do quarto, mas o aspecto lamentável de Kringelein lhe tirava as energias. Kringelein estava no meio do quarto e chorava. As lágrimas brotavam-lhe dos olhos por sob as pálpebras amortecidas pela morfina, escorrendo pelo pijama novo de seda azul-clara. Kringelein chorava como uma criança, por causa de sua carteira.

— Havia seis mil e duzentos marcos na carteira — soluçou ele. — Esse dinheiro dá para viver dois anos! — Sem sentir, Kringelein mergulhara de novo nos limites modestos de Fredersdorf.

Otternschlag fez um gesto de desalento em direção a Gaigern.

— Onde poderá estar essa carteira, já que Kringelein quer viver mais dois anos, de qualquer maneira? — perguntou ele, tentando gracejar.

Gaigern, com os punhos fechados nos bolsos, sorriu:

— Talvez as moças a tenham roubado no Alhambra — respondeu.

Era a resposta que ele preparara de antemão. Kringelein sentou-se à beira da cama e amoleceu o corpo, completamente abatido.

— Ai, que horror — disse ele desanimado. — Ai, que horror, que horror, que horror!

Otternschlag observou-o, observou Gaigern, tornou a observar Kringelein.

"Ah, é isso", disse a si mesmo. Apanhou o seu estojo preto e aproximou-se de Gaigern, que parará diante da parede, conforme seu velho costume, como se as paredes e os móveis lhe pudessem transmitir um pouco de energia, ou talvez porque ele ainda não tivesse aprendido a caminhar sem cobertura. Otternschlag parou diante de Gaigern, virando-se para ele com sua face desfigurada; com o olho de vidro olhou fixamente o seu pescoço.

— É preciso achar a carteira de Kringelein — disse ele em voz baixa, amavelmente.

Gaigern hesitou um segundo. Nesse segundo o seu destino se decidiu. Seu íntimo pareceu despedaçar-se, tirando-lhe a segurança.

Gaigern não era um homem honrado, já roubara e mentira. Mas não era um criminoso, porque os bons instintos de sua natureza e de seu sangue nobre o impediam muitas vezes de executar seus maus propósitos. Era um diletante da aventura. Tinha forças dentro de si, mas não tinha forças suficientes. Poderia suprimir esses dois homens doentes e fugir. Poderia empurrá-los e fugir pela fachada do hotel com o seu roubo. Poderia deixar o quarto com um gracejo, correr à estação e desaparecer. Refletiu sobre tudo isso e pensou na Grussinskaia, sentiu seu leve corpo em seus braços, carregando-a escada acima na casa de Tremezzo. Tinha que ir ao encontro dela, tinha que ir — mas de .repente sentiu uma compaixão louca e veemente por esse Kringelein, sentado atrás dele na beirada da cama, a mesma compaixão que sentira na véspera pela Grussinskaia. Compaixão por Otternschlag também, que o olhava fixamente, com seu rosto desfigurado pela guerra, e uma compaixão longínqua e inconsciente por si mesmo — e foi essa compaixão que o derrubou.

Deu dois passos para a frente e começou a rir.

— Eis aqui a carteira — disse ele. — Há instantes eu a guardei, para que Kringelein não fosse roubado na espelunca em que estivemos.

— Ora vejam — disse Otternschlag, aliviado, e tomando ao mesmo tempo a carteira gasta e repleta das mãos de Gaigern. Foi tomado de uma estranha sensação, um sentimento de abatimento e de carinho. Era tão raro ele ter a oportunidade de tocar as mãos de um outro homem... Virou a cabeça e dirigiu seu olho são a Gaigern, com uma expressão que tanto podia exprimir agradecimento como compreensão. Mas no mesmo instante levou um susto. O rosto de Gaigern, esse rosto de rara beleza e vivacidade, adquirira uma palidez de areia, seus traços se acentuaram, tomando uma expressão vazia e morta. Otternschlag teve medo. "Há fantasmas no mundo?", pensou ele, enquanto ia caminhando ao longo do sofá para chegar à cama, onde colocou a carteira de Kringelein.

Toda essa cena durou apenas alguns segundos, e Kringelein se conservara calado, parecendo refletir profundamente.

Agora que Otternschlag lhe estendia a carteira, pela qual ele fizera tamanha choradeira, nem tocou nela. Deixou-a cair sobre o cobertor, sem lhe dirigir o olhar, nem sequer contou o dinheiro, aquela quantidade enorme de dinheiro, o dinheiro que ele havia ganho.

— Por favor, fique comigo — disse ele; não o disse a Otternschlag, que o havia ajudado, mas a Gaigern, e estendeu o braço em direção deste último, que estava à janela, carrancudo, fumando novamente um cigarro.

— Não precisa ter medo, Kringelein — consolou-o Otternschlag.

— Eu não estou com medo — replicou Kringelein, teimoso e com espantosa vivacidade. — O senhor pensa que eu tenho medo de morrer? Não tenho o menor medo. Pelo contrário. Devo até agradecer a morte. Nunca encontraria coragem para viver, se não soubesse que tenho de morrer. Quando se sabe que se vai morrer é que se cria coragem. É preciso sempre nos lembrarmos de que vamos morrer, então somos capazes de tudo, isso não é mistério nenhum.

— Aaah! — disse Otternschlag. — A porta giratória. Kringelein está ficando filósofo. A doença traz a sabedoria, o senhor já reparou?

Gaigern não deu resposta. "De que estão vocês falando?", pensou ele. "A vida! A morte! Como é possível falar dessas coisas? Essas coisas não são palavras. Estou vivo, é sinal que estou vivendo. Morro, meu Deus do céu! Então morri. Pensar na morte? Não. Falar disso, que horror. Mas esticar as canelas decentemente, estou pronto. A qualquer momento, quando chegar a hora. Trepem primeiro na fachada de um hotel como um macaco, e em breve vocês haverão de calar o bico a respeito da vida e da morte", pensou ele com altivez. "Eu também estou preparado, e não preciso de nenhuma maleta cheia de morfina." Bocejou. Engoliu um trago de ar da madrugada, que penetrava pela janela aberta, e em seguida um friozinho fez tremer seus ombros de pugilista.

— Estou com sono — disse ele. De súbito começou a rir gostosamente. — Ontem à noite eu não me deitei na minha cama, é verdade. Hoje já são de novo quatro horas. Venha, senhor diretor, meta-se debaixo das cobertas.

Kringelein obedeceu incontinenti. Deitou-se com a cabeça pesada e com as dores amortecidas, mas que continuavam no seu corpo, e cruzou as mãos sobre a coberta.

— Fique comigo. Por favor, fique comigo — repetia ele, insistente.

Estava falando alto demais, porque seus ouvidos se enchiam de novo de uma sensação de amortecimento e de zumbido. Otternschlag ouvia o que eles diziam. Ninguém se incomodava com ele. Ninguém lhe pedia para ficar.

— O senhor já tomou a sua morfina, agora já não precisa mais de mim, não é? — perguntou ele, mas Kringelein não percebeu a ironia.

— Não, obrigado — disse ele inocentemente. Segurava a mão de Gaigern como um meninozinho. Agarrava-se a Gaigern, gostava de Gaigern. Talvez sua alma, cuja pele se tornara muito fina, adivinhasse que Gaigern tinha querido roubá-lo, e apesar disso agarrava-se a ele.

— Por favor, fique aqui comigo — implorou.

Então, Otternschlag começou a rir. Levantou seu rosto amarrotado até a luz fria da lâmpada, e começou a rir com a sua boca torta, de modo completamente diferente do de Gaigern, no princípio em silêncio, depois com um som profundo, e em seguida cada vez mais alto, com maior ironia, cada vez com mais ódio.

Ao lado, no 71, bateram três vezes na parede.

— Fiquem quietos, por favor. A noite foi feita para dormir, e não para se divertir! — disse a voz sofredora, rouca de sono e ofendida de um senhor completamente desconhecido, a voz do senhor Diretor-Geral Preysing, o qual não imaginava sequer que, no quarto ao lado, três círculos do destino se haviam entrelaçado por uma passageira e decisiva hora.

Os conceitos de moral, no Grande Hotel, eram elásticos. É certo que no Grande Hotel não era permitido ao senhor Diretor-Geral Preysing receber em seu apartamento a sua secretária. Mas não havia nada que impedisse esse senhor de alugar um quarto para essa jovem senhora. Ele o fez com a testa rubra, e declarações gaguejadas, após a conversa decisiva com a Flaemmchen. Rohna, grande conhecedor dos homens, desculpou-se por ter apenas um quarto com dois leitos livre, o 72, separado do 71, o apartamento de Preysing, pelo banheiro. Preysing murmurou qualquer coisa, querendo dar a impressão de estar meio aborrecido com isso, e lançou-se com entusiasmo em sua aventura.

Pela manhã chegou correspondência de Fredersdorf, muitas cartas de negócios, e uma carta de Mulle, onde Babe havia arranhado duas linhas. Mas Preysing, que já ia à deriva, longe de suas margens, no meio da correnteza violenta que às vezes apanha os homens da sua idade, esse Preysing transformado leu a carta com frieza e sem remorsos, durante o café, que tomou no quarto em companhia da Flaemmchen, apetitosa, animada e completamente despreocupada.

Kringelein também recebeu correspondência de Fredersdorf. Estava sentado em seu leito de metal, sem sentir dor alguma, fortificado pelo Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, e com a desesperadora intenção de conservar o sentimento penetrante e duro da vida, que sentira no dia anterior. Desde que vencera o pavor da morte da última noite, deixando-o para trás, desde que estava salvo, tinha a sensação de ser feito de um metal transparente como vidro, e muito duro. Com o pince-nez colocado no nariz, que se tornara mais afilado ainda, ele leu a carta que Frau Kringelein lhe escrevera, numa folha com pautas azuis, do seu livro de cozinha.

 

 

Querido Otto — escrevia essa Frau Kringelein, com quem nunca ele tivera intimidade, mas que agora sumira nas inacreditáveis distâncias das coisas estranhas. Querido Otto, recebi sua carta, e a sua doença é causada somente porque você não se cuida, o papai também acha. Ele fez uma petição à fábrica, sobre um auxílio para mim, mas eu ainda não recebi nenhum aviso a respeito. Eles só dizem para a gente esperar. Eu lhe escrevo principalmente por causa do fogão, porque não é possível continuar assim. Binder esteve aqui e verificou o que havia, o encanamento está estragado, disse ele, em todas as casas da vila operária há qualquer coisa desarranjada. Eles deviam nos dar o carvão de graça, com os fogões que fazem, porque uma conta tão grande de carvão ninguém pode pagar, os fogões gastam carvão demais. Então eu falei com Binder, e ele disse que não pode consertar o cano por menos de catorze ou quinze marcos, e isso se economizaria depois no gasto do carvão. Naturalmente esse gasto é excessivo, e eu queria saber o mais depressa possível a sua opinião, para saber o que fazer com o fogão. Assim não é possível continuar, mas catorze marcos não se podem atirar fora, por causa desse fogão horrível. Falei às escondidas com Kietzau, que também entende um pouco do negócio: ele acha que o serviço fica mais caro ainda, e não pode garantir se vamos gastar depois menos carvão, foi o que ele disse. Fiz um barulhão na fábrica por causa disso, porque, depois de conseguir a muito custo falar com Schriebes, disse-lhe que eles deviam mandar consertar o fogão, o que é muito justo, porque a vila operária é deles. Mas eles nem querem ouvir falar nisso. Schriebes foi malcriadíssimo, é um homem muito ordinário, e só pensa nos seus interesses. Se eu conseguir receber alguma coisa da Caixa dos Doentes, o papai acha que eles vão soltar uns trinta marcos, mas eu não acredito nisso, porque Preysing, aquele cão avarento, não solta um Pfennig, então mando ou não mando consertar o fogão? Você vai receber algum dinheiro extra, quando voltar da casa de saúde, ou está tudo incluído? Aqui andam torcendo o nariz, dizendo que você está fugindo do trabalho e guarda o ordenado, eu nem gosto de me encontrar com ninguém, eles não gostam de nós. Por favor, resolva logo a questão da Caixa dos Doentes. Frau Prahm disse que enquanto você estiver doente, eles não podem descontar dinheiro seu da caixa, tome cuidado, porque senão eles fazem você de bobo, disse ela. Aqui está fazendo mau tempo, e aí? Muitas lembranças de sua Anna.

Escreva-me imediatamente a respeito do fogão, ou se devo esperar até que você volte. Ele está soltando tanta fumaça que meus olhos estão doendo.

 

 

Com essa carta nas mãos tratadas pela manicura, Kringelein ficou sentado na beira da cama durante uns dez minutos, refletindo profundamente, mas não pensava nem em Fredersdorf nem no fogão, nem tampouco no acesso de dores e no pavor da morte que tivera à noite. Pensava no avião, e que ele tinha ficado um pouco enjoado na viagem, e no sentimento agudo e doce de orgulho e de coragem que o havia acometido quando, numa curva fechada, ele avistara o mundo inclinado sobre a sua cabeça, da janela do avião, sem se assustar.

"Vou me levantar para falar com Preysing", pensou Kringelein, erguendo-se decidido da cama. Precisava resolver essa questão do Preysing, senão tudo perderia o sentido e a finalidade. Kringelein tomou banho e vestiu o Kringelein novo, o de camisa de seda, de paletó justo e com sentimento de dignidade. Seu coração estava duro e cerrado como um punho, quando ele parou diante do 71, abriu a porta exterior e bateu na madeira envernizada de branco da porta interna.

— Entre! — exclamou Preysing. Essa palavra lhe saiu dos lábios apenas por costume e por tolice, porque ele não desejava em absoluto que viessem atrapalhar seu café com a animada Flaemmchen.

Mas como ele havia dito "entre", a porta se abriu e Kringelein surgiu no limiar.

Surgiu diante de Preysing como se tivesse havido uma explosão no Grande Hotel, no andar das pessoas distintas, e ele viesse se refugiar no 71. Pusera o bonito chapéu novo de feltro de Florença, decidido a conservá-lo na cabeça, e portanto não o tirou.

— Bom dia, Herr Preysing — disse ele, tocando negligentemente a aba do chapéu, com dois dedos. — Preciso falar com o senhor.

Preysing ficou estarrecido ao ouvir isso.

— Que deseja o senhor? Como é que entrou aqui? — perguntou, admirando-se desse Kringelein de chapéu na cabeça, do auxiliar de contador Kringelein, do bureau de pagamentos, com uma expressão decidida no rosto, como um enviado anunciando o fim do mundo.

— Eu bati e o senhor disse "entre" — respondeu Kringelein com espantosa lucidez. — Preciso falar com o senhor. Permita-me que me sente.

— Pois não... — disse Preysing, completamente indefeso, já que Kringelein se sentara.

— Esta senhora vai me desculpar, se estou atrapalhando — começou Kringelein, muito desembaraçado.

A Flaemmchen replicou, amável e animando-se:

— Nós já nos conhecemos, senhor diretor. Nós dançamos juntos um foxtrote.

— É mesmo. É verdade — disse Kringelein, e em seguida pigarreou. Sua garganta estava latejando.

Depois, fez-se silêncio.

— Então? De que se trata? Não tenho tempo. Tenho que ditar a Fräulein Flaemmchen algumas cartas, com urgência — disse afinal o diretor-geral, no tom de um diretor-geral.

Mas Kringelein não se encolheu de modo algum, apesar de não encontrar logo o começo do seu discurso.

— Minha mulher me escreveu que o fogão está estragado de novo, e a fábrica se nega a mandar consertá-lo. Isso não é possível. A vila operária pertence à fábrica, e nós pagamos o aluguel com pontualidade, esse pagamento é descontado do nosso ordenado, e portanto a fábrica precisa cuidar de que esteja tudo em ordem nas casas da vila, e não é possível, não é justo que nós morramos abafados pelo fumo porque os fogões são ruins — declarou ele.

Preysing, que ficara de uma cor rubro-escura entre as sobrancelhas, replicou, procurando conter-se.

— O senhor sabe que essas coisas não se tratam comigo. Se tem queixas a fazer, procure a seção de habitações. É incrível que venham me incomodar com uma coisa dessas.

Ponto final. Parecia que o assunto terminara. Mas acrescentou:

— Em vez de essa gente nos agradecer, quando construímos uma vila para eles, ficam atrevidos. É uma coisa incrível.

Apesar de Preysing ter se levantado, Kringelein continuou sentado.

— Está bem. Deixemos isso de lado — disse ele com negligência. — O senhor pensa que pode usar termos ofensivos. Mas eu não lhe permito que me trate assim. O senhor pensa que é melhor do que os outros, mas é um homem como qualquer um, Herr Preysing, apesar de ter feito um casamento rico e possuir um palacete. O senhor é um homem como qualquer um; e nunca uma pessoa foi tão criticada e xingada como o senhor, em Fredersdorf. Isso é para que o senhor saiba da verdade.

— Isso não me interessa. Não me interessa em absoluto. E agora, trate de retirar-se! — bradou Preysing.

Mas Kringelein encontrou um imprevisto capital de forças no seu íntimo. Tinha que desabafar vinte e sete anos de vida de empregado subalterno, e estava carregado como um dínamo.

— Isso lhe interessa, sim — disse ele —, essas coisas lhe interessam muito. Se não fosse assim, por que tem o senhor espiões e mexeriqueiros na fábrica, bajuladores como Herr Schriebes ou Herr Kuhlenkamp, essas criaturas, esses ciclistas que embaixo dobram as pernas, e em cima fazem uma corcova? Quando alguém chega três minutos atrasado, vão correndo contar. Andam até espiando o trabalho dos contínuos, a fábrica toda sabe disso. Mas quando a gente trabalha até se esfalfar, ninguém fala nisso, é para isso que somos pagos. Se nós podemos viver decentemente com o nosso ordenado, isso não o preocupa, Herr Preysing, o senhor anda de automóvel, e nós não podemos nem comprar saltos de sola. E quando a gente fica gasto e consumido, quando fica velho, então é posto de lado, e ninguém se interessa por nós. O velho Hahnemann trabalhou trinta e dois anos na fábrica, e agora está por aí com catarata, e sem um Pfennig de pensão.

Se Preysing fosse o tirano sinistro que a fantasia de empregado subalterno de Kringelein criara, teria simplesmente atirado Kringelein porta afora. Mas como era um homem correto, bem intencionado e indeciso, se pôs a discutir.

— Nós pagamos pela tarifa oficial. E temos o nosso Fundo de Auxílio dos empregados — declarou ele em tom azedo. — Sobre o Hahnemann não sei de nada. Quem é esse Hahnemann?

— Linda tarifa! Lindo fundo! — exclamou Kringelein. — No hospital eu estive na terceira classe, comendo queijo e salame quatro dias depois da operação, minha mulher fez petição atrás de petição, mas eu não recebi nenhum auxílio extra. A ambulância para Mickenau, tive que pagar com o meu dinheiro. Não tinha mais estômago, mas tive que comer queijo. Depois de quatro semanas de doença o senhor me escreveu uma carta dizendo que eu seria despedido se continuasse doente. O senhor escreveu isso, Herr Preysing, ou não escreveu?

— Não me posso lembrar de todas as cartas que mando escrever. Mas afinal uma fábrica não é um asilo, nem hospital ou seguro de vida. Agora o senhor está de férias por doença, de novo, e no entanto vive aqui como um conde, como um capitão de indústria.

— O senhor vai retirar o que disse, vai retirar imediatamente o que disse, aqui na presença desta senhora! — gritou Kringelein. — Quem é o senhor para julgar que pode ofender os outros? Com quem pensa que está falando? Pensa que eu sou um sujo? E mesmo que eu o fosse, o senhor é muito mais sujo do que eu, senhor diretor-geral, fique sabendo, o senhor é um sujo, senhor diretor-geral, fique sabendo, o senhor é um sujo!

Os dois homens estavam agora de pé, bem próximos um do outro, fitando-se fixamente, encolerizados e loucos de raiva, e se puseram a gritar, atirando-se ofensa atrás de ofensa, os rostos afogueados. Preysing estava rubro, quase roxo, e seu lábio superior coberto de grossas gotas de suor. Kringelein estava completamente amarelo, sua boca parecia ter perdido todo o sangue, e seus cotovelos, seus ombros, todas as suas articulações tremiam. A Flaemmchen olhava ora para um ora para outro. Virava o rosto de um lado para outro, como uma gatinha boba, diante da qual está pendurado um novelo de lã como brinquedo. Aliás, ela compreendia bem o que Kringelein estava dizendo, apesar da confusão em que estava, e concordava plenamente.

— O senhor já não sabe mais como é que nós vivemos? — exclamou ele com os lábios brancos sob o bigode claro e arrepiado. — É como se precisássemos trepar numa parede lisa, é como se estivéssemos presos na adega durante a vida toda. A gente espera de um ano para outro, primeiro ganhamos cento e oitenta marcos, esperamos depois cinco anos para ganhar duzentos marcos, e depois isso se vai arrastando, e fica-se esperando de novo. E depois a gente pensa: com o tempo as coisas vão melhorar, mais tarde você vai poder ter um filho, mas isso nunca chega, e depois até do cachorro precisamos nos desfazer, porque o dinheiro não dá, e depois a gente espera que vague um lugar melhor, e trabalha brutalmente, faz horas extras que não são pagas, e depois um outro é colocado no posto melhor, com trezentos e vinte marcos de ordenado e salário-família, e a gente fica esperando de cócoras. E tudo por quê? Porque o senhor diretor-geral não entende de nada. Porque o senhor diretor-geral promove sempre os empregados que não valem nada, até o Broesemann. Uma coisa tão triste como o meu jubileu de serviço nunca houve nem haverá no mundo. Vinte anos de serviço! Talvez o senhor tenha se congratulado comigo, não? Alguém se lembrou de me dar uma gratificação? A gente fica inclinada diante da escrivaninha esperando, mas nada muda. Então pensamos: isso não é possível, ainda virá uma grande surpresa, porque não é possível que eles tenham esquecido, quando estamos trabalhando na caixa há vinte anos. E chega o meio-dia, chegam as seis horas, e nós, com o terno dos domingos, ficamos esperando que aconteça alguma coisa, mas nada acontece. Então, a gente vai correndo para casa, e fica com vergonha da mulher, e fica com vergonha do Kampmann. "Então", pergunta o Kampmann, "como foi a sua festa?" "Ah, sim", digo eu, "a escrivaninha estava cheia de flores, eles me deram quinhentos marcos, e o próprio diretor-geral fez um discurso em minha honra, ele sabe perfeitamente que eu sou sempre o último a sair do escritório." Foi isso o que eu disse ao Kampmann, para a vergonha não ser tão grande. E sete semanas depois o Broesemann manda me chamar e diz: "Ouvi dizer que o senhor está aqui conosco há vinte anos, e isso passou despercebido. Como é, o senhor tem algum desejo especial?" E eu digo: "Esticar as canelas o mais depressa possível, é esse o meu desejo; esta vida de cão não me dá mais alegria alguma". Então Broesemann foi falar com o velho, e ele subiu o meu ordenado para quatrocentos e vinte marcos, desde maio, mas a vida de cão continuou. E então jurei a mim mesmo: "Preysing um dia há de ouvir a verdade, eu ainda hei de lhe dizer".

Kringelein começara a falar alto, mas sua voz, nas últimas palavras, tinha submergido dentro da garganta, foi ficando cada vez mais tristonha e abafada. Preysing, com as mãos nas costas, passeava no pequeno aposento de um lado para outro. Suas botinas rangiam sob o peso da sua pesada pessoa, e o fato de a Flaemmchen, durante todo o tempo, ter ficado sentada ouvindo, com os olhos atentos indo e vindo, o punha fora de si de raiva. De repente, parou diante de Kringelein e avançou sua protuberante parte dianteira, ameaçadoramente, para o jaquetão novo de Kringelein.

— Mas o que quer o senhor de mim? Eu não o conheço, e o senhor foi entrando pelo quarto — disse ele em tom frio e anasalado. — O senhor teve a ousadia de entrar aqui e vir com insinuações comunistas. Que tenho eu que ver com o seu jubileu? Que tenho a ver com o senhor? Não posso me interessar por todos os empregados da nossa fábrica, de um em um. Tenho outras preocupações. Minha vida também não é um mar de rosas, em absoluto. E quem demonstra ter aptidões para o seu posto é bem pago e faz carreira. Os outros não me interessam. Não tenho nada que ver com o senhor, não o conheço. E agora, basta!

— O senhor não me conhece, não é? Mas eu o conheço perfeitamente. Já o conhecia desde o tempo em que o senhor chegou como praticante em Fredersdorf, e morava na casa do alfaiate, no quarto dos fundos, e ficou devendo ao meu sogro o dinheiro da manteiga e da salsicha. Notei com atenção o dia em que o senhor deixou de me cumprimentar, Herr Preysing; primeiro parou de cumprimentar, e depois pôs-se a bancar o moço bonito com a filha do velho. Tomei nota da sua vida, Herr Preysing, não pense que deixei passar coisa alguma. E se algum de nós fizesse tantas tolices, em ponto pequeno, como o senhor faz em ponto grande, já teria sido despachado há muito tempo. É que expressão arrogante tem o senhor quando passa no corredor, e quando olha para nós como se não fôssemos seres humanos! E uma vez, a única vez que se achou um erro nos meus livros, e houve um prejuízo de trezentos marcos, nunca me esquecerei da maneira grosseira com que o senhor se dirigiu a mim. E os oitocentos operários que o senhor despediu ainda estão até hoje cuspindo por trás do senhor, pode ficar certo. E quando o senhor chega no seu automóvel, com o escapamento aberto, para nós respirarmos um ar bem viciado, o senhor fica pensando que é alguma coisa. Mas para mim o senhor é...

Kringelein desviou-se do assunto. Embaralhou os fatos e o ódio de vinte e sete anos, coisas importantes e insignificantes, verdade e fantasia, coisas reais e boatos do escritório. O que ele desenrolou nesse quarto de hotel era, em resumo, a queixa de um homem delicado e malsucedido na vida, contra um outro, que fizera o seu caminho de modo simples e com certa brutalidade, uma queixa com base, mas injusta e de um enorme ridículo. Preysing, por seu lado, incapaz de qualquer compreensão humana, foi ficando cada vez mais encolerizado; quando Kringelein tocou nas dívidas do seu tempo de aprendiz, na pequena e escura mercearia de Herr Sauerkatz, chegou a sentir tonturas, e teve medo de uma congestão. Ouvia o forte latejar da própria respiração, passando pela garganta. Via tudo vermelho e confuso, de tal modo as veiazinhas de seus olhos se encheram de sangue. Deu dois passos em direção a Kringelein, agarrou-o pelo colete e sacudiu-o de um lado para outro como uma trouxa de roupa. O chapéu novo de Kringelein caiu ao chão, e Preysing o pisou como se pisasse um animal. É estranho, mas Kringelein sentiu um prazer esquisito com essa grosseria. "Bata em um homem sem defesa e às portas da morte, isso está de acordo com a sua pessoa", pensou ele, quase satisfeito. A Flaemmchen, por trás da bandeja de chá do hotel, murmurava de si para si: — Não... não façam isso.

Preysing empurrou Kringelein de encontro à parede e escancarou a porta:

— Basta! — gritou. — Cale a boca. Saia. Imediatamente. O senhor vai ser despedido. Eu o despeço. Está despedido. O senhor está despedido.

Kringelein, que apanhara o chapéu no chão, ao ouvir essas palavras parou entre as duas portas, o rosto branco como papel; a porta interna estava aberta e a externa ainda fechada, e ele, com as costas trêmulas e cobertas de suor apoiadas de encontro à madeira envernizada de branco, começou a rir, escancarando a boca diante do rosto desfigurado de cólera de Preysing.

— O senhor me despede? Está me ameaçando? O senhor não pode me despedir, não me pode fazer nenhum mal, Herr Preysing, nada, absolutamente nada. Estou doente. Estou gravemente doente, está ouvindo? Vou morrer, só tenho algumas semanas de vida, ninguém pode me causar mal nenhum! Até o senhor me despedir, já estarei morto! — exclamou ele às gargalhadas, sacudindo-se todo, e com os olhos rasos de lágrimas. A Flaemmchen levantou-se do sofá e inclinou o corpo para a frente. Preysing também inclinou o corpo, seus punhos cerrados caíram ao longo do corpo, e em seguida ele pôs as mãos nos bolsos das calças.

— Homem de Deus — disse ele em voz baixa —, o senhor está louco? E não é que o sujeito está rindo? Acho que esse sujeito fica alegre por estar gravemente doente. O senhor ficou maluco?

Kringelein, ao ouvir essas palavras, tornou-se incontinenti sério, pensativo, e levemente embaraçado. Conservou-se por um instante entre as duas portas, lançando um rápido olhar ao pequeno apartamento, ao vulto da Flaemmchen, que um raio de sol iluminava perto da janela, ao corpulento e já aplacado diretor-geral, que conservava as mãos nos bolsos das calças, entrevendo também o quarto de dormir aberto, com o banheiro ao lado. Tudo isso o desmoralizado Kringelein avistou confusamente, através do tremular das indesejáveis lágrimas, que o envergonhavam. Ele se inclinou.

— A senhora queira me desculpar, se a importunei — disse ainda, com sua voz aguda e agradável.

Preysing, com a consciência de homem correto a lhe pesar, considerou isso uma insinuação ordinária e baixa. Tirou os punhos dos bolsos.

— Saia — disse apenas.

Mas Kringelein já tinha desaparecido. Preysing deu alguns passos de um lado para outro, rangendo os sapatos. Suas fontes incharam, e sua testa ficou rubra.

— Então? — perguntou a Flaemmchen.

De súbito, o diretor-geral correu à porta, escancarou-a e, trombeteando como um elefante excitado, gritou em meio ao silencioso corredor:

— O senhor será encontrado! Vamos observá-lo! Vamos procurar onde foi que roubou o dinheiro para vir aqui vagabundear! Seu comunista! Malandro! Malcriado, sem-vergonha e ordinário! Vou mandar prendê-lo... é isso mesmo!

Mas Kringelein não estava mais ao alcance da vista ou do ouvido de ninguém.

A Flaemmchen, que durante todo o tempo não abrira a boca, disse, finalizando:

— Para dizer a verdade, era bem simpático esse homem. Acabou até chorando.

— Fique com as meias, está tão bonita, assim — disse Preysing, sentado na chaise-longue do quarto 72, ocupado pela Flaemmchen.

— Não — replicou ela. — Não gosto disso. Não posso ficar andando no quarto só de sapatos e meias.

O clarão do abajur iluminava seu corpo em flor, pondo sombras purpúreas em seu dourado fosco. Os joelhos e os ombros refletiam-se num suave sombreado, na carne macia e arredondada. Ela sentou-se à beira da cama, tirou primeiro os sapatos azuis, depois enrolou nas pernas, com a máxima seriedade e cuidado, as meias novas de seda, tirando-as dos pés. A luz escorreu na concavidade delicada de seus seios, quando ela se inclinou, e suas vértebras se movimentaram com agilidade. Preysing observou esses fenômenos, prendendo a respiração.

— Você é uma belezinha — disse ele, sem ousar levantar-se do seu incômodo assento.

A Flaemmchen fitou-o por sobre os ombros, inclinando a cabeça com complacência, e encorajando-o. Levou as meias a uma cadeira, onde já colocara o vestido e as poucas peças de lingerie de crêpe-de-Chine, muito bem dobradas, como uma colegial ajuizada. Preysing levantou-se, por fim, pondo-se de pé sobre seus sapatos rangedores, e aproximou-se dela. Estendeu cuidadosamente o dedo indicador, sobre o qual havia um montinho de pelos claros, e tocou com a maior precaução as costas da Flaemmchen, como se ela fosse um animal estranho, ainda não domado e de quem se desconfia. A Flaemmchen sorriu.

— Então? — disse amavelmente.

Estava um pouco nervosa e impaciente. Do seu lado, ela tinha a máxima boa vontade em cumprir o seu contrato oral, ponto por ponto. Afinal, uma pessoa correta não podia receber mil marcos, uma viagem à Inglaterra, um tailleur novo e várias outras coisas sem oferecer nada em troca. Mas esse diretor-geral era tão desajeitado, já estava a girar como um saca-rolhas há duas noites — era assim pelo menos que a Flaemmchen chamava a corte tímida e cerrada de Preysing — e isso era realmente desagradável. Ela tinha a sensação de que um dentista extremamente inábil ia lhe obturar um dente. Bem gostaria que o pior já tivesse passado, mas a coisa se arrastava, não saía do lugar, enervava-a. Fez pressão com as costas na mão de Preysing, mas o medroso indicador já havia voltado ao bolso do paletó, onde por enquanto estava descansando da sua ousada aventura, ao lado da caneta-tinteiro. A Flaemmchen suspirou, e virou-se de frente para o diretor-geral. A perfeição do seu corpo nu o intimidou ao mesmo tempo.

— Veja só, agora eu a estou vendo na realidade. Agora posso vê-la, realmente — disse ele, angustiado.

O corpo da moça respirava um frescor tão puro e um asseio que provocou no diretor-geral mais medo do que embriaguez.

— É engraçado, na fotografia da revista você parecia bem diferente do que é — disse ele, meio confuso.

— Diferente? Diferente em quê?

— Mais coquette. Tinha assim um sabor picante, você me entende?

A Flaemmchen entendeu-o. Percebeu a desilusão oculta causada pela sua sóbria inteireza física, e percebeu também as inibições do sangue burguês e pesado de Preysing, já desabituado dessas coisas, mas nada podia fazer. "Não posso deixar de ser eu mesma", pensou ela. E disse:

— Pois é, para nos fotografar, os fotógrafos nos põem em atitudes de macacos. E depois ainda retocam. O senhor gostou mais da fotografia do que de mim?

— Que ideia! Você é uma belezinha — repetiu Preysing, que possuía um reduzido vocabulário de termos carinhosos. — Mas por que é que você não me trata por "você"? Por favor!

A Flaemmchen sacudiu pensativamente a cabeça.

— Ah, isso não — disse ela.

— Não? E por que não?

— Porque... porque não. Isso eu não posso fazer. Isso eu não faço. O senhor é um estranho para mim, como é que eu vou tratá-lo por "você"? Em geral, eu sou muito... faço tudo o que o senhor quiser. Mas tratá-lo por "você" não é possível.

— Você é uma criaturinha engraçada, Flaemmchen

— disse Preysing, observando a pele nua da menina, em que a luz se refletia, e sua boca pintada. — É preciso conhecê-la a fundo!

— Engraçada, nada — disse a Flaemmchen amuando. Sua castidade era de uma espécie diferente, só dela.

— A gente precisa saber afastar-se com dignidade — procurou ela explicar. — Posso viajar com o senhor para a Inglaterra, e tudo o mais; mas nada disso deve transparecer. Tratar-se por "você" compromete. Se daqui a seis meses eu me encontrar com o senhor, direi: "Bom dia, senhor diretor-geral". E o senhor diz: "Essa moça é a secretária que trabalhou para mim em Manchester". Assim está tudo em ordem. Mas tratar-se por "você"... para o senhor também não seria agradável se eu o visse em companhia de sua senhora e dissesse: "Alô, benzinho", ou "alô, queridinho", ou, "menino, como vai você?"


14

 

Na verdade, o diretor-geral se encolheu todo ao ouvir essas palavras. Só faltava mesmo que lhe viessem agora recordar a sua Mulle. No entanto, a sensação da coisa proibida, do pecado, dos caminhos escusos e do vício fluiu como uma onda de calor em suas veias, já com a propensão à arteriosclerose das pessoas bem alimentadas. Preysing sentou-se na cadeira mais próxima e suspirou. A cadeira também gemeu. As tábuas do assoalho rangiam, os móveis e as portas estalavam, sob a pressão do corpo de Preysing. Ele estendeu as mãos e, num acesso de excitada coragem, pousou-as na delicada curva acima das coxas da Flaemmchen. As palmas de suas mãos, extasiadas e ansiosas de prazer, em vez do contato frouxo que esperavam, sentiram uma superfície firme, elástica, como elástico esticado. Puxou a Flaemmchen para as suas pernas abertas, que pareciam querer tremer, o que ele impediu, porém.

— Que músculos vocês todas têm! Como rapazes! — murmurou ele com voz pegajosa.

— Quem? Nós todas?

— Você... e as outras meninas que eu conheço — respondeu Preysing, pensando em suas filhas, Babe e Pepsin, vestidas de maios.

A Flaemmchen já estava sentindo frio, e sentia um certo conforto ao contato do corpo quente de Preysing; abandonou então o sóbrio "senhor", passando a empregar uma fórmula intermediária:

— Vejam só. Ele conhece outras meninas! — disse ela, brincando com os cabelos de Preysing, que na véspera o barbeiro tinha cortado com um corte moderno e citadino, pondo neles uma agradável loção. "Ora, a coisa já vai caminhando", pensou a Flaemmchen ao mesmo tempo.

— Naturalmente que eu conheço outras meninas. Que pensa você de mim? A gente não é de papelão. Vai-se buscá-las junto aos moços bonitos no chá das cinco. Veja como eu sou forte! — declarou Preysing exibindo o seu bíceps. Sentia-se de novo cheio de entusiasmo, como na véspera, ao sair da bem sucedida conferência, quando se atirara meio tonto a essa aventura incrível. — Veja como sou forte, veja só — repetiu ele, apontando a musculatura, diante da Flaemmchen.

Ela lhe fez a vontade, apalpando seu músculo. Realmente, observou por debaixo da manga de sarja um bíceps fortíssimo.

— Hum — disse a Flaemmchen com respeito —, é de ferro!

Levantou-se dos joelhos incômodos de Preysing, deu uns passos para trás, colocando as mãos cruzadas na nuca, e depois fitou o diretor-geral com as pálpebras semicerradas. Em suas axilas havia os mesmos caracoizinhos louros e leves, como na testa. Preysing sentiu de repente seu pescoço encolher-se.

— Você vai ser boazinha para mim? — disse, num abafado sussurro.

— Vou, sim, como não? — respondeu a Flaemmchen, muito gentil e convidativa.

Em um segundo, o diretor-geral atirou-se sobre ela, com a expressão de um homem que arrebentou as cordas que o prendiam, que derrubou muros, que fugiu da prisão. Fugia de si mesmo, esse homem correto, consciencioso e refletido. Subiu aos ares como um foguete, e foi parar nos braços da Flaemmchen. "Ora vejam", pensou a Flaemmchen, um tanto sensibilizada pela entrega total do transtornado Preysing, pelo medo e a paixão que ele demonstrava; a moça colocou os braços em volta da nuca do diretor, e ele a sentiu bater-se contra seu corpo, como vagas cálidas, em que ele se afogou deliciado, enquanto textos de telegramas, de uma infinidade de telegramas, giravam diante de seus olhos fechados, no princípio com uma cor grená, depois azul-escura, para desaparecerem por completo, quando os lábios pintados da Flaemmchen se apossaram com avidez da sua boca.

A noite já ia alta. Vagos sons da música de dança do pavilhão amarelo penetravam como uma vibração melódica nas paredes do Grande Hotel. Herr Senf já acabara o serviço, deixando a portaria entregue ao porteiro da noite. O Dr. Otternschlag tinha ido para o seu quarto, onde se deitara de olhos fechados e de boca aberta, como uma múmia embriagada. Sua maleta estava preparada para a viagem definitiva, mas nessa noite ele também não criara coragem para preencher a última e pequena formalidade. No 68 uma máquina de escrever pertinaz batia o seu tique-taque; o representante de uma companhia americana de cinema se instalara nesse quarto, e no leito de metal que acolhera a noite de amor da Grussinskaia havia pilhas de tiras de celuloide, que o americano examinava, enquanto ia terminando sua correspondência comercial. O tique-taque da máquina podia ser ouvido até no 70, onde Kringelein estava sentado na banheira, observando um tablete de sal de banho que se dissolvia borbulhando dentro da água, refletindo-se no esmalte branco. Kringelein estava triste, e por isso cantarolava em voz baixa, timidamente, para criar coragem. Como uma criança na floresta, Kringelein cantava na banheira. Esse dia tinha sido desagradável e decepcionante, a discussão com Preysing lhe custara muitas forças, deixando-o murcho e abatido. E o pior era que Gaigern, aquele dínamo, aquela fonte de energias, esse homem despreocupado e de sangue quente, que transmitia calor, com seu tempo de cento e vinte quilômetros, se tornara invisível. Kringelein, dentro da água quente, que aplacava as dores, tinha a impressão de já ter lido e virado a última página de sua vida, a impressão de que agora nada mais viria, absolutamente nada.

O groom 18, Karl Nispe, veio subindo de mansinho a escada, parava, subia de novo, parava, subia de novo. Suas olheiras estavam tão escuras que pareciam pintadas. Engolia a saliva, com a sensação nervosa de apetite que atormenta quase todos os empregados de hotéis. Chegava de um beco miserável, de um pobre aposento, para o seu serviço no hall do hotel, com as colunas, os tapetes, o repuxo veneziano, e depois desaparecia de novo na vida apagada de proletário, quando terminava o serviço. Apesar de ter apenas dezessete anos imaturos, ele tinha uma pequena, uma espécie de noiva, que exigia dele coisas que lhe era impossível satisfazer, com o pouco dinheiro que ganhava. Há pouco achara a cigarreira de ouro no jardim de inverno. Conservou-a guardada e escondida por quatro dias, o que era quase o mesmo que tê-la roubado. Ficou se remoendo de remorsos, e agora quer separar-se dela e entregá-la, como se a tivesse achado. Parou diante do quarto 69, com o coração batendo com violência. Tirou o quepe, o que fez seu rosto desuniformizar-se tomando incontinenti uma aparência humana; após ficar parado durante sete minutos, ouvindo as batidas do próprio coração, bateu à porta.

Apesar de o groom Karl Nispe ter visto o Barão Gaigern retirar a chave da portaria há um quarto de hora e dirigir-se em seguida ao seu aposento, não deram resposta à sua batida. O groom hesitou um momento, criou coragem, abriu a porta exterior e bateu na interior. Na cabina entre as duas portas estava pendurado o smoking do barão, para ser limpo. O groom bateu. Nada. Esperou, bateu. Nada. Puxou para baixo o trinco da porta interior, o quarto estava aberto e vazio. O groom Karl, que já conhecia um pouco a vida, deu um assobiozinho surdo, e colocou a cigarreira, que ficara quente na sua mão, no centro da mesa. O quarto estava muito bem arranjado, tendo a lâmpada acesa, e uma atmosfera especial, fresca, diferente da atmosfera dos hotéis, cheirando a mentol, alfazema, cigarros e lilases brancos de estufa. Na escrivaninha estava a fotografia de um cão pastor. No meio do quarto os sapatos de verniz dormiam, com uma expressão de lealdade e satisfação. O groom, arreganhando os dentes num sorriso, farejou impressionado essa elegante atmosfera de rapaz solteiro, aspirando-a com delícia, e depois ficou pensando. De repente, com o coração a bater com violência, ele pegou de novo a cigarreira, meteu-a entre o paletó e a camisa, e retirou-se sem fazer ruído.

No pequeno office, diante de cuja porta ele deslizou, a camareira estava escrevendo uma carta. O segundo andar estava em completo silêncio, e bem lá embaixo zunia o pequeno motor de um ventilador. No pavilhão amarelo chegara a vez de um tango.

No quarto 72, aquele quarto caro de duas camas, que o Diretor-Geral Preysing alugara para a sua secretária, ouviam-se também uns sons vagos da música. Preysing voltou a si, após seu mergulho no aroma de violetas da pintura, do primeiro beijo, e disse:

— Ouça!

— Estou ouvindo há bastante tempo. É a música — disse a Flaemmchen. — Eu gosto de ouvir música ao longe.

— Música? Não é, não. Você não ouviu outro ruído? — perguntou Preysing. Estava todo descomposto, sentado à beira da cama, aguçando o ouvido. Seus supercílios tinham se levantado com a excitação, e em sua testa surgiu um verdadeiro sistema de rugas, gravadas pelos inúmeros anos de negócios complicados. — Continuo a ouvir um ruído — disse ele, inquieto.

— Que ruído, onde? — murmurou a Flaemmchen, que já estava com sono; tentou puxar a cabeça de Preysing, com certa impaciência.

— Ouvi uma batida qualquer — insistiu Preysing, olhando fixamente na direção da porta do banheiro de seu quarto, que ele tinha deixado aberta.

— Também estou ouvindo um ruído — disse a Flaemmchen, pousando as mãos no colete de Preysing. — Estou ouvindo seu coração bater. Ouço-o com toda a clareza, taque, taque, taque.

Realmente, o coração de Preysing batia com um ruído impertinente, em seu peito largo. Eram pancadas surdas e violentas, por baixo da sarja cinzenta. Preysing continuava a olhar para a porta aberta, em cujo verniz se refletiam os reflexos rosados do abajur.

— Largue-me. Vou ver o que é — disse ele, afastando as mãos da Flaemmchen de suas costelas. Levantou-se, e a cama gemeu. A Flaemmchen levantou os ombros por trás dele. Preysing, com duas passadas rangedoras, desapareceu pela porta do banheiro.

Essa porta, essa portinha de madeira branca de uma folha só, devia se conservar fechada, de acordo com o regulamento. Ela separava o apartamento do diretor-geral do da sua secretária. A administração do hotel nada fizera para eliminar essa separação. Pelo contrário. A portinha não tinha trinco, e quando estava fechada não podia ser aberta. Mas Preysing havia usado uma gazua da fábrica, que ele sempre trazia no bolso; abrira a porta, abandonara essa noite o seu quarto sempre em ordem, com a sacola das botinas, as caixas das gravatas, o saquinho da esponja de banho e as incômodas preocupações de marido correto, e, atravessando a portinha, lançara-se a uma aventura inconveniente, de consequências imprevisíveis.

O banheiro, que ele atravessou rapidamente, estava escuro. A água pingava — pong, pong, pong — na banheira. Ao lado, ficava o pequeno dormitório, também escuro e sem nenhum ruído estranho. Preysing parou um instante e apalpou a parede, procurando o comutador. Não o encontrou. Foi tateando até à porta fechada do seu aposento, e de repente parou no meio do quarto, sem respirar. Ele tinha a certeza de ter apagado a luz do quarto — e agora ela estava acesa. Surgiu como um fiozinho por baixo da porta, tremeluziu um segundo diante dos pés de Preysing, na soleira, e desapareceu. Preysing continuou durante um segundo imóvel no meio do quarto, olhando para o lugar onde o risco de luz havia aparecido, agora novamente escuro — na semi-escuridão do hotel, cuja fachada era iluminada pelos refletores, globos de luz e anúncios.

Enquanto estava ali, teve a impressão de que alguma coisa desagradabilíssima, fora do comum, ia acontecer. Ignorava o que seria. Tinha uma vaga impressão de que, no quarto ao lado, aquele empregado meio maluco tinha entrado de novo, como de manhã; agora, ele estava lá, pilhando o diretor-geral numa aventura escusa. Imaginou que esse sujeito maluco, chamado Kruckelein ou Kringelein, ou outro nome qualquer — esse indivíduo suspeito ainda ia lhe causar enormes contrariedades. Denúncias, extorsão, porcarias inimagináveis.

Foi isso que zuniu vagamente pela cabeça atordoada de Preysing, quando, com um violento impulso, ele escancarou a porta de seu quarto.

Lá dentro estava escuro e silencioso. Não havia ninguém ali. Ninguém respirava. Preysing também não respirava.

Estendeu a mão para trás e girou o comutador. No mesmo instante o quarto escureceu, após o curto clarão que o iluminara, tão curto que Preysing nada pôde perceber. Seguiu-se um segundo de extrema tensão nervosa, de uma espera inquietante. O cérebro de Preysing trabalhava com clareza e desesperada velocidade. "Na porta do corredor tem outro comutador", pensou esse cérebro, sem a intervenção de seu dono. "É ali que está o sujeito, e vai apagar a luz se eu a acender."

— Tem alguém aí? — perguntou ele com voz elevada demais, e tão rouco que ele próprio se assustou. Não houve resposta. Preysing atirou-se para a frente, encontrou a escrivaninha, bateu com a canela na madeira, sentindo uma dor medonha, e acendeu a lâmpada da escrivaninha. Depois ficou imobilizado.

Ao lado do guarda-roupa, perto da porta do corredor, estava um homem, um cavalheiro de pijama de seda. Não era o empregado da fábrica, era... Preysing reconheceu o rosto ao clarão verde da lâmpada — era o outro sujeito, o sujeito elegante do hall, aquele do pavilhão amarelo, o sujeito que também dançara com a Flaemmchen. Estava ali ao pé da porta, e fez uma careta à guisa de sorriso, ao ser encontrado num quarto que não era o seu.

— Que quer o senhor aqui? — perguntou Preysing, angustiado. Sentia medo das batidas de seu próprio coração, e seus joelhos formigavam, assim como as pontas dos dedos.

— Desculpe-me — disse o Barão Gaigern. — Parece que errei de porta.

— Que aconteceu? Errou de porta? Veremos isso — disse Preysing com voz rouca. Foi rodeando a escrivaninha; esticara a cabeça ameaçadoramente, como uma fera, e apesar de ver tudo vermelho, percebeu perfeitamente, como por um milagre, que sua carteira não se encontrava mais sobre a escrivaninha, onde ele a depusera pedantemente, antes de ir abrir a porta do quarto da Flaemmchen. — Veremos se é verdade que o senhor errou de porta — ouviu sua própria voz pronunciar, e afastou-se de supetão da escrivaninha.

No mesmo instante o barão estendeu com violência a mão, horizontalmente, visando o rosto de Preysing.

— Se o senhor se mover, eu atiro — disse ele sem elevar muito a voz. Preysing, durante um segundo de loucura, avistou a ponta negra do revólver.

— Que quer você? Vai atirar? — berrou ele. Agarrou na primeira coisa que encontrou e fez um movimento. Sentiu seu braço vibrar no ar um objeto pesado, e atirou-se de corpo inteiro para o golpe. A pancada forte e ruidosa na cabeça do homem ricocheteou em seu próprio braço.

O barão ainda ficou um instante diante de Preysing, com leve expressão de espanto no rosto; depois, seus joelhos desmoronaram, seu corpo caiu ao chão, e finalmente, após o barulho da queda e tudo ficar novamente em silêncio, ficou de borco no assoalho.

— Você vai atirar? Viu agora? — disse Preysing, em seguida. O ar penetrava às golfadas em sua garganta, e ele voltou a si do acesso de cólera e medo, como se voltasse de águas profundas. — Viu agora? — repetiu ao homem estendido no chão, com um tom mais brando, como a se desculpar e a repreender.

O homem não respondeu. Preysing inclinou-se sobre seu corpo, mas não lhe tocou.

— Ei! Que aconteceu com o senhor? Ei! — disse ele a meia voz.

Ouvia agora a música do pavilhão amarelo. Ouvia novamente seu coração latejar, e seu próprio alento. Ouvia até o pong, pong da água, no quarto de banho. Mas o homem caído por terra não emitia nenhum som. Preysing olhou em volta. Em sua própria mão encontrou então o objeto com que tinha dado a pancada. Era o tinteiro de bronze com a águia de asas estendidas. Preysing descobriu manchas pretas nos dedos, e também na pala do paletó. Tirou o lenço do bolso e limpou-se bem, depois de colocar de leve o tinteiro na escrivaninha. Depois voltou para perto do homem estendido no chão.

— Desmaiou — disse em voz alta.

Apossou-se dele uma sensação confusa, de afogamento, um sentimento indefinível, ao ajoelhar-se ao lado do homem; ouviu as tábuas do assoalho rangerem com um som estranhamente vivido e penetrante. "Vou mandar prendê-lo", pensou ele, mas assim descomposto como estava não podia tocar a campainha. Teve um sentimento de desagrado, ao ver que o homem continuava estendido de borco no chão, com o pescoço aparentemente quebrado, e de braços abertos. Procurou o revólver no tapete, mas não o achou. Reinava um silêncio importuno no quarto, que há pouco estivera cheio do barulho da queda e do tombo. Preysing fez um gesto, um esforço sobre si mesmo, e pegou o homem pelos ombros, para deitá-lo melhor, para deitá-lo de costas.

Então viu os olhos abertos de Gaigern. Então viu que Gaigern não respirava mais.

— Mas o que foi que aconteceu? — sussurrou ele. — Mas o que foi que aconteceu? Mas o que foi que aconteceu?

Repetiu várias vezes essa frase, inconsciente e apalermado. Acocorado no tapete ao lado do morto, sussurrava:

— Mas o que foi que aconteceu? Mas o que foi que aconteceu?

Gaigern, com um sorriso no semblante amável, com seu semblante de morto, ouvia sorrindo. Já havia morrido, já havia deixado aquele enorme hotel, desaparecera de um modo total, era impossível ir buscá-lo — mas tinha ainda as mãos quentes, caído de olhos abertos no assoalho do quarto 71. A luz esverdeada da lâmpada da escrivaninha batia em seu rosto de traços belos e distintos, em que ficara gravado um grande espanto.

Foi assim que a Flaemmchen encontrou os dois, quando, após um quarto de hora, se esgueirou pela porta proibida para ver onde ficara Preysing. Aproximou-se descalça, parou na soleira e piscou.

— Que aconteceu? Com quem o senhor estava falando? Está se sentindo mal? — perguntou ela, procurando reconhecer as coisas na semi-escuridão. Preysing começou por três vezes a frase, antes de responder.

— Aconteceu alguma coisa — sussurrou finalmente, com uma voz que ninguém teria reconhecido em Fredersdorf.

— Que aconteceu? Meu Deus, o que foi? Aqui está tão escuro — disse a Flaemmchen, acendendo a luz do forro. O recinto se iluminou com uma luz crua e forte.

— Ah — disse a Flaemmchen, ao ver o rosto de Gaigern. Uma exclamação breve e dolorosa, muito curta. Preysing ergueu os olhos para ela.

— Ele quis atirar contra mim. Eu só dei uma pancada — sussurrou ele. — É preciso chamar a polícia.

A Flaemmchen inclinou-se sobre Gaigern.

— Ele ainda está olhando — disse ela baixinho, como a se consolar. "Ele está morto, mesmo? Era tão bonzinho", pensou ela com simplicidade, bem no íntimo. Estendeu a mão.

— Não se pode tocá-lo antes de vir a polícia — disse Preysing em voz mais alta do que desejava, e já desperto.

Só então a Flaemmchen compreendeu o que se passara.

— Ah — repetiu ela.

Afastou-se dali, sentindo tonturas, com a impressão de que as paredes se aproximavam dela.

Passou correndo através de portas, tropeçou, correu de novo, vendo portas, portas e mais portas.

— Socorro — disse baixinho —, socorro. Todas as portas oscilavam, todas estavam fechadas.

Só uma se abriu.

A Flaemmchen a viu abrir-se, e em seguida nada mais viu.

Às vezes há tanto barulho no corredor do Grande Hotel que os hóspedes se queixam. O elevador sobe e desce aos solavancos, as campainhas dos telefones tocam. Os passantes riem alto demais, um assobia, outro bate as portas com violência, no fim do corredor duas camareiras brigam a meia voz, e se alguém se dirige ao toalete, encontra, muito envergonhado, oito pessoas. Mas outras vezes esse corredor fica completamente mudo e vazio. Pode-se andar nu por sobre as passadeiras, pode-se chamar por socorro — socorro! socorro! socorro! — e ninguém ouve.

Kringelein, que não conseguiu pegar no sono, porque pressentia o despertar das dores de estômago; Kringelein, a quem o sofrimento e a proximidade da morte fizeram ficar com a carcaça fina e o ouvido aguçado; Kringelein ouviu o leve gemido da Flaemmchen, inconsciente, correndo pelo corredor. Não se fingiu de surdo como o cineasta americano do quarto pegado, o 68, mas pulou da cama e abriu a porta.

Nesse instante aconteceu um milagre em sua vida, que lhe iria dar conteúdo, e completá-la.

Nesse instante Kringelein avistou o corpo irreal e perfeito da Flaemmchen, completamente nu, que veio cambaleando em sua direção, caiu com todo o peso nos braços que ele lhe estendera, e ali ficou.

Kringelein, nesse instante, não perdeu a cabeça, nem suas forças o abandonaram sob o peso da mocinha desmaiada. A queda desse corpo quente, de um moreno dourado, entre seus braços, o encheu de um delicioso susto, de um sentimento de carinho sem igual, mas apesar disso ele fez uma porção de coisas acertadas. Pôs um braço sob a nuca frouxa da Flaemmchen, o outro sob os joelhos da menina, e suspendendo com um impulso o corpo, levou-o até sua cama. Depois, fechou as duas portas que davam para o corredor, e respirou profundamente, porque o sangue corria violentamente pelo seu coração. Da mão pendente da Flaemmchen caiu então um objeto, um sapato azul, já meio gasto, de salto alto, que ela apertara até agora ao peito nu. Ela o havia erguido do chão e o levara consigo como um salvado de incêndio ou de um desabamento, como se fosse essa a única peça do vestuário, que salvara de uma catástrofe. Kringelein pegou a mão pendente e colocou-a ao lado do corpo da Flaemmchen, deitada no leito. Lançou um olhar pelo quarto, encontrou o vidrinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt e verteu algumas gotas nos lábios da Flaemmchen. Um leve tremor perpassou pela testa da menina, mas seu desmaio era muito profundo, impedindo que ela tomasse o remédio. Mas ela respirava profundamente, e a cada respiro seu os fios encaracolados do cabelo claro erguiam-se delicadamente do travesseiro, para tombarem em seguida. Kringelein correu ao banheiro, mergulhou um lenço na água fria, despejou nele um pouco de água-de-colônia — porque desde a véspera o elegante Kringelein também possuía perfumes — e voltou para perto da Flaemmchen. Umedeceu cuidadosamente seu rosto, as fontes, e em seguida procurou sentir com a mão as batidas de seu coração por baixo da curva firme do seio esquerdo. Ali colocou o pano frio e úmido e depois ficou de pé ao lado da cama, esperando.

Ele ignorava que seu rosto exprimia uma admiração tímida, ilimitada e imensa, enquanto esteve ali a observar a menina. Ele ignorava que por baixo do bigode seus lábios se abriam no sorriso virgem de um meninote de dezessete anos. Talvez ele nem soubesse que nesse momento vivia realmente, vivia de fato. Mas uma coisa ele sabia. Aquele sentimento que o penetrava agora com um ardor e um ímpeto quase doloroso, essa leveza que o acometia, esse fundir-se, essa sensação de tornar-se transparente e de dissolver-se, tudo isso ele conhecia apenas dos sonhos, sem pressentir sequer que existia também na realidade. Na sua narcose se passara algo semelhante, pouco antes do zunido azul se tornar negro; e em segredo, bem no íntimo, Kringelein imaginara a morte assim: uma festividade sem igual, uma coisa perfeita, que não deixa o mínimo resíduo, onde tudo se dissolve. Agora, nesse momento, em presença da menina desmaiada que procurava sua proteção, Kringelein estava muito longe de pensar na morte.

"Isso existe", pensou ele, "isso existe. Uma beleza assim existe realmente. Não é uma pintura como um quadro, não é imaginária como um livro e nem uma ilusão como no teatro. É uma coisa real, um menina nua e maravilhosamente bela, de uma beleza perfeita, de uma perfeita...", ele procurou outra palavra, mas não encontrou nenhuma outra. "Beleza perfeita", foi só o que conseguiu pensar, "beleza perfeita."

A Flaemmchen cerrou as sobrancelhas, estendeu os lábios como uma criança que desperta e, finalmente, abriu os olhos. A lâmpada se refletia num brilho circular muito claro, em suas pupilas; ela piscou, sorriu gentilmente, respirou profundamente e murmurou:

— Obrigada.

Logo a seguir fechou de novo os olhos, que pareciam querer dormir. Kringelein pegou no cobertor que havia escorregado, e o estendeu com cuidado sobre a menina. Depois, trouxe uma cadeira para a beira da cama, sentou-se e ficou à espera.

— Obrigada — tornou a murmurar a Flaemmchen um pouco mais tarde.

Não estava mais inconsciente, mas fazia esforços para pôr ordem em sua cabeça e colocar as coisas em seus devidos lugares. O que a tornava um pouco confusa era o fato de ela confundir o minguado Kringelein à beira da cama com outro senhor, com um dos seus antigos amigos, de quem ela gostava muito, e do qual se separara com enorme tristeza. O pijama de listras azul-claras, e uma vaga e delicada atenção na atitude de Kringelein, foi o que a levou a essa confusão.

— Como foi que eu vim parar aqui? — perguntou a Flaemmchen. — O que você está fazendo perto de mim?

Kringelein levou um susto suave e penetrante ao ouvir o inesperado "você", mas como se encontrava em meio a um milagre, aceitou esse fato com toda a naturalidade.

— Você desmaiou e veio parar aqui — respondeu ele com simplicidade. Então a Flaemmchen percebeu o erro em que caíra, recordou-se de tudo subitamente e sentou-se na cama.

— Desculpe-me — murmurou ela. — Mas aconteceu uma coisa medonha! — Puxou a colcha para perto do rosto, amarrotou-a, levando-a aos olhos, e começou a chorar. Imediatamente os olhos de Kringelein também se encheram de lágrimas, e seus lábios, que estavam sorrindo, se puseram a tremer.

— Que coisa horrível — murmurou a Flaemmchen —, horrível, horrível.

Ela chorava com enorme facilidade, as lágrimas jorravam aos borbotões de seus' olhos, e nesse aluvião ela se desoprimia. Amarrotou a colcha, apertando-a de encontro ao rosto, e cobriu a beirada do pano branco com pequeninas manchas vermelhas em forma de coração, da sua boca pintada. Kringelein ficou a observá-la, e os cantos de seus olhos se apertaram, numa comoção dura e contida. Finalmente, ele levantou a mão e colocou-a na nuca da Flaemmchen.

— Então... então... então? — disse ele. — Não chore... não chore... não chore.

A Flaemmchen olhou para ele com os olhos rasos d'água.

— Ah, é o senhor — murmurou satisfeita.

Só agora reconhecia no vulto que se achava à beira da cama o senhor baixinho, que ontem se mostrara tão tímido ao dançar com ela, e na discussão com Preysing demonstrara tanta coragem. Um sentimento familiar e agradável de estar protegida, no leito de Kringelein, a acometeu, sob as brandas batidinhas da mão do homem em seu pescoço.

— Nós já nos conhecemos — disse ela, entregando-se com inconsciente gratidão de animal à carícia de seus dedos.

Kringelein parou com as palmadinhas e recolheu forças no seu íntimo, uma inesperada porção de forças e de agressividade.

— Que aconteceu com você? Herr Preysing lhe fez alguma coisa? — perguntou ele.

— Não me fez nada — disse a Flaemmchen baixinho —, não me fez nada.

— Quer que vá falar com ele? Não tenho medo de Herr Preysing.

A Flaemmchen olhou para Kringelein, muito rígido e aprumado, e caiu em profundas reflexões. Procurava recordar-se do quadro medonho do quarto 71, os dois homens no chão, sob a luz esverdeada, um morto, estendido, o outro aparvalhado, de cócoras. Mas esse quadro já se apagara em sua alma elástica. Só seus lábios se apertaram ao recordar-se, e a excitação contraiu-lhe os músculos dos braços.

— Ele o matou — murmurou ela.

— Matou? Quem matou? Quem é que foi morto?

— Preysing matou o barão.

Kringelein mergulhou numa profunda zoada, mas dominou-se e voltou de novo à consciência.

— Mas isso... isso não é... não é possível. Uma coisa dessas não pode acontecer — gaguejou ele.

Inconscientemente, colocou ambas as mãos em torno do pescoço da Flaemmchen e puxou seu rosto bem perto do dele. Fitou-a fixamente nos olhos, e ela também fitou fixamente os olhos dele. Finalmente, ela inclinou a cabeça por três vezes, expressiva e silenciosamente. É estranho, mas só depois disso Kringelein acreditou na coisa absurda que ela dissera. Suas mãos caíram.

— Está morto? — disse ele. — Mas ele era... ele era a própria vida, esse homem. Uma pessoa cheia de forças e energia. Como é possível que um sujeito como o Preysing...

Levantou-se e se pôs a caminhar pelo quarto, sem fazer ruído, com os pés magros metidos nos chinelos novos de viagem, os olhos vesgos de excitação. Via Preysing andando no corredor do edifício C em Fredersdorf, sem cumprimentar. Escutava sua voz fria e nasal nas conversas sobre salários, sentia as portas tremerem sob os acessos de cólera do diretor-geral, do qual toda a fábrica tinha medo. Ficou parado à janela diante das cortinas fechadas, mas vendo Fredersdorf através delas.

— Isso tinha de acontecer. Isso tinha de acontecer

— disse, afinal, e o sentimento da justiça cumprida se ergueu em seu corpo consumido de empregado subalterno.

— Agora é a vez dele — acrescentou. — Prenderam-no? Como é que a senhorita sabe de tudo isso? Como aconteceu isso?

— Preysing estava comigo no quarto, e a porta estava aberta; de repente ele se levantou e disse que estava ouvindo um ruído. Então, acho que dormi um pouquinho, porque já estava com muito sono. Depois vi que eles falavam, mas não em voz alta, e depois uma coisa caiu, e depois Preysing não voltou. Então fiquei com medo, e fui ver; a porta estava aberta... e ele estava estendido no chão... com os olhos abertos.

A Flaemmchen tomou de novo da colcha e a levou até seu rosto, que se tornara pálido. Derramou outra torrente de lágrimas pelo falecido Gaigern. Ela não o sabia exprimir, mas tinha a impressão de ter perdido uma coisa belíssima, maravilhosa, que nunca mais, nunca mais seria possível recuperar.

— Ainda ontem ele dançou comigo, e foi tão bonzinho, e agora ele se foi para nunca mais voltar — soluçou ela na escuridão do quente acolchoado de plumas.

Kringelein retirou-se da janela sinistra, com as desagradáveis recordações de Fredersdorf, e sentou-se na beira da cama; pôs mesmo o braço em torno dos ombros da Flaemmchen, e pareceu-lhe uma coisa natural consolar e proteger essa menina que chorava... Ele também estava triste com a morte de Gaigern, uma tristeza calada e dura de homem, apesar de não ter ainda compreendido bem que seu amigo de ontem estava morto, agora.

A Flaemmchen, quando se cansou de chorar, retornou à sensatez de que era feita a sua personalidade.

— Talvez ele fosse realmente um ladrão. Mas isso não era razão para matá-lo — disse em voz baixa.

Kringelein se lembrou do que tinha acontecido com a carteira na noite anterior. "Ele estava precisando de dinheiro", pensou Kringelein. "Talvez tenha passado o dia inteiro atrás de dinheiro. Ele ria e bancava o cavalheiro, mas é provável que não passasse de um pobre-diabo. Pode ter feito isso em desespero de causa. E um sujeito como o Preysing vai matá-lo..."

— Não — disse ele em voz alta.

— Você tinha razão no que disse a Herr Preysing hoje de manhã — começou a Flaemmchen, encostada no braço de Kringelein, sem notar que o tratava de novo por "você". Tinha a impressão de que ele era um velho conhecido, e a palavra lhe veio naturalmente aos lábios. — Assim que conheci Herr Preysing antipatizei com ele — acrescentou.

Kringelein pensou durante alguns minutos sobre a pergunta indelicada que lhe pesava no coração desde a véspera, depois que a Flaemmchen saíra da sala de dança para encontrar-se com Preysing.

— Por que razão você... por que é que você foi ter com ele? — perguntou, finalmente.

A Flaemmchen olhou-o com toda a confiança.

— Por dinheiro, naturalmente — replicou com simplicidade. Kringelein a compreendeu instantaneamente.

— Por dinheiro — repetiu ele, não como uma pergunta, mas como uma resposta.

Sua vida tinha sido uma luta constante pelo dinheiro; como não iria ele compreender a Flaemmchen? Então passou também o outro braço em torno do seu corpo, encerrando-a como num anel, e a Flaemmchen fez-se pequenina, reclinando a cabeça no peito de Kringelein — podia sentir suas costelas por baixo da seda fina do pijama.

— Lá em casa eles não entendem isso — disse a Flaemmchen. — Em minha casa a vida não é fácil, para mim. Há sempre brigas com mamãe e minha irmã. Já estou sem emprego há um ano, e é preciso fazer alguma coisa. Para trabalhar no escritório eu sou bonita demais, é o que dizem, sempre sai encrenca por causa disso, e as grandes firmas não gostam de aceitar moças bonitas, .. têm razão. Para manequim, sou alta demais... procuram tamanho quarenta e dois, no máximo quarenta e quatro. E para o cinema... não sei o que se passa. Talvez eu não seja suficientemente coquette. Mais tarde isso não tem importância, pelo contrário, é só no começo. Eu ainda vou conseguir, ainda hei de conseguir. Mas não posso envelhecer, já tenho dezenove anos, e é preciso fazer o possível para tentar uma carreira. Há muitas pessoas que dizem que não se deve ficar com um diretor-geral como esse por dinheiro. Pelo contrário... só mesmo por dinheiro! Não consigo achar isso errado. Continuo a ser a mesma, ninguém me tira pedaço, mesmo que eu faça pequenos favores e me mostre gentil. Quando a gente fica sem emprego um ano, correndo as agências de filmes, correndo atrás de anúncios, a roupa de baixo vai acabando, sem mais nada para vestir... e as despesas continuam... não tenho culpa: o meu ideal é andar bem vestida. Ninguém acredita o quanto me torna feliz um vestido novo. Muitas vezes fico a imaginar vestidos dias e dias, para usar mais tarde. E depois as viagens. Sou louca por viagens, adoro conhecer outras cidades... ah! Em casa tenho uma vida dura, pode acreditar. Não gosto de me queixar, tenho gênio bom e suporto muita coisa. Mas às vezes a gente tem vontade de fugir correndo, mesmo que seja com o sujeito mais cacete e porco deste mundo, só para ir embora, Por dinheiro... é claro, naturalmente que é por dinheiro. O dinheiro é uma coisa importantíssima, e quem disser o contrário está mentindo. Preysing queria me dar mil marcos. Isso é muito dinheiro. Com esse dinheiro eu poderia fazer qualquer coisa. Mas agora está tudo acabado. Agora está tudo como antes. E em casa é uma coisa pavorosa.

— Conheço tudo isso. Posso imaginar. Compreendo perfeitamente — disse Kringelein. — Em casa tudo é uma sujeira. Só com dinheiro a gente pode se tornar um homem limpo. Nem o ar é bom, quando a gente não tem dinheiro, porque não se pode arejar a casa, o aquecimento custa caro. Não se pode tomar banho, porque a água quente gasta muito carvão. As navalhas de barbear estão velhas e arranham a cara. É preciso fazer economia com a roupa, nada de toalha de mesa nem de guardanapos. Faz-se economia de sabão. A escova do cabelo já não tem mais pelos, a cafeteira está rachada e desbeiçada, as colheres já estão pretas. Nos travesseiros há pelotas de penas estragadas, de penas velhas. O que quebra fica quebrado. Não se manda consertar nada. É preciso pagar as apólices. E não sabemos que vivemos mal, pensamos que tem que ser necessariamente assim.

Deitara a cabeça sobre a cabeça da Flaemmchen, e rezaram assim a litania da pobreza, embalando-se ao som das palavras monótonas. Ambos estavam cansados e excitados, quase adormecidos.

— O espelhinho quebrou — continuou a Flaemmchen — e não podemos comprar um novo. Temos que dormir na chaise-longue por trás do biombo. A casa está sempre cheirando a gás. Todos os dias sai uma discussão com o dono da casa. Vivem a nos atirar na cara a comida que comemos e não podemos pagar, porque estamos sem emprego. Mas eles não vão acabar comigo! Eles não vão me vencer! — disse ela com energia. Esgueirou-se dos braços de Kringelein e sentou-se muito ereta na cama, fazendo a coberta cair sobre os joelhos de Kringelein, quente pelo contato da sua pele jovem. Kringelein recebeu esse calor como uma dádiva preciosa.

— Hei de vencer — disse a Flaemmchen, soprando novamente o caracol de cabelo para cima, sinal de que a leviandade e a força vital lhe retornavam. — Não preciso do diretor-geral, hei de vencer!

Kringelein estava às voltas com uma série de complexos pensamentos, e quando terminou de refletir tentou exprimi-los por palavras.

— Quanto à questão do dinheiro, nos últimos tempos é que reparei bem — explicou hesitante. — A gente se torna uma pessoa completamente diferente, quando tem dinheiro, quando pode comprar as coisas. Mas nunca imaginei que também se pudesse comprar isso...

— Isso o quê? — perguntou a Flaemmchen, sorrindo.

— Isso, ora. Uma coisa como você. Uma coisa belíssima. Uma coisa maravilhosa. Gente como eu nem sabe que existe uma coisa assim como você. Gente como eu não conhece nada, não vê nada, e pensa que o casamento, ou coisa semelhante, tem que ser essa coisa sórdida, esfarrapada, feia e sem alegrias, ou então uma coisa baixa, como nos prostíbulos que existem aqui. Mas quando vi você deitada sem sentidos... mal tive coragem de olhá-la. Deus do céu, que beleza! Deus do céu, que beleza! Existe realmente uma coisa dessas, pensamos, Deus do céu, existem milagres, verdadeiros milagres!

É isso que se passa com Kringelein. Sentado à beira da cama, ele não fala como um auxiliar de guarda-livros de quarenta e sete anos, mas como um homem apaixonado. Sua alma oculta, sua delicada e tímida alma esgueira-se do seu casulo e movimenta suas asinhas novas. A Flaemmchen rodeia com os braços os joelhos erguidos, e o ouve com um sorriso admirativo e incrédulo. A intervalos há ainda um soluço em sua garganta, como acontece com uma criança que chorou. Kringelein não é nem jovem, nem bonito, nem desembaraçado, nem sadio ou forte, não tem uma única qualidade para ser um amante. E se suas palavras gaguejadas e simples, seus olhos vesgos de febre, seus gestos tímidos de posse, que ficam a meio caminho, conseguem causar impressão sobre a Flaemmchen, a razão deve ser procurada nas camadas mais profundas do seu ser. Talvez fosse, somando tudo, o conhecimento do sofrimento, o contínuo desejo de sorver um trago de vida, e ao mesmo tempo a silenciosa disposição de aceitar a morte o que transformava essa pequena ruína humana de pijama listrado azul-claro em um homem com características másculas e digno de amor.

Isso não quer dizer que a Flaemmchen pudesse se apaixonar por Kringelein, não, a vida está muito longe de produzir doçuras assim. Mas nesse quarto de hotel ela sente uma espécie de proximidade e de proteção, alguma coisa que parece ter mais consistência do que as improvisações de sua movimentada existência de inseto. Kringelein fala como uma torrente, despeja do coração toda a sua vida, e nesse instante ele tem a impressão de que sua existência só teve uma finalidade e uma meta: o milagre que viera ao seu encontro, a beleza perfeita que repousa em seu leito, a mocinha que está ali, que passara dos braços de Preysing para os seus.

A Flaemmchen não tem uma opinião muito elevada de si mesma. Conhece o seu preço. Dez marcos para uma pose fotográfica. Cento e quarenta marcos por um mês de trabalho de escritório. Quinze Pfennige por uma página datilografada com cópia. Um casaquinho de pele de duzentos e quarenta marcos por uma semana de aventura amorosa. Deus do céu, onde podia ela ir buscar o respeito por sua própria pessoa? Mas nas palavras de Kringelein ela se descobria a si mesma pela primeira vez, enxergava-se como num espelho, via sua linda pele dourada, sua cabeleira de ouro claro, todos os membros de seu corpo, cada um uma beleza e uma bênção, sua frescura, sua existência despreocupada e ao léu — descobria-se a si mesma, como se descobrisse um tesouro enterrado.

— Mas eu não tenho nada de extraordinário — murmurou ela com modéstia, corando intensamente.

Em meio ao entusiasmo das palavras de Kringelein, ela levou um susto e se encolheu toda, quando ouviu-o pronunciar o nome de Preysing. Ambos tinham esquecido, nessa última meia hora, o que acontecera sob o clarão esverdeado da lâmpada, no quarto 71. Agora, subitamente, voltava a consciência de todo aquele horror.

— Não volto para lá — sussurrou a Flaemmchen.

— Já devem tê-lo prendido. Vão querer me prender também. Fico escondida aqui.

Kringelein deu uma risada nervosa.

— Por que haveriam de querer prender você? — perguntou, não sem receio. Agora ele via Gaigern com toda a clareza diante de si; Gaigern no carro, Gaigern no avião, na mesa de jogo, ao clarão da luz do ringue de boxe, Gaigern se inclinando sobre ele, Gaigern entregando-lhe de novo a carteira, Gaigern passando pela porta giratória.

— Por que razão eles iriam prender você? — perguntou ele de novo.

A Flaemmchen inclinou a cabeça, muito séria.

— Como testemunha — disse, sem consciência do que estava dizendo.

— Você acha...? — perguntou Kringelein só por perguntar, vendo Gaigern, só Gaigern, através da moça.

De repente, ele se viu de novo em meio à velocidade desabalada, ao tempo perigoso em que passara o dia anterior.

— Você não precisa ter medo. Vou arranjar as coisas para você — disse apressadamente. — Você vai... você vai ficar mesmo comigo? Você vai se sentir feliz? Não quero mais nada, só quero que você se sinta feliz. Você quer? Tenho dinheiro. Tenho bastante dinheiro. Dá para muito tempo. Posso ganhar mais ainda, se jogar. Vamos viajar. Vamos a Paris. Para onde você quer ir?

— Meu passaporte está visado para a Inglaterra.

— Está bem, está bem. Para onde você quiser. O que você quiser. Você vai ter muitos vestidos. A gente precisa ter vestidos e dinheiro. Vamos ser bem gastadores e levianos, você quer? Vou lhe dar o dinheiro que ganhei no jogo, três mil e quatrocentos marcos. Mais tarde você poderá ter mais ainda. Não diga nada, não diga nada, fique bem quietinha aí deitada. Agora eu vou para lá. Vou ver Preysing. Vou ver o que aconteceu com ele. Você acredita que vai passar melhor comigo do que com Preysing? Prefere ficar comigo a ficar com Preysing? Agora vou para lá, e trago as suas coisas. Pode confiar em mim. Não tenha medo.

Kringelein desapareceu no banheiro, suas mãos voaram enquanto ele se vestia, com o jaquetão preto e a gravata escura de seda pesada. Provocava um sentimento estranho, vestir-se assim a altas horas da noite, enquanto as ruas já iam silenciando, e os canos do aquecimento central esfriavam. A Flaemmchen, sentada no leito de Kringelein, colocou o rosto entre os joelhos e expeliu demoradamente o ar dos pulmões. Sua cabeça, após a vertigem que ela tivera, começava a doer, e sua garganta estava seca. Desejava comer uma maçã e fumar um cigarro. Apanhou o vidro de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, e aspirou, mas não gostou do cheiro de canela. Kringelein voltou do banheiro com o ar de um senhor distinto, esse Kringelein de Fredersdorf, que tinha picado lenha diariamente para a mulher, durante vinte anos.

— Já vou indo. Você fique aqui sossegada — disse ele, colocando o pince-nez diante dos olhos claros, brilhantes e vesgos, cujas pupilas tinham se tornado grandes e negras. Ao chegar à porta ele voltou ao leito, ao pé do qual se ajoelhou repentinamente. Com as mãos na testa, pôs-se a murmurar qualquer coisa que a Flaemmchen não entendeu.

— Sim. Como não? — respondeu ela. — Com muito gosto. Sim.

Kringelein levantou-se, limpou o pince-nez na beirada do lenço pendente do bolsinho do paletó, e saiu do quarto. A Flaemmchen ouviu-o fechar a porta externa, e depois o barulho de seus passos, afastando-se no corredor. E depois, bem ao longe, a música do pavilhão amarelo, onde ainda estavam as mesmas pessoas, dançando há três horas.


15

 

 

Gaigern está estendido no tapete do quarto 71, morto. Nada mais lhe pode acontecer. Ninguém mais no mundo pode atormentá-lo e persegui-lo, jamais esse Barão Gaigern irá parar na penitenciária, o que é ótimo. Nunca irá a Viena, onde a Grussinskaia espera por ele, o que é muito triste. Mas esse homem belo e forte, esse marginal, vivera o circuito de sua vida cheia de peripécias. Foi uma criança numa campina, um menino montando a cavalo, um soldado na guerra, um lutador, um caçador, um jogador, um homem que amou e foi amado. Agora está morto. Um pouco de umidade conservou-se em seus cabelos, há uma mancha de tinta em seu pijama de seda azul-escuro, e um sorriso de espanto em sua boca. Nos pés traz meias grossas de lã, meias de ladrão, e em sua mão direita, agora fria, o corte das últimas aventuras não poderá mais cicatrizar-se.

Preysing também ouviu a música lá de baixo, que o atormentava imensamente. Tudo o que ele pensava tomava o ritmo sincopado que a Eastman Jazzband tamborilava pelas paredes do hotel, lá no pavilhão amarelo. Nada poderia combinar menos do que aquilo que tocavam lá embaixo a noite toda e o que pensaram ali em cima a noite toda.

"Sou um homem arrasado", pensava Preysing. "Acabou-se. Está tudo acabado. Não posso ir para Manchester. O negócio com a Chemnitz vai por água abaixo. A polícia vai me prender. Vai haver interrogatório. Investigações. Foi em defesa própria, está bem, foi em defesa própria. Não vai me acontecer nada. Mas há o resto. Há aquela mulher. Vão interrogá-la. Estive com ela, a porta estava aberta, continua aberta."

Preysing estava sentado no ângulo extremo do quarto, numa peça esquisitíssima do mobiliário, uma cesta que deveria servir para a roupa suja, com um assento acolchoado em cima. Ele acendera todas as lâmpadas do lustre, mas não se atrevia a virar-se e olhar para trás. Era forçado, de modo inexplicável, a avistar incessantemente o cadáver de Gaigern; tinha a impressão de que aconteceriam coisas terríveis no momento em que ele virasse a cabeça para observar o que sucedera à porta aberta.

"A porta estava aberta. Não devo fechá-la. Tenho que deixar tudo como estava, até chegar a polícia. Amanhã vai sair nos jornais que eu tinha uma mulher em minha companhia aqui no hotel. Mulle vai ficar sabendo de tudo. As crianças também, é claro, as crianças também. — Meu Deus, ó meu Deus, que será de mim, qual será o meu fim? Mulle vai querer divorciar-se, ela não compreende essas coisas, não tem a mínima compreensão para essas coisas. Mas tem razão, tem toda a razão de querer se divorciar. Uma coisa dessas não pode acontecer, de modo algum — como poderei tocar em minhas filhas com estas mãos?"

Olhou as palmas contraídas de suas mãos, cheias de tinta. Sentia um desejo violento de ir ao banheiro e lavar as mãos, mas não tinha coragem de desviar os olhos do cadáver. — Hallo, my baby, tocaram ao longe, muito ao longe.

"Vou ficar sem as crianças, vou ficar sem minha mulher. O velho vai querer me expulsar da firma, é claro. A um homem comprometido como eu, ele não permite que fique na firma. E tudo por causa de uma mulher dessas, só por isso. Talvez ela estivesse de parceria com esse homem, e me tenha atraído ao quarto dela para que ele pudesse praticar o roubo aqui. É isso, vou dizer isso ao juiz. Foi em legítima defesa, ele queria atirar."

Preysing abaixou-se e olhou pela milésima vez as mãos do cadáver de Gaigern. Estavam vazias, a direita violentamente cerrada, a esquerda pendente do pulso: ambas completamente desarmadas. Preysing pôs-se de joelhos e procurou por todo o tapete iluminado. Nada. O revólver com que o homem o ameaçara tornara-se invisível — ou nem mesmo existira. Preysing foi se arrastando de novo ao seu banco, com a sensação de estar enlouquecendo. Seus pés tinham perdido o solo firme da existência burguesa, desde o instante em que ele atirara à mesa, diante dos homens da Chemnitz, aquele sinistro telegrama, e desde então ele cambaleava num despenhadeiro, de aventura em aventura. Sentia o abismo vertiginoso que o atirava de sua vida, que deslizava antes sobre carris, às trevas e ao vácuo. Conhecia homens iguais ao que ele era agora: existências marginais, com um passado de riquezas, e com ternos sórdidos, à procura de emprego, de escritório em escritório. Via-se a perambular, abandonado, mal vestido, sozinho e com má reputação. Sua pressão, que não era normal, provocava-lhe dores latejantes na nuca, e um zumbido nos ouvidos. Preysing, arrasado, durante alguns minutos dessa noite desejou ter um ataque de apoplexia, que viria conciliar tudo. Mas não aconteceu nada parecido. Gaigern continuou morto, e ele vivo.

— Meu Deus! — gemeu ele. — Meu Deus, Mulle, Babe, Peps, ó meu Deus!

Sentia vontade de esbofetear o próprio rosto, mas não teve coragem. Sentia medo das palmas enegrecidas de suas mãos.

Assim o veio encontrar Kringelein, quando, pouco depois de duas horas — a música acabara — entrou no quarto, após cautelosas batidas. Os lábios de Kringelein, essa noite, estavam completamente brancos, mas suas faces estavam rubras e luzidias, de um vermelho intenso. Encontrava-se em um estado de êxtase maravilhoso, um sentimento de solenidade e de reserva se apossara dele; tinha a sensação de estar corretíssimo e impecável no seu jaquetão preto, e com sua cortesia de cavalheiro distinto.

— Aquela senhora me mandou aqui — disse ele. — Contou-me que aconteceu alguma coisa aqui. Queria ser útil, de algum modo, ao senhor diretor-geral.

Só depois dessas palavras ele olhou para o cadáver de Gaigern. Não se assustou. Admirou-se apenas. Desde que saíra do quarto 70, viera-lhe ao pensamento a ideia de que tudo não fosse verdade; Gaigern estaria vivo ainda, Preysing não era um assassino, e a Flaemmchen, lá no quarto dele, tinha imaginado ou sonhado tudo aquilo. Mas lá estava realmente Gaigern, e era também real que a Flaemmchen estava à espera de Kringelein, lá no quarto. Inclinou-se sobre o morto, tomado de uma estranha e cálida comoção, de um calor fraternal. Quando se ajoelhou ao pé de Gaigern, teve forte emoção ao sentir o aroma perfumado de alfazema e de cigarro inglês, em meio ao qual ele vivera um dia importantíssimo, um dia inesquecível e luminoso. "Obrigado", pensou ele, com um soluço seco na garganta.

Preysing ergueu para ele uns olhos aparvalhados e erradios.

— Não se pode tocar no cadáver antes que venha a polícia — disse ele inesperadamente, quando Kringelein estendeu a mão para fechar os olhos do amigo. Kringelein, sem dar atenção a Preysing lá no seu canto, fez o gesto suave e solene. "A Flaemmchen também fará o mesmo comigo", foi o pensamento que o acometeu, um pensamento que ele não pôde evitar. "Você parece estar tão satisfeito", pensou ele. "Sente-se bem mesmo? Não é tão ruim assim, não é verdade? Não há de ser tão ruim assim. Em breve será a minha vez", pensou ainda. "Em breve."

— O senhor diretor-geral já avisou a polícia? — perguntou cerimoniosamente, quando se levantou de novo.

Preysing sacudiu a cabeça.

— O senhor diretor-geral deseja que eu me encarregue disso? Estou às suas ordens, senhor diretor-geral — disse ainda.

Era estranho. Preysing sentia enorme alívio desde que Kringelein entrara no aposento, oferecendo-se, em tom cortês de empregado, a executar os seus desejos.

— Sim. Imediatamente. Ainda não. Espere um pouco — sussurrou. Disse essas palavras com a expressão de uma ordem severa mas pouco clara, como costumava atormentar seus subordinados na fábrica.

— É preciso avisar o senhor seu sogro a respeito do acidente. O senhor diretor-geral deseja que eu envie um telegrama à sua distinta família? — perguntou Kringelein.

— Não. Não — respondeu Preysing num sussurro apressado e surdo, mais penetrante do que um grito.

— Nesse caso, seria conveniente o senhor diretor-geral arranjar um advogado. Já é tarde, mas, num caso excepcional como este, talvez se pudesse telefonar para um advogado. O senhor diretor-geral naturalmente vai ser logo levado para a prisão preventiva. Estou à sua disposição para dar todos os outros passos necessários, antes da minha partida — continuou Kringelein, oferecendo seus serviços.

Ele tinha a consciência clara de estar em meio a graves acontecimentos, e os termos escolhidos com que se exprimia enchiam-no de satisfação. Pareciam-lhe à altura da situação. Mas a acentuada cortesia com que se dirigia ao arrasado, ao aniquilado diretor-geral, vinha-lhe de fontes profundas e estranhas. Postado ali, pequenino mas com o porte ereto, ele era o vencedor de uma antiga luta, que Preysing ignorara até esse dia. Haviam desaparecido o ódio, o medo, a raiva e a impotência, todos os sentimentos de Fredersdorf. Talvez sobrasse ainda um sopro de respeito, daquele respeito estranho e inexplicável que se sente pelas pessoas que praticaram um ato reprovável; e além disso a compaixão e a superioridade, que forçam a cortesia.

— O senhor não pode viajar — sussurrou Preysing lá atrás, sentado em seu cesto de roupa suja. — O senhor vai ser necessário aqui. Preciso do senhor. Nem pense em viagens.

Disse isso no tom de uma grosseira negativa de férias. Kringelein teria dado risada, se não estivesse sofrendo com a visão de Gaigern, estendido imóvel no tapete, com a cabeça sem vida sobre as tábuas duras.

— Vamos precisar do senhor como testemunha. O senhor tem que estar aqui quando chegar a polícia — exigiu o diretor-geral.

— As minhas declarações vão ser feitas imediatamente. Aliás, estou doente e tenho que viajar amanhã para uma estação de repouso — replicou Kringelein, cerimonioso.

— Mas o senhor conhecia esse homem — disse Preysing depressa. — E essa mulher também o conhecia.

— O barão era meu amigo. Aquela senhora procurou-me, logo após o assassinato, colocando-se sob a minha proteção — disse Kringelein com linguajar jornalístico.

Sua caixa torácica estreita enfunou-se de orgulho. Ele se mostrava à altura da situação, pensava, satisfeito.

— Esse homem era um criminoso. Roubou minha carteira. Ainda deve estar com ele. Não toquei no cadáver.

Kringelein olhou Gaigern, e era esquisito vê-lo ali estendido, calado, enquanto eles falavam; então, Kringelein sorriu, com um sorriso vago e indefinido. Levantou os ombros por sob os enchimentos de crina de primeira qualidade do seu terno novo. "É possível", pensou ele. "É possível que fosse um criminoso. Mas isso tem tanta importância? Em um mundo onde se ganham milhões, onde se gastam milhões, onde se ganham milhões no jogo, uma carteira de notas não tem importância."

De repente, Preysing saiu da sua modorra e despertou.

— Como e que o senhor veio parar aqui? Quem o mandou aqui? Fräulein Flamm? — perguntou com severidade.

Assim Kringelein ficou sabendo o nome burguês da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Fräulein Flamm — replicou. — Essa senhora está no meu quarto. Não quer voltar para o seu. Me mandou aqui para buscar suas coisas, para estar vestida quando a polícia vier. Não tinha nenhuma peça de vestuário sobre o corpo, quando desmaiou.

Preysing, durante alguns minutos, refletiu sobre essa frase bem torneada.

— Fräulein Flamm vai ser interrogada — disse depois, num tom de medo desesperado.

— Sim, senhor — disse Kringelein bruscamente. — Esperamos que isso não dure muito. Essa senhora vai viajar comigo amanhã. Ofereci-lhe trabalho — acrescentou ainda. Suas faces empalideceram, com a comoção sufocante do sentimento de triunfo e de vitória.

Mas Preysing, nesse momento, não sentia sua masculinidade e nem pensava em lutar pela posse de uma mulher. Ele nem sequer suspeitava o significado que tinha para Kringelein o fato de a Flaemmchen ter trocado Preysing por ele: uma coisa fantástica, um milagre, uma vitória total e completa.

— As coisas de Fräulein Flamm estão no quarto dela, o 72. A primeira porta à esquerda — disse Preysing procurando levantar-se, ao que seus joelhos pesados se negaram.

Suas articulações estavam mortas, cheias de areia, sabotavam o serviço. E o morto continuava deitado no chão, continuava ali.

Mas quando Kringelein já estava perto da porta e Preysing viu que ia ficar sozinho, levantou-se de um salto.

— Espere. Espere um pouco — sussurrou com um grito surdo e angustiado. — Ouça, Herr Kringelein... preciso falar com o senhor... antes... antes de avisarmos a polícia. Trata-se da... é a respeito dessa senhora. O senhor disse que vai viajar com essa senhora, não é? Não seria possível... o senhor não disse que essa senhora está no seu quarto? Não seria possível que as coisas ficassem assim? Quero dizer... ouça, Herr Kringelein, nós somos homens. O que acabou de acontecer aqui fica sob a minha responsabilidade. Legítima defesa, não é verdade? Foi apenas em legítima defesa. É uma coisa desagradabilíssima, mas eu me responsabilizo pelo que fiz. Mas o resto me deixa desesperado. O resto me arrasa. Não é possível... a polícia precisa saber do negócio com Fräulein Flamm? Podia-se ... é só eu fechar de novo a porta do 72. Fräulein Flamm passou a noite com o senhor, e não sabe de nada. O senhor também não sabe de nada, Herr Kringelein. E está tudo em ordem, não há encrencas. O senhor vai viajar, não precisa servir de testemunha, e Fräulein Flamm não será interrogada. Diga, Herr Kringelein, o senhor me compreende... o senhor conhece minha mulher, conhece-a quase há tanto tempo quanto eu. E o velho... o senhor conhece o velho, também. O senhor trabalha na fábrica, Herr Kringelein... não preciso lhe explicar tudo isso. Minha vida está por um fio... digo-o com franqueza. E a gente pode ficar arrasado com uma tolice dessas, com essa história de mulheres, com uma coisa insignificante como essa, Herr Kringelein. Amo minha mulher, sou muito apegado a minha mulher e às meninas — disse ele como se estivesse dando sua palavra, como se falasse com a própria Mulle. — O senhor conhece as duas meninas, Herr Kringelein. Vou perder tudo, absolutamente tudo, se vier à luz essa história com Fräulein Flamm, no julgamento. Eu não ... eu não tive relações com Fräulein Flamm. Palavra de honra, não houve nada entre nós, nada — sussurrou ele. Só agora isso lhe vinha à consciência. — Ajude-me, Herr Kringelein, entre dois homens a gente se entende. Fique com a responsabilidade dessa história. Faça a sua mala, vá viajar com a pequena, cale-se, e deixe o resto por minha conta. A única coisa que lhe peço é que se cale. Só é preciso que o senhor convença Fräulein Flamm a calar a boca. Só isso. Vá viajar, vá para bem longe... eu lhe darei... ouça, Herr Kringelein: hoje pela manhã nós trocamos palavras muito desagradáveis. Isso não quer dizer nada. O senhor me julga mal, acredite-me, o senhor me julga muito mal. Por toda parte há desentendimentos entre o chefe e o pessoal, isso não é tão sério assim. No fim das contas a gente trabalha junto. Nós todos puxamos a mesma corda, meu caro Kringelein. Eu lhe... eu lhe darei... o senhor recebe de mim um cheque, e vai viajar. Vá agora ao 72 e feche a porta. Fräulein Flamm fica de bico calado, e tudo está arranjado. Se alguém lhe perguntar alguma coisa, ela passou a noite toda com o senhor, e não sabe de nada, não viu nem ouviu nada. Herr Kringelein, faça-me este favor, por favor...

Kringelein ouviu o sussurrar de Preysing, um murmúrio excitado, quase louco, e fitou-o. A luz clara das sete lâmpadas do lustre punha sombras escuras em seu rosto desfeito, coberto de um suor frio. Os olhos estavam pisados e as pálpebras inchadas, o lábio superior nu tremia, as pálpebras se confrangiam, os cabelos colavam-se à testa enrugada do homem de negócios. Suas mãos pareciam paralisadas e enfermas, quando ele se ergueu e repetiu:

— Por favor, por favor, por favor... "Pobre-diabo", pensou Kringelein de súbito. Era um pensamento completamente novo, esse, quebrava cadeias e derrubava muros.

— Meu destino depende do senhor — sussurrou Preysing.

Preysing se transformara num mendigo, não se envergonhava de usar essa expressão empolada: destino. "E o meu destino?", pensou Kringelein, "e o meu?" Mas isso durou só um momento, esse pensamento não chegou a adquirir forma.

— O senhor diretor-geral exagera a minha influência sobre essa senhora. Se o senhor diretor-geral quiser mentir, terá que assumir a responsabilidade, tem de fazê-lo sozinho — disse com frieza. — Mas eu o aconselharia a avisar agora a polícia; do contrário, poderia causar má impressão. Agora vou levar as coisas de Fräulein Flamm para o meu quarto. É o 70, caso o senhor diretor precise de mim. Por enquanto, peço permissão para me retirar.

Preysing levantou-se, vencendo a impotência de suas pernas, levantou-se e despencou de novo como um saco. Kringelein correu para segurá-lo. "Pobre-diabo", pensou ele de novo, "pobre-diabo." Preysing, com o braço apoiado pesadamente em Kringelein, continuou:

— Herr Kringelein, nada falarei a respeito da sua licença por motivo de doença. Não mandarei investigar onde foi que o senhor encontrou os meios para a sua escapada. Vou... quando o senhor voltar, procurarei melhorar a sua situação na fábrica. Farei pelo senhor o que for possível fazer...

Então Kringelein começou simplesmente a rir, sem malícia, sem ofender-se e sem gratidão, um riso brando e leviano.

— Obrigadíssimo — disse ele. — Obrigadíssimo pela boa intenção. Mas não será necessário.

Encostou Preysing à parede, e assim o deixou, com as costas largas e frouxas de encontro aos arabescos da tapeçaria da parede do 71, com a expressão de um alpinista que despencou no abismo. No corredor brilhavam agora as luzes alternadas, e ao canto havia uma mesa, com um letreiro luminoso avisando: Cuidado, degrau! O relógio de parede bateu três pancadas, com sua voz antiquada.

Às três e meia o porteiro da noite, que cabeceava sobre os jornais do dia seguinte, recebeu um chamado telefônico:

— Alô? — perguntou à concha negra. — Alô? Alô?

Nenhum ruído vinha ao telefone. Depois alguém pigarreou.

— Mande vir imediatamente ao meu quarto o diretor do hotel. Preysing. 71. E avise a polícia. Aconteceu uma coisa...

Os destinos vividos num grande hotel não são destinos completos, inteiros, totais. São apenas trechos, farrapos, partes de um destino. Por detrás das portas habitam indivíduos indiferentes ou esquisitos, homens em ascensão e homens decadentes; venturas e catástrofes moram parede contra parede. A porta giratória vai girando, e o que se passa entre a chegada e a saída não é um todo. Talvez não exista mesmo no mundo um destino completo, mas apenas partes dele, inícios sem sequência, pontos finais sem nada a precedê-los. Muita coisa que parece um acaso é uma lei. E o que acontece por trás das portas da vida não é qualquer coisa de fixo e imóvel como as colunas de uma construção, algo delineado como a partitura de uma sinfonia, calculado como o percurso de um astro — porém humano, mais fugidio e difícil de apreender do que as sombras das nuvens que deslizam na campina. E aquele que empreendesse a tarefa de narrar o que viu por trás das portas correria o perigo de ficar oscilando entre a mentira e a verdade, como sobre uma corda bamba.

Está nesse caso, por exemplo, o telefonema interurbano, o estranho telefonema de pouco depois da meia-noite, de Praga. Uma voz de mulher chamava o Barão von Gaigern ao telefone, no quarto 69, e o telefonista da noite fez a ligação.

— Alô — exclamou a Grussinskaia, que acabava de deitar-se em Praga no leito miserável de um velho hotel famoso, mas nada moderno —, alô, alô, chéri, é você?

E apesar de o quarto 69 já estar vazio a essas horas, apesar de estar acontecendo nesse instante exato, duas portas além, no 71, aquela desgraça que foi a causa de o Diretor-Geral Preysing ficar por três meses na prisão preventiva, perdendo a posição e a família — apesar de tudo isso, a Grussinskaia escutou uma voz querida, distante mas bem clara, dizer ao telefone:

— Neuwjada? É você, meu amor?

— Alô — exclamou a Grussinskaia —, boa noite, querido. Está contente porque lhe estou telefonando? Por favor, fale mais alto, o telefone está funcionando mal. Estou acabando de chegar do espetáculo, esteve ótimo, foi magnífico, um sucesso enorme, o público aplaudiu loucamente. Estou muito cansada, mas muito feliz, muito, mesmo. Há muito tempo eu não dançava tão bem como hoje. Oh, comme je suis heureuse! Você está com saudades de mim, está? Eu, .. eu vivo pensando em você, só em você, estou saudosíssima. Amanhã vou para Viena, amanhã cedo. Você já vai estar lá? Fale alguma coisa, responda! No Hotel Bristol, amanhã, em Viena, está ouvindo? Por que é que... senhorita, senhorita, a ligação foi interrompida, não estou ouvindo nada. Estou perguntando se você vai estar amanhã em Viena. Espero por você, já mandei preparar tudo para nós dois em Tremezzo. Você fica contente com isso? Mais catorze dias de trabalho, e depois estaremos em Tremezzo. Olhe! Fale alguma coisa, diga uma palavra só, não estou ouvindo a sua voz.. • Como? Que diz o senhor? O senhor barão não responde? Obrigada. Então faça o favor de lhe dar o recado de que esperam por ele amanhã em Viena. Amanhã. Obrigada.

Foi essa a conversação que a Grussinskaia teve com o 69, o quarto vazio. Ela estava deitada no leito do hotel, com o queixo seguro por uma atadura de borracha, os olhos ardendo por causa da pintura, e o coração ardente, repleto de carinho.

— Mas eu o amo, je t’aime — murmurou ela ao telefone calado, depois que o telefonista do Grande Hotel já tinha desligado.

E bem ao lado, no 70, entre quatro e cinco horas da manhã, hora em que as cortinas cerradas já começam a ficar cinzentas, chegou o momento em que a Flaemmchen abriu pela primeira vez os braços, para neles receber Kringelein. Aquele instante único e precioso, em que ela não se está vendendo, mas entregando-se. Ela está notando pela primeira vez que não se trata de um prazer insignificante, de uma carícia sem importância que ela confere a alguém, mas de uma coisa grandiosa, uma comoção, uma felicidade, uma realização perfeita. Ela está estendida como uma mãezinha muito jovem, apertando entre seus braços o homem, como a um filho, a quem ela permite saciar-se em seu seio. Seus dedos estão pousados na depressão que a enfermidade e a fraqueza deixaram na nuca do homem. "Agora está tudo bem", pensa Kringelein, "não sinto dor nenhuma. Sou forte, de fato. Estou cansado, é certo, estou cansado, mas vou repousar. Tenho dormido pouquíssimo desde que estou aqui. É pena perder o tempo assim; bem que eu queria não ter de deixar esta vida. Bem que eu gostaria de continuar no mundo. Não quero terminar, agora que mal comecei."

— Flaemmchen — murmura ele, sentindo seu calor juvenil —, Flaemmchen, não me deixe morrer, por favor, não me deixe morrer.

E a Flaemmchen, imediatamente, aperta-o mais ainda de encontro a si, e começa a consolá-lo.

— É um absurdo falar em morrer. Não quero ouvir mais isso. Por causa de uma doencinha assim não se vai morrer. Vou tratar de você. Conheço um homem na Wilmersdorferstrasse que faz curas milagrosas. Ele curou muita gente com doenças muito mais graves do que a sua. Ele vai receitar um remédio, e você vai sarar, você verá. Depois nós partimos imediatamente para Londres, para Paris, para o sul da França, onde já está fazendo calor. Lá nós ficaremos deitados ao sol o dia inteiro, ficaremos com a pele queimada, e nos divertiremos. E agora vamos dormir, venha.

Ela transmite sua despreocupada e inocente força e saúde a Kringelein, quase moribundo, e ele acredita nela. E o homem adormece com uma sensação de felicidade, amarela como uma chama, semelhante ao seio da Flaemmchen, qual uma colina coberta de giestas em flor.

E, dois andares acima, está o Dr. Otternschlag, sonhando o seu sonho, aquele sonho que se repete todas as semanas. Ele está atravessando uma cidade de sonho, que conhece perfeitamente, e entra em uma casa de sonho, de que ele se esqueceu. Mora lá uma mulher de sonho, que deu à luz uma criança de sonho enquanto ele estava na prisão, um menino pavoroso, de quem ele não é o pai, e que faz um berreiro no seu carrinho muito limpo, todas as vezes que avista seu rosto estraçalhado. E depois o sonho continua sempre do mesmo jeito: ele tem de perseguir Gurbal, a gata persa, e corre sem fôlego por toda a cidade de sonho, depois luta em cima do telhado com um gato desconhecido, que tem um rosto humano, e finalmente despenca através de um céu em chamas, cheio de granadas a estourar, até chegar em sua cama de hotel. Quando o sonho chega nesse ponto, o Dr. Otternschlag desperta. "Basta", diz a si mesmo. "Estou farto disso. Vai durar muito ainda? Para quê? Basta, isso tem que terminar, agora." Levanta-se, vai buscar sua mala em miniatura, lava a seringa, quebra as ampolas, dez ampolas, doze ampolas, enche a seringa, lava o braço, já ferido pelas inúmeras picadas inflamadas. Em seguida, espera. Depois, começa a tremer, as suas mãos vão perdendo as forças. Esguicha a seringa sem usá-la, deixando seu conteúdo precioso, captado e ilusório, escoar-se simplesmente no ar, até uma única e última gota, pequenina e inócua, que ele doa generosamente ao seu organismo faminto. Depois deita-se de novo, adormece, e não houve nada do que está acontecendo no hotel.

O Conde Rohna chega do seu quarto, pouco depois das quatro da madrugada, alarmado pelo porteiro da noite, sem fazer ruído, sem se deixar ver, perfumado como em pleno dia. Dirige-se ao quarto 71, testemunha o fato, toma as providências necessárias. Manda servir um conhaque a Preysing, completamente prostrado, e afasta uma mosca que zumbe em torno do cadáver de Gaigern. Fica parado durante uns quinze segundos de mãos cruzadas e cabeça baixa, diante do morto, dando a impressão de estar rezando — e talvez esteja mesmo rezando pelo morto, por esse marginal que pertence à sua mesma classe. A vida não deve ter sido fácil para ele — pensa Rohna talvez, enquanto reza, e depois vai para o seu minúsculo escritório e começa uma conversa ao telefone com o Comissário Jaedicke, encarregado da guarda do hotel.

Um pouco mais tarde — lá fora a primeira máquina de limpeza já está varrendo o asfalto — surgem quatro senhores de sobretudo, cujo nome comum e sinistro é "a comissão do assassinato". O próprio Rohna maneja o elevador que os leva ao segundo andar. Os moinhos da justiça começam a moer. A direção do hotel implora discrição, para impedir notícias sensacionalistas, para encobrir os fatos, se for possível.

Mas isso não é possível. Em breve, Fredersdorf ficará sabendo o que aconteceu. Em breve, a senhora do Diretor-Geral Preysing vai surgir em Berlim com seu apoplético pai, para, após cenas medonhas com seu esposo, separar-se dele. Ela poderia desculpá-lo por ter matado um homem, apesar de isso horrorizá-la. Mas aquela porcaria com a tal mulher, que Preysing, já no segundo interrogatório, confessou gaguejando, suarento e comprometendo-se, isso ela não pode nem compreender nem desculpar.


16

 

Quanto à questão do falecido Barão Felix Benvenuto Amadei von Gaigern, as coisas não estão esclarecidas, mas não parecem ser graves. Não houve ninguém, uma única pessoa no Grande Hotel, que falasse mal dele. Nunca foi preso, não era um indivíduo suspeito nem conhecido da polícia. Tinha algumas dívidas, e a proveniência do seu pequeno carro — que aliás já estava empenhado — não foi descoberta. Isso não prova nada contra ele. Era um jogador, um mulherengo, às vezes embebedava-se, mas sempre demonstrou bondade. Alguns empregados do hotel, ao saberem da notícia sussurrada da sua morte, se puseram a chorar. O groom Karl Nispe, com a cigarreira de ouro no bolso, chorou. Ele foi uma das testemunhas a ser ouvida em primeiro lugar, e declarou que o barão, antes da meia-noite, não se encontrava mais no seu quarto. Uma senhora do primeiro andar, do quarto 18, que ficava embaixo do 71, ouviu mais ou menos a essa mesma hora uma queda, tem a certeza disso, porque a barulheira lá de cima a estava irritando. Mas que se passou entre meia-noite e três e meia? E por que foi que Herr Preysing não avisou logo a polícia? A esse respeito seguiram-se as declarações muito claras, apesar de reservadas, das testemunhas Flamm e Kringelein, aquelas declarações esclarecedoras e que se podiam ler ao meio-dia nos jornais, e que significaram o golpe de misericórdia na vida burguesa de Preysing. A arma que Preysing disse ter visto não foi encontrada, nenhum revólver, nem mesmo uma pequena pistola falsa, dessas que os assaltantes inofensivos costumam por vezes usar. Isso causou má impressão contra Preysing. Se ele mentiu nesse ponto, tudo o mais que ele disse também não merece confiança. É verdade que sua carteira de notas foi encontrada no bolso do pijama do assassinado. Porém — é esta a pergunta do juiz, perfurante como uma verruma —, não poderia o próprio Preysing ter metido a carteira no bolso do pijama de Gaigern, para poder apresentar a ficção da legítima defesa e do assalto? Há ainda o fato de Gaigern usar meias sobre os sapatos macios de pugilista. Há também a fotografia que a segunda camareira do pavilhão recebeu do motorista do barão, pela qual uma autoridade constatou que esse motorista é, pelo menos, um conhecido ladrão. Se conseguirem apanhá-lo, talvez a questão se esclareça mais. Enquanto isso, Herr Preysing está numa cela de prisão e sofre de alucinações visuais de fundo nervoso. Tem sempre a visão do Barão von Gaigern, mas não estendido no chão, morto, e sim vivo, bem próximo dele e com a maior clareza, com a cicatriz debaixo do queixo, com as pestanas radiadas, com todos os poros, como o havia visto pela primeira vez, quando esbarrara com ele diante de uma cabina telefônica. Sempre que consegue afastar essa imagem, enxerga tudo rubro sob suas pálpebras, e em seguida apresenta-se a Flaemmchen. A Flamm número dois, ou melhor, uma parte dela, os quadris de uma fotografia cinzento-escura de uma revista que caíra nas mãos do diretor-geral, quando seu destino ia se preparando para rolar montanha abaixo.

Acontece uma coisa estranha com esses hóspedes do enorme hotel. Nenhum deles sai pela porta giratória do mesmo modo que entrou. Preysing, burguês e marido exemplar, é levado preso, completamente arrasado, por dois senhores. Quatro homens levam dali o corpo de Gaigern, em silêncio e às escondidas, pela escada de serviço; o corpo daquele mesmo Gaigern cheio de vida e entusiasmo, que fazia sorrir todo o hall, ao atravessá-lo vestido com a capa azul, de luvas pespontadas, com um olhar animado e o perfume de alfazema e de cigarros aromáticos ingleses. Mas Kringelein, ao terminar seu interrogatório e o da Flaemmchen e receber licença para viajar — Kringelein deixa o hall do hotel passando por muitas corcovas e mãos estendidas para a gorjeta, como um rei da vida. É de se prever que a sua glória não durará muito mais de uma semana, não durará muito mais do que o primeiro acesso de dor dilacerante.

Mas não é nada impossível, não é de todo improvável, que esse valente moribundus adquira novas forças e continue a viver, contrariando todos os diagnósticos. A Flaemmchen, pelo menos, acredita nisso. E Kringelein, no seu enlevo, quer acreditar também. E, finalmente, não é tão importante assim o tempo que resta a Kringelein para viver. Porque — seja ela longa ou curta — é o conteúdo que faz a vida; e dois dias cheios podem ser mais longos do que quarenta anos vazios; é esta a sabedoria que Kringelein leva consigo, ao sair ao lado da Flaemmchen do enorme hotel, e subir no automóvel que os levará à estação.

Isto se passa às dez horas da manhã. O hotel mostra o seu aspecto habitual. A mulher da limpeza varre com serragem o assoalho úmido do hall, com a silenciosa irritação de Rohna; o repuxo continua o seu brinquedo; na sala do café há cavalheiros sentados, com suas pastas, fumando charutos e falando sobre seus negócios. Nos corredores, murmuram sobre o caso, mas nada transpirou ainda até os hóspedes. O 71 foi fechado pela polícia, as suas janelas estão largamente abertas, durante todo esse dia fresco de março. Ao lado, no 72, mudam a roupa das camas, e passam um pano úmido no guarda-roupa. Às oito horas da manhã, o porteiro Senf ocupou seu posto com o rosto inchado, porque esteve sentado a noite inteira no hospital, num corredor gelado, esperando saber se a mulher tinha conseguido atravessar a noite com vida. Ouve apenas metade do que o pequeno praticante lhe conta e, cambaleante, põe-se a separar nas caixinhas a correspondência da manhã.

— Estou completamente tonto — diz a desculpar-se.

— É incrível como faz falta o sono. Foi o Pilzheim quem reconheceu o motorista. Eu sempre disse que o Pilzheim é competente. Se nós o tivéssemos posto desde o começo na pista desse barão, não aconteciam aqui no hotel essas coisas que prejudicam o seu bom nome. Café para o 22 — exclamou ele no meio da conversa, em direção ao compartimento dos garçons, continuando depois a distribuir a correspondência. — Ainda há aqui correspondência para ele, para onde devemos mandá-la? Para a polícia? Bom... Bom dia, senhor doutor, bom dia — diz ele ao Dr. Otternschlag, que vinha se esgueirando ao longo das paredes do hall, muito amarelo e seco, com seu olho de vidro, parando em seguida diante do balcão de mogno.

— Há correspondência para mim? — perguntou Otternschlag.

O porteiro verificou, em parte por cortesia, em parte também porque nos últimos dias tinham entregado, por vezes, algum bilhete de Kringelein para Otternschlag.

— Infelizmente não. Hoje não há nada, senhor doutor — disse ele.

— Algum telegrama? — perguntou Otternschlag.

— Não, senhor doutor.

— Alguém perguntou por mim?

— Não. Por enquanto ninguém perguntou.

Otternschlag foi rodeando o hall até chegar ao seu lugar de costume. O groom 7 passou como uma flecha; logo depois dele, o garçom trouxe o café. Otternschlag olhava fixamente com seu olho de vidro para a senhora que desempacotava seus vasos na banca de flores, mas sem vê-la.

— Bom dia, meus senhores — disse o porteiro a um casal provinciano, que se encontrava diante de seu compartimento. — Um quarto... pois não. O 70 está livre, com dois leitos, mas infelizmente sem banheiro. Talvez hoje ou amanhã fique vago o quarto ao lado, o 71. Esse tem banheiro, é um belíssimo apartamento, façam o favor de dirigir-se aqui ao lado. Como? Alô! não estou entendendo! — exclamou ao telefone. — Que aconteceu? Sim, já vou para lá. Preciso ir falar na cabina. É um chamado particular. Do hospital — disse ele ao Georgi, e foi tropeçando pelo hall, pelo corredor 2; entrou na cabina dos telefones e depois na cabina 4, que a telefonista lhe mostrou.

O Dr. Otternschlag ergueu-se como um boneco de pau e dirigiu-se à portaria.

— Herr Kringelein ainda está no quarto? — perguntou.

— Não. Herr Kringelein viajou — replicou o pequeno praticante.

— Viajou. Ah! Não deixou nada para mim? — perguntou Otternschlag, após uma pausa.

— Não. Infelizmente. Nada — replicou o praticante com a cortesia que aprendera com o porteiro. Otternschlag virou-se e foi de novo para o seu lugar, desta vez sem rodear o hall, numa perfeita diagonal através do hall, o que era realmente estranho. Rente dele passou o porteiro; sua cara fiel de sargento estava suada como se ele tivesse feito um esforço violentíssimo. Chegou à sua mesa corno a um porto.

— É uma menina. Tiveram que fazer cesariana. Já nasceu, dois quilos e meio. Já passou o perigo. Não há mais perigo nenhum. As duas estão vivinhas da silva — explodiu ele. Tirou o boné, mostrando seu rosto de civil, com o nariz ensopado de suor. Mas colocou-o imediatamente, porque Rohna olhou para ele por sobre a divisão de vidro.

O casal provinciano entrou no elevador e foi conduzido ao 72, o quarto sem banheiro e com dois leitos, cheirando ainda a pó de arroz com perfume de violeta da Flaemmchen.

— Abra a janela — disse a mulher.

— Para arejar o quarto — acrescentou o marido. No hall, o Dr. Otternschlag, sentado na sua cadeira, fala sozinho. — É horrível — diz a si mesmo. — Sempre a mesma coisa. Não acontece nada. A gente está completamente sozinho. O mundo é um astro sem vida, não tem mais calor. Na Cruz Vermelha enterraram noventa e dois soldados, empilhados. Talvez eu seja um deles, esteja lá entre eles desde o fim da guerra; talvez eu esteja morto e não saiba. Se pelo menos acontecesse alguma coisa nesta enorme arapuca, alguma coisa interessante... Mas não acontece nada... nada, absolutamente. Viajou. Adeus, Herr Kringelein. Eu poderia ter-lhe dado uma receita contra as suas dores, mas agora... viajou sem se despedir. Puxa! E a porta sempre a balançar, para dentro, para fora, para dentro, para fora...

O pequeno praticante Georgi, porém, por trás da sua mesa de mogno, põe-se a repisar uns pensamentos simplórios e banalíssimos. "Que movimento fantástico há num hotel enorme como este", pensa ele. "Um movimento fantástico. Está sempre acontecendo alguma coisa. Um é preso, outro é morto, este parte, aquele chega. Um é levado numa maca pela escada dos fundos, e no mesmo instante nasce o filho do outro. É interessantíssimo mesmo! Assim é a vida."

O Dr. Otternschlag, sentado ali no hall, é a estátua de pedra da solidão e da morte. Tem seu lugar reservado, e ali permanece. Suas mãos amarelas, pesadas como chumbo, pendem-lhe dos pulsos, e com seu olho de vidro ele olha fixamente para a rua cheia de sol, de um sol que ele não pode ver.

A porta giratória vai girando, a oscilar, a oscilar, a oscilar...

13

 

Kringelein, o automobilista, o aviador, o vencedor, continuava sua corrida, nesse dia em que se sentia viver. Talvez os artistas malabaristas que fazem o looping the loop, chegando à beira da morte, se sintam também como ele. Kringelein principiou a atirar-se de cabeça para baixo num círculo, e agora é arrastado de acordo com leis que ele não tem mais o poder de controlar. Tomar a direção contrária significaria a queda, e por isso ele continua a correr, para a frente, para baixo, para cima, ele não sabe mais para onde, porque perdeu a direção. Transformou-se em um pequeno cometa, a zumbir pelo espaço, que em breve vai se dispersar em átomos.

O automóvel buzina outra vez ao longo do Kaiserdam, novamente eles se encontram no entroncamento de uma moderna Berlim, o facho de luz da torre da emissora vai circulando, a cortar trechos claros da cidade; diante do Sportpalast aglomera-se gente, lembrando uma nuvem escura como abelhas diante do orifício de entrada da colmeia, com um zumbido ritmado e ativo. Kringelein nunca vira um ambiente tão grande como esse estádio, nem tanta gente reunida num lugar só. Atrás de Gaigern, que caminha diante dele como uma torre, ele é arrastado até o seu lugar, na frente, bem perto da claridade crua do quadrado iluminadíssimo, ao qual se dirigem catorze mil pares de olhos. Gaigern vai explicando muitas coisas, mas Kringelein não compreende nada. Sente medo de novo, meu Deus, tem medo, porque não gosta de ver sangue, nem luta ou brutalidade. Com horror ele se recorda nesse momento do seu trabalho como auxiliar de enfermeiro, que lhe reservaram na guerra, porque não era apto para outra coisa. Timidamente, admira os homens musculosos a desfilar, vê-os despir os roupões de banho e expor sua carne rija, ouve com respeito o alto-falante, e bate palmas quando todos batem palmas. "Quando ficar muito impressionante, eu olho para outro lado", pensa ele em segredo, ao começar o primeiro round. Mas, no início, tem a impressão de que aqueles dois sujeitos lá em cima, de porte delicado e magro, e nariz achatado, estão apenas brincando. Brincando como gatinhos novos, diz a si mesmo, começando a sorrir com certo alívio. Gaigern, pelo contrário, está tão sério e concentrado que Kringelein fica impressionado. O estádio está silencioso, e os pugilistas também; às vezes, pode-se ouvi-los respirar cautelosamente pelo nariz, e seus passos de bailarinos, com os sapatos delicados de pugilistas, são quase inaudíveis. Depois, em meio ao silêncio, o som abafado e redondo da luva de couro — e a sala, pela primeira vez, ruge de alto a baixo, até lá em cima na atmosfera enfumaçada onde a galeria, com milhares de rostos, desaparece por sob o vigamento do teto. "Mais", pensa Kringelein, a quem o rumor do soco encheu de uma satisfação doce e febril, que imediatamente se transforma em ânsia. Pancada de gongo, homens saltando por cima das cordas, baldes, cadeiras, esponjas, toalhas voam por sobre as cordas, os pugilistas estão caídos nos seus cantos e respiram de línguas pendentes como cães perseguidos; borrifam água neles, água que não é para ser engolida. A água chega perto do lugar de Kringelein, que enxuga respeitosamente as gotas da sua capa, com um sentimento de companheirismo esquisito pelo homem que está ali no canto. Gongo. Imediatamente o foco de luz se dirige de novo para a luta, o estádio cessa de súbito o seu murmúrio e todos prestam atenção. Soco, soco, soco. Gritos na galeria, silêncio. Soco. O primeiro sangue corre sobre o olho de um deles, e o homem ri-se. Soco, soco, e um arquejar. Kringelein sente seus pulsos contraídos nos bolsos da capa, como dois objetos duros, estranhos. Gongo. Novamente movimento nos cantos, as toalhas voando, as batidas, as massagens; os corpos já estão luzidios de suor, cá embaixo todos os rostos são verdes e frios ao reflexo da luz, e os homens se levantam de suas cadeiras e discutem, excitados.

— Agora vai começar, finalmente — disse Gaigern, logo após começar o terceiro round, e Kringelein ouve com um leve arrepio esse aviso de Gaigern, que faz prever acontecimentos excitantes. Os pugilistas lá em cima — ele não consegue distinguir um do outro, porque os dois têm o osso do nariz quebrado, e só na pausa ele toma partido a favor do homem no canto perto dele. Os dois, agora, atiram-se como selvagens um de encontro ao outro, agarram-se violentamente, e por vezes isso causa a impressão de uma carícia furiosa e impertinente.

— Arrebenta! — grita o estádio por catorze mil gargantas. Kringelein também grita. Aqueles dois sujeitos lá em cima devem dar murros, e não ficar apoiados à corda, cambaleantes. Por tudo desta vida ele deseja ouvir de novo aquele rumor abafado e cheio, redondo, com que a luva atinge a carne.

— Blynx está grogue. Não aguenta por muito tempo — murmurou Gaigern, e sua dentadura perfeita de cão fica visível por sob o lábio superior que se eleva. Lá em cima o juiz, de camisa de seda branca, pula entre os corpos musculosos e ensanguentados, separando-os sempre. Kringelein acha muito amável que os homens suportem essa intervenção. Fica de olhos grudados no homem que parece estar grogue, expressão técnica para um final completamente inconsciente. Esse homem, o Blynx, tem agora uma bolha azul, pendente como um fruto sobre seu olho direito, suas costas e seus ombros estão lambuzados de sangue, e às vezes ele cospe sangue diante dos pés do juiz. Conserva a cabeça completamente inclinada, o que pode estar certo, mas causa ao inexperiente Kringelein a impressão de extrema covardia. Cada vez que esse tal de Blynx recebe um soco, Kringelein se alegra de um modo excessivo e bestial, que sobe das profundezas de seu sangue. Tudo o que está vendo ainda é pouco para ele. Cada soco em cheio ele acompanha com um gritinho de alívio, para ficar à espera imediatamente, de boca aberta e cabeça estendida, do próximo soco. Gongo. Pausa. Gongo. Round. Gongo. Pausa. Round. Pausa. Round.

No sétimo round Blynx foi derrotado. Cambaleou para a frente, caiu no chão, virou de costas e ficou estatelado. As vinte e oito mil mãos do estádio vibravam numa saraivada de aplausos. Kringelein ouviu sua própria voz a uivar, rouca, e viu suas próprias mãos aplaudindo de um modo maluco. O que se passava lá em cima, no ringue, ele só compreendia em parte. O homem de camisa de seda colocou-se sobre o derrotado e contou com um braço que parecia um martelo. Em certo momento Blynx fez um movimento, como os cavalos tombados no gelo escorregadio, mas não conseguiu erguer-se. Nova gritaria na sala. O povo trepava nas cordas, abraços, beijos, ruído de alto-falante, tumulto na galeria. Quando Blynx foi arrastado dali, Kringelein, completamente exausto, caiu sobre a cadeira dura. O esforço que fizera fora demasiado, os ombros e braços lhe doíam.

— Então, o senhor está completamente sufocado de entusiasmo — disse-lhe Gaigern. — Isso contagia a gente, hein?

Kringelein recordou-se de certa noite, mil anos atrás.

— Isso é bem diferente da Grussinskaia, ontem — respondeu ele, pensando com uma compaixão rebarbativa no teatro vazio, nas ninfas fantasmagóricas e melancólicas, a girar em círculo, na pomba ferida ao clarão do luar e nos minguados aplausos, acompanhados dos comentários de Otternschlag.

— A Grussinskaia! — disse Gaigern. — Ah, sim, é completamente diferente. — Começou a rir interiormente. — Faziam muito fricote em torno da Grussinskaia — disse ainda, vendo-a diante de si, como se fosse real, sentada em seu camarim, em Praga, repousando, a pensar que a noite passada a cansara, de fato, mas a rejuvenescera e lhe dera coragem.

— Esta luta de agora não foi grande coisa. O principal vem agora — disse ele a Kringelein. Kringelein contentou-se com esse ensinamento. Ele próprio tinha a impressão de que devia vir algo mais, socos ainda mais vibrantes, arquejos ainda mais fortes, sensações mais ruidosas ainda. "Avante", pensou ele. "Avante. Avante, vamos!"

Avante. Dois grandes gigantes entram no ringue, um branco e um preto. O preto é alto, esguio, com uma pele aveludada, que reflete a luz prateada. O branco é cheio de corpo, com uma almofada de músculos nos ombros, e uma cara quadrada de animal. Kringelein gostou logo do negro. Todo o estádio gosta do negro. Apresentação pelo alto-falante. O estádio fica imerso em completo silêncio, para assistir à luta. Então tudo recomeça, a brincadeira, os passos de dança, os pulos, o humilhante aproximar-se de mansinho e os saltos elásticos para trás, o entrelaçar-se dos corpos branco e negro na luta corpo a corpo, excitada e séria como no amor, soco após soco, entremeados apenas pelo gongo, para tomar respiração. Três minutos de luta, um minuto de respiração, três minutos, um minuto, quinze vezes, durante uma hora, três minutos de luta, um minuto de respiração. Mas desta vez a luta é completamente diferente, mais rápida, como um relâmpago, com súbitos ataques do preto, com uma selvageria impulsiva do branco, ardente como um fogo forte.

Kringelein se derrete todo. Kringelein não está mais sozinho, não mora mais dentro de si mesmo como uma habitação arruinada. Kringelein é um dos catorze mil indivíduos que estão ali, é um rosto esverdeado e desfigurado entre os incontáveis rostos do estádio, seus gritos se unem ao grito poderoso que sai da garganta de todos. Ele respira quando os outros respiram, e contém a respiração quando o estádio inteiro arqueja com os pugilistas. Suas orelhas estão queimando, ele fecha os punhos, tem os lábios secos, o estômago frio, e engole a doce saliva do entusiasmo, que lhe desce pela garganta já rouca. Avante, avante!

Nos dois últimos rounds parece que o negro de Kringelein está em vantagem. Seus pulsos tamborilam curtas séries de socos nos músculos do branco, que por duas vezes cai sobre as cordas, de braços abertos. Ambos riem, como narcotizados. A respiração sai de seus corpos como a respiração de máquinas. O último round é acompanhado de um berreiro incessante e uma trovejante pateada. Kringelein berra e bate os pés. Gongo. Depois tudo cessa. Kringelein senta-se, completamente coberto de suor. O alto-falante pede silêncio. O alto-falante fala. O alto-falante anuncia a vitória do branco.

— Como? O quê? É revoltante! — berra Kringelein. Ele berra por catorze mil gargantas, sobe na cadeira, e todos os outros sobem nas cadeiras e berram:

— Marmelada, marmelada!

A sala endoidece. Kringelein endoidece. Avante, mais ainda! Avante! Avante! A galeria urra, assobia, guincha. Vão despencar, essas galerias de madeira, em meio à poeira, às exalações e à comoção da multidão descontente. Os pugilistas, de encontro às cordas brancas, apertam-se as mãos desajeitadamente, com as luvas de boxe, sorriem como se os estivessem fotografando. Começa a chover no estádio. Chovem caixinhas, pacotes vazios de cigarros, maçãs, e finalmente copos e garrafas; o ringue antes tão limpo cobre-se de objetos amassados, sob a coberta o assobio continua, lá atrás algumas pessoas já começam a distribuir pancadaria. Parece gente em pânico, aquela multidão de catorze mil pessoas a se movimentar em confusão. Kringelein recebe na cabeça uma pancada forte e pesada, mas nem a percebe.

Kringelein está de punhos cerrados. Sente vontade de bater, de lutar, de dar pancada no juiz injusto. Procura Gaigern com os olhos. Gaigern está bem próximo do ringue, rindo como alguém que a chuva primaveril molha, meio sedento e pouco satisfeito. Kringelein, no estado em que estava, com os sentidos completamente dispersos, é tomado por uma simpatia violenta por esse homem que tem o aspecto da própria vida. Gaigern puxa-o e arrasta-o para fora do estádio endoidecido. Por trás dele Kringelein vai andando, como se o protegesse um escudo cálido e resistente.

Avante! A Gedaechtniskirche, com seus muros brancos em que se refletem os milhares de luzes em seu redor, traços brilhantes de rodas dos veículos no asfalto cheio de gasolina, homens que parecem negros diante das vitrinas iluminadas da Tauentzinstrasse. Depois, de repente, o silêncio e a escuridão por sob as árvores do Bayenviertel, pequenas praças a delinear-se nas trevas, com seu pedregulho, seus roseirais e suas lanternas. Avante!

O cassino. Os enormes aposentos de uma antiga residência de Berlim, que transformaram em clube. Um vago cheiro de gente, nas paredes atapetadas. Gente silenciosa, de smoking, apresentações. Muitas capas num vestiário de azulejos. Kringelein reconhece um homem pálido, magro e de aparência distinta, vestido de preto, que afasta da testa os fios de cabelo; é ele próprio. O encontro consigo mesmo no espelho o surpreende. "Sou muito resistente", pensa ele. Durante um segundo pensa em seu amigo Kampmann, o tabelião, como se tivesse algum dia sonhado com ele. Uma curta parada em uma sala com abajures de pé, e uma lareira falsa, onde apenas se conversa e se bebe. Na outra sala há algumas mesas com partidas de bridge. "Não é muito mais elegante do que o Skat", pensa Kringelein, ávido de sensações novas.

— Nós vamos lá para os fundos — disse Gaigern a um senhor. — Venha, Diretor Kringelein, vamos lá para os fundos.

Para os fundos significa o fim de um corredor estreito e feio, com inúmeras portas. Atrás da última portinha marrom, há uma salinha imersa numa sombra pardacenta, de modo que mal se podem ver suas paredes. Só em uma mesa no centro da sala há uma luz, como no estádio acima do ringue. Algumas pessoas estão de pé ou sentadas à mesa, não muitas, doze ou catorze, com uma expressão séria e preocupada, e trocam entre si frases curtas, que Kringelein não compreende.

— Quanto o senhor quer arriscar? — pergunta Gaigern, que se aproximou de um balcão ao lado, onde uma senhora vestida de preto, com ar de governanta, está sentada diante de uma caixa. — Quanto o senhor estava pensando?

Kringelein pensou em dez marcos.

— Não sei muito bem, senhor barão — disse ele indeciso.

— Digamos então, para começar, quinhentos marcos — aconselhou Gaigern. Kringelein, incapaz de uma contradição, tirou do bolso a velha carteira e colocou na mesa dez notas de cem. Colocaram-lhe na palma da mão um punhado de fichas coloridas, verdes, azuis e vermelhas. Ouviu objetos semelhantes a esses caírem com um ruído seco na mesa, sob a luz do abajur verde, quadrado. "Avante", pensou ele com impaciência.

— Agora jogue como quiser — disse Gaigern. — Não adianta eu lhe explicar. Jogue como quiser e quanto quiser. Quem joga pela primeira vez em geral ganha.

Quantas vezes nesse dia Kringelein já estivera diante do perigo? Ele já sabe que com a vida as coisas não são diferentes. O arrepio de medo faz parte do prazer como a casca pertence à noz, isso ele já sabe. Tem o pressentimento de que ali, em poucos segundos, pode perder a mesma quantia que ganhou nos quarenta e sete anos de vida gotejante em Fredersdorf. Sabe que nessa sala a meia-luz, com lacônicos senhores inclinados sobre o pano verde, ele apenas poderá deixar que as coisas passem zunindo em disparada como até agora, para perder no jogo as três ou quatro semanas de uma existência cigana que lhe falta viver até o fim. E Kringelein, de cima do seu looping the loop, tem quase curiosidade de ver como as coisas vão continuar, avante — avante.

Suas orelhas e seus lábios ficaram brancos, quando ele se aproximou da mesa e começou a jogar. Tem a impressão de estar com as mãos cheias de areia. Joga. Uma pazinha se aproxima e leva suas fichas verdes em meio a outras fichas. Alguém diz qualquer coisa que ele não entende. Joga de novo, dessa vez em outro lugar. Perde. Joga, perde, joga, perde. Gaigern, do outro lado da mesa, joga também, ganha uma vez, depois perde. Kringelein lança-lhe um olhar rápido e suplicante, mas ele não presta atenção. Ali cada um só se preocupa consigo mesmo. Os olhares cravam-se no pano verde como pregos. Cada um concentra suas forças e sua vontade, para ganhar.

— Que falta de sorte! — diz alguém.

É uma frase fantasmagórica, sob a lâmpada de mesa de bilhar, na sala marrom lá dos fundos. Kringelein, tendo que contar apenas consigo mesmo, dirige-se à senhora de preto e pede mais quinhentos marcos de fichas. Volta à mesa, onde um outro senhor remexe com a pazinha as fichas, que se chocam com um tique-taque e são colocadas em montinhos por mãos pedantes e excitadas. Kringelein toma a sua parte com a mão esquerda, e joga com a direita, sem escolher onde, quase inconsciente. Joga, perde. Joga, ganha. Fica surpreendido ao ver que suas fichas verdes retornam com uma vermelha. Joga, ganha. Joga, ganha. Joga, ganha. Coloca no bolso algumas fichas, porque não sabe o que fazer delas. Joga, perde, perde, perde. Faz uma pausa de alguns minutos. Gaigern não está jogando, mas se conserva de pé, fumando de mãos nos bolsos.

— Chega por hoje — diz ele. — Meu dinheiro acabou.

— Permita-me, senhor barão — diz Kringelein, enfiando na mão de Gaigern, que este tira hesitante do bolso, as duas fichas vermelhas que lhe sobraram.

— Hoje estou muito desanimado para jogar — murmura Gaigern.

Ele pressente a sorte, que faz parte da sua duvidosa profissão, e no momento não está com sorte — caso não se queira dar o nome de sorte à aventura íntima com a Grussinskaia. Kringelein volta de novo à mesa. Avante!

Um relógio rouco bateu uma hora quando Kringelein, com um motorzinho a girar por trás da testa, parou de jogar, e trocou na caixa as suas fichas. Tinha ganho três mil e quatrocentos marcos. Sentiu que seus pulmões amoleciam e queriam tremer, mas dominou-se com bravura. Ninguém se importava com ele e com o seu lucro. Kringelein ganhou um ano de ordenado de Fredersdorf. Meteu tudo dentro da carteira de couro gasto.

Gaigern, ao seu lado, boceja e o observa.

— Estou agora órfão, senhor diretor. O senhor precisa cuidar de mim. Não tenho um Pfennig sequer — diz ele com um tom de voz indiferente. Kringelein, com a carteira entre as mãos, fica ali parado, sem saber o que fazer, nem o que querem dele.

— Amanhã preciso lhe pedir um grande empréstimo — diz Gaigern.

— Por favor — replica Kringelein com elegância. — E agora, que vamos fazer?

— Oh, senhor! Que perseverança, a sua! Agora o que falta é embriagar-se ou procurar mulheres — replica Gaigern.

Kringelein retira-se, pálido e desfigurado, da frente do espelho em que colocara o chapéu. Põe cinquenta Pfennige na palma da mão de um adolescente que lhe abre a porta. Apanha a carteira de novo, e desta vez pega uma nota de cem marcos, que dobra e coloca na mão do groom, quando eles já se encontram na rua escura e silenciosa. Sente-se desorientado. Não sabe mais o valor do dinheiro. Num mundo em que a gente gasta mil marcos pela manhã e de noite ganha três mil, o guarda-livros Kringelein, de Fredersdorf, erra num labirinto, como se caminhasse por uma floresta encantada, sem luz nem veredas. Debaixo de uma lanterna espera-os o carrinho de quatro lugares, calado e sem vida, e há algo da paciência de um cão bonzinho na sua atitude fiel, que Kringelein percebe, comovido e grato. Avante! Avante! Está chovendo. O limpador de para-brisa se move em seu semicírculo diante dos olhos de Kringelein, para lá, para cá, para lá, para cá. O cheiro de gasolina já se tornou quase uma coisa costumeira, agradável e conhecida. Longas listras vermelhas, azuis e amarelas refletem-se no asfalto úmido. Labaredas vivas, diante de operários escuros, soldam um trilho, com atividade febril, no meio da noite adiantada. O automóvel vai muito devagar, devagar demais, é o que Kringelein acha. Olha Gaigern de lado, Gaigern está fumando, Gaigern olha para a rua, e seus pensamentos só Deus sabe onde andam. O aspecto da cidade, à uma e meia da manhã, é o de quando houve um desastre. Está completamente animada, cheia de gente, talvez mais cheia ainda do que de dia, inúmeros automóveis buzinam na esquina desprotegida, agora sem guarda de trânsito. Acima deles o céu está vermelho, um céu incendiado de catástrofe, onde passa com regularidade o clarão do projetor circular da torre da emissora. Avante! Avante!

Uma escada cheia de gritaria e de música, que sobe três andares. Bandeirolas e serpentinas embaixo, a meia altura espelhos baços com molduras de gesso dourado, pessoas desconhecidas, algumas bêbadas, outras melancólicas. Moças de carne frouxa, com olheiras escuras, em cujas costas cheias de pó de arroz Kringelein roça ao subir a escada. Toda a casa está cheia de fumaça de cigarro, que pende espessa e azul dos abajures da escadaria, com pretensão a modernos. Embaixo o ruído é grosseiro, no primeiro andar ouve-se por detrás dos reposteiros uma música delicada; estão dançando, lá dentro. No andar superior está tudo em silêncio. Uma moça de calças de um verde tóxico está sentada num degrau da escada com um copo na mão, e finge dormir quando passam por ela. Seus ombros nus roçam o terno novo de Kringelein, o que o faz ficar cheio de ansiedade. Atrás de uma porta há um aposento comprido, quase às escuras. Apenas no chão há algumas lanternas cobertas de papel, cintilando com luz pálida. Ali também há música, que Kringelein ouve, mas não consegue enxergar nada. Ao clarão das lanternas dançam pernas de moças, nítidas até os joelhos; para cima tudo mergulha na escuridão. Kringelein tem vontade de segurar a mão de Gaigern, como um menininho. Ali é tudo confuso e vago; o que se passa por trás das paredes pintadas a óleo, separando bancos acolchoados e mesinhas baixas, só é possível pressentir. Kringelein percebe que está bebendo champanha. Tem a visão de inúmeros corpos, que o penetram de um sentimento estranho, inquietante e doce. Canta com sua voz elevada de tenor a melodia invisível de dois violinos. Balança para lá e para cá, sua cabeça repousa na curva fresca do braço de uma moça.

— Mais uma garrafa? — pergunta um garçom severo.

Kringelein pede mais uma garrafa. Tem piedade do garçom, que parece tuberculoso, quando seu rosto ressalta no meio da escuridão e se inclina sobre o balcão, aos reflexos da lanterna. Kringelein se torna sentimental, tem uma piedade maluca do garçom, das moças tão alegres, que só têm pernas e precisam dançar a horas tão tardias da noite, tem uma piedade maluca de si mesmo. Repousa em seu regaço a carne flácida, morna, completamente desconhecida, de uma moça, e, com os joelhos trêmulos, ele procura o rosto dela. Uma melancolia bêbada e entusiástica se apossa dele, ao cheiro de pó de arroz dessa pele desconhecida. Pode-se ouvir sua voz, cantando. Gaigern, mergulhado em especulações, sentado muito ereto numa cadeira de vime, como a montar guarda, ouve-o cantar com voz aguda e tremulante:

— "Alegrai-vos com a vida, enquanto a lâmpada ainda está acesa."

"Que caipirão!", pensa Gaigern, zangado. "Quando nos retirarmos eu lhe tiro a carteira, e depois vou direto a Viena", pensa ele, unindo as sobrancelhas, a oscilar à beira da sua existência arriscada.

Kringelein encontra-se num pequeno e abafado toalete, e lava o rosto, que está sempre de novo se cobrindo de um suor frio. Tira do bolso o frasquinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, e toma três goles, cheio de esperanças. "Não estou cansado", diz a si mesmo, "em absoluto, não sinto o mínimo cansaço." Tem ainda grandes planos para essa noite. Esmaga na língua o gosto de canela do bálsamo, e volta de novo à moça, à meia-luz acolchoada. Avante! Avante! Avante!

Kringelein atinge uma boca, como se chegasse a uma ilha incompreensível e esquisita. E ali fica encalhado com os lábios. Pequeninas e bêbadas vagas o vão transportando.

— Seja bonzinho, menino — diz-lhe alguém. Ele fica imóvel, ouvindo no seu íntimo, ouvindo. Durante um momento de sonho, sentiu as mãos cheias de amoras maduras, vermelhas e sumarentas, as amoras da mata de Mickenau, e em seguida sente uma coisa aproximar-se, apavorante, como uma espada, um relâmpago, asas ardentes.

De repente Gaigern ouve-o gemer. Um som claro e irreal, de medo e de angústia.

— Que é isso? — perguntou, assustado.

— Oh, estou sentindo uma dor — vem uma voz surda da escuridão que cerca o rosto de Kringelein. Gaigern suspendeu uma das lanternas e colocou-a na mesa. Viu então Kringelein sentado, muito teso no banco acolchoado, com as mãos contorcidas como cadeias. Como a lâmpada era azul, seu rosto parecia também azul, com uma boca redonda, grande e escura, que gemia. Gaigern conhecia essa máscara, do tempo da guerra, dos feridos graves. Colocou depressa o braço debaixo da cabeça de Kringelein, e apertou fraternalmente seus ombros trêmulos.

— Está bêbado? — perguntou a moça, que era quase uma criança, e tinha um aspecto vulgar no seu vestido de lantejoulas pretas.

— Deite-se, já! — respondeu Gaigern. Kringelein levantou os olhos para ele, atormentado, desesperado de dor, e com um esforço penoso e heroico tentou manter uma atitude elegante.

— Agora estou grogue — foi o que disse com seus lábios azulados, querendo exprimir assim a embriaguez, a quase inconsciência em que se encontrava, o seu estado aflitivo e desesperador. Era uma dor penosa, bastante valente, que o atingia de chofre e terminava em gemidos.

— Mas o que é que está sentindo? — perguntou Gaigern, assustado.

E Kringelein respondeu com uma voz quase inaudível:

— Eu acho que... acho que estou... morrendo...

É uma invenção idiota dizer que as camareiras de hotel espiam pelos buracos das fechaduras. As camareiras de hotel não se interessam em absoluto pelas pessoas que estão por trás dos buracos das fechaduras. Têm muito que fazer, estão cansadas de tanto trabalhar, todas elas são um tanto resignadas, e estão ocupadíssimas com a sua própria vida. Ninguém se importa com os outros naquele enorme hotel, cada um está sozinho consigo mesmo nessa enorme gaiola que o Dr. Otternschlag comparava, com uma certa razão, à vida em geral. Cada um habita por trás de portas duplas, tendo por único companheiro sua própria imagem no espelho, ou sua sombra na parede. Nos corredores, um roça pelo outro, no hall as pessoas se cumprimentam, por vezes chega-se a conversar um pouco, uma conversa de parcas palavras vazias, usual nos nossos tempos. Lançam-se olhares que não chegam até os olhos, conservando-se presos apenas à roupa. Talvez aconteça que um corpo se aproxime de outro no pavilhão amarelo. Talvez alguém se esgueire à noite do seu quarto para entrar num quarto alheio. Isso é tudo. Por trás disso há uma solidão profunda. Em seu quarto cada um está só com seu próprio eu, e os tu são imperscrutáveis e incompreensíveis. No meio do casal em viagem de núpcias do 134, está deitado no leito o vazio vidrado das palavras que não foram ditas. Muitos pares de sapatos de casais, colocados à noite diante das portas, denunciam claramente o ódio mútuo em seus rostos de couro; muitos deles dão a impressão de despreocupação, apesar de terem perdido as esperanças e estarem de orelhas murchas. O criado que os vai buscar está metido em uma história feia de alimentos — a quem interessa isso? A camareira do segundo andar começou um namoro com o chofer do Barão von Gaigern, mas o chofer desapareceu por completo, o que muito a ofendeu — ninguém vai imaginar que ela vá olhar ainda pelos buracos das fechaduras; à noite ela tem vontade de refletir um pouco, mas tem sono demais; também não consegue dormir, porque a camareira que dorme na outra cama está com qualquer coisa no pulmão, senta-se na cama, acende a luz e tosse. Cada pessoa, entre as suas paredes, tem o seu segredo; também a senhora com um ar inexpressivo do 28, que está sempre a cantarolar, também o senhor do 154, que gargareja com tanto frenesi e é um simples caixeiro-viajante. Até o groom 18 tem um segredo atrás da sua testa, com os cabelos molhados e bem penteados, um segredo feio e penoso: ele encontrou uma tabaqueira de ouro, que o Barão von Gaigern esqueceu no jardim de inverno, e não a entregou; por enquanto, de medo do controle, deixou-a entre o encosto e o assento de uma cadeira maple, enterrada como um tesouro, e em sua alma de catorze anos há uma luta amarga entre a ética e o orgulho proletário. Herr Senf, o porteiro, não tira os olhos do rapaz — que se chama Karl Nispe, quando está sem número —, porque ele se deixa ficar muito moleirão ao lado da porta giratória, distraído e com olheiras. Mas Herr Senf também pensa em outras coisas. É que sua mulher já está há dias no hospital, não pode mais ser um parto normal, as dores pararam e ela tem cãibras esquisitas, mas ouvem-se ainda as batidas do coração da criança, e estão à espera de uma intervenção cirúrgica. Senf esteve ao meio-dia no hospital, mas não o deixaram entrar no quarto da mulher, porque ela se encontrava num estado quase inconsciente de fraqueza, que os médicos chamavam de sono. Isso se passa com o porteiro Senf, muito atarefado entre o quarto das chaves e o seu livro, dentro da sua gaiola de mogno. Rohna lhe deu licença, mas o porteiro não quer licença nenhuma, está contente de estar preso ali, e não precisar pensar. O que se passa com o próprio Rohna, esse esforçado Conde Rohna, que trabalha catorze horas por dia, como um sujeito corajoso, mas desclassificado para sempre, ninguém sabe. Talvez se orgulhe de estar ali, talvez se envergonhe cada vez que um indivíduo da sua esfera assina o livro de hóspedes — seu rosto inteligente e magro, com a pele avermelhada dos louros, nada deixa transparecer, tornou-se uma máscara.

Às duas horas da madrugada sete cavalheiros aparentando um abatimento pouco comum, exaustos e tristonhos, com estojos pretos nas mãos, saíram do Grande Hotel pela entrada 2. Eram os membros da Eastman Jazzband, que voltavam para seus lares com as camisas suarentas, descontentes com o seu ordenado, como todos os demais músicos do mundo. Diante do portão 5 os automóveis rodaram, um pouco mais tarde os refletores se apagaram. O hall esfriou, porque haviam diminuído um pouco o aquecimento central. O Dr. Otternschlag, que ainda estava lá sentado, quase sozinho, estremeceu e bocejou. Logo depois Rohna também bocejou no seu boxe, fechou algumas gavetas e retirou-se para o quinto andar, para dormir suas cinco horas de sono. O porteiro da noite pôs em ordem os jornais do dia seguinte, trazidos por um mensageiro ensopado pela chuva, o qual agora se retirava com botas fatigadas e enlameadas, pela porta giratória. Duas americanas falando em voz alta foram dormir, e depois tudo ficou em silêncio no hall. A metade das luzes foi apagada. O telefonista tomou café para se conservar acordado.

"Vamos agora para cima?", perguntou a si mesmo o Dr. Otternschlag, esvaziando seu copo de conhaque. "Sim, acho que agora podemos ir", respondeu a si mesmo. Precisou mais ou menos de dez minutos para se decidir. Depois que se pôs de pé sobre seus sapatos de verniz ficou um pouco mais animado, e empreendeu sua caminhada costumeira, ao longo das paredes do hall até o porteiro da noite.

— Não há nada para o senhor doutor — disse este sem o menor tato, sacudindo a mão, quando Otternschlag ainda se encontrava a três metros de distância dele.

— Se alguém perguntar por mim, diga que fui para o meu quarto — declarou Otternschlag; apanhou um jornal úmido e leu rapidamente os títulos.

— Foi para o quarto — repetiu o porteiro mecanicamente, fazendo uma marca de giz no quadro das chaves. Da porta giratória veio uma correnteza de ar frio, com cheiro de poeira úmida. Otternschlag virou-se para trás.

— Aaah! — disse apenas, depois que seu olho são avistou o que se passava. Chegou a abrir a boca, num sorriso torto. Avistou Gaigern, grande, forte e saudável, com um ar que procurava exprimir seriedade, empurrando o pequeno Kringelein, cambaleante, quase inconsciente de dor, gemendo e se lamentando baixinho. O Dr. Otternschlag sabia perfeitamente diferençar um bêbado de um doente grave, apesar de ambos apresentarem um aspecto igual de abatimento. O porteiro da noite, pouco experimentado, lançou um olhar severo e atento aos dois hóspedes que chegavam.

— Chaves 69 e 70 — disse Gaigern a meia voz; — este senhor está se sentindo mal. Chame um médico, se possível imediatamente!

Segurou Kringelein com uma das mãos e com a outra apanhou a chave; depois levou Kringelein até o elevador.

— Sou médico. Mande leite quente ao 70, imediatamente — disse num tom vivo o Dr. Otternschlag ao porteiro. E seguiu os dois homens. — Vou cuidar de Kringelein — disse a Gaigern, enquanto subiam. — Não gema, Herr Kringelein. Vai passar logo.

Kringelein, que mal compreendeu o que ele dizia, parou de gemer; sentado no banquinho do elevador com o tronco dobrado para a frente, dominou as dores violentas.

— Vai terminar? — murmurou respeitosamente. — Tão depressa? Mal começou...

— O senhor foi precipitado demais. Tudo de uma vez é demais — disse Otternschlag; estava muito sentido com Kringelein, mas pegou sua mão e controlou as batidas do seu coração.

— Que absurdo, Kringelein. Que terminar, que nada. O senhor tomou muito champanha gelado — declarou Gaigern, animado.

O solavanco que o elevador deu ao parar terminou essa conversa cheia de mal-entendidos. No corredor Kringelein caiu de joelhos no chão, e a camareira ficou a observá-lo, assustada. Gaigern levantou o leve corpo de Kringelein e o levou para a cama. Enquanto Gaigern lhe despia as peças de roupa cheirando a fumo, e lhe abotoava o pijama novo, o Dr. Otternschlag desapareceu com expressão preocupada.

— Um momento — disse ele retirando-se, com movimentos duros mas vivos.

Quando voltou, encontrou Kringelein imóvel na cama, com as mãos apertadas às coxas, como um soldado apresentando-se a um superior. Com um esforço extremo conseguira deixar de gemer. Quando Kringelein partira à procura da "vida", fizera tenção de morrer com coragem e sem se incomodar muito, ao chegar a hora. Era uma espécie de honorário que ele pensava dever a qualquer força desconhecida, pela leviandade dissoluta de seus últimos dias. Apegou-se a isso em sua cama de metal, enquanto as dores e o pavor da morte punham um suor frio em sua testa e faziam pressão sobre sua nuca. Gaigern tirou do bolso o lenço de seda perfumado com alfazema e enxugou o rosto pequeno e amarelo de Kringelein. Tirou-lhe também com cuidado o pince-nez do nariz fino, e Kringelein teve então, durante um segundo, a sensação de alívio de estar morto, de tudo ter acabado, e a impressão de que a manopla de Gaigern logo iria lhe fechar os olhos. Enquanto isso, Gaigern afastou-se de novo do leito, dando lugar a Otternschlag.

Otternschlag tirou de um pequeno estojo preto uma seringa de injeção, descobriu não se sabe onde uma ampola cintilante, cuja ponta quebrou como um prestidigitador, sem sequer olhar para ela, e a encheu com uma das mãos, com agilidade fora do comum, enquanto tirava com a outra o braço de Kringelein da manga do pijama e o esfregava com sublimado.

— O que é isso? — perguntou Kringelein, apesar de conhecer esse paliativo, do hospital.

— Uma coisa muito boa. Um bombom gostoso — respondeu Otternschlag, com a voz cantante de uma ótima ama-seca, enquanto pegava entre dois dedos a carne branda de Kringelein e enfiava a agulha sob a pele.

Gaigern olhou para ele.

— Que bom que o senhor já tenha isso assim à mão — disse ele.

Otternschlag ergueu a seringa de encontro à luz, bem perto do seu olho de vidro.

— É — replicou. — É a minha mala de viagem. Está sempre pronta, compreende? Estar preparado... é isso, naturalmente, como Shakespeare diz de modo tão belo. Pronto para viajar... a qualquer minuto, compreende? É este o grande segredo desta pequenina valise.

E foi enxugando a seringa, colocou-a no estojo e apertou o fecho, que deu um estalido. Gaigern tirou o pequeno objeto preto da mesa e sentiu seu peso na mão, com expressão de espanto e de incompreensão no rosto. "Como será isso?", pensou ele.

— Está se sentindo melhor? — perguntou o Dr. Otternschlag na direção da cama.

— Estou, sim — respondeu Kringelein, que fechara os olhos, e estava sentado em uma nuvem, com a qual se afastou em giros rápidos e leves, enquanto ele e a sua dor se dissolviam, transformando-se em algo nebuloso, a girar.

— Então, está vendo? — ouviu ainda o doutor dizer, enquanto tudo se lhe tornava indiferente, e o pavor da morte também se afastava dele como um animal negro. — Bem — disse Otternschlag, pondo após um momento a mão de Kringelein novamente sobre o cobertor. — Por enquanto está repousando.

Gaigern, que arrumara nesse meio tempo as roupas novas de Kringelein, aproximou-se da cama de metal e observou a respiração curta e fraca sob o pijama azul-claro.

— Por enquanto? — perguntou Gaigern num murmúrio. — Isso não é... não vai acontecer nada? Não é... não é perigoso?

— Não. O nosso amigo ainda vai se movimentar bastante. Ainda vai sofrer muitas danças como essa, antes de repousar em paz. O coração... veja o senhor... o coração ainda está vivo, ainda bate, ainda quer. É uma máquina com pouco uso, o coração de Herr Kringelein. Em torno dele está tudo estragado, mas o coração faz valer os seus direitos. A marionete ainda tem de saltar no seu último fio... um cigarro?

— Obrigado — disse Gaigern distraído, aceitando. Sentou-se sob a natureza morta com o faisão, levou alguns minutos pensando nas palavras de Otternschlag. — Então ele está muito mal? E apesar disso não morre? Isso é mesmo uma judiação! — disse em seguida.

Otternschlag, que concordou com a cabeça a cada frase, respondeu:

— É isso mesmo. Sim, senhor. É por isso que eu gosto do meu estojinho. É que nós só podemos suportar o que nos espera neste mundo quando sabemos que a qualquer momento podemos pôr fim a isso, entende? A vida é uma coisa miserável, pode me acreditar. Gaigern não pôde deixar de sorrir.

— Mas eu... eu gosto de viver — disse inocentemente.

Otternschlag virou rapidamente para ele a parte de seu rosto que enxergava.

— É, o senhor gosta de viver. Gente como o senhor gosta de viver. Conheço-o. Conheço-o muito bem.

— A mim?

— Sim, ao senhor especialmente, conheço-o pessoalmente. — Otternschlag estendeu a mão e apontou com o dedo pesado e amarelo de fumo para o rosto de Gaigern, que se afastou para trás. — Daqui eu tirei uma vez um lindo estilhaço de granada. Essa bonita cicatriz, que lhe fica tão bem, fui eu quem a costurou... o senhor não se lembra?... Em Fromelles? Gente como o senhor se esquece de tudo. Mas as pessoas como eu reparam em tudo, não podem libertar-se de nada, de nada.

— Ah! Em Fromelles? Naquele hospital de campanha medonho, não é verdade? Não, não me lembro disso, naquela época eu sabia muito pouco sobre minha própria pessoa. Eu afrouxei. Naquele tempo eu pensava que quando a gente é ferida deve perder os sentidos, e então desmaiei.

— Mas eu o observei bem, porque o senhor foi o soldadinho mais jovem que me caiu entre os dedos. Da espécie dos que "morrem cantando". É possível também que não fosse o senhor, mas gente da mesma espécie, sabe? E agora o senhor gosta de viver. Era de esperar. Alegra-me ouvi-lo dizer isso. Só que, o senhor há de concordar comigo, a porta giratória precisa ficar aberta.

— Como? — perguntou Gaigern, confuso.

— A porta giratória, foi o que eu disse. Sente-se no hall e observe a porta giratória durante o espaço de uma hora. Movimenta-se como louca. Para dentro, para fora, para dentro, para fora, para dentro, para fora. É uma coisa engraçada, uma porta giratória. Às vezes a gente fica com o estômago enjoado, quando olha muito para ela. Mas agora, preste atenção. O senhor entra por exemplo pela porta giratória, mas quer ter a certeza de que poderá sair novamente por essa porta. A certeza de que ela não será fechada diante do seu nariz, deixando-o preso no Grande Hotel.

Gaigern sentiu um friozinho subir-lhe à garganta, a palavra "preso" deu-lhe a impressão de uma ameaça oculta.

— Naturalmente — disse ele angustiado.

— Então nós estamos de acordo — explicou Otternschlag. Tinha tirado de novo a seringa do estojo, e brincava, encantado, com o vidro liso e o metal niquelado. — A porta giratória precisa ficar aberta. A saída tem que estar pronta a qualquer momento. Precisamos morrer quando melhor nos aprouver. Quando quisermos.

— E quem quer morrer? Ninguém — disse Gaigern depressa, com convicção.

— Bem... — disse Otternschlag engolindo em seco. Kringelein, em seu leito de hotel, murmurou umas

palavras incompreensíveis por sob o bigode murcho.

— Bem... por exemplo, olhe para mim — disse Otternschlag. — Observe-me com atenção. Sou um suicida, compreende? Em geral nós vemos os suicidas só depois que eles abriram o tubo de gás ou se mataram com um tiro. Pois eu, tal como estou aqui, sou um suicida antecipado. Em uma palavra: sou um suicida vivo, uma raridade, o senhor há de concordar. Um belo dia, tiro desta caixa dez ampolas, injeto-as nas veias, e então serei um suicida morto. Saio pela porta giratória para passear, e o senhor pode ficar sentado no hall, esperando.

Gaigern, admirado, sentiu que o Dr. Otternschlag, esse amalucado, parecia ter por ele uma espécie de ódio.

— Isso é uma questão de gosto — disse ele sem refletir. — Eu não tenho tanta pressa assim. É que eu gosto mesmo da vida. Acho a vida uma coisa magnífica.

— Ah! O senhor acha magnífica a vida? O senhor também esteve na guerra. Depois voltou para casa, e acha a vida magnífica? Homem de Deus, como é que vocês todos podem viver? Vocês se esqueceram de tudo? Está bem, está bem, não vamos falar do que se passou na guerra, todos nós estamos fartos de saber. Mas como é possível isso? Como é possível voltar da guerra e ainda dizer: "Eu gosto da vida!"? E onde está a vida de todos vocês? Eu já a procurei e não consegui encontrá-la. Às vezes penso: já estou morto, uma granada me arrancou a cabeça, e o meu cadáver está, durante todo o tempo que passou, abandonado no abrigo da Cruz Vermelha. Pois é esta a impressão que a vida me causa, desde que voltei da guerra.

— Ah! — disse Gaigern, comovido pelo tom apaixonado das palavras de Otternschlag. Tornou a repetir: — Ah! — Levantou-se e aproximou-se da cama. Kringelein estava dormindo, apesar de seus olhos não estarem bem fechados. Gaigern voltou nas pontas dos pés para perto de Otternschlag. — Sim, suas palavras contêm um pouco de verdade — disse ele em voz baixa. — Ao voltar, não foi fácil a vida. Quando falamos "na guerra", pensamos mais ou menos "na pátria"... é mais ou menos isso. Agora estamos na Alemanha como se estivéssemos dentro de calças que alargaram. Tornamo-nos indivíduos desenfreados, e não encontramos mais lugar para nós. Que podemos fazer da vida? Ir para o Exército? Disciplina? Ir apaziguar brigas? Obrigado, não. Aviador, piloto? Tentei isso. Duas vezes por dia voar de acordo com o horário de viagens: Berlim - Colônia - Berlim. Viagens de pesquisas, expedições, tudo isso já é coisa gasta e não apresenta perigo. Veja, é isso: a vida precisaria ser um pouco mais perigosa do que é, então seria bom viver. Mas a gente aceita as coisas como elas são.

— Qual nada. Não é isso o que eu penso — disse Otternschlag, aborrecido. — Mas talvez sejam apenas nuanças pessoais. Talvez eu visse as coisas tão simples quanto o senhor, se houvessem costurado o meu rosto como eu costurei o seu. Mas quando a gente olha o mundo através de um olho de vidro, ele apresenta um aspecto bem estranho, eu lhe garanto. Então, o que está acontecendo, Herr Kringelein?

De repente Kringelein sentou-se na cama. Tinha a muito custo arrancado os pesados olhos da morfina, e procurava qualquer coisa. Suas mãos tateavam o cobertor com as pontas dos dedos, que a morfina tornara insensíveis.

— Onde está o meu dinheiro? — sussurrou Kringelein. Ele acabava de chegar diretamente de Fredersdorf, onde havia brigado com Anna, e encontrara extrema dificuldade em voltar ao quarto de mogno do Grande Hotel. — Onde está o meu dinheiro? — perguntou de novo, com a boca seca. No primeiro instante só avistou os dois homens como enormes sombras movediças sentadas nos fauteuils de veludo.

— Ele está perguntando onde está o dinheiro dele

— participou Otternschlag ao barão, como se este último fosse surdo.

— Ele depositou o dinheiro no cofre do hotel — disse Gaigern.

— O senhor depositou o dinheiro no cofre do hotel

— repetiu Otternschlag como um intérprete. Kringelein custou a coordenar essa resposta em sua cabeça pesada. — O senhor ainda sente dores? — perguntou Otternschlag.

— Dores? Por quê? — perguntou Kringelein, pairando nas nuvens.

Otternschlag riu, entortando a boca.

— Já se esqueceu de tudo — disse. — Já se esqueceu das dores. O alívio que sentiu também já está esquecido. Amanhã pode continuar tudo... senhor artista da vida

— disse ele em tom francamente sarcástico.

Kringelein não compreendeu uma só sílaba.

— Onde está o meu dinheiro? — perguntou, teimoso.

— Aquele montão de dinheiro. O dinheiro que eu ganhei.

Gaigern acendeu um cigarro e sorveu a fumaça num trago que foi até os pulmões.

— Onde está o dinheiro dele? — perguntou Otternschlag.

— Na carteira — declarou Gaigern.

— Está na sua carteira — transmitiu Otternschlag.

— E agora trate de dormir de novo. Não se anime demais, porque pode doer.

— Quero a minha carteira — pediu Kringelein, estendendo os dedos abertos.

No estado obnubilado em que se encontrava, ele não podia se exprimir direito, e só sentia, em sua consciência meio adormecida, que tinha que pagar com dinheiro contado cada minuto da vida, com dinheiro contado e a um preço alto. Em sonhos ele vira ambos sumirem — o dinheiro e a vida — a toda velocidade e numa correnteza pedregosa, como o ribeirão de Fredersdorf, que seca no verão.

Otternschlag suspirou, enfiou os dedos nos bolsos do paletó de Kringelein, que Gaigern colocara no encosto de uma cadeira, e retirou as mãos vazias. Gaigern estava de pé ao lado da janela, fumando, de costas para o interior do aposento, com o rosto virado para a rua, que se estendia muito calma em meio à noite, ao reflexo da luz branca das lâmpadas elétricas.

— Nos bolsos não há nenhuma carteira — disse Otternschlag, deixando os braços penderem diante do corpo, como após um enorme esforço.

De repente Kringelein pulou da cama para o meio do quarto, metido nas calças de tecido fino e balouçante, com os músculos do rosto tensos, ofegante.

— Onde está a minha carteira? — gritou ele, num gemido. — Onde está ela? Onde está todo aquele dinheiro? Onde está aquele montão de dinheiro? Quero a minha carteira! Quero a minha carteira!

Gaigern, que há muito tempo tinha surrupiado a carteira, tentou fechar os ouvidos, ao ouvir esses lamentos agudos e rouquenhos de sono. Ouviu do lado de fora o elevador andando, escutou passos no corredor, que em seguida silenciaram por trás das portas. Ouviu — pareceu-lhe ouvir — alguém respirar no quarto ao lado, no 71. Ouviu seu relógio de pulso tiquetaquear, e seu coração bater calmamente. Mas ouviu também o medo de Kringelein; nesse momento odiou Kringelein, com um ódio selvagem, e gostaria de poder matá-lo. Voltou-se excitado para a porta do quarto, mas o aspecto lamentável de Kringelein lhe tirava as energias. Kringelein estava no meio do quarto e chorava. As lágrimas brotavam-lhe dos olhos por sob as pálpebras amortecidas pela morfina, escorrendo pelo pijama novo de seda azul-clara. Kringelein chorava como uma criança, por causa de sua carteira.

— Havia seis mil e duzentos marcos na carteira — soluçou ele. — Esse dinheiro dá para viver dois anos! — Sem sentir, Kringelein mergulhara de novo nos limites modestos de Fredersdorf.

Otternschlag fez um gesto de desalento em direção a Gaigern.

— Onde poderá estar essa carteira, já que Kringelein quer viver mais dois anos, de qualquer maneira? — perguntou ele, tentando gracejar.

Gaigern, com os punhos fechados nos bolsos, sorriu:

— Talvez as moças a tenham roubado no Alhambra — respondeu.

Era a resposta que ele preparara de antemão. Kringelein sentou-se à beira da cama e amoleceu o corpo, completamente abatido.

— Ai, que horror — disse ele desanimado. — Ai, que horror, que horror, que horror!

Otternschlag observou-o, observou Gaigern, tornou a observar Kringelein.

"Ah, é isso", disse a si mesmo. Apanhou o seu estojo preto e aproximou-se de Gaigern, que parará diante da parede, conforme seu velho costume, como se as paredes e os móveis lhe pudessem transmitir um pouco de energia, ou talvez porque ele ainda não tivesse aprendido a caminhar sem cobertura. Otternschlag parou diante de Gaigern, virando-se para ele com sua face desfigurada; com o olho de vidro olhou fixamente o seu pescoço.

— É preciso achar a carteira de Kringelein — disse ele em voz baixa, amavelmente.

Gaigern hesitou um segundo. Nesse segundo o seu destino se decidiu. Seu íntimo pareceu despedaçar-se, tirando-lhe a segurança.

Gaigern não era um homem honrado, já roubara e mentira. Mas não era um criminoso, porque os bons instintos de sua natureza e de seu sangue nobre o impediam muitas vezes de executar seus maus propósitos. Era um diletante da aventura. Tinha forças dentro de si, mas não tinha forças suficientes. Poderia suprimir esses dois homens doentes e fugir. Poderia empurrá-los e fugir pela fachada do hotel com o seu roubo. Poderia deixar o quarto com um gracejo, correr à estação e desaparecer. Refletiu sobre tudo isso e pensou na Grussinskaia, sentiu seu leve corpo em seus braços, carregando-a escada acima na casa de Tremezzo. Tinha que ir ao encontro dela, tinha que ir — mas de .repente sentiu uma compaixão louca e veemente por esse Kringelein, sentado atrás dele na beirada da cama, a mesma compaixão que sentira na véspera pela Grussinskaia. Compaixão por Otternschlag também, que o olhava fixamente, com seu rosto desfigurado pela guerra, e uma compaixão longínqua e inconsciente por si mesmo — e foi essa compaixão que o derrubou.

Deu dois passos para a frente e começou a rir.

— Eis aqui a carteira — disse ele. — Há instantes eu a guardei, para que Kringelein não fosse roubado na espelunca em que estivemos.

— Ora vejam — disse Otternschlag, aliviado, e tomando ao mesmo tempo a carteira gasta e repleta das mãos de Gaigern. Foi tomado de uma estranha sensação, um sentimento de abatimento e de carinho. Era tão raro ele ter a oportunidade de tocar as mãos de um outro homem... Virou a cabeça e dirigiu seu olho são a Gaigern, com uma expressão que tanto podia exprimir agradecimento como compreensão. Mas no mesmo instante levou um susto. O rosto de Gaigern, esse rosto de rara beleza e vivacidade, adquirira uma palidez de areia, seus traços se acentuaram, tomando uma expressão vazia e morta. Otternschlag teve medo. "Há fantasmas no mundo?", pensou ele, enquanto ia caminhando ao longo do sofá para chegar à cama, onde colocou a carteira de Kringelein.

Toda essa cena durou apenas alguns segundos, e Kringelein se conservara calado, parecendo refletir profundamente.

Agora que Otternschlag lhe estendia a carteira, pela qual ele fizera tamanha choradeira, nem tocou nela. Deixou-a cair sobre o cobertor, sem lhe dirigir o olhar, nem sequer contou o dinheiro, aquela quantidade enorme de dinheiro, o dinheiro que ele havia ganho.

— Por favor, fique comigo — disse ele; não o disse a Otternschlag, que o havia ajudado, mas a Gaigern, e estendeu o braço em direção deste último, que estava à janela, carrancudo, fumando novamente um cigarro.

— Não precisa ter medo, Kringelein — consolou-o Otternschlag.

— Eu não estou com medo — replicou Kringelein, teimoso e com espantosa vivacidade. — O senhor pensa que eu tenho medo de morrer? Não tenho o menor medo. Pelo contrário. Devo até agradecer a morte. Nunca encontraria coragem para viver, se não soubesse que tenho de morrer. Quando se sabe que se vai morrer é que se cria coragem. É preciso sempre nos lembrarmos de que vamos morrer, então somos capazes de tudo, isso não é mistério nenhum.

— Aaah! — disse Otternschlag. — A porta giratória. Kringelein está ficando filósofo. A doença traz a sabedoria, o senhor já reparou?

Gaigern não deu resposta. "De que estão vocês falando?", pensou ele. "A vida! A morte! Como é possível falar dessas coisas? Essas coisas não são palavras. Estou vivo, é sinal que estou vivendo. Morro, meu Deus do céu! Então morri. Pensar na morte? Não. Falar disso, que horror. Mas esticar as canelas decentemente, estou pronto. A qualquer momento, quando chegar a hora. Trepem primeiro na fachada de um hotel como um macaco, e em breve vocês haverão de calar o bico a respeito da vida e da morte", pensou ele com altivez. "Eu também estou preparado, e não preciso de nenhuma maleta cheia de morfina." Bocejou. Engoliu um trago de ar da madrugada, que penetrava pela janela aberta, e em seguida um friozinho fez tremer seus ombros de pugilista.

— Estou com sono — disse ele. De súbito começou a rir gostosamente. — Ontem à noite eu não me deitei na minha cama, é verdade. Hoje já são de novo quatro horas. Venha, senhor diretor, meta-se debaixo das cobertas.

Kringelein obedeceu incontinenti. Deitou-se com a cabeça pesada e com as dores amortecidas, mas que continuavam no seu corpo, e cruzou as mãos sobre a coberta.

— Fique comigo. Por favor, fique comigo — repetia ele, insistente.

Estava falando alto demais, porque seus ouvidos se enchiam de novo de uma sensação de amortecimento e de zumbido. Otternschlag ouvia o que eles diziam. Ninguém se incomodava com ele. Ninguém lhe pedia para ficar.

— O senhor já tomou a sua morfina, agora já não precisa mais de mim, não é? — perguntou ele, mas Kringelein não percebeu a ironia.

— Não, obrigado — disse ele inocentemente. Segurava a mão de Gaigern como um meninozinho. Agarrava-se a Gaigern, gostava de Gaigern. Talvez sua alma, cuja pele se tornara muito fina, adivinhasse que Gaigern tinha querido roubá-lo, e apesar disso agarrava-se a ele.

— Por favor, fique aqui comigo — implorou.

Então, Otternschlag começou a rir. Levantou seu rosto amarrotado até a luz fria da lâmpada, e começou a rir com a sua boca torta, de modo completamente diferente do de Gaigern, no princípio em silêncio, depois com um som profundo, e em seguida cada vez mais alto, com maior ironia, cada vez com mais ódio.

Ao lado, no 71, bateram três vezes na parede.

— Fiquem quietos, por favor. A noite foi feita para dormir, e não para se divertir! — disse a voz sofredora, rouca de sono e ofendida de um senhor completamente desconhecido, a voz do senhor Diretor-Geral Preysing, o qual não imaginava sequer que, no quarto ao lado, três círculos do destino se haviam entrelaçado por uma passageira e decisiva hora.

Os conceitos de moral, no Grande Hotel, eram elásticos. É certo que no Grande Hotel não era permitido ao senhor Diretor-Geral Preysing receber em seu apartamento a sua secretária. Mas não havia nada que impedisse esse senhor de alugar um quarto para essa jovem senhora. Ele o fez com a testa rubra, e declarações gaguejadas, após a conversa decisiva com a Flaemmchen. Rohna, grande conhecedor dos homens, desculpou-se por ter apenas um quarto com dois leitos livre, o 72, separado do 71, o apartamento de Preysing, pelo banheiro. Preysing murmurou qualquer coisa, querendo dar a impressão de estar meio aborrecido com isso, e lançou-se com entusiasmo em sua aventura.

Pela manhã chegou correspondência de Fredersdorf, muitas cartas de negócios, e uma carta de Mulle, onde Babe havia arranhado duas linhas. Mas Preysing, que já ia à deriva, longe de suas margens, no meio da correnteza violenta que às vezes apanha os homens da sua idade, esse Preysing transformado leu a carta com frieza e sem remorsos, durante o café, que tomou no quarto em companhia da Flaemmchen, apetitosa, animada e completamente despreocupada.

Kringelein também recebeu correspondência de Fredersdorf. Estava sentado em seu leito de metal, sem sentir dor alguma, fortificado pelo Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, e com a desesperadora intenção de conservar o sentimento penetrante e duro da vida, que sentira no dia anterior. Desde que vencera o pavor da morte da última noite, deixando-o para trás, desde que estava salvo, tinha a sensação de ser feito de um metal transparente como vidro, e muito duro. Com o pince-nez colocado no nariz, que se tornara mais afilado ainda, ele leu a carta que Frau Kringelein lhe escrevera, numa folha com pautas azuis, do seu livro de cozinha.

 

 

Querido Otto — escrevia essa Frau Kringelein, com quem nunca ele tivera intimidade, mas que agora sumira nas inacreditáveis distâncias das coisas estranhas. Querido Otto, recebi sua carta, e a sua doença é causada somente porque você não se cuida, o papai também acha. Ele fez uma petição à fábrica, sobre um auxílio para mim, mas eu ainda não recebi nenhum aviso a respeito. Eles só dizem para a gente esperar. Eu lhe escrevo principalmente por causa do fogão, porque não é possível continuar assim. Binder esteve aqui e verificou o que havia, o encanamento está estragado, disse ele, em todas as casas da vila operária há qualquer coisa desarranjada. Eles deviam nos dar o carvão de graça, com os fogões que fazem, porque uma conta tão grande de carvão ninguém pode pagar, os fogões gastam carvão demais. Então eu falei com Binder, e ele disse que não pode consertar o cano por menos de catorze ou quinze marcos, e isso se economizaria depois no gasto do carvão. Naturalmente esse gasto é excessivo, e eu queria saber o mais depressa possível a sua opinião, para saber o que fazer com o fogão. Assim não é possível continuar, mas catorze marcos não se podem atirar fora, por causa desse fogão horrível. Falei às escondidas com Kietzau, que também entende um pouco do negócio: ele acha que o serviço fica mais caro ainda, e não pode garantir se vamos gastar depois menos carvão, foi o que ele disse. Fiz um barulhão na fábrica por causa disso, porque, depois de conseguir a muito custo falar com Schriebes, disse-lhe que eles deviam mandar consertar o fogão, o que é muito justo, porque a vila operária é deles. Mas eles nem querem ouvir falar nisso. Schriebes foi malcriadíssimo, é um homem muito ordinário, e só pensa nos seus interesses. Se eu conseguir receber alguma coisa da Caixa dos Doentes, o papai acha que eles vão soltar uns trinta marcos, mas eu não acredito nisso, porque Preysing, aquele cão avarento, não solta um Pfennig, então mando ou não mando consertar o fogão? Você vai receber algum dinheiro extra, quando voltar da casa de saúde, ou está tudo incluído? Aqui andam torcendo o nariz, dizendo que você está fugindo do trabalho e guarda o ordenado, eu nem gosto de me encontrar com ninguém, eles não gostam de nós. Por favor, resolva logo a questão da Caixa dos Doentes. Frau Prahm disse que enquanto você estiver doente, eles não podem descontar dinheiro seu da caixa, tome cuidado, porque senão eles fazem você de bobo, disse ela. Aqui está fazendo mau tempo, e aí? Muitas lembranças de sua Anna.

Escreva-me imediatamente a respeito do fogão, ou se devo esperar até que você volte. Ele está soltando tanta fumaça que meus olhos estão doendo.

 

 

Com essa carta nas mãos tratadas pela manicura, Kringelein ficou sentado na beira da cama durante uns dez minutos, refletindo profundamente, mas não pensava nem em Fredersdorf nem no fogão, nem tampouco no acesso de dores e no pavor da morte que tivera à noite. Pensava no avião, e que ele tinha ficado um pouco enjoado na viagem, e no sentimento agudo e doce de orgulho e de coragem que o havia acometido quando, numa curva fechada, ele avistara o mundo inclinado sobre a sua cabeça, da janela do avião, sem se assustar.

"Vou me levantar para falar com Preysing", pensou Kringelein, erguendo-se decidido da cama. Precisava resolver essa questão do Preysing, senão tudo perderia o sentido e a finalidade. Kringelein tomou banho e vestiu o Kringelein novo, o de camisa de seda, de paletó justo e com sentimento de dignidade. Seu coração estava duro e cerrado como um punho, quando ele parou diante do 71, abriu a porta exterior e bateu na madeira envernizada de branco da porta interna.

— Entre! — exclamou Preysing. Essa palavra lhe saiu dos lábios apenas por costume e por tolice, porque ele não desejava em absoluto que viessem atrapalhar seu café com a animada Flaemmchen.

Mas como ele havia dito "entre", a porta se abriu e Kringelein surgiu no limiar.

Surgiu diante de Preysing como se tivesse havido uma explosão no Grande Hotel, no andar das pessoas distintas, e ele viesse se refugiar no 71. Pusera o bonito chapéu novo de feltro de Florença, decidido a conservá-lo na cabeça, e portanto não o tirou.

— Bom dia, Herr Preysing — disse ele, tocando negligentemente a aba do chapéu, com dois dedos. — Preciso falar com o senhor.

Preysing ficou estarrecido ao ouvir isso.

— Que deseja o senhor? Como é que entrou aqui? — perguntou, admirando-se desse Kringelein de chapéu na cabeça, do auxiliar de contador Kringelein, do bureau de pagamentos, com uma expressão decidida no rosto, como um enviado anunciando o fim do mundo.

— Eu bati e o senhor disse "entre" — respondeu Kringelein com espantosa lucidez. — Preciso falar com o senhor. Permita-me que me sente.

— Pois não... — disse Preysing, completamente indefeso, já que Kringelein se sentara.

— Esta senhora vai me desculpar, se estou atrapalhando — começou Kringelein, muito desembaraçado.

A Flaemmchen replicou, amável e animando-se:

— Nós já nos conhecemos, senhor diretor. Nós dançamos juntos um foxtrote.

— É mesmo. É verdade — disse Kringelein, e em seguida pigarreou. Sua garganta estava latejando.

Depois, fez-se silêncio.

— Então? De que se trata? Não tenho tempo. Tenho que ditar a Fräulein Flaemmchen algumas cartas, com urgência — disse afinal o diretor-geral, no tom de um diretor-geral.

Mas Kringelein não se encolheu de modo algum, apesar de não encontrar logo o começo do seu discurso.

— Minha mulher me escreveu que o fogão está estragado de novo, e a fábrica se nega a mandar consertá-lo. Isso não é possível. A vila operária pertence à fábrica, e nós pagamos o aluguel com pontualidade, esse pagamento é descontado do nosso ordenado, e portanto a fábrica precisa cuidar de que esteja tudo em ordem nas casas da vila, e não é possível, não é justo que nós morramos abafados pelo fumo porque os fogões são ruins — declarou ele.

Preysing, que ficara de uma cor rubro-escura entre as sobrancelhas, replicou, procurando conter-se.

— O senhor sabe que essas coisas não se tratam comigo. Se tem queixas a fazer, procure a seção de habitações. É incrível que venham me incomodar com uma coisa dessas.

Ponto final. Parecia que o assunto terminara. Mas acrescentou:

— Em vez de essa gente nos agradecer, quando construímos uma vila para eles, ficam atrevidos. É uma coisa incrível.

Apesar de Preysing ter se levantado, Kringelein continuou sentado.

— Está bem. Deixemos isso de lado — disse ele com negligência. — O senhor pensa que pode usar termos ofensivos. Mas eu não lhe permito que me trate assim. O senhor pensa que é melhor do que os outros, mas é um homem como qualquer um, Herr Preysing, apesar de ter feito um casamento rico e possuir um palacete. O senhor é um homem como qualquer um; e nunca uma pessoa foi tão criticada e xingada como o senhor, em Fredersdorf. Isso é para que o senhor saiba da verdade.

— Isso não me interessa. Não me interessa em absoluto. E agora, trate de retirar-se! — bradou Preysing.

Mas Kringelein encontrou um imprevisto capital de forças no seu íntimo. Tinha que desabafar vinte e sete anos de vida de empregado subalterno, e estava carregado como um dínamo.

— Isso lhe interessa, sim — disse ele —, essas coisas lhe interessam muito. Se não fosse assim, por que tem o senhor espiões e mexeriqueiros na fábrica, bajuladores como Herr Schriebes ou Herr Kuhlenkamp, essas criaturas, esses ciclistas que embaixo dobram as pernas, e em cima fazem uma corcova? Quando alguém chega três minutos atrasado, vão correndo contar. Andam até espiando o trabalho dos contínuos, a fábrica toda sabe disso. Mas quando a gente trabalha até se esfalfar, ninguém fala nisso, é para isso que somos pagos. Se nós podemos viver decentemente com o nosso ordenado, isso não o preocupa, Herr Preysing, o senhor anda de automóvel, e nós não podemos nem comprar saltos de sola. E quando a gente fica gasto e consumido, quando fica velho, então é posto de lado, e ninguém se interessa por nós. O velho Hahnemann trabalhou trinta e dois anos na fábrica, e agora está por aí com catarata, e sem um Pfennig de pensão.

Se Preysing fosse o tirano sinistro que a fantasia de empregado subalterno de Kringelein criara, teria simplesmente atirado Kringelein porta afora. Mas como era um homem correto, bem intencionado e indeciso, se pôs a discutir.

— Nós pagamos pela tarifa oficial. E temos o nosso Fundo de Auxílio dos empregados — declarou ele em tom azedo. — Sobre o Hahnemann não sei de nada. Quem é esse Hahnemann?

— Linda tarifa! Lindo fundo! — exclamou Kringelein. — No hospital eu estive na terceira classe, comendo queijo e salame quatro dias depois da operação, minha mulher fez petição atrás de petição, mas eu não recebi nenhum auxílio extra. A ambulância para Mickenau, tive que pagar com o meu dinheiro. Não tinha mais estômago, mas tive que comer queijo. Depois de quatro semanas de doença o senhor me escreveu uma carta dizendo que eu seria despedido se continuasse doente. O senhor escreveu isso, Herr Preysing, ou não escreveu?

— Não me posso lembrar de todas as cartas que mando escrever. Mas afinal uma fábrica não é um asilo, nem hospital ou seguro de vida. Agora o senhor está de férias por doença, de novo, e no entanto vive aqui como um conde, como um capitão de indústria.

— O senhor vai retirar o que disse, vai retirar imediatamente o que disse, aqui na presença desta senhora! — gritou Kringelein. — Quem é o senhor para julgar que pode ofender os outros? Com quem pensa que está falando? Pensa que eu sou um sujo? E mesmo que eu o fosse, o senhor é muito mais sujo do que eu, senhor diretor-geral, fique sabendo, o senhor é um sujo, senhor diretor-geral, fique sabendo, o senhor é um sujo!

Os dois homens estavam agora de pé, bem próximos um do outro, fitando-se fixamente, encolerizados e loucos de raiva, e se puseram a gritar, atirando-se ofensa atrás de ofensa, os rostos afogueados. Preysing estava rubro, quase roxo, e seu lábio superior coberto de grossas gotas de suor. Kringelein estava completamente amarelo, sua boca parecia ter perdido todo o sangue, e seus cotovelos, seus ombros, todas as suas articulações tremiam. A Flaemmchen olhava ora para um ora para outro. Virava o rosto de um lado para outro, como uma gatinha boba, diante da qual está pendurado um novelo de lã como brinquedo. Aliás, ela compreendia bem o que Kringelein estava dizendo, apesar da confusão em que estava, e concordava plenamente.

— O senhor já não sabe mais como é que nós vivemos? — exclamou ele com os lábios brancos sob o bigode claro e arrepiado. — É como se precisássemos trepar numa parede lisa, é como se estivéssemos presos na adega durante a vida toda. A gente espera de um ano para outro, primeiro ganhamos cento e oitenta marcos, esperamos depois cinco anos para ganhar duzentos marcos, e depois isso se vai arrastando, e fica-se esperando de novo. E depois a gente pensa: com o tempo as coisas vão melhorar, mais tarde você vai poder ter um filho, mas isso nunca chega, e depois até do cachorro precisamos nos desfazer, porque o dinheiro não dá, e depois a gente espera que vague um lugar melhor, e trabalha brutalmente, faz horas extras que não são pagas, e depois um outro é colocado no posto melhor, com trezentos e vinte marcos de ordenado e salário-família, e a gente fica esperando de cócoras. E tudo por quê? Porque o senhor diretor-geral não entende de nada. Porque o senhor diretor-geral promove sempre os empregados que não valem nada, até o Broesemann. Uma coisa tão triste como o meu jubileu de serviço nunca houve nem haverá no mundo. Vinte anos de serviço! Talvez o senhor tenha se congratulado comigo, não? Alguém se lembrou de me dar uma gratificação? A gente fica inclinada diante da escrivaninha esperando, mas nada muda. Então pensamos: isso não é possível, ainda virá uma grande surpresa, porque não é possível que eles tenham esquecido, quando estamos trabalhando na caixa há vinte anos. E chega o meio-dia, chegam as seis horas, e nós, com o terno dos domingos, ficamos esperando que aconteça alguma coisa, mas nada acontece. Então, a gente vai correndo para casa, e fica com vergonha da mulher, e fica com vergonha do Kampmann. "Então", pergunta o Kampmann, "como foi a sua festa?" "Ah, sim", digo eu, "a escrivaninha estava cheia de flores, eles me deram quinhentos marcos, e o próprio diretor-geral fez um discurso em minha honra, ele sabe perfeitamente que eu sou sempre o último a sair do escritório." Foi isso o que eu disse ao Kampmann, para a vergonha não ser tão grande. E sete semanas depois o Broesemann manda me chamar e diz: "Ouvi dizer que o senhor está aqui conosco há vinte anos, e isso passou despercebido. Como é, o senhor tem algum desejo especial?" E eu digo: "Esticar as canelas o mais depressa possível, é esse o meu desejo; esta vida de cão não me dá mais alegria alguma". Então Broesemann foi falar com o velho, e ele subiu o meu ordenado para quatrocentos e vinte marcos, desde maio, mas a vida de cão continuou. E então jurei a mim mesmo: "Preysing um dia há de ouvir a verdade, eu ainda hei de lhe dizer".

Kringelein começara a falar alto, mas sua voz, nas últimas palavras, tinha submergido dentro da garganta, foi ficando cada vez mais tristonha e abafada. Preysing, com as mãos nas costas, passeava no pequeno aposento de um lado para outro. Suas botinas rangiam sob o peso da sua pesada pessoa, e o fato de a Flaemmchen, durante todo o tempo, ter ficado sentada ouvindo, com os olhos atentos indo e vindo, o punha fora de si de raiva. De repente, parou diante de Kringelein e avançou sua protuberante parte dianteira, ameaçadoramente, para o jaquetão novo de Kringelein.

— Mas o que quer o senhor de mim? Eu não o conheço, e o senhor foi entrando pelo quarto — disse ele em tom frio e anasalado. — O senhor teve a ousadia de entrar aqui e vir com insinuações comunistas. Que tenho eu que ver com o seu jubileu? Que tenho a ver com o senhor? Não posso me interessar por todos os empregados da nossa fábrica, de um em um. Tenho outras preocupações. Minha vida também não é um mar de rosas, em absoluto. E quem demonstra ter aptidões para o seu posto é bem pago e faz carreira. Os outros não me interessam. Não tenho nada que ver com o senhor, não o conheço. E agora, basta!

— O senhor não me conhece, não é? Mas eu o conheço perfeitamente. Já o conhecia desde o tempo em que o senhor chegou como praticante em Fredersdorf, e morava na casa do alfaiate, no quarto dos fundos, e ficou devendo ao meu sogro o dinheiro da manteiga e da salsicha. Notei com atenção o dia em que o senhor deixou de me cumprimentar, Herr Preysing; primeiro parou de cumprimentar, e depois pôs-se a bancar o moço bonito com a filha do velho. Tomei nota da sua vida, Herr Preysing, não pense que deixei passar coisa alguma. E se algum de nós fizesse tantas tolices, em ponto pequeno, como o senhor faz em ponto grande, já teria sido despachado há muito tempo. É que expressão arrogante tem o senhor quando passa no corredor, e quando olha para nós como se não fôssemos seres humanos! E uma vez, a única vez que se achou um erro nos meus livros, e houve um prejuízo de trezentos marcos, nunca me esquecerei da maneira grosseira com que o senhor se dirigiu a mim. E os oitocentos operários que o senhor despediu ainda estão até hoje cuspindo por trás do senhor, pode ficar certo. E quando o senhor chega no seu automóvel, com o escapamento aberto, para nós respirarmos um ar bem viciado, o senhor fica pensando que é alguma coisa. Mas para mim o senhor é...

Kringelein desviou-se do assunto. Embaralhou os fatos e o ódio de vinte e sete anos, coisas importantes e insignificantes, verdade e fantasia, coisas reais e boatos do escritório. O que ele desenrolou nesse quarto de hotel era, em resumo, a queixa de um homem delicado e malsucedido na vida, contra um outro, que fizera o seu caminho de modo simples e com certa brutalidade, uma queixa com base, mas injusta e de um enorme ridículo. Preysing, por seu lado, incapaz de qualquer compreensão humana, foi ficando cada vez mais encolerizado; quando Kringelein tocou nas dívidas do seu tempo de aprendiz, na pequena e escura mercearia de Herr Sauerkatz, chegou a sentir tonturas, e teve medo de uma congestão. Ouvia o forte latejar da própria respiração, passando pela garganta. Via tudo vermelho e confuso, de tal modo as veiazinhas de seus olhos se encheram de sangue. Deu dois passos em direção a Kringelein, agarrou-o pelo colete e sacudiu-o de um lado para outro como uma trouxa de roupa. O chapéu novo de Kringelein caiu ao chão, e Preysing o pisou como se pisasse um animal. É estranho, mas Kringelein sentiu um prazer esquisito com essa grosseria. "Bata em um homem sem defesa e às portas da morte, isso está de acordo com a sua pessoa", pensou ele, quase satisfeito. A Flaemmchen, por trás da bandeja de chá do hotel, murmurava de si para si: — Não... não façam isso.

Preysing empurrou Kringelein de encontro à parede e escancarou a porta:

— Basta! — gritou. — Cale a boca. Saia. Imediatamente. O senhor vai ser despedido. Eu o despeço. Está despedido. O senhor está despedido.

Kringelein, que apanhara o chapéu no chão, ao ouvir essas palavras parou entre as duas portas, o rosto branco como papel; a porta interna estava aberta e a externa ainda fechada, e ele, com as costas trêmulas e cobertas de suor apoiadas de encontro à madeira envernizada de branco, começou a rir, escancarando a boca diante do rosto desfigurado de cólera de Preysing.

— O senhor me despede? Está me ameaçando? O senhor não pode me despedir, não me pode fazer nenhum mal, Herr Preysing, nada, absolutamente nada. Estou doente. Estou gravemente doente, está ouvindo? Vou morrer, só tenho algumas semanas de vida, ninguém pode me causar mal nenhum! Até o senhor me despedir, já estarei morto! — exclamou ele às gargalhadas, sacudindo-se todo, e com os olhos rasos de lágrimas. A Flaemmchen levantou-se do sofá e inclinou o corpo para a frente. Preysing também inclinou o corpo, seus punhos cerrados caíram ao longo do corpo, e em seguida ele pôs as mãos nos bolsos das calças.

— Homem de Deus — disse ele em voz baixa —, o senhor está louco? E não é que o sujeito está rindo? Acho que esse sujeito fica alegre por estar gravemente doente. O senhor ficou maluco?

Kringelein, ao ouvir essas palavras, tornou-se incontinenti sério, pensativo, e levemente embaraçado. Conservou-se por um instante entre as duas portas, lançando um rápido olhar ao pequeno apartamento, ao vulto da Flaemmchen, que um raio de sol iluminava perto da janela, ao corpulento e já aplacado diretor-geral, que conservava as mãos nos bolsos das calças, entrevendo também o quarto de dormir aberto, com o banheiro ao lado. Tudo isso o desmoralizado Kringelein avistou confusamente, através do tremular das indesejáveis lágrimas, que o envergonhavam. Ele se inclinou.

— A senhora queira me desculpar, se a importunei — disse ainda, com sua voz aguda e agradável.

Preysing, com a consciência de homem correto a lhe pesar, considerou isso uma insinuação ordinária e baixa. Tirou os punhos dos bolsos.

— Saia — disse apenas.

Mas Kringelein já tinha desaparecido. Preysing deu alguns passos de um lado para outro, rangendo os sapatos. Suas fontes incharam, e sua testa ficou rubra.

— Então? — perguntou a Flaemmchen.

De súbito, o diretor-geral correu à porta, escancarou-a e, trombeteando como um elefante excitado, gritou em meio ao silencioso corredor:

— O senhor será encontrado! Vamos observá-lo! Vamos procurar onde foi que roubou o dinheiro para vir aqui vagabundear! Seu comunista! Malandro! Malcriado, sem-vergonha e ordinário! Vou mandar prendê-lo... é isso mesmo!

Mas Kringelein não estava mais ao alcance da vista ou do ouvido de ninguém.

A Flaemmchen, que durante todo o tempo não abrira a boca, disse, finalizando:

— Para dizer a verdade, era bem simpático esse homem. Acabou até chorando.

— Fique com as meias, está tão bonita, assim — disse Preysing, sentado na chaise-longue do quarto 72, ocupado pela Flaemmchen.

— Não — replicou ela. — Não gosto disso. Não posso ficar andando no quarto só de sapatos e meias.

O clarão do abajur iluminava seu corpo em flor, pondo sombras purpúreas em seu dourado fosco. Os joelhos e os ombros refletiam-se num suave sombreado, na carne macia e arredondada. Ela sentou-se à beira da cama, tirou primeiro os sapatos azuis, depois enrolou nas pernas, com a máxima seriedade e cuidado, as meias novas de seda, tirando-as dos pés. A luz escorreu na concavidade delicada de seus seios, quando ela se inclinou, e suas vértebras se movimentaram com agilidade. Preysing observou esses fenômenos, prendendo a respiração.

— Você é uma belezinha — disse ele, sem ousar levantar-se do seu incômodo assento.

A Flaemmchen fitou-o por sobre os ombros, inclinando a cabeça com complacência, e encorajando-o. Levou as meias a uma cadeira, onde já colocara o vestido e as poucas peças de lingerie de crêpe-de-Chine, muito bem dobradas, como uma colegial ajuizada. Preysing levantou-se, por fim, pondo-se de pé sobre seus sapatos rangedores, e aproximou-se dela. Estendeu cuidadosamente o dedo indicador, sobre o qual havia um montinho de pelos claros, e tocou com a maior precaução as costas da Flaemmchen, como se ela fosse um animal estranho, ainda não domado e de quem se desconfia. A Flaemmchen sorriu.

— Então? — disse amavelmente.

Estava um pouco nervosa e impaciente. Do seu lado, ela tinha a máxima boa vontade em cumprir o seu contrato oral, ponto por ponto. Afinal, uma pessoa correta não podia receber mil marcos, uma viagem à Inglaterra, um tailleur novo e várias outras coisas sem oferecer nada em troca. Mas esse diretor-geral era tão desajeitado, já estava a girar como um saca-rolhas há duas noites — era assim pelo menos que a Flaemmchen chamava a corte tímida e cerrada de Preysing — e isso era realmente desagradável. Ela tinha a sensação de que um dentista extremamente inábil ia lhe obturar um dente. Bem gostaria que o pior já tivesse passado, mas a coisa se arrastava, não saía do lugar, enervava-a. Fez pressão com as costas na mão de Preysing, mas o medroso indicador já havia voltado ao bolso do paletó, onde por enquanto estava descansando da sua ousada aventura, ao lado da caneta-tinteiro. A Flaemmchen suspirou, e virou-se de frente para o diretor-geral. A perfeição do seu corpo nu o intimidou ao mesmo tempo.

— Veja só, agora eu a estou vendo na realidade. Agora posso vê-la, realmente — disse ele, angustiado.

O corpo da moça respirava um frescor tão puro e um asseio que provocou no diretor-geral mais medo do que embriaguez.

— É engraçado, na fotografia da revista você parecia bem diferente do que é — disse ele, meio confuso.

— Diferente? Diferente em quê?

— Mais coquette. Tinha assim um sabor picante, você me entende?

A Flaemmchen entendeu-o. Percebeu a desilusão oculta causada pela sua sóbria inteireza física, e percebeu também as inibições do sangue burguês e pesado de Preysing, já desabituado dessas coisas, mas nada podia fazer. "Não posso deixar de ser eu mesma", pensou ela. E disse:

— Pois é, para nos fotografar, os fotógrafos nos põem em atitudes de macacos. E depois ainda retocam. O senhor gostou mais da fotografia do que de mim?

— Que ideia! Você é uma belezinha — repetiu Preysing, que possuía um reduzido vocabulário de termos carinhosos. — Mas por que é que você não me trata por "você"? Por favor!

A Flaemmchen sacudiu pensativamente a cabeça.

— Ah, isso não — disse ela.

— Não? E por que não?

— Porque... porque não. Isso eu não posso fazer. Isso eu não faço. O senhor é um estranho para mim, como é que eu vou tratá-lo por "você"? Em geral, eu sou muito... faço tudo o que o senhor quiser. Mas tratá-lo por "você" não é possível.

— Você é uma criaturinha engraçada, Flaemmchen

— disse Preysing, observando a pele nua da menina, em que a luz se refletia, e sua boca pintada. — É preciso conhecê-la a fundo!

— Engraçada, nada — disse a Flaemmchen amuando. Sua castidade era de uma espécie diferente, só dela.

— A gente precisa saber afastar-se com dignidade — procurou ela explicar. — Posso viajar com o senhor para a Inglaterra, e tudo o mais; mas nada disso deve transparecer. Tratar-se por "você" compromete. Se daqui a seis meses eu me encontrar com o senhor, direi: "Bom dia, senhor diretor-geral". E o senhor diz: "Essa moça é a secretária que trabalhou para mim em Manchester". Assim está tudo em ordem. Mas tratar-se por "você"... para o senhor também não seria agradável se eu o visse em companhia de sua senhora e dissesse: "Alô, benzinho", ou "alô, queridinho", ou, "menino, como vai você?"


14

 

Na verdade, o diretor-geral se encolheu todo ao ouvir essas palavras. Só faltava mesmo que lhe viessem agora recordar a sua Mulle. No entanto, a sensação da coisa proibida, do pecado, dos caminhos escusos e do vício fluiu como uma onda de calor em suas veias, já com a propensão à arteriosclerose das pessoas bem alimentadas. Preysing sentou-se na cadeira mais próxima e suspirou. A cadeira também gemeu. As tábuas do assoalho rangiam, os móveis e as portas estalavam, sob a pressão do corpo de Preysing. Ele estendeu as mãos e, num acesso de excitada coragem, pousou-as na delicada curva acima das coxas da Flaemmchen. As palmas de suas mãos, extasiadas e ansiosas de prazer, em vez do contato frouxo que esperavam, sentiram uma superfície firme, elástica, como elástico esticado. Puxou a Flaemmchen para as suas pernas abertas, que pareciam querer tremer, o que ele impediu, porém.

— Que músculos vocês todas têm! Como rapazes! — murmurou ele com voz pegajosa.

— Quem? Nós todas?

— Você... e as outras meninas que eu conheço — respondeu Preysing, pensando em suas filhas, Babe e Pepsin, vestidas de maios.

A Flaemmchen já estava sentindo frio, e sentia um certo conforto ao contato do corpo quente de Preysing; abandonou então o sóbrio "senhor", passando a empregar uma fórmula intermediária:

— Vejam só. Ele conhece outras meninas! — disse ela, brincando com os cabelos de Preysing, que na véspera o barbeiro tinha cortado com um corte moderno e citadino, pondo neles uma agradável loção. "Ora, a coisa já vai caminhando", pensou a Flaemmchen ao mesmo tempo.

— Naturalmente que eu conheço outras meninas. Que pensa você de mim? A gente não é de papelão. Vai-se buscá-las junto aos moços bonitos no chá das cinco. Veja como eu sou forte! — declarou Preysing exibindo o seu bíceps. Sentia-se de novo cheio de entusiasmo, como na véspera, ao sair da bem sucedida conferência, quando se atirara meio tonto a essa aventura incrível. — Veja como sou forte, veja só — repetiu ele, apontando a musculatura, diante da Flaemmchen.

Ela lhe fez a vontade, apalpando seu músculo. Realmente, observou por debaixo da manga de sarja um bíceps fortíssimo.

— Hum — disse a Flaemmchen com respeito —, é de ferro!

Levantou-se dos joelhos incômodos de Preysing, deu uns passos para trás, colocando as mãos cruzadas na nuca, e depois fitou o diretor-geral com as pálpebras semicerradas. Em suas axilas havia os mesmos caracoizinhos louros e leves, como na testa. Preysing sentiu de repente seu pescoço encolher-se.

— Você vai ser boazinha para mim? — disse, num abafado sussurro.

— Vou, sim, como não? — respondeu a Flaemmchen, muito gentil e convidativa.

Em um segundo, o diretor-geral atirou-se sobre ela, com a expressão de um homem que arrebentou as cordas que o prendiam, que derrubou muros, que fugiu da prisão. Fugia de si mesmo, esse homem correto, consciencioso e refletido. Subiu aos ares como um foguete, e foi parar nos braços da Flaemmchen. "Ora vejam", pensou a Flaemmchen, um tanto sensibilizada pela entrega total do transtornado Preysing, pelo medo e a paixão que ele demonstrava; a moça colocou os braços em volta da nuca do diretor, e ele a sentiu bater-se contra seu corpo, como vagas cálidas, em que ele se afogou deliciado, enquanto textos de telegramas, de uma infinidade de telegramas, giravam diante de seus olhos fechados, no princípio com uma cor grená, depois azul-escura, para desaparecerem por completo, quando os lábios pintados da Flaemmchen se apossaram com avidez da sua boca.

A noite já ia alta. Vagos sons da música de dança do pavilhão amarelo penetravam como uma vibração melódica nas paredes do Grande Hotel. Herr Senf já acabara o serviço, deixando a portaria entregue ao porteiro da noite. O Dr. Otternschlag tinha ido para o seu quarto, onde se deitara de olhos fechados e de boca aberta, como uma múmia embriagada. Sua maleta estava preparada para a viagem definitiva, mas nessa noite ele também não criara coragem para preencher a última e pequena formalidade. No 68 uma máquina de escrever pertinaz batia o seu tique-taque; o representante de uma companhia americana de cinema se instalara nesse quarto, e no leito de metal que acolhera a noite de amor da Grussinskaia havia pilhas de tiras de celuloide, que o americano examinava, enquanto ia terminando sua correspondência comercial. O tique-taque da máquina podia ser ouvido até no 70, onde Kringelein estava sentado na banheira, observando um tablete de sal de banho que se dissolvia borbulhando dentro da água, refletindo-se no esmalte branco. Kringelein estava triste, e por isso cantarolava em voz baixa, timidamente, para criar coragem. Como uma criança na floresta, Kringelein cantava na banheira. Esse dia tinha sido desagradável e decepcionante, a discussão com Preysing lhe custara muitas forças, deixando-o murcho e abatido. E o pior era que Gaigern, aquele dínamo, aquela fonte de energias, esse homem despreocupado e de sangue quente, que transmitia calor, com seu tempo de cento e vinte quilômetros, se tornara invisível. Kringelein, dentro da água quente, que aplacava as dores, tinha a impressão de já ter lido e virado a última página de sua vida, a impressão de que agora nada mais viria, absolutamente nada.

O groom 18, Karl Nispe, veio subindo de mansinho a escada, parava, subia de novo, parava, subia de novo. Suas olheiras estavam tão escuras que pareciam pintadas. Engolia a saliva, com a sensação nervosa de apetite que atormenta quase todos os empregados de hotéis. Chegava de um beco miserável, de um pobre aposento, para o seu serviço no hall do hotel, com as colunas, os tapetes, o repuxo veneziano, e depois desaparecia de novo na vida apagada de proletário, quando terminava o serviço. Apesar de ter apenas dezessete anos imaturos, ele tinha uma pequena, uma espécie de noiva, que exigia dele coisas que lhe era impossível satisfazer, com o pouco dinheiro que ganhava. Há pouco achara a cigarreira de ouro no jardim de inverno. Conservou-a guardada e escondida por quatro dias, o que era quase o mesmo que tê-la roubado. Ficou se remoendo de remorsos, e agora quer separar-se dela e entregá-la, como se a tivesse achado. Parou diante do quarto 69, com o coração batendo com violência. Tirou o quepe, o que fez seu rosto desuniformizar-se tomando incontinenti uma aparência humana; após ficar parado durante sete minutos, ouvindo as batidas do próprio coração, bateu à porta.

Apesar de o groom Karl Nispe ter visto o Barão Gaigern retirar a chave da portaria há um quarto de hora e dirigir-se em seguida ao seu aposento, não deram resposta à sua batida. O groom hesitou um momento, criou coragem, abriu a porta exterior e bateu na interior. Na cabina entre as duas portas estava pendurado o smoking do barão, para ser limpo. O groom bateu. Nada. Esperou, bateu. Nada. Puxou para baixo o trinco da porta interior, o quarto estava aberto e vazio. O groom Karl, que já conhecia um pouco a vida, deu um assobiozinho surdo, e colocou a cigarreira, que ficara quente na sua mão, no centro da mesa. O quarto estava muito bem arranjado, tendo a lâmpada acesa, e uma atmosfera especial, fresca, diferente da atmosfera dos hotéis, cheirando a mentol, alfazema, cigarros e lilases brancos de estufa. Na escrivaninha estava a fotografia de um cão pastor. No meio do quarto os sapatos de verniz dormiam, com uma expressão de lealdade e satisfação. O groom, arreganhando os dentes num sorriso, farejou impressionado essa elegante atmosfera de rapaz solteiro, aspirando-a com delícia, e depois ficou pensando. De repente, com o coração a bater com violência, ele pegou de novo a cigarreira, meteu-a entre o paletó e a camisa, e retirou-se sem fazer ruído.

No pequeno office, diante de cuja porta ele deslizou, a camareira estava escrevendo uma carta. O segundo andar estava em completo silêncio, e bem lá embaixo zunia o pequeno motor de um ventilador. No pavilhão amarelo chegara a vez de um tango.

No quarto 72, aquele quarto caro de duas camas, que o Diretor-Geral Preysing alugara para a sua secretária, ouviam-se também uns sons vagos da música. Preysing voltou a si, após seu mergulho no aroma de violetas da pintura, do primeiro beijo, e disse:

— Ouça!

— Estou ouvindo há bastante tempo. É a música — disse a Flaemmchen. — Eu gosto de ouvir música ao longe.

— Música? Não é, não. Você não ouviu outro ruído? — perguntou Preysing. Estava todo descomposto, sentado à beira da cama, aguçando o ouvido. Seus supercílios tinham se levantado com a excitação, e em sua testa surgiu um verdadeiro sistema de rugas, gravadas pelos inúmeros anos de negócios complicados. — Continuo a ouvir um ruído — disse ele, inquieto.

— Que ruído, onde? — murmurou a Flaemmchen, que já estava com sono; tentou puxar a cabeça de Preysing, com certa impaciência.

— Ouvi uma batida qualquer — insistiu Preysing, olhando fixamente na direção da porta do banheiro de seu quarto, que ele tinha deixado aberta.

— Também estou ouvindo um ruído — disse a Flaemmchen, pousando as mãos no colete de Preysing. — Estou ouvindo seu coração bater. Ouço-o com toda a clareza, taque, taque, taque.

Realmente, o coração de Preysing batia com um ruído impertinente, em seu peito largo. Eram pancadas surdas e violentas, por baixo da sarja cinzenta. Preysing continuava a olhar para a porta aberta, em cujo verniz se refletiam os reflexos rosados do abajur.

— Largue-me. Vou ver o que é — disse ele, afastando as mãos da Flaemmchen de suas costelas. Levantou-se, e a cama gemeu. A Flaemmchen levantou os ombros por trás dele. Preysing, com duas passadas rangedoras, desapareceu pela porta do banheiro.

Essa porta, essa portinha de madeira branca de uma folha só, devia se conservar fechada, de acordo com o regulamento. Ela separava o apartamento do diretor-geral do da sua secretária. A administração do hotel nada fizera para eliminar essa separação. Pelo contrário. A portinha não tinha trinco, e quando estava fechada não podia ser aberta. Mas Preysing havia usado uma gazua da fábrica, que ele sempre trazia no bolso; abrira a porta, abandonara essa noite o seu quarto sempre em ordem, com a sacola das botinas, as caixas das gravatas, o saquinho da esponja de banho e as incômodas preocupações de marido correto, e, atravessando a portinha, lançara-se a uma aventura inconveniente, de consequências imprevisíveis.

O banheiro, que ele atravessou rapidamente, estava escuro. A água pingava — pong, pong, pong — na banheira. Ao lado, ficava o pequeno dormitório, também escuro e sem nenhum ruído estranho. Preysing parou um instante e apalpou a parede, procurando o comutador. Não o encontrou. Foi tateando até à porta fechada do seu aposento, e de repente parou no meio do quarto, sem respirar. Ele tinha a certeza de ter apagado a luz do quarto — e agora ela estava acesa. Surgiu como um fiozinho por baixo da porta, tremeluziu um segundo diante dos pés de Preysing, na soleira, e desapareceu. Preysing continuou durante um segundo imóvel no meio do quarto, olhando para o lugar onde o risco de luz havia aparecido, agora novamente escuro — na semi-escuridão do hotel, cuja fachada era iluminada pelos refletores, globos de luz e anúncios.

Enquanto estava ali, teve a impressão de que alguma coisa desagradabilíssima, fora do comum, ia acontecer. Ignorava o que seria. Tinha uma vaga impressão de que, no quarto ao lado, aquele empregado meio maluco tinha entrado de novo, como de manhã; agora, ele estava lá, pilhando o diretor-geral numa aventura escusa. Imaginou que esse sujeito maluco, chamado Kruckelein ou Kringelein, ou outro nome qualquer — esse indivíduo suspeito ainda ia lhe causar enormes contrariedades. Denúncias, extorsão, porcarias inimagináveis.

Foi isso que zuniu vagamente pela cabeça atordoada de Preysing, quando, com um violento impulso, ele escancarou a porta de seu quarto.

Lá dentro estava escuro e silencioso. Não havia ninguém ali. Ninguém respirava. Preysing também não respirava.

Estendeu a mão para trás e girou o comutador. No mesmo instante o quarto escureceu, após o curto clarão que o iluminara, tão curto que Preysing nada pôde perceber. Seguiu-se um segundo de extrema tensão nervosa, de uma espera inquietante. O cérebro de Preysing trabalhava com clareza e desesperada velocidade. "Na porta do corredor tem outro comutador", pensou esse cérebro, sem a intervenção de seu dono. "É ali que está o sujeito, e vai apagar a luz se eu a acender."

— Tem alguém aí? — perguntou ele com voz elevada demais, e tão rouco que ele próprio se assustou. Não houve resposta. Preysing atirou-se para a frente, encontrou a escrivaninha, bateu com a canela na madeira, sentindo uma dor medonha, e acendeu a lâmpada da escrivaninha. Depois ficou imobilizado.

Ao lado do guarda-roupa, perto da porta do corredor, estava um homem, um cavalheiro de pijama de seda. Não era o empregado da fábrica, era... Preysing reconheceu o rosto ao clarão verde da lâmpada — era o outro sujeito, o sujeito elegante do hall, aquele do pavilhão amarelo, o sujeito que também dançara com a Flaemmchen. Estava ali ao pé da porta, e fez uma careta à guisa de sorriso, ao ser encontrado num quarto que não era o seu.

— Que quer o senhor aqui? — perguntou Preysing, angustiado. Sentia medo das batidas de seu próprio coração, e seus joelhos formigavam, assim como as pontas dos dedos.

— Desculpe-me — disse o Barão Gaigern. — Parece que errei de porta.

— Que aconteceu? Errou de porta? Veremos isso — disse Preysing com voz rouca. Foi rodeando a escrivaninha; esticara a cabeça ameaçadoramente, como uma fera, e apesar de ver tudo vermelho, percebeu perfeitamente, como por um milagre, que sua carteira não se encontrava mais sobre a escrivaninha, onde ele a depusera pedantemente, antes de ir abrir a porta do quarto da Flaemmchen. — Veremos se é verdade que o senhor errou de porta — ouviu sua própria voz pronunciar, e afastou-se de supetão da escrivaninha.

No mesmo instante o barão estendeu com violência a mão, horizontalmente, visando o rosto de Preysing.

— Se o senhor se mover, eu atiro — disse ele sem elevar muito a voz. Preysing, durante um segundo de loucura, avistou a ponta negra do revólver.

— Que quer você? Vai atirar? — berrou ele. Agarrou na primeira coisa que encontrou e fez um movimento. Sentiu seu braço vibrar no ar um objeto pesado, e atirou-se de corpo inteiro para o golpe. A pancada forte e ruidosa na cabeça do homem ricocheteou em seu próprio braço.

O barão ainda ficou um instante diante de Preysing, com leve expressão de espanto no rosto; depois, seus joelhos desmoronaram, seu corpo caiu ao chão, e finalmente, após o barulho da queda e tudo ficar novamente em silêncio, ficou de borco no assoalho.

— Você vai atirar? Viu agora? — disse Preysing, em seguida. O ar penetrava às golfadas em sua garganta, e ele voltou a si do acesso de cólera e medo, como se voltasse de águas profundas. — Viu agora? — repetiu ao homem estendido no chão, com um tom mais brando, como a se desculpar e a repreender.

O homem não respondeu. Preysing inclinou-se sobre seu corpo, mas não lhe tocou.

— Ei! Que aconteceu com o senhor? Ei! — disse ele a meia voz.

Ouvia agora a música do pavilhão amarelo. Ouvia novamente seu coração latejar, e seu próprio alento. Ouvia até o pong, pong da água, no quarto de banho. Mas o homem caído por terra não emitia nenhum som. Preysing olhou em volta. Em sua própria mão encontrou então o objeto com que tinha dado a pancada. Era o tinteiro de bronze com a águia de asas estendidas. Preysing descobriu manchas pretas nos dedos, e também na pala do paletó. Tirou o lenço do bolso e limpou-se bem, depois de colocar de leve o tinteiro na escrivaninha. Depois voltou para perto do homem estendido no chão.

— Desmaiou — disse em voz alta.

Apossou-se dele uma sensação confusa, de afogamento, um sentimento indefinível, ao ajoelhar-se ao lado do homem; ouviu as tábuas do assoalho rangerem com um som estranhamente vivido e penetrante. "Vou mandar prendê-lo", pensou ele, mas assim descomposto como estava não podia tocar a campainha. Teve um sentimento de desagrado, ao ver que o homem continuava estendido de borco no chão, com o pescoço aparentemente quebrado, e de braços abertos. Procurou o revólver no tapete, mas não o achou. Reinava um silêncio importuno no quarto, que há pouco estivera cheio do barulho da queda e do tombo. Preysing fez um gesto, um esforço sobre si mesmo, e pegou o homem pelos ombros, para deitá-lo melhor, para deitá-lo de costas.

Então viu os olhos abertos de Gaigern. Então viu que Gaigern não respirava mais.

— Mas o que foi que aconteceu? — sussurrou ele. — Mas o que foi que aconteceu? Mas o que foi que aconteceu?

Repetiu várias vezes essa frase, inconsciente e apalermado. Acocorado no tapete ao lado do morto, sussurrava:

— Mas o que foi que aconteceu? Mas o que foi que aconteceu?

Gaigern, com um sorriso no semblante amável, com seu semblante de morto, ouvia sorrindo. Já havia morrido, já havia deixado aquele enorme hotel, desaparecera de um modo total, era impossível ir buscá-lo — mas tinha ainda as mãos quentes, caído de olhos abertos no assoalho do quarto 71. A luz esverdeada da lâmpada da escrivaninha batia em seu rosto de traços belos e distintos, em que ficara gravado um grande espanto.

Foi assim que a Flaemmchen encontrou os dois, quando, após um quarto de hora, se esgueirou pela porta proibida para ver onde ficara Preysing. Aproximou-se descalça, parou na soleira e piscou.

— Que aconteceu? Com quem o senhor estava falando? Está se sentindo mal? — perguntou ela, procurando reconhecer as coisas na semi-escuridão. Preysing começou por três vezes a frase, antes de responder.

— Aconteceu alguma coisa — sussurrou finalmente, com uma voz que ninguém teria reconhecido em Fredersdorf.

— Que aconteceu? Meu Deus, o que foi? Aqui está tão escuro — disse a Flaemmchen, acendendo a luz do forro. O recinto se iluminou com uma luz crua e forte.

— Ah — disse a Flaemmchen, ao ver o rosto de Gaigern. Uma exclamação breve e dolorosa, muito curta. Preysing ergueu os olhos para ela.

— Ele quis atirar contra mim. Eu só dei uma pancada — sussurrou ele. — É preciso chamar a polícia.

A Flaemmchen inclinou-se sobre Gaigern.

— Ele ainda está olhando — disse ela baixinho, como a se consolar. "Ele está morto, mesmo? Era tão bonzinho", pensou ela com simplicidade, bem no íntimo. Estendeu a mão.

— Não se pode tocá-lo antes de vir a polícia — disse Preysing em voz mais alta do que desejava, e já desperto.

Só então a Flaemmchen compreendeu o que se passara.

— Ah — repetiu ela.

Afastou-se dali, sentindo tonturas, com a impressão de que as paredes se aproximavam dela.

Passou correndo através de portas, tropeçou, correu de novo, vendo portas, portas e mais portas.

— Socorro — disse baixinho —, socorro. Todas as portas oscilavam, todas estavam fechadas.

Só uma se abriu.

A Flaemmchen a viu abrir-se, e em seguida nada mais viu.

Às vezes há tanto barulho no corredor do Grande Hotel que os hóspedes se queixam. O elevador sobe e desce aos solavancos, as campainhas dos telefones tocam. Os passantes riem alto demais, um assobia, outro bate as portas com violência, no fim do corredor duas camareiras brigam a meia voz, e se alguém se dirige ao toalete, encontra, muito envergonhado, oito pessoas. Mas outras vezes esse corredor fica completamente mudo e vazio. Pode-se andar nu por sobre as passadeiras, pode-se chamar por socorro — socorro! socorro! socorro! — e ninguém ouve.

Kringelein, que não conseguiu pegar no sono, porque pressentia o despertar das dores de estômago; Kringelein, a quem o sofrimento e a proximidade da morte fizeram ficar com a carcaça fina e o ouvido aguçado; Kringelein ouviu o leve gemido da Flaemmchen, inconsciente, correndo pelo corredor. Não se fingiu de surdo como o cineasta americano do quarto pegado, o 68, mas pulou da cama e abriu a porta.

Nesse instante aconteceu um milagre em sua vida, que lhe iria dar conteúdo, e completá-la.

Nesse instante Kringelein avistou o corpo irreal e perfeito da Flaemmchen, completamente nu, que veio cambaleando em sua direção, caiu com todo o peso nos braços que ele lhe estendera, e ali ficou.

Kringelein, nesse instante, não perdeu a cabeça, nem suas forças o abandonaram sob o peso da mocinha desmaiada. A queda desse corpo quente, de um moreno dourado, entre seus braços, o encheu de um delicioso susto, de um sentimento de carinho sem igual, mas apesar disso ele fez uma porção de coisas acertadas. Pôs um braço sob a nuca frouxa da Flaemmchen, o outro sob os joelhos da menina, e suspendendo com um impulso o corpo, levou-o até sua cama. Depois, fechou as duas portas que davam para o corredor, e respirou profundamente, porque o sangue corria violentamente pelo seu coração. Da mão pendente da Flaemmchen caiu então um objeto, um sapato azul, já meio gasto, de salto alto, que ela apertara até agora ao peito nu. Ela o havia erguido do chão e o levara consigo como um salvado de incêndio ou de um desabamento, como se fosse essa a única peça do vestuário, que salvara de uma catástrofe. Kringelein pegou a mão pendente e colocou-a ao lado do corpo da Flaemmchen, deitada no leito. Lançou um olhar pelo quarto, encontrou o vidrinho de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt e verteu algumas gotas nos lábios da Flaemmchen. Um leve tremor perpassou pela testa da menina, mas seu desmaio era muito profundo, impedindo que ela tomasse o remédio. Mas ela respirava profundamente, e a cada respiro seu os fios encaracolados do cabelo claro erguiam-se delicadamente do travesseiro, para tombarem em seguida. Kringelein correu ao banheiro, mergulhou um lenço na água fria, despejou nele um pouco de água-de-colônia — porque desde a véspera o elegante Kringelein também possuía perfumes — e voltou para perto da Flaemmchen. Umedeceu cuidadosamente seu rosto, as fontes, e em seguida procurou sentir com a mão as batidas de seu coração por baixo da curva firme do seio esquerdo. Ali colocou o pano frio e úmido e depois ficou de pé ao lado da cama, esperando.

Ele ignorava que seu rosto exprimia uma admiração tímida, ilimitada e imensa, enquanto esteve ali a observar a menina. Ele ignorava que por baixo do bigode seus lábios se abriam no sorriso virgem de um meninote de dezessete anos. Talvez ele nem soubesse que nesse momento vivia realmente, vivia de fato. Mas uma coisa ele sabia. Aquele sentimento que o penetrava agora com um ardor e um ímpeto quase doloroso, essa leveza que o acometia, esse fundir-se, essa sensação de tornar-se transparente e de dissolver-se, tudo isso ele conhecia apenas dos sonhos, sem pressentir sequer que existia também na realidade. Na sua narcose se passara algo semelhante, pouco antes do zunido azul se tornar negro; e em segredo, bem no íntimo, Kringelein imaginara a morte assim: uma festividade sem igual, uma coisa perfeita, que não deixa o mínimo resíduo, onde tudo se dissolve. Agora, nesse momento, em presença da menina desmaiada que procurava sua proteção, Kringelein estava muito longe de pensar na morte.

"Isso existe", pensou ele, "isso existe. Uma beleza assim existe realmente. Não é uma pintura como um quadro, não é imaginária como um livro e nem uma ilusão como no teatro. É uma coisa real, um menina nua e maravilhosamente bela, de uma beleza perfeita, de uma perfeita...", ele procurou outra palavra, mas não encontrou nenhuma outra. "Beleza perfeita", foi só o que conseguiu pensar, "beleza perfeita."

A Flaemmchen cerrou as sobrancelhas, estendeu os lábios como uma criança que desperta e, finalmente, abriu os olhos. A lâmpada se refletia num brilho circular muito claro, em suas pupilas; ela piscou, sorriu gentilmente, respirou profundamente e murmurou:

— Obrigada.

Logo a seguir fechou de novo os olhos, que pareciam querer dormir. Kringelein pegou no cobertor que havia escorregado, e o estendeu com cuidado sobre a menina. Depois, trouxe uma cadeira para a beira da cama, sentou-se e ficou à espera.

— Obrigada — tornou a murmurar a Flaemmchen um pouco mais tarde.

Não estava mais inconsciente, mas fazia esforços para pôr ordem em sua cabeça e colocar as coisas em seus devidos lugares. O que a tornava um pouco confusa era o fato de ela confundir o minguado Kringelein à beira da cama com outro senhor, com um dos seus antigos amigos, de quem ela gostava muito, e do qual se separara com enorme tristeza. O pijama de listras azul-claras, e uma vaga e delicada atenção na atitude de Kringelein, foi o que a levou a essa confusão.

— Como foi que eu vim parar aqui? — perguntou a Flaemmchen. — O que você está fazendo perto de mim?

Kringelein levou um susto suave e penetrante ao ouvir o inesperado "você", mas como se encontrava em meio a um milagre, aceitou esse fato com toda a naturalidade.

— Você desmaiou e veio parar aqui — respondeu ele com simplicidade. Então a Flaemmchen percebeu o erro em que caíra, recordou-se de tudo subitamente e sentou-se na cama.

— Desculpe-me — murmurou ela. — Mas aconteceu uma coisa medonha! — Puxou a colcha para perto do rosto, amarrotou-a, levando-a aos olhos, e começou a chorar. Imediatamente os olhos de Kringelein também se encheram de lágrimas, e seus lábios, que estavam sorrindo, se puseram a tremer.

— Que coisa horrível — murmurou a Flaemmchen —, horrível, horrível.

Ela chorava com enorme facilidade, as lágrimas jorravam aos borbotões de seus' olhos, e nesse aluvião ela se desoprimia. Amarrotou a colcha, apertando-a de encontro ao rosto, e cobriu a beirada do pano branco com pequeninas manchas vermelhas em forma de coração, da sua boca pintada. Kringelein ficou a observá-la, e os cantos de seus olhos se apertaram, numa comoção dura e contida. Finalmente, ele levantou a mão e colocou-a na nuca da Flaemmchen.

— Então... então... então? — disse ele. — Não chore... não chore... não chore.

A Flaemmchen olhou para ele com os olhos rasos d'água.

— Ah, é o senhor — murmurou satisfeita.

Só agora reconhecia no vulto que se achava à beira da cama o senhor baixinho, que ontem se mostrara tão tímido ao dançar com ela, e na discussão com Preysing demonstrara tanta coragem. Um sentimento familiar e agradável de estar protegida, no leito de Kringelein, a acometeu, sob as brandas batidinhas da mão do homem em seu pescoço.

— Nós já nos conhecemos — disse ela, entregando-se com inconsciente gratidão de animal à carícia de seus dedos.

Kringelein parou com as palmadinhas e recolheu forças no seu íntimo, uma inesperada porção de forças e de agressividade.

— Que aconteceu com você? Herr Preysing lhe fez alguma coisa? — perguntou ele.

— Não me fez nada — disse a Flaemmchen baixinho —, não me fez nada.

— Quer que vá falar com ele? Não tenho medo de Herr Preysing.

A Flaemmchen olhou para Kringelein, muito rígido e aprumado, e caiu em profundas reflexões. Procurava recordar-se do quadro medonho do quarto 71, os dois homens no chão, sob a luz esverdeada, um morto, estendido, o outro aparvalhado, de cócoras. Mas esse quadro já se apagara em sua alma elástica. Só seus lábios se apertaram ao recordar-se, e a excitação contraiu-lhe os músculos dos braços.

— Ele o matou — murmurou ela.

— Matou? Quem matou? Quem é que foi morto?

— Preysing matou o barão.

Kringelein mergulhou numa profunda zoada, mas dominou-se e voltou de novo à consciência.

— Mas isso... isso não é... não é possível. Uma coisa dessas não pode acontecer — gaguejou ele.

Inconscientemente, colocou ambas as mãos em torno do pescoço da Flaemmchen e puxou seu rosto bem perto do dele. Fitou-a fixamente nos olhos, e ela também fitou fixamente os olhos dele. Finalmente, ela inclinou a cabeça por três vezes, expressiva e silenciosamente. É estranho, mas só depois disso Kringelein acreditou na coisa absurda que ela dissera. Suas mãos caíram.

— Está morto? — disse ele. — Mas ele era... ele era a própria vida, esse homem. Uma pessoa cheia de forças e energia. Como é possível que um sujeito como o Preysing...

Levantou-se e se pôs a caminhar pelo quarto, sem fazer ruído, com os pés magros metidos nos chinelos novos de viagem, os olhos vesgos de excitação. Via Preysing andando no corredor do edifício C em Fredersdorf, sem cumprimentar. Escutava sua voz fria e nasal nas conversas sobre salários, sentia as portas tremerem sob os acessos de cólera do diretor-geral, do qual toda a fábrica tinha medo. Ficou parado à janela diante das cortinas fechadas, mas vendo Fredersdorf através delas.

— Isso tinha de acontecer. Isso tinha de acontecer

— disse, afinal, e o sentimento da justiça cumprida se ergueu em seu corpo consumido de empregado subalterno.

— Agora é a vez dele — acrescentou. — Prenderam-no? Como é que a senhorita sabe de tudo isso? Como aconteceu isso?

— Preysing estava comigo no quarto, e a porta estava aberta; de repente ele se levantou e disse que estava ouvindo um ruído. Então, acho que dormi um pouquinho, porque já estava com muito sono. Depois vi que eles falavam, mas não em voz alta, e depois uma coisa caiu, e depois Preysing não voltou. Então fiquei com medo, e fui ver; a porta estava aberta... e ele estava estendido no chão... com os olhos abertos.

A Flaemmchen tomou de novo da colcha e a levou até seu rosto, que se tornara pálido. Derramou outra torrente de lágrimas pelo falecido Gaigern. Ela não o sabia exprimir, mas tinha a impressão de ter perdido uma coisa belíssima, maravilhosa, que nunca mais, nunca mais seria possível recuperar.

— Ainda ontem ele dançou comigo, e foi tão bonzinho, e agora ele se foi para nunca mais voltar — soluçou ela na escuridão do quente acolchoado de plumas.

Kringelein retirou-se da janela sinistra, com as desagradáveis recordações de Fredersdorf, e sentou-se na beira da cama; pôs mesmo o braço em torno dos ombros da Flaemmchen, e pareceu-lhe uma coisa natural consolar e proteger essa menina que chorava... Ele também estava triste com a morte de Gaigern, uma tristeza calada e dura de homem, apesar de não ter ainda compreendido bem que seu amigo de ontem estava morto, agora.

A Flaemmchen, quando se cansou de chorar, retornou à sensatez de que era feita a sua personalidade.

— Talvez ele fosse realmente um ladrão. Mas isso não era razão para matá-lo — disse em voz baixa.

Kringelein se lembrou do que tinha acontecido com a carteira na noite anterior. "Ele estava precisando de dinheiro", pensou Kringelein. "Talvez tenha passado o dia inteiro atrás de dinheiro. Ele ria e bancava o cavalheiro, mas é provável que não passasse de um pobre-diabo. Pode ter feito isso em desespero de causa. E um sujeito como o Preysing vai matá-lo..."

— Não — disse ele em voz alta.

— Você tinha razão no que disse a Herr Preysing hoje de manhã — começou a Flaemmchen, encostada no braço de Kringelein, sem notar que o tratava de novo por "você". Tinha a impressão de que ele era um velho conhecido, e a palavra lhe veio naturalmente aos lábios. — Assim que conheci Herr Preysing antipatizei com ele — acrescentou.

Kringelein pensou durante alguns minutos sobre a pergunta indelicada que lhe pesava no coração desde a véspera, depois que a Flaemmchen saíra da sala de dança para encontrar-se com Preysing.

— Por que razão você... por que é que você foi ter com ele? — perguntou, finalmente.

A Flaemmchen olhou-o com toda a confiança.

— Por dinheiro, naturalmente — replicou com simplicidade. Kringelein a compreendeu instantaneamente.

— Por dinheiro — repetiu ele, não como uma pergunta, mas como uma resposta.

Sua vida tinha sido uma luta constante pelo dinheiro; como não iria ele compreender a Flaemmchen? Então passou também o outro braço em torno do seu corpo, encerrando-a como num anel, e a Flaemmchen fez-se pequenina, reclinando a cabeça no peito de Kringelein — podia sentir suas costelas por baixo da seda fina do pijama.

— Lá em casa eles não entendem isso — disse a Flaemmchen. — Em minha casa a vida não é fácil, para mim. Há sempre brigas com mamãe e minha irmã. Já estou sem emprego há um ano, e é preciso fazer alguma coisa. Para trabalhar no escritório eu sou bonita demais, é o que dizem, sempre sai encrenca por causa disso, e as grandes firmas não gostam de aceitar moças bonitas, .. têm razão. Para manequim, sou alta demais... procuram tamanho quarenta e dois, no máximo quarenta e quatro. E para o cinema... não sei o que se passa. Talvez eu não seja suficientemente coquette. Mais tarde isso não tem importância, pelo contrário, é só no começo. Eu ainda vou conseguir, ainda hei de conseguir. Mas não posso envelhecer, já tenho dezenove anos, e é preciso fazer o possível para tentar uma carreira. Há muitas pessoas que dizem que não se deve ficar com um diretor-geral como esse por dinheiro. Pelo contrário... só mesmo por dinheiro! Não consigo achar isso errado. Continuo a ser a mesma, ninguém me tira pedaço, mesmo que eu faça pequenos favores e me mostre gentil. Quando a gente fica sem emprego um ano, correndo as agências de filmes, correndo atrás de anúncios, a roupa de baixo vai acabando, sem mais nada para vestir... e as despesas continuam... não tenho culpa: o meu ideal é andar bem vestida. Ninguém acredita o quanto me torna feliz um vestido novo. Muitas vezes fico a imaginar vestidos dias e dias, para usar mais tarde. E depois as viagens. Sou louca por viagens, adoro conhecer outras cidades... ah! Em casa tenho uma vida dura, pode acreditar. Não gosto de me queixar, tenho gênio bom e suporto muita coisa. Mas às vezes a gente tem vontade de fugir correndo, mesmo que seja com o sujeito mais cacete e porco deste mundo, só para ir embora, Por dinheiro... é claro, naturalmente que é por dinheiro. O dinheiro é uma coisa importantíssima, e quem disser o contrário está mentindo. Preysing queria me dar mil marcos. Isso é muito dinheiro. Com esse dinheiro eu poderia fazer qualquer coisa. Mas agora está tudo acabado. Agora está tudo como antes. E em casa é uma coisa pavorosa.

— Conheço tudo isso. Posso imaginar. Compreendo perfeitamente — disse Kringelein. — Em casa tudo é uma sujeira. Só com dinheiro a gente pode se tornar um homem limpo. Nem o ar é bom, quando a gente não tem dinheiro, porque não se pode arejar a casa, o aquecimento custa caro. Não se pode tomar banho, porque a água quente gasta muito carvão. As navalhas de barbear estão velhas e arranham a cara. É preciso fazer economia com a roupa, nada de toalha de mesa nem de guardanapos. Faz-se economia de sabão. A escova do cabelo já não tem mais pelos, a cafeteira está rachada e desbeiçada, as colheres já estão pretas. Nos travesseiros há pelotas de penas estragadas, de penas velhas. O que quebra fica quebrado. Não se manda consertar nada. É preciso pagar as apólices. E não sabemos que vivemos mal, pensamos que tem que ser necessariamente assim.

Deitara a cabeça sobre a cabeça da Flaemmchen, e rezaram assim a litania da pobreza, embalando-se ao som das palavras monótonas. Ambos estavam cansados e excitados, quase adormecidos.

— O espelhinho quebrou — continuou a Flaemmchen — e não podemos comprar um novo. Temos que dormir na chaise-longue por trás do biombo. A casa está sempre cheirando a gás. Todos os dias sai uma discussão com o dono da casa. Vivem a nos atirar na cara a comida que comemos e não podemos pagar, porque estamos sem emprego. Mas eles não vão acabar comigo! Eles não vão me vencer! — disse ela com energia. Esgueirou-se dos braços de Kringelein e sentou-se muito ereta na cama, fazendo a coberta cair sobre os joelhos de Kringelein, quente pelo contato da sua pele jovem. Kringelein recebeu esse calor como uma dádiva preciosa.

— Hei de vencer — disse a Flaemmchen, soprando novamente o caracol de cabelo para cima, sinal de que a leviandade e a força vital lhe retornavam. — Não preciso do diretor-geral, hei de vencer!

Kringelein estava às voltas com uma série de complexos pensamentos, e quando terminou de refletir tentou exprimi-los por palavras.

— Quanto à questão do dinheiro, nos últimos tempos é que reparei bem — explicou hesitante. — A gente se torna uma pessoa completamente diferente, quando tem dinheiro, quando pode comprar as coisas. Mas nunca imaginei que também se pudesse comprar isso...

— Isso o quê? — perguntou a Flaemmchen, sorrindo.

— Isso, ora. Uma coisa como você. Uma coisa belíssima. Uma coisa maravilhosa. Gente como eu nem sabe que existe uma coisa assim como você. Gente como eu não conhece nada, não vê nada, e pensa que o casamento, ou coisa semelhante, tem que ser essa coisa sórdida, esfarrapada, feia e sem alegrias, ou então uma coisa baixa, como nos prostíbulos que existem aqui. Mas quando vi você deitada sem sentidos... mal tive coragem de olhá-la. Deus do céu, que beleza! Deus do céu, que beleza! Existe realmente uma coisa dessas, pensamos, Deus do céu, existem milagres, verdadeiros milagres!

É isso que se passa com Kringelein. Sentado à beira da cama, ele não fala como um auxiliar de guarda-livros de quarenta e sete anos, mas como um homem apaixonado. Sua alma oculta, sua delicada e tímida alma esgueira-se do seu casulo e movimenta suas asinhas novas. A Flaemmchen rodeia com os braços os joelhos erguidos, e o ouve com um sorriso admirativo e incrédulo. A intervalos há ainda um soluço em sua garganta, como acontece com uma criança que chorou. Kringelein não é nem jovem, nem bonito, nem desembaraçado, nem sadio ou forte, não tem uma única qualidade para ser um amante. E se suas palavras gaguejadas e simples, seus olhos vesgos de febre, seus gestos tímidos de posse, que ficam a meio caminho, conseguem causar impressão sobre a Flaemmchen, a razão deve ser procurada nas camadas mais profundas do seu ser. Talvez fosse, somando tudo, o conhecimento do sofrimento, o contínuo desejo de sorver um trago de vida, e ao mesmo tempo a silenciosa disposição de aceitar a morte o que transformava essa pequena ruína humana de pijama listrado azul-claro em um homem com características másculas e digno de amor.

Isso não quer dizer que a Flaemmchen pudesse se apaixonar por Kringelein, não, a vida está muito longe de produzir doçuras assim. Mas nesse quarto de hotel ela sente uma espécie de proximidade e de proteção, alguma coisa que parece ter mais consistência do que as improvisações de sua movimentada existência de inseto. Kringelein fala como uma torrente, despeja do coração toda a sua vida, e nesse instante ele tem a impressão de que sua existência só teve uma finalidade e uma meta: o milagre que viera ao seu encontro, a beleza perfeita que repousa em seu leito, a mocinha que está ali, que passara dos braços de Preysing para os seus.

A Flaemmchen não tem uma opinião muito elevada de si mesma. Conhece o seu preço. Dez marcos para uma pose fotográfica. Cento e quarenta marcos por um mês de trabalho de escritório. Quinze Pfennige por uma página datilografada com cópia. Um casaquinho de pele de duzentos e quarenta marcos por uma semana de aventura amorosa. Deus do céu, onde podia ela ir buscar o respeito por sua própria pessoa? Mas nas palavras de Kringelein ela se descobria a si mesma pela primeira vez, enxergava-se como num espelho, via sua linda pele dourada, sua cabeleira de ouro claro, todos os membros de seu corpo, cada um uma beleza e uma bênção, sua frescura, sua existência despreocupada e ao léu — descobria-se a si mesma, como se descobrisse um tesouro enterrado.

— Mas eu não tenho nada de extraordinário — murmurou ela com modéstia, corando intensamente.

Em meio ao entusiasmo das palavras de Kringelein, ela levou um susto e se encolheu toda, quando ouviu-o pronunciar o nome de Preysing. Ambos tinham esquecido, nessa última meia hora, o que acontecera sob o clarão esverdeado da lâmpada, no quarto 71. Agora, subitamente, voltava a consciência de todo aquele horror.

— Não volto para lá — sussurrou a Flaemmchen.

— Já devem tê-lo prendido. Vão querer me prender também. Fico escondida aqui.

Kringelein deu uma risada nervosa.

— Por que haveriam de querer prender você? — perguntou, não sem receio. Agora ele via Gaigern com toda a clareza diante de si; Gaigern no carro, Gaigern no avião, na mesa de jogo, ao clarão da luz do ringue de boxe, Gaigern se inclinando sobre ele, Gaigern entregando-lhe de novo a carteira, Gaigern passando pela porta giratória.

— Por que razão eles iriam prender você? — perguntou ele de novo.

A Flaemmchen inclinou a cabeça, muito séria.

— Como testemunha — disse, sem consciência do que estava dizendo.

— Você acha...? — perguntou Kringelein só por perguntar, vendo Gaigern, só Gaigern, através da moça.

De repente, ele se viu de novo em meio à velocidade desabalada, ao tempo perigoso em que passara o dia anterior.

— Você não precisa ter medo. Vou arranjar as coisas para você — disse apressadamente. — Você vai... você vai ficar mesmo comigo? Você vai se sentir feliz? Não quero mais nada, só quero que você se sinta feliz. Você quer? Tenho dinheiro. Tenho bastante dinheiro. Dá para muito tempo. Posso ganhar mais ainda, se jogar. Vamos viajar. Vamos a Paris. Para onde você quer ir?

— Meu passaporte está visado para a Inglaterra.

— Está bem, está bem. Para onde você quiser. O que você quiser. Você vai ter muitos vestidos. A gente precisa ter vestidos e dinheiro. Vamos ser bem gastadores e levianos, você quer? Vou lhe dar o dinheiro que ganhei no jogo, três mil e quatrocentos marcos. Mais tarde você poderá ter mais ainda. Não diga nada, não diga nada, fique bem quietinha aí deitada. Agora eu vou para lá. Vou ver Preysing. Vou ver o que aconteceu com ele. Você acredita que vai passar melhor comigo do que com Preysing? Prefere ficar comigo a ficar com Preysing? Agora vou para lá, e trago as suas coisas. Pode confiar em mim. Não tenha medo.

Kringelein desapareceu no banheiro, suas mãos voaram enquanto ele se vestia, com o jaquetão preto e a gravata escura de seda pesada. Provocava um sentimento estranho, vestir-se assim a altas horas da noite, enquanto as ruas já iam silenciando, e os canos do aquecimento central esfriavam. A Flaemmchen, sentada no leito de Kringelein, colocou o rosto entre os joelhos e expeliu demoradamente o ar dos pulmões. Sua cabeça, após a vertigem que ela tivera, começava a doer, e sua garganta estava seca. Desejava comer uma maçã e fumar um cigarro. Apanhou o vidro de Bálsamo de Vida do Dr. Hundt, e aspirou, mas não gostou do cheiro de canela. Kringelein voltou do banheiro com o ar de um senhor distinto, esse Kringelein de Fredersdorf, que tinha picado lenha diariamente para a mulher, durante vinte anos.

— Já vou indo. Você fique aqui sossegada — disse ele, colocando o pince-nez diante dos olhos claros, brilhantes e vesgos, cujas pupilas tinham se tornado grandes e negras. Ao chegar à porta ele voltou ao leito, ao pé do qual se ajoelhou repentinamente. Com as mãos na testa, pôs-se a murmurar qualquer coisa que a Flaemmchen não entendeu.

— Sim. Como não? — respondeu ela. — Com muito gosto. Sim.

Kringelein levantou-se, limpou o pince-nez na beirada do lenço pendente do bolsinho do paletó, e saiu do quarto. A Flaemmchen ouviu-o fechar a porta externa, e depois o barulho de seus passos, afastando-se no corredor. E depois, bem ao longe, a música do pavilhão amarelo, onde ainda estavam as mesmas pessoas, dançando há três horas.


15

 

 

Gaigern está estendido no tapete do quarto 71, morto. Nada mais lhe pode acontecer. Ninguém mais no mundo pode atormentá-lo e persegui-lo, jamais esse Barão Gaigern irá parar na penitenciária, o que é ótimo. Nunca irá a Viena, onde a Grussinskaia espera por ele, o que é muito triste. Mas esse homem belo e forte, esse marginal, vivera o circuito de sua vida cheia de peripécias. Foi uma criança numa campina, um menino montando a cavalo, um soldado na guerra, um lutador, um caçador, um jogador, um homem que amou e foi amado. Agora está morto. Um pouco de umidade conservou-se em seus cabelos, há uma mancha de tinta em seu pijama de seda azul-escuro, e um sorriso de espanto em sua boca. Nos pés traz meias grossas de lã, meias de ladrão, e em sua mão direita, agora fria, o corte das últimas aventuras não poderá mais cicatrizar-se.

Preysing também ouviu a música lá de baixo, que o atormentava imensamente. Tudo o que ele pensava tomava o ritmo sincopado que a Eastman Jazzband tamborilava pelas paredes do hotel, lá no pavilhão amarelo. Nada poderia combinar menos do que aquilo que tocavam lá embaixo a noite toda e o que pensaram ali em cima a noite toda.

"Sou um homem arrasado", pensava Preysing. "Acabou-se. Está tudo acabado. Não posso ir para Manchester. O negócio com a Chemnitz vai por água abaixo. A polícia vai me prender. Vai haver interrogatório. Investigações. Foi em defesa própria, está bem, foi em defesa própria. Não vai me acontecer nada. Mas há o resto. Há aquela mulher. Vão interrogá-la. Estive com ela, a porta estava aberta, continua aberta."

Preysing estava sentado no ângulo extremo do quarto, numa peça esquisitíssima do mobiliário, uma cesta que deveria servir para a roupa suja, com um assento acolchoado em cima. Ele acendera todas as lâmpadas do lustre, mas não se atrevia a virar-se e olhar para trás. Era forçado, de modo inexplicável, a avistar incessantemente o cadáver de Gaigern; tinha a impressão de que aconteceriam coisas terríveis no momento em que ele virasse a cabeça para observar o que sucedera à porta aberta.

"A porta estava aberta. Não devo fechá-la. Tenho que deixar tudo como estava, até chegar a polícia. Amanhã vai sair nos jornais que eu tinha uma mulher em minha companhia aqui no hotel. Mulle vai ficar sabendo de tudo. As crianças também, é claro, as crianças também. — Meu Deus, ó meu Deus, que será de mim, qual será o meu fim? Mulle vai querer divorciar-se, ela não compreende essas coisas, não tem a mínima compreensão para essas coisas. Mas tem razão, tem toda a razão de querer se divorciar. Uma coisa dessas não pode acontecer, de modo algum — como poderei tocar em minhas filhas com estas mãos?"

Olhou as palmas contraídas de suas mãos, cheias de tinta. Sentia um desejo violento de ir ao banheiro e lavar as mãos, mas não tinha coragem de desviar os olhos do cadáver. — Hallo, my baby, tocaram ao longe, muito ao longe.

"Vou ficar sem as crianças, vou ficar sem minha mulher. O velho vai querer me expulsar da firma, é claro. A um homem comprometido como eu, ele não permite que fique na firma. E tudo por causa de uma mulher dessas, só por isso. Talvez ela estivesse de parceria com esse homem, e me tenha atraído ao quarto dela para que ele pudesse praticar o roubo aqui. É isso, vou dizer isso ao juiz. Foi em legítima defesa, ele queria atirar."

Preysing abaixou-se e olhou pela milésima vez as mãos do cadáver de Gaigern. Estavam vazias, a direita violentamente cerrada, a esquerda pendente do pulso: ambas completamente desarmadas. Preysing pôs-se de joelhos e procurou por todo o tapete iluminado. Nada. O revólver com que o homem o ameaçara tornara-se invisível — ou nem mesmo existira. Preysing foi se arrastando de novo ao seu banco, com a sensação de estar enlouquecendo. Seus pés tinham perdido o solo firme da existência burguesa, desde o instante em que ele atirara à mesa, diante dos homens da Chemnitz, aquele sinistro telegrama, e desde então ele cambaleava num despenhadeiro, de aventura em aventura. Sentia o abismo vertiginoso que o atirava de sua vida, que deslizava antes sobre carris, às trevas e ao vácuo. Conhecia homens iguais ao que ele era agora: existências marginais, com um passado de riquezas, e com ternos sórdidos, à procura de emprego, de escritório em escritório. Via-se a perambular, abandonado, mal vestido, sozinho e com má reputação. Sua pressão, que não era normal, provocava-lhe dores latejantes na nuca, e um zumbido nos ouvidos. Preysing, arrasado, durante alguns minutos dessa noite desejou ter um ataque de apoplexia, que viria conciliar tudo. Mas não aconteceu nada parecido. Gaigern continuou morto, e ele vivo.

— Meu Deus! — gemeu ele. — Meu Deus, Mulle, Babe, Peps, ó meu Deus!

Sentia vontade de esbofetear o próprio rosto, mas não teve coragem. Sentia medo das palmas enegrecidas de suas mãos.

Assim o veio encontrar Kringelein, quando, pouco depois de duas horas — a música acabara — entrou no quarto, após cautelosas batidas. Os lábios de Kringelein, essa noite, estavam completamente brancos, mas suas faces estavam rubras e luzidias, de um vermelho intenso. Encontrava-se em um estado de êxtase maravilhoso, um sentimento de solenidade e de reserva se apossara dele; tinha a sensação de estar corretíssimo e impecável no seu jaquetão preto, e com sua cortesia de cavalheiro distinto.

— Aquela senhora me mandou aqui — disse ele. — Contou-me que aconteceu alguma coisa aqui. Queria ser útil, de algum modo, ao senhor diretor-geral.

Só depois dessas palavras ele olhou para o cadáver de Gaigern. Não se assustou. Admirou-se apenas. Desde que saíra do quarto 70, viera-lhe ao pensamento a ideia de que tudo não fosse verdade; Gaigern estaria vivo ainda, Preysing não era um assassino, e a Flaemmchen, lá no quarto dele, tinha imaginado ou sonhado tudo aquilo. Mas lá estava realmente Gaigern, e era também real que a Flaemmchen estava à espera de Kringelein, lá no quarto. Inclinou-se sobre o morto, tomado de uma estranha e cálida comoção, de um calor fraternal. Quando se ajoelhou ao pé de Gaigern, teve forte emoção ao sentir o aroma perfumado de alfazema e de cigarro inglês, em meio ao qual ele vivera um dia importantíssimo, um dia inesquecível e luminoso. "Obrigado", pensou ele, com um soluço seco na garganta.

Preysing ergueu para ele uns olhos aparvalhados e erradios.

— Não se pode tocar no cadáver antes que venha a polícia — disse ele inesperadamente, quando Kringelein estendeu a mão para fechar os olhos do amigo. Kringelein, sem dar atenção a Preysing lá no seu canto, fez o gesto suave e solene. "A Flaemmchen também fará o mesmo comigo", foi o pensamento que o acometeu, um pensamento que ele não pôde evitar. "Você parece estar tão satisfeito", pensou ele. "Sente-se bem mesmo? Não é tão ruim assim, não é verdade? Não há de ser tão ruim assim. Em breve será a minha vez", pensou ainda. "Em breve."

— O senhor diretor-geral já avisou a polícia? — perguntou cerimoniosamente, quando se levantou de novo.

Preysing sacudiu a cabeça.

— O senhor diretor-geral deseja que eu me encarregue disso? Estou às suas ordens, senhor diretor-geral — disse ainda.

Era estranho. Preysing sentia enorme alívio desde que Kringelein entrara no aposento, oferecendo-se, em tom cortês de empregado, a executar os seus desejos.

— Sim. Imediatamente. Ainda não. Espere um pouco — sussurrou. Disse essas palavras com a expressão de uma ordem severa mas pouco clara, como costumava atormentar seus subordinados na fábrica.

— É preciso avisar o senhor seu sogro a respeito do acidente. O senhor diretor-geral deseja que eu envie um telegrama à sua distinta família? — perguntou Kringelein.

— Não. Não — respondeu Preysing num sussurro apressado e surdo, mais penetrante do que um grito.

— Nesse caso, seria conveniente o senhor diretor-geral arranjar um advogado. Já é tarde, mas, num caso excepcional como este, talvez se pudesse telefonar para um advogado. O senhor diretor-geral naturalmente vai ser logo levado para a prisão preventiva. Estou à sua disposição para dar todos os outros passos necessários, antes da minha partida — continuou Kringelein, oferecendo seus serviços.

Ele tinha a consciência clara de estar em meio a graves acontecimentos, e os termos escolhidos com que se exprimia enchiam-no de satisfação. Pareciam-lhe à altura da situação. Mas a acentuada cortesia com que se dirigia ao arrasado, ao aniquilado diretor-geral, vinha-lhe de fontes profundas e estranhas. Postado ali, pequenino mas com o porte ereto, ele era o vencedor de uma antiga luta, que Preysing ignorara até esse dia. Haviam desaparecido o ódio, o medo, a raiva e a impotência, todos os sentimentos de Fredersdorf. Talvez sobrasse ainda um sopro de respeito, daquele respeito estranho e inexplicável que se sente pelas pessoas que praticaram um ato reprovável; e além disso a compaixão e a superioridade, que forçam a cortesia.

— O senhor não pode viajar — sussurrou Preysing lá atrás, sentado em seu cesto de roupa suja. — O senhor vai ser necessário aqui. Preciso do senhor. Nem pense em viagens.

Disse isso no tom de uma grosseira negativa de férias. Kringelein teria dado risada, se não estivesse sofrendo com a visão de Gaigern, estendido imóvel no tapete, com a cabeça sem vida sobre as tábuas duras.

— Vamos precisar do senhor como testemunha. O senhor tem que estar aqui quando chegar a polícia — exigiu o diretor-geral.

— As minhas declarações vão ser feitas imediatamente. Aliás, estou doente e tenho que viajar amanhã para uma estação de repouso — replicou Kringelein, cerimonioso.

— Mas o senhor conhecia esse homem — disse Preysing depressa. — E essa mulher também o conhecia.

— O barão era meu amigo. Aquela senhora procurou-me, logo após o assassinato, colocando-se sob a minha proteção — disse Kringelein com linguajar jornalístico.

Sua caixa torácica estreita enfunou-se de orgulho. Ele se mostrava à altura da situação, pensava, satisfeito.

— Esse homem era um criminoso. Roubou minha carteira. Ainda deve estar com ele. Não toquei no cadáver.

Kringelein olhou Gaigern, e era esquisito vê-lo ali estendido, calado, enquanto eles falavam; então, Kringelein sorriu, com um sorriso vago e indefinido. Levantou os ombros por sob os enchimentos de crina de primeira qualidade do seu terno novo. "É possível", pensou ele. "É possível que fosse um criminoso. Mas isso tem tanta importância? Em um mundo onde se ganham milhões, onde se gastam milhões, onde se ganham milhões no jogo, uma carteira de notas não tem importância."

De repente, Preysing saiu da sua modorra e despertou.

— Como e que o senhor veio parar aqui? Quem o mandou aqui? Fräulein Flamm? — perguntou com severidade.

Assim Kringelein ficou sabendo o nome burguês da Flaemmchen.

— Sim, senhor. Fräulein Flamm — replicou. — Essa senhora está no meu quarto. Não quer voltar para o seu. Me mandou aqui para buscar suas coisas, para estar vestida quando a polícia vier. Não tinha nenhuma peça de vestuário sobre o corpo, quando desmaiou.

Preysing, durante alguns minutos, refletiu sobre essa frase bem torneada.

— Fräulein Flamm vai ser interrogada — disse depois, num tom de medo desesperado.

— Sim, senhor — disse Kringelein bruscamente. — Esperamos que isso não dure muito. Essa senhora vai viajar comigo amanhã. Ofereci-lhe trabalho — acrescentou ainda. Suas faces empalideceram, com a comoção sufocante do sentimento de triunfo e de vitória.

Mas Preysing, nesse momento, não sentia sua masculinidade e nem pensava em lutar pela posse de uma mulher. Ele nem sequer suspeitava o significado que tinha para Kringelein o fato de a Flaemmchen ter trocado Preysing por ele: uma coisa fantástica, um milagre, uma vitória total e completa.

— As coisas de Fräulein Flamm estão no quarto dela, o 72. A primeira porta à esquerda — disse Preysing procurando levantar-se, ao que seus joelhos pesados se negaram.

Suas articulações estavam mortas, cheias de areia, sabotavam o serviço. E o morto continuava deitado no chão, continuava ali.

Mas quando Kringelein já estava perto da porta e Preysing viu que ia ficar sozinho, levantou-se de um salto.

— Espere. Espere um pouco — sussurrou com um grito surdo e angustiado. — Ouça, Herr Kringelein... preciso falar com o senhor... antes... antes de avisarmos a polícia. Trata-se da... é a respeito dessa senhora. O senhor disse que vai viajar com essa senhora, não é? Não seria possível... o senhor não disse que essa senhora está no seu quarto? Não seria possível que as coisas ficassem assim? Quero dizer... ouça, Herr Kringelein, nós somos homens. O que acabou de acontecer aqui fica sob a minha responsabilidade. Legítima defesa, não é verdade? Foi apenas em legítima defesa. É uma coisa desagradabilíssima, mas eu me responsabilizo pelo que fiz. Mas o resto me deixa desesperado. O resto me arrasa. Não é possível... a polícia precisa saber do negócio com Fräulein Flamm? Podia-se ... é só eu fechar de novo a porta do 72. Fräulein Flamm passou a noite com o senhor, e não sabe de nada. O senhor também não sabe de nada, Herr Kringelein. E está tudo em ordem, não há encrencas. O senhor vai viajar, não precisa servir de testemunha, e Fräulein Flamm não será interrogada. Diga, Herr Kringelein, o senhor me compreende... o senhor conhece minha mulher, conhece-a quase há tanto tempo quanto eu. E o velho... o senhor conhece o velho, também. O senhor trabalha na fábrica, Herr Kringelein... não preciso lhe explicar tudo isso. Minha vida está por um fio... digo-o com franqueza. E a gente pode ficar arrasado com uma tolice dessas, com essa história de mulheres, com uma coisa insignificante como essa, Herr Kringelein. Amo minha mulher, sou muito apegado a minha mulher e às meninas — disse ele como se estivesse dando sua palavra, como se falasse com a própria Mulle. — O senhor conhece as duas meninas, Herr Kringelein. Vou perder tudo, absolutamente tudo, se vier à luz essa história com Fräulein Flamm, no julgamento. Eu não ... eu não tive relações com Fräulein Flamm. Palavra de honra, não houve nada entre nós, nada — sussurrou ele. Só agora isso lhe vinha à consciência. — Ajude-me, Herr Kringelein, entre dois homens a gente se entende. Fique com a responsabilidade dessa história. Faça a sua mala, vá viajar com a pequena, cale-se, e deixe o resto por minha conta. A única coisa que lhe peço é que se cale. Só é preciso que o senhor convença Fräulein Flamm a calar a boca. Só isso. Vá viajar, vá para bem longe... eu lhe darei... ouça, Herr Kringelein: hoje pela manhã nós trocamos palavras muito desagradáveis. Isso não quer dizer nada. O senhor me julga mal, acredite-me, o senhor me julga muito mal. Por toda parte há desentendimentos entre o chefe e o pessoal, isso não é tão sério assim. No fim das contas a gente trabalha junto. Nós todos puxamos a mesma corda, meu caro Kringelein. Eu lhe... eu lhe darei... o senhor recebe de mim um cheque, e vai viajar. Vá agora ao 72 e feche a porta. Fräulein Flamm fica de bico calado, e tudo está arranjado. Se alguém lhe perguntar alguma coisa, ela passou a noite toda com o senhor, e não sabe de nada, não viu nem ouviu nada. Herr Kringelein, faça-me este favor, por favor...

Kringelein ouviu o sussurrar de Preysing, um murmúrio excitado, quase louco, e fitou-o. A luz clara das sete lâmpadas do lustre punha sombras escuras em seu rosto desfeito, coberto de um suor frio. Os olhos estavam pisados e as pálpebras inchadas, o lábio superior nu tremia, as pálpebras se confrangiam, os cabelos colavam-se à testa enrugada do homem de negócios. Suas mãos pareciam paralisadas e enfermas, quando ele se ergueu e repetiu:

— Por favor, por favor, por favor... "Pobre-diabo", pensou Kringelein de súbito. Era um pensamento completamente novo, esse, quebrava cadeias e derrubava muros.

— Meu destino depende do senhor — sussurrou Preysing.

Preysing se transformara num mendigo, não se envergonhava de usar essa expressão empolada: destino. "E o meu destino?", pensou Kringelein, "e o meu?" Mas isso durou só um momento, esse pensamento não chegou a adquirir forma.

— O senhor diretor-geral exagera a minha influência sobre essa senhora. Se o senhor diretor-geral quiser mentir, terá que assumir a responsabilidade, tem de fazê-lo sozinho — disse com frieza. — Mas eu o aconselharia a avisar agora a polícia; do contrário, poderia causar má impressão. Agora vou levar as coisas de Fräulein Flamm para o meu quarto. É o 70, caso o senhor diretor precise de mim. Por enquanto, peço permissão para me retirar.

Preysing levantou-se, vencendo a impotência de suas pernas, levantou-se e despencou de novo como um saco. Kringelein correu para segurá-lo. "Pobre-diabo", pensou ele de novo, "pobre-diabo." Preysing, com o braço apoiado pesadamente em Kringelein, continuou:

— Herr Kringelein, nada falarei a respeito da sua licença por motivo de doença. Não mandarei investigar onde foi que o senhor encontrou os meios para a sua escapada. Vou... quando o senhor voltar, procurarei melhorar a sua situação na fábrica. Farei pelo senhor o que for possível fazer...

Então Kringelein começou simplesmente a rir, sem malícia, sem ofender-se e sem gratidão, um riso brando e leviano.

— Obrigadíssimo — disse ele. — Obrigadíssimo pela boa intenção. Mas não será necessário.

Encostou Preysing à parede, e assim o deixou, com as costas largas e frouxas de encontro aos arabescos da tapeçaria da parede do 71, com a expressão de um alpinista que despencou no abismo. No corredor brilhavam agora as luzes alternadas, e ao canto havia uma mesa, com um letreiro luminoso avisando: Cuidado, degrau! O relógio de parede bateu três pancadas, com sua voz antiquada.

Às três e meia o porteiro da noite, que cabeceava sobre os jornais do dia seguinte, recebeu um chamado telefônico:

— Alô? — perguntou à concha negra. — Alô? Alô?

Nenhum ruído vinha ao telefone. Depois alguém pigarreou.

— Mande vir imediatamente ao meu quarto o diretor do hotel. Preysing. 71. E avise a polícia. Aconteceu uma coisa...

Os destinos vividos num grande hotel não são destinos completos, inteiros, totais. São apenas trechos, farrapos, partes de um destino. Por detrás das portas habitam indivíduos indiferentes ou esquisitos, homens em ascensão e homens decadentes; venturas e catástrofes moram parede contra parede. A porta giratória vai girando, e o que se passa entre a chegada e a saída não é um todo. Talvez não exista mesmo no mundo um destino completo, mas apenas partes dele, inícios sem sequência, pontos finais sem nada a precedê-los. Muita coisa que parece um acaso é uma lei. E o que acontece por trás das portas da vida não é qualquer coisa de fixo e imóvel como as colunas de uma construção, algo delineado como a partitura de uma sinfonia, calculado como o percurso de um astro — porém humano, mais fugidio e difícil de apreender do que as sombras das nuvens que deslizam na campina. E aquele que empreendesse a tarefa de narrar o que viu por trás das portas correria o perigo de ficar oscilando entre a mentira e a verdade, como sobre uma corda bamba.

Está nesse caso, por exemplo, o telefonema interurbano, o estranho telefonema de pouco depois da meia-noite, de Praga. Uma voz de mulher chamava o Barão von Gaigern ao telefone, no quarto 69, e o telefonista da noite fez a ligação.

— Alô — exclamou a Grussinskaia, que acabava de deitar-se em Praga no leito miserável de um velho hotel famoso, mas nada moderno —, alô, alô, chéri, é você?

E apesar de o quarto 69 já estar vazio a essas horas, apesar de estar acontecendo nesse instante exato, duas portas além, no 71, aquela desgraça que foi a causa de o Diretor-Geral Preysing ficar por três meses na prisão preventiva, perdendo a posição e a família — apesar de tudo isso, a Grussinskaia escutou uma voz querida, distante mas bem clara, dizer ao telefone:

— Neuwjada? É você, meu amor?

— Alô — exclamou a Grussinskaia —, boa noite, querido. Está contente porque lhe estou telefonando? Por favor, fale mais alto, o telefone está funcionando mal. Estou acabando de chegar do espetáculo, esteve ótimo, foi magnífico, um sucesso enorme, o público aplaudiu loucamente. Estou muito cansada, mas muito feliz, muito, mesmo. Há muito tempo eu não dançava tão bem como hoje. Oh, comme je suis heureuse! Você está com saudades de mim, está? Eu, .. eu vivo pensando em você, só em você, estou saudosíssima. Amanhã vou para Viena, amanhã cedo. Você já vai estar lá? Fale alguma coisa, responda! No Hotel Bristol, amanhã, em Viena, está ouvindo? Por que é que... senhorita, senhorita, a ligação foi interrompida, não estou ouvindo nada. Estou perguntando se você vai estar amanhã em Viena. Espero por você, já mandei preparar tudo para nós dois em Tremezzo. Você fica contente com isso? Mais catorze dias de trabalho, e depois estaremos em Tremezzo. Olhe! Fale alguma coisa, diga uma palavra só, não estou ouvindo a sua voz.. • Como? Que diz o senhor? O senhor barão não responde? Obrigada. Então faça o favor de lhe dar o recado de que esperam por ele amanhã em Viena. Amanhã. Obrigada.

Foi essa a conversação que a Grussinskaia teve com o 69, o quarto vazio. Ela estava deitada no leito do hotel, com o queixo seguro por uma atadura de borracha, os olhos ardendo por causa da pintura, e o coração ardente, repleto de carinho.

— Mas eu o amo, je t’aime — murmurou ela ao telefone calado, depois que o telefonista do Grande Hotel já tinha desligado.

E bem ao lado, no 70, entre quatro e cinco horas da manhã, hora em que as cortinas cerradas já começam a ficar cinzentas, chegou o momento em que a Flaemmchen abriu pela primeira vez os braços, para neles receber Kringelein. Aquele instante único e precioso, em que ela não se está vendendo, mas entregando-se. Ela está notando pela primeira vez que não se trata de um prazer insignificante, de uma carícia sem importância que ela confere a alguém, mas de uma coisa grandiosa, uma comoção, uma felicidade, uma realização perfeita. Ela está estendida como uma mãezinha muito jovem, apertando entre seus braços o homem, como a um filho, a quem ela permite saciar-se em seu seio. Seus dedos estão pousados na depressão que a enfermidade e a fraqueza deixaram na nuca do homem. "Agora está tudo bem", pensa Kringelein, "não sinto dor nenhuma. Sou forte, de fato. Estou cansado, é certo, estou cansado, mas vou repousar. Tenho dormido pouquíssimo desde que estou aqui. É pena perder o tempo assim; bem que eu queria não ter de deixar esta vida. Bem que eu gostaria de continuar no mundo. Não quero terminar, agora que mal comecei."

— Flaemmchen — murmura ele, sentindo seu calor juvenil —, Flaemmchen, não me deixe morrer, por favor, não me deixe morrer.

E a Flaemmchen, imediatamente, aperta-o mais ainda de encontro a si, e começa a consolá-lo.

— É um absurdo falar em morrer. Não quero ouvir mais isso. Por causa de uma doencinha assim não se vai morrer. Vou tratar de você. Conheço um homem na Wilmersdorferstrasse que faz curas milagrosas. Ele curou muita gente com doenças muito mais graves do que a sua. Ele vai receitar um remédio, e você vai sarar, você verá. Depois nós partimos imediatamente para Londres, para Paris, para o sul da França, onde já está fazendo calor. Lá nós ficaremos deitados ao sol o dia inteiro, ficaremos com a pele queimada, e nos divertiremos. E agora vamos dormir, venha.

Ela transmite sua despreocupada e inocente força e saúde a Kringelein, quase moribundo, e ele acredita nela. E o homem adormece com uma sensação de felicidade, amarela como uma chama, semelhante ao seio da Flaemmchen, qual uma colina coberta de giestas em flor.

E, dois andares acima, está o Dr. Otternschlag, sonhando o seu sonho, aquele sonho que se repete todas as semanas. Ele está atravessando uma cidade de sonho, que conhece perfeitamente, e entra em uma casa de sonho, de que ele se esqueceu. Mora lá uma mulher de sonho, que deu à luz uma criança de sonho enquanto ele estava na prisão, um menino pavoroso, de quem ele não é o pai, e que faz um berreiro no seu carrinho muito limpo, todas as vezes que avista seu rosto estraçalhado. E depois o sonho continua sempre do mesmo jeito: ele tem de perseguir Gurbal, a gata persa, e corre sem fôlego por toda a cidade de sonho, depois luta em cima do telhado com um gato desconhecido, que tem um rosto humano, e finalmente despenca através de um céu em chamas, cheio de granadas a estourar, até chegar em sua cama de hotel. Quando o sonho chega nesse ponto, o Dr. Otternschlag desperta. "Basta", diz a si mesmo. "Estou farto disso. Vai durar muito ainda? Para quê? Basta, isso tem que terminar, agora." Levanta-se, vai buscar sua mala em miniatura, lava a seringa, quebra as ampolas, dez ampolas, doze ampolas, enche a seringa, lava o braço, já ferido pelas inúmeras picadas inflamadas. Em seguida, espera. Depois, começa a tremer, as suas mãos vão perdendo as forças. Esguicha a seringa sem usá-la, deixando seu conteúdo precioso, captado e ilusório, escoar-se simplesmente no ar, até uma única e última gota, pequenina e inócua, que ele doa generosamente ao seu organismo faminto. Depois deita-se de novo, adormece, e não houve nada do que está acontecendo no hotel.

O Conde Rohna chega do seu quarto, pouco depois das quatro da madrugada, alarmado pelo porteiro da noite, sem fazer ruído, sem se deixar ver, perfumado como em pleno dia. Dirige-se ao quarto 71, testemunha o fato, toma as providências necessárias. Manda servir um conhaque a Preysing, completamente prostrado, e afasta uma mosca que zumbe em torno do cadáver de Gaigern. Fica parado durante uns quinze segundos de mãos cruzadas e cabeça baixa, diante do morto, dando a impressão de estar rezando — e talvez esteja mesmo rezando pelo morto, por esse marginal que pertence à sua mesma classe. A vida não deve ter sido fácil para ele — pensa Rohna talvez, enquanto reza, e depois vai para o seu minúsculo escritório e começa uma conversa ao telefone com o Comissário Jaedicke, encarregado da guarda do hotel.

Um pouco mais tarde — lá fora a primeira máquina de limpeza já está varrendo o asfalto — surgem quatro senhores de sobretudo, cujo nome comum e sinistro é "a comissão do assassinato". O próprio Rohna maneja o elevador que os leva ao segundo andar. Os moinhos da justiça começam a moer. A direção do hotel implora discrição, para impedir notícias sensacionalistas, para encobrir os fatos, se for possível.

Mas isso não é possível. Em breve, Fredersdorf ficará sabendo o que aconteceu. Em breve, a senhora do Diretor-Geral Preysing vai surgir em Berlim com seu apoplético pai, para, após cenas medonhas com seu esposo, separar-se dele. Ela poderia desculpá-lo por ter matado um homem, apesar de isso horrorizá-la. Mas aquela porcaria com a tal mulher, que Preysing, já no segundo interrogatório, confessou gaguejando, suarento e comprometendo-se, isso ela não pode nem compreender nem desculpar.


16

 

Quanto à questão do falecido Barão Felix Benvenuto Amadei von Gaigern, as coisas não estão esclarecidas, mas não parecem ser graves. Não houve ninguém, uma única pessoa no Grande Hotel, que falasse mal dele. Nunca foi preso, não era um indivíduo suspeito nem conhecido da polícia. Tinha algumas dívidas, e a proveniência do seu pequeno carro — que aliás já estava empenhado — não foi descoberta. Isso não prova nada contra ele. Era um jogador, um mulherengo, às vezes embebedava-se, mas sempre demonstrou bondade. Alguns empregados do hotel, ao saberem da notícia sussurrada da sua morte, se puseram a chorar. O groom Karl Nispe, com a cigarreira de ouro no bolso, chorou. Ele foi uma das testemunhas a ser ouvida em primeiro lugar, e declarou que o barão, antes da meia-noite, não se encontrava mais no seu quarto. Uma senhora do primeiro andar, do quarto 18, que ficava embaixo do 71, ouviu mais ou menos a essa mesma hora uma queda, tem a certeza disso, porque a barulheira lá de cima a estava irritando. Mas que se passou entre meia-noite e três e meia? E por que foi que Herr Preysing não avisou logo a polícia? A esse respeito seguiram-se as declarações muito claras, apesar de reservadas, das testemunhas Flamm e Kringelein, aquelas declarações esclarecedoras e que se podiam ler ao meio-dia nos jornais, e que significaram o golpe de misericórdia na vida burguesa de Preysing. A arma que Preysing disse ter visto não foi encontrada, nenhum revólver, nem mesmo uma pequena pistola falsa, dessas que os assaltantes inofensivos costumam por vezes usar. Isso causou má impressão contra Preysing. Se ele mentiu nesse ponto, tudo o mais que ele disse também não merece confiança. É verdade que sua carteira de notas foi encontrada no bolso do pijama do assassinado. Porém — é esta a pergunta do juiz, perfurante como uma verruma —, não poderia o próprio Preysing ter metido a carteira no bolso do pijama de Gaigern, para poder apresentar a ficção da legítima defesa e do assalto? Há ainda o fato de Gaigern usar meias sobre os sapatos macios de pugilista. Há também a fotografia que a segunda camareira do pavilhão recebeu do motorista do barão, pela qual uma autoridade constatou que esse motorista é, pelo menos, um conhecido ladrão. Se conseguirem apanhá-lo, talvez a questão se esclareça mais. Enquanto isso, Herr Preysing está numa cela de prisão e sofre de alucinações visuais de fundo nervoso. Tem sempre a visão do Barão von Gaigern, mas não estendido no chão, morto, e sim vivo, bem próximo dele e com a maior clareza, com a cicatriz debaixo do queixo, com as pestanas radiadas, com todos os poros, como o havia visto pela primeira vez, quando esbarrara com ele diante de uma cabina telefônica. Sempre que consegue afastar essa imagem, enxerga tudo rubro sob suas pálpebras, e em seguida apresenta-se a Flaemmchen. A Flamm número dois, ou melhor, uma parte dela, os quadris de uma fotografia cinzento-escura de uma revista que caíra nas mãos do diretor-geral, quando seu destino ia se preparando para rolar montanha abaixo.

Acontece uma coisa estranha com esses hóspedes do enorme hotel. Nenhum deles sai pela porta giratória do mesmo modo que entrou. Preysing, burguês e marido exemplar, é levado preso, completamente arrasado, por dois senhores. Quatro homens levam dali o corpo de Gaigern, em silêncio e às escondidas, pela escada de serviço; o corpo daquele mesmo Gaigern cheio de vida e entusiasmo, que fazia sorrir todo o hall, ao atravessá-lo vestido com a capa azul, de luvas pespontadas, com um olhar animado e o perfume de alfazema e de cigarros aromáticos ingleses. Mas Kringelein, ao terminar seu interrogatório e o da Flaemmchen e receber licença para viajar — Kringelein deixa o hall do hotel passando por muitas corcovas e mãos estendidas para a gorjeta, como um rei da vida. É de se prever que a sua glória não durará muito mais de uma semana, não durará muito mais do que o primeiro acesso de dor dilacerante.

Mas não é nada impossível, não é de todo improvável, que esse valente moribundus adquira novas forças e continue a viver, contrariando todos os diagnósticos. A Flaemmchen, pelo menos, acredita nisso. E Kringelein, no seu enlevo, quer acreditar também. E, finalmente, não é tão importante assim o tempo que resta a Kringelein para viver. Porque — seja ela longa ou curta — é o conteúdo que faz a vida; e dois dias cheios podem ser mais longos do que quarenta anos vazios; é esta a sabedoria que Kringelein leva consigo, ao sair ao lado da Flaemmchen do enorme hotel, e subir no automóvel que os levará à estação.

Isto se passa às dez horas da manhã. O hotel mostra o seu aspecto habitual. A mulher da limpeza varre com serragem o assoalho úmido do hall, com a silenciosa irritação de Rohna; o repuxo continua o seu brinquedo; na sala do café há cavalheiros sentados, com suas pastas, fumando charutos e falando sobre seus negócios. Nos corredores, murmuram sobre o caso, mas nada transpirou ainda até os hóspedes. O 71 foi fechado pela polícia, as suas janelas estão largamente abertas, durante todo esse dia fresco de março. Ao lado, no 72, mudam a roupa das camas, e passam um pano úmido no guarda-roupa. Às oito horas da manhã, o porteiro Senf ocupou seu posto com o rosto inchado, porque esteve sentado a noite inteira no hospital, num corredor gelado, esperando saber se a mulher tinha conseguido atravessar a noite com vida. Ouve apenas metade do que o pequeno praticante lhe conta e, cambaleante, põe-se a separar nas caixinhas a correspondência da manhã.

— Estou completamente tonto — diz a desculpar-se.

— É incrível como faz falta o sono. Foi o Pilzheim quem reconheceu o motorista. Eu sempre disse que o Pilzheim é competente. Se nós o tivéssemos posto desde o começo na pista desse barão, não aconteciam aqui no hotel essas coisas que prejudicam o seu bom nome. Café para o 22 — exclamou ele no meio da conversa, em direção ao compartimento dos garçons, continuando depois a distribuir a correspondência. — Ainda há aqui correspondência para ele, para onde devemos mandá-la? Para a polícia? Bom... Bom dia, senhor doutor, bom dia — diz ele ao Dr. Otternschlag, que vinha se esgueirando ao longo das paredes do hall, muito amarelo e seco, com seu olho de vidro, parando em seguida diante do balcão de mogno.

— Há correspondência para mim? — perguntou Otternschlag.

O porteiro verificou, em parte por cortesia, em parte também porque nos últimos dias tinham entregado, por vezes, algum bilhete de Kringelein para Otternschlag.

— Infelizmente não. Hoje não há nada, senhor doutor — disse ele.

— Algum telegrama? — perguntou Otternschlag.

— Não, senhor doutor.

— Alguém perguntou por mim?

— Não. Por enquanto ninguém perguntou.

Otternschlag foi rodeando o hall até chegar ao seu lugar de costume. O groom 7 passou como uma flecha; logo depois dele, o garçom trouxe o café. Otternschlag olhava fixamente com seu olho de vidro para a senhora que desempacotava seus vasos na banca de flores, mas sem vê-la.

— Bom dia, meus senhores — disse o porteiro a um casal provinciano, que se encontrava diante de seu compartimento. — Um quarto... pois não. O 70 está livre, com dois leitos, mas infelizmente sem banheiro. Talvez hoje ou amanhã fique vago o quarto ao lado, o 71. Esse tem banheiro, é um belíssimo apartamento, façam o favor de dirigir-se aqui ao lado. Como? Alô! não estou entendendo! — exclamou ao telefone. — Que aconteceu? Sim, já vou para lá. Preciso ir falar na cabina. É um chamado particular. Do hospital — disse ele ao Georgi, e foi tropeçando pelo hall, pelo corredor 2; entrou na cabina dos telefones e depois na cabina 4, que a telefonista lhe mostrou.

O Dr. Otternschlag ergueu-se como um boneco de pau e dirigiu-se à portaria.

— Herr Kringelein ainda está no quarto? — perguntou.

— Não. Herr Kringelein viajou — replicou o pequeno praticante.

— Viajou. Ah! Não deixou nada para mim? — perguntou Otternschlag, após uma pausa.

— Não. Infelizmente. Nada — replicou o praticante com a cortesia que aprendera com o porteiro. Otternschlag virou-se e foi de novo para o seu lugar, desta vez sem rodear o hall, numa perfeita diagonal através do hall, o que era realmente estranho. Rente dele passou o porteiro; sua cara fiel de sargento estava suada como se ele tivesse feito um esforço violentíssimo. Chegou à sua mesa corno a um porto.

— É uma menina. Tiveram que fazer cesariana. Já nasceu, dois quilos e meio. Já passou o perigo. Não há mais perigo nenhum. As duas estão vivinhas da silva — explodiu ele. Tirou o boné, mostrando seu rosto de civil, com o nariz ensopado de suor. Mas colocou-o imediatamente, porque Rohna olhou para ele por sobre a divisão de vidro.

O casal provinciano entrou no elevador e foi conduzido ao 72, o quarto sem banheiro e com dois leitos, cheirando ainda a pó de arroz com perfume de violeta da Flaemmchen.

— Abra a janela — disse a mulher.

— Para arejar o quarto — acrescentou o marido. No hall, o Dr. Otternschlag, sentado na sua cadeira, fala sozinho. — É horrível — diz a si mesmo. — Sempre a mesma coisa. Não acontece nada. A gente está completamente sozinho. O mundo é um astro sem vida, não tem mais calor. Na Cruz Vermelha enterraram noventa e dois soldados, empilhados. Talvez eu seja um deles, esteja lá entre eles desde o fim da guerra; talvez eu esteja morto e não saiba. Se pelo menos acontecesse alguma coisa nesta enorme arapuca, alguma coisa interessante... Mas não acontece nada... nada, absolutamente. Viajou. Adeus, Herr Kringelein. Eu poderia ter-lhe dado uma receita contra as suas dores, mas agora... viajou sem se despedir. Puxa! E a porta sempre a balançar, para dentro, para fora, para dentro, para fora...

O pequeno praticante Georgi, porém, por trás da sua mesa de mogno, põe-se a repisar uns pensamentos simplórios e banalíssimos. "Que movimento fantástico há num hotel enorme como este", pensa ele. "Um movimento fantástico. Está sempre acontecendo alguma coisa. Um é preso, outro é morto, este parte, aquele chega. Um é levado numa maca pela escada dos fundos, e no mesmo instante nasce o filho do outro. É interessantíssimo mesmo! Assim é a vida."

O Dr. Otternschlag, sentado ali no hall, é a estátua de pedra da solidão e da morte. Tem seu lugar reservado, e ali permanece. Suas mãos amarelas, pesadas como chumbo, pendem-lhe dos pulsos, e com seu olho de vidro ele olha fixamente para a rua cheia de sol, de um sol que ele não pode ver.

A porta giratória vai girando, a oscilar, a oscilar, a oscilar...

 

 

                                                                  Vicki Baum

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades