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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GRANDE SOL DE MERCÚRIO / Isaac Asimov
GRANDE SOL DE MERCÚRIO / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

GRANDE SOL DE MERCÚRIO

 

Fantasmas do Sol

      Lucky Starr e John Bigman Jones, o baixinho que era seu maior amigo, seguiram o jovem engenheiro pela rampa que levava à câmara estanque, para sair na superfície do planeta Mercúrio.

      Lucky pensou: Ainda bem que, pelo jeito, as coisas parecem estar acontecendo depressa.

      Acabava de chegar a Mercúrio mal fazia uma hora. Só tivera tempo de supervisionar o estacionamento de sua espaçonave Shooting Starr no hangar subterrâneo. Não tinha ainda visto ninguém, a não ser os técnicos encarregados das formalidades de aterrissagem e da manutenção das espaçonaves.

      Scott Mindes, o engenheiro que chefiava o Projeto Luz, estava junto aos técnicos. Parecia que o moço estava esperando por Lucky. De fato, não demorou em sugerir um passeio na superfície do planeta.

      Explicou que desejava mostrar-lhe a paisagem. Lucky naturalmente não acreditou. Enquanto falava, o rosto do engenheiro, que tinha um queixo diminuto, parecia preocupado e seus lábios tremiam... Seus olhos continuavam evitando um contato direto com os olhos calmos de Lucky.

      De qualquer forma, Lucky concordou em ver a superfície. Não sabia ao certo quais fossem os problemas em Mercúrio: só sabia que o Conselho de Ciências considerava o assunto muito delicado. Mostrou-se, portanto, disposto a aceitar a sugestão de Mindes, para ver o que poderia acontecer.

      Bigman Jones, como sempre, mostrou-se disposto a seguir Lucky a qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer motivo e até sem motivo nenhum.

      Quando vestiam os escafandros pressurizados, as sobrancelhas de Bigman se levantaram. Acenou de maneira quase imperceptível para o coldre afivelado no escafandro de Mindes.

      Lucky, calmo, assentiu sem falar. Já tinha percebido que a peça que saía do coldre era a coronha de um desintegrador de calibre pesado. O jovem engenheiro foi o primeiro a sair para a superfície do planeta. Lucky Starr seguiu-o e Bigman foi o último dos três.

      Naquela escuridão quase total perderam o contato. No vácuo gelado só podiam ser vistas as estrelas, duras e cintilantes.

      Bigman foi o primeiro a se recuperar. A gravidade de Mercúrio era quase idêntica à de Marte, seu planeta de origem. As noites marcianas eram quase igualmente escuras. No céu noturno as estrelas tinham quase o mesmo brilho.

      Sua voz aguda foi ouvida claramente nos receptores dos outros dois:

      - Ei. Estou começando a enxergar um pouco. Lucky também estava começando a enxergar, e estava um pouco admirado. Esquisito. Era impossível que a luz das estrelas pudesse ser tão clara. Uma vaga irisação luminosa envolvia os contornos daquela paisagem desordenada, revelando cumes afiados em sua leve luminosidade leitosa.

      Lucky já tinha visto algo parecido na Lua, durante sua noite que durava duas semanas. Ali também a paisagem era completamente estéril, selvagem e quebrada. Durante milhões de anos aqui em Mercúrio e também na Lua, jamais acontecera um pouco de vento ou de chuva. As rochas nuas, mais frias que quanto fosse possível imaginar, jaziam sem o menor vestígio de gelo num mundo desprovido de água.

      Durante a noite lunar também aparecia aquela luminosidade leitosa. Mas ali, na Lua, a metade pelo menos de sua superfície recebia luz da Terra. Quando a Terra estava cheia, seu brilho era pelo menos dezesseis vezes mais intenso do que o brilho da Lua cheia vista da Terra. Aqui, em Mercúrio, no Observatório Solar do Pólo Norte, não havia nenhum planeta próximo para justificar aquela luminosidade.

      - O que é isso, luz das estrelas? - Perguntou finalmente, sabendo que não era.

      A voz cansada de Scott Mindes respondeu:

      - Isso é bruxuleio coronário.

      - Pela Grande Galáxia, - proferiu Lucky com uma breve gargalhada. - A coroa, é claro! Eu devia ter me lembrado.

      - Você devia ter se lembrado de quê? - berrou Bigman. - O que é que há? Vamos, Mindes, explique o que é isso! - Mindes retrucou:

      - Vire-se. Você está de costas para a coroa. - Todos se viraram. Lucky assoviou entre os dentes. Bigman soltou uma exclamação de surpresa. Mindes ficou calado.

      Uma parte do horizonte estava se destacando claramente contra um segmento cintilante do céu. Todas as pontas irregulares do horizonte eram claramente visíveis.

      Acima delas o céu tinha uma luminosidade suave (que se esvaía gradativamente com a elevação) pela terça parte em direção ao zênite. O brilho era feito de faixas curvas de luz pálida.

      - Aí está a coroa, senhor Johnes, - disse Mindes. Apesar de sua estupefação, Bigman não esqueceu seus próprios princípios de boas maneiras. - Pode me chamar de Bigman. - Logo a seguir perguntou: - Você está querendo dizer a coroa em volta do Sol? Eu nunca imaginei que tivesse este tamanho.

      - Tem um raio de um milhão de milhas, ou talvez mais, - explicou Mindes, - e afinal estamos em Mercúrio, o planeta mais próximo do Sol. Nesse momento estamos a apenas trinta milhões de milhas do Sol. Você vem de Marte, não é mesmo?

      - Foi lá que nasci e me criei, disse Bigman.

      - Pois é. Se você pudesse ver o Sol agora, perceberia que daqui ele parece trinta e seis vezes maior do que em Marte, e a mesma coisa vale pela coroa. Também é trinta e seis vezes mais brilhante.

      Lucky assentiu. O Sol e a coroa aqui deviam ser nove vezes maiores do que na Terra. Aliás, na Terra era impossível ver a coroa, com exceção dos raros casos de eclipse total.

      Por outro lado, Mindes parecia ter falado a verdade. Havia realmente coisas a ver em Mercúrio. Tentou mentalmente preencher a coroa, imaginando o Sol que ela contornava e que agora estava oculto debaixo da linha do horizonte. Sem dúvida, devia ser um espetáculo impressionante. Mindes voltou a falar em tom amargo:

      - Essa luz é chamada "o fantasma branco do Sol".

      Lucky observou:

      - Gostei disso. Um nome muito apropriado.

      - Apropriado, hein? - rosnou Mindes. - Pois eu não acho. Nesse planeta já se fala demais em fantasmas. Aqui tudo parece enfeitiçado. Nada jamais acontece na forma devida. As minas não deram em nada...

      Lucky pensou: É melhor não tomar conhecimento disso.

      Em voz alta perguntou:

      - Qual é o fenômeno que íamos ver, Mindes?

      - Ah, sim. Vamos ter que andar um pouco. Não iremos longe, por causa da gravidade, mas cuidado ao pisar. Aqui não temos estradas, e aquela luminosidade coronária engana muito. Sugiro ligarmos as lanternas dos capacetes.

      Ao mesmo tempo ligou sua própria lanterna e um feixe de luz saiu acima do cristal que protegia seu rosto, mostrando o terreno cheio de manchas amarelas e pretas. 

      As outras duas lanternas se acenderam logo a seguir e os três vultos começaram a caminhar com suas grossas botas isoladas. Não produziam som nenhum dentro do vácuo, mas cada um podia perceber no ar contido nos escafandros as vibrações provocadas por cada passo.

      Mindes parecia dominado por pensamentos desagradáveis enquanto caminhava. Quando falou, sua voz era baixa e tensa:

      - Odeio Mercúrio. Faz seis meses que estou aqui, dois de Mercúrio, e já estou cheio disso. Pensei que não ficaria aqui mais do que seis meses, mas todo esse tempo já passou, e nada está feito. Nada. Nesse lugar tudo sai errado. É o menor de todos os planetas. É o mais próximo do Sol. Só um lado está exposto ao Sol. Naquele lado, - continuou agitando o braço em direção à coroa, - que é o lado do Sol, em alguns lugares o calor é suficiente para derreter o chumbo e fazer ferver o enxofre. E nessa direção, - continuou fazendo mais um largo gesto com o braço, - está a única superfície planetária de todo sistema solar que jamais recebe um raio de sol. Aqui tudo é ruim.

      Parou de falar e pulou por cima de uma fenda rasa, de dois metros de largura, quem sabe uma lembrança de algum movimento sísmico acontecido milhões de anos antes, e que jamais poderia se recompor sem vento e sem água. O movimento foi desajeitado, característico de um terrestre que também em Mercúrio continuava vivendo na gravidade artificial da Cúpula do Observatório.

      Bigman estalou a língua com ar de reprovação. Ele e Lucky passaram por cima da fenda com um pulo mínimo, que mais parecia um passo comprido. Um quarto de milha mais adiante Mindes disse de repente:

      -Vamos poder ver tudo daqui mesmo, e chegamos em cima da hora.

      Parou com os braços esticados, procurando se equilibrar. Bigman e Lucky se imobilizaram com um pequeno pulo que levantou um chuvisco de pedrinhas. Mindes apagou sua lanterna e apontou com a mão. - Lucky e Bigman também apagaram as luzes. Na escuridão, na direção apontada por Mindes, podia-se ver uma mancha pequena, esbranquiçada e irregular. Era muito brilhante, uma luz solar muito mais forte, daquela a qual Lucky estava acostumado na Terra.

      - Aqui é o melhor lugar para olharmos, - disse Mindes. -Ali está o topo da Montanha Branca e Preta.

      - O nome é assim mesmo? perguntou Bigman.

      - Sim. Por outro lado, você mesmo pode ver porque. Está a uma distância certa do Terminador, em direção, à noite... O Terminador é a divisa entre o lado escuro, e o lado virado para o Sol.

      - Estou cansado de sabê-lo, - retrucou Bigman indignado. - Parece que você acha que sou um ignorante.

      - Não, estava só explicando. Existe uma pequena zona perto do Pólo Norte e uma outra perto do Pólo Sul onde o Terminador não se desloca enquanto Mercúrio gira em volta do Sol. No Equador, porém o Terminador se desloca de setecentas milhas numa direção durante quarenta e quatro dias, e volta a se deslocar de setecentas milhas na outra direção durante os quarenta e quatro dias seguintes. Aqui o movimento não ultrapassa meia milha ao todo, e por isso trata-se de um lugar ideal para um observatório. O Sol e as estrelas estão imóveis. De qualquer forma, a Montanha Branca e Preta está suficientemente distante para receber luz somente em sua metade superior. Quando o Sol se afasta, a luz vai subindo pelas encostas da montanha.

      - Agora, - observou Lucky, - somente o cimo está iluminado.

      - Somente uns cinqüenta centímetros no máximo, e isso também já vai desaparecer. Durante um ou dois dias terrestres tudo vai ficar escuro, até que a luz comece a voltar.

      Enquanto falava, a mancha branca diminuiu visivelmente, até ficar reduzida a um ponto brilhante parecido com uma estrela. Os três homens ficaram esperando.

      - Olhem para um outro lado, - aconselhou Mindes, - para se acostumarem a vista à escuridão.

      Lucky e Bigman seguiram o conselho e por alguns minutos não conseguiram enxergar coisa alguma. A seguir, tiveram a impressão de que a paisagem estava mergulhada em sangue, ou que pelo menos uma parte dela estava assim. Tiveram uma sensação geral de vermelhidão. A seguir, começaram a ver: uma montanha íngreme, suas encostas abruptas chegando ao vértice. O topo agora se apresentava vermelho brilhante, e a cor parecia ficar mais escura despendo pelas encostas até tornar-se completamente negra.

      - O que é isso? perguntou Bigman.

      - O Sol, - explicou Mindes, - desceu bastante abaixo do horizonte assim que daquele cimo só podem ser vistos a coroa e as saliências. As saliências são jatos de hidrogênio que se elevam a milhares de milhas acima da superfície do Sol, e têm uma cor vermelha brilhante. Essa cor existe sempre, mas os raios solares normais não permitem que se perceba.

      Lucky assentiu mais uma vez. Essas saliências também podiam ser vistas na Terra durante os eclipses ou então com instrumentos especiais, graças à atmosfera.

      - De fato, - comentou Mindes em voz baixa, - isso se chama "o fantasma vermelho do sol".

      - Um mais um, igual a dois fantasmas, - disse Lucky de repente. - Um branco e outro vermelho. É por causa desses fantasmas que você carrega um desintegrador, Mindes?

      Mindes gritou:

      - O quê? - Seu tom se fez selvagem: - O que é que você está dizendo?

      - O que eu quero dizer, - respondeu Lucky, - é que chegou a hora de explicar porque você insistiu em acompanhar-nos até aqui. Tenho certeza de que não foi por causa do panorama, pois nesse caso você não levaria consigo um desintegrador nesse planeta deserto.

      Mindes levou algum tempo antes de falar. Depois perguntou:

      - Você é David Starr, não é mesmo?

      - Sim, sou eu, - confirmou Lucky tranqüilo.

      - Você é um membro do Conselho de Ciências. Você é o homem que todos chamam Lucky Starr.

      Os membros do Conselho das Ciências procuravam evitar qualquer publicidade, e Lucky relutou um pouco antes de confirmar:

      - Isso mesmo.

      - Então não me enganei. Você é um dos investigadores-chefes e veio para examinar o Projeto-Luz. 

      Lucky apertou os lábios. Teria achado preferível que suas intenções não fossem conhecidas. Retrucou:

      - Isso pode ser verdade, mas por outro lado, também pode ser errado. Por que você me trouxe até aqui?

      - Sei que é verdade e quis que você chegasse até aqui... - falou Mindes ofegante, - para poder lhe dizer a verdade antes que os outros tivessem uma oportunidade de encher sua cabeça de... de... mentiras.

      - Mentiras a que respeito?

      - A respeito dos fracassos de... Odeio essa palavra! Os fracassos do Projeto Luz.

      - Você podia ter falado comigo a esse respeito na Cúpula. Não vejo a necessidade de chegarmos até aqui.

      - Há duas razões, explicou o engenheiro. - Sua respiração ainda parecia ofegante. - Em primeiro lugar, todo mundo pensa que o culpado sou eu. Pensam que não tenho capacidade de levar a termo o projeto, que estou esbanjando dinheiro público. Quis afastar você de todos eles. Você compreende? Não quis deixar que todos eles falassem com você primeiro.

      - Por que eles estariam pensando que você é culpado?

      - Eles pensam que sou moço demais.

      - Qual é sua idade?

      - Vinte e dois.

      Lucky Starr, que só tinha um ou dois anos a mais, falou:

      - E qual é sua segunda razão?

      - Queria que você conseguisse um contato com Mercúrio. Queria que você percebesse a... a...

      Calou-se.

      Lucky, alto e imóvel em seu escafandro, estava parado sobre o solo revolto de Mercúrio. A guarnição metálica num de seus ombros recebia e refletia a luz leitosa da coroa, "o fantasma branco do Sol". Disse:

      - Está certo, Mindes. Vamos fazer de conta que eu aceito o que você disse, ou seja, que você não é responsável pelo fracasso do projeto. Nesse caso, quem é responsável?

      O engenheiro pareceu murmurar entre dentes, mas gradativamente as palavras saíram mais distintas.

      - Não sei, pelo menos...

      - Não estou entendendo nada, observou Lucky.

      - Escute, - pediu Mindes desesperado. - Investiguei. Passei meus períodos de trabalho e de descanso tentando descobrir as causas. Fiquei observando os movimentos de todo mundo. Anotei todos os acidentes, quando ficavam cortados os cabos ou quando as chapas conversoras eram encontradas em frangalhos. Só posso ter certeza de uma coisa.

      - De quê?

      - Ninguém da Cúpula pode ser diretamente responsável. Ninguém mesmo. Na Cúpula temos mais ou menos cinqüenta pessoas, aliás, são exatamente cinqüenta e duas, e durante as últimas seis vezes em que aconteceram acidentes, tive a possibilidade de constatar onde cada um se encontrava no momento. Ninguém estava nem perto dos locais dos acidentes. - Sua voz estava se tornando estrídula.

      Lucky perguntou:

      - Nesse caso, qual é sua opinião a respeito dos acidentes? Movimentos sísmicos? Ação do Sol?

      - Fantasmas! - esganiçou-se o engenheiro, agitando freneticamente os braços. - Temos um fantasma branco e um fantasma vermelho! Você mesmo os viu. Mas temos também fantasmas de duas pernas. Eu os vi, mas quem é que poderá me acreditar? - Estava quase incoerente. - Eu lhes digo... lhes digo que...

      Bigman interrompeu:

      - Fantasmas! Você está maluco?

      Mindes começou a gritar:

      - Você também não quer acreditar! Mas vou provar isso! Vou desintegrar o fantasma! Vou desintegrar os imbecis que não querem acreditar em mim! Vou desintegrar a todos! Todos!

      Em meio a gargalhadas estrídulas tirou seu desintegrador do coldre e com gesto rápido, antes que Bigman pudesse fazer qualquer coisa para impedi-lo, apontou-o para Lucky à queima-roupa e apertou o gatilho. O invisível raio desintegrador entrou em ação.

 

Louco ou Normal?

       Se essa cena tivesse se desenrolado na Terra, teria sido o fim de Lucky.

      Ele porém tinha percebido os sinais de loucura incipiente na voz de Mindes. Esperou, observando-o com cuidado, um sinal qualquer, um gesto mínimo que confirmasse a violência que transparecia das palavras ofegantes do engenheiro. Assim mesmo, não pensou num ataque direto com o desintegrador.

      Quando a mão de Mindes arrancou a arma do coldre, Lucky deu um pulo para o lado. Na Terra, esse movimento seria insuficiente.

      Em Mercúrio, porém, as coisas eram bastante diferentes. A gravidade de Mercúrio era de só dois quintos da gravidade da Terra e os músculos contraídos de Lucky arremessaram seu corpo, que era leve de maneira anormal apesar do escafandro, a uma distância muito maior. Mindes que parecia não estar muito acostumado a se movimentar com pouca gravidade, tropeçou enquanto se virava com velocidade excessiva para manter o desintegrador apontado no corpo de Lucky em movimento.

      A energia do desintegrador, por conseqüência, atingiu o solo a poucas polegadas do corpo de Lucky que estava terminando o salto. Um buraco com um pé de profundidade apareceu na rocha congelada.

      Antes mesmo que Mindes pudesse corrigir sua pontaria Bigman derrubou-o, lançando-se contra suas pernas com a agilidade e a graça de um Marciano nativo, acostumado a se movimentar com pouca gravidade.

      Mindes caiu. Emitiu sons agudos que não podiam ser palavras, e logo se calou, sem que fosse possível ver se estava inconsciente por causa da queda, ou porque tinha superado o clímax de sua violenta emoção.

      Bigman achou que não era nem uma coisa nem outra.

      - Ele está fingindo, - gritou furioso. - Esse porqueira sujo está se fingindo de morto! - Tinha arrancado o desintegrador da mão inerte do engenheiro, e acabou apontando-o para a cabeça do homem caído.

      Lucky gritou:

      - Pare com isso, Bigman.

      Bigman ficou confuso:

      - Ele quis matar você, Lucky.

       Era evidente que o diminuto Marciano não teria reagido com tanto ódio se o ataque mortal fosse contra sua própria pessoa. Apesar disso, afastou-se.

      Lucky, ajoelhado, examinava o rosto de Mindes visível atrás do cristal, dirigindo o feixe de luz de sua lanterna para os traços abatidos do engenheiro. Examinou o medidor de pressão do escafandro de Mindes, para ter certeza de que a queda não tinha interferido com os controles. Em seguida apanhou o homem caído por um pulso e um tornozelo, ergueu-o sobre seu ombro e levantou-se.

      -Vamos voltar à Cúpula. Receio que o problema é um pouco mais complicado do que o Chefe estava imaginando.

      Bigman assentiu com um grunhido e começou a seguir Lucky de perto. Os largos passos do amigo obrigaram-no a um meio trote alongado por causa da gravidade. Manteve o desintegrador pronto, mudando freqüentemente de posição, para poder atingir Mindes sem prejudicar Lucky, se assim fosse necessário.

      O "Chefe" era Hector Conway, presidente do Conselho de Ciências. Em ocasiões informais Lucky costumava chamá-lo Tio Hector. De fato, após a morte dos pais de Lucky perante um ataque de piratas perto da órbita de Vênus, Hector Conway e Augustus Henree tinham sido apontados tutores de Lucky que ainda era uma criança.

      Uma semana antes dos fatos que estamos relatando, perguntara a Lucky com o ar displicente de quem está oferecendo férias agradáveis:

      - Você não está com vontade de ir até Mercúrio, Lucky?

      - O que é que está acontecendo, Tio Hector? perguntou Lucky.

      - Nada de especial, - disse Conway franzindo a testa. - Um pouco de politicagem de baixo nível, Estamos apoiando um projeto bastante caro em Mercúrio. Trata-se de uma dessas pesquisas básicas que podem não dar resultado nenhum, sabe como é, mas que por outro lado poderiam dar tambémresultados absolutamente revolucionários. É uma espécie de roleta, como, aliás, todos os projetos desse gênero.

      - Trata-se de algo que eu conheço? perguntou Lucky.

      - Acho que não. A coisa é bastante recente. De qualquer forma o Senador Swenson está citando o projeto como exemplo da maneira em que o Conselho esbanja o dinheiro público. Você sabe como são essas coisas. Ele está insistindo por uma investigação, e um de seus rapazes foi para Mercúrio alguns meses atrás.

      - O Senador Swenson? Estou vendo. 

      Lucky assentiu com a cabeça. Isso não era nada de novo. Durante aquelas últimas décadas o Conselho de Ciências tinha se imposto na luta contra os perigos que ameaçavam a Terra dentro e fora do Sistema Solar. Na era da civilização Galáctica, em que a humanidade tinha se expandido por todos os planetas de todas as estrelas da Via-Láctea, somente os cientistas podiam cuidar devidamente dos problemas da humanidade toda. Na realidade, somente os cientistas especialmente treinados do Conselho de Ciências tinham o gabarito para enfrentar essa tarefa.

      Apesar disso, alguns homens no governo da Terra temiam o sempre crescente poder do Conselho de Ciências, e havia outros que se valiam dessa suspeita em prol de suas próprias ambições. O Senador Swenson era do segundo grupo, e muito ambicioso. Estava se tornando famoso pelos seus ataques contra os "desmandos" do Conselho em financiar pesquisas por ele consideradas inúteis.

      Lucky perguntou:

      - Quem é encarregado do projeto em Mercúrio? Alguém que eu conheço?

      - O projeto é conhecido como o Projeto Luz, caso você não o saiba. O encarregado é um engenheiro chamado Scott Mindes. Um rapaz muito inteligente, mas parece não estar à altura da operação. O que mais me aborrece é o fato de que, desde que Swenson começou a fazer barulho, uma porção de coisas desagradáveis começaram a acontecer com o Projeto Luz.

      - Se você quiser, Tio Hector, vou investigar o assunto.

      - Ótimo. Os acidentes e as contrariedades não são muito importantes, tenho certeza disso. O fato é que Swenson quer manobrar até conseguir colocar-nos numa situação desagradável. Gostaria que você procurasse descobrir as intenções dele. Fique de olho no homem de confiança dele. Chama-se Urteil, e tem fama de ser um sujeito muito competente e perigoso.

     

      Foi assim que tudo começou. Uma pequena investigação para evitar dificuldades políticas, e só.

      Lucky aterrissou no Pólo Norte de Mercúrio sem esperar maiores complicações, e apenas duas horas mais tarde quase foi alvejado por um desintegrador atômico.

      Enquanto voltava para a Cúpula carregando Mindes sobre o ombro Lucky pensou: aqui deve haver mais coisas do que somente um pouco de política.

      O Dr. Karl Gardoma saiu do pequeno quarto de hospital e observou Lucky e Bigman com expressão sombria. Estava enxugando as mãos num pedaço de plastosorb esponjoso, e após terminar jogou-o numa cesta. Seu rosto de pele escura, muito morena, parecia preocupado. As grossas sobrancelhas estavam franzidas. Até seus cabelos negros, muito curtos e de pontas revoltas, pareciam acentuar sua expressão perturbada.

      - Então, doutor? perguntou Lucky.

      Gardoma respondeu:

      - Dei-lhe sedativos. Estará bem quando acordar. Não sei se ele poderá lembrar claramente o que aconteceu.

      - Ele já teve ataques desse tipo?

      - Desde o dia que chegou em Mercúrio, não, senhor Starr. Não sei o que se passou antes dele chegar aqui. Durante esses últimos meses, porém, ele viveu num estado constante de tensão.

      - Por quê?

      - Ele se acha responsável pelos acidentes que interferiram no progresso do Projeto Luz.

      - E ele é realmente responsável?

      - Não, claro que não. Mas você viu como ele se sente. Ele está convencido de que todo mundo o está culpando, O projeto requereu consideráveis verbas e um esforço enorme. Mindes está comandando dez homens especializados na construção, todos eles de cinco a dez anos mais velhos do que ele, e ainda precisa cuidar de uma quantidade considerável de equipamentos.

      - E como foi que o escolheram, sendo tão jovem?

      O médico deu um sorriso feroz, mas apesar da expressão seus dentes alvos e regulares lhe conferiram um aspecto agradável, até cativante. Disse:

      - A ótica subetérea, senhor Starr, é uma ciência completamente nova. Somente homens muito jovens, apenas saldos das faculdades, sabem alguma coisa a esse respeito.

      - Ao que parece, você também sabe alguma coisa a respeito.

      - Só sei o que Mindes me disse. Chegamos aqui na mesma nave e durante a viagem fiquei fascinado. Realmente, ele conseguiu me conquistar com suas conversas a respeito da finalidade desse projeto. Você sabe alguma coisa a respeito?

      - Não sei de nada.

      - O projeto se refere ao hiperespaço, ou seja, aquela parte do espaço que se encontra além dos limites normais do espaço que conhecemos. As leis da natureza que se aplicam no espaço não podem ser aplicadas no hiperespaço. Por exemplo, no espaço normal é impossível se deslocar com uma velocidade maior do que a luz, de forma que levaríamos quatro anos para chegar até a estrela mais próxima. Atravessando o hiperespaço, porém, qualquer velocidade é possível -o médico calou-se com um sorriso meio tímido.

      - Tenho certeza de que você está a par de tudo isso.

      - Acho que a maioria das pessoas sabe que a descoberta do vôo hiperespacial permitiu-nos viajar para as estrelas, - disse Lucky. - Mas o que é que isso tem a ver com o Projeto Luz?

      - É o seguinte. No espaço normal a luz se desloca em linha reta dentro do vácuo. Ela pode ser dobrada somente por enormes forças gravitacionais. No hiperespaço, porém, ela pode ser dobrada facilmente, como se fosse feita de fios de algodão. Ela pode ser focalizada, dispersa e encurvada até voltar ao lugar de origem. Pelo menos, a teoria da hiperótica reza assim.

      - Suponho então que Scott Mindes está aqui para testar esta teoria.

      - Adivinhou.

      - Mas por que aqui? - perguntou Lucky. - Quero dizer, por que em Mercúrio?

      - Porque no Sistema Solar não existe outra superfície planetária que tenha tamanha concentração de luz numa área tão grande. Os efeitos pesquisados por Mindes podem ser descobertos aqui com maior facilidade. Pelo que Mindes me explicou, a realização do mesmo projeto na Terra custaria cem vezes mais, e os resultados seriam cem vezes mais incertos.

      -Mas agora parece que aconteceram alguns acidentes.

      Gardoma bufou.

      - Não se trata de acidentes. E acredite, Starr, precisa pôr um paradeiro nisso. Sabe o que significaria o sucesso do Projeto Luz? - Continuou como impulsionado por uma visão: - A Terra não seria mais uma escrava do Sol. Estações espaciais em órbita em volta da Terra poderiam interceptar a luz solar, mandá-la através do hiperespaço e espalhá-la na Terra de maneira regular. Poderíamos fazer desaparecer o calor excessivo do deserto e o gelo polar. As estações poderiam se suceder a nosso bel-prazer. Poderíamos controlar as condições atmosféricas controlando a distribuição da luz solar. Poderíamos ter luz solar eterna em qualquer lugar que quiséssemos. A Terra poderia se tornar um paraíso com ar condicionado.

      - Suponho que tudo isso levaria tempo.

      - Sem dúvida, levaria bastante tempo, mas isso só seria o começo - Olhe aqui, não quero ser indiscreto, mas você não é o David Starr que solucionou aquele caso de intoxicações alimentares em Marte?

      A voz de Lucky era bastante fria e suas sobrancelhas estavam franzidas quando perguntou:

      - Que motivos tem para pensar assim?

      O Dr. Gardoma disse:

      - Afinal, eu sou um médico. As intoxicações num primeiro momento pareciam uma doença epidêmica, e a coisa naturalmente despertou meu interesse. Ouvi alguns boatos a respeito de um jovem membro do Conselho que teve um papel preponderante no esclarecimento do mistério, e alguém mencionou nomes.

      Lucky falou:

      - Vamos deixar as coisas assim como estão. - Estava contrariado, como sempre acontecia quando encontrava indícios de sua própria celebridade. Acontecera com Mindes, e agora estava acontecendo com Gardoma.

      O médico insistiu:

      - Se você é o mesmo Starr, espero que você esteja aqui para pôr um paradeiro nesses assim chamados acidentes. Lucky não se fez de entendido. Perguntou:

      - Na sua opinião, Dr. Gardoma, quando é que poderei falar com Mindes?

      - Vai demorar pelo menos doze horas.

      - E ele estará normal e racional?

      - Estou certo que sim.

      Uma voz nova, com timbre gutural de barítono, interrompeu a conversa:

      - É mesmo, Gardoma? Você tem certeza que nosso querido Mindes nunca foi irracional?

      O Dr. Gardoma virou-se rapidamente e não fez o menor esforço para disfarçar uma expressão de total desagrado.

      - O que você está fazendo aqui, Urteil?

      - Estou mantendo meus olhos e meus ouvidos bem abertos, e tenho certeza de que você acharia preferível que eu os fechasse, - disse o homem que acabava de chegar.

      Lucky e Bigman estavam observando-o com curiosidade. Era um homem imponente. Não era muito alto, mas tinha ombros largos e extremamente musculosos. A barba por fazer deixava suas faces cobertas por uma sombra azulada. Tinha uma expressão desagradável de auto-suficiência.

      O Dr. Gardoma falou:

       - Não estou interessado no que você esteja fazendo com seus olhos e seus ouvidos, com tanto que não seja em meu escritório.

      - E por que não em seu escritório? - perguntou Urteil. - Você é um médico. Os doentes têm direito de vir até aqui. Talvez eu esteja doente.

      - O que é que você tem?

      - E que tal estes dois aqui? Eles têm alguma coisa? Devem estar sofrendo de uma deficiência de hormônios, pelo menos pela aparência. -Os olhos de Urteil se pousaram em Bigman com expressão zombeteira.

      Por um instante ninguém se mexeu, enquanto Bigman ficava pálido como gesso, logo a seguir pareceu inchar. Levantou-se vagarosamente da cadeira, com os olhos arregalados. 

      Seus lábios se moviam como se estivesse repetindo as palavras "deficiência de hormônios", como se quisesse se convencer que realmente tinha ouvido as palavras, e que não se tratava de uma ilusão.

      De repente, como uma cobra, todos os músculos contidos naquele corpo de um metro e cinqüenta e cinco se retesaram para o bote contra a figura maciça do homem sarcástico em sua frente.

      Lucky foi mais rápido ainda. Suas mãos agarraram os ombros de Bigman.

      - Calma aí, Bigman.

      O diminuto Marciano tentou desesperadamente se libertar.

      - Você ouviu o que ele falou, Lucky. Você ouviu.

      - Agora não pode, Bigman.

      A gargalhada de Urteil pareceu um latido.

      - Solte-o, companheiro. Vou amassar o baixinho com um dedo, só. Bigman continuou a uivar, agitando-se entre as mãos de Lucky. Lucky falou:

      - Acho que seria melhor se você parasse de falar, Urteil. Você poderia, caso contrário, arranjar uma encrenca grande demais para seu amigo, o senador.

      Seus olhos pareciam de gelo marrom e a voz era dura como aço.

      O olhar de Urteil ficou por um minuto fixo no de Lucky e depois se desviou. Murmurou algo a respeito de brincadeiras. A respiração ofegante de Bigman voltou a ser mais regular e quando Lucky soltou vagarosamente seus ombros, o Marciano voltou à cadeira ainda sacudido pelo tremor de sua fúria.

      O Dr. Gardoma que ficara imóvel e tenso, observando aquela cena, perguntou:

      - Você já conhecia Urteil, Starr?

      - Só pela fama. Ele é Jonathan Urteil, o investigador errante do Senador Swenson.

      - Poderíamos chamá-lo assim, - murmurou o médico.

      - Eu também o conheço, David Starr ou Lucky Starr, de qualquer forma que você prefira se chamar, - disse Urteil. - Você é o menino-prodígio errante do Conselho de Ciências. Intoxicações em Marte. Piratas astrais. Telepatia venusiana. A lista está certa?

      - Está, - disse Lucky, seco.

      Urteil teve um sorriso de escárnio:

      - São poucas as coisas a respeito do Conselho de Ciências que não são conhecidas no escritório do Senador. E são muito poucas as coisas que se passam aqui e fogem à minha atenção. Por exemplo, sei tudo a respeito do atentado contra você, e vim aqui para falar com você a esse respeito.

      - Por quê?

      - Quero lhe fazer uma advertência. Uma pequena e amistosa advertência. Acho que o doutor aqui lhe disse que o Mindes não passa de um bom garoto. Aposto que disse que tudo não passava de uma passageira manifestação emocional, devida a excesso de tensão. Ele e o Mindes são amigos do peito.

      - Eu só disse que... - começou o Dr. Gardoma.

      - Deixe que eu fale, - disse Urteil. - Deixe que eu diga isso: Scott Mindes é tão inofensivo quanto um asteróide de duas toneladas, um minuto antes de colidir com uma espaçonave. Não estava sendo vítima de um acesso de loucura temporária quando apontou seu desintegrador. Ele sabia muito bem o que estava fazendo. Estava, querendo assassinar você a sangue frio, Starr. Se você não se cuidar, na próxima vez ele vai conseguir. Estou falando assim porque acho que você pode apostar tudo, até as botas do seu amiguinho marciano, que Mindes vai tentar outra vez.

 

A morte esta esperando no quarto

      O silêncio que se seguiu a essas palavras pareceu muito desagradável a todos, com exceção de Urteil. Lucky perguntou:

      - Por quê? Qual é o motivo?

      A resposta de Urteil foi calma:

      - Porque está apavorado. Ele se encontra aqui, com um investimento de milhões. Recebeu todo esse dinheiro do Conselho de Ciências, que está completamente relaxado, e agora não consegue um único resultado positivo apesar de todas as tentativas. Ele está apelidando sua própria incompetência de azar. Daqui a algum tempo voltará à terra, chorando pelos feitiços em Mercúrio. Em seguida conseguirá mais dinheiro do Conselho, ou melhor ainda, dos contribuintes, para algum outro plano louco. Agora você veio fazer sua investigaçãozinha aqui em Mercúrio e ele está apavorado que, apesar de todos os pesares, o Conselho consiga saber uma parte da verdade... Não preciso explicar mais nada, não é mesmo?

      Lucky retrucou:

      - Se essa é a verdade, parece que você já a está conhecendo.

      - Sim. E espero poder provar tudo.

      - Nesse caso é você que representa o verdadeiro perigo aos olhos de Mindes. Se as coisas estão como você diz, ele precisaria matar você.

      Urteil sorriu e suas faces rechonchudas foram se avolumando até que o rosto pareceu mais largo do que comprido.

      - Ele já tentou me matar, - disse. - Isso é verdade. Mas já passei por muitos maus bocados a serviço do senador. Sei como cuidar de mim mesmo.

      - Scott Mindes nunca teve a intenção de matar você ou qualquer outra pessoa, - falou Gardorna com o rosto rígido e pálido. - Você sabe muito bem que é assim.

      Urteil não respondeu diretamente, mas falou com Lucky:

      - Não se descuide quando você estiver com o bom doutor aqui. Já lhe expliquei que ele é muito amigo de Mindes. Se eu fosse você, não deixaria que ele tratasse de mim nem que fosse por uma simples enxaqueca. Uma pílula ou uma injeção podem... 

      Estalou os dedos com um barulho seco.

      O Dr. Gardoma pareceu ter dificuldades em falar:

      - Qualquer dia alguém ainda vai matar você por ser um...

      Urteil interrompeu em tom displicente:

      - Sim? Por acaso você tenciona fazer isso? - Virou-se para sair e falou com o rosto acima do ombro: - Esqueci-me de uma coisa. Ouvi dizer que o velho Peverale está querendo ver você. Parece que está muito chateado, porque você chegou sem as costumeiras boas-vindas oficiais. Está mesmo muito perturbado. Vã vê-lo e afague a cabecinha do coitado do velhinho... E mais uma coisa, Starr. Procure não vestir um escafandro pressurizado antes de examinar com muito cuidado se está em perfeitas condições. Compreendeu o que eu quero dizer?

      Virou-se e saiu. Gardoma precisou de alguns minutos para voltar à compostura e conseguir falar sem engasgar. Então disse:

      - Esse sujeito está me irritando mais a cada vez que o encontro. É um indivíduo vil e mentiroso...

      -Ele me parece muito esperto, - comentou Lucky, seco. - Parece óbvio que um de seus sistemas de ataque é dizer propositalmente as coisas que ele calcula que poderão irritar mais o adversário. Um adversário irritado já está meio vencido... Bigman, estou falando também em seu beneficio. Você não pode simplesmente atacar sem mais nem menos qualquer pessoa que insinua que você não chega a um metro e oitenta de altura.

      - Mas, Lucky! - gemeu o pequeno Marciano. - Ele disse que eu estava com deficiência de hormônios.

      - Você deve aprender como esperar para a ocasião propícia para convencê-lo do contrário.

      Bigman resmungou furioso, enquanto batia com o punho fechado contra o plástico grosso de suas altas botas vermelhas com desenhos prateados - as botas coloridas e de cano altíssimo, que chegavam a cobrir as coxas, que somente eram usadas pelos rapazes das fazendas marcianas, e que nenhum deles dispensaria em qualquer ocasião. Bigman tinha uma dúzia de pares, cada par em cores diferentes e berrantes.

      Lucky observou:

      - Será melhor irmos ver o Dr. Peverale. Ele é o chefe do Observatório, não é mesmo? 

      - Ele comanda toda a Cúpula, - disse o médico. - Realmente, ele está ficando velho e parece um pouco desligado. Fico satisfeito em saber que ele detesta Urteil tanto quanto todos nós, mas parece que não existe nada que ele possa fazer. Ele não pode contrariar o senado. Começo a ter dúvidas: será que o Conselho de Ciências poderia contrariá-lo?

      Lucky respondeu:

      - Acho que sim. E não esqueça: quero falar com Mindes logo que ele acordar.

      - Está certo. Procure se cuidar.

      Lucky observou-o admirado:

      - Você disse para eu -me cuidar? Como assim?

      O Dr. Gardoma enrubesceu:

      - Uma maneira de falar. Eu sempre digo isso. Não pretendo dizer nada de especial.

      - Estou vendo. Pois então, até a próxima vez. Venha comigo, Bigman, e tire essa expressão carrancuda de seu rosto.

      O Dr. Lance Peverale apertou as mãos de ambos com uma energia bastante surpreendente num homem de sua idade. Seus olhos escuros tinham uma expressão preocupada, e pareciam mais escuros ainda por causa das sobrancelhas alvas. Os cabelos ainda fartos continuavam parcialmente com a cor original, e no conjunto, apresentavam uma tonalidade cinza-aço. O que mais lhe conferia uma aparência de idade avançada eram as bochechas ressequidas, parecidas com couro enrugado, e as maçãs do rosto ossudas e salientes.

      Falou devagar, com voz macia.

      - Sinto muito, cavalheiros. Estou muito preocupado pelos acontecimentos desagradáveis pelos quais passaram, chegando à Cúpula. Sinto-me responsável.

      - O senhor não tem motivos para isso, Dr. Peverale, - disse Lucky.

      - Sim, sou culpado, cavalheiro. Se eu estivesse aqui para complementá-los, como devia... Acontece que estávamos estudando uma saliência importante e bastante fora do comum, e receio que deixei que minha profissão interferisse com os meus deveres de hospitalidade.

      - Não se preocupe mais com isso, senhor, - disse Lucky, e lançou um olhar divertido a Bigman que estava boquiaberto, ouvindo o cerimonioso fluir das palavras do velho cientista.

     

      - Meu comportamento foi realmente imperdoável, - continuou o astrônomo, ¬mas fico muito satisfeito com sua generosidade. Já dei ordens para que colocassem um alojamento a sua disposição.

      Apanhou a ambos pelo braço e começou a empurrá-los pelos corredores estreitos mas bem iluminados da Cúpula:

      - Estamos um pouco apinhados, especialmente desde a chegada do Dr. Mindes e de seus engenheiros e outros também. Assim mesmo, acho que talvez vocês gostariam de uma oportunidade para se refrescar um pouco, e talvez tirar uma soneca. Tenho certeza de que vocês estão precisando também se alimentar, e já providenciei para que mandassem o necessário. Amanhã teremos tempo suficiente para as apresentações oficiais, e para saber de vocês os motivos dessa visita. Pessoalmente estou satisfeito em saber que o Conselho se responsabiliza por vocês. Vamos ter uma espécie de banquete em sua honra.

      O corredor tinha o chão inclinado: estavam descendo e penetrando nas entranhas de Mercúrio, para chegar ao andar residencial da Cúpula. Lucky disse:

      - O senhor é muito amável. Quem sabe, talvez conseguirei até uma oportunidade para visitar o Observatório. Peverale pareceu muito lisonjeado.

      - Estarei completamente à sua disposição para esse assunto, e tenho certeza de que o senhor não vai se arrepender do tempo gasto nessa visita. Nosso equipamento mais importante está montado numa plataforma móvel, que se desloca para frente e para trás com o Terminador. Dessa maneira conseguimos manter uma parte do Sol sob observação constante, apesar dos movimentos de Mercúrio.

      - Que maravilha! Preciso fazer uma pergunta, Dr. Peverale: qual é a opinião do senhor a respeito do Dr. Mindes? Gostaria muito que o senhor me desse uma resposta muito franca, e completamente desprovida de diplomacia.

      Peverale franziu a testa:

      - O senhor também é um desses engenheiros subtemporais?

      - Não exatamente, disse Lucky. Eu gostaria saber a respeito de Mindes, por favor.

      - Ah, sim. De fato, - disse o astrônomo, pensativo.

      - Ele é um rapaz agradável, muito competente, assim eu creio, mas é nervoso, muitíssimo nervoso. Sente-se ofendido por qualquer coisinha. Esses traços andaram se manifestando com o passar do tempo, quando a programação do projeto se demonstrou um pouco falha, e por isso parece que é um pouco difícil colaborar com ele. É uma pena, porque como eu disse, trata-se de um rapaz muito agradável. Durante todo o tempo em que permanecer aqui na Cúpula eu sou logicamente o superior dele, mas na realidade eu não interfiro. O projeto dele não tem nenhuma ligação com nosso trabalho no Observatório.

      - E o que é que o senhor pensa de Jonathan Urteil?

      O velho astrônomo parou de repente.

      - O que é que há com ele?

      - Ele se dá bem com o pessoal daqui?

      - Não tenho nenhuma intenção de falar a respeito daquele homem, - disse Peverale.

      Continuaram a caminhar em silêncio por algum tempo. O Dr. Peverale mantinha a cabeça baixa. Em seguida Lucky perguntou:

      - Existem mais pessoas estranhas na Cúpula? Aqui temos o senhor, a sua equipe, Mindes e sua equipe e Urteil. Quem mais está aqui? 

      - O médico, é claro. O Dr. Gardoma.

      - O senhor não o considera membro de sua equipe?

      - Ele é um médico, não é um astrônomo. Ele nos fornece aquele serviço que a Cúpula não pode dispensar, e que não pode ser feito por uma máquina. Ele cuida de nossa saúde. E é novo aqui.

      - Como assim, novo?

      - Está substituindo o médico que tínhamos e que foi embora após seu contrato de um ano. O Dr. Gardoma chegou com a mesma nave que trouxe Mindes e sua equipe.

      - O senhor disse contrato de um ano? Isso é o normal?

      - Isso é normal para os médicos e para a maioria dos outros homens. É muito difícil manter uma continuidade com essas mudanças. É duro treinar um homem e depois ver que ele vai embora; por outro lado, Mercúrio não é um lugar fácil para se viver, e os homens devem ter esse sistema de rotatividade.

      - Nesse caso, quantos homens novos chegaram durante os últimos seis meses?

      - Talvez vinte. Podemos controlar os registros para ver o número certo, mas acho que são mesmo vinte.

      - Mas o senhor já está aqui há bastante tempo?

      O astrônomo soltou uma gargalhada.

      - Já faz muitos anos. Nem quero pensar quantos. O Dr. Cook, meu diretor assistente, já está aqui há uns seis anos. Claro, tiramos férias freqüentes... Pronto, aqui estão seus alojamentos, cavalheiros. Se houver qualquer coisa, não hesitem em falar comigo diretamente.

      Bigman olhou ao redor. O quarto era pequeno, mas tinha duas camas que podiam ser encaixadas na parede quando não estivessem em uso, duas cadeiras também dobráveis, uma escrivaninha com poltrona conjugada, um pequeno armário e um banheiro ao lado.

      - Oba, isso é bem melhor do que o espaço na nave não é mesmo?

      - Não é mal, - confirmou Lucky. - Deve ser um dos melhores alojamentos daqui.

      - E por que não? - perguntou Bigman. - Aposto que ele sabe quem é você.

      - Acho que ele não sabe, Bigman, - respondeu Lucky. - Você viu que ele perguntou se eu era um engenheiro subtemporal. Ele só sabe que vim a mando do Conselho.

      - Todos os outros sabem quem você é, - retrucou Bigman.

      - Nem todos. Mindes, Gardoma e Urteil... Escute, Bigman, por que você não começa a usar o banheiro? Vou pedir que nos mandem alguma coisa para comer e que tragam a bolsa grande do Shooting Starr.

      - Está bem, - respondeu Bigman bem-humorado. Enquanto tomava seu chuveiro, Bigman ficou cantando em voz alta. Como era normal num mundo desprovido de água, o líquido destinado ao banho estava severamente racionado, com cartazes nas paredes avisando a quantidade permitida. Bigman, porém tinha nascido e fora criado em Marte. Tinha um respeito enorme pela água, e jamais pensaria em desperdiçá-la. Por isso usou muito detergente, racionou cuidadosamente a água e continuou cantando.

      Em seguida colocou-se frente ao secador de ar quente, sentindo a pele reagir sob os jatos de ar seco dos sopradores, e começou a dar pancadinhas em si mesmo para ter um efeito melhor.

      - Oi, Lucky, - berrou. - A comida já chegou? Estou com fome...

      Ouviu a voz de Lucky falando com alguém, mas não conseguiu distinguir as palavras.

      - Oi, Lucky, - repetiu saindo do banheiro. Em cima da mesa estavam dois pratos fumegantes de rosbife com batatas. (O aroma um pouco pungente indicava que pelo menos a carne era uma composição de lêvedo, vindo das hortas submersas de Vênus.) Lucky, porém não estava comendo. Estava sentado sobre a cama, falando no comunicador de parede.

      O rosto do Dr. Peverale era visível no vídeo do receptor. Lucky disse:

      - Todo mundo sabia que este seria nosso quarto?

      - Não. Simplesmente dei ordens para preparar o alojamento através do comunicador geral. Eu não achei que havia motivos especiais para manter a noticia secreta. Acho que qualquer pessoa poderia me ouvir. Ainda mais, seu quarto faz parte de um grupo reservado a hóspedes importantes. Isso também não é segredo nenhum.

      - Estou vendo. Muito obrigado, senhor.

      - Existe algo errado?

      - Não senhor, não há nada de errado, - respondeu Lucky sorrindo e desligou. Logo se tornou sério, aliás preocupado.

      - Então não há nada de errado, hein? - explodiu Bigman. - O que é que há, Lucky? Não venha me contar que não há nada de errado.

      - De fato, algo está errado. Dei uma olhada no equipamento que temos aqui. Aqueles macacões isotérmicos devem ser os que são usados do lado do Sol. Pelo menos, assim acredito.

      Bigman apanhou um dos macacões dependurados num nicho da parede. Era extraordinariamente leve pelo seu volume, e o fato não podia ser atribuído à gravidade de Mercúrio, porque na Cúpula a gravidade era mantida ao nível da terrestre.

      Sacudiu a cabeça. Se tivesse que usar uma roupa especial, fornecida por um depósito qualquer e não feita especialmente sob medida, teria que reduzi-la ao mínimo possível, e assim mesmo ela seria incômoda. Suspirou. Realmente era duro não ser exatamente alto. Ele sempre se definia dessa maneira: não exatamente alto. Jamais admitiria que seu metro e cinqüenta e cinco na realidade o fazia "baixo". Então disse:

      - Pelas areias de Marte! Aqui tudo já está preparado para nós: cama, banho, comida e roupas.

      - E mais alguma coisa, - acrescentou Lucky, muito sério. - A morte também está esperando por nós nesse quarto. Olhe aqui.

      Lucky levantou a manga do macacão maior. A junta do ombro girou facilmente com seus aros metálicos, mas havia ali um rasgo que poderia passar desapercebido, se Lucky não puxasse com firmeza. Era um corte! Evidentemente, feito à faca! O material isolante estava aparecendo.

      - Na parte interna, - disse Lucky, - tem um corte idêntico. O macacão poderia resistir só o tempo necessário para chegarmos do lado do Sol, e chegando ali eu acabaria morrendo sem remissão.

 

O banquete

      - Foi Urteil! - gritou Bigman com uma expressão selvagem, enquanto todos os músculos do corpo diminuto se retesavam de ódio. - Esse sujo cafajeste...

      - Por que Urteil? - perguntou Lucky em voz baixa.

      - Ele nos avisou, - falou a respeito dos macacões. - Você não está se lembrando, Lucky?

      - Eu me lembrei disso. Foi o motivo para eu examiná-los.

      - Pois foi ele quem arrumou isso tudo. Achamos um macacão cortado à faca, e logo deveríamos pensar que ele é um grande sujeito. E na primeira oportunidade, ele poderia se aproveitar de nós tranqüilamente. Não vá cair nessa, Lucky. Ele não passa de um...

      - Espere um pouco, Bigman, espere aí! Você está chegando às conclusões com muita pressa! Procure ver a coisa de um outro ângulo. Urteil disse que Mindes já tentara assassiná-lo. Vamos fazer de conta que estamos acreditando nisso. Vamos supor que Mindes tentou sabotar o macacão de Urteil, e que Urteil percebeu a coisa em tempo. Urteil poderia ter falado para nos prevenir contra a mesma coisa. Talvez isso seja obra de Míndes.

      - Pelas areias de Marte, Lucky! Isso é impossível! Esse cara... o Mindes, está embutido de barbitúricos e está dormindo, e antes de dormir ficou conosco desde o minuto em que aterrissamos sobre essa maldita rocha.

      - Certo. Mas como é que podemos ter certeza que Mindes está realmente dormindo, cheio de bolinhas? - perguntou Lucky.

      - Gardoma disse... - começou Bigman e calou-se.

      - Isso mesmo. Gardoma disse! Só que não vimos Mindes... e sabemos apenas o que Gardoma nos disse. E Gardoma é amigo íntimo de Mindes.

      - Então ambos estão juntos nessa conspiração, - exclamou Bigman convicto. - Por todos os cometas...

      - Espere, espere um pouco! Pare de pular de uma conclusão para a outra. Puxa, pela grande Galáxia! Estou tentando pôr em ordem meus pensamentos, Bigman, não tenho certeza de nada. - Falou com um leve tom de reprovação, para não ofender os brios de seu diminuto amigo. Continuou: - Você já se queixou muitas vezes que eu não lhe conto tudo o que eu penso, e que só lhe comunico as coisas quando já estão feitas. Agora você vê porque eu não posso lhe dizer tudo. Você é mesmo muito estourado. Eu estou apenas enunciando uma teoria, e lá vai você, a toda velocidade e com as armas prontas para fazer fogo!

      - Sinto muito, Lucky, - disse Bigman. - Continue.

      - Está certo. É fácil suspeitar de Urteil. Ninguém gosta dele, nem mesmo o Dr. Peverale. Você viu qual foi a reação dele, logo que mencionei o nome de Urteil. Só o vimos uma vez, mas você o detesta...

      - Pudera, - murmurou Bigman.

      - E eu também não o achei simpático. Qualquer pessoa poderia ter feito aquele corte no macacão, na esperança de que as suspeitas recaíssem em Urteil, caso alguém o percebesse. Era lógico supor que o corte seria descoberto, após a morte de alguém, ou talvez antes.

      - Compreendo, Lucky.

      - Por outro lado, - continuou Lucky tranqüilo, - Mindes já tentou se livrar de mim com o desintegrador. Se temos que levar em conta aquela tentativa, temos que concluir que ele não seria o tipo de fazer algo tão indireto como recortar um macacão. E pelo que diz respeito a Gardoma, duvido que ele se envolveria no assassínio de um conselheiro somente porque é amigo de Mindes.

      - Estou percebendo, Lucky. Mas então quem foi? -gritou Bigman impaciente.

     

      - Por enquanto, não posso dizer nada, falou Lucky, a não ser que está na hora de dormir. - Abriu sua cama e depois entrou no chuveiro. Bigman seguiu-o com o olhar e encolheu os ombros.

      Scott Mindes estava sentado em sua cama quando Lucky e Bigman entraram em seu alojamento na manhã seguinte. Tinha o rosto pálido e parecia muito cansado.

      - Olá, disse. - Karl Gardoma contou-me o que aconteceu. Você não pode imaginar quanto eu lamento. Lucky limitou-se a encolher os ombros.

      - Como é que você está se sentindo?

      - Exausto, mas praticamente recuperado, se você entende o que ou quero dizer. Vou estar presente ao banquete que Peverale vai oferecer hoje à noite para você.

      - Você acha isso aconselhável?

      - Não pretendo deixar que Urteil tome a dianteira, - respondeu Mindes com um repentino surto de ódio que lhe coloriu as faces. -Não vou deixar que ele conte a todos que eu sou maluco. Ou que Peverale faça isso.

      - O Dr. Peverale tem dúvidas a respeito de seu raciocínio? - Lucky perguntou em voz baixa.

      - Não sei... Escute, Starr. Desde o instante que começaram os acidentes mais graves, comecei a examinar o lado solar com um jatinho a disco. Achei que era necessário. Afinal, é o meu projeto. E por duas vezes eu... eu vi algo.

      Mindes calou-se e Lucky perguntou: 

      - O que foi que viu, Mindes?

      - Gostaria de poder falar com toda certeza. O que eu vi estava bastante distante, nas duas ocasiões. Parecia uma criatura humana. Alguém que vestia um escafandro pressurizado. Não era um daqueles macacões isotérmicos especiais que temos aqui, você já os viu? Parecia mais um daqueles escafandros comuns. Metal comum, você sabe.

      - Você tentou se aproximar?

      - Sim, mas perdi a criatura de vista. As fotografias também não mostraram nada. Só algumas manchas claras e escuras que poderiam ser algo, mas também poderiam não ser coisa alguma. Mas era alguém, tenho certeza. Alguém que estava se movimentando debaixo do Sol, sem se importar com o calor e com a radiação. A criatura até ficava parada debaixo do Sol, por minutos a fio. Por isso fiquei tão impressionado.

      - Isso é muito estranho? Quero dizer, o fato de ficar parado?

      Mindes riu.

      - No lado solar de Mercúrio? Sim, é muito estranho. Ninguém fica parado. Apesar do macacão isotérmico, todo mundo procura fazer o que deve o mais rápido possível, para sair dali logo que puder. Aqui, perto do Terminador, o calor não é dos piores. A radiação, porém é muito forte. É uma boa medida se expor o menos possível. Os macacões isotérmicos não representam uma proteção muito eficaz contra os raios gama. Quando a gente tem necessidade de parar, procura a sombra de uma rocha qualquer.

      - E qual é sua idéia o respeito de tudo isso?

      A voz de Mindes mais parecia um murmúrio, como se estivesse envergonhado.

      - Eu não acho que é um homem.

      - Escute aqui, você não está querendo dizer que era um fantasma de duas pernas? - perguntou Bigman antes que Lucky conseguisse cutucá-lo para que se calasse.

      Mindes porém sacudiu a cabeça.

      - Foi isso que eu disse quando estávamos na superfície? Eu tenho a impressão de que foi... Não, eu penso que aquilo era um Mercuriano.

      - Um o quê? - berrou Bigman, dando a impressão de que a resposta era ainda pior do que a primeira hipótese.

      - Pois me diga como poderia agüentar o calor e a radiação se não fosse assim?

      - Nesse caso, por que estaria precisando de um escafandro pressurizado? - perguntou Lucky.

      - Ora, eu não sei. -Os olhos de Mindes mandaram um lampejo. Estava inquieto, agitado. - Mas havia algo. Quando voltei à Cúpula consegui estabelecer onde estavam todos os homens e todos os escafandros e macacões, em ambos os casos. O Dr. Peverale não quer autorizar uma expedição para fazermos uma busca em regra. Ele acha que não temos equipamentos adequados.

      - Você contou a ele tudo isso?

      - Ele pensa que eu sou louco. Tenho certeza que ele me julga maluco. Ele acha que eu vi alguns reflexos, e que minha imaginação atribuiu-lhes feições humanas. Mas, Starr, não foi assim!

      - Você entrou em contato com o Conselho de Ciências? perguntou Lucky.

      - De que maneira? O Dr. Peverale não pretende me ajudar. Urteil diria logo que sou maluco, e eles levariam em conta a opinião dele. Quem iria acreditar em mim?

      - Eu, disse Lucky.

      Mindes estremeceu e se endireitou na cama. Esticou o braço como para agarrar a manga de Lucky, mas parou no ar. Perguntou com a voz embargada:

      - Você vai investigar a coisa?

      - Vou, sim. A minha maneira, - prometeu Lucky.

     

      À noite, quando Lucky e Bigman apareceram, os outros já estavam em volta da mesa. Apesar do murmúrio que se levantou quando eles entraram, e o início das apresentações, havia sinais evidentes de que a reunião não estava exatamente alegre.

      O Dr. Peverale, sentado na ponta da mesa, com os lábios apertados e as bochechas em movimento, mostrava que estava fazendo um grande esforço para se controlar. 

      A sua esquerda estava Urteil, com seus ombros largos, recostado displicentemente na cadeira enquanto seus dedos grossos brincavam delicadamente com um copo.

      Scott Mindes estava quase no fim da mesa. Seus olhares de furiosa frustração em direção de Urteil pareciam ressaltar sua extrema juventude e seu cansaço. Ao seu lado, o Dr. Gardoma parecia ansioso e alerta, como querendo interferir no caso de Mindes se descontrolar.

      Os outros assentos, menos dois à direita de Peverale, eram ocupados por vários astrônomos importantes do Observatório. Um deles, Hanley Cook, o segundo homem importante da Cúpula, inclinou seu corpo esguio e comprido para frente, e apertou firmemente a mão de Lucky.

      Lucky e Bigman tomaram seus assentos e logo foi servida a salada.

      De repente Urteil falou com aquela sua voz áspera que logo dominou todas as outras.

      - Antes que você entrasse, estávamos discutindo se o jovem Mindes deveria ou não lhe contar os milagres que ele conseguirá para a Terra, quando terminar suas experiências.

      - Nada disso, interrompeu Mindes. - E se você não se importar, eu vou falar do que me interessa sem sua ajuda.

      - Ora, vamos, Scott, - falou Urteil com um largo sorriso. - Pare de se acanhar. Deixe comigo. Eu vou contar o que é.

      A mão do Dr. Gardoma posou como por acaso no ombro de Mindes. O jovem engenheiro reteve seu grito de indignação e ficou calado. Urteil disse:

      - Quero preveni-lo, Starr. Essa história é muito boa. 

      Lucky interferiu:

      - Eu sei algumas coisas a respeito das experiências. Acredito que o resultado final, ou seja um planeta com ar condicionado, é bastante possível. Urteil amarrou a cara.

      - É assim, hein? Sinto-me feliz por você ser tão otimista. O coitado do Scott não consegue sequer terminar a experiência piloto. Pelo menos é isso que ele está dizendo, não e mesmo, Scott?

      Mindes tentou se levantar da cadeira, mas a mão de Gardoma mais uma vez comprimiu seu ombro. Os olhos de Bigman iam de um ao outro, e toda vez que paravam em Urteil, seu asco era evidente. Mas ficou calado.

      Foi servido o prato principal e as conversas pararam por algum tempo. O Dr. Peverale tentou levar o interesse dos convivas para assuntos menos explosivos e durante algum tempo teve sucesso. Finalmente Urteil espetou no garfo o último pedaço de rosbife, inclinou-se em direção a Lucky e perguntou:

      - Então você está simpatizando com o projeto de Mindes, é isso?

      - Acredito que é um projeto bastante razoável.

      - Você não poderia pensar de forma diferente, considerando que você é membro do Conselho de Ciências. Mas que tal se eu lhe contasse que as experiências feitas aqui não passam de um embuste, essas mesmas experiências poderiam ser feitas na Terra, ao custo de um por cento da verba estabelecida, se o Conselho estivesse interessado em poupar o dinheiro dos contribuintes. O que é que você tem a dizer agora?

      - Se você tivesse alguma coisa a me dizer, eu continuaria da mesma opinião, - retrucou Lucky muito calmo. - Eu diria, meu prezado senhor Urteil, que é bastante possível que você esteja mentindo. Acho que a mentira é um de seus maiores talentos, e ao mesmo tempo, seu maior prazer.

      Seguiu-se um silêncio total. Até Urteil ficou calado. Seu rosto carnudo pareceu encolher e os olhos ficaram esbugalhados. Em seguida levantou-se num surto de fúria, inclinou-se sobre a mesa em frente ao Dr. Peverale e bateu a mão sobre a superfície, a poucos milímetros do prato de Lucky.

      - Nenhum lacaio do Conselho pode... - berrou com sua voz possante.

      Bigman mexeu-se no mesmo instante. Ninguém conseguiu ver direito seus movimentos, porque foram rápidos como o bote de uma cobra, mas Urteil parou de berrar com uma exclamação de susto.

      A mão de Urteil ainda estava no mesmo lugar, mas o cabo esculpido de uma faca magnética estava surgindo entre seus dedos.

      O Dr. Peverale empurrou sua cadeira para trás, e todos os presentes, menos Bigman, soltaram uma exclamação ou um grito de espanto. Lucky também pareceu surpreso. A voz clara de Bigman levantou-se sobre as outras:

      - Abra os dedos, seu tonel de óleo mineral. Vamos, abra os dedos e volte a se sentar em sua cadeira.

      Urteil olhou por um minuto, sem compreender as palavras do homem baixinho que o estava caçoando. A seguir abriu os dedos muito devagar. Sua mão não estava ferida, a pele não estava sequer arranhada. A faca magnética estava tremendo levemente, enfiada na dura superfície de plástico da mesa. Só se via uma polegada de sua lâmina brilhante e luminosa (ela não era um objeto feito de matéria, mas simplesmente um minúsculo campo de força magnética). A lâmina tinha entrado na mesa entre o segundo e o terceiro dedo da mão de Urteil.

      Urteil retirou a mão com gesto brusco como se a superfície da mesa estivesse queimando. Bigman deu uma gargalhada:

      - Lembre-se de uma coisa, cafajeste. A próxima vez que você aproximar sua mão de Lucky ou de mim, eu vou cortá-la, ouviu? O que é que você me diz? E qualquer coisa que seja, fale de maneira educada. -Apanhou o cabo da faca, desativando a lâmina, e voltou a guardar o cabo em seu cinto.

      Lucky franziu as sobrancelhas.

      - Eu não sabia que meu amigo estava armado. Tenho certeza de que ele está arrependido por ter interrompido nosso jantar, mas, por outro lado, acredito que Urteil devia tirar uma lição de tudo isso.

      Alguém riu, e os lábios de Mindes se estiraram num leve sorriso. Urteil observou a todos com olhos que faiscavam, disse:

      - Não vou me esquecer desse incidente. Para mim é óbvio que o Senador não está recebendo toda a cooperação necessária, e vou avisá-lo a esse respeito. De qualquer forma, vou ficar aqui mesmo. - Cruzou os braços sobre o peito, como a desafiar os outros a mandá-lo embora.

      Aos poucos a conversação tornou-se geral.

      Lucky disse ao Dr. Peverale:

      - O senhor sabe que eu tenho a impressão de tê-lo visto antes?

      - É mesmo? - O sorriso do astrônomo parecia forçado. - Eu não acredito tê-lo encontrado antes de agora.

      - O senhor nunca esteve em Ceres?

      - Ceres? - O velho astrônomo pareceu surpreso. Também dava a impressão de não ter se recuperado completamente do incidente com a faca magnética. 

      - O maior observatório do Sistema Solar está naquele asteróide. Trabalhei ali quando era moço, e estou procurando me lembrar se não foi ali que eu vi o senhor.

      Enquanto falava, Lucky via com os olhos da mente os dias excitantes da caçada ao capitão Anton e aos piratas que costumavam se refugiar nos asteróides. Lembrou-se do dia em que os piratas atacaram o coração do território do Conselho, na própria superfície de Ceres, conseguindo uma vitória temporária com uma ação extremamente audaciosa.

      O Dr. Peverale sacudiu a cabeça, bem humorado:

      - Tenho certeza de que não poderia me esquecer se eu já tivesse encontrado o senhor em Ceres. Mas tenho certeza que nunca o vi antes.

      - Uma pena, disse Lucky.

      - Sou eu quem perdeu uma oportunidade, acredite. Mas era a época. Não tive sorte. Tive uma intoxicação intestinal e não vi nada dos acontecimentos excitantes ligados aos piratas. Só fiquei sabendo deles pelas conversas dos enfermeiros.

      O Dr. Peverale, muito bem-humorado, olhou para seus convidados. O distribuidor automático de bandejas estava entregando a sobremesa. Então, disse:

      - Cavalheiros, tivemos aqui algumas discussões a respeito do Projeto Luz. Parou, sorriu com expressão bondosa e continuou:

      - Considerando as circunstâncias, o assunto não é dos mais felizes. Acontece que fiquei pensando bastante a respeito dos acidentes que deixaram muitos entre nós realmente desnorteados. Acho que chegou o momento de dizer o que eu penso a respeito. Afinal, o Dr. Mindes está presente. Tivemos uma boa refeição. E eu tenho algo interessante a comunicar.

      Urteil, que tinha ficado calado até então, perguntou de maneira rude:

      - Quem? O senhor, Dr. Peverale?

      O astrônomo continuou tranqüilo:

      - Por que não? Muitas vezes em minha vida tive a oportunidade de fazer comunicações interessantes. Agora pretendo mesmo dizer o que penso. - Sua expressão era muito séria: - Acho que sei a verdade, toda a verdade. Sei quem está provocando a sabotagem do Projeto Luz.

      O rosto amável do velho astrônomo expressava satisfação enquanto virava os olhos ao redor da mesa talvez por ter obtido a total atenção de todo o mundo. Lucky também observou todos os presente e viu as diferentes expressões após o anúncio do Dr. Peverale. Os traços rudes de Urteil mostrava todo seu desprezo, o dr, Gardoma parecia surpreso, Mindes estava com as sobrancelhas franzidas. Todos os outros mostravam curiosidade e interesse.

      A atenção de Lucky foi despertada especialmente pela expressão de Hanley Cook, o assistente e substituto do Dr. Peverale. Ele estava observando a ponta de seus próprios dedos, com um ar de enjôo e cansaço. Quando levantou os olhos, sua expressão mudou: era indiferente e ao mesmo tempo cautelosa.

      Lucky pensou: Preciso falar com esse homem.

      A seguir, voltou-se novamente para o Dr. Peverale.

      O Dr. Peverale estava dizendo:

      - É claro que o sabotador não pode ser alguém entre nós. O Dr. Mindes me disse que suas investigações excluem essa possibilidade. Até sem investigação nenhuma eu teria certeza absoluta que entre nós não existe uma pessoa capaz de uma ação criminosa desse gênero. Por outro lado o sabotador deve ser inteligente, porque as destruições são definitivamente propositais e dirigidas com exclusividade contra o Projeto Luz. Não podem, portanto ser o resultado do acaso ou perpetrados por alguém desprovido de inteligência. Por conseqüência...

      Bigman interrompeu, excitado:

      - Um minuto! O senhor quer dizer que Mercúrio tem criaturas nativas? Os Mercurianos estariam fazendo os estragos?

      Ouviram-se alguns comentários confusos e algumas risadas. Bigman enrubesceu:- Afinal, protestou o pequeno Marciano, não era isso que o Dr. Peverale estava dizendo?

      - Não, não exatamente, respondeu o Dr. Peverale, muito amável.

      - Não existe nenhuma espécie de vida nativa em Mercúrio, - um dos astrônomos declarou com bastante ênfase. - Temos absoluta certeza disso.

      Lucky interferiu:

      - Certeza absoluta? Alguém fez pesquisas nesse sentido?

      O astrônomo pareceu um pouco abalado. Disse:

      - Sem dúvida. Foram feitas algumas pesquisas.

      Lucky sorriu. Lembrou-se de que em Marte descobrira criaturas inteligentes que nenhum outro homem conhecia; que em Vênus encontrara criaturas semi-intelígentes que ninguém pensava que pudessem existir. Ele se recusava a admitir que todos os planetas eram desprovidos de vida, ou de inteligência.

      - Quantas pesquisas foram feitas? - perguntou. - Os pesquisadores fizeram um trabalho completo? Investigaram quilômetro quadrado por quilômetro quadrado?

      O astrônomo não respondeu. Desviou o olhar e ergueu as sobrancelhas, como a dizer: Para que? Bigman sorriu e seu rosto assumiu a expressão de um elfo bem-humorado. O Dr. Peverale disse:

      - Meu caro Starr, todas as explorações ficaram sem resultado. Apesar de não excluirmos completamente as possibilidades de vida em Mercúrio, acreditamos que as probabilidades são muito poucas. Vamos ter que presumir que a única forma de vida inteligente em toda a Galáxia é a raça humana. Aliás, é a única que conhecemos.

      Lucky, pensando nas criaturas-cérebros em Marte, não concordava com isso, mas ficou calado e deixou que o velho cientista continuasse seu raciocínio. Foi Urteil que, após recuperar lentamente sua antiga empáfia, interveio mais uma vez:

      - Onde é que o senhor pretende chegar? - perguntou, e seu mau gênio compeliu-o a acrescentar: - Se é que pretende chegar a alguma coisa?

      O Dr. Peverale absteve-se de uma resposta direta. Olhou demoradamente para os rosto de cada um dos convivas, ignorando propositalmente o investigador do Senado. Em seguida falou:

      - O fato mais importante é que existem criaturas humanas em lugares distantes da Terra. Existem criaturas humanas em muitos sistemas estelares. - O rosto do astrônomo mudou de expressão. Tornou-se tenso e pálido, suas narinas se dilataram como por um surto de fúria interior: - Por exemplo, existem criaturas humanas no planeta Sírio. E se os sabotadores tivessem vindo de lá?

      - Por que eles fariam isso? Retorquiu Lucky.

      - Por que não? Eles já perpetraram outras agressões contra a Terra.

      Era verdade. Não fazia muito tempo que o próprio Lucky tivera que ajudar em rechaçar uma frota de invasão siriana, quando desembarcou em Ganimedes. Naquela ocasião, porém, eles tinham se retirado do Sistema Solar sem insistir com outros ataques. Por outro lado, muitos Terrestres já estavam acostumados a culpar os Sirianos por qualquer coisa que saísse errada.

      O Dr. Peverale continuou com energia:

      - Eu já estive lá. Eu estive em Sírio há cinco meses atrás. Foi bastante difícil para mim, porque os Sirianos não gostam de imigrantes e de turistas, mas em se tratando de uma convenção astronômica interestelar, consegui arranjar um visto de entrada. Estava querendo ver tudo pessoalmente, e preciso dizer que não fiquei decepcionado. Os planetas de Sírio são muito pouco povoados e são bastante descentralizados. Os Sirianos vivem em unidades familiares individuais e isoladas, sendo que cada uma tem sua própria fonte de energia e os serviços. Cada uma tem seu próprio grupo de escravos mecânicos - acho que não poderíamos encontrar uma expressão diferente - e estes escravos têm a forma de robôs positrônicos e fazem todos os serviços. Os Sirianos humanos mantêm sua posição de aristocracia guerreira. Todo indivíduo está capacitado a manobrar um cruzador espacial. Eles não desistirão até conseguirem destruir a Terra.

      Bigman se mexeu, inquieto, sem se levantar da cadeira:

      - Pelas areias de Marte, deixe-os tentar. É isso que eu digo, deixe-os tentar.

      - Eles tentarão quando estiverem prontos para isso - respondeu o Dr. Peverale. - Se não fizermos alguma coisa, dentro do menor tempo possível, para afastar esse perigo, estaremos perdidos. O que é que temos para debelá-los? É verdade, nossa população atinge bilhões de indivíduos, mas quantos entre eles estão familiarizados com o espaço? Não passamos de seis bilhões de coelhos, e eles representam um milhão de lobos vorazes. A Terra está desprotegida, e a cada ano que passa, ela se torna ainda mais desprotegida. Nos alimentamos com cereais de Marte e lêvedo de Vênus. Nossos minerais chegam dos asteróides, e costumávamos extraí-los também em Mercúrio, quando as minas daqui ainda estavam funcionando. Escute, Starr se o Projeto Luz tiver êxito, a Terra dependerá de estações espaciais até para obter a claridade do Sol. Você está percebendo até que ponto seremos vulneráveis? Um pelotão de choque Siriano poderia atacar os postos avançados do Sistema e levar fome e pânico à Terra, sem ter que nos atacar diretamente. O que é que poderíamos fazer? Não adianta matá-los, porque sempre haverá bastante Sirianos auto-suficientes e independentes. Qualquer grupo poderá continuar a guerra.

      O ancião estava com falta de ar pela agitação. Era impossível duvidar de sua sinceridade. Todos viam que ele estava finalmente arejando um problema que estava ameaçando sufocá-lo.

      Lucky olhou para o lado de Hanley Cook, o segundo homem na hierarquia da Cúpula. Ele estava sentado, apoiando a testa nos dedos dobrados de uma mão. Tinha o rosto corado, mas aquela cor não deu a Lucky a impressão de ser devida à raiva ou indignação. Parecia mais um rubor de vergonha.

      Scott Mindes falou com evidente ceticismo:

      - Mas por que eles iriam fazer isso, Dr. Peverale? Se eles estão bem em Sírio, não existem motivos para eles invadirem a Terra, não é mesmo? O que é que eles poderiam querer de nós? Mesmo admitindo que eles consigam conquistar a Terra, eles seriam obrigados a nos manter...

      - Bobagens! - gritou o velho astrônomo. -Por que eles fariam isso? Compreenda bem, eles querem nossos recursos, mas não querem nossa população. Procure se convencer disso. Eles deixariam que os terrestres morressem de fome. Isso faz parte de sua mentalidade.

      - Ora, ora, - disse Gardoma. -Isso é inacreditável!

      - Eles não agiriam por crueldade, -continuou o Dr. Peverale, - mas simplesmente por política. Eles nos desprezam. Acham que somos pouco mais do que animais. Os Sirianos têm muito orgulho de sua linhagem. Desde a primeira colonização de Sírio por parte dos terrestres, aquele povo continuou a se multiplicar observando cuidadosamente as leis genéticas, ao ponto de não estarem mais atacados pelas doenças e não terem mais certas características que eles consideram indesejáveis. Todos eles têm a mesma aparência enquanto os terrestres têm todas as formas, todos os tamanhos, todas as cores e suas variedades. Os Sirianos acham que somos criaturas inferiores. Este é o verdadeiro motivo deles não permitirem a imigração. Não estavam querendo que eu assistisse à convenção e só cederam quando o governo aplicou todas as pressões possíveis. Os astrônomos dos outros sistemas eram bem-vindos, menos os da Terra. Eles não têm muita consideração pela vida humana, por qualquer tipo de vida humana. Eles têm a mania das máquinas. Observei como agiam com seus homens metálicos. Eles parecem ter mais considerações com um robô Siriano do que com um homem Siriano. Na opinião deles, um robô Siriano valeria quanto ou mais de cem homens terrestres. Eles mimam seus robôs. Eles os amam. Fazem qualquer coisa por eles.

      Lucky murmurou:

      - Robôs são muito caros. Devem ser tratados com os maiores cuidados.

      - É possível, - concedeu o Dr. Peverale. - Mas homens que se acostumam a se preocupar com as necessidades de máquinas, ficam muito displicentes quando precisam pensar nas necessidades de pessoas.

      Lucky Starr inclinou-se para frente, apoiando os cotovelos sobre a mesa. Seus olhos escuros estavam muito sérios e os traços ainda muito juvenis do rosto atrativo mostravam sua preocupação. Disse:

      - Dr. Peverale, se os Sirianos têm tanta preocupação com sua linhagem e procuram apurar a raça até serem todos iguais uns aos outros, eles acabarão por sair perdendo a longo prazo. É a variedade da raça humana que fomenta o progresso. A Terra, e não Sírio, está na vanguarda das pesquisas científicas. Foram os Terrestres que colonizaram Sírio, e somos nós, e não nossos primos Sirianos, que progredimos, a cada ano que passa, em todas as, direções. Fomos nós que inventamos até os robôs positrônicos que o senhor acaba de mencionar. Eles foram criados e desenvolvidos na Terra, por Terrestres.

      - De fato, - assentiu o astrônomo, - mas os Terrestres não usam robôs. Isso poderia desequilibrar nossa economia, e para nós o conforto e a segurança do dia de hoje são mais importantes do que a salvação de amanhã. Usamos o progresso científico para nos tornarmos ainda mais fracos. Sírio usa o progresso científico para tornar-se mais forte. Essa é a diferença, e ao mesmo tempo, o grande perigo.

      O Dr. Peverale se recostou em sua cadeira com expressão soturna. O porta-bandejas automático começou a tirar os pratos. Lucky apontou o dedo:

      - Isso é, uma espécie de robô - disse.

      O porta-bandejas automático continuou tranqüilamente em sua tarefa. Era um objeto de superfícies lisas que se movimentava suavemente por um campo dia-magnético, e de fato sua base levemente arredondada mantinha-se um pouco afastada do chão. Seus ágeis tentáculos apanhavam os pratos com muita delicadeza, colocando alguns em sua superfície superior, e outros num receptáculo lateral.

      - Isso não passa de um simples autômato, - bufou o Dr. Peverale. - Não tem nenhum cérebro positrônico. Não sabe e não pode se adaptar a nenhuma mudança em suas tarefas.

      - Afinal, - perguntou Lucky, -o senhor estava querendo insinuar que os Sirianos estão sabotando o Projeto Luz?

      - Sim. Eu afirmo que sim.

      - Qual seria o motivo?

      O Dr. Peverale encolheu os ombros.

      - É possível que seja simplesmente uma parte de um plano muito mais amplo. Não sei quais distúrbios podem estar acontecendo em outras partes do Sistema Solar. Também é possível que o que está acontecendo aqui seja apenas uma tentativa inicial, que poderá levar em seguida à invasão e à conquista. O Projeto Luz não é importante por si, mas o perigo Siriano é muito importante. Gostaria poder fazer alguma coisa para que o Conselho de Ciências, o governo e o povo se inteirassem da situação como ela realmente se apresenta. Hanley Cook pigarreou e pela primeira vez abriu a boca para falar:

      - Os Sirianos são criaturas humanas iguais a nós, Se eles estão no planeta, onde é que eles estão. A voz do Dr. Peverale soou fria:

      - Para descobrirmos isso, precisamos de um grupo de exploradores. Precisamos preparar com cuidado uma expedição muito bem equipada.

      - Espere um minuto, - disse Mindes com os olhos brilhantes pela excitação.

      - Eu estive na superfície do lado do Sol, e posso jurar que...

     

      - Uma expedição bem preparada e equipada, -Peverale repetiu com energia. - Seus passeios solitários não significam nada, Mindes. O engenheiro gaguejou e acabou silenciando, muito confuso. Lucky falou de repente:

      - Você não parece concordar muito com isso, Urteil. O que é que você pensa das idéias de Dr. Peverale?

      O investigador lançou a Lucky um olhar demorado, carregado de ódio, como a desafiá-lo. Era evidente que ainda não tinha esquecido o bate-boca de pouco antes e que possivelmente jamais o esqueceria.

      - Prefiro reservar minha opinião, - disse. - Vou dizer somente uma coisa: não estou me deixando enganar pelas conversas que estou ouvindo aqui hoje.

      Fechou a boca com ar decidido. Lucky esperou para ver se diria mais alguma coisa, e depois voltou-se mais uma vez em direção ao Dr. Peverale e disse:

      - Será que precisamos mesmo de uma expedição tão completa, senhor? Admitindo que os Sirianos podem estar aqui em Mercúrio, não poderíamos também deduzir em que lugar eles poderiam estar escondidos?

      - Isso mesmo, Lucky, gritou Bigman. - Vamos, mostre-lhe de que você é capaz. O Dr. Peverale perguntou:

      - O que é que você pretende dizer?

      - Quero dizer isso: o que seria mais conveniente para os Sirianos? Se foram eles que sabotaram o Projeto Luz em repetidas ocasiões, durante um período que abrange alguns meses, seria bastante conveniente para eles terem uma base não muito afastada do projeto. Ao mesmo tempo, essa base não deve estar num lugar fácil de se achar. Ao que parece, tiveram bastante sucesso nisso. Mas onde poderia estar localizada uma base tão conveniente e tão discreta? Vamos dividir Mercúrio em duas partes, a parte noturna e a parte solar. Acredito que seria loucura estabelecer uma base na parte solar. Tem calor demais, a radiação é excessiva, é totalmente inóspita.

      Cook resmungou:

      - Ela não é mais inóspita do que a parte noturna.

      - Espere um pouco, espere um pouco, -retrucou Lucky. - Você está enganado. A parte solar apresenta um ambiente completamente fora do comum. Criaturas humanas não podem se adaptar a isso. A parte noturna, por outro lado, é algo mais familiar. É simplesmente uma superfície exposta ao espaço, e as condições espaciais são bem conhecidas. O lado escuro é muito frio, mas não mais frio do que o espaço. É escuro e desprovido de ar, mas não é mais escuro e mais desprovido de ar do que qualquer parte do espaço que não esteja diretamente exposta à luz do sol. Os homens já aprenderam a viver confortavelmente no espaço, e poderiam viver no lado escuro.

      - Continue, - disse o Dr. Peverale, cujos olhos estavam brilhando pelo interesse. - Por favor, Starr, continue.

      - Acontece, porém que não é fácil e não é simples estabelecer uma base que terá que servir durante um certo número de meses. Eles precisam dispor de uma nave, ou de várias naves para voltar um dia para Sírio. No caso que tivessem que ser levados embora por uma nave vinda de fora, teriam de qualquer forma que dispor de grandes reservas de alimentos e de água, e logicamente de uma fonte de energia. Para tudo isso precisariam de bastante espaço, mas teriam que ter certeza que ninguém poderia descobri-los. Por isso, acho que existe somente um lugar onde poderiam estar.

      - Onde, Lucky? perguntou Bigman, agitando-se pela excitação. Bigman dava a entender claramente que qualquer coisa dita por Lucky para ele era o próprio Verbo. - Diga, onde?

      - Logo que cheguei, - disse Lucky, - o Dr. Mindes mencionou as minas de Mercúrio, cuja exploração tinha fracassado. Hoje à noite, o Dr. Peverale mencionou as minas de Mercúrio que tempos atrás eram ativas. Preciso deduzir que existem poços e corredores vazios no interior do planeta, e que devem estar aqui ou então no Pólo Sul, pois as regiões polares são as únicas cujas diferenças de temperatura não são extremas. Não é assim?

      Cook disse, com um certo cuidado:

      - Realmente existem minas por aqui. Antes de estabelecermos o Observatório, a Cúpula era o Centro de mineração.

      - Isso quer dizer que estamos sentados bem acima de um grande buraco vazio no interior de Mercúrio. Se os Sirianos estão realmente se escondendo com sucesso numa base bem grande, este seria o local mais adequado. Precisamos procurar o perigo nessa direção.

      Um murmúrio de aprovação se elevou em volta da mesa, interrompido de repente pela ,voz forte e gutural de Urteil.

      - Tudo isso me parece muito bonito, disse. - Mas o que significa? O que é que você pretende fazer a respeito?

      - Bigman e eu, - disse Lucky, - temos a intenção de visitar as minas tão logo seja possível. Se houver algo por aí, vamos encontrá-lo.

 

Preparativos

      O Dr. Gardoma perguntou ríspido:

      - Você pretende ir sozinho?

      - Por que não? - perguntou Urteil. - Afinal, isso não passa de um heroísmo bem barato. Claro que irão sozinhos. Nas minas não há nada e ninguém, e eles sabem que é assim.

      - Por que você não vem conosco? - perguntou Bigman. - Se deixar aqui aquela boca bem grande que você tem, você até que é capaz de caber dentro de um escafandro.

      - Você pode levar a sua junto, e ainda vai sobrar bastante espaço, - rosnou Urteil. O Dr. Gardoma voltou a insistir:

      - Não há razão para vocês irem sozinhos se...

      - Não há nada de mal em fazermos uma investigação preliminar, - explicou Lucky. - É possível até que Urteil esteja certo. Pode ser que nas minas não haja ninguém. Na pior das hipóteses vamos manter o contato com vocês aqui na Cúpula, e esperar poder dar conta de eventuais Sirianos, que estejam se escondendo. Bigman e eu estamos acostumados a situações difíceis.

      - Aliás, - disse Bigman com um sorriso irônico em seu rosto de elfo, - Lucky e eu gostamos de situações difíceis. Lucky também sorriu e levantou-se.

      - Se vocês nos derem licença...

      Urteil levantou-se rapidamente, virou as costas e se afastou. Lucky seguiu-o com um olhar pensativo. Quando Hanley Cook passou perto dele, Lucky tocou levemente em seu cotovelo. Cock parou. Parecia preocupado.

      - Sim? O que é que o senhor deseja?

      - Posso falar com o senhor em nosso alojamento tão logo for possível? - perguntou Lucky.

      - Daqui a quinze minutos. Está bem?

      - Está ótimo.

      Cook chegou com um atraso mínimo. Entrou no alojamento com ar preocupado, pisando com cuidado. Devia estar perto dos cinqüenta, tinha um rosto anguloso, e seus cabelos castanhos claros estavam começando a ficar esbranquiçados. Lucky disse:

      - Sinto muito, mas me lembrei mais tarde que não tinha explicado ao senhor onde estava nosso alojamento. Cook pareceu surpreso.

      - Eu sabia perfeitamente onde estava seu alojamento.

      - Ainda bem. Obrigado por ter vindo.

      - Ah, sim. -Cook parou, mas logo continuou apressadamente, - É um prazer, realmente é um prazer. Lucky disse:

      - Temos um pequeno problema com os macacões isotérmicos. Os macacões a serem usados do lado do Sol.

      - Os macacões isotérmicos? Será que nos esquecemos de fornecer a fita de instruções?

      - Não, não é isso. A fita está aí. O problema é algo diferente.

      Cook perguntou:

      - O que é que está errado?

      - Errado, hein? - riu Bigman. - Veja aí. - Levantou as mangas para mostrar os rasgos.

      Cook olhou sem compreender, mas logo começou a ficar corado e seus olhos se esbugalharam pelo horror.

      - Não estou vendo... Mas isso é impossível... Logo aqui, na Cúpula! Lucky observou:

      - A coisa mais importante é ver se pode ser substituído.

      - Mas, quem pode ter feito isso? Precisamos descobri-lo.

      - Gostaria de não perturbar o Dr. Peverale.

      - Não, é claro. Sem dúvida, - disse Cook, como quem acaba de se lembrar do assunto.

      - Em tempo vamos descobrir todos os pormenores. Por enquanto, seria suficiente substituir o macacão, se isso for possível.

      - Sem dúvida. Vou providenciar imediatamente. Não me admira que o senhor quisesse falar comigo. Por todos os espaços...  Levantou-se, sem conseguir dizer mais nada e virou-se para sair. Lucky, porém parou-o com um gesto.

      - Espere um instante, isso é só um pequeno detalhe. Há mais coisas que precisamos discutir. Mas antes de chegarmos a isso... Queria perguntar-lhe: pelo jeito, o senhor não concordou com as teorias do Dr. Peverale a respeito dos Sirianos.

      Cook franziu as sobrancelhas:

      - Prefiro não discutir esse assunto.

      - Eu estava observando o senhor enquanto ele falava. Tive a impressão de que o senhor não estava concordando.

      Cook voltou a se sentar. Entrelaçou os dedos ossudos num gesto firme e disse:

      - Ele já está muito velho. Durante muitos anos ele continuou a ser perturbado por essas idéias a respeito dos Sirianos. Já é quase uma psicose. Ele pensa encontrar Sirianos até debaixo da cama. Culpa os Sirianos por qualquer coisa. Se nossas tomadas saem demasiado escuras, ele culpa os Sirianos. Desde que voltou de Sírio ele parece até pior, e vive repetindo tudo o que aconteceu com ele.

      - O que foi que aconteceu com ele?

      - Acho que não foi nada demais. Foi simplesmente colocado de quarentena.Mandaram que morasse num prédio afastado. Às vezes o tratavam com excessiva polidez, e outras vezes o tratavam de maneira rude. Acredito que qualquer coisa que fizessem com ele, não seria possível satisfazê-lo. Finalmente, obrigaram-no a aturar um robô positrônico que se ocupava dos serviços relacionados com o conforto dele.

      - O senhor quer dizer que ele se queixou também disso?

      - Ele afirma que foi porque os Sirianos não queriam chegar perto dele. Está vendo o que eu quero dizer? Ele interpretou tudo, mas tudo mesmo, como um insulto pessoal.

      - O senhor estava junto?

      Cook sacudiu a cabeça.

      - Não. Sírio só quis aceitar uma pessoa, e obviamente ele tem a precedência. Eu devia ter ido. Ele é muito velho, realmente - é velho demais.

      Cook falou como alguém que está pensando em voz alta. Levantou os olhos de repente.

      - Tudo o que estou dizendo é absolutamente confidencial.

      - Fique tranqüilo - disse Lucky.

      - E seu amigo? - perguntou Cook em tom de dúvida. -Quero dizer, sei que ele é uma pessoa de bem, mas acontece que vi que ele é um pouco... como dizer? Estourado.

      - Escute aqui... - começou Bigman, ameaçador.

      A mão de Lucky pousou-se carinhosamente na cabeça do baixinho, desarrumando seu cabelo e fazendo-o cair sobre a testa.

      - Tem razão, ele é bastante estourado, - disse, - e aliás o senhor viu isso perfeitamente durante o banquete. Nem sempre consigo mandá-lo parar em tempo, e às vezes, quando fica irritado, ele usa a boca e os punhos antes de usar a cabeça. Nunca posso me esquecer disso. Acontece, porém que quando eu peço ao meu amigo para ficar quieto a respeito de um assunto específico, ele fica mesmo quieto, e pronto.

      - Muito obrigado, - disse Cook.

      Lucky continuou:

      - Voltando ao assunto em pauta: o senhor concorda com o Dr. Peverale a respeito dos Sirianos no caso presente?

      - Não, não concordo. Como é que eles poderiam saber a respeito do Projeto Luz, e, por que eles teriam que se importar com isso? Francamente não posso imaginar que eles mandem naves e homens, arriscando-se a criar graves complicações com o Sistema Solar, só para cortar alguns cabos. Naturalmente, estou dizendo isso ao senhor porque o Dr. Peverale está um pouco ressentido, já faz algum tempo...

      - Como assim?

      - Acontece que Mindes e seu grupo chegaram aqui e se estabeleceram enquanto ele estava em Sírio. Quando voltou, ele já os encontrou aqui. Acho que sabia que estavam para chegar a qualquer hora. Mas quando voltou e os encontrou aqui, ficou chocado.

      - Ele fez alguma coisa para se livrar de Mindes?

      - Não, não fez nada nesse sentido. Aliás, mostrou-se até muito solícito. Acontece que toda essa situação para ele é um lembrete do fato de que algum dia, talvez breve, ele também será substituído de maneira permanente, e ele detesta se lembrar disso. Este é o motivo para que ele ache muito mais agradável voltar a assumir e logo começar uma grande campanha contra os Sirianos. O senhor está vendo como é: é sua mania preferida.

      Lucky balançou a cabeça e perguntou:

      - Diga-me, o senhor já esteve alguma vez em Ceres? Cook pareceu surpreso pela abrupta mudança de assunto, e disse:

      - Sim, algumas vezes. Por quê?

      - Com o Dr. Peverale ou sozinho?

      - Na maioria das vezes, com ele. Aliás, ele vai mais freqüentemente para lá do que eu. Lucky sorriu:

      - O senhor estava lá quando os piratas atacaram no ano passado? Cook também sorriu.

      - Não, eu não estava lá, o velho foi sozinho. Nós todos já ouvimos aquela história não sei quantas vezes. Ele ficou furioso. Ele é um homem que nunca fica doente, mas aquela vez ele ficou absolutamente imprestável. Assim não viu nada.

      - Coisas da vida... Mas agora, acho melhor falarmos a respeito do assunto principal. Não quis perturbar o Dr. Peverale com tudo isso. O senhor também disse, ele é um homem muito velho. O senhor é o vice dele, e ainda por cima, é um homem jovem... 

      Lucky sorriu.

      - Claro, claro. O que é que o senhor precisa?

      - É a respeito das minas. Suponho que em algum lugar da Cúpula existem arquivos, mapas, plantas, em resumo tudo que possa servir para orientar-nos arespeito dos poços principais. É claro que não podemos andar por aí a esmo.

      - Tenho certeza que temos tudo isso, - disse Cook.

      - E o senhor poderia dar-nos o que tiver, e eventualmente ajudar-nos na localização das posições dos poços?

      - Claro que sim.

      - Diga-me mais uma coisa, Dr. Cook. Espero que as minas estejam em boas condições. Quero dizer, pelo que o senhor sabe, não existe o perigo que elas desmoronem ou coisa parecida?

      - Nada disso. Tenho certeza que isso está excluído. Quando o Observatório começou a ser organizado, foi necessário examinar o estado dos poços e corredores, antes do início das construções. Os poços têm escoras firmes, e não existe perigo nenhum, especialmente com a gravidade de Mercúrio.

      - Por que as minas foram fechadas, - perguntou Bigman, - especialmente se elas estão em tão excelentes condições?

      - É uma ótima pergunta, - respondeu Cook, e um leve sorriso apareceu em seu rosto normalmente melancólico. - O senhor quer a explicação verdadeira, ou prefere a explicação mais interessante?

      - Quero ambas, - Bigman disse rápido.

      Cook ofereceu cigarros que ambos recusaram, e acendeu um após batê-lo distraidamente nas costas da mão.

      - Na realidade, Mercúrio é bastante denso, e obviamente todos esperavam que o planeta se revelasse uma rica fonte de metais pesados, como chumbo, mercúrio e platina. De fato, encontraram tudo isso: não nas quantidades almejadas, mas de qualquer maneira, em boas quantidades. Infelizmente, a operação se revelou antieconômica. Levar o minério daqui para a Terra, ou para a Lua, para a extração do metal acabou elevando muito o preço do produto. A explicação mais interessante é outra, aliás é bem diferente. Quando o Observatório foi iniciado, cinqüenta anos atrás, as minas ainda estavam funcionando, apesar que já começassem a abandonar a exploração em alguns setores. Os primeiros astrônomos ouviram as estórias dos mineiros, e as transmitiram em seguida aos recém-chegados. Isso já faz parte da mitologia mercuriana.

      - Que estórias são essas? - perguntou Bigman.

      - Parece que alguns mineiros morreram nos poços.

      - Pelas areias de Marte! - gritou Bigman irritado. - Todo mundo tem que morrer um dia. Afinal ninguém vive eternamente.

      - Acontece que os mineiros morreram congelados.

      - E daí?

      - Foi, isso. Um congelamento meio misterioso. Os poços naquela época eram muito bem aquecidos e as unidades de aquecimento energético estavam funcionando muito bem. Vocês sabem como é, geralmente essas coisas criam boatos, e finalmente os mineiros se recusaram a entrar nos poços principais, a não ser em turmas muito grandes. Depois se recusaram definitivamente a entrar nos corredores secundários, e as minas foram fechadas.

      Lucky balançou a cabeça. Disse:

      - O senhor poderá encontrar os mapas das minas?

      - Irei buscá-los já. E vou providenciar um outro conjunto isotérmico.

      Os preparativos procederam como em se tratando de uma expedição importante. Quando chegou o novo macacão isotérmico, foi examinado, testado e guardado. Afinal, iriam simplesmente com os escafandros espaciais normalmente usados no setor escuro.

      Os mapas foram abertos e estudados. Com a ajuda de Cook, Lucky traçou um possível roteiro de exploração, entre um e outro poço principal.

      Lucky deixou que Bigman se preocupasse com o abastecimento das unidades suplementares com alimentos homogeneizados e com água (que poderia ser engolida enquanto estavam dentro dos escafandros), vistoriasse a carga das unidades eletrogenas e a pressão dos recipientes de oxigênio, e que inspecionasse a eficiência dos eliminadores de resíduos e do reciclador de umidade.

      Lucky achou melhor visitar rapidamente sua nave, a Shooting Starr. Tomou o caminho da superfície levando uma mochila e preferiu não explicar a Bigman o que havia nela. Voltou sem a Mochila, mas trouxe dois objetos pequenos que se pareciam com duas grossas fivelas de cinto, levemente recurvas, cor de aço fosco, e em cujo centro havia um retângulo vermelho e vítreo.

      - O que é isso? perguntou Bigman.

      - São micro-ergometros, explicou Lucky. -Ainda estão na fase experimental. São como os ergômetros que temos na nave, aqueles que estão parafusados no chão.

      - E para que servem estes aí?

      - Esses não conseguem funcionar num raio de duzentas mil milhas como os que temos na nave, mas conseguem detectar fontes de energia atômica num raio de, talvez, dez milhas. Preste atenção, Bigman: você liga nesse ponto, viu?

      Lucky comprimiu a unha do polegar contra uma minúscula fenda lateral do mecanismo. Uma lâmina de metal apareceu e desapareceu de novo, e o retângulo vermelho se iluminou vivamente. Lucky virou o minúsculo ergômetro em várias direções, e todas as vezes que o inclinava num certo ângulo, a luz vermelha aumentava seu brilho.

      -Acredito que esta deve ser a direção da usina de energia da Cúpula, -disse Lucky. - Podemos regular o mecanismo para eliminar esta interferência. É uma coisa meio complicada.

      Trabalhou com afinco para afinar dois minúsculos controles tão perfeitamente encaixados, que eram praticamente invisíveis. Enquanto trabalhava, sorria e seu rosto juvenil refletia satisfação.

      - Sabe, Bigman, todas as vezes que vou visitar Tio Hector ele nunca me deixa sair sem me confiar todas as mais recentes geringonças do Conselho. Ele acha que você e eu precisamos delas, porque estamos sempre metidos em uma ou outra encrenca você sabe, ele sempre fala assim. Ás vezes, porém, penso que o que ele realmente quer é um teste de campo das geringonças. Por falar nisso, acho que talvez essa aqui poderá ser útil.

      - Por que, Lucky?

      - Em primeiro lugar, Bigman, porque se realmente há Sirianos nas minas, eles devem ter um pequeno gerador de energia atômica. Não podem ficar sem um. Precisam de energia para calefação, para eletrolitizar a água, etcétera e tal. Esse ergômetro, poderia descobrir um gerador a uma boa distância. Em segundo lugar...

      Calou-se de repente e Bigman apertou os lábios, chateado. Sabia o que significava aquele silêncio. Lucky estava pensando em alguma coisa, e mais tarde explicaria que os pensamentos eram ainda vagos demais para colocá-los em palavras.

      - Um desses ergômetros é para mim? perguntou.

      - E para quem mais poderia ser? perguntou Lucky jogando um dos mecanismos em direção a Bigman, que o apanhou no ar.

      Hanley Cook já estava esperando por eles quando saíram do alojamento, vestindo os escafandros, mas com os capacetes debaixo do braço.

      Disse:

      - Pensei em levar vocês até a entrada mais próxima de um poço.

      - Muito obrigado, respondeu Lucky.

     

      Era o fim do período de descanso na Cúpula. Em todos os lugares as criaturas humanas sempre estabeleciam um ritmo alternado de vigília e descanso parecido com o da Terra, mesmo quando não havia uma alternação de luz e escuridão. Lucky escolhera propositadamente aquela hora, porque não desejava entrar nas minas encabeçando uma procissão de curiosos. O Dr. Peverale tinha concordado com isso.

      Os corredores da Cúpula estavam vazios. As luzes estavam baixas. Enquanto caminhavam, o silêncio parecia, imenso e o ruído de seus passos duplamente forte. Cook parou.

      -Esta é a entrada número dois.

      Lucky assentiu:

      - Perfeito. Espero que nos vejamos breve.

      - Eu também.

      Cook começou a mexer nos controles para abrir a câmara estanque, com seu costumeiro ar grave. Lucky e Bigman vestiram seus capacetes, apertando-os firmemente contra as costuras paramagnéticas. Lucky inspirou a primeira dose de ar com uma sensação de prazer, pois estava muito acostumado ao oxigênio puro. Foi o primeiro a entrar na câmara estanque, seguido por Bigman. A parede se fechou atrás deles. Lucky perguntou:

      - Está pronto, Bigman?

      - Claro que sim, Lucky. - Sua voz saiu do receptor de Lucky e sua diminuta silhueta parecia uma sombra na fraca luz da câmara estanque. A parede oposta abriu-se, deslizando. Perceberam o repuxo do ar aspirado pelo vácuo, e avançaram passando pela abertura.

      Um toque nos controles externos foi o suficiente para que a parede se fechasse mais uma vez. Até a fraca luminosidade desapareceu. Ficaram na escuridão mais completa, no interior das silenciosas e vazias minas de Mercúrio.

 

As minas de Mercúrio

      Acenderam as lanternas dos capacetes e uma pequena área saiu das trevas. Viram que estavam num túnel que se afastava ficando sempre menos claro até que se perdia na escuridão. O feixe de luz tinha a costumeira borda nitidamente delimitada, como sempre acontecia no vácuo. Tudo que ficava fora do feixe direto continuava negro.

      O terrestre alto e seu companheiro baixinho de Marte começaram a avançar nas entranhas de Mercúrio. Bigman observava curiosamente o túnel iluminado pelo feixe de luz, que se parecia muito com outros já vistos antes na Lua. O túnel, com suas paredes arredondadas e macias pelo uso de desintegradores e outros procedimentos de escavação, continuava reto e plano, As paredes arqueadas se aproximavam no forro rochoso. Aquela estrutura ovalada, levemente achatada embaixo e bastante achatada em cima, proporcionava a maior segurança possível.

      Bigman conseguia ouvir seus próprios passos através do ar contido no escafandro. Os passos de Lucky podiam ser percebidos somente como uma leve vibração que repercutia  nas rochas. Não era exatamente um som, mas para uma pessoa que tivesse passado tanto tempo no vácuo ou no quase-vácuo como Bigman, aquela vibração era cheia de significados. Ele conseguia "ouvir" a vibração de material sólido quase da mesma maneira em que os terrestres podiam ouvir a vibração de ar que é chamada "som".

      De vez em quando passavam por colunas de rocha deixadas ali para servir de escora para as camadas de rochas entre o túnel e a superfície. Isso também era muito parecido ao sistema usado nas minas lunares, só que aqui as escoras eram muito mais numerosas e espessas, fato perfeitamente justificado porque a gravidade de Mercúrio, apesar de baixa, era duas vezes e meia maior que a da Lua.

      Ao lado do corredor principal outros túneis se abriam à direita e à esquerda. Lucky parecia não estar com pressa e parava a cada abertura para consultar o mapa que estava levando.

      Bigman achou que a característica mais pungente das minas eram os vestígios que indicavam que outrora tinham sido ocupadas por criaturas humanas: as porcas que indicavam onde uma vez havia chapas luminosas para manter os corredores claros como na luz do sol, as leves marcas que indicavam o lugar dos antigos relês para-magnéticos que proporcionavam a tração dos carrinhos cheios de minério, uma ou outra cela lateral que possivelmente, tinha servido como laboratório ou lugar de descanso, para comer ou para examinar amostras de rochas. Agora não havia mais nada. Tudo fora desmontado. Sobrava a rocha fria.

      Bigman, porém não era homem de se deixar dominar durante muito tempo por sentimentos mórbidos. Começou a ficar entediado pela falta de novidade. Afinal, esperava algo mais do que um simples passeio. Falou:

      - Lucky, o ergômetro, não indica nada.

      - Eu sei, Bigman. Proteção.

      O tom fora normal, sem nenhuma ênfase, mas Bigman entendeu logo o significado. Virou o controle do rádio até uma marca especifica que ativava um filtro especial de ondas, que fragmentava a mensagem. Não era um equipamento corriqueiro de escafandro espacial, mas para Lucky e Bigman era de rotina. Bigman tinha colocado o fragmentador no rádio enquanto preparava o necessário à expedição, automaticamente, sem uma motivação consciente.

      O coração de Bigman acelerou um pouco as batidas. Quando Lucky pedia o uso do fragmentador nas mensagens entre eles, era sinal de que o perigo estava próximo. Ou pelo menos, estava mais próximo, Perguntou:

      - O que é que há, Lucky?

      - Chegou a hora de conversarmos. 

      A voz de Lucky parecia diferente, como se chegasse ao mesmo tempo de todas as direções. Isso dependia da falta de alguns aperfeiçoamentos no desfragmentador, que na hora da recepção sempre deixava um pouco de barulho.

      - O mapa diz que este é o túnel 7a. Por aqui, e por um percurso razoavelmente simples, é possível chegar a um poço vertical que leva à superfície. Eu tomarei esse caminho.

      Bigman ficou estupefato. Perguntou:

      - É mesmo? Por quê?

      - Para chegar até à superfície, ora! disse Lucky rindo. - Por que outro motivo eu faria isso?

      - Está certo, mas por quê?

      - Porque pretendo chegar até a Shooting Starr pelo caminho da superfície.

      Quando fui pela primeira vez, levei o macacão isotérmico para lá. Bigman refletiu um instante depois perguntou:

      - Isso quer dizer que você pretende ir para o lado do Sol, não é mesmo?

      - Certo. Irei em direção ao grande Sol. Não há perigo nenhum de eu perder o rumo, porque basta ir em direção à luminosidade da coroa no horizonte. Isso simplifica muito as coisas.

      - Pare com isso, Lucky, faça-me o favor! Pensei que eram as minas que estavam cheias de Sirianos. Você provou isso no banquete por A mais B.

      - De jeito nenhum. Não provei nada, só conversei como se isso já fosse um fato comprovado.

      - Mas por que você não me disse nada?

      - Já falamos muitas vezes a respeito, não pretendo repetir sempre as mesmas coisas. Não posso me arriscar, porque você pode perder o controle na hora errada. Se eu tivesse dito a você que nossa descida nas minas era somente uma parte de um plano mais amplo, e se por algum motivo Cook tivesse dito algo que você poderia achar irritante, você teria acabado por contar tudo sem perceber.

       - Isso não é assim, Lucky. Você não falou porque você não gosta de dizer o que pensa, até que o plano não esteja pronto com todos os detalhes.

       - Essa é mais uma razão, -concordou Lucky. - De qualquer maneira a situação é essa. Queria que todo mundo pensasse que eu estava indo para as minas. Queria que ninguém tivesse a menor dúvida que eu poderia estar indo para o lado do sol. A maneira mais segura para conseguir isso era fazer o possível para que ninguém, inclusive você, pensasse de maneira diferente.

       - Você pode me dizer os motivos? Ou os motivos devem continuar um segredo?

      - Posso dizer isso: estou suspeitando que alguém na Cúpula está provocando os atos de sabotagem. Não acredito nessa teoria a respeito dos Sirianos.

      Bigman ficou decepcionado.

      - Você quer dizer que não há nada aqui nas minas?

      - Eu posso estar enganado, não é mesmo? Mas eu concordo com o Dr. Cook. É completamente absurdo pensar que os Sirianos fariam todo o esforço necessário para estabelecer uma base secreta aqui em Mercúrio, só para fazerpequenos atos de sabotagem. É muito mais lógico pensar que se eles realmente têm esta intenção, que eles tenham induzido um Terrestre a fazê-los, corrompendo-o. Pense bem, quem pode ter danificado o macacão isotérmico? Não pode ter sido os Sirianos, isso é evidente. Até o Dr. Peverale não chegou a sugerir que há Sirianos dentro da Cúpula.

      - Então você está procurando um traidor?

      - Estou procurando um sabotador. É possível que ele seja um traidor, que trabalha ao soldo de Sírio, mas também é possível que esteja agindo por razões pessoais. Espero encontrar a resposta do lado do Sol. Espero também que minha manobra de criar uma cortina de fumaça com uma busca das minas a cata de Sirianos sirva para tranqüilizar a pessoa culpada, que não estará à minha espera com surpresas desagradáveis e não se preocupará em apagar os rastos de suas atividades.

      - O que é que você espera descobrir?

      - Vou saber quando eu chegar lá.

      - Está certo, Lucky, você me convenceu, - disse Bigman.

      - Vamos andando.

      - Espere um minuto, - gritou Lucky perturbado. -Pela grande Galáxia, rapaz! Eu disse que eu vou para a superfície. Só peguei um macacão isotérmico. Você terá que ficar aqui.

      Pela primeira vez Bigman compreendeu o significado do pronome usado por Lucky. Lucky tinha falado na primeira pessoa, dizendo, eu... eu... Nem uma única vez dissera "nós". Era por causa de sua longa associação com Lucky que Bigman tinha ouvido "eu" e compreendido "nós".

      - Mas Lucky! - gritou, sem saber se estava mais furioso ou estupefato. - Por que preciso ficar aqui?

      - Porque quero que os homens na Cúpula tenham certeza que estamos aqui. Você fica com o mapa e vai seguindo o roteiro que programamos, ou qualquer outro. Fale com Cook a cada hora. Diga-lhe onde você está, o que é que você está vendo, diga toda a verdade: não é necessário que você invente coisa nenhuma com uma única exceção. Não diga que eu não estou com você.

      Bigman refletiu.

      - Está certo. Mas o que é que eu vou fazer se eles quiserem falar com você?

      - Nesse caso você poderá dizer que eu estou ocupado. Grite que você acha que acabamos de ver um Siriano. Diga que precisa desligar. Invente uma coisa qualquer, mas faça-os pensar que eu estou perto de você. Entendeu?

      - Pelas areias de Marte, você vai para o lado do Sol e vai se divertir horrores, e eu terei que ficar aqui no escuro, fazendo brincadeiras com o rádio.

      - Ânimo, Bigman! É possível que aqui nas minas haja alguma coisa. Afinal eu não sou infalível.

      - Aposto que você está certo. Aqui nas minas não há mesmo nada. Lucky não resistiu à tentação de uma pequena brincadeira.

      - Tem aquele boato de congelamento, está lembrado? Aquela coisa que o Cook falou. Você poderia ver o que é que há. Bigman não estava com vontade de brincadeiras. Disse:

      - Ora, cale a boca!

      Após um instante Lucky colocou a mão no ombro do amigo.

      - Está bem, Bigman, desculpe. Isso não tinha mesmo graça nenhuma. Agora, porém, anime-se um pouco, sim? Não vou me demorar muito, você sabe disso.

      Bigman afastou a mão de Lucky.

      - Está bem. Não precisa ficar me bajulando. Você quer que eu faça isso, e vou fazê-lo. Procure não tomar uma insolação indo para aquele lugar sozinho, sem eu ficar cuidando de você, seu grandíssimo chato.

      Lucky riu:

      - Vou tomar todo o cuidado. - Virou-se e entrou no túnel 7a, mas mal deu dois passos ouviu Bigman chamá-lo.

      - Lucky!

      - Sim?

      Bigman, pigarreou.

      - Escute aqui. Não se arrisque tolamente, ouviu? Quero dizer, você estará sozinho e não estarei ao seu lado para tirá-lo das encrencas. Lucky respondeu:

      - Você está falando da mesma forma que Tio Hector, sabia? Por sinal, a mesma recomendação vale também para você.

      Os dois amigos nunca se excediam quando tentavam expressar a afeição que provavam um pelo outro. Lucky agitou a mão e por um instante ficou parado e cintilante no feixe de luz do capacete de Bigman. A seguir, virou-se e foi embora.

      Bigman ficou parado, acompanhando-o com os olhos enquanto gradativamente desaparecia entre as sombras do túnel, até que chegou a uma curva e sumiu por completo. Teve a impressão de que o silêncio e a solidão tivessem dobrado de volume. Qualquer outra pessoa, a não ser John Bigman Johnes, teria fraquejado e teria se sentido sobrepujada por aquela sensação terrível de vazio.

      Mas ele era John Bigman Johnes e por isso cerrou os dentes, endureceu as mandíbulas e continuou a caminhar pelo corredor com passos firmes. Bigman fez seu primeiro chamado à Cúpula quinze minutos mais tarde. Estava chateadíssimo. Como era possível que tivesse acreditado nas palavras de Lucky, e que estivesse realmente esperando encontrar alguma aventura na mina? Se assim fosse, Lucky não teria recomendado que fizesse chamados pelo rádio, que poderiam ser interceptados por qualquer Siriano que por acaso se encontrasse na mina.

      A freqüência era muito estreita, mas assim mesmo, as mensagens eram claras, não atrapalhadas pelo fragmentador, e qualquer freqüência poderia ser encontrada, tendo tempo e paciência para isso. Ficou especulando por que Cook não tinha feito restrições, e percebeu de repente que Cook também não estava acreditando na lorota dos Sirianos. Só Bigman tinha caído nessa! Que beleza!

      Ficou tão furioso que imaginou que com uma única mordida poderia arrancar um pedaço de nave espacial. Transmitiu o sinal combinado com Cook para significar que tudo estava bem.

      A voz de Cook se manifestou imediatamente:

      - Como é? Tudo OK?

      - Areias de Marte! Sim, está tudo bem. Lucky está um pouco mais adiante, mas até agora não achamos um rastro sequer. Escute, da próxima vez quando eu der o sinal que tudo está bem, acredite logo, viu?

      - Deixe-me falar com Lucky Starr.

      - Para que? - O tom de Bigman continuou displicente. - Fale com Lucky na próxima. Cook hesitou um pouco:

      - Está certo.

      Bigman sacudiu a cabeça, carrancudo. Não haveria próxima vez. Daria simplesmente o sinal de OK, e só... mas até quando teria que passear por aquela escuridão antes de ter notícias de Lucky? Uma hora? Duas? Seis? E que tal se após seis horas ainda não tivesse nenhuma notícia? Até quando teria que ficar ali? Até quando poderia ficar ali?

      O que faria se Cook insistisse em querer informações específicas? Lucky dissera para descrever coisas, mas o que poderia acontecer se Bigman não conseguisse enganar Cook? O que poderia acontecer se deixasse escapar que Lucky estava do lado do Sol? Lucky nunca mais confiaria nele... por nada mesmo!

      Afastou o pensamento desagradável. Não adiantava nada andar se preocupando dessa maneira. Se pelo menos tivesse alguma coisa para distraí-lo, uma coisa qualquer além da escuridão e do vácuo, além da leve vibração de seus próprios passos e o som de sua  própria respiração.

      Parou para verificar sua posição dentro do poço principal. As passagens laterais tinham letras e números esculpidos na parede e o tempo não tinha feito nada para apagá-los. A verificação era fácil.

      A temperatura era, porém muito baixa e o mapa em sua mão estava se tornando quebradiço e difícil de manejar: isso não contribuiu para melhorar sua disposição.

      Dirigiu o feixe de luz sobre os controles que estavam sobre seu peito para poder regular o desumedecedor. A superfície interna do cristal do capacete estava começando a ficar levemente embaçada pela umidade de sua respiração. Isso estava acontecendo especialmente porque quando ficava furioso sua temperatura interna subia, pensou. Acabou de ajustar o controle e de repente virou a cabeça rapidamente para um lado, como para ouvir melhor.

      Estava realmente tentando ouvir. Esforçou-se para perceber o ritmo de uma tênue vibração que estava conseguindo "ouvir" agora somente porque estava parado e imóvel. Prendeu a respiração e ficou sem mexer, igual à rocha das paredes.

      - Lucky? -sussurrou no microfone. - Lucky?

      Os dedos da direita mexeram nos controles. A transmissão sairia fragmentada. Ninguém poderia entender aquele sussurro a não seu amigo. Lucky entenderia e logo sua voz responderia. Bigman estava com vergonha de admitir que o som daquela voz seria muito bem-vindo.

      - Lucky? repetiu mais uma vez.

      A vibração continuou mas não ouve resposta. A respiração de Bigman tornou-se mais rápida, um pouco pela tensão, e um pouco pela alegria selvagem transmitida pela excitação que sempre sentia quando percebia a aproximação do perigo. Alguém estava lá, nas minas de Mercúrio. E não era Lucky.

      Quem poderia ser? Um Siriano? Era possível que a teoria de Lucky fosse certa, apesar dele mesmo tê-la lançado simplesmente como uma cortina de fumaça? Quem sabe...

      Bigman apanhou seu desintegrador e apagou a lanterna.

      Será que eles sabiam que ele estava ali? Estariam eles chegando para apanhá-lo? As vibrações não eram aquele "som" confuso e sem ritmo definido produzido pelos passos de várias pessoas, ou até apenas por duas ou três. Os ouvidos afiados de Bigman perceberam as vibrações separadas e rítmicas, que indicavam as passadas pausadas de um homem só.

      Bigman enfrentaria qualquer homem, em qualquer circunstância, em qualquer lugar.

      Devagar estendeu a mão e tocou na parede mais próxima. As vibrações se tornaram mais distintas. Queria dizer que o outro estava naquela direção.

      Começou a caminhar cautelosamente no escuro, mantendo a mão levemente encostada na parede. As vibrações eram muito intensas, quase displicentes. O outro devia estar acreditando que não havia mais ninguém na mina (como, aliás, Bigman até um momento antes), ou, se estava seguindo Bigman, não estava conhecendo as regras mais elementares de comportamento no vácuo.

      Os passos de Bigman pareciam os passos de um gato, mas a vibração dos passos do outro não mudou. Por outro lado, se o outro estava seguindo Bigman pela vibração dos passos dele, a mudança já deveria ter sido percebida - e teria que mudar o ritmo do outro. Mas nada aconteceu. O que levou Bigman a voltar às conclusões anteriores.

      Quando chegou à próxima entrada de túnel, entrou virando para direita e continuou andando. A mão na parede servia-lhe para manter a direção e ao mesmo tempo o levava sempre mais perto do outro.

      De repente viu uma luz ofuscante muito mais adiante: o movimento feito pelo outro fez escorrer o feixe de luz sobre seu corpo. Bigman parou ao lado da parede.

      A luz desapareceu. O outro tinha atravessado o túnel em que Bigman se encontrava. Não estava caminhando nele. Bigman se apressou um pouco. Queria chegar até o cruzamento para poder seguir os rastos do outro. Iam acabar se encontrando: ele, Bigman, representando a Terra e o Conselho de Ciências, e o inimigo, representando... o quê?

 

Logo nas minas

      Os cálculos de Bigman demonstraram-se exatos. A lanterna do outro estava saltitando mais adiante quando chegou ao cruzamento de túneis. O dono da lanterna não tinha percebido sua presença. Não podia tê-lo pressentido.

      O desintegrador de Bigman estava destravado. Podia atirar, mas um desintegrador não deixava muitos restos a serem examinados. Os mortos não falam, e inimigos mortos não podem explicar nenhum mistério.

      Começou a perseguir o homem com a paciência de um gato, diminuindo a distância que os separava, seguindo o feixe de luz e tentando adivinhar quem poderia ser. Com o desintegrador pronto na mão, Bigman se preparou para entrar contato. Em primeiro lugar, o rádio. Seus dedos giraram, rapidamente os controles para transmissão geral local. O inimigo poderia não estar equipado a receber na freqüência em que Bigman ia transmitir. Improvável, mas possível. Muito improvável, mas talvez possível.

      De qualquer maneira, pouco importava. Restaria a alternativa de uma leve descarga de desintegrador contra a parede. Isso não poderia passar desapercebido! Um desintegrador era um objeto que impunha respeito e falava uma linguagem internacional, compreendida em qualquer lugar.

      Falou com sua voz de tenor, imprimindo-lhe toda a autoridade que conseguiu concentrar:

      - Pare! Pare onde estiver e não se vire! Um desintegrador está apontado contra você!

      Ao mesmo tempo Bigman acendeu sua lanterna, e naquele feixe de luz o inimigo se imobilizou. Também evitou fazer qualquer movimento. Bigman achou que isso era uma prova evidente que ele tinha compreendido a mensagem.

      Então falou:

      - Agora, vire-se devagar.

      O indivíduo se virou. Bigman manteve sua mão direita dentro do feixe de luz de sua própria lanterna. A luva metálica estava segurando firmemente o desintegrador de grosso calibre. Seu volume claramente visível era muito reconfortante. Bigman falou:

      - O desintegrador está carregado. Já matei outros homens com ele antes de hoje, e minha pontaria é certeira.

      O inimigo também tinha um rádio. Estava ouvindo tudo, porque ficou observando o desintegrador e esboçou um gesto como a levantar uma mão para afastar a descarga da arma.

      Bigman estava estudando a silhueta que estava em sua frente. Parecia muito comum (será que os Sirianos usavam o mesmo modelo de escafandro?). Bigman perguntou, ríspido:

      - Seu rádio está ligado para transmissão?

      O som que repercutiu de repente no interior de seu capacete proporcionou-lhe um estremecimento. Apesar da distorção do rádio a voz era muito familiar, e perguntou:

      - É o tampinha, não é mesmo?

      Bigman achou que nunca antes precisara de tanta força de vontade para controlar a tentação de dar ao gatilho. Assim mesmo a arma estremeceu em sua mão e a figura que estava em sua frente inclinou-se rapidamente em direção à parede.

      - Urteil! - berrou Bigman.

      Sua surpresa transformou-se em desapontamento. Não era nenhum Siriano. Era só o Urteil... A seguir, a dúvida terrível: o que Urteil estaria fazendo ali? Urteil respondeu:

      - Isso mesmo, sou Urteil. Pode guardar seu caça-mosquitos.

      - Vou guardá-lo quando estiver com vontade, - disse Bigman. O que é que você está fazendo aqui?

      - As minas de Mercúrio não são de sua exclusiva propriedade, pelo menos assim acredito.

      - Enquanto eu apontar este desintegrador, são minhas, sim, seu tonto gordo. -Bigman estava pensando rapidamente, mas não conseguia achar nenhuma resposta.

      O que poderia fazer com aquele gambá asqueroso? Não poderia levá-lo de volta à Cúpula sem revelar que Lucky não estava nas minas. Poderia explicar que Lucky tinha se demorado mais um pouco, mas eles acabariam duvidando ou então se preocupando, se Lucky não aparecesse rápido. Por outro lado, não podia acusar Urteil de coisa nenhuma. As minas realmente estavam à disposição de qualquer um.

      Por outro lado, não podia ficar apontando indefinidamente aquele desintegrador...

      Se Lucky estivesse presente poderia pelo menos...

      Como se tivesse recebido uma sugestão telepática dentro daquele vácuo que os separava, Urteil perguntou de repente:

      - E por onde anda o Starr?

      - Não se preocupe com isso, - disse Bigman. E acrescentou, certo que estava finalmente adivinhando: - Você estava nos seguindo, não é mesmo?

      Ao mesmo tempo esticou a mão que segurava o desintegrador.

      O rosto do outro, invisível atrás da chapa de cristal, inclinou-se como para ver melhor. Disse:

      - E daí? Esse tipo de conversa parecia sem saída.

      Bigman falou:

      - Você estava caminhando num corredor paralelo. Você queria nos apanhar pelas costas.

      - Já disse... e daí? - Urteil estava falando em tom arrastado, displicente, como alguém que se sente perfeitamente à vontade e que está achando graça em ver um desintegrador apontado para si. Continuou: - Onde está seu amigo, afinal? Não está aqui?

      - Eu sei onde ele está. Você não precisa se preocupar.

      - Mas eu quero me preocupar. Chame-o pelo rádio, sei que está ligado para transmissão local, porque de outra maneira eu não poderia ouvir você tão claramente... Você não se importa se eu ligar meu jato de líquido? Estou com sede. – A mão começou a se mexer vagarosamente.

      - Cuidado, - disse Bigman.

      - Só quero beber.

      Bigman ficou observando-o com atenção. Sabia que nenhuma arma poderia ser acionada por um controle sobre o peito, mas o feixe de luz poderia ser aumentado até ofuscá-lo, ou então... qualquer outra coisa.

      Os dedos de Urteil terminaram o movimento enquanto Bigman continuava indeciso, e logo a seguir ouviu o barulho de água engolida.

      - Você ficou assustado? - perguntou Urteil calmo. Bigman ficou sem saber o que responder. A voz de Urteil tornou-se áspera: - Vamos, chame o homem! Chame Starr.

      Como dominado pela voz imperiosa, Bigman começou a levantar a mão, mas parou. Urteil deu uma gargalhada.

      - Você estava querendo mexer nos controles do rádio, não é mesmo? Você precisa transmitir à distância. Ele não está aqui por perto.

      - Você está enganado, - gritou Bigman furioso.

      Estava fervendo pela indignação. Urteil, aquele sujeito balofo e nojento, era muito esperto. Estava aí, sob a ameaça de um desintegrador, mas assim mesmo parecia estar ganhando a parada, mostrando que estava dominando a situação. Por outro lado, a situação de Bigman, que não podia atirar mas também não poderia baixar a arma, estava se tornando mais insustentável. Idéias malucas estavam passando pela sua cabeça: por que não atiraria?

      Sabia porém que isso era impossível. Não poderia justificar sua ação. Mas também se existisse uma justificativa, a morte violenta do investigador mandado pelo Senador Swenson ia provocar um escândalo muito prejudicial ao Conselho. E para Lucky também. Se ao menos Lucky estivesse a caminho...

      Foi em parte porque ele estava desejando a presença do amigo com tanta intensidade, que seu coração bateu mais rapidamente quando o feixe da lanterna de Urteil mudou de direção, apontando para um ponto atrás de suas costas, enquanto Urteil dizia:

      - Não, eu estava enganado e você é que está certo. Ele já está chegando... Bigman virou-se rapidamente:

      - Lucky...

      Em condições normais, Bigman teria esperado tranqüilo até que Lucky chegasse perto e colocasse a mão em seu ombro, mas Bigman não estava reagindo de maneira normal. Sua posição era insustentável e a coisa que ele mais desejava era encontrar uma saída qualquer.

      Só teve tempo de gritar: Lucky! Uma única vez antes de cair sob o impacto de um corpo duas vezes maior e mais pesado do que o seu.

      Durante alguns instantes conseguiu manter-se agarrado ao seu desintegrador, mas uma outra mão estava arrancando-o à sua, dedos fortes estavam torcendo e puxando.

      Bigman estava sem fôlego, seu cérebro não, conseguia reagir pela rapidez do ataque, e o desintegrador caiu-lhe das mãos. O peso que o estava sufocando se afastou, e quando se virou para se levantar com grande esforço viu Urteil que, alto como uma torre, estava apontando para ele seu próprio desintegrador.

      - Eu tenho meu próprio, -falou Urteil entre os dentes, - mas acho que prefiro usar o seu. Não se mexa. Fique assim mesmo. Assim, apoiado nas mãos e nos joelhos.

      Bigman, em toda sua vida, nunca passara por uma ocasião em que tivesse provado tanto ódio por si mesmo como naquele instante. Fora enganado da maneira mais elementar. 

      Pensou que estava quase merecendo a morte. Por outro lado, seria preferível morrer a ter que enfrentar Lucky e dizer:

      - Ele olhou para algo atrás de mim e disse que você estava chegando, e eu me virei e então... Falou com voz embargada:

      - Atire se você tiver coragem. Vamos, atire. Lucky vai perseguir você até o fim dos mundos e vai cuidar que você passe o resto de sua vida acorrentado ao menor e mais frio asteróide, desses que são usados como prisões.

      - Lucky? Onde é que ele está?

      - Procure-o.

      - Não é necessário, porque você vai me dizer onde ele está. Você vai me dizer também por que vocês vieram para as minas. O que é que vocês estão procurando por aqui?

      - Estamos procurando Sirianos. Você sabe.

      - Lorota, - grunhiu Urteil. - Aquele velho idiota Peverale pode acreditar em piadas de Sirianos, mas seu amigo nunca acreditou que a teoria tivesse o menor fundamento. Ele não ia acreditar nem que tivesse somente um cérebro minúsculo quanto o seu. Ele desceu aqui por outros motivos. Agora diga-me por que.

      - Por que vou fazer isso?

      - Para salvar sua vidinha que não vale nada.

      - Isso para mim não é motivo suficiente, - disse Bigman, levantando-se e dando um passo para frente. Urteil deu um passo para trás até que encostou na parede do túnel. - Mais um movimento sequer, e vou apertar o gatilho do desintegrador, e para mim será um prazer. Não preciso tanto assim de suas informações. Seria simplesmente poupar um pouco de tempo, mas não muito, Se eu passar mais cinco minutos com você, estarei perdendo meu tempo. Deixe que eu lhe diga exatamente o que eu penso. Talvez você chegue à conclusão de que você e seu herói Starr não estão enganando ninguém. Nenhum de vocês dois consegue fazer mais do que truques com facas magnéticas contra um homem desarmado.

      Bigman pensou chateado: É isso que está roendo o fígado do cafajeste. Eu o fiz de palhaço em frente a todo mundo, e agora ele está querendo me ver rastejar.

      - Se você tem a intenção de falar muito, - disse Bigman procurando um tom de extremo desprezo, prefiro que você atire. É melhor morrer desintegrado do que pelo tédio.

      - Não se apresse, tampinha, não se apresse. Em primeiro lugar o Senador Swenson vai acabar com o Conselho de Ciências. Você não passa de uma fichinha, e seu amigo Starr é outra fichinha, pouca coisa maior do que você. Eu sou o tal que vai provocar o fim do Conselho. Agora nós o apanhamos onde queríamos. A população da Terra sabe que o Conselho é corrupto, que seus membros esbanjam o dinheiro dos contribuintes e enchem seus próprios bolsos...

      - Isso não passa de uma mentira nojenta, - interrompeu Bigman.

      - Vamos deixar que o povo julgue isso. É só mostrarmos, ao povo quanto é falsa toda aquela propaganda do Conselho, e depois poderemos ver o que é que o povo pensa.

      - Faça isso. Tente e veja se consegue.

      - É isso que queremos. E vamos conseguir. Esse passeio de vocês dois aqui na mina vai ser a prova número um. Eu sei por que vocês vieram. Os Sirianos, hein? Não sei se Starr conseguiu convencer Peverale a contar aquela piada, ou se simplesmente se aproveitou dela para seus fins. Vou dizer a você o que é que vocês estão fazendo aqui. Estão querendo falsificar provas, colocar aqui uma base Siriana falsa. Starr poderá dizer: Eu acabei com eles sozinho, eu, Lucky Starr, o grande herói. Os subetéricos terão seu dia de glória e o Conselho conseguirá abafar o Projeto Luz sem fazer barulho. Eles já aproveitaram o suficiente, e assim conseguirão se sair dessa sem maiores desgostos... ou assim eles pensam. Mas não poderão fazê-lo, porque vou apanhar Starr em flagrante e vou acabar com ele. Depois vou acabar com o Conselho.

      Bigman estava tão furioso que estava quase se sentindo mal. Tinha vontade de estraçalhar o outro com suas próprias mãos, mas com um enorme esforço de vontade conseguiu se controlar. Compreendeu o motivo de Urteil estar falando daquela maneira. Era porque o homem não sabia tanto quanto queria dar a impressão de saber.

      Estava tentando provocar Bigman, fazê-lo falar, para ganhar algumas informações. Falando em voz baixa, Bigman tentou mudar aquela situação:

      - Sabe de uma coisa, seu lixo mal-cheiroso? Se alguém espetasse uma agulha em você, todo aquele gás escaparia, e você ficaria reduzido ao tamanho de um amendoim. Então todos poderiam ver a podridão que estava dentro de você, e você estaria reduzido a um saco vazio de pele enrugada e suja.

      Urteil berrou:

      - Agora chega...

      Mas Bigman também estava gritando, com sua voz aguda:

      - Vamos atire, seu pirata covarde. Eu vi que você era covarde quando estávamos na mesa. Experimente me enfrentar, de homem para homem, só com os punhos, e eu vou mostrar mais uma vez até que ponto você é covarde, apesar de toda sua empáfia.

      Bigman esperou, tenso. Queria que Urteil agisse depressa. Queria que Urteil apontasse impulsivamente, e então ele, Bigman, poderia pular. A morte era bastante provável, mas teria uma minúscula probabilidade...

      Urteil porém pareceu se tornar rígido e frio.

      - Se você não falar, vou matá-lo. Fique sossegado, porque não vai me acontecer nada. Direi que foi em legítima defesa, e vou prová-lo.

      - Você não poderá provar nada por causa de Lucky.

      - Ele terá que cuidar de suas próprias encrencas. Quando eu terminar com ele, as opiniões dele não terão valor nenhum. - O desintegrador na mão de Urteil estava apontando firme. - Você não quer tentar dar uma corridinha?

      - Eu, correr de você? Perguntou Bigman.

      - A decisão é sua, - falou Urteil seco.

      Bigman esperou sem dizer mais nada enquanto o braço de Urteil se tornava rígido e o capacete se inclinava levemente para frente como se estivesse apontando, apesar de não existir possibilidade de errar o alvo, pois estava praticamente à queima-roupa.

      Bigman ficou contando os segundos, tentando adivinhar quando chegaria o instante de fazer o último desesperado salto para salvar a vida, como fizera Lucky quando Mindes apontara sua arma. Agora, porém não havia um companheiro para agredir Urteil, como Bigman fizera com Mindes. E Urteil não estava confuso ou doente, não estava tomado pelo pânico como o coitado do Mindes. Urteil só ia dar uma gargalhada.

      Os músculos de Bigman se encolheram para o salto final. Pelos seus cálculos, sua vida continuaria talvez por mais cinco segundos.

 

Claro-escuro

      Enquanto ficava com o corpo tenso e com os músculos das pernas quase vibrando naquele primeiro esforço de contração, Bigman ouviu um grito rouco e cheio de surpresa.

      Estavam ambos parados num mundo escuro, cinzento, iluminados claramente pelas respectivas lanternas. Não havia nada para fora do feixe de luz, e por isso o vago movimento que ele percebeu não fazia sentido.

      Sua primeira reação, seu primeiro pensamento, foram: Lucky! Era possível que Lucky já estivesse de volta? A situação poderia ter virado em favor deles?

      Houve mais um movimento, e Bigman se esqueceu de Lucky.

      Era como se um fragmento da parede de rocha estivesse se destacando, caindo vagarosamente, como era característico da baixa gravidade de Mercúrio. Era uma espécie de corda de pedra, flexível, e que bateu no ombro de Urteil, agarrando-se à ele. Havia outra corda parecida que estava agarrada à sua cintura. Mais uma estava descendo vagarosamente, com um movimento circular, envolvente, como uma aparição irreal, dentro de um mundo em câmara lenta. Mas no instante em que sua ponta agarrou o braço de Urteil e tocou no metal que cobria o peito dele, o braço e o peito se juntaram. Era como se aquela corda vagarosa, composta aparentemente de rocha quebradiça, tivesse a força terrível de uma sucuri.

      A primeira reação de Urteil fora de surpresa, mas agora sua voz estava dominada pelo terror.

      - Frio, - coaxou, rouco. - Como é frio...

      O cérebro de Bigman estava na maior confusão: não conseguia entender aquela nova situação. Um pedaço de rocha estava agarrado ao antebraço de Urteil. O desintegrador estava em sua mão.

      Mais um segmento de corda flutuou para baixo. Sua aparência era tão idêntica à rocha que eram invisíveis, até se destacarem da parede.

      As cordas estavam todas interligadas umas às outras, como pertencentes a um único organismo, mas aparentemente não existia um "núcleo" ou corpo central. Era como um polvo de pedra, feito só de tentáculos. Bigman teve um rasgo de idéia.

      Pensou em rochas que tinham desenvolvido uma espécie de vida durante os longos milênios da evolução mercuriana. Um tipo de vida completamente diferente de qualquer outra conhecida na Terra. Uma vida que se alimentava exclusivamente de pequenas porções de calor.

      Por que não? Aqueles tentáculos podiam se arrastar de um lugar ao outro, à cata de qualquer mínima quantidade de calor. Bigman podia imaginá-los aproximando-se do Pólo Norte de Mercúrio quando a humanidade deixara ali sua primeira colônia; na época da abertura das minas, e em seguida com a Cúpula, eles começaram a receber gotas contínuas de calor.

      Podiam também se apoderar de homens. Por que não? Uma criatura humana era uma fonte de calor. Assim, de vez em quando, um mineiro solitário tinha sido apanhado. Paralisado pelo terror e pelo gelo intenso, ele não conseguia pedir ajuda. Alguns minutos mais tarde as baterias do escafandro já estariam muito fracas e não permitiriam o uso do rádio. Logo a seguir estaria morto, duro e congelado.

      Aquela estranha estória a respeito das mortes nas minas, contada por Cook, estava agora fazendo sentido. Tudo isso passou pela mente de Bigman num instante, enquanto ficava imóvel, ainda lutando contra a estupefação paralisante provocada por aquela repentina mudança de acontecimentos.

      A voz de Urteil agora era um gemido rouco.

      - Eu... não... posso... Ajude-me... Ajude-me... Frio... frio...

      Bigman gritou:

      - Se agüenta aí! Já vou indo!

      No mesmo instante esqueceu que aquele homem era um inimigo, que pouco antes estava querendo matá-lo a sangue frio. O pequeno Marciano só estava entendendo uma coisa: uma criatura humana estava em sua frente, atacada por algo que não era humano.

      Desde os tempos em que o homem tinha começado a se afastar da Terra para enfrentar os perigos e os mistérios do espaço externo, começou a vigorar uma lei rigorosa, apesar dela não estar escrita e promulgada. As lutas entre os humanos deviam ser esquecidas quando os homens tinham que enfrentar um inimigo comum: as forças não-humanas e inumanas dos outros mundos.

      -É possível que nem todos respeitassem essa lei, - mas Bigman a respeitava. Com um pulo chegou ao lado de Urteil e começou a puxar seu braço. Urteil balbuciou:

      - Ajude-me...

      Bigman segurou o desintegrador que ainda estava na mão de Urteil, tentando evitar o tentáculo que estava enrolado em volta do punho. Bigman notou, distraidamente, que o tentáculo não se enrolava encurvando-se como uma cobra. Dobrava-se em seções, como composto por inúmeros segmentos rígidos encaixados um no outro.

      A outra mão de Bigman deslizou sobre o escafandro de Urteil à procura de um ponto de apoio e por um instante entrou em contato com um tentáculo: por reflexo, retirou a mão. O frio era tão intenso que teve a impressão que uma lâmina lhe penetrava as carnes, queimando-as com seu gelo.

      Qualquer que fosse o método das criaturas para absorver calor, era totalmente diferente de qualquer outro que Bigman já tivesse ouvido.

      Bigman continuou em sua tentativa de arrancar o desintegrador puxando e torcendo. Num primeiro instante não percebeu o toque gelado em suas costas, mas de repente o gelo tomou conta dele. Tentou se afastar, mas percebeu que não podia. Um tentáculo o envolvera e estava segurando-o.

      Os dois homens estavam firmemente amarrados um ao outro, como juntados por uma solda.

      A dor física daquele gelo aumentou e Bigman fez um último esforço para se apoderar do desintegrador. Era só uma impressão, ou estava realmente conseguindo?

      Quase se assustou com a voz de Urteil, que murmurou:

      - Não adianta...

      Urteil balançou sobre os pés, tropeçou e finalmente começou a cair lentamente de lado, por causa da baixa gravidade de Mercúrio. Arrastou Bigman na queda.

      O corpo de Bigman estava dormente. Estava perdendo a capacidade de sentir. Quase não conseguia sentir se ainda estava segurando o cano do desintegrador ou não. E se estava segurando-o, estava ou não estava conseguindo arrancá-lo da mão de Urteil, ou era simplesmente imaginação?

      A luz de sua lanterna estava enfraquecendo, por efeito da drenagem de energia em seu gerador, devido à voracidade daquelas criaturas. A morte por congelamento estava à espreita e poderia chegar dentro de alguns segundos.

      Lucky, após deixar Bigman nas minas de Mercúrio e trocar o escafandro espacial por um macacão isotérmico da tranqüila cabina da Shooting Starr, dentro do hangar, saiu para a superfície de Mercúrio e virou-se em direção ao "espectro branco do sol".

      Ficou parado durante alguns minutos, observando a luminosidade leitosa da coroa do sol. Sem ter consciência do que estava fazendo, enquanto observava o espetáculo, começou a flexionar um a um seus membros elásticos e musculosos. O macacão isotérmico era muito mais maleável do que um escafandro comum. Além do mais, era muito leve, e dava a quem o vestia a incrível sensação de não existir. Era uma sensação desnorteante dentro de um ambiente que era obviamente desprovido de ar, mas Lucky logo dominou qualquer impressão de mal-estar, e começou a observar o céu.

      Havia muitas estrelas, brilhantes como no espaço aberto, mas ele não lhes prestou nenhuma atenção. Estava querendo ver algo diferente. Já fazia dois dias, calculados em termo da Terra, que ele não via o céu. Durante estes dois dias Mercúrio tinha progredido por uma quadragésima quarta parte de sua órbita em volta do Sol. Isso queria dizer que mais de oito graus de céu estavam visíveis a leste, enquanto mais de oito graus tinham desaparecido a oeste. Isso significava que agora poderia ver novas estrelas. E novos planetas também. Vênus e a Terra deviam estar ambas surgindo no horizonte.

      Acho-as logo. Vênus estava mais alta, um disco de luz branca e brilhante como um diamante, muito mais luminosa d.e quanto aparecia vista da Terra. Da Terra, Vênus podia ser vista somente com uma desvantagem: o planeta se encontrava entre a Terra e o Sol, e por isso quando Vênus estava mais próxima à Terral somente sua parte escura era visível. Mas de Mercúrio, Vênus podia ser vista em todo seu esplendor.

      Naquele instante Vênus se encontrava a trinta e três milhões de milhas de Mercúrio. Quando estivesse mais próxima, ela se encontraria a somente vinte milhões de milhas, e poderia ser vista a olho nu como um pequeno disco.

      Apesar da distância, naquele momento sua luz estava competindo com a da coroa. Abaixando a vista até seus próprios pés, Lucky achou que podia distinguir uma sombra dupla: uma meio esvaída (a da coroa) e a outra bastante nítida (a de Vênus). Ficou curioso em saber se, em certas condições favoráveis, não haveria a possibilidade de uma sombra tríplice, sendo que a terceira seria a sombra projetada pela Terra.

      Sem nenhuma dificuldade, encontrou a Terra. Estava muito próxima do horizonte, mas apesar de ser muito mais brilhante do que qualquer outro planeta, parecia pálida quando comparada com o brilho glorioso de Vênus. O Sol mais distante a iluminava menos; era menos envolvida por nuvens, e por isso refletia menos luz. E ainda por cima estava duas vezes mais distante de Mercúrio, do que Vênus.

      Havia, porém uma característica que conferia à Terra um aspecto muito mais interessante: enquanto a luz de Vênus era completamente branca, a da Terra era de um verde azulado.

      Descobriu ainda, quase escondido pelo horizonte, o ponto amarelo da Lua da Terra. Ambas apresentavam uma vista inconfundível quando comparada à dos outros planetas na órbita de Júpiter. Um planeta duplo, viajando majestosamente pelos céus, enquanto o menor girava em volta do maior.

      Lucky ficou olhando por mais tempo do que seria permissível, mas não conseguia arrancar os olhos daquele espetáculo. Pelas circunstâncias de sua vida. Era obrigado, às vezes, a ficar muito longe de seu planeta nativo e por isso talvez sentia um maior surto de afeição. Todos os trilhões de criaturas humanas que povoavam a galáxia tinham sua origem na Terra. De fato, durante quase toda a história, a Terra tinha sido a única pátria do homem. Qual era o homem que poderia olhar para aquele disco que representava a Terra, sem sentir-se emocionado?

      Lucky afastou os olhos, sacudindo a cabeça. Tinha que trabalhar.

      Começou a caminhar a passos firmes em direção à luminosidade da coroa, deslizando os pés a pouca distância da superfície, como era correto em lugares de baixa gravidade, mantendo o feixe da lanterna e os olhos sobre o solo, para evitar qualquer obstáculo.

      Já imaginava o que iria encontrar, mas por enquanto tratava-se apenas de uma suposição, sem nenhuma prova concreta. Lucky não gostava de discutir suas suposições, que muitas vezes nada mais eram do que intuições. Em certos casos preferia até não ficar pensando muito nelas. Era perigoso demais, poderia ir se acostumando com a idéia, começar a tomá-la como uma verdade, e dessa maneira fechar a mente a outras eventuais possibilidades.

      Tinha visto isso acontecer com o buliçoso, crédulo e estourado Bigman. Observara como vagas possibilidades muito freqüentemente se transformavam em firmes convicções na cabeça dele.

      Sorriu levemente pensando do diminuto galo de briga. Era audacioso, nunca tranqüilo, mas era um amigo leal e não conhecia o medo. Lucky preferia a companhia de Bigman a qualquer frota de espaçonaves tripuladas por gigantes.

      Sentiu saudades do Marciano baixinho com rosto de elfo enquanto deslizava rápido pelo terreno mercuriano, e para evitar aquela sensação desagradável de solidão, Lucky voltou com seu pensamento ao problema em pauta.

      Era muito complicado, cheio de contradições.

      Em primeiro lugar havia Mindes, nervoso, instável, inseguro. Era impossível estabelecer com toda certeza até que ponto seu súbito ataque contra Lucky era devido a uma loucura do momento ou a um frio cálculo. Havia Gardoma, que era um amigo de Mindes. Era ele um idealista, dedicado ao Projeto Luz, ou era ele partidário de Mindes puramente por motivos práticos? E quais eram estes motivos?

      Urteil também era um foco de confusões. Estava decidido a derrubar o Conselho, e seu alvo principal era Mindes. Mas sua arrogância provocava ódio e ressentimento em todos. Mindes o odiava, como era de se esperar, o Cardoma também o odiava. O Dr. Peverale o odiava também, mas de uma maneira controlada. Tinha se recusado a falar a respeito do homem com Lucky.

      Durante o banquete Cook dera a impressão de não estar querendo conversar com Urteil, ao ponto de nunca olhar em direção a ele. Isso dependia do fato de que Cook queria evitar a qualquer custo as ironias corrosivas de Urteil, ou existiam outros motivos mais específicos?

      Cook não tinha uma opinião muito boa de Peverale. Estava envergonhado por Peverale ter manifestado sua fixação com respeito aos Sirianos.

      Havia finalmente uma pergunta que teria que ser respondida, independentemente de todas as outras: quem tinha danificado o iso-macacão destinado a Lucky?

      Havia um número excessivo de fatores. Lucky conseguia ligar um ao outro, mas a ligação era ainda muito fraca. Era melhor evitar se concentrar no assunto. Precisava manter sua mente aberta. Estava caminhando por uma subida e tinha ajustado seus passos ao terreno. Estava tão preocupado com seus pensamentos que quando chegou ao topo, a vista que se descortinou mandou-o parar, estupefato.

      A beirada superior do Sol estava acima da linha irregular do horizonte, mas o disco não era visível. Só se viam pequenos segmentos que eram protuberâncias irregulares.

      As saliências eram vermelhas e uma delas, bem ao centro, emitia raios fulgurantes que subiam e se alargavam lateralmente num movimento vagaroso. Era uma vista de beleza incomparável que se destacava contra as rochas de Mercúrio, num ambiente completamente desprovido de poeira. As chamas pareciam surgir da crosta escura de Mercúrio como se o horizonte do planeta estivesse queimando, ou como se um vulcão de proporções enormes tivesse começado sua erupção e tivesse parado a meio caminho.

      Aquelas saliências, porém eram muito maiores de qualquer coisa que pudesse caber em Mercúrio. Lucky sabia que aquela que ele estava observando era de tamanho suficiente para engolir cem Terras ou cinco mil Mercúrios. Estava ali, ardendo com seu fogo atômico iluminando Lucky e todas as cercanias. Desligou a lanterna para observar melhor.

      A superfície das rochas que se defrontavam diretamente com as saliências era banhada de uma luminosidade cor de sangue, enquanto todas as outras superfícies eram negras como carvão. Dava a impressão que alguém tinha pintado estrias vermelhas num buraco sem fundo. Sem dúvida, era aquele o "espectro vermelho do Sol".

      A sombra da mão de Lucky sobre seu peito era uma mancha negra. O terreno mais adiante era muito traiçoeiro, porque as estrias de luz que se sobressaíam nos fragmentos salientes, não permitiam apreciar corretamente a natureza do terreno.

      Lucky voltou a ligar a lanterna, caminhando em direção às saliências além da curva de Mercúrio, enquanto o Sol subia de seis graus por cada milha percorrida. Isso significava que dali a menos de uma milha poderia ver a superfície do Sol, e estaria no lado ensolarado, de Mercúrio.

      Lucky não podia saber que exatamente naquele instante Bigman estava a ponto de morrer congelado Enquanto ia se aproximando de seu alvo, seus pensamentos revolviam em volta do mesmo conceito: ali está o perigo e também a solução do problema.

 

O lado do Sol

      Agora já podia ver mais saliências. A cor vermelha tornou-se mais intensa. A coroa não desapareceu (não havia atmosfera que pudesse irradiar a luz das saliências e obliterar luminosidades menores), mas agora parecia menos importante. As estrelas ainda eram visíveis e continuariam assim, mesmo quando o Sol estivesse alto no céu. Lucky agora não tinha mais o tempo necessário para lhes prestar atenção. Continuou correndo a passos regulares, num ritmo que conseguia manter durante horas sem sentir o menor cansaço. Tinha a impressão que conseguiria fazer a mesma coisa com a gravidade da Terra, considerando as circunstâncias.

      De repente, sem nenhum aviso, sem nenhum outro brilho no céu, sem nenhum indício ao redor, ele viu o Sol! Pelo menos, viu uma linha fina como um cabelo, de luminosidade insuportável subindo pelo horizonte, como se um pintor celestial tivesse marcado ali uma linha branca brilhante.

      Lucky olhou para trás. O terreno acidentado era manchado de vermelho. Mas agora, aos seus pés, viu também algo branco, uma formação de cristais cujas facetas refletiam a luz branca.

      O contorno do Sol era claramente visível enquanto subia um pouco acima do horizonte em sua parte central, com as laterais encurvadas. Mas as curvas eram extraordinariamente achatadas para uma pessoa que estava acostumada a ver o Sol da Terra.

      Os raios do Sol também não fizeram desaparecer as chamas das saliências que contornavam o Sol como uma cabeleira de cobras em brasa. Lucky sabia que elas existiam em volta de toda a superfície, mas era evidente que somente as da beirada podiam ser vistas. As outras se perdiam pelo brilho intenso da superfície.

      Acima de tudo continuava pairando a coroa. Enquanto olhava, Lucky continuava se admirando pela eficiência do macacão isotérmico. Olhos desprotegidos teriam ficado cegos olhando para a beirada do Sol de Mercúrio, e a cegueira seria permanente. A luz visível era já bastante incômoda pela sua intensidade, mas os duros raios ultravioletas, diretos porque não eram mais filtrados pela atmosfera, poderiam significar o fim da visão -e talvez da própria vida: O cristal do visor do capacete do macacão isotérmico tinha uma composição molecular que o fazia menos transparente em proporção direta à luz absorvida. Somente uma minúscula fração de um por cento do fulgor solar penetrava pelo cristal e Lucky conseguia olhar para o Sol sem nenhum perigo e quase sem ser incomodado. Ao mesmo tempo a luz da coroa e das estrelas penetravam sem serem apagadas.

      O macacão o protegia também de outras maneiras. Estava impregnado de chumbo e bismuto, não a ponto de aumentar desagradavelmente seu peso, mas o suficiente para não deixar penetrar os raios X e ultravioleta do Sol. O macacão tinha uma carga positiva que refletia a maioria das radiações cósmicas. O campo magnético de Mercúrio era muito fraco, mas Mercúrio estava muito perto do Sol e havia uma grande densidade de raios cósmicos. Porém, os raios cósmicos são compostos de prótons de carga positiva, e as cargas similares se repelem.

      Finalmente, o macacão o protegia contra o calor, não somente pela sua composição isolante, mas pela sua fita de uma camada molecular superficial espelhada, pseudo-líquída que podia ser ativada com um único toque nos controles.

      Lucky, considerando as vantagens do macacão isotérmico, pensou que era realmente uma lástima que ele não pudesse ser usado como proteção padronizada em qualquer circunstância. Percebeu, porém, que tinha uma estrutura frágil pela sua falta de reforços metálicos suficientes, e por isso seria pouco prático com exceção das circunstâncias em que o calor e a radiação deviam ser considerados os piores perigos.

      Lucky já tinha penetrado por mais de uma milha na parte solar do planeta e ainda não estava percebendo o calor excessivo. Não ficou surpreso. Para as pessoas que nunca saíam de casa e cujos conhecimentos do espaço se limitavam aos shows de suspense subetéricos, o lado solar de qualquer planeta desprovido de ar era simplesmente um forno de calor constante e ininterrupto.

      Mas isso evidentemente não passava de excessiva simplificação. O calor dependia muito da altura do Sol no céu. No ponto em que ele se encontrava em Mercúrio, com o Sol apenas acima do horizonte, a superfície recebia relativamente pouco calor, e aquele pouco se expandia por uma superfície bastante ampla, enquanto a radiação procedia em sentido horizontal.

      O "tempo" mudava ao se penetrar mais profundamente pelo lado solar e quando finalmente a gente alcançava aquela parte em que o Sol estava alto no céu, a situação era exatamente aquela descrita pelos subetéricos.

      Além disso, sempre havia sombras. Com a ausência de ar, a luz e o calor se projetavam somente em linha reta. Ambos não podiam penetrar nas sombras, a não ser em pequenas porções, refletidas ou irradiadas por rochas iluminadas pelo Sol. Por isso, as sombras eram negras como carvão e geladas, apesar do brilho e do calor do Sol.

      Lucky começou a observar as sombras. Num primeiro momento, logo que apareceu a beirada superior do Sol, o terreno continuou quase todo na sombra, com uma ou outra mancha iluminada. Enquanto o Sol subia no céu, ficando sempre mais alto, a luz se propagava de maneira mais ampla, e as sombras começavam a se configurar de maneira mais distinta atrás de rochas ou de colinas.

      A um certo ponto Lucky penetrou de propósito na sombra de uma rocha que se elevava a uma centena de metros mais adiante, e teve a impressão de ter voltado para a parte escura do planeta. O calor do Sol, que até aquele momento não o incomodava, ficou evidente no instante em que diminuiu sensivelmente dentro da sombra. Ao redor o solo estava brilhando de luz, mas dentro dela precisou ligar a lanterna para ver onde colocava os pés.

      Reparou também que havia uma diferença entre as superfícies que estavam expostas ao Sol e as que estavam na sombra. De fato, em seu lado solar, Mercúrio tinha uma espécie de atmosfera. Não era uma atmosfera no sentido terrestre, não havia nitrogênio, oxigênio, dióxido de carbono ou vapor de água. Mas no lado solar existia mercúrio que em alguns pontos estava fervendo. Também enxofre no estado líquido e mais um certo número de minerais voláteis. Os traços de vapor dessas substâncias ficavam agarrados à superfície superaquecida de Mercúrio, e na sombra esses vapores congelavam.

      Lucky percebeu isso quando seus dedos protegidos pelo invólucro isotérmico tocaram levemente a superfície de uma rocha escura, ficando empastados com uma camada de mercúrio congelado que brilhou na luz da lanterna. Quando emergiu no Sol, a pasta transformou-se rapidamente em gotinhas que se evaporaram vagarosamente em seguida.

      Aos poucos o Sol pareceu se tornar mais quente. O fato, porém não era inquietante, porque Lucky sabia que quando o calor se tornasse insuportável, poderia descansar no frescor das sombras.

      A radiação de ondas curtas era um outro fator a não -ser esquecido. Lucky porém duvidou que ela pudesse provocar-lhe consequências mais sérias, devido ao pouco tempo de exposição. O pessoal que trabalhava em Mercúrio estava apavorado com as radiações, porque estava constantemente exposto a pequenas quantidades. Lucky lembrou-se que Mindes tinha insistido repetidamente que o sabotador visto por ele ficava parado, exposto às radiações. Era lógico que Mindes tivesse ficado impressionado.

      Quando a exposição à radiação era crônica, era realmente loucura demorar-se num lugar, ao alcance da radiação. No caso de Lucky, porém a exposição seria curta - ou  pelo menos, assim ele esperava.

      Correu através de uma mancha preta que se destacava no terreno geralmente cor cinza avermelhado. Aquela cor cinza avermelhado era muito familiar. Era parecida com o solo de Marte, uma mistura de silicados com óxido de ferro que lhe dava aquele colorido avermelhado.

      A cor preta era mais surpreendente. O solo preto era claramente mais quente, porque a cor absorvia o calor do Sol mais que as outras. Encolheu-se enquanto corria e percebeu que a área preta era friável mais do que áspera. Um pouco ficou na palma de sua luva. Observando aquele punhado de matéria preta achou que poderia ser grafite, ou ferro, ou sulfato de cobre. Poderia ser também qualquer outra coisa, mas em sua opinião era possivelmente uma composição impura de sulfato de ferro.

      Parou na sombra de uma rocha e fez um rápido cálculo. Durante uma hora e meia tinha percorrido aproximadamente quinze milhas, a julgar pela posição do Sol que agora estava aparecendo completamente acima da linha do horizonte. (Pela verdade, naquele momento Lucky estava mais interessado em beber um pouco da mistura de líquidos nutrientes contida no macacão, do que em fazer cálculos.)

      Em algum ponto à sua esquerda estavam cabos do Projeto Luz de Mindes. Outros cabos ainda deviam estar mais à direita. O local exato não tinha nenhuma importância. 

      Os cabos cobriam centenas de milhas quadradas, e andar entre eles a esmo, procurando um sabotador, seria bobagem. Mindes já tentara isso, sem conseguir resultados. O que ele vira, poderia ser o sabotador, mas possivelmente ele já estava prevenido por alguém dentro da Cúpula.

      Mindes não tinha se preocupado em ocultar que estava indo para o lado do Sol, em busca do sabotador.

      Lucky, porém tinha mantido tudo em segredo. Esperava, portanto que ninguém mandaria um aviso. Ainda por cima, Lucky dispunha de uma ajuda que, Mindes não tinha. Apanhou o pequeno ergômetro no bolso externo, mantendo-o na palma da mão, exposto à luz do Sol.

      Ao ser ativado, o retângulo vermelho brilhou com intensidade incrível. Lucky sorriu levemente e modificou os controles. O Sol emitia uma radiação de ondas curtas. O brilho se apagou.

      Lucky saiu da sombra e começou pacientemente a examinar o horizonte em todas as direções. Se existia uma fonte de energia atômica, além do Sol, onde ela poderia estar? 

      Logo encontrou uma indicação da Cúpula, mas o brilho aumentava quando inclinava o ergômetro em direção ao chão. A usina de força da Cúpula se encontrava a uma milha no subsolo, o sinal melhor era recebido com uma inclinação de vinte graus.

      Começou a girar vagarosamente segurando delicadamente o ergômetro entre os dedos indicadores das mãos, para evitar que o material opaco do macacão isolasse a radiação procurada. Girou mais uma vez, e logo em seguida deu uma terceira volta completa.

      Teve a impressão de que numa certa direção havia um lampejo quase imperceptível - e realmente era difícil vê-lo, por causa da forte luz solar. Teve dúvida de que isso não passasse de imaginação.

      Tentou mais uma vez. Agora, sim. Não podia haver dúvidas.

      Lucky marcou a direção e começou a caminhar. Não estava se iludindo, porém. Era possível que no fim da caminhada encontrasse somente um amontoado de mineral radioativo. Uma milha mais adiante viu pela primeira vez um segmento dos cabos de Mindes.

      Não era um único cabo, mas uma espécie de rede formada por cabos e que se encontrava meio enterrada. Seguindo-a por algumas centenas de metros chegou até onde se encontrava uma chapa quadrada de metal, medindo aproximadamente um metro e vinte de cada lado, polida e brilhante. Estava refletindo as estrelas, como se fosse um espelho de águas claras.

      Lucky imaginou que, colocando-se na posição correta, poderia ver naquele espelho o reflexo do Sol. Percebeu que a chapa estava mudando seu ângulo de elevação, passando do horizontal para o vertical. Levantou os olhos para controlar se estava em posição de receber os raios do Sol.

      Quando voltou a observar a chapa ficou admirado com o que viu. A superfície já não era mais clara e brilhante. Era de um preto fosco, tão fosco que nem os raios intensos do Sol de Mercúrio conseguiam aclará-lo.

      A seguir, enquanto continuava observando, a superfície fosca tremeu, e se desagregou, fragmentando-se. De súbito, voltou a ser brilhante.

      Ficou observando o funcionamento durante mais três ciclos, enquanto o ângulo de elevação se tornava mais e mais vertical, No começo, havia aquele reflexo puríssimo, em seguida, uma superfície totalmente fosca. Lucky entendeu que durante o período fosco estava sendo armazenada a luz enquanto que, durante o período brilhante, a luz era refletida. A alternação das fases poderia ser absolutamente regular, ou poderia haver uma seqüência propositalmente irregular. Não tinha tempo para averiguações e também duvidava, caso tivesse tempo disponível, de conseguir entender o propósito de tudo aquilo, considerando as noções de hiperótica que tinha, e que sabia serem bastante limitadas.

      Possivelmente centenas ou milhares de chapas quadradas, todas ligadas por uma rede de cabos e acionadas por um micro-núcleo atômico no interior da Cúpula, estavam absorvendo e refletindo a luz de maneira controlada, e com diferentes inclinações com respeito ao Sol. Era por isso possível que a energia luminosa pudesse ser forçada através do hiperespaço de maneira controlada. Daí parecia claro que cabos cortados e chapas quebradas dificultavam a complementação total do esquema geral.

      Lucky consultou mais uma vez seu ergômetro. Sua luz agora brilhava mais clara, e continuou a proceder na direção indicada. O brilho tornou-se mais intenso. A fonte de energia que ele estava perseguindo estava continuamente mudando de posição. A fonte de raios gama não era um ponto parado na superfície de Mercúrio.

      Isso, pelo menos, significava que não se tratava de uma aglomeração de minerais radioativos. Era algo móvel, e queria dizer que era um homem, ou pelo menos algo que pertencia a um homem.

      Quando Lucky avistou a figura pela primeira vez, ela parecia uma mancha móvel sobre o solo cor de fogo. Isso aconteceu após uma demorada caminhada debaixo sombra para se livrar das calorias que estava acumulando.

      Mudou de idéia e acelerou o passo. Calculou que a temperatura externa devia estar quase perto do ponto de fervura da água. Por muita sorte, a temperatura interna do iso-macacão era muito mais baixa.

      Refletiu que se o Sol estivesse no zênite, em vez de estar pouco acima do horizonte, até o macacão se tornaria inútil.

      A figura pareceu não prestar atenção à sua presença. Continuou pelo seu caminho, enquanto sua maneira de andar indicava que não tinha experiência de baixa gravidade como Lucky. Estava quase cambaleando, mas assim mesmo conseguia avançar rapidamente.

      Não estava usando nenhum macacão isotérmico. Até à distância Lucky conseguiu se convencer de que a superfície do que parecia um escafandro era obviamente metálica.

      Lucky parou por um instante na sombra de uma rocha, mas não se concedeu um intervalo suficiente para esfriar bem. A figura mais adiante parecia não estar afetada pela temperatura. Ou pelo menos, enquanto Lucky a observava, não deu indicações de querer parar nas sombras, apesar de passar à pouca distância de algumas.

      Lucky balançou a cabeça. Tudo estava se encaixando perfeitamente.

      Continuou a caminhar rapidamente. O calor estava se tornando sensível e desagradável. Mas faltava pouco. Já não estava avançando da mesma maneira, deslizando os pés sobre a superfície. Agora corria, impulsionando os pés em pulos de quase cinco metros.

      Gritou:

      - Ei, você! Vire-se!

      O tom era peremptório, carregado de autoridade, na esperança de que o outro pudesse receber os sinais de seu rádio e que por conseqüência, fosse desnecessário recorrer a uma linguagem feita de mímica.

      A figura virou-se devagar e as narinas de Lucky se dilataram pela satisfação. Por enquanto, sua intuição estava confirmada - aquela figura não era um homem, aliás nada tinha de humano.

 

O sabotador

      A coisa era de estatura alta, mais alta do que a de Lucky. Devia medir aproximadamente dois metros e dez, e suas proporções eram largas. Toda a figura era de metal coruscante, que brilhava nos pontos em que era atingido pelos raios do Sol e resultava negro nos pontos de sombra.

      Debaixo daquele metal, porém, não havia carne e sangue: só mais metal, mecanismos, tubos, uma micropilha que fornecia a energia nuclear necessária e produzia os raios gama captados pelo ergômetro de Lucky.

      Os membros da criatura eram monstruosos. Ficou parada sobre as pernas afastadas, encarando Lucky. Duas células fotoelétricas que lhe serviam de olhos estavam brilhando, vermelhas e meio apagadas. A boca era um corte transversal no metal da parte inferior do rosto.

      Era um homem mecânico, um robô, e bastou a Lucky uma única olhada para se convencer de que não era um robô fabricado na Terra. O robô positrônico tinha sido inventado na Terra, mas ninguém jamais construíra um modelo desse tipo.

      A boca do robô estava se abrindo e fechando com movimentos irregulares, como se estivesse falando.

      Lucky disse:

      - Não consigo ouvir o som de um robô no vácuo. - Falou em tom autoritário, porque sabia que era necessário estabelecer logo o fato de que ele era um homem, e por isso, uma criatura superior. - Ligue seu rádio.

      A boca do robô se imobilizou, mas o receptor de Lucky captou uma voz áspera e desagradável, que falava colocando intervalos esquisitos entre uma e outra palavra. A voz disse:

      - Qual é sua tarefa, senhor? Por que está aqui?

      - Não me faça perguntas, - retrucou Lucky. – Diga-me, por que você está aqui?

      Um robô jamais poderia mentir. Disse:

      - Recebi ordens para destruir certos objetos a certos intervalos.

      - Quem deu a ordem?

      - Recebi ordens para não responder esta pergunta.

      - Você é de fabricação Siriana?

      - Fui construído num planeta da Confederação Siriana.

      Lucky franziu o cenho. A voz da criatura era extremamente desagradável. Os poucos robôs de fabricação terrestre vistos por ele nos laboratórios experimentais estavam equipados com caixas acústicas que, por som diretos ou pelo rádio, emitiam vozes agradáveis e bem moduladas como as de homens bem educados. Estranhou que os Sirianos não tivessem produzido algo melhor. Lucky voltou seus pensamentos a problemas mais imediatos. Disse:

      - Preciso encontrar um pouco de sombra. Venha comigo.

      O robô respondeu imediatamente:

      - Vou acompanhá-lo até à sombra mais próxima. - Começou a caminhar rápido, e suas pernas metálicas pareciam se movimentar de maneira um pouco irregular.

      Lucky seguiu-o. Não estava precisando de indicações para encontrar a sombra, mas ficou levemente atrás para observar os movimentos do robô.

      Aquele que, visto à distância, parecera um passo pesado ou cambaleante, resultou ser uma claudicação bastante acentuada. O robô estava mancando e tinha uma voz áspera.

      Duas imperfeições no mesmo robô que, pela sua aparência externa, parecia uma verdadeira maravilha mecânica. Lembrou-se, por força das circunstâncias, que possivelmente o robô não estava condicionado ao calor e à radiação de Mercúrio. Talvez estivesse prejudicado por uma demorada exposição. Lucky era suficientemente cientista para lamentar isso. Era algo bonito demais para ser propositalmente colocado a perigo.

      Observou aquela máquina com verdadeira admiração. Debaixo do crânio maciço de aço cromado se encontrava um ovóide delicado de platina-irídio, de consistência esponjosa, do tamanho aproximado de um cérebro humano. Dentro dele se formavam quatrilhões de quatrilhões de positrônios, para desaparecer num milionésimo de segundo. Enquanto se formavam e desapareciam, percorriam um caminho pré-calculado reproduzindo, de maneira simplificada, as células pensantes do cérebro humano.

      Os engenheiros tinham calculado aqueles percursos positrônicos para ajudar a humanidade, e por isso estavam submetidos às "Três Leis Robóticas". A Primeira Lei estabelecia que um robô jamais poderia prejudicar uma criatura humana ou permitir que ficasse prejudicada. Era uma lei primária e insubstituível. A Segundo Lei estabelecia que um robô precisava obedecer às ordens, menos àquelas que infringiam a primeira lei. A Terceira Lei permitia aos robôs de se protegerem, com a condição de que não infringissem a primeira e a segunda lei.

      Lucky voltou sua atenção para o robô quando viu que este tropeçava, ameaçando cair. O terreno era perfeitamente plano, não havia nenhuma irregularidade que pudesse provocar um tropeço. Qualquer rachadura estaria assinalada por uma linha negra.

      O solo era uma verdadeira tábua. O passo do robô interrompeu-se sem motivo aparente, jogando-o para o lado. O robô se equilibrou agitando-se violentamente. Quando voltou a ficar sobre os dois pés, continuou a caminhar em direção à sombra como se nada tivesse acontecido.

      Lucky comentou mentalmente que de fato o robô parecia estar em péssimas condições. Entraram na sombra juntos e Lucky ligou a lanterna de seu macacão. Falou:

      - Você está agindo mal destruindo equipamentos necessários. Você está prejudicando os homens.

      O rosto do robô não estava mostrando nenhuma emoção, porque ele era incapaz de senti-la. A voz também continuou impessoal. Respondeu:

      - Estou obedecendo a ordens.

      - Você está respeitando a Segunda Lei, - retrucou Lucky severo. - Você sabe porém que pode não obedecer ordens que prejudicam criaturas humanas. Isso significa que você está desobedecendo a Primeira Lei.

      - Não vi homem nenhum. Não prejudiquei ninguém.

      - Você prejudicou homens que você não viu. Estou lhe dizendo isso.

      - Eu não prejudiquei homem nenhum, -repetiu o robô, teimando, e Lucky franziu o cenho quando percebeu a repetição desnecessária. Apesar de sua aparência sofisticada, o robô talvez não era um modelo muito adiantado. O robô continuou: - Recebi ordens para evitar me encontrar com homens. Sempre fui avisado quando homens estavam para chegar, mas ninguém me avisou de sua vinda.

      Lucky olhou para além da sombra, vendo a brilhante paisagem mercuriana, vermelha e cinzenta em sua maior extensão, mas manchada aqui e acolá por grandes áreas daquela matéria fria e negra que parecia muito comum por aqueles lados. Lembrou-se de Mindes que tinha visto o robô por duas vezes (agora tudo se explicava) e o tinha perdido de vista a seguir, enquanto tentava se aproximar dele. Sua própria expedição secreta na parte solar de mercúrio combinada com o uso pelo ergômetro tinha dado certo.

      Falou de repente com tom autoritário:

      - Quem avisou você para evitar encontrar os homens?

      Lucky não estava pensando em conseguir apanhar o robô desprevenido. A mente de um robô é uma máquina, ele pensou. Não pode ser enganado ou cair numa armadilha, da mesma forma como não é possível pretender que uma lanterna de capacete se acenda com uma finta,  sem realmente ligar o contato.

      O robô disse:

      - Recebi ordens para não responder a essa pergunta. -A seguir acrescentou vagarosamente, com visível esforço, como se a sentença estivesse saindo contra sua vontade: - Não desejo ouvir mais essa pergunta: Ela me perturba.

      Lucky pensou: Ele vai ficar muito mais perturbado se tiver que infringir a Primeira Lei. Saiu propositalmente da sombra colocando-se sob os raios do Sol. Falou com o robô que o estava seguindo:

      - Qual é o seu número de série?

      - RL-726.

      - Está bem, RL-726. Você compreende que eu sou um homem?

      - Sim.

      - Não estou equipado para resistir ao calor de Mercúrio.

      - Eu também não estou, - respondeu o robô.

      - Eu compreendo, - disse Lucky lembrando-se do tropeço do robô pouco antes. - De qualquer maneira, um homem é muito menos resistente do que um robô, nessas circunstâncias. Você está me entendendo?

      - Sim.

      - Então, ouça. Quero que você pare suas atividades destrutivas e quero que você me diga quem foi que mandou você destruir o equipamento.

      - Recebi ordens...

      - Se você não me obedecer, - continuou Lucky em voz alta, - vou ficar aqui, no Sol, até morrer e você terá agido contrariando a Primeira Lei, porque você terá permitido minha morte, quando está em você evitá-la.

      Lucky esperou, tenso. A declaração de um robô não poderia ser aceita como testemunho em qualquer júri, como, aliás, era lógico, mas ele, pelo menos, receberia a confirmação de que suas dúvidas e suspeitas estavam bem fundamentadas.

      O robô, porém ficou calado. Vacilou. Um olho avermelhado apagou-se de repente (mais imperfeições!) e depois voltou a brilhar. Estava coaxando algo incompreensível e finalmente as palavras saíram arrastadas, como se estivesse embriagado:

      - Vou carregar você até que esteja a salvo.

      - Mas eu vou resistir, - disse Lucky, - e você acabaria me machucando. Se você responder minha pergunta, vou voltar à sombra por minha espontânea vontade, e você terá salvo minha vida sem necessidade de me machucar.

      Silêncio.

      Lucky insistiu:

      - Diga-me quem foi que mandou você destruir o equipamento.

      O robô se moveu para frente, de súbito, parando a meio metro de Lucky:

      - Já disse para não fazer essa pergunta.

      Suas mãos se esticaram como para agarrar Lucky, mas não completaram o movimento. Lucky ficou esperando, firme e despreocupado. Um robô não poderia prejudicar uma criatura humana.

      A seguir o robô levantou uma de suas mãos poderosas colocando-a em sua própria cabeça, como faria um homem que estivesse com enxaqueca. Enxaqueca! Lucky compreendeu naquele mesmo instante. Grande Galáxia! A sua não passava de uma cegueira estúpida, criminal... que falta de visão...

      As pernas do robô, sua voz, seus olhos não estavam defeituosos. O calor não poderia afetá-los. Era seu cérebro positrônico que estava danificado - só podia ser isso!

      Aquele cérebro positrônico tão delicado já estava exposto ao calor direto e à radiação do Sol mercuriano - desde quando? Faziam quantos meses? O cérebro já tinha que estar parcialmente destruído. Se aquele robô fosse uma criatura humana, poderia se dizer que estava nos últimos estágios de um colapso cerebral.

      Poderia se dizer que estava em ponto de enlouquecer.

      Um robô louco Enlouquecido pelo calor e pela radiação!

      Até que ponto um cérebro positrônico parcialmente destruído respeitaria as Três Leis?

      Lucky Starr estava ameaçando um robô com sua própria morte enquanto esse mesmo robô, quase desvairado, estava avançando com ar ameaçador e braços esticados. Era também possível que o dilema provocado por Lucky apressasse a loucura. Lucky deu um passo para trás, cauteloso. Perguntou:

      - Você está se sentindo bem?

      O robô ficou calado. Deu um rápido passo para frente.

      Lucky refletiu: Se ele está a ponto de agir contra a Primeira Lei, seu cérebro deve estar a ponto de se dissolver. Um cérebro positrônico precisava quebrar para isso acontecer.

      Por outro lado, o robô já estava se agüentando naquela situação fazia meses. Era possível que sua resistência durasse por mais algum tempo. Falou na tentativa de adiar qualquer coisa e ganhar tempo para mais reflexões. Disse:

      - Você sente alguma dor na cabeça?

      - Dor? - perguntou o robô. - Não entendo o significado dessa palavra. Lucky disse:

      - Estou sentindo calor. É preferível voltarmos para a sombra.

      Não mencionou mais sua intenção de morrer. Voltou para a sombra correndo. O robô coaxou:

      - Recebi ordens para afastar qualquer interferência com as ordens que me foram dadas. Lucky apanhou seu desintegrador e suspirou. Seria uma infelicidade ser obrigado a destruir o robô. Era uma máquina magnífica construída por homens, e o Conselho poderia investigar suas possibilidades com grande proveito. Além disso, repugnava-lhe destruí-lo sem ter pelo menos obtido as informações requeridas. Lucky falou:

      - Pare onde está.

      Os braços do robô estremeceram enquanto se movia e Lucky conseguiu escapar por um fio, flutuando para longe numa pirueta lateral, desfrutando de forma total da gravidade de Mercúrio. Se ao menos conseguisse manobrar até alcançar a sombra... e se o robô o seguisse...

      A temperatura baixa da sombra poderia acalmar os confusos percursos positrônicos. O robô poderia se acalmar, tornar-se mais razoável, mais dócil, e Lucky não mais precisaria pensar em destruí-lo.

      Lucky esquivou-se mais uma vez, deixando que o robô continuasse para além, enquanto suas pernas metálicas levantavam nuvens de poeira preta que voltava a assentar prontamente na superfície de Mercúrio, pois não havia uma atmosfera que a mantivesse suspensa. Era uma caçada fantástica, em que os passos do robô e do homem se perseguiam no silêncio do vácuo.

      Lucky voltou a sentir maior confiança. Os movimentos do robô eram irregulares, aos arrancos. O controle que manipulava o mecanismo de suas pernas estava visivelmente defeituoso, e estava se tornando pior.

      Apesar disso era óbvio que o robô estava fazendo uma tentativa proposital de afastá-lo da sombra. Não havia  mais nenhuma dúvida: estava decidido a matá-lo. Lucky ainda não conseguia tomar a decisão de destruí-lo.

      Parou. O robô também parou. Estavam se defrontando, a um metro e meio de distância parados sobre uma área negra de sulfato de ferro. Todo aquele negrume parecia aumentar ainda mais o calor e Lucky sentiu um início de tontura. O robô estava imóvel, entre Lucky e a sombra.  Lucky disse:

      - Saia do caminho. - As palavras saíram com dificuldade.

      O robô falou:

      - Recebi ordens para afastar qualquer interferência com as ordens que me foram dadas. Você interferiu.

      Lucky viu que não tinha mais escolha. Tinha se enganado. Nunca lhe ocorrera a possibilidade de que as Três Leis pudessem perder sua validez numa circunstância qualquer. Estava vendo a verdade, mas era tarde demais. Só restava um meio para afastar o perigo que estava correndo: precisava destruir o robô.

      Ergueu o desintegrador com um sentimento de tristeza.

      Quase ao mesmo tempo percebeu que tinha se enganado também a respeito de um outro assunto. Tinha esperado demais, e o acúmulo de calor e cansaço estavam afetando seu organismo, contribuindo para fazer de seu corpo uma máquina tão imperfeita quanto o robô. Seu braço levantou-se com esforço, e seus olhos cansados tiveram a impressão de que o robô tinha aumentado de tamanho.

      O robô se mexeu com rapidez superior ao previsto e o corpo de Lucky não conseguiu se mexer em tempo. O desintegrador foi arrancado de sua mão e voou para longe.

      Uma mão metálica agarrou o braço de Lucky enquanto um braço metálico circundava sua cintura.

      Lucky não poderia resistir aos músculos de aço do homem mecânico nem que estivesse em poder de todas as suas forças. Nenhum homem poderia. Sentiu toda sua resistência desaparecer. Só sentia o terrível calor.

      O robô aumentou a pressão, arqueando o corpo de Lucky para trás, como se fosse uma boneca de pano. Lucky lembrou-se confusamente da estrutura frágil do macacão isotérmico.

      Um escafandro espacial talvez conseguisse protegê-lo contra a força do robô, mas o macacão não oferecia nenhuma resistência. A qualquer instante uma seção poderia ficar amassada e ceder. O braço de Lucky tocou o chão e os dedos arranharam a superfície de poeira negra.

      Um pensamento continuava saltitando em sua mente, Tentou com um esforço desesperado de todos os músculos livrar-se, para se proteger contra a morte inevitável por obra de um robô louco.

 

Preparativos para um duelo

      A situação de Lucky era exatamente a inversa de outra, enfrentada pouco antes por Bigman. Bigman não fora ameaçado pelo calor, mas pelo intenso frio. Imobilizado firmemente pelos tentáculos das "cordas" rochosas como mais tarde Lucky pelas garras do robô, a situação de Bigman, porém era um pouquinho melhor. Sua mão quase dormente se agarrou firmemente no desintegrador que estava na mão de Urteil.

      O desintegrador cedeu um pouco. De repente soltou-se tão rápido que a mão já quase insensível de Bigman quase o deixou cair.

      - Areias de Marte! grunhiu Bigman apertando a presa. Se ao menos soubesse em que ponto daqueles tentáculos havia um ponto sensível, poderia tentar atingi-lo com o desintegrador, tomando cuidado para não matar Urteil ou a si mesmo, e então a solução do problema seria simples. Mas assim só lhe restava uma tentativa, e nem ao menos sabia se ela surtiria efeito.

      Seu polegar empurrou trabalhosamente o controle de intensidade, forçando-o para baixo, sempre mais para baixo. Estava começando a ficar com sono e sabia que era mau sinal. Já faziam alguns minutos que Urteil não dava mais sinal de vida.

      Conseguiu alcançar o mínimo de intensidade. Agora, mais uma coisa: precisava acionar o ativador com seu dedo indicador, sem deixar a arma cair. Grandes espaços! Não podia deixá-lo cair!

      O indicador conseguiu alcançar o ponto certo e empurrou. O desintegrador começou a ficar mais quente. Podia vê-lo pela grade do cano que estava começando a ficar vermelha. Isso era péssimo para a grade, porque o desintegrador não estava projetado para servir de aquecedor, mas qual! Para os quintos do grande espaço! 

      Com os últimos restos de energia Bigman jogou o desintegrador o mais longe possível.

      A seguir começou a perceber que o frio estava cedendo, uma minúscula parcela de calor estava penetrando em seu corpo, transmitida pelo gerador do escafandro. Tentou lançar um grito de alegria. Aquilo era o suficiente para demonstrar que a energia não estava mais sendo absorvida pelos corpos vorazes dos tentáculos sugadores de calor. Movimentou os braços. Levantou uma perna. Estava livre. Os tentáculos tinham se afastado.

      A lanterna em seu capacete estava começando a emitir uma luz mais clara e conseguiu ver o lugar para o qual arremessara o desintegrador. Quer dizer, podia ver o lugar, mas o desintegrador não estava mais visível. Acima dele uma massa de tentáculos cinzentos estava se movimentando vagarosamente, entrelaçando-se.

      Tremendo um pouco, Bigman arrancou do coldre o desintegrador de Urteil, regulando seus controles para o mínimo e jogou-o para um ponto além do primeiro. Era uma isca para aquelas criaturas, no caso de que acabassem com a energia do primeiro.

      Bigman perguntou em tom de urgência:

      - Urteil ? Você pode me ouvir?

      Não houve resposta.

      Apelando para todas as suas energias, começou então a arrastar o homem deitado em seu escafandro. A lanterna do capacete de Urteil estava bruxuleando e o marcador de seu gerador mostrava que ainda não estava esgotado. A temperatura no interior do escafandro não podia demorar para voltar ao normal.

      Bigman chamou a Cúpula pelo rádio. Agora não podia pensar em nenhuma outra decisão. Ambos estavam enfraquecidos e com escassas reservas de energia: um novo encontro com aquelas manifestações de vida mercuriana poderia matá-los. Na Cúpula, encontraria um meio qualquer para proteger a posição de Lucky.

      Ficou surpreso pela rapidez da chegada dos homens.

      Após duas xícaras de café depois de uma refeição quente, reconfortado pelas luzes e pelo calor da Cúpula, Bigman que era dotado de um corpo e de uma mente extraordinariamente resistentes, conseguiu colocar sua recente e horripilante aventura na devida perspectiva. Tudo já estava começando a assumir os contornos de uma desagradável recordação.

      O Dr. Peverale continuava andando em sua volta com um ar que em parte mostrava o velho nervoso que era, e em parte fazia-o parecer com uma mãe angustiada. Seus cabelos cinza-aço estavam em desalinho.

      - Você tem certeza de estar bem, Bigman? Você não está sentindo nada desagradável?

      - Estou me sentindo muito bem, obrigado. Aliás, nunca me senti melhor, - insistiu Bigman. - O que eu gostaria de saber é o seguinte: como está Urteil?

      - Ao que parece, está se recuperando. - A voz do astrônomo era fria. - O Dr. Gardoma já o examinou e disse que suas condições não inspiram cuidados.

      - Muito bem, - respondeu Bigman em tom quase sarcástico.

      O Dr. Peverale perguntou com certa surpresa:

      - Está querendo dizer que você estava preocupado?

      - Claro que sim, doutor. Tenho planos para aquele sujeito.

      O Dr. Hanley Cook entrou, fremente de agitação 

      - Mandei homens nas minas para ver se conseguem achar uma daquelas criaturas. Mandei que levassem cobertores aquecidos. Como quando a gente joga chamarizes para peixes, sabem? - Virou-se para Bigman: - Foi muita sorte você ter conseguido escapar.

      A voz de Bigman quase saiu estridente, de tão alta:

       - Sorte? Não foi sorte nenhuma, foi o fino da inteligência! Compreendi que as criaturas estavam simplesmente querendo calor. Adivinhei que era sua comidinha preferida, e então dei-lhes calor!

      O Dr. Peverale se afastou nesse ponto, mas Cook ficou, conversando a respeito das criaturas, andando de um ponto para o outro, extravasando seu entusiasmo, especulando.

      - Imagine só! Afinal todas aquelas velhas estórias a respeito de mineiros congelados eram verdadeiras. Verdadeiras, mesmo! Mas que coisa! Tentáculos feitos de rocha que agem como esponjas, absorvendo calor em qualquer lugar que ele se ache. Você tem certeza que descreveu tudo direitinho, Bigman?

      - Claro que tenho certeza. Logo que apanhar uma, você verá.

      - Puxa, que descoberta.

      - Como é possível que ninguém as descobriu antes? perguntou Bigman.

       - Pelo que você disse, elas são perfeitamente idênticas ao ambiente. Camuflagem protetora. Além disso, elas só atacam homens isolados. Quem sabe - acrescentou falando mais animado, enquanto seus dedos compridos se entrelaçavam e se abriam, -elas podem possuir algum instinto, talvez uma inteligência primária que faz com que se escondam e se mantenham fora do alcance. Tenho certeza que deve ser assim. Elas devem mesmo ter uma inteligência que as mantêm afastadas. Elas sabiam que sua única salvação estava em ficar desconhecidas, por isso somente atacaram homens isolados. Daí, durante trinta ou mais anos não apareceu mais homem nenhum. Aquelas preciosas gotas de calor desapareceram, e apesar disso elas nunca cederam à tentação de invadir a Cúpula. Mas quando outros homens apareceram nas minas, elas não conseguiram resistir à tentação, e uma das criaturas atacou, apesar de haver dois homens, e não simplesmente um homem solitário. Foi um erro fatal para elas. Agora já foram descobertas.

      - Mas por que elas não se deslocam simplesmente para o lado do Sol, se elas precisam de calor e ainda por cima são inteligentes? Perguntou Bigman.

      - Pode ser que aquele calor é excessivo, retrucou Cook.

      - Elas se jogaram em cima do desintegrador e ele estava em brasa.

      - Possivelmente o lado do Sol contém um excesso de radiação que poderia ser fatal. Quem sabe, elas não podem se adaptar ali. Ou talvez existam do lado do Sol outras criaturas inimigas, Não temos meios para apurá-lo. Talvez as criaturas do lado do Sol se alimentam de minerais radioativos e da luminosidade da coroa.

      Bigman encolheu os ombros. Esse tipo de especulação sem finalidade prática o entediava. Os pensamentos de Cook também mudaram de rumo. Observou Bigman com ar pensativo, esfregando o queixo com movimentos rítmicos.

      - Você salvou a vida do Urteil.

      - Isso mesmo.

      - Bom, quem sabe, pode até ser coisa boa. Se Urteil tivesse morrido, todo mundo teria colocado a culpa em você. O Senador Swenson teria arranjado uma porção de dificuldades para você e Starr, e ainda por cima, para o Conselho. Nenhuma explicação adiantaria, porque você teria estado presente na hora da morte de Urteil, e para, Swenson isso seria o suficiente.

      - Escute aqui, - interrompeu Bigman, impaciente. - Quando é que poderei ver Urteil?

      - Quando o Dr. Gardoma disser que você pode.

      - Chame-o então e diga-lhe para me dar licença.

      Cook continuou a observar o pequeno Marciano.

      - O que é que você quer fazer?

      Considerando que estava precisando da ajuda de Cook por causa da gravidade, Bigman resolveu explicar-lhe uma parte de seus planos.

      O Dr. Gardorna abriu a porta e balançou a cabeça, vendo Bigman. Acenou-lhe que entrasse. 

      - Ele é todo seu, Bigman, - murmurou. - Pessoalmente não quero mais nada com ele.

      Saiu e Bigman ficou sozinho com Urteil.

      O rosto de Jonathan Urteil estava um pouco pálido naquelas partes que não estavam cobertas por uma barba incipiente, mas não havia outros sinais aparentes da recente quase-tragédia. Arreganhou os dentes numa espécie de sorriso.

      - Se você veio para satisfazer sua curiosidade, fique sabendo que estou inteiro.

      - Vim por isso mesmo. Também queria lhe fazer uma pergunta. Você continua convencido daquelas besteiras a respeito de Lucky Starr e uma falsa base Siriana nas minas?

      - Estou decidido a prová-lo.

      - Escute aqui, seu estúpido, você sabe que isso é mentira, e o que você quer é fabricar provas falsas! Provas falsas, entende, se é que você poderá fazê-lo! Eu não estou esperando que você se coloque de joelhos em minha frente e agradeça por eu ter salvo a sua vidinha...

      - Espere! - Urteil começou a enrubescer. - Tudo o que eu posso lembrar é que aquela coisa me apanhou de surpresa. Isso não passou de um acidente. Não sei o que aconteceu depois. O que você está dizendo não tem nenhum significado para mim.

      Bigman soltou um berro de raiva.

      - Você me pediu ajuda, seu lixo espacial!

      - Onde estão as testemunhas? Eu não me lembro de nada.

      - E como é que você imagina que saiu de lá?

      - Não estou imaginando nada. É possível que a coisa foi embora sozinha. Ou então não havia coisa nenhuma. Uma pedra deve ter caído em minha cabeça e desmaiei. Se você veio só para ver se eu encostava minha cabeça em seu ombro para chorar, prometendo que não ia mais magoar aquele seu amigo corrupto, você está redondamente enganado. Se você não tem outra coisa para me dizer, pode ir. Até logo.

      Bigman disse:

      - Você está se esquecendo de um pormenor. Você tentou me matar.

      - Onde estão as testemunhas? Se você não sair já, vou começar a soprar, seu nanico, e você sairá voando. Bigman manteve a calma com um esforço heróico.

      - Vamos fazer um trato, Urteil. Você está falando grosso e ameaçando porque tem meia polegada a mais e pesa meio quilo a mais do que eu, mas a única vez que eu mexi com você, você se acovardou.

      - Você tinha uma faca magnética e eu estava desarmado. Não se esqueça de mencionar esse detalhe.

      - Eu digo que você é covarde. Vamos lutar já, você e eu. Sem armas. Ou você está ainda muito fraquinho?

      - Eu, fraquinho para lutar com você? Nem que ficasse no hospital durante dois anos eu me sentiria fraco demais para enfrentar você.

      - Pois então, lute. Frente a testemunhas. Podemos usar o espaço da sala de força. Já falei com Hanley Cook. Cook deve ter motivos para odiar você.

      - E que tal o Peverale?

      - Ninguém o consultou. E Cook não tem motivos para me odiar. Parece-me que ele está com pressa de ver você bem mortinho. Mas não acredito que vou dar a ele tamanha satisfação. Por que iria eu me incomodar lutando com uma meia tigela de pele cheia de vento como você?

      - Está com medo?

      - Eu perguntei: por quê? Você disse que queria fazer um trato.

      - Justo. Se você ganhar, não vou dizer nada a respeito do que aconteceu nas minas. Quero dizer, o que realmente aconteceu. Se eu ganhar, você pára de amolar o Conselho.

      - Raio de um trato. Por que eu haveria de me incomodar por qualquer coisa que você diga a meu respeito?

      - Você não está recuando porque está com medo de perder, está?

      - Pelo espaço! - O grito foi o suficiente. Bigman insistiu: - Então?

      - Você deve estar achando que eu sou um palerma qualquer. Se eu lutar com você em frente a testemunhas, vou ser acusado de assassinato. Se eu empurrar você com um dedo, você acabará esmagado. Vá procurar uma outra maneira de se suicidar, vá!

      - Está bem. Quanto você acha que pesa mais do que eu?

      - Uns cinqüenta quilos, - disse Urteil com desprezo.

      - Uns cinqüenta quilos de banha, estrilou Bigman com seu rosto diminuto distorcido numa careta medonha. - Pois vou lhe dizer uma coisa. Vamos lutar com a gravidade de Mercúrio. Isso lhe daria somente uma vantagem de vinte quilos. E você continua com a sua vantagem de inércia. Que tal?

      Urteil disse:

      - Puxa, gostaria de poder dar a você um único pescoção, para achatar essa sua boca venenosa nessa sua cara miserável.

      - Estou lhe oferecendo uma bela ocasião. Vamos fazer esse trato?

      - Está certo, pela Terra! Vou fazer o possível para não matá-lo, mas será só. Você insistiu. Foi você que quis.

      - Isso mesmo. Vamos andando, vamos andando! 

      Bigman estava tão ansioso que dava pulinhos enquanto falava, acompanhando os pulos com gestos rápidos de punhos cerrados. Estava a tal ponto obcecado com a idéia do duelo que nem sequer se lembrou de pensar no que poderia estar acontecendo com Lucky e não teve o menor pressentimento de um eventual desastre. Ele não podia saber que pouco tempo antes Lucky estivera empenhado numa luta ainda mais mortal daquela proposta por Bigman.

      O andar reservado à produção de energia continha geradores enormes e equipamentos pesados, mas tinha também um amplo espaço que servia para as reuniões do pessoal. 

      Era a parte mais antiga da Cúpula. Durante os primeiros tempos, antes que fossem escavados os primeiros poços no solo de Mercúrio, os engenheiros encarregados das construções descansavam sobre suas camas de campo no espaço entre os geradores. Agora, de vez em quando, ainda era usado para projeções de trifilmes.

      Nessa ocasião teria que servir como arena. Cook, acompanhado por meia dúzia de técnicos, ficou parado à margem, com o rosto expressando suas dúvidas.

      - A audiência está toda aqui? perguntou Bigman.

      Cook disse:

      - Mindes e sua equipe estão do lado do Sol. Dez homens estão nas minas olhando para seus tentáculos de rocha, e o resto está cuidando de seus instrumentos. - Lançou um olhar preocupado em direção a Urteil. - Bigman, você tem certeza que sabe o que está fazendo?

      Urteil estava a torso nu. Seu peito estava coberto por fartos pelos, como aliás seus ombros. Estava contraindo os músculos e flexionando-os com evidente alegria. Bigman observou Urteil com ar de indiferença. 

      - Estamos prontos com a gravidade?

      - Podemos mudá-la quando der o sinal. Já ajustei os controles, para que o resto da Cúpula não fique afetada. Urteil está de acordo?

      - Claro que sim, -disse Bigman. - Tudo está em perfeita ordem.

      - Espero mesmo que esteja, -comentou Cook apreensivo.

      Urteil gritou:

      - Como é, quando é que vamos começar? - Lançou um olhar para o pequeno grupo de espectadores e perguntou: - Alguém está disposto a apostar no macaquinho?

      Um técnico sorriu para Bigman meio sem jeito. Bigman também estava a torso nu, e mostrava um número surpreendente de músculos, mas a diferença de tamanho entre os dois contendores dava à luta uma aparência grotesca.

      - Nada de apostas, - disse o técnico.

      - Estamos prontos? - perguntou Cook.

       - Eu estou pronto, - respondeu Urteil.

      Cook passou a língua nos lábios secos e mexeu na chave geral. O zunido baixo dos geradores mudou de timbre. Bigman vacilou pela súbita perda de peso. Todos os outros também cambalearam. Urteil tropeçou, mas se recuperou logo e avançou cautelosamente até o centro do espaço.

      Não se preocupou em levantar os braços. Ficou esperando numa posição totalmente relaxada.

      - Vamos, faça alguma coisa, mosquito, - disse.

 

Resultados de um duelo

      Bigman, por outro lado, se adiantou com um movimento suave das pernas: os passos leves e harmoniosos davam a impressão de que estava caminhando sobre molas. De fato, num certo sentido era isso que estava acontecendo. A gravidade da superfície de Mercúrio era quase idêntica à gravidade da superfície de Marte, e ele a conhecia de sobra. Seus olhos cinzentos e frios observavam atentamente cada inclinação do corpo de Urteil, qualquer súbita contração de músculos enquanto o homem se esforçava para se manter ereto.

      Era muito fácil fazer erros de cálculo, apesar de mínimos, tentando manter o equilíbrio com uma gravidade diferente da normal. Bigman se aproximou de repente, pulando de um pé para o outro e ziguezagueando, num movimento interrupto que era ao mesmo tempo engraçado, pois se parecia com uma dança, e deixava a audiência totalmente desnorteada.

      - O que é isso? - grunhiu nervoso. - Uma valsa Marciana?

      - Mais ou menos, - retorquiu Bigman. Esticou o braço e as juntas nodosas de sua mão colidiram violentamente com o lado do corpo de Urteil, malhando ruidosamente o adversário que cambaleou sob o impacto.

      Os espectadores retiveram o fôlego, e um deles gritou:

      - Puxa, rapaz!

      Bigman ficou parado, as mãos na cintura, esperando que Urteil recuperasse o equilíbrio. Urteil se endireitou dentro de cinco segundos. Sobre suas costelas se via uma grande mancha vermelha, e suas faces também estavam coradas pela raiva.

      Esticou o braço com um impulso poderoso, com a mão direita meia aberta, como se um safanão fosse o suficiente para arremessar aquele inseto chato para longe.

      O movimento continuou, arrastando o resto do corpo de Urteil pela sua própria força. Bigman se encolheu no instante certo, com a segurança e a coordenação de um corpo perfeitamente treinado e deixou que a mão passasse a uma polegada acima de sua cabeça. Urteil teve que fazer um esforço violento para frear, e o movimento deixou-o mais uma vez cambaleando à procura de equilíbrio.

      Bigman colocou um pé no fundo das calças de Urteil e fez uma ligeira pressão. Logo em seguida, recuou pelo impacto, pulando para trás com o outro pé e Urteil caiu vagarosamente para frente, batendo com o rosto no chão com movimento grotesco.

      A assistência caiu na gargalhada.

      Um dos homens gritou:

      - Mudei de idéia! Agora estou apostando, Urteil!

      Urteil fingiu não ter ouvido. Estava mais uma vez se defrontando com Bigman enquanto uma gota viscosa de saliva lhe escorria do canto da boca até o queixo.

      - Aumente a gravidade! - berrou. - Faça-a voltar ao normal!

      - O que é que há, gorducho? - Falou Bigman irônico. -Você não está satisfeito com vinte quilos a seu favor?

      - Vou matar você. Vou matá-lo mesmo! - berrou Urteil.

      - Pois venha! - Bigman abriu os braços num convite irônico.

      Urteil Porém ainda mantinha um mínimo de raciocínio. Começou a se movimentar em volta de Bigman dando pulinhos desajeitados. Disse:

      - Vou acostumar minhas pernas a essa gravidade, mosquito, e quando eu conseguir colocar as mãos em cima de você, vou arrancar um pedaço.

      - Vamos, arranque.

      Os homens que estavam observando a luta ficaram calados, inquietos. Urteil tinha encolhido o corpo e com os braços esticados ficou em cima das pernas abertas. Estava mantendo o equilíbrio, testando o ritmo da gravidade.

      Comparado a ele, Bigman dava uma impressão de extrema fragilidade. Sem dúvida, tinha a graça e a agilidade de um bailarino, mas também seu tamanho era mínimo. Mas Bigman não parecia preocupado. Pulou para frente. Seus pés estalaram secamente no chão enquanto o impulso o levava bem para o alto. Urteil fez um gesto para segurar a figura que chegava voando, mas Bigman encolheu as pernas e desceu atrás do adversário antes que este conseguisse se virar.

      Os aplausos foram ensurdecedores e Bigman sorriu. Virou o corpo numa meia pirueta passando por baixo do enorme braço de Urteil que estava ameaçando-o, e com um movimento brusco bateu com o corte de sua mão no bíceps de Urteil.

      Urteil conseguiu controlar um grito e virou-se mais um a vez.

      Urteil estava mantendo uma calma assustadora apesar de todas as espalhafatosas provocações de Bigman. Bigman, por outro lado, tentou, de todas as maneiras, provocá-lo e machucá-lo para que um movimento suficientemente brusco pudesse desequilibrá-lo.

      Para frente e para trás; golpes rápidos e secos, que apesar de serem leves, deixavam marcas.

      O Marciano baixinho estava, porém percebendo que Urteil tinha qualidades que impunham respeito. O brutamontes sabia como agüentar. Estava resistindo, com a atitude de um urso que está se defendendo dos arremessos de um cachorrinho. Bigman era o cachorrinho que se mantinha, fora do alcance, para se aproximar rápido, castigar e voltar a se colocar fora do alcance das patas do urso.

      Urteil se parecia também fisicamente com um urso por causa do corpanzil coberto de pelos, os pequenos olhos cheios de veias vermelhas e o rosto maciço, coberto de barba por fazer.

      -Vamos, lute, provocou Bigman. - Aqui sou o único a proporcionar um espetáculo à assistência. Urteil sacudiu a cabeça:

      - Chegue mais perto.

      - Como não, - respondeu Bigman pulando rápido, com velocidade incrível aplicou um soco no maxilar de Urteil, passando debaixo do braço dele e afastando-se, num só movimento.

      O braço de Urteil esboçou um movimento, mas era tarde demais e desistiu. Cambaleou um pouco.

      - Repita isso, - disse.

      Bigman repetiu a façanha, girando e passando debaixo do outro braço de Urteil, terminando com um movimento da cabeça para agradecer aos aplausos e gritos de aprovação.

      - Mais uma vez, - falou Urteil rouco.

      - Como não, - respondeu Bigman e pulou.

      Mas Urteil estava preparado. Manteve a cabeça e os braços imóveis, mas arremessou o pé direito para frente. Bigman percebeu e quis virar no meio do movimento, mas não conseguiu. Seu tornozelo ficou enroscado e depois foi pisado brutalmente pelo sapato de Urteil. Bigman soltou um gemido.

      O rápido movimento de Urteil carregou-o para frente e Bigman o acelerou, empurrando-o pelas costas. Urteil já estava mais acostumado com a gravidade e não foi arremessado para tão longe como das outras vezes. Recuperou-se rápido enquanto Bigman se movimentava pesadamente, com o tornozelo em chamas.

      Urteil soltou um grito selvagem e pulou, e Bigman girou sobre a perna que não estava machucada, mas o movimento não foi suficientemente rápido. Uma mão do tamanho de um presunto apertou seu ombro direito. Uma outra mão se fechou em volta do cotovelo. Ambos caíram juntos.

      Os espectadores emitiram um suspiro em conjunto e Cook, cujo rosto era cinzento, gritou:

      - Parem com essa briga. -Sua voz estava rouca e ninguém o escutou.

      Urteil levantou-se, sem soltar Bigman, suspendendo-o como se o Marciano fosse uma pluma. O rosto de Bigman estava torcido pela dor e ele estava se agitando no esforço de encontrar um apoio.

      Urteil murmurou perto de seu ouvido:

      - Você pensou que era muito esperto quando me provocou para aceitar uma luta com baixa gravidade. Você ainda pensa da mesma maneira?

      Bigman não tinha tempo para gastar pensando. Precisava encontrar uma maneira de colocar um pé no chão ou então na rótula de Urteil, porque naquele instante seu pé direito estava apoiado no joelho do homem, e isso já podia ser o suficiente.

      Bigman pisou com firmeza, para baixo, e arqueou o corpo para trás.

      Urteil vacilou para frente. O movimento não era perigoso para ele, mas seus músculos não conseguiram manter o equilíbrio com aquela gravidade baixa e na tentativa de se endireitar, o corpo deslocou-se excessivamente para trás. Bigman já estava esperando por isso e o empurrou para frente com todas as suas forças.

      Urteil caiu tão rápido que os espectadores não conseguiram ver a seqüência do movimento. Bigman conseguiu se livrar pela metade.

      Voltou a ficar em pé com a agilidade de um gato, mas o braço direito ainda estava preso. Bigman então bateu com o braço esquerdo no pulso de Urteil e ao mesmo tempo levantou o joelho, golpeando o cotovelo do adversário. Urteil soltou um berro e largou a presa, na tentativa de evitar que o braço se quebrasse.

      Bigman aproveitou a oportunidade como um relâmpago. Arrancou a mão que estava presa, sem soltar o pulso de Urteil. A mão que agora estava livre segurou braço de Urteil acima do cotovelo. Estava segurando braço esquerdo dele com ambas as mãos.

      Urteil estava se levantando e enquanto ele completava o movimento, Bigman encurvou o corpo e seus músculos dorsais se retesaram pelo esforço. Começou a puxar, acompanhando o movimento de Urteil que estava se erguendo.

      Os músculos de Bigman, aliados à ação de Urteil enquanto se levantava, suspenderam o corpanzil acima do chão num movimento impressionante, em câmera lenta, e que só poderia ser feito num campo de baixa gravidade. Com os músculos a ponto de estourar Bigman conseguiu impulsionar o corpo de Urteil para o alto e largou-o de repente, observando enquanto subia agitando braços e pernas num arco parabólico que de um ponto de vista terrestre dava a impressão de uma lentidão grotesca.

      Todos ficaram olhando e a imprevista mudança de gravidade pegou-os desprevenidos. A gravidade terrestre voltou com o impacto e a força de um tiro de canhão. Bigman caiu de joelhos, sentindo uma dor aguda no tornozelo machucado. Os homens da assistência também caíram em meio a um coro de gritos de dor e surpresa.

      Bigman só conseguiu ver uma fração do que aconteceu com Urteil. A mudança de gravidade apanhou-o quase no ponto mais alto da trajetória, jogando¬o ao chão com uma aceleração assustadora. Sua cabeça bateu no balaústre de um gerador com um estalo seco.

      Bigman levantou-se com dificuldade e experimentou sacudir a cabeça para pôr um pouco de ordem no cérebro confuso. Cambaleou e reparou que Urteil estava deitado e imóvel. Cook estava ajoelhado ao lado dele.

      - O que foi que aconteceu? - gritou Bigman. - O que foi que aconteceu com a gravidade?

      Os outros começaram a fazer perguntas parecidas. Bigman reparou que Cook era o único que estava em pé e que parecia conseguir pensar claramente. Cook disse:

      - Não fique se preocupando com a gravidade. Olhe o Urteil.

      - Ele está machucado? perguntou uma voz.

      Não, não está mais sentindo nada, -respondeu Cook endireitando-se. -

      Tenho certeza que está morto. Todos circundaram o corpo com uma sensação de mal-estar. Bigman disse:

      - Será melhor chamar o Dr. Gardoma. - Quase não ouviu suas próprias palavras. Uma grande luz estava se fazendo em seu cérebro.

      - Isso vai dar galho, - disse Cook. - Foi você quem o matou; Bigman.

      - Não. Foi a mudança de gravidade, - disse Bigman.

      - Isso vai ser difícil de explicar. Foi você quem o mandou voando. Bigman disse:

      - Se houver dificuldades, vou enfrentá-las. Não se preocupe.

      Cook passou a língua nos lábios secos e desviou o olhar.

      - Vou chamar o Dr. Gardoma.

      O Dr. Gardoma chegou em cinco minutos, e a rapidez de seu exame convenceu a todos de que Cook estava certo. O médico levantou-se, limpando as mãos com um lenço, Falou em tom grave:

      -Está morto. Fratura do crânio. Como foi que isso aconteceu?

      Várias vozes se levantaram juntas, mas Cook fez um gesto para que se calassem. Disse:

      - Uma luta suja entre Bigman e Urteil.

      - Entre Bigman e Urteil! - explodiu o Dr. Gardoma.

      - Quem foi que permitiu esse disparate? Você está louco? Como é que você pensou que Bigman conseguiria resistir...

      - Espere aí, - disse Bigman. -Eu estou bem.

      Cook zangou-se e disse, como para se desculpar: 

      - É isso mesmo, Gardoma, Afinal, foi Urteil que morreu. E foi Bigman que insistiu para lutar. Você não vai negar isso, não é mesmo?

      - Não estou negando nada, - falou Bigman. - Também insisti para que fosse na gravidade de Mercúrio. O Dr. Gardoma arregalou os olhos.

      - Gravidade de Mercúrio? Aqui? -Olhou para o chão, como duvidando de que seus sentidos o estivessem enganando, e de que na realidade estivesse mais leve do que pensava.

      - Não estamos mais na gravidade de Mercúrio, - disse Bigman. - De fato, o campo de pseudo-gravidade cedeu e voltou à gravidade da Terra num momento crucial. Doing! Assim! Foi isso que matou Urteil, não fui eu.

      - E como foi que a pseudo-gravidade voltou à gravidade da Terra - de repente? perguntou Gardoma. Ninguém falou. Cook disse, arrastando as palavras:

      - Pode ter sido um curto...

      - Besteira, - disse Bigman. - A chave geral está virada para cima. Ela não se virou sozinha. Agora o silêncio tornou-se desagradável. Um técnico pigarreou e disse:

      - Não sei, não. Estávamos todos pulando para todos os lados na excitação da torcida, e talvez alguém empurrou a chave com o ombro, sem perceber. Os outros assentiram, concordando. Um deles falou:

      - Pelo espaço! Simplesmente aconteceu!

      Cook disse:

      - Vou ter que fazer um relatório a respeito do incidente, Bigman.

      - O que é que você quer dizer? - perguntou o pequeno Marciano, muito calmo. - Estou preso por homicídio acidental?

      - N... não, - respondeu Cook, indeciso. - Não vou prendê-lo, mas preciso relatar o incidente, e pode ser que você acabe mesmo preso.

      - Hum. Está certo. Obrigado pelo aviso. - Pela primeira vez desde a volta das minas, Bigman se lembrou de Lucky. Essa é uma coisa meio chata, pensou, que Lucky vai encontrar na volta.

      Apesar disso o Marciano estava bastante animado porque sentia-se quase certo de que poderia evitar maiores complicações e ao mesmo tempo encontrar soluções que seriam úteis para Lucky. Uma outra voz chamou:

      - Bigman!

      Todo mundo olhou para cima. Era Peverale que estava descendo pela rampa.

      - Pelos espaços, Bigman, o que é que você está fazendo aqui? E você, Cook? - Sua voz expressava uma ponta de despeito: -O que é que está acontecendo?

      Ninguém se animou a falar. O velho astrônomo reparou no corpo estirado de Urteil e perguntou com uma certa surpresa:

      - Ele está morto?

      Bigman ficou estupefato reparando que Peverale não parecia muito abalado. Não esperou que alguém confirmasse e voltou a interrogar Bigman. Disse:

      - Onde está Lucky Starr?

      Bigman abriu a boca mas não falou nada. Finalmente conseguiu perguntar:

      - Por que o senhor está querendo saber?

      - Ele ainda está nas minas?

      - Hum...

      - Ou está do lado do Sol?

      - Na verdade...

      - Pelo espaço, homem, responda! Ele está do lado do Sol?

      Bigman tergiversou:

      - Quero saber o motivo pelo qual o senhor está perguntando.

      - Mindes foi para lá em seu disco, - respondeu Peverale impaciente, para patrulhar a área dos cabos. Ele faz isso de vez em quando.

      - Sim?

      - Não sei se ele ficou louco, ou se está certo. Ele disse que viu Lucky Starr por aqueles lados.

      - Onde? gritou Bigman.

      Os lábios do Dr. Peverale se estiraram numa careta de desaprovação.

      - Isso quer dizer que ele está lá! Parece-me claro. Pelo visto, seu amigo Lucky Starr teve algumas dificuldades com um homem mecânico, um robô.

      - Um robô!

      - E pelo que diz o Mindes, que ainda não aterrissou e está esperando por um grupo de socorro, Lucky Starr está morto!

 

Prelúdio a um inquérito

      Quando Lucky sentiu-se dobrado em dois pela força inexorável do robô, pensou que a morte não ia demorar a chegar. Quando, porém viu que nada de mais estava acontecendo, sentiu o surto de uma vaga esperança.

      Seria possível que um robô, cujo cérebro torturado tinha sido construído com a ordem embutida de jamais matar um homem, estivesse realmente incapaz de perpetrar o ato, apesar de suas faculdades estarem seriamente afetadas?

      A seguir sentiu que o robô estava apertando-o ainda mais, que a pressão aumentava apesar dele ter imaginado que isso não mais seria possível. Gritou com todas as forças:

      - Largue-me! - e levantou a mão que estava caída, remexendo na poeira preta. Havia só mais uma probabilidade, uma única e fraquíssima probabilidade.

      Levantou a mão até a cabeça do robô. Não podia virar a cabeça para olhar porque estava sendo apertado contra o peito do robô. A mão deslizou sobre a superfície polida de metal. Passou três, quatro vezes sobre o crânio do robô. Finalmente voltou a cair. Não havia mais nada a fazer.

      Porém, seria imaginação, ou realmente a pressão, estava começando a afrouxar? Era possível que o grande Sol de Mercúrio finalmente o estivesse ajudando?

      - Robô! - berrou com todas as forças.

      O robô emitiu um som, mas eram simplesmente as arruelas de seu mecanismo tentando girar ruidosamente. Os braços estavam soltando-o. Tinha chegado o instante de reforçar o que poderia estar sobrando das Leis Robóticas no cérebro do homem mecânico.

      - Você não pode machucar uma criatura humana, - arquejou Lucky. O robô repetiu:

      - Eu não posso... pronunciando, as palavras com dificuldade. Caiu ao chão de repente. Continuou segurando Lucky entre as mãos rígidas. Lucky mandou:

      - Robô, solte-me!

      Aos trancos e solavancos o robô começou a soltar os braços, mas não completamente. Assim mesmo Lucky conseguiu libertar as pernas. Perguntou:

      - Quem foi que mandou você destruir o equipamento?

      Não estava mais receando as reações descontroladas do robô por causa daquela pergunta. Sabia que fora ele mesmo que tinha acabado de desintegrar totalmente o cérebro positrônico. Esperou que naquela última fase antes da dissolução final ainda se afirmasse um resto da Segunda Lei. Repetiu energicamente:

      - Quem foi que mandou você destruir o equipamento?

      O robô emitiu um som indistinto:

      - Te... te...

      E se calou. Seu rádio parou de transmitir. Abriu a boca duas vezes, como para tentar se comunicar diretamente, e fechou-a de novo. Não se mexeu mais.

      O robô estava morto.

      Após superar a emergência e o perigo, a mente de Lucky estava confusa. Não tinha forças suficientes para livrar-se completamente do robô. Os controles de seu rádio estavam amassados e inutilizados.

      Sabia que precisava recuperar suas energias e que, para fazê-lo, era necessário sair com a maior rapidez debaixo da radiação direta do grande Sol de Mercúrio. Isso significava que teria que alcançar a sombra das o rochas mais próximas, a mesma sombra que não conseguira alcançar durante sua luta com o robô. Encolheu trabalhosamente as pernas com grande esforço empurrou seu próprio corpo em direção à rocha, arrastando consigo o peso morto do robô. Repetiu o movimento. Continuou mais uma vez. Começou a ganhar terreno, centímetro por centímetro. A sombra estava longe e todo o universo em volta estava ofuscando-o. Insistiu mais uma vez. Continuou insistindo.

      Teve a impressão de que suas pernas não mais lhe obedeciam, e que o robô estava pesando uma tonelada... Apesar da baixa gravidade de Mercúrio a tarefa parecia superior às poucas forças que lhe restavam, mas continuou a se mexer impulsionado unicamente pela força de vontade.

      Sua cabeça foi a primeira alcançar a sombra. Foi o fim do ofuscamento. Esperou um pouco, arquejando e finalmente, com um esforço que pareceu arrebentar os músculos de suas coxas, impulsionou-se mais um pouco para dentro da sombra. E depois mais um pouquinho ainda.

      Estava na sombra. Uma das pernas do robô continuava no sol cintilando em todas as direções. Lucky olhou além do próprio ombro e registrou o detalhe.

      Em seguida, com uma sensação quase de alívio, perdeu a consciência.

      Mais tarde, aos poucos, sua capacidade de percepção voltou.

      Após mais um lapso de tempo compreendeu que estava deitado numa cama macia, e tentou encontrar uma ligação entre os intervalos de consciência. Sua o mente guardava imagens fragmentadas de pessoas se aproximando, de uma viagem num veículo a jato, da voz estridente e angustiada de Bigman. Havia imagens mais nítidas de curativos aplicados pelas mãos de um médico.

      Depois disso, um claro, seguido pela recordação muito distinta da voz bem modulada do Dr. Peverale fazendo perguntas amáveis. Lucky sabia que tinha respondido de maneira racional, por isso calculou que naquela altura o pior já estava superado. Abriu os olhos.

      O Dr. Gardoma estava a observá-lo com olhar sombrio com uma seringa na mão.

      - Como é que você se sente? perguntou.

      Lucky disse:

      - Como é que devia me sentir?

      - Você devia se sentir morto, acredito eu, depois de tudo o que aconteceu. Mas você tem um organismo invejável e penso que vai sobreviver.

      Bigman que até aquele instante se mantivera ansiosamente fora do campo visual de Lucky, aproximou-se.

      - E não vai precisar agradecer ao Mindes, pode acreditar. Por que aquele cabeça oca não desceu logo para apanhar Lucky, depois de ter visto a perna do robô? Eu não consigo entender por que ficou esperando. Lucky poderia ter morrido.

      O Dr. Gardoma guardou a seringa e lavou suas mãos. Falou mantendo-se de costas:

      - Scott Mindes estava convencido de que Lucky estava morto. Por isso manteve-se afastado, assim ninguém poderia acusá-lo de tê-lo morto. Sabia que já tinha tentado matar Lucky uma vez, e que os outros se lembrariam disso.

      - Mas como é possível raciocinar dessa maneira?

      O robô...

      - Mindes não está raciocinando de maneira normal, por causa da tensão nervosa. Por isso pediu auxílio. Por outro lado, era a melhor coisa que podia fazer. Lucky falou:

      - Fique calmo, Bigman. Eu não estava em perigo. Estava simplesmente cochilando na sombra e agora já me sinto perfeitamente bem. O que foi que, aconteceu com o robô, Gardoma? Conseguiram recuperá-lo?

      - Conseguimos trazê-lo para a Cúpula, mas infelizmente o cérebro está arrebentado, e não poderemos estudá-lo.

      - Uma lástima, - comentou Lucky.

      O médico levantou a voz:

      - Vamos, Bigman. Vamos embora. Ele precisa dormir.

      - Escute aqui, - protestou Bigman indignado.

      Lucky interferiu:

      - Deixe-o ficar, Gardoma. Eu estou mesmo precisando falar com Bigman em particular. O Dr. Gardoma hesitou, mas acabou encolhendo os ombros:

      - Você está precisando descansar, mas vou conceder-lhes meia hora. Depois ele terá que ir embora.

      - Meia hora basta.

      Mal ficaram sozinhos, Bigman apertou o ombro de Lucky sacudindo-o com força:

      - Seu macaco burro. Se o robô não tivesse pifado na hora H, como num show subetérico... Lucky teve um sorriso sem nenhuma alegria:

      - Não foi por coincidência, Bigman, disse. Se eu tivesse esperado por um final feliz subetérico, eu estaria morto. Eu dei um jeitinho no robô.

      - Como?

      - A caixa craniana era muito polida. Refletia a maior parte da radiação solar. Isso significava que a temperatura do cérebro positrônico era bastante alta para interferir com seu funcionamento regular, mas não era o suficiente para acabar com ele de uma vez. Para minha grande sorte, boa parte do solo mercuriano em volta era composto de uma espécie de saibro preto. Consegui passar um pouco na cabeça dele.

      - Por que foi que você fez isso?

      - A cor preta absorve o calor, Bigman. O preto não desvia a radiação. A temperatura cerebral do robô aumentou rapidamente, e ele morreu quase que de repente. Mas foi mesmo por um triz. Agora já acabou. O que foi que aconteceu do seu lado? Algo importante?

      - Algo, hein? Puxa! Escute só. -Bigman começou a relatar os acontecimentos e Lucky ficou ouvindo, com uma expressão que se tornava sempre mais grave.

      Quando Bigman terminou Lucky estava carrancudo:

      - Por que você quis lutar com Urteil? Foi muita burrice sua.

      - Ora, - retrucou Bigman indignado, - foi uma questão de estratégia, você não está vendo? Você sempre repete que eu faço as coisas sem pensar, e que você não pode confiar em mim. Pois foi muita esperteza minha! Eu sabia perfeitamente que podia ganhar dele em baixa gravidade.

      - Tenho a impressão de que você quase não conseguiu. Seu tornozelo está enfaixado.

      - Escorreguei. Foi um acidente. De qualquer forma, eu ganhei. Urteil e eu tínhamos feito um trato. Ele poderia prejudicar bastante o Conselho contando todas aquelas mentiras, mas eu ganhando, ele ia ficar quieto.

      - Você acha que poderia confiar nele?

      - Mas... - começou Bigman e se calou.

      Lucky continuou:

      - Você acabou de me dizer que salvou a vida dele. Ele devia sabê-lo e assim mesmo estava decidido a não abrir mão de seus projetos. Você realmente acreditou que conseguiria fazê-lo mudar de ,opinião vencendo-o numa luta?

      -Na verdade... - disse Bigman mais uma vez.

      - Pois é. Especialmente se ele perdesse de você, e ficasse louco de ódio pela humilhação recebida em público vou lhe dizer uma coisa, Bigman. Você brigou porque estava com vontade de bater nele e assim se vingar pela maneira com que foi destratado. Essa coisa de fazer tratos não passou de uma justificativa para dar-lhe uma boa surra, não é mesmo?

      - Ouça, Lucky! Pelas areias de Marte...

      - Diga-me que estou errado.

      - Mas eu queria fazer um trato...

      - Você estava querendo sobretudo lutar com ele, e agora veja que encrenca você arrumou. Bigman desviou o olhar.

      - Sinto muito.

      Lucky retorquiu:

      - Pela grande Galáxia, Bigman! Não estou zangado com você, estou zangado comigo mesmo. Eu subestimei o robô e quase deixei que ele me matasse, só porque não estava raciocinando de maneira correta. Eu vi perfeitamente que não estava funcionando de maneira certa e nunca pensei que devia ser, efeito do calor sobre o cérebro positrônico até o momento em que já era tarde demais. De qualquer forma, o passado sempre nos ensina algo para o futuro e vamos esquecer o resto. A questão é a seguinte: o que vamos fazer a respeito da situação com Urteil?

      Bigman sentiu-se logo reanimado.

      - De qualquer forma, disse, aquele cafajeste está fora do caminho.

      - Ele está mesmo eliminado do páreo, concordou Lucky. -Mas que tal o Senador Swenson?

      - Hum.

      - Como é que vamos explicar os acontecimentos? O Conselho de Ciências está sob investigação, e o investigador morre após uma luta engendrada por alguém muito ligado ao Conselho, alguém que é praticamente um membro. As coisas se apresentam muito mal.

      - Foi um acidente. O campo de pseudo-gravidade...

      - Isso não vai adiantar nada. Vou ter que falar com Peverale.

      Bigman corou e interferiu:

      - Ele não passa de um velho. Ele não está ligando a mínima.

      Lucky levantou-se, apoiando-se no cotovelo:

      - O que é que você quer dizer, que ele não está ligando a mínima?

      - Pois não está, -afirmou Bigman com violência. -Ele chegou, viu Urteil estirado e morto no chão e agiu como se a coisa não tivesse nenhuma importância. Disse: Ele está morto? E foi só.

      - Só?

      - Só, mesmo. Depois perguntou onde você estava e disse que Mindes tinha comunicado que você fora morto por um robô. Lucky olhou firmemente para Bigman:

      - Foi só isso?

      - Foi só isso, - respondeu Bigman meio sem jeito.

      - O que foi que aconteceu em seguida? Vamos, Bigman. Você não quer que eu fale com o Peverale. Por que? Bigman desviou o olhar.

      - Ande, Bigman. Fale logo.

      - Eles querem me processar, ou coisa que o valha.

      - Processar!

      - Peverale falou que era assassinato e que na Terra a coisa vai ter uma grande ressonância. Falou que era necessário definir as responsabilidades.

      - Está bem. Quando é que eles pretendem começar com o inquérito?

      - Puxa, Lucky. Eu não estava querendo lhe contar isso. Gardoma recomendou para eu não lhe dizer nada de preocupante.

      - Bigman, pare de bancar a galinha choca. Quando é que eles pretendem começar com o inquérito?

      - Amanhã de tarde, às duas horas da Terra. Não precisa se preocupar,

      Lucky. Lucky falou:

      - Chame Gardoma.

      - Por quê?

      - Chame-o.

      Bigman saiu pela porta e quando voltou estava acompanhado pelo médico. Lucky disse:

      - Não existem razões para eu não poder me levantar amanhã um pouco antes das duas, não é mesmo? O Dr. Gardoma hesitou.

      - Gostaria que você descansasse um pouco mais.

      - Não me interessa o que é que você gostaria. Não vou morrer se eu me levantar, não é mesmo?

      - Falando nisso, você não ia morrer se levantasse agora mesmo, Lucky Starr, respondeu o médico ressentido. - Só que eu não lhe aconselharia.

      - Está bem. Por favor diga ao Dr. Peverale que vou estar presente ao inquérito de Bigman. Você deve saber tudo a respeito, não é mesmo?

      - Sei, sim.

      - Todo mundo está a par, menos eu. Não é assim?

      - Você não estava em condições...

      - Diga ao Dr. Peverale que vou estar presente durante o inquérito, e para ele não começar antes de eu chegar.

      - Está certo, vou fazer isso, disse Gardoma. - Agora, porém, trate de dormir.

      Vamos embora Bigman. Bigman gritou:

      - Espere um minuto. – Aproximou-se da cama e disse: - Escute, Lucky, não fique se preocupando. A situação está completamente controlada.

      Lucky arqueou as sobrancelhas. Bigman estufou o peito, cheio de autoconfiança, e disse:

      - Queria fazer-lhe uma surpresa, que diacho. Posso provar que eu não tive nada a ver com o fato de Urteil ter fraturado o crânio. Já resolvi o caso. -Bateu o punho no peito: - Eu! Eu, Bigman, já resolvi tudo. Eu sei quem foi o responsável.

      Lucky perguntou:

      - Quem foi?

      Bigman lançou mais um grito.

      - Não! Nada disso! Não vou falar. Quero lhe mostrar que em minha cabeça também existem coisas mais importantes do que lutas. Agora sou eu quem vai dirigir o show. Você fique me observando e só. Você vai descobrir tudo no inquérito.

      O pequeno Marciano prorrompeu num sorriso que lhe enrugou o rosto, deu alguns passos de dança e saiu do quarto, seguindo o Dr. Gardoma com ar de triunfo.

 

O inquérito

      No dia seguinte, pouco antes das duas horas da tarde, Lucky entrou no escritório do Dr. Peverale.

      Os outros já estavam todos presentes. O Dr. Peverale, sentado atrás de uma velha escrivaninha cheia de papéis, acenou amistosamente com a cabeça e Lucky cumprimentou-o muito sério:

      - Boa tarde, senhor.

      A reunião lembrava o banquete. Cook estava presente, com o rosto muito sério e, como sempre, dando a impressão de estar muito nervoso e tenso. Estava sentado numa grande poltrona à direita do Dr. Peverale, e a figura diminuta de Bigman estava chacoalhando numa outra poltrona do mesmo tamanho, à sua esquerda.

      Mindes estava lá, carrancudo, trançando os dedos, e soltando-os de vez em quando para tamborilar com eles em ritmo acelerado sobre a coxa. O Dr. Gardoma estava sentado ao seu lado, maciço, com os olhos empapuçados, que levantou com ar de desaprovação quando Lucky entrou. Também estavam presentes os chefes de departamento dos astrônomos.

      De fato, a única pessoa que estava no banquete e que não se achava no escritório era Urteil. O Dr. Peverale começou logo com aquele seu jeito suave:

      - Podemos proceder, agora. Em primeiro lugar, algumas palavras dedicadas ao senhor Starr. Parece que Bigman lhe disse que ia ser processado. Por favor, acredite, isto não é um processo. Se por acaso houver um processo, e faço votos que isso não aconteça, ele será feito na Terra, perante juizes devidamente qualificados e com advogados de defesa. Aqui, hoje, vamos simplesmente tentar recolher os elementos para um relatório que será transmitido ao Conselho de Ciências.

      O Dr. Peverale mexeu entre os objetos que estavam sobre a escrivaninha, como para colocá-los em ordem:

      - Deixe que eu lhe explique as razões pelas quais precisamos fazer um relatório completo. Em primeiro lugar, com a penetração do senhor Starr no lado solar, o sabotador que estava interferindo com o trabalho do Dr. Mindes foi colocado fora de ação. Resultou tratar-se de um robô de fabricação Siriana, cujo mecanismo está agora destruído Senhor Starr.

      - Sim? disse Lucky.

      - O assunto era de tamanha importância que tomei a liberdade de interrogá-lo quando o senhor foi trazido para cá, e o senhor estava somente semiconsciente.

      - Estou me lembrando, - disse Lucky. - Estou me lembrando muito bem.

      - O senhor poderia confirmar algumas respostas agora, para que sejam anotadas?

      - Sim, claro.

      - Em primeiro lugar, existem outros robôs envolvidos na mesma façanha?

      - O robô não falou a respeito, mas acredito que não haja outros.

      - Nesse caso, ele não declarou especificamente que era o único robô em Mercúrio?

      - Não.

      - Então, é possível que haja outros.

      - Não acredito, senhor.

      - Essa é somente sua opinião pessoal. O robô não especificou que não havia outros.

      - De fato.

      - Perfeito. Quantos Sirianos estavam envolvidos?

      - O robô não quis responder. Tinha recebido ordens para não falar.

      - Deu algumas indicações a respeito da base dos Sirianos?

      - O robô não disse nada a respeito. Simplesmente, não mencionou os Sirianos.

      - Mas o robô era de fabricação Siriana?

      - Ele admitiu que era.

      - Ah. - O Dr. Peverale sorriu sem alegria. - Nesse caso, acredito que é óbvio que há Sirianos em Mercúrio e que eles estão agindo contra nós. O Conselho de Ciências precisa saber a respeito. É necessário organizar uma busca sistemática em Mercúrio, e no caso de eles conseguirem fugir, abandonando o planeta, é preciso pelo menos que todos tomem consciência do perigo Siriano.

      Cook disse, meio sem jeito:

      - Existe também o caso das manifestações de vida nativa em Mercúrio, Dr. Peverale. O Conselho precisa ser informado também a esse respeito. - Virou-se para o resto da assistência: - Uma das criaturas foi capturada ontem, e...

      O velho astrônomo interrompeu, impaciente:

      - Está certo, Dr. Cook, o Conselho receberá a informação, não tenha dúvidas. De qualquer maneira, a questão Siriana é a que mais nos interessa. Qualquer outro assunto terá que passar em segunda linha, pois estamos enfrentando um perigo imediato. Por exemplo, gostaria de sugerir que o Dr. Mindes abandone seu projeto até que Mercúrio esteja perfeitamente seguro para os Terrestres.

      - Espere um minuto, - gritou Mindes. - Já investimos um bocado de tempo e de dinheiro nesse...

      - Eu disse, até que Mercúrio volte a ser seguro. Não estou querendo insinuar que o Projeto Luz seja definitivamente abandonado. De fato, como precisamos considerar em primeiro lugar o perigo que ameaça Mercúrio, é também necessário tomar as medidas mais oportunas para que o protetor de Urteil, o Senador Swenson, não tenha possibilidade de fazer obstrucionismo, valendo-se de assuntos secundários.

      Lucky disse:

      - O senhor quer dizer que pretende fornecer ao senador um bode expiatório na pessoa de Bigman, amarrado e rotulado. Enquanto ele ficar se preocupando com Bigman e com a melhor maneira de estraçalhá-lo, aqui em Mercúrio vocês podem se dedicar à caça de Sirianos sem interferências.

      O astrônomo arqueou suas alvas sobrancelhas.

      - Um bode expiatório, senhor Starr? Nós queremos apenas os fatos.

      - Pois então proceda, - disse Bigman, agitando-se sobre a poltrona. -Vamos aos fatos.

      - Certo, - disse o dr, Peverale. - Sendo como é, a figura central, que tal o senhor contar o que aconteceu? Diga tudo que se passou entre o senhor e Urteil, com suas próprias palavras. Quero lhe prevenir que apreciaria se o senhor não se alongasse. Lembre-se também de que esse inquérito está sendo registrado em microfita sonora.

      Bigman perguntou:

      - O senhor quer que eu faça um juramento?

      Peverale sacudiu a cabeça:

     

      - Não. Isso aqui não é um processo.

      - Como quiser. - Bigman então relatou tudo com surpreendente isenção. Começou com as provocações de Urteil a respeito de sua estatura, relatou o encontro nas minas e terminou com a luta. Só não mencionou as ameaças de Urteil contra Lucky Starr e o Conselho.

      A seguir, falou o Dr. Gardoma, confirmando os acontecimentos durante o primeiro encontro entre Urteil e Bigman e mencionando também, para serem registrados, os acontecimentos no banquete. Mencionou o tratamento aplicado a Urteil, quando de sua volta das minas.

      Disse:

      - Ele se recuperou muito rapidamente, apesar do choque de congelamento. Eu não fiz perguntas e ele não ofereceu explicações. De qualquer forma, ele me perguntou a respeito de Bigman e quando eu disse que Bigman estava bem, percebi pela sua expressão que continuava alimentando o mesmo ressentimento por ele. Ele não agiu como se Bigman tivesse lhe salvado a vida. Preciso também acrescentar que, pelas minhas observações, Urteil não era homem que se dedicava à manifestação de gratidão.

      - Isso não passa de uma opinião, - interrompeu o Dr. Peverale, - e gostaria de recomendar para não criarmos confusões no relato dos acontecimentos, misturando-os a comentários.

      Chegou a vez de Cook. Ele falou, sobretudo a respeito da luta. Disse:

      - Bigman insistiu para lutar. Foi só isso, Julguei que proporcionando um campo de baixa gravidade, como Bigman estava sugerindo, não poderia acontecer nada de grave, ainda havendo testemunhas. Poderíamos intervir caso as coisas se tornassem perigosas. Fiquei preocupado porque imaginei que, se recusasse, eles poderiam acabar lutando sem testemunhas, e isso poderia acarretar resultados imprevisíveis. É claro, os resultados não poderiam ter sido piores dos que conhecemos. Mas não podia imaginar que tudo acabaria dessa forma. Evidentemente, eu fiz mal em não consultar o senhor, Dr. Peverale. Reconheço isso.

      O Dr. Peverale balançou a cabeça:

      - Deveria ter falado comigo, sem dúvida. Mas o que interessa agora é que Bigman insistiu em querer lutar, e insistiu pelo campo de baixa gravidade, não é mesmo?

      - Sim, senhor.

      - E lhe assegurou que nessas condições ele mataria ao Urteil.

      - As palavras exatas foram, se não me engano, que ele ia acabar com aquele cafajeste. Acredito que isso não passe de uma maneira de dizer. Não acredito que ele estivesse realmente decidido a cometer um assassinato.

      O Dr. Peverale interpelou Bigman:

      - O senhor tem algum comentário a fazer a respeito?

      - Sim, senhor. Aliás, já que o Dr. Cook está fazendo seu depoimento, pretendo passar ao contra-interrogatório. O Dr. Peverale pareceu surpreso:

      - Já disse que este não é um processo.

      - Escute, - declarou Bigman enérgico, -a morte de Urteil não foi um acidente. Foi realmente um assassinato, e eu posso prová-lo.

      O silêncio que se seguiu a essa declaração só durou poucos instantes e foi seguido por uma verdadeira algazarra. A voz de Bigman sobrepujou as outras, com seu timbre estridente:

      - Pretendo reinquirir o Dr. Hanley Cook.

      Lucky Starr observou secamente:

      - Dr. Peverale, sugiro que o senhor permita a Bigman continuar. O velho astrônomo mostrava sinais evidentes de estar confuso:

      - Eu acho que realmente não posso... acredito que Bigman não pode... - disse mas acabou silenciando. Bigman falou

      - Em primeiro lugar, Dr. Cook, como foi que Urteil ficou sabendo o roteiro que Lucky e eu íamos seguir nas minas? Cook enrubesceu.

      - Eu não sabia que ele conhecia o roteiro.

      - Ele não nos seguiu diretamente. Ele tomou um rumo paralelo, como se quisesse alcançar-nos e depois ficar seguindo nosso rastro no interior da mina, quando já estaríamos convencidos de estarmos sozinhos. Para fazer isso, ele precisava conhecer exatamente o caminho que pretendíamos tomar. Lucky e eu planejamos o roteiro com você e com mais ninguém. Lucky não falou com Urteil, e nem eu. Quem foi que falou com ele?

      Cook olhou desesperado de um para o outro, como procurando ajuda:

      - Eu não sei.

      - Não lhe parece óbvio que foi você?

      - Não. Talvez ele estivesse bisbilhotando.

      - Ele não podia fazer isso, Dr. Cook. Ninguém ouve traços de lápis sobre um mapa... Mas vamos deixar isso para lá. Eu lutei com Urteil e se a gravidade tivesse sido mantida no nível normal de Mercúrio, o homem ainda estaria vivo. Mas a gravidade não foi mantida. Foi elevada de repente ao nível terrestre no momento mais apropriado para matá-lo. Quem foi que fez isso?

      - Eu não sei.

      - Você foi o primeiro a se aproximar de Urteil. Por que Você queria ter certeza de que estava morto?

      - Eu protesto. Dr. Peverale... Cook virou o rosto corado em direção ao seu chefe. O Dr. Peverale mostrou uma certa emoção:

      - O senhor está acusando o Dr. Cook de ter matado Urteil?

      Bigman disse:

      - Aquela mudança súbita de gravidade me jogou ao chão. Quando me levantei, todos os outros ou estavam se levantando ou ainda estavam esperneando no chão. Quando algo entre 35 e 7O quilos cai nas costas da gente sem pré-aviso, ninguém consegue se levantar muito rapidamente. Cook porém estava em pé. Aliás, não somente estava em pé, como conseguiu se aproximar correndo de Urteil e se inclinar sobre ele.

      - O que é que você quer provar com isso? - perguntou Cook.

      - Isso simplesmente prova que você não caiu quando o campo de gravidade se elevou, porque de outra forma você não poderia ter se aproximado com rapidez. E por que você não caiu quando todos caíram? Porque você sabia que haveria uma mudança e estava preparado para isso. E como foi que você soube? Porque foi você que virou a chave.

      Cook disse ao Dr. Peverale:

      - Isso é uma verdadeira perseguição. É uma loucura.

      O Dr. Peverale, porém olhou para seus assistentes sem disfarçar que estava horrorizado. Bigman continuou:

      - Permita que eu explique o que aconteceu. Cook estava trabalhando com Urteil. Só assim Urteil poderia saber nosso roteiro nas minas Mas ele estava trabalhando para Urteil sob ameaça. E possível que Urteil estivesse fazendo alguma chantagem. De qualquer forma, Cook só tinha um meio para se livrar de Urteil: matando-o. Quando eu disse que poderia acabar com aquele cafajeste se fôssemos lutar em baixa gravidade, possivelmente implantei no cérebro dele a idéia do assassinato, e quando começamos a lutar ele ficou esperando, pronto para virar a chave.

      - Espere, - gritou Cook, quase se engasgando, - isso tudo é... isso é...

      - Ninguém precisa acreditar nas minhas palavras, - continuou Bigman. - Se a minha teoria está certa, e eu estou convencido de que ela está, Urteil deve ter alguma coisa escrita, ou gravada ou fotografada, que compromete Cook. Não fosse assim, Cook não teria achado que a única saída era matá-lo. Por isso, sugiro que os pertences de Urteil sejam revistados. Vocês encontrarão algo que incriminará Cook.

      - Concordo com Bigman, - disse Lucky.

      O Dr. Peverale parecia completamente desnorteado.

      - Suponho que esta é a única maneira de provarmos que a teoria está certa...

      Ao mesmo tempo Hanley Cook murchou. Ficou sentado, pálido e assustado.

      - Esperem, - disse. - Quero dar uma explicação.

      Todos os rostos se viraram para olhá-lo. O rosto de Hanley Cook brilhava pelo suor. Quando levantou as mãos, num gesto quase de súplica, todos viram que estavam tremendo. Disse:

      - Urteil falou comigo logo após chegar em Mercúrio. Explicou que estava investigando o Observatório. Disse que o Senador Swenson tinha provas de ineficiência e desmandos. Disse também que era óbvio que o Dr. Peverale devia ser aposentado, que estava muito velho e já não era mais capaz de assumir as responsabilidades. Falou que eu era um substituto lógico.

      O Dr. Peverale que até aquele momento ficara ouvindo com ar estupefato, gritou:

      - Cook!

      - Devo dizer que eu sou da mesma opinião, - continuou Cook em tom de desafio. - O senhor é mesmo velho demais. Seja como for, quem dirige o Observatório sou eu, enquanto o senhor fica brincando com a sua Síriomania. -Virou-se para Lucky: - Urteil explicou que se eu o ajudasse na investigação, ele me ajudaria a me tornar o próximo diretor. Eu acreditei nas palavras dele, todo mundo sabe que o Senhor Swenson é um homem muito poderoso. Ajudei-o a recolher uma grande quantidade de informações. Uma parte delas estava escrita e assinada. Ele falou que precisava disso para as posteriores ações legais. Mas... mas em seguida começou a fazer chantagem comigo, por causa daquelas informações escritas. Acabei percebendo que ele estava muito mais interessado no Projeto Luz e no Conselho de Ciências. Queria que eu usasse minha posição para me tornar uma espécie de informante pessoal dele. Explicou que se eu recusasse, ele iria falar com o Dr. Peverale mostrando-lhe as provas de minha deslealdade. Isso então ia encerrar definitivamente minha carreira. Fui obrigado a espionar para ele. Tive que lhe dar todas as informações a respeito do caminho que Bigman e Starr iam tomar nas minas.

      -Tive que mantê-lo a par de tudo que Mindes fazia. Todas as vezes que eu lhe entregava mais um pouco de informações, eu ficava mais e mais emaranhado na rede. Depois de algum tempo percebi que apesar de eu lhe dar toda a ajuda pedida, ele ia me arruinar qualquer dia. Ele era desse tipo de pessoa. Comecei a chegar à conclusão de que a única maneira de me salvar era matá-lo. Mas não sabia como... Foi então que Bigman chegou com o plano de lutar num campo de baixa gravidade. Ele parecia ter certeza absoluta de ser capaz de dar uma boa surra em Urteil. Achei então que talvez eu... Minhas probabilidades eram uma contra cem, ou talvez uma contra mil, mas afinal, que mais eu poderia perder? Foi por isso que me coloquei perto da chave de pseudogravidade e esperei a ocasião propícia. Quando ela se apresentou, Urteil morreu. A coisa funcionou de maneira perfeita. Imaginei que poderia ser rotulada como um acidente. Caso Bigman ficasse em apuros, o Conselho poderia intervir em favor dele. Ninguém sairia prejudicado, a não ser Urteil, e ele merecia morrer cem vezes. E isso é tudo.

      Seguiu-se um silêncio profundo e finalmente o Dr. Peverale disse com a voz embargada:

      - Considerando as circunstâncias, Cook, o senhor está dispensado de qualquer atividade, e pelo art....

      - Um momento, eu digo, esperem um momento! - gritou Bigman. - A confissão ainda não está completa. Cook, agora você já pode admiti-lo: foi a segunda tentativa de matar Urteil, não é mesmo? Cook tinha um olhar carregado de tragédia:

      - A segunda? Como assim, a segunda?

      - O que é que você me diz do macacão isotérmico rasgado? Urteil disse para tomarmos cuidado com os macacões, e acredito que falou porque sabia alguma coisa. Ele fingiu que o responsável era Mindes, mas Urteil era um grandíssimo mentiroso, e seria bobagem acreditar nas palavras dele. Quero dizer que você tentou matar Urteil, mas ele percebeu que o macacão estava rasgado e obrigou você a colocá-lo em nosso alojamento. A seguir, ele nos avisou, para que acreditássemos que ele estava do nosso lado, e para criar dificuldades para Mindes. Não é mesmo?

      - Não, - gritou Cook. - Não, eu não tive nada a ver com os iso-macacões. Nada mesmo.

      - Vamos, Cook, - começou Bigman. - Você agora quer que a gente acredite que... Nesse ponto Lucky Starr se levantou.

      - Está bem, Bigman. Cook não teve culpa nenhuma no caso do isso-macacão. Pode acreditar nas palavras dele. O homem responsável pelo macacão estragado é o mesmo que é responsável pelo robô.

      Bigman arregalou os olhos.

      - Você quer dizer os Sirianos, Lucky?

      - Não há Sirianos em mercúrio. Eles nunca estiveram aqui.

 

Os resultados do inquérito

      A voz do Dr. Peverale estava rouca, pela emoção.

      - Como assim, não há Sirianos? Você sabe o que está dizendo, Lucky?

      - Sei perfeitamente o que estou dizendo. - Lucky Starr se aproximou da escrivaninha do Dr. Peverale, sentou sobre um dos cantos e encarou as pessoas que estavam reunidas ali. - Tenho certeza de que o Dr. Peverale concordará comigo, após ouvir minhas explicações...

      - Eu vou concordar com você? Não se iluda, meu rapaz, não se iluda, - bufou o astrônomo, com uma expressão da mais viva desaprovação. - Isso está fora de discussão... Aliás, vamos ter que prender Cook. 

      Começou a se levantar. Lucky obrigou-o gentilmente a voltar a se sentar.

      - Está tudo em ordem, senhor. Bigman, cuidará para que Cook fique onde está.

      - Eu não pretendo fazer nada que possa perturbar ninguém, - falou Cook desesperado.

      Apesar disso, Bigman aproximou sua poltrona da dele. Lucky falou:

      - Dr. Peverale, procure lembrar-se da noite do banquete e do que o senhor falou a respeito dos robôs Sirianos... Aliás, Dr. Peverale, o senhor já sabia há muito tempo que havia um robô no planeta, não é mesmo?

      O astrônomo perguntou meio sem jeito:

      - O que é que você quer dizer?

      - O Dr. Mindes disse que tinha visto uma figura parecida à de um homem, metida num escafandro tipo espacial, e que parecia estar agüentando as radiações solares muito melhor de quanto faria um homem normal.

      - Eu falei mesmo, confirmou Mindes, - Eu devia imaginar que era um robô.

      - Você não tinha a experiência do Dr. Peverale no que diz respeito a robôs, respondeu Lucky. Voltou a falar com o astrônomo: - Tenho certeza de que o senhor logo suspeitou que havia no planeta um robô de fabricação Siriana, tão logo Mindes mencionou o que viu. A descrição que ele fez corresponde perfeitamente a esse tipo de homem mecânico.

      O astrônomo assentiu vagarosamente.

      - Eu também não pensei em robôs, -continuou Lucky, - da mesma forma que Mindes não estava pensando neles, quando me contou sua aventura. Mas depois do banquete, durante o qual o senhor, Dr. Peverale, falou em Sírio e em seus robôs, me ocorreu que era uma boa explicação para os acontecimentos. O senhor também deve ter chegado à mesma conclusão.

      O Dr. Peverale voltou a assentir vagarosamente. Disse:

      - Eu percebi que sozinhos nada poderíamos fazer contra uma invasão Siriana. Foi por isso que tentei dissuadir Mindes. (A esse ponto Mindes ficou pálido e começou a resmungar entredentes.)

      Lucky disse:

      - O senhor nunca avisou ao Conselho de Ciências?

      O Dr. Peverale hesitou:

      - Eu estava meio receoso. Pensei que não iriam acreditar, e que acabariam me substituindo. Para lhe dizer a verdade, eu não sabia o que fazer. Era óbvio que não podia me valer de Urteil. Ele estava interessado somente em seus próprios planos. Quando o senhor chegou. Starr - ele continuou enquanto sua voz assumia um timbre mais vibrante - achei que talvez eu conseguiria um aliado, e pela primeira vez eu consegui falar a respeito de Sírio, o perigo que representava, e seus robôs.

      - É mesmo, disse Lucky. - O senhor está lembrado do que disse a respeito do carinho dos Sirianos pelos seus robôs? O senhor usou a palavra "amor". O senhor ressaltou que os Sirianos mimavam os robôs; que eles os amavam, que nada era bom demais para um robô. O senhor disse que eles achavam que um robô valia cem homens terrestres.

      - De fato, - concordou o Dr. Peverale. Isso é verdade.

      - Mas se eles amam tanto aos seus robôs, o senhor acredita que colocariam um em Mercúrio, sem proteção isolante, completamente vulnerável e exposto à radiação solar? O senhor acredita que eles condenariam um de seus robôs a uma morte certa e horrível debaixo do Sol?

      O Dr. Peverale ficou calado, com o lábio inferior tremendo levemente. Lucky disse:

      - Eu pessoalmente não conseguia me decidir a alvejar a cabeça do robô com o desintegrador, apesar dele estar ameaçando minha existência. E note que eu não sou nenhum Siriano. O senhor acredita que um Siriano poderia agir de maneira tão cruel com um robô?

      - A importância da missão... - começou o Dr. Peverale.

      - Está certo, - concordou Lucky. - Não quero dizer que um Siriano não mandaria um robô para Mercúrio no intuito de fazer sabotagens, mas pelo grande espaço, os Sirianos teriam providenciado uma proteção adequada para o cérebro do robô. Não é somente por uma questão de carinho exagerado com os robôs, mas é, sobretudo uma questão de bom senso. Afinal, se estivesse protegido, o robô poderia fazer um serviço melhor durante mais tempo.

      Todos os presentes murmuraram ao mesmo tempo, expressando aprovação. O Dr. Peverale gaguejou:

      - Mas se não foram os Sirianos... então...

      - Muito certo, - disse Lucky. - Vamos examinar os indícios que temos. Em primeiro lugar, Mindes viu o robôs duas vezes e em ambas as ocasiões o robô desapareceu quando Mindes procurou se aproximar. Mais tarde o robô me explicou que fora instruído para evitar se encontrar com homens. Era evidente que alguém o avisava quando Mindes estava procurando o sabotador. Era também evidente que o aviso vinha da parte de alguém que se encontrava no interior da Cúpula. O robô não recebeu nenhum aviso quando eu o encontrei, porque tomei o cuidado de dizer a todos que estava indo para as minas. Em segundo lugar, quando o robô estava quase no fim, perguntei mais uma vez quem tinha lhe dado ordens. Ele só conseguiu dizer: Te... te... antes que seu rádio deixasse de funcionar, mas a boca continuou se mexendo como se estivesse pronunciando mais duas sílabas.

      - Confere! Confere! - gritou Bigman de repente. Seus cabelos ruivos pálidos ficaram quase de pé. - Urteil!. O robô estava querendo dizer Urteil! Aquele sujeito imundo fez até sabotagem! Confere, sim!

      - Quem sabe, - comentou Lucky. - Vamos ver. Achei mais possível que o robô quisesse dizer "terrestre".

      - Talvez, - falou o Dr. Peverale, secamente, - era simplesmente um som sem sentido, feito por um robô cujo mecanismo estava a ponto de parar, e por isso não tinha significado algum,

      - Quem sabe, -repetiu Lucky. - Vamos, porém examinar nosso terceiro indício, que é muito importante. O robô era de fabricação Siriana. Qual é o homem aqui na Cúpula que poderia se apoderar de um robô Siriano? Quem entre nós já esteve num planeta Siriano?

      O Dr. Peverale apertou os olhos:

      - Eu já estive num.

      - Isso mesmo, - disse Lucky. - O senhor, e mais ninguém. Aí está a resposta.

      Seguiu-se uma confusão indescritível e Lucky pediu silêncio. Seu tom era muito autoritário e sua expressão severa:

      - Como membro do Conselho de Ciências, declaro que este Observatório passa a ser controlado por mim a partir desse momento. O Dr. Peverale está destituído de seu cargo. Já me comuniquei com o Quartel Geral do Conselho na Terra. Uma espaçonave já está a caminho. Serão tomadas todas as medidas necessárias. 

      - Eu quero falar, - gritou o Dr. Peverale.

      - O senhor poderá falar, - concedeu Lucky. - Antes, porém o senhor terá que ouvir as acusações. O senhor é o único homem que teve a oportunidade de roubar um robô Siriano. O Dr. Cook contou-nos que o senhor recebeu um robô para seu uso pessoal, enquanto ficou em Sírio. Não foi assim?

      - Sim, mas...

      - O senhor ordenou que ele fosse para a sua nave quando estava para ir embora. Conseguiu burlar a vigilância dos Sirianos de uma maneira qualquer. Acredito que eles nem duvidaram que alguém fosse capaz de um crime tão hediondo para eles: roubar um robô! Possivelmente foi por isso que eles não tomaram nenhuma precaução. Por outro lado, é bastante lógico supor que o robô quisesse dizer "terrestre", quando eu perguntei pela última vez quem tinha lhe dado instruções. O senhor foi o único terrestre em Sírio. Era lógico que falassem no senhor como o "terrestre", possivelmente quando o robô foi colocado à sua disposição. O robô, por conseqüência, pensaria no senhor como no "terrestre". Finalmente, quem mais além do senhor estaria a par das saídas para o lado solar? Quem poderia comunicar-se mais facilmente com o robô, dizendo-lhe quando agir e quando se esconder?

      - Eu nego tudo isso, - exclamou o Dr. Peverale,

      - Não adianta negar, - disse Lucky. - Se o senhor insiste em dizer que é inocente, o Conselho será obrigado a pedir informações em Sírio. O robô disse que seu número de série era RI726. Se as autoridades Sirianas confirmarem que o robô colocado à disposição do senhor durante sua temporada em Sírio tinha o número de série RI726,  e que esse robô desapareceu na mesma época em que o senhor viajou, o senhor estará condenado. Além disso, o crime de furtar um robô foi cometido em Sírio. Temos um tratado de extradição com os planetas Sirianos e poderíamos ser obrigados a entregar o senhor a eles. Eu só posso aconselhar o senhor, Dr. Peverale, a confessar e a deixar que a justiça da Terra cuide de seu caso, em vez de proclamar sua inocência e arriscar a punição da justiça de Sírio pelo crime de roubar um dos seus amados robôs, e de torturá-lo até ele morrer.

      O Dr. Peverale fitou a assistência com olhos que não estavam enxergando nada. Depois começou a cair vagarosamente e ficou no chão. O Dr. Gardoma correu para ele e auscultou o coração.

      - Está vivo, mas acho melhor colocá-lo numa cama.

      Duas horas mais tarde, na presença do Dr. Gardoma e de Lucky Starr, e com o Conselho de Ciências em comunicação subetérica, o Dr. Lance Peverale ditou sua confissão.

      Os emissários do Conselho estavam controlando a situação com mãos firmes, e suas responsabilidades estavam encerradas: Mercúrio estava desaparecendo rapidamente - ainda assim Lucky continuava tenso. Sua expressão pensativa, preocupada. Bigman, com o rosto angustiado, perguntou:

      - O que é que há, Lucky?

      - Estou com pena do velho Peverale, - respondeu Lucky. - Suas intenções eram boas. Os Sirianos realmente representam um perigo, apesar de não ser um perigo imediato como ele pensava.

      - O Conselho não o entregaria a Sírio, não é mesmo?

      - Acredito que não, mas o susto que ele levou foi o suficiente para obrigá-lo a fazer uma confissão. Foi um truque cruel, mas necessário. Os motivos do velho eram, sem dúvida, patrióticos, mas ele tinha chegado até a tentar um assassinato. Cook também foi obrigado a cometer um crime. Foi um crime mesmo, apesar da péssima opinião que tínhamos de Urteil.

      Bigman perguntou:

      - Afinal o que é que o velho tinha contra o Projeto Luz?

      - Peverale explicou tudo durante o banquete, - respondeu Lucky mal-humorado. - Durante aquela noite ele deixou tudo muito claro. Você deve estar lembrado de que ele se queixou de que a Terra estava provocando seu próprio enfraquecimento, porque sempre mais dependia de recursos e alimentos importados. Ele, disse que o Projeto Luz reduziria a Terra a ser dependente de estações espaciais até para receber a luz do Sol. Queria que a Terra fosse mais auto-suficiente para poder resistir melhor ao perigo Siriano. Sua mente algo abalada levou-o a acreditar que estaria provocando um fortalecimento da auto-suficiência sabotando o Projeto Luz. É possível que o motivo original de trazer o robô era simplesmente para ter uma prova do poder dos Sirianos. Quando voltou já encontrou o Projeto Luz em andamento e resolveu transformar o robô num sabotador. Quando Urteil chegou, ele possivelmente ficou com medo de que Urteil investigaria o Projeto Luz e acabaria acusando-o. Por isso colocou um macacão isotérmico cortado no alojamento de Urteil, mas Urteil descobriu a armadilha. Aliás, Urteil estava convencido de que Mindes era o autor do atentado.

      Bigman observou:

      - É mesmo, agora estou me lembrando. A primeira vez que o vimos, o velho não quis nem comentar a respeito de Urteil. Devia estar irritadíssimo com ele.

      - Certo, - disse Lucky, - e no caso dele não havia um motivo específico, como por exemplo, no caso de Mindes. Foi ali que imaginei que devia existir um motivo oculto.

      - Foi por isso que você começou a suspeitar dele?

      - Não, foi por um outro motivo. Foi por causa do macacão danificado em nosso alojamento. Cheguei à conclusão de que o homem que mais tivera oportunidade para fazer isso só podia ser Peverale. Ele também era a pessoa que melhor poderia dar sumiço ao macacão depois que o homem que o vestia estivesse morto. Ele sabia qual era nosso alojamento, e também estava na posição de conseguir facilmente um iso-macacão. A única coisa que eu não compreendia era o motivo. Por que o homem estava querendo me matar? Aparentemente, meu nome não representava nada para ele. Perguntou até se eu era um engenheiro subtemporal como Mindes. Foi na primeira vez que nós o encontramos. Mindes, porém tinha reconhecido meu nome, e tinha tentado obter meu auxílio. O Dr. Gardoma tinha ouvido falar a meu respeito por causa das intoxicações em Marte. Urteil, naturalmente, conhecia minha vida de trás para frente. Foi então que comecei a pensar que o Dr. Peverale também podia ter ouvido falar em mim. Você e eu ficamos em Ceres durante algum tempo, por ocasião dos ataques dos piratas. O maior Observatório do Sistema está em Ceres. Fiquei a me perguntar se o Dr. Peverale não estivera lá. Perguntei, e ele negou ter me visto em Ceres. Admitiu que estivera em Ceres e Cook confirmou mais tarde que o velho ia freqüentemente para lá. Sem que eu perguntasse mais nada, Peverale fez questão de contar que durante o ataque dos piratas ele estava doente e acamado. Cook confirmou a declaração. Foi isso que me deixou com a orelha em pé. Peverale tinha falado demais.

      O pequeno Marciano abriu os olhos:

      - Não estou entendendo.

      - Muito simples. Se Peverale esteve muitas vezes em Ceres, qual era a necessidade de arranjar um álibi para aquela vez? Por que logo da vez em que houve um ataque de piratas, e não de uma outra qualquer? Era óbvio que ele sabia quando eu estive em Ceres e estava procurando uma desculpa para dizer que não sabia nada a meu respeito. Mas era claro que sabia. Por que então havia de querer me matar, se sabia quem eu era, e matar também Urteil? Ambos recebemos macacões danificados. Ambos éramos investigadores. Peverale estava com medo de alguma coisa. O que podia ser? No banquete começou a falar a respeito de Sirianos, dos robôs deles, e as coisas começaram a ficar mais claras. O relato de Mindes começou a ter um sentido, e compreendi logo que se havia um robô em Mercúrio, ele poderia ter chegado somente trazido pelo Dr. Peverale ou então por Sirianos. Tive a impressão de que Peverale era a solução mais certa e que ele estava falando de Sirianos para estabelecer uma espécie de seguro. Se alguém encontrasse o robô, e por conseqüência acabasse com a sabotagem, aquela conversa serviria como uma cortina de fumaça para ocultar o papel dele, além de servir como ótima propaganda anti-siriana. Eu estava precisando de provas. Caso contrário, o Senador Swenson poderia gritar que nós é que estávamos levantando uma cortina de fumaça para encobrir as extravagâncias e a incompetência do Conselho. Eu estava precisando de provas irrefutáveis. Urteil estava presente, e eu não tive coragem de falar com ninguém, nem com você, Bigman.

      Bigman rosnou, chateado.

      - Quando chegará o tempo em que você confiará em mim?

      - Quando eu puder ter certeza de que você é capaz de evitar truques bobos, como lutar com homens que têm duas vezes seu tamanho, - respondeu Lucky com um sorriso que amenizou um pouco a dureza das palavras. - De qualquer forma, decidi capturar o robô que se encontrava no lado solar para poder usá-lo como prova. Não consegui, e assim tive que encontrar um meio para forçar Peverale a confessar.

      Lucky sacudiu a cabeça. Bigman perguntou:

      - E agora, como é que fica o Senador Swenson?

      - Acho que estamos empatados, - disse Lucky. - Como Urteil está morto, ele não pode fazer muita coisa, ainda mais que temos o Dr. Cook que pode testemunhar que Urteil agia de maneira muito suja. Por outro lado, nós não podemos fazer muita coisa contra ele, porque os dois mais importantes homens do Observatório tiveram que ser substituídos, por ter perpetrado crimes. Na realidade, não há por que agir.

      - Areias de Marte, - gemeu Bigman. - Aquele sujeito vai acabar nos atrapalhando mais tarde. Lucky sacudiu a cabeça:

      - Não. Não há motivo para se preocupar com o Senador. Ele é um homem perigoso e inflexível, e por isso mantém o Conselho sempre alerta, evitando que se torne acomodado.

      - De qualquer forma, acrescentou pensativo, o Conselho de Ciências precisa de críticos, da mesma forma que o Governo e o Congresso precisam deles. Se algum dia o Conselho começasse a se considerar acima de qualquer crítica, poderia chegar um tempo em que poderia ficar tentado a estabelecer uma ditadura na Terra, e pessoalmente não gostaria que isso acontecesse.

      - Hum! Pode ser, - concordou Bigman que não estava satisfeito. - Acontece que eu não gosto daquele Swenson. - Lucky riu e esticou o braço para despentear o cabelo de Marciano.

      - Eu também não gosto dele, mas não precisamos nos preocupar com isso agora. Olhe para as estrelas lá fora. Quem sabe para onde iremos na próxima semana e por quê?

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

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