Horácio Nunes
COMÉDIA ORIGINAL EM UM ATO
PERSONAGENS: BERNARDO (45 anos) MARIQUINHAS (17 anos) MALAQUIAS (30 anos) GREGÓRIO (46 anos) SINFRÔNIO (25 anos) OFICIAIS DE TODAS AS PATENTES Atualidade.
ATO ÚNICO Praça. — Dia. — Ao subir o pano, a cena está vazia. — Ouve-se fora grande barulho de vivas e o estalar de foguetinhos da China.
CENA I UMA VOZ Viva o capitão Manduca! MUITAS VOZES Viva! VOZ Viva o heroico tenente Sinfrônio das Chagas! MUITAS VOZES Viva!
VOZ Viva o tenente coronel Gregório Pereira! MUITAS VOZES Viva! VOZ Viva a heroica guarda nacional! MUITAS VOZES Viva! VOZ Toque a música!
(Ouve-se uma gaita de foles. — Espocar de foguetinhos. — Grande vivório — O barulho vai se afastando, até perder-se ao longe) CENA II MALAQUIAS (entrando, furioso, da esquerda) Bandalheira! pouca vergonha!... (Olhando pelo bastidor) Andem, deem vivas, aticem foguetes, metam-se no pifão! Melhor rirá quem rir por último!... Pensam vocês que têm a coisa muito segura!... Pois estão enganados!... Todas as nomeações hão de ser anuladas!... (Descendo) Depois, quando um homem vira casaca, é sem vergonha, é canalha, não tem caráter!... Pois olhem que eu agora tinha razão de sobra para virar casaca!... Calculem que deram patentes da guarda nacional a todo mundo, menos a mim, — a mim, que tantos serviços tenho prestado ao meu partido!... O Sinfrônio é tenente... Ora, o Sinfrônio!... Os senhores conhecem o Sinfrônio?... Um pulha! Quando encontrarem um pulha aí na rua, é o Sinfrônio! O Manduca é capitão, o Chico é o diabo que o carregue!... Todos receberam uma patente: só eu fiquei no tinteiro!... Isto é um desaforo, uma pouca vergonha!... Mas toda esta patifaria há de ser anulada!... Chegaram a promover a alferes cidadãos que já eram tenentes, e a fazer capitães a três ou quatro defuntos... Não leram o “Diário Oficial”? Pois leiam, leiam, e depois conversem comigo! E o que mais me incomoda não é só a grande injustiça que me fizeram atirando-me para o canto. Quando me lembro que com esta chuva de galões, a Mariquinhas é capaz de apaixonar-se por algum deles... tenho ímpetos... tenho ímpetos de arranjar uma metralhadora e mandar todos para o inferno! (Pausa) Foram todos fardar-se para o exercício... Mas que exercício vão eles faze, sem soldados?... Não há um único soldado!... Se se procurar um soldado da guarda nacional para um sinapismo, não se encontra! Todos são oficiais... alferes, tenentes, capitães, majores, tenentes-coronéis e coronéis... Se houvesse marechais na guarda nacional, todo mundo era marechal!... Mas também juro desde já que se a Mariquinhas der-me “gola” por causa de algum desses bonecos agaloados, perco a cabeça e faço uma asneira!... Furo-a com o primeiro ferro que encontrar!... Pouco me importa a cadeia! Perdido por um, perdido por mil!... (Começa a passear, gesticulando) CENA III Malaquias e Mariquinhas. MARIQUINHAS (vai atravessar a cena da direita para a esquerda, mas vê Malaquias a gesticular para o público, e desce) Ah! O que é que está fazendo, Malaquias? MALAQUIAS (suspende a gesticulação, mede-a de alto a baixo, enterra o chapéu na cabeça, mete, furioso, as mãos nos bolsos, e começa a passear) Cebolório! MARIQUINHAS (muito admirada, à parte) O que terá ele? MALAQUIAS (parando diante de Mariquinhas) Onde vai a senhora? MARIQUINHAS Vou à missa do dia. Pois não se lembra que o convidei ontem para ir também? MALAQUIAS A mim?... Está enganada, minha senhora. Talvez convidasse a algum tenentezinho de meia tigela. A mim, não! MARIQUINHAS Estou estranhando os seus modos, Malaquias... O que é que o senhor tem? MALAQUIAS O que tenho? Quer que lhe diga o que tenho? MARIQUINHAS Se lhe pergunto... MALAQUIAS (dando-lhe as costas) Não tenho nada! MARIQUINHAS (suplicante) Malaquias!... MALAQUIAS Eu não sou mais o Malaquias! Sou uma bomba, uma granada, um obus! Quando eu rebentar, então saberão para quanto presto! MARIQUINHAS Mas por que está tão zangado?... Sou, por acaso, culpada de alguma coisa?... O que fiz eu? (Com voz de choro) Diga... MALAQUIAS (para um momento a olhá-la, vai a ela e toma-lhe as mãos) Perdoa-me, Mariquinhas! Mas se soubesses a injustiça que me fizeram... MARIQUINHAS Mas que injustiça?
MALAQUIAS Pois não sabes? MARIQUINHAS Não sei nada. MALAQUIAS Eu te conto. Mas hás de guardar segredo. MARIQUINHAS Prometo. MALAQUIAS Teu pai procedeu para comigo, como não se procede com um moleque... MARIQUINHAS Como? MALAQUIAS Lembras-te quando houve uma reunião em tua casa para tratar-se da escolha das pessoas que deviam ser propostas para oficiais da guarda nacional? MARIQUINHAS Lembro-me... Por sinal que houve uma discussão calorosa, e que tu quiseste brigar com o Sinfrônio... MALAQUIAS (exaltado) Não me fales nesse homem!... Odeio-o, detesto-o... tenho ganas de matá-lo!... MARIQUINHAS Mas, meu Deus! Por quê? MALAQUIAS Porque teu pai prefere-o a mim, porque quer que ele case contigo!... Um pulha, o Sinfrônio!... Pedante como ele só e burro como uma porta! MARIQUINHAS Mas não é a ti que eu amo? Que te importa o resto?... MALAQUIAS Mariquinhas... Mariquinhas... juras amar-me sempre? MARIQUINHAS Mas não é preciso jurar... Creio que te tenho dado bastantes provas de que só a ti amo... MALAQUIAS É certo... Mas o que queres? Tenho ciúmes de todos... Quando me lembro que podes esquecer-me para atenderes à vontade de teu pai, tenho vertigens!... Teu pai não é um homem, Mariquinhas! MARIQUINHAS (admirada) Não é um homem? O que é então? MALAQUIAS É... é um tirano da escola antiga! MARIQUINHAS Mas estavas falando da reunião para escolha de oficiais, e mudaste de conversa... MALAQUIAS Mudei, porque falaste no nome daquele trampolineiro! (Pausa) Pois nessa reunião ficou assentado que eu seria proposto para tenente da segunda companhia do batalhão de que teu pai é comandante... MARIQUINHAS Lembro-me perfeitamente. E não foste?
MALAQUIAS Riscaram meu nome da proposta, e meteram o nome do Sinfrônio!... Um pulha! Vê aí o dedo de teu pai, a preferência que ele tem pelo Sinfrônio! MARIQUINHAS Pois o Sinfrônio já é tenente? MALAQUIAS (zangado) Pois o Sinfrônio já é tenente!... Estás muito contente, não? Parece que não é só teu pai que tem preferência pelo Sinfrônio!... MARIQUINHAS Eu não disse isso, Malaquias! MALAQUIAS Não dizes, mas pensas!... Pois vai... vai... agarra-te ao Sinfrônio, que levas um bom canalha!... MARIQUINHAS (quase chorando) Oh! meu Deus!... que homem! MALAQUIAS (acalmando-se) Perdoa-me, Mariquinhas. Mas eu estou, que nem sei o que digo! MARIQUINHAS Eu te amo, Malaquias, e deves ter confiança no meu amor... MALAQUIAS Tenho... tenho... mas o maldito ciúme põe-me quase louco! MARIQUINHAS Mas eu ainda não te dei motivo para teres ciúme... MALAQUIAS Mariquinhas...
(Repique de sino, fora) MARIQUINHAS Vou-me embora... Já está tocando a terceira vez para a missa. MALAQUIAS Adeus... Ama-me sempre, sim? MARIQUINHAS Sempre. Adeus. MALAQUIAS Durante a missa, pede a Deus que proteja o nosso amor, ouviste? MARIQUINHAS E por que não vais também à missa? MALAQUIAS Não vou... Sinto-me incomodado... nervoso... Adeus, e pensa sempre em mim. MARIQUINHAS Adeus!
(Apertam-se as mãos. — Sai pela esquerda) CENA IV MALAQUIAS (depois de acompanhá-la com a vista) Vai... vai... Pensas que me fio nos teus juramentos?... Era preciso que eu fosse uma besta! (Desce) É impossível que eu não toma uma gola!. O Sinfrônio é tenente, e eu nem cabo de esquadra sou... o pai dela gosta mais do Sinfrônio do que de mim... A prova está na bandalheira que fez riscando o meu nome da proposta... (Reparando) Mas aí vêm justamente os dois canalhas. Não quero encontrar-me com eles... Pode o sangue subir-me à cabeça, e eu ponho-os em gravetos!...
(Sai pela esquerda. — Entram pela direita Gregório e Sinfrônio, fardados) CENA V Gregório e Sinfrônio. GREGÓRIO Eu bem lhe dizia que se fiasse na minha influência... SINFRÔNIO Influência ilimitada, tenente coronel. GREGÓRIO O que eu quero, e o que se faz. SINFRÔNIO Pois eu, mais uma vez, lhe agradeço a proteção que me dispensou, comandante. O Malaquias é que há de estar bufando com a história! GREGÓRIO Ora! Quem é que faz caso daquilo... Um tipo que não serve para coisa nenhuma querendo também impor-se, como se fosse gente! SINFRÔNIO Lá isso é verdade... Vive a dizer que é um homem cheio de serviços ao partido... que tem feito... que tem acontecido... que... GREGÓRIO Língua só. No mais, não vale nada. Ter a petulância de andar arrastando a asa à Mariquinhas!... Como se eu fosse dar a pequena a um pandilha daquela laia! SINFRÔNIO É exato. Só mesmo se o comandante estivesse maluco, podia dá-la ao Malaquias. GREGÓRIO (intencional) Nada... não me serve aquilo para genro... Quero um rapaz atirado, elegante, espirituoso, e que pelo menos seja tenente. SINFRÔNIO (à parte) Aquilo é comigo, e eu pego!... (Alto) Tem toda a razão, comandante. Um tenente já é alguma coisa... GREGÓRIO (à parte) O marreco entendeu! (Alto) Sem dúvidas. Com a minha proteção, o tenente de hoje será amanhã capitão, depois de amanhã major, depois tenente coronel... O meu amigo já sabe que a minha influência serve para alguma coisa... SINFRÔNIO Perfeitamente. (À parte) La vai uma bomba! (Alto) Meu ilustre comandante, há muitos dias já que ando para tocar-lhe em um assunto de suma importância; mas, por diversas circunstâncias alheias à minha vontade, não pude ainda fazê-lo. O lugar agora não é próprio, mas quero aproveitar a ocasião, antes que ela mais uma vez me fuja... GREGÓRIO (à parte) Vai falar-me na pequena: chegou ao rego! (Alto) Então que negócio tão grave é esse? SINFRÔNIO Comandante, há bastante tempo que eu amo... GREGÓRIO É natural. Moço, solteiro, bonito... SINFRÔNIO E amo perdidamente... perdidamente...
GREGÓRIO E por que não tem casado? SINFRÔNIO Ah! porque, desgraçadamente, a moça a quem adoro, não me ama... GREGÓRIO Homem, essa agora!... Não acredito! SINFRÔNIO Pois é a pura verdade, comandante... GREGÓRIO E quem é essa moça?... Por acaso quererá ela algum príncipe para marido?... SINFRÔNIO A moça é... é sua filha, comandante... GREGÓRIO (à parte) Finjamos surpresa. (Alto) A Mariquinhas?... SINFRÔNIO Sim. Tenho empregado todos os meios para fazer com que ela me ame, mas inutilmente. A sua atenção esta toda voltada para o Malaquias, e nem sequer repara no meu sofrimento! (Trágico) Novo Sísifo, rolo sem descanso a pedra enorme do meu tormento da base do meu amor ao cume da minha paixão, de onde para logo ela torna a cair nas profundezas imensas dos abismos insondáveis da minha saudade! GREGÓRIO Meu amigo, quer que lhe diga uma coisa?... A Mariquinhas pode casar com o diabo, porque ninguém sabe para o que está no mundo; mas com o Malaquias não casa ela! Daqui a pouco vou mandar chamá-lo para dar-lhe um desengano redondo... O Malaquias!... Pois aquele pífio não se enxerga!... Para aquele traste todos são pulhas; no entretanto, não conheço ninguém mais pulha do que ele!. SINFRÔNIO Um pulha de primeira força!... E medroso como ninguém! GREGÓRIO É o que lhe digo. Com o Malaquias a Mariquinhas não casa. Pode ele casar com o diabo que o carregue, mas a Mariquinhas, nunca! SINFRÔNIO (apertando-lhe a mão) Ah! comandante, nem pode calcular a felicidade que me dão as suas palavras!... Sísifo desapareceu... quem está na sua presença é Jove triunfante!... GREGÓRIO Quem é esse Jove?... Se é gente que pague a pena, pergunte-lhe se quer ser alferes do meu batalhão... SINFRÔNIO Comandante, Júpiter... Júpiter ou Jove... GREGÓRIO (sem o atender) A filha do Gregório Pereira, tenente coronel, comandante de um batalhão de guardas nacionais, alferes honorário do exército, cavaleiro da ordem da Rosa, condecorado com a medalha da campanha do Paraguai, casar com o Malaquias Lagartixa, um tipo, um traste, um pulha, que nem cabo de esquadra é!... Nunca! SINFRÔNIO Desengane-o, comandante. É preciso dar uma lição àquele biltre! GREGÓRIO Sem dúvida! Vou pôr os pingos nos “ises!”... O que mais me admira não é o Malaquias querer casar com a Mariquinhas; é a Mariquinhas querer casar com o Malaquias!... Nunca fui tirano, mas creio que desta vez hei de ser um Nero! Se for preciso, mando prendê-lo!
SINFRÔNIO Por certo. Oito ou dez dias de solitária hão de arrefecer-lhe os entusiasmos matrimoniais! Comandante, coloco o meu amor sob a sua proteção. GREGÓRIO Deixe estar. Fie-se em mim, e deixe o marfim correr. SINFRÔNIO Estou perfeitamente sossegado. GREGÓRIO Ora, o Malaquias! O Malaquias é tolo! SINFRÔNIO E petulante também, porque é uma petulância dele querer casar com a filha do tenente-coronel Gregório Pereira! GREGÓRIO Boa dúvida! SINFRÔNIO Bem. Vou aqui adiante e volto já. GREGÓRIO Mas não se demore. Olhe que o exercício está marcado para as onze horas em ponto. SINFRÔNIO Não me demoro, comandante. Até já. GREGÓRIO Se encontrar por aí o Malaquias, mande-o cá. SINFRÔNIO Muito bem. (Sai pela esquerda)
CENA VI
GREGÓRIO (depois de um momento de reflexão) Mas se eu desenganar o Malaquias, quem é que há de ser o instrutor do meu batalhão... Aqui, diga-se a verdade, o único animal que entende alguma coisa de manobras é ele. Eu não pesco patavina... O Sinfrônio... nesse não se fala: é uma besta!... (Pausa) Ah! tenho um meio. Digo-lhe que foi o governo que o riscou da proposta, prometo fazê-lo oficial na primeira vaga e peço-lhe para instruir os rapazes... Ele cai como um tolo, e eu estou feito. Se falar-me na pequena, doulhe esperanças... O que menos custa é dar esperanças (Pausa) Realmente, foi uma bandalheira que eu fiz, riscando o nome do Malaquias, depois de lhe ter garantido a nomeação, e metendo o nome do Sinfrônio... Foi uma patifaria, foi... Mas a mãe do Sinfrônio pediu-me tanto, que eu não tive outro remédio... Além disso, como estampa, o Sinfrônio é muito superior ao Malaquias! CENA VII Gregório e Malaquias. MALAQUIAS (atravessando da esquerda para a direita) Maus raios partam a todos eles... Canalha! GREGÓRIO Oh! Malaquias, onde vai tão zangado? MALAQUIAS Deixe-me, senhor! deixe-me! GREGÓRIO Venha cá, homem! (Segura-lhe o braço) Por que é que já não aparece lá em casa?... Quem foi que matou o seu cachorrinho?... MALAQUIAS (à parte)
Este canalha quer fazer-me alguma tratantada... Olho vivo! GREGÓRIO Então não diz nada?... MALAQUIAS O senhor deve sabê-lo muito melhor do que eu. GREGÓRIO (fingindo-se admirado) Como? MALAQUIAS O que foi que me fizeram em sua casa?... Fica assentado que eu seria proposto para tenente da 2ª Companhia, e no entretanto riscam o meu nome e metem o do Sinfrônio! GREGÓRIO Não sei... A minha proposta seguiu tal qual tinha sido combinado. A substituição foi feita pelo governo. Dei o cavaco, porque, realmente, foi péssima a escolha do Sinfrônio... Aquilo é um traste! MALAQUIAS É um pulha! GREGÓRIO O Sinfrônio é um tipão, um ignorante, um tolo! Você nem se compara com ele... Você está a par de todas as manobras. É um rapaz atirado, talentoso e elegante. (À parte) É preciso afagar-lhe o amor próprio. MALAQUIAS Então não foi o senhor que riscou o meu nome? GREGÓRIO Eu não! Nem você devia formar tão mau juízo de mim. Substituir o seu nome pelo do Sinfrônio! Isso foi um canalhismo que me pôs furioso!... Mas garanto-lhe que dentro em poucos dias hei de fazê-lo capitão, ou eu não serei mais o tenente coronel Gregório Pereira! MALAQUIAS Promete? GREGÓRIO (à parte) Prometer não custa. (Alto) Sem dúvida. Pode até mandar fazer a farda e pregar-lhe as batatas... Isto são favas contadas. MALAQUIAS E... e... GREGÓRIO E... o quê?... MALAQUIAS Sim... quero dizer... não sei se me faço compreender. GREGÓRIO (à parte) Já te entendo. (Alto, insinuante) E não fui eu só que dei o cavaco com a substituição do seu nome... Houve mais alguém que... MALAQUIAS (alegre) O que me diz, tenente-coronel? GREGÓRIO Isto mesmo. Se eu esbravejava para um lado, essa pessoa gritava para o outro. Chegou a chorar, meu amigo, chegou a chorar!... Não lhe digo o nome dessa pessoa, mas o caso é certo. MALAQUIAS (desconfiado) Mas, comandante, essa pessoa ignorava até há pouco que eu tivesse sido preterido... GREGÓRIO (à parte) Apanhou-me! (Alto) Quem lhe disse?
MALAQUIAS Ela mesma, aqui. GREGÓRIO (à parte) Falaram-se... MALAQUIAS De modo que não sei em quem deva acreditar: se nela, se no comandante... GREGÓRIO (atrapalhado) Em mim, meu amigo... em mim... Eu lhe explico o negócio... A Mariquinhas... quero dizer... essa pessoa... disse-lhe... jurou talvez que ignorava tudo, para não aumentar o seu desgosto... sim... porque... MALAQUIAS Pode ser... GREGÓRIO É certo... (Outro tom) É verdade: tenho um pedido a fazer-lhe, e espero que não deixe de atender-me. MALAQUIAS Tudo quanto quiser, comandante. (À parte) Ela chorou!... Ai! Mariquinhas!... GREGÓRIO Hoje, às 11 horas, temos de fazer um pequeno exercício, e estou apertado... MALAQUIAS Por quê? GREGÓRIO Porque não tenho um instrutor.
MALAQUIAS (intencional) Tem o Sinfrônio. GREGÓRIO Ora! Aquilo é uma besta! Se o Sinfrônio cair de quatro pés, não se levanta mais, aposto! Nada: o Sinfrônio não serve. Você, que entende a léguas do riscado, é que podia... MALAQUIAS Garante-me a patente de capitão? GREGÓRIO Pois não. Garanto. MALAQUIAS E não se opõe... GREGÓRIO (à parte) Aí vem outra vez a Mariquinhas... (Alto) Opor-me... a quê?... Não me oponho a coisa nenhuma... MALAQUIAS Então, estou pronto. Mande reunir a tropilha e disponha de mim. GREGÓRIO Vou mandar já. Quero vê-lo fazer brilhanturas... O Malaquias! o capitão Malaquias é um herói!... Modéstia à parte, meu amigo: você é um bravo! MALAQUIAS O comandante confunde-me... GREGÓRIO (saindo juntos pela direita) Acredite: você é um bravo, um herói, um novo Carlos Magno!
CENA VIII Sinfrônio e Mariquinhas.
SINFRÔNIO (entrando da esquerda, ao lado de Mariquinhas) Mas D. Mariquinhas, a senhora não tem coração! MARIQUINHAS (incomodada) Deveras? SINFRÔNIO Há tanto tempo que a amo, que a adoro, que deliro pela senhora!... MARIQUINHAS Está muito poético hoje! Onde foi aprender isso? No “Mensageiro dos amantes”? SINFRÔNIO (dramático) Cruel! alma de gelo!... Vê que me consumo lentamente, horrorosamente, queimado pelas chamas abrasadas deste amor ardentíssimo, louco, fatal, imenso, e nem ao menos comove-se aos meus lamentos, às minhas súplicas, às minhas lágrimas!... Cruel! mil vezes cruel!... MARIQUINHAS (resoluta) Quer que lhe diga uma coisa? SINFRÔNIO Cem coisas, coração de pedra! MARIQUINHAS O senhor já está passando a ser aborrecido! SINFRÔNIO (trágico) Oh! tempestades do céu! oh! espíritos celestes!... Aborrecido, eu! MARIQUINHAS Não é aborrecido?
SINFRÔNIO Nunca! oh! nunca! MARIQUINHAS Então é ridículo! SINFRÔNIO Ridículo!... Ah! “Senhor, Deus dos desgraçados! onde estás tu, Senhor Deus!” MARIQUINHAS Isso é roubado! Diga coisa sua. SINFRÔNIO Isto é meu! MARIQUINHAS Não é! SINFRÔNIO É meu! é meu! é meu!... Ora aí tem! MARIQUINHAS Não é! não é! não é! Ora, aí está. Deixe-se de ser prosa. É de Castro Alves. (Outro tom) Já lhe tenho dito cem vezes que é inútil estar a perseguir-me com as suas declarações de amor. Eu não o amei, não o amo, nem nunca hei de amá-lo. Procure outra, e não me aborreça!... SINFRÔNIO E por que é que não me ama? MARIQUINHAS Porque não quero! SINFRÔNIO E por que é que não quer? MARIQUINHAS Porque não gosto da sua cara! SINFRÔNIO E por que é que não gosta da minha cara? MARIQUINHAS Porque... porque... Quer que lhe diga? SINFRÔNIO Diga, sim, diga! MARIQUINHAS Porque o senhor é um tolo! SINFRÔNIO (recuando) Um tolo, eu! Eu um tenente da guarda nacional!... MARIQUINHAS Podia até ser general! Nem por isso deixava de ter cara de tolo! SINFRÔNIO Ah! potestades do céu! ah! espíritos celestes! MARIQUINHAS Esse pedacinho também não é seu. Já o disse duas vezes sem citar o nome do autor. SINFRÔNIO Ah! não me ama!... não gosta da minha cara! diz que sou tolo!... Eu sei porque é tudo isto!... MARIQUINHAS Por que é?... Pode dizer.
SINFRÔNIO É por causa do patife do Malaquias!... MARIQUINHAS (espinhando-se) Alto lá!... O Malaquias nada lhe deve, entende?... Gosto dele, e não consinto que diga a mais pequena coisa a seu respeito!... SINFRÔNIO Hei de fazer-lhes as contas, deixe estar! MARIQUINHAS Ora, o Malaquias faz muito caso das suas contas! SINFRÔNIO Mas há de fazer das de seu pai, que não quer vê-lo nem pintado e que ainda há pouco me garantiu que a senhora havia de casar comigo! Par lá vamos... para lá vamos... MARIQUINHAS Meu pai disse isso? SINFRÔNIO Disse, sim, ainda não há meia hora, aqui mesmo. MARIQUINHAS Pois vá se fiando nas garantias de meu pai, e não corra. SINFRÔNIO Como? MARIQUINHAS Hei de casar com o Malaquias, hei de casar, hei de casar, e hei de casar!... E adeusinho! (Sobe e volta-se) Tolo! tolo! tolo! (Sai pela direita)
CENA IX SINFRÔNIO (trágico) Tolo!... Ah! inferno e céu! anjos e demônios! Chamar-me tolo mesmo nas bochechas!... Insultar em mim toda a denodada classe dos tenentes da guarda nacional!... Um insulto destes não pode ficar impune!... Ah! mas quem vai pagar-me com língua de palmo é o Malaquias!... Hei de torcer-lhe o pescoço, como se faz a um frango!... Ah! potestades do céu! ah! espíritos celestes! anjos e demônios!... Vou procurá-lo!... (Sobe) CENA X Sinfrônio e Malaquias. MALAQUIAS (entrando da direita) Está decidido: a Mariquinhas é minha. SINFRÔNIO Uma palavra, cavalheiro. MALAQUIAS O que deseja? SINFRÔNIO Desejo que me dê uma palavra. MALAQUIAS Pois fale de uma vez, porque tenho pressa. SINFRÔNIO Quero que me explique a razão porque anda namorando a Mariquinhas. MALAQUIAS (avançando) Oh! “seu” cachorro! SINFRÔNIO (recuando) Não se chegue!
MALAQUIAS Pois eu tenho que dar-lhe satisfações, “seu” patife! SINFRÔNIO O senhor insulta-me! MALAQUIAS Quem é você para me fazer perguntas dessas? SINFRÔNIO Veja que sou um tenente! MALAQUIAS Se pensa que me assusta com os seus galões, está muito enganado! SINFRÔNIO Veja o que diz!... Eu mato-o!... MALAQUIAS (segurando-o pela gola) Pois mata, pulha de uma figa! mata! SINFRÔNIO (forcejando) Oh! “seu” Malaquias... largue-me... Olha que me machuca o colarinho... Estou quase sufocado... Deixe-me, pelo amor de Deus... (Toque de corneta) Largue-me... Já está tocando chamada. MALAQUIAS Fica sabendo que se continuares com pretensões a mão da Mariquinhas, dou-te uma sova que te ponho em panos de vinagre!... (Dando-lhe um pontapé) Vai-te embora, tenente de... daquilo!... SINFRÔNIO (correndo para o fundo) Atrevido! Havemos de nos encontrar! Agora não, porque vou para o exercício... mas amanhã ou em outro qualquer dia... A Mariquinhas há de ser minha mulher!
MALAQUIAS (subindo) Vem cá, poltrão!... (Sinfrônio foge. — Seguindo-o, a gritar) Pulha! pulha! pulha! CENA XI MARIQUINHAS (entrando da direito) Que barulho foi este aqui?... Pareceu-me ouvir as vozes do Malaquias e do Sinfrônio... (Pausa) Felizmente, já desenganei aquele tolo! Mas o pancada é teimoso como um burro!... (Rumor dentro: foguetes, vivas) Que rumor é este?... (Reparando pela direita) Ah! é o exercício... Apreciemos isto, que deve ser divertido. (Vai para o fundo) CENA XII Mariquinhas, Malaquias, Gregório, Sinfrônio, oficiais. (Todos fardados. Gregório com as insígnias de tenente coronel; Sinfrônio com as de tenente; os outros com as de alferes, tenentes, capitães e majores. — Todos trazem espadas ao ombro, como se fossem espingardas. — Entram marchando sob o comando de Malaquias, que está fardado de soldado e traz um cassete à guisa de espingarda. — Todos trazem chapéus de diferentes feitios e cores, menos Gregório e Sinfrônio, que trazem bonés) MALAQUIAS Alto! (Todos param. — A Gregório) Comandante, proíba ao senhor Sinfrônio que levante tanto a cabeça em forma. Isto é ridículo! GREGÓRIO Mas, senhor instrutor, isto é uma prova de entusiasmo. MALAQUIAS Qual entusiasmo! É ridículo! SINFRÔNIO Ridículo!... O termo é duro...
MALAQUIAS Senhor tenente, guarda a viola no saco e não meta o nariz onde não é chamado. SINFRÔNIO Senhor Malaquias! MALAQUIAS Silêncio, ou prendo-o imediatamente! GREGÓRIO Oh! Sr. instrutor, repare que o Sr. Sinfrônio é um tenente. MALAQUIAS É um tenente que não sabe nada, e que está aqui recebendo as minhas lições, como vossa senhoria. GREGÓRIO Basta! basta! Já não está aqui quem falou... SINFRÔNIO (trágico) Eu me contenho... porque me contenho!... MALAQUIAS Silêncio na fileira! Sentido! Olhar frente! GREGÓRIO Oh! “seu” Malaquias. MALAQUIAS O que deseja? GREGÓRIO Olhe que isso de olhar frente parece-me uma asneira. MALAQUIAS Por quê? GREGÓRIO Porque ninguém tem olhos atrás... MALAQUIAS Ora, comandante, que o tenente Sinfrônio dissesse essa asneira, estava no seu papel; mas o senhor! SINFRÔNIO O que é diz?... MALAQUIAS Silêncio na fileira!... Esquerda volver! (Fazem) SINFRÔNIO (volvendo a direita) Ora, bolas! MALAQUIAS (zangado) Primeira forma! primeira forma!... (Fazem. — A Sinfrônio) Oh! “seu” tenente, qual é a sua mão direita? SINFRÔNIO (mostrando) É esta. MALAQUIAS E a esquerda? SINFRÔNIO (zangado) Ora, pílulas!... É esta. MALAQUIAS Então como é que errou a manobra? SINFRÔNIO Basta, senhor!
MALAQUIAS Silêncio na fileira! Marcar passo!
(Fazem) SINFRÔNIO Que amolação! GREGÓRIO Que cacetada! MALAQUIAS Silêncio na fileira!... Comandante, se tornar a abrir o bico, mando prendê-lo! GREGÓRIO Basta! basta! Já não está aqui quem falou! MALAQUIAS Esquerda volver! (Fazem) Ordinário, marche! (Fazem) Em frente, alto! (Fazem) Marcar passo! (Fazem) Meia volta, alto! (Fazem) Acelerado, marche! (Fazem) Alto! (Fazem) A dois formar! (Fazem) Direita volver! (Fazem) Ordinário, marche! (Fazem) Alto! (Fazem) Meia volta! Alto! (Fazem) Descansar! SINFRÔNIO (sentando-se no chão) Vou descansar! (Cruza as pernas) MALAQUIAS Oh! “seu” pandorga, então descansa sentado? (À parte) Hei de descompor este pulha! SINFRÔNIO (erguendo-se) O senhor mandou descansar, e eu, como não tinha cadeira, senteime no chão... MARIQUINHAS (ao fundo à parte)
Que tolo, meu Deus! MALAQUIAS Fora de forma!
(Debandam, formando grupos) GREGÓRIO (a Malaquias) O que diz dos seus discípulos? MALAQUIAS Assim, assim... Com franqueza, tenente coronel, não são tão estúpidos como parecem... GREGÓRIO (andando nos calcanhares e vendo a filha ao fundo) Oh! filha, estavas aí? MARIQUINHAS (descendo) É verdade: não pude resistir ao desejo de ver o exercício... GREGÓRIO E gostaste? MARIQUINHAS Muito. O Sr. Malaquias comanda como um general. Quando todos estiverem perfeitamente ensinados, hão de apresentar-se de modo a causar pasmo. SINFRÔNIO (à parte, trágico) Está elogiando o patife!... Ah! céu e inferno! anjos e... (Aproximandose do grupo, secamente) Então, gostou das manobras? MARIQUINHAS Gostei de todos... menos do senhor. SINFRÔNIO Menos de mim? Por quê?...
MARIQUINHAS Porque o senhor faz tudo ao contrário. MALAQUIAS (à parte) Toma lá, pulha! SINFRÔNIO (levando Gregório à parte) Comandante, exijo imediatamente o cumprimento da sua palavra. GREGÓRIO Que palavra, homem? SINFRÔNIO O meu casamento com sua filha. GREGÓRIO Oh! tenente... mas um matrimônio, assim, no meio da rua!...
(Conversam) MALAQUIAS (à Mariquinhas) Obrigado pela lição que acaba de dar-lhe. MARIQUINHAS Está contente? MALAQUIAS A senhora é um anjo!
(Conversam) SINFRÔNIO Vamos, comandante, decida-se. GREGÓRIO Mas isto é o diabo...
(Conversam) MALAQUIAS (à Mariquinhas) O que estarão eles conversando? MARIQUINHAS Aposto que é a meu respeito. Mas não tenha receio. MALAQUIAS Confio na senhora. GREGÓRIO (indo à filha) Menina, o tenente Sinfrônio acaba de fazer-me um pedido... MARIQUINHAS Já sei. Pode dizer ao tenente Sinfrônio que agradeço a honra, mas que não quero casar-me com ele. SINFRÔNIO (à parte) Com o Lagartixa! (Dando um berro trágico) Ah! GREGÓRIO (muito assustado, escondendo-se atrás de Malaquias) Às armas! às armas!...
(Todos os oficiais, assustados, escondem-se uns atrás dos outros) MALAQUIAS (rindo) Não tenham medo, meus senhores. Foi o tenente Sinfrônio que deu um berro! SINFRÔNIO (trágico) Um berro! GREGÓRIO (com ares de valentão) Eu logo vi! Tanto que não mudei de posição! MALAQUIAS (à parte)
Que pulhas! GREGÓRIO (à filha) Mas, menina... MARIQUINHAS Tenho dito. Quero casar-me, e hei de casar-me com o Sr. Malaquias, e já o previno, meu pai, que se quiser obrigar-me, fujo de casa. GREGÓRIO (benzendo-se) Padre, Filho, Espírito Santo... (A Sinfrônio) Está ouvindo, “seu” Sinfrônio? SINFRÔNIO (trágico, adiantando-se) Fúrias do Averno, gênios maléficos das trevas, vinde em meu auxílio!... Caia muito embora por terra essa esperança que me alimentava a alma, que me enchia o coração de chamas, que me povoava o cérebro de risonhas imagens... eu serei invulnerável como Aquiles, imortal como os deuses, para persegui-los como um flagelo eterno, como a febre amarela, como o cólera-morbo! MARIQUINHAS Isso é bonito, mas não é seu. (A Malaquias) Meu noivo, aqui tem a minha mão. MALAQUIAS (apertando-lhe a mão) Obrigado! SINFRÔNIO (trágico) Ah! Satanás, filho da... MALAQUIAS Sentido! (Todos entram em forma) Firma!... Olhar frente!... Direita volver! (Fazem) Ordinário, marche! (Fazem) Alto! (Fazem) Tirar misturadas! (Enfia o chapéu no cacete)
TODOS (tirando os chapéus e curvando-se, em atitude de quem cumprimenta, aos espectadores) Boa noite! Como passaram?...
Horácio Nunes
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