Biblio VT
Livro VIII
Mítia
I
Kuzmá Samsónov Dimítri Fiódorovitch, a quem Grúchenhka, ao voar para uma vida nova, fizera transmitir seu derradeiro adeus, querendo que ele se lembrasse por toda a vida duma hora de amor, estava naquele momento às voltas com as piores dificuldades. Como ele mesmo o disse mais tarde, poderia ter sofrido uma congestão cerebral naqueles dois últimos dias, no estado em que se encontrava. Aliócha não pudera descobri-lo na véspera e não fora ele ao encontro marcado por Ivan no botequim. Seus locadores mantiveram silêncio, de conformidade com suas instruções. Durante aqueles dois dias, esteve literalmente em apertos, “lutando com seu destino para salvar-se”, segundo sua expressão. Ausentou-se mesmo algumas horas da cidade para um negócio urgente, malgrado seu temor de deixar Grúchenhka sem vigilância. O inquérito ulterior precisou o emprego de seu tempo da maneira mais formal; limitar-nos-emos a notar os fatos essenciais nos dois dias que precederam a catástrofe que se abateu sobre ele.
Se bem que Grúchenhka o tivesse amado durante uma hora, ela o atormentava por vezes impiedosamente. A princípio, nada podia ele conhecer de suas intenções; era impossível penetrá-las pela doçura ou pela violência. Ter-se-ia zangado e desviado dele completamente. Tinha ele a intuição de que ela se debatia na incerteza, sem poder decidir-se; de modo que pensava ele, não sem razão, que devia ela por vezes detestá-lo, a ele e à sua paixão. Tal era talvez o caso, mas não podia compreender exatamente o que causava a ansiedade de Grúchenhka. Na verdade, toda a questão que o atormentava se resumia numa alternativa: ele, Mítia, ou Fiódor Pávlovitch. Aqui é preciso notar um fato certo; estava persuadido de que Fiódor Pávlovitch não deixaria de oferecer a Grúchenhka sua mão (se já não o fizera), e não acreditava um instante sequer que o velho libertino esperasse arranjar tudo com três mil rublos. Assim raciocinava Mítia, conhecendo Grúchenhka e seu caráter. Eis por que podia parecer-lhe por vezes que o tormento de Grúchenhka e sua indecisão provinham unicamente do fato de não saber ela qual escolher, ignorando qual dos dois lhe traria mais vantagem. Quanto ao próximo regresso do oficial, do homem que desempenhara um papel fatal em sua vida e cuja chegada esperava ela com tanta emoção e terror — coisa estranha, não pensava ele nisso absolutamente. É verdade que Grúchenhka mantivera silêncio a respeito naqueles últimos dias. No entanto, sabia ele da carta recebida um mês antes e conhecia mesmo uma parte do conteúdo. Grúchenhka a havia então mostrado num momento de irritação, sem que ele ligasse importância àquilo, o que a surpreendeu. Teria sido difícil explicar por quê; talvez simplesmente porque, acabrunhado por sua funesta rivalidade com o pai, nada pudesse imaginar de mais perigoso naquele momento. Não acreditava num noivo surgido não se sabia donde, após cinco anos de ausência, nem em sua próxima chegada, anunciada aliás em termos vagos. A carta era nebulosa, enfática, sentimental, e Grúchenhka lhe dissimulara as derradeiras linhas, que falavam mais claramente de retorno. Mais ainda, Mítia lembrou-se posteriormente do ar de desdém de Grúchenhka por aquela mensagem vinda da Sibéria. Limitou a isso suas confidências a respeito daquele novo rival, de sorte que pouco a pouco esqueceu ele o oficial. Pensava somente que, em todo caso, um conflito com Fiódor Pávlovitch estava iminente e devia ter seu desenlace em primeiro lugar. Cheio de ansiedade, esperava a cada instante a decisão de Grúchenhka e acreditava que ela viria bruscamente, por inspiração. Se ela fosse dizer-lhe: “Toma-me, sou tua para sempre”, estaria tudo terminado; levá-la-ia consigo para o mais longe possível, senão mesmo para o fim do mundo, para o fim da Rússia; casar-se-iam e instalar-se-iam, incognitamente, ignorados de todos. Então começaria uma vida nova, regenerada, virtuosa, com que sonhava ele apaixonadamente. O lamaçal em que se atolara voluntariamente causava-lhe horror e, como muitos em semelhante caso, contava sobretudo com a mudança de ambiente; escapar àquelas pessoas, às circunstâncias, fugir daquele lugar maldito, seria a renovação completa, a existência transformada. Eis no que acreditava e o que o fazia languescer.
Isso unicamente no caso em que a questão seria resolvida felizmente. Havia bem outra solução, outra saída, terrível, porém. Se, de repente, ela lhe dissesse: “Vá, escolhi Fiódor Pávlovitch, casarei com ele, não tenho necessidade de ti.” Então... Oh! Então... Mítia ignorava, aliás, o que aconteceria então, ignorou-o até o derradeiro momento, deve-se lhe fazer essa justiça. Não tinha intenções determinadas, o crime não foi premeditado. Contentava-se com tocaiar, espionar, atormentava-se, mas não encarava senão um desenlace feliz. Repelia mesmo toda e qualquer outra ideia. Era aqui que começava novo tormento, que surgia nova circunstância, acessória, mas fatal e insolúvel.
No caso em que ela dissesse: “Sou tua, leva-me”, como a levaria ele? Onde arranjaria o dinheiro? Precisamente então, as rendas que recebia há anos dos pagamentos regulares de Fiódor Pávlovitch estavam esgotadas. Decerto, Grúchenhka tinha dinheiro, mas Mítia se mostrava a esse respeito dum orgulho violento; queria levá-la e começar uma existência nova com recursos pessoais e não os dela. A ideia mesma de poder recorrer à sua bolsa inspirava-lhe profundo desgosto. Não me estenderei a esse respeito, não o analisarei, limitando-me a anotá-lo; tal era seu estado d’alma naquele momento. Podia isso provir inconscientemente dos remorsos secretos que experimentava por haver-se desonestamente apropriado do dinheiro de Katierina Ivânovna: “Sou um miserável aos olhos de uma, sê-lo-ei de novo aos olhos de outra”, dizia a si mesmo então, como ele próprio o confessou posteriormente. “Se Grúchenhka o souber, não quererá semelhante indivíduo. Portanto, onde encontrar fundos, ou arranjar esse fatal dinheiro? Senão tudo fracassará, por falta de recursos. Que vergonha!”
Sabia talvez onde encontrar esse dinheiro. Não direi mais no momento, porque tudo se esclarecerá, mas explicarei sumariamente em que consistia para ele a pior dificuldade: para arranjar aqueles recursos, para ter o direito de tomá-los, seria preciso em primeiro lugar restituir a Katierina Ivânovna seus três mil rublos, senão “sou um larápio, um canalha, e não quero começar assim uma vida nova”, decidiu Mítia, e resolveu tudo subverter se fosse preciso, mas restituir em primeiro lugar e a qualquer preço aquela soma a Katierina Ivânovna. Deteve-se nessa decisão, por assim dizer, nas derradeiras horas de vida, após sua derradeira entrevista com Aliócha na antevéspera, na estrada. Instruído por seu irmão a respeito da maneira pela qual Grúchenhka insultara sua noiva, reconheceu que era um miserável e rogou-lhe que a informasse disso, “se isso pudesse aliviá-la”. Na mesma noite, sentiu em seu delírio que valia mais “matar e roubar alguém, contanto que restituísse o dinheiro de Kátia”. “Serei um assassino e um ladrão para todo mundo, seja; irei de preferência para a Sibéria e deixar Kátia dizer que roubei seu dinheiro para fugir com Grúchenhka e começar uma vida nova! Isto é impossível!” Assim falava Mítia, rilhando os dentes, e havia motivo para que receasse por momentos uma congestão cerebral. Mas continuava a lutar...
Coisa estranha: dir-se-ia que com semelhante resolução não lhe restava em partilha senão o desespero, porque onde arranjar tal soma, sobretudo um pobretão como ele? Entretanto, esperou até o fim arranjar aqueles três mil rublos, contando que lhe caíssem eles nas mãos duma maneira qualquer, ainda mesmo do céu. É o que acontece àqueles que, como Dimítri, só sabem desperdiçar o patrimônio, sem ter nenhuma ideia da maneira pela qual se adquire o dinheiro. Era uma tempestade em seu crânio desde o encontro com Aliócha, estando todas as suas ideias enredadas. Assim começou ele pela tentativa mais estranha, porque pode dar-se o caso de que, em semelhantes transes, as empresas mais extravagantes pareçam as mais realizáveis a semelhantes pessoas. Resolveu ir encontrar o comerciante Samsónov, protetor de Grúchenhka, e submeter-lhe um plano, segundo o qual ele lhe adiantaria logo a soma desejada. Estava seguro de seu plano do ponto de vista comercial, perguntando a si mesmo somente como acolheria Samsónov sua proposta, se quisesse encará-la doutra maneira. Mítia não conhecia aquele comerciante senão de vista e jamais lhe havia falado. Mas, há muito tempo, tinha a convicção de que aquele velho libertino, cuja vida estava por um fio, não se oporia a que Grúchenhka refizesse a sua, casando-se com um homem seguro, até mesmo desejá-lo-ia e facilitaria as coisas, chegada a ocasião. Por ouvir dizer, ou de acordo com certas palavras de Grúchenhka, concluía igualmente que o velho talvez o preferisse a Fiódor Pávlovitch como marido da jovem. Numerosos leitores acharão talvez cínica a expectativa, de parte de Dimítri Fiódorovitch, de semelhante socorro e a intenção de tirar a noiva das mãos de seu protetor. Posso simplesmente fazer notar que o passado de Grúchenhka parecia definitivamente enterrado aos olhos de Mítia. Pensava nele cheio de misericórdia e decidira com todo o ardor de sua paixão que, desde que Grúchenhka lhe tivesse dito que o amava e ia casar-se com ele, estariam ambos logo regenerados, desembaraçados de seus vícios, não tendo senão virtudes; perdoar-se-iam mutuamente faltas e começariam uma nova existência. Quanto a Kuzmá Samsónov, via nele um homem fatal no passado de Grúchenhka, que não o havia, no entanto, jamais amado, um homem agora “passado”, também ele fora de conta. Não poderia fazer sombra a Mítia aquele velho débil cuja ligação tornara-se paternal por assim dizer, e isso há cerca de um ano. Em todo caso, dava Mítia prova duma grande ingenuidade, porque, com todos os vícios, era um homem bastante ingênuo. Essa ingenuidade persuadia-o de que o velho Kuzmá, a ponto de deixar este mundo, experimentava sincero arrependimento por sua conduta para com Grúchenhka, que não tinha protetor e amigo mais devotado do que aquele velho doravante inofensivo.
No dia seguinte à conversação com Aliócha nos campos, Mítia, que quase não havia dormido, apresentou-se, cerca das dez horas da manhã, em casa de Samsónov e fez-se anunciar. A casa era velha, sombria, espaçosa, de um andar, com dependências e um pavilhão. No rés do chão, moravam os dois filhos dele, casados, uma irmã bastante idosa e a filha. Dois caixeiros, um dos quais tinha numerosa família, ocupavam o pavilhão. Todo aquele mundo necessitava de espaço, enquanto o velho vivia sozinho no primeiro andar, não querendo lá nem mesmo a filha, que cuidava dele e devia subir cada vez que tinha ele necessidade dela, malgrado a asma inveterada. O primeiro andar compunha-se de grandes peças aparatosas, mobiliadas no velho estilo comercial, com intermináveis fileiras de poltronas maciças e de cadeiras de acaju ao longo das paredes, lustres de cristal cobertos de capas e tremós. Essas peças estavam vazias e inabitadas, confinando-se o velho em seu quartinho de dormir lá no fundo, onde o serviam uma velha criada de touca e um rapaz que se mantinha em cima de uma arca no vestíbulo. Quase não podendo mais andar, por causa de suas pernas inchadas, só raramente se levantava da poltrona, sustentado pela velha, para dar uma volta pelo quarto. Mesmo com ela, se mostrava severo e pouco comunicativo. Quando o informaram da chegada do “capitão”, recusou recebê-lo. Mítia insistiu e fez-se anunciar de novo. Kuzmá Samsónov informou-se então do ar do visitante, se tinha bebido ou fazia barulho. “Não — respondeu o rapaz —, mas não quer ir-se embora.” A uma nova recusa, Mítia, que previra o caso e tomara suas precauções, escreveu a lápis: “Para um negócio urgente, a respeito de Agrafiena Alieksándrovna”, e enviou o bilhete ao velho. Depois de ter refletido um instante, ordenou ele que conduzissem o visitante à sala e mandou transmitir ao filho mais moço ordem de subir imediatamente. Esse homem de elevada estatura e duma força hercúlea, que se barbeava e se vestia à europeia (o velho Samsónov usava cafetã e barba) chegou logo. Todos tremiam diante do pai. Ele o mandara chamar não por medo do capitão — não era homem medroso —, mas à toa, mais como uma testemunha. Acompanhado do filho, que o segurara por baixo do braço, e pelo rapaz, arrastou-se até a sala. Deve-se crer que experimentava uma curiosidade bastante viva. A sala em que Mítia estava à espera era imensa e lúgubre, de dois tons, com uma galeria, paredes imitando mármore e três enormes lustres cobertos de capas. Mítia, sentado perto da entrada, esperava impacientemente sua sorte. Quando o velho apareceu na outra extremidade, a dez sajénhi, Mítia levantou-se vivamente e marchou a grandes passos a seu encontro. Estava corretamente trajado, com a sobrecasaca abotoada, o chapéu na mão, com luvas pretas, como na antevéspera no mosteiro, em casa do stáriets, por ocasião da reunião com Fiódor Pávlovitch e seus irmãos. O velho esperava-o de pé, com um ar grave, e Mítia sentiu que ele o examinava. Seu rosto, bastante inchado naqueles últimos tempos, com o lábio pendente, surpreendeu Mítia. Dirigiu a seu visitante um cumprimento grave e mudo, indicou-lhe um assento e, apoiado no braço do filho, tomou ele próprio lugar, gemendo, no divã em frente de Mítia. Este, testemunha de seus esforços dolorosos, sentiu logo um remorso e acanhamento ao pensar no nada que era diante do importante personagem a quem tirara de seus cômodos.
— Que deseja, senhor? — perguntou o velho, depois que se sentou, num tom frio, embora polido.
Mítia estremeceu, ergueu-se, mas retomou seu lugar. Pôs-se a falar alto, depressa, com exaltação, gesticulando. Sentia-se que aquele homem em apuros procurava uma derradeira saída, pronto a dar tudo por acabado em caso de fracasso. O velho Samsónov deve ter compreendido tudo isso num instante, se bem que o rosto houvesse permanecido impassível.
— O respeitável Kuzmá Kuzmitch ouviu provavelmente falar mais de uma vez de minhas desavenças com meu pai, Fiódor Pávlovitch Karamázov, que me despojou da herança de minha mãe... porque isso é assunto de todas as conversas, metendo-se as pessoas naquilo que não lhes compete... Pôde igualmente ter sido informado por Grúchenhka... perdoe, por Agrafiena Alieksándrovna... pela honradíssima e respeitabilíssima Agripina[ 110 ] Alieksándrovna...
Assim começou Mítia, que se atrapalhou desde as primeiras palavras. Mas não citaremos integralmente suas palavras, limitando-nos a resumi-las. O fato é que ele, Mítia, conferenciara, havia três meses, na sede do distrito, com um advogado, “um célebre advogado, Kuzmá Kuzmitch, o senhor Páviel Pávlovitch Kornieplódov, de quem o senhor já deve ter ouvido falar. Grande cabeça, espírito quase de estadista... ele também o conhece... falou do senhor nos melhores termos...”. E Mítia, pela segunda vez, não soube como continuar. Mas não se detinha por tão pouco, passava adiante, discorria à vontade. Aquele advogado, segundo as explicações de Mítia e o exame dos documentos (Mítia atrapalhou-se e passou rapidamente por cima), foi de opinião, a respeito da aldeia de Tchermachniá, que deveria ter-lhe pertencido por herança materna, que se podia intentar um processo e derrotar assim o velho energúmeno, “porque todas as saídas não estão fechadas e a justiça sabe abrir-se um caminho”. Em suma, podia-se esperar exigir de Fiódor Pávlovitch um suplemento de seis e até mesmo sete mil rublos, porque Tchermachniá vale pelo menos 25 mil, que digo? Vinte e oito mil, “trinta, Kuzmá Kuzmitch, e imagine que aquele carrasco não me pagou nem 17 mil! Abandonei então esse negócio, não entendendo nada da chicana e à minha chegada aqui fui atordoado por uma ação de reconvenção (aqui Mítia atrapalhou-se de novo e deu um salto). Pois bem, respeitável Kuzmá Kuzmitch, não quer o senhor que eu lhe ceda todos os meus direitos sobre aquele monstro e isso por três mil rublos somente?... O senhor não arrisca nada, nada absolutamente, juro-o por minha honra; pelo contrário, poderá ganhar seis ou sete mil rublos, em lugar de três... E, sobretudo, queria terminar esse negócio hoje mesmo. Iríamos à casa do tabelião, ou então... Em suma, estou pronto a tudo, dar-lhe-ei todos os documentos que o senhor quiser, assinarei... lavraríamos o ato hoje, esta manhã mesmo, se possível... O senhor me daria esses três mil rublos porque é o senhor o primeiro capitalista daqui... e assim me salvaria permitindo-me praticar um ato sublime... porque nutro os mais nobres sentimentos para com uma pessoa que o senhor bem conhece e a quem cerca de uma solicitude paternal. De outro modo, não teria vindo aqui. Pode-se dizer que três cabeças se entrechocaram, porque o destino é uma coisa terrível, Kuzmá Kuzmitch. Ora, como o senhor não entra mais em conta há muito tempo, restam duas cabeças, segundo minha expressão talvez canhestra, mas não sou literato. Minha cabeça e a daquele monstro. De modo que, escolha: eu ou um monstro! Tudo se acha agora em suas mãos, três destinos e dois dados... Desculpe-me, atrapalhei-me, mas o senhor compreende... vejo por seus olhos que o senhor compreendeu... Senão, só me resta desaparecer, eis tudo!”. Mítia parou de repente sua fala extravagante com aquele “eis tudo” e, levantando-se, esperou uma resposta à sua absurda proposta. Na derradeira frase, sentira de súbito que o negócio estava fracassado e sobretudo que havia proferido uma terrível mixórdia. “É estranho, ao vir aqui estava seguro de mim mesmo e agora atrapalho tudo!” Enquanto ele falava, o velho permanecia impassível, observando-o com ar glacial. Ao fim de um minuto, Kuzmá Kuzmitch disse por fim num tom categórico e desencorajador:
— Desculpe-me, mas não nos ocupamos com tais negócios.
Mítia sentiu fugirem-lhe as pernas.
— Que irá ser de mim, Kuzmá Kuzmitch? — murmurou ele, com um sorriso pálido. — Estou perdido agora. Que pensa o senhor?
— Desculpe-me...
Mítia, de pé e imóvel, notou uma mudança na fisionomia do velho. Estremeceu.
— Veja, senhor, tais negócios são incômodos. Entrevejo um processo, advogados, o diabo e tudo o mais! Se o senhor quiser, há aqui um homem, dirija-se a ele.
— Meu Deus, quem é?... O senhor me restitui a vida, Kuzmá Kuzmitch — balbuciou Mítia.
— Não está aqui neste momento. É um mujique, comerciante de madeira, apelidado Liagávi. Há um ano vive em conversações com Fiódor Pávlovitch a respeito da floresta da Tchermachniá de vocês. Não estão de acordo quanto ao preço. Talvez já tenha o senhor ouvido falar disso. Encontra-se ele justamente agora lá, hospedado na casa do padre Ilinski, em Ilhínskoie, a 12 verstas da estação de Volóvia. Escreveu-me a respeito desse negócio, pedindo conselho. Fiódor Pávlovitch quer ir em pessoa encontrá-lo. Se o senhor se adiantasse a ele, fazendo a Liagávi a mesma proposta que a mim, talvez ele...
— Eis uma ideia genial! — interrompeu Mítia, entusiasmado. — É justamente o que é preciso para aquele homem. É comprador, pedem-lhe caro, e eis um documento que o torna proprietário, ah! Ah! Ah! — E Mítia explodiu uma risada seca, inesperada, que surpreendeu Samsónov.
— Como agradecer-lhe, Kuzmá Kuzmitch?
— Não há de quê — respondeu Samsónov, inclinando a cabeça.
— Mas o senhor não sabe, o senhor acaba de salvar-me. Oh! Foi um pressentimento que me trouxe à sua casa... Então, vamos ver esse pope!
— É inútil agradecer-me.
— Corro lá. Abusei de sua saúde. Jamais esquecerei, é um russo quem lhe diz isso, Kuzmá Kuzmitch!
Mítia quis agarrar a mão do velho para apertá-la, mas ele tinha um olhar mau. Mítia retirou sua mão, enquanto censurava sua desconfiança. “Deve estar fatigado...”, pensou.
— É por ela, Kuzmá Kuzmitch! O senhor compreende que é por ela! — disse ele com voz ressoante. Inclinou-se, deu meia-volta e apressou-se em direção à saída, com grandes passadas. Palpitava de entusiasmo. “Tudo parecia perdido, mas meu anjo da guarda me salvou”, pensava ele. “E se um homem de negócios como esse velho (que nobre ancião, que porte imponente!) indicou esse caminho... sem dúvida o êxito está garantido. Não há um minuto a perder. Voltarei esta noite, mas terei ganho de causa. Será possível que o velho haja zombado de mim?” Assim monologava Mítia, ao voltar para casa, e não podia imaginar as coisas de outro modo: ou era um conselho prático — vindo dum homem experimentado, que conhecia aquele Liagávi (que nome engraçado!) — ou então o velho zombara dele! Ai! A derradeira hipótese era a única verdadeira. Mais tarde, muito tempo após o drama, o velho Samsónov confessou, rindo, que zombara do capitão. Tinha espírito maligno e irônico, com antipatias mórbidas. Teria sido o ar entusiasta do capitão, a tola convicção daquele “cesto furado” de que ele, Samsónov, podia levar a sério seu plano absurdo, um sentimento de ciúme de Grúchenhka, em nome da qual aquele desmiolado lhe pedia dinheiro — ignoro o que inspirou o velho, mas quando Mítia se mantinha diante dele, sentindo as pernas dobrarem-se e exclamou estupidamente que estava perdido —, olhou com maldade e imaginou pregar-lhe uma peça. Após a partida de Mítia, Kuzmá Kuzmitch, pálido de cólera, dirigiu-se ao filho, ordenando-lhe que tomasse as providências para que aquele patife não voltasse a pôr os pés em sua casa, senão...
Não acabou sua ameaça, mas o filho, que o tinha, no entanto, visto muitas vezes encolerizado, tremeu de medo. Uma hora depois, estava ainda o velho agitado pela cólera; ao anoitecer, sentiu-se indisposto e mandou chamar o curandeiro.
II
Liagávi
Por conseguinte, era preciso “galopar” e Mítia não tinha com que pagar a corrida: vinte copeques, eis o que lhe restava de sua antiga prosperidade! Possuía um velho relógio de prata, que havia muito tempo estava parado. Um relojoeiro judeu, instalado numa lojinha, no mercado, deu por ele seis rublos. “Não esperava tanto!”, exclamou Mítia, encantado (o encantamento continuava). Pegou os seis rublos e correu para casa. Ali completou a soma pedindo emprestados três rublos a seus locadores, que lhe deram de bom grado, se bem que fosse o derradeiro dinheiro que tinham, tanto gostavam de Mítia. Em sua exaltação, Mítia revelou-lhes que sua sorte se decidia e explicou — à pressa, bem entendido — quase todo o plano que acabava de expor a Samsónov, a decisão desse último, suas futuras esperanças, etc. Antes já, estavam aquelas pessoas a par de muitos de seus segredos e o olhavam como dos “seus”, um bárin nada orgulhoso. Tendo dessa maneira juntado nove rublos, mandou Mítia buscar cavalos de posta para ir até a estação de Volóvia. Mas dessa maneira comprovou-se e foi relembrado que “na véspera de certo acontecimento, não tinha Mítia um copeque, que para arranjar dinheiro vendera um relógio e pedira emprestados três rublos a seus locadores, tudo isso diante de testemunhas”.
Noto o fato, compreender-se-á mais tarde por quê.
Rodando para Volóvia, Mítia, radiante à ideia de desembaraçar por fim e de terminar todos aqueles negócios, estremecia, no entanto, inquieto: que aconteceria a Grúchenhka, durante sua ausência? Decidir-se-ia ela hoje a ir encontrar Fiódor Pávlovitch? Eis por que partira sem preveni-la, recomendando aos locadores que nada dissessem no caso de virem chamá-lo. “Preciso voltar absolutamente esta noite”, repetia ele, sacudido na tieliega, “e trazer esse Liagávi... para lavrar o ato...”. Mas, ai, seus sonhos não estavam destinados a realizar-se de acordo com seu plano.
Em primeiro lugar perdeu tempo tomando para Volóvia o caminho vicinal. O percurso verificou-se ser de 18 e não de 12 verstas. Em seguida não encontrou o padre Ilinski em casa, pois fora à aldeia vizinha. Enquanto Mítia partia à sua procura com os mesmos cavalos, já estafados, a noite estava quase chegada. O bátiuchka, homenzinho tímido de ar afável, explicou-lhe logo que o tal Liagávi, que se alojara a princípio em sua casa, estava agora em Sukhói Posiélok, e passaria a noite na isbá do guarda-florestal, porque traficava também lá. A pedidos instantes de Mítia, de conduzi-lo imediatamente à presença de Liagávi e de “assim salvá-lo”, o padre consentiu, após alguma hesitação, em acompanhá-lo a Sukhói Posiélok, misturando-se nisso certa curiosidade; por desgraça, aconselhou ir-se a pé, porque a distância era de pouco mais de uma versta. Mítia aceitou, bem entendido, e caminhou a grandes passos, de sorte que o pobre bátiuchka mal podia segui-lo. Era um homem ainda moço e bastante reservado. Mítia se pôs logo a falar de seus planos, pediu nervosamente conselhos a respeito de Liagávi, conversou durante todo o caminho. O padre escutava-o atentamente, mas não aconselhava nada. Respondia evasivamente às perguntas de Mítia: “Não sei; como haveria de sabê-lo?”, etc., etc. Quando Mítia falou de suas desavenças com o pai a respeito da herança, o padre amedrontou-se, porque dependia ele, a certos respeitos, de Fiódor Pávlovitch. Informou-se, com surpresa, da razão pela qual Mítia chamava de Liagávi o mujique Górstkin e explicou-lhe que, muito embora esse nome de Liagávi fosse o dele, ofendia-se tremendamente com ele e era preciso chamá-lo Górstkin, “senão o senhor nada poderá obter dele que nem mesmo o escutará”, concluiu o padre. Mítia espantou-se um pouco e explicou que o próprio Samsónov o havia chamado assim. A essas palavras, o padre mudou de conversa; deveria ter dado parte de suas suspeitas a Dimítri Fiódorovitch: se Samsónov o havia dirigido àquele mujique pelo nome de Liagávi, não teria sido por derrisão, não haveria naquilo algo de duvidoso? Mas Mítia não tinha tempo de se deter com tais bagatelas. Caminhava sempre e somente ao chegar a Sukhói Posiélok se apercebeu de que haviam feito três verstas e não uma e meia. Dissimulou seu descontentamento. Entraram na isbá da qual o guarda-florestal, que conhecia o padre, ocupava a metade; o forasteiro estava instalado na outra, separada pelo vestíbulo. Foi para lá que se dirigiram acendendo uma vela. A isbá estava superaquecida. Sobre uma mesa de pinho, havia um samovar apagado, uma bandeja com xícaras, uma garrafa de rum vazia, um garrafão de aguardente quase vazio e restos de pão de trigo. O forasteiro jazia sobre o banco, com as roupas enroladas sob a cabeça à guisa de travesseiro e roncava ruidosamente. Mítia estava perplexo. “Certamente, é preciso despertá-lo; meu negócio é por demais importante, vim com tanta pressa e tenho também pressa de voltar hoje mesmo”, murmurava, inquieto. Aproximou-se e pôs-se a sacudi-lo, mas o dorminhoco não despertou. “Está bêbedo — concluiu Mítia. — Que fazer, meu Deus, que fazer?” Em sua impaciência, começou a puxá-lo pelas mãos, pelos pés, a levantá-lo, a sentá-lo no banco, mas só obteve, após longos esforços, surdos resmungos e invectivas enérgicas, embora confusas.
— Seria melhor o senhor esperar — disse por fim o padre —, nada se pode obter agora.
— Bebeu o dia inteiro — observou o guarda.
— Meu Deus! — exclamou Mítia. — Se o senhor soubesse como tenho necessidade dele e em que situação me encontro!
— Será melhor esperar até amanhã de manhã — repetiu o padre.
— Até de manhã? Mas é impossível!
Em seu desespero, ia ainda sacudir o bêbedo, mas parou logo, compreendendo a inutilidade de seus esforços. O padre calava-se, o guarda cheio de sono mostrava-se sombrio.
— Que tragédias se encontram na vida real! — proferiu Mítia, desesperado. O suor escorria-lhe no rosto. O padre aproveitou-se dum minuto de calma para explicar-lhe avisadamente que, mesmo se conseguisse despertar o dorminhoco, não poderia discutir com ele, bêbedo como estava; “uma vez que se trata de um negócio importante, é mais seguro deixá-lo tranquilo até de manhã...” Mítia concordou.
— Ficarei aqui, bátiuchka, esperando a ocasião. Assim que ele acordar, começarei... Pagar-te-ei a vela e o pernoite — disse ele ao guarda. — Lembrar-te-ás de Dimítri Karamázov. Mas o senhor, bátiuchka, onde vai deitar-se?
— Não se inquiete, volto para casa na jumenta dele — disse, designando o guarda. — Portanto, adeus e boa sorte.
Assim foi feito. O padre cavalgou a jumenta, feliz por ver-se livre, mas vagamente inquieto e perguntando a si mesmo se não faria bem em informar no dia seguinte Fiódor Pávlovitch a respeito daquele curioso negócio, “senão ele se zangará ao sabê-lo e retirará sua proteção a mim”. O guarda, depois de coçar-se, voltou, sem dizer palavra, para seu quarto; Mítia tomou lugar no banco para esperar a ocasião, como dizia. Profunda angústia o dominava, como uma espessa bruma. Procurava, sem consegui-lo, reunir as ideias. A vela ardia, um grilo cantava, sufocava-se no quarto superaquecido. Imaginou de repente o jardim, a entrada: a porta da casa de seu pai abria-se misteriosamente e Grúchenhka acorria. Levantou-se bruscamente.
— Tragédia! — murmurou, rilhando os dentes. Aproximou-se maquinalmente do homem que dormia e pôs-se a examiná-lo. Era um mujique esgalgado, ainda moço, de cabelos cacheados, barbicha ruiva. Trazia uma blusa de chita da Índia e um colete preto, com a cadeia dum relógio de prata no bolsinho. Mítia observava aquela fisionomia com verdadeiro ódio. Os cachos, sobretudo, o exasperavam, não se sabia por quê. O mais humilhante é que ele, Mítia, ficava ali diante daquele homem com seu negócio urgente, ao qual tudo sacrificara, no extremo das forças, e aquele mandrião, “do qual depende agora minha sorte, ronca como se nada houvesse, como se viesse dum outro planeta!”. Mítia, perdendo a cabeça, lançou-se de novo para despertar o mujique embriagado. Pôs naquilo uma espécie de encarniçamento, maltratou-o, chegou a bater-lhe, mas, ao fim de cinco minutos, não obtendo nenhum resultado, tornou a sentar-se, num desespero impotente.
“Tolice, tolice! E... como tudo isso é lamentável.” Começava a sentir dor de cabeça. — “Será preciso abandonar tudo? Voltar?”, pensava ele. — “Não, ficarei até de manhã, decididamente! Por que ter vindo aqui? E não tenho com que voltar. Como fazer? Oh, que absurdo!”
Entretanto sua dor de cabeça aumentava. Ficou imóvel e adormeceu insensivelmente, sentado como estava. Ao fim de duas horas, foi despertado por uma dor intolerável na cabeça, suas têmporas latejavam. Levou muito tempo para voltar a si e dar-se conta do que se passava. Compreendeu por fim que era um começo de asfixia, devida ao carvão e que teria podido morrer. O bêbedo continuava a roncar; a vela consumira-se e estava a ponto de apagar-se. Mítia lançou um grito e precipitou-se cambaleante para a casa do guarda, que logo despertou. Sabendo do que se tratava, foi fazer o necessário, mas acolheu a coisa com uma fleuma surpreendente, o que causou assombro a Mítia.
— Mas ele está morto, está morto, e então... que fazer? — exclamou ele, em sua exaltação.
Abriram-se as portas e a janela, destapou-se a estufa. Mítia trouxe da entrada um balde d’água com a qual molhou a cabeça, depois embebeu d’água um trapo de pano que aplicou sobre a de Liagávi. O guarda continuava a mostrar uma indiferença desdenhosa; depois de ter aberto a janela, disse com ar mal-humorado: “Está tudo bem assim” e voltou a deitar-se, deixando com Mítia uma lanterna acesa. Durante meia hora, cuidou Mítia do bêbedo, renovando a compressa, resolvido a velar a noite inteira; já sem forças, sentou-se para retomar fôlego, seus olhos fecharam-se logo, estirou-se inconscientemente no banco e adormeceu com um sono de chumbo.
Despertou muito tarde, cerca das nove horas. O sol brilhava nas duas janelas da isbá. O mujique de cabelos cacheados estava instalado diante de um samovar fervente e novo garrafão, mais de cuja metade já havia bebido. Mítia levantou-se sobressaltado e percebeu logo que o maldito mujique estava de novo embriagado, irremediavelmente embriagado. Observou-o um minuto, escancarando os olhos. O mujique olhava-o em silêncio, com um ar astuto e fleumático e até mesmo com arrogância, pelo que creu Mítia. Lançou-se para ele:
— Permita, olhe... eu... o guarda deve ter-lhe dito quem sou: o tenente Dimítri Karamázov, filho do velho com quem anda o senhor em tratativas para um corte de madeira.
— Mentes! — replicou o mujique, num tom decidido.
— Minto como? Não conhece Fiódor Pávlovitch?
— Não conheço nenhum Fiódor Pávlovitch — declarou o mujique, com a língua pastosa.
— Mas o senhor está negociando a madeira dele: esperte-se, domine-se. Foi o padre Ilinski quem me trouxe aqui... O senhor escreveu a Samsónov e ele me disse que me dirigisse ao senhor... — Mítia ofegava.
— Tu m... entes! — repetiu Liagávi. Mítia sentia-se desfalecer.
— Por favor, não é brincadeira nenhuma. O senhor está embriagado, sem dúvida. Poderia afinal falar, compreender... senão... sou eu que não compreendo nada disso!
— És tintureiro!
— Perdão, sou Karamázov, Dimítri Karamázov, tenho uma proposta a fazer-lhe... uma proposta muito vantajosa... precisamente a propósito da madeira.
O mujique acariciava a barba com ar importante.
— Não, trabalhaste de empreitada e és um tratante!
— Asseguro-lhe que se engana! — berrou Mítia, torcendo as mãos.
O mujique continuava a acariciar a barba; de súbito piscou o olho com um ar astuto.
— Cita-me uma lei que permita cometer tratantadas, entendes? És um tratante, compreendes?
Mítia recuou com ar sombrio, teve “a sensação duma pancada na testa”, como disse mais tarde. Foi de súbito como um raio de luz, compreendeu tudo. Ficou estupidificado, perguntando a si mesmo como ele, um homem no entanto sensato, pudera tomar a sério tal absurdo, meter-se em semelhante aventura, cuidar solícito daquele Liagávi, molhar-lhe a cabeça... “Ora bem, este sujeito está bêbedo e embebedar-se-á uma semana ainda — que adianta esperar? E se Samsónov zombou de mim? E se ela... Meu Deus, que fiz eu?...”
O mujique olhava-o e ria. Em outras circunstâncias, Mítia, cheio de cólera, teria arremetido contra aquele imbecil, mas agora sentia-se fraco como uma criança. Sem dizer uma palavra, pegou de cima do banco o sobretudo, vestiu-o, passou para outra peça. Não encontrou ninguém lá e deixou em cima da mesa cinquenta copeques pelo pernoite, pela vela e pelo incômodo. Ao sair da isbá, encontrou-se em plena floresta. Partiu ao acaso, não se lembrando mesmo qual a direção a tomar, se à direita ou à esquerda da isbá. Na véspera, em sua precipitação, não reparara no caminho. Não experimentava nenhum sentimento de vingança, nem mesmo para com Samsónov, e seguia maquinalmente o estreito caminho, a cabeça perdida e sem se inquietar a respeito da direção que tomava. A primeira criança que aparecesse tê-lo-ia derrubado, tão esgotado estava ele. Conseguiu, contudo, sair da floresta: os campos ceifados e desnudos estendiam-se a perder de vista. “Por toda parte o desespero, a morte!”, repetia, enquanto andava.
Por felicidade, encontrou um velho comerciante que um carroceiro conduzia à estação de Volóvia. Levaram consigo Mítia, que lhes perguntara qual o caminho. Chegaram três horas depois. Em Volóvia, alugou cavalos, a fim de seguir para a cidade, e sentiu então que estava morto de fome. Enquanto atrelavam, prepararam-lhe uma omeleta. Devorou-a, bem como um grande naco de pão, salsichão e bebeu três copinhos de vodca. Uma vez restaurado, retomou coragem e recuperou a lucidez. Movimentava-se, apressava o carroceiro, ruminava novo plano “infalível” para arranjar naquele mesmo dia aquele maldito dinheiro. “E dizer-se que o destino pode depender de três mil desgraçados rublos!”, exclamava, desdenhosamente. “Decidir-me-ei hoje!” E, não fosse o pensamento contínuo em Grúchenhka e a inquietação que experimentava por causa dela, poderia ter estado talvez completamente contente. Mas aquele pensamento transpassava-o a cada instante como um punhal. Por fim chegaram, e Mítia correu à casa dela.
III
As minas de ouro
Era precisamente a visita de que Grúchenhka havia falado a Rakítin com tanto terror. Esperava então um correio e regozijava-se com a ausência de Mítia, ontem e hoje, esperando que ele não viesse talvez antes de sua partida, quando de súbito ele aparecera. Sabe-se o resto; para despistá-lo, fizera-se ela acompanhar por ele à casa de Kuzmá Samsónov, onde, dizia, tinha de ir fazer contas; despedindo-se de Mítia fizera-o prometer ir buscá-la à meia-noite. Ficara ele satisfeito com esse arranjo: “Ela fica em casa de Kuzmá, portanto não irá à casa de Fiódor Pávlovitch... contanto que não esteja ela mentindo”, acrescentou logo. Acreditava-a sincera. Seu ciúme consistia, longe da mulher amada, em imaginar toda espécie de traições, mas, de volta para seu lado, transtornado, persuadido de sua desgraça, ao primeiro olhar lançado àquele doce rosto, uma revolução operava-se nele, esquecia suas suspeitas e tinha vergonha de seus ciúmes. Apressou-se em voltar para casa, tinha ainda tanto que fazer! Pelo menos estava com o coração mais leve. “É preciso agora informar-me com Smierdiákov, se nada aconteceu ontem à noite, se ela não foi à casa de Fiódor Pávlovitch. Ah!...” De sorte que, mesmo antes de estar em casa, o ciúme se insinuava de novo em seu coração inquieto.
O ciúme! “Otelo não é ciumento, é confiante”, disse Púchkin. Essa observação atesta a profundeza de nosso grande poeta. Otelo sente-se transtornado porque perdeu seu ideal. Mas não irá ocultar-se, espionar, escutar às portas: é confiante. Pelo contrário, foi preciso pô-lo no caminho, excitá-lo com grande esforço, para que ele duvidasse da traição. Tal não é o verdadeiro ciumento. Não se pode imaginar a infâmia e a degradação a que um ciumento é capaz de acomodar-se sem nenhum remorso. E não são sempre almas vis que assim agem. Pelo contrário, embora tendo sentimentos elevados, um amor puro e devotado, pode uma pessoa esconder-se debaixo de mesas, comprar tratantes, prestar-se à mais ignóbil espionagem. Otelo jamais teria podido resignar-se a uma traição — não perdoá-la, mas a ela resignar-se —, se bem que tenha a doçura e a inocência duma criança. Bem diferente é o verdadeiro ciumento. Tem-se dificuldade em imaginar os compromissos e a indulgência de que alguns são capazes. Os ciumentos são os primeiros a perdoar, todas as mulheres sabem disso. Perdoariam (após uma cena terrível, bem entendido) uma traição quase flagrante, abraços e beijos de que foram testemunhas, se fosse a derradeira vez, se seu rival desaparecesse, partisse para o fim do mundo e eles mesmos partissem com a bem-amada para um lugar onde ela não tornaria a encontrar mais o outro. A reconciliação, naturalmente, não é senão de curta duração, porque, na ausência de um rival, o ciumento inventaria um segundo. Ora, que vale tal amor, objeto de uma vigilância incessante? Mas um verdadeiro ciumento não o empreenderá nunca. Há, no entanto, entre eles, pessoas de sentimentos elevados e, coisa de espantar, quando se acham eles à escuta num esconderijo, ao mesmo tempo que compreendem a vergonha de sua conduta, não experimentam no momento nenhum remorso. À vista de Grúchenhka, o ciúme de Mítia desaparecia, tornava-se confiante e nobre, desprezava-se mesmo por seus maus sentimentos. Isso significava somente que aquela mulher lhe inspirava um amor mais elevado do que ele o cria, um amor em que havia outra coisa além da sensualidade, da atração carnal de que falava ele a Aliócha. Mas, assim que Grúchenhka partia, recomeçava Mítia a suspeitar nela todas as baixezas e perfídias da traição, sem experimentar nenhum remorso.
Assim, pois, o ciúme atormentava-o mais uma vez. Em todo caso, o tempo urgia. Era preciso, em primeiro lugar, arranjar uma pequena soma, os nove rublos de ontem tinham-se ido quase todos na viagem, e todos sabem que sem dinheiro não se vai longe. Pensara nisso, na tieliega que o trazia, ao mesmo tempo que no novo plano. Possuía duas excelentes pistolas que ainda não empenhara, porque eram de estimação. No botequim A Capital, travara conhecimento com um jovem funcionário e soubera que, celibatário e em muito boas condições financeiras, tinha ele paixão por armas. Comprava pistolas, revólveres, punhais, com os quais formava panóplias que exibia com vaidade, hábil no explicar o sistema dum revólver, como carregá-lo, atirar, etc. Sem hesitar, Mítia foi oferecer-lhe suas pistolas em penhor por dez rublos. Encantado, o funcionário queria absolutamente comprá-las, mas Mítia não consentiu nisso; o outro deu-lhe dez rublos, declarando que não cobraria juros. Despediram-se como bons amigos. Mítia apressava-se, dirigiu-se a seu pavilhão, por trás da casa de Fiódor Pávlovitch, para chamar Smierdiákov. Mas dessa maneira constatou-se de novo que, três ou quatro horas antes de um certo acontecimento de que se tratará depois, Mítia estava sem dinheiro e empenhara um objeto de estimação, ao passo que três horas mais tarde se achava de posse de milhares de rublos... Mas não antecipemos. Em casa de Maria Kondrátievna, a vizinha de Fiódor Pávlovitch, soube ele, consternado, da doença de Smierdiákov. Ouviu o relato da queda na adega, da crise que se seguiu, da chegada do doutor, da solicitude de Fiódor Pávlovitch; informaram-no também da partida de seu irmão Ivan para Moscou naquela manhã mesma. “Deve ter passado antes de mim por Volóvia”, pensou, mas Smierdiákov preocupava-o intensamente. “Que fazer agora, quem velará para me informar?” Interrogou avidamente aquelas mulheres, para saber se elas nada tinham notado na véspera. Compreenderam elas muito bem o que queria ele saber e tranquilizaram-no: “Tudo se passara normalmente.” Mítia refletiu: “Decerto era preciso vigiar também hoje, mas onde: aqui ou à porta de Samsónov?” Decidiu que seria nos dois lugares, à sua vontade, e, enquanto esperava... havia aquele novo plano seguro, concebido na estrada e cuja execução não era possível diferir. Mítia resolveu consagrar uma hora a isso. “Dentro de uma hora saberei tudo, e então, em primeiro lugar, em casa de Samsónov informar-me se Grúchenhka está lá, depois de novo aqui até as 11 horas, e voltarei lá para reconduzi-la de volta.”
Correu à sua casa depois de ter-se asseado, dirigiu-se à casa da senhora Khokhlakova. Ai! Tal era seu famoso “plano”. Resolvera pedir emprestados três mil rublos àquela senhora, persuadido de que ela não lhos recusaria. Não será caso de admiração talvez que, nesse caso, não haja ele ido em primeiro lugar à casa de alguém de seu mundo, em lugar de Samsónov, cuja mentalidade lhe era estranha, e com o qual não sabia exprimir-se? Mas é que, desde um mês, quase rompera com ela, conhecia-a pouco, aliás, e sabia que ela não podia tolerá-lo, porque era ele o noivo de Katierina Ivânovna. Teria ela querido que a moça o deixasse para casar-se com “o querido Ivan Fiódorovitch, tão instruído e que possuía tão belas maneiras”. As de Mítia desagradavam-lhe fortemente. Zombava dela e dissera uma vez que “aquela senhora era tão viva e desenvolta quanto pouco instruída”. E, pela manhã, na tieliega, fora aquilo como um raio de luz: “Se ela se opõe ao meu casamento com Katierina Ivânovna (e sabia-a irreconciliável), por que me recusaria agora esses três mil rublos que me permitiriam abandonar Kátia e partir definitivamente? Quando essas grandes damas muito cheias de si têm um capricho na cabeça, nada se poupam para atingir seus fins. Ela é, aliás, tão rica...”, dizia a si mesmo Mítia. Quanto ao plano, era igual ao precedente, isto é, o abandono de seus direitos sobre Tchermachniá, não com um fim comercial, como no caso de Samsónov, e sem tentar aquela senhora como o comerciante, com a possibilidade dum bom negócio, dum ganho de alguns milhares de rublos, mas simplesmente em garantia de sua dívida. Desenvolvendo essa ideia nova, Mítia entusiasmava-se, como acontecia sempre por ocasião de seus empreendimentos e de suas novas decisões. Todo projeto novo apaixonava-o. Não obstante, ao chegar ao patamar, sentiu um arrepio repentino; naquele instante compreendeu, com uma precisão matemática, que estava ali sua derradeira esperança, que, em caso de malogro, não teria outro recurso senão estrangular alguém para roubá-lo... Eram sete horas e meia, quando tocou a campainha.
A princípio, tudo marchou a contento, foi recebido imediatamente. “Dir-se-ia que ela me espera”, pensou Mítia. Assim que foi introduzido no salão, a dona da casa apareceu e declarou-lhe que o esperava.
— Não podia supor que o senhor viria, há de convir; no entanto, esperava-o. Admire meu instinto, Dimítri Fiódorovitch, contava com sua visita hoje.
— É verdadeiramente de admirar, minha senhora — disse Mítia, sentando-se canhestramente —, mas vim por causa dum negócio da mais alta importância, no que a mim se refere, e apresso-me...
— Eu sei, Dimítri Fiódorovitch, não se trata mais de pressentimento, de inclinação retrógrada pelos milagres (ouviu falar do stáriets Zósima?), era fatal, o senhor deveria vir depois de tudo o que se passou com Katierina Ivânovna.
— A realidade da vida, minha senhora, é isso. Mas permita-me que lhe explique...
— Precisamente, a realidade da vida, Dimítri Fiódorovitch. Não há senão isso que valha a meus olhos, estou curada dos milagres. O senhor soube da morte do stáriets Zósima?
— Não, senhora, não sabia de nada — respondeu Mítia, um tanto surpreso. Voltou-lhe a lembrança de Aliócha.
— Esta noite mesmo, e imagine o senhor...
— Minha senhora — interrompeu Mítia —, imagino somente que me encontro numa situação desesperada, e que, se a senhora não vier em meu auxílio, tudo se desmoronará, eu em primeiro lugar. Perdoe-me a vulgaridade da expressão, a febre queima-me.
— Sim, sei que o senhor tem febre, não pode ser de outra forma; diga o que disser, sei-o de antemão. Há muito tempo que me ocupo com seu destino, Dimítri Fiódorovitch, acompanho-o, estudo-o. Sou um médico experimentado, creia-o.
— Não o duvido, minha senhora. Em compensação, sou eu um doente experimentado — replicou Mítia, esforçando-se por ser amável — e tenho o pressentimento de que, se a senhora segue com tal interesse meu destino, não me deixará sucumbir. Mas permita-me afinal que lhe exponha o plano que me traz... e o que espero da senhora... Vem cá, minha senhora...
— De que servem essas explicações? Isso não tem importância. Não é o senhor o primeiro a quem eu iria em socorro, Dimítri Fiódorovitch. Deve ter ouvido falar de minha sobrinha Bielhmiésova. Seu marido estava perdido, afundava-se. Pois bem, aconselhei-o a criar cavalos e agora ele está próspero. O senhor entende de criação de cavalos, Dimítri Fiódorovitch?
— Absolutamente, minha senhora, absolutamente! — exclamou Mítia, que se levantou em sua impaciência. — Suplico-lhe, senhora, que me ouça, deixe-me falar dois minutos somente, para explicar-lhe meu projeto. Além do mais, tenho muita pressa!... — gritou Mítia, exaltado, compreendendo que ela ia falar mais ainda e na esperança de gritar mais forte do que ela. — Vim desesperado pedir-lhe emprestados três mil rublos contra um penhor seguro, que oferece plena garantia! Deixe-me somente dizer-lhe...
— Depois, depois! — exclamou a senhora Khokhlakova, agitando a mão. Sei já tudo quanto o senhor me quer dizer. Pede-me três mil rublos, dar-lhe-ei bem mais, salvá-lo-ei, Dimítri Fiódorovitch, mas é preciso obedecer-me.
Mítia sobressaltou-se.
— Senhora, teria tamanha bondade!? — exclamou ele num tom emocionado. — Meu Deus! A senhora salva um homem da morte, do suicídio... Minha eterna gratidão...
— Dar-lhe-ei infinitamente, infinitamente mais de três mil rublos — repetiu a senhora Khokhlakova, que olhava, sorridente, o entusiasmo de Mítia.
— Mas não preciso de tanto! Tenho necessidade somente dessa fatal soma, três mil rublos. Ofereço-lhe uma garantia e lhe agradeço. Meu plano...
— Basta, Dimítri Fiódorovitch, está dito, está feito — interrompeu-o a senhora Khokhlakova, com a modéstia triunfante de uma benfeitora. — Prometi salvá-lo e salvá-lo-ei, como a Bielhmiésov. Que pensa o senhor das minas de ouro?
— As minas de ouro, senhora? Jamais pensei nisso!
— Mas eu penso, pelo senhor. Há um mês que o observo com esse objetivo. Olhei-o muitas vezes, quando o senhor passava, pensando: eis um homem enérgico, cujo lugar é nas minas. Eu mesma estudei seu andar e persuadi-me de que o senhor descobriria filões.
— Por meu modo de andar, senhora?
— Por que não? Como, nega que se possa conhecer o caráter pelo modo de andar, Dimítri Fiódorovitch? As ciências naturais confirmam o fato. Oh! Sou realista. Desde hoje, após essa história no mosteiro que tanto me afetou, tornei-me totalmente realista e quero entregar-me a uma atividade prática. Estou curada do misticismo. “Basta!”, como diz Turguéniev.
— Mas senhora, esses três mil rublos que me prometeu tão generosamente...
— Eles não lhe escaparão, é como se os tivesse em seu bolso. E não três mil, mas três milhões, em breve prazo. Eis minha ideia: o senhor descobrirá minas, ganhará milhões; quando voltar, ter-se-á tornado um homem de ação capaz de nos guiar para o bem. Será preciso, pois, abandonar tudo aos judeus? O senhor construirá edifícios, fundará diversas empresas. Socorrerá os pobres, e eles o abençoarão. Estamos no século das estradas de ferro. O senhor será conhecido e notado no Ministério das Finanças, que se encontra em extrema penúria. A queda de nossa moeda fiduciária impede-me de dormir, Dimítri Fiódorovitch, conhecem-me mal a esse respeito.
— Minha senhora, minha senhora — interrompeu, de novo, Dimítri, inquieto —, seguirei muito provavelmente seu sábio conselho... irei talvez lá... às minas a que se refere... voltarei para conversar com a senhora... mas, agora, esses três mil rublos que a senhora tão generosamente... eles me libertariam, e, se possível, hoje... Não tenho uma hora a perder...
— Escute, Dimítri Fiódorovitch, chega! Uma pergunta: parte ou não para as minas de ouro? Responda-me categoricamente.
— Irei, minha senhora, depois... Irei aonde a senhora quiser... mas agora...
— Espere então! — Dirigiu-se vivamente para uma magnífica escrivaninha e remexeu as gavetas com precipitação.
“Os três mil!”, pensou Mítia, crispado pela expectativa — “e isso imediatamente, sem papel, sem formalidades Que grandeza d’alma! Que excelente mulher! Se somente falasse menos”.
— Aqui está — exclamou ela, radiante, voltando para Mítia —, eis o que eu procurava!
Era um pequeno ícone de prata, com uma corrente, como os que se usam por vezes sob a roupa.
— Vem de Kiev, Dimítri Fiódorovitch — disse a senhora Khokhlakova, com respeito —, relíquias de santa Bárbara, a grande mártir. Permita-me que eu mesma ponha este pequeno ícone em seu pescoço e o abençoe em véspera de uma vida nova.
E tendo-lhe passado a corrente no pescoço, tratou de ajustá-la. Mítia, muito constrangido, inclinou-se e procurou ajudá-la. Por fim, o ícone ficou colocado como era preciso.
— Agora, pode partir — disse ela, tornando a sentar-se, triunfante.
— Minha senhora, estou tão comovido... e não sei como agradecer-lhe... a sua solicitude, mas... se soubesse a senhora como tenho pressa! Essa soma que espero de sua generosidade... Oh! Minha senhora, já que é tão boa, tão generosa — e Mítia teve uma inspiração —, permita-me que lhe revele... o que, aliás, a senhora já sabe... amo uma pessoa. Traí Kátia, Katierina Ivânovna, quero dizer... Oh! Tenho sido inumano, desonesto, mas amava outra... uma mulher a quem a senhora talvez despreze, porque está a par de tudo, mas que eu não posso abandonar, de modo que esses três mil...
— Abandone tudo, Dimítri Fiódorovitch — interrompeu, em tom cortante, a senhora Khokhlakova. — Sobretudo as mulheres. Seu objetivo são as minas. Inútil levar mulheres para lá. Mais tarde, quando o senhor voltar rico e célebre, encontrará uma amiga de coração na mais alta sociedade. Será uma moça moderna, prudente e sem preconceitos. Nessa época, justamente, o feminismo ter-se-á desenvolvido, e a nova mulher aparecerá...
— Minha senhora, não é isso, não é isso... — disse Dimítri Fiódorovitch, juntando as mãos, com ar suplicante.
— Mas sim, Dimítri Fiódorovitch, é precisamente disso que o senhor necessita, é disso que está o senhor sedento sem o saber. Interesso-me bastante pelo feminismo. O desenvolvimento da mulher e até mesmo seu papel político no futuro mais próximo, eis meu ideal. Tenho uma filha, Dimítri Fiódorovitch, esquecem-se disso muitas vezes. Escrevi a respeito a Chtchédrin.[ 111 ] Esse escritor abriu-me tais horizontes sobre a missão da mulher que lhe dirigi, o ano passado, estas duas linhas: “Aperto-o contra o meu coração e beijo-o em nome da mulher moderna, continue.” E assinei: “Uma mãe.” Teria querido assinar: “Uma mãe contemporânea”, mas hesitei. Afinal de contas, limitei-me a “uma mãe”, é mais belo moralmente, Dimítri Fiódorovitch, e a palavra “contemporânea” poderia ter lembrado O contemporâneo, lembrança amarga para ele, em vista da censura atual. Meu Deus, que tem o senhor?
— Minha senhora — disse Mítia, de pé, com as mãos juntas como um suplicante —, a senhora vai fazer-me chorar, se demora ainda o que tão generosamente...
— Chore, Dimítri Fiódorovitch, chore! É um belo sentimento... no caminho que o espera. As lágrimas aliviam. Mais tarde, uma vez de volta da Sibéria, o senhor se rejubilará comigo...
— Mas permita — vociferou de súbito Mítia —, suplico-lhe pela derradeira vez, diga-me se posso receber da senhora hoje a soma prometida. Senão, quando será preciso vir buscá-la?
— Que soma, Dimítri Fiódorovitch?
— Mas os três mil rublos que a senhora me prometeu... que tão generosamente...
— Três mil o quê... três mil rublos? Mas não os tenho — disse ela, com alguma surpresa.
— Como?... ainda há pouco... a senhora disse que era como se eu os tivesse em meu bolso...
— Oh! não, o senhor compreendeu-me mal, Dimítri Fiódorovitch. Falava das minas. Prometi-lhe bem mais de três mil rublos, lembro-me agora, mas tinha em vista unicamente as minas.
— Mas o dinheiro? Os três mil rublos?
— Oh! se o senhor contava com dinheiro, não o tenho no momento absolutamente, Dimítri Fiódorovitch. Estou mesmo em dificuldades com meu administrador e acabo de pedir emprestados a Miúsov quinhentos rublos. Se os tivesse, aliás, não lhos daria. Em primeiro lugar, não empresto dinheiro a ninguém. Quem devedor tem, guerra lhe vem. Mas ao senhor, particularmente, teria recusado, mesmo gostando do senhor, mesmo para salvá-lo. Porque o senhor só precisa de uma coisa: das minas e das minas!
— Oh! Que o diabo... — berrou Mítia, dando um violento murro na mesa.
— Ai! Ai! — exclamou a senhora Khokhlakova, aterrorizada, refugiando-se na outra extremidade do salão. Mítia cuspiu com desprezo e saiu rapidamente. Ia como um doido nas trevas, batendo no peito no mesmo lugar em que dois dias antes diante de Aliócha, por ocasião do derradeiro encontro deles na estrada. Por que batia ele justamente no mesmo lugar; que significava esse gesto? Não tinha revelado ainda a ninguém aquele segredo, nem mesmo a Aliócha, um segredo que ocultava a desonra, e mesmo sua perda e o suicídio, porque tal era sua resolução no caso em que não arranjasse os três mil rublos para restituir a Katierina Ivânovna e tirar de seu peito, daquele lugar, a desonra que carregava e que torturava sua consciência. Tudo isso será esclarecido mais adiante. Após a ruína de sua derradeira esperança, aquele homem tão robusto desmanchou-se de súbito em lágrimas, como uma criança. Caminhava estupidificado, enxugando as lágrimas com o punho, quando deu um encontrão em alguém. Uma mulher, que ele quase derrubara, lançou um grito agudo.
— Meu Deus, quase me matou! Preste atenção, vagabundo!
— Ah, é você? — gritou Mítia, examinando a velha no escuro. Era a criada de Kuzmá Samsónov que ele vira na véspera.
— E o senhor quem é, bátiuchka? — proferiu a velha em outro tom. — Não o estou reconhecendo.
— Não serve em casa de Kuzmá Samsónov?
— Perfeitamente... Mas não consigo reconhecê-lo.
— Diga-me, minha boa mulher, estará Agrafiena Alieksándrovna em casa dele neste momento? Eu mesmo a levei para lá.
— Sim, bátiuchka, ela ficou um instante e partiu.
— Como, partiu? Quando?
— Não ficou muito tempo. Divertiu Kuzmá Kuzmitch, contando-lhe uma história, depois saiu.
— Mentes, maldita! — gritou Mítia.
— Ai! Ai! — exclamou a velha. Mas Mítia havia desaparecido, corria a bom correr para a casa onde morava Grúchenhka. Havia ela partido, um quarto de hora antes, para Mókroie. Fiénia estava na cozinha com sua avó, a cozinheira Matriona, quando o “capitão” chegou. Ao vê-lo, Fiénia gritou com todas as forças.
— Estás gritando? — perguntou Mítia. — Onde está ela? — E, sem esperar a resposta de Fiénia, paralisada de medo, caiu a seus pés.
— Fiénia, em nome de Cristo, nosso Salvador, dize-me onde ela está!
— Não sei de nada, caro Dimítri Fiódorovitch, de nada absolutamente. Ainda que o senhor me matasse agora mesmo, nada posso dizer. Mas o senhor a acompanhou...
— Ela voltou...
— Não, ela não voltou, juro-o por Deus.
— Mentes! — urrou Mítia. — Basta teu terror para eu adivinhar onde ela está...
Saiu correndo. Apavorada, Fiénia felicitava a si mesmo por se ter livrado tão facilmente, compreendendo que aquilo poderia ter dado em complicação, se houvesse demorado mais. Ao sair, teve ele um gesto que causou espanto às duas mulheres. Sobre a mesa, havia um almofariz com um pilão de cobre; Mítia, que já havia aberto a porta, agarrou de passagem aquele pilão e meteu-o no bolso.
— Meu Deus, ele quer matar alguém! — gemeu Fiénia.
IV
Nas trevas
Para onde corria ele? Pode-se imaginar: “Onde poderá ela estar, senão em casa de Fiódor Pávlovitch? Foi diretamente da casa de Samsónov para lá, está claro. Toda essa intriga salta aos olhos...” As ideias se entrechocavam na cabeça. Não entrou no pátio de Maria Kondrátievna: “É inútil dar alarma, deve ela participar da conjura, bem como Smierdiákov; estão todos comprados!” Sua resolução estava tomada; deu uma grande volta, transpôs o passadiço, foi sair em um beco atrás, deserto e desabitado, limitado de um lado pela sebe da horta vizinha, do outro, pela alta paliçada que cercava o jardim de Fiódor Pávlovitch. Escolheu para escalá-la precisamente o lugar por onde trepara, segundo a tradição, Lisavieta Smierdiachtchaia. “Se ela pôde passar por ali — pensou ele —, por que não faria eu outro tanto?” De um salto suspendeu-se à paliçada, içou-se e encontrou-se escarranchado no alto. Bem perto erguia-se o banheiro, mas via de seu lugar as janelas iluminadas da casa. “É isso, há luz no quarto de dormir do velho, ela está lá!” E saltou para o jardim. Muito embora soubesse que Grigóri e talvez Smierdiákov estivessem doentes, que ninguém podia ouvi-lo, ficou imóvel instintivamente e prestou ouvidos. Por toda parte um silêncio de morte, uma calma absoluta, nem o menor sopro. “Só se ouve o silêncio...”, voltou-lhe esse verso à memória, “contento que não me hajam ouvido! Acho que não.” Então pôs-se a caminhar pela relva a passos de lobo, de ouvido atento, evitando as árvores e as moitas. Lembrava-se de que havia sob as janelas espessos maciços de sabugueiro e de briônia. A porta que dava acesso ao jardim, do lado esquerdo da fachada, estava fechada, verificou-o ao passar. Por fim, atingiu os maciços e ali se ocultou. Retinha a respiração. “É preciso esperar. Se me ouviram, devem estar agora à escuta... Contanto que não vá tossir ou espirrar!...”
Esperou dois minutos. Seu coração batia; por momentos, quase sufocava. “Essas palpitações não cessarão, não posso mais esperar.” Mantinha-se na sombra, por trás duma moita meio iluminada. “Uma briônia, como suas bagas estão vermelhas!”, murmurou ele, maquinalmente. A passos de lobo, aproximou-se da janela e ergueu-se nas pontas dos pés. O quarto de dormir de Fiódor Pávlovitch aparecia-lhe totalmente, pequena peça separada em duas por biombos vermelhos, “chineses”, como os chamava seu proprietário. “Grúchenhka está ali atrás”, pensou Mítia. Pôs-se a examinar Fiódor Pávlovitch, vestido com um roupão de seda raiada — que Mítia nunca vira usado por ele — com um cordão que terminava em borlas. A gola dobrada deixava ver uma camisa elegante de fino pano de Holanda, ornada de botões de ouro. Sua cabeça estava enrolada com o mesmo lenço vermelho com que o vira Aliócha. “Faz-se bonito.”
Fiódor Pávlovitch conservava-se perto da janela, com ar pensativo. De súbito, voltou a cabeça, escutou e, não ouvindo nada, aproximou-se da mesa, serviu-se de meio copo de conhaque. Depois suspirou profundamente, fez uma pausa. Após isso, dirigiu-se com ar distraído para o espelho, ergueu um pouco o lenço para examinar as equimoses e escaras. “Está só muito provavelmente.” O velho afastou-se do espelho e pôs-se diante da janela. Mítia recuou vivamente para a sombra.
“Ela está talvez por trás dos biombos, já dormindo.” Fiódor Pávlovitch retirou-se da janela. “É ela que ele espera, não está, pois, aqui; senão, por que olharia ele para a escuridão? É a impaciência que o devora.” Mítia voltou a observar. O velho estava sentado diante da mesa, visivelmente triste. Por fim, apoiou o cotovelo na mesa, com a face encostada à mão direita. Mítia olhava avidamente. “Sozinho, sozinho! Se ela estivesse aqui, estaria ele com outro ar.” Coisa estranha; experimentou de repente um despeito estranho pelo fato de não se encontrar ela ali. “O que me aborrece não é sua ausência, mas não saber a que me ater”, explicava a si mesmo. Mais tarde, lembrou-se Mítia de que seu espírito estava então extraordinariamente lúcido e que se dava ele conta dos mínimos detalhes. Mas a angústia provinda da incerteza crescia em seu coração. “Está ela aqui, sim ou não?” De súbito decidiu-se, estendeu o braço, bateu na janela. Duas pancadas levemente, depois três outras mais depressa: toc, toc, toc, sinal convencionado entre o velho e Smierdiákov, para anunciar que Grúchenhka tinha chegado. O velho estremeceu, ergueu a cabeça e correu para a janela. Mítia voltou para a sombra. Fiódor Pávlovitch abriu, inclinou-se.
— Grúchenhka, és tu? — perguntou ele, com voz trêmula. — Onde estás, minha querida, meu anjo, onde estás? — Bastante emocionado, ofegava.
“Sozinho.”
— Onde estás então? — repetiu o velho, com o busto debruçado para fora, a fim de olhar para todos os lados. — Vem cá, preparei um presente para ti, vem vê-lo!
“O envelope com os três mil rublos.”
— Mas onde estás, então? Estás à porta? Vou abrir...
E Fiódor Pávlovitch arriscava-se a cair, olhando para a porta que dava para o jardim e escrutando as trevas. Ia certamente apressar-se em abrir a porta, sem esperar a resposta de Grúchenhka. Mítia não se moveu. A luz iluminava nitidamente o perfil detestado do velho, com seu pomo de adão, seu nariz recurvado, seus lábios sorrindo em voluptuosa expectativa. Uma cólera furiosa ferveu de súbito no coração de Mítia: “Eis meu rival, o carrasco de minha vida!” Era um acesso irresistível, o arrebatamento de que falara a Aliócha, por ocasião de sua conversa no pavilhão, em resposta à sua pergunta: “Como podes dizer que matarás teu pai?”
“Não sei — dissera Mítia —, talvez mate, talvez não. Temo não poder suportar seu rosto naquele momento. Odeio seu pomo de adão, seu nariz, seus olhos, seu sorriso impudente. Causa-me asco. Eis o que temo, não poderei conter-me...”
A aversão tornava-se intolerável. Mítia, fora de si, tirou do bolso o pilão de cobre.
“Deus me preservou naquele momento”, dizia mais tarde Mítia; naquele momento, com efeito, Grigóri, sofrendo, despertou. Antes de deitar-se, tinha tomado o remédio de que Smierdiákov falara a Ivan Fiódorovitch. Depois de haver-se esfregado, ajudado pela mulher, com vodca misturada a uma infusão secreta muito forte, bebeu o resto da droga, enquanto Maria Ignátievna recitava uma prece. Ela também bebeu e, não tendo o hábito, adormeceu com um sono de chumbo, ao lado do marido. De repente, ele despertou, refletiu um instante e, muito embora sentisse uma dor aguda nos rins, levantou-se e vestiu-se à pressa. Talvez se censurasse o dormir, estando a casa sem guarda num tempo tão perigoso. Smierdiákov, esgotado pela crise, jazia imóvel no quarto vizinho. Marfa Ignátievna não se movera; “está fatigada”, pensou Grigóri, depois de havê-la olhado e saiu gemendo para o patamar. Quis somente lançar uma olhadela, não tendo forças para ir mais longe, tanto lhe doíam os rins e a perna direita. De súbito lembrou-se de que não havia fechado com chave a portinha do jardim. Era um homem meticuloso, escravo da ordem estabelecida e dos hábitos inveterados. Coxeando e com contorções de dor, desceu o patamar e dirigiu-se ao jardim. Com efeito, a porta estava escancarada. Entrou maquinalmente; acreditara avistar ou ouvir alguma coisa, mas, olhando para a esquerda, notou a janela aberta onde ninguém se via. “Por que está aberta? Não se está mais no verão”, pensou Grigóri. No mesmo instante, bem à frente, a quarenta passos, uma sombra se deslocava rapidamente, alguém corria no escuro. “Meu Deus!”, murmurou ele, e, esquecendo seu lumbago, pôs-se em perseguição ao fugitivo. Tomou pelo caminho mais curto, conhecendo melhor o jardim que o outro. Este se dirigiu para o banheiro, contornou-o, lançou-se para o muro. Grigóri não o perdia de vista enquanto corria e atingiu a paliçada no momento em que Dimítri a escalava. Fora de si, Grigóri lançou um grito, avançou e agarrou-o por uma perna. Seu pressentimento não o enganara, reconheceu-o, era mesmo ele, “o execrável parricida”.
— Parricida! — vociferou o velho, mas não disse mais nada e caiu como fulminado. Mítia saltou de novo para dentro do jardim e curvou-se sobre Grigóri. Maquinalmente, desembaraçou-se do pilão que caiu a dois passos no caminho, bem em evidência. Grigóri tinha a testa a sangrar, Mítia tateou-a ansioso por saber se arrebentara o crânio do velho ou se o havia apenas entontecido com o pilão. O sangue morno jorrava, inundando seus dedos trêmulos. Tirou do bolso o lenço imaculado que pegara para ir à casa da senhora Khokhlakova e aplicou-lhe na cabeça, esforçando-se estupidamente por estancar-lhe o sangue. O lenço ficou logo embebido. “Meu Deus, para que fiz isso? Como saber o que há... que importa agora? O velho está liquidado; se o matei, tanto pior para ele!”, proferiu em voz alta. Então escalou a paliçada, saltou para o beco e se pôs a correr, metendo no bolso da sobrecasaca o lenço ensanguentado que apertava na mão direita. Alguns passantes lembraram-se mais tarde de ter encontrado naquela noite um homem que corria a bom correr. Dirigiu-se de novo para a casa Morózova. Após a partida dele, Fiénia precipitara-se para a casa do porteiro, Nazar Ivânovitch, suplicando-lhe que “não mais deixasse o capitão entrar, nem hoje, nem amanhã”. Posto ao corrente do que havia, o porteiro concordou, mas teve de subir à casa da proprietária que o mandara chamar. Encarregou de substituí-lo seu sobrinho, um rapaz de vinte anos, recentemente chegado do campo, mas esqueceu-se de mencionar o capitão. O rapaz, que se lembrava das gorjetas dele, reconheceu-o e abriu-lhe a porta logo. Sorrindo, apressou-se em informá-lo, solicitamente, de que “Agrafiena Alieksándrovna não estava em casa”.
— Onde está ela então, Prókhor? — E Mítia parou.
— Há duas horas que ela partiu para Mókroie com Timofiéi.
— Por quê?
— Não sei, para ir ter com um oficial que mandou um carro buscá-la.
Mítia precipitou-se como um louco para dentro da casa.
V
Uma decisão súbita
Fiénia achava-se na cozinha com a avó, preparando-se para deitar-se. Fiando-se no porteiro, não tinham fechado a porta. Assim que entrou, Mítia agarrou Fiénia pela garganta.
— Imediatamente... dize-me com quem está ela em Mókroie — vociferou ele.
As duas mulheres lançaram um grito.
— Ai! Vou dizer-lhe, ai, caro Dimítri Fiódorovitch, dir-lhe-ei tudo, não ocultarei nada! — gaguejou Fiénia, apavorada. — Ela foi ver um oficial.
— Que oficial?
— O mesmo que a abandonou há cinco anos.
Dimítri largou Fiénia. Estava mortalmente pálido e sem voz, mas via-se por seu olhar que compreendera tudo a meias palavras, adivinhara até o mínimo detalhe. A pobre Fiénia, evidentemente, não podia dar-se conta disso. Permanecia assentada na arca, toda trêmula, com os braços estendidos como para defender-se, sem um movimento. As pupilas dilatadas pelo pavor, fixava Mítia que estava com as mãos ensanguentadas. No caminho, devia tê-las levado ao rosto para enxugar o suor, porque a testa estava manchada, bem como a face direita. Fiénia estava a ponto de ter uma crise de nervos; a velha cozinheira olhava como uma louca, prestes a desmaiar. Dimítri sentou-se maquinalmente junto de Fiénia.
Seu pensamento vagava numa espécie de estupor. Mas tudo se explicava; estava ele ao corrente, a própria Grúchenhka lhe falara daquele oficial; bem como da carta recebida um mês antes. De modo que, há um mês, aquela intriga se desenrolava sem que o soubesse, até a chegada desse novo pretendente, e não pensara nele. Como podia ser isso? Esta pergunta erguia-se diante dele como um monstro e gelava-o de pavor.
De súbito falou docemente a Fiénia, num tom caricioso, esquecendo-se de que acabava de aterrorizá-la e tratá-la mal. Pôs-se a interrogá-la, com uma precisão surpreendente no estado em que se encontrava. Se bem que Fiénia olhasse com estupor suas mãos ensanguentadas, respondeu com solicitude a cada uma de suas perguntas. Pouco a pouco, passou mesmo ela a sentir prazer em expor-lhe todos os detalhes, não para entristecê-lo, mas como se quisesse de todo o coração prestar-lhe serviço. Contou-lhe a visita de Rakítin e Aliócha, enquanto ela estava de vigia, as palavras de despedida que sua patroa lhe mandara por Aliócha, a ele, Mítia, que devia “lembrar-se sempre de que ela o amara por uma pequena hora”. Mítia sorriu e suas faces enrubesceram-se. Fiénia, em quem o medo dera lugar à curiosidade, arriscou-se a dizer-lhe:
— O senhor tem sangue nas mãos, Dimítri Fiódorovitch.
— Sim — disse ele, olhando-as distraidamente. Reinou prolongado silêncio. Seu terror de ainda há pouco passara, uma resolução inflexível possuía-o. Levantou-se com um ar pensativo.
— Bárin, que lhe aconteceu? — perguntou Fiénia, apontando-lhe para as mãos. Falava com comiseração, como a pessoa mais próxima dele em seu pesar.
— É sangue, Fiénia, sangue humano. Meu Deus, por que tê-lo derramado?... Há uma barreira (olhava a moça como se lhe propusesse um enigma), uma barreira alta e de aspecto formidável, mas amanhã, ao nascer do sol, Mítia a transporá... Tu não compreendes, Fiénia, de que barreira se trata, não importa... amanhã saberás tudo... agora, adeus! Não serei um obstáculo, saberei retirar-me. Vive, minha adorada... tu me amaste uma hora, lembra-te sempre de Mítia Karamázov...
Saiu bruscamente, deixando Fiénia quase mais aterrorizada que havia pouco, quando se lançara ele contra ela.
Dez minutos depois, apresentou-se em casa de Piotr Ilitch Pierkhótin, o jovem funcionário a quem empenhara suas pistolas por dez rublos. Eram já oito e meia da noite e Piotr Ilitch, depois de ter tomado chá, acabava de vestir a sobrecasaca para ir jogar bilhar. Vendo Mítia e seu rosto manchado de sangue, exclamou:
— Meu Deus! Que tem o senhor?
— Nada — disse vivamente Mítia. — Vim desempenhar minhas pistolas. Obrigado. Estou com pressa, Piotr Ilitch, por favor, despacha-me logo.
Piotr Ilitch mostrava-se cada vez mais espantado. Mítia tinha entrado, com um maço de notas de banco na mão, segurando-as de maneira insólita, com o braço estendido, como para mostrá-las a todo mundo. Devia tê-las trazido assim pela rua, segundo o que contou depois o jovem criado que lhe abriu a porta. Eram cédulas de cem rublos que ele segurava com os dedos ensanguentados. Piotr Ilitch explicou mais tarde aos curiosos que era difícil avaliar a soma à primeira vista, podendo haver de dois a três mil rublos. Quanto a Dimítri “sem ter bebido, nem por isso se achava em seu estado normal, parecendo exaltado, bastante distraído e, ao mesmo tempo, absorto, como se meditasse, sem conseguir chegar a uma solução. Apressava-se, respondia com brusquidão, duma maneira estranha, tendo por momentos o ar alegre e de modo algum aflito”.
— Mas que tem o senhor, afinal? — gritou de novo, examinando-o com estupor, Piotr Ilitch. — Como pôde sujar-se dessa forma? Caiu? Olhe!
Levou-o para diante do espelho. À vista de seu rosto manchado, Mítia estremeceu, franziu as sobrancelhas.
— Diabos! Só faltava isso!
Passou as cédulas da mão direita para a esquerda e tirou vivamente o lenço. Cheio de sangue coagulado, formava ele uma bola toda colada. Mítia atirou-o ao chão.
— Com a breca! Não teria o senhor um pedaço de pano... para me limpar?
— Então não está ferido? Faria melhor lavando-se. Vou dar-lhe água.
— Perfeito... mas onde meterei isto? — e designava com embaraço o maço de cédulas, como se coubesse a Piotr Ilitch dizer-lhe onde pôr seu dinheiro.
— No bolso, ou então coloque em cima da mesa. Ninguém tocará nele.
— Em meu bolso? Ah! Sim, está bem... Não, veja o senhor, tudo isso são besteiras! Em primeiro lugar, concluamos o caso das pistolas. Entrega-me. Eis aqui o dinheiro... tenho extrema necessidade delas... e nem um minuto a perder.
E destacando do maço a primeira cédula, estendeu-a ao funcionário.
— Não tenho troco. Não tem o senhor moeda?
— Não. (Como tomado duma dúvida, Mítia verificou algumas das cédulas.) São todas iguais... — E olhou de novo para Piotr Ilitch com olhar interrogador.
— Onde fez fortuna? — perguntou Piotr Ilitch. — Um instante, vou mandar meu criado à casa dos Plótnikovi. Fecham tarde, dar-nos-ão moedas. Ei! Micha! — gritou ele, no vestíbulo.
— Em casa dos Plótnikovi? Eis uma excelente ideia! — disse Mítia.
— Micha — continuou ele, dirigindo-se ao criado que acabava de entrar —, corre à casa dos Plótnikovi e dize-lhes que Dimítri Fiódorovitch os saúda e vai para lá agora mesmo. Escuta ainda: que eles me preparem champanha, três dúzias de garrafas, embaladas como quando fui a Mókroie... Comprei então quatro dúzias (dirigia-se a Piotr Ilitch), eles estão ao corrente, não te atormentes, Micha. E depois acrescentem queijo, pastéis de Estrasburgo, salmões defumados, presunto, caviar, enfim, tudo quanto tenham lá, por cerca de cem ou 120 rublos. Que não se esqueçam de pôr bombons, peras, duas ou três melancias, ou quatro, não, uma bastará; chocolate, doce de cevada, caramelos, enfim, como da outra vez. Com o champanha deve orçar pelos trezentos rublos. Não te esqueças de nada, Micha... é mesmo Micha que ele se chama? — perguntou a Piotr Ilitch.
— Espere — disse este, que o observava com inquietação. — Será melhor que o senhor mesmo vá lá, Micha se atrapalharia.
— Receio mesmo! Ora, Micha, e eu que queria dar-te um beijo pelo trabalho... se não te atrapalhares, haverá dez rublos para ti, vá depressa... Que não se esqueçam do champanha, depois conhaque, vinho tinto e vinho branco e tudo como antes... Sabem o que havia.
— Escute, pois! — interrompeu Piotr Ilitch, impaciente desta vez. — Que o rapaz vá somente obter o troco e dizer que não fechem. O senhor mesmo irá fazer a encomenda. Dê sua cédula. Despacha-te, Micha!
Piotr Ilitch tinha pressa em despachar Micha, porque o rapaz estava de boca aberta diante do visitante, com os olhos esbugalhados, à vista do sangue e do maço de cédulas que tremia entre os dedos de Mítia, cujas instruções parecia não ter compreendido lá muito.
— E agora, vá lavar-se — disse bruscamente Piotr Ilitch. — Ponha o dinheiro em cima da mesa ou em seu bolso... Isso. Tire a sobrecasaca.
Ajudando-o a tirar a sobrecasaca, exclamou de novo:
— Olhe, há sangue em sua sobrecasaca!
— Mas não. Somente um pouco na manga e depois aqui, no lugar do lenço... deve ter escorrido através do bolso, quando me sentei em cima de meu lenço, em casa de Fiénia — explicou Mítia com ar confiante. Piotr Ilitch escutava-o com as sobrancelhas contraídas.
— Bem-arranjado está o senhor, deve ter-se batido — murmurou ele.
Segurava o jarro e ia derramando a água aos poucos. Na precipitação, Mítia lavava-se mal, as mãos tremiam. Piotr Ilitch ordenou-lhe que se ensaboasse e esfregasse mais. Tomara sobre Mítia uma espécie de ascendência que se afirmava cada vez mais. É de notar que esse rapaz não era nada medroso.
— Não limpou as unhas; agora lave o rosto, aqui, perto da têmpora, na orelha... É com essa camisa que vai partir? Aonde vai? Toda a manga direita está manchada.
— Sim, manchada — disse Mítia, examinando-a.
— Vista outra.
— Não tenho tempo. Mas olhe... — continuou Mítia sempre confiante, enxugando-se e tornando a vestir a sobrecasaca. — Vou enrolar a manga da camisa; assim, não a verão.
— Diga-me agora o que se passou. Bateu-se de novo no botequim, como da outra vez? Surrou de novo o capitão? — Piotr Ilitch evocava a cena num tom de censura. — Em quem bateu de novo... ou matou, talvez?
— Tolices!
— Como, tolices?
— Deixe isso — disse Mítia, que se pôs a rir. — Na praça, ainda há pouco, esmaguei uma velha.
— Esmagou? Uma velha?
— Um velho! — corrigiu Mítia, que fitou Piotr Ilitch rindo e gritando como se o outro fosse surdo.
— Que diabo! Um velho, uma velha... Matou alguém?
— Reconciliamo-nos, depois de havermos brigado. Deixamo-nos como bons amigos. Um imbecil... perdoou-me certamente, agora... Se se tivesse levantado, não me teria perdoado — e Mítia piscou o olho. — Mas que vá ele para o diabo! Entendeu, Piotr Ilitch? Deixemos isso! Não quero falar disso neste momento! — declarou redondamente Mítia.
— Falo isso porque o senhor gosta de brigar com não importa quem... como naquela ocasião, por bagatelas, com aquele capitão. O senhor acaba de bater-se e vai agora cair na orgia! Eis seu caráter completo. Três dúzias de garrafas de champanha! Para que tamanha quantidade?
— Bravo! Dá-me agora as pistolas. O tempo urge. Gostaria bem de conversar contigo, meu caro, mas não tenho tempo. Aliás, é inútil, é tarde demais. Ah! Onde está o dinheiro, que fiz dele? — Pôs-se a procurar nos bolsos.
— O senhor mesmo o colocou em cima da mesa... ei-lo. Tinha-se esquecido? O senhor parece não prestar atenção ao dinheiro. Eis suas pistolas. É estranho, às cinco horas o senhor as empenha por dez rublos e agora tem o senhor quantos, dois, três mil rublos, talvez?
— Três, talvez — e Mítia riu, metendo as cédulas nos bolsos.
— O senhor vai perdê-las desse jeito. Será dono de minas de ouro?
— De minas? De minas de ouro! — exclamou Mítia com todas as forças, desatando a rir. — Quer ir às minas, Pierkhótin? Há aqui uma senhora que lhe dará mil rublos somente para que o senhor vá para lá. Deu-mos, a mim, tanta questão faz das minas! Conhece a senhora Khokhlakova?
— De vista somente, mas já ouvi falar dela. Na verdade, foi ela quem o presenteou com esses três mil rublos? Assim, sem mais nem menos? — indagou Piotr Ilitch, olhando-o com desconfiança.
— Amanhã, quando o sol se levantar, quando Febo resplandecer eternamente jovem, vá à casa dela glorificando o Senhor e pergunte-lhe se ela mos deu ou não. Informe-se.
— Ignoro as relações entre os dois... já que o senhor se mostra tão afirmativo, devo necessariamente acreditar... Agora que o senhor está com o dinheiro, não é a Sibéria que o tenta... Seriamente, aonde vai o senhor?
— A Mókroie.
— A Mókroie? Mas já é noite.
— Tinha tudo, não tenho mais nada... — disse de repente Mítia.
— Como, mais nada? Tem milhares de rublos e não é mais nada?
— Não falo de dinheiro. Que o diabo o carregue! Falo do caráter das mulheres. “As mulheres têm o caráter crédulo, versátil, depravado.” Foi Ulisses quem o disse e com bastante razão.
— Não o compreendo.
— Estou então bêbedo?
— Pior que isso.
— Moralmente bêbedo, Piotr Ilitch, moralmente... E basta!
— Como? Carrega sua pistola?
— Carrego minha pistola.
Com efeito, tendo Mítia aberto a caixa, pegou pólvora que derramou num cartucho. Antes de pôr a bala no cano, examinou-a à luz de vela.
— Por que examina essa bala? — perguntou Piotr Ilitch, intrigado.
— À toa. Uma ideia que me veio. Tu, se pensasses em meter uma bala no crânio, olhá-la-ias antes de pô-la na pistola?
— Por que olhá-la?
— Ela me atravessará o crânio, então isso me interessa: ver como é ela feita... Aliás, tolices, tudo isso. Está pronto — acrescentou ele, uma vez introduzida a bala e socada com estopa. — Meu caro Piotr Ilitch, se soubesses como tudo isso é absurdo! Dá-me um pedaço de papel.
— Aqui está.
— Não, papel para escrever. Isso. — E Mítia, pegando uma pena, escreveu vivamente duas linhas, depois dobrou o papel em quatro e meteu-o no bolso do colete. Arrumou as pistolas na caixa que fechou a chave e conservou na mão. Depois olhou Piotr Ilitch, sorrindo, com ar pensativo.
— Vamos, agora! — disse ele.
— Ir aonde? Não, espere... Então quer o senhor meter uma bala no crânio... — proferiu Piotr Ilitch, inquieto.
— Aquela bala? Tolices! Quero viver, amo a vida. Saiba-o. Amo o louro Febo e sua quente luz... Meu caro Piotr Ilitch, saberias afastar-te?
— Como assim?
— Deixar o caminho livre ao ser querido e àquele a quem odeias... querer bem mesmo àquele a quem odiasses... e dizer-lhes: Deus vos guarde! Ide, passai, e eu...
— E o senhor?
— Basta isso, vamos.
— Por Deus, vou contar tudo a alguém, para que o impeçam de partir — declarou Piotr Ilitch, fixando-o. — Que vai o senhor fazer em Mókroie?
— Há lá uma mulher, uma mulher, basta para ti, Piotr Ilitch, de explicações!
— Escute, se bem que seja o senhor violento, sempre me agradou... e estou inquieto.
— Obrigado, irmão. Sou violento, dizes. É verdade. Não faço senão repetir a mim mesmo: violento! Ah! Eis Micha, tinha-me esquecido dele.
Micha vinha chegando com um maço de dinheiro miúdo; anunciou que tudo ia bem em casa dos Plótnikovi: embalavam as garrafas, o peixe, o chá, tudo estaria pronto. Mítia pegou uma cédula de dez rublos e entregou-a a Piotr Ilitch, atirando outra para Micha.
— Proíbo-lhe! Não quero isso em minha casa, estraga os criados. Poupe seu dinheiro, por que gastá-lo? Amanhã virá o senhor pedir-me dez rublos. Por que põe sempre o dinheiro nesse bolso? Vai perdê-lo.
— Escuta, meu caro, vá a Mókroie comigo.
— Que irei fazer lá?
— Queres, vamos esvaziar uma garrafa, bebamos à vida! Tenho sede, quero beber contigo. Nunca bebemos juntos, não é mesmo?
— Pois bem, vamos ao botequim.
— Não tenho tempo para isso, mas vamos à casa dos Plótnikovi, num reservado de trás. Queres que te proponha um enigma?
— Faça-o.
Mítia tirou do colete o papelzinho e mostrou-o a Piotr Ilitch. Havia nele escrito visivelmente: “Castigo-me como expiação de minha vida inteira.”
— Na verdade, vou contar tudo a alguém — disse Piotr Ilitch.
— Não terás tempo, meu caro, vamos beber.
A venda dos Plótnikovi — ricos comerciantes —, situada bem perto da casa de Piotr Ilitch (na esquina da rua), era a principal mercearia da cidade. Encontrava-se lá de tudo, como não importa qual armazém da capital: vinho da adega dos irmãos Eliessiéievi, frutas, charutos, chá, café, etc. Havia sempre três caixeiros e dois rapazinhos para recados. Nossa região empobreceu-se, os proprietários dispersaram-se, o comércio foi-se estacando, mas a mercearia prosperava cada vez mais, compradores não faltavam para mercadorias. Mítia estava sendo esperado com impaciência, pois era lembrado que, três ou quatro semanas antes, fizera ele encomendas para várias centenas de rublos pagos à vista (não lhas teriam entregue a crédito). Então, como hoje, tinha ele na mão um maço de dinheiro grosso que prodigalizava a torto e a direito, sem mercadejar, nem se inquietar com a quantidade das compras. Dizia-se na cidade que em sua excursão a Mókroie com Grúchenhka “dissipara em um dia e uma noite três mil rublos e que voltara da festa sem vintém, tal como a mãe o pusera no mundo”. Contratara um grupo de ciganos que acampavam então em nossas paragens e aproveitaram de sua embriaguez para lhe subtrair dinheiro e beber sem controle vinhos caros. Contava-se, rindo, que em Mókroie, oferecera ele champanha aos rústicos, dera bombons e pastéis de Estrasburgo de presente a moças e mulheres do campo. Riam também entre nós, sobretudo no botequim (mas por prudência, na ausência do interessado), da confissão pública de Mítia, de que o único favor que lhe valera aquela “escapada” com Grúchenhka fora “a permissão de beijar-lhe o pé, e nada mais”.
Quando Mítia e Piotr Ilitch chegaram à venda, uma tieliega atrelada a três cavalos, com um tapete e guizos, esperava ali já, com o cocheiro Andriéi. Estava acabando de arranjar uma caixa de mercadorias e só se esperava a chegada de Mítia para fechá-la e pô-la no lugar. Piotr Ilitch ficou admirado.
— Donde vem essa tieliega? — perguntou ele.
— Indo à tua casa, encontrei Andriéi e ordenei-lhe que viesse diretamente para aqui. Não há tempo a perder! Na derradeira vez, viajei com Timofiéi, mas hoje seguiu ele na frente com uma mágica. Andriéi, estaremos muito atrasados?
— Eles nos precederão de uma hora, quando muito — apressou-se em responder Andriéi, um cocheiro na força da idade, ruivo e seco. — Sei como vai Timofiéi, sua corrida não pode comparar-se com a nossa, Dimítri Fiódorovitch. Não terão uma hora de avanço!
— Cinquenta rublos de gorjeta, se não passarmos de uma hora de atraso.
— Respondo por isso, Dimítri Fiódorovitch.
Todo agitado, Mítia dava ordens de uma maneira estranha, sem seguimento. Piotr Ilitch achou oportuno intervir.
— Por quatrocentos rublos, exatamente como da outra vez — ordenava Mítia. — Quatro dúzias de garrafas de champanha, nem uma a menos.
— Por que tal quantidade, para quê? Pare! — vociferou Piotr Ilitch.
— Que contém essa caixa? Haverá aí coisas no valor de quatrocentos rublos?
Os caixeiros, que se afanavam com entonações melífluas, explicaram-lhe imediatamente que não havia naquela primeira caixa senão meia dúzia de garrafas de champanha e “tudo quanto era preciso para começar”, frios, bombons, etc. As principais “mercadorias” seriam expedidas à parte, como da outra vez, numa tieliega especial, puxada também por três cavalos, que chegaria “uma hora, quando muito, depois de Dimítri Fiódorovitch”.
— Não mais de uma hora, e ponham o máximo possível de bombons e caramelos; as moças de lá gostam disso — insistiu Mítia.
— Caramelos? Pois seja. Mas, por que quatro dúzias de garrafas? Uma só basta — disse Piotr Ilitch, quase com cólera. Pôs-se a mercadejar, a exigir uma fatura e não conseguia acalmar-se. Só salvou, porém, uma centena de rublos. Ficou-se de acordo que as mercadorias entregues só montariam a trezentos rublos.
— Que o diabo os carregue! — exclamou ele, como que reconsiderando. — Que tenho eu com isso? Joga o dinheiro fora, se nada te custou!
— Vem cá, homem econômico, adianta-te, não te zangues! — E Mítia arrastou-o para o reservado do fundo da venda. — Vão servir-nos bebida. Piotr Ilitch, vem comigo, porque gosto dos rapazes gentis como tu.
Mítia sentou-se diante de uma mesinha coberta por uma toalha suja. Piotr Ilitch tomou lugar em frente a ele e trouxeram-lhes champanha. Perguntaram se os cavalheiros não queriam ostras, “as primeiras ostras recebidas bem recentemente”.
— Ao diabo as ostras! Não gosto de ostras e, aliás, nada quero comer — respondeu grosseiramente Piotr Ilitch.
— Não há tempo para ostras — observou Mítia. — Aliás, estou sem apetite. Sabes, meu amigo, que jamais gostei da desordem?
— Mas quem gosta, afinal? Misericórdia! Três dúzias de garrafas de champanha para os mujiques. É de causar indignação a qualquer um.
— Não é disso que quero falar, mas da ordem superior. Não existe em mim essa ordem... De resto, tudo está acabado, inútil afligir-se. É demasiado tarde. Toda a minha vida foi desordenada. É tempo de ordená-la. Faço trocadilhos, hem?
— Deliras, isso sim.
— “Glória ao Altíssimo na Terra,/ Glória ao Altíssimo em mim!”
Esses versos escaparam-se um dia de minha alma, não são versos, são lágrimas... Eu mesmo os compus... Mas não quando arrastei o capitão pela barba.
— Por que falas do capitão?
— Por que falo? Tolice! Tudo acaba, tudo chega ao mesmo total.
— Tuas pistolas me perseguem.
— Tolices ainda! Bebe e deixa lá teus devaneios. Amo a vida, amei-a demais, até enjoar. Basta agora. Bebamos à vida, meu caro. Por que estou contente comigo mesmo? Sou vil, minha baixeza me atormenta, mas estou contente comigo mesmo. Abençoo a Criação, estou pronto a abençoar Deus e Suas obras, mas... é preciso destruir um inseto maligno, para impedi-lo de estragar a vida dos outros... Bebamos à vida, irmão! Que há de mais precioso? Bebamos também a uma bela rainha!
— Pois seja! Bebamos à vida e à tua rainha!
Esvaziaram um copo. Mítia, malgrado sua exaltação, estava triste. Parecia presa duma pesada preocupação.
— Micha... é Micha? Ei! Meu caro, vem cá, bebe este copo em honra de Febo dos cabelos de ouro que se levantará amanhã...
— Por que oferecer-lhe bebida!? — exclamou Piotr Ilitch, irritado.
— Mas deixa, eu o quero.
— Ora!
Micha bebeu, cumprimentou e saiu.
— Ele se recordará mais tempo de mim. Uma mulher, amo uma mulher! Que é a mulher? A rainha da Terra! Estou triste, Piotr Ilitch. Lembras-te de Hamlet: “Sinto-me triste, bem triste, Horácio... Ai, pobre Yorick!” Sou eu, talvez, Yorick. Justamente, sou agora Yorick e depois um crânio.
Piotr Ilitch escutava-o em silêncio; Mítia calou-se igualmente.
— Que cão é esse aí? — perguntou, com ar distraído ao caixeiro, ao notar, num canto, um lindo fraldiqueiro de olhos negros.
— É o fraldiqueiro de Varvara Alieksiêievna, nossa patroa — respondeu o caixeiro. — Ela esqueceu-o aqui, é preciso levá-lo à casa dela.
— Vi um semelhante... no regimento... — disse Mítia, com ar pensativo —, mas tinha uma pata traseira quebrada... Piotr Ilitch, queria perguntar-te: nunca roubaste?
— Por que essa pergunta?
— À toa... estás vendo? O bem alheio, o que se tira do bolso... Não falo do Tesouro público, todo mundo o pilha, e tu também, decerto.
— Vá para o diabo!
— Nunca roubaste do bolso o porta-moedas de alguém?
— Roubei uma vez vinte copeques de minha mãe, quando tinha nove anos. Peguei-os de cima da mesa e escondi-os em minha mão.
— E depois?
— Levei uma surra de chicote, naturalmente. Mas tu, roubaste?
— Sim — confessou Mítia, piscando o olho com ar malicioso.
— E que foi?
— Vinte copeques de minha mãe. Tinha nove anos. Restituí-lhos ao fim de três dias. — E levantou-se.
— Dimítri Fiódorovitch, é preciso apressar-se — gritou Andriéi à porta da venda.
— Está tudo pronto? Partamos! Ainda uma palavra e... a Andriéi um copo de vodca, depois conhaque, imediatamente! Esta caixa (com as pistolas) debaixo do assento. Adeus, Piotr Ilitch, não guardes má lembrança de mim.
— Mas voltas amanhã?
— Absolutamente.
— O senhor quer pagar? — interveio o caixeiro.
— Pagar? Mas decerto!
Tirou de novo do bolso um maço de notas, atirou três sobre o balcão e saiu. Todos o acompanharam cumprimentando-o e desejando-lhe boa viagem. Andriéi, enrouquecido por causa do conhaque que acabava de tomar, montou no assento. Mas, no momento em que Mítia se instalava, Fiénia ergueu-se diante dele. Acorria resfolegante, juntou as mãos e lançou-se a seus pés:
— Bátiuchka, Dimítri Fiódorovitch, não ponha a perder minha ama! E eu que tudo lhe contei!... Não lhe faça mal, a ele, é seu primeiro amor. Voltou da Sibéria para casar-se com Agrafiena Alieksándrovna... Não destrua uma vida!
— Ah!, ah!, ah! Eis o que é a coisa! — murmurou Piotr Ilitch. — Vai haver banzé lá! Agora compreendo tudo. Dimítri Fiódorovitch, dá-me imediatamente tuas pistolas, se queres ser um homem, entendes?
— Minhas pistolas? Espera, meu caro, lançá-las-ei num charco, na estrada. Fiénia, levanta-te, não fiques a meus pés. Doravante Mítia, esse tolo, não porá mais ninguém a perder. Escuta, Fiénia — gritou ele, uma vez sentado —, eu te ofendi ainda há pouco, perdoa-me... Se recusares, tanto pior, nada para mim tem importância agora! A caminho, Andriéi, e depressa!
Andriéi fez seu chicote estalar, a sineta tilintou.
— Até a vista, Piotr Ilitch! Para ti, minha derradeira lágrima!
“Ele não está embriagado, e, no entanto, quantas pataratas ele solta!”, pensou Piotr Ilitch. Tinha intenção de ficar para fiscalizar a expedição do resto das provisões, suspeitando de que iriam enganar Mítia, mas, de súbito, zangado consigo mesmo, cuspiu e foi jogar bilhar.
— É um imbecil, mas um bom rapaz — dizia a si mesmo, a caminho. — Ouvi falar desse “antigo” oficial de Grúchenhka. Se ele chegou... Ah, aquelas pistolas! Mas que diabo? Serei mentor dele? À vontade! Aliás, não acontecerá nada, cão que ladra não morde. Uma vez embriagado, bater-se-ão, depois reconciliar-se-ão. São homens de ação. Que é isso de: “eu me afasto, eu me castigo”; não haverá nada! Estando bêbedo, no botequim, falou vinte vezes nesse estilo. Agora, está “bêbedo moralmente”. Serei seu mentor? Sem dúvida alguma deve ter-se batido, todo o rosto está ensanguentado. Com quem? Informar-me-ei no botequim. E seu lenço cheio de sangue... Ora essa, ficou em minha casa, no chão... ora bolas!
Chegou ao botequim de muito mau humor e começou logo uma partida, o que teve por efeito desanuviá-lo. Jogou outra e contou que Dimítri Karamázov estava de novo com dinheiro, aí uns três mil rublos, que ele próprio vira. Partira de novo para Mókroie para farrear com Grúchenhka. Seus ouvintes escutaram-no com curiosidade e ar sério. Deixou-se mesmo de jogar.
— Três mil rublos? Onde os teria arranjado?
Fizeram-lhe perguntas. A notícia de que aquele dinheiro provinha da senhora Khokhlakova foi acolhida com ceticismo.
— Não teria ele roubado o velho?
— Três mil rublos! É duvidoso.
— Gabou-se em voz alta de que mataria o pai, todos aqui o ouviram. Falava justamente de três mil rublos...
Piotr escutava e tornou-se de súbito lacônico em suas respostas. Não disse uma palavra a respeito do sangue que havia no rosto e nas mãos de Mítia, coisa a respeito da qual, ao chegar ali, tinha intenção de falar. Começou-se a terceira partida, e pouco a pouco a conversação desviou-se de Mítia. Quando ela terminou, Piotr Ilitch não teve mais vontade de jogar, pousou o taco e partiu, sem cear, como havia projetado. Na praça, parou perplexo, pensando em ir diretamente à casa de Fiódor Pávlovitch para se informar se havia acontecido alguma coisa. “Por uma bagatela irei despertar a casa e fazer escândalo. Que diabo, serei mentor dele?”
Já voltava para casa em muito má disposição de ânimo, quando, de repente, se lembrou de Fiénia: “Diabos! Deveria tê-la interrogado ainda há pouco — pensou ele, cheio de despeito —, saberia tudo.” Sentiu bruscamente uma impaciência e um desejo tão vivos de lhe falar e de informar-se que, no meio do caminho, desviou-se para a casa da senhora Morózova, onde morava Grúchenhka. Chegando ao portão, bateu, e a pancada que ressoou na noite desembriagou-o, ao mesmo tempo que o irritava. Ninguém respondeu, todo mundo dormia na casa. “Vou fazer escândalo!”, pensou com mal-estar; mas longe de ir-se embora, bateu com mais força. O barulho ressoou por toda a rua. “Não poderão deixar de abrir-me!”, dizia a si mesmo, exasperado contra si, enquanto redobrava os golpes.
VI
Sou eu quem chega
E Dimítri Fiódorovitch voava para Mókroie. A distância era de vinte verstas aproximadamente; porém os cavalos galopavam de maneira a transpô-la em uma hora e um quarto. A rapidez da corrida refrescou Mítia. O ar estava vivo; o céu, estrelado. Era a mesma noite, talvez a mesma hora, em que Aliócha, caído em terra, “jurava com arrebatamento amá-lo sempre”. A alma de Mítia sentia-se perturbada e, malgrado sua ansiedade, não tinha pensamento naquele instante senão para seu ídolo, que queria rever pela derradeira vez. Nem um minuto seu coração hesitou. Crer-se-á dificilmente que esse ciumento não sentisse ciúme algum daquele personagem novo, daquele rival que surgia bruscamente. O mesmo não se daria para com não importa qual outro, no sangue do qual talvez mergulhasse as mãos, mas contra o primeiro amante dela não sentia ele no momento nem ódio ciumento nem mesmo animosidade; é verdade que ainda não o havia visto. “E o direito incontestável deles, é seu primeiro amor que ela não esqueceu após cinco anos; ela não amou senão ele, pois, durante todo o tempo. Por que me vim meter eu de través? Que venho fazer aqui? Afasta-te, Mítia, deixa a estrada livre! Aliás, tudo está acabado agora, mesmo sem esse oficial...”
Eis em que termos teria ele podido exprimir suas sensações, se tivesse podido raciocinar. Mas era incapaz. Sua resolução nascera espontaneamente, fora concebida, adotada com todas as consequências às primeiras palavras de Fiénia. No entanto, sentia uma perturbação dolorosa: a resolução não lhe dera calma. Demasiadas recordações o atormentavam. Por momentos, isso lhe parecia estranho; ele mesmo escrevera sua sentença: “Castigo-me e expio.” O papel estava no bolso; a pistola, carregada; decidira acabar amanhã aos primeiros raios de “Febo dos cabelos de ouro”. Entretanto não podia romper com o passado que o acabrunhava, sentia-o dolorosamente, e essa ideia desesperava-o. Teve um momento vontade de mandar Andriéi parar, de descer da tieliega, de pegar sua pistola e de acabar de uma vez, sem esperar o dia. Mas foi apenas um relâmpago. Os cavalos “devoravam o espaço”, e à medida que se aproximava do objetivo, somente a ideia dela o possuía cada vez mais e bania de seu coração os pensamentos fúnebres. Desejava tanto vê-la, fosse apenas de passagem e de longe! “Verei como está ela agora com ele, seu primeiro amor; nada mais quero.” Jamais sentira tanto amor por aquela mulher fatal, um sentimento tão novo e nunca experimentado, que ia até a imploração, até o desaparecimento dela! “E eu desaparecerei!”, proferiu ele de súbito, numa espécie de êxtase.
Havia quase uma hora que rodavam. Mítia mantinha-se calado e Andriéi, mujique falador, no entanto, não dissera uma palavra, como se temesse falar, limitando-se a estimular sua atrelagem baia, magra, mas fogosa. De súbito, Mítia exclamou com viva inquietação:
— Andriéi, e se estiverem dormindo!?
Até então não pensara nisso.
— Pode muito bem acontecer, Dimítri Fiódorovitch.
Mítia franziu o cenho. Acorria ele com tais sentimentos... e dormiam... ela também, talvez com ele... A cólera ferveu no coração.
— Chicoteia, Andriéi, vivamente!
— Talvez não estejam ainda deitados — sugeriu Andriéi, após um silêncio. — Ainda há pouco Timofiéi dizia que havia numerosa companhia.
— Na posta?
— Não, na hospedaria, em casa dos Plastunovi.
— Sei. Como é isso? Uma numerosa companhia? Quem são?
Essa notícia inesperada inquietava bastante Mítia.
— Segundo Timofiéi, são todos homens: dois da cidade, ignoro quais, depois dois forasteiros, parece, e talvez mais algum outro. Parece que estão jogando baralho.
— Baralho?
— Então talvez não durmam ainda. Devem ser 11 horas, quando muito.
— Chicoteia, Andriéi, chicoteia — repetiu nervosamente Mítia.
— Tenho uma coisa a perguntar-lhe — continuou Andriéi ao fim dum momento —, mas receio zangá-lo, bárin.
— Que queres?
— Ainda há pouco, Fiedóssia Márkovna suplicou-lhe de joelhos que não fizesse mal à patroa e a outro... então, como o estou levando para lá... Perdoe-me, senhor, digo isso em consciência, mas talvez seja uma tolice.
Mítia segurou-o bruscamente pelos ombros.
— És cocheiro, não?
— Sim.
— Então sabes que é preciso deixar o caminho livre. Julgas, por acaso, que um cocheiro não deve dar lugar a ninguém, esmagar os outros para passar? Não, cocheiro, não é preciso esmagar as pessoas, não é preciso estragar a vida alheia; se o fizeste, se destruíste a vida de alguém, castiga-te, desaparece!
Mítia falava no cúmulo da exaltação. Malgrado o espanto, Andriéi prosseguiu a conversa.
— É verdade, Dimítri Fiódorovitch, o senhor tem razão, não é preciso atormentar ninguém, nem nenhum animal, porque são criaturas de Deus, como o cavalo, por exemplo. Há cocheiros que martirizam o animal sem razão, nada os detém, correm infernalmente desabalados para...
— O inferno? — interrompeu Mítia com uma brusca explosão de riso. — Andriéi, alma simplória — e agarrou-o de novo pelos ombros —, dize-me: Dimítri Fiódorovitch Karamázov irá para o inferno, na tua opinião?
— Não sei, isso depende do Senhor... Veja: quando o Filho de Deus morreu na cruz, foi direto para o inferno e livrou todos os danados. E o inferno gemeu ao pensar que não chegariam mais pecadores. E o Senhor disse então ao inferno: “Não gemas, inferno, hospedarás grandes senhores, intendentes, juízes, ricaços, e estarás de novo cheio como sempre estiveste, até que eu volte.” Tais foram Suas palavras...
— Eis uma bela lenda popular! Chicoteia o cavalo da esquerda, Andriéi.
— Eis, senhor, aqueles a quem está destinado o inferno; quanto ao senhor, nós o vemos como uma criança... E, se bem que seja violento, o Salvador perdoá-lo-á por causa de sua simplicidade.
— E tu, Andriéi, me perdoas?
— Mas que hei de perdoar-lhe? O senhor não me fez nada.
— Não, por todos; tu só, pelos outros, agora, na estrada, perdoas-me? Fala, alma simples!
— Oh, senhor! Dá medo conduzi-lo, sua conversa é estranha...
Mas Mítia não ouviu. Rezava com exaltação.
— Senhor, recebe-me, em minha iniquidade, mas não me julgues. Deixa-me entrar sem julgamento, porque eu mesmo me condenei, não me julgues, porque eu Te amo, meu Deus! Sou vil, mas amo-Te: no inferno mesmo, se para lá me enviares, proclamarei meu amor por toda a eternidade. Mas deixa-me acabar de amar... aqui embaixo... ainda cinco horas, até o nascer de Teu sol... Porque eu amo a rainha de minha alma, não posso impedir-me de amá-la. Tu me vês todo inteiro. Cairei de joelhos diante dela... “Tu tens razão — dir-lhe-ei — em prosseguir teu caminho... Adeus, esquece tua vítima, não tenhas nenhuma inquietação!”
— Mókroie! — gritou Andriéi, mostrando a aldeia com seu chicote. Através da escuridão lívida aparecia a massa negra das construções que se estendiam por uma distância considerável. A aldeia de Mókroie contava duas mil almas, mas, àquela hora, todas dormiam, somente raras luzes furavam a escuridão.
— Depressa, Andriéi, depressa, estou chegando! — exclamou Mítia, como em delírio.
— Não estão dormindo! — disse de novo Andriéi, apontando para a hospedaria dos Plastunovi, situada à entrada e cujas seis janelas para a rua estavam iluminadas.
— Não dormem! Faze barulho, Andriéi, vá a galope, faze tilintar os guizos. Que toda a gente saiba quem chega! Sou eu em pessoa! — exclamou Mítia, cada vez mais excitado.
Andriéi pôs os cavalos em galope e chegou barulhentamente ao pé do patamar, onde parou a atrelagem estafada. Mítia saltou em terra. Justamente naquele momento o dono da hospedaria, que ia deitar-se, teve a curiosidade de olhar quem chegava com tanto estardalhaço.
— És tu, Trifon Borísovitch?
O dono debruçou-se, olhou, desceu vivamente, obsequioso e encantado.
— Bátiuchka, Dimítri Fiódorovitch, o senhor aqui, de novo?
Esse Trifon Borísovitch era um latagão baixo e gordo, robusto, de rosto um pouco balofo, ar severo e implacável, sobretudo com os mujiques de Mókroie, mas sabendo tomar rapidamente a expressão mais obsequiosa, quando farejava uma pechincha. Usava a camisa russa, de gola dobrada; tinha recursos, mas só sonhava em elevar-se. Mantinha a metade dos mujiques em suas garras; todos ali pelos arredores lhe deviam. Alugava terras dos proprietários rurais, ele mesmo as comprava e mandava lavrá-las pelos mujiques em pagamento de suas dívidas, das quais jamais conseguiam eles libertar-se. Era viúvo e tinha quatro filhos; uma, já viúva, vivia em casa do pai com os dois filhos de pequena idade e trabalhava para ele como criada. A segunda estava casada com um funcionário cuja fotografia, minúscula, de uniforme e com dragonas, se via entre outras, na hospedaria. As duas mais moças, por ocasião da festa comunal ou para fazer visitas, punham vestidos azul-celeste ou verde, na moda, com uma cauda de um archin, mas, no dia seguinte, já de pé desde o nascer do dia, como de costume, varriam os quartos, carregavam água, limpavam o lixo deixado pelos viajantes. Apesar de já ter feito um apreciável pé de meia, Trifon Borísovitch gostava bem de espoliar os farristas. Lembrava-se de que, um mês antes, o rega-bofe de Dimítri Fiódorovitch com Grúchenhka lhe proporcionara, em um dia, mais de duzentos rublos, se não trezentos, e acolhia-o agora com alegre solicitude, farejando nova pechincha, somente pelo jeito com que Mítia chegara ao patamar.
— Bátiuchka, Dimítri Fiódorovitch, temos-lhe de novo por aqui?
— Um instante, Trifon Borísovitch! Em primeiro lugar, onde está ela?
— Agrafiena Alieksándrovna? — adivinhou logo o hospedeiro, lançando-lhe um olhar penetrante. — Está aqui...
— Com quem? Com quem?
— Viajantes... Um funcionário, que deve ser polonês, segundo sua maneira de falar. Foi ele que a mandou buscar; o outro, seu camarada ou seu companheiro de viagem, quem sabe? Estão à paisana...
— Bem, estão farreando? São ricaços?
— Qual farra! Não grande coisa, Dimítri Fiódorovitch.
— Não grande coisa? E os outros?
— Dois senhores da cidade que pararam de volta de Tchermachniá. O mais moço é um parente do senhor Miúsov, esqueci seu nome... O senhor deve conhecer o outro, o proprietário rural Maksímov, que foi em peregrinação ao mosteiro dos senhores.
— Ninguém mais?
— Ninguém mais.
— Basta, Trifon Borísovitch. Dize-me agora, que está ela fazendo?
— Acaba de chegar, está com eles.
— Está alegre? Ri?
— Não, não muito... Parece mesmo aborrecer-se. Passava a mão nos cabelos do mais jovem.
— O polonês, o oficial?
— Mas não é jovem nem oficial. Não nos dele, nos cabelos do sobrinho de Miúsov... esqueci seu nome.
— Kolgánov?
— Justamente, Kolgánov.
— Está bem, verei. Estão jogando baralho?
— Jogaram, depois tomaram chá. O funcionário pediu licores.
— Basta, Trifon Borísovitch, basta, meu caro, decidirei eu mesmo. Há ciganos?
— Não se ouve mais falar em ciganos, Dimítri Fiódorovitch, as autoridades expulsaram-nos. Mas há judeus que tocam cítara e violino. Mesmo a esta hora pode-se mandá-los buscar.
— É preciso mandá-los buscar, absolutamente. E as moças, pode-se acordá-las, Mária sobretudo, Stiepanida, Arina. Duzentos rublos para o coro!
— Mas por esta soma farei acordar a vila inteira, se bem que durmam agora. Aliás, vale a pena tratar dessa forma os mujiques e as moças? Gastar o dinheiro com tais brutos! Sabe lá o nosso mujique apreciar esses charutos que tu lhes dás. Fede, o patife. Quanto às moças, todas têm piolhos. Prefiro mandar, gratuitamente, que minhas filhas, que acabam de deitar-se, se levantem. Acordá-las-ei a pontapés e cantarão para ti. E dizer-se que o senhor ofereceu champanha aos mujiques!
Trifon Borísovitch não tinha razão de queixar-se de Mítia. Da vez passada, surripiara-lhe meia dúzia de garrafas de champanha e guardara uma cédula de cem rublos apanhada debaixo da mesa.
— Trifon Borísovitch, gastei aqui mais de mil rublos, lembras-te?
— Decerto, como esquecê-lo. O senhor deixou bem uns três mil rublos em nossa casa.
— Pois bem! Chego com outro tanto, desta vez, olha.
E pôs sob o nariz do hospedeiro seu maço de notas de banco.
— Escuta e presta bem atenção. Em uma hora chegarão vinho, provisões, bombons; será preciso levar tudo isso lá para cima. Da mesma forma, a caixa que está no carro; abram-na imediatamente e sirvam o champanha... Sobretudo, que haja moças e Mária, sobretudo.
Tirou de sob o assento a caixa das pistolas.
— Eis teu pagamento, Andriéi! Quinze rublos pela corrida e cinquenta para beber... por teu devotamento. Lembra-te do bárin Karamázov!
— Tenho medo, bárin... — E Andriéi hesitou. — Cinco rublos de gorjeta bastam, não aceitarei mais. Trifon Borísovitch será testemunha. Perdoe-me minhas tolas palavras...
— De que tens medo? — Mítia olhou-o de alto a baixo. — Vá para o diabo, então! — gritou ele, atirando-lhe cinco rublos. — Agora, Trifon Borísovitch, conduze-me de mansinho até onde possa ver sem ser visto. Onde estão eles, no quarto azul?
Trifon Borísovitch olhou Mítia, apreensivo, mas tratou de obedecer-lhe docilmente; levou-o ao vestíbulo, entrou em uma sala contígua àquela em que se encontravam as pessoas referidas e dela retirou a vela. Depois introduziu Mítia ali e colocou-o num canto donde podia observar à vontade o grupo que não o via. Mas Mítia não pôde olhar por muito tempo; avistou Grúchenhka, seu coração pôs-se a bater, sua vista perturbou-o. Estava ela numa poltrona, perto da mesa. Ao lado dela, no divã, o jovem e belo Kolgánov; segurava a mão dele e ria, enquanto, sem olhá-la, falava ele com ar zangado a Maksímov, sentado em frente da jovem mulher. No divã, ele; numa cadeira, ao lado, outro desconhecido. O que se refestelava no divã fumava cachimbo; era um homem corpulento, de rosto largo, de baixa estatura, ar carrancudo. Seu companheiro pareceu a Mítia de estatura bastante elevada; mas não pôde ver mais, faltava-lhe o fôlego. Não ficou nem um minuto, depositou o estojo sobre a cômoda e, com o coração desfalecente, entrou no quarto azul.
— Ai! — gemeu com terror Grúchenhka, que foi a primeira a avistá-lo.
VII
Primeiro e indiscutível
Mítia aproximou-se a grandes passos da mesa.
— Senhores — começou ele em voz alta, mas gaguejando a cada palavra —, eu... não é nada, não tenham medo! Não é nada — disse ele, voltando-se para Grúchenhka, que, inclinada para o lado de Kolgánov, se agarrava a seu braço —, eu... também viajo. Ir-me-ei de manhã. Senhores, será permitido a um viajante... ficar convosco neste quarto, até de manhã somente?
Estas últimas palavras dirigiam-se ao personagem obeso sentado no divã. Ele retirou gravemente seu cachimbo dos lábios e disse num tom severo:
— Pánie,[ 112 ] estamos aqui na intimidade. Há outros quartos.
— É o senhor, Dimítri Fiódorovitch? Que faz por aqui? — exclamou Kolgánov. — Tome lugar, seja bem-vindo!
— Boa noite, caro amigo... e incomparável! Sempre o estimei... — replicou Mítia com alegre solicitude, estendendo-lhe a mão por cima da mesa.
— Ai, como o senhor aperta! Partiu-me os dedos — disse Kolgánov, rindo.
— Ele aperta sempre assim, é sua maneira — observou alegremente Grúchenhka, com um sorriso tímido. Compreendera pelo ar de Mítia que ele não faria barulho e observava-o com uma curiosidade misturada de inquietude. Alguma coisa nele feria-lhe a atenção; aliás, ela não esperava tal atitude da parte dele.
— Boa noite — disse num tom melífluo o proprietário rural Maksímov.
Mítia voltou-se para ele.
— Boa noite, ei-lo também aqui, isso me causa prazer. Senhores, senhores, eu... (Dirigiu-se de novo ao pan do cachimbo, tomando-o como o principal personagem.) Quis passar minhas derradeiras horas neste quarto... onde adorei minha rainha!... Perdoe-me, pánie! Acorri e prestei juramento... Oh, não tenhais medo, é minha derradeira noite! Bebamos amigavelmente, pánie! Vão servir-nos vinho... Trouxe isto. (Tirou do bolso seu maço de cédulas.) Quero música, barulho, como da outra vez... Mas o verme inútil que se arrasta pelo chão vai desaparecer! Relembrar-me-ei de um dia de alegria em minha derradeira noite.
Sufocava; teria querido dizer muitas coisas, mas não proferia senão estranhas exclamações. O pan impassível olhava vez a vez Mítia, seu maço de notas e Grúchenhka; parecia perplexo.
— Se minha rainha consentir... — começou ele.
— Senta-te, Mítia — interrompeu Grúchenhka. — Que é que contas? Não me faças sentir medo, rogo-te. Tu o prometes? Então tua presença me causa prazer...
— Eu, fazê-lo sentir medo!? — exclamou Mítia, levantando os braços. — Oh, passai, passai! Não sou nenhum obstáculo!... — De súbito, sem que ninguém o esperasse, deixou-se cair sobre uma cadeira e desfez-se em lágrimas, com a cabeça voltada para a parede e agarrando-se ao espaldar.
— Ora essa, mas que tens? — disse Grúchenhka, num tom de censura. — Ia visitar-me dessa forma, não compreendia eu nenhuma de suas palavras. Certa vez, pôs-se a chorar, agora isso recomeça. Que vergonha! Por que choras? Se houvesse pelo menos motivo para isso! — acrescentou ela, com ar enigmático, apoiando as derradeiras palavras.
— Eu... eu não choro... Vamos, boa noite! — Voltou-se e pôs-se a rir, mas não como de costume, e sim com um riso nervoso que o abalava.
— A coisa continua... Fica, pois, mais alegre! Estou muito contente por teres vindo, Mítia, estás ouvindo? Muito contente. Quero que ele fique conosco — disse ela, imperiosamente, dirigindo-se ao que se encontrava no divã. — Quero-o, e, se ele se retirar, também ir-me-ei embora! — acrescentou, com os olhos cintilantes.
— Os desejos de minha rainha são ordens! — declarou o pan, beijando a mão de Grúchenhka. — Rogo ao pan que se junte a nós! — disse ele, gentilmente, a Mítia. Ele levantou-se, na intenção de proferir nova tirada, mas faltou-lhe a palavra e disse somente:
— Bebamos, pánie!
Todos puseram-se a rir.
— Meu Deus, pensava que ele ia fazer novo discurso — disse Grúchenhka. — Estás ouvindo, Mítia? Fica tranquilo. Fizeste bem em trazer champanha, bebê-lo-ei, não posso suportar licores. Mas foi ainda melhor teres vindo tu mesmo; o aborrecimento aqui é enorme... Vieste farrear? Esconde teu dinheiro no bolso! Onde encontraste tudo isso?
As cédulas que Mítia mantinha amarfanhadas na mão atraíam a atenção, sobretudo a do polonês. Mítia meteu-as rapidamente no bolso e corou. Nesse momento, trouxe o hospedeiro, numa bandeja, uma garrafa desarrolhada e copos. Mítia agarrou a garrafa, mas estava tão confuso que não soube o que fazer. Foi Kolgánov quem encheu os copos em lugar dele.
— Outra garrafa! — gritou Mítia para o hospedeiro e, esquecendo-se de bater os copos com o pan que havia tão solenemente convidado a beber, esvaziou seu copo sem esperar. Sua fisionomia mudou logo. Em lugar da expressão solene e trágica que tinha ao entrar, tornou-se ela infantil. Pareceu humilhar-se e rebaixar-se. Olhava todo mundo com uma alegria tímida, com pequenos risos nervosos e o ar reconhecido dum cãozinho em falta, mas que reentra em graça. Parecia ter esquecido tudo e ria todo o tempo, olhando Grúchenhka, de quem se aproximara. Depois examinou também os dois poloneses. O do divã surpreendeu-o por seu ar digno, seu tom e sobretudo seu cachimbo. “Pois bem, então? Fuma cachimbo, perfeitamente”, pensou Mítia. O rosto um tanto enrugado do pan quase quadragenário, seu nariz minúsculo enquadrado por bigodes encerados que lhe davam um ar impertinente, pareceram perfeitamente naturais a Mítia. Até mesmo sua malfeita peruca, confeccionada na Sibéria e que lhe cobria estupidamente as têmporas, não lhe causou espanto: “Deve convir-lhe”, disse a si mesmo. O outro pan, mais jovem, sentado perto da parede, olhava os presentes com ar provocante, escutava a conversa num silêncio desdenhoso; só surpreendeu Mítia por sua estatura bastante elevada, contrastando com a do pan sentado no divã. Pensou também que aquele gigante deveria ser o amigo e o acólito do pan do cachimbo, como que seu guarda-costas, e que o pequeno comandava sem dúvida o grande. Mas tudo isso parecia natural e indiscutível a Mítia. O cãozinho não tinha mais nem sombra de ciúme. Não havia ainda nada compreendido do tom enigmático de Grúchenhka, compreendia somente que ela se mostrava graciosa para com ele e lhe havia “perdoado”. Via-a beber, pasmando-se de prazer. Contudo, o silêncio geral chamou-lhe a atenção e se pôs a examinar todos os presentes com ar interrogador: “Que fazemos? Por que não começais nada, senhores?”, parecia dizer seu olhar.
— Eis um que sabe dizer piadas, todos nós rimos — disse Kolgánov apontando para Maksímov, como se tivesse adivinhado o pensamento de Mítia.
Mítia observou-os uns após outros.
— Piadas? — e arrebentou em seu riso breve e seco. — Ah!, ah!, ah!
— Sim. Imagine que acha ele que todos os nossos cavaleiros se casaram, em 1820, com polonesas; é absurdo, não é?
— Polonesas? — replicou Mítia, encantado.
Kolgánov compreendia bastante bem as relações de Mítia com Grúchenhka, adivinhava as do pan, mas isso não lhe interessava, somente Maksímov o preocupava. Foi por acaso que viera com ele parar naquela hospedaria onde travara conhecimento com os poloneses. Fora uma vez à casa de Grúchenhka, a quem não agradara. Agora, mostrara-se ela carinhosa para com ele, antes da chegada de Mítia, mas permanecia ele insensível. Com vinte anos, elegantemente trajado, tinha Kolgánov um rosto gentil, com belos cabelos louros, encantadores olhos azuis de expressão pensativa e, por vezes, superior à sua idade, se bem que tivesse por momentos modos infantis, o que de modo algum o constrangia. Em geral, era bastante original e até mesmo caprichoso, mas sempre meigo. Por vezes, tomava seu rosto uma expressão concentrada; olhava para a gente e nos escutava, parecendo ao mesmo tempo absorvido num sonho interior. Ora mostrava-se mole e indolente, ora agitava-se pela causa mais fútil.
— Imagine que há quatro dias que o arrasto atrás de mim — prosseguiu Kolgánov, pesando um pouco as palavras, mas sem nenhuma fatuidade. — Foi depois que seu irmão Ivan o repeliu do carro, o senhor deve lembrar-se. Interessei-me então por ele e levei-o ao campo, mas ele vive a dizer piadas, tanto que faz até vergonha. Levo-o de volta...
— O cavalheiro não viu as senhoras polonesas e diz coisas que não aconteceram — observou o pan do cachimbo.
— Mas fui casado com uma polonesa — replicou Maksímov, rindo.
— Sim, mas serviu na cavalaria? Era dela que o senhor falava. É cavalariano? — interveio Kolgánov.
— Ah, sim, é ele cavalariano? Ah! Ah! — gritou Mítia, que era todo ouvidos e fixava cada interlocutor como se esperasse Deus sabe o quê.
— Não, vê o senhor? — Maksímov voltou-se para ele. — Quero falar daquelas pánienki... assim que uma delas dança uma mazurca com um ulano nosso, salta-lhe sobre os joelhos como uma gata branca... sob os olhos e com o consentimento do papai e da mamãe... No dia seguinte, o ulano vai pedi-la em casamento... e pronto... ih!, ih!, ih!
— O pan é um canalha — resmungou o pan de elevada estatura, cruzando as pernas. Mítia não notou senão sua enorme bota engraxada de sola espessa e suja. Aliás, os dois poloneses estavam bastante maltrajados.
— Ora, já vem o nome de canalha! Por que injuriar? — disse Grúchenhka, irritada.
— Páni Agripina, o pan conheceu na Polônia moças de classe baixa e não moças nobres.
— Podes afirmá-lo! — disse desdenhosamente o pan de pernas compridas.
— Não faltava mais que isso! Deixem-no falar! Por que impedir que as pessoas falem? É divertido — replicou Grúchenhka.
— Não impeço ninguém, páni — observou o pan de peruca com um olhar expressivo; depois disso pôs-se de novo a fumar.
— Não, não, o pan disse a verdade. — Kolgánov esquentou-se de novo, como se se tratasse dum negócio importante. — Maksímov não foi à Polônia. Como pode, pois falar dela? Casou-se o senhor na Polônia?
— Não, foi na província de Smolensk. Minha futura fora a princípio levada lá por um ulano, escoltada por sua mãe, por uma tia e por uma parenta com um filho grande, poloneses puro-sangue... e ele cedeu-me. Era um tenente, um rapaz bastante gentil. Queria a princípio casar com ela, mas desistiu, porque ela era coxa...
— Então o senhor casou-se com uma coxa? — exclamou Kolgánov.
— Sim. Ambos me dissimularam a coisa. Eu acreditava que ela saltitava... mas que era de alegria...
— A alegria de casar com o senhor? — gritou Kolgánov, com voz sonora.
— Perfeitamente. Mas era por um motivo completamente diferente. Uma vez casados, na mesma noite do casamento, ela me confessou tudo e pediu perdão. Saltando uma poça, quando menina, quebrou uma perna, ih!, ih!, ih!.
Kolgánov soltou uma risada infantil e deixou-se cair no divã. Grúchenhka também ria. Mítia achava-se no cúmulo da felicidade.
— Sabe de uma coisa? Ele está dizendo a verdade agora, não mente mais — disse Kolgánov a Mítia. — Foi casado duas vezes, é de sua primeira mulher que fala; a segunda fugiu de casa e vive ainda, sabia-o?
— Deveras? — disse Mítia, voltando-se para Maksímov com um ar muito espantado.
— Sim, tive essa contrariedade, ela fugiu com um mussiê. Havia previamente feito transferir minhas propriedades para ele. “És um homem instruído — dizia-me ela —, sempre acharás o que comer.” Depois largou-me. Respeitável eclesiástico dizia-me um dia a esse respeito: “Se tua primeira mulher era coxa, a segunda tinha pé muito ligeiro.” Ih!, ih!, ih!
— Escutem aqui — disse vivamente Kolgánov —, se ele mente, e isso acontece-lhe por vezes, é unicamente para causar prazer; não há baixezas nisso, não é mesmo? Gosto dele por vezes. É vil, mas franco. Que pensam disso? Qualquer outro se envilece por interesse, mas ele, é o seu natural. Imaginem, por exemplo, que ele pretende que Gógol o pôs em cena em Almas mortas. Devem lembrar-se de que se vê no livro o proprietário rural Maksímov chicoteado por Nózdriov, que é processado “por ofensa pessoal ao proprietário Maksímov, com chicote, achando-se em estado de embriaguez”. Pretende tratar-se dele próprio e que foi chicoteado. Será possível? Tchitchikov[ 113 ] viajava cerca de 1830, quando muito, de modo que as datas não combinam. Não pôde ter ele sido chicoteado então.
A excitação de Kolgánov, difícil de explicar, nem por isso deixava de ser sincera. Mítia tomava seu partido.
— Afinal de contas, fizeram bem se o chicotearam! — disse ele, rindo.
— Não é que me chicotearam propriamente, mas algo parecido — interveio Maksímov.
— Como assim? Foste ou não chicoteado?
— Que horas são, pánie? — perguntou com ar de aborrecimento o pan do cachimbo ao pan das pernas compridas. Este ergueu os ombros; nenhum deles tinha relógio.
— Deixem então que os outros falem! Se os senhores se aborrecem, não é razão para impor silêncio a todo mundo — disse Grúchenhka, com ar agressivo. Mítia começava a compreender. O pan respondeu dessa vez com visível irritação:
— Páni, não me oponho, não disse nada.
— Está bem, continua — gritou ela a Maksímov. — Por que se calam todos?
— Mas não há nada a contar, são tolices — continuou Maksímov com satisfação e com gestos um tanto afetados. — Em Gógol, tudo isso é alegórico, porque seus nomes são todos simbólicos: Nózdriov não era Nózdriov, mas Nósov; quanto a Kuvchínikov, este já nem tinha semelhança alguma, porque se chamava Chkvórniev. Fenardi chamava-se mesmo assim, somente não era um italiano, mas um russo, Pietrov; a senhorita Fenardi era bonita em sua roupa de banho, com sua saia curta de lantejoulas, e desfilou bem, mas não quatro horas, apenas quatro minutos... e encontrou toda a gente.
— Mas por que te chicotearam? — berrou Kolgánov.
— Por causa de Piron.
— Que Piron? — perguntou Mítia.
— Ora, o célebre escritor francês, Piron. Tínhamos bebido, em numerosa companhia, num botequim, naquela mesma feira. Tinham-me convidado e me pus a citar epigramas: “És tu, Boileau? Que roupa engraçada tens!” Boileau responde que vai ao baile de máscaras, isto é, ao banho, ih!, ih!, ih!. E eles tomaram isso como se fosse para si próprios. Tratei logo de citar outro epigrama, mordaz e bem conhecido das pessoas instruídas:
És Safo, sou Faón, concordo,
Mas para meu grande pesar.
Do mar não sabes o caminho.
“Sentiram-se ainda mais ofendidos e puseram-se a dizer-me desaforos; por desgraça, pensando arranjar as coisas, contei-lhes como Piron, que não foi recebido na Academia, mandou gravar em seu túmulo este epitáfio para se vingar:
Aqui jaz Piron, sem valia,
Nem mesmo foi da Academia.
“Então agarraram-me e chicotearam-me.”
— Mas por quê? Por quê?
— Por causa de meus conhecimentos. Há muitos motivos pelos quais se pode açoitar um homem — concluiu sentenciosamente Maksímov.
— Basta, é idiota, estou mais que farta. E pensei que seria engraçado! — interrompeu Grúchenhka. Mítia apressou-se em deixar de rir. O pan de pernas compridas levantou-se e se pôs a andar dum lado para outro, com o ar arrogante de um homem que se aborrece numa companhia que não é a sua.
— Como ele anda! — disse Grúchenhka, com ar de desprezo. Mítia inquietou-se; além do mais tinha notado que o pan do cachimbo olhava-o com irritação.
— Pánie — exclamou ele —, bebamos! — Convidou também o outro que passeava e encheu três copos com champanha.
— À Polônia, pánowie! Bebo à vossa Polônia!
— Com muito gosto, pánie, bebamos — disse o pan de cachimbo com ar importante, mas afável.
— E o outro pan também. Como se chama ele?... Tome um copo, ilustríssimo.
— Pan Vrubliévski[ 114 ] — disse o outro.
Pan Vrubliévski aproximou-se da mesa, bamboleando-se.
— À Polônia, pánowie, viva! — gritou Mítia, erguendo seu copo.
Entrechocaram os copos. Mítia encheu de novo os três copos.
— Agora, à Rússia, pánowie, e sejamos irmãos.
— Serve-nos também — disse Grúchenhka. — Quero brindar à Rússia.
— Eu também — disse Kolgánov.
— E então, então — apoiou Maksímov —, beberei à velha vovozinha.
— Todos, todos! — gritou Mítia. — Patrão, uma garrafa!
Trouxeram as três garrafas que restavam.
— À Rússia, viva!
Todos beberam, exceto os pánowie. Grúchenhka esvaziou seu copo dum gole.
— E então, pánowie, é assim que sois?
Pan Vrubliévski pegou seu copo, ergueu-o e disse com voz aguda:
— À Rússia, em seus limites de 1772![ 115 ]
— Muito bem! — aprovou o outro pan. Ambos esvaziaram seus copos.
— Sois uns imbecis, pánowie! — disse bruscamente Mítia.
— Pánie! — exclamaram os dois poloneses, eretos como galos. Pan Vrubliévski, sobretudo, estava indignado.
— Não posso amar meu país? — gritou.
— Silêncio! Nada de brigas! — gritou imperiosamente Grúchenhka, batendo com o pé. Tinha o rosto vermelho, os olhos cintilantes. O efeito do vinho fazia-se sentir. Mítia ficou com medo.
— Pánowie, perdoem. É culpa minha. Pan Vrubliévski, não o farei mais!...
— Mas cala-te afinal, senta-te, imbecil! — apostrofou-o Grúchenhka.
Todos se sentaram e ficaram calados.
— Senhores, sou a causa de tudo! — continuou Mítia, que nada compreendera do repente de Grúchenhka. — Pois bem! Que vamos fazer... para divertir-nos?
— Com efeito, a gente se aborrece aqui — disse, displicentemente, Kolgánov.
— Se jogássemos baralho, como ainda há pouco... ih!, ih!, ih!
— Baralho? Boa ideia! — aprovou Mítia. — Se os pánowie consentirem.
— Pozno, pánie — respondeu de mau humor o pan do cachimbo.
— É verdade — apoiou pan Vrubliévski.
— Pozno? Que quer dizer pozno? — perguntou Grúchenhka.
— Quer dizer que já é tarde, páni — explicou o pan do divã.
— Para ele sempre é tarde. Sempre acha tudo impossível — quase gritou, zangada, Grúchenhka. — Que tristes convivas? Destilam aborrecimento e querem impô-lo aos outros. Antes de tua chegada, Mítia, estavam todos calados, fazendo-se de orgulhosos.
— Minha deusa — replicou o pan do cachimbo —, dizes a verdade. É tua frieza que me torna triste. Estou pronto, pánie — disse, voltando-se para Mítia.
— Começa, pánie — disse Mítia, destacando de seu maço duas cédulas de cem rublos que colocou em cima da mesa. — Quero fazer-te ganhar muito dinheiro. Pega as cartas e mantém a banca!
— O baralho deve ser o do patrão — disse gravemente o pan baixinho.
— Será o melhor — aprovou pan Vrubliévski.
— O baralho do patrão, pois seja! Está muito bem, pánowie! Cartas!
O hospedeiro trouxe um baralho lacrado e anunciou a Mítia que as moças reuniam-se, que os judeus chegariam em breve, mas que a tieliega das provisões ainda não chegara. Mítia correu logo ao quarto vizinho para dar ordens. Havia somente três moças, e Mária não estava lá ainda. Não sabia bem o que fazer e ordenou apenas que fossem distribuídos às moças guloseimas e bombons da caixa. — E vodca para Andriéi — acrescentou. — Eu o ofendi.
Foi então que Maksímov, que o havia seguido, tocou-lhe o ombro, cochichando:
— Dê-me cinco rublos. Gostaria de jogar também, ih!, ih!, ih!.
— Perfeitamente. Aqui estão dez. Se perderes, torna a procurar-me...
— Muito bem — murmurou Maksímov, que tornou a entrar na sala. Mítia voltou pouco depois e pediu desculpas por ter-se feito esperar. Os pánowie já haviam tomado lugar e deslacrado o baralho, com ar muito mais amável e quase gentil. O pan do divã, que estava fumando outra cachimbada, preparava-se para baralhar as cartas. Seu rosto tinha algo de solene.
— A seus lugares, pánowie! — exclamou pan Vrubliévski.
— Não quero mais jogar — observou Kolgánov. — Já perdi cinquenta rublos ainda há pouco.
— O pan foi infeliz, mas a sorte pode mudar — insinuou o pan do cachimbo.
— Quanto possui a banca? — perguntou Mítia.
— Talvez cem rublos, pánie, talvez duzentos. Tanto quanto queiras apostar.
— Um milhão! — disse Mítia, rindo.
— O capitão talvez tenha ouvido falar de pan Podvisótski.
— Que Podvisótski?
— Em Varsóvia, a banca aguenta todas as apostas. Chega Podvisótski, vê milhares de moedas de ouro, joga contra a banca. O banqueiro diz: “Pánie Podvisótski, jogas com ouro ou sob palavra?” — “Sob palavra, pánie” — diz Podvisótski. — “Tanto melhor.” O banqueiro corta, e Podvisótski junta as moedas de ouro. — “Espera, pánie” — diz o banqueiro. Abre uma gaveta e dá-lhe um milhão: “Toma, eis tua conta!” A banca era de um milhão. — “Ignorava-o” — disse Podvisótski. — “Pan Podvisótski — disse o banqueiro —, ambos jogamos sob palavra.” Podvisótski pegou o milhão.
— Não é verdade — disse Kolgánov.
— Pan Kolgánov, entre pessoas decentes não se fala assim.
— É assim que um jogador polonês dará um milhão! — exclamou Mítia, mas logo se conteve. — Perdão, pánie, não tenho razão de novo. Certamente dará ele um milhão sob palavra de honra, a honra polonesa. Eis dez rublos no valete.
— E eu um rublo na dama de copas, na bonitinha pánienka — declarou Maksímov, e, como para dissimulá-lo aos olhares, aproximou-se da mesa e fez por baixo um sinal da cruz. Mítia ganhou, o rublo também.
— Dobro! — gritou Mítia.
— E eu, ainda um rublinho, um simples rublinho — murmurou beatificamente Maksímov, encantado por haver ganho.
— Perdido! — gritou Mítia. — Dobro!
— Perdeu de novo.
— Pare — disse, de súbito, Kolgánov.
Mítia dobrava sempre sua parada, mas perdia a cada jogada. E os “rublinhos” ganhavam sempre.
— Perdeste duzentos rublos, pánie. Será que apostas ainda? — perguntou o pan do cachimbo.
— Como, já duzentos? Pois seja, ainda duzentos! — E Mítia ia colocar as notas sobre a dama, quando Kolgánov cobriu-a com a mão.
— Basta! — gritou ele, com sua voz sonora.
— Que tem o senhor? — perguntou Mítia.
— Basta, não quero! O senhor não jogará mais.
— Por quê?
— Porque não. Pare, vá-se embora! Não o deixarei jogar mais.
Mítia olhava-o com espanto.
— Deixa, Mítia, ele talvez tenha razão; já perdeste muito — proferiu Grúchenhka, num tom singular. Os dois pánowie levantaram-se, com ar muito ofendido.
— Está brincando, pánie? — perguntou o mais baixo, fixando severamente Kolgánov.
— Como ousa o senhor? — disse arrebatadamente, por sua vez, Vrubliévski.
— Nada de gritos, nada de gritos! Ah, os galos da índia! — exclamou Grúchenhka.
Mítia olhava a uns e a outros sucessivamente; algo o impressionou no rosto de Grúchenhka, ao mesmo tempo que uma ideia nova e estranha lhe vinha ao espírito.
— Páni Agripina! — começou o pan baixinho, rubro de cólera. De repente, Mítia aproximou-se dele e bateu em seu ombro.
— Excelência, duas palavras.
— Que deseja, pánie?
— Vamos ao quarto vizinho. Dir-te-ei duas palavras que irão agradar-te.
O pan baixinho admirou-se e olhou Mítia, apreensivo; mas consentiu imediatamente, com a condição de que o pan Vrubliévski o acompanharia.
— É teu guarda-costas? Pois seja, que venha ele também, sua presença é, aliás, necessária... Vamos, pánowie!...
— Aonde vão? — perguntou Grúchenhka, inquieta.
— Voltaremos agora mesmo — respondeu Mítia. Seu rosto exprimia a resolução e a coragem, tinha um ar bem diferente daquele de uma hora antes, à sua chegada. Conduziu os pánowie não à peça à direita, onde se reunia o coro, mas a um quarto de dormir, repleto de malas, de arcas, com dois grandes leitos e uma montanha de travesseiros. A um canto, uma vela ardia numa mesinha. O pan e Mítia instalaram-se, frente a frente, e pan Vrubliévski ao lado dele, com as mãos atrás das costas. Os poloneses tinham ar severo, mas intrigado.
— Em que posso servi-lo, senhor? — murmurou o mais baixo.
— Serei breve, pánie. Aqui tenho dinheiro — e exibiu seu maço de cédulas. — Se queres três mil rublos, toma-os e vá embora.
O pan olhava-o atentamente.
— Três mil, pánie? — Trocou um olhar com Vrubliévski.
— Três mil, pánowie, três mil! Escuta, vejo que és um homem ajuizado. Toma três mil rublos e vá para o diabo com Vrubliévski, ouviste? Mas imediatamente, agora mesmo e para sempre! Sairás por esta porta. Levarei teu sobretudo ou tua peliça. Atrelarão para ti uma troica, e boa noite, hem?
Mítia esperava a resposta com segurança. O rosto do pan tomou uma expressão das mais decididas.
— E os rublos?
— Aqui estão, pánie: quinhentos rublos como sinal, imediatamente, e dois mil e quinhentos amanhã na cidade. Juro por minha honra que os terás, ainda que fosse preciso arrancá-los de debaixo da terra!
Os poloneses trocaram novo olhar. O rosto do mais baixo tornou-se hostil.
— Setecentos, setecentos imediatamente! — acrescentou Mítia, sentindo que a coisa ia atrapalhar-se. — Pois bem, pánie, não me acreditas? Não posso dar-te os três mil rublos duma vez. Voltarias amanhã para junto dela. Aliás, não os tenho comigo, estão na cidade — balbuciou Mítia, perdendo coragem a cada palavra. — Palavra de honra, num esconderijo...
Vivo sentimento de amor-próprio brilhou no rosto do pan baixinho.
— É tudo quanto queres? — perguntou, ironicamente. — Fora! Que vergonha! — E cuspiu. Pan Vrubliévski imitou-o.
— Tu cospes, pánie — disse Mítia, desolado por causa de seu fracasso —, porque pensas tirar vantagem de Grúchenhka. Sois, todos dois, uns idiotas!
— Isso me ofende profundamente! — disse o pan baixinho, vermelho como uma lagosta, e, no cúmulo da indignação, saiu do quarto com Vrubliévski que se bamboleava. Mítia seguiu-os, todo confuso. Temia Grúchenhka, pressentindo que o pan iria queixar-se. Foi o que aconteceu. Com um ar teatral, plantou-se diante de Grúchenhka e repetiu:
— Páni Agripina, fui profundamente ofendido!
Mas Grúchenhka, como que queimada ao vivo, perdeu a paciência e gritou, vermelha de cólera:
— Fala russo, nem uma palavra de polonês! Falavas russo outrora. Tê-la-ias esquecido em cinco anos?
— Páni Agripina...
— Chamo-me Agrafiena, sou Grúchenhka! Fala russo, se queres que te escute!
O pan, sufocado, gaguejou com ênfase, estropiando as palavras:
— Páni Agrafiena, vim para esquecer o passado e tudo perdoar até este dia...
— Perdoar como? Foi para perdoar que vieste? — interrompeu Grúchenhka, que se levantou.
— Isso mesmo, páni, porque tenho coração generoso. Mas tive grande surpresa vendo teus amantes. Pan Mítia ofereceu-me três mil rublos para que eu me vá embora. Cuspi-lhe na cara.
— Como? Ele te oferecia dinheiro por mim? É verdade, Mítia? Ousaste-o? Estou, pois, à venda?
— Pánie, pánie — disse Mítia —, ela é pura e jamais fui seu amante! Mentiste...
— Como ousas defender-me diante dele? Não foi por virtude que me conservei pura, nem por temor de Kuzmá, era para ter o direito de tratar de miserável esse homem. Recusou ele deveras teu dinheiro?
— Pelo contrário, aceitava-o; somente queria os três mil rublos imediatamente, e eu só lhe dava setecentos rublos de entrada.
— Está claro; soube que tenho dinheiro, eis por que quer casar comigo.
— Páni Agripina, sou um cavalheiro... sou... um szlachcie[ 116 ] polonês e não um laidak.[ 117 ] Vim para casar contigo, mas não encontro mais a mesma páni, a de hoje é uma uparti[ 118 ] e desavergonhada.
— Volta para donde vens! Vou mandar pôr-te para fora daqui! Tola que fui por atormentar-me durante cinco anos! Mas não era por causa dele que me atormentava, era meu rancor que eu acariciava. Aliás, meu amante não era isso. Parece mais o pai dele! Onde encomendaste uma peruca? O outro ria, cantava, era um falcão, mas tu não passas de uma galinha molhada! E eu que passei cinco anos em lágrimas, ó tola criatura!
Recaiu na poltrona e ocultou o rosto nas mãos. Naquele momento, no quarto vizinho, o coro das moças, afinal reunido, entoou uma ousada canção dançável.
— Isso é uma Sodoma! — gritou pan Vrubliévski. — Patrão, ponha para fora essas desavergonhadas!
O hospedeiro, que esperava fazia muito tempo na porta, adivinhando pelos gritos que estavam a brigar, entrou sem demora.
— Que berros são esses? — apostrofou ele Vrubliévski.
— O animal!
— Animal? Com que cartas estavas jogando ainda há pouco? Dei-te um baralho novinho. Que fizeste dele? Empregaste cartas falsas! Isso podia levar-te à Sibéria, sabes tu? Porque equivale a passar moeda falsa... — Indo ao divã, pôs a mão entre o espaldar e uma almofada, retirando dali o baralho lacrado.
— Ei-lo, meu baralho, intato — elevou-o no ar e mostrou-o aos assistentes. — Vi-o operar e substituir suas cartas pelas minhas. És um velhaco e não um pan. — E eu vi outro pan trapacear duas vezes! — disse Kolgánov.
— Ah, que vergonha, que vergonha! — Grúchenhka juntou as mãos, corando. — Meu Deus, que homem ele se tornou!
— Bem o imaginava! — disse Mítia.
Então, pan Vrubliévski, confuso e exasperado, gritou para Grúchenhka, ameaçando-a com o punho:
— Rameira!
Mítia já se havia lançado sobre ele; agarrou-o, ergueu-o e carregou-o num abrir e fechar de olhos até o quarto onde tinham estado antes.
— Larguei-o no soalho! — anunciou, ao voltar, resfolegante. — Debate-se o canalha, mas não voltará!... — Fechou um dos batentes da porta e, mantendo outro aberto, gritou para o pan baixinho:
— Excelência, não gostaria de fazer-lhe companhia? Rogo-lhe...
— Mítri Fiódorovitch — disse Trifon Borísovitch —, retoma deles teu dinheiro então! É como se eles te houvessem roubado.
— Faço-lhes presente de meus cinquenta rublos — disse Kolgánov.
— E eu dos meus duzentos. Que isso lhes sirva de consolação!
— Bravo, Mítia! Que grande coração! — gritou Grúchenhka num tom em que vibrava viva irritação.
O pan baixinho, rubro de cólera, mas que nada perdera de sua dignidade, dirigiu-se para a porta; de repente parou e disse a Grúchenhka:
— Páni, se queres seguir-me, vem, se não, adeus!
Gravemente, sufocado de indignação e de amor-próprio ferido, saiu. Sua vaidade era extrema; mesmo depois do que se passara, esperava ainda que a páni o seguisse. Mítia fechou a porta.
— Fecha-os — disse Kolgánov. Mas a fechadura rangeu do lado deles. Tinham-se fechado eles próprios.
— Bravo! — gritou Grúchenhka, com raiva implacável. — Assim é que deve ser!
VIII
Delírio
Começou então quase uma orgia, uma festa de arromba. Grúchenhka foi a primeira a pedir bebida:
— Quero embriagar-me como da outra vez, lembras-te, Mítia, quando nos conhecemos!
Mítia delirava quase, pressentia “sua felicidade”. Aliás, Grúchenhka afastava-o de seu lado a cada instante:
— Vai divertir-te, dize-lhes que dancem e se divirtam como da outra vez!
Estava superexcitada. O coro se reunia no quarto vizinho. O em que se achavam era exíguo, separado em duas partes por uma cortina de chita da Índia, por trás um imenso leito com um edredom e uma montanha de travesseiros. Todos os quartos de aparato daquela casa possuíam um leito. Grúchenhka instalou-se à porta; era dali que olhava o coro e as danças, por ocasião do primeiro festim deles. As mesmas moças encontravam-se ali, os judeus com seus violinos e suas cítaras tinham chegado, bem como a famosa tieliega com as provisões. Mítia movimentava-se no meio de toda aquela gente. Homens e mulheres acorriam, despertados e farejando um rega-bofe enorme, como um mês antes. Mítia cumprimentava e beijava os conhecidos, servindo de beber a quem chegava. Somente as moças apreciavam o champanha, os mujiques preferiam o rum e o conhaque, sobretudo o ponche. Mítia ordenou que preparassem chocolate para as moças e conservassem ferventes à noite inteira três samovares para oferecer chá e ponche a quantos os quisessem. Em suma, uma pândega extravagante começou. Mítia sentia-se ali em seu elemento e animava-se à medida que a desordem aumentava. Se um mujique lhe tivesse então pedido dinheiro, teria tirado seu maço de notas e distribuído à direita e à esquerda sem contar. Eis sem dúvida por que, a fim de preservar Mítia, o dono da casa, Trifon Borísovitch, que renunciava a deitar-se naquela noite, quase não o deixava. Não bebia (um copo de ponche ao todo), velando, cuidadosamente, à sua maneira, pelos interesses de Mítia. Quando se tornava preciso, detinha-o, afetuosa e servilmente, e pregava-lhe um sermão, impedindo-o de distribuir como “da outra vez” aos mujiques “charutos, vinho do Reno” e, Deus nos guarde, dinheiro. Indignava-se ao ver as moças comerem bombons e beberem licores.
— Estão cheias de piolhos, Mítri Fiódorovitch; meter-lhes-ia de bom grado o pé em certo lugar, e isso seria mesmo fazer-lhe honra.
Mítia lembrou-se de Andriéi e mandou levar-lhe ponche: “Ofendi-o ainda há pouco”, repetia com voz enternecida. Kolgánov recusou a princípio beber e o coro lhe desagradou muito, mas, depois de ter absorvido dois copos de champanha, tornou-se bastante alegre e achou tudo perfeito: os cantos e a música. Maksímov, satisfeito e meio bêbedo, não o deixava. Grúchenhka, a quem o vinho subia à cabeça, apontava Kolgánov a Mítia: “Que rapaz gentil!” E Mítia corria a beijar os dois. Pressentia muitas coisas; ela não lhe dissera nada ainda de semelhante e retardava o momento; por vezes somente, lançava-lhe um olhar cheio de ardor. De repente, pegou-lhe na mão e fê-lo sentar-se ao lado dela.
— Que chegada a tua ainda há pouco! Tive tanto medo! Querias ceder-me a ele, não é? É verdade?
— Não queria perturbar a tua felicidade.
Ela, porém, não o escutava.
— Está bem, vai, diverte-te, não chores, eu te chamarei de novo.
Deixou-o, voltou a escutar as canções, a olhar as danças, enquanto o acompanhava com o olhar; ao fim de um quarto de hora, tornou a chamá-lo.
— Fica aqui, conta-me, como soubeste de minha partida, quem foi o primeiro a informar-te?
Mítia começou seu relato desordenadamente, duma maneira incoerente, por vezes franzia as sobrancelhas e parava.
— Que tens? — perguntava-lhe ela.
— Nada. Deixei lá embaixo um doente. Para que ele fique curado, para saber que ficará curado, daria dez anos de minha vida!
— Deixa-o tranquilo, esse teu doente. Então querias matar-te amanhã, bobinho, por quê? Gosto dos desmiolados como tu — murmurou ela, com a voz um tanto pastosa. — Então estás disposto a tudo por minha causa, não é? E querias deveras matar-te amanhã? Espera, dir-te-ei talvez uma palavrinha... não hoje, amanhã. Quererias hoje? Não, não quero... Vá divertir-te.
Uma vez, no entanto, ela o chamou com ar preocupado.
— Por que estás triste? Porque estás triste, vejo-o — acrescentou ela, com os olhos fitos nos dele. — Por mais que beijes os mujiques e te movimentes, bem o percebo. Uma vez que estou alegre, fica alegre também... Amo alguém aqui... Adivinha quem? Olha, ele adormeceu, o coitado, está bêbedo.
Falava de Kolgánov, que estava embriagado, com efeito, e dormitava no divã. Mas, à parte a embriaguez, sentia ele tristeza ou, como dizia, “tédio”. As canções das moças, que se tornavam por demais lascivas e licenciosas, à medida que bebiam, tinham acabado por aborrecê-lo. O mesmo com as danças: duas moças, disfarçadas de urso, eram “exibidas” por Stiepanida, uma mocetona armada dum cacete. “Entusiasmo, Mária — gritava —, se não, toma cuidado!” Finalmente, os ursos rolaram no soalho duma maneira indecente, com explosões de gargalhadas dum público grosseiro.
— Que se divirtam, que se divirtam! — disse sentenciosamente Grúchenhka, num ar extasiado. — É o dia deles. Por que não haveriam de divertir-se?
Kolgánov olhava com ar de desgosto:
— Como são baixos esses costumes populares! — observou, afastando-se. Ficou sobretudo chocado por uma canção “nova”, com um estribilho alegre, em que um bárin em viagem interrogava as moças:
O bárin às moças perguntou:
Gostam de mim, gostam de mim, meninas?
Mas estas acham que não podem amá-lo:
O bárin me surraria
E eu dele não gostaria.
Depois foi a vez de um cigano, que não é mais feliz:
O cigano há de roubar
E eu lágrimas derramar.
Outros personagens desfilam, fazendo a mesma pergunta, até um soldado, repelido com desprezo:
O soldado levará
Seu saco e eu atrás...
Seguia-se um verso dos mais cínicos, cantado abertamente e que fazia furor entre os ouvintes. Acabava-se pelo comerciante:
O mercador às moças perguntou:
Gostam de mim, gostam de mim, meninas?
Dele, elas gostam muito, porque
O mercador será rico
E eu, dono de tudo, fico.
Kolgánov zangou-se:
— Só falta nessa canção um ferroviário ou um judeu para fazer perguntas às moças. Garanto que ganhariam de todos.
Quase ofendido, declarou que se entediava, sentou-se no divã e adormeceu. Seu rosto gentil, um pouco empalidecido, repousava na almofada.
— Olha como ele é belo — disse Grúchenhka a Mítia. — Passei-lhe a mão pelos cabelos, dir-se-ia linho...
E, inclinando-se sobre ele, beijou-lhe com ternura a testa. Kolgánov abriu logo os olhos, olhou-a, ergueu-se, perguntou com ar preocupado:
— Onde está Maksímov?
— Eis o que lhe faz falta! — Grúchenhka pôs-se a rir. — Fica comigo um minuto. Mítia, vá procurar o Maksímov dele.
Maksímov não largava as moças, exceto para ir beber licores. Já bebera duas xícaras de chocolate. Estava com o nariz escarlate, os olhos úmidos e ternos. Aproximou-se e declarou que ia dançar A tamanqueira.
— Na minha infância ensinaram-me essas danças mundanas...
— Vá com ele, Mítia, eu o verei dançar daqui.
— Eu também vou olhar — exclamou Kolgánov, declinando ingenuamente do convite de Grúchenhka para ficar com ela. E todos foram ver. Maksímov dançou, com efeito, mas não obteve êxito, salvo da parte de Mítia. Sua dança consistia em saltitar com contorções, com as solas do sapato no ar; a cada salto, Maksímov batia com a mão na sola. Isso desagradou a Kolgánov, mas Mítia beijou o dançarino.
— Obrigado, deves estar fatigado. Queres bombons, hem? Um charuto, talvez?
— Um cigarro.
— Queres beber?
— Tomei licores... Não tem bombons de chocolate?
— Há uma porção em cima da mesa, escolhe, meu anjo!
— Não, prefiro os de baunilha... para os velhos... ih!, ih!, ih!
— Não, irmão, não há desses.
— Escute! — disse o velho, inclinando-se para o ouvido de Mítia. — Aquela moça ali, a Mária, ih!, ih!, ih!. Gostaria bem de conhecê-la, graças à sua bondade...
— Vejam só isso! Estás brincando, camarada.
— Não faço mal a ninguém — murmurou humildemente Maksímov.
— Bem, bem. Aqui, camarada, a gente tem de contentar-se com cantar e dançar, ainda que, afinal... Espera... Regala-te, bebe, diverte-te. Tens necessidade de dinheiro?
— Depois, talvez — sorriu Maksímov.
— Bem, bem.
Mítia tinha a cabeça em fogo. Saiu para o alpendre que cercava uma parte do prédio. O ar fresco lhe fez bem. Só na escuridão, segurou a cabeça com as duas mãos. Suas ideias esparsas agruparam-se de súbito e tudo se aclarou a uma luz terrível... “Se tenho de matar-me, é agora ou nunca”, pensou ele. “Pegar uma pistola e acabar neste canto escuro!” Cerca de um minuto ficou indeciso. Ao vir a Mókroie, tinha na consciência a vergonha, o roubo cometido e o sangue derramado... Mas sentia-se mais à vontade. Tudo estava acabado. Grúchenhka, cedida a outro, não existia mais para ele. Sua decisão fora fácil de tomar, parecia pelo menos inevitável e necessária, pois por que haveria de viver doravante? Mas a situação não era mais a mesma. Aquele fantasma terrível, aquele homem fatal, o amante de outrora, desaparecera sem deixar traços. A aparição temível tornava-se um boneco ridículo que se trancava a chave. Grúchenhka tem vergonha e adivinha em seus olhos quem é que ela ama. Bastaria agora viver, e é impossível, oh, maldição! “Meu Deus, ressuscita aquele que jaz perto da paliçada! Afasta de mim esse cálice amargo! Porque Tu praticaste milagres para pecadores como eu! E se o velho vive ainda? Oh! Então, lavarei a vergonha que pesa sobre mim, restituirei o dinheiro roubado, arrancá-lo-ei de sob a terra... A infâmia só terá deixado traços em meu coração para sempre. Mas não, são sonhos impossíveis! Oh, maldição!”
Um raio de esperança aparecia-lhe, no entanto, nas trevas. Correu para o quarto, para ela, para sua rainha por toda a eternidade. “Uma hora, um minuto de seu amor não valem o resto da vida, ainda mesmo nas torturas da vergonha? Vê-la, a sós, ouvi-la, não pensar em nada, esquecer tudo, pelo menos nesta noite por uma hora, um instante!” Ao tornar a entrar, encontrou o hospedeiro Trifon Borísovitch, que lhe pareceu sombrio e preocupado.
— Então, Borísitch, estavas à minha procura?
— Não — o hospedeiro pareceu constrangido —, por que haveria de procurá-lo? Onde estava o senhor?
— Por que estás tão carrancudo? Estarias zangado? Espera, vais poder deitar-te... Que horas são?
— Já deve passar de três horas.
— Vamos acabar, vamos acabar.
— Mas não adianta nada. Enquanto o senhor quiser...
— Que há? — pensou Mítia, correndo para a sala de dança.
Grúchenhka não estava mais ali. No quarto azul, Kolgánov dormitava sobre o divã. Mítia olhou por trás das cortinas. Sentada sobre uma mala, com a cabeça inclinada sobre o leito, ela chorava copiosamente, esforçando-se por abafar os soluços. Fez sinal a Mítia para se aproximar e tomou-lhe a mão.
— Mítia, Mítia, eu o amava! Não cessei de amá-lo durante cinco anos. Era a ele que eu amava ou a meu rancor? Era a ele, oh! era a ele! Menti, dizendo o contrário!... Mítia, tinha eu 17 anos então, era ele tão terno, tão alegre, cantava-me canções... ou então assim me parecia a mim, meninota tola. Agora, meu Deus, não é mais absolutamente o mesmo. Seu rosto mudou, não o reconhecia. Ao vir aqui, pensava todo o tempo: “Como irei abordá-lo, que lhe direi, que olhares trocaremos?...” Minha alma desfalecia... e foi como se recebesse um balde d’água suja. Dir-se-ia um professor sisudo. Cheguei a ficar boba. Pensei a princípio que a presença de seu comprido camarada o constrangia. Pensei ao olhá-los: por que não acho nada para dizer-lhe? Sabes, foi a mulher dele que o estragou, a tal pela qual me abandonou... Ela o metamorfoseou, Mítia, que vergonha! Oh, que vergonha sinto, Mítia, vergonha por toda a minha vida! Malditos sejam esses cinco anos!
Desfez-se de novo em lágrimas, sem largar a mão de Mítia.
— Mítia, meu querido, não te vás, quero dizer-te uma coisa — murmurou ela, erguendo a cabeça. — Escuta, dize-me a quem amo. Amo alguém aqui, quem é? — Um sorriso brilhou em seu rosto cheio de lágrimas. — À entrada dele, meu coração desfaleceu: “Tola, eis aquele a quem amas”, disse meu coração. Tu apareceste e tudo se iluminou. De quem tem ele medo? — pensei. Porque tu tinhas medo, não podias falar. Não é deles que ele tem medo, disse a mim mesma. Haverá homem que lhe cause medo? Eu só é que causo, eu só. Porque Fiénia te contou, bobinho, o que gritei a Aliócha pela janela: amei Mítia durante uma hora e parto para amar... outro. Mítia, como pude pensar que amaria outro depois de ti? Perdoas-me, Mítia? Amas-me? Amas-me tu?
Levantou-se, pôs as mãos nos ombros dele. Mudo de felicidade, contempla-lhe ele os olhos, o sorriso; de repente, apertou-a em seus braços.
— Tu me perdoas o ter-te feito sofrer? Era por maldade que eu vos torturava a todos. Foi por maldade que enlouqueci o velho... Lembras-te do copo que partiste em minha casa? Lembrei-me disso e fiz o mesmo hoje bebendo a “meu coração vil”. Mítia, por que não me beijas? Depois de um beijo tu me olhas, tu me escutas... Para que escutar-me? Beija-me com mais força, assim. Não se deve amar pela metade! Serei agora tua escrava, tua escrava por toda a vida! É doce ser escrava! Beija-me! Faze-me sofrer, faze de mim o que quiseres... Oh! É preciso fazer-me sofrer... Para, espera, depois, não quero assim... — E ela o repeliu, de repente. — Vá, Mítia, vou beber, quero embriagar-me, dançarei bêbeda, quero-o, quero-o.
Libertou-se dele e saiu. Mítia seguiu-a, cambaleando. “Aconteça o que acontecer, não importa, daria o mundo inteiro por este instante”, pensava ele. Grúchenhka bebeu dum trago um copo de champanha que a aturdiu. Sentou-se numa cadeira, sorrindo de felicidade. Suas faces coloriram-se, sua vista turvou-se, seu olhar apaixonado fascinava. O próprio Kolgánov ficou encantado e aproximou-se dela.
— Sentiste quando te beijei ainda há pouco, enquanto dormias? — murmurou ela. — Estou bêbeda agora, e tu? Por que não bebes, Mítia? Eu bebi...
— Já estou embriagado... de ti e quero ficar bêbedo de vinho. — Bebeu ainda um copo e — isso pareceu-lhe estranho — esse derradeiro copo embriagou-o de repente, a ele que suportara a bebida até então. A partir daquele momento, tudo girou em torno dele, como no delírio. Andava, ria, falava a todo mundo, não se conhecia mais. Só um sentimento ardente se manifestava nele por momentos “como brasa na alma”, lembrou-se ele mais tarde. Aproximava-se dela, contemplava-a, escutava-a... Ela se tornou bastante loquaz, chamando todos, atraindo alguma moça do coro, que mandava embora depois de tê-la beijado, ou por vezes com um sinal da cruz. Estava a ponto de chorar. O “velhinho”, como chamava a Maksímov, divertia-a bastante. A cada instante, vinha ele beijar-lhe a mão e acabou por dançar de novo, acompanhando-se de uma velha canção de estribilho arrebatante:
O porco, gru, gru, gru,
A bezerra, mé, mé, mé,
O pato, coen, coen,
O ganso, quá, quá, quá,
No quarto a franga corria,
Cá, cá, cá, cantando ia.
— Dá-lhe alguma coisa, Mítia, ele é pobre. Ah, os pobres, os ofendidos!... Sabes tu, Mítia, quero entrar para um convento. É sério, irei algum dia. Lembrar-me-ei toda a vida do que me disse Aliócha hoje. Dancemos agora. Amanhã, no convento; hoje, no baile. Quero fazer loucuras, boa gente, Deus o perdoará. Se eu fosse Deus, perdoaria todo mundo: “Meus caros pecadores, perdoo todos.” Irei implorar meu perdão: “Perdoai uma tola, boa gente.” Sou uma besta feroz, eis o que sou. Mas quero rezar. Dei uma pequena cebola. Uma miserável como eu quer rezar! Mítia, não os impeça de dançar. Todo mundo é bom, sabes? Todo mundo. A vida é bela. Por mau que se seja, é bom viver... Somos bons e maus ao mesmo tempo... Dizei-me, rogo-vos, por que sou tão boa? Porque sou muito boa...
Assim divagava Grúchenhka à medida que a embriaguez a dominava. Declarou que queria dançar, levantou-se, cambaleando.
— Mítia, não me dês mais vinho, mesmo se eu pedir. O vinho perturba-me e tudo gira, até mesmo a estufa. Mas quero dançar. Vão ver como danço bem...
Era uma intenção decidida; exibiu um lenço de batista que pegou por uma ponta para agitá-lo ao dançar. Mítia apressou-se, as moças se calaram, prontas a entoar, ao primeiro sinal, a toada da dança russa. Ao saber que Grúchenhka queria dançar, Maksímov lançou um grito de alegria, saltitou diante dela, cantando:
Pernas finas, ancas torneadas,
Cauda em forma de trombeta.
Ela, porém, o afastou com uma rabanada do lenço.
— Psiu! Que todos venham olhar-me. Mítia, chama também os que estão fechados... Por que fechá-los? Dize-lhes que vou dançar, que eles venham ver-me...
Mítia bateu vigorosamente na porta dos poloneses.
— Ei! Vocês aí... Povisótski! Saiam! Ela vai dançar e chama-os.
— Laidak! — resmungou um dos poloneses.
— E tu és mais que um laidak, és um canalha!
— Por que não para o senhor de mexer com a Polônia? — observou gravemente Kolgánov, igualmente bêbedo.
— É bom, meu rapaz! Mas o que eu disse dirige-se a ele e não à Polônia. O miserável não a representa. Cala-te, meu bonitote, come bombons.
— Que criaturas! Por que não querem eles fazer as pazes? — murmurou Grúchenhka, que avançou para dançar. O coro repercutiu. Ela entreabriu os lábios, agitou o lenço e, depois de ter balançado, parou no meio da sala.
— Não tenho forças... — murmurou ela, com voz extinta. — Desculpem-me, não posso... perdão.
Saudou o coro, fez reverências à direita e à esquerda.
— Ela bebeu, a bonita senhora — disseram vozes.
— A madama tomou um pileque — explicou, com uma risadinha, Maksímov às moças.
— Mítia, leva-me... toma-me...
Mítia ergueu-a em seus braços e foi depositar seu precioso fardo no leito. “Agora, vou-me embora”, pensou Kolgánov, e, deixando a sala, fechou atrás de si a porta do quarto azul. Mas nem por isso deixou a festa de continuar cada vez mais barulhenta. Grúchenhka estava deitada, Mítia colou seus lábios aos dela.
— Deixa-me — implorou ela —, não me toques antes que eu seja tua... Disse que seria tua... poupa-me... Perto dele, é impossível, causa-me horror isso.
— Obedeço! Nem mesmo em pensamento... Respeito-te! Sim, é repugnante aqui. — Sem afrouxar o braço, ajoelhou-se junto do leito.
— Muito embora sejas violento, sei que és nobre... É preciso que seja honestamente doravante... Sejamos honestos e bons, não nos assemelhemos aos animais... Leva-me para bem longe, entendes?... Não quero aqui, mas longe, longe...
— Sim, sim. — Mítia apertou-a. — Levar-te-ei, partiremos... Oh! Daria toda a minha vida por um ano contigo, só para nada saber desse sangue.
— Que sangue?
— Nada — e Mítia rangeu os dentes. — Grucha, queres que seja honestamente, mas sou um ladrão. Roubei Katka. Oh, vergonha! Oh, vergonha!
— Katka? Aquela senhorita? Não, nada lhe tomaste. Reembolsa-a, toma meu dinheiro... Por que gritas? Tudo quanto me pertence é teu. De que serve o dinheiro? Nós o gastamos sem poder impedir-nos disso. Iremos de preferência cavar a terra. É preciso trabalhar, entendes? Aliócha ordenou-o. Não serei tua amante, mas tua mulher, tua escrava, trabalharei para ti. Iremos cumprimentar a senhorita, pedir-lhe perdão, e partiremos. Se ela recusar, tanto pior. Entrega-lhe seu dinheiro e ama-me. Esquece-a. Se a amas ainda, a estrangulo... Furar-lhe-ei os olhos com uma agulha...
— É a ti que amo, a ti somente. Amar-te-ei na Sibéria.
— Por que na Sibéria? Pois seja, na Sibéria, se quiseres. Que me importa?... Trabalharemos... há neve... Gosto de viajar sobre a neve... e o tilintar da sineta... Estás ouvindo? Uma sineta tilinta... Onde é? Viajantes que passam... parou.
Fechou os olhos e pareceu adormecer. Uma sineta, com efeito, havia tilintado ao longe. Mítia reclinou a cabeça sobre o peito de Grúchenhka. Não reparava que a campainha tinha cessado de tilintar e que às canções e ao tumulto havia sucedido na casa um silêncio de morte. Grúchenhka abriu os olhos.
— Que há? Dormi? Ah! Sim, a sineta... Sonhei que viajava sobre a neve... a sineta tilintava e adormeci. Íamos os dois juntos, longe, longe. Beijava-te, apertava-me contra ti, tinha frio e a neve cintilava... Não sabes, como ela cintila ao clarão da lua? Cria-me noutro lugar que não na terra... Desperto, meu bem-amado, junto de ti. Que bom!
— Perto de ti — murmurou Mítia, cobrindo de beijos o peito e as mãos de sua amada. De repente, pareceu-lhe que ela olhava diretamente à frente, por cima de sua cabeça, com um olhar estranhamente fixo. A surpresa, quase o terror, pintou-se em seu rosto.
— Mítia, quem é esse que nos está olhando? — cochichou ela. Mítia voltou-se e viu alguém que havia afastado as cortinas e os examinava. Levantou-se e avançou vivamente para o indiscreto.
— Venha cá, peço-lhe — disse uma voz decidida.
Mítia saiu de trás das cortinas e parou. O quarto estava cheio de novos personagens. Mítia sentiu um arrepio na espinha, estremeceu. Reconhecera todos imediatamente. Aquele velho de elevada estatura, de sobretudo, com uma insígnia no casquete do uniforme, é o isprávnik Mikhail Makáritch. Aquele janota tuberculoso, de botas irreprocháveis, é o suplente. Tem um cronômetro de quatrocentos rublos, ele o mostrou. Aquele rapaz de óculos, baixinho... Mítia esqueceu seu nome, mas conhece-o, viu-o: é o juiz de instrução, que acaba de sair da Escola de Direito. Este aqui é o stanovói, Mavríki Mavríkitch, um de seus conhecidos. E aqueles, com suas placas de metal, que fazem? E depois dois mujiques... Ao fundo, perto da porta, Kolgánov e Trifon Borísovitch...
— Senhores... Que há, senhores? — proferiu a princípio Mítia, que, de repente, prosseguiu com voz forte:
— Com-pre-endo!
O rapaz de óculos aproximou-se dele e disse com ar importante, mas com um pouco de pressa:
— Temos de dizer-lhe... numa palavra, peço-lhe que venha aqui, perto do divã... É necessário que tenhamos uma explicação.
— O velho! — exclamou Mítia, exaltado. — O velho ensanguentado!... Compreendo!
E deixou-se cair numa cadeira.
— Compreendes? Compreendeste? Parricida, monstro, o sangue de teu velho pai grita contra ti! — berrou de repente o velho isprávnik, aproximando-se de Mítia. Estava fora de si, vermelho, trêmulo de cólera.
— Mas é impossível, Mikhail Makáritch! — exclamou o rapaz baixinho. — Não é assim, não é assim!... Não teria jamais esperado semelhante coisa do senhor!...
— Mas está delirando, senhores, delirando! — continuou o isprávnik. — Olhem-no: à noite, bêbedo em companhia de uma mulher perdida, manchado do sangue do pai... Está delirando!...
— Rogo-lhe instantemente, meu caro Mikhail Makáritch, que modere seus sentimentos — gaguejou o suplente —, senão serei obrigado a tomar...
O pequeno juiz de instrução interrompeu-o e proferiu com voz firme e grave:
— Senhor tenente reformado Karamázov, devo declarar-lhe que o senhor é acusado de ter matado seu pai, Fiódor Pávlovitch, assassinado esta noite.
Acrescentou alguma coisa, o suplente igualmente, mas Mítia escutava sem compreender. Olhava-os a todos com um olhar estupidificado.
Livro IX
O processo preparatório
I
Inicia sua carreira o funcionário pierkhótin
Piotr Ilitch Pierkhótin, que deixamos batendo com todas as forças no portão da casa Morózova, acabou naturalmente fazendo que lhe abrissem. Ouvindo tamanho barulho, Fiénia, ainda mal reposta do terror, quase teve uma crise de nervos: imaginou que era Dimítri Fiódorovitch que voltava (se bem que tivesse assistido à sua partida), porque só ele podia bater tão insolentemente. Correu para o porteiro, que despertara com o barulho, e suplicou-lhe que não abrisse. Mas ele, tendo ficado sabendo o nome do visitante e seu desejo de ver Fiedóssia Márkovna para tratar de um negócio importante, decidiu deixá-lo entrar. Piotr Ilitch pôs-se a interrogar a moça e descobriu logo o fato mais importante: ao lançar-se à procura de Grúchenhka, Dimítri Fiódorovitch levara um pilão e voltara de mãos vazias, mas ensanguentadas. “O sangue pingava!”, exclamou Fiénia, imaginando em sua perturbação aquela horrenda circunstância. Piotr Ilitch vira aquelas mãos e ajudara a lavá-las; não se tratava de saber se tinham secado rapidamente, mas se Dimítri Fiódorovitch tinha ido verdadeiramente à casa do pai com o pilão, e donde se podia concluir isso. Piotr Ilitch insistiu nesse ponto e, muito embora nada haja em suma sabido de certo, ficou quase convencido de que Dimítri Fiódorovitch só pudera ter ido à casa de seu pai e que, por consequência, deveria ter-se passado lá alguma coisa. “Quando ele voltou — acrescentou Fiénia — e, quando lhe confessei tudo, perguntei-lhe: Dimítri Fiódorovitch, por que tem o senhor as mãos ensanguentadas? Respondeu-me que era sangue humano e que acabara de matar alguém. Assim confessou, arrependendo-se, depois saiu correndo como um louco. Pus-me a pensar: onde bem pode ir agora? Irá a Mókroie matar minha patroa. Corri então à casa dele para suplicar-lhe que a poupasse. Ao passar diante da venda dos Plastunovi, vi-o que ia partir, mas de mãos limpas.” (Fiénia notara esse detalhe.) A avó confirmou o relato da neta. Piotr Ilitch deixou a casa ainda mais perturbado do que quando nela entrara.
Parecia que o mais simples seria agora ir à casa de Fiódor Pávlovitch informar-se se nada acontecera; em caso afirmativo, e uma vez ciente, iria à casa do isprávnik. Piotr Ilitch estava bem decidido a isso. Mas a noite estava escura, o portão maciço, conhecia muito pouco Fiódor Pávlovitch; se, à força de bater, lhe abrissem e nada se tivesse passado, no dia seguinte o malicioso Fiódor Pávlovitch iria contar na cidade, como uma anedota, que, à meia-noite, o funcionário Pierkhótin, a quem não conhecia, forçara sua porta para saber se ele, Fiódor, não tinha sido assassinado. Seria um escândalo! Ora, Piotr Ilitch temia o escândalo mais que qualquer coisa. No entanto, o sentimento que o impelia era tão poderoso que depois de ter batido o pé com cólera e haver invectivado a si mesmo, lançou-se noutra direção, para a casa da senhora Khokhlakova. Se ela respondesse negativamente à pergunta, a respeito dos três mil rublos dados àquela hora a Dimítri Fiódorovitch, iria procurar o isprávnik, sem passar em casa de Fiódor Pávlovitch; senão, deixaria tudo para o dia seguinte e voltaria para casa. Compreende-se bem que a decisão do jovem de se apresentar às 11 horas da noite em casa de conhecida senhora da sociedade, obrigá-la a levantar-se talvez para fazer-lhe uma pergunta singular, arriscava a provocar um escândalo bem maior que ir pedir informação em casa de Fiódor Pávlovitch. Mas tal é muitas vezes a sorte, sobretudo em semelhantes casos, das decisões das pessoas mais fleumáticas. Piotr Ilitch não estava de todo fleumático naquele momento! Lembrou-se toda a vida de como a inquietação insopitável que se apoderara dele degenerou em suplício e arrastou-o contra a vontade. Bem entendido, injuriou-se durante todo o caminho por causa daquele tolo passo que dava, mas “irei até o fim!”, repetia pela décima vez, rangendo os dentes, e manteve a palavra.
Soavam 11 horas, quando chegou à casa da senhora Khokhlakova. Penetrou com bastante facilidade no pátio, mas o porteiro não pôde dizer-lhe com certeza se a senhora já estava deitada, como era costume seu àquela hora. “Faça-se anunciar e verá bem se o recebem ou não.” Piotr Ilitch subiu, mas as dificuldades começaram. O lacaio não queria anunciá-lo; acabou por chamar a arrumadeira. Num tom polido, mas firme, Piotr Ilitch rogou-lhe que dissesse à ama que o funcionário Pierkhótin desejava falar-lhe a respeito dum assunto importante, sem o que não se teria permitido incomodá-la; “anuncie-me nesses termos”, insistiu ele. Esperou no vestíbulo. A senhora Khokhlakova já se achava no seu quarto de dormir. A visita de Mítia perturbara-a; pressentia para a noite uma dor de cabeça certa em semelhante caso. Ficou surpresa, mas recusou com irritação receber o jovem funcionário, se bem que a visita de um desconhecido, a semelhante hora, superexcitasse sua curiosidade feminina. Mas Piotr Ilitch teimou dessa vez como um mulo; vendo-se repelido, insistiu imperiosamente e fez dizer nos mesmos termos “que se tratava dum assunto muito importante e que a senhora lamentaria talvez depois não o ter recebido”. A criada de quarto olhou-o com espanto e voltou para levar o recado. A senhora Khokhlakova ficou estupefata, refletiu, perguntou que aspecto tinha o visitante e soube que estava bem trajado, era jovem e bastante polido. Notemos, de passagem, que Piotr Ilitch era belo rapaz e sabia disso. A senhora Khokhlakova decidiu aparecer. Estava em roupão de quarto e de chinelas e lançou um xale preto nos ombros. O funcionário foi convidado a entrar no salão. A dona da casa apareceu, com ar interrogador, e, sem mandar o visitante sentar-se, convidou-o a explicar-se.
— Permito-me incomodá-la, minha senhora, a respeito de nosso conhecido comum, Dimítri Fiódorovitch Karamázov — começou Pierkhótin; mal, porém, havia pronunciado esse nome, viva irritação pintou-se no rosto da interlocutora. Abafou ela um grito e interrompeu-o com cólera:
— Será que haverão de atormentar-me ainda por muito tempo com tão horrível personagem? Como ousou o senhor incomodar uma dama a quem não conhece, a semelhante hora... para lhe falar de um indivíduo que, aqui mesmo, há três horas, veio assassinar-me, bateu com o pé e saiu duma maneira escandalosa? Saiba, senhor, que darei queixa contra o senhor; queira retirar-se imediatamente... Sou mãe, vou... eu...
— Então queria ele matá-la também?
— Será que ele já matou alguém? — perguntou impetuosamente a senhora Khokhlakova.
— Queira conceder-me um minuto de atenção, minha senhora, e lhe explicarei tudo — respondeu com firmeza Pierkhótin. — Hoje, às cinco horas da tarde, o senhor Karamázov me pediu emprestados dez rublos, na qualidade de amigo, e sei positivamente que ele estava sem dinheiro; às nove horas, foi à minha casa tendo na mão um maço de cédulas de cem rublos, cerca de dois ou três mil rublos. As mãos e o rosto ensanguentados, tinha o ar de um louco. À minha pergunta, donde provinha tanto dinheiro, respondeu textualmente que o recebera da senhora e que a senhora lhe adiantava uma soma de três mil rublos para que ele partisse em busca de minas de ouro...
O rosto da senhora Khokhlakova exprimiu uma emoção súbita.
— Meu Deus! Foi o velho pai que ele matou! — exclamou ela, juntando as mãos. — Não lhe dei o dinheiro, absolutamente! Oh! Corra, corra!... Não diga mais nada! Salve o velho, corra à casa do pai dele!
— Permita, minha senhora; com que então não lhe deu o dinheiro? Está bem certa de não lhe ter dado nenhuma soma?
— Nenhuma, nenhuma. Recusei, porque não sabia ele apreciar. Partiu furioso, batendo os pés. Lançou-se contra mim, recuei... Imagine — porque nada quero ocultar-lhe — que cuspiu em cima de mim! Mas por que ficar de pé? Sente-se... Desculpe-me, eu... Ou antes, corra a salvar aquele desgraçado velho de uma morte horrível!
— Mas se já o matou?
— Com efeito, meu Deus! Que vamos fazer agora? Que pensa o senhor que é preciso fazer?
Entretanto fizera Piotr Ilitch sentar-se e tomara lugar em frente a ele. Ele expôs-lhe brevemente os fatos de que fora testemunha, contou sua recente visita à casa de Fiénia e falou do pilão. Todos esses detalhes transtornaram a dama, que lançou um grito e pôs a mão diante dos olhos.
— Imagine o senhor que pressenti tudo isso! É um dom que tenho, todos os meus pressentimentos se realizam. Quantas vezes tenho olhado para aquele terrível homem pensando: acabará matando-me. E eis que aconteceu... Ou antes, se não me matou agora como ao pai, foi graças a Deus que me protegeu; além do mais, teve vergonha, porque eu lhe havia amarrado ao pescoço, aqui mesmo, uma pequena imagem, proveniente das relíquias de santa Bárbara, mártir... Estive bem perto da morte naquele minuto. Tinha-me aproximado completamente dele que me estendia o pescoço! Sabe o senhor, Piotr Ilitch (o senhor disse, creio, que é esse seu nome), não creio nos milagres, mas aquela imagem, aquele milagre evidente em meu favor, isso me impressiona e recomeço a crer em não importa o quê. Ouviu falar do stáriets Zósima?... Aliás, não sei o que digo... Imagine que ele cuspiu em mim com aquela imagem no pescoço... Cuspiu somente, sem matar-me, e... e eis para o que ele correu! Que vamos fazer agora? Que pensa o senhor?
Piotr Ilitch levantou-se e declarou que ia à casa do isprávnik contar tudo, e ele agiria como lhe conviesse.
— Ah! É um homem excelente, conheço Mikhail Makárovitch. Vá ter com ele sem falta. Como o senhor é engenhoso, Piotr Ilitch! Em seu lugar, jamais teria pensado nisso!
— Tanto mais que me acho eu mesmo em bons termos com o isprávnik — observou Piotr Ilitch, visivelmente desejoso de escapar àquela dama expansiva que não o deixava despedir-se.
— Sabe duma coisa? Venha contar-me o que tiver visto e sabido... as verificações... o que se fará dele... Diga-me, a pena de morte não existe entre nós? Venha sem falta, mesmo às três horas da manhã, até mesmo às quatro... Mande acordar-me, sacudir-me, se não me levantar... Aliás, não dormirei, sem dúvida. E se eu o acompanhasse?
— N...ão, mas se certificar por escrito, para o que der e vier, que não deu o dinheiro a Dimítri Fiódorovitch, isso poderia servir... na ocasião...
— Decerto! — aprovou a senhora Khokhlakova, lançando-se para a escrivaninha. — Sabe? Estou impressionada e confusa com sua engenhosidade, sua perícia nessas questões... Serve aqui? Isso me causa grande prazer...
Enquanto falava, tinha, à pressa, traçado as seguintes poucas linhas, em letras graúdas:
Jamais emprestei três mil rublos ao desditoso Dimítri Fiódorovitch Karamázov, nem hoje nem antes! Juro-o pelo que há de mais sagrado.
Khokhlakova.
— Pronto, aqui está! — disse ela, voltando-se para Piotr Ilitch. — Vá, salve sua alma. É um grande feito que o senhor pratica.
Fez sobre ele três vezes o sinal da cruz e reconduziu-o até o vestíbulo.
— Quanto lhe sou grata! O senhor não pode imaginar como lhe sou grata por ter vindo em primeiro lugar procurar-me. Como é possível que não nos tenhamos jamais encontrado? Terei muito prazer em recebê-lo doravante. Causa-me prazer saber que o senhor serve aqui... e com tal exatidão, tanta engenhosidade... Mas devem apreciá-lo, compreendê-lo, enfim, e tudo quanto eu puder fazer pelo senhor, esteja certo... Oh, gosto da mocidade, sou doida por ela! As pessoas jovens são a esperança de nossa infeliz Rússia de hoje... Vá, vá!
Mas Piotr Ilitch já se havia escapulido, senão não o teria ela deixado partir tão depressa. Aliás, a senhora Khokhlakova causara nele uma impressão bastante agradável, que amenizava mesmo sua apreensão de estar metido num negócio tão escabroso. Sabe-se que os gostos variam muito. “E ela não é lá tão idosa”, pensava ele com satisfação, “pelo contrário, tê-la-ia tomado pela sua filha”.
Quanto à senhora Khokhlakova, estava simplesmente encantada. “Uma tal habilidade, uma tal precisão em um homem tão jovem, com suas maneiras e seu exterior... Pretende-se que os jovens de hoje não prestam para nada, eis um exemplo, etc.” Tanto que ela se esqueceu até “daquele horrendo acontecimento”; uma vez deitada, somente, é que se lembrou de “quão perto da morte estivera” e murmurou: “Ah! É horrível, horrível!” Mas adormeceu logo num sono profundo. Não me teria, aliás, estendido sobre detalhes tão insignificantes, se esse encontro singular do jovem funcionário com uma viúva ainda bem conservada não tivesse influído, posteriormente, em toda a carreira daquele rapaz metódico. Recorda-se isso mesmo com espanto em nossa cidade, e diremos talvez uma palavra a respeito, ao terminar a longa história dos irmãos Karamázov.
II
O alarme
Nosso isprávnik Mikhail Makárovitch, tenente-coronel reformado, que se tornara conselheiro da corte, era um honrado homem. Estabelecido em nossa cidade havia três anos apenas, conseguira atrair-se à simpatia geral porque “sabia reunir a sociedade”. Havia sempre gente em casa dele, fosse apenas uma ou duas pessoas para jantar. Não teria podido viver sem isso. Os pretextos mais variados motivavam os convites. A comida não era fina, mas abundante, os pastéis de peixe excelentes, a quantidade dos vinhos compensava-lhes a mediocridade. Na primeira sala, encontrava-se um bilhar, com cavalos de corrida ingleses enquadrados em molduras negras nas paredes, o que constitui, como se sabe, o ornamento necessário de todo bilhar em casa dum celibatário. Todas as noites jogava-se baralho. Mas, muitas vezes, a melhor sociedade de nossa cidade reunia-se para dançar, as mães com as filhas. Mikhail Makárovitch, embora viúvo, vivia em família, com a filha viúva e as duas netas. Elas, que tinham terminado os estudos, eram bastante gentis e alegres e, se bem que sem dote, atraíam para a casa do avô a juventude mundana. Em negócios, Mikhail Makárovitch era bastante limitado, mas exercia as funções tão bem quanto muitos outros. Para falar a verdade, era um homem pouco instruído e até mesmo descuidado na maneira de compreender as atribuições. Tinha vistas curtas a respeito de certas reformas do presente reinado, não por incapacidade, mas por indolência, não achando tempo para estudá-las. “Tenho mais alma de militar que de civil”, dizia, falando de si mesmo. Não tinha ainda uma ideia nítida das bases da reforma do camponês, que aprendia a conhecer pouco a pouco, pela prática e malgrado seu; no entanto, era ele proprietário rural. Piotr Ilitch estava certo de encontrar, naquela noite, visitas em casa de Mikhail Makárovitch. Achavam-se em casa dele, jogando baralho, o procurador e o jovem médico do ziémstvo, Varvínski, recentemente chegado de Moscou, onde obtivera o lugar de um dos primeiros alunos da Escola de Medicina. O procurador — isto é, o suplente, mas todos o chamavam assim — Ipolit Kirílovitch era um homem especial, ainda jovem, com 35 anos, mas predisposto à tuberculose, casado com uma mulher obesa e estéril, cheio de amor-próprio, irascível, tendo ao mesmo tempo sólidas qualidades. Por desgraça, tinha uma ideia exagerada de seus méritos, o que o fazia parecer constantemente inquieto. Tinha mesmo pendores artísticos, certa penetração psicológica aplicada aos criminosos e ao crime. Nesse sentido, considerava-se lesado e vítima de preterições, tendo sempre estado persuadido de que não o apreciavam segundo seu valor nas altas esferas e que tinha inimigos. Nas horas de desencorajamento, ameaçava mesmo tornar-se advogado criminalista. O caso Karamázov galvanizou-o inteiramente: “Um caso que podia apaixonar a Rússia!” Mas estou antecipando.
Na sala contígua achava-se, com as senhoritas, o jovem juiz de instrução Nikolai Parfiénovitch Nieliúdov, chegado, havia dois meses, de Petersburgo. Causou espanto mais tarde que esses personagens se tivessem reunido como que de propósito na noite do “crime”, na casa do Poder Executivo. Entretanto, não havia nada naquilo que não fosse bastante natural: a mulher de Ipolit Kirílovitch estava com dor de dentes desde a véspera, e era-lhe preciso subtrair-se de suas queixas; o médico só podia passar o serão jogando baralho. Quanto a Nikolai Parfiénovitch Nieliúdov, projetara fazer uma visita naquela noite a Mikhail Makárovitch, como que por acaso, a fim de surpreender a filha mais velha, Olga Mikháilovna, que fazia anos; conhecia seu segredo, porque, segundo ele, queria ela dissimulá-lo para não convidar a dançar. Isso se prestava a alusões zombeteiras à idade dela, que temia revelar; amanhã falaria ele a todo mundo, etc. Aquele gentil rapaz era, a esse respeito, um grande descarado, assim o tinham denominado nossas damas, e ele não se queixava disso. Pertencente à melhor sociedade, de família distinta, bem-educado, era aquele gozador inofensivo e sempre correto. De baixa estatura e compleição delicada, trazia sempre nos dedos delgados alguns grossos anéis. No exercício de seu cargo, tornava-se muito grave, tendo uma alta ideia de seu papel e de suas obrigações. Sabia sobretudo confundir, por ocasião dos interrogatórios, os assassinos e outros malfeitores da ralé, e suscitava neles certo espanto, senão respeito por sua pessoa.
Ao chegar em casa do isprávnik, ficou Piotr Ilitch estupefato por ver que todos estavam informados. Com efeito, tinham cessado de jogar e discutiam a notícia; Nikolai Parfiénovitch tinha mesmo um ar belicoso. Piotr Ilitch soube com estupor que o velho Fiódor Pávlovitch fora efetivamente assassinado naquela noite, em casa, assassinado e roubado. Acabava-se de sabê-lo da maneira seguinte:
Marfa Ignátievna, a mulher de Grigóri, malgrado o sono profundo em que estava mergulhada, despertou de repente, sem dúvida aos gritos de Smierdiákov, que jazia no quartinho vizinho. Jamais pudera habituar-se àqueles gritos do epiléptico, precursores da crise e que a apavoravam. Ainda semiadormecida, levantou-se e entrou no quarto de Smierdiákov. No escuro, ouvia-se o doente estertorar, debater-se. Tomada de medo, chamou o marido, mas refletiu que, ao levantar-se, não o vira a seu lado na cama. Voltou a tatear o leito: estava vazio. Correu para o patamar e chamou-o timidamente. Como resposta, ouviu, no silêncio noturno, gemidos distantes. Prestou atenção: os gemidos repetiram-se; partiam mesmo do jardim. “Meu Deus, parecem os gemidos de Lisavieta Smierdiáchtchaia!” Desceu e percebeu que a portinha do jardim estava aberta: “Deve estar lá, o coitado!” Aproximou-se e ouviu Grigóri chamá-la distintamente — “Marfa! Marfa!” — com uma voz fraca e dolorida. “Meu Deus, preservai-nos!”, murmurou Marta que se lançou na direção de Grigóri.
Encontrou-o a vinte passos da paliçada, onde ele caíra. Tendo voltado a si, tivera de arrastar-se muito tempo, perdendo várias vezes os sentidos. Notou ela logo que ele estava todo ensanguentado e pôs-se a gritar. Grigóri murmurava fracamente palavras entrecortadas: “Matou... matou o pai... Por que gritas, idiota?... Corre, chama...” Marfa Ignátievna não se acalmava; de repente, vendo a janela do patrão aberta e iluminada, correu para lá e pôs-se a chamar Fiódor Pávlovitch. Mas tendo olhado para dentro do quarto, um horrível espetáculo se ofereceu: jazia ele de costas, inerte. O roupão claro e a camisa branca estavam inundados de sangue. A vela, que ficara em cima da mesa, iluminava vivamente o rosto do morto. Aterrorizada, Marfa Ignátievna saiu correndo do jardim, abriu o portão e precipitou-se em casa de Mária Kondrátievna. As duas vizinhas, a mãe e a filha, dormiam; as pancadas redobradas batidas nos postigos despertaram-nas. Com palavras incoerentes, Marfa Ignátievna contou-lhes o ocorrido e chamou-as em socorro. Como que de propósito, dormia em casa delas naquela noite o vagabundo Fomá. Fizeram-no levantar-se imediatamente e todos acorreram ao local do crime. No caminho, Mária Kondrátievna lembrou-se de ter ouvido, cerca das nove horas, um grito agudo. Era precisamente o: “Parricida!”, de Grigóri, quando havia agarrado pela perna Dimítri Fiódorovitch, que já subira na paliçada. Chegadas junto de Grigóri, as duas mulheres, com a ajuda de Fomá, transportaram-no para o pavilhão. À luz, verificou-se que Smierdiákov continuava presa de sua crise, os olhos revirados, a espuma nos lábios. Lavaram a cabeça do ferido com água e vinagre, o que o reanimou completamente. Sua primeira pergunta foi saber se Fiódor Pávlovitch ainda estava vivo. As duas mulheres e Fomá voltaram ao jardim e viram que não somente a janela, mas também a porta da casa, estava escancarada, quando havia uma semana que o bárin se fechava a duas voltas de chave todas as noites e nem mesmo a Grigóri permitia que batesse sob qualquer pretexto. Não ousaram entrar com medo de atraírem complicações. Por ordem de Grigóri, Mária Kondrátievna correu à casa do isprávnik a dar o alarme. Precedeu de cinco minutos Piotr Ilitch, de sorte que ele chegou como testemunha ocular, confirmando por sua narrativa as suspeitas contra o presumido autor do crime (o que havia ele recusado crer até então, no fundo de seu coração).
Resolveu-se agir energicamente. As autoridades judiciárias dirigiram-se aos locais e procederam a uma investigação. O médico do ziémstvo, um novato, ofereceu-se a acompanhá-las. Resumo os fatos: Fiódor Pávlovitch tinha a cabeça partida, mas com que arma? Provavelmente a mesma que servira em seguida para golpear Grigóri. Este, depois de ter recebido os primeiros cuidados, fez, malgrado sua fraqueza, um relato bastante lógico do que lhe acontecera. Procurando-se com uma lanterna perto da paliçada, encontrou-se numa aleia, bem à vista, o pilão de cobre. Não havia desordem alguma no quarto de Fiódor Pávlovitch, exceto ter-se encontrado, por trás do biombo, perto do leito, um envelope de grande formato, em papel forte, com os dizeres: “Três mil rublos para meu anjo, Grúchenhka, se ela quiser vir.” Mais abaixo, Fiódor Pávlovitch acrescentara: “e para minha franguinha”. O envelope, que trazia três grandes sinetes em cera vermelha, estava rasgado e vazio. Encontrou-se no chão a fita cor-de-rosa que o amarrava. No depoimento de Piotr Ilitch, uma coisa atraiu a atenção dos magistrados: a suposição de que Dimítri Fiódorovitch se suicidaria na manhã seguinte, segundo suas palavras, a pistola carregada, o bilhete que escrevera, etc. Como Piotr Ilitch, incrédulo, o ameaçasse duma denúncia para impedi-lo disso, replicara Mítia, sorrindo: “Não terás tempo.” Era preciso, pois, apressarem-se a ir a Mókroie para apanhar o criminoso antes que pusesse ele fim a seus dias. “Está claro, está claro”, repetia o procurador superexcitado, “semelhantes cabeças loucas agem sempre assim: fazem a farra antes de morrer”. O relato das compras de Dimítri acalorou-o ainda mais. “Lembrem-se, senhores, de que o assassino do comerciante Olsúfiev, que se apoderou de 1.500 rublos, teve, como primeiro cuidado, mandar frisar os cabelos, depois ir à casa das mulheres, sem se dar ao trabalho de ocultar o dinheiro.” Mas o inquérito e as formalidades exigiam tempo, assim despachou-se para Mókroie o stanovói Mavríki Mavríkitch Chmiertsov, que viera à cidade receber seus vencimentos. Recebeu como instruções vigiar discretamente o “criminoso” até a chegada das autoridades competentes, formar uma escolta, etc. Guardando o incógnito, pôs somente ao corrente de uma parte do caso Trifon Borísovitch, seu velho conhecido. Foi então que Mítia encontrara no alpendre o hospedeiro que o procurava e notara uma mudança na expressão e no tom de Trifon Borísovitch. Mítia e seus companheiros ignoravam, pois, a vigilância de que eram objeto; quanto ao estojo das pistolas, o hospedeiro havia-o desde muito posto em lugar seguro. Às cinco horas somente, quase ao romper do dia, chegaram as autoridades, em dois carros. O médico ficara em casa de Fiódor Pávlovitch, para fazer a autópsia e sobretudo porque o estado de Smierdiákov o interessava bastante. “Crises de epilepsia tão violentas e tão prolongadas, durante dois dias, são bastante raras e pertencem à ciência”, declarou a seus companheiros por ocasião da partida deles, e eles o felicitaram, rindo, por aquele achado. Afirmara mesmo que Smierdiákov não viveria até o amanhecer.
Depois dessa digressão um tanto longa, mas necessária, retomamos nossa narrativa onde a deixamos.
III
Purgatórios de uma alma: primeiro purgatório
Mítia fitava os presentes com um ar estupidificado, sem compreender o que se dizia. De repente, levantou-se, estendeu as mãos no ar e exclamou:
— Não sou culpado! Não derramei o sangue de meu pai... Queria matá-lo, mas sou inocente. Não fui eu!
Apenas acabava ele de falar surgiu Grúchenhka detrás das cortinas e caiu aos pés do isprávnik.
— Sou eu, maldita, que sou a culpada — gritou ela, chorando, de mãos estendidas. — Foi por minha causa que ele matou. Aquele pobre velho, que não mais existe, eu o torturei. Sou eu a principal culpada.
— Sim, és tu, criminosa! És uma desavergonhada, uma mulher depravada — vociferou o isprávnik, ameaçando-a com o punho. Fizeram-no calar-se imediatamente, o procurador chegou mesmo a agarrá-lo.
— Isso é desordem, Mikhail Makárovitch! O senhor perturba o inquérito... estraga o caso...
Estava quase sufocado.
— É preciso tomar providências... é preciso tomar providências — gritava de seu lado Nikolai Parfiénovitch —, não se pode tolerar isso.
— Julguem-nos juntos! — continuava Grúchenhka sempre de joelhos —, executem-nos juntos, estou pronta a morrer com ele.
— Grucha, minha vida, meu sangue, meu tesouro sagrado! — disse Mítia, ajoelhando-se ao lado dela e abraçando-a. — Não acreditem nela, está inocente, completamente inocente!
Separaram-nos à força, levaram para fora a jovem mulher. Ele desfaleceu e só voltou a si depois, sentado à mesa e cercado das pessoas com placas de metal. Em frente, no divã, achava-se Nikolai Parfiénovitch, o juiz de instrução, que o exortava, da maneira mais cortês, a beber um pouco d’água: “Isso o refrescará, o acalmará, não tenha medo, não se inquiete.” Mítia interessava-se bastante pelos grossos anéis dele, um com uma ametista, outro com uma pedra amarelo-clara, dum brilho magnífico. Por muito tempo depois, lembrava-se ele com espanto de que aqueles anéis o fascinavam durante as penosas horas do interrogatório e de que não podia destacar deles os olhos. À esquerda de Mítia achava-se o procurador; à direita, um jovem de jaquetão de caça bastante usado, diante de um tinteiro e papel. Era o secretário do juiz de instrução. Na outra extremidade do quarto, perto da janela, mantinham-se o isprávnik e Kolgánov.
— Beba água — repetia docemente, pela décima vez, o juiz de instrução.
— Já bebi, senhores, já bebi... Pois bem! Esmagai-me, condenai-me, decidi minha sorte! — exclamou Mítia, fixando-o.
— Com que então afirma o senhor estar inocente da morte de seu pai, Fiódor Pávlovitch?
— Inocente! Derramei o sangue do outro velho, mas não o de meu pai. E o deploro! Matei... mas é duro ver-se acusado dum crime horrível que não se cometeu. É uma acusação terrível, senhores, um verdadeiro golpe de porrete! Mas quem então matou meu pai? Quem podia matá-lo, senão eu? É prodigioso, é um absurdo impossível!...
— Vou dizer-lhe... — começou o juiz, mas o procurador (chamaremos assim o suplente), depois de ter trocado uma olhadela com ele, disse a Mítia:
— O senhor se atormenta inutilmente a respeito do velho criado Grigóri Vassíliev. Saiba que está vivo. Recuperou os sentidos e, malgrado o golpe terrível que o senhor lhe assestou, de acordo com os depoimentos de ambos, escapará com certeza. Tal é pelo menos a opinião do médico.
— Vivo!? Está vivo!? — exclamou Mítia, de mãos juntas, o rosto radiante. — Meu Deus, rendo-Te graças por esse milagre insigne que concedes ao pecador, ao celerado que sou, à sua prece!... Porque rezei a noite inteira!... — E benzeu-se três vezes.
— Esse mesmo Grigóri prestou a respeito do senhor um depoimento de tal gravidade que... — prosseguiu o procurador, mas Mítia levantou-se bruscamente.
— Um instante, senhores, por favor, nada mais que um instante. Vou ter com ela...
— Com licença! É impossível agora! — exclamou Nikolai Parfiénovitch, que também se levantou. Os policiais seguraram Mítia, que tornou a sentar-se, aliás de bom grado.
— É pena. Queria somente anunciar-lhe que esse sangue que me angustiou a noite inteira está lavado e não sou um assassino! Senhores, é minha noiva! — disse ele, respeitosamente, olhando para todos os circunstantes. — Oh! Agradeço-vos! Vós me restituístes a vida... Aquele velho carregou-me nos braços, era ele quem me lavava numa tina, quando tinha eu três anos de idade, quando estava abandonado por todos. Serviu-me de pai!...
— Com que então, o senhor... — prosseguiu o juiz.
— Com licença, senhores, ainda um instante — interrompeu Mítia, pondo os cotovelos na mesa, com o rosto oculto nas mãos — deixai-me concentrar-me, deixai-me respirar. Tudo isso me transtorna, não se bate em um homem como em um tambor, senhores.
— O senhor deveria beber um pouco d’água...
Mítia descobriu o rosto e sorriu. Tinha o olhar vivo e parecia transformado. Suas maneiras também tinham mudado, sentia-se de novo igual àquelas pessoas, seus antigos conhecidos, como se se tivessem encontrado na véspera numa reunião social, antes do acontecimento. Notemos que Mítia havia a princípio sido recebido cordialmente em casa do isprávnik, mas que, posteriormente, no derradeiro mês sobretudo, quase cessara de frequentar-lhe a casa. O isprávnik, quando se encontrava na rua, por exemplo, fechava a cara e só o cumprimentava por polidez, o que não escapava a Mítia. Conhecia ainda menos o procurador, mas visitava, sem bem saber por quê, sua mulher, senhora nervosa e caprichosa; ela o recebia sempre graciosamente e testemunhava interesse por ele. Quanto ao juiz, conversara duas vezes com ele, a propósito de mulheres.
— O senhor, Nikolai Parfiénovitch, é um juiz de instrução bastante hábil, pelo que vejo — disse alegremente Mítia. — Vou ajudá-lo, aliás. Oh! Senhores, ressuscitei... não se formalizem com minha franqueza, tanto mais que estou um pouco bêbedo, confesso-o. Parece-me ter tido a honra... a honra e o prazer de tê-lo encontrado, Nikolai Parfiénovitch, em casa de meu parente Miúsov... Senhores, não pretendo igualdade, compreendo minha situação perante os senhores. Pesa sobre mim... se Grigóri me acusa, pesa sobre mim, bem decerto, uma acusação terrível. Compreendo-o muito bem. Mas, de fato, senhores, estou pronto, e em breve poderemos tudo terminar. Se estou seguro de minha inocência, não demorará muito, não é mesmo?
Mítia falava depressa, expansivamente, como se tomasse seus auditores por seus melhores amigos.
— De modo que, anotamos, enquanto esperamos, que o senhor nega formalmente a acusação feita contra o senhor — disse num tom grave Nikolai Parfiénovitch, e ditou a meia-voz ao escrivão o necessário.
— Anotar? Quer anotar isso? Pois seja, consinto, dou meu pleno consentimento, senhores... somente, vejam... Espere, escreva isto: é culpado de violências, de ter assestado golpes terríveis em um pobre velho. E, ademais, em meu foro íntimo, no fundo do coração, sinto-me culpado, mas isso não é preciso escrever, é minha vida privada, senhores, isso não lhes diz respeito, são segredos do coração... Quanto ao assassinato de meu velho pai, sou inocente! É uma ideia monstruosa!... Provar-lhes-ei, ficarão os senhores convencidos imediatamente. Rirão mesmo de suas suspeitas!...
— Acalme-se, Dimítri Fiódorovitch — disse o juiz. — Antes de prosseguir o interrogatório, quereria, se o senhor consentir em responder, que me confirmasse um fato: o senhor não gostava do defunto, parece, tinha constantes brigas com ele... Aqui, pelo menos, há um quarto de hora, declarou ter tido a intenção de matá-lo: “Não o matei, disse o senhor, mas quis matá-lo!”
— Disse isso? Oh, bem possível! Sim, várias vezes, quis matá-lo... desgraçadamente!
— O senhor o queria. Consente em explicar-nos os motivos desse ódio contra seu pai?
— Que adianta explicar, senhores? — disse Mítia, com ar sombrio, erguendo os ombros. — Não ocultava meus sentimentos, toda a cidade os conhece. Não há muito tempo, manifestei-os no mosteiro, na cela do stáriets Zósima... Na noite do mesmo dia, bati em meu pai e quase o matei, jurando diante de testemunhas que voltaria para matá-lo. Oh! As testemunhas não faltam, gritei isso durante um mês... O fato é patente, mas os sentimentos são outro negócio. Vejam, senhores, acho que não têm o direito de interrogar-me a respeito. Malgrado a autoridade de que estão revestidos, é um negócio íntimo, que só a mim interessa... mas uma vez que não ocultei meus sentimentos antes... falei deles a todo mundo no botequim, então... então não farei disso um mistério agora. Vejam os senhores, compreendo que há contra mim acusações esmagadoras: disse a todos que o mataria, e eis que o matam; não serei eu o culpado, em semelhante caso? Ah!, ah!, ah! Eu os desculpo, senhores, eu os desculpo absolutamente. Eu mesmo estou estupefato. Quem é, pois, o assassino, nesse caso, senão eu? Não é verdade? Se não sou eu, quem é então? Senhores, quero saber, exijo que me digam onde foi ele morto, como, com que arma.
Olhou longamente o juiz e o procurador.
— Nós o encontramos caído no soalho, em seu gabinete, com a cabeça arrebentada — disse o procurador.
— É terrível, senhores!
Mítia estremeceu, apoiou os cotovelos na mesa, ocultou o rosto com a mão direita.
— Continuemos — disse Nikolai Parfiénovitch. — Então, que motivos inspiraram seu ódio? O senhor, creio, declarou publicamente que ele provinha do ciúme?
— Oh! Sim, o ciúme, e outra coisa mais.
— Questões de dinheiro?
— Oh! Sim, o dinheiro desempenhava nisso também um papel.
— Tratava-se, creio, de três mil rublos que o senhor não havia recebido de sua herança?
— Como, três mil? Mais, mais de seis mil, mais de dez mil, talvez. Disse-o a todo mundo, gritei-o por toda parte! Mas estava decidido, para pôr termo a tudo, a transigir em três mil rublos. Precisava deles a qualquer preço... de sorte que aquele pacote oculto debaixo de uma almofada e destinado a Grúchenhka, considerava-o eu propriedade minha que me tinha sido roubada, sim, senhores, como me pertencendo.
O procurador trocou uma olhadela significativa com o juiz.
— Voltaremos a isso — disse logo o juiz. — No momento, permita-nos consignar esse ponto: que o senhor considerava o dinheiro encerrado naquele envelope propriedade sua.
— Escrevam, senhores. Compreendo que é uma nova acusação contra mim, mas isso não me causa medo, acuso-me a mim mesmo. Estão ouvindo? A mim mesmo. Vejam, senhores, creio que os senhores se enganam totalmente a meu respeito — acrescentou, com tristeza. — O homem que lhes fala é leal; cometeu muitas baixezas, mas sempre permaneceu nobre no íntimo de si mesmo... Em uma palavra, não sei exprimir-me... Essa sede de nobreza sempre me atormentou, como a um mártir; eu a buscava com a lanterna de Diógenes, e, no entanto, só pratiquei vilanias, como nós todos, senhores... isto é, como somente eu, engano-me, eu só é que sou assim!... Senhores, tenho dor de cabeça. Fiquem sabendo que tudo nele me desgostava: seu exterior, não sei que de desonesto, de gabolice e desprezo por tudo quanto é sagrado, palhaçada e irreligião. Mas agora que ele está morto, penso diferentemente.
— Como assim, diferentemente?
— Não diferentemente, mas lamento tê-lo detestado tanto.
— Sente remorsos?
— Não, remorsos não, não anotem isso. Eu mesmo, senhores, não brilho nem pela bondade, nem pela beleza; de modo que não tinha o direito de achá-lo repugnante. Podem anotar isso.
Tendo assim falado, Mítia pareceu bastante triste. Tornava-se cada vez mais sombrio à medida que respondia às perguntas do juiz. Foi nesse momento que se desenrolou uma cena inesperada. Se bem que tivessem afastado Grúchenhka, encontrava-se ela num quarto próximo daquele onde se realizava o interrogatório, em companhia de Maksímov, abatido e aterrorizado, que se ligava a ela como a uma âncora de salvação. Um mujique com placa de metal guardava a porta. Grúchenhka chorava; de repente, incapaz de resistir a seu pesar, depois de ter gritado: “Desgraça, desgraça!”, correu para fora do quarto para o seu bem-amado, tão bruscamente que ninguém teve tempo de detê-la. Mítia, que a havia ouvido, estremeceu, precipitou-se a seu encontro. Mas impediram de novo que se juntassem. Agarraram-no pelos braços; ele se debateu encarniçadamente, sendo precisos três ou quatro homens para contê-lo. Apoderaram-se também de Grúchenhka, e ele a viu a estender-lhe os braços, enquanto a levavam. Passada a cena, reencontrou-se ele no mesmo lugar, à mesa, diante do juiz.
— Por que fazê-la sofrer!? — exclamou ele. — Ela é inocente!...
O procurador e o juiz esforçaram-se por acalmá-lo. Dez minutos decorreram assim.
Mikhail Makárovitch, que havia saído, tornou a entrar e disse todo comovido:
— Ela está lá embaixo. Permitem, meus senhores, que eu diga uma palavra a esse infeliz? Na presença dos senhores, bem entendido.
— Pois não, Mikhail Makárovitch, não vemos inconvenientes nisso — disse o juiz.
— Dimítri Fiódorovitch, escuta, meu pobre amigo — seu rosto exprimia uma compaixão quase paternal —, Agrafiena Alieksándrovna encontra-se lá embaixo, com as filhas do hospedeiro, o velho Maksímov não a deixa. Tranquilizei-a, fiz-lhe compreender que tu devias justificar-te, que não se devia perturbar-te, senão agravarias as acusações contra ti, compreendes? Em suma, ela compreendeu; é inteligente e boa, queria beijar-me as mãos, pedindo graças para ti. Foi ela quem me enviou para tranquilizar-te. Preciso dizer-lhe que estás tranquilo a teu respeito. Acalma-te, pois. Sou culpado diante dela, é uma alma cristã, senhores, uma alma terna e inocente. Posso dizer-lhe, Dimítri Fiódorovitch, que estarás calmo?
O bom homem estava comovido pela dor de Grúchenhka, tinha mesmo lágrimas nos olhos. Mítia adiantou-se para ele.
— Perdão, senhores, com licença, peço-lhes. O senhor é um anjo, Mikhail Makárovitch, obrigado por ela. Ficarei calmo, ficarei alegre, diga-lhe isso em sua bondade; vou mesmo pôr-me a rir, sabendo que o senhor vela por ela. Acabarei em breve isso, assim que ficar livre correrei para ela. Que ela tenha paciência! Senhores, vou abrir-lhes meu coração, vamos terminar tudo isso alegremente, acabaremos rindo juntos, não é? Senhores, aquela mulher é a rainha de minha alma! Oh! Deixem-me dizer-lhes... Vejo que são corações nobres. Ela aclara e enobrece minha vida. Oh, se os senhores soubessem! Ouviram seus gritos: “Irei contigo à morte!” Que lhe dei eu, eu que nada tenho? Por que tal amor? Sou eu digno, eu, vil criatura, de ser amado a ponto de seguir-me ela à prisão? Ainda há pouco, arrastava-se aos pés dos senhores por minha causa, ela tão altiva e inocente! Como não adorá-la, não correr para ela? Senhores, perdoem-me! Agora, eis-me consolado!
Caiu sobre uma cadeira e, cobrindo o rosto com as mãos, pôs-se a soluçar. Mas eram lágrimas de alegria. O velho isprávnik parecia encantado, os juízes igualmente; sentiam que o interrogatório entrava numa fase nova. Quando o isprávnik saiu, Mítia tornou-se alegre.
— Pois bem, senhores, agora estou a seu dispor. E... não fossem todos esses detalhes e já nos teríamos entendido. Senhores, a seu dispor, mas é preciso que uma confiança mútua reine entre nós, senão não acabaremos nunca. É pelos senhores que falo. Ao fato, senhores, ao fato! Sobretudo não cascavilhem minha alma, não a torturem com bagatelas, mantenham-se no essencial e lhes darei satisfação. Ao diabo os detalhes!
Assim falou Mítia. O interrogatório recomeçou.
IV
Segundo purgatório
— O senhor não poderia acreditar quanto sua boa vontade nos reconforta, Dimítri Fiódorovitch — disse Nikolai Parfiénovitch. Seus olhos, de um cinzento-claro e salientes, brilhavam de satisfação. — O senhor falou com razão dessa confiança mútua, indispensável nos negócios de uma tal importância, se o acusado deseja verdadeiramente, espera e pode justificar-se. De nosso lado, faremos tudo quanto de nós depender. O senhor já pôde ver como conduzimos este caso... Está de acordo, Ipolit Kirílovitch?
— Decerto — aprovou o procurador, todavia um pouco secamente em comparação com o outro.
Notemos uma vez por todas que Nikolai Parfiénovitch, desde seu recente ingresso nas funções, testemunhava profundo respeito pelo procurador, pelo qual sentia simpatia. Era quase o único a acreditar absolutamente no notável talento psicológico e oratório de Ipolit Kirílovitch, vítima de injustiças, no que acreditava piamente. Já ouvira falar dele em Petersburgo. Em compensação, o jovem Nikolai Parfiénovitch era o único homem no mundo de quem o nosso mal-aventurado procurador gostava sinceramente. No caminho, tinham podido combinar-se a respeito do caso que se anunciava, e agora o espírito agudo de Nikolai Parfiénovitch captava no ar e interpretava cada sinal, cada jogo fisionômico de seu colega.
— Senhores, deixem-me contar-lhes as coisas sem me interromperem a propósito de bagatelas. Não será longo — continuou Mítia.
— Muito bem, mas antes de ouvi-lo, permita-nos que constatemos este pequeno fato muito curioso para nós. O senhor pediu emprestados dez rublos ontem à tardinha, às cinco horas, deixando suas pistolas como penhor a seu amigo Piotr Ilitch Pierkhótin.
— Sim, senhores, empenhei-as por dez rublos, quando voltei de viagem. E com isso?
— O senhor voltava de viagem? Tinha deixado a cidade?
— Fora a quarenta verstas da cidade, senhores. Não sabiam disso?
O procurador e o juiz trocaram um olhar.
— O senhor faria bem começando sua narrativa pela descrição metódica de seu dia desde a manhã. Queira dizer-nos, por exemplo, por que se ausentou, o momento de sua partida e de seu regresso...
— Deviam ter-me pedido imediatamente — disse Mítia rindo. — Se quiserem, remontarei a anteontem, então compreenderão o sentido de meus passos. Há dois dias, fui, logo de manhã, à casa do comerciante Samsónov para lhe pedir emprestados três mil rublos com seguras garantias. Precisava dessa soma de repente e o mais depressa possível.
— Com licença — interrompeu num tom polido o procurador —, por que tinha o senhor necessidade de repente de tal soma, precisamente três mil rublos?
— Ah, senhores, quantos detalhes! Como, quando, por quê, por qual razão tal soma e não outra? Palavrório, tudo isso. Desse jeito, nem três volumes seriam suficientes, precisaria ainda um epílogo!
Mítia falava com a bonomia familiar de um homem desejoso de dizer toda a verdade e animado das melhores intenções.
— Senhores — prosseguiu ele —, queiram desculpar minha brusquidão, estejam certos de meus sentimentos respeitosos a seu respeito. Não estou mais embriagado. Compreendo a diferença que nos separa: sou aos olhos dos senhores um criminoso que devem vigiar; não me passarão a mão pelos cabelos por causa de Grigóri, não se pode arrebentar impunemente a cabeça de um velho. Isso me valerá seis meses ou um ano de prisão, mas sem privar-me de meus direitos civis, não é, senhor procurador? Compreendo tudo isso... Mas confessem que os senhores desconcertariam o próprio Deus com perguntas assim: Aonde foste, como e quando? Por quê? Eu me atrapalharia dessa forma, os senhores anotariam imediatamente, e que resultaria disso? Nada! Afinal, se comecei a mentir, irei até o fim, e os senhores me perdoarão, dadas a instrução e a nobreza de seus sentimentos. Para terminar, peço-lhes que renunciem a esses processos oficiais que consistem em fazer perguntas insignificantes: Como te levantaste? Que comeste? Onde cuspiste? E, estando adormecida a atenção do réu, perturbá-lo, perguntando-lhe: A quem mataste? A quem roubaste? Ah!, ah! Eis o processo clássico dos senhores, eis em que se funda toda a sua astúcia! Empreguem esse ardil com os mujiques, mas não comigo, que compreendo as coisas e já servi! Ah!, ah!, ah! Não se zanguem senhores, perdoem meu atrevimento. — Olhava-os com estranha bonomia. — Pode-se ter mais indulgência por Mítia Karamázov do que por um homem de espírito, ah!, ah!, ah!.
O juiz ria. O procurador permanecia grave, não desfitava os olhos de Mítia, observava atentamente os menores gestos e movimentos de sua fisionomia.
— Contudo — disse Nikolai Parfiénovitch, continuando a rir —, nós não o confundimos a princípio com questões tais como: “Como se levantou esta manhã? Que comeu?”. Fomos mesmo demasiado depressa ao alvo.
— Compreendo, aprecio a bondade dos senhores. Estamos todos três de boa-fé, deve reinar entre nós a confiança recíproca de pessoas do mundo ligadas pela nobreza e pela honra. Em todo caso, deixem-me olhá-los como meus melhores amigos nessas penosas circunstâncias! Isso não os ofende, não é, senhores?
— Pelo contrário, o senhor diz muito bem, Dimítri Fiódorovitch — aprovou o juiz.
— E os detalhes, senhores, todo esse processo chicanista, deixemo-los de lado! — exclamou Mítia muito exaltado. — Com eles não chegaremos a nenhum resultado.
— O senhor tem toda a razão — interveio o procurador —, mas mantenho minha pergunta. — É-nos indispensável saber por que tinha o senhor necessidade desses três mil rublos.
— Para uma coisa ou outra... que importa? Para pagar uma dívida.
— A quem?
— Isso recuso absolutamente dizer, senhores! Não é por temor ou timidez, pois se trata duma bagatela, mas por princípio. Isso diz respeito à minha vida privada e não permito que nela se toque. Sua pergunta nada tem a ver com o caso, portanto diz respeito à minha vida privada. Queria pagar uma dívida de honra, mas não direi a quem.
— Permita-nos anotar isso — disse o procurador.
— Peço-lhe. Escreva que recuso dizê-lo, achando que não seria honroso fazê-lo. Vê-se bem que não lhes falta tempo para escrever!
— Permita-me, senhor, preveni-lo, lembrar-lhe ainda, se o ignora — disse num tom severo o procurador —, que o senhor tem o direito absoluto de não responder às nossas perguntas, e que, por outro lado, não temos absolutamente o direito de exigir respostas que o senhor julgue que não deve dar. Mas devemos chamar sua atenção para o prejuízo que causa a si mesmo recusando falar. Agora, queira continuar.
— Senhores, não me estou zangando... eu... — gaguejou Mítia um pouco confuso diante daquela observação — ... saibam que aquele Samsónov a cuja casa fui...
Bem entendido, não reproduziremos sua narrativa dos fatos que o leitor já conhece. Em sua impaciência, queria o narrador contar tudo detalhadamente e, ao mesmo tempo, com rapidez. Mas tinha-se de tomar por escrito suas declarações à medida que eram feitas, donde a necessidade de fazê-lo por vezes parar. Dimítri Fiódorovitch a isso se resignava, de má vontade; exclamava por vezes: “Senhores, é de exasperar o próprio Deus!”, ou “Senhores, sabem que me irritam sem motivo?”, mas, apesar dessas exclamações, continuava expansivo. Foi assim que contou como Samsónov o mistificara (dava-se perfeitamente conta disso agora). A venda do relógio por seis rublos, a fim de arranjar o dinheiro da viagem, interessou bastante os magistrados, que ainda ignoravam isso; com extrema indignação de Mítia, julgou-se necessário consignar com detalhes esse fato, que estabelecia de novo que, na véspera, também estava ele quase sem dinheiro algum. Pouco a pouco, Mítia tornava-se sombrio. Em seguida, depois de ter descrito sua visita a Liagávi, a noite passada na isbá e o começo de asfixia, abordou seu regresso à cidade e se pôs por si mesmo a descrever suas torturas de ciúme por causa de Grúchenhka. Escutavam-no em silêncio e com atenção, anotando-se sobretudo o fato de que, desde muito tempo, tinha ele um posto de observação no jardim de Mária Kondrátievna, para o caso de Grúchenhka ir à casa de Fiódor Pávlovitch, e que Smierdiákov lhe transmitia informações; isso foi mencionado bem devidamente. Falou longamente de seu ciúme, malgrado a vergonha em exibir seus sentimentos mais íntimos, por assim dizer, à desonra pública, mas dominava-a a fim de ser verídico. A severidade impassível dos olhares fixos nele, durante seu relato, acabou por perturbá-lo bastante fortemente: “Esse rapazola, Nikolai Parfiénovitch, com quem tagarelava eu a respeito de mulheres, há alguns dias, e esse procurador doentio não merecem que lhes conte isso”, pensava ele tristemente. “Que vergonha!” “Suporta, resigna-te, cala-te”, concluía, enquanto se fortalecia para continuar. Chegado ao ponto da visita à casa da senhora Khokhlakova, voltou a ficar alegre e quis mesmo contar a seu respeito uma anedota recente, fora de propósito; mas o juiz interrompeu-o e convidou-o a passar ao essencial. Em seguida, tendo descrito seu desespero e falado do momento em que, ao sair da casa daquela senhora, tinha mesmo pensado em estrangular alguém para arranjar os três mil rublos, fizeram-no parar para que fosse isso consignado. Por fim, contou como soubera da mentira de Grúchenhka, que logo partira da casa de Samsónov, quando devia, afirmava ela, ficar em casa do velho até a meia-noite. “Se não matei então aquela Fiénia, senhores, foi unicamente porque me faltava tempo”, deixou ele escapar. Isso também ficou consignado. Mítia esperou com ar sombrio e ia explicar como entrara no jardim do pai, quando o juiz o interrompeu e, abrindo um grande guardanapo que se achava junto dele, em cima do divã, dali tirou um pilão de cobre.
— Conhece este objeto?
— Ah! Sim. Como não? Deixe-me vê-lo... Ao diabo, é inútil!
— O senhor esqueceu-se de falar dele.
— Que diabo! Pensam que haveria de ocultar isso? Tinha-me esquecido, eis tudo.
— Quer contar-nos como arranjou esta arma?
— De boa vontade, senhores.
E Mítia contou como pegara o pilão e saíra.
— Mas qual era sua intenção apoderando-se deste objeto?
— Que intenção? Nenhuma. Peguei-o e saí correndo.
— Por que então, se não tinha intenção?
A irritação apoderava-se de Mítia. Fixava o rapazola com um sorriso mau, lamentava a franqueza que estava tendo com tal gente, a propósito de seu ciúme.
— Que me importa o pilão?
— No entanto...
— Pois bem, era contra os cachorros. Estava escuro... prevenia-me.
— Antes, quando o senhor saía à noite, levava também uma arma, uma vez que receava tanto a escuridão?
— Com a breca! É impossível conversar com os senhores! — exclamou Mítia exasperado, e, dirigindo-se, rubro de cólera, ao escrivão:
— Escreva imediatamente... agora mesmo: “Pegou ele o pilão para ir matar seu pai... Fiódor Pávlovitch... para lhe arrebentar a cabeça!” Estão contentes, senhores? — perguntou ele, num tom provocativo.
— Não podemos levar em conta tal depoimento, inspirado pela cólera. Nossas perguntas lhe parecem fúteis e irritam-no, quando na verdade são muito importantes — disse secamente o procurador.
— Por favor, senhores! Peguei o pilão... Por que se pega alguma coisa em semelhante caso? Ignoro-o. Peguei-o e saí correndo. Eis tudo. É vergonhoso, senhores, mas deixemos isso, senão juro-lhes que não direi mais uma palavra.
Pôs os cotovelos na mesa, com a cabeça na mão. Estava sentado de lado, em relação a eles, e olhava a parede, esforçando-se por dominar um mau sentimento. Tinha, com efeito, grande vontade de levantar-se, de declarar que não diria mais uma palavra, ainda que tivessem de levá-lo a suplício.
— Vejam, senhores, ao ouvi-los, parece-me ter um sonho como por vezes me acontece... sonho muitas vezes que alguém me persegue, alguém de quem tenho muito medo, e me procura, nas trevas. Oculto-me vergonhosamente atrás de uma porta, atrás de um armário. O desconhecido sabe, perfeitamente, onde me encontro, mas finge ignorá-lo, a fim de atormentar por mais tempo, de brincar com meu terror... É o que os senhores estão fazendo agora! É a mesma coisa!
— O senhor tem tais sonhos? — perguntou o procurador.
— Sim, tenho tais sonhos... Não vão anotar?
— Não, mas o senhor tem sonhos estranhos.
— Agora, não é mais um sonho! É a realidade, senhores, o realismo da vida! Sou o lobo, os senhores são os caçadores!
— Sua comparação é injusta... — disse mansamente Nikolai Parfiénovitch.
— Absolutamente, senhores! — disse Mítia com irritação, se bem que aliviado pela brusca explosão de cólera. — Os senhores podem recusar-se a crer num criminoso ou num acusado que torturam com suas perguntas, mas não num homem animado de nobres sentimentos (digo-o ousadamente). Os senhores não têm o direito. Mas
Silêncio, meu coração,
Suporta, resigna-te, cala-te!
— Devo continuar? — perguntou ele, áspero.
— Como não? Peço-lhe — disse Nikolai Parfiénovitch.
V
Terceiro purgatório
Embora falando com brusquidão, Mítia pareceu ainda mais desejoso de não omitir nenhum detalhe. Contou como escalara a paliçada, caminhara até a janela e tudo quanto se passara então com ele. Com precisão e clareza, expôs os sentimentos que o agitavam, quando ardia por saber se Grúchenhka estava ou não na casa. Coisa estranha, o procurador e o juiz escutavam com extrema reserva, de ar rebarbativo, não fazendo senão raras perguntas. Mítia nada podia presumir da expressão de seus rostos. “Estão irritados e ofendidos — pensou —, tanto pior!” Quando contou que havia feito a seu pai o sinal, anunciando a chegada de Grúchenhka, os magistrados não prestaram nenhuma atenção à palavra “sinal”, como se não compreendessem o alcance na circunstância. Mítia notou esse detalhe. Chegado ao momento em que, à vista de seu pai debruçado para fora da janela, fremira de ódio e tirara o pilão do bolso, parou de súbito, como de propósito. Olhava a parede e sentia os olhares dos juízes fixos nele.
— Pois bem! — disse Nikolai Parfiénovitch. — O senhor agarrou a arma e... que se passou em seguida?
— Em seguida? Matei... descarreguei em meu pai um golpe de pilão que lhe fendeu o crânio... Segundo os senhores, foi assim, não é mesmo?
Seus olhos cintilavam. Sua cólera acalmada reacendia-se em toda a violência.
— Segundo nós, mas segundo o senhor?
Mítia baixou os olhos, fez uma pausa.
— No que me diz respeito, senhores, no que me diz respeito, eis o que se passou — recomeçou ele, mansamente: — Teria sido minha mãe que implorava a Deus por mim, um espírito celeste que me beijou a fronte naquele momento? Não sei, mas o diabo foi vencido. Afastei-me da janela e corri para a paliçada. Meu pai, que me avistou então, ficou com medo, deu um grito e recuou vivamente, lembro-me bastante bem... Eu já havia trepado na paliçada, quando Grigóri me agarrou...
Mítia ergueu enfim os olhos para os ouvintes que o olhavam com ar impassível. Um frêmito de indignação percorreu-o.
— Senhores, zombam de mim!
— Donde concluiu isso? — perguntou Nikolai Parfiénovitch.
— Os senhores não acreditam numa palavra do que digo! Compreendo muito bem que cheguei ao ponto capital; o velho jaz agora, com a cabeça fendida, e eu, depois de ter tragicamente descrito minha vontade de matá-lo, com o pilão já na mão, fujo da janela... Tema de poema a ser posto em versos! Pode-se acreditar sob palavra em tal pândego? Os senhores são uns farsantes!
Voltou-se bruscamente na cadeira, que estalou.
— Não notou o senhor — disse o procurador, parecendo ignorar a agitação de Mítia —, quando deixou a janela, se a porta que dá acesso ao jardim, em outro extremo da fachada, estava aberta?
— Não, não estava aberta.
— Tem certeza?
— Estava, pelo contrário, fechada. Quem teria podido abri-la? Ah! A porta? Esperem! — pareceu reconsiderar e estremeceu: — Os senhores encontraram-na aberta?
— Sim.
— Mas quem pôde abri-la, senão os senhores?
— A porta estava aberta, o assassino de seu pai seguiu esse caminho para entrar e para sair — disse o procurador, escandindo as palavras. — É bastante claro para nós. O assassinato foi cometido evidentemente no quarto, e não através da janela. Isso resulta do exame dos locais e da posição do corpo. Não há nenhuma dúvida a este respeito.
Mítia estava confuso.
— Mas é impossível, senhores! — exclamou ele, totalmente transtornado. — Eu... eu não entrei... Afirmo-lhes que a porta ficou fechada durante todo o tempo em que eu estive no jardim e quando fugi... Conservava-me sob a janela e só vi meu pai do exterior... Lembro-me até do derradeiro minuto. Mesmo se não me lembrasse, estou certo disso, porque os sinais só eram conhecidos de mim, de Smierdiákov e do defunto, e sem sinais ele não teria aberto a ninguém no mundo!
— Que sinais? — perguntou com ardente curiosidade o procurador, cuja reserva desapareceu logo. Interrogava com uma espécie de hesitação, pressentindo um fato importante, e receava que Mítia se recusasse a explicá-lo.
— Ah! O senhor não sabia? — disse Mítia, piscando o olho, com um sorriso irônico. — E se eu recusasse responder? Quem os informaria? O defunto, eu e Smierdiákov éramos os únicos a conhecer o segredo; Deus também o sabe, mas ele não o dirá aos senhores. Ora, o fato é curioso e sobre ele pode-se construir à vontade. Ah! Ah! Consolem-se, senhores, eu lhes revelarei o segredo, seus temores são vãos. Os senhores não sabem com quem têm de avir-se! O acusado depõe contra si mesmo, sim, porque sou um cavalheiro de honra, mas os senhores, não!
O procurador engolia essas pílulas em sua impaciência de conhecer o fato novo. Mítia explicou pormenorizadamente os sinais imaginados por Fiódor Pávlovitch para Smierdiákov, o sentido de cada pancada na janela: reproduziu-os mesmo em cima da mesa. Tendo-lhe Nikolai Parfiénovitch perguntado se ele havia feito então ao velho o sinal convencionado para a chegada de Grúchenhka, Mítia respondeu afirmativamente.
— Agora, construam sobre isso uma hipótese! — cortou ele, voltando-se com desdém.
— De modo que seu defunto pai, o senhor e o criado Smierdiákov eram os únicos a conhecer esses sinais? — insistiu o juiz.
— Sim, o criado Smierdiákov e, depois, Deus. Notem isso. Devem os senhores mesmo recorrer a Deus.
Consignou-se, bem entendido, mas, naquele momento, disse o procurador, como se lhe tivesse sobrevindo uma ideia:
— Nesse caso, e já que o senhor afirma sua inocência, não teria sido Smierdiákov que fez seu pai abrir a porta, dando o sinal, e em seguida... o assassinou?
Mítia lançou-lhe um olhar carregado de ironia e de ódio, fixou-o tanto tempo que o procurador bateu as pálpebras.
— Os senhores queriam ainda pegar a raposa, beliscaram-lhe a cauda, ah, ah, ah, pensavam que eu ia agarrar-me ao que os senhores insinuam e exclamar a plenos pulmões: “Ah! Sim, foi Smierdiákov, eis o assassino!” Confessem que pensaram isso, confessem, e então continuarei.
O procurador não confessou nada. Esperou em silêncio.
— Os senhores enganaram-se. Não acusarei Smierdiákov — declarou Mítia.
— E o senhor nem mesmo suspeita dele?
— Será que os senhores suspeitam?
— Nós também suspeitamos dele.
Mítia baixou os olhos.
— Basta de brincadeiras, escutem: desde o começo, quase no momento em que saí detrás daquela cortina, essa ideia já me viera: “Foi Smierdiákov!” Sentado a essa mesa, quando gritava a minha inocência, o pensamento de Smierdiákov me perseguia. Agora, por fim, pensei nele, mas por espaço de um segundo, e logo disse a mim mesmo: “Não, não foi Smierdiákov!” Esse crime não é obra dele, senhores!
— Não suspeita então de alguma outra pessoa? — perguntou com precaução Nikolai Parfiénovitch.
— Não sei quem, Deus ou Satã, mas não Smierdiákov! — disse resolutamente Mítia.
— Mas por que afirma o senhor com tal insistência que não foi ele?
— Por convicção. Porque Smierdiákov é uma natureza vil e covarde, ou antes, o composto de todas as covardias caminhando em cima de dois pés. Nasceu de uma galinha. Quando falava comigo, tremia de medo, pensando que eu ia matá-lo, quando nem mesmo levantava a mão. Lançava-se a meus pés chorando, beijava minhas botas suplicando-me que não lhe causasse medo. Entendem? Que não lhe causasse medo. E eu mesmo dei-lhe presentes. É uma galinha epiléptica, um espírito fraco; um menino de oito anos surrá-lo-ia. Não, não foi Smierdiákov. Não gosta de dinheiro, recusava meus presentes... Aliás, por que teria ele matado o velho? É talvez seu filho natural, sabem disso?
— Conhecemos essa lenda. Mas o senhor também é filho de Fiódor Pávlovitch e, no entanto, andou dizendo a todo mundo que queria matá-lo.
— Mais outra pedra em meu jardim! É abominável. Mas eu não tenho medo. Os senhores deviam ter vergonha de dizer-me isso na cara! Porque fui eu que lhes falei. Não somente quis matá-lo, mas podia tê-lo feito, eu mesmo me acusei de ter estado a ponto de matá-lo. Mas meu anjo da guarda salvou-me do crime, eis o que os senhores não podem compreender... É ignóbil da parte dos senhores, ignóbil! Porque eu não matei, não matei! Entende, procurador? Não matei!
Sufocava. Durante o interrogatório jamais estivera em semelhante agitação.
— E que lhes disse Smierdiákov? — concluiu após uma pausa. — Posso sabê-lo?
— O senhor pode interrogar-nos sobre tudo quanto diga respeito aos fatos — respondeu friamente o procurador —, e repito-lhe que concordamos em responder às suas perguntas. Encontramos o criado Smierdiákov em seu leito, inconsciente, presa de violenta crise de epilepsia, a décima talvez desde a véspera. O médico que nos acompanhava declarou, depois de ter examinado o doente, que não passaria ele talvez da noite.
— Então, foi o diabo quem matou meu pai! — deixou Mítia escapar, como se sua derradeira dúvida desaparecesse.
— Voltaremos a esse ponto — concluiu Nikolai Parfiénovitch. — Queira continuar seu depoimento.
Mítia pediu para repousar, o que lhe foi concedido com cortesia. Em seguida, retomou seu relato, mas com esforço visível. Estava fatigado, indisposto, abalado moralmente. Além do mais, o procurador, como de propósito, irritava-o a cada instante, detendo-se em minúcias. Mítia acabava de descrever como, cavalgando a paliçada, assestara um golpe de pilão na cabeça de Grigóri, que se agarrara à sua perna esquerda, depois saltara para junto do ferido, quando o procurador lhe pediu que explicasse com mais detalhes como se mantinha ele sobre a paliçada. Mítia admirou-se.
— Ora! Estava sentado assim, a cavalo, com uma perna de cada lado...
— E o pilão?
— Tinha-o na mão.
— Não estava em seu bolso? Lembra-se desse detalhe? O senhor deve ter golpeado do alto.
— É provável. Por que essa observação?
— Quereria o senhor colocar-se em sua cadeira como estava então na paliçada, para nos mostrar perfeitamente como e de que lado o senhor golpeou?
— Será que não está zombando de mim? — perguntou Mítia, olhando de alto a baixo o procurador; mas este não fez nenhum movimento. Mítia pôs-se a cavalo na cadeira e levantou o braço:
— Eis como golpeei! Como matei! Estão satisfeitos?
— Agradeço-lhe. Não quererá explicar-nos agora por que de novo saltou para o jardim e com que fim?
— Com os diabos! Para ver o ferido... Não sei por quê!
— Na perturbação em que se encontrava e no momento em que fugia?
— Sim, numa perturbação daquela e no momento de fugir.
— Queria ir-lhe em socorro?
— Como? Sim, talvez, em socorro, não me lembro.
— Não se dava conta o senhor de seus atos?
— Oh, dava-me bem conta deles. Lembro-me dos menores detalhes. Saltei para ver e enxuguei-lhe o sangue com meu lenço.
— Vimos seu lenço. Esperava fazer o ferido voltar à vida?
— Não sei... Queria simplesmente certificar-me de que vivia ainda.
— Ah! Queria certificar-se? E então?
— Não sou médico, não posso julgar isso. Fugi pensando tê-lo matado.
— Muito bem, agradeço-lhe. É tudo quanto precisava saber. Queira continuar.
Ai! Mítia não teve a ideia de contar — e no entanto se lembrava — que saltara por compaixão e pronunciara palavras de piedade diante de sua vítima: “O velho está liquidado; tanto pior, que aí fique!” O procurador concluiu que o acusado saltara em tal momento e em tal perturbação somente para verificar com certeza se a única testemunha de seu crime vivia ainda. Quais deviam ser então a energia, a resolução, o sangue-frio daquele homem, etc., etc. O procurador estava satisfeito: “Exasperei esse homem irritável com minúcias e ele se traiu.”
Mítia prosseguiu penosamente. Dessa vez foi Nikolai Parfiénovitch que o interrompeu:
— Como pôde o senhor ir à casa da criada Fiedóssia Márkovna com as mãos e o rosto ensanguentados?
— Mas eu não sabia disso.
— É verossímil, isso acontece — disse o procurador, trocando uma olhadela com Nikolai Parfiénovitch.
— O senhor tem razão, procurador — aprovou Mítia. Em seguida, contou sua decisão de se afastar, de deixar o caminho livre aos amantes.
Mas não pôde resolver-se, como ainda há pouco, a exibir seus sentimentos, a falar da rainha de seu coração. Isso causava-lhe repugnância diante daquelas criaturas frias. De modo que, às perguntas reiteradas, respondeu laconicamente.
— Pois bem! Tinha resolvido matar-me. Para que viver? O antigo amante de Grúchenhka, seu sedutor, vinha, após cinco anos, reparar sua falta, desposando-a. Compreendi que tudo estava acabado para mim... Atrás de mim a vergonha, e depois aquele sangue, o sangue de Grigóri. Por que viver? Fui desempenhar as minhas pistolas, a fim de alojar-me uma bala na cabeça, ao amanhecer...
— E, essa noite, uma festa de arromba.
— Isso mesmo. Que diabo, senhores, acabemos o mais depressa. Estava decidido a matar-me, lá, no fim da aldeia, às cinco horas da manhã. Tenho mesmo no bolso um bilhete escrito em casa de Pierkhótin, quando carregava minha pistola. Ei-lo, leiam-no. Não é para os senhores que conto! — acrescentou desdenhoso. Lançou sobre a mesa o bilhete que os juízes leram com curiosidade, e, como de justiça, juntaram ao processo.
— E o senhor não pensou em lavar as mãos, mesmo antes de ir à casa do senhor Pierkhótin? Não temia então as suspeitas?
— Que suspeitas? Que suspeitem de mim ou não, pouco me importa. Ter-me-ia suicidado às cinco horas, antes que tivessem tempo de agir. Sem a morte de meu pai, os senhores de nada saberiam e não teriam vindo aqui. Oh! É a obra do diabo, foi ele quem matou meu pai, quem tão prontamente informou os senhores. Como puderam chegar tão depressa? É fantástico!
— O senhor Pierkhótin nos informou que, ao entrar em casa dele, tinha o senhor em suas mãos... em suas mãos ensanguentadas... grossa soma... um maço de cédulas de cem rublos. Seu jovem criado também o viu.
— É verdade, senhores, lembro-me.
— Uma pequena pergunta — disse, com grande mansidão, Nikolai Parfiénovitch. — Poderia o senhor indicar-nos onde arranjou tanto dinheiro, quando está demonstrado que o senhor não teve tempo de ir à sua casa?
O procurador franziu o cenho a essa pergunta assim feita diretamente, mas não interrompeu Nikolai Parfiénovitch.
— Não, não voltei à minha casa — disse Mítia tranquilamente, mas de olhos baixos.
— Permita-me nesse caso que repita minha pergunta — insinuou o juiz. — Onde encontrou de repente semelhante soma, quando, segundo suas confissões, às cinco horas, do mesmo dia...
— Tinha necessidade de dez rublos, empenhei minhas pistolas em casa de Pierkhótin, depois fui à casa da senhora Khokhlakova para lhe pedir emprestados três mil rublos que ela não me deu, etc. Ah! sim, senhores, estava sem recursos e, de repente, eis-me com milhares! Sabem de uma coisa? Os senhores têm medo, todos dois agora: que acontecerá se ele não nos indica a procedência desse dinheiro? Pois bem, não lhes direi, senhores, adivinharam certo, não o saberão — disse Mítia martelando a derradeira frase.
— Compreenda, senhor Karamázov, que é essencial para nós sabê-lo — disse mansamente Nikolai Parfiénovitch.
— Compreendo-o, mas não o direi.
O procurador, por sua vez, lembrou que o acusado podia não responder às perguntas, se o julgasse preferível, mas que, em vista do prejuízo que causava a si próprio com o silêncio, em vista sobretudo da importância das perguntas...
— E assim por diante, senhores, e assim por diante! Estou farto, já ouvi essa ladainha. Compreendo a gravidade do caso: é esse o ponto capital, contudo não falarei.
— Que é que temos com isso? É ao senhor mesmo que prejudica — observou nervosamente Nikolai Parfiénovitch.
— Basta de brincadeiras, senhores. Pressenti, desde o começo, que haveríamos de contender sobre esse ponto. Mas, então, quando comecei a depor, tudo estava para mim confuso e flutuante, tive mesmo a simplicidade de propor-lhes uma confiança mútua. Agora vejo que essa confiança era impossível, uma vez que devíamos chegar a essa barreira maldita e nela estamos. Aliás, não lhes censuro nada, compreendo bem que os senhores não poderiam acreditar em mim sob palavra.
Mítia calou-se, com ar sombrio.
— Não poderia o senhor, sem renunciar à sua resolução de calar o essencial, informar-nos a respeito de um ponto: quais são os motivos bastante poderosos que o obrigam ao silêncio num momento tão crítico?
Mítia sorriu tristemente.
— Sou melhor do que os senhores pensam. Dir-lhes-ei esses motivos, se bem que não mereçam isso. Calo-me porque há para mim nisso uma questão de vergonha. A resposta à pergunta sobre a proveniência do dinheiro implica uma vergonha pior do que se tivesse eu assassinado meu pai para roubá-lo. Eis por que me calo. Então, senhores querem consignar isso?
— Sim, vamos consigná-lo — gaguejou Nikolai Parfiénovitch.
— Não deveriam mencionar o que se refere à “vergonha”. Se lhes falei assim, quando podia calar-me, foi unicamente por complacência. Pois bem, escrevam, escrevam o que quiserem — concluiu com ar de desgosto —, não os temo e... mantenho meu orgulho perante os senhores.
— Não nos explicará de que natureza é essa vergonha? — perguntou timidamente Nikolai Parfiénovitch.
O procurador franziu o cenho.
— Bem, bem, c’est fini, não insistam. Não adianta envilecer-me. Já me envileci ao contato com os senhores. Não merecem que eu fale, nem os senhores, nem ninguém. Basta, senhores, calo-me.
Era categórico. Nikolai Parfiénovitch não insistiu mais; compreendeu, porém, pelos olhares de Ipolit Kirílovitch que este não desesperava ainda.
— Não pode dizer, pelo menos, a soma que tinha ao chegar à casa do senhor Pierkhótin?
— Não, não posso.
— O senhor falou ao senhor Pierkhótin de três mil rublos supostamente emprestados pela senhora Khokhlakova.
— É possível. Mas chega, senhores, não direi qual a soma.
— Então, queira dizer-nos como veio o senhor a Mókroie e tudo quanto aqui fez.
— Oh! Basta que interroguem as pessoas que estão aqui. Aliás, vou contar-lhes.
Não reproduziremos seu relato, feito rapidamente e com sequidão. Passou em silêncio a sua embriaguez amorosa, explicando como desistira de suicidar-se, “em resultado de fatos novos”. Narrava sem dar os motivos, sem entrar nos detalhes. Os magistrados fizeram-lhe, aliás, poucas perguntas; aquilo só lhes interessava mediocremente.
— Voltaremos a isso por ocasião dos depoimentos das testemunhas, que se realizarão, bem entendido, em sua presença — declarou Nikolai Parfiénovitch, terminando o interrogatório. — Por hora, queira depositar na mesa tudo quanto tiver em seu poder, sobretudo seu dinheiro.
— O dinheiro, senhores? Às suas ordens, compreendo que é necessário. Admiro-me de não terem os senhores pensado nisso mais cedo. Ei-lo, meu dinheiro, contem, tomem-no, está tudo aí, creio. — Esvaziou os bolsos, inclusive o dinheiro miúdo, tirou duas moedas de dez copeques do bolso do colete. Fizeram a conta: havia 836 rublos e quarenta copeques.
— É tudo? — perguntou o juiz.
— Tudo.
— De acordo com seu depoimento, o senhor gastou trezentos rublos na casa dos Plótnikovi; deu dez rublos a Pierkhótin, vinte ao cocheiro. Perdeu duzentos no jogo, em seguida...
Nikolai Parfiénovitch refez a conta, ajudado por Mítia. Até os copeques foram incluídos.
— Com esses oitocentos, deveria o senhor ter, por consequência, cerca de 1.500 rublos.
— Isso mesmo.
— Todo mundo afirma que o senhor tinha muito mais.
— Pois que afirmem.
— O senhor também, aliás.
— Eu também.
— Verificaremos tudo isso pelos depoimentos de outras testemunhas. Não se inquiete a respeito de seu dinheiro. Será depositado em lugar seguro e posto à sua disposição... ao terminar o processo... se ficar demonstrado que tem direito a ele. Agora...
Nikolai Parfiénovitch levantou-se e declarou a Mítia que tinha ele o encargo e o dever de examinar-lhe minuciosamente as roupas e tudo o mais.
— Pois seja, senhores, revirarei os bolsos, se quiserem.
E fez menção de fazê-lo.
— É preciso mesmo que tire suas roupas.
— Como? Tirar as roupas? Que diabo! Não me poderia o senhor revistar como estou?
— Impossível, Dimítri Fiódorovitch, é preciso que tire as roupas.
— Como quiser — consentiu Mítia com ar sombrio. — Somente não aqui, peço-lhe; por trás da cortina. Quem procederá à revista?
— Decerto, por trás da cortina — aprovou com um sinal de cabeça Nikolai Parfiénovitch, cuja carinha expressava gravidade.
VI
O procurador confunde Mítia
Passou-se então uma cena pela qual Mítia não esperava. Não teria jamais suposto, dez minutos antes, que ousassem tratá-lo daquela maneira, a ele, Mítia Karamázov. Sobretudo, sentia-se humilhado, exposto à arrogância e ao desdém. Não lhe importava retirar a sobrecasaca, mas pediram-lhe que se desvestisse completamente. Ou antes, ordenaram-lhe, dera-se bem conta disso. Submeteu-se sem murmurar, por altivez desdenhosa. Além dos juízes, alguns mujiques acompanharam-no para trás da cortina, “sem dúvida para prestar mão forte”, pensou Mítia, “talvez mesmo com algum outro fim”. “Será preciso tirar também minha camisa?”, perguntou ele bruscamente; mas Nikolai Parfiénovitch não lhe respondeu: ele e o procurador estavam absorvidos pelo exame da sobrecasaca, das calças, do colete e do casquete, que pareciam interessá-los bastante. “Que sem-cerimônia! Nem mesmo observam a polidez necessária.”
— Pergunto-lhes pela segunda vez se devo tirar minha camisa, sim ou não? — disse Mítia, com irritação.
— Não se inquiete, nós o preveniremos — respondeu Nikolai Parfiénovitch, num tom que pareceu autoritário a Mítia.
O procurador e o juiz entretinham-se a meia-voz. A sobrecasaca trazia, sobretudo na aba esquerda, enormes manchas de sangue coagulado, bem como as calças. Além do mais, Nikolai Parfiénovitch tateou, em presença das testemunhas instrumentais, gola, punhos, costuras, procurando ver se não havia dinheiro escondido. Deu-se a entender a Mítia que ele era bem capaz de ter costurado dinheiro nas roupas. “Tratam-me como ladrão e não como oficial”, resmungou ele consigo. Trocavam impressões em sua presença com uma franqueza singular. E deu-se que o escrivão, que se encontrava também atrás da cortina e se atarefava na busca, chamou a atenção de Nikolai Parfiénovitch para o casquete, que igualmente foi revistado: “Lembrem-se do amanuense Grudienko; foi no verão receber os vencimentos para todos da secretaria e pretendeu nos enganar, ao voltar, alegando ter perdido o dinheiro quando se encontrava embriagado; onde o encontraram? Na bainha do casquete, onde as notas de cem rublos estavam enroladas e cosidas.” O juiz e o procurador lembravam-se perfeitamente desse fato, de modo que puseram de lado o casquete de Mítia para ser submetido, bem como as roupas, a um exame minucioso.
— Com licença — exclamou de súbito Nikolai Parfiénovitch, percebendo o punho da manga direita da camisa de Mítia, arregaçado e manchado de sangue —, com licença! É sangue?
— Sangue.
— Que sangue? E por que sua manga está arregaçada?
Mítia explicou que se manchara de sangue, quando se ocupara com Grigóri e havia arregaçado a manga em casa de Pierkhótin, ao lavar as mãos.
— Será preciso também tirar a camisa. É muito importante para as peças de convicção.
Mítia corou e zangou-se.
— Então, vou ficar completamente nu?
— Não se inquiete, arranjaremos isso. Faça o favor de tirar também as meias.
— Não será brincadeira? Tudo isso é verdadeiramente indispensável?
— Não estamos brincando — replicou severamente Nikolai Parfiénovitch.
— Está bem, se é preciso... eu... — murmurou Mítia que, sentando-se no leito, se pôs a tirar suas meias. Estava muito constrangido e, coisa estranha, sentia-se como culpado, assim nu, diante daquelas pessoas vestidas, achando quase que tinham elas agora o direito de desprezá-lo, como inferior. “A nudez em si nada tem de chocante, a vergonha nasce do contraste”, pensou ele. “Dir-se-ia um sonho, tenho por vezes experimentado tais sensações em sonho.” Era-lhe penoso tirar as meias, bastante sujas, bem como a roupa de baixo, e agora todo mundo o vira. Seus pés sobretudo lhe desagradavam, sempre achara disformes os dedos grandes dos pés, particularmente o do pé direito, chato, com a unha recurvada, e todos o viam. O sentimento de vergonha tornou-o mais grosseiro. Tirou a camisa com raiva.
— Não querem procurar em mais alguma parte, se não tiverem vergonha?
— Não, para o momento é inútil.
— Então, devo ficar assim nu?
— Sim, é necessário... Queira sentar-se, enquanto espera. Pode enrolar-se num cobertor do leito, e eu... ocupar-me-ei com isso.
Tendo sido mostradas as roupas às testemunhas instrumentais e redigido o auto de exame, o juiz e o procurador saíram, levando as roupas. Mítia ficou em companhia dos mujiques que não desfitavam dele os olhos. Sentia frio e enrolou-se no cobertor, demasiado curto para cobrir seus pés nus. Nikolai Parfiénovitch fez-se esperar muito tempo. “Toma-me por um rapazola”, murmurou Mítia, rangendo os dentes. “Esse palerma desse procurador saiu também, por desprezo talvez, repugnava-lhe ver-me nu.” Mítia imaginava que lhe restituiriam as roupas após o exame. Qual não foi sua indignação, quando Nikolai Parfiénovitch reapareceu com outra roupa, que um mujique trazia atrás dele.
— Aqui estão roupas — disse ele num tom desprendido, visivelmente satisfeito com seu achado. — Foi o senhor Kolgánov que lhas emprestou, bem como uma camisa limpa. Por felicidade, tinha-as ele na mala. O senhor pode ficar com suas meias.
— Não quero roupas dos outros! — exclamou Mítia exasperado. — Entreguem as minhas!
— Impossível.
— Deem-me as minhas! Que Kolgánov e suas roupas vão para o inferno!
Tiveram dificuldade em convencê-lo. Mas, afinal, de qualquer forma, explicaram-lhe que suas roupas, sujas de sangue, deviam “figurar entre as peças de convicção. Não temos mesmo direito de deixá-las com o senhor... diante do aspecto que o caso pode tomar”. Mítia acabou por compreendê-lo, calou-se, vestiu-se à pressa. Fez somente notar que o casaco que lhe emprestavam era mais rico que o seu e que não queria se aproveitar disso. Além do mais, ridiculamente estreito. — Devo estar vestido como um palhaço... para diverti-los?
Fizeram-lhe observar que exagerava, que somente as calças eram um pouco compridas. Mas a sobrecasaca apertava-lhe os ombros.
— Diabos! É difícil de abotoar — resmungou de novo Mítia. — Façam o favor de dizer ao senhor Kolgánov que não fui eu quem pediu essa roupa e que me disfarçaram de palhaço.
— Ele o compreende muito bem e lamenta... isto é, não sua roupa, mas esse incidente... — resmoneou Nikolai Parfiénovitch.
— Pouco me importa que ele o lamente! Está bem! Para onde ir agora? Preciso ficar aqui?
Pediram-lhe que passasse para o outro lado. Mítia saiu, com ar sombrio, esforçando-se por não olhar para ninguém. Naquele traje estranho, sentia-se humilhado, até mesmo aos olhos dos mujiques e de Trifon Borísovitch, cuja cara apareceu à porta: “Vem ver-me nestes trajes”, pensou Mítia. Tornou a sentar-se no mesmo lugar, como sob a impressão de um pesadelo. Parecia-lhe não se achar no estado normal.
— Agora, vão mandar-me açoitar? Só lhes falta isso! — disse ele, dirigindo-se ao procurador. Evitava voltar-se para Nikolai Parfiénovitch, como desdenhando dirigir-lhe a palavra. “Examinou demasiado minuciosamente minhas meias, revirou-as mesmo, o monstro, para que todo mundo veja como estão elas sujas!”
— É preciso agora ouvir as testemunhas — proferiu Nikolai, como em resposta à pergunta de Mítia.
— Sim — disse o procurador com ar absorto.
— Dimítri Fiódorovitch, fizemos o possível a seu favor — prosseguiu o juiz —, mas como o senhor se recusou categoricamente a nos explicar a proveniência da soma encontrada em seu poder, somos agora...
— De que é esse seu anel? — interrompeu Mítia, como que saindo de um devaneio e designando um dos anéis que ornavam a mão de Nikolai Parfiénovitch.
— Meu anel?
— Sim, esse aí... no dedo grande, cuja pedra é veiada — insistiu Mítia, como uma criança teimosa.
— É um topázio enfumado — disse Nikolai Parfiénovitch, sorrindo. — Quer examiná-lo? Tirá-lo-ei...
— Não, não, não o tire! — exclamou raivosamente Mítia, reconsiderando e furioso contra si mesmo. — Não o tire, é inútil... Ao diabo... Os senhores me envileceram! Acreditam que eu o dissimularia, se tivesse matado meu pai, que eu recorreria à astúcia e à mentira? Não, não está isso no caráter de Dimítri Fiódorovitch, ele não o suportaria, e, se eu fosse culpado, juro-lhes que não teria esperado a chegada dos senhores e o nascer do sol, como tinha a princípio intenção; ter-me-ia suicidado antes da aurora! Sinto-o bem agora. Em vinte anos, teria aprendido menos do que durante esta noite maldita!... E estaria deste jeito sentado ao lado dos senhores, falaria desta maneira, com os mesmos gestos, os mesmos olhares, se fosse realmente um parricida, quando o assassínio acidental de Grigóri me atormentou a noite inteira?... Não por temor, não pelo simples medo do castigo. Oh, vergonha! E querem que a farsantes como os senhores, que nada veem e em nada creem, cegos como toupeiras, revele eu nova baixeza, nova vergonha, ainda que fosse para me desculpar? Prefiro ir para o presídio! Aquele que abriu a porta para entrar em casa de meu pai é o assassino e o ladrão. Quem é? Perco-me em conjeturas, mas não foi Dimítri Karamázov, fiquem sabendo, eis tudo quanto posso dizer-lhes. Basta, não insistam... Mandem-me para a prisão ou para o cadafalso, mas não me atormentem mais... Calo-me. Chamem suas testemunhas!
O procurador, que havia observado Mítia, enquanto ele proferia seu monólogo, disse-lhe, de repente, no tom mais calmo e como se se tratasse de coisas perfeitamente naturais.
— A propósito dessa porta aberta de que o senhor acaba de falar, recebemos um depoimento muito importante do velho Grigóri Vassílievitch. Afirma positivamente que, quando se decidiu, ao ouvir barulho, entrar no jardim pela portinha que ficara aberta, notou à esquerda a porta da casa escancarada, bem como a janela, ao passo que o senhor garante que a dita porta ficou fechada todo o tempo em que o senhor esteve no jardim. Naquele momento, não o havia ele ainda visto no escuro quando o senhor fugia, de acordo com seu relato, da janela onde estivera a ver seu pai. Não lhe oculto que Vassíliev conclui formalmente e declara que o senhor deve ter escapado por aquela porta, se bem que não o haja visto sair por ela. Avistou-o a certa distância, no jardim, quando o senhor corria do lado da paliçada...
Mítia levantara-se.
— É uma mentira impudente. Não pode ter visto a porta aberta, porque ela estava fechada... Ele mente.
— Creio-me obrigado a repetir-lhe que seu depoimento é categórico e que persiste nele. Interrogamo-lo várias vezes.
— Fui eu precisamente quem o interrogou — confirmou Nikolai Parfiénovitch.
— É falso, é falso! É uma calúnia ou a alucinação dum louco. Muito simplesmente ter-lhe-á parecido ver isso no delírio causado por seu ferimento.
— Mas havia ele notado a porta aberta antes de ter sido ferido, quando acabava de entrar no jardim.
— Não é verdade, não pode ser! Ele me calunia por maldade... não pode ter visto... Não passei por aquela porta — disse Mítia, ofegante.
O procurador voltou-se para Nikolai Parfiénovitch e disse-lhe:
— Mostre então.
— Conhece este objeto? — E o juiz pousou na mesa um grande envelope que trazia ainda três sinetes. Estava vazio e rasgado dum lado. Mítia escancarou os olhos.
— É... é o envelope de meu pai — murmurou ele —, o que encerrava os três mil... se o subscrito corresponde... Com licença: “À minha franguinha”, é isto, “três mil”, estão vendo, três mil?
— Estamos vendo, decerto, mas não encontramos o dinheiro. O envelope estava no chão, perto do leito, por trás do biombo.
Mítia ficou alguns segundos como que aturdido.
— Senhores, foi Smierdiákov! — exclamou ele, de súbito, com todas as forças. — Foi ele quem o matou, foi ele quem o roubou! Só ele sabia onde o velho escondia este envelope... Foi ele, sem dúvida alguma!
— Mas o senhor também sabia que este envelope estava escondido debaixo do travesseiro.
— Nunca! Vejo-o agora pela primeira vez, ouvira apenas falar dele por Smierdiákov... Somente ele conhecia o esconderijo do velho. Eu o ignorava...
— No entanto, o senhor ainda há pouco afirmou, depondo, que o envelope se encontrava sob o travesseiro de defunto. Sob o travesseiro, portanto o senhor sabia onde ele estava.
— Nós consignamos isso! — confirmou Nikolai Parfiénovitch.
— É um absurdo! Ignorava-o totalmente. Aliás, talvez não fosse sob o travesseiro... Disse isso sem refletir... Que diz Smierdiákov? Interrogaram-no a respeito? Que diz ele? Isso é o principal... Eu lhes menti de propósito, por caçoada... Disse, sem pensar, que era sob o travesseiro, e agora os senhores... Bem sabemos, senhores, que a gente deixa escapar inexatidões. Mas somente Smierdiákov o sabia e ninguém mais!... Não me revelou o esconderijo! Mas foi ele, incontestavelmente, foi ele o assassino, agora está para mim claro como o dia — clamou Mítia, com uma exaltação crescente. — Apressem-se em detê-lo... Matou enquanto eu fugia e Grigóri jazia sem sentidos, é evidente... Fez o sinal e meu pai abriu-lhe a porta... Porque somente ele conhecia os sinais, e sem sinal meu pai não teria aberto...
— O senhor se esquece de novo — observou o procurador com a mesma calma e o ar já triunfante — que não havia necessidade de fazer o sinal, se a porta já estava aberta, quando o senhor se encontrava ainda no jardim...
— A porta, a porta — murmurou Mítia, fixando o procurador. Deixou-se cair de novo na cadeira. Houve um silêncio...
— Sim, a porta... É um fantasma! Deus está contra mim! — exclamou ele, com os olhos alucinados.
— Veja — disse gravemente o procurador —, julgue o senhor mesmo, Dimítri Fiódorovitch. Dum lado, esse depoimento esmagador para o senhor, a porta aberta por onde o senhor saiu. Do outro, seu silêncio incompreensível, obstinado, relativamente à proveniência de seu dinheiro, quando três horas antes o senhor empenhara suas pistolas por dez rublos. Nessas condições, julgue o senhor mesmo em qual convicção devemos deter-nos. Não diga que somos zombadores frios e cínicos, incapazes de compreender os nobres ímpetos de sua alma... Ponha-se em nosso lugar...
Mítia experimentava uma emoção indescritível. Empalideceu.
— Está bem — exclamou, de repente —, vou revelar-lhes meu segredo, dizer-lhes onde arranjei o dinheiro... Revelarei minha ignomínia, para não acusar em seguida nem aos senhores nem a mim!
— E acredite, Dimítri Fiódorovitch — disse com alegre solicitude Nikolai Parfiénovitch —, que uma confissão sincera e completa de sua parte, neste instante, pode melhorar muito sua situação ulterior, e até mesmo...
Mas o procurador tocou-lhe levemente com o pé por baixo da mesa e ele parou. Aliás, Mítia não o escutava.
VII
O grande segredo de Mítia. Zombam dele
— Senhores — começou ele, emocionado —, esse dinheiro... quero contar tudo... esse dinheiro era meu.
Os rostos do procurador e do juiz alongaram-se, não esperavam por isso.
— Como, seu? — disse Nikolai Parfiénovitch. — Pois se ainda cinco horas atrás, segundo sua confissão...
— Ao diabo essas cinco horas atrás e minha confissão! Não se trata mais disso! Esse dinheiro era meu, isto é... eu o tinha roubado... não meu, mas roubado para mim. Havia 1.500 rublos que andavam sempre comigo...
— Mas onde o senhor os arranjou?
— No meu peito, senhores... encontravam-se aqui, costurados num pano, pendurados em meu pescoço. Há muito tempo, faz um mês, trazia-os como testemunho de minha infâmia!
— Mas a quem pertencia esse dinheiro de que o senhor... o senhor se apropriou?
— O senhor quer dizer: “roubou”, não é mesmo? Fale, pois, francamente. Sim, acho que é como se o tivesse roubado, ou, se quiser, dele me “apropriei”. Ontem, à noite, roubei-o definitivamente.
— Ontem à noite? Mas o senhor acaba de dizer que há já um mês que... que o senhor o arranjou.
— Sim, mas não foi de meu pai que o roubei, tranquilize-se, foi dela. Deixe que eu conte, sem me interromper. É penoso. Veja o senhor, há um mês, Katierina Ivânovna Vierkhóvtseva,[ 119 ] minha ex-noiva, me chamou... O senhor a conhece?
— Como não?
— Sei que o senhor a conhece. Uma alma nobre entre todas, mas odeia-me há muito tempo e com razão.
— Katierina Ivânovna? — perguntou o juiz com admiração.
O procurador também estava bastante surpreso.
— Oh, não pronunciem seu nome em vão! Sou um miserável pelo fato de pô-la nisso. Sim, vi que ela me odiava havia muito tempo... desde o primeiro dia, quando veio à minha casa. Mas basta, os senhores não são dignos de sabê-lo, é inútil... Direi somente que há um mês ela me entregou três mil rublos para enviá-los à irmã e a uma outra parenta, em Moscou (como se não pudesse fazê-lo ela mesma!). E eu... estava precisamente na hora fatal de minha vida em que... Em suma, acabava de apaixonar-me por outra, por ela, por Grúchenhka, aqui presente. Trouxe-a aqui, a Mókroie e gastei em dois dias a metade desse maldito dinheiro, guardando o resto. Pois bem, são esses 1.500 rublos que eu carregava sobre meu peito como um amuleto. Ontem, abri o pacote e comecei a gastar a soma. Os oitocentos rublos que restam estão nas mãos dos senhores.
— Com licença, o senhor gastou aqui, há três meses, três mil rublos e não 1.500, todo mundo sabe.
— Quem sabe? Quem contou meu dinheiro?
— Mas o senhor mesmo disse que havia gasto justamente três mil rublos.
— É verdade, disse-o a qualquer um, repetiram-no, toda a cidade acreditou. No entanto, só gastei 1.500 rublos e costurei a outra metade num amuleto. Eis donde provém o dinheiro de ontem...
— Isso é prodigioso! — murmurou Nikolai Parfiénovitch.
— Não falou disso, antes, a alguém... quero dizer, desses 1.500 rublos postos à parte? — perguntou o procurador.
— Não, a ninguém.
— É estranho. Na verdade, a ninguém no mundo?
— A ninguém no mundo.
— Por que esse silêncio? Que é que o obrigava a fazer disso um mistério? Muito embora esse segredo lhe pareça tão vergonhoso, essa apropriação, aliás temporária, de três mil rublos, não é relativamente, na minha opinião, senão um pecadilho, sendo dado, além disso, o caráter do senhor. Admitamos que seja uma ação das mais repreensíveis, concordo, mas não vergonhosa... Aliás, muitas pessoas tinham adivinhado a proveniência desses três mil rublos, sem que o senhor o confessasse, eu mesmo ouvi falar, Mikhail Makárovitch igualmente... Numa palavra: é o segredo de Polichinelo. Além do mais, há indícios, salvo erro, de que o senhor confiara a alguém que esse dinheiro vinha da senhorita Vierkhóvtseva. De modo que, por que cercar de tal mistério o fato de ter guardado uma parte da soma, ligando a isso uma espécie de horror?... É difícil acreditar que lhe custe tanto confessar esse segredo... o senhor acaba de exclamar, com efeito: antes a prisão!
O procurador calou-se. Acalorara-se e não ocultava seu aborrecimento, sem mesmo procurar “castigar seu estilo”.
— Não eram os 1.500 rublos que constituíam a vergonha, mas o fato de ter dividido a soma — disse com altivez Mítia.
— Mas, enfim — disse o procurador com irritação —, que há de vergonhoso no fato de haver o senhor dividido esses três mil rublos adquiridos desonestamente? O que importa é a apropriação dessa soma e não o uso que o senhor fez dela. A propósito, por que operou essa divisão? Com que fim? Poderia explicar-nos?
— Oh, senhores, é o fim que faz tudo! Pratiquei essa divisão por baixeza, isto é, por cálculo, porque aqui o cálculo é uma baixeza... E essa baixeza durou um mês inteiro!
— É incompreensível.
— O senhor me causa espanto. Aliás, vou ser preciso: é talvez, com efeito, incompreensível. Acompanhem-me bem: aproprio-me de três mil rublos confiados à minha honra, faço farra com eles, gasto a soma inteira; pela manhã vou à casa dela dizer-lhe: “Perdão, Kátia, gastei os teus três mil rublos.” Fica bem isso? Não, é desonesto e covarde, é ação monstruosa, dum homem incapaz de dominar-se, não é? Mas não é um roubo, convenham, não é um roubo direto. Gastei o dinheiro, não o roubei. Eis um caso ainda mais favorável; acompanhem-me, porque arrisco-me a atrapalhar-me, gira-me a cabeça. Gasto 1.500 rublos apenas dos três mil. No dia seguinte, vou à casa dela levar-lhe o resto: “Kátia, sou um miserável, toma estes 1.500 rublos, porque gastei os outros, estes serão também gastos, preserva-me da tentação.” Que sou eu em semelhante caso? Tudo quanto os senhores quiserem, um monstro, um celerado, mas não um ladrão confesso, porque um ladrão não teria decerto levado a soma, ter-se-ia apropriado dela. Ela assim vê que, uma vez que restituí a metade do dinheiro, trabalharei se preciso toda a vida para devolver o resto, mas haverei de procurá-lo. Dessa forma, sou desonesto, mas não um ladrão.
— Admitamos que haja um matiz — o procurador sorriu friamente —, no entanto é estranho que veja o senhor nisso uma diferença fatal.
— Sim, vejo nisso uma diferença fatal. Cada qual pode ser desonesto, creio mesmo que cada qual o é, mas para roubar é preciso um franco canalha. E depois perco-me nessas sutilezas... Em todo caso, o roubo é o cúmulo da desonestidade. Pensem: há um mês que guardo esse dinheiro, amanhã posso decidir devolvê-lo e cesso de ser desonesto. Mas não posso decidir-me a isso, muito embora exorte-me cada dia a tomar uma decisão. E há um mês que isto dura! Está bem, segundo a opinião dos senhores?
— Admito que não esteja bem, não o contesto... Mas deixemos de discutir a respeito dessas diferenças sutis, chegue ao fato, peço-lhe. O senhor não nos explicou ainda os motivos que o incitaram a dividir assim, no começo, esses três mil rublos. Com que fim escondeu a metade, que uso contava fazer dela? Insisto nisso, Dimítri Fiódorovitch.
— Ah, sim! — exclamou Mítia, batendo na testa. — Perdão por conservá-lo em suspenso em lugar de explicar-lhe o principal. O senhor teria logo compreendido, porque é o fito de minha ação que a torna ignóbil. Veja, o defunto não cessava de obsedar Agrafiena Alieksándrovna; eu sentia ciúme, acreditava que ela hesitava entre ele e mim. Pensava todos os dias: e se ela fosse decidir-se, se ela me dissesse de repente: “É a ti que amo, leva-me para o fim do mundo.” Ora, possuía eu ao todo vinte copeques; como levá-la? Que fazer então? Estava perdido. Porque eu não a conhecia ainda, acreditava que ela precisava do dinheiro, que não me perdoaria minha pobreza. Então conto a metade da soma, de sangue-frio coso-a num trapo, de propósito deliberado, e vou para a pândega com o resto. É ignóbil! Compreendeu agora?
Os juízes puseram-se a rir.
— Em minha opinião, deu o senhor prova de sabedoria e de moralidade moderando-se, não gastando tudo — disse Nikolai Parfiénovitch. — Que há de grave nisso?
— Há que eu roubei! Causa-me espanto que o senhor não compreenda. Desde que carrego esses 1.500 rublos sobre meu peito, dizia a mim mesmo cada dia: “És um ladrão, és um ladrão!” Esse sentimento inspirou minhas violências durante este mês, eis por que surrei o capitão no botequim e bati em meu pai. Nem mesmo ousei revelar esse segredo a meu irmão Aliócha, tão celerado e gatuno me sentia! E, no entanto, pensava: “Dimítri Fiódorovitch, talvez não sejas ainda um ladrão... Poderias amanhã ir entregar esses 1.500 rublos a Kátia.” E foi ontem à noite somente que me decidi a rasgar meu amuleto, foi naquele momento que me tornei um ladrão incontestável. Por quê? Porque com meu amuleto destruí ao mesmo tempo meu sonho de ir dizer a Kátia: “Sou desonesto, mas não ladrão.” Compreende agora?
— E por que foi justamente ontem à noite que o senhor tomou essa decisão? — interrompeu Nikolai Parfiénovitch.
— Que pergunta ridícula! Porque me havia condenado à morte às cinco horas da manhã, aqui, ao romper da aurora: “Não importa — pensava eu — morrer honesto ou desonesto!” Mas aconteceu que não era a mesma coisa. Acreditarão os senhores? O que me torturava, sobretudo, nessa noite, não era o assassinato de Grigóri, nem o temor da Sibéria, e isso no momento em que meu amor triunfava, em que o céu se abria de novo diante de mim! Sem dúvida, isto me atormentava, mas menos do que a consciência de ter tirado de meu peito aquele maldito dinheiro para gastá-lo, e ter-me tornado assim um ladrão incontestável! Senhores, repito-lhes, aprendi muito durante esta noite! Aprendi que não somente é impossível viver sentindo-se desonesto, mas também morrer com tal sentimento... É preciso ser honesto para enfrentar a morte!...
Mítia estava lívido.
— Começo a compreendê-lo, Dimítri Fiódorovitch — disse o procurador com simpatia —, mas, como quiser, tudo isso vem dos nervos... o senhor tem os nervos doentes. Por que, por exemplo, para pôr fim a seus sofrimentos, não foi devolver esses 1.500 rublos à pessoa que lhos havia confiado e dar uma explicação a ela? Em seguida, dada sua terrível situação então, por que não ter tentado uma combinação que parece bastante natural? Depois de ter confessado nobremente suas faltas, o senhor ter-lhe-ia pedido a soma de que necessitava; tendo em vista a generosidade dessa pessoa e o embaraço em que o senhor se encontrava, ela não lhe teria decerto recusado, sobretudo propondo-lhe as garantias oferecidas ao comerciante Samsónov e à senhora Khokhlakova. Não considera o senhor essa garantia como válida ainda agora?
Mítia corou.
— Acreditar-me-ia o senhor vil a esse ponto? É impossível que o senhor fale seriamente — disse ele com indignação.
— Mas estou falando seriamente... Por que duvida? — admirou-se por sua vez o procurador.
— Mas seria ignóbil. Senhores, fiquem sabendo que me estão atormentando! Pois seja, dir-lhes-ei tudo, confessarei meu pensamento infernal, e os senhores verão, para suas vergonhas, até onde os sentimentos humanos podem descer. Saibam que, também eu, encarei essa combinação de que o senhor fala, procurador. Sim, senhores, estava quase resolvido a ir à casa de Kátia, tão desonesto eu era! Mas anunciar-lhe minha traição e, para as despesas que ela acarreta, pedir-lhe dinheiro, a ela, Kátia (pedir, entendem os senhores?) e fugir logo com sua rival, com aquela que a odeia e a ofendeu, vejamos, procurador, o senhor está louco!
— Não estou louco, mas não pensei no princípio nesse ciúme de mulher... se existia, como o senhor o afirma... sim, pode bem haver aí algo desse gênero — aquiesceu o procurador, sorrindo.
— Mas isso teria sido uma baixeza sem nome — berrou Mítia, batendo com o punho na mesa —, algo de infecto! Ela me teria dado aquele dinheiro por vingança, por desprezo, porque tem ela também uma alma infernal e de grandes cóleras. Eu teria aceitado o dinheiro, por certo, tê-lo-ia aceitado, e então toda a minha vida... Oh, Deus! Perdoem-me, senhores, o gritar tão forte. Não há muito tempo pensava eu ainda nessa combinação, outra noite, quando estava cuidando de Liagávi, e, durante todo o dia de ontem, lembro-me até daquele acontecimento.
— Até qual acontecimento? — perguntou Nikolai Parfiénovitch, mas Mítia não ouviu.
— Fiz-lhes uma terrível confissão. Saibam apreciar isso, senhores, compreendam-lhe todo o valor. Mas, se são capazes disso, é que me desprezam e morrerei de vergonha por haver-me confessado a gente como os senhores! Oh, matar-me-ei! E já vejo, vejo que não acreditam! Como? Querem consignar isso? — exclamou ele, com terror.
— Mas sim — replicou Nikolai Parfiénovitch, espantado —, nós notamos que até a última hora pensava o senhor em ir à casa da senhorita Vierkhóvtseva para lhe pedir aquela soma... Asseguro-lhe que essa declaração é muito importante para nós, Dimítri Fiódorovitch... sobretudo para o senhor.
— Vejamos, senhores, tenham pelo menos o pudor de não mandar consignar isso! Pus minha alma a nu diante dos senhores, e os senhores se aproveitam para nela cascavilhar!... Oh, meu Deus!
Cobriu o rosto com as mãos.
— Não se inquiete tanto, Dimítri Fiódorovitch — concluiu o procurador —, far-lhe-ão leitura de tudo quanto está escrito, modificando-se o texto lá onde o senhor não estiver de acordo. Agora, pergunto-lhe pela terceira vez, é bem verdade que ninguém, nem uma alma, ouviu falar desse dinheiro costurado no amuleto?
— Ninguém, ninguém, já o disse, o senhor então não compreendeu. Deixe-me em paz.
— Pois seja, esse ponto terá de ser esclarecido; enquanto se espera, reflita: temos talvez uma dezena de testemunhas que afirmam que o senhor mesmo sempre falou duma despesa de três mil rublos e não de 1.500. E agora, à sua chegada aqui, o senhor declarou a muitos que trazia ainda três mil rublos...
— Os senhores têm entre as mãos centenas de testemunhos análogos, um milhar de pessoas ouviu isso!
— Pois bem, como vê o senhor, todos são unânimes. A palavra “todos” significa pois alguma coisa.
— Isso não significa nada absolutamente. Menti e todos mentiram como eu.
— Por que mentiu?
— O diabo sabe por quê. Por gabolice, talvez... a gloríola de ter gasto tal soma... talvez para esquecer o dinheiro que eu havia escondido... sim, justamente, eis por que... diabos... quantas vezes já me fizeram essa pergunta? Menti, eis tudo, e não quis desdizer-me. Por que se mente, às vezes?
— É bem difícil de explicar, Dimítri Fiódorovitch — disse gravemente o procurador. — Mas diga-nos: esse amuleto, como o senhor chama, era grande?
— Não.
— De que tamanho, por exemplo?
— Do tamanho de uma nota de cem rublos dobrada em duas.
— Faria melhor mostrando-nos os pedaços; deve tê-los certamente com o senhor.
— Que tolice! Não sei onde eles estão.
— Com licença: onde e quando o retirou do pescoço? O senhor não voltou para casa, segundo sua declaração.
— Foi ao ir à casa de Pierkhótin, depois de ter deixado Fiénia. Rasguei-o para tirar o dinheiro.
— No escuro?
— Para que uma vela? O pano foi depressa rasgado.
— Sem tesouras, na rua?
— Na praça, creio.
— Que fez dele?
— Atirei-o lá.
— Onde?
— Em alguma parte, na praça, o diabo sabe onde. Que é que interessa isso aos senhores?
— É muito importante, Dimítri Fiódorovitch; há nisso uma peça de convicção em seu favor, não o compreende? Quem o ajudou a costurá-lo, há um mês?
— Ninguém. Eu mesmo o costurei.
— Sabe coser?
— Um soldado deve saber coser; aliás, não há necessidade de ser hábil para isso.
— E onde arranjou o pano, isto é, esse trapo?
— Os senhores querem rir.
— Absolutamente. Não estamos com vontade de rir, Dimítri Fiódorovitch.
— Não me lembro onde.
— Como pode ter-se esquecido?
— Palavra, não me lembro, rasguei talvez um pedaço de roupa branca.
— É muito importante: poder-se-ia encontrar, amanhã, em sua casa, a peça, a camisa, talvez, de que o senhor arrancou um pedaço. De que era esse trapo: de algodão ou de linho?
— O diabo o sabe. Esperem... Parece-me que não rasguei nada. Era, creio, de algodão. Costurei da touca de minha locadora.
— Da touca de sua locadora?
— Sim, tirei-a dela.
— Como tirou-a?
— Estão vendo? Lembro-me, com efeito, de ter subtraído uma touca para aproveitar o pano em trapos, talvez como espanador de penas. Tirei-a furtivamente, porque era um trapo sem valor e me servi para costurar dentro dele aqueles 1.500 rublos... Creio bem que foi isso, um velho pedaço de tecido de algodão, mil vezes lavado.
— E está certo disso?
— Não sei. Parece-me. Aliás, pouco me importa.
— Nesse caso, sua locadora poderia ter verificado o desaparecimento desse objeto.
— Não, não o notou. Um velho trapo, digo-lhes eu, um trapo que não valia um copeque.
— E a agulha, a linha, onde as arranjou?
— Paro, chega! — cortou bruscamente Mítia, zangado.
— É estranho que o senhor não se lembre onde atirou aquele... amuleto, na praça.
— Mandem varrer a praça amanhã, talvez o encontrem. Basta, senhores, basta! — proferiu Mítia num tom de acabrunhamento. — Vejo-o bem, não acreditam os senhores em uma palavra do que lhes digo! É culpa minha e não dos senhores. Não deveria ter-me deixado levar a isso. Porque degradei-me revelando meu segredo! Isso lhes parece engraçado, vejo-o por seus olhos! Foi o senhor que me atraiu a este ponto, procurador! Triunfe agora!... Malditos sejam, carrascos!
Curvou a cabeça, cobriu o rosto com as mãos. O procurador e o juiz calavam-se. Ao fim dum minuto, Mítia levantou a cabeça e fitou-os inconscientemente. Sua fisionomia exprimia o desespero no último grau, tinha o ar desvairado. Entretanto era preciso acabar, proceder ao interrogatório das testemunhas. Eram oito horas da manhã, tinham apagado as velas fazia tempo. Mikhail Makárovitch e Kolgánov, que andavam de um lado para outro durante o interrogatório, ambos tinham agora saído. O procurador e o juiz pareciam fatigados. Fazia mau tempo, o céu estava nublado, a chuva caía torrencialmente. Mítia olhava vagamente através das vidraças.
— Posso olhar pela janela? — perguntou ele a Nikolai Parfiénovitch.
— À vontade — respondeu ele.
Mítia levantou-se e aproximou-se da janela. A chuva fustigava as pequenas vidraças esverdeadas. Via-se a estrada enlamaçada e, mais longe, as filas de isbás, sombrias e pobres, que a chuva tornava mais miseráveis ainda. Mítia se lembrou de “Febo dos cabelos de ouro” e de sua intenção de matar-se “logo a seus primeiros raios”. Semelhante manhã teria convindo ainda melhor. Sorriu amargamente e voltou-se para seus “carrascos”.
— Senhores, vejo que estou perdido. Ela, porém? Digam-me, suplico-lhes, deve ela sofrer a mesma sorte? Está inocente, perdera a cabeça, ontem, para gritar que “era culpada de tudo”. Está completamente inocente! Após esta noite de angústia, não me podem dizer os senhores o que farão com ela?
— Tranquilize-se a esse respeito, Dimítri Fiódorovitch —, apressou-se em responder o procurador —, não temos no momento nenhum motivo para inquietar a pessoa pela qual se interessa. Espero que o mesmo aconteça ulteriormente. Pelo contrário, faremos tudo quanto estiver a nosso alcance em seu favor.
— Senhores, agradeço-lhes, sabia que os senhores são justos e honestos, apesar de tudo. Tiram-me um peso da alma... Que querem fazer agora? Estou pronto.
— É preciso proceder imediatamente ao interrogatório das testemunhas, o que deve realizar-se em sua presença, de modo que...
— Se tomássemos chá? — interrompeu Nikolai Parfiénovitch. — Creio que bem o merecemos.
Decidiu-se tomar uma xícara de chá e prosseguir-se o inquérito sem parar, esperando-se, para uma refeição mais substanciosa, uma hora mais favorável. Mítia, que a princípio recusara a xícara que lhe oferecia Nikolai Parfiénovitch, tomou-o em seguida ele próprio e bebeu com avidez. Parecia extenuado. Com sua constituição robusta, parecia, que mal poderia causar-lhe uma noite de farra, mesmo acompanhada das mais fortes sensações? Mal se mantinha, porém, na cadeira e, por vezes, cria os objetos girarem em torno de si. “Mais um pouco e vou delirar”, pensava.
VIII
Depoimentos das testemunhas. O neném
Começou o interrogatório das testemunhas. Mas não prosseguiremos nosso relato de uma maneira tão detalhada como até agora, deixando de lado a maneira pela qual Nikolai Parfiénovitch lembrava a cada testemunha que devia depor de acordo com a verdade e a consciência, e repetir mais tarde o depoimento sob juramento, etc. Notaremos somente que o ponto essencial, aos olhos do juiz, era a questão de saber se Dimítri Fiódorovitch tinha gasto três mil rublos ou 1.500 por ocasião de sua primeira estada em Mókroie, um mês antes, bem como na véspera. Ai! Todas as testemunhas, sem exceção, foram desfavoráveis a Mítia, algumas contavam fatos novos, quase esmagadores, que infirmavam as declarações dele. O primeiro interrogado foi Trifon Borísovitch. Apresentou-se sem o menor temor, pelo contrário, cheio de indignação contra o acusado, o que lhe conferiu grande ar de veracidade e de dignidade. Falou pouco, com reserva, esperando as perguntas, às quais respondia com firmeza, refletindo. Declarou, sem rebuços, que, um mês antes, o acusado deveria ter gasto pelo menos três mil rublos, que os mujiques testemunhariam isso, tinham ouvido o próprio Mítri Fiódorovitch dizê-lo.
— Quanto dinheiro atirou ele aos ciganos! Só com eles, creio que deve ter gasto mais de mil rublos.
— Não cheguei talvez a dar-lhes nem quinhentos — observou Mítia. — Somente não o contei então, estava bêbedo. É pena.
Mítia escutava com ar sombrio, parecia triste e fatigado e parecia dizer. “Ora! Contem o que quiserem, agora para mim dá no mesmo.”
— Os ciganos custaram-lhe mais de mil rublos, Mítri Fiódorovitch. O senhor atirava-lhes o dinheiro sem contar, e eles o apanhavam. É uma corja de gatunos, roubam os cavalos, foram expulsos daqui, senão teriam talvez declarado a quanto montou o ganho deles. Eu mesmo vi então a soma nas mãos do senhor — o senhor não me deu a contar, é verdade —, mas assim à vista, lembro-me, havia bem mais de 1.500 rublos... Nós também sabemos o que seja o dinheiro...
Quanto à soma do dia anterior, Dimítri Fiódorovitch lhe havia declarado, desde sua chegada, que trazia três mil rublos.
— Vejamos, Trifon Borísovitch, declarei eu que trazia três mil rublos?
— Mas sim, Mítri Fiódorovitch. Disse-o em presença de Andriéi. Ele ainda está aqui, chamem-no. E na sala, quando o senhor servia o coro, exclamou mesmo que deixava aqui sua sexta nota de mil rublos, contando com a outra vez, bem entendido. Stiepan e Siemion ouviram isso, Piotr Fomitch Kolgánov mantinha-se então ao lado do senhor, talvez também ele se lembre...
A declaração relativa ao sexto milhar de rublos impressionou os juízes e lhes agradou pela clareza: três mil então, três mil agora, completavam bem os seis mil.
Foram interrogados os mujiques Stiepan e Siemion, o cocheiro Andriéi, que confirmaram o depoimento de Trifon Borísovitch. Além disso, consignou-se a conversa que Andriéi tivera no caminho com Mítia, perguntando se iria para o céu ou para o inferno e se lhe perdoariam no outro mundo. O “psicólogo” Ipolit Kirílovitch, que escutara, sorrindo, recomendou que se acrescentasse essa declaração aos autos.
Quando chegou sua vez, Kolgánov apresentou-se a contragosto, com ar sombrio, caprichoso, e conversou com o procurador e Nikolai Parfiénovitch, como se os visse pela primeira vez, quando os conhecia há muito tempo. Começou por dizer que “não sabia de nada e de nada queria saber”. Mas ouvira Mítia falar da sexta nota de mil e confessou que se encontrava então ao lado dele. Ignorava a soma que Mítia podia ter e afirmou que os poloneses tinham trapaceado no jogo de baralho. Após perguntas reiteradas, explicou que, expulsos os poloneses, Mítia voltara às boas graças junto a Agrafiena Alieksándrovna e que ela declarara amá-lo. A respeito dela exprimiu-se com delicadeza, como se pertencesse ela à melhor sociedade, e não se permitiu, nem uma só vez, chamá-la Grúchenhka. Malgrado a repugnância visível do rapaz em depor, Ipolit Kirílovitch reteve-o muito tempo e somente por ele soube do que constituía, por assim dizer, o “romance” de Mítia naquela noite. Nem uma vez Mítia interrompeu Kolgánov, que se retirou sem esconder sua indignação.
Passaram aos poloneses. Tinham-se deitado em seu quartinho, mas não haviam pregado olho a noite toda; à chegada das autoridades, vestiram-se rapidamente, compreendendo que iriam chamá-los. Apresentaram-se com dignidade, mas não sem apreensão. O pan baixinho, mais importante, era funcionário aposentado, de 12ª classe, servira como veterinário na Sibéria e se chamava Mussialóvitch. Pan Vrubliévski era dentista. Às perguntas de Nikolai Parfiénovitch, responderam a princípio dirigindo-se a Mikhail Makárovitch, que se conservava de lado; tomavam-no como o personagem mais importante e chamavam-no, a cada frase, pan polkhóunik.[ 120 ] Conseguiram fazer que eles compreendessem o erro, aliás falavam corretamente o russo, salvo a pronúncia de certas palavras. Ao falar de suas relações com Grúchenhka, pan Mussialóvitch pôs nisso um ardor e uma altivez que exasperaram Mítia; exclamou que não permitia que um “tratante” se exprimisse assim em sua presença. Pan Mussialóvitch rebateu o termo e rogou que o mencionássemos nos autos. Mítia fervia de cólera.
— Sim, um tratante! Façam constar, isso não me impedirá de repetir que ele é um tratante.
Nikolai Parfiénovitch deu prova de muito tato por ocasião desse desagradável incidente; depois de uma severa repreensão a Mítia, renunciou a inquirir a respeito do lado romanesco do caso e passou ao fundo. Os juízes interessaram-se bastante pelo depoimento dos poloneses, segundo o qual Mítia oferecera três mil rublos a pan Mussialóvitch para renunciar a Grúchenhka; setecentos de sinal e o resto “amanhã de manhã na cidade”. Afirmava sob palavra de honra não ter consigo, em Mókroie, a soma completa. Mítia declarou a princípio que não prometera fazer o pagamento no dia seguinte na cidade, mas pan Vrubliévski confirmou o depoimento, e Mítia, depois de pensar, conveio que poderia ter falado assim em sua exaltação. O procurador fez grande caso desse depoimento; tornava-se claro para a acusação que uma parte dos três mil rublos caídos nas mãos de Mítia tinha podido ficar escondida na cidade, talvez mesmo em Mókroie. Assim se explicava uma circunstância embaraçosa para a acusação, o fato de terem sido encontrados apenas oitocentos rublos com Mítia; era, até então, a única que falava em seu favor, por mais insignificante que fosse. Agora, aquele único testemunho vinha abaixo. À pergunta do procurador sobre onde teria ele arranjado os 2.300 rublos prometidos ao pan para o dia seguinte, quando ele próprio afirmava não ter em seu poder senão 1.500, havendo dado sua palavra de honra, respondeu Mítia que tinha a intenção de propor ao pan, em lugar de dinheiro, a transferência por ato em cartório de seus direitos sobre a propriedade de Tchermachniá, já oferecidos a Samsónov e à senhora Khokhlakova. O procurador sorriu da “ingenuidade do subterfúgio”.
— E o senhor pensava que ele teria consentido em aceitar esses “direitos”, em lugar de 2.300 rublos em dinheiro?
— Decerto, porque isso lhe iria dar não dois mil, mas quatro e até mesmo seis mil rublos. Teria mobilizado seus advogados judeus e poloneses, que haveriam de trazer o velho num cortado.
Naturalmente, o depoimento de pan Mussialóvitch foi transcrito in extenso nos autos, depois do quê ele e seu companheiro puderam retirar-se. O fato de haverem trapaceado no jogo foi silenciado; Nikolai Parfiénovitch era-lhes grato e não queria inquietá-los por bagatelas, tanto mais quando se tratava de uma querela entre jogadores embriagados e nada mais. Aliás, escândalo não faltara naquela noite... Os duzentos rublos ficaram, assim, no bolso dos poloneses.
Chamaram em seguida o velho Maksímov. Entrou timidamente, a passos miúdos, o ar triste e a roupa em desordem. Refugiara-se todo o tempo junto a Grúchenhka, sentado ao lado dela em silêncio, “pronto a choramingar, enxugando os olhos com seu lenço de quadrados”, como contou mais tarde Mikhail Makárovitch. Tanto que era ela quem o acalmava e consolava. De lágrimas nos olhos, o velho pediu desculpas por ter pedido emprestados dez rublos a Dimítri Fiódorovitch, visto sua pobreza, e declarou-se pronto a restituí-los... Tendo-lhe Nikolai Parfiénovitch perguntado quanto ele pensava que Dimítri Fiódorovitch tinha em dinheiro, visto que podia observá-lo de perto ao pedir-lhe emprestado, respondeu Maksímov categoricamente: vinte mil rublos.
— O senhor já viu antes alguma vez vinte mil rublos? — perguntou Nikolai Parfiénovitch, sorrindo.
— Como não? Decerto. Não vinte mil, mas sete mil, quando minha esposa hipotecou minha propriedade. Para falar a verdade, ela só mos mostrou de longe e aquilo formava uma maçaroca bem grossa de notas de cem rublos. Dimítri Fiódorovitch também estava com notas de cem rublos...
Não o retiveram muito tempo. Por fim chegou a vez de Grúchenhka. Os juízes temiam a impressão que sua chegada poderia produzir em Dimítri Fiódorovitch, e Nikolai Parfiénovitch dirigiu-lhe mesmo algumas palavras de exortação, às quais Mítia respondeu com um aceno de cabeça, indicando assim que não haveria desordem. Foi Mikhail Makárovitch quem trouxe Grúchenhka. Ela entrou, o rosto rígido e sombrio, o ar quase calmo, e tomou lugar em frente de Nikolai Parfiénovitch. Estava muito pálida e enrolava-se friorentamente no belo xale negro. Sentia, com efeito, o arrepio da febre, começo da longa doença que contraiu naquela noite. Seu ar rígido, seu olhar franco e sério, a calma de suas maneiras produziram a impressão mais favorável. Nikolai Parfiénovitch ficou mesmo seduzido; contou mais tarde que somente então compreendera quanto era encantadora aquela mulher; antes via nela “uma cortesã de subprefeitura”. “Tem as maneiras da melhor sociedade”, deixou ele escapar uma vez com entusiasmo num círculo de senhoras. Ouviram-no com indignação e logo o trataram de “descarado”, o que o encantou. Ao entrar, lançou Grúchenhka a Mítia um olhar furtivo; ele, por sua vez, a examinou com inquietação, mas seu ar tranquilizou-o. Após as perguntas habituais, Nikolai Parfiénovitch, com alguma hesitação, mas com o ar mais polido, perguntou-lhe “quais eram suas relações com o tenente reformado Dimítri Fiódorovitch Karamázov”?
— Era um conhecido e como tal o recebi em minha casa no último mês.
Em resposta a outras perguntas, declarou francamente que não amava Mítia então, se bem que ele lhe agradasse “por momentos”; seduzira-o por maldade bem como ao velho; o ciúme que Mítia sentia de Fiódor Pávlovitch e de todos divertia-a. Jamais pensara em ir à casa de Fiódor Pávlovitch, de quem ela zombava. “Durante todo este mês, não me interessava por eles; esperava outro, que tinha culpa para comigo... Somente acho que não precisam os senhores de interrogar-me a esse respeito e não tenho obrigação de responder-lhes. Trata-se de minha vida privada.”
Nikolai Parfiénovitch deixou imediatamente de lado os pontos “romanescos” e abordou a questão capital dos três mil rublos. Grúchenhka respondeu que fora mesmo a soma gasta em Mókroie um mês antes, segundo as palavras de Dimítri, porque ela mesma não havia contado as cédulas.
— Disse-lhe ele isso em particular ou diante de terceiros, ou então só o soube a senhora por intermédio de outras pessoas? — perguntou logo o procurador.
Grúchenhka respondeu afirmativamente a essas três perguntas.
— Ouviu-o a senhora dizê-lo em particular uma ou várias vezes?
Respondeu que várias vezes.
Ipolit Kirílovitch ficou bastante satisfeito com esse depoimento. Ficou depois estabelecido que Grúchenhka sabia que o dinheiro provinha de Katierina Ivânovna.
— Não ouviu a senhora dizer que Dimítri Fiódorovitch gastara então menos de três mil rublos e guardara para si a metade?
— Não, nunca.
Pelo contrário, havia um mês Mítia lhe declarara por várias vezes estar sem dinheiro. “Esperava sempre recebê-lo de seu pai”, concluiu Grúchenhka.
— Não disse ele, diante da senhora... incidentemente ou num momento de irritação — perguntou de repente Nikolai Parfiénovitch —, que tinha intenção de tentar contra a vida do pai?
— Sim, ouvi-o dizer — respondeu Grúchenhka.
— Uma vez ou várias?
— Várias vezes, sempre em acessos de cólera.
— E a senhora acreditava que ele poria esse projeto em execução?
— Não, nunca! — respondeu ela com firmeza. — Contava com a nobreza de seus sentimentos.
— Senhores, um instante — exclamou Mítia —, permitam-me que diga, na presença dos senhores, uma palavra apenas a Agrafiena Alieksándrovna!
— Pode falar — consentiu Nikolai Parfiénovitch.
— Agrafiena Alieksándrovna — disse Mítia, levantando-se —, juro-o perante Deus: sou inocente da morte de meu pai!
Mítia tornou a sentar-se, Grúchenhka levantou-se, benzeu-se piedosamente diante do ícone.
— Deus seja louvado! — disse ela com efusão e acrescentou, dirigindo-se a Nikolai Parfiénovitch: — Acredite no que ele disse! Eu o conheço, é capaz de dizer não sei o quê por brincadeira ou por teimosia, mas nunca fala contra sua consciência. Diz a verdade completa — esteja certo!
— Obrigado, Agrafiena Alieksándrovna, reconfortaste minha alma — disse Mítia, com voz trêmula.
A respeito do dinheiro do dia anterior, declarou ela não conhecer a soma, mas ter ouvido Dimítri repetir frequentemente que levara três mil rublos. Quanto à sua proveniência, dissera somente a ela que os “roubara” de Katierina Ivânovna, ao que respondeu ela que não era um roubo e que era preciso restituir o dinheiro logo no dia seguinte. Insistindo o procurador em saber o que entendia Dimítri por dinheiro roubado, o do dia anterior ou o de havia um mês, declarou Grúchenhka que ele falara do dinheiro de então e ela assim o compreendia.
Terminado o interrogatório, disse Nikolai Parfiénovitch, com solicitude, a Grúchenhka que estava ela livre de voltar para a cidade e que, se pudesse ele ser-lhe útil em alguma coisa, arranjando-lhe por exemplo cavalos ou fazendo-a acompanhar, faria...
— Obrigada — disse Grúchenhka, cumprimentando-o. — Partirei com aquele velho, o proprietário rural. Mas, se o senhor o permitir, esperarei aqui sua decisão a respeito de Dimítri Fiódorovitch.
Saiu. Mítia estava calmo e tinha o ar reconfortado, mas por um instante somente. Uma estranha lassitude invadia-o cada vez mais. Seus olhos se fechavam contra sua vontade. O interrogatório das testemunhas estava afinal acabado. Procedeu-se à redação definitiva do processo verbal. Mítia levantou-se e foi estender-se a um canto, sobre uma grande mala coberta por um tapete. Adormeceu logo. Teve um sonho estranho, sem relação com as circunstâncias. Viajava pela estepe, numa região por onde passara outrora, estando de serviço. Um mujique o conduz em uma tieliega através da planície enlameada. Faz frio, são os primeiros dias de novembro, a neve cai em grossos flocos que se derretem imediatamente. O mujique chicoteia vigorosamente seus cavalos, tem uma comprida barba ruiva, é um homem duns cinquenta anos, vestido com um ordinário cafetã cinzento. Aproximam-se de uma aldeia da qual se avistam as isbás negras, muito negras, a metade incendiada, erguendo-se ainda apenas traves carbonizadas. Na estrada, à entrada da aldeia, uma multidão de mulheres alinha-se, todas magras e descarnadas, o rosto crestado. Ali está uma, à beira da estrada, ossuda, alta, parecendo ter uns quarenta anos, mas talvez não tendo senão vinte, o rosto longo e desfeito; tem nos braços uma criancinha que chora, seus seios devem estar esgotados, parecem ressequidos, e a criança chora, chora sem parar, estende os bracinhos nus, os pequenos punhos roxos de frio.
— Por que choram eles? — pergunta Mítia, passando a galope.
— É o neném — responde o cocheiro —, é o neném quem chora.
E Mítia fica impressionado por ter ele dito à sua maneira, como os mujiques, o “neném” e não o bebê. Isso lhe agrada, isso lhe parece mais compassivo.
— Mas por que chora ele? — obstina-se em perguntar Mítia. — Por que seus bracinhos estão nus? Por que não lhos cobrem?
— O neném está transido de frio, suas roupas estão geladas, de modo que não o aquecem.
— Como assim? — insiste Mítia, estupidificado.
— É que eles são pobres, suas isbás foram queimadas, não têm pão.
— Não, não — prosseguiu Mítia, que parecia continuar a não compreender —, dize-me por que aquelas desgraçadas se conservam aqui, por que tanta miséria, aquele pobre neném, por que a estepe é nua, por que aquelas pessoas não se beijam cantando canções alegres, por que são tão negras, por que não dão de comer ao neném?
Sente bem que suas perguntas são absurdas, mas não pode impedir-se de fazê-las e tem razão; sente também que o invade um enternecimento, que vai chorar, gostaria de consolar o neném e a mãe de seio estorricados, de secar as lágrimas de todo mundo, e isso tudo imediatamente, sem levar nada em conta, com todo o ardor de um Karamázov.
— Estou contigo, não te deixarei mais — dize-lhe ternamente Grúchenhka.
Seu coração se abrasa e vibra a uma luz longínqua, quer viver, seguir o caminho que leva àquela luz nova, àquela luz que o chama.
— Que é!? Onde estou!? — exclama ele, abrindo os olhos. Ergue-se sobre a mala como quem desperta de um desmaio, com um sorriso radiante. Diante dele se encontra Nikolai Parfiénovitch, que o convida a ouvir o processo verbal e a assiná-lo.
Mítia deu-se conta de que dormira uma hora ou mais, mas não escutava o juiz. Estava estupefato por ter encontrado sob a cabeça uma almofada que lá não estava quando se estirou esgotado sobre a mala.
— Quem pôs aqui esta almofada!? Quem teve tanta bondade!? — exclamou ele, com exaltação, com uma voz emocionada, como se se tratasse dum benefício inestimável. O corajoso coração que tivera essa atenção permaneceu desconhecido, mas Mítia estava comovido até as lágrimas. Aproximou-se da mesa e declarou que assinaria tudo quanto quisessem.
— Tive um belo sonho, senhores — disse ele com uma voz estranha e o rosto como que iluminado de alegria.
IX
Levam Mítia preso
Uma vez assinado o processo verbal, dirigiu-se Nikolai Parfiénovitch solenemente ao acusado e leu para ele um “auto de processo e de prisão”, segundo cujos termos ele, juiz de instrução... tendo interrogado o detido... (seguiam-se os termos de acusação), atendendo a que ele, embora declarando-se inocente dos crimes que lhe eram imputados, nada produzira para justificar-se, a que entretanto as testemunhas... e as circunstâncias... o inculpavam inteiramente, tendo em vista os artigos... do Código Penal, ordenava, a fim de impedir que o supracitado se subtraia ao inquérito e julgamento, que fosse encarcerado e se desse cópia do presente ao procurador, etc. Em suma, declarou-se a Mítia que se achava ele doravante detido, que iam levá-lo à cidade e encerrá-lo numa residência muito pouco agradável. Mítia ergueu os ombros.
— Está bem, senhores, não lhes quero mal, estou pronto... compreendo que não lhes resta outra coisa a fazer.
Nikolai Parfiénovitch explicou-lhe que ele ia ser levado por Mavríki Mavríkitch, ali presente.
— Esperem — interrompeu Mítia, e, sob um impulso irresistível, dirigiu-se a todos os presentes: — Senhores, somos todos cruéis, todos monstros, é por nossa causa que choram as mães e as criancinhas, mas, entre todos, eu o proclamo, sou eu o pior! Cada dia, batendo no peito, jurava emendar-me, e cada dia cometia as mesmas vilanias. Compreendo agora que em criaturas como eu é preciso um golpe do destino e seu laço, uma força exterior que as dome. Jamais teria eu mesmo podido erguer-me! Mas o raio descarregou-se. Aceito as torturas da acusação, da ignomínia pública. Quero sofrer e redimir-me pelo sofrimento! Talvez o consiga, não é, senhores? Escutem, no entanto, pela derradeira vez: não derramei o sangue de meu pai! Aceito o castigo, não por tê-lo matado, mas por ter querido matá-lo, e talvez mesmo o tivesse feito! Estou resolvido não obstante a lutar contra os senhores, declaro-lhes. Lutarei até o fim e, em seguida, que Deus decida! Adeus, senhores, perdoem-me meus rompantes durante o interrogatório, estava então ainda desvairado... Em um instante serei um preso e, pela derradeira vez, Dimítri Karamázov, como um homem livre ainda, estende-lhes a mão. Apresentando-lhes minhas despedidas, é ao mundo que as apresento!...
Sua voz tremia, estendeu com efeito a mão, mas Nikolai Parfiénovitch, que era quem se achava mais perto dele, ocultou a sua com um gesto convulsivo. Mítia percebeu-o e estremeceu. Deixou seu braço recair.
— O inquérito ainda não está terminado — disse o juiz um pouco confuso —, vai prosseguir na cidade, e, de minha parte, desejo que o senhor... consiga... justificar-se... Pessoalmente, Dimítri Fiódorovitch, sempre o considerei mais infeliz que culpado... Todos aqui, se ouso fazer-me intérprete deles, estamos dispostos a ver no senhor um jovem, no íntimo nobre, mas, ai!, arrebatado por suas paixões duma maneira excessiva...
Foram essas derradeiras palavras pronunciadas pelo juizinho com grande dignidade. Pareceu de repente a Mítia que aquele rapazola ia pegá-lo pelo braço, levá-lo para um canto e continuar sua recente conversa a respeito das “garotas”. Mas quem sabe as ideias intempestivas que ocorrem por vezes mesmo a um criminoso a quem levam ao suplício?
— Os senhores são bons, humanos. Poderei tornar a vê-la para dizer-lhe um último adeus?
— Sem dúvida, mas... em nossa presença...
— De acordo.
Trouxeram Grúchenhka, mas o adeus foi lacônico e decepcionou Nikolai Parfiénovitch. Grúchenhka fez uma profunda saudação a Mítia.
— Já te disse que sou tua, que te pertenço para sempre, seguir-te-ei por toda parte aonde te enviarem. Adeus, tu que te perdeste sem seres culpado.
Seus lábios tremiam, ela chorava.
— Perdoa-me, Grucha, o amar-te, o ter causado também tua perda por meu amor.
Mítia queria falar ainda, mas deteve-se e partiu. Foi logo cercado por pessoas que não o perdiam de vista. Duas tieliegui esperavam ao pé do patamar, onde chegara ele na véspera com muito barulho na troica de Andriéi. Mavríki Mavríkitch, baixo e robusto, o rosto enrugado, estava irritado por causa de alguma desordem inesperada e gritava. Num tom cortante, convidou Mítia a subir na tieliega. “Outrora, quando eu lhe pagava de beber no botequim, o personagem tinha outra cara”, pensou Mítia. Trifon Borísovitch desceu o patamar. Perto do portão, comprimiam-se mujiques, mulheres, cocheiros, todos mirando Mítia.
— Adeus, boa gente! — gritou-lhes Mítia já na tieliega.
— Adeus! — disseram duas ou três vozes.
— Adeus. Trifon Borísovitch!
Mas Trifon Borísovitch nem mesmo se voltou, estando sem dúvida bastante preocupado. Gritava também e agitava-se. Tudo não estava em regra na segunda tieliega em que devia subir a escolta. O mujique designado para conduzi-la, enquanto vestia seu cafetã, sustentava energicamente que não era ele quem devia ir, mas Akim. Mas Akim não estava ali; corria-se à sua procura; o mujique insistia, suplicava que se esperasse.
— É uma trama descarada que temos aqui, Mavríki Mavríkitch! — exclamou Trifon Borísovitch. — Há três dias, Akim te deu 25 copeques, tu os bebeste e agora gritas. Espanto-me somente da bondade do senhor para com esses sujeitos.
— Que necessidade temos duma segunda troica? — interveio Mítia. — Viajemos com uma só, Mavríki Mavríkitch, não me revoltarei nem fugirei. Por que queres uma escolta?
— Aprenda a falar comigo, senhor, se não o sabe ainda. Trate de não me tratar por tu e guarde seus conselhos para outra ocasião... — replicou impertinentemente Mavríki Mavríkitch, como que feliz por extravasar seu mau humor.
Mítia calou-se, corando. Um instante depois, sentiu vivamente o frio. A chuva cessara, mas o céu estava coberto de nuvens, um vento áspero soprava no rosto. Tenho arrepios, pensou Mítia, enrodilhando-se. Por fim, Mavríki Mavríkitch subiu por sua vez e sentou-se pesadamente, bem à vontade, empurrando Mítia para um lado, sem parecer prestar-lhe atenção. Na verdade, estava mal-humorado e bastante descontente com a missão que lhe haviam confiado.
— Adeus, Trifon Borísovitch! — gritou de novo Mítia, sentindo que, desta vez, não era de bom coração, mas de cólera, malgrado seu, que gritava. Trifon Borísovitch, com ar arrogante, as mãos atrás das costas, fixou Mítia com um olhar severo e não lhe respondeu.
— Adeus, Dimítri Fiódorovitch, adeus! — repercutiu de súbito a voz de Kolgánov. Correndo para a tieliega, estendeu a mão a Mítia. Estava sem casquete. Mítia teve ainda tempo de apertar-lhe.
— Adeus, meu bravo amigo, não esquecerei sua generosidade! — disse ele com ardor. Mas a tieliega pôs-se em movimento, suas mãos desenlaçaram-se, os guizos retiniram, levavam Mítia.
Kolgánov correu para o vestíbulo, sentou-se num canto, curvou a cabeça, ocultou o rosto nas mãos e chorou por muito tempo; chorava como um menino. Estava quase convencido da culpabilidade de Mítia. “Que podem as pessoas valer depois disso?”, murmurava ele, num total desamparo. Não queria mesmo mais viver naquele instante. “Será que isso vale a pena!?”, exclamava o rapaz em seu pesar.
Quarta parte
Livro X
Morte de Iliúcha
I
Kólia Krasótkin
Primeiros dias de novembro. Onze graus de frio e regelo. Durante a noite, caiu um pouco de neve seca, que o vento áspero e picante levanta e varre através das ruas sombrias de nossa cidadezinha, sobretudo na praça do mercado. Está escura a manhã, mas a neve cessou. Não longe da praça, perto da loja dos Plótnikovi, encontra-se a casinha, muito limpinha no exterior e no interior, da senhora Krasótkina, viúva de um funcionário. Completar-se-ão em breve 14 anos da morte do secretário de governo Krasótkin, mas sua viúva, ainda graciosa e com pouco mais de trinta anos, vive de suas rendas em sua casinha. Doce e alegre, leva existência modesta e digna. Tendo ficado viúva aos 18 anos, com um filho que acabava de nascer, consagrou-se inteiramente à educação de Kólia. Amava-o cegamente, mas o menino lhe causou certamente mais pesares que alegrias, no temor perpétuo de vê-lo adoecer, resfriar-se, vadiar, ferir-se ao brincar, etc. Quando Kólia entrou para o colégio, a mãe pôs-se a estudar todas as matérias, a fim de ajudá-lo a fazer os exercícios, travou conhecimento com os professores e suas esposas, adulou mesmo os camaradas do filho, para evitar que zombassem dele ou que lhe batessem. Chegou a ponto de começarem os colegiais a zombar verdadeiramente de Kólia, a importunar “o queridinho da mamãe”. Mas o menino soube fazer-se respeitar. Era ousado, e logo passaram a achá-lo na classe “rudemente forte”, e, além disso, esperto, de caráter teimoso, espírito audacioso e empreendedor. Era um bom aluno, corria mesmo o rumor de que, em Matemática e História Universal, passava a perna no professor Dardaniélov.[ 121 ] Mas Kólia, embora afetando certo ar de superioridade, era bom camarada e nada orgulhoso. Aceitava como devido o respeito dos colegiais e mostrava uma atitude amigável. Conhecia sobretudo a medida, sabia reter-se a tempo devido e para com os professores não ultrapassava jamais o derradeiro limite além do qual a vivacidade não pode ser tolerada, tornando-se desordem e insubordinação. No entanto estava sempre pronto à travessura, quando se ensejava ocasião, como o derradeiro dos garotos, ou antes a bancar de malicioso, a chamar a atenção. Cheio de amor-próprio, soubera ganhar ascendência sobre a mãe, que sofria desde muito tempo seu despotismo. Somente era-lhe insuportável a ideia de que o filho a amava pouco. Kólia parecia-lhe sempre insensível a seu respeito e acontecia que, numa crise de lágrimas, ela o censurava por sua frieza. O rapazinho não gostava disso e, quanto mais efusões exigiam dele, mais a elas se furtava. Mas era contra a sua vontade; provinha isto de seu caráter e não de sua vontade. Sua mãe se enganava; ele a amava, somente, não gostava das “ternuras de novilha”, como dizia em sua linguagem de escolar. Seu pai deixara uma biblioteca, e Kólia, que gostava de ler, ficava por vezes horas mergulhado nos livros, em lugar de ir brincar, para grande espanto da mãe. Leu assim coisas acima de sua idade. Nos últimos tempos, suas travessuras — sem ser perversas — espantavam a mãe por causa de sua extravagância. Durante as férias, em julho, a mãe e o filho iam passar uma semana em casa de uma parenta, cujo marido era empregado ferroviário na estação mais próxima de nossa cidade. (Fora lá, a setenta verstas, que Ivan Fiódorovitch tomara o trem para Moscou, um mês antes.) Kólia começou por examinar minuciosamente o caminho de ferro e seu funcionamento, compreendendo que poderia deslumbrar os colegas com seus novos conhecimentos. Ao mesmo tempo, ligou-se a seis ou sete garotos da vizinhança, de 11 a 15 anos de idade, entre os quais dois provinham de nossa cidade. Faziam travessuras em comum e, em breve, o alegre bando teve a ideia de fazer uma aposta verdadeiramente estúpida, cuja parada era de dois rublos. Kólia, um dos mais jovens e portanto um pouco desdenhado pelos mais velhos, levado pelo amor-próprio ou pela temeridade, propôs ficar deitado entre os trilhos, sem mexer-se, enquanto o trem das 11 horas da noite passaria sobre ele a todo vapor. Na verdade, um exame prévio permitiria verificar que a coisa era factível, que a pessoa podia, realmente, achatar-se entre os trilhos sem ser mesmo roçada pelo trem. Mas que minuto penoso teria de passar! Kólia jurou por toda parte que o faria. Começaram por zombar dele, trataram-no de fanfarrão, o que o excitou ainda mais. Também aqueles rapazes de 15 anos mostravam-se por demais arrogantes, tendo mesmo recusado a princípio levar em consideração aquele fedelho, tratando-o como camarada. Ofensa intolerável. Numa noite sem lua, decidiram ir a uma versta da estação, onde o trem já passaria rapidamente. Na hora marcada, Kólia deitou-se entre os trilhos. Os cinco outros apostadores, de coração a desfalecer, em breve tomados de pavor e de remorso, aguardavam nas moitas embaixo do talude. Dentro em pouco, ouviu-se o barulho do trem em movimento. Duas lanternas vermelhas brilharam nas trevas, o monstro aproximava-se estrondosamente. “Foge! Foge!”, gritaram, apavorados. Era demasiado tarde, o trem passou e desapareceu. Precipitaram-se para Kólia, que jazia inerte, puseram-se a sacudi-lo e erguê-lo. De repente, ele se levantou e declarou que fingira um desmaio para causar-lhes medo. Na realidade, tinha desmaiado mesmo, como ele próprio, espontaneamente, o confessou muito tempo depois à mãe.
Dessa maneira, seu renome de “estabanado” ficou definitivamente estabelecido. Voltou para casa branco como linho. No dia seguinte, teve uma febre nervosa, mas mostrou-se muito alegre e contente. O acontecimento foi divulgado em nossa cidade e chegou ao conhecimento das autoridades escolares. A mamãe de Kólia suplicou-lhes que perdoassem a, seu filho, e por fim um professor estimado e influente, Dardaniélov, falou em seu favor e obteve ganho de causa. O caso não teve consequências. Esse Dardaniélov, solteiro e ainda moço, estava fazia muito tempo apaixonado pela senhora Krasótkina; um ano antes, com o coração cheio de apreensão, arriscara-se a pedir-lhe a mão; ela o recusara, considerando que o casar-se de novo seria uma traição a seu filho. No entanto, Dardaniélov, de acordo com certos indícios, teria tido o direito de pensar que não era fundamentalmente antipático àquela viúva encantadora, mas casta e delicada em excesso. A louca travessura de Kólia deve ter rompido o gelo, e, após a intervenção de Dardaniélov, deu-se a entender a ele que podia ter esperança, aliás longínqua, mas ele próprio era um fenômeno de pureza e de delicadeza e aquilo lhe bastava à sua felicidade no momento. Gostava do menino, mas teria achado humilhante procurar adulá-lo; na classe, mostrava-se severo para com ele, exigente. O próprio Kólia mantinha-o à distância, preparava muito bem seus exercícios, ocupava o segundo lugar, e toda a classe estava persuadida de que, em História Universal, ele “passava a perna” no próprio Dardaniélov em pessoa. Com efeito, Kólia perguntou-lhe uma vez quem havia fundado Troia. Ao que respondeu o mestre, por meio de considerações a respeito dos povos e de suas migrações, da noite dos tempos, da fábula, mas não pôde responder à pergunta precisa sobre a fundação de Troia, achando-a mesmo ociosa. Os alunos ficaram convencidos de que Dardaniélov de nada sabia. Kólia informara-se a respeito em Smaragdov, que figurava entre os livros de seu pai. Finalmente, todos se interessaram pela fundação de Troia, mas Krasótkin guardou segredo e seu prestígio permaneceu intacto.
Após o incidente da estrada de ferro, ocorreu uma mudança na atitude de Kólia para com a mãe. Quando Anna Fiódorovna soube da proeza do filho, quase enlouqueceu. Teve violentas crises de nervos durante vários dias, a ponto de Kólia, seriamente aterrorizado, dar-lhe sua palavra de honra de jamais recomeçar semelhantes travessuras. Jurou-o de joelhos diante do ícone e pela memória do pai, como o exigia a senhora Krasótkina; a emoção dessa cena fez chorar o “intrépido” Kólia como uma criança de seis anos: a mãe e o filho passaram o dia a lançar-se nos braços um do outro, derramando lágrimas. No dia seguinte, Kólia despertou de novo “insensível”, mas tornou-se mais silencioso, modesto, pensativo. Seis semanas depois, reincidia, e seu nome chegou até o juiz de paz, mas dessa vez, tratava-se de uma travessura bem diferente, ridícula mesmo e estúpida, cometida por outros e na qual não estava implicado. Tornaremos a falar dela. Sua mãe continuou a tremer e a atormentar-se, e a esperança de Dardaniélov crescia na medida dos alarmes dela. É preciso notar que Kólia compreendia e adivinhava a esse respeito Dardaniélov, e, bem entendido, desprezava-o profundamente por causa de seus “sentimentos”; antes tivera mesmo a indelicadeza de exprimir seu desprezo diante da mãe, fazendo alusões vagas às intenções de Dardaniélov. Mas, após o incidente da estrada de ferro, mudou também de conduta a esse respeito; não se permitiu mais nenhuma alusão e falou com mais respeito de Dardaniélov diante de sua mãe, o que a sensível Anna Fiódorovna compreendeu imediatamente com uma gratidão infinita; em compensação, à menor palavra referente a Dardaniélov proferida em presença de Kólia, fosse mesmo um estranho, tornava-se ela vermelha como uma cereja. Naqueles momentos, Kólia olhava pela janela com ar carrancudo ou examinava o estado de seus sapatos, ou ainda chamava raivosamente Carrilhão, um cachorro de longos pelos, muito grande e feio, que havia recolhido um mês antes e guardava em segredo, sem mostrá-lo a seus camaradas. Tratava-o com rigor, ensinava-lhe diversas habilidades, tanto que o pobre animal gania, quando ele partia para o colégio e latia alegremente quando ele voltava, saltava como um louco, andava sobre duas patas, fazia-se de morto, etc.; em suma, mostrava todas as habilidades que lhe haviam sido ensinadas, isso não porque lhe ordenavam, mas no ardor de seu entusiasmo e de sua dedicação.
A propósito: esqueci-me de dizer que Kólia Krasótkin era o menino a quem Iliúcha, já conhecido do leitor, filho do capitão reformado Snieguiriov, ferira com o canivete, ao defender seu pai, a quem os colegiais ridicularizavam, chamando-o de “esfregão de tília”.
II
Gente miúda
Portanto, naquela manhã glacial e brumosa de novembro, o jovem Kólia Krasótkin permanecia em casa. Era domingo, e não havia aula. Mas acabavam de soar 11 horas, era-lhe absolutamente preciso sair “para um negócio muito importante”, contudo ficava sozinho para guardar a casa, porque os adultos haviam saído em consequência de uma circunstância extraordinária. A viúva Krasótkina alugava um apartamento de duas peças, o único da casa, à mulher dum médico, que tinha dois filhos pequenos. Era da mesma idade de Anna Fiódorovna e sua grande amiga; quanto ao doutor, que partira para Oremburgo, depois para Tachkent, não dava notícias de si havia seis meses, de sorte que a abandonada teria passado o tempo a chorar sem a amizade da senhora Krasótkina, que amenizava seu pesar. Para cúmulo de infortúnio, Katierina, a única criada da mulher do doutor, declarara bruscamente à patroa, durante a noite, que se preparava para dar à luz de manhã. Era quase miraculoso que ninguém tivesse notado a coisa até então. A mulher do doutor, estupefata, decidiu, enquanto era ainda tempo, transportar Katierina para a casa de uma parteira que aceitava pensionistas. Como estimava muito a criada, pôs logo seu projeto em execução e ficou mesmo ao lado dela. Em seguida, pela manhã, foi preciso recorrer ao concurso e ajuda da senhora Krasótkina, que podia naquela ocasião tomar providências e exercer certa proteção. De modo que as duas senhoras estavam ausentes, a criada da senhora Krasótkina, Agáfia, saíra para o mercado e Kólia achava-se provisoriamente como guarda dos fedelhos, o menino e a menina da mulher do doutor, que haviam ficado sozinhos. A guarda da casa não causava medo em Kólia, sobretudo com Carrilhão; ele recebera ordem de deitar-se debaixo de um banco, no vestíbulo, sem se mexer, e, cada vez que seu dono passava, erguia ele a cabeça, batia no soalho com a cauda com um ar suplicante, mas, ai!, nenhum chamado se ouvia. Kólia olhava com severidade o infeliz cão d’água, que recaía na imobilidade completa. Mas a única preocupação de Kólia eram os fedelhos. Ao passo que a aventura de Katierina lhe inspirava profundo desprezo, gostava muito dos pequenos e trouxera já para eles um livro infantil. Nástia, a mais velha, de oito anos, sabia ler, e o mais moço, Kóstia, de sete anos, gostava de escutá-la. Bem entendido, Krasótkin teria podido interessá-los brincando com eles de soldado ou de esconder, por toda a casa. Não desdenhava fazê-lo quando preciso, tanto que se espalhou na classe o boato de que Krasótkin brincava de troica em sua casa com os pequenos locatários, fazendo papel do cavalo de sota, galopando, de cabeça baixa. Krasótkin repelia altivamente essa acusação, fazendo notar que, com camaradas de sua idade, teria sido vergonhoso, com efeito, “em nossa época”, brincar de cavalo, mas que assim o fazia para os fedelhos, porque gostava deles e ninguém tinha o direito de pedir-lhe conta de seus sentimentos. Em compensação, os dois fedelhos o adoravam. Mas dessa vez não se tratava de brinquedos; tinha de ocupar-se de um assunto de muita importância e parecendo mesmo quase misterioso. Entretanto, o tempo passava e Agáfia, a quem os meninos teriam podido ser confiados, não se dignava voltar do mercado. Já por várias vezes atravessara ele o vestíbulo, abrira a porta da locatária, observara com solicitude os fedelhos lendo, por injunção sua; cada vez que se mostrava, os meninos sorriam-lhe largamente, esperando vê-lo entrar e fazer alguma coisa engraçada. Mas Kólia estava preocupado e não entrava. Por fim, soaram as 11 horas e decidiu ele firmemente que, se em dez minutos a “maldita” Agáfia não estivesse de volta, sairia sem esperá-la, depois de, é claro, ter feito os fedelhos prometerem não ter medo durante sua ausência, nem fazer bobagens, nem chorar. Com essas disposições, vestiu o pequeno sobretudo algodoado, lançou a sacola ao ombro e, malgrado os rogos reiterados de sua mãe, de nunca sair “com semelhante frio”, sem calçar galochas, contentou-se em lançar-lhes um olhar desdenhoso ao passar pelo vestíbulo. Vendo-o vestido para sair, Carrilhão bateu no soalho com a cauda, agitando-se, e ia mesmo soltar um gemido lamentoso, mas Kólia julgou tal ardor contrário à disciplina, manteve o cão d’água ainda um minuto debaixo do banco e só assobiou para ele ao abrir a porta do vestíbulo. O animal lançou-se como um louco e se pôs a saltar de alegria. Kólia ia ver o que estavam fazendo os fedelhos. Tinham acabado de ler e discutiam com animação, como lhes acontecia frequentemente; Nástia, na qualidade de mais velha, levava sempre a melhor, e, se Kóstia não se punha de seu lado, apelava ela quase sempre para Kólia Krasótkin, cuja sentença era definitiva para as duas partes. Desta vez, a discussão dos fedelhos tinha algum interesse para Kólia, que ficou na soleira a escutar, vendo o que, as crianças redobraram de ardor em sua controvérsia.
— Nunca, nunca acreditarei — sustentava Nástia — que as parteiras encontrem os bebês nos pés de couve. Agora é inverno, não há couves, e a parteira não pode trazer uma filhinha para Katierina.
— O quê! — murmurou Kólia.
— Ou então elas as trazem de alguma parte, mas somente para aquelas que se casam.
Kóstia fixava a irmã, escutava gravemente, refletia.
— Nástia, como és tola! — disse ele por fim, num tom calmo. Como pode Katierina ter um filho, já que ela não é casada?
Nástia irritou-se.
— Tu não compreendes nada, talvez tivesse ela um marido, mas está na prisão.
— Será que ela tem de verdade um marido na prisão? — perguntou o otimista Kóstia.
— Ou então — continuou impetuosamente Nástia, abandonando a primeira hipótese — pode acontecer também que ela não tenha marido; tens razão; mas quer se casar e pôs-se a pensar como fazer, pensou e tornou a pensar, tanto que acabou por ter não um marido, mas um bebê.
— Está bem! É possível — aquiesceu Kóstia, subjugado —, mas não o disseste antes. Corno podia eu saber?
— Muito bem, meninada! — exclamou Kólia, avançando. — Vocês são uma gente perigosa, pelo que vejo!
— Carrilhão está com você? — perguntou, sorrindo, Kóstia, que se pôs a estalar os dedos, chamando o cachorro.
— Meninada, estou atrapalhado — começou solenemente Kólia. — Vocês devem ajudar-me. Agáfia deve ter quebrado a perna, já que não volta; é seguro e certo. Tenho de sair. Vocês me deixarão ir?
Os meninos olharam-se receosos, seus rostos sorridentes exprimiram inquietação. Não compreendiam bem o que queriam deles.
— Não farão bobagens em minha ausência? Não subirão no armário com risco de quebrar uma perna? Não chorarão de medo, quando ficarem sozinhos?
A angústia apareceu nos rostinhos.
— Em compensação, poderia eu mostrar-lhes alguma coisa: um canhãozinho de cobre que se carrega com pólvora verdadeira.
Os rostinhos iluminaram-se.
— Mostre o canhão — disse Kóstia, radiante.
Krasótkin tirou de sua sacola um canhãozinho de bronze, que pousou em cima da mesa.
— Olhe, tem rodas — disse, fazendo o brinquedo rodar. — Pode-se carregá-lo com chumbinho e atirar.
— E ele mata?
— Mata todo mundo, basta apontá-lo — e Krasótkin explicou onde era preciso colocar a pólvora, o chumbo, indicou uma pequena abertura que representava o ouvido, explicou que o canhão recuava. As crianças escutavam com ardente curiosidade. O recuo sobretudo feria-lhes a imaginação.
— E você tem pólvora? — informou-se Nástia.
— Tenho, sim.
— Mostre também a pólvora — disse ela com um sorriso implorativo.
Krasótkin tirou de sua sacola um frasquinho, onde havia de fato um pouco de pólvora verdadeira e alguns grãos de chumbo enrolados em papel. Abriu mesmo o frasco, derramou um pouco de pólvora na mão.
— Aqui está. Somente tomem cuidado com o fogo, senão ela explodirá e nós todos morreremos — disse ele, para impressioná-las.
As crianças examinavam a pólvora com um temor respeitoso que aumentava o prazer. Os grãos de chumbo, sobretudo, agradavam a Kóstia.
— O chumbo não queima? — perguntou ele.
— Não.
— Dê-me um pouco de chumbo — disse, num tom suplicante.
— Aqui está um pouco, tome, somente não o mostre à sua mãe antes de minha chegada. Ela iria pensar que é pólvora, morreria de medo ou surraria vocês.
— Mamãe nunca surra a gente — observou Nástia.
— Sei disso, disse-o somente por causa da beleza do estilo. E vocês, nunca enganem sua mamãe, só dessa vez, até que eu volte. Portanto, meninada, posso ir ou não? Não chorarão de medo em minha ausência?
— Nós cho-re-mos — disse lentamente Kóstia, preparando-se já para fazê-lo.
— Nós choraremos, decerto — apoiou Nástia, receosa.
— Oh! Meninos, que idade perigosa é a de vocês! Não há nada a fazer. Será preciso ficar com vocês não sei quanto tempo. E o tempo é precioso.
— Mande Carrilhão fingir de morto — pediu Kóstia.
— Não há outro recurso senão valer-me de Carrilhão. Aqui, Carrilhão! — E Kólia ordenou ao cão de pelos compridos, dum cinzento violáceo, do tamanho de um mastim comum, cego do olho direito e com a orelha esquerda cortada. Bancava o elegante, caminhava sobre as patas traseiras, deitava-se de costas com as patas no ar e ficava inerte, como morto. Durante esse último exercício, a porta abriu-se e a gorda criada, Agáfia, uma mulher de quarenta anos, com marcas de varíola, apareceu na soleira, com a rede de provisões na mão, e pôs-se a olhar. Kólia, por mais apressado que estivesse, não interrompeu a representação e, quando por fim assobiou para Carrilhão, o animal pôs-se a saltitar na alegria do dever cumprido.
— Isso é que é um cachorro! — disse Agáfia, com admiração.
— E por que demoraste tanto tempo, sexo feminino? — perguntou severamente Krasótkin.
— Sexo feminino! Ora, que fedelho!
— Fedelho?
— Sim, fedelho. Que é que tens com isso? Se estou atrasada, é que foi preciso — resmungou Agáfia, começando a remexer em redor da estufa, num tom nada irritado e como que alegre por poder discutir com aquele jovem senhor tão jovial.
— Escuta, velha frívola, podes jurar-me por tudo quanto há de mais sagrado neste mundo que tomarás conta dessas crianças na minha ausência? Vou sair.
— E por que jurar? — disse Agáfia, rindo. — Tomarei conta deles, sim.
— Não, é preciso que jures por tua salvação eterna. Senão não me vou.
— À tua vontade. Que me importa isso? Está gelando. Fica em casa.
— Meninos, essa mulher ficará com vocês até minha volta ou à da mamãe de vocês, que já deveria estar de volta. Além disso, ela dará o almoço de vocês. Não é, Agáfia?
— Pode ser, sim.
— Adeus, meninos, vou-me de coração tranquilo. Quanto a ti, vovó — disse ele, gravemente, a meia-voz, ao passar diante de Agáfia —, espero que não lhes contes bobagens a respeito de Katierina. Poupa a inocência deles. Aqui, Carrilhão.
— Que Deus te perdoe! — disse Agáfia, irritada. — Como é engraçado! Mereceria uma surra, por falar assim.
III
O colegial
Mas Kólia não ouviu. Afinal, estava livre. Ao transpor o portão, ergueu os ombros e, depois de ter dito: “Que frio!”, dirigiu-se para a praça do mercado. No caminho, parou diante de uma casa, tirou um apito do bolso, apitou com todas as suas forças, como dando um sinal convencionado. Ao fim dum minuto, viu-se sair um menino de 11 anos, de tez vermelha, vestido igualmente com um sobretudo quente e até mesmo elegante. Era o jovem Smúrov, aluno da classe preparatória (ao passo que Kólia Krasótkin se achava duas classes acima), filho de um funcionário em boa situação. Seus pais proibiam-no de andar com Krasótkin, por causa de sua reputação de travesso, de modo que Smúrov acabava de ausentar-se furtivamente. Esse Smúrov, se o leitor está lembrado, fazia parte do grupo que atirara pedras em Iliúcha, dois meses antes, e foi ele quem falou de Iliúcha a Aliócha Karamázov.
— Há uma hora que o espero, Krasótkin — proferiu Smúrov, com ar decidido.
Os rapazes marcharam para a praça.
— Estou atrasado — replicou Krasótkin. — Culpa das circunstâncias. Não te surrarão por vires comigo?
— Que ideia! Será que me surram? Carrilhão está com você?
— Claro.
— Vai levá-lo lá?
— Levo, sim.
— Ah! Se fosse Besouro!
— É impossível. Besouro não existe mais. Desapareceu não se sabe onde.
— Não se poderia então dar um jeito? — Smúrov parou de repente. — Iliúcha disse que Besouro também tinha pelos compridos, cinzentos, cor de fumaça, como Carrilhão. Não se poderia dizer que este é Besouro? Talvez ele acreditasse.
— Colegial, evita a mentira, em primeiro lugar; e em segundo lugar, ainda que seja com bom fim. Espero, principalmente, que não tenhas falado de minha vinda.
— Deus me livre. Compreendo. Mas não o consolarão com Carrilhão — suspirou Smúrov. — Sabes? O pai dele, o capitão, “esfregão de tília”, disse-nos que lhe levariam hoje um cãozinho, um mastim verdadeiro, de focinho preto; pensa consolar assim Iliúcha, mas é pouco provável.
— Como vai ele, Iliúcha?
— Mal, mal! Creio que ele está tísico. Tem pleno conhecimento, mas sua respiração é bem má. Um dia desses, pediu que o levassem a passear um pouco. Calçaram-lhe os sapatos. Mas ele caiu ao fim de alguns passos. “Ah, papai, bem que te disse que estes sapatos não prestam. Antes mesmo tinha dificuldade em andar com eles.” Pensava que caía por causa dos sapatos e era simplesmente de fraqueza. Não dura uma semana. Herzenstube visita-o. Têm de novo muito dinheiro.
— Canalhas!
— Canalhas, quem?
— Os doutores e toda essa ralé médica, em geral e em particular. Renego a medicina. Não serve para nada. Aliás, estudarei tudo isso. Dize-me, vocês todos lá ficaram muito sentimentais. A classe inteira vai lá incorporada, digo a verdade?
— Toda não, mas uma dezena dos nossos vai lá todos os dias. Não é nada.
— O que me surpreende em tudo isso é o papel de Alieksiêi Karamázov; vão julgar amanhã ou depois seu irmão por um crime como aquele e acha ele tempo de fazer sentimentalismo com colegiais!
— Mas não há no caso nenhum sentimentalismo. Tu mesmo vais agora lá reconciliar-te com Iliúcha.
— Reconciliar-me? Expressão engraçada! Aliás, não permito que ninguém analise meus atos.
— Como Iliúcha ficará contente ao ver-te! Não duvida de que vais. Por que, por que recusaste por tanto tempo ir vê-lo!? — exclamou de repente Smúrov, com ardor.
— Meu caro, o problema é meu e não teu. Vou lá por minha vontade, porque quero ir, ao passo que foi Alieksiêi Karamázov quem levou vocês todos lá; há pois uma diferença. E que sabes tu? Talvez não vá eu lá absolutamente para reconciliar-me. Estúpida expressão.
— Karamázov não tem nada a ver com isso. Os colegas adquiriram simplesmente o hábito de ir lá, é bem certo que no começo com Karamázov. Primeiro um, depois outro. Mas nada se passou de estúpido. O pai ficou encantado ao ver-nos. Sabes? Perderá a razão, se Iliúcha morrer. Vê que seu filho está perdido. Causa-lhe tanto prazer o nos termos reconciliado com Iliúcha... Iliúcha pediu informações a teu respeito, mas sem nada acrescentar. Seu pai ficará louco ou se enforcará. Já antes tinha jeito de maluco. Sabes? É um homem honesto, vítima dum erro. A culpa é daquele parricida que lhe bateu então.
— No entanto, Karamázov é um enigma para mim. Teria podido travar conhecimento com ele, há muito tempo, mas, em certos casos, gosto de mostrar-me orgulhoso. Além do mais, já formei sobre ele uma opinião que será preciso verificar, esclarecer.
Kólia calou-se gravemente, bem como Smúrov. Bem entendido, Smúrov respeitava Kólia Krasótkin e nem mesmo pensava em se comparar com ele. Agora estava muito intrigado, porque Kólia explicara que vinha “por si mesmo”; devia haver aí um mistério nessa decisão súbita de ir hoje à casa de Iliúcha. Seguiam pela praça do mercado, atravancada de carroças e de aves domésticas. Sob os alpendres das vendas, mulheres do povo vendiam sequilhos, linhas, etc. Em nossa cidade, esses ajuntamentos do domingo são chamados ingenuamente de feiras e há muitos deles durante o ano. Carrilhão corria com o humor mais alegre, afastava-se constantemente à direita ou à esquerda para farejar alguma coisa. Quanto a seus irmãos de espécie encontrados no caminho, farejava-os de boa vontade, segundo as regras em uso entre a gente canina.
— Gosto de observar a realidade, Smúrov — disse de súbito Kólia. — Notaste como os cães se farejam, quando se encontram? É, entre eles, uma lei geral da natureza.
— Sim, uma lei ridícula.
— Não é ridícula, não tens razão. Na natureza, nada há de ridículo, apesar do que dela pense o homem com seus preconceitos. Se os cães pudessem raciocinar e criticar, encontrariam certamente outro tanto de ridículo, se não mais, nas relações sociais das pessoas, seus donos, se não mais, repito-o, porque estou persuadido de que há bem mais tolices entre nós. É a ideia de Rakítin, uma ideia notável. Sou socialista, Smúrov.
— Que é um socialista? — perguntou Smúrov.
— É quando todos são iguais, têm uma opinião comum, não há casamentos, sendo a religião e as leis como convém a cada um. És ainda demasiado jovem para compreender essas questões. Está frio, não é mesmo?
— Sim, 12 graus. Meu pai olhou o termômetro ainda há pouco.
— Notaste, Smúrov, que, no meio do inverno, com 15 ou mesmo 18 graus, o frio parece menos vivo que agora, no começo, quando gela de repente a 12 graus e há ainda pouca neve? Isso significa que as pessoas não estão ainda acostumadas a ele. Entre elas, tudo é hábito, em tudo, mesmo em política e nos negócios do Estado. Como é engraçado aquele mujique!
Kólia mostrou um mujique, de alta estatura, metido num tulup, com ar bonacheirão, que, ao lado de sua carroça, se aquecia batendo as mãos uma contra a outra com as luvas. Sua barba estava coberta de geada.
— A barba do mujique está congelada! — disse Kólia em voz alta e com um ar implicante, passando ao lado dele.
— Há bem outras congeladas — replicou sentenciosamente o mujique.
— Não mexas com ele — observou Smúrov.
— Não tem importância, ele não se zangará, é um homem bom. Adeus, Matviéi.
— Adeus.
— Chamas-te Matviéi?
— Matviéi. Não o sabias?
— Não; disse-o por acaso.
— Ora vejam só! És talvez um colegial?
— Com efeito.
— Surram-te?
— Decerto.
— Com força?
— Acontece.
— A vida não é alegre — suspirou o mujique de todo o coração.
— Adeus, Matviéi.
— Adeus. És um garoto delicado.
Os rapazes continuaram seu caminho.
— É um bom mujique — disse Kólia a Smúrov. — Gosto de falar com gente do povo e sinto-me sempre contente em fazer-lhe justiça.
— Por que o fizeste crer que nos surravam? — perguntou Smúrov.
— Para causar-lhe prazer.
— Como assim?
— Sabes duma coisa, Smúrov? Não gosto que insistam, se não se compreende desde a primeira palavra. É por vezes difícil explicar. Na ideia do mujique, surra-se o colegial e deve-se fazê-lo; que é um colegial a quem não se surra? E se lhe digo que não, isso lhe causará pesar. Aliás, tu não compreendes isso. É preciso saber falar ao povo.
— Somente, nada de zombarias, rogo-te. Para que não haja outra complicação como aquela do pato.
— Tens medo?
— Evita bem isso, Kólia; deveras, tenho medo. Meu pai ficaria furioso. Proibiram-me expressamente de andar contigo.
— Não tenhas medo, dessa vez não acontecerá nada. Bom dia, Natacha — gritou ele para uma vendedora.
— Natacha coisa nenhuma! Chamo-me Mária — gritou-lhe a vendedora, uma mulher ainda jovem.
— Está bem, Mária, adeus.
— Ah, engraçadinho, não mais alto que uma bota, que intrometimento é esse?
— Não tenho tempo, conversaremos no domingo próximo — disse Kólia gesticulando, como se fosse ela que o importunasse, em vez do contrário.
— E que é que haveremos de conversar no domingo? Foste tu que mexeste comigo e não eu que mexi contigo, insolente! Mereces umas chicotadas. Bem te conhecemos, boa bisca!
Risadas espocaram entre as vendedoras vizinhas de Mária, quando, de repente, surgiu duma arcada um indivíduo excitado, com ar de caixeiro de venda, aliás estranho à nossa cidade, de cafetã de longas abas, trazendo um casquete de pala, ainda jovem, de cabelos castanhos cacheados, o rosto pálido e bexigoso. Parecia agitado sem saber por quê, e se pôs logo a ameaçar Kólia com o punho.
— Eu te conheço — vociferou ele —, eu te conheço!
Kólia encarou-o. Não se lembrava de haver brigado com aquele homem, aliás, tivera por demasiadas vezes altercações na rua para lembrar-se de todas.
— Tu me conheces? — perguntou, ironicamente.
— Conheço-te! Conheço-te — repisou o indivíduo.
— Tens muita sorte. Mas estou com pressa, adeus.
— Por que te mostras insolente? Recomeças? Eu te conheço!
— Se me mostro insolente, meu amigo, não tens nada com isso! — proferiu Kólia, parando, com os olhos sempre fixos nele.
— Como assim?
— Assim mesmo.
— Quem é então que tem? Quem é?
— Agora, camarada, o negócio é com Trifon Nikítitch e não contigo.
— Que Trifon Nikítitch? — E o rapaz, sempre acalorado, fixou Kólia com ar estúpido. Kólia olhou-o de alto a baixo, seriamente.
— Foste à Igreja da Ascensão? — perguntou, num tom imperioso.
— Que igreja? Por quê? Não, não fui lá — respondeu o rapaz desconcertado.
— Conheces Sabaniéiev? — perguntou Kólia, no mesmo tom.
— Que Sabaniéiev? Não, não o conheço.
— Então, vá para o diabo — cortou Kólia, que, dobrando à direita, afastou-se a passos rápidos, como que desdenhando falar a um simplório que nem mesmo conhecia Sabaniéiev.
— Espera, ei! Que Sabaniéiev? — reconsiderou o rapaz, de novo agitado. — De quem fala ele? — perguntou às vendedoras, olhando-as com ar aparvalhado.
As boas mulheres puseram-se a rir.
— Não é bobo aquele garoto — disse uma delas.
— De que Sabaniéiev falava ele? — teimava em repetir o rapaz, gesticulando.
— Deve ser o Sabaniéiev que trabalha em casa dos Kuzmítchev, eis de quem se trata — conjeturou uma das mulheres.
O rapaz examinou-a com espanto.
— Kuzmítchev? — repetiu outra. — Então não é Trifon. Aquele se chama Kuzmá e não Trifon. Ora, o garoto chamou-o de Trifon Nikítitch, logo não é ele.
— Estás vendo, não é nem Trifon nem Sabaniéiev, é Tchitchov, interveio uma terceira vendedora, que havia ouvido com seriedade. Alieksiêi Ivânovitch Tchitchov.
— É mesmo Tchitchov, com efeito — confirmou uma quarta.
Todo confuso, o rapaz olhava ora uma ora outra.
— Mas por que me perguntou ele isso, por que, boa gente!? — exclamou ele, quase desesperado. — “Conheces Sabaniéiev?” Quem diabo haverá de ser esse Sabaniéiev?
— Tens a cabeça dura, estão-te dizendo que não é Sabaniéiev, mas Tchitchov, Alieksiêi Ivânovitch, compreendes? — disse gravemente uma vendedora.
— Que Tchitchov? Di-lo, já que o sabes.
— Um grandalhão, de cabelos compridos. Era visto no mercado, no verão.
— Que queres que eu faça com o teu Tchitchov, hem, alma de Deus?
— E eu é que hei de saber?
— Quem sabe lá o que queres? — insistiu outra. — Tu mesmo deves saber, já que berras! Porque era a ti que falavam e não a nós, pateta! Não o conheces deveras?
— A quem?
— Tchitchov.
— Que o diabo carregue o teu Tchitchov e a ti com ele! Vou dar-lhe uma surra, palavra! Ele zombou de mim!
— Vais surrar Tchitchov? Ou será bem o contrário? Não passas dum imbecil.
— Tchitchov não, Tchitchov não, mulher dos diabos! É o garoto que surrarei. Tragam-no, tragam-no! Ele zombou de mim!
As mulheres desataram a rir. Kólia já estava longe e caminhava com ar vencedor; Smúrov, a seu lado, voltava-se por vezes para o grupo que gritava. Ele também se divertia muito, ao mesmo tempo que receava ter se misturado a uma história com Kólia.
— De qual Sabaniéiev lhe falavas tu? — perguntou ele a Kólia, duvidando da resposta.
— Sei lá! Agora, vão-se descompor até de noite. Gosto de mistificar os imbecis em todas as classes sociais. Olha aquele mujique. Ali está outro simplório. Nota isto; dizem: “Não há pior tolo que um tolo francês”, mas uma fisionomia russa trai-se da mesma maneira. Não está escrito na testa dele que é um imbecil, aquele mujique?
— Deixa-o em paz, Kólia, sigamos nosso caminho.
— Nunca, já comecei, agora. Ei, bom dia, mujique!
Um robusto mujique, que caminhava devagar, sem dúvida meio tocado, de rosto redondo e ingênuo, a barba grisalhante, ergueu a cabeça e olhou o rapazola.
— Ora bem! Bom dia, se não estás brincando — respondeu ele, sem se apressar.
— E se eu estiver brincando? — disse Kólia, rindo.
— Então brinca, se quiseres, Deus te perdoe. Pode-se sempre brincar, não tem importância.
— Perdão, amigo, estava brincando.
— Pois bem, que Deus te perdoe!
— E tu, me perdoas?
— De todo o coração. Segue teu caminho.
— Tens ar de um mujique inteligente.
— Mais inteligente do que você — respondeu ele com a mesma seriedade.
— Duvido — disse Kólia, um tanto desconcertado.
— Digo a verdade.
— Afinal, pode bem dar-se isso.
— Sei o que digo.
— Adeus, mujique.
— Adeus.
— Há mujiques de diferentes espécies — observou Kólia, depois de uma pausa. — Poderia eu saber que iria dar com um sujeito inteligente?
Soou meio-dia no relógio da igreja. Os rapazes apressaram o passo e não falaram quase mais durante o trajeto, ainda bastante longo, até a casa do capitão Snieguiriov. A vinte passos da casa, Kólia parou, disse a Smúrov que fosse na frente e chamasse Karamázov.
— É preciso tomar informações previamente — disse-lhe.
— De que serve fazê-lo vir? — objetou Smúrov. — Vai duma vez, ficarão encantados ao ver-te. Por que quer conhecê-lo na rua, com um frio desses?
— Sei por que o faço vir aqui no frio — replicou despoticamente Kólia (o que gostava ele muito de fazer com aqueles “pequenos”), e Smúrov correu a executar suas ordens.
IV
Besouro
Kólia, com ar importante, encostou-se à barreira, aguardando a chegada de Aliócha. Há muito tempo queria vê-lo. Tinha ouvido falar muito a seu respeito de parte de seus camaradas, mas, até o presente, testemunhava uma indiferença desdenhosa e criticava mesmo Aliócha, de acordo com o que lhe relatavam a seu respeito. Em seu foro íntimo desejava muito conhecê-lo; havia, em tudo quanto se contava de Aliócha, algo de simpático que atraía. De modo que o momento era grave; tratava-se de manter sua dignidade, de mostrar sua independência: “Senão ele me tomará por um garoto como outros. Que são para ele? Perguntar-lhe-ei, quando nos tivermos conhecido. É pena que seja eu de baixa estatura. Tuzinkov é mais moço do que eu e é uma meia cabeça mais alto. Não sou bonito, sei que meu rosto é feio, mas inteligente. Não é preciso tampouco que me expanda muito, lançando-me imediatamente em seus braços. Acreditaria ele... Ufa! Que vergonha, se acreditasse...”
Assim se agitava Kólia, que se esforçava por assumir um ar de desprendimento. Sobretudo a baixa estatura o atormentava mais ainda que a feiura. Em casa, desde o ano passado, anotara seu tamanho a lápis na parede e, de dois em dois meses, de coração a bater, media-se para ver se crescera. Ai! Crescia muito lentamente, o que lhe provocava por vezes desespero. Quanto ao rosto, não era absolutamente feio, mas, pelo contrário, bastante gentil, pálido, com sardas. Os olhos cinzentos e vivos olhavam ousadamente e brilhavam muitas vezes de emoção. Tinha as maçãs do rosto um pouco largas, lábios pequenos e mais para delgados, porém muito vermelhos; o nariz nitidamente arrebitado: “Completamente chato, completamente chato!”, murmurava, olhando-se no espelho Kólia, que se retirava sempre com indignação. “E o rosto não deve ser inteligente”, imaginava por vezes, duvidando mesmo disso. Aliás, não é preciso crer que a preocupação com o rosto e a estatura o absorvesse por completo. Pelo contrário, por mais vexatórias que fossem as estadas diante do espelho, esquecia-as em breve e por muito tempo, “consagrando-se inteiramente às ideias e à vida real”, como ele próprio definia sua atividade.
Aliócha apareceu dentro em pouco e avançou rapidamente ao encontro de Kólia; ainda a distância, notou que ele mostrava um ar radioso. “Estará realmente tão contente assim por ver-me?”, pensava Kólia com satisfação. Notemos, de passagem, que Aliócha mudara muito, desde que o deixamos; abandonara a batina e trazia agora uma sobrecasaca de bom corte, um chapéu de feltro cinzento, os cabelos curtos. Ganhara com a mudança. Parecia um belo rapaz. Seu rosto gentil irradiava sempre a alegria, mas uma alegria doce e tranquila. Kólia ficou surpreso por vê-lo sem sobretudo; saíra decerto à pressa. Estendeu a mão a Kólia.
— Ei-lo afinal, nós o esperávamos com impaciência.
— Minha demora tinha causas que o senhor saberá. Em todo caso, tenho prazer em conhecê-lo. Esperava essa ocasião, pois me falaram muito do senhor — murmurou Kólia, constrangido.
— De qualquer maneira ter-nos-íamos conhecido. Também eu ouvi falar muito a seu respeito, mas chega aqui demasiado tarde.
— Diga-me, como vão as coisas aqui?
— Iliúcha vai muito mal, morrerá certamente.
— Será possível? Convenha que a medicina é uma coisa infame, Karamázov — disse Kólia com ardor.
— Iliúcha lembrou-se de você muitas vezes, no delírio. Vê-se que ele gostava muito de você antes... até aquele incidente... com o canivete. Há outra causa... Esse cachorro lhe pertence?
— Sim, é Carrilhão.
— Não é Besouro? — Aliócha fitou tristemente os olhos de Kólia. — O outro desapareceu de verdade?
— Sei que todos estão querendo ver Besouro, contaram-me tudo — replicou Kólia, com um sorriso enigmático. — Escute, Karamázov, vou dizer-lhe tudo, foi aliás para explicar-lhe a situação que mandei chamá-lo antes de entrar — começou ele com animação. — Na primavera, Iliúcha entrou para a classe preparatória. Sabe-se o que são os alunos dessa classe: uns fedelhos, uma criançada. Puseram-se logo a implicar com ele. Estou duas classes adiante e, bem entendido, observo de longe. Vejo um rapazinho raquítico, que não se submete, bate-se mesmo contra eles; é orgulhoso, seus olhos brilham. Gosto de tais caracteres. Os outros redobram. O pior é que tinha ele então uma roupa ordinária, umas calças que subiam nas pernas, sapatos furados. Razão demais para humilhá-lo. Isso me desagradou, tomei logo a defesa dele e dei-lhes uma lição, porque bato neles e eles me adoram, sabe disso, Karamázov? — disse Kólia, com um orgulho expansivo. — Em geral, gosto dos meninos. Tenho agora, em casa, dois garotinhos a meu cargo, foram eles que me retiveram hoje. De modo que cessaram de bater em Iliúcha e tomei-o sob minha proteção. É um menino altivo, asseguro-lhe, mas acabou por me ser servilmente devotado, executou minhas menores ordens, obedeceu-me como a Deus, esforçando-se por imitar-me. Nos recreios, vinha procurar-me e íamos juntos, nos domingos também. No ginásio, zombam ao ver um grande ligar-se assim com um pequeno, mas é um preconceito. Tal é minha fantasia, e basta, não é? Instruo-o, desenvolvo-o, por que não posso desenvolvê-lo, diga, se me apraz? Porque o senhor Karamázov, se se ligou a todos esses meninos é sem dúvida porque quer influir sobre a jovem geração, desenvolvê-la, tornar-se útil, não é assim? E, confesso-o, essa feição de seu caráter, que conhecia por ouvir dizer, interessou-me ainda mais. Aliás, de fato, noto que se desenvolve naquele menino não sei que sensibilidade, sentimentalidade; ora, saiba que, desde minha infância, sou inimigo decidido das ternuras de novilha. Além do mais, ele se contradiz; altivo e servilmente devotado — servilmente devotado e, de repente, seus olhos cintilam, não quer ficar de acordo comigo, discute, zanga-se. Expunha eu, por vezes, certas ideias; não que ele se opusesse a essas ideias, mas via que ele se revoltava contra mim pessoalmente, porque respondia eu a suas ternuras com frieza. A fim de educá-lo, mostrava-me tanto mais frio quanto se tornava ele mais terno; fazia-o de propósito, tal era minha convicção. Propunha-me formar seu caráter, nivelá-lo, fazer dele um homem... afinal, o senhor me entende decerto. De repente, vejo-o vários dias seguidos perturbado, aflito, não por causa de ternuras, mas por alguma outra coisa, mais forte, superior. “Que tragédia será essa?”, pensava eu. Apertando-o com perguntas, soube da coisa: travara ele conhecimento com o lacaio do falecido pai do senhor (quando ainda vivo), Smierdiákov; ele ensinou-lhe uma brincadeira estúpida, isto é, cruel e covarde: pegar miolo de pão, nele enfiar um alfinete e atirá-lo a um mastim, um desses cães esfomeados que engolem dum trago, depois ficar vendo o que resultaria disso. Prepararam, pois, uma bolinha e atiraram-na a esse Besouro de pelos compridos de que se trata agora, um cão que ninguém alimentava e que ladrava ao vento o dia inteiro. (Gosta desse estúpido ladrido, Karamázov? Eu não posso suportá-lo.) O animal atirou-se à bolinha, engoliu-a, gemeu, depois pôs-se a girar e a correr, uivando, e desapareceu, como me contou Iliúcha. Confessava-o, chorando, agarrando-me, sacudido pelos soluços: “O cão corria e gemia”, era só o que repetia. Aquela cena havia-o abalado. Tinha remorsos. Levei a coisa a sério. Queria sobretudo ensiná-lo a viver, de acordo com sua conduta anterior, de modo que me utilizei de astúcia, confesso-o, e fingi uma indignação que não sentia talvez absolutamente. “Cometeste uma ação vil — disse-lhe —, és um miserável; não divulgarei a coisa, está entendido, mas, no momento, rompo minhas relações contigo. Vou refletir e far-te-ei saber por Smúrov (acompanhou-me hoje e é-me devotado) minha decisão definitiva.” Ele ficou consternado. Senti que havia ido um pouco longe, mas que fazer? Era minha ideia então. No dia seguinte, mandei dizer-lhe por Smúrov que não lhe falaria mais, é a expressão em uso, quando dois camaradas rompem as relações. Minha intenção secreta era tratá-lo com rigor alguns dias, depois, à vista de seu arrependimento, estender-lhe a mão. Estava firmemente decidido a isso. Mas, acredita-o?, depois de ter ouvido Smúrov, eis que seus olhos faíscam e ele exclama: “Dize a Krasótkin de minha parte que agora vou atirar a todos os cachorros bolinhas com alfinetes, a todos, a todos!” “Ah! — pensei —, ele está ficando voluntarioso, é preciso corrigi-lo”, e me pus a testemunhar por ele perfeito desprezo, a desviar-me ou a sorrir ironicamente a cada encontro. E eis que sobreveio aquele incidente com o pai dele, o senhor se lembra?, o “esfregão de tília”. Compreende o senhor que assim estava ele pronto a exasperar-se. Vendo que eu o abandonava, os meninos puseram-se a mexer com ele cada vez mais: “Esfregão de tília, esfregão de tília!” Foi então que começaram entre eles batalhas que eu lamento enormemente, porque creio que uma vez foi ele brutalmente surrado. Aconteceu-lhe atirar-se contra os outros ao sair da aula, mantinha-me eu a dez passos e observava-o. Não me lembro de ter rido então; pelo contrário, causava-me ele grande compaixão e estava eu a ponto de lançar-me em seu socorro. Deu ele com meu olhar, ignoro o que imaginou, mas agarrou um canivete, atirou-se sobre mim e fincou-me na coxa direita. Não fiz um movimento, sou corajoso quando preciso. Karamázov, limitei-me a fitá-lo com desprezo, como para dizer-lhe: “Não queres recomeçar, como lembrança de nossa amizade? Estou à tua disposição.” Mas não me golpeou de novo, não pôde fazê-lo, ficou com medo, atirou fora o canivete, fugiu chorando. Bem entendido, não o denunciei, ordenei a todos que se calassem, a fim de que a coisa não chegasse aos ouvidos dos professores; só falei com minha mãe depois que a ferida cicatrizou, um simples arranhão. Soube depois que, no mesmo dia, batera-se ele a pedradas e mordera o dedo do senhor. Compreende em que estado se encontrava ele? Quando caiu doente, cometi a falta de não ir perdoá-lo, isto é, de me reconciliar com ele. Lamento-o agora. Mas foi então que me veio uma ideia. Aí está toda a história... somente, creio que errei...
— Ah! Que pena — disse Aliócha, comovido — que não tenha eu conhecido as relações anteriores de você com Iliúcha; há muito tempo que teria ido rogar-lhe que me acompanhasse à casa dele. Sabe que em seu delírio febril fala de você? Ignorava quanto você lhe era querido! Será possível que você não tenha tentado reencontrar esse Besouro? O pai dela e seus camaradas procuraram-no por toda a cidade. Saiba que, doente e a chorar, repetiu três vezes diante de mim: “Foi porque matei Besouro que estou doente, papai. Foi Deus quem me puniu!” Não se pode tirar-lhe essa ideia da cabeça. E, se você tivesse trazido agora Besouro e provasse que ele está vivo, creio que a alegria o haveria de ressuscitar. Contamos todos com você.
— Diga-me, por que esperavam que fosse eu que deveria procurar Besouro? — perguntou Kólia com viva curiosidade. — Por que contavam comigo e não com outrem?
— Correu o boato de que você o procurava e o levaria. Smúrov falou a respeito. Esforçamo-nos todos em fazer crer a Iliúcha que Besouro está vivo, que o viram. Os meninos levaram-lhe um lebracho. Olhou-o com um fraco sorriso e pediu que lhe restituíssem a liberdade. Foi o que fizemos. Seu pai acaba de voltar com um molosso bem novinho. Pensava consolá-lo assim, mas creio que foi pior...
— Diga-me ainda, Karamázov, que espécie de homem é o pai dele? Conheço-o, mas que pensa dele o senhor: é um palhaço, um farsante?
— Oh, não! Há pessoas de alma sensível, mas que vivem como que esmagadas. Sua palhaçada é uma espécie de ironia malévola para com aqueles a quem não ousam a dizer a verdade na cara, em consequência da humilhação e da timidez que sentem há muito tempo. Creia, Krasótkin, que semelhante palhaçada é por vezes das mais trágicas. Agora, Iliúcha é tudo para ele, e se morrer o pai perderá a razão ou se matará. Estou quase certo disso, quando o olho!
— Compreendo-o, Karamázov, vejo que o senhor conhece o homem.
— Vendo-o com um cão, pensei que fosse Besouro.
— Espere, Karamázov, talvez tornemos a encontrar Besouro, mas este aqui é Carrilhão. Vou deixá-lo entrar e talvez cause mais prazer a Iliúcha que o molosso novinho. Espere, Karamázov, o senhor vai saber duma coisa. Ah, meu Deus, em que pensava eu!? — exclamou de repente Kólia. — O senhor está sem sobretudo num frio desses, e eu a retê-lo! Veja como sou egoísta! Somos todos egoístas, Karamázov!
— Não se inquiete, faz frio, mas não sou friorento. Vamos, pois. A propósito, qual é seu nome? Sei somente que se chama Kólia.
— Nikolai, Nikolai Ivânovitch Krasótkin, ou, como se diz administrativamente, Krasótkin filho. — Kólia sorriu, mas acrescentou:
— Naturalmente, detesto meu nome de Nikolai.
— Por quê?
— É tão vulgar.
— Tem 13 anos? — perguntou Aliócha.
— Catorze dentro de 15 dias. Devo confessar-lhe uma fraqueza, Karamázov, como entrada em matéria, para que o senhor veja de relance toda a minha natureza. Detesto que me perguntem a idade... enfim... caluniam-me dizendo que estive brincando de bandido com os alunos da preparatória, na semana passada. É verdade que brinquei, mas pretender que brinquei para me divertir eu mesmo, para meu próprio prazer, é uma verdadeira calúnia. Tenho razões para crer que o senhor está informado disso; ora, não brinquei por mim, mas por causa dos garotos. Porque nada sabiam imaginar sem mim. E, entre nós, contam-se sempre bobagens. É a cidade dos mexericos, posso afirmar-lhe.
— E ainda mesmo que tivesse você brincado por prazer próprio, que teria isso demais?
— Ah! Para me divertir... Mas o senhor brincaria de cavalinho?
— Você deve dizer a si mesmo isto — disse, sorrindo, Aliócha. — Os adultos, por exemplo, vão ao teatro, onde representam também as aventuras de diversos heróis, por vezes também cenas de banditismo e de guerra; ora, não é isso a mesma coisa, no seu gênero, bem entendido? E quando os jovens brincam de guerra, durante o recreio, ou de bandido, é também a arte nascente, uma necessidade artística que se desenvolve nas almas jovens, e, por vezes, esses brinquedos são mais perfeitos que as representações teatrais; a única diferença é que se vai ao teatro ver os atores, ao passo que a mocidade desempenha ela própria o papel de atores. Mas é tudo natural.
— Acredita-o? Está certo disso? — perguntou Kólia, fixando-o. — O senhor exprimiu uma ideia bastante curiosa; vou meditá-la, uma vez de volta para casa. Sabia bem que se pode aprender alguma coisa com o senhor. Vim instruir-me em sua companhia, Karamázov — disse Kólia, expansivamente.
— E eu na sua.
Aliócha sorriu, apertou-lhe a mão. Kólia estava encantado com Aliócha. O que o impressionava era encontrar-se num pé de igualdade perfeita com ele, que lhe falava como a um adulto.
— Vim mostrar-lhe um número, Karamázov, uma representação teatral também — disse ele com um riso nervoso. — Foi por isso que vim.
— Então, primeiro à esquerda, à casa do proprietário. Seus camaradas deixaram lá seus sobretudos, porque no quarto está-se muito apertado e faz calor.
— Oh! Não ficarei muito tempo, conservarei meu sobretudo. Carrilhão me esperará no vestíbulo. “Aqui, Carrilhão, deita-te e morre!” Está vendo! Ele está morto. Entrarei primeiro para ver o que se está passando, depois, quando chegar o momento, assobiarei para ele: “Aqui, Carrilhão!” O senhor vê-lo-á precipitar-se. Somente é preciso que Smúrov não se esqueça de abrir a porta nesse momento. Darei minhas instruções e o senhor verá um número...
V
À cabeceira de Iliúcha
No quarto ocupado pela família do capitão reformado Snieguiriov, que já conhecemos, estava-se apertado e abafava-se, em vista do número de visitantes. Se bem que os meninos que ali se encontravam estivessem prontos, como Smúrov, a negar que Aliócha os tivesse reconciliado com Iliúcha e levado à casa dele, era assim mesmo. Toda a sua habilidade consistira em levá-los um após outro, sem ternuras de novilha e como que por acaso. Isso levara grande alívio aos sofrimentos de Iliúcha. A amizade quase terna e o interesse que lhe testemunhavam seus antigos inimigos muito o comoveram. Só faltava Krasótkin, e sua ausência era de todas a mais penosa. Nas tristes recordações de Iliúcha, o episódio mais amargo fora o incidente com Krasótkin, seu único amigo e seu defensor, contra o qual se lançara naquela ocasião com um canivete. Era o que pensava o jovem Smúrov, rapaz inteligente (que fora o primeiro a reconciliar-se com Iliúcha). Mas Krasótkin, sondado vagamente por Smúrov a respeito da visita de Aliócha para um negócio, cortara rente, mandando responder a Karamázov que sabia o que tinha de fazer, que não pedia conselho a ninguém e que se fosse visitar o doente seria ideia sua, tendo já um plano. Isso se passara duas semanas antes daquele domingo. Eis por que Aliócha não fora ele próprio a seu encontro, como era intenção sua. Aliás, enquanto esperava, mandara Smúrov duas vezes à casa de Krasótkin. Mas, de cada vez, ele recusara secamente, mandando dizer a Aliócha que, se ele fosse procurá-lo, ele próprio não iria jamais à casa de Iliúcha, e rogava que o deixasse em paz. Até o derradeiro dia, o próprio Smúrov ignorava que Kólia tivesse decidido ir à casa de Iliúcha, e, na véspera à noite, somente, ao despedir-se dele, Kólia lhe dissera bruscamente que o esperasse em casa no dia seguinte de manhã, porque o acompanharia à casa dos Snieguiriovi, mas que evitasse falar a quem quer que fosse dessa visita, porque queria chegar de surpresa. Smúrov obedeceu. Gabava-se de que Krasótkin levaria Besouro desaparecido, de acordo com certas expressões feitas por ele incidentemente de que “eram todos uns asnos pelo fato de não poderem encontrar aquele cachorro, se ainda estivesse vivo”. Quando Smúrov lhe dera parte timidamente de suas conjeturas a respeito do cachorro, Krasótkin ficara rubro de raiva: “Serei bastante estúpido para procurar cachorros forasteiros pela cidade, quando tenho Carrilhão? Pode-se esperar que tal animal tenha ficado vivo depois de ter engolido um alfinete? São ternuras de novilha, eis tudo!”
Entretanto, Iliúcha, fazia duas semanas, quase não deixara seu pequeno leito, a um canto, perto das santas imagens. Não ia mais à escola desde o dia em que mordera o dedo de Aliócha. Sua doença datava de então; portanto, durante ainda um mês, pôde ele por vezes levantar-se, para andar pelo quarto e pelo vestíbulo. Por fim, suas forças abandonaram-no completamente e não podia mover-se sem a ajuda do pai. Este temia por Iliúcha, deixou mesmo de beber; o temor de perder o filho tornava-o quase louco e, muitas vezes, sobretudo depois de tê-lo sustentado através do quarto e tornado a deitar, fugia para o vestíbulo. Ali, num canto escuro, com a testa contra a parede, abafava convulsivamente os soluços, para que o doentinho não os ouvisse. De volta ao quarto, punha-se comumente a divertir e consolar o querido filho, contava-lhe histórias, anedotas cômicas, ou imitava pessoas engraçadas que tinha encontrado, imitava mesmo os gritos dos animais. Mas as caretas e as palhaçadas do pai desagradavam bastante a Iliúcha. Muito embora se esforçasse por dissimular seu mal-estar, sentia, de coração cerrado, que o pai era humilhado em público e a lembrança do “esfregão de tília” e daquele horrível dia perseguia-o sem cessar. A irmã doente de Iliúcha, a doce Nínotchka, não gostava tampouco das caretas do pai (Varvara Nikolaievna partira fazia tempo para fazer cursos em Petersburgo); em compensação, a mamãe, fraca de espírito, divertia-se bastante, ria de todo o coração, quando seu esposo representava alguma coisa ou fazia gestos cômicos. Era sua única consolação, pois no resto do tempo queixava-se, chorando, de que todos a esqueciam, de que não a tratavam com atenção, etc. Mas, nos derradeiros dias, também ela pareceu mudar. Olhava muitas vezes Iliúcha em seu canto e punha-se a pensar. Tornou-se mais silenciosa, acalmou-se, chorava por vezes, mas mansamente, para que não a ouvissem. O capitão notava aquela mudança com dolorosa perplexidade. As visitas dos meninos desagradavam-lhe a princípio, só faziam irritá-la, mas, pouco a pouco, os gritos alegres dos garotos e as histórias que contavam divertiram-na também e acabaram por agradar-lhe a ponto de ficar terrivelmente aborrecida quando não estavam eles presentes. Batia palmas, ria, vendo-os brincar, chamava alguns dentre eles para beijá-los. Gostava particularmente do jovem Smúrov. Quanto ao capitão, as visitas dos meninos que vinham distrair Iliúcha enchiam-no de alegria e mesmo de esperança de que o pequeno cessaria agora de atormentar-se, restabelecer-se-ia talvez mais depressa. Malgrado sua inquietude, ficou persuadido até os derradeiros dias de que o filho ia recuperar a saúde. Acolhia os jovens visitantes com respeito, pondo-se a serviço deles, pronto a carregá-los às costas, e começou mesmo a fazê-lo, mas essas brincadeiras desagradaram a Iliúcha e foram abandonadas. Comprava para ele gulodices, bolinhos, nozes, oferecia-lhes chá com torradas. É preciso notar que não lhe faltava dinheiro. Aceitara os duzentos rublos de Katierina Ivânovna, exatamente como Aliócha o previra. Em seguida, a moça, informada mais exatamente da situação deles e da doença de Iliúcha, fora visitá-los, travara conhecimento com toda a família e encontrara mesmo a pobre demente. Desde então sua generosidade não se retardara, e o capitão, tremendo à ideia de perder o filho, esquecera a antiga altivez e recebia humildemente a caridade. Durante todo esse tempo, o doutor Herzenstube, mandado por Katierina Ivânovna, visitara regularmente o doente de dois em dois dias, mas isso não servia de grande coisa, muito embora o enchesse de remédios. Naquele mesmo domingo, esperava o capitão novo médico chegado de Moscou, onde passava por ser uma celebridade. Katierina Ivânovna mandara chamá-lo, com grandes despesas, com um fim do qual se tratará mais tarde, e, na mesma ocasião, pediu-lhe para que visitasse Iliúcha, do que fora prevenido o capitão. Não imaginava ele absolutamente que Kólia Krasótkin iria chegar, se bem que desejasse há muito tempo a visita desse rapaz, a respeito do qual Iliúcha tanto se atormentava. Quando ele entrou, todos se aglomeravam em torno do leito do doente e examinavam um molosso pequenino, nascido na véspera, que o capitão encomendara havia uma semana para distrair e consolar Iliúcha, sempre pesaroso com o desaparecimento de Besouro, que devia ter morrido. Iliúcha sabia, havia três dias, que lhe fariam presente dum cãozinho, um verdadeiro molosso (o que era bastante importante) e, embora por delicadeza se mostrasse encantado, seu pai e seus camaradas viam bem: aquele novo cão só fazia despertar em seu coração as lembranças do desgraçado Besouro, que ele fizera sofrer. O animalzinho mexia-se ao lado dele; com um fraco sorriso, acariciava-o com sua mão diáfana; via-se que o cão lhe agradava, mas... não era Besouro! Se tivesse os dois juntos, nada teria faltado a sua felicidade!
— Krasótkin! — gritou um dos meninos, que fora o primeiro a ver Kólia entrar. Houve certa emoção, os meninos se afastaram dos dois lados do leito, descobrindo assim Iliúcha. O capitão precipitou-se ao encontro de Kólia.
— Seja bem-vindo, caro visitante! Iliúcha, o senhor Krasótkin veio ver-te...
Tendo-lhe estendido a mão, Krasótkin mostrou logo sua boa educação. Voltou-se, primeiro, para a esposa do capitão, sentada na poltrona (estava ela justamente bastante descontente e resmungava porque os meninos lhe ocultavam o leito de Iliúcha e impediam-na de olhar o cão), e fez-lhe uma reverência cortês, depois, dirigindo-se a Nínotchka, cumprimentou-a da mesma maneira. Essa conduta impressionou favoravelmente a doente.
— Reconhece-se logo um jovem bem-educado — disse ela, abrindo os braços. — Não é como aqueles ali; entram um por cima do outro.
— Como assim, mamãe, um por cima do outro? Que quer a senhora dizer? — balbuciou o capitão um tanto inquieto.
— Entram assim mesmo. No vestíbulo, um monta a cavalo nos ombros do outro e assim se apresentam em casa de uma família decente. Com que é que isso se parece?
— Mas quem então, mamãe, quem entrou assim?
— Ali está um que carregava o outro e ainda aqueles dois ali...
Mas Kólia já estava à cabeceira de Iliúcha. O doente empalidecera. Ergueu-se, encarando fixamente Kólia. Ele, que havia dois meses não via o amiguinho, parou consternado; não esperava encontrar um rosto tão amarelo e emagrecido, olhos ardentes de febre e como que desmesuradamente aumentados, mãos tão descarnadas. Com dolorosa surpresa, via que Iliúcha respirava penosa e precipitadamente, os lábios ressequidos. Aproximou-se, estendeu-lhe a mão e disse, embaraçado:
— Como é, meu velho... como vai isso?
Mas sua voz estrangulou-se, seu rosto contraiu-se, teve um ligeiro tremor perto dos lábios, Iliúcha sorria-lhe tristemente, ainda incapaz de pronunciar uma palavra. Kólia passou-lhe de repente a mão pelos cabelos.
— Não vai mal! — respondeu ele, maquinalmente. Calaram-se um instante.
— Então, tens um novo cão? — perguntou Kólia, num tom indiferente.
— Si...im — disse Iliúcha, que ofegava.
— Ele tem o focinho preto, vai ser mau – disse Kólia, num tom grave, como se não houvesse nada de mais importante. Sobretudo esforçava-se por dominar a emoção, para não chorar como um petiz, mas não o conseguia. — Quando ele crescer, será preciso pô-lo na corrente, tenho certeza.
— Ficará enorme! — exclamou um dos meninos.
— É coisa sabida, um molosso é enorme, do tamanho dum bezerro.
— Do tamanho dum bezerro, dum verdadeiro bezerro — interveio o capitão. — Procurei de propósito um assim, o mais feroz, seus pais também são enormes e ferozes... Sente-se, no leito de Iliúcha, ou então em cima do banco. Seja bem-vindo, caro visitante, esperado há tanto tempo. Veio com Alieksiêi Fiódorovitch?
Krasótkin sentou-se no leito, aos pés de Iliúcha. Tinha talvez preparado no caminho uma forma de puxar assunto, mas agora perdia o fio do mesmo.
— Não... Estou com Carrilhão... Tenho um cão assim, agora, Carrilhão. Está esperando lá embaixo... eu assobio e ele vem correndo. Tenho também um cão. — Voltou-se para Iliúcha. — Lembras-te, meu velho, de Besouro? — perguntou à queima-roupa.
O rostinho de Iliúcha contraiu-se. Olhou Kólia cheio de dor. Aliócha, que se conservava perto da porta, franziu o cenho, fez sinal às ocultas a Kólia para não falar de Besouro, mas Kólia não o notou ou não quis notá-lo.
— Onde está então... Besouro? — perguntou Iliúcha com uma voz partida.
— Ah, irmão, teu Besouro desapareceu!
Iliúcha calou-se, mas olhou de novo Kólia fixamente. Aliócha, que havia encontrado o olhar de Kólia, fez-lhe novo sinal, mas de novo desviou ele a vista, fingindo não ter compreendido.
— Fugiu sem deixar rasto. Podia-se esperar isso mesmo, depois daquela bolinha — disse o impiedoso Kólia, que, entretanto, parecia ele próprio ofegante. — Em troca, tenho Carrilhão... Trouxe-o para ti...
— É inútil! — exclamou Iliúcha.
— Não, não, pelo contrário, é preciso que o vejas... Isso te distrairá. Trouxe-o de propósito... um animal de pelos compridos, como o outro... A senhora permite que chame meu cachorro? — perguntou ele à senhora Snieguiriova, com uma agitação incompreensível.
— Não é preciso, não é preciso! — gritou Iliúcha, com uma voz dilacerante. A censura brilhava em seus olhos.
— O senhor deveria ter... — o capitão levantou-se precipitadamente de cima da arca onde estava sentado, perto da parede. — O senhor deveria ter... esperado...
Mas Kólia, inflexível, gritou para Smúrov: “Smúrov, abre a porta!” Assim que ela foi aberta, lançou ele um assobio. Carrilhão precipitou-se para dentro do quarto.
— Salta, Carrilhão, banca o elegante, banca o elegante! — vociferou Kólia. — O cão, erguendo-se nas patas traseiras, manteve-se diante do leito de Iliúcha. Algo de inesperado se passou. Iliúcha estremeceu, inclinou-se com esforço para Carrilhão e examinou-o, desfalecendo.
— É... Besouro! — exclamou ele, com uma voz partida pelo sofrimento e pela felicidade.
— Quem pensavas que era? — gritou com todas as forças Krasótkin, radiante. Passou os braços em redor do cão e levantou-o.
— Olha, meu velho, vê, um olho cego, a orelha esquerda cortada, os próprios sinais que me tinhas indicado. Procurei-o de acordo com eles. Não demorou muito. Não pertencia, com efeito, a ninguém! A ninguém! Refugiara-se em casa dos Fiedótovi, no quintal, mas não lhe davam comida, é um cão vadio, que fugiu duma aldeia... Vês, meu velho, não deve ter engolido a tua bolinha! Senão estaria morto, decerto! Portanto, pôde cuspi-la de novo, uma vez que está vivo. Tu não o havias notado. No entanto, picou a língua, por isso gemia. Corria gemendo, acreditaste que ele havia engolido a bolinha. Deve ter-lhe doído muito, porque os cães têm a pele bastante sensível na boca... bem mais sensível que o homem!
Kólia falava muito alto, com ar acalorado e radiante. Iliúcha nada podia dizer. Olhava para Kólia com seus grandes olhos escancarados e tornara-se branco como linho. Se Kólia, que de nada desconfiava, tivesse sabido o mal que podia causar ao doentinho uma tal surpresa, jamais se teria decidido a preparar tal golpe teatral. Mas, no quarto, era talvez Aliócha o único a compreender. Quanto ao capitão, dir-se-ia um menino.
— Besouro! Então é Besouro? — gritava ele cheio de felicidade. — Iliúcha, é Besouro, o teu Besouro! Mamãe, é Besouro! — Chorava quase.
— E eu que não adivinhei! — disse tristemente Smúrov. — Bem dizia que Krasótkin encontraria Besouro. Manteve sua palavra.
— Manteve a palavra! — disse uma voz alegre.
— Bravo, Krasótkin! — disse um terceiro.
— Bravo, Krasótkin! — exclamaram todos os meninos que se puseram a aplaudir.
— Esperem, esperem! — Krasótkin esforçava-se por dominar o tumulto. — Vou contar-lhes como foi. Procurei-o e levei-o para casa e mantive-o oculto a todos os olhares até o derradeiro dia. Somente Smúrov o soube, há duas semanas, mas assegurei-lhe que era Carrilhão, e ele não desconfiou de nada. No intervalo, treinei Besouro. Vocês vão ver as habilidades que ele sabe! Treinei-o, meu velho, para trazer-te já treinado. Não têm aí um pedaço de cozido? Ele fará um número de matar de rir. Têm mesmo?
O capitão correu à casa dos proprietários, onde se preparava a refeição da família. Kólia, para não perder um tempo precioso, gritou logo a Carrilhão: “Faze-te de morto!” Carrilhão pôs-se a girar, deitou-se de costas, imobilizou-se, com as quatro patas no ar. Os rapazes riam, Iliúcha olhava com o mesmo sorriso doloroso, mas a mais contente era a “mamãe”. Desatou a rir à vista do cão e se pôs a estalar os dedos, chamando:
— Carrilhão! Carrilhão!
— Por coisa alguma do mundo ele se levantará — disse Kólia, com ar triunfante e com justo orgulho —, ainda mesmo que todos o chamassem, mas à minha voz por-se-á de pé. Aqui, Carrilhão!
O cão se levantou, pôs-se a saltitar com latidos de alegria. O capitão chegou com um pedaço de cozido.
— Não está quente? — informou-se logo Kólia, com ar entendido. — Não, está bem, porque os cães não gostam das coisas quentes. Olhem todos, Iliúcha, olha então, meu velho, em que pensas? Trouxe-o para ele, e ele não olha!
A nova habilidade consistia em pôr um belo pedaço de carne sobre o focinho estendido do cão imóvel. O infeliz animal devia mantê-lo tanto tempo quanto aprouvesse ao dono, fosse mesmo uma meia hora. A prova de Carrilhão só durou um curto minuto.
— Engole! — gritou Kólia. E, num piscar de olhos, o pedaço passou do focinho de Carrilhão para a goela. O público, é claro, exprimiu viva admiração.
— Será possível que tenha você tardado tanto, unicamente para amestrar o cachorro!? — exclamou Aliócha, num tom involuntário de censura.
— Isso mesmo! — exclamou Kólia, com ingenuidade. — Queria mostrá-lo em todo o seu brilho.
— Carrilhão! Carrilhão! — E Iliúcha estalou os dedos magros, para atrair o cão.
— Para que isso? Manda-o logo subir à tua cama. Aqui, Carrilhão!
Kólia bateu sobre a cama e Carrilhão atirou-se como uma flecha para Iliúcha, que lhe pegou a cabeça com as duas mãos, em troca do que Carrilhão lambeu-lhe logo a face. Iliúcha estreitou-o contra si, estendeu-se no leito e ocultou o rosto no pelo espesso do animal.
— Meu Deus, meu Deus! — exclamou o capitão. Kólia sentou-se de novo no leito de Iliúcha.
— Iliúcha, posso mostrar-te ainda uma outra coisa. Trouxe-te um canhãozinho. Lembras-te? Falei-te então e tu disseste: “Ah! como gostaria de vê-lo!” Pois bem, trouxe-o.
E Kólia tirou à pressa de sua sacola o canhãozinho de bronze. Apressava-se porque se sentia ele próprio muito feliz. Em outra ocasião, teria esperado que o efeito produzido por Carrilhão tivesse passado, mas agora apressava-se, desprezando qualquer comedimento: “Você já está feliz, pois bem, tome mais felicidade!” Ele próprio estava encantado.
— Há muito tempo que eu namorava isso em casa do funcionário Morózov, para ti, meu velho, para ti. Ele não se servia disso, vinha-lhe do irmão. Troquei-o por um livro da biblioteca de papai: O parente de Maomé ou A tolice salutar. É uma obra libertina de cem anos atrás, quando não existia ainda censura em Moscou. Morózov é amante dessas coisas. Chegou mesmo a agradecer-me... — Kólia segurava o canhão, de modo que todos pudessem vê-lo e admirá-lo. Iliúcha soergueu-se e, continuando a apertar Carrilhão com a mão direita, contemplava deliciado o brinquedo. O efeito atingiu o cúmulo, quando Kólia declarou que tinha também pólvora e que se podia atirar, “se isso todavia não incomodar as senhoras!”. Mamãe pediu para ver o brinquedo de mais perto, o que foi logo feito. O canhãozinho de bronze, munido de rodas, agradou-lhe de tal modo que ela se pôs a fazê-lo rodar sobre os joelhos. Ao lhe pedirem permissão para atirar, consentiu imediatamente, sem compreender, aliás, do que se tratava. Kólia mostrou a pólvora e o chumbo. O capitão, na qualidade de antigo militar, preparou a carga, derramou um pouco de pólvora, rogando que se reservasse o chumbo para outra vez. Puseram o canhão no soalho, com a boca voltada para um espaço livre, introduziram-se no ouvido alguns grãos de pólvora e acenderam-na com um fósforo. O tiro partiu muito bem. A mamãe estremeceu, mas se pôs logo a rir. Os meninos olhavam, num silêncio solene, o capitão sobretudo exultava, contemplando Iliúcha. Kólia pegou o canhão e fez dele presente imediatamente a Iliúcha, com a pólvora e o chumbo.
— É para ti, para ti! Preparei-o faz tempo — repetiu ele, no cúmulo da felicidade.
— Ah! Dê-me, dê o canhãozinho antes a mim — pediu de repente a mamãe, como uma criança. Estava com ar inquieto, recebendo uma recusa. Kólia ficou perturbado. O capitão agitou-se.
— Mátuchka, mátuchka!... o canhão é teu, mas Iliúcha guardá-lo-á porque foi dado a ele; é a mesma coisa. Iliúcha deixará sempre que brinques com ele, será dos dois...
— Não, não quero que ele seja de nós dois, mas só meu e não de Iliúcha — continuou a mamãe, prestes a chorar.
— Mamãe, tome-o, ei-lo aqui, tome-o! — gritou Iliúcha. — Krasótkin, posso dá-lo à mamãe? — Voltou-se com ar suplicante para Krasótkin, como se temesse ofendê-lo, dando seu presente a outrem.
— Mas decerto! — consentiu logo Krasótkin, que tomou o canhão das mãos de Iliúcha e entregou-o ele próprio à mamãe, inclinando-se com uma reverência cortês. Ela chorou de enternecimento.
— Esse querido Iliúcha! Gosta bem de sua mamãe! — exclamou ela, comovida e se pôs de novo a fazer o canhão rodar sobre os joelhos.
— Mámienhka, vou beijar-te a mão — disse seu marido, passando logo das palavras aos atos.
— O jovem mais gentil é esse bom rapaz — disse a dama, reconhecida, designando Krasótkin.
— Quanto à pólvora, Iliúcha, trar-te-ei tanta quanta queiras. Nós mesmos a fabricamos agora. Boróvikov aprendeu a composição: 24 partes de salitre, dez de enxofre, seis de carvão de bétula; pila-se tudo junto, junta-se água para fazer uma pasta, coa-se através duma pele de asno e obtém-se pólvora.
— Smúrov já me falou da pólvora de vocês, mas papai diz que não é a verdadeira pólvora — observou Iliúcha.
— Como não a verdadeira? — Kólia corou. — Ela incendeia. Aliás, não sei...
— Não é nada — disse o capitão contrafeito. — Disse mesmo que a pólvora verdadeira tem outra composição, mas pode-se também fabricá-la dessa forma.
— O senhor sabe melhor do que eu. Pusemos fogo à nossa pólvora num pote de pomada, de pedra. Queimou bem, só ficou um pouco de fuligem. E era apenas a pasta, ao passo que se é coada através de uma pele... Aliás, o senhor conhece isso melhor do que eu... O pai de Búlkin deu-lhe uma surra por causa de nossa pólvora, sabes disso? — perguntou Kólia a Iliúcha.
— Ouvi dizê-lo — respondeu Iliúcha. Não se cansava de escutar Kólia.
— Tínhamos preparado uma garrafa de pólvora. Ele a guardava debaixo da cama. Seu pai viu-a. Ela pode explodir, disse ele, e deu-lhe ali mesmo uma surra. Queria queixar-se de mim no ginásio. Agora, proibição de andarem comigo foi feita a ele, a Smúrov, a todos. Minha reputação está feita: dizem que sou maluco. — Kólia mostrou um sorriso de desprezo. — Começou isso desde o caso da estrada de ferro.
— Sua proeza chegou a nosso conhecimento! — exclamou o capitão. — Será verdade que o senhor não sentiu medo nenhum, quando o trem lhe passava por cima? Era aterrorizador?
O capitão esforçava-se por lisonjear Kólia.
— Não, particularmente! — disse ele, num tom displicente. — Foi sobretudo aquele pato que forjou minha reputação — e voltou-se de novo para Iliúcha. Mas se bem que afetasse, ao falar, um jeito desprendido, não estava senhor de si e não acertava o tom.
— Ah, também ouvi falar do pato! — disse Iliúcha, rindo. — Contaram-me, mas não compreendi. É mesmo verdade que compareceste ao tribunal?
— Uma travessura, uma bagatela, da qual fizeram uma montanha, como é de costume entre nós — começou Kólia, com desenvoltura. — Caminhava eu pela praça, quando trouxeram patos para ali. Parei para olhá-los. Um tal Vichniakov, que é agora moço de recados na casa dos Plótnikovi, olha para mim e diz: “Por que olhas tanto para os patos?” Examino-o: o rosto redondo e estúpido, uns vinte anos; eu, fiquem sabendo, nunca desdenho o povo. Gosto de frequentá-lo. Ficamos para trás em relação ao povo — é um axioma. O senhor ri, creio, Karamázov?
— Não, Deus me livre, sou todo ouvidos — respondeu Aliócha, com ar mais ingênuo.
O desconfiado Kólia retomou logo coragem.
— Minha teoria, Karamázov, é clara e simples: creio no povo e sinto-me sempre feliz em fazer-lhe justiça, mas sem mimá-lo, é sine qua... Mas falava de um pato... Respondo àquele bobo: — “É que estava perguntando a mim mesmo em que pensa o pato.” Ele me fita, com um ar totalmente estúpido: — “Em que pensa ele?” — “Estás vendo aquela tieliega carregada de aveia? A aveia escapa-se do saco, e o pato estende o pescoço até debaixo da roda para bicá-la, estás vendo?” — “Estou vendo, sim.” — “Pois bem, digo eu, se se fizer avançar um pouquinho aquela tieliega, a roda cortará o pescoço do pato, sim ou não?” — “Decerto que cortará”, e ele abre-se num largo sorriso. — “Pois bem, meu rapaz, digo eu, vamos a isso.” — “Vamos a isso”, repete ele. Logo foi feito; colocou-se junto da brida disfarçadamente e eu ao lado para dirigir o pato. O mujique naquele momento olhava para outro lado, conversando com alguém e não tive de intervir; o próprio pato estendeu o pescoço para bicar, por baixo da tieliega, no caminho da roda. Fiz sinal ao rapaz, ele puxou a brida e, zás!, lá se foi o pescoço do pato! Por desgraça, os mujiques nos viram naquele momento e berraram: — “Tu fizeste de propósito!” — “Não foi, não!” — “Foi, sim!”, e gritaram: — “Ao juiz de paz!”, e levaram-me também: — “Tu também estavas lá. Estavas combinado com ele, todo o mercado te conhece!” Com efeito, sou conhecido de todo o mercado, acrescentou Kólia com orgulho. — Fomos todos à casa do juiz de paz, não tendo sido esquecido o pato. E eis o meu rapaz, apavorado, que se põe a chorar, chorava como uma mulher. O condutor gritava: — “Dessa maneira, pode-se matar quantos patos se quiser!” As testemunhas seguiam, naturalmente. O juiz de paz logo sentenciou: um rublo de indenização ao cocheiro, mas podia ficar com o pato. Não deveria permitir-se fazer semelhantes brincadeiras no futuro. O rapaz não cessava de gemer: — “Não fui eu, foi ele que me ensinou!” Respondi com grande sangue-frio que não lhe ensinara, mas somente exprimira a ideia principal, não se tratava senão de um projeto. O juiz Niefiedov sorriu, mas arrependeu-se logo de haver sorrido: “Vou enviar uma comunicação a seu diretor”, disse-me ele, “para que doravante não amadureça você mais tais projetos, em lugar de estudar e de aprender suas lições.” Não fez nada disso, mas o caso espalhou-se e chegou, com efeito, às orelhas da diretoria: sabe-se como são elas compridas! O professor Kolbásnikov ficou mais que qualquer outro exaltado, mas Dardaniélov tomou de novo minha defesa. E Kolbásnikov está agora zangado com nós todos, como um burro velho. Ouviste dizer, Iliúcha, que ele se casou, recebendo mil rublos de dote dos Mikháilovi? A noiva é um verdadeiro espantalho. Os alunos da terceira classe logo compuseram um epigrama. É engraçado, vou trazê-lo para ti depois. Nada tenho a dizer de Dardaniélov: é um homem de sólidos conhecimentos. Respeito as pessoas como ele e não é porque ele me defendeu...
— No entanto, tu lhe passaste a perna a respeito da fundação de Troia! — observou Smúrov, todo orgulhoso de Krasótkin. A história do pato agradara-lhe bastante.
— Mas deu-se mesmo isso? — interveio servilmente o capitão. — Trata-se da fundação de Troia? — Ouvimos falar disso. Iliúcha tinha-me contado...
— Ele sabe tudo, papai, é o mais instruído de nós todos! — disse Iliúcha. — Finge que não, mas é o primeiro em todas as matérias...
Iliúcha contemplava Kólia com uma felicidade infinita.
— É uma bagatela, considero eu mesmo essa questão como fútil — replicou Kólia com um orgulho modesto. Conseguira desinibir-se, se bem que estivesse um tanto perturbado; sentia que havia contado a história do pato com demasiado ardor, ao passo que Aliócha calara-se durante todo o relato e ficara sério; seu amor-próprio inquieto perguntava a si mesmo, pouco a pouco: “Será que se cala porque me despreza, crendo que procuro seus elogios? Se ele se permite acreditar isto, eu...” — Essa questão é para mim das mais fúteis — cortou ele, orgulhosamente.
— Eu sei quem fundou Troia — disse de repente um menino que não havia dito grande coisa até então, de ar tímido e silencioso, rosto delicado, de 11 anos, chamado Kartachov. Mantinha-se perto da porta. Kólia olhou-o com surpresa. Com efeito, a fundação de Troia tornara-se em todas as classes um segredo que só se podia desvendar lendo Smarágdov, e somente Kólia o possuía. Um dia, o jovem Kartachov aproveitou dum momento de distração de Kólia e abriu furtivamente um volume de Smarágdov, que se encontrava entre os livros dele e deu diretamente na passagem em que se tratava dos fundadores de Troia. Havia já muito tempo que isso se dera, mas acanhava-se ele de revelar publicamente que também conhecia o segredo, temendo ser perturbado por outra pergunta de Kólia. Agora, não pudera impedir-se de falar, como o desejava desde muito tempo.
— Pois bem, quem foi? — E Kólia voltou-se arrogantemente para o lado dele, vendo por seu ar que Kartachov sabia-o deveras e estava pronto para todas as consequências. Sentiu um frio.
— Troia foi fundada por Teucro, Dárdano, Ilo e Trós — recitou o menino, corando como uma peônia, a ponto de causar dó ver. Seus colegas fixaram-no por um minuto, depois seus olhares voltaram-se para Kólia. Ele continuava a mirar de alto a baixo o audacioso, com um sangue-frio desdenhoso.
— Pois bem! Como se arranjaram eles? — dignou-se por fim proferir. — E que significa em geral fundar uma cidade ou um Estado? Será que eles foram colocar os tijolos, hem?
Riram. O temerário de rosado tornou-se purpúreo. Calou-se, prestes a chorar. Kólia manteve-o assim um minuto.
— Para interpretar acontecimentos históricos, tais como a fundação duma nacionalidade, é preciso, em primeiro lugar, compreender o que isso significa — disse num tom doutoral. — Aliás, não atribuo importância a todos esses contos de comadres; em geral, não tenho grande apreço pela história universal — acrescentou, displicentemente.
— Pela história universal? — perguntou o capitão, assustado.
— Sim. É o estudo das tolices da humanidade e nada mais. Só gosto das matemáticas e das ciências naturais — disse Kólia, num tom pretensioso, olhando a furtivamente para Aliócha; só receava a opinião dele. Mas Aliócha permanecia grave e silencioso. Se tivesse falado então, as coisas ficariam como estavam; mas calava-se e seu silêncio podia ser desdenhoso, o que irritou completamente Kólia.
— Outra vez, vêm-nos com as línguas clássicas. Loucura e nada mais... O senhor parece não concordar comigo, Karamázov?
— Não — disse Aliócha, retendo um sorriso.
— As línguas clássicas, se quer minha opinião, são uma medida policial, eis sua única razão de ser — e pouco a pouco Kólia recomeçou a ofegar. — Instituíram-nas porque são enfadonhas e embrutecem. Como fazer para agravar o aborrecimento e a tolice que reinavam? Imaginou-se o estudo das línguas clássicas. Eis minha opinião e espero jamais mudá-la. — Corou... ligeiramente.
— É verdade — aprovou em tom convencido Smúrov, que escutara com atenção.
— Ele é o primeiro em latim — notou um dos meninos.
— Sim, papai, ele fala assim, mas é o primeiro da classe em latim — confirmou Iliúcha.
— Pois bem! E o que tem isso? — Kólia achou necessário defender-se, se bem que o elogio lhe fosse bastante agradável. — Aborreço-me com o latim porque é preciso, porque prometi à mamãe acabar meus estudos e, em minha opinião, quando se empreende uma coisa, deve-se fazê-la como é preciso, mas em meu foro íntimo desprezo profundamente o classicismo e toda essa baixeza... Não está de acordo, Karamázov?
— Por que uma baixeza? — sorriu de novo Aliócha.
— Com licença, todos os clássicos foram traduzidos, portanto não é para estudá-los que se tem necessidade do latim, mas unicamente por medidas policiais e a fim de embotar as faculdades. Não será isso uma baixeza?
— Mas quem lhe ensinou tudo isso!? — exclamou Aliócha, afinal surpreso.
— Em primeiro lugar, eu mesmo posso compreendê-lo, sem que me ensinem; em seguida, saiba que o que acabo de explicar-lhe, a respeito das traduções clássicas, o próprio professor Kolbásnikov disse-o em presença de toda a terceira classe.
— Eis o doutor! — disse Nínotchka, que se havia mantido calada todo o tempo.
Com efeito, diante do portão parara um carro, pertencente à senhora Khokhlakova. O capitão, que esperara o médico a manhã inteira, precipitou-se a seu encontro. A mamãe preparou-se, tomando um ar digno. Aliócha aproximou-se do leito, arranjou o travesseiro do doentinho. De sua cadeira, Nínotchka o observava com inquietação. Os meninos despediram-se rapidamente, alguns prometendo voltar à tardinha. Kólia chamou Carrilhão, que saltou para baixo do leito.
— Eu fico, eu fico! — disse ele precipitadamente a Aliócha. — Esperarei no vestíbulo e voltarei com Carrilhão, assim que o doutor se retirar.
Mas o médico já vinha entrando, um personagem importante, de peliça, com grandes suíças e queixo rapado. Transposta a soleira, parou de repente, como que desconcertado. Acreditava ter-se enganado: — Onde estou?, murmurou, sem tirar a peliça e conservando boné de pele. Toda aquela gente, a pobreza do quarto, a roupa branca pendurada numa corda perturbavam-no. O capitão inclinou-se profundamente.
— É mesmo aqui — murmurou, obsequioso —, é a mim que o senhor procura...
— Snie-gui-riov? — pronunciou gravemente o doutor. — O senhor Snieguiriov é o senhor?
— Sou eu!
— Ah!
O doutor lançou novo olhar de asco pelo quarto e tirou sua peliça. Uma condecoração importante brilhava em seu peito. O capitão tomou conta da peliça, o doutor retirou seu gorro.
— Onde está o paciente? — perguntou ele num tom imperioso.
VI
Desenvolvimento precoce
— Que pensa que dirá o doutor? — disse rapidamente Kólia. — Que fisionomia repelente, não é? Não posso tolerar a medicina!
— Aliúcha morrerá. Creio que é infalível — respondeu Aliócha, muito triste.
— Os médicos são charlatães! Sinto-me contente por tê-lo conhecido, Karamázov. Há muito tempo que tinha vontade de conhecê-lo. Somente é pena que nos encontremos em tão tristes circunstâncias...
Kólia teria bem querido dizer algo de mais caloroso, de mais expansivo, mas sentia-se constrangido. Aliócha notou isso, sorriu, estendeu-lhe a mão.
— Aprendi, há muito tempo, a respeitar no senhor uma criatura rara — murmurou de novo Kólia, atrapalhando-se. — Disseram-me que o senhor era místico, que viveu num mosteiro... Mas isso não me deteve. O contato da realidade curá-lo-á... É o que acontece às naturezas como a sua.
— Quem chama você místico? De que me curarei? — perguntou Aliócha, um tanto surpreso.
— Ora essa! Deus e o resto.
— Como, será que você não acredita em Deus?
— Pelo contrário, nada tenho contra Deus. Decerto, Deus não é senão uma hipótese... mas... reconheço que Ele é necessário à ordem... à ordem do mundo, e assim por diante... e, se Ele não existisse, seria preciso inventá-Lo — acrescentou Kólia, ficando corado. Imaginou de súbito que Aliócha pensasse que ele queria exibir seu saber e portar-se como adulto. “Ora, não quero absolutamente exibir meu saber diante dele”, pensou Kólia com indignação. E ficou de repente muito contrariado.
— Confesso que todas essas discussões me repugnam — interrompeu-se. — Pode-se amar a humanidade sem crer em Deus, que pensa o senhor? Voltaire não acreditava em Deus, mas amava a humanidade. (“Ainda, ainda!” — pensou ele consigo.)
— Voltaire acreditava em Deus, mas fracamente, parece, e amava a humanidade da mesma maneira — respondeu Aliócha, num tom bem natural, como se conversasse com alguém da mesma idade ou mais velho do que ele. Kólia ficou impressionado com essa falta de segurança de Aliócha em sua opinião sobre Voltaire e com o fato de parecer deixar que ele, um rapazinho, resolvesse a questão.
— Será que você leu Voltaire? — concluiu Aliócha.
— Não, precisamente... Aliás, li Candide numa tradução russa... uma velha tradução, malfeita, ridícula... (“Ainda, ainda!”)
— E compreendeu?
— Oh, sim, tudo... isto é... por que pensa o senhor que não compreendi? É certo que tem umas passagens salgadas... Sou capaz, certamente, de compreender que é um romance filosófico e escrito para demonstrar uma ideia... — Kólia, decididamente, se atrapalhava. — Sou socialista, Karamázov, socialista incorrigível — declarou ele, de súbito, inconsideradamente.
— Socialista? — Aliócha pôs-se a rir. — Mas quando teve tempo? Não tem senão 13 anos, creio?
Kólia sentiu vexame.
— Em primeiro lugar, não tenho 13 anos, mas 14 dentro de 15 dias — disse ele, impetuosamente. — Em seguida, não compreendo absolutamente o que tem de ver aqui a minha idade. Trata-se de minhas convicções e não de minha idade, não é verdade?
— Quando for mais idoso, verá que influência tem a idade sobre as ideias. Pareceu-me também que isso não partia de você — respondeu Aliócha, sem se comover; mas Kólia, nervoso, interrompeu-o.
— Com licença, o senhor quer a obediência e o misticismo. Convenha que o cristianismo, por exemplo, só serviu aos ricos e aos grandes para manter a classe inferior na escravidão, não é verdade?
— Ah! Sei onde você leu isso. Trataram de doutriná-lo! — exclamou Aliócha.
— Permita, por que teria eu lido necessariamente isso? E ninguém me doutrinou. Posso eu mesmo... E, se o senhor quer, não sou contra Cristo. Era uma personalidade completamente humana, e, se tivesse vivido em nossa época, ter-se-ia juntado aos revolucionários, talvez tivesse desempenhado um papel de destaque... É mesmo fora de dúvida.
— Mas onde pescou você tudo isso? Com que imbecil andou às voltas!? — exclamou Aliócha.
— Não se pode dissimular a verdade. Tenho muitas vezes ocasião de conversar com o senhor Rakítin, mas... pretende-se que o velho Bielínski[ 122 ] também disse isso.
— Bielínski? Não me lembro. Não o escreveu em parte alguma.
— Se não escreveu, disse-o, assegura-se. Ouvi alguém dizer... aliás, diabos...
— Você leu Bielínski?
— Veja o senhor... não... não o li, na verdade, mas... li o trecho a respeito de Tatiana, porque não parte ela com Oniéguin.[ 123 ]
— Por que não parte ela com Oniéguin? Será que você... compreende já isso?
— Com licença, creio que o senhor me toma pelo jovem Smúrov! — Kólia sorriu, irritado. — Aliás, não vá crer que sou um grande revolucionário. Estou muitas vezes em desacordo com o senhor Rakítin. Não sou partidário da emancipação das mulheres. Reconheço que a mulher é uma criatura inferior e deve obedecer. Les femmes tricotent, disse Napoleão — Kólia sorriu —, e, pelo menos nisso, estou de pleno acordo com a opinião desse falso grande homem. Acho igualmente que é uma covardia expatriar-se para a América, pior que isso, uma tolice. Por que ir para a América, quando se pode trabalhar entre nós para o bem da humanidade? Sobretudo agora, há todo um campo de atividade fecunda. Foi o que respondi.
— Como, respondeu? A quem? Será que já lhe propuseram ir para a América?
— Impeliram-me a isso, confesso-o, mas recusei. Isso, bem entendido, aqui entre nós, Karamázov, nem uma palavra a ninguém, entendeu? Só ao senhor é que conto. Não tenho vontade nenhuma de cair entre as patas da Terceira Seção e aprender lições na ponte das Correntes.[ 124 ]
Perto da ponte das Correntes.
Do edifício te recordarás
“Lembra-se? É magnífico! Por que ri? Acha que lhe contei pilhérias? (‘E se ele souber que só possuo aquele único número de O sino[ 125 ] e que nada li além disso?’, pensou Kólia, estremecendo.)
— Oh! Não, não estou rindo e não penso absolutamente que você mentiu para mim. Eis por que não o penso: porque é, ai!, a pura verdade! Diga-me, leu o Oniéguin, de Púchkin? Você falava de Tatiana...
— Não, ainda não, mas quero lê-lo. Não tenho preconceitos, Karamázov. Quero ouvir ambas as partes. Por que essa pergunta?
— Por coisa nenhuma.
— Diga, Karamázov, o senhor me despreza? — cortou Kólia, que se ergueu diante de Aliócha, como para se pôr em posição. — Por favor, fale francamente.
— Eu o desprezo? — Aliócha olhou-o com espanto. — Por quê, afinal? Deploro somente que uma natureza encantadora como a sua, na aurora da vida, já esteja pervertida por tais absurdos.
— Não se inquiete por minha natureza — interrompeu Kólia, não sem fatuidade —, mas quanto a suspeitoso, eu o sou. Tola e grosseiramente suspeitoso. O senhor sorriu ainda há pouco, e pareceu-me...
— Ah! Sorri por uma razão bem diversa. Fique sabendo: li recentemente a opinião de um estrangeiro, um alemão que vivia na Rússia, a respeito da juventude estudantil de hoje: “Se mostrardes a um estudante russo — escreveu ele — uma carta do firmamento, a respeito da qual não tinha ele até então nenhuma ideia, ele vo-la devolverá no dia seguinte com correções.” Conhecimentos nulos e uma presunção sem limites, eis o que queria dizer o alemão a respeito do estudante russo.
— Ah, é totalmente verdadeiro! — disse Kólia, numa explosão de riso. — É a própria verdade! Bravo, alemão! No entanto, aquele cabeça quadrada não encarou também o lado bom, que pensa o senhor? A presunção, seja, isso vem da juventude, isso se corrige, se verdadeiramente deve ser corrigido; em compensação, há o espírito de independência desde os mais jovens anos, a audácia das ideias e das convicções, em lugar de seu servilismo rastejante diante da autoridade. No entanto, o alemão disse a verdade! Viva o alemão! Entretanto, é preciso sufocar os alemães. Muito embora sejam fortes nas ciências, é preciso sufocá-los...
— Por que isso? — sorriu Aliócha.
— Ora essa! É pilhéria minha, possivelmente, convenho. Sou por vezes um capeta e, quando alguma coisa me agrada, não me contenho e sou capaz de proferir absurdos. A propósito, estamos aqui prosando e aquele doutor não acaba. Aliás, pode dar-se que esteja examinando a mamãe e a Nínotchka, a doente. Sabe duma coisa? Essa Nínotchka me agradou. Quando eu ia saindo, sussurrou-me ela: “Por que não veio antes?”, num tom de censura. Creio que ela é muito boa e digna de lástima.
— Sim, sim, você voltará e verá que criatura é ela. Precisa conhecer tais criaturas para saber apreciar muitas outras coisas que aprenderá precisamente em companhia delas — observou Aliócha com ardor. — É o melhor meio para você se transformar.
— Oh, quanto lamento e me censuro por não ter vindo antes! — disse Kólia com amargura.
— Sim, é muito de lamentar. Viu a alegria do pobrezinho? E como se consumia ele à sua espera!
— Não me fale disso! Aviva meu pesar. Aliás, bem o mereci. Se não vim, foi por amor-próprio egoísta e por vil despotismo, do qual jamais pude desembaraçar-me, malgrado todos os meus esforços. Vejo-o agora, por muitas coisas sou um miserável, Karamázov!
— Não, você tem uma natureza encantadora, se bem que falsificada, e compreendo por que podia exercer tamanha influência sobre aquele menino nobre duma sensibilidade doentia! — respondeu calorosamente Aliócha.
— E é o senhor quem me diz isso!? — exclamou Kólia. — Imagine que pensei várias vezes, estando aqui, que o senhor me desprezava. Se soubesse como faço questão de sua opinião!
— Mas pode ser mesmo verdade que seja você tão desconfiado? Nessa idade! Pois bem, imagine que, ainda há pouco, ao olhá-lo, quando você falava, pensava justamente que você deveria ser muito desconfiado.
— Já o pensou? Que perspicácia tem o senhor, vejam só! Aposto que foi quando falava eu do pato. Imaginei então que o senhor me desprezava profundamente, porque eu me esforçava por bancar o malicioso. Detestei-o de repente por essa razão e comecei a perorar. Em seguida, pareceu-me (já aqui), quando eu disse: “Se Deus não existisse, era preciso inventá-lo”, que me apressara por demais em exibir minha instrução, tanto mais quanto lera essa frase em alguma parte. Mas juro-lhe que não era por vaidade, mas à toa, ignoro por quê, em minha alegria, verdadeiramente creio que foi em minha alegria... muito embora seja vergonhoso aborrecer as pessoas pelo fato de se estar alegre. Sei disso. Em compensação, estou persuadido agora de que o senhor não me despreza e que sonhei tudo isso. Oh! Karamázov, sou profundamente infeliz. Imagino, por vezes, Deus sabe por quê, que toda gente zomba de mim e estou pronto então a subverter a ordem estabelecida.
— E atormenta os de seu convívio — sorriu Aliócha.
— É verdade, sobretudo minha mãe. Karamázov, diga, mostro-me agora muito ridículo?
— Não pense nisso, não pense absolutamente! — exclamou Aliócha. — E que é o ridículo? Sabe-se quantas vezes um homem é ou parece ridículo? Além do mais, atualmente, quase todas as pessoas que têm capacidade temem extremamente o ridículo, o que as torna infelizes. Admiro-me somente de que experimente você isso a tal ponto, se bem que o observe desde muito tempo e não unicamente em sua casa. Atualmente, adolescentes estão atingidos por esse mal. É quase uma loucura. O diabo encarnou-se no amor-próprio, para apoderar-se da geração atual, sim, o diabo — insistiu Aliócha sem sorrir, como pensava Kólia, que o fixava. — Você é como todos — concluiu ele —, isto é, como muitos, somente não se deve ser como todos.
— Ainda mesmo que todos sejam assim?
— Sim, ainda mesmo que todos sejam assim. Apenas você não será como eles. Na realidade, você não é como todos; não corou em confessar um defeito e até mesmo um ridículo. Ora, atualmente, quem é capaz disso? Ninguém, não se sente mesmo mais a necessidade de condenar-se a si mesmo. Não seja como todos, ainda que ficasse sozinho.
— Muito bem! Não me enganei a seu respeito. O senhor é capaz de consolar. Oh, quanto me sentia atraído para o senhor, Karamázov! Desde muito tempo aspirava por este encontro. Dar-se-ia que também pensasse assim a meu respeito? Ainda há pouco o disse.
— Sim, ouvi falar de você e pensava também em você... e, se em parte é o amor-próprio que o fez agora perguntar isso, isso nada quer dizer.
— Sabe, Karamázov, que nossa explicação se assemelha a uma declaração de amor? — declarou Kólia com uma voz fraca e como que envergonhada. — Não é ridículo?
— Absolutamente, e, mesmo se fosse ridículo, não quereria dizer nada, porque está bem — afirmou Aliócha, com um claro sorriso.
— Convenha, Karamázov, que o senhor mesmo, agora, sente um pouco de vergonha também... Vejo-o em seus olhos — e Kólia sorriu com um ar astuto, mas quase feliz.
— Que há de vergonhoso?
— Por que corou?
— Mas foi você que me fez corar! — disse, rindo, Aliócha, que ficara, com efeito, todo vermelho. — Pois bem, sim, sinto um pouco de vergonha, Deus sabe por quê, ignoro-o... — murmurou ele, quase constrangido.
— Oh, como gosto do senhor e como o aprecio neste momento, justamente, porque o senhor também sente vergonha comigo! Porque é como eu! — exclamou Kólia, entusiasmado. Tinha as faces vermelhas, seus olhos brilhavam.
— Escute, Kólia, você será muito infeliz na vida — disse de repente Aliócha.
— Sei, sei. Como o senhor adivinha tudo! — confirmou logo Kólia.
— Mas, no conjunto, abençoará, no entanto, a vida.
— É isto! Viva! O senhor é um profeta! Nós nos entenderemos, Karamázov. Sabe? O que mais me encanta é que o senhor me tratava completamente como a um igual. Ora, nós não somos iguais, o senhor é superior! Mas nos entenderemos. Dizia a mim mesmo há um mês: “Ou seremos imediatamente amigos para sempre, ou nos separaremos como inimigos até a morte!”
— E, ao falar assim, você já gostava de mim, decerto! — E Aliócha soltou uma risada alegre.
— Eu gostava enormemente do senhor, gostava do senhor e pensava no senhor! E como pode o senhor tudo adivinhar? Ora, eis o doutor. Meu Deus, diz alguma coisa, olhe que cara ele tem!
VII
Iliúcha
O doutor saía da isbá metido em sua peliça e com o gorro na cabeça. Tinha o ar quase irritado e cheio de asco, como se receasse sujar-se. Percorreu com os olhos o vestíbulo, lançando um olhar severo a Aliócha e a Kólia. Aliócha fez sinal ao cocheiro, e o carro que havia trazido o doutor avançou para a porta. O capitão saiu precipitadamente atrás dele e, inclinado, desculpando-se quase, deteve-o para uma derradeira palavra. O rosto do pobre homem estava abatido e seu olhar, apavorado.
— Excelência, excelência... será possível? — começou ele, sem terminar, limitando-se a juntar as mãos em seu desespero, se bem que seu olhar implorasse ainda o médico, como se verdadeiramente uma palavra dele pudesse mudar a sorte do pobre menino.
— Que fazer? Não sou Deus — respondeu o doutor num tom displicente, se bem que grave por hábito.
— Doutor... Vossa Excelência... e será em breve, em breve?
— Pre-pa-rem-se para tudo — respondeu o doutor, martelando as palavras e, baixando os olhos, dispunha-se a transpor a soleira para subir no carro.
— Excelência, em nome de Cristo! — O capitão, apavorado, deteve-o uma segunda vez. — Excelência... será que na verdade não há nada, nada que possa salvá-lo, agora?
— Isso não de-pen-de de mim, agora — declarou o médico, impaciente —, e, no entanto, hum! — parou de repente —, sim, por exemplo, o senhor poderia... enviar... seu paciente... imediatamente e sem tardar (o doutor pronunciou essas derradeiras palavras quase com cólera, a ponto de fazer o capitão estremecer) a Si-ra-cu-sa, então... em consequência das novas condições cli-ma-té-ri-cas fa-vo-rá-veis... poderia, talvez, pro-du-zir-se...
— A Siracusa!? — exclamou o capitão, como se não compreendesse ainda.
— Siracusa fica na Sicília — explicou Kólia, em voz alta.
O doutor olhou para ele.
— Na Sicília?! Excelência — disse o capitão transtornado —, o senhor viu! — Juntou as mãos, mostrando o interior de sua casa. — E a mamãe, a família?
— N-ão, sua família não iria à Sicília, mas ao Cáucaso, desde a primavera... e depois que sua esposa tivesse tomado as águas no Cáucaso, em vista de seus reumatismos... seria preciso enviá-la imediatamente a Paris, à clínica do a-li-e-nis-ta Le-pel-le-ti-er. Poderia dar-lhe uma apresentação; e então... poderia talvez produzir-se...
— Doutor, doutor! O senhor está vendo! — E o capitão estendeu de novo os braços, mostrando, em seu desespero, as traves nuas que formavam a parede do vestíbulo.
— Mas isso não é de minha alçada — sorriu o médico. — Disse-lhe simplesmente o que poderia responder a ciência à sua pergunta a respeito dos derradeiros meios, o resto... a meu pesar...
— Não tenha medo, curandeiro, meu cachorro não o morderá — disse bem alto Kólia, notando que o doutor olhava com alguma inquietação para Carrilhão, que se mantinha na soleira. Um tom colérico ressoava em sua voz. Como o declarou mais tarde, foi de propósito e para insultar o doutor que o chamara de curandeiro.
— Que é? — disse o doutor, fitando Kólia com surpresa. — Quem é? — e dirigiu-se a Aliócha, como para lhe pedir contas.
— É o dono de Carrilhão, curandeiro, não se inquiete a respeito de minha pessoa.
— Carrilhão? — repetiu o doutor, que não tinha compreendido.
— Adeus, curandeiro, tornaremos a ver-nos em Siracusa.
— Quem é, quem é ele? — perguntou o doutor, exasperado.
— É um colegial, doutor, um brincalhão, não lhe dê atenção — declarou, rapidamente, Aliócha, franzindo o cenho. — Kólia, cale-se! Não dê atenção — repetiu ele, com alguma impaciência.
— É preciso dar-lhe uma surra, dar-lhe uma surra — disse o doutor furioso, batendo com os pés.
— Sabe, curandeiro, que Carrilhão poderia muito bem morder? — proferiu Kólia, com voz trêmula e muito pálido, de olhos chamejantes. — Aqui, Carrilhão!
— Kólia, se você disser ainda uma palavra, romperei com você para sempre! — gritou impetuosamente Aliócha.
— Curandeiro, só há uma criatura no mundo que possa dar ordens a Nikolai Krasótkin, ei-la (designou Aliócha). Submeto-me, adeus.
Abriu a porta e entrou no quarto. Carrilhão lançou-se atrás dele. O doutor ficou cinco segundos como que petrificado, olhou Aliócha e cuspiu, gritando: “É, é, não sei o quê!” O capitão precipitou-se para ajudá-lo. Aliócha entrou por sua vez. Kólia já estava à cabeceira de Iliúcha. O doente segurava-lhe a mão e chamava seu pai. O capitão voltou logo.
— Papai, papai, venha cá... nós... — murmurou Iliúcha superexcitado, mas, não tendo força para continuar, estendeu para a frente seus braços emagrecidos, passou-os em torno de Kólia e de seu pai, que reuniu no mesmo abraço, apertando-se contra eles. O capitão foi sacudido por soluços silenciosos, e Kólia estava a ponto de chorar.
— Papai, papai! Quanto dó o senhor me causa, papai! — gemeu Iliúcha.
— Iliúcha, meu querido... o doutor disse... que tu ficarás curado... seremos felizes.
— Ah, papai! Sei bem o que o novo doutor lhe disse a meu respeito... Vi! — exclamou Iliúcha.
Apertou-os de novo com todas as forças contra si, ocultando o rosto no ombro do pai.
— Papai! Não chore... quando eu morrer, tome um bom menino, outro... escolha o melhor dentre eles, chame-o de Iliúcha e ame-o em lugar de mim...
— Cala-te, meu velho, ficarás bom! — gritou Krasótkin, como que zangado.
— Quanto a mim, papai, não se esqueça nunca de mim — continuou Iliúcha. — Venha a meu túmulo... o senhor sabe, papai, enterre-me junto de nossa grande pedra, lá aonde íamos passear, e vá lá com Krasótkin, de tardinha. E Carrilhão... E eu os esperarei... Papai, papai!
Sua voz estrangulou-se; os três mantiveram-se enlaçados, sem falar. Nínotchka chorava mansamente em sua cadeira, e, de repente, vendo todos a chorar, a mamãe desatou em lágrimas.
— Iliúcha! Iliúcha! — exclamava ela. Krasótkin desvencilhou-se dos braços de Iliúcha.
— Adeus, meu velho, minha mãe me espera para almoçar — disse ele rapidamente. — Que pena não a haver eu prevenido! Ficará muito inquieta. Mas, depois do almoço, voltarei para teu lado, até a noite, e terei muita coisa para contar-te. E trarei Carrilhão; agora vou levá-lo, porque ele se poria a uivar na minha ausência e te incomodaria. Até logo!
Correu para o vestíbulo. Não queria chorar, mas não pôde impedir-se disso. Foi nesse estado que o encontrou Aliócha.
— Kólia, deve manter absolutamente sua palavra e voltar, senão experimentará ele violento pesar — disse, com insistência.
— Absolutamente! Oh, quanto me censuro por não ter vindo mais cedo! — murmurou Kólia, chorando francamente.
Naquele momento, o capitão surgiu e tornou a fechar logo a porta atrás de si. Tinha o ar desvairado, os lábios tremiam. Parou diante dos dois jovens e ergueu os braços para o ar.
— Não quero um bom menino! Não quero outro! — murmurou ele, selvagem, rangendo os dentes, “se me esquecer de ti, Jerusalém, fique pegada minha língua...”.
Não terminou, como se lhe faltasse a voz, e deixou-se cair diante de um banco de madeira. Com a cabeça apertada entre os punhos, pôs-se a soluçar, gemendo, mas baixinho, para que seus gemidos não fossem ouvidos na isbá. Kólia precipitou-se para a rua.
— Adeus, Karamázov! Virá também? — perguntou com um ar brusco, zangado, a Aliócha.
— Esta tarde, sem falta.
— Que disse ele a respeito de Jerusalém?... Que era aquilo?
— Tirado da Bíblia: “Se me esquecer de ti, Jerusalém”,[ 126 ] isto é, se eu esquecer o que tenho de mais precioso, se o trocar por outro amor, então que seja fulminado...
— Compreendo, basta! Venha também! Aqui, Carrilhão! — gritou ele, com raiva, ao cachorro, e afastou-se a grandes passadas.
Livro XI
Ivan Fiódorovitch
I
Em casa de Grúchenhka
Aliócha dirigia-se à praça da igreja, à casa Morózova, onde residia Grúchenhka. Naquela mesma manhã, havia-lhe ela enviado Fiénia, rogando-lhe insistentemente que fosse à sua casa. Indagando dela, soube Aliócha que a patroa se achava desde a véspera numa grande agitação. Durante os dois meses que se haviam seguido à prisão de seu irmão, fora ele muitas vezes à casa Morózova, espontaneamente ou da parte de Mítia. Três dias após, caíra Grúchenhka gravemente doente; mantivera-se de cama quase cinco semanas, ficando oito dias inconsciente. Mudara muito e emagrecera, com a tez amarelecida, embora pudesse sair havia já umas duas semanas. Mas, aos olhos de Aliócha, o rosto dela tornara-se mais sedutor e gostava ele, ao se aproximar dela, de encontrar-lhe o olhar. Seus olhos tinham tomado algo de resoluto e de reflexivo; uma decisão calma, mas inflexível, manifestava-se nela. Entre os supercílios cavara-se uma pequena ruga vertical que dava a seu gracioso rosto uma expressão concentrada, quase severa ao primeiro contato. Nenhum traço da frivolidade de outrora. Admirava-se Aliócha de que Grúchenhka tivesse conservado a alegria de outrora, malgrado a desgraça que a ferira — noiva de um homem detido quase logo depois por um crime horrível —, apesar da doença e da ameaça de uma condenação quase certa. Em seus olhos outrora altivos uma espécie de doçura brilhava agora, mas mostravam por vezes um clarão de maldade, quando a retomava uma antiga inquietação que, longe de se acalmar, aumentava em seu coração. Era o respeito de Katierina Ivânovna, de quem falava mesmo em seu delírio, durante sua doença. Aliócha compreendia que ela estava com ciúme por causa de Mítia, muito embora Katierina não o tivesse visitado uma vez sequer na prisão, como teria podido fazê-lo. Tudo isso embaraçava Aliócha, porque era somente nele que Grúchenhka confiava, pedindo sem cessar seus conselhos; por vezes não sabia o que dizer-lhe.
Chegou à casa dela, preocupado. Voltara ela da prisão havia meia hora e, apenas pela vivacidade com que se levantou à entrada dele, concluiu que o esperava com impaciência. Em cima da mesa, havia um baralho; sobre o divã de couro arranjado como cama estava semi-estendido Maksímov, doente e enfraquecido, mas sorridente. Aquele velho, sem pouso, que voltara dois meses antes de Mókroie com Grúchenhka, não a deixara mais desde então. Após o trajeto sob a chuva e na lama, todo encharcado e apavorado, sentara-se no divã, olhando-a em silêncio com um sorriso que implorava. Grúchenhka, esmagada de pesar e já presa da febre, esqueceu-o quase a princípio, absorvida por outros cuidados; de repente, olhou-o fixamente, ele mostrou um sorriso lastimoso, embaraçado. Ela chamou Fiénia e ordenou que lhe desse de comer. Durante o dia inteiro ficou ele quase imóvel em seu lugar. Quando escureceu e fecharam os postigos, Fiénia perguntou à patroa:
— Então, senhora, este senhor vai ficar para dormir?
— Sim, prepara-lhe um leito no divã — respondeu Grúchenhka. Interrogando-o, soube que não sabia ele para onde ir e que “o senhor Kolgánov, meu benfeitor, declarou-me francamente que não me receberia mais e me deu cinco rublos”. — “Pois bem, tanto pior, fica”, decidiu Grúchenhka em seu pesar, sorrindo-lhe com compaixão. O velho ficou comovido com aquele sorriso, seus lábios tremeram de emoção. Foi assim que ficou em casa dela na qualidade de parasita errante. Mesmo durante a doença de Grúchenhka, não deixou a casa. Fiénia e a velha cozinheira, sua avó, não o expulsaram, mas continuaram a dar-lhe de comer e a fazer-lhe a cama em cima do divã. Posteriormente, Grúchenhka se habituou mesmo com ele e, voltando duma visita a Mítia (a quem visitava ainda convalescente), punha-se a conversar futilidades com Maksímuchka, para esquecer seu pesar. Verificou-se que o velho possuía certo talento de contador, de sorte que se lhe tornou mesmo necessário. Fora Aliócha, que não demorava, aliás, muito tempo, Grúchenhka não recebia quase ninguém. Quanto ao velho comerciante Samsónov, estava então gravemente doente, “ia-se”, como diziam na cidade; morreu, com efeito, uma semana depois do julgamento de Mítia. Três semanas antes de sua morte, sentindo chegar o fim, chamou à sua presença os filhos com suas famílias e ordenou-lhes que não mais o deixassem. A partir daquele momento, deu ordens expressas aos criados para não deixarem entrar Grúchenhka, e, se ela se apresentasse, dizer-lhe que “ele lhe desejava que vivesse muito tempo feliz e que o esquecesse completamente”. Grúchenhka mandava, no entanto, quase todos os dias saber notícias dele.
— Eis-te, afinal! — exclamou ela, largando as cartas e acolhendo alegremente Aliócha. — Maksímuchka me amedrontava dizendo que não virias mais. Ah, quanta necessidade tenho de ti! Senta-te. Queres café?
— Com prazer — disse Aliócha, sentando-se. — Estou com muita fome.
— Fiénia, Fiénia, café! Está pronto há muito tempo... Traze também uns bolinhos quentes! Sabes, Aliócha, tive uma complicação hoje a respeito desses bolinhos. Levei-os à prisão e, acredita, ele os recusou. Chegou mesmo a pisar um. “Vou deixá-los com o guarda — disse-lhe eu. — Se não os queres é que tua maldade te alimenta!” E fui saindo. Brigamos ainda uma vez. É todas as vezes a mesma coisa.
Grúchenhka falava com agitação. Maksímov sorriu timidamente e baixou os olhos.
— A propósito de quê, hoje? — perguntou Aliócha.
— Não esperava isso absolutamente. Imagina que está com ciúme de meu “antigo”. — “Por que lhe dás dinheiro? — diz-me ele. — Puseste-te, então, a sustentá-lo?” Está com ciúme, da manhã à noite. Certa vez sentiu ciúme até mesmo de Kuzmá, na última semana.
— Mas ele conhecia “o antigo”?
— Como não? Sabia de tudo desde o começo, hoje me injuriou. Tenho vergonha de repetir suas palavras. O imbecil! Rakitka chegou, quando eu saía. É talvez ele quem o excita, hem? Que pensas? — acrescentou ela, com ar distraído.
— Ele te ama muito e agora está nervoso.
— Como não estar nervoso? Julgam-no amanhã. Tinha ido justamente para reconfortá-lo, porque tenho medo, Aliócha, de imaginar o que acontecerá amanhã! Tu dizes que ele está nervoso? E eu então? E ele fala do polonês! Que imbecil! Mas creio que ele não está com ciúme de Maksímuchka.
— Minha mulher também era bastante ciumenta — observou Maksímov.
— De ti!... — disse Grúchenhka, rindo, malgrado seu. — Quem poderia mesmo fazê-la ficar ciumenta?
— As criadas de quarto.
— Cala-te, Maksímuchka, não estou de humor para risadas, a cólera mesmo me domina. Não olhes os bolinhos, não terás deles, far-te-iam mal. E preciso cuidar também desse; dir-se-ia que minha casa é um asilo. — Sorriu.
— Não mereço seus benefícios, sou insignificante — disse Maksímov, num tom queixoso. — Prodigalize antes sua bondade com os que são mais úteis do que eu.
— Ora, Maksímuchka, cada qual é útil; como saber qual o mais, qual o menos? Se ao menos aquele polonês não existisse! Aliócha, ele também imaginou cair doente, hoje. Fui vê-lo igualmente. Vou enviar-lhe de propósito os bolinhos. Não o fiz, mas já que Mítia me acusa, disso, enviá-los-ei agora de propósito! Ah! Eis Fiénia com uma carta. É isso, são os poloneses pedindo ainda dinheiro!
Pan Mussialóvitch enviava-lhe, com efeito, uma carta bastante longa e empolada, como era seu hábito, em que lhe rogava que lhe emprestasse três rublos. Era acompanhada por um recibo com a promessa de pagar em três meses; a assinatura de pan Vrubliévski figurava também. Grúchenhka já havia recebido de seu “antigo” muitas cartas semelhantes com reconhecimentos de dívidas. Isso datava de sua convalescença, duas semanas antes. Sabia que os dois pánowie tinham, contudo, vindo saber notícias dela durante sua doença. A primeira carta, escrita numa folha de grande formato, lacrada com um sinete de família, era longa, bastante obscura e empolada, de modo que Grúchenhka só leu a metade e pô-la de parte sem ter nada compreendido dela. Zombava bem de cartas naquela ocasião. Essa primeira carta foi seguida de uma segunda, e que pan Mussialóvitch pedia-lhe que lhe emprestasse dois mil rublos a curto prazo. Grúchenhka deixou-a igualmente sem resposta. Veio, em seguida, uma série de missivas, igualmente pretensiosas, em que a soma pedida diminuía gradualmente, caindo para cem rublos, para 25, para dez e, por fim, Grúchenhka recebeu uma carta em que os pánowie mendigavam um rublo somente, com um recibo assinado pelos dois. Tornada de súbita piedade, foi ela mesma, ao crepúsculo, à casa do pan. Encontrou os dois poloneses numa miséria negra, famintos, sem fumo, sem cigarros, devendo à locadora. Os duzentos rublos ganhos de Mítia tinham desaparecido depressa. Grúchenhka ficou surpresa, contudo, por ser acolhida pretensiosamente pelos pánowie, com uma etiqueta majestosa e falas enfáticas. Só fez rir daquilo, deu dez rublos a seu “antigo”, contou rindo a coisa a Mítia, que não demonstrou nenhum ciúme. Mas os pánowie agarravam-se a Grúchenhka, bombardeavam-na todos os dias com pedidos de dinheiro, e todas as vezes enviava ela alguma coisa. Eis que hoje Mítia se mostrara ferozmente ciumento.
— Como uma tola, passei em casa dele, quando fui ver Mítia, porque ele também estava doente, o meu antigo pan — continuou Grúchenhka com volubilidade. — Conto isso a Mítia, rindo: “Imagina — digo-lhe — que meu polonês pôs-se a cantar-me as canções de outrora, acompanhando-se numa guitarra. Pensa enternecer-me...” Então Mítia começou a injuriar-me... De modo que vou enviar bolinhos aos pánowie. Fiénia dá três rublos à menina que eles mandaram e uma dúzia de bolinhos enrolados num papel. Tu, Aliócha, contarás isso a Mítia.
— Nunca! — disse Aliócha, sorrindo.
— Ora! Pensas que ele se atormenta? É de propósito que se faz de ciumento. No fundo, isso pouco lhe importa — declarou Grúchenhka, com amargura.
— Como, de propósito?
— Como és ingênuo, Aliócha! Não compreendes nada, malgrado toda a tua inteligência. O que me ofende não é o ciúme dele, o contrário é que me teria ofendido. Sou assim. Admito o ciúme, sendo eu mesma ciumenta. Mas o que me ofende é que ele não me ama absolutamente e tem ciúme agora de mim de propósito. Serei uma cega? Põe-se a falar-me de Kátia, de como mandou ela vir de Moscou um médico afamado e o advogado número um de Petersburgo, para defendê-lo. Ama-a, pois que lhe faz o elogio em minha presença. É culpado para comigo, mas arma brigas contra mim e é o primeiro a acusar-me e a lançar as culpas sobre mim: “Conheceste o polonês antes de mim; é-me portanto permitido ter agora relações com Kátia.” Eis como estão as coisas. Quer lançar sobre mim toda a culpa. É de propósito que provoca essas brigas comigo, digo-te, somente eu...
Grúchenhka não terminou, cobriu os olhos com um lenço e desatou em lágrimas.
— Ele não ama Katierina Ivânovna — disse, com firmeza, Aliócha.
— Saberei dentro em pouco se ele a ama ou não — disse ela, com uma voz ameaçadora. Seu rosto alterou-se. Aliócha teve pena ao vê-la tomar de súbito um ar sombrio e irritado.
— Basta de tolices! Não foi para isso que te mandei chamar. Meu caro Aliócha, que se passará amanhã? Eis o que me tortura. Sou a única. Vejo que os outros não pensam nisso, ninguém se interessa. Tu, pelo menos, pensas nisso? É amanhã o julgamento! Dize-me, como vão julgá-lo? Mas foi o lacaio quem matou, o lacaio! Meu Deus! Será possível que o condenem em lugar dele e que ninguém tome sua defesa? Não incomodaram o lacaio, não é mesmo?
— Interrogaram-no rigorosamente, e todos concluíram que não foi ele. Agora está gravemente doente, desde aquela crise. É uma doença séria.
— Senhor! Devias ir à casa daquele advogado e contar-lhe o caso em particular. Parece que mandaram buscá-lo em Petersburgo por três mil rublos.
— Sim, fomos nós que fornecemos a quantia, Ivan, Katierina Ivânovna e eu. Ela, sozinha, é que mandou buscar o médico, por dois mil rublos. O advogado Fietiukóvitch teria exigido mais; este caso, porém, teve repercussão na Rússia inteira, todos os jornais falam dele, de modo que Fietiukóvitch quis mesmo encarregar-se dele, sobretudo por causa da glória, tendo em vista a celebridade do processo. Estive com ele ontem.
— Então, falaste-lhe?
— Escutou sem dizer nada. Sua opinião já está formada, afirmou-me. No entanto, prometeu levar em consideração minhas palavras.
— Como, em consideração? Ah, os velhacos! Eles o condenarão. E o doutor, por que o fizeram vir?
— Como perito. Quer-se estabelecer que Mítia é louco e que matou num acesso de demência — Aliócha sorriu mansamente —, mas meu irmão não consentirá nisso.
— Mas seria a verdade, se ele tivesse matado! Estava louco, então, completamente louco, e a culpa foi minha, minha, miserável! Mas não foi ele. E todo mundo pretende que foi ele o assassino. Até mesmo Fiénia depôs de maneira que parece ele culpado. E na venda, e aquele funcionário, e no botequim, onde o tinham ouvido antes, todos o acusam.
— Sim, os depoimentos multiplicaram-se — notou Aliócha, com ar sombrio.
— E Grigóri Vassílievitch persiste em dizer que a porta estava aberta, pretende tê-la visto, e nada o fará mudar de opinião; fui vê-lo, falei-lhe. Pois ainda por cima injuriou-me.
— Sim, é talvez o depoimento mais grave contra meu irmão — disse Aliócha.
— Quanto à loucura de Mítia, ela existe agora mesmo — começou Grúchenhka, com ar preocupado, misterioso. — Sabes, Aliócha, há muito tempo que queria dizer-te; vou vê-lo todos os dias e encho-me de espanto. Dize-me: que pensas? De que fala ele sempre, atualmente? Não compreendo nada do que ele diz, pensava que era algo de profundo, acima de meu alcance, tola que sou, mas eis que ele me fala dum neném: — “Por que é ele pobre, o neném? Por causa dele é que vou agora para a Sibéria, não matei, mas é preciso que eu vá para a Sibéria!” De que se trata? Quem é esse neném? Não compreendi nada disso. Pus-me simplesmente a chorar. Ele falava tão bem, ambos chorávamos, beijou-me e fez sobre mim o sinal da cruz. Que é que isso significa, Aliócha, quem é esse neném?
— Rakítin tomou o hábito de visitá-lo — sorriu Aliócha. —
Aliás... isto não parte de Rakítin. Não o vi ontem, irei vê-lo hoje.
— Não, não é Rakitka, é seu irmão Ivan Fiódorovitch quem o atormenta, quem vai vê-lo... — Grúchenhka interrompeu-se bruscamente, Aliócha olhou-a, estupefato.
— Como? Ivan vai vê-lo? Mítia mesmo me disse que ele nunca fora lá.
— Pois bem! Pois bem! Eis como sou! Tagarelei! — exclamou Grúchenhka, rubra de confusão. — Enfim, Aliócha, não fales, já que comecei, direi toda a verdade. Ivan foi lá duas vezes vê-lo: a primeira, logo que chegou de Moscou; a segunda, há uma semana. Proibiu Mítia de falar disso. Visitava-o às ocultas.
Aliócha permanecia mergulhado em suas reflexões. Aquela notícia impressionara-o fortemente.
— Ivan não me falou do caso de Mítia. Em geral, conversou pouco comigo; quando eu ia vê-lo, parecia sempre descontente, de modo que há já três semanas que não vou à casa dele. Hum... Se ele esteve lá há oito dias... produziu-se, com efeito, uma mudança em Mítia há uma semana...
— Sim, uma mudança — disse vivamente Grúchenhka. — Eles têm um segredo, o próprio Mítia me falou disso, e um segredo que o atormenta. Antes mostrava-se alegre, e se mostra ainda agora, somente, vês tu, quando começa a mover a cabeça, a andar de lá para cá, a puxar os cabelos das têmporas, sei que está agitado... tenho certeza!... Aliás, ainda hoje estava alegre.
— Tu disseste: nervoso.
— Uma e outra coisa. Fica nervoso por um momento, depois alegre, depois, de repente, nervoso de novo. Na verdade, Aliócha, ele me surpreende; uma tal sorte em perspectiva e acontece-lhe desatar em gargalhadas por bagatelas; dir-se-ia uma criança.
— É verdade que ele te proibiu de me falares a respeito de Ivan?
— Sim, és tu sobretudo que Mítia teme. Porque há um segredo, ele mesmo me disse... Aliócha, meu querido, vá pois, trata de saber qual é esse segredo e vem dizer-me, que eu, desgraçada, conheça enfim minha sorte maldita! Foi por isso que te mandei chamar hoje.
— Pensas que isso diz respeito a ti? Mas então ele não te teria dito!
— Não sei. Talvez não ouse dizer-me. Está prevenido. O fato é que tem um segredo.
— Mas tu mesma, que pensas disso?
— Penso que tudo está acabado para mim. São três ligados contra mim, Katka faz parte disso. É dela que provém tudo. Mítia me previne por alusão. Pensa em abandonar-me, eis todo o segredo. Imaginaram isso todos três, Mítia, Katka e Ivan Fiódorovitch. Ele mo disse, há uma semana, que Ivan está apaixonado por Katka, por isso vai tanto à casa dela. Aliócha, queria perguntar-te: é verdade ou não? Fala-me consciente.
— Não mentirei. Ivan não ama Katierina Ivânovna.
— Pois bem! eu também pensei isso então! Ele mente descaradamente. E faz-se agora ciumento para poder acusar-me em seguida. Mas é um imbecil, não sabe dissimular, é demasiado franco... Pagar-me-á! “Tu acreditas que eu matei!” Eis o que lhe ousa censurar-me! Que Deus lhe perdoe! Espera, essa Katka terá o que ver comigo no tribunal! Falarei... Direi tudo!
Pôs-se a chorar.
— Eis o que posso afirmar-te, Grúchenhka — disse Aliócha, levantando-se: — Em primeiro lugar, é que ele te ama, ama-te mais do que a tudo no mundo, e a ti somente, acredita-me. Tenho certeza disso. Em seguida, confesso-te que não irei arrancar seu segredo, mas, se ele me disser, preveni-lo-ei de que te prometi contar-te. Nesse caso, voltarei para dizer-te hoje. Somente... parece-me que Katierina Ivânovna nada tem a ver com isso, esse segredo deve referir-se a outra coisa. E certamente isso. Por hora, adeus!
Aliócha apertou-lhe a mão. Grúchenhka continuava chorando. Via ele bem que não acreditava ela em suas consolações, mas aquela efusão havia-a aliviado. Causava-lhe pena deixá-la naquele estado, mas estava com pressa. Tinha ainda muito que fazer.
II
O pé doente
Queria, em primeiro lugar, ir à casa da senhora Khokhlakova. Apressava-se para acabar o mais depressa possível, para não chegar demasiado tarde ao encontro com Mítia. Havia três semanas que a senhora Khokhlakova estava doente; tinha o pé inflamado, e, muito embora não estivesse de cama, passava os dias semiestendida num divã, em sua alcova, em galante traje íntimo, mas decente. Aliócha observara uma vez, sorrindo inocentemente, que a senhora Khokhlakova tornava-se faceira, malgrado sua doença; enfeitava-se de borlas, fitas, camisetas. Durante os dois últimos meses, o jovem Pierkhótin pusera-se a frequentar-lhe a casa. Havia quatro dias que Aliócha ali não ia e, assim que entrou, dirigiu-se aos aposentos de Lisa, que lhe mandara dizer na véspera que fosse lá imediatamente vê-la para um negócio muito importante, o que por certas razões o interessava. Mas, enquanto a criada de quarto ia anunciá-lo, a senhora Khokhlakova, informada de sua chegada, chamou-o só por um minuto. Aliócha achou que era melhor satisfazer, em primeiro lugar, a mamãe, senão ela o mandaria chamar a todo instante. Estava estendida no divã, vestida como para uma festa, e parecia bastante agitada. Acolheu Aliócha com gritos de entusiasmo.
— Há um século que não o vejo! Uma semana inteira, misericórdia! Ah! Você cá esteve há quatro dias, na quarta-feira passada. Ia aos aposentos de Lisa, estou certa de que queria andar na ponta dos pés, para que eu não o ouvisse. Meu caro Alieksiêi Fiódorovitch, se você soubesse quanto ela me inquieta! Isso é o principal, mas falaremos a respeito depois. Caro Alieksiêi Fiódorovitch, confio-lhe inteiramente a minha Lisa. Após a morte do stáriets Zósima — paz à sua alma! (ela se benzeu) —, depois dele, considero você um asceta, se bem que lhe assente muito elegantemente seu novo traje. Onde encontrou você aqui um tal alfaiate? Mas não, afinal, isso não tem importância. Perdoe-me chamá-lo por vezes Aliócha, sou uma velha, tudo me é permitido — sorriu faceiramente —, mas isso também virá depois. Sobretudo, não devo esquecer o principal. Rogo-lhe, se divagar, chame-me a atenção. Depois que Lisa retirou sua promessa — sua promessa infantil, Alieksiêi Fiódorovitch — de casar com você, deve ter bem compreendido que não era senão o capricho de uma menina doente, que ficou muito tempo em sua poltrona. Deus seja louvado, agora ela já anda. Esse novo médico que Kátia mandou buscar em Moscou para seu infeliz irmão, que amanhã... Que acontecerá amanhã? Morro só de pensar nisso! Sobretudo de curiosidade... Em suma, o tal médico veio ontem e examinou Lisa... Paguei-lhe cinquenta rublos pela visita. Mas não se trata disso. Está vendo, atrapalho-me. Apresso-me sem saber por quê. Não sei mais onde estou, tudo é para mim como uma meada enrolada. Tenho medo de pô-lo em fuga, aborrecendo-o. Só tenho visto você. Ah! meu Deus! Nem pensei nisso, em primeiro lugar, café, Iúlia, Glafira, café!
Aliócha apressou-se em agradecer, dizendo que acabara de tomar café.
— Em casa de quem?
— Em casa de Agrafiena Alieksándrovna.
— Em casa daquela mulher!? Ah! É ela a causa de tudo, aliás, não sei, dizem que ela procede agora irreprochavelmente, é um pouco tarde. Teria valido mais antes, quando era preciso, de que serve isso agora? Cale-se, Alieksiêi Fiódorovitch, porque tenho tanto que dizer que não direi nada absolutamente, creio. Esse horrível processo... irei de qualquer forma, preparo-me para isso, levar-me-ão numa cadeira, posso ficar sentada; e você sabe que figuro no rol das testemunhas. Como haverei de falar, como haverei de falar? Não sei o que direi. É preciso prestar juramento, não é?
— Sim, mas penso que a senhora não poderá comparecer.
— Posso ficar sentada. Ah, você me atrapalha! Esse processo, esse ato selvagem, em seguida todos vão para a Sibéria, outros se casam, e tudo isso depressa, depressa, e tudo muda, enfim todos envelhecem e olham para o túmulo. Pois bem! Seja, estou fatigada. Aquela Kátia... cette charmante personne, iludiu minha esperança; agora vai acompanhar um de seus irmãos à Sibéria, o outro a seguirá e estabelecer-se-á na cidade vizinha e todos farão uns e outros sofrer. Isso me faz perder o juízo, sobretudo essa publicidade; falaram disso milhares de vezes nos jornais de Petersburgo e de Moscou. Ah! Sim, imagine você que escreveram também a meu respeito, que eu era uma “boa amiga” de seu irmão. Não posso pronunciar a tal palavra vergonhosa, imagine!
— É impossível! Onde escreveram isso, como?
— Vou mostrar-lhe. Recebi o jornal ontem. Aqui está, é no jornal de Petersburgo, Boatos. Esse Boatos apareceu este ano. Gosto muito dos boatos, fiz uma assinatura, e eis-me bem servida em questão de boatos. Está aqui, neste lugar, leia.
E estendeu a Aliócha um jornal que se achava sob o travesseiro.
Não estava agitada, mas abatida, e, com efeito, tudo se misturava talvez em sua cabeça. O suelto era característico e devia certamente impressioná-la, mas por felicidade achava-se ele então incapaz de concentrar-se em um ponto e podia num instante esquecer mesmo o jornal e passar a outra coisa. Quanto à repercussão daquele triste caso na Rússia inteira, conhecia-a Aliócha desde muito tempo, e Deus sabe as notícias estranhas que tivera ocasião de ler havia dois meses, entre outras verídicas, a respeito de seu irmão, dos Karamázov e dele mesmo. Dizia-se mesmo num jornal que, apavorado pelo crime de seu irmão, havia-se ele feito monge e enclausurara-se; aliás, desmentia-se esse boato afirmando, pelo contrário, que, em companhia do stáriets Zósima, arrombara ele a caixa do mosteiro e fugira. A notícia aparecida no jornal Boatos intitulava-se: “Escrevem-nos de Skotoprigonievsk[ 127 ] — (ai! assim se chama nossa cidadezinha, nome que ocultei por muito tempo) a propósito do processo Karamázov.” Era curta e o nome da senhora Khokhlakova nela não figurava. Contava-se somente que o criminoso que se preparavam para julgar com tal solenidade, capitão reformado, de atitudes insolentes, vadio e partidário da servidão, mantinha intrigas amorosas, influenciava sobretudo “algumas damas a quem a solidão pesava”. Uma delas, “uma viúva que se entediava”, afetando mocidade, se bem que mãe de uma filha já grande, enamorara-se dele a ponto de oferecer-lhe, duas horas antes do crime, três mil rublos para partir em sua companhia para as minas de ouro. Mas o celerado preferira matar o pai para roubar-lhe esses três mil rublos, contando com a impunidade, em vez de passear pela Sibéria os encantos quadragenários de sua dama. Essa correspondência peculiar terminava, como convém, por uma nobre indignação contra a imortalidade do parricídio e da servidão. Depois de ter lido com curiosidade, Aliócha dobrou o jornal, que entregou à senhora Khokhlakova.
— Então? Não sou eu? Fui eu, com efeito, que, uma hora antes, lhe propus as minas de ouro, e logo “encantos de quarenta anos”! Mas era esse meu objetivo? O jornalista fê-lo de propósito. Que o soberano juiz lhe perdoe essa calúnia como eu mesmo lhe perdoo, mas foi... sabe quem? Seu amigo Rakítin.
— Talvez — disse Aliócha, se bem que nada tenha ouvido a respeito.
— Foi ele, foi ele, decerto! Porque o pus para fora! Conhece então essa história?
— Sei que a senhora lhe pediu que cessasse suas visitas no futuro, mas por qual razão, justamente, não o soube... da parte da senhora pelo menos.
— Soube-o então por ele? Então, deblatera ele contra mim, com veemência?
— Sim, deblatera contra todo mundo, aliás. Mas ele tampouco me disse por qual motivo a senhora o mandou embora! De resto, encontro-o muito raramente. Não somos amigos.
— Pois bem! Vou contar-lhe tudo e, apesar de tudo, arrependo-me, porque há um ponto a respeito do qual sou eu mesma talvez culpada. Algo de totalmente insignificante, aliás. Veja, meu caro (a senhora Khokhlakova assumiu um ar jovial, e sorriu enigmaticamente), veja, suspeito... perdoe-me, falo-lhe como uma mãe... Oh! Não, não, pelo contrário, dirijo-me a você como a meu pai... porque a mãe nada tem a ver aqui... Enfim, tanto faz, como ao stáriets Zósima a confissão, e é tudo perfeitamente justo: chamei-o ainda há pouco de asceta... Pois bem! Eis, aquele pobre rapaz, seu amigo Rakítin (meu Deus! Não posso zangar-me contra ele), em suma, aquele desmiolado, imagine que lhe deu na cabeça, creio, enamorar-se de mim. Só o percebi depois, mas, no começo, isto é, há um mês, veio ver-me frequentemente, quase todos os dias, e contudo já nos conhecíamos antes. Não suspeitava de nada... e, de repente, foi como um raio de luz. Sabe você que há dois meses comecei a receber esse gentil e modesto rapaz, Piotr Ilitch Pierkhótin, funcionário aqui? Você o encontrou mais de uma vez. Não tem mérito ele, não é sério? Vem duas vezes por semana, aparece sempre bem-vestido, e, em geral, gosto da mocidade, Aliócha, quando ela tem modéstia, talento, como você; é quase um estadista, fala tão bem, haverei de recomendá-lo sem dúvida alguma. É um futuro diplomata. Naquele horrendo dia, quase me salvou da morte vindo procurar-me à noite. Quanto a seu amigo Rakítin, vem sempre com os sapatos ordinários que arrasta pelo tapete... em suma, põe-se a fazer alusões; uma vez, ao retirar-se, apertou-me a mão com bastante força. Foi a partir daquele momento que fiquei doente do pé. Ele já havia encontrado Piotr Ilitch em minha casa e — acreditá-lo-ia você? — falava mal dele sem cessar, encarniçava-se contra ele não se sabia por quê. Contentava-me com observar os dois, para ver como se arranjariam, rindo comigo mesma. Um dia em que me encontrava sozinha, sentada, ou antes, já estendida, Mikhail Ivânovitch veio ver-me e, imagine você, trouxe-me versinhos de sua autoria, nos quais descrevia meu pé doente. Espere, como é?
Esse encantador pezinho,
Sofre um tanto, coitadinho...
“Ou algo assim, não consigo lembrar-me desses versos, tenho-os aí, hei de mostrar-lhos depois, são encantadores, e não tratam somente de meu pé, são morais, com uma ideia deliciosa, mas esqueci-a, em suma, dignos de figurar num álbum. Naturalmente, agradeci-lhe, ele pareceu lisonjeado. Mal acabara de fazê-lo e entrou Piotr Ilitch. Mikhail Ivânovitch ficou sombrio como a noite. Via bem que Piotr Ilitch o incomodava, porque queria ele certamente dizer alguma coisa após os versos, pressentia-o, e o outro entrou naquele momento. Mostrei os versos a Piotr Ilitch, sem dizer o nome do autor. Mas estou persuadida de que ele o adivinhou imediatamente, muito embora o negue até hoje. Piotr Ilitch desatou na gargalhada, pôs-se a criticar: “Maus verso — disse ele — escritos por algum seminarista...” Sim, se o senhor visse com que calor, com que temeridade! Foi então que seu amigo, em lugar de rir, tornou-se furioso. Meu Deus! Pensei que eles iam bater-se. “Sou eu — disse ele — o autor. Escrevi-os por brincadeira, porque acho uma baixeza fazer versos... Somente, meus versos são bons. Querem elevar um monumento a Púchkin por ter cantado os pés das mulheres; meus versos têm uma tendência moral, o senhor mesmo não passa de um reacionário refratário à humanidade, ao progresso, estranho ao movimento das ideias, um burocrata, um papa-ordenados!” Pus-me então a gritar, a suplicar-lhes. Ora, Piotr Ilitch, você sabe, não tem medo, assumiu uma atitude muito digna, olhou-o ironicamente e pediu desculpas depois de tê-lo escutado: “Não sabia — disse —, senão não me teria exprimido dessa maneira, teria louvado seus versos... Os poetas são uma gente irritável.” Em suma, zombarias proferidas no tom mais sério. Ele mesmo me confessou depois que estava zombando, mas eu deixara-me enganar. Pensava então, estendida como agora: ficará bem ou não, se eu expulsar Mikhail Ivânovitch por causa da intemperança de sua linguagem para com meu hóspede? Acreditaria você? Estou estendida, de olhos fechados, sem conseguir decidir-me, atormento-me, meu coração bate; gritarei ou não gritarei? Uma voz me diz: “Grita”, e outra: “Não, não grites!” Mal ouvi essa outra voz, pus-me a gritar, depois desmaiei. Naturalmente foi uma cena tumultuosa. De repente, levanto-me e digo a Mikhail Ivânovitch: lamento muito, mas não quero mais vê-lo em minha casa. Foi assim que o pus para fora. Ah, Alieksiêi Fiódorovitch! Sei bem que agi mal, mentia, não estava absolutamente zangada com ele, mas, de súbito, pareceu-me que seria muito bem aquela cena... Somente — acredita-o você? —, era aquela cena, no entanto, natural, porque eu chorava deveras e, depois ainda alguns dias, em seguida, afinal acabei por esquecer tudo de uma vez, depois do almoço. Havia ele cessado suas visitas fazia duas semanas, e eu perguntava a mim mesma: será possível que não volte mais? Foi, então, e eis que à noite trazem-me o jornal Boatos. Leio e fico boquiaberta, com muita raiva. De quem seria? Dele! Logo que saiu daqui, rabiscara isso para enviá-lo ao jornal que o publicou. Passava-se isso há duas semanas. Aliócha, tagarelo a torto e a direito, mas é mais forte do que eu!”
— É preciso absolutamente que chegue a tempo hoje de estar com meu irmão — balbuciou Aliócha.
— Justamente, justamente! Isso me lembra tudo! Diga-me, que é a obsessão?
— Que obsessão? — perguntou Aliócha, surpreso.
— A obsessão judiciária. Uma obsessão que faz perdoar tudo. Tenha você cometido o que tiver cometido, perdoam-lhe.
— A propósito de que diz isso?
— Eis por quê: essa Kátia... Ah! É uma encantadora criatura, mas ignoro de quem está ela enamorada. Veio aqui outro dia e nada pude saber. Tanto mais quanto ela se limita agora a generalidades, só me fala de minha saúde, afeta mesmo certo tom, e disse a mim mesma: “Pois seja, Deus a guarde!...” Ah! A propósito dessa obsessão, chegou esse tal doutor. Você sabe disso decerto, foi você que o mandou chamar, isto é, você não, mas Kátia. Sempre Kátia! Está bem! Eis aqui: um indivíduo é normal, mas, de repente, tem uma obsessão. Está lúcido, dá-se conta de seus atos, entretanto, está presa duma obsessão. Pois bem! Foi o que aconteceu certamente a Dimítri Fiódorovitch. É uma descoberta e um benefício da justiça nova. O tal doutor chegou, fez-me perguntas a respeito daquela noite, enfim, a respeito das minas de ouro: como estava ele então, o acusado? Em estado de obsessão, bem decerto; exclama dinheiro, dinheiro, dê-me três mil rublos, depois foi assassinar. Não quero, dizia ele, não quero matar, no entanto o fez. De modo que perdoá-lo-ão por causa dessa resistência, muito embora tenha matado.
— Mas ele não matou — interrompeu um pouco bruscamente Aliócha, cuja agitação e impaciência cresciam.
— Eu sei, foi o velho Grigóri quem matou.
— Como, Grigóri?
— Mas sim, foi Grigóri. Ficou desmaiado depois de ter sido golpeado por Dimítri Fiódorovitch, depois levantou-se e, vendo a porta aberta, foi matar Fiódor Pávlovitch.
— Mas por quê, por quê?
— Sob o império duma obsessão. Voltando a si, depois de ter sido golpeado na cabeça, a obsessão fê-lo cometer aquele crime. Ora, diz ele que não matou, talvez não se lembre. Somente, veja você, será bem melhor que Dimítri Fiódorovitch haja matado. É bem isso, embora fale de Grigóri, foi certamente Dimítri, e isso é melhor, muito melhor. Não que eu aprove o assassínio dum pai por um filho; os filhos, pelo contrário, devem respeitar os pais, no entanto, vale mais que seja ele, porque então não terão vocês de ficar desolados, uma vez que ele matou inconscientemente, ou, antes, conscientemente, mas sem saber como a coisa ocorreu. Deve-se absolvê-lo; será humano, ver-se-ão os benefícios da justiça nova, eu não sabia de nada, dizem que isso é já coisa antiga; desde que o soube, ontem, fiquei tão impressionada que queria mandar chamar você; e, se o absolverem, convidá-lo-ei para jantar imediatamente, reunirei conhecidos e beberemos à saúde dos novos juízes. Não acho que seja perigoso, aliás haverá gente, poder-se-á sempre levá-lo, se ele se mostrar furioso; mais tarde, poderá ele noutra parte ser juiz de paz ou alguma outra coisa, porque os melhores juízes são aqueles que sofreram também desgraças. Sobretudo, quem não tem sua obsessão agora? Você, eu, todo mundo, e quantos exemplos! Um indivíduo está cantando uma romança, de repente algo lhe desagrada, pega uma pistola, mata o primeiro que encontra e absolvem-no. Li-o recentemente, todos os doutores confirmaram-no. Confirmam tudo, agora. Pense pois, Lisa tem uma obsessão, fez-me chorar ontem e anteontem; hoje adivinhei que era simplesmente uma obsessão. Oh, Lisa causa-me tanta pena! Creio que perdeu o juízo. Por que mandou chamá-lo? Ou então veio você espontaneamente?
— Ela mandou chamar-me e vou ter com ela — declarou Aliócha, levantando-se com ar resoluto.
— Ah, caro Alieksiêi Fiódorovitch, eis talvez o essencial! — exclamou a senhora Khokhlakova, chorando. — Deus é testemunha de que lhe confio sinceramente Lisa, e não tem importância o haver mandado chamá-lo sem que eu o soubesse. Quanto a seu irmão Ivan, desculpe-me, mas não lhe posso confiar tão facilmente minha filha, muito embora o considere sempre o rapaz mais cavalheiresco. Imagine que veio visitar Lisa, e eu não sabia de nada.
— Como? O quê? Quando? — perguntou Aliócha, estupefato. Não se havia tornado a sentar.
— Vou contar-lhe, talvez o tenha mandado chamar para isso, não me lembro mais. Ivan Fiódorovitch veio ver-me duas vezes, depois de seu regresso de Moscou: a primeira, para fazer-me uma visita na qualidade de conhecido; a segunda, recentemente. Kátia encontrava-se aqui em minha casa, e ele entrou sabendo disso. Bem entendido, não pretendia eu frequentes visitas da parte dele, conhecendo suas complicações, vous comprenez, cette affaire et la mort terrible de votre papa,[ 128 ] mas venho a saber de repente que ele veio de novo, não aos meus aposentos, mas aos de Lisa, há seis dias; ficou uns cinco minutos. Soube-o três dias depois por Glafira, isso chocou-me. Chamo logo Lisa, que se põe a rir: pensava, disse ela, que a senhora estava dormindo e veio pedir-me notícias suas. Foi isso, decerto. Somente, Lisa, Lisa, meu Deus, que pena me causa! Imagine que, uma noite, há quatro dias, depois de sua visita, teve ela uma crise de nervos, gritos, gemidos. Por que nunca tenho eu crises de nervos? No dia seguinte, e no outro dia, novo ataque, e, ontem, essa obsessão. Ela grita para mim de repente: “Detesto Ivan Fiódorovitch, exijo que a senhora não o receba mais, que lhe proíba a entrada nesta casa!” Fiquei estupefata e repliquei-lhe: “Por que razão despedir um jovem tão cheio de méritos, tão instruído e além do mais tão infeliz, porque todas essas histórias são antes uma desgraça que uma felicidade, não é mesmo?” Ela desatou a rir às minhas palavras, duma maneira ferina. Fiquei contente, pensando tê-la divertido e que as crises cessariam. Aliás, queria eu mesma despedir Ivan Fiódorovitch por causa de suas estranhas visitas sem meu consentimento e pedir-lhe explicações. Esta manhã, eis que, ao despertar, Lisa zangou-se com Iúlia e, imagine, bateu-lhe na cara. Ora, é monstruoso, trato de “você” minhas criadas de quarto. Uma hora depois, abraçava ela Iúlia e beijava-lhe os pés. Mandou dizer-me que não viria aqui, que não queria vir mais aqui a meus aposentos, doravante, e, quando me arrastei até o seu quarto, cobriu-me de beijos, chorando, depois empurrou-me para fora sem dizer uma palavra, de modo que nada pude saber. Agora, caro Alieksiêi Fiódorovitch, pondo toda a minha esperança em você, meu destino está sem dúvida em suas mãos. Rogo-lhe que vá ver Lisa, que esclareça tudo isso, como só você sabe fazê-lo, e vir contar-me, a mim, a mãe, porque você compreende, morrerei deveras, se isso tudo continua, ou fugirei desta casa. Não posso mais, tenho paciência, mas posso perdê-la e então... então será terrível. Ah, meu Deus, enfim, Piotr Ilitch! — exclamou a senhora Khokhlakova, radiante, vendo entrar Piotr Ilitch Pierkhótin. — Você chegou atrasado, atrasado! Pois bem, sente-se, fale, decida a sorte, que diz esse advogado? Aonde vai você, Alieksiêi Fiódorovitch?
— Ao quarto de Lisa.
— Ah, sim! Não se esquecerá, não se esquecerá do que lhe pedi? Trata-se de meu destino!
— Decerto que não, se todavia for possível... mas estou tão atrasado... — murmurou Aliócha, retirando-se.
— Não, venha sem falta e não, como diz se for possível, senão morrerei! — gritou às costas dele a senhora Khokhlakova, mas Aliócha já havia desaparecido.
III
Um diabinho
Encontrou Lisa, semiestendida na poltrona onde a carregavam, quando ainda não podia ela andar. Não se levantou à entrada dele, mas seu olhar penetrante atravessou-o. Aquele olhar estava um tanto aceso, a tez amarelada; ficou Aliócha impressionado com a mudança que se operara nela naqueles três dias, havendo mesmo emagrecido. Não lhe estendeu ela a mão. Ele lhe aflorou os dedos finos, imóveis sobre seu vestido, e sentou-se diante dela, sem dizer nada.
— Sei que tem você pressa de ir à prisão — declarou bruscamente Lisa. — Mamãe reteve-o duas horas, acaba de falar-lhe de Iúlia e de mim.
— Como o sabe?
— Escutei. Que tem de me olhar? Se me agrada, escuto, não há mal nisso. Não peço perdão.
— Há alguma coisa que a perturbe?
— Pelo contrário, sinto-me muito bem. Ainda há pouco, pensava pela décima vez em como fiz bem em retomar a palavra dada e não me tornar sua mulher. Você não convém como marido; se casar com você e encarregá-lo de levar um bilhete a um apaixonado por mim, você o faria e traria mesmo a resposta. E aos quarenta anos ainda levaria tais bilhetes.
Pôs-se a rir.
— Há em você algo de mau e, ao mesmo tempo, de ingênuo — disse Aliócha, sorrindo.
— É por ingenuidade que não tenho vergonha diante de você. Não somente não tenho vergonha, mas não quero tê-la, justamente diante de você. Aliócha, por que é que não o respeito? Amo-o muito, mas não o respeito. Senão, não lhe falaria sem nenhuma vergonha, não é?
— Com efeito.
— Acredita que não tenho vergonha diante de você?
— Não, não acredito.
Lisa riu de novo nervosamente; falava depressa.
— Mandei bombons para seu irmão, Dimítri Fiódorovitch, na prisão. Aliócha, sabe que você é muito gentil? Eu o amarei muito por me ter permitido tão depressa não amá-lo.
— Por que mandou chamar-me, hoje, Lisa?
— Queria dar-lhe parte dum desejo. Quero que alguém me faça sofrer, que case comigo, depois me torture, me engane e me abandone. Não quero ser feliz.
— Enamorou-se da desordem?
— Ah, quero a desordem! Quero pôr fogo na casa. Imagino a coisa: irei às ocultas, absolutamente às ocultas, tratar de pôr fogo. Procuram apagá-lo, a casa arde. Sei e me calo. Ah, que coisa estúpida! Que horror!
Fez um gesto de desgosto.
— Você vive na riqueza — disse Aliócha, em voz baixa.
— Será que vale mais viver pobremente?
— Sim.
— Era seu defunto monge quem lhe contava isso. Não é verdade, Que eu seja rica e todos os outros pobres, comerei bombons, beberei creme e não darei a ninguém! Ah! Não fale, não diga nada (fez um gesto, se bem que Aliócha não tivesse aberto a boca), você já me disse tudo isso antes, sei-o de cor. É aborrecido. Se sou pobre, matarei alguém, talvez mesmo mate sendo rica. Por que me constranger?... Sabe duma coisa? Quero segar, segar os trigos. Serei sua mulher, você tornar-se-á mujique, um verdadeiro mujique; teremos um potrozinho, quer? Conhece Kolgánov?
— Sim.
— Ele sonha, andando. Diz: “De que serve viver? Na verdade, é melhor sonhar.” Podem-se sonhar as coisas mais alegres, mas a vida é o tédio. Ele se casará em breve, fez, também a mim, uma declaração. Sabe rodar pião?
— Sim.
— Pois bem! Ele parece um pião: é preciso pô-lo em movimento, lançá-lo, rodá-lo. Se casar com ele, lançá-lo-ei a vida inteira. Não tem você vergonha de ficar comigo?
— Não.
— Você está muito zangado porque não falo das coisas santas. Não quero ser santa. Que se faz no outro mundo para o maior pecado? Você deve saber ao certo.
— Deus condena — disse Aliócha, olhando-a fixamente.
— É o que quero. Chegaria, condenar-me-iam, riria bem na cara de todos. Quero absolutamente pôr fogo na casa, Aliócha, em nossa casa, não me acredita?
— Por quê, afinal? Há crianças, aos 12 anos, que têm muita vontade de pôr fogo em alguma coisa e o fazem. É uma espécie de doença.
— Não é verdade, não é verdade. Há mesmo crianças, mas não falo disso.
— Você toma o mal pelo bem, é uma crise passageira que provém talvez de sua antiga doença.
— Mas você me despreza! Não quero fazer o bem, muito simplesmente, quero fazer o mal, não há nenhuma doença.
— Por que fazer o mal?
— Porque não resta nada em parte alguma. Ah, como seria bom! Sabe, Aliócha, penso por vezes em fazer muito mal, coisas vis, durante muito tempo, às ocultas, e de repente todos ficarão sabendo. Todos me cercarão e me mostrarão com o dedo, e eu os encararei. É muito agradável. Por que é tão agradável, Aliócha?
— À toa. A necessidade de esmagar algo de bom, ou, como você dizia, de pôr fogo. Isso acontece também.
— Não me contentarei com dizê-lo, fá-lo-ei.
— Acredito-o.
— Ah!, como o amo por causa dessas palavras: acredito-o. Com efeito, você não mente. Mas pensa talvez que lhe digo tudo isso de propósito, para irritá-lo?
— Não, não penso... se bem que haja talvez também um pouco dessa necessidade.
— Um pouco, sim. Não minto nunca diante de você — declarou ela com um clarão nos olhos.
O que impressionava sobretudo Aliócha era a seriedade dela; não havia sombra de malícia nem de brincadeira em seu rosto, muito embora outrora a alegria e a jovialidade não a deixassem nos momentos mais sérios.
— Há momentos em que o homem ama o crime — declarou Aliócha, com ar pensativo.
— Sim, sim, você exprimiu minha ideia, amam-no, todos o amam, sempre, e não por momentos. Sabe? Há como que uma convenção geral de mentira a esse respeito, todos mentem desde então. Pretendem odiar o mal e todos o amam dentro de si mesmos.
— E você continua a ler maus livros?
— Sim. Mamãe oculta-os debaixo de seu travesseiro, mas os surripio.
— Será que não tem você consciência de que se está destruindo?
— Quero destruir-me. Há aqui um rapaz que ficou deitado entre os trilhos durante a passagem de um trem. Felizardo! Escute, julgam agora seu irmão por ter assassinado seu pai, e todo mundo está contente porque ele o matou.
— Estão contentes porque ele matou o pai?
— Sim, todos estão contentes. Dizem que é horrível, mas, dentro de si mesmos, estão muito contentes. Eu sou a primeira.
— Em suas palavras, há um pouco de verdade — disse docemente Aliócha.
— Ah, que ideias tem você! — exclamou Lisa, entusiasmada. — E é um monge! Não pode você crer quanto o respeito, Aliócha, porque você nunca mente. Ah! É preciso que lhe conte um sonho ridículo: vejo por vezes, em sonho, diabos; é à noite, estou no quarto com uma vela; de repente, diabos surgem em todos os cantos, debaixo da mesa, abrem a porta, há uma multidão deles que quer entrar para agarrar-me. E já avançam, agarram-me. Mas benzo-me, e todos eles recuam, tomados de pavor; mas não desaparecem completamente; ficam a esperar à porta e nos cantos. De repente, sinto uma vontade louca de me pôr a blasfemar em voz alta; começo, ei-los que avançam em multidão, muito contentes; agarram-me de novo, de novo me persigno... e então vão-se todos eles. É algo muito divertido; tanto que até se perde a respiração.
— Eu também já tive sonho igual — disse Aliócha.
— Será possível? — gritou Lisa, espantada. — Escute, Aliócha, não ria, é muito importante; pode acontecer que duas pessoas tenham o mesmo sonho?
— Decerto.
— Aliócha, digo-lhe que é muito importante — prosseguiu Lisa, no auge da surpresa. — Não é o sonho que importa, mas o fato de haver você podido ter o mesmo sonho que eu. Você nunca mente, não minta agora: é verdade? Não está troçando?
— É verdade.
Lisa, atordoada, calou-se um instante.
— Aliócha, venha ver-me, venha mais vezes — proferiu ela num tom suplicante.
— Virei sempre à sua casa, toda a minha vida — respondeu ele, com firmeza.
— Falo a você só — continuou Lisa. — Falo a mim só e ainda a você. Senão a você, no mundo inteiro. E falo-lhe mais voluntariamente do que a mim. E não sinto nenhuma vergonha diante de você, Aliócha, nenhuma. Por que isso? Aliócha, é verdade que, na Páscoa, os judeus roubam as crianças e as degolam?
— Não sei.
— Tenho um livro em que se fala dum processo; conta-se que um judeu primeiro cortou os dedos de uma criança de quatro anos, depois crucificou-a numa parede com pregos; declarou ao tribunal que a criança morrera rapidamente, ao fim de quatro horas. É rápido, com efeito! Não cessava de gemer, e ele ali permanecia a contemplá-la. Muito bem!
— Bem?
— Sim. Penso por vezes que fui eu quem a crucificou. Está pendurada e geme, sento-me diante dela e como compota de abacaxi. Gosto muito disso. E você?
Aliócha contemplava em silêncio Lisa, cujo rosto dum amarelo pálido alterou-se de repente, seus olhos flamejaram.
— Sabe? Depois de ter lido essa história, solucei a noite inteira. Creio ouvir a criança gritar e gemer (aos quatro anos, compreende-se) e essa ideia da compota não me deixa. De manhã, enviei uma carta pedindo a alguém que viesse sem falta ver-me. Veio, contei-lhe tudo a respeito da criança e da compota, tudo, e disse: “Muito bem!” Pôs-se a rir e achou que, com efeito, estava bem. Depois partiu ao fim de cinco minutos. Será que me desprezava? Fale, Aliócha, fale, desprezava-me, sim ou não?
Ergueu-se em seu divãzinho, com os olhos cintilantes.
— Diga-me — proferiu Aliócha, agitado —, você mesma mandou chamar esse “alguém”?
— Eu mesma.
— Enviou-lhe uma carta?
— Sim.
— Precisamente para pedir-lhe isso, a propósito da criança?
— Não, absolutamente. Mas, quando entrou, perguntei-lhe. Respondeu, pôs-se a rir, depois retirou-se.
— Agiu como homem honesto para com você — disse mansamente Aliócha.
— Mas desprezou-me? Riu.
— Não, porque ele mesmo crê talvez na compota de abacaxi. Está também muito doente agora, Lisa.
— Sim, assim o crê! — disse Lisa, com os olhos cintilantes.
— Ele não despreza ninguém — prosseguiu Aliócha. — Somente, não crê em ninguém. Se não crê, é bem certo que despreza.
— Por conseguinte a mim também? A mim?
— A você também.
— Está bem — disse Lisa, com raiva. — Quando ele saiu rindo, senti que o desprezo tinha algo de bom. Ter os dedos cortados como aquela criança é boa coisa; ser desprezada é boa coisa igualmente...
E soltou uma risada má, olhando para Aliócha.
— Sabe, Aliócha, quereria... Salve-me! — ergueu-se, inclinou-se para ele, abraçou-o. — Salve-me! — gemeu ela quase. — Disse a alguém no mundo o que acabo de dizer-lhe? Sim, disse a verdade, a verdade! Matar-me-ei, porque tudo me desgosta! Não quero mais viver! Tudo me inspira desgosto, tudo! Aliócha, por que você não me ama, de modo algum?
— Mas, não, eu a amo! — respondeu Aliócha, com ardor.
— Será que você chorará por mim?
— Sim.
— Não porque recusei ser sua esposa, mas em geral?
— Sim.
— Obrigada! Só tenho necessidade de suas lágrimas. E que os outros me torturem, me pisem, todos, todos, sem exceção de ninguém! Porque não amo ninguém. Está ouvindo? Nin-guém! Pelo contrário, odeio-os! Vá ver seu irmão, Aliócha, já é tempo! — E largou-o.
— Como deixá-la assim? — disse ele, quase aterrorizado.
— Vá ver seu irmão, a prisão será fechada. Vá, eis aqui seu chapéu! Abrace Mítia, vá, vá!
Empurrou Aliócha quase à força para a porta. Ele a olhava numa dolorosa perplexidade, quando sentiu em sua mão direita um bilhete dobrado, lacrado. Leu o endereço: “Ivan Fiódorovitch Karamázov.” Lançou um olhar rápido a Lisa. O rosto dela era quase ameaçador.
— Não deixe de lhe entregar! — ordenou, com exaltação, toda tremente. — Hoje, imediatamente! Senão, envenenar-me-ei! Foi por isso que o chamei!
E bateu a porta. Aliócha pôs a carta em seu bolso e dirigiu-se para a escada, sem entrar nos aposentos da senhora Khokhlakova, a quem havia mesmo esquecido. Assim que ele se afastou, Lisa entreabriu a porta, meteu um dedo na fenda e apertou-o com todas as forças, fechando-a. Ao fim de alguns segundos, tendo retirado a mão, foi lentamente sentar-se na poltrona, examinou com atenção seu dedo enegrecido e o sangue que havia brotado por baixo da unha. Seus lábios tremiam e ela murmurou rapidamente:
— Miserável! Miserável! Miserável! Miserável!
IV
O hino e o segredo
Já era tarde (e os dias são curtos em novembro), quando Aliócha tocou à porta da prisão. Caía a noite. Mas sabia que o deixariam entrar sem dificuldade. Em nossa cidadezinha, é o mesmo que em toda parte. No começo, sem dúvida, uma vez terminada a instrução preparatória, as entrevistas de Mítia com os parentes ou algumas outras pessoas eram cercadas de certas formalidades necessárias, mas, posteriormente, fizeram exceção para certos visitantes. Chegou a ponto de, por vezes, realizarem-se quase a sós as entrevistas com o prisioneiro. Aliás, esses privilegiados eram pouco numerosos: somente Grúchenhka, Aliócha e Rakítin. O isprávnik Mikhail Makárovitch estava muito favorável à jovem. O velho lamentava ter gritado contra ela em Mókroie. Em seguida, uma vez ao corrente, mudara completamente de opinião a seu respeito. E, coisa estranha, se bem que estivesse persuadido da culpabilidade de Mítia, desde sua prisão tornara-se mais indulgente para com ele: “Era talvez uma boa natureza, mas a embriaguez e a desordem perderam-no!” Uma espécie de compaixão havia sucedido nele ao horror do começo. Quanto a Aliócha, o isprávnik gostava muito dele e conhecia-o há muito tempo, e Rakítin, que tomara o costume de visitar frequentemente o prisioneiro, estava muito ligado com “as meninas do isprávnik”, como as chamava, e não se passava dia que não estivesse em casa delas. Dava lições na casa do inspetor da prisão, velhote bonachão, mas militar severo. Aliócha conhecia bem e desde muito tempo esse inspetor, que gostava de conversar com ele a respeito da “suprema sabedoria”. O velhote respeitava e até mesmo temia Ivan Fiódorovitch, sobretudo seus raciocínios, muito embora fosse ele próprio grande filósofo, à sua maneira, bem entendido. Mas sentia por Aliócha uma simpatia invencível. Havia um ano vinha estudando os Evangelhos apócrifos e comentava a cada instante sobre suas impressões a seu jovem amigo. Outrora, ia mesmo vê-lo no mosteiro e discutia horas inteiras com ele e com os religiosos. Em suma, se Aliócha chegava atrasado à prisão, bastava passar em casa dele e a coisa se arranjava. Além do mais, o pessoal, até o derradeiro guarda, estava acostumado com ele. O sentinela não fazia naturalmente dificuldades, contanto que se tivesse uma autorização. Quando chamavam Mítia, descia ele de sua cela e ia ao parlatório. Ao entrar, Aliócha encontrou Rakítin, que se despedia de Mítia. Ambos falavam em voz alta. Mítia, despedindo-se dele, ria muito, e Rakítin parecia resmungar. Sobretudo nos últimos tempos, não gostava Rakítin de encontrar Aliócha, não lhe falava, cumprimentava-o mesmo com secura. Vendo Aliócha entrar, franziu o cenho, desviou a vista, mostrou-se muito preocupado em abotoar o sobretudo quente de gola de pele. Depois pôs-se a procurar o guarda-chuva.
— Contanto que não esqueça nada! — falou, para dizer alguma coisa.
— Especialmente, não esqueças o que não te pertence! — disse Mítia, rindo. Rakítin esquentou-se imediatamente.
— Recomenda isso a teus Karamázov, raça de exploradores, e não a Rakítin! — exclamou ele, tremendo de cólera.
— Que é que te deu? Estava brincando... São todos assim — disse Mítia a Aliócha, apontando Rakítin que saía rapidamente. — Ria, estava alegre, e ei-lo que se arrebata! Nem mesmo te cumprimentou. Estão brigados? Por que vens tão tarde? Esperei-te com impaciência a manhã inteira. Não importa. Vamos tirar o atraso.
— Por que vem ele ver-te tantas vezes? Estás ligado a ele?
— Ligado a Mikhail? Não, precisamente. Aliás, é um porco! Toma-me por um miserável. Sobretudo, não entende uma brincadeira. É uma alma seca, lembra-me os muros da prisão, tais como os vi ao chegar. Mas é inteligente. Pois bem! Alieksiêi, estou perdido agora!
Sentou-se num banco, indicou um lugar junto dele a Aliócha.
— Sim, é amanhã o julgamento. Não tens na verdade nenhuma esperança, irmão?
— De que falas? — perguntou Mítia, com o olhar vago. — Ah!, sim, do julgamento. Ao diabo! Bagatelas tudo isso. Falemos do essencial. Sim, julgam-me amanhã, mas não é isso que me faz dizer que estou perdido. Não temo por minha cabeça, somente o que há dentro dela é que está perdido. Por que me olhas com ar desaprovador?
— De que falas, Mítia?
— Ideias! Ideias! A ética! Que é a ética?
— A ética? — disse Aliócha, surpreso.
— Sim, uma ciência, qual?
— Há, com efeito, uma ciência com esse nome... somente... não posso explicar-te, confesso-o.
— Rakítin sabe. É muito culto. Que o diabo o carregue! Não se fará monge. Quer ir para Petersburgo fazer crítica, mas de tendência moral. Pois bem! Pode ser útil, tornar-se alguém. É um ambicioso! Ao diabo a ética! Estou perdido, Aliócha, homem de Deus! Amo-te mais do que a todos. Meu coração bate, quando penso em ti. Quem é Carl Bernard?
— Carl Bernard?
— Não, Carl não, Claude Bernard.[ 129 ] Um químico, não?
— Ouvi dizer que é um sábio, não sei de mais nada a seu respeito.
— Ao diabo! Também eu nada sei. É provavelmente algum canalha, são todos canalhas. Mas Rakítin irá longe. Mete-se em toda parte, é também um Bernard. Oh, esses Bernard! Pululam.
— Mas que tens, afinal?
— Quer ele escrever um artigo a meu respeito e estrear assim na literatura, eis por que vem ver-me, ele mesmo o declarou. Um artigo de tese: “Tinha de matar, é uma vítima do meio”, etc. Haverá, diz ele, um matiz de socialismo. O diabo o carregue! Quanto a mim, pouco me importa! Não gosta de Ivan, detesta-o, tu também não lhe és simpático. Não o ponho para fora, ele tem espírito, mas que orgulho! Dizia-lhe eu ainda há pouco: “Os Karamázov não são” canalhas, são filósofos, como todos os verdadeiros russos; mas tu, malgrado teu saber, não és um filósofo, não passas de um labrego.” Riu-se maldosamente. E eu acrescentei: de opinionibus non est disputandum.[ 130 ] Também sou clássico — concluiu Mítia, disparando a rir.
— Mas por que estás perdido? Disseste ainda há pouco.
— Por que estou perdido? Hum, no fundo... se se toma a coisa em conjunto, lamento Deus, eis tudo.
— Que queres dizer?
— Imagina, na cabeça, isto é, no cérebro, há nervos... esses nervos têm fibras e vibram... vês, olho alguma coisa, assim, e elas vibram, essas fibras... e assim que elas vibram forma-se uma imagem, não imediatamente, mas ao fim dum instante, dum segundo, e forma-se um momento, isto é, não um momento — que o diabo o leve! —, mas um objeto ou uma ação; eis como se efetua a percepção, o pensamento vem em seguida... porque tenho fibras, e não porque tenho uma alma e fui criado à imagem de Deus; que bobagem! Mikhail explicava-me isso, ainda ontem, e enchia-me de ardor. Que bela coisa a ciência, Aliócha! O homem se transforma, compreendo-o... No entanto, lamento Deus!
— Já é uma boa coisa — disse Aliócha.
— Lamentar eu Deus? A química, irmão, a química! Não há nada a fazer, Vossa Reverendíssima, afaste-se um pouco, é a química que passa! Rakítin não ama Deus. Oh, não, não o ama! É o ponto fraco deles todos! Mas ocultam-no, mentem. “Pois bem, exporás essas ideias na rubrica da crítica?”, perguntei-lhe. “Não, não me deixarão fazê-lo”, continuou ele, rindo. “Mas, então, que se tornará o homem, sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido, por consequência, tudo é lícito?” — “Não o sabias? Para um homem de talento, tudo é permitido, sabe sempre tirar-se de apertos. Mas tu, tu mataste, tu te deixaste apanhar e agora apodreces em cima da palha.” Eis o que ele me disse, o porco. Outrora, punha para fora indivíduos como esse, agora os escuto. Aliás, diz ele coisas sensatas e escreve bem. Começou, há oito dias, a ler-me um artigo; tomei nota de três linhas, espera, ei-las.
Mítia tirou vivamente do bolso um papel e leu: “Para resolver essa questão, é preciso pôr sua pessoa em oposição à sua atividade.”
— Compreendes ou não?
— Não, não compreendo — disse Aliócha.
Olhava Mítia e escutava-o com curiosidade.
— Eu tampouco. Não é claro, mas tem espírito. “Todos, diz ele, escrevem assim, atualmente, vem do meio ambiente...” Faz também versos o tratante. Cantou os pés da Khokhlakova, ah!, ah!, ah!
— Ouvi falar disso — disse Aliócha.
— Sim? Mas conheces os versos?
— Não.
— Tenho-os, vou lê-los. Não sabes, mas é uma verdadeira história! Canalha! Há três semanas, imaginou ele mexer comigo. “Deixaste-te apanhar como um imbecil, por três mil rublos, mas eu vou recolher 150 mil, caso com uma viúva e comprarei uma casa de pedra em Petersburgo, começarei a publicar um jornal.” E a boca se lhe enche d’água, não por causa da Khokhlakova, mas dos 150 mil rublos. Estava seguro de si, vinha ver-me todos os dias: “Ela está cedendo”, dizia ele, radiante. E eis que o põem para fora; Pierkhótin, Piotr Ilitch passou-lhe a perna, viva! Beijarei de boa vontade aquela perua por havê-lo despachado. Foi na ocasião em que havia ele escrito esses versos. “Pela primeira vez, diz ele, rebaixo-me a escrever versos, para seduzir, portanto com um fim útil. De posse do capital duma idiota, posso tornar-me útil à sociedade.” A utilidade pública serve de desculpa a essa gente para todas as baixezas! “E, no entanto, diz ele, escrevi coisa melhor que Púchkin, porque soube exprimir, em versos brincalhões, minha tristeza cívica.” Compreendo o que diz ele de Púchkin. Por que limitar-se a descrever pés, se tinha verdadeiramente talento? Como estava orgulhoso de seus versos! Ah, o amor-próprio dos poetas! “Pelo restabelecimento do pé do objeto amado”, eis o título que aquele pândego imaginou!
Seu encantador pezinho
Inchou, lhe dói um pouquinho.
Vêm doutores torturá-lo,
Todos no afã de curá-lo.
Não vou seu pé lamentar,
Púchkin o há de cantar,
Lamento-lhe a cabecinha.
A toda ideia durinha.
Já começava a entender
Quando o pé veio a doer.
Que o pé se restabeleça
E entre a ideia na cabeça.
“Um verdadeiro porco, mas seus versos são divertidos, patife! E misturou-lhes deveras uma tristeza cívica. Estava furioso por ter sido despedido. Rangia os dentes”.
— Já se vingou — disse Aliócha. — Escreveu um artigo a respeito da senhora Khokhlakova.
E Aliócha contou-lhe o que aparecera no jornal Boatos.
— Foi ele, é bem dele! — confirmou Mítia, franzindo o cenho. — Esses artigos... eu sei... quantas infâmias já foram escritas a respeito de Grúchenhka, por exemplo!... E a respeito de Kátia, também... Hum!
Pôs-se a andar pelo quarto com ar preocupado.
— Irmão, não posso ficar muito tempo — disse Aliócha, após um silêncio. — Amanhã será um dia terrível para ti. Vai-se cumprir o julgamento de Deus... e admira-me que, em lugar de coisas sérias, fales de bagatelas...
— Não, não te espantes. Devo falar daquele cão fedorento? Do assassino? Conversamos de sobra a respeito dele! Que não se fale mais de Smierdiákov, aquele fedorento filho de uma fedorenta! Deus o castigará, hás de ver!
Aproximou-se de Aliócha, beijou-o com emoção. Seus olhos cintilavam.
— Rakítin não compreenderia isso, mas tu, tu compreendes tudo: por isso esperava-te com impaciência. Vês, queria, há muito tempo, dizer-te muitas coisas, entre estas paredes degradadas, mas calava o essencial, o momento não parecia ter ainda chegado. Esperei a derradeira hora para expandir-me. Meu irmão, senti nascer em mim, desde minha prisão, um novo ser; um homem novo ressuscitou! Existia em mim, mas nunca se teria revelado se o raio não o tivesse atingido. Que me importa, a mim, cavar durante vinte anos nas minas? Isso não me amedronta, mas temo outra coisa agora: que esse homem ressuscitado se retire de mim! Pode-se encontrar também nas minas, em um forçado e em um assassino, um coração de homem e entrar em entendimento com ele, porque ali também se pode amar, viver e sofrer! Pode-se reanimar o coração entorpecido de um forçado, cuidar dele, trazer afinal da cova para a luz uma alma grande, regenerada pelo sofrimento, ressuscitar um herói! Ora, há centenas deles e somos todos culpados para com eles. Por que pensei então no neném, em tal momento? Era uma profecia. Irei por causa do neném. Porque todos são culpados para com todos. Todos são nenéns, há crianças grandes e pequenas. Irei por causa delas, é preciso que alguém se devote por todos. Não matei meu pai, mas aceito a expiação. Foi aqui, entre estas paredes degradadas, que tive consciência de tudo isso. Há muitos, centenas sob a terra, de martelo na mão. Sim, estaremos acorrentados, privados de liberdade, mas, em nossa dor, ressuscitaremos para a alegria, sem a qual o homem não pode viver nem Deus existir, porque é Ele quem a dá. Esse é o Seu grande privilégio, Senhor, que o homem se consuma na oração! Como viverei sob a terra sem Deus? Rakítin mente; se expulsam Deus da Terra, nós o reencontraremos sob a terra! Um forçado não pode passar sem Deus, ainda menos que um homem livre. E então nós, os homens subterrâneos, cantaremos das entranhas da terra um hino trágico ao Deus da alegria! Viva Deus e Sua alegria divina! Eu O amo!
Ao declamar essa tirada estranha, Mítia estava quase sufocado. Empalidecera, seus lábios tremiam, lágrimas lhe corriam pelas faces.
— Não, a vida está cheia, a vida extravasa mesmo sob a terra! Não podes crer, Aliócha, como quero viver agora, a que ponto a sede da existência apoderou-se de mim, precisamente entre estas paredes degradadas! Rakítin não compreende isso, só pensa em construir uma casa, em pôr nela locatários, mas eu te esperava. Que é o sofrimento? Não o temo, fosse ele infinito. Outrora o temia. Pode acontecer que não responda a nada no tribunal... Com a força que sinto em mim, creio-me em condições de dominar todos os sofrimentos, contanto que possa dizer a mim mesmo a cada instante: existo! Em meio aos tormentos, crispado pela tortura, existo! Amarrado ao pelourinho, existo ainda, vejo o sol, e, se não o vejo, sei que ele é luz. E saber isso é já toda a vida. Aliócha, meu querubim, a filosofia me mata, que o diabo a leve! Nosso irmão Ivan...
— Que há com Ivan? — interrompeu Aliócha, mas Mítia não ouviu.
— Vês, outrora, não tinha todas essas dúvidas, ocultava-as dentro de mim. Foi justamente talvez porque ideias desconhecidas referviam em mim que eu me embriagava, batia-me, arrebatava-me: era para dominá-las, esmagá-las. Nosso irmão Ivan não é como Rakítin, oculta seus pensamentos; é uma esfinge, cala-se sempre. Mas Deus me atormenta, não penso senão nisso. Que fazer, se Deus não existe? Rakítin tem razão de pretender que é uma ideia forjada pela humanidade? Nesse caso, o homem seria o rei da Terra, do Universo. Muito bem! Somente, como será ele virtuoso sem Deus? Pergunto a mim mesmo. Com efeito, a quem amará o homem então? A quem cantará hinos de reconhecimento? Rakítin ri, diz que se pode amar a humanidade sem Deus. Aquele fedelho pode afirmar isso, eu não posso compreendê-lo. A vida é fácil para Rakítin: “Ocupa-te antes — dizia-me hoje — com estender os direitos cívicos ou impedir a alta da carne; dessa maneira, servirás melhor a humanidade e a amarás mais que com toda a tua filosofia.” Ao que lhe respondi: “Tu mesmo, não acreditando em Deus, elevarás o preço da carne, se houver oportunidade, e ganharás um rublo em vez dum copeque.” Zangou-se. Com efeito, que é a virtude? Responde-me, Alieksiêi. Não represento para mim a virtude como um chinês, é pois uma coisa relativa? Ou então, não é relativa? Questão insidiosa! Não rirás se te disser que isso me impediu de dormir durante duas noites? Admira-me que se possa viver sem pensar nisto. Vaidade! Para Ivan, não há Deus. Ele tem uma ideia. Uma ideia acima de meu alcance. Mas não a diz. Penso que ele é franco-maçom. Interroguei-o, não me deu resposta. Teria querido beber da água de sua fonte, ele se cala. Uma vez somente falou.
— Que disse?
— Perguntava-lhe: “Então, tudo é permitido?” Ele franziu a testa: “Fiódor Pávlovitch, nosso pai — disse ele —, era um porco, mas raciocinava certo.” Eis suas palavras. É mais claro que Rakítin...
— Sim — disse Aliócha, com amargura.
— Voltaremos a isso. Quase não te tenho falado de Ivan até o presente. Esperei até o fim. Uma vez terminada a peça e pronunciada a sentença, contar-te-ei tudo. Há uma coisa terrível, para a qual serás meu juiz. Mas agora, nem mais uma palavra a respeito. Falas do julgamento de amanhã, acreditarias?, não sei de nada.
— Falaste com aquele advogado?
— De que serve? Contei-lhe tudo. Um manso velhaco da capital, um Bernard! Não crê numa palavra do que lhe digo. Pensa que sou culpado, imagina, vejo-o bem! “Então, por que veio defender-me?”, perguntei-lhe. Pouco me importa essa gente! E os médicos quereriam fazer-me passar por louco. Não o permitirei! Katierina Ivânovna quer cumprir “seu dever” até o fim. Com rigor! (Mítia sorriu amargamente.) É cruel como uma gata. Sabe que eu disse em Mókroie que tinha ela grandes cóleras! Contaram-lhe. Sim, os depoimentos multiplicaram-se ao infinito. Grigóri mantém o que disse: é honesto, mas imbecil. Há muitas pessoas honestas por imbecilidade. É uma ideia de Rakítin. Grigóri me é hostil. Valeria melhor ter tal pessoa por inimiga que por amiga. Digo isso a propósito de Katierina Ivânovna. Tenho muito medo de que ela fale no tribunal da saudação até o chão que ela me fez, quando lhe emprestei os 4.500 rublos! Há de querer pagar até o derradeiro vintém. Não quero seus sacrifícios! Terei vergonha disso no tribunal! Vá vê-la, Aliócha, pede-lhe que não fale disso. Ou então será impossível? Que diabo, não importa, aguentarei! Não a lastimo. É ela que o quer. O ladrão só terá aquilo que merece. Farei um discurso, Alieksiêi. (Sorriu de novo, amargamente.) Somente, somente, há Grúchenhka, Senhor! Por que sofre ela tanto, agora? — exclamou ele, com lágrimas. — Pensar nela é o que me mata. Estava aqui ainda há pouco...
— Contou-me. Causaste-lhe muito pesar hoje.
— Sei. Que o diabo me leve por causa de meu gênio! Fiz-lhe uma cena de ciúmes. Estava arrependido, quando ela partiu, beijei-a. Mas não lhe pedi perdão.
— Por quê?
— Mítia pôs-se a rir alegremente.
— Que Deus te preserve, meu caro, de pedir alguma vez perdão a uma mulher amada! Sobretudo a uma mulher amada, e quaisquer que sejam teus agravos a ela! Porque a mulher, meu irmão, quem diabo sabe o que é? Eu, em todo caso, conheço as mulheres! Tenta pois reconhecer teus erros — “É culpa minha, perdão, desculpa-me” — sofrerás uma saraivada de censuras! Jamais um perdão franco, simples; começará por humilhar-te, envilecer-te, censurar-te-á agravos imaginários, e somente então te perdoará. E ainda é a melhor dentre elas! Não perdoará as menores coisas. Tal é a ferocidade de todas, sem exceção, desses anjos sem os quais não poderíamos viver! Vês tu, meu caríssimo, digo-o francamente: todo homem decente deve estar sob a chinela duma mulher. É minha convicção, ou antes, meu modo de sentir. O homem deve ser generoso; isso não rebaixa. Mesmo um herói, mesmo César. Mas nunca peças perdão, a nenhum preço. Lembras-te dessa máxima, vem de teu irmão Mítia, a quem as mulheres botaram a perder. Não, repararei meus agravos a Grúchenhka, mas sem pedir-lhe perdão. Venero-a, Alieksiêi, mas não o nota ela; pensa que nunca a amo bastante. Faz-me sofrer com esse amor. Antes, sofria eu com suas sinuosidades pérfidas, agora formamos uma só alma e por ela tornei-me um homem. Ficaremos juntos? Se não, morrerei de ciúme... Já penso nisso cada dia... Que te disse ela de mim?
Aliócha repetiu-lhe o que Grúchenhka dissera. Mítia escutou atentamente e ficou satisfeito.
— Então, não está zangada pelo fato de ser eu ciumento! Eis bem a mulher! “Também eu tenho um coração duro.” Gosto dessas naturezas, se bem que não suporte o ciúme! Brigaremos, mas a amarei sempre. Será que os forçados podem casar-se? Não posso viver sem ela...
Mítia andou pelo quarto, com os supercílios franzidos. Já quase não se enxergava. De repente, pareceu preocupado.
— Então, diz ela que há um segredo? Uma conspiração a três contra ela, com Katka? Pois bem! Não, não é isso. Grúchenhka enganou-se como uma tola. Aliócha querido, tanto pior... Vou revelar-te nosso segredo.
Mítia olhou para todos os lados, aproximou-se de Aliócha, pôs-se a falar-lhe em voz baixa, se bem que, na realidade, ninguém pudesse ouvi-los; o velho guarda dormitava num banco, os soldados de serviço estavam bastante afastados.
— Vou-te revelar nosso segredo — disse ele à pressa. — Iria fazê-lo depois, porque posso eu tomar uma decisão sem ti? És tudo para mim. Ivan nos é superior, mas tu vales mais que ele. Somente tu decidirás. Talvez sejas mesmo superior a Ivan. Vês, é um caso de consciência, um negócio tão importante que não posso resolvê-lo eu mesmo sem teu conselho. No entanto, é ainda demasiado cedo para um pronunciamento; é preciso esperar o julgamento. Tu decidirás em seguida a respeito de minha sorte. Agora, contenta-te em escutar-me, mas não digas nada. Expor-te-ei somente a ideia, deixando de lado os detalhes. Mas nada de perguntas, não te mexas, está entendido? E teus olhos que eu esquecia! Lerei neles tua decisão, mesmo que não fales. Oh, tenho medo! Escuta, Aliócha: Ivan propõe que eu fuja. Passo por cima dos detalhes; tudo está previsto, tudo pode arranjar-se. Cala-te. Na América, com Grucha, porque não posso viver sem ela... E se não a deixam seguir-me? Será que os forçados podem casar-se? Ivan diz que não. Que farei sem Grucha, debaixo da terra, com uma marreta? Só serviria para partir com ela minha cabeça! Mas, por outro lado, a consciência. Furto-me ao sofrimento, desvio-me da via de purificação que se oferecia a mim. Ivan diz que, na América, com boa vontade, pode a gente ser mais útil que nas minas. Mas que virá a ser então de nosso hino subterrâneo? A América é ainda vaidade! E há também, eu penso, muita desonestidade em partir para a América. Escapo à expiação! Eis por que te digo, Aliócha, só tu podes compreender isso; para os outros, tudo quanto te disse do hino são tolices, delírio. Tratar-me-ão de louco ou de imbecil. Ora, não sou uma coisa nem outra. Ivan também compreende o hino, decerto, mas cala-se. Não crê nele. Não fala, não fala; vejo, por teu olhar, que já decidiste. Poupa-me, não posso viver sem Grucha, espera até o julgamento.
Mítia acabou com um ar desvairado. Segurava Aliócha pelos ombros, fixava-o com o olhar ávido, ardente.
— Podem os forçados casar-se? — repetiu ele pela terceira vez, com voz suplicante.
Aliócha, muito comovido, escutava com profunda surpresa.
— Dize-me — perguntou ele —, é verdade que Ivan insiste muito? Quem teve primeiro essa ideia?
— Foi ele. Ele insiste! Não o via, veio de repente, há uma semana, e começou por aí. Não propõe, ordena. Não duvida de minha obediência, se bem que lhe tenha eu aberto meu coração como a ti e falado do hino. Expôs-me seu plano, reuniu as informações, mas voltarei a isso. Ele o quer ardentemente. E, sobretudo, oferece dinheiro: dez mil rublos para fugir, vinte mil na América; pretende que se pode muito bem organizar a fuga com dez mil rublos.
— E recomendou-te que não me falasses?
— A ninguém e sobretudo a ti. Tem medo que sejas como minha consciência viva. Não lhe digas que te pus a par, rogo-te!
— Tens razão, é impossível decidir antes da sentença. Depois do julgamento, verás tu mesmo; haverá em ti um homem novo que decidirá.
— Um homem novo, ou um Bernard, que decidirá como Bernard! Assim, parece-me ser eu mesmo um vil Bernard — disse Mítia, com um sorriso amargo.
— Será possível, meu irmão, que não esperes justificar-te amanhã?
Mítia ergueu os ombros, abanou a cabeça negativamente.
— Aliócha — disse de repente —, está na hora de ires. Acabo de ouvir o inspetor no pátio; vai chegar aqui, estamos atrasados, é desordem. Beija-me depressa, faze sobre mim o sinal da cruz para o calvário de amanhã...
Abraçaram-se e beijaram-se.
— E Ivan, que me propõe a fuga, ele próprio acredita que eu matei.
Triste sorriso desenhou-se em seus lábios.
— Perguntaste-lhe?
— Não. Queria perguntar-lhe, mas não tive coragem. Aliás, compreendi-o por seu olhar. Então, adeus!
Beijaram-se de novo. Aliócha ia sair, quando Mítia o chamou.
— Fica assim diante de mim, assim.
Pegou de novo Aliócha pelos ombros. Seu rosto tornou-se muito pálido, seus lábios se contraíram, seu olhar sondava o irmão.
— Aliócha, dize-me toda a verdade, como diante de Deus. Crês que eu matei? A verdade inteira, não mintas!
Aliócha cambaleou, sentiu um aperto no coração.
— Basta! Que dizes?... — murmurou como desvairado.
— Toda a verdade, não mintas!
— Jamais cri um só instante que sejas um assassino! — exclamou com voz trêmula Aliócha, que levantou a mão como para tomar a Deus por testemunha. Uma expressão de felicidade pintou-se no rosto de Mítia.
— Obrigado — disse, suspirando, como depois de um desmaio. — Restituíste-me a vida... Acreditas? Até agora temia perguntar-te, a ti, a ti! Vá, agora, vá! Tu me fortificaste para amanhã. Que Deus te abençoe! Retira-te, ama Ivan!
Aliócha saiu todo choroso. Semelhante desconfiança da parte de Mítia, mesmo para com ele, revelava um desespero que ele jamais suspeitara que fosse tão profundo em seu desgraçado irmão. Infinita compaixão apoderou-se dele. Estava profundamente magoado. “Ama Ivan!” Lembrou-se de súbito dessas derradeiras palavras de Mítia. Ia precisamente à casa de Ivan, a quem queria ver desde a manhã. Ivan inquietava-o tanto quanto Mítia, e agora mais do que nunca, após aquela entrevista.
V
Não foste tu!
Para ir à casa do irmão, tinha de passar por diante da casa onde morava Katierina Ivânovna. As janelas estavam iluminadas. Parou e resolveu entrar. Não havia visto Katierina fazia mais de uma semana e pensou que Ivan estivesse talvez em casa dela, sobretudo na véspera dum dia tão importante. Na escada, fracamente iluminada por uma lanterna chinesa, cruzou com um homem em quem reconheceu o irmão.
— Ah, és tu? — disse secamente Ivan Fiódorovitch. — Adeus. Vais à casa dela?
— Sim.
— Não te aconselho. Está agitada, tu a perturbarás ainda mais.
— Não, não — gritou uma voz no alto da escada. — Alieksiêi Fiódorovitch, acaba de vê-lo?
— Sim, vi-o.
— Manda ele dizer-me alguma coisa? Entre, Aliócha, e você também, Ivan Fiódorovitch, volte sem demora. Estão ouvindo?
A voz de Kátia era tão imperiosa que Ivan, após um instante de hesitação, decidiu-se a subir de novo com Aliócha.
— Ela estava escutando! — murmurou ele, agitado, consigo mesmo, mas Aliócha o ouviu.
— Permita que conserve meu sobretudo — disse Ivan, ao entrar no salão. — Ficarei apenas um minuto.
— Sente-se, Alieksiêi Fiódorovitch — disse Katierina Ivânovna, que ficou de pé. Não havia mudado, mas seus olhos sombrios brilhavam com um clarão mau. Aliócha lembrou-se mais tarde de que ela lhe parecera particularmente bela naquele instante.
— Que me manda ele dizer?
— Somente isto — disse Aliócha, olhando-a de frente: — Que a senhora se poupe e não fale no tribunal do que (hesitou um pouco)... se passou entre vocês... por ocasião do primeiro encontro.
— Ah! De minha saudação até o chão por causa do dinheiro? — disse ela, com um riso amargo. — Teme por si ou por mim? Quer que eu poupe a quem, afinal? A ele ou a mim? Fale, Alieksiêi Fiódorovitch.
Aliócha olhava-a atentamente, esforçando-se por compreendê-la.
— À senhora e a ele.
— É isso — disse ela com maldade e corou. — Você não me conhece ainda, Alieksiêi Fiódorovitch. Eu tampouco me conheço. Talvez venha a detestar-me, depois do interrogatório de amanhã.
— A senhora deporá com lealdade — disse Aliócha. — É o que é preciso.
— A mulher nem sempre é leal. Há uma hora, temia o contato daquele monstro como o de um réptil... entretanto, é ele sempre um ser humano para mim. Mas é um assassino? Foi ele quem matou!? — exclamou ela, voltando-se para Ivan. Aliócha compreendeu logo que ela já lhe havia feito aquela pergunta antes de sua chegada, pela centésima vez talvez, e que haviam brigado. — Fui à casa de Smierdiákov... Foste tu que me persuadiste de que ele é um parricida. Acreditei em ti!
Ivan sorriu constrangido. Aliócha estremeceu ouvindo aquele “em ti”. Não suspeitava de tal intimidade.
— Pois bem! Basta — cortou Ivan. — Vou-me embora. Até amanhã.
Saiu, dirigindo-se para a escada. Katierina Ivânovna agarrou imperiosamente as mãos de Aliócha.
— Siga-o! Alcance-o! Não o deixe só um instante. Está louco. Não sabe que ele ficou louco? Está com febre nervosa. O médico me disse, vá, corra...
Aliócha precipitou-se atrás de Ivan Fiódorovitch, que não havia dado ainda cinquenta passos.
— Que queres? — disse ele, voltando-se para Aliócha. — Ela te mandou seguir-me, porque estou louco. Sei isso de cor — acrescentou ele, irritado.
— Ela se engana, decerto, mas diz com razão que estás doente. Examinava-te ainda há pouco, tens o rosto desfeito, Ivan.
Ivan continuava andando, Aliócha seguia-o.
— Sabes, Alieksiêi Fiódorovitch, como é que se fica louco? — perguntou Ivan, num tom calmo, em que transparecia curiosidade.
— Não, ignoro-o; penso que há muitos gêneros de loucura.
— Pode uma pessoa perceber por si mesma que está ficando louca?
— Penso que a pessoa não pode observar-se em semelhante caso — respondeu Aliócha, surpreso. Ivan calou-se um instante.
— Se queres conversar comigo, mudemos de conversa — disse ele, de repente.
— Com medo de esquecê-la, eis aqui uma carta para ti — disse timidamente Aliócha, estendendo-lhe a carta de Lisa. Aproximavam-se dum lampião. Ivan reconheceu a letra.
— Ah, é daquela diabinha! — Deu uma risada má e, sem abri-la, rasgou a carta em pedaços, que se dispersaram ao vento.
— Ainda não tem 16 anos e já se oferece — disse, num tom cheio de desprezo.
— Como se oferece ela!? — exclamou Aliócha.
— Ora essa, como as mulheres corrompidas.
— Que estás dizendo, Ivan? — protestou Aliócha, cheio de dor. — É uma criança, tu insultas uma criança! Ela também está muito doente, talvez também se torne louca. Tinha de entregar-te sua carta... Queria eu, pelo contrário, que me explicasses... para salvá-la.
— Nada tenho a explicar-te. Se é uma criança, não sou eu sua babá. Cala-te, Alieksiêi, não insistas. Nem mesmo penso nisso.
Houve novo silêncio.
— Ela vai rezar à Virgem todas as noites para saber o que deve fazer amanhã — continuou ele, num tom maldoso.
— Tu... falas de Katierina Ivânovna?
— Sim. Aparecerá ela para salvar Mítia ou para perdê-lo? Rezará para ser esclarecida. Não sabe ainda, vê, não tendo tido ainda tempo de se preparar. Outra ainda que me toma por ama de leite, quer que eu a acalente.
— Katierina Ivânovna te ama, meu irmão — disse tristemente Aliócha.
— É possível. Mas a mim ela não agrada.
— Ela sofre. Por que então dizer-lhe... por vezes, palavras que lhe dão esperança? — prosseguiu timidamente Aliócha. — Sei que o fizeste, perdoa-me se falo assim.
— Não posso fazer o que seria preciso, romper e falar-lhe de coração aberto! — disse Ivan, com arrebatamento. — É preciso esperar que o assassino seja julgado. Se romper com ela agora, botará a perder amanhã, por vingança, aquele desgraçado, porque ela o odeia e tem consciência disso. Aqui, é mentira sobre mentira! Enquanto ela conservar esperança, não botará a perder aquele monstro, sabendo que eu quero salvá-lo. Ah, quando será pronunciada essa maldita sentença!
As palavras “assassino” e “monstro” tinham impressionado dolorosamente Aliócha.
— Mas como poderia ela perder o nosso Mítia? Em que é de temer seu depoimento?
— Não o sabes ainda. Tem em suas mãos um documento escrito por Mítia demonstrando que foi ele quem matou Fiódor Pávlovitch.
— É impossível! — exclamou Aliócha.
— Impossível, como? Eu mesmo o li.
— Não pode existir semelhante documento! — repetiu Aliócha com ardor. — Não pode existir, porque não foi Mítia o assassino. Não foi ele quem matou nosso pai.
Ivan parou.
— Quem então o matou, em tua opinião? — perguntou ele friamente. Havia arrogância na voz.
— Tu mesmo sabes quem — disse mansamente e num tom penetrante Aliócha.
— Quem? Essa fábula a respeito daquele idiota epiléptico, Smierdiákov?
— Tu mesmo sabes quem... — deixou Aliócha escapar, já sem forças. Ofegava, tremia.
— Mas quem então, quem? — gritou Ivan, cheio de raiva. Não era mais senhor de si.
— Só sei uma coisa — disse Aliócha, em voz baixa. — Não foste tu que mataste o pai. Estou certo disso.
— Que queres dizer com estas palavras: “Não foste tu”? — perguntou Ivan, estupefato.
— Não foste tu que mataste, não foste tu! — repetiu com firmeza Aliócha. Houve um silêncio.
— Mas sei bem que não fui eu, estás delirando? — disse Ivan, pálido, com um sorriso que era mais uma careta. Encarava Aliócha. Encontravam-se de novo perto de um lampião.
— Não, Ivan, disseste a ti mesmo várias vezes que eras tu o assassino.
— Quando o disse?... Estava em Moscou... Quando o disse? — repetiu Ivan, perturbado.
— Tu o disseste a ti mesmo muitas vezes, quando ficavas sozinho, durante aqueles dois terríveis meses — disse Aliócha brandamente. Dir-se-ia que falava, malgrado seu, obedecendo a uma ordem imperiosa. — Tu te acusaste, reconheceste que o assassino não era outro senão tu. Mas enganas-te, não és tu, tu me entendes? Não és tu! É Deus quem me envia para dizer-te.
Ambos se calaram durante um minuto. Pálidos, fitavam-se bem nos olhos. De súbito, Ivan estremeceu, agarrou Aliócha pelo ombro.
— Estavas em minha casa! — cochichou ele, com os dentes cerrados. — Estavas em minha casa, à noite, quando ele veio... Confessa-o... Viste-o?
— De quem falas... de Mítia? — perguntou Aliócha, que não compreendia.
— Dele, não... ao diabo o monstro! — vociferou Ivan. — Será que sabes que ele veio ver-me? Como o soubeste? Fala!
— “Ele” quem? Ignoro a quem te referes — disse Aliócha, aterrorizado.
— Não, tu sabes... senão como é que tu... não podes deixar de saber...
Mas conteve-se. Parecia meditar. Um sorriso estranho pregueava-lhe os lábios.
— Meu irmão — prosseguiu Aliócha, com voz trêmula —, disse-te isso porque crês em minha palavra, eu o sei. Disse-te duma vez para sempre: “Não foste tu!” Ouves? Duma vez para sempre. E foi Deus quem me inspirou, ainda que tenhas de odiar-me doravante.
Mas Ivan voltara a dominar-se.
— Alieksiêi Fiódorovitch — disse ele, com um sorriso frio —, não gosto nem dos profetas nem dos epilépticos, sobretudo dos enviados de Deus, você bem o sabe. Desde agora, rompo com você e, sem dúvida, para sempre. Rogo-lhe que me deixe nesta encruzilhada. De resto, aqui está a rua que leva à sua casa. Sobretudo, evite vir à minha casa hoje, ouviu?
Voltou-se e afastou-se a passos firmes, sem se voltar.
— Meu irmão — gritou-lhe Aliócha —, se te acontecer alguma coisa hoje, pensa em mim!...
Ivan não respondeu. Aliócha ficou na encruzilhada, perto do lampião, até que Ivan desapareceu na escuridão. Retomou então lentamente o caminho de sua residência. Nem ele nem Ivan tinham querido morar na casa solitária de Fiódor Pávlovitch. Aliócha alugava um quarto mobiliado em casa de particulares. Ivan Fiódorovitch ocupava um apartamento espaçoso e bastante confortável na ala duma casa que pertencia a uma senhora abastada, viúva de um funcionário. Tinha para servi-lo apenas uma velha surda, entrevada de reumatismo, que se deitava e se levantava às seis horas. Ivan Fiódorovitch tornou-se muito pouco exigente durante aqueles dois meses e gostava muito de ficar sozinho. Ele mesmo arrumava seu quarto e ia raramente às outras peças. Tendo chegado ao portão e já segurando o cordão da sineta, parou. Sentia-se sacudido por um arrepio de cólera. Largou o cordão, cuspiu e dirigiu-se bruscamente para o outro extremo da cidade, para uma casinha de madeira empenada, a duas verstas de sua residência. Era ali que morava Mária Kondrátieva, a antiga vizinha de Fiódor Pávlovitch, que ia à casa dele buscar sopa e à qual Smierdiákov cantava canções, acompanhando-se na guitarra. Vendera sua casa e vivia com a mãe numa espécie de isbá; Smierdiákov, doente e quase moribundo, instalara-se em casa delas. Era para lá que se dirigia agora Ivan Fiódorovitch, cedendo a um impulso súbito, irresistível.
VI
Primeira conversa com Smierdiákov
Era a terceira vez que Ivan Fiódorovitch ia conversar com Smierdiákov, desde seu regresso de Moscou. Vira-o após o drama, no primeiro dia de sua chegada, depois visitou-o duas semanas após. Mas, havia mais de um mês, não voltara à casa de Smierdiákov e não sabia quase nada dele. Ivan Fiódorovitch voltara de Moscou cinco dias somente após a morte do pai, enterrado na véspera. Com efeito, ignorando Aliócha o endereço do irmão em Moscou, recorrera a Katierina Ivânovna, que telegrafou a suas parentas, na ideia de que Ivan Fiódorovitch fora visitá-las assim que chegara. Mas só as visitou quatro dias mais tarde e, depois de ter lido o telegrama, regressou às pressas para nossa cidade. Conversou em primeiro lugar com Aliócha, ficando surpreso por vê-lo afirmar a inocência de Mítia e designar Smierdiákov como o assassino, contrariamente à opinião geral. Depois de ter visto o isprávnik e o procurador, tomou conhecimento, com detalhes, da acusação e do interrogatório; ficou mais espantado ainda e atribuiu a opinião de Aliócha unicamente a seu extremo afeto fraternal, à compaixão que Mítia lhe inspirava. A esse propósito, expliquemos de uma vez por todas os sentimentos de Ivan por seu irmão Dimítri Fiódorovitch; decididamente não gostava dele, a compaixão que ele lhe inspirava misturava-se a muito desprezo, indo até a aversão. Mítia era-lhe totalmente antipático, até mesmo fisicamente. Quanto ao amor de Katierina Ivânovna por ele, causava indignação a Ivan. Vira Mítia no primeiro dia de sua chegada, e essa entrevista, longe de enfraquecer sua convicção de culpabilidade, havia-a fortificado. Seu irmão estava então inquieto, numa agitação doentia, falava muito, mas distraído e desorientado, exprimia-se com brusquidão, acusava Smierdiákov, atrapalhava-se terrivelmente. Falava sobretudo dos três mil rublos “roubados” pelo defunto. “Aquele dinheiro me pertencia — afirmava Mítia. — Mesmo se eu o tivesse roubado, teria sido justo.” Não respondia quase às acusações que se elevavam contra ele, e se discutia os fatos em seu favor era duma maneira confusa, canhestra, como se não quisesse mesmo justificar-se aos olhos de Ivan; pelo contrário, zangava-se, desdenhava as acusações, invectivava, acalorava-se. Zombava do testemunho de Grigóri relativo à porta aberta, assegurava que era “o diabo quem a tinha aberto”. Mas não podia explicar esse fato de maneira plausível. Havia mesmo ofendido Ivan, por ocasião dessa primeira conversa, declarando-lhe bruscamente que não cabia aos que sustentavam que “tudo é permitido” suspeitar dele e interrogá-lo. Em suma, mostrara-se bastante pouco amável com Ivan Fiódorovitch. Este, após sua conversa com Mítia, foi logo ter com Smierdiákov.
Ainda no vagão, pensava constantemente em Smierdiákov e em sua derradeira conversa na véspera da partida. Muitas coisas o perturbavam, pareciam-lhe suspeitas. Mas, no depoimento ao juiz de instrução, havia Ivan provisoriamente guardado segredo a respeito. Esperava avistar-se com Smierdiákov, que se encontrava então no hospital. O doutor Herzenstube e o médico do hospital Varvínski responderam categoricamente às perguntas de Ivan Fiódorovitch, que a epilepsia de Smierdiákov estava certificada; e pareceram mesmo surpresos de que ele lhes perguntasse se não houvera simulação no dia do drama. Deram-lhe a entender que era uma crise extraordinária, que se repetira durante vários dias, pondo em perigo a vida do doente. Agora, graças às medidas tomadas, podia-se afirmar que ele escaparia, mas, talvez, acrescentou o doutor Herzenstube, sua razão ficasse perturbada, se não para sempre, pelo menos por muito tempo. Insistindo Ivan Fiódorovitch em saber se ele estava louco no momento, responderam-lhe que sem estar ainda completamente louco, apresentava certas anomalias. Ivan Fiódorovitch resolveu dar-se conta disso pessoalmente. Foi imediatamente admitido à presença de Smierdiákov, que se encontrava num quarto separado e deitado. Um segundo leito era ocupado por um hidrópico que só poderia durar um ou dois dias e não iria atrapalhar a conversa. Smierdiákov mostrou um sorriso desconfiado à vista de Ivan Fiódorovitch, pareceu mesmo intimidado no primeiro momento, pelo menos teve Ivan essa impressão. Mas isso só durou um instante, e Smierdiákov espantou-o quase por sua calma no resto do tempo. À primeira vista, pôde Ivan Fiódorovitch convencer-se da gravidade de seu estado; estava muito fraco, falava lentamente, penosamente, emagrecera muito e amarelecera. Durante os vinte minutos que durou a conversa, queixava-se sem cessar de dores de cabeça e de lassidão em todos os membros. Seu rosto chupado de eunuco havia-se encolhido, com os cabelos revoltos nas têmporas. Somente uma mecha delgada erguia-se à guisa de topete. Mas o olho esquerdo, piscante e parecendo fazer alusão, lembrava o antigo Smierdiákov: “Dá gosto falar com um homem de espírito”, lembrou-se logo Ivan Fiódorovitch. Sentou-se a seus pés, num tamborete. Smierdiákov mexeu-se, gemendo, mas ficou em silêncio; não tinha ar de muita curiosidade.
— Podes falar-me? Não te fatigarei demais.
— Decerto — murmurou Smierdiákov, com voz fraca. — Há muito tempo que o senhor chegou? — acrescentou com condescendência, como para encorajar o visitante constrangido.
— Hoje somente... para esclarecer a trapalhada de vocês.
Smierdiákov suspirou.
— Que tens de suspirar? Sabias então? — perguntou Ivan.
— Como não o teria sabido? — disse Smierdiákov, após um silêncio. — Era claro, de antemão. Mas como prever que aquilo acabaria assim?
— Acabaria o quê? Nada de rodeios! Por que predisseste que terias uma crise logo que descesses à adega? Designaste abertamente a adega.
— Disse isso em seu depoimento? — perguntou Smierdiákov, com fleuma.
— Ainda não, mas o direi decerto. Deves-me explicações, meu amigo, e fica sabendo, meu caro, que não permitirei que brinques comigo!
— Por que brincar com o senhor, quando minha esperança está toda no senhor, como que em Deus? — proferiu Smierdiákov, sem se comover.
— Em primeiro lugar, sei que não se pode prever uma crise de epilepsia. Obtive informações, portanto é inútil fingir. Como, pois, fizeste, para me predizer o dia, a hora e até mesmo o lugar? Como podias saber de antemão que terias uma crise justamente naquela adega, se não simulaste?
— De toda maneira teria eu de ir à adega várias vezes ao dia — respondeu lentamente Smierdiákov. — Foi assim que caí do celeiro, há um ano. Bem decerto não se pode prever o dia e a hora duma crise, mas pode-se ter sempre um pressentimento.
— Ora, tu predisseste o dia e a hora!
— No que concerne à minha doença, senhor, informe-se antes junto aos médicos para saber se ela era natural ou fingida; nada mais tenho a dizer-lhe a este respeito.
— Mas a adega? Como previste a adega?
— Essa adega o atormenta! Quando ali desci, tinha medo, desconfiava, tinha medo porque, uma vez ausente o senhor, não havia mais ninguém para me ajudar. Pensava: “Vou ter um ataque, cairei ou não?” E essa apreensão provocou o espasmo na garganta... vim abaixo. Tudo isso, bem como nossa conversa, na véspera, no portão, quando lhe falava de meus temores, inclusive a adega, eu o expus com detalhes ao senhor doutor Herzenstube e ao juiz de instrução, Nikolai Parfiénovitch; ficou tudo constando dos autos. O médico do hospital, Varvínski, explicou particularmente que a apreensão mesma havia provocado a crise e o fato foi notado.
Como que esgotado pela lassidão, Smierdiákov respirou com dificuldade.
— Então, já fizeste essas declarações? — perguntou Ivan Fiódorovitch um tanto desconcertado. Queria amedrontá-lo, ameaçando-o com a divulgação de sua conversa, mas o outro tomara a dianteira.
— Que tenho a temer? Devem eles conhecer toda a verdade — disse Smierdiákov, com segurança.
— E contaste também exatamente nossa conversa perto do portão?
— Não, não exatamente.
— Disseste também que sabes simular uma crise, como disso te gabavas diante de mim?
— Não.
— Dize-me agora por que me mandavas para Tchermachniá?
— Temia que o senhor fosse para Moscou. Tchermachniá é mais perto.
— Mentes, foste tu que instaste comigo para partir; “afaste-se do pecado”, dizias.
— Foi unicamente por amizade, por devotamento, pressentindo uma desgraça e para poupá-lo. Mas minha segurança passava além da do senhor. De modo que lhe disse “afaste-se do pecado” para fazê-lo compreender que aconteceria alguma coisa e que o senhor deveria ficar para defender seu pai.
— Deverias ter me falado francamente então, imbecil!
— Como poderia fazê-lo? O medo dominava-me, e o senhor poderia ter se zangado. Podia temer, com efeito, que Dimítri Fiódorovitch fizesse escândalo e arrebatasse aquele dinheiro que considerava propriedade sua, mas quem teria crido que aquilo acabaria em um assassinato? Pensava que ele se contentaria com furtar aqueles três mil rublos ocultos sob o colchão, num envelope, mas ele assassinou. Como adivinhar, senhor?
— Então, se dizes tu mesmo que era impossível, como podia eu adivinhar e ficar? Não está claro.
— O senhor podia adivinhar pelo fato de enviá-lo eu a Tchermachniá em lugar de Moscou.
— Que é que isso prova?
Smierdiákov, que parecia muito cansado, calou-se de novo.
— O senhor podia compreender que se eu o aconselhava a ir a Tchermachniá, é que desejava tê-lo por perto, porque Moscou é longe. Sabendo que o senhor estava nas proximidades, Dimítri Fiódorovitch teria hesitado! O senhor poderia, se preciso, acorrer e defender-me, porque eu lhe havia informado que Grigóri Vassílievitch estava doente e eu receava uma crise. Ora, explicando-lhe que se poderia, por meio de sinais, penetrar em casa do defunto, e que Dimítri Fiódorovitch os conhecia graças a mim, pensei que o senhor adivinharia por si mesmo que ele se entregaria decerto a violências e que, longe de partir para Tchermachniá, o senhor ficaria.
“Ele fala sensatamente — pensava Ivan —, se bem que titubeie; por que dizia Herzenstube que tem ele o espírito transtornado?”
— Estás com astúcias comigo. O diabo te carregue! — exclamou Ivan, zangado.
— Francamente, cria então que o senhor havia adivinhado — replicou Smierdiákov, com o ar mais ingênuo.
— Nesse caso, teria eu ficado!
— Isso mesmo! Eu pensava que o senhor partia apesar de tudo para salvar-se, porque o senhor tinha medo.
— Acreditavas que todos são tão covardes como tu?
— Desculpe, pensava que o senhor era como eu.
— Decerto, era preciso prever; aliás, eu previa uma vilania de tua parte. Mas tu mentes, mentes de novo! — exclamou Ivan, impressionado por uma lembrança. — Hás de lembrar-te de que, no momento de minha partida, disseste-me: “Dá gosto conversar com um homem de espírito.” Estavas, pois, contente com minha partida, uma vez que me cumprimentavas.
Smierdiákov suspirou várias vezes e pareceu corar.
— Estava contente — disse ele com esforço —, mas unicamente porque o senhor se decidia por Tchermachniá em lugar de Moscou. É sempre mais perto; e minhas palavras não eram um cumprimento, mas uma censura. O senhor não compreendeu.
— Que censura?
— Muito embora pressentindo uma desgraça, o senhor abandonava seu pai e recusava-se a defender-nos, porque podia eu ser o suspeito de ter furtado aqueles três mil rublos.
— Que o diabo te leve! Um instante; falaste aos juízes a respeito dos sinais, daquelas pancadas?
— Expliquei-lhes tudo, sem faltar nada.
Ivan Fiódorovitch admirou-se de novo.
— Se pensei então em alguma coisa foi numa infâmia de tua parte; aliás, esperava isso. Dimítri podia matar, mas acreditava-o incapaz de roubar. Tu me disseste que sabias simular as crises. Por que disseste isso?
— Por ingenuidade. Jamais simulei a epilepsia, foi simplesmente para me gabar, por estupidez. Gostava muito do senhor então e conversava com toda a simplicidade.
— Meu irmão te acusa, diz que foste tu que mataste e roubaste.
— Decerto, que outra coisa poderá dizer? — Smierdiákov sorriu amargamente. — Mas quem acreditará em tais acusações dele? Grigóri Vassílievitch viu a porta aberta. É concludente. Enfim, que Deus o perdoe! Ele tenta salvar-se e tem medo.
Smierdiákov pareceu refletir, depois acrescentou:
— É sempre a mesma coisa; quer atirar esse crime sobre mim, já o ouvi dizer, mas teria eu prevenido o senhor de que sei simular a epilepsia, se me preparasse para matar seu pai? Planejando esse crime, poderia eu ser tão tolo a ponto de revelar de antemão tal prova e, ainda por cima, ao filho da vítima! Pense nisso! É verossímil? Nesse momento, ninguém ouve nossa conversa, exceto a Providência, mas, se o senhor a comunicasse ao procurador e a Nikolai Parfiénovitch, serviria isso para minha defesa, porque um celerado não pode ser tão ingênuo. Todos raciocinarão assim.
— Escuta — disse Ivan Fiódorovitch levantando-se, impressionado por esse último argumento. — Não suspeito de ti absolutamente. Seria ridículo acusar-te... agradeço-te mesmo teres me tranquilizado. Vou-me embora, mas voltarei. Adeus. Restabelece-te. Tens necessidade de alguma coisa?
— Agradeço-lhe. Marfa Ignatiévna não me esquece e, sempre boa, me vem em auxílio quando preciso. Pessoas de bem vêm ver-me todos os dias.
— Adeus. Aliás, não direi que sabes simular uma crise... aconselho-te também a não falar disso — disse Ivan sem saber por quê.
— Compreendo bem. Se o senhor não disser, não repetirei tampouco toda a nossa conversa junto ao portão...
Ivan Fiódorovitch saiu. Apenas dera uns dez passos no corredor, deu-se conta de que a derradeira frase de Smierdiákov tinha algo de ferino. Queria já ir-se embora, mas ergueu os ombros e saiu do hospital. Sentia-se tranquilizado pelo fato de que o culpado não era Smierdiákov, mas seu irmão Mítia, conquanto devesse ser isso precisamente o contrário, parece. Não queria procurar a razão disso, sentindo repugnância em analisar suas sensações. Tinha pressa de esquecer. Nos dias que se seguiram, convenceu-se definitivamente da culpabilidade de Mítia, estudando mais a fundo as acusações que pesavam sobre ele. Pessoas inferiores, tais como Fiénia e sua mãe, tinham prestado depoimentos perturbadores. Inútil falar de Pierkhótin, do botequim, da loja dos Plótnikovi, das testemunhas de Mókroie. Os detalhes sobretudo eram esmagadores. A história das pancadas misteriosas havia impressionado o juiz e o procurador quase tanto quanto o depoimento de Grigóri a respeito da porta aberta. Marfa Ignátievna, interrogada por Ivan Fiódorovitch, declarou-lhe que Smierdiákov passara a noite atrás do biombo, “a três passos de nosso leito”, e que, muito embora dormisse ela profundamente, despertara muitas vezes ouvindo-o gemer: “Gemia o tempo todo.” Conversando com Herzenstube, Ivan Fiódorovitch contou-lhe suas dúvidas a respeito da loucura de Smierdiákov, a quem achava simplesmente fraco, mas o velho sorriu com finura: “Sabe em que ele se ocupa agora? Aprende de cor palavras francesas escritas em letras russas num caderno, eh!, eh!, eh!” As dúvidas de Ivan Fiódorovitch desapareceram afinal. Já não podia pensar mais em Dimítri senão com desgosto. No entanto, havia uma coisa estranha: a persistência de Aliócha em afirmar que o assassino não era Dimítri, mas “muito provavelmente” Smierdiákov. Ivan sempre fizera grande caso da opinião de seu irmão e aquilo o tornava perplexo. Outra coisa estranha, notada por Ivan: Aliócha nunca era o primeiro a falar de Mítia, limitando-se a responder às perguntas dele, Ivan. Aliás, tinha Ivan outra coisa na cabeça no momento; desde seu regresso de Moscou, estava loucamente apaixonado por Katierina Ivânovna. Não é aqui o lugar para descrever essa nova paixão de Ivan Fiódorovitch, que influiu em toda a sua vida; formaria isso matéria dum outro romance que escreverei talvez um dia. Devo assinalar, em todo caso, que, quando ele declarou a Aliócha, ao sair da casa de Katierina Ivânovna: “a mim ela não agrada”, como o contei mais atrás, mentia a si mesmo; amava-a loucamente, ao mesmo tempo que a odiava por vezes, a ponto de ser capaz de matá-la. Isso ligava-se a muitas causas; transtornada pelo drama, voltara-se para Ivan Fiódorovitch, que de novo estava a seu lado, como para um salvador. Estava ofendida, humilhada em seus sentimentos, e eis que reaparecia o homem que a amava tanto antes — ela bem o sabia — e cuja inteligência e coração sempre apreciara. Mas a severa moça não se dera totalmente, malgrado a impetuosidade de seu amoroso, digna dos Karamázov, e a fascinação que ele exercia sobre ela. Ao mesmo tempo, atormentava-se sem cessar por ter traído Mítia e, por ocasião de suas frequentes discussões com Ivan, declarava-lhe isso francamente. Era o que, falando a Aliócha, chamara ela de “mentira sobre mentira”. Havia, com efeito, muita mentira nas relações deles, o que exasperava Ivan Fiódorovitch... mas não antecipemos. Em suma, por algum tempo, esqueceu-se ele quase de Smierdiákov. No entanto, duas semanas após sua primeira visita, as mesmas ideias estranhas recomeçaram a atormentá-lo. Perguntava a si mesmo muitas vezes por que, na derradeira noite, na casa de Fiódor Pávlovitch, antes de sua partida, saíra de mansinho para a escada, como um ladrão, para escutar o que fazia seu pai no rés do chão. Posteriormente, lembrou-se disso com desgosto. Sentiu-se de súbito angustiado, no dia seguinte pela manhã em viagem, e, ao aproximar-se de Moscou, dizia a si mesmo: “Sou um miserável!” Por que isso? Pensava mesmo uma vez que essas ideias penosas podiam fazer que esquecesse Katierina Ivânovna, quando encontrou Aliócha na rua. Deteve-o logo e perguntou-lhe:
— Lembras-te daquela tarde em que Dimítri irrompeu em casa de nosso pai e bateu nele? Disse-te mais tarde no pátio que me reservava “o direito de desejar”. Dize-me, pensaste então que eu desejava a morte de nosso pai?
— Sim — disse mansamente Aliócha.
— Aliás, não era difícil adivinhar. Mas não pensaste também que eu desejava que os répteis se devorassem mutuamente, isto é, que Dimítri matasse nosso pai o mais depressa possível... e que eu mesmo o ajudaria nisso?
Aliócha empalideceu, olhou em silêncio para o irmão, fitando-o bem nos olhos.
— Fala! — exclamou Ivan. — Quero saber o que pensaste. É-me precisa toda a verdade!
Sufocava e olhava de antemão Aliócha com um ar cheio de maldade.
— Perdoa-me, pensei isso também — murmurou Aliócha, sem acrescentar “circunstância atenuante”.
— Obrigado — disse secamente Ivan, que prosseguiu seu caminho.
Desde então, notou Aliócha que o irmão o evitava e lhe testemunhava aversão, tanto que cessou suas visitas. Logo depois desse encontro, voltara Ivan Fiódorovitch a ver Smierdiákov.
VII
Segunda conversa com Smierdiákov
Smierdiákov havia saído do hospital. Residia naquela casinha empenada que se compunha de duas peças reunidas por um vestíbulo. Maria Kondrátievna e sua mãe habitavam uma, a outra era ocupada por Smierdiákov. Não se sabia exatamente a que título se instalara ele em casa delas; mais tarde, supôs-se que vivia como noivo de Maria Kondrátievna e não pagava nada no momento. A mãe e a filha estimavam-no muito e consideravam-no superior a elas. Depois de ter batido, Ivan, segundo as indicações de Maria Kondrátievna, entrou diretamente à esquerda na peça ocupada por Smierdiákov. Uma estufa de faiança desprendia um calor intenso. As paredes estavam ornadas de papel azul, mas rasgado, sob o qual, nas fendas, formigavam as baratas das quais se ouvia o barulho contínuo. O mobiliário era insignificante: dois bancos contra as paredes e duas cadeiras perto da mesa muito simples, coberta por uma toalha de ramagens cor-de-rosa. Sobre as janelas, gerânios; a um canto, imagens santas. Na mesa, um pequeno samovar de cobre, bastante amassado, uma bandeja e duas xícaras. Mas estava apagado, Smierdiákov já havia tomado o chá... Estava sentado em um banco e escrevia num caderno. Ao lado dele, achavam-se um pequeno tinteiro e uma vela num candelabro de ferro fundido. Olhando Smierdiákov, teve Ivan a impressão de que estava ele completamente restabelecido. Tinha o rosto mais fresco, menos magro, os cabelos empomadados, um roupão de quarto pintalgado, forrado de algodão e bastante usado. Estava de óculos, o que era novidade para Ivan Fiódorovitch. Esse detalhe irritou-o: “Semelhante criatura usar óculos!” Smierdiákov ergueu lentamente a cabeça, fixou o visitante através dos óculos; tirou-os, depois se levantou displicentemente, menos em atitude de respeito do que para cumprir estrita polidez. Ivan notou tudo isso num piscar de olhos e, sobretudo, o olhar malévolo e mesmo orgulhoso de Smierdiákov. “Que vens fazer aqui? Já nos entendemos”, parecia ele dizer. Ivan Fiódorovitch mal se continha.
— Faz calor aqui — disse, ainda de pé, desabotoando o sobretudo.
— Tire-o — sugeriu Smierdiákov.
Ivan Fiódorovitch tirou o sobretudo, pegou uma cadeira com as mãos trêmulas, aproximou-a da mesa e sentou-se. Smierdiákov já havia retomado seu lugar.
— Em primeiro lugar, estamos sós? — perguntou severamente Ivan Fiódorovitch. — Não poderão ouvir-nos?
— Ninguém. O senhor viu que há um vestíbulo.
— Escuta, então. Que é que insinuavas quando te deixei, no hospital, dizendo que, se eu não falasse de tua habilidade em simular epilepsia, tu não relatarias ao juiz toda a nossa conversa junto do portão? Que significa esse “toda”? Que entendias com isso? Era uma ameaça? Existe um acordo entre nós? Tenho medo de ti?
Ivan Fiódorovitch falava com cólera, dava claramente a entender que desprezava os rodeios, jogava as cartas na mesa. Smierdiákov lançou um olhar mau, seu olho esquerdo pôs-se a piscar, como para dizer, com sua reserva habitual: “Queres ir diretamente ao caso, pois seja!”
— Queria dizer então que, prevendo o assassinato do próprio pai, o senhor deixou-o sem defesa. Era uma promessa de calar-me para impedir julgamentos desfavoráveis de seus sentimentos ou mesmo de outra coisa.
Pronunciou Smierdiákov essas palavras sem se apressar, parecendo senhor de si, mas num tom áspero, provocante. Fixou Ivan Fiódorovitch com ar insolente.
— Como? O quê? Estás em teu bom senso?
— Estou em todo meu bom senso.
— Estava eu então a par do assassinato!? — exclamou Ivan, dando um formidável murro na mesa. E que significa “de outra coisa”? Fala, miserável!
Smierdiákov calava-se, com a mesma insolência no olhar.
— Fala, pois, canalha infecto, outra coisa!
— Pois bem! Queria eu dizer com aquilo que o senhor mesmo, talvez, desejasse vivamente a morte de seu pai.
Ivan Fiódorovitch levantou-se e bateu com todas as forças no ombro de Smierdiákov; ele cambaleou até perto da parede, lágrimas inundaram-lhe o rosto. “É vergonhoso, senhor, bater em um homem sem defesa!”
Cobriu o rosto com o sujo lenço de quadrados azuis e pôs-se a soluçar.
— Basta! Para com isso! — disse imperiosamente Ivan, que tornou a sentar-se. — Não me leves aos extremos!
Smierdiákov descobriu os olhos. Seu rosto enrugado exprimia vivo rancor.
— De modo que, miserável, acreditavas que, de conluio com Dimítri, queria eu matar meu pai?
— Não conhecia seus pensamentos, e foi para sondá-lo que o detive no corredor.
— Quê? Sondar o quê?
— Suas intenções. Se o senhor desejava que seu pai fosse prontamente assassinado!
O que exasperava Ivan Fiódorovitch era o tom altivo e impertinente de que não queria desistir Smierdiákov.
— Foste tu que o mataste! — exclamou Ivan, de repente.
Smierdiákov sorriu, desdenhoso.
— O senhor sabe perfeitamente que não fui eu, e teria crido que um homem inteligente não insistiria nisso.
— Mas por que tiveste tal suspeita a meu respeito?
— Como o senhor sabe, é por medo. Porque estava em tal situação que desconfiava de todo mundo. Quis também sondá-lo porque, pensei, se o senhor estivesse de acordo com seu irmão, estaria eu perdido.
— Não falavas assim há duas semanas.
— Subentendia a mesma coisa no hospital, supondo que o senhor compreenderia por meias palavras e que evitara uma explicação direta.
— Vejam só! Mas responde então, insisto: como pude inspirar em tua alma vil essa ignóbil suspeita?
— Matar pessoalmente não era o senhor capaz disso, mas desejava que outrem o fizesse.
— Com que fleuma ele fala! Mas por que tê-lo-ia eu querido?
— Como? Por quê? E a herança? — disse perfidamente Smierdiákov. — Após a morte de seu pai, devia receber quarenta mil rublos cada um, se não mais. Se Fiódor Pávlovitch, porém, tivesse desposado aquela senhora, Agrafiena Alieksándrovna, teria ela logo transferido o capital para seu nome, porque não é tola, de sorte que nada teria restado para os senhores três. Esteve isso por um fio; bastava que ela dissesse uma palavra e ele a teria acompanhado à igreja, todo enamorado.
Ivan Fiódorovitch mal se podia conter.
— Está bem — disse por fim —, vês?, nem te bati nem te matei. Continua. Então, em tua opinião, encarregara eu meu irmão Dimítri dessa tarefa, contava com ele?
— Certamente. Assassinando, perdia ele todos os direitos, era degradado e deportado. Seu irmão Alieksiêi Fiódorovitch e o senhor herdariam a parte dele, e não seriam quarenta mil rublos para cada um, mas sessenta mil que lhes caberia. O senhor contava certamente com Dimítri Fiódorovitch.
— Pões minha paciência à prova! Escuta, patife, se tivesse contado naquele momento com alguém, seria contigo, e não com Dimítri, e, juro-o, pressentia alguma infâmia de tua parte... então... lembro-me de minha impressão!
— Eu também cri um instante que o senhor contava comigo — disse ironicamente Smierdiákov —, de sorte que o senhor se desmascarava ainda mais, porque se partia malgrado aquele pressentimento, isso revertia em dizer: podes matar meu pai, não me oponho a isso.
— Miserável! Havias compreendido isso?
— Pense um pouco: o senhor ia partir para Moscou, recusava, malgrado os rogos de seu pai, dirigir-se a Tchermachniá. E consente, de repente, a uma palavra minha! Que é que o levava àquela Tchermachniá? Para partir assim sem razão, a meu conselho, era preciso que esperasse o senhor alguma coisa de mim.
— Não, juro que não — gritou Ivan, rangendo os dentes.
— Como não? O senhor deveria ter, pelo contrário, o senhor, o filho da casa, por causa daquelas palavras, me conduzido à polícia e mandado chicotear-me... pelo menos surrar-me ali mesmo. Em lugar de zangar-se, segue conscienciosamente meu conselho, parte, coisa absurda, porque deveria ter ficado para defender seu pai... Que devia eu concluir?
Ivan tinha o ar sombrio, com os punhos crispados sobre os joelhos.
— Sim, lamento não te ter surrado então — disse, com um sorriso amargo. — Não podia levar-te à polícia, não me teriam acreditado sem provas. Mas surrar-te... Ah! Lamento não ter pensado nisso; muito embora as agressões físicas sejam proibidas, ter-te-ia amassado devidamente o focinho.
Smierdiákov observava-o quase com volúpia.
— Nos casos ordinários da vida — declarou ele, num tom satisfeito e doutoral, como quando discutia sobre a fé com Grigóri Vassílievitch em casa de seu amo —, as agressões físicas estão realmente proibidas pela lei; renunciaram a tais brutalidades, mas, nos casos excepcionais, entre nós como no mundo inteiro, até mesmo na República Francesa, continuam a atacar-se violentamente como no tempo de Adão e Eva, e será sempre assim. No entanto, o senhor, mesmo num caso excepcional, não ousou.
— São palavras francesas que estás aprendendo ali? — perguntou Ivan, designando um caderno na mesa.
— Por que não? Completo minha instrução com a ideia de que um dia talvez visitarei também eu aquelas felizes regiões da Europa.
— Escuta, monstro — disse Ivan, que tremia de cólera —, não temo tuas acusações, depõe contra mim tudo quanto queiras. Se não te matei, ainda há pouco, foi unicamente porque suspeito de ti como autor desse crime e quero entregar-te à justiça. Eu te desmascararei.
— Em minha opinião, o senhor faria melhor calando-se. Porque, que pode o senhor dizer contra um inocente e quem o acreditará? Mas, se o senhor me acusar, contarei tudo. Preciso bem defender-me!
— Pensas que tenho medo de ti agora?
— Admitamos que a justiça não acredite em minhas palavras; em compensação, o público acreditará e será uma vergonha para o senhor.
— Isso quer dizer que “dá gosto falar com um homem de espírito”, não é? — perguntou Ivan, rangendo os dentes.
— O senhor o disse. Dê prova de espírito.
Ivan Fiódorovitch levantou-se, fremente de indignação, vestiu o sobretudo e, sem mais responder a Smierdiákov, sem mesmo olhá-lo, precipitou-se para fora da isbá. O vento fresco da noite refrescou-o. Fazia luar. As ideias e sensações turbilhonavam nele. “Ir denunciar agora Smierdiákov? Mas que dizer? Ele é, contudo, inocente. Será ele quem me acusará, pelo contrário. Com efeito, por que parti então para Tchermachniá? Com que fim? Certamente, esperava eu alguma coisa, ele tem razão...” Pela centésima vez, lembrava-se de como, na derradeira noite passada em casa do pai, se mantinha ele na escada, à escuta, e isto lhe causava tal sofrimento que chegou mesmo a parar, como que transpassado: “Sim, esperava aquilo, então, é verdade! Quis o assassinato! Eu o quis mesmo? Preciso matar Smierdiákov!... Se não tiver coragem para isso, não vale a pena viver!...” Ivan seguiu diretamente para a casa de Katierina Ivânovna, que ficou espantada com o ar desvairado dele. Repetiu-lhe toda a sua conversa com Smierdiákov, até a mínima palavra. Se bem que se esforçasse ela por acalmá-lo, andava ele para lá e para cá, proferindo frases incoerentes. Sentou-se, afinal, pôs os cotovelos na mesa, com a cabeça entre as mãos, e fez uma reflexão estranha:
— Se não foi Dimítri, mas Smierdiákov, sou seu cúmplice, porque fui eu que o impeli ao crime. Impeli-o eu mesmo? Não o sei ainda. Mas se foi ele quem matou, e não Dimítri, sou também um assassino.
A essas palavras, Katierina Ivânovna levantou-se em silêncio, foi à escrivaninha e tirou de uma caixinha um papel que colocou diante de Ivan. Era o documento a respeito do qual falara mais tarde a Aliócha como duma prova formal da culpabilidade de Dimítri. Era uma carta escrita a Katierina Ivânovna por Mítia, em estado de embriaguez, na noite de seu encontro com Aliócha, quando este voltava ao mosteiro depois da cena em que Grúchenhka insultara sua rival. Depois de tê-lo deixado, correu Mítia à casa de Grúchenhka, não se sabe se ele a viu, mas acabou a noite no botequim A Capital, onde se embriagou completamente. Nesse estado pediu uma pena, papel e rabiscou um documento importante. Era uma carta prolixa, incoerente, digna de um bêbedo. Dir-se-ia um ébrio, que, de volta a casa, conta com animação à mulher ou aos que o cercam que um canalha acaba de insultá-lo, a ele, homem decente, mas que haverá de arrancar-lhe o couro; o homem fala a mais não poder, pontuando de murros na mesa sua narrativa incoerente, comovido até as lágrimas. O papel de carta que lhe tinham dado no botequim era uma folha grosseira, suja, trazendo nas costas uma conta. Faltando espaço para aquele falatório de bêbedo, Mítia enchera as margens e escrevera as derradeiras linhas atravessando o texto. Eis o que dizia a carta:
Kátia fatal, amanhã arranjarei dinheiro e te restituirei teus três mil rublos. Adeus, mulher rancorosa, adeus também, meu amor! Acabemos com isso! Amanhã, irei pedir dinheiro a todo mundo; se me recusarem, dou-te minha palavra de honra que irei à casa de meu pai, quebrar-lhe-ei a cabeça e me apoderarei do dinheiro debaixo de seu travesseiro, contanto que Ivan tenha partido. Irei parar no presídio, mas restituir-te-ei teus três mil rublos! Adeus. Saúdo-te até o chão, em comparação contigo sou um miserável. Perdoa-me. Ou antes, não, não me perdoes; estaremos mais à vontade, tu e eu! Prefiro o presídio a teu amor, porque amo outra, tu a conheces demasiado desde hoje. Como poderias perdoar? Matarei aquele que me despojou! Abandonarei vocês todos para partir para o Oriente, não mais ver ninguém, “ela” tampouco, porque não és a única a me fazer sofrer. Adeus!
P.S. Eu te amaldiçoo, e contudo adoro-te! Sinto meu coração bater, resta nele uma corda que vibra por ti. Ah! É preferível que ele arrebente! Eu me matarei, mas matarei em primeiro lugar o monstro, arrancar-lhe-ei os três mil rublos e os atirarei a teus pés. Serei um miserável a teus olhos, mas não um ladrão! Aguarda os três mil. Estão na casa do cão maldito, debaixo de seu colchão, amarrados por uma fita cor-de-rosa. Não sou eu o ladrão, matarei o homem que me roubou. Kátia, não me desprezes. Dimítri é um assassino, mas não um ladrão! Matou o pai e se perdeu, para não ter de suportar teu orgulho e para não te amar.
PP.S. Beijo-te os pés, adeus!
PP.SS. Kátia, roga a Deus para que me deem dinheiro. Então não derramarei sangue, mas, se me recusarem, eu o derramarei. Mata-me!
Teu escravo e teu inimigo.
D. Karamázov
Depois de ter lido esse “documento”, Ivan ficou convencido. Fora seu irmão quem matara e não Smierdiákov. Se não fora Smierdiákov, não fora pois ele, Ivan. Aquela carta constituía, a seus olhos, uma prova categórica. Para ele, não podia mais haver dúvida alguma sobre a culpabilidade de Mítia. A propósito, Ivan jamais suspeitara de uma cumplicidade entre Mítia e Smierdiákov; isso não concordava com os fatos. Estava completamente tranquilizado. No dia seguinte, só se lembrou com desprezo de Smierdiákov e de suas zombarias. Ao fim de alguns dias, admirou-se mesmo de ter podido ofender-se tão cruelmente com as suspeitas dele. Resolveu esquecê-lo totalmente. Passou-se assim um mês. Soube por acaso que Smierdiákov estava doente de corpo e espírito. “Esse indivíduo ficará louco”, dissera a respeito dele o jovem médico Varvínski. Cerca do fim do mês, o próprio Ivan começou a sentir-se bastante mal. Consultara mesmo o médico mandado vir de Moscou por Katierina Ivânovna. Pela mesma época, as relações entre eles azedaram-se ao extremo. Eram como dois inimigos amorosos um do outro. Os regressos de Katierina Ivânovna para Mítia, passageiros mas violentos, exasperavam Ivan. Coisa estranha, até a derradeira cena em presença de Aliócha, quando voltou este da prisão, ele, Ivan, jamais ouvira, durante todo o mês, Katierina Ivânovna duvidar da culpabilidade de Mítia, malgrado seus regressos a ele, que lhe eram tão odiosos. Era também de notar que, sentindo seu ódio por Mítia crescer cada dia, compreendesse Ivan ao mesmo tempo que o odiava não por causa dos regressos a ele de Katierina Ivânovna, mas por ter matado o pai deles! Dava-se perfeitamente conta disso. Não obstante, dez dias antes do julgamento, fora ver Mítia e lhe propusera um plano de evasão, evidentemente concebido desde muito tempo. Fora esse passo inspirado em parte pelo despeito que lhe causava a insinuação de Smierdiákov, de que ele, Ivan, tinha interesse em que seu irmão fosse condenado, porque sua parte da herança e a de Aliócha subiria de quarenta para sessenta mil rublos. Decidira sacrificar trinta mil para fazer Mítia evadir-se. Ao voltar da prisão, estava triste e perturbado, teve de súbito a impressão de que desejava aquela evasão não somente para fazer desaparecer assim seu despeito, mas por outra razão. “Seria porque, no fundo de minha alma, seja também um assassino?”, perguntara a si mesmo. Estava vagamente inquieto e ulcerado. Sobretudo, durante aquele mês, seu orgulho muito sofrera, mas tornaremos a falar disso...
Quando Ivan Fiódorovitch, após sua conversa com Aliócha e já à porta de sua casa, resolvera ir à casa de Smierdiákov, obedecia a uma indignação súbita que dele se havia apoderado. Lembrou-se de repente de que Katierina Ivânovna acabava de exclamar em presença de Aliócha: “Foste tu, tu somente, que me persuadiste de que ele (isto é, Mítia) era o assassino!” Ao lembrar-se disso, ficou Ivan estupefato; jamais lhe assegurara a culpabilidade de Mítia, pelo contrário, chegara a suspeitar de si mesmo em presença dela, ao voltar da casa de Smierdiákov. Em compensação, fora “ela” quem lhe exibira então aquele documento e demonstrara a culpabilidade de seu irmão? E agora ela exclamava: “Eu mesma fui à casa de Smierdiákov!” Quando isso? Ivan nada sabia. Não estava ela então bem convencida. E que tinha podido dizer-lhe Smierdiákov? Teve um acesso de furor. Não compreendia como, meia hora antes, pudera deixar passar aquelas palavras sem se espantar. Largou o cordão da campainha e dirigiu-se à casa de Smierdiákov. “Eu o matarei talvez, agora!”, pensava pelo caminho.
VIII
Terceira e última conversa com Smierdiákov
Durante o trajeto, um vento áspero e fresco começou a soprar, o mesmo que de manhã, trazendo uma neve fina, espessa e seca. Caía ela sem aderir ao solo, o vento fazia-a turbilhonar e dentro em breve desencadeou-se uma verdadeira tormenta. Na parte da cidade em que morava Smierdiákov quase não há lampiões. Ivan marchava no escuro orientando-se instintivamente. A cabeça doía-lhe. As têmporas latejavam-lhe, o pulso estava acelerado. Um pouco antes de chegar à casinha de Maria Kondrátievna, encontrou um mujique embriagado, de cafetã remendado, que caminhava em zigue-zague, invectivando, interrompendo-se por vezes para entoar uma canção com sua voz rouca:
Para Píter[ 131 ] partiu Vanka,
Por ele não esperarei.
Mas parava sempre no segundo verso e recomeçava suas imprecações. Há um bom tempo, sentia Ivan Fiódorovitch inconscientemente verdadeiro ódio contra aquele indivíduo; de repente, deu-se conta disso. Imediatamente, teve uma vontade irresistível de matá-lo. Justamente naquele momento encontraram-se lado a lado, e o mujique, cambaleando, deu violento encontrão em Ivan. Ele repeliu com raiva o bêbedo, que caiu sobre a terra gelada, exalou um gemido e calou-se. Jazia de costas, desmaiado. “Ele vai congelar!”, pensou Ivan, que prosseguiu seu caminho.
No vestíbulo, Maria Kondrátievna, que viera abrir, com uma vela na mão, disse-lhe em voz baixa que Páviel Fiódorovitch (isto é, Smierdiákov) estava muito mal e parecia fora de juízo, tendo mesmo recusado tomar chá.
— Está fazendo barulho, então? — indagou Ivan.
— Pelo contrário, está completamente calmo, mas não o retenha demasiado tempo... — pediu Maria Kondrátievna.
Ivan entrou na isbá.
Estava esta sempre bastante aquecida, mas notavam-se algumas mudanças no quarto; um dos bancos dera lugar a um grande divã de falso acaju, recoberto de couro, arranjado como cama com travesseiros bastante limpos. Smierdiákov estava sentado, sempre metido em seu velho roupão de quarto. Tinham posto a mesa diante do divã, de sorte que restava pouco espaço. Em cima, um grosso volume de capa amarela. Acolheu ele Ivan com um longo olhar silencioso, não parecendo absolutamente surpreendido por sua visita. Tinha mudado muito fisicamente, com o rosto bastante emagrecido e amarelo, os olhos cavados, as pálpebras inferiores arroxeadas.
— Estás verdadeiramente doente? — disse Ivan Fiódorovitch. — Não te reterei muito tempo, conservarei mesmo meu sobretudo. Posso sentar-me?
Aproximou uma cadeira da mesa e sentou-se.
— Por que não falas? Só tenho um pergunta a fazer-te, mas juro-te que não partirei sem resposta. Katierina Ivânovna veio ver-te?
Smierdiákov não respondeu, fez um gesto apático e virou-se.
— Que tens?
— Nada.
— Nada, como?
— Está bem! Sim, ela veio, que é que tem o senhor com isso? Deixe-me em paz.
— Não, não te deixarei. Fala, quando veio ela?
— Ora, já perdi a lembrança.
Smierdiákov sorriu com desdém. De repente, voltou-se para Ivan, com o olhar carregado de ódio, como um mês antes.
— Creio que o senhor também está doente. Como tem as faces cavadas, o ar desfeito!
— Deixa minha saúde e responde à minha pergunta.
— Por que seus olhos estão tão amarelos? O senhor deve estar-se atormentando.
Pôs-se a rir, escarninho.
— Escuta, já te disse que não partirei sem resposta! — exclamou Ivan exasperado.
— Por que essa insistência? Por que me tortura? — disse Smierdiákov, num tom doloroso.
— Que diabo! Não és tu quem me interessa. Responde e ir-me-ei imediatamente.
— Nada tenho a responder-lhe.
— Asseguro-te que te obrigarei a falar.
— Por que se inquieta o senhor? — Smierdiákov fitou-o com desgosto, mais do que com desprezo. — Por que é amanhã o julgamento? Mas o senhor não arrisca nada, tranquilize-se, pois, afinal! Vá tranquilamente para sua casa, durma em paz, nada tem a temer.
— Não te compreendo... por que haveria eu de temer amanhã? — disse Ivan, espantado, e de repente sentiu-se gelado de medo. Smierdiákov mirava-o de alto a baixo.
— O senhor não com-pre-ende? — disse ele, num tom de censura. — Que necessidade experimenta um homem inteligente de representar semelhante comédia?
Ivan olhava-o sem falar. O tom inesperado, tão arrogante, com que lhe falava seu antigo lacaio, exorbitava do comum.
— Digo-lhe que o senhor nada tem a temer. Não deporei contra o senhor, não há provas. Veja como suas mãos tremem. Por que isso? Volte à sua casa, não é o senhor o assassino!
Ivan estremeceu, lembrou-se de Aliócha.
— Sei que não sou eu... — murmurou ele.
— O senhor o sabe?
Ivan levantou-se e agarrou-o pelo ombro.
— Fala, réptil! Dize tudo!
Smierdiákov não se mostrou nada amedrontado. Olhou somente Ivan com um ódio louco.
— Então, foi o senhor quem matou, se é assim — murmurou ele com raiva.
Ivan deixou-se recair na cadeira, parecendo meditar.
Sorriu maldosamente.
— Sempre a mesma história, como da outra vez?
— Sim, o senhor compreendia tudo da vez passada, compreende agora ainda.
— Compreendo somente que estás louco.
— E isso não lhe aborrece? Estamos aqui, creio, na intimidade, de que serve enganar-nos, representar uma comédia mutuamente? Ou então quer ainda lançar tudo sobre mim só, à minha cara? O senhor matou, é o senhor o principal assassino, não fui senão seu auxiliar, seu fiel instrumento, o senhor sugeriu, eu realizei.
— Realizou? Foste tu que mataste?
Sentiu como uma comoção no cérebro, um arrepio glacial percorreu-o todo. Por sua vez, Smierdiákov observava-o com espanto. O terror de Ivan impressionava-o, afinal, por sua sinceridade.
— Não sabia, pois, de nada? — disse ele com desconfiança.
Ivan continuava a olhá-lo, sua língua estava como que paralisada.
Para Píter partiu Vanka,
Por ele não esperarei.
creu ele, de súbito, ouvir.
— Sabes, tenho medo de que sejas um fantasma — murmurou ele.
— Não há fantasma aqui, exceto nós dois, e ainda um terceiro. Sem dúvida está aí, agora.
— Quem? Que terceiro? — proferiu Ivan cheio de medo, olhando em redor de si, como se procurasse alguém.
— É Deus, a Providência, que está aqui, perto de nós, mas é inútil procurá-lo, o senhor não o encontrará.
— Mentiste, não foste tu que mataste! — vociferou Ivan. — Estás louco, ou me exasperas por prazer, como da outra vez!
Smierdiákov, nada amedrontado, observava-o atentamente. Não podia dominar sua desconfiança, parecia-lhe que Ivan sabia de tudo e simulava ignorância para rejeitar todas as culpas sobre ele só.
— Espere — disse ele afinal, com uma voz fraca e, retirando a perna esquerda de sob a mesa, pôs-se a arregaçar a calça. Smierdiákov usava meias brancas e chinelos. Sem pressa, tirou sua liga e meteu a mão na meia. Ivan Fiódorovitch, que o olhava, estremeceu, de súbito, de terror.
— Demente! — berrou ele. Levantou-se dum salto, recuou vivamente batendo com as costas na parede, onde ficou como que pregado, com os olhos fixos em Smierdiákov, cheio dum terror louco. Imperturbável, continuava Smierdiákov a cascavilhar na meia, esforçando-se por pegar alguma coisa. Conseguiu-o por fim, e Ivan viu-o retirar papéis, ou um maço de papéis, que depositou em cima da mesa.
— Eis! — disse ele em voz baixa.
— O quê?
— Queira olhar.
Ivan aproximou-se da mesa, pegou o maço e começou a desfazê-lo, mas de repente retirou os dedos como ao contato de um réptil repugnante, temível.
— Seus dedos tremem convulsivamente — notou Smierdiákov, e ele mesmo, sem se apressar, desdobrou o papel. Sob o envelope, havia três pacotes de cédulas de cem rublos.
— Está tudo aí, os três mil, não precisa contar. Tome — disse designando as cédulas. Ivan tombou na cadeira. Estava branco como linho.
— Causaste-me medo... com essa meia... — proferiu ele, com um estranho sorriso. — Então, deveras, não sabia ainda?
— Não, não sabia, acreditava que tivesse sido Dimítri. Ah! Meu irmão! Meu irmão! — Pegou a cabeça entre as mãos. — Escuta: tu mataste só, sem meu irmão?
— Somente com o senhor, com o senhor só. Dimítri Fiódorovitch está inocente.
— Está bem... está bem... Falaremos de mim em seguida. Mas por que tremo dessa maneira?... Não posso articular as palavras.
— O senhor era atrevido então, “tudo é permitido”, dizia o senhor, agora está com medo! — murmurou Smierdiákov estupefato. — Quer limonada? Vou pedir. Refresca. Mas seria preciso cobrir primeiro isto.
Designava o maço de cédulas. Fez um movimento para a porta, a fim de chamar Maria Kondrátievna e dizer-lhe para trazer limonada; procurando com que ocultar o dinheiro, tirou a princípio o lenço, mas como ele estivesse sujo demais, pegou de cima da mesa o grosso volume amarelo que Ivan havia notado ao entrar, e cobriu com ele as cédulas. Aquele livro tinha como título: Sermões de nosso santo padre Isaac, o Sírio.
— Não quero limonada — disse Ivan. — Senta-te e fala: como o fizeste? Dize tudo...
— O senhor deveria tirar o sobretudo, senão ficará alagado de suor.
Ivan tirou o sobretudo que atirou sobre o banco, sem se levantar.
— Fala, rogo-te, fala!
Parecia calmo. Estava certo de que Smierdiákov diria tudo agora.
— Como se passaram as coisas? — Smierdiákov suspirou. — Da maneira mais natural, segundo as próprias palavras...
— Voltaremos a falar de minhas palavras — interrompeu Ivan, mas sem se zangar desta vez, como se estivesse totalmente senhor de si. — Conta somente, em detalhes e com ordem, como deste o golpe. Sobretudo não esqueças os detalhes, rogo-te.
— O senhor tinha partido, caí na adega...
— Era uma crise, ou então simulavas?
— Simulava, é claro. Desci tranquilamente até embaixo, estendi-me, depois do que comecei a gritar. E debati-me, enquanto me transportavam.
— Um instante. Simulaste também mais tarde, no hospital?
— Absolutamente. No dia seguinte de manhã, ainda em casa, fui dominado por uma crise verdadeira, a mais forte desde anos. Fiquei dois dias inconsciente.
— Bem, bem. Continua.
— Puseram-me num divã, por trás do biombo; esperava por isso mesmo, porque, quando eu estava doente, Marfa Ignátievna me instalava sempre para passar a noite no quarto deles. Sempre foi boa para mim, desde que nasci. Durante a noite, eu gemia, mas mansamente. Esperava sempre Dimítri Fiódorovitch.
— Onde o esperavas, em tua casa?
— Por que em minha casa? Esperava sua vinda à casa do pai. Estava certo de que ele viria naquela mesma noite, porque, privado de minhas informações, devia fatalmente introduzir-se por meio de escalada e empreender alguma coisa.
— E se ele não tivesse vindo?
— Então, nada teria acontecido. Sem ele, eu não teria agido.
— Bem, bem... fala sem te apressares, sobretudo não omitas nada.
— Contava que ele mataria Fiódor Pávlovitch, porque eu o tinha preparado bem para isso... nos últimos dias... e sobretudo conhecia os sinais. Desconfiado e arrebatado como era, não podia deixar de penetrar na casa. Esperava por isso.
— Um instante Se ele tivesse matado, teria também tirado o dinheiro: devias raciocinar assim. Que teria restado para ti? Não o vejo.
— Mas não teria jamais encontrado o dinheiro. Disse-lhe que o dinheiro estava debaixo do colchão. Mentia. Estava numa caixinha. Em seguida, como Fiódor Pávlovitch só confiava em mim no mundo, sugeri-lhe esconder o dinheiro por trás dos ícones, porque ninguém teria a ideia de procurá-lo ali, sobretudo num momento de pressa. Meu conselho havia agradado a Fiódor Pávlovitch. Teria sido ridículo guardar o dinheiro debaixo do colchão, numa caixinha fechada a chave. Mas todos acreditaram nessa caixinha. Raciocínio estúpido. Portanto, se Dimítri Fiódorovitch tivesse assassinado, teria fugido ao menor alerta, como todos os assassinos, ou então tê-lo-iam surpreendido e detido. Podia eu assim, no dia seguinte, ou na mesma noite, ir furtar o dinheiro, sendo tudo imputado a Dimítri Fiódorovitch.
— Mas se ele tivesse apenas golpeado, sem matar?
— Nesse caso, não teria eu certamente ousado tirar o dinheiro, mas contava que ele golpearia Fiódor Pávlovitch até fazê-lo perder os sentidos; então eu me apossaria da bolada e lhe teria explicado em seguida que fora Dimítri Fiódorovitch quem roubara.
— Espere... não estou entendendo mais. Foi então Dimítri quem matou? Tu somente roubaste?
— Não, não foi ele. Decerto, eu poderia dizer-lhe, ainda agora, que foi ele... mas não quero mentir, porque... porque mesmo se, como o vejo, o senhor nada compreendeu até o presente e não simula para lançar todas as culpas sobre mim, é, no entanto, culpado de tudo; com efeito, o senhor estava prevenido do assassinato, o senhor me encarregou da execução e partiu. De modo que, quero demonstrar-lhe esta noite que o principal, o único assassino foi o senhor, e não eu, se bem que tenha matado. Legalmente, é o senhor o assassino.
— Como assim? Por que sou eu o assassino? — não pôde Ivan Fiódorovitch impedir-se de perguntar, esquecendo sua decisão de deixar para o fim da conversa o que lhe dizia respeito pessoalmente. — É sempre a propósito de Tchermachniá. Para! Dize-me por que era preciso o meu consentimento, uma vez que havias tomado minha partida como um consentimento? Como me explicarás tu isso?
— Seguro de seu consentimento, sabia que, quando o senhor voltasse, não criaria problemas por causa da perda desses três mil rublos, se por acaso a justiça suspeitasse de mim em lugar de Dimítri Fiódorovitch ou de cumplicidade com ele; pelo contrário, o senhor teria tomado minha defesa... Tendo herdado, graças a mim, poderia o senhor em seguida recompensar-me para o resto da vida, porque, se seu pai tivesse casado com Agrafiena Alieksándrovna, o senhor nada viria a receber.
— Ah, tinhas então intenção de atormentar-me toda a vida! — disse Ivan, de dentes cerrados. — E se eu não tivesse partido e te tivesse denunciado?
— Que poderia o senhor dizer? Que eu o aconselhara a partir para Tchermachniá? Bobagens, tudo isso. Aliás, se o senhor tivesse ficado, nada teria acontecido, teria eu compreendido que o senhor não queria e manter-me-ia tranquilo. Mas sua partida assegurava-me que o senhor não me denunciaria e fecharia os olhos a respeito desses três mil rublos. Não teria podido perseguir-me em seguida, porque teria eu contado tudo à justiça, não o roubo ou o assassinato, isso não o teria eu dito, mas que o senhor me havia impelido e que eu não consentira. Dessa maneira, não poderia o senhor confundir-me, por falta de provas, e eu teria revelado com que ardor o senhor desejava a morte de seu pai, e todo mundo tê-lo-ia crido, dou-lhe minha palavra.
— Desejava eu tão intensamente a morte de meu pai?
— Decerto, e seu silêncio me autorizava a agir.
Smierdiákov estava muito enfraquecido e falava com lassidão, mas uma força interior galvanizava-o, tinha algum desígnio oculto, Ivan o pressentia.
— Continua tua narrativa.
— Continuemos! Estou deitado e ouço um grito do bárin. Grigóri saíra um pouco antes. De repente, põe-se ele a gritar, depois tudo volta a silenciar. Espero imóvel, meu coração bate, não podia aguentar mais. Levanto-me, saio; à esquerda, a janela de Fiódor Pávlovitch estava aberta, avancei para escutar se dava ele sinal de vida, ouço o bárin agitar-se e suspirar. “Está vivo”, penso. Aproximo-me da janela e grito ao bárin: “Sou eu.” E ele me diz: “Veio, veio e fugiu. (Referia-se a Dimítri Fiódorovitch.) Matou Grigóri!” — “Donde?”, pergunto-lhe em voz baixa. “Lá embaixo, no canto”, e mostra-me. “Espere!”, digo. Pus-me à sua procura e tropecei, perto do muro, em Grigóri, que jazia desmaiado e todo ensanguentado. “É então verdade que Dimítri Fiódorovitch veio”, pensei, e resolvi levar a coisa a cabo. Mesmo que Grigóri estivesse vivo ainda, nada veria, uma vez que estava sem sentidos. O único risco era Marfa Ignátievna levantar-se. Senti-o naquele momento, mas um frenesi apoderara-se de mim, a ponto de fazer-me perder a respiração. Voltei à janela do bárin: “Ela está aqui, Agrafiena Alieksándrovna veio, quer entrar.” Ele estremeceu. — “Onde, aqui, onde?” Suspira, ainda sem acreditar. — “Ora, aqui, abra pois!” “Olha-me pela janela, indeciso, temendo abrir; tem medo de mim”, pensei. É engraçado; de repente, imaginei fazer sobre a vidraça o sinal da chegada de Grúchenhka, diante dele, sob seus olhos; não acreditava ele nas palavras, mas, logo que eu bati, correu a abrir a porta. Eu queria entrar, ele barra-me a passagem. — “Onde está ela, onde está ela?” Olha-me e palpita. “Ah, pensei, se tem tal medo de mim, isso vai mal!” E minhas pernas bambeavam, tremia ao pensar que ele não me deixasse entrar, ou que chamasse, ou que Marfa Ignátievna chegasse. Não me lembro, mas devia estar muito pálido. Cochichei: “Ela está lá embaixo, sob a janela, como foi que não a viu?” — “Traze-a, traze-a!” — “Ela está com medo, os gritos amedrontaram-na, escondeu-se numa moita; chame-a o senhor mesmo do gabinete.” Correu para ali, pousou a vela sobre a janela: “Grúchenhka, Grúchenhka! Estás aí?”, gritava ele. Não queria debruçar-se nem afastar-se de mim, não ousava, por causa do medo que eu lhe inspirava. “Ei-la — digo-lhe —, ei-la lá na moita, sorri para o senhor, está vendo-a?” Acreditou em mim de repente e se pôs a tremer, tão louco estava por aquela mulher; debruçou-se inteiramente. Agarrei então o pesa-papéis de ferro fundido, que estava em cima da mesa, o senhor se lembra?, pesa bem umas três libras, e assestei-lhe com todas as minhas forças uma pancada na cabeça, com o canto. Não lançou um grito, tombou. Dei-lhe mais dois golpes e senti que estava ele com o crânio partido. Tombou de costas, todo coberto de sangue. Examinei-me: nem um respingo; enxuguei o pesa-papéis, repu-lo em seu lugar, depois tirei o envelope de trás dos ícones, retirando dele o dinheiro e atirando-o ao chão com a fita cor-de-rosa. Fui ao jardim tremendo todo, diretamente àquela macieira oca que o senhor conhece. Tinha-a notado e pus de reserva papel e um trapo; enrolei a soma neles e metia-a no fundo do oco. Ficou lá 15 dias, até minha saída do hospital. Voltei a deitar-me, pensando com terror: “Se Grigóri estiver morto, poderá isso ir muito mal; mas se voltar a si estará tudo muito bem, porque Dimítri Fiódorovitch veio e, por consequência, matou e roubou.” Na minha impaciência, pus-me a gemer para despertar Marfa Ignátievna. Ela se levantou por fim, chegou até junto de mim, depois, notando a ausência de Grigóri, correu para o jardim, onde eu a ouvi gritar. Já estava eu tranquilizado.
Smierdiákov parou. Ivan havia-o escutado num silêncio de morte, sem se mover, sem desfitar dele os olhos. Smierdiákov lançava-lhe por vezes uma olhadela, mas olhava sobretudo de lado. Terminada sua narrativa, pareceu emocionado, respirando com dificuldade, o rosto coberto de suor. Não se podia adivinhar se ele sentia remorsos.
— Um instante — retomou Ivan, refletindo. — E a porta? Se ele só abriu a ti, como pôde Grigóri tê-la visto aberta antes? Por que a viu ele bem em primeiro lugar? — Ivan interrogava, com o tom mais calmo, nada irritado, de sorte que, se alguém os tivesse observado naquele momento, do limiar, teria concluído que eles se entretinham pacificamente a respeito dum assunto qualquer.
— Quanto àquela porta que Grigóri pretende ter visto aberta, não passa de um efeito de sua imaginação — disse Smierdiákov, com um sorriso. Porque é um homem muito teimoso, terá acreditado ver, e o senhor não conseguirá demovê-lo disso. É uma felicidade para nós que tenha ele formado uma ideia errônea; o depoimento dele acaba de confundir Dimítri Fiódorovitch.
— Escuta — disse Ivan, parecendo de novo atrapalhar-se —, escuta... Tinha ainda muitas coisas a perguntar-te, mas esqueci-as... Ah, sim, dize-me somente, por que abriste e jogaste no chão o envelope? Por que não ter saído com tudo?... De acordo com tua narrativa, pareceu-me que o tinhas feito de propósito, mas não posso compreender a razão...
— Não agi sem motivos. Um homem inteirado de tudo, como eu por exemplo, que talvez pôs o dinheiro no envelope, viu quando o lacravam e escreviam o endereço, por que tal homem, se cometeu o crime, haveria de deslacrar logo o envelope, com tal precipitação e estando seguro do conteúdo? Pelo contrário, metê-lo-ia simplesmente no bolso e se esquivaria. Dimítri Fiódorovitch teria agido de outro modo; não conhece o envelope senão por ouvir dizer e apressar-se-á em deslacrá-lo, assim que o encontrar, para verificar o conteúdo, depois atirá-lo-á no chão, sem refletir que ele constituirá uma peça acusadora, porque é um ladrão novato, jamais operou abertamente e é nobre de nascimento. Não teria vindo precisamente roubar, mas retomar seus bens, como havia previamente declarado diante de todo mundo, vangloriando-se de ir à casa de Fiódor Pávlovitch para fazer justiça com as próprias mãos. Por ocasião de meu depoimento, sugeri essa ideia ao procurador, mas sob forma de alusão, e, de tal sorte, que ele acreditou ter sido ele próprio quem a encontrou; estava encantado...
— Refletiste verdadeiramente em tudo isso no local e naquele momento? — exclamou Ivan Fiódorovitch estupefato. Observava de novo Smierdiákov, cheio de espanto.
— Por favor, pode-se pensar em tudo numa tal pressa? Tudo isso estava combinado de antemão.
— Pois bem!... Pois bem! Foi o próprio diabo que te emprestou seu concurso! Não és bobo, és muito mais inteligente do que eu pensava...
Levantou-se para dar alguns passos pelo quarto, mas, como mal se podia passar entre a mesa e a parede, deu meia-volta e tornou a sentar-se. Foi o que talvez o exasperou; pôs-se de novo a vociferar.
— Escuta, miserável, vil criatura! Não compreendes então que, se ainda não te matei, é porque te guardo para responder amanhã perante a justiça? Deus o vê (levantou a mão), talvez tenha eu sido culpado, talvez tenha desejado secretamente... a morte de meu pai, mas, juro-te, não te impeli absolutamente, não, não! Não importa, denunciar-me-ei eu mesmo amanhã, está decidido! Direi tudo, mas compareceremos juntos! E digas ou testemunhes o que quiseres a meu respeito, eu o aceito e não te temo; confirmarei tudo eu mesmo! Mas, também, será preciso que confesses! É preciso, é preciso, iremos juntos! Será assim!
Ivan exprimia-se com energia e solenidade: somente por seu olhar se via que manteria sua palavra.
— O senhor está doente, vejo, bem doente. Tem os olhos completamente amarelos — disse Smierdiákov, mas sem ironia e até mesmo com compaixão.
— Iremos juntos! — repetiu Ivan. — E se não vieres, confessarei tudo sozinho.
Smierdiákov pareceu refletir.
— Isto não se dará, o senhor não irá — disse ele, num tom categórico.
— Tu não me compreendes!
— O senhor terá demasiada vergonha de confessar tudo, aliás isso não serviria de nada, porque negarei ter falado tais coisas com o senhor, direi que o senhor está doente (vê-se bem) ou que se sacrifica por compaixão com seu irmão e me acusa porque jamais vali nada a seus olhos. E quem lhe dará crédito? Que prova tem o senhor?
— Escuta, tu me mostraste esse dinheiro para convencer-me.
Smierdiákov retirou o volume, descobrindo o maço.
— Tome este dinheiro — disse ele suspirando.
— Decerto que o tomo! Mas por que me dás, uma vez que mataste para obtê-lo? — E Ivan observou-o com estupefação.
— Não tenho mais necessidade dele — disse Smierdiákov, com voz trêmula. — Pensava a princípio, com este dinheiro, estabelecer-me em Moscou, ou mesmo no estrangeiro, era meu sonho, pois que tudo é permitido. Foi o senhor quem, com efeito, me ensinou isso e muitas vezes explicou-o: se Deus não existe, não há virtude e ela é inútil. Raciocinei assim.
— Chegaste a isso sozinho? — perguntou Ivan, com um sorriso constrangido.
— Sob a influência do senhor.
— Então tu crês em Deus, agora, pois que entregas o dinheiro?
— Não, não creio Nele — murmurou Smierdiákov.
— Por que então o entregas?
— Deixe isso! — cortou Smierdiákov num gesto de lassidão. — O senhor mesmo repetia então que tudo é permitido. Por que está tão inquieto agora? Quer mesmo denunciar-se? Mas não há perigo! O senhor não irá! — afirmou ele, categórico.
— Haverás de ver!
— É impossível. O senhor é demasiado inteligente. Ama o dinheiro, eu o sei, as honras também, porque o senhor é muito orgulhoso, é doido pelo belo sexo, ama acima de tudo viver à sua vontade e independente. Não haverá de querer estragar toda a vida, atraindo sobre si tal ignomínia. De todos os filhos de Fiódor Pávlovitch é o senhor aquele que mais se lhe assemelha, é a mesma alma.
— Não és na verdade bobo — disse Ivan, com estupor; o sangue subiu-lhe ao rosto. — Pensava que eras um tolo.
— Era por orgulho que o senhor o acreditava. Tome, pois, o dinheiro.
Ivan pegou o maço de cédulas e meteu-o no bolso, sem embrulhá-lo.
— Mostrá-las-ei amanhã no tribunal — disse ele.
— Ninguém lhe dará crédito. Não é o dinheiro que lhe falta no momento, o senhor põe em seu cofrezinho esses três mil rublos.
Ivan levantou-se.
— Repito-te que não te matei unicamente porque tenho necessidade de ti amanhã, não o esqueças!
— Pois bem! Mate-me, mate-me agora — disse Smierdiákov, com um ar estranho. — O senhor nem mesmo o ousa — acrescentou com um sorriso amargo —, o senhor não ousa mais nada, o senhor tão ousado outrora!
— Até amanhã!... — E Ivan marchou para a porta.
— Espere... mostre-me ainda uma vez.
Ivan tirou as cédulas, mostrou a ele; Smierdiákov mirou-as uma dezena de vezes.
— Pois bem, vá... Ivan Fiódorovitch! — gritou ele, de repente.
— Que queres? — Ivan, que ia saindo, voltou-se.
— Adeus.
— Até amanhã.
Ivan saiu. A tormenta continuava. Marchou a princípio com passos seguros, mas se pôs logo a cambalear. “É algo físico”, pensava, sorrindo. Uma espécie de alegria invadia-o. Sentia em si uma firmeza inabalável; as hesitações dolorosas daqueles últimos tempos tinham desaparecido. Sua decisão estava tomada e “já não voltaria atrás”, dizia a si mesmo, cheio de felicidade. Naquele momento tropeçou, esteve a ponto de cair. Parando, distinguiu a seus pés o mujique que ele havia derrubado, jacente no mesmo lugar, inerte. A neve quase lhe recobria o rosto. Ivan ergueu-o e carregou-o nos ombros. Tendo avistado luz em uma casinhola, foi bater nos postigos e pediu ao proprietário que o ajudasse a transportar o mujique para uma casa particular, prometendo-lhe três rublos. Não contarei pormenorizadamente como Ivan Fiódorovitch conseguiu ser bem-sucedido em sua empresa e mandou examinar o mujique por um médico, pagando generosamente as despesas. Digamos somente que isso exigiu quase uma hora. Mas Ivan ficou satisfeito. Suas ideias dispersavam-se: “Se não tivesse eu tomado uma resolução tão firme para amanhã”, pensou ele de súbito, deliciado, “não teria ficado uma hora a ocupar-me com aquele mujique, teria passado de lado sem me inquietar... Mas como tenho a força de observar-me? E eles que decidiram que me estou tornando louco!” Ao chegar diante da porta de sua casa, parou para perguntar a si mesmo: “Não faria eu melhor indo agora à casa do procurador e contar tudo?... Não, amanhã, tudo duma vez!” Coisa estranha, quase toda a sua alegria desapareceu no mesmo instante. Quando entrou no quarto, uma sensação glacial constringiu-o, como a lembrança, ou antes a evocação, de não sei que de penoso ou repugnante, que se encontrava naquele momento naquele quarto e que lá já estivera. Deixou-se cair no divã. A velha criada trouxe-lhe o samovar, ele fez chá, mas não o bebeu; mandou a criada embora até o dia seguinte. Sentia-se tonto, cansado, indisposto. Foi adormecendo, mas pôs-se a andar para afugentar o sono. Parecia-lhe que delirava. Depois de se ter tornado a sentar, pôs-se a olhar de tempos em tempos, em redor de si, como para examinar alguma coisa. Por fim seu olhar se fixou em um ponto. Sorriu, mas o rubor da cólera subiu-lhe ao rosto. Por muito tempo ficou imóvel, com a cabeça entre as mãos, fixando sempre o mesmo ponto, sobre o divã colocado contra a parede em frente. Visivelmente, alguma coisa naquele lugar o irritava, o inquietava.
IX
O diabo. A alucinação de Ivan Fiódorovitch
Não sou médico e, no entanto, sinto que chegou o momento de fornecer algumas explicações sobre a doença de Ivan Fiódorovitch. Digamos imediatamente que estava na iminência de uma febre nervosa, tendo a doença acabado por triunfar de seu organismo enfraquecido. Sem conhecer a medicina, arrisco essa hipótese de que tinha ele talvez conseguido, por um esforço de vontade, conjurar a crise, esperando, bem entendido, a ela escapar. Sabia-se doente, mas não queria abandonar-se à doença naqueles dias decisivos em que devia mostrar-se, falar ousadamente, justificar-se aos próprios olhos. Tinha ido ver o médico vindo de Moscou a chamado de Katierina Ivânovna. Depois de havê-lo auscultado e examinado, concluiu o facultativo pela existência de um desarranjo cerebral e não ficou nada surpreendido com uma confissão que Ivan lhe fez, no entanto, com repugnância. “As alucinações são muito possíveis em seu estado, mas seria preciso controlá-las... aliás, o senhor deve tratar-se seriamente, senão isso se agravará.” Mas Ivan Fiódorovitch não deu importância a esse sábio conselho: “Tenho ainda força para andar. Quando eu cair, será diferente. Tratará de mim quem quiser!”
Tinha quase consciência de seu delírio e fixava obstinadamente certo objeto, em cima do divã, em frente a ele. Ali apareceu de repente um indivíduo, que entrou Deus sabe como, porque não estava ele ali quando Ivan Fiódorovitch chegou, após sua visita a Smierdiákov. Era um senhor, ou uma espécie de cavalheiro russo, qui frisait la cinquantaine,[ 132 ] como dizem os franceses, um pouco grisalho, os cabelos longos e espessos, a barba em ponta. Trazia um paletó marrom, evidentemente da casa de um bom alfaiate, mas já usado, datado de cerca de três anos e completamente fora de moda. A roupa branca, o comprido lenço de pescoço, tudo lembrava o cavalheiro elegante; mas a roupa, observada de perto, não estava lá muito limpa e o lenço de pescoço, bastante gasto. Suas calças de quadrados assentavam-lhe bem, mas eram demasiado claras e demasiado justas, como não se usam mais atualmente, da mesma maneira o chapéu de feltro branco, malgrado a estação. Em suma, um aspecto ao mesmo tempo decente e de quem estava em dificuldades financeiras. O cavalheiro parecia ser um desses antigos proprietários rurais que floresciam no tempo da servidão; vivera na sociedade, tivera outrora relações conservadas talvez até agora, mas, pouco a pouco, empobrecido após as dissipações da juventude e a recente abolição da servidão, tornara-se uma espécie de parasita de boa companhia, recebido em casa de seus antigos conhecidos por causa do gênio acomodatício e a título de homem decente, que se pode admitir à mesa em qualquer ocasião, embora num lugar modesto. Esses parasitas, de gênio afável, que sabem contar uma história, organizar um jogo, detestar as incumbências de que os encarregam, são em geral viúvos ou solteirões; por vezes têm filhos, sempre educados longe, em casa de alguma tia, a respeito da qual o cavalheiro quase nunca fala quando em boa companhia, como se se envergonhasse de tal parentesco. Acaba por se desacostumar dos filhos, que lhe escrevem de longe em longe, por ocasião de seu aniversário ou do Natal, cartas de felicitações às quais ele por vezes responde. A fisionomia daquele visitante inesperado era mais afável que bonachona, pronta a amabilidade de acordo com as circunstâncias. Não tinha relógio, mas usava um lornhão de aro de tartaruga, preso por uma fita preta. O dedo médio da mão direita estava ornado com um anel de ouro maciço com uma opala barata. Ivan Fiódorovitch mantinha-se em silêncio, resolvido a não travar conhecimento. O visitante aguardava, como um parasita que acaba de deixar o quarto que lhe é reservado, a hora do chá, para fazer companhia ao dono da casa, mas que se cala, estando este absorvido em suas reflexões, pronto todavia a uma amável prosa, contanto que o dono da casa a comece. De repente seu rosto revelou preocupação.
— Escuta — disse ele a Ivan Fiódorovitch —, desculpe-me, quero somente lembrar-te: foste à casa de Smierdiákov, a fim de te informares a respeito de Katierina Ivânovna, mas vieste embora sem nada saber. Decerto te esqueceste...
— Ah, sim! — disse Ivan preocupado. — Esqueci-me... Não importa, aliás, deixemos isso para amanhã. A propósito — disse ele, irritado ao visitante —, era eu quem devia ter-me lembrado disso ainda há pouco, porque me sentia angustiado a respeito. Bastou que tivesses surgido para que acredite que essa sugestão partiu de ti.
— Pois bem, não o creio — e o cavalheiro sorriu, com ar amável. — A fé não se impõe. Aliás, nesse domínio, as provas, mesmo materiais, são ineficazes. Tomé acreditou, porque queria acreditar, não por ter visto Cristo ressuscitado. Assim, os espíritas... gosto muito deles... imagina que acreditam servir à fé, porque o diabo lhes mostra chifres de vez em quando. “É uma prova material da existência do outro mundo.” O outro mundo demonstrado materialmente! Que ideia! Enfim, isso provaria a existência do diabo, mas não a de Deus. Quero passar para uma sociedade idealista, a fim de fazer-lhes oposição.
— Escuta — disse Ivan Fiódorovitch, levantando-se —, creio que estou delirando, conta o que quiseres, pouco me importa! Não me exasperarás como antes. Somente, tenho vergonha... Quero andar pelo quarto... Por vezes, deixo de ver-te, de ouvir-te, mas adivinho sempre o que queres, porque “sou eu quem fala e não tu!”. Mas não sei se dormia, na derradeira vez, ou se te vi realmente. Vou aplicar em minha cabeça um guardanapo molhado, talvez assim te dissipes.
Ivan foi buscar um guardanapo e fez como dizia, depois do que pôs-se a andar para lá e para cá.
— Causa-me prazer nos tratarmos por “tu” — disse o visitante.
— Imbecil, acreditas que vou tratar-te por “vós”? Sinto-me disposto... se pelo menos não tivesse dor de cabeça... mas não me venhas com tanta filosofia como na última vez. Se não podes ir-te embora, inventa pelo menos algo de engraçado. Conta-me mexericos, porque não passas de um parasita. Que pesadelo tenaz! Mas não te temo. Acabarei vencendo-te. Não me internarão!
— C’est charmant!, parasita. É meu papel, com efeito. Que sou eu na terra senão um parasita? A propósito, surpreende-me ouvir-te; palavra, começas a tomar-me por um ser real e não pelo produto apenas de tua imaginação, como o sustentavas da outra vez.
— Nem um instante tomo-te por uma realidade! — exclamou Ivan, com raiva. — És uma mentira, um fantasma de meu espírito doente. Mas não sei como desembaraçar-me de ti, vejo que será preciso sofrer algum tempo. És uma alucinação, a encarnação de mim mesmo, de uma parte apenas de mim... de meus pensamentos e de meus sentimentos, mas dos mais vis e dos mais tolos. A esse respeito, poderias mesmo interessar-me, se tivesse tempo para perder contigo.
— Com licença, vou confundir-te; ainda há pouco, perto do lampião, quando deste com Aliócha, gritando-lhe “Soubeste-o por ele? Como sabes que ele vem ver-me?”, era a meu respeito que falavas. Portanto, acreditaste um instante que eu existo realmente — disse o cavalheiro com um sorriso delicado.
— Sim, era uma fraqueza... mas não podia acreditar em ti. Talvez te tenha visto somente em sonho, e não na realidade, na derradeira vez.
— E por que foste tão duro com Aliócha? Ele é encantador, sinto-me culpado para com ele, por causa do stáriets Zósima.
— Como ousas falar de Aliócha, lacaio! — disse Ivan, rindo.
— Injurias-me rindo, bom sinal. Aliás, estás bem mais amável comigo do que da última vez e compreendo por quê: essa nobre resolução...
— Não me fales disso — gritou Ivan, furioso.
— Compreendo, compreendo, c’est noble, c’est charmant, vais amanhã defender teu irmão, tu te sacrificas... c’est chevaleresque...
— Cala-te, se não toma cuidado com os pontapés!
— Em certo sentido, isso me causará prazer, porque meu objetivo será atingido; se ages assim, é que crês em minha realidade, não se trata um fantasma a pontapés. Basta de brincadeiras! Podes injuriar-me, mas vale mais a pena ser um pouco mais delicado, mesmo comigo. Imbecil, lacaio! Que expressões!
— Injuriando-te, injurio-me! Tu és eu mesmo, mas com outro focinho. Exprimes meus pensamentos... e nada podes dizer de novo!
— Se nossos pensamentos se encontram, isso me honra — disse graciosamente o cavalheiro.
— Somente tu escolhes meus pensamentos mais estúpidos... És besta e vulgar. És estúpido. Não posso suportar-te! Que fazer, que fazer!? — murmurou Ivan entre dentes.
— Meu amigo, quero, no entanto, permanecer um cavalheiro e ser tratado como tal — disse o visitante com certo amor-próprio, aliás conciliador, bonachão. — Sou pobre, mas... não direi muito honesto, mas... admite-se geralmente como um axioma que sou um anjo decaído. Palavra, não posso imaginar como pude, outrora, ser um anjo. Se o fui algum dia, foi há tanto tempo que não é pecado esquecê-lo. Agora, atenho-me apenas à minha reputação de homem decente e vivo como posso, esforçando-me por ser agradável. Gosto sinceramente dos homens; caluniaram-me muito. Quando me transporto aqui para a terra, entre vocês, minha vida toma uma aparência de realidade, e é o que mais me agrada. Porque o fantástico me atormenta como a ti mesmo, de modo que gosto do realismo terrestre. Entre vocês, tudo é definido, há fórmulas, geometria; entre nós, só equações indeterminadas! Aqui, passeio, sonho (gosto de sonhar). Tomo-me supersticioso, não rias, peço-te; a superstição me agrada. Adoto todos os hábitos de vocês; gosto de ir aos banhos públicos, imagina, estar na sauna com os comerciantes e os popes. Meu sonho é encarnar-me, mas definitivamente, em algum comerciante obeso e partilhar todas as suas crenças. Meu ideal é ir à igreja e lá acender uma vela, de todo o coração, palavra! Então meus sofrimentos terão fim. Gosto também dos remédios de vocês; na primavera, havia uma epidemia de varíola, fui vacinar-me. Se soubesses como estava eu contente! Dei dez rublos para “nossos irmãos eslavos”!... Não me ouves. Não estás em teu estado normal, hoje... — O cavalheiro fez uma pausa. — Sei que foste ontem consultar aquele médico... Pois bem, como vais! Que te disse ele?
— Imbecil!
— Em compensação, tens tanto espírito! Invectivas de novo. Não é por interesse que te perguntava isso. Podes não responder. Eis meus reumatismos que se apoderam de mim de novo.
— Imbecil!
— Continuas? Lembro-me ainda de meus reumatismos do ano passado.
— O diabo com reumatismo?
— Por que não? Se me encarno, tenho de suportar todas as consequências. Satanas sum et nihil humani a me alienum puto.[ 133 ]
— Como, como? Satanas sum et nihil humani... Não está mal para o diabo!
— Sinto-me feliz por ver que afinal te causo satisfação.
— Isso não aprendeste de mim — disse Ivan, surpreso —, isso jamais me ocorreu. É estranho...
— C’est du nouveau, n’est-ce pas?[ 134 ] Dessa vez agirei lealmente e te explicarei a coisa. Escuta. Nos sonhos, sobretudo durante os pesadelos que provêm dum desarranjo de estômago ou de outra coisa, o homem tem por vezes visões tão belas, cenas da vida real tão complicadas, atravessa tal sucessão de acontecimentos de peripécias inesperadas, desde as manifestações mais altas até as menores bagatelas, que, juro-te, o próprio Liev Tolstói não as imaginaria. Entretanto, esses sonhos ocorrem não aos escritores, mas a pessoas comuns: funcionários, jornalistas, popes... Um ministro chegou a confessar-me que suas melhores ideias lhe vinham quando dormia. É o mesmo agora; digo coisas originais, que nunca te vieram ao espírito, como nos pesadelos; entretanto, não sou senão tua alucinação.
— Mentes. Teu fim é persuadir-me que existes e eis que tu mesmo pretendes ser um sonho.
— Meu amigo, escolhi hoje um método particular que te explicarei em seguida. Espera um pouco, onde estava eu? Ah, sim! Resfriei-me, mas não entre vocês, lá mesmo...
— Lá mesmo, onde? Dize, pois, demorarás ainda muito tempo!? — exclamou Ivan, quase desesperado. Parou, sentou-se no divã, pegou de novo a cabeça entre as mãos. Arrancou o guardanapo molhado e atirou-o fora com despeito.
— Estás com os nervos doentes — observou o cavalheiro com ar displicente, mas amigável. — Estás com raiva de mim porque me resfriei, entretanto aconteceu da maneira mais natural. Corria eu para uma festa diplomática, em casa duma grande dama de Petersburgo, que manejava a seu gosto os ministros. De casaca, gravata branca, enluvado, no entanto estava ainda Deus sabe onde, e para chegar à terra era preciso transpor o espaço. Decerto, não é senão um instante, mas a luz do Sol leva oito minutos e, imagina, de casaca e de colete aberto. Os espíritos não gelam, mas quando me encarnei... em suma, agi descuidadamente e aventurei-me; no espaço, no éter, na água... faz um frio, nem se pode mesmo chamar isso de frio, imagina: 150 graus abaixo de zero. Conhece-se a brincadeira de jovens aldeãs: quando gela a trinta graus, propõem a algum simplório lamber um machado; a língua gela instantaneamente, o simplório arranca a pele, e são apenas trinta graus. A 150 graus, bastaria, penso, tocar um machado com um dedo para que ele desapareça... se pelo menos houvesse um machado no espaço...
— Mas será possível? — interrompeu, distraidamente, Ivan Fiódorovitch. — Lutava com todas as forças para resistir ao delírio e não afundar na loucura.
— Um machado? — repetiu o visitante com surpresa.
— Mas sim, que será feito dele lá!? — exclamou Ivan, com uma obstinação colérica.
— Um machado no espaço? Quelle idée! Se se encontrar bem longe da Terra, penso que se porá a girar em torno sem saber por quê, à maneira de um satélite. Os astrônomos calcularão quando se levantará e quando se porá. Gatsuk[ 135 ] pô-lo-á em seu almanaque, eis tudo.
— És estúpido, horrivelmente estúpido! Prega mentiras mais espirituosas, ou não te darei ouvidos. Queres convencer-me pelo realismo de teus processos, persuadir-me de tua existência. Não creio nela!
— Mas não estou mentindo, tudo isso é verdade. Infelizmente, a verdade quase nunca é espirituosa. Vejo que esperas de mim algo de grande, talvez de belo. É lamentável, porque só dou o que posso...
— Não me venhas com filosofia, pedaço de asno!
— Como posso filosofar, quando estou com todo o lado direito paralisado, obrigando-me a gemer? Consultei a faculdade; sabem diagnosticar maravilhosamente, explicam-nos a doença, mas são incapazes de curar. Havia lá um estudante entusiasta: “Se o senhor morrer — dizia ele —, conhecerá exatamente a natureza de seu mal!” Têm a mania de dirigir-nos a especialistas: nós nos limitamos a diagnosticar, vá ver fulano, ele o curará. Não se encontra mais absolutamente médico à moda antiga, que tratava todas as doenças. Agora só há especialistas, que fazem publicidade. Para uma doença no nariz enviam a gente a Paris, ao consultório de um especialista europeu. Ele examina o nariz da gente. Não posso, diz ele, curar senão a narina direita, porque não trato as narinas esquerdas, não é minha especialidade. Vá a Viena; há lá um especialista para as narinas esquerdas. Que fazer? Recorri aos remédios de curandeiras, um médico alemão aconselhou-me que esfregasse no corpo, após o banho, mel e sal. Fui aos banhos só por prazer e me besuntei em pura perda. Em desespero de causa, escrevi ao conde Mattei, de Milão; enviou-me um livro e umas bolinhas. Que Deus lhe perdoe! Imagina que o extrato de malte de Holf curou-me. Tinha-o comprado por acaso, tomei um frasco e meio e tudo desapareceu radicalmente. Estava resolvido a publicar uma declaração nos jornais, porque a gratidão falava em mim, mas foi outra história, nenhuma redação a aceitou! “É demasiado reacionária — dizem —, ninguém acreditará nisso, le diable n’existe point. Publique isso anonimamente.” Mas de que vale uma declaração anônima? Brinquei com os redatores: “Ser reacionário — dizia-lhes — é crer em Deus em nossa época, mas eu, eu sou o diabo.” — “Decerto, toda a gente crê no diabo, contudo é impossível, poderia isso prejudicar nosso programa. Talvez... sob uma forma humorística...” Mas então, pensei, não seria espirituoso. E minha declaração não apareceu. Isso ficou me pesando no coração. Os melhores sentimentos, tais como a gratidão, estão formalmente proibidos para mim, por causa de minha posição social.
— Voltas a cair na filosofia? — disse Ivan, de dentes cerrados.
— Deus me livre! Mas a gente não pode impedir-se de queixar-se por vezes. Sou caluniado. Tu me tratas a todo momento de imbecil. Vê-se bem que és um homem jovem. Meu amigo, só há o espírito. Recebi da natureza um coração bom e alegre, “também compus vaudevilles”.[ 136 ] Tomas-me, creio, por um velho Khlestakov, mas meu destino é bem mais sério. Por uma espécie de decreto inexplicável, tenho por missão “negar”, e, no entanto, sou visceralmente bom e inapto para a negação. “Não, tens de negar! Sem negação, não há crítica, e que seria das revistas sem a crítica? Só restaria um hosana. Mas isso não basta para a vida, é preciso que esse hosana passe pelo cadinho da dúvida, etc.” Aliás, não me meto em tudo isso, não fui eu quem inventou a crítica, não sou o responsável por ela. Pois bem! Tenho servido de bode expiatório, obrigaram-me a fazer crítica e a vida começou. Compreendemos essa comédia; quanto a mim, aspiro ao nada. Não, é preciso que vivas, dizem-me, porque sem ti nada existiria. Se tudo fosse razoável na terra, nada se passaria nela. Sem ti, nada de acontecimentos; ora, são precisos os acontecimentos. Cumpro, pois, minha missão, bem a contragosto, para suscitar acontecimentos, e realizo o irracional, cumprindo ordem. As pessoas levam essa comédia a sério, malgrado todo o espírito. Para elas é uma tragédia. Sofrem, evidentemente... em compensação, vivem, uma vida real e não imaginária, porque o sofrimento é a vida. Sem o sofrimento, que prazer ofereceria ela? Tudo se assemelharia a um te-déum interminável; é santo, mas bastante tedioso. E eu? Eu sofro e, no entanto, não vivo. Sou a incógnita de uma equação. Sou o espectro da vida, que perdeu a noção das coisas, e esqueço até meu nome. Ris?... Não, não ris, zangas-te de novo, como sempre. Ser-te-ia preciso sempre inteligência; ora, repito-te, daria toda essa vida sideral, todos os graus, todas as honras, para encarnar-me na pele duma vendedora obesa e ir queimar velas na igreja.
— Tu também não crês em Deus — disse Ivan, com um sorriso cheio de ódio.
— Como dizer, se falas seriamente...
— Deus existe ou não existe? — insistiu Ivan, encolerizado.
— Ah! É sério então? Meu caro, Deus é-me testemunha de que não sei de nada, não posso dizer melhor.
— Não, tu não existes, tu és eu mesmo e nada mais! Não passas de uma quimera!
— Se queres, tenho a mesma filosofia que você, é verdade. Je pense, donc je suis,[ 137 ] eis o que é certo; quanto ao resto, quanto a todos esses mundos, Deus e o próprio Satã, tudo isso não me é provado. Têm eles uma existência própria ou serão apenas uma emanação de mim, o desenvolvimento sucessivo de meu “eu”, que existe temporal e pessoalmente... mas detenho-me, porque tenho a impressão de que vais bater-me.
— Farias melhor se me contasses uma anedota!
— Eis uma, precisamente no quadro de nosso tema, isto é, mais uma lenda que anedota. Tu censuras minha incredulidade. Mas, meu caro, não sou só eu assim; entre nós, todos estão agora perturbados por causa das ciências de vocês. Enquanto havia os átomos, os cinco sentidos, os quatro elementos, a coisa ia bem ainda. Os átomos já eram conhecidos na Antiguidade. Mas vocês descobriram “a molécula química”, “o protoplasma”, e o diabo sabe ainda o quê! Aprendendo isso, os nossos baixaram a cauda. Foi a barafunda; sobretudo a superstição, os mexericos proliferaram; fica sabendo que temos disso, tanto quanto vocês, talvez mesmo um pouco mais, e, afinal, também as declarações; há igualdade entre nós, uma seção em que recebemos certas “informações”. Pois bem, essa lenda de nossa Idade Média, da nossa, não da de vocês, não merece nenhum crédito, exceto entre gordas vendedoras, as nossas, não as de vocês. Tudo quanto existe entre vocês, existe também entre nós; revelo-te esse mistério por amizade, se bem que seja proibido. Essa lenda fala, pois, do paraíso. Havia na terra certo filósofo que negava tudo, as leis, a consciência, a fé, sobretudo a vida futura. Morreu pensando entrar nas trevas do nada, e ei-lo em presença da vida futura. Espanta-se, indigna-se: “Isso — diz ele — é contrário às minhas convicções.” E foi condenado por isso... Desculpe-me, transmito-te esta lenda como me contaram... Portanto, foi ele condenado a percorrer nas trevas um quatrilhão de quilômetros (porque contamos também em quilômetros, agora), e, quando tiver ele acabado o seu quatrilhão, as portas do paraíso se abrirão diante dele e tudo lhe será perdoado...
— Que tormentos há no outro mundo, além do quatrilhão? — perguntou Ivan, com estranha animação.
— Que tormentos? Ah, não me fales! Outrora, havia-os para todos os gostos; agora, é sempre mais o sistema das torturas morais “os remorsos da consciência” e outras pataratas. Devemos isso à “doçura dos costumes” de vocês. E quem tira proveito disso? Somente os que não têm consciência, porque zombam dos remorsos! Em compensação, as pessoas decentes, que conservaram o sentimento da honra, sofrem... Eis o que acontece com as reformas operadas em terreno mal preparado e copiadas de instituições estrangeiras. São deploráveis! O fogo de outrora valia melhor. O condenado ao quatrilhão olha, pois, em redor de si, depois se deita atravessado na estrada: “Não ando, por princípio recuso!” Pega a alma de um ateu russo esclarecido e mistura-a com a do profeta Jonas, que se aborreceu três noites na barriga de uma baleia, e obterás nosso pensador recalcitrante.
— Sobre que se estendeu ele?
— Havia certamente alguma coisa sobre a qual se estenderia. Não estás brincando?
— Viva! — exclamou Ivan, com a mesma animação. Escutava com uma curiosidade inesperada. — Pois bem! Continua ele deitado?
— Mas não, ao fim de mil anos, levantou-se e pôs-se a andar.
— Que asno! — Ivan deu uma risada nervosa e pôs-se a refletir. — Não será a mesma coisa ficar deitado eternamente ou marchar um quatrilhão de verstas? Mas perfaz isso um bilhão de anos?
— E até mesmo mais. Se houvesse lápis e papel, poder-se-ia calcular. Faz muito tempo que ele chegou, e é aqui que começa a anedota.
— Como? Mas onde arranjou ele um bilhão de anos?
— Pensas sempre em nossa terra atual! A terra reproduziu-se talvez um milhão de vezes; gelou-se, fendeu-se, desagregou-se, depois decompôs-se em seus elementos, e, de novo, as águas recobriram a terra. Em seguida, foi novamente um cometa, depois um Sol donde saiu o globo. Esse ciclo se repete talvez uma infinidade de vezes, sob a mesma forma, até o mínimo detalhe. É mortalmente aborrecedor...
— Pois bem! Que aconteceu quando ele acabou?
— Assim que ele entrou no paraíso, dois segundos, de relógio na mão, não se tinham passado (se bem que seu relógio, em minha opinião, deve ter-se decomposto em seus elementos durante a viagem) e já exclamava que, por aqueles dois segundos, bem valia fazer não só um quatrilhão de quilômetros, mas um quatrilhão de quatrilhões, à quatrilhonésima potência! Em suma, cantou hosanas, exagerou mesmo, a ponto de pensadores mais dignos recusarem estender-lhe a mão nos primeiros tempos; tornara-se demasiado bruscamente conservador. É o temperamento russo. Repito-o, é uma lenda. Eis as ideias que têm curso entre nós a respeito dessas matérias.
— Apanhei-te! — exclamou Ivan, com uma alegria quase infantil, como se lhe voltasse a memória. — Fui eu mesmo que inventei essa anedota do quatrilhão de anos! Tinha então 17 anos, estava no ginásio... Contei-a a um de meus camaradas, Koróvkin, em Moscou... Essa anedota é muito característica, tinha-a esquecido, mas lembrei-me dela inconscientemente; não foste tu que a contaste! É assim que uma multidão de coisas nos volta à memória, quando marchamos para o suplício... ou quando sonhamos. Pois bem, não passas de um sonho!
— A violência com que me negas assegura-me que, apesar de tudo, crês em mim — disse o cavalheiro jovialmente.
— Absolutamente! Não creio em ti nem uma centésima parte!
— Mas uma milésima crês. As doses homeopáticas são talvez as mais fortes. Confessa que crês em mim, pelo menos uma décima milésima parte...
— Não! — gritou Ivan irritado. — Aliás, gostaria bem de crer em ti!
— Eh!, eh!, eh! Por fim confessou! Mas sou bom, vou ajudar-te. Fui eu que te apanhei! Contei-te, de propósito, essa anedota para desenganar-te definitivamente a meu respeito.
— Mentes. O fim de tua aparição é convencer-me de tua existência.
— Precisamente. Mas as hesitações, a inquietação, o conflito entre a fé e a dúvida constituem por vezes tal sofrimento para um homem escrupuloso como você, que melhor vale enforcar-se. Sabendo que crês um pouco em mim, contei-lhe essa anedota para entregar-te definitivamente à dúvida. Conduzo-te entre a fé e a incredulidade alternativamente, não sem um fito. É um novo método; quando cessares completamente de crer em mim, pôr-te-ás a assegurar-me que não sou um sonho, que existo verdadeiramente, conheço-te; então meu fito será atingido. Ora, meu fito é nobre. Depositarei em ti um minúsculo germe de fé que dará nascimento a um carvalho, um carvalho tão grande que será teu refúgio e quererás fazer-te anacoreta, porque é teu vivo desejo em segredo, nutrir-te-ás de gafanhotos, prepararás tua salvação no deserto.
— Então, miserável, é para minha salvação que trabalhas?
— É bem preciso praticar alguma vez uma boa obra. Tu te zangas, pelo que vejo!
— Palhaço! Jamais tentaste aqueles que se nutrem de gafanhotos, rezam 17 anos no deserto até ficarem cobertos de musgo?
— Meu caro, não faço outra coisa senão isso. A gente esquece o mundo inteiro por uma alma assim, porque é uma joia de preço, uma estrela que vale por vezes toda uma constelação. Temos nossa aritmética. A vitória é preciosa! Ora, certos solitários, palavra de honra, valem tanto quanto você, do ponto de vista intelectual, se bem que não o creias; podem contemplar simultaneamente tais abismos de fé e de dúvida que parece, por vezes, na verdade, que basta apenas um cabelo para que eles sucumbam.
— Pois bem! Tu te retirarias de nariz bem comprido!
— Meu amigo — observou o visitante, sentencioso —, mais vale ter o nariz comprido do que não ter nariz, como o dizia ainda recentemente um marquês doente (deve ter sido tratado por um especialista), confessando-se a um padre jesuíta. Assisti a isso, era encantador. “Entregai-me meu nariz!”, e batia no peito. “Meu filho — insinuava o padre —, tudo é regulado pelos decretos insondáveis da Providência, um mal aparente traz por vezes um bem oculto. Se uma sorte cruel o privou de seu nariz, o senhor ganha com isso pelo fato de ninguém mais doravante ousar dizer-lhe que o senhor tem o nariz comprido.” — “Meu padre, não é isso um consolo! — exclamou ele desesperado. — Ficarei, pelo contrário, encantado por ter cada dia o nariz comprido, contanto que ele esteja no lugar!” — “Meu filho — disse o padre, suspirando —, não se podem pedir todos os bens ao mesmo tempo e já é murmurar contra a Providência, que, mesmo assim, não o esqueceu; porque, se o senhor grita, como ainda há pouco, que seria feliz toda a vida por ter o nariz comprido, seu desejo será satisfeito indiretamente, porque, tendo perdido o nariz, pelo fato mesmo, tem o senhor o nariz comprido...”
— Ora! Que coisa estúpida! — exclamou Ivan.
— Meu amigo, eu queria fazer-te rir, juro-te que tal é a casuística dos jesuítas e que tudo isso é rigorosamente exato. Esse caso é recente e causou-me bastantes preocupações. De volta para casa, o desgraçado rapaz estourou os miolos naquela noite; não o deixei até o derradeiro instante... Quanto aos confessionários jesuíticos, são na verdade meu divertimento agradável nas horas de tristeza. Eis uma historieta desses últimos dias. Uma jovem normanda, loura, de vinte anos, chega à casa de um velho padre. Uma beleza! Que corpo! Era de fazer vir água à boca. Ajoelha-se, murmura seu pecado através da grade. “Como, minha filha, você recaiu no pecado?... Ó Sancta Maria, que ouço eu? Já é outro? Até quando durará isso? Não tem você vergonha?” — “Ah!, mon Père — responde a pecadora arrependida —, ça lui a fait tant de plaisir et à moi si peu de peine!”[ 138 ] Considera essa resposta! É o grito da própria natureza, vale isto mais que a inocência! Dei-lhe a absolvição e voltei-me para retirar-me, quando ouvi o padre marcar-lhe um encontro para aquela noite. Por mais resistente que tenha sido o velho, sucumbiu logo à tentação. A natureza, a verdade, desforrou-se! Por que fazes careta? Eis-te de novo zangado? Não sei mais que fazer para te ser agradável...
— Deixa-me, tu me obsedas como um pesadelo — gemeu Ivan, vencido por sua visão. — Tu me aborreces e me atormentas. Daria muito para escorraçar-te.
— Repito, modera tuas exigências, não exijas de mim o grande e o belo, e verás como seremos bons amigos — disse o cavalheiro com um tom sugestivo. Na verdade, tens razão de querer-me mal porque não apareci em meio duma nuvem vermelha, entre o trovão e os raios, com as asas avermelhadas, mas me apresentei com traje tão modesto. Em primeiro lugar, teus sentimentos estéticos estão melindrados, depois teu orgulho; tão grande homem receber a visita de um diabo tão comum! Há em ti aquela fibra romântica de que zombou Bielínski! Que fazer, rapaz? Ainda há pouco, no momento de vir à tua casa, pensei, para brincar, em tomar a aparência de um conselheiro de Estado aposentado, condecorado com as ordens do Leão e do Sol, mas não ousei, porque ter-me-ias batido: como, pôr no peito as placas do Leão e do Sol, em lugar da Estrela Polar ou de Sírio?! E insistes em chamar-me estúpido. Meu Deus, não pretendo ter a tua inteligência. Mefistófeles, aparecendo a Fausto, afirma que quer o mal e não faz senão o bem. Bem, isso é lá com ele, comigo é o contrário. Sou talvez o único ser no mundo que ama a verdade e quer sinceramente o bem. Estava presente quando o Verbo crucificado subiu ao céu, levando a alma do bom ladrão; ouvi as exclamações jubilosas dos querubins cantando hosana e os hinos dos serafins, que faziam tremer o Universo. Pois bem, juro-o pelo que há de mais sagrado, quis juntar-me aos coros e gritar também hosana! As palavras iam sair de meu peito... sabes que sou bastante sensível e impressionável do ponto de vista estético. Mas o bom senso — a mais desgraçada de minhas faculdades — reteve-me nos justos limites e deixei passar a hora propícia! Porque, pensava eu então, que aconteceria se eu cantasse hosana? Tudo se extinguiria no mundo, não ocorreria mais nada. Eis como os deveres de meu cargo e minha posição social obrigaram-me a repelir um impulso generoso e a permanecer na infâmia. Outros arrogam-se toda a honra do bem: não me deixam senão a infâmia. Mas não invejo a honra de viver à custa de outrem, não sou ambicioso. Por que, entre todas as criaturas, sou eu só votado às maldições das pessoas honestas e mesmo aos pontapés de botas, pois, encarnando-me, devo suportar tais consequências? Há aí um mistério, mas a preço algum querem revelar-me, com medo que entoe eu hosana e tão logo desapareçam as imperfeições necessárias, reine a razão no mundo inteiro: seria naturalmente o fim de tudo, até mesmo de jornais e revistas, porque quem os assinaria então? Sei que por fim eu me reconciliaria, farei também eu meu quatrilhão e conhecerei o segredo. Mas, à espera, amuo-me e cumpro a contragosto minha missão; perder milhões para salvar um só. Quantas almas, por exemplo, foi preciso perder e quantas reputações macular para obter um só justo, Jó, do qual se serviram outrora para me pregarem bem má peça. Não, enquanto o segredo não for revelado, existem para mim duas verdades: a lá de baixo, a deles, que ignoro totalmente, e a outra, a minha. Resta ver qual é a mais pura... Dormes?
— Penso bem — gemeu Ivan — em tudo o que há de animal em mim, tudo o que há muito tempo digeri e eliminei como uma sujeira, tu nos trazes como uma novidade!
— Então, não fui bem-sucedido! Eu que pensava encantar-te com minha eloquência! Esse hosana no céu, na verdade, não estava mal, não é? Depois aquele tom sarcástico à Heine,[ 139 ] não é?
— Não, jamais tive esse espírito de lacaio! Como pôde minha alma produzir um lacaio de tua espécie?
— Meu amigo, conheço um encantador jovem russo, amador de literatura e de arte. É o autor dum poema que promete, intitulado: “O grande inquisidor...” Era unicamente ele que eu tinha em vista.
— Proíbo-te de falar de “O grande inquisidor”! — exclamou Ivan, rubro de vergonha.
— E o cataclismo geológico, lembras-te? Que poema!
— Cala-te ou eu te mato!
— Matar-me? Não, é preciso que eu me explique em primeiro lugar. Vim cá para oferecer a mim mesmo esse prazer. Oh, quanto amo os sonhos de meus jovens amigos, fogosos, sedentos de vida! “Ali vive gente nova!”, dizias tu na última primavera, quando te preparavas para vir aqui. “Eles querem tudo destruir e regressar à antropofagia. Não me consultaram, os estúpidos. Em minha opinião, não é preciso destruir nada, a não ser a ideia de Deus no espírito do homem: eis por onde é preciso começar. Oh, os cegos, não compreendem nada! Uma vez que a humanidade inteira professe o ateísmo (e creio que essa época, à maneira das épocas geológicas, chegará a seu tempo), então, por si mesma, sem antropofagia, a antiga concepção do mundo desaparecerá, e sobretudo a antiga moral. Os homens se unirão para retirar da vida todos os gozos possíveis, mas neste mundo somente. O espírito humano se elevará até um orgulho titânico, e isso será a humanidade deificada. Triunfando sem cessar e sem limites da natureza pela ciência e pela energia, o homem, por isso mesmo, experimentará constantemente uma alegria tão intensa que ela substituirá para ele as esperanças das alegrias celestes. Cada qual saberá que é mortal, sem esperança de ressurreição, e resignar-se-á à morte com uma altivez tranquila, como um deus. Por altivez, abster-se-á de murmurar contra a brevidade da vida a amará seus irmãos duma maneira desinteressada. O amor só procurará gozos breves, mas o próprio sentimento de sua brevidade reforçar-lhe-á a intensidade tanto quanto outrora ela se disseminava nas esperanças de um amor eterno, além-tumular...”, e assim por diante. É encantador!
Ivan tapava os ouvidos com as mãos, olhava para o chão, tremia da cabeça aos pés. A voz prosseguiu:
— A questão consiste nisto, sonhava meu jovem pensador: será possível que essa época chegue algum dia? Na afirmativa, tudo está decidido, a humanidade se organizará definitivamente. Mas como, diante da estupidez inveterada da espécie humana, não se venha isso a realizar talvez nem dentro de mil anos, é permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar sua vida como bem entender, de acordo com os novos princípios. Nesse sentido, tudo lhe é permitido. Mais ainda: mesmo se essa época nunca deva chegar, como Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus, seja ele o único no mundo a viver assim. Poderia doravante, de coração leve, libertar-se das regras da moral tradicional, às quais estava o homem sujeito como um escravo. Para Deus, não existe lei. Em toda parte onde Deus se encontra, está em seu lugar! Em toda parte em que me encontrar, será o primeiro lugar... tudo é permitido, um ponto, é tudo! Tudo isso é muito gentil, somente se se quer trapacear, de que serve a sanção da verdade? Mas nosso russo contemporâneo é assim feito: não se decidirá a trapacear sem essa sanção, tanto ama ele a verdade...
O visitante deixara-se arrebatar por sua eloquência, elevava cada vez mais a voz e olhava com ironia o dono da casa; mas não pôde acabar. Ivan agarrou de repente um copo em cima da mesa e atirou-o no orador.
— Ah, mais, c’est bête enfin![ 140 ] — exclamou o outro, erguendo-se vivamente e enxugando as gotas de chá que lhe caíram na roupa. — Lembrou-se do tinteiro de Lutero![ 141 ] Quer ver em mim um sonho e lança copos contra um fantasma! Isso é digno duma mulher! Bem suspeitava que fingias tapar os ouvidos e que estavas escutando...
Nesse momento, bateram na janela com insistência. Ivan Fiódorovitch levantou-se.
— Estás ouvindo? Abre então! — exclamou o visitante. — É teu irmão Aliócha que vem anunciar-te uma notícia das mais inesperadas, garanto-te!
— Cala-te, impostor, sabia antes de ti que era Aliócha, pressentia-o, e decerto não vem à toa, traz evidentemente uma “notícia”! — exclamou Ivan, exaltado.
— Abre então, abre-lhe. Está lá fora uma tempestade de neve e é teu irmão quem bate. Monsieur sait-il le temps qu’il fait? C’est à ne paz mettre un chien dehors...[ 142 ]
Continuavam a bater. Ivan quis correr à janela, mas sentiu-se como que paralisado. Esforçava-se por partir os laços que os prendiam, mas em vão. Batiam cada vez com mais força. Por fim, os laços se romperam e Ivan Fiódorovitch levantou-se. As duas velas acabavam de consumir-se, o copo que havia atirado contra seu visitante estava na mesa. No divã, ninguém. As pancadas na janela persistiam, mas bem menos fortes do que lhe tinham parecido, bem discretas até.
— Não é um sonho! Não, juro que não era um sonho, tudo isso acaba de ocorrer.
Ivan correu à janela e abriu o postigo.
— Aliócha, eu te havia proibido de vir — gritou ele, com raiva, a seu irmão. — Em duas palavras: que queres? Em duas palavras, ouves-me?
— Há uma hora, Smierdiákov enforcou-se — disse Aliócha.
— Sobe o patamar, vou abrir a porta — disse Ivan.
X
“Foi ele quem o disse!”
Aliócha contou a Ivan que, uma hora antes, Mária Kondrátievna fora à casa dele para informá-lo de que Smierdiákov acabava de suicidar-se. “Entro no quarto dele para retirar o samovar e vejo-o pendurado de um prego grande na parede.” Perguntando-lhe Aliócha se fizera ela sua declaração a quem de direito, respondeu que viera diretamente à casa dele, correndo. Tremia como uma folha. Tendo-a acompanhado à isbá, havia Aliócha encontrado Smierdiákov ainda pendurado. Em cima da mesa, um papel com estas palavras: “Ponho fim a meus dias voluntariamente. Não acusem ninguém de minha morte.” Deixando esse bilhete em cima da mesa, dirigiu-se Aliócha à casa do isprávnik, “e dali à tua casa”, concluiu, olhando fixamente para Ivan, cuja expressão o intrigava.
— Meu irmão — disse de repente —, deves estar muito doente! Olhas-me sem ter o ar de compreender o que te digo.
— Foi bom teres vindo — disse Ivan com ar preocupado e sem prestar atenção à exclamação de Aliócha. — Sabia que ele se tinha enforcado.
— Por intermédio de quem o sabias?
— Não lembro por intermédio de quem, mas sabia-o. Sabia-o? Sim, ele me disse. Dizia-mo ainda há pouco...
Ivan mantinha-se no meio do quarto, com o ar sempre absorto, olhando para o chão.
— Ele quem? — perguntou Aliócha com uma olhadela involuntária em redor.
— Esquivou-se.
Ivan ergueu a cabeça e sorriu mansamente.
— Teve medo de ti, da pomba. És um puro “querubim”. Dimítri assim te chama: querubim... O grito formidável dos serafins! Que é um serafim? Talvez toda uma constelação, e essa constelação talvez seja senão uma molécula química... Existe a constelação do Leão e do Sol, sabes?
— Meu irmão, senta-te — disse Aliócha espantado —, senta-te no divã, suplico-te. Deliras, apoia-te na almofada, assim. Queres um guardanapo molhado sobre a cabeça? Isso te aliviaria.
— Dá-me o guardanapo que está em cima da cadeira, atirei-o ali ainda há pouco.
— Não, não está ali. Não te inquietes, ei-lo aqui — disse Aliócha, encontrando num canto, perto do lavatório, um guardanapo limpo, ainda dobrado. Ivan examinou-o com um olhar estranho. Pareceu voltar-lhe a memória.
— Espera — disse ele, levantando-se. — Há uma hora apliquei à minha cabeça esse mesmo guardanapo molhado, depois joguei-o ali... como pode estar ele seco? Não havia outro.
— Aplicaste esse guardanapo na cabeça?
— Sim, e andei pelo quarto há uma hora... Por que as velas estão consumidas? Que horas são?
— Em breve será meia-noite.
— Não, não, não! — exclamou Ivan. — Não era um sonho! Ele estava aqui, neste divã. Quando tu bateste na janela, atirei-lhe um copo... aquele... Espera um pouco, não é a primeira vez... mas não são sonhos, é realidade: ando, falo, vejo... dormindo. Mas ele estava aqui, neste divã... É muito estúpido ele, Aliócha, muito estúpido. — Ivan pôs-se a rir e a caminhar pelo quarto.
— Quem é estúpido? De quem falas, meu irmão? — perguntou ansiosamente Aliócha.
— Do diabo! Ele vem ver-me. Veio duas ou três vezes. Irrita-me, pretendendo que lhe quero mal por não ser ele senão o diabo, em lugar de Satã, com asas avermelhadas, cercado de trovões e raios. Não passa de um impostor, um mau diabo de baixa classe. Vai aos banhos. Se lhe tirassem a roupa, haveriam de encontrar nele certamente uma cauda fulva, do comprimento de um árchin, lisa como a de um cão dinamarquês... Aliócha, estás enregelado, coberto de neve, queres chá? Está frio, vou pôr a funcionar o samovar... C’est à ne pas mettre un chien dehors...
Aliócha correu ao lavatório, molhou o guardanapo, persuadiu Ivan a tornar a sentar-se e aplicou-o à sua cabeça. Sentou-se ao lado dele.
— Que é que dizias há pouco a respeito de Lisa? — prosseguiu Ivan. (Tornava-se bastante loquaz.) Lisa me agrada. Falei-te mal dela. É falso, ela me agrada. Tenho medo amanhã, por causa de Kátia sobretudo, pelo futuro. Ela me abandonará amanhã e me espezinhará. Crê que perco Mítia por ciúme, por causa dela, sim, ela crê isso! Mas não! Amanhã, será a cruz e não a forca. Não, não me enforcarei. Sabes que não poderei jamais me matar, Aliócha? Será por baixeza? Não sou um covarde. É por amor à vida! Como sabia eu que Smierdiákov se enforcara? Sim, foi “ele” quem me disse...
— E estás persuadido de que alguém veio aqui?
— Neste divã, no canto. Foste tu que o afugentaste. Sim, foste tu que o puseste em fuga, desapareceu à tua chegada. Gosto de teu rosto, Aliócha. Sabias disso? Mas “ele”, sou eu, Aliócha, eu mesmo. Tudo quanto há em mim de baixo, de vil, de desprezível! Sim, sou um “romântico”, ele o notou... no entanto, é uma calúnia. Ele é horrendamente estúpido, mas por isso que logra êxito. É astuto, bestialmente astuto, sabe muito bem levar-me ao extremo. Zombava de mim, dizendo que eu creio nele, foi assim que me obrigou a escutá-lo. Mistificou-me como a uma criança. Aliás, disse a meu respeito muitas verdades, coisas que eu jamais teria dito a mim mesmo. Sabes, Aliócha, sabes — acrescentou Ivan, num tom confidencial — que eu gostaria bem que fosse realmente “ele”, e não eu?
— Ele fatigou-te — disse Aliócha, olhando para seu irmão com compaixão.
— Irritou-me, sabes, e bem habilmente: “A consciência, que é isso? Fui eu que a inventei. Por que se têm remorsos? Por hábito. Hábito que tem a humanidade há sete mil anos. Desfaçamo-nos do hábito e seremos deuses.” Foi ele quem o disse!
— Mas não tu, não tu!? — exclamou malgrado seu Aliócha, com um olhar luminoso. — Pois bem! Deixa-o, esquece-o então! Que ele leve consigo tudo quanto tu maldizes agora e que não volte mais!
— Ele é mau, zombou de mim. É um insolente, Aliócha — disse Ivan, fremindo à lembrança da ofensa. — Caluniou-me a muitos respeitos, caluniou-me na minha cara. “Oh! vais praticar uma nobre ação, declararás que foste tu o assassino responsável, que o lacaio matou teu pai por instigação...”
— Meu irmão, contém-te; não foste tu que mataste. Não é verdade!
— Foi ele quem o disse, e ele o sabe: “Vais praticar uma ação virtuosa e, contudo, não crês na virtude, eis o que te irrita e te atormenta.” Eis o que ele me disse, e ele é perito nisso...
— És tu que dizes, e não ele! E falas em delírio!
— Não, ele sabe o que diz: “É por orgulho que vais dizer: Fui eu que matei, por que estais tomado de espanto? Mentis! Desprezo vossa opinião, zombo do vosso espanto.” Dizia ainda: “Sabes? Queres que te admirem; é um criminoso, um assassino, dirão, mas que sentimentos nobres! Para salvar seu irmão, acusou-se!” Mas é falso, Aliócha! — exclamou Ivan, com os olhos cintilantes. — Não quero a admiração dos alarves. Juro-te que ele mentiu. Foi por isso que lhe atirei um copo, que se quebrou no focinho dele!
— Meu irmão, acalma-te, deixa de...
— Não, é um sábio torcionário, e cruel — prosseguiu Ivan, que não havia ouvido. — Sabia bem por que ele vinha. “Pois seja — dizia ele —, tu querias ir por orgulho, mas guardando a esperança de que Smierdiákov seria desmascarado e enviado ao presídio, que absolveriam Mítia e que te condenariam moralmente apenas (ouves, ele riu neste ponto!), enquanto que outros te admirariam. Mas Smierdiákov está morto, quem te acreditará agora no tribunal? Tu somente? No entanto, vais, decidiste ir. Com que objetivo, afinal?” É estranho, Aliócha, não posso suportar semelhantes perguntas. Quem tem a audácia de mas fazer?
— Meu irmão — interrompeu Aliócha, gelado de medo, mas esperando sempre fazer Ivan voltar à razão —, como pôde ele falar-te da morte de Smierdiákov antes de minha chegada, quando ninguém a conhecia e não tivera tempo de sabê-la?
— Ele me falou dela — disse Ivan, num tom decisivo. — Não me falou senão disso, se quiseres. “Se ainda acreditasses na virtude: não me acreditarão, não importa, vou por uma questão de princípio. Mas tu não passas de um porco, como Fiódor Pávlovitch, nada tens que ver com a virtude. Por que ires até lá, se teu sacrifício é inútil? Não sabes de nada e darias muito para sabê-lo! Suponhamos: tu te decidiste! Passarás a noite a pesar o pró e o contra! No entanto, irás, bem o sabes, sabes que, qualquer que seja tua resolução, a decisão não depende de ti. Irás, porque não ousarás fazer de outro modo. E por que não ousarás? Adivinha tu mesmo, é um enigma!” Nisso partiu, quando tu chegavas. Tratou-me de covarde, Aliócha. Le mot de l’enigme[ 143 ] é que sou um covarde! Smierdiákov disse o mesmo. É preciso matá-lo. Kátia me despreza, vejo isso hã um mês. Lisa começa a desprezar-me. “Irás para que te admirem”, é uma mentira abominável! E tu também, tu me desprezas, Aliócha. Detesto-te de novo! E odeio também o monstro, que ele apodreça no presídio! Cantou um hino! Irei amanhã cuspir na cara de todos.
Ivan levantou-se cheio de furor, arrancou o guardanapo, voltou a andar pelo quarto. Aliócha lembrou-se de suas recentes palavras: “Parece-me dormir acordado... Ando, falo, vejo, e contudo durmo.” Era bem isso. Não ousava deixá-lo para ir procurar um médico, não tendo ninguém a quem confiá-lo. Pouco a pouco, Ivan pôs-se a desarrazoar completamente. Continuava a falar, mas suas palavras eram incoerentes. Articulava mal as palavras; de repente cambaleou, mas Aliócha pôde sustentá-lo; tirou-lhe a roupa, com dificuldade, e meteu-o na cama. O doente caiu num profundo sono, com a respiração regular, Aliócha velou-o ainda umas duas horas, depois pegou um travesseiro e estendeu-se no divã, sem tirar a roupa. Antes de adormecer, rezou por seus irmãos. Começava a compreender a doença de Ivan. “Os tormentos duma resolução orgulhosa, uma consciência exaltada!” Deus, em quem Ivan não acreditava, e sua verdade tinham subjugado aquele coração ainda rebelde. “Sim, pensava Aliócha, já que Smierdiákov está morto, ninguém acreditará em Ivan; no entanto, ele irá depor. Deus vencerá, disse a si mesmo Aliócha, com um doce sorriso. Ou Ivan despertará à luz da verdade, ou então... sucumbirá no ódio, vingando-se de si mesmo e dos outros por ter servido a uma causa na qual não acreditava”, acrescentou ele com amargura e rezou de novo por Ivan.
Livro XII
Um erro judiciário
I
O dia fatídico
No dia seguinte aos acontecimentos que narramos, às dez horas da manhã, foi aberta a sessão do tribunal e começou o julgamento de Dimítri Karamázov.
Devo declarar previamente que me é impossível relatar todos os fatos na ordem detalhada. Tal exposição demandaria, creio, um grosso volume. De modo que, não me queiram mal por limitar-me ao que me pareceu mais impressionante. Pude tomar o acessório pelo essencial e omitir traços característicos... Aliás, é inútil desculpar-me... Faço o melhor que posso, e os leitores saberão vê-lo.
Antes de penetrar na sala, mencionemos o que causava a surpresa geral. Todo mundo conhecia o interesse despertado por aquele processo impacientemente esperado, as discussões e suposições que provocava havia dois meses. Sabia-se também que aquele caso tivera repercussão em toda a Rússia, mas sem se imaginar que ele pudesse suscitar semelhante emoção em outra parte que não entre nós. Veio gente não somente da sede da província, mas de outras cidades e até mesmo de Moscou e de Petersburgo, juristas, notabilidades, bem como senhoras. Todos os cartões foram arrebatados num abrir e fechar de olhos. Para os visitantes de destaque, haviam reservado lugares por trás da mesa que presidia o tribunal; instalaram-se ali cadeiras, o que jamais se vira. As senhoras, bastante numerosas, formavam pelo menos a metade do público. Havia tantos juristas que não se sabia onde metê-los, estando todos os convites distribuídos desde muito tempo. Construiu-se à pressa, no fundo da sala, por trás do estrado, uma separação no interior da qual tomaram eles lugar, dando-se por felizes em poderem ficar mesmo de pé, porque haviam retirado todas as cadeiras, a fim de obter-se espaço, e a multidão reunida assistiu ao julgamento de pé, em massa compacta. Certas senhoras, sobretudo as recém-chegadas, mostraram-se nas galerias excessivamente enfeitadas, mas a maior parte não pensava na toalete. Lia-se em seus rostos uma curiosidade ávida. Uma das particularidades daquele público, digna de ser assinalada e que se manifestou no correr dos debates, era a simpatia da enorme maioria das senhoras por Mítia, que desejavam ver absolvido. Talvez porque tivesse ele a reputação de cativar os corações femininos. Contava-se com a presença das duas rivais. Katierina Ivânovna sobretudo excitava o interesse geral; contavam-se coisas espantosas a seu respeito e de sua paixão por Mítia, apesar do crime dele. Lembravam seu orgulho (não fizera visitas quase a ninguém), suas “relações aristocráticas”. Dizia-se que tinha ela a intenção de pedir ao governo autorização para acompanhar o condenado ao presídio e casar-se com ele nas minas, embaixo do solo. A aparição de Grúchenhka não despertava menos interesse, esperava-se com curiosidade o encontro em plenário das duas rivais, a jovem aristocrata e a cortesã. Aliás, nossas damas conheciam melhor Grúchenhka, que “tinha posto a perder Fiódor Pávlovitch e seu desgraçado filho”, e a maior parte se admirava de que uma mulher tão ordinária, nem mesmo bonita, tivesse podido tornar a tal ponto apaixonados o pai e o filho. Sei pertinentemente que, em nossa cidade, sérias querelas de família rebentaram por causa de Mítia. Muitas senhoras disputavam com os maridos, em consequência do desacordo a respeito daquele triste caso, e compreende-se que eles chegassem ao recinto não somente maldispostos para com o acusado, mas enraivecidos contra ele. Em geral, ao contrário das mulheres, o elemento masculino era hostil ao detento. Viam-se rostos severos, carrancudos, outros encolerizados e isso na maioria. É verdade que Mítia insultara muitas pessoas, durante sua permanência entre nós. Decerto, alguns espectadores estavam quase alegres e bastante indiferentes à sorte de Mítia, embora interessados pelo resultado do caso; a maior parte desejava o castigo do culpado, salvo talvez os juristas, que só encaravam o processo do ponto de vista jurídico contemporâneo, negligenciando o lado moral. A chegada de Fietiukóvitch, de grande reputação por causa de seu talento, agitava todo mundo; não era a primeira vez que vinha ele à província advogar em processos criminais de repercussão, dos quais se guardava depois por muito tempo a lembrança. Circulavam anedotas sobre nosso procurador e sobre o presidente do tribunal. Contava-se que o procurador tremia ao ter de tornar a encontrar-se com Fietiukóvitch, que eram antigos inimigos, já em Petersburgo, no começo de suas carreiras; que o nosso suscetível Ipolit Kirílovitch, que se julgava lesado desde muito, porque não era convenientemente apreciado seu mérito, havia retomado coragem com o caso Karamázov e sonhava mesmo reerguer sua reputação embaciada, mas Fietiukóvitch lhe causava medo. Quanto ao temor de Fietiukóvitch, essas asserções não eram totalmente justas. Nosso procurador não era desses caracteres que se deixam levar diante do perigo, mas, pelo contrário, daqueles cujo amor-próprio aumenta, exalta-se, precisamente na proporção do perigo. Em geral, nosso procurador era demasiado ardente e impressionável. Punha por vezes toda a alma num negócio, como se de sua decisão dependessem sua sorte e sua fortuna. No mundo judiciário, sorriam dessa singularidade, que valera a nosso procurador certa notoriedade, maior do que não se teria podido crer de acordo com sua situação modesta na magistratura. Riam sobretudo de sua paixão pela psicologia. Na minha opinião, todos se enganavam; nosso procurador era, creio, dum caráter bem mais sério do que muitos pensavam. Mas aquele homem doentio não soubera colocar-se no início de sua carreira, nem depois.
Quanto ao presidente do tribunal, era um homem instruído, humano, conhecendo praticamente a causa e com as ideias mais modernas. Tinha certo amor-próprio, mas pouca ambição. O principal objetivo de sua existência consistia em ser um progressista. Aliás, tinha relações, fortuna. Verificou-se mais tarde que se interessava bastante vivamente pelo caso Karamázov, mas somente num sentido geral, como fenômeno classificado, encarado como resultante de nosso regime social, como característica da mentalidade russa, etc. Quanto ao caráter particular do caso, à personalidade de seus atores, a começar pelo acusado, isso não lhe apresentava senão um interesse vago, abstrato, como convinha aliás, talvez.
Muito tempo antes da hora, a sala estava repleta. É a mais bela da cidade, vasta, alta, sonora. À direita do tribunal, que tinha assento sobre um estrado, tinham instalado uma mesa e duas filas de cadeiras para o júri. À esquerda se encontrava o lugar do acusado e de seu defensor. No meio da sala, perto dos juízes, as peças de convicção figuravam numa mesa: o roupão de seda branca de Fiódor Pávlovitch, ensanguentado; o pilão de cobre, instrumento presumido do crime; a camisa e a sobrecasaca de Mítia, toda manchada perto do bolso onde metera ele o lenço; o dito lenço, onde o sangue formava uma crosta; a pistola carregada em casa de Pierkhótin para o suicídio de Mítia e tirada furtivamente por Trifon Borísovitch, em Mókroie; o envelope dos três mil rublos destinados a Grúchenhka, a fita cor-de-rosa que o amarrava e outros objetos que esqueci. Mais longe, no fundo da sala, mantinha-se o público, mas, diante da balaustrada, tinham disposto cadeiras para as testemunhas que ficariam na sala depois de seus depoimentos. Às dez horas apareceu o tribunal, composto do presidente, dum assessor e dum juiz de paz honorário. O procurador chegou no mesmo instante. O presidente era robusto, baixo e gordo, com o rosto congestionado, homem duns cinquenta anos, de cabelos grisalhos cortados curtos e condecorado. O procurador pareceu a toda a gente estranhamente pálido, de tez quase verdoenga, emagrecido por assim dizer subitamente, porque eu o havia visto na antevéspera em seu estado normal. O presidente começou por perguntar ao oficial de justiça se todos os jurados estavam presentes... Mas é-me impossível continuar assim, tendo-me escapado certas coisas e sobretudo porque, como já o disse, o tempo e o lugar me faltariam para um relato integral. Sei somente que a defesa e a acusação só recusaram pequeno número de jurados. O júri compunha-se de quatro funcionários, dois comerciantes, seis camponeses e pequenos-burgueses de nossa cidade. Muito tempo antes do julgamento, lembro-me de que, na sociedade, perguntavam, sobretudo as senhoras: “Será possível que um caso de psicologia tão complicada seja submetido à decisão de funcionários e de mujiques? Que é que eles compreenderão disso?” Efetivamente, os quatro funcionários que faziam parte do júri eram gente modesta, já grisalha, exceto um, pouco conhecidos em nossa sociedade, tendo vegetado com mesquinhos ordenados; deviam ser casados com velhas, impossíveis de exibir, e ter uma ninhada de meninos, talvez descalços; as cartas encantavam-lhes os lazeres e não tinham, bem entendido, jamais lido coisa alguma. Os dois comerciantes tinham o ar calmo, mas estranhamente taciturno e imóvel, estando um deles barbeado e trajado à europeia, e o outro, de barba grisalha, trazia no pescoço uma medalha. Nada a dizer dos pequenos-burgueses e camponeses de Skotoprigonievsk. Os primeiros assemelham-se bastante aos segundos e trabalham como eles. Dois dentre eles usavam também traje europeu, o que os fazia parecerem mais sujos e mais feios talvez que os outros, tanto que todos perguntavam a si mesmos involuntariamente, como o fiz, olhando-os: “Que pode essa gente compreender mesmo dum tal caso?” Não obstante, seus rostos, rígidos e carrancudos, mostravam uma expressão imponente.
Enfim, o presidente abriu a sessão declarando ao auditório que ia dar-se início ao julgamento do crime de que foi vítima o conselheiro titular aposentado Fiódor Pávlovitch Karamázov... Não me recordo bem como o disse. Os oficiais de justiça tiveram ordem de introduzir o acusado e apareceu Mítia. Reinou profundo silêncio na sala. Poder-se-ia ouvir uma mosca voar. Mítia causou-me uma impressão das mais desfavoráveis. Apresentou-se como um janota, de roupa nova, luvas lustrosas, roupa branca fina. Soube depois que ele encomendara para aquele dia uma sobrecasaca em Moscou, em casa de seu antigo alfaiate, que havia conservado suas medidas. Avançou a grandes passos, rígido, olhando fixamente à frente e sentou-se com ar impassível. Apareceu ao mesmo tempo seu defensor, o famoso Fietiukóvitch; um murmúrio discreto percorreu a sala. Era um homem grande e seco, de pernas finas, dedos exangues e afilados, cabelos curtos, o rosto imberbe e lábios finos pregueavam-se por vezes num sorriso sarcástico. Parecia ter quarenta anos. O rosto teria sido simpático não fossem os olhos, desprovidos de expressão e muito aproximados do nariz, comprido e delgado. Em suma, aquela fisionomia lembrava um pássaro. Estava de casaca e de gravata branca. Lembro-me do interrogatório de identificação. Mítia respondeu com uma voz tão forte que surpreendeu o presidente. Depois, fizeram leitura da lista das testemunhas e dos peritos. Quatro dentre eles faltavam: Miúsov, que voltara a Paris, mas cujo depoimento figurava no processo; a senhora Khokhlakova e o proprietário rural Maksímov, por motivo de doença, e Smierdiákov, falecido subitamente, como o atestava um relatório da polícia. A notícia de sua morte causou sensação. Muitos, no público, ignoravam ainda seu suicídio. O que impressionou sobretudo foi uma frase de Mítia a esse respeito:
— Para cão, morte de cão! — exclamou ele.
Seu defensor adiantou-se por ele, o presidente ameaçou-o de tomar medidas severas no caso de novo insulto. Mítia repetiu várias vezes ao advogado, a meia-voz e em arrependimento aparente:
— Não o farei mais! Escapou-me. Não recomeçarei.
Esse episódio não testemunhava em seu favor aos olhos dos jurados e do público. Dava uma amostra de seu caráter. Foi sob essa impressão que o escrivão leu o libelo acusatório. Era conciso, limitando-se à exposição dos principais motivos de acusação; não obstante, fiquei vivamente impressionado. O escrivão lia com voz nítida e sonora. Aquela tragédia aparecia em relevo, alumiada por uma luz implacável. Depois do quê, o presidente perguntou a Mítia:
— Acusado, reconhece-se culpado?
Mítia levantou-se.
— Reconheço-me culpado de embriaguez, de devassidão e de preguiça — disse ele com exaltação. — Queria corrigir-me definitivamente, na hora mesma em que a sorte me feriu. Mas estou inocente da morte do velho, meu pai e meu inimigo. Não o roubei tampouco, não, não sou capaz disso. Dimítri Karamázov é um canalha, mas não um ladrão!
Sentou-se de novo, a fremir. O presidente exortou-o a responder unicamente às perguntas. Em seguida, foram chamadas as testemunhas para prestar juramento. Os irmãos do acusado foram dispensados dessa formalidade. Depois das exortações do padre e do presidente, mandaram para fora as testemunhas para serem de novo chamadas uma a uma.
II
Testemunhos perigosos
Ignoro se as testemunhas de acusação e de defesa foram agrupadas pelo presidente e em que ordem se propunha chamá-las. É provável. Em todo caso, começou-se pelas testemunhas de acusação. Repito que não tenho a intenção de reproduzir integralmente os interrogatórios. Aliás, seria em parte supérfluo, porque a acusação e a defesa resumiram claramente a marcha e o sentido do caso, bem como os depoimentos das testemunhas. Anotei integralmente, por vezes, aqueles dois notáveis discursos que citarei a seu tempo, da mesma maneira que um episódio inesperado do julgamento, que influiu indubitavelmente em seu desenlace fatal. Desde o começo, uma particularidade daquele caso afirmou-se aos olhos de todos: a força extraordinária da acusação, em relação aos meios da defesa. Todo mundo compreendeu logo isso, quando se viram os fatos agruparem-se, acumularem-se e o horror do crime exibir-se pouco a pouco em plena luz. Dava-se conta o público de que a causa estava bem clara, que a dúvida era impossível, que os debates seriam apenas meras formalidades, estando mais que demonstrada a culpabilidade do acusado. Penso mesmo que nem dúvida havia para todas as senhoras que aguardavam com tanta impaciência a absolvição do interessante acusado. Mais ainda, parece-me que se sentiriam elas aflitas diante de uma culpabilidade menos evidente, porque isso teria diminuído o efeito do desenlace, quando se absolvesse o criminoso. Coisa estranha é que todas as senhoras acreditaram na absolvição quase até o derradeiro minuto. “Ele é culpado, mas absolvê-lo-ão por humanidade, em nome das ideias novas”, etc. Eis por que haviam acorrido com tanto açodamento. Os homens interessavam-se sobretudo pela luta entre o procurador e o famoso Fietiukóvitch. Todos perguntavam a si mesmos com espanto: que poderá fazer de uma causa perdida de antemão Fietiukóvitch, com todo o seu talento? De modo que o observavam com uma atenção intensa. Mas Fietiukóvitch ficou até o fim como um enigma para todos. As pessoas experimentadas pressentiam que tinha ele um sistema, que perseguia um objetivo, mas era quase impossível adivinhar qual. Sua segurança saltava, no entanto, aos olhos. Além disso, notou-se com satisfação que, durante sua curta estada entre nós, se pusera notavelmente a par do caso e havia-o estudado em todos os detalhes. Admirou-se em seguida sua habilidade em desacreditar todas as testemunhas da acusação, em confundi-las tanto quanto possível e, sobretudo, em manchar-lhes a reputação moral, e, por consequência, seus depoimentos. Aliás, supunha-se que ele assim agia muito por jogo, por assim dizer, por coquetismo jurídico, a fim de pôr em ação todos os processos advocatórios, porque pensava-se com razão que aqueles “denegrimentos” não lhe proporcionariam nenhuma vantagem definitiva, e ele próprio, provavelmente, o compreendia melhor que ninguém; devia ter em reserva uma ideia, uma arma oculta, que revelaria no momento querido. No instante, consciente de sua força, parecia divertir-se. Assim, quando interrogou Grigóri Vassílievitch, o antigo criado de quarto de Fiódor Pávlovitch, que afirmou ter visto a porta da casa aberta, o defensor aferrou-se a ele, quando chegou sua vez de fazer-lhe perguntas. Grigóri Vassílievitch apareceu à barra das testemunhas sem se mostrar absolutamente perturbado pela majestade do tribunal ou pela presença de numeroso público. Depôs com a mesma segurança com que o teria feito se estivesse a sós com sua mulher, mas com mais deferência. Era impossível confundi-lo. O procurador interrogou-o muito tempo a respeito de particularidades da família Karamázov. Grigóri traçou dela um quadro sugestivo. Via-se que a testemunha era ingênua e imparcial. Malgrado todo o respeito pelo antigo patrão, declarou que ele fora injusto para com Mítia e “não educava os filhos como era preciso. Sem mim, teria ele sido roído pelos piolhos”, disse ele, ao falar da tenra infância de Mítia. “Tampouco, não deveria ter o pai prejudicado o filho no referente aos bens que herdara da mãe.” Tendo-lhe o procurador perguntado sobre que se baseava para afirmar que Fiódor Pávlovitch prejudicara o filho por ocasião do acerto de contas, Grigóri, para espanto geral, não apresentou nenhum argumento decisivo, mas persistiu dizendo que aquele acerto não fora justo, e que Mítia deveria ter recebido ainda alguns milhares de rublos. A esse propósito, interrogou o procurador, com uma insistência particular, todas as testemunhas que se presumia estivessem ao corrente, inclusive os irmãos do acusado, mas nenhuma delas o esclareceu duma maneira precisa, cada qual afirmando a coisa sem poder fornecer dela uma prova mais ou menos exata. O relato da cena à mesa, em que Dimítri Fiódorovitch irrompeu na sala e bateu no pai, ameaçando voltar para matá-lo, produziu uma impressão sinistra, tanto mais quanto o velho criado narrava com calma e concisão, numa linguagem original, o que causava muito efeito. Declarou que a ofensa de Mítia, que então lhe batera no rosto e derrubara, estava desde muito tempo perdoada. Quanto a Smierdiákov — benzeu-se — era um rapaz bem-dotado, mas deprimido pela doença e sobretudo ímpio, tendo sofrido a influência de Fiódor Pávlovitch e de seu filho mais velho. Atestou com calor sua honestidade, contando o episódio do dinheiro achado e entregue por Smierdiákov ao patrão, o que lhe valeu, com uma moeda de ouro, a confiança dele. Sustentou teimosamente a versão da porta aberta para o jardim. Aliás, fizeram-lhe tantas perguntas que não posso lembrar-me de todas. Por fim, foi a vez do defensor, que se informou em primeiro lugar do envelope em que, segundo parecia, Fiódor Pávlovitch ocultara três mil rublos para certa pessoa. “Viu-o, o senhor que vivia desde tanto tempo junto de seu patrão?” Grigóri respondeu que não e que não sabia da existência desse dinheiro e dele só conhecendo “depois que toda a gente falava”. A pergunta relativa ao envelope fê-la Fietiukóvitch, todas as vezes que pôde, às testemunhas, com a mesma insistência que o procurador pusera em informar-se sobre a partilha dos bens; todas responderam que não tinham podido ver o envelope, embora muitas dele tivessem ouvido falar. A persistência do defensor foi notada desde o começo.
— Agora, poderia eu perguntar-lhe — continuou Fietiukóvitch — de que se compunha esse bálsamo, ou antes, essa infusão com a qual o senhor esfregou seus rins, antes de deitar-se, na noite do crime, como ressalta do inquérito?
Grigóri olhou-o com ar aparvalhado e, após um silêncio, murmurou: “Havia salva nela.”
— Somente salva, nada mais?
— E tanchagem.
— E pimenta, talvez?
— Havia também pimenta.
— E tudo isso com vodca!
— Com álcool.
Um ligeiro sorriso percorreu o auditório.
— Veja-se, até mesmo álcool. Depois de ter-se esfregado a região renal, o senhor bebeu o resto da garrafa, com uma piedosa prece conhecida somente por sua esposa, não é?
— Sim.
— Bebeu muito? Um ou dois copinhos?
— O conteúdo de um copo.
— Tanto assim? Um copo e meio, talvez?
Grigóri guardou silêncio. Parecia compreender.
— Um copo e meio de álcool puro, não teria sido muito? Que pensa o senhor? Com isso podem-se ver abertas as portas do paraíso!
Grigóri continuava calado. Nova risada esfuziou. O presidente agitou-se.
— Poderia o senhor dizer — insistiu Fietiukóvitch — se estava desperto quando viu a porta do jardim aberta?
— Estava em cima de minhas duas pernas.
— Isso não quer dizer que o senhor estivesse desperto. (Novas risadas.) Teria podido, por exemplo, responder naquele momento, se alguém lhe perguntasse, em que ano nós estamos?
— Não sei.
— Está bem! Em que ano estamos, desde o nascimento de Jesus Cristo? Sabe-o?
Grigóri, com ar confuso, olhava fixamente seu carrasco. Sua ignorância do ano atual parecia estranha.
— Talvez saiba o senhor quantos dedos tem nas mãos.
— Tenho o hábito de obedecer — proferiu, de súbito, Grigóri. — Se agrada às autoridades zombar de mim, devo suportá-lo.
Fietiukóvitch ficou um pouco desconcertado. O presidente interveio e lembrou-lhe que devia fazer mais perguntas em relação com o caso. O advogado respondeu com deferência que nada mais tinha a perguntar. Certamente, o depoimento de um homem “tendo visto as portas do paraíso” e ignorando em que ano vivia poderia inspirar dúvidas, de sorte que o fito do defensor foi atingido. Um incidente marcou o fim do interrogatório. Tendo-lhe o presidente perguntado se tinha observações a apresentar, Mítia exclamou:
— Exceto o que se refere à porta, a testemunha disse a verdade. Eu lhe agradeço ter-me livrado dos parasitas e perdoado minhas pancadas; esse velho foi durante toda a sua vida honesto e fiel a meu pai como 36 cães-d’água!
— Acusado, policie suas expressões — disse severamente o presidente.
— Não sou um cão-d’água — resmungou Grigóri.
— Pois bem! Sou eu que sou um cão-d’água! — gritou Mítia. — Se é uma ofensa, assumo-a para mim e peço-lhe perdão. Fui brutal e violento com ele. Com Esopo também.
— Que Esopo? — acentuou severamente o presidente.
— Refiro-me a Pierrot... a meu pai, Fiódor Pávlovitch.
O presidente exortou de novo Mítia a escolher seus termos com mais prudência.
— O senhor se prejudica assim no espírito de seus julgadores.
O defensor procedeu com a mesma habilidade com Rakítin, uma das testemunhas mais importantes, da qual muito esperava o procurador. Sabia uma multidão de coisas, vira tudo, conversara com uma multidão de pessoas e conhecia a fundo a biografia de Fiódor Pávlovitch e dos Karamázov. Na verdade, não ouvira falar do envelope de três mil rublos, senão por Mítia. Em compensação descreveu com detalhes as proezas de Mítia no botequim A Capital, suas palavras e seus atos comprometedores, contou a história do Esfregão de Tília, do capitão Snieguiriov. Quanto ao que o pai podia ter de restituir ao filho por ocasião do acerto de contas, o próprio Rakítin nada sabia e safou-se graças a generalidades desdenhosas: “Impossível compreender qual não tinha razão e não se emaranhar naquela barafunda dos Karamázov.” Apresentou aquele crime trágico como o produto dos costumes atrasados da servidão e da desordem em que estava mergulhada a Rússia, privada das instituições necessárias. Em suma, deixaram-no discorrer. Foi depois desse julgamento que o senhor Rakítin se revelou e atraiu a atenção. O procurador sabia que a testemunha preparava para uma revista um artigo relativo ao crime e citou algumas partes dele no discurso acusatório (como se verá mais adiante). O quadro pintado pela testemunha pareceu sinistro e reforçou a acusação. Em geral, a exposição de Rakítin agradou ao público pela independência e pela nobreza de pensamento; ouviram-se mesmo alguns aplausos, quando falou ele da servidão e da Rússia presa da desorganização. Mas Rakítin, que era jovem, cometeu um descuido de que soube logo aproveitar-se o defensor. Interrogado a respeito de Grúchenhka e arrastado por êxito e pela altura moral em que havia plainado, exprimiu-se com algum desdém a respeito de Agrafiena Alieksándrovna, “mantida pelo comerciante Samsónov”. Teria dado muito depois para retirar essa expressão, porque foi aí que Fietiukóvitch o apanhou. E isso porque Rakítin não esperava que o advogado tivesse podido iniciar-se em tão pouco tempo em detalhes tão íntimos.
— Permita-me uma pergunta — começou o defensor com um sorriso amável e quase atencioso. — É mesmo o senhor Rakítin, autor de uma brochura editada pela autoridade diocesana, Vida do bem-aventurado padre Zósima, cheia de pensamentos religiosos, profundos, com uma dedicatória bastante piedosa à Sua Grandeza, e que eu li recentemente com muito prazer?
— Não estava destinada a aparecer... publicaram-na depois — murmurou Rakítin, que parecia desconcertado.
— Está muito bem. Um pensador como o senhor pode e mesmo deve interessar-se pelos fenômenos sociais. Sua brochura, graças à proteção de Sua Grandeza, o senhor bispo, divulgou-se e prestou serviço... Mas eis o que estaria eu curioso de saber: o senhor acaba de declarar que conhecia intimamente a senhora Svietlova?[ 144 ] (N.B. Tal era o nome de família de Grúchenhka. Ignorava-o até aquele dia.)
— Não posso responder por todas as minhas amizades... Sou jovem... Aliás, quem o poderia? — disse Rakítin, corando.
— Compreendo, compreendo perfeitamente! — disse Fietiukóvitch, fingindo-se confuso e como que pressuroso em desculpar-se. — O senhor poderia, não importa quem, interessar-se por uma mulher jovem e bonita que recebia em sua casa a flor da juventude local, mas... eu queria somente informar-me; sabemos que há dois meses, desejava vivamente a senhora Svietlova conhecer o mais moço dos Karamázov, Alieksiêi Fiódorovitch. Ela lhe prometera 25 rublos, se o senhor o levasse a ela com sua batina religiosa. A visita ocorreu na noite mesma do drama que provocou o processo atual. Recebeu o senhor então da senhora Svietlova 25 rublos de recompensa? Eis o que queria que o senhor me dissesse.
— Era uma brincadeira... Não vejo em que isso possa interessá-lo. Recebi esse dinheiro por brincadeira... para restituí-lo em seguida.
— Por consequência, o senhor aceitou-o. Mas ainda não o restituiu... ou talvez já?
— Uma bagatela... — murmurou Rakítin. — Não posso responder a tais perguntas... Decerto, haverei de restituí-lo.
O presidente interveio, mas o defensor declarou que não tinha mais nada a perguntar ao senhor Rakítin. Ele se retirou um tanto envergonhado. O prestígio do personagem ficou assim abalado, e Fietiukóvitch, acompanhando-o com o olhar, parecia dizer ao público: “Eis o que valem vossos acusadores!” Mítia, furioso por causa do tom com que Rakítin se referira a Grúchenhka, gritou de seu lugar: “Bernard!” Quando o presidente lhe perguntou se tinha alguma coisa a dizer, exclamou:
— Ia ele ver-me na prisão para arrancar-me dinheiro, esse miserável, esse ateu. Mistificou Sua Grandeza, o senhor bispo!
Mítia foi naturalmente chamado à ordem, mas o senhor Rakítin ficou liquidado. O testemunho do capitão Snieguiriov não logrou êxito, por uma razão bem diversa. Apareceu esfarrapado, de roupa suja e, malgrado as medidas de precaução e o exame prévio, encontrou-se em estado de embriaguez. Recusou responder a respeito do caso do insulto que lhe fizera Mítia.
— Deus lhe perdoe! Iliúcha proibiu-o. Deus me recompensará lá em cima.
— Quem o proibiu de falar?
— Iliúcha, meu menino: “Bátiuchka, bátiuchka, como ele te humilhou!” Dizia isso perto da pedra. Agora, está morrendo.
O capitão se pôs subitamente a soluçar e deixou-se cair aos pés do presidente. Levaram-no logo, entre as risadas da assistência. O efeito com que contava o procurador malogrou-se.
O defensor continuou a usar de todos os meios, causando admiração cada vez mais por seu conhecimento do caso, até nos menores detalhes. Assim, o depoimento de Trifon Borísovitch tinha causado viva impressão, naturalmente das mais desfavoráveis ao acusado. Segundo ele, Mítia, por ocasião de sua primeira estada em Mókroie, deveria ter gasto pelo menos três mil rublos, “mais ou menos. Quanto dinheiro foi gasto, só com os cigarros! Quanto a nossos mujiques piolhentos, não eram cinquenta copeques, mas 25 rublos no mínimo que distribuía a cada um. E quanto lhe roubaram! Os ladrões não se gabaram disso. Como reconhecê-los, entre tamanhas liberalidades? Nossa gente são uns bandidos, desprovidos de consciência. E as moças, que não tinham um vintém, estão ricas agora”. Em suma, lembrava cada despesa e fazia conta de tudo. Isso arruinava a hipótese de 1.500 rublos gastos e do restante guardado no amuleto. “Vi eu mesmo os três mil rublos em suas mãos, vi com meus próprios olhos e sabemos o que é dinheiro, ora se não sabemos!” Sem tentar prejudicar-lhe o depoimento, o defensor lembrou que o cocheiro Timofiéi e outro mujique, Akim, tinham encontrado no vestíbulo, por ocasião da primeira viagem a Mókroie, um mês antes da detenção, cem rublos perdidos por Mítia, que estava embriagado e os haviam entregue a Trifon Borísovitch, que deu um rublo a cada um. “Pois bem! Devolveu o senhor então esse dinheiro ao senhor Karamázov, sim ou não?” Trifon Borísovitch, malgrado seus rodeios, confessou a coisa, depois que foram interrogados os mujiques, afirmando ter restituído o dinheiro a Dimítri Fiódorovitch, “com toda a honestidade, mas estando ele embriagado na ocasião, não podia lembrar-se disso”. Ora, como tivesse negado o achado antes, sua restituição a Mítia embriagado inspirava naturalmente dúvidas. Dessa maneira, uma das testemunhas de acusação mais perigosas tornava-se suspeita e atingida na sua reputação. Foi a mesma coisa com os poloneses; entraram com ar desenvolto, atestando que haviam “servido à coroa” e que “pari Mítia lhes oferecera três mil rublos para comprar-lhes a honra”. Pan Mussialóvitch esmaltava suas frases com palavras polonesas, e vendo que isso lhe dava importância aos olhos do presidente e do procurador tornou-se ousado e se pôs a falar em polonês. Mas Fietiukóvitch apanhou-os também em suas redes; malgrado suas hesitações, Trifon Borísovitch, chamado de novo à barra, teve de reconhecer que pan Vrubliévski substituíra um baralho de cartas ao dele, e que pan Mussialóvitch, presidindo a banca, trapaceava. Isso foi confirmado por Kolgánov por ocasião de seu depoimento, e os pánowie retiraram-se um tanto envergonhados, entre risos da assistência. Os fatos se passaram da mesma maneira com quase todas as testemunhas mais importantes. Fietiukóvitch conseguiu desconsiderar cada uma delas e apanhá-las em falta. Os amadores e os juristas admiravam-no, enquanto perguntavam a si mesmos para que podia servir aquilo, porque, repito-o, a acusação parecia cada vez mais irrefutável e trágica. Mas, via-se, pela segurança do “grande mago”, que ele estava tranquilo e esperava-se: não era homem para vir de Petersburgo para nada e para lá voltar sem resultado.
III
A perícia médica e uma libra de avelãs
A perícia médica tampouco foi favorável ao acusado. Aliás, Fietiukóvitch mesmo não contava muito com ela, como bem se viu. No fundo, realizou-se unicamente por insistência de Katierina Ivânovna, que mandara chamar um famoso médico de Moscou. A defesa, certamente, nada podia perder com isso, podia mesmo ganhar no caso mais favorável. Misturou-se nisso certo elemento cômico em consequência de um desacordo entre os médicos. Os peritos eram o famoso médico em questão, o doutor Herzenstube, de nossa cidade, e o jovem médico Varvínski. Os dois últimos figuravam também na qualidade de testemunhas citadas pelo procurador. O primeiro chamado foi o doutor Herzenstube, setuagenário grisalho, atingido de calvície, de estatura mediana e constituição robusta. Bastante estimado e respeitado em nossa cidade, era um médico consciencioso, excelente homem pio, uma espécie de irmão morávio. Há muito tempo estabelecido entre nós, tinha grande dignidade em suas maneiras. Filantropo, tratava gratuitamente os pobres e os camponeses, visitava os casebres e as isbás, deixando dinheiro para os remédios, mas era teimoso como uma mula. Impossível fazê-lo desistir duma ideia. A propósito, quase todo mundo na cidade sabia que o famoso médico, chegado há pouco, já se permitira fazer observações bastante descorteses a respeito da capacidade do doutor Herzenstube. Se bem que o médico de Moscou não cobrasse menos de 25 rublos por visita, houve pessoas que aproveitaram de sua estada para consultá-lo. Eram naturalmente clientes de Herzenstube, e o famoso médico criticou por toda parte o tratamento dele da maneira mais acerba. Acabou por perguntar ao doente, ao entrar: “Então, quem o atochou de drogas, Herzenstube? Eh!, eh!, eh!” Este, bem entendido, veio a saber. Portanto, os três médicos apareceram como peritos. O doutor Herzenstube declarou que “o acusado era visivelmente anormal do ponto de vista mental”. Depois de ter exposto suas considerações, que omito aqui, acrescentou que essa anomalia resultava não só da conduta anterior do acusado, mas se observava presentemente, e, quando lhe pediram que se explicasse, declarou o velho doutor com ingenuidade que o acusado, ao entrar, “tinha um ar espantoso, em vista das circunstâncias, caminhava como um soldado, olhando diretamente à frente, quando deveria voltar os olhos para a esquerda, onde se conservavam as senhoras, porque era grande amador do belo sexo e devia preocupar-se com o que elas diriam dele”, concluiu o velho em sua linguagem original. Exprimia-se voluntária e longamente em russo, mas cada uma de suas frases tinha um torneio alemão, o que não o perturbava de modo algum, porque imaginara toda a vida que falava excelentemente o russo, melhor mesmo que o dos russos, e gostava muito de citar os provérbios, afirmando cada vez que os provérbios russos são os melhores e os mais expressivos de todos. Na conversação, por distração talvez, esquecia por vezes as palavras mais comuns, que conhecia perfeitamente, mas que lhe fugiam de repente. O mesmo acontecia quando falava alemão; viam-no então agitar a mão diante do rosto como para agarrar a expressão perdida, e ninguém teria podido obrigá-lo a continuar antes que a tivesse tornado a encontrar. Sua observação de que o acusado deveria ter, ao entrar, olhado para as senhoras, divertiu a assistência. O velho era muito querido de nossas damas. Sabiam que, tendo ficado celibatário, piedoso e de costumes puros, considerava as mulheres criaturas ideais e superiores. Assim, sua observação inesperada pareceu das mais estranhas.
O médico de Moscou declarou categoricamente, por sua vez, que tinha o estado mental do acusado como normal, mesmo em supremo grau. Discorreu sapientemente sobre a obsessão e a mania e concluiu que, de acordo com todos os dados recolhidos, o acusado, já vários dias antes de sua detenção, se achava presa duma obsessão mórbida incontestável, e, se cometera um crime, se bem que tivesse dele consciência, era quase involuntariamente, sem ter a força de resistir ao impulso que o impelia. Mas, além da obsessão, notara o doutor a mania, o que constituía, em sua opinião, um primeiro passo para a demência completa. (N.B. Uso de meus próprios termos, pois o doutor exprimia-se numa linguagem científica e especial.) “Todos os seus atos estão em contradição com o bom senso e a lógica”, prosseguiu ele. — “Sem falar do que não vi, isto é, do crime e de todo esse drama, anteontem, conversando comigo, tinha um olhar fixo e inexplicável. Ria bruscamente e sem motivo, presa duma verdadeira irritação permanente e incompreensível. Proferia palavras estranhas: ‘Bernard, a ética e outras coisas que não vêm ao caso.’ Mas o doutor notava sobretudo essa mania no fato de que o acusado não podia falar sem exasperação dos três mil rublos de que se julgava frustrado, ao passo que ficava relativamente calmo ao lembrar-se de outras ofensas e fracassos sofridos. Enfim, parecia que, já antes, ficava furioso a respeito desses três mil rublos e, no entanto, assegura-se que não é ele interesseiro nem cúpido. Quanto à opinião de meu sábio colega — concluiu com ironia o doutor de Moscou — que o acusado, ao entrar, deveria ter olhado para as senhoras em vez de fazê-lo diretamente a sua frente, é uma asserção engraçada, mas radicalmente errônea, porque, muito embora convenha eu que o acusado, ao entrar na sala em que se decide sua sorte, não deveria ter tido um olhar tão fixo e que isso poderia com efeito revelar uma perturbação mental, afirmo ao mesmo tempo que deveria ter ele olhado não para a esquerda, para as senhoras, mas para a direita, procurando com os olhos seu defensor, aquele em quem espera e do qual depende sua sorte.” O doutor formulara sua opinião num tom imperioso. Mas o desacordo entre os dois peritos pareceu particularmente cômico após a conclusão inesperada do doutor Varvínski, que lhes sucedeu. Segundo ela, o acusado, agora como então, era absolutamente normal, muito embora antes de sua detenção devesse encontrar-se numa superexcitação extraordinária, podia isso provir das causas mais evidentes: ciúme, cólera, embriaguez contínua, etc. Mas aquele nervosismo nada tinha a ver com “a obsessão”, de que acabavam de falar. Quanto a saber para onde devia olhar o acusado ao entrar na sala, “em minha humilde opinião, deveria olhar diretamente à frente, como o havia feito na realidade, com os olhos fixos nos juízes dos quais dependia doravante sua sorte, de modo que por isso mesmo demonstrara seu estado perfeitamente normal naquele instante”, concluiu o jovem médico com alguma animação.
— Bravo, curandeiro! — gritou Mítia. — É isso mesmo!
Fizeram Mítia calar-se, mas aquela opinião teve influência decisiva sobre tribunal e público, porque toda a gente dela partilhou, como se viu posteriormente. O doutor Herzenstube, ouvido como testemunha, serviu inopinadamente aos interesses de Mítia. Na qualidade de velho habitante, conhecia há muito tempo a família Karamázov, forneceu algumas informações bastante interessantes para a acusação e continuou:
— No entanto, o pobre rapaz merecia melhor sorte, tivera bom coração na infância e, mesmo depois, eu o sei. Um provérbio russo diz: “Bom é que o homem tenha juízo, porém melhor é ainda que o acompanhe outro homem de juízo, pois assim serão dois juízos e não um só...”
— Dois juízos valem mais que um — declarou com impaciência o procurador, que conhecia o hábito do velho de falar com lentidão e prolixidade, sem se perturbar com a impressão produzida e com a perda de tempo que causava, afeiçoado, ao contrário, à sua pesada facúndia germânica. O velho gostava de mostrar-se espirituoso.
— Isto mesmo! É o que digo — continuou ele, com tenacidade: — Dois juízos valem mais do que um. Mas ele ficou só e o dele se foi... Onde o largou ele? Esqueci-me da palavra — prosseguiu, agitando a mão diante dos olhos. — Ah, sim, spazieren![ 145 ]
— A passear?
— Isso mesmo! É o que digo. Seu juízo saiu, pois, a vagabundear e perdeu-se. E, no entanto, era um homem grato e sensível; lembro-me dele quando era pequeno, abandonado em casa do pai no quintal, quando corria de pés descalços, com um botão só nas calças. — A voz do honesto velho matizou-se de emoção. Fietiukóvitch estremeceu como se pressentisse alguma coisa.
— Sim, era eu mesmo ainda jovem então... Tinha 45 anos e acabava de chegar aqui. Tive piedade da criança e disse a mim mesmo: “Por que não comprar uma libra para ele?...” Pois sim! Uma libra de quê? Esqueci como isso se chama... uma libra do que as crianças gostam muito, como é mesmo?... — E o doutor agitou de novo as mãos. — Cresce numa árvore, colhem-no.
— Maçãs?
— Oh! n-não! Vendem-se às libras, ao passo que as maçãs se vendem às dúzias, nem a peso... há muitas, são pequeninas, mete-se na boca e craque!...
— Avelãs?
— Isso mesmo! Avelãs, é o que digo — confirmou o doutor imperturbável, como se não tivesse procurado a palavra. — E levei ao menino uma libra de avelãs; nunca as recebera. Levantei o dedo e disse: “Meu rapaz! Gott der Vater.” Ele pôs-se a rir e repetiu: “Gott der Vater.” — “Gott der Sohn.” — Ele riu de novo e gorjeou: “Gott der Sohn.” — “Gott der heilige Geist.” Ele riu ainda e esforçou-se para dizer: “Gott der heilige Geist.”[ 146 ] Dois dias depois, quando eu passei, ele mesmo gritou para mim: “Meu senhor, Gott der Vater, Gott der Sohn.” Esquecera-se de Gott der heilige Geist, mas eu lhe recordei, e ele de novo me causou compaixão. Levaram-no e não mais o vi. Vinte e três anos depois encontrava-me uma manhã em meu consultório, com a cabeça já branca, quando entra um jovem em pleno viço e que não fui capaz de reconhecer; levantou o dedo e disse rindo: “Gott der Vater, Gott der Sohn und Gott der heilige Geist! Cheguei ainda há pouco e venho agradecer-lhe a libra de avelãs, porque ninguém nunca as comprara para mim, foi o senhor o único.” Lembrei-me então de minha feliz juventude e do pobre menino descalço. Fiquei comovido e disse-lhe: “És um jovem agradecido, já que não te esqueceste daquela libra de avelãs que te levei em tua infância.” Apertei-o em meus braços e abençoei-o. E chorei. Ele ria... porque o russo ri muitas vezes em ocasiões em que devia chorar. Mas ele chorava também, vi-o. E agora, ai!...
— E agora choro eu, alemão, e agora choro eu, homem de Deus! — gritou de repente Mítia.
Seja como for, aquela anedota produziu uma impressão favorável. Mas o principal efeito em favor de Mítia foi causado pelo depoimento de Katierina Ivânovna, do qual vou falar. Em geral, quando chegou a vez das testemunhas de defesa, a sorte pareceu sorrir a Mítia e, o que é mais de notar, inopinadamente para a própria defesa. Mas, antes de Katierina Ivânovna, interrogaram Aliócha, que se lembrou de súbito de um fato que parecia refutar positivamente um dos pontos mais importantes da acusação.
IV
A sorte sorri a Mítia
Isso ocorreu improvisadamente mesmo para Aliócha. Não prestara juramento e, desde o começo, fora objeto duma viva simpatia, tanto de um lado quanto do outro. Via-se que seu bom renome o precedia. Aliócha mostrou-se modesto e reservado, mas seu afeto por seu desgraçado irmão transparecia em seu depoimento. Caracterizou-o como um ser sem dúvida violento e arrebatado pelas paixões, mas nobre, altivo, generoso, capaz de se sacrificar se lhe pedissem. Reconheceu aliás que, para o fim a paixão de Mítia por Grúchenhka, sua rivalidade com o pai, haviam-no posto numa posição intolerável. Mas repeliu com indignação a hipótese de que seu irmão tivesse podido matar para roubar, embora convindo que aqueles três mil rublos tinham-se tornado uma obsessão no espírito de Mítia, que os considerava como uma parte de sua herança, fraudulentamente desviada por seu pai e não podia falar-se deles sem ficar furioso. Quanto à rivalidade das duas “pessoas”, como dizia o procurador, exprimiu-se evasivamente e recusou mesmo responder a uma ou duas perguntas.
— Seu irmão lhe disse que tinha a intenção de matar seu pai? — perguntou o procurador. — O senhor pode não responder se isso lhe convier.
— Diretamente não me disse.
— Indiretamente, então?
— Falou-me uma vez de seu ódio a nosso pai, temia... num momento de exasperação, ser capaz de matá-lo.
— E o senhor acreditou nele?
— Não ouso afirmá-lo. Sempre pensei que um sentimento elevado o salvaria no momento fatal, como aconteceu, com efeito, porque não foi “ele” quem matou meu pai — disse Aliócha, com uma voz forte que ressoou. O procurador estremeceu como um cavalo de batalha ao som do clarim.
— Esteja certo de que não duvido da sinceridade de sua convicção, independentemente de seu amor fraternal por esse infeliz. O inquérito já nos revelou sua opinião original sobre o trágico episódio que se desenrolou em sua família. Mas não lhe oculto que ela é isolada e contraditada por outros depoimentos. De modo que estimo necessário insistir para conhecer os dados que o convenceram definitivamente da inocência de seu irmão e da culpabilidade de outra pessoa que o senhor designou no inquérito.
— No inquérito, respondi somente às perguntas — disse Aliócha com calma. — Não formulei acusação contra Smierdiákov.
— Contudo, o senhor designou-o.
— De acordo com as palavras de meu irmão Dimítri. Sabia que, por ocasião de sua detenção, acusara Smierdiákov. Estou persuadido da inocência de meu irmão. E, se não foi ele quem matou, então...
— Foi Smierdiákov? Por que ele precisamente? E por que está o senhor tão convencido da inocência de seu irmão?
— Não podia duvidar dele. Sei que ele não mente. Vi, por seu rosto, que ele me dizia a verdade.
— Somente por seu rosto? São essas todas as suas provas?
— Não tenho outras.
— E não tem outras provas da culpabilidade de Smierdiákov senão as palavras de seu irmão e a expressão de seu rosto?
— Não.
O procurador não insistiu. As respostas de Aliócha decepcionaram profundamente o público. Tinha-se falado de Smierdiákov, corria o boato de que Aliócha reunia provas decisivas em favor de seu irmão e contra o lacaio. Ora, ele nada trazia, senão uma convicção moral, bem natural no irmão do acusado. Chegou a vez de Fietiukóvitch, que perguntou a Aliócha em que momento o acusado lhe falara de seu ódio ao pai e de suas veleidades de assassínio, e se fora, por exemplo, por ocasião de sua derradeira entrevista antes do drama. Aliócha estremeceu como se uma lembrança lhe voltasse.
— Lembro-me agora de uma circunstância que tinha completamente esquecido. Não era claro então, mas agora...
E Aliócha contou com animação que, quando viu seu irmão pela última vez, à noite, debaixo de uma árvore, ao voltar para o mosteiro, Mítia, batendo no peito, lhe repetira várias vezes que possuía o meio de reerguer sua honra, que esse meio estava ali, sobre seu peito... “Acreditei então que, ao bater no peito, falava de seu coração”, prosseguiu Aliócha, “das forças que podia ali colher para escapar a uma vergonha horrenda que o ameaçava e que ele não ousava mesmo confessar. Na verdade, pensei então que falasse de nosso pai e fremisse de vergonha à ideia de tratá-lo com violência; no entanto, parecia designar alguma coisa sobre seu peito, de modo que, lembro-me, veio-me a ideia de que o coração se encontra mais embaixo, ao passo que ele batia bem mais alto, aqui, abaixo do pescoço, e designava sempre esse lugar. Minha ideia pareceu-me absurda, mas designava talvez precisamente o amuleto onde estavam costurados os 1.500 rublos!...”
— Precisamente — gritou de súbito Mítia. — É isso, Aliócha, era sobre ele que eu batia.
Fietiukóvitch rogou-lhe que se acalmasse, depois voltou a Aliócha. Este, arrebatado por sua recordação, emitiu calorosamente a hipótese de que aquela vergonha provinha sem dúvida de que, tendo consigo aqueles 1.500 rublos que teria podido restituir a Katierina Ivânovna como a metade de sua dívida, tinha Mítia, no entanto, decidido fazer deles outro uso e partir com Grúchenhka, se ela consentisse nisso...
— É isso mesmo, é bem isso mesmo — exclamou Aliócha, muito animado —, meu irmão me disse naquele momento que poderia apagar imediatamente a metade de sua vergonha (disse várias vezes: a metade!), mas que, por desgraça, a fraqueza de seu caráter o impedia disso... sabia de antemão que era incapaz de fazê-lo!
— E o senhor se recorda nitidamente de que ele batia naquele lugar do peito? — perguntou Fietiukóvitch.
— Muito nitidamente, porque perguntava a mim mesmo então: por que bate ele tão alto, se o coração está mais embaixo? Minha ideia pareceu-me absurda... lembro-me. Eis por que essa recordação me voltou. Como pude esquecê-la até agora? Seu gesto designava decerto esse amuleto, esses 1.500 rublos que ele não queria restituir! E por ocasião de sua detenção, em Mókroie, contaram-me, gritou que a ação mais vergonhosa de sua vida era que, tendo a possibilidade de devolver a Katierina Ivânovna a metade de sua dívida (justamente a metade!) e de passar por homem honesto, preferira guardar o dinheiro e continuar como ladrão a seus olhos. E quanto essa dívida o atormentava! — concluiu Aliócha.
Bem entendido, o procurador interveio. Pediu a Aliócha que descrevesse de novo a cena e insistiu em saber se o acusado, batendo no peito, parecia designar alguma coisa. Talvez batesse por acaso com o punho.
— Não, não com o punho! — exclamou Aliócha. — Designava com os dedos, aqui, bem no alto... Como pude esquecê-lo até agora?
O presidente perguntou a Mítia o que podia dizer a respeito desse depoimento. Mítia confirmou que designara os 1.500 rublos que trazia sobre o peito, abaixo do pescoço, e que era uma vergonha, “uma vergonha que não contesto, o ato mais vil de minha vida! Teria podido restituí-los e não o fiz. Preferi ficar como ladrão aos olhos dela, e o pior é que eu sabia de antemão que agiria assim! Tu tens razão, Aliócha, obrigado”.
Dessa forma terminou a declaração de Aliócha, caracterizada por um fato novo, por mínimo que fosse, um começo de prova demonstrando a existência daquele amuleto com os 1.500 rublos e a veracidade do acusado, quando declarava, em Mókroie, que aquele dinheiro lhe pertencia. Aliócha estava radiante, sentou-se todo vermelho no lugar que lhe indicaram, repetindo para si: “Como pude esquecer aquilo? Como foi que só me lembrei agora?”
Foi ouvida em seguida Katierina Ivânovna. Sua entrada causou sensação. As senhoras assestaram suas lunetas, os homens agitaram-se, alguns se levantaram para ver melhor. Afirmou-se, mais tarde, que Mítia ficara branco como um pano, quando ela apareceu. Toda de preto, avançou para a barra modestamente, quase timidamente. Seu rosto não traía nenhuma emoção, mas a resolução brilhava em seus olhos sombrios. Estava muito bonita naquele momento. Falou com uma voz doce, mas nítida, com grande calma, ou pelo menos esforçando-se para isso. O presidente interrogou-a com muitas atenções, como se temesse tocar “certas cordas”, e cheio de respeito por seu infortúnio. Desde as primeiras palavras, Katierina Ivânovna declarava que fora noiva do acusado “até o momento em que ele próprio me abandonou...”. Quando a interrogaram, a respeito dos três mil rublos confiados a Mítia para serem enviados pelo correio às parentas, respondeu com firmeza: “Não lhe havia dado aquela quantia para que a remetesse logo; sabia que estava ele muito precisado de dinheiro... naquele momento... Entreguei-lhe aqueles três mil rublos com a condição de enviá-los a Moscou, se quisesse, no prazo de um mês. Não teve razão em atormentar-se a propósito dessa dívida...”
Não relato as perguntas e as respostas integralmente, limitando-me ao essencial de seu depoimento.
— Estava certa de que enviaria aquela soma assim que a tivesse recebido de seu pai — prosseguiu ela. — Sempre tive confiança em sua lealdade... em sua perfeita lealdade... nos negócios de dinheiro. Contava ele receber três mil rublos de seu pai e falou-me disso por diversas vezes. Sabia que estavam eles em conflito e sempre acreditei que seu pai o havia lesado. Não me recordo de que haja ele proferido ameaças contra o pai, pelo menos na minha presença. Se tivesse vindo ver-me, tê-lo-ia logo tranquilizado a respeito daqueles desgraçados três mil rublos, mas não voltou... e eu mesma... encontrava-me numa situação... que não me permitia que o mandasse chamar... Aliás, não tinha absolutamente o direito de mostrar-me exigente por conta dessa dívida — acrescentou num tom resoluto. — Recebi eu mesma dele, um dia, uma soma superior, e aceitei-a sem saber quando estaria em condições de pagar-lhe.
Sua voz tinha algo de provocante. Naquele momento, foi a vez de Fietiukóvitch interrogá-la.
— Não foi aqui, mas no começo de suas relações com ele, não? — perguntou com tato o defensor, que pressentia algo em favor de seu cliente. (Entre parêntesis, se bem que chamado de Petersburgo, em parte pela própria Katierina Ivânovna, tudo ignorava do episódio dos cinco mil rublos dados por Mítia e da saudação até o chão. Ela lhe havia dissimulado! Silêncio estranho. Pode-se supor que, até o derradeiro momento, hesitou em falar, aguardando alguma inspiração.)
Não, jamais esquecerei aquele momento! Ela contou tudo, todo aquele episódio, comunicado por Mítia a Aliócha, e a saudação até o chão, as causas, o papel de seu pai, sua visita à casa de Mítia, e não fez nenhuma alusão à proposta de Mítia de enviar-lhe Katierina Ivânovna para buscar o dinheiro. Guardou a respeito um silêncio magnânimo e não corou de revelar que fora ela que correra, por sua própria vontade, à casa do jovem oficial, esperando não sabia o quê... para obter dele dinheiro. Era comovedor. Eu estremecia ouvindo-a, a assistência era toda ouvidos. Havia naquilo algo de inaudito, jamais se teria esperado, mesmo de uma moça tão imperiosa e altiva, tal franqueza e semelhante imolação. E por quem, para quê? Para salvar aquele que a havia traído e ofendido, para contribuir, por pouco que fosse, a tirá-lo de apuros, causando uma boa impressão! Com efeito, a imagem do oficial, dando seus cinco mil rublos, tudo quanto lhe restava, e inclinando-se respeitosamente diante de uma moça inocente, aparecia como das mais simpáticas, mas... meu coração cerrou-se! Senti a possibilidade de uma calúnia, posteriormente (e foi o que aconteceu!). Com uma ironia malévola, repetiu-se na cidade que a narrativa não era talvez totalmente exata, precisamente naquele ponto em que o oficial deixava partir a moça com apenas uma respeitosa saudação. Fez-se alusão a uma “lacuna”. “Se as coisas não se passaram mesmo assim — diziam as mais respeitáveis de nossas damas —, pode-se ainda fazer reservas a respeito da conduta da moça, mesmo para salvar seu pai.” Será que Katierina Ivânovna, com sua penetração mórbida, não pressentira tais falatórios? Decerto que sim, mas decidira tudo dizer! Naturalmente, essas dúvidas insultuosas a respeito da veracidade do relato só se manifestaram mais tarde. No primeiro momento todos ficaram emocionados. Quanto aos membros do tribunal, escutavam num silêncio respeitoso. O procurador não se permitiu nenhuma pergunta sobre o assunto. Fietiukóvitch fez a Katierina uma profunda vênia. Oh! O triunfo era seu, quase. Que o mesmo homem tenha podido, num ímpeto de generosidade, dar seus derradeiros cinco mil rublos, e, em seguida, matar o pai para roubar-lhe três mil, era coisa que não se aguentava de pé. Fietiukóvitch podia pelo menos afastar a acusação de roubo. O caso esclarecia-se a uma nova luz. A simpatia voltava-se a favor de Mítia. Uma ou duas vezes, durante o depoimento de Katierina Ivânovna, quis ele levantar-se, mas tornou a cair sobre o banco, cobrindo o rosto com as mãos. Quando ela acabou, exclamou ele, estendendo-lhe os braços:
— Kátia, por que causaste minha perda!?
Desatou em soluços, mas se repôs depressa e gritou ainda:
— Agora, estou condenado!
Depois enrijeceu-se em seu lugar, com dentes cerrados e os braços cruzados sobre o peito. Katierina Ivânovna ficou na sala; estava pálida, de olhos baixos. Seus vizinhos contaram que ela tremia, como presa de febre. Foi a vez de Grúchenhka.
Vou abordar a catástrofe que causou talvez, com efeito, a perda de Mítia. Porque estou persuadido, e todos os juristas disseram-no depois, que, sem esse episódio: o criminoso teria obtido pelo menos as circunstâncias atenuantes. Mas tratar-se-á disso dentro em pouco. Falemos primeiro de Grúchenhka.
Apareceu também toda de preto, com os ombros cobertos por magnífico xale. Avançou para a barra com andar silencioso, requebrando-se levemente, como fazem por vezes as mulheres corpulentas, com os olhos fixos no presidente. Em minha opinião, estava muito bem e nada pálida, como o pretenderam as damas mais tarde. Assegurou-se também que tinha o ar absorto e maldoso. Creio somente que estivesse irritada e sentisse pesar com intensidade sobre ela os olhares desprezadores e curiosos do público, ávido de escândalo. Era uma dessas naturezas altivas, incapazes de suportar o desprezo que, desde que o suspeitam nos outros, as inflama de cólera e as impele à resistência. Havia também, seguramente, timidez e pudor dessa timidez, o que explica a desigualdade de sua linguagem, ora encolerizada, ora desdenhosa e grosseira, na qual se sentia de súbito uma nota sincera, quando ela se acusava. Por vezes, falava sem se importar com as consequências: “Tanto pior para o que acontecerá, dir-lhe-ei no entanto...” A propósito de suas relações com Fiódor Pávlovitch, observou num tom cortante: “Bagatelas, tudo isso; é culpa minha se ele se ligou a mim?” Um instante depois, acrescentou: “Tudo isso é culpa minha, zombava do velho e de seu filho e levei-os aos extremos a ambos. Sou a causa desse drama.” Veio-se a falar de Samsónov: “Isso não diz respeito a ninguém — replicou ela com violência —, era meu benfeitor, foi ele quem me recolheu descalça, quando os meus me expulsaram da isbá.” O presidente lembrou-lhe que ela devia responder diretamente às perguntas, sem entrar em detalhes supérfluos. Grúchenhka corou, os olhos cintilaram. Não vira o envelope dos três mil rublos e só sabia da existência pelo “celerado”. “Mas tudo isso são bobagens, por preço algum teria ido à casa de Fiódor Pávlovitch...”
— A quem trata a senhora de celerado? — perguntou o procurador.
— Ao lacaio Smierdiákov, que matou seu amo e enforcou-se ontem.
Apressaram-se em perguntar sobre que baseava uma acusação tão categórica, mas tampouco ela sabia de nada.
— Foi Dimítri Fiódorovitch quem me disse. Podem crer nele. Aquela pessoa perdeu-o, ela é a única causa de tudo — acrescentou Grúchenhka, toda trêmula, num tom em que transparecia o ódio.
Quiseram saber a quem fazia ela alusão.
— Ora, a essa senhorita, a essa Katierina Ivânovna. Chamara-me à sua casa, oferecera-me chocolate, na intenção de seduzir-me. Não tem um pingo de vergonha, palavra...
O presidente interrompeu-a, rogando-lhe que moderasse as expressões. Mas, inflamada pelo ciúme, estava pronta a tudo afrontar...
— Por ocasião da detenção, em Mókroie — lembrou o procurador —, a senhora acorreu da peça vizinha, gritando: “Sou culpada de tudo, iremos juntos para o presídio!” A senhora também então, naquele momento, acreditava que fosse ele parricida?
— Não me recordo de meus sentimentos de então — respondeu Grúchenhka. — Todo mundo o acusava, senti que era eu a culpada e que ele havia matado por minha causa. Mas desde que ele proclamou inocência, acreditei nele e acreditarei sempre, não é homem de mentiras.
Fietiukóvitch, que a interrogou em seguida, informou-se de Rakítin e dos 25 rublos “como recompensa por ter-lhe levado Alieksiêi Fiódorovitch Karamázov”.
— Não há nada de espantar no fato de ter ele aceitado esse dinheiro — sorriu desdenhosamente Grúchenhka. — Vinha sempre pechinchar, recebendo até trinta rublos por mês e, na maior parte das vezes, para se divertir; tinha com que comer e beber, sem precisar de pedir dinheiro.
— Por qual razão era a senhora tão generosa para com o senhor Rakítin? — continuou Fietiukóvitch, muito embora o presidente se agitasse.
— É meu primo. Minha mãe e a dele eram irmãs. Mas suplicava-me que eu não dissesse a ninguém, tanta era a vergonha que eu lhe causava.
Esse fato novo foi uma revelação para todo mundo, ninguém suspeitava disso na cidade, nem mesmo no mosteiro. Rakítin, dizem, estava rubro de vergonha. Grúchenhka estava furiosa contra ele, pois soubera que havia deposto contra Mítia. A eloquência do senhor Rakítin, suas nobres tiradas contra a servidão e a desordem cívica da Rússia ficaram assim arruinadas na opinião pública. Fietiukóvitch estava satisfeito, o céu vinha-lhe em auxílio. Aliás, não retiveram Grúchenhka muito tempo, pois nada podia comunicar de particular. Causou no público uma impressão das mais desfavoráveis. Centenas de olhares desdenhosos fixaram-na, quando, após seu depoimento, foi sentar-se bastante longe de Katierina Ivânovna. Enquanto a interrogavam, Mítia mantivera-se em silêncio, como petrificado, de olhos baixos.
Ivan Fiódorovitch apresentou-se como testemunha.
V
Súbita catástrofe
Fora chamado antes de Aliócha, mas o oficial de justiça informou ao presidente que uma indisposição súbita impedira a testemunha de comparecer e que logo que se refizesse viria depor. Não se deu, aliás, atenção a isso e sua chegada quase passou sem ser notada; as principais testemunhas, sobretudo as duas rivais, já tinham sido ouvidas, a curiosidade começava a cansar-se. Nada de novo a esperar dos derradeiros depoimentos, depois de tudo quanto já tinha sido dito. O tempo passava, Ivan avançou com uma lentidão estranha, sem olhar para ninguém, a cabeça baixa, o ar absorto. Trajava corretamente, mas seu rosto, marcado pela doença, tinha qualquer coisa de terroso que lembrava o de um moribundo. Ergueu os olhos, percorreu a sala com um olhar turvo. Aliócha levantou-se, lançou uma exclamação, mas não lhe prestaram atenção.
O presidente lembrou à testemunha que não havia ele prestado juramento, podendo, portanto, manter silêncio, mas devia depor de acordo com sua consciência, etc. Ivan escutava, com os olhos vagos. De repente, um sorriso desenhou-se em seu rosto e, quando o presidente, que o olhava com espanto, acabou, desatou ele a rir.
— E depois, que mais? — perguntou em voz alta.
Silêncio absoluto na sala. O presidente ficou inquieto.
— O senhor... talvez esteja ainda indisposto? — perguntou, procurando com o olhar o oficial de justiça.
— Não se inquiete Excelência, sinto-me suficientemente bem e posso contar-vos algo de curioso — respondeu Ivan num tom calmo e deferente.
— Tem uma comunicação particular a fazer? — continuou o presidente com certa desconfiança.
Ivan Fiódorovitch baixou a cabeça e esperou durante alguns segundos antes de responder.
— Não... nada a dizer de particular.
Interrogado, deu a contragosto respostas lacônicas e, no entanto, bastante razoáveis, com uma repulsa crescente. Alegou ignorância a respeito de muitas coisas e nada sabia das contas do pai com Dimítri Fiódorovitch. “Não me ocupava com isso”, declarou. Ouvira as ameaças do acusado contra o pai e sabia da existência do envelope por intermédio de Smierdiákov.
— Sempre a mesma coisa! — interrompeu-se de súbito, com um ar de cansaço. — Nada posso dizer ao tribunal.
— Vejo que o senhor ainda está doente e compreendo seus sentimentos... — começou o presidente.
Ia perguntar ao procurador e ao advogado se tinham perguntas a fazer, quando Ivan disse com voz extenuada:
— Permita que me retire, Excelência, não me sinto bem. — Depois do quê, sem esperar a autorização, encaminhou-se para a saída. Mas, depois de alguns passos, parou, pareceu refletir, sorriu e voltou a seu lugar.
— Pareço-me, Excelência, com aquela jovem camponesa, o senhor sabe: “Se quiser, irei, se não quiser, não irei!” Seguem-na para vesti-la e levá-la ao altar, e ela repete aquelas palavras... Isso se encontra numa cena popular...
— Que quer dizer o senhor com isso? — perguntou severamente o presidente.
— Aqui está — disse Ivan, exibindo um maço de cédulas —, aqui está o dinheiro... o mesmo que se achava naquele envelope (e designava as peças de convicção) e por causa do qual mataram meu pai. Onde devo colocá-lo? Senhor oficial de justiça, entregue-o a ele.
O oficial de justiça pegou o maço de notas e entregou-o ao presidente.
— Como pode estar este dinheiro em seu poder... se é bem o mesmo? — perguntou o presidente surpreso.
— Recebi-o de Smierdiákov, do assassino, ontem... Fui à casa dele antes que se enforcasse. Foi ele quem matou meu pai, e não meu irmão. Matou e eu o incitei a isso... Quem não deseja a morte do pai?
— Está em seu juízo? — não pôde o presidente impedir-se de dizer.
— Sim, estou em meu juízo... um juízo vil como o vosso, como o de todos esses... focinhos! — Voltou-se para o público.
— Mataram seus pais e simulam o terror — disse ele com desprezo e rangendo os dentes. — Fazem caretas uns para os outros. Os mentirosos! Todos desejam a morte de seus pais. Um réptil devora o outro!... Se não houvesse parricídio, zangar-se-iam e ir-se-iam embora furiosos. É um espetáculo! Panem et circenses![ 147 ] Aliás, também eu sou bonito! Têm água, deem-me de beber, em nome de Cristo! — Agarrou a cabeça. O oficial de justiça aproximou-se dele logo. Aliócha levantou-se, gritando: “Ele está doente, não acreditem nele, está com febre nervosa!” Katierina Ivânovna tinha-se levantado precipitadamente e, imóvel de terror, contemplava Ivan Fiódorovitch. Mítia, com um sorriso careteante, escutava avidamente seu irmão.
— Tranquilizai-vos, não estou louco, sou apenas um assassino — continuou Ivan. — Não se pode exigir eloquência de um assassino — acrescentou, sorrindo.
O procurador, visivelmente agitado, inclinou-se para o presidente. Os jurados cochichavam. Fietiukóvitch aguçou os ouvidos. A sala aguardava, ansiosa. O presidente pareceu dominar-se.
— Testemunha, o senhor usa duma linguagem incompreensível e que não se pode tolerar aqui. Acalme-se e fale... se tem verdadeiramente alguma coisa a dizer. Por qual meio poderá confirmar tal confissão... se é que ela não resulta do delírio?
— O fato é que não tenho testemunhas. Aquele cão do Smierdiákov não vos enviará lá do outro mundo seu depoimento... num envelope. Vós desejaríeis sempre envelopes. Basta um. Não tenho testemunhas... Exceto uma, talvez.
Sorriu com ar pensativo.
— Quem é sua testemunha?
— Tem uma cauda, Excelência, não está de conformidade com as regras! Le diable n’existe point! Não presteis atenção, é um diabinho sem importância — acrescentou ele confidencialmente, deixando de rir. — Deve estar em alguma parte aqui, debaixo da mesa das peças de convicção. Onde estaria ele, senão ali? Escutai-me: eu lhe disse “Não quero calar-me” e ele me fala de cataclismo geológico... besteiras! Ponde o monstro em liberdade... ele cantou seu hino porque tem o coração leve! A mesma coisa que se um canalha bêbado berrasse “Para Píter partiu Vanka.” Eu, por dois segundos de alegria, daria um quatrilhão de quatrilhões. Vós não me conheceis! Oh, como tudo é estúpido entre vós! Pois bem! Prendei-me em lugar dele! Não vim aqui por coisa nenhuma... Por que tudo o que existe é tão estúpido?
E voltou a inspecionar lentamente a sala com ar meditativo. A emoção era geral. Aliócha ia correr para ele, mas o oficial de justiça já havia agarrado Ivan Fiódorovitch pelo braço.
— Que é que há!? — exclamou ele, fixando o oficial de justiça, mas de repente agarrou-o pelos ombros e derrubou-o. Os guardas acorreram, prenderam-no, e ele se pôs a urrar como um louco furioso. Enquanto o levavam, gritava palavras incoerentes.
Foi um tumulto geral. Não me lembro de tudo em sua ordem, a emoção impedia-me de observar direito. Sei somente que, uma vez estabelecida a calma, o oficial de justiça foi repreendido, se bem que explicasse às autoridades que a testemunha estava durante todo o tempo em estado normal, que o doutor o examinara por ocasião de sua ligeira indisposição, uma hora antes; até o momento de compreender, exprimia-se sensatamente, de modo que nada se podia prever, fazia ele mesmo questão de ser ouvido. Mas, antes que a emoção se acalmasse, ocorreu nova cena. Katierina Ivânovna teve uma crise de nervos. Gemia e soluçava ruidosamente, sem querer retirar-se. Debatia-se, suplicando que a deixassem na sala. De repente, gritou para o presidente:
— Tenho ainda alguma coisa a dizer, imediatamente... imediatamente!... Eis aqui um papel, uma carta... tomai-a, lede depressa! É a carta do monstro que ali está! — disse ela, apontando Mítia. — Foi ele quem matou o pai, ides vê-lo, escreveu-me dizendo como o mataria! O outro está doente, há três dias que está com febre nervosa!
O oficial de justiça pegou o papel e entregou-o ao presidente. Katierina Ivânovna tornou a cair sobre a cadeira, ocultou o rosto, pôs-se a soluçar silenciosamente, abafando os menores gemidos, de medo que a fizessem sair. O papel em questão era a carta escrita por Mítia no botequim A Capital, que Ivan considerava prova categórica. Ai, foi justamente o efeito que ela produziu! Sem essa carta, não teria Mítia talvez sido condenado, pelo menos tão rigorosamente! Repito que foi difícil seguir todos os detalhes. Mesmo agora, tudo aquilo me aparece de modo confuso. O presidente apresentou sem dúvida aquele novo documento às partes e ao júri. Ao perguntar a Katierina Ivânovna se já se restabelecera, respondeu ela vivamente:
— Estou pronta! Estou completamente em condições de responder-vos.
Temia ainda que não a ouvissem. Pediram-lhe que explicasse pormenorizadamente em que circunstâncias recebera aquela carta.
— Recebi-a na véspera do crime, vinha do botequim, escrita numa fatura, vede — gritou ela, ofegante. — Ele me odiava então, tendo tido a baixeza de seguir aquela criatura... e também porque me devia aqueles três mil rublos. A vilania e a dívida causavam-lhe vergonha. Eis o que se passou. Suplico-vos que me ouçais. Três semanas antes de matar o pai, chegou à minha casa uma manhã. Sabia que ele necessitava de dinheiro e sabia também para quê..., precisamente para seduzir aquela criatura e levá-la consigo. Conhecia sua traição, sua intenção de abandonar-me, e entreguei-lhe eu mesma aquele dinheiro, sob pretexto de enviá-lo à minha irmã em Moscou. Ao mesmo tempo, fitava-o bem no rosto e lhe disse que poderia enviá-lo quando quisesse, mesmo em um mês. Como não compreendeu ele que isso significava: “Precisas de dinheiro para trair-me; aqui está: sou eu que te dou; toma-o, se tens coragem!” Queria confundi-lo. Pois bem! Ele aceitou esse dinheiro, levou-o e gastou-o em uma noite com aquela criatura. No entanto, compreendera que eu sabia de tudo, garanto-vos, e que eu lhe dava unicamente para experimentá-lo, para ver se cometeria ele a infâmia de aceitá-lo. Nossos olhares se cruzaram, ele compreendeu tudo e partiu com meu dinheiro!
— É verdade, Kátia! — exclamou Mítia. — Tinha compreendido tua intenção e, no entanto, aceitei teu dinheiro. Desprezai todos um miserável, eu o mereci!
— Acusado — disse o presidente —, mais uma palavra e eu o farei sair da sala.
— Esse dinheiro atormentou-o — prosseguiu Kátia, precipitadamente —, queria devolvê-lo, mas precisava dele para aquela criatura. Eis por que matou o pai, mas não me restituiu nada, partiu com ela para aquela aldeia onde o prenderam. Foi lá que de novo fez a farra, com o dinheiro roubado. Um dia, antes do crime, escreveu-me essa carta estando bêbedo — adivinhei logo —, sob o império da cólera e persuadido de que eu não a mostraria a ninguém, mesmo se ele cometesse assassínio. Senão não a teria escrito. Sabia que eu não queria perdê-lo por vingança! Mas lede, lede com atenção, rogo-vos, vereis que ele descreve tudo de antemão: como matará o pai, onde está escondido o dinheiro. Notai sobretudo esta frase: “Matarei, contanto que Ivan tenha partido.” Por conseguinte, premeditou o crime — insinuou perfidamente Katierina Ivânovna. Via-se que ela estudara cada detalhe daquela carta fatal. — Sóbrio, não me teria ele escrito, mas vede, essa carta constitui um programa!
Na sua exaltação, desdenhava as consequências possíveis, se bem que as tivesse encarado talvez um mês antes, quando perguntava a si mesma trêmula de cólera: “Será preciso ler isso no tribunal?” Agora, havia queimado seus navios. Foi então que o escrivão leu a carta que produziu uma impressão esmagadora. Perguntaram a Mítia se a reconhecia.
— Sim, sim, e não a teria escrito, se não tivesse bebido!... Nós nos odiávamos por muitas causas, Kátia, mas juro-te que, malgrado meu ódio, eu te amava e tu não me amavas!
Recaiu sobre o banco, torcendo as mãos.
O procurador e o defensor perguntaram, cada qual por sua vez, a Katierina Ivânovna por quais motivos ela a princípio não havia revelado aquele documento e deposto num tom completamente diverso.
— Sim, menti ainda há pouco, contra minha honra e minha consciência, mas queria salvá-lo, precisamente porque ele me odiava e me desprezava. Oh! Desprezava-me, sempre me desprezou, desde o instante em que lhe fiz aquela saudação até o chão por causa daquele dinheiro. Senti-o logo, mas fiquei muito tempo sem acreditá-lo. Quantas vezes li em seus olhos: “Vieste, no entanto, tu mesma, à minha casa.” Oh! Ele nada tinha compreendido, não adivinhou por que eu fora, só pode pensar na baixeza! Julga todos os outros por si — disse com furor Kátia, no auge da exaltação. — Queria casar comigo somente por causa de minha herança, somente por isso, sempre suspeitei disso. É uma fera! Estava certo de que durante toda a minha vida, eu tremeria de vergonha diante dele e que ele poderia desprezar-me e dominar-me, eis por que queria desposar-me! É a verdade! Tentei vencê-lo por um amor infinito, queria mesmo esquecer sua traição, mas ele nada compreendeu, nada, nada! Pode ele compreender alguma coisa? É um monstro! Não recebi essa carta senão no dia seguinte, à noite, trouxeram-me do botequim, e, de manhã, estava ainda decidida a perdoar-lhe tudo, até mesmo sua traição!
O procurador e o presidente acalmaram-na do melhor modo possível. Estou certo de que eles próprios tinham talvez vergonha de aproveitar-se de sua exaltação para colher tais confissões. Ouviram-nos dizer: “Compreendemos seu sofrimento, creia-o, somos capazes de compartilhar de seus sentimentos”, etc., etc., e, no entanto, arrancavam aquele depoimento de uma mulher enlouquecida, presa duma crise de nervos. Enfim, com uma lucidez extraordinária, como acontece frequentemente em semelhante caso, descreveu ela como se desarranjara, naqueles dois meses, a razão de Ivan Fiódorovitch, observado pela ideia de salvar “o monstro e o assassino”, seu irmão.
— Ele se atormentava! — exclamou ela —, queria atenuar a falta, confessando-me que ele próprio não gostava de seu pai e tinha talvez desejado sua morte! Oh! É uma consciência de escol, eis as causas de seus sofrimentos! Não tinha segredos para mim; ia ver-me todos os dias como meu único amigo. “Tenho a honra de ser sua única amiga!” — disse ela, num tom de desafio, com os olhos brilhantes. — Foi ele duas vezes à casa de Smierdiákov. Um dia, veio dizer-me: “Se não foi meu irmão quem matou, se foi Smierdiákov (porque divulgou-se essa lenda), talvez seja eu também culpado, porque Smierdiákov sabia que eu não gostava de meu pai e pensava talvez que eu desejasse sua morte.” Foi então que lhe mostrei essa carta. Ficou definitivamente convencido da culpabilidade do irmão. Estava aterrorizado. Não podia suportar a ideia de que o próprio irmão fosse um parricida! Há uma semana que isso o torna doente. Nesses últimos dias, delirava, verifiquei que sua razão se perturbava. Ouviram-no andar falando sozinho pelas ruas. O médico que mandei buscar em Moscou examinou-o anteontem e disse-me que a febre nervosa ia-se declarar, e tudo isso por causa do monstro! Ontem soube da morte de Smierdiákov, e isso foi para ele o derradeiro golpe. Tudo isso por causa desse monstro e a fim de salvá-lo!
Certamente, não se pode falar assim e fazer tais confissões senão uma vez na vida, nos derradeiros momentos, por exemplo, ao subir no cadafalso. Mas isso convinha precisamente ao caráter de Kátia. Era bem a mesma moça impetuosa que havia corrido à casa de um jovem libertino para salvar o pai; a mesma que, havia pouco, altiva e casta, sacrificava publicamente o pudor virginal contando “a nobre ação de Mítia”, com o único objetivo de amenizar a sorte que o esperava. E agora se sacrificava igualmente, mas por um outro, tendo talvez, naquele instante, somente, sentido pela primeira vez quanto aquele outro lhe era querido. Sacrificava-se por ele em seu terror, imaginando de súbito que ele se perdia com o seu depoimento, que havia matado em lugar do irmão, sacrificava-se a fim de salvá-lo, a ele e à sua reputação. Uma questão angustiante surgia: tinha ela caluniado Mítia a respeito de suas antigas relações? Não, não mentia cientemente, gritando que Mítia a desprezava por causa daquela saudação até o chão! Acreditava nisso, estava profundamente convencida, desde aquela saudação talvez, de que o ingênuo Mítia, que a adorava ainda naquele momento, zombava dela e a desprezava. E somente por orgulho deixara-se dominar por um amor extremado por ele, por orgulho ferido, e esse amor assemelhava-se a uma vingança. Talvez aquele amor extremado se tivesse tornado um amor verdadeiro, talvez Kátia não quisesse outra coisa melhor, mas Mítia havia-o ofendido até o fundo de sua alma com sua traição, e aquela alma não perdoava. A hora da vingança soara bruscamente, e todo o rancor doloroso, acumulado no coração da mulher ofendida, exalara-se dum só jato. Entregando Mítia, entregava-se ela própria. Assim que ela terminou, seus nervos a traíram, a vergonha invadiu-a. Sofreu nova crise de nervos, foi preciso carregá-la para fora. Naquele momento, Grúchenhka correu gritando para Mítia, tão rapidamente que não houve tempo para detê-la.
— Mítia, aquela víbora te perdeu! Vós a vistes em ação! — acrescentou, fremente, dirigindo-se aos jurados. A um sinal do presidente, agarraram-na e levaram-na para fora. Ela se debatia, estendendo os braços para Mítia. Ele soltou um grito e quis correr-lhe ao encontro. Subjugaram-no, não sem dificuldade.
Penso que as espectadoras ficaram satisfeitas, o espetáculo valia a pena. O médico de Moscou, que o presidente mandara chamar para cuidar de Ivan, veio fazer seu relatório. Declarou que o doente atravessava uma crise das mais perigosas, que deveriam levá-lo dali imediatamente. Na antevéspera, o paciente fora consultá-lo, mas recusara tratar-se, malgrado a gravidade de seu estado. “Confessou-me que tinha alucinações, encontrava mortos na rua, e que Satã lhe fazia visitas todas as noites”, concluiu o famoso doutor. A carta de Katierina Ivânovna foi ajuntada às provas documentárias. Tendo o tribunal deliberado, decidiu prosseguir os debates e mencionar nos autos os depoimentos inesperados de Katierina Ivânovna e de Ivan Fiódorovitch.
Os depoimentos das últimas testemunhas só fizeram confirmar os precedentes, mas com certos detalhes característicos. Aliás, a acusação, à qual chegamos, resume-os todos. Os derradeiros incidentes haviam superexcitado os espíritos, esperavam-se com uma impaciência febril os discursos e o veredicto. Fietiukóvitch estava aterrorizado com as revelações de Katierina Ivânovna. Em compensação, o procurador triunfava. Houve suspensão da audiência por uma hora. Às oito horas da noite em ponto, creio, o procurador começou sua acusação.
VI
A acusação. Caracterização
Ipolit Kirílovitch tomou a palavra com um tremor nervoso, a fronte e as têmporas banhadas dum suor frio, o corpo percorrido por arrepios, como o contou depois. Olhava aquele discurso como seu chef-d’oeuvre,[ 148 ] seu canto de cisne, e morreu tuberculoso nove meses mais tarde, justificando assim essa comparação. Pôs nele todo o coração e toda a inteligência de que era capaz, revelando um senso cívico inesperado e interesse pelas questões ardentes. Seduziu sobretudo pela sinceridade; acreditava sinceramente na culpabilidade do acusado e acusava não só por dever, em virtude de suas funções, mas animado do desejo de salvar a sociedade. Até mesmo as damas, hostis no entanto a Ipolit Kirílovitch, convieram na viva impressão que ele produzira. Começou com uma voz irregular, que em breve se firmou e ressoou na sala inteira, até o fim. Mas apenas acabara sua acusação esteve a ponto de desmaiar.
“Senhores jurados, esse caso teve repercussão na Rússia inteira. No fundo, por que admirar-se disso? Estamos habituados a todas essas coisas! Por desgraças, esses casos sinistros quase não nos emocionam mais. É nossa apatia que deve causar horror e não o crime de tal ou qual indivíduo. Por que essa indiferença, donde vem que reajamos tão fracamente diante dos fenômenos que nos pressagiam um futuro sombrio? Será preciso atribuir isso ao cinismo, ao esgotamento precoce da razão e da imaginação de nossa sociedade, tão jovem ainda, mas já débil? À subversão de nossos princípios morais ou à ausência total desses princípios? Deixo em suspenso essas perguntas, que nem por isso são menos angustiantes e solicitam a atenção de cada cidadão. Nossa imprensa, no começo tão tímida ainda, prestou no entanto alguns serviços à sociedade, porque, sem ela, não conheceríamos a licença desenfreada e a desmoralização que revela sem cessar a todos, e não apenas aos frequentadores das audiências que se tornaram públicas sob o novo reinado. E que lemos nos jornais? Oh! Atrocidades, diante das quais o processo atual empalidece e parece quase sem importância. A maior parte de nossas causas criminais atesta uma espécie de perversidade geral, que entrou em nossos costumes e é difícil de combater como flagelo social. Aqui, é um jovem e brilhante oficial da alta classe que assassina sem remorso não só um modesto funcionário, a quem devia dinheiro, como também a criada dele, a fim de reapossar-se de uma promissória e rouba o dinheiro: ‘Isso servirá para meus prazeres.’ Realizado o crime, retira-se, depois de ter posto um travesseiro sob a cabeça das vítimas. Em outra parte, um jovem herói, condecorado pela bravura, estrangula como um salteador, na grande estrada, a mãe do chefe, e, para persuadir os cúmplices, assegura-lhes que ‘aquela mulher ama-o como a um filho, confia nele e, por conseguinte, não tomará precauções’. São monstros, mas, em nossa época, não ouso dizer que estejamos diante apenas de casos isolados. Um, sem chegar até o crime, pensa da mesma maneira e é tão infame quanto o outro, mas no foro íntimo. A sós com a consciência, pergunta a si mesmo talvez: ‘Não será a honra um preconceito?’ Vão dizer que calunio nossa sociedade, que estou fora de meu juízo, que exagero. Pois seja, nada de melhor exigiria senão que me enganasse a esse respeito.
“Não me acrediteis, considerai-me como um doente, mal lembrai-vos de minhas palavras; mesmo que eu não diga senão a vigésima parte da verdade, é de fazer fremir! Olhai quantos suicídios ocorrem entre os jovens! E eles se matam sem perguntar a si mesmos, como Hamlet, o que haveria ‘em seguida’, a questão da imortalidade da alma, da vida futura não existe para eles. Vede nossa corrupção, nossos devassos: ao lado deles Fiódor Pávlovitch, a desgraçada vítima desse processo, parece uma criança inocente. Ora, nós todos o conhecemos, vivia entre nós... Sim, a psicologia do crime, na Rússia, será talvez estudada um dia por espíritos eminentes, entre nós e na Europa, porque o assunto vale a pena. Mas esse estudo virá depois, com vagar, quando a incoerência trágica da hora atual, não sendo mais que uma recordação, poderá ser analisada mais imparcialmente do que sou eu capaz de fazê-lo. No momento, nós nos atemorizamos ou fingimos atemorizar-nos, embora saboreando esse espetáculo, como amadores de sensações fortes, que sacodem nossa cínica ociosidade, ou, como as crianças, escondemos a cabeça sob o travesseiro à vista desses fantasmas que passam, para esquecê-los em seguida na alegria e nos prazeres. Mas um dia ou outro será preciso refletir, fazer nosso exame de consciência, dar-nos conta de nosso estado social. Um grande escritor do período precedente, no final de uma de suas obras-primas, comparando a Rússia a uma fogosa troica, que galopa para um fim desconhecido, exclama ‘Ah, troica, ligeira como um pássaro, quem pois te inventou?’, e, num ímpeto de entusiasmo, acrescenta que diante dessa troica em disparada todos os povos se afastam respeitosamente.[ 149 ] Seja assim, senhores, bem o quero, mas, em minha humilde opinião, o genial artista concluiu assim num acesso de entusiasmo ingênuo, ou talvez temesse a censura da época. Porque, atrelando somente seus heróis à sua troica, os Sobakiévitch,[ 150 ] os Nosdriov, os Tchítchikov, qualquer que seja o cocheiro, ir-se-ia Deus sabe aonde com tais corcéis! ‘Ora, são os corcéis de outrora, bem inferiores aos nossos, temos melhores...’”
Aqui, o discurso de Ipolit Kirílovitch foi interrompido por aplausos. O liberalismo do símbolo da troica russa agradou. Na verdade, os aplausos foram raros, de sorte que o presidente não achou mesmo necessário ameaçar o público de “mandar evacuar” a sala. No entanto, Ipolit Kirílovitch sentiu-se reconfortado: nunca o haviam aplaudido! Tinham recusado escutá-lo durante tantos anos, de repente, podia fazer-se ouvir por toda a Rússia!
“Quem é, pois, essa família Karamázov, que adquiriu de súbito tão triste celebridade? Talvez exagere, mas parece-me que ela resume certos traços fundamentais de nossa sociedade contemporânea, em estado microscópico, ‘como uma gota d’água resume o sol’. Vede aquele velho debochado, aquele pai de família que acabou tão tristemente. De raça nobre, tendo estreado na vida como mesquinho parasita, um casamento imprevisto proporciona-lhe um pequeno capital; a princípio vulgar velhaco e palhaço obsequioso, é antes de tudo um usurário. Com o tempo, à medida que enriquece, vai tomando asas. A humildade, a bajulação desaparecem, resta apenas um cínico mau e zombador, um debochado. Nenhum senso moral, uma sede de viver inextinguível. À parte os prazeres sensuais, nada existe, eis o que ele ensina aos filhos. Na qualidade de pai, não reconhece nenhuma obrigação moral, zomba dela, deixa os filhos ainda meninos nas mãos dos criados e regozija-se quando os levam. Esquece-se mesmo deles totalmente. Toda a sua moral se resume nesta frase: ‘Après moi le déluge!’[ 151 ] É o contrário de um cidadão, destaca-se completamente da sociedade: ‘Pereça o mundo, contanto que eu me ache bem, eu só.’ E acha-se bem, sente-se completamente contente, quer levar aquela vida ainda vinte ou trinta anos. Engana o filho e com o dinheiro dele, herança de sua mãe que se recusa a entregar-lhe, procura tomar-lhe a amante. Não, não quero abandonar a defesa do acusado ao eminente advogado vindo de Petersburgo. Eu também direi a verdade, eu também compreendo a indignação acumulada no coração desse filho. Mas basta a respeito desse desgraçado velho: recebeu sua recompensa. Lembremos, no entanto, que era um pai e um pai moderno. Será caluniar a sociedade dizer que há nela muitos como ele? Ai! A maior parte dentre eles não se exprime com tanto cinismo porque são mais bem-educados, mais instruídos, porém, no fundo, têm a mesma filosofia. Admitamos que seja eu pessimista. Está entendido que me perdoareis. Não me acrediteis, mas deixai que me explique, havereis de lembrar-vos, contudo, de algumas de minhas palavras. Vejamos os filhos desse homem. Um está diante de vós, no banco dos réus; serei breve a respeito dos outros. O mais velho deles é um desses rapazes modernos, brilhante por sua instrução e por sua inteligência, que não crê em nada no entanto e já renegou muitas coisas, como o pai. Todos nós o ouvimos, era recebido cordialmente em nossa sociedade. Não ocultava suas opiniões, muito pelo contrário, o que me encoraja a falar agora dele com alguma franqueza, não a título pessoal, mas somente como membro da família Karamázov. Ontem, suicidou-se aqui, na extremidade da cidade, um desgraçado, idiota, implicado estreitamente neste processo, antigo criado e talvez filho natural de Fiódor Pávlovitch, Smierdiákov. Contou-me, lamuriando, no inquérito, como esse jovem Karamázov, Ivan Fiódorovitch, o amedrontara com seu niilismo moral: “Tudo, segundo ele, é permitido, e nada doravante deve ser proibido. Eis o que ele me ensinava.” Essa doutrina deve ter acabado de desarranjar o espírito do idiota, se bem que certamente sua doença e o terrível drama ocorrido na casa lhe tenham também perturbado o cérebro. Mas esse idiota é o autor duma observação que teria feito honra a um observador mais inteligente, eis por que falei dele. ‘Se há — disse-me ele — um dos filhos de Fiódor Pávlovitch que mais se parece com ele pelo caráter, é Ivan Fiódorovitch!’ A respeito dessa observação, que considero característica, não quero insistir mais, pois acho indelicado seguir por esse caminho. Oh! Não quero tirar conclusões e prognosticar unicamente a ruína para esse jovem destino. Vimos hoje que a verdade é ainda poderosa em seu jovem coração, que os sentimentos familiares não estão ainda sufocados nele pela irreligião e pelo cinismo das ideias, inspirados ainda mais pela hereditariedade do que pelo verdadeiro sofrimento moral. O mais moço, ainda adolescente, é piedoso e modesto; ao inverso da doutrina sombria e dissolvente do irmão, aproxima-se dos “princípios populistas”, ou do que assim se chama em certos meios intelectuais. Ligou-se ao mosteiro, esteve mesmo quase a ponto de tomar o hábito. Encarna, parece-me, inconscientemente, o fatal desespero que leva uma multidão de pessoas em nossa desgraçada sociedade — por temor do cinismo corruptor e porque atribuem falsamente todos os nossos males à cultura ocidental — a voltar, como dizem, ao solo natal, a lançar-se, por assim dizer, nos braços da terra natal, como crianças aterrorizadas pelos fantasmas se refugiam sobre o seio esgotado da mãe, para dormir tranquilamente e escapar às visões que os amedrontavam. Quanto a mim, formulo os melhores votos para esse adolescente tão bem-dotado, desejo que seus nobres sentimentos e suas aspirações pelos princípios populistas não degenerem posteriormente, como ocorre com frequência, num sombrio misticismo do ponto de vista moral, e num estúpido chauvinismo do ponto de vista cívico, dois ideais que ameaçam a nação de males ainda mais graves, talvez, do que a perversão precoce proveniente da cultura ocidental mal compreendida e adquirida em vão, tal como a de que sofre seu irmão.”
As alusões ao chauvinismo e ao misticismo receberam alguns aplausos. Sem dúvida, deixara-se Ipolit Kirílovitch arrebatar e tudo isso não quadraria com o processo, sem contar que era pouco claro, mas aquele tuberculoso avinagrado tinha muita vontade de fazer-se ouvir, pelo menos uma vez na vida. Contou-se, mais tarde, que, na caracterização de Ivan Fiódorovitch, obedecera a um sentimento pouco delicado: batido uma ou duas vezes por ele em discussões em público, queria agora vingar-se. Ignoro se se podia concluir assim. Aliás, tudo isso não era senão uma introdução antes de abordar diretamente o caso.
“O terceiro filho dessa família moderna está no banco dos réus. Sua vida e suas façanhas se desenrolam diante de nós, chegou a hora em que tudo se exibe à luz meridiana. Ao contrário de seus irmãos, dos quais um é um ‘ocidental’, o outro um ‘populista’, representa a Rússia natural, não toda, Deus nos livre! E no entanto ei-la, a nossa querida Rússia, sente-se, ouve-se nele, a mátuchka. Há em nós uma estranha liga de bem e de mal, amamos Schiller e a civilização, ao mesmo tempo fazemos barulho nos botequins e arrastamos pela barba nossos companheiros de embriaguez. Acontece-nos ser excelentes, mas só quando tudo nos vai bem. Nós nos entusiasmamos pelos mais nobres ideais, com a condição de alcançá-los sem esforço e sem que isso nos custe alguma coisa. Não gostamos de pagar, mas gostamos muito de receber. Fazei-nos a vida feliz, dai-nos todos os bens possíveis e vereis como somos gentis. Não somos ávidos, decerto, mas dai-nos o máximo de dinheiro possível e vereis com que desprezo pelo vil metal nós o dissiparemos em uma noite de orgia. E se nos recusam o dinheiro, mostraremos como sabemos arranjá-lo, se preciso. Mas procedamos com ordem. Vemos em primeiro lugar o pobre menino abandonado ‘descalço no quintal’, segundo a expressão de nosso respeitável concidadão, de origem alemã. Ai! Repito, não abandono a ninguém a defesa do acusado. Sou acusador e defensor. Somos também seres humanos, capazes de apreciar a influência das primeiras impressões de infância sobre o caráter. Mas o menino torna-se um rapaz, ei-lo oficial; suas violências e uma provocação para duelo obrigam-no a exilar-se para uma cidade fronteiriça. Naturalmente farreia, leva vida a rédeas soltas. Temos sobretudo necessidade de dinheiro, e, após longas discussões, transige com o pai em troca de seis mil rublos que lhe são enviados. Notai: assinou um papel; existe uma carta dele em que renuncia quase ao resto e termina, por essa soma, a questão por causa da herança. Foi então que travou conhecimento com uma moça culta, de nobre caráter. Não entrarei em detalhes, vós acabais de ouvi-los: trata-se de honra e de abnegação, e eu me calo. A imagem do rapaz frívolo e corrupto, mas, inclinando-se diante da verdadeira nobreza, diante de uma ideia superior, nos pareceu das mais simpáticas. Mas, em seguida, nesta mesma sala, mostraram-nos o reverso da medalha. Não ouso tampouco lançar-me em conjeturas e abstenho-me de analisar as causas. Nem por isso deixam essas causas de existir. Essa mesma pessoa, com as lágrimas de uma indignação muito tempo contida, declara-nos que foi ele o primeiro a desprezá-la por seu ímpeto imprudente, impetuoso talvez, porém nobre e generoso. O noivo dessa jovem teve um sorriso zombador que somente dele não podia ela suportar. Sabendo que a havia traído (porque pensava ele poder permitir-se tudo no futuro, até mesmo a traição), sabendo disso, ela lhe entrega três mil rublos, dando-lhe a entender claramente que adivinha suas intenções: “Pois bem, recebê-los-ás, sim ou não, terás a coragem?”, diz-lhe seu olhar penetrante. Ele a olha, compreende-lhe perfeitamente o pensamento (ele mesmo o confessou perante vós), depois apropria-se desses três mil rublos e gasta-os em dois dias com seu novo amor. Em que acreditar? Na primeira lenda, no nobre sacrifício de seus derradeiros recursos e na homenagem à virtude, ou no reverso da medalha, na baixeza dessa conduta? Nos casos comuns, convém procurar a verdade entre os extremos; não é o caso aqui. Muito provavelmente, mostrou-se ele tão nobre da primeira vez como vil da segunda. Por quê? Porque somos uma ‘natureza ampla’, um Karamázov — eis aonde quero chegar — capaz de reunir todos os contrastes e de contemplar ao mesmo tempo dois abismos: o do alto, o abismo dos sublimes ideais, e o de baixo, o abismo da mais ignóbil degradação. Lembrai-vos da brilhante ideia formulada ainda há pouco pelo senhor Rakítin, o jovem observador, que estudou de perto toda a família Karamázov: ‘A consciência da degradação é tão indispensável a essas naturezas desenfreadas quanto a consciência da nobreza moral’, e é verdade; essa mistura antinatural lhes é constantemente necessária. Dois abismos, senhores, dois abismos simultaneamente, senão não estamos satisfeitos, falta alguma coisa à nossa existência. Somos amplos, amplos, como nossa mãe Rússia, tudo admitimos e a tudo nos acomodamos. A propósito, senhores jurados, acabamos de falar desses três mil rublos e me permito antecipar um pouco. Imaginai que, com esse caráter, tendo recebido esse dinheiro ao preço duma tal vergonha, da derradeira humilhação, imaginai que, no mesmo dia, tenha podido separar a metade, costurá-la num amuleto e ter, em seguida, a constância de andar com ela um mês inteiro sobre seu peito, malgrado a falta de recursos e as tentações? Nem por ocasião de suas orgias nos botequins, nem quando lhe foi preciso deixar a cidade para arranjar em casa de sabe Deus quem o dinheiro necessário, a fim de subtrair sua bem-amada às seduções do pai, do rival, ousa tocar naquele amuleto. Não fosse senão para não deixar sua amiga exposta às intrigas do velho de que se mostrava tão ciumento, deveria ter desfeito seu amuleto e montado guarda em torno dela, aguardando o momento em que ela lhe diria: ‘Sou tua’, para levá-la para longe daquele meio fatal. Mas não, não recorreu a seu talismã, e sob qual pretexto? O primeiro pretexto, dissemo-lo, era que necessitava de dinheiro, no caso de querer sua amiga partir com ele. Mas esse primeiro pretexto, segundo as próprias palavras do acusado, deu lugar a outro. Enquanto, diz ele, carregar comigo esse dinheiro, ‘sou um miserável, mas não um ladrão’, porque posso sempre ir encontrar minha noiva e, apresentando-lhe a metade da soma de que fraudulentamente me apropriei, dizer-lhe: ‘Vês, gastei a metade de teu dinheiro e provei que sou um homem fraco e sem consciência, e, se queres, um miserável (emprego os termos do acusado), mas não um ladrão, porque então não te teria trazido essa metade, ter-me-ia apropriado dela como da primeira.’ Singular explicação! Esse arrebatado sem caráter, que não pôde resistir à tentação de aceitar três mil rublos em condições tão vergonhosas, dá prova de súbito de uma firmeza estoica e anda com mil rublos no pescoço sem ousar neles tocar! Quadra-se isso com o caráter que analisamos? Não e permito-me contar-vos como o verdadeiro Dimítri Fiódorovitch teria procedido, se estivesse verdadeiramente decidido a costurar seu dinheiro num amuleto. À primeira tentação, fosse apenas para causar prazer à bem-amada, com a qual já havia despendido a metade do dinheiro, teria descosido o amuleto e retirado, digamos, cem rublos para a primeira vez, por que de que serve restituir absolutamente a metade, quando 1.400 rublos são suficientes? Dá na mesma: ‘Sou um miserável e não um ladrão, porque restituirei 1.400 rublos; um ladrão teria guardado tudo.’ Algum tempo depois, teria de novo retirado uma cédula, depois uma terceira, e assim por diante, até a penúltima, no fim do mês: ‘Um miserável, não um ladrão. Gastei 29 cédulas, restituirei a trigésima, um ladrão não agiria assim.’ Mas essa penúltima cédula desapareceu por sua vez e teria ele olhado a derradeira dizendo a si mesmo: ‘Não vale mais a pena, gastemos esta como as outras!’ Eis como teria procedido o verdadeiro Dimítri Karamázov, tal como o conhecemos! Quanto à lenda do amuleto, está em contradição absoluta com a realidade. Pode-se supor tudo, menos isso. Mas voltaremos a isso.”
Depois de ter exposto ordenadamente tudo quanto o inquérito conhecia das discussões de interesses e relações entre pai e filho, concluindo de novo que era totalmente impossível estabelecer, a respeito da divisão da herança, a qual havia prejudicado o outro, Ipolit Kirílovitch, a propósito daqueles três mil rublos que se tornaram uma ideia fixa no espírito de Mítia, trouxe à baila a perícia médica.
VII
Bosquejo histórico
“A perícia médica quis provar-nos que o acusado não está em seu juízo cabal e é maníaco. Sustento que está no uso de sua razão; mas isto é o pior de tudo: se não estivesse com todo o juízo, talvez se tivesse mostrado mais inteligente. Eu reconheceria de boa vontade sua mania, mas num ponto somente, assinalado pela perícia, a maneira de ver o acusado a respeito desses três mil rublos de que seu pai o havia fraudado. Não obstante, pode-se encontrar um ponto de vista bem mais direto que a propensão do acusado à loucura para explicar sua exasperação constante a propósito desse dinheiro. Quanto a mim, partilho inteiramente da opinião do jovem médico que acha que o acusado goza e gozava de todas as faculdades e estava apenas exasperado e irritado. Eis o que importa: não eram aqueles três mil rublos que constituíam o objeto da exaltação constante do acusado, mas bem outra causa que excitava sua cólera. Essa causa era o ciúme!”
Aqui, Ipolit Kirílovitch estendeu-se a respeito da fatal paixão do acusado por Grúchenhka. Começou pelo momento em que o acusado se dirigia à casa da “jovem pessoa” para “bater nela”, de acordo com a expressão dele; mas, em lugar disso, ficou a seus pés e foi o começo desse amor. Ao mesmo tempo, essa pessoa é notada pelo pai do réu — coincidência fatal e surpreendente — porque aqueles dois corações inflamaram-se ao mesmo tempo com uma paixão desenfreada, como verdadeiros Karamázov, se bem que conhecessem desde antes a jovem mulher. Possuímos a própria confissão dela: “Zombava — diz ela — de um e do outro.” Sim, essa intenção veio-lhe de repente ao espírito, e, finalmente, os dois ficaram enfeitiçados por ela. O velho, que adorava o dinheiro, preparou três mil rublos, somente para que ela fosse à casa dele, e, em breve, chegou a estimar-se feliz se ela consentisse em casar-se com ele. Temos testemunhos formais a esse respeito. Quanto ao réu, conhecemos a tragédia que viveu. Mas tal era o “jogo” da jovem pessoa. Essa sereia não deu nenhuma esperança ao desgraçado, senão no derradeiro momento, quando, de joelhos diante dele, estendia-lhe os braços. “Enviai-me para o presídio com ele, fui eu que o impeli, sou a culpada!”, gritava ela com um sincero arrependimento por ocasião da detenção. O senhor Rakítin, o talentoso jovem que já citei e que empreendeu descrever este caso, definiu em algumas frases concisas o caráter da heroína: “Um desencanto precoce, a traição e o abandono do noivo que a seduzira, depois a pobreza, a maldição duma honesta família, por fim a proteção dum velho rico que, aliás, ela encara ainda agora como seu benfeitor. Naquele jovem coração, talvez inclinado ao bem, a cólera amontoou-se. Tomou-se calculista, amante da acumulação de dinheiro; zomba da sociedade e tem-lhe rancor.” Isso explica o ter podido ela zombar de um e de outro, por pura maldade. Durante esse mês em que o réu ama sem esperança, degradado por sua traição e por sua desonestidade, está além disso enlouquecido, exasperado por um ciúme incessante do pai. E, para cúmulo, o velho insensato esforça-se por seduzir o objeto de sua paixão por meio daqueles três mil rublos que o filho lhe reclama como a herança da mãe. Sim, convenho que era duro de suportar! Havia motivo para ficar maníaco. E não era o dinheiro que importava, mas o cinismo repugnante que conspirava contra sua felicidade, com aquele mesmo dinheiro!
Em seguida, Ipolit Kirílovitch abordou a gênese do crime no espírito do réu, baseando-se nos fatos.
“Em primeiro lugar, limitamo-nos a vociferar nos botequins durante todo aquele mês. Dizemos voluntariamente tudo quanto nos passa pela cabeça, até mesmo as ideias mais perigosas. Somos expansivos, mas, não se sabe por quê, exigimos que nossos ouvintes nos testemunhem inteira simpatia, tomem parte em nossos desgostos, façam coro, não nos estorvem em nada. Senão, ai deles! (Seguia-se o caso do capitão Snieguiriov.) Os que viram e ouviram o acusado durante esse mês tiveram finalmente a impressão de que ele não se ateria a simples ameaças contra o pai e que, em sua exasperação, era capaz de levá-las a efeito. (Aqui o procurador descreveu a reunião de família no mosteiro, as conversações com Aliócha e a cena escandalosa em casa de Fiódor Pávlovitch, em que o réu havia irrompido na sala depois do jantar.) Não estou certo — prosseguiu Ipolit Kirílovitch — de que, antes dessa cena, tivesse já o réu resolvido eliminar o pai. Mas essa ideia lhe viera já, encarava-a, os fatos, as testemunhas e a própria confissão o provam. Confesso, senhores jurados, que até hoje hesitava em crer na premeditação completa. Estava persuadido de que havia ele encarado por várias vezes aquele momento fatal, mas sem precisar a data e as circunstâncias da execução. Minha hesitação cessou em presença desse documento esmagador, apresentado hoje ao tribunal pela senhorita Vierkhóvtseva. Vós ouvistes, senhores, sua exclamação: ‘É o plano, o programa do assassinato!’ Eis como definiu ela aquela desgraçada carta de bêbedo. Com efeito, essa carta estabelece a premeditação. Foi escrita dois dias antes do crime, e sabemos que naquele momento, antes da realização de seu horrendo projeto, jurava o réu que se não encontrasse quem lhe emprestasse o dinheiro no dia seguinte, mataria o pai para tomar o dinheiro que estava embaixo do travesseiro, ‘num envelope amarrado com uma fita cor-de-rosa, assim que Ivan partir’. Estais ouvindo? ‘Assim que Ivan partir...’ Por conseguinte, tudo está combinado, as circunstâncias são previstas, e tudo se passou como ele o escrevera. A premeditação não tem dúvida alguma, o crime tinha o roubo como móvel, está escrito e assinado. O acusado não renega sua assinatura. Dir-se-á: é a carta de um bêbedo. Mas isso não atenua nada, pelo contrário; escreveu, estando bêbedo, o que havia combinado em estado lúcido. Senão, ter-se-ia abstido de escrever. Mas, objetar-se-á, talvez, por que gritou seu projeto nos botequins? Quem premedita tal ato cala-se e mantém segredo. É verdade, mas então tinha ele apenas veleidades, sua intenção amadurecia. Posteriormente, mostrou-se mais reservado a esse respeito. Na noite em que escreveu aquela carta, depois de ter-se embriagado no botequim A Capital, ficou excepcionalmente silencioso, manteve-se à parte sem jogar bilhar, limitando-se a maltratar um caixeiro de armazém, mas, inconscientemente, incapaz de renunciar a discutir, de acordo com seu hábito. Decerto, uma vez resolvido a agir, devia o réu recear ter-se gabado por demais em público de suas intenções, e que isso pudesse servir de prova contra ele, quando executasse seu plano. Mas que fazer? Não podia recolher suas palavras e esperava safar-se ainda dessa vez. Fiamo-nos em nossa estrela! Senhores! Deve-se reconhecer que fez ele grandes esforços antes de chegar a esse ponto e para evitar um desenlace sangrento: ‘Pedirei amanhã dinheiro a todo mundo — escreve ele em sua linguagem original —, e se me recusarem, o sangue correrá.’ De novo, vemo-lo agir em estado lúcido, como tinha escrito quando estava ébrio!”
Aqui, Ipolit Kirílovitch descreveu pormenorizadamente as tentativas de Mítia para arranjar dinheiro, para evitar o crime. Relatou suas gestões junto a Samsónov, sua visita a Liágavi. “Fatigado, mistificado, faminto, tendo vendido o relógio para pagar a viagem (embora levando consigo 1.500 rublos, com efeito!), atormentado pelo ciúme por causa da bem-amada que deixou na cidade, suspeitando de que em sua ausência pudesse ela ir encontrar-se com Fiódor Pávlovitch, regressa afinal. Deus seja louvado! Ela não esteve lá. Ele próprio a acompanha à casa de seu protetor, Samsónov. (Coisa estranha, não há ciúme de Samsónov, e é esse um detalhe característico!) Corre a seu posto de observação ‘no quintal’ e ali sabe que Smierdiákov teve uma crise, que o outro criado está doente; o campo está livre, os ‘sinais’ estão em suas mãos, que tentação! Não obstante, resiste; vai à casa de uma pessoa por todos respeitada, a senhora Khokhlakova. Essa senhora, que se compadeceu há muito tempo da sorte dele, dá-lhe o mais sábio dos conselhos: renunciar à farra, àquele amor escandaloso, àquelas excursões pelos botequins, em que se gastava sua jovem energia, e partir para as minas de ouro, na Sibéria: ‘Lá está o derivativo para as forças que refervem no senhor, para seu caráter romanesco, ávido de aventuras.’ Depois de ter descrito o desenlace do encontro e o momento em que o réu soube de repente que Grúchenhka não ficou em casa de Samsónov, bem como o furor do infeliz ciumento, à ideia de que ela o enganava e se encontrava agora em casa de Fiódor Pávlovitch, Ipolit Kirílovitch concluiu, fazendo notar a fatalidade desse incidente: se a criada tivesse tido tempo de dizer-lhe que a bem-amada dele estava em Mókroie com o primeiro amante, nada teria acontecido. Mas estava transtornada, jurou a seus deuses, e, se o réu não a matou ali mesmo, foi porque correu em perseguição da infiel. Mas notai isto: embora fora de si, apodera-se de um pilão de cobre. Por que precisamente um pilão? Por que não outra arma? Mas se nos preparávamos para essa cena, encarada havia um mês, se qualquer coisa parecida com uma arma se nos apresenta, dela nos apoderamos como tal. Cerca de um mês, dizíamos a nós mesmos que um objeto daquele gênero poderia servir de arma. De modo que não hesitamos. Por conseguinte, o réu sabia o que fazia ao agarrar aquele fatídico pilão. Ei-lo no jardim do pai, o campo está livre, nenhuma testemunha, uma escuridão profunda e o ciúme. A suspeita de que ela está ali, nos braços do rival, e zomba dele talvez naquele instante, apodera-se de seu espírito. E não somente a suspeita, trata-se bem disso, a velhacaria salta aos olhos: ela está ali, naquele quarto onde há luz, está em casa dele, por trás do biombo, e o infeliz desliza para a janela, olha com delicadeza, resigna-se e se vai prudentemente para não praticar uma desgraça, para evitar o irreparável; e querem fazer-nos acreditar nisso, a nós que conhecemos o caráter do acusado, que compreendemos seu estado de espírito, revelado pelos fatos, sobretudo então quando estava a par dos sinais que permitiam penetrar logo na casa!”
A esse propósito, Ipolit Kirílovitch abandonou provisoriamente a acusação e achou necessário estender-se a respeito de Smierdiákov, a fim de liquidar o episódio das suspeitas dirigidas contra ele e, encerrar duma vez por todas essa ideia. Não negligenciou nenhum detalhe, e todo mundo compreendeu que, malgrado o desdém que testemunhava por essa hipótese, considerava-a, no entanto, muito importante.
VIII
Dissertação a respeito de Smierdiákov
“Em primeiro lugar, donde vem a possibilidade de semelhante suspeita? Quem primeiro denunciou Smierdiákov como o assassino foi o próprio réu, por ocasião de sua prisão; contudo, até hoje, não apresentou ele o menor fato em apoio dessa inculpação, nem mesmo uma alusão mais ou menos verossímil a um fato qualquer. Em seguida, três pessoas somente confirmam seus dizeres: seus dois irmãos e a senhora Svietlova. Mas o mais velho formulou essa suspeita somente hoje, no curso dum acesso de demência e de febre nervosa; antes, durante esses dois meses, estava persuadido da culpabilidade do irmão e nem mesmo procurou combater essa ideia. Aliás, voltaremos a isso. O mais moço declara não ter nenhuma prova que confirme sua ideia da culpabilidade de Smierdiákov e se baseia unicamente nas palavras do acusado e na ‘expressão de seu rosto’; proferiu duas vezes ainda há pouco esse argumento extraordinário. A senhora Svietlova exprimiu-se duma maneira talvez ainda mais estranha: ‘Podeis crer no acusado, não é homem de mentiras.’ Eis todas as acusações alegadas contra Smierdiákov, ‘que pôs fim a seus dias numa crise de loucura’ interessados na sorte do réu. E, no entanto, a acusação contra Smierdiákov circulou e persiste; pode-se acreditar nisso, pode-se imaginá-la?”
Aqui, Ipolit Kirílovitch julgou necessário esboçar o caráter de Smierdiákov, “que pôs fim a seus dias numa crise de loucura”. Apresentou-o como um ser fraco, de instrução rudimentar, conturbado por ideias filosóficas acima de seu alcance, aterrorizado diante de certas doutrinas modernas sobre o dever e a obrigação moral, que lhe inculcavam — na prática — por sua vida descuidada, seu amo Fiódor Pávlovitch, talvez seu pai, e — na teoria — por meio de conversações filosóficas estranhas, o filho mais velho do defunto, Ivan Fiódorovitch, que apreciava essa diversão sem dúvida por tédio ou por uma necessidade de zombaria, não tendo encontrado outro emprego. Descreveu-me ele próprio seu estado de espírito, os derradeiros dias que passou na casa de seu amo — explicou Ipolit Kirílovitch —, mas outras pessoas atestam a coisa: o acusado, seu irmão e até mesmo o criado Grigóri, isto é, todos aqueles que deviam conhecê-lo de perto. Além disso, atingido de epilepsia, Smierdiákov era medroso como uma galinha. “Caía a meus pés e beijava-os”, declarou-nos o réu, quando não compreendia ainda o prejuízo que poderia causar-lhe essa declaração, “é uma galinha epiléptica”, dizia ele do outro na sua linguagem pitoresca. E eis que o acusado (ele mesmo o atesta) faz dele seu homem de confiança e o intimida a ponto de consentir ele afinal em servir-lhe de espião e de informante. Nesse papel de espião, trai seu amo, revela ao acusado a existência do envelope das cédulas e os sinais por meio dos quais pode-se chegar até ele; aliás, poderia ele agir de outro modo? “Ele me matará, dava-me bem conta disso”, dizia ele, tremendo, no inquérito, se bem que seu carrasco já estivesse detido e fora de condições de molestá-lo. “Suspeitava de mim a cada instante e eu, gelado de terror, apressava-me, para acalmar-lhe a cólera, em comunicar-lhe todos os segredos, a fim de provar minha boa-fé e ter a vida salva.” Tais são as palavras, anotei-as. “Quando gritava por mim, acontecia-me atirar-me a seus pés.” De natural bastante honesto, gozando da confiança de seu amo, que comprovara essa honestidade quando seu criado lhe entregou o dinheiro que ele havia perdido, o infeliz Smierdiákov deve ter sentido profundo arrependimento de sua traição àquele a quem amava como seu benfeitor. Os epilépticos, gravemente atacados, de acordo com o relato de psiquiatras eminentes, têm a mania de acusar-se a si mesmos. A consciência de sua culpabilidade atormenta-os, têm remorsos, muitas vezes sem motivos, exageram suas faltas, forjam mesmo crimes imaginários. Acontece que semelhante indivíduo torna-se verdadeiramente culpado e criminoso, sob a influência do medo, da intimidação. Além disso, pressentia ele a possibilidade duma desgraça, em vista das circunstâncias. Quando o filho mais velho de Fiódor Pávlovitch, Ivan Fiódorovitch, partiu para Moscou, no mesmo dia do drama, Smierdiákov suplicou-lhe que ficasse, mas sem ousar, com sua covardia habitual, dar-lhe parte de seus temores de uma maneira categórica. Limitou-se a alusões que não foram compreendidas. É preciso notar que, para Smierdiákov, Ivan Fiódorovitch representava como que uma defesa, uma garantia de que nada de desagradável aconteceria enquanto estivesse ele presente. Lembrai-vos da frase de Dimítri Fiódorovitch em sua carta de ébrio: “Matarei o velho, contanto que Ivan parta.” Por conseguinte, a presença de Ivan Fiódorovitch parecia a todos garantir a ordem e a calma na casa. Parte ele e Smierdiákov; cerca de uma hora depois, tem uma crise, aliás bastante compreensível. É preciso mencionar aqui que, presa do terror e duma espécie de desespero, Smierdiákov, nos derradeiros dias, sentia particularmente a possibilidade de uma crise próxima, que se produzia sempre nas horas de ansiedade e de viva emoção. Não se pode evidentemente adivinhar o dia e a hora desses ataques, mas cada epiléptico pode sentir-lhes os sintomas. Assim fala a medicina. Um pouco depois da partida de Ivan Fiódorovitch, Smierdiákov, que se sente abandonado e sem defesa, vai à adega para atender às necessidades da casa e pensa, ao descer a escada: “Terei ou não um ataque, e se ele me tomasse agora?” Precisamente, aquele estado de espírito, aquela apreensão, aquelas perguntas provocam o espasmo na garganta, precursor da crise; precipita-se sem conhecimento no fundo da adega. Esforçam-se em suspeitar desse acidente bem natural, em ver nele uma indicação, uma alusão revelando a simulação voluntária da doença! Mas, nesse caso, pergunta-se logo: Por quê? Com que fim? Deixo de lado a medicina; a ciência mente, dizem, a ciência se engana, os doutores não souberam distinguir a verdade da simulação; pois seja, admitamos, mas respondei a esta pergunta: que razão tinha ele para simular? Seria para se fazer notar de antemão na casa onde premeditava um assassínio? Vede, senhores jurados, havia cinco pessoas em casa de Fiódor Pávlovitch na noite do crime: em primeiro lugar, o dono da casa, mas não matou a si mesmo, é claro; em segundo lugar, o criado Grigóri, mas quase foi morto; em terceiro lugar, a mulher de Grigóri, Marfa Ignátievna, mas seria uma vergonha supô-la assassina do amo. Restam, por consequência, duas pessoas em causa: o réu e Smierdiákov. Mas como o acusado afirma que não é ele o assassino, deve ser Smierdiákov, não há alternativa, porque não se pode suspeitar de ninguém mais. Eis a explicação dessa acusação ‘sutil’ e extraordinária contra o infeliz idiota que se suicidou ontem! Justamente porque não havia ninguém em quem deitar a mão! Se tivesse existido a mínima suspeita contra algum outro, uma sexta pessoa, estou certo de que o próprio réu teria tido vergonha de acusar então Smierdiákov e acusaria esse outro, porque é perfeitamente absurdo acusar Smierdiákov desse assassinato.
“Senhores, deixemos a psicologia, deixemos a medicina, deixemos mesmo a lógica, consultemos os fatos, nada mais que os fatos, e vejamos o que eles nos dizem. Smierdiákov matou, mas como? Só ou de cumplicidade com o réu? Examinemos de início o primeiro caso, isto é, o assassinato cometido sozinho. Evidentemente, se Smierdiákov matou foi por alguma coisa, num interesse qualquer. Mas não tendo nenhum dos motivos que impeliam o acusado, isto é, o ódio, o ciúme, etc., Smierdiákov só matou para roubar, para se apropriar daqueles três mil rublos que seu patrão metera, diante dele, em um envelope. E eis que, tendo resolvido matar, comunica previamente a outra pessoa, que acontece ser a mais interessada, precisamente o réu, tudo quanto se refere ao dinheiro e aos sinais, o lugar onde se encontra o envelope, seu sobrescrito, com que está ele amarrado, e sobretudo lhe comunica aqueles sinais, por meio dos quais pode-se entrar em casa de seu amo. Pois bem! É para se trair que ele age assim? Ou a fim de arranjar um rival que talvez tenha também vontade de vir a apoderar-se do envelope? Sim, dir-se-á, mas falou dominado pelo medo. Como assim? O homem que não hesitou em conceber um ato tão ousado e feroz, e em executá-lo em seguida, comunica semelhantes informações, que é o único a conhecer no mundo e que ninguém teria jamais adivinhado, se tivesse ele guardado silêncio. Não, por mais medroso que fosse, depois de ter concebido tal ato, esse homem não teria falado a ninguém a respeito do envelope e dos sinais, porque teria sido trair-se de antemão, teria inventado alguma coisa de propósito e mentido, se tivessem exigido dele informações, mas guardado silêncio a respeito. Pelo contrário, repito-o, se não tivesse dito uma palavra a respeito do dinheiro e dele se tivesse apossado após o delito, ninguém no mundo teria jamais podido acusá-lo de assassinato tendo o roubo como móvel, porque ninguém, exceto ele, tinha visto aquele dinheiro, ninguém sabia da existência dele na casa. Mesmo acusando-o, ter-se-ia atribuído outro motivo ao crime. Mas, na ausência de outros motivos prévios, e como todo mundo, ao contrário, tinha-o visto estimado por seu amo, honrado com sua confiança, ter-se-ia suspeitado logo de início de um homem tendo esses motivos, de um homem que, longe de dissimulá-los, ter-se-ia gabado publicamente, em uma palavra, ter-se-ia suspeitado do filho da vítima, Dimítri Fiódorovitch. Teria sido vantajoso para Smierdiákov, assassino e ladrão, que se acusasse esse filho, não é? Pois bem! É a ele, é a Dimítri Fiódorovitch que Smierdiákov, tendo premeditado o crime, fala de antemão do dinheiro, do envelope, dos sinais; que lógica, que clareza!!!
“Chega o dia do crime premeditado por Smierdiákov, e ele cai da escada, tendo simulado um ataque de epilepsia. Por quê? Sem dúvida para que o criado Grigóri, que tinha intenção de tratar-se, renuncie a isso talvez vendo a casa sem vigilância, e monte guarda. Provavelmente também a fim de que o próprio patrão, vendo-se abandonado e temendo a vinda do filho, o que ele não ocultava, redobrasse de desconfiança e de precauções. Sobretudo, enfim, para que o transportem imediatamente, a ele, Smierdiákov, esgotado por sua crise, da cozinha onde dormia só e tinha sua entrada particular, para outra extremidade do pavilhão, no quarto de Grigóri e da mulher, por trás duma separação, como faziam sempre que tinha ele um ataque, de acordo com as instruções do amo e da compassiva Marfa Ignátievna. Ali, oculto atrás do biombo e para melhor parecer doente, começa sem dúvida a gemer, isto é, a despertá-los a noite inteira (o depoimento deles faz fé), e tudo isso a fim de se levantar mais facilmente e matar em seguida seu patrão!
“Mas, dir-se-á, talvez simulasse uma crise precisamente para desviar as suspeitas, e falou ao réu a respeito do dinheiro e dos sinais para tentá-lo e impeli-lo ao crime. E, quando o réu, depois de ter matado, retirou-se levando o dinheiro e talvez fez barulho e despertou testemunhas, então, vede, Smierdiákov se levanta e vai também... pois bem, que vai ele fazer? Vai assassinar uma segunda vez o patrão e roubar o dinheiro já roubado. Senhores, não é isso caso para rir? Eu mesmo tenho vergonha de fazer tais suposições; no entanto, imaginai que é precisamente o que afirma o acusado: ‘Quando eu já havia partido, diz ele, depois de ter abatido Grigóri e provocado o alarme, Smierdiákov se levantou para assassinar e roubar.’ Deixo de lado a impossibilidade para Smierdiákov de calcular e de prever os acontecimentos, a vinda do filho exasperado que se contenta com olhar respeitosamente pela janela e, conhecendo os sinais, retira-se e lhe abandona a presa! Senhores, proponho a pergunta seriamente: em que momento Smierdiákov cometeu seu crime? Indicai esse momento, senão a acusação tomba.
“Mas talvez a crise fosse real. Tendo recuperado seus sentidos, o doente ouviu um grito, saiu, e então? Olhou e disse a si mesmo: ‘Está decidido: matarei o patrão! Mas como soube ele o que se tinha passado, jazendo até então inconsciente? Aliás, senhores, a própria fantasia tem seus limites.
“Pois seja, dirão as pessoas sutis, mas se os dois estivessem de conivência, se houvessem assassinado juntos e partilhado o dinheiro?’
“Sim, há, com efeito, uma suspeita grave, e antes de tudo, com fortes presunções em apoio, um deles assassina e se encarrega de tudo, enquanto o outro cúmplice fica deitado simulando uma crise, precisamente para despertar de antemão a suspeita em todos, para alarmar o patrão e Grigóri. Pergunta-se por quais motivos teriam podido os dois cúmplices imaginar plano tão absurdo? Mas talvez não houvesse senão uma cumplicidade passiva da parte de Smierdiákov; talvez, apavorado, consentiu apenas em não se opor ao assassínio e, pressentindo que o acusariam por ter deixado matar seu amo sem defendê-lo, terá obtido de Dimítri Karamázov a permissão de ficar deitado durante aquele tempo, como se tivesse uma crise: ‘Estás livre para assassinar, nada tenho com isso.’ Nesse caso, como essa crise teria posto a casa em alvoroço, Dimítri Karamázov não podia consentir em tal convenção. Mas admito que tenha consentido; nem por isso deixaria de resultar que Dimítri Karamázov é o assassino direto, o instigador, e Smierdiákov, um cúmplice passivo, e nem mesmo isso; deixou simplesmente fazer, por temor e contra a sua vontade; esta distinção não teria escapado à justiça; ora, que vemos? Por ocasião de sua detenção, o acusado lança toda a culpa sobre Smierdiákov e acusa-o, só a ele. Não o acusa de cumplicidade; só ele é que assassinou e roubou, é obra de suas mãos. Mas que cúmplices são esses que começam logo a acusar-se? Isso não existe. E notai que risco para Karamázov: é o principal assassino, o outro limitou-se a deixar fazer, deitado atrás do tabique, e ele o ataca. Mas esse comparsa poderia zangar-se e, por instinto de conservação, apressar-se em dizer toda a verdade; participamos todos dois, contudo, eu não matei, somente tolerei e deixei fazer, por temor. Porque Smierdiákov podia compreender que a justiça discerniria logo seu grau de culpabilidade, e contar com um castigo bem menos rigoroso que o principal assassino, que queria atirar toda a culpa sobre ele. Mas então teria forçosamente confessado. Contudo, nada disso se dá. Smierdiákov não soprou palavra a respeito da cumplicidade, se bem que o assassino o haja acusado formalmente e apontado todo o tempo como o único autor do crime. Não é tudo; Smierdiákov revelou no inquérito que havia ele próprio falado ao acusado do envelope com o dinheiro e dos sinais, e que, sem ele, este nada teria sabido. Se tivesse sido verdadeiramente cúmplice e culpado, teria comunicado a coisa tão voluntariamente no inquérito? Pelo contrário, ter-se-ia desnaturado e atenuado os fatos. Mas não agiu assim. Somente um inocente, que não teme ser acusado de cumplicidade, pode agir dessa maneira. Pois bem! Num acesso de melancolia mórbida consecutiva à epilepsia e a todo esse drama, enforcou-se ontem, depois de ter escrito este bilhete: ‘Ponho fim a meus dias voluntariamente. Não acusem ninguém de minha morte.’ Que lhe custaria acrescentar: sou eu o assassino e não Karamázov? Mas não fez nada disso; sua consciência não chegou a esse ponto.
“Ainda há pouco, trouxeram dinheiro ao tribunal, três mil rublos, as cédulas que se encontravam no envelope que figurava entre as peças de convicção, recebi-as ontem de Smierdiákov. Mas vós não vos esquecestes, senhores jurados, dessa triste cena. Não lhes tornarei a traçar os detalhes, contudo permitir-me-ei duas ou três observações escolhidas de propósito entre as mais insignificantes, porque não surgirão no espírito de cada um e serão esquecidas. Em primeiro lugar, foi por remorso que ontem Smierdiákov restituiu o dinheiro e enforcou-se. (De outro modo não o teria restituído.) E não foi senão ontem à noite, evidentemente, que confessou pela primeira vez seu crime a Ivan Karamázov, como este último o declarou, senão por que teria este guardado silêncio até agora? Confessou, admitamos. Mas, por que, repito-o, não disse toda a verdade no seu bilhete fúnebre, sabendo que no dia seguinte iam julgar um inocente? O dinheiro apenas não constitui uma prova. Soube completamente por acaso, há uma semana, bem como duas pessoas aqui presentes, que Ivan Fiódorovitch Karamázov mandara trocar na sede da província dois títulos de dívida a cinco por cento, de cinco mil rublos cada um, ou seja, dez mil ao todo. Isso para mostrar que sempre se pode arranjar dinheiro para uma data fixa e que os três mil rublos apresentados não são necessariamente os mesmos que se encontravam na gaveta ou no envelope. Enfim, tendo Ivan Karamázov colhido ontem as confissões do verdadeiro assassino, ficou em seu quarto. Por que não fez imediatamente sua declaração? Por que ter esperado até o dia seguinte? Estimo que se possa adivinhar a razão disso; doente há uma semana, tendo confessado ao médico e aos que o cercavam que tinha alucinações e encontrava pessoas mortas, ameaçado pela febre nervosa que se declarou hoje, ao saber de súbito da morte de Smierdiákov, fez este raciocínio: ‘Este homem está morto, pode-se acusá-lo, salvarei meu irmão. Tenho dinheiro, apresentarei um maço de cédulas, dizendo que Smierdiákov mas entregou antes de morrer.’ É desonesto, direis, se bem que acuse um morto, mas não é desonesto mentir, mesmo para salvar seu irmão? Pois seja, mas se mentiu inconscientemente, se imaginou que tenha acontecido, com o espírito definitivamente transtornado pela notícia da morte súbita do lacaio! Assististes àquela cena ainda há pouco, vistes em que estado se encontrava aquele homem. Mantinha-se de pé e falava, mas onde estava sua razão? O depoimento do doente foi seguido de um documento, de uma carta do réu à senhorita Vierkhóvtseva, escrita dois dias antes do crime de que contém o programa detalhado. De que serve procurar esse programa e seus autores? Tudo se passou exatamente de acordo com ele e ninguém ajudou o autor! Sim, senhores jurados, ‘isso se passou como estava escrito!’. E não fugimos com um temor respeitoso da janela paterna, sobretudo estando persuadido de que nossa bem-amada se encontrava nos aposentos dele. Não, é absurdo e inverossímil. Ele entrou e foi até o fim. Deve ter matado num acesso de furor, vendo seu rival detestado, talvez com um só golpe de pilão, mas em seguida, depois de ter-se convencido por um exame detalhado de que ela não estava ali, não se esqueceu de meter a mão sob o travesseiro e de apoderar-se do envelope com o dinheiro, que figura agora, rasgado, entre as peças de convicção. Falo disso para assinalar-vos uma circunstância característica. Um assassino experimentado, vindo exclusivamente para roubar, teria deixado no soalho o envelope, tal como foi encontrado junto do cadáver? Smierdiákov, por exemplo, teria levado tudo, sem se dar o trabalho de abri-lo perto de sua vítima, sabendo bem que ele continha dinheiro, pois que o vira ser nele metido e lacrado; ora, desaparecido o envelope, não se podia saber se houvera roubo. Pergunto-vos, senhores jurados, teria Smierdiákov agido assim e deixado o envelope no chão? Não, assim devia proceder um assassino furioso, incapaz de refletir, nunca tendo roubado nada e que, mesmo agora, se apropriado dinheiro, não como um vulgar malfeitor, mas como alguém que retoma seus bens daquele que os roubou, porque tais eram precisamente, a respeito daqueles três mil rublos, as ideias de Dimítri Karamázov, que nele chegavam já à mania. De posse do envelope, que jamais vira antes, rasga-o para certificar-se de que contém dinheiro, depois atira-o fora e foge com as cédulas no bolso, sem suspeitar de que deixa assim atrás de si, sobre o soalho, uma prova esmagadora. Tudo porque foi Karamázov e não Smierdiákov, e não refletiu, aliás não tinha tempo. Foge, ouve o grito do criado que o alcança, que o agarra, que o detém, vacila e cai derrubado por uma pancada de pilão. O réu salta do alto da paliçada por compaixão. Imaginai que ele nos garante que desceu por piedade, por compaixão, para ver se podia socorrê-lo. Mas seria aquele o momento para enternecimento? Não, tornou a descer precisamente para certificar-se de que estivesse ainda viva a única testemunha de seu crime. Qualquer outro sentimento, qualquer outro motivo teriam sido insólitos! Notai que ele se mostra solícito para com Grigóri, enxuga-lhe a cabeça com seu lenço, depois, crendo-o morto, como que desvairado, coberto de sangue, corre de novo à casa de sua bem-amada; como não pensou ele que naquele estado imediatamente o acusariam? Mas o próprio réu nos assegura que não prestou atenção a isso; pode-se admiti-lo, é muito possível, isso acontece sempre aos criminosos em semelhantes momentos. Dum lado, um cálculo infernal, do outro, o raciocínio falha. Mas, naquele minuto, perguntava ele somente a si mesmo onde ela estava. Na pressa de sabê-lo, corre à sua casa e sabe duma notícia imprevista, esmagadora para ele: ela partiu para Mókroie a fim de juntar-se ao antigo amante, ‘o indiscutível’.”
IX
Psicologia a vapor. A troica em disparada. Peroração
Chegado a esse momento de seu discurso, Ipolit Kirílovitch, que havia evidentemente escolhido o método de exposição rigorosamente histórico, muito do agrado de todos os oradores nervosos que procuram de propósito quadros estritamente delimitados, a fim de moderar seu ardor, estendeu-se a respeito do primeiro amante, “o indiscutível”, e formulou a esse respeito algumas ideias interessantes. “Karamázov, ferozmente ciumento de todos, apaga-se de súbito e desaparece diante do ‘antigo’ e do ‘indiscutível’. E é tanto mais estranho que antes quase não prestara atenção ao novo perigo que o ameaçava na pessoa desse rival inesperado. Mas representava-se isso como distante, e Karamázov só vive no momento presente. Provavelmente, considerava-o mesmo uma ficção. Mas, tendo logo compreendido, com o coração dolorido, que a dissimulação daquela mulher, sua mentira de ainda há pouco, provinham talvez do fato de que esse novo rival, longe de ser um capricho e uma ficção, representava tudo para ela, toda sua esperança na vida. Tendo compreendido isso, resignou-se. Pois bem, senhores jurados, não posso passar em silêncio esse traço inesperado no réu: de súbito apareceram a sede da verdade, a necessidade imperiosa de respeitar aquela mulher, de reconhecer os direitos de seu coração, e isso no momento em que, por ela, acabava de tingir suas mãos no sangue de seu pai! É verdade que o sangue vertido gritava já vingança, porque, tendo perdido sua alma, destruído sua vida terrestre, devia, malgrado seu, perguntar a si mesmo naquele momento: ‘Que sou eu, que posso eu ser agora para ela, para essa criatura querida mais que tudo no mundo, em comparação com esse primeiro amante, ‘o indiscutível’, com aquele que, arrependido, volta para essa mulher seduzida outrora por ele, com um novo amor, com propostas leais e a promessa de uma vida regenerada e doravante feliz?’ Mas ele, o desgraçado, que pode ele oferecer-lhe agora? Karamázov compreendeu tudo isso e que seu crime lhe barrava a estrada, que não passava de um criminoso votado ao castigo, indigno de viver! Essa ideia o esmagou, aniquilou-o. Imediatamente, decide-se por um plano insensato que, dado o caráter, devia parecer-lhe a única saída para sua terrível situação: o suicídio. Corre a desempenhar suas pistolas em casa do funcionário Pierkhótin, e, no caminho, tira do bolso o dinheiro pelo qual acaba de manchar as mãos no sangue do pai. Oh, agora mais do que nunca tem ele necessidade de dinheiro; Karamázov vai morrer, Karamázov se mata; hão de lembrar-se disso! Não é por coisa nenhuma que somos poeta, não é por coisa nenhuma que queimamos nossa vida como uma vela, pelos dois lados. Alcançá-la é, lá, uma festa de arromba, uma festa como jamais se viu, para que fique na lembrança e dela se fale por muito tempo. No meio dos gritos selvagens, das loucas canções e das danças dos ciganos ergueremos nosso copo para felicitar a bem-amada por sua nova felicidade, depois ali, diante dela, a seus pés, estouraremos os miolos, para redimir nossas faltas. Ela se recordará de Mítia Karamázov, verá quanto a amava, lamentará Mítia! Aí temos o pitoresco, a exaltação romanesca em quantidade, reencontramos o arrebatamento selvagem e a sensualidade por Karamázov, mas há algo mais, senhores jurados, que grita na alma; impressiona o espírito sem cessar, envenena o coração até a morte; esse algo é a consciência, senhores jurados, é seu julgamento, é o remorso. Mas a pistola concilia tudo, é a única solução; quanto ao outro mundo, ignoro se Karamázov pensou então no que haveria do outro lado e se é capaz disso, como Hamlet. Não, senhores jurados, em outra parte, tem-se Hamlet, nós não temos senão Karamázov!”
Aqui, Ipolit Kirílovitch traçou um quadro detalhado dos fatos e gestos de Mítia, da cena em casa de Pierkhótin, no botequim, com os cocheiros. Citou uma multidão de frases confirmadas por testemunhas, e o quadro se impunha à convicção dos ouvintes. Sobretudo impressionava o conjunto dos fatos. A culpabilidade daquele ser desorientado, descuidado de sua segurança, saltava aos olhos. “De que servia a prudência? — prosseguiu Ipolit Kirílovitch —; duas ou três vezes esteve ele a ponto de confessar e fez alusões (seguiam-se os depoimentos das testemunhas). Gritou mesmo ao cocheiro na estrada: ‘Sabes que conduzes um assassino?’ Mas não podia dizer tudo: era-lhe preciso, em primeiro lugar, chegar à aldeia de Mókroie e ali terminar o poema. Ora, que é que esperava o infeliz? O fato é que em Mókroie percebeu logo que seu rival ‘indiscutível’ não é irresistível e que suas felicitações a propósito da nova felicidade não são recebidas com agrado. Mas conheceis já os fatos, senhores jurados, segundo o inquérito. O triunfo de Karamázov sobre seu rival foi completo; então começa para ele uma crise terrível, a mais terrível de todas que atravessou. Pode-se reconhecer, senhores jurados, que a natureza ultrajada e o coração criminoso exercem um castigo mais rigoroso que o da justiça humana! Além disso, os castigos que ela inflige trazem um abrandamento à expiação da natureza, são mesmo necessários à alma do criminoso naqueles momentos, para salvá-la do desespero, porque posso imaginar o horror e o sofrimento de Karamázov ao saber que ela o amava, que ela repelia por causa dele o antigo amante, que o convidava a ele, Mítia, a uma vida regenerada, prometia-lhe a felicidade, e isso quando tudo está para ele acabado, quando nada mais é possível! A propósito, eis aqui, de passagem, uma observação muito importante para explicar a verdadeira situação do acusado naquele momento: aquela mulher, objeto de seu amor, permaneceu para ele até o fim, até a detenção, uma criatura inacessível, se bem que apaixonadamente desejada. Mas por que não se suicidou ele então? Por que ter abandonado esse projeto e esquecido até mesmo sua pistola? Essa sede apaixonada de amor e a esperança de estancá-la imediatamente retiveram-no. Na embriaguez da festa, está como que acorrentado à sua bem-amada, que compartilha da orgia com ele, mais sedutora do que nunca. Ele não se afasta de seu lado e, cheio de admiração, apaga-se diante dela. Esse ardor apaixonado pôde abafar até mesmo por um instante o temor da prisão e o remorso. Oh, por um instante somente! Imagino o estado d’alma do criminoso como escravizado a três elementos que o dominavam totalmente: em primeiro lugar, a embriaguez, os vapores do álcool, o barulho da dança e dos cantos, e ela, a tez avermelhada pelas libações, cantando e dançando, sorrindo-lhe ébria também. Em seguida, o pensamento reconfortante de que o desenlace fatal está ainda afastado, de que virão prendê-lo somente no dia seguinte de manhã. Algumas horas de prazo é muito, pode-se imaginar muita coisa durante esse tempo, Suponho que terá experimentado sensação análoga à do criminoso a quem levam à forca; é preciso percorrer ainda uma longa rua, a passo, diante de milhares de espectadores, depois dobra-se outra rua, ao fim da qual somente se encontra o lugar fatal. No começo do trajeto, o condenado, em cima da carreta ignominiosa, deve imaginar que tem ainda muito tempo para viver. Mas as casas se sucedem, a carreta avança, não tem importância, está ainda longe a esquina da segunda rua. Olha ele corajosamente à direita e à esquerda aqueles milhares de curiosos indiferentes que o encaram e sempre lhe parece que é um homem igual a eles. E eis que dobram a segunda rua, mas não importa, resta um bom pedaço de caminho. Enquanto vai vendo desfilarem as casas, o condenado pensará: ‘Ainda há muitas.’ E assim até o local da execução. Eis, imagino, o que experimentou Karamázov. ‘Ainda não descobriram o crime — pensa ele —, pode-se procurar alguma coisa, terei tempo de combinar um plano de defesa, de me preparar para resistir, mas, no momento, viva a alegria! Ela é tão sedutora!’ Está perturbado e inquieto, contudo consegue retirar a metade de seu dinheiro e escondê-lo. Não posso explicar a mim mesmo de outro modo o desaparecimento da metade dos três mil rublos retirados de sob o travesseiro do pai. Tendo já ido a Mókroie para fazer farra, conhece aquela velha casa de madeira, com seus alpendres e varandas. Suponho que uma parte do dinheiro foi escondida então, pouco tempo antes da detenção, numa fenda ou rachadura, sob uma tábua do parquete, num canto, debaixo do telhado. Por quê? — perguntarão. Uma catástrofe está iminente, sem dúvida não pensamos ainda em enfrentá-la, falta tempo, as têmporas nos batem, ‘ela’ nos atrai como um ímã, mas tem-se sempre necessidade de dinheiro. Em toda parte, é-se alguém com dinheiro. Tal previdência, num momento semelhante, parecer-vos-á talvez estranha. Mas ele mesmo afirma ter, um mês antes, num momento também crítico, posto de lado e cosido num amuleto a metade de três mil rublos; e, se bem que seja isso certamente uma invenção, como vamos prová-lo, essa ideia é familiar a Karamázov, meditou-a. Além do mais, quando afirmava mais tarde ao juiz de instrução ter reservado 1.500 rublos num amuleto (o qual nunca existiu), imaginou isso ali na hora talvez, precisamente porque, duas horas antes, retirara e escondera a metade da soma, em alguma parte, em Mókroie, por prevenção, até pela manhã, para não guardá-la consigo, de acordo com uma inspiração súbita. Lembrai-vos, senhores jurados, de que Karamázov pode contemplar ao mesmo tempo dois abismos. Nossas pesquisas naquela casa foram vãs, talvez o dinheiro lá ainda esteja, talvez tenha desaparecido no dia seguinte e se encontre agora de posse do acusado. Em todo caso, detiveram-no ao lado de sua amante, de joelhos diante dela que estava deitada; estendia-lhe ele os braços, esquecendo tudo o mais, a ponto de não ouvir a aproximação daqueles que iam detê-lo. Não teve tempo de preparar uma resposta e foi apanhado desprevenido.
“E agora ei-lo diante de seus juízes, diante daqueles que vão decidir de sua sorte. Senhores jurados, há, no exercício de nossas funções, momentos em que nós mesmos temos quase medo da humanidade! É quando se contempla o terror bestial do criminoso que se vê perdido, mas quer lutar ainda. É quando o instinto de conservação desperta nele de repente, quando ele fixa em nós um olhar penetrante, cheio de ansiedade e de sofrimento, quando ele escruta vosso rosto, vossos pensamentos, pergunta a si mesmo de que lado virá o ataque, imagina, num instante, no seu espírito perturbado, mil planos, mas teme falar, teme trair-se! Esses momentos humilhantes para a alma humana, esse calvário, essa avidez bestial de salvação são horríveis, fazem tremer por vezes o próprio juiz e excitam sua compaixão. E nós assistimos a esse espetáculo. A princípio aturdido, deixou ele escapar no seu terror algumas palavras das mais comprometedoras: ‘O sangue! Mereci!’ Mas logo se reteve. Não sabe ainda o que dizer, o que responder e só pode opor uma vã negativa: ‘Sou inocente da morte de meu pai!’ Eis a primeira trincheira, por trás da qual tentará construir outros trabalhos de defesa. Sem aguardar nossas perguntas, trata de explicar suas primeiras exclamações comprometedoras dizendo que se acha culpado somente da morte do velho criado Grigóri: ‘Sou culpado desse sangue, mas quem matou meu pai, senhores, quem pôde matá-lo, senão eu?’ Ouvis, ele no-lo pergunta, a nós que fomos fazer-lhe essa pergunta!” Compreendeis esta frase antecipada: “Senão eu?”, essa trapaça, essa ingenuidade, essa impaciência de Karamázov? Não fui eu quem matou, não acrediteis em nada. ‘Quis matar, senhores’, apressa-se ele em confessar (tem pressa), ‘mas estou inocente, não fui eu!’. Convém que quis matar: vede como sou sincero, apressai-vos também em crer na minha inocência. Oh! Nesses casos, o criminoso se mostra por vezes duma irreflexão, duma credulidade incríveis. Como por acaso, o juiz de instrução lhe faz a pergunta mais ingênua: ‘Não seria Smierdiákov o assassino?’ Aconteceu o que esperávamos; zangou-se por ter sido precedido, tomado de improviso, sem que lhe deixem tempo de escolher o momento mais favorável para empurrar para a frente Smierdiákov. Seu gênio arrebata-o logo ao extremo, afirma-nos energicamente que Smierdiákov é incapaz de assassinar. Mas não lhe deis crédito, não passa de uma astúcia, não renuncia absolutamente a acusar Smierdiákov, pelo contrário, pô-lo-á ainda em causa, já que não tem outra pessoa, porém mais tarde, porque para o momento o negócio está arruinado. Não será talvez senão no dia seguinte, ou mesmo em vários dias: ‘Vós vedes, era o primeiro a negar que foi Smierdiákov, vós vos lembrais, mas agora, estou convencido, não foi talvez senão ele!’ No momento, opõe-nos negações veementes, a impaciência e a cólera lhe sugerem a explicação mais inverossímil; olhou o pai pela janela e afastou-se respeitosamente. Ignorava ainda o alcance do depoimento de Grigóri. Procedemos ao exame detalhado de suas roupas. Essa operação exaspera-o, mas retoma coragem; só foram encontrados 1.500 rublos dos três mil. É então, nesses minutos de irritação contida, que a ideia do amuleto lhe vem pela primeira vez ao espírito. Certamente, ele próprio sente toda a inverossimilhança desse conto e tem trabalho para torná-lo mais plausível, para inventar um romance conforme à verdade. Em semelhante caso, o inquérito não deve dar ao criminoso tempo de se reconhecer, proceder por ataque brusco, a fim de que ele revele seus pensamentos íntimos na sua ingenuidade e na sua contradição. Não se pode obrigar um criminoso a falar senão comunicando-lhe de improviso, como por acaso, um fato novo, uma circunstância duma extrema importância, que permaneceu até então para ele não prevista e despercebida. Tínhamos bem pronto um fato semelhante, é o testemunho do criado Grigóri, a respeito da porta aberta por onde saiu o acusado. Tinha-a ele totalmente esquecido e não supunha que Grigóri tivesse podido notá-la. O efeito foi colossal. Karamázov ergueu-se, gritando: “Foi Smierdiákov quem matou, foi ele!”, revelando assim seu pensamento íntimo, sob a forma mais inverossímil, porque Smierdiákov não podia assassinar senão depois que Karamázov tivesse dominado Grigóri e fugido. Ao saber que Grigóri vira a porta aberta antes de cair, e ouvido, quando se levantou, Smierdiákov gemer por trás do tabique, ficou aterrorizado. Meu colaborador, o ilustre e sagaz Nikolai Parfiénovitch, contou-me mais tarde que naquele momento sentira-se emocionado até as lágrimas. Então, para livrar-se de apuros, apressa-se o réu em contar-nos a história daquele famoso amuleto. Senhores jurados, já vos expliquei por que considero essa história do dinheiro cosido um mês antes num amuleto não somente um absurdo, mas como a invenção mais extravagante que se possa imaginar no caso particular. Mesmo apostando para saber quem faria o conto mais inverossímil, nada de pior se teria encontrado. Aqui, pode-se confundir o narrador triunfante com os detalhes, esses detalhes cuja realidade é sempre tão rica e que esses infelizes narradores involuntários desdenham sempre como supostamente inúteis e insignificantes. Trata-se bem disso, o espírito deles medita um plano grandioso e ousam objetar-lhes ninharias! Ora, está nisso o defeito da couraça. Pergunta-se ao acusado: ‘Onde arranjou o senhor o pano para seu amuleto, quem o costurou?’ — ‘Eu mesmo o costurei.’ — ‘Mas donde vem o pano?’ O acusado ofende-se logo, considera isso um detalhe quase ofensivo para ele e, acreditá-lo-íeis?, está de boa-fé! São todos semelhantes. ‘Cortei-o de minha camisa.’ — ‘Perfeito. De modo que, amanhã, encontraremos na sua roupa íntima essa camisa com um pedaço tirado.’ Pensai bem, senhores jurados, que se tivéssemos encontrado essa camisa (e como não encontrá-la na sua mala ou na sua cômoda, se ele disse a verdade?) constituiria isto já um fato tangível em favor da exatidão de suas declarações! Mas não se dá ele conta disso. — ‘Não me lembro, pode dar-se que o tenha costurado aproveitando uma touca de minha locadora.’ — ‘Que touca!’ — ‘Tirei-a de seu quarto, andava por ali, uma velharia de algodão.’ — ‘Está bem certo disso?’ — ‘Não, bem certo, não...’ E ele se zanga, no entanto. Como não se lembrar? Nos momentos mais terríveis, quando levam a gente ao suplício, são precisamente de semelhantes detalhes que nos lembramos. O condenado esquecerá tudo, mas um teto verde avistado no caminho ou uma gralha sobre uma cruz voltar-lhe-á à memória. Ao costurar seu amuleto, ocultava-se das pessoas da casa, deveria lembrar-se desse medo humilhante de ser surpreendido de agulha na mão, e como, ao primeiro alerta, correu para trás do tabique (há um em seu quarto)... Mas, senhores jurados, por que comunicar-vos todos esses detalhes!? — exclamou Ipolit Kirílovitch. — É porque o réu mantém obstinadamente até hoje essa versão absurda! Durante esses dois meses, desde aquela noite fatídica, nada explicou nem acrescentou um fato probante às suas precedentes declarações fantásticas. São ninharias, diz ele, e vós deveis acreditar na minha palavra de honra! Oh! Seríamos felizes em acreditar, desejá-lo-íamos ardentemente, ainda que seja só pela honra! Somos chacais, sedentos de sangue humano? Indicai-nos um só fato em favor do réu, e nós nos regozijaremos, mas um fato tangível, real, e não as deduções de seu irmão, baseadas na expressão de seu rosto, ou a hipótese de que, batendo no peito, no escuro, devia necessariamente designar o amuleto. Nós nos regozijaremos com esse acontecimento novo, seremos os primeiros a abandonar a acusação. Agora, a justiça reclama, e nós acusamos, sem nada suprimir às nossas conclusões.”
Depois, Ipolit Kirílovitch chegou à peroração. Tinha febre; com uma voz vibrante evocou o sangue vertido, o pai morto por seu filho “pela vil intenção de roubá-lo”. Insistiu na concordância trágica e flagrante dos fatos. “E seja o que for que possa dizer-vos o defensor célebre do réu, malgrado a eloquência patética que fará apelo à vossa sensibilidade, não esqueçais que estais no santuário da justiça. Lembrai-vos de que sois os defensores do direito, o baluarte de nossa santa Rússia, dos princípios, da família, de tudo quanto lhe é sagrado. Sim, vós representais a Rússia neste momento e não somente neste recinto repercutirá vosso veredicto: toda a Rússia vos escuta, a vós, seus sustentáculos e seus juízes, e ficará reconfortada ou consternada pela sentença que ides proferir. Não enganeis sua expectativa, nossa fatal troica corre a toda a brida, talvez para o abismo. Há muito tempo, muitos russos elevam os braços, quereriam deter essa corrida insensata. E se outros povos se afastam ainda da troica em disparada, não é talvez por respeito, como imaginava o poeta; é talvez por horror, por desgosto, notai-o bem. E ainda é bom que se afastem, porque poderiam muito bem erguer um muro sólido diante desse fantasma e porem eles próprios um freio ao desencadeamento de nossa licença, para preservar a si mesmos e à civilização. Essas vozes de alarme começam a repercutir na Europa, já as ouvimos. Guardai-vos de tentá-las, de alimentar seu ódio crescente com um veredicto que absolveria o parricida!”
Em suma, Ipolit Kirílovitch, que se deixara arrebatar, acabou duma maneira patética e produziu grande efeito. Apressou-se em sair e quase desmaiou na peça contígua. O público não aplaudiu, mas as pessoas sérias estavam satisfeitas. As damas estavam-no menos, contudo a eloquência dele também lhes agradou, tanto mais que não lhes temiam as consequências e contavam bastante com Fietiukóvitch: “Ele vai afinal tomar a palavra, e, decerto, triunfar!” Mítia atraía os olhares; durante a acusação, permanecera silencioso; de dentes cerrados, olhos baixos. Uma vez ou outra, erguia a cabeça e prestava atenção, sobretudo quando se tratou de Grúchenhka. Quando o procurador citou a opinião de Rakítin sobre ela, Mítia teve um sorriso desdenhoso e proferiu bastante distintamente: “Bernard!” Quando Ipolit Kirílovitch contou como o havia atormentado por ocasião do interrogatório em Mókroie, Mítia levantou a cabeça, escutou com intensa curiosidade. Num dado momento, pareceu querer levantar-se, gritar qualquer coisa, mas conteve-se e contentou-se com erguer desdenhosamente os ombros. As proezas do procurador em Mókroie desenfrearam mais tarde os falatórios e zombaram de Ipolit Kirílovitch: “Não pôde ele impedir-se de gabar suas capacidades.” A audiência foi suspensa por um quarto de hora, vinte minutos. Tomei nota de certas opiniões expostas em público:
— Um discurso sério! — observou, franzindo os supercílios, um senhor num grupo.
— Meteu-se na psicologia — disse outra voz.
— Tudo isso é rigorosamente verdadeiro.
— Sim, revelou-se um mestre.
— Fez o balanço completo.
— Nós também tivemos a nossa conta — acrescentou uma terceira voz. — No começo, lembram-se?, quando disse ele que todos eram como Fiódor Pávlovitch.
— E no fim também. Mas isso não é verdade.
— Deixou-se arrebatar um pouco!
— É injusto, injusto.
— Mas não, foi hábil. Esperou muito tempo sua hora: falou afinal! Eh!, eh!
— Que irá dizer o defensor?
Num outro grupo:
— Não teve razão em atacar o peterburguês “fazendo apelo à sensibilidade”, lembram-se?
— Sim, cometeu uma rata.
— Foi demasiado longe.
— Um homem nervoso.
— Estamos aqui a rir, mas como se sentirá o réu?
— Sim, como se sente Mítia?
— Que irá dizer o defensor?
Num terceiro grupo:
— Quem é aquela senhora obesa, com uma luneta, sentada na extremidade?
— É a esposa divorciada dum general. Conheço-a.
— Por isso usa uma luneta.
— Um velho quadro.
— Mas não, é picante.
— Dois lugares mais adiante está uma lourinha, aquela é melhor.
— Procederam com muita habilidade em Mókroie, não foi?
— Decerto. Voltou a falar disso. Como se não o tivesse feito bastante na sociedade!
— Não pôde conter-se. O amor-próprio.
— Um preterido, eh!, eh!, eh!.
— E suscetível. Muita retórica, frases grandiloquentes.
— Sim, e notem que ele quer causar medo. Lembram-se da troica? “em outra parte tem-se Hamlet, e nós não temos senão Karamázov!” Isso não está mal.
— Isso é endereçado aos liberais. Tem medo.
— Tem medo também do advogado.
— Sim, que irá dizer o senhor Fietiukóvitch?
— Pois bem! Diga o que disser, não convencerá nossos mujiques.
— Acredita que não?
Num quarto grupo:
— O que disse da troica está bem, principalmente quando fala dos povos.
— E é verdade, lembras-te?, quando disse que os povos não esperariam.
— Como assim?
— Na semana passada, um membro do Parlamento inglês interpelou o ministro a respeito dos niilistas e perguntou: “Não seria tempo de ocuparem essa nação bárbara para educá-la?” Foi a ele que Ipolit Kirílovitch fez alusão, eu o sei. Falou disso a semana passada.
— Não têm o braço tão longo assim.
— Por que não bastante longo?
— Basta que fechemos Cronstadt[ 152 ] e não lhes forneçamos trigo. Onde o arranjarão?
— Mas há agora na América.
— Não é verdade.
Mas a sineta fez-se ouvir. Cada qual se precipitou para seu lugar.
Fietiukóvitch tomou a palavra.
X
A defesa. Uma arma de dois gumes
Ficou tudo em silêncio às primeiras palavras do célebre advogado. A sala inteira tinha os olhos fixos nele. Começou com uma simplicidade persuasiva, mas sem a menor jactância. Nenhuma pretensão à eloquência e ao patético. Era um homem que conversava na intimidade de um círculo de amigos. Tinha uma bela voz, forte, agradável, em que ressonava algo de sincero, de simples. Mas cada qual sentiu logo que o orador podia elevar-se ao verdadeiro patético, “e tocar os corações com uma força desconhecida”. Exprimia-se talvez menos corretamente que Ipolit Kirílovitch, mas sem longas frases e com mais precisão. Uma coisa desagradou às senhoras: curvava-se, sobretudo no começo, não para saudar, mas como para lançar-se na direção de seu auditório; dir-se-ia que seu longo dorso estava provido no meio de uma charneira e capaz de formar quase um ângulo reto. No início, falou como que desalinhavadamente, sem método, escolhendo os fatos ao acaso, para deles formar afinal um todo completo. Ter-se-ia podido dividir seu discurso em duas partes, a primeira constituindo uma crítica, uma refutação da acusação, por vezes mordaz e sarcástica. Mas na segunda, mudou de tom e de processos, elevou-se de súbito até o patético; a sala parecia esperar por isso e fremiu de entusiasmo. Abordou diretamente o caso, declarando que, muito embora sua atividade se desenrolasse em Petersburgo, ia muitas vezes à província defender acusados cuja inocência lhe parecia certa ou provável. “Aconteceu-me a mesma coisa desta vez — explicou. — Bastou-me a leitura dos jornais no começo, para que eu notasse algo de impressionante em favor do acusado. Meu interesse foi despertado por um fato bastante frequente na prática judiciária, mas que não se observa nunca, creio, em tal grau e com particularidades tão características como no presente processo. Deveria mencionar esse fato somente na minha peroração, mas formularei meu pensamento desde o começo, tendo a fraqueza de abordar o assunto diretamente, sem mascarar os efeitos nem poupar as impressões. Será talvez imprudente de minha parte, mas é sincero. Esse pensamento se formula da seguinte maneira: uma concordância esmagadora de fatos contra o réu e, ao mesmo tempo, nem um fato que suporte a crítica, se examinado isoladamente. Os boatos e os jornais tinham-me confirmado sempre mais nessa ideia, quando recebi de repente dos parentes do acusado a proposta para defendê-lo. Aceitei com entusiasmo e acabei de convencer-me aqui. Foi afinal para destruir essa funesta concordância dos fatos, de demonstrar a inanidade de cada uma das acusações considerada isoladamente, que aceitei defender esta causa.”
Depois desse exórdio o defensor prosseguiu:
“Senhores jurados, sou aqui um forasteiro, acessível a todas as impressões, sem partido preconcebido. O acusado, de caráter violento, de paixões desenfreadas, não me ofendeu anteriormente, como aconteceu a numerosas pessoas desta cidade, o que explica muitas das prevenções contra ele. Decerto, convenho que a opinião pública está indignada contra ele com razão: o réu é violento, incorrigível. Era, no entanto, recebido em toda parte; acolhiam-no mesmo festivamente na família de meu eminente contraditor. (N.B. Houve aqui entre o público algumas risadas, aliás logo reprimidas. Cada um sabia que o procurador recebia Mítia em sua casa contra sua vontade, unicamente porque se interessava por ele sua mulher, senhora das mais respeitáveis, porém extravagante e que gostava de teimar contra o marido, sobretudo em detalhes. De resto, Mítia ia bastante raramente à casa deles.) Não obstante, ouso admitir — prosseguiu o defensor — que, mesmo um espírito bastante independente e um caráter tão justo como meu contraditor tenha podido conceber contra meu constituinte certa prevenção errônea. Oh! É tão natural, o infeliz bem que o mereceu. O senso moral e sobretudo o senso estético são por vezes inexoráveis. Decerto, a eloquente acusação nos apresentou uma análise rigorosa do caráter e dos atos do acusado, um ponto de vista estritamente crítico; testemunha profundeza psicológica, quanto à essência do caso, que não poderia ter sido atingida se o animasse apenas um preconceito contra a personalidade do réu. Mas há coisas piores e mais funestas, em semelhante caso, que um preconceito hostil. Acontece, por exemplo, quando somos obsessionados por uma necessidade de criação artística, de invenção romanesca, sobretudo com os ricos dons psicológicos que são nosso apanágio. Ainda em Petersburgo, tinham-me prevenido, aliás eu mesmo o sabia, que teria aqui como adversário um psicólogo profundo e sutil, que se assinalou desde muito tempo por essa qualidade no mundo judiciário. Mas a psicologia, senhores, embora sendo uma ciência notável, assemelha-se a uma arma de dois gumes. Eis aqui um exemplo tomado ao acaso na acusação. O réu, de noite, no jardim, ao fugir, escala a paliçada, derruba com uma pancada de pilão o criado Grigóri, que o agarrou pela perna. Logo depois, salta em terra, e, durante cinco minutos, fica ao lado de sua vítima para saber se a matou ou não. O acusador não quer por coisa alguma no mundo acreditar na sinceridade do acusado que afirma ter agido por um sentimento de compaixão. ‘Tal sensibilidade será possível em tal momento? Não é natural; o que ele quis precisamente foi assegurar-se de que a única testemunha de seu crime vivia ainda, provando assim que ele o havia cometido, porque não podia saltar dentro do jardim por outro motivo.’ Eis a psicologia, apliquemo-la por nossa vez ao caso, mas pela outra extremidade, e será também perfeitamente verossímil. O assassino salta em terra por prudência, para assegurar-se de que a testemunha vive ainda e, no entanto, acaba de deixar no escritório de seu pai, segundo o testemunho do próprio acusador, uma prova esmagadora, o envelope rasgado cujo sobrescrito indicava que continha ele três mil rublos. ‘Se ele tivesse levado o envelope, ninguém no mundo teria sabido da existência desse dinheiro e, por conseguinte, do roubo, cometido pelo réu.’ São os próprios termos da acusação. Mas admitamos a coisa; eis bem aqui a sutileza da psicologia, que me atribui em tais circunstâncias a ferocidade e a vigilância da águia, e, um instante depois, a timidez e a cegueira da toupeira! Mas se levo a crueldade e o cálculo a ponto de tornar a descer, unicamente para ver se a testemunha de meu crime vive ainda, por que ficar, solícito, cinco minutos junto daquela nova vítima, correndo o risco de atrair novas testemunhas? Por que estancar com meu lenço o sangue que corre do ferimento, para que esse lenço sirva em seguida de peça de convicção? Nesse caso, não teria valido mais acabar a golpes de pilão aquela testemunha incômoda? Ao mesmo tempo, deixa no local outra testemunha, o pilão, de que se apoderou na casa das duas mulheres que poderão sempre reconhecê-lo, atestar que o retirou da casa delas. E não o deixou cair na alameda, esquecido por distração, em seu afobamento; não, atiramos fora nossa arma, encontrada a 15 passos do local onde Grigóri tombou golpeado. Por que agir assim? — perguntarão. Foi o remorso de ter assassinado o velho criado, foi ele que nos fez atirar fora com uma maldição o instrumento fatal, não há outra explicação. Se podia sentir remorsos desse assassinato, foi certamente porque estava inocente do de seu pai. Um parricida, longe de se aproximar da vítima por compaixão, só teria pensado em salvar a pele. Pelo contrário, repito-o, em lugar de ir atendê-la, teria acabado de arrebentar-lhe o crânio. A piedade e os bons sentimentos supõem, previamente, uma consciência pura. Eis outra espécie de psicologia. É de propósito, senhores jurados, que recorro também eu à psicologia para demonstrar claramente que dela se pode tirar não importa o quê. Tudo depende daquele que opera. Quero falar dos excessos da psicologia, senhores jurados, do abuso que dela se faz.”
Aqui se ouviram de novo, entre o público, risos aprovadores. Não reproduzirei por inteiro a defesa, limitando-me a citar-lhe as passagens essenciais.
XI
Nem dinheiro nem roubo
Houve uma passagem da defesa que surpreendeu todo mundo: foi a negativa formal da existência daqueles três mil rublos fatais e, por consequência, da possibilidade de um roubo.
“Senhores jurados, o que impressiona neste processo, a qualquer espírito não prevenido, é uma particularidade das mais características: a acusação de roubo e, ao mesmo tempo, a impossibilidade completa de indicar materialmente o que foi roubado. Pretende-se que três mil rublos desapareceram, mas ninguém sabe se existiram realmente. Julgai: em primeiro lugar, como viemos a saber da existência desses três mil rublos e quem os viu? Somente o criado Smierdiákov, que declarou que se encontravam eles num envelope subscritado. Falou disso antes do drama ao acusado e a seu irmão, Ivan Fiódorovitch. A senhora Svietlova foi também informada. Mas essas três pessoas não viram o dinheiro e uma questão surge: se verdadeiramente ele existiu e Smierdiákov o viu, quando foi que o viu a derradeira vez? E se seu amo tivesse retirado esse dinheiro da cama para tornar a guardá-lo no cofre, sem lhe dizer? Notai que, segundo Smierdiákov, estava ele oculto debaixo do colchão; o acusado deve tê-lo arrancado dali; ora, o leito estava intacto, como está provado nos autos. Como pode ser isso, e, sobretudo, por que os lençóis finos colocados expressamente naquela noite não ficaram manchados pelas mãos ensanguentadas do réu? Mas, dir-se-á, e o envelope rasgado sobre o soalho? Vale a pena falar disso. Ainda há pouco, fiquei um tanto surpreso por ouvir o próprio eminente acusador dizer a esse respeito, quando assinalava o absurdo da hipótese de ser Smierdiákov o assassino: ‘Sem esse envelope, se ele não tivesse ficado no chão como uma prova e o ladrão o tivesse levado, ninguém no mundo teria sabido de sua existência e de seu conteúdo e, por conseguinte, do roubo cometido pelo acusado.’ Assim, pela própria confissão da acusação, é unicamente esse pedaço de papel rasgado, munido dum sobrescrito, que serve para culpar de roubo o réu, senão, ninguém teria sabido que houvera roubo e, talvez, que o dinheiro existisse. Ora, o simples fato de achar-se no chão esse pedaço de papel basta para provar que continha dinheiro e que o roubaram? Mas, objeta-se, Smierdiákov viu-o no envelope. Quando o viu pela última vez? Eis o que eu pergunto. Conversei com Smierdiákov, disse-me tê-lo visto dois dias antes do drama! Mas por que não supor, por exemplo, que o velho Fiódor Pávlovitch, trancado em seu quarto, na febril expectativa de sua bem-amada, teria, à toa, tirado e rasgado o envelope? ‘Ela talvez não me acredite, mas, quando eu lhe mostrar um maço de trinta cédulas, isso causará mais efeito, a água lhe virá à boca’ — e rasga o envelope, retira dele o dinheiro e atira-o no chão, sem temer naturalmente comprometer-se. Senhores jurados, não vale esta hipótese o mesmo que a outra? Que há nela de impossível? Mas, neste caso a acusação de roubo cai por si mesma; não havendo dinheiro, não há roubo. Pretende-se que o envelope encontrado no chão prova a existência do dinheiro; não posso eu sustentar o contrário e dizer que ele estava caído vazio no soalho precisamente porque aquele dinheiro tinha sido dele retirado previamente pelo próprio dono? ‘Mas neste caso, onde foi parar o dinheiro, não o encontraram por ocasião da busca?’ Em primeiro lugar, encontraram uma parte no seu cofrezinho; depois pôde ele retirá-lo de manhã ou mesmo na véspera, dispor dele, enviá-lo, mudar afinal completamente de ideia, sem julgar necessário dar disso parte a Smierdiákov. Ora, se esta hipótese é um tanto pouco verossímil, como se pode inculpar tão categoricamente o réu de assassinato seguido de roubo? Entramos assim no domínio da novela. Para sustentar que uma coisa foi roubada, é preciso designar essa coisa ou, pelo menos, provar irrefutavelmente que ela existiu. Ora, ninguém nem mesmo a viu. Recentemente, em Petersburgo, um rapaz de 18 anos, comerciante ambulante, entrou em pleno dia na casa de um cambista e o matou a golpes de machado com uma audácia extraordinária, levando 1.500 rublos. Foi preso cinco horas depois; encontrou-se em seu poder a soma inteira, menos 15 rublos já gastos. Além disso, o caixeiro da vítima, que se havia ausentado, indicou à polícia não só o montante do roubo, mas o valor e o número das cédulas e das moedas de ouro de que se compunha a soma. Foi tudo encontrado de posse do assassino, que fez aliás confissões completas. Eis, senhores jurados, o que chamo eu uma prova! O dinheiro está ali, pode-se tocá-lo, impossível negar-lhe a existência. Dá-se o mesmo no caso que nos ocupa? No entanto, a sorte de um homem está em jogo. ‘Pois seja — dir-se-á —, mas ele foi farrear naquela mesma noite e esbanjou dinheiro, e donde provêm os 1.500 rublos que foram encontrados em seu poder?’ Mas precisamente o fato de só terem encontrado 1.500 rublos, a metade da soma, prova que esse dinheiro não provinha talvez de modo algum do envelope. Calculando rigorosamente o tempo, estabeleceu o inquérito que o acusado, depois de ter visto as criadas, se dirigiu diretamente à casa do funcionário Pierkhótin, pois não ficou só um instante, não tendo podido, pois, ocultar na cidade a metade dos três mil rublos. A acusação se baseia nisso para supor que o dinheiro está oculto em alguma parte na aldeia de Mókroie. Por que não nos subterrâneos do castelo de Udolfo,[ 153 ] senhores? Não é isso uma suposição fantástica e romanesca? E notai, basta afastar essa hipótese para que a acusação de roubo venha abaixo, porque que fim tiveram esses 1.500 rublos? Por meio de qual prodígio puderam desaparecer, se está demonstrado que o réu não foi a parte alguma? E é com semelhantes novelas que estamos prestes a destruir uma vida humana? No entanto, dir-se-á, não soube ele explicar a proveniência do dinheiro encontrado em seu poder, aliás, cada qual sabe que ele não o tinha antes. Mas quem o sabia? O acusado explicou claramente donde provinha o dinheiro e, se quiserdes, senhores jurados, essa explicação é das mais verossímeis e concorda completamente com o caráter do réu. A acusação atém-se à própria novela: um homem de vontade fraca, tendo aceito três mil rublos de sua noiva em condições humilhantes, não pôde, dizem, retirar a metade e guardá-la num amuleto; pelo contrário, supondo-se que o houvesse feito, tê-lo-ia descosido cada dois dias para dele retirar cem rublos e nada teria restado ao fim de um mês. Deveis lembrar-vos de que tudo isso foi declarado num tom que não sofria objeção. Mas se as coisas se tivessem passado de outro modo e tivésseis criado outro personagem? Foi bem o que aconteceu. Objetar-se-á talvez: ‘Testemunhas atestam que ele gastou de uma vez, na aldeia de Mókroie, os três mil rublos emprestados pela senhorita Vierkhóvtseva, por conseguinte, não pôde retirar-lhes a metade.’ Mas quais são essas testemunhas? Já se viu o crédito que merecem. Além do mais, um bolo na mão de outrem parece sempre maior. Nenhuma dessas testemunhas contou as cédulas, todas as avaliariam de relance de olho. A testemunha Maksímov chegou a declarar que o réu tinha vinte mil rublos. Vede, senhores jurados, como a psicologia serve a duplo fim. Permiti-me aplicar aqui a contrapartida. Veremos o que resultará disso.
“Um mês antes do drama, três mil rublos foram confiados ao acusado pela senhorita Vierkhóvtseva, para enviá-los pelo correio, mas pode-se perguntar se foi em condições tão humilhantes como se proclamou ainda há pouco. O primeiro depoimento da senhorita Vierkhóvtseva a esse respeito era bem diferente, o segundo transpirava cólera, vingança, um ódio muito tempo dissimulado. Mas o simples fato de não ter a testemunha dito a verdade, por ocasião de sua primeira versão, dá-nos o direito de concluir que o mesmo aconteceu na segunda. A acusação respeitou essa novela, imitarei sua reserva. Todavia, permitir-me-ei observar que, se uma pessoa tão pura e tão respeitável como a senhorita Vierkhóvtseva se permite na audiência mudar de repente seu depoimento, no fim evidente de prejudicar o acusado, é também evidente que suas declarações estão maculadas de parcialidade. Negar-se-nos-ia o direito de concluir que uma mulher ávida de vingança pôde exagerar muitas coisas? Notadamente as condições humilhantes em que o dinheiro foi oferecido. Pelo contrário, esse oferecimento deve ter sido feito duma maneira aceitável, sobretudo para um homem tão leviano quanto nosso constituinte, que contava, aliás, receber em breve do pai os três mil rublos devidos pelo acerto de contas. Era aleatório, mas sua leviandade mesma o persuadia de que iria obter satisfação e poderia, por conseguinte, desonerar-se de sua dívida para com a senhorita Vierkhóvtseva. Mas a acusação repele absolutamente a versão do amuleto: ‘Esses sentimentos são incompatíveis com seu caráter.’ No entanto, falastes vós mesmos dos dois abismos que Karamázov pode contemplar ao mesmo tempo. Com efeito, sua natureza bifronte é capaz de deter-se no meio da devassidão mais desenfreada, se sofre uma outra influência. A outra influência é o amor, esse novo amor que se inflamou nele como a pólvora, e para a qual é preciso dinheiro, mais ainda que para fazer a farra com aquela mesma bem-amada. Se ela lhe disser ‘Sou tua, não quero Fiódor Pávlovitch’, ele a agarrará, levá-la-á para longe, com a condição de ter os meios para isso. Isso se passa antes do bródio. Karamázov não se pode dar conta disso? Eis o que o atormentava; que há de inverossímil no ter ele reservado esse dinheiro para o que desse e viesse? Mas o tempo passa, Fiódor Pávlovitch não dá ao acusado os três mil rublos, pelo contrário, corre o boato de que os destina precisamente para seduzir sua bem-amada. ‘Se Fiódor Pávlovitch não me der nada — pensa ele —, passarei por um ladrão aos olhos de Katierina Ivânovna.’ Assim nasce a ideia de ir depositar diante de Katierina Ivânovna aqueles 1.500 rublos que continua a trazer consigo, no amuleto, dizendo: ‘Sou um miserável, mas não um ladrão.’ Eis, pois, uma dupla razão para conservar aquele dinheiro como a menina de seus olhos, em lugar de descoser o amuleto e dele retirar uma cédula após outra. Por que recusar ao acusado o sentimento da honra? Existe nele esse sentimento, mal compreendido talvez, muitas vezes errôneo, seja, mas real, levado até a paixão, provou-o ele. Mas a situação se complica, as torturas do ciúme atingem seu paroxismo, essas duas questões, sempre as mesmas, obsedam cada vez mais o cérebro enfebrecido do acusado: ‘Se eu reembolsar Katierina Ivânovna com que dinheiro levarei Grúchenhka?’ Se se embriagou, praticou loucuras e barulho nos botequins durante todo aquele mês, foi talvez precisamente porque estava cheio de amargura e sem força para suportar aquele estado de coisas. Essas duas questões tornaram-se finalmente tão irritantes que o reduziram ao desespero. Mandara seu irmão mais moço pedir uma derradeira vez aqueles três mil rublos ao pai, mas, sem esperar a resposta, irrompeu em casa do velho e bateu-lhe diante de testemunhas. Depois disso, nada mais tinha a esperar. Naquela mesma noite, bate no alto do peito, precisamente no lugar daquele amuleto, e jura ao irmão que tem um meio de apagar sua vergonha, mas que o manterá, porque se sente incapaz de recorrer a esse meio, sendo de caráter demasiado fraco. Por que recusa a acusação acreditar no depoimento de Alieksiêi Karamázov, tão sincero, tão espontâneo e plausível? Por que, ao contrário, impor a versão do dinheiro escondido numa fenda, nos subterrâneos do castelo de Udolfo? Na mesma noite da conversa com seu irmão, escreveu o acusado aquela carta fatal, base principal da inculpação de roubo. ‘Pedirei dinheiro a todo mundo, e, se me recusarem, matarei meu pai e tirarei o dinheiro de sob o colchão, no envelope amarrado com uma fita cor-de-rosa, contanto que Ivan parta.’ Eis o programa completo do assassinato. Como não seria ele? ‘Tudo se passou como ele o havia escrito!’, exclama a acusação. Mas, em primeiro lugar, é uma carta de bêbedo: escrita sob o império duma extrema irritação; em seguida, não fala do envelope senão por informação de Smierdiákov, sem tê-lo ele próprio visto; em terceiro, se bem que a carta exista, como provar que os fatos a ela correspondem? Encontrou o réu o envelope sob o travesseiro? Continha ele dinheiro mesmo? Aliás, era atrás do dinheiro que corria o acusado, lembrai-vos? Não correu como um louco para roubar, mas somente para saber onde estava aquela mulher que o fizera perder a cabeça, por conseguinte não de acordo com um plano, para um roubo premeditado, mas de improviso, num acesso de ciúme furioso! ‘Sim, mas depois do crime, apoderou-se do dinheiro.’ Finalmente, matou, sim ou não? Repilo com indignação a acusação de roubo; só será possível se se indicar exatamente o objeto do roubo, é um axioma! Mas está demonstrado que ele matou, mesmo sem roubar. Não seria isso também uma novela?
XII
Não houve assassinato
“Não vos esqueçais, senhores jurados, de que se trata da vida de um homem. A prudência se impõe. Até o presente, a acusação hesitava em admitir a premeditação. Foi preciso para convencê-la aquela fatal carta de bêbedo, apresentada hoje ao tribunal. ‘Isso se passou, como ele o havia escrito.’ Mas, repito-o, o acusado não correu à casa de seu pai senão para procurar sua amiga, saber onde ela estava. É um fato irrecusável. Se a tivesse encontrado em sua casa, longe de executar suas ameaças, não teria ido a parte alguma. Foi por acaso, de improviso, talvez sem se recordar de sua carta. ‘Mas apoderou-se de um pilão’, o qual, haveis de lembrar-vos, deu margem a considerações psicológicas. No entanto, vem-me ao espírito uma ideia bem simples: se esse pilão, em lugar de encontrar-se a seu alcance, estivesse no armário, o acusado, não o vendo, teria partido sem arma, de mãos vazias, e não teria talvez matado ninguém. Como se pode concluir desse incidente a premeditação? Sim, mas proferiu nos botequins ameaças de morte contra o pai, e, dois dias antes, na noite em que foi escrita essa carta de bêbedo, estava calmo e brigou somente com um caixeiro, ‘porque Karamázov não podia fazer de outro modo’. A isso, responderei que, se tivesse ele meditado em tal crime, segundo um plano traçado, teria certamente evitado essa briga e não teria talvez ido ao botequim, porque, em semelhante caso, a alma busca a calma e o isolamento, esforça-se por subtrair-se à atenção: ‘esquecei-me, se puderdes’, e isso não por cálculo somente, mas por instinto. Senhores jurados, a psicologia tem duplo fim e nós sabemos também compreendê-la. Quanto a essas ameaças vociferadas durante um mês nos botequins, ouvem-se muitos meninos disputar-se ou bêbedos brigar, ao sair do botequim, ‘eu te matarei’, mas isso não vai muito longe. E essa carta fatal, não foi também o produto da embriaguez e da cólera, o grito do bêbedo que ameaçava praticar uma desgraça? Por que não? Por que essa carta é fatal, em lugar de ser ridícula? Porque foi encontrado assassinado o pai do réu, porque uma testemunha viu no jardim o acusado armado que fugia e foi ela mesma por ele abatida, por conseguinte tudo se passou como ele o havia escrito, eis por que essa carta não é ridícula, mas fatal. Deus seja louvado, eis-nos chegados ao ponto crítico. ‘Uma vez que estava no jardim, matou, pois.’ Toda a acusação se atém a estas palavras ‘uma vez que’ e ‘pois’. E se este ‘pois’ não tivesse fundamento, malgrado as aparências? Oh! Convenho que a concordância dos fatos, as coincidências, são bastante eloquentes. No entanto, considerai todos esses fatos isoladamente, sem vos deixar impressionar por seu conjunto; por que, por exemplo, recusa a acusação absolutamente acreditar na veracidade do réu, quando declara ele ter-se afastado da janela de seu pai? Lembrai-vos dos sarcasmos a respeito da deferência e dos sentimentos piedosos que o assassino teria de súbito experimentado. E se tivesse havido verdadeiramente aqui algo de semelhante, um sentimento de piedade, senão de deferência? ‘Sem dúvida, minha mãe rezava por mim então’, declara o réu no inquérito, e fugiu assim que verificou que a senhora Svietlova não estava em casa de seu pai. ‘Mas não podia verificá-lo pela janela’, objeta-nos a acusação. Por que não? A janela abriu-se aos sinais feitos pelo acusado. Fiódor Pávlovitch pôde pronunciar uma palavra, deixar escapar um grito, revelando a ausência da senhora Svietlova. Por que ater-se absolutamente a uma hipótese surgida de nossa imaginação? Na realidade, há mil possibilidades escapando à observação do romancista mais sutil. ‘Sim, mas Grigóri viu a porta aberta; por conseguinte, o acusado entrou certamente na casa, matou, pois.’ Quanto a essa porta, senhores jurados... Vede, não temos aqui senão o único testemunho de um indivíduo que se achava, aliás, num tal estado que... Mas seja, a porta estava aberta, admitamos que as negativas do acusado sejam uma mentira, ditada por um sentimento de defesa bem natural, admitamos que ele haja penetrado na casa. Então, por que se quer que ele haja matado se entrou? Pôde ter entrado, percorrido os quartos, pôde empurrar o pai para um lado, bater-lhe mesmo, mas, depois de ter verificado a ausência da senhora Svietlova, fugiu, feliz por não tê-la encontrado e ter-se poupado um crime. Eis justamente por que, um momento depois, tornou a descer para ir em socorro de Grigóri, vítima de seu furor; foi porque era suscetível de experimentar um sentimento de piedade e de compaixão, porque escapara à tentação, porque sentia a alegria de um coração puro. Com uma eloquência impressionante, a acusação nos descreve o estado de espírito do acusado na aldeia de Mókroie, quando o amor lhe apareceu de novo, chamando-o a uma vida nova, quando não lhe era possível amar tendo atrás de si o cadáver ensanguentado de seu pai e, em perspectiva, o castigo. No entanto, o Ministério Público admitiu o amor, explicando-o à sua maneira: ‘A ebriedade, a trégua de que se beneficiava o criminoso etc.’ Mas não criastes um novo personagem, senhor procurador, pergunto-vos novamente? O acusado é grosseiro e sem coração a ponto de ter podido, num momento semelhante, pensar no amor e nos subterfúgios de sua defesa, tendo na verdade sobre a consciência o sangue de seu pai? Não, mil vezes não! Logo depois de ter descoberto que ela o ama, chama-o, promete-lhe a felicidade, estou persuadido de que teria ele experimentado uma necessidade imperiosa de suicidar-se e ter-se-ia tirado a vida, se tivesse tido atrás de si o cadáver de seu pai. Oh, não, decerto não teria esquecido onde se encontravam suas pistolas! Conheço o acusado; a brutal insensibilidade que lhe atribuem é incompatível com seu caráter. Ter-se-ia matado, é certo, e não o fez precisamente porque ‘sua mãe rezava por ele’, e porque não havia vertido o sangue do pai. Durante aquela noite passada em Mókroie, atormentou-se somente por causa do velho que abatera, suplicando a Deus que o reanimasse para que pudesse escapar à morte e ele próprio ao castigo. Por que não admitir essa versão? Que prova decisiva temos nós de que o acusado mente? Mas irão de novo opor-nos o cadáver de seu pai! Ele fugiu sem matar, então quem é o assassino?
“Repito que é essa toda a lógica da acusação: quem matou, senão ele? Não há ninguém para pôr em seu lugar. Senhores jurados, será bem isso? É bem verdade que não se encontra ninguém mais? A acusação enumerou todos aqueles que estavam na casa ou a ela foram naquela noite. Encontraram-se cinco pessoas. Três dentre elas, convenho, estão inteiramente fora de causa: a vítima, o velho Grigóri e a mulher. Restam, pois, Karamázov e Smierdiákov. O senhor procurador exclama pateticamente que o acusado só designa Smierdiákov em desespero de causa, que se houvesse uma sexta pessoa, ou mesmo sua sombra, o acusado, tomado de vergonha, apressar-se-ia em denunciá-la. Mas, senhores jurados, por que não fazer o raciocínio inverso? Há dois indivíduos em presença: o acusado e Smierdiákov, não posso eu dizer que só se acusa meu constituinte em desespero de causa? E isso unicamente porque, por prevenção, excluiu-se de antemão de toda suspeita Smierdiákov. Na verdade, Smierdiákov só é designado pelo réu, por seus dois irmãos e pela senhora Svietlova. Mas há outros testemunhos: é a emoção confusa suscitada na sociedade por certa suspeita, percebe-se um vago rumor, sente-se uma espécie de expectativa. Enfim, prova disso é a conexão dos fatos, característica mesmo em sua impressão; em primeiro lugar, aquela crise de epilepsia sobrevinha precisamente no dia do drama, crise que a acusação teve de defender e de justificar o melhor que pôde. Depois esse repentino suicídio de Smierdiákov na véspera do julgamento. Em seguida, o depoimento não menos inopinado, em plenário, do irmão do acusado, que havia crido até então em sua culpabilidade e traz de repente o dinheiro declarando que Smierdiákov é o assassino. Oh! Estou persuadido, tanto como o Ministério Público, de que Ivan Fiódorovitch está com febre nervosa, de que seu depoimento tenha podido ser uma tentativa desesperada, concebida no delírio, para salvar seu irmão, acusando o defunto. Não obstante, o nome de Smierdiákov foi pronunciado, tem-se de novo a impressão de um enigma. Dir-se-ia, senhores jurados, que há aqui algo de inexprimido, de inacabado. Talvez a luz se faça. Mas não antecipemos. O tribunal decidiu ainda há pouco prosseguir nos debates. Eu poderia, enquanto espero, apresentar algumas observações a respeito do caráter de Smierdiákov, traçado com um talento tão sutil pela acusação. Embora admirando-o, não posso subscrever seus traços essenciais. Estive com Smierdiákov, falei-lhe, causou-me uma impressão bem diversa. Era fraco de saúde, decerto, mas não de caráter, não era absolutamente a criatura fraca que a acusação imagina. Sobretudo não encontrei nele timidez, essa timidez que nos descreveram de maneira tão característica. Nenhuma ingenuidade, uma extrema desconfiança, dissimulada sob as aparências da simplicidade, um espírito capaz de muito meditar. Oh! Foi por candura que a acusação o julgou fraco de espírito. Produziu em mim uma impressão precisa; parti persuadido de estar tratando com uma criatura visceralmente má, desmedidamente ambiciosa, vingativa e invejosa. Recolhi certas informações: detestava sua origem, tinha vergonha dela e relembrava, rangendo os dentes, que provinha de uma fedorenta. Mostrava-se desrespeitoso para com o criado Grigóri e a mulher, que haviam tomado conta dele em sua infância. Maldizendo a Rússia, dela zombava, sonhava partir para a França, tornar-se francês. Muitas vezes declarou, ainda antes, não poder fazê-lo por falta de recursos. Creio que não amava ninguém, senão a si próprio, e achava-se singularmente elevado... A cultura consistia para ele numa roupa decente, numa camisa limpa e em botas bem engraxadas. Crendo-se (há fatos em apoio) filho natural de Fiódor Pávlovitch, pôde criar ódio à sua situação em relação aos filhos legítimos de seu amo; têm eles tudo e ele nada, para eles todos os direitos, herança, enquanto que ele não passa de um cozinheiro. Contou-me que pusera o dinheiro no envelope com Fiódor Pávlovitch. O destino daquela soma — graças à qual teria podido abrir seu caminho — era-lhe evidentemente odioso. Além disso, viu três mil rublos em cédulas novas (perguntei-lhe de propósito). Oh! Nunca mostreis a uma criatura invejosa e cheia de amor-próprio uma grossa soma de uma vez; ora, via ele pela primeira vez tal soma numa mesma mão. Aquele maço de dinheiro pode ter deixado em sua imaginação uma impressão mórbida, sem outras consequências no começo. Meu eminente contraditor expôs, com uma sutileza notável, todas as hipóteses pró e contra a possibilidade de inculpar Smierdiákov de assassinato, insistindo nesta pergunta: que interesse tinha ele em simular uma crise? Sim, mas não simulou necessariamente, a crise pôde sobrevir muito naturalmente e passar da mesma forma, voltando o doente a si. Sem se restabelecer, terá retomado a consciência, como acontece entre os epilépticos. Em que momento Smierdiákov cometeu seu crime?, pergunta a acusação. É muito fácil indicá-lo. Pôde voltar a si e levantar-se, depois de ter dormido profundamente (porque as crises são sempre seguidas dum profundo sono), justamente no momento em que o velho Grigóri, tendo agarrado pela perna, sobre a paliçada, o acusado, que fugiu, vociferou: ‘Parricida!’ Esse grito incomum, no silêncio e nas trevas, pôde despertar Smierdiákov, cujo sono era já talvez mais leve. Levanta-se e vai quase inconscientemente ver de que se trata. Ainda estremunhado, sua imaginação dormita, mas ei-lo no jardim, aproxima-se das janelas iluminadas, toma conhecimento da terrível notícia da boca de seu amo, evidentemente satisfeito com a presença dele. O velho, aterrorizado, conta-lhe tudo pormenorizadamente. Sua imaginação inflama-se. E, em seu cérebro perturbado, uma ideia toma corpo, ideia terrível, mas sedutora e duma lógica irrefutável: assassinar, apoderar-se dos três mil rublos e tudo atribuir depois ao filho do patrão. De quem se suspeitará agora, quem pode ser acusado senão ele? As provas existem, estava no local. A cupidez pode ter-se apoderado dele, ao mesmo tempo que a consciência da impunidade. Oh, a tentação sobrevém por vezes em rajadas, sobretudo em criminosos que não suspeitavam, um minuto antes, de que queriam matar! Assim, Smierdiákov pôde entrar nos aposentos de seu amo e executar seu plano. Com que arma? Com a primeira pedra que terá apanhado no jardim. Por quê, com qual fim? Mas três mil rublos são uma fortuna. Oh! Não me contradigo; o dinheiro pode ter existido. Talvez mesmo somente Smierdiákov sabia onde encontrá-lo em casa de seu amo. ‘Pois bem! E o envelope caído no chão, rasgado?’ Ainda há pouco, ao ouvir a acusação insinuar sutilmente a esse respeito que somente um ladrão novato, tal como precisamente Karamázov, podia agir assim, e, em nenhum caso, Smierdiákov, que não teria jamais deixado tal prova contra si. Ainda há pouco, senhores jurados, reconheci de súbito um argumento dos mais familiares. Imaginei que essa hipótese relativa à maneira pela qual Karamázov devia ter procedido com o envelope, já a ouvira eu dois dias antes do próprio Smierdiákov, e isso para grande surpresa minha; parecia-me ele, com efeito, representar ingenuidade e impor-me de antemão essa ideia para que eu tirasse dela a mesma conclusão, como se ele a soprasse para mim. Não agiu ele da mesma maneira no inquérito e impôs essa hipótese ao eminente representante da acusação? E a mulher de Grigóri, dirão? Ouviu o doente gemer toda a noite. Seja, mas é esse um argumento muito frágil. Conheci uma senhora que se queixava amargamente de ter estado acordada toda a noite por um fraldiqueiro que a impedia de dormir. No entanto, o pobre animal, como se soube, não latira senão duas ou três vezes. E é natural; uma pessoa que dorme ouve gemer, desperta resmungando, para tornar a adormecer logo. Duas horas depois, novo gemido, novo despertar seguido de sono, e ainda duas horas depois, três vezes ao todo. De manhã, a pessoa que dormia levanta-se queixando-se de ter estado acordada a noite inteira por causa de gemidos contínuos. Deve necessariamente ter essa impressão; os intervalos de duas horas, durante os quais dormiu, escapam-lhe, somente os minutos de vigília lhe voltam ao espírito, parece-lhe que a despertaram a noite inteira. Mas por que, exclama a acusação, não confessou Smierdiákov no bilhete escrito antes de morrer? ‘Sua consciência não chegou até aí.’ Permiti; a consciência é já o arrependimento, talvez que o suicida não experimentasse arrependimento, mas apenas desespero. São duas coisas totalmente diversas. O desespero pode ser mau e irreconciliável, e o suicida, no momento de liquidar-se, podia detestar mais do que nunca aqueles de quem tivera inveja toda a vida. Senhores jurados, tomai cuidado em não cometer um erro judiciário! Que há de inverossímil em tudo quanto vos expus? Encontrai um erro em minha tese, encontrai nela uma impossibilidade, um absurdo! Mas, se minhas conjeturas são pelo menos um pouco verossímeis, sede prudentes. Juro-o pelo que há de mais sagrado, creio absolutamente na versão do crime que acabo de apresentar-vos. O que me perturba sobretudo e me põe fora de mim é o pensamento de que entre a massa de fatos acumulados pela acusação contra o réu, não há nem um só que seja seu tanto quanto exato e irrecusável. Sim, decerto, o conjunto é terrível; aquele sangue que goteja das mãos, de que está impregnada sua roupa íntima, aquela noite escura em que repercutiu o grito de ‘Parricida!’, aquele que o lançou ao cair, com a cabeça partida, depois aquela massa de palavras, de depoimentos, de gestos, de gritos, oh, tudo isso pode falsear uma convicção, mas não a vossa, senhores jurados! Lembrai-vos de que vos foi dado um poder ilimitado de ligar e desligar. Mas quanto maior é esse poder, mais temível é seu uso! Mantenho absolutamente tudo quanto acabo de dizer, mas seja, convenho por um instante com a acusação que meu infeliz constituinte sujou suas mãos com o sangue de seu pai. Não é senão uma suposição, repito-o, não duvido nem um minuto de sua inocência; no entanto, escutai-me, mesmo nessa hipótese. Tenho ainda alguma coisa a dizer-vos, porque pressinto em vossos corações um violento combate... Perdoai-me essa alusão, senhores jurados, quero verdadeiramente ser verídico e sincero até o fim. Sejamos todos sinceros!”
Nesse momento o defensor foi interrompido por aplausos bastante vivos. Com efeito, pronunciou as derradeiras palavras com uma voz tão emocionada que todo mundo sentiu que talvez houvesse verdadeiramente alguma coisa a dizer, e alguma coisa de capital importância. O presidente ameaçou “mandar evacuar” a sala, se “semelhante manifestação” se reproduzisse. Todos se calaram e Fietiukóvitch começou, com uma voz compenetrada, totalmente mudada.
XIII
Um sofista
“Não é somente o conjunto dos fatos que acabrunha meu constituinte, senhores jurados, não, o que o acabrunha, na realidade, é o fato apenas de terem encontrado seu pai assassinado. Se se tratasse de um simples crime, dada a dúvida que plaina sobre o caso, sobre cada um dos fatos considerados isoladamente, teríeis afastado a acusação ou pelo menos hesitado em condenar um homem unicamente por causa de uma prevenção, contra ele, ai!, demasiado justificada! Mas estamos em presença de um parricídio. Isso se impõe a ponto de fortificar a fragilidade mesma dos pontos principais de acusação no espírito menos prevenido. Como absolver tal acusado? Se fosse culpado e escapasse ao castigo? Eis o sentimento instintivo de cada um. Sim, é uma terrível coisa derramar o sangue do pai, o sangue daquele que vos gerou, amou, o sangue daquele que prodigalizou sua vida por vós, que se afligiu com doenças infantis, que sofreu para que fôsseis felizes e não viveu senão por vossas alegrias e por vossos êxitos! Oh, o assassinato de tal pai, não se pode mesmo imaginá-lo! Senhores jurados, que é um pai verdadeiro, que majestade, que ideia grandiosa oculta esse nome? Acabamos de indicar em parte o que deve ser. Neste caso tão doloroso, o defunto, Fiódor Pávlovitch Karamázov, nada tinha de um pai, tal como nosso coração acaba de defini-lo. É desagradável. Sim, com efeito, há pais que se assemelham a uma calamidade. Examinemos as coisas de mais perto, não devemos recuar diante de nada, senhores jurados, diante da gravidade da decisão a tomar. Devemos sobretudo não ter medo agora nem afastar certas ideias, tais como crianças ou mulheres medrosas, de acordo com a feliz expressão do eminente representante da acusação. No decorrer de seu ardente libelo acusatório, meu honrado adversário exclamou por várias vezes: ‘Não, não abandonarei a ninguém a defesa do acusado, nem mesmo ao defensor chegado de Petersburgo, sou ao mesmo tempo acusador e defensor!’ No entanto, esqueceu-se de mencionar que, se esse temível acusado guardou por 23 anos tal gratidão por uma libra de avelãs, com que o presenteou o único homem que, sendo ele menino, teve para com ele tal gesto em casa de seu pai, universalmente tal homem deveria lembrar-se, durante esses 23 anos, de como andava descalço em casa de seu pai, no quintal, ‘as calças presas por um só botão’, segundo a expressão de um homem de coração, o doutor Herzenstube. Oh, senhores jurados, de que serve olhar de perto essa calamidade, repetir o que toda a gente conhece! Que é que meu constituinte encontrou ao chegar à casa de seu pai? E por que o representar como um ser sem coração, um egoísta, um monstro? É impetuoso, é selvagem, violento, eis por que o julgam agora. Mas quem é o responsável por seu destino, de quem a culpa se, com tendências virtuosas, um coração sensível e grato, recebeu uma educação tão absurda? Desenvolveram-lhe a razão, instruíram-no, alguém lhe testemunhou um pouco de afeto em sua infância? Meu constituinte cresceu ao deus-dará, isto é, como um animal selvagem. Talvez tivesse ardente desejo de rever o pai após aquela longa separação, talvez lembrando-se de sua infância, como através de um sonho, tenha afastado muitas vezes o fantasma odioso do passado, desejando de toda a sua alma absolver e abraçar o pai! E então? Acolhem-no com zombarias cínicas, desconfiança, chicanas a respeito de sua herança; só sua herança; só ouve frases e máximas que enojam o coração, finalmente vê seu pai tentar arrebatar-lhe, com o próprio dinheiro, sua amiga. Oh, senhores jurados, é repugnante, é atroz! E aquele velho queixa-se a todo mundo da irreverência e da violência do filho, difama-o na sociedade, causa-lhe danos, calunia-o, compra suas promissórias para metê-lo na cadeia! Senhores jurados, as pessoas aparentemente duras, violentas, impetuosas, tais como meu constituinte, são muitas vezes corações ternos, somente não o mostram. Não riais de minha ideia! O senhor procurador zombou impiedosamente de meu constituinte, apontando seu amor por Schiller e pelo sublime. Em seu lugar, não teria zombado. Sim, esses corações — oh!, deixai-me defendê-los, tão raramente e tão mal compreendidos —, esses corações vivem muitas vezes sedentos de ternura, de beleza, de justiça, precisamente como por contraste consigo mesmos, com sua violência e sua dureza, e não suspeitam disso. Parecendo apaixonados e violentos, são capazes de amar até ao sofrimento, uma mulher, por exemplo, e certamente com um amor ideal e elevado. Repito-o, não riais, é o que acontece a maior parte das vezes com tais naturezas. Somente não podem dissimular sua impetuosidade por vezes grosseira, eis o que fere a atenção, eis o que se nota, enquanto que o íntimo permanece ignorado. Pelo contrário, suas paixões acalmam-se rapidamente, mas junto duma pessoa de sentimentos elevados, esse ser que parece grosseiro, violento, busca a regeneração, a possibilidade de emendar-se, de tornar-se nobre, honesto, ‘sublime’, por mais desacreditada que esteja esta palavra. Disse ainda há pouco que respeitaria o romance de meu constituinte com a senhorita Vierkhóvtseva. Contudo, pode-se falar por palavras veladas; ouvimos não um depoimento, mas apenas o grito de uma mulher exaltada que se vinga e não cabe a ela censurar a ele sua traição, porque foi ela quem traiu! Se tivesse tido o tempo para refletir, não teria dado semelhante testemunho. Oh! Não a acrediteis, não, meu constituinte não é um monstro, como o chamou ela. O Crucificado, que amava os homens, disse antes das angústias da Paixão: ‘Eu sou o Bom Pastor, que dá sua vida por suas ovelhas, e nenhuma delas perecerá.’ Não percamos, não, uma alma humana! Eu perguntava: que é um pai? É um nome nobre e precioso!, exclamei. Mas é preciso usar lealmente o termo, senhores jurados, e me permito chamar as coisas por seu nome. Um pai tal como a vítima, o velho Karamázov, é indigno de se chamar assim. O amor filial não justificado é absurdo. Não se pode suscitar o amor com coisa nenhuma, somente Deus é quem tira alguma coisa do nada. ‘Pais, não provoqueis a ira de vossos filhos’, escreveu o apóstolo com um coração ardendo de amor. Não é para meu constituinte que cito essas santas palavras, recordo-as para todos os pais. Quem me confiou o poder de instruí-los? Ninguém. Mas como homem, como cidadão, dirijo-me a eles: vivos voco![ 154 ] Não permanecemos muito tempo na Terra, nossas ações e nossas palavras são muitas vezes más. Por isso tratemos de aproveitar todos os momentos que passamos juntos para nos dirigir mutuamente uma boa palavra. É o que faço: aproveito da ocasião que me é oferecida. Não é por coisa nenhuma que esta tribuna nos foi concedida por uma vontade soberana, toda a Rússia nos ouve. Não falo somente para os pais que estão aqui, grito para todos: ‘Pais, não provoqueis a ira de vossos filhos!’ Pratiquemos, em primeiro lugar, nós mesmos o preceito do Cristo, e então somente poderemos exigir alguma coisa de nossos filhos. Senão, não somos pais, mas inimigos para eles, não são nossos filhos, mas nossos inimigos, e isso por culpa nossa! ‘E com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também a vós’,[ 155 ] não sou eu que o digo, é o Evangelho que o prescreve; medi com a mesma medida que vos é aplicada. Como acusar nossos filhos se eles nos retribuem o que fazemos com eles? Recentemente, na Finlândia, suspeitou-se que uma criada havia dado à luz clandestinamente. Espionaram-na e encontrou-se no celeiro, dissimulado por trás de tijolos, sua mala que continha o cadáver de um recém-nascido, morto por ela. Descobriram-se igualmente os esqueletos de dois outros bebês, que ela confessou ter matado ao nascerem. Senhores jurados, é mãe uma mulher dessas? É certo que pôs filhos no mundo, mas qual de nós ousaria dar-lhe o santo nome de mãe? Sejamos ousados, senhores jurados, sejamos mesmo temerários, devemos sê-lo neste momento e não temer certas palavras, certas ideias, como as vendedoras de Moscou, que temem o ‘metal’ e o ‘enxofre’. Provemos, pelo contrário, que o progresso dos derradeiros anos influiu também em nosso desenvolvimento e digamos francamente: não basta procriar para ser pai, é preciso ainda merecer esse título. Sem dúvida, a palavra pai tem outra significação, segundo a qual um pai, fosse ele um monstro, um inimigo jurado de seus filhos, ficará sempre pai, pelo simples fato de tê-los gerado. Mas é uma significação mística, por assim dizer, que escapa à inteligência, que se pode admitir somente como artigo de fé, bem como muitas coisas incompreensíveis nas quais a religião nos obriga a crer. Mas, nesse caso, deve permanecer isso fora do domínio da vida real. Nesse domínio, que tem não somente seus direitos, mas impõe grandes deveres, se queremos ser humanos, cristãos, enfim, somos obrigados a aplicar somente ideias justificadas pela razão e pela experiência passadas no crisol da análise; em uma palavra, agir sensatamente e não com extravagância, como em sonho ou no delírio, para não prejudicar nosso semelhante, fazê-lo sofrer, causar sua perda. Faremos então obra de cristãos e não somente de místicos, uma obra sensata, verdadeiramente filantrópica...”
Nesse momento, vivos aplausos partiram de diferentes pontos da sala, mas Fietiukóvitch fez um gesto, como para suplicar que não o interrompessem. Todos se acalmaram imediatamente. O orador prosseguiu:
“Pensais, senhores jurados, que tais questões possam escapar a nossos filhos, quando começam eles a refletir? Não, decerto, e não exigiremos deles uma abstenção impossível! A vista dum pai indigno, sobretudo comparado aos de outros meninos, seus condiscípulos, inspira, malgrado seu, a um jovem questões dolorosas. Respondem-lhe banalmente: ‘Foi ele quem te gerou, és seu sangue, de modo que deves amá-lo.’ O rapaz pensa malgrado seu: ‘Será que ele me amava quando me gerou — pergunta ele, cada vez mais surpreso —, foi por mim que ele me deu a vida? Ele não me conhecia, ignorava mesmo meu sexo, naquele minuto de paixão, talvez aquecido pelo vinho, e só me transmitiu uma inclinação pela bebida, eis todos os seus benefícios... Por que devo amá-lo, pelo simples fato de me ter gerado, a ele que nunca me amou?’ Oh! Essas perguntas parecem-vos talvez grosseiras, cruéis, mas não exijais dum espírito jovem uma abstenção impossível: ‘Expulsai o natural pela porta e ele entrará pela janela’, mas, sobretudo, não temamos o ‘metal’ e o ‘enxofre’ e resolvamos a questão como o prescrevem a razão e a humanidade, e não a ideias místicas. Como resolvê-la? Pois bem! Que o filho venha perguntar seriamente ao pai: ‘Pai, dize-me por que devo amar-te, prova-me que é um dever’, e se esse pai for capaz de responder-lhe e de provar-lhe, eis uma verdadeira família, normal, que não repousa unicamente sobre um preconceito místico, mas sobre bases racionais, rigorosamente humanas. Pelo contrário, se o pai não apresenta nenhuma prova, está liquidada essa família; o pai não é mais um pai para seu filho, este recebe a liberdade e o direito de considerá-lo um estranho e até mesmo um inimigo. Nossa tribuna, senhores jurados, deve ser a escola da verdade e das ideias sãs!”
Vivos aplausos interromperam o orador. Certamente não eram unânimes, mas a metade da sala aplaudia, inclusive pais e mães. Gritos agudos partiam das tribunas ocupadas pelas senhoras. Gesticulava-se com os lenços. O presidente pôs-se a agitar a campainha com todas as forças. Estava visivelmente agastado com aquele tumulto, mas não ousou mandar evacuar a sala, como já havia ameaçado; até mesmo dignitários, velhos condecorados instalados atrás do tribunal, aplaudiam o orador, de sorte que, restabelecida a calma, contentou-se ele em reiterar sua ameaça e Fietiukóvitch, triunfante e emocionado, prosseguiu seu discurso.
“Senhores jurados, vós vos lembrais daquela noite terrível, de que tanto se falou aqui, em que o filho introduziu-se por meio de escalada em casa do pai e se encontrou face a face com o inimigo que lhe havia dado o dia. Insisto vivamente nisto: não era o dinheiro que o atraía; a acusação de roubo é um absurdo, como já o expus! E não foi para matar que ele forçou a porta; se tivesse premeditado um crime, ter-se-ia munido previamente de uma arma, mas pegou o pilão instintivamente, sem saber por quê. Admitamos que tenha enganado o pai com os sinais e penetrado na casa, já disse que não creio um instante sequer nessa lenda, mas seja, suponhamo-la um minuto! Senhores jurados, juro pelo que há de mais sagrado, se Karamázov tivesse tido como rival um estranho, em lugar de seu pai, depois de ter verificado a ausência daquela mulher, ter-se-ia retirado precipitadamente, sem fazer-lhe mal, quando muito ter-lhe-ia batido, empurrado, sendo a única coisa que lhe importava encontrar sua amiga. Mas viu seu pai, seu perseguidor desde a infância, seu inimigo que se tornara um monstruoso rival; bastou isso para que um ódio irresistível se apoderasse dele, abolindo sua razão. Todos os seus agravos ressurgiram-lhe duma vez. Foi um acesso de demência, mas também um movimento da natureza, que vingava inconscientemente a transgressão de suas leis eternas. No entanto, mesmo então, o assassino não matou, afirmo-o, proclamo-o, não; brandiu somente o pilão num gesto de indignação e de desgosto, sem intenção de matar, sem saber que matava. Se não tivesse tido esse fatal pilão nas mãos, teria somente batido no pai, talvez, mas não o teria assassinado. E ao fugir, ignorava se o velho por ele abatido estava morto. Tal crime não é crime, não é um parricídio. Não, a morte de tal pai não pode ser assemelhada a um parricídio senão por preconceito! Mas foi esse crime realmente cometido?, pergunto-vos ainda uma vez. Senhores jurados, vamos condená-lo, e ele dirá de si mesmo: ‘Essas pessoas nada fizeram por mim, para me elevar, me instruir, tornar-me melhor, fazer de mim um homem. Recusaram-me toda assistência e agora me mandam para o presídio. Eis-me quite, não lhes devo nada, nem a ninguém. São más, cruéis. Sê-lo-ei também.’ Eis o que ele dirá, senhores jurados! Juro-o: declarando-o culpado, vós não fareis senão pô-lo à vontade, aliviar sua consciência, maldirá o sangue por ele vertido, em lugar de sentir remorsos. Ao mesmo tempo, tornareis sua recuperação impossível, porque permanecerá mau e cego até o fim de seus dias. Quereis infligir-lhe o castigo mais terrível que se possa imaginar, ao mesmo tempo que regenerais sua alma para sempre? Se afirmativamente, esmagai-o com a vossa clemência! Vós o vereis estremecer. Sou digno dum tal favor, dum tal amor?, dirá a si mesmo. Há nobreza, senhores jurados, nessa natureza selvagem. Inclinar-se-á diante de vossa mansuetude, tem sede de um grande ato de amor, inflamar-se-á e ressuscitará definitivamente. Certas almas são bastante mesquinhas para acusar o mundo inteiro. Mas cumulai essa alma de misericórdia, testemunhai-lhe amor e ela maldirá suas obras, porque os germes do bem nela proliferam. Sua alma expandir-se-á vendo a mansuetude divina, a bondade e a justiça humanas. Será tomada de arrependimento, a imensidão da dívida contraída a esmagará. Não dirá então ‘estou quite’, mas ‘sou culpado diante de todos e o mais indigno de todos’. Com lágrimas de enternecimento exclamará: ‘Os homens valem mais do que eu, porque quiseram salvar-me, em lugar de perder-me!’ Oh! É-vos tão fácil usar de clemência, porque na ausência de provas decisivas, ser-vos-ia demasiado penoso dar um veredicto de culpabilidade. Vale mais absolver dez culpados que condenar um inocente. Ouvis a grande voz do século passado de nossa história nacional? Cabe a mim, mesquinho, lembrar-vos que a justiça russa não tem unicamente por fim castigar, mas também regenerar um ser perdido? Que os outros povos observem a letra da lei, e nós, o espírito e a essência, para a regeneração dos decaídos. E se é assim, então, avante, Rússia! Não vos atemorizeis com as vossas troicas em disparada, das quais os outros povos se afastam com repulsa! Não é uma troica em disparada, é um carro majestoso, que roda solenemente, tranquilamente para seu alvo. A sorte de meu constituinte está em vossas mãos, bem como os destinos do direito russo. Vós o salvareis, vós o defendereis, mostrando-vos à altura de vossa missão.”
XIV
Os mujiques mantiveram-se firmes
Assim concluiu Fietiukóvitch, e o entusiasmo de seus ouvintes não conheceu mais limites. Não se devia pensar em reprimi-lo; as mulheres choravam, bem como muitos homens, houve mesmo dois dignitários que derramaram lágrimas. O presidente resignou-se e esperou antes de agitar a campainha. “Atentar contra semelhante entusiasmo teria sido uma profanação!”, exclamaram mais tarde nossas damas. O próprio orador parecia sinceramente emocionado. Foi nesse momento que nosso Ipolit Kirílovitch se levantou para replicar. Lançaram-lhe olhares carregados de ódio: “Como ousa ele replicar?”, murmuravam as senhoras. Mas os murmúrios de todas as senhoras do mundo, tendo à frente sua esposa, não teriam detido o procurador. Estava pálido e tremia de emoção; suas primeiras frases foram mesmo incompreensíveis, ofegava, articulava mal, embaraçava-se. Aliás, conseguiu dominar-se logo. Não citarei senão algumas frases desse segundo discurso.
“[...] Censuram-nos ter inventado novelas. Mas fez o defensor coisa diversa? Só faltaram versos. Fiódor Pávlovitch, à espera de sua bem-amada, rasga o envelope e atira-o no chão. Citam-se mesmo suas palavras na ocasião. Não é um poema? E onde está a prova de que ele tirou o dinheiro e quem ouviu o que ele dizia? O imbecil Smierdiákov, transformado numa espécie de herói romântico que se vinga da sociedade por causa de seu nascimento ilegítimo, não é um poema ao gosto byroniano? E o filho que, tendo entrado intempestivamente em casa do pai, o mata sem matá-lo, não é mesmo nem mais uma novela, nem um poema, é uma esfinge propondo enigmas que ele próprio, decerto, não pode resolver. Se matou, é porque matou, como admitir que tenha matado sem ser um assassino, quem compreenderá isso? Em seguida, declara-se que nossa tribuna é a da verdade e a das ideias sãs e profere-se nela este axioma: que não passa de um preconceito qualificar de parricídio o assassinato de um pai. Mas se o parricídio é um preconceito e cada menino pode perguntar ao pai ‘Pai, por que devo amar-te?’, que se tornarão as bases da sociedade, que se tornará a família? O parricídio, vede, é o “enxofre” da vendedora moscovita. As mais nobres tradições da justiça russa são desnaturadas unicamente para obter ganho de causa, para obter a absolvição de quem não pode ser absolvido. Cumulai-o de clemência, exclama o defensor, o criminoso mais não pede, ver-se-á amanhã o resultado! Aliás, não será por uma modéstia exagerada que ele pede apenas a absolvição do acusado? Por que não pedir a fundação duma bolsa que imortalizaria a façanha do parricídio aos olhos da posteridade e da jovem geração? Corrigem-se o Evangelho e a religião: tudo isso é misticismo, somente nós possuímos o verdadeiro cristianismo, já verificado pela análise da razão e das ideias sãs. Evoca-se, diante de nós uma falsa imagem do Cristo! ‘E com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também a vós!’, exclama o defensor, concluindo logo que o Cristo ordenou medir com a mesma medida que a nós é aplicada — eis o que se proclama da tribuna da verdade! Lemos o Evangelho somente na véspera de nossos discursos, para brilhar pelo conhecimento de uma obra bastante original, por meio da qual pode-se produzir certo efeito na medida em que for necessário. Ora, o Cristo proibiu precisamente agir assim, porque é o que torna o mundo mau, e nós, longe de pagar o mal pelo mal, devemos oferecer a face e perdoar aqueles que nos ofenderam. Eis o que nos ensinou o nosso Deus e não que seja um preconceito proibir que os filhos matem os pais. E não seremos nós que corrigiremos nesta tribuna o Evangelho de nosso Deus, que o defensor digna-se apenas em chamar ‘o Crucificado que amava os homens’, em oposição a toda a Rússia ortodoxa que o invoca: ‘Porque Tu és nosso Deus!...’
Aqui, o presidente interveio e rogou ao orador que não exagerasse, que ficasse nos limites justos, etc., como fazem de hábito os presidentes em semelhante caso. A sala estava inquieta. O público agitava-se, proferia exclamações indignadas. Fietiukóvitch nem mesmo replicou, veio somente, de mãos sobre o coração, pronunciar num tom ofendido algumas palavras cheias de dignidade. Aflorou de novo, com ironia, as “novelas” e a “psicologia” e achou meio de desfechar o seguinte dardo: “Júpiter, não tens razão, pois que te zangas”, o que causou risos no auditório, porque Ipolit Kirílovitch não se assemelhava absolutamente a Júpiter. Quanto à pretensa acusação de permitir à mocidade o parricídio, declarou Fietiukóvitch, com grande dignidade, que a ela não responderia. A respeito da “falsa imagem do Cristo” e do fato de não se ter ele dignado chamá-lo Deus, mas apenas “o Crucificado que amava os homens”, o que é “contrário à ortodoxia e não podia ser dito na tribuna da verdade”, falou Fietiukóvitch de “insinuação” e deu a entender que, vindo aqui, acreditava pelo menos aquela tribuna ao abrigo de acusações “perigosas para sua pessoa como cidadão e fiel súdito”... Mas a essas palavras o presidente também o deteve e Fietiukóvitch, inclinando-se, terminou sua tréplica, acompanhado pelo murmúrio aprovativo de toda a sala. Ipolit Kirílovitch, segundo a opinião de nossas damas, estava “confundido para sempre”.
Foi em seguida dada a palavra ao acusado. Mítia levantou-se, mas não disse grande coisa. Estava física e moralmente sem forças. O ar de independência e energia com que entrara pela manhã havia quase desaparecido. Parecia ter atravessado, naquela manhã, uma crise decisiva que lhe ensinara e fizera compreender algo de muito importante, que antes ele não apreendia. Sua voz se enfraquecera, não gritava mais. Sentia-se em suas palavras a resignação e o acabrunhamento da derrota.
“Que posso dizer, senhores jurados? Vão julgar-me, sinto a mão de Deus sobre mim. É o fim de um homem transviado! Mas, como se me confessasse a Deus, a vós também digo: ‘Não derramei o sangue de meu pai!’ Repito-o uma derradeira vez. Não fui eu quem matou! Era desregrado, mas amava o bem. Constantemente, aspirava a emendar-me e vivi como um animal selvagem. Obrigado ao procurador, disse a meu respeito muitas coisas que eu ignorava, mas é falso que tenha eu matado meu pai, o procurador se enganou! Obrigado igualmente a meu defensor: chorei ao ouvi-lo, mas é falso que eu tenha matado meu pai, não se devia nem supô-lo! Não acrediteis nos médicos, estou em plena razão, somente sinto-me acabrunhado. Se me poupardes e me absolverdes, rezarei por vós. Tornar-me-ei melhor, dou minha palavra, dou-a diante de Deus. Se me condenardes, quebrarei eu próprio minha espada e beijar-lhe-ei os pedaços! Mas poupai-me, não me priveis de meu Deus, conheço-me: eu me revoltarei! Estou acabrunhado, senhores... poupai-me!”
Caiu quase em seu lugar, sua voz se partiu, a derradeira frase mal foi articulada. O tribunal redigiu em seguida os quesitos a propor e pediu suas conclusões às partes. Mas omito os detalhes. Enfim, os jurados retiraram-se para deliberar. O presidente estava extenuado, de modo que lhes dirigiu uma alocução: “Sede imparciais, não vos deixeis influenciar pela eloquência da defesa, contudo pesai vossa decisão; lembrai-vos da alta missão de que estais revestidos”, etc. Os jurados retiraram-se, foi suspensa a audiência. Pôde-se dar um giro, trocar impressões, fazer lanche no bufete. Era bastante tarde, cerca de uma hora da madrugada, mas ninguém foi embora. Os nervos tensos impediam de pensar no repouso. Todo mundo aguardava com ansiedade o veredicto, exceto as damas, que, na impaciência febril, estavam tranquilas: “A absolvição é inevitável.” Todas se preparavam para o minuto emocionante do entusiasmo geral. Confesso que, entre os homens, muitos estavam certos da absolvição. Uns se regozijavam, outros franziam a testa, alguns baixavam simplesmente a cabeça; não queriam absolvição! Fietiukóvitch mesmo estava certo do triunfo. Cercavam-no, felicitavam-no complacentemente.
— Há — dizia ele num grupo, como se contou depois —, há fios invisíveis que ligam o defensor aos jurados. Formam-se e se pressentem já no curso da defesa. Senti-os, eles existem. Teremos ganho de causa, ficai tranquilos.
— Que vão dizer agora nossos mujiques? — proferiu um gordo senhor bexigoso, de ar carrancudo, proprietário nos arredores, aproximando-se de um grupo.
— Não há somente mujiques. Há quatro funcionários.
— Ah, sim, os funcionários! — disse um membro do ziémstvo.
— Conhece Nazáriev, Prokhor Ivânovitch, aquele comerciante que tem uma medalha? Faz parte do júri.
— E com isso?
— É um dos luminares da corporação.
— Mantém-se sempre em silêncio.
— Mantém o silêncio, pois tanto melhor. Não cabe ao petersburguês dar-lhe lições. Ele mesmo seria capaz de dá-las a toda Petersburgo. Doze filhos, imaginem só!
— Será possível que não o absolvam? — gritava num outro grupo um de nossos jovens funcionários.
— Será certamente absolvido — disse uma voz decidida.
— Seria uma vergonha não absolvê-lo! — exclamou o funcionário. — Admitamos que tenha matado, mas um pai como o dele! E, afinal, estava em tal exaltação... Pôde deveras ter assestado apenas uma pancada de pilão e o velho caiu. Mas erraram metendo o lacaio nisso. Não passa de um episódio burlesco. No lugar do defensor, teria eu dito redondamente: ele matou, mas não é culpado, que o diabo vos leve!
— Foi o que ele fez, somente não disse que o diabo vos leve!
— Não, Mikhail Siemiônitch, ele quase o disse — declarou uma terceira voz.
— Permiti, senhores, absolveram durante a Quaresma uma atriz que cortara a garganta da mulher de seu amante.
— Sim, ela, porém, não foi até o fim.
— Dá na mesma, tinha começado.
— E o que disse ele dos meninos! Foi admirável!
— Admirável.
— E sobre o misticismo, hem?
— Deixem o misticismo — exclamou outro —, considerem antes a sorte de Ipolit doravante! Amanhã, sua esposa o arranhará por causa de Mítia.
— Está aqui ela?
— Por que aqui? Se aqui estivesse, já o teria arranhado. Fica em casa, tem dor de dentes, eh!, eh!, eh!
— Eh!, eh!, eh!
Num terceiro grupo:
— Mítia poderia muito bem ser absolvido.
— Seria magnífico! Amanhã saqueará A Capital e passará dez dias na carraspana.
— Ah, sim, o diabo!
— Não se pôde passar sem o diabo, seu lugar estava bem indicado aqui.
— Senhores, a eloquência é uma bela coisa. Mas não se pode arrebentar a cabeça de um pai impunemente. Senão, aonde iríamos parar?
— E aquilo do carro, do carro, lembram-se?
— Sim, fez ele duma carroça um carro.
— Amanhã, o carro virará carroça de novo, “de acordo com as conveniências”.
— As pessoas tornaram-se espertas. A verdade existe ainda na Rússia, senhores, sim ou não?
Mas a campainha retiniu. Os jurados tinham deliberado uma hora exata. Profundo silêncio reinou, quando o público retomou seus lugares. Lembro-me da entrada do júri na sala. Afinal! Não citarei os quesitos por ordem, esqueci-os. Lembro-me somente da resposta ao primeiro quesito, o principal: “O acusado matou para roubar com premeditação?” (Esqueci o texto.) O presidente do júri, aquele funcionário que era o mais jovem de todos, respondeu com voz nítida, em meio dum silêncio de morte:
— Sim, culpado.
Depois foi a mesma resposta a respeito de todos os pontos: culpado, sem a menor circunstância atenuante!
Ninguém esperava por isso, todos contavam pelo menos com a indulgência do júri. O silêncio continuava, como se o auditório estivesse petrificado, tanto os partidários da condenação como os da absolvição. Mas foram apenas os primeiros minutos, aos quais sucedeu um terrível tumulto. Entre o público masculino, muitos estavam encantados. Outros chegavam mesmo a esfregar as mãos, sem dissimular sua alegria. Os descontentes tinham o ar acabrunhado, erguiam os ombros, cochichavam como se ainda não se dessem conta. Mas nossas damas, meu Deus!, pensei que elas fossem fazer um motim. A princípio, não quiseram acreditar em seus ouvidos. De repente, ruidosas exclamações ecoaram: “Que é isso? Por que isso?” Deixavam seus lugares. Certamente, imaginavam que se podia, no mesmo instante, mudar tudo aquilo e recomeçar. Naquele momento, Mítia se levantou de repente e gritou com voz dilacerante, os braços estendidos para diante:
— Juro-o perante Deus e à espera do juízo final, não derramei o sangue de meu pai! Kátia, eu te perdoo! Irmãos, amigos, velai pela outra!
Não terminou e pôs-se a soluçar ruidosamente, com uma voz que não parecia a sua, como que mudada, inesperada, vinda só Deus sabia donde. Nas tribunas, num canto recuado, repercutiu um grito agudo: era Grúchenhka. Suplicara que a deixassem entrar e voltara para a sala antes dos discursos. Levaram Mítia. A sentença do julgamento ficou adiada para o dia seguinte. Todos se levantaram em grande tumulto, mas eu já não escutava mais. Lembro-me somente de algumas exclamações no patamar da saída:
— Vai pegar não menos de vinte anos de trabalho nas minas!
— Nada menos!
— Sim, os nossos mujiques mantiveram-se firmes!
— E ajustaram suas contas com nosso Mítia!
Epílogo
I
Projetos de evasão
No quinto dia após o julgamento de Mítia, cerca das oito horas da manhã, Aliócha dirigiu-se à casa de Katierina Ivânovna para se entender definitivamente com ela a respeito dum assunto importante; estava, além disso, encarregado dum recado. Mantinha-se ela no mesmo salão onde recebera Grúchenhka; na peça vizinha, Ivan Fiódorovitch, presa da febre, jazia inconsciente. Logo depois da cena no tribunal, Katierina Ivânovna mandara transportar para sua casa Ivan Fiódorovitch, desmaiado, sem se incomodar com os comentários inevitáveis e a censura da sociedade. Uma das duas parentas que viviam com ela partira imediatamente para Moscou, a outra ficara. Mas se as duas tivessem partido, isso não teria mudado a decisão de Katierina Ivânovna, resolvida a tratar ela mesma o doente e a velar por ele noite e dia. Era tratado pelos doutores Varvínski e Herzenstube; o médico de Moscou regressara, recusando-se a pronunciar-se sobre o desenlace da doença. Os doutores, malgrado suas afirmativas tranquilizadoras, não podiam dar ainda uma esperança firme. Aliócha visitava seu irmão duas vezes por dia, mas dessa vez tratava-se de um assunto particularmente embaraçoso, pressentia a dificuldade que teria em falar dele, e apressava-se, devendo ir a outra parte para um outro assunto importante, naquela mesma manhã. Havia um quarto de hora que conversavam. Katierina Ivânovna estava pálida, extenuada, presa duma agitação doentia: pressentia o objetivo da visita de Aliócha.
— Não se inquiete com sua decisão — dizia ela com firmeza a Aliócha. — Duma maneira ou doutra, chegará ele a esta solução: é preciso evadir-se. Esse infeliz, esse herói da consciência e da honra — não ele, não Dimítri Fiódorovitch, mas o que está doente aqui e se sacrificou por seu irmão (acrescentou Kátia, de olhos cintilantes) —, já desde muito tempo me comunicou todo o plano de evasão. Tinha mesmo dado passos... já lhe falei disso... Veja você, será, provavelmente, na terceira etapa, quando se levar o comboio dos deportados para a Sibéria. Oh! é ainda longe. Ivan Fiódorovitch foi ver o chefe da terceira etapa. Mas não se sabe ainda quem comandará o comboio, aliás, isso jamais é sabido com antecedência. Amanhã, talvez, lhe mostrarei o plano detalhado que Ivan Fiódorovitch me deixou na véspera do julgamento, para o que desse e viesse... Você deve lembrar-se, discutíamos, quando você chegou; descia ele a escada, vendo você, obriguei-o a tornar a subir, recorda-se? Sabe a que respeito discutíamos?
— Não, não sei.
— Evidentemente, ele lhe ocultou: era precisamente a propósito desse plano de evasão. Já me havia explicado o essencial três dias antes; foi a origem de nossas discussões durante aqueles três dias. Eis por quê: quando me declarou que, se ele fosse condenado, Dimítri Fiódorovitch fugiria para o estrangeiro com aquela criatura, zanguei-me de repente; não lhe direi por qual razão, ignoro-a eu mesma. Oh, sem dúvida foi por causa dela e porque acompanharia Dimítri em sua fuga! — exclamou Katierina Ivânovna, com os lábios trêmulos de cólera. — Minha irritação contra aquela criatura fez que Ivan Fiódorovitch acreditasse que eu estava com ciúme dela e, por conseguinte, ainda enamorada de Dimítri. Eis a causa de nossa primeira discussão. Não quis dar explicação e não podia pedir perdão, era-me penoso que tal homem pudesse suspeitar que eu amasse como outrora aquele... E isso quando, desde muito tempo, lhe havia eu declarado com toda a franqueza que não amava Dimítri e que só a ele amava! Foi por simples animosidade contra aquela criatura que me zanguei com ele! Três dias mais tarde, justamente na noite em que você veio, trouxe-me ele um envelope lacrado que eu deveria abrir no caso de acontecer-lhe alguma coisa. Oh, pressentia ele sua doença! Explicou-me que aquele envelope continha o plano detalhado da evasão, e que, se ele morresse ou caísse perigosamente doente, deveria eu sozinha salvar Mítia. Deixou-me também dinheiro, quase dez mil rublos, a soma à qual o procurador, tendo sabido que ele a mandara trocar, fez alusão em seu discurso. Fiquei estupefata ao ver que, malgrado seu ciúme, e persuadido de que eu amava Dimítri, Ivan Fiódorovitch não renunciara a salvar seu irmão e confiava em mim para isso! Oh, era um sacrifício sublime! Você não pode compreender a grandeza duma tal abnegação, Alieksiêi Fiódorovitch! Ia prostrar-me a seus pés, mas, quando pensei de repente que ele atribuiria esse gesto unicamente à minha alegria de saber Mítia salvo (e ele o teria decerto acreditado!), a possibilidade duma tal injustiça de sua parte irritou-me tão fortemente que, em lugar de beijar-lhe os pés, fiz-lhe nova cena! Quanto sou infeliz! Que horrível gênio o meu! Você verá: agirei de tal maneira que ele me deixará por uma outra de mais fácil viver, como Dimítri, mas então... não, não o suportarei, matar-me-ei! No momento em que você chegou, naquela noite e quando ordenei a Ivan que tornasse a subir, o olhar cheio de ódio e de desprezo que ele me lançou ao entrar pôs-me em tal cólera que — lembra-se? — gritei de repente que fora ele, somente ele, quem me assegurara que Dimítri era o assassino! Caluniava-o para feri-lo uma vez mais; ele nunca me assegurara tal coisa, pelo contrário, era eu quem lhe afirmava! A causa de tudo é a minha violência. Aquela abominável cena perante o tribunal, fui eu que a provoquei! Queria ele provar-me a nobreza de seus sentimentos e que, malgrado meu amor por seu irmão, não o haveria de perder por vingança, por ciúme. Então prestou o depoimento que você conhece... Sou a causa de tudo, sou eu a única culpada.
Jamais fizera Kátia tais confissões a Aliócha. Compreendeu ele que chegara ela àquele grau de sofrimento intolerável em que o coração mais orgulhoso abdica de toda altivez e se confessa vencido pela dor. Aliócha conhecia outra causa para o pesar da moça, se bem que ela a dissimulasse desde a condenação de Mítia, mas isso lhe teria causado demasiada pena, se ela se humilhasse a ponto de falar-lhe disso ela mesma, agora. Sofria por causa de sua “traição” na audiência e pressentia que sua consciência a impelia a acusar-se precisamente diante dele, Aliócha, numa crise de lágrimas, batendo com a testa no chão. Temia ele aquele instante e queria poupar-lhe o sofrimento. Mas por isso seu recado se tornava mais difícil de dar. Voltou a falar de Mítia.
— Não receie nada por ele — continuou obstinadamente Kátia —, sua decisão é passageira, fique certo de que ele consentirá em evadir-se. Aliás, não será imediatamente, terá ainda tempo para se decidir a isso. Ivan Fiódorovitch já estará curado na ocasião e ocupar-se-á de tudo, de sorte que não terei de meter-me nisso. Não se inquiete, Dimítri consentirá em evadir-se. Aliás, poderá ele renunciar àquela criatura? Ora, não a admitiriam no presídio, de modo que, como não fugir! Sobretudo, ele o teme, receia sua censura do ponto de vista moral, mas você deve permitir-lhe magnanimamente que fuja, já que sua sanção é tão necessária — acrescentou Kátia com ironia.
Calou-se um instante, sorriu e continuou:
— Ele fala de hinos, de cruz a carregar, dum certo dever, lembro-me. Ivan Fiódorovitch relatou-me tudo isso... Se soubesse você como ele falava a respeito! — exclamou de súbito Kátia, com um ímpeto irresistível. — Se você soubesse quanto ele amava aquele desgraçado, no momento em que me contava isso, e quanto, talvez, o odiava ao mesmo tempo! E eu o escutava, eu o via chorar com um sorriso altivo! Oh, criatura! Vil criatura que eu sou! Fui eu que o fiz enlouquecer! Mas o outro, o condenado, está pronto a sofrer — concluiu Kátia com irritação. — Será capaz? Os seres como ele ignoram o sofrimento!
Uma espécie de ódio e de desgosto transparecia em suas palavras. Entretanto, havia-o traído. “Pois bem! É talvez porque se sinta culpada para com ele que o odeia por momentos”, pensou Aliócha. Teria querido que só fosse por momentos. Sentira um desafio nas derradeiras palavras de Kátia, mas não lhe deu importância.
— Pedi-lhe que viesse hoje para que você me prometa convencê-lo. Mas talvez, segundo você também, fosse desleal e vil evadir-se, ou, como dizer... não cristão? — acrescentou Kátia com uma provocação ainda mais acentuada.
— Não, não é nada. Dir-lhe-ei tudo... — murmurou Aliócha. — Ele lhe pede que vá hoje — continuou ele, bruscamente, olhando-a bem no rosto.
Ela estremeceu e fez um leve movimento de recuo.
— Eu... é possível? — disse ela, empalidecendo.
— É possível e é um dever! — declarou Aliócha num tom firme e com animação. — Você lhe é mais necessária do que nunca. Não a teria atormentado prematuramente a esse respeito sem necessidade. Ele está doente, está como louco, pede que vá vê-lo, constantemente. Não é para uma reconciliação que quer vê-la, mostre-se somente no limiar de seu quarto. Está bem mudado desde aquele dia e compreende toda a extensão de seus agravos a você. Não é seu perdão que ele quer: “Não posso ser perdoado”, diz ele. Quer somente vê-la no limiar...
— Você de repente me... — murmurou Kátia. — Pressentia nesses dias que você viria aqui com esse fito... Sabia bem que ele me mandaria chamar!... É impossível!
— Impossível, seja, mas faça-o. Lembre-se de que, pela primeira vez, está ele consternado por havê-la assim ofendido, pela primeira vez, jamais antes compreendeu suas faltas tão profundamente! Diz ele: “Se ela recusar vir, serei sempre infeliz.” Entende? Um condenado a vinte anos de trabalhos forçados sonha ainda com a felicidade. Não causa isso compaixão? Pense que vai você ver uma vítima inocente — disse Aliócha, com um ar de desafio. — Suas mãos estão limpas de sangue. Em nome de todos os sofrimentos que o esperam, vá vê-lo agora! Vá, conduza-o nas trevas, mostre-se somente no limiar... Deve, deve fazê-lo — concluiu Aliócha, insistindo com energia na palavra “deve”.
— Devo... mas não posso... — gemeu Kátia. — Ele me olhará... não posso...
— Vossos olhares devem reencontrar-se. Como poderá você viver doravante, se recusa agora?
— Antes sofrer toda a vida.
— Deve ir, é preciso — insistiu de novo Aliócha inflexível.
— Mas por que hoje, por que imediatamente?... Não posso abandonar o doente...
— Por um momento poderá, não demorará muito. Se você não for, Dimítri terá delírio esta noite. Não lhe estou mentindo, tenha piedade!
— Tenha piedade de mim! — disse com amargor Kátia e desatou a chorar.
— Então você irá! — proferiu firmemente Aliócha, vendo-a chorar. — Vou dizer-lhe que você irá agora mesmo.
— Não, por coisa alguma do mundo, não lhe diga disso! — exclamou Kátia com terror. — Irei, mas não lhe diga de antemão, porque talvez eu não entre... Não sei ainda...
Sua voz partiu-se. Respirava com dificuldade. Aliócha levantou-se para sair.
— E se eu encontrasse alguém? — disse ela, de repente, empalidecendo de novo.
— Por isso é que é preciso ir imediatamente, não haverá ninguém, fique tranquila. Nós a esperaremos — concluiu ele com firmeza e saiu.
II
Por um instante a mentira torna-se verdade
Apressou-se em seguir para o hospital onde se achava Mítia no momento. Dois dias depois do julgamento, tendo contraído febre nervosa, haviam-no transportado para o hospital, na divisão dos detidos. Mas o doutor Varvínski, a pedido de Aliócha, da senhora Khokhlakova, de Lisa e de outras pessoas, mandou colocar Mítia num quarto à parte, o ocupado outrora por Smierdiákov. Na verdade, no fundo do corredor estacionava uma sentinela e a janela era gradeada; Varvínski podia, pois, estar tranquilo a respeito dos resultados dessa complacência um tanto ilegal. Bom e compassivo, compreendia quanto era duro para Mítia entrar sem transição na sociedade dos malfeitores e que lhe era preciso a princípio habituar-se a isso. As visitas eram autorizadas secretamente pelo doutor, pelo diretor e mesmo pelo isprávnik, mas somente Aliócha e Grúchenhka iam ver Mítia. Por duas vezes, Rakítin tentara introduzir-se, mas Mítia pediu insistentemente a Varvínski que não o deixasse entrar.
Aliócha encontrou seu irmão sentado num divã, com roupão de quarto; tinha um pouco de febre, a cabeça enrolada num guardanapo molhado com água e vinagre. Lançou a Aliócha um olhar vago em que transparecia uma espécie de terror.
Em geral, desde sua condenação, tornara-se pensativo. Por vezes, ficava uma meia hora sem dizer nada, parecendo entregar-se a uma meditação dolorosa, esquecendo seu interlocutor. Se saía de seu devaneio, era sempre de improviso e para falar de outra coisa diferente do assunto da conversa. Por vezes, olhava seu irmão com compaixão, parecia menos à vontade com ele do que com Grúchenhka. Na verdade, nunca falava com ela, mas, assim que ela entrava, seu rosto se iluminava. Aliócha sentou-se em silêncio ao lado dele. Dimítri esperava-o com ansiedade, contudo não ousava interrogá-lo. Achava impossível que Kátia consentisse em vir, enquanto sentia que, se ela não viesse, seria intolerável. Aliócha compreendia seus sentimentos.
— Parece que Trifon Borísovitch quase demoliu sua hospedaria — disse febrilmente Mítia. — Levanta as pranchas do parquete, arranca tábuas; desmontou toda a galeria, pedaço por pedaço, na esperança de encontrar um tesouro, os 1.500 rublos que o procurador pretende ter eu escondido lá. Logo de volta, dizem que se pôs ele à obra. Bem feito para o velhaco. Soube-o ontem por um guarda que é de lá.
— Escuta — disse Aliócha —, ela virá, não sei quando, talvez hoje, ou em algumas horas, ignoro-o. Mas virá, é certo. — Mítia estremeceu, teria querido falar, mas manteve silêncio. Aquela notícia perturbava-o. Via-se que estava ansioso por conhecer os detalhes da conversa, enquanto temia perguntá-los. Uma palavra cruel ou desdenhosa de Kátia teria sido para ele, naquele momento, igual a uma martelada na cabeça.
— Ela disse, entre outras coisas, que te tranquilizasse a consciência a respeito da evasão. Se Ivan não estiver curado na ocasião, ela é quem se ocupará disso.
— Já me falaste disso — observou Mítia.
— E tu, tu o repetiste a Grucha.
— Sim — confessou Mítia. — Ela não virá esta manhã — olhou timidamente para seu irmão —, só virá à noite. Quando eu lhe disse que Kátia trataria do assunto, calou-se a princípio, com os lábios contraídos, depois murmurou: “Pois seja!” Compreendeu que era grave. Não ousei fazer-lhe perguntas. Agora parece ela compreender que não é a mim que Kátia ama, mas a Ivan.
— Deveras?
— Talvez não. Em todo caso, Grucha não virá esta manhã. Encarreguei-a dum recado... Escuta, nosso irmão Ivan é um espírito superior, ele é que deve viver e não nós. Curar-se-á.
— Imagina que Kátia, malgrado seus alarmes, quase não duvida de sua cura.
— Então é que ela está persuadida de que ele morrerá. É o pavor que lhe inspira essa convicção.
— Ivan é de constituição robusta. Eu também espero sua cura — disse Aliócha, apreensivo.
— Sim, ele se curará. Mas tem ela a convicção de que ele morrerá. Deve sofrer muito...
Reinou silêncio. Mítia estava atormentado por uma grave preocupação.
— Aliócha, eu amo apaixonadamente Grucha — disse ele de repente, com voz trêmula, em que havia lágrimas.
— Não a deixarão contigo lá.
— Queria dizer-te ainda — prosseguiu Mítia com voz vibrante —, se me baterem no caminho ou lá, não o suportarei, matarei e fuzilar-me-ão. E serão vinte anos! Aqui, os guardas já me tuteiam. Esta noite toda refleti. Pois bem, não estou pronto! É acima de minhas forças! Eu que queria cantar um hino, não posso suportar o tuteio dos guardas. Tudo haveria de suportar por amor de Grucha, tudo... exceto nas pranchas... Mas não a deixarão entrar lá.
Aliócha sorriu mansamente.
— Escuta, meu irmão, uma vez por todas. Eis minha opinião a esse respeito. Sabes que não minto. Não estás preparado para semelhante cruz, não é feita para ti. Mais ainda, não tens necessidade duma provação tão dolorosa. Se houvesses matado teu pai, lamentaria que repelisses a expiação. Mas és inocente e essa cruz é demasiado pesada para ti. Uma vez que querias regenerar-te pelo sofrimento, guarda sempre presente, em qualquer parte em que viveres, esse ideal da regeneração. Isso bastará. O fato de te teres furtado a essa terrível prova servirá somente para fazer-te sentir um dever maior ainda, e esse sentimento contínuo contribuirá talvez mais para tua regeneração do que se fosses para lá. Porque não suportarias os sofrimentos do presídio, revoltar-te-ias, talvez acabasses dizendo: “Estou quite.” O advogado disse a verdade nesse sentido. Nem todos suportam fardos pesados; há criaturas que sucumbem... Eis minha opinião, se desejas tanto conhecê-la. Se tua evasão devesse custar caro a outros, oficiais e soldados, não te permitiria que te evadisses. — Aliócha sorriu. — Mas assegura-se (o próprio chefe de condução disse-o a Ivan) que não haverá sanções severas, sabendo-se arranjar as coisas e que eles se safarão de complicações facilmente. Decerto é desonesto corromper consciências, mesmo nesse caso, mas aqui abster-me-ei de julgar, porque se, por exemplo, Ivan e Kátia me tivessem confiado um papel nesse negócio não teria hesitado em empregar a corrupção: devo dizer-te toda a verdade. Assim, não cabe a mim julgar tua maneira de agir. Mas sabe que não te condenarei jamais. Aliás, é estranho, como poderei eu ser teu juiz neste caso? Está bem! Creio ter examinado tudo.
— Em compensação, serei eu que me condenarei! — exclamou Mítia. — Evadir-me-ei. Já estava decidido: será que Mítia Karamázov pode não fugir? Mas me condenarei e passarei minha vida a expiar essa falta. É bem assim que falam os jesuítas? Como o estamos fazendo agora, hem?
— Com efeito — disse alegremente Aliócha.
— Eu te amo porque dizes sempre a verdade completa, sem nada ocultar! — disse Mítia, radiante. — Portanto, apanhei Aliócha em flagrante delito de jesuitismo! Merecerias que te beijassem por isso, deveras! Pois bem! Escuta o resto, vou acabar de expandir-me. Eis o que imaginei e resolvi. Se conseguir evadir-me com dinheiro e um passaporte e se chegar à América serei reconfortado por essa ideia de que não é para viver feliz que o faço, mas para sofrer um presídio que talvez seja igual a este! Asseguro-te, Alieksiêi, que um vale o outro! Que o diabo leve essa América! Já a odeio. Grucha me acompanhará, seja, mas olha-a: tem ela o ar duma americana? Ela é russa, russa até a medula dos ossos, sofrerá a saudade de sua terra, e, sem cessar, vê-la-ei sofrer por causa de mim, carregando uma cruz que não mereceu. E eu suportarei os pulhas de lá, mesmo que todos valessem mais do que eu? Já a detesto, a essa América! Pois bem! Muito embora sejam eles lá técnicos fora do comum ou outra coisa, leve-os o diabo, não são a minha gente! Amo a Rússia, Alieksiêi, amo o Deus russo, por mais vil que eu seja! Sim, rebentarei lá! — exclamou ele, com os olhos de repente cintilantes. Sua voz tremia.
— Pois bem! Eis o que decidi, Alieksiêi, escuta! — prosseguiu, logo que se acalmou. — Assim que lá chegar, com Grucha, por-nos-emos a trabalhar na lavoura, a trabalhar na solidão, entre os ursos, bem longe. Lá também há recantos perdidos. Dizem que ainda existem peles-vermelhas. Pois bem! Será para essa região que iremos, entre os derradeiros moicanos. Estudaremos imediatamente a gramática, eu e Grucha. Ao fim de três anos, saberemos o inglês a fundo. Então, adeus, América! Voltaremos à Rússia, como cidadãos americanos. Não tenhas receio, não voltaremos para esta cidadezinha, ocultar-nos-emos em alguma parte, ao norte ou ao sul. Estarei mudado, ela também; mandarei fazer para mim na América uma barba postiça, furarei um olho, se não usarei uma barba grisalha de um archin (a nostalgia da pátria envelhecer-me-á depressa), talvez não me reconheçam. Se for reconhecido, que me deportem, tanto pior, era meu destino! Na Rússia também, trabalharemos num canto perdido, e far-me-ei sempre passar por americano. Em compensação, morreremos na terra natal. Eis meu plano. É irrevogável. Tu o aprovas?
— Sim — disse Aliócha para não contradizê-lo.
Mítia calou-se um instante e declarou de repente:
— Viste como me trataram na audiência? Quanta má vontade!
— Mesmo sem isso, terias sido condenado — disse Aliócha, suspirando.
— Sim, estão fartos de mim, aqui! Que Deus lhes perdoe, mas é duro! — gemeu Mítia. Novo silêncio.
— Aliócha, executa-me agora mesmo: virá ela ou não agora? Fala! Que disse ela?
— Prometeu vir, mas não sei se será hoje. É-lhe penoso!
Aliócha fitou timidamente seu irmão.
— Concordo! Concordo! Aliócha, eu ficarei louco! Grúchenhka não cessa de fitar-me. Ela compreende. Meu Deus! Acalma-me, que peço eu? Kátia! Será que compreendo o que estou pedindo? Eis aqui a tal impetuosidade dos Karamázov! Não, não sou capaz de sofrer! Não passo de um miserável!
— Ei-la! — exclamou Aliócha.
Nesse momento, Kátia apareceu no limiar. Parou um instante e olhou para Mítia com um ar desvairado. Mítia levantou-se vivamente, pálido de terror, mas logo um sorriso tímido, súplice, desenhou-se em seus lábios e, de repente, num movimento irresistível, estendeu seus braços para Kátia, que correu para ele. Ela agarrou-lhe as mãos, fê-lo sentar-se no leito, sentou-se também, sem largar-lhe as mãos que apertava convulsivamente. Por várias vezes, ambos quiseram falar, mas se contiveram, olhando-se em silêncio, com um sorriso estranho, como que presos um ao outro; dois minutos assim se passaram.
— Perdoaste? — perguntou por fim Mítia, e logo, voltando-se radiante para Aliócha, gritou-lhe:
— Ouves o que peço, ouves?
— Eu te amo, porque teu coração é generoso! — disse Kátia. — Não tens necessidade de meu perdão nem eu tampouco do teu. Que me perdoes ou não, a lembrança de cada um de nós ficará como uma ferida na alma do outro, isso deve ser... — Deteve-se para tomar alento. — Por que vim? — prosseguiu ela, febrilmente. — Para beijar teus pés, apertar tuas mãos até doerem, lembras-te?, como em Moscou, para dizer-te ainda que és meu Deus, minha alegria, para dizer-te que te amo loucamente — gemeu ela, num soluço. Pousou os lábios ávidos na mão de Mítia. Corriam-lhes lágrimas pelas faces. Aliócha mantinha-se silencioso e desconcertado. Não esperava aquela cena.
— O amor desapareceu, Mítia — continuou ela —, mas o passado é-me dolorosamente querido. Fica-o sabendo para sempre. Agora, por um instante, suponhamos verdadeiro o que teria podido ser — murmurou ela, com um sorriso crispado, fixando-o de novo com alegria. — Agora, amamos cada um para nosso lado, no entanto, amar-te-ei sempre, e tu também, sabia-o? Ouve, ama-me, ama-me toda a tua vida! — suspirou ela, com voz trêmula em que havia leve tom de ameaça.
— Sim, eu te amarei e... sabes, Kátia — disse Mítia, parando a cada palavra —, sabes que há cinco dias, naquela noite, eu te amava... Quando caíste desmaiada e te levaram... Toda a minha vida! Será assim, para todo o sempre.
Assim trocavam eles essas frases quase absurdas e exaltadas, mentirosas talvez, mas eram sinceros e tinham em si uma confiança absoluta.
— Kátia — exclamou, de repente, Mítia —, acreditas que eu matei? Sei que agora não o crês, mas naquela ocasião... quando depunhas... tu o acreditavas verdadeiramente?
— Jamais o acreditei, mesmo então! Eu te detestava e persuadi-me, por um instante... Ao depor, estava convencida... mas, logo imediatamente depois, deixei de crê-lo. Fica-o sabendo. Esquecia-me de que vim aqui para penitenciar-me! — disse ela, com uma expressão toda nova, que não lembrava em nada as ternas frases de ainda há pouco.
— Como isso é horrível para ti, mulher! — disse, de repente, Mítia.
— Deixa-me — murmurou ela —, eu voltarei, agora não posso mais.
Levantara-se, mas de súbito lançou um grito e recuou.
No quarto havia entrado bruscamente, embora sem ruído, Grúchenhka. Ninguém a esperava. Kátia lançou-se para a porta, mas parou diante de Grúchenhka, tomou-se duma palidez de cera e murmurou, um suspiro:
— Perdoe-me!
A outra fitou-a e, ao fim dum instante, disse-lhe, em voz amarga, carregada de ódio:
— Somos más todas duas! Como haveremos de perdoar uma à outra? Mas salva-o e, em compensação, eu rezarei por ti toda a minha vida.
— E tu recusas perdoar-lhe? — gritou Mítia, num tom de viva censura.
— Fica tranquila, eu o salvarei — apressou-se em dizer Kátia, que saiu apressada.
— Pudeste recusar-lhe teu perdão, quando ela mesma te pedia? — exclamou de novo Mítia com amargura.
— Não a censures, Mítia, não tens o direito! — interveio com vivacidade Aliócha.
— Era seu orgulho e não seu coração que falava — disse com desgosto Grúchenhka. — Se ela te libertar, perdoar-lhe-ei tudo...
Calou-se, como se reprimisse alguma coisa e não pudesse ainda serenar-se. Chegara ali totalmente por acaso, não suspeitando de nada e sem esperar aquele encontro.
— Aliócha, corre atrás dela! — disse Mítia, ansioso, ao irmão. — Dize-lhe... não sei o quê... não a deixes partir assim!
— Virei ver-te antes do anoitecer! — gritou Aliócha, que correu para alcançar Kátia. Alcançou-a, de fato, já fora do hospital. Ia depressa e lhe disse rapidamente:
— Não, é-me impossível humilhar-me diante daquela mulher. Quis beber o cálice até o fim, por isso lhe pedi perdão. Ela recusou... Amo-a por isso! — disse Kátia com voz alterada, e seus olhos brilhavam cheios de ódio feroz.
— Meu irmão não esperava por isso — balbuciou Aliócha. — Estava persuadido de que ela não viria...
— Sem dúvida. Deixemos isso — interrompeu ela. — Escute: não posso acompanhá-lo ao enterro. Enviei-lhes flores para o caixão. Devem ter ainda dinheiro. Se for preciso, diga-lhes que para o futuro não os abandonarei jamais. E agora, deixe-me, deixe-me, rogo-lhe. Você já está atrasado, está tocando para a derradeira missa... Deixe-me, por favor!
III
Enterro de Iliúcha. Alocução perto da pedra
Estava atrasado, com efeito. Esperavam-no e tinham mesmo já decidido levar sem ele para a igreja o pequeno ataúde ornado de flores. Era o de Iliúcha, o pobre menino. Morrera dois dias depois da sentença do julgamento. Ainda no portão, foi Aliócha acolhido pelos gritos dos rapazes, camaradas de Iliúcha. Tinha vindo uma dúzia, com suas sacolas escolares nas costas. “Papai chorará, fiquem com ele”, dissera-lhes Iliúcha, antes de morrer, e os meninos lembravam-se disso. À frente deles achava-se Kólia Krasótkin.
— Como estou contente por sua vinda, Karamázov! — exclamou ele, estendendo a mão a Aliócha. — Aqui está horrível! Na verdade, causa dó ver. Snieguiriov não está bêbedo, temos certeza de que não bebeu hoje, mas tem ar de embriagado... Mantenho-me firme, mas é horrível. Karamázov, se não o retardo, far-lhe-ei apenas uma pergunta antes de entrar.
— Que há, Kólia? — Aliócha parou.
— Seu irmão é inocente ou culpado? Foi ele quem matou seu pai ou foi o lacaio? Acreditarei no que o senhor disser. Há quatro noites que não durmo pensando nessa ideia.
— Foi o lacaio o assassino, meu irmão está inocente — respondeu Aliócha.
— É também minha opinião!... — exclamou de repente o jovem Smúrov.
— De modo que sucumbe ele como uma vítima inocente pela verdade!? — exclamou Kólia. — Sucumbindo é feliz! Estou pronto a invejá-lo!
— Como pode você dizer isso e por quê? — disse Aliócha, surpreso.
— Oh, se eu pudesse um dia sacrificar-me pela verdade! — declarou Kólia com entusiasmo.
— Mas não num caso como esse, não com tal opróbrio, em circunstâncias tão horríveis! — disse Aliócha.
— Certamente... quereria morrer pela humanidade inteira e, quanto à vergonha, pouco importa: pereçam nossos nomes. Respeito seu irmão!
— Eu também! — exclamou de modo completamente inesperado o mesmo menino que pretendera outrora saber quem fundara Troia. Como então, ficou vermelho como uma peônia.
Aliócha entrou. No ataúde azul, enfeitado com tiras brancas, estava Iliúcha deitado, as mãos juntas, os olhos fechados. Os traços de seu rosto emagrecido mal haviam mudado e, coisa estranha, o cadáver quase não exalava odor fétido. A expressão era séria e como que pensativa. As mãos sobretudo eram belas, como talhadas em mármore. Tinham posto flores nelas. O ataúde inteiro, por dentro e por fora, estava ornado de flores enviadas de manhã cedo por Lisa Khokhlakova. Mas tinham vindo outras, da parte de Katierina Ivânovna, e, quando Aliócha abriu a porta, o capitão, com um buquê nas mãos trêmulas, desmanchava-o sobre seu querido filho. Mal olhou para o recém-chegado; aliás, não prestava atenção a ninguém, nem mesmo à mulher, a mamacha demente e chorosa, que se esforçava por se erguer sobre as pernas doentes, para ver de mais perto o filho morto. Quanto a Nínotchka, os meninos tinham-na levado, com sua cadeira, para bem perto do caixão. Apoiara a cabeça nele e devia estar chorando mansamente. Snieguiriov tinha o ar animado, mas como que perplexo e, ao mesmo tempo, selvagem. Havia loucura em seus gestos, nas palavras que lhe fugiam. “Meu pequeno, meu querido pequeno!”, exclamava ele a cada instante, olhando Iliúcha.
— Pápotchka, dá-me também flores, toma da mão dele aquela flor branca e dá-me! — pediu, soluçando, a mamacha louca. Fosse que a rosinha branca que estava nas mãos de Iliúcha lhe agradasse muito, ou quisesse ela guardá-la como lembrança dele, agitava-se, com os braços estendidos para a flor.
— Não darei nada a ninguém! — respondeu duramente Snieguiriov. — São dele as flores e não tuas. Tudo é dele, nada de ti!
— Papai, dê uma flor a mamãe! — disse Nínotchka, mostrando o rosto úmido de lágrimas.
— Não darei nada, sobretudo a ela! Ela não o amava. Tirou-lhe seu canhãozinho — disse o capitão com um soluço, lembrando-se de como Iliúcha tinha então cedido o canhão à mãe. A pobre louca pôs-se a chorar, ocultando o rosto nas mãos. Os meninos, vendo afinal que o pai não saía de perto do caixão, e que era tempo de levá-lo à igreja, cercaram-no compactamente e puseram-se a levantá-lo.
— Não quero enterrá-lo no cemitério! — clamou de súbito Snieguiriov. — Enterrá-lo-ei perto da pedra, de nossa pedra! Era a vontade de Iliúcha. Não deixarei que o levem!
Havia três dias que ele falava em enterrá-lo perto da pedra; mas Aliócha e Krasótkin intervieram, bem como a locadora, sua irmã e todos os meninos.
— Que ideia essa de enterrá-lo perto de uma pedra impura, como um renegado? — disse severamente a velha. — No cemitério, a terra é abençoada. Será mencionado nas orações. Ouvem-se os cantos da igreja, o diácono tem uma voz tão sonora e tudo chegará até ele, como se fosse ali mesmo, junto de sua sepultura.
O capitão teve um gesto de lassidão, como para dizer: “Façam o que quiserem!” Os meninos ergueram o caixão, mas, ao passar perto da mãe, detiveram-se um instante para que ela pudesse dizer adeus a Iliúcha. Vendo, de repente, de perto, aquele rosto querido, que ela havia três dias não tinha contemplado senão a certa distância, pôs-se ela a balançar a cabeça grisalha.
— Mamãe, abençoe-o, beije-o — gritou-lhe Nínotchka. Mas a velha, como um autômato, continuou a menear a cabeça e, sem nada dizer, com o rosto crispado pela dor, bateu no peito com o punho. Levaram o caixão para mais longe. Nínotchka pousou um derradeiro beijo nos lábios do irmão. Aliócha, ao sair, rogou à locadora que velasse pelas duas mulheres; ela não o deixou acabar.
— Conhecemos nosso dever, ficarei junto delas, nós também somos cristãs.
A velha chorava ao dizer isso. A igreja estava a pouca distância, uns trezentos passos quando muito. Fazia um tempo claro e ameno, com um pouco de geada. Os sinos ainda dobravam. Snieguiriov, apressado e desorientado, acompanhava o ataúde, metido no velho sobretudo, demasiado leve para a estação, segurando na mão o chapéu de feltro de largas abas. Presa de inexplicável inquietação, ora queria sustentar a cabeceira do caixão, o que só fazia atrapalhar os que o carregavam, ora esforçava-se por andar ao lado. Tendo uma flor caído na neve, precipitou-se para apanhá-la, como se aquilo tivesse uma grande importância.
— O pão, esqueceram o pão! — exclamou ele, de repente, com terror. Mas os meninos lhe lembraram logo que ele acabava de pegar um pedaço de pão e trazia-o no bolo. Tirou-o e acalmou-se ao vê-lo.
— É Iliúcha que o quer — explicou ele a Aliócha. — Uma noite, em que estava eu à sua cabeceira, disse-me de repente: “Pápotchka, quando me enterrarem, esmigalhe pão em cima de minha cova, para atrair os pardais. Eu os ouvirei e me causará prazer o não me sentir só.”
— Pois muito bem — disse Aliócha. — Será preciso trazer pão muitas vezes.
— Todos os dias, todos os dias! — murmurou o capitão como que reanimado.
Chegaram por fim à igreja, e o ataúde foi colocado no meio dela. Os meninos cercaram-no e portaram-se exemplarmente durante a cerimônia. A igreja era antiga e bastante pobre, muitos ícones não tinham molduras, mas, em igrejas assim, se sente a gente mais à vontade para rezar. Durante a missa, Snieguiriov pareceu acalmar-se um pouco, se bem que a mesma preocupação inconsciente reaparecesse por momentos nele; ora se aproximava do caixão para arranjar o pano fúnebre, ou o vientchik,[ 156 ] ora quando uma vela caía do candelabro, corria a recolocá-la, demorando-se nisso infindavelmente. Depois, tranquilizou-se e ficou à frente, com ar preocupado e como que perplexo. Depois da epístola, cochichou a Aliócha que não a haviam lido como era devido, sem explicar seu pensamento. Pôs-se a cantar o hino querúbico, depois prosternou-se, com a cabeça contra as lajes, antes que ele terminasse, e assim ficou durante muito tempo. Por fim, foi dada a absolvição e distribuíram-se as velas. O pai, precipitado, ia de novo agitar-se, mas a unção e a majestade do canto fúnebre o transtornaram. Pareceu encolher-se e se pôs a soluçar a curtos intervalos, a princípio abafando a voz, depois, para o fim, ruidosamente. No momento dos adeuses, quando se ia fechar o caixão, abraçou-se com ele como se quisesse a isso opor-se e começou a cobrir de beijos os lábios do filho. Exortaram-no a afastar-se e já havia ele descido o degrau, quando, de repente, estendeu vivamente os braços e tirou algumas flores do caixão. Contemplou-as e nova ideia pareceu absorvê-lo, de modo que esqueceu, por um instante, o essencial. Pouco a pouco, tombou no devaneio e não fez nenhuma resistência quando levaram o caixão.
O túmulo, situado bem perto da igreja, no cemitério, custara caro. Pagara-o Katierina Ivânovna. Após o rito usual, os coveiros desceram o caixão. Snieguiriov, com flores na mão, inclinava-se de tal maneira por cima da cova aberta que os meninos, amedrontados, agarraram-lhe o sobretudo e puxaram-no para trás. Mas ele parecia não compreender bem o que se passava. Quando encheram a cova, pôs-se a desenhar, com ar preocupado, na terra que se amontoava, e começou mesmo a falar, mas ninguém compreendeu nada; aliás, não tardou a calar-se. Lembraram-lhe então de que era preciso reduzir o pão a migalhas; moveu-se, tirou o pão do bolso e espalhou-o em migalhas sobre o túmulo: “Venham, passarinhos, venham, gentis pardais!”, murmurava ele, solícito. Um dos meninos fez-lhe ver que as flores o atrapalhavam e que deveria confiá-las a alguém. Mas ele recusou, pareceu mesmo aterrorizado, como se quisessem tomá-las dele, e depois de haver-se assegurado com um olhar de que tudo estava realizado e o pão reduzido a migalhas, voltou-se e seguiu tranquilamente para casa. Mas, pouco a pouco, apressou o passo, corria quase. Os meninos e Aliócha seguiam-no de perto.
— Flores para mamacha, flores para mamacha! Ofenderam a mamacha! — exclamou ele, de repente. Alguém lhe gritou que pusesse o chapéu, que estava fazendo frio. Como que irritado com tais palavras, atirou-o na neve, dizendo: “Não quero chapéu, não quero!” O jovem Smúrov apanhou o chapéu e segurou-o. Todos os meninos choravam, sobretudo Kólia e o rapaz que havia descoberto Troia. Malgrado as lágrimas, achou Smúrov meio de apanhar um pedaço de tijolo que aparecia vermelho entre a neve, para visar no voo a um bando de pardais. Não acertou neles, naturalmente, e continuou a correr, chorando. A meio caminho, Snieguiriov parou, de súbito, estacionou um instante como impressionado por alguma coisa; depois, voltando-se para o lado da igreja, encaminhou-se para o túmulo deixado só. Mas os meninos o agarraram em um piscar de olhos, aferrando-se a ele por todos os lados. Sem forças, dominado, rolou sobre a neve, debateu-se soluçando e se pôs a gritar: “Iliúcha, meu querido filhinho!” Aliócha e Kólia levantaram-no, suplicaram-lhe que se mostrasse razoável.
— Capitão, basta, um homem corajoso deve suportar tudo — balbuciou Kólia.
— O senhor está estragando as flores — disse Aliócha. — A mamacha as espera, está chorando porque o senhor lhe recusou as flores de Iliúcha. O leito de Iliúcha ainda está lá.
— Sim, sim, vamos ver a mamacha — lembrou-se, de súbito, Snieguiriov. — Vão levar o leito! — acrescentou, como se temesse verdadeiramente que o levassem. Levantou-se e correu a casa, mas não se estava longe, e todo mundo chegou ao mesmo tempo. Snieguiriov abriu vivamente a porta, gritou para a mulher, para com a qual se mostrara tão duro:
— Querida mamacha, eis flores que Iliúcha te envia. Tens dores nos pés?
Estendeu-lhe as flores, geladas e machucadas, quando havia rolado na neve. Naquele momento, percebeu a um canto, diante do leito, os sapatos de Iliúcha que a locadora acabara de arrumar, velhos sapatos que se haviam tornado vermelhos, encoscorados, remendados. Vendo-os, ergueu os braços, avançou, caiu de joelhos, agarrou um dos sapatos, que cobriu de beijos, gritando:
— Iliúcha, meu querido filhinho, onde estão teus pés?
— Para onde o levaste!? Para onde o levaste!? — exclamou a louca, com uma voz dilacerante. Nínotchka também se pôs a soluçar. Kólia saiu correndo, seguido pelos meninos. Aliócha fez o mesmo.
— Deixemo-lo chorar — disse ele a Kólia. — É impossível consolá-los. Voltaremos daqui a pouco.
— Sim, não há nada a fazer, é horrível — aprovou Kólia. — Tenho muito pesar e, para ressuscitá-lo, daria tudo no mundo!
— Eu também — disse Aliócha.
— Que pensa o senhor, Karamázov, será preciso vir esta noite? Ele vai embriagar-se.
— É bem possível. Viremos somente nós dois, e basta, passar uma hora com ele, com a mamãe e Nínotchka. Se viéssemos todos, serviria para lembrar-lhes tudo — aconselhou Aliócha.
— A locadora vai preparar a mesa para a comemoração,[ 157 ] virá o pope. Será preciso voltar para lá agora, Karamázov?
— Absolutamente.
— É estranho tudo isso, Karamázov. Tal dor e pastéis; como tudo é estranho em nossa religião!
— Haverá salmão — disse o rapaz que havia descoberto Troia.
— Peço-lhe seriamente, Kartachov, que não intervenha com suas bobagens, sobretudo quando não se está falando com você e que se quer mesmo ignorar sua existência — disse Kólia, com irritação. O rapaz corou, mas não ousou responder. Entretanto, todos seguiam lentamente a vereda, e Smúrov exclamou de repente:
— Eis a pedra de Iliúcha, sob a qual queriam enterrá-lo!
Todos pararam, silenciosos, ao lado da pedra. Aliócha olhava, e a cena que lhe havia contado outrora Snieguiriov, de como Iliúcha, chorando e abraçando seu pai, exclamava “Pápotchka, pápotchka, como ele te humilhou!”, aquela cena lhe voltou repentinamente à memória. A emoção dominou-o. Olhou com ar sério todos aqueles rostos gentis de escolares, camaradas de Iliúcha, e lhes disse:
— Meus amigos, quereria dizer algumas palavras, aqui mesmo.
Os meninos cercaram-no e fitaram nele olhares de expectativa.
— Meus amigos, vamos separar-nos. Ficarei ainda algum tempo com meus irmãos, dos quais um vai ser deportado e o outro está moribundo. Mas deixarei em breve esta cidade, talvez por muito tempo. Vamos, pois, separar-nos. Convenhamos aqui, diante da pedra de Iliúcha, que jamais o esqueceremos e nos lembraremos uns dos outros. E, aconteça o que acontecer mais tarde na vida, ainda mesmo que fiquemos vinte anos sem nos vermos, lembrar-nos-emos de como enterramos o pobre menino, contra o qual eram atiradas pedras perto do passadiço, deveis lembrar-vos, e que foi depois amado por todos. Era um menino amável, bom e corajoso, tendo o sentimento da honra e da amarga ofensa sofrida por seu pai, contra a qual se revoltou. Assim nos lembraremos dele toda a nossa vida. E mesmo se estivermos ocupados com negócios da mais alta importância e tenhamos alcançado honras ou caído no infortúnio, mesmo então não esqueçamos jamais como nos foi doce, aqui, comungar uma vez em um bom sentimento que nos tomou, enquanto amávamos o pobre menino, talvez melhores do que somos na realidade. Meus pombinhos, deixai que vos chame assim, porque vos assemelhais todos àqueles encantadores pássaros, enquanto fito vossos rostos, amáveis, meus queridos meninos, talvez não compreendais o que vou dizer-vos, porque nem sempre sou claro, mas havereis de lembrar-vos e mais tarde me dareis razão. Sabei que não há nada de mais nobre, de mais forte, de mais são e de mais útil na vida que uma boa recordação, sobretudo provindo da juventude, da casa paterna. Falam-vos muito de vossa educação; ora, uma recordação santa, conservada desde a infância, é talvez a melhor educação. Se fazemos provisão de tais recordações para a vida, salvamo-nos definitivamente. E mesmo se só guardarmos no coração uma boa recordação, isso poderá servir um dia para nos salvar. Talvez nos tornemos mesmo maus, mais tarde, incapazes de nos abstermos duma má ação, riamos das lágrimas de nossos semelhantes, dos que dizem, como Kólia exclamou ainda há pouco, “quero sofrer por todos!”, talvez zombemos deles maldosamente. Mas por piores que nos tornemos, do que Deus nos preserve, quando nos lembrarmos de como enterramos Iliúcha, de como o amamos em seus derradeiros dias, e das conversas que mantivemos cordialmente em redor desta pedra, o mais duro e o mais zombeteiro dentre nós, se assim nos tornarmos, não ousará zombar, em seu foro íntimo, dos bons sentimentos que experimenta neste momento! Mais ainda, talvez que precisamente essa recordação apenas o impeça de agir mal; fará um exame de consciência e dirá: “Sim, eu era bom então, ousado, honesto.” Que ria consigo mesmo, pouco importa, a gente zomba muitas vezes do que é bom e belo; é somente por leviandade, mas asseguro-vos que, logo depois de ter rido, dirá a si mesmo em seu coração: “Fiz mal em rir-me, porque não devemos rir dessas coisas!”
— Será absolutamente assim, Karamázov, eu o compreendo! — exclamou Kólia, de olhos brilhantes. Os meninos agitaram-se e queriam também gritar alguma coisa, mas contiveram-se e fixaram no orador olhares emocionados.
— Disse isso para o caso em que nos tornarmos maus — prosseguiu Aliócha. — Mas por que nos tornarmos maus, não é, meus amigos? Seremos antes de tudo bons, depois honestos, enfim, não nos esqueceremos jamais uns dos outros. Insisto nisso. Dou-vos minha palavra, meus amigos, de que não esquecerei nenhum de vós; cada rosto que me olha agora, dele me lembrarei, mesmo daqui a trinta anos. Ainda há pouco, Kólia disse a Kartachov que queríamos ignorar sua existência. Posso eu esquecer que Kartachov existe, que não cora mais como quando descobriu Troia, mas me olha alegremente com seus belos olhos? Meus caros amigos, sejamos todos generosos e corajosos como Iliúcha, inteligentes, corajosos e generosos como Kólia (que se tornará bem mais inteligente ao crescer), sejamos modestos, porém amáveis como Kartachov. Mas por que só falar desses dois? Todos vós me sois caros doravante, todos tendes um lugar em meu coração e reclamo um no vosso! Pois bem! Quem nos reuniu neste bom sentimento, do qual queremos guardar para sempre a lembrança, senão Iliúcha, aquele bom, aquele gentil menino, que nos será sempre querido? Nós não o esqueceremos, boa e eterna recordação dele em nossos corações, agora e para todo o sempre!
— É isso, é isso, lembrança eterna! — gritaram todos os meninos com suas vozes sonoras e com ar comovido.
— Nós nos lembraremos de seu rosto, de sua roupa, de seus pobres sapatinhos, de seu ataúde, de seu desgraçado pai e de como tomou a defesa dele, sozinho contra toda a classe.
— Nós nos lembraremos dele! Era bravo, era bom!
— Ah, como eu o amava! — exclamou Kólia.
— Meus meninos, meus queridos amigos, não temais a vida! Ela é tão bela quando se pratica o bem e a verdade!
— Sim, sim! — repetiram os meninos entusiasmados.
— Karamázov, nós o amamos! — ecoou uma voz, provavelmente a de Kartachov.
— Nós o amamos, nós o amamos! — repetiram em coro. Muitos tinham lágrimas nos olhos.
— Viva Karamázov! — proclamou Kólia.
— E lembrança eterna para o pobre menino! — acrescentou de novo Aliócha, com emoção.
— Lembrança eterna!
— Karamázov! — exclamou Kólia. — É verdade o que diz a religião, que ressuscitaremos dentre os mortos, que nos tornaremos a ver uns aos outros, e todos e Iliúcha?
— Decerto ressuscitaremos, tornaremos a ver-nos, contaremos uns aos outros alegremente tudo quanto se passou — respondeu Aliócha, meio risonho, meio entusiasta.
— Oh, como será bom! — disse Kólia.
— E agora já falamos muito. Vamos ao jantar fúnebre. Não vos perturbeis pelo fato de comermos pastéis. É uma velha tradição que tem seu lado bom — disse Aliócha, sorrindo. — Pois bem! Vamos agora, de mãos dadas.
— É sempre assim, a vida inteira, de mãos dadas! Viva Karamázov! — repetiu Kólia com entusiasmo, e sua aclamação foi repetida por todos os meninos.
Fiódor Dostoiévski
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