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O relato seguinte de um crime cometido na Cidade de Nova Iorque, na noite de 31 de Agosto e na madrugada do dia 1 de Setembro de 1968, foi recolhido de várias fontes, incluindo:
- Relatos de testemunhas oculares ditados ao autor, bem como relatos de testemunhas oculares obtidos de fontes oficiais, em gravações e transcrições.
- Registos de tribunais, instituições penais e agências de investigação.
- Gravações e transcrições feitas por microfones e outros equipamentos electrónicos de vigilância instalados por organismos de prevenção e detecção criminal da Cidade de Nova Iorque, do Estado de Nova Iorque, do Governo dos Estados Unidos, e por agências de investigação privadas.
- Correspondência pessoal, discursos e documentos particulares dos indivíduos envolvidos, a que o autor teve acesso.
- Relatos de jornais.
- Relatórios oficiais e testemunhos que são do domínio público, incluindo declarações feitas à hora da morte.
- A experiência pessoal do autor.
Seria fastidioso enumerar todos os indivíduos, oficiais e civis, que prestaram um valioso auxílio ao autor. No entanto, estou particularmente grato a Louis Girardi, chefe de Redacção do Post-Ledger de Newark, que me dispensou das minhas tarefas de repórter criminal daquele jornal para poder investigar e escrever a história completa deste crime, como parte de uma investigação continuada sobre os usos e abusos de equipamento electrónico de vigilância por parte de entidades públicas e privadas.
O edifício do número 535 da 73ª Avenida Leste, Cidade de Nova Iorque, foi construído para ser a residência de Erwin K. Barthold, um comerciante de Manhattan que era dono da Barthold Inc., uma firma que comercializava corda, alcatrão, artigos para abastecimento a navios e equipamento marítimo de todos os tipos. Após a morte de Mr. Barthold, em 1931, a viúva, Edwina, e o filho, Erwin Jr., viveram na casa até 1943. Erwin Barthold Jr. morreu no dia 14 de Julho de 1943, ao efectuar uma missão de bombardeamento a Bremen, Alemanha. Esta era, por coincidência, a cidade em que o seu pai tinha nascido. Mrs. Barthold faleceu de cancro do útero, seis meses após a morte do filho.
A casa da 73ª Avenida passou, então, para um irmão do dono original que a mandara construir. Aquele era Emil Barthold, residente em Palm Beach, Florida e, pouco depois de o testamento ter sido aprovado, Emil Barthold vendeu a casa (16 de Fevereiro de 1946) a Baxter Bailey, Park Avenue nº 7456, Cidade de Nova Iorque.
A empresa financeira converteu a casa em oito apartamentos separados e dois escritórios no rés-do-chão. Foram instalados um elevador e um sistema de ar condicionado central. Os apartamentos e os escritórios foram vendidos como propriedade horizontal, por preços que variaram entre 26.768 dólares e 72.359 dólares.
O edifício em si é uma bela estrutura de pedra cinzenta, com uma arquitectura, de um modo geral, do estilo dos chatêaux franceses. O prédio tinha sido registado e integrado na lista da Associação do Património Cultural da Cidade de Nova Iorque. A decoração exterior é mínima e austera: o telhado é cor de cobre. O átrio está forrado com lajes de mármore cinzento estriado, entremeadas de espelhos tratados de modo a parecerem antiguidades. Além da entrada principal, há uma entrada de serviço a que se tem acesso através de um beco estreito, que vai da rua até uma porta traseira que conduz a um lance de escadas largas, de cimento. Os dois apartamentos do andar superior têm pequenas varandas. Há um pequeno apartamento na cave, ocupado pelo supervisor. O prédio é gerido por Shovey White, Avenida Madison nº 9132, Nova Iorque.
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Antes do dia 1 de Setembro de 1967, o apartamento 3B do nº 9535 da 73ª Avenida Leste fora ocupado, durante vários anos, pelo casal (sem filhos), Agnes e David Everleigh. Nessa data, ou por volta dela, eles separaram-se, e Mrs. Agnes Everleigh continuou na posse do apartamento 3B; David Everleigh foi viver para o Simeon Club, na esquina das Avenidas 23ª e Madison.
Aproximadamente no dia 1 de Março de 1968 (isto é uma suposição), David Everleigh contratou os serviços de Peace of Mind (1), Inc., uma agência de detectives particulares situada no nº 983 da 42ª Avenida Oeste, Nova Iorque. com a ajuda de David Everleigh - supõe-se, uma vez que ele ainda tinha uma chave do apartamento 3B e era o seu proprietário legal - foi instalado um dispositivo electrónico na base do telefone do apartamento 3B.
Este dispositivo era um microfone transmissor - um Intel, Modelo MT-146B - capaz de captar e transmitir chamadas telefónicas, bem como conversas tidas no interior do apartamento. Um montante de 25 dólares por mês foi pago ao supervisor do nº 534 da
73ª Avenida Leste - o prédio do outro lado da rua - para permitir que Peace of Mind, Inc. colocasse um gravador, accionado pela voz, num armário de artigos de limpeza, no terceiro andar desse prédio.
Assim, não era necessário que um detective estivesse presente. O gravador, accionado pela voz, registava todos os telefonemas e conversas tidas no interior do apartamento 3B da 73ª Avenida Leste. Todas as manhãs, a fita era retirada por um operacional da Peace of Mind, Inc., e substituída por uma fita nova.
As gravações resultantes tornaram-se a base do processo de divórcio de David Everleigh (Supremo Tribunal, Nova Iorque), tendo o adultério como fundamento (Everleigh contra Everleigh, TRN-14853), e as transcrições das fitas tornaram-se do domínio público, pelo que é permitido reproduzi-las aqui. Tem algum interesse notar que Mrs. Everleigh recorreu do veredicto do juiz, a favor de David Everleigh, com base no argumento de que David Everleigh não tinha um mandato judicial e não tinha o direito legal de colocar um dispositivo electrónico no apartamento 3B, apesar de ser o seu proprietário legal.
Espera-se que este litígio acabe por chegar ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos e que resulte numa decisão histórica.
Segue-se um excerto da transcrição feita a partir da gravação de Peace of Mind, Inc., efectuada aproximadamente à 1.15 da manhã do dia 24 de Março de 1968.
Esta é a fita POM-24MAR68-EVERLEIGH. Os presentes,
* (1) Paz de espírito. (N. da T.) *
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Mrs. Agnes Everleigh e John Anderson, foram identificados a partir da voz e de provas obtidas no interior do apartamento.
(Som de uma porta a abrir e a fechar.)
MRS. EVERLEIGH: Aqui estamos ... põe-te à vontade. Põe o casaco onde quiseres.
ANDERSON: Como é que um prédio de classe como este não tem porteiro?
MRS. EVERLEIGH: Oh, temos, mas ele está provavelmente na cave com o supervisor, a beber um jarro de moscatel. São os dois uns bêbados.
ANDERSON: Oh?
(Pausa de sete segundos.)
ANDERSON: Tens um apartamento muito bonito.
MRS. EVERLEIGH: Ainda bem que gostas. Prepara-nos uma bebida. As coisas estão ali. Há gelo na cozinha.
ANDERSON: Que queres tomar?
MRS. EVERLEIGH: Um Jameson. com gelo. com um pouco de soda. Que bebes?
ANDERSON: Tens conhaque? Ou brande?
MRS. EVERLEIGH: Tenho algum Martell.
ANDERSON: Óptimo.
(Pausa de quarenta e dois segundos.)
ANDERSON: Aqui tens.
MRS. EVERLEIGH: Tchim-tchim.
ANDERSON: Certo.
(Pausa de seis segundos.)
MRS. EVERLEIGH: Senta-te e descontrai-te. vou tirar a cinta.
ANDERSON: Está bem. (Pausa de dois minutos e dezasseis segundos.)
MRS. EVERLEIGH: Assim estou melhor. Graças a Deus.
ANDERSON: Todos os apartamentos deste prédio são como este?
MRS. EVERLEIGH: A maior parte é maior. Porquê?
ANDERSON: Gosto dele. Tem classe.
MRS. EVERLEIGH: Classe? Meu Deus, és de mais. Que fazes para ganhar a vida?
ANDERSON: Opero uma máquina de dobrar numa tipografia. Para um jornal de um supermercado. Um jornal diário. As promoções e coisas assim.
MRS. EVERLEIGH: Não me vais perguntar o que eu faço?
ANDERSON: Fazes alguma coisa?
MRS. EVERLEIGH: Essa tem graça. O meu marido é o dono deste apartamento. Estamos separados. Ele não me dá um centavo. Mas eu safo-me bem. Sou compradora para uma cadeia de lojas de roupa interior feminina.
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ANDERSON: Isso parece interessante.
MRS. EVERLEIGH: Vai para o inferno.
ANDERSON: Tens muita massa?
MRS. EVERLEIGH: Alguma. Não a suficiente.
(Pausa de dezassete segundos.)
MRS. EVERLEIGH: Espero que não penses que eu tenho o hábito de engatar homens na rua?
ANDERSON: Porquê eu?
MRS. EVERLEIGH: Parecias limpo e razoavelmente bem vestido. Excepto a gravata. Deus do céu, detesto essa gravata. És casado?
ANDERSON: Não.
MRS. EVERLEIGH: Já foste casado?
ANDERSON: Não.
MRS. EVERLEIGH: Meu Deus, eu nem sequer sei como te chamas. Como é que te chamas?
ANDERSON: John Anderson.
MRS. EVERLEIGH: É um nome simpático e limpo. O meu é Agnes Everleigh... ex-Mrs. David Everleigh. Como é que te hei-de chamar... Jack?
ANDERSON: As pessoas geralmente chamam-me Duque.
MRS. EVERLEIGH: Duque? Realeza, por amor de Deus. Deus do céu, estou com sono...
[Pausa de quatro minutos e treze segundos. Nesta altura há prova (não admissível) de que Mrs. Everleigh passou pelas brasas. Anderson vagueou pelo apartamento (suposição). Inspeccionou o sistema de intercomunicação ligado às campainhas e ao microfone no átrio. Inspeccionou as fechaduras das janelas. Inspeccionou a fechadura da porta da frente.
MRS. EVERLEIGH: Que estás a fazer?
ANDERSON: Só a esticar as pernas.
MRS. EVERLEIGH: Gostavas de passar cá a noite?
ANDERSON: Não. Mas não quero ir já para casa.
MRS. EVERLEIGH: Muito obrigada.
(Som de uma bofetada.)
MRS. EVERLEIGH (com voz entrecortada): Por que é que fizeste isso?
ANDERSON: É o que tu querias, não é?
MRS. EVERLEIGH: Como é que soubeste?
ANDERSON: Uma executiva grande e forte como tu... tinha que ser.
MRS. EVERLEIGH: Nota-se assim tanto?
ANDERSON: Não. A não ser que se ande à procura. Queres que use o cinto?
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MRS. EVERLEIGH: Está bem.
O que se segue são suposições, apoiadas em parte por testemunhas oculares.
Quando saiu do apartamento 3B, às 3.04 da manhã, John Anderson passou alguns momentos a estudar a fechadura do apartamento 3a, do outro lado do patamar. Subiu depois de elevador até ao quinto andar, examinou as fechaduras, e voltou lentamente para baixo, examinando as portas e as fechaduras. Não havia olhos-mágicos nas portas dos apartamentos acima do rés-do-chão.
Quando saiu do átrio - ainda sem porteiro -, pôde examinar os sistemas de segurança das portas exteriores e da campainha. Esperou então por um táxi na esquina das 73ª Avenida Leste e da York, e seguiu para o seu apartamento em Brooklyn, chegando lá às 4.26 da manhã. As luzes do seu apartamento apagaram-se às 4.43 (depoimento de testemunha ocular).
Às 2.35 da tarde de quarta-feira, 17 de Abril de 1968, um carro preto estava estacionado no lado a norte da 55ª Avenida, Cidade de Nova Iorque, entre a Quinta Avenida e a Avenida das Américas. O veículo era um Cadillac Eldorado de 1966 (com ar condicionado), com a matrícula HGR-45-0159. Estava registado como automóvel de serviço da empresa pela Benefix Realty Co., Inc., 5ª Avenida nº 6501, Nova Iorque.
O motorista do automóvel - mais tarde identificado como Leonard Goldberg, de 42 anos, residente no nº 778 de Grant Parkway, Bronx, Nova Iorque - foi visto a descansar perto.
O único ocupante do automóvel estacionado, sentado no banco traseiro, era Frederick Simons, vice-presidente da Benefix Realty Co., Inc. Tinha 53 anos; aproximadamente um metro e setenta de altura; 85 quilos. Tinha um chapéu de coco preto e um sobretudo de tweed trespassado. O cabelo e o bigode eram brancos. Tinha-se formado na Faculdade de Direito de Rawlins, Erskine, Virgínia, e era também um contabilista encartado do Estado de Nova Iorque (41-5G-1943). Não tinha cadastro, embora tivesse sido interrogado duas vezes - pelo procurador Federal de Nova Iorque (Distrito Sul) e por um júri de instrução convocado pelo Supremo Tribunal de Manhattan - sobre o controlo da Benefix Realty Co., Inc., por um grupo de crime organizado, e o papel que a Benefix desempenhara na
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obtenção de licenças de venda de bebidas para vários bares e restaurantes da Cidade de Nova Iorque e de Buffalo, Nova Iorque.
Aproximadamente cinco meses antes desta data, no dia 14 de Novembro de 1967, tinha sido obtido um mandato judicial (MCC-B-189M16) para a colocação de um dispositivo electrónico de transmissão no automóvel descrito. O pedido fora feito pela Divisão de Fraudes da Repartição de Impostos sobre Rendimentos do Estado de Nova Iorque. Um microfone transmissor Gregory MT-146-GB foi escondido debaixo do tablier do referido veículo. Foi colocado na garagem em que era feita a manutenção dos automóveis registados em nome da Benefix Realty Co., Inc.
Às 2.38 da tarde de quarta-feira, 17 de Abril de 1968, um homem foi visto a aproximar-se deste carro. Ele foi mais tarde identificado por uma testemunha ocular no local e pela voz.
John Duque Anderson, de 37 anos, residia no nº 314 da Avenida Harrar, Brooklyn, Nova Iorque. Tinha um metro e oitenta de altura; 84 quilos; cabelo e olhos castanhos; nenhuma cicatriz; vestia-se razoavelmente bem e falava com um ligeiro sotaque do Sul. Anderson era um ladrão profissional e, quatro meses antes, tinha saído em liberdade condicional, depois de ter cumprido vinte e três meses em Sing Sing (562-8491), após ter sido condenado por assalto com arrombamento, em 21 de Janeiro de 1966, no Tribunal Criminal de Manhattan. Embora esta fosse a primeira condenação do seu cadastro, tinha sido preso duas vezes no Estado de Nova Iorque, uma por roubo, outra por agressão. Ambas as acusações tinham sido retiradas sem que houvesse registo de qualquer julgamento.
A fita 17ABR68-106 começa assim:
SIMONS: Duque! Deus do céu, é bom ver-te. Como tens passado?
ANDERSON: Mr. Simons. É óptimo vê-lo. como está?
SIMONS: Óptimo, Duque, óptimo. Estás com bom aspecto. Um pouco mais magro, talvez.
ANDERSON: Espero bem que sim.
SIMONS: Claro, claro! Temos esta pequena banca de refrescos aqui. Como vês, já estou a beber qualquer coisa. Posso oferecer-te alguma coisa?
ANDERSON: Conhaque? Ou brande?
SIMONS: Que tal um Rémy Martin?
ANDERSON: Seria óptimo.
SIMONS: Desculpa os copos de papel, Duque. Chegámos à conclusão de que assim é mais fácil.
ANDERSON: Claro, Mr. Simons.
(Pausa de cinco segundos.)
SIMONS: Bem... ao crime.
(Pausa de quatro segundos.)
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ANDERSON: Meu Deus... isto é bom.
SIMONS: Diz-me, Duque... como te têm corrido as coisas?
ANDERSON: Não me posso queixar, Mr. Simons. Estou-lhe grato por tudo o que fez por mim.
SIMONS: Tu também fizeste muito por nós, Duque.
ANDERSON: Sim. Mas não foi muito. Passei as cartas quando pude. Por vezes não consegui.
SIMONS: Nós compreendemos, garanto-te. Não esperamos a perfeição quando as pessoas estão dentro.
ANDERSON: Nunca me esquecerei daquela noite em que voltei para Manhattan. O quarto de hotel. O dinheiro. A bebida. E aquela vaca que me mandou. E a roupa! Como é que soube o meu número?
SIMONS: Nós temos maneiras de fazer as coisas, Duque. Tu sabes isso. Espero que tenhas gostado da mulher. Fui eu próprio que a escolhi.
ANDERSON: Exactamente o que o médico receitou.
SIMONS (com uma gargalhada): Mesmo certa.
(Pausa de nove segundos.)
ANDERSON: Mr. Simons, desde que saí que tenho andado direito. Trabalho à noite numa máquina de dobrar papel numa tipografia. Fazemos um folheto diário para uma cadeia de supermercados. O senhor sabe... promoções do dia, coisas assim. E eu vou apresentar-me regularmente à Polícia. Não me encontro com ninguém do antigo grupo.
SIMONS: Nós sabemos, Duque, nós sabemos.
ANDERSON: Mas surgiu uma coisa sobre a qual gostaria de lhe falar. Uma ideia louca. Não posso fazê-lo sozinho. Foi por isso que lhe telefonei.
SIMONS: O que é, Duque?
ANDERSON: O senhor é capaz de pensar que sou maluco, que aqueles vinte e três meses me danificaram o cérebro.
SIMONS: Nós não pensamos que sejas maluco, Duque. O que é... uma campanha?
ANDERSON: Sim. Uma coisa que se me deparou há cerca de três semanas. Tenho andado a pensar nela desde então. Talvez seja boa.
SIMONS: Dizes que não consegues fazê-la sozinho? De quantos precisas?
ANDERSON: Mais de cinco. Não mais de dez.
SIMONS: Não gosto. Não é simples.
ANDERSON: é simples, Mr. Simons. Talvez cinco chegassem.
SIMONS: Vamos tomar outra bebida.
ANDERSON: Certo... Obrigado.
(Pausa de onze segundos.)
SIMONS: Quanto esperas fazer?
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ANDERSON: Quer que tente adivinhar? É a única coisa que posso fazer... adivinhar. Suponho que um mínimo de cem mil.
(Pausa de seis segundos.)
SIMONS: E queres falar com o Doutor?
ANDERSON: Sim, se o senhor conseguir organizar o encontro.
SIMONS: É melhor contares-me mais sobre o assunto.
ANDERSON: Vai rir-se de mim.
SIMONS: Não me vou rir de ti, Duque. Prometo.
ANDERSON: Há uma casa na Zona Leste. Perto do rio. Antigamente era uma casa particular. Agora são apartamentos. Consultórios de médicos no rés-do-chão. Oito apartamentos nos quatro andares. Gente rica. Porteiro. Elevador sem operador.
SIMONS: Queres assaltar um dos apartamentos?
ANDERSON: Não, Mr. Simons, Quero assaltar o prédio todo. Quero ocupar o prédio inteiro e limpá-lo.
Anthony "Doutor" e Médico, 54 anos, oficialmente residente no nº 325 de Mulberry Lane, Great Neck, Long Island, foi identificado perante a Subcomissão Especial do Senado dos Estados Unidos para a Investigação do Crime Organizado (16º Congresso, primeira sessão) em 15 de Março de 1965 (Relatório de Audiências, pp. 413-419), como sendo o terceiro capo (capitão) na hierarquia da família Angelo. Os Angelos eram uma das seis famílias que controlavam a distribuição de drogas, extorsão, prostituição, agiotagem e outras actividades ilegais em Nova Iorque, Nova Jérsia, Connecticut e zona leste da Pensilvânia.
O Médico era presidente da Benefíx Realty Co., Inc., 5ª Avenida nº 6501, Cidade de Nova Iorque. Os seus outros bens incluíam metade da sociedade da Great Frontier Steak House, na Avenida Flatbush nº 106-372, Brooklyn, Nova Iorque; era proprietário do New Finnish Sauna and Health Club, na 48ª Avenida Oeste nº 2746, Manhattan; possuía um terço da Lafferty, Riley, Riley DAmato, corretores (multados duas vezes pela Comissão de Valores e Câmbios), da Wall Street nº 1441, Manhattan; também se suspeitava, embora sem ter sido provado, de que era dono ou sócio de vários pequenos bares, restaurantes e clubes privados na Zona Leste de Manhattan, frequentados por homossexuais masculinos e lésbicas.
O médico era um homem alto, com um metro e noventa e cinco, corpulento, e vestia-se de um modo conservador (os seus fatos eram
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feitos por Quint Riddle, alfaiate, Saville Row n.B 1486, Londres; as camisas por Trioni, Via Veneto nº 142-F, Roma; os sapatos por B. Halley, Genebra). Durante muitos anos, ele sofrera de um tic douloureux crónico e aparentemente incurável, uma nevralgia extremamente dolorosa dos músculos faciais que resultava numa contracção espasmódica do olho e da face direita.
O seu cadastro era mínimo. Aos 17 anos, fora preso, acusado de agressão, com uma faca, a um polícia fardado. Não resultaram quaisquer ferimentos. O Tribunal Juvenil de Bronx desistiu da acusação a pedido dos pais de O médico . Não havia qualquer outro registo de acusações, prisões ou condenações.
No dia 22 de Abril de 1968, as instalações da Benefix Realty Co., Inc., 5ª Avenida nº 6501, Nova Iorque, estavam sob a vigilância electrónica de três organismos: o FBI, a Divisão de Fraudes da Repartição de Impostos sobre Rendimentos do Estado de Nova Iorque, e a Polícia de Nova Iorque. Aparentemente, nenhum destes organismos tinha conhecimento da actividade dos outros.
A fita seguinte, datada de 22 de Abril de 1968, é a DPNI-SIS-564-03.
ANDERSON: Desejava falar com Mr. O médico , por favor. O meu nome é John Anderson.
RECEPCIONISTA: Mr. O médico está à sua espera?
ANDERSON: Está, sim. Mr. Simons marcou a reunião.
RECEPCIONISTA: É só um momento, por favor.
(Pausa de catorze segundos.)
RECEPCIONISTA: Pode entrar. Depois da porta, siga pelo corredor. Primeira porta à direita.
ANDERSON: Obrigado.
RECEPCIONISTA: Não tem de quê.
(Pausa de vinte segundos.)
O médico : Entre.
ANDERSON: Boa tarde, Mr. O médico .
O médico : Duque! Que prazer em ver-te.
ANDERSON: Doutor... é óptimo voltar a vê-lo. Está com bom aspecto.
O médico : Peso a mais. Olha para isto. Demasiado. é por causa da pasta. Mas não consigo resistir. Como tens passado, Duque?
ANDERSON: Não me posso queixar. Quero agradecer-lhe...
O médico : com certeza, com certeza, Duque. Alguma vez viste a vista do nosso telhado? E se fôssemos dar uma vista de olhos? Apanhar um pouco de ar fresco.
ANDERSON: Óptimo.
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(Pausa de cinco segundos.)
O médico : Miss Riley? Vou-me ausentar do meu gabinete por uns momentos. Importa-se de pedir ao Sam que ligue o ar condicionado? Está muito abafado aqui dentro. Obrigado.
(Pausa de três minutos e quarenta e dois segundos. O resto da gravação é indistinta devido a dificuldades mecânicas.)
O médico :... sabemos? Um tipo vem todas as manhãs... o local... mas... Não vais acreditar... telefones... coisas dessas... Aquele prédio ali, do outro lado da rua... janelas... longo alcance... Tentamos manter... assassínio. Não confies... Ali perto do ar condicionado. O barulho... Frio para ti?
ANDERSON: Não, está...
O médico : O Fred disse-me... campanha... Interessante. Cerca de cinco homens calculaste ou... uns mais.
ANDERSON: Eu sei... ideia... ainda. Claro que eu nem sequer fui... Por isso... um pacote, Mr. O médico .
O médico : (Completamente indistinto.)
ANDERSON: Não. Não eu... Dois meses, diria eu... ter cuidado... primeira investigação. Homens bons...estar em...se fôssemos adiante. Por isso a única coisa que tenho... actividade. Eu pensei que... talvez... um pouco de acção.
O médico : Estou a ver... quanto é que tu... por esta... inicial.
ANDERSON: Máximo três mil eu... maior parte... homens bons. Mas não vale a pena cortar... assim.
O médico : Tu tens... endes, é pessoal. O meu próprio dinheiro. Se... bom, terei... trazer outros. Compreendes? Será... mais... e também vamos querer... homem lá. Nosso.
ANDERSON: Compreendo. E obrigado... ajuda. Eu realmente... posso deixar...
O médico : Duque... quem... quiseres. Tu... pensas... Fred Simons... dinheiro... dele. Vamos... baixo. Frio... raio. Aminha cara... problemas. Mãe do céu.
Fim da gravação. Supõe-se que os dois homens tenham voltado para o escritório da Benefix, mas que Anderson não voltou a entrar no gabinete de O médico . Ele saiu do edifício às 2.34 da tarde.
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O Patsys Delicious Meat Market (1), na Nona Avenida nº 901, Nova Iorque. Quatro meses antes, estas instalações tinham sido colocadas sob vigilância electrónica pela Divisão de Investigação da Administração Alimentar e Farmacêutica. A gravação seguinte, com o rótulo AAF-PMM-198-08, é datada de 24 de Abril de 1968. Hora: aproximadamente 11.15 da manhã.
ANDERSON: É o Patsy? PATSY: É.
ANDERSON: O meu nome é Simons. Eu pedi três dos seus melhores bifes. Você disse que os teria prontos quando eu aí fosse. PATSY: com certeza. Aqui estão eles, já embrulhados. ANDERSON: Obrigado. Ponha na minha conta, está bem? PATSY: com todo o prazer.
Thomas Haskins (também conhecido por Timothy Hawkins, Terence Hall, etc.); 32 anos; um metro e sessenta e dois; 64 quilos; cicatriz branca na têmpora esquerda; uma figura franzina; cabelo louro, oxigenado ainda mais claro; um homossexual assumido. O cadastro deste homem incluía duas detenções sob acusação de molestar sexualmente jovens do sexo masculino. Os pais dos jovens desistiram da acusação. Preso em 18 de Março de 1964, durante uma rusga a uma corretora fraudulenta no nº 1432 de Wall Street, Manhattan. A acusação foi retirada. Preso no dia 23 de Outubro de 1964, acusado de conspiração para cometer fraude, queixa apresentada por Mrs. Eloise MacLeyy, Central Park Oeste nº 4110, Manhattan, afirmando que ele a tinha defraudado em 10.131,56 dólares, prometendo-lhe elevados lucros do investimento, no futuro. Acusação retirada. último endereço conhecido: 76ª Avenida Oeste nº 713, Cidade de Nova Iorque. Vivia com a irmã (ver em baixo).
Cynthia Haskins; 36 anos; um metro e setenta e dois; 74 quilos; cabelo ruivo (pintado; usava frequentemente perucas); nenhuma cicatriz física. Quatro condenações por roubos em lojas, três
* (1) Talho de carne deliciosa de Patsy. (N. da T.) *
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por prostituição e uma por fraude, em que debitara 1.061,78 dólares de mercadoria a um cartão de crédito roubado da Buy-Everything Credit Co., Inc. (1), Avenida Marvella nº 4501, Los Angeles, Califórnia. Tinha cumprido um total de quatro anos, sete meses e treze dias na Prisão Feminina de Manhattan; na Casa Barnaby para Mulheres, em Losset, Nova Iorque; e na Casa MacAllister para Mulheres, Carnburn, Nova Iorque. Escreveu Was a B-GirP (Smith Townsend (2), publicada em 10 de Março de 1963) e Womens Prison: A Story ofLust and Frustration (3) (Nu-World Publishing Corp., publicado em 26 de Julho de 1964).
O apartamento sito na 76ª Avenida Oeste, Nova Iorque, estava sob vigilância electrónica pela Divisão de Narcóticos do Departamento do Tesouro. A conversa seguinte é a transcrição DN-DT-TH-0018-95GT de uma fita com o mesmo número (com excepção dos últimos dígitos, que são 95G). Os presentes foram identificados pela voz e por provas obtidas no exterior e no interior do apartamento. A data e a hora não foram determinadas com exactidão.
HASKINS: ... então estamos em cima, querido. A triste história das nossas vidas. Queres uma passa?
ANDERSON: Não. Está à vontade. E tu, Vivaça?
CYNTHIA: Vamos vivendo. Eu roubo um pouco, e o Tommy vende o cu. Vamo-nos safando.
ANDERSON: Tenho uma coisa para vocês.
CYNTHIA: Para os dois?
ANDERSON: Sim.
CYNTHIA: Quanto?
ANDERSON: Cinco notas. Não deve levar mais de uma semana. Não custa nada.
HASKINS: Parece maravilhoso.
CYNTHIA: Diz-nos o que é.
ANDERSON: Digo-vos o que têm que saber. A partir daí... não há perguntas.
HASKINS: Nem sonharia fazê-las, querido.
ANDERSON: Há esta casa na Zona Leste. Eu deixo-vos o endereço e tudo o que sei sobre os horários dos porteiros e do supervisor. Tommy, eu quero uma lista completa de toda a gente que mora ou trabalha no prédio. Isso inclui empregados domésticos, porteiros e o
* (1) Buy-Everything Credit Co., Inc. - Companhia de Crédito Compra-Tudo. (N. da T.)
(2) Eu era uma rapariga B. (N. da T.)
(3) Prisão de Mulheres: Uma História de Luxúria e Frustração. (N. da T.)
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supervisor. Tudo e todos. Nomes, idades, negócios, horários diários... tudo.
HASKINS: É uma brincadeira de crianças, querido.
ANDERSON: Há dois consultórios no rés-do-chão, um de um médico, outro de um psiquiatra. Quero que lhes dês uma vista de olhos. Mobiliário? Cofres? Talvez quadros nas paredes? Caixas de sapatos no armário do fundo? Estes malditos médicos ganham muito dinheiro e não o declaram. Dá uma vista de olhos e decide como tratar das coisas. Depois diz-me, antes de agires.
CYNTHIA: Tal como disseste... não custa nada. Como é que te contactamos, Duque?
ANDERSON: Eu telefono-vos todas as sextas-feiras até estarem prontos. O vosso telefone está limpo?
CYNTHIA: Aqui... Eu escrevo-te o número. É uma cabina telefónica numa loja de doces da Avenida End Oeste. Eu estou lá todas as sextas-feiras ao meio-dia.
ANDERSON: Está bem.
CYNTHIA: Um pequeno depósito?
ANDERSON: Duas notas.
CYNTHIA: És um querido.
HASKINS: Ele é um amor, um mensageiro do céu. Como vai a tua vida amorosa, Duque?
ANDERSON: Bem.
HASKINS: Vi a Ingrid na outra noite. Ela ouviu dizer que tinhas saído. Perguntou por ti. Queres vê-la?
ANDERSON: Não sei.
HASKINS: Ela quer ver-te.
ANDERSON: Quer? Está bem. Ainda está no mesmo sítio?
HASKINS: Está, sim, querido. Não a culpas... pois não?
ANDERSON: Não. A culpa não foi dela. Fui preso por causa da minha própria estupidez. Como está ela?
HASKINS: Na mesma. O ratinho branco e pálido feito de arame e aço. A essência da maldade.
ANDERSON: É mesmo.
Fun Electronic Supply and Repair Company Co., Inc., Avenida D n.2 1975, Cidade de Nova Iorque.
A gravação seguinte foi feita pela Comissão de Comércio Federal devido a um conjunto de circunstâncias um tanto invulgares. A CCF
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colocou dispositivos electrónicos de vigilância nas referidas instalações (mandato judicial MCC-198-67BC) no seguimento de queixas, por parte de várias grandes empresas de gravação, de que o proprietário da Fun Electronic Supply and Repair Company Co., Inc., Ernest Heinrich Mann, desenvolvia uma actividade criminosa, comprando fitas gravadas e LPs caros de música clássica - óperas e sinfonias -, gravando-os nas suas próprias fitas e vendendo as fitas a um preço bastante reduzido (mas lucrativo) a uma longa lista de clientes.
Fita CCF-30ABR68-EHM-14.
EMPREGADO: Sim?
ANDERSON: O dono está?
EMPREGADO: Mr. Mann?
ANDERSON: Sim. Posso falar com ele por um minuto? Quero fazer uma reclamação sobre um ar condicionado que vocês me venderam.
EMPREGADO: vou chamá-lo.
(Pausa de nove segundos.)
ANDERSON: Vocês instalaram um ar condicionado na minha casa, e ele pifou depois de o ter ligado. Experimentei-o, e ele funcionou durante alguns minutos, depois parou.
MANN: Importa-se de vir até ao gabinete de trás por uns minutos, que tentaremos resolver o problema. Al, toma conta das coisas.
EMPREGADO: Sim, Mr. Mann.
(Pausa de treze segundos.)
ANDERSON: Professor... estás com bom aspecto.
MANN: Está tudo a correr bem. E contigo, Duque?
ANDERSON: Não me posso queixar. Levei algum tempo a descobrir-te. Tens um bom arranjinho aqui.
MANN: O que sempre quis. Rádio, televisão, equipamento de alta fidelidade, gravadores, aparelhos de ar condicionado. Safo-me bem.
ANDERSON: Por outras palavras, estás a fazer dinheiro?
MANN: Sim, isso é verdade.
ANDERSON: Por outras palavras, vai-me custar mais.
MANN (rindo): Duque, Duque, tu sempre foste... como é que se diz... um homem muito astuto. Sim, agora vai-te custar mais. O que é?
ANDERSON: Há esta casa na Zona Leste. Não muito longe daqui. Cinco andares. Entrada de serviço na cave. Eu quero a cave esquadrinhada... sistema telefónico, linhas externas, alarmes, o que lá houver. Tudo.
(Pausa de nove segundos.)
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MANN: Difícil. com todos estes terríveis roubos que se deram recentemente na Zona Leste, toda a gente está extremamente vigilante. Porteiro?
ANDERSON: Sim.
MANN: Entrada traseira?
ANDERSON: Sim.
MANN: Eu diria que há uma televisão de circuito fechado em que, do cubículo do porteiro no átrio, se vê a entrada de serviço traseira. Ele só carrega no botão que abre a porta de serviço depois de ver quem está a tocar. Estou certo?
ANDERSON: Cem por cento.
MANN: Então, deixa-me pensar...
ANDERSON: Isso mesmo, Professor.
MANN: "Professor." Tu és o único homem que eu conheço que me chama Professor.
ANDERSON: Não és professor?
MANN: Eu fui professor. Mas, por favor... deixa-me pensar. Agora... Sim... Somos técnicos de reparações de telefones. A carrinha autêntica está estacionada em frente, onde o porteiro a pode ver. Uniformes, equipamento, cartões de identificação... tudo. Estamos a colocar uma nova linha interurbana no quarteirão. Temos de inspeccionar as ligações telefónicas na cave. Duque? Tudo bem até agora?
ANDERSON: Sim.
MANN: O porteiro insiste para que estacionemos junto da entrada de serviço...
ANDERSON: E um beco que vai dar às traseiras do prédio.
MANN: Excelente. Estacionamos depois de ele ter inspeccionado o meu cartão de identificação. Está tudo bem. O motorista fica na carrinha. Eu entro. O porteiro vê-me no seu monitor de televisão. Abre a porta. Sim, penso que sim.
ANDERSON: Eu também.
MANN: E depois? Que é que queres?
ANDERSON: Tudo o que está lá em baixo. Como é que a linha telefónica entra. Podemos cortá-la? Como? É uma única linha interurbana? Pode ser cortada ou desviada? Quantos telefones em todo o prédio? Extensões? Sistemas de alarme? Ligados à esquadra local ou a agências privadas? Quero um esquema de todo o sistema. E olha bem em volta lá em baixo. Talvez não haja nada, mas nunca se sabe. Sabes usar uma Polaroid comflash?
MANN: Claro. Uma visão completa, clara. Todos os ângulos. Pormenores. Instruções sobre o que ligar e o que cortar. Satisfação garantida.
ANDERSON: Foi por isso que te procurei.
MANN: O preço é mil dólares, com metade adiantado.
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ANDERSON: O preço é setecentos dólares, com trezentos adiantados.
MANN: O preço é oitocentos, com trezentos adiantados.
ANDERSON: Está bem.
MANN: O preço não inclui carrinha dos telefones nem motorista. Não tenho ninguém em quem possa confiar. Tens de os arranjar tu. Carrinha dos telefones, motorista, farda e cartão de identificação dele. Pagas isso?
ANDERSON: Está bem. Tu arranjas os teus?
MANN: Arranjo.
ANDERSON: Eu dir-te-ei quando. Obrigado, Professor.
MANN: Sempre ao dispor.
Da fita gravada POM-14MAI68-EVERLEIGH, Segmento I, aproximadamente 9.45 da manhã.
MRS. EVERLEIGH: Meu Deus, tu és de mais. Nunca conheci ninguém como tu. Como é que aprendeste a fazer estas coisas?
ANDERSON: Prática.
MRS. EVERLEIGH: Tu viras-me de cima para baixo e do avesso. Conheces todos os pontos... exactamente o que me excita. Há cerca de meia hora, eu tinha atingido o limite. Tu enlouqueces-me.
ANDERSON: Sim.
MRS. EVERLEIGH: Durante um momento tive vontade de gritar.
ANDERSON: Por que é que não gritaste?
MRS. EVERLEIGH: A vaca ao lado... ela provavelmente mandava o porteiro chamar a polícia.
ANDERSON: Que vaca?
MRS. EVERLEIGH: A velha Mrs. Horowitz. Ela e o marido vivem no apartamento 3A, do outro lado do patamar.
ANDERSON: Ela está em casa durante o dia?
MRS. EVERLEIGH: Claro. Ele também... a maior parte dos dias, quando não está com o seu corretor. Ele está reformado e joga na bolsa para se distrair. Porquê, não sei. Ainda tem o primeiro dinheiro que ganhou.
ANDERSON: Cheios de massa?
MRS. EVERLEIGH: Cheios de massa e forretas. Eu já a vi pôr latas de comida de cão no incinerador, e nem sequer têm um cão. Fui
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uma vez a casa deles. Não me dou com eles socialmente, mas ele chamou-me uma noite quando ela desmaiou. Ele entrou em pânico e tocou-me à campainha. Foi só um desmaio... nada de especial. Mas quando estava no quarto deles vi um cofre que deve ser do Ano I. Aposto que está a abarrotar. Ele costumava ser grossista de joalharia. Faz aquilo outra vez, querido.
ANDERSON: Fazer o quê?
MRS. EVERLEIGH: Tu sabes... com o dedo... aqui.
ANDERSON: Eu sei uma coisa melhor que isso. Abre mais um pouco. Mais. Sim. Levanta os joelhos, minha cabra estúpida.
MRS. EVERLEIGH: Não. Não faças isso. Por favor.
ANDERSON: Só estou no princípio. Vai melhorar.
MRS. EVERLEIGH: Por favor, não. Por favor, Duque. Estás a magoar-me.
ANDERSON: A ideia é essa.
MRS. EVERLEIGH: Não posso... oh meu Deus, não... por favor... Deus... Duque, peço-te... oh, oh, oh...
ANDERSON: Que imbecil que tu és. Por amor de Deus, estás a chorar...
Tipografia Helmas, Avenida Amsterdam n.9 8901, Nova Iorque;
14 de Maio de 1968; 10.46 da manhã. Vigilância electrónica pelo Serviço de Contribuições e Impostos, utilizando um Modelo Teletek MT-188B que transmite para um gravador accionado pela voz, colocado na cave da charcutaria ao lado. Esta é a fita SCI-HJB-14MAI68-106.
EMPREGADO: Sim?
HASKINS: O patrão está?
EMPREGADO: Smitty? Ele esta lá atrás. Ei, Smitty! Uma pessoa para falar contigo!
(Pausa de seis segundos.)
HASKINS: Olá, Smitty.
SMITTY: Onde estão os meus vinte?
HASKINS: Aqui mesmo, Smitty. Desculpa ter levado tanto tempo a pagar-te. Peço imensa desculpa. Mas garanto-te que não me esqueci.
SMITTY: Está bem. Obrigado, Tommy.
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HASKINS: Posso falar contigo por um momento, Smitty?
SMITTY: Bem... está bem. Anda até lá atrás.
(Pausa de onze segundos.)
HASKINS: Preciso de alguns papéis, Smitty. Tenho dinheiro. Estás a ver? Muita massa. Dinheiro no acto da entrega.
SMITTY: De que precisas?
HASKINS: Escrevi tudo na máquina de escrever da Vivaça. Um cartão de identificação em nome de Sidney Brevoort. Eu sempre adorei o nome Sidney. A empresa é a Comissão para a Nova Reorganização Urbana, uma organização sem fins lucrativos. Qualquer endereço limpo. Usa este número de telefone. Aqui está uma fotografia minha para pregares no cartão. Aqui está o que ele deve dizer: Este cartão identifica..., etc., etc. Depois quero cerca de vinte cartões de visita de Sidney Brevoort. Enquanto estiveres com a mão na massa, é melhor fazeres cerca de dez folhas de papel timbrado e sobrescritos para a Comissão para a Nova Reorganização Urbana. Nunca se sabe. Tudo bem até agora?
SMITTY: Claro. Que mais? ?
HASKINS: A Vivaça quer vinte cartões de visita. Muito femininos e elegantes. Aqui está o nome e a morada: Mrs. Doreen Margolies, 73.- Avenida Leste n.a 585. Uma coisa com bom gosto. Compreendes?
SMITTY: Claro. Eu tenho bom gosto. É tudo?
HASKINS: Sim, é tudo.
SMITTY: Logo à tarde, às três horas. Vinte cinco dólares.
HASKINS: Muito obrigado, Smitty. És um amor. Até logo, às três.
SMITTY: com a massa.
HASKINS: Claro. Um...
(A gravação foi interrompida devido a falha mecânica.)
Gravação POM-14MAI68-EVERLEIGH, Segmento II; aproximadamente 11.45 da manhã.
MRS. EVERLEIGH: Tenho de ir para o escritório. Estou fora há demasiado tempo. Meu Deus, sinto-me esgotada.
ANDERSON: Bebe outro golo; vais-te sentir melhor.
MRS. EVERLEIGH: É possível. Achas que devíamos sair juntos?
ANDERSON: Por que não? Ele sabe que estou aqui, não sabe?
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MRS. EVERLEIGH: Sabe. Ele telefonou primeiro. Meu Deus, espero que ele não vá comentar com os outros moradores.
ANDERSON: Dá-lhe uma gorjeta. Ele não vai falar.
MRS. EVERLEIGH: Quanto é que lhe hei-de dar?
ANDERSON: Pede-lhe que te chame um táxi e passa-lhe dois dólares para a mão.
MRS. EVERLEIGH: Dois dólares? É suficiente?
ANDERSON: Mais do que suficiente.
MRS. EVERLEIGH: Para onde vais quando saíres daqui?
ANDERSON: Está um dia bonito... talvez vá a pé até à 9ª e apanhe um autocarro para o trabalho.
MRS. EVERLEIGH: Não vou poder ver-te durante algum tempo. Durante cerca de três semanas.
ANDERSON: Porquê?
MRS. EVERLEIGH: Tenho de ir a Paris numa viagem de trabalho. Se me deres o teu endereço, mando-te um postal francês picante.
ANDERSON: Eu espero até voltares. Viajas muito?
MRS. EVERLEIGH: Quase todos os meses. vou à Europa ou a qualquer outro lugar fazer fotografias para anúncios. Estou fora pelo menos uma semana por mês.
ANDERSON: Que bom! Eu gostava de viajar.
MRS. EVERLEIGH: É tudo trabalho, só que é noutro lugar. Vais ter saudades minhas?
ANDERSON: Claro.
MRS. EVERLEIGH: Oh, meu Deus... Bem... pronto?
ANDERSON: Sim. Vamos.
MRS. EVERLEIGH: Oh, a propósito... comprei-te uma coisa. É um isqueiro Dunhill, de ouro. Espero que gostes.
ANDERSON: Obrigado.
MRS. EVERLEIGH: Oh, meu Deus...
Aproximadamente três semanas depois da saída em liberdade condicional de John Anderson, da Penitenciária de Sing Sing, foi colocado um dispositivo electrónico de vigilância no quarto que ele alugara recentemente na Avenida Harrar, Brooklyn, Nova Iorque. O dispositivo não foi verificado. A gravação seguinte está codificada DPNI-JDA-146-09. Não tem data. Os intervenientes foram identificados através da voz e de provas obtidas no interior do quarto.
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ANDERSON: O Ed Brodsky está?
BILLY: Não, não está.
ANDERSON: És tu, Billy?
BILLY: Quem fala?
ANDERSON: É o tipo com quem foste ao combate Peters-McCoy, no velho Garden.
BILLY: Ena, que bom! Duque, como...
ANDERSON: Cala-te e escuta. Tens um lápis?
BILLY: Espera um segundo... sim... certo, Duque, já tenho um lápis.
ANDERSON: Quanto tempo levas a chegar a uma cabina telefónica?
BILLY: Cinco minutos, talvez.
ANDERSON: Telefona-me para este número, Billy. Anota-o.
BILLY: Certo, diz. Estou pronto.
ANDERSON: Cinco-cinco-cinco-seis-seis-sete-um. Escreveste?
BILLY: Sim, claro.
ANDERSON: Repete.
BILLY: Cinco-cinco-cinco-seis-seis-um-sete.
ANDERSON: Sete-um. Os dois últimos números são sete-um.
BILLY: Sete-um. Certo. Cinco-cinco-cinco-seis-seis-sete-um. Como tens passado Duque? Eu tenho...
ANDERSON: Desliga e vai fazer a chamada, Billy. Eu estarei aqui.
(Pausa de três minutos e quarenta e dois segundos.)
BILLY: Duque?
ANDERSON: Como estás, Billy?
BILLY: Ei, é bom voltar a ouvir-te, Duque. Ouvimos dizer que tinhas saído. O Ed estava a dizer no outro...
ANDERSON: Onde está o Ed?
BILLY: Ele deu uma queda, Duque.
ANDERSON: Uma queda? Por que raio?
BILLY: Ele era um... era um... Duque, como é a palavra... tu sabes... ter muitas multas por estacionamento e deitá-las fora?
ANDERSON: Um transgressor?
BILLY: Isso. É isso mesmo. O Ed era um transgressor. O juiz disse que o Ed era o maior transgressor de Brooklyn. Que tal! Por isso apanhou trinta dias.
ANDERSON: Óptimo. Quando é que ele sai?
BILLY: Que dia é hoje?
ANDERSON: É sexta-feira, Billy. Dezassete de Maio.
BILLY: É. Vejamos... dezoito, dezanove, vinte, vinte e um. Pois é. Dia vinte e um. É terça-feira. Certo?
ANDERSON: Exactamente, Billy.
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BILLY: Ed sai na terça-feira.
ANDERSON: Eu telefono na terça-feira à noite ou na quarta-feira de manhã. Diz-lhe, está bem, miúdo?
BILLY: com certeza. Duque, tens um trabalho para nós?
ANDERSON: Uma coisa parecida.
BILLY: Um trabalho certamente que nos fazia jeito, Duque. A vida não tem sido muito fácil para mim desde que o Ed foi preso. Escuta, Duque, é alguma coisa de que eu talvez pudesse tomar conta? Quero dizer, se fosse uma coisa para já, eu podia fazê-lo. Não valia a pena esperar que o Ed saia.
ANDERSON: Bem, isto é realmente um trabalho para dois homens, Billy. Se fosse só para um, eu dir-te-ia imediatamente, porque sei que tu saberias tomar conta de tudo o que eu te desse.
BILLY: Claro que saberia, Duque. Tu conheces-me.
ANDERSON: Mas este é realmente um trabalho para dois homens, por isso penso que talvez devêssemos esperar pelo Ed. Está bem?
BILLY: Oh, com certeza, Duque... se o dizes.
ANDERSON: Escuta, miúdo, as coisas estão assim tão más? Quero dizer, se precisares de umas notas até o Ed sair, diz-me.
BILLY: Oh, não, Duque, obrigado. Não, as coisas não estão assim tão más. Eu consigo arranjar-me até o Ed sair. Obrigado, Duque, fico-te muito grato. Ei, quando falaste naquela noite no Garden, fiquei surpreendido. Ei, que grande noite... ei? Lembras-te daquele tipo que roubei no restaurante? Ei, que noite aquela, hem, Duque?
ANDERSON: Uma grande noite, Billy. Eu lembro-me. Bem, escuta, não te metas em sarilhos, está bem, miúdo?
BILLY: Claro, Duque, vou ter cuidado.
ANDERSON: E diz ao Ed que eu telefono na terça-feira à noite ou na quarta-feira de manhã cedo.
BILLY: Não me esqueço, Duque. Sinceramente que não. Naterça-feira à noite ou na quarta-feira de manhã. O Duque vai telefonar. Quando eu voltar para o quarto, vou escrever.
ANDERSON: És um bom rapaz, Billy. Porta-te bem. Até breve.
BILLY: Certo, Duque, certo. Gostei muito de falar contigo. Muito obrigado.
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Ingrid Macht, 34 anos, residente na 24ª Avenida Oeste nº 627, Cidade de Nova Iorque, era de origem alemã ou polaca (não determinada); um metro e setenta e cinco; 66 quilos; cabelo preto geralmente muito curto. Olhos castanhos. Marcas de chicote saradas na nádega esquerda. Cicatriz de corte em X sarada no interior da coxa esquerda. Cicatriz de segundo grau no antebraço direito. Falava fluentemente alemão, inglês, francês, espanhol e italiano. (Ver processo Interpol 35S-M49876.) Crê-se que fosse judia. Há provas (não substanciadas) de que esta mulher entrou ilegalmente nos Estados Unidos, vinda de Cuba em 1964, num grupo de refugiados autênticos. O processo da Interpol (ver acima) refere prisões em Hamburgo por aliciamento, prostituição, roubo e chantagem. Cumpriu dezoito meses em instituições correccionais de Munique. Presa no dia 16 de Novembro de 1964 em Miami, Florida, acusada de cumplicidade num esquema para extorquir dinheiro de refugiados cubanos, com a promessa de conseguir a vinda dos seus familiares para os Estados Unidos. As acusações ficaram sem efeito por falta de provas. Trabalhava como instrutora de dança no Fandango Dance Ballroom1, na Broadway nº 11 563, Nova Iorque.
O dispositivo electrónico de vigilância tinha sido colocado no apartamento de Miss Macht em 15 de Janeiro de 1968, pela Divisão de Investigações da Comissão de Valores e Câmbios, que requerera autorização ao Tribunal Federal, afirmando que Miss Macht estava envolvida no roubo e venda de valores, incluindo acções, títulos de empresas e do Governo dos EUA. Após a emissão do mandato judicial TF-1719M-89C, foi instalado um microfone emissor Bottomley 956-MT, que gravava as chamadas telefónicas e as conversas no interior do apartamento.
Por coincidência, um empregado da CVC vivia no apartamento mesmo por debaixo do de Miss Macht. com a autorização dele, foi instalado no seu roupeiro um gravador accionado pela voz.
A transcrição seguinte foi feita a partir da fita CVC-21MAI68-IM-12:18PM-130C.
ANDERSON: O teu apartamento está limpo? INGRID: Por que não? Eu levo uma vida limpa, Duque. Ouvi dizer que tinhas saído. Como foi?
1. Salão de Baile de Fandango. (N. da T.)
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ANDERSON: Lá dentro? Muitos maricas. Tu sabes como foi. Tu estiveste lá.
INGRID: Sim. Estive lá. Um brande... como de costume?
ANDERSON: Sim. Gosto do apartamento agora. Está diferente.
(Pausa de vinte e nove segundos.)
INGRID: Obrigada. Gastei muito dinheiro nele. Prosit.
(Pausa de cinco segundos.)
INGRID: Francamente, é uma surpresa ver-te. Não pensei que quisesses voltar a ver-me.
ANDERSON: Por que não?
INGRID: Pensei que me culparias.
ANDERSON: Não. Eu não te culpo. Que mais poderias ter feito... confessado e ser presa? Para quê? Em que é que isso ajudaria?
INGRID: Foi o que eu pensei.
ANDERSON: Eu fui estúpido e fui apanhado. Acontece. Neste mundo, a estupidez paga-se. Tu fizeste exactamente o que eu faria.
INGRID: Obrigada, Duque. Agora... isso faz-me sentir melhor.
ANDERSON: Engordaste?
INGRID: Um pouco. Aqui e ali.
ANDERSON: Estás com bom aspecto; muito bom aspecto. Toma, trouxe-te uma coisa. Um isqueiro Dunhill, de ouro. Continuas a fumar muito?
INGRID: Oh, sim, mais do que nunca. Obrigada. Muito bonito. Caro... não? As coisas estão-te a correr bem... ou foi uma mulher que to deu?
ANDERSON: Adivinhaste.
INGRID (rindo): Estou-me nas tintas para o modo como o conseguiste. Foste muito simpático, muito gentil em pensares em mim. Então... o que acontece agora? Que queres?
ANDERSON: Não sei. Realmente não sei. Que é que tu queres?
INGRID: Oh, Schatzie1, eu deixei de querer há muito tempo. Agora limito-me a aceitar. Deste modo, é mais fácil.
ANDERSON: Era-te indiferente que eu te procurasse ou não?
INGRID: Indiferente... não. Eu tinha curiosidade, naturalmente. Mas não faz qualquer diferença que me tenhas procurado ou não.
(Pausa de catorze segundos.)
ANDERSON: És uma mulher fria.
INGRID: Sim, aprendi a ser fria.
ANDERSON: Tommy Haskins disse que querias ver-me.
INGRID: Disse? Isso é mesmo dele.
1. Em alemão no original: termo carinhoso, à letra gatinho. (N. da T.)
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ANDERSON: Não querias ver-me?
INGRID: Queria... não queria. Que diferença faz?
ANDERSON: A que horas vais trabalhar?
INGRID: Saio daqui às sete. Tenho de estar no salão às oito.
ANDERSON: Eu estou a trabalhar. Não muito longe daqui. Tenho de estar lá às quatro.
INGRID: E depois?
ANDERSON: E depois temos três horas. Quero que faças amor comigo.
INGRID: Se quiseres.
ANDERSON: É disso que eu gosto. Uma mulher ardente.
INGRID: Oh, Duque... Se eu fosse uma mulher ardente tu não me ligarias nenhuma.
ANDERSON: Despe o roupão. Tu sabes o que eu gosto.
INGRID: Está bem.
ANDERSON: Engordaste. Mas fica-te bem.
INGRID: Obrigada. Queres despir-te?
ANDERSON: Agora não. Mais tarde.
INGRID: Sim.
(Pausa de dezassete segundos.)
ANDERSON: Oh, meu Deus. Há uma semana uma mulher perguntou-me onde é que eu tinha aprendido estas coisas. Eu devia ter-lhe dito.
INGRID: Sim. Mas tu não sabes tudo, Duque. Há umas coisas que guardei para mim. Como isto.
ANDERSON: Eu... oh, meu Deus... não... eu não consigo...
INGRID: Mas claro que consegues. Não morres disto, Schatzie, garanto-te. Pode ser suportado. Acho que agora te vais despir.
ANDERSON: Sim. Podemos ir para o quarto?
INGRID: Por favor, não. Acabei de mudar a roupa da cama. vou buscar o lençol sujo ao cesto e podemos espalhá-lo aqui, por cima do tapete.
ANDERSON: Está bem.
(Pausa de trinta e três segundos.)
ANDERSON: Que é isso?
INGRID: Uma rapariga do salão de dança falou-me nele, por isso fui comprar um. Custou menos de cinco dólares. E para massagens. Queres experimentar?
ANDERSON: Está bem.
INGRID: Olha para esta forma. Tão óbvia. Faz um zumbido quando o ligo. Não te sobressaltes. Vais gostar. Eu uso-o em mim própria.
(Som de zumbido. Pausa de dezoito segundos.)
ANDERSON: Não... pára. Não suporto isso.
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INGRID: De mim? Mas, Duque, tu disseste uma vez que suportarias tudo de mim.
ANDERSON: Meu Deus...
INGRID: Deixa-me aproximar mais de ti. Olha para mim.
ANDERSON: O quê? Eu... o quê?
INGRID: Nos olhos. Para mim, Duque. Nos olhos...
ANDERSON: Oh... oh...
INGRID: "Oh, oh!" Que espécie de conversa amorosa é essa? Tenho que te castigar.Há um nervo perto... ah, sim, aqui. Sou esperta, não sou, Schatzie ?
ANDERSON: Uhh...
INGRID: Por favor, não percas a consciência tão depressa. Tenho algumas coisas novas que gostaria de te mostrar. Algumas são coisas velhas, que serão novas para ti. E algumas são realmente coisas novas que aprendi desde... desde que foste para longe. Abre os olhos; já não estás a olhar para mim. Tens de olhar para mim, Schatzie. Tens de olhar para os meus olhos. Isso é muito importante...
ANDERSON: Porquê...
INGRID: É muito importante para mim.
ANDERSON: Ah, ah, ah, ah...
INGRID: Abre um pouco mais as pernas e eu faço com que te evadas. Observa com cuidado, Duque, e aprende... E quem sabe? Talvez ela te dê outro isqueiro...
Residência de Thomas e Cynthia Haskins, 76ª Avenida Oeste, Nova Iorque, 24 de Maio de 1968. Excerto da gravação DN-DT-TH-0018-96G.
THOMAS:... e depois o malvado enganou-me. Disse que só tinha dez dólares. Abriu a carteira para me mostrar.
CYNTHIA: Filho da mãe.
THOMAS: Depois riu-se e perguntou se eu aceitava cartões de crédito. Juro que, se tivesse uma navalha comigo, ele passaria imediatamente a ser um membro dos castrati. Fiquei absolutamente furioso. Do Midwest, claro. Pilar da igreja. Associação de Pais. Rotários. Elks. E toda essa merda.
CYNTHIA: E Old Fellows.
THOMAS: Tu nem acreditas! Ele disse que estava em Nova
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Iorque numa viagem de negócios... mas eu bem sei, querida. Ele vem provavelmente a Nova Iorque duas vezes por ano para tirar as teias de aranha. Espero que, da próxima vez, ele dê com um dos tipos duros. Eles metem-lhe os cartões de crédito pelo cu peludo acima.
CYNTHIA: O Duque telefonou hoje.
THOMAS: Que disseste?
CYNTHIA: Disse que estavas a trabalhar no assunto. Disse que tínhamos o papel e que estávamos a trabalhar no assunto. Ele ficou satisfeito.
THOMAS: Óptimo. Eu acho que não devíamos parecer demasiado ansiosos... não achas, querida?
CYNTHIA: Acho que sim. Mas eu quero fazer um bom trabalho para ele, Tommy. Talvez ele nos deixe entrar no negócio. Tenho a sensação de que é uma coisa em grande.
THOMAS: Por que é que pensas isso?
CYNTHIA: Por ele estar a ser tão cuidadoso. E cinco notas é muito dinheiro pelo que ele quer que façamos. Alguém está por detrás dele nisto. Ele saiu da cadeia há poucos meses. Não teria tanto dinheiro.
THOMAS: Havemos de fazer um bom trabalho para ele. Por vezes, ele mete-me medo. Os seus olhos são tão claros, e olham para dentro de nós.
CYNTHIA: Eu sei. E aquela Ingrid também não é nenhuma santa.
(Pausa de sete segundos.)
THOMAS: Diz-me uma coisa. Alguma vez foste para a cama com ela?
(Pausa de cinco segundos.)
CYNTHIA: Duas vezes. Não mais.
THOMAS: Esquisita... não é?
CYNTHIA: Nem fazes ideia. Eu não conseguiria descrevê-lo.
THOMAS: Foi o que eu pensei, querida. Tem todo o ar. E acho que posso adivinhar qual é a tara dela...
CYNTHIA: O quê?
THOMAS: Chicotes, correntes, penas... tudo.
CYNTHIA: Estás quente.
THOMAS (com uma gargalhada): Tenho a certeza de que estou. É isso que eu não compreendo... o Duque andar nisso. Não parece nada o género dele.
CYNTHIA: Todos os homens têm de se evadir mais cedo ou mais tarde. Eu disse-lhe que estaríamos prontos na próxima sexta-feira. Está bem?
THOMAS: Por que não? Eu estou pronto agora.
(Pausa de seis segundos.)
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CYNTHIA: Eu passei por aquela casa da 73ª Avenida esta manhã.
THOMAS: Meu Deus, não entraste, pois não?
CYNTHIA: Pensas que tenho merda em vez de miolos? Ele disse-nos que não entrássemos... não disse? Até nos dar luz verde... Passei do outro lado da rua.
THOMAS: Que tal o aspecto? Queres um charro, querida?
CYNTHIA: Está bem, acende-me um. Uma casa bonita. Pedra cinzenta. Toldo preto da porta até ao passeio. Vi duas placas de bronze... com os nomes dos médicos. Havia um porteiro a falar, na frente do prédio, com o polícia da ronda. Um prédio com um ar de riqueza. Cheira a dinheiro. Gostava de saber em que é que o Duque está a pensar.
THOMAS: Num dos apartamentos, suponho. Como é que vais fazer?
CYNTHIA: vou telefonar ao médico a marcar uma consulta, dando o nome que está naqueles cartões que me deste. Ninguém me recomendou; acabei de me mudar para a zona, preciso de um médico e vi a tabuleta dele. Antes de ir à consulta, vou roer as unhas até ao sabugo. Peço-lhe uma coisa que me faça parar de roer as unhas. Se ele sugerir alguma coisa, digo-lhe que já tentei todos os tipos de líquidos e vernizes e que não deram resultado. Pergunto-lhe se ele acha que tenho um problema emocional. Farei com que recomende que eu vá ao psiquiatra ao lado.
THOMAS: Parece óptimo.
CYNTHIA: Passarei pelo consultório do psiquiatra para o consultar ou para marcar uma consulta. Deixo outro cartão e digo-lhe que o outro médico me mandou. Se não conseguir dados suficientes nas primeiras visitas, arranjarei uma desculpa qualquer para voltar lá. Que achas? Alguma coisa mal?
THOMAS: Bem... uma coisa. Tu tens os cartões e um bom endereço, Eles nunca irão verificar se realmente lá vives... até as contas serem devolvidas. E então talvez seja demasiado tarde. Mas é melhor confirmares com o Duque para termos a certeza. Descobre como deves resolver o problema das contas. Meu Deus, se o médico enviasse uma conta no dia a seguir à tua consulta, e ela fosse devolvida, talvez estragasse tudo. E melhor perguntares ao Duque.
CYNTHIA: Sim, isso faz sentido, Tommy. Os médicos mandam geralmente as contas algumas semanas ou um mês depois... mas não vale a pena correr riscos. Eu não pensei em como ia pagar. Sabes, tu tens miolos nessa tua cabecinha.
THOMAS: E eu também te adoro, querida!
CYNTHIA: Esta erva é péssima... sabes? Onde é que a arranjaste?
THOMAS: Arranjei-a, simplesmente. Não gostas?
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CYNTHIA: É só paus e sementes. Não a peneiraste?
THOMAS: Ele disse-me que tinha sido peneirada.
CYNTHIA: Quem?
THOMAS: Paul.
CYNTHIA: Aquele cretino? Não admira que seja má. Prefiro um Chesterfield. Tommy, como é que vais fazer a tua parte?
THOMAS: Directamente. Entro calmamente, mostro o meu papel e obtenho uma lista completa de toda a gente do prédio. Afinal de contas, estou a fazer um recenseamento informal da zona, em nome da Nova Comissão de Reorganização Urbana. E, a propósito, no dia em que eu o fizer, vais ter de ficar sentada naquela cabina da loja de doces a maior parte da manhã. Para o caso de alguém decidir confirmar.
CYNTHIA: Está bem.
THOMAS: Não deve demorar mais de uma hora, no máximo. Telefono-te assim que sair de lá. Quando ele me der a lista, peço-lhe que telefone aos moradores para ver se estão dispostos a ser entrevistados. Voluntariamente. Sem pressão. Sem linha dura. É preciso calma. Se não quiserem, não têm de o fazer. Posso entrar num ou dois apartamentos. Aquelas cabras ricas sentem-se sós à tarde. Querem falar com alguém.
CYNTHIA: Só uma visita?
THOMAS: Sim. Não devemos forçar a sorte, querida. Eu consigo o que quero numa visita. Se o Duque não ficar satisfeito, que se foda.
CYNTHIA: Tu gostavas disso, não gostavas? Ou vice-versa.
THOMAS: Como é que havia de gostar do teu vice-versa? Suponho que gostaria. Talvez. Não tenho a certeza. Eu disse-te que, por vezes, ele me assusta. É tão frio, impassível e introvertido. Um dia, ele vai matar.
CYNTHIA: Pensas que sim?
THOMAS: Oh, sim.
CYNTHIA: Ele nunca anda armado.
THOMAS: Eu sei. Mas um dia fá-lo-á. Talvez mate alguém a pontapé. Ou com as mãos, ou com o que tiver à mão. Isso estaria de acordo com ele... ficar ali a dar friamente pontapés nos tomates de alguém e a pisá-lo. Até estar morto.
CYNTHIA: Meu Deus, Tommy.
THOMAS: É verdade. Sabes, sou metapsíquico em relação às pessoas. Essas são as vibrações que recebo dele.
CYNTHIA: Então nem sequer vou sugerir.
THOMAS: Sugerir o quê?
CYNTHIA: Bem...todo este negócio é tão interessante...quero dizer, o Duque está a dar-nos todo aquele dinheiro pelo que estamos a fazer. Tenho a certeza de que é uma coisa grande. Por isso pensei...
THOMAS: Sim?
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CYNTHIA: Bem, pensei que se... tu e eu... descobríssemos o que é, talvez pudéssemos... de algum modo, percebes... avançar primeiro e tomar...
THOMAS (aos gritos): Sua filha da mãe! Esquece! Esquece!... ouviste? Se alguma vez eu te ouvir a dizer uma coisa dessas, vou direito ao Duque para lhe dizer. Estamos a ser pagos pelo que fazemos. É tudo! Compreendes? Isso é tudo o que sabemos e tudo o que faremos, a não ser que o Duque nos dê qualquer coisa mais. Percebeste bem?
CYNTHIA: Deus do Céu, Tommy, não é preciso gritares comigo.
THOMAS: Filha da mãe! Se tiveres ideias dessas, estamos mortos. Não percebes o que estou a dizer? Estamos mortos.
CYNTHIA: Está bem, Tommy, está bem. Não falo mais nisso.
THOMAS: Nem sequer penses nisso. Nem sequer deixes a ideia voltar a entrar nesse teu cérebro estúpido. Eu conheço homens melhores do que tu e...
CYNTHIA: Tenho a certeza de que conheces, Tommy.
THOMAS:... e o Duque não é como tu e eu. Se ele descobrisse o que disseste, faria-nos coisas que nem acreditas. E não significaria nada para ele. Absolutamente nada. Filha da mãe ignorante!
CYNTHIA: Está bem, Tommy, está bem.
(Pausa de dezasseis segundos.)
CYNTHIA: Quando o Duque telefonar, na próxima sexta-feira, queres que lhe diga o que temos e obtenha a luz verde?
THOMAS: Quero. Dá-lhe as linhas gerais. Pergunta-lhe como deves pagar os médicos. Ele há-de pensar em qualquer coisa.
CYNTHIA: Está bem.
(Pausa de seis segundos.)
THOMAS: Vivaça, desculpa ter gritado contigo. Mas tive medo do que disseste. Por favor, por favor, desculpa-me. CYNTHIA: com certeza.
THOMAS: Queres um bom banho quente, querida? Eu vou preparar-te um. com óleo de banho.
CYNTHIA: Isso seria...
(Fim da gravação por a fita ter acabado.)
Edward J. Brodsky; 36 anos; um metro e setenta e oito; 89 quilos; cabelo preto, oleoso, com risca ao meio, comprido. Dedo do meio da mão direita amputado. Ligeira cicatriz de faca no antebraço direito. Olhos castanhos. Este homem tinha um cadastro de quatro prisões,
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uma condenação. Preso por roubo no dia 3 de Março de 1963. O caso foi arquivado. Preso por assalto em 31 de Maio de 1964. Caso arquivado por falta de provas. Preso por conspiração para cometer fraude em 27 de Setembro de 1964. A acusação foi retirada. Preso por não pagar multas em 14 de Abril de 1968. Cumpriu a pena e foi libertado em 21 de Maio de 1968. Membro do Sindicato dos Estivadores de Brooklyn, Nova Iorque, Filial 418 (Ecónomo, de 5 de Maio de 1965 a
6 de Maio de 1966). Interrogado em relação à morte por esfaqueamento de um dirigente do Sindicato de Estivadores, Filial 526, em 28 de Dezembro de 1965. Não houve acusação. Residência: Avenida Flatbush nº 124-159, Brooklyn, Nova Iorque. Irmão mais velho de William K. Brodsky.
William "Billy" K. Brodsky; 27 anos, um metro e noventa e cinco; 102 quilos; cabelo claro, ondulado; olhos azuis; nenhuma cicatriz física. Corpo extremamente musculoso. Eleito "Mister Jovem de Brooklyn" em 1963, 1964 e 1965. Preso no dia 14 de Maio de 1964, acusado de molestar uma menor. A acusação foi arquivada. Preso em 31 de Outubro de 1966, por roubo com uma arma mortífera - nomeadamente, os punhos. Condenado. Pena suspensa. Interrogado em 15 de Julho de 1967 sobre um caso que envolveu ataque e violação de duas jovens, Brooklyn, Nova Iorque. Libertado por falta de provas. Este homem deixou de estudar depois da sétima classe. O relatório do investigador que levou à pena suspensa no caso de roubo de 1966 afirma que ele tinha a mentalidade de uma criança de 10 anos. Vivia com o irmão mais velho na morada acima.
A reunião seguinte teve lugar no Bar e Churrasqueira You-Know-It, na Avenida Flatbush nº 136-943, Brooklyn, Nova Iorque, na tarde de 25 de Maio de 1968. Nessa altura, aquelas instalações estavam sob vigilância electrónica da Autoridade Estatal para o Álcool, de Nova Iorque, devido à suspeita de que os donos vendiam álcool a menores e de que aquele era um local de reunião de indesejáveis, incluindo prostitutas e homossexuais.
A fita está identificada AEA-25MAI68-146JB.
ANDERSON: Espera até termos as bebidas, depois falamos.
EDWARD: Está bem.
BILLY: Duque, ena, é...
EMPREGADO: Aqui está, meus senhores... três cervejas. Quando estiverem prontos para repetir, chamem-me.
EDWARD: Está bem.
ANDERSON: O velho ex-presidiário.
EDWARD: Ah, então Duque, não brinques comigo. Não é uma merda? Depois de tudo o que fiz, sou julgado por estacionar nos locais
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errados? Francamente, se acontecesse a outra pessoa... eu fartava-me de rir.
BILLY: O juiz disse que o Ed era o maior transgressor de estacionamento em Brooklyn. Não é verdade, Ed?
EDWARD: É verdade, sim... Tens toda a razão, miúdo. Foi o que o juiz disse.
ANDERSON: Uma beleza. Tens alguma coisa em mãos?
EDWARD: Neste momento, não. Tenho a promessa de uma coisa em Outubro, mas ainda falta muito tempo.
BILLY: O Duque disse que tinha um trabalho para nós... não disseste, Duque?
ANDERSON: É verdade, Billy.
BILLY: Disse que é um trabalho para dois homens, se não eu tinha podido fazê-lo. Não é verdade, Duque? Eu disse-lhe que eu podia fazer qualquer coisa enquanto estavas fora, Edward, mas o Duque disse que esperaria até saíres, porque era um trabalho para dois homens.
ANDERSON: É verdade, Duque.
EDWARD: Escuta, miúdo, por que é que não bebes a cerveja e ficas calado um bocadinho... hem? Eu e o Duque temos que falar de negócios. Não interrompas. Bebe a cerveja e ouve, está bem?
BILLY: Certo, Edward. Posso beber outra cerveja?
EDWARD: Claro que podes, miúdo... assim que acabares essa. Tens alguma coisa, Duque?
ANDERSON: Há esta casa na Zona Leste de Manhattan. Preciso da cave esquadrinhada. Tenho um tipo para o fazer... um técnico chamado Ernie Mann. Conheces?
EDWARD: Não.
" ANDERSON: Um tipo bom, de confiança. bom profissional. Só ele é que vai lá dentro. Mas ele precisa de um motorista. Ele quer uma carrinha da Companhia dos Telefones. Uma carrinha de Manhattan. Roupa e cartões de identificação. Todo o equipamento. Posso dizer-te onde podes arranjar os papéis; terás que tratar do resto. É só por umas horas. Três horas no máximo.
EDWARD: Onde é que eu estarei?
ANDERSON: Lá fora. Na carrinha. É uma carrinha pequena. Já as viste.
BILLY: É um trabalho para dois homens... certo, Duque?
ANDERSON: Isso é com o Ed. Que tal?
EDWARD: Dá-me mais pormenores.
ANDERSON: Casa convertida num bloco de apartamentos sossegado. Porteiro. Beco que vai dar à entrada de serviço. Não se consegue entrar pela porta traseira antes de o porteiro ver a pessoa na televisão de circuito-fechado e carregar no botão. Tu paras à frente.
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Ernie entra no átrio e mostra o seu cartão. O mais certo é o porteiro não pedir para ver o teu. Tu estás sentado lá fora na carrinha, onde ele te consegue ver. Ernie diz ao porteiro que vai colocar outra linha interurbana no prédio e que é preciso examinar as ligações. Tudo bem até agora?
EDWARD: Até agora.
ANDERSON: Que é que pode falhar? O técnico só quer ir à cave; não quer examinar os apartamentos. O porteiro diz que está bem, que deves entrar no beco e levar o carro até à entrada de trás. Tal como eu disse, só o Ernie é que entra. Tu ficas na carrinha.
BILLY: Eu também, Duque. Não te esqueças de mim.
ANDERSON: Está bem. Que te parece, Ed?
EDWARD: Onde é que eu arranjo os cartões de identificação?
ANDERSON: Há um tipógrafo na Avenida Amsterdam. Helmas. Alguma vez o utilizaste?
EDWARD: Não.
ANDERSON: É o melhor. Ele tem cartões em branco. Não são cópias. Autênticos. Vais precisar.de fotografias para agrafar... tu sabes, do género de fotografias quatro por vinte cinco cêntimos que se tiram na 42ª Avenida.
EDWARD: E a carrinha, uniforme, equipamento e toda essa merda?
ANDERSON: Esse problema é teu.
EDWARD: Quanto?
ANDERSON: Quatro notas.
EDWARD: Quando?
ANDERSON: Assim que estiveres pronto. Depois eu telefono ao Ernie e organizamos as coisas. Não é um assalto, Ernie. É apenas um exame.
EDWARD: Compreendo, mas, mesmo assim... Não podes ir até cinco, pois não, Duque?
ANDERSON: Não posso, Ed. Tenho um orçamento. Mas, se der resultado, pode haver mais qualquer coisa para ti... para todos nós. Percebes?
EDWARD: Claro.
BILLY: De que é que estão a falar? Não compreendo de que é que estão a falar.
EDWARD: Cala-te um pouco, miúdo. Vamos recapitular mais uma vez, Duque; quero ter a certeza de que percebi tudo bem. Só é um exame, não um assalto. Eu não entro no prédio. Arranjo uma carrinha da Companhia de Telefones de Manhattan com todo o equipamento. Tenho a farda e merda pendurada da cintura. E o técnico?
ANDERSON: Ele traz os dele.
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EDWARD: Óptimo. Eu pego na carrinha. Apanho este tipo Ernie algures. Certo?
ANDERSON: Certo.
EDWARD: Paramos em frente da casa. Ele sai, vai ter com o porteiro, mostra-lhe o cartão de identificação. Seguimos pelo beco até à porta de trás. Este Ernie sai, aparece na TV e entra. Eu fico na carrinha. É isso?
ANDERSON: Exactamente.
EDWARD: Quanto tempo lá estou?
ANDERSON: Três horas, no máximo.
EDWARD: E depois...?
ANDERSON: Se ele não sair até essa altura, vais-te embora.
EDWARD: Óptimo. É isso que queria saber. Assim, ele está cá fora em menos de três horas. E a seguir?
ANDERSON: Deixa-o onde ele quiser ficar. Abandona a carrinha. Muda para a tua roupa normal. Afasta-te.
BILLY: Ena, isso parece fácil... não parece, Edward? Não parece fácil?
EDWARD: Todos eles parecem fáceis, miúdo. Como é que eu te contacto. Duque?
ANDERSON: Aceitas?
EDWARD: Sim, aceito.
ANDERSON: Eu telefono-te todos os dias à uma da tarde. Se não estiveres em casa, não te preocupes; eu telefono no dia seguinte. Depois de teres as coisas preparadas, eu telefono ao técnico e marco um encontro. Queres duas notas?
EDWARD: Se quero! Ei... outra rodada!
As instalações do nº 4678 da Avenida End Oeste, Cidade de Nova Iorque, uma loja que vendia doces e tabaco, foram colocadas sob vigilância no dia 16 de Novembro de 1967, pelo Departamento da Polícia de Nova Iorque, devido à suspeita de o telefone estar a ser usado no negócio ilegal de apostas.
A transcrição seguinte foi feita a partir de uma fita identificada como DPNI-SIS-182-BL. Não tem uma data exacta, mas supõe-se ter sido gravada em 31 de Maio de 1968.
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CYNTHIA:... assim, o plano é este, Duque. Que te parece?
ANDERSON: bom. Parece bom.
CYNTHIA: O único problema que vemos é a questão do pagamento aos médicos. Tu sabes que os médicos esperam geralmente umas semanas ou um mês antes de enviarem a conta. Mas se eles as enviarem poucos dias depois, e a carta for devolvida do meu endereço falso, isso significa que eu não poderia ir a uma segunda consulta.
ANDERSON: Que é que o Tommy diz?
CYNTHIA: Ele disse-me que te dissesse que podíamos resolver o problema de duas maneiras. Posso dizer-lhes que vou fazer um cruzeiro, que vou de férias ou qualquer coisa, e pedir que só me mandem a conta pelo menos um mês depois, porque não quero a correspondência a acumular-se na caixa do correio, pois isso é um sinal para os ladrões de que não está ninguém em casa. Ou então, diz o Tommy, podemos arranjar um livro de cheques personalizados na Helmas. E posso dar-lhes um cheque falso logo ali. Isso garantir-me-á pelo menos três ou quatro dias antes de ser devolvido e, durante esse tempo, poderei organizar outra consulta.
ANDERSON: Por que não pagar em dinheiro antes de saíres?
CYNTHIA: O Tommy diz que isso não combinaria com o meu papel.
ANDERSON: Merda. Esse teu irmão devia ser actor. Olha, não vamos ser tão esquisitos. Isto é um trabalho simples. Não corras riscos. Consegue o que puderes na tua primeira consulta. Paga em dinheiro. Depois podes voltar uma segunda vez quando quiseres..
CYNTHIA: Está bem, Duque, se o dizes. Como é que te parece a campanha do Tommy?
ANDERSON: Não vejo quaisquer furos, Vivaça. Vocês dois podem ir em frente. Se surgir alguma coisa, sejam espertos e afastem-se. Não forcem. Telefono-te na próxima sexta-feira, à mesma hora, para marcar um encontro.
Transcrição da gravação CCF-JUN68-EHM-29L. Instalações da Fun City Electronic Supply and Repair Co. Inc., Avenida 6ª nº 1975, Nova Iorque.
ANDERSON: Professor? MANN: Sim.
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ANDERSON: Duque. O teu telefone está limpo?
MANN: Claro.
ANDERSON: Tenho os teus motoristas.
MANN: Mais de um?
ANDERSON: Dois irmãos.
MANN: Isso é necessário?
ANDERSON: Eles são uma equipa. Profissionais. Não há problema. Eles ficarão à espera três horas, no máximo.
MANN: Isso é bastante. Mais do que suficiente. Estarei fora de lá numa.
ANDERSON: Óptimo. Quando?
MANN: Precisamente às nove e quarenta e cinco da manhã do dia
4 de Junho.
ANDERSON: Isso é a próxima terça-feira. Certo?
MANN: Certo.
ANDERSON: Onde?
MANN: Na esquina noroeste da 79.§ Avenida e da Lexington. Eu terei uma gabardina castanho-clara vestida e levarei uma pasta comigo. Sem chapéu. Tomaste nota?
ANDERSON: Sim, tomei.
MANN: Duque, dois homens... é necessário?
ANDERSON: Já te disse, eles são uma equipa. O mais velho conduz. O novo é estritamente músculo.
MANN: Por que é que há-de ser necessário músculo?
ANDERSON: Não vai ser, Professor. O miúdo regula um pouco mal da cabeça. O irmão toma conta dele. O miúdo precisa de estar com ele. Compreendes?
MANN: Não.
ANDERSON: Professor, os dois ficam sentados na carrinha à tua espera. Não vai haver problemas. Não haverá necessidade de força. Vai correr tudo bem.
(Pausa de seis segundos.)
MANN: Muito bem.
ANDERSON: Telefono-te na quarta feira, cinco de Junho, para marcarmos um encontro.
MANN: Como quiseres.
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Transcrição de uma gravação pessoal feita pelo autor no dia 19 de Novembro de 1968. Tanto quanto eu saiba, o depoimento que ela contém não foi duplicado em qualquer gravação, transcrição ou documento existente.
AUTOR: Esta será uma gravação pirata. O seu nome e local de residência, por favor?
RYAN: O meu nome é Kenneth Ryan. Moro na 19ª Avenida Oeste n.s 1198, Nova Iorque.
AUTOR: Profissão e local de trabalho, por favor?
RYAN: Sou porteiro. Trabalho na 73ª Avenida Leste nº 535, em Manhattan. Estou geralmente de serviço das oito da manhã às quatro da tarde. Por vezes trocamos, compreende. Somos três, e por vezes trocamos, quando um tipo quer ir a qualquer lado, se tiver de tratar de qualquer assunto familiar. Então trocamos. Mas geralmente estou de serviço das oito da manhã às quatro da tarde.
AUTOR: Obrigado. Mr. Ryan, conforme já lhe expliquei, esta gravação será feita unicamente para meu próprio uso, para preparar o registo de um crime que ocorreu em Nova Iorque na noite de 31 de Agosto e manhã de 1 de Setembro de 1968. Eu não sou funcionário de qualquer departamento governamental... municipal, estatal ou federal. Não lhe vou pedir que preste juramento quanto ao depoimento que está prestes a fazer, e ele não vai ser utilizado num tribunal nem para qualquer procedimento legal. A declaração que fizer será unicamente para meu uso pessoal, e não será publicada sem a sua autorização, que só pode ser dada por meio de uma declaração escrita sua, dando autorização para esse efeito. Em troca, eu paguei-lhe o montante de cem dólares; esta quantia é paga quer o senhor concorde ou não com a publicação do seu depoimento. Além disso, eu entregar-lhe-ei... à minha custa... uma cópia da gravação deste interrogatório. Está tudo claro?
RYAN: com certeza.
AUTOR: Então.. esta fotografia que lhe mostrei... Reconhece-o?
RYAN: Claro. É o tipo que me disse que se chamava Sidney Breevort.
AUTOR: Bem... na realidade o nome deste homem é Thomas Haskins. Mas ele disse-lhe que se chamava Sidney Brevoort?
RYAN: Exactamente.
AUTOR: Quando é que isso aconteceu?
RYAN: Foi no princípio de Junho. Deste ano. Talvez no dia 3,
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talvez dia 4, talvez dia 5. Por volta dessa altura. Este homenzinho vem ter comigo ao átrio onde trabalho. Isso é, no nº 535 da 73ª Avenida Leste, como já lhe disse.
AUTOR: Que horas eram, aproximadamente?
RYAN: Oh, eu não me lembro exactamente. Talvez nove e quarenta e cinco da manhã. Talvez dez horas. Por volta das dez. "bom dia", diz ele, e eu digo "bom dia". E ele diz "O meu nome é Sidney Breevort, e sou representante da Comissão da Nova Reorganização Urbana. Tem aqui o meu cartão de identificação". E depois mostra-me o cartão, tal como dissera.
AUTOR: O cartão tinha a fotografia dele?
RYAN: Ah, sim, com certeza. Tudo impresso e com aspecto autêntico. Oficial... percebe o que eu quero dizer. Depois ele disse, "Sir"... ele chamou-me sempre sir... diz ele, "Sir, a minha organização está a fazer um recenseamento informal sobre as residências e a população da Zona Leste de Manhattan, da Quinta Avenida até ao rio, e da 23ª Avenida, a Sul até à 86ª a Norte. Estamos a tentar fazer com que o Estado de Nova Iorque aprove legislação permitindo que sejam emitidos títulos para financiar um metropolitano na Segunda Avenida" . Isso é o mais próximo que eu me consigo lembrar do que ele disse. Ele falava de um modo muito oficial, percebe. Causou-me muito boa impressão. Por isso, eu disse: "Tem toda a razão. Eles tiveram os títulos para isso há anos e depois gastaram o dinheiro noutras coisas. Foi direito aos bolsos dos políticos", disse eu. E ele disse: "Vejo que se mantém a par dos assuntos cívicos." E eu disse: "Eu sei o que se passa." E ele disse: "Tenho a certeza de que sabe, sir. Bem, para ajudar a convencer os legisladores do Estado de Nova Iorque de que esta lei deve ser aprovada, a Comissão da Nova Reorganização Urbana está a contar todas as pessoas da Zona Leste de Manhattan, na área que referi, que poderiam beneficiar com um metropolitano na 2ª Avenida. O que eu gostaria de obter de si são os nomes das pessoas que vivem neste prédio e o número dos apartamentos que ocupam."
AUTOR: E que disse o senhor a isso?
RYAN: Disse-lhe que fosse para o inferno. Não usei essas palavras exactas, compreende. Mas disse-lhe que não podia fazê-lo.
AUTOR: Que disse ele a isso?
RYAN: Ele disse que seria um acto voluntário. Disse que, se qualquer morador quisesse dar informações, estas seriam confidenciais, e os seus nomes não seriam dados a ninguém. Seriam apenas... compreende.. usados como estatísticas. O que ele queria saber era quem vivia em cada um dos apartamentos, se tinham empregados e que meio de transporte utilizavam para irem trabalhar, a que horas iam para o trabalho e a que horas voltavam. Coisas assim. Por isso, eu disse: "Desculpe, nada feito." Disse-lhe que Shovey e White, na
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Avenida Madison nº 1324, geriam o prédio, e que todos os porteiros tinham ordens severas para não falarem com ninguém a respeito dos residentes a não ser que tivéssemos autorização de Shovey e White.
AUTOR: Qual foi a reacção dele?
RYAN: O filho da mãe. Ele disse que compreendia, por causa de todos os roubos que houvera recentemente na Zona Leste, e perguntou se podia falar com Shovey e White a pedir autorização para falar comigo e entrevistar os moradores que quisessem falar com ele. Por isso eu disse, com certeza, telefone a Shovey e White e, se eles concordarem, por mim está tudo bem. Ele disse que lhes telefonaria a pedir autorização para falar comigo e entrevistar os residentes que quisessem falar com ele. Por isso, eu disse, com certeza, telefone a Shovey e White e, se eles disserem que está bem, eles que me telefonem para me darem luz verde. Ele perguntou-me com quem é que deveria falar na Shovey e White e eu disse-lhe que falasse com Mr. Walsh, que trata do nosso prédio. Até lhe dei o número de telefone... oh, o porco! Depois ele perguntou-me se eu alguma vez vira Mr. Walsh, e tive de lhe dizer que não, nunca lhe tinha posto os olhos em cima. Só falara com ele duas vezes ao telefone. Compreende, estes gestores não têm um interesse pessoal. Apenas se sentam atrás de um telefone.
AUTOR: Que é que o homem que conhece como Sidney Brevoort fez então?
RYAN: Ele disse que ia telefonar para Shovey e White para explicar o que queria e pediria a Mr. Walsh que me contactasse. Então eu disse que, se eles concordassem, por mim estava tudo bem. Então ele agradeceu-me... muito educadamente, percebe... e foi-se embora. O porco filho da mãe.
AUTOR: Obrigado, Mr. Ryan.
Fita DPNI-SIS-196-BL. Loja de doces na Avenida End Oeste nº 4678. Aproximadamente 10,28 da manhã do dia 3 de Junho de
1968.
CYNTHIA HASKINS: Comissão da Nova Reorganização Urbana, bom dia.
THOMAS: Sou eu, Vivaça. CYNTHIA: Que se passa?
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THOMAS: Correu mal. O filho da mãe do porteiro irlandês não fala, a não ser que obtenha luz verde da agência gestora, Shovey e White, na Avenida Madison.
CYNTHIA: Oh, meu Deus, o Duque mata-nos.
THOMAS: Não fiques nervosa, querida. Pensei numa coisa enquanto vinha para aqui. Estou a telefonar de uma cabina telefónica na esquina da 73ª e da Avenida York.
CYNTHIA: Por amor de Deus, Tommy, tem calma. O Duque disse para não corrermos riscos. O Duque disse para desistirmos, se surgisse algum problema. Agora tu dizes que pensaste numa coisa. Tommy, não...
THOMAS: Achas que ele está apagar-nos cinco notas para desistirmos? Ele quer que usemos os miolos, não quer? Foi por isso que ele foi ter connosco, não foi? Se ele quisesse um par de imbecis, poderia tê-los comprado por uma nota. O Duque quer resultados. Se não estragarmos tudo... o que quer que seja... ele não se importa como o fazemos.
CYNTHIA: Tommy, eu...
THOMAS: Cala-te e ouve. Vamos fazer o seguinte...
Aproximadamente 10.37 da manhã do dia 3 de Junho de 1968.
RYAN: 73ª Avenida, número quinhentos e trinta e cinco.
CYNTHIA: É o porteiro?
RYAN: Sou, sim. Quem fala?
CYNTHIA: Daqui fala Ruth David da Shovey e White. Acabou de falar com um homem chamado Sidney Brevoort da Comissão para a Nova Reorganização Urbana?
RYAN: Falei, sim. Ele esteve aqui há alguns minutos. Ele quer uma lista das pessoas do prédio e queria falar com eles. Eu disse-lhe que telefonasse a Mr. Walsh.
CYNTHIA: Fez exactamente o que devia fazer. Mas Mr. Walsh está doente. com gripe, ou qualquer coisa. Não veio ao escritório ontem, nem está cá hoje. Eu estou encarregada da gestão dos prédios enquanto ele estiver ausente. Como é que este Brevoort lhe pareceu?
RYAN: Um tipozinho insignificante. Eu conseguia mastigá-lo e cuspi-lo por cima da vedação do campo esquerdo.
CYNTHIA: Ele não parecia um ladrão, quero eu dizer?
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RYAN: Não, mas isso não significa nada. Que quer que eu faça quando ele voltar?
CYNTHIA: Bem, eu telefonei à Comissão para a Nova Reorganização Urbana, e é uma organização genuína. Eles disseram que sim, que Sidney Brevoort é um dos seus representantes. Ele tinha cartão de identificação?
RYAN: Sim, ele mostrou-mo.
CYNTHIA: Bem, eu não quero assumir a responsabilidade de lhe dar os nomes dos residentes ou de o deixar falar com eles.
RYAN: Tem toda a razão. Eu também não.
CYNTHIA: vou fazer uma coisa... Mr. Walsh disse-me que lhe telefonasse para casa se surgisse alguma coisa que eu não conseguisse resolver. Tenho o número de telefone da casa dele. Se ele disser que está bem, pode falar com Brevoort. Se Walsh disser que não, Brevoort e a Comissão para a Nova Reorganização Urbana que vão para o inferno. De qualquer modo, nós dois estamos fora do assunto... deixamos que seja Mr. Walsh a decidir.
RYAN: Sim, essa é uma solução inteligente.
CYNTHIA: Está bem. Eu vou desligar agora e telefonar a Walsh. Telefono-lhe daqui a alguns minutos para lhe transmitir o que ele disse.
RYAN: Eu estarei aqui.
Aproximadamente 10.48 da manhã do dia 3 de Junho de 1968.
CYNTHIA: Porteiro? Daqui Ruth David de novo.
RYAN: Sim. Falou com Mr. Walsh?
CYNTHIA: Falei. Ele disse que está bem. Ele conhece esta Comissão para a Nova Reorganização Urbana. Ele disse que pode dar os nomes dos moradores do prédio a Brevoort. E também que ele pode falar com quaisquer moradores que concordem. Mas pergunte-lhes primeiro pelo intercomunicador. Não deixe Brevoort andar a passear pelo prédio. E certifique-se de que ele desce ao átrio depois de cada uma das entrevistas.
RYAN: Não se preocupe, Miss David. Eu sei como proceder.
CYNTHIA: Óptimo. Bem, essa é menos uma preocupação para mim. Eu não queria assumir a responsabilidade.
RYAN: Eu também não.
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CYNTHIA: Mr. Walsh disse-me que lhe dissesse que procedeu correctamente, dizendo a Brevoort que nos telefonasse. Ele disse que lhe dissesse que não se vai esquecer do modo como o senhor tratou do assunto.
RYAN: É. Óptimo. Está bem, eu falo com Brevoort. Obrigada por ter telefonado, Miss David.
CYNTHIA: Obrigada.
Transcrição da fita CVC-3 JUN68-IM-13.48-142C. Casa de Ingrid Macht, 24ª Avenida Oeste nº 627, Nova Iorque.
INGRID: Entra, Schatzie.
ANDERSON: Óculos. Agora usas óculos?
INGRID: Há talvez um ano. Apenas para ler. Gostas deles?
ANDERSON: Gosto. Estás a fazer alguma coisa?
INGRID: Estou só a acabar o pequeno-almoço. Hoje dormi até tarde. Café?
ANDERSON: Está bem. Simples.
(Pausa de um minuto e treze segundos.)
INGRID: Um pouco de brande, talvez?
ANDERSON: Está bem. Também bebes?
INGRID: Não, obrigada. Bebo um golo do teu.
ANDERSON: Depois dizes que eu bebo de mais, e entretanto tu bebes metade da minha bebida.
INGRID: Oh, Schatzie, quando é que eu te disse que bebias de mais? Quando é que alguma vez critiquei qualquer coisa que fizesses?
ANDERSON: Nunca... que me lembre. Estava só a brincar. Não leves tudo tão a sério. Não tens sentido de humor.
INGRID: Isso é verdade. Há alguma coisa a perturbar-te?
ANDERSON: Não. Porquê?
INGRID: Tens um olhar que eu reconheço. Qualquer coisa nos teus olhos... distantes. Estás a pensar muito nalguma coisa. Adivinhei?
ANDERSON: Talvez.
INGRID: Por favor não me contes. Eu não quero saber absolutamente nada. Não quero voltar a passar pelo mesmo. Compreendes?
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ANDERSON: com certeza. Senta-te no meu colo. Não... não tires os óculos.
INGRID: Gostas deles?
ANDERSON: Gosto. Quando eu vivia no Sul, tinha uma ideia de como seria uma mulher da grande cidade. Conseguia vê-la. Muito magra. Não demasiado alta. Rija. Ossuda. Olhos abertos. Lábios pálidos. E óculos pesados, com aros pretos.
INGRID: Um sonho estranho para um homem. Geralmente é uma loura pequena, gorducha e doce, com mamas grandes.
ANDERSON: Bem, esse era o meu sonho. E cabelo preto comprido e liso que caía até à cintura.
INGRID: Tenho uma peruca assim.
ANDERSON: Eu sei. Fui eu que ta dei.
INGRID: É verdade, Schatzie. Tinha-me esquecido. Queres que a ponha?
ANDERSON: Quero.
(Pausa de quatro minutos e catorze segundos.)
INGRID: Pronto. Sou o teu sonho, agora?
ANDERSON: Estás perto. Muito perto. Senta-te aqui outra vez.
INGRID: E que me trouxeste hoje, Duque... outro isqueiro?
ANDERSON: Não. Trouxe-te cem dólares.
INGRID: Que bom. Eu gosto de dinheiro.
ANDERSON: Eu sei. Mais acções?
INGRID: Claro. Tenho ganho muito dinheiro. O meu corretor disse-me que tenho instinto para o negócio.
ANDERSON: Eu poderia ter-lho dito. Estou a magoar-te?
INGRID: Não. Talvez seja melhor irmos para o quarto.
(Pausa de dois minutos e trinta e quatro segundos.)
INGRID: Estás mais magro...e mais rijo. Esta cicatriz...disseste-me uma vez, mas eu esqueci-me...
ANDERSON: Briga com navalhas.
INGRID: Mataste-o?
ANDERSON: Matei.
INGRID: Por que é que brigaram?
ANDERSON: Já me esqueci. Na altura, pareceu importante. Queres que te dê o dinheiro agora?
INGRID: Não sejas mau, Duque. Isso não parece teu.
ANDERSON: Então começa. Meu Deus, como preciso. Tenho de me evadir.
INGRID: Evadires-te... é assim tão importante para ti?
ANDERSON: Preciso disso. Estou dependente. Lentamente...
INGRID: Claro. Não... eu disse-te, não feches os olhos. Olha para mim.
ANDERSON: Está bem.
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INGRID: Sabes, acho que vou escrever um livro. Descontrai os músculos, Schatzie; estás demasiado tenso.
ANDERSON: Está bem... sim. É melhor assim?
INGRID: Muito. Estás a ver... não é melhor assim?
ANDERSON: Oh, meu Deus, sim. Sim. Um livro sobre o quê?
INGRID: Sobre a dor e sobre o crime. Sabes, eu penso que os criminosos... a maior parte dos criminosos... fazem o que fazem para poderem provocar dor em alguém. E também para serem apanhados e castigados. Para provocar dor e sentir dor. E por isso que mentem, enganam, roubam e matam.
ANDERSON: Sim...
INGRID: Olha... vou atar o meu cabelo preto e comprido à tua volta. vou puxar e dar-lhe um nó... assim. Assim. Ficas tão engraçado... como um estranho embrulho de Natal, uma prenda...
ANDERSON: Está a começar. Consigo senti-lo...
INGRID: Estás a evadir-te?
ANDERSON: Lentamente. Podes ter razão. Eu não sei nada sobre essas coisas. Mas faz sentido. Quando estava dentro, conheci um tipo que apanhou um mínimo de trinta. Ele podia ter apanhado oito a dez, mas magoou as pessoas que roubou. Não tivera necessidade de o fazer. Elas deram-lhe tudo o que ele queria. Não gritaram. Mas ele magoou-as muito. E depois deixou impressões digitais por todo o lado.
INGRID: Sim, isso é compreensível. Estás outra vez a ficar tenso, Schatzie. Descontrai-te. Sim, assim é melhor. E agora...
ANDERSON: Oh, meu Deus, Ingrid, por favor... por favor não...
INGRID: Primeiro pedes-me que comece, depois pedes-me que pare. Mas tenho que te ajudar a evadir. Não é verdade, Duque?
ANDERSON: Tu és a única pessoa que consegue fazê-lo... a única.
INGRID: Pronto... agora morde com força e tenta não gritar. Aqui... e aqui...
ANDERSON: Os teus dentes... Não consigo... por favor, eu... oh, meu Deus...
INGRID: Só mais um pouco. Estás a evadir-te... vejo-o nos teus olhos. Só mais um pouco. E agora... assim... assim... Oh, estás a evadir-te agora, Duque... não estás? Sim, agora escapaste. Mas não a mim, Duque... não a mim...
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com início em 12 de Abril de 1968, foi recebida uma série de cartas - obviamente escritas por uma pessoa com perturbações mentaisa ameaçar a segurança pessoal do presidente dos Estados Unidos, dos juizes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos e de alguns senadores dos EUA. Incrivelmente, as cartas anónimas eram dactilografadas em papel do Hotel Excalibur Arms, Broadway nº 14 896, Nova Iorque.
No dia 19 de Abril de 1968, com a colaboração dos proprietários, o Serviço Secreto dos Estados Unidos instalou vigilância electrónica no edifício. Foi colocado um dispositivo de escuta na principal linha telefónica externa. Além disso, vários quartos e suites foram equipados com dispositivos que gravavam as conversas no seu interior. Todos estes dispositivos estavam ligados um gravador Emplex 4 7-83B, accionado pela voz e ligado a um outro Emplex 47-82B-1, no caso de duas conversas terem lugar em simultâneo. Estes aparelhos foram colocados na cave do Excalibur Arms.
A gravação seguinte, codificada SSEU-VS-901KB-432, é datada de 5 de Junho de 1968. Foi gravada a partir do quarto nº 432. Os dois homens presentes, John Anderson e Thomas Haskins, foram identificados pela voz e por provas obtidas no interior do quarto.
(Pancada na porta.)
ANDERSON: Quem é?
HASKINS: Sou eu... Tommy.
ANDERSON: Entra. Parecia tudo bem lá em baixo?
HASKINS: Costa livre. Que espelunca, querido.
ANDERSON: Eu só aluguei o quarto para o nosso encontro. Não vou dormir aqui. Senta-te ali. E bebe um brande.
HASKINS: Não, obrigado. Mas acho que vou fumar um charro. Servido?
ANDERSON: Eu fico-me pelo brande. Como é que te correram as coisas?
HASKINS: Muito bem, penso eu. Fui lá há dois dias. A Vivaça vai amanhã.
ANDERSON: Alguma complicação?
HASKINS: Uma pequena dificuldade. Nada de importante. Havemos de a resolver.
ANDERSON: Conseguiste muita coisa?
HASKINS: O que foi possível. Não tão completo como desejarias, tenho a certeza, mas interessante.
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ANDERSON: Tommy, eu não te vou enganar. Tu tens miolos. Tu sabes que eu não posso pagar cinco notas por um levantamento se não estivesse a planear um bom negócio. Antes de me fazeres o teu relatório, diz-me com franqueza... valerá a pena?
HASKINS: Que apartamento, querido?
ANDERSON: Todos.
HASKINS: Deus do céu!
ANDERSON: Valerá a pena?
HASKINS: Sem dúvida!
ANDERSON: Consegues calcular o lucro?
HASKINS: Calcular? Suponho que um mínimo de cem mil dólares. Talvez o dobro.
ANDERSON: Nós pensamos o mesmo. Foi o que eu calculei. Ponto, vamos a isso.
HASKINS: Escrevi um relatório com uma cópia na máquina da Vivaça, para podermos vê-lo juntos. Naturalmente que ficas com ambas as cópias.
ANDERSON: Naturalmente.
HASKINS: Pronto... comecemos pelos porteiros. Três: Timothy OLeary, Kenneth Ryan, Ed Bakely. Por ordem, estão de serviço da meia-noite às oito da manhã, das oito da manhã às quatro da tarde, das quatro da tarde à meia-noite. O OLeary, o tipo de serviço da meia-noite às oito da manhã, é um bêbado. Um ex-polícia. Quando um deles tem um dia de folga, os outros dois fazem turnos de doze horas e recebem a dobrar. Ocasionalmente, como por volta do Natal, dois deles estão ausentes ao mesmo tempo, e o sindicato manda um substituto temporário. Tudo certo?
ANDERSON: Continua.
HASKINS: Eu tenho tudo isto em maior pormenor no relatório, querido, mas só quero ver os pontos principais contigo, para o caso de teres quaisquer perguntas.
ANDERSON: Continua.
HASKINS: O supervisor. Ivan Block. Húngaro, penso eu, ou talvez polaco. Um bêbado. Vive na cave. Ele está lá vinte e quatro horas por dia, seis dias por semana. Às segundas-feiras, vai visitar a irmã casada que vive em Nova Jérsia. Em caso de emergência, o supervisor do prédio ao lado, da 73ª Avenida Leste nº 537, substitui-o. Também o substitui quando o Block vai de férias por duas semanas, em Maio. O Block tem 64 anos e é cego de uma vista. O seu apartamento na cave tem um quarto e uma casa de banho. Ryan insinuou que ele é um filho da mãe forreta. Talvez tenha qualquer coisa debaixo do colchão.
ANDERSON: Talvez. Estes gajos do Velho Mundo não acreditam
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em bancos. Continuemos. Não quero estar muito tempo aqui. Este sítio causa-me comichões.
HASKINS: Literalmente. Acabei de ver um percevejo... Suite 1 A, primeiro piso, no átrio, o Dr. Erwin Leister, médico, Medicina Interna.
ANDERSON: Sim?
HASKINS: Especialista em medicina interna. Uma enfermeira, uma secretária-recepcionista. Horário de cerca das nove da manhã às seis da tarde. Ocasionalmente, ele fica até mais tarde. Geralmente, a enfermeira e a secretária saem às cinco e meia. O psiquiatra é o Dr. Dmitri Rubicoff, suite 1B. Tem uma secretária-recepcionista. Trabalha geralmente das nove da manhã às nove da noite. Ocasionalmente, até mais tarde. A Vivaça dar-te-á mais pormenores sobre estes médicos depois de quinta-feira.
ANDERSON: Estás a ir muito bem.
HASKINS: Dois apartamentos em cada andar. A propósito, o andar do átrio é chamado o primeiro. Um lance de escadas acima, estás no segundo andar. O andar de cima é o quinto, o que tem as varandas.
ANDERSON: Eu sei.
HASKINS: Segundo andar. Apartamento 2A. Eric Sabine. Um decorador de interiores que parece divino. Houve um artigo sobre o apartamento dele no Times o ano passado. Li-o. Picassos e Klees originais. Uma boa colecção de arte pré-Colombiana. Uma maravilhosa carpete oriental 2,70 m por 3,60 m que é avaliada em vinte mil. Na fotografia do Times, ele tinha três anéis que pareciam verdadeiros. Não exactamente o meu tipo, mas obviamente cheio de massa. Não terei qualquer dificuldade em saber mais pormenores sobre ele, se estiveres interessado.
ANDERSON: Veremos.
HASKINS: Apartamento 2B. Mr. e Mrs. Aron Rabinowitz. Judeus ricos, jovens. Ele trabalha numa firma de advogados da Wall Street. Sócio júnior. São muito activos em grupos de ópera, ballet e teatro. Merda dessa. Muito liberais. Este foi um dos apartamentos que de facto vi. Ela estava em casa, ficou encantada por falar sobre o metropolitano da Segunda Avenida proposto e sobre as dificuldades dos pobres. Mobília moderna. Não vi nada, excepto o anel de casamento, que parecia ter sido tirado do Mount Rushmore. Uma vez que ele é advogado, suponho que devem ter um cofre de parede algures. Bons quadros, mas demasiado grandes para lhes mexer. Tudo coisas enormes, abstractas.
ANDERSON: Pratas?
HASKINS: Não perdes nada, pois não, querido? Sim, pratas... à vista e muito bonitas. Antigas, penso. Possivelmente, prendas 55
de casamento. Estão em cima do móvel da casa de jantar. Mais perguntas?
ANDERSON: Empregada?
HASKINS: Externa. Chega ao meio-dia e vai-se embora depois de servir o jantar e de arrumar a cozinha. E alemã. Uma mulher de meia-idade. Agora... o terceiro andar. Apartamento 3A. Mr. e Mrs. Horowitz. Ele está reformado. Costumava ter um armazém de joalharia. Ela sofre de artrite no joelho e anda com uma bengala. Também tem três casacos de pele, incluindo um de arminho e um de marta, e está cheia de diamantes. Pelo menos é o que o porteiro diz. Ele também diz que são forretas... um total de cinco dólares para todos os empregados no Natal. Mas ele pensa que estão cheios de massa. Apartamento 3B. Mrs. Agnes Everleigh. Separada do marido. Ele é o dono do apartamento, mas é ela que lá vive. Nada muito interessante. Um casaco de arminho, talvez. É compradora para uma cadeia de roupa interior feminina. Viaja muito. A propósito, não tenho mencionado os casacos de pele... mas certamente compreendes, querido, que a maior parte deles estarão guardados nesta altura do ano.
ANDERSON: Claro.
HASKINS: Quarto andar. Apartamento 4A. Mr. e Mrs. James T. Sheldon, com gémeas de 13 anos. Uma empregada interna que vai às compras na zona todos os dias ao meio-dia. Também entrei neste apartamento. Estava lá quando a empregada saiu. Das índias Ocidentais. Um borracho... se eu estivesse para aí inclinado. Um lindo sotaque. Grandes mamas. Sorriso radiante. Mrs. James T. Sheldon é de meter medo: cara de cavalo, dentes tortos, uma pele que parece estopa. Ela deve ter o dinheiro. E Mr. Sheldon deve andar a saltar para cima da empregada. Ele é sócio numa corretora, encarregado da filial da Avenida Park. Muitas coisas boas. Lancei uma olhadela a um escritório forrado de madeira, com vitrinas ao longo das paredes. Depois Mrs. Sheldon fechou a porta. Uma colecção de moedas, penso Estaria de acordo com o resto. E fácil de verificar.
ANDERSON: Sim. Dizes que a empregada vai às compras todos os dias ao meio-dia.
HASKINS: Exactamente. Como um relógio. Confirmei junto do porteiro. Ela chama-se Andrónica.
ANDERSON: Andrónica?
HASKINS: Exactamente. Está no relatório. Uma loucura. Apartamento 5B. Mrs. Martha Hathway... não Hathaway, mas Hathway. Uma viúva de 92 anos, com uma dama de companhia-governanta de 82 anos. Um pouco louca. Quase uma reclusa.
ANDERSON: Uma quê?
HASKINS: Uma reclusa. Como uma eremita. Raramente sai. Vê televisão o dia todo. Não tem visitas. A governanta faz as compras
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pelo telefone- Ryan ? porteiro, disse que o marido tinha sido um político e um grande merda em Tammany Hall há cerca de mil anos. O apartamento está mobilado com coisas da casa original dos Hathway, na 62.a Avenida Leste. Ela vendeu muita coisa depois da morte do marido"mas ficou com o melhor. Foi um grande leilão, por isso podes verificar muito facilmente, ou eu posso fazê-lo por ti.
ANDERSON: O que achas que ela tem?
HaTKINS: Pratas, jóias, quadros... tudo. E apenas uma sensação que eu tenho, mas o apartamento 4B pode conter um verdadeiro tesouro.
ANDERSON: É possível.
HATKINS: Andar de cima... o quinto. Ambos os apartamentos têm pequenas varandas. Apartamento 5A. Mr. e Mrs. Gerald Bingham e filho de 15 anos, Gerald Júnior. O miúdo anda de cadeira de rodas. está paralisado da cintura para baixo. Tem um professor particular que vem todos os dias. O Bingham tem a sua própria empresa de consultadoria de gestão com o escritório na Avenida Madison. Além disso, tem a sua própria limusina, com motorista, que é guardada numa garagem da Lex. O motorista condu-lo para o trabalho todas as manhãs, e para casa todas as noites. Uma maravilha. Ele é relacionado em todo o lado, por isso não será difícil verificar. A mulher também tem dinheiro. Não tenho nada de específico sobre este apartamento... nada de bom.
ANDERSON: O outro é o 5B. Ernest Longene e April Clifford. São casados, dizem, mas usam os seus próprios nomes. Ele é produtor de teatro e ela foi uma actriz famosa. Não actua há dez anos... mas ela lembra-se- Meu Deus, como se lembra! Empregada interna. Do tipo mamã grande, gorda. Este foi o terceiro apartamento em que entrei. April ia almoçar no Plaza e tinha os diamantes de dia. Muito bonitos. Alguns quadros bons, pequenos, nas paredes. Uma colecção muito jeitosa de pedras preciosas em vitrinas.
ANDERSON: Há dinheiro aí?
HATKINS: Ele tem dois êxitos na Broadway neste momento. Isso significa forçosamente dinheiro em casa, provavelmente num cofre de parede. Bem, querido, esses são apenas os pontos principais. Desculpa não ser mais específico.
ANDERSON: Conseguiste mais do que eu esperava. Dá-me a tua cópia do relatório.
HATKINS: com certeza. Garanto-te que não foi feita mais nenhuma cópia.
ANDERSON: Eu acredito. Pago-te o resto das cinco notas quando tiver o relatório da Vivaça.
HASKINS: Não há pressa, não há pressa. Tens alguma pergunta, ou há alguma coisa que gostasses que eu investigasse mais a fundo?
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ANDERSON: Agora não. Este é um relatório preliminar. Pode haver mais trabalho para ti mais tarde.
HASKINS: Sempre ao dispor. Sabes que podes confiar em mim.
ANDERSON: Claro.
(Pausa de seis segundos.)
HASKINS: Diz-me, querido... estás a encontrar-te novamente com a Ingrid?
ANDERSON: Estou.
HASKINS: Como está a rapariga?
ANDERSON: Bem. Acho que é melhor ires-te embora agora. Eu vou esperar cerca de meia hora, depois saio. Diz à Vivaça que telefono na sexta-feira, como de costume.
HASKINS: Estás zangado comigo, Duque?
ANDERSON: Por que é que havia de estar zangado contigo? Acho que fizeste um bom trabalho.
HASKINS: Quero dizer, porque falei na Ingrid...
(Pausa de quatro segundos.)
ANDERSON: Tens ciúmes, Tommy?
HASKINS: Bem... talvez... Alguns...
ANDERSON: Esquece. Eu não gosto do teu cheiro.
HASKINS: Bem, eu acho que...
ANDERSON: Sim. É melhor ires. E não tenhas ideias.
HASKINS: Ideias, querido? Que espécie de ideias poderia eu ter?
ANDERSON: Sobre o que estou a fazer.
HASKINS: Não sejas tolo, querido. Eu não sou burro.
ANDERSON: Óptimo.
Gravação DFRIRENI-FB-6JUN68-106-9H. Localização do automóvel: 65ª Avenida, perto da Park.
ANDERSON: Que diabo, eu disse ao Doutor que o contactaria quando estivesse pronto. Bem, eu não estou pronto.
SIMONS: Calma, Duque. Deus do céu, tu tens o rastilho mais curto de todos os homens que conheço.
ANDERSON: Eu não gosto de ser pressionado, é tudo.
SIMONS: Ninguém te está a pressionar, Duque. O Doutor investiu três mil dólares dos seus fundos pessoais nesta campanha e, muito normal e naturalmente, está interessado nos teus progressos.
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ANDERSON: E se eu lhe dissesse que era um assalto... uma coisa de nada?
SIMONS: É isso que queres que lhe diga?
(Pausa de onze segundos.)
ANDERSON: Não. Desculpe ter-me exaltado, Mr. Simons, mas eu gosto de me mover ao meu próprio ritmo. Esta coisa é grande, a coisa maior em que já entrei. Maior do que o trabalho do banco Bensonhurst. Quero que tudo corra bem. Quero ter a certeza. Mais uma ou duas semanas. Três, no máximo. Estou a anotar cuidadosamente onde gasto esses três mil. Não estou a ganhar um único cêntimo com isto. Posso dizer ao Doutor para onde foi cada cêntimo. Não estou a tentar enganá-lo.
SIMONS: Duque, Duque, não é o dinheiro. Garanto-te que o dinheiro não tem nada a ver. Ele pode perder isso num dia nos cães e nem sequer sentir a falta. Mas, Duque, tens de reconhecer que o Doutor é um homem muito orgulhoso, muito cioso da sua posição. Ele está onde está hoje em dia porque sempre escolheu vencedores. compreendes? Ele não gostaria que se soubesse que deu três mil a um free-lancer e não recebeu nada em troca. Isso seria prejudicial à sua reputação, e feriria o seu amor-próprio. Talvez os mais novos pensem que ele está a perder faculdades, que o seu discernimento está a desaparecer, que devia ser substituído. O Doutor tem de pensar nestas coisas. Por isso, naturalmente, ele está preocupado. compreendes?
ANDERSON: Ah... claro. Compreendo. E só que eu quero ganhar muito, muito... o suficiente para ir para algum lado por muito, muito tempo. E por isso que ando tão tenso. Isto tem de ser bem feito.
SIMONS: Estás a tentar dizer-me que parece bom... neste momento?
ANDERSON: Mr. Simons, neste momento, parece óptimo, verdadeiramente óptimo.
SIMONS: O Doutor vai ficar satisfeito.
Ernest Heinrich "Professor" Mann; 53 anos; residente na 53ª Avenida Leste nº 529, Cidade de Nova Iorque. Local de trabalho: Fun City Electronic Supply Repair Co., Avenida D nº 1975, Cidade de Nova Iorque. Um metro e sessenta e oito de altura; 73 quilos; quase completamente careca, com uma orla de cabelos grisalhos em volta do escalpe; sobrancelhas grisalhas; barba pequena à Van Dyke,
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também grisalha. Coxeava ligeiramente sobre a perna esquerda. Cicatriz profunda na canela da perna esquerda (que se supõe ser uma navalhada; ver processo Interpol 96B-J43196). Era um técnico de engenharia mecânica, electrotécnica e electrónica. Formado no Stuttgarter Technische Hochschule1 em 1938, com as mais elevadas classificações. Assistente de engenharia mecânica e electrotécnica na Zurich Académie du Mecánique2 de 1939 a 1946. Emigrou para os Estados Unidos (com passaporte suíço) em 1948. Preso em Estugarda, em 17 de Junho de 1937, acusado de perturbar a ordem pública (exibição impudica a uma mulher de meia-idade). Caso arquivado sem admoestação. Preso em Paris, em 24 de Outubro de 1938, por conduta escandalosa (urinar no Túmulo do Soldado Desconhecido). Deportado, depois de o caso ter sido arquivado. Em Zurique, três prisões por posse de droga perigosa (ópio), exibição impudica e posse ilegal de uma seringa hipodérmica. Sentença suspensa. Extremamente inteligente. Fala alemão, francês, italiano, inglês, algum espanhol. Não é considerado violento. Solteiro. O cadastro indica toxico-dependência intermitente (ópio, morfina, haxixe). O processo do FBI não refere quaisquer actividades ilegais durante a residência nos Estados Unidos. Requereu cidadania americana em 8 de Maio de 1954. Esta foi-lhe recusada em 16 de Novembro de 1954. (Nessa data, o irmão deste homem era um alto funcionário do Ministério das Finanças da Alemanha Ocidental, e o seu processo continha uma indicação: EM CASO DE PRISÃO, É fAVOR CONTACTAR O DEPARTAMENTO DE ESTADO DOS EUA ANTES DA INDICIAçÃO.
O relato seguinte é a primeira parte de um depoimento ditado, feito sob juramento, assinado e testemunhado por Ernest Heinrich Mann. Foi obtido após um prolongado interrogatório (a transcrição completa conta com cinquenta e seis folhas dactilografadas), desde 8 de Outubro de 1968 a 17 de Outubro de 1968. O interrogador foi o procurador distrital adjunto do Condado de Nova Iorque. O documento está registado como PDNI-FHM-101A-108B. A secção seguinte tem a indicação SEGMENTO 101A.
MANN: O meu nome é Ernest Heinrich Mann. Vivo na 51ª Avenida Leste, nº 529, Nova Iorque, Nova Iorque, EUA. Também tenho um negócio, de que sou proprietário... a Fun City Electronic Supply and Repair Co., Inc., registada de acordo com as leis do Estado de
1. Instituto Técnico de Estugarda. (N. da T.)
2. Academia Mecânica de Zurique. (N. da T.)
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Nova Iorque, na Avenida D nº 1975, Cidade de Nova Iorque. Estou a falar demasiado depressa? Óptimo.
"No dia 30 de Abril de 1968, fui contactado na minha loja por um homem que conheço como John Anderson, também conhecido como Duque Anderson. Ele disse, nessa altura, que queria contratar-me para inspeccionar a cave de uma casa na 73ª Avenida Leste nº 535, Cidade de Nova Iorque. Ele disse que queria que eu avaliasse os sistemas de telefones, alarmes e precauções de segurança desta casa. Em altura alguma me disse qual era a sua finalidade.
"Foi acordado um preço, e foi planeado que eu fosse à casa vestido com o uniforme de técnico de reparações da Cidade de Nova Iorque, chegando numa carrinha autêntica da empresa de Telefones. Anderson disse que providenciaria a carrinha e o motorista. Eu arranjaria a minha própria farda e identificação. Seria possível beber um copo de água, por favor? Obrigado.
"Cerca de um mês mais tarde, Anderson telefonou-me e disse que tinha arranjado a carrinha dos Telefones. Haveria dois motoristas. Eu levantei objecções, mas ele garantiu-me que eu estaria perfeitamente seguro.
No dia 4 de Junho, às 9.45 da manhã, encontrei-me com o camião na esquina da 79ª Avenida e da Lexington. Havia dois homens que se apresentaram simplesmente como Ed e Billy. Eu nunca os tinha visto antes. Tinham vestidas fardas de técnicos de reparação da Companhia de Telefones de Nova Iorque. Falámos muito pouco. O motorista, chamado Ed, parecia razoavelmente inteligente e vivo. O outro, chamado Billy, era grande e musculoso mas tinha a mentalidade de uma criança. Eu creio que ele era atrasado mental.
"Dirigimo-nos directamente à casa da 73ª Avenida Leste e parámos em frente dela. De acordo com o combinado, eu saí do carro, entrei no átrio e apresentei as minhas credenciais ao porteiro. Ele examinou o meu cartão de identificação, olhou para o passeio junto do qual a carrinha estava estacionada e disse-me que entrasse para o beco que fica ao lado do prédio. Algum dos senhores tem um cigarro? Ficaria muito grato. Muito obrigado.
(Pausa de quatro segundos.)
"Assim... Eu fui identificado no ecrã de televisão de circuito fechado do átrio, e o porteiro carregou no botão que abria a porta de serviço e deixou-me entrar na cave. Como?
"Não, esta era apenas uma inspecção. Não havia qualquer intenção de roubar ou destruir. O Anderson queria simplesmente um exame exaustivo da cave e fotografias Polaroid do que tivesse interesse. Compreende? Se eu pensasse que seria necessário cometer um acto ilegal, nunca teria aceite este trabalho.
"Bem. Eu já estou na cave. Dirigi-me primeiro à caixa dos 61
telefones. Bastante vulgar. Tomei nota dos telefones e das extensões principais. Tirei fotografias instantâneas da entrada da principal linha interurbana para a cave e de onde deveria ser cortada para isolar toda a casa. Isto foi pedido pelo Anderson, compreende? Também vi que havia dois sistemas de fios distintos, os quais, pela maneira como estavam dispostos, calculei serem sistemas de alarme, um ligado à esquadra local, despoletado talvez por um alarme ultra-sónico ou uma onda de rádio, e o outro ligado a uma empresa de segurança privada que, supus, seria accionado por portas ou janelas abertas. Inesperadamente, ambos os sistemas tinham pequenas etiquetas com os números de apartamentos escritos, e, assim, pude reparar que o alarme da esquadra estava ligado ao Apartamento 5B, e o alarme da empresa privada ao Apartamento 4B. Tomei nota disto e tirei fotografias. Como o Anderson tinha pedido.
"Neste momento, a porta que dava para a cave abriu-se e entrou um homem. Fiquei a saber que era Ivan Block, o supervisor do prédio. Ele perguntou-me o que estava a fazer, e eu expliquei que a empresa de Telefones tencionava colocar outra linha na rua, e eu estava a inspeccionar as instalações para ver que equipamento novo seria necessário. Esta era a mesma explicação que eu tinha dado ao porteiro. Pode dar-me outro copo de água, por favor? Obrigado.
(Pausa de seis segundos.)
"O Block pareceu satisfeito com a minha explicação. Ao ouvi-lo falar, vi que ele era húngaro, ou talvez checo. Uma vez que eu não falava nenhuma destas línguas, falei com ele em alemão, a que ele respondeu num alemão muito mau, com um forte sotaque. No entanto, ficou satisfeito por falar essa língua. Eu acho que ele estava um pouco embriagado. Insistiu que eu fosse ao seu apartamento beber um copo de vinho. Segui-o, satisfeito com a oportunidade de fazer uma inspecção melhor.
"O pequeno apartamento do supervisor estava sujo e era deprimente. Bebi um copo de vinho com ele enquanto olhava em redor. A única coisa de valor que vi foi um tríptico em cima da cómoda. Calculei que tivesse, pelo menos, trezentos anos, lindamente esculpido. O seu valor, estimei, podia ir até dois mil dólares. Não fiz qualquer referência a ele.
"O Block continuou a beber vinho, e eu disse-lhe que tinha de telefonar para o escritório e fui-me embora. Explorei então a cave principal. A única coisa de interesse que encontrei era bastante estranha...
"Parecia ser uma espécie de caixa... ou melhor, uma pequena divisão... construída a um canto da cave. Era obviamente bastante velha, eu supus que tivesse sido construída na cave quando o prédio fora construído. Duas paredes da cave formavam dois lados da divisão; as duas paredes que se projectavam, num ângulo recto, para dentro da
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cave, eram feitas de pranchas de madeira encaixadas umas nas outras. Uma das paredes de madeira tinha uma porta, fechada com uma alavanca e um ferrolho de bronze, extremamente pesados. As enormes dobradiças também eram de bronze. A porta estava fechada com um cadeado grande.
"Um exame mais atento revelou que a porta também estava protegida por um sistema de alarme um tanto primitivo, obviamente acrescentado anos depois de a divisão ter sido construída. Era um simples alarme de contacto que possivelmente faria soar uma campainha ou acender uma luz quando a porta fosse aberta. Segui a direcção do fio e calculei que fosse até ao átrio, onde deveria alertar o porteiro.
"Tirei fotografias Polaroid completas desta estranha divisão que parecia uma caixa, e tomei notas sobre como o alarme poderia facilmente ser neutralizado. Quase como reflexão a posteriori, coloquei a mão no lado desta divisão invulgar e vi que era bastante fria. Fez-me lembrar um enorme frigorífico dos que existem nos talhos deste país.
"Olhei uma última vez em volta e decidi que tinha tudo o que o meu cliente, o Anderson, pretendia. Saí seguidamente da cave e entrei na carrinha. Os dois homens, o Ed e o Billy, tinham esperado pacientemente. Saímos do beco, e eu sorri e acenei enquanto nos afastávamos.
"Eles deixaram-me na esquina de 79ª Avenida com a Lexington e foram-se embora. Não sei o que eles fizeram depois. A operação inteira levou uma hora e vinte e seis segundos. O John Anderson telefonou-me no dia 5 de Junho. Sugeri que viesse à minha loja no dia seguinte. Ele veio, e eu entreguei-lhe as fotografias que tirara, os diagramas e um relatório completo do que vira... que é exactamente o que relatei aos senhores. Agradeço-vos a vossa gentileza.
Binkys Bar Grill, 125.ª e Avenida Hannox, Cidade de Nova Iorque; 12 de Junho de 1968; 13.46. Nessa data, estas instalações estavam sob vigilância electrónica da Autoridade para Bebidas do Estado de Nova Iorque, devido a suspeitas de que os seus proprietários permitiam a realização de jogos de azar. A fita seguinte é a fita ABE-94K-KYM. A presença de Anderson foi identificada pela voz e pelo depoimento de uma testemunha ocular.
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ANDERSON: Um brande.
BARMAN: Este bar é para pretos e não para brancos.
ANDERSON: Que é que vai fazer... pôr-me na rua?
BARMAN: Você é um duro?
ANDERSON: Tão duro quanto for necessário. Esse brande vem ou não vem?
BARMAN: Você é do Sul?
ANDERSON: Não muito a Sul. Kentucky.
BARMAN: Lexington?
ANDERSON: Gresham.
BARMAN: Eu sou de Lex. Cordon Bleu serve?
ANDERSON: Está óptimo.
(Pausa de seis segundos.)
BARMAN: Quer com água?
ANDERSON: Água ao lado.
(Pausa de onze segundos.)
ANDERSON: Ando à procura de um tipo. Castanho-claro. Sam Johnson. As pessoas chamam-lhe Skeets.
BARMAN: Nunca ouvi falar dele.
ANDERSON: Eu sei. Ele tem uma cicatriz de navalha na face esquerda.
BARMAN: Nunca o vi.
ANDERSON: Eu sei. O meu nome é Duque Anderson. Se esse homem aparecer cá, eu vou acabar a bebida e atravessar a rua para comer uns pezinhos. Estarei lá durante pelo menos uma hora.
BARMAN: Não vale a pena. Nunca vi esse homem. Nunca ouvi falar dele.
ANDERSON: Ele talvez cá venha... inesperadamente. Aqui está uma nota para si, no caso de ele aparecer.
BARMAN: Eu aceito a sua nota, muito obrigado. Mas não serve de nada. Não conheço o homem. Nunca o vi.
ANDERSON: Eu sei. O nome é Duque Anderson. Eu estarei ali em frente, no Mama. Mantém a fé, querido.
BARMAN: Vai-te lixar, maricas.
Gravação DNENI (Divisão de Narcóticos do Estado de Nova Iorque) 48B-1061 (continuação). Gravado às 14.11, 12 de Junho de 1968, Mamas Soul Food, esquina da 125ª Avenida e da Hannox, Cidade de Nova Iorque.
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JOHNSON: Aqui está o meu homem, e venham de lá esses ossos.
ANDERSON: Òlá, Skeets. Senta-te e manda vir qualquer coisa.
JOHNSON: Já que aqui estou, vou beber uma cerveja.
ANDERSON: Como tens passado?
JOHNSON: Tenho alguma energia, por isso ainda estou vivo.
ANDERSON: As coisas correm-te bem?
JOHNSON: Faço umas coisas, mas não engordo.
ANDERSON: Pára com essa merda e fala como deve ser. Tens tempo para fazer um trabalho para mim?
JOHNSON: Se for um crime, tenho tempo.
ANDERSON: Deus do céu. Skeets, há uma casa na zona Leste. Se estiveres interessado, dou-te a morada. Há uma empregada interna que trabalha num dos apartamentos. Ela vai às compras todos os dias ao meio-dia.
JOHNSON: Quando falas numa garota, eu tenho que concordar.
ANDERSON: Castanho-clara. Das índias Ocidentais. Grandes pulmões. Bonita. Quero que te aproximes dela.
JOHNSON: Até que distância, meu Deus, que distância?
ANDERSON: O mais possível. Tudo o que ela te puder dizer sobre o apartamento. Chama-se Andrónica. Isso mesmo... Andrónica. Ela é do apartamento 4A. Há uma colecção de moedas lá. Mas eu também quero informações sobre o resto da casa... o que ela te disser.
JOHNSON: Ela há-de falar.
ANDERSON: Há uma divisão estranha na cave. Uma divisão fria. Tenta descobrir que raio é.
JOHNSON: vou tentar.
ANDERSON: Aceitas?
JOHNSON: Se pagas, aceito.
ANDERSON: Uma nota?
JOHNSON: Duas.
ANDERSON: Estábem...duas.Mas faz-me o trabalho. Aqui está uma para começares. Voltarei aqui de hoje a uma semana, à mesma hora. Está bem?
JOHNSON: Está.
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Transcrição da gravação POM-14JUN68-EVERLEIGH. Aproximadamente 2.10 da manhã.
MRS. EVERLEIGH: O porteiro viu-te entrar?
ANDERSON: Ele não estava lá.
MRS. EVERLEIGH: O filho da mãe. Somos supostos ter porteiro durante vinte e quatro horas, e este filho da mãe está sempre na cave, a beber vinho com o bêbado do supervisor. Brande?
ANDERSON: Sim.
MRS. EVERLEIGH: Sim, se faz favor.
ANDERSON: Vai à merda.
MRS. EVERLEIGH: Meu Deus, estamos muito bem dispostos esta noite. Cansado?
ANDERSON: Só os olhos.
MRS. EVERLEIGH: Eu acho que é mais do que isso. Estás com ar de quem tem muitas preocupações. Problemas de dinheiro?
ANDERSON: Não.
MRS. EVERLEIGH: Se precisares de dinheiro, eu posso dar-te algum.
ANDERSON: Não... obrigado.
MRS. EVERLEIGH: Assim é melhor. Bebe. Eu comprei uma caixa de Rémy Martin. Por que é que estás a sorrir?
ANDERSON: Achas que isto vai durar uma caixa?
MRS. EVERLEIGH: Que queres dizer com isso? Queres acabar? Então acaba.
ANDERSON: Eu não quero acabar. Eu só pensei que talvez te fartasses de eu te bater. Estás farta?
(Pausa de sete segundos.)
MRS. EVERLEIGH: Não, não estou farta disso. Penso nisso o tempo todo. Quando estive em Paris, tive saudades tuas. Uma noite, queria-te tanto que me apetecia gritar. Tenho um milhão de coisas na cabeça. Negócios. Pequenos pormenores. Pressão. Eu sou só tão boa quanto foi a minha última estação. Trabalho para os piores filhos da mãe do ramo... os piores. Só me descontraio quando estou contigo. Penso em ti durante o dia, quando estou no escritório. Penso no que fizemos e no que vamos fazer. Se calhar, não devia estar a contar-te estas coisas.
ANDERSON: Por que não?
MRS. EVERLEIGH: Uma rapariga deve fazer-se difícil.
ANDERSON: Meu Deus, és uma cabra estúpida.
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(Pausa de cinco segundos.)
MRS. EVERLEIGH: Sim, sim, sou. Quando se trata de ti. Já estiveste preso, não estiveste?
ANDERSON: Reformatório. Quando era miúdo. Roubei um automóvel.
MRS. EVERLEIGH: E não estiveste depois disso?
ANDERSON: Não. Que é que te faz pensar isso?
MRS. EVERLEIGH: Não sei. Talvez os teus olhos. Esses olhos chineses. O modo como falas. Ou não falas. Às vezes metes-me medo.
ANDERSON: Meto?
MRS. EVERLEIGH: Tens aqui a garrafa. Serve-te. Tens fome? Posso fazer-te uma sanduíche de carne assada.
ANDERSON: Não tenho fome. Quando é que vais viajar outra vez?
MRS. EVERLEIGH: Por que é que perguntas?
ANDERSON: Só para fazer conversa.
MRS. EVERLEIGH: Fui convidada para ir a Southampton no fim-de-semana do 4 de Julho. Depois, no fim de Agosto, no fim-de-semana do Dia do Trabalho1, vou a Roma. Posso sentar-me ao teu lado no sofá?
ANDERSON: Não.
MRS. EVERLEIGH: É assim que eu gosto... um homem romântico.
ANDERSON: Se eu fosse um homem romântico, tu não me ligarias nenhuma.
MRS. EVERLEIGH: Suponho que não. Mesmo assim, seria agradável saber, de vez em quando, que és humano.
ANDERSON: Eu sou humano. Senta-te no chão.
MRS. EVERLEIGH: Aqui?
ANDERSON: Mais perto. Em frente de mim.
MRS. EVERLEIGH: Aqui, querido?
ANDERSON: Sim. Tira-me os sapatos e as meias.
(Pausa de catorze segundos.)
MRS. EVERLEIGH: Nunca tinha visto os teus pés. Como eles são brancos. Os teus dedos dos pés parecem minhocas brancas.
ANDERSON: Despe isso.
MRS. EVERLEIGH: Que é que vais fazer?
ANDERSON: vou fazer-te esquecer os filhos da mãe para quem trabalhas, o negócio, os pormenores, a pressão. É isso que tu queres... não é?
1. O Dia do Trabalho, nos EUA, é no primeiro fim-de-semana de Setembro. (N. da T.)
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MRS. EVERLEIGH: Em parte.
ANDERSON: Qual é a outra parte?
MRS. EVERLEIGH: Quero esquecer quem sou e o que sou. Quero esquecer-te e o que estou a fazer com a minha vida.
ANDERSON: Queres evadir-te?
MRS. EVERLEIGH: Evadir-me? Sim, quero evadir-me.
ANDERSON: Tens um belo bronze. Despe o robe.
MRS. EVERLEIGH: Assim?
ANDERSON: Sim. Meu Deus, tu és grande. Mamas grandes e um rabo grande.
MRS. EVERLEIGH: Duque... sê bom para mim... por favor.
ANDERSON: bom para ti? É isso que tu queres?
MRS. EVERLEIGH: Não... tu sabes... não fisicamente. Podes fazer o que quiseres. Qualquer coisa. Mas sê bom para mim como pessoa... como ser humano.
ANDERSON: Eu não sei de que raio estás a falar. Abre as pernas.
MRS. EVERLEIGH: Oh, meu Deus, acho que vou vomitar.
ANDERSON: Vomita à vontade. Vomita em cima de ti própria.
MRS. EVERLEIGH: Tu não és humano. Não és.
ANDERSON: Está bem. Não sou. Mas sou o único homem do mundo que consegue fazer-te evadir. Abre mais as pernas.
MRS. EVERLEIGH: Assim? Está bem assim, Duque?
ANDERSON: Está.
(Pausa de um minuto e oito segundos.)
MRS. EVERLEIGH: Estás a magoar-me, estás a magoar-me.
ANDERSON: com certeza.
MRS. EVERLEIGH: Minhocas brancas.
ANDERSON: Exactamente. A evadir-te?
MRS. EVERLEIGH: Sim... sim...
ANDERSON: Tens um corpo que parece papa.
MRS. EVERLEIGH: Por favor, Duque...
ANDERSON: És um charco de esterco.
MRS. EVERLEIGH: Por favor, Duque...
ANDERSON: "Por favor, Duque. Por favor, Duque." Cabra estúpida.
MRS. EVERLEIGH: Por favor, eu...
ANDERSON: Pronto. Não é bom? Agora estou a ser bom para ti como pessoa. Como ser humano. Certo?
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O documento seguinte é uma fotocópia de um relatório manuscrito, identificado pelo Dr. Seymour P. Ernst, presidente do Instituto de Grafologia de Nova Iorque, na Avenida Erskine nº 14 426, Chicago, Ilinóis, como sendo a letra de Cynthia "Vivaça" Haskins (já identificada). As duas folhas de papel sem linhas, escritas nos dois lados, revelaram impressões digitais latentes de Cynthia Haskins, Thomas Haskins e John Anderson. O papel - um papel de máquina barato e sem marca de água - tinha um picotado miniatura na orla superior (colada com fita-cola vermelha), indicando que as folhas tinham sido retiradas de um bloco. O papel foi identificado como sendo de uma marca popular de papel de máquina vendido em blocos de vinte cinco folhas. Estes blocos estão à venda em muitas papelarias e outras lojas.
DUQUE: Examinei os dois consultórios, tu sabes onde. Não custou nada. Dei aos dois médicos cheques falsos em vez de dinheiro. Não volto lá. Não é necessário.
São ambos grandes. Penso que ganham bem. O médico tem uma enfermeira e uma secretária-recepcionista. Vi-a abrir o correio. A maior parte, cheques. Não há cofre no gabinete exterior. Provavelmente, depósitos bancários nocturnos. Duas salas que dão para o consultório médico: sala de observações e sala pequena de aprovisionamento. A sala pequena tem um cofre com medicamentos num canto. A casa de banho fica à esquerda de quem segue pelo corredor em direcção ao consultório do médico.
Os quadros nas paredes são reproduções baratas. O médico tem cinco taças de prata no seu consultório - por remar com ginga... O que quer que isso seja.
Desculpa não te dar grande coisa aqui-mas era tudo o que havia.
O consultório do psiquiatra era uma pequena sala exterior com uma secretária-enfermeira, um consultório grande e uma casa de banho à direita da sala exterior.
O psiquiatra tem três bonitos quadros pequenos: Picasso, Miró e outro. Parecem verdadeiros. Descrevi-os ao Tommy. Ele calcula 20 mil pelos três, talvez mais.
No lado inferior esquerdo da secretária do médico há uma fechadura de disco. Ele estava a colocar uma bobina gravada
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na gaveta quando eu entrei. Quando comecei a falar, ele carregou num botão que estava na secretária. Tenho a certeza de que tudo o que eu disse foi gravado. Deve haver umas coisas interessantes naquele cofre de secretária. Pensa nisso.
Ele tem um pequeno lavatório e um guarda-vestidos ao lado do consultório, atrás, perto das janelas que dão para o jardim. Alguma coisa no guarda-vestidos?
A enfermeira-secretária é jovem, cerca de 28 anos. O psiquiatra tem por volta de 55, fala com sotaque. Pequeno, gordo, cansado. Eu penso que ele toma qualquer coisa. Eu diria anfetaminas.
Foi tudo o que consegui. Desculpa não ser mais.
Não te esqueças das gravações. Fresquinhas do divã. compreendes o que quero dizer?
Desenhos de ambos os consultórios no verso desta folha. Se pudermos ser úteis em qualquer coisa, diz-nos.
O resto dos , Duque? Tivemos algumas despesas e estamos tesos. Obrigada.
Vivaça
Gravação DNENI (continuação). Gravada às 14.17,19 de Junho de 1968, no Mamas Soul Food, 125ª Avenida e Hannox, Cidade de Nova Iorque. Os participantes John Anderson e Samuel Johnson foram identificados por um informador pago, presente no local.
Samuel "Skeets" Johnson, 33 anos, era negro, castanho-claro, com cabelo preto comprido oleoso, penteado à estilo conk (pompadour). Aproximadamente um metro e oitenta e cinco; 90 quilos. Cicatriz funda na face esquerda. Surdo a setenta e cinco por cento do ouvido esquerdo. Vestido com roupa cara de cores vivas. Verniz cor-de-rosa claro nas unhas. No último relatório, conduzia um Cadillac descapotável (azul-eléctrico), com matrícula de Nova Jérsia 4CB-6732A, registado em nome de Jane Martha Goody, Avenida Hempy nº 149, Hackensak, Nova Jérsia. O cadastro de Johnson incluía vagabundagem, pequenos delitos, perturbação da ordem pública, resistência a ordem de prisão, assalto simples, assalto com intenção de matar, ameaça de causar lesões físicas, violação da liberdade condicional, assalto a casas, roubo à mão armada e cuspir num passeio público. Ele tinha cumprido um total de seis anos, onze
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meses e catorze dias na Escola Dawson para Rapazes, Reformatório de Hillcrest e Dannemoors. Este homem tinha a invulgar capacidade de somar mentalmente uma série de até vinte números ditados, de oito dígitos cada, e de obter o resultado certo em poucos segundos. Trazia frequentemente consigo uma faca de ponta e mola numa pequena bainha presa ao tornozelo direito. Falava frequentemente em calão em verso.
ANDERSON: Como tens passado, Skeets?
JOHNSON: vou vivendo. Já que estou aqui, bebo uma cerveja. Se te apetecer, come qualquer coisa.
ANDERSON: Só cerveja.
JOHNSON: Eu pensava que gostavas desta merda de comida... pezinhos e legumes?
ANDERSON: Sim, gosto. Tu não gostas?
JOHNSON: Não, pá. Eu gosto de um bom Chateaubriand, ou talvez umas pernas de rã a nadar em manteiga e alho. Isso é que é comer. Esta comida é horrível. Só cerveja? Só queres isso?
ANDERSON: Só. Que descobriste?
JOHNSON: Espera pela cerveja e depois ouve.
(Pausa de vinte sete segundos.)
JOHNSON: A propósito, sou eu que pago.
ANDERSON: Obrigado.
JOHNSON: Tenho de te agradecer, rapaz, porque me deste alegria.
ANDERSON: Porquê?
JOHNSON: Essa pequena Andrónica que me indicaste. Oh, que doce e sumarenta que ela é. Se passares uma noite com ela, tudo o que precisas é uma colher e uma palhinha. Ela é um enorme gelado de morango com chantilly em cima e com uma enorme cereja no topo.
ANDERSON: E a primeira coisa que mordeste foi a cereja.
JOHNSON: Não me faças perguntas, para eu não mentir.
ANDERSON: Andas a comê-la?
JOHNSON: Em todas as oportunidades que tenho... que não são frequentes. Ela está de folga uma noite por semana. Então, voamos. E tivemos duas sessões de matinée. Oh, ela é tão fofinha e mexida. Tenho vontade de a comer.
ANDERSON: Aposto que o fazes.
JOHNSON: De vez em quando, Grande Pai Branco, de vez em quando.
ANDERSON: Como é que se conheceram?
JOHNSON: Para que queres saber?
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ANDERSON: Como é que eu vou aprender a operar se tu não contas coisas?
JOHNSON: Ah, Duque, Duque... tens mais merda do que um ganso de Natal. Já te esqueceste de mais do que eu alguma vez te podia ensinar. Bem, eu tenho este amigo de família. Um verdadeiro senhor. Mas isso é apenas fachada. Este tipo está em tudo. Quero dizer, é um Billy the Kid preto. Esperto. Percebes?
ANDERSON: Claro.
JOHNSON: Assim, eu passo-lhe duas notas para a mão. Ele dirige-se a Andrónica quando ela vinha a sair do supermercado. O meu amigo põe a pata em cima dela. "Seu tarado sexual", grito-lhe eu, "como é que ousa tocar, aborrecer, profanar e molestar esta querida, doce e inocente garota?"
ANDERSON: Lindo.
JOHNSON: Prego-lhe este enorme murro... de que ele se consegue desviar. Foge pela rua abaixo. A Andrónica ficou abalada.
ANDERSON: E grata.
JOHNSON: E... e grata. Portanto, eu ajudo-a a empurrar o carrinho das compras até casa. Uma coisa conduz à outra.
ANDERSON: Então? Que contou ela?
JOHNSON: Que a colecção de moedas está segura em cinquenta mil dólares. Há um cofre de parede atrás de um quadro de uma jarra de flores no escritório. E onde Mrs. Sheldon guarda os seus diamantes. A minha garota pensa que há ainda outras coisas lá dentro. Acções. Talvez algum dinheiro. Parece bom?
ANDERSON: Nada mau. Eles vão ficar cá o Verão inteiro?
JOHNSON: Lamento informar, patrão, que não vão. A família muda-se este fim-de-semana para Montauk. O velho Sheldon irá lá todos os fins-de-semana até ao Dia do Trabalho. Isto significa que não vai haver uma ratinha doce para mim durante três meses, a não ser que consigamos arranjar um esquema... tal como ela vir à cidade, ou eu ir até lá.
ANDERSON: Tu hás-de resolver o problema.
JOHNSON: Tenciono fazê-lo. Tenciono mesmo fazê-lo. Tenho de me encontrar com Andrónica para que ela sopre a minha gaita.
ANDERSON: E a divisão fria? A divisão na cave. Lembraste-te?
JOHNSON: Não me esqueci, homem branco que fala com língua afiada. Adivinha o que é?
ANDERSON: Tenho estado a tentar. Não consigo.
JOHNSON: Quando a casa foi construída, era lá que guardavam a fruta e a hortaliça. Depois, quando passaram a ter frigoríficos, o velho que construiu a casa guardava lá os vinhos. Aquelas paredes são grossas.
ANDERSON: E agora? Para que serve? Vinho?
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JOHNSON: Não. Eles têm uma coisa parecida com um frigorífico lá e uma máquina que tira a humidade do ar. É frio e seco. E toda a gente que vive no prédio... as mulheres, isto é... guardam lá os casacos de pele quando chega o tempo quente. Sem pagamento extra. Têm o seu próprio local de armazenamento de casacos de pele ali mesmo no prédio. Que pensas disto?
ANDERSON: Gosto. Gosto mesmo muito.
JOHNSON: Calculei que gostasses. Duque, se estiveres a planear qualquer coisa... e repara que eu disse se... e precisares de mais um ajudante, tu sabes quem está disponível, não sabes?
ANDERSON: Tu mereces; podes ser tu.
JOHNSON: Ah, jóia, agora estás a cantar a nossa canção!
ANDERSON: Põe a mão debaixo da mesa; é a tua outra nota.
JOHNSON: Aceito a tua massa. Mas porquê pagares-me a mim? Devia ser eu a pagar-te pelo que fornico.
ANDERSON: Até à vista.
Fita CVC-25 JUN68-IM-12:48-139H. Esta é uma gravação telefónica.
ANDERSON: Está? Sou eu.
INGRID:Sim.Ah...
ANDERSON: Acordei-te? Desculpa.
INGRID: Vens cá?
ANDERSON: Não. Hoje não. Foi por isso que telefonei. O teu telefone está limpo?
INGRID: Oh, Schatzie... por que é que eles haviam de se incomodar comigo? Eu não sou ninguém.
ANDERSON: Meu Deus, como eu gostava de ir aí. Mas não posso. Hoje não. Pôr-me-ia a dormir. Tenho uma reunião esta noite.
INGRID: E depois?
ANDERSON: É muito importante. Homens muito importantes. Tenho de estar acordado. Atento. São homens de dinheiro.
INGRID: Tu sabes o que estás a fazer?
ANDERSON: Sei.
INGRID: Desejo-te muita sorte.
ANDERSON: Eu provavelmente terei terminado com eles pelas duas ou três horas. E em Brooklyn. Posso voltar?
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INGRID: Infelizmente, não, Schatzie. Estou ocupada esta noite.
ANDERSON: Ocupada?
INGRID: Sim.
ANDERSON: É importante?
INGRID: Digamos... lucrativo. Ele vem de Port Wayne. Isso fica em Indiana. É qualquer coisa... não é? Vir a Nova Iorque, de Fort Wayne, Indiana, para ver a pobre Ingrid Macht.
ANDERSON: Eu viria de Hong Kong.
INGRID: Ah! Que romântico! Muito obrigado. Mas amanhã talvez?
ANDERSON: Sim. Está bem. Suponho que é melhor assim. Então eu conto-te.
INGRID: Como quiseres, Duque...
ANDERSON: Sim?
INGRID: Tem cuidado. Tem muito, muito cuidado.
ANDERSON: Terei cuidado.
INGRID: Há uma coisa em ti que me preocupa... uma espécie de loucura, uma estranheza. Pensa. Duque, promete-me que pensas... com muito cuidado.
ANDERSON: Prometo-te que vou pensar com muito cuidado.
INGRID: Das istgut1. Talvez amanhã à tarde possamos evadir-nos. Juntos, Duque. Pela primeira vez.
ANDERSON: Juntos? Sim. Eu far-te-ei evadir. Prometo.
INGRID: Óptimo. E agora vou dormir outra vez.
O manuscrito seguinte foi descoberto durante uma busca à casa de John "Duque" Anderson no dia 3 de Setembro de 1968. Consistia em três folhas de papel de apontamentos amarelo, com linhas azuis horizontais e com uma fina linha tripla vertical (vermelha-azul-vermelha) a três centímetros da margem esquerda. As folhas em si mediam aproximadamente vinte e quatro centímetros por trinta e sete centímetros, com picotado na orla do topo, indicando que tinham sido cortadas de um bloco.
A análise feita por peritos indicou que este papel é vulgarmente vendido em papelarias e que é conhecido como papel de apontamentos de advogados. E frequentemente utilizado por estudantes, advogados, escritores profissionais, etc.
1. Em alemão no original: que bom. (N. da T.)
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As folhas recuperadas faziam aparentemente parte ou secção de um manuscrito mais longo. As páginas não estavam numeradas. Os analistas pensam que foram escritas cerca de dez anos antes de serem descobertas - isto é, por volta de 1958. A letra foi identificada como sendo definitivamente de John Anderson. O instrumento de escrita foi uma caneta esferográfica com tinta verde.
As três folhas abaixo reproduzidas estavam a ser utilizadas para forrar as prateleiras de um pequeno armário da Avenida Harrar nº 314, Brooklyn, Nova Iorque, onde foram descobertas e analisadas.
(Primeira folha)
podia ser tudo.
Por outras palavras, o crime não é apenas umapequena coisa, uma pequena parte da sociedade, mas está lá, e constitui a maior parte do que todos chamam uma vida normal, correcta e "dessente".
Quando uma mulher não se entrega a um homem, a não ser que ele se "caze" com ela, isto pode ser chamado extorsão ou chantagem.
Ou uma mulher que quer um casaco de peles, e se o marido não lho quer dar, e ela diz que não há sexo se ele não der. Isto também é uma espécie de crime, como a chantagem.
Talvez um patrão durma com a secretária porque, de outro modo, ela perderá o emprego. Extorsão.
Um tipo diz. Eu sei que tens andado a enganar o teu marido. Se não me deres algum, digo ao teu marido. Chantagem.
Um grande supermercado vem para a "vizinhanssa", perto de umapequena mercearia. E esta grande cadeia baixa os preços e provoca a falência da pequena mercearia. Isto é um assalto. Assalto de dinheiro ou assalto físico é tudo a mesma coisa.
Guerra. Diz-se a um pequeno país, vocês fazem o que nós queremos ou fazemo-vos ir pelos ares. Extorsão ou chantagem.
Ou um país grande como os Estados Unidos vai a um pequeno país e compra o tipo de Governo que queremos. Isto é suborno "criminozo".
Ou nós dizemos que vos daremos isto e aquilo se fizermos isto, e depois opaísfá-lo, e nós dizemos muito obrigado! E não pagamos o que devemos. Isto é fraude ou conspiração para cometer fraude.
Um homem de negócios ou talvez até mesmo um professor de uma faculdade pensa que um outro tipo vai conseguir o cargo que ele quer. Então, ele escreve cartas que não assina e envia-os
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ao chefão. Cartas envenenadas. Nada por que possa ser preso, apenas insinuações.
Há muitos outros "exemplos", praticamente intermináveis que eu
(Segunda folha)
podia dizer aqui quanto do que nós dizemos que é comportamento humano comum, normal, é realmente crime.
Alguns destes são pessoais, como entre um homem e uma mulher, ou dois homens e duas mulheres, e alguns estão no mundo dos negócios, outros estão no Governo.
Um tipo quer lixar outro tipo na sua empresa e espalha o boato de que ele é maricas. Difamação.
Um tipo compra prendas para a mulher porque sabe que ela não lhe dá nada se ele não o fizer. Chantagem.
Ensinamos aos miúdos na tropa qual é a melhor maneira de matar gente. Assassínio.
A "mercearia" ou supermercado local carrega na conta se conseguir fazê-lo, ou então dá troco a menos. Roubo.
Um tipo quer ir a um restaurante barato, mas a mulher quer ir a um lugar caro. Ela insinua que, se não forem onde ela quer, não há nada para ele esta noite. Extorsão.
Um tipo dá um colara uma garota e diz que são diamantes, mas são realmente zircão ou pedras semipreciosas e ela vai para a cama com ele. Fraude.
Um tipo numa firma está a roubar e outro tipo descobre e diz ao primeiro tipo. Então o primeiro tipo dá qualquer coisa ao segundo. Depois sorriem os dois e deixam viver. Conspiração.
Talvez uma mulher goste de apanhar. Por isso um tipo dá-lhe umas bofetadas. Ele também gosta. Mas quem sabe? Continua a ser agressão física.
Um fulano mantém outro fulano na linha dizendo que o vai denunciar se ele não continuar com as brincadeiras. Extorsão.
"Paressido" com o anterior, quem diz que eu vou-me matar se não fazes o que eu quero, isso também é extorsão. Ou talvez chantagem
(Terceira folha)
Dependendo de como os advogados e os juizes decidem. O que estou a dizer é que o crime não é apenas agir contra a lei porque toda a gente o faz. Não sei se isto é qualquer coisa
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nova ou se acontece há muitos anos. Mas somos todos criminosos.
Somos todos criminosos. É só uma questão de grau, como primeiro, segundo e terceiro grau. Mas se as leis contra actos criminosos estão certas, então quase toda agente devia estar na cadeia. Se estas leis forem correctas e rígidas, o grau não deveria importar. A mulher casada que não dá nada a não ser que o marido lhe compre um casaco de peles, é tão culpada de extorsão como um tipo que faz uma extorsão de um milhão de dólares.
E o pobre pai que assalta o mealheiro do filho, no entanto é engraçado, ele tira trocos suficientes para ir trabalhar, esse não é diferente de um bom assaltador de bancos como o Sonny Brookes, ele morreu ontem veio no jornal. Deus do céu, como eu gostava desse tipo, ele ensinou-me tudo o que sei, ele era tão fantástico. Foi morto ao sair de um banco em West Vá. Custa-me a acreditar, ele era tão cuidadoso, um verdadeiro profissional. Trabalhava uma vez por ano, mas fazia planos durante seis meses. Cuidadoso e bom. Descansava durante seis meses todos os anos. Fazia um grande assalto por ano e depois descansava. Fiz dois trabalhos para ele e aprendi tanto.
Oh merda, é tudo crime. Tudo. O modo como vivemos. Toda a gente. Somos todos vigaristas, todos nós. Por isso o que eu faço é apenas ser suficientemente esperto para que dê dinheiro.
Nós mentimos, enganamos, roubamos e matamos, e se não é dinheiro é outras pessoas, ou o seu amor, ou apenas para dar umas cambalhotas. O que quer que queiramos. Oh, meu Deus, é tão porco.
Quando estava preso, eu pensava que os que estavam dentro eram mais limpos que os que estavam fora. Pelo menos, nós éramos francos e cometíamos os nossos crimes abertamente. Mas os restantes pensam que são tão normais, limpos e "dessentes", e são os maiores e mais sujos criminosos de todos porque eles
(Fim da terceira folha.)
A seguinte é uma transcrição feita a partir da gravação de uma conversa que teve lugar no Elviras, um restaurante italiano na Avenida Hammacher, Brooklyn, Nova Iorque, na madrugada do dia 26 de Junho de 1968.
Nessa altura, estas instalações estavam sob vigilância
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electrónica de, pelo menos, quatro, possivelmente mais, organismos de investigação legal. Aparentemente, não havia qualquer cooperação entre estes organismos.
Foi utilizada uma enorme variedade de dispositivos electrónicos miniaturizados, incluindo escutas telefónicas, gravadores colocados debaixo de determinadas mesas, no bar, nas casas de banho dos homens e das mulheres. Além disso, os novos microfones transmissores Sonex Nailhead 158-JB tinham sido instalados sub-repticiamente no rodapé da cozinha.
O Elviras, um restaurante popular e bem sucedido da zona Flatbush de Brooklyn, era, desde há muitos anos, conhecido pela Polícia como um local em que a família Angelo comia e se reunia. O restaurante foi alvo de uma bomba incendiária no dia 15 de Outubro de 1958, durante o que foi, aparentemente, uma guerra de bandos entre a família Angelo e uma organização rival conhecida como os Irmãos Snipes. A bomba resultou na morte de um empregado de mesa, Pasquale Gardini.
Em 3 de Fevereiro de 1959, Anthony "Wopso" Angelo foi morto a tiro na cabina telefónica da frente do Elviras, enquanto fazia uma chamada para pessoas desconhecidas. O seu assassino entrou pela porta de vidro, depois de, aparentemente, ter visto Angelo dirigir-se à cabina telefónica de um local de observação exterior. Angelo foi atingido por quatro balas de calibre .32. Teve morte instantânea. O seu assassino ainda não foi preso.
Presentes na reunião que teve lugar numa pequena sala privada do fundo do Elviras, na manhã de 26 de Junho de 1968, estavam John "Duque" Anderson, Anthony "Doutor" O médico e Patrick "Pequeno Pat" Angelo. Estes homens foram identificados positivamente pela voz, por provas obtidas no interior e no exterior da sala, e por informadores pagos presentes no local.
Patrick "Pequeno Pat" Angelo nasceu em 1932 em Brooklyn, Nova Iorque. O seu pai, Patsy "O Anzol" Angelo, foi morto num incidente à beira-mar dois meses antes do nascimento de Patrick. A educação de Patrick foi financiada pelo seu avô, Dominick "Papá" Angelo, don da família Angelo. Patrick Angelo media um metro e setenta e quatro; 97 quilos; olhos azuis; cabelo grosso, grisalho, comprido, penteado para trás, sem risca. Cicatrizes físicas: uma ferida por cima da têmpora direita (bala); ferida côncava na canela esquerda (estilhaços de granada); e terceira costela direita extraída (granada). Tinha-se formado na Walsham School of Business Administr ation e tinha estado um ano matriculado na Faculdade de Direito de Rolley. Alistou-se no exército dos EUA em 1950 e, depois da recruta, foi enviado para a Coreia com o 361º Batalhão de Assalto, 498º Regimento, 22ª Divisão de Combate. No fim da guerra, tinha
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subido até à patente de major (promoção no campo de batalha) e tinham-lhe sido atribuídos três Purple Hearts1, a Estrela de Prata e a Cruz por Serviços Distintos, além de condecorações dos Governos sul-coreano e turco.
O indivíduo em causa saiu do exército em 1954, com cartas de louvor. Fundou então e tornou-se presidente da Modern Automanagement, na Quinta Avenida nº 6501, Cidade de Nova Iorque, uma empresa de consultadoria de gestão. Além disso, era director da Sweeteeze Linens, na Avenida Forbisher nº 361, Brooklyn, Nova Iorque; vice-presidente da Wrenchies Bowling Alleys, Grand Evarts nº 1388, Bronx, Nova Iorque; e secretário-tesoureiro da Fifth National Discount and Service Organization, da Palm Credit Co., Inc., e da Thomas Jefferson Trading Corp., todas elas em Wilmington, Delaware.
O indivíduo em causa não tinha cadastro.
O indivíduo em causa era casado (com Maria Angelo, uma prima em segundo grau), e era pai de dois filhos adolescentes, actualmente estudantes da Academia Militar de Harrington, na Virgínia. Tinha também uma filha de 4 anos, Stella.
Suposição: Patrick Angelo sucederá a Dominick "Papá" Angelo como don da família Angelo, aquando da morte de Dominick, que tem 94 anos.
Devido a dificuldades mecânicas, e ao intenso barulho exterior, nenhuma gravação, por si só, contém toda a conversa seguidamente reproduzida. Esta é uma transcrição de partes de quatro fitas diferentes, gravadas por quatro organismos de cumprimento da lei. (A seu pedido, partes da transcrição foram apagadas, uma vez que dizem respeito a investigações actualmente em curso.) Esta é a transcrição do autor GO-110T-26 JUN68. A hora era 1.43 da manhã.
O médico :... penso que não conheces o Pat Angelo. Pat, este é o Duque Anderson, o homem de que te falei.
ANDERSON: Muito prazer em conhecê-lo, Mr. Angelo.
ANGELO: Duque, eu não quero que penses que te estou a despachar, mas tenho outra reunião esta noite. Depois, tenho de ir para casa, para Teaneck. Por isso, não leves a mal se eu encurtar esta reunião o mais possível. Está bem?
ANDERSON: com certeza.
ANGELO: Vou-te dizer o que o Doutor me disse. Para ver se percebi bem. Se não, corrige-me. Depois vou começar a fazer perguntas.
1. Medalha atribuída aos soldados dos EUA feridos em batalha. (N. da T.)
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É uma casa na Zona Leste. Queres assaltar a casa inteira. Ele adiantou-te três mil. Do seu próprio bolso. Agora estamos no ponto em que decidimos se vamos em frente ou se desistimos de tudo. Estou certo até agora?
ANDERSON: Exactamente, Mr. Angelo. Mr. O médico , eu tenho uma lista completa das despesas que fiz, e, do adiantamento, o senhor tem a receber trezentos e cinquenta e nove dólares e dezasseis cêntimos que não foram gastos.
O médico : Eu disse-te. Pat! Não te disse?
ANGELO: Sim. Vamos continuar. Então o que temos, Duque?
ANDERSON: Tenho aqui um relatório. É um original escrito à mão. Não há cópias. Para si e para o Mr. O médico . Eu acho que parece bom.
ANGELO: Quanto?
ANDERSON: Um mínimo de cem mil. Mais perto de um quarto de milhão, calculo eu.
ANGELO: Calculas? De que raio estás a falar? O quê? Valor de compra a retalho? Valor de compra por grosso? Valor de revenda? Quanto é que podemos receber dos receptadores? O que é? Diz lá.
ANDERSON: São jóias, peles, pedras por lapidar, uma valiosa colecção de moedas, tapetes, talvez drogas dos dois médicos, dinheiro, títulos negociáveis. Esta gente está cheia de massa.
(Pausa de cinco segundos.)
ANGELO: Então estás a falar do valor de compra a retalho original?
ANDERSON: Sim.
ANGELO: Então teremos um terço da tua estimativa. Talvez trinta mil, se conseguirmos despachar a mercadoria. Ou possivelmente oitenta mil no máximo. Certo?
ANDERSON: Certo.
ANGELO: Imaginemos o valor mais baixo... trinta mil. Quantos homens?
ANDERSON: Cinco.
ANGELO: Cinco? E um dos nossos. Seis. Então queres seis homens que vão receber cinco mil cada?
ANDERSON: Não. Eu quero que aos meus homens seja paga uma quantia fixa. O que eu conseguir acordar. Mas sem partilha nos lucros. Eu acho que posso arranjar os cinco por um total máximo de oito mil. Não sei o que vão pagar ao vosso homem. Talvez ele tenha salário. Mas eu calculo um máximo de dez mil para empregados. Isso deixa vinte mil para dividir. No mínimo absoluto. Eu não sou jogador, mas ainda penso que será perto de oitenta mil. O total, isto é.
ANGELO: Esquece o que pensas. Estamos a trabalhar pelo mínimo. Então temos vinte mil para dividir. Como fazemos isso?
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ANDERSON: Setenta-trinta.
ANGELO: Setenta para ti, claro?
ANDERSON: Sim.
ANGELO: És um duro, não és?
O médico : Pat, tem calma.
ANDERSON: Sim, sou um duro.
ANGELO: Tennessee?
ANDERSON: Kentucky.
ANGELO: Calculei. Duque, põe-te no meu lugar. Tu queres que eu autorize esta coisa. Garantes-nos cerca de seis ou sete mil se concordarmos com as tuas condições. Está bem, está bem... pode chegar a vinte mil se o produto for tão grande como supões. Eu não posso trabalhar com suposições. Tenho que saber. Por isso estou a calcular seis mil. Tudo o que for além disso é molho. Tudo isto por seis mil dólares? Podemos ganhar isso legalmente num dia na nossa maior casa de apostas de cavalos. Então qual é a percentagem?
ANDERSON: E qual é o risco? Um homem? Ele pode ser sacrificado, não pode?
(Pausa de oito segundos.)
ANGELO: Tu não és tolo, pois não?
ANDERSON: Não, não sou. E tenho de repetir que sete mil é o mínimo absoluto. Pode ir até muito, muito mais... juro.
ANGELO: Apostas o teu pénis?
ANDERSON: Sem hesitar.
O médico : Meu Deus, Pat...
ANGELO: Ele é um duro... tal como eu disse. Gosto de ti, Duque.
ANDERSON: Obrigado.
ANGELO: Não tens de quê. Já começaste a pensar nas operações?
ANDERSON: Um pouco. Apenas o princípio. Devia ser num fim-de-semana longo. Metade das pessoas terá ido para a praia, de férias ou para as suas casas de Verão. O 4 de Julho teria sido bom, mas já é demasiado tarde para isso. Se der autorização, devemos apontar para o fim-de-semana do Dia do Trabalho. Cortamos todas as comunicações. Isolamos a casa. Paramos uma carrinha. Trabalhamos com calma... três horas, quatro horas, o que for preciso.
ANGELO: Mas ainda não planeaste tudo?
ANDERSON: Não, não planeei. Tenho aqui este relatório. Dá-vos elementos sobre quem lá vive e onde está o material, onde devemos procurar e como pode ser feito. Mas, se der autorização, teremos de aprofundar muito mais.
ANGELO: Como o quê?
ANDERSON: Hábitos das pessoas que vivem no prédio. Horas da ronda policial e carros da polícia na zona. Guardas-nocturnos privados. Pessoas que passeiam os cães à noite. Localização de telefones
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públicos e cabinas telefónicas. Bares que estão abertos até tarde. Muitas coisas...
ANGELO: Alguma vez estiveste na tropa?
ANDERSON: Fuzileiros. Cerca de dezoito meses.
ANGELO: Que aconteceu?
ANDERSON: Fui expulso.
ANGELO: Porquê?
ANDERSON: Engravidei a mulher de um capitão... entre outras coisas.
ANGELO: Sim. Que fizeste? Viste alguma acção?
ANDERSON: Não. Cheguei a cabo. Fui instrutor no campo de tiro de Paris Island.
ANGELO: Tens boa pontaria?
ANDERSON: Tenho.
O médico : Mas nunca foste armado para um trabalho, pois não, Duque?
ANDERSON: Não. Nunca.
ANGELO: Meu Deus, estou cheio de sede. Doutor, arranja-nos outra garrafa daquele Volpolicella, por favor? Mas, se esta campanha for avante, vais ter de levar uma arma. Compreendes isso, não compreendes, Duque?
ANDERSON: Compreendo.
ANGELO: Estás disposto?
ANDERSON: Estou.
ANGELO: Quando eras cabo dos Fuzileiros, alguma vez aprendeste técnicas de ataque surpresa? Um ataque com retirada rápida?
ANDERSON: Um pouco.
ANGELO: Alguma vez ouviste falar naquela campanha em Detroit... Atacámos o... Usámos cerca de... O que fizemos foi criar uma diversão. Levou todos os polícias da esquadra para... e enquanto eles estavam... E funcionou perfeitamente. Uma coisa dessas talvez funcione aqui.
ANDERSON: Talvez.
ANGELO: Não pareces muito entusiasmado.
ANDERSON: Tenho de pensar nisso.
O médico : Aqui está o vinho, Pat. Só um pouco gelado... como tu gostas.
ANGELO: Obrigado, Doutor. Então, queres pensar no assunto, Duque?
ANDERSON: Quero. É o meu pénis.
ANGELO: Sem dúvida que é. Está bem. Suponhamos que o Papá dá luz verde. De quanto vais precisar? Já pensaste nisso?
ANDERSON: Sim, já pensei. Preciso de mais dois mil para completar o reconhecimento.
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ANGELO: O reconhecimento?
ANDERSON: Exactamente. Para ver como havemos de agir.
ANGELO: Operações e disposição de tropas. E a seguir?
ANDERSON: O senhor vai receber um relatório final sobre toda a operação. Depois, se a autorizar, preciso do dinheiro para pagar aos meus cinco homens. Metade adiantado, metade no fim do trabalho.
O médico : Cerca de dois mil para ver, e depois outros quatro ou cinco mil para o teu pessoal?
ANDERSON: Mais ou menos isso.
O médico : Todos os adiantamentos e despesas saem da receita antes da partilha?
ANDERSON: Exactamente.
ANGELO: Tenho de me ir embora para Manhattan. Já estou atrasado. Duque, eu quero falar com o Doutor. Importas-te?
ANDERSON: Absolutamente nada. Obrigado por me ter concedido este tempo.
ANGELO: Nós entramos em contacto contigo... de uma forma ou doutra... dentro de mais ou menos uma semana. Tenho de falar com o Papá e, como provavelmente sabes, ele tem estado adoentado. Devíamos todos chegar, adoentados, aos 94 anos.
O médico : Ámen.
ANDERSON: Muito prazer em conhecê-lo, Mr. Angelo. Obrigado, Mr. O médico .
O médico: É um prazer, Duque. Contactar-te-emos.
(Pausa de dezassete segundos.)
O médico : Como é que sabias que ele era de Kentucky, Tennessee... desses lados?
ANGELO: Reconheci-o assim que ele entrou. Não ele, mas o tipo. Um homem das montanhas. Deus sabe que conheci bastantes na Coreia. Kentucky, Tennessee, West Virgínia. Rapazes duros. Tão duros como os do Sul... mas nunca fugiam. Por vezes tínhamos alguns sulistas esquisitos. Nunca vi um homem das montanhas esquisito. Eram todos muito pobres. Tive alguns homens das montanhas que nunca tiveram um par de sapatos novos antes de irem para a tropa. Este Anderson... Deus do céu, faz-me lembrar muito um tipo que eu tive. Era de Tennessee. A melhor pontaria que já vi. Eu era primeiro tenente na altura. Eu tinha esta patrulha, e estávamos a descer um leito de rio seco. O homem das montanhas era patrulha de ponta. O alvo. Perdemos três patrulhas de ponta em três dias. Eles disparavam sobre o patrulha de ponta e era assim que sabíamos onde estavam.
O médico : Muito agradável.
ANGELO: Sim. Assim, este homem do Tennessee era o patrulha de ponta, cerca de vinte metros à minha frente. Um coreano sai 83
dos arbustos e carrega sobre ele. O coreano tinha uma faca de cozinha atada com cordel a um pau comprido. Ele estava provavelmente furioso. Ele vem aos gritos. O meu tipo podia tê-lo morto com um tiro... um, dois três. Assim mesmo. Mas não o fez. Ele riu-se. Juro por Deus, ele riu-se. Ele tinha a baioneta na espingarda, e esperou que o coreano viesse até ele. Foi clássico, meu Deus, foi clássico. Eu tinha aprendido toda aquela história da baioneta: avançar, esgrimar, investir. As coisas que vêm nos livros. E isto saiu mesmo do livro. Clássico. Podiam ter tirado fotografias para um manual do exército. O meu tipo tomou posição, avançou e, quando o coreano investiu sobre ele, esgrimou, enfiou a baioneta no estômago do coreano, retirou-a, enfiou-a nos tomates dele, virou a lâmina, retirou-a, enfiou a baioneta no chão para a limpar, voltou-se e sorriu para mim. Ele tinha gostado. Havia tipos assim. Gostavam. Dava-lhes prazer. A guerra, quero eu dizer.
O médico : Que é que lhe aconteceu?
ANGELO: A quem?
O médico : Ao teu tipo.
ANGELO: Oh. Bem, a companhia voltou para Tóquio de folga. Este tipo do Tennessee foi apanhado a violar uma garota japonesa de
9 anos. Foi preso.
O médico : Onde está ele agora?
ANGELO: Tanto quanto sei, ainda está em Leavensworth. Mas fala-me sobre este Anderson. Que sabes sobre ele?
O médico : Veio do Sul há cerca de dez anos. Um motorista fantástico. Eu penso que lá ele servia de motorista a Solly Benedict. De qualquer modo, ele esfaqueou alguém e teve de vir para o norte. O Solly telefonou-me a respeito dele. Por volta da mesma altura em que o meu primo Gino tinha um assalto planeado. Alguma vez conheceste o Gino?
ANGELO: Não, acho que não.
O médico : Meu Deus, dói-me imenso a cara. Bem, era um armazém. Droga. Anfetaminas. Penso que eram. O plano era perfeito, mas alguém o denunciou à Polícia. Nós tomámos conta dele mais tarde. De qualquer modo, recomendei o Anderson como motorista; e o Gino disse que estava bem. O plano era que o Gino e dois homens fossem no automóvel, com o Anderson ao volante. Estacionam a um quarteirão de distância. O Anderson tem instruções para ficar ali até o Gino regressar. A ideia é assaltarem o armazém, os dois empregados tiram de lá o camião, e o Gino volta para onde o Anderson está à espera no automóvel.
ANGELO: E depois?
O médico : Depois, corre tudo mal. Holofotes, sirenes, altifalantes, espingardas de motins, cães... tudo. Os dois homens são mortos.
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O Gino apanha um tiro valente no estômago e vai a cambalear até à esquina. Ele tinha dito ao Anderson que ficasse lá e, com toda aquela confusão, o Anderson ainda lá está.
ANGELO: Um homem das montanhas.
O médico : Sim, Ele não fugiu. Bem, ele consegue meter o Gino no automóvel e levá-lo a um médico. Salvou-lhe a vida.
ANGELO: Que faz ele agora?
O médico : O Gino? Tem uma lojinha de doces em Newark. Aceita umas apostas, faz alguns empréstimos... coisas insignificantes. Ele não é muito bom ... mas está vivo. Eu passo-lhe o que posso. Mas nunca me esqueci do Duque ali sentado quando a bomba estoirou. É um homem dos diabos.
ANGELO: Calculei que fosse. Que é que lhe aconteceu depois?
O médico : Ele não queria um emprego. Queria ser free lancer. Falava comigo primeiro, e eu dava-lhe luz verde. Ele tem-se safado muito bem. É um rapaz esperto, Pat. Aprendeu depressa. Assaltou um apartamento na Zona Leste e fez bom dinheiro. Diamantes, a maior parte. Não foi armado. Foi esperto. Entrou e saiu tão depressa e com tanta agilidade que eles nunca souberam como tudo aconteceu. Estava a safar-se bem. Talvez três ou quatro trabalhos por ano. Deu sempre a sua contribuição e nunca protestou. Eu investiguei e descobri que era esquisito no que diz respeito ao sexo.
ANGELO: Que queres dizer?
O médico : Chicotes... tu sabes.
ANGELO: Para que lado pende ele? Isto é importante.
O médico : Para os dois lados, tanto quanto sei. Depois, arranjou este trabalho e estava à espera numa esquina de uma cabra judia a quem tinha que passar o material... faltava apenas um bloco quando um polícia estagiário com sorte decidiu que não gostava da cara dele e revistou-o. Esse puto é agora segundo detective. Por isso, o Duque foi preso. Não tocaram na mulher; ele nunca falou nela. Ouvi dizer que ela se atrasou para o encontro porque estava no escritório do corretor.
ANGELO: Que bonito. Tens estado em contacto com ela?
O médico : Certamente que tenho. Desde que o Duque montou esta campanha que a mantenho debaixo de olho. Ela tem cadastro, e neste momento anda a vender... droga, ela própria, abortos... tudo. Trabalha numsalão de dança de que Sam Bergman é dono.
ANGELO: Óptimo. Como é que o Anderson se meteu nesta coisa da Zona Leste?
O médico : Ele anda a montar uma mulher que lá vive. Não sabemos como é que ele a conheceu. Mas ele vai lá pelo menos duas vezes por semana. Uma mulher grande que parece ter dinheiro.
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ANGELO: Certo. Suponho que é tudo. Meu Deus, acabámos outra garrafa? Deus do céu, ainda tenho de ir a Manhattan.
O médico : Pat, que pensas disto?
ANGELO: Por mim, dizia que não. Escuta, Doutor, nós temos restaurantes, hotéis, bancos, fornecimento de roupa de casa, seguros, camionagem, lavandarias, recolha de lixo... tudo coisas boas, limpas e legítimas. E os lucros são bons. Por que é que precisamos de andar aos tiros?
O médico : Mesmo assim... estás interessado?
ANGELO: Sim... acho que estou. É um problema militar. Olha para mim... Sou um homem de negócios, a minha barriga está a aumentar, o meu rabo a afundar-se, tenho mulher e três filhos, sou membro de quatro clubes, jogo golfe todos os fins-de-semana em que há bom tempo, vou à reunião da Associação de Pais com a minha mulher. Preocupo-me com o capim dos jardins, tenho um caniche com lombrigas. Por outras palavras, sou um cidadão respeitável. Mas, às vezes, olho-me ao espelho... a barriga, a papada, as coxas gordas, o pénis mole, e penso que era mais feliz na Coreia.
O médico : Pat, se calhar és um daqueles tipos de que me estavas a falar... os tipos que gostam da guerra.
ANGELO: Talvez. Não sei. Tudo o que eu sei é que ouço falar numa coisa destas e fico todo excitado. O meu cérebro começa a funcionar. Sinto-me jovem de novo. Uma campanha. Problemas. Como planeá-la. E uma coisa incrível. Mas eu não decidiria sem conversar primeiro com o Papá. Em primeiro lugar, devo-lhe isso. Em segundo lugar, ele pode estar de cama, talvez com um rapaz gordo de vez em quando para o aquecer, mas a sua mente ainda lá está... astuta e rija. Eu conto-lhe tudo. Ele gosta de sentir que ainda faz falta, que ainda é ele quem toma as decisões. Deus do céu, nós temos mil advogados e contabilistas e tomar decisões que ele nem sequer consegue compreender... mas um problema como este ele compreende. Por isso, vou falar-lhe nisto. Se ele disser não, é não. Se ele disser sim, é sim. Eu comunico-te dentro de uma ou duas semanas. Está bem?
O médico : Claro. Tens alguém em mente para o sexto homem?
ANGELO: Não. Tu tens?
O médico : Um tipo chamado Sam Hemming. Um zé-ninguém. Só músculo, sem miolos. Mas ele é um dos rapazes do Paul Washington.
ANGELO: De cor?
O médico : Sim, mas serve.
ANGELO: Porquê ele?
O médico : Devo um favor ao Paul.
ANGELO: Linda Curtis?
O médico : Não te escapa nada, pois não?
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ANGELO: Não, Doutor, praticamente nada. Concordo com o Hemming, se ele for de confiança.
O médico : É de confiança.
ANGELO: Óptimo. O Papá vai querer saber. vou dizer-lhe que gostas deste tipo. Está bem?
O médico : Sim... se for necessário.
ANGELO: É necessário. Deus do céu, Doc, estás com tantos espasmos, pareces um tolo. Não podes fazer nada à cara?
O médico : Não. Absolutamente nada.
ANGELO: Azar. Tenho de me ir embora. Obrigado pelo jantar e pelo vinho.
O MÉDICO: O prazer foi meu. Dás-me notícias dentro de uma ou duas semanas?
ANGELO: com certeza. Oh... a propósito, Doutor, mantém o Fred Simons debaixo de olho.
O médico : Alguma coisa errada?
ANGELO: Ainda não. Mas ele tem andado a beber muito ultimamente. Talvez a falar um pouco mais do que deve. Apenas um aviso amigável.
O médico : com certeza. Obrigado. vou chamá-lo à atenção.
ANGELO: Acho bem.
Gravação POM-9JUL68-EVERLEIGH. A hora é aproximadamente 14.45.
MRS. EVERLEIGH: Deixa-me preparar-te um copo grande. Quero que fiques quieto durante algum tempo. Quero mostrar-te umas fotografias... o meu álbum de fotografias.
ANDERSON: Está bem.
(Pausa de quinze segundos.)
MRS. EVERLEIGH: Aqui está... tal como tu gostas... um cubo de gelo. Aqui vamos. Comprei este álbum na Matt Cross. É bonito, não é?
ANDERSON: É.
MRS. EVERLEIGH: Aqui... esta ferrotípia. Este era o meu bisavô paterno. Ele esteve na Guerra Civil. O uniforme que tem vestido é de capitão. Esta fotografia foi tirada quando veio a casa, de folga. Depois, perdeu um braço em Antietam. Mas eles deixaram-no
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manter a sua companhia. Nessa altura, eles não ligavam muito a essas coisas.
ANDERSON: Eu sei. O meu bisavô atravessou o Segundo Deserto com uma perna de pau.
MRS. EVERLEIGH: Depois, depois da guerra, ele voltou a casa e casou-se com a minha bisavó. Aqui está a fotografia do seu casamento. Não achas que ela era a coisa mais pequena, doce e bonita que já viste? Criou sete filhos em Rockford, Ilinóis. Esta é a única fotografia que tenho dos pais da minha mãe. Ele era mais velho, tinha um armazém perto de Sewickley, na Pensilvânia. A mulher era um verdadeiro monstro. Lembro-me vagamente dela. Suponho que herdei o meu tamanho dela. Ela era enorme... e feia. A minha mãe era filha única. Aqui está a classe de finalistas da minha mãe. Ela frequentou o magistério durante dois anos. A que tem o círculo é ela. Este rapazinho é o meu pai aos 10 anos. Não é engraçado? Ele formou-se em Yale. Olha para o chapéu que ele tem na cabeça! Não é de gritos? Ele fazia remo na equipa deles. E era também um óptimo nadador. Aqui está ele em fato de banho. Esta foi tirada durante o seu último ano em Yale.
ANDERSON: Parece que era bem fornecido.
MRS. EVERLEIGH: Filho da mãe. Bem, posso dizer-te que era todo homem. Alto e musculoso. Conheceu a minha mãe no baile de caloiros e casaram-se assim que ele acabou o curso. Ele começou como escriturário em Wall Street cerca de três anos antes da primeira guerra mundial. O meu irmão Ernest nasceu em 1915 mas, quando a América entrou na guerra, o meu pai alistou-se. Foi para a Europa em 1918. Penso que ele não chegou a estar na frente de combate. Aqui está ele de uniforme.
ANDERSON: Aquelas perneiras deviam ser difíceis de suportar. O primeiro marido da minha mãe foi morto com os Fuzileiros no Marne.
MRS. EVERLEIGH: Esse não podia ter sido o teu pai?
ANDERSON: Não. O meu pai foi o seu terceiro marido.
MRS. EVERLEIGH: Bem, aqui está a Mamã e o Papá com o Ernie e o tom... este foi o segundo filho. Foi dado como desaparecido em França, durante a segunda guerra mundial. Depois aqui está a minha mãe comigo ao colo... a primeira fotografia que me tiraram. Não era bonitinha?
ANDERSON: Eras.
MRS. EVERLEIGH: Depois há algumas fotografias de mim enquanto crescia. Calções. Fato de ginástica. Fato de banho. Estivemos numa cabana num lago do Canadá... o Ernest, o Thomas, eu e o Robert. Todos nós.
ANDERSON: Eras a única rapariga?
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MRS. EVERLEIGH: Era. Mas eu acompanhava-os a todos e, ao fim de algum tempo, conseguia nadar melhor do que eles. A minha mãe adoeceu e passava muito tempo na cama e o meu pai estava ocupado com os seus negócios. Por isso, nós os quatro passávamos muito tempo juntos. O Ernie era o líder porque era o mais velho, mas, quando ele foi para Dartmouth, eu tomei o lugar dele. O tom e o Bob nunca tiveram a autoridade que o Ernie tinha.
ANDERSON: Que idade tinhas quando esta foi tirada?
MRS. EVERLEIGH: Cerca de 13 anos, penso eu.
ANDERSON: Um bom par de pulmões.
MRS. EVERLEIGH: Sim, eu amadureci depressa... A história da minha vida. Fui menstruada aos 11 anos. Olha para os ombros que eu tinha, e aquelas coxas. Eu conseguia nadar melhor que os meus irmãos e todos os seus amigos. Acho que os rapazes não ficavam muito contentes. Eles gostavam de coisinhas frágeis, fracas e femininas. Eu tinha um corpo grande, forte e musculoso. Eu achava que os rapazes haviam de gostar de uma rapariga que podia nadar com eles e montar a cavalo com eles, lutar e tudo isso... Mas, quando havia danças, eram as coisinhas frágeis, fracas, pálidas e femininas que eram convidadas. A mãe insistiu em que eu tivesse lições de dança, mas eu nunca fui muito boa. Eu sabia mergulhar e nadar, mas, na pista de dança, sentia-me um trambolho.
ANDERSON: Quem te tirou a virgindade?
MRS. EVERLEIGH: O meu irmão Ernie. Isso choca-te?
ANDERSON: Por que é que havia de me chocar? Eu sou de Kentucky.
MRS. EVERLEIGH: Bem, aconteceu quando ele veio a casa passar as férias da Páscoa, quando estava em Dartmouth. E ele estava bêbado.
ANDERSON: Claro.
MRS. EVERLEIGH: Aqui estou eu na festa de finalistas do liceu. Estou bonita?
ANDERSON: Pareces uma vitela em camisa de noite.
MRS. EVERLEIGH: Suponho que tens razão... acho que tens razão. Oh, meu Deus, aquele chapéu. Mas depois, aqui, quando comecei a frequentar a escola de Miss Proud, emagreci. Um pouco. Não muito, mas um pouco. Eu fazia parte da equipa de natação, era capitão da equipa de hóquei em campo, e também jogava bem ténis. Não inteligente, mas forte. Aqui estou eu com a taça que ganhei como a rapariga atleta mais completa.
ANDERSON: Meu Deus, que corpo. Gostava de te ter apanhado então.
MRS. EVERLEIGH: Houve muitos rapazes que o fizeram. Eu talvez não soubesse dançar, mas descobri o segredo da popularidade.
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Um segredo muito simples. Eu acho que me chamavam a Miss Calcanhares Redondos. Bastava pedir e eu rolava logo. Por isso, não me faltavam convites para sair.
ANDERSON: Eu julgar-te-ia lésbica.
MRS. EVERLEIGH: Oh... eu tentei. Nunca dei o primeiro passo, mas tive bastantes dessas coisinhas doces, pálidas, macias e femininas a tocarem-me. Tentei, mas não deu resultado. Talvez fosse por causa do cheiro delas. Não tomaste duche esta manhã, pois não?
ANDERSON: Não.
MRS. EVERLEIGH: Esse cheiro acre e ácido. Excita-me tanto. Depois conheci o David. Ele era amigo do meu irmão mais novo, o Bob. Aqui está o David.
MRS. EVERLEIGH: Parece uma borboleta.
MRS. EVERLEIGH: Era... mas eu só o descobri quando era demasiado tarde. Ele bebia que se fartava... Mas era cómico, generoso e amável. Tinha dinheiro, fazia-me rir e abria-me as portas e, se não era nada de especial na cama, eu dava a desculpa de que era porque ele bebia sempre de mais. Percebes?
ANDERSON: Percebo.
MRS. EVERLEIGH: Muito dinheiro. Carvão, ferro e coisas dessas em Cleveland. Por vezes perguntava a mim própria se ele não seria um pouco judeu.
ANDERSON: Um pouco judeu?
MRS. EVERLEIGH: Tu sabes... os seus antepassados. De qualquer modo, aqui estamos na praia, num baile da faculdade, numa exposição de cavalos, na festa de noivado, as fotografias do casamento, na recepção, etc. Eu usei saltos baixos porque era um pouco mais alta do que ele. Ele tinha um cabelo lindo. Não tinha um cabelo lindo?
ANDERSON: Lindo. Há muito mais desta merda?
MRS. EVERLEIGH: Não; não muito mais. Aqui estamos nós na nossa casa de Verão em East Hampton. Bons tempos. Festas em que todos se embriagavam. Surpreendi-o uma vez com um rapaz porto-riquenho. Não tenho uma fotografia disso! E é tudo. Algumas fotografias minhas nas viagens de trabalho... Paris, Roma, Londres, Genebra, Viena...
ANDERSON: Quem é este tipo?
MRS. EVERLEIGH: Um miúdo que comprei em Estocolmo.
ANDERSON: bom na cama?
MRS. EVERLEIGH: Nem por isso.
(Pausa de sete segundos.)
MRS. EVERLEIGH: Estas fotografias. Cem anos. Os meus bisavós. A Guerra Civil. Os meus pais. As guerras mundiais. Os meus irmãos. Penso no que estas pessoas sofreram. Para me produzirem. A mim. Eu sou o resultado. Ah, meu Deus, Duque, que é que nos
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acontece? Como é que chegamos aonde estamos? Não suporto pensar nisso... é tão horrível. Tão triste.
ANDERSON: Onde está o teu marido agora?
MRS. EVERLEIGH: David? A última vez que o vi, usava bâton. E isso o que eu queria dizer. E olha para mim. Estou melhor?
ANDERSON: Queres que me vá embora?
MRS. EVERLEIGH: E deixas-me aqui a contar as paredes? Duque, por amor de Deus, faz-me evadir...
Dominick "Papá" Angelo, 94 anos, don da família Angelo, oficialmente residente na Rua Flint nº 67 825, Deal, Nova Jérsia. Nascido Mário Dominick Nicola Angelo em Mareno, Sicília, em 1874. A sua família pertencia ao "ramo esquerdo" da família Angelo e, durante cinco gerações, os seus membros tinham sido agricultores rendeiros na Sicília. Não existe qualquer registo da frequência escolar de Dominick.
Durante uma investigação do Estado de Nova Iorque em 1934 (ver os Registos da Comissão Murphy, Vol. 1, pp. 432-435) foram apresentadas provas de que Dominick Angelo tinha entrado ilegalmente nos Estados Unidos em 1891, tendo nadado para terra, de um barco da marinha mercante em que trabalhava como cozinheiro. Em qualquer caso, os registos são confusos - ou não existem - e Dominick Angelo entregou o pedido de naturalização em 1896, e tornou-se cidadão dos EUA em 1903. Nessa altura, ele indicou a sua profissão como "empregado de mesa".
O seu cadastro inclui uma prisão por perturbação da ordem pública em 1904 (sem sentença) e agressão com intenção de matar em 1905 (acusação retirada). Em 1907, foi preso, acusado de agressão com uma arma mortífera (faca), com a intenção de causar ferimentos graves (castrou a sua vítima). Foi julgado, condenado e cumpriu dois anos, sete meses e catorze dias de prisão em Dannemora (46 783).
Ao sair da cadeia, existem provas inconclusivas de que se tornou "botão" da Mão Negra, como era então chamada nos Estados Unidos a organização criminosa italiana.
[No seu tratado Origens do Calão Americano, Hawley e Butanski, Effrim Publishers Co., Inc., 1958, os autores afirmam (pp. 38-39) que, no período 1890-1910, o termo "botão" era utilizado para descrever um carrasco dosgangs, podendo ter derivado de uma descrição de um homem que podia abotoar a boca de um informador ou de
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um inimigo. Os autores realçam que, mais tarde, nas décadas de 20 e 30, os termos "botões" ou "Mr. Botões" passou a ser usado em círculos criminosos para descrever um polícia fardado.]
Em 1910, Dominick Angelo arranjou emprego na Alsotto Sand Gravel Co., de Brooklyn, Nova Iorque, aparentemente como carregador. Em 1917, alistou-se como voluntário nas Forças Expedicionárias Americanas, mas, devido à sua idade, os seus serviços limitaram-se a fazer serviço de guarda nas docas de Bayonne, Nova Jérsia.
Em 1920, passou a trabalhar como capataz da Giovanni Shipping Enterprises, Inc. Durante este período, casou-se com Maria Florence Gabriele Angelo, uma familiar distante. O seu primeiro filho, um rapaz, nasceu em 1923. Foi mais tarde morto em combate na Ilha de Guadalcanal, em 1942.
Durante a segunda guerra mundial, Dominick Angelo ofereceu-se como voluntário ao Governo dos EUA e, de acordo com documentos de arquivo, a sua ajuda foi "de valor inestimável" na preparação das invasões da Sicília e da Itália. Existe uma carta de um alto funcionário do OSS atestando a sua "magnífica e inestimável cooperação".
Durante o período de 1948-1968, os registos revelam a sua subida a uma posição de grande proeminência e poder na estrutura dominada pelos italianos que controlavam o crime organizado nos Estados Unidos. A sua passagem de soldado a capo e a don levou menos de dez anos e, em 1957, ele era reconhecido como líder de uma das várias "famílias" nacionais. A sua fortuna pessoal era calculada entre
20 milhões e 45 milhões de dólares.
Estudiosos e observadores do crime organizado nos Estados Unidos - do que tem sido descrito como a Mão Negra, o Sindicato, a Mafia, a Cosa Nostra, a Família, etc., - concordam, de um modo geral, que Dominick Angelo era o espírito orientador, o cérebro, o poder atrás da conversão do sistema violento a um cartel semilegal que evitava cada vez mais os métodos de força dos anos anteriores, e investia mais em empresas de empréstimos, imobiliárias, empresas de entretenimento, corretoras, recolha do lixo, bancos, empresas de fornecimento de roupa de casa, restaurantes, lavandarias, companhias de seguros e agências de publicidade.
Em 1968, Dominick Angelo tinha 94 anos; 62 quilos; um metro e sessenta e oito de altura; quase totalmente careca; quase completamente acamado com diabetes, artrite e os efeitos de várias obstruções coronárias. Olhos muito escuros; dedos extraordinariamente compridos; o hábito de acariciar o lábio superior com um dedo (teve um bigode comprido até 1946).
1. Dominick Angelo morreu em 19 de Fevereiro de 1969. (N. da T.)
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A sua casa em Deal, Nova Jérsia, era grande, confortável, e situada no centro de um enorme terreno, sem ser ostentosa. A propriedade era rodeada por uma parede de três metros e meio, encimada com cimento em que tinham sido cravados pedaços de vidro. É crença geral que o seu pessoal era constituído por várias pessoas - governanta, dois ou três jardineiros, um criado pessoal, mordomo, um assistente médico, uma enfermeira, duas empregadas e dois motoristas.
Em 16 de Maio de 1966, ocorreu uma explosão no portão fechado que dava para a propriedade de Angelo. Os polícias que investigaram o incidente relataram que tinha sido causada por vários paus de dinamite presos com arame a um fusível tosco - um relógio despertador. Não foram noticiados quaisquer ferimentos e não foram feitas prisões. A investigação continua.
Há dois relatórios não confirmados sobre Dominick Angelo que terão um interesse marginal: depois da morte da mulher, em 1952, ele envolveu-se em ligações homossexuais, preferindo a companhia de rapazes muito jovens; e ele foi o inventor do caixão de dois níveis, embora essa invenção seja atribuída a outros. O caixão de dois níveis é uma maneira de enterrar vítimas dosgangs. Os caixões são um pouco mais fundos do que usualmente, e a vítima é enterrada numa secção por baixo do cadáver legítimo. Este esquema, obviamente, depende da cooperação das agências funerárias, em que a família tinha um interesse substancial.
A transcrição seguinte é de uma gravação feita por agentes da Subcomissão Legislativa Especial de Nova Jérsia, encarregues da investigação sobre o Crime Organizado. A transcrição tem o rótulo SLENJ-DA-206-IC, e é datada de 10 de Julho de 1968. A hora era aproximadamente 23.45, e a gravação foi feita na casa de Dominick Angelo na Rua Flint nº 67 825, Deal, Nova Jérsia. O dispositivo de transmissão foi um Socklet MT-Modelo K.
A partir de provas obtidas no interior da casa, as duas pessoas presentes foram identificadas como Dominick "Papá" Angelo e Patrick "Pequeno Pat" Angelo. Embora a gravação de que esta transcrição foi feita durasse pouco menos de três horas, foram apagadas partes que repetem provas já apresentadas. Além disso, as entidades de cumprimento da lei de Nova Jérsia, Nova Iorque, e Las Vegas, Nevada, solicitaram que fossem retiradas algumas partes, uma vez que dizem respeito a processos-crime a serem actualmente investigados. Todas estas partes apagadas estão indicadas como "pausa".
(Pausa de trinta e dois minutos, durante os quais Patrick Angelo fez perguntas sobre a saúde do avô e foi informado de que estava "tão bem como se podia esperar". Patrick Angelo contou depois a reunião com John Anderson e Anthony O médico .)
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PATRICK: Então, Papá, que pensas?
PAPÁ: Que é que tu pensas?
PATRICK: Eu digo que não. Demasiadas pessoas envolvidas. Demasiado complexo, considerando o lucro provável.
PAPÁ: Mas eu vejo os teus olhos a brilhar. Vejo que estás interessado. Dizes a ti próprio, isto é acção! Estás entusiasmado. Dizes a ti próprio, estou a ficar demasiado velho e gordo. Preciso de acção. Isto é como foi na Coreia. Planearei isto como um ataque militar. A mim, dizes que não... mas, no fundo, tu queres isto.
PATRICK (rindo): Papá, tu és maravilhoso! Acertaste em cheio. O meu cérebro diz-me que isto não é nada. Mas o meu sangue quer. Lamento muito.
PAPÁ: Porquê lamentar? Pensas que é bom ser todo cérebro e nada de sangue? É tão mau como ser todo sangue e nada de cérebro. A mistura certa... isso é que é importante. Este homem Anderson... que pensas dele?
PATRICK: Um duro. Nunca andou armado, mas é duro. E orgulhoso. De Kentucky. Um homem das montanhas. Tudo o que o Doutor me disse sobre ele era bom.
PAPÁ: Anderson? Do Sul? Há cerca de dez anos, o Gino Belli... ele é o primo do Doutor... tinha uma coisa planeada. Parecia bom, mas as coisas correram mal. Ele tinha um motorista chamado Anderson. É esse o homem?
PATRICK: Precisamente o mesmo. Que memória que tens, Papá.
PAPÁ: O corpo envelhece; a mente continua jovem, graças a Deus. Este Anderson levou o Gino a um médico. Agora me lembro. Eu conheci-o, muito brevemente. Alto e magro. Rosto comprido, encovado. Orgulhoso. Sim, tu tens razão... um homem muito orgulhoso. Eu lembro-me.
PATRICK: Então que queres que eu faça, Papá?
PAPÁ: Cala-te e deixa-me pensar.
(Pausa de dois minutos e treze segundos.)
PAPÁ: Este Anderson... dizes que ele tem o seu próprio pessoal?
PATRICK: Sim. Cinco homens. Um é negro. Outro é um técnico. Dois são motoristas, um deles um deficiente mental.
(Pausa de nove segundos.)
PAPÁ: Isso são quatro. E o outro? O quinto homem?
(Pausa de dezasseis segundos.)
PAPÁ: Então? O quinto homem?
PATRICK: É maricas. Sabe de quadros, tapetes, colecções de arte... coisas dessas.
PAPÁ: Ele chama-se Bailey?
PATRICK: Não sei como é que ele se chama. Papá. Posso descobrir.
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PAPÁ: Havia um maricas chamado Bailey em Vegas. Fizemos um...
(Lapso de quatro minutos e trinta e dois segundos.)
PAPÁ: Mas isso não é importante. Além disso, desconfio que não é o Bailey. Desconfio que o Bailey já morreu. E quem é que o Doutor recomenda como nosso representante?
PATRICK: Um homem chamado Sam Hemming. Um dos rapazes do Paul Washington.
PAPÁ: Outro negro?
PATRICK: Sim.
PAPÁ: Não, não serve.
PATRICK: Papá? Quer dizer que aprova esta campanha?
PAPÁ: Sim, aprovo. Avança com ela.
PATRICK: Mas porquê? O dinheiro é...
PAPÁ: Eu sei. O dinheiro não é nada. Há demasiadas pessoas envolvidas. Vai acabar em desastre.
PATRICK: Então...?
(Pausa de dezassete segundos.)
PAPÁ: O Pequeno Pat está a pensar por que é que o Papá há-de aprovar uma coisa destas? Durante todos estes anos trabalhámos muito para ficarmos legais. Lidamos com banqueiros da Wall Street, agências de publicidade da Avenida Madison, partidos políticos. Estamos em todos os bons negócios. Os lucros são bons. E tudo limpo. Temos poucos problemas. E agora aqui está o Papá, com 94 anos, e talvez a sua mente esteja a ficar fraca... aqui está o Papá a concordar com este plano tolo, este ataque, em que vai haver pessoas feridas e talvez mortas. Talvez não se deva confiar mais no Papá. É isso o que Patrick pensa?
PATRICK: Juro por Deus, Papá, nunca. Se dizes que está bem, então está bem.
PAPÁ: Pequeno Pat, em breve serás don. Em breve. Um ano. Dois no máximo.
PATRICK: Papá, Papá... tu vais-nos enterrar a todos.
PAPÁ: Dois anos, no máximo. Talvez um. Mas, se fores don, vais ter de aprender a pensar... pensar. Não deves só pensar se devemos fazer esta coisa, podemos obter lucro desta coisa, mas, também, quais são as consequências desta coisa? O que resultará desta coisa daqui a um ano, cinco anos, dez anos? A maior parte dos homens... até mesmo os executivos das melhores empresas americanas... reúnem todos os factos e tomam uma decisão. Mas eles não pensam nas consequências da sua decisão. As consequências a longo prazo. compreendes?
PATRICK: Acho que sim, Papá.
PAPÁ: Supõe que há um homem que temos que abater. Pensamos
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no que ele fez e no perigo que ele representa para nós. com base nestes factos, dizemos que temos de o abater. Mas temos de pensar também nas consequências da sua morte. Ele tem familiares que ficarão ressentidos? A polícia ficará aborrecida? Que dirão os jornais? Há um político jovem, esperto e ambicioso que pegará na morte deste homem e será eleito por causa dela? Compreendes? Não basta pensar nos factos imediatos. Tens também que projectar a tua mente e pensar no futuro. A longo prazo, beneficia-nos ou prejudica-nos?
PATRICK: Agora compreendo, Papá. Mas que tem isso a ver com o assalto do Anderson?
PAPÁ: Lembras-te de há cerca de quatro anos em Buffalo, nós...
(Pausa de quatro minutos e nove segundos.)
PAPÁ: Então que é que isso nos ensinou? A vantagem do medo. Primeiro criamos uma atmosfera de medo, depois mantemo-la. Por que é que achas que temos tido tanto êxito nos nossos negócios legítimos? No imobiliário, na recolha do lixo, nos bancos e no fornecimento de roupa de casa? Porque os nossos preços são mais baixos? Ah, tu sabes que os nossos preços são mais elevados. Mais elevados! Mas eles têm medo de nós. E, por causa do seu medo, nós fazemos bom negócio. O punho de aço na luva de veludo. Mas, para isto continuar, para que as nossas empresas legítimas floresçam, temos de manter a nossa reputação. Temos de fazer com que os homens de negócios saibam quem somos e aquilo de que somos capazes. Não com frequência, mas ocasionalmente, escolhendo incidentes que sabemos que eles compreenderão, temos de fazer que o público saiba que, por debaixo da luva de veludo, há um brilhante punho de aço. Só então é que eles terão medo de nós, e as nossas empresas legítimas continuarão a crescer.
PATRICK: E queres usar a campanha de Anderson como um exemplo? Achas que vai terminar num fracasso, mas queres que os jornais lhe dêm destaque como nossa? Queres que haja pessoas feridas e mortas? Queres que os homens de negócios que leiam as notícias estremeçam e que depois nos telefonem a dizer que sim, que comprarão mais um milhão de metros dos nossos rayons, ou que utilizarão as nossas empresas de camionagem ou companhias de seguros?
PAPÁ: Sim. É exactamente isso que eu quero.
PATRICK: Foi por isso que autorizaste o trabalho do Al Petty há dois anos, quando...
(Pausa de quarenta e sete segundos.)
PAPÁ: Claro que foi. Eu sabia que ele nunca seria bem sucedido. Mas fez as manchetes em todo o país, e os homens que foram presos estavam ligados a nós. Três pessoas, uma delas uma criança, foram mortas nesse trabalho, e as nossas colectas subiram 5,2 por cento nos
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seis meses seguintes. Deixa os outros... os ingleses e os americanos... utilizarem a persuasão e a pressão nos negócios. Nós usamos o medo. Porque sabemos que funciona sempre.
PATRICK: Mas o Anderson, ele não tem...
PAPÁ: Eu sei que ele não tem uma ligação muito grande a nós. Por isso temos de pôr lá um homem que tenha. O Toast veio ver-me ontem.
PATRICK: O Toast? Não sabia que ele estava cá. Por que é que ele não me telefonou?
PAPÁ: Ele pediu-me que te apresentasse as suas desculpas. Ele estava no meio de dois voos. Só teve tempo de uma pequena viagem de carro até cá, e depois seguiu para Palm Beach.
PATRICK: Que idade tinha ela desta vez?
PAPÁ: Cerca de 15 anos. Uma verdadeira beleza. Cabelo loiro comprido. E cega.
PATRICK: Cega? Isso é bom... para ela.
PAPÁ: É. Mas o Toast tem um problema. Talvez o possamos resolver com esta coisa do Anderson.
PATRICK: Qual é o problema?
PAPÁ: O Toast tem um homem... Vincent Parelli. Conheces? Chamam-lhe Socks.
PATRICK: Esse idiota? Já li notícias sobre ele.
PAPÁ: Sim. O Parelli enlouqueceu. Ele briga com as pessoas. Atropela-as. Dispara sobre elas. Está-se completamente nas tintas. É um grande embaraço para o Toast.
PATRICK: Posso imaginar.
PAPA: O Parelli tem uma ligação muito grande a nós, muito grande. O Toast quere-o fora do caminho. Compreendes?
PATRICK: Compreendo.
PAPÁ: Mas o Parelli não é fácil. Ele tem alguns homens seus. São todos malucos... malucos. Al Capones. Atrasados mentais. Não conseguem pensar. O Toast perguntou se eu conseguia fazer alguma coisa.
PATRICK: Então...?
PAPÁ: Devo um favor ao Toast. Lembras-te de que, no ano passado, ele conseguiu que o sobrinho do Paolo fosse admitido na universidade depois de o rapaz ter sido recusado em todo o lado? Então, vamos fazer o seguinte... eu digo ao Toast que mande vir o Parelli de Detroit, para ser o nosso homem na campanha do Anderson. O Toast diz ao Parelli que temos provas concretas de que há pelo menos um milhão de dólares em jóias na casa. Doutro modo, o Parelli rir-se-ia de nós. O Toast diz-lhe que queremos um homem nosso bom, de confiança, no local, para termos a certeza de não sermos enganados. Este Parelli carrega facilmente no gatilho. Talvez dispare. Ao mesmo
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tempo, dizes ao Anderson que concordamos com o seu plano, desde que vá armado e que, no fim da acção, mate o Parelli. Este é o nosso preço pelo financiamento do seu assalto.
(Pausa de onze segundos.)
PATRICK: Papá, eu acho que o Anderson não vai concordar.
PAPA: Eu acho que vai. Eu conheço estes amadores. É sempre a grande oportunidade, o grande golpe, e depois o descanso na América do Sul ou na Ri viera francesa para o resto da vida. Eles pensam que o crime é uma grande lotaria. Não sabem como é trabalho duro... trabalho duro, desgastante, ano após ano. Não há grandes golpes, grandes oportunidades. É um trabalho... como outro qualquer. Talvez os lucros sejam maiores, mas os riscos também. O Anderson hesitará durante algum tempo, mas vai aceitar. Ele vai matar o Parelli. O Anderson tem sangue e orgulho suficientes para manter um acordo. Eu acho que é tudo uma loucura, com pessoas inocentes feridas mortas, e o Vincent Parelli, que tem uma ligação tão grande connosco, encontrado morto na cena do crime.
PATRICK: E achas que isso nos vai ajudar, Papá?
PAPÁ: Virá nas manchetes de todo o país e vai acabar por nos ajudar.
PATRICK: E se a campanha correr bem?
PAPA: Tanto melhor. O Parelli deixará de ser um embaraço para o Toast, nós seremos considerados os autores do assalto e também lucraremos. E talvez o Anderson acabe no México, afinal de contas. Patrick, telefona-me todos os dias para me dizeres como vão as coisas. Estou muito interessado. Explica ao Doutor apenas o que ele precisa de saber. Compreendes?
PATRICK: Sim, Papá.
PAPÁ: Eu tomo conta do Toast, e o Toast certificar-se-á de que o Parelli estará cá quando for preciso. Tens alguma pergunta?
PATRICK: Não, Papá. Eu sei o que tem de ser feito.
PAPÁ: Tu és um bom rapaz, Patrick... um bom rapaz.
No dia 12 de Julho de 1968, às 2.06 da manhã, teve lugar um encontro entre John Anderson e Patrick Angelo no gabinete do expedidor da Jiffy Trucking Hauling Co.1,10.ê Avenida nº 11098, Nova
1. Empresa de Camionagem Jiffy. (N. da T.)
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Iorque, Nova Iorque. Esta empresa era uma subsidiária da Thomas Jefferson Trading Corp., de que Patrick Angelo era funcionário (secretário-tesoureiro). As instalações estavam sob vigilância do Departamento de Alfândega, no seguimento do Mandato do Tribunal Federal MFC-189-605HG, sob suspeita de serem utilizadas como local de recepção de mercadoria de contrabando, A seguinte é a fita DAEU-1089756738-B2.
ANDERSON: Então?
ANGELO: Parece bom. O Papá concordou.
(Pausa de quatro segundos.)
ANDERSON (suspirando): Meu Deus.
ANGELO: Mas tens de fazer uma coisa para nós.
(Pausa de seis segundos.)
ANDERSON: O quê?
ANGELO: Temos de pôr lá um homem nosso. Tu sabes, isso é PleNO... Procedimento Normal de Operações.
ANDERSON: Eu sei. Calculei isso. Quem?
ANGELO: Um homem de Detroit. Vincent Parelli. Chamam-lhe Socks. Conhece-lo?
ANDERSON: Não.
ANGELO: Já ouviste falar dele?
ANDERSON: Não.
ANGELO: Um bom homem. Experiente. Não é nenhum novato. Mas tu vais ser o chefe. Isso é claro. Ele vai saber que recebe ordens de ti.
ANDERSON: Está bem. Isso parece correcto. Que mais?
ANGELO: Tu tens miolos.
ANDERSON: Que mais tenho de fazer?
ANGELO: Tens de o matar.
(Pausa de cinco segundos.)
ANDERSON: O quê?
ANGELO: Matá-lo. Depois de tudo terminado. Quando estiveres pronto para sair de lá. Matá-lo.
(Pausa de onze segundos.)
ANGELO: Compreendes?
ANDERSON: Compreendo.
ANGELO: Sabias que tens de ir armado para este trabalho?
ANDERSON: Sabia.
ANGELO: Então... tu matas este Parelli. Imediatamente antes de saíres de lá.
ANDERSON: Querem que o mate.
(Pausa de onze segundos.)
ANGELO: Sim.
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ANDERSON: Porquê?
ANGELO: Não precisas de saber. Não tem nada a ver contigo, nada a ver com este assalto. Queremo-lo fora do caminho. Esse é o nosso preço.
(Pausa de dezasseis segundos.)
ANGELO: Então?
ANDERSON: Quer que dê a resposta agora?
ANGELO: Não. Leva um dia ou dois. Nós estaremos em contacto contigo. Se for não, ficamos amigos como dantes. Se for sim, o Doutor dá-te o dinheiro e começaremos com os planos da operação. Podemos arranjar-te as horas da ronda dos polícias e dos carros-patrulha. Mas é contigo. A decisão é tua.
ANDERSON: Certo.
ANGELO: Sabes exactamente o que tens de fazer? Não há mal-entendidos? Fui claro? Em coisas como esta, é melhor ter a certeza absoluta de que todos sabemos o que vai acontecer.
ANDERSON: Eu sei o que vai acontecer.
ANGELO: Óptimo. Pensa no assunto.
ANDERSON: Está bem. vou pensar no assunto.
Além do microfone emissor colocado na casa de Dominick Angelo, na Rua Flint nº 67 825, Deal, Nova Jérsia, foi instalada uma escuta telefónica pelo Departamento Federal de Narcóticos. Este excerto da fita DFN-DA-10935 é datada de 12 de Julho de 1968. Hora: 14.48.
ANGELO: Ele ficou abalado, Papá... verdadeiramente abalado. Eu penso que tinhas razão. Acho que ele vai aceitar. Agora, sobre este assunto com os Benefici em Hackensack... eu acho que devíamos.
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Fita CVC-13JUL68-IM-4-.16.26-149H. Este dia foi um sábado.
INGRID: Então... como é que estás aqui a esta hora? Não estás a trabalhar?
ANDERSON: Não. Estou de folga este fim-de-semana. Tenho um fim-de-semana de folga de quinze em quinze dias.
INGRID: Devias ter telefonado primeiro. Eu podia estar ocupada.
ANDERSON: Estás ocupada?
INGRID: Não. Tenho estado a coser umas roupas. Queres uma bebida?
ANDERSON: Eu trouxe algum Berliner Weisse e xarope de framboesa.
INGRID: És um querido! Que maravilha! Tu lembraste-te!
ANDERSON: Tens copos grandes?
INGRID: vou servi-lo nuns copos grandes de brande que eu tenho. Que maravilhoso. Tu lembraste-te.
(Pausa de dois minutos e dezoito segundos.)
INGRID: Aqui está. Que linda cor. Prosit.
ANDERSON: Prosai.
(Pausa de catorze segundos.)
INGRID: Ah. Que bom, que bom. Diz-me, Duque... como tens passado?
ANDERSON: Bem.
INGRID: O encontro que tiveste, na última vez que falei contigo... correu bem?
ANDERSON: Sim... mais ou menos.
INGRID: Estás perturbado, Schatzie? Foi por isso que vieste? Queres evadir-te?
ANDERSON: Não. Mas preciso de falar. Não é bem isso que eu quero dizer. Preciso de falar contigo. Tu és a pessoa mais inteligente que eu conheço. Quero a tua opinião. O teu conselho.
INGRID: É um trabalho?
ANDERSON: É.
INGRID: Não quero saber nada disso.
ANDERSON: Por favor. Eu não peço por favor muitas vezes. Estou a pedir-te por favor.
(Pausa de treze segundos.)
INGRID: Sabes, Duque, eu tenho um pressentimento a teu respeito. Um mau pressentimento.
ANDERSON: Qual é?
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INGRID: Tenho este pressentimento de que, através de ti, vou encontrar a minha morte. Só por te conhecer e falar contigo, vou morrer antes do tempo.
ANDERSON: Isso assusta-te?
INGRID: Não.
ANDERSON: Nada te assusta. Entristece-te.
INGRID: Talvez.
ANDERSON: Queres que me vá embora?
(Pausa de vinte e dois segundos.)
INGRID: Que queres dizer-me? Por que é que esta coisa é tão importante que precisas dos meus conselhos?
ANDERSON: Tenho este assalto planeado. É bom. Se atacar, significa muito dinheiro. Muito dinheiro. Se der resultado, posso ir para o México, América do Sul, Europa... qualquer lado. E viver o resto da minha vida. Quero dizer mesmo viver. Pedir-te-ia que viesses comigo. Mas não penses nisso. Não deixes que isso influencie o que me disseres.
INGRID: Não deixarei, Schatzie. Já ouvi isso antes.
ANDERSON: Eu sei, eu sei. Mas, para este assalto, preciso de dinheiro. Para pagar às pessoas e planear as coisas. Compreendes?
INGRID: Compreendo. Queres que eu te dê dinheiro?
ANDERSON: Não, não quero que me dês dinheiro.
INGRID: Então as pessoas que te darão o dinheiro, as pessoas cuja cooperação precisas... eles querem qualquer coisa... hem!?
ANDERSON: És tão esperta que me assusta.
INGRID: Pensa no que a minha vida tem sido. Que é que eles querem?
ANDERSON: Eu tenho pessoal. Cinco homens que consigo arranjar. Mas os tipos do dinheiro têm de meter também o homem deles. Tudo bem. Isso é compreensível. Eu sou um free-lancer. Acontece o tempo todo com os free-lancers. Obtemos autorização para operar, mas eles têm de meter o homem deles, para terem a certeza de que não há enganos, para saberem definitivamente o montante do produto. Percebes?
INGRID: Claro. E depois?
ANDERSON: Eles querem trazer um homem de Detroit. Não o conheço. Nunca ouvi falar dele. Eles dizem-me que é um profissional. Dizem-me que ele vai aceitar ordens de mim. Eu serei o chefe desta campanha.
INGRID: E depois?
ANDERSON: Eles querem que eu o mate. Este é o preço deles.
1. Em alemão no original: não. (N. da T.)
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Quando o assalto terminar, tenho de queimar este homem. Não me dizem porquê; não tenho nada a ver com isso. Mas este é o preço deles.
INGRID: Ah...
(Pausa de um minuto e doze segundos.)
INGRID: Eles conhecem-te. Conhecem-te tão bem. Eles sabem que, se concordares com isto, fá-lo-ás. Não por medo do que eles possam fazer se não o fizesses, mas porque és o John Anderson, e quando dizes que fazes uma coisa, fazes mesmo. Estou certa?
ANDERSON: Eu não sei o que eles pensam.
INGRID: Pediste o meu conselho. Estou a tentar dar-to. Se disseres que sim, então vais matar este homem. Diz-me Schatzie, se disseres que não, tens problemas?
ANDERSON: Problemas não... não. Não me vão matar. Nada disso. Eu não sou tão importante. Mas não poderia voltar a trabalhar free lance. Não voltariam a dar-me autorização. Poderia operar, se quisesse, mas não voltaria a ser a mesma coisa. Seria muito mau... coisas insignificantes. Teria de voltar para a minha terra. Não poderia operar nesta cidade.
INGRID: A tua terra? Onde é a tua terra?
ANDERSON: No Sul. Kentucky.
INGRID: E que farias lá?
ANDERSON: Importas-te de abrir o robe?
INGRID: Está bem. Assim...?
ANDERSON: Sim. Deixa-me olhar para ti enquanto falo. Meu Deus, preciso de falar.
INGRID: Assim está melhor?
ANDERSON: Sim... melhor. Não sei o que faria. Talvez assaltar uns bares. Talvez estações de serviço. Um banco de vez em quando, se encontrasse os homens certos.
INGRID: Isso é tudo o que sabes fazer?
ANDERSON: Sim, que diabo, é tudo o que sei fazer. Pensas que seria operador de computadores em Kentucky, ou talvez vendedor de seguros?
INGRID: Não fiques zangado comigo, Schatzie.
ANDERSON: Não estou zangado contigo. Já te disse que só quero o teu conselho. Estou muito confuso.
INGRID: Já mataste um homem antes.
ANDERSON: Já. Mas isso foi na exaltação do momento. Tive de o fazer, compreendes? Ele disse coisas.
INGRID: E então agora faz parte de um trabalho. Qual é a diferença?
ANDERSON: Merda. Vocês estrangeiros. Tu não compreendes.
INGRID: Não, não compreendo.
ANDERSON: O tipo que cortei estava a provocar-me. Discutimos.
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Finalmente, tive que o deitar abaixo, ou não teria podido viver comigo próprio. Tive que o fazer. Fui obrigado a isso.
INGRID: Vocês americanos... e tu não és diferente. Vocês "deitam um homem abaixo", ou "cortam-no", ou "queimam-no", ou afastam-no do caminho", ou "levam-no a dar uma volta". Mas nunca dizem que o mataram. Porquê?
ANDERSON: Sim, tens razão. Não sei porquê. Estas pessoas que querem que eu faça esta coisa de que te falei, perguntei finalmente ao homem: "Querem que o mate?" e ele acabou por admitir que era isso que queriam. Mas eu pude ver, pelo modo como ele fez uma pausa e pelo seu ar, que a palavra "matar" não lhe agradava. Quando eu era motorista de um traficante de bebidas lá na terra, tínhamos este negro velho a trabalhar para nós... ele fazia uma mistura óptima... e ele dizia que todos temos de morrer... todos. Ele dizia que isto é o que todos os homens mais receiam e, por isso, inventam todos os tipos de palavras para não a dizerem. E os pregadores vêm dizer-nos que vamos nascer outra vez, e nós agarramo-nos ao pregador e damos-lhe dinheiro, embora, no fundo do coração, saibamos que ele mente. Católicos, Baptistas, Metodistas, Judeus... e todos os outros, todos sabem que ninguém vai voltar a nascer. E quando morremos, estamos mortos. E tudo. E o fim. Era o que o velho negro me dizia, e ele tinha razão. É a única coisa em que todos nós... tu, eu, e toda a gente deste mundo... somos iguais, temos medo de morrer ou até mesmo de pensar nisso. Olha para ti aí, quase de rabo à vela, pensas que isso vai durar para sempre? Querida, todos nós nos vamos. Eventualmente. Por que é que pensas que eu continuo a voltar para ti e a agarrar-te para me fazeres evadir? Porque tu fazes-me evadir durante pouco tempo, e eu volto sempre. E, de algum modo, não me perguntes porquê, porque não consigo explicá-lo ou compreendê-lo, tu fazes-me evadir por pouco tempo, depois eu volto, e isso torna a grande evasão mais fácil de aceitar. A última evasão. Como se eu também pudesse voltar dela. Não sei. Não consigo compreender tudo... mas é o que eu penso. Quero-me evadir para poder esquecer a merda que tenho de comer todos os dias, mas também me quero evadir como treino para o que está para vir. Sabes? E aquela pobre cabra gorda e rica da Zona Leste a quem ando a bater, é também disso que ela anda à procura. Claro, talvez seja excitante e nos faça esquecer as chatices que temos de suportar todos os dias, mas talvez nos convença de que morremos um pouco todas as vezes... e que, bem, então, o grande passo não é diferente, e também voltaremos dele. O que tem muita piada. Não tem muita piada, querida?
INGRID: Sim. Tem muita piada.
ANDERSON: Eu, na realidade, não vim aqui pedir-te conselhos. Vim dizer-te o que vou fazer. vou matar este tipo Parelli. Não 104
sei quem ele é, o que ele é, ou qual é a necessidade de o matar. Mas quer seja eu a fazê-lo ou quer um raio o atinja amanhã ou daqui a vinte anos, vai ser feito. Mas vou matá-lo porque talvez possa conseguir obter alguns anos limpos com isto tudo. E, neste momento, sinto o sangue a ferver tanto, e tu aí sentada com toda a tua feminilidade exposta e a olhar para mim, e consigo sentir o gosto do momento em que vou deitar o tipo abaixo, e o que vou fazer agora é fazer-te evadir... talvez pela primeira vez na tua vida.
INGRID: E como é que o vais fazer?
ANDERSON: vou fazê-lo. Não sei como, mas fá-lo-ei. Tu tens por aí todas essas coisas malucas para os teus clientes, não tens? Vamos fazê-lo com isso, se for preciso. Mas vamos fazê-lo. vou fazer-te evadir, Ingrid. Juro...
INGRID: Sim?
Esta é a gravação DFRIRENI-FD-15 JUL68-437-6G; 15 JULHO de 1968; 12.45.
SIMONS: Olá, Duque. Fecha a porta depressa. Não dês oportunidade ao ar condicionado de fugir. É bom voltar a ver-te. ANDERSON: Olá, Mr. Simons. Como tem passado?
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SIMONS: vou vivendo, Duque, vou vivendo. Queres tomar alguma coisa?
ANDERSON: Agora não, obrigado,
SIMONS: Bem... não te importas se eu beber, pois não? Tenho um encontro para o almoço daqui a cerca de meia hora, e um martini abre-me o apetite.
ANDERSON: Esteja à vontade.
SIMONS: Bem, então Duque, o que decidiste?
ANDERSON: Sim. Está bem.
SIMONS: Compreendes completamente o que tens de fazer a respeito desta pessoa de Detroit?
ANDERSON: Sim, compreendo.
SIMONS: Excelente. Agora então... vamos aos pormenores. Esta pessoa de Detroit será nossa responsabilidade. Isto é, qualquer pagamento a ser-lhe feito ou aos seus herdeiros não faz parte de qualquer acordo financeiro que nós os dois façamos. Isto é claro?
ANDERSON: É.
SIMONS: Todas as despesas e adiantamentos serão deduzidos dos lucros. Assim, se concordares com estas condições, tenho comigo, e estou autorizado a entregar-te, os dois mil dólares para despesas que pediste. Quando o plano de operações for aprovado, entregar-te-ei então uma quantia suficiente para metade do pagamento dos honorários dos homens envolvidos, o que, julgo, calculaste entre quatro e cinco mil dólares? Isso está correcto?
ANDERSON: Está. Exactamente. É metade do que eles vão receber.
SIMONS: Agora então... quando a receita final em dinheiro for determinada, todas estas quantias... adiantamentos, despesas e salários... serão deduzidas. Está claro?
ANDERSON: Isso inclui o pagamento final ao meu pessoal... a outra metade, cerca de quatro ou cinco mil?
SIMONS: Exactamente. Todas essas despesas serão subtraídas primeiro. Não estamos a contar com mais nenhumas outras despesas para além das que referi. Em qualquer caso, pensamos que elas serão tão pequenas que não há necessidade de nos preocuparmos com elas nesta altura. Agora então... chegámos à receita líquida. Nós propomos uma divisão cinquenta-cinquenta.
ANDERSON: Eu pedi setenta-trinta.
SIMONS: Eu sei que pediste, Duque. Mas, dadas as circunstâncias, e considerando que o lucro poderá ser consideravelmente inferior à estimativa mais optimista, achamos que se justifica uma divisão cinquenta-cinquenta. Especialmente tendo em conta as quantias que já adiantámos.
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ANDERSON: Não está certo. Não, se virmos o que vou fazer por vocês. Não aceito.
SIMONS: Duque, nós podíamos ficar aqui a discutir durante horas, mas eu sei que não queres isso mais do que nós. Tive instruções para te oferecer um acordo de cinquenta-cinquenta porque achamos que é um acordo justo, considerando os riscos envolvidos e os gastos até esta altura. Muito francamente, tenho de admitir que Mr. Angelo... o Pequeno Pat... pensou que não ias concordar. Assim, estou autorizado a propor uma divisão sessenta-quarenta. E isso, Duque, posso dizer-te com toda a honestidade, é o melhor que eu posso fazer. Se isso não for satisfatório, então terás de ir falar com Mr. O médico ou Mr .Angelo.
(Pausa de dezoito segundos.)
ANDERSON: Sessenta para mim, quarenta para vocês?
SIMONS: Exactamente.
ANDERSON: E por isso eu arrisco-me a ser acusado de homicídio premeditado?
SIMONS: Duque, Duque... eu não vou tentar dar-te conselhos. E a decisão é tua, e tu sabes os factores envolvidos melhor do que eu. Tudo o que te posso oferecer é uma divisão sessenta-quarenta. A minha tarefa é essa, e estou a cumpri-la. Por favor não te zangues comigo.
ANDERSON: Não estou zangado consigo, Mr. Simons. Nem com Mr. O médico ou Mr. Angelo. O senhor tem o seu trabalho, e eu tenho o meu. E suponho que têm de responder perante alguém.
SIMONS: Realmente temos, Duque, realmente temos.
(Pausa de quatro segundos.)
ANDERSON: Está bem. Aceito os sessenta-quarenta.
SIMONS: Excelente. Tenho a certeza de que não te vais arrepender. Aqui estão dois mil. Em notas pequenas. Todas limpas. Nós trataremos da vinda do Parelli de Detroit. Serás informado de quando ele estiver disponível para fazer os planos. Pensamos que a ideia de atacar no fim-de-semana do Dia do Trabalho é boa. Entretanto, vamos ver o que podemos fazer para te arranjar horários dos carros da 251ª Esquadra e do Sector George. Quando tiveres a campanha bem planeada, entra em contacto comigo para te marcar um encontro com Mr. Angelo. Sugiro que faças isto antes de assumires um compromisso firme com o teu pessoal. Compreendes? Não vale a pena falar com eles se não estiver tudo bem preparado. Concordas?
ANDERSON: Concordo.
SIMONS: Está tudo claro agora? Quero dizer a respeito do dinheiro, pessoal, ou qualquer outra coisa? Se tiveres qualquer pergunta, agora é altura de a fazeres.
(Pausa de seis segundos.)
107
ANDERSON: Este Parelli... que é que ele fez? SIMONS: Não sei, nem quero saber. Sugiro que faças a mesma coisa. Queres tomar qualquer coisa agora? ANDERSON: Sim. Está bem. Um brande. SIMONS: Excelente, excelente...
Fotocópia de uma carta datada de 16 de Julho de 1968, da United Electronics Kits, Inc., Michigan Boulevard nº 65 378, Chicago, Ilinóis, dirigida a Mr. Gerald Bingham, Jr., Apartamento 5A, 73ª Avenida Leste nº 535, Nova Iorque, Nova Iorque.
CARO MR. BINGHAM,
Em resposta à sua carta do 5 do corrente, temos o prazer de informar que considerámos a sua sugestão de grande mérito. Assim, estamos a modificar o nosso Kit Amplificador 57-68A, de modo a que aplaca de trás seja facilmente retirada (por meio de parafusos), em vez de soldada como actualmente. Estamos seguros, como sugeriu, de que isto ajudará a construção e a manutenção de toda a unidade.
Queremos manifestar a nossa apreciação pelo seu interesse e estamos, na realidade, bastante mortificados pelo facto de os nossos engenheiros não terem reparado neste inconveniente do kit 57-68 antes da sua distribuição. O facto de já termos, conforme refere, quinze anos, torna a nossa mortificação mais compreensível!
Em todo o caso, para expressar a nossa gratidão pela sua sugestão de um modo mais tangível, vamos enviar-lhe (nesta data), como oferta, o modelo Deluxe 32-16895 do nosso Kit de Gravador Stereo de Três Velocidades (sem qualquer encargo).
Renovamos os nossos agradecimentos pelo seu interesse nos nossos produtos.
com os nossos melhores cumprimentos,
(assinado) DAVID K. DAVIDSON Director, Relações Públicas
108
Gravação DFN-DA-211036. Terça-feira, 16 de Julho de 1968
14.36.
TELEFONISTA: Tenho uma chamada pessoal, Detroit. De Mr. Domimick Angelo, de Deal, Nova Jérsia, para Mr. Nicola DAgostino no número três-um-um, um-cinco-oito, oito-nove-sete-três.
TELEFONISTA: É só um momento.
TELEFONISTA: Obrigada.
(Pausa de catorze segundos.)
TELEFONISTA: É do três-um-um, um-cinco-oito, oito-nove-sete-três?
VOZ MASCULINA: É, sim.
TELEFONISTA: Tenho uma chamada pessoal para Mr. Nicola dAgostino de Mr. Dominick Angelo, de Deal, Nova Jérsia. Mr. D Agostino está?
VOZ MASCULINA: É só um minuto, menina.
TELEFONISTA: Obrigada. Está lá, Nova Jérsia?
TELEFONISTA: Está sim, minha linda.
TELEFONISTA: Obrigada. Estão a tentar encontrar Mr. DAgostino.
(Pausa de onze segundos.)
DAGOSTINO: Está?
TELEFONISTA: É Mr. Nicola DAgostino?
DAGOSTINO: O próprio.
TELEFONISTA: É só um momento, por favor, é uma chamada de Deal, Nova Jérsia. Nova Jérsia, Mr. DAgostino está em linha.
TELEFONISTA: Obrigada. Pode falar, Mr. Angelo. Mr. DAgostino está em linha.
ANGELO: Está? Olá, Toast!
DAGOSTINO: Papá... é o Papá? Que bom ouvir a sua voz! Como está, Papá?
ANGELO: vou vivendo. vou vivendo. E como está a Florida?
DAGOSTINO: Magnífica, Papá. Maravilhosa. Devia vir viver para cá. Viveria mais cem anos.
ANGELO: Deus me livre. E a família?
DAGOSTINO: Não podia estar melhor, Papá. A Angélica perguntou por si. Eu disse-lhe que havia de nos enterrar a todos.
ANGELO: E as crianças?
DAGOSTINO: Óptimas, Papá, óptimas. Estão todos óptimos. O Tony caiu da bicicleta ontem e partiu um dente... mas não é nada.
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ANGELO: Deus do céu. Precisas de um bom dentista? Eu mando
um aí.
DAGOSTINO: Não, não, Papá. É um dente de leite. Nós temos um bom dentista. Ele disse que não é nada. Não se preocupe.
ANGELO: Óptimo. Se tiveres qualquer problema, diz-me.
DAGOSTINO: Está bem, Papá, está bem. Obrigado pela sua preocupação. Pode crer que eu e a Angélica lhe ficamos gratos.
ANGELO: Toast, lembras-te de que, quando estiveste aqui, nós discutimos o teu problema?
DAGOSTINO: Sim, Papá, lembro-me.
ANGELO: Este problema, Toast... eu acho que podemos ajudar-te. Acho que podemos resolvê-lo.
DAGOSTINO: Eu ficar-lhe-ia muito grato, Papá, pode crer.
ANGELO: Seria uma solução permanente. Compreendes,Toast?
DAGOSTINO: Compreendo, Papá.
ANGELO: É isso que queres?
DAGOSTINO: É isso que eu quero.
ANGELO: Óptimo. Vai funcionar bem. Manda-o para cá o mais depressa possível. Dentro de uma semana. Isso é possível, Toast?
DAGOSTINO: com certeza.
ANGELO: Diz-lhe só que é um trabalho importante. compreendes?
DAGOSTINO: Compreendo, Papá. Ele está aí antes de sexta-feira.
ANGELO: Óptimo. Dá saudades minhas à Angélica. E à Auntie e ao Nick. E diz ao Tony que eu lhe vou mandar uma bicicleta nova. Uma que não o deita ao chão e lhe parte os dentes.
DAGOSTINO (rindo): O Papá é o máximo! Adoro-o. Todos nós o adoramos.
ANGELO: Passa bem.
DAGOSTINO: O Papá também. Passe bem... sempre.
Transcrição da gravação POM-20JUL68-EVERLEIGH. Esta gravação começou às 13.14 do dia 20 de Julho de 1968 e terminou às
14.06 de 21 de Julho. Foi gravada no apartamento 3B, da 73.s Avenida Leste nº 535. Esta fita foi bastante cortada para eliminar conversas irrelevantes, nomes de pessoas inocentes e repetição de informações já obtidas de outras fontes. Julga-se que Mrs. Agnes
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Everleigh e John Anderson não saíram do apartamento 3B durante o período de vinte e quatro horas acima referido.
SEGMENTO I. 20JUL-13.48.
ANDERSON:... não posso. Estive de folga no último fim-de-semana.
MRS. EVERLEIGH: Podes telefonar a dizer que estás doente, não podes? Não é o fim-de-semana inteiro. É só esta noite. Podes ir trabalhar outra vez amanhã à noite. Podes faltar por doença, não podes?
ANDERSON: Posso. Dez dias por ano.
MRS. EVERLEIGH: Já faltaste alguma vez?
ANDERSON: Não. Não desde que estou a trabalhar ali.
MRS. EVERLEIGH: Então falta esta noite. Dou-te cinquenta dólares.
ANDERSON: Está bem.
MRS. EVERLEIGH: Aceitas os cinquenta?
ANDERSON: Aceito.
MRS. EVERLEIGH: Esta é a primeira vez que aceitas dinheiro de mim.
ANDERSON: Como é que isso te faz sentir?
MRS. EVERLEIGH: Tu sabes... não sabes?
ANDERSON: Sei. Vai buscar os cinquenta dólares. Eu vou telefonar a dizer que estou doente.
MRS. EVERLEIGH: Ficas comigo a noite toda?
ANDERSON: Claro.
SEGMENTO II. 20JUL-14.13.
MRS. EVERLEIGH: Adoro-te quando estás assim... descontraído, e simpático, e bom para mim.
ANDERSON: Estou a ser bom para ti?
MRS. EVERLEIGH: Até agora. Até agora tens sido um perfeito cavalheiro.
ANDERSON: Assim?
MRS. EVERLEIGH: É preciso? Tens de fazer isso?
ANDERSON: Claro. Se quiser ganhar os meus cinquenta dólares.
MRS. EVERLEIGH: És mesmo um filho da mãe.
ANDERSON: Honesto. Eu sou honesto.
SEGMENTO iII. 20JUL-17.26.
MRS. EVERLEIGH:... pelo menos quarenta por cento. Que tal?
ANDERSON: Eles podem fazê-lo?
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MRS. EVERLEIGH: Claro que podem fazê-lo, seu idiota. Este apartamento é um condomínio. Eu não faço parte da administração. Depois de o meu marido se ter ido embora, os nossos advogados reuniram-se e eu concordei em pagar a manutenção, e ele concordou em continuar a pagar a amortização. O apartamento está em nome dele. Agora eles vão aumentar a manutenção pelo menos quarenta por cento.
ANDERSON: Que é que vais fazer?
MRS. EVERLEIGH: Ainda não decidi. Se encontrasse alguma coisa melhor, mudava-me já. Mas é difícil encontrar um apartamento na Zona Leste de Manhattan. Estes prédios novos custam cento e oitenta e cinco dólares por uma divisão. Eu provavelmente vou dar-lhes o que eles querem e ficar aqui mesmo. Vira-te.
ANDERSON: Para mim já chega.
MRS. EVERLEIGH: Não, não chega nada.
SEGMENTO IV. 20JUL-18.23.
MRS. EVERLEIGH: Depende do que quiseres. O Feraccis tem frango ou entrecosto assado... coisas desse género. É uma espécie de charcutaria. Se vamos cozinhar, podemos mandar vir do Ernesto Brothers. Podemos mandar vir uma refeição congelada ou frangos, ou um bife para fritar ou grelhar... o que quiseres.
ANDERSON: Vamos mandar vir um frango... um frango grande, de quilo e meio, se eles tiverem um frango para churrasco desse tamanho. Vamos fritá-lo. E talvez batatas fritas e legumes.
MRS. EVERLEIGH: Que espécie de legumes?
ANDERSON: Collards1? Eles têm collards?
MRS. EVERLEIGH: Que são collards?
ANDERSON: Esquece. Manda só vir um frango grande para fritar e muita cerveja gelada. Que te parece?
MRS. EVERLEIGH: Parece delicioso.
ANDERSON: Então manda vir. Eu pago. Aqui tens uma nota de cinquenta dólares.
MRS. EVERLEIGH: És um filho da mãe.
SEGMENTO V. 20JUL-21.14.
ANDERSON: Que vais fazer a Roma?
MRS. EVERLEIGH: O costume... ver as novas colecções de Outono.
1. Collards - uma espécie de couve. (N. da T.)
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visitar algumas boutiques... comprar algumas coisas... é uma droga.
ANDERSON: Como eu disse, eu gostava de poder viajar. A única coisa que é necessária é dinheiro. Como este prédio. Tu vais para Roma. Os teus vizinhos vão para as praias de Jérsia. Aposto que toda a gente deste prédio vai a algum lado no fim-de-semana do Dia do Trabalho... Roma, Jérsia, Florida, França... algures...
MRS. EVERLEIGH: Oh, sim. Os Sheldons... eles vivem no 4A... já estão na sua casa de Montauk. As pessoas por debaixo de mim, um advogado e a mulher, irão para East Hampton. Lá em cima, no 5B, o Longene e aquela vaca com quem ele vive... não são casados, sabes... com certeza que foram convidados para ir passar o fim-de-semana do Dia do Trabalho a qualquer lado. Por isso o prédio ficará meio vazio. Aquele maricas do 2A também irá provavelmente para fora. Que vais tu fazer?
ANDERSON: Trabalhar, provavelmente. Recebo a triplicar quando trabalho de noite num feriado. Posso ganhar muita massa se trabalhar no fim-de-semana do Dia do Trabalho.
MRS. EVERLEIGH: Vais pensar em mim?
ANDERSON: Claro. Ainda há uma coxa. Queres?
MRS. EVERLEIGH: Não, querido. Acaba tu com ela.
ANDERSON: Está bem. Eu gosto das coxas, das asas e da mitra. Mais que do peito. A carne escura é mais saborosa.
MRS. EVERLEIGH: Não gostas da carne branca?
ANDERSON: Talvez. Mais tarde.
SEGMENTO VI. 21JUL-6.14. ANDERSON (gemendo): Mamã... Mamã... MRS. EVERLEIGH: Duque? Duque? Que é Duque? ANDERSON: Mamã?
MRS. EVERLEIGH: Shsh... shsh. Estás a ter um pesadelo. Eu estou aqui, Duque.
ANDERSON: Mamã... Mamã...
SEGMENTO VII. 21JUL-8.56.
ANDERSON: Merda. Tens um cigarro?
MRS. EVERLEIGH: Toma.
ANDERSON: com filtro? Deus do céu. Estas lojas por aqui... estão abertas ao domingo?
MRS. EVERLEIGH: O Ernesto está. Que é que queres?
ANDERSON: Cigarros... para começar. Queres dizer que essa loja está aberta aos domingos?
113
MRS. EVERLEIGH: Claro.
ANDERSON: Nos feriados também?
MRS. EVERLEIGH: Estão abertos 365 dias por ano, vinte e quatro horas por dia. Gabam-se disso. Têm uma tabuleta na montra que diz isso. Se estiveres grávida, podes comprar pepinos empickles às três horas da manhã no Ernesto. É a maneira de eles conseguirem sobreviver. Não podem competir com os grandes supermercados da 1ª Avenida como os Lambreta Brothers. Assim, estão abertos todo o dia e toda a noite.
ANDERSON: Meu Deus, eles não são assaltados?
MRS. EVERLEIGH: Claro que são... cerca de duas ou três vezes por mês. Mas continuam abertos. Deve compensar. Além disso, quando se é assaltado, o seguro não paga?
ANDERSON: Suponho que sim. Não sei muito sobre essas coisas.
MRS. EVERLEIGH: Bem, eu vou telefonar para eles virem trazer cigarros. São cerca de nove horas agora. Quando tens de te ir embora?
ANDERSON: Por volta das duas. Mais ou menos isso.
MRS. EVERLEIGH: Bem, acho que vou mandar vir comida para um pequeno-almoço ligeiro e comida para um almoço por volta do meio-dia. Compro bifes com batatas assadas. Que te parece?
ANDERSON: Parece-me bem.
MRS. EVERLEIGH: Tu és o homem mais interessado e entusiástico que eu já conheci.
ANDERSON: Não compreendo isso.
MRS. EVERLEIGH: Esquece.
O trecho seguinte está identificado como SEGMENTO 101-B do documento PDNI-EHM-101A-108B, um depoimento ditado sob juramento e assinado perante testemunhas, de Ernest Heinrich Mann.
MANN: Portanto... chegámos agora a 26 de Julho. Recordo-me de que era uma sexta-feira. Nessa data, o homem que conheço como John Anderson veio à minha loja e...
PERGUNTA: Que horas eram?
MANN: Era talvez uma da tarde. Definitivamente depois do almoço. Ele entrou na minha loja e pediu para falar comigo. Por isso fomos para o gabinete do fundo. Há lá uma porta que posso fechar à
114
chave; não seríamos incomodados. Desta vez, Anderson perguntou se eu estaria disponível para um trabalho que ele tinha em mente.
PERGUNTA: Que espécie de trabalho?
MANN: Ele foi muito evasivo. Muito vago. Deliberadamente, compreende. Mas eu sabia que ia ser o prédio de apartamentos que já tinha investigado para ele. Quando o soube, perguntei-lhe se ele tinha sabido qual era a finalidade da divisão fria que eu descobrira na cave do prédio.
PERGUNTA: Que é que ele disse?
MANN: Ele disse que sim, que tinha descoberto a finalidade da divisão fria.
PERGUNTA: Ele disse para que é que ela era utilizada?
MANN: Nessa altura, não. Mais tarde, disse-me. Mas neste encontro do dia 26 de Julho ele não me disse e eu não fiz mais perguntas.
PERGUNTA: Que espécie de trabalho é que John Anderson lhe pediu que fizesse para ele?
MANN: Bem... ele não me pediu exactamente que o fizesse. Nesse dia, ele simplesmente queria saber que eu estava interessado, se estaria disponível. Ele disse que o trabalho consistiria em cortar todos os fios telefónicos e dos alarmes de todo o prédio.
PERGUNTA: Que mais?
MANN: Bem... em cortar a fonte de alimentação do elevador.
PERGUNTA: Que mais?
MANN: Bem... uh...
PERGUNTA: Mr. Mann, o senhor prometeu a sua colaboração total. com base nessa promessa, concordámos em dar-lhe toda a assistência que nos for possível, de acordo com a lei. O senhor compreende, obviamente, que não lhe podemos oferecer imunidade total?
MANN: Sim. Compreendo. com certeza.
PERGUNTA: Muito está dependente da sua atitude. Que mais lhe pediu o John Anderson que fizesse, nesse encontro do dia 26 de Julho?
MANN: Bem, conforme lhe disse, ele não pediu exactamente. Ele estava a delinear uma situação hipotética, compreende. Ele estava a sondar-me, como os senhores diriam. A avaliar o meu interesse num trabalho.
PERGUNTA: Sim, sim, o senhor já disse isso. O trabalho incluiria o corte de todos os fios telefónicos e do alarme no prédio de apartamentos em causa, e talvez o corte da fonte de alimentação do elevador.
MANN: Sim. Isso está correcto.
PERGUNTA: Muito bem, Mr. Mann. O senhor acabou de admitir
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destruição de propriedade privada, um crime relativamente menor. E talvez assalto com arrombamento.
MANN: Oh não! Não, não, não! Assalto com arrombamento, não. Os apartamentos já deveriam estar abertos quando eu chegasse. Eu não teria nada a ver com isso.
PERGUNTA: Compreendo. E quanto é que lhe foi oferecido por cortar as linhas telefónicas e do alarme, e por cortar a fonte de alimentação do elevador?
MANN: Bem... não chegámos a nenhum acordo definitivo. Deve compreender que nós conversámos sobre generalidades. Não havia um trabalho definitivo, não havia uma tarefa definitiva. Este homem Anderson queria apenas saber se eu estava interessado e quanto cobraria.
PERGUNTA: E quanto lhe disse que levaria?
MANN: Sugeri cinco mil dólares.
PERGUNTA: Cinco mil dólares? Mr. Mann, essa não é uma quantia um tanto avultada pelo corte de uns fios?
MANN: Bem... talvez... sim.
PERGUNTA: Está bem. Temos tanto tempo como o senhor. Que mais lhe foi pedido que fizesse neste trabalho hipotético?
MANN: Bem, o senhor compreende que estava tudo indefinido. Não foi feito qualquer acordo.
PERGUNTA: Sim, sim, nós compreendemos isso. Que mais queria Anderson que fizesse?
MANN: Bem, haveria, talvez, algumas portas que precisariam de ser abertas. Além disso, talvez um cofre vertical e talvez um cofre de parede. Ele queria um homem com formação técnica que compreendesse essas coisas.
PERGUNTA; com certeza, Mr. Mann. E o senhor compreendia essas coisas?
MANN: Naturalmente! Eu sou formado pelo Stuttgarter Technische Hochschule, e fui professor assistente de Engenharia Mecânica e Electrotécnica da Zurich Academie du Mécanique. Posso garantir-lhe que sou bastante competente nos meus campos.
PERGUNTA: Sabemos isso muito bem. Agora, vejamos se temos tudo correcto. No dia 26 de Julho, cerca da uma da tarde, o John Anderson foi à sua loja, situada na Avenida D, número mil-novecentos e setenta e cinco, Cidade de Nova Iorque, perguntar se o senhor estaria disponível para um trabalho que poderia ou não materializar-se. Este trabalho consistiria, no que lhe dizia respeito, em cortar os sistemas telefónicos e de alarme num determinado prédio de apartamentos.. localização não especificada... em cortar afonte de alimentação do elevador, em arrombar portas ou abrir fechaduras de portas
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desse prédio, e em abrir cofres de vários tipos nos apartamentos desse prédio. Está correcto?
MANN: Bem, eu...
PERGUNTA: Está correcto?
MANN: Por favor, seria possível beber um copo de água?
PERGUNTA: Certamente. Sirva-se.
MANN: Obrigado. Tenho a garganta completamente seca. Eu fumo tanto. Tem um cigarro, por acaso?
PERGUNTA: Aqui tem.
MANN: Muito obrigado.
PERGUNTA: A afirmação que acabei de lhe repetir... está correcta?
MANN: Sim. Está correcta. Era isso que o John Anderson queria que eu fizesse.
PERGUNTA: E por esse trabalho o senhor pediu cinco mil dólares?
MANN: Sim.
PERGUNTA: Qual foi a reacção do Anderson?
MANN: Ele disse que não podia pagar tanto, que o seu orçamento não o permitiria. Mas disse que, se a campanha fosse finalizada, ele tinha a certeza de que eu e ele poderíamos fazer um acordo mutuamente lucrativo.
PERGUNTA: O senhor utilizou a expressão "se a campanha fosse finalizada". Deixe-me ver uma coisa. A sua impressão é de que, nessa data, no dia 26 de Julho, ainda não tinha sido decidido se o trabalho se iria, de facto, efectuar?
MANN: Sim, essa é a impressão que eu tive, e ainda tenho.
PERGUNTA: Obrigado. Eu penso que, por hoje, é suficiente, Mr. Mann. Estou-lhe grato pela sua colaboração.
MANN: Agradeço a sua gentileza.
PERGUNTA: Temos muito mais que conversar sobre este assunto. Havemos de nos voltar a ver, Mr. Mann.
MANN: Disponha sempre.
PERGUNTA: Óptimo. Guarda!
Fotocópia de uma carta datada de 29 de Julho de 1968, do responsável pelas Relações Públicas do Departamento de Investigação e Desenvolvimento, Gabinete Nacional de Estudos Espaciais, Washington
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D. C. 20 036, dirigida a Mr. Gerald Bingham, Jr., Apartamento
5A 73-a Avenida Leste nº 535, Nova Iorque, Nova Iorque.
EX.MO SENHOR,
Em referência à sua carta de 16 de Maio de 1968, recebi instruções do director do Departamento de Investigação e Desenvolvimento, do Gabinete Nacional de Estudos Espaciais, para lhe agradecer o seu interesse nas nossas actividades, bem como pela sugestão da utilização de dióxido de carbono solidificado ("gelo seco") como material de ablação no nariz do cone de foguetões, sondas espaciais e veículos espaciais tripulados durante a reentrada na atmosfera terrestre.
Como tem, sem dúvida, conhecimento, Mr. Bingham, tem sido levada a efeito muita investigação de avultados custos nesta área, e tem sido testada uma grande variedade de materiais, desde metais e ligas de metais, a cerâmica e ligas de cerâmica e metal. O material actualmente utilizado foi testado com êxito nos nossos programas Mercury, Gemini e Apollo.
Recebi ainda instruções para o informar de que o ""gelo seco" não poderia suportar as temperaturas extremamente elevadas com que os foguetões pesados e os veículos espaciais tripulados se deparam durante a reentrada.
No entanto, a sua carta revelou um nível muito elevado de conhecimentos científicos sofisticados, e o facto de ter, como diz, quinze anos, tem grande interesse para nós. Como provavelmente sabe, o Gabinete Nacional de Estudos Espaciais tem à sua disposição um determinado número de bolsas para faculdades e universidades. Dentro dos próximos seis meses, um representante do nosso Departamento de Atribuição de Bolsas contactará pessoalmente consigo, para avaliar o seu interesse nesta área.
Entretanto, renovamos os nossos agradecimentos pelo interesse nas nossas actividades e pelo programa espacial dopais.
com os melhores cumprimentos,
(assinado) CYRUS ABERNATHY,
RP, ID
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A gravação seguinte foi feita no dia 13 de Agosto de 1968, com início às 20.42. Os participantes, Patrick Angelo e John Anderson, foram identificados pela voz. A reunião teve lugar no escritório situado no primeiro andar da casa de Angelo, na Foxberry Lane nº 543, alguns quilómetros a norte de Teaneck, Nova Jérsia.
Esta casa estava, desde há vários meses, sob vigilância electrónica da Comissão Federal do Comércio, como parte de uma investigação continuada aos negócios interligados de Patrick Angelo. A investigação dizia respeito a possíveis violações da lei Sherman anti-trust.
No decurso desta gravação, houve alguns lapsos de tempo que os técnicos foram incapazes de explicar. O mecanismo de gravação foi verificado; os peritos pensaram que o defeito residira no SC-7, Mk. HM-T, um dispositivo relativamente novo que poderia ser afectado pelas condições atmosféricas. Tinha chovido intensamente antes do encontro abaixo transcrito e, durante a reunião, o céu estava nublado e a humidade era muito elevada.
Esta é a gravação CFC-KLL-13AGO68-1701.
ANGELO:... conhaque?
ANDERSON: Sim. É a única coisa que bebo... brande.
ANGELO: Então vais gostar deste. É um pequeno importador, talvez mil caixas por ano. Eu devo comprar umas duzentas. Bebo muito disto e também ofereço. Um tipo em Teaneck encomenda-o para mim. Perto de vinte a garrafa. Aqui está. Queres água?
ANDERSON: Não. Assim está óptimo.
(Pausa de quatro segundos.)
ANDERSON: Deus do céu, isto é bom. Não sei se o hei-de beber, se cheirar. É realmente bom.
ANGELO: Ainda bem que gostas. E não provoca ressaca. Mantenho o Papá fornecido. Ele bebe talvez uma garrafa por mês. Um dedal antes de dormir.
ANDERSON: É melhor que comprimidos.
ANGELO: Certamente que é. Encontraste-te com o Parelli?
ANDERSON: Encontrei.
ANGELO: Que achas dele?
ANDERSON: Eu mal falei com ele. Mal o vi. Estávamos no banho turco daquele health club que o Doutor tem na 48ª Avenida Oeste.
ANGELO: Eu sei, eu sei. Que pensas dele?
ANDERSON: Músculo pesado. Um imbecil...
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ANGELO: Um imbecil. Sim, ele é mesmo isso. Não tem muitos miolos.
ANDERSON: Calculei.
ANGELO: Duque, tu estás a fazer-nos um favor. Por isso, eu faço-te um. O gajo é maluco. Percebes o que eu quero dizer? Ele gosta de se pôr a disparar, de magoar as pessoas. Anda com uma daquelas automáticas grandes da tropa. Quanto é que ela pesa... cerca de cinco quilos?
ANDERSON: Não tanto. Mas é pesada.
ANGELO: Sim, e grande e má. Ele adora isso. Já conheceste gajos como ele. É o pénis deles.
ANDERSON: Sim.
ANGELO: Bem, não lhe dês as costas... percebes?
ANDERSON: Percebo. Obrigado.
ANGELO: De nada... agora, que tens para mim?
ANDERSON: Tenho este relatório. Escrito à mão. Exemplar único. É como devemos fazer as coisas. Não estou a dizer que seja definitivo, mas temos de começar por qualquer lado. Isto inclui o que eu soube desde a última vez que o vi. Pus os meus tipos a trabalhar. Eu sei que haverá alterações... o senhor quererá provavelmente fazer alterações.. e vamos alterar as coisas até ao último minuto... pequenos ajustamentos, percebe. Mas eu acho que o plano principal é bom.
ANGELO: O Doutor arranjou-te o horário da Polícia?
ANDERSON: Arranjou, sim. Obrigado. Pedi aos irmãos Brodsky que verificassem a ronda. Está tudo certo. Está tudo neste relatório. Quer lê-lo agora, ou quer que o deixe e o venha buscar daqui a um dia ou dois?
ANGELO: vou lê-lo agora. O tempo está a ficar curto. Temos menos de três semanas.
ANDERSON: Sim.
ANGELO: Serve-te de conhaque enquanto eu leio isto. Tens uma letra bonita e clara.
ANDERSON: Obrigado. Talvez a minha ortografia não seja tão boa.
ANGELO: Não faz mal. Não há problema...
(Pausa de sete minutos e vinte e três segundos, seguida do som de uma porta a abrir-se.)
MRS. ANGELO: Pat? Oh, desculpa; estás ocupado.
ANGELO: Não faz mal, Maria... entra, entra. Querida, este é o John Anderson, um sócio. Duque, esta é a minha mulher...
MRS. ANGELO: Como está, Mr. Anderson.
ANDERSON: Muito prazer em conhecê-la, minha senhora.
MRS. ANGELO: O meu marido está a tratá-lo bem? Vejo que tem
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uma bebida. É servido de alguma coisa para comer? Está com fome? Temos galinha fria. Talvez uma sanduíche?
ANDERSON: Oh, não, obrigado, minha senhora. Estou muito bem.
MRS. ANGELO: Uns biscoitos. Temos uns biscoitos de manteiga deliciosos.
ANDERSON: Minha senhora, muito obrigado, eu agradeço-lhe, mas fico-me por esta bebida.
MRS. ANGELO: Pat, a Stella já está deitada. Queres ir dar-lhe as boas-noites?
ANGELO: com certeza. Desculpa, Duque, é só um momento.
ANDERSON: com certeza, Mr. Angelo.
ANGELO: E, quando voltar, vou trazer alguns daqueles biscoitos deliciosos. É a minha mulher que os faz. Não é possível comprá-los.
(Pausa de quatro minutos e treze segundos.)
ANGELO: Aqui estão... serve-te. São deliciosos. Olhando para a minha pança, podes ver quantos eu como.
ANDERSON: Obrigado.
ANGELO: Agora vejamos... onde é que eu estava... sim, vamos aqui. Duque, tu tens muito boas maneiras. Eu gosto disso. Agora vejamos....
(Pausa de seis minutos e dezoito segundos.)
ANGELO: Duque, tenho de admitir. Geralmente, eu penso... meu Deus, o conhaque acabou? Bem, vamos despachar este velho soldado. Depois vamos analisar o teu plano operacional passo a passo e...
(Pausa de dezoito minutos e nove segundos.)
ANGELO: ... aqui estamos. Cheira só esta garrafa.
ANDERSON: Óptimo.
ANGELO: Estás pronto para outro? Estou a ver que estás. Por isso, tudo o que temos é muitas pequenas diferenças e pequenos pormenores que, tudo somado, não chega a ser grande coisa. Estou certo?
ANDERSON: Desde que concorde com o plano principal.
ANGELO: Certamente que sim. É bom. Tal como eu disse, podemos ajudar-te com o camião. Não há problema. Sobre as diversões... podes ter razão. Eles têm estes grupos tácticos de polícias hoje em dia... enfiam-nos em autocarros e, mal se dá por isso, bam! Talvez estivéssemos a arranjar problemas. Deixa-me falar com o Papá sobre o assunto.
ANDERSON: Mas, tirando isso, parece bom?
ANGELO: Sim, parece bom. Gosto da ideia de metade das pessoas estarem fora nesse fim-de-semana. Quantos homens tens?
ANDERSON: Cinco. Comigo, seis. com o Parelli, sete.
ANGELO: Meu Deus, vão ser mais do que eles!
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ANDERSON: Mais ou menos.
ANGELO: Bem, podes avançar. Contacta o Fred Simons amanhã e organiza o modo de teres a primeira metade dos emolumentos para o teu pessoal.
ANDERSON: Emolumentos?
ANGELO: Quero dizer honorários ou salários.
ANDERSON: Oh... está bem.
ANGELO: Então agora podes ter a tua primeira verdadeira reunião de recrutamento. Certo? Podes juntá-los todos e começar a trabalhar. Certo? Isto tem que incluir o Parelli. Sabes como contactá-lo?
ANDERSON: Através do Simons ou do Doutor. Não directamente.
ANGELO: Exactamente. O Fred manter-te-á em contacto com ele. Eu também gostaria de falar contigo cerca de, pelo menos, uma vez por semana, até ao Dia D. Aqui. Há algum problema nisso?
ANDERSON: Eu aluguei um carro. Não devia sair do Estado, mas acho que o risco não é muito grande.
ANGELO: Concordo. Está bem. O Simons vai dar-te o dinheiro. Ao mesmo tempo, contactas com o Parelli através dele e marcas um encontro com as outras pessoas. Eu vou começar a trabalhar no camião. vou falar com o Papá sobre as diversões. Arranja-me aquele mapa... o que os irmãos Brodsky fizeram. Vamos... vamos pôr isto a andar!
ANDERSON: Sim, vamos avançar.
ANGELO: Deus do céu, estou a ficar realmente entusiasmado! Duque, eu acho que vamos conseguir.
ANDERSON: Mr. Angelo, eu estou a pensar nesta coisa já há quatro meses e não consigo ver o que poderá correr mal.
Fita CVC-16AG068-IM-11.43-198C. Cidade de Nova Iorque. Esta é uma escuta telefónica.
ANDERSON: Está? Ingrid? INGRID: Está, sim. Duque? És tu? ANDERSON: Posso falar? INGRID: Claro que podes. ANDERSON: Recebi o teu cartão.
122
INGRID: Foi uma ideia tola. Uma ideia de miúda. Vais-te rir de mim.
ANDERSON: Que é?
INGRID: Amanhã, sábado, vais trabalhar?
ANDERSON: vou.
INGRID: Disseste que tens de estar lá às quatro horas?
ANDERSON: Por volta disso.
INGRID: Eu gostaria... o que eu gostaria .. Vais-te rir de mim, Duque.
ANDERSON: Por amor de Deus, importas-te de me dizer o que é?
INGRID: Eu gostava de fazer um piquenique.
ANDERSON: Um piquenique?
INGRID: Sim. Amanhã. No Central Park. Se o tempo estiver bom. A rádio diz que vai estar bom tempo. Eu levo galinha frita fria, salada de batata, tomate, pêssegos, uvas... coisas assim. Tu trazes uma garrafa de vinho para mim e talvez uma garrafa de brande para ti, se quiseres. Duque? Que achas?
(Pausa de cinco segundos.)
INGRID: Duque?
ANDERSON: É óptimo. Uma boa ideia. Vamos a isso. Eu trago as bebidas. A que horas te vou buscar... por volta das onze?
INGRID: Excelente. Sim, por volta das onze. Assim podemos ficar no parque e almoçar até teres que te ir embora. Conheces algum sítio bom?
ANDERSON: Conheço. Há um bocado de terra que entra no lago na 72ª Avenida. Não tem muita gente e é facilmente acessível. E realmente um local para os carros darem a volta, mas a relva desce até ao lago. É agradável.
INGRID: Óptimo. Duque, se trouxeres uma garrafa de vinho para mim, eu gostaria de qualquer coisa gelada.
ANDERSON: Está bem.
INGRID: E, por favor, não te esqueças do saca-rolhas.
ANDERSON: E, por favor, não te esqueças do sal.
INGRID (rindo): Duque vou-me divertir muito. Há muitos anos que não faço um piquenique.
ANDERSON: Sim. Até amanhã às onze.
123
Agindo de acordo com as provas obtidas no interior do apartamento e contidas na gravação anterior, a CVC solicitou a colaboração da Administração dos Parques, Recreação e Assuntos Culturais de Nova Iorque. com o auxílio deste organismo, foi escondido umBorkgunst Telemike Mk, 7V(microfone telescópico) no terreno arborizado acima do local do proposto piquenique de John Anderson e de Ingrid Macht no dia 17 de Agosto de 1968.
A gravação seguinte é a CVC-17AGO68-8146-37A. Foi bastante cortada para eliminar material estranho e provas actualmente em julgamento.
SEGMENTO J. 17AGO-11.37
ANDERSON: Isto foi uma óptima ideia. Um lindo dia. Límpido, para variar. Não demasiado quente. Olha para aquele céu. Parece que alguém o lavou e estendeu a secar.
INGRID: Eu recordo-me de um dia como este. Eu era uma menina. Oito anos, talvez 9. Um tio levou-me a um piquenique. O meu pai tinha morrido. A minha mãe estava a trabalhar. Assim, este tio ofereceu-se para me levar a passar o dia no campo. Um sábado, tal e qual como este. Sol. Céu azul. Brisa fresca. Cheiros deliciosos. Ele deu-me um pouco de schnapps e depois tirou-me as cuecas.
ANDERSON: Mas que tio!
INGRID: Ele era boa pessoa. Viúvo. Quarenta e tal anos. Talvez
50. Tinha um bigode à Kaiser Wilhelm. Lembro-me de que fazia cócegas.
ANDERSON: Gostaste?
INGRID: Não significou nada para mim. Nada.
ANDERSON: Ele deu-te alguma coisa, uma prenda, para não dizeres nada?
INGRID: Dinheiro. Ele deu-me dinheiro.
ANDERSON: Foi ideia dele ou tua?
INGRID: Foi ideia minha. Eu e a minha mãe passávamos quase sempre fome.
ANDERSON: Uma miúda esperta.
INGRID: Sim. Eu era uma miúda esperta.
ANDERSON: Quanto tempo é que isso durou?
INGRID: Alguns anos. Recebi muito dinheiro dele.
ANDERSON: Claro. A tua mãe sabia?
INGRID: Talvez. Talvez não. Eu penso que sabia.
ANDERSON: Que aconteceu?
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INGRID: Ao meu tio?
ANDERSON: Sim.
INGRID: Um cavalo deu-lhe um coice e ele morreu.
ANDERSON: Isso é engraçado.
INGRID: Sim. Mas não fez qualquer diferença. Eu tinha 10, talvez 11 anos. Já sabia como se fazia. Houve outros. Schatzie, o vinho! Vai ficar quente.
SEGMENTO II. 17AGO-12.02.
ANDERSON: E depois?
INGRID: Não vais acreditar.
ANDERSON: Acredito.
INGRID: Por exemplo, houve este homem na Bavária. Muito rico. Muito importante. Uma vez por mês, numa noite de sexta-feira, o mordomo dele reunia talvez seis, talvez dez rapariguinhas. Eu tinha apenas 13 anos. Ficávamos nuas. O mordomo fazia-nos pôr penas no cabelo e atar cintos de penas à volta da cintura, e fazia-nos usar pulseiras de penas nos pulsos e nos tornozelos. Depois este homem, este homem muito importante, sentava-se numa cadeira, todo nu, e brincava consigo próprio. Compreendes? E nós dançávamos à volta dele, num círculo. Adejávamos os braços, cacarejávamos e fazíamos sons de aves. Como galinhas. Compreendes? E este mordomo esquisito, com patilhas grisalhas, batia as palmas para marcar o ritmo e entoava: "Um, dois, um dois", e nós dançávamos à volta e cacarejávamos, e este velho olhava para nós e para as nossas penas e brincava consigo próprio.
ANDERSON: Ele alguma vez te tocou?
INGRID: Nunca. Quando acabava, levantava-se e ia-se embora. Nós tirávamos as penas e vestíamo-nos. O mordomo ficava à porta e pagava-nos o nosso dinheiro à medida que saíamos. Muito bom dinheiro. No mês seguinte, nós voltávamos. Talvez as mesmas raparigas, talvez algumas novas. A mesma coisa.
ANDERSON: Que pensas da mania dele?
INGRID: Não penso. Há muitos anos que desisti de tentar. As pessoas são o que são. Isto eu aceito. Mas não posso aceitar o que elas pretendem ser. Este homem que se acariciava a si próprio enquanto eu dançava à volta dele, vestida com penas de galinha, este homem ia à igreja todos os domingos, dava dinheiro para obras de caridade e era... ainda é... considerado um dos cidadãos mais importantes da sua cidade e do seu país. O filho dele também é muito importante agora. A princípio, tudo aquilo me enojava.
ANDERSON: As penas de galinha?
INGRID: A porcaria! A porcaria! Depois aprendi como o mundo é
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gerido. Quem detém o poder. O que o dinheiro pode fazer. Por isso declarei guerra ao mundo. A minha guerra pessoal.
ANDERSON: Ganhaste?
INGRID: Estou a ganhar, Schatzie.
SEGMENTO iII. 17AGO-12.41.
ANDERSON: Podia ter sido diferente.
INGRID: Talvez. Mas nós somos sobretudo o que nos aconteceu, o que o mundo nos fez. Nem sempre podemos escolher. Aos 15 anos, eu era uma prostituta consumada. Tinha roubado, feito chantagem, tinha apanhado tareias terríveis várias vezes, e tinha marcado um chulo. Mesmo assim, eu era uma criança. Não tinha qualquer instrução. Tentava apenas sobreviver, ter comida, um lugar para dormir. Ao mesmo tempo, queria muito pouco. Talvez seja por isso que somos tão simpáticos. Tu também eras pobre... hein?
ANDERSON: Sim. A minha família eram negros brancos.
INGRID: Compreende, Schatzie, eu não arranjo desculpas. Eu fiz o que tinha que fazer.
ANDERSON: Claro. Mas quando cresceste?
INGRID: Aprendi muito depressa. Conforme te disse, aprendi onde estava o dinheiro e onde estava o poder. Depois, não havia nada que eu não fizesse. Foi a guerra... guerra total. Ripostei. Depois ataquei primeiro. Isto é muito importante. O único crime no mundo é ser pobre. Esse é o único crime. Se não formos pobres, podemos fazer tudo.
v, SEGMENTO IV. 17AGO-12.08.
ANDERSON: Às vezes assustas-me.
INGRID: Porquê, Schatzie? Eu não te quero fazer mal.
ANDERSON: Eu sei, eu sei. Mas tu nunca te evades. Vives todos os minutos.
INGRID: Já tentei tudo... álcool, droga, sexo. Nada funciona para mim. Tenho de viver o tempo todo... e faço-o. Agora eu vivo sossegadamente. Tenho uma casa aquecida. Comida. Tenho dinheiro investido. Dinheiro seguro. Os homens pagam-me. Sabias isso?
ANDERSON: Sabia.
INGRID: Deixei de querer. E muito importante saber quando devemos deixar de querer.
ANDERSON: Nunca queres evadir-te?
INGRID: Seria bom... mas não posso, não posso.
ANDERSON: És uma mulher e pêras.
INGRID: É a minha profissão, Schatzie. Não é o meu sexo.
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SEGMENTO V. 17AGO-2.14. INGRID: Foi uma bela tarde. Estás embriagado? ANDERSON: Um pouco.
INGRID: Tens que te ir embora daqui a pouco... Tens que ir trabalhar.
ANDERSON: É verdade.
INGRID: Estás com sono?
ANDERSON: Um pouco...
INGRID: Queres que fale contigo... como tu gostas?
ANDERSON: Sim. Tu gostas?
INGRID: Claro.
SEGMENTO VI. 17AGO-3.03.
INGRID: Por favor, Schatzie, temos que ir. Vais chegar atrasado.
ANDERSON: Certo. Está bem. Eu arrumo as coisas. Acaba o vinho; eu vou acabar o brande.
INGRID: Muito bem.
ANDERSON: Gostava de te contar o que estou a fazer.
INGRID: Por favor... não.
ANDERSON: Tu és a mulher mais inteligente que eu conheço. Gostava de ter a tua opinião, de saber o que pensas.
INGRID: Não... nada. Não me contes nada. Não quero saber.
ANDERSON: É grande.
INGRID: É sempre muito grande. Não vale a pena dizer-te que tenhas cuidado, eu sei. Faz o que tens a fazer.
ANDERSON: Agora não posso desistir.
INGRID: Compreendo.
ANDERSON: Dás-me um beijo?
INGRID: Agora? Sim. Nos lábios? ?
Fita DN-DT-TH-0018-98G; 19 de Agosto de 1968, 11.46 da manhã.
HASKINS: Era isso que tu querias?
ANDERSON: Óptimo. Foi óptimo, Tommy. Mais do que eu estava à espera.
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HASKINS: Ainda bem. Um dia eu digo-te como é que arranjei aquelas plantas dos andares. Foi de gritos!
ANDERSON: Queres entrar?
HASKINS: Entrar? Em toda a operação?
ANDERSON: Sim.
(Pausa de cinco segundos.)
HASKINS: Quanto?
ANDERSON: Uma quantia certa. Duas grandes.
HASKINS: Duas? É um pouco magra, não é querido?
ANDERSON: É tudo o que eu posso pagar. Tenho de pensar em seis gajos.
HASKINS: Estás a incluir a Vivaça?
ANDERSON: Não.
HASKINS: Não sei... não sei.
ANDERSON: Decide-te.
HASKINS: Estás a pensar que poderá haver... bem, tu sabes... violência?
ANDERSON: Não. Mais de metade será por conta da casa.
HASKINS: Não queres que eu vá...?
ANDERSON: Não. Só que identifiques as coisas. Que indiques o que se deve levar e o que pode ficar. Os quadros, os tapetes, as pratas... merda dessa.
(Pausa de quatro segundos.)
HASKINS: Quando é que eu receberia?
ANDERSON: Metade antes, metade depois.
HASKINS: Eu munca fiz esse tipo de coisas antes.
ANDERSON: É canja. Nada com que te preocupares. Trabalharemos com calma. O prédio vai ser todo nosso. Duas, três horas... o que for preciso.
HASKINS: Vamos usar máscaras?
ANDERSON: Entras?
HASKINS: Sim.
ANDERSON: Está bem. Eu digo-te mais lá para o fim da semana, quando nos reunirmos todos. Vai correr tudo bem, Tommy.
HASKINS: Oh meu Deus, Deus do céu.
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21 de Agosto de 1968. Fita DNENI-49B-767 (continuação).
ANDERSON: Queres entrar?
JOHNSON: Em quem é que eu bato e quanto é o taco?
ANDERSON: Duas grandes, metade adiantado.
ANDERSON: Conta comigo.
ANDERSON: Eu entrarei em contacto contigo para te dizer onde e quando. Mantém-te limpo durante as próximas duas semanas. Consegues fazer isso?
JOHNSON: Manter-me-ei puro como a neve.
ANDERSON: Não me lixes, Skeets. Senão vou à tua procura. Percebes?
JOHNSON: Oh, não, patrão Anderson, o patrão não está a tentar assustar este pobre preto ignorante, pois não?
Transcrição DPNWDA-154-11; 22 de Agosto de 1968; 13.36. Escuta telefónica.
ANDERSON: Ed?
BRODSKY: Duque?
ANDERSON: Sim.
BRODSKY: Estava tudo bem? Era aquilo que querias?
ANDERSON: Óptimo, Ed. Era exactamente aquilo. O mapa estava estupendo.
BRODSKY: Deus do céu, é bom saber isso. Quero dizer que nós trabalhámos bastante, Duque. Foi um trabalho difícil.
ANDERSON: Eu sei, Ed. Gostei dele. O homem também gostou. Está tudo decidido. Queres entrar?
BRODSKY: Eu? Ou eu e o Billy?
ANDERSON: Os dois. Duas notas grandes. Não há partilha. Só um pagamento. Metade adiantado.
BRODSKY: Sim, meu Deus, sim! Preciso da massa, Duque. Não fazes ideia de como preciso, Duque. Os tubarões andam atrás de mim.
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ANDERSON: Entrarei em contacto contigo. BRODSKY: Muito obrigado, Duque.
O apartamento de Anderson: uma conversa no interior. Transcrição DPNIJDA-155-23; 23 de Agosto de 1968. Os participantes, John Anderson e Vincent "Socks" Parelli, foram identificados pela voz.
PARELLI: Deus do céu, um gajo podia ter um ataque de coração a subir aquelas malditas escadas. Tu vives mesmo nesta espelunca?
ANDERSON: Vivo.
PARELLI: E tens de marcar um encontro aqui? Não podia ser num bom restaurante na Times Square? Um quarto de hotel algures?
ANDERSON: Este lugar está limpo.
PARELLI: Como é que sabes? Como é que alguém sabe? Talvez um dos teus ratos tenha uma escuta. Talvez as tuas baratas tenham sido treinadas. Ei! Que tal? Percevejos treinados! Nada mau, hem?
ANDERSON: Nada mau.
PARELLI: O que eu quero dizer é porque é que me trouxeste tão longe? Que há de tão importante?
ANDERSON: Foi assim que eu quis.
" PARELLI: Está bem, está bem. Então tu és o chefe. Grande coisa. Nós concordámos. Eu recebo ordens. Está bem, chefe, que se passa?
(Pausa de seis segundos.)
ANDERSON: Temos a nossa primeira reunião amanhã à noite, às oito e meia. Aqui está a morada. Não a percas.
PARELLI: Amanhã? Oito e meia? Por amor de Deus, amanhã é sábado. Quem é que trabalha ao sábado?
ANDERSON: Reunimo-nos amanhã, tal como eu disse.
PARELLI: Eu não. Não posso. vou ter um broche às oito. Não contes comigo.
ANDERSON: Não queres entrar no trabalho?
PARELLI: Quero. Quero entrar. Mas eu...
ANDERSON: Direi a Mr. Angelo que não podes ir à reunião amanhã porque uma gaja qualquer te vai fazer um broche. Está bem?
PARELLI: És um porco, grande filho da mãe. Quando isto acabar, eu e tu vamos ter a nossa reunião. Em qualquer sítio. Qualquer dia.
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ANDERSON: com certeza. Mas amanhã vais à reunião.
PARELLI: Está bem, está bem... estarei lá.
ANDERSON: Tenho cinco gajos, mais tu e eu. Há um maricas esperto que sabe indicar o material bom. Ele percebe de quadros, jóias e pratas. Chama-se Haskins. Tenho um técnico chamado Ernest Mann. Ele vai cortar os telefones e os alarmes, abrir portas e caixas... o que for preciso. Depois há um preto chamado Johnson, cheio de músculo, mas esperto. Não é nenhum arruaceiro. Depois há dois irmãos... o Ed e o Billy Brodsky. O Ed é um homem que faz de tudo, um bom motorista. O irmão mais novo, o Billy, é deficiente mental mas é uma fortaleza. Precisamos de um tipo para levantar e carregar coisas. O Billy faz o que lhe mandam.
PARELLI: Algum deles é homem de entrar em pânico?
ANDERSON: Talvez o Tommy Haskins. Os outros são sólidos... verdadeiros profissionais.
PARELLI: vou manter o Haskins debaixo de olho.
ANDERSON: Está bem. Socks, eu não quero tiros. Não há necessidade. Metade das famílias estará fora. Só lá estarão velhas e crianças. Temos um plano que foi bem estudado. Amanhã vais saber. Vai tudo correr sobre rodas.
PARELLI: Eu vou armado. Isso é definitivo.
ANDERSON: Está bem, vai armado. Mas não uses a arma... é só o que estou a dizer.
PARELLI: Ouvi dizer que fazes trabalhos limpos.
ANDERSON: Exactamente.
PARELLI: Mesmo assim, levo a arma.
ANDERSON: Eu já te disse, isso é contigo... mas não terás necessidade de a usar. Não vai ser preciso.
PARELLI: Vamos a ver.
ANDERSON: Outra coisa... eu não quero estas pessoas agredidas. Compreendes?
PARELLI: Oh, serei muito educado, chefe.
(Pausa de cinco segundos.)
ANDERSON: Eu não gosto de ti. Mas tenho que te aguentar. Precisava de outra pessoa e eles deram-me um saco de merda como tu.
PARELLI: Filho da puta! Seu filho da puta! Tenho vontade de te matar! Devia matar-te agora mesmo.
ANDERSON: Faz isso, meu cretino. És tu que andas armado. Eu não tenho nada. Vamos, mata-me.
PARELLI: Seu filho da puta! Pedaço de merda! Juro por Deus que, quando isto acabar, te hei-de apanhar. Mas apanho-te bem! Lentamente. É isso o que vais apanhar. Qualquer coisa lenta, mesmo nos tomates. Oh, como vais apanhar! Já lhe sinto o gosto. Sinto-lhe o gosto.
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ANDERSON: Claro que lhe sentes o gosto. Tens uma grande boca... é só o que tens. Mas comparece à reunião de amanhã e a todas as outras reuniões até ao próximo sábado.
PARELLI: E, depois disso, lixo branco, sou eu e tu... só eu e tu.
ANDERSON: Exactamente, seu cretino. E agora põe-te a mexer daqui para fora. Tem cuidado a arranjar um táxi. Temos alguns rufias nesta zona... oh, aí com cerca de 10 anos... que talvez te tirem a arma.
PARELLI: Seu filho...
O pátio da casa de Patrick Angelo, na Foxberry Lane n.910 543, Teaneck, Nova Jérsia; 25 de Agosto de 1968; 20.36. Nessa data, o automóvel "pessoal" de Angelo (ele tinha três) estava sob vigilância electrónica de um organismo de investigação do Governo dos EUA, cujo nome não pode ser referido. Foi utilizado um dispositivo que não pode ser revelado. O automóvel era um Continental preto, matrícula LOA-46B-8935K. Patrick Angelo e John Anderson estavam sentados no assento de trás do automóvel estacionado.
ANGELO: Desculpa não te convidar para entrar, Duque. A minha mulher está a jogar brídge com uns vizinhos. Pensei que conversaríamos melhor cá fora.
ANDERSON: com certeza, Mr. Angelo. Aqui está bem.
ANGELO: Mas trouxe-te o conhaque de que gostas e dois copos. Já agora, ficamos confortáveis. Aqui está...
ANDERSON: Obrigado.
ANGELO: Ao êxito.
ANDERSON: À sorte.
(Pausa de quatro segundos.)
ANGELO: Que bom. Meu Deus, isto é como música na língua. Duque, ouvi dizer que discutiste com o nosso rapaz no outro dia.
ANDERSON: O Parelli? Sim, discuti com ele. Ele contou-lhe?
ANGELO: Contou ao médico .O Doutor disse-me. Que estavas a fazer, a preparar-lhe uma armadilha?
ANDERSON: Uma coisa assim.
ANGELO: Tu achaste que ele ferve em pouca água... e com poucos miolos... e depois fazes-lhe psicanálise. Agora, ele está tão zangado
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contigo que nem sequer está a usar os poucos miolos que tem. Mas assim tens supremacia sobre ele.
ANDERSON: Acho que é isso.
(Pausa de sete segundos.)
ANGELO: Ou quiseste detestá-lo para ser mais fácil dar cabo dele?
ANDERSON: Que diferença faz?
ANGELO: Nenhuma, Duque. Absolutamente nenhuma. Estou a falar por falar. Tiveste a primeira reunião ontem?
ANDERSON: Exactamente.
ANGELO: Como correram as coisas?
ANDERSON: Correram muito bem.
ANGELO: Alguns pontos fracos?
ANDERSON: O maricas, o Tommy Haskins, nunca fez um trabalho duro antes. Tem feito vigarices, vendido o cu ou passado droga. Mas o trabalho dele é fácil. Eu mantenho-o debaixo de olho. O Johnson... ele é o negro... e os dois irmãos Brodsky são óptimos. Duros. O técnico, Ernest Mann, é tão ganancioso que fará o que eu lhe disser. Se for apanhado, ele fala, com certeza. Tudo que precisam de fazer é ameaçar tirar-lhe os cigarros.
ANGELO: Mas ele não vai ser apanhado... pois não?
ANDERSON: Não. O Parelli é estúpido e mau e mata por dá cá aquela palha. Uma má combinação.
ANGELO: Tens de lidar com ele conforme a situação exigir. Eu já te disse... não lhe voltes as costas.
ANDERSON: Não tenciono fazê-lo. Dei o adiantamento aos meus rapazes.
ANGELO: Eles sabem o que todos recebem?
ANDERSON: Não. Dei-lhes sobrescritos fechados, separadamente. Disse a cada um deles que estava a receber mais que os outros e que mantivesse a boca calada.
ANGELO: Óptimo.
ANDERSON: Perguntou sobre as diversões?
ANGELO: O Papá diz para esqueceres. Mantém as coisas o mais simples possível. Ele diz que já é suficientemente complicado.
ANDERSON: Ele tem razão. Fico satisfeito com isso. Pode falar-me agora sobre o camião?
ANGELO: Agora não. Quando nos encontrarmos na quinta-feira.
ANDERSON: Está bem. Os irmãos Brodsky vão buscá-lo aonde disser. Será em Nova Iorque, não será?
ANGELO: Será, sim, em Manhattan.
ANDERSON: Óptimo. Então podemos acertar as horas definitivas. E o descarregamento?
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ANGELO: Eu também te direi isso na quinta-feira. Quantos homens farão o descarregamento?
ANDERSON: Eu estava a pensar em mim e nos irmãos Brodsky.
ANGELO: Estábem. Agora vejamos... que mais te queria perguntar... Ah, sim... precisas de uma arma?
ANDERSON: Posso arranjar uma. Não sei se será boa ou não.
ANGELO: Deixa-me arranjar-te uma boa. Directa da doca. Quando os teus rapazes forem buscar o camião, estará no porta-luvas ou colada debaixo do tablier. Carregada. Que achas?
ANDERSON: Acho muito bem.
ANGELO: Um .38 está bem?
ANDERSON: Está.
ANGELO: Eu tratarei das coisas. Vejamos agora... oh, sim, as máscaras. Tens tudo organizado? Luvas... merda dessa?
ANDERSON: Está tudo organizado, Mr. Angelo.
ANGELO: Óptimo. Bem, não consigo pensar em mais nada. Então, encontramo-nos na quinta-feira. A tua segunda reunião é na quarta-feira e a última na sexta-feira?
ANDERSON: É.
ANGELO: Como é que te sentes?
ANDERSON: Sinto-me óptimo. Estou excitado com esta coisa, mas não tenho dúvidas.
ANGELO: Duque... recorda-te de uma coisa. Isto é como a guerra. O teu plano de reconhecimento, informações e operações pode ser o melhor do mundo. Mas as coisas podem correr mal. Aparecem coisas inesperadas. Alguém grita. Um coelho transforma-se num leão. A polícia aparece inesperadamente porque um deles precisa de mijar. Por vezes, acontecem coisas malucas... coisas com que nunca se contou. Percebes?
ANDERSON: Percebo.
ANGELO: Por isso, tens que ficar calmo. Tens um bom plano, mas é bom estares pronto para improvisar, para lidar com coisas inesperadas quando elas surgem. Não fiques desnorteado quando acontecer alguma coisa com a qual não estavas a contar.
ANDERSON: Não hei-de ficar desnorteado.
ANGELO: Eu sei que não. És um verdadeiro profissional. É por isso que vamos fazer este trabalho contigo. Temos confiança em ti.
ANDERSON: Obrigado.
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Depoimento ditado sob juramento e assinado perante testemunhas, de Timothy OLeary, Halverston Drive nº 648, Roslyn, Nova Iorque. Esta é a transcrição DPNI-SIS-146-11, datada de 7 de Setembro de 1968.
"Na noite de 31 de Agosto deste ano - isto é, a noite entre o último dia de Agosto e o primeiro de Setembro, na véspera do Dia do Trabalho, foi nesse fim-de-semana - entrei de serviço na 73ª Avenida Leste nº 535, em que sou porteiro, da meia-noite às oito da manhã.
"Conforme era meu hábito, cheguei cerca de dez minutos antes da hora, parei para cumprimentar o Ed Bakely, o rapaz que eu ia substituir, e depois fui até à cave. Aí, nós temos três cacifos no corredor que vai do apartamento do supervisor até às divisões de trás da cave em que estão as caldeiras e coisas assim. Vesti a farda que, de Verão, é apenas um casaco castanho de algodão e, como eu tinha vestido calças pretas, camisa branca e um laço preto, não demorei tempo nenhum.
"Fui para cima, e o Ed desceu, para mudar de roupa. Enquanto ele estava lá em baixo, olhei para o placard em que são colocadas mensagens e coisas assim. Vi que o Dr. Rubicoff, ele é o 1B, estava no consultório, a trabalhar até mais tarde. E também haveria dois amigos de Eric Sabine, ele é do 2A, que viriam passar o fim-de-semana do Dia do Trabalho no apartamento dele. O Ed apareceu então - trazia a sua bola de bowling numa maleta - e disse que ia para o salão e que ainda conseguiria jogar umas partidas com os amigos antes de o salão fechar.
"Assim que ele saiu, estava eu na rua a apanhar um pouco de ar fresco, quando vi um camião descer lentamente a rua - sim, da Avenida End Leste, uma vez que é donde a rua vem. Para minha grande surpresa, ele virou lentamente e seguiu em direcção à nossa entrada de serviço, parou e desligou o motor e as luzes. Quando passou por mim, reparei que era um camião de mudanças-lembro-me de ver a palavra "mudanças" pintada num dos lados, e supus que, ou ele tinha o endereço errado, ou talvez um dos moradores do meu prédio estivesse a mudar-se ou à espera de que lhe fosse entregue uma mobília qualquer, o que achei estranho, tendo em conta a hora e, além disso, compreende, estaria escrito no placard se algum morador estivesse à espera de uma entrega à noite.
"Por isso, fui até onde o camião estava agora estacionado e de luzes apagadas, e disse: Que diabo estão a fazer na minha entrada? Assim que disse estas palavras, senti uma coisa na nuca. Era fria, de metal e redonda. Podia ter sido um pedaço de cano, suponho, mas
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supus que fosse uma arma. Eu estive vinte anos no Exército e conheço bem as armas.
"Ao mesmo tempo, senti o cano no pescoço - uma sensação horrível -, e o homem que tinha a arma na mão disse, num tom muito calmo: Queres morrer? Não, disse-lhe eu, não quero morrer. Eu estava calmo, compreende, mas fui honesto.
"Então vais fazer exactamente o que eu te disser, disse ele, e não vais morrer.
"com estas palavras, ele levou-me até à porta de serviço, empurrando-me com o cano da arma, se era isso que era, mas sem me magoar, compreende. Durante todo este tempo, o camião estava às escuras e silencioso e não vi mais homens nenhuns. De facto, até esta altura, eu não tinha visto ninguém. Só sentira a arma e ouvira a voz.
"Ele fez-me ficar encostado à parede, ao pé da porta de serviço, com o cano da arma ainda encostado ao meio do meu pescoço. Nem um som, disse ele. Não vai ouvir um único som, murmurei-lhe eu.
"Tudo bem, chamou ele, e ouvi as portas do camião a serem abertas. Abriram-se duas portas. Num minuto, ouvi o chocalhar de uma corrente e o som da parte traseira do camião a descair. Não vi nada, absolutamente nada. Olhei para a parede e comecei a rezar Ave-Marias. Tive a sensação de que havia outros por ali, mas não virei a cabeça, nem para a direita, nem para a esquerda. Ouvi passos a afastarem-se. Estava tudo silencioso. Ninguém falou. Um momento depois, ouvi um zumbido, e percebi que alguém no átrio estava a carregar no botão que libertava a fechadura da porta de serviço.
"Fui empurrado para a frente, para a entrada de serviço, e mandado deitar no chão, o que fiz, embora com pena de sujar o meu casaco da farda e as calças que a minha mulher Grace tinha passado nessa tarde. Mandaram-me cruzar os tornozelos e os pulsos atrás das costas. Fiz tudo isto, como me mandaram, mas desta vez mudei para Pai Nosso que estais no céu...
"Eles usaram o que suponho ser uma fita adesiva larga. Ouvia o som dela a ser desenrolada. Eles ataram-me os tornozelos e os pulsos com a fita, e depois puseram uma tira a tapar-me a boca.
"Nesta altura, o homem - eu acho que era o homem com a arma
- disse-me: Consegues respirar bem? Se consegues respirar bem, diz que sim com a cabeça.
"Por isso eu acenei com a cabeça e agradeci-lhe a sua consideração."
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A transcrição seguinte é retirada do depoimento, ditado sob juramento e assinado perante testemunhas, de Ernest Heinrich Mann. Este é o Segmento PDNI-EHM-105A.
MANN: Então... agora estamos na noite de 31 de Agosto e madrugada de 1 de Setembro. O camião apanhou-me no local marcado e eu...
PERGUNTA: Desculpe interromper. Acho que nos disse anteriormente que o camião o deveria apanhar na esquina sudeste das Avenidas Lexington e 65ª. Isso está correcto?
MANN: Sim, está correcto.
PERGUNTA: E isso foi, de facto, onde se juntou aos outros?
MANN: Foi.
PERGUNTA: Que horas eram?
MANN: Eram onze e quarenta dá noite. Foi a hora combinada. Eu fui pontual, e o camião também.
PERGUNTA: Importa-se de nos descrever o camião?
MANN: Era, eu diria, um camião de mudanças de tamanho médio. Além das portas da cabina, havia duas portas traseiras grandes presas, com correntes, a uma outra tipo comporta, bem com uma porta ao meio de cada um dos lados. Foi por uma destas portas que eu entrei no camião, e os homens que estavam lá dentro ajudaram-me a subir.
PERGUNTA: Quantos homens estavam no camião nessa altura?
MANN: Estavam todos lá... todos os que lhe descrevi como tendo estado presentes nas reuniões planeadas. O homem que conheço como Anderson e os dois homens que conheço como Ed e Billy estavam na cabina. Os outros estavam dentro da carroçaria do camião.
PERGUNTA: Que é que estava pintado no lado do camião? Reparou nalgumas palavras ou distintivos?
MANN: Vi apenas a palavra "mudanças". Havia também várias coisas escritas que pareciam ser números de matrícula e peso máximo de carga... coisas desse género.
PERGUNTA: Depois de ter entrado no camião, que aconteceu?
MANN: O camião começou a andar. Supus que nos dirigíssemos ao prédio de apartamentos.
PERGUNTA: Ficaram de pé dentro do camião, ou sentados?
MANN: Ficámos sentados, mas não no chão. Tinha sido colocado um banco de madeira tosca num dos lados do camião. Sentámo-nos nele. Além disso, havia uma luz dentro da carroçaria do camião.
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PERGUNTA: Que aconteceu então?
MANN: O homem que conheço como John Anderson abriu o painel de correr, de madeira, que fica entre a cabina e a carroçaria do camião. Ele disse-nos que enfiássemos as máscaras e calçássemos as luvas.
PERGUNTA: Estas estavam lá?
MANN: Estavam. Havia um conjunto para cada um de nós, mais dois conjuntos extra em caso de acidente... para o caso de as máscaras se rasgarem quando as estivéssemos a enfiar.
PERGUNTA: E todos vocês as colocaram?
MANN: Sim.
PERGUNTA: Os homens na cabina também?
MANN: Isso eu não sei. O Anderson fechou o painel de correr. Eu não conseguia ver o que se estava a passar lá dentro.
PERGUNTA: E depois?
MANN: Prosseguimos viagem. Depois parámos. Ouvi a porta da cabina a abrir-se e a bater. Calculei que fosse o Anderson a sair. Conforme lhe disse, o plano requeria que ele estivesse à espera do lado da rua oposto ao prédio de apartamentos quando o camião chegasse.
PERGUNTA: E depois?
MANN: O camião continuou a andar. Demos várias vezes a volta ao bloco para dar tempo a Anderson para se colocar em posição.
PERGUNTA: Que horas eram?
MANN: Era mais ou menos meia-noite e dez. Estava tudo planeado com exactidão. Era um plano admirável.
PERGUNTA: Que aconteceu depois?
MANN: O camião acelerou um pouco. Estávamos todos calados. Demos uma curva muito apertada, subimos um pouco. Eu sabia que estàvamos a chegar à entrada do prédio de apartamentos. O motor do camião foi desligado, e as luzes também.
PERGUNTA: Incluindo a luz dentro da carroçaria do camião, onde vocês estavam?
MANN: Sim. Não havia luzes absolutamente nenhumas. Além disso, nós não falámos. Isto tinha sido tornado muito claro. Não fizemos barulho nenhum.
PERGUNTA: Depois o que aconteceu?
MANN: Ouvi vozes no exterior do camião, mas num tom tão baixo que não consegui ouvir o que elas diziam. Depois, um minuto ou dois depois, o Anderson chamou: "Pronto." Nesta altura, a porta lateral do camião abriu-se e saímos todos. Também o Ed e o Billy da cabina. Fui ajudado a descer do camião pelo homem que conheço como Skeets, o negro. Ele foi muito educado e prestável.
PERGUNTA: Continue.
MANN: O que se chamava Tommy, o franzino com ar de rapaz,
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deu a volta imediatamente até à parte da frente do prédio. Eu fiquei a vê-lo. Ele parou por um momento para se certificar de que não havia ninguém na rua, ninguém a observar... ele tinha máscara e luvas, compreende... e depois esgueirou-se pela porta de frente. Num instante, ouviu-se o som do botão que liberta a porta de serviço exterior, e o homem que conheço como Socks... o homem mal-educado e bruto que já lhe descrevi antes... entrou primeiro, com a mão no bolso do casaco. Acho que ele levava uma arma. Ele dirigiu-se directamente para a cave. Esperei até o Anderson ter atado o porteiro e lhe ter tapado a boca, depois segui Socks até à cave, como tínhamos planeado. Todos os movimentos tinham sido planeados.
PERGUNTA: Qual foi o objectivo de esperar que o porteiro estivesse atado antes de seguir Socks até à cave?
MANN: Não sei exactamente porque é que tinha que esperar, mas foi o que me fora dito que fizesse... por isso fi-lo. Eu penso que foi talvez para dar tempo ao Socks para imobilizar o supervisor. Além disso, era para dar tempo ao Anderson de me seguir e verificar o meu trabalho. Em todo o caso, quando desci para a cave, o Anderson estava mesmo atrás de mim.
PERGUNTA: E depois?
MANN: Quando entrámos na cave, o Socks dirigiu-se a nós, vindo do apartamento do supervisor. Ele disse: "Que pocilga. O porco está inconsciente. O apartamento cheira tão mal, que parece uma destilaria. Ele só vai acordar na segunda-feira." O Anderson disse: "Óptimo." Depois voltou-se para mim. "Pronto, Professor", disse ele. E começámos a trabalhar.
PERGUNTA: As luzes da cave ficaram acesas o tempo todo?
MANN: A luz fraca de cima, sim. Mas era insuficiente, e foram usadas lanternas na minha área de trabalho.
PERGUNTA: Tinha levado as suas ferramentas consigo.
MANN: Exactamente. As minhas ferramentas pessoais, manuais e eléctricas. O equipamento pesado, como lhe expliquei... os maçaricos e garrafas de gás... tinha sido providenciado, e ainda estava na carroçaria do camião. Por isso... comecei a trabalhar de acordo com o plano. O Anderson e o Socks seguraram nas lanternas. Em primeiro lugar, cortei todas as comunicações telefónicas, isolando o prédio todo. Cortei então os alarmes da forma que descrevi ao vosso técnico, Mr. Browder. Isso foi para o caso de o alarme tocar quando a corrente fosse interrompida. Cortei depois a corrente do elevador. Isto foi simplesmente uma questão de desligar um interruptor. Por fim, cortei o alarme da caixa fria e abri a fechadura. Abri a porta. Nesta altura, os homens que conheço com Ed e Billy tinham-se juntado a nós. O Anderson apontou para as peles penduradas na caixa fria e disse para o Ed e para o Billy: "Comecem a carregar. Tudo. Limpem tudo.
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E não se esqueçam do apartamento do supervisor." Eu voltei então para a entrada de serviço no rés-do-chão e abri a fechadura da porta que ligava a entrada de serviço ao átrio. O negro, Skeets, e o Anderson entraram no átrio. Eu e o Tommy esperámos. Vimos o Ed e o Billy carregarem montes de casacos de pele e colocá-los no camião.
Depoimento, ditado sob juramento e assinado perante testemunhas, do Dr. Dmitri Rubicoff, suite 1B, 73.6 Avenida Leste nº 535, Cidade de Nova Iorque, DPNI-SIS-146-8, datado de 6 de Setembro de 1968.
"Tinha sido minha intenção passar todo o fim-de-semana do Dia do Trabalho com a minha mulher e filha, o marido e a filha desta, na nossa casa de Verão em East Hampton. Mas, na sexta-feira de manhã, vi que o meu volume de trabalho era tão grande que não me podia dar ao luxo de me afastar da secretária durante quatro ou cinco dias.
"Assim, enviei a minha família à frente - eles levaram a carrinha, com a minha mulher a conduzir - e disse-lhes que estaria lá no fim da noite de sábado, ou talvez no domingo de manhã. Disse-lhes que os manteria informados dos meus planos pelo telefone.
"Quanto à minha secretária, permiti-lhe que saísse cedo na sexta-feira, uma vez que ela estava a planear umas férias de cinco dias em Nassau. Trabalhei sozinho no consultório durante todo o dia de sábado, mas vi que estava demasiado cansado para conduzir o Caf-vair até lá no sábado à noite. Por isso, decidi ficar a trabalhar até tarde no sábado à noite, dormir em casa - eu moro na 79ª Avenida Leste - e viajar no domingo de manhã. Telefonei à minha mulher a informá-la dos meus planos.
"Mandei vir uma sanduíche ao meio-dia de sábado. À noite, jantei num restaurante francês próximo, o Lê Claire. Comi um filete de linguado cozido excelente, que estava, talvez, um pouco salgado. Voltei para o consultório por volta das nove da noite para terminar o mais possível do que tinha a fazer. Fechei à chave a porta que dava para o átrio e coloquei a corrente. Em seguida, liguei a aparelhagem de alta-fidelidade. Acho que era qualquer coisa de Von Weber.
"Era talvez meia-noite e meia ou um pouco mais tarde quando a porta do átrio tocou. Eu estava a arrumar a secretária e a colocar numa pasta revistas médicas que queria levar comigo para East Hampton. Fui até à porta e abri o olho mágico. O homem que lá
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estava encontrava-se um pouco para o lado; só lhe conseguia ver o ombro e metade do corpo.
"Sim?, disse eu.
"Dr. Rubicoff, disse ele, eu sou o porteiro substituto para o fim-de-semana do Dia do Trabalho. Tenho uma carta registada para si, enviada por mensageiro especial.
"Tenho de admitir que a minha reacção foi irresponsável. Mas, em minha própria defesa, devo dizer-vos uma coisa: em primeiro lugar, eu estava pronto para me ir embora, e estava prestes a abrir a porta, e pareceu-me ridículo dizer a este homem que metesse a carta por debaixo da porta. Em segundo lugar, temos, com frequência, nos feriados e nas férias, porteiros substitutos que ocupam o lugar dos nossos empregados regulares. Por isso, não fiquei preocupado por, no fim-de-semana do Dia do Trabalho, estar ali um homem cuja voz eu não reconhecia. Em terceiro lugar, o facto de ele ter uma carta registada, enviada por mensageiro especial... ou dizer que tinha... não me alarmou. Compreende, os psiquiatras estão bastante habituados a receber cartas, telegramas e chamadas telefónicas de doentes, sob formas invulgares e a horas invulgares.
"Não desconfiei de nada. Corri a corrente e abri a porta.
"Os dois homens que empurraram a porta e entraram tinham ambos a cabeça coberta com o que parecia ser meias de mulher semi-opacas. A parte inferior das meias tinha sido cortada. A parte superior estava puxada por cima da cabeça do homem e atada num nó, no topo. Possivelmente, para não escorregar ou ser puxada para baixo. Um dos homens, eu diria, media um pouco menos de um metro e oitenta. O outro tinha talvez mais dez centímetros de altura, e tive a sensação de que este homem era negro. Era extremamente difícil calcular, pois apenas uma forma vaga das suas feições transparecia através das máscaras, e ambos os homens usavam meias brancas de algodão.
"A sua secretária está cá?, perguntou-me o homem mais baixo. Esta foi a primeira coisa que ele disse.
"Eu estou bastante habituado a lidar com pessoas perturbadas, e penso que reagi bastante calmamente à situação.
"Não, disse-lhe eu. Ela foi de férias durante cinco dias. Estou sozinho.
"Óptimo, disse o homem. Doutor, nós não queremos magoá-lo. Por favor deite-se no chão, com os pulsos e os tornozelos cruzados atrás de si.
"Francamente que fiquei impressionado com o seu ar calmo de autoridade. Compreendi imediatamente que era um assalto. Pensei que talvez tivessem vindo roubar os meus medicamentos. Já tinha sido duas vezes vítima de roubo em que os ladrões queriam apenas
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os medicamentos. A propósito, eu tenho uma quantidade extremamente pequena de narcóticos no meu cofre. Fiz o que o homem disse. Os meus tornozelos e pulsos foram atados e depois uma tira de fita larga foi colocada por cima da minha boca. Doeu muito a tirá-la, mais tarde, devo acrescentar, por causa do meu bigode. O homem perguntou-me se conseguia respirar confortavelmente, e eu acenei afirmativamente com a cabeça. Fiquei bastante bem impressionado com ele - de facto, com toda a operação. Foi muito profissional."
Gravação 146-830 do DPNI-SIS; interrogatório de Thomas Haskins; Segmento IA, datado de 4 de Setembro de 1968. A fita seguinte foi bastante cortada para evitar a repetição de material já apresentado e para eliminar material actualmente em julgamento.
PERGUNTA: Mr. Haskins, o meu nome é Thomas K. Brody, e sou detective de segunda classe, do Departamento de Polícia da Cidade de Nova Iorque. É meu dever...
HASKINS: Thomas! Eu também me chamo Thomas. Não é giro?
PERGUNTA: É meu dever ter a certeza absoluta de que o senhor tem conhecimento dos seus direitos e privilégios, de acordo com as leis dos Estados Unidos da América, como pessoa acusada de um crime que constitui uma contravenção às leis do Estado de Nova Iorque. O senhor...
HASKINS: Oh, eu tenho conhecimento, Tommy, eu tenho realmente conhecimento! Eu conheço essa conversa toda sobre advogados e coisas assim. Pode passar adiante.
PERGUNTA: Nesta altura, não é obrigado a responder a quaisquer perguntas que lhe sejam feitas por funcionários encarregues do cumprimento da lei. Pode solicitar a presença de um advogado escolhido por si. Se não puder pagar a um advogado, ou se não tiver advogado, o tribunal vai nomear um advogado, que deverá ser aprovado por si. Além disso, o senhor...
HASKINS: Está bem! Eu estou disposto a falar. Quero falar! Eu conheço os meus direitos melhor que o senhor. Não podemos simplesmente começar a conversar., só tu e eu, dois Tommies?
PERGUNTA: Quaisquer depoimentos que faça nesta altura, sem a presença de um advogado, são de sua livre vontade. Tudo o que
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disser... repito, tudo... mesmo o que lhe parecer inocente... pode, no futuro, ser utilizado contra si. Compreende?
HASKINS: Claro que compreendo.
PERGUNTA: Está tudo claro?
HASKINS: Sim, Tommy querido, está tudo claro.
PERGUNTA: Além disso...
HASKINS: Oh, meu Deus!
PERGUNTA: Além disso, tenho esta declaração impressa que gostaria que assinasse na presença da mulher-polícia Alice H. Hilkins, aqui como testemunha, de que compreende perfeitamente os seus direitos e privilégios como uma pessoa acusada de acordo com a referida lei, e que todos os depoimentos que fizer são feitos com total e completa compreensão desses direitos e privilégios.
HASKINS: Escuta, Dick1 Dois, eu quero falar. Estou disposto a falar, estou ansioso por falar. Por isso vamos...
PERGUNTA: Importa-se de assinar esta declaração?
HASKINS: com todo o prazer, com todo o prazer. Dá-me essa malfadada coisa.
(Pausa de quatro segundos:)
PERGUNTA: Além disso, tenho uma outra declaração que...
HASKINS: Oh, oh, oh, Tommy e...
PERGUNTA: Esta segunda declaração impressa declara que não foi ameaçado fisicamente para assinar a primeira declaração, que a assinou de sua livre e espontânea vontade, que não lhe foram feitas quaisquer promessas quanto ao castigo pelo crime de que é acusado. Além disso, diz, afirma e jura que...
HASKINS: Tommy, como é que um gajo confessa hoje em dia?
(Pausa de sete minutos e treze segundos.)
HASKINS:... de modo que a única coisa que realmente me ficou na mente foi uma coisa que o Duque disse na nossa última reunião. Ele disse que o crime era apenas guerra em tempo de paz. Ele disse que a coisa mais importante que podíamos aprender com a guerra era que, por melhor que um plano fosse, não era humanamente possível planear tudo. Ele disse que as coisas podem correr mal, ou coisas inesperadas acontecem, e temos de ser capazes de as resolver. Ele disse... isto foi o Duque a falar, compreende... ele disse que ele os outros... foi o que ele disse, "outros"... tinham feito o nosso plano o mais infalível que puderam, mas ele sabia que aconteceriam coisas inesperadas com que não tinham contado. Talvez aparecesse um carro-patrulha da Polícia. Talvez um polícia da ronda entrasse no átrio para conversar um pouco com o porteiro. Talvez um dos moradores puxasse
1. Diminutivo de Thomas. (N. da T.)
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por uma arma. Ele disse que esperássemos o inesperado e que não nos assustássemos com isso. Ele disse que o plano era bom, mas que podiam acontecer coisas que não tinham sido planeadas...
"Então, depois de lá termos chegado, dei a volta e entrei no átrio e carreguei no botão que abria a porta da entrada de serviço. Estava exactamente onde o Duque dissera que estaria. Enquanto ali estava, olhei para umplacard que os porteiros têm. Diz-lhes que entregas devem esperar e que moradores estarão ausentes no fim-de-semana... coisas assim. Vi imediatamente que o psiquiatra estava no seu consultório a trabalhar até tarde. Além disso, havia dois visitantes no 2A. Estas eram duas das coisas inesperadas sobre as quais o Duque nos tinha avisado. Deste modo, assim que ele entrou pela porta da entrada de serviço que fora aberta, falei-lhe nelas. Ele deu-me uma pequena palmada no braço. Foi a primeira vez que ele me tocou...
"Portanto, ele e o negro tomaram conta do médico num instante, e prosseguimos com o plano. Percebe, nós sabíamos que haveria vários moradores que não tinham ido passar o fim-de-semana do Dia do Trabalho fora. A ideia era, em vez de os atar a todos nos seus apartamentos ou de ficar a vigiá-los, para o que não tínhamos gente suficiente, reunir toda a gente do prédio no apartamento 4B, onde vivia a velha viúva Mrs. Hathway com a governanta. Estas eram duas senhoras muito velhas, e o Duque não queria arriscar tapar-lhes a boca. Por isso, foi decidido levar toda a gente do prédio para o apartamento 4B, assustá-los, e o Skeets e o Socks poderiam vigiá-los a todos juntos. Afinal de contas, que poderiam eles fazer? Os telefones estavam cortados. Eles não sabiam se tínhamos pistolas, navalhas, ou outra coisa qualquer. E tínhamo-los a todos num único lugar, e um só gajo podia mante-los sossegados enquanto o resto de nós limpava o prédio todo.
"Era um plano maravilhoso...
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O excerto seguinte faz parte de uma longa carta dirigida ao autor por Ernest Heinrich Mann, datada de 28 de Março de 1969.
EX.MO SENHOR:
Desejo agradecer-lhe o seu interesse pela minha saúde física e vigor mental, conforme expressado na sua recente missiva. Tenho o prazer de o informar que, graças a Deus, me encontro de boa saúde e disposição. A comida é simples mas abundante. O exercício - ao ar livre, quero eu dizer - é suficiente, e o meu trabalho na biblioteca é muito gratificante.
Talvez lhe interesse saber que iniciei recentemente o regime ioga, no que diz respeito a exercício físico. Não me interesso pela filosofia. Mas o programa físico interessa-me, pois não requer qualquer equipamento, de modo que posso praticá-lo na minha cela, em qualquer altura. Desnecessário será dizer que isto diverte muito os meus companheiros de cela, cujo exercício principal é voltar as páginas do último livro de banda desenhada com as aventuras do Homem Cósmico.
Agradeço-lhe a sua recente oferta de livros e cigarros que chegaram em boas condições. Pergunta-me se há algum material impresso que me poderá enviar que não exista na biblioteca da prisão. Há, sim. Alguns meses a esta parte li, pela primeira vez, num exemplar do New York Times, que os cientistas tinham conseguido fazer a reprodução sintética de uma enzima em laboratório. Este é um assunto por que me interesso bastante, e ficar-lhe-ia muito grato se me conseguisse obter exemplares das comunicações científicas que descrevem esta descoberta. Muito obrigado.
Agora... pergunta-me sobre a personalidade e o carácter do homem a quem eu chamava John Anderson.
Posso dizer-lhe que era um homem muito complexo. Como pode ter calculado, lidei várias vezes com ele antes dos acontecimentos de 31 de Agosto - 1 de Setembro de 1968. Em todos os nossos contactos, considerei-o sempre um homem da maior integridade, de excepcional honestidade, confiança e firmeza. Eu nunca teria hesitado em dar boas referências sobre o seu carácter, se tal me fosse pedido.
Um homem com muito pouca instrução e muita inteligência. E estas duas coisas têm muito pouco de comum como,
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certamente, reconhece. Em todas nossas relações pessoais e de negócios ele irradiava força e persistência. Como é compreensível numa relação desse género, eu tinha, talvez, um pouco de medo dele. Não porque ele alguma vez me tivesse ameaçado fisicamente. Certamente que não! Mas eu tinha medo, como todos nós, pobres mortais, temos medo na presença de alguém que sentimos, pressentimos e sabemos ter, talvez, uma força e determinação quase sobre-humanas. Digo-lhe só que me sentia inferior a ele.
Creio que, canalizada para canais mais construtivos, a sua inteligência e esperteza nata poderiam tê-lo levado muito longe. Muito longe, de facto. Deixe-me dar-lhe um exemplo...
A seguir à nossa segunda reunião - creio que foi em 28 de Agosto - eu fui com ele até ao metropolitano depois de a reunião ter terminado. Tinha corrido tudo bem. Dei-lhe os parabéns pela pormenorizada planificação, que eu achava soberba. Disse-lhe que achava que ele devia ter pensado muito no assunto. Ele sorriu e isto foi o que ele disse - tanto quanto eu me lembro...
"Sim, eu vivo com esta coisa há alguns meses, pensando nela todos os minutos em que estou acordado e até sonho com ela. Sabes, não há nada como pensar. Quando se tem um problema que nos preocupa e mantém acordado, a melhor coisa a fazer é ir até ao fundo do problema. Primeiro, temos que descobrir por que é que constitui um problema. Uma vez feito isso, ele fica meio resolvido. Por exemplo, qual pensas que foi o problema mais difícil na feitura do plano que ouviste esta noite?"
Eu sugeri que talvez tivesse sido o modo de lidar com oporteiro quando o camião entrasse no beco.
"Não", disse ele, "há várias boas maneiras de resolvermos isso. O grande problema, como eu o vi, era o que fazer com os moradores que estivessem em casa. Isto é, como é que podíamos entrar nos apartamentos deles? Calculei que estivessem todos fechados à chave e com correntes colocadas. Além disso, seria depois da meia-noite, e eu podia imaginar que a maior parte deles... particularmente as velhotas do 4B e a família com o rapaz aleijado do 5A... estaria a dormir. Pensei nas nossas possibilidades. Podíamos arrombar as portas, claro. Mas, mesmo que os telefones estivessem cortados, eles ainda podiam gritar antes de nós entrarmos, e alertar as pessoas do prédio ao lado. Eu podia pedir-vos que abrissem as fechaduras... mas não tinha garantia de que todos estivessem a dormira essa hora. Eles talvez os ouvissem a trabalhar e gritassem. Era um problema saber exactamente o que fazer. Pensei nesta coisa durante três
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dias, pensando numa dúzia de soluções. Desisti de todas elas porque não me pareceram certas. Por isso, fui até ao fundo do problema, tal como te disse. Perguntei a mim próprio, por que é que toda esta gente tem fechaduras e correntes nas portas? A resposta era fácil... porque tinham medo de tipos como eu... vigaristas, ladrões e assaltantes. Por isso pensei, se eles fecham as portas à chave por causa do medo, que pode fazer com que as abram? Lembrei-me de ter reparado, na primeira vez que estive no prédio, que as portas nos andares acima do átrio não tinham olhos mágicos. Os consultórios dos médicos tinham, mas as portas dos andares superiores não. Quem é que precisa de olho mágico quando se tem um serviço de porteiro durante vinte e quatro horas, uma entrada de serviço fechada e toda essa merda ? Então eu pensei, se o medo os faz manter as portas fechadas à chave, então um medo maior fá-los-á abri-las. E qual é o medo maior que ser roubado? Essa foi fácil. Era o fogo. E isso, meu caro senhor, é algo que lhe posso contar sobre John Anderson e como ele era inteligente no seu trabalho, embora não tivesse, conforme lhe disse, instrução...
A seguir aos acontecimentos aqui relatados, foram feitas tentativas de obter, o mais depressa possível, depoimentos sob juramento de todas as principais pessoas envolvidas, enquanto os pormenores ainda estivessem frescos nas suas mentes. Os indivíduos interrogados incluíam as vítimas e os alegados infractores. Cedo se tornou óbvio que a chave do plano para saquear o prédio de apartamentos situado na 73ª Avenida Leste era o apartamento 4B, propriedade de Mrs. Martha Hathway, viúva, e ocupado por ela e pela sua dama de companhia-governanta Miss Jane Kaler, solteira.
Mrs. Hathway tinha91 anos na altura do crime. Miss Kaler tinha
82 anos. Ambas as senhoras se recusaram a ser entrevistadas ou a fazer declarações individualmente: cada uma delas insistiu em que a outra estivesse presente - um pedido um tanto surpreendente, tendo em conta os resultados do seu interrogatório.
Em todo o caso, as declarações das duas senhoras foram obtidas ao mesmo tempo. A seguinte é uma transcrição da gravação 146-91A do DPNI-SIS.
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MRS. HATHWAY: Muito bem. vou contar-lhe exactamente o que aconteceu. Está a anotar tudo, jovem?
PERGUNTA: A máquina está, minha senhora. Está a gravar tudo o que dizemos.
MRS. HATHWAY: Humm. Bem... foi na manhã do dia 1 de Setembro. Domingo de manhã. Eu diria que era cerca da uma da manhã.
MISS KALER: Faltavam cerca de quinze minutos para a uma.
MRS. HATHWAY: Cala a boca. Eu estou a contar.
MISS KALER: Não estás a contar as coisas bem.
PERGUNTA: Minhas senhoras...
MRS. HATHWAY: Era cerca da uma hora. Estávamos a dormir há, oh, mais ou menos duas horas.
MISS KALER: Tu podias estar a dormir. Eu estava completamente acordada.
MRS. HATHWAY: Oh estavas! Eu ouvia-te ressonar!
PERGUNTA: Minhas senhoras, por favor...
MRS. HATHWAY: De repente, acordei. Estavam a bater-me à porta. Havia um homem a gritar, "Fogo! Fogo! Há um incêndio no prédio e têm todos que evacuar os apartamentos!"
PERGUNTA: Essas foram as palavras exactas que ouviu?
MRS. HATHWAY: Qualquer coisa assim. Mas claro que tudo o que ouvi foi "Fogo! Fogo!", por isso levantei-me imediatamente e vesti o robe.
MISS KALER: Naturalmente, uma vez que estava acordada, eu já estava devidamente vestida e estava perto da porta. Onde é que é o fogo?, perguntei através da porta. "Na cave, minha senhora", disse o homem, "mas está a espalhar-se rapidamente por todo o prédio e tenho de vos pedir que saiam dos apartamentos até ele estar controlado." Por isso, eu disse-lhe, "E quem é o senhor?" E ele disse, "Sou o bombeiro Robert Burns dos Bombeiros de Nova Iorque e gostaria..."
MRS. HATHWAY: Importas-te de parar de palrar por um minuto? Este apartamento é meu, e tenho o direito de contar o que aconteceu. Não é verdade, jovem?
PERGUNTA: Bem, minha senhora, nós gostaríamos de obter ambos...
MISS KALER: "E eu gostaria que todos os ocupantes deste apartamento saíssem imediatamente", disse ele. Por isso eu disse: "É grave?" E ele disse... tudo isto através da porta fechada, compreende, "Bem, minha senhora, nós esperamos que não seja mas, para vossa segurança, sugerimos que desçam até ao átrio até termos o fogo sob controlo." Então eu disse: "Bem, se tem..."
MRS. HATHWAY: Importas-te de calar a boca, sua criatura tola? Está calada e deixa-me contar o que aconteceu a este simpático jovem. Então, vendo que estávamos ambas perfeitamente cobertas
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pelos nossos robes e que tínhamos os sapatos de quarto calçados, eu disse à rapariga que abrisse a porta...
MISS KALER: Miss Hathway, eu já lhe pedi vezes sem conta que não se referisse a mim como "a rapariga", Se se recorda, a senhora prometeu...
MRS. HATHWAY: Então ela abriu a porta...
PERGUNTA: Estava fechada nessa altura?
MRS. HATHWAY: Oh, sim, estava. Nós temos uma fechadura normal, sempre fechada com duas voltas à chave quando estamos no apartamento. Depois, temos uma corrente que permite que a porta se abra ligeiramente, mas continua segura com uma corrente forte. E também temos uma coisa chamada fechadura de polícia que me fora recomendada pelo sargento Tim Sullivan, já reformado, mas que era antigamente da Vigésima-Primeira Esquadra. Conhece-o?
PERGUNTA: Não, não conheço minha senhora.
MRS. HATHWAY: Um homem maravilhoso... um bom amigo do meu falecido marido. O sargento Sullivan foi obrigado a reformar-se cedo por causa de uma hérnia. Depois de termos tido tantos assaltos na Zona Leste, telefonei-lhe, e ele sugeriu que instalássemos esta fechadura de polícia, que é realmente um bastão de aço que se encaixa no chão e é empurrado de encontro à porta, sendo quase impossível arrombá-la.
MISS KALER: Pergunte-lhe como é que este "homem maravilhoso" arranjou a hérnia.
MRS. HATHWAY: Isso não é importante. Então o homem lá fora continuava a gritar "Fogo! Fogo!" e, naturalmente, nós estávamos bastante perturbadas, por isso abrimos as três fechaduras e abrimos a porta. E para nosso grande...
MISS KALER: E ali estava ele! Um monstro! Devia ter uns dois metros e dez de altura, com esta máscara horrível e uma arma enorme na mão. E ele disse rispidamente, "Se as senhoras..."
MRS. HATHWAY: Ele tinha, talvez, um metro e oitenta, e não tinha nenhuma arma que eu visse, embora pareça que ele tinha uma no bolso, por isso talvez tivesse uma arma. Mas, na realidade, ele foi bastante educado e disse: "Minhas senhoras, têm de sair do apartamento por um curto espaço de tempo, mas, se ficarem caladas e não oferecerem resistência, então podemos..."
MISS KALER: E atrás dele havia outros dois monstros-tarados sexuais, todos eles! E tinham máscaras e revólveres. E empurram-nos para dentro do apartamento, e eu disse, "Então não há fogo?" E o primeiro homem que entrou disse: "Não, minha senhora, não há fogo nenhum, mas temos de usar o vosso apartamento durante algum tempo. E, se não gritarem nem fizerem fitas, não será necessário amarrá-las nem tapar-vos a boca, E não vos vamos tapar a boca se
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agirem inteligentemente." E eu disse: "Agirei inteligentemente." E então o primeiro homem disse, "Vigia-as, Assassino, e se elas gritarem ou fizerem fitas, podes dar cabo delas." E o segundo homem... que, tenho a certeza, era preto... disse, "Sim, Butch, se gritarem ou fizerem fitas, dou cabo delas." E depois o preto ficou a vigiar-nos através da máscara, e os outros dois homens...
MRS. HATHWAY: Importas-te de te calar? Importas-te de calar a boca?
PERGUNTA: Minhas senhoras, minhas senhoras...
Gravação PDNI-146-98B. Ver NYCD-146-98BT para transcrição revista e corrigida.
PERGUNTA: O gravador já começou, Mrs. Bingham. O meu nome é Roger Leibnitz. Sou assistente do procurador distrital de Nova Iorque, Estado de Nova Iorque. Hoje é dia 11 de Setembro de
1968. Desejo fazer-lhe perguntas sobre os acontecimentos que ocorreram na sua residência, no período de 31 de Agosto a 1 de Setembro deste ano. Se, por qualquer motivo, não desejar fazer uma declaração, ou se quiser que um advogado escolhido por si esteja presente durante a entrevista, ou se desejar que o tribunal nomeie um advogado, por favor, diga-o agora.
MRS. BINGHAM: Não... está bem.
PERGUNTA: Muito bem. Compreende que é meu dever informá-la dos seus direitos, de acordo com a lei?
MRS. BINGHAM: Sim. Compreendo.
PERGUNTA: Por favor, identifique-se... nome completo e local de residência.
MRS. BINGHAM: O meu nome é Mrs. Gerald Bingham, e vivo no apartamento 5A da 73ª Avenida Leste nº 535, Manhattan, Nova Iorque.
PERGUNTA: Obrigado. Antes de começarmos... como está o seu marido?
MRS. BINGHAM: Bem... já estou muito mais descansada. Ao princípio, eles pensaram que ele talvez ficasse cego do olho direito. Agora dizem que vai poder ver, mas que a visão pode ter sido diminuída. Mas vai ficar bom.
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PERGUNTA: Fico muito contente em sabê-lo, minha senhora. O seu marido é um homem muito corajoso.
MRS. BINGHAM: Sim. Muito corajoso.
PERGUNTA: Está a sentir-se bem, Mrs. Bingham?
MRS. BINGHAM: Sim... estou bem.
PERGUNTA: Óptimo. Agora quero que me diga, pelas suas próprias palavras, exactamente o que aconteceu no período em causa. Tentarei evitar interrompê-la. Leve o tempo que quiser e conte-me o que aconteceu pelas suas próprias palavras...
MRS. BINGHAM: Foi no dia 31 de Agosto, A maior parte dos moradores do prédio tinham ido passar o fim-de-semana do Dia do Trabalho fora. Nós raramente vamos para fora por causa do meu filho. Ele chama-se Gerry... Gerald Júnior. Tem 15 anos. Teve um acidente aos 10 anos... foi atropelado por um camião... e perdeu o uso das pernas. Os médicos dizem que não há esperança de alguma vez voltar a andar. É um bom rapaz, muito inteligente, mas tem que ser ajudado. Ele anda de cadeira de rodas e, por vezes, de canadianas por períodos curtos. Da cintura para cima ele é muito forte, mas não consegue andar sem auxílio. Por isso, raramente vamos a qualquer lado.
PERGUNTA: Não têm mais filhos?
MRS. BINGHAM: Não. Na noite do dia 31 de Agosto, o meu filho foi para a cama por volta da meia-noite. Ele leu um pouco, e eu levei-lhe uma Coca-Cola, de que ele gosta muito, e depois apagou o candeeiro e adormeceu. Eu e o meu marido fomos para a sala. Eu estava a bordar uma coberta de ponto de cruz para um banquinho, e o meu marido estava a ler uma obra qualquer de Trollope. Ele gosta muito de Trollope. Eu penso que era cerca de uma e quinze. Não tenho a certeza. Podiam ser quinze minutos a mais ou a menos. Subitamente, ouvi baterem à porta. Uma voz de homem gritou "Fogo! Fogo!" Foi uma coisa muito cruel que fizeram.
PERGUNTA: Sim, Mrs. Bingham, foi.
MRS. BINGHAM: O meu marido disse, "Meu Deus!" e pôs-se de pé num salto. Deixou cair o livro ao chão. Correu para a porta, deu a volta à chave, tirou a corrente e abriu-a. Estavam lá dois homens com máscaras no rosto. De onde estava, eu conseguia vê-los. Eu ainda estava sentada na poltrona. Não tinha reagido tão depressa como o meu marido. Eu via os dois homens, O que estava à frente tinha a mão no bolso do casaco. Eles usavam umas máscaras estranhas que tinham um nó no topo da cabeça. A princípio eu não sabia, mas mais tarde compreendi que eram meias... meias de mulher. O meu marido olhou para eles e disse outra vez, "Meu Deus!" Depois ele... ele tentou bater no homem da frente. Ele reagiu muito depressa. Senti-me tão orgulhosa dele, ao pensar nisso mais tarde. Ele viu imediatamente
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o que era e reagiu rapidamente. Eu limitei-me a ficar ali sentada, espantada.
PERGUNTA: Um homem muito corajoso.
MRS. BINGHAM: Sim. Ele é muito corajoso. Então ele tentou bater neste homem, e este homem deu uma gargalhada e mexeu a cabeça, de modo que o meu marido não lhe bateu realmente. Então este homem tirou a arma do bolso e bateu no rosto do meu marido com ela. Simplesmente bateu-lhe com toda a força. Soubemos depois que ele tinha partido os ossos acima e abaixo do olho direito do meu marido. O meu marido caiu ao chão e eu vi sangue. O sangue simplesmente começou a jorrar. Depois, este homem começou a dar pontapés ao meu marido, atingiu-o no estômago e... na virilha. E eu deixei-me ficar ali sentada, deixei-me ficar ali sentada...
PERGUNTA: Por favor, Mrs. Bingham... por favor... quer adiar isto para outro dia?
MRS. BINGHAM: Não... não... estou bem... não...
PERGUNTA: Vamos fazer uma pequena pausa. O que eu gostaria que fizesse, se se sentir capaz disso agora, é ir comigo para outro gabinete lá em baixo. Eles têm uma exposição de muitos tipos de armas utilizadas por criminosos. Gostaria, se pudesse, que identificasse a arma com que o homem agrediu o seu marido. Importa-se de fazer isso?
MRS. BINGHAM: Era uma arma grande, muito pesada. Eu acho que era preta ou talvez...
PERGUNTA: Venha comigo, e vamos ver se consegue identificar a arma na nossa colecção. Eu levo gravador connosco.
(Pausa de quatro minutos e trinta e oito segundos.)
PERGUNTA: Esta é a PDNI Número um-quatro-seis, nove-oito-B, dois. Estamos agora na sala de armas. Agora, Mrs. Bingham, conforme pode ver, estas são vitrinas de armas que foram utilizadas em crimes. O que eu gostaria que fizesse é que examinasse estas armas... leve o tempo que for preciso, não se apresse... e que tentasse identificar a arma que pensa que o primeiro homem com máscara utilizou para agredir o seu marido.
MRS. BINGHAM: Mas elas são tantas!
PERGUNTA: Sim... são muitas. Mas leve o tempo que for preciso. Olhe para todas elas e tente identificar a arma que o homem utilizou.
(Pausa de um minuto e trinta e sete segundos.)
MRS. BINGHAM: Não a vejo.
PERGUNTA: Leve o tempo que for preciso. Não há pressa.
MRS. BINGHAM: Era preta, ou talvez azul-escura. Era quadrada.
PERGUNTA: Quadrada? Venha aqui a esta vitrina, minha senhora. Qualquer coisa assim?
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MRS. BINGHAM: Sim... estas parecem mais parecidas... Sim... sim... ali está ela! É aquela!
PERGUNTA: Qual?
MRS. BINGHAM: Está ali... a segunda a contar de cima.
PERGUNTA: Tem a certeza, minha senhora?
MRS. BINGHAM: Absoluta. Não tenho qualquer dúvida.
PERGUNTA: A testemunha identificou uma pistola americana de calibre .45, 1917, Colt automática, número de código 1917, C-A, 371-B. Obrigado, Mrs. Bingham. Vamos para cima? Posso mandar vir café ou chá?
MRS. BINGHAM: Uma chávena de chá seria agradável.
PERGUNTA: com certeza.
(Pausa de sete minutos e dezasseis segundos.)
MRS. BINGHAM: Sinto-me melhor agora.
PERGUNTA: Óptimo. Esta é a PDNI Número um-quatro-seis, nove-oito-B, três. Minha senhora, acha que podemos acabar hoje... ou prefere adiar?
MRS. BINGHAM: Vamos acabar agora.
PERGUNTA: Óptimo. Agora então... a senhora disse que o seu marido tentou agredir o homem mascarado. O homem da máscara tirou uma arma do bolso e agrediu o seu marido. O seu marido caiu ao chão. O homem mascarado então deu-lhe pontapés no estômago e na virilha. Correcto?
MRS. BINGHAM: Sim.
PERGUNTA: Depois, que aconteceu?
MRS. BINGHAM: Está tudo muito confuso. Eu penso que, por esta altura, eu me tinha levantado da cadeira e dirigido para a porta. Mas vi claramente o segundo homem mascarado afastar o primeiro homem. E o segundo homem disse, "Chega". Lembro-me disso muito claramente, porque era exactamente o que eu estava a pensar nessa altura. O segundo homem mascarado levou o outro pelo ombro para um lado para que ele não pudesse continuar a dar pontapés no meu marido. "Chega."
PERGUNTA: E depois?
MRS. BINGHAM: Infelizmente, não me recordo da sequência em que as coisas aconteceram. Sinto-me muito confusa a respeito de tudo...
PERGUNTA: Então conte pelas suas próprias palavras. Não se preocupe com a sequência.
MRS. BINGHAM: Bem, corri para junto do meu marido. Acho que me ajoelhei ao lado dele. Podia ver que o olho dele estava muito mal. Havia muito sangue, e ele estava a gemer. Um dos homens disse: "Onde está o miúdo?"
PERGUNTA: Lembra-se de qual dos homens disse isso?
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MRS. BINGHAM: Não tenho a certeza, mas penso que foi o segundo.. o que disse ao primeiro homem que parasse de dar pontapés no meu marido.
PERGUNTA: Ele disse: "Onde está o miúdo?"
MRS. BINGHAM: Disse.
PERGUNTA: Então ele sabia que tinha um filho.
MRS. BINGHAM: Sim. Pedi-lhe por favor que não fizesse mal ao Gerry. Disse-lhe que o Gerry estava a dormir no quarto e que ele era deficiente motor e que só podia andar de cadeira de rodas ou fazer pequenas distâncias com canadianas. Pedi-lhe, por favor, não faça mal ao Gerry, e ele disse que não lhe faria mal.
PERGUNTA: Está a falar ainda do segundo homem?
MRS. BINGHAM: Estou. Depois ele foi ao quarto do meu filho. O primeiro homem, o que tinha agredido o meu marido, ficou na sala. Ao fim de algum tempo, o segundo homem saiu do quarto. Estava a empurrar a cadeira de rodas vazia do meu filho e trazia as canadianas de alumínio. O primeiro homem perguntou-lhe, "Onde está o miúdo?" O outro respondeu: "Ele está a fingir que está a dormir, mas está acordado. Eu disse-lhe que, se ele gritasse, eu voltaria para lhe partir o pescoço. Uma vez que temos a cadeira de rodas e as canadianas, ele não se pode mexer. Ele é aleijado. Nós verificámos isso." E o primeiro homem disse: "Acho que devíamos levá-lo." E então o segundo homem disse: "O elevador está parado. Queres levá-lo ao colo? Como é que vamos levá-lo para baixo?" E então eles discutiram um pouco sobre se deviam levar o rapaz. Por fim, concordaram que deviam deixá-lo na cama mas que o amordaçariam e viriam vê-lo de dez em dez minutos, mais ou menos. Pedi-lhes por favor que não fizessem isso. Disse-lhes que o Gerry tem problemas de sinusite e que eu tinha medo que, se o amordaçassem, talvez ele não conseguisse respirar. O segundo homem disse que iam levar-me a mim e ao meu marido para baixo, para o apartamento de Mrs. Hathway no quarto andar, e que não podiam correr o risco de deixar o Gerry sozinho no apartamento, mesmo que ele não se pudesse mexer. Eu disse-Ihe que, se me deixassem falar com ele, eu faria o Gerry prometer ficar calado. Eles discutiram durante algum tempo sobre isto, depois o segundo homem disse que iria ao quarto comigo para ouvir o que eu ia dizer ao Gerry. Por isso fomos até ao quarto. Acendi a luz. O Gerry estava deitado de costas, debaixo das cobertas. Tinha o rosto muito pálido e os olhos abertos. Perguntei-lhe se sabia o que se estava a passar, e ele disse que sim, tinha-nos ouvido falar. Õ meu filho é muito inteligente.
PERGUNTA: Sim, minha senhora. Nós sabemos isso.
MRS. BINGHAM: Disse-lhe que lhe tinham levado a cadeira de rodas e as muletas mas, se ele prometesse não gritar nem emitir
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quaisquer sons, eles tinham concordado em não o atar. Ele disse que não faria barulho. O homem aproximou-se da cama e olhou para o Gerry: "Está lá fora um homem mau, garoto", disse ele ao Gerry. "Eu acho que ele já tirou o olho ao teu papá. Se não te portares bem, terei que deixá-lo voltar a bater no teu papá. Compreendes?" O Gerry disse que sim, que compreendia. Depois, o homem disse que alguém viria vê-Io de poucos em poucos minutos, por isso não se armasse em esperto. Foi essa a expressão que ele utilizou. "Não te armes em esperto, garoto." O Gerry disse que sim com a cabeça. Depois voltámos para a sala.
PERGUNTA: Deixou a luz do quarto acesa?
MRS. BINGHAM: Não, eu desliguei-a, mas o mascarado voltou a acendê-la e disse que a deixasse acesa. Então voltámos para a sala. O meu marido estava de pé, um pouco vacilante. Tinha trazido uma toalha da casa de banho e tinha-a de encontro ao olho. Não sei porque é que eu não tinha pensado nisso antes. Receio que eu não estivesse a comportar-me muito bem.
PERGUNTA: Estava muito bem.
MRS. BINGHAM: Bem... não sei... eu penso que não sou muito corajosa. Eu sei que estava a chorar. Comecei a chorar quando vi o meu marido no chão e o homem a dar-lhe pontapés, e não conseguia parar. Não conseguia parar... tentei parar, mas simplesmente...
PERGUNTA: Deixemos o resto para outro dia, está bem? Acho que já fizemos bastante para um dia.
MRS. BINGHAM: Sim... está bem. Bem, eles levaram-nos para o quarto andar pelas escadas de serviço, para o apartamento de Mrs. Hathway. Calculo que sabe o que aconteceu depois disso. Ajudei o meu marido a descer as escadas; ele ainda estava muito abalado. Mas no apartamento de Mrs. Hathway podíamos tomar conta dele. Eles tinham levado todos para lá, incluindo o Dr. Rubicoff, e ele ajudou-me a lavar o olho do meu marido e a pôr uma toalha limpa nele. Toda a gente foi muito... toda a gente foi muito... toda a gente... oh, meu Deus, meu Deus!
PERGUNTA: Pronto, Mrs. Bingham... pronto, pronto. Descontraia-se um pouco. Deixe-se ficar aí sentada a descontrair-se. Já acabou tudo. Acabou tudo.
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A seguinte é uma carta pessoal datada de 3 de Janeiro de 1969, escrita ao autor por Mr. Jeremy Marrin, Buena Vista Drive nº 43-58, Arlington, Virgínia.
EX.Mo SENHOR,
Em resposta à sua carta recente, solicitando as minhas recordações e reacções ao que aconteceu na Cidade de Nova Iorque no anopassado, nofim-de-semana do Dia do Trabalho, compete-me informá-lo de que tanto eu como o John Burlington fizemos declarações completas à Polícia de Nova Iorque sobre estes acontecimentos, e tenho a certeza de que as nossas declarações estão disponíveis ao público e poderá consultá-las. No entanto, por uma questão de vulgar delicadeza (chamada vulgar, sem dúvida, porque ser tão invulgar) eu escrevo-lhe esta curta carta, uma vez que diz que é importante para si.
John Burlington, um amigo meu, e eu planeámos passar o fim-de-semana do Dia do Trabalho em Nova Iorque, indo a alguns espectáculos e visitando companheiros. Escrevemos ao Eric Sabine, um amigo nosso muito querido, que vive no apartamento 2A da 73ª Avenida Leste nº 535, na esperança de passar algum tempo com ele e com o seu divertido círculo de conhecimentos. O Eric respondeu dizendo que iria passar o fim-de-semana fora da cidade. Fire Island, acho que ele disse. Mas ele colocou o seu maravilhoso apartamento completamente à nossa disposição, enviou-nos a chave e disse que deixaria indicações aos porteiros de que passaríamos lá o fim-de-semana. Naturalmente que ficámos encantados e muito agradecidos ao generoso Eric.
Partimos de carro muito cedo no sábado de manhã mas, por vários motivos, só chegámos por volta das oito e meia da noite e,porisso, estávamos muito cansados da viagem. O trânsito foi simplesmente horroroso. Por isso, comprámos os jornais de domingo e fechámo-nos em casa. O querido Eric tinha deixado o frigorífico bem recheado (nada menos do que salmão fresco em geleia) e, claro, ele tem o melhor bar de Nova Iorque - ou de qualquer outro local. Alguns dos licores são simplesmente incríveis. Por isso, eu e o John tomámos umas bebidas, ficámos de molho em água quente, na banheira, e depois fomos para a cama-oh, eu diria que era meia-noite e um quarto, meia-noite
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e meia, por volta disso. Estávamos acordados, compreende, deitados, a beber e a ler os jornais. Foi uma experiência muito gira.
Era cerca de - oh, eu diria uma e um quarto ou por volta disso, quando ouvimos bater com força aporta da frente, e voz de um homem a gritar "Fogo! Fogo! Toda a gente para fora! O prédio está a arder!"
Por isso, naturalmente que saltámos da cama. Nós tínhamos trazido pijamas, mas nenhum de nós tinha trazido roupão. Felizmente que Eric tem esta linda colecção de roupões, por isso tirámos dois (eu fiquei com um lindo de seda vermelha), vestimo-los, corremos para a sala, abrimos a porta... e ali estavam estes dois homens horríveis com máscaras na cabeça. Um era baixo e o outro bastante alto. O alto, que tenho a certeza absoluta de que era um negro, disse: - Vamos. Venham connosco que ninguém se vai magoar.
Bem, nós quase desmaiámos, como bem pode imaginar. O John gritou: - Não me magoem na cara, não me magoem na cara!-John faz teatro, sabe-é um rapaz muito bonito. Mas eles não nos magoaram, nem sequer nos tocaram. Tinham as mãos nos bolsos, e desconfio que estavam armados. Levaram-nos pela escada de serviço da parte de trás do prédio. Entrámos no apartamento 4B, onde havia várias pessoas. Calculei que toda agente do prédio, incluindo o porteiro, tivesse sido trazida para ali. Um homem estava ferido e a sangrar muito do olho. A mulher dele, pobrezinha, estava a chorar. Mas, tanto quanto eu consegui ver, mais ninguém tinha sido agredido fisicamente.
Disseram-nos que nos instalássemos confortavelmente, o que teve graça porque este era o apartamento mais antiquado e desconfortável que eu já vi na vida. John disse que teria sido um cenário perfeito para Arsénio e Renda Antiga. Disseram-nos que não gritássemos nem oferecêssemos qualquer resistência, uma vez que eles queriam apenas roubar os apartamentos e não queriam magoar ninguém. De certo modo, foram educados mas, mesmo assim, nós sentimos que, se lhes apetecesse, eles simplesmente nos cortariam a garganta.
Após algum tempo, foram-se todos embora, excepto o homem que eu tinha a certeza de que era negro. Ele ficou à porta com a mão no bolso, e penso que estava armado.
Tenho a certeza de que conhece o resto melhor do que eu posso contar. Foi uma experiência devastadora e, apesar de me ter divertido muito em Nova Iorque em muitas ocasiões,
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garanto-lhe que decorrerá muito tempo até eu voltar a visitar a Cidade das Diversões.
Espero que isto lhe seja útil na compilação do relato do que aconteceu e, se alguma vez vier para estes lados, venha visitar-me.
Cordiais saudações
(assinado) Jeremy Marrin
Depoimento PDNI-EHM-106A.
MANN: Era agora uma e vinte. Talvez uma e meia. Estava tudo a correr muito bem. Estavam todos reunidos no apartamento 4B, excepto o supervisor, que estava embriagado e a dormir no seu apartamento, na cave, e o rapaz deficiente do apartamento 5A. Assim, com o prédio sob o nosso controlo, avançámos para a segunda fase da operação em que ficávamos divididos em três equipas.
PERGUNTA: Equipas?
MANN: Sim. O homem que eu conhecia como John Anderson e eu formávamos a primeira equipa. Trabalhámos da cave para cima. Tínhamos uma lista. Chegávamos a um apartamento. Eu abriria a fechadura e... , PERGUNTA: Ia forçar as fechaduras?
MANN: Bem... ah... o meu trabalho era puramente técnico, compreende. Depois entrávamos no apartamento. O Anderson, que tinha a lista, indicava-me o que queria que eu fizesse.
PERGUNTA: Que é que isso acarretava?
MANN: Bem... compreende... talvez um cofre vertical ou um cofre de parede. Talvez um armário fechado. Depois, quando saíamos do apartamento, entrava a segunda equipa. Esta era formada pelo homem muito baixo, o Tommy... efeminado, creio eu... e os dois homens que eu conhecia como Ed e Billy. O Tommy, que aparentemente sabia o valor das coisas, tinha uma cópia da lista do Anderson. Ele indicava aos dois irmãos o que devia ser retirado e levado para o camião. Estes eram simplesmente trabalhadores, compreende.
PERGUNTA: Que é que eles levaram para o camião?
MANN: Que é que eles não levaram! Peles, o tríptico do apartamento do supervisor, um pequeno cofre com narcóticos de um dos
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consultórios médicos, jóias, quadros, pratas, pedras preciosas, objectos de arte, até mesmo tapetes e pequenas peças de mobiliário do apartamento do decorador, no 2A. Um tesouro inesperado foi descoberto na suite do outro médico no piso do átrio. Ali, este homem Anderson, depois de eu ter aberto a porta, foi directo ao armário do consultório do médico e ali, na prateleira de trás, descobriu uma caixa de sapatos, de cartão, com muito dinheiro. Eu diria pelo menos dez mil dólares. Talvez mais. O Departamento de Contribuições e Impostos ficará interessado nisso... hein?
PERGUNTA: Talvez. Não teve nenhum problema a abrir as fechaduras ou os cofres?
MANN: Nenhum. Eram de qualidade muito inferior. Depois de termos chegado ao terceiro andar, eu estava confiante de que não precisaria dos maçaricos e das garrafas de gás que estavam no camião. Muito francamente, não constituiu um desafio para mim. Simples. Tudo correu bem.
PERGUNTA: Falou em três equipas. Quem formava a terceira equipa?
MANN: Eram o Negro e o homem rude. A sua tarefa era vigiar as pessoas reunidas no Apartamento 4B, ir ver o supervisor que dormia na cave e o rapaz deficiente do apartamento 5A. Eles eram o que se chama o músculo. Não participaram na remoção dos objectos do prédio... e, claro, eu também não, compreende. A tarefa deles era simplesmente manter o prédio calmo até ele ficar vazio.
PERGUNTA: E correu tudo bem?
MANN: Lindamente. Foi lindo! Um trabalho e uma organização fantásticos. Eu admirava o homem que conhecia como John Anderson.
A seguinte é uma parte da declaração ditada a um representante do Gabinete do Procurador Distrital de Nova Iorque, por Mr. Gerald Bingham, Jr., menor, residente no apartamento da 73ª Avenida Leste nº 535, Nova Iorque, Nova Iorque. A sua declaração completa está na gravação PDNI-145-113A-113G, e, transcrita (PDNI-146-113AT-113GT), consiste em quarenta e três páginas dactilografadas.
O seguinte é um excerto que cobre o período mais crucial das actividades da testemunha. Foi apagado o material referido em depoimentos anteriores e a ser referido em depoimentos posteriores.
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TESTEMUNHA: Ouvi a porta da frente a fechar-se e olhei para o meu relógio na mesinha-de-cabeceira. Era uma hora, nove minutos e trinta e sete segundos. O meu relógio era um cronometro Omega. Nunca me foi restituído. Era uma máquina muito boa. Muito exacta. Eu penso que não se adiantava mais de três minutos por ano. Isso é muito bom para um relógio de pulso, sabe. Em qualquer caso, reparei nas horas. Claro que eu não tinha a certeza de que ambos os ladrões tivessem saído do apartamento com os meus pais. Mas o meu ouvido é muito apurado... possivelmente devido à minha debilidade física. Esta é uma linha de investigação interessante... se as pernas paralisadas afectam outros sentidos, do mesmo modo como um cego ouve e cheira com tanta sensibilidade. Bem, um dia...
"Calculei que eles fossem voltar para me ver dentro de dez minutos. De facto, ouvi a porta da sala a abrir-se cerca de sete minutos depois de eles saírem. Um homem mascarado entrou no apartamento. Não era o homem que tinha falado comigo antes. Este homem era um bocado mais baixo e mais pesado. Ele limitou-se a olhar para mim, sem dizer nada. Depois, viu o meu cronometro Omega em cima da mesinha-de-cabeceira, pegou nele, meteu-o no bolso e saiu do quarto. Isto enfureceu-me. Já estava decidido a frustrar os planos deles, mas isto deu-me um maior incentivo. Eu não gosto que as pessoas toquem nos meus objectos pessoais. Os meus pais sabem isso e respeitam o meu desejo.
"Ouvi a porta da sala a fechar e comecei a contar, utilizando o método de contar segundos utilizado pelos fotógrafos profissionais: cento e um, cento e dois... etc. Enquanto estava a contar, peguei na minha extensão telefónica. Tal como desconfiara, estava cortada, e eu calculei que tivessem cortado a linha externa principal, na cave. Isto não me alarmou.
"Supus que viessem ver-me de dez em dez minutos uma ou duas vezes. Depois, quando vissem que eu não estava a fazer qualquer esforço para fugir ou dar o alarme, as suas visitas tornar-se-iam menos frequentes. Foi isto o que aconteceu. A primeira visita deles, como eu disse, ocorreu sete minutos após terem saído do apartamento pela primeira vez. A segunda visita, feita pelo primeiro homem, foi onze minutos e trinta e sete segundos depois da primeira. A terceira visita... esta foi feita pelo homem mascarado mais alto e mais magro... foi dezasseis minutos e oito segundos depois da segunda visita.
"Calculei que a quarta seria aproximadamente vinte minutos depois da terceira e estimei que teria, pelo menos, dez minutos sem ser incomodado. Eu não queria levar os vinte minutos todos, pois não
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queria pôr em perigo os meus pais ou outros moradores do prédio que fazem o possível para serem simpáticos para comigo.
"Deve compreender que, embora a metade inferior do meu corpo esteja paralisada e sem controlo, eu sou muito desenvolvido da cintura para cima. O meu pai leva-me a um ginásio particular três vezes por semana. Nado muito bem, e posso fazer ginástica nas barras horizontais, e Paul... ele é o treinador... diz que nunca viu ninguém tão rápido como eu a subir uma corda. Os meus ombros e os meus braços são muito musculosos.
"Assim que ouvi a porta da rua a fechar, depois da terceira visita de um dos meliantes, atirei o lençol para trás e comecei a deslizar para o chão. Naturalmente que eu queria ser o mais silencioso possível. Não queria fazer qualquer barulho que alertasse os ladrões, se eles estivessem no apartamento 4A, directamente por baixo. Assim, coloquei a metade superior do corpo no chão e depois, deitado sobre os ombros e as costas, levantei as pernas com as mãos. Durante todo este tempo eu estava a contar. Queria fazer tudo dentro dos dez minutos que tinha atribuído a mim próprio e voltar para a cama antes da próxima inspecção.
"Movi-me estendendo os braços, colocando os antebraços no chão e arrastando o corpo para a frente com os bícepes e os músculos dos ombros. Eu peso quase 83 quilos, e o andamento foi lento. Lembro-me de tentar calcular os coeficientes físicos envolvidos... ângulos, músculos envolvidos, força necessária, fricção do tapete... coisas assim. Mas isso não é importante. Em menos de três minutos, tinha chegado à porta do meu armário... o armário de parede no lado norte do meu quarto, não o guarda-vestidos no lado sul.
"Depois de eu começar a interessar-me por electrónica, o meu pai limpou o armário de ganchos, cabides e varões. Ele mandou um carpinteiro colocar prateleiras e uma secretária com a altura certa para mim quando eu estava sentado na cadeira de rodas. Foi neste armário que eu instalei o meu equipamento electrónico. Este incluía, não só o meu emissor-receptor de ondas curtas, mas também equipamento de alta fidelidade ligado a altifalantes no meu quarto, no quarto dos meus pais e na sala. Eu tinha dois gira-discos para que os meus pais pudessem ouvir um LP enquanto eu ouvia outro, ou podíamos até ouvir fitas diferentes, se quiséssemos. Isto era uma solução sensata, uma vez que eles gostam de música de espectáculos da Broadway... gravações do elenco original... enquanto eu gosto de Beethoven, Bach e também de Gilbert and Sullivan.
"O senhor talvez esteja interessado em saber que eu próprio tinha montado toda a aparelhagem, comkits de "faça-você-mesmo". Se eu lhe dissesse quantas junções eu tinha soldado, o senhor não acreditaria. Mas isto não só constituiu uma poupança considerável... em relação
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ao que uma aparelhagem completa custaria... mas também, à medida que eu ia trabalhando, pude fazer determinadas melhorias... pequenas, claro. Deste modo, obtivemos uma excelente reprodução estéreo de fitas, LPs e rádio FM. Estou actualmente a montar um leitor de cassettes na mesa de trabalho à esquerda dos controlos. Bem, basta desta conversa...
"Abri a porta do armário estendendo os braços. A mesa de trabalho e os controlos do meu emissor de ondas curtas pareciam, porém, demasiado altos. Mas, felizmente, o carpinteiro que tinha colocado a mesa tinha-a feito bastante forte, e eu consegui levantar-me com os dedos, os pulsos, os braços e os ombros. Foi um tanto doloroso, mas não insuportável. Devo referir que a minha antena estava em cima do telhado do prédio ao lado. É um prédio de apartamentos com dezoito andares e é muito mais alto que o nosso prédio de cinco andares. O meu pai pagou a instalação de uma antena e também paga dez dólares por mês. O fio desce pelo lado do prédio alto e entra pela janela do meu quarto. Não é uma situação perfeita, mas obviamente que é melhor que ter uma antena na nossa varanda, bloqueada pelos prédios em redor.
"Apoiando-me nos braços, liguei o meu equipamento e esperei pacientemente que aquecesse. Ainda estava a contar, claro, e calculei que tivessem passado cinco minutos desde que saíra da cama. Cerca de trinta segundos depois, comecei a transmitir. Fiz o meu sinal de chamada, claro, e disse que estava a ser feito um assalto na 73ª Avenida Leste n.2 535, Nova Iorque, Nova Iorque, e, por favor, que comunicassem ao Departamento da Polícia de Nova Iorque. Não tive tempo de ligar o meu receptor para esperar que fosse acusada a recepção. Simplesmente transmiti constantemente durante dois minutos, repetindo a mesma coisa, esperando que estivesse alguém no meu comprimento de onda.
"Quando calculei que tivessem passado sete minutos desde que saíra da cama, desliguei o equipamento, deixei-me cair ao chão, fechei a porta do armário, arrastei-me de novo até à cama, icei-me para cima e meti-me debaixo do lençol. Estava um tanto cansado.
"Ainda bem que não tinha levado os vinte minutos que calculara que teria antes da quarta visita, porque um dos ladrões entrou no meu quarto dezasseis minutos e treze segundos depois da terceira visita. Era o mesmo homem alto e magro que tinha feito a inspecção anterior.
"Estás a portar-te bem?, perguntou ele com modos simpáticos. Pela maneira como o disse, supus que fosse de cor. Sim, disse eu. De qualquer modo, não me posso mexer. Ele acenou com a cabeça e disse: Todos nós temos problemas. Depois foi-se embora e não voltei a vê-lo.
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"Fiquei deitado a pensar no que acabara de fazer... Tentei analisar o problema para ver se podia fazer mais alguma coisa, mas não consegui pensar em nada... sem pôr em perigo os meus pais e os outros moradores. Fiz votos para que alguém me tivesse ouvido e senti que, com sorte, alguém ouvira. A sorte é muito importante, sabe. Em muitas coisas, eu sei que tenho muita sorte.
"Além disso, para ser franco, eu achei aqueles ladrões muito estúpidos. Eles tinham obviamente investigado o nosso prédio de apartamentos muito bem, mas não tinham reparado na única coisa que talvez pudesse frustrar todos os seus esforços.
"Eu podia planear um crime muito melhor que eles.
Gravação DPNI-SIS 146-830.
HASKINS: Oh, meu Deus, Tommy, foi lindo. Lindo! São agora cerca de duas horas, talvez um pouco mais tarde. A primeira equipa está a trabalhar no terceiro andar. A segunda equipa, comigo a chefiar, está a acabar o 2A e o 2B. E nem acreditas no que tirámos desses apartamentos! Do apartamento do maricas tirámos os quadros, pequenos tapetes, algumas peças de mobília antiga, a colecção de pedras preciosas, dois Picassos originais e um Klee. Do 2B, do cofre de parede que o técnico tinha aberto, tirámos uma tiara magnífica, um colar de pérolas e também uma gargantilha de rubis que meti no bolso, calculando que a Vivaça adoraria. Afinal de contas, ela também trabalhara nesta coisa... mesmo que as ordens fossem que ia tudo para o camião. Eu sabia que já tínhamos atingido a nossa estimativa quando chegámos ao terceiro andar. Aquele joalheiro reformado do 3A tinha sacos e sacos de diamantes soltos... a maior parte deles industriais, mas alguns eram umas pedras muito bonitas. A sua pequena arma contra a inflacção. O técnico levou menos de três minutos a abrir o cofre... e sem o maçarico. Tenho a certeza de que tínhamos atingido pelo menos um quarto de milhão. Talvez mais. Do terceiro, íamos subir ao quinto, limpá-lo, e depois voltar para o quarto, no qual estavam retidos todos os moradores. Mas eu já sabia que ia ser óptimo... muito melhor do que tínhamos calculado. Eu sabia que o apartamento das velhotas, o 4B, seria uma caça ao tesouro. Eu estava a pensar que talvez chegássemos a meio milhão. Meu Deus, que sorte! Estava tudo a correr às mil maravilhas.
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Os seguintes são os parágrafos introdutórios de um artigo que apareceu no The New YorkTimes, naterça-feira, 2 de Julho de 1968. Ahistória foi publicada na primeira página da segunda secção do jornal desse dia e estava assinada por David Burham e os seus direitos de autor pertencem ao The New York Times.
O artigo era intitulado "Centro de Emergência da Polícia Inaugurado pelo presidente da Câmara."
O presidente da Câmara Lindsay inaugurou ontem um centro de comunicações da polícia que custou 1,3 milhões de dólares e que reduz para metade o tempo médio que a polícia leva a enviar ajuda de emergência ao cidadão.
- O novo e milagroso sistema electrónico de comunicações que inauguramos esta manhã irá afectar a vida de todos os nova-iorquinos em todas as zonas da nossa cidade, vinte e quatro horas por dia-disse Mr. Lindsay durante uma cerimónia realizada no amplo centro de comunicações sem janelas, com ar condicionado, situado no quarto andar do importante velho edifício da Sede da Polícia na Avenida Centre nº 240.
- Este é, talvez, o mais importante acontecimento da minha administração como presidente da Câmara - disse Mr. Lindsay. - Nunca mais um cidadão em perigo correrá o
risco de sofrer danos físicos ou materiais devido a um sistema de comunicações arcaico.
O presidente da Câmara inaugurou este novo sistema cerca de quatro semanas depois de ele ter começado a funcionar.
-Durante esse período, o tempo de resposta da polícia a chamadas de emergência foi reduzido, de cerca de dois minutos, para 55 segundos, através de um número de complexas alterações inter-relacionadas, efectuadas na central de comunicações da Polícia.
Em primeiro lugar, o tempo que o cidadão leva a discar para a polícia foi encurtado com a alteração do antigo número de emergência de sete dígitos - 440-1234 -para um novo número de três dígitos - 911.
Em segundo lugar, o tempo que a polícia leva a responder a uma chamada de emergência foi reduzido com o aumento, de
38p ara 48, do número máximo de agentes a receber chamadas
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durante os períodos críticos, e, ao estarem todos na mesma sala, estão todos disponíveis para lidar com qualquer emergência que possa ocorrer numa zona. com o antigo sistema, quando um indivíduo ligava 440 j 1234, a sua chamada ia ter a um centro de comunicações separado, situado na zona de que ele estava a telefonar.
A secção seguinte - e as secções semelhantes que se lhe seguem
- são excertos da fita de vinte e quatro horas mantida durante o período da meia-noite do dia 31 de Agosto de 1968, à meia-noite de 1 de Setembro de 1968, no Centro de Comunicações da Polícia de Nova Iorque, na Avenida Centre, Manhattan.
Fita CCDONI-31AGI-1SET. Hora: 2.14.03 da manhã.
AGENTE DA POLÍCIA: Departamento da Polícia de Nova Iorque.
TELEFONISTA: É do Departamento da Polícia de Nova Iorque?
AGENTE DA POLÍCIA: É, sim, minha senhora. Em que lhe posso ser útil?
TELEFONISTA: Daqui é a telefonista número quatro-um-cinco-seis da Companhia dos Telefones de Nova Iorque. Importa-se de aguardar um momento, por favor?
AGENTE DA POLÍCIA: com certeza.
(Pausa de catorze segundos.)
TELEFONISTA DE NOVA IORQUE: Eu tenho o Departamento da Polícia de Nova Iorque em linha, Maine. Fale, por favor.
TELEFONISTA DE MAINE: Obrigada, Nova Iorque. Está? É do Departamento da Polícia de Nova Iorque?
AGENTE DA POLÍCIA: É, sim, minha senhora. Em que posso ser-lhe útil?
TELEFONISTA DE MAINE: Daqui fala a telefonista de Gresham, Maine. Tenho uma chamada do xerife Jonathon Preebles de County Corners, Maine, para qualquer pessoa do Departamento da Polícia de Nova Iorque, a ser paga pelo destinatário. Aceita a chamada?
AGENTE DA POLÍCIA: Como? Não percebi.
TELEFONISTA DE MAINE: Tenho uma chamada do xerife Jonathon Preebles de County Corners, Maine, para qualquer pessoa do
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Departamento da Polícia de Nova Iorque. É uma chamada a ser paga pelo destinatário. Aceita a chamada?
AGENTE DA POLÍCIA: Sobre que é?
TELEFONISTA DE MAINE: Aceita a chamada?
AGENTE DA POLÍCIA: Importa-se de aguardar um minuto?
TELEFONISTA DE MAINE: com certeza.
(Pausa de dezasseis segundos.)
ONUSKA: Sargento ONuska.
AGENTE DA POLÍCIA: Meu sargento, aqui é Jameson. Tenho uma chamada de um xerife de Maine, a ser paga no destinatário. Querem saber se aceitamos a chamada.
ONUSKA: Uma chamada a ser paga pelo destinatário?
AGENTE DA POLÍCIA: Exactamente.
ONUSKA: Sobre quê?
AGENTE DA POLICIA: Eles não dizem, a não ser que aceitemos a chamada.
O'Nuska: Deus do céu. Aguarda um momento... eu vou já aí.
AGENTE DA POLÍCIA: Está bem, meu sargento.
(Pausa de quarenta e sete segundos.)
O'Nuska: Está? Está lá? Aqui fala o sargento Adrian ONuska do Departamento da Polícia de Nova Iorque. Quem fala?
TELEFONISTA DE MAINE: Daqui fala a telefonista de Gresham, Maine. Tenho uma chamada do xerife Jonathon Preebles de County Corners, Maine, para qualquer pessoa do Departamento da Polícia de Nova Iorque. É uma chamada a ser paga pelo destinatário. Aceita a chamada?
O'Nuska: Sobre que é?
TELEFONISTA DE MAINE: Aceita a chamada?
ONUSKA: Aguarde um minuto... Jameson, quanto é que pode custar uma chamada de Maine?
JAMESON: Talvez uns dois dólares. Depende de quanto tempo falar. Eu telefono aos meus pais em Lakeland, Florida, todos os meses. Custa-me dois... três dólares, dependendo de quanto tempo falamos.
ONUSKA: Eu nunca hei-de receber o dinheiro. Vai-me sair do bolso. Podes escrever, vai-me sair do bolso... Está bem, menina, ponha o xerife em linha.
TELEFONISTA: Pode falar, por favor. Está em linha o sargento Adrian ONuska do Departamento da Polícia de Nova Iorque.
XERIFE: Olá! Está aí, sargento?
O'Nuska: Estou.
XERIFE: Bem... é óptimo falar consigo. Como está o tempo por aí?
ONUSKA: Xerife, eu...
XERIFE: Aqui, choveu a noite passada. Quatro dias sólidos como
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uma vaca a mijar numa rocha plana. Mas ontem melhorou. Esta noite o céu está límpido. Estrelado.
ONUSKA: Xerife, eu...
XERIFE: Mas eu não estou a telefonar-lhe sobre isso.
ONUSKA: Folgo em sabê-lo, xerife.
XERIFE: Sargento, nós temos um rapaz ao fundo da rua. Muito esperto. Willie Dunston. Ele é o filho... o segundo filho... do velho Sam Dunston. Sam é um agricultor daqui há duzentos anos. A família dele é, pelo menos. Bem, o Willie é o miúdo mais esperto que eu me lembro de ver por estas partes. Temos muito orgulho do Willie. Ganha todos os prémios. Publicou um artigo numa revista científica. Os miúdos hoje em dia... são incríveis!
ONUSKA: Xerife, eu...
XERIFE: O Willie está no último ano do liceu de Gresham. Ele interessa-se por tudo o que é científico. Tem um telescópio, e eu vi com os meus próprios olhos a pequena estação meteorológica que ele construiu com as suas próprias mãos. Se quiser saber o tempo que vai estar amanhã aí em Nova Iorque, é só perguntar ao Willie.
ONUSKA: vou fazer isso. Dp certeza que vou fazer isso. Mas, Xerife, eu...
XERIFE: E o Willie tem uma aparelhagem de rádio-amador que construiu a um canto do celeiro que o velho Sam o deixou ocupar. Conhece esses rádios de ondas curtas, Sargento?
ONUSKA: Sim, conheço. Conheço.
XERIFE: Bem, há cerca de talvez quinze-vinte minutos, recebi uma chamada telefónica do Willie. Ele disse que, uma vez que era sábado à noite e podia dormir até tarde no domingo de manhã, ele estava no seu canto do celeiro a ouvir e a conversar. O sargento sabe o que estes tipos dos rádios de ondas curtas fazem.
ONUSKA: Sim. Continue.
XERIFE: O Willie disse que apanhou uma chamada da Cidade de Nova Iorque. Ele disse que sintonizou com muito cuidado; ele calcula que passassem dois minutos das duas horas. Compreendeu, Sargento?
ONUSKA: Compreendi.
XERIFE: Ele disse que era um miúdo muito esperto da Cidade de Nova Iorque com quem já falou antes. Este miúdo disse que se estava a dar um assalto ali mesmo no prédio de apartamentos em que ele vivia. O endereço é 73ª Avenida Leste cinco-três-cinco. Tomou nota, Sargento?
ONUSKA: Tomei. É 73ª Avenida Leste cinco-três-cinco.
XERIFE: Exactamente. Bem, o Willie disse que o miúdo não estava a receber e não fez quaisquer perguntas. Tudo o que ele disse era que estava a dar-se um assalto na sua casa e se alguém o ouvisse
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deveria telefonar para a Polícia de Nova Iorque, a informá-los. Por isso, o Willie telefonou-me. Tirou-me da cama. Estou aqui em pelota. Eu penso que talvez não seja nada. Você sabe como os miúdos gostam de brincar. Mas achei que era melhor telefonar-lhe a informá-lo.
O'Nuska: Muito obrigado, Xerife. Fez exactamente o que devia fazer, e nós estamos gratos.
XERIFE: Informe-me do resultado, está bem?
ONUSKA: Certamente que o farei. Obrigado, Xerife. Adeus.
XERIFE: Adeus. Cuide-se.
(Pausa de seis segundos.)
JAMESON: Meu Deus do céu.
ONUSKA: Estás à escuta?
JAMESON: Estava, pois. É um disparate... um xerife de Maine a telefonar-nos a dizer-nos que está a ocorrer um crime cá.
ONUSKA: Eu penso que é tudo uma trampa mas, com tudo isto gravado, não podemos correr riscos. Manda lá um carro. É o sector George, não é? Diz-lhe que passem pela 73ª Avenida Leste nª 535. Diz-lhes que não parem... apenas passem por lá, dêem uma vista de olhos e telefonem.
JAMESON: É para já. Aquele xerife nunca mais ia direito ao assunto... pois não, Sargento?
ONUSKA: Não? Suponho que tens razão. Só lá para o fim é que eu comecei a compreender o que ele queria.
2.23.41 da manhã
EXPEDIDOR: Carro George Três, Carro George Três.
GEORGE TRÊS: Aqui carro George Três.
EXPEDIDOR: Seguir 73ª Leste cinco-três-cinco. Sinal nove-cinco. Seguir 73ªLeste cinco-três-cinco. Sinal nove-cinco. Extrema precaução. Comunicar.
GEORGE TRÊS: Certo.
2.24.13
AGENTE DA POLÍCIA: Departamento da Polícia de Nova Iorque. Em que posso ser-lhe útil?
VOZ: Daqui fala de Wichita, Kansas, Centro de Comunicações de Crimes do Departamento da Polícia. Recebemos uma chamada telefónica de um rádio amador dizendo que tinha recebido uma chamada de Nova Iorque a dizer que havia um assalto...
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2.25.01
AGENTE DA POLÍCIA: Departamento da Polícia de Nova Iorque. Em que posso ser-lhe útil?
VOZ: O meu nome é Everett Wilkins, Júnior. Eu vivo em Tulsa, Oklahoma, e estou a falar de lá. Sou rádio-amador e recebi, há pouco, uma...
2.27.23
AGENTE DA POLÍCIA: Departamento da Polícia de Nova Iorque. Em que posso ser-lhe útil?
VOZ: Ólá, boa noite! Daqui fala o chefe da polícia do Orange Center, Florida. Temos cá este velhote que é maluco por electrónica e por rádios de ondas curtas, e ele disse...
2.28.12
SARGENTO ONUSKA: Deus do céu!
2.34.12
GEORGE TRÊS: Daqui é o carro George Três.
EXPEDIDOR Continue, Três.
GEORGE TRÊS: Sobre o seu sinal nove-cinco. Prédio de apartamentos de cinco andares. O átrio está iluminado mas não conseguimos ver ninguém lá. Há um camião junto da entrada de serviço. Vimos dois homens a carregar o que parece ser um tapete, para o camião. Os homens parecem ter uma espécie de máscara.
EXPEDIDOR: Aguardem. Fora de vista, na esquina ou noutro lugar qualquer.
GEORGE TRÊS: Está bem.
2.35.00
JAMESON: Meu Sargento, o carro diz que é um apartamento de cinco andares. Ninguém no átrio. Camião parado na entrada de serviço. Dois homens, possivelmente mascarados, a carregar o que parece ser um tapete para um camião.
ONUSKA: Sim. Quem está de serviço... Liebman?
JAMESON: Não, meu Sargento, o filho dele teve o seu Bar-Mitzvah1 hoje... ou, melhor, ontem. Ele trocou com o tenente Fineally.
1. Bar-Mitzvah - cerimónia religiosa judaica que simboliza o fim da infância dos jovens. (N. da T.)
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ONUSKA: É melhor chamares o Fineally cá. JAMESON: Eu acho que ele foi ao Readys. ONUSKA: Bem, manda chamá-lo, que diabo! E telefona à companhia dos Telefones. Pede o número do átrio daquela morada.
2.46.15
AGENTE DA POLÍCIA: Departamento da Polícia de Nova Iorque. Em que posso ser-lhe útil?
VOZ: O meu nome é Ronald Trigere, e eu moro na Avenida St. Louis Leste nº 131, Baltimore, Marilândia. Sou rádio-amador e ouvi...
2.48.08
AGENTE DA POLÍCIA: Departamento da Polícia de Nova Iorque. Em que posso ser-lhe útil?
VOZ: Daqui fala o tenente Donald Brannon, de Chicago. Apanhámos uma chamada de Nova Iorque que dizia....
2.49.32
JAMESON: Meu Sargento, a companhia dos telefones diz que o número do átrio daquele prédio de apartamentos é o 555 9078. ONUSKA: Liga para lá. JAMESON: Sim, meu Sargento.
2.49.53 TENENTE FINEALLY: Que raio se passa aqui?
PDNI-SIS146-83C.
HASKINS: São agora um quarto para as três. Talvez um pouco antes. Estávamos todos no 5B. A segunda equipa tinha alcançado a primeira. O técnico estava a ter problemas com um cofre de parede. Este era o apartamento de Longene, o produtor de teatro. Já tínhamos esta colecção de pedras preciosas, e os irmãos tinham levado
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um belo Curdistão para o camião. Calculámos que no cofre estivessem o dinheiro de Longene e as jóias da mulher... se é que ela era mulher dele, o que eu duvido. Depois o Ed Brodsky entrou a correr, ofegante. Tinha subido as escadas a correr. Ele disse ao Duque que tinha passado um carro da polícia quando estavam a meter o tapete no camião. O Duque praguejou horrivelmente e disse que, àquela hora, o carro da ronda daquela rua devia estar na capoeira.
PERGUNTA: Foi essa a expressão que ele usou... "na capoeira"?
HASKINS: Sim, Tommy, foi. Definitivamente. O Duque perguntou então a Brodsky se ele pensava que a bófia os tinha visto. O Brodsky disse que não tinha a certeza, mas que achava que sim. Na altura em que o carro passou, o Ed e o irmão estavam a passar com o tapete pela entrada de serviço. O interior da escada de serviço estava iluminado. Nós tínhamos que manter as luzes acesas para os irmãos não partirem o pescoço a descer as escadas com as coisas. O Brodsky disse que pensou ver uma mancha branca quando o rosto do motorista se voltou para ele. O Ed e o irmão ainda tinham as máscaras, claro.
PERGUNTA: Que disse o Anderson a isso?
HASKINS: Ele ficou ali um pouco, a pensar. Depois chamou-me a um canto e disse que decidira encurtar tudo. Só atentarmos nas coisas de que tínhamos a certeza. Então eu e ele verificámos a lista juntos. Decidimos continuar com o cofre de parede do 5B em que o técnico estava a trabalhar. Saltaríamos o 5A. Este era onde o rapaz aleijado estava no quarto, mas não havia realmente nada por que valesse a pena arriscarmo-nos. Depois iríamos ao 4A buscar a colecção de moedas de Sheldon e abrir também o seu cofre de parede. Era tudo o que faríamos lá. Depois mudaríamos todos os moradores do 4B para o 4A, e levaríamos o mais possível do apartamento 4B de Mrs. Hathway, uma vez que eu calculava que lá houvesse um verdadeiro tesouro. Concordámos com isto, e o Duque disse a todos que se mexessem mais depressa... estávamos quase a ir-nos embora. Por volta desta altura, ele também mandou o negro ir para o átrio e ficar lá, escondido, devendo relatar qualquer actividade da polícia na rua, lá fora. O maníaco de Detroit ficaria no 4A, de guarda às pessoas. Nessa altura, o técnico abriu o cofre de Longene e tirámos uma bonita caixa com diamantes, alguns títulos e pelo menos vinte mil em dinheiro. Achei que este era um bom sinal, embora não gostasse da ideia de um carro da polícia a passear lá fora.
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Continuação dos excertos da fita de vinte e quatro horas, CCDPNI-31AGO-1SET.
2.53.21
JAMESON: Meu tenente, o telefone do átrio da 73ª Avenida Leste nº 535 não atende. Nem sequer está a tocar.
TENENTE FINEALLY: Ligue outra vez para a Companhia dos Telefones. Pergunte-lhes se sabem o que se passa. Sargento,
ONUSKA: Meu Tenente?
FINEALLY: O capitão certamente que escolheu um bom fim-de-semana para ir a Atlantic City.
ONUSKA: É verdade, meu Tenente.
FINEALLY: Quem é o inspector de serviço?
ONUSKA: Abrahamson, meu Tenente.
FINEALLY: Acorde-o. Conte-lhe o que se está a passar. Telefonar-lhe-emos assim que soubermos mais pormenores.
ONUSKA: Sim, meu Tenente
FINEALLY: Você... como é que se chama?
AGENTE DA POLÍCIA: Bailey, meu Tenente.
FINEALLY; Bailey, vá buscar o mapa do quarteirão da 252ª Esquadra. Descubra qual é o endereço do prédio por detrás do nº 535 da 73ª Avenida Leste. Esse é o lado norte da 73.ã, por isso o prédio que lhe fica atrás será no lado sul da 74ª Provavelmente 534 ou 536. Arranje uma descrição dele.
BAILEY: Sim, meu Tenente.
2.52.49
FINEALLY: Chamou-me?
JAMESON: A Companhia dos Telefones diz que o telefone do átrio não funciona. Eles não sabem porquê. E também não obtêm resposta dos outros telefones desse endereço.
FINEALLY: Quem é que lhes disse que tentassem os outros números desse endereço?
JAMESON: Fui eu, meu tenente.
FINEALLY: Como é que você se chama?
JAMESON: Marvin Jameson, meu Tenente.
FINEALLY: Faculdade?
JAMESON: Dois anos, meu tenente.
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FINEALLY: Está a trabalhar muito bem, Jameson. Não me vou esquecer.
JAMESON: Obrigado, meu Tenente.
2.59.03
BAILEY: Meu Tenente, a casa por detrás da 73ª Avenida Leste nº 535 é o nº 536 da 74ª Avenida Leste. É um prédio de apartamentos de dez andares com um pequeno espaço aberto pavimentado nas traseiras.
FINEALLY: Está bem. Quem é que falou com o carro que viu os homens mascarados... ou pensou que viu homens mascarados?
JAMESON: Eu falei com o expedidor, meu Tenente.
FINEALLY: Você outra vez? Que número era?
JAMESON: George Três, meu tenente.
FINEALLY: Onde estão eles agora?
JAMESON: vou tentar saber, meu Tenente.
FINEALLY: Depressa. Sargento.
O'NUSKA: Meu Tenente?
FINEALLY: Acha que devemos dizer ao inspector que venha cá?
ONUSKA: Acho, sim.
FINEALLY: Eu também. Telefone-lhe e chame o motorista dele.
3.01.26
JAMESON: Tenente.
FINEALLY: Sim?
JAMESON: O carro George Três está parado na 72ª Avenida Leste.
FINEALLY: Diga-lhes que sigam para a 74ª Avenida Leste nº 536. Nada de sirenes. Subam ao telhado ou a qualquer andar de onde possam ver o nº 535 da 73ª Avenida Leste. Diga-lhes que nos informem de qualquer actividade por lá. Compreendeu?
JAMESON: Sim, meu Tenente.
ONUSKA: Meu Tenente, o inspector vem a caminho. Mas ele tem de vir de Queens. Demorará pelo menos meia hora.
FINEALLY: Está bem. Pode ainda ser que não seja nada. É melhor telefonar à 251ª esquadra e falar com o sargento de serviço. Conte-lhe o que se está a passar. Pergunte onde estão os seus homens da ronda mais próximos. É melhor mandar mais três carros. Eles que fiquem parados na 72ª Avenida Leste. Nada de sirenes nem luzes. Diga ao sargento de serviço da 251ª que traremos dois carros do Sector Harry para ajudar. Nós tomamos conta do assunto.
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E mantê-lo-emos informado. Agora vejamos... esquecemo-nos de alguma coisa?
ONUSKA: O Corpo Táctico de Patrulha, meu Tenente?
FINEALLY: Obrigado. Mas que é que eles têm esta noite? É um fim-de-semana longo.
ONUSKA: Um autocarro. Vinte homens. Eu coloco-os em Alerta Azul.
FINEALLY: Óptimo. Óptimo.
ONUSKA: E eu nem sequer andei na faculdade.
A seguinte é uma parte adicional do depoimento ditado a um representante do Gabinete do procurador distrital de Nova Iorque, por Gerald Bingham Jr., menor, residente no apartamento 5A, 13ª Avenida Leste nº 535, Nova Iorque, Nova Iorque, retirado das gravações PDNI-146-113A-113Geconforme transcrito (PDNI- 146-113 AT-113GT).
TESTEMUNHA: Eu calculei que fossem agora três da manhã. Ouvi vozes e sons de actividade no outro lado do patamar. Calculei que os ladrões estivessem a roubar o apartamento 5B e em breve estariam no nosso apartamento. Isto causou-me alguma apreensão, porque tinha a certeza de que iriam descobrir o equipamento electrónico no armário do meu quarto. No entanto, tranquilizei-me com a ideia de que era possível que eles não reconhecessem a natureza do equipamento. Eles não compreenderiam que era um emissor de ondas curtas. Talvez eu os pudesse convencer de que fazia parte da nossa aparelhagem de alta fidelidade.
"Em todo o caso, compreende, embora eu sentisse algum medo... vi que tinha o corpo coberto de suor... não me importava realmente com o que me pudessem fazer. Eles não podiam saber que eu tinha utilizado o equipamento. E eu não acreditei realmente que me matassem. Pensei que talvez me magoassem se reconhecessem o equipamento e pensassem que eu o tinha utilizado. Mas a dor é algo que me é familiar, e essa perspectiva não me alarmou muito. Mas fiquei perturbado ao pensar que eles talvez fizessem mal à minha mãe e ao meu pai.
"O meu medo, porém, não tinha qualquer fundamento. Por razões que na altura não compreendi, eles não foram ao nosso apartamento.
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O único homem que entrou foi o homem alto e magro que antes tinha tirado a minha cadeira de rodas e as canadianas. Ele entrou, ficou de pé ao lado da minha cama e disse, Estás a portar-te bem, rapaz?
"Eu disse, Estou sim, Sir.
"Assim que o disse, perguntei a mim próprio por que motivo lhe tinha chamado sir. Não chamo sir ao meu pai. Mas havia algo neste homem mascarado. Tenho pensado muito nele desde os acontecimentos daquela noite e decidi que, de algum modo... não sei bem como... ele tinha um ar e um porte de autoridade. De algum modo, não sei como, ele inspirava respeito.
"Em todo o caso, ele acenou com a cabeça e olhou em redor. O teu quarto?, perguntou-me.
"Sim, respondi.
"Todo só para ti. Ele acenou novamente com a cabeça. Quando tinha a tua idade, eu vivia num quarto não muito maior do que este com o meu pai, a minha mãe e cinco irmãos.
"O falecido John F. Kennedy disse que a vida é injusta, disse-lhe eu.
"Ele deu uma gargalhada e disse: Sim, isso é verdade. E qualquer pessoa com mais de 4 anos que não o compreenda não tem grandes miolos. Que é que queres ser, rapaz?
"Cientista investigador, respondi eu imediatamente. Talvez de medicina, talvez de electrónica, talvez de tecnologia espacial. Ainda não decidi.
"Cientista investigador?, perguntou ele e, pelo modo como o disse, vi que ele não tinha uma ideia muito clara do que isso era. Estive para lhe explicar, mas depois achei que era melhor não o fazer.
"Cientista investigador?, repetiu ele. Ganha-se dinheiro?
"Disse-lhe que sim, que eu já tivera ofertas de duas empresas e que, se se descobrisse uma coisa realmente importante, se podia ficar multimilionário. Não sei por que é que lhe estava a contar estas coisas, excepto que ele parecia genuinamente interessado. Pelo menos, foi essa a impressão que eu tive.
"Multimilionário, repetiu ele.
"Depois olhou em redor do quarto... para os meus livros, a minha mesa de trabalho, os mapas pregados à parede.
"Eu nunca... começou ele a dizer, mas depois parou e não continuou.
"Sim?, disse eu.
"Eu nunca consegui compreender esta merda toda, disse ele por fim, com uma gargalhada. Depois, disse: Continua a portar-te bem, está certo? Nós vamo-nos embora daqui a pouco. Tenta dormir um pouco.
"Ele deu meia volta e saiu do quarto. Só voltei a vê-lo uma vez, por
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breves instantes. Senti que se ele... Senti que talvez eu pudesse ser um bom... Eu senti que talvez eu e ele... Receio que não esteja a ser muito preciso. Não sei exactamente o que senti nesse momento.
Continuação dos excertos da fita de vinte e quatro horas CCDPNI-31AGO-1SET.
3.13.32
O'Nuska: Tenente, temos um relatório do agente Meyer do carro George Três. Ele subiu ao telhado do edifício da 74ª Avenida Leste nº 536. Ele diz que as persianas estão corridas em todos os apartamentos da 73ª Avenida Leste nº 535. Há luzes acesas em vários apartamentos. As escadas de serviço das traseiras também têm as luzes acesas. Nas escadas de serviço, há uma janela sem persianas em todos os andares. Meyer diz que viu homens mascarados a levar coisas pelas escadas abaixo e a colocá-las no camião estacionado junto da entrada de serviço.
FINEALLY: Quantos homens viu ele?
O'Nuska: Ele diz que, pelo menos, cinco homens diferentes, talvez mais.
FINEALLY: Cinco homens? Meu Deus, que é que vai acontecer... Tiroteio no O.K. Corral? Manda avançar o corpo táctico. Alerta Vermelho. Diz-lhes que estacionem na 72ª, perto do rio, e que aguardem mais instruções. Temos outros três carros?
ONUSKA: Temos, sim. Estão a aguardar, a cerca de um bloco de distância.
FINEALLY: Feche a 73ª Avenida Leste. Coloque um carro atravessado na rua na Avenida End Leste e outro na Avenida York.
O'Nuska: Certo.
FINEALLY: Diga ao George Três que fique onde está. Mande o terceiro carro para junto dele.
O'Nuska: Certo.
FINEALLY: Vejamos agora... tem que haver moradores lá.
ONUSKA: Sim. É um fim-de-semana longo e alguns deles estarão fora... mas tem que estar alguém... o supervisor, o porteiro, o miúdo que mandou a chamada em ondas curtas. Outros, provavelmente.
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FINEALLY: Ligue-me para o sargento de serviço da 251.ª Conhece-o?
ONUSKA: Conheço, sim. É o meu irmão.
FINEALLY: Está a brincar?
ONUSKA: Não estou, não. Ele é realmente meu irmão.
ONUSKA: Que espécie de esquadra é?
ONUSKA: Muito disciplinada. O capitão Delaney mora mesmo ao lado, numa casa convertida. Ele entra e sai o tempo todo, mesmo quando não está de serviço.
FINEALLY: Não me diga que é o Delaney "Tomates de Ferro".
ONUSKA: É ele mesmo.
FINEALLY: Bem, bem, bem. Quem diria? Liga-me a ele, por favor? Precisamos de um comandante no local.
ONUSKA: Imediatamente, meu Tenente.
3.19.26
DELANEY: Estou a ver... Como é que você se chama?
FINEALLY: Tenente John K. Fineally, meu Comandante.
DELANEY: Tenente Fineally, eu agora vou repetir o que me disse. Se algum pormenor estiver errado, por favor não me interrompa. Corrija-me quando eu acabar. Está claro?
FINEALLY: Sim, meu Comandante.
DELANEY: O tenente tem motivos para pensar que um roubo ou um roubo e assalto à mão armada está actualmente a ter lugar na
73ª Avenida Leste nº 535. Foram observados pelo menos cinco homens mascarados a retirar objectos deste edifício e a colocá-los num camião actualmente estacionado junto da entrada de serviço desse prédio. Quatro carros do Sector George estão actualmente na zona. Um está a bloquear a 73ª Avenida e a Avenida End Leste, e outro está a bloquear a rua na Avenida York. Dois carros com quatro agentes estão na 74ª Avenida, nas traseiras do edifício em questão. O sargento de serviço desta esquadra alertou dois homens de patrulha para que ficassem junto do telefone a aguardar instruções. O autocarro do Corpo Táctico de Patrulha vai neste momento a caminho com vinte homens, em Alerta Vermelho, e recebeu instruções para aguardar na 12ª Avenida, à espera de novas instruções. O inspector Walter Abrahamson foi alertado e vai a caminho do local do suposto crime. Eu prosseguirei para o local para assumir o comando das forças à minha disposição até o inspector chegar. Entrarei no edifício com as forças à minha disposição e, acautelando devidamente a vida e o bem-estar dos espectadores inocentes, impedirei os supostos ladrões de fugir, prendê-los-ei e recuperarei os objectos roubados. Os pormenores estão todos correctos?
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FINEALLY: Está tudo correcto, meu Comandante. Em todos os pormenores.
DELANEY: Esta conversa está a ser gravada, Tenente?
FINEALLY: Está sim, meu Comandante.
DELANEY: Daqui é o comandante EdwardX. Delaney a desligar. vou agora assumir o comando das forças que estiverem à minha disposição no local do suposto crime.
(Pausa de seis segundos.)
FINEALLY: Deus do céu. Não acredito. Ouvi, mas não acredito. Estava a ouvir, meu Sargento?
ONUSKA: Estava, sim, meu Tenente.
FINEALLY: Eu tinha ouvido contar histórias daquele gajo, mas nunca acreditei.
ONUSKA: São todas verdadeiras. Ele já recebeu mais louvores do que eu já eu tive ressacas.
FINEALLY: Ainda me custa a crer. Ele é incrível.
ONUSKA: É o que o meu irmão diz.
A seguinte é uma transcrição dactilografada (PDNI-146-121AT) de uma gravação original (PDNI-146-121A) feita no dia 11 de Setembro de 1968 no Hospital Mother of Mercy1. A testemunha é Gerald Bingham, Sr., residente no apartamento 5A, 73ª Avenida Leste nº 535, Nova Iorque, Nova Iorque.
PERGUNTA: Folgo em vê-lo com melhor aspecto, Mr. Bingham. Como se sente?
BINGHAM: Oh, muito melhor. O inchaço diminuiu e recebi uma boa notícia esta manhã. O médico diz que não vou perder a visão do olho direito. Eles dizem que talvez a visão diminua um pouco, mas vou poder ver com ele.
PERGUNTA: Mr. Bingham, fico muito contente em sabê-lo... mesmo muito contente. Posso imaginar como se sentia.
BINGHAM: Sim... bem... compreende...
PERGUNTA: Mr. Bingham, há apenas uns pequenos pormenores do seu depoimento anterior que gostaríamos de clarificar... se se sentir com forças para o fazer.
1. Mãe de Misericórdia. (N. da T.)
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BINGHAM: Oh, sim. Sinto-me óptimo. Na realidade, a sua visita é muito bem-vinda. É muito enfadonho... ficar só deitado.
PERGUNTA: Posso imaginar. Bem, o que nós queríamos clarificar era o período por volta das três e meia da manhã do dia 1 de Setembro. De acordo com o seu depoimento anterior, o senhor estava no apartamento 4A com os outros moradores e o porteiro. Estavam a ser guardados pelo homem que anteriormente, no seu apartamento, o agredira no rosto e lhe dera pontapés. Este homem estava armado. Isso está correcto?
BINGHAM: Sim, está.
PERGUNTA: Sabe alguma coisa sobre armas de fogo manuais?
BINGHAM: Sim... um pouco. Estive nos Fuzileiros, na Coreia.
PERGUNTA: Consegue identificar a arma que o homem tinha?
BINGHAM: Pareceu-me uma pistola automática Colt .45, da série 1917.
PERGUNTA: Tem a certeza?
BINGHAM: Tenho praticamente a certeza. Eu pratiquei com uma arma dessas.
PERGUNTA: Na altura em causa... isto é, às três e meia da manhã do dia 1 de Setembro... qual era o seu estado físico?
BINGHAM: Quer dizer se eu estava completamente consciente e activo?
PERGUNTA: Bem... sim. Estava?
BINGHAM: Não. Doía-me muito o olho e tinha uma dor latejante onde ele me tinha dado os pontapés. Tinham-me deitado no sofá da sala de Mrs. Hathway... era realmente uma espreguiçadeira vitoriana estofada de veludo vermelho. Aminha mulher estava a segurar uma toalha fria e molhada contra o meu olho, e o Dr. Rubicoff lá de baixo também estava a ajudar. Eu penso que estava um pouco confuso nessa altura. Talvez num ligeiro estado de choque. Sabe, pela primeira vez na minha vida tinha sido agredido com raiva. Quero dizer, era a primeira vez que era agredido fisicamente. Uma experiência muito perturbadora.
PERGUNTA: Sim, Mr. Bingham, eu sei.
BINGHAM: A ideia de que um homem que não me conhecia me tinha agredido e ferido, e depois me tinha dado pontapés... para lhe dizer a verdade, senti muita vergonha de mim próprio. Eu sei que esta é provavelmente uma reacção estranha, mas foi o que senti.
PERGUNTA: Teve vergonha?
BINGHAM: Tive. Foi a sensação que tive.
PERGUNTA: Mas por que é que havia de ter vergonha? O senhor tinha feito tudo o que lhe fora possível... que foi, a propósito, muito mais do que muitos outros homens fariam. Reagiu muito depressa.
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Tentou defender a sua família. Não havia qualquer motivo para sentir vergonha de si próprio.
BINGHAM: Bem, foi o que senti. Talvez fosse por o homem com a arma me ter tratado... e aos outros também... com um desprezo tão grande, tão brutal. A maneira como ele acenava com a arma. O modo como se ria. Eu vi que ele estava a divertir-se. Empurrava-nos. Quando quis que o porteiro se afastasse da janela, não lhe disse que se afastasse: empurrou-o, e o pobre Tim OLeary caiu. Depois o homem deu outra gargalhada. Eu penso que estava com medo dele. Talvez fosse por isso que senti vergonha.
PERGUNTA: O homem estava a ameaçá-lo com uma arma carregada. Havia uma boa razão para ter medo.
BINGHAM: Bem... não sei. Eu estive na frente de batalha na Coreia. Acções de infantaria de pequena escala. Nessa altura, também tive medo, mas não senti vergonha. Há uma diferença, mas é difícil de explicar. Eu sabia que este homem estava muito doente e era muito brutal e muito perigoso.
PERGUNTA: Bem, deixemos isso e avancemos... Agora, o senhor disse que, por volta das três e meia... talvez um pouco mais tarde... quatro dos outros homens vieram levá-los a vocês todos para o apartamento 4A, no outro lado do patamar.
BINGHAM: Exactamente. Eu consegui andar, apoiado na minha mulher e no Dr. Rubicoff, e eles levaram-nos a todos do apartamento 4B para o 4A.
PERGUNTA: Eles disseram-vos por que é que vos estavam a mudar?
BINGHAM: Não. O homem que parecia ser o chefe simplesmente entrou no apartamento e disse: "Todos para o outro lado do patamar. Rápido. Toca a andar." Ou qualquer coisa semelhante.
PERGUNTA: Ele disse-vos que se apressassem?
BINGHAM: Disse. Eu talvez estivesse a imaginar coisas... ainda estava abalado, compreende... mas achei que havia ali tensão. Empurraram-nos para andarmos mais depressa. Pareciam estar com muita pressa. Quando entraram no meu apartamento, umas horas antes, eles estavam mais controlados, mais cautelosos. Agora estavam a apressar-se e a empurrar as pessoas.
PERGUNTA: A que atribuiu isso?
BINGHAM: Eu achei que eles pareciam assustados, que algo os estava a ameaçar e que queriam acabar tudo e sair rapidamente dali. Foi essa a impressão que eu tive.
PERGUNTA: O senhor pensou que eles estavam assustados? Isso não o fez sentir-se melhor?
BINGHAM: Não. Ainda sentia vergonha de mim próprio.
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A secção seguinte (e várias outras que se seguem) é extraída do relatório final do comandante Edward X. Delaney - um documento que se tornou uma espécie de clássico na documentação do Departamento da Polícia de Nova Iorque e que foi publicado em revistas da Polícia de sete países, incluindo a Rússia. O seu número de arquivo oficial é DPNI-EXD-1SET68.
"Cheguei à esquina, vindo da 251ª esquadra, da 73ª Avenida e da York eram aproximadamente 3.24 da manhã. O meu motorista era o agente Alysius McClaire. Vi imediatamente o carro-patrulha que tinha sido estacionado atravessado na 73 ª Avenida, supostamente para bloquear a saída da rua. No entanto, ele estava mal situado. Este era o carro George Três. (ver Apêndice IV para uma lista completa do pessoal envolvido.) Depois de me identificar, dei instruções para que o automóvel fosse estacionado mais para o meio do quarteirão, num ponto em que os automóveis particulares estavam estacionados em ambos os lados da rua, deste modo bloqueando mais eficazmente a saída da rua.
"Há uma cabina telefónica pública na esquina noroeste da
73ª Avenida Leste e da York. Ao investigar, vi que este telefone não funcionava. (N. B. Investigações subsequentes estabeleceram que todas as cabinas telefónicas públicas numa área de dez quarteirões de distância do crime tinham sido deliberadamente danificadas, uma prova evidente da planificação cuidadosa e pormenorizada deste crime extremamente bem organizado.)
"Assim, dei instruções ao agente McClaire para que arrombasse a porta de uma tabacaria situada na esquina noroeste da 73ª Avenida e da York. Ele fê-lo, sem partir o vidro, e eu entrei, acendi as luzes e localizei o telefone do proprietário (tive o cuidado de respeitar os seus bens, embora a Cidade de Nova Iorque o indemnizasse pela fechadura partida.)
"Telefonei depois ao Centro de Comunicações e falei com o tenente John K. Fineally. Informei-o da localização no meu posto de comando e pedi-lhe que a linha telefónica em que eu estava a falar fosse mantida aberta e com alguém à escuta o tempo todo. Ele concordou. Também pedi que fosse indicada ao inspector Abrahamson, que vinha a caminho proveniente de Queens, a localização do meu posto de comando. O tenente Fineally concordou. Dei depois instruções ao
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meu motorista, o agente McClaire, para que ficasse junto da linha telefónica aberta até ser substituído. Ele aceitou esta ordem.
"Nesta altura, eu vestia roupas civis, uma vez que, tecnicamente, estava de folga. Despi o casaco e levei-o no braço, depois de enrolar as mangas. Deixei o meu chapéu de palha na tabacaria. Pedi um jornal de domingo a um dos agentes da viatura que estava a bloquear a 73ª Avenida Leste e coloquei o jornal debaixo do braço. Depois, segui ao longo do lado sul da 73ª Avenida Leste, da Avenida York até à Avenida East End. Ao passar na 73ª Avenida Leste, no lado oposto da rua, vi, sem voltar a cabeça, o camião parado junto da entrada de serviço. As portas laterais do camião estavam abertas, mas não havia qualquer sinal de actividade humana.
"Vi imediatamente que era uma situação táctica muito fraca para um assalto frontal. Os edifícios em frente do prédio assaltado ofereciam muito pouco quanto a cobertura eou esconderijo. A maior parte era da mesma altura que o nº 535, uma vez que eram casas convertidas em apartamentos. Um ataque frontal seria possível, mas não dentro das directivas estipuladas no DPNI-SIS-DIR-64, datado de 19 de Janeiro de 1967, que afirma: Em qualquer acção, a primeira consideração do comandante deve ser a segurança dos presentes inocentes e, em segundo lugar, a segurança e bem-estar do pessoal da Polícia sob o seu comando.
"Quando cheguei à esquina da 73ª Avenida Leste e da Avenida End Leste, identifiquei-me aos agentes no automóvel George Dezanove que estava a bloquear a rua naquela esquina. Esta viatura também estava mal estacionada. Depois de indicar ao motorista como queria que o automóvel fosse colocado, mandei-o levar-me ao meu posto de comando na Avenida York e depois dei-lhe instruções para que voltasse para o seu posto original e bloqueasse a rua naquele extremo, do modo que eu indicara. Devolvi depois o jornal ao agente a quem o pedira emprestado.
"Na pequena viagem à volta do quarteirão, de regresso ao meu posto de comando, eu formulara o meu plano de ataque. Contactei, através da linha telefónica aberta na tabacaria, com o tenente Fineally, no Centro de Comunicações. (Devo dizer que a cooperação de todo o pessoal do Centro de Comunicações durante todo o episódio foi exemplar, e a minha única sugestão de melhoria seria um sistema de comunicações mais formalizado, utilizando mais palavras e números de código. Sem estes, as comunicações tornam-se personalizadas e informais, o que apenas desperdiça tempo precioso.)
"Dei ordens ao tenente Fineally para que mandasse mais cinco carros-patrulha com dois homens ao meu posto de comando. Também pedi um esquadrão de emergência-equipado com, pelo menos, dois conjuntos de walkie-talkies; um transportador de armas com
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gás lacrimogénio e espingardas de motim; dois automóveis com holofotes; e uma ambulância. O tenente Fineally disse que iria consultar a sua lista de serviço e fornecer o que estivesse disponível o mais depressa possível. Nessa altura - calculei que fossem talvez 3.40 ou
3.45 - também pedi ao tenente Fineally que informasse o subdelegado Arthur C. Beatem, o subdelegado de plantão dessa data, sobre o que se estava a passar, e que deixasse que fosse o subdelegado Beatem a decidir se devia ou não informar o comissário eou o presidente da Câmara.
"Comecei então a organizar as minhas forças..."
Gravação DPNI-SIS 146-83C.
HASKINS: Por volta desta altura, o Duque disse...
PERGUNTA: Que horas eram?
HASKINS: Oh, eu não sei exactamente, Tommy. Estava a ficar tarde... ou melhor, madrugada. Eu pensei que o céu estava a ficar claro, ou talvez estivesse a imaginar. Eu tinha indicado aos irmãos Brodsky o que devia ser retirado do apartamento 4B. Tal como eu desconfiara, havia lá um verdadeiro tesouro. O técnico abriu uma enorme mala antiga, com ferragens de bronze, com um ferrolho e um cadeado. E ele abriu algumas coisas como caixas de jóias, arquivadores, e até uma caixa de munições do exército com um ferrolho e um cadeado. Era realmente hilariante o que aquelas velhotas tinham arrecadado. Muito obviamente que não confiavam em bancos! Havia um fio com um diamante e uma gargantilha de rubis... a propósito, tudo com jóias incrivelmente sujas... e eu calculei que só estas duas peças valessem perto de cinquenta mil. Além disso, havia dinheiro... até mesmo umas notas grandes antigas que eu não via há montes de anos. Havia títulos ao portador, e imensas coisas tais como tiaras vitorianas, pulseiras, bandoletes, alfinetes, broches, uma pequena colecção de caixas de rapé com jóias, fiadas e fiadas de pérolas, brincos, alfinetes de gravata... e tudo em bom estado, embora estivesse a precisar de uma limpeza. Meu Deus, Tommy, era como estar no Tiffanys há setenta e cinco anos. Havia também algumas peças simplesmente deliciosas de vidro, esmalte e cloisonné que eu não suportei deixar para trás. O Duque disse-nos que nos apressássemos, por isso ignorámos os tapetes e a mobília, embora eu tivesse visto
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uma mesa Sheraton... uma pequena... pela qual qualquer museu da cidade daria uma fortuna, e havia um pequeno Curdistão com não mais do que noventa centímetros por metro e meio que era simplesmente magnífico. Eu não consegui suportar deixá-lo para trás, por isso mandei o Billy Brodsky... o que era deficiente mental... metê-lo debaixo do braço e levá-lo para o camião.
PERGUNTA: Onde estava o Anderson enquanto isso se passava?
HASKINS: Oh, ele estava... sabe... aqui, ali, em todo o lado. Ele foi ver o rapaz aleijado do apartamento 5A, depois foi até à varanda do 5B para dar uma vista de olhos em volta. Depois foi ver como é que aquele monstro de Detroit se estava a haver com os moradores que tinham sido mudados para o 4A, no outro lado do patamar, depois ajudou os irmãos Brodsky a carregar algumas coisas para o camião, e depois deu uma volta por alguns dos apartamentos vazios. Só para verificar, sabe. Ele estava muito bem, muito atento. A seguir, depois de eu ter terminado no apartamento 4B, ele disse-me que descesse à cave para ver se o supervisor ainda estava a dormir e também que fosse ter com o negro que estava no átrio. Por isso fui até à cave, e o supervisor ainda estava a ressonar.
PERGUNTA: Tirou alguma coisa deste apartamento?
HASKINS: Oh, não. Tinha sido limpo antes. A única coisa que tirámos foi o tríptico.
PERGUNTA: O supervisor diz que tinha acabado de receber o vencimento, que tinha quase cem dólares na carteira, e que este dinheiro foi tirado. Tirou-o?
HASKINS: Tommy, isso dói! Eu posso ser muitas coisas, mas não sou um ladrão barato.
PERGUNTA: Quando o revistaram na esquadra, você tinha cerca de quarenta dólares numa carteira. E também tinha quase cem dólares num maço, enfiados do bolso interior do casaco. Esse era o dinheiro do supervisor?
HASKINS: Tommy! Como podes fazer-me isso?
PERGUNTA: Está bem. Que aconteceu a seguir... depois de ter ido ver o supervisor e de ter descoberto que ele estava a dormir?
HASKINS: O Duque disse-me que fosse ter com o Skeets Johnson ao átrio, antes de voltar para cima. Ele estava na cabina do átrio para que ninguém o visse da rua. Perguntei-lhe se estava tudo bem.
PERGUNTA: E que é que ele disse?
HASKINS: Disse que não tinha visto nenhum polícia da ronda nem carros-patrulha. Disse que a única pessoa que vira fora um homem com um jornal na mão e o casaco por cima do braço passar no lado oposto da rua. Ele disse que o homem não tinha virado a cabeça quando passara, por isso ele pensava que não era nada. Mas eu vi que algo o estava a perturbar.
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PERGUNTA: Por que diz isso?
HASKINS: Bem, tudo o que ele dissera até essa altura tinha sido em verso, e algumas rimas eram muito inteligentes e engraçadas. O homem tinha obviamente talento. Mas agora estava a falar normalmente, como tu e eu, e não parecia ter a boa disposição que tivera anteriormente. Como, por exemplo, quando estávamos no camião, a caminho do prédio de apartamentos, ele manteve-nos a rir e descontraídos. Mas agora eu vi que ele estava deprimido, por isso perguntei-lhe porquê. E ele disse que não sabia por que é que estava deprimido, mas disse... e eu recordo-me das suas palavras exactas... ele disse: "Há alguma coisa que cheira a esturro." Deixei-o lá, voltei para cima e contei ao Duque que o Skeets não tinha visto polícias nem carros, mas que estava perturbado. O Duque acenou com a cabeça e disse aos irmãos Brodsky que se apressassem. Estávamos quase prontos para nos irmos embora. Calculei que dentro de meia hora, no máximo, estaríamos fora dali. Eu não estava deprimido. Estava animado. Pensei que tinha sido uma noite muito proveitosa, muito além das nossas mais loucas aspirações. Embora estivesse a trabalhar por um preço fixo, eu queria que as coisas corressem bem porque era muito excitante... eu nunca tinha feito nada disto antes... e pensei que o Duque me daria mais algum trabalho. Além disso, sabe, eu tinha metido algumas coisas ao bolso... bugigangas... realmente nada de valor... mas a noite seria muito lucrativa para mim.
Excerto do relatório final do comandante Edward X. Delaney, DPNI-EXD-1SET1968.
"Ver o meu memorando nº 563 datado de 21 de Dezembro de 1966, em que eu recomendei insistentemente que todos os oficiais do DPNI acima da patente de tenente frequentassem o curso de táctica de pequenas unidades de infantaria (até companhia) ensinado em várias bases do Exército dos EUA e em Quântico, Virgínia, onde os candidatos ao corpo de fuzileiros são treinados.
"Durante o tempo em que fui patrulha, no período 1946-1949, a grande maioria dos crimes era cometida por indivíduos, e a estratégia e a táctica do DPNI eram, em grande parte, dirigidas para evitar e frustrar as actividades de criminosos individuais. Em anos recentes, contudo, a natureza do crime na nossa cidade (e, de facto, na nação - se não no mundo) mudou radicalmente.
"Enfrentamos agora, não criminosos individuais, mas bandos
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organizados, a7Xs, organizações nacionais e internacionais. Amaior parte destas são organizações paramilitares ou do tipo paramilitar, sejam grupos de estudantes universitários militantes ou assaltantes de um centro de vestuário. Na realidade, os membros da organização conhecida como Cosa Nostra, Sindicato, Mafia, etc., até têm patentes militares - don para general, capo para major ou capitão, soldado para homens das fileiras, etc.
"A compreensão do carácter militar organizado do crime hoje em dia deu origem ao meu memorando acima referido, em que eu aconselhei a que fosse dado aos polícias treino militar em táctica de infantaria, e ainda que estes tivessem que fazer um curso de reciclagem de duas semanas todos os anos, a fim de se manterem a par das últimas técnicas. Eu próprio tenho feito estes cursos como voluntário desde que fui nomeado tenente em 1953.
"Assim, eu vi a situação na 73ª Avenida Leste nº 535, na madrugada do dia 1 de Setembro de 1968, como um problema militar clássico. As minhas forças, reunidas e em vias de reunião (eram agora aproximadamente 3.45 da manhã) ocupavam o terreno inferior - a rua - enquanto o inimigo ocupava o terreno superior - o prédio de apartamentos de cinco andares. (A guerra é geografia!). Os manuais do exército dos EUA - EUA-45617990-416 (Combate Casa a Casa) e EUA-91783590-017 (Táctica de luta de rua) são particularmente relevantes para uma situação dessas.
"Decidi que, embora fosse possível um ataque directo e frontal (um ataque desses é sempre possível se ignorarmos as possíveis vítimas), a melhor solução seria o envolvimento vertical. Esta é a técnica desenvolvida pelos alemães na segunda guerra mundial com o lançamento de pára-quedistas atrás das linhas inimigas. Foi aperfeiçoado durante a Acção Polícia Coreana com a utilização de helicópteros. O ataque, até esta altura, tinha sido, em grande parte, um problema bidimensional. Tornara-se agora tridimensional.
"Durante a minha operação de reconhecimento ao longo da
73.B Avenida Leste, eu tinha reparado que o edifício imediatamente adjacente ao 535 tinha, calculei, 16 ou 18 andares. Ficava junto do lado leste do edifício assaltado. Compreendi imediatamente que era possível um envolvimento vertical. Isto é, eu podia fazer baixar o pessoal de combate do telhado do prédio mais alto, ou, com sorte (uma consideração muito importante em todas as actividades humanas), eu podia mandar os polícias saírem pelas janelas do edifício mais alto, talvez no sexto ou sétimo andar, e simplesmente deixarem-se cair ou saltar para as varandas do edifício ocupado pelo inimigo.
"com uma exibição de força barulhenta, pensei, os agentes da Poli cia nos andares superiores do nº 535 poderiam assustar os 186
criminosos e levá-los a sair para a rua. Eu não queria que os agentes no andar superior (calculei que cinco seria um número adequado) travassem combate com o inimigo. A sua única tarefa era assustar os criminosos para que eles fossem para o nível da rua sem porem em perigo quaisquer moradores do edifício que estivessem presentes.
"Nessa altura, o inimigo já não teria a vantagem de ocupar o campo superior. com um timing cuidadoso e calculado, eu teria então colocado à volta da frente do 535 quatro carros-patrulha com dois homens cada e duas viaturas com holofotes, tendo todo o pessoal recebido instruções para se manter, tanto quanto possível, coberto ou escondido pelas suas viaturas, e para não disparar antes de dispararem sobre eles. Além disso, eu tencionava colocar uma força de seis homens nas traseiras do 535 - isto é, o espaço aberto acimentado nas traseiras do edifício da 74ª Avenida que dava para as traseiras do nº 535 da 73ª Avenida Leste. Esta força, calculei, seria suficiente para bloquear uma fuga dos homens pelas traseiras. O facto de um, devido à sua extraordinária capacidade e sorte, ter fugido (temporariamente) não invalida, em minha opinião, as virtudes do meu plano de operações.
"Nesta altura, o grupo táctico (o Corpo Táctico de Patrulha) tinha-se apresentado no meu posto de comando. Esta unidade consistia em vinte homens, num autocarro, comandados por um sargento negro. Havia mais dois negros no grupo.
"Os comentários seguintes podem ser considerados desnecessários - se não disparatados - tendo em conta a actual situação de agitação racial e étnica vivida em Nova Iorque. No entanto, penso que a minha opinião - baseada em vinte e dois anos de serviço no DPNI - podem ser úteis a outros polícias confrontados com uma situação semelhante, e estou decidido a fazê-los...
"Diz-se que todos os homens nascem iguais - e isto pode ser correcto, perante Deus e, frequentemente - mas não sempre -, perante a lei. No entanto, os homens não nascem todos iguais no que respeita às suas origens étnicas e raciais, à sua inteligência, à sua força física e moral. Especificamente, os grupos étnicos e raciais, sejam eles quais forem-negros, irlandeses, polacos, judeus, italianos, etc. - têm determinadas características inatas. Algumas destas características podem ser vantajosas para um oficial no comando; algumas podem ser desvantajosas. Mas, se o oficial as ignorar - devido a uma crença errada na igualdade total -, ele é, na minha opinião, culpado de negligência, uma vez que o seu único dever é resolver o problema que tem entre mãos utilizando o melhor equipamento e pessoal sob o seu comando, tendo em devida consideração o potencial dos seus homens.
"Tem sido minha experiência que o pessoal negro é
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particularmente valioso quando a situação exige autoconfiança e ousadia. E são especialmente valiosos quando operam como unidades - isto é, quando vários polícias negros operam juntos. Assim, ordenei ao sargento negro que comandava o grupo táctico que seleccionasse dois outros negros do seu grupo, acrescentasse dois elementos brancos e executasse o envolvimento vertical. Esta seria a unidade que desceria para a varanda do 535 e expulsaria o inimigo para a rua.
"Ele recebeu a minha ordem e, após uma breve discussão, concordámos que os seus homens iriam armados com uma submetralhadora Thompson, duas armas de motim, revólveres de serviço e granadas de contusão. Além disso, o grupo de cinco homens (incluindo ele próprio) levaria um rádio walkie-talkie, e eles informar-me-iam assim que chegassem à varanda do 535. Este agente é o sargento James L. Everson, insígnia nº 72897537, e eu recomendo que lhe seja feito um louvor. (Ver impresso DPNI-RC-EXD-109FGC-1968 em anexo.)"
Extracto do relatório oficial do sargento James L. Everson, insígnia nº 72897537. Este está classificado PDNI-JLE-1SET68.
"Recebi as ordens do comandante EdwardX. Delaney no seu posto de comando situado numa tabacaria da esquina da 73ª Avenida Leste e da York. Seleccionei os quatro agentes adicionais do meu grupo e segui para a esquina da 73ª Avenida Leste e Avenida End Leste. O transporte utilizado foi um carro-patrulha, conforme instruções do comandante Delaney.
"Quando cheguei à referida esquina, decidi que seria melhor entrarmos um de cada vez no edifício ao lado do n.9 535 da
73ª Avenida Leste. Assim, dei instruções aos meus homens para que me seguissem a intervalos de sessenta segundos. Eu fui à frente.
"Entrei no átrio do edifício ao lado e fiquei a saber que o homem que estava de serviço não era o porteiro usual, mas sim o supervisor que estava a substituir o porteiro durante o fim-de-semana longo. Ele estava a dormir. Acordei-o e expliquei-lhe a situação. Quando os outros quatro homens se juntaram a mim, ele já me tinha dito que podíamos saltar para a varanda do 535 pelas janelas do apartamento
6C que dava para o prédio de apartamentos em que os criminosos estavam a operar. Nós levávamos connosco revólveres de serviço, uma submetralhadora, armas de motim e granadas. O supervisor acompanhou-nos até ao apartamento 6C.
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"Este apartamento estava ocupado por Irving K. Mandelbaum, um homem solteiro. Nessa altura, estava também presente no apartamento uma mulher solteira, Gretchen K. Strobel. Penso que, se se pretender, Irving K. Mandelbaum pode ser acusado de fornicação ilegal, de acordo com as leis da cidade de Nova Iorque. Mas, devido à colaboração prestada por Mr. Mandelbaum a agentes do Departamento da Polícia de Nova Iorque, eu não sugiro que isto seja feito.
"Miss Strobel entrou na casa de banho, e eu e o grupo saltámos pela janela que dá para a varanda do 535. Foi apenas um salto de 60 ou 90 centímetros. Assim que nos encontrámos todos na varanda, contactei com o comandante Delaney através do walkie-talkie, A recepção foi muito boa. Disse-lhe que estávamos em posição, e ele disse-me que esperasse dois minutos e depois avançasse.
Extracto do relatório do comandante Edward X. Delaney DPNI-EXD-1SET1968.
"Eram aproximadamente 4.14 da manhã quando o sargento Everson comunicou comigo. Devo referir aqui que o funcionamento dos novos rádios 415X16C foi excelente. Everson disse que ele e o seu grupo estavam numa varanda do nº 535 da 73ª Avenida Leste. Concordámos que ele esperaria dois minutos antes de iniciar a operação para afugentar os criminosos.
"Nem todos os homens e equipamento que eu requisitara tinham chegado. No entanto, achei melhor prosseguir com o que tinha, em vez de aguardar por condições óptimas que raramente parecem existir, se é que alguma vez existem. Assim, dei instruções às viaturas George Seis e George Catorze (dois agentes cada) para que se aproximassem da Avenida End Leste. À frente dos dois carros que se iriam aproximar, vindos da End Leste, estaria o carro com o holofote SC-147 (o único que chegara até então). Os cinco veículos fariam então um semicírculo à volta da entrada do 535. O carro com holofote iluminaria o edifício depois de todo o pessoal ter procurado cobertura atrás das suas viaturas. A chegada de carros-patrulha adicionais, enviados graças à eficiência do tenente John K. Fineally, CCDPNI, permitiu-me colocar viaturas a bloquear as saídas da 73ª Avenida Leste para a Avenida York e para a Avenida End Leste. O carro George Dezanove estava parado na Avenida End Leste, e o carro George Trinta e dois na Avenida York.
"Eu estava na primeira viatura (George Seis), a aproximar-me 189
do prédio de apartamentos pela Avenida York. A minha ordem, repetida várias vezes, era de não haver disparos até eu dar ordens."
Gravação PDNI-146-114A-114G. Interrogatório a GeraldBingham, Jr.
PERGUNTA: Que horas eram então?
TESTEMUNHA: Não sei exactamente. Passava das quatro da manhã.
PERGUNTA: Que aconteceu então?
TESTEMUNHA: De repente, irromperam cinco polícias pelo meu quarto dentro. Eles vieram pela porta da varanda. Três deles eram de cor. O homem que vinha à frente era de cor. Estavam todos armados. O primeiro homem tinha uma metralhadora na mão, e perguntou-me: "Quem és tu?" Eu disse: "Sou Gerald Bingham Júnior, e vivo neste apartamento."
"Ele olhou para mim e disse: És o miúdo que mandou a notícia? "Sou, disse eu, enviei uma transmissão em ondas curtas. "Ele sorriu para mim e disse: Vai para a varanda. "Eu disse-lhe que era paraplégico e que não me conseguia mover porque eles me tinham tirado a cadeira de rodas e as canadianas. "Ele disse: Está bem, fica onde estás. Onde estão eles? ?-No quarto andar, disse-lhe eu. Eu penso que eles estão no quarto andar, mesmo por baixo de nós.
"Está bem, disse ele, vamos tomar conta deles. Fica onde estás e não faças barulho.
"Começaram todos a sair do apartamento. Eu gritei-lhes, Por favor não o matem, mas penso que eles não me ouviram.
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Gravação DPNI-SIS 146830.
HASKINS: Estávamos a acabar o apartamento 4B. Estávamos perto do fim. Meu Deus, estávamos tão perto! Depois, tudo se desfez. Gritos vindos de cima. Barulho. Tiros, uma grande explosão. Fumo nas escadas. Homens a gritar, "Estão cercados! Mãos ao ar! Deitem as armas ao chão! Vocês estão mortos! Nós apanhámos-vos!" Coisas assim disparatadas. Eu sujei as calças. Sim, Tommy, admito-o de livre vontade... borrei-me. Depois começámos a mexer-nos. O técnico começou a descer as escadas traseiras, depois os irmãos Brodsky, e depois eu atrás. Mas, antes de sair, vi o rufião de Detroit a correr para a janela da frente do 4A e disparar através do vidro.
PERGUNTA: Houve tiros de resposta?
HASKINS: Não. Bem... não tenho a certeza. Eu tinha as costas voltadas para o patamar entre os dois apartamentos. Estava descer as escadas de serviço. Vi-o e ouvi-o disparar através da janela do 4A. Mas não vi nem ouvi quaisquer tiros vindos da rua.
PERGUNTA: Onde se encontrava o Anderson enquanto tudo isto estava a acontecer?
HASKINS: Ele estava no patamar entre os dois apartamentos. Ele estava ali parado. Ele simplesmente não se mexeu.
Extracto do relatório final do comandante Edward X. Delaney, DPNI-EXD-1SET1968.
"As minhas forças de assalto estavam em posição. Assim que ouvi o grupo de envolvimento começar a sua missão, o carro com holofote - de acordo com as minhas ordens anteriores - iluminou a frente do edifício. Quase imediatamente, dispararam sobre nós de uma janela do quarto andar. Gritei aos meus homens que não disparassem."
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PDNI-EHM-108B. Depoimento de Ernest Heinrich Mann ditado sob juramento e assinado perante testemunhas.
"Assim que o barulho começou, compreendi que estava tudo acabado. Assim, desci lenta e calmamente a escada de serviço, passei a porta para o átrio, tirei a máscara e as luvas,e sentei-me no chão de mármore, fora da visão das portas da frente. Depois encostei-me à parede, pus os braços por cima da cabeça e fiquei à espera. Detesto a violência."
Extracto do relatório final do comandante Edward X. Delaney, DPNI-EXD-1SET1968.
"Ainda não tínhamos disparado um único tiro. Depois, subitamente, um homem saiu a correr da porta da frente do prédio, disparando um revólver sobre as viaturas. Assim, dei ordem para que fosse aberto fogo e ele caiu quase imediatamente ao chão."
Excerto da gravação DPNI-SIS 146-83C, interrogatório de Thomas Haskins por Thomas K. Brody, detective de segunda classe.
HASKINS: Quando chegámos ao rés-do-chão, os irmãos Brodsky dirigiram-se ao camião pela porta traseira. Eu fui pela porta do átrio. E ali estava o técnico, sentado no chão, encostado à parede, sem a máscara, com as mãos por cima da cabeça. Senti-me mal-disposto. Depois, vi o negro empunhar a pistola e sair pela porta da entrada. Ouvi-o dizer "Merda", e depois ele desapareceu. Depois ouvi os disparos e soube que ele estava morto. Francamente, não sabia o que fazer. Acho que fiquei um tanto histérico. Compreendes, não compreendes, Tommy?
PERGUNTA: Compreendo. Mas que é que fez?
HASKINS: Bem, por mais tolo que pareça... eu não estava a
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pensar direito, compreende... dei meia volta, voltei para a escada de serviço e comecei a subir. E ali, no patamar do segundo andar, estava o Duque Anderson.
PERGUNTA: Que estava ele a fazer?
HASKINS: Estava de pé ali parado. Muito calmo. Eu disse: "Duque, nós temos..." E ele disse, em voz baixa. "Sim, eu sei. Não faças nada agora. Fica onde estás. Deixa-te estar aí. Tenho uma coisa a fazer, mas desço já e vamos sair daqui juntos."
PERGUNTA: Foram essas as suas palavras exactas?
HASKINS: Tanto quanto eu me lembro.
PERGUNTA: E que fez então?
HASKINS: Fiz exactamente o que ele me disse. Deixei-me ficar ali nas escadas.
PERGUNTA: Que fez ele?
HASKINS: Deu meia volta e voltou para cima.
Extracto do relatório final do comandante Edward X. Delaney, ; DPNI-EXD-1SET1968.
"Ainda estávamos a receber disparos intermitentes da janela do quarto andar do que, supus, fosse um só atirador. Dei ordens aos meus homens para que não ripostassem. Devo dizer que a disciplina, sob estas circunstâncias difíceis e enervantes, foi excelente. Aproximadamente três minutos após o início da acção, dois homens saíram da entrada de serviço das traseiras, subiram para o camião e começaram a fazer marcha atrás no beco, a alta velocidade.
"Este foi, obviamente, um lance de desespero, destinado ao fracasso, uma vez que eu tinha colocado os carros-patrulha de modo a impedir um movimento destes. Enquanto o camião fazia marcha atrás, um homem inclinou-se para fora da janela e disparou um revólver sobre nós, enquanto o outro conduzia. Ripostámos.
"O camião embateu contra o George Catorze e parou. No choque, o agente Simon Legrange, insígnia nº 67935429, partiu uma perna, e o polícia Marvin Finkelstein, insígnia nº 45670985, ficou ligeiramente ferido no braço por um tiro disparado pelo atirador do camião. Até essa altura, esses eram os únicos ferimentos sofridos por nós.
"Quando dei a ordem Parar de disparar!, vimos que o atirador do camião estava morto (mais tarde identificado como Edward J. Brodsky) e que o motorista do camião (mais tarde identificado como
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William K. Brodsky) tinha partido uma clavícula como resultado do embate."
DPNI-SIS-146-92A.
MRS. HATHWAY: Bem, estávamos todos no apartamento 4A, no outro lado do patamar, quando os tiros começaram subitamente. Eu diria que eram cerca de quatro e um quarto da manhã.
MISS KALER: Mais perto das quatro e meia.
MRS. HATHWAY: Eu tinha o meu alfinete com relógio, sua tola, e eram quase quatro e um quarto.
MISS KALER: Quatro e meia.
PERGUNTA: Minhas senhoras, por favor. Que aconteceu então?
MRS. HATHWAY: Bem, o homem mascarado que tinha sido tão mau e cruel correu para a janela e começou a disparar. Ele partiu o vidro... e fez uma enorme sujeira no chão. E ele disparou a arma para a rua. E depois...
MISS KALER: E depois houve umas explosões terríveis nas escadas e homens aos gritos, e todos a interrogarem-se a si próprios sobre o que é que se estaria a passar. Por isso, eu disse que devíamos todos ficar sentados onde estávamos e não nos mexermos, que isso era o melhor que podíamos fazer, e o rufião continuava a disparar peLa janela, e eu fiquei grata por não estarmos no nosso apartamento, pois receava que os polícias disparassem um foguetão atómico pela janela e destruíssem tudo. E, mais ou menos nessa altura, este outro mascarado entrou pela porta e começou a tirar a arma do bolso, e eu pensei que ele também fosse disparar para fora da janela, mas ele não o fez...
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DPNI-146-121AT.
BINGHAM: Quando o tiroteio começou, eu sugeri que nos deitássemos todos no chão. Deitámo-nos todos, excepto as senhoras de idade do apartamento do outro lado do patamar, que disseram que não se iam deitar no chão... ou talvez não pudessem fazê-lo. Em todo o caso, elas afundaram-se nas cadeiras. O homem que nos estava a vigiar disparou para fora da janela.
PERGUNTA: Houve alguns tiros em resposta?
BINGHAM: Não, penso que não houve. Que eu tivesse reparado, não. O homem simplesmente continuou a disparar e a praguejar. Vi-o recarregar a arma pelo menos uma vez de um pente de balas que trazia no bolso. E depois, alguns minutos mais tarde, entrou outro homem mascarado no apartamento. Reconheci-o como sendo o segundo homem que tinha estado no meu apartamento.
PERGUNTA: O homem que disse ao primeiro mascarado que parasse de lhe dar pontapés?
BINGHAM: Sim, esse. Bem, ele entrou no apartamento nessa altura e começou a tirar uma arma do bolso.
BINGHAM: Que espécie de arma? Reconheceu-a?
BINGHAM: Era um revólver, não uma pistola. Grande. Eu diria um .38. Não consegui reconhecer a marca.
PERGUNTA: Está bem. E depois?
BINGHAM: O segundo homem, o homem com o revólver que entrou, disse: "Socks."
PERGUNTA: Socks? Foi tudo o que ele disse?
BINGHAM: Sim, Ele disse: "Socks", e o homem à janela voltou-se. E o segundo homem disparou sobre ele.
PERGUNTA: Disparou sobre ele? Quantas vezes?
BINGHAM: Duas. Eu estava a observar com muita atenção, e tenho a certeza disso. Ele disse... Socks, e o homem que estava à janela voltou-se. E então o homem que entrou começou a andar em direcção a ele e disparou duas vezes. Eu vi as balas a entrar. Repuxaram o casaco. Eu penso que ele o atingiu no estômago e no peito. O homem à janela deixou cair a arma e caiu ao chão. Caiu muito lentamente. De facto, ele agarrou-se às cortinas da janela e arrancou uma cortina e o varão. Eu penso que ele disse: "O quê?", ou talvez outra coisa. Soou como "O.." ou qualquer coisa assim. Depois, ele caiu ao chão, com a cortina grená por cima, e começou a sangrar e a contorcer-se. Meu Deus...
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PERGUNTA: Quer fazer uma pausa durante alguns minutos, Mr. Bingham?
BINGHAM: Não. Eu estou bem. E depois a minha mulher sentiu-se mal e vomitou. E uma das velhotas do outro lado do patamar desmaiou e a outra gritou, os dois maricas que eu não conhecia e nunca tinha visto antes abraçaram-se, e o Dr. Rubicoff ficou como se lhe tivesse sido tirada toda a vitalidade. Meu Deus, que momento...
PERGUNTA: E que fez o assassino depois?
BINGHAM: Ele olhou para o homem caído no chão durante um breve momento. Depois voltou a meter a arma no bolso e saiu do apartamento. Não o voltei a ver. É estranho que lhe chame assassino.
PERGUNTA: É o que era, não é verdade?
BINGHAM: Claro. Mas, naquele momento, tive a sensação de que ele era um carrasco. Foi a sensação que tive... este homem é um carrasco, a fazer o seu trabalho.
PERGUNTA: Depois que é que aconteceu?
BINGHAM: Depois de ele se ir embora? O Dr. Rubicoff aproximou-se e ajoelhou-se ao lado do homem que tinha sido alvejado, examinou-lhe os ferimentos e tomou-lhe o pulso. "Está vivo", disse ele, "mas não por muito tempo. Isto é muito mau."
PERGUNTA: Obrigado, Mr. Bingham.
BINGHAM: Não tem de quê.
Gravação DPNI-SIS 146-83C.
HASKINS: Foi um tempo infinito, uma eternidade. Todo aquele barulho, fogo e confusão. Mas fiz o que o Duque me dissera e fiquei ali no patamar do segundo andar.
PERGUNTA: Confiava nele?
HASKINS: Claro, seu tolo! Se não se pode confiar num homem como o Duque, em quem é que se há-de confiar? Portanto, ele desceu do quarto andar, como eu sabia que ele faria, e disse-me: "É melhor tirares a máscara, pores as mãos no ar e saíres lentamente pela porta da frente."
PERGUNTA: Por que é que não o fez? Era um bom conselho.
HASKINS: Eu sei que era, eu sei que era. Na altura, eu sabia que era. Mas não consigo explicar como este homem Anderson me fazia
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sentir. Ele fazia-me esquecer a cautela e tornava-me disposto a correr riscos. Compreende?
PERGUNTA: Infelizmente, não.
HASKINS: Oh,Tommy,Tommy... ele fazia-me ter tomates! Bem, em todo o caso, quando eu não me mexi, vi-o sorrir, e ele disse: "Pelas traseiras." Assim, tirámos as máscaras e as luvas, corremos pela escada abaixo, saímos pela entrada de serviço, começámos a trepar pela parede de trás... e, de repente, havia dezoito milhões de polícias com lanternas nas nossas caras e armas a disparar, e então eu pus as mãos no ar o mais alto que pude e comecei a gritar: "Eu rendo-me! Eu rendo-me!" Oh, meu Deus, Tommy, foi tão dramático!
PERGUNTA: E que aconteceu a Anderson?
HASKINS: Não sei, realmente. Num momento, ele estava ali a meu lado, no momento seguinte tinha desaparecido. Ele simplesmente desapareceu.
PERGUNTA: Mas você confiava nele?
HASKINS: Claro.
PDNI-146-113A-114G, interrogatório de Gerald Bingham Jr.
TESTEMUNHA: O barulho parou subitamente. Deixou de haver tiros e gritos. Estava tudo muito sossegado. Pensei que estivesse tudo terminado. Eu ainda estava deitado na cama. Estava muito molhado, a transpirar... Depois, subitamente, a porta da frente bateu. Ele atravessou o apartamento a correr, passou pelo meu quarto, saiu para a varanda. Ele não disse nada. Nem sequer olhou para mim. Mas eu sabia que era ele...
Depoimento de Irving K. Mandelbaum, residente no apartamento 6C, 73ª Avenida nº 537, Nova Iorque, Nova Iorque. Esta transcrição está classificada DPNI146-IKM123GT.
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TESTEMUNHA: Que noite. Que noite. Quero dizer, não fomos passar o fim-de-semana fora. Vamos ficar na cidade, pensei eu. Vamos ter um fim-de-semana calmo. Sem trânsito. Sem confusão. Sem multidões. Estará tudo sossegado. Estávamos na cama. Compreende? Cinco polícias armados como se fosse a invasão da Normandia atravessam o quarto e saem pela janela. Tudo bem. Eu sou um bom cidadão, respeitador da lei. Estou com eles. Levantámo-nos da cama. Gretchen foi para a casa de banho enquanto os polícias saltavam pela janela. Ao menos, um dos shvartzes1 teve a decência de dizer "Desculpe tudo isto, amigo". A Gretchen saiu da casa de banho e disse: "Vamos voltar para a cama." E então começou o fogo de artifício. Tiros, luzes, gritos... tudo tirado de um filme da Warner Brothers dos finais da década de 30 de que gosto muito... sabe, uma coisa com James Cagney e Chester Norris. Levantámo-nos da cama. Ficámos a ver tudo isto das janelas da frente, compreende. Foi muito excitante. Que fim-de-semana! Depois, acabou-se tudo. Acabaram-se os tiros. Acabaram-se os gritos. E então a Gretchen disse: "Vamos voltar para a cama!" Assim fizemos. Cerca de cinco minutos mais tarde, entra um tipo pela janela do quarto, içando-se para dentro. Tinha uma arma na mão. Eu e a Gretchen levantámo-nos da cama. Ele disse: "Se dizem uma palavra, estão mortos." Por isso, naturalmente que nem sequer lhe disse que estava bem. Um segundo depois, ele desapareceu. A Gretchen disse: "Vamos voltar para a cama?" E eu disse: "Não, querida, acho que agora vou beber uma garrafa de uísque." Mas que aventura!
Depoimento do agente John Similar, insígnia 35674262, motorista da viatura George Dezanove, Documento DPNI-146-332S.
"Eu estava parado com o meu companheiro, o agente Percy H. Illingham, insígnia nº 45768392, na viatura George Dezanove, a bloquear a saída da 73ª Avenida Leste e a Avenida End Leste. Tínhamos recebido ordens para colocar a nossa viatura atravessada na 73ª Avenida para impedir a entrada e a saída da rua. Tínhamos sido informados sobre a acção a decorrer.
"Aproximadamente aos trinta minutos depois das quatro horas da manhã do dia 1 de Setembro de 1968, um homem (branco, cerca um metro e oitenta, 90 quilos, casaco e calças pretas) aproximou-se de nós, vindo pelo passeio, o passeio sul da 73ª Avenida Leste. O Percy disse: "É melhor eu ir verificar quem é." Ele abriu a porta do
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seu lado do automóvel. Quando punha os pés na rua, o homem tirou a arma do bolso e disparou directamente sobre o agente Illingham. O agente Illingham caiu ao chão. Um exame subsequente provou que ele tinha morrido.
"Saí então da minha viatura, pelo meu lado, e disparei três vezes sobre o suspeito com o meu revólver de serviço (número de série 17189653), ao mesmo tempo que ele disparou um tiro que me atingiu na coxa e me fez cair ao chão. Ele começou então a correr e, enquanto eu tentava fazer novamente pontaria sobre ele, desapareceu na esquina da 73ª Avenida e da Avenida End Leste.
"Eu fiz o que pude."
O manuscrito seguinte foi-nos disponibilizado com a colaboração do seu autor, o Dr. Dmitri Rubicoff, psiquiatra, com consultório na 73ª Avenida Leste nº 535, Cidade de Nova Iorque. É parte de um discurso feito pelo Dr. Rubicoff na noite de 13 de Dezembro de 1968, numa reunião da Sociedade de Psicopatologia de Nova Iorque. Esta é uma associação informal de psiquiatras e psicólogos da zona de Nova Iorque, que se reúne regularmente para jantar num dos maiores hotéis de Manhattan com o fim de trocar experiências e ouvir o discurso de um dos seus membros, o qual se torna o tema de uma mesa-redonda.
O discurso do qual os comentários seguintes foram retirados (com autorização do Dr. Rubicoff) foi feito por ele na reunião da sociedade que teve lugar na Sala Hunt do Hotel President Fillmore. É uma reprodução exacta da transcrição dactilografada do discurso, disponibilizada ao autor pelo Dr. Rubicoff.
"Excelentíssima Senhora Presidente - embora eu há muito pense que este título contém uma anomalia sexual!"
(Pausa para riso.)
"Caros colegas, minhas senhoras e meus senhores. Depois de um jantar destes, talvez um arroto fosse mais apropriado do que um discurso!"
(Pausa para riso.)
"Devo agora dizer que acho que devemos todos fazer um voto de agradecimento à Comissão de Festas que organizou este banquete Luculiano."
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(Pausa para aplauso.)
"Na verdade, estou certo de que me compreenderão se eu puser em causa se o seu motivo foi alimentar-vos bem ou embotar a vossa sensibilidade para os comentários que vou fazer!"
(Pausa para risadas.)
"Em todo o caso, é agora a minha vez de oferecer a sobremesa intelectual de uma refeição física tão deliciosa, e eu tentarei fazer o melhor possível.
"Como alguns de vós certamente têm conhecimento, eu fui recentemente uma das vítimas de um crime que teve lugar na Cidade Nova Iorque na noite e madrugada dos dias 31 de Agosto e 1 de Setembro deste ano. Os meus comentários esta noite dizem respeito às minhas reflexões sobre esse crime, sobre o crime em geral, e como a nossa profissão pode contribuir para a descida da criminalidade na nossa sociedade.
"Garanto-vos que os meus comentários serão breves - muito breves!"
(Possível pausa para aplauso.)
"Os pensamentos que vos apresento são pura teoria. Não fiz qualquer investigação sobre o assunto. Não consultei nenhuma autoridade consagrada. Limito-me a apresentá-los como o que eu penso serem ideias originais - reacções à minha experiência, se quiserem -que servirão de tema à discussão que se seguirá. Escusado será dizer que estou vivamente interessado nas vossas reacções.
"Em primeiro lugar, não há nada de novo na sugestão de que as aberrações sexuais são a motivação subjacente ao comportamento criminoso. O que gostaria agora de sugerir é uma relação muito mais próxima entre o sexo e o crime. De facto, eu sugiro que o crime - na sociedade moderna - se tornou um substituto para o sexo.
"O que é o crime? O que é o sexo? O que têm eles em comum? Eu sugiro que partilham ambos uma característica comum - uma característica principal - a penetração. O assaltante de um banco entra, pela força, num cofre. O assaltante de uma casa entra, pela força, numa casa ou num apartamento. O assaltante apodera-se, à força, da nossa carteira. E sua intenção penetrar no nosso corpo na nossa privacidade.
"Até mesmo os crimes mais complexos incluem este motivo de penetração. O vigarista invade a riqueza da sua vítima-seja ela um cofre de parede ou a conta de poupança. O contabilista criminoso viola a empresa onde trabalha. O funcionário público que comete uma fraude invade o corpo da sociedade.
"Na realidade, um termo utilizado para o mais comum dos crimes
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- assalto com arrombamento - é a descrição perfeita do desfloramento de uma virgem.
"Por isso, a minha sugestão esta noite é que cometer um crime é um substituto para o acto sexual, cometido por pessoas a quem, consciente, inconsciente, ou subconscientemente, esta actividade quase sexual proporciona um prazer extremo.
"Uma vez cometido o crime - que sucede? O acto sexual terminado - que se segue? Em ambos os casos, o que sucede à penetração é semelhante. Fuga e retirada. Sair. Uma partida apressada e por vezes uma separação difícil, seja ela física ou emocional.
"Eu sugiro que a prática de um crime sexual - e eu estou convencido de que todos os crimes são sexuais-é o mais fácil para o protagonista perturbado. A retirada, a fuga, é muito mais difícil.
"Considerando, pois, os complexos puritanos da maioria dos americanos, a retirada ou fuga envolve o reconhecimento da culpa, um desejo emocional de castigo, um insistente e terrível desejo de ser apanhado e exposto publicamente.
"Sexo e crime. Penetração e retirada. Parece-me que estão irrevogavelmente interligados. Agora, se me permitem, gostaria de dizer mais algumas coisas..."
Extracto do relatório final do comandante Edward X. Delaney, DPNI-EXD-1SET1968.
"Eram agora, calculo, cerca de 4.45 da manhã. Já não estávamos a ser alvo de disparos vindos da janela do quarto andar. Subitamente, ouvimos o som de vários tiros vindos da 73ª Avenida Leste e Avenida End Leste. Enviei imediatamente os agentes Oliver J. Kronen (insígnia 76398542) e RobertL. Breech (insígnia 92356762) para investigar. O agente Kronen voltou alguns momentos depois e comunicou-me que um agente tinha sido morto, e um outro ferido na coxa. Tinham ambos estado na viatura George Dezanove, abloquear a saída da 73ª Avenida naquela esquina.
"Contactei imediatamente o meu posto de comando através do walkie-talkie. Dei instruções ao meu motorista, o agente McClaire, para que enviasse a ambulância para a esquina da Avenida End Leste. Ele acusou a recepção da mensagem. Também lhe dei instruções
1. Em inglês breaking and entering, à letra, arrombamento e penetração. (N. da T.)
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para que informasse o Centro de Comunicações da situação e lhes pedisse que a transmitissem ao inspector Abrahamson e ao subdelegado Beatem. Ele acusou a recepção das instruções.
"Conduzi imediatamente um grupo de seis homens armados para o edifício da 73ª Avenida Leste nº 535. Passámos pelo corpo do mascarado que tinha sido morto ao tentar fugir. Investigações posteriores provaram ser Samuel "Skeets" Johnson, um negro. Entrámos seguidamente no átrio, onde encontrámos um homem branco sentado no chão do átrio, de costas contra a parede e com os braços levantados. Foi preso. Investigações posteriores provaram ser Ernest Heinrich Mann.
"Nessa altura, o meu grupo juntou-se aos homens do Corpo Táctico de Patrulha que descera pela varanda e aos homens que tinham sido colocados nas traseiras do edifício. Estes homens tinham preso um outro suspeito, Thomas J. Haskins.
"Revistámos todo o prédio e encontrámos o supervisor a dormir no apartamento da cave. Também encontrámos alguns dos moradores e o porteiro no apartamento 4A. Um dos moradores, Gerald Bingham Sr., estava ferido e aparentemente em estado de choque. O seu olho direito estava a sangrar muito. Além dos indivíduos que tinham sido mantidos cativos neste apartamento, havia também um mascarado deitado no chão, ferido com gravidade. Foi-me dito por testemunhas que ele fora alvejado duas vezes por outro mascarado.
"Dei então instruções a um agente para que fosse lá fora pedir mais três ambulâncias para facilitar a remoção dos mortos e dos feridos - agentes, criminosos e vítimas inocentes.
"O interrogatório preliminar feito às vítimas revelou que havia outro homem (mais tarde identificado como John "Duque" Anderson) que tinha estado presente durante o crime e que tinha, aparentemente, fugido. Calculei que fosse o homem responsável pela morte do agente Illingham e pelo ferimento do agente Similar da viatura George Dezanove, na esquina da 73ª Avenida e da Avenida End Leste. Perante isto, saí do prédio de apartamentos e, utilizando um walkie-talkie, ditei um alerta ao agente McClaire, a ser transmitido ao Centro de Comunicações. Descrevi o suspeito tal como as testemunhas mo tinham descrito. O agente McClaire acusou a recepção, e eu fiquei junto do rádio até ele ter comunicado que o Centro de Comunicações - com o tenente Finneally no comando - acusara a recepção da mensagem e que estava a alertar todas as esquadras e sectores.
"Quando as ambulâncias chegaram, fiz seguir os feridos imediatamente - e, mais tarde, os mortos. Gerald Bingham, Sr., o morador ferido, e o suspeito ferido (mais tarde identificado como Vincent
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"Socks" Parelli, de Detroit) partilharam a ambulância para o Hospital Mother of Mercy.
"Voltei então para o meu posto de comando na esquina da Avenida York e da 73ª Avenida Leste. Através do Centro de Comunicações, alertei Homicídios Leste, o Laboratório da Polícia, o Gabinete do procurador distrital de Manhattan, e a Divisão de Relações Públicas. Nesta altura-passava pouco das 5 da manhã-não havia qualquer relatório sobre o paradeiro do suspeito que fugira, John Anderson."
A seguinte é a transcrição de uma gravação pessoal feita pelo autor no dia 6 de Novembro de 1968. Tanto quanto eu saiba, o depoimento que contém não está duplicado em nenhum registo, depoimento ou transcrição oficial.
AUTOR: Esta será a gravação GO-2B. Importa-se de se identificar, por favor, e de dizer onde reside?
TESTEMUNHA: O meu nome é Ira P. Mayer e vivo na 2ª Avenida Leste nº 1260.
AUTOR: Obrigado, Mr. Mayer. Conforme já lhe expliquei, esta gravação será utilizada única e exclusivamente por mim, para preparação de um registo de um crime ocorrido na Cidade de Nova Iorque na noite e manhã de 31 de Agosto e 1 de Setembro de 1968. Eu não sou agente de qualquer ramo do Governo... municipal, estatal ou federal. Não lhe vou pedir que jure que o depoimento que está prestes a fazer é verdadeiro, nem o vou utilizar em qualquer tribunal ou processo legal. A declaração será feita apenas para minha utilização pessoal e não será publicada sem a sua autorização, a qual só pode ser obtida através de uma declaração escrita sua, concordando com essa utilização. Em troca, eu paguei-lhe a quantia de cinquenta dólares, sendo este montante pago quer concorde ou não com a publicação da sua declaração. Isto é claro?
TESTEMUNHA: É, sim.
AUTOR: Óptimo. Agora, Mr. Mayer, onde estava cerca das cinco horas da manhã do dia 1 de Setembro de 1968?
TESTEMUNHA: Eu ia para casa. Descia a Avenida End Leste.
AUTOR: E onde tinha estado antes desta hora?
TESTEMUNHA: Bem, eu estava a trabalhar. Normalmente, eu não estaria a trabalhar num fim-de-semana longo, compreende,
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mas havia tantos homens de folga ou de férias... tirando o fim-de-semana do Dia do Trabalho, compreende, que o patrão me pediu que fizesse o turno da noite. Eu sou padeiro e trabalho na padaria Leibnitz, na Avenida End Leste nº 740. Isto fica na 115ª Avenida. A minha mulher estava à espera da sua sétima criança, e a minha segunda mais velha... havia esta enorme conta do dentista. Por isso eu precisava do dinheiro, compreende, por isso disse que ia trabalhar. O sindicato diz que recebemos a triplicar por trabalhar à noite num feriado e, além disso, o patrão disse que me daria mais vinte. Foi por isso que trabalhei das quatro da tarde do dia 31 de Agosto às quatro da manhã seguinte.
AUTOR: O senhor disse que é padeiro. O que faz?
TESTEMUNHA: Pãezinhos, pães de cebola... coisas assim.
AUTOR: E que fez depois de acabar o trabalho às quatro da manhã do dia 1 de Setembro?
TESTEMUNHA: Lavei-me e mudei de roupa, vesti a minha roupa de sair. Parei para beber uma cerveja com os rapazes no vestiário. Não há bares abertos àquela hora, compreende, mas nós temos um frigorífico e temos lá cerveja. Damos um dólar por semana cada um. O patrão sabe, mas não se importa, desde que ninguém se embriague. Isso nunca acontece. Bebemos só uma cerveja ou duas antes de ir para casa. Assim para descontrair. Compreende? Por isso, bebi uma cerveja, meti-me no carro e segui para sul, ao longo da Avenida End Leste. Quando vou trabalhar, vou geralmente pela 1ª Avenida e, depois do trabalho, vou para casa pela End Leste.
AUTOR: E que aconteceu aproximadamente às cinco da manhã do dia 1 de Setembro?
TESTEMUNHA: Parei num semáforo vermelho numa esquina da 74ª Avenida. Comecei a acender um cigarro. Depois, subitamente, a porta do lado do passageiro abriu-se e estava um homem ali de pé. Ele tinha uma arma e apontou-a para mim. Tinha a arma na mão direita e tinha o braço esquerdo à frente, como se estivesse a segurar a barriga.
AUTOR: Pode descrever esse homem?
TESTEMUNHA: Talvez um metro e oitenta. Magro. Sem chapéu. Tinha o cabelo curto... com um corte à escovinha. Feições angulosas. Ar de mau. Compreende?
AUTOR: Que é que ele tinha vestido?
TESTEMUNHA: Era quase tudo preto. Casaco preto, camisola de gola alta preta, calças pretas, sapatos pretos. Mas ele era branco. Compreende?
AUTOR: E ele abriu a porta do lado do passageiro do banco da frente e apontou a arma para si?
TESTEMUNHA: Exactamente.
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AUTOR: Isto foi na esquina da 74ª Avenida e da Avenida End Leste, quando parou num semáforo?
TESTEMUNHA: Exactamente. Eu estava só a acender um cigarro.
AUTOR: E qual foi a sua reacção?
TESTEMUNHA: A minha reacção? Bem, eu pensei imediatamente que era um assalto. Por que outro motivo é que um tipo abriria a porta do meu carro e me apontaria uma arma?
AUTOR: Como é que reagiu?
TESTEMUNHA: Como é que eu reagi? Senti-me mal. Tinha acabado de receber. com o dinheiro pago em triplicado e o bónus, levava quase quatrocentos dólares. Eu precisava daquele dinheiro. E eu pensei que este tipo mo ia tirar.
AUTOR: Ter-lho-ia dado? Se ele lhe tivesse pedido o dinheiro?
TESTEMUNHA: Claro que lho teria dado. Que outra coisa havia de fazer?
AUTOR: Mas ele não lhe pediu o dinheiro?
TESTEMUNHA: Não. Ele entrou para o assento ao lado de mim e encostou-me a arma às costelas. Bateu com a porta do seu lado com a mão esquerda, depois voltou a levar a mão à barriga.
AUTOR: Que é que ele disse?
TESTEMUNHA: Ele disse: "Quando o sinal mudar, segue para l sul como tens vindo a fazer. Não conduzas demasiado depressa e não passes sinais vermelhos. Eu digo-te quando for para virar." Foi isso que ele disse.
AUTOR: Que é que o senhor disse?
TESTEMUNHA: Eu disse: "Quer o meu dinheiro? Quer o meuf carro? Leve-os e deixe-me ir embora." E ele disse: "Não, tu tens de conduzir. Eu não posso conduzir. Estou ferido." E eu disse: "Quer ir- para o hospital? O Mother of Mercy fica só cinco quarteirões lá atrás. i Eu levo-o lá." E ele disse: "Não, continua a guiar para onde eu te disser." E eu disse: "Vai-me matar?" E ele disse: "Não, não te vou matar se fizeres o que eu te disser."
AUTOR: E acreditou nele?
TESTEMUNHA: Claro que acreditei nele. Que mais havia de fazer numa situação daquelas? Compreende? Claro que acreditei nele.
AUTOR: Que aconteceu a seguir?
TESTEMUNHA: Fiz o que ele disse. Quando o sinal mudou, dirigi-me para sul. Conduzi dentro do limite de velocidade legal, por isso apanhámos todos os sinais.
AUTOR: Suponho que não havia muito trânsito num domingo àquela hora?
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TESTEMUNHA: Trânsito? Não havia trânsito nenhum. Tínhamos a cidade toda por nossa conta.
AUTOR: Ele disse alguma coisa enquanto iam no carro?
TESTEMUNHA: Uma vez. Foi talvez perto das Sexagésimas Avenidas. Perguntou-me como me chamava e eu disse-lhe. Perguntou-me se era casado, e disse-lhe que era e que tinha seis miúdos e mais um a caminho. Pensei que talvez ele sentisse pena de mim e não me matasse. Compreende?
AUTOR: Foi tudo o que ele disse?
TESTEMUNHA: Sim, foi tudo o que ele disse. Mas uma vez ele gemeu. Olhei de lado para ele, durante apenas um segundo, e havia sangue a escorrer no meio dos dedos dele. Quando ele segurava a barriga com a mão, eu conseguia ver o sangue a sair por entre os dedos. Vi que estava muito ferido e tive pena dele.
AUTOR: Depois o que aconteceu?
TESTEMUNHA: Na 51ª Avenida ele disse-me que virasse à direita e seguisse para oeste ao longo da 57ª Avenida, por isso foi o que eu fiz.
AUTOR: A voz dele estava firme?
TESTEMUNHA: Firme? Claro que estava firme. Baixa, talvez, mas firme. E a arma encostada às minhas costelas também. Por isso atravessámos a cidade pela 57ª Avenida. Quando chegámos à
9ª Avenida, ele disse-me que virasse à esquerda e seguisse para a baixa. Fiz o que ele disse.
AUTOR: Que horas eram?
TESTEMUNHA: Horas? Oh, cinco e meia. Por volta disso. Estava a ficar claro.
AUTOR: Que aconteceu então?
TESTEMUNHA: Eu conduzi com muito, muito cuidado, por isso passámos todos os sinais. Ele disse-me que parasse na 24ª Avenida.
AUTOR: Em que lado?
TESTEMUNHA: Lado oeste. À direita. Parei junto do passeio. Este estava do lado dele. Ele abriu a porta com a mão direita, a mão com que segurava a arma.
AUTOR: Não pensou em atacá-lo nesse momento?
TESTEMUNHA: O senhor é maluco? Claro que não. Ele saiu e fechou a porta. Inclinou-se à janela. "Continua a conduzir. Eu fico aqui a ver, para ter a certeza de que não paras."
AUTOR: Que fez o senhor então?
TESTEMUNHA: Que acha? Continuei a guiar. Segui para sul até à 16ª Avenida até que calculei que ele já não conseguia ver-me. Por isso parei e entrei numa cabina telefónica que havia no passeio. Havia um aviso dizendo que se podia ligar para o nove-um-um, o número de emergência da Polícia, sem precisar de moedas. Por isso
206
chamei a Polícia. Quando eles atenderam, contei-lhes o que tinha acontecido. Eles perguntaram-me o meu nome e endereço, e eu dei-lhos. Perguntaram-me onde é que eu estava, e eu disse-lhes. Eles disseram-me que ficasse onde estava, que um carro viria imediatamente ter comigo.
AUTOR: E depois?
TESTEMUNHA: Voltei para o meu carro. Resolvi ficar sentado no carro a tentar acalmar-me até os polícias chegarem. Eu estava trémulo... compreende? Tentei acender o cigarro outra vez... não chegara a acendê-lo... mas, nessa altura, olhei para o assento em que ele se tinha sentado. Havia uma poça de sangue no assento e estava a pingar para o tapete. Saí do carro e esperei no passeio. Deitei o cigarro fora.
Vincent "Socks" Parelli deu entrada nas Urgências do Hospital Mother of Mercy, 79ª Avenida e Avenida End Leste, às 5.23 da manhã do dia 1 de Setembro de 1968. Foi declarado MAC (Morto à Chegada) mas um exame subsequente efectuado pelo Dr. Samuel Nathan revelou um pulso fraco e uma ligeira batida cardíaca. Foram imediatamente ministrados estimulantes e plasma, e Parelli foi levado para a Enfermaria de Segurança Máxima, no segundo andar. Após novo exame, o Dr. Nathan declarou que o prognóstico era negativo. Parelli tinha recebido dois tiros, tendo uma bala penetrado aparentemente nos pulmões e a outra perfurado o baço.
Às 5.45 da manhã, a cama ocupada por Parelli foi rodeada de biombos. Neste recinto, além do Dr. Nathan, estavam o Dr. Everell Brisling (interno) a enfermeira Sarah Pagent, ambos membros do pessoal do Mother of Mercy; o procurador distrital adjunto, Ralph Gimle, do Gabinete do procurador distrital de Nova Iorque; o detective de primeira classe, Robert C. Lefferts de Homicídios Leste; o detective de segunda classe, Stanley Brown, da 251ª Esquadra; o agente Ephraim Sanders (nenhuma relação com o autor) da
251ª Esquadra; e o guarda de segurança Barton McCleary, também do pessoal do Mother of Mercy.
A gravação seguinte, feita pelo Gabinete do procurador distrital de Nova Iorque, está classificada PDNI-VP-DeBest. Está datada 6.00, 1 de Setembro de 1968.
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GIMBLE: Que se passa?
NATHAN: Ele está à morte. Já devia estar morto.
LEFFERTS: Não pode fazer nada?
NATHAN: Já fizemos tudo o que podemos.
GIMBLE: Será que ele vai recuperar a consciência?
NATHAN: Brisling?
BRISLING: Talvez, mas eu duvido.
GIMBLE: Temos de o interrogar.
NATHAN: Que querem que eu faça? Eu não sou Deus.
BRISLING: Deixem o homem morrer em paz.
BROWN: Não, que diabo. Um polícia foi morto. Acordem-no. Façam-no acordar. Temos de descobrir o que se passou, por que motivo levou os tiros. Isto é importante.
BRISLING: Doutor?
(Pausa de sete segundos.)
NATHAN: Está bem. Enfermeira?
PAGENT: Doutor?
NATHAN: Cinquenta ccs. Tem?
PAGENT: Tenho, sim, Doutor.
NATHAN: Dê-lhe.
(Pausa de vinte e três segundos.)
NATHAN: Pulso?
BRISLING: Talvez um pouco mais forte. O coração ainda está a fraquejar.
GIMBLE: As pestanas mexeram-se. Eu vi-as mexer.
LEFFERTS: Parelli? Parelli?
NATHAN: Não o empurre. BROWN: Ele está a morrer, não está?
NATHAN: Mas não lhe toque. Ele é um doente deste hospital, está sob os meus cuidados.
PARELLI: Guh... guh....
GIMBLE: Ele disse qualquer coisa. Eu ouvi-o dizer qualquer coisa.
LEFFERTS: Não fazia sentido. Sanders, coloca o microfone mais perto da boca dele.
PARELLI: Ah... ah...
BROWN: Tem os olhos abertos.
GIMBLE: Parelli, Parelli, quem te deu os tiros? Quem foi? Porquê?
PARELLI: Guh... guh...
BRISLING: Isto é obsceno.
LEFFERTS: Quem é que planeou tudo, Parelli? Quem financiou? Quem estava por detrás, Parelli? Ouves-me?
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PARELLI: Subida. Nenhum homem consegue o prédio. Eu disse para a bicicleta de nenhum miúdo pode ser para a mãe.
GIMBLE: O quê? O quê?
PARELLI: Ou fazer um lago. Nós vemos hoje não para pistola se ela fizer.
LEFFERTS: Não lhe pode dar outra injecção, Doutor?
NATHAN: Não.
PARELLI: Guh... guh...
BRISLING: Fibrilações.
PAGENT: O pulso está a falhar e está intermitente.
NATHAN: Ele está a ir-se.
BROWN: Parelli, escuta. Parelli, consegues ouvir-me? Quem te deu os tiros, Parelli? Quem financiou? Quem te trouxe para cá de Detroit? Parelli?
PARELLI: Eu nunca pensei fazê-lo. E depois estava na rua onde, Louise? Vimos o carro céu e o quê. Mamã. No céu. Estava lá. A mudança nunca podia. Algum dia ela. Filho da mãe. Eu penso que devia.
PARELLI: Quem, Parelli? Quemi é que o fez?
PARELLI: Um pássaro a cantar até, se voar, a rapariga nunca há-de cantar.
NATHAN: Enfermeira?
PAGENT: Não tem pulso.
NATHAN: Brisling?
BRISLING: O coração parou.
(Pausa de nove segundos.)
NATHAN: Morreu.
LEFFERTS: Merda.
Memorando (confidencial) EXD, datado de 14 de Dezembro de
1968, de Edward X. Delaney, comandante, DPNI, para o comissário da Polícia, DPNI, com cópias confidenciais para o subdelegado Arthur C. Beatem e o inspector chefe L. David Whichcote.
"Este documento deve ser considerado a Adenda 19-B ao meu relatório final DPNI-EXD-1SET-1968.
"Foi-me chamada a atenção para o facto de que a tentativa de assalto ao edifício nº 535 da 73ª Avenida Leste, Cidade de Nova Iorque, em 31 de Agosto - 1 de Setembro de 1968, talvez pudesse ter sido evitada se houvesse uma maior cooperação entre agências dos
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Governos municipais, estatais e federais e agências de investigação privadas. Junta-se em anexo uma lista das agências envolvidas.
"Embora, neste momento, não possa revelar a identidade do meu informador, posso afirmar, sem receio de contradição, que, durante vários meses anteriores ao crime, as agências acima referidas se encontravam na posse de determinados factos (em fita gravada ou transcrições) relativos ao crime planeado, obtidos através de escutas telefónicas e outros dispositivos electrónicos de vigilância.
"É certo que nenhuma das agências estava na posse de todos os factos ou de todos os pormenores relativos ao crime - tais como endereço, dia e hora, pessoal envolvido, etc. No entanto, se existisse uma central (computadorizada, talvez?) de vigilância electrónica, eu não tenho dúvidas de que o crime em causa teria sido evitado.
"Recomendo vivamente que seja convocada imediatamente uma reunião de representantes de organismos de cumprimento da lei dos Governos municipais, estatais e federais, para reflectir como poderá ser implementada uma central para os resultados da vigilância electrónica. Eu estou disposto a ajudar, por qualquer meio possível, a organizar um projecto destes, pois tenho várias ideias definidas sobre como ele deveria ser estruturado.
Aproximadamente 5.45 da manhã. O apartamento de Ingrid Macht, 24ª Avenida Oeste nº 627, Nova Iorque, Nova Iorque. Esta é a gravação CTC-1SCV68-IM-5.45-196L.
(Som de campainha da porta.) (Pausa de onze segundos.) (Som de campainha da porta.) (Pausa de oito segundos.) INGRID: Sim? ANDERSON: Duque.
INGRID: Duque, eu estou a dormir. Estou muito cansada. Por favor, telefona-me mais tarde.
ANDERSON: Queres que dê cabo da fechadura com um tiro? INGRID: O quê? Que é que estás a dizer, Duque? (Pausa de seis segundos.) INGRID: Oh, meu Deus.
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ANDERSON: Sim. Fecha a porta à chave. Põe a corrente. As persianas estão corridas?
INGRID: Estão.
ANDERSON: Arranja-me qualquer coisa... umas toalhas. Eu não quero pingar a tua carpete branca.
INGRID: Oh, Schatzie, Schatzie...
(Pausa de nove segundos.)
INGRID: Meu Deus, estás ensopado. Aqui... deixa...
ANDERSON: Já não é tão mau. Está dentro agora...
INGRID: Arma de fogo ou branca?
ANDERSON: De fogo.
INGRID: Quantos?
ANDERSON: Dois. Um em cima, mesmo debaixo do coração. O outro em baixo, de lado.
INGRID: Saíram?
ANDERSON: O quê? Acho que não. Brande. Arranja-me um brande.
INGRID: Sim... deixa-me ajudar-te a sentar. Assim. Não te mexas.
(Pausa de catorze segundos.)
ANDERSON: Aqui. Queres que segure?
ANDERSON: Eu consigo. Ah, meu Deus... isto ajuda.
INGRID: Dói muito?
ANDERSON: A princípio tinha vontade de gritar. Agora é apenas uma dor surda. Uma grande escuridão lá dentro. Estou a sangrar lá dentro. Sinto-o todo a sair... a espalhar-se.
INGRID: Eu conheço um médico...
ANDERSON: Esquece. Não vale a pena. Estou a ir-me...
INGRID: E tiveste que vir aqui...
ANDERSON: Sim. Ah... meu Deus! Sim, como um cão a arrastar-se para poder morrer em casa.
INGRID: Tiveste que vir aqui. Porquê? Para me fazeres pagar pelo que fiz?
ANDERSON: Pelo que fizeste? Oh, não. Eu esqueci isso há muito tempo. Não foi nada.
INGRID: Mas tiveste que vir aqui.
ANDERSON: Sim. Vim para te matar. Estás a ver? Aqui... olha... Faltam duas. Eu disse-te que te faria evadir um dia. Eu prometi-te...
INGRID: Duque, tu não estás a fazer sentido.
ANDERSON: Oh, sim. Oh, sim. Se eu disser... Ah, meu Deus... a escuridão... Estou a ouvir o vento. Tens vontade de gritar? Queres ir para o outro quarto e talvez saltar da janela?
INGRID: Ah, Schatzie, Schatzie... tu conheces-me melhor que isso...
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ANDERSON: Conheço-te melhor... melhor que isso...
INGRID: Está a doer mais agora?
ANDERSON: A dor vem em ondas, como ondas negras. É como o mar. Estou realmente a ir-me, a ir-me. Ah, meu Deus...
INGRID: Correu tudo mal?
ANDERSON: Correu. Estávamos tão próximo... tão próximo... Mas correu mal. Não sei porquê... Mas, durante um minuto, eu tinha tudo na mão. Tinha tudo.
INGRID: Sim. Tinhas tudo na mão... Duque, eu tenho alguma droga. Algum schmeck. Queres um chuto? Tornará as coisas mais fáceis.
ANDERSON: Não, não, eu consigo suportar. Não é assim tão mau.
INGRID: Dá-me a arma, Schatzie.
ANDERSON: Eu estava a falar a sério.
INGRID: De que é que isso serve? Como é que isso vai ajudar?
ANDERSON: Eu prometi. Dei a minha palavra. Prometi-te...
(Pausa de sete segundos.)
INGRID: Está bem. Se é o que tens que fazer. De qualquer modo, está tudo acabado para mim. Mesmo se morresses aqui neste instante, estaria tudo acabado para mim.
ANDERSON: Morresse? Este é o meu fim, então? Já não há mais nada?
INGRID: Sim. O fim do John Anderson. Já não há mais nada. E o fim da Ingrid Macht. E da Gertrude Heller. E da Bertha Knobel. E de todas as mulheres que tenho sido na minha vida. O fim de todos nós. Já não há mais nada.
ANDERSON: Estás com medo?
INGRID: Não. Assim é melhor. Tu tens razão. Assim é melhor. Estou cansada, não tenho dormido bem ultimamente. Isto será um bom sono. Não me vais magoar, Schatzie?
ANDERSON: Será rápido.
INGRID: Sim... Rápido. Na cabeça, suponho. Aqui... vê... vou-me ajoelhar à tua frente. A tua mão vai ser firme?
ANDERSON: A minha mão vai ser firme. Podes contar comigo.
INGRID: Eu pude sempre contar contigo. Duque, lembras-te daquele dia no parque? Do piquenique que fizemos?
ANDERSON: Lembro-me.
INGRID: Por um momento lá... por um momento...
ANDERSON: Eu sei... eu sei...
INGRID: Acho que me vou voltar agora, Schatzie. vou pôr-me de costas para ti. Não sou tão corajosa como pensava. vou pôr-me de joelhos aqui, de costas para ti, e vou falar. Direi tudo o que me vier à mente. E vou continuar a falar e então tu... Compreendes?
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ANDERSON: Compreendo.
INGRID: O que era tudo afinal, Duque? Houve uma altura em que eu pensei que sabia. Mas agora não tenho a certeza. Sabes, os húngaros têm um ditado: "Antes de se ter oportunidade de olhar em volta, o piquenique já acabou." Aconteceu tudo tão depressa, Duque. Como um sonho. Como é que os dias passam tão devagar e os anos voam? A vida para mim tem sido um osso entalado na garganta. Houve pequenos momentos, como aquela tarde no parque. Mas, na maior parte, foi dor... foi dor... Duque, por favor... agora... não esperes mais. Por favor, Duque? Schatzie? Duque, eu...
(Pausa de cinco segundos.)
INGRID: Ah. Ah. Foste-te embora, Duque? Foste finalmente? Mas eu estou aqui. Estou aqui...
(Pausa de um minuto e catorze segundos.)
(Som de telefone a ser discado.)
VOZ: Departamento da Polícia de Nova Iorque. Em que posso ser-lhe útil?
O corpo de John "Duque" Anderson foi transportado para a morgue da Cidade de Nova Iorque cerca das 7 horas da manhã do dia 1 de Setembro de 1968. Ingrid Macht foi levada para a Penitenciária para Mulheres, Avenida Greenwich nº 10. O apartamento situado na 24ª Avenida Oeste nº 627 foi então selado e um polícia foi colocado de guarda à porta.
Na manhã do dia 2 de Setembro de 1968, na sede da Polícia na Avenida Centre nº 240, realizou-se, cerca das 10 horas da manhã, uma reunião de representantes das autoridades interessadas, incluindo o Departamento da Polícia de Nova Iorque; o Gabinete do procurador distrital, Nova Iorque; o F. B. I; o Serviço de Contribuições e Impostos; o Gabinete Federal de Narcóticos; e a Comissão de Câmbios e Valores. Os representantes do Departamento de Polícia de Nova Iorque incluíam homens da 251ª Esquadra, do Grupo (Squad) de Narcóticos, de Homicídios Leste, de Homicídios Oeste, do Laboratório da Polícia e do Centro de Comunicações. Havia também um representante da Interpol. O autor foi autorizado a estar presente nesta reunião como observador.
Nesta altura, um grupo de dez homens tinha organizado e dirigido uma busca ao apartamento de Ingrid Macht, na 24ª Avenida Oeste nº 627, a qual devia começar às três horas da tarde do dia 2 de
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Setembro, e terminar quando todos os representantes presentes concordassem. O autor foi autorizado a estar presente como observador, mas não como participante activo na busca.
A busca do referido apartamento começou aproximadamente às
13.20 e foi, para minha satisfação, levado a cabo com técnica, rapidez e minuciosidade profissionais. Foram descobertas provas que ligavam definitivamente Ingrid Macht à entrada de narcóticos ilegais no país. Havia também algumas provas (suposições) de que Ingrid Macht também estava envolvida em prostituição na Cidade de Nova Iorque. Além disso, havia também provas (não conclusivas) de que Ingrid Macht também estava envolvida no roubo e venda de valores, incluindo acções e títulos de empresas e do Governo dos EUA.
Havia ainda algumas provas de que Ingrid Macht fazia agiotagem, emprestando dinheiro a pessoas que conhecia no salão de dança, a passadores de narcóticos e a outros indivíduos conhecidos dos agentes da lei. Para além de tudo isto, foram descobertas provas (insuficientes para a acusar em tribunal) de que ela fazia parte de uma rede de aborto que tinha a sede num pequeno motel de Nova Jérsia.
Durante a extremamente minuciosa busca ao apartamento, um detective da 251ª Esquadra descobriu um pequeno livro escondido debaixo da última gaveta de uma cómoda do quarto com cinco gavetas. À primeira vista, parecia ser apenas um diário. Este era, de facto, um volume com uma encadernação de imitação de cabedal (vermelho; impresso na capa: DIÁRIO PARA CINCO ANOS). Uma análise mais atenta demonstrou que era mais parecido com um livro de contabilidade, contendo pormenores dos negócios de Ingrid Macht com acções e valores.
Um exame rápido dos registos, que incluíam investimentos (quantias e datas) e vendas (quantias, datas e lucros), mostrou imediatamente que Ingrid Macht tinha tido êxito nos seus negócios. (Numa declaração à imprensa, um dos seus advogados de defesa estimou a sua fortuna pessoal como sendo "superior a 100 000 dólares").
O autor estava presente quando o "diário" foi descoberto, e teve oportunidade de o folhear rapidamente.
No interior da capa, na mesma letra que os outros registos, estava escrito: "O crime é a verdade. A lei é hipocrisia."
Lawrence Sanders
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