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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GRITO DO VENTO - P.2 / Sue Harrison
GRITO DO VENTO - P.2 / Sue Harrison

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

GRITO DO VENTO

Segunda Parte

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

Chakliux entrou no seu abrigo e, com uma irritação crescente, verificou que Estrela não desenrolara as peles da sua cama. O abrigo dele e o de Estrela ficavam em frente um do outro, e as aberturas quase se encontravam em volta de uma pequena lareira de aquecimento. Ghaden e Mordedor já estavam dormindo ao fundo do abrigo. Chakliux espiou através da fumaça e julgou ver Estrela e Yaa dormindo Estrela à frente, mais perto da lareira, e Yaa atrás dela

Chakliux regressara ao acampamento muito antes do anoitecer, mas sentara-se atrás da cabana, ao abrigo do vento, fazendo uma ponta de lança, até o pôr-do-sol. Os seus pensamentos, fortes e cheios de alento, concentraram-se em Aqamdax, e ele fora obrigado a refrear-se para não cantar, o que denunciaria a sua alegria.

Quando a escuridão se abateu sobre o acampamento, Espreita-o-Céu apareceu e pediu-lhe que fosse falar com os homens e lhes contasse histórias de caça do passado. Chakliux concordou e olhou para o céu noturno e fez uma prece em silêncio. Depois, instalou-se numa almofada de pele de caribu e iniciou uma litania de histórias.

Já contara aquelas mesmas histórias muitas vezes, mas nessa noite tinha a língua presa, e as palavras saíam-lhe devagar e sem jeito. Os homens começaram a ficar inquietos e por fim ele pediu a Sok que contasse histórias do povo de Rio Próximo. Leva-Mais começou a resmungar, mas Sok rompeu-lhe as lamúrias, prometendo-lhe que só contaria histórias do tempo em que o povo de Rio Primo e de Rio Próximo era um só.

Quando Sok terminou, todos os homens voltaram para as suas tendas. O céu estava escuro sem estrelas e sem luar e Chakliux orientou-se pela luz que vinha das brasas incandescentes das lareiras junto dos abrigos. Olhou para cima e perguntou a si próprio se aqueles antepassados de que Sok falara teriam fechado os buracos através dos quais os homens viam a luz do mundo dos espíritos. Se Chakliux tivesse sido amaldiçoado, era porque merecia, e carregaria essa maldição em troca do tempo que passara com Aqamdax. se ele tivesse amaldiçoado outros homens? E se, daí em diante, as suas histórias fossem sempre lentas e monótonas? se Aqamdax sofresse a mesma maldição?

Desenrolou as peles da cama e deitou-se, mas durante muito tempo não conseguiu dormir. Foi lá para fora, sentou-se às escuras e observou a tenda de Aqamdax. Perguntou a si mesmo porque se sentir culpado. Homem Noturno matara o filho de Aqamdax, uma criança saudável.

Decerto isso era pior do que aquilo que Chakliux fizera.

Talvez dissesse a Aqamdax para abandonar Homem Noturno ainda antes de iniciarem a viagem de regresso à aldeia de Inverno. E se os homens de Rio Próximo estivessem à espera deles, planejando um ataque? Já seria difícil que os poucos caçadores de Rio Primo se defendessem a si próprios e às suas mulheres sem haver inimizade entre Chakliux e Homem Noturno.

Era melhor esperar. Chakliux tentou rezar àqueles espíritos que viviam na terra, no céu e na água, mas não tinha a certeza de que eles pudessem ajudar um homem que se amaldiçoara, quebrando as promessas de um casamento. Como é que os espíritos dos caribus podiam ajudá-lo? E as lontras? Os espíritos dos ursos eram entendidos nessas coisas? Sabiam perdoar? E os espíritos daqueles que tinham sido dzuuggi antes dele? O compreenderiam ou o condenariam?

Aqamdax estava deitada quando Homem Noturno entrou no abrigo. Não iria deitar com ele, mesmo que o marido lhe pedisse. Como poderia suportar que ele lhe tocasse depois de conhecer a alegria do contato com Chakliux! Quem lhe dera ter abandonado Homem Noturno antes da caçada. Como poderia isso acarretar-lhe uma maldição? As fêmeas dos caribus eram boas mães. Traziam sempre as crias perto delas e defendiam-nas dos lobos. Não teriam dificuldade em compreender uma mulher que não queria perder outro filho. Com certeza que não estavam à espera que ela ficasse com um marido como Homem Noturno.

Aqamdax, disse Homem Noturno. Aqamdax sentiu um aperto no peito, e era como se o seu coração fosse deixar de bater.

Tens fome? perguntou ela em voz baixa.

Ele soltou um ronco que era quase uma gargalhada.

Fome, sim. Mas não de comida, respondeu ele. Aqamdax ficou imóvel, não disse nada, e Homem Noturno mexeu-se, como se fosse para a cama dela.

Não, fica aí, disse Aqamdax. Eu vou aí contigo. Deita-te. Deixa-me esfregar-te as costas.

Ficou à espera da resposta dele, sustendo a respiração. Ele gemeu e virou-se de costas.

Tem cuidado. Hoje o meu ombro piorou. Ele fazia muito para a pouca força que tinha no braço, pensou Aqamdax, sabendo que devia respeitar isso. Sok estivera trabalhando com ele, ajudara-o a reaprender o uso da lança e do arco, mesmo sem o impulso de um braço e de um ombro esquerdo fortes. Ele não conseguia atirar as suas lanças tão depressa como os outros homens, mas pelo menos podia voltar a considerar-se um caçador.

Aqamdax pôs-lhe a mão no ombro. Estava quente. Parecia que a febre da sua doença se concentrava na ferida, mas há duas luas que esta não largava pus e os gânglios debaixo do braço pareciam estar um pouco mais pequenos.

Aqamdax passou para as costas e massageou-lhe os músculos. Era como se o contato com a pele de Homem Noturno a conspurcasse. Uma coisa era mostrar-se preocupada com a ferida dele, outra muito diferente era dar-lhe prazer.

Tenho folhas-de-caribu que posso aquecer para aplicar um cataplasma no teu ombro, disse ela.

Ele resmungou:

- És pior do que uma mãe.

Aqamdax levantou-se, dirigiu-se para o fundo da tenda às escuras e remexeu num dos fardos até encontrar um canivete, duas peles de esquilo e um cilt'ogho de folhas-de-caribu. Pegou outro cilt'ogho, muito semelhante ao primeiro, e aproximou-os da lareira para o marido os ver.

- Tenho aqui dois, mas está muito escuro para saber onde tenho as folhas-de-caribu. Talvez a Lua tenha nascido e dê luz suficiente para eu ver.

- Não há lua - disse ele, e começou a queixar-se, mas ela saiu da tenda antes que os queixumes dele se transformassem em exigências.

Aqamdax olhou para o abrigo de Chakliux e viu que ele estava sentado cá fora, de costas para a lareira de Estrela. Arregaçou a manga da parka, fez um golpe no braço e observou bem o sangue. Limpou a ferida com uma pele de esquilo e enfiou-a entre as pernas. Depois voltou para o abrigo e ajoelhou-se ao lado de Homem Noturno.

- Ainda bem que fui lá fora - disse ela. - A luz da lareira mostrou-me que já comecei a sangrar. Tenho que ir embora. Este recipiente está cheio de folhas-de-caribu, se as quiseres.

Pôs o cilt'ogho ao lado dele, aproximou-se da sua cama, enrolou vários cobertores e pegou um fardo.

- É muito cedo - afirmou Homem Noturno. - O teu último sangramento foi na lua cheia.

- É assim que acontece com uma mulher que acabou de dar à luz - respondeu Aqamdax. - Sobretudo se o bebê morre e ela não tem outro filho para amamentar.

Ele acompanhou-a até à saída e ficou junto da lareira. Os seus olhos eram frestas escuras.

- Peço-te para vires para a minha cama e de repente descobres que estás sangrando - disse Homem Noturno.

- Se quiseres, irei para a tua cama - ofereceu-se Aqamdax. Pousou o fardo, levantou a parka, tirou a pele ensangüentada que tinha entre as pernas e pegou-lhe com dois dedos para ele ver as manchas. - Não serei eu a amaldiçoada.

Homem Noturno insultou-a entre dentes e depois voltou para a tenda.

Aqamdax atravessou o campo na direção do pequeno tikiyaasde, uma tenda à parte para as mulheres menstruadas. Chakliux dissera-lhe que partiriam para a aldeia de Inverno um dia depois, e, como ela afirmava que estava sangrando, teria que seguir atrás das outras e fazer um acampamento separado à noite. Era algo de que as mulheres falavam com medo, aquela separação devida à menstruação, ou pior, a um parto durante a viagem, mas isso era preferível do que ter Homem Noturno na sua cama.

 

                   O POVO DE RIO PRÓXIMO

Dii cravara os olhos nas costas da mulher que caminhava a custo à sua frente. Flor Azul era boa de seguir, pois sabia abrir caminho no lamaçal da tundra. Tinham partido ao princípio da manhã, mas nesse momento era meio-dia e o sol amolecera o chão. Pelo menos, o frio não lhes gelava os pés molhados, mas Dii ansiava por uma noite de frio intenso que endurecesse a tundra, gelasse os lagos pantanosos e os pequenos riachos que atravessavam o musgo e os tufos de erva.

Anaay enviou caçadores à frente e de cada lado das pessoas. Os homens regressavam ao acampamento todas as noites, depois de as mulheres terem montado as tendas. Dii sabia que eles não veriam caribus. Era estranho, esse saber, e ela chegara a um ponto em que deixara de se questionar. Os caribus estavam a um dia de caminho para leste e a manada deslocava-se para o Sul, no local em que o povo de Rio Próximo virara.

Não dissera a ninguém exceto a K’os que ouvira o cantar dos caribus, e sabia que nem a mulher acreditara verdadeiramente nela. Sentia falta de K’os. Muitas vezes, as palavras da mulher eram mordazes e desdenhosas, e ela era pessoa para insultar tão depressa quanto outras cumprimentavam, mas sabia muito acerca de plantas e de remédios. Durante a viagem para o rio, passara o tempo dando explicações sobre as plantas que eram úteis e a época em que deveriam ser colhidas, e a maneira de fazer remédios ou mesmo tintas de raízes, folhas e flores.

K’os falava depressa e por vezes ofegando, como se o que dizia fosse mais para se ajudar a si própria do que para auxiliar Dii, mas esta não se afastava, ouvia-a atentamente e todas as noites repetia mentalmente o que K’os dissera. Naquele momento, atrás de Flor Azul, procurava plantas, via muitas que eram conhecidas e relembrava o modo de as usar.

Nessa noite, acamparam numa pequena colina repleta de figueiras, amieiros e abetos. Anaay ignorara-a durante a maior parte da viagem, exceto para lhe pedir comida ou que lhe consertasse a roupa. Nessa noite, mostrou-se mais terno, e Dii não ficou admirada quando ele a puxou para o seu abrigo antes de a maioria das pessoas ter abandonado as lareiras em que cozinhavam. Possuiu-a às pressas, sem sequer lhe levantar a parka. Depois de ele se afastar, Dii tentou alisar-lhe as roupas e tapá-lo com cobertores.

Ele resmungou e disse:

Resolvi que não regressaremos por enquanto à aldeia de Inverno.

Dii sentiu-se desfalecer. Até a aldeia de Rio Próximo pareceria boa depois de uma viagem como aquela. Ela estava pronta a passar os dias montando armadilhas, aprendendo a costurar com Bico-de-Gaivota e apanhando aquelas plantas que, segundo K’os, deveriam ser colhidas antes de a neve as cobrir. Depois, daria a Anaay as mezinhas de K’os e então talvez tivesse a sorte de dar à luz no Verão, quando os bebês têm mais oportunidades de se fortalecer. Porquê? perguntou Dii. As mulheres precisam voltar. Temos que nos preparar para o Inverno.

Atreves-te a perguntar porquê? perguntou Anaay, sentando-se na cama. Como é que podemos regressar? Não temos carne suficiente. Os de Rio Primo amaldiçoaram-nos.

Um súbito ataque de raiva encheu a boca de Dii de insultos por Anaay ter escolhido o rio de outro povo para caçar, mas qual a esposa que se atreveria a dizer tais coisas a um marido?

Nas duas últimas noites sonhei com caribus, disse Anaay.

As esperanças de Dii aumentaram. Talvez ele soubesse que os caribus caminhavam perto deles, pessoas e caribus, como rios correndo em leitos paralelos.

Mas ele disse:

Eles estão a oeste de nós, a um dia de caminho, ou talvez dois. Mais nada.

Era verdade que o povo de Rio Próximo todos os anos contava histórias de uma manada de caribus que reclamava o terreno à beira-mar, caminhando no litoral, onde cada trilha lembrava dois quartos crescentes nas areias cinzentas e amarelas.

Anaay falou então das manadas de caribus com que sonhara, de machos e fêmeas, de crias que acompanhavam as mães ao seguirem à beira-mar para aquele território em que os Caçadores Marinhos edificavam as suas aldeias.

Dii ouvira Aqamdax, a mulher desse povo, falando de caribus. Talvez Anaay tivesse razão, mas ela temia que assim não fosse.

A escuridão da tenda deu-lhe coragem. Era sempre mais fácil falar quando os outros não lhe viam a cara. Então, em voz baixa, começou a falar, descrevendo primeiro os seus sonhos, para que o marido soubesse que ela falava não como criança mas como alguém que tinha a mesma sabedoria de que ele era dotado.

Os seus cascos entraram nos meus sonhos e eu sinto-os balançando a terra, às vezes mesmo quando estou acordada, observou ela. Uma vez julguei que eles estavam à porta da minha tenda, que vinham para cima de nós outra vez, como aconteceu à beira do rio. Ouço-os e sei onde eles estão. Talvez tenhas razão, marido, e haja uma manada à beira-mar. Mas também há uma passando a leste, a menos de um dia de caminho, uma manada tão grande que parece um rio na tundra. Envia um dos nossos homens. Só um homem, que corra bem, que os veja e volte à noite se sair de manhã cedo. Então, não teremos que andar tanto e...

A pancada veio do escuro e Dii nem teve tempo de se preparar. O seu primeiro pensamento foi para um lobo ou um urso atacando através das paredes finas da tenda de Anaay. Dii gritou de medo, chamando o marido para a ajudar. Mas depois percebeu que era o punho de Anaay no seu ventre. O homem soltou gritos de raiva e amaldiçoou-a pela sua insensatez, por acreditar que, sendo mulher, podia ouvir o cantar dos caribus.

Quando a pancada terminou e os gritos de Anaay se dissiparam, Dii não conseguiu mexer-se. Respirava a custo porque lhe doíam as costelas e tentava não sufocar com o sangue que lhe descia pela garganta. Mas, mesmo assim, ouvia os caribus, sentia o pulsar dos seus cascos.

O ritmo da sua caminhada durou toda a noite, aliviou-a como uma canção de embalar e por fim envolveu-a em sonhos com caribus.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha sentou-se sobre os calcanhares e suspirou. A cabana era tão quente e Cen era um bom marido, melhor do que Sok em muitos aspectos. Folha Vermelha sentiu o ardor das lágrimas, mas afastou-as. Não tinha tempo para se condoer de si própria.

Estamos melhor do que quando saímos da aldeia de Rio Primo, afirmou ela, olhando para o bebê que se encontrava na prancha de embalar do outro lado da cabana. Os olhos escuros da criança eram redondos e inteligentes. Não te preocupes, filhinha. Vamos ter um bom Inverno, tu e eu.

Fechou a aba do grande fardo que tencionava levar. Enchera-o de peixe seco defumado que tirara da despensa de Cen e com o estômago recheado de andorinhas e de pedaços de gordura endurecida.

Resolvera voltar primeiro ao seu pequeno acampamento que ficava a um dia de caminho da aldeia. A princípio as pessoas da aldeia julgariam apenas que ela fora inspecionar as armadilhas, e depois, à medida que os dias fossem passando, perceberiam que ela partira tal como chegara. Talvez a sua partida, aliada aos boatos em surdina, as levassem a concluir que ela era uma mulher-animal, um esquilo ou um carcaju, à procura de uma boa toca para passar o Inverno.

Ficaria uns dias no seu velho abrigo na floresta de abetos, levaria as coisas que lá deixara e que lhe poderiam ser úteis e depois subiria o curso do rio. Se tivesse sorte, encontraria um local para ficar antes de a neve começar a cair. Nesse ano, o Verão e o Outono tinham sido invulgarmente quentes. Por agora, isso era bom, mas muitas vezes a um Outono cálido correspondia um Inverno com mais neve, e por isso ela tinha que encontrar um local seguro para acampar, talvez à beira de um lago onde pudesse pescar através do gelo.

Dirigiu-se para os fundos da cabana, onde Cen guardava as suas coisas. Teve o cuidado de não tocar nas suas armas. Para quê amaldiçoá-lo? Ele fora bom para ela. Encontrou um fardo duplo costurado a uma alça que se adaptaria ao dorso de um cão. Parecia forte, embora ela soubesse que Cen levara os melhores fardos com ele para a caça. Folha Vermelha ergueu o fardo à luz que entrava pelo orifício da fumaça. Os fardos eram feitos de pele de caribu, embebida e raspada apenas o suficiente para tirar o pelo e a carne e depois moldada e posta a secar para endurecer. Não cheirava a podre nem a umidade, mas uma das amarras estava partida. Folha Vermelha pegou os seus utensílios de costura, encontrou um rolo de couro cru, umedeceu a ponta na boca e torceu-o até ele ficar pontiagudo e passar no orifício do furador.

Embora a costura lhe desse muito prazer, não gostava de fazer consertos, sobretudo em fardos, mas pensou que havia muitas coisas piores do que reforçar uma costura e começou a trabalhar.

Pensou na parka que fizera para Cen. Ele levara-a para a caça, em sinal de respeito com os animais. Qual o caribu que não se entregaria a um caçador cuja esposa era tão habilidosa como Folha Vermelha?

Para Sok, ela costurara um motivo solar em cada parka e em muitas das botas, mas o nome de Cen lembrava-lhe as cores da tundra cinzentos e dourados sombras escuras que faziam sobressair a vegetação. Por isso fez as costas da parka de Cen em duas partes, cada uma cortada em longas tiras como se fossem folhas de plantas. As folhas que nasciam na metade inferior da parka eram escuras, feitas de pele de marta, quase pretas. A metade superior era de pele de raposa, em tons vermelhos e dourados, e Folha Vermelha cortara a pele do mesmo tamanho da marta. As duas partes intersectavam-se, e as tiras eram costuradas umas nas outras como se a marta fosse erva escura devido às sombras noturnas, em contraste com a luz do sol-poente.

Quando ela deu a parka a Cen, ele levou-a para a cama e acariciou-a como se ela fosse uma menina, um regalo para os olhos de um homem. E Folha Vermelha vira que Cen compreendera uma coisa que Sok nunca entendera: o que ela nunca poderia ser com a face ou com o corpo, era com a habilidade das mãos.

Mais uma vez, sentiu o ardor das lágrimas. Dois maridos fortes, e agora perdera ambos. Suspirou, cerrou os lábios e costurou o atilho de couro no sítio devido.

Ouviu alguém raspar na parte lateral do túnel de entrada. Às pressas, pôs de lado o fardo que enchera, tapou-o com uma pele de caribu e empilhou vários cestos de pele de peixe à frente. A confusão que reinava na cabana de Cen incomodara-a quando ela lá entrara pela primeira vez, mas agora Folha Vermelha dava graças por ser assim.

Afastou a aba interior e respondeu com uma saudação. Esperava ver Pé Castanho e a mulher. O casal, que vivia da generosidade alheia, ia muitas vezes à cabana de Cen, onde sabia que podia contar sempre com uma tigela de sopa ou de guisado. Folha Vermelha aproximou-se da panela. Com a pressa de preparar a bagagem, só mexera a panela uma vez, servira-se de uma tigela de comida e continuara a trabalhar. Devia ter enchido os odres de água. Quase todos estavam vazios, mas ela tinha receio de ir lá fora mais vezes do que era necessário. Aproveitara a luz fraca do nascer do Sol para ir buscar comida à despensa e para dar de comer ao cão.

Raspou o fundo da panela para tirar alguns pedaços de carne, amaciados por longos dias de cozedura, mas quando levantou a cabeça viu que não era Pé Castanho mas sim Mosquito-Pólvora que tinha entrado.

Folha Vermelha ergueu a sobrancelha em jeito de saudação e disse.

Senta-te à lareira. Hoje está frio.

Ia perguntar se a velha queria comer, mas reparou que Mosquito-Pólvora não estava sozinha e as palavras morreram-lhe na boca.

- Trouxe uma amiga - anunciou Mosquito-Pólvora e apontou para K'os, a mulher de Rio Primo.

 

                   ACAMPAMENTO DE CAÇA DE RIO PRIMO

As dores de Dii tinham piorado, especialmente nas costas. Ela limpara o sangue da cara, mas durante a noite formara-se uma crosta em volta do nariz e da boca.

Anaay olhou para ela, recusou a tigela de comida que ela lhe deu e saiu da tenda, olhando por cima do ombro e dizendo:

- Vai te lavar. Ainda nos amaldiçoas a todos.

Dii puxou o capuz da parka para a frente, para o rufo lhe esconder a cara, e encaminhou-se em passos curtos para um dos pequenos lagos que existiam na tundra. Quebrou o gelo que se formara à superfície da água e acocorou-se para molhar a cara. Quando a água lhe escorria pelos dedos, viu o seu reflexo no lago. Tinha o nariz com o dobro do tamanho, os olhos orlados de negro, um corte na face e o lábio inferior inchado e coberto de sangue seco.

A água tinha um gosto bom, e Dii bebeu, esperando que o frio lhe chegasse aos ossos e lhe aliviasse a dor.

Virou-se para trás e olhou para o acampamento. Como fora parva ao ficar, quando podia estar nesse momento com o seu próprio povo! Os caçadores de Primo já teriam voltado para a aldeia de Inverno ou ainda estariam à beira-rio, cortando caribus e raspando peles? Se partisse naquele momento só chegaria ao acampamento deles dali a uns dias.

Susteve a respiração ao pensar em abandonar o povo de Rio Próximo, sozinha. E se o povo de Primo já tivesse partido? E se Anaay fosse atrás dela? Se ele lhe tinha batido por ela falar num sonho, o que lhe faria se a apanhasse depois de ela ter fugido?

Dii atravessou o acampamento e voltou para a sua tenda. As mulheres que se aproximaram dela para a saudar desviaram rapidamente o olhar ao verem-lhe a cara e nem pararam para conversar.

Mais tarde, Anaay contou às pessoas o seu sonho com o Cantar dos caribus e disse-lhes que tinham de ir para oeste, na direção do mar, e que essa viagem os aproximaria não só dos caribus como também da aldeia de Inverno. E quando as mulheres começaram a desmontar as tendas destruídas, Anaay veio ajudá-la e fez o trabalho mais pesado, e Dii, apesar dos lábios rebentados e inchados, conseguiu sorrir-lhe.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

Aqamdax pôs o fardo às costas e agarrou-se às tiras do peito e da barriga, enrolando-as em volta da testa para melhor transportar a pesada carga de carne. Até os homens levavam fardos grandes e só dois cães puxavam trenós.

Deixou-se ficar atrás do grupo. Uma mulher que tinha passado a noite na cabana do sangue lunar não devia caminhar junto dos homens, mas em viagem as regras não eram tão severas como na aldeia de Inverno. Por isso ela falava com as outras mulheres, ria-se com as bobices dos rapazes e ajudou Chamariz quando um dos cães de Espreita-o-Céu se enrolou no arnês e ia virando o trenó.

Mesmo com o peso do seu fardo, estava radiante. Apesar de ter o cuidado de fazer tudo o que devia fazer a Homem Noturno e de lhe tratar dos cães, agora que eles caminhavam, não podia deixar de observar Chakliux. Ele parou uma vez e olhou para trás, para as mulheres. Quando a viu, não desviou logo o olhar e ela fez o mesmo.

Começou a nevar ao meio-dia. O vento era fraco e, pouco depois, a neve formou uma camada branca no solo, igualando todas as coisas. O caminho seguido pelos cães e pelas crianças não era o mesmo dos homens e das mulheres. Pisavam zonas pantanosas em que crescia o musgo vermelho, sem verem a cor que os avisaria de que havia água por baixo.

Aqamdax andava com cautela, tentando escolher o melhor caminho, seguindo as pegadas que não se tinham enchido de água, mas por fim também a sentiu a entrar-lhe pelas costuras das botas. Durante algum tempo, percebeu a queimadura provocada pelo frio nos pés. Depois, estes começaram a doer-lhe, mas por último era como se caminhasse em cima de cepos e o seu corpo acabasse nos tornozelos.

A dada altura, Chakliux apontou para uma colina que os homens conheciam de outras viagens e disse às mulheres que acampassem. A aldeia estava apenas a cinco ou seis dias de caminho, e se a viagem demorasse mais um pouco, não haveria motivo para preocupações. Tinham carne, mais do que esperavam. O corte da carne correra bem, e haviam recuperado algumas das suas mulheres levadas pelos de Rio Próximo.

Chakliux sorriu ao caçador de Rio Primo, Primeira Águia, e disse:

- Temos um homem forte que se juntou a nós. Porque andar se temos os pés molhados? Há árvores naquela colina, salgueiros e bétulas. Vamos acender fogueiras, secar os pés, comer e descansar.

Levantou a cabeça até avistar Aqamdax e chamou-a. Ela baixou o olhar, embaraçada por ele a procurar tão abertamente. Depois reparou na carranca de Homem Noturno e ergueu a cabeça. Se chegara o momento, se Chakliux queria que ela rejeitasse Homem Noturno, ela não se envergonharia.

Mas Chakliux disse:

- Aqamdax, talvez possas contar-nos algumas histórias esta noite.

Há muito tempo que as mulheres de Rio Primo não tinham o prazer de passar um serão contando histórias. O Povo Rio não se reunia para ouvir histórias com tanta freqüência como o dos Primeiros Homens. Em geral, os homens e os rapazes juntavam-se na cabana dos caçadores e partilhavam histórias de caça, e as avós e as tias contavam às meninas as histórias que lhes ensinavam a ser sensatas e respeitadoras.

- Há muitas histórias que têm de ser contadas - respondeu Aqamdax em voz bem alta, num tom quase violento. - Demais para uma única contadora de histórias. Talvez mais alguém, um dzuuggi que se encontra entre nós, tenha também histórias para contar.

Ela sabia que as suas palavras eram um pouco arreliadoras, mas, com a alegria do momento, não se apercebeu da sua imprudência senão quando Homem Noturno se aproximou dela e, tendo o cuidado de manter uma certa distância, lhe disse:

Ainda não conheço todos os hábitos do teu povo de Rio Primo, respondeu Aqamdax. Não contarei histórias se daí advier alguma maldição causada pelo sangue. Pede a Chakliux que me substitua. Diz-lhe que eu estou sangrando.

Eu não preciso pedir a Chakliux, disse Homem Noturno. Sou teu marido e digo-te o que tens a fazer. Não podes aproximar-te tanto dos homens. Fica na tenda do sangue lunar. Ouve de lá as histórias de Chakliux. Ouve-as e lembra-te que foi ele quem matou os meus irmãos. Matou muitos dos guerreiros desta aldeia. E, embora ele o negue, estou convencido de que ele também matou o meu pai. Ouve e lembra-te disto.

Ou talvez concluas que não estás sangrando, que podes passar a noite contando as tuas histórias. Dizem que és boa nisso, apesar de eu ter ouvido apenas aqueles disparates que tu contas a Yaa e a Ghaden. Mostra-me como são boas as tuas histórias e depois vai para a minha tenda e deita-te na minha cama.

Furiosa, Aqamdax olhou-o nos olhos em sinal de desrespeito e respondeu:

Ficarei na cabana do sangue lunar. Ficarei lá escutando as histórias de Chakliux, e me lembrarei que és um homem que matou o seu próprio filho.

Virou-lhe as costas e afastou-se.

 

- Te vi lá fora quando Aqamdax saiu da minha tenda, disse Homem Noturno, aproximando a sua cara da de Chakliux. - E te vi observá-la. É estranho que não tenhas reparado para onde ela foi. Ela está no período de sangramento. Porque julgas que ela veio hoje atrás de nós e não com as outras mulheres? Ela não pode contar histórias esta noite.

Chakliux ficou admirado com o seu próprio desapontamento. Há muito tempo que ele e Aqamdax não contavam histórias juntos. Ele sabia que ela saíra da tenda de Homem Noturno mas duvidava que estivesse no período de sangue lunar. Se fora esse o artifício que ela escolhera para não dormir na cama do marido, ele ficava satisfeito.

- Tenho histórias suficientes para preencher um serão, respondeu Chakliux, recusando-se a responder aos insultos de Homem Noturno. - Sok e Espreita-o-Céu são bons revivendo caçadas. Talvez as pessoas também gostem de os ouvir.

- Há muitas histórias que deviam ser contadas - disse Homem Noturno. - Talvez não devamos esquecer o que aconteceu aos nossos homens durante a luta com os de Rio Próximo.

- É preferível esquecer - disse Chakliux.

Homem Noturno encolheu os ombros e virou-lhe as costas, dizendo ao afastar-se:

Vê se não te esqueces de uma coisa, Pé de Lontra.

Aqamdax é minha mulher.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Creio que já nos vimos, disse K’os, saudando-a com um gesto de cabeça.

Detesto pensar que tenho uma memória tão fraca, respondeu Folha Vermelha.

Murmurou alguns cumprimentos, como se falar em voz baixa do rosto e das roupas de K’os impedisse a mulher de ver a realidade.

Tu és Folha Vermelha da aldeia de Rio Próximo, afirmou K’os.

Folha Vermelha ignorou-a, mas inclinou-se sobre a panela e, quando Mosquito-Pólvora ergueu a sobrancelha em sinal de concordância, ela estendeu-lhes tigelas de carne e de caldo. Sentaram-se em esteiras almofadadas, e Folha Vermelha serviu-se de carne. Sabia que não conseguiria comê-la mas pôs as mãos em volta da tigela e o calor acalmou-a.

Quando era pequena, vivi na aldeia de Rio Próximo, disse Folha Vermelha. Talvez te lembres de mim dessa época. Tenho lá uma prima. Dizem que somos parecidas. Chamo-me Gheli. O meu marido era comerciante.

Folha Vermelha virou-se e olhou para o seu bebê na prancha de embalar.

Ele encheu-me a barriga com uma filha e depois não a quis. Com a aproximação do Inverno, eu e a criança estávamos morrendo de fome e eu acampei perto desta aldeia, na esperança de encontrar alguém que precisasse de uma esposa. Cen trouxe-nos, a mim e à minha filha.

Tens sorte, comentou K’os.

Levou a tigela à boca e olhou para Folha Vermelha pela borda enquanto comia. Quando acabou, limpou os cantos da boca com as pontas dos dedos.

Quanto a essa outra mulher, Folha Vermelha, não me lembro bem da história, mas houve um motivo para ela e o marido saírem da aldeia.

K’os era escrava na aldeia de Rio Próximo, esclareceu Mosquito-Pólvora.

Folha Vermelha sabia que K’os fazia parte do grupo de mulheres que fora para a aldeia de Rio Próximo, mas abriu a boca, fingindo-se admirada, e perguntou:

Então alguém desta aldeia te foi buscar?

K’os fez um sorriso gélido.

Fugi. Estou aqui tal como tu, à procura de marido. Se nenhum homem precisar de uma esposa, então pedirei aos velhos que me deixem viver aqui com uma família até eu ter peles de caribu suficientes para fazer a minha própria cabana.

Tu caças? perguntou Folha Vermelha. K’os deu uma gargalhada.

Eu sou curandeira. Uma curandeira é sempre necessária numa aldeia tão grande como esta.

Talvez Cen possa ficar com uma segunda esposa, disse Mosquito-Pólvora.

Se eu fosse tua esposa-irmã, tenho certeza que nunca mais voltaria a confundir-te com Folha Vermelha, disse K’os devagar, sem tirar os olhos da cara de Folha Vermelha.

Seria bom ter uma esposa-irmã, respondeu Folha Vermelha em voz baixa. Sinto-me só nesta cabana quando o meu marido não está.

Mosquito-Pólvora riu, mostrando um buraco entre os dentes da frente.

Mas fica conosco até Cen voltar disse ela, pousando uma mão cheia de veias salientes no punho de K’os.

Folha Vermelha reparou que K’os se esquivara ao contato com Mosquito-Pólvora, mas quem não o faria? A velha era muito ousada nos seus toques e nas suas intromissões.

Sim. É uma decisão que tem que ser Cen a tomar, disse Folha Vermelha a K’os.

Os homens são assim comentou Mosquito-Pólvora. Não gostam que as mulheres lhes digam o que devem fazer.

Os olhos de K’os cintilaram, escuros como obsidiana.

Até lá, Gheli, te considerarei minha irmã e tenho esperança de que Cen me aceite como segunda esposa.

 

                   O POVO DE RIO PRIMO

Chakliux começou por contar aquela história, quase tão velha como a Terra, do corvo e do porco-espinho. Falou da corrida entre eles e explicou como o porco-espinho, apesar de ser muito mais vagaroso, usara a sua sabedoria para ganhar. Depois, contou as histórias do lince e do lobo, do urso e da raposa; no entanto, apesar de lhe parecer que as suas palavras despertavam o interesse dos rapazes, os homens começaram a falar entre eles, e Chakliux teve a sensação que as palavras lhe saíam da boca e caíam à terra tão depressa que nem chegavam aos ouvidos dos que estavam mais perto dele.

Por fim, dirigiu-se aos homens em voz alta, num tom de comemoração, e perguntou se alguém queria contar uma história de caça. Encontravam-se num acampamento, sem as suas melhores roupas e os seus objetos sagrados, e por isso as histórias não podiam ser representadas nas partes que envolviam o urso e o caçador, ou o caribu e o lobo. Mas, mesmo assim, havia novas histórias a construir, inspiradas na alegria da caçada desse ano, além das antigas que valia sempre a pena repetir.

Nenhum dos homens se levantou e Chakliux chamou Sok e recordou-lhe a caçada ao urso em que ambos haviam participado na companhia do avô, mas Sok abanou a cabeça devagar, e Chakliux percebeu de repente que Sok nunca mais seria capaz de contar essa história, visto que fora Folha Vermelha a tirar a vida do avô.

Espreita-o-Céu, tu sabes histórias. E aquele caribu morto que quase te arrastou pelo rio abaixo?

Estas palavras provocaram sorrisos, e Espreita-o-Céu contou a história, rindo ao mesmo tempo. Havia caçadores que tinham morrido afogados daquela maneira, mas o que havia melhor do que o riso para afugentar o medo? A história os fez esquecer o cansaço, e Chakliux sentia-se instigado pelo entusiasmo dos companheiros.

Aquela alegria era uma das coisas que ele mais apreciava quando contava histórias. Começou a contar uma inventada por ele, qualquer coisa passada de pais para filhos sobre aqueles guerreiros que vieram do Norte e tentaram destruir o Povo Rio. Partindo de pequenos acampamentos e aldeias ao longo dos rios, o povo derrotara aqueles antigos inimigos, mas mais uma vez era como se as palavras de Chakliux não chegassem aos ouvidos do povo Primo. Chakliux admitiu que a luta recente ainda estivesse muito presente na mente deles. Como é que poderiam comemorar vitórias passadas se continuavam a chorar a derrota?

Desejou que Aqamdax pudesse contar as suas histórias. Com as vozes que ela conseguia extrair da garganta um som diferente para cada pessoa ou animal que falava ela conseguiria prender a atenção tanto dos caçadores como das crianças mais pequenas.

Por fim, resolveu dizer-lhes que as histórias continuariam quando eles celebrassem a caçada com um banquete na aldeia de Inverno.

Porém, assim que as últimas palavras da sua história lhe saíram da boca, Leva-Mais disse num tom contundente:

Temos um caçador de Rio Próximo entre nós, disse ele, virando-se para Primeira Águia. Talvez ele tenha histórias para contar. Quantos dos nossos jovens mataste? Talvez o filho da minha irmã.

Então as mulheres começaram a murmurar, mas Homem Noturno levantou-se e olhou para Leva-Mais, dizendo:

Esqueceste-te de quem começou a luta. Se condenarmos os de Rio Próximo, teremos também que condenar-nos a nós mesmos.

Apesar do seu ressentimento contra o homem, Chakliux só conseguiu sentir gratidão, mas depois Homem Noturno apontou para ele e disse:

Um enigma, Pé de Lontra.

Embora tivesse anoitecido e a fogueira produzisse tanta sombra como luz, Chakliux viu a malícia no olhar de Homem Noturno e respondeu:

Temos muito que andar amanhã, e com cargas pesadas. As histórias que acabem e os enigmas que esperem.

Chakliux afastou-se da fogueira e voltou para o seu abrigo. Os homens e os rapazes desfizeram o círculo. As mulheres apagaram o fogo e foram também para os seus abrigos. Chakliux dissera a Estrela que montasse as tendas no extremo do acampamento, explicara que tinha que estar atento aos lobos e que, como dzuuggi, deveria recorrer às suas preces para proteger o acampamento. Todavia, na realidade, queria estar mais perto da cabana do sangue lunar, para ajudar Aqamdax se algum animal se aproximasse dela, visto que estava sozinha.

Via agora que ela acendera uma fogueira junto do abrigo, e o calor e a proteção daquelas chamas deixaram-no satisfeito. Mesmo assim, desejava que ela fosse sua esposa, que estivesse a salvo na tenda dele, deitada a seu lado todas as noites.

Olhem, o que vejo eu?

Chakliux virou-se. Homem Noturno estava atrás dele, também de olhos pregados na cabana do sangue lunar.

Eles escondem-se no salgueiro e julgam que ninguém sabe.

 

Ao nascer do Sol, Chakliux saiu da tenda e levou as suas armas. Estrela estava dormindo, e por isso ele acordara Yaa e dissera-lhe em voz baixa que ia ver se estava tudo bem no acampamento. Não se referiu aos caçadores de Rio Próximo, mas percebeu pelos olhos arregalados de Yaa que ela compreendera. Levou Mordedor e, juntos, deram a volta ao acampamento.

Mordedor farejou várias vezes, cheirando o vento, mas não latiu. Quando Chakliux chegou à tenda do sangue lunar, assobiou. Mordedor uivou e Chakliux pousou a mão no focinho do cão. Em seguida, Aqamdax saiu.

- Estamos bem - disse ela assim que o viu.

- Estamos?

- Furador veio se juntar a mim ontem à noite. Chakliux olhou para o acampamento e não vislumbrou qualquer movimento entre as tendas. Agachou-se e fez sinal a Aqamdax com uma das mãos. Ela saiu do abrigo, tremendo, agarrada aos ombros. Ele estendeu o braço para lhe puxar o capuz da parka e depois deixou cair a mão, sem lhe tocar. Ela pôs o capuz, protegendo a face com os cabelos. O seu riso nervoso fê-lo sorrir.

- Cinco dias? - perguntou ela.

Chakliux percebeu que ela se referia mais ao momento em que ele faria dela sua esposa do que aos dias que faltavam para regressarem à aldeia de Inverno.

- Talvez seis - respondeu ele. - Tem cuidado. Não voltarei a falar contigo até lá chegarmos. Alguém nos viu no salgueiro e foi contar a Homem Noturno. Aqamdax ficou arrasada.

Fica na tenda do sangue lunar à noite. Chama-me se ele te ameaçar.

Chakliux deu-lhe uma faca de caça, de lâmina comprida e disse:

Ele matou o teu filho. Não deixes que te faça o mesmo.

Chakliux, tens mais facas? perguntou ela, com a voz embargada pelas lágrimas. É mais provável que ele te mate.

Chakliux afagou a bainha atada à sua perna robusta e depois abriu a parka junto do pescoço e mostrou-lhe a faca que tinha lá dentro. Levantou-se e apontou para Mordedor.

Ele é um bom cão. Me ajudará a vigiar.

Não te afastes dele, então aconselhou Aqamdax.

Não, eu trouxe-o para ti.

Mas é o cão de Ghaden...

Julgas que Ghaden fica aborrecido? Chakliux sorriu-lhe e abanou a cabeça. Tenho que ir. Tem cuidado.

Regressou à sua tenda. Estrela ainda estava dormindo, mas Yaa e Ghaden já tinham acordado. Ajudou-os a embalar as suas coisas e depois disse-lhes que partissem enquanto ele acordava Estrela. Assim, seria o único a ser acusado de perturbar os sonhos que, na opinião dela, fortaleceriam o bebê.

Aqamdax e Furador caminhavam de cada lado de Mordedor e levavam os cães dos maridos, cada um dos quais puxava um trenó. Ao meio-dia, voltou a nevar, com mais intensidade e rapidez do que na véspera. Seguiu-se o vento, o sopro do Inverno, e elas caminhavam com os rufos de pele puxados bem para a cara, só com os olhos à vista. A neve estava molhada, e tiveram que parar muitas vezes para tirar as bolas de gelo das patas dos cães.

Aqamdax não sabia se parariam tão cedo nesse dia como na véspera, mas Chakliux seguiu caminho e ela percebeu que era por sua causa. Perguntou a si própria quem os teria visto e por que motivo fora contar a Homem Noturno.

Atravessaram vários ribeiros pouco profundos. Aqamdax levava as suas botas de barbatana de foca e verificara que Ghaden e Yaa também levavam as deles. Embora ela e Furador fossem as últimas da fila, o marido de Furador ia muitas vezes ver se elas acompanhavam o passo dos outros, e nos ribeiros Sok e ele ficavam para trás até que todos tivessem atravessado.

Nesse dia de caminhada, com um grande peso às costas, Aqamdax não viu Chakliux. Ao fim da tarde, Sok comunicou às mulheres que caminhariam até ao pôr-do-Sol. Aqamdax ouviu os seus gemidos e o grito estridente de desapontamento de Estrela, mas ficou satisfeita. Quanto mais andassem, mais depressa chegariam à aldeia de Inverno.

Quando o céu começou a escurecer a leste, a neve ficou reduzida a alguns flocos dispersos.

- Vamos parar daqui a pouco - disse Furador, com covinhas na face. - Quando eu era escrava dos de Rio Próximo, sonhava muitas vezes com a nossa aldeia de Inverno.

- Sabes que os homens de Rio Próximo incendiaram as cabanas depois de tu e as outras partirem? - perguntou Aqamdax.

- Sei. Os homens de Rio Próximo gabaram-se disso.

- K'os não foi nada idiota e levou tudo o que te pertencia para a aldeia de Rio Próximo ao partir.

Furador abanou a cabeça em sinal de discordância.

- Durante aquela primeira lua na aldeia de Rio Próximo, eu estava disposta a tudo para voltar para junto do meu povo. Sentes o mesmo em relação aos Caçadores Marinhos?

- Sinto a falta deles e do mar - respondeu Aqamdax. Mas não tenho família, exceto uma mulher a quem chamo uma contadora de histórias que agora é muito velha, chamada Qung. Por ela, eu voltaria, se não fosse o meu irmão, Ghaden, e a irmã dele, Yaa, e... - Aqamdax calou-se. Por pouco não falara de Chakliux. Fingiu que ajustava as alças do fardo e depois acrescentou: - Como vês, tenho família aqui, no povo de Rio Primo.

- Eu perdi o meu pai na luta e a minha mãe morreu há dois Verões, com o seu novo bebê, mas tenho Tigela Vazia que é minha tia, além de Homem Noturno e de Estrela. A avó deles era irmã do meu avô - disse Furador.

- E tens o teu marido - retorquiu Aqamdax. Furador não disse nada durante um tempo, e como tinha o capuz puxado para a cara, Aqamdax não percebeu se a mulher estava alegre ou zangada. Por fim, Furador falou, com uma voz tensa, como se estivesse chorando:

- Eu nem queria acreditar que ele tivesse resolvido vir comigo. Estive quase não vindo, por causa dele. Quando fui para o acampamento de caça de Rio Primo, senti-me destroçada e percebi que uma parte do meu espírito ficara com ele. Achas que os homens o aceitarão?

- Todos os que não forem insensatos. Além disso, Sok e Chakliux estão aqui. Eles lutaram com os de Rio Próximo.

- Mas Chakliux foi criado na aldeia de Rio Primo, e Sok é irmão dele.

- Isso é verdade. Mas Chakliux disse-me que muitas vezes há casamentos entre gente de Primo e de Próximo.

- Não tantos como os que havia...

As palavras de Furador foram interrompidas por gritos. Aqamdax parou e agarrou os fardos de Mordedor para o manter junto dela. A princípio julgou que as pessoas gritavam apenas para festejar a decisão de acamparem nessa noite, mas depois avistou Yaa, que corria para elas.

- São os de Rio Próximo? - perguntou Aqamdax.

- Não, é Estrela - disse Yaa, sem fôlego. - Chakliux resolveu atravessar o rio e acampar na margem alta do outro lado. Estava ajudando as mulheres a atravessar, ele e Primeira Águia. Levavam uma de cada vez, mas Estrela não esperou.

- O rio levou-a? - perguntou Aqamdax.

- Não, ela já tinha atravessado e ia subindo a margem íngreme. O cascalho é escorregadio e no cimo há choupos. Caule Torto disse que as árvores foram insultadas pela grosseria de Estrela por ela passar à frente dos mais velhos, mas Tigela Vazia diz que o rio quer o espírito dela em troca de Ghaden, por ele não ter morrido afogado no acampamento dos caribus.

- Ela caiu? - perguntou Aqamdax, abanando a cabeça

- Caiu um ramo da árvore. Bateu-lhe aqui. - Yaa levantou a mão e tocou na nuca. - Ela caiu no rio, mas Chakliux puxou-a. Dizem que morreu.

Aqamdax desfez-se do fardo, mas Furador agarrou-a pela parte de trás da parka.

- Já há muitas maldições aqui, e não é preciso criares mais problemas com o poder do teu sangue lunar. Espera para ver se Homem Noturno te chama.

Aqamdax não conseguiu evitar o tremor das mãos. Agachou-se junto de Mordedor e enterrou a cara no pelo espesso do pescoço do animal. Começou a cantar baixinho por Estrela e pelo bebê de Chakliux que ela trazia no ventre.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Os homens soltaram gritos de alegria ao entrarem na aldeia e Cen ficou satisfeito por ter ido caçar caribus nesse Outono em vez de fazer uma viagem de negócios. Qual o caçador que se arriscaria a vender carne ou peixe do Verão anterior antes de saber quantos caribus traria para a sua família? E durante as caçadas de Outono, quem ficava nas aldeias de Inverno? Só as velhas. Quem ficava nos pesqueiros? Ninguém. Era bom caçar e regressar com os fardos cheios a uma cabana quente e à companhia de uma mulher forte.

As mulheres receberam-nos com cânticos de exaltação e os olhos de Cen perscrutaram os rostos escondidos pelos capuzes das parkas e por uma pequena nevasca. Por fim, viu Gheli e a protuberância na parka dela, que indicava a presença da filha.

Quis tomá-la, forte e grande, nos seus braços. Estava ansioso por passar o Inverno na sua cabana. Talvez levasse um ou dois cães e fosse até a aldeia de Primo, na esperança de encontrar Ghaden, para ver se eles trocariam um rapazinho pela carne que poderia ajudá-los a viver até a Primavera.

Já devia ter ido, mas sabia que os homens de Primo lhe guardavam rancor desde que ele optara por não lutar contra os de Rio Próximo. Na verdade, o que mais poderia ele ter feito? O primeiro homem de Rio Próximo que eles haviam matado - ainda antes do ataque - era o xamã. Como é que Cen poderia ter ficado para lutar depois de eles terem lançado uma maldição sobre si próprios daquela maneira?

Eles lhe perdoariam se ele lhes levasse carne para matar a fome nas luas de Inverno. Até lá, Cen passaria noites quentes com a mulher e brincaria com a filhinha a que chamava sua.

Esperou com os caçadores que as mulheres acabassem de cantar e depois aproximou-se de Gheli e viu-a sorrir. Os homens da aldeia de Quatro Rios eram mais expansivos com as esposas do que os caçadores de muitas aldeias, e Cen puxou a sua para a abraçar.

Gheli tirou o capuz da parka e ele viu o rosto redondo da filha, moreno como o da mãe. A criança franziu a testa, mas quando ele lhe fez cócegas na face ela sorriu, fechando os olhos como duas pequenas meias-luas.

Cen ouviu aquela voz, uma voz de mulher, que não era a de Gheli, e sentiu um arrepio na espinha. Era K'os.

Estava ao lado de Gheli, com uma mão no ombro desta. Puxara o capuz da parka para trás, até às orelhas, e o seu rosto era tão belo e perfeito como ele o recordava, e os cabelos brilhavam com flocos de neve recente.

Cen não conseguiu desviar o olhar, e viu-a como ela era nos seus sonhos, quente e flexível nas suas mãos. Depois, imaginou-a com Espreita-o-Céu e Tikaani, com todos os outros homens com quem ela se deitara, mesmo quando era esposa de Bate-no-Chão. Era preferível contentar-se com uma boa esposa do que andar sempre inquieto por causa de uma mulher como K'os.

Olhou para Gheli, julgando ver raiva ou ciúme, mas ela estava a sorrindo.

- Conheces K'os? - perguntou-lhe ele.

- Somos amigas - respondeu Gheli.

- Amigas? - indagou, admirado, porque ninguém considerava K'os uma amiga.

- Julguei que tinhas morrido - disse K'os. - Todos nós na aldeia de Primo estávamos convencidos disso, mesmo o teu filho Ghaden.

- Ele está bem, o meu filho? - perguntou ele, vendo o ar de triunfo de K'os. Ela era uma verdadeira comerciante, melhor do que muitos homens que tinham passado a vida inteira no comércio.

Ela encolheu os ombros.

- Vieste para esta aldeia com o teu marido? - perguntou ele, afastando a conversa do filho.

- Ela precisa de um marido - disse Gheli. - Contenta-se em ser segunda esposa se o homem for um bom caçador.

Era uma conversa que não devia ter lugar no meio de uma aldeia, entre gritos e cânticos de festa, mas Cen viu o ardor no olhar de Gheli e percebeu que K'os conseguira conquistar a sua lealdade.

Passou um braço pela cintura da mulher, encostou-lhe a boca ao ouvido e segredou:

- Estou pronto para ir para a cabana da minha esposa. Olhou para K'os e depois prosseguiu: - Estás vendo aquele homem ali? - Apontou com o queixo para um jovem, alto e magro. - Chama-se Caça-Águias e precisa de uma esposa.

Depois, antes que K'os pudesse responder, Cen atravessou a multidão ao lado de Gheli e levou-a para a cabana, deixando K'os na neve.

 

                   O POVO DE RIO PRIMO

Quando Chakliux agarrou Estrela, julgou que ela estava morta. Encontrava-se de barriga para baixo, com a parte de cima do corpo dentro de água. O seu pé de lontra deslizou no cascalho da margem e Chakliux deixou-se escorregar até ficar com os pés na água, sentado ao lado da mulher. Agarrou-a pelos ombros e puxou-a para o seu colo. Primeira Águia e Homem Risonho pegaram-lhe e levaram-na para a margem. Chakliux foi atrás deles, e quando a pousaram, ele ajoelhou-se ao lado dela e pôs-lhe os dedos no pescoço. Não lhe sentiu a pulsação. A mulher estava fria e tinha os lábios azulados.

- Estrela! - gritou ele. - Estrela! Se morreres, o teu bebê também morrerá.

A mulher estava imóvel, e ele não lhe detectou indícios de respiração. Encostou o ouvido ao seu peito, tentando escutar o bater do coração, mas o ruído da corrente era forte demais. Olhou para aqueles que o rodeavam, fez sinal a Caule Torto e ouviu-a murmurar acerca da ganância do rio que levava uma alma em troca dos caribus.

Talvez ela tivesse razão, mas qual a utilidade da mulher se as suas palavras só favoreciam o poder do rio? Quem mais é que entendia de mezinhas no acampamento? Não tinham um xamã que invocasse o espírito de Estrela para o convencer a voltar.

Inclinou-se mais uma vez sobre a mulher, cochichou-lhe algo sobre o bebê e rezou para que as suas palavras a reanimassem. De súbito, ela tossiu e o seu corpo debateu-se numa série de espasmos.

- É o espírito dela tentando voltar - disse Caule Torto.

Estrela tossiu outra vez e Chakliux julgou ouvir o barulho do rio nos pulmões dela. Se conseguisse jogar fora aquela água, talvez o espírito dela tivesse o espaço de que precisava e regressasse ao seu corpo.

- Conheces algum remédio para lhe limpar os pulmões? - perguntou ele a Caule Torto.

A velha abanou a cabeça.

Então Chakliux viu Yaa, com um rostinho atormentado e pálido.

- Vai buscar Aqamdax - disse ele. - Ela trabalhou com K'os. Talvez conheça algumas das mezinhas que ela usava.

Disse a Primeira Águia e a Homem Noturno que fossem ajudar as mulheres com os cães e ficou à espera, sem saber se queria a presença de Aqamdax pelas mezinhas que ela conhecia ou pelo conforto que lhe poderia proporcionar.

- Chakliux quer que venhas cá! - gritou Yaa a Aqamdax.

- Estrela está viva? - perguntou Furador.

- Creio que sim. Eles precisam de mezinhas. Atravessa o rio. Eu atravessei-o duas vezes. Não é fundo, mas a corrente é forte.

Mordedor ficou para trás e sentou-se na margem. Levantou a cabeça e começou a uivar.

- Deixem-no. Ele virá - gritou-lhes Homem Noturno. - Já atravessou vários rios. Mais largos do que este.

As palavras dele quase obrigaram Aqamdax a voltar para trás, mas então Primeira Águia disse:

- Chakliux quer que tu ajudes Estrela.

Aqamdax deu o braço a Furador, agarrou-se ao ombro de Yaa e, juntas, atravessaram o rio, agarradas umas às outras, enquanto a corrente lhes cobria as botas até os joelhos. Aqamdax sentiu as pernas dormentes, mas manteve-se de olhos fixos no rio como se, pelo simples fato de olhar para ele, conseguisse dominar a corrente.

O dia estava quase chegando ao fim e o Sol desaparecia no horizonte. Aqamdax afastou o capuz do rosto e abriu bem os olhos para deixar entrar a luz, mas o rio estava escuro, como se os pés dela se enterrassem em pedras negras. A cada passo, Furador ofegava e o coração de Aqamdax palpitava em rápidos arranques, como se asas de pássaros esvoaçassem no seu peito.

Por fim, as mulheres estenderam-lhes os braços, e também Chakliux, que agarrou nos braços de Aqamdax. Esta olhou para trás e viu Mordedor ainda do outro lado. Chamou-o, mas Chakliux obrigou-a a voltar-se e as pessoas abriram caminho.

Aqamdax aproximou-se de Estrela. A mulher respirava com dificuldade, de olhos fechados e lábios roxos.

Caule Torto e várias outras mulheres estavam ajoelhadas junto dela.

- Fizemos o que pudemos - disse Caule Torto. - Tu viveste com K'os. Lembras-te de algum remédio que limpe os pulmões?

- A prímula dos pântanos - respondeu Aqamdax serenamente. - Mas eu não tenho nenhuma.

Caule Torto levantou-se e chamou Yaa. - Filha, conheces uma planta chamada prímula?

Yaa cravou os olhos em Estrela e não falou senão quando Caule Torto repetiu a pergunta.

Filha, não ouviste o que eu disse?

Eu conheço a prímula respondeu ela. Mas não sei onde encontrá-la a não ser quando estamos na aldeia de Inverno.

Em locais alagados. Ela cresce sempre em locais alagados, informou Caule Torto. Ainda não nevou o suficiente para matá-la. Talvez consigas encontrar algumas à beira do rio.

Diz a Sok que vá contigo ordenou Chakliux a Yaa. O Sol já se pôs. Não te afastes do acampamento sozinha.

Aqamdax pousou a mão na barriga de Estrela, esperando sentir o bebê mexendo-se. Chakliux pôs a mão ao lado da sua.

O bebê está dormindo, disse-lhe Aqamdax. Só isso. Está dormindo.

 

                   O POVO DE RIO PRÓXIMO

Dii pousou o fardo no chão e estremeceu ao ouvir Anaay gritar-lhe:

Julgas que eu quero aí a minha tenda? Está molhado. Descobre um local melhor! Eu não te trouxe para me dificultares a vida.

Agora que K’os já não estava com eles, Dii levava uma carga mais pesada, quase duas vezes mais pesada do que a anterior, e nesse dia Anaay dera-lhe mais um dos fardos, além de uma pele de caribu. Ela atara a pele a um dos trenós dos cães, mas o excesso de peso enterrava o trenó na tundra, atolando-o em qualquer local molhado que a neve e o frio ainda não tinham endurecido. Cerca de meio-dia, as costas e os ombros de Dii estavam rígidos com as dores, mas ela tentava não pensar no seu sofrimento. Estava tão cansada quando pararam para acampar que desatou o fardo mais pesado e deixou-o cair ali mesmo.

Onde queres a tenda? perguntou ela a Anaay. Ele levantou a mão para ela e Dii agachou-se, preparada para a pancada, mas depois ele olhou para os homens e mulheres que o observavam.

Vai com Flor Azul, ordenou ele. Ela tem um certo senso. Põe a minha tenda ao lado da dela. Flor Azul apontou com o queixo para a parte leste do acampamento, e Dii agarrou o fardo, ordenou aos cães que avançassem e foi atrás da mulher. Flor Azul inclinou-se, cochichou algo ao sobrinho que ia a seu lado, e o rapaz foi ajudar Dii a arrastar o fardo.

Mulher, envergonhas-me, deixando que um rapaz faça o teu trabalho, gritou-lhe Anaay.

Flor Azul, porém, deu meia volta, tirou o capuz da parka e disse para todo o acampamento ouvir:

Devias ter vergonha, Anaay. O trabalho que o meu sobrinho está fazendo compete a um marido. És tão cego que nem vês que a tua mulher leva uma carga maior do que qualquer de nós e ainda toma conta de três cães?

Foi como se as palavras de Flor Azul dessem força aos braços de Dii, mas esta sabia que Anaay não esqueceria a humilhação, nem permitiria que a mulher a esquecesse.

 

                   O POVO DE RIO PRIMO

Yaa procurou Sok no acampamento, mas apesar de ter perguntado por ele a muita gente e de ter enfiado a cabeça nas aberturas dos abrigos, ninguém sabia onde ele estava.

A prímula crescia à beira dos rios. Yaa conhecia bem a planta mas não sabia que era usada como medicamento. As folhas arredondadas e franzidas que nasciam dos caules não estavam a mais de um palmo de distância da terra. Abriam-se em leque, formando um círculo, e todos os anos, na Primavera, a planta dava flores amarelo-vivas. Yaa tinha a certeza de que a conseguiria encontrar, sobretudo tão perto do rio, se não fosse a neve.

Ficou satisfeita por lhe terem destinado a companhia de Sok e não de Caule Torto. Desde que K’os estivera com eles naquele dia, Yaa interrogava-se sobre quem do povo de Primo é que poderia ter matado Mulher Diurna, a mãe de Chora-Alto. Analisara todos os homens de Rio Primo, um por um, mas ouvira as velhas cochichando sobre a confusão de peles e de esteiras em que se encontrava a cama de Mulher Diurna. Houvera luta demais para que o assassino fosse um homem. Um homem teria dominado Mulher Diurna com facilidade. Se não fora um homem, quem fora?

Caule Torto era uma mulher de língua afiada e temperamento forte. Yaa já a vira a gritar, furiosa, por coisas insignificantes que a maioria das mulheres deixaria passar com um olhar zangado. Não lhe custava acreditar que Caule Torto tivesse descarregado a sua raiva em Mulher Diurna para se vingar da derrota sofrida pelo povo Primo. Mulher Diurna era de Rio Próximo.

Yaa, Ghaden e Chora-Alto tinham nascido na aldeia de Rio Próximo. E se Caule Torto fosse a assassina? E se, no meio da sua fúria, ela resolvesse matar mais alguém de Rio Próximo? Mais uma vez Yaa pensou que gostaria de ter uma faca comprida.

O que andas fazendo?

Yaa deu um salto e depois fez um gesto de enfado ao ver que era Ghaden.

Chakliux disse-me que eu viesse apanhar prímulas. Viste algumas por aqui?

Não. Como são?

Não interessa. Porque estás aqui?

Ando à procura do Mordedor para ele atravessar o rio.

Continua chamando. Ele aparecerá. Mas deixa-me Tenho que encontrar...

Já sei.

Ghaden começou a chamar o cão, e Yaa afastou-se. A neve não tinha mais de um palmo de espessura, mas mesmo assim escondia muitas plantas. Era uma pena que as prímulas não fossem mais altas, pensou Yaa. É claro que o fato de estarem próximas do solo lhes dava poder.

Yaa afastou a neve com os pés e inclinou-se à luz do crepúsculo para ver as plantas que descobria. Chegou a um declive na margem. Não era propriamente um ribeiro, mas na Primavera encaminhava a água proveniente do degelo para o rio.

Quando avistou finalmente um tufo de prímulas, cujas folhas estavam cobertas por uma camada de neve, Yaa soltou um grito de triunfo. Não sabia se Aqamdax queria as folhas, os caules ou as raízes, por isso agarrou na planta com as duas mãos e puxou. Pelo canto do olho, viu alguma coisa se mexer. Levantou a cabeça e percebeu que era Mordedor, que viera atrás dela do outro lado do rio. O cão latiu e Yaa ia a chamá-lo quando as raízes da planta se soltaram e Yaa caiu de costas.

Escorregou na direção do rio, deu um grito e ouviu a voz de Ghaden. Depois os olhos e a boca encheram-se de água e o frio entorpeceu-a de tal modo que não conseguiu mexer-se.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

K’os enroscou-se na sua roupa de dormir e virou as costas a Mosquito-Pólvora, mas a mulher continuava tagarelando.

Há homens melhores do que Cen nesta aldeia. E porque já o conhecias, isso não quer dizer que ele seja a tua primeira escolha. E Pau-de-Salgueiro, Salta-Muito e Dá-Cães? Primeira Lança, o nosso chefe dos caçadores, tem quatro esposas, mas talvez queira mais uma...

Mosquito-Pólvora continuou a fazer a lista e até incluiu o marido. Trepador era melhor do que Cen? Esperando que Mosquito-Pólvora se calasse, K’os apoiou-se no cotovelo e disse:

Porque julgas que eu quero Cen? Não gostaria de ter a vida da mulher de um comerciante. Qual a mulher que quer que o marido esteja ausente durante a maior parte do Verão e muitas vezes no Inverno? Além disso, sou curandeira. Não preciso de marido. Posso arranjar carne com as mezinhas que faço.

Nós somos um povo saudável. Uma curandeira não ganha muito nesta aldeia, observou Mosquito-Pólvora. Bem sei que a mezinha que me deste me aliviou as articulações, e por isso não me importo de partilhar contigo a minha cabana. É bom ter a companhia de outra mulher. A minha filha e o marido dela viveram conosco até ao Verão passado. Depois, ele falou-lhe em irem para a aldeia de Montes Negros, onde vive o irmão dele. Uma burra, essa filha. Nunca encontrará ninguém que tome conta dos filhos melhor do que eu. Eles voltarão, pelo menos na Primavera. Mas até lá temos espaço para ti.

Quando a tua filha voltar eu já terei a minha cabana, disse K’os.

Mosquito-Pólvora espetou um dedo.

Eu só tenho uma filha, que é uma burra. Mas tu és esperta. Todo mundo percebe isso. Encontrarás um marido. Há muitos homens nesta aldeia. Eu não te falei de Marta Gorda? E depois há Olho Castanho. Ainda não o viste. Ele e o irmão foram caçar caribus, só os dois. O irmão tem uma esposa, mas ele não tem nenhuma. Daria um bom marido.

K’os enrolou-se outra vez na roupa da cama e enfiou a cabeça debaixo das peles quentes. Estas abafavam a voz de Mosquito-Pólvora, e K’os desviou os seus pensamentos para Cen e Folha Vermelha, pensando na melhor maneira de chegar à cama de Cen.

 

                   O POVO DE RIO PRIMO

Chakliux, com a mão na barriga da mulher, soltou um grito de alegria. Então Aqamdax, que estivera esfregando bálsamo nos golpes que Estrela tinha na face, tocou no ventre dela e sentiu o bebê mexendo-se debaixo dos seus dedos.

Tentou acompanhar Chakliux na sua alegria, mas ao sentir o bebê lembrou-se de repente do filho morto. Suspirou, tentou sorrir e depois perguntou a Caule Torto se ela já tinha usado prímulas.

Não, respondeu Caule Torto. Deve ser uma coisa que K’os aprendeu sozinha e de que guardou segredo.

Então, quando Sok e Yaa voltarem, se tiverem encontrado a planta, que me levem, para eu fazer chá. Não sei se ela nos devolverá Estrela, mas...

Uma voz de homem interrompeu-a. Era Sok, a gritar do lado de fora do abrigo:

Fui à frente para ver o que poderíamos encontrar amanhã no caminho se o rio tivesse mudado o seu curso e os caribus tivessem vindo por aqui. Sok entrou e calou-se de repente.

O que aconteceu? perguntou ele.

Foi o ramo de uma árvore. Bateu-lhe na nuca e deitou-a ao rio.

Trouxeram as prímulas, tu e Yaa? perguntou Caule Torto a Sok.

As quê?

Eu mandei Yaa à tua procura, disse Chakliux.

Disse-lhe que nos fosse buscar prímulas, mas que não queria que ela saísse do acampamento sozinha.

Assim que a minha mulher e os meus filhos atravessaram o rio, afastei-me, informou Sok. Depois, quase à beira do rio, vi um alce. Amanhã, quando amanhecer, vou à caça.

Chakliux levantou-se.

Vou à procura de Yaa. Ela não pode estar longe.

Fica junto da tua mulher. Eu vou, disse Sok. Sok saiu e Caule Torto chamou a atenção de Aqamdax.

Devias estar na cabana do sangue lunar. Eu vou lá ajudar-te. Se Yaa encontrar prímulas, irei ao tikiyaasde para tu me dizeres o que devo fazer.

Lamento o que aconteceu, disse Aqamdax, dirigindo-se a Caule Torto, mas esperando que Chakliux soubesse que as suas palavras eram para ele.

Aqamdax saiu do abrigo e encaminhou-se para a zona oeste do acampamento onde sabia que Furador montara o seu tikiyaasde. O espaço entre a tenda do sangue lunar e o acampamento estava às escuras, mas Furador acendera uma fogueira e as chamas orientaram Aqamdax na escuridão. Agachou-se junto da fogueira e aceitou a tigela de caldo quente que Furador lhe deu.

Estrela? perguntou Furador.

Está viva e eu senti o bebê mexer dentro dela, mas não creio que o espírito dela tenha voltado.

E se ela morrer? É possível poupar a vida ao bebê?

Era uma pergunta tola. Qual o bebê que ainda não nascera que conseguiria sobreviver se a mãe morresse? Mas Aqamdax lembrou-se do rosto de Chakliux, da esperança no seu olhar quando sentira o bebê mexer-se. O meu povo conta histórias de bebês que foram salvos quando as mães morreram. Abriram a barriga da mãe e tiraram o bebê, mas mesmo que nós fizéssemos isso, o bebê de Estrela seria pequeno demais para viver. Ela...

Aqamdax calou-se, olhou para o céu e contou pelos dedos.

Seis luas de gravidez disse ela, abanando a cabeça. Para salvarmos a criança, temos que salvar a mãe. Há um remédio que eu vi K’os usar e que é feito de prímulas.

Limpa os pulmões. Talvez isso faça regressar o espírito de Estrela. Não quero que essa criança morra. Seria como se eu perdesse de novo o meu filho. Ouvi Tigela Vazia dizer que o teu bebê morreu, disse Furador em voz baixa. Ele nasceu demasiado cedo? Ou o seu espírito foi chamado?

O pai ofereceu-o ao Lago do Avô, respondeu Aqamdax, num tom ríspido e frio.

Furador perdeu o fôlego.

O bebê foi... Ele não era forte? perguntou ela.

Era perfeito. Lindo. O meu marido julgava que ele era de outro homem. De alguém que viera para a minha cama antes de eu ser sua esposa. Mas o bebê era de Homem Noturno respondeu Aqamdax com a voz embargada.

Mesmo que não fosse, o que importa isso?

Odeio Homem Noturno, Furador. Não quero ser sua esposa.

Furador ajoelhou-se ao lado de Aqamdax e abraçou-a.

Eu posso pedir a Primeira Águia se ele te aceita. Seria bom ter-te como irmã. Ele é um caçador hábil. Nunca mataria o teu bebê, mesmo que ele fosse de outro homem.

Aqamdax limpou as lágrimas da face, dizendo:

És uma boa amiga, mas já houve alguém que me pediu.

-Chakliux?

Como sabias?

Que pergunta tola, Aqamdax. Todo mundo sabe. Os teus olhos dizem o que te vai no coração, e com Chakliux é o mesmo.

Eu quero rejeitar Homem Noturno, mas Chakliux diz para esperarmos até chegarmos à aldeia de Inverno.

É melhor. Para quê agravar a maldição que se abate sobre nós?

Não há maldição nenhuma, retorquiu Aqamdax. Estrela vai melhorar. O espírito dela voltará.

Dizes isso porque sabes ou só porque queres que o bebê dela viva?

Era uma pergunta a que Aqamdax não sabia responder. Furador aqueceu um pedaço de neve numa tigela de madeira e acrescentou uma pitada de viburno em pó que tirou de uma bolsa que trazia à cintura. Mexeu o pó com o dedo mindinho, depois bebeu um gole, fez uma careta e engoliu. Estendeu a tigela a Aqamdax.

Queres?

Não preciso.

Não estás menstruada, não é? perguntou Furador.

Porque pensas assim?

Nunca te vejo mudar o forro que trazes entre as pernas quando nos sentamos na tenda. Não te vejo enterrar nada de manhã nem à noite.

Às vezes, uma mulher precisa de estar na cabana do sangue lunar por outros motivos, respondeu Aqamdax a cautela.

Às vezes, as mulheres que são irmãs de coração precisam guardar os segredos umas das outras respondeu Furador.

Sok aproximou-se da mulher, Neve-no-Cabelo, e fez-lhe perguntas sobre as prímulas. O que entendia um caçador de plantas?

Neve-no-Cabelo emagrecera no acampamento de caça, apesar de haver mais comida do que nunca, desde que eles tinham vindo viver com o povo de Rio Primo. Sok lembrou-se que fora ela a insistir para trazerem o filho bebê. A criança devia ter ficado na aldeia de Inverno. Ligige’ teria tomado conta dela, e com certeza alguma velha teria conservado o seu leite ao longo dos anos por ter amamentado os netos.

Neve-no-Cabelo estendeu uma tigela de carne a Sok.

Tenho algumas folhas de prímulas secas que a minha mãe me deu antes de sairmos da aldeia de Rio Próximo - disse ela. Para que precisas delas?

Não sabes que Estrela caiu ao rio?

Quem não sabe?

Eu não sabia. Assim que tu e os nossos rapazes atravessaram, eu continuei, rio acima. Havia um alce...

Neve-no-Cabelo aproximou-se de um dos fardos que estava à porta do abrigo. Desatou-o e tirou uma bolsa achatada.

Prímulas disse ela, atirando-lhe. Precisam delas para Estrela?

Sok encolheu os ombros.

É Caule Torto que as quer.

A minha mãe diz que isso às vezes faz voltar um espírito ao corpo, disse Neve-no-Cabelo.

Sok resmungou e sorveu o resto da carne. Flor Azul, a mãe de Neve-no-Cabelo, considerara-se curandeira durante muito tempo, mas sabia pouco. Sok não confiava no que ela dizia.

Pousou a tigela e lambeu os dedos.

Preciso saber onde crescem, porque Yaa foi procurar a planta e não voltou.

Yaa, a menininha? perguntou Neve-no-Cabelo. A irmã de Aqamdax?

-Sim.

Então porque estás aqui sentado comendo? Vai procurá-la.

Admirado com a reação impulsiva da mulher, Sok pegou a bolsa de prímulas secas, mas Neve-no-Cabelo tirou-a das mãos.

Pegou o filho que estava dormindo na prancha de embalar e saiu da tenda. Sok largou a tigela e limpou as mãos nas perneiras. Escolheu uma lança curta e saiu. Seguiu ao longo do rio, longe do acampamento, até a vegetação ser tão espessa que ele foi obrigado a voltar para trás.

Que menina imprudente! disse ele, olhando para o céu como se falasse com as estrelas. Estas eram tão grandes que o meio do céu parecia branco. O bafo da sua respiração subiu ao encontro daquela luz, e Sok desejou estar no calor da cama. Não tardaria a encontrar a menina. Até onde poderia ter ido? Então, voltou para a tenda, enrolou-se nas peles da cama e sonhou com o tal alce, cujas armações novas e amplas ainda estavam manchadas de sangue.

 

O cão, com o pelo denso ensopado e coberto de gelo e os fardos ainda atados ao dorso, atirou-se tão depressa ao peito de Sok que este quase o atingiu com a lança antes de perceber que se tratava de Mordedor.

Sok deu com a ponta cega da lança nas costelas do cão em jeito de reprimenda, mas Mordedor deu outro salto e depois levantou a cabeça e uivou. O som fez eriçar os pelos dos braços de Sok, que estremeceu e calou as palavras duras que lhe tinham vindo à boca.

Mordedor desatou a correr, olhou para trás e latiu até Sok o seguir. O cão parou junto de uma poça pouco profunda à beira do rio. Um vento frio soprava na direção da água. Sok viu Neve-no-Cabelo e Ghaden a puxarem um monte de peles ensopadas. Era Yaa.

Sok deixou-se escorregar até à poça, pôs a menina no ombro, agarrou o braço de Neve-no-Cabelo e ajudou-a a subir a margem. A mulher ajoelhou-se e começou a tossir. Sok, a seu lado, batia-lhe nas costas.

Por fim, Neve-no-Cabelo levantou a cabeça.

O nosso filho está com Caule Torto. Resolvi ir à tua procura... disse ela, aos vômitos, apontando para o acampamento.

Espera que eu venha buscar-te ordenou ele, admirado ao ver Mordedor sentado junto da mulher e de Ghaden, como se os protegesse.

Aqamdax dirigia-se para a tenda de Chakliux quando começaram os primeiros choros. Desatou a correr, tapando com a mão a tigela com o remédio que fizera com as prímulas secas de Neve-no-Cabelo. Mas quando chegou ao abrigo, viu que Chakliux continuava sentado ao lado da mulher e, apesar de Estrela estar de olhos fechados, a sua respiração parecia mais regular.

Quem é? perguntou Aqamdax.

Vem do lado do rio respondeu Chakliux, tirando o remédio das mãos de Aqamdax. Levantou a cabeça de Estrela, pousou-a no seu regaço, obrigou-a a abrir a boca e deu-lhe a beber o líquido da tigela. Ela bebeu um, dois goles, mas o resto entornou-se no queixo e nas pregas da parka.

Tens mais? perguntou ele.

Um pouco. Neve-no-Cabelo tinha umas prímulas secas que a mãe lhe tinha dado. Ela disse que ia ajudar a procurar Yaa...

O coração de Aqamdax alvoroçou-se.

Ela já voltou?

Chakliux abanou a cabeça, voltou a deitar Estrela na sua cama de peles e depois saiu.

Fica aqui, disse ele a Aqamdax.

Aqamdax ajoelhou-se ao lado de Estrela e começou a cantar baixinho, embora fosse um cântico dos Primeiros Homens e talvez não ajudasse uma mulher de Rio. O que podiam esperar se não possuíam um curandeiro? Tinham que regressar ao acampamento de Inverno, onde estava Ligige’. ela entendia mais de remédios feitos à base de plantas do que Aqamdax ou Caule Torto.

Aqamdax cantou até ouvir Chakliux xingar com as mulheres por causa dos seus choros. Foi ao encontro delas e viu Sok com Yaa nos braços. Então, desatou a correr à frente dele, tentando arranjar espaço no abrigo, para Sok deitar a menina ao lado de Estrela.

Aqamdax tapou-a e tentou esfregar-lhe as mãos para as aquecer. Yaa não respirava, mas Aqamdax tomou-lhe o pulso e sentiu alguma coisa.

Não posso ficar aqui, disse Sok. Foi a minha mulher que a encontrou. Tenho que ir buscá-la. Ela está encharcada...

Saiu correndo e as outras pessoas entraram. Então Aqamdax ouviu a voz de Homem Noturno.

Porque estás aqui? Devias estar na cabana do sangue lunar.

O homem fez um rol de acusações, mas Aqamdax ignorou-o. O que era mais importante? A fúria de Homem Noturno ou a vida de Yaa?

Os seus pensamentos concentraram-se exclusivamente em Yaa e ela tentou aproveitar as sugestões feitas por aqueles que a rodeavam. Se o coração batia, isso significava que a menina tinha uma chance de sobreviver? Com certeza o espírito dela ainda não abandonara o corpo.

Aqamdax ouvira Qung contar uma história sobre um jovem apanhado nas cordas do seu arpão quando caçava uma baleia. Tinham conseguido fazê-lo voltar a si. O que haviam feito?

Aqamdax deitou Yaa de lado e bateu-lhe nas costas. Uma vez, quando Ghaden se engasgara com um pedaço de carne, fora útil bater-lhe nas costas.

Ela engoliu água? perguntou Homem Noturno, como se tivesse reparado na menina apenas nesse momento.

A pergunta irritou Aqamdax. Preocupava-se tão pouco com os outros, aquele homem que em tempos ela amara como marido.

Homem Noturno agachou-se ao lado dela.

O meu irmão... Olhou para Chakliux, cerrou os dentes e fez uma careta. Uma vez, o meu irmão mais velho caiu no rio de uma jangada. O meu pai...

Pegou no queixo de Yaa com a mão direita e apertou-o até ela abrir a boca. Disse a Aqamdax:

Mete o dedo na garganta de Yaa. Aqamdax hesitou.

Mete.

Ela enfiou o dedo na garganta de Yaa.

Mais fundo.

De repente, Yaa deu um solavanco e vomitou. Aqamdax tirou o dedo e Yaa continuou a vomitando. Aqamdax pegou-a, virou-a de barriga para baixo e segurou-a até a água lhe sair da garganta.

Ghaden ouvia o que as mulheres diziam, embora quisesse tapar os ouvidos à sua patetice, aos seus cochichos de que a irmã estava morta. Enterrou a cara no pelo de Mordedor e escondeu as lágrimas. Se os choros acabassem, se as mulheres não falassem em coisas tristes, talvez as coisas voltassem ao que eram. Ghaden acordaria de manhã e veria Yaa a seu lado, xingando-lhe por qualquer coisa que ele fizera ou não fizera, mas sorrindo-lhe com o olhar.

Como é que ela podia ter morrido? Era nova. Agora, ele só tinha Estrela como mãe. As mulheres diziam que Yaa trocara o seu espírito pelo de Estrela. Ele ouviu-as dizer isso. Mas porque faria ela uma coisa dessas? Yaa sabia que Estrela não era uma boa mãe. Mas talvez fosse por causa do bebê. Se Estrela morresse, o bebê também morreria. Era isso que acontecia aos bebês que ainda estavam dentro das mães.

Ghaden chorou até lhe parecer que os seus olhos não tinham mais lágrimas, e quando Aqamdax se aproximou, ele agarrou-se tanto a ela que as suas palavras lhe pareceram um absurdo quando ela disse:

- Yaa quer ver-te.

Quereria Aqamdax dizer que ele teria de ir com Yaa para o mundo dos espíritos? Ele não tinha a certeza se desejava que isso acontecesse. A antiga ferida nas costas começou a doer-lhe, como que recordando-lhe que também ele já estivera às portas da morte uma vez.

- Ela morreu? - perguntou ele em voz baixa.

- Não. Quem te disse uma coisa dessas? Esta noite ela não se sente bem para dormir contigo e com Mordedor, mas não morreu.

Aqamdax conduziu-o à tenda de Chakliux. Yaa estava deitada ao lado de Estrela, calada e imóvel, com a cara cheia de sombras à luz trêmula da lareira. Ghaden ajoelhou-se junto dela e acariciou-lhe a face. Ela não se mexeu e por instantes Ghaden julgou que ela morrera naquele curto espaço de tempo em que Aqamdax fora buscá-lo, mas depois Mordedor pôs-se ao lado dela, lambeu-lhe a face e Yaa desviou a cabeça como fazia sempre.

Ghaden riu.

- Porque caíste ao rio, Yaa? Porque fizeste uma coisa dessas? - perguntou Ghaden.

Pode ajudá-la a sentar-se.

Ghaden teve medo de que ela estivesse aflita, mas Yaa disse apenas:

Tive que ir buscar a planta para Estrela.

Ficou sem fôlego depois de pronunciar essas palavras.

Encontraste-a? perguntou Ghaden, arrependendo-se logo.

Mas Aqamdax sorriu e disse:

Ela tinha-a na mão quando Sok a trouxe para o acampamento.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

De manhã, K’os fez um turno junto das panelas. As mulheres andavam mais atarefadas do que era habitual raspando as novas peles de caribu, cortando carne e preparando-se para o banquete de que participariam nessa noite. Mas K’os só fazia o que queria fazer, pois não havia nada tão difícil como raspar peles. Já bastava as que teria de raspar no Inverno.

Quando Folha Vermelha saiu da cabana de Cen levava um pau, fio e um cesto, e K’os teve certeza de que ela ia verificar as armadilhas, ou talvez apanhar frutos de viburno, sempre mais doces depois de nevar.

K’os atravessou a aldeia às pressas, como se tivesse alguma coisa importante para fazer, com um cilt’ogho de mirtilos secos e um cesto de pele de peixe cheio de carne de caribu. Parou junto das lareiras e colocou mirtilos nas três panelas que estavam penduradas junto das fogueiras. Entretanto, observava as pessoas e memorizava as novas caras, dos caçadores que haviam acabado de voltar e as das mulheres, e as das crianças mais velhas que os tinham acompanhado.

Várias mulheres lhe falaram e perguntaram quando é que ela chegara à aldeia. Ela contou-lhes a mesma história que contara a Mosquito-Pólvora, que fora escrava e que depois fugira. Sorriu ternamente e ofereceu às mulheres alguns dos mirtilos que tinha no cilt’ogho. Por fim, quando elas se distraíram com uma criança que lhes trouxera uma primeira presa, um rapaz com um gaio enorme, com o peito trespassado por uma seta de madeira afiada, K’os esgueirou-se. Deixa se rejubilarem com uma coisa tão insignificante, na ausência dela.

Dirigiu-se a passos largos para a cabana de Cen e entrou no túnel sem raspar nem gritar anunciando a sua presença. Afastou a aba interior e fez um sorriso gozador ao ver Cen sentado de pernas cruzadas, com a filha de Folha Vermelha no colo. Falava com ela baixinho e o bebê ria com aquele riso surpreendente e sonoro que é próprio de uma criança forte.

Gheli confia-te a filha dela? perguntou K’os, e viu que Cen ficara admirado.

O homem vestia uma camisa e K’os reconheceu o trabalho de costura de Folha Vermelha nas costas, um desenho feito de pontos claros e escuros que lhe lembrava ervas ao vento.

Porque estás aqui? perguntou-lhe Cen.

Levou o bebê para a prancha de embalar e atou-o a ela.

K’os despiu a parka. Não trazia nada exceto as perneiras e uns aventais curtos de erva entrelaçada à frente e atrás. Fora Aqamdax que lhe fizera os aventais e dissera que eram iguais àqueles que as mulheres dos Caçadores Marinhos usavam nas suas cabanas.

A tua mulher é que te fez a camisa, disse K’os, agachando-se, afastando os joelhos e com um avental entre as pernas.

Ouviu a respiração ligeiramente alterada de Cen e viu que os olhos dele estavam cravados nas suas virilhas.

Viveste tempo demais com o povo de Rio, comerciante, disse-lhe ela. Já te esqueceste como é que as mulheres dos Caçadores Marinhos se vestem? Uma vez, tive uma escrava dessas. Foi ela que me fez este avental. K’os levantou a aba da frente. Ela fez-me um de erva entrelaçada. Talvez gostasses de ter alguns para vender.

K’os deixou cair o avental e aproximou-se de Cen. Pegou-lhe nas mãos e levou-as aos seus seios.

Ele afastou-se.

Sai desta cabana, K’os, ordenou ele com uma voz dura. Eu tenho uma esposa. Não preciso de ti.

Ela levantou a mão e deu-lhe uma unhada no queixo

Falei com a tua mulher. Ela disse-me que receberia uma irmã com agrado. Pergunta-lhe se não é verdade. Ela diz que a vida da mulher de um comerciante, um homem que também vai à caça, é solitária. Imagina a alegria de teres duas esposas. Uma que fica aqui na cabana para te guardar a despensa e criar os teus filhos, e outra que viaja contigo para te aquecer a cama quando dormires numa tenda improvisada.

Uma esposa que também aquecerá a cama de outros homens quando julgar que eu não vou notar, proferiu Cen. Uma esposa que conspirará contra mim. Julgas que eu preciso de uma esposa assim? Vai-te embora, K’os, não és bem-vinda aqui.

Cen virou-lhe as costas e K’os fez figas, amaldiçoando-o e à filha de Folha Vermelha. Ficou à espera que ele dissesse mais alguma coisa, mas ele não disse. E por fim, quando. sempre de costas, ele desembainhou uma faca que trazia à cintura e a ergueu para K’os ver a lâmina comprida, esta vestiu a parka e voltou para a cabana de Mosquito-Pólvora.

Agachou-se mesmo à entrada do túnel e pensou em todos os jovens da aldeia. Não seria difícil aceitarem-na na sua cama, mas não tinham um filho na aldeia de Rio Primo como Cen tinha. Não teriam motivos para visitar o povo de Primo, sobretudo tão pouco tempo depois da derrota deste. Para quê arriscarem-se a atrair a má sorte para a aldeia de Quatro Rios?

Por fim, K’os levantou-se, regressou à cabana de Folha Vermelha, entrou pelo túnel abaixada e afastou a aba. Cen levantou a cabeça e franziu a testa ao vê-la.

Julgaste que era Gheli? perguntou ela, com uma voz envolvente, passando da ternura para o desprezo. Julgas que ela é a mulher de que precisas? Que te dará filhos? E o filho que já tens? Sabias que ele está agora com Chakliux?

Porque Chakliux teria o rapaz?

Como sabes, os velhos deram Ghaden a Estrela, disse ela. - Chakliux aceitou-a como esposa. Conheces bem Estrela. Porque julgas que Chakliux a quis? Talvez ele seja tolo, ou talvez, com o seu pé de lontra, queira ter a garantia de que um filho cuidará dele na velhice.

K'os sentiu uma corrente de ar súbita, virou-se e reparou que Folha Vermelha estava espiando no túnel de entrada. A mulher tinha um ar aterrado. Mostrou uma mão-cheia de ramos de framboesa.

- É para o chá - disse ela com uma voz débil. E tenho lebres que apanhei nas minhas armadilhas.

- Eu estava dizendo ao teu marido uma coisa que tu devias saber - informou K'os. - Sobre o filho dele, um rapaz chamado Ghaden.

- Eu já falei a Gheli de Ghaden - disse Cen.

- Ele contou-te que alguém da aldeia de Rio Próximo, aquele lugar em que fui escrava, matou a mãe do rapaz e feriu Ghaden?

- Contou - respondeu Folha Vermelha.

A sua voz era serena e controlada, mas as mãos tremiam.

- Mas tenho a certeza de que nenhum de vocês sabe uma coisa - prosseguiu K'os. - Sabias, Gheli, que os velhos da aldeia julgavam que fora Cen que matara a mãe de Ghaden?

- Eu não sabia - respondeu Folha Vermelha devagar, mas de cabeça baixa e sem olhar para Cen.

- Deixa-nos em paz, K'os - ordenou Cen.

O homem virou-se como se K'os já tivesse saído e disse a Folha Vermelha:

- Eu não matei a mãe de Ghaden.

- Eu sei - disse Folha Vermelha.

Folha Vermelha não conseguiu deixar de olhar para o dedo mutilado na mão esquerda de Cen. Sabia a história daquele dedo, oferecido como sacrifício em troca da vida de Ghaden quando o rapaz estava morrendo dos ferimentos provocados pela faca de Folha Vermelha. A culpa do que fizera pesava-lhe de tal modo na cabeça que a mulher julgou que o pescoço estalaria. Os círculos que enfeitavam as paredes da Cabana de Cen já não lhe pareciam nuvens mas sim olhos escuros, que a observavam com um ar acusador.

Se estás tão preocupado, Cen, devias voltar à aldeia de Rio Primo para reclamar Ghaden depois da luta. Porquê o deixaste com um povo que foi derrotado?

Cen virou-se para ela, rubro de cólera, e exclamou:

O que tens tu com isso?

Nada, mas talvez a tua mulher fique incomodada pensando que te preocupas menos com o teu filho do que com um dos teus cães, respondeu K’os com uma voz suave.

O sofrimento do marido afastou o sentimento de culpa de Folha Vermelha.

Basta, K’os. Vai embora, ordenou ela. K’os deu uma gargalhada.

Ah, Gheli, mas eu não vos disse uma coisa que vocês vão gostar de saber. Os de Rio Próximo descobriram quem matou a mulher Caçadora Marinha. Foi a esposa de Sok. Ela chama-se Folha Vermelha... Lembras-te de Sok? perguntou K’os a Cen.

Cen franziu a testa.

Lembro-me dele, mas não da mulher.

É pena, disse K’os.

Porque é que ela os matou? Alguém sabe? perguntou Cen.

K’os riu intimamente da mudança operada no homem. Ele agora já não queria que ela se fosse embora.

Ela matou o velho porque ele era chefe dos caçadores e ela queria que fosse Sok a ter essa honra. E matou a mãe do teu filho e tentou matar o rapaz só porque eles a viram.

Eles regressavam da...

As palavras de Cen morreram-lhe na boca e K’os disse.

Da tua cabana de viagem.

O que fizeram eles à mulher? perguntou com uma voz subitamente rouca.

K’os olhou fixamente para Folha Vermelha. A mulher pareceu-lhe frágil, como se tivesse envelhecido de repente.

Mataram-na, respondeu K’os. Com uma faca, tal qual ela matara a mãe de Ghaden. Dizem que foi o próprio Sok que a matou.

 

                   O POVO DE RIO PRÓXIMO

O som aproximou-se pouco a pouco e a princípio Dii nem percebeu do que se tratava, mas, quando o vento lhe levou o aroma do sal, compreendeu que era o mar.

Encontravam-se no topo de uma colina, e, lá embaixo, o terreno dava lugar a uma grande extensão de lama, assinalada na linha de maré por sulcos de gelo.

Eles não eram um povo do mar. Compreendiam os rios, por vezes turbulentos e perigosos, mas ainda assim delimitados pela terra. O mar era grande demais. Quem entre eles sabia quais os espíritos que o dominavam ou os cânticos que os poderiam proteger? O que seria considerado um insulto? Como deviam as pessoas agir para mostrar respeito?

As mulheres juntaram-se atrás dos homens, agarradas aos filhos.

Dii estremeceu ao ver a água a estender-se até ao horizonte distante. Alguns contadores de histórias diziam que ela subia na abóbada celeste em busca do Sol, para captar o calor do seu fogo. Mas outros diziam que não. Porque o mar quereria sair do seu leito? Como viveriam os peixes, as focas e as baleias?

Dii não percebeu que a atitude inicialmente respeitosa das pessoas deu lugar aos cochichos, mas por fim, quando entrou nas vastas planícies banhadas pela maré, compreendeu que os sonhos do marido estavam mais uma vez errados. Eles tinham chegado aos confins da terra, e continuava a não haver sinais de caribus.

Todos os olhos estavam postos em Anaay, e os homens e as mulheres observavam. Dii nem conseguia respirar. Esperava que ele fosse alvo de acusações, aguardou e ficou admirada por elas não surgirem. A princípio, Anaay pareceu encolher-se, mas depois encheu o peito de ar e exclamou:

- Os de Rio Primo voltaram a amaldiçoar-nos.

Todavia, quando ele falou os homens que o rodeavam viraram-lhe as costas, fizeram sinal às suas mulheres e afastaram-se em silêncio, deixando Anaay no alto da colina, só com Dii atrás dele.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Três dias depois do regresso dos caçadores, era noite quando K'os ouviu raspar do lado de fora da cabana. Esperou para ver se Mosquito-Pólvora ouvia, mas, como a mulher não respondeu, K'os mandou entrar o visitante.

A aba interior afastou-se e pelo canto do olho K'os viu Trepador aproximar-se das suas armas. Levantou um braço e, apontando para o caçador que entrara na cabana, disse a Trepador:

- Eu conheço este homem. É de Rio Próximo e chama-se Dança-no-Gelo.

Dança-no-Gelo levantou as mãos num gesto de saudação. Acenou a Mosquito-Pólvora e a Trepador, mas não se mostrou interessado em saber os seus nomes. Olhou para K'os e disse:

- Como não te encontrei na aldeia de Inverno de Rio Primo, calculei que tivesses vindo para cá, onde o teu irmão viveu.

K'os sorriu. Nem se lembrava de que lhe falara do irmão numa das vezes em que tinham estado juntos.

- Uma das mulheres que estava junto das lareiras disse-me que tu vivias nesta cabana.

- Como vês, ela tinha razão - respondeu K'os, fazendo um esforço para não rir com o ar sério do jovem.

- Trouxe o que pude - disse ele. - O meu cão, peles e uma tenda. Não posso oferecer-te uma cabana, mas tenho peles de caribu suficientes para fazer uma.

K'os examinou-o com os olhos semicerrados. Estaria ele dizendo a verdade? Teria peles boas para fazer uma cabana?

Quando os caribus haviam destruído o acampamento de caça de Rio Próximo, poucos homens tinham tido tempo de levar as suas armas. Onde ele arranjara as peles?

- Caçaste caribus suficientes para teres peles que cheguem para fazer uma cabana? - perguntou ela, afastando Mosquito-Pólvora que tentava oferecer uma tigela de carne a Dança-no-Gelo.

Mosquito-Pólvora sentou-se com a tigela no colo. K'os disfarçou o riso ao ver Dança-no-Gelo olhando para a comida. Se fora ali fazer uma proposta de casamento, que a fizesse. Comeria depois.

- Nesse dia, apanhei um caribu, e o meu pai também.

- Melhor do que muitos outros - comentou K'os e reparou que Mosquito-Pólvora começara a tirar carne da tigela, lambendo os dedos cheios de molho. - Mas duas peles não chegam para fazer uma cabana.

- Fui à aldeia de Inverno de Rio Próximo à tua procura - respondeu ele. - Eles tinham algumas peles boas numa das despensas. Tirei aquelas de que precisava e um trenó. De noite, fugi. Julguei que eles viriam atrás de mim, mas não vieram. É claro que só havia velhas na aldeia. O que elas podiam fazer?

- Então os caçadores ainda não voltaram - concluiu K'os, como se falasse consigo própria. Endireitou-se e olhou para Dança-no-Gelo. - E porque vieste falar comigo? Só te posso oferecer remédios.

Mosquito-Pólvora estendeu a mão para mostrar uma cicatriz, muito bem curada.

K'os escondeu a sua surpresa. A cicatriz era antiga, e ela não dera nada a Mosquito-Pólvora para ajudar a curá-la. Mas não era mau ter uma aliada. Quem poderia dizer se as Palavras de uma velha teriam algum préstimo?

- Venho pedir-te que sejas minha esposa - disse Dança-no-Gelo.

K'os arregalou os olhos, fingindo-se admirada.

- Não quero regressar ao povo de Rio Próximo - respondeu ela. - As mulheres me veriam sempre como uma escrava.

Ficaremos aqui - respondeu Dança-no-Gelo levianamente.

Trepador levantou-se cambaleando e apontou um dedo deformado a Dança-no-Gelo, dizendo:

Julgas que és digno de tal mulher? Ainda nem és um homem. Como saberemos se consegues arranjar carne suficiente para ela? Tens uma despensa nesta aldeia, ou noutra qualquer, para a alimentares durante o Inverno?

Tenho um fardo de carne, um bom cão e peles de caribu respondeu Dança-no-Gelo.

E onde viverás? Julgas que temos com que te alimentar? Deixa aqui as tuas peles de caribu e vai caçar. Traz carne e depois veremos se és digno desta aldeia.

Dança-no-Gelo espetou o lábio inferior, fazendo beicinho como uma criança. K’os susteve o riso. Julgaria ele que não tinha que fazer nada para conquistar uma esposa? É claro que percorrera um longo caminho e que desejava sair da sua própria aldeia. Mas era um disparate dar tanto à primeira mulher que o recebera na cama. K’os levantou-se, aproximou-se da panela e encheu uma tigela de carne. Mosquito-Pólvora ofereceu a Dança-no-Gelo a tigela que tinha na mão, agora meio cheia.

Ele fez um longo caminho disse K’os com doçura. Está com fome. Deu-lhe a tigela cheia e também um odre de água, e depois acrescentou:

- Come. Depois falaremos disso.

K’os sentou-se, observou-o, ponderou a sua oferta e pensou em mandá-lo caçar como Trepador sugerira. Quando ele voltasse, se ela tivesse decidido que não o queria, colocaria erva-de-são-cristóvão na comida dele. Depois de ele morrer, ficaria com as peles e a carne que ele conseguira trazer. Mas talvez lhe conviesse ter um marido. Inclinou a cabeça e examinou-o. Era um belo rapaz; a boca era grande demais e o nariz feio. Mas era forte, e K’os gostara das suas tentativas para lhe agradar.

Dança-no-Gelo levantou a cabeça e sorriu-lhe. K’os baixou o olhar devagarinho, como se fosse uma menina cortejada pela primeira vez.

Talvez Dança-no-Gelo fosse um bom marido. E se não fosse, havia muitas maneiras de um marido morrer.

 

                   O POVO DE RIO PRÓXIMO

Dii pegou o fardo da comida. Muitas Palavras oferecera a Anaay os quartos traseiros de uma lebre recém morta, e Dii embrulhara-os num pedaço de pele bem raspada e enfiara-a no topo do fardo, mas ela escorregara para o lado. Estava tão cansada que queria deixar ali a carne, mas sabia que a devia tirar antes que amolecesse e pingasse, e estragasse a carne seca que ela trazia.

Montara a sua tenda num local alto, cobrira o solo gelado com camadas de ramos de abeto e de esteiras de erva, mas, ao enfiar o braço no fardo, escorregou entre duas esteiras e caiu nos ramos de abeto. Na queda, o fardo rasgou-se.

Dii tirou a lebre e cerrou os dentes, furiosa. Estavam muito longe da aldeia de Inverno; de nada servia praguejar contra um fardo de que ela ainda precisava. Espetou a lebre num ramo de salgueiro aguçado e o pôs sobre a fogueira que acendera à porta do abrigo.

Tirou carne do fardo até ter espaço suficiente para voltar a enfiar as amarras nos orifícios e depois arrastou-o para junto da fogueira, onde tinha luz para trabalhar.

Anaay aproximou-se depois de ela ter consertado o fardo. Falou-lhe rudemente e criticou o sabor da carne, mas Dii ignorou-o. Quando estava guardando o último pacote de couro no topo do fardo, reparou que era o remédio que K'os lhe dera para Anaay. Quase se esquecera dele, com todos os problemas que tinham surgido no acampamento de caça.

O que lhe dissera K'os? Que ele ajudaria Anaay a dar-lhe um filho.

Dii tencionava esperar que regressassem à aldeia de Inverno para o usar, mas julgara que voltariam muito antes. Sofria os tormentos de ser esposa de Anaay. Porque não ter algo que a alegrasse? Talvez, se ela desse um filho a Anaay, este fosse um marido melhor. Dii abriu o pacote. Estava cheio de um pó verde-claro, quase branco. Dii colocou uma pitada numa chávena com água, pôs a chávena em cima das brasas e esperou que a água aquecesse. Em seguida, colocou a mistura numa chávena limpa e deu-a a Anaay.

- Um chá para te fortalecer - disse ela.

Ele bebeu um gole.

É de viburno? perguntou ele.

É algo que nós, mulheres de Primo, conhecemos, informou ela, desejando que K’os lhe tivesse dito de que planta era feito aquele pó. É indicado para os caçadores.

Anaay olhou para ela, desconfiado, e deu-lhe a chávena.

Bebe tu, disse ele.

Ela pensou em dizer-lhe que fora K’os que lhe dera e que isso lhe fortaleceria o sêmen, mas Anaay poderia encarar o seu gesto como um insulto. Era melhor beber e provar-lhe que o remédio era inofensivo.

Em geral é só para os homens, os caçadores, disse Dii, mas levou a chávena à boca sem hesitar.

Anaay tirou-lhe antes que ela pudesse beber e engoliu o resto.

Nesse caso, para quê amaldiçoá-lo? disse ele com um sorriso malicioso.

 

                   O POVO DE RIO PRIMO

Sok sentou-se ao lado de Neve-no-Cabelo e umedeceu a testa com uma tira de pele passada por água fria e torcida. Ela estava quente e o seu leite secara em três dias. Leva-Muito era agora amamentado por Folha-de-Salgueiro.

Neve-no-Cabelo abriu os olhos e olhou-o, dizendo que tinha que ir à procura de Yaa. Sok voltou a dizer-lhe que Yaa estava bem, que já arranjara forças para se levantar da cama e que até já fora fazer-lhes companhia uma vez.

Neve-no-Cabelo respirava com dificuldade sempre que falava, e o peito de Sok também lhe doía, como se também lhe custasse respirar.

Aqamdax e Caule Torto tinham aquecido tiras de pele de caribu embebidas em resina de abeto para lhe pôr no peito. Tinham-na obrigado a beber chá de prímulas e pulmonária, tinham-lhe esfregado as costas e o pescoço com folhas-de-caribu, mas nada parecia ajudá-la. Sok baixou a cabeça e fechou os olhos por um momento. Há quanto tempo não dormia?

Os sonhos aproximaram-se e, embora ele tivesse os olhos fechados, viu Estrela aproximar-se. Chakliux dissera-lhe que a mulher estava melhor, mas Sok não sabia que ela conseguira levantar-se.

Estás bem? gritou-lhe Sok.

Estrela olhou para ele e sorriu, mas não respondeu.

Ainda bem que vieste, disse ele.

Ela não deu resposta. Sok viu-a ajoelhar-se junto de Neve-no-Cabelo e inclinar-se sobre ela. Sok julgou que ela ia dizer-lhe algum segredo, mas a mulher abriu muito a boca, colou-a à boca de Neve-no-Cabelo e sugou, como se quisesse tirar-lhe o ar do corpo.

Sok deu um grito e levantou-se, mas Estrela desaparecera. Uma brisa vinda da abertura do abrigo trouxe uma nuvem de fumaça da fogueira, que lhe entrou para a garganta e o engasgou. Sok foi lá para fora e aspirou o ar frio da noite. O acampamento estava às escuras, exceto o clarão das fogueiras.

Um sonho, murmurou, voltando para junto da mulher.

Ela está acordada, disse Caule Torto a Chakliux. Chakliux estava tão absorto nos seus pensamentos que a velha teve que repetir as suas palavras para ele perceber.

A tua mulher está acordada. Vai falar com ela, que pede a tua presença.

Está acordada?

Ela chama por ti.

Chakliux foi atrás de Caule Torto desde o meio do acampamento até a sua tenda. Aqamdax estava à entrada. Passara as noites com Estrela e dormia como podia durante o dia.

Ela tem fome, disse Aqamdax.

Chakliux entrou na tenda. Estrela tinha os olhos abertos e estava pálida, mas já não tinha febre.

Caule Torto disse que estavas melhor.

Agora estou bem afirmou Estrela. Mas cansada.

Pôs as mãos e levou-as à barriga. O bebê mexia-se.

 

                   O POVO DE RIO PRÓXIMO

Anaay acabou o remédio e depois franziu a testa.

Uma mulher devia sempre ir primeiro à tenda do marido disse ele a Dii. Eu não devia ter que vir aqui para comer.

Mas o que podia ela dizer? Ficara na sua tenda porque não queria ouvir os queixumes dele, não queria arriscar-se a que ele descarregasse a sua ira nela.

Eu já ia lá, mas a comida não estava pronta, exclamou ela. Sabes que a lebre foi oferecida por Muitas Palavras?

Talvez a surpresa provocada pelo presente de carne de Muitas Palavras acalmasse a fúria do marido.

Anaay resmungou, pegou o cajado e começou a levantar-se. O coração de Dii bateu mais depressa e ela levantou-se também. Era melhor fugir, embora não pudesse ir longe, às escuras. Preferia o cajado do marido aos espíritos noturnos que se escondiam no frio e no gelo do mar do Norte.

Porém, quando Anaay estava quase de pé, caiu de repente, agarrou-se à barriga e gemeu. Dii ficou à espera, sem saber se ele recorria a alguma artimanha para que ela se aproximasse e não pudesse fugir, mas ele largou o cajado, deixou-se cair nas esteiras do chão e enrolou-se como uma bola.

O que me fizeste, mulher? perguntou ele com uma voz rouca e arrastada.

Nada, não fiz nada respondeu Dii, assustada, com uma voz infantil.

A lebre, pronunciou ele a custo.

Muitas Palavras...

Ele... exclamou Anaay, contorcendo-se com dores.

Eu vi-o matá-la. Serviu-se de um pau, disse Dii, chorando, com a voz entrecortada. Vi-o esfolá-la... Ele deu-me os quartos traseiros...

Na sua agonia, Anaay parecia não a ouvir. Dii observara Muitas Palavras, não tirara os olhos dele. Até verificara se as pernas da lebre tinham lascas de osso e comera uns pedaços. Sentou-se nos calcanhares e esperou para ver se teria dores. Nada.

Eu também comi lebre. Não me sinto mal disse a Anaay.

Ele pareceu meditar nas palavras dela e depois cerrou os dentes ao sentir outra dor.

Talvez Flor Azul tenha alguma coisa, sugeriu Dii. Um chá ou...

Dii calou-se. Sentiu um aperto no peito ao lembrar-se do chá que dera a Anaay. Então, Anaay disse, ofegante:

O chá. Quem te deu?

Ninguém, respondeu ela, com medo de lhe dizer a verdade.

K’os, disse ele em voz baixa. Dii não respondeu.

K’os! gritou ele, contorcendo-se de novo.

K’os, respondeu ela.

Ela disse-te para me matares?

Ela disse que isso te ajudaria a me dares um filho. Ele rangeu os dentes e perguntou de chofre:

Não sabes que ela quer ver-me morto? Ela não te falou do Rochedo do Avô?

Só me disse que a salvaste, que a ajudaste a matar... A gargalhada súbita de Anaay transformou-se num grito de dor. Os olhos rolaram-lhe nas órbitas e um cheiro nauseabundo invadiu a tenda. Ele gemeu e Dii reparou na descoloração das suas perneiras, com uma mancha que era um misto de fezes e de sangue. Saiu do abrigo correndo, pensando apenas em ir buscar ajuda. Flor Azul, onde montara ela a tenda?

Dii caminhava na escuridão, de fogueira em fogueira. Quase todas estavam então reduzidas a brasas e davam pouca luz. Dii escorregou várias vezes.

Reconheceu a tenda de Flor Azul pela fiada de crânios de corvo pendurados à entrada, os amuletos que em tempos tinham pertencido ao xamã, seu marido. Dii gritou, tentando evitar o tremor na voz.

Estou dormindo, respondeu Flor Azul.

Anaay, o meu marido, precisa de um remédio, disse Dii, sustendo a respiração até a mulher afastar a aba da tenda.

O que lhe aconteceu? perguntou Flor Azul, cujo rosto parecia uma lua pálida a espreitar na escuridão.

Tem dores de estômago, respondeu Dii, com medo de dizer mais alguma coisa.

Diarréia?

Sim.

Espera.

Dii não tivera tempo de calçar as botas. Trazia os sapatos de pele que usava na cabana, e o frio do chão entranhava-se nos pés e fazia lhe doerem os ossos. Por fim, Flor Azul pôs a cabeça de fora outra vez.

Raiz de amora-da-silva-do-ártico, disse ela. Dá-lhe para mastigar, ou faz um chá.

Dii tinha muitas perguntas a fazer, mas Flor Azul fechou-lhe a aba na cara. Voltou para a sua tenda e sentiu o cheiro da doença do marido ainda antes de entrar. Ele estava no chão, com os joelhos encostados ao peito. Ela ajoelhou-se a seu lado, partiu um bocado da raiz e meteu-a na boca dele.

Isto vai ajudar-te. Foi Flor Azul que me deu, disse ela.

Ele abriu a boca.

Mastiga insistiu ela. Vou fazer um chá. Esperou que ele segurasse a raiz entre os dentes e depois meteu o resto na boca, mastigou-a até formar uma pasta e em seguida cuspiu-a em uma chávena e colocou um pouco de água. Pôs a chávena em cima das brasas e esperou que a água aquecesse. Depois, deu o chá para Anaay beber, tentando não ver o chiqueiro em que ele estava. Levantou-lhe o queixo, tirou-lhe da boca o resto da raiz, mergulhou os dedos na chávena e deitou-lhe a mistura pela goela abaixo.

Ele pareceu aliviado, e Dii teve esperança de que a planta desse resultado. De súbito, os dentes de Anaay agarraram-se à borda da chávena. A cabeça caiu-lhe para trás e ele começou a agitar os braços e as pernas. Dii tentou acalmá-lo. mas ele afastou-se e continuou a contorcer-se e a debater-se.

Dii começou a cantar, agarrada a um amuleto que o pai lhe dera quando ela ainda era pequena. O medo fazia-a tremer. Que proteção podia ela esperar se Anaay fora vítima de tamanha maldição? Desatou a chorar, e as lágrimas caíam-lhe da face para a parte da frente da parka, mas não deixou de cantar senão quando Anaay se imobilizou. O homem tinha os olhos tão arregalados que só se lhe via a parte branca das órbitas. Teve um espasmo e ela afastou-se, deixando cair a chávena. Depois, ficou olhando para ela. Talvez o chá e as orações tivessem resultado.

Vou buscar-te roupa lavada, marido. Podes dormir aqui na minha tenda... disse ela.

Foi então que reparou que ele não pestanejara, e de súbito percebeu que ele não via nada.

 

                   ACAMPAMENTO DE RIO PRIMO

Sok acordou estremunhado. Julgara ouvir uma raposa a regougar. Fora verdade ou apenas um sonho? Fosse como fosse, o que poderia significar aquele som a não ser a morte? Rastejou até à abertura do abrigo e viu que Caça-Mochos, sentada ao lado de Neve-no-Cabelo, adormecera. Ao olhar para a mulher, ficou gelado.

Neve-no-Cabelo tinha a boca e os olhos abertos. Em algum momento durante a noite, o seu espírito conseguira sair do corpo. Sok tentou dar um grito fúnebre, mas não lhe saiu qualquer som da garganta. Talvez Neve-no-Cabelo tivesse levado a voz com ela ao partir. Inclinou-se sobre o corpo da mulher, pegou-lhe ao colo e chorou baixinho.

- Eu sou forte - disse Estrela.

- Talvez... e Neve-no-Cabelo? E Yaa? - perguntou-lhe Chakliux.

- Deixa-as ficar aqui com Sok. Ele pode tomar conta delas. Preciso voltar para a minha cabana. O meu bebê está crescendo e daqui a pouco não poderei andar com tanta facilidade.

Chakliux suspirou. Vestiu a parka e calçou as botas. Quando Estrela estava com aquela disposição, não se podia falar com ela. Mas talvez ela tivesse razão. Estavam apenas a quatro ou cinco dias da aldeia de Inverno. Porque não permitir que a maior parte das pessoas fosse para lá? Porque ficariam todos por causa de alguns que estavam fracos demais para fazer a viagem? As mulheres precisavam de tempo para consertar as cabanas para o Inverno, e os homens tinham que dividir os caribus pelas famílias.

Quando Chakliux se dirigia para o abrigo de Sok, Estrela foi atrás dele choramingando, dizendo-lhe que ele devia ir encher a panela e trazer mais lenha para a fogueira.

- Se estás boa para ir para a aldeia de Inverno, também estás boa para te alimentares - disse ele.

Tirou várias tiras de carne seca de um estrado e foi comendo enquanto andava.

Ao aproximar-se da cabana de Sok, ouviu a voz de Caça-Mochos, fina e entrecortada, entoando uma canção fúnebre. De repente, a carne que comera parecia ter apodrecido dentro dele. Atirou o resto a um dos cães preso junto da tenda e entrou. Abraçou Sok e juntou as suas lágrimas às do irmão.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

- Acho que estás enganado a respeito de K'os - disse Folha Vermelha a Cen.

Nunca falara a Sok daquela maneira, mas Cen era um homem que dava ouvidos a uma mulher, mesmo à esposa.

- Ela não presta - disse ele. - Tu não conheces K'os como eu.

- Ela faz belas parkas.

- Tu fazes belas parkas.

- Pensa quanto lucrarás se nós as duas fizermos parkas para tu venderes.

Folha Vermelha viu Cen erguer as sobrancelhas ao pensar naquela idéia, e o coração alvoroçou-se de esperança.

Mas ele disse:

Vivi com ela uma vez. Na cabana dela, na aldeia de Primo. Tencionava aceitá-la como esposa, mas um dia, quando cheguei a casa, encontrei-a na cama com outro homem.

Ela não era tua esposa, conforme tu disseste.

Era como se fosse. Os caçadores riram da minha fúria e disseram-me que ela recebia qualquer homem na sua cama desde que ele tivesse bastante contas ou peles.

Então deixa-a dormir com eles, disse Folha Vermelha. Quando ela for tua esposa, as contas e as peles que ela receber serão tuas. Terás mais coisas para vender.

Folha Vermelha pensou que Cen ficaria zangado por ela dizer tal coisa, mas, para sua surpresa, ele riu. Depois levantou-se e despiu-lhe a camisa de pele de caribu. Deitou-a na cama dele. Ela abriu as pernas e durante algum tempo não pensou em K’os.

 

                   O POVO DE RIO PRÓXIMO

O primeiro pensamento de Dii foi para Chama-o-Sol. Era velho; ele sabia o que havia a fazer. Talvez ela devesse também ir chamar Flor Azul. Mas quando voltou a olhar para o marido, engelhado pela morte, deitado numa poça de sangue e fezes, concluiu que eles perceberiam que ele fora envenenado.

E quem acreditaria que fora K’os? Ela partira há tanto tempo. Dii ainda tinha as marcas da pancada de Anaay. Não seria difícil pensarem que ela se vingara.

Podia roubar um dos cães. Tinha comida e a sua tenda... Não. Os de Rio Próximo iriam atrás dela. O povo tinha que vingar a morte dele. O espírito de Anaay seria mais complacente do que ele próprio fora?

Dii saiu da tenda e olhou para as estrelas. Ainda lhe restava a maior parte da noite e Anaay tinha três cães possantes e dois trenós. Dii era pequena e não comia muito. Como quinhão de carne de caribu de Anaay, com o peixe que ela apanhara e secara e com os mantimentos que ambos tinham trazido, possuía o suficiente para regressar à aldeia de Rio Primo. A quanto tempo ficaria dali? A quatro, cinco dias de caminho. Talvez um pouco mais.

Dii carregou os trenós com todo o cuidado e amarrou as armas de Anaay e o cajado ao maior. Em seguida, serviu-se de tiras de babiche para ligar as articulações de Anaay, a fim de que o espírito dele não a importunasse. Enrolou-o, a ele e aos dejetos, em esteiras de erva. Forrou o trenó com os ramos de abeto que tirou do chão da tenda e arrastou Anaay para ele. Amarrou-o aos postes, desmontou a tenda e tapou-o com ela e atou tudo ao trenó.

Atravessou a aldeia pé ante pé até chegar à tenda de Anaay e desmontou-a também. Queria deixá-la, mas quem acreditaria que um homem tão egoísta como Anaay partiria sem levar o seu abrigo, apesar de este estar danificado pelos cascos dos caribus?

Dii precisou de ir e vir quatro vezes para levar tudo para os trenós. Atrelou o cão mais forte, um macho de olhos dourados, ao trenó que transportava o corpo de Anaay e depois atrelou o outro macho ao segundo trenó. Quanto ao terceiro cão, uma fêmea jovem, carregou-a de fardos com a cama de Anaay e outras roupas.

Antes de o Sol nascer, Dii obrigou os cães a descreverem um grande círculo à volta do acampamento, longe do mar, e dirigiu-se para leste, para a aldeia de Rio Primo. Passaria a maior parte do dia caminhando, encontraria um local para deixar o corpo de Anaay e voltaria para o seu próprio povo. Talvez uma mulher com três cães e dois trenós encontrasse um homem que a quisesse aceitar como esposa. Se não, com certeza que uma das velhas a receberia.

E em Rio Próximo, quem duvidaria que Anaay optara por viver noutro lugar qualquer em vez de admitir que afirmara existirem caribus onde não havia nenhum?

 

                   OS CAÇADORES DE RIO PRIMO

Ela morreu, afirmou Chakliux.

Aqamdax olhou para ele e ficou assustada ao vê-lo tão cansado, tão pequeno.

Neve-no-Cabelo?

Neve-no-Cabelo. Como está Yaa?

Com mais forças.

Suficiente para ir para a aldeia de Inverno se fizermos um trenó para ela? Espreita-o-Céu diz que o puxa.

Partirás antes do fim das cerimônias fúnebres?

Não posso, disse ele. Ficarei com Sok, mas para quê ficarmos todos os quatro dias neste local se estamos perto da aldeia?

Eu fico. Yaa, Ghaden e eu. É melhor não deslocarmos Yaa.

Se ela tiver forças, seria preferível levá-la para a aldeia. Ligige’ está lá. As mezinhas dela são boas. Talvez ela tivesse conseguido salvar Neve-no-Cabelo. Eu devia ter mandado buscá-la. Eu devia...

Aqamdax levantou-se e acariciou a face de Chakliux.

O rio levou-a, Chakliux, disse ela em voz baixa. Não percas tempo com remorsos. O teu irmão precisa de ti. Sofreu uma grande perda.

Estava tudo correndo tão bem, Aqamdax, até chegarmos ao rio. Talvez seja por causa daquilo que fizemos...

Aqamdax pôs-lhe os dedos na boca, impedindo-o de falar. Como poderia suportar o que ele dizia? O que eles tinham feito fora uma traição a Homem Noturno e a Estrela. A mais ninguém. Porque Estrela seria castigada? Ou Yaa?

Perdemos a nossa sorte, tu e eu disse Chakliux.

Não, disse Aqamdax. Nada mudou para nós. Quantas pessoas morrem numa caçada? Os caçadores afogam-se; as mulheres adoecem. As crianças perdem-se no caminho. Contudo, nesta caçada, só morreu uma pessoa. Não digas que perdemos a nossa sorte. Eu irei para a aldeia de Inverno e, quando lá chegar, rejeitarei Homem Noturno. Quando tu e Sok regressarem, serei tua esposa.

Inclinou-se e ele abraçou-a. Quando voltou para a tenda para preparar Yaa para a viagem, Aqamdax estava chorando.

Chakliux ajudou as pessoas a carregarem os seus mantimentos e, apesar de Estrela chorar e suplicar que a deixasse ficar, ele mandou-a seguir com os outros. Espreita-o-Céu puxou o trenó de Yaa e levou Estrela, que julgava que não teria que caminhar. Aqamdax olhou para trás uma vez, para Chakliux. Depois fixou o olhar no caminho e não se virou mais. Ghaden e Mordedor seguiam a seu lado. Ela transportava os seus fardos e alguns de Estrela.

Com a carga, levariam cinco dias para chegar, pensou Chakliux, pelo menos, com Estrela causando problemas e Yaa no trenó.

Chakliux ficou olhando até eles desaparecerem atrás das árvores e das colinas. Depois foi juntar-se ao irmão e à trouxa que era agora Neve-no-Cabelo. As mulheres haviam participado numa breve cerimônia fúnebre, tinham lavado e vestido nela as melhores roupas que existiam no acampamento botas de uma mulher, perneiras de outra, um colar oferecido, uma pedra de um amuleto. Agora, só ele e Sok tinham ficado chorando, e Chakliux perguntou a si próprio se poderiam fazer-lhe um funeral adequado sem as mulheres. Talvez Aqamdax tivesse razão. Ela devia ter ficado.

Ele colocara várias brasas em cima das pedras da lareira. Quando elas arrefeceram, esmagou-as com a faca que trazia na manga até as reduzir a pó. Despejou o pó numa tigela de gordura de caribu derretida e amassou a mistura com os dedos até formar uma pasta macia. Em seguida, besuntou a cara com ela e Sok fez o mesmo.

Sok tirou uma faca da bainha que trazia à cintura, pousou a mão esquerda numa pedra, e, tremendo, aproximou a lâmina do dedo mindinho.

Chakliux agarrou-lhe no punho.

- Não. - disse ele - Respeitas os costumes do povo de Tundra do Norte para chorares a tua mulher?

Como dzuuggi, Chakliux sabia essas histórias dos homens que atravessavam o mar do Norte para negociar com o Povo Rio e com os Caçadores de Morsas. Sabia que eles se mutilavam para mostrar o seu desgosto.

- Ela saberá que esse dedo é teu? - perguntou Chakliux ao irmão. - Ela julgará que algum caçador de Tundra recorda a mulher morta.

Chakliux pegou a faca, arregaçou a manga da parka e fez dois golpes no braço. Levantou-se e deixou que o sangue escorresse para a fogueira, elevando-se no ar com o fumo em honra de Neve-no-Cabelo. Entregou a faca a Sok e viu-o golpear o braço quatro vezes. Em seguida, Chakliux iniciou os cânticos fúnebres.

No segundo dia de caminho, o povo Primo foi apanhado Por uma tempestade. No meio da manhã, o vento fustigava a neve que lhes atingia o rosto como se fosse areia. Os cães tentavam libertar-se dos arneses e as mulheres caíam debaixo das suas cargas, que o gelo tornava mais pesadas.

Ao meio-dia, encontraram um renque de abetos para se abrigar. Os homens ajudaram as mulheres a montar as suas tendas, mas, apesar da proteção das árvores, o vento e o frio lascavam os postes.

Aqamdax abriu uma gruta na neve e a camada de gelo endurecido furou-lhe as luvas de pele de caribu e feriu-lhe as mãos. Quando ela atingiu o solo nu, cobriu-o de peles de caribu felpudas, aquecendo-as com o bafo e as mãos, e depois desenrolou-as devagar para não se partirem com o frio. Desatrelou os cães de Homem Noturno e dispôs os fardos à volta da gruta como se fossem um muro. Em seguida, aninhou-se junto de Estrela, Homem Noturno, Ghaden e Yaa e, juntos, aqueceram-se uns aos outros. Pensou em Sok e em Chakliux, sozinhos com Neve-no-Cabelo, e rezou para que estivessem em segurança.

Os sonhos de Chakliux pareciam vir da neve e enchiam-no de medo. Era como se ele fosse uma águia e observasse tudo do céu. Viu-se andando com Sok, e, juntos, a puxando um trenó. Este estava cheio de fardos, além de um cadáver embrulhado como os mortos, de joelhos colados ao queixo e braços cruzados junto do peito. A cabeça estava coberta por uma pele de caribu e, à medida que eles andavam, o vento levantava a pele. Então Chakliux viu que a morta não era Neve-no-Cabelo mas sim Aqamdax.

Acordou com os seus próprios gritos e teve receio de voltar a adormecer. Como poderia arriscar-se a que os seus sonhos se apoderassem de novo de Aqamdax e lhe roubassem o espírito?

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Os homens cortaram-lhe os postes da tenda e K’os pagou-lhes bem por isso. Eles mostraram-lhe o solo afundado, cavado há muito tempo pela primeira pessoa que armara uma tenda naquele local. Ainda estavam lá as pedras e a areia da lareira. K’os raspara as peles que Dança-no-Gelo lhe oferecera, juntara-as às suas e costurara-as para fazer a cobertura. Era uma cabana pequena, mas os pontos de K’os eram regulares e apertados; o tendão que ela pedira a Mosquito-Pólvora era bem enrolado e forte.

K’os mudou-se para a cabana no dia em que começou a tempestade. Ficou lá sozinha, impedindo que a neve descesse pelo orifício da fumaça e entrasse pelo túnel. Em geral, não gostava de tempestades. O que se podia fazer para as afastar? Mas, na sua opinião, talvez aquela fosse uma boa tempestade. Duvidava que Dança-no-Gelo lhe sobrevivesse. No terceiro dia de tempestade, ouviu roçar na parede da sua cabana. Rastejou até ao túnel e afastou a aba para o lado. A pessoa que viu à sua frente estava tão coberta de neve e de gelo que K’os não a reconheceu senão quando lhe sacudiu a neve da parka.

Era Dança-no-Gelo. O jovem sorriu-lhe e, apesar do seu desapontamento, K’os retribuiu-lhe o sorriso. Era muito provável que ele não trouxesse a carne que prometera a Trepador. Como seria possível? Partira há pouco mais de dois dias.

Os meus cães estão lá fora disse ele, sem qualquer saudação cortês, mas com aquela tempestade K’os não esperava cortesias.

Eles podem ficar no túnel, respondeu ela. Mas só até esta tempestade passar. Não quero pulgas na minha cabana.

Ele saiu, voltou a entrar com vários fardos grandes e ela puxou-os para o interior da cabana. Por fim, ele trouxe os cães para o túnel. Partiu as bolas de neve e de gelo que os animais tinham nas patas, esfregou-lhes os olhos, o nariz e a ponta das orelhas.

K’os foi buscar água e peixe seco. Ainda não convencera nenhum dos caçadores da aldeia a fazer-lhe uma despensa, e por isso conservava a carne e o peixe no interior da cabana. Porque havia de se arriscar a deixá-los na despensa de Mosquito-Pólvora? Não tinha dúvidas de que a velha se serviria deles antes de ela tocar na sua própria carne, que não lhe chegaria para um Inverno tão rigoroso como aquele.

Deu peixe e água aos cães e depois fez sinal a Dança-no-Gelo para ir falar com ela. O jovem esperou que ela lhe pendurasse a parka num poste e que o ajudasse a tirar as perneiras e a parka interior. Esta estava ensopada em suor e orlada de gelo, e foi assim que ela percebeu que ele trabalhara arduamente, que se afastara muito e correra grandes riscos ao tentar voltar para ela.

K’os deu-lhe um cobertor de pele de lebre e ele enrolou-se nele, gemendo quando por fim se sentou ao pé da lareira.

Julguei que não conseguiria chegar, disse ele. Quando entrei na aldeia, julguei que não teria forças para alcançar a tua cabana.

Como é que sabias qual era a minha cabana? perguntou K’os.

Vi esta, nova, num local em que antes não havia nenhuma, e calculei que fosse a tua.

K’os deu-lhe uma tigela de comida e viu-o envolvê-la com as mãos em busca de calor. Tinha os lábios rachados e ensangüentados e o nariz e a face queimados da geada. K’os foi buscar a sua bolsa dos medicamentos, tirou folhas de banana-da-terra em pó e misturou-o com gordura de ganso. Inclinou-lhe a cabeça para trás e, apesar de ele tentar esquivar-se, besuntou-lhe a cara.

Fica quieto, ordenou ela. Isto ajuda a tirar o frio da tua pele.

Quando acabou, ele estendeu-lhe a tigela. Ela voltou a enchê-la e viu-o comer.

Tenho o suficiente para o dote, declarou ele com a boca cheia.

K’os empinou o queixo e observou-o com os olhos semicerrados. Talvez ele estivesse mentindo, mas não lhe pareceu. Era fácil demais para ela ir revistar-lhe os fardos.

Ele era um rapaz, é verdade, mas alto e corpulento, talvez mais belo do que ela julgara. Vira-o pela primeira vez quando ela e o marido, Bate-no-Chão, tinham ido à aldeia de Rio Próximo. Dança-no-Gelo era então o chefe das crianças. K’os sorriu ao lembrar-se disso. Ele recusara-se a dizer-lhe como se chamava. Já sabia muito nessa altura. Porquê dar a uma desconhecida o poder de saber o seu nome?

Talvez ele desse um bom marido.

Dança-no-Gelo, tu estás com frio e a minha cama está muito quente convidou ela, estendendo-lhe a mão.

 

Dii caminhou durante cerca de dois dias antes de abandonar o cadáver de Anaay. Encontrou uma clareira no meio de um conjunto de amieiros, e a neve formava sulcos pronunciados nos locais em que as árvores a tinham roubado do vento. O que havia de mais adequado que os amieiros, com os seus ramos frágeis e as suas folhas venenosas? perguntou Dii a si própria.

Tirou o cadáver do trenó, colocou as armas ao lado dele e depois entoou um cântico fúnebre. Cantou em voz alta, esperando apaziguar os espíritos para que ele não a seguisse nem se vingasse, mas, quando as palavras lhe saíram da boca, foi como se voassem para as esteiras de erva que envolviam o corpo de Anaay. Foram absorvidas tão depressa que ela nem as ouviu.

No caminho, falara muitas vezes com o cadáver que levava no trenó. Explicou-lhe que só lhe fizera o chá para lhe poder dar um filho. K’os enganara ambos, dando-lhe veneno em vez de remédio. Mas Dii duvidava que as suas explicações bastassem para afastar a ira do marido. Anaay alguma vez lhe dera razão?

Dii usou a sua faca de mulher para cortar as ervas secas que irrompiam da neve e cobriu o corpo de Anaay com elas para o esconder de alguém que passasse junto dos amieiros. Por cima da erva, espalhou ramos de abeto que trouxera do acampamento de Rio Próximo. A erva e o abeto eram leves demais para impedir que o espírito de Anaay a seguisse se assim o desejasse, mas talvez os atilhos que ele tinha nas articulações o atrasassem até que ela se distanciasse o suficiente para ele não a encontrar.

Dii voltou a carregar os trenós e deu comida aos cães, sempre recordando a sua vida com Anaay. Viu-o com as belas parkas que Bico-de-Gaivota, a sua primeira esposa, lhe fizera e viu-o quando ele se encontrava na presença dos caçadores da aldeia, explicando as suas visões.

Depois, foi como se os olhos de Dii se tornassem mais nítidos, e ela recordou o marido de outra maneira como um homem que fazia tudo por si próprio e nada pelos outros. Talvez ele não fosse suficientemente forte para se vingar, pensou ela.

Ainda não ia longe depois de deixar Anaay quando começou a nevar. Dii levantou a cabeça para saudar a neve. Que melhor maneira de sepultar o corpo do marido? Mas pouco depois, a neve era tão intensa que ela não via um palmo à sua frente. Parou e fez um abrigo, servindo-se dos trenós para se proteger do vento. Para quê continuar a andar se não via nada? Provavelmente começaria a caminhar em círculos.

Deu peixe seco aos cães, esperando que a barriga cheia os ajudasse a dormir. Em seguida, enroscou-se debaixo da tenda, comeu e tentou adormecer. Mas o vento entoava canções lancinantes e amargas, e afastava o conforto dos sonhos, e Dii começou a pensar se Anaay não ordenara à tempestade que a matasse. Não era preferível levá-la com ele, ainda esposa, ainda escrava?

 

Chakliux orientava Sok como se o homem fosse uma criança, agarrado à parka dele como se tivesse medo de o perder no meio da tempestade. Tinham construído uma armação fúnebre, que depois colocaram no topo de um abeto. Chakliux prometera a Sok que voltariam no Verão seguinte e levariam as ossadas de Neve-no-Cabelo para um local sagrado, talvez o Lago do Avô, onde Sok poderia visitá-las sempre que quisesse.

Depois de quatro dias de luto, iniciaram a viagem para a aldeia de Rio Primo, apesar dos ventos fortes. Na primeira noite, Chakliux cavou um abrigo onde tencionavam ficar até a tempestade acabar, mas na manhã seguinte o vento não era tão intenso e eles continuaram a viagem. Lutavam com a neve a cada passo, e sentiam que o seu peso os enterrava, acumulando-se nas parkas, endurecendo-lhes as perneiras e tapando-lhes os olhos.

Sok tentava sentar-se, dando explicações em voz baixa que Chakliux não conseguia ouvir por causa do vento. Por fim. Chakliux parou e deixou que Sok se sentasse sozinho enquanto ele cavava um abrigo na neve, forrando-o de ramos de abeto e de peles de caribu. Colocou os fardos à entrada, para se proteger do vento, e disse a Sok que fizesse o mesmo. Sok não respondeu e Chakliux, assustado, percebeu que não via o irmão, devido à neve e à escuridão do anoitecer.

Ao contornar o abrigo, a neve dava vida às árvores mais próximas, e cada uma parecia saltar-lhe ao caminho quando ele se aproximava. Subitamente, através da cortina de neve, avistou Sok, de pé, protegendo os olhos com uma das mãos como se tentasse ver alguma coisa ao sol.

Estou ouvindo Neve-no-Cabelo, disse ele a Chakliux.

As palavras de Sok tiveram o efeito do gelo na espinha de Chakliux, que levou o irmão para o abrigo. Já se formara um monte de neve na estreita abertura que Chakliux deixara entre os fardos, mas ele derrubou-o com o pé e empurrou Sok lá para dentro. Embrulhou o irmão num cobertor de pele de lebre e deu-lhe um pedaço do salmão defumado que trazia numa bolsa pendurada à cintura. Depois, cantou, escolhendo as canções que eram mais poderosas e esperando que elas tivessem força para impedir que Neve-no-Cabelo descobrisse o seu pequeno abrigo.

Durante cinco dias de tempestade, Chakliux e Sok mantiveram-se aconchegados no abrigo. Alimentaram uma fogueira até gastar toda a lenha que possuíam. Depois, contentaram-se com o calor um do outro, deitados juntos ouvindo o uivo do vento.

Para Chakliux, era como se eles não lutassem apenas contra uma tempestade. Seria possível que o vento fosse Neve-no-Cabelo chamando Sok? Seria possível que uma mulher morta se servisse de uma tempestade para afastar o espírito do marido?

Um homem podia lutar com o vento e a neve, mas qual a arma que conseguia fazer frente a um espírito? Uma faca? Uma lança? Chakliux esgotara todas as suas canções... Mas talvez o poder do seu próprio espírito o tivesse abandonado. Ele quebrara os tabus do povo, possuíra a esposa de outro homem sem pensar em mais nada a não ser no seu próprio prazer. Não havia castigo para tal comportamento?

A sua fraqueza custara a vida a Neve-no-Cabelo? Ameaçava o espírito de Sok? E quanto ao resto do povo Primo? Com o furor da tempestade, teriam eles conseguido chegar à aldeia de Inverno? Uma maldição podia crescer como os ramos de uma árvore, atingindo outros que nada tinham feito para merecer castigo?

Quando um tabu era quebrado, o que fazia um homem para se proteger? Mais importante, como é que ele protegia os seus mais próximos?

Os pensamentos de Chakliux rodopiavam como se fossem açoitados pelo mesmo vento que arrastara a tempestade, Chakliux concentrou-se nas histórias e nos enigmas que aprendera em criança. A princípio, não percebeu que estava contando essas histórias em voz alta, que a sua voz se sobrepusera ao ruído da tempestade, mas depois viu Sok tirar o capuz e inclinar a cabeça para ouvir. Então, Chakliux falou na escuridão do abrigo, ouvindo as palavras que lhe saíam da boca como se fosse a primeira vez, esperando encontrar alguma história que lhe ensinasse como se conquistava o perdão.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Ligige’ levantou-se da cama a custo. Alguém raspara na porta da sua cabana ou fora um sonho? Espevitou as brasas da lareira e olhou para Olhos Grandes. Chakliux iria ficar admirado quando voltasse. Em certos dias, Olhos Grandes estava quase normal, comia, trabalhava e até conversava.

Ligige’ ouviu de novo raspar, pegou o cajado e atirou-o para o túnel de entrada. Talvez fosse algum animal, pensou. Naquela época do ano, todos eles procuravam uma toca para o inverno. Talvez uma raposa ou um carcaju tivessem escolhido a sua cabana. Não sentiu mexer no cajado, não ouviu uivos nem assobios e por isso rastejou até ao túnel e proferiu uma saudação.

- Caule Torto? És Caule Torto? exclamou Ligige’, e, radiante, abriu a aba, mas ficou sem respiração ao ver a face de uma jovem na penumbra.

- Tu não és Caule Torto, disse a menina.

- Esta é a aldeia de Inverno do povo Primo?

É, respondeu Ligige’. Vens sozinha?

Trago cães respondeu ela, afastando-se para o lado para Ligige’ ver os três cães atrás dela.

Julguei que conhecia todo mundo da aldeia de Rio Primo, proferiu Dii em voz baixa, mais para si própria do que para a velha que a recebera.

De repente, ficou assustada. A mulher estaria mentindo, dizendo que aquela era a aldeia de Rio Primo quando não era? No seu desejo de se afastar de Anaay, teria Dii ido parar em outra aldeia que não era a sua? Não, como seria possível. Conhecia aquele local desde criança e fizera muitas vezes o caminho entre a aldeia e os pesqueiros ou as zonas de caça.

Sou Ligige’, tia de Chakliux. Conhece-o? perguntou a velha, fazendo sinal a Dii para que fosse atrás dela.

Dii rastejou para o interior da cabana. As brasas da lareira formavam um clarão vermelho tênue no meio do chão, e Dii viu uma velha sentada na cama, com um cobertor de pele de lebre enrolado nos ombros. Então, a alegria deixou-a sem fôlego.

Olhos Grandes, disse ela, tão satisfeita por ver uma pessoa conhecida que se esqueceu de responder à pergunta de Ligige’.

O espírito dela voltou? perguntou Dii a Ligige’.

Alguns pensam que sim. Quem és tu?

A rispidez da pergunta pagou a indelicadeza com a indelicadeza, e Dii começou a pedir desculpa.

Ela é Filha-do-Sol, disse Olhos Grandes, respondendo por ela.

Sim, tia, embora agora eu me chame Dii.

Depois, dirigindo-se a Ligige', afirmou:

- Eu conheço Chakliux.

- Ele, todos os homens da aldeia e as mulheres foram caçar caribus - explicou Ligige'. - Só estamos aqui nós, as velhas. Foste uma das que foram levadas como escravas para a aldeia de Rio Próximo?

- Fui, eu e a minha mãe, mas os homens de Rio Próximo mataram-na.

- Guarda-Peixe? Ela morreu? - perguntou Olhos Grandes.

Dii estremeceu ao ouvir o nome da mãe pronunciado daquela maneira. Guarda-Peixe fora uma boa mãe, mas com certeza que procuraria vingar-se da sua morte. Talvez estivesse zangada por Dii ter aceitado ser esposa de um homem de Rio Próximo. Mas talvez a mãe tivesse considerado que a morte de Anaay fora uma vingança adequada. Dii ficou à espera de um ruído do vento ou da voz de algum animal que assinalasse que a mãe ouvira as suas palavras, mas não escutou nada. Talvez com o marido e os filhos mortos, a mãe de Dii se sentisse satisfeita por estar como estava - um espírito entre os espíritos.

- Acalma-te, Olhos Grandes - disse Ligige'. - Não penses nos que morreram. Alegra-te por esta filha ter regressado à sua aldeia.

Olhos Grandes mordiscou o cobertor de pele, e Dii reparou que uma grande parte dos cobertores estava sem pelo.

- Uma vez, o meu marido quis Guarda-Peixe - informou Olhos Grandes em voz baixa. - Para segunda esposa, mas eu não deixei. - Os dedos da velha arrancavam o pelo ainda com mais frenesi. - Achas que ela está zangada comigo?

Olhos Grandes levantou as mãos e mostrou-as, enroladas como garras.

- Não - respondeu Dii. - Ela gostava de ti. Ela disse-me.

Olhos Grandes fez um aceno de cabeça e pousou as mãos no cobertor. Ligige' ergueu as sobrancelhas a Dii, mostrando-lhe a sua aprovação e depois apontou para uma pilha de tigelas que se encontravam numa rede pendurada num poste da tenda.

Há carne na pele. É só de lebre, mas é fresca.

Obrigada, mas primeiro vou espiar os meus cães e depois comerei.

Quando Dii saiu da cabana, Ligige’ ajudou Olhos Grandes a deitar-se e ralhou-lhe com doçura por tirar o pelo ao seu cobertor. Em seguida, agachou-se junto das brasas e estendeu as mãos para aquecer os dedos curvos e velhos.

Fugiste ou foste expulsa? perguntou Ligige’. Dii afastou a tigela da boca e respondeu:

Fugi. Apesar de ele estar tão zangado comigo que seria capaz de me expulsar. Sempre me admirei por ele não o ter feito.

O meu marido sonhou com caribus e convenceu o povo a segui-lo até ao mar do Norte. Mas, quando lá chegamos, não havia caribus, não havia nada a não ser gelo e água.

Foi então que partiste? perguntou Ligige’.

Eu tinha os meus sonhos, os caribus cantavam nos meus ossos. O ritmo da sua caminhada era como o bater do meu coração. Disse isto ao meu marido, mas ele zangou-se comigo.

Os olhos de Ligige’ brilharam.

Sonhaste com caribus? perguntou ela baixinho. Então Dii arrependeu-se de ter contado aquilo à mulher.

O que lucrara em sonhar com caribus?

Talvez os meus sonhos estejam errados, disse ela.

Talvez não estejam cochichou Ligige’. Dii encolheu os ombros.

Não interessa. Os homens de Primo sempre caçaram no mesmo rio. Não precisam de sonhadores, e os de Rio Próximo não me dariam ouvidos.

Quando contaste ao teu marido, o que disse ele?

Bateu-me.

E tu abandonaste-o.

Só quando chegamos ao mar. Aí ele acusou-me dos seus falsos sonhos. Então, abandonei-o. Trouxe os seus cães e vim para cá.

Quem é o teu marido?

Dii sentiu um formigueiro na pele e um peso nos ombros. como se Anaay estivesse atrás dela.

Não posso pronunciar o seu nome. Ele morreu antes de eu partir, e não quero invocar o seu espírito.

Ligige’ franziu a testa.

Tu... Esse marido tinha outra esposa?

Bico-de-Gaivota.

A boca de Ligige’ abriu-se num sorriso.

Como é que ele morreu? perguntou ela.

Dii levou muito tempo a responder. As mãos tinham-lhe começado a tremer e, quando falou, as palavras saíram-lhe entrecortadas:

Alguém, foi alguém que não sabia o que fazia.. Essa pessoa... Matou-o.

Esse marido que morreu, talvez precisasse morrer. Talvez não devamos chorá-lo, mas sim celebrar a sua morte declarou Ligige’.

 

Saíram da tempestade como fantasmas. Ligige’ agarrou-se ao peito e deixou cair o cajado que usava para partir o gelo acumulado na chaminé da sua cabana.

Se me levarem, quem cuidará de Olhos Grandes? perguntou ela, mas o vento varreu-lhe o som da boca e arrastou-o para a tempestade como se ela não tivesse dito nada.

Ligige’ ficou ali, derrotada, sem a proteção do cajado nem das palavras, mas endireitou-se e manteve-se à espera do que viria. Afinal, estava velha. Sabia que a morte a espreitava. Havia muita gente que morria nas tempestades, não só os velhos, como os novos, homens fortes, mães jovens e crianças. Porque esperaria ser favorecida?

Eles traziam fardos, aqueles fantasmas, e Ligige’, desolada, concluiu que o caminho seria longo. Esperava que a viagem para o mundo dos espíritos fosse rápida e fácil para os ossos de uma velha.

Tia, gritou um deles, acenando com a mão. Ligige’ olhou-se, sem saber se já era um espírito. Os braços e as pernas pareceram-lhe os mesmos, mas os fantasmas rodearam-na, rindo-se, tirando os fardos das costas um do outro, e ela reconheceu Espreita-o-Céu e a mulher, Chamariz, o velho Leva-Mais e Aqamdax. Abriu os braços a Yaa e Ghaden. Mordedor, o cão do rapaz, ainda com os fardos no dorso, derrubou-a com os seus saltos e lambeu-lhe o rosto até Ghaden o afastar.

Mordedor, seu cão sapeca! gritou o rapaz, cuja voz se sobrepôs ao ruído do vento.

Então Ligige’ percebeu que não eram fantasmas, e juntou o seu riso ao deles.

Então eles ficaram com a morta, observou Ligige’, por uma vez mostrando-se respeitosa e não pronunciando o nome de Neve-no-Cabelo.

Eles disseram que partiriam dali a quatro dias, afirmou Aqamdax, e Ligige’ viu-lhe os dedos tremendo.

Aqamdax pegou a tigela vazia que ela tinha em cima das esteiras do chão e envolveu-a com as mãos.

Queres mais? perguntou Ligige’, apontando para a tigela.

Não, estou satisfeita.

É bom ver de novo a fumaça a sair de todas as chaminés da aldeia, comentou Ligige’, esperando que Aqamdax dissesse alguma coisa.

Aqamdax não era pessoa para se sentar conversando quando havia trabalho para fazer, comida para guardar nas despensas, peles para pregar aos estrados, lenha para tirar de baixo da neve, parkas para consertar, tanto trabalho que as mulheres só o acabariam quase no fim do Inverno. Então porque ficara ela ali? E por que motivo, quando Ligige’ apresentara Dii, Aqamdax se mostrara apenas delicada, mas não satisfeita por Dii ter regressado à aldeia e não falara nas outras mulheres que tinham deixado os maridos em Rio Próximo?

Ligige’ sentiu a pressão do silêncio, como se as paredes da cabana estivessem de súbito próximas demais, mas por fim Aqamdax disse:

Olhos Grandes está melhor.

Virou a cabeça e apontou para a velha com o queixo. Olhos Grandes estava sentada ao lado de Dii, de pernas cruzadas, com uma bota na mão. Costurava a sola à parte de cima, passando um fio de tendão pelos buracos abertos com o furador.

Está muito melhor, declarou Ligige’. Às vezes fala, e se eu lhe dou tarefas simples, ela as faz quase sempre. Mas teve que aprender tudo outra vez, até o próprio nome, e ainda não dorme bem de noite.

Amanhã Estrela leva Olhos Grandes para a cabana dela, depois de a lareira secá-la e aquecer, disse Aqamdax Ela quis que eu te dissesse isto. Em seguida, como se não tivesse falado de Olhos Grandes, Aqamdax inclinou-se para a frente e proferiu em voz baixa:

Tenho um problema, tia. Preciso do teu conselho.

Ligige’ ergueu as sobrancelhas, mostrando-se disponível para ouvir, e tentou manter-se imóvel e paciente enquanto Aqamdax fazia várias tentativas para começar, lutando com as palavras. Por fim, suspirou e disse: Quero rejeitar Homem Noturno. Ligige’ só se admirou por Aqamdax ter esperado tanto tempo para tomar essa decisão. Um homem que mata o próprio filho não é pessoa que uma mulher deva manter. Mas Aqamdax pedira-lhe conselho, e não concordância, por isso Ligige’ perguntou:

Onde ficarias? Não tens uma cabana tua.

Tenho uma parte das peles de caribu da caçada, e já tinha duas peles minhas, raspadas e costuradas uma à outra.

Bem sabes que o Inverno não é uma época boa para as mulheres sem marido.

Já passei outros Invernos sem marido, respondeu Aqamdax.

Bem sabes que não há homens suficientes nesta aldeia.

Primeira Águia aceita-me como segunda esposa.

Ligige’ examinou Aqamdax. Mas tu tens outro. Aqamdax corou.

Chakliux? perguntou Ligige’.

Sim.

Vais deixar o teu marido antes de Chakliux voltar?

Não quero ficar com Homem Noturno até lá. Não quero mais nenhum filho dele no meu ventre.

Por isso vieste aqui.

Ligige’ virou as costas a Aqamdax e dirigiu-se a Olhos Grandes.

O que pensas, irmã? Há muitos filhos nossos rejeitando os maridos e as mulheres.

Sim, disse Olhos Grandes, sem inflexão na voz, de cabeça inclinada sobre a sua costura.

A rejeição não é uma boa coisa.

Sim.

Os maridos e as mulheres devem ficar juntos. Assim, há menos problemas.

Sim.

Ele matou o nosso filho, declarou Aqamdax, interrompendo aquela estranha conversa.

Ligige’ olhou para ela.

Se ele fosse meu marido, eu rejeitava-o. Amanhã, quando Olhos Grandes for viver com a filha, eu terei espaço suficiente nesta cabana. Vem para cá.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

À luz do dia, K’os contou os fardos e voltou a contar os cães. Três mãos-cheias de fardos e oito cães. Havia seis trenós ao todo, e ela ainda não entendera como é que Dança-no-Gelo conseguira controlar tantos cães. As tempestades tinham estado a favor dele. De outro modo, os caçadores de Rio Próximo o teriam apanhado, apesar de ele lhes ter assaltado as despensas numa noite sem lua e de lhes ter ganho vantagem antes de eles se perceberem do que tinha acontecido.

A maior parte do que ele trouxera era carne e peixe, salmão fumado, rato-almiscarado seco, carne de ganso conservada em gordura, carne de caribu, congelada e seca, alce, pequenos fardos de pescada-preta, tetrazes conservados em óleo e embalados em grandes estômagos de caribus. Mas ele também conseguira trazer molhos de peles: de caribu, de lobo, de raposa e de lince. Havia um saco de contas, outro de setas, vários pares de botas, duas parkas de Verão e, o melhor de tudo, a cobertura de uma cabana, feita de peles novas, recém-costuradas e prontas a espetar nos postes.

K’os e Mosquito-Pólvora acondicionaram a carne e as peles no túnel de entrada da cabana de K’os. Depois de o encherem, levaram o resto para as despensas de Trepador. Dança-no-Gelo não fez muito para as ajudar; andava ocupado demais contando a todo mundo a história da sua viagem:

Ele e os cães tinham esperado que as tempestades passassem e haviam feito um trilho falso na direção da aldeia de Rio Primo.

Depois de guardarem tudo, K’os falou a MosquitoPólvora do seu plano de festejos. Não era melhor partilhar a sua abundância com os outros e festejar o seu casamento? Então K’os foi de cabana em cabana para dar a notícia.

Guardou a cabana de Folha Vermelha para o fim. Foi o próprio Cen que a mandou entrar, mas ficou de pé enquanto ela falava, apesar de K’os se ter instalado confortavelmente junto da lareira, como se não houvesse inimizade entre eles.

Contou-lhes que Dança-no-Gelo conseguira autorização para viver na aldeia como marido dela. Teve que morder a face para não rir quando viu o alívio de Folha Vermelha. A mulher não se veria livre dela com facilidade.

Quando K’os anunciou que haveria uma festa, uma distribuição, Cen e Folha Vermelha fizeram muitas perguntas. Como é que Dança-no-Gelo conseguira trazer tanta coisa para a aldeia? Como é que conseguira dominar oito cães? Com cordas e arneses, respondeu K’os, mas não sabia mais do que isso. Essa era a história de Dança-no-Gelo, não a dela. Ele a contaria na noite da festa.

Quando K’os saiu da cabana, Folha Vermelha, por delicadeza, acompanhou-a até ao túnel de entrada. Aí, K’os inclinou-se e cochichou-lhe que seria bom que Cen ajudasse Dança-no-Gelo a descobrir postes compridos e direitos para a cabana. Em seguida, endireitou-se, olhou para Folha Vermelha e ficou satisfeita ao ver que o medo regressara ao seu olhar.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Homem Noturno apontou para o monte de lenha cada vez mais pequeno, e Estrela disse-lhe com uma voz sibilante:

És o único que está aí sentado sem fazer nada. Quem é que trouxe toda a bagagem para esta cabana? Quem é que acendeu o fogo e pendurou a panela? Quem é que te sacudiu a neve da parka? Vai buscar a lenha.

Estavam sozinhos na cabana. Yaa e Ghaden tinham ido ajudar os outros a descarregar os mantimentos e a encher as despensas. Homem Noturno inclinou-se para a irmã, pegou-lhe no queixo com o indicador e o polegar e deu-lhe um beliscão. Estrela empurrou-o.

Passas tanto tempo pensando em ti que nem reparas no que se passa à tua volta, disse-lhe Homem Noturno. Porque é que Aqamdax saiu desta cabana assim que os fardos estavam no túnel? Ela anda tramando alguma.

Uma cabana nova. É isso que ela anda planejando, preguiçoso, observou Estrela. Uma mulher casada devia ter vergonha de viver com a irmã do marido.

Achas que esses são os únicos planos dela? perguntou Homem Noturno. Mais nada? Não reparaste que Chakliux está sempre olhando para Aqamdax, e que ela se refere a ele sempre que fala?

Estás mentindo respondeu Estrela, em voz baixa e trêmula.

Porque eu mentiria? Achas que quero ver a minha irmã desgostosa? Achas que quero perder a minha própria mulher? Homem Noturno sacudiu a pele da sua parka interior e acrescentou: Olha, foi ela que fez isto. Fez-me umas botas de pele de foca. Há mais alguma mulher na aldeia que saiba fazer vestuário impermeável?

Ela disse que me ensinava, murmurou Estrela.

Mas já aprendeste?

Tenho muito que fazer. Quando é que posso dispor de um dia para aprender os costumes dos Caçadores Marinhos?

Estrela colocou os dedos na boca e começou a roer as unhas.

Achas que Chakliux a aceitará como esposa? perguntou ela.

Acho que ele a deseja. Não sei se a aceitará. Mas porque te preocupas? Ele não te rejeitará.

Homem Noturno apontou-lhe para a barriga com um gesto grosseiro, e depois disse um palavrão, referindo-se ao filho que ela trazia no ventre.

Sentindo-se insultada, Estrela fez estalar os dedos e ele encolheu os ombros.

Julgas que tenho pena de ti? perguntou ele. Ainda tens um marido que vá caçar para ti. O que farei eu sem uma mulher?

E Filha-do-Sol? perguntou Estrela. Ela acabou de chegar de Rio Próximo e precisa de um marido. Podes sempre arranjar uma velha. Uma velha seria melhor para ti, visto que não queres bebês.

Porque pensas assim?

Porque mataste o teu filho.

Homem Noturno virou-se para ela com um ar sombrio e fez um careta, dizendo:

Ele não era meu. Pensas que eu mataria o meu próprio filho?

O que interessa o que eu penso? perguntou Estrela. Isso não altera o que fizeste. Mas já pensaste que podes estar enganado?

 

Está melhor. Não está ventando tanto, gritou Chakliux a Sok.

Chakliux fizera uma abertura no abrigo para espiar o céu. Já quase não nevava e, embora o vento ainda estivesse suficientemente forte para formar sulcos, já não era um vento de tempestade.

Sok puxou o capuz da parka sobre as orelhas, apertou os atilhos e ficou apenas com os olhos à mostra. Depois, foi para junto do irmão. Tiraram os fardos da neve e sacudiram o gelo da pele com que se tinham protegido. A pele estava muito dura para dobrar e, depois de pôr o fardo às costas, Chakliux embrulhou-se nela.

Sok caminhava como um sonâmbulo. Os seus movimentos eram vagarosos e desajeitados. Quando estavam prontos para partir, Chakliux, recorrendo às poucas estrelas que se viam quando o vento amainava, traçou o caminho para a aldeia de Rio Primo.

Com a tempestade, parecia-lhes que nunca mais chegariam, mas talvez ainda não estivessem tão perto como Chakliux julgava. Não iriam cometer a imprudência de caminhar de noite com o vento espiando-os do céu. Talvez ele esperasse apenas que eles deixassem a segurança do abrigo para desencadear uma nova tempestade.

Quando Aqamdax ouviu Mordedor latir, sentou-se na cama. Uma pancada na face deixou-a atordoada. Levantou o braço, virou a cabeça e depois ouviu uns cochichos. Era Estrela. O medo de Aqamdax deu lugar à raiva. Ela não era nenhuma criança; sabia oferecer resistência. Mas quando ouviu Mordedor rosnar e percebeu que ele atacaria, Aqamdax baixou-se assim que ele saltou e afastou-se quando o cão jogou Estrela ao chão.

Estrela soltou vários gritos agudos e Aqamdax ordenou a Mordedor que parasse. O cão largou Estrela, mas ficou por cima dela rosnando. Os seus dentes viam-se à luz das brasas da lareira.

Aqamdax levantou a cabeça e viu Homem Noturno agachado à entrada da cabana.

Vais embora? perguntou ela. Não és homem para ajudar a tua irmã?

Agarrou na coleira entrançada de Mordedor e arrastou-o. Mordedor atirou-se ao braço doente de Homem Noturno, mas Aqamdax empurrou o cão com o próprio corpo e levou-o lá para fora. Prendeu-o a uma corda e depois voltou para dentro, para ir buscar a parka, as perneiras e as botas.

Homem Noturno insultava Estrela e Ghaden, mas o rapaz ainda estava sonolento. Quando viu Aqamdax, atacou-a com palavras, mas ela fingiu que não o ouvia. Depois de se vestir, pôs-se em frente do marido e disse:

Eu não te quero mais.

Em seguida, saiu. Cortou a corda de Mordedor ao nível da neve e levou-o para a cabana de Ligige’.

Apesar de já ter anoitecido, a velha veio esperá-la ao túnel. Estava de parka, de botas e de luvas.

O teu marido fala alto, afirmou Ligige’.

Ele não é meu marido, respondeu Aqamdax.

Esta noite arranjaremos aqui lugar para ti, prosseguiu Ligige’. Mais uma pessoa numa cabana pequena aumenta o calor.

Prenderam Mordedor e voltaram à cabana de Estrela. Os cobertores, os cestos, as peles e os utensílios de costura de Aqamdax estavam todos caídos na neve. A seu lado, encontrava-se tudo o que pertencia a Chakliux: as armas, as peles da cama e a roupa que ele não levara para a caça.

Foi preciso ir e vir várias vezes, apesar de Dii se ter levantado para ajudar. Quando só faltavam uns cestos, Ghaden pôs a cabeça de fora do túnel. Estava muito escuro para Aqamdax lhe ver os olhos, mas quando ele falou, ela percebeu que o rapaz estivera chorando.

Homem Noturno disse-me que tu não queres viver conosco, disse ele.

Aqamdax aproximou-se do irmão e agachou-se na frente dele, dizendo:

Vou ficar com Ligige’, portanto não ficaremos longe um do outro. Eu já não sou mulher de Homem Noturno mas ainda sou tua irmã. Serei sempre tua irmã.

Ele diz que Mordedor feriu Estrela.

Isso foi só porque Estrela tentou agredir-me.

Estrela pensa que o Mordedor devia ser transformado em guisado.

Aqamdax pousou-lhe a mão no ombro.

Não te preocupes com o Mordedor. Ele está a salvo na cabana de Ligige’.

Também posso ir dormir para lá, com Yaa? perguntou Ghaden.

Aqamdax virou-se para Ligige’.

Estrela continua a ser tua mãe, disse Ligige’. Tens que fazer o que ela disser. Quando Chakliux voltar, veremos o que ele diz.

Ligige’ apanhou um cesto e sacudiu-lhe a neve. Aqamdax abraçou o rapaz e sentiu-o soluçar.

Gostaria que pudesses vir também, disse ela em voz baixa.

Ghaden afastou-se e entrou no túnel. Aqamdax pegou os seus últimos pertences e encaminhou-se para a pequena cabana de Ligige’.

 

Sok e Chakliux caminharam durante três dias e acamparam três noites. O vento era cortante, e o frio atravessava-lhes as parkas e entranhava-se nos ossos. Mas o ar estava seco e não nevou.

No quarto dia, começaram a andar com a primeira luz da manhã. Quando o Sol atingiu o pico no seu arco achatado no céu do Sul, Chakliux avistou a fumaça das fogueiras da aldeia, uma camada de névoa que pairava, imóvel, sobre os montes que os separavam da aldeia. A dor na perna e as cãibras no seu pé de lontra fizeram-no alegrar-se por a viagem estar quase chegando ao fim, mas, ao aproximar-se da aldeia, os seus receios voltaram. Se um chefe se afasta dos seus caminhos respeitosos, arrasta o seu povo com ele? O seu povo chegara em segurança à aldeia ou alguma maldição, lançada pelo egoísmo do próprio Chakliux, o impedira de ver o caminho a seguir?

Os pensamentos de Chakliux fizeram-no desviar o olhar do trilho à sua frente, e quando Sok o chamou ele sobressaltou-se. Levantou a cabeça e viu alguém a caminhar na direção deles. Era Espreita-o-Céu. Quem mais seria tão alto, tão magro e com uns ombros tão desproporcionados? Espreita-o-Céu levantou os braços num sinal de boas-vindas, e apesar de Sok ser o mais velho e dever ser o primeiro a falar, Chakliux sabia que a tristeza do irmão lhe dificultaria as palavras.

Chakliux levantou a voz numa saudação tradicional e, antes de Espreita-o-Céu responder, indagou:

Chegaram todos bem?

Todos, respondeu Espreita-o-Céu.

E os velhos que ficaram?

Estão todos bem.

Os cães?

Lutando como sempre. Espreita-o-Céu riu, pigarreou e apontou para os montes que escondiam a aldeia. A carne está toda nas despensas e as nossas mulheres estão raspando as peles e andam à procura de lenha. Espreita-o-Céu deu um pontapé na neve.

Os teus filhos, Chora-Alto e Leva-Mais, estão conosco, na cabana da minha mulher. Ela está contente por ter as crianças com ela. Serás bem recebido na nossa casa, declarou ele, olhando para o rosto de Sok.

A minha mulher? perguntou Chakliux, calando-se antes de perguntar por Aqamdax.

Espreita-o-Céu desviou o olhar rapidamente, como se procurasse lebres ou esquilos.

Estrela está zangada, disse ele por fim. Aqamdax rejeitou Homem Noturno. Agora Estrela julga que tu tencionas aceitar Aqamdax como esposa. As velhas dizem que ela também te rejeitou, e Aqamdax guardou as tuas coisas na despensa de Ligige’.

O homem olhou para Chakliux, que enfrentou o seu olhar.

Eu vou aceitar Aqamdax como esposa, disse ele, reparando que Espreita-o-Céu não ficara admirado. Mas não tenciono rejeitar Estrela. Quem a aceitaria?

Talvez ela e Homem Noturno fiquem vivendo juntos, sugeriu Sok, e Chakliux ficou surpreendido ao ver que o irmão estava ouvindo a conversa.

Há muitas velhas na aldeia. Homem Noturno não ficará sem mulher, disse Espreita-o-Céu.

Onde está Aqamdax? perguntou Chakliux.

Com Ligige’.

Então é para lá que irei.

Alguém raspou na parte lateral da cabana. Aqamdax pôs de lado a costura e olhou para Ligige’.

Porque tens medo? perguntou Ligige’. O que te podem fazer?

Aqamdax arredou a aba interior e saudou quem chegava. Quando viu o topo do capuz da parka de Chakliux, deu um grito de alegria e foi se encontrar com ele no túnel. Ele abraçou-a.

Eu tinha medo... disse ela em voz baixa. Eu tinha medo... que tu não...

Cala-te proferiu ele, e tirou as luvas para lhe acariciar a face, a boca e o cabelo.

Ela levou-o para o interior da cabana de Ligige’, sacudiu-lhe a neve da parka e pendurou-a num poste. Depois, sentou-se a seu lado. Ligige’ ofereceu-lhe uma tigela de comida, e ele agradeceu em voz baixa, comendo às pressas, como se não tivesse ingerido nada há vários dias e dando fortes estalidos com a boca em sinal de gratidão pelo caldo e pela carne.

Ligige’, satisfeita com o cumprimento à comida servida por ela, fez um sinal de aprovação e depois reparou que Chakliux, enquanto comia, examinava as pilhas de cobertores, cestos e fardos que enchiam a cabana.

Ghaden e Yaa ainda estão com Estrela? perguntou ele.

Ligige’ riu.

Estás admirado por veres tantas coisas na cabana de uma velha? Julgas que resolvi tornar-me comerciante na velhice?

Ele riu.

Lembras-te de uma criança chamada Filha-do-Sol, perguntou-lhe Ligige’. Foi uma das que K’os levou para a aldeia de Rio Próximo.

Lembro. A mãe era...

A mãe morreu, assim como o pai. Ligige’ fez estalar os dedos como que para afastar tal recordação da sua cabana. Filha-do-Sol deixou o marido de Rio Próximo e veio para cá. Trouxe os cães do marido e dois dos seus trenós.

Ele não veio atrás dela?

Ele também morreu. Tu conhecia-lo, creio eu. Em tempos, ele foi segundo marido da tua mãe e considerava-se teu pai e de Sok.

Chakliux arregalou os olhos.

Ele morreu? perguntou ele, inclinando-se para a frente como se tivesse medo de acreditar nas palavras de Ligige’. Como?

Isso tens que perguntar a Filha-do-Sol. Ela agora chama-se Dii. Chegou durante uma tempestade e veio à minha cabana. Ficou uns dias comigo e agora foi para a cabana da tia.

Caule Torto?

Sim, mas tudo isto que vês à porta da minha cabana são coisas de Dii. Todos os dias ela vem buscar mais algumas. Diz que Caule Torto se queixa de que não tem espaço, e é por isso que ela não leva muito de cada vez.

Ligige’ empinou o queixo e inclinou a cabeça, perguntando:

Vais chorar o marido dela?

Não.

A resposta de Chakliux foi breve e ríspida. Ouviu-se um ganir nos fundos da cabana, e Chakliux deu um salto.

Têm um cão aqui?

É Mordedor, respondeu Ligige’. Sabes que Aqamdax rejeitou Homem Noturno?

Aqamdax susteve a respiração, com receio de que Chakliux se zangasse por ela ter feito aquilo antes de ele voltar.

Espreita-o-Céu disse-me, informou ele.

Não querias que eu o fizesse? perguntou ela.

Fico satisfeito por não seres esposa dele, respondeu ele, sorrindo, mas o sorriso foi superficial, como uma ondulação fraca na água batida pelo vento. Chakliux parecia cansado e triste.

Uns dizem que Estrela te rejeitou, adiantou Ligige’, e Aqamdax desejou que a velha se calasse. Chakliux já tinha muito em que pensar.

Foi o que Espreita-o-Céu nos disse. Eu vou ver com os meus próprios olhos, para apurar a verdade, disse Chakliux. Quero ter certeza de que ela tomará conta de Ghaden e de Yaa. Mas porque tens aqui o Mordedor?

Homem Noturno disse a Ghaden que mataria o cão.

Por quê?

O Mordedor atacou Estrela.

O quê?

Ele estava protegendo-me, explicou Aqamdax. Não penses nisso.

Queria perguntar por Sok. Ele tencionava voltar para a cabana da mulher morta? Precisava de ajuda por causa dos filhos? Talvez ela e Chakliux pudessem ficar vivendo com ele na cabana de Neve-no-Cabelo durante o Inverno, enquanto Aqamdax acabava de costurar a cobertura da sua.

Ligige’ apontou para Aqamdax.

Esta mulher não tem marido, disse ela. Tens que pensar nisso.

Aqamdax teve vontade de sair da cabana e de se esconder do olhar de Chakliux. Julgaria ele que ela se queixara?

Chakliux, porém, reagiu como se não tivesse ouvido as, palavras de Ligige’. Levantou-se e disse:

Voltarei mais tarde.

E saiu de repente, tal como entrara.

Ligige’ resmungou e Aqamdax disse sem pensar:

Foste indelicada. Ele vai tomar conta de mim.

Muitas vezes, ele põe à frente dos que conquistaram o seu respeito aqueles que não merecem a sua preocupação, respondeu Ligige’.

Um homem que conduz o seu povo tem que pensar em si mesmo em último lugar, afirmou Aqamdax. A mulher e os filhos, e os pais, fazem parte dele, e devem vir atrás dos outros.

Ligige’ deu um estalo com a língua.

Se ele não pode cuidar da sua própria família, que direito tem de velar pelos outros? Ainda bem que eu vim para esta aldeia. Para onde irias se eu não estivesse aqui?

Teria frio e fome, tia, respondeu Aqamdax. Não me esquecerei do que fizeste por mim.

Ligige’ voltou a resmungar, mas dessa vez sorriu.

Chakliux passou as mãos pelas facas que trazia. Tinha uma atada à perna, outra no cinto e uma mais pequena debaixo da parka, pendurada ao pescoço como se fosse um colar.

Nada de lutas. Nada de lutas, disse ele em voz baixa, como se fizesse uma oração.

Entrou na cabana de Estrela sem uma saudação, como se ainda fosse marido dela. Estrela encolheu-se ao vê-lo, tapou aboca com as mãos e pôs-se atrás da mãe.

Não te disseram que Estrela te rejeitou? perguntou Homem Noturno.

Disseram. Venho pedir-lhe que seja de novo minha esposa.

Homem Noturno olhou para a irmã e disse:

Ele sente a falta do calor da tua cabana. Chakliux viu que Estrela ficara magoada e reteve a fúria que lhe dava vontade de insultar Homem Noturno. Ia a dizer a Estrela que ela fora uma boa esposa, e que por isso a queria de volta. Mas como podia ele dizer uma coisa que não era verdade? Ele queria-a pelo filho que ela trazia no ventre, por esse filho ou essa filha. De outro modo, preferia que ela pertencesse a outro caçador.

Eu tenho uma cabana quente onde posso viver, declarou ele.

Homem Noturno olhou de novo para a irmã. Estrela tirou as mãos da boca e começou a enrolar as tranças nos dedos, como uma criança.

Ele não te quer pela tua comida nem pela tua costura, nem precisa desta cabana, salientou Homem Noturno. Ele tem outra mulher que lhe aqueça a cama.

Estendeu o braço e deu uma palmadinha na barriga da irmã.

Deve ser por isto, prosseguiu. Não pensaste que pode ser uma menina? perguntou ele a Chakliux.

Porque isso seria importante? perguntou Chakliux.

Homem Noturno riu.

Vês, irmã? Não é a ti que ele quer. Pede um bom dote. Ele pagará muito por esse bebê.

Nunca olhaste para a tua irmã, Homem Noturno? perguntou Chakliux como uma voz suave. Nunca reparaste no cabelo dela, escuro como a noite? No rosto dela, brilhante como o sol ou a água? Não sabes que ela é bela? Onde tens os olhos? Sorriu para Estrela e perguntou: O que queres como dote?

Estrela olhou para Chakliux e depois para o irmão. Que ajudes a tirar as coisas do meu irmão desta cabana, disse ela a Chakliux, fazendo estalar os dedos com um gesto insultuoso. Ele nunca mais viverá aqui.

 

Sok convidou Chakliux e Aqamdax para irem viver com ele e com os dois filhos, e pediu a Aqamdax que lhe cuidasse dos filhos até ele arranjar outra mulher. Na sua opinião, seria preferível que Aqamdax e Estrela vivessem em cabanas separadas. E como podia Aqamdax não concordar com ele?

Ao mudar-se para a cabana de Ligige', Aqamdax não pôde deixar de recordar os tempos em que fora esposa de Sok. Ele fingira ser o que não era - um homem que precisava de uma mulher. Aqamdax acreditara nele, permitira que os ombros largos e os braços fortes dele a impedissem de ver a realidade, e depois odiara-o quando ele tentara vendê-la aos Caçadores de Morsas. Ele julgara que a magia das histórias dela levariam o povo Morsa a dar mais em troca dela, o suficiente para ele comprar Neve-no-Cabelo.

No entanto, agora, ao ver o abatimento de Sok, que andava como se fosse um velho, Aqamdax já não lhe tinha ódio. Podia afirmar que ela própria nunca cometera um ato egoísta? Podia afirmar que nunca ofendera ninguém para conseguir o que queria?

Por isso, quando Chakliux apareceu na cabana de Ligige', prometendo presentes de peles de caribu, carne e colares, Aqamdax aceitou não só um novo marido como o irmão dele e os filhos do irmão.

- Na Primavera, ele terá uma nova esposa. - disse-lhe Chakliux. - Na Primavera, terás a cobertura da cabana costurada, e nós teremos a nossa própria cabana.

Continua a ser minha mulher, respondeu Chakliux. Ligige’ levantou-se cambaleando e vestiu uma parka.

Vou para lá. Esta noite fico com Estrela e Olhos Grandes, com Ghaden e Yaa, disse ela.

Estrela sabe que aceitaste Aqamdax como esposa?

Sabe, respondeu Chakliux, oferecendo-se para levar a panela da comida para a cabana de Estrela. Não sei se ela tem alguma coisa pronta para comer.

Ligige’ abanou a cabeça.

Yaa está lá. Ela é mulher para tomar conta de todos nós.

Chakliux abriu a aba para Ligige’ passar, saiu com ela e Aqamdax percebeu que ele ia acompanhar a tia até a cabana de Estrela, para se certificar de que a mulher receberia a velha com delicadeza.

Quando voltou, trazia os braços cheios e as costas curvadas com o peso: uma pele de caribu, várias peles de lobo de pelo comprido, colares, panelas e um saco de contas. Mais do que seria oferecido à maior parte das primeiras esposas, quanto mais a uma mulher que já tivera dois maridos e que já fora escrava.

Aqamdax tirou os presentes dos seus braços, um por um, e escondeu as lágrimas numa pele de lobo.

Tenho mais peles de caribu na minha despensa, suficientes para fazer uma cobertura, mas talvez não te importes que eu as deixe lá.

Aqamdax desatou a rir, mas depois cedeu às lágrimas e começou a empilhar os presentes na zona da cabana destinada às mulheres. Preparou a comida para o marido uma tigela de carne de caribu temperada com iitikaalux e fervia em caldo, vários peixes secos, aquecidos junto da lareira, e uma tigela de óleo de peixe para os mergulhar.

Mais um presente, disse ele quando acabou de comer.

A cabana está cheia, observou Aqamdax, rindo. O que mais podes dar-me?

Não é um presente para os olhos mas sim para os ouvidos, respondeu Chakliux tranqüilamente.

Então, fez-lhe sinal para se sentar ao lado dele, abraçou-a e começou a contar histórias. Eram histórias antigas, todas elas sagradas para o povo Primo, e que Aqamdax não conhecia. Ouviu-as, radiante, sentindo o seu coração bater ao ritmo das palavras, e era como se cada história fosse uma taça executada com a voz e não com os pés e as mãos. E o seu amor por ele aumentou, grata como estava por ele lhe ter confiado algo tão sagrado quando ela era apenas uma mulher, uma segunda esposa, que nem sequer pertencia ao Povo Rio.

 

Yaa ajudou Ghaden a consertar a raquete de neve e depois levou um odre de água a Olhos Grandes, observando-a para se certificar de que a velha bebia. Quando Estrela começou a discutir com Ligige’, Yaa foi distraí-la, pedindo-lhe que a ajudasse a pegar a panela e lembrando a Ligige’ com uma expressão carrancuda que Estrela não passava de uma criança num corpo de mulher.

Ligige’ beliscou a face, obstinada, e Yaa deu consigo a pensar de novo em Mulher Diurna, a morta. Teria sido Ligige’ a matá-la e não Caule Torto? Se assim fosse, porque se teria Ligige’ esforçado tanto para salvar a vida de Mulher Diurna? Talvez Estrela fosse a assassina, mas porque havia Estrela de fazer mal à mãe de Chakliux? E Ligige’?

Yaa suspirou. Talvez nunca ninguém viesse a saber quem era o assassino, e como não houvera mais problemas na aldeia, porque se preocupariam com isso?

Depois pensou em Chora-Alto, nos seus olhos ensombrados pela tristeza. Seria bom que conseguissem provar que Folha Vermelha era inocente, bom para Chora-Alto e até para Sok.

Um dia, se ela fosse mulher de Chora-Alto...

Yaa fechou os olhos, envergonhada com a ousadia deste pensamento e sentiu-se corar.

Olhos Grandes deixou escapar um súbito guincho de fúria. Yaa abandonou Estrela e foi desemaranhar o fio de tendão que pendia da agulha da velha. Olhos Grandes sorriu-lhe, deu-lhe uma pancadinha na mão e retomou a costura.

Um dia, serás uma boa esposa, disse Ligige’ a Yaa, com um sinal de aprovação.

Yaa baixou a cabeça para Ligige’ não pensar que ela ficara muito orgulhosa, mas gostou do cumprimento. Uma boa esposa, pensou. Teria que ser uma boa esposa para ajudar Chora-Alto a esquecer o seu desgosto e a voltar a sorrir.

 

Quando acabou as histórias, Chakliux levantou-se, aproximou-se das prateleiras, pegou um odre de óleo derretido e destapou-o com os dentes. Despiu Aqamdax e esfregou o óleo na sua pele, levantando-se para lhe passar pelos cabelos e ajoelhando-se para lhe esfregar nas pernas. Aqueceu-a com as suas mãos, acariciou-lhe os seios, depois a barriga e as nádegas. Levou-a para a cama, despiu-se e deitou-se ao lado dela. As suas mãos continuaram a dançar na pele dela, e Aqamdax mexia-se ao senti-las. Estendeu-lhe os braços e convidou-o a festejar a união de ambos.

Quando por fim ele se deitou em cima dela e entrou no seu corpo, Aqamdax ouviu os ventos da tempestade lá fora, que começavam de novo a soprar, uivando através das paredes da cabana. Mais tarde, quando eles jaziam imóveis e silenciosos, sentiu a cabana tremer.

Dedos gelados atravessaram as costuras e os orifícios da cobertura de pele de caribu da cabana e, apesar de Chakliux a envolver nos seus braços, a voz do vento não deixou Aqamdax dormir. Durante a noite, ouviu o marido rezar baixinho, mas as palavras pareceram-lhe fracas demais e pacíficas, como uma criança cantando ao vento.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

A tempestade desencadeou-se pouco depois de o banquete começar. K’os levou os tripés e as panelas para a cabana de Mosquito-Pólvora e continuou a dar de comer às pessoas até não sobrar nada. Quando a comida acabou, abriu os fardos que escolhera entre aqueles que Dança-no-Gelo trouxera e ofereceu um presente a cada pessoa.

Quando falara pela primeira vez a Dança-no-Gelo do seu plano de dar presentes, ele protestara.

Tenho aqui o suficiente para vir a ser comerciante, disse ele. Terei os mais belos cães, as melhores parkas, e tu e os nossos filhos nunca passarão fome.

K’os não se incomodou a dizer-lhe que nunca lhe daria filhos. Se ele começasse a preocupar-se por não ter filhos, ela simularia uma gravidez e roubaria uma criança. Havia maneiras de fazer essas coisas.

Espera para veres o que acontece, dissera-lhe ela. Por cada presente que ofereceres, terás mais valor aos olhos das pessoas. Serás considerado sábio e generoso, um chefe. Dança-no-Gelo virara-lhe as costas e amuara como uma criança, mas ela enfiara-lhe os dedos na braguilha e pouco depois ele ficara duro e pronto nas suas mãos. Depois de saciado pelo amor, não protestou mais.

Quando o céu escureceu, as pessoas foram-se embora, caminhando na neve rija e cortante e encostando-se umas às outras à medida que se distribuíam pelas cabanas. Dança-no-Gelo foi acompanhar os velhos, conduzindo-os às suas cabanas, e, quando ele regressou, K’os despiu-lhe a parka coberta por uma camada de gelo, sacudiu a neve da pele e depois desenrolou a cama dele ao lado da sua. K’os ficou acordada durante muito tempo depois de ter satisfeito Dança-no-Gelo e de este ter adormecido. Oferecera muitas coisas até um belo cesto de pele de peixe que dera a Folha Vermelha, e um capuz de pele de castor a Cen. No silêncio da sua cabana, escutou o vento. Como sempre, ele falava com muitas vozes: de raiva, de amargura. Mas dessa vez, também lhe levou as palavras de homens e mulheres que viviam na aldeia de Quatro Rios preces a favor de Dança-no-Gelo e da sua esposa, a generosa K’os.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Nessa noite, Chakliux serviu-se quatro ou cinco vezes do cajado para retirar a neve que se acumulava no orifício da fumaça, e de manhã, quando ele e Aqamdax abriram a aba interior, verificaram que o túnel de entrada estava quase cheio de neve.

Aqamdax procurou entre os cestos de Ligige’ até encontrar várias panelas velhas feitas de pele de caribu. Chakliux encheu-as de neve e pendurou-as por cima do lume para a neve derreter. Em seguida, abriu caminho no túnel e saiu. O vento continuava a soprar, atravessando-lhe o tufo da parka como dedos gelados e arranhando-lhe a face e as pálpebras. Chakliux apertara tanto os atilhos do capuz que respirava apenas através da pele, mas mesmo assim o frio fazia-lhe doer os pulmões.

Não se recordava de um tempo tão inclemente no começo do Inverno, com o Sol ainda tão alto no céu. Pensou se Sok não afirmaria que aquela tempestade era Neve-no-Cabelo chamando do mundo dos espíritos. Como dzuuggí, ele sabia histórias de casos desses, mas que se tinham passado há muito, muito tempo. Neve-no-Cabelo não era xamã, nem sequer uma mulher de idade ou de grande poder. Como podia ela saber o suficiente para desencadear tempestades como aquelas?

Quando chegou à cabana de Estrela, Chakliux viu que tinha que retirar a neve que se acumulara no túnel de entrada. Não ouviu vozes lá dentro e cavou mais depressa. Às vezes, quando o vento encontrava uma cabana protegida pela neve, reagia com fúria por não poder entrar e impedia a respiração dos que se encontravam lá dentro.

Estava a meio da tarefa quando Mordedor saiu, deitando-o ao chão e saudando-o com lambidelas e patadas. Seguiu-se Ghaden, gritando nas profundezas da neve, chamando Yaa. Chakliux recomendou a Ghaden que não se afastasse da cabana. O vento continuava a soprar com força, fustigando a neve e formando um tapete espesso à volta das cabanas e impedindo a visão de qualquer coisa que estivesse a mais de dois ou três passos.

Lá dentro, as mulheres encontravam-se sentadas à volta do lume.

Mais uma tempestade, disse Ligige’.

Não é tão má como a primeira, respondeu Chakliux.

Não é tão má como a primeira repetiu Olhos Grandes, sem levantar a cabeça.

Estrela estava sentada de costas para o túnel de entrada. Por uma vez, estava trabalhando. Ligige’ não permitiria que ela não fizesse nada enquanto as outras costuravam.

Têm comida que chegue? perguntou Chakliux. A cabana pertencia a Estrela. Deveria ser ela a responder, mas fez de conta que ele não estava ali. Chakliux perguntou-lhe outra vez e depois ofereceu-se para abrir um trilho até a despensa.

Por fim, Estrela olhou-o, e Chakliux viu a fúria nos olhos dela.

A tua nova esposa tem uma cama mais quente do que a minha? Deixou cair a pele que estava costurando. Eu sou a melhor esposa. Olha. Aqui está o teu filho. Já te esqueceste dele? perguntou ela batendo na barriga.

Nunca me esqueceria dele nem de ti, respondeu Chakliux, com paciência. Como ela não disse nada, ele continuou: Vou abrir um trilho até a despensa. Não ficará aberto durante muito tempo. Terás que ir lá depressa, se precisares de carne.

Chakliux saiu, mas não sem convidar Ligige’ a voltar para a sua cabana, dizendo-lhe que Aqamdax se mudaria para a cabana de Sok nesse mesmo dia.

Leva os teus cães, marido. Eu não lhes darei de comer gritou Estrela.

Chakliux ouviu qualquer coisa bater na parede da cama que lhe pareceu ser a aba interior voltando ao seu lugar.

Acalmou-se ao pensar em Aqamdax, e depois chamou Ghaden e Yaa para o ajudarem a abrir um caminho na neve até às despensas. Encheu-os de comida para levarem para a cabana de Estrela. Foi à sua própria despensa e trouxe vários nacos congelados de carne de caribu para si e para Aqamdax e uma pele de caribu de peixe seco para os cães.

Levou a maior parte da comida para a cabana de Sok. Esta estava vazia e fria, mas havia uma pilha de lenha junto do círculo de pedras e de areia que assinalava a lareira. Chakliux serviu-se de um arco e de aparas de casca de bétula para acender o fogo e alimentou-o pacientemente até consumir vários dos maiores pedaços de madeira e transformá-los em brasas. Em seguida, levou uma parte da carne. O peixe para o cão de Ligige’ para a cabana da velha. Ligige’ ainda não voltara, mas Aqamdax estava à espera dele. Quis dizer-lhe que voltasse a estender as peles da cama para gozar pela última vez aquela cabana, mas como podia correr o risco de deixar o fogo aceso na cabana de Sok, sem ninguém vigiando-o? Os ventos faziam coisas estranhas nas cabanas vazias.

Acendi o fogo na cabana de Sok, afirmou ele. Temos que levar as nossas coisas para lá.

Agora? Em plena tempestade? indagou ela, olhando para ele com um ar preocupado.

Estrela quer que eu tire os meus cães da cabana dela. Diz que não lhes dará comida. Ligige’ não tarda a voltar; mas Sok também precisa regressar à cabana, ter uma casa para ele e para os filhos.

Chakliux reparou que ela sugava o lábio inferior, colando-o aos dentes.

Não queres voltar a viver na mesma cabana de Sok? perguntou ele.

Ela olhou-o, surpreendida, franziu a testa e depois respondeu:

Não, eu não estava pensando nisso. Aqamdax sorriu-lhe e os seus olhos eram pequenas curvas que lembravam pedaços de lua. Ele precisa de mim para ajudá-lo a cuidar dos filhos. Não sei se voltarei a ter leite para amamentar o bebê.

A mulher de Espreita-o-Céu amamenta-o, disse Chakliux.

Não sabias que ela também está grávida? perguntou Aqamdax, rindo-se da admiração dele. O leite dela poderá não ser tão abundante. Aqamdax deu uma palmadinha na barriga e acrescentou: Ainda terei algumas luas antes de o bebê que geramos me fazer o mesmo.

Chakliux abriu a boca, admirado. Nenhuma mulher podia saber tão cedo.

Ela riu e ele juntou-se. Não estava habituado a uma mulher brincalhona.

Agachou-se junto dela, pousou-lhe a mão na barriga, e pouco depois estavam deitados nas esteiras do chão. A parka dele, ainda molhada na neve, fora atirada para o lado. E, durante alguns momentos, Chakliux não ouviu a tempestade nem pensou em cães. Qual o homem que permitiria que tais preocupações lhe roubassem o prazer de estar com a mulher amada?

 

Sok desviou o olhar da comiseração de Espreita-o-Céu. Tentou comer o que Chamariz lhe dera, mas por fim largou a tigela ainda meio cheia no chão. Chamariz tinha Leva-Muito no colo e Sok tirou-lhe. O bebê arrulhou, deliciado, e Sok não pôde deixar de reparar que ele tinha os olhos e o nariz de Neve-no-Cabelo. Devolveu a criança a Chamariz e imaginou como se sentiria se entregasse o bebê a Neve-no-Cabelo.

Mas não, ele não teria reparado numa pequena bênção como essa. Talvez os espíritos o tivessem castigado pela sua falta de gratidão. Talvez fosse por isso que Neve-no-Cabelo morrera.

Sok pensou em outros homens, alguns muito piores do que ele. Leva-Mais estava sempre resmungando contra as mulheres. Até durante o banquete depois da primeira caçada bem sucedida no rio, ele se queixara do naco de carne que uma das suas esposas lhe dera. Apesar da sua idade avançada, tinha três esposas: duas velhas boas na costura e uma das jovens que resolvera voltar do povo de Rio Próximo. Sok era decerto melhor do que Leva-Mais, mas agora as suas duas esposas e o filho estavam mortos. Teria ele sido amaldiçoado?

Talvez devesse oferecer o que lhe restava, os dois filhos e os cães a Chakliux. Desse modo, ele poderia protegê-los da sua má sorte. Mas Chakliux tinha duas esposas, Estrela e Aqamdax. Qual o homem que queria que Estrela lhe criasse os filhos? Aqamdax não era má, mas era uma Caçadora Marinha. Leva-Muito e Chora-Alto mereciam melhor.

Devia ter sido Estrela, e não Neve-no-Cabelo, a morrer no rio. Quem teria sentido a falta dela? A sua velha mãe, Olhos Grandes, raramente percebia o que se passava à volta dela. O irmão, Homem Noturno, era egoísta demais para se importar que Estrela estivesse viva ou morta.

Parecia verdadeiramente que, à medida que Estrela estava mais forte, Neve-no-Cabelo enfraquecia, como se o espírito de Estrela se servisse agora da força de Neve-no-Cabelo para regressar ao mundo. Sok virou-se de repente para Chamariz e perguntou:

Precisas de comida da tua despensa?

Sim, para os cães respondeu ela.

Eu vou buscá-la.

Traz um pouco de carne de caribu, pediu Chamariz.

Sok vestiu a roupa com que andava lá fora e saiu. A neve atingiu-o com força no rosto, mas ele acolheu a dor de bom grado, e afastou o capuz para sentir o frio cortante na pele. Atrás da cabana de Chamariz, um monte de neve endurecida e coberta de gelo dava-lhe quase até a cintura, mas ele conseguiu abrir caminho. O vento cantava e, ali fora, Sok reconheceu a sua voz.

Neve-no-Cabelo chamava-o, cantando, e os seus dedos frios acariciavam-lhe a pele.

 

A tempestade durou três dias. Durante esse tempo, Sok manteve-se calado, raramente falava, mesmo com os filhos, mas tratava dos cães e foi uma vez caçar com Chakliux, apesar de só terem trazido ptármigas.

Por fim o vento empurrou a tempestade para norte e o sol atravessou o manto de nuvens e revelou o azul-claro de um céu de Inverno. Nem o sol nem o vento tiveram força suficiente para afastar as nuvens, e dois dias depois elas voltaram, a princípio numa camada tão fina que Aqamdax julgou tratar-se da fumaça das lareiras da aldeia. Mas pouco depois o vento tornou-se de novo agreste e semeou o gelo e o frio pela aldeia. Mais uma vez, os cães enrolaram-se, abrigando-se nos montes de neve, e as velhas cobriram-se de peles de caribu, para que o frio que lhes ia para os ossos fosse apanhado no pelo espesso das peles.

Na primeira noite dessa nova tempestade, Sok acordou Aqamdax com as suas canções fúnebres, e, quando o seu choro deu lugar às palavras, ela percebeu que ele falava do vento como se este fosse a mulher morta.

Na escuridão da cabana, Chora-Alto foi para a cama de Aqamdax e, apesar de ter oito Verões, aninhou-se como uma criança desperta por sonhos maus.

Chakliux mexeu-se e Aqamdax, a seu lado, cochichou:

Tens que tirar Sok daqui.

Com esta tempestade?

Sentiu a irritação na voz de Chakliux, sabendo que não era com ela mas sim motivada pelo desgosto que parecia afastar Sok daquilo que ele era. Aqamdax pegou-lhe a mão e colocou-a no corpo de Chora-Alto, para que ele sentisse o rapaz tremer a seu lado.

Para onde? perguntou Chakliux com uma voz de novo terna.

Para a cabana dos caçadores? propôs ela, transformando a sugestão em pergunta.

Chakliux calçou as botas, vestiu a parka e disse a Sok que se vestisse. Depois de saírem, Aqamdax pôs Chora-Alto de novo na cama dele. Em seguida, tirou Leva-Muito do berço e pegou-lhe no colo, cantando-lhe as canções de embalar que aprendera em criança, quando vivia com os Primeiros Homens.

Chakliux só regressou na manhã seguinte, e veio sozinho.

Sok ficou na cabana dos caçadores? perguntou Aqamdax.

Os homens pediram-lhe que contasse histórias de caça. Eu vim dar comida aos cães e ver se precisas de alguma coisa, mas tenho que voltar.

Aqamdax escondeu o seu desapontamento. Ainda não havia um mês que ele era seu marido. No passado, mal se atreviam a sorrir um ao outro quando os outros não estavam olhando para eles. Como podia ela queixar-se, agora que pertenciam um ao outro?

Como está a tempestade? perguntou ela.

É igual às outras, respondeu ele. Encolhendo os ombros como se o assunto não tivesse importância, mas Aqamdax sabia que a situação o incomodava. Como podia um homem caçar? Como podia uma mulher cuidar das armadilhas?

Aqamdax deu comida a Chakliux e encheu-lhe a tigela outra vez para ele demorar mais. Quando ele saiu, cantou para encher a cabana e contou histórias. Chora-Alto pediu mais, mesmo quando ela já estava rouca de falar. Mais tarde, Yaa e Ghaden vieram para a cabana, e Aqamdax ensinou-lhes uma canção dos Primeiros Homens.

Deu comida às crianças e levou Leva-Muito a Chamariz para ela o ver. Era Aqamdax que estava amamentando o bebê, e cada dia tinha mais leite. Enfrentou a tempestade até chegar à cabana de Neve-no-Cabelo, disse a Ghaden e a Yaa que queria que eles passassem a noite lá, mas, ao anoitecer, Estrela xingou as crianças dizendo que a incomodavam. Então, quando estas lhe pediram, Aqamdax aceitou que Chora-Alto ficasse na cabana dela com Ghaden e Yaa.

Aqamdax enfrentou o olhar de Estrela com um ar de desafio.

Bem sabes que não posso deixá-lo ir contigo, disse ela.

Confiaste-me o teu irmão e a tua irmã e não me confias Chora-Alto?

Com o meu irmão e a minha irmã eu não tinha alternativa, mas Chora-Alto pertence a Sok, salientou Aqamdax. Tens que lhe pedir.

Onde está ele? Julguei que estivesse aqui.

Ele e Chakliux estão na cabana dos caçadores.

Um novo marido não vive com a sua nova esposa? perguntou Estrela, erguendo as sobrancelhas com um ar debochado.

Aqamdax não respondeu. Sabia a verdade. O resto não interessava.

Eu vou à cabana dos caçadores para lhe fazer a pergunta, disse Estrela, mas Aqamdax vestiu-se, enrolou o bebê debaixo da parka e foi com ela. Ficaram à porta, encostadas a Yaa, quando Ghaden e Chora-Alto entraram. Por fim Chakliux saiu e disse que Sok queria que o rapaz ficasse na cabana de Neve-no-Cabelo até a tempestade acabar.

Estrela fez beicinho e, agarrando as parkas de Yaa e de Ghaden, arrastou-os para a sua cabana.

Espera por mim, disse Chakliux a Aqamdax, e acompanhou Estrela até a cabana dela.

Aqamdax e Chora-Alto ficaram à espera, agachados ao lado da cabana dos caçadores e de cabeças viradas contra o vento. Quando Chakliux voltou, tinha um ar sombrio, mas Aqamdax não fez perguntas e não disse nada sobre Estrela. Chakliux levou Aqamdax e Chora-Alto para a cabana de Neve-no-Cabelo e passou o serão com eles antes de voltar para junto do irmão.

Nessa noite, Chakliux sonhou que estava com Aqamdax. Virou-se durante o sono, estendeu um braço para a puxar para si e depois acordou de repente e sentou-se. Ouviu os homens ressonando e sentiu o odor penetrante do seu hálito à carne que tinham comido na véspera.

Sok não se encontrava na cama. A sua parka não estava pendurada no cabide. Leva-Mais estava junto ao fogo e jogava gravetos nas brasas.

Ele saiu, disse ele a Chakliux.

Não o impediste? perguntou Chakliux.

Ele é alguma criança, para eu o impedir?

Ele disse-te alguma coisa?

Disse que alguém estava chamando-o. Chakliux vestiu-se e saiu. Examinou as pegadas que a neve ainda não cobrira. As maiores iam na direção da cabana de Sok, e Chakliux teve esperança de que o irmão tivesse ido buscar comida e mantimentos.

Depois, na escuridão, Chakliux avistou Sok saindo da cabana, com um fardo às costas. Não levava nenhum dos cães e encaminhou-se para as despensas. A neve, que ainda não endurecera, chegava aos joelhos de Chakliux, e o seu pé de lontra escorregou. Caiu na neve, mas conseguiu levantar-se e apanhar Sok antes de este chegar às despensas.

Quando Sok viu Chakliux, disse:

A minha mulher me chama. Não posso mais fingir que não a ouço.

Aonde vais?

Ao encontro dela.

Chakliux agarrou o braço do irmão e levantou a voz acima do uivo do vento.

E se ela estiver chamando-te para o seu mundo? Quem criará os teus filhos? A tua mulher os confiaria a outra pessoa?

Eles são teus se eu não voltar, declarou Sok, e continuou a dirigir-se para as despensas.

Chakliux voltou a agarrar o braço do irmão.

Eu vou contigo. Sok abanou a cabeça.

Quem tomará conta dos meus filhos se ambos formos chamados ao mundo dos espíritos?

Ela não me chama.

Sok bateu com os pés no chão e sacudiu a neve do capuz.

Vem, se achas que deves vir, disse ele.

Não posso ir sem dizer a Aqamdax.

Eu vou buscar carne enquanto tu falas com ela. Chakliux agarrou o ombro do irmão.

Esperas por mim?

Espero.

Chakliux deu meia volta e correu para a cabana.

Aqamdax estava dando de mamar a Leva-Muito quando o marido entrou de rompante na cabana. Ficou aliviada ao vê-lo e começou a falar antes de ele dizer fosse o que fosse.

Sok esteve aqui. Há alguma coisa que não está bem. Tens que falar com ele. Não me disse nada. Tirou Leva-Muito da prancha de embalar e cochichou-lhe ao ouvido. Depois, deu-lhe uma das suas melhores lanças. Aquela mais comprida que ele usa para caçar caribus.

Chakliux agachou-se em frente da mulher e olhou-a de frente. Eu o vi. Ele acha que a mulher morta o chama da tempestade. Diz que tem que ir ter com ela.

Achas que ela está chamando-o? Porque ela quereria que ele abandonasse o filho mais novo? E se a mulher que o chama não for Neve-no-Cabelo, mas sim Folha Vermelha?

Eu vou com ele.

Não! Chakliux, olha para mim. Tenho um bebê para cuidar, além de Chora-Alto, o meu irmão e Yaa... Aqamdax viu a tristeza no rosto dele, a preocupação, e abafou os seus protestos. Já tomei conta de crianças. Mas não posso perder-te. Por favor, Chakliux... disse ela baixinho.

Ele abraçou-a e cochichou-lhe junto do cabelo:

Se eu o deixar ir sozinho, ele não voltará. Se formos juntos, terei uma oportunidade de o trazer para casa. Mas seja qual for a decisão dele, eu voltarei. Nunca te abandonarei. Estarás sempre no centro do meu coração.

Em seguida, pegou as armas e um fardo e, antes que Aqamdax pudesse pensar noutros argumentos, saiu. Aqamdax embalou o bebê num dos braços e arrastou-se para o túnel de entrada. Levantou a aba para ver Chakliux partir, mas a neve engoliu-o e ela só viu a tempestade.

Entrou na cabana. Chora-Alto transformara-se numa bola, com os joelhos quase juntos ao queixo. A lança que Sok lhe oferecera estava nas suas mãos, com a ponta cega no chão e a seta apontada para cima, como que ameaçando o vento.

Aqamdax sentou-se ao lado dele, encaixou o bebê no seu peito e começou a embalá-lo e a cantar baixinho. Então, lembrou-se de uma história, de uma história tola de gaivotas, e começou a falar. Pouco depois, Chora-Alto encostou-se a ela, com a espada entre ambos, e Aqamdax contou histórias até de madrugada.

 

O dia nasceu claro e límpido, como se não tivesse havido uma tempestade. Ligige’ abriu um trilho na neve para o cão e foi recebida com os latidos do animal. Quando pertencera a Lobo-e-Corvo, o xamã de Rio Próximo, o cão era quase selvagem e atacava qualquer pessoa que se aproximasse, mas com a passagem do tempo amansara e, depois da morte de Lobo-e-Corvo, quando a viúva deste o oferecera a Ligige’, era quase um animal de companhia, como Mordedor, o cão de Ghaden. Ligige’ deu-lhe um grande peixe e depois atirou-lhe vários pedaços de gordura. Se os outros a vissem dando-lhe a gordura, julgariam que ela estava doida, mas Ligige’ pensou que, se viessem tempos de fome, ela poderia sempre comer o cão, e portanto a gordura que lhe desse não se desperdiçava. O Inverno prometia ser rigoroso. Quando viesse outra tempestade, ela deixaria dormir o cão no túnel de entrada. Afinal, o que lhe podiam dizer os outros? Não era nenhuma criança para a xingarem. As velhas tinham o direito de fazer as coisas de maneira diferente, se lhes desse vontade. Quando o cão acabou de comer, Ligige’ acariciou-lhe o dorso, tirou-lhe o gelo da cauda e das patas e deixou que ele lhe lambesse a face com a língua quente e viscosa. Satisfeita por ele ter sobrevivido bem à tempestade, levantou-se e olhou para a aldeia de Rio Primo. As cabanas abobadadas de pele de caribu libertavam finas espirais de fumaça para o céu azul, e a neve brilhava de tal modo ao sol que a ofuscava. Ligige’ suspirou. O dia estava bonito demais para ela ir para a cabana de Estrela, mas agora que Aqamdax já não era mulher de Homem Noturno, quem olharia por Yaa e por Ghaden a não ser ela? Suspirou outra vez e, amparando-se ao cajado, abriu caminho através da neve com os seus pés de velha.

Ouviu Estrela gritando ainda antes de chegar à cabana. Como ninguém respondeu quando ela raspou na parede, afastou a aba da porta, aborrecida, e entrou. Yaa e Ghaden estavam encolhidos entre duas pilhas de cestos. Mordedor, que fora de novo autorizado a entrar, estava deitado na frente deles, como que protegendo-os das palavras de Estrela. Homem Noturno também voltara, e ria. O seu riso parecia aumentar a fúria de Estrela, e só quando Ligige’ levantou a voz num grito de saudação é que eles notaram a sua presença.

Estrela calou-se imediatamente, mas ficou de boca aberta como se a abundância de palavras por dizer a obrigasse a afastar os dentes. Ghaden aproveitou o silêncio, levantou-se e correu para Ligige’, gritando:

Obrigado por nos pedires para ficar contigo esta noite. O rapaz agarrou o fardo e a parka, chamou Mordedor e correu para o túnel de entrada antes que alguém reagisse. Estrela levantou a voz soltando uma espécie de uivo. mas Ligige’ perguntou a Homem Noturno:

Não te importas que eu os leve?

Seria melhor, respondeu ele.

Yaa levantou-se às pressas, pegou as suas coisas e foi para junto do irmão. Ligige’ apontou para Olhos Grandes, que estava sentada na parte de trás da cabana, e perguntou:

Queres que eu a leve também?

Talvez outro dia, respondeu Homem Noturno. Ligige’ teve a sensação de que ele tentara sorrir, mas com Homem Noturno era difícil dizer. Os sorrisos dele eram geralmente de deboche e não de gratidão. A velha foi atrás de Ghaden e de Yaa e saiu, chamando-os quando eles começaram a correr para a cabana dela. As crianças soltaram um grito de alegria quando ela apontou para a cabana de Aqamdax e, sem saudações nem avisos de cortesia, entraram de chofre no túnel, seguidos por Mordedor.

Ligige’ abanou a cabeça e riu. Como podia brigar com eles? Estavam contentes. Ela deixara-os ficar tempo demais com Estrela.

Aqamdax ouviu as vozes antes de alguém raspar e ficou mais bem-disposta. Chora-Alto, que estava debicando numa tigela de comida, assustou-se e Aqamdax ficou satisfeita ao ver o seu rosto iluminado por um sorriso. O rapaz perdera muita gente nas últimas luas um irmão, duas mães e talvez agora um pai.

Chora-Alto abriu a aba e uma corrente de ar frio entrou pelo túnel. Mordedor entrou e começou a latir. Aqamdax mandou-o calar e espiou o bebê, certa de que o frio e o barulho iriam acordá-lo, mas ele continuava dormindo. Depois, Ghaden e Yaa entraram na cabana, enchendo-a com as suas vozes alegres, e Ligige’ entrou atrás deles.

Aqamdax ofereceu-lhes comida e tentou não se mostrar preocupada quando Ghaden e Yaa devoraram a carne e Mordedor ganiu mais aflitivamente do que era habitual para pedir mais um pedaço.

Inclinou-se para Ligige’ e perguntou em voz baixa:

Achas que Estrela lhes tem dado comida? Ligige’ respondeu no mesmo tom de voz:

Não tanto quanto deveria. Tentarei vigiá-los melhor. Talvez Sok possa ajudar-nos, pelo menos até que Estrela receba outra vez Chakliux na sua cabana.

Não sabes que Sok saiu da aldeia? perguntou Aqamdax, que viu a surpresa no rosto da velha e um breve assomo de preocupação.

Foi caçar? perguntou ela.

Aqamdax olhou para Ligige’ e depois para Chora-Alto e respondeu:

Sim, foi caçar, e Chakliux foi com ele.

Ligige’ entendeu e começou a fazer perguntas, mas Aqamdax abanou a cabeça e depois disse às crianças:

Quando acabarem de comer, tenho uma coisa para vocês fazerem. Há muito trabalho. Vocês não podem ficar sempre brincando.

Ghaden gemeu e Yaa xingou-o, mas quando Aqamdax foi buscar lá fora a pele de caribu com o lado da carne bem raspado, as três crianças gritaram de alegria e largaram as tigelas da comida para atarem as botas e irem buscar as luvas.

Levem-na para o monte do lado leste da aldeia. A neve deve estar bem dura nesse local, e mantenham o lado do pelo para baixo.

Ao deslizarem, a maior parte do pelo se soltaria da pele, e Aqamdax teria menos para raspar. Assim que as crianças saíram, contou a Ligige’ o que sabia, e depois sentaram-se as duas. Ligige’ falou de coisas de todos os dias e contou histórias divertidas que fizeram Aqamdax rir e lhe deram alento, mesmo que fosse por pouco tempo.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

K’os afastou a neve acumulada à entrada da cabana de Folha Vermelha e chamou.

Folha Vermelha abriu a aba exterior e disse:

Eu convidava-te a entrar, mas o meu marido não deixa.

K’os não vira ninguém sair da cabana naquela manhã; as suas pegadas eram as primeiras na neve recente e intacta.

Julgas que acredito em ti? Talvez não queiras partilhar a tua comida. Talvez sejas egoísta, mesmo depois dos presentes que o meu marido te ofereceu.

Bem sabes que Cen está aqui, lembrou Folha Vermelha, olhando para as pegadas que ela deixara com as raquetes de neve. Ainda ninguém saiu hoje desta cabana.

Como sabes, eu agora tenho um marido, proferiu K’os. Só vim avisar-te que ele prometeu vingar-se do meu filho Chakliux por minha causa. Dentro de pouco tempo, irá à aldeia de Rio Primo, e é claro que ele sabe quem tu és. K’os encolheu os ombros. Ele resolveu dizer a Sok que tu estás aqui. Afinal, que mal pode vir de estares nesta aldeia? Mas ele é um homem muito preocupado com maldições.

Tenho carne na despensa do meu marido, disse Folha Vermelha, com uma voz serena. É ótima para peles, melhor do que qualquer outra que eu tenha visto. Peles de lobo e uma pele de foca que o meu marido arranjou num negócio...

K’os inclinou a cabeça e olhou de frente para Folha Vermelha.

Não tens nada que eu queira, disse ela. Agora eu tenho um marido, nem sequer quero Cen. Que pena para ti. Tiveste uma oportunidade, mas agora...

A mulher levantou as mãos, esticando as luvas com os dedos. É claro que poderias voltar a esconder-te, mas o que aconteceria à tua filha? Já é difícil para uma criança sobreviver numa aldeia no Inverno, quanto mais se só tiver a mãe para olhar por ela. Podias abandonar a criança, mas depois Cen não entenderia porque tinhas partido. Creio que ele iria atrás de ti. Tenho um plano que talvez resulte. Pelo menos tu e a tua filha poderiam salvar-se. K’os estendeu o braço e deu uma palmadinha no ombro de Folha Vermelha. Aproveita-o, assim como o calor desta cabana enquanto podes. Eu voltarei mais tarde, quando nós as duas pudermos estar a sós.

K’os viu o desespero no rosto de Folha Vermelha e saiu disfarçando um sorriso. Ainda bem que ela viera para aquela aldeia em que Cen vivia. Ainda bem que Folha Vermelha também fora para lá.

K’os deixou que os seus pensamentos recuassem até o tempo em que Gguzaakk, a pobre e feia mulher de Chakliux, era viva. Essa mulher, tal como Folha Vermelha, roubara algo que na verdade pertencia a K’os. Esta lembrou-se da morte lenta de Gguzaakk, da doença provocada pelo veneno. Deliciou-se ao imaginar Folha Vermelha morrendo da mesma maneira. É claro que Folha Vermelha não era tão forte como Gguzaakk. Não seria tão corajosa morrendo. E quem teria Cen para acusar dessa morte, a não ser ele próprio, que cometera a imprudência de chamar esposa a uma assassina?

 

                     ALDEIA DE RIO PRIMO

Ligige’ passou a maior parte do dia com Aqamdax, e as crianças, patinando, gastaram o pelo de duas peles de caribu. Aqamdax e Ligige’ estenderam a primeira pele no chão e depois rasparam-na e amaciaram-na com facas de osso e arenito.

Ao anoitecer, Aqamdax chamou as crianças para dentro. Os lobos deviam andar lá fora num dia quente depois de uma tempestade, e o que era mais fácil de apanhar do que uma menina ou um rapaz enterrados na neve?

Quando Chora-Alto pediu para ir com Ghaden e Yaa para a cabana de Ligige’, como podia Aqamdax dizer que não? Os seus olhos dançavam no rosto rosado e brilhante. Podia Aqamdax pedir-lhe que voltasse ao medo e ao vazio que ele sentira nas noites anteriores? Ligige’ tocou na face de Aqamdax antes de sair, e esta sentiu nos dedos da velha um alívio para a sua dor.

Ficas bem aqui sozinha? perguntou Ligige’. Aqamdax tentou sorrir.

Não estou sozinha, respondeu ela, apontando para a prancha de embalar. Leva-Muito estava acordado e os seus olhos escuros brilhavam nas sombras da cabana.

Ah, sim, os bebês fazem boa companhia, mas dão muito trabalho, observou Ligige’.

Hoje estou contente por ter as mãos ocupadas, disse Aqamdax.

Quando eles saíram, Aqamdax ficou sozinha com Leva-Muito na cabana de Sok. Como era estranho, pensou ela, recordando as primeiras luas que vivera com o Povo Rio. Era mulher de Sok, odiava-o e ainda não percebia que começara a amar Chakliux. Depois, fora apenas uma questão de tempo.

Voltou à pele de caribu que estivera raspando com a ajuda de Ligige’ e cantou para Leva-Muito ouvir. A sua canção a fez recuar às cabanas quentes de terra da sua infância, e a sua voz encheu o vazio, como se muita gente estivesse ouvindo-a.

Fechou os olhos e pensou nos dias em que contava histórias ao seu povo. Nessa época, a sua cabana enchia-se e todos estavam desejosos de ouvir as suas palavras. Agora. só o vento a escutava, à espera no orifício da fumaça. Aqamdax levantou a voz para que a sua canção chegasse ao telhado da cabana e o vento, ao ouvi-la, não fosse tentado a aproximar-se mais entrando pelos furos e pelas costuras para se sentar com ela junto do fogo.

 

Ao romper do dia, Ligige’ saiu da cama e vestiu a sua roupa de sair. Suspirou ao ouvir o vento. Como o Inverno seria difícil se as tempestades se sucedessem. Pelo menos as despensas estavam cheias.

Acordou Yaa, pediu-lhe que não deixasse os rapazes afastarem-se da cabana e depois disse-lhe que ia ver as armadilhas e voltar a montá-las, embora talvez isso fosse inútil devido à tempestade que se aproximava.

Não me demoro. Ligige’ olhou para o topo da cabana. Ouves o vento?

Com um vento destes não devias ir, disse Yaa.

Eu montei as minhas armadilhas perto da aldeia respondeu Ligige’. Acabou de atar as raquetes de neve e saiu. Yaa foi atrás dela.

Levas um cão? perguntou ela.

Ligige’ apontou com o queixo para o cão dela, que naquele momento esticava totalmente a correia.

Se não voltares depressa, vou à tua procura.

Não, não vais, ordenou Ligige’. Ficas aqui com o teu irmão e Chora-Alto. É preferível garantires a segurança de dois jovens caçadores do que te preocupares com uma velha.

Ligige’ deu um pedaço de peixe seco ao cão e depois soltou-o. O animal engoliu o peixe inteiro e saiu da aldeia atrás dela. O vento já era forte e soprava de leste, embora a neve não fosse muito intensa.

Ligige’ encaminhou-se para a floresta de abetos. Quando chegou às árvores, os ramos e as sombras escureciam a luz tênue da manhã, mas ficou satisfeita por elas a abrigarem do vento. Dirigiu-se para a zona alagadiça onde na Primavera corria um ribeiro pantanoso. Montara as armadilhas naquele local, nos trilhos estreitos que se embrenhavam no mato. Ela colocava armadilhas em metade do ribeiro, e Caule Torto na outra metade. As duas mulheres mais velhas da aldeia não deviam ir tão longe para montar as suas armadilhas, concluíra Chakliux quando estalara a disputa pela zona entre Ligige’, Caule Torto e Estrela.

A primeira armadilha de Ligige’ tinha uma lebre gorda, coxa e morta, estrangulada pelo laço de tendão que a apanhara.

Ligige’ retirou a lebre, refez o laço e depois seguiu o seu caminho. As armadilhas estavam vazias com exceção da última. Quando viu o que apanhara, deixou cair o cajado e tapou a boca com as mãos.

Recuou, respirou fundo e apanhou o cajado. Deu uma estocada na neve com ele e gritou:

Tu, aí na minha armadilha. Tu, meu tufo de capuz de parka, porque vens visitar uma velha? Sabes que não posso matar-te. Sabes que não posso pôr fim ao teu sofrimento. Julgas que sou parva para atrair uma maldição?

Ligige’ bateu de novo com o cajado no chão e depois reparou que o animal não se mexeu. Estaria morto? Mas como podia uma armadilha para lebres ter apanhado um animal tão possante como um carcaju? Qual o animal que tinha um espírito mais forte? Nem sequer o urso negro exigia mais cuidado e respeito. Ligige’ não queria aproximar-se demais. Talvez ele estivesse apenas a dormindo. Talvez ele fingisse que fora apanhado, servindo de isca para a agarrar. E depois que chance teria ela, velha e encarquilhada como estava? Um carcaju podia partir-lhe as pernas com duas dentadas rápidas. Ligige’ deu um passo em frente, estendeu o cajado, tocou no animal e afastou-se às pressas. O carcaju não se mexeu.

Ela aproximou-se mais e tocou-lhe outra vez. O cão ganiu, enrolou a cauda e tentou esquivar-se.

Fica! exigiu Ligige’. É apenas o tufo do capuz de uma parka. São apenas uns dentes para fazer um colar. Uma cauda para Ghaden costurar ao cinto, uma coisa para o ajudar a correr depressa. Tens medo de quê?

Mas assim que acabou de falar começou a tremer. O que se passava com ela? Estava velha e mesmo assim não tinha tento na língua. E se ela tivesse ofendido o animal? Entoou um cântico e pensou num salmo que ouvira em tempos acerca de um carcaju, mas quando começou a cantar, esqueceu-se de algumas palavras.

Talvez fosse melhor deixar ali o animal e ir buscar um homem na aldeia para o levar. Mas quem? Sok e Chakliux tinham partido, e quem podia confiar em Homem Noturno, em Homem Risonho ou mesmo em Leva-Mais? Ela podia pedir a Espreita-o-Céu ou a Primeira Águia, mas eles eram jovens e o fato de ela preterir os outros seria considerado um insulto. Além disso, Ghaden ou Chora-Alto, um dos dois, dissera que Espreita-o-Céu e Primeira Águia não estavam na aldeia porque haviam ido à caça.

Por fim, cortou a linha, pegou o carcaju, com o laço e tudo, e atou-o ao cinto. Depois, acocorou-se, preparou outra linha, prendeu-a a um laço e ligou-o a vários pauzinhos dispostos de cada lado para manter o laço aberto.

Levantou-se, mas o frio não a deixou endireitar os joelhos e ela teve que dar alguns passos até sentir os pés bem firmes.

Agora vamos para casa, disse ela ao cão. O animal ganiu mas empinou as orelhas e afastou-se da armadilha, dirigindo-se para a floresta. Ligige’ ia a chamá-lo, mas depois pensou melhor. Melhor deixá-lo ir. O animal não devia ultrapassar a zona das armadilhas mais do que era necessário, deixando o seu cheiro de cão. Além disso, o vento não parecia estar mais forte, nem a neve. Ligige’ o teria deixado em casa se não receasse uma tempestade.

A velha encaminhou-se para a aldeia, com a lebre pendurada no cinto de um lado e o carcaju do outro. Os corpos dos animais oscilavam com o seu andar.

Ao sair da floresta, parou duas vezes, uma para urinar e outra para chamar o cão. Não queria que ele fosse à sua frente, nem que começasse a lutar com os cães presos às cabanas. O animal saiu das árvores e foi ao encontro dela, e Ligige’ ficou admirada ao ver a quantidade de neve que ele tinha no pelo.

Porém, quando ela entrou no descampado, sentiu toda a força do vento, viu a neve arrastada por ele e compreendeu a situação. Esperou que o vento amainasse um pouco e a deixasse ver as formas escuras das cabanas da aldeia, pequenas e difusas ao longe, e depois continuou a andar, embrulhou a mão na pele que o cão levava ao pescoço e puxou o capuz para a frente, protegendo a cara. A cada passo, enterrava o cajado no chão à frente dela e obrigava o cão a andar contra o vento.

Yaa ficou à espera no túnel de entrada. Já vira tempestades piores, com ventos e neve tão intensos que nem se viam as cabanas mais próximas. Ainda conseguia avistar a cabana de Caule Torto e a de Estrela, mas já tinha dificuldade em ver a de Aqamdax.

Vestira a parka e as perneiras e calçara as botas e as raquetes de neve. Não sabia se deveria enfrentar a tempestade e ir à procura de Ligige’. Conhecia o lugar onde estavam as armadilhas da velha, mas e se Ligige’ já tivesse regressado à aldeia e resolvido passar por outra cabana, talvez pela de Estrela, para perguntar se Ghaden e ela podiam ficar lá mais uma noite?

Não, ela não devia estar na cabana de Estrela. Yaa estava há muito tempo de vigia no túnel. Teria visto Ligige’ passar. Talvez ela estivesse com Aqamdax. Mas talvez o vento tivesse empurrado Ligige’ para a neve. Ela era velha. Não conseguiria sobreviver mais do que um dia se fosse apanhada numa tempestade. Ao pensar nisso, Yaa sentiu o coração bater com força e um formigueiro nos pés, desejosos de fazerem alguma coisa. Rastejou até a aba interior e olhou para os dois rapazes.

Vou ver se encontro Ligige’, afirmou ela.

Tu tens que ficar conosco disse Ghaden.

Tu não devias sair com este vento, protestou Chora-Alto.

Fica, suplicou Ghaden.

Mordedor ganiu e depois soltou um latido rápido.

Eu vou, proferiu Yaa, e saiu.

Então, Mordedor foi para o túnel.

Leva-o, Yaa, disse Ghaden, espiando-a. Ela olhou para o irmão e suspirou:

Ele vai ser um problema.

Ele te traz de volta se te perderes na tempestade.

Eu não me perco.

Leva-o.

Mordedor, anda, chamou Yaa, ignorando o sorriso debochado do irmão.

Ligige’ agachou-se ao lado do cão e tentou ver através da neve, mas esta atingiu-a com tanta força que ela não viu nada exceto branco. Uma vez, julgou ver uma forma escura, deslocando-se. Gritou, mas não obteve resposta, e perguntou a si própria se os seus olhos não a teriam enganado.

Seguira o caminho da aldeia ao sair da floresta e tinha a certeza de que continuava a andar na mesma direção. Levantou-se, apesar dos protestos dos joelhos, e deu vários passos trêmulos, mas foi obrigada a parar.

Não sabia se deveria largar o carcaju. O animal era pesado e talvez o seu espírito estivesse dando mais força ao vento para que ela deixasse o corpo dele junto da floresta. Tentou desatar a tira de couro que o segurava, mas a neve fizera inchar o nó. “Como vês, ele quer ficar contigo”, pensou Ligige’.

De repente, o vento soprou com mais força, empurrando a neve de tal maneira que esta tinha o efeito de agulhas nas pernas. O cão parou, enroscou-se aos pés dela e Ligige’ tropeçou nele. Obrigou-o a levantar-se e a manter-se de pé, com as duas mãos no dorso do animal e o cajado perdido em algum lugar na neve atrás dela. O cão voltou a parar e ela obrigou-o a levantar-se mais uma vez.

Não podemos estar longe. Já andamos muito disse, mas as suas palavras perderam-se na tempestade.

Caiu antes de ver o espinheiro, e reconheceu onde estava quando se afastou dos ramos rígidos e cobertos de neve.

Ligige’ contornara a aldeia e dirigira-se para a latrina das mulheres. De que lado crescia o espinheiro? A sua mente parecia tão embotada pelo frio como o seu corpo. Do lado norte. Ligige’ pôs-se de quatro e tentou seguir para a aldeia, mas as raquetes de neve não a deixaram avançar e as pernas não lhe permitiram levantar-se.

O cão uivou em sinal de aviso. Andava algum animal ali perto. Seria um urso? Não, não podia ser, com aquela tempestade. Uma raposa? Um lobo? Não era provável. Os animais eram astutos no que dizia respeito às tempestades. Devia ser um cão. Afetados por viverem com as pessoas, às vezes faziam disparates.

Naax! gritou ela, uma palavra conhecida dos cães das aldeias. Naax!

O cão de Ligige’ uivou e latiu. Ouviu-se outro cão latindo e Ligige’ voltou a chamá-lo.

O animal aproximou-se dela. Era Falcão da Neve, uma cadela de Sok. Trazia uma trela presa à coleira entrançada, mas Ligige’ verificou que a coleira fora rebentada com os dentes. Devia estar prenha, pensou Ligige’. Não era raro que uma cadela com uma ninhada na barriga rebentasse a trela e fugisse para a latrina das mulheres, atraída pelo cheiro das fezes e da carne de caribu. Ligige’ aproximou-se do animal, rastejando, estendeu o braço e deu a mão a cheirar a Falcão da Neve. Apesar de os cães das aldeias lutarem com freqüência, não era provável que houvesse problema entre um macho e uma fêmea, e, com dois cães para a aquecerem, Ligige’ conseguiria sobreviver à tempestade. Arrastou-se para a parte espinhosa do amieiro, fez um monte de neve nas suas costas e chamou os cães. O cão dela obedeceu e enroscou-se a seu lado, mas a cadela manteve-se afastada, e a neve quase impedia Ligige’ de ver o animal.

Falcão da Neve, anda! Aqui nos aqueceremos todos juntos, disse Ligige’.

Ligige’ tirou uma das pesadas luvas e enfiou a mão na manga da parka. Como sempre que saía da aldeia, levava várias tiras finas de carne defumada na parka. Era carne boa, da alcatra, besuntada de gordura. Ligige’ detestava dá-la a um cão, mas era preferível perder um pouco de carne do que morrer congelada. Puxou de uma tira e mostrou-a ao animal.

Falcão da Neve uivou. Ligige’ estava cansada e com frio, furiosa consigo própria por ter ido espiar as armadilhas e furiosa com a cadela. Porque ela recusaria comida?

Cadela estúpida proferiu Ligige’ em voz baixa. Estúpida, estúpida...

Estendeu-lhe a carne, tentou atraí-la, avançando o mais que podia, mas as raquetes de neve ficaram presas em alguma coisa que estava enterrada na neve e Ligige’ caiu de cabeça.

Levantou-se, a praguejar, mas depois viu que agarrara um punhado de neve ensangüentada. Falcão da Neve ganiu, aproximou-se dela e começou a escavar. Ligige’ afastou a neve e soltou um grito quando viu o rosto de Estrela, lívido e gelado, por baixo das suas mãos.

 

Yaa andou de cabana em cabana à procura de Ligige’, mas ninguém a vira. Por fim, dirigiu-se às armadilhas de Ligige’ e descobriu o rasto da velha, as pegadas das raquetas de neve entre as árvores, quase cobertas; porém, na floresta de abetos, a neve arrastada pelo vento apagara-as.

Mordedor seguia junto dos pés de Yaa, e aproximava-se tanto que às vezes ela tropeçava nele. De regresso à aldeia, avançavam a custo através da tempestade e, a cada passo, Yaa receava perder de vista as cabanas e penetrar na tundra. Mas de repente a cabana de Caule Torto surgiu à sua frente, escura e disforme no meio da neve, Yaa entrou e foi recebida por Dii, sobrinha de Caule Torto. Obrigaram-na a beber uma tigela de caldo quente e depois, a conselho de Caule Torto, Yaa voltou a sair e a perguntar em todas as cabanas.

Quando chegou à cabana de Aqamdax, não conseguiu suster as lágrimas.

Ligige’ perdeu-se, soluçou Yaa, enquanto Aqamdax a puxava para dentro e lhe sacudia a neve da parka. Eu devia tê-la obrigado a ficar conosco.

Julgas que ela teria te dado ouvidos? perguntou Aqamdax. Tu fizeste o que podias. Talvez ela tenha ficado junto das armadilhas.

Já fui lá, disse ela, perante o olhar admirado de Aqamdax.

Foste lá, sozinha?

Tenho ido a locais piores respondeu Yaa.

Aqamdax concordou, com um aceno de cabeça, lembrando-se de que, uma vez, Yaa viera da aldeia de Rio Próximo para aquela, à procura de Ghaden.

Talvez agora Ligige’ já tenha voltado para a cabana dela, disse Aqamdax. Eu vou lá contigo. Creio que a encontraremos lá.

Aqamdax atou Leva-Muito à tábua de embalar, vestiu a parka e calçou as raquetes de neve. Embrulharam o bebê numa pele de lebre e Aqamdax pegou-lhe no colo, inclinada sobre a tábua para o proteger da tempestade.

Na cabana de Ligige’, Ghaden e Chora-Alto brincavam com uns pauzinhos marcados. O cão entrou de rompante na cabana, sacudindo a neve e o gelo do pelo e espalhando os pauzinhos.

Aqamdax interrompeu os protestos de Ghaden.

Ligige’ ainda não voltou? perguntou ela.

Ainda não, respondeu Chora-Alto.

Ghaden aproximou-se de Yaa e abraçou-a, e depois fez o mesmo a Aqamdax, que retribuiu e pendurou a tábua de embalar num dos postes. O bebê começou a chorar.

Eu vou dar-lhe de mamar, informou Aqamdax a Yaa. Depois vou ver se consigo encontrá-la. Ligige’ não é imprudente. Talvez tenha aberto uma cova na neve e esteja tão quente como nós.

Ela levou um cão informou Ghaden, passando um braço pelo pescoço de Mordedor e obrigando o cão a sentar-se a seu lado.

Então, está bem, disse Aqamdax.

Mas Yaa reparou no ar atormentado de Aqamdax e assustou-se.

Mais uma vez, Dii ouviu alguém no túnel de entrada. Durante uma tempestade, a maioria das pessoas ficava nas suas cabanas. Era uma imprudência sair. Até o fato de uma mulher sair da sua cabana só para ir à despensa podia custar-lhe a vida. Quem não ouvira contar as histórias de Filha-do-Frio e de Mulher Pássaro? Ambas tinham morrido em tempestades. Ainda se via Filha-do-Frio, transformada empedra pelos ventos da tempestade, agachada à beira do caminho que ia dar ao Lago do Avô.

Talvez seja Ligige’, sugeriu Caule Torto, e Dii esperava que ela tivesse razão. Que chances tinha uma velha no meio de uma tempestade como aquela, sobretudo se durasse dois ou três dias?

Porém, foi Homem Noturno que entrou na cabana. Por delicadeza, Dii levou-lhe uma tigela de caldo. Não tinham muito, ela e Caule Torto, mas não morreriam de fome. As pessoas eram generosas e partilhariam a sua carne, embora Dii soubesse que a tia era uma mulher orgulhosa. Seria Dii a pedir comida se esta lhes faltasse. No intervalo das tempestades, tinham tido sorte com as armadilhas, que lhes haviam rendido pelo menos uma lebre quase todos os dias, e Furador prometera levar Dii a um local onde ela descobrira viburnos carregados de bagas. Seria preferível procurar ptármigas, aqueles pássaros gordos e brancos como o Inverno? Eles saíam tão depressa das suas tocas na neve, às vezes em bandos tão grandes que era impossível contá-los, que uma mulher com uma rede, um pau ou umas boleadeiras conseguia apanhar suficientes para sustentar a família inteira. Dii já sentia o sabor daqueles pássaros fervendo na panela de Caule Torto ou assando ao fogo, pingando gordura na lareira.

Andas à procura de Ligige’? perguntou Caule Torto, quebrando as regras da delicadeza e sem esperar que Homem Noturno, um caçador, falasse em primeiro lugar.

Ele acabou de beber o caldo, deu um estalido com a boca e depois respondeu:

Ando à procura da minha irmã. E de Ligige’ também, se a vir. Mas a minha irmã saiu da nossa cabana antes de eu acordar esta manhã e ainda não voltou. Ela é pessoa para andar fazendo visitas e às vezes não tem muito juízo, mesmo durante as tempestades. Julguei que ela estivesse aqui com a Dii.

Caule Torto levantou as mãos e esticou os dedos.

Há dois ou três dias que ela não vem aqui.

A velha olhou para Dii, erguendo as sobrancelhas para pedir confirmação.

Três dias, esclareceu Dii.

Homem Noturno não despira a parka e Dii começou a sacudi-la da neve.

Se ela aparecer, obriguem-na a ficar aqui. Não a deixem sair para a tempestade.

Caule Torto concordou e acompanhou Homem Noturno até o túnel, onde este calçou as raquetes. Dii ficou lá dentro, limpou a tigela dele com os dedos e depois lambeu-os. Era simpático da parte de Caule Torto dizer que eles obrigariam Estrela a ficar na cabana, mas a mulher teria um ataque de fúria e desataria a chorar como era seu hábito. Seria difícil obrigá-la a ficar se ela não quisesse. Ah, talvez ela não viesse. Talvez, com aquela tempestade, ela tivesse se abrigado em outra cabana da aldeia.

Aqamdax acabara de dar de mamar a Leva-Muito quando Homem Noturno entrou na cabana de Ligige’. Entrou rudemente, sem raspar, sem pigarrear nem gritar, e por isso, durante algum tempo, Aqamdax nem olhou para ele e brincou com o bebê que tinha ao colo.

Por fim, quando ele falou, Aqamdax percebeu que estava inquieto e lamentou tê-lo ignorado.

Estrela esteve aqui? perguntou ele.

Ela esteve aqui antes de Yaa e eu chegarmos? perguntou Aqamdax a Ghaden e a Chora-Alto.

Hoje não, nem ontem à noite, declarou Ghaden. Ligige’ foi ver as armadilhas disse Yaa a Homem Noturno. Ela já devia ter voltado. Viste-a?

Não, mas uma velha não devia ter feito uma coisa destas.

A resposta dele foi ríspida, e Aqamdax percebeu que ele estava preocupado com a irmã, mas mesmo assim não pôde deixar de dizer:

Não foi Yaa que lhe disse para ir. Porque estás gritando com ela? Se Estrela aparecer nesta cabana, com certeza a levo a casa.

Deixa-a ficar aqui, ordenou ele. Olhou para Yaa e acrescentou: Se eu encontrar Ligige’, trago-te.

Ela levou um cão, gritou Ghaden quando Homem Noturno saiu da cabana.

Aqamdax vestiu a parka, atou as botas e entrou no túnel.

Vou espiar as cabanas outra vez e depois vou à latrina das mulheres disse ela a Yaa. Não saias a não ser para limpar a chaminé ou ir buscar lenha, e, mesmo assim, leva o Mordedor contigo.

Aqamdax recebeu a mesma resposta em todas as cabanas. Ninguém vira Ligige’ nem Estrela. Deixou para o fim a cabana de Chamariz, garantindo-lhe que Leva-Muito estava são e salvo e que tinha leite suficiente para ele.

As tempestades deste Inverno são diferentes, comentou Chamariz. Talvez Sok tivesse razão ao dizer que a mulher morta estava chamando-o. É por isso que Leva-Muito me preocupa. E se ela tentar levá-lo? Quem me dera que o meu marido estivesse na aldeia. Para quê arriscar-se a ir à caça quando as tempestades se seguem umas às outras? Temos carne que chegue. E se a mulher de Sok tenta chamar também o meu marido?

Sok diz isso porque está desgostoso, observou Aqamdax, mas foi como se o vento que fustigava as paredes de pele de caribu da cabana de Chamariz lhe entrasse no peito e lhe acalmasse o coração com o frio.

Primeiro, Sok e Chakliux tinham-nas deixado, e depois Espreita-o-Céu e Primeira Águia. Agora, eram Estrela e Ligige’. Neve-no-Cabelo teria esperança de levar toda a aldeia com ela para o mundo dos espíritos?

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

K’os abriu a aba e ficou admirada ao ver Folha Vermelha lá fora.

Vim falar contigo, disse Folha Vermelha. K’os esboçou um sorriso.

Como é que sabias que o meu marido não estava? perguntou ela.

Tenho estado observando a tua cabana.

K’os fez sinal a Folha Vermelha para que a seguisse.

Dança-no-Gelo não suporta ficar muito tempo no mesmo lugar. Esta com Marta Gorda, gosta de brincar atirando ossos.

Não tens receio de que ele perca toda a tua carne no jogo?

K’os deu uma gargalhada.

Eu tenho métodos de a reaver.

K’os viu-a despir a parka e pendurá-la numa das estacas do poste.

Onde está Daes, a tua filha? perguntou ela, sorrindo quando viu Folha Vermelha encolher-se ao ouvir o nome.

Cen está tomando conta dela. Eu disse-lhe que ia buscar lenha.

Estou admirada por ele te ter deixado sair com esta tempestade.

Folha Vermelha levantou a cabeça como se escutasse o vento.

Está melhor do que estava disse ela. Agora não está nevando. Agora só há vento.

K’os fez um sinal afirmativo mas não disse nada. Não tencionava oferecer comida à mulher. Para quê fingir-se amável? Sabia o motivo pelo qual Folha Vermelha viera.

Quando é que o teu marido vai à aldeia de Rio Primo? perguntou Folha Vermelha.

K’os encolheu os ombros.

Não vai com esta tempestade, respondeu ela.

Não há nada que eu possa oferecer-lhe para ele não dizer a Sok onde é que eu estou?

K’os sorriu. Era a primeira vez que Folha Vermelha admitia quem era.

Nada, disse K’os. Ele tem medo de ser amaldiçoado. Eu já te expliquei.

Tenho pensado no que disseste. Tens razão. Se eu partir com a minha filha, morreremos as duas. Se eu for sozinha, Cen irá atrás de mim. Folha Vermelha levantou a mão para afastar uma madeixa de cabelo da cara e K’os viu-lhe os dedos tremendo. Tens alguma coisa... A voz de Folha Vermelha fraquejou. Há algo que possas dar-me para eu comer e morrer?

K’os arregalou os olhos como se ficasse admirada, mas já esperava o pedido de Folha Vermelha.

Eras capaz de te matar? perguntou ela em voz baixa.

Se tiveres alguma coisa que faça com que a morte pareça o resultado de uma doença.

Durante algum tempo, K’os ficou olhando para a lareira, vendo as chamas a devorarem a lenha.

Talvez eu tenha alguma coisa. Mas não poderias amamentar a tua filha, caso contrário o veneno passaria para ela através do teu leite.

K’os levantou-se, trouxe a sua bolsa de pele de lontra do rio e tirou um saquinho atado com tendão tingido de vermelho, com quatro nós.

Isto demora pouco, afirmou ela. Provoca-te cólicas no estômago e vômitos, mas dói pouco. Se tomares uma pitada no primeiro dia e depois um pouco mais no seguinte... K’os fingiu que estava pensando e depois continuou: Sim, isso seria o indicado, e Cen julgaria que estavas doente. K’os ofereceu o saquinho a Folha Vermelha. Queres?

Folha Vermelha ia a pegá-lo, mas, como se fosse uma criança brincando, K’os puxou-o.

Julgavas que eu te daria em troca de nada? perguntou K’os reparando no súbito cansaço no olhar de Folha Vermelha.

Disseste que eu não tinha nada que tu quisesses, respondeu Folha Vermelha.

Talvez eu estivesse enganada disse K’os. Disseste que tinhas peles de lobo.

E tenho. Se as quiseres, são tuas.

Parece-me que isto vale algumas peles de lobo, insistiu K’os devagar. Dás-me a tua filha?

Folha Vermelha olhou bem de frente para K’os e respondeu:

Preferia ser eu própria a envenená-la do que te dá-la proferiu ela. Levantou-se e puxou o capuz para a cara. Parou antes de entrar no túnel e disse a K’os: Não te esqueças de que ela tanto é filha de Cen como minha.

K’os inclinou a cabeça como se aceitasse a derrota.

Venham então as peles de lobo, mas o veneno fica aqui. Diz-me quando estiveres pronta.

Amanhã, trarei as peles de lobo, declarou Folha Vermelha.

K’os não respondeu até Folha Vermelha sair. Mas depois, como se a mulher ainda estivesse na cabana, proferiu:

Julgas que Cen me impedirá de ficar com a tua filha? Julgas que ele dirá que não àquela boa mulher, Mosquito-Pólvora, quando ela se oferecer para tomar conta da criança? Apesar de ela ser avó, conservou o leite amamentando os bebês desta aldeia durante muito tempo, sabes? É uma pena que Mosquito-Pólvora adoeça e morra quando Cen andar numa das suas viagens de negócios. Então, quem tratará melhor da criança do que uma mulher que não tem filhos? “Ah, Gheli, há tantas maneiras de uma mulher arranjar uma filha!

 

Ligige’ sentou-se ao vento, com o bebê gelado ao colo e ficou à espera da morte. Os cães aninharam-se junto dela. mas o seu calor não era suficiente para afastar o frio que a entorpecia. Os corvos tinham arrancado os olhos de Estrela. As raposas haviam-lhe dilacerado a língua, entrando numa boca que a morte deixara aberta. Não tinham tocado no bebê. Este era lindo, com pestanas e cabelos escuros que contrastavam com a pele branca e enregelada. Era uma menina. e Ligige’ lamentou a sorte dela e do pai. Chakliux perdera muitos filhos: o primeiro filho; depois, o filho de Aqamdax embora não fosse do seu sangue, o menino decerto seria tratado como se fosse dele e agora esta, uma filhinha perfeita.

Quem matara Estrela enfiara-lhe uma faca na garganta As mãos dela estavam ensangüentadas. Ela devia ter cambaleado, agarrada ao pescoço. Depois de ela cair, o assassino abrira-lhe a barriga e tirara a criança. Havia lendas de gigantes nuhu ’anh que comiam pessoas no Inverno Talvez um nuhu ’anh tivesse feito aquilo. Ninguém da aldeia mataria assim. Mas depois Ligige’ ouviu a voz da razão que lhe falou baixinho e ela não quis ouvir. Um nuhu ’anh teria comido Estrela e o bebê. Qual o nuhu ’anh que não matava para comer?

Ligige’ levantou a cabeça e viu uma forma escura caminhando na sua direção através da neve. Teve medo, mas não gritou. O cão, que ensurdecera com a velhice, estava enroscado, com o nariz protegido pelo pelo grosso da cauda, mas Falcão da Neve uivara.

Vai, disse Ligige’ à cadela. Não é preciso lutares. Os teus cãezinhos não tardam a nascer. Nós estamos velhos, o meu cão e eu. Vai.

Falcão da Neve levantou-se como se tivesse entendido as palavras de Ligige’, mas depois encostou-se às pernas da velha, como se quisesse protegê-la e ao bebê morto. A coragem do cão afastou em parte o medo de Ligige’. A velha tirou um canivete da parka e virou a lâmina frágil para o vento.

O bebê é teu, assim como esta mulher aqui ao pé de nós. Mas eu não irei contigo, nem estes cães gritou ela.

Ligige’?

Era uma voz de homem, que não denotava surpresa. Com certeza que quase todos os nuhu ’anh eram homens, mas a voz não era tão rouca como ela esperava.

Ligige’! Ligige’! gritou ele.

Então Ligige’ viu-lhe a cara. Era Homem Noturno, e, com o alívio, Ligige’ sentiu-se de repente muito velha, muito cansada.

Ando à tua procura, e da minha irmã. Ligige’ apertou o bebê nos seus braços.

Encontraste-nos disse ela em voz baixa. Homem Noturno acocorou-se ao lado dela.

Estás ferida? perguntou ele, mas depois olhou para o bebê nos braços da velha.

Ligige’ chamou-lhe a atenção para o sangue. O som estrangulado na garganta de Homem Noturno transformou-se num grito que atravessou a neve como uma lâmina.

Reuniram-se na cabana de Estrela, à volta da mulher morta. O bebê estava a seu lado, nu, ainda com marcas de sangue. A parka de Estrela tapava-lhe a barriga aberta, mas de resto a mulher estava como a morte a deixara, sem olhos e sem língua. Todas as velhas que entravam pediam para lhe limpar o corpo, para lhe costurar as pálpebras, para lhe atar o queixo, para lhe escovar a parka, pelo menos para lhe procurar as botas da morte, enfeitadas com contas trabalhadas e agulhas de porco-espinho. Todas as mulheres as tinham, não é verdade? E todos os homens.

Mas Homem Noturno afastava-as, mostrava-lhes os dentes, gritava-lhes e apontava com dedos rudes o local onde se deviam sentar.

Aqamdax ignorou Homem Noturno quando ele se dirigiu a ela do outro extremo da cabana. Sentou-se junto do cadáver, concedendo-lhe uma certa privacidade de esposa-irmã, como se Estrela estivesse apenas a fazendo as suas necessidades durante uma caçada e precisasse de esconder-se dos olhares dos homens.

Quando todos se encontravam na cabana de Estrela, Aqamdax reparou no pequeno grupo que formavam sem Chakliux, Sok e Neve-no-Cabelo, sem Espreita-o-Céu e Primeira Águia, e agora sem Estrela. Olhos Grandes estava sentada à entrada, sozinha, embrulhada num cobertor de pele de lebre, torcendo tendões, de olhos postos no trabalho.

Aqamdax sentia a presença de Estrela. Talvez o espírito dela ainda estivesse agarrado ao seu pobre corpo, demorando-se para ter a certeza de que a filha iria com ela para o mundo dos espíritos. O povo de Aqamdax, os Primeiros Homens, sabiam que esse local era aquilo a que o Povo Rio chamava Yaykaas, aquelas luzes dançantes que coloriam o céu do Norte. Mas o Povo Rio parecia ter apenas uma idéia vaga do lugar para onde iam os seus mortos. Uns acreditavam numa coisa, outros noutra. Nenhum deles adorava aquele espírito criador que os Primeiros Homens sabiam estar acima de todas as coisas. Não era uma boa maneira de viver, pensou ela. Como é que os espíritos sabiam para onde ir quando morriam?

Talvez fosse por isso que Estrela parecia estar com eles. Ou talvez ela quisesse apenas viver e não pensasse na nova vida que a esperava.

Aqamdax enfiara Leva-Muito numa alça debaixo da sua parka. Desatou a alça e o pôs ao seu colo. Devia tê-lo levado na tábua, mas quando Dii a encontrara no meio da tempestade, lhe anunciara a morte de Estrela e lhe garantira que Ligige’ estava viva, Aqamdax só pensara em ir juntar-se às mulheres na cabana de Estrela para preparar o cadáver.

Com a pressa esquecera-se da tábua; esquecera-se de levar comida e uma parka seca a Ligige’. Mas Caule Torto trouxera outra parka, e outras mulheres tinham comida. Talvez bastasse que ela ali estivesse, vigiando o corpo da esposa-irmã.

Ghaden sentou-se junto dos homens, com Mordedor ao lado. Preferia estar com Aqamdax, mas ela sentara-se junto de Estrela, e por isso talvez fosse preferível que Homem Noturno o tivesse mandado ficar ali. Quando Daes, a sua primeira mãe, morrera, Ghaden tivera vontade de morrer também para poder ir com ela para o mundo dos espíritos. Mas não queria ir com Estrela mãe, apesar de não o ser e tentou pensar noutras coisas para ela não se lembrar que ele estava ali, um filho que era quase um caçador e que podia ir com ela.

A princípio, todos se calaram, como se estivessem à espera. Mas por fim, uma das velhas começou a entoar um cântico fúnebre, e as outras acompanharam-na. Aqueles cânticos faziam sempre Ghaden estremecer. Cerrou os dentes e pensou que um homem não devia assustar-se com os sons do luto.

Pelo menos, os cânticos eram conhecidos, um sinal de que as coisas eram feitas com respeito. Não como aquela morte. Qual o animal que teria arrancado o bebê da barriga de Estrela sem o comer? Ouvira Chora-Alto e Esquilo falando em voz baixa de nuhu ’anh, mas os nuhu ’anh apavoravam-no. Qualquer pessoa da aldeia podia ser nuhu’anh sem ninguém saber. Eles pareciam pessoas normais, com vidas normais, mas nos dias frios de Inverno transformavam-se em nuhu’anh e matavam e comiam gente.

Ghaden estava sentado do lado da lareira oposto às mulheres. Apesar de Aqamdax ocultar a maior parte do corpo de Estrela, Ghaden via-lhe os cabelos saindo do capuz. Pôs-se de cócoras. Lembrou-se de que a sua primeira mãe se sentava assim, e Aqamdax fazia o mesmo. Ghaden cruzou os braços em volta dos joelhos, baixou a cabeça e escondeu os olhos.

Quando entrara na cabana, olhara para Estrela e vira que os olhos dela tinham desaparecido. Isso significaria que o seu espírito agora era cego? Tentaria ela tirar os olhos a alguém antes de abandonar a aldeia? Ghaden começou a ter dores nos olhos. Imaginou-se na situação de Estrela, com buracos rosados no local em que deviam estar os olhos, como bocas, pequenas e desdentadas, abertas, como se Estrela tentasse engolir tudo o que podia antes de ser amortalhada.

Sou um caçador, afirmou Ghaden, com aquela voz que vivia dentro da sua cabeça. Os caçadores precisam dos olhos. Descobre outra pessoa qualquer. Um animal. Os velhos dizem que as raposas vêem melhor do que nós. Vai buscar olhos de raposa.

Pareceu-lhe ouvir a voz de Estrela responder-lhe, mas a sua conversa foi interrompida pelos gritos de Homem Noturno. As mulheres calaram-se e Chora-Alto aproximou-se mais de Ghaden. Mordedor uivou e Ghaden tapou a boca do cão com a mão. Para quê atrair as atenções de Estrela? Ela podia querer levar os olhos de Mordedor. E depois como é que Ghaden iria à caça?

Vejam esta mulher, a minha irmã! gritava Homem Noturno, repetindo sucessivamente as mesmas palavras. Vejam esta mulher, a minha irmã! Vejam esta mulher, a minha irmã!

Falava cada vez mais depressa, até que as palavras já não faziam sentido e pareciam as ladainhas de um curandeiro.

Então a sua voz abrandou e alterou-se, e Ghaden entendeu o que Homem Noturno estava dizendo: “Vejam esta criança, a filha da minha irmã!” Depois, também estas palavras saíam da boca de Homem Noturno e rodopiavam até chegarem ao fogo, raspando na parede interior da cabana como uma faca a descarnar uma pele.

Por fim, Homem Noturno começou a falar normalmente, algumas vezes aos gritos, mas pelo menos com palavras que Ghaden conseguia entender.

Olhem para elas. Estão mortas. Não por uma tempestade ou por um animal. Ouço alguns de vocês a falarem de nuhu ’anh em voz baixa. Qual o nuhu ’anh que mata mas não come? Qual o nuhu ’anh que se deixaria afugentar por uma velha e um cão? Deixei as duas, a minha irmã e a sua filha, tal como Ligige’ as encontrou. Olhem para a minha irmã. Reparem na garganta dela. Todos conhecemos a marca de uma faca. Olhem. Vejam o golpe.

Chora-Alto teve a coragem de se levantar para ir ver a garganta de Estrela. Os caçadores que o rodeavam fizeram o mesmo, mas Ghaden ficou onde estava, com os braços em volta dos joelhos, e, quando Mordedor também se levantou, Ghaden puxou-lhe a correia de couro entrançado e obrigou-o a deitar-se outra vez.

Os homens começaram a murmurar, e Ghaden sentia o medo nas suas palavras, a raiva. Queria tapar os ouvidos, mas não se mexeu. Estrela estava ali com eles. Será que não viam isso? Para quê atrair as atenções dela?

Lembram-se da mulher que matou a mãe de Chakliux? perguntou Leva-Mais. Ela foi morta da mesma maneira. Com uma faca.

A mulher de Sok, que agora está morta, fez isso ao tentar fugir, recordou Homem Risonho. Acham que ela voltou para matar a Estrela?

Quem sabe? Há histórias sobre essas coisas disse Leva-Mais.

O velho olhou para Aqamdax, e Ghaden percebeu que Leva-Mais queria que ela lhe contasse uma dessas histórias, mas fechou os olhos com força e gritou mentalmente a Aqamdax que não dissesse nada, que ficasse sentada, que não se mexesse.

No entanto, ainda que ela quisesse falar, a voz de Homem Noturno sobrepunha-se à de qualquer pessoa.

A mulher de Sok morreu. Não foi ela que fez isto. Os cães a teriam visto. Nós teríamos ouvido. Alguém ouviu os cães latir esta manhã, cedo, quando ainda estava escuro?

Como poderiam vê-la com esta tempestade? perguntou Leva-Mais.

Homem Noturno ignorou-o.

Julgam que foi algum espírito que fez isto? Não. Foi alguém desta aldeia que a matou.

Que motivo teria algum de nós para a matar? perguntou Caule Torto. Ela não nos tinha feito nada. Precisávamos do filho dela.

Caule Torto apontou com o queixo para Ghaden e Chora-Alto, depois virou a cabeça para Yaa e Leva-Mais, para Esquilo e para Pau Preto, sentados ao lado da mãe.

Vê como são poucas as crianças que temos. Uma aldeia pode sobreviver sem crianças?

Talvez fosse um dos de Rio Próximo, sugeriu Leva-Mais. Eles odeiam-nos.

Há essa possibilidade, mas se eles quisessem matar as nossas mulheres porque não nos teriam atacado quando voltamos do acampamento de caça? disse Homem Noturno. Teria sido fácil matarem-nos, carregados como vínhamos, com os nossos fardos. Ou então, porque não atacaram a aldeia quando nós andávamos caçando? As nossas velhas não poderiam ter se defendido. Se os de Rio Próximo quisessem matar-nos ou assaltar as nossas despensas, porque não viriam à nossa aldeia quando elas estavam cheias de salmão do Verão e as nossas velhas estavam aqui sozinhas?

Homem Noturno olhou para Ligige’ e perguntou:

Tu foste ver as tuas armadilhas esta manhã. Avistaste alguém?

Ligige’ despertou, como se tivesse estado dormindo enquanto ele gritava. Falou com uma voz grossa e com palavras difíceis de entender:

Depois de ver as minhas armadilhas, só vi o meu cão, e depois a cadela, Falcão da Neve, e essas mortas.

Homem Noturno piscou-lhe o olho.

Só viste dois cães, o teu e Falcão da Neve. Falcão da Neve é a cadela de Sok, não é?

De Sok ou de Chakliux. Não sei de qual, respondeu Ligige’.

De Sok, respondeu Aqamdax tranqüilamente, e Ghaden engoliu em seco e abanou a cabeça, mas ela não reparou.

Sok não está, mas tu vives na cabana dele, afirmou Homem Noturno a Aqamdax.

Fica calada, fica calada proferiu Ghaden em surdina. Fica calada, Aqamdax. Olha que Estrela te ouve. Olha que ela rouba-te os olhos.

Aqamdax, porém, respondeu, em tom alto e com uma voz clara:

Sim, eu vivo aqui com o meu marido e os filhos de Sok. Tomo conta dos cães.

Deixaste Falcão da Neve sair esta manhã? Soltaste-a em plena tempestade?

Não. Ela conseguiu roer a correia. Eu nem sequer soube que ela tinha fugido a não ser quando Ligige’ a trouxe.

Homem Noturno voltou-se para Ligige’ e disse:

Tu saíste no meio da tempestade, tia. Porquê?

Para ir ver as minhas armadilhas. Uma velha não sobrevive durante o Inverno se não der uma ajuda na sua alimentação.

Levaste um cão. É costume levares um cão quando vais ver as tuas armadilhas?

Não, mas eu precisava dos olhos dele com esta tempestade. E se me perdesse, sabia que ele me aqueceria até a tempestade passar.

Achas que a maior parte das pessoas levaria um cão se tivesse que sair no meio de uma tempestade? perguntou Homem Noturno.

Ligige’ franziu a testa.

Eu só sei o que eu faria. Como queres que te diga o que fariam os outros? Ligige’ apontou para o círculo de pessoas que se encontravam na cabana. Pergunta-lhes a eles, não a mim.

Ghaden observava Homem Noturno e viu que ele estava zangado com Ligige’. Porquê? Ela é que encontrara Estrela, mas porque estava ele zangado com isso? Alguém tinha que encontrá-la.

Caule Torto, levarias um cão? perguntou Homem Noturno.

Eu não sairia durante uma tempestade, respondeu Caule Torto.

Se fosses obrigada a isso. Se não houvesse alternativa, insistiu Homem Noturno.

Caule Torto encolheu os ombros.

Talvez. Como posso eu saber o que faria?

Eu levaria um cão, declarou Leva-Mais. E creio que a maior parte das pessoas faria o mesmo.

Homem Noturno sorriu, mas não foi um sorriso de felicidade. Ghaden sentiu as pernas tremendo e teve que cruzar os braços para se manter quieto.

Talvez Falcão da Neve não tenha ido sozinha à latrina das mulheres. Porque sairia um cão no meio de uma tempestade? Onde está a cadela? perguntou Homem Noturno a Chora-Alto.

Prendi-a outra vez à nossa cabana, respondeu Chora-Alto, e Ghaden, sentado ao lado dele, sentiu-o começar a tremer.

Vai buscá-la.

Já basta que nos tenhas pedido a todos para virmos à tua cabana com esta tempestade, disse Ligige’. Agora queres que este rapaz se arrisque a sair sozinho? Pedes-lhe isso porque o pai dele não está aqui para o defender ou por ele ser de Rio Próximo? Se queres a cadela, vai tu buscá-la.

Quem és tu, velha, para me dizeres o que devo fazer? perguntou Homem Noturno. Quem és tu, uma mulher da aldeia de Rio Próximo, para falares dessa maneira a um caçador do povo Primo?

Quem és tu, um homem que passa o dia sentado a lamentar-se, para mostrar tal desrespeito por uma velha? respondeu Ligige’. Exibiu a lebre que ainda trazia à cintura, e depois o carcaju. Pelo menos, eu trago carne para casa.

Vários caçadores assobiaram e as mulheres taparam a boca.

Falas com atrevimento para uma velha que não tem quem lhe pertença nesta aldeia. Esqueceste que os teus sobrinhos nos deixaram? Homem Noturno apontou para o topo da cabana. Ouves o vento? Quem sabe se eles voltarão?

Reza para que as tuas palavras fiquem nesta cabana, proferiu Aqamdax. O que faremos nesta aldeia sem eles?

Em seguida, para surpresa de Ghaden, Homem Noturno atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Não foi uma gargalhada benigna. Mordedor começou a ganir e Ghaden pôs de novo a mão no focinho do cão.

De repente, Aqamdax levantou-se.

Como tu tens medo da tempestade, eu vou buscar Falcão da Neve.

Ghaden ficou à espera, pensando que Homem Noturno iria, mas ele não se mexeu. Aqamdax entregou o bebê a Ligige’ e pôs o capuz.

Eu e Mordedor vamos contigo, ofereceu-se Ghaden, sem se importar que as suas palavras inesperadas despertassem a atenção de Estrela. Ela era preguiçosa e nem um espírito estaria disposto a acompanhá-los durante uma tempestade.

Tu ficas aqui, ordenou Homem Noturno. Ghaden olhou para ele, surpreendido. Porque se preocuparia ele com o que Ghaden fazia?

Como se lesse os pensamentos do rapaz, Homem Noturno disse:

A minha defunta irmã aceitou-te como filho. Agora és meu.

Então Yaa levantou-se e disse:

Nós não te pertencemos. Agora que a tua irmã morreu, pertencemos à nossa irmã, Aqamdax. Fazemos o que ela disser.

Aqamdax olhou para Homem Noturno.

Ghaden, tu ficas aqui, ordenou ela. Mas eu gostaria de levar o Mordedor comigo.

Ghaden entregou o cão a Aqamdax e viu-os sair da cabana. Depois sentou-se ao lado de Chora-Alto e ouviu Homem Noturno falando. As palavras de Homem Noturno misturaram-se com as lágrimas quando ele falou da irmã, mas a pouco e pouco o choro abandonou a sua voz, e Ghaden percebeu que ele não falava de Estrela nem de quem a tinha matado, mas sim do povo de Rio Próximo, e daqueles que tinham morrido na luta. Falava dos homens de Primo que tinham dado as suas vidas, das mulheres de Primo que ainda viviam na aldeia de Rio Próximo, perdidas para as suas famílias. Falava de cabanas incendiadas e de despensas vazias. Falava de vingança.

 

Aqamdax e Mordedor voltaram com Falcão da Neve. Os dois cães ganiram até chegarem à cabana de Homem Noturno. O vento mudara de direção outra vez e soprava agora do sul. Um bom sinal. Muitas vezes, as piores tempestades começavam com um vento vindo de leste, que mudava gradualmente para norte e depois para oeste.

Mordedor abriu a aba da cabana de Estrela com o focinho e Aqamdax empurrou Falcão da Neve para o túnel. A cadela abocanhou-a, mas Aqamdax falou-lhe com ternura. Desde pequena que Falcão da Neve fora treinada para ficar ao ar livre. Aqamdax, com a mão no dorso do animal, sentia a cadela rosnando e sabia que ela estava assustada por ser obrigada a entrar no túnel escuro e baixo de uma cabana. Quando Aqamdax descalçou as raquetes, ouviu a voz de Homem Noturno lá dentro. As suas palavras eram ásperas e ruidosas, cheias de ódio. Era um idiota, mas mesmo assim Aqamdax compreendia a fúria dele. Alguém lhe matara a irmã. Pensando em todas as pessoas que viviam na aldeia Aqamdax não imaginava nenhuma delas a fazer tal coisa. Fora difícil acreditar que Folha Vermelha matara alguém, mas a matança continuara, roubando mesmo a vida a Mulher Diurna. Por isso, talvez Folha Vermelha não tivesse morrido. Talvez ela tivesse conseguido sobreviver e matado Estrela. Mas porquê?

Aqamdax imaginava K’os fazendo tal coisa, mas K’os matava com mais sutileza. Uma mulher tão conhecedora de plantas como ela usaria um veneno, erva-de-são-cristóvão, por exemplo. Talvez Furador tivesse razão. Aqamdax ouvira falar de nuhu ’anh em voz baixa. Os Primeiros Homens não tinham histórias de nuhu’anh, mas Aqamdax ouvira histórias de Chakliux daqueles gigantes terríveis, que se alimentam de outros homens.

Mordedor bateu com a pata na aba da porta e Aqamdax afastou-a. O cão entrou e passou por cima de várias pessoas até encontrar Ghaden. Sacudiu o pelo molhado e em seguida deitou-se ao lado do rapaz. Falcão da Neve não queria andar. e Aqamdax teve que empurrá-la para o interior da cabana

Ela não está habituada a estar aqui dentro, disse Aqamdax, apesar de a explicação ser desnecessária. Ajoelhou-se ao lado de Falcão da Neve e pôs-lhe a mão no dorso.

- Dizes que ela roeu a correia? perguntou Homem Noturno.

Aqamdax fez um sinal afirmativo.

Homem Noturno apontou para a correia que Falcão da Neve trazia pendurada ao pescoço.

Não parece roída, disse ele.

Eu pus-lhe uma nova.

Aqamdax levantou a correia. Encontrara-a no meio dos pertences de Sok. Escurecera com o tempo, mas era larga e forte, feita de raízes de abeto entrançadas.

Parece velha, disse Homem Noturno, que contornou a lareira e se agachou em frente de Aqamdax e do cão. Pegou a coleira. Falcão da Neve rosnou.

E é, assentiu Aqamdax. Encontrei-a num dos fardos de Sok.

Não foi roída, declarou Homem Noturno, pegando a ponta da correia para os outros verem.

Não. Não foi.

Ele inclinou-se rapidamente e depois passou as mãos pela barriga de Falcão da Neve. A cadela recuou, mostrou-lhe os dentes e latiu. Aqamdax agarrou-a pela coleira.

Não tenho força suficiente para a segurar se ela resolver atacar-te, disse ela a Homem Noturno.

Se ela me atacar, mato-a. Há muito tempo que ela devia ter sido morta.

Homem noturno tirou uma faca da bainha.

Então prepara-te para dares a Sok um dos teus, e os filhotes para substituir aqueles que ela traz na barriga

És tão fiel a um homem que te rejeitou? perguntou Homem Noturno.

Acredito em fazer o que está certo. Um cão por um cão.

Acreditas nisso, repetiu ele. Isso é algum ensinamento do teu povo? Um cão em troca de outro cão? O sorriso dele gelou-a. Talvez penses também que uma criança se paga com outra criança prosseguiu ele e, de repente, Aqamdax entendeu o que ele estava tentando fazer.

Eu não matei Estrela, disse ela, arrependendo-se das suas palavras.

Para quê pôr essa idéia na mente daqueles que os ouviam? Quem tinha ela ali para a defender? Só Ghaden, só Yaa e Chora-Alto, e eram crianças. Talvez Ligige’, mas quem podia ter certeza?

Homem Noturno apontou a faca a Falcão da Neve. A cadela voltou a rosnar.

A vida pela vida, disse ele, erguendo a faca como se fosse atirá-la.

Aqamdax tirou a correia de Falcão da Neve, levantou a aba e empurrou a cadela lá para fora.

Vai! gritou ela, e tapou a entrada do túnel enquanto a cadela não saiu.

A vida pela vida, Aqamdax declarou Homem Noturno. Mataste o filho de Estrela por causa do teu.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

K’os sobressaltou-se quando Folha Vermelha entrou na sua cabana. Nas coisas que Dança-no-Gelo trouxera da aldeia de Rio Próximo, ela encontrara várias bolsas pequenas cheias de contas; umas eram vulgares, feitas de osso de pássaro, mas outras eram feitas de conchas, de madeira e polidas. K’os despejara-as no chão, em cima de uma esteira de pele de caribu, e estava fazendo desenhos com elas.

Olhou para Folha Vermelha e depois apontou para as contas.

São do meu marido, afirmou ela. Estou fazendo um desenho para uma das minhas parkas.

Devias fazer uma para ele, sugeriu Folha Vermelha. Mostrou-lhe o monte de peles que trazia nos braços. Trouxe as peles. Resolvi que é melhor tomar o veneno agora, antes que eu perca a coragem.

K’os foi à sua bolsa dos remédios e tirou o embrulho.

Eu faço-te um chá, disse ela, mas Folha Vermelha abanou a cabeça.

Não te preocupes, que eu não morro aqui. Vou fazê-lo fraco para que a doença não se manifeste já.

Folha Vermelha estendeu a mão trêmula e acrescentou:

Deixa-me tomá-lo na minha cabana. Deixei lá a minha filha e tenho que voltar para junto dela.

Julgas que eu sou parva para te dar o veneno? perguntou-lhe K’os. Como saberei o que farás com ele? Podes tentar envenenar Cen ou o meu próprio marido.

Vem comigo, então, disse Folha Vermelha. Não posso ficar mais tempo longe da minha filha.

K’os riu.

O teu marido não está?

Foi à caça, respondeu Folha Vermelha. Volta esta noite, segundo me disse.

Isso é bom, afirmou K’os. Não deves sofrer sem teres o teu marido junto de ti.

K’os fez um sorriso debochado e deu o pequeno embrulho a Folha Vermelha, atado em quatro nós com tendões vermelhos. Vestiu a parka e as perneiras e calçou as botas.

Bem, tu e eu vamos fazer uma bela visita, proferiu ela. Em seguida, pegou na faca que estava junto da lareira, desembainhou-a e aproximou-a do fogo. É para lembrar aos espíritos que me protejam, disse ela a Folha Vermelha, atando a bainha à perna como se fosse um homem e saindo atrás de Folha Vermelha.

 

                  ALDEIA DE RIO PRIMO

Aquela cadela estava gorda disse Homem Noturno, apontando para a aba da porta. Ainda tinha a faca na mão e batia com a lâmina na palma à medida que falava.

Ela não roeu a correia por precisar de comida. Tu levaste-a contigo. Foste à latrina das mulheres, viste lá Estrela e resolveste que era uma boa oportunidade de te vingares. Mataste-a e arrancaste-lhe o bebê da barriga.

Eu não saí esta manhã, declarou Aqamdax.

E tens alguém que confirme que não saíste? perguntou Homem Noturno.

Eu, disse Ghaden, levantando-se.

Aqamdax fechou os olhos, com o coração cheio de amor por aquilo que o rapaz estava tentar fazer e cheia de remorsos pelo que iria acontecer.

Estiveste com ela durante toda a manhã? perguntou Homem Noturno.

Estive com ela. Eu e o Mordedor.

Homem Noturno ergueu as sobrancelhas e esfregou a lâmina da faca na sua camisa de pele de caribu.

Ligige’, onde é que este rapaz dormiu esta noite? perguntou ele.

Ligige’ cerrou os lábios e depois respondeu em voz baixa:

Na minha cabana.

Ele saiu esta manhã?

Eu não o deixaria sair.

Por causa da tempestade, disse Homem noturno.

Sim.

Só tu e este rapaz?

Chora-Alto e Yaa também estavam lá, disse ela. Homem Noturno olhou para Yaa.

Passaste a noite com Ligige’?

Tu disseste que nós podíamos ficar lá, respondeu ela.

Sim, eu disse que vocês podiam ficar lá. O teu irmão saiu durante a noite? Talvez quando a Ligige’ estava dormindo?

Não sei.

Não sabes? Como é que podes não saber?

Eu estava dormindo. Talvez ele tenha saído. Às vezes ele não faz o que lhe dizem,

Achas que ele e o Mordedor poderiam ter ido à cabana de Sok?

Acho, respondeu ela.

Chora-Alto, o que pensas?

O rapaz deu um salto quando Homem Noturno pronunciou o seu nome.

Eu estava dormindo, disse ele.

Então não sabes se Ghaden saiu da cabana de Ligige’ durante a noite e se foi ajudar Aqamdax a matar a minha irmã.

Chora-Alto abriu muito os olhos e respondeu:

Ele não fez isso. Ele ficou comigo. Dormimos debaixo do mesmo cobertor.

Então estás dizendo-me que Ghaden ficou toda a noite e toda a manhã na cabana de Ligige’.

Chora-Alto baixou a cabeça.

Sim, disse ele em voz baixa. Ele não matou ninguém.

Ghaden levantou a mão para lhe dar um soco, mas Leva-Mais agarrou o punho do rapaz.

Pois então esta mulher Caçadora Marinha ensinou-te a mentir e a bater naqueles que dizem a verdade? proferiu Homem noturno.

Ela não me ensinou nada disso, murmurou Ghaden libertando-se do velho.

Deixa o rapaz. Ele não fez nada. Tu bem sabes, disse Aqamdax.

Aqamdax olhou para as pessoas que se encontravam na cabana. Tigela Vazia e Pássaro Amarelo, duas velhas, observavam a cena, de boca fechada, e inclinavam-se para a frente para ouvirem tudo. Não lhes interessava se as acusações de Homem Noturno eram verdadeiras; só queriam saber o que acontecera para quebrar a monotonia dos seus dias.

Leva-Mais examinava-a como se a visse pela primeira vez.

Ouvi dizer que os Caçadores Marinhos são um povo não muito humano disse Homem Noturno.

Aqamdax respondeu, com um misto de raiva e de medo:

Ouvimos dizer o mesmo de vocês.

Que direito tens tu de a acusar? perguntou uma das velhas, e Aqamdax viu que era Caule Torto.

As palavras da mulher deram esperança a Aqamdax, sobretudo quando Ligige’ acrescentou com uma voz solene:

És um louco, Homem Noturno. Tu sabes que ela não matou a tua irmã.

Mas depois Caule Torto acrescentou:

Tu mataste o filho dela. Tu e a tua irmã. Sabemos que foste buscar a criança quando Aqamdax ainda estava na cabana de partos. O que esperavas se lhe mataste o filho?

O rapaz foi oferecido ao Lago do Avô, disse-lhe Homem Noturno. Julgas que as nossas despensas estão cheias porque somos bons caçadores? Julgas que o único motivo por que fomos abençoados foi porque os caribus ficaram satisfeitos com o nosso respeito? Oferecemos a criança para garantir que teríamos comida no Inverno.

Mentes! gritou Aqamdax, atirando-se a Homem Noturno, arranhando-lhe a face e procurando atingir-lhe os olhos. Tu mataste o nosso filho porque julgavas que ele não era teu. Tu disseste-me isso. Disseste a Chakliux. E até a Estrela!

Quando Leva-Mais e Caule Torto conseguiram afastá-la de Homem Noturno, este tinha a cara a sangrando. Assim que conseguiu falar, inquiriu:

Acham que ela não mataria a minha irmã?

Na cabana, as pessoas mantiveram o silêncio, e Aqamdax viu o medo no seu olhar.

 

A velha pôs mais lenha na lareira. Era bom estar de volta à sua cabana de Inverno e à sua despensa cheia de salmão seco pescado no Verão. Mas daí a pouco tempo, as despensas da aldeia de Inverno voltariam a ficar vazias. Já tinham partido algumas famílias para ir atrás dos caribus. No dia seguinte, o rapaz partiria também, mas ela ficaria, ela e outras velhas. Pareciam fantasmas, com os cabelos brancos e encarquilhadas pela idade; não eram de grande préstimo na caça ao caribu. A velha abandonou os seus pensamentos de solidão e sorriu ao rapaz que estava sentado à lareira.

Partes pela manhã? perguntou ela. Ele fez um sinal afirmativo.

Vou sentir falta das nossas histórias.

Eu também, disse a velha. Mas lembra-te que cada caçada ao caribu tem a sua história, por isso escuta-a bem e a traz contigo.

O rapaz olhou para as mãos. Estava fazendo uma trança de quatro voltas com pele de caribu curtida.

O meu pai deu-me um cão, disse ele. Estou a fazendo uma coleira.

Olha! O que vejo eu? disse a velha, propondo-lhe um enigma. Com voltas e reviravoltas ficou mais forte.

É a trança disse o rapaz, mas depois arregalou os olhos e sorriu. É uma história, corrigiu ele.

Duas respostas para o mesmo enigma, e ambas estão certas, disse a velha. Mas acabaram-se os enigmas. Hoje, a nossa história já é suficientemente enigmática.

A aldeia de Rio Primo, prosseguiu ela, começando a tecer as suas palavras na fumaça da lareira, nos dedos do rapaz e na trança rígida e quadrada. Escuta:

 

                   LIGIGE’, DA ALDEIA DE RIO PRIMO

Falei a favor de Aqamdax, mas a minha voz foi pequena. As minhas palavras perderam-se. A defendemos, Yaa, Ghaden, Chora-Alto e eu, certos de que nos dariam ouvidos porque tínhamos razão. Mas quem precisa das palavras de uma velha? Quem dá ouvidos a crianças? Se Sok e Chakliux não voltarem, Chora-Alto e eu não teremos um caçador que nos alimente, e agora, como eles estão contra Homem Noturno, Yaa e Ghaden também não têm ninguém. Não somos ninguém nesta aldeia.

Mas porque os outros acreditariam em Homem Noturno? Onde têm os olhos? Eles não vêem que ele traz a semente da loucura, tal como a irmã morta? Talvez não tenhamos força suficiente para compensar a nossa fraqueza quando Chakliux se ausenta da aldeia. Ou talvez o horror do que aconteceu nos tenha roubado o bom senso.

Compreendo o raciocínio de Homem Noturno, segundo o qual Aqamdax procurava vingar-se da morte do filho, mas cada vez tenho mais medo de que ela fosse acusada em qualquer caso, mesmo que o bebê dela estivesse vivo. Ela é uma Caçadora Marinha. Quem não vê a diferença em todos os seus hábitos? A sua voz tem os sons pesados da fala deles; o seu rosto é arredondado e seu nariz é pequeno, como nos rostos dos Caçadores Marinhos. Até as suas histórias e canções são diferentes.

No dia em que encontraram o corpo de Estrela, não pude deixar de ouvir os cochichos das velhas. Os Caçadores Marinhos não são como nós, diziam elas. Quem pode confiar neles?

Aaa! Eu própria cheguei a pensar o mesmo. E como era mais fácil pensar que o que aconteceu a Estrela foi feito por alguém que não foi criado à maneira dos de Primo! Mas agora que conheço verdadeiramente Aqamdax, comecei a entender que as diferenças entre os Caçadores Marinhos e os de Primo são pequenas e nada têm a ver com a alma.

Quanto tempo levarão as velhas a descobrir outra diferença entre Rio Primo e Rio Próximo, ou entre famílias?

Até onde iremos? Até restar apenas uma pessoa?

E como poderá ela viver, sozinha, sem a força dos outros?

 

Aqamdax estava em frente às pessoas reunidas na cabana de Estrela. Recordou-lhes que em tempos fora escrava de K’os.

Se eu fosse uma mulher dada à violência, teria matado K’os nesses dias da minha escravatura. Como podem vocês pensar que eu seria capaz de matar a filha do meu próprio marido? Como podia eu fazê-lo sofrer dessa maneira?

Aqamdax olhou para Homem Noturno com um ar de desafio, esperando que ele se percebesse o seu escárnio.

Considero que a vida é sagrada, disse ela, admirando-se ao ver que ele se intimidara.

Por instantes, o seu próprio medo deu lugar a uma onda de força, mas depois os cochichos das velhas quebraram o silêncio, e Aqamdax ouviu os insultos delas em surdina.

Ligige’, depois Ghaden e Yaa, e até Chora-Alto, levantaram-se e falaram a favor dela, mas a cada palavra que eles pronunciavam Homem Noturno debitava mentiras, até que Caule Torto, com os pés no caminho traiçoeiro entre os dois lados, sugeriu que expulsassem Aqamdax da aldeia.

Pelo menos até o marido dela voltar... Se ele voltar, disse Caule Torto. Depois, ele que nos diga o que fazer.

Horrorizada, Aqamdax viu que as pessoas concordavam e que abafavam as tentativas de Ligige’ para falar em defesa dela.

Prepara as tuas coisas, ordenou Homem Noturno a Aqamdax.

O homem lançou-lhe um olhar frio quando ela exclamou:

E quem amamentará o filho de Sok? Caule Torto levantou-se.

Ele será um bebê das avós, criado pelas velhas. Já criamos tantos netos que ainda temos leite. Juntas, o manteremos vivo.

A velha desviou o olhar das lágrimas de Aqamdax, mas mandou Homem Noturno calar-se quando este levantou objeções ao pedido de Aqamdax a Ligige’ para que ela tomasse conta de Ghaden, de Yaa e de Chora-Alto, o filho mais velho de Sok.

Eles não são teus filhos, declarou ela, e Homem Noturno não teve argumentos.

Quando Caule Torto conseguiu que Homem Risonho prometesse que daria comida aos cães de Chakliux e de Sok, Aqamdax saiu da cabana de Estrela, foi juntar-se à tempestade e deixou que o vento lhe secasse as lágrimas

Tirou da despensa de Chakliux toda a carne e toda a gordura que podia levar, em seguida arrumou os fardos restantes e pôs à frente o salmão dos cães para Homem Risonho. Preocupava-a que ele tirasse carne para ele da parte de Chakliux. Mas se o peixe para os cães ficasse todo à frente, ele se sentiria menos tentado a tirar o que não lhe pertencia.

Aqamdax não conhecia bem os costumes do Povo Rio. A aldeia em peso iria à cabana de Sok e a expulsaria com gritos de raiva? Ou mandaria um caçador, talvez o próprio Homem Noturno? Ou esperariam que ela partisse por iniciativa própria?

As suas lágrimas molhavam tudo aquilo que ela embrulhava, e por instantes as suas mãos hesitaram quanto a um pequeno capuz de pele que ela fizera para o filho. Enfiou-o na parka interior, para ter algo macio encostada à pele, um conforto que lhe lembrasse o pequenino que esperava por ela nas Luzes Dançantes.

Carregou um fardo de levar às costas e depois um trenó, que considerava seu. Como agüentaria ela o peso da comida e das peles da cabana? Quando terminou, ficou à espera no túnel da cabana de Sok, sem saber o que fazer. Para quê sair mais cedo do que devia e expor-se à tempestade.

Por fim, apesar do uivo do vento, na escuridão do entardecer, ouviu vozes. Sentiu o sangue latejar nos pulsos e nas têmporas, e os pensamentos que lhe dominavam a mente, caminhar sob o peso do seu fardo, tentar puxar o trenó, ficar sozinha durante os dias escuros de Inverno atormentaram-na como facas apontadas ao coração.

Os olhos ardiam-lhe com as lágrimas, mas Aqamdax saiu da cabana e foi ao encontro dos que haviam chegado.

Depois, através da neve, ouviu a voz de Ghaden e Mordedor saltou sobre ela, derrubando-a e obrigando-a a agarrar-se para não cair deitada.

Ghaden e Yaa abraçaram-na, e Chora-Alto encostou-se muito a ela.

Eles não me deixaram trazer-te o bebê, nem sequer para lhe dares de mamar pela última vez, disse Ligige’, falando contra o vento. Mas até Caule Torto tem algum leite. Não te preocupes com ele. Terá o suficiente para comer.

Ligige’ pôs a mão no ombro de Aqamdax.

Chakliux não tarda a voltar. Fica perto, a menos de um dia de caminho. Ele te encontrará.

Eu sei, tia, disse Aqamdax.

Estás pronta, então?

Estou. Parto, ou há algum costume de Rio que deva ser seguido... Alguma coisa que eu tenha que fazer?

Não conheço os costumes de Primo, mas na aldeia de Rio Próximo não há qualquer costume, nada que tenhas que fazer. Se estás pronta, parte. É melhor, afirmou Ligige’.

Aqamdax inclinou-se sobre as crianças e puxou-as para si. Chora-Alto deu-lhe umas boleadeiras, e Aqamdax sabia que fora o pai quem as fizera. Ia agradecer-lhe, mas as lágrimas impediram-na de falar. Yaa ofereceu-lhe umas luvas de pele de caribu forradas de pele de lebre.

Em seguida, Ghaden aproximou-se e disse:

Trouxe-te o Mordedor. Foi a melhor coisa de que me lembrei.

Então, mesmo através das lágrimas, Aqamdax fez o possível por falar.

Mordedor é um presente maravilhoso, irmão, agradeceu ela em voz baixa. Mas vais guardá-lo até eu voltar.

Não posso levar comida que chegue para alimentar um cão além de mim.

Tu sabes que ele caça. Sabes que ele nos traz lebres e ptármigas quase todos os dias.

As lágrimas impediram Aqamdax de falar e Ligige’ disse:

O teu presente é bom, Ghaden. Agora que o Mordedor pertence à tua irmã, ela resolveu que quer que ele fique aqui na aldeia para nos guardar a todos. Não estás à espera que o meu velho cão tome conta de nós os quatro, não é? Então, Ligige’ afastou as crianças de Aqamdax e disse-lhe: Agora vai, antes que Homem Noturno torne as coisas mais difíceis para ti.

Eles afastaram-se na escuridão da neve e do vento, e Aqamdax pôs o fardo às costas, ajustou a alça do trenó ao peito e partiu sozinha ao encontro da tempestade.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha tinha a bolsa aberta numa mão e uma tigela de água na outra.

Quanto? perguntou ela a K’os.

K’os encostou o indicador ao polegar e respondeu:

Só isto.

Folha Vermelha meteu os dedos no pó verde-acinzentado e jogou-o na tigela.

Amanhã tomas mais, disse K’os. Duas ou três pitadas. Franziu a testa e olhou para o bebê que dormia na prancha, acrescentando: Não amamentes o bebê.

Julgas que eu quero que a minha filha morra? respondeu Folha Vermelha. Julgas que eu beberia desta tigela se não fosse por ela?

K’os limitou-se a sorrir, esperou que Folha Vermelha bebesse e depois disse:

Enche-a outra vez, bebe outra vez e depois limpa a tigela.

Folha Vermelha fez o que K’os lhe ordenou e deu-lhe a bolsa. K’os fechou-a e atou-a com quatro nós.

Volto amanhã, Gheli, disse ela. E se te recusares a tomar o meu remédio, digo ao teu marido quem tu és.

 

                  ALDEIA DE RIO PRIMO

Leva-Mais foi falar com Aqamdax quando ela saiu da aldeia, levava Falcão da Neve pela correia, que lutava com ele a cada passo, e uma velha lança de caça na mão.

Tens o que te pertence? perguntou ele, gritando para se fazer ouvir no meio da tempestade.

O que pude trazer, respondeu ela, virando-se para a lança. Homem Noturno disse-te para matares o cão ou a mim?

Durante algum tempo, Leva-Mais não respondeu, embora o vento pregasse partidas a Aqamdax e a levasse a pensar que ele estava falando quando não estava.

Os dois, respondeu ele finalmente.

E o que dirás a Sok quando ele voltar? A cadela é dele.

A verdade disse ele. Que fiz o que tinha a fazer. Como podemos permitir que um cão continue a viver depois de provar sangue humano?

Não há marcas dos dentes de Falcão da Neve no corpo de Estrela, observou Aqamdax.

Fica calada. Não fales nela.

Porque teria medo? Não tardarei a morrer. Devias ter mais medo de mim do que dela. Eu não matei Estrela, o que significa que vais roubar uma vida inocente. E se eu a matei, então sou suficientemente má para vingar a minha própria morte, mesmo que seja merecida. As pessoas resolveram que eu deveria sair da aldeia, e não que deveria ser morta. Não me admiro que Homem Noturno te tenha mandado em vez de ser ele a vir. Nunca foi conhecido pela sua coragem.

Leva-Mais respondeu-lhe, mas as suas palavras perderam-se no vento, e Aqamdax descobriu que já não tinha fôlego para argumentar mais.

Caminharam até que Aqamdax foi obrigada a parar. Tirou o fardo dos ombros e agachou-se para se encostar a ele e se proteger do vento. Não olhou para Leva-Mais quando ele ficou a seu lado, nem lhe ofereceu comida quando tirou um pedaço de carne seca da manga da parka, mas ao levantar-se para continuar a viagem, ele pôs o fardo aos ombros e atou-o às suas próprias costas. Depois, sempre que paravam, Leva-Mais acocorava-se ao lado dela e mantinha-se em silêncio, abrigado do vento pelo fardo e pelo trenó.

Por fim, Leva-Mais apontou para um tufo de árvores, cuja cor escura contrastava com a alvura da neve.

Há uma fonte junto daquelas árvores que dá água mesmo no Inverno. Às vezes, quando ando caçando, venho aqui encher os meus odres, disse ele.

A minha morte amaldiçoará a tua fonte, lembrou Aqamdax.

Leva-Mais não lhe respondeu e encaminhou-se para a fonte a passos tão largos que Aqamdax, puxando o trenó, não conseguia acompanhá-lo. As árvores eram salgueiros e amieiros e os seus ramos inclinavam-se sobre uma pequena abertura em que a água falava com uma voz muito diferente do vento.

Leva-Mais mergulhou a mão na nascente e bebeu. Depois disse:

Ela escorre para o chão, ali. Apontou para um buraco num monte de pedras. Chama-se Fonte dos Caçadores. O Povo Rio diz que muitos velhos vieram aqui para morrer.

Aqamdax tirou as alças do trenó e depois agachou-se. Não percebia por que motivo é que Leva-Mais continuava falando. Para quê gastar as suas explicações com uma mulher condenada a morrer? Talvez tivesse medo que ela oferecesse resistência. Porque não lhe diria coisas para ela se distrair, para que não desconfiasse do momento em que ele lhe atiraria a lança?

Os animais vêm aqui beber no Inverno, continuou ele. Alguém que seja bom em armadilhas ou em armas consegue apanhar aqui um alce.

A cadela sentou-se ao lado de Aqamdax, encostou-se às suas pernas e ela ficou admirada. Falcão da Neve só era fiel a Chakliux e arreganhava os dentes a todas as outras pessoas, até a Sok.

Aqamdax passou um braço pelo pescoço de Falcão da Neve e pôs-lhe a mão no peito.

Fomos amaldiçoadas pela mesma pessoa, tu e eu, disse ela.

Levantou a cabeça e viu os olhos de Leva-Mais brilhando na escuridão.

Não te preocupa que a morte de uma mulher amaldiçoe este local? perguntou ela outra vez.

Odiavas aquela que era tua esposa-irmã? perguntou ele. Querias que ela morresse?

Ela ajudou Homem Noturno a matar o meu filho. Eu odiava-a por isso. Mas não a mataria. Ela trazia no ventre o filho de Chakliux, uma criança que ele desejava muito.

As velhas disseram-me que o bebê era uma menina disse Leva-Mais.

Isso não tinha importância para Chakliux, declarou Aqamdax.

Olhou para as árvores à sua volta, para os belos ramos escuros fustigados pela neve e pelo vento. Sentiu o frio no rosto e ouviu de novo a voz da água. Respirou fundo, susteve a respiração até sentir que o seu coração acelerado batia mais devagar e depois pensou no seu filho morto e no de Chakliux.

Leva-Mais ergueu a lança e embalou-a nos seus braços. Sopesou-a na mão direita. Aqamdax sentiu Falcão da Neve a rosnando e agarrou-a com força. Chakliux dissera-lhe que a cadela matara um dos irmãos de Homem Noturno. Aqamdax sentiu que o animal estava tenso e prestes a saltar, mas antes que o soltasse, Leva-Mais enfiou a ponta cega da sua lança na neve. A cadela levantou-se, com o pelo do pescoço eriçado, e arreganhou os dentes.

É uma lança velha, afirmou Leva-Mais. Não preciso dela. A seta está enfiada no cabo e, juntos, podem ser usados como faca. Se precisares de uma prancha de arremesso, terás que fazê-la. Pôs um pedaço achatado de madeira junto da lança. Direi a Homem Noturno que tu e a cadela morreram.

Afastou-se dela, de cabeça inclinada contra o vento. Ao sair do meio das árvores, parou e gritou:

Se fores forte, viverás.

Aqamdax levantou-se, agarrando-se com força ao pêlo de Falcão da Neve e gritou a Leva-Mais:

Eu sou forte.

 

                     ALDEIA DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha raspou na parede de outra cabana. Era a terceira desde que K’os a deixara e seria a mais difícil. Mosquito-Pólvora e Trepador eram como tios para K’os. Folha Vermelha teria de ser muito cuidadosa com as suas palavras e dizer talvez menos do que dissera nas outras cabanas. Até podia acontecer que K’os estivesse lá dentro ou que entrasse durante a sua visita.

Quando Mosquito-Pólvora gritou, Folha Vermelha entrou no túnel e respondeu à velha:

Sou Gheli, com a minha filha. Trouxemos-te vicínios secos.

Mosquito-Pólvora afastou a aba interior e saudou-a. Pegou nos vicínios e depois sacudiu a parka de Folha Vermelha e tirou o bebê da prancha.

Sentou-se de pernas cruzadas à lareira, do lado das mulheres.

Qualquer dia já anda, disse ela pegando o bebê no colo. Repara como tem as pernas gordas. Tu fazes filhos fortes, Gheli. Cen teve sorte contigo.

As palavras da velha eram um bom começo para aquilo que Folha Vermelha queria dizer e, enquanto Mosquito-Pólvora brincava com o bebê, Folha Vermelha aproximou-se mais do fogo e inclinou-se até a fumaça a fazer chorar. Suspirou de modo a que a velha a ouvisse. Quando Mosquito-Pólvora olhou para ela, Folha Vermelha cobriu o rosto com as mãos e fingiu que estava chorando. Por entre os dedos, reparou que até o marido da velha, que fingia dormir numa esteira nos fundos da cabana, levantara a cabeça e olhava para ela.

Filha! disse Mosquito-Pólvora, com uma voz trêmula. O que se passa? É Cen? Ele não está ferido?

Folha Vermelha tirou as mãos do rosto, baixou a cabeça e deixou que as lágrimas lhe caíssem no regaço.

Não, disse ela. Ele não está ferido. Ele... Ele é um bom marido para mim. É... Calou-se e respirou fundo. Não sei como dizer-te.

Folha Vermelha limpou a cara com as mãos, engoliu as lágrimas que lhe faziam pingar o nariz, levantou a cabeça e olhou para Mosquito-Pólvora.

É a K’os. Ela disse-te alguma coisa acerca do meu marido?

Mosquito-Pólvora ficou atrapalhada.

Ora! Essa! disse Trepador. Levantou-se da esteira e, a cambalear, foi sentar-se junto do fogo. Essa anda sempre atrás dos homens, de todos nós.

Julgas que ela te quer, velho? perguntou Mosquito-Pólvora, ralhando com o marido.

Eu só digo o que sei, respondeu ele, falando tão alto que a saliva se acumulou a um canto da boca. Julgas que sabes tudo a meu respeito, velha?

Resmungando, o velho pegou um pau e avivou o lume.

Eu sei reconhecer um disparate quando o ouço, disse Mosquito-Pólvora.

Folha Vermelha pigarreou, esperando interromper a altercação, mas Mosquito-Pólvora proferiu outro insulto e Trepador respondeu, até que Folha Vermelha, levantando a voz para ser ouvida, disse:

A K’os não vos disse que faria o possível para que Cen me rejeitasse?

Então, marido e mulher olharam para ela, Mosquito-Pólvora de olhos esbugalhados e Trepador de boca escancarada.

Ela disse a Cen para te rejeitar? perguntou Trepador. Ela tem um marido. Porque quereria Cen?

Antes que Folha Vermelha conseguisse arranjar uma boa resposta, Mosquito-Pólvora proferiu:

Ela disse-me uma vez, antes de casar com Dança-no-Gelo, que gostaria de ser mulher de um comerciante. Ela disse-o, mas eu julguei que ela era feliz com o novo marido.

Assim já me sinto melhor, tia, disse Folha Vermelha. Talvez as moças só pretendam pregar peças com os mexericos.

Essas moças são umas parvas, comentou Trepador. Precisam de mais trabalho para estarem ocupadas. O velho tocou na mulher com o cajado. Dá alguma coisa de comer a esta boa filha. Qual o homem que seria estúpido ao ponto de rejeitar uma mulher forte e gorda? Se Cen te rejeitar, vem para esta cabana, que eu aceito-te como esposa.

Mosquito-Pólvora arregalou os olhos, mas Folha Vermelha sorriu com a ternura do velho e fingiu que as palavras dele tinham afastado as suas lágrimas.

 

                   ACAMPAMENTO DE CHAKLIUX

Chakliux e Sok tinham armado uma tenda de caça apenas a dois dias de caminho da aldeia de Rio Primo. Chakliux esperava caçar e recordara a Sok as boas coisas que a vida ainda tinha para dar, mas Sok resolvera jejuar. Como podia Chakliux discordar da opção do irmão? O jejum fortalecia o espírito. Se Sok queria resistir a Neve-no-Cabelo, precisava reforçar os seus poderes contra ela.

Chakliux sabia que a força de ambos duplicaria se jejuassem os dois, mas o jejum, apesar de fortalecer a alma, enfraquecia o corpo. Alguém tinha que ficar de vigia, que manter o lume aceso, que parar Sok se ele quisesse mais uma vez ir atrás da mulher para o mundo dos espíritos.

Enquanto Sok jejuava, Chakliux ocupava-se de pequenas tarefas, retocando as pontas das lanças e das facas, endireitando as setas e acalmando-se com o conhecimento de coisas sólidas e familiares, para que o ritmo das suas mãos fosse um sustentáculo das suas preces.

 

                     ALDEIA DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha gemeu, agarrada à barriga e com os joelhos levantados até ao peito.

Mulher, estás doente? perguntou Cen.

É a minha barriga, disse ela com dificuldade. Está doendo.

Cen serviu-se de um pau para avivar as brasas da lareira e depois alimentou-a até fazer chama. Levou à mulher um odre de água e ela sentou-se e fez uma espécie de bochecho.

Sim, isto é bom, disse ela. Respirou fundo e depois, de súbito, dobrou o corpo, aos vômitos. Vai buscar K’os, marido pediu ela. Ela tem remédios...

Julgas que eu quero essa mulher nesta cabana? perguntou ele. Há outras pessoas na aldeia que entendem alguma coisa de curas.

Traz K’os, insistiu Folha Vermelha, forçando-se a chorar e suplicando, até que por fim ele concordou e saiu resmungando.

Folha Vermelha deixou-se ficar quieta e pôs-se à escuta até se certificar de que ele saíra. Em seguida, arrastou-se até ao lume e aproximou a cara das chamas até sentir a pele seca e inchada pelo calor. Quando ouviu vozes à entrada da cabana, voltou para a cama, deitou-se de lado e começou a gemer.

Cen entrou na cabana e Folha Vermelha pôs-se a tremer como se tivesse frio. K’os vinha com ele, além de Mosquito-Pólvora e de uma outra velha, Rato Próximo.

Rato Próximo tem o remédio, Gheli, disse Cen, e Folha Vermelha deixou de tremer o suficiente para olhar para K’os e ver o sinal quase imperceptível da mulher.

Rato Próximo agachou-se em frente da lareira e pediu uma tigela de água.

Quente? perguntou Cen.

A velha, indelicada na sua súbita importância, respondeu a Cen com um gesto brusco da mão. Ele deu-lhe um odre de água. De uma bolsa que trazia pendurada ao pescoço, ela retirou uma raiz encarquilhada e enegrecida, deu-lhe uma dentada e mastigou-a. Quando estava transformada em polpa, cuspiu-a na tigela e jogou-lhe água por cima; mexeu a mistura com um dedo e estendeu a tigela a Cen.

Dá-lhe para beber, disse ela.

Mais uma vez Folha Vermelha deixou de tremer e olhou para K’os, mas então a mulher não lhe fez qualquer sinal. O que era melhor? Rato Próximo sabia o que estava fazendo? Ou a raiz era outro tipo de veneno, talvez ainda mais forte do que a erva-de-são-cristóvão? Mas não, o que estava na tigela não podia ser veneno. Rato Próximo não se arriscaria a mastigá-lo se o fosse. É claro que K’os podia ter enganado a mulher, acrescentado qualquer espécie de veneno, e quem duvidava que ela fosse capaz de tal coisa?

Cen ajudou Folha Vermelha a sentar-se. Levou-lhe a tigela à boca mas ela tirou-lhe das mãos e pegou-lhe com dedos trêmulos. Encostou a tigela aos lábios, inclinou-a e simulou um tremor rápido e violento. Deixou cair a tigela e Rato Próximo soltou um grito. O rosto de K’os não se alterou, nem deu sinais de angústia, mas apenas de divertimento.

Tenho uma coisa que talvez seja melhor para ela, propôs K’os, e tirou o saquinho já conhecido da bolsa dos medicamentos, desfazendo os quatro nós. Pegou a tigela. Jogou fora o resto do remédio de Rato Próximo, ignorou o mau humor da velha e agitou o pó na chávena. Encheu-a de água e deu-a a Cen.

Folha Vermelha olhou para ela e K’os desviou o olhar para o bebê que dormia na sua prancha. Quando Cen lhe deu a tigela, Folha Vermelha bebeu sem protestar.

 

                   FONTE DOS CAÇADORES

Eu devia ter óleo de foca, disse Aqamdax a Falcão da Neve.

Depois de Leva-Mais a deixar, Aqamdax montara um abrigo, mas os paus usados como postes eram aqueles que ela encontrara na floresta perto da fonte, e os ramos eram fracos e tortos. Ela pensou nos postes bonitos e direitos que deixara na aldeia de Rio Primo, mas depois lembrou-se do resto que ficara para trás.

Tinha medo de fazer uma fogueira, medo de que vissem a fumaça; empurrou Falcão da Neve para dentro do abrigo e dormiram juntas, dando calor uma à outra. O óleo aquecido numa lamparina de pedra à moda do seu povo teria dado mais do que calor para lhe aquecer a tenda e teria feito pouca fumaça, mas onde iria ela arranjar óleo de foca a não ser por troca, e o que tinha ela para trocar? Ao nascer do Sol, atou Falcão da Neve a uma árvore perto da tenda e disse-lhe que ficasse calada. Em seguida, calçou as raquetes e foi montar armadilhas nas trilhas dos animais que iam dar na fonte. Era quase noite quando acabou. Agachou-se junto da última armadilha, levantou a cabeça e olhou para os ramos que enfeitavam o céu.

Estava cansada e com frio. Perguntou a si própria porque se preocupar com armadilhas. Seria importante apanhar o suficiente para viver mais alguns dias? Se Chakliux estivesse vivo, iria encontrá-la dentro de pouco tempo. Ela ainda tinha comida, mas se ele tivesse morrido para que ela viveria? Era melhor estar com ele e com o filho na morte do que ali sozinha, longe do seu povo.

Pousou a cabeça nos braços e ficou ali sentada até que as longas sombras deram lugar ao crepúsculo. O frio estava quase adormecendo-la quando algo lhe bateu com força no lado do corpo. Deu um grito e levantou-se de repente. Era Falcão da Neve, arrastando a correia roída. O animal ganiu como um cachorrinho e enroscou-se nas pernas de Aqamdax.

Como todos os cães das aldeias, Falcão da Neve tinha tanto de brava como de mansa e era mantida na ordem às custas de ameaças, pancadas, uma correia e a promessa de comida. O que a levava a procurar a companhia de Aqamdax quando conquistara a liberdade?

Aqamdax levantou-se e, com os dedos enregelados, tirou uma faca da bainha que trazia à cintura. Cortou a correia atada ao pescoço de Falcão da Neve.

Agora pertences a ti mesma, disse ela à cadela. Se quiseres viver, terás que caçar. Afasta-te da aldeia. Não tens lugar lá, pelo menos enquanto Chakliux não voltar. Fica comigo se quiseres.

Aqamdax não se arrependeu quando Falcão da Neve desapareceu correndo no meio das árvores, nem escondeu as lágrimas que se acumulavam no canto dos olhos quando foi encontrar o animal na tenda, à espera dela.

 

                   ACAMPAMENTO DE CHAKLIUX

Sok vivia na confusão acarretada pelo seu desgosto e durante o jejum esqueceu-se de que estava num pequeno abrigo com o irmão, com a visão limitada pela escuridão das suas paredes.

Em pensamento, estava de novo na cama de Neve-no-Cabelo, e depois com Aqamdax, naquela época remota em que ele a ganhara como esposa por meio de artimanhas. Alguém lhe oferecera caldo quente e cheio do odor adocicado da carne de caribu. Fora Folha Vermelha? Era ela que segurava aquela tigela? Sok esbofeteou-a para a afugentar. Depois a tigela desapareceu, assim como o cheiro da carne.

Os seus sonhos levaram-no a uma cabana onde ele se encontrava afiando a ponta de uma lança. Cortava lascas direitas e esguias no sentido da largura da lâmina. Mas por que motivo tinha a lâmina uma base cega? Os caribus respeitariam uma ponta de lança como aquela? Sok jogou a pedra fora, aborrecido, e alguém voltou a pô-la no seu colo.

Está ruim! exclamou Sok, gritando como uma criança. Qual o homem que a usaria? Qual o caribu que a respeitaria?

Depois, olhou de novo para as paredes juntas da tenda de caça do irmão e para as brasas esbranquiçadas pela cinza, escondendo o calor como se um coração pulsasse no meio do fogo.

Levantou a cabeça e viu que Chakliux estava a seu lado

O que nós caçamos? perguntou Sok.

Caribus, disse Chakliux.

Nós caçamos caribus?

Dessa vez, Sok não ouviu qualquer resposta. Estendeu o braço mas a sua mão não tocou em nada. Começou a chorar, e foi o som da sua própria voz que o acordou.

Sentou-se nas peles da cama, estendeu o braço para pegar a tigela de caldo que lhe estendiam, não pela comida mas por quem lhe ofereceu, e agarrou o braço do irmão.

 

                   FONTE DOS CAÇADORES

No dia seguinte, as armadilhas de Aqamdax apanharam a primeira lebre. Ela cortou a carne às tiras e comeu uma parte crua, que repartiu com Falcão da Neve. Em seguida, pendurou o resto para congelar e secar no teto do abrigo. Tanto ela como a cadela já começavam a conhecer a floresta que rodeava a fonte.

As árvores espalhavam-se em forma de lágrima, com a, extremidade arredondada virada a sul e a pontiaguda a norte, como que a mostrarem-lhe o caminho para a aldeia de Rio Primo. A fonte encontrava-se no meio da ponta, protegida a leste por uma saliência do terreno onde cresciam alguns abetos e um tufo de choupos.

Mesmo depois das noites mais frias, a água da nascente continuava a borbulhar, e o seu vapor formava uma nuvem no ar. O gelo envolvia as extremidades da poça só no local em que a água escorria para a terra. A oeste, acumulavam-se espinheiros cheios de bagas, groselhas-pretas e viburnos. Aqamdax encheu uma bexiga de caribu de frutos mirrados e adocicados pelo frio.

Encontrou mais oito trilhas de animais e montou armadilhas em cada um, e uma vez atreveu-se a abandonar a floresta protetora e a entrar na tundra, onde obrigou algumas ptármigas a saírem das suas minúsculas tocas na neve, apanhando-as com as boleadeiras quando as aves começaram a voar, com as asas ainda entorpecidas pelo sono.

Aqamdax prometeu a si própria que voltaria a caçar e que no Verão descobriria os lugares ocos em que os ratos guardavam a comida. Como as crianças de Rio, ela tiraria da terra os tubérculos que os ratos tinham armazenado para o Inverno. Depois, perdendo subitamente o fôlego, lembrou-se de que não ficaria ali muito tempo. Nessa altura, Chakliux já a teria encontrado.

Talvez ainda nesse dia ele voltasse à aldeia. Depois Leva-Mais lhe diria que ela estava viva, ali, à espera dele, na Fonte dos Caçadores.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Tenho comida que chegue para nós duas, disse Dii à tia, com uma voz suave para afastar o medo das suas palavras.

Comida de Rio Próximo, disparou Caule Torto. Julgas que eu aceitaria carne deles? Porque não me pedem para comer os meus próprios filhos e ferver os ossos dos meus netos?

Primeira Águia vai aceitar-me como esposa, informou Dii em voz baixa, mas já sabia a resposta da tia.

Ele é de Rio Próximo! E se foi ele que matou os teus irmãos? Como é que podes dar um filho a um homem desses? E se o espírito do teu pai for para esse filho e exigir que ele tire a vida a Primeira Águia? Podes negar vingança ao teu pai?

Deixe-me ir para Leva-Mais ou para Espreita-o-Céu, pediu Dii.

Leva-Mais está velho e já tem três esposas, respondeu Caule Torto. Espreita-o-Céu caça para muitos velhos. Quem, além de mim, é que não lhe chama sobrinho?

Tia...

Não te ouço, disse Caule Torto, tapando os ouvidos com as mãos. Prometi e irás. Ele está à tua espera na cabana em que vive. És uma esposa. Mostra a tua gratidão.

 

                   FONTE DOS CAÇADORES

Aqamdax encaminhou-se para o extremo sul da floresta. Naquele local, havia uma zona plana e pantanosa rodeada pelas árvores. Mesmo no Inverno, a erva dourada irrompia da neve, imóvel e rígida naquele dia sem vento. Aqamdax levava a lança de Leva-Mais na mão direita e um molho de gravetos pontiagudos na esquerda. A arma que Leva-Mais lhe dera era desajeitada, a ponta de pedra pesada, e o cabo esguio não era suficiente para a equilibrar. Aqamdax vira muitas lanças mas, como era mulher, só pegava aquelas que eram feitas para as crianças brincarem: paus com as pontas endurecidas pelo fogo. A lança de Leva-Mais era feita à maneira do Povo Rio: a ponta era de quartzo, uma das pedras que o Povo Rio considerava sagradas. Aqamdax sabia que ele só lhe dera porque ela tinha uma lasca na ponta.

Espetou a extremidade cega da lança na neve, para que a arma pudesse vê-la enquanto ela praticava. Chamou Falcão da Neve para o seu lado para a cadela não pisar os gravetos afiados, e depois começou a atirar, tomando como alvo um tufo de erva que o vento dobrara. O seu primeiro lance foi fraco, sem força, e o graveto não conseguiu atingir a erva, mas o segundo e o terceiro aproximaram-se mais e, por fim Aqamdax já atirava com mais força, apesar de todas as suas tentativas terem falhado e de os gravetos terem caído à esquerda do alvo.

Falcão da Neve enroscou-se numa bola, com o focinho debaixo da cauda, mas quando Aqamdax se preparou para atirar o último graveto o animal levantou a cabeça e ganiu.

Julgas que eu não consigo aprender a fazer isto? perguntou Aqamdax. Qual a dificuldade de atirar uma lança? Lembra-te dos homens que aprenderam a fazê-lo: Raposa-Que-Ladra, Homem Noturno e até rapazes da idade de Ghaden.

Ao pronunciar o nome do irmão em voz alta, Aqamdax sentiu um nó na garganta, cerrou os dentes e pegou o último graveto. Não podia perder tempo com lágrimas se quisesse sobreviver até que Chakliux a encontrasse. Já por duas vezes vira marcas de alce na fonte. Por instantes, imaginou um macho ainda gordo no começo do Inverno. O que fazia botas mais fortes do que a pele do alce? O que era mais saboroso do que um guisado de carne de alce? Aqamdax pegou o graveto, procurou o local do cabo em que ele se equilibrava melhor, levantou o braço e atirou. O projétil atingiu o alvo e ficou balançando na erva torcida.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha passou o dia na cama, agarrada à barriga. K’os voltou antes do anoitecer e deu-lhe mais pó, dessa vez misturado num chá aromatizado por algumas bagas secas.

Não deste de mamar ao bebê? perguntou K’os.

Não, respondeu Folha Vermelha.

Eu pedi à mulher do velho Pé Castanho para vir amamentá-la em teu lugar, disse K’os.

Folha Vermelha fez uma careta.

Julgas que essa velha se arriscaria a entrar nesta cabana quando eu estou doente? Ela fica assustada quando ouve um dilk’ahoo crocitando. Para ela, tudo são maldições. Quem, então? perguntou K’os de chofre. Mosquito-Pólvora?

Ouvi dizer que ela continua amamentando crianças.

Essa velha fica à espera de retribuição. Não faz nada sem esperar algo em troca.

Folha Vermelha agarrou-se à barriga e gemeu, mas não tirou os olhos de K’os.

Vai buscá-la. A minha filha precisa comer. K’os saiu da cabana, lamentando-se, e depois Folha Vermelha sentou-se.

Não peças a minha compaixão, K’os, proferiu Folha Vermelha em voz baixa. Tal como eu, foste tu que arranjaste os teus próprios problemas.

Ao serão, depois do pôr do Sol, K’os levou diversas velhas à cabana de Folha Vermelha. Entre elas encontrava-se Mosquito-Pólvora, que amamentou o bebê durante a visita, ostentando o leite ralo e azulado que ainda tinha nos seios engelhados. Folha Vermelha ficou na cama, mostrando a sua gratidão com gemidos, palavras entrecortadas e lágrimas, sem se esquecer de mencionar K’os e as seus remédios, e em especial a ternura que sentia por Cen. Quando Mosquito-Pólvora apresentou desculpas para a saída das mulheres, Folha Vermelha reparou que elas observavam K’os pelo canto do olho e tinham o cuidado de não lhe tocar nem de lhe olhar para o rosto.

Quando Cen entrou na cabana nessa noite, tinha um ar preocupado. Da cama, Folha Vermelha estendeu-lhe a mão. Ele ajoelhou-se a seu lado e ela disse em voz baixa:

Por favor, marido, preciso que K’os fique comigo esta noite.

Cen abanou a cabeça.

O que pode ela fazer que eu não possa? perguntou ele.

Ela tem o remédio, disse Folha Vermelha. De repente, endireitou-se, esbracejou e começou a chorar. Por favor! exclamou, suplicando, até que Cen concordou.

O homem foi buscar K’os, e Folha Vermelha espreguiçou-se na cama, esticando os músculos que lhe tinham feito cãibras nas pernas. Sorriu, fechou os olhos e ficou à espera.

 

                   ACAMPAMENTO DE CHAKLIUX

Chakliux pôs mais gravetos na fogueira. Sok dormira durante dois dias e acordara apenas para ir lá fora fazer as suas necessidades, mas mesmo assim deslocara-se como se estivesse dormindo, e não respondera às perguntas do irmão.

Chakliux perguntou a si próprio se Neve-no-Cabelo, incapaz de levar o marido durante uma tempestade, não lhe aparecera no meio do sono e não o chamara, em vez de ser através dos sonhos. Mas depois pensou que o irmão só precisava descansar. Se tivesse sido Neve-no-Cabelo a enviar as tempestades, com a violência do vento e do gelo, os seus sonhos também trariam o seu ódio. E estaria Sok dormindo tão calmamente se Neve-no-Cabelo o tivesse atraído para o sono?

Chakliux tranqüilizou-se contando histórias. As suas palavras envolviam o pequeno abrigo, aqueciam as paredes e cobriam Sok como um cobertor. Talvez elas tivessem força suficiente para empurrar de novo Neve-no-Cabelo para o mundo dos espíritos, pensou ele. Talvez as palavras lembrassem a Sok que ele era um caçador e que ainda tinha dois filhos no mundo dos vivos.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Folha Vermelha abriu os olhos na escuridão e sentou-se. Cen e K’os dormiam em lados opostos da cabana, e Mosquito-Pólvora levara o bebê para passar a noite com ela. Folha Vermelha enfiou cobertores e esteiras debaixo de uma camisa de dormir para fingir que ainda estava na cama, e depois rastejou até à cavilha onde estavam penduradas as perneiras e a parka. Levou a sua roupa para o túnel, vestiu-se e saiu, ainda de noite.

O vento fustigava a aldeia, levantando a neve solta que se acumulava em pequenos montes. Outra tempestade? Folha Vermelha caminhava de cabana em cabana, com passos leves, afastando-se dos locais em que os cães estavam presos. Enfiou-se na escuridão ao lado do túnel de entrada de K’os e ficou à espera, à escuta. Ainda não há muito tempo fizera o mesmo na aldeia de Rio Próximo, mas nessa altura planejara a morte do velho. Sabia que conseguiria dominá-lo se ele oferecesse resistência.

Isto seria mais difícil, Dança-no-Gelo era forte. Ela teria que agir depressa.

Entrou no túnel sem fazer barulho e esperou que o seu coração amainasse. Se a encontrassem naquele momento, se atrapalharia e diria que tinha ido buscar mais remédio. O pensamento deu-lhe coragem.

Descalçou as botas e despiu as perneiras e a parka. Soltou os cabelos e ficou à escuta junto da aba interior. Não se ouvia mais nada além de um homem ressonando. Folha Vermelha passou a mão pela faca embainhada que trazia à cintura e entrou na cabana engatinhando. Esperou de novo, para ver se o frio que entrara no túnel não acordaria Dança-no-Gelo. Seria mais difícil explicar por que motivo ela estava ali naquele momento, quase nua, embora pudesse fingir que estava louca.

Dança-no-Gelo gemeu, e Folha Vermelha sentiu o coração batendo na garganta, sufocando-a, mas depois o homem calou-se. Folha Vermelha levantou-se para tirar uma das parkas de K’os da cavilha, dobrou-a por cima do braço e depois aproximou-se do fogo. Suspirou, aliviada, ao ver a faca de K’os em cima de uma das pedras da lareira. Era uma faca de trazer na manga, como as dos homens, e em geral K’os deixava-a ali, mas Folha Vermelha receara que ela a tivesse levado para a cabana de Cen. Era muito melhor usar aquela faca do que a sua.

Folha Vermelha pegou a faca e dirigiu-se para a cama de Dança-no-Gelo. Enfiou a mão esquerda debaixo dos cobertores de pele de lebre e passou-lhe os dedos pelas pernas até encontrar o seu pênis, flácido durante o sono.

Ele acordou, sobressaltado, e depois soltou uma pequena gargalhada. Folha Vermelha baixou a cabeça sobre a dele, fez pressão com o corpo e puxou os cabelos para a frente para ele pensar que ela era K’os.

Chiu, cochichou ela, começando a acariciá-lo.

Meteu-se na cama e escarranchou-se nele. Em seguida, pegou a parka e, tentando imitar o riso de K’os, tapou-lhe a cara com ela. Ele mordeu-a, mas foi de leve, e Folha Vermelha percebeu que ele julgava que era K’os brincando. Levantou o corpo para se colar a ela, mas Folha Vermelha tirou-lhe a mão da boca, agarrou-lhe nos cabelos e espetou-lhe a faca na garganta.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Homem Noturno despiu a parka e empurrou-a com o ombro doente, mas os olhos de Dii viraram-se primeiro para o ombro direito, bem musculado e grande. Ela ouvira contar as histórias que Chakliux fora atacado por Homem Noturno e pelos três irmãos, que ele e a cadela, Falcão na Neve, tinham matado dois desses irmãos e ferido Homem Noturno.

Nessa época, Dii era pequena, e vivia ali, na aldeia de Rio Primo. Lembrava-se dos cochichos das velhas, que previram a morte de Homem Noturno quando o ombro infectara. Às vezes, quem passasse pela cabana de Olhos Grandes ouvia-o gritar, exigindo vingança, mesmo nos delírios da sua doença.

Mas enquanto Dii vivera na aldeia de Rio Próximo, Homem Noturno reestabelecera-se, apesar de o braço nunca ter recuperado a sua força. As pessoas diziam que fora K’os que o salvara, e talvez assim fosse. Os remédios dela eram fortes. Quem podia negar que ela salvava tão bem como matava? Mas, se era assim, por que motivo a doença de Homem Noturno durara até Aqamdax se tornar sua mulher?

Talvez fosse a força daquele ombro saudável que fizesse parecer o ombro ferido pior do que estava. Sozinho, não tinha um aspecto tão mau. Novos tecidos, rosados e brilhantes, umedecidos por uma gota de pus, pareciam nascer do buraco aberto pela lança de Chakliux. O ombro e o braço estavam murchos, e a cicatriz encontrava-se rodeada por uma série de bolhas que se estendiam até ao peito.

Pode uma mulher viver com um homem assim? perguntou Homem Noturno, num tom conflituoso. Mas talvez uma mulher que abriu as pernas a um homem de Rio Próximo nem sequer dê pela minha ferida.

Uma boa esposa olha primeiro para a força que vive dentro do marido, declarou Dii, cujas palavras pretendiam ser um cumprimento.

Homem Noturno fez um ar carrancudo e vociferou:

Julgas que tens mais valor, mulher? Se és tão desejável, porque aceitaste um marido como eu?

Quando Dii era esposa de Anaay, agüentava os insultos dele, não dizia nada e trabalhava ainda mais para lhe agradar. Mas a morte dele fizera-a perceber o seu próprio poder. Se ela era tão fraca e insignificante como Homem Noturno queria fazer crer, como é que conseguira esconder o corpo de Anaay e depois encontrar o caminho para a aldeia de Rio Primo? Se ela não tinha valor, mesmo para ser mulher de Homem Noturno, por que razão os caribus lhe tinham cantado em sonhos?

Estou aqui para satisfazer os desejos da minha tia, disse ela a Homem Noturno, com uma voz calma e firme. Se a minha vida como tua esposa for cheia de insultos, vou-me embora. Tenho cães e comida que trouxe de Rio Próximo, os suficientes para viver à minha custa, com ou sem marido.

Dii levantou-se e dirigiu-se para o túnel.

E o caçador que te aceitar recebe não só essa comida e esses cães como também uma tia velha e lamurienta, observou Homem Noturno.

Dii apontou com o queixo para o local da cabana em que Olhos Grandes estava sentada, falando sozinha enquanto costurava a sola de uma bota.

E tu ofereces-me uma mãe que mal sabe comer sozinha.

Ela é mais forte, apressou-se a dizer Homem Noturno.

Dii examinou a mulher por instantes e depois encolheu os ombros, mas não disse nada. Mais uma vez fez menção de sair.

Eu preciso de uma esposa. Tenho presentes, afirmou Homem Noturno.

Guarda os teus presentes, disse-lhe Dii. Como esposa, só peço uma coisa: respeito.

É isto? perguntou Homem Noturno, apontando para o ombro.

Não tenho qualquer problema com o teu ombro, disse ela. Tu é que lhe deste importância. Tu é que te serviste dessa ferida como desculpa para odiares e teres pena de ti próprio, em vez de te tornares mais forte por dentro.

Homem Noturno cerrou os lábios e Dii julgou que ele a mandaria sair da cabana, mas ele pediu:

Fica, por favor.

Eu não disse que ia embora, respondeu Dii. Dirigiu-se ao túnel, levou para dentro os seus cobertores e as suas esteiras e começou a fazer a cama do lado das mulheres.

 

                     ALDEIA DE QUATRO RIOS

Havia sangue, mais do que Folha Vermelha se lembrava de ver na morte de Tsaani. E Dança-no-Gelo lutara, mas os seus esforços eram imprecisos, visto que ele não percebia por que motivo é que K’os tentaria matá-lo. Os punhos dele tinham feito nódoas negras na barriga e nos braços de Folha Vermelha, mas o homem não fora capaz de lhe tirar a faca das mãos. O primeiro golpe que ela dera, antes de ele começar a lutar, fora mortal, e pouco depois a perda de sangue retardou-lhe as mãos e a mente. Só quando ele se imobilizou, pouco antes de morrer, é que percebeu que ela não era K’os. Então, aliviado, deixou partir o seu espírito, e apesar de Folha Vermelha, esperar, aterrada, qualquer reação, não houve nenhuma.

Folha Vermelha deixou-o cair de novo na cama, enrolou-o na roupa e enfiou a faca debaixo das esteiras do chão. Alguém o encontraria ali. Esperava que não fosse K’os. Tirou um odre de água das prateleiras e lavou as mãos e a cara. De repente, imaginou-se a ser apanhada por K’os ou por Cen, nua e ensangüentada, e com Dança-no-Gelo morto na cama, e estremeceu. Mas não apareceu ninguém, e quando ela conseguiu fazer desaparecer o sangue todo, vestiu-se outra vez e saiu.

Voltou para a cabana de Cen e ficou muito tempo à escuta no túnel, com uma mentira na boca: fora à latrina das mulheres para vomitar. Porque havia de amaldiçoar as outras pessoas que estavam na cabana com a sua doença?

Não ouviu nada e finalmente entrou. K’os e Cen ainda estavam dormindo, no mesmo local em que se encontravam quando ela saíra. A cama de Folha Vermelha ainda estava quente. Demorara-se tão pouco? Um caçador jovem e forte morrera tão depressa?

Ele era cruel, recordou Folha Vermelha. Era egoísta. Mas ela lembrou-se da alegria da mãe quando ele nascera, o único filho do caçador Cabeça-de-Lobo, de Rio Próximo. Lembrou-se do primeiro animal que ele matara, da festa por causa de uma lebre caçada por um rapaz com um pau. Folha Vermelha começou a tremer. Sentou-se e agarrou a tigela de madeira que K’os tinha ao lado da cama. Os seus vômitos acordaram Cen. Este acocorou-se ao lado dela, acariciou-lhe o cabelo e rezou baixinho até Folha Vermelha conseguir deitar-se outra vez. Acompanhou-a até ela adormecer.

De manhã, Folha Vermelha sentiu alguém inclinado sobre ela. Abriu os olhos e viu que era K’os.

Estás viva, disse K’os, denunciando a sua surpresa. Preparou outra chávena de água com pó que tirou da bolsa de fitas vermelhas. Folha Vermelha bebeu-a.

 

                     ACAMPAMENTO DE CHAKLIUX

No seu sonho, Sok ouviu outra vez o vento. Era Neve-no-Cabelo, apesar de a sua voz ser fraca, como se gritasse de longe. Ela abriu a boca e gritou-lhe que esperasse. Ele saiu, viu a luz tênue da manhã e o Sol ainda escondido na curva da Terra.

Depois, como se Neve-no-Cabelo estivesse a seu lado, ouviu a voz dela, clara e dura como o gelo. “Já esperei o suficiente. Agora vou-me embora. Vem, se quiseres.”

Deixa-me ir dizer ao meu irmão que eu vou, suplicou Sok. Ele acompanhou-me sempre. Tem de saber para não ficar preocupado.

Neve-no-Cabelo riu, um riso que aflorava a raiva. “Pedes-me que espere só para tu ires avisar o teu irmão? Que tipo de irmão é ele, que tenta reter-te aqui quando tu não queres ficar? Vai ver se ele é digno da tua preocupação. Se te apressares, ainda me encontras.”

A voz dela dissipou-se, e ele voltou a entrar na tenda e sentiu o calor das brasas que tentavam manter o frio do lado de fora das peles de caribu. Agachou-se junto de Chakliux e viu que o irmão adormecera sentado, encostado a um dos fardos de armazenagem, com os cobertores de pele sobre a cabeça. Sok chamou-o, mas Chakliux não respondeu. Sok puxou os cobertores e viu o brilho nos olhos do irmão, abertos, como se ele estivesse morto. Sok voltou a chamá-lo, mas Chakliux não se mexeu. Cada vez mais assustado, Sok pousou a mão no peito de Chakliux. O coração não batia. Neve-no-Cabelo. Com medo de que Sok não fosse com ela, levara Chakliux. Sok amaldiçoou a mulher morta, e as maldições aumentaram com o seu choro.

Quando Sok acordou, estava lá fora, com um fardo atado às costas e as raquetes nos pés. Sentiu-se como uma criança que tivesse acabado de nascer. Doía-lhe o peito como se tivesse uma ferida antiga, mas descobriu que o seu corpo se mexia apesar das dores e que a sua mente funcionava, que os seus pensamentos já não estavam confusos como tinham estado desde que Neve-no-Cabelo morrera. Mas agora ele chorava também o irmão, caminhando, desgostoso, e respirando a medo. E se Neve-no-Cabelo, com a necessidade que tinha de que ele se juntasse a ela, tivesse levado não só Chakliux como os outros que o ligavam à terra: os seus filhos?

 

                   FONTE DOS CAÇADORES

Aqamdax acordou nauseada. Afastou as roupas da cama e passou por cima de Falcão da Neve, na direção da aba. Lá fora, começou a vomitar, mas tinha a barriga vazia, por isso só expeliu bílis. Quando o estômago acalmou, engoliu uma mão-cheia de neve, derreteu-a na boca e deixou-a deslizar pela garganta. Voltou para o abrigo e secou as mãos, esfregando-as no pelo grosso de Falcão da Neve.

Na véspera, resolvera arriscar-se a fazer uma lareira. As noites estavam frias demais e ela não conseguiria sobreviver sem nenhuma. Por isso, naquele momento, avivou as brasas.

É de manhã, embora o Sol ainda não tenha subido no céu, disse ela a Falcão da Neve. Como está o teu estômago? Estás enjoada?

Tinham comido mais ou menos as mesmas coisas, as duas, embora Aqamdax soubesse que Falcão da Neve também caçava sozinha. Mas a cadela parecia estar bem, e depois de Aqamdax comer um pouco, sentiu-se melhor, forte, como se não tivesse vomitado.

Todos os dias Falcão da Neve passava mais tempo longe de Aqamdax. A princípio, Aqamdax preocupou-se, julgando que Homem Noturno pudesse andar caçando, tivesse visto a cadela e soubesse que Leva-Mais lhes poupara a vida. Eram os lobos que a preocupavam. Que chances teria Falcão da Neve contra uma alcatéia, a não ser aquela que qualquer fêmea tinha que um dos machos a quisesse? Mas todos os dias ao anoitecer Falcão da Neve voltava para receber a sua parte de comida, para dormir fora da tenda, sem correia, e para entrar se a noite esfriasse muito.

Todas as manhãs, Aqamdax verificava e voltava a montar as armadilhas, sangrando e esfolando as lebres que apanhava. Depois, enrolava as peles com o lado da carne para dentro e arrumava-as junto das carcaças, debaixo da pele de caribu que cobria a sua despensa.

Nesse dia, as suas armadilhas tinham três lebres gordas; quando acabou de as esfolar, pegou os seus dardos feitos de paus e dirigiu-se para o lado sul da floresta. O vento desaparecera, apesar de arrastar de vez em quando um manto de neve para a tundra, para lá das árvores.

Aqamdax tornara-se mais certeira com os paus e não sentia os músculos ardendo como acontecera uma vez, quando passara um certo tempo atirando ao alvo. Agora tentava aprender a atirar enquanto corria. Vira os homens caçando assim, mas, apesar de a lança chegar mais longe, era mais difícil concentrar-se no alvo, e perdia em pontaria.

Recolheu os paus e estava com eles na mão quando, de repente, ouviu alguém gritar:

Precisas de uma prancha.

Aqamdax virou-se, com uma lança em riste, mas baixou a arma com a mesma rapidez. Leva-Mais encontrava-se do outro lado da clareira pantanosa, com um cão ao lado e uma coxa de caribu congelada no trenó que o cão puxava.

É assim que recebes um velho que te traz comida? Os olhos de Aqamdax marejaram-se de lágrimas, e ela respondeu como se fosse uma esposa oferecendo a hospitalidade da sua cabana a um dos amigos do marido.

Tens fome? perguntou ela.

Talvez comesse. Saí ainda de madrugada para as minhas mulheres não verem o que eu te trazia.

Podes passar aqui a noite?

Leva-Mais riu.

Não receias que eu peça algo mais do que carne?

Creio que respeitas o meu marido e que não pedirás à mulher dele que partilhe a sua cama.

Leva-Mais corou, mas Aqamdax fingiu que não via. Talvez, por ter trazido carne, o velho merecesse mais do que uma tigela de guisado, mas qual a mulher que podia oferecer tal hospitalidade sem a aprovação do marido?

Ele ajudou-a a guardar a coxa na despensa e respondeu às perguntas dela sobre as pessoas da aldeia. Ele disse que Ghaden, Yaa e os filhos de Sok estavam bem, mas que Ligige’ passava muito tempo dizendo aos outros como deviam viver a sua vida, e que Sok e Chakliux ainda não tinham regressado. Aqamdax fechou os olhos, subitamente triste, quando ele disse que Caule Torto oferecera a sobrinha, Dii, a Homem Noturno.

Quando já não tinha mais nada para contar, Leva-Mais falou dos tempos em que era novo, ia à caça e arranjava mulheres. Por fim, ficou sem palavras. Então foi-se embora, e a tenda de Aqamdax pareceu-lhe muito silenciosa, muito vazia. Mas nessa noite, quando ela adormeceu, repetiu as histórias de caça de Leva-Mais a si mesma, encaminhou-as em surdina para os seus sonhos... e não se sentiu tão só.

 

                   ACAMPAMENTO DE CHAKLIUX

No sonho, Aqamdax estava ao lado dele, com as mãos ternas no rosto. Inclinou-se e ele ergueu-se para abraçá-la. De repente, ela não era Aqamdax mas sim Estrela, com um rosto lívido e raiado de sangue, a face coberta de gelo e os olhos negros e cegos.

Chakliux deu um grito e o som da sua voz acordou-o. Acalmou-se ao perceber que estivera sonhando e depois censurou-se. Adormecera. Na escuridão da tenda, olhou para a cama de Sok, viu os contornos de uma manta de pele de cor clara e suspirou de alívio. Sok estava dormindo, mas se ele tivesse acordado enquanto Chakliux dormia? Podia ter ido lá para fora...

De quatro, Chakliux aproximou-se do irmão e tocou-lhe no ombro. O cobertor de pele de lebre, vazio, cedeu ao peso da sua mão. Até as esteiras da cama de Sok tinham desaparecido. Chakliux calçou as botas às pressas e atou as raquetes aos pés.

Lá fora, ficou admirado ao ver que o Sol nascera, um disco amarelo-claro que mal se via por cima do horizonte. A norte e a oeste o céu estava escuro. Nevara durante a noite, uma camada inferior a um palmo mas que apagara as pegadas de Sok, e por isso Chakliux descobriu apenas os primeiros passos dados pelo irmão, que fora para oeste.

Por que razão fora Sok naquela direção? A aldeia ficava para sul e leste. Então Chakliux percebeu que Sok seguia a mulher morta, e que se encaminhava para oeste, para a terra dos espíritos.

“Aaa, Sok, depois de tudo isto te perdi?” pensou Chakliux.

 

Tudo parecia estar na mesma: todos os montes de neve, todos os regatos gelados como aquele que ele tinha atravessado. Uma vez, uma raposa branca foi correndo atrás dele, outra vez os corvos formaram um círculo, mas além disso, não havia nada na terra nem no céu. Sok cantou os nomes dos filhos em surdina, caminhando ao ritmo da música, para não se esquecer da direção que devia seguir nem porquê. Empurrou o capuz da parka para trás e deixou que o ar lhe refrescasse a cabeça para não transpirar, mas quando as orelhas começaram a doer por causa do frio puxou outra vez o capuz para a frente. Quando o Sol mudou de posição no céu, Sok lutou contra o sono, caminhando de cabeça baixa e olhos fechados.

O sono era um escape, um local sem decisões, sem sofrimento. Ali ele não teria que dizer a Aqamdax que o marido dela já não existia, morto por Neve-no-Cabelo. Não teria que enfrentar os dias vazios sem a mulher de que ele tanto precisava, sem o irmão que ele aprendera a amar. Mas fez o possível por andar, dizendo os nomes dos filhos, e a cada passo falava com eles em pensamento até os seus rostos dançarem à frente dele, até as suas vozes se sobreporem à de Neve-no-Cabelo, que o chamava do vento.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Pé Castanho raspou na parede da cabana de K’os. Praguejou em surdina contra uma esposa velha e preguiçosa, que não se levantava de manhã para dar comida ao marido, e contra os cães de Dança-no-Gelo, que latiam enquanto ele esperava.

O que é isto? gritou ele. Todas as mulheres estão com preguiça esta manhã? Estão todas dormindo? Olhem! Levantou o cajado e apontou para sudeste. Lá está o Sol.

Soprou, enfadado, e afastou a aba exterior. Encaminhou-se para o túnel, não parou para gritar outra vez e entrou na cabana.

Quando viu que K’os não estava lá, deixou de praguejar. Depois, olhando para os cabelos fartos de Dança-no-Gelo por cima da roupa da cama, Pé Castanho bateu com o cajado no chão e gritou:

Qual o caçador que dorme de dia?

Como o homem não respondeu, Pé Castanho aproximou-se mais e tocou-lhe com o cajado

Onde está a tua mulher? perguntou ele. A tua lareira está fria. Agachou-se e acrescentou em voz baixa: Ela é uma mulher sem juízo, que vai à despensa sem acender o fogo da manhã. Devias resolver-te a arranjar outra. Tenho uma neta, sabes...

Meteu a mão debaixo dos cobertores de Dança-no-Gelo e ficou embasbacado. Olhou para os dedos. Estavam pegajosos e cheios de sangue seco.

 

Como está a tua mulher? perguntou Rato Próximo em voz baixa, pondo-se na ponta dos pés e espiando para o interior da cabana por cima do ombro de Cen. Mosquito-Pólvora passou por ela e largou a tábua de embalar o bebê no chão. Desatou as fitas, tirou a almofada de musgo cheia dos dejetos do bebê e depois atirou-a para o lume.

As duas velhas tinham entrado como se a cabana lhes pertencesse, e Cen cerrou os punhos para evitar que a impaciência desse lugar à raiva. Estava cansado, porque os vômitos de Gheli tinham-no acordado de noite. Ela acalmara e depois ele adormecera, mas esse sono fora amaldiçoado por sonhos estranhos e pensamentos incipientes.

Ao amanhecer, K’os dera a Gheli mais remédio, um chá feito com um pó verde-claro.

É o remédio mais forte que tenho dissera ela a Cen. Devia acalmar-lhe as dores, aliviar-lhe as tripas e tirar-lhe o mal do corpo. Mas esses espíritos da dor são muito fortes... Abanou a cabeça. É o que posso fazer por ela, proferiu em voz baixa. Talvez seja melhor pedires a uma das velhas que venha rezar.

Naquele momento, ao responder à pergunta de Rato Próximo, Cen deu consigo chorando, e teve que virar a cabeça para o lado.

Gheli ainda está doente disse ele. Há alguém na aldeia que saiba rezar?

O nosso xamã morreu há dois... Não... Há três Verões. Estava velho e o meu marido disse-nos...

Eu sei disse Cen, interrompendo-a. Rato Próximo era uma mulher de muitas palavras, e ele não tinha tempo para os seus disparates. Há mais alguém?

Talvez o velho Pé Castanho. Cen abanou a cabeça.

Rato Próximo fez uma careta.

Ele procura sempre mais do que a sua parte de comida, isso é verdade, mas sabe muitas preces. Era irmão do nosso xamã.

Cen olhou para Mosquito-Pólvora; a mulher estava amamentando a sua filha.

Ele sabe orações, afirmou ela, sem desviar o olhar do bebê.

Vou pedir-lhe que venha cá, disse Cen.

Ao afastar a aba da porta, ficou admirado ao ver Pé Castanho entrar de rompante na cabana.

Vinha falando sozinho, de olhos esbugalhados, e, das palavras que ele dizia, Cen só entendeu o nome de K’os.

O quê? O que aconteceu? gritou K’os. Agarrou-o pelos ombros e abanou-o até ele dizer:

O teu marido, aquele jovem de Rio Próximo, alguém o matou. Ele está morto. Está tudo cheio de sangue. Há sangue na cama... No chão...

Pé Castanho continuou a falar atordoadamente, mesmo ao seguir Cen e K’os quando estes saíram correndo da cabana.

Rato Próximo aproximou-se de Mosquito-Pólvora.

Ele disse que o marido de K’os morreu? perguntou ela em surdina. Ergueu a cabeça quando Folha Vermelha gemeu e se levantou na cama para vomitar, vômitos secos que deram em nada.

Esta... Achas que viverá? perguntou Mosquito-Pólvora apontando para Folha Vermelha.

Rato Próximo encolheu os ombros.

É estranho, disse finalmente Mosquito-Pólvora, servindo-se de um dedo para impedir que o bebê continuasse mamando. Ignorou o choro de protesto da criança, levantou-a e encostou-a ao ombro e deu-lhe palmadinhas nas costas até ela arrotar. Em seguida, aconchegou-a ao outro seio. Antes de adoecer, Folha Vermelha foi à nossa cabana e falou comigo e com o meu marido. Parecia ter medo de K’os, mas nós não pensamos muito nisso. Afinal, ela é mulher de um comerciante e diz que o pai também o era. Como podemos saber se uma mulher criada dessa maneira diz a verdade? Ela disse que K’os queria Cen para seu marido.

Por que motivo é que K’os queria Cen com um caçador jovem e forte como... Rato Próximo calou-se antes de pronunciar o nome do morto.

Durante algum tempo, nenhuma das mulheres falou e o silêncio entre elas era quebrado apenas pelo ruído suave que o bebê fazia mamando. Depois, Mosquito-Pólvora disse:

Antes de aquele caçador de Rio Próximo vir para a nossa aldeia, quando K’os vivia na minha cabana, tinha olhos para todos os homens, até para o meu marido.

E levou a mão à boca para disfarçar o sorriso.

Ela alguma vez falou em Cen? perguntou Rato Próximo.

Sim, às vezes, e vigiava-o. Lembro-me que ela...

Mas ela não o mataria... Porque havia uma mulher de... As palavras de Rato Próximo foram interrompidas por um grito de Folha Vermelha. Até o bebê largou o seio de Mosquito-Pólvora.

Quem é que morreu? Quem é que morreu? Digam-me! gritou Folha Vermelha.

Rato Próximo olhou para Mosquito-Pólvora e depois aproximou-se da cama de Folha Vermelha a coxear.

Gheli, tu estás doente afirmou ela em voz baixa. Não podes te preocupar com o que aconteceu. Tens tempo de pensar nisso quando te curares.

Foi Dança-no-Gelo? perguntou Folha Vermelha em surdina, de olhos muito abertos.

Cala-te, filha, disse Rato Próximo, pondo a mão na boca de Folha Vermelha. Cala-te agora. Não pronuncies o nome dele.

Folha Vermelha afastou a mão de Rato Próximo.

Não! gritou ela. Não! Ela disse-me que o faria. Ela disse-me que se eu não lhe desse Cen... Se eu não lhe desse o meu bebê...

Acalma-te, filha, insistiu Rato Próximo, obrigando Folha Vermelha a deitar-se. Acalma-te, acalma-te.

Folha Vermelha respirou fundo e fechou os olhos.

K’os matou-nos os dois, disse ela. Agora ela matou-nos os dois.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

O teu marido de Rio Próximo... Deixaste-o? perguntou Homem Noturno.

Dii puxou o cobertor de pele de lebre mais para os ombros. Ele fora para junto dela à noite. Em silêncio, possuíra-a e aceitara-a como sua esposa. Agora, de manhã, ainda antes de ela se levantar, crivava-a de perguntas.

“Seja razoável”, pensou ela. “Qual o marido que não faria o mesmo a uma nova esposa? Estiveste muito tempo afastada desta aldeia. Esqueceste-te de que a mãe dele, Olhos Grandes, chorava sempre que o marido ia caçar? As pessoas da família de Homem Noturno preocupavam-se muito com os que lhes pertenciam. As perguntas dele não significam nada mais do que isso. Preferias ter outro marido como Anaay?”

No entanto, o que poderia ela dizer a Homem Noturno? Para quê assumir as culpas pela morte de Anaay se fora K’os a envenená-lo? E porquê admitir que escondera o corpo dele?

Sim, deixei-o, respondeu ela. Não era mentira. Ela deixara-o, pelo menos o cadáver dele, e esperava não ter arrastado o seu espírito para aquela aldeia.

Por quê?

Ele não precisava de mim, respondeu ela em voz baixa. Tinha outra esposa.

O quê? perguntou Homem Noturno. Porque é que as mulheres falam sempre para dentro? Como queres que eu te ouça se falas tão baixo? Dii levantou o queixo e virou-se para ele.

Deixei-o, repetiu ela. Ele não era bom para mim.

Homem Noturno encolheu os ombros.

“Um motivo disparatado, sem dúvida”, pensou Dii. “Lembra-te daquilo que Caule Torto te contou sobre Homem Noturno e Aqamdax. Julgas que ele compreenderá os teus problemas com Anaay?”

Tu o culpas pela tua decisão de o abandonares? perguntou Homem Noturno, com um toque de amargura.

“Seja sensata”, pensou Dii. “Pensa nas tuas palavras antes de as jogares pela boca fora.”

Marido, serias capaz de ficar com uma mulher que tivesse matado os teus irmãos ou o teu pai? perguntou ela.

O teu marido de Rio Próximo matou o teu pai e os teus irmãos?

Não sei, mas foi alguém da aldeia dele. Eu já não conseguia viver mais tempo com eles.

Ah! exclamou ele. O seu olhar frio percorreu-lhe o rosto e fixou-se nas mãos cruzadas sobre os seios. Talvez eu agora tenha escolhido uma boa esposa.

Dii abriu o cobertor convidando-o a entrar, mas, apesar de ele ter erguido as sobrancelhas em sinal de aprovação, fez estalar os dedos e apontou para a lareira. Dii vestiu-se, acendeu o fogo e depois foi à despensa. Passara a primeira noite, sem dúvida a pior que lhe estava reservada como esposa de Homem Noturno. Suspirou de alívio e viu o seu bafo elevar-se na luz azul-escura da manhã.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Esqueceste-te de que eu não queria que K’os ficasse, disse Mosquito-Pólvora, levantando-se do local das mulheres e apontando com um dedo deformado para o marido, Trepador. Tu é que pensaste que ela viria para a nossa cama.

Uma onda de riso varreu as pessoas que se encontravam na cabana do chefe dos caçadores, e nas faces pálidas de Trepador surgiram duas manchas vermelhas.

Não te ouvi te queixares quando ela te deu um remédio para as articulações, respondeu ele.

Não interessa por que motivo ela está aqui ou a ajudou quando chegou à aldeia, disse Cen. Eu conheço-a de outra aldeia e estou convencido de que ela não mataria o próprio marido. Mas agora temos que decidir o que faremos com ela. Não podemos manter uma mulher como K’os nesta aldeia.

Ela diz que não matou o marido, declarou Pé Castanho.

Salta-Muito encontrou a faca dela debaixo do corpo do marido disse Mosquito-Pólvora. Eu sei que é de K’os. Ela trazia-a quando veio ficar conosco.

Expulsem-na, decidiu Pé Castanho. Estamos no Inverno. Ela não sobreviverá muito tempo sem cães nem comida.

Não, respondeu Cen. Se K’os matou o marido, não tem o direito de viver. Há algum homem que seja capaz de a matar? Eu o recompensarei. Tenho mercadorias e carne.

Nesta aldeia, quando alguém matou ou quebrou os nossos tabus, foi sempre expulso, disse Trepador. É preferível, sobretudo quando se trata de uma mulher. Tu não conheces os nossos costumes, comerciante.

Trepador fez sinal ao chefe dos caçadores, um homem de meia-idade, baixo e entroncado, que piscou os olhos como se olhasse para muito longe.

Primeira Lança, o que dizes?

Há muito tempo, quando eu era pequeno, o irmão dessa mulher viveu na nossa aldeia, recordou Primeira Lança. Era um homem bom, casado com a minha irmã. Foi ele que me ofereceu a minha primeira faca.

A faca de K’os estava junto da lareira, e viam-se manchas de sangue na pele de caribu que envolvia o cabo. Primeira Lança apontou com o queixo para a arma.

A faca encontrada debaixo do corpo é parecida com uma das que o irmão de K’os me fez. Esse irmão dela morreu há muito tempo. Talvez isto seja alguma vingança que o irmão morto de K’os planejou. Talvez ele a tenha encaminhado para a nossa aldeia.

Eu lembro-me desse irmão dela, disse o homem mais velho. Foi ele que fez esta lâmina. Reparem como foi esculpida. Alguém conhece um homem nesta aldeia que saiba fazer lâminas assim?

Primeira Lança fez sinal a Cen.

Sabes de onde é que veio a faca? perguntou ele.

Como já te disse, eu conheci K’os quando ela vivia na aldeia de Rio Primo. Ela tinha a faca com ela nessa época. É quase um amuleto para ela.

Ela alguma vez te disse onde a arranjou? Tenso, Cen respondeu:

Foi um dos irmãos dela que lhe ofereceu. Ouviu-se um murmúrio entre os presentes.

Há coisas que não são fáceis de entender, observou Primeira Lança, olhando para os homens e mulheres que estavam sentados junto das paredes da cabana. Mosquito-Pólvora, tu disseste que K’os te deu um remédio. Ele aliviou-te?

Um pouco.

E ela deu um remédio à mulher de Cen?

Deu.

E o remédio aliviou-a? Mosquito-Pólvora encolheu os ombros.

Gheli não está pior.

O que tem isso a ver com este assassinato? perguntou Cen.

Como é que uma mulher que cura também mata?

E se foi ela que matou? respondeu Cen. Vamos deixá-la ficar nesta aldeia? Arriscarias-te a que ela matasse outra vez?

Um dos caçadores levantou-se.

Se ela ficar, a minha mulher, eu, o meu pai e a mulher dele, partiremos, declarou ele.

Vários outros concordaram.

Expulsem-na insistiu Pé Castanho. Se foi ela que matou, o espírito do marido se vingará. Se não foi ela, ele a protegerá, e ela encontrará outra aldeia onde poderá viver.

Primeira Lança fez um sinal afirmativo, e os homens, novos e velhos, concordaram. Cen ouviu as mulheres, cujas vozes eram como uma brisa que agitava as paredes da cabana quando falavam entre si. Por fim, Mosquito-Pólvora levantou-se e disse:

Pé Castanho tem razão. Porquê arriscarmo-nos a fazer mal a uma pessoa inocente?

Quando os velhos saíram da cabana, Cen falou delicadamente com aqueles que o rodeavam. Talvez a decisão deles fosse a melhor. Quem era ele para os questionar? Nunca ficava muito tempo numa aldeia para compreender as lealdades e os ódios que ligavam as pessoas umas às outras e que davam consistência aos seus argumentos, que justificam as suas opções. Estava cansado, ansioso por regressar para junto da mulher e da filha.

Os homens da aldeia tinham deixado três jovens caçadores com K’os, e só por insistência de Cen é que lhe tinham amarrado os pulsos e os tornozelos e posto uma mordaça na boca. Ele conhecia-a há bastante tempo para saber que ela seria capaz de enfeitiçar qualquer homem se este lhe desse oportunidade.

Rato Próximo ficara junto de Gheli e naquele momento, ao regressar à sua cabana, Cen teve medo que K’os tivesse fugido e arranjasse uma maneira de matar a mulher dele, mas ao entrar, viu Gheli e Rato Próximo sentadas à lareira. Brincando com o bebê. Daes estava deitada num cobertor de pele de lebre, esperneando, tentando apanhar alguma coisa que Gheli tinha na mão.

Te sentes melhor, mulher? perguntou ele, apesar de a pergunta ser tola. Quem não via que ela estava melhor?

Rato Próximo olhou para ele e riu.

Acho que a tua mulher está boa.

Cen agachou-se junto dela e pôs a mão no ombro da mulher. Talvez a decisão de permitirem que K’os abandonasse a aldeia fosse a mais acertada. Ele tinha uma filha pequena e uma boa esposa. Na Primavera, voltaria à aldeia de Rio Primo e traria o filho, Ghaden, para viver naquela bela cabana com a irmã, Daes, e a sua nova mãe, Gheli.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

K’os inclinou-se sobre o corpo de Dança-no-Gelo e cortou o fio em que se encontrava o amuleto que ele trazia ao pescoço. Primeira Lança dissera-lhe que o podia tirar, mas que era um disparate ela querer ficar com ele. Julgaria ele que ela tinha medo do poder do amuleto, fosse ele qual fosse? Se não conseguira proteger Dança-no-Gelo da faca do assassino, então só era bom por um motivo: para provar ao povo de Rio Próximo que ele estava morto, e para o convencer a vingar a sua morte.

Ouviu os cochichos à volta dela daqueles que pensavam que ela matara o marido e os que estavam convencidos do contrário, debatendo a sua culpa. As velhas da aldeia tinham vestido em Dança-no-Gelo a sua melhor parka e, ao tirar o amuleto, K’os reparou que lhe tinham atado uma bainha à cintura. Ficou admirada ao ver o cabo manchado de sangue da sua própria faca saindo do couro que cobria a lâmina, e perdeu o fôlego quando percebeu que fora essa mesma faca que fora utilizada para matar o marido. Estava sedenta de sangue, aquela faca, mas prestara-lhe bons serviços. K’os usara-a para matar o pai de Chakliux, Asa-de-Gaivota, depois de este, Raposa-Que-Ladra e Dorme-Muito a terem violado e deixado quase morta. Como é que K’os podia permitir que ela molestasse Dança-no-Gelo?

Ergueu a voz num choro e depois, lavada em lágrimas, disse às mulheres que se encontravam mais perto dela:

Eu estava fazendo-lhe uma parka.

Olhou à sua volta, como se estivesse confusa, e em seguida o seu olhar pousou num cesto de pele de peixe. Apontou para ele, e as mulheres passaram-no de mão em mão até ele chegar a K’os. Ela tirou a parka quase pronta e ergueu-a para que todos vissem o desenho complicado feito com peles de cores claras e escuras.

Como a água no gelo, cochichou uma das mulheres. Depois, outra disse em voz baixa:

Se K’os tencionava matar o marido, porque lhe estava fazendo uma coisa tão bonita?

K’os pôs a parka na cabeça e executou uma dança lenta de luto, soluçando. Por fim, atirou-se sobre o corpo de Dança-no-Gelo e tapou-o com a parka, do queixo até as virilhas. Enterrou a cabeça na pele e chorou, angustiada, mas, ao mesmo tempo, meteu a mão debaixo da parka do marido e tirou a faca da bainha. Enfiou-a na manga, no momento em que três mulheres a afastaram do cadáver, uma praguejando e as outras duas dirigindo-lhe palavras de alento. Levaram-na para o túnel de entrada. Aí, K’os pegou o fardo que lhe haviam dado, saiu e chamou os dois cães que a tinham autorizado a levar. Eram os cães de Dança-no-Gelo, um dos quais puxava um trenó carregado com a tenda e os postes, comida e alguns dos pertences de K’os.

Ao sair da aldeia, entoou cânticos fúnebres até ter certeza de que já não lhe ouviam a voz.

Quando o Sol estava prestes a enfiar-se de novo na terra, K’os acampou junto de um tufo de abetos. Armou a tenda, prendeu os cães à entrada e acendeu uma fogueira com o nódulo de abeto incandescente que trazia num recipiente de casca de bétula pendurado à cintura.

Aninhou-se num dos cães. Ele afugentou-a. K’os ameaçou-o e o animal meteu a cauda entre as pernas, acovardou-se e por fim aceitou um pedacinho de carne seca que ela lhe deu. A noite seria longa e ela tinha frio, mas não morreria.

Só o seu ódio a levaria à aldeia de Rio Próximo, mas um dia voltaria a Quatro Rios. Talvez entrasse lá às escondidas, ou com guerreiros, mas voltaria. Depois, Cen sofreria, mas quem poderia ter morto Dança-no-Gelo a não ser ele? Só ele tinha força e motivos para tal.

É claro que, para ele fazer tal coisa, era porque Folha Vermelha lhe falara das suas ameaças. Não lhe contara toda a verdade, mas apenas uma parte, K’os tinha certeza disso.

K’os sorriu e procurou no fardo até encontrar a sua bolsa dos remédios. Tirou o saquinho atado com fita vermelha. Pelo menos, consolava-se ao pensar em Folha Vermelha vomitando a vida, sangrando pelo nariz e pela boca até os vômitos e as fezes ficarem reduzidos a sangue seco.

K’os atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Nessa noite, apesar do frio, dormiu bem.

 

                   ALDEIA DE QUATRO RIOS

Cen ajoelhou-se ao lado de Folha Vermelha e acordou-a devagarinho.

Gheli?

Ela ouviu a voz dele como que em sonhos, abriu os olhos lentamente e sorriu.

É de manhã. Sentes-te bem? Posso ir buscar lenha? Voltarei o mais depressa que puder.

Vai, disse ela, falando com dificuldade devido à secura na garganta. Mas, primeiro, me dá um pouco de água?

Ele abriu um odre, levou-o à boca, e quando ela acabou de beber, aconchegou-lhe a roupa da cama nos ombros. Ela viu-o sair, esperou algum tempo e depois levantou-se. Aproximou-se da pilha de cestos, escolheu um feito de peles de salmão escuras e translúcidas, cozidas lado a lado, com a cauda para baixo para formar a base. Tirou uma pele de caribu do tamanho de uma mão. Estava atada com tendão vermelho, com quatro nós. Aproximou-se do fogo e serviu-se de um pau para enfiá-la no meio das brasas.

Dobrou os dedos. Era uma mulher grande, um pouco desajeitada, mas as suas mãos eram ágeis como as de uma criança, hábeis no manejo da agulha e do furador, suficientemente capazes de substituir uma porção de raiz de salgueiro por uma de erva-de-são-cristóvão e de o fazer tão depressa que ninguém dava pela troca, mesmo que estivesse perto.

Enquanto o veneno ardia, Folha Vermelha pensou no saquinho inofensivo que K’os trazia agora na sua bolsa dos remédios. E perguntou a si própria quantas outras vidas ela salvara. Talvez compensassem em número aquelas que K’os tinha roubado.

 

                   FONTE DOS CAÇADORES

Aqamdax limpou a boca com as mãos e voltou a deitar-se na cama. Falcão da Neve tentou lamber-lhe a face, mas ela afastou o animal. Apontou para as esteiras e a cadela deitou-se.

Era a terceira ou a quarta manhã que ela acordava tonta e com náuseas?

Não preciso adoecer, Falcão da Neve, disse ela ao animal.

Fechou os olhos. Histórias de pessoas e das suas doenças desfilaram na sua mente, gozando dela com remédios que ela não tinha, até que ela se refugiou nas histórias úteis que as mães contavam às filhas. Por vezes, essas histórias eram aquelas que melhor aconselhavam as mulheres.

De repente, Aqamdax começou a rir. Falcão da Neve ganiu e encostou o nariz frio no rosto dela. Aqamdax abraçou a cadela, mas esta afastou-se e agachou-se no chão, com o traseiro empinado e abanando a cauda.

Isso é uma brincadeira? perguntou Aqamdax, sentando-se e acariciando o pelo do pescoço do cão. Sim, Falcão da Neve, uma brincadeira.

Que disparate não ter pensado... Mas ela não enjoara quando estivera grávida do filho, e os seus períodos não eram regulares desde o nascimento da criança.

Agora tens duas pessoas para cuidar até que Chakliux nos encontre, disse ela a Falcão da Neve.

Colocou a mão debaixo da parka e acariciou o capuz macio que fizera para o bebê morto. As lágrimas vieram-lhe aos olhos, e desatou a chorar, lamentando a criança que morrera e consolando-se com o novo bebê que trazia junto do coração.

 

Sok piscou ao avistar a floresta em forma de lágrima. O povo Primo chamava-lhe Fonte dos Caçadores. Uma vez, Leva-Mais conduzira-o até ali quando andavam caçando alces. Sok rira da relutância do velho em partilhar o seu segredo. Chakliux já lhe falara na fonte. Julgaria Leva-Mais que Chakliux tinha segredos para o seu próprio irmão?

Sok abanou a cabeça. O que seria dele sem o irmão? Suspirou e olhou de novo para as árvores cinzentas e esguias. Subitamente, agachou-se e pegou a lança, pronto a atirá-la.

Um lobo estava na orla da floresta. Não, não era um lobo; a cauda do animal estava enrolada quase até ao dorso. Era um cão. Não era tão perigoso como um lobo, pelo menos era mais previsível mas mesmo assim ele agarrou a lança. Talvez o animal tivesse vindo com um caçador que parara na fonte, muito provavelmente um dos homens da aldeia de Rio Primo. Sok levantou a voz e gritou. O cão baixou a cabeça e olhou para ele. Depois, começou a abanar a cauda.

Sok protegeu os olhos com as mãos e piscou. Era Falcão da Neve! Sim, era a sua cadela, Falcão da Neve. Aqamdax devia tê-la emprestado a um caçador para transportar alguma coisa durante uma caçada. Ou talvez um dos homens tivesse resolvido levar Chora-Alto à caça e o rapaz tivesse levado Falcão da Neve com eles. Sok desatou a correr, mas as raquetes obrigavam-no a uma marcha desajeitada.

Chora-Alto! gritou ele, com o pulso acelerado, na esperança de ver o filho.

Porém, não houve resposta. Se tinham trazido Falcão da Neve, porque estava o animal solto, sem fardo nem arnês? Sok estendeu a mão e aproximou-se devagar.

Roeste a correia? perguntou ele em voz baixa, suave. Se o animal tivesse fugido e andasse à solta desde que ele e Chakliux tinham partido da aldeia, não se deixaria apanhar facilmente. Talvez ele obedecesse a Chakliux, mas não a Sok.

Falcão da Neve! Falcão da Neve! chamou ele baixinho.

Falcão da Neve baixou a cauda. Deu um salto e depois deitou-se de barriga para baixo. Sok tirou um pedaço de carne seca da parka. Não tivera presença de espírito para trazer comida da tenda de Chakliux. Sempre que procurava no seu fardo, ficava admirado com o que trouxera. Ninharias: lâminas ainda mal afiadas, grandes rolos de couro cru e um pacote de dentes de caribu. Pouca carne e nem um par de botas sobressalentes.

De repente, Falcão da Neve arrebitou as orelhas e olhou para as árvores. Antes que Sok pudesse impedi-la, a cadela desatou a correr para a floresta. Ele foi atrás dela. Se o animal tivesse vindo com caçadores, talvez ele os encontrasse na fonte. Já não tinha água; bebera a última ao amanhecer. Os dias frios e secos, com pouca luz mas com o céu limpo, pareciam sempre tirar-lhe a água do corpo, deixando-o ressequido, com os lábios rachados e os olhos ardendo.

Sok aproximou-se de outras pegadas, todas feitas por uma única pessoa, por alguém com uns pés pequenos. Não era um rapaz. Os de Rio Primo teriam obrigado Chora-Alto a sair da aldeia depois de ele e de Chakliux terem partido? Não, havia lá muita gente boa que não permitiria tal coisa. Talvez fossem as pegadas de uma mulher. Sim, os dedos viravam-se para dentro. Como é que uma mulher podia andar se levasse uma carga pesada ou puxasse um trenó? Talvez fosse uma velha, alguém que tivesse se oferecido para sair da aldeia a fim de haver mais comida para as crianças. Mas qual o louco que teria se dado ao luxo de levar Falcão da Neve, uma cadela de olhos dourados, prenha e uma das melhores da aldeia?

Depois, Sok percebeu. Ligige’, evidentemente, fora Ligige’. Afinal, ela era de Rio Próximo, a mais característica de todas, com exceção dele, dos filhos e de Yaa. E talvez ela tivesse roubado Falcão da Neve, sobretudo se tivesse sido obrigada a partir.

Ligige’! gritou Sok, virando-se e chamando em todas as direções.

Mas a voz que lhe respondeu não era a de Ligige’. E fez-se ouvir tão inesperadamente que ele deu um salto e por pouco as raquetes não o fizeram perder o equilíbrio. Aproximou-se de um amieiro e agarrou-se ao tronco para não cair.

Sok? Estás aí? Onde está o meu marido?

Sok ficou olhando para Aqamdax antes de conseguir responder, e depois disse apenas:

Onde está Ligige’?

Ligige’ está aqui? perguntou Aqamdax e, com a chuva de perguntas, Sok nem percebia se ainda estava na tenda de Chakliux e continuava sonhando.

Falcão da Neve saltava à volta deles, dançando nas trilhas que atravessavam as árvores, e Aqamdax repreendeu-a, afastando-a de uma armadilha montada na trilha de um animal. A pausa permitiu que Sok alinhasse os pensamentos. Apontou para as pegadas de Aqamdax e disse:

Segui Falcão da Neve até aqui. Quando vi as tuas pegadas, julguei que tivessem expulsado alguma velha da aldeia. Julguei que fosse Ligige’.

São as minhas pegadas, afirmou Aqamdax. Homem Noturno obrigou-me a partir.

Franziu a testa e, antes que ele lhe fizesse as muitas perguntas que tinha em mente, ela indagou:

O meu marido está contigo? Sok abanou a cabeça.

Estou sozinho.

Onde está Chakliux? perguntou ela.

A sua voz era um lamento, um misto de exigência e de negação, e Sok não conseguiu encará-la.

Se um de nós tinha que morrer, não entendo porque foi Chakliux. Bem sabes que eu daria a vida por ele, respondeu ele em voz baixa.

Aqamdax ajoelhou-se, devagar. Enrolou-se como se fosse uma bola e Sok ajoelhou-se a seu lado. Abraçou-a e deixou que os seus gritos se juntassem aos dela, e até Falcão da Neve levantou a cabeça e os acompanhou no seu desgosto.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Ligige’ sacudiu a neve do seu monte de lenha e desprendeu vários pedaços com um pontapé. Estava concentrada num cesto que andava fazendo; não era um cesto de pele de peixe daqueles que fazia quando era criança mas de erva, como Aqamdax lhe ensinara. Os pontos tinham-se soltado num dos lados e o cesto estava abaulado. Talvez se ela desfizesse essa parte e voltasse a tecê-la...

Pegou os pedaços de lenha que estavam espalhados, gemeu ao endireitar-se e voltou para a cabana. Em geral, era Ghaden e Chora-Alto que lhe traziam a lenha, mas Espreita-o-Céu levara os rapazes à caça nessa manhã. Ligige’ esperava que eles tivessem sorte. A carne fresca no Inverno aquecia tanto o corpo quanto um bom fogo.

Ligige’ inclinou-se ao chegar ao túnel e atirou os pedaços de madeira lá para dentro, um por um. Yaa empilhava-os mais tarde, depois de acabar de raspar a pele de caribu que ela lhe dera. A menina precisava fugir um pouco ao ambiente fumacento da cabana.

Ligige’ esfregou os olhos. No Inverno, a lareira acesa deixava-os sempre vermelhos e lacrimejantes. Às vezes, ela ia dar um passeio pela aldeia só para se ver livre da fumaça. Respirou fundo. O ar estava limpo, mas tão frio que a fazia tossir.

Embora a Primavera ainda viesse longe, os dias pareciam já estar um pouco mais claros e maiores. Ou talvez fosse apenas o desejo de uma velha, pensou ela.

Quando baixou a cabeça para entrar no túnel, houve alguma coisa que lhe chamou a atenção, alguém que estava no topo de uma das colinas a norte da aldeia.

Seria Espreita-o-Céu? Já? Uma semente de medo alojou-se no coração. Os rapazes estariam bem?

Um pouco à frente da sua cabana via-se um desenho complicado de marcas de raquetes que iam até as colinas. Ligige’ seguiu-os até a neve ceder e lhe chegar aos joelhos. Sentou-se, desenterrou os pés, voltou engatinhando para junto da sua cabana e depois levantou-se outra vez.

Não, pensou ela, aliviada, não era Espreita-o-Céu. O homem era muito grande e caminhava pesadamente. Quem seria, então? Talvez um comerciante, ou pior, alguém que fora expulso pelo seu próprio povo por uma razão ou por outra. Eles não precisavam de ninguém assim.

Era melhor ir avisar os homens. Ligige’ dirigiu-se à cabana dos caçadores, andando o mais depressa que podia no caminho gelado e escorregadio. Raspou na aba da cabana de pele de caribu, gritou, e Leva-Mais respondeu. Na voz do homem havia um toque de irritação.

Venha aqui fora, exigiu Ligige’, sem paciência para a indelicadeza dele. Quando estava com outros homens, Leva-Mais agia como se tivesse o direito de tratar as velhas como escravas.

O que é? perguntou Leva-Mais do interior da cabana. O que estás dizendo? Quem é? Ligige’?

Sim, respondeu Ligige’. Vem aí alguém. Um homem. Vi-o e agora vim avisar-te.

Virou as costas à cabana e olhou de novo para os montes, fingindo não reparar que Leva-Mais se aproximara.

Estou aqui sozinho, disse ele.

Ligige’ resmungou mas não disse nada. Ele era de Rio Primo; ela não era. Talvez ele reconhecesse quem vinha. Porém, quando o homem chegou ao topo do monte mais próximo, Ligige’ reconheceu-o e pronunciou o seu nome em voz baixa:

Sok.

Apesar de ser pequena, a aldeia tinha bom aspecto, as cabanas eram resistentes e a fumaça saía em espiral pelos orifícios.

-Só a cabana dele é que tinha a aparência desleixada dos abrigos desabitados.

Havia várias mulheres nos caminhos da aldeia. Ele reconheceu Ligige’ de pé, junto da cabana dos caçadores. Estava alguém junto dela... Seria Leva-Mais? Sok ergueu uma mão para a saudar e sentiu que o peso daquilo que tinha para lhes contar lhe abrandava o passo. Depois pensou nos filhos, e a tristeza e a alegria misturaram-se subitamente no seu coração.

Leva-Mais tinha um cobertor enrolado em volta dos ombros como se tivesse saído às pressas da cabana dos caçadores. Ficou encostado à entrada, mas Ligige’ foi ao encontro de Sok e as suas primeiras palavras não lhe causaram surpresa.

Onde está Chakliux?

Por qualquer motivo, Sok não conseguiu responder-lhe. Fingiu ignorá-la, saudou Leva-Mais e perguntou:

Os meus filhos?

Estão bem, respondeu Leva-Mais. E Ligige’ acrescentou:

Pássaro Amarelo tem o bebê na cabana dela. Ele está crescendo depressa. Espreita-o-Céu levou Chora-Alto e Ghaden à caça esta manhã.

Sok ficou desapontado por não ver logo Chora-Alto, mas satisfeito por Espreita-o-Céu ter desempenhado o papel de pai.

E Chakliux? perguntou Ligige’ outra vez.

Sok reparou que Leva-Mais, tremendo, voltara para a cabana.

Espera, tio, gritou Sok ao homem, voltando-se em seguida para Ligige’. O meu irmão não volta mais.

Sok baixou a cabeça e começou a explicar. Quando Leva-Mais e Ligige’ se aproximaram, ele percebeu que estava falando tão baixo que eles nem o ouviam.

Levantou a cabeça e recomeçou a falar.

Passamos muitos dias juntos na tenda de caça dele, disse Sok. Durante esse período, o meu irmão cuidou de mim. Manteve a fogueira acesa. Todas as noites a minha falecida mulher vinha com o vento e a tempestade e tentava levar-me, mas Chakliux afastava-a com preces e histórias.

Eu vivia em transe. Não distinguia o dia da noite e ouvia as palavras do meu irmão como se ele falasse de muito longe. Na manhã em que vim a mim, descobri que o fogo estava apagado. A panela estava vazia e o espírito do meu irmão fora roubado.

Ligige’ começou a chorar.

Creio que foi a vingança da minha mulher pelas histórias e preces dele, disse Sok a Leva-Mais. Voltei à aldeia para me certificar de que ela não tinha roubado também os meus filhos.

Eles estão bem, não foram roubados, garantiu-lhe Leva-Mais, encaminhando-o para a cabana dos caçadores.

Ligige’ ficou lá fora, sozinha, até que o seu choro atraiu as pessoas que se encontravam junto das lareiras.

Achas que trarão o corpo dele para cá? perguntou Dii.

Era de noite. Durante todo o dia, Dii e Olhos Grandes tinham acompanhado as mulheres no seu luto, mas o marido dela desculpara-se e ficara na cabana da mãe.

Depois de Espreita-o-Céu voltar com Chora-Alto e Ghaden, foi ver Homem Noturno, e, apesar de ambos terem ido à cabana dos caçadores, Homem Noturno não se demorou.

Dii repetiu a pergunta e o marido estremeceu como se as palavras dela o tivessem despertado de um sonho.

Espreita-o-Céu disse-me que ele e Primeira Águia iriam buscá-lo.

Se a falecida mulher de Sok é que roubou o espírito do irmão dela, talvez devessem deixar lá o corpo. A esta hora os lobos já o encontraram.

Sabias... ia dizendo Homem Noturno, calando-se entretanto.

Dii viu-lhe a fúria no rosto, sentiu-a na sua voz. O que se passaria agora? Ele odiava Chakliux e não fazia segredo disso. Devia estar satisfeito por Chakliux ter morrido.

A esposa mais nova de Leva-Mais falou-me sobre algo, disse ele finalmente.

Dii sentiu o coração parar-lhe no peito. A mulher de Leva-Mais também falara com ela, dera-lhe a boa notícia de que Aqamdax não morrera e estava vivendo na Fonte dos Caçadores.

A mulher de Leva-Mais é pateta, afirmou Dii. Anda sempre dizendo coisas que não são verdade.

Homem Noturno encolheu os ombros. Apontou com o queixo para a mãe.

Deste-lhe comida? perguntou ele.

Olhos Grandes estava sentada, enrolando tendões sem parar, como se não os ouvisse.

Ela comeu duas vezes esta manhã e dormiu um pouco. Homem Noturno disse algo em voz baixa e recostou-se de novo no espaldar de salgueiro entrelaçado que Dii lhe fizera. Ela levou-lhe uma tigela de carne, mas ele afastou-a e perdeu-se de novo nos seus pensamentos.

Dii retomou a costura, enfiando o seu furador ao longo da orla de uma prega. Pensou em Chakliux. Conhecia-o há muito tempo. Era um homem bom e um caçador hábil no manejo da lança, apesar do seu pé de lontra.

Pensou no corpo de Chakliux, que decerto já fora descoberto pelos lobos e pelos corvos. Aproximou mais a costura dos olhos e tentou afastar imagens de morte pensando em furadores e em linhas feitas de tendão.

De repente, Homem Noturno deu uma gargalhada. Surpreendida, Dii levantou a cabeça. Já alguma vez o ouvira rir? Olhou para ele, que parecia esquecido da presença dela na cabana.

Quem a protegerá? perguntou ele. Tinha os olhos fixos no lume, como se falasse com as chamas. O marido morreu, e por estes dias, os homens...

De repente, Homem Noturno atirou a cabeça para trás e as suas gargalhadas chegaram ao telhado da cabana.

Ligige’ acordou ao ouvir uma mulher chamar. Olhou para Ghaden e para Chora-Alto. Estavam os dois dormindo, exaustos com a caçada e depois com a alegria pelo regresso de Sok e a tristeza pela morte de Chakliux. Yaa levantou-se, apoiada num cotovelo, e disse em voz baixa:

Alguém está lá fora.

Ligige’ saiu da cama engatinhando e entrou no túnel frio. Afastou a aba exterior.

É Dii, disse a mulher.

Ligige’ repreendeu-a por andar lá fora tão tarde e por trazer ar frio para a sua cabana, mas mandou-a entrar. Reuniram-se à lareira, e Ligige’ estendeu as mãos para as aquecer.

Não posso falar, disse Dii.

Não, não podes, repetiu Ligige’. A menos que queiras ficar aqui sentada enquanto nós dormimos.

O meu marido julga que eu fui buscar carne na nossa despensa.

Mas tu vieste cá? Por quê?

Homem Noturno sabe que Aqamdax está viva e que está perto da Fonte dos Caçadores. Tenciona ir lá amanhã.

Ligige’ tapou a boca com as mãos.

Como é que ele descobriu? perguntou ela, abafando as palavras com os dedos.

Leva-Mais disse à mulher mais nova. Bem sabes que ela não consegue guardar um segredo.

Durante algum tempo, Ligige’ deixou-se ficar sentada, mas depois pegou as mãos de Dii.

Dizes que ele tenciona sair de manhã? perguntou ela.

Dii fez um sinal afirmativo.

Atrasa-o o mais que puderes. Eu vou dizer a Leva-Mais que vá avisar Aqamdax.

Achas que ele irá?

Se ele não for, vou eu, declarou Ligige’.

 

                   FONTE DOS CAÇADORES

Aqamdax orgulhara-se da sua cabana, mas agora, sentada com Ligige’ e Leva-Mais, era como se a visse através dos olhos dos outros. Via como ela estava atulhada, a geada nas paredes, os postes tortos, o ar frio, viciado e sem o cheiro acolhedor da carne cozida. E viu-a com os olhos daquilo que ela era agora, viúva, sem marido e com o coração destroçado.

É pequena, observou ela com uma voz débil, referindo-se à cabana.

Mas Ligige’ atalhou:

Saíste-te muito bem.

Aqamdax baixou a cabeça, aceitando o cumprimento, e deixou que as palavras amáveis da velha aliviassem um pouco a sua tristeza.

Eles tinham trazido o velho cão de Ligige’ e atado pedaços de carne de caribu seca ao dorso do animal. Aqamdax aceitara a carne com gratidão, e agora dispunha uma parte em esteiras de erva, agradecida por poder simular uma certa hospitalidade.

Então Sok chegou à aldeia e contou-vos, conseguiu ela dizer, com uma voz tensa e fraca, como a de uma criança. Então entenderam porquê. Aqamdax levou a mão à face, negra de fuligem e emoldurada pelo cabelo curto e espetado, acrescentando: Obrigada por terem vindo acompanhar-me no meu desgosto.

Depois reparou no olhar que eles trocaram e sentiu uma dor súbita.

As crianças? perguntou, sem conseguir pronunciar os seus nomes.

Ligige’ levantou a mão, de palma para fora.

Não morreu mais ninguém. As crianças estão fortes. Pássaro Amarelo tem leite em abundância e o bebê está crescendo.

Viemos por causa de Homem Noturno, interrompeu Leva-Mais, deixando Aqamdax à espera enquanto ele enchia a boca de carne seca, espalhando a comida à medida que falava. Primeira Águia e Espreita-o-Céu foram buscar o corpo do teu marido, disse ele, fazendo uma pausa para mastigar.

Aqamdax ficou imóvel, sem dar pelas lágrimas que lhe saltavam dos olhos, até que Ligige’ se inclinou para a frente e lhe limpou a face com os seus dedos deformados e calosos.

Ainda bem, murmurou Aqamdax, tão triste que as suas palavras mal se ouviram.

Alguém disse a Homem Noturno que tu estavas aqui, e agora que os caçadores partiram, ele acha que é uma boa oportunidade para vir à tua procura, disse Leva-Mais. Engoliu e depois acrescentou: Ele aceitou Dii como esposa. Eu já te disse?

Já, respondeu ela baixinho.

Ontem à noite, ele disse a Dii que te matará. Tencionava sair esta manhã, mas Dii está tentando atrasá-lo.

Tu não podes ficar aqui, Aqamdax, disse Ligige’.

 

Para onde iria? perguntou ela. Agora que ele sabe que eu estou viva, virá atrás de mim.

Talvez caia uma nevasca e a neve esconda as tuas pegadas, disse Leva-Mais. Ou o vento.

O peso do desgosto de Aqamdax sobrecarregava-a, impedindo-a de pensar. Ela não tinha tempo para se preparar. Não podia ficar ali. E com o filho de Chakliux na barriga...

Pousou a mão no ventre e viu Ligige’ olhando para ela.

A velha inclinou a cabeça.

Tu não... Tu não estás... Aqamdax empinou o queixo, dizendo:

Trago no ventre o filho do meu marido. Ligige’ inclinou-se para a frente, pousou os cotovelos nos joelhos e encostou a testa às mãos.

Deixa-me pensar, pediu ela.

Ficaram em silêncio. Aqamdax tentava que os seus pensamentos se sobrepusessem ao medo. Falcão da Neve ganiu e encostou-se nela. Por fim, Ligige’ levantou a cabeça, abanando-a e soprando como se tivesse acabado de tomar uma decisão. Depois, disse:

Às vezes, não é bom ser velha, mas isto será mais fácil para mim do que ser expulsa de uma aldeia, sem comida nem lenha, quando já não tenho préstimo para nada.

Aqamdax franziu a testa e tentou entender as palavras de Ligige’. Em seguida, a velha apontou para Leva-Mais.

Volta para a aldeia. Se Homem Noturno ainda não tiver partido, faz o que puderes para o afastar mais um dia.

E tu, velha? perguntou Leva-Mais.

Eu e o meu cão ficaremos aqui com Aqamdax e aquele meu sobrinho que ela traz na barriga. Não te preocupes. Se nos deres tempo, Homem Noturno não a encontrará.

Quando Leva-Mais partiu, Ligige’ foi com ele até a floresta, longe da cabana, para Aqamdax não ouvir o que ela dizia.

Se eu não voltar, diz a Dii que tem que tomar conta daquelas crianças que vivem na minha cabana, recomendou ela.

Julgas que Homem Noturno a deixa levá-las?

Diz-lhe que não precisa de se preocupar com Homem Noturno, declarou Ligige’, carregando com um dedo ossudo no peito dele. E tu, velho, vê se encontras um marido para Dii. Alguém que a ajude a cuidar daquelas crianças. Alguém que seja um bom caçador. Talvez Sok, se ele recuperar as forças. Talvez Espreita-o-Céu ou Primeira Águia

A velha riu.

Nem penses em seres tu a ficar com ela. Já tens problemas que cheguem com as tuas mulheres.

Em seguida, Ligige’ voltou para junto de Aqamdax

 

                   A NORTE DA ALDEIA DE RIO PRIMO

Chakliux caminhou para oeste durante dois dias, dormiu numa gruta que escavou na neve e depois, como não conseguiu encontrar Sok, regressou à sua tenda de caçador. Começou a embalar as suas roupas e as peles da cama. Levou comida suficiente para mais três dias. Deixou o resto. Era sempre possível que Sok abandonasse a mulher morta e voltasse para a aldeia de Primo. Se parasse ali para dormir e chegasse antes de os lobos descobrirem a despensa que Chakliux cavara no solo gelado por baixo da tenda, teria comida mais do que suficiente para a viagem.

Chakliux fechou os olhos e apertou-os com os dedos. Apesar dos óculos de madeira, o brilho da neve nos últimos dias de busca tinham-lhe provocado dores de cabeça e deixado os olhos vermelhos e inchados.

Vivera a maior parte da sua vida sem conhecer Sok, sem perceber que tinha um irmão. Quando fora pela primeira vez à aldeia de Rio Próximo para casar com a filha do xamã e assim fazer a paz entre as aldeias de Rio Primo e de Rio Próximo, Sok comportara-se mais como um inimigo do que como um aliado. Mas agora Chakliux não sabia como viver sem o homem que aprendera a amar não só como irmão mas também como amigo. Lembra-te disto, disse ele, para se consolar. Tu fizeste o que pudeste. Agora tens de ir cuidar das tuas mulheres e dos filhos que elas te dão. Não esqueças de que também tens os filhos de Sok para criar.

Diria a Chora-Alto e a Leva-Muito que o pai deles fora um homem bom e honrado. Diria que ele era hábil no manejo da lança e os ensinaria a caçar. Através deles, uma parte de Sok continuaria a viver.

Chakliux pôs o fardo às costas, apertou as raquetes e iniciou a viagem para a aldeia de Rio Primo.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

A noite estava clara e a Lua dava uma luz fria. Dii estava enfiada nas peles da sua cama, quase dormindo, quando ouviu alguém raspar na parte lateral da cabana, junto da cabeça dela. Sentou-se, viu que Homem Noturno estava a dormir e foi até ao túnel. Abriu a aba exterior e estremeceu com o ar frio que entrou.

Quem é? perguntou ela em surdina, e ficou admirada quando Leva-Mais lhe respondeu.

O homem entrou no túnel e inclinou-se para dizer:

Homem Noturno ainda está aqui?

Está, respondeu Dii. Onde está Ligige’?

Ficou com Aqamdax. Ajudando-a a embalar as coisas e a sair da Fonte dos Caçadores.

O meu marido tenciona partir de manhã, informou ela. Posso fazer alguma coisa?

Ligige’ diz que o retenhas mais um dia na aldeia.

Dii olhou para a escuridão. Para manter Homem Noturno na aldeia nesse dia, ela fingira que Olhos Grandes estava doente. Discutira por causa da velha, suplicando ao marido que ficasse, deixando que as lágrimas o convencessem que a mãe estava morrendo. Mas à tarde, Olhos Grandes perdera a paciência com os remédios de Dii e levantara-se da cama sempre que tinha oportunidade. Dii teria de arranjar outra maneira de obrigar o marido a ficar.

É muito longe a Fonte dos Caçadores até a aldeia, sobretudo para um velho que anda devagar, disse Leva-Mais. Dii ouviu-o rir, um risinho quase abafado pelo tufo espesso do capuz da parka. Quando vinha para cá, pensei numa coisa que talvez dê resultado.

Na manhã seguinte, Caule Torto foi a primeira a entrar na cabana de Dii. O seu cajado raspando acordou Dii, que a saudou e depois se apressou a reacender o fogo e a aquecer a comida.

Venho agradecer ao teu marido, disse Caule Torto. Esta manhã, quando fui à minha despensa, vi lá um dos fardos dele, cheio de carne. Nem queria acreditar que ele me tivesse dado tanta.

O seu tom de voz alegre acordou Homem Noturno. Quando ele viu a velha na cabana, sentou-se, sobressaltado.

A minha tia veio agradecer-te, marido, disse Dii, oferecendo a Homem Noturno uma tigela de caldo.

Agradecer-me? indagou ele, com a voz ainda rouca do sono. Olhou para a tigela que tinha nas mãos, abanou a cabeça como se tentasse recordar-se e depois perguntou. O quê?

O fardo de carne que deixaste na minha despensa, disse Caule Torto. Eu sei que é teu. O fardo tem a tua marca. Dois círculos vermelhos. É a marca dele, não é? perguntou a velha a Dii.

Eu não deixei carne...

Homem Noturno foi interrompido por pragas e latidos à entrada da cabana. Leva-Mais entrou de rompante. Arrastava o cão mais possante de Homem Noturno.

Tenho este, mas não sei onde estão os outros, disse ele. Tive que agarrar o meu primeiro, mas depois fui atrás dos teus. Furador disse que alguém tentou soltar também os cães de Primeira Águia. Ela julgou que fossem os rapazes da aldeia de Rio Próximo. Ouviu-os, mas quando chegou lá fora eles fugiram. Um parecia o filho de um homem que em tempos a tomou como escrava. Ela diz que eles também foram às despensas.

Homem Noturno levantou-se da cama com um ronco e entornou a tigela de caldo nos cobertores. Em seguida, Pássaro Amarelo apareceu no túnel com um par de luvas na mão.

São para Homem Noturno disse ela, misturando as lágrimas com os agradecimentos. Pela carne que ele deixou na minha despensa.

A cabana foi-se enchendo com outras velhas que também vinham agradecer a Homem Noturno, até ele ficar tão apertado que não podia se mexer.

Quando elas saíram, deixando os seus presentes junto da lareira, Homem Noturno saiu, resmungando, e foi à procura dos cães. Ao anoitecer, só tinha encontrado um. Regressou à cabana, com o rosto vermelho do frio, o nariz pingando e as perneiras molhadas pela neve. As suas primeiras palavras foram um ronco, tão alto que até a sua velha mãe levantou a cabeça dos tendões que estava enrolando e o repreendeu com uma série de monossílabos, o que levou Dii a morder a língua para não rir.

Quando Olhos Grandes acabou a sua tirada, Dii abraçou o marido e desatou a soluçar, louvando a sua generosidade para com as velhas da aldeia e censurando-o depois por ter deixado a mulher e a mãe com tão pouca carne para o Inverno.

Homem Noturno tentou interromper o discurso da mulher mas por fim desistiu. Despiu a parka e as perneiras, atirou-as para a zona das mulheres e pisou as esteiras da cama. Recusou-se a comer, deitou-se e virou as costas à mulher, tapando a cabeça com um cobertor e berrando:

Deixa-me dormir!

 

                   FONTE DOS CAÇADORES

Ligige’ cantou uma canção de Rio Próximo, uma das suas preferidas. Por respeito ao povo Primo, não a cantava desde que saíra da aldeia de Rio Próximo. Pôs mais lenha na fogueira, mas ainda tinha frio. Não pensara que a sua estadia na Fonte dos Caçadores poderia durar mais de um dia. Leva-Mais saíra-se melhor do que ela julgava e conseguira atrasar a vinda de Homem Noturno.

Ligige’ obrigara Aqamdax a levar a maior parte das suas coisas, além de duas peles para a tenda, e ficara apenas com um abrigo tosco feito de ramos de abeto, uma esteira servindo de porta e uma camada de galhos e de erva morta no chão. Pelo menos, tinha lenha suficiente para alimentar o fogo.

Estremeceu ao pensar no que tinha que fazer e cantou de novo a canção de Rio Próximo, mas, como as palavras não lhe afugentaram o medo, começou a falar com o cão, que estava deitado a seu lado junto da lareira.

Eu sou uma velha, disse ela. Quantos Invernos mais poderei viver?

Decerto o fato de salvar Aqamdax e o seu bebê valiam a vida de uma velha. Ligige’ esperava que Aqamdax encontrasse o caminho de regresso à aldeia. O filho de Chakliux seria um bom Caçador Marinho. Afinal, teria uma parte de sangue de lontra do pai.

Ligige’ tentou imaginar-se caçando num mar tão vasto que nem avistava a terra. Mas isso também a assustou. Tirou a faca da manga e agarrou-a com força, com os dedos rígidos e deformados enrolados no cabo.

Chakliux, disse ela em voz alta, dirigindo-se à fumaça que subia e atravessava o telhado de agulhas de abeto do seu abrigo. Não tenhas pressa de entrar nesse mundo dos espíritos. Eu gostaria de ter companhia durante a minha viagem.

Aqamdax estava no topo de uma longa cumeeira, e o pânico que a obrigara a andar um dia e uma noite dissipou-se de repente. Inclinou-se para acariciar Falcão da Neve. A cadela reagiu à sua carícia rosnando baixinho. Aqamdax olhou para o céu e tentou adivinhar a posição do Sol por baixo das nuvens cinzentas.

Ainda não podemos parar, disse ela. Temos que chegar à próxima cumeeira.

Se Homem Noturno as seguisse, andaria mais depressa do que uma mulher com um cão puxando um trenó, mas partiria da aldeia de Rio Primo e Ligige’, que estava à espera dele na Fonte dos Caçadores, lhe contaria uma história para o atrasar na sua perseguição. Nevara pouco desde que Aqamdax partira, e a neve que já caíra endurecera de tal maneira que o vento não conseguira levantá-la nem tapar as suas pegadas. A sua única esperança era distanciar-se tanto que Homem Noturno resolvesse finalmente voltar.

Que estúpido fora ao pensar que ela matara Estrela! E as outras pessoas da aldeia? Porque era tão fácil convencê-las de que ela era má? Ou tinham medo de um assassino que continuava vivendo devido à cegueira deles?

Decerto alguém admitira que Folha Vermelha podia ainda estar viva e morar suficientemente perto para voltar a matar. Ou teriam pensado, tal como Aqamdax, que os crimes de Folha Vermelha, por muito terríveis que fossem, tinham alguma lógica? Que razão tinha Folha Vermelha para matar Estrela? Porquê arriscar-se a ser vista, a ser descoberta?

Era mais provável que tivesse sido algum proscrito um nuhu’anh. Além da sua loucura, que motivos tinha um nuhu’anh para matar?

Ao anoitecer, Aqamdax parou e acampou numa cumeeira de abetos. As árvores cresciam tão perto umas das outras que os seus ramos se entrelaçavam, formando um abrigo que a confortou. Como gostaria de ser uma daquelas árvores, de braços estendidos para o céu e pés enterrados na terra. Mas era uma mulher, pequena demais para chegar ao Sol.

A solidão apoderou-se dela, entorpecendo-lhe as mãos, cegando-a, e Aqamdax enterrou a cabeça no pelo do pescoço de Falcão da Neve até o calor do corpo do animal a aliviar um pouco do seu sofrimento.

Aqamdax dormiu mal nessa noite, ouviu vozes no vento e acordou sobressaltada ao escutar um bebê chorar em sonhos. A manhã trouxe neve. Não a neve uivante de uma tempestade, mas flocos pesados e úmidos que sobrecarregavam o trenó e se derretiam no pelo da parka.

Caminhava ao lado da cadela e parava com freqüência para tirar as bolas de neve que se formavam entre as almofadinhas das patas de Falcão da Neve. Estremecia sempre que parava, com medo que Homem Noturno a apanhasse, visto que andava tão devagar. Tentou controlar-se escolhendo pontos de referência uma árvore, uma cumeeira em que fixava a vista para que a nevasca não a fizesse andar em círculos. Por fim, ao olhar para a frente, avistou um local escuro que lhe pareceu um muro, grosso e pesado, que se estendia de um lado ao outro, tanto quanto ela podia ver. Sobressaltada, percebeu onde estava. Que escuridão podia ser aquela senão os abetos negros que cresciam à volta do Lago do Avô? Uma vez, Chakliux contara-lhe que um homem levaria dez dias a dar a volta àquele lago. Ficava para leste, a meio dia de caminho da aldeia de Rio Primo, mas ela encontrava-se a norte dessa aldeia e, se caminhasse para o extremo setentrional do lago, ficaria pelo menos sete dias afastada do povo Primo.

 

Quando lá chegasse, montaria a sua tenda de Inverno. As árvores e o mato a esconderiam. Através do gelo, poderia apanhar pescada-preta rica em óleo, comê-la e usá-la para se aquecer e iluminar. Poderia apanhar timalos e peixes brancos com a sua armadilha de rede de salgueiro. Depois, quando chegasse o Verão e o bebê nascesse, voltaria ao mar e seguiria ao longo da costa até chegar às aldeias dos Primeiros Homens.

O vento soprou com mais força. Aqamdax agachou-se e agarrou-se ao trenó. Ajudou Falcão da Neve a desenterrá-lo da neve e, juntas, encaminharam-se para o Lago do Avô.

 

                   FONTE DOS CAÇADORES

As paredes do seu abrigo de abetos estavam muito próximas umas das outras, e por isso Ligige’ manteve apenas um fogo sem chama. Para quê arriscar-se a que aquelas agulhas estaladiças se incendiassem? Apanhara uma lebre numa das armadilhas que montara perto da fonte. Ao crepúsculo, durante uma nevasca fraca, sentara-se à porta do abrigo e pelara e estripara o animal. Em seguida, fora lá para dentro e assara-o no fogo. O cheiro da carne deu-lhe fome. Afastou o cão quando ele se aproximou mais do espeto.

Estava à espera de Homem Noturno há tanto tempo que quando ele chegou, afastando de repente a aba, ela nem se assustou, e limitou-se a enfiar a mão direita na manga esquerda, onde escondera a faca. Depois convidou-o a sentar-se e a comer.

Ele franziu a testa e olhou-a de soslaio, com os dentes arreganhados.

Onde está ela? perguntou ele. Ligige’ encolheu os ombros.

Trouxe-me esta lebre e voltou à armadilha dela. Queria isto cozinhado quando voltasse.

Homem Noturno fez menção de sair, mas Ligige’, esperando retê-lo com as suas palavras, apressou-se a dizer:

Eu sabia que virias à procura dela. Eu sabia que concluirias que ela não matou a tua irmã.

Homem Noturno virou-se e olhou para ela, admirado.

Porque levas o teu fardo? perguntou ela. Deixa-o aqui na cabana. A encontrarás mais depressa sem esse peso às costas.

Homem Noturno resmungou e ela ajudou-o a tirar as alças. Ele baixou o ombro doente e ela disse:

A lebre está quase pronta. Também chega para ti, se quiseres. Talvez Aqamdax traga outra e faremos um banquete.

Ligige’ tirou o espeto das pedras que lhe serviam de suporte e, lambendo os dedos, cortou uma coxa e ofereceu-a a Homem Noturno. Julgou que ele recusasse, mas o homem limitou-se a abrir a aba e a espiar lá para fora; depois, acocorou-se ao lado dela, pegou a lebre e começou a rasgá-la com os dentes.

Ligige’ serviu-se de uma parte das costelas e sorveu a estreita faixa de carne. Quando Homem Noturno atirou os ossos ao cão, Ligige’ pegou o espeto e deu-lhe.

Queres mais? perguntou ela, mas ele abanou a cabeça. Por que vais? Para onde iria ela a não ser para cá?

Ele ignorou-a e saiu, deixando a aba aberta. O vento entrou e atiçou as brasas até as chamas se aproximarem das paredes de ramos de abeto. De quatro, Ligige’ aproximou-se da aba e tirou-a das mãos dele.

Vai, se julgas que consegues encontrá-la mais depressa, mas porque deixas entrar o vento no aconchego do meu abrigo? disse ela.

Não tenho paciência para as tuas lamúrias, velha. Em que direção ela foi? perguntou Homem Noturno.

Naquela, disse Ligige’, pondo a mão fora da aba e apontando para o caminho que ia dar à Fonte dos Caçadores.

Homem Noturno fincou os pés no solo, virado para a trilha, de costas para a porta e com a lança enterrada a seu lado.

Dá-me mais dessa carne, disse ele.

Ligige’ voltou para dentro do abrigo, cortou um quarto dianteiro e deu-lhe. Ele agarrou-o e, quando ela se virou para entrar, disse:

Não comas a outra coxa, velha, nem a guardes para Aqamdax.

Ligige’ insultou-o entre dentes e, de repente, Homem Noturno caiu sobre ela.

Trata-me com respeito, gritou ele, empurrando-lhe a cara para o monte de gelo que se formara por baixo da aba. Com a força que ele lhe fez no nariz, as lágrimas saltaram dos olhos de Ligige’.

Homem Noturno encostou-lhe a boca ao ouvido e disse:

Julgas que eu vim aqui dizer a Aqamdax que pode voltar para a aldeia? Vim vingar a morte da minha irmã, e tu, velha, se não tiveres cuidado com a língua, farás parte da minha vingança. Uma vez que Aqamdax já foi minha mulher, talvez eu tenha o dever de lhe arranjar uma companheira de viagem para o mundo dos espíritos.

Ligige’ caiu sob o peso dele. Não conseguia respirar e, sem ar, o som das palavras dele enfraquecia. Mas por fim Homem Noturno largou-a, dando-lhe uma pancada na nuca ao levantar-se. O nariz de Ligige’ bateu no gelo, e ela ouviu o som do osso estalando. Inspirou, tremendo e sentiu-se sufocar com o sangue que lhe descia pela garganta. Sentou-se, tapou o rosto com as mãos e Homem Noturno riu.

De repente, o cão de Ligige’ saiu da cabana correndo, jogou Homem Noturno ao chão e a lança deste deu uma volta no ar.

Ligige’ viu os dentes do cão agarrados ao pescoço de Homem Noturno. Os roncos do homem transformaram-se num grito agudo quando ele enterrou a faca até ao punho no peito do animal.

Ligige’ apanhou a lança de Homem Noturno e agarrou-a com as duas mãos. Atirou-a, e a ponta atingiu a parka de Homem Noturno, rasgou-lhe a carne, atingiu-lhe as costelas e parou. Homem Noturno deu um berro, afastou o cão para o lado e procurou uma faca que trazia atada à perna. Ligige’ puxou a lança e atirou-a às mãos, cortando as duas. Homem Noturno afastou-se, engatinhando, e depois atirou-se ao cão. Quando tirava a faca do peito do animal, Ligige’ levantou a lança e, com toda a força, espetou-a na nuca de Homem Noturno, enterrando-a até o solo, gelado e duro, a fazer parar.

Homem Noturno estremeceu e abriu a boca, mas em vez de um chorrilho de pragas cuspiu sangue. Por fim, caiu e ficou imóvel.

Ligige’ arrastou o seu cão para a floresta de abetos. Sentou-se com ele no colo e murmurou palavras de conforto e orações muito depois de o animal se ter esvaído em sangue nas esteiras do chão da sua cabana.

 

                   LAGO DO AVÔ

A trilha do animal atravessava a floresta e ia dar numa clareira, o leito de um ribeiro que alimentava o lago na Primavera. O Sol estava se pondo e as sombras das árvores formavam uma única escuridão. Um renque de salgueiros assinalava o extremo da clareira, e Aqamdax reparou numa pequena elevação do terreno num dos lados.

Ali está um local para montarmos a nossa cabana, disse ela a Falcão da Neve.

O animal rosnou e Aqamdax, tensa, tirou a lança do fardo. Farejou à procura de um urso ou de um lobo, mas sentiu apenas o odor frio e penetrante da floresta e do lago. Aqamdax pôs a mão na cabeça da cadela e acalmou-a com sons maternais. De repente, Falcão da Neve tentou libertar-se do arnês e embateu nos ombros dela quando as alças a puxaram para trás. Então Aqamdax viu a raposa.

O animal era suficientemente esperto para perceber que a cadela não podia ir atrás dela e deu alguns pequenos passos na direção de Aqamdax e da cadela, como que desafiando-as, antes de dar meia volta e de desaparecer no meio das árvores. Aqamdax desatou a rir. Com um latido, Falcão da Neve sentou-se, virou o nariz para o céu e uivou.

Uma boa recepção para nós, comentou Aqamdax, encaminhando o animal para o local em que faria o seu abrigo. Afastou a neve solta e depois serviu-se da ponta de um ramo caído para furar a crosta até atingir o solo nu. Armou ali a sua tenda e acendeu uma fogueira junto da abertura com os gravetos que trazia debaixo da parka. Em seguida, apanhou uns ramos caídos, descascou-os com a faca até chegar à parte seca e atirou-os para o fogo. Retirou um pacote de carne seca do trenó, esfregou-a com neve e a pôs junto do fogo para aquecer.

Falcão da Neve deitou-se a seu lado, com a cabeça encostada às patas.

Viveremos aqui, afirmou Aqamdax. Há peixe no lago e outros animais na floresta.

Deu à cadela um pedaço de carne e tirou outro para si. Deixou que o cheiro da fumaça a fizesse recuar no tempo até aos dias da caçada. Na sua mente, viu o rosto de Chakliux e depois teve que afastar as lágrimas que de repente lhe fizeram arder os olhos.

Acariciou a pequena saliência do ventre e falou com o bebê que trazia debaixo do coração.

Já te contei a história das baleias e das suas aldeias debaixo d'água? perguntou ela.

Falcão da Neve ganiu e Aqamdax disse:

A cadela quer ouvi-la.

Então, afastou as suas preocupações com as palavras que aprendera há muito tempo.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Três dias depois de Homem Noturno ter saído da aldeia, Ligige’ voltou sozinha. Yaa, ao ouvir alguém no túnel de entrada da cabana, afastou a aba da porta. Quando viu Ligige’ deu um grito de alegria e abraçou-a de tal maneira que a velha quase caiu.

Filha! Chega! disse Ligige’.

Tinha uma voz estranha, e Yaa recuou e olhou para ela. Ficou sem fôlego ao ver os olhos negros e o nariz inchado de Ligige’.

Tia, o que te aconteceu? perguntou Yaa. Ligige’ abanou a cabeça.

Foi um ramo que caiu, respondeu ela. Tive sorte. Podia ter sido pior. O que é um nariz para uma velha como eu? Mesmo que ele fique assim, não me custará um marido.

Yaa não sabia se Ligige’ estava falando sério ou brincando; por isso em vez de se rir, perguntou:

Queres que eu vá tirar os fardos do teu cão? Precisas que eu lhe dê comida?

O cão morreu, disse Ligige’.

A voz embargou-se, e por alguns momentos Yaa julgou que Ligige’ desataria a chorar, mas a velha fez um ar carrancudo e entrou engatinhando na cabana. O bebê está com Pássaro Amarelo, informou Yaa. Não é o bebê que me preocupa, disparou Ligige’. Onde estão o teu irmão e Chora-Alto? Foram apanhar lenha.

Ligige’ fitou-a, de sobrancelhas erguidas.

Um dia serás uma boa mãe, disse ela por fim. Ajuda-me a despir a parka e a desenrolar as esteiras da cama. Depois, vai buscar Dii e Leva-Mais. Traz também Sok. Preciso de falar com eles.

Viste Aqamdax? perguntou Yaa assim que pendurou a parka de Ligige’.

Vi.

Ela está bem?

Está.

E Homem Noturno?

Yaa, filha, fazes muitas perguntas, disse Ligige’. Estendeu um cobertor sobre as esteiras da cama e deitou-se.

Yaa foi primeiro à procura de Sok e encontrou-o sozinho na cabana de Estrela, onde a lareira já não tinha lenha que chegasse. O fundo da panela estava carbonizado e o cheiro a pele de caribu queimada empestava o ar. Yaa foi ao túnel pelo menos ele fizera um bom monte de lenha e trouxe vários paus para alimentar o fogo. Depois, examinou a panela, pensando no que devia fazer.

Estava danificada demais, concluiu Yaa, e a pele estava muito gasta para levar fosse o que fosse. Yaa procurou nos objetos que se encontravam do lado das mulheres e encontrou uma panela nova. Retirou a velha e pendurou a nova no tripé.

Sok levantara a cabeça quando ela entrara na cabana mas não lhe dissera nada e, enquanto ela trabalhava, ele continuou a aparar a ponta de uma seta, olhando através dela, como se Yaa não estivesse ali.

É melhor afastares a panela do fogo, disse Yaa. Põe pedras quentes lá dentro. Assim dura mais. Mas se a puseres em cima da lareira, terás que lhe colocar água até ao local a que as chamas chegam, caso contrário ela arde.

De repente, Sok pareceu dar pela sua presença. Pestanejou e depois esfregou os olhos com os nós dos polegares.

Ligige’ voltou, disse Yaa. A menina julgou vê-lo sorrir.

Está sozinha e tem o nariz partido.

Yaa passou o dedo pelo nariz, curto mas adunco, como o do pai. Admirava o nariz do pai e sentia-se satisfeita por ter um igual, mas não sabia se o seu cresceria tanto como o dele.

O cão dela morreu.

Sok olhou para Yaa como se não entendesse exatamente o que ela dizia.

Ela foi para a cama, mas quer falar contigo, insistiu Yaa.

Agora?

Yaa encolheu os ombros.

Acho que sim. Tenho que ir chamar Dii e Leva-Mais. Depois posso voltar e fazer-te uma sopa, a menos que Dii queira que eu fique com Olhos Grandes.

Não, disse ele. Eu como e durmo na cabana dos caçadores. Passo aqui apenas uma parte do dia.

Sok falou devagar, como se pensasse em cada palavra antes de a pronunciar, mas Yaa não se admirou. As velhas diziam que ele só tinha meio espírito desde que Neve-no-Cabelo morrera, e agora com Chakliux morto... Yaa sentiu as lágrimas a acumularem-se na garganta e pigarreou para não sufocar.

Tinha perdido muita gente na vida. Primeiro o pai, depois a mãe e agora Aqamdax e Chakliux. Mas por mais gente que morresse, ela não perderia o espírito como acontecera a Sok. Nem sequer uma parte. Se manteria forte. De outro modo, quem tomaria conta de Ghaden e de Ligige’? Quem iria passear com Chora-Alto e quem o escutaria quando ele falasse das suas preocupações e dos seus sonhos?

Saiu da cabana de Sok, encontrou Leva-Mais e em seguida dirigiu-se à cabana de Dii. Esta foi ao seu encontro no túnel.

Sok já veio avisar-me, disse ela. Ficas com Olhos Grandes?

Yaa entrou na cabana de Dii. O local estava cheio do odor quente da carne e alegre com a luz da lareira. Como de costume, Olhos Grandes estava sentada num monte de peles, com um fio de tendão pendurado nos dedos. A pele de caribu das suas perneiras estava escura e sem pêlo no local da coxa em que ela esfregava os tendões para os enrolar.

Yaa despiu a parka e pendurou-a numa cavilha, cumprimentou Olhos Grandes e depois tirou vários fios de tendão do monte que estava ao lado da velha. Começou a esfregar os fios nas palmas das mãos, e pensou que se saíra bem, tomando conta da cabana de Ligige’ durante a sua ausência.

No primeiro dia, deixara queimar a carne, mas obrigara os rapazes a comê-la. Mantivera o fogo aceso, sacudira as peles da cama lá fora e estava quase acabando um par de botas para Ghaden.

Olhos Grandes começou a falar em voz baixa, um ritmo familiar que Yaa não sabia exatamente precisar. Era uma canção, concluiu, qualquer coisa que ela devia saber. Ficou pensando nisso como se fosse um enigma, mas depois começou a pensar em Chora-Alto.

Serei uma boa esposa para ele, pensou Yaa, e, enquanto trabalhava, começou a sorrir.

Ele matou o meu cão e teria morto Aqamdax, disse Ligige’. Acham que eu podia deixá-lo viver?

Sok observou-a. Pasmado, não se lembrou de nenhuma resposta, mas percebeu que Ligige’ confundira o seu silêncio com acusação.

Tia, tu fizeste o que devias, afirmou ele. Manterei cheia a despensa da viúva dele.

Fez um aceno de cabeça a Dii, que estava lívida, de olhos muito abertos.

Onde está o corpo? perguntou Leva-Mais. Depois, antes que Ligige’ pudesse responder, acrescentou: Como é que o mataste?

O corpo está na Fonte dos Caçadores. Queimei-o no abrigo de Aqamdax. Talvez alguém possa ir lá buscar os ossos.

Eu vou buscá-los, disse Sok. Amanhã, vou lá, de manhã.

E Aqamdax? perguntou Dii.

Disse-lhe que fosse para o Lago do Avô, mas quem sabe se ela obedeceu? respondeu Ligige’.

Quem sabe se ela está viva? acrescentou Leva-Mais.

Aborrecida, Ligige’ disparou:

Aqamdax está viva!

Ela tem que voltar para esta aldeia disse Sok. Dii abanou a cabeça.

Muitas das velhas continuam a pensar que foi ela que matou...

São loucas, essas velhas, declarou Sok.

É mais fácil para elas acreditar que Aqamdax é a assassina por ela ser uma Caçadora Marinha do que admitir que alguém desta aldeia o fez.

Conversaram durante muito tempo até que, finalmente, Leva-Mais resolveu ir à cabana dos caçadores contar o que acontecera a Homem Noturno. Quando ia saindo, disse a Ligige’:

Ainda não nos contaste como é que o mataste.

Olha o que ele me fez, disse ela, levando as mãos ao rosto. Depois, matou o meu cão. Ligige’ abanou a cabeça ao recordar a cena. Matei-o com a sua própria lança. Foi assim que o matei. Com uma lança no pescoço. Aninhou-se nas roupas da cama. Agora vão embora e deixem-me dormir.

Ligige’ dormiu durante um dia e uma noite. Acordou ao ouvir alguém à porta da cabana. Quem seria insensato ao ponto de ir ali durante a noite? Agora toda a aldeia sabia o que acontecera. Ela era uma velha. Julgavam que ela podia viver sem dormir?

Com certeza não era ninguém que procurasse vingar-se da morte de Homem Noturno. Mas o pensamento gelou-lhe os ossos, e ela enrolou-se numa manta de pele de lebre, pegou o cajado e serviu-se dele para afastar a aba interior.

Quem é? gritou.

Pelo canto do olho, reparou que as três crianças tinham acordado. Ghaden e Chora-Alto já haviam se levantado da cama e Mordedor estava deitado aos pés de Ghaden, rosnando.

Ligige’ deu um grito, deixou cair a bengala e entrou no túnel.

É Aqamdax. Tem que ser, disse Yaa e quase chocou com os rapazes ao atravessar a cabana correndo. De súbito, recuou, de olhos arregalados e mão na boca.

Quando Ghaden se voltou para pegar uma arma, Chora-Alto exclamou:

Chakliux!

Então, as três crianças caíram nos braços de Chakliux, e ele sorriu, apesar da tristeza do seu olhar.

O meu irmão, disse ele em voz baixa, falando e olhando para Chora-Alto, que tinha a cabeça no seu ombro.

Está na cabana dos caçadores, informou Ligige’. Chakliux ficou embasbacado.

Ele voltou? Ele voltou para cá... Para a aldeia? Ele não está ferido? Ele está... proferiu ele, às gargalhadas.

Está triste e cansado do seu desgosto, mas quando te vir... disse Ligige’.

As suas palavras terminaram com um soluço, e Yaa dirigiu-se a Chakliux:

Sok julgava que tu tinhas morrido. Chegou e disse a todo mundo...

Yaa calou-se e, abrindo muito os olhos, perguntou:

Tu não estás morto, não é, Chakliux?

Estou vivo, Yaa, respondeu ele serenamente. Depois passou a mão pelo rosto e Ligige’ viu como ele estava cansado.

Eu tenho comida, afirmou ela, correndo para a lareira.

Não, disse Chakliux. Tenho de ir falar com as minhas mulheres. Passei pela cabana de Aqamdax mas ela não estava lá. Julguei que tivesse resolvido vir viver contigo durante a minha ausência. Ainda não fui falar com Estrela, mas... Chakliux reparou no olhar de Ligige’ e perguntou baixinho: Tia, onde estão as minhas mulheres?

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

K’os encontrava-se na cumeeira que envolvia a aldeia de Rio Próximo e olhou para as cabanas bem construídas lá em baixo. Viam-se grandes montes de lenha e barreiras de neve encostadas aos telhados das cabanas para as protegerem dos ventos do Inverno.

A mulher ouviu uma série de gargalhadas, e três rapazes saíram correndo do espaço entre duas despensas, cada um com um pau na mão. A brincadeira levou-os a atravessar a aldeia e valeu-lhes uma repreensão de uma das avós que se encontrava junto das lareiras da comida. K’os sorriu. Como era bom regressar àquele local, não como escrava de Bico-de-Gaivota mas como viúva de Dança-no-Gelo. Em silêncio, contou as cabanas; eram cinco mãos-cheias, e mais cinco mãos-cheias; cinqüenta, pelo menos. E quantos guerreiros em cada uma? Um, dois? Às vezes mais.

A caminhada fora difícil. Os lábios de K’os tinham rebentado e sangrado com o frio; os dedos estavam tão deformados e inchados que ela mal conseguia agarrar as alças do trenó. Precisava de um fogo quente, de um chá de anserina e de casca de salgueiro.

Chamou os cães e encaminhou-os para a cabana dos caçadores. A luta entre o povo de Rio Próximo e o povo de Rio Primo custara a vida a quase todos os velhos daquela aldeia. Só Chama-o-Sol, o gago, e Raposa-Que-Ladra tinham sobrevivido, e, evidentemente, Dá-Carne, que tinha a mente de uma criança. Com certeza Dii já devia ter matado Raposa-Que-Ladra, e talvez sido morta pelo povo de Rio Próximo. Fora uma companheira interessante.

K’os esperava que os caçadores de meia-idade da aldeia tivessem ocupado os seus lugares como mais velhos. Desses homens, só alguns é que ela não satisfizera quando era escrava. Cabeça-de-Lobo, o pai de Dança-no-Gelo, era um dos que ela ainda não levara para a sua cama, mas era também a sua melhor chance de vingança. Desgostoso como estava, ela conseguiria conquistá-lo para a sua causa. Eles vingariam a morte de Dança-no-Gelo na aldeia de Quatro Rios e depois, fortalecidos pelo êxito, exterminariam o povo Primo.

K’os descalçou as raquetes, atou-as ao trenó e entrou no túnel. Sacudiu a neve da parka e das perneiras, tirou o capuz e serviu-se do bordão para raspar na porta interior. Reconheceu a voz de Chama-o-Sol quando ele a mandou entrar.

K’os passara muito tempo pensando na saudação que determinaria o seu lugar na aldeia e a fomentar desejos de vingança na mente dos habitantes de Rio Próximo, mas ao entrar na cabana ficou boquiaberta e esqueceu-se das suas belas palavras. À volta da lareira, todas sentadas em lugares de honra, estavam as velhas da aldeia: Rato-Silvestre e Flor Azul, Neve Preguiçosa e Três Cestos. Outras duas estavam sentadas ao lado de Dá-Carne, dando-lhe de comer como se ele fosse uma criança, e uma limpando-lhe o queixo com uma esteira de erva. Ao lado encontrava-se Chama-o-Sol.

O velho cumprimentou-a com um aceno de cabeça e abriu a boca para falar mas não conseguiu articular a primeira palavra. Apontou com o queixo para a mulher que estava do outro lado da fogueira, o lugar concedido à chefe das velhas. A fumaça da lareira formava uma nuvem que impedia a visão de K’os. Esta deu um passo para o lado e depois parou, incrédula. A chefe das velhas era Bico-de-Gaivota.

 

                   LAGO DO AVÔ

Aqamdax trabalhara até de madrugada para montar a sua tenda, cavar o poço da lareira e forrá-lo de pedras. Atravessara os fardos e o trenó de Falcão da Neve na abertura para melhor se proteger do vento. Amontoara neve junto das paredes laterais da tenda. Por fim, conseguira adormecer, mas os seus sonhos foram povoados pelo seu bebê morto que agora vivia no Lago do Avô, e, quando acordou, não sabia ao certo onde estava.

Ficou à espera de ouvir Leva-Muito, que chorava todas as manhãs pedindo leite, depois sentiu os seus seios fofos e vazios e de súbito a escuridão do desgosto abateu-se sobre ela. Enfiou a cabeça nas peles da cama e desatou a chorar. O seu filho estava morto. Ghaden, Yaa e os filhos de Sok estavam perdidos para ela. Primeiro chorou de tristeza, depois de raiva por Homem Noturno, por Sok e por Neve-no-Cabelo, por Estrela e por quem a tinha matado, e até por Chakliux, por ter saído da aldeia para acompanhar Sok. Chorou até lhe doer a garganta e, depois de esgotar todas as suas lágrimas, deixou-se ficar quieta e esgotada, respirando com dificuldade, como se tivesse corrido durante muito tempo.

Então, na sua mente, ouviu a voz serena da velha Qung, a contadora de histórias dos Primeiros Homens. Aqamdax conhecia bem essa história, sobre uma jovem que fora vendida como escrava pelo irmão, uma mulher que conseguira voltar para junto do seu povo percorrendo a costa do mar do Norte. Aqamdax começou a repetir as palavras, primeiro em surdina e depois mais alto. Sentou-se e começou a usar vários tons de voz consoante as pessoas e os animais que entravam na história, por vezes indo buscar as palavras à garganta como Qung lhe ensinara, e parecia que eles falavam do lado de fora da tenda, da lareira ou de uma árvore. Há quanto tempo é que ela não contava histórias daquela maneira?

Fora proibida de o fazer na aldeia de Rio Próximo, quando o xamã concluíra que as histórias dela constituíam uma ameaça aos seus próprios poderes. E na aldeia de Rio Primo contava histórias essencialmente às crianças. Agora, ali no Lago do Avô, estava sozinha, contando histórias que ninguém ouvia.

De repente, sentiu um leve movimento, como uma pena roçando o interior da barriga. Susteve a respiração. Seria o bebê? Não, era cedo demais, pensou. Depois voltou a sentir a mesma coisa, um toque levíssimo, mais fraco do que um golpe de vento. Sorriu e continuou a contar a sua história, entrelaçando os dedos sobre o pequenino que a escutava debaixo do seu coração.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Chakliux estava na floresta sagrada olhando para a armação fúnebre. Ela estava ali agora, Estrela e a filha que ambos tinham feito. Estrela não fora uma boa esposa, e a vida dele teria sido mais fácil sem ela, mas, ao lamentar a sua morte, recordara a sua primeira mulher, Gguzaakk, uma mulher que ele amara. E o seu desgosto pela perda da filha de Estrela parecia renovar a angústia que sentira com a perda do filho gerado por Gguzaakk e daquele bebê que Homem Noturno matara.

As suas preces e os seus cânticos, o seu desejo de lutar pela vida de Sok não tinham afastado a maldição que ele atraíra sobre si próprio e sobre Aqamdax? De que serviam aqueles rituais e até as histórias que ele aprendera como dzuuggi se não conseguiam dar a um homem a oportunidade de ter uma nova vida? Nada era mais forte do que aqueles espíritos que pareciam alegrar-se com a destruição da vida de um homem?

Se há alguém aí, algum espírito que seja suficientemente poderoso para levantar a maldição que caiu sobre mim e a minha família, peço que me ajude a encontrar a minha mulher Aqamdax, gritou ele, erguendo a sua voz além dos ossos dos mortos, gritando para ser ouvido acima das árvores que protegiam o corpo de Estrela.

Ficou à espera, mas não sentiu nada além da escuridão do seu desespero, do medo de ter perdido mais do que aqueles que agora chorava. Entoou um cântico em memória dos mortos e voltou para a aldeia. Depois de uma noite bem dormida, iria à procura de Aqamdax, e não regressaria senão depois de encontrar as suas ossadas.

Iniciou o caminho de regresso, atravessando uma clareira que contornara quando se dirigia para a armação fúnebre, deixando uma trilha assinalada pelos círculos espalmados das suas raquetes. De repente, um bando de ptármigas, com a sua plumagem de Inverno branca como a neve, atravessou a camada de nuvens brancas e rosadas do céu de Inverno. Chakliux lembrou-se de um enigma que aprendera em criança.

Olhem! O que vejo? O branco oculto pelo branco.

Em seguida, perguntou a si próprio: “Porque pensas que tudo devia ser fácil de entender? Esqueceste que o valor de cada enigma está no seu esclarecimento?”

E ao voltar à aldeia, rezou para que visse o que estava oculto, para que compreendesse os enigmas que ligavam a sua vida à terra e as preces que lhe abririam os olhos para a realidade.

 

                   ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Venho como esposa, não como escrava, disse K’os. Bico-de-Gaivota ergueu as sobrancelhas e perguntou:

Anaay disse-me que te aceitaria como esposa durante a caçada ao caribu. Onde está ele?

Mas antes que K’os pudesse responder, Flor Azul acrescentou:

E aquela outra esposa que ele aceitou, a mulher de Primo, onde está?

Não sei, respondeu K’os, tentando disfarçar a sua atrapalhação. Raposa-Que-Ladra ainda estaria vivo, ou teria Dii conseguido esconder a sua morte? Quis sorrir. Talvez a moça fosse mais esperta do que ela julgava. Eu fui uma daquelas mulheres que saíram do acampamento de caça e regressaram ao seu povo. Há homens nesta aldeia que vos podem dizer isso, prosseguiu ela apontando para Chama-o-Sol. O meu filho Chakliux comprou-me de Anaay.

Bico-de-Gaivota resmungou:

Julgas então que já não te consideramos uma escrava? Uma mulher de Primo que pertence a um homem de Primo? És menos do que uma escrava.

As outras mulheres concordaram, em surdina. A raiva cresceu na garganta de K’os, e, quando ela voltou a falar, as suas palavras pareciam afiadas pelas pontas dos dentes.

Talvez isso seja verdade, mas há algo mais, disse ela. Como já vos disse, eu era esposa. Um homem desta aldeia pagou um dote por mim.

Quem? perguntou Bico-de-Gaivota.

Dança-no-Gelo, respondeu K’os, vendo que as mulheres olhavam umas para as outras.

Chama-o-Sol tossiu, e de súbito Bico-de-Gaivota ficou lívida e tensa.

Saímos juntos da aldeia de Rio Primo, eu e o meu marido, e fomos para a aldeia de Quatro Rios, disse K’os. Vivíamos lá há pouco tempo quando alguém da aldeia o matou. Eu tinha dado um remédio a uma mulher doente e passara a noite junto dela. Quando voltei para a minha cabana, o meu marido estava morto, esfaqueado. Há quatro homens de Quatro Rios que afirmam ter laços estreitos com o povo de Rio Primo. Creio que um deles o matou. Vim aqui à procura do pai do meu marido, Cabeça-de-Lobo, para planejar a vingança sobre aqueles que roubaram a vida do meu marido.

As mulheres começaram a murmurar entre si, e Chama-o-Sol, gaguejando, proferiu algumas palavras de circunstância, mas K’os perdeu a paciência com eles. Qual o grupo de mulheres que, ao tomarem uma decisão, agiam depressa? Podiam passar vários dias discutindo se alguém da aldeia devia ou não ajudá-la. Por isso, sem dar oportunidade de responder a Bico-de-Gaivota, K’os saiu e conduziu os seus cães para a cabana resistente em que Cabeça-de-Lobo vivia com as suas duas esposas.

 

                   ALDEIA DE RIO PRIMO

Chakliux adormeceu tão depressa e caiu num sono tão profundo que, ao ouvir a voz chamando-o, percebeu que vivia nos seus sonhos. Sentou-se e viu Olhos Grandes junto da sua cama.

Vai acender a tua lareira, ordenou-lhe ela, com um vozeirão.

E como se tratava de um sonho, Chakliux fez o que ela lhe pediu, espevitando o fogo cujas chamas iluminaram a cabana de Sok.

Estou admirada por teres resolvido dormir aqui, disse Olhos Grandes.

Instalou-se junto do fogo, sentando-se muito direita, de ombros para trás, como se fosse uma moça. Chakliux reparou nos seus olhos límpidos, sem a perturbação que os obscurecia desde a morte do marido. Mas porque ele estava admirado? Fora ele que pediu que essas coisas ocultas fossem reveladas. E o que havia melhor do que um sonho para revelá-las?

Esta é a cabana da minha mulher, disse Chakliux. Olhos Grandes riu.

Mas tu estás sozinho. Ela não está aqui, nem o teu irmão.

Ele está dormindo na cabana dos caçadores.

Ela fez um aceno de cabeça como se já soubesse e depois acrescentou:

Dizem que choraste a minha filha.

Ela era minha esposa. Chorei-a e ao filho que ela trazia no ventre.

Era o teu filho, disse Olhos Grandes.

É verdade.

Apesar de a cabana estar aquecida, Olhos Grandes tinha a parka vestida e, tal como uma mãe com um bebê, atara uma alça por baixo dos seios.

Eu teria levado essa criança às minhas costas, afirmou Olhos Grandes, dando uma palmadinha na alça. Fui eu que fiz esta cinta para aconchegá-la.

Pegou uma bolsa que estava pendurada na alça e tirou uma linha de tendão.

Eu não sabia que as tuas palavras podiam ser tão claras, mãe, disse Chakliux.

Ela olhou para ele de soslaio.

Ninguém sabe, disse ela.

Enrolou a linha nos dedos e fez uma rede entre as mãos. Isto despertou a atenção de Chakliux, que a observava enquanto ela entrelaçava a linha, dando-lhe várias formas: uma árvore, um círculo.

Porque estás admirado? perguntou ela.

Vi contadores de histórias da aldeia dos Caçadores de Morsas fazerem isso. Eles ensinaram-me.

Essa tua outra esposa, a mulher Caçadora Marinha, quando entrou pela primeira vez na minha cabana como esposa de Homem Noturno, tinha uma pulseira feita de nós. Era uma lontra. Julgas que eu não reparei nisso? Eu sabia que tu a tinhas feito. Quem mais poderia ter sido? Há mais alguma lontra nesta aldeia? Talvez não saibas que a minha mãe era de Morsa, criada por esse povo antes de ser oferecida como esposa ao meu pai. Ela ensinou-me algumas coisas.

Quando eu ainda era uma menina, o meu pai vendeu-me ao meu marido por três cães de olhos dourados. O meu pai, por brincadeira, disse que eu passaria a chamar-me Três Cães. Ele era um homem de pouco senso, mas eu tive um bom marido e quatro filhos robustos, e depois a minha filha, Estrela.

A mulher afastou as mãos para ele ver o nó no meio da sua rede.

Isto é o filho de Estrela. Olhos Grandes mexeu as mãos e de repente o nó desapareceu. As crianças morrem com muita facilidade.

Olhos Grandes fitou-o e deu uma gargalhada.

As crianças morrem com muita facilidade, mas eu ainda teria todos os meus filhos e o meu marido se não fosses tu.

Eu não matei o teu marido, disse Chakliux. Salta-no-Rio foi morto por K’os.

Eu sei a tua história. A minha filha contou-me. Ela amava-te e portanto acreditava em ti. Lembras-te dos meus filhos? Tikaani era o mais velho. Talvez não o tenhas morto, mas és o culpado daquela guerra entre as nossas aldeias. Devias ter travado a luta, lembras-te? Depois, tive Caribu e Silencioso, com um ano de intervalo, esses dois. As velhas disseram que eles morreriam. Disseram que eu não teria leite para os dois. Mas eles tornaram-se rapazes fortes e saudáveis. Dizes que não os mataste? Agora Homem Noturno está morto. Elas julgam que eu não sei, mas eu ouço-as cochichar. Quatro filhos mortos, um marido morto, e a minha filha e o bebê.

Eu não matei a tua filha. Olhos Grandes desatou a rir.

 

Yaa adormecia e acordava. Fora passar a noite na cabana de Estrela para tomar conta de Olhos Grandes. A velha tinha o costume de passear durante a noite, mas, para surpresa de Yaa, dessa vez adormecera trabalhando, com os tendões que tinha estado enrolando ainda pendurados nos dedos. Yaa estendera as peles da cama junto da velha, empurrara-a com todo o cuidado e tapara-a.

Depois de acabar de costurar as botas de Ghaden, Yaa desenrolou a sua própria cama. Dormiu durante algum tempo, mas depois o ritmo de uma canção envolveu-se nos seus sonhos e acordou-a.

Que canção era aquela? perguntou Yaa a si própria, e depois lembrou-se de que, da última vez que estivera com Olhos Grandes, a velha estava a cantarolando-a em voz baixa. A canção permanecia num recanto da sua mente, e por fim Yaa reconheceu-a era uma canção que as mulheres da aldeia de Rio Próximo cantavam. Mas Yaa nunca a ouvira na boca de uma mulher de Rio Primo.

Quem a teria ensinado a Olhos Grandes? Teria ela aprendido em criança?

Yaa começou a cantarolá-la baixinho, deixando que as suas palavras familiares a fizessem voltar aos sonhos, mas continuou bem acordada. Como conseguira Olhos Grandes lembrar-se daquela canção se nem sequer se lembrava de comer? Havia alguma coisa que não estava certa.

Yaa sentou-se e olhou para a cama da velha. Encontrava-se vazia, com os cobertores puxados para trás, e a parka não estava na cavilha. Yaa levantou-se a custo, calçou as botas, vestiu a parka e saiu, chamando Olhos Grandes.

Percorreu os caminhos da aldeia e não viu ninguém. O coração parecia uma pedra no seu peito, e ela nem conseguia respirar. Chakliux e Ligige’ tinham-lhe confiado a guarda de Olhos Grandes. Agora pensariam que ela não valia nada, que era uma menina a quem não se podiam atribuir responsabilidades. Conteve as lágrimas e dirigiu-se para a cabana de Chakliux. Talvez ele ficasse zangado, mas ao menos ajudaria a procurá-la.

 

Olhos Grandes pôs-se de pé, levantou os braços e inclinou a cabeça para trás para olhar para o teto da cabana.

Não mataste a minha filha? Negas que lhe puseste aquela criança na barriga? Dizes que ela não era tua?

Era minha, respondeu Chakliux em voz baixa. Ouviu um som atrás de si, olhou para trás e viu Yaa de joelhos no túnel, espiando lá para dentro.

De repente, percebeu que estava acordado. Olhos Grandes não fora falar com ele em sonhos. Conseguira sair da cabana, fugira da vigilância de Yaa, que estava tomando conta dela.

Se o bebê fosse teu, matava-o, disse Olhos Grandes. Desembaraçou-se dos fios, deixou-os cair no fogo e viu-os enrolarem-se e queimarem. Em seguida, meteu a mão na manga esquerda e tirou uma faca comprida de obsidiana.

É uma faca sagrada, afirmou ela, pegando a faca com a ponta da lâmina para cima e virando-a para que o fogo iluminasse as facetas da ponta esculpida.

Chakliux não queria que Olhos Grandes desse pela presença de Yaa olhando para ela outra vez, e por isso disse

Um enigma.

Eu sou muito Morsa, disse Olhos Grandes. Nunca fui boa em enigmas.

Este é fácil, declarou Chakliux. Olhem! O que vejo eu? Uma criança que se recorda do Sol.

Então Yaa saiu da cabana, e Chakliux esperava que ela tivesse compreendido.

Olhos Grandes abanou a cabeça.

É muito difícil para mim, mas vê se entendes o meu: Olhem! O que vejo eu? Sangue na neve. Sangue na cama de uma mulher.

Como ele não respondeu, ela deu uma gargalhada estridente.

Não entendes? perguntou ela. Julguei que eras mais inteligente. Como é que eu podia deixar viver o teu filho? Ele traria a tua maldição e mataria como tu mataste

Mas porque não esperaste que o bebê nascesse? Porquê matar Estrela, também?

Assim não haveria mais bebês. Estrela era jovem, te daria muitos filhos.

Ela era tua filha, observou Chakliux em voz baixa

Ela era tua mulher, replicou Olhos Grandes. Umedeceu os lábios e mexeu os pés numa dança rápida e arrastada, como se estivesse satisfeita consigo própria. Sabes como é fácil matar alguém que nos julga velhos e fracos? perguntou ela. Ergueu a faca, virou-a e fechou os olhos, como se a recordação da morte de Estrela se tivesse apoderado dela. Quando eu lhe tirei o bebê da barriga, vi que era uma menina. Se eu soubesse, não a tinha matado. A tua mulher estava convencida de que era um rapaz.

Enquanto ela estava de olhos fechados, Chakliux aproximou-se, mas de repente a velha repeliu-o, golpeando-lhe a palma da mão com a ponta da lâmina. Ele deu um salto para trás.

Tu és como a tua mãe de Primo, afirmou Olhos Grandes. Ela foi mais difícil de matar.

A minha mãe?

Aquela que morreu na sua cama. Não ouviste o meu enigma? Que melhor maneira de vingar a morte do meu marido do que matar aqueles de quem gostas?

A velha levantou a faca e enterrou-a no ar como que para mostrar a Chakliux o que fizera.

Ela deu luta. Mas eu é que tinha a faca.

E agora resolveste matar-me, concluiu Chakliux.

Não posso matar-te, mas talvez haja outras pessoas nesta aldeia que o farão quando virem o que fizeste a uma velha que não podia defender-se, que mal conseguia falar, disse Olhos Grandes.

Ergueu a faca e, apesar de Chakliux se precipitar para ela, tentando tirá-la das mãos, a velha enterrou a lâmina escura na sua própria garganta antes que ele conseguisse detê-la. Caiu no chão, com as mãos agarradas ao pescoço. Olhou para cima, mas Chakliux viu que os seus olhos não estavam pousados nele. Virou-se. Sok e Leva-Mais estavam atrás dele.

Olhos Grandes gemeu, fechou os olhos e depois ficou imóvel. Sok tirou um cobertor da cama de Chakliux e cobriu-a.

Yaa espiava no túnel.

Ela morreu? perguntou a menina.

Sim, respondeu Chakliux, abrindo os braços a Yaa. Esta correu para ele e escondeu o rosto no seu peito. Pois então compreendeste o meu enigma.

Lembrei-me das parkas de Sok com o Sol, disse ela. E Leva-Mais estava com ele na cabana dos caçadores.

Olhos Grandes matou a própria filha? perguntou Sok.

E a nossa mãe, disse Chakliux.

Então não foi Folha Vermelha. Nem Aqamdax, concluiu Sok.

Não, e não há mais ninguém que procure vingança.

 

                    ALDEIA DE RIO PRÓXIMO

Cabeça-de-Lobo era um homem grande, e falava tão alto que K’os ouviu-o xingando as mulheres ainda antes de entrar na cabana. Gritou e esperou que a esposa mais nova abrisse a aba. A mulher arregalou os olhos ao ver K’os.

Voltaste? perguntou ela, perdendo o fôlego quando K’os a empurrou para entrar na cabana.

Foi atrás de K’os balbuciando desculpas ao marido. K’os tirou o amuleto de Dança-no-Gelo do decote da parka e estendeu-o a Cabeça-de-Lobo para que ele o visse. Os olhos do homem saltaram do amuleto para o cabelo dela, cortado ao nível das orelhas. Cabeça-de-Lobo recuou, pegou o amuleto e depois olhou de frente para K’os.

Reconhece-o? perguntou ela.

Sim, respondeu ele.

Venho dizer-te que o teu filho morreu, assassinado pelo povo de Quatro Rios. Eles roubaram-lhe os cães e os trenós, as peles e a carne, mas eu consegui fugir e trazer-te alguns dos pertences dele.

Cabeça-de-Lobo olhou para a mulher.

O que trouxe ela? perguntou ele.

Dois cães e um trenó, respondeu ela.

K’os viu a mulher olhando para a esposa-irmã, a mãe de Dança-no-Gelo.

Choro por ti, disse K’os, e a mulher virou-lhe as costas. As coisas que eles roubaram foram o dote que o teu filho pagou por mim. Eu ajudo-te a te vingares.

O que te ofereceu ele? perguntou Cabeça-de-Lobo.

Oito cães, seis trenós, peles, carne e peixe. Os de Quatro Rios roubaram tudo, mas eu consegui...

Cala-te. Falas demais para uma mulher. Cabeça-de-Lobo aproximou-se da mulher mais nova, disse-lhe alguma coisa em voz baixa e ela saiu da cabana correndo.

Cabeça-de-Lobo fora rude, mas K’os sabia que ele era um homem duro e que tratava mal as viúvas. Reprimiu a sua raiva e não deixou que ela lhe tingisse a face nem resvalasse para as suas palavras.

Seis cães, dizes tu.

Oito.

Seis trenós.

Sim.

Ele virou-lhe as costas e começou a andar de um lado para o outro.

Peles de raposa? perguntou ele.

Ela fez um sinal afirmativo.

Peles de raposa, lince, lobo e caribu, disse ela. K’os ouviu um barulho à entrada da cabana e viu que a mulher regressara. Bico-de-Gaivota vinha com ela.

Esta escrava diz que foi mulher daquele que roubou os cães e os trenós da nossa aldeia, informou Cabeça-de-Lobo. Diz que ele a comprou com as minhas peles de raposa. Ela devolveu dois cães.

Cabeça-de-Lobo sorriu. Tinha uns dentes compridos e amarelos.

Trata-a bem. Poucas escravas seriam tão leais, disse ele a Bico-de-Gaivota.

K’os soprou e exclamou:

Eu fui esposa do teu filho, Dança-no-Gelo.

Na lua passada, alguém roubou os meus cães, os meus trenós, as minhas peles e muita carne da minha despensa. Julgas que o meu filho roubaria o próprio pai para comprar uma mulher? perguntou Cabeça-de-Lobo. Mulher insensata! Eu não tenho filho.

 

                   LAGO DO AVÔ

Os primeiros trabalhos da manhã estavam concluídos para Aqamdax: fora apanhar lenha e dera comida ao cão. Amontoou mais neve em volta da tenda e pôs mais uns ramos de abeto no túnel que fizera com casca de árvores e paus de salgueiro.

Quando acabou, soltou Falcão da Neve e levou o cão com ela para o lago. O gelo que cobria a margem formara cumeeiras espessas e duras, mas junto do lago espraiava-se, branco e macio, formando uma superfície plana que parecia não ter fim. Aqamdax chegou a um local em que o vento empurrara a neve e o gelo estava à vista. Pôs uma tira de pele de caribu na palma da mão, por cima da luva, e serviu-se de um machado de pedra para abrir outro buraco. Mediu-o com o antebraço para ter a certeza de que ele era suficientemente grande para receber a sua armadilha de pesca. Martelou até ficar com o braço dormente e os dedos já não terem força para agarrar a pedra.

Amanhã acabamos, disse ela a Falcão da Neve

A cadela estava enroscada junto do buraco, com a cauda por cima do nariz, de costas para o vento. Aqamdax possuía comida suficiente até pescar mais peixe. Tinha três lebres enterradas na neve no túnel de entrada, salmão defumado, um pouco de carne de caribu e pescada-preta que apanhara numa rede suspensa entre dois orifícios abertos no lago gelado. Falcão da Neve continuava caçando a sua própria carne e às vezes, tal qual Mordedor, trazia parte de uma carcaça de ptármiga ou de lebre para Aqamdax.

Mesmo assim, Aqamdax tinha fome com freqüência, mas quem não tinha fome no Inverno? Não quis pensar nas despensas repletas de comida da aldeia de Rio Primo, nem na carne e no óleo de foca que o seu povo teria guardado. Voltou para a cabana pensando nos timalos ou nos lúcios que poderia apanhar na sua armadilha no dia seguinte.

O céu, cheio de nuvens, escurecia à medida que a noite se aproximava, e o vento agarrava-a como mãos, empurrava-a e fazia-a chorar. Aqamdax enxugou as lágrimas, depois parou de repente e agarrou-se ao pelo do pescoço de Falcão da Neve. Agachou-se ao lado do animal e sentiu-o tremer. Através da vegetação rasteira avistou a sua cabana, a sua ponta escura que contrastava com o branco da neve. A fumaça saía em espiral do telhado, mais do que seria de esperar de uma fogueira que ela acendera antes de ir para o lago.

Seria Homem Noturno? Aqamdax tirou o fardo dos ombros, puxou a lança e aproximou-se, de rastos. Com a barriga crescendo, estava mais desajeitada e não atirava bem a lança. O que podia fazer?

Cantarolou baixinho para se acalmar e tentou pensar. Talvez fosse preferível esperar pela noite, tirar uma parte da carne que escondera no túnel de entrada e ir para a aldeia de Rio Próximo. Oito, dez dias, e estaria lá. Talvez algum homem a aceitasse como esposa, em especial por ela ter Falcão da Neve.

Sim, faria isso, mas não esperaria pela noite. Poderia verificar as armadilhas que montara nessa direção. Com certeza que apanhara qualquer coisa. Montara tantas...

Partiremos agora cochichou ela a Falcão da Neve, mas o animal deu um salto, afastou-se e começou a latir alegremente, como um cachorrinho. Aqamdax levantou-se, e quando viu quem vinha saindo da tenda, não conseguiu mexer-se nem falar. Esperou que ele corresse para ela, com Falcão da Neve saltando a seu lado.

Tu não morreste, foram as primeiras palavras que ela lhe dirigiu.

E Chakliux, rindo e a chorando ao mesmo tempo, abraçou-a e respondeu:

Nem tu.

Como é que me encontraste?

Ligige’ disse-te que fosses para o Lago do Avô. Eu tinha medo que o teu filho te chamasse e que tu fosses...

Chakliux tirou-lhe o capuz e enterrou o rosto nos cabelos macios de Aqamdax.

Mas tu encontraste a minha tenda.

Vi que a tua fogueira estava acesa e as brasas ainda estavam incandescentes. Vi que tinhas armazenado a tua carne, e percebi que tinhas resolvido viver.

Chakliux amparou-a e encaminhou-a para a cabana. Ela ajoelhou-se para entrar e esperou que Chakliux a seguisse. Ele acocorou-se junto da lareira e colocou mais lenha no fogo.

Tinhas razão, disse Aqamdax. O meu filho chama-me.

Ele olhou para ela, assustado, e ela aproximou-se mais da luz da lareira, pegou-lhe nas mãos e pousou-as na sua barriga.

Todas as noites ele me chama, mas não do lago proferiu ela.

Aqamdax sorriu quando Chakliux arregalou os olhos e o seu riso encheu as paredes da cabana. Depois, ele envolveu-a nos seus braços e possuiu-a com as suas lágrimas.

 

Ele era apenas um rapazinho, e as pernas e os braços magros ainda tinham muito para crescer. A velha reparou que ele mudara. Apesar de ser um rapaz por fora, por dentro era quase um homem. O povo festejara o seu regresso à aldeia de Inverno com um banquete. A caça ao caribu fora boa, e a velha e o rapaz que haviam ficado para trás estavam agora satisfeitos e com a barriga cheia de carne de caribu.

Pela primeira vez em muitos anos, ela estava sentada com as outras mulheres na cabana, com o espírito aberto às palavras do contador de histórias. O rapaz sentou-se no lugar do dzuuggi e começou a falar. As suas palavras transmitiam satisfação e força. A velha escutava e sentia que as histórias a enchiam de uma nova sabedoria.

Então o rapaz fez algo que nenhum dzuuggi conseguira fazer há anos, perdido que fora o hábito antes de ele nascer. Levantou a voz e foi buscá-la na chaminé da cabana, na aba da porta e no fogo da lareira, e parecia que cada pessoa contava a sua própria história, com as suas próprias palavras.

E quando falou de Chakliux, o rapaz descalçou as botas. A velha ajoelhou-se e levantou a cabeça até ver além daqueles que estavam sentados à sua frente.

Ih! exclamou ela, admirada.

Os dedos do pé estavam ligados por uma membrana como os das lontras; o pé era curvo e estava pronto para nadar.

 

                                                                                Sue Harrison  

 

                      

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