Biblio "SEBO"
O RELATO DE UMA MULHER AFEGÃ REFUGIADA NO PAQUISTÃO DESPERTOU NA CATALÃ ANA TORTAJADA UMA GRANDE ADMIRAÇÃO E SOLIDARIEDADE PARA COM A HISTÓRIA E A VIDA DO POVO DO AFEGANISTÃO. ESTE SENTIMENTO, A QUE SE JUNTOU O DESEJO DE CONHECER DE PERTO A REALIDADE E O DRAMA DO PAÍS, LEVOU-A A EMPREENDER UMA VIAGEM AO CORAÇÃO E AO HORROR DA GUERRA. EM AGOSTO DE 2000, ANA E DUAS COMPANHEIRAS PUDERAM OBSERVAR NO TERRENO A SITUAÇÃO DOS REFUGIADOS AFEGÃOS NO PAQUISTÃO: A MISÉRIA, A EXPLORAÇÃO LABORAL, O TRABALHO INFANTIL E A QUASE INEXISTENTE AJUDA INTERNACIONAL. JÁ NO AFEGANISTÃO, NOMEADAMENTE EM CABUL, E A VIVER DE PERTO A REPRESSÃO TALIBAN, FORAM TAMBÉM TESTEMUNHAS DA LUTA CLANDESTINA DE MUITAS PESSOAS QUE, PONDO EM RISCO A PRÓPRIA VIDA, TENTARAM QUE A EDUCAÇÃO, A CULTURA E A TOLERÂNCIA NÃO ENFRAQUECESSEM ANTE AS ARMAS DOS OPRESSORES. DAS SUAS EXPERIÊNCIAS RESULTOU ESTE RELATO SURPREENDENTE - UMA DENÚNCIA DOS HORRORES INFLIGIDOS POR UM REGIME QUE, EM NOME DO ISLÃO, TORTUROU E ASSASSINOU IMPUNEMENTE, SUBJUGANDO TODA UMA POPULAÇÃO CUJA LUTA FOI DURANTE DEMASIADO TEMPO IGNORADA.
Sexta-feira, 25 de Agosto de 2000. Vallirana
(Há quem venda por dois reais um quarteirão de pardais que ainda sulcam os céus ).
Há só cinco dias que regressei à Europa. Ando como uma alma penada, perdida pelos cantos e recantos da casa. Atribuo a dor de garganta ao ar condicionado, tão agressivo, que me assalta por toda a parte, e à fartança de fumar sem vontade, só pelo prazer de acender um cigarro cada vez que me dá na gana, sem ter de procurar um sítio discreto para o fazer. Aferro-me à desculpa credível que o cansaço e o descalabro das minhas tripas me oferecem, depois desta viagem ao Afeganistão fisico e ao Afeganistão virtual da numerosíssima população afegã refugiada na cidade paquistanesa de Peshawar, para não sair de casa, não ver ninguém, não fazer nada.
Dá-me um certo alívio, ainda que muito relativo, a certeza de que não sou só eu que se sente estranha, fora do lugar, alheada do mundo que a rodeia. Com a Meme e a Sara passa-se algo semelhante. Desde que voltámos, custa-nos reatar com a nossa gente e o nosso ambiente: eles não estiveram lá. Evidentemente mostram-se interessados pela nossa viagem, pelo que vimos, pelas situações que vivemos, mas por que é que as três temos a vaga e frustrante sensação de que o eco que a narração das nossas vivências desperta está cheio de interferências? As palavras e o ar por onde viajam parecem converter-se num magma denso e perdem o seu carácter condutor, que deveria permitir a comunicação. Isto não sucede quando falamos entre nós. Assim, nestes primeiros dias, refugiamo-nos no nosso triângulo particular, no pequeno espaço sólido, que parcela o nosso trio, da experiência comum, da sintonia directa, onde nos sentimos em segurança.
Antes não nos conhecíamos.
Não tinham sequer passado três dias desde que o Afeganistão, a situação que padece sua população sob a opressão taliban e a luta pela sobrevivência dos refugiados afegãos no Paquistão tinham irrompido na minha vida monopolizando tudo, quando me chegou a notícia de que um grupo de pessoas da UOC (Universitat Oberta de Catalunha) estava a organizar uma viagem. O grupo não existia: apenas Mercê Guilera, estudante da UOC que estava decidida a viajar até ao Paquistão para conhecer de perto a situação da mulher naquele país, e que tinha proposto a viagem a Sara Comas, jornalista de El Punt de Rubí, com quem já se tinha encontrado por várias vezes, sempre relacionadas com questões de cooperação e de solidariedade. Ambas tinham conhecido a mesma refugiada afegã durante a estadia desta em Barcelona. Sara tinha-a entrevistado para o seu jornal. Consegui saber o telefone de Mercês Guilera, a Meme. Liguei-lhe e juntei-me logo aos preparativos da viagem.
Nada havia de precipitado na minha resolução. Era aquilo mesmo que eu queria fazer. Todavia, enquanto tratava das coisas que me cabiam fazer na repartição de tarefas estabelecida por telefone e e-mail, havia uma parte de mim própria que não conseguia acreditar no que estava a suceder. Três semanas antes, a única coisa que sabia do Afeganistão era uma recordação confusa da invasão soviética e da campanha de 1998, "Uma flor para as mulheres de Cabul", que não tinha deixado especial marca em mim. E de repente todos os meus pensamentos, esforços e emoções centravam-se nesse país esquecido. Procurava informação, navegava pela Internet, saqueava as bibliotecas e livrarias com uma insaciável sede de conhecimentos. Tornei-me monotemática. O primeiro pensamento ao acordar era para o Afeganistão. Adormecia recapitulando tudo o que de novo tinha descoberto e aprendido. Até os meus sonhos giravam à volta do Afeganistão.
Sara Comas, Mercê Guilera e eu conhecemo-nos pessoalmente quase quinze dias depois daquela primeira chamada telefónica, quando nos reunimos para a nossa primeira sessão de trabalho. Cada uma de nós, ao decidir realizar esta viagem, tinha os seus objecti vos e motivações pessoais, mas coincidíamos no fundamental: conseguir no terreno toda a informação de que fôssemos capazes, contactar com o maior número possível de organizações, pessoas, estratos sociais, aqui e ali, para obter uma visão tão completa quanto possível, de modo a poder denunciar, no regresso, com conhecimento de causa a situação da população afegã. Não sou, de modo nenhum, uma especialista em política externa, direito internacional ou economia mundial. Sou uma cidadã vulgar. Sei que tenho direitos e obrigações. Gosto da vida e das pessoas. Detesto a mentira e a falsidade e prefiro sempre a verdade.
A viagem era para mim a primeira consequência de um compromisso recentemente assumido com uma mulher que nunca tinha visto antes: a 20 de Março, pelo fim da tarde, assisti em Barcelona a uma conferência que uma refugiada afegã, que estava na Catalunha a convite da Lliga deis Drets deis Pobles2, proferiu na sede de Ca La Dona. A jovem falou em
1 Universidade Aberta da Catalunha. (N. do T.)
2 Liga dos Direitos dos Povos. (N. do T.)
inglês. Havia dois intérpretes que se revezavam para traduziras suas palavras para catalão. Naquela altura os meus conhecimentos de inglês eram mais que escassos, mas surpreendi-me por entender tudo o que ela dizia. À medida que o seu discurso avançava, mais fascinada me sentia. A exposição, sóbria e serena, que fazia de uma realidade arrepiante cativava-me. Nem na altura, nem depois, senti raiva, indignação ou ódio contra os opressores do povo afegão ou contra os seus cúmplices. Não acredito na cólera nem no ódio: são improdutivos.
Tão pouco me custa reconhecer que o que experimentei naquele dia, à medida que a conferência prosseguia, foi um amor crescente e inexplicável por aquela mulher jovem, pela sua gente e pelo seu país. Não havia uma pisca de sentimentalismo naquele sentimento, não se tratava de uma simples reacção emotiva. Quando terminou a conferência fui cumprimentá-la com uma timidez que me não é própria. Não deixei que a minha ignorância do inglês fosse um obstáculo e pedi que me traduzissem a única coisa que lhe queria dizer:
- Obrigada por trabalhares como trabalhas, por não teres ficado a choramingar num canto.
Ela respondeu com grande vivacidade:
- Nego-me a chorar a situação do meu povo. Chorar não resolve nada e consome toda a energia que se deve dedicar ao esforço de mudar as coisas.
Despedimo-nos com três beijos, como é costume no seu país. Contou-me risonha que três era o mínimo, mas que poderiam chegar a sete, nove ou mais.
- Good luck! Felicidades! - desejei-lhe, esgaravatando no meu parco vocabulário inglês, quando nos separámos num semáforo.
Enquanto atravessava a rua pus-me a pensar no que poderia fazer e acabei por concluir que, razoavelmente, só sei fazer uma coisa: escrever. Talvez pudesse escrever um livro sobre a questão, um livro que contasse a realidade tal como é vivida por eles, um livro que não voltasse a reflectir a versão e a visão do Ocidente, mas a versão dos afegãos, daqueles que a conhecem e a padecem. Documentar-me-ia seriamente para ser um bom instrumento ao seu serviço, mas escreveria tentando que fosse a voz deles a ouvir-se.
Apresentei-lhes esta minha oferta no dia seguinte, por e-mail. Acrescentei que, se algum dia se publicasse o livro e tivesse lucro, todo o dinheiro iria para os projectos humanitários da HAWCA, a organização humanitária de assistência a mulheres e crianças do Afeganistão a que ela pertencia. Há um provérbio afegão, um provérbio persa da região de Cabul, que reza assim: "Há quem venda por dois reais um quarteirão de pardais que ainda sulcam os céus". A minha oferta era como o grito desse vendedor que ainda não tem nada na mão. Mas ela aceitou. Dei-me conta de que ainda nem sequer sabia o seu nome. Prometeu-me toda a ajuda que pudesse prestar-me, lamentando o facto de a sua estadia em Barcelona estar a terminar, não havendo por isso tempo para nos encontrarmos. Garantiu-me,
porém, que responderia a todas as minhas perguntas e que me mandaria todas as informações que eu solicitasse. Começámos, então, uma intensa correspondência por e-mail, enquanto eu estudava inglês, geografia, história, literatura, relações internacionais, antecedentes, origens e causas do conflito, declarações, notícias dos jornais, artigos de especialistas no assunto, denúncias das próprias mulheres afegãs.
Foi assim que firmei um pacto com o Afeganistão e com o seu povo através desta mulher que aos meus olhos os simbolizava. A narração da minha estadia ali deveria ser o fruto e expressão deste pacto. Mas há já quatro dias que fujo do teclado, feita um mar de saudades, fechada em casa como um caracol, agradecendo aos deuses que toda a gente lá de casa esteja longe, de férias. Não ver ou falar com quem quer que seja. Apenas quero estar sozinha para assimilar e saborear esta tristeza afegã que trouxe como lembrança.
Já comentei com toda a gente as curiosidades e as aventuras mas, na realidade, tudo ficou por dizer. Não sei se encontrarei quem ouça a sério tudo quanto tenho para contar, que saiba pôr-se no meu lugar e perceba esta estranha mistura de emoções e vivências, de desejos, alegrias e desgosto. Não sei se há quem queira acompanhar-me até ao fundo deste poço escuro e silencioso desta tristeza sem desespero, serena e sem estridência. Nem se haverá quem, comigo, queira rir por cada uma das mil anedotas e situações divertidas que a vida nos foi oferecendo, dia a dia, durante toda a nossa estadia, mesmo nos momentos mais dramáticos.
Na realidade, quase que me atreveria a dizer que a vida tem o mesmo e subtil sentido de humor dos afegãos, que gostam de rir, e que até nas piores situações, calculado que esteja o perigo, decantadas as opções e tomadas as decisões, depois de sensatas mas intermináveis deliberações do clã, nunca perdem a ocasião de sorrir diante do único detalhe grotesco de uma história de terror.
O segredo deles, na verdade, é que não têm medo.
Conhecem o perigo mas não vivem assustados. Fazem o que têm que fazer, com toda a prudência e com o máximo de precaução, mas nada os detém. Driblar o perigo estimula-os e é uma causa mais de sorrisos.
Agradam-me. Gosto muito desta gente.
E gosto da tristeza perpétua que se derrama pelos seus olhos secos que nunca nos deixam de mirar. A tristeza dos refugiados afegãos é a tristeza profunda, sóbria, do paraíso perdido, a nostalgia do país que amam até ao delírio: Afeganistão... Ouve-los pronunciar o seu nome e, mesmo antes de te traduzirem o que dizem, já o tom e o acento de cada sílaba se agarra a todo o teu corpo e encontra eco no mais desconhecido dos recantos. Dizem Afeganistão e, nos seus lábios, este nome tem o sabor do mais doce dos beijos, do amante perdido, da carícia cálida, do peito amigo, do refúgio protegido, da chuva lá fora.
Tristezas de amor e de nostalgias contagiosas.
E a mim, que não sou afegã, enevoam-se-me os olhos de saudades do Afeganistão e de Cabul. Queria ser mulher afegã para ter o direito de lutar ao seu lado, de ficar ali - num ou noutro lado dessa fronteira imposta - defendendo, junto deles, os direitos da minha gente,
opondo uma resistência pacífica ao desgoverno da barbárie, contribuindo para a revolução da cultura com lápis, cadernos e livros clandestinos contra aqueles que pretendem impor a ignorância e a anulação do espírito, da inteligência e de todas as liberdades.
Empreendi a minha viagem ao Afeganistão fascinada pela sua história antiga e recente, pela pluralidade do seu povo, pela riqueza das suas línguas, culturas e tradições, apaixonada por todos os mitos encarnados por essa mulher magra, de cabelo preto e pele de nácar, refugiada afegã, um dia chegada a Barcelona depois de um périplo europeu, para contar a situação do povo afegão, dentro e fora do país, e propagandear o trabalho da sua organização entre os refugiados, criando escolas e empregos para mulheres e prestando apoio, no Afeganistão, às redes clandestinas de alfabetização e de assistência sanitária para aquelas a quem no seu próprio país, sob o regime taliban, é negado o acesso à educação e aos cuidados médicos.
Fui ao Afeganistão com o coração tocado e voltei com ele roubado. Fiz minha uma parte da tristeza dos afegãos e sinto-a como um privilégio, como um tesouro que nunca mais quero perder, porque esta tristeza afegã age como um filtro que tinge tudo de uma nova luz e que, se não levar ao suicídio, é fonte inesgotável de energia. É o tapete sobre o qual descansas e actuas, onde se urdem planos de futuro e de esperança: não lhe prestas atenção, nem te lembras que existe, mas está lá.
Uma tristeza de amor que vive no coração de cada afegão e no Afeganistão, nas suas montanhas, que vão do ocre quase branco até ao tostado, com os seus recantos subitamente verdes, no rio Cabul de tonalidades cambiantes, na poeirada das suas estradas sem árvores, bombardeadas. E em Cabul, "a Silenciosa", onde o riso e a música estão proibidos. Cabul, velha e nova, toda ela destruída pelos bombardeamentos, que se estende, rodeada de altíssimas montanhas, encarrapitando-se pelas colinas. Depois de teres estado em Cabul e de, por horas e horas de sol, teres enchido os olhos com a magnífica paisagem do Afeganistão, agreste e duro como a rocha viva, percebes o único lamento comum a toda esta gente de gargalhada fácil e tristeza contida, a única queixa que se permitem quando, no bochorno permanente de Peshawar, a cidade do seu exílio, um afegão diz, de passagem: "Ah, o clima de Cabul! ".
Ilumina-se-lhes, então, o semblante, e ficas a saber que o clima pouco importa, não passa de um referente, uma espécie de símbolo inocente, sem implicações nem conotações,
onde vertem e evocam a recordação e as saudades de um país, de um passado que era seu até há pouco e que lhes foi arrebatado.
É essa tristeza afegã de amor a que hoje consegue tirar-me da minha letargia e faz com que me sente diante do computador, animosa e cheia de energia, disposta a cumprir a promessa.
Domingo, 30 de Julho de 2000. Peshawar
No primeiro dia que se viram foram amigos, quando se reviram, foram irmãos.
A terramos de madrugada no Paquistão, no aeroporto de Islamabad, a capital. No avião, quando os relógios indicavam meia-noite em Barcelona, já as hospedeiras nos tinham acordado para o pequeno-almoço.
Ao descer do avião ainda está escuro e a primeira impressão é que estamos a entrar numa bolha de ar quente. Um calor semelhante ao do motor de um carro no Verão quando acabamos de o aparcar. Num minuto o corpo desencadeia um conjunto de automatismos e cria sobre a nossa pele uma película permanente, um banho de suor que nunca mais nos abandonará. Apesar de resistir mal ao calor, consolo-me ao pensar que poderia ser pior.
O aeroporto está cheio de gente. De homens. Todos vestidos com calças largas e camisas compridas até aos joelhos. Branco, azul-celeste e bege. As cores dominantes da parede humana de paquistaneses que, para lá das baias, esperam a chegada dos passageiros vindos do Ocidente com quem viajámos a partir de Londres. Famílias inteiras muito engalanadas: elas arrastando o tchador de gaze, carregadas de ouro e de crianças, e eles mais sóbrios com os seus gorros bordados, alguns com casaco e gravata, supomos que para impressionar os que os irão receber. Continuamos a supor que são emigrantes estabelecidos no Reino Unido que vêm de férias e que, como também os nossos emigrantes na Alemanha, França ou Suíça faziam, se permitem o prazer de ostentar quão bem lhes vai a vida.
Em lslamabad só fazemos escala. Ainda nos falta um voo nacional até Peshawar. A Sara, a Meme e eu vamos pedir informações e o empregado do aeroporto manda-nos recolher a bagagem porque, para voar até Peshawar, há que registá-la outra vez. Submergimo-nos por isso na multidão de famílias que se amontoam junto do tapete rolante Avós em cadeiras de rodas dirigem a operação de resgate de volumes; mães com carrinhos, um bebé ao colo, e mais um par agarrado ao tchador esperam junto das malas. Os carregadores do aeroporto insistem em passar os carrinhos carregados com grades de material de construção por sítios impensáveis. Ruído. Apertos. Sorrisos de desculpa que vão e vêm.
E a mala da Meme que não aparece.
Por outro tapete rolante chegam as bagagens de um voo procedente dos Estados Unidos que acaba de chegar, cheio de paquistaneses. O tapete enche-se de malas e embrulhos de tamanho gigante, até microondas bem embalados que trazem para parentes que ficaram no Paquistão.
Escondida atrás de uma coluna e entrincheirada atrás do carrinho em que jazem as nossas bagagens, acendo um cigarro, sentindo-me transgressora. Entre as muitas coisas que fizemos durante os preparativos desta viagem, uma foi entrevistarmo-nos por várias vezes com uma mulher paquistanesa que teve a amabilidade de nos instruir sobre o país, os seus costumes, sobre o que se considera boa educação e o que se julga incorrecto. Uma mulher que fuma entra na categoria do muito incorrecto. Estava disposta a não fumar durante as três semanas que iria durar a nossa viagem, mas a minha vontade fraquejou poucas horas depois do último cigarro.
Ainda que em Barcelona tenhamos aprendido muitas normas de urbanidade paquistanesa, de pouco nos serviram, porquanto apesar de na maioria do tempo termos estado no paquistão, é como se nunca lá tivéssemos estado, porque não poderia contar nada deste país,
da sua gente, tradições e formas de vida. Nada. A Meme, a Sara e eu vivemos todo o tempo imersas num mundo afegão, alojámo-nos com famílias afegãs em casas construídas e distribuídas à maneira afegã, comemos em restaurantes afegãos, pratos afegãos, gelados afegãos. Nas lojas, nas vendas de fruta, nos campos de refugiados, nas nossas entrevistas com organizações humanitárias, nas ruas e mercados, entre os mendigos e drogados... só nos relacionámos com os afegãos refugiados que constituem este outro Afeganistão colado à fronteira real e fisica do seu país; este outro Afeganistão que foi obrigado a fugir e que, contra toda a esperança, espera o fim do reinado do terror para voltar.
A mala não aparece.
A sala foi-se esvaziando e já só restamos nós. Tratamos de chegar à fala com um funcionário que nos faz andar de um lado para o outro até que se resolve a preencher o formulário correspondente e nos explica o que temos de fazer. Entretanto, revezamo-nos para trocar dólares por rupias paquistanesas num balcão do aeroporto. Depois, seguindo sempre as instruções do pessoal, dirigimo-nos para o departamento de saídas e voos nacionais.
Já é dia.
Toda a gente nos olha, mas não nos importuna. Uma mulher idosa cruza-se connosco e sorri-se para mim. Devolvo-lhe o sorriso. Vestimo-nos discretamente, roupa larga, blusas de mangas compridas, mas mesmo assim parecemos fora de sítio no meio de todo este gentio que se veste tão diferentemente.
Para conseguir o cartão de embarque do voo de Peshawar há que pagar as taxas. Não o sabíamos e resistimos por algum tempo, não fosse estarem a enganar-nos. O funcionário que nos tocou em sorte não é uma águia e está sempre a levantar-se para pedir ajuda aos colegas. Temos dificuldade em calcular quantas pesetas nos custa o que nos querem cobrar e já se formou uma bicha impressionante atrás de nós. Quando nos decidimos pagar, a nota que Puxamos da carteira excede completamente a capacidade de troco do homem atrás do balcão, pelo que manda um contínuo trocá-la no banco. O passageiro atrás de nós, farto de esperar, adianta-nos, com um gesto impaciente, o dinheiro necessário para acelerar o processo. Quando o contínuo regressar recuperará o seu investimento e pelo menos já poupou tempo. Saímos para a pista. O avião que nos levará a Peshawar é pequeno, quarenta lugares, funciona a hélice que um homem põe em marcha cá fora. Junto das escadas estão as nossas malas, mas não as da Meme, e, antes de embarcar, cada passageiro teve de identificar a sua. O avião vai quase vazio.
Vista do céu, Islamabad é uma mancha de prédios cinzentos e zonas verdes. Sobrevoamos umas montanhas e depressa o mundo começa a ter cor ocre. Cá de cima, Peshawar é castanho-claro.
Olho para trás e não entendo qual a força, que magnetismo me fez vir até aqui, a mim que não aguento o calor e tenho medo de voar.
Connosco, no avião, viajam um par alemão, porventura membros de alguma ONG, um casal de paquistaneses e uma mulher sozinha, de aspecto ocidental, que agora põe o véu. A nossa fonte de informação em Barcelona já nos tinha avisado que Peshawar é uma cidade muito mais conservadora do que Islamabad, onde até se pode andar de manga curta ou sem tchador.
Recolhemos novamente a bagagem e saímos imersas numa mistura de sentimentos. Cada uma vai mergulhada nas suas próprias emoções e falamos pouco. Por uma última vez desejamos em voz alta que tudo nos corra bem e que de facto haja alguém à nossa espera. Essa é a nossa única preocupação: se por alguma razão os nossos amigos não aparecerem no aeroporto, não temos nem direcção nem telefone para onde contactar. A precariedade de meios é tal que nem telefone têm. Resta-nos a possibilidade de esperar que eles nos localizem. Na realidade nem sei por que nos preocupamos já que confirmámos um sem-número de vezes, por e-mail, a hora de chegada e o número do voo. Além disso, na véspera da partida recebi uma última mensagem de Azada: "Querida Ana: espero que recebas este recado antes de partir. Não te preocupes, por favor. Estaremos à vossa espera no aeroporto de Peshawar. Se por algum motivo nos desencontrarmos, ligarei para o teu telefone portátil".
Não foi preciso.
Subitamente, entre a gente que espera, vejo-a avançar para nós, sorrindo, abrindo caminho entre o mar de corpos que nos separa. É Azada. Num dos e-mail perguntara-lhe se o seu nome tinha algum significado. Tem. Vem do persa azadi, liberdade; Azada é, portanto, a mulher livre. Abraça-nos e cobre-nos de beijos. Não os três beijos da praxe, de Barcelona, mas sete, nove, mil beijos. Sinto que nesse momento se está a cumprir o provérbio afegão que diz: "No primeiro dia que se viram foram amigos, quando se reviram foram irmãos".
A primeira coisa que faz esta mulher previdente, que está em todas, é tirar de um saco de plástico três tchadores. Entrega um a cada uma de nós e ensina-nos a colocá-lo. Alguns homens tiraram-nos as malas da mão enquanto ela nos apresenta as mulheres que a acompa
nham e que, um pouco mais longe, aguardam que se acabem os cumprimentos. São Nasreen e Lala. Trabalham as duas como professoras na escola que a HAWCA dirige em Peshawar. Uma delas traz uma menina pela mão, mas nada indica que seja sua filha. Os homens são os motoristas dos dois carros que vieram buscar-nos. Levar-nos-ão para casa de Najiba, que será a nossa hospedeira durante todo o tempo que estivermos aqui.
Desde o princípio que a nossa ideia era alojarmo-nos com eles. A Sara era a maior defensora desta opção. A Meme não punha de parte passar uma ou outra vez pelo hotel. Também tínhamos clara consciência de que três pessoas caídas do céu, pesando sobre uma economia familiar já de si precária, durante três semanas, era algo que nos devia preocupar. Contribuir para encher a despensa da casa era outra hipótese, mas não conhecendo o oriente, as suas normas e os seus hábitos, receávamos que isto fosse ofensivo. Naquela época não fazíamos a mínima ideia do que era a hospitalidade afegã. Sabíamos, por uma das múltiplas mensagens que quase diariamente trocávamos, que eles também analisavam diferentes hipóteses no que dizia respeito ao nosso alojamento. A casa de Najiba era uma das opções. E acrescentavam:
"Há que avisar-vos que viver nas nossas pobres casas, onde há restrições e cortes no abastecimento de água e luz, talvez seja dificil de suportar, sobretudo nesta época quente e seca do ano, com as altas temperaturas que se têm feito sentir. Se assim for, não se preocupem, que há sempre a possibilidade de vos arranjar um hotel".
Don't worry. Foi uma das expressões que mais se repetiram nas suas mensagens. Que todos, aliás, mais repetimos. E no que toca às dificuldades que nos aguardavam... Se eles podiam suportá-las como condições permanentes de vida, por que não poderíamos fazer o mesmo, tanto mais que dentro de três semanas voltaríamos para as comodidades a que estamos habituadas?
Enquanto, junto dos carros, esperamos por Azada, que pretende assegurar-se dos passos a dar para recuperar a mala perdida, e apesar de saber que estou a ser indiscreta, não consigo deixar de observar as pessoas. É tudo tão novo e tão diferente que não resisto à tentação.
Faz calor, muito calor. Todavia não me incomoda.
- Garmí - dizem as professoras que não sabem uma única palavra de inglês. Fingem abanar-se e suspiram.
Garmí, pois claro: calor. Enfiam-nos nos carros. São veículos muito pequenos sem nada que os identifique como táxis. As malas empilham-se em cima do tejadilho.
O táxi cruza a cidade por avenidas e ruas largas, cheias de carros, riquexós, autocarros e camiões com pequenas correntes e trapos negros pendurados, decorados com uma profusão de motivos e cores berrantes. Conduz-se pela esquerda e o volante é do lado direito: herança do antigo império britânico. De repente o nosso carro mete-se por uma ruela por asfaltar. Para trás ficaram os semáforos, o tráfico intenso, os apitos da polícia e o ruído de motores e buzinas. Estamos agora em pleno centro de um dos muitos bairros afegãos de Peshawar. Atravessamos, à custa de buzinadelas, a rua do mercado, tão estreita que da janela 19
se podem tocar as grades de galinhas, as cabeças de cordeiro esfoladas, a fruta que se amontoa nas vendas. É um mar de gente. Velhos com turbante, crianças sorridentes, mulheres com a cara coberta pelo tchador, uma ou outra envolta pela burka verde-garrafa ou azulceleste forte. Cruzamo-nos, pelo caminho, com cães e carroças puxadas por burros. Um barbeiro faz a barba a um homem, sentados os dois numa esteira no chão. Sentada à sombra, uma mendiga coberta pela burka espera uma esmola. À sua volta dormem crianças. Noutro cubículo, um homem remenda sapatos.
O carro pára à entrada de uma ruela ainda mais estreita onde já não passa nenhum veículo. O taxista, expressivo e serviçal, amigo da família que nos acolhe, carrega os sacos, enquanto as mulheres nos guiam até à casa de Najiba. Pelo meio da rua, um caminho de pó e lama, corre, sabe-se lá para onde, um esgoto com um palmo de largura que recolhe as águas residuais, sujas, e por vezes a das barrelas das casas, alinhadas à esquerda e à direita. Sucedem-se portas e portas, fechadas. Na maioria são de metal, de folha dupla, mas também há as que só estão cobertas por uma cortina de pano. Nasreen, que também vive no bairro, indica-nos a dela. Continuamos até que, diante de uma porta azul, param e chamam. - Quem é?
Respondem. Com uma chiadeira metálica, abrem-se as portas. Lá dentro um pátio de terra. Najiba recebe-nos e cumprimenta.
- Salaam!
Tem um sorriso que lhe ilumina os olhos verde-cinza. Tira-nos o tchador e gesticula: não são precisos dentro de casa. Em seguida apresenta-nos uma adolescente de olhos grandes e tranças volumosas que lhe chegam à cintura, Basira, sobrinha do seu marido, e a uma amiga desta, que morre de curiosidade e vergonha, escondendo as suas risadinhas atrás do tchador.
À esquerda de quem entra há uma varanda em L para onde dão três portas. Logo que entramos na varanda convidam-nos a descalçarmo-nos e sentamo-nos sobre o tapete. Basira traz ahnofadões forrados de veludo vermelho para apoiar as costas contra a parede. O taxista larga as malas e pede à dona da casa que traga uns paka, uns leques rectangulares de palha, com cabo de madeira, parecidos com bandeirolas rígidas para fazer sinais. Abanam-nos. Tamanha atenção incomoda-nos um pouco, e ainda não conhecemos até que extremos chega a cortesia afegã, o seu elevado sentido da hospitalidade que converte em rei cada convidado. Aprenderemos a aceitar estas mostras de atenção com a mesma naturalidade com que eles no-las proporcionam e a não cometer a grosseria de as recusar. Brincamos com os leques, abanando-nos uns aos outros. Ninguém fala inglês e Azada, que vem no outro carro, ainda não chegou. A comunicação faz-se à força de sorrisos e de gestos simples. O tema é banal: o calor. Garmí. A curiosidade é mútua. Eles olham para nós e nós para eles.
As três portas da varanda correspondem aos três quartos que a casa tem. Num deles
vive Najiba, o marido e os dois filhos, uma menina de quase dois anos e um bebé de quatro meses. No quarto do meio, onde ficaremos, vivem os sogros de Najiba, e no outro, cuja porta está na parte curta do L, os cunhados. Nem os avós nem os cunhados estão em casa. Terão ido para outro sítio para nos deixar lugar? Não o sabemos.
Móveis não há. Só um espesso tapete afegão cobre o solo e uns cravos na parede para pendurar a roupa, que se protege do pó com um pano também suspenso por cravos compridos nos dois extremos e que faz as vezes de armário.
Do outro lado do pátio há três quartos independentes. Para já, só sabemos que a porta tosca do meio, feita com tábuas por aplainar, é a retrete. Um buraco no chão com uma moldura de porcelana para os pés, uma torneira na parede e um balde. Teremos que aprender a acocorar-nos. E logo que troquemos as nossas roupas ocidentais pela vestimenta local, a coisa complicar-se-á, dada a quantidade de tecido que haverá que recolher para não o arrastar pelo chão. Papel não há! A torneira da parede, além de servir para encher o balde que faz as vezes de autoclismo, serve também para as pessoas se lavarem. Nós utilizaremos a provisão de papel higiénico e lenços de papel que trouxemos para estas tarefas e penduraremos um saco de plástico num canto para lá deitar tudo o que possa entupir o buraco.
Quando Azada chega sentimo-nos aliviadas. Ela é a nossa ponte de comunicação, a nossa voz e os nossos ouvidos. Já não terá mais um momento de descanso. Será a nossa intérprete dia e noite. Eu, que conheço bem este trabalho, não sei como não morre de esgotamento.
Nasreen despede-se e vai para casa, poucas portas mais adiante. O mesmo faz o taxista. Basira estende um oleado sobre o tapete, põe a mesa e comemos sentadas no chão do que virá a ser o nosso quarto. Uma montanha fumegante de arroz com especiarias, passas e rodelas de cenoura: palau, um dos mais típicos e apreciados pratos da gastronomia afegã, sobre uma travessa quase do tamanho de uma roda de bicicleta. Noutro recipiente há frango com molho, cortado em pedacinhos. Ao contrário da cozinha paquistanesa, os pratos afegãos não são picantes nem levam demasiadas especiarias. Para acompanhar, umas malgas cheias de iogurte natural. E pão. Nan. São pães grandes, espalmados em forma de folha alargada, romboidal, de cor tostada e desenho geométrico em toda a superficie superior.
Azada, sempre atenta, pede que nos tragam garrafas de água mineral. Ela sabe que a água da torneira que eles conseguem beber pode cair-nos mal porque o nosso organismo não está habituado. Compartilhamos pratos e copos. Para já não sabemos se na casa há mais louça ou se, dada a escassez de água, será melhor sujar apenas o mínimo. Alguns dos pratos são de plástico, outros de metal como os que usam os excursionistas no nosso país quando vão acampar. A nós dão-nos talheres. Garfos e colheres. Não há facas. Cortar em pedaços o frango, cheio de ossos, com a simples ajuda da colher, converte-se numa tarefa bastante árdua que se resolve quando nos dizem que, entre eles, é habitual comer com as mãos. Com uma mão. Agrada-me que aqui seja correcto fazer o que desde pequenos nos proibiam, dizendo que era má educação. Rimo-nos todas. E elas ainda mais, quando vêem com que falta de habilidade levamos a comida à boca.
Não nos deixam ajudar quando chega o momento de levantar a mesa. Somos convidadas! Elas arrumam e fico com vontade de ver a cozinha. Uma leva os pratos sujos, outra as bandejas, outra guarda os pedaços de pão numa caixa de plástico que está na varanda. Passa uma esponja pelo oleado, dobra-o e guarda-o debaixo da caixa do pão.
Assaltada pelo vício, aproximo-me de Azada disposta a seguir o seu conselho. Nada perco em perguntar:
- Azada, será de muito má educação uma mulher fumar?
Ela sorri e não responde. Diz qualquer coisa em dari a Najiba e, segundos depois, a dona da casa entrega-me um cinzeiro de vidro, acompanhando o gesto com um sorriso radioso. Tira-me um peso de cima. Prometo-me não abusar da sua tolerância e conter-me o mais que puder. Fumarei apenas no pátio e só quando estivermos os de cá de casa.
À tarde, Nasreen volta. Acompanha-a uma senhora idosa, de cabelo branco. É a sogra dela. Conseguimos não usar o calor como tema de conversa.
Nasreen é uma mulher jovem, alta e magra, de cabelo e olhos negros, que cuida muito do seu aspecto. O seu nome significa "a flor do junco". Nada mais acertado. Sentada ao lado da sogra, conta-nos que acabou os seus estudos de magistério em 1992. A guerra contra o invasor soviético nunca chegou a Cabul, onde a vida prosseguia normalmente. Depois, e apesar da guerra civil, foi professora até os taliban tomarem a cidade, em 1996. Com a chegada deles, quando, entre muitas outras coisas, se proibiu as mulheres de desempenhar trabalho remunerado fora de casa, Nasreen, como tantas outras mulheres, viu-se obrigada a renunciar à profissão. Como primeira consequência, a falta de professoras levou ao encerramento de muitas escolas.
Entramos completamente na história quando esta avó suave, que nos olha e sorri, começa a contar-nos como ela e os seus tiveram que fugir do Afeganistão. Azada traduz enquanto a mulher fala com as pernas cruzadas, as mãos no regaço ou sobre os joelhos. De vez em quando, num gesto sóbrio, levanta-as. Por momentos emociona-se, mas não chora. Seca os olhos - só húmidos - com a ponta do tchador branco que não tirou ao entrar em casa e que de quando em quando, com um movimento certeiro, reajusta sobre o cabelo.
Ela e o marido viviam no centro de Cabul.
A guerra civil entre três dos principais partidos islan-ústas travava-se já nas ruas da cidade. No ano anterior, na Primavera de 1992, o general Massud', que actualmente luta contra
1 0 general Massud, o "leão do Panshin>, vem a ser assassinado no fim do Verão de 2001 por dois falsos jornalistas argelinos que supostamente agiram de acordo com o grupo de Osama Bin Laden. (N. do T.)
os taliban no norte do país, tinha ocupado Cabul e tinha-se aliado às forças do partido que aglutinava a maioria hazara e às tropas uzbeques de Dostum. O presidente do governo prosoviético, Najibullah, depois de uma tentativa frustrada de sair do país, tinha-se refugiado na sede das Nações Unidas de onde, quatro anos mais tarde, seria tirado pelos taliban para ser executado na praça pública. Formou-se um governo provisório com Rabbani como presidente, mas os acordos prévios não foram respeitados e Gulbudin Hekmatyar, chefe de uma outra facção islamista, que também ambicionava o poder, desencadeou um ataque brutal contra Cabul. As hostilidades entre as diferentes facções que lutavam pelo controlo da capital, bombardeando-a e destruindo-a, sucediam-se sem interrupção, provocando vagas sucessivas de refugiados que fugiam das atrocidades perpetradas por uns e outros contra a população civil, sendo cada bando apoiado por potências estrangeiras: Irão, Arábia Saudita, Paquistão...
O conhecimento minucioso que a população afegã tem da sucessão das batalhas, das mudanças de alianças, das barbaridades cometidas pelos senhores da guerra, nunca deixará de me espantar. Os nomes de Massud, Dostum, Helanatyar, Sayyaf, aparecerão sempre nas con versas. As pessoas detestam estes cabecilhas e respectivas tropas, os jihadis, islamistas fundamentalistas, tanto quanto os taliban. Lembram com idêntico horror os bombardeamentos, os saqueios, as violações, as matanças. Os raptos de meninas e de raparigas. Naheed, uma adolescente de Cabul, atirou-se do quinto andar quando foram procurar por ela. Muitos pais preferiram matar as filhas a deixar que elas caíssem nas mãos dos jihadis que as violavam até à morte e abandonavam os seus corpos dilacerados na rua.
E a anciã continua: as pessoas amedrontadas quase não se atreviam a sair de casa. A cidade era bombardeada, as diferentes facções batiam-se pelo controle dos bairros e à população civil tudo podia acontecer. Todavia, o marido, que era marceneiro, continuava a ir para o trabalho. A situação era tão insustentável que o marido de Nasreen resolveu levar os pais até uma zona periférica da capital, onde vivia outro dos filhos. Não havia carros disponíveis na cidade, pelo que foram a pé. A anciã conta que o filho a levou às costas todo o caminho, três longas horas.
Logo que se juntou toda a família, discutiram sobre as poucas escolhas que tinham e decidiram fugir juntos para o Paquistão. Não havia carros, repete a mulher. Circulavam apenas alguns autocarros que os levaram até Jalalabad, a cidade mais próxima do posto fron teiriço de Torjam. Nos autocarros só havia mulheres e velhos. Durante dois dias nada comeram. Ao terceiro dia conseguiram um pouco de pão. Em Jalalabad separaram-se porque Nasreen e o marido queriam voltar para Cabul. Ele também era professor e por aquela altura ainda tinha um emprego que no Paquistão seguramente não encontraria. Tornar-se refugiado foi sempre a sua derradeira escolha. O resto da família continuou a fugir até à fronteira. A mulher recorda que, uma vez no Paquistão, foram recebidos por alguém que entregava um cartão aos recém-chegados e lhes indicava qual o campo de refugiados para onde deveriam dirigir-se. O campo que lhes foi destinado situava-se em pleno deserto. Alojaram-nos em tendas e deram-lhes uma esteira para o chão. Eram duas tendas para vinte pessoas.
Escutámos em silêncio, mas quando a anciã terminou a sua narração, perguntámos-lhe de que época tinha melhor recordação.
Nem sequer precisa de pensar: elege os anos de reinado de Zahir Sha, exilado em Itália desde o golpe de estado perpetrado por Daud, primo do rei e apoiado pelo Kremlin.
- Tínhamos uma casa muito bonita em Cabul, num bom bairro. Ali nem sequer eram necessárias ventoinhas - diz, apontando num gesto breve o aparelho com grandes pás no tecto do quarto que nesta hora quente da tarde não nos proporciona nenhum alívio, já que houve mais um corte de luz.
- Podíamos comer toda a fruta que quiséssemos, frutas de todos os géneros, saborosas e de um aroma intenso - o preço da fruta em Peshawar é proibitivo para a precária economia dos refugiados. - Agora as casas estão destruídas pelas bombas. Já não há nada - sus pira. - Eu não trabalhava fora de casa, mas as mulheres que quisessem podiam fazê-lo. - E depois de um momento de silêncio, conclui, abanando a cabeça: - Nunca poderei voltar a Cabul. Já lá não tenho nada. A minha casa está destruída.
Nasreen intervém. Ela, ao contrário da sogra, não recorda nenhum passado melhor. Esta mulher jovem, perto dos trinta anos, era uma criança nos tempos da monarquia.
- Depois, cada etapa foi pior do que a anterior.
Muitas das pessoas com quem falámos, sobretudo os mais velhos, recordam com nostalgia o rei que, em 1964, dotou o Afeganistão de uma Constituição moderna, que contemplava a igualdade de direitos de homens e mulheres e que foi ratificada pela Loya Jirga, a grande assembleia, uma antiquíssima e eficaz instituição afegã, em que os grupos étnicos estão representados por membros eleitos.
À noite chega o marido de Najiba, que tem uma loja no bazar. O taxista vem com ele. Saúda-nos afectuoso mas retraído. Não sabemos muito bem como devemos comportar-nos diante deste homem tranquilo e reservado que fala devagar e em voz baixa. Senta-se no tapete, ligeiramente afastado de nós, e põe ao colo a filha que, desde que ele entrou, está louca de alegria. O dono da casa faz-lhe caretas e tagarela com ela com o mesmo tom de voz grave e em surdina. É para nós muito agradável ver a quantidade de atenção e afecto que as crianças recebem dos adultos, não só no seio desta família, mas por toda a parte aonde vamos, e não só da parte dos pais, mas também de qualquer pessoa que apareça em casa. O bebé de Najiba está sempre ao colo da mãe, das vizinhas, das raparigas que nos visitam. Nunca deixam uma criança chorar: embalam-no, fazem-no dançar, falam-lhe, acalentam-no. Todos, homens incluídos, são extremamente carinhosos com as crianças, que de qualquer regaço fazem um trono.
O taxista, muito mais extrovertido e falazão, fica para jantar e conversa com o nosso anfitrião, do outro lado do tapete. A separação entre homens e mulheres, purdah, existe e manifesta-se neste e em muitos outros detalhes que iremos descobrindo.
Ao jantar ocupamos e ocuparemos sempre, durante a nossa estadia na casa e nas nossas visitas a outros lares afegãos, a parte mais nobre da mesa-tapete reservada aos convidados: sobre os finos colchões, encostadas à parede, as costas apoiadas em grandes almofadões. Os nossos anfitriões ocupam os outros lados do quadrado de oleado que faz as vezes de mesa, de costas para o pátio, sem almofadões nem colchões, directamente sobre o tapete. É uma norma de educação e cortesia, uma das mil e uma delicadezas que terão para connosco.
Enquanto jantamos, o taxista diz a Najiba que nos deve dar muita cebola crua. Afirma que é o melhor remédio contra os efeitos do calor. Najiba manda logo Basira à cozinha e nunca faltará à mesa um prato de cebola cortada em gomos finos.
Depois do jantar começa uma longa sobremesa que fará as nossas delícias todas as noites da nossa estadia no Oriente. Não importa quão duras venham a ser as experiências que nos aguardara nos dias seguintes, o sofrimento que testemunharemos, as lágrimas que teremos que engolir. A noite dar-nos-á, em cada dia, um remanso de paz, de intimidade compartilhada, de amizade e de riso.
Correm litros de fumegante chá verde, muito doce, durante essas tertúlias, enquanto os membros da família, o grupo de amigos ou de convidados se entrega ao prazer da conversa. A maioria dos afegãos que conheci sabem apreciar o silêncio, mas basta que comecem a falar ou que se inicie uma discussão para que o tempo se suspenda e falem, falem sem perder o fio à meada. São grandes conversadores, talvez devido à tradição milenária das suas Jirga, essas assembleias em que se debate, se discute, se decide o mais conveniente para a comunidade. Na sociedade afegã, o comum prevalece sobre o individual, as necessidades do grupo são prioritárias, e é o grupo quem vela pelas de cada um. O individualismo feroz da nossa sociedade não existe entre eles. As decisões tomam-se por consenso.
A nossa presença obriga à intervenção de um intérprete de ida e volta, mas ninguém se mostra cansado ou aborrecido, impaciente ou incomodado. A conversa é fluida e prolonga-se até altas horas da madrugada. Quando um fala, os demais escutam atentos e respeitosos, sem interromper.
O nosso anfitrião toma a palavra e dá-nos as boas-vindas: lamenta não poder oferecer-nos tanto quanto quereria, dada a precariedade dos meios de que dispõe. Assegura-nos que se sente honrado por poder acolher-nos e que todos nos protegerão e velarão por nós. Expressa-nos a sua gratidão pelo facto de termos querido vir desde tão longe para conhecer de perto a situação em que vivem os refugiados afegãos e o povo afegão. Não devemos temer nada. Não permitirão que nos suceda o menor mal.
Comove-nos tanto afecto e enternecemo-nos ao comprovar até que ponto lhes parece extraordinária a nossa visita. Não somos ninguém, ninguém importante. Não temos influência, não controlamos as rédeas do poder, quer políticas quer económicas; não pertencemos a nenhuma organização. Somos só três mulheres.
De noite a ventoinha no tecto da varanda afugenta o calor, as moscas e os mosquitos. A electricidade voltou. A lua mostra-se por cima do muro que rodeia a casa.
Acabada a noitada fomos para a casa de banho lavar os dentes. É um quartito quadrado com uma torneira na parede, um balde de metal e um púcaro de plástico para despejar água naquele. Atrás da porta há um depósito cilíndrico com a altura de uma pessoa, aonde se vai buscar água quando cortam o fornecimento. Num canto do chão, o esgoto. Após breve dúvida cuspimos o dentífrico para o chão. Depois despejámos por cima um púcaro de água. Há um espelho pequeno pendurado na parede.
Entretanto as mulheres da casa puseram no quarto do meio os pequenos colchões forrados de tecido estampado verde. Alinharam-nos sobre o tapete vermelho com pequenos motivos geométricos em negro, o tradicional tapete afegão. Cobrem-nos com um lençol e já está feita a nossa cama.
- Sha bajair. Boas noites.
Deitamo-nos cansadas, ainda não suficientemente cônscias de quão indecentes parecem aqui os nossos pijamas com camisas de alças e calções.
O ruído da ventoinha do tecto acompanha-nos no sono. Estou aqui.
No coração de um bairro afegão na cidade de Peshawar que, até há pouco, fazia parte do território afegão.
Peshawar, há anos quartel general dos mujahedin e de todos quantos tomaram parte na guerra contra as tropas soviéticas, refúgio dos que lutavam contra o invasor.
Peshawar, que pouco depois seria a sede dos partidos islamistas e centro de treino dos seus membros, os jihadis, que, uma vez vencido o exército soviético, disputaram o poder. Peshawar, berço recente dos taliban, actuais genocidas no poder e zona de passagem da droga que os financia.
Peshawar, convertida em gigantesca sala de espera em que metade da população se compõe pelos milhares de refugiados afegãos que sobrevivem graças à esperança de poder regressar a casa.
Peshawar, cenário de manifestações que exigem democracia e respeito pelos direitos humanos no Afeganistão.
Estou aqui.
Com toda esta gente. Com Azada, que dorme a meu lado. Com Najiba e a sua família, que nos acolheu sem nada saber de nós. Com Meme e Sara, que mal conheço.
E estar aqui é um privilégio, um dom do céu.
Segunda-feira, 31 de Julho de 2000. Peshawar
Quanto mais amarga a paciência, mais doces os seusfrutos!
Temos de comprar roupa.
É fundamental não chamar a atenção. Assim não olharão tanto, ninguém nos incomodará, nem, aonde quer que formos, seremos logo assaltadas pelos mendigos. Mas sobretudo para segurança dos nossos anfitriões: não seria oportuno que alguém, excepção feita aos que estão dentro do segredo, se inteirasse que em casa de Najiba se alojam três estrangeiras. As pessoas começariam a fazer perguntas. Parecer-lhes-ia estranho que Najiba tivesse conhecidos no Ocidente. É melhor que não se saiba e que procuremos passar desapercebidas, entre outras razões porque, para muita gente, Ocidente, e por extensão qualquer ocidental, significa dinheiro. Muito dinheiro. E ainda que não seja esse o nosso caso, pouco importa. A presença de estrangeiras supostamente ricas põe em perigo a segurança da casa de Najiba, num bairro já de si inseguro.
Portanto, durante toda a nossa estadia em Peshawar, pelas ruelas do bairro, deveremos cobrir a cara e o cabelo com o tchador, mesmo dentro do carro. Nem vale a pena dizer que não poderemos passear pelo mercado local que atravessámos ontem quando chegámos.
Além disso, esta tarde iremos ao campo de refugiados e também não é conveniente chamar a atenção com as nossas roupas ocidentais quando para lá formos por zonas que nem a polícia controla.
Antes de ir às compras, no pátio da casa e enquanto esperamos pelo táxi que já está avisado, Najiba e Azada ensinam-nos a pôr o tchador. Custa-nos tanto e descobrimo-nos tão desajeitadas que nos desmanchamos à gargalhada. Logo pela manhã voltaram as amigas de Basira. São duas, desta vez, a risonha envergonhada de ontem e outra adolescente séria e distante que é sobrinha de Nasreen. Observam-nos com timidez, sem se atreverem a rir, mas pelos seus olhos adivinhamos que se contêm.
Azada consola-nos dizendo que é uma questão de simples prática.
Recorda a noite em que ela e a família fugiram de Cabul, quando os partidos islamistas começaram a tornar-se poderosos. Os seus membros, os jihadis, já semeavam o terror com os abusos que cometiam. Ela era ainda adolescente e, nessa noite de medo, em que para sair da cidade tiveram que passar controle atrás de controle e alcançar o Paquistão, a sua mãe fé-la usar um tchador. Ainda não o tinha usado e não sabia segurá-lo na cabeça. Como nós, agora.
À hora marcada, o motorista veio buscar-nos.
Doravante será sempre assim. À noite avisaremos por algum dos miúdos que estão sempre a entrar e sair da casa, filhos de alguma das poucas famílias que sabem da nossa presença, ou então um dos adultos dirá ao motorista para que horas precisamos do táxi. Enquanto estivermos em Peshawar, teremos sempre os mesmos condutores, três homens de absoluta confiança, amigos e simpatizantes da organização, que farão turnos para nos levarem a todo o lado.
Aqui os táxis contratam-se à hora. Para percursos pontuais pode-se tomar um riquexó, que é mais barato, mas no nosso caso não é possível, visto que o nosso grupo não caberia nesses pequenos veículos semidescobertos de três rodas. O táxi leva-nos e espera o tempo que for preciso para nos trazer de volta ou seguir para o destino seguinte. Ao chegar a casa, o motorista acompanha-nos até à porta, fazem-se contas e pagamos.
Outra das vantagens do táxi alugado é que o motorista se converte numa espécie de escolta pessoal, como um anjo-da-guarda que nos acompanha por toda a parte e nunca nos deixa. Tudo isto com uma discrição que em nada interfere nas nossas conversas, planos e risadas. Ainda por cima carrega os embrulhos. Na verdade há que agradecer, mesmo se, por momentos, me sinto como uma professora inglesa da época vitoriana viajando pelos trópicos. Mas lá nada é como cá. Os nossos motoristas são nossos cúmplices, o respeito é mútuo, sem assomo de classismo, de machismo ou de qualquer outro "ismo".
Logo que saímos do bairro, descobrimos a cara. Por ruas largas, asfaltadas e cheias de trânsito, dirigimo-nos para o centro, mergulhadas num concerto ensurdecedor: os condutores paquistaneses raramente tiram o dedo da buzina. Nos semáforos e nos cruzamentos, meni nos com latas fumegantes na mão assaltam as janelas dos carros parados. Não quero interromper Azada para perguntar o que é aquilo e, depois, esqueço-me.
Azada leva-nos a uma boa loja da Saddar Road. Metidas numa cabina de prova que para uma pessoa seria grande, mas que para três se converte numa autêntica sauna, experimentamos as roupas que escolhemos. Como não estamos habituadas a ver-nos assim,
desatamos à gargalhada. Às calças de algodão larguíssimas com o tecido franzido no cós baixo. Por cima um vestido do mesmo tecido que chega abaixo dos joelhos, com aberturas
aos lados, manga comprida, decote fechado, punhos e peitilho bordados. E o tchador a condizer: metros de tecido, rígido porque a roupa é nova, que não sabemos manejar e parece ter vida própria.
Saímos da cabina, mortas de riso e calor. Azada, divertida, faz-nos baixar o tom de voz e as gargalhadas. Dá-nos a sua opinião, recompõe-nos o tchador. Provamos outros modelos, trocamos os vestidos umas com as outras, escolhemos e voltamos a pôr a nossa roupa.
Transpiramos tanto que julgo que terão de lavar os vestidos preteridos que deixamos amarrotados no balcão. Compramos também fita elástica que deveremos passar pela cintura das calças para adaptar a largura a cada uma de nós. Azada tenta regatear, convencer o caixeiro a fazer um desconto, mas não consegue nada:
- Menina, isto não é um bazar, os preços estão marcados nas etiquetas.
A seguir, o motorista, que nos esperava, leva-nos, por indicação de Azada, ao clube da Internet. Está desfeito o mistério: durante meses trocámos e-mail com toda a naturalidade, mas sem imaginar como. Haveria, no campo de refugiados, ligações à Internet? Teria Azada, em casa, acesso à rede? Evidentemente, não! O carro detém-se numa das muitas pracetas abertas que, como mordidelas quadradas, assomam às ruas principais de Peshawar, onde há. lojas e supermercados modernos, tal como os conhecemos no Ocidente. Um destes estabelecimentos põe à disposição do público o acesso à Internet por quarenta rupias cada meia hora de ligação. Se o utente quer imprimir algum texto, paga dez rupias adicionais por página impressa. Há quatro computadores em actividade. Ocupamos dois. Azada quer saber se tem mensagens e responder à correspondência urgente. Além dos contactos em Espanha, mantém há já algum tempo uma estreita relação com a Itália, de onde lhe mandam, de vez em quando, donativos para a organização. Nós aproveitamos para enviar mensagens para casa e para os que se interessaram pela nossa viagem. Acabada a meia hora, o homem que dirige o estabelecimento quer cobrar-nos o dobro do que o enorme cartaz atrás dele anuncia. Será por sermos estrangeiras? Regateamos, recusamos, só pagaremos o tempo gasto. Ele acaba por se resignar sem mais. Pelo menos tentou...
Regressamos a casa e mostramos a Najiba as nossas compras. Envergonhadas, verificamos que nos arrumaram o quarto, que tínhamos deixado de pernas para o ar, e que guardaram as nossas bagagens atrás da cortina do armário do quarto. Najiba avalia, apalpando e observando as nossas roupas novas com olhar apreciativo. Acaricia os bordados, observa os remates das costuras. Expressiva, com caretas e gestos, dá-nos a entender que são vestidos muito bonitos e de boa qualidade. Sentamo-nos juntas no tapete, a pôr as fitas elásticas nas calças, a verificar a largura, a cortar e cozer; a caixa de costura aberta no chão, a roupa no meio e a menina remexendo em tudo. Passamos um bom momento juntas, mergulhadas nestas tarefas caseiras.
Depois estreamos a roupa nova. Atrás da cortina habitualmente aberta do nosso quarto não há inibições. Neste espaço fechado por quatro paredes, nesta ilha delimitada pelo tapete, cria-se um mundo de mulheres onde, naturalmente, acontece uma intimidade cúmplice de que depressa sou consciente, como se tivéssemos vivido sempre juntas. Sentimo-nos estranhas, vestidas com estas roupas, mas há que reconhecer que são cómodas e frescas.
Chega a hora do almoço: ovos estrelados e batatas fritas. Ao que parece, as batatas fritas são universais. Molhamos com gosto o pão sem miolo no ovo e comemos as batatas à mão. Debicamos um pouco de cebola e fazemos as honras ao iogurte. Pelos vistos, e segun do nos dizem, o iogurte também é óptimo contra o calor. A Sara não gosta, mas come por cortesia.
Depois de comer aparecem cá em casa Nasreen e a sogra. Não é só pela novidade que a nossa presença supõe. A familiaridade entre vizinhos encontrá-la-emos por onde quer que formos. Nasreen e a anciã apreciam também os nossos novos vestidos e acabamos a falar de trapos e da diferença entre as modas afegã e paquistanesa. Fisicamente os afegãos também são muito diferentes dos paquistaneses, que, na sua maioria, têm as feições afiladas, com os olhos, os lábios e a cor de pele que no Ocidente atribuímos aos indianos. Os conjuntos de calças e vestido das afegãs é mais sóbrio, os tecidos têm estampados e cores discretos, enquanto as paquistanesas têm um fraquinho pelas cores vivas e espampanantes e os vestidos delas estão cheios de bordados e aplicações. Por isso parece-lhes que a roupa que comprámos é mais paquistanesa que afegã, pelos bordados e pelo colorido.
A verdade é que, com um pouco de prática, é fácil distinguir de longe, na rua, uma mulher afegã de uma paquistanesa só pela roupa que enverga. E também pela burka. Porque em Peshawar há mulheres com burka. Também a burka paquistanesa se distingue da afegã:
é branca, sem o franzido pregueado afegão que cai do casquete que lhe cinge a fronte, e leva várias bainhas em baixo.
Basira, silenciosa e discreta, preparou, por indicação de Najiba, um termo de chá verde. A tertúlia continua. Pedimos, e dão-nos licença, para as fotografar as vezes que quisermos. Nasreen, que sempre veremos bem arranjada, maquilhada por vezes, passa a mão pelo cabelo.
Falamos da escola que a HAWCA dirige e onde Nasreen e Najiba trabalham como professoras. Nasreen já estava refugiada no Paquistão há três anos quando soube que a sua vizinha Najiba dava aulas às crianças afegãs das barracas. Naquela época passava dificuldades em casa, com as três crianças, os avós... O marido estava desempregado e ela também, até que começou a dar aulas. O critério da equipa directiva da organização, devido aos escassos meios de que dispõe, é claro: só paga salário aos colaboradores quando deles depende a economia familiar. Najiba, cujo marido tem emprego, trabalha de graça. No Paquistão há escolas para as crianças afegãs, mas são privadas, bem como as escolas paquistanesas, que são
ainda mais caras, e os alunos da HAWCA nunca teriam acesso a elas. Quando a escola conseguir financiamento externo, dado que é totalmente gratuita para os alunos e portanto nunca poderá auto-financiar-se, haverá salários para todos quantos nela trabalham, já que outro dos objectivos da organização é criar postos de trabalho para as mulheres afegãs terem uma fonte de rendimentos próprios.
A conversa deriva novamente para o horror que sofre a população no Afeganistão. Nasreen recorda uma das piores noites da sua vida quando morava ainda em Cabul. Estava grávida e entrou em trabalho de parto. O marido saiu por um médico e não voltou. Passavam as horas e ela só, em casa, e à espera. Uma vizinha ajudou-a a parir. Passou dois angustiosos dias sem notícias. Depois veio a saber que ele tinha sido preso na rua naquela primeira noite. Foi detido por um pelotão taliban porque as suas feições fizeram-nos suspeitar que ele seria hazara. Os taliban, que são pashtun e sunitas, odeiam os hazara chiitas'.
É fácil reconhecer um hazara. Diz-se deste grupo de população que está composto pelos descendentes das tropas de Gengis Khan que terão ficado no Afeganistão depois da ocupação mongol, cerca do século xiii. Os olhos achinesados traem-nos. Os taliban negam aos hazara a cidadania afegã e tentam exterminá-los levando a cabo autênticos massacres, como o de Agosto de 1998 na cidade de Mazar-i-Sharif, na primeira vez que foi tomada pelos taliban. Em três dias assassinaram entre cinco e oito mil hazara, homens, mulheres e crianças, ainda que a maioria dos mortos fossem homens. Os taliban iam de casa em casa, sacando as pessoas. Encerravam-nos em furgões de metal que deixavam ao sol até à morte dos presos por asfixia. Apunhalavam os pacientes do hospital nas camas. Deixavam os mortos na rua, nas portas das casas, e proibiram que os enterrassem. Os cães cevaram-se nos cadáveres.
O marido de Nasreen, apesar de ser tadjique, tem os olhos amendoados e isso bastou para o prenderem. Detiveram-no durante quarenta e oito horas numa escola, sem lhe darem de comer. Num determinado momento pediu aos carcereiros água para se lavar antes de rezar. Isto salvou-o: um muçulmano que praticava o rito sunita não podia ser hazara. E soltaram-no. Nasreen cala-se.
Então, depois de um breve silêncio, ensinam-nos. Enquanto aqui estivermos, não regatearão nem tempo nem esforços para que saibamos, aprendamos e compreendamos. Basira é um bom exemplo de tipo pashtun: morena, cabelo negro e abundante, rosto de linhas marcadas, rectas e angulosas. Os pashtun têm detido o poder no Afeganistão quase sem interrupção.
1 O sunismo é a corrente maioritária do Islão e apoia-se na suna, conjunto das palavras e acções do profeta bem como da tradição que os relata. O chiismo usa uma interpretação alegórica do Corão e os seus seguidores são fieis a Ali, genro de Maomé, cujos descendentes deveriam ter ascendido, segundo eles, ao califado em vez de Abu Bom, o Primeiro califa. (N. do T.)
Nasreen e a sogra são tadjiques. Os tadjiques descendem dos antigos persas. Azada diz que é pashtun pelo pai e tadjique pela mãe. Najiba, que dá de mamar ao bebé recostada no tapete, levanta um dedo e sorri:
- Tadjique.
A esta altura da tarde e do calor, o ambiente é descontraído. Estamos relaxadas, meio deitadas no tapete e nos almofadões enquanto conversamos.
Hoje a sogra de Nasreen traz um terço. Explica-nos que há cem contas, uma por cada um dos nomes de Alá. Ela sabe-os todos. Nem todos os muçulmanos podem dizer o mesmo, e os que os desconhecem, ao passar as contas poderão repetir uma e outra vez: "Alá é grande".
Num minarete próximo, o mullah 2 chama para a oração. A anciã levanta-se e pede um tapete para as orações. Azada estende-o num recanto afastado do pátio. Quando volta para junto de nós, confessa-nos, entre perturbada e divertida, que passou uma vergonha enorme porque ao colocar o tapete se deu conta de que não fazia a mínima ideia da direcção de Meca. - Lá em casa sei, porque sou eu quem estende o tapete da avó, mas aqui...
A grande maioria dos jovens muçulmanos não reza. Só os mais idosos o fazem. - Como a maioria dos jovens cristãos - digo eu.
Temos que ir. Uma camioneta veio buscar-nos para nos levar até ao campo de refugiados em que Azada e a família vivem.
A nossa roupa ocidental fica nas malas. Levamos apenas bagagem de mão.
Nasreen convida-nos para jantar em casa dela quando, dentro de dois dias, voltarmos do campo. Despedimo-nos de toda a gente e envoltas nos tchadores novos saímos para a rua. O campo de refugiados está a norte de Peshawar. É um dos duzentos e três campos registados existentes no Paquistão que datam de meados dos anos oitenta, quando os refugiados afegãos eram o ai Jesus da comunidade internacional porque fugiam da guerra provocada pela intervenção soviética. Estão longe da cidade e mal ligados ao exterior. Surgiram do nada. Agora, se a população do campo quer ir à cidade, como é o caso de Azada quando necessita de mandar um e-mail ou visitar a escola em Peshawar, há que andar quase duas horas a pé e em autocarros.
Somos poupadas a todas essas incomodidades. O campo dispõe de uma pequena frota de camionetas e uma ambulância, reminiscência de tempos passados, que são para uso comunitário, mas se alguém, a título pessoal, tem necessidade delas e há disponibilidade, pode usá-las sempre e quando pague a gasolina e as horas de trabalho do condutor.
O Conselho do campo mandou-nos um transporte e um homem para nos proteger: querem
2 Mullah ou mollah: entre os chiitas é o título dado aos funcionários religiosos e especialmente ao doutor da lei corânica. (N, do T.)
assegurar-se de que não nos acontecerá nada. Como já nos disseram, teremos que cruzar algumas zonas pouco seguras.
Carregamos quatro coisas na parte traseira da camioneta: o pijama, a bolsa de toilette, as máquinas fotográficas e os cadernos. Deixamos a cidade para trás e atravessamos pequenos povoados que mais parecem enormes mercados de ambos os lados da estrada. Um de fruta e verduras, outro de sobressalentes, peças para automóvel, pneus e ferro-velho. O negro da borracha, o óleo e os metais sujos contrastam com o anterior colorido das frutas. À medida que nos aproximamos do campo, Azada pede-nos para tapar a cara com o tchador cada vez que passamos por estes núcleos de população por motivos idênticos aos do bairro de Najiba: para nossa segurança, mas também para a do campo que nos acolherá. É a hora em que as pessoas saem dos empregos e o trajecto enche-se de camiões e autocarros abarrotados de homens.
Abandonamos a estrada asfaltada. Aproximamo-nos do nosso destino, avançando por um caminho de carroças que por vezes nem sequer existe. Num destes sítios a camioneta enterra-se na areia. O solo da zona é muito mole, um enorme armazém natural de matéria prima para as numerosas fábricas paquistanesas de tijolos que desde 1995 apareceram e cresceram em redor dos campos de refugiados para aproveitar e explorar a mão-de-obra barata. O condutor da camioneta e o nosso guarda apeiam-se e, durante um bom pedaço, esforçam-se, voluntariosos e sorridentes, sob um calor esmagador, tentando soltar as rodas com uma pá, no meio de uma poeirada colossal, numa exibição de força em que a deferência para com o hóspede se mistura com uma certa ostentação trocista da própria galhardia. Rimo-nos. Eles e nós. Propomo-nos descer e empurrar, mas eles nem sequer querem ouvir falar disso. Teimosos, as camisas compridas empapadas em suor, o sorriso presunçoso, insistem em fazer passar o carro por alia Mas não o conseguem. Por fim dão-se por vencidos e com as mesmas gargalhadas fazemos marcha atrás para encontrar outra passagem.
O campo é um recinto amuralhado com um guarda armado na porta. A vista da arma faz-nos emudecer num instante e devolve-nos à realidade.
O terreno em que estão edificados, este campo e os próximos nesta esplanada deserta, pertence a um proprietário paquistanês que cobra a cada refugiado um aluguer pela parcela onde se levanta a casa que edificou.
No princípio, quando os primeiros refugiados chegaram, não havia nada aqui. Passaram o primeiro ano nas tendas que o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) forneceu. Depois, à medida que o tempo passava, as famílias foram construindo casas térreas. De adobe. Palha e argila. Nunca tinha visto casas de adobe. Para mim era uma palavra, evocadora como poucas, que me remetia para povos e acontecimentos bíblicos ou para a história antiga dos partos, medos e persas. No futuro recordar-me-á as casas dos meus amigos afegãos.
A ideia que no Ocidente se pode ter de um campo de refugiados, filas de tendas de campanha, com a Cruz Vermelha ou o Crescente Vermelho no telhado e que aparece centenas de vezes em reportagens, não tem nada a ver com este lugar. À primeira vista, estamos numa aldeola. Mas não o é. As tendas provisórias e de emergência foram substituídas por casas simples e austeras que eles mesmos construíram e onde a vida possa prosseguir com dignidade. A condição de refugiados destas pessoas que se viram obrigadas a abandonar o seu país não se perde com a mera passagem dos anos. Os habitantes deste campo fazem parte dos quase dois milhões de refugiados afegãos, e já se perdeu a conta das vagas sucessivas que continuam a chegar. As pessoas que vivem neste campo, que parece uma aldeia, continuam a ser refugiados. Afegãos que nunca serão felizes num país que não é o seu.
Em casa de Azada, quando chegamos, está uma das suas avós, a tia e um primo jovem, um adolescente que acaba de chegar do Afeganistão para continuar os estudos no Paquistão. A casa, como a de Najiba, tem a habitual distribuição de uma casa afegã. A diferença é que aqui o pátio é maior. Há árvores novas, plantadas com perspectiva de futuro. Entre elas, um pequeno limoeiro, que é a favorita de Azada. Fora, em frente da porta de ferro aberta no muro que dá para a rua, há uma esplanada também cheia de árvores altas, plantadas há anos, para proporcionar um pouco de sombra e de verde ao campo e uns baloiços enferrujados. Nos ramos altos há pássaros grandes, de um negro brilhante, parentes dos nossos corvos. Com um papo cinzento-azulado. Dentro do recinto murado da casa, à direita de quem entra, fica a casa de banho, à esquerda a cozinha e, junto ao muro, a retrete. No fundo, o corpo da casa ocupa toda a largura do pátio, com uma varanda de um lado a outro e três quartos que dão para o salão a que se chega pela porta de entrada. Pelos muros há lagartos de cor de areia, olhos negros esbugalhados, sem escamas, imóveis mas fugidios.
Jantamos cedo porque se espera a visita de um membro do Conselho. Até agora só sabemos que o Conselho é uma espécie de autogoverno interno do campo, que, de facto, assumiu a responsabilidade pela nossa estadia aqui e autorizou a nossa visita. Daí a escolta. Daí, também, que tenhamos de lhe pedir autorização para tudo que queiramos fazer.
Às dez, pontual, o conselheiro chega. É um homem alto e forte, entre os quarenta e os cinquenta anos, cerimonioso e atento, que ostenta o título que se dá a todos os muçulmanos que já fizeram a peregrinação a Meca. Inclina-se, respeitoso, diante da avó de Azada que, logo
a seguir, irá para o seu quarto. Saúda-nos e senta-se no centro do colchão livre. Diligente, o primo de Azada traz uma bandeja com chávenas e copos, açúcar e colheres, bem como dois termos cheios de chá. Eu fico ao lado de Azada, à direita do nosso convidado, a Meme e a Sara frente a ele sentam-se no colchão que converte a parede oposta em sofá.
Dá-nos as boas-vindas ao campo, com voz grave e comedida. Azada toma apontamentos num caderninho para melhor poder realizar a sua tarefa de intérprete. Como uma profissional. É excelente neste trabalho. Rápida, precisa, fluente e incansável. Imagino-a, por um instante, em congressos, reuniões, assembleias internacionais, com os auriculares postos, traduzindo. Se ela quiser pode escolher esta profissão quando este pesadelo acabar, quando cada afegão puder levar uma vida normal, tranquila e em paz, e sobretudo em liberdade.
O conselheiro, que depois saberemos ser engenheiro, inicia a sua exposição, que terá essa característica qualidade afegã do discurso bem coordenado. Azada toma notas. Passado um certo tempo, interrompe-o respeitosamente, para poder traduzir. O conselheiro cala-se e cruza as pernas. Agora é a vez de Azada. Traduz para inglês, consultando fugazmente o caderno, para não esquecer nada. A Sara puxa do seu bloco-notas. Eu não. Tenho de me concentrar no inglês e, se tomasse notas, perderia metade das informações. Escreverei as minhas notas depois, de noite ou já de madrugada, como ontem fiz e como, aliás, farei todos os dias.
O conselheiro diz-nos tudo o que lhe parece ser de interesse para nós e responde às nossas perguntas.
Este campo existe desde 1986. Primeiro, e nesse mesmo ano, construíram o muro para se defenderem de assaltos e de animais perigosos. Os primeiros refugiados que o habitaram eram familiares dos guerrilheiros que lutavam no Afeganistão, dos mujahedines, que, como um só homem, pegaram em armas contra o invasor soviético. Viviam em tendas. Não havia água nem electricidade e, muito menos, escola ou hospital. Pouco depois, muitas das famílias que hoje constituem a população do campo chegaram do Afeganistão fugindo do fundamentalismo dos jihadis. Tratava-se de gente culta, profissionais de mentalidade aberta, e esse factor deu ao campo o seu carácter peculiar, porquanto aqui o nível e a percentagem de alfabetização são inversos do que se passa no Afeganistão. Se o Afeganistão é um dos países com um dos mais baixos índices de alfabetização do planeta, neste campo oitenta por cento dos habitantes têm algum tipo de educação. Agora vivem aqui mil e duzentas famílias refugiadas pertencentes a todas as etnias e provenientes de quase todas as vinte e nove províncias do Afeganistão. A unidade, em vez das diferenças étnicas, é algo a que, neste campo, se dá enorme importância e se converteu em mais uma singularidade do local.
No princípio, antes de acabar a guerra contra os soviéticos, recebiam ajuda de diversas ONG estrangeiras. Trabalhava-se de forma conjunta. A quota-parte da população costumava ser a mão-de-obra. Uma ONG alemã financiou a escola e o hospital e as pessoas contribuí ram voluntariamente na construção dos dois edificios. Quando as tendas começaram a ser substituídas por casas de adobe e o campo começou a assemelhar-se a uma povoação com o actual aspecto, houve que fazer canalizações, para o que contribuiu uma ONG dinamarquesa: a população cavou mil e quinhentos metros de valas. O Conselho atribuiu dez metros a cada casa. Na manhã seguinte estavam prontas. As pessoas, mulheres na sua maioria, porque havia muitas viúvas e órfãos, trabalharam a noite inteira para as terminar quanto antes. A escola também recebia ajuda: os professores tinham um salário e o material escolar era financiado. Com o hospital sucedia o mesmo. Entretanto a guerra contra a União Soviética acabou. E começou a guerra civil, a luta encarniçada pelo poder entre os diferentes partidos islamistas, os jihadis.
Naquela época, a política de ajuda militar por parte das potências estrangeiras, Estados Unidos à cabeça, tinha obrigado as facções a constituirem-se em partidos. Todos estes partidos islamistas tinham sede em Peshawar. E começou o regateio: a ajuda, tanto humanitária como militar, era proporcional ao número de filiados em cada partido. Os campos de refugiados converteram-se em pontos de filiação de uma ou de outra facção. Os refugiados que continuavam a chegar a Peshawar deviam escolher entre filiar-se ou ficar fora dos campos. Quem ficasse fora não tinha qualquer ajuda.
- Foi nesse momento - vai-nos contando o engenheiro - que o Conselho convocou os habitantes do campo para a esplanada que se utiliza como campo de futebol. Naquela memorável reunião, os habitantes do campo, reunidos em assembleia, decidiram que ali a pauta geral não seria seguida, que ninguém se implicaria na guerra civil e que se negariam a apoiar ou a filiar-se em qualquer das facções. Aquele seria um lugar de convivência onde caberiam todas as etnias e se respeitaria toda a gente.
"À medida que a guerra civil se prolongava, a comunidade internacional foi perdendo interesse pelos refugiados afegãos e a ajuda humanitária foi também sendo reduzida. Agora, que a situação dos refugiados é a pior da sua história, não recebem nada.
"Existe, desde 1998, apenas um programa do ACNUR para ajuda à repatriação. Algumas famílias daqui, uma centena, acolheram-se ao programa. Era uma oportunidade de reconstruir as casas bombardeadas, dado que a ajuda consistia em cinco mil rupias, tre zentos quilos de farinha, uma esteira para o chão e material de construção. Mas não ficaram. No Afeganistão é impossível viver. Não há segurança, não há trabalho e não há escola para as crianças..
Perguntamos como se constitui o Conselho, quem faz parte dele e se aceita mulheres. Diz-nos que o Conselho é formado por doze homens de meia-idade eleitos como representantes dos diferentes grupos de população. Não é novidade: é a estrutura tradicional afegã. Em cada casa, em cada família entendida como grupo familiar extenso, nas ruas, nos bairros, num povoado, nas províncias, sempre houve estes representantes, estes membros eleitos, respeitados e responsáveis. É o exacto princípio da Arga. Muitas vezes, os grupos vindos do Afeganistão que chegavam ao campo já tinham um responsável e esses homens acabavam por integrar o Conselho. São homens respeitados pela comunidade devido às suas qualidades pessoais e a quem qualquer habitante do campo pode recorrer quando surge um problema, quando deseja propor algo ou pôr em marcha algum projecto que, de algum modo, afecte o colectivo. Cada membro do Conselho é responsável por um determinado pelouro: um médico, pelo hospital; um professor, pela escola...
O engenheiro faz um aparte para agradecer e louvar o trabalho da organização de Azada. Também elas submeteram à aprovação do Conselho as actividades que queriam promover e levar a cabo entre as mulheres.
- O Conselho também é responsável pela segurança do campo e dos seus convidados. Nesse momento assalta-me a sensação que já tive em casa de Najiba e que se repetirá aonde quer que vá: sinto-me protegida, a salvo.
Todos os homens realizam turnos de guarda ao campo, dia e noite, armados de velhas kalashnikov, para se protegerem das feras que por aqui há e dos assaltantes que pululam nestas paragens. O Conselho reúne-se uma vez por mês, discute os problemas que afectam a comunidade, resolve potenciais conflitos entre as pessoas, decide nas matérias que tocam a população; além disso, tenta encontrar financiamentos para diversos projectos que gerem trabalho e rendimento: há tempos apoiaram a criação de uma fábrica de giz, que era vendido para as escolas do Afeganistão, mas quando os taliban acabaram com o sistema de ensino, acabaram-se os clientes e a fábrica encerrou. Agora há o projecto de sanear um pequeno lago junto do campo para criar peixe. Também pensaram criar galinhas. Mas o dinheiro não cai do céu, nem de qualquer outro lugar.
- Temos os técnicos necessários para levar avante qualquer projecto, mas falta o dinheiro.
A noite avança e a conversa também. Perguntamos de que vivem naquele planalto deserto. As pessoas do campo trabalham. Alguns têm pequenas mercearias, outros trabalham em fábricas em Peshawar; alguns professores trabalham na escola, ainda que, desde o fim dos subsídios do ACNUR, tenham de pedir um pagamento aos alunos para poderem ter um salário, o que reduziu a frequência já que muitas famílias não se podem permitir tal despesa. Antes, comenta o engenheiro, quando se financiavam os salários dos professores, a escola era gratuita e havia mais de quinhentas crianças escolarizadas. Havia aulas de manhã e de tarde para que fosse possível receber todos os meninos. Agora basta a manhã para a escassa centena de crianças que podem dar-se ao luxo de continuar a ir às aulas, e algumas vêm mesmo de campos próximos.
Mas a maioria dos homens do campo, algumas mulheres e até crianças, trabalham nas fábricas de tijolo, que nasceram como cogumelos em redor dos campos de refugiados afegãos.
O membro do Conselho foi-nos expondo estes temas com sobriedade. Os afegãos - teremos inúmeras ocasiões de o ver e comprovar, dia após dia - não se lamentam nem pedem nada. Nenhum afegão pretende inspirar pena a ninguém, porque não se compadecem deles mesmos e, para eles, pedir esmola é a maior das humilhações. Tratam de fazer pela vida. Ninguém se lamenta. Ninguém chora. Os afegãos que conheci são pessoas corajosas, de grande dignidade e um enorme sentido da realidade. Não se enganam, mas também não estão resignados, nem se entregam, fatalistas, nas mãos do destino. O passado legendário deste povo, que a história define como orgulhoso, formado por guerreiros invencíveis, ciosos da sua cultura, tradições e território, repete-se na era moderna, não só nas guerras mas também na paz, na dignidade da sua luta pela sobrevivência, na firmeza do seu desejo de recuperar o Afeganistão, pouco importa quanto tempo ainda deva transcorrer, porque como bem diz o provérbio de Cabul: "quanto mais amarga a paciência mais doces os seus frutos!".
O serão chega ao fim.
Passamos pela vergonha de ter de responder quando ele, depois de ter respondido a todas as nossas perguntas, comenta:
- A comunidade internacional teria podido deter o conflito no Afeganistão e contribuído para resolver o problema. Mas não quis. E no vosso país, que dizem de nós? Que é que as pessoas pensam da situação no Afeganistão, da situação dos refugiados? Qual é a atitude dos governos ocidentais?
Somos obrigadas a dizer a verdade, por muito que nos custe: no nosso país não se fala, quase nada se sabe do Afeganistão. O nosso governo, em concreto, nem se pronuncia. A comunidade internacional faz ouvidos de mercador ao grito do Afeganistão, amordaçado pelos interesses "práticos" das grandes potências que se preparam, com grandes parangonas, para "reconhecer o regime integrista do Afeganistão" frente ao silêncio ignorante e à indiferença cúmplice dos outros.
O conselheiro não se perturba.
Mas eu sinto na boca a amargura, não da paciência que dá fruto, mas da impotência, da vergonha por todo um mundo: o meu.
Terça-feira, 1 de Agosto de 2000. Campo de refugiados
Todas as dores passam, a da fome, não.
Dormimos num dos três quartos da casa. No maior. No meio há uma cama de casal, que arrastamos para um lado. Este é quarto dos pais de Azada, neste momento em Cabul para visitar a família. Surpreende-nos a facilidade com que os refugiados vão e vêm, entram e saem do seu país. De facto, como teremos ocasião de verificar, a fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão é de uma total permeabilidade e o controle, no que respeita aos afegãos, é praticamente inexistente.
Tomamos um rápido pequeno-almoço depois de nos lavarmos com um balde de água no quartinho que fica ao fundo do pátio. O sistema é igual ao da casa de Najiba.
Azada encomendou um queijo especial. Parece queijo fresco ou requeijão mas está duro e completamente seco. É dificil de cortar e os pedaços têm muitos buraquinhos, borbulhitas de ar que se formaram durante a fermentação. O sabor é forte, pelo que se deve comê -lo com pão. É bom. Tomamos o chá de pé e depressa porque estamos atrasadas. A avó de Azada, uma senhora muito idosa com duas longas e fortíssimas tranças cinzentas, lembra à neta a conveniência de levantar cedo. Pode assim aproveitar a frescura da manhã para realizar as tarefas mais pesadas. Tem sem dúvida razão, mas ontem, depois de o conselheiro ter ido embora, ficámos à conversa até tarde, mesmo já sem chá para beber e com os olhos a fecharem-se de cansaço. Sentíamo-nos bem umas com as outras, sentadas no tapete, com uma temperatura agradável e falando de coisas que nos interessavam.
Azada teve que instruir-nos sobre outro aspecto da cortesia e dos bons modos afegãos: quando se visita, ou se é visitado, há que ter sempre as pernas recolhidas sob a saia. Pode-se mudar de posição, sentar de lado sobre os tornozelos, cruzar as pernas, encostar os joelhos ao peito, mas é inaceitável, diante de um estranho, separar os joelhos como no nosso país se faz quando nos sentamos no chão com as costas contra a parede, ou esticar as pernas.
Não nos tinha dito isso. Logo que o conselheiro se foi embora, disse-o, perdida de riso, ao lembrar a surpresa e o desconforto daquele senhor respeitável que teve à sua frente, durante o serão inteiro, a Sara e a Meme movendo as pernas do modo mais incorrecto que imaginar se pode, porque, quando não se está acostumada, é difícil encontrar posição: as pernas adormece-se-nos, incham, enfim, sobram. Depois vamo-nos habituando de tal modo que o incómodo passa a ser sentarmo-nos em cadeiras, onde não há espaço para encolher, dobrar ou cruzar as pernas.
Durante uns momentos sentimo-nos envergonhadas, mas depois juntámo-nos às gargalhadas de Azada, que nos desculpa:
- Como vocês são estrangeiras deve ter percebido que desconhecem os nossos costumes. Don't worry.
O primo de Azada levanta os restos do pequeno-almoço. É um adolescente alto e magro, hábil e sorridente. Falou pouco desde que chegámos, mas é diligente em fazer tudo o que se lhe pede, preparar o chá, pôr ou levantar a mesa, sair para comprar pão ou queijo, avisar alguém, fazer recados. São tarefas idênticas às que Basira, a jovem sobrinha de Najiba, desempenhava em Peshawar. Pelos vistos, é esse o costume nas famílias afegãs: o membro mais novo da casa, seja homem ou mulher, é o encarregado destes pequenos trabalhos, enquanto que os idosos, e particularmente os avós, gozam de grande respeito e consideração.
Por mais de uma vez, nas nossas visitas a diferentes lares afegãos, veremos Azada saudar com deferência as senhoras de idade: não lhes apertará a mão ou dará os três beijos da praxe. Inclinará a cabeça, que a anciã agarrará, e beijará a palma da mão direita, em sinal de respeito.
Agarramos nas máquinas fotográficas e nos tchadores e saímos de casa para conhecer as actividades que a HAWCA leva a cabo no campo de refugiados.
Em primeiro lugar vamos à casa onde há aulas de alfabetização para mulheres. É um grupo em que as idades vão dos quinze aos quarenta anos. Aprendem a ler e escrever em dari e em pashtu, as duas línguas maioritárias do Afeganistão. A professora comenta que é dificil encontrar um livro escolar que não seja tendencioso. Para já usam um, editado em Peshawar por uma organização alemã. É um dos melhores, pese embora o facto de conter um par de incorrecções de tipo ideológico: fez-se desaparecer, por exemplo, as imagens de pessoas e seres vivos, cuja reprodução é proibida pelo Corão, mas não a imagem de uma mulher coberta pela burka. Acaso a mulher, mesmo prisioneira da burka, não é uma pessoa, um ser vivo?
Dali seguimos para a casa onde está o atelier de bordados. As ruas do campo são rectas. O solo, os muros, os telhados planos ou abobadados, que tornam o interior mais fresco, só têm uma cor, o castanho claro da terra. As casas são construções afegãs: um muro alto que dá para a rua e tapa as vistas para dentro; atrás do muro, o pátio onde há quem crie meia dúzia de galinhas, uma cobra ou um outro animal; de um lado ou ao fundo, os quartos
que constituem a casa propriamente dita; a cozinha, a casa de banho e a retrete sempre à parte. Ainda nem andámos cem metros e eis que as mulheres do curso de alfabetização saem. Espanta-nos ver duas com a burka. Pelo caminho cruzamo-nos com outras que nos olham sorridentes e por gestos pedem que se lhes tire uma fotografia com os filhos. Para as crianças que brincam na rua também somos uma grande atracção.
No atelier de bordados demoramo-nos mais. Sentamo-nos no chão, entre as mulheres que até agora estiveram a bordar, e passamos um bom bocado a conversar com elas.
A encarregada informa-nos de que a organização tenta encontrar um mercado na Europa para os seus produtos artesanais. As mulheres recebem por peça pronta, segundo um preço de antemão combinado em função da dificuldade, da complexidade do bordado e do tamanho da peça. Vemos expostas nas paredes algumas amostras dos trabalhos: peitilhos de camisas, blusas e vestidos, lenços, napperons, tapetes. Os produtos acabados pertencem à organização, que tratará de os pôr no mercado. Os lucros da venda reinvestem-se em material. O problema é sempre a falta de fundos. Há muitas mulheres, neste campo e nos dos arredores, que gostariam de trabalhar no atelier, que vêm pedir trabalho à organização, mas esta não tem dinheiro nem clientes suficientes. Os bordados que estas mulheres fazem são os tradicionais, os mesmos que podemos admirar nos seus enxovais, nas roupas das crianças, nos tchadores e nos vestidos.
Neste momento, entra no atelier uma das mulheres que vimos no curso de alfabetização e que saiu para a rua coberta pela burka. Ao tirá-lo aparece uma rapariga muito nova, tímida e retraída. Pedimos a Azada que lhe pergunte por que usa a burka se aqui não é obrigatória.
A rapariga tem dezassete anos. É órfã de pai e mãe. Também já não lhe resta qualquer irmão. Um dos seus primos vive num campo vizinho. O homem acolheu-a e toma conta dela, que lhe está muito agradecida. Não chega a dizer que o primo a obriga a pôr a burka, mas diz:
- Ele preocupa-se comigo, trata de mim e não gosta que entre e saia de casa ou do campo, como agora, para ir às aulas, sem pôr a burka. Ficaria muito triste.
Assim, leva-a, para não entristecer o primo que é tão bom para ela.
Estala a discussão. As mulheres que enchem o atelier começam a troçar e a arrenegar da burka. Uma delas, com cerca de trinta anos, muito expressiva e decidida, que borda com bastidor e se veste toda de azul, afirma contundentemente:
- Nunca usei burka e não penso usá-la enquanto viver. As outras concordam.
- Abandonei o Afeganistão justamente para que ninguém me pudesse obrigar a usar uma burka - exclama outra.
A rapariga do primo triste fica em silêncio, envergonhada, sem levantar os olhos do chão perante a avalanche de comentários.
Outra mulher intervém:
- É verdade que a burka faz parte da nossa tradição, mas o seu uso deve ser voluntário. Não queremos usá-la à força. Quem quiser que a use.
Há outra mulher que admite usar a burka quando tem de sair do campo. Ao fundo da sala, pela porta aberta que dá para o pátio, vejo entrar uma jovem vinda da rua e olho-a surpreendida: é tão "europeia" de feições que poderia tratar-se de uma rapariga espanhola. O cabelo é castanho-claro, a cor dos olhos é esverdeada e a pele branquíssima. Cumprimenta-nos e senta-se ao lado de outra rapariga muitd diferente, de olhos redondos e escuros, cabelo preto e pele morena. Azada aproveita para nos informar: as duas raparigas são nuristanas, pertencem às duas etnias que habitam esse pequeno recanto do Afeganistão que se conhece por Nuristão, "Terra da Luz".
Esta região foi o último reduto que resistiu à invasão do Islão, quando os árabes, no fim do século vii, avançaram, espalhando-se por toda a Ásia Central para impor a sua língua e a nova religião. Até essa altura, no Afeganistão tinha-se praticado a antiquíssima religião de Zoroastro, o budismo e o hinduísmo. O Islão, muito mais simples quanto ao rito e mais prático dada a sua vertente social e estrutural, inovadora no seu tempo, foi adoptado com alguma facilidade, ainda que se conservassem alguns ritos e festas antigas, como a festa de ano novo, o Nawrooz, que sobreviveu até hoje e que agora também foi condenado e proibido pelos taliban por não fazer parte da tradição e da cultura muçulmanas. Os árabes conseguiram impor a nova religião, mas não conseguiram fazer o mesmo com a sua língua, e o Afeganistão, tal como o Irão e outros países da zona, conservaram as suas línguas autónomes, tanto as minoritárias quanto as maioritárias, como o persa e o pashtu, ainda que, como sucedeu em Espanha, muitas palavras e nomes próprios de origem árabe tenham sido incorporadas no vocabulário. Só esse pequeno território resistiu à adopção da nova religião e por isso os árabes apelidaram-no Kafiristão, "Terra dos Infiéis". Quando por fim conseguiram islamizar a população, aquele nome deixou de corresponder à realidade, visto que os seus habitantes tinham visto a "luz da verdade" e, a partir daí, chamaram-lhe Nuristão, "Terra da Luz".
Uma das mulheres, sentada, como todas, no chão, faz os franzidos e remata as peças bordadas com uma máquina de costura negra e dourada que tem à sua frente, sobre um tamborete que tem, no máximo, um palmo de altura. É uma mulher morena e cabeluda, certamente pashtun, com um sorriso amplo e olhar penetrante. É viúva e tem uma filha. O trabalho no atelier não a entusiasma, mas foi o único que encontrou e que lhe permite sobreviver parcamente. Não quer que a filha trabalhe, mas que estude, e por isso manda-a à escola mesmo que tenha de pagar aos professores. Sorri, comentando que, por sorte, tem uma vaca velha e magra e que, com o leite, faz queijos que vende às pessoas do campo.
Sentimo-nos à vontade com estas mulheres, na sua maioria faladoras e predispostas ao riso, e levantamo-nos com pena de ter que continuar a ronda que nos prepararam. Temos que visitar a tecedeira de tapetes que já nos deve estar esperando.
Num dos quartos da sua casa, à direita, logo à entrada do pátio, essa mulher tem um tear vertical, em frente de um banco de madeira clara, que ocupa o espaço quase todo. Sentada no banco, entre as duas filhas - nenhuma das quais terá mais de nove anos -, faz nó após nó, mudando de vez em quando a cor da lã. Na mão direita tem um instrumento com que separa os fios da urdidura, passa o fio de lã e corta-a uma vez o nó feito. Com uma espécie de rastelo ou pente apertam-se os nós para que o tecido seja espesso. Uma das meninas passa, nessa altura, de lado a lado, a lã grossa e não tinta da trama que reforça o tecido. Trabalham com muita rapidez. A mulher mostra-nos o modelo que desenhou num papel quadriculado. Enquanto faz nó sobre nó, vai contando-os para saber quando deve mudar a cor da lã para reproduzir sem falha o desenho. Nesta fase do processo o desenho ainda se não distingue. A parte já tecida é uma superfície peluda de fios que parecem enredados. Uma vez feitos todos os nós, o tapete é lavado e raspado, deixando os cabos tão curtos que, nó a nó, formam uma massa quase compacta. As duas miúdas estão sentadas no banco junto da mãe e também fazem nós. A mais velha é muito hábil e mostra-se orgulhosa da sua rapidez. Um rapazito loiro de uns onze anos entra na sala com um bebé nos braços.
Azada conta-nos a história da tecedeira de tapetes que tem cinco ou seis filhos e está grávida. Está só e com tudo a seu cargo. O marido desapareceu há cinco meses. O homem tem por hábito ausentar-se durante longas temporadas. As pessoas do campo suspeitam que ele se droga. De vez em quando regressa, deixa a mulher grávida e volta a partir. Tecer tapetes para a organização deu a esta mulher um aliciante e um meio de subsistência. Antes estava tão desesperada que teria acabado por endoidecer. Agora tece tapetes. Sorri radiante. E toma nos braços o filho pequenino que mal consegue andar. O sorriso transforma-a numa mulher lindíssima.
A encarregada diz-nos que o maior problema dos tapetes é o mesmo que já referiu no atelier de bordados: há que criar mercados, há que dar saída à produção, encontrar clientes. Limita-se a constatar uma realidade. Nós calamo-nos.
Preocupa-me que as meninas ajudem a mãe a fazer tapetes. A destreza delas, sobretudo a da mais velha, faz-me suspeitar de muitas horas de prática. Comento-o com Azada: no Ocidente existe uma enorme recusa ao trabalho infantil. Ela também o sabe, mas aqui não estamos perante exploração infantil por parte de industriais e comerciantes que contratam crianças para os seus teares. Essas crianças pertencem a famílias nas quais todos os membros se vêem obrigados a contribuir com o seu trabalho para o sustento da família. As raparigas ajudam a mãe em casa, tomando conta dos irmãos ou fazendo nós na trama do tapete. Os meninos da escola que a HAWCA dirige em Peshawar passam o resto do dia a mendigar ou a construir gaiolas para passarinhos com os demais membros da família para poderem subsistir.
Continuo a interrogar-me onde está a linha, o limite, para além da bela retórica que impera na nossa sociedade de bem-estar.
Depois de comer, saímos com a Sara para procurar um lugar no campo onde o nosso telefone tenha rede. Queremos ir concretizando as entrevistas já combinadas desde Barcelona: com o ACNUR; com a RAWA, com quem mantivemos correspondência por e-mail; com Nancy Dupree, da qual só sabemos que é conhecida como a "avó dos afegãos"; com a Organização Germano-Afegã com sede na Alemanha e actividades no Paquistão e no Afeganistão.
Meninos brincam na rua. Os homens afegãos são autênticos obcecados pelo futebol e lamentam que o gosto se vá perdendo entre os filhos que crescem no exílio e preferem o basebol, o desporto favorito dos paquistaneses. É verdade: os meninos afegãos, nas ruas do campo, armados com pedaços de tábuas e bolas de trapo, jogam basebol.
No alto de um desnível do terreno, um cabeço no solo em que só cabe uma pessoa de pé, conseguimos rede. O responsável pelo ACNUR está em Islamabad, mas indica-nos um colega a quem já tinha mencionado a nossa vinda. Quanto ao nosso desejo de ir ao Afeganistão, confirma-nos que devemos pedir um visto na embaixada taliban de Islamabad ou no consulado de Peshawar.
Regressamos apressadamente a casa de Azada, mais decididas do que nunca a tentar tudo por tudo para ir ao Afeganistão. Está claro que a primeira coisa a fazer quando regressarmos a Peshawar é pedir o visto no consulado taliban.
É tarde. Daqui a pouco virão buscar-nos para ir visitar as fábricas de tijolo. O Conselho aprovou a nossa ida, mas atribuiu-nos um guarda armado para nos acompanhar. A função dele é apenas dissuasória. Que poderia fazer um homem sozinho contra um bando de assaltantes? O Conselho pôs também à nossa disposição uma camioneta de caixa aberta. À frente, junto do motorista, vão Azada e a Meme que, sendo ambas asmáticas, não devem expor-se à poeirada que nos espera. A Sara e eu subimos para a caixa aberta, acompanhadas do guarda, um rapaz risonho que se diverte à grande com a excursão que lhe quebra a rotina do campo. Tem uns incríveis olhos azuis e um sorriso trocista e encantador.
Percorremos as fábricas que se estendem, sem solução de continuidade, à direita e à esquerda do caminho em que a furgoneta avança aos solavancos, envolta numa nuvem de areia. Vemos gente a trabalhar nessas vastas extensões planas de cor amarela pardacenta. Nem uma árvore. Perpendiculares ao chão só se levantam as altas chaminés dos fornos em que se cozem os tijolos, estendidos aos milhares sobre o pó para secarem ao sol. Vemos homens munidos de longas pás que amassam e cortam enormes montes de argila, em parte cobertos por capas de plástico que lhes mantêm a humidade; outros, acocorados no chão, enchem uns moldes de ferro, grandes como bandejas de self-service, e carregam-nos para outro lado. Mais tarde saberemos que esses moldes para quatro tijolos, que são os utilizados pelos adultos, pesam sete quilos e meio. Cada tijolo são dois quilos e meio de barro: 2,5 x 4 = 10 + 7,5 = 17,5 quilos que há que levantar verticalmente, levar até ao extremo das fileiras da zona de secagem e, uma vez ali, virar o molde com perícia e rapidez, esvaziá-lo, reparar e alisar o produto final, e toca de recomeçar o processo: amassar, encher, carregar, esvaziar, amassar, encher, carregar, esvaziar... Há também moldes de um só tijolo, para crianças ou para os que já não têm força.
É um trabalho à tarefa: mil tijolos por dia, 80-120 rupias, dependendo da qualidade do fabricante. Um homem jovem, forte e saudável, talvez possa consegui-lo, mas na realidade este trabalho duríssimo esgota, provoca todo o tipo de lesões, e, muitas vezes, toda a família tem de moldar tijolos, com horários abusivos, só para poder comer. "Todas as dores passam, a da fome, não" reza um provérbio afegào. Uma família afegã compõe-se, em média, de sete a dez membros. Como um quilo de farinha custa vinte e cinco rupias, um de arroz, trinta, e um de frango, oitenta, facilmente se calcula que nem com cento e vinte rupias diárias se pode dar de comer a todos. E se, ainda por cima, se tiver de pagar aluguer, água, luz... É impossível pensar em ir ao médico, mandar as crianças para a escola, e não só pelo que isso implicaria de gasto adicional, mas apenas porque as horas passadas na escola seriam horas em que se não fariam tijolos.
Com tantos solavancos é impossível fotografar da furgoneta em andamento. Perguntamos se poderemos parar uma ou outra vez. O condutor não acha que isso seja grande ideia pois teme os salteadores, mas acaba por ceder. A partir desse momento, quando a Sara e eu vemos algo que queremos fotografar, batemos no tejadilho e o motorista trava. Quando terminamos, basta bater de novo. Os homens interrompem o trabalho quando notam que estamos a fotografá-los e posam, muito direitos, olhando para a máquina. O guarda, o nosso alvoroçado escolta privado, acha que para as fotografias terem sentido, os homens devem estar a trabalhar e portanto, quando a camioneta pára, fala-lhes e diz-lhes para continuarem. A cumplicidade do guarda, que sorri com a kalashnikov entre os joelhos, é motivo de risos e diversão.
Fim do percurso. Apeamo-nos. O guarda e o motorista acompanham-nos. Nós não sabemos para onde vamos mas, como sempre, confiamos em Azada.
Vamos visitar uma família que ela conhece. Soube que, há dias, a filha deles, uma rapariga de dezasseis anos, se suicidou. Fazia quatro meses que se casara. Correm mil ditos sobre os motivos que a empurraram para a morte. Há quem diga que o marido a tratava mal, para outros seria a sogra, mas ninguém quer falar. A mãe recebe-nos, aflita. Ainda não pôs os pés na casa dos compadres, que, além do mais, são seus parentes: a rapariga, como é costume no Afeganistão, tinha-se casado com um primo. Também vamos, com toda a família, à casa do marido, que é a dois passos, e a mãe do rapaz aparece, as mãos cheias de argila, e conta o sucedido, as pequenas contrariedades quotidianas que tão-pouco explicam o suicídio. Todos querem encontrar um culpado, um motivo credível. Ninguém parece dar-se conta de que as condições de vida que há que suportar são de tal modo duras que bastariam para justificar qualquer coisa. A maioria resiste. Por que é que ela não resistiu? Muitas mulheres no Afeganistão suicidam-se ou enlouquecem porque não conseguem suportar a mudança brutal que a chegada dos taliban implicou para as suas vidas. Outras continuam a lutar na clandestinidade, apesar de sofrerem horrores idênticos. Esta menina dos campos de argila não aguentou. Qualquer insignificância pode transformar-se na gota que faz transbordar o vaso. Parece-me inútil e triste acusar o marido que voltou para o Afeganistão para, como um herói lendário, viver perto da tumba da rapariga. Os refugiados, sempre que podem, enterram os seus mortos na terra natal. A mãe do rapaz leva-nos ao quarto, agora fechado, onde o casal viveu e onde a rapariga, depois de limpar e arrumar tudo, se suicidou com um tiro. Mostra-nos a fotografia do dia do casamento.
Uma rapariga muito jovem, cunhada da morta, não tira os olhos de nós. É com ela que eu gostaria de ter falado, mas isso não será possível, porque as mães não deixam os mais novos intervir. Respondem elas a tudo. Arrogam-se o direito a falar e a exprimir o desgosto em nome de toda a família. A morta e a rapariga eram as que ficavam em casa preparando a comida, lavando e limpando, enquanto o resto da família fazia tijolos dia e noite. Gostaria de saber se eram amigas, como se sente agora esta rapariguinha que ficou mais só... Nunca o saberei.
Percorremos a pé parte da zona onde os trabalhadores, vinte e duas famílias todas provenientes de Jalalabad, vivem nas casas que o patrão paquistanês põe gratuitamente à disposição deles, junto à fábrica. Dantes, algumas destas famílias com que falámos viviam no campo de refugiados, mas não podiam pagar as quinhentas rupias mensais que o aluguer do terreno onde tinham a casa lhes custava e, muito menos, a água e a luz. Por isso vieram para aqui, onde poupam esse dinheiro, e logo que saem de casa já estão no seu local de trabalho sem perder um tempo valiosíssimo em deslocações.
Uma família inteira amassa tijolos. São três adultos e cinco crianças. Entre todos conseguem alcançar o número de três mil tijolos por dia, trabalhando dia e noite. E não é uma frase feita. Trabalham dia e noite. Levantam-se à uma da manhã. Ao meio-dia fazem um intervalo curto para comer e trabalham até às três da tarde. Dormem três a quatro horas e regressam ao trabalho até ao anoitecer. O pai conta que no Afeganistão tinha uma quinta e que os filhos não precisavam de trabalhar. Mas os taliban queimaram-lhe tudo e tiveram que fugir com a roupa que traziam vestida.
Continuamos por este campo de escravos. Vamos até aos fornos em que se realiza a cozedura final dos tijolos, depois de os deixarem secar ao sol durante oito dias. Transportan_nos até lá em carrinhos de mão ou em burros. Os fornos são uns engenhos escavados no solo. O fogo é alimentado por cima. Os fogueiros levantam as tampas redondas, do tamanho de um testo de panela, com um gancho comprido e deitam lá para dentro pazadas de carvão. O fogo reaviva-se e lança labaredas para fora. O solo, debaixo das sandálias e por cima dos fornos, queima. Estão acesos dia e noite e os homens fazem turnos para alimentar as suas bocas de dragão. Já escureceu. O crepúsculo não trouxe nenhuma frescura a este inferno. O calor é insuportável. Se é assim agora, não se imagina como será durante as horas de sol, tantas e tão longas, quando em qualquer outra paragem, longe de qualquer forno, a temperatura atinge os 35/40 graus. Perguntamos aos homens como é que eles fazem para suportar o calor, e confesso que alimento a insensata esperança de que me falem de algum remédio caseiro, de algum truque ancestral. Mas nada. Calam-se e encolhem os ombros. Só um diz:
- Alá dá-nos forças.
Regressamos, silenciosas, ao campo. Um véu de tristeza respeitosa corta qualquer vontade de falar. Qualquer palavra seria banal.
O percurso é longo e mergulhado na escuridão. Um pensamento puxa outro e, já perto do campo, dou-me conta, subitamente, de que sinto a falta dos homens. É um pensamento absurdo depois de tudo o que vimos. Mas tenho consciência de que desde há três dias não
nos relacionamos com nenhum homem. Temos vivido entre mulheres e isso tem sido gratificante. Estabeleceu-se entre nós uma nova intimidade, uma cumplicidade que eu desconhecia, totalmente diferente da intimidade e cumplicidade que tenho com as minhas melhores amigas, que possui uma outra riqueza, outra qualidade porque nasce do conhecimento mútuo, porque se forjou à força de confidências, de partilhar sonhos, problemas e satisfações. Aqui pouco sabemos umas das outras; todavia criou-se um mundo à parte, rico e confortável, em que todas, sejam quais forem as nossas origens, o nosso passado ou o nosso presente, nos movemos com tal naturalidade e tal confiança que não há barreiras. Talvez isto aconteça precisamente porque nenhum homem tem acesso ou cabimento nele. Mas surpreendo-me sentindo falta da naturalidade com que nos relacionamos com os homens no Ocidente e com a sua maneira de fazer, de dizer e pensar. Ou a forma como estão presentes na nossa vida quotidiana, no trabalho, nas casas, nas lojas, nos meios de transporte, na família, entre os amigos. Em casa de Najiba, o seu marido mantém-se afastado. E o taxista. São atentos, corteses, sinceros no seu apreço, mas, mesmo que estejam à mesa connosco, partilhando o mesmo tapete e até a conversa, há uma distância, um infinito abismo entre eles e nós. Não é porque quase não nos conheçamos, a barreira não é idiomática nem sequer cultural. É porque são homens. Porque nós, ocidentais ou afegãs, somos mulheres. E isto não tem qualquer conotação pejorativa, não procede de nenhuma atitude discriminatória. Se no Ocidente muitas vezes pensei que os homens parecem criaturas de outro planeta, no Oriente parecem de outra galáxia. Se no Ocidente alguma vez me pareceu que as relações entre homens e mulheres são complexas, umas vezes divertidas, outras enervantes e sempre diferentes das que possam ocorrer entre mulheres, aqui parece que umas e outros vivemos em esferas independentes. Talvez se partilhe, em algum ponto tangencial e muito à superfície, o espaço e o tempo, mas a vida, a verdadeira vida, fazemo-la no núcleo mais profundo do nosso compartimento estanque. Até agora não me tinha importado. Melhor!, pensava; tínhamos tanto sobre que falar entre nós, com Azada e as demais mulheres afegãs... Vindo de um mundo tão misto como o meu, parecia-me perfeito, quase um descanso, este outro mundo nosso sem intromissões masculinas. Tinha mergulhado com autêntico prazer, ainda que sem plena consciência do que estava a fazer, neste universo absoluta e exclusivamente feminino. Mas de repente sinto a falta deles. Não é nada físico. Não é o macho que me falta. É a diferença. Essa diferença que amiúde maldizemos e que agora me parece uma bênção.
Em casa de Azada espera-nos uma surpresa. Enquanto jantamos as especialidades que a tia dela preparou, o seu primo, que até ao momento não tinha aberto a boca, desata a falar um inglês magnífico. Até Azada ficou de boca aberta.
Passada que foi a barreira da vergonha ou do que quer que fosse que o mantivera calado durante todo este tempo que já passámos em sua casa, o rapaz fala pelos cotovelos, simpático, divertido, salpicando a conversação com comentários e, como bom afegão, imparável. Sorri, radiante de satisfação ao ver o efeito da sua surpresa, os olhos brilhantes de contentamento, com esse são orgulho de adolescente com que festeja o facto de haver espantado a prima e as convidadas estrangeiras. Metemo-nos com ele, gracejamos com o seu segredo revelado e mostramo-nos admiradas, sobretudo eu e a Meme, que temos dificuldade em falar inglês. Então diz-nos que no Afeganistão não se pode estudar. Os taliban estão a reconverter todas as escolas em madrassas, escolas corânicas. As escolas secundárias para raparigas fecharam logo que estas foram proibidas de estudar. Com as dos rapazes o processo é mais lento. Aumentaram as horas de aula de religião e os ordenados dos professores, que as dão na exacta medida em que diminuem as horas dedicadas às outras disciplinas. Aos respectivos professores pagam tão mal que estes, pouco a pouco, vão deixando de aparecer: espevitados pela necessidade de manter as famílias, têm de procurar um meio de subsistência à margem do seu trabalho de professores.
Depois de jantar, vemos um vídeo. Uma reportagem que mostra a destruição de Cabul. Reforçamos a nossa intenção de visitar a cidade e o nosso desejo de obter o visto para entrar no Afeganistão. Contemplamos as imagens em silêncio. O antes e o depois da guerra civil, que já não tem correspondência com a realidade actual porque depois vieram os taliban e reduziram as ruínas a escombros. Monumentos, lugares emblemáticos, instalações e instituições. Nada escapou.
É uma crónica da destruição.
Quarta-feira, 2 de Agosto de 2000. Campo de refugiados
O mundo vive da esperança.
Logo pela manhãzinha, aparece a encarregada do atelier de bordados. Devido à nossa presença no campo e à visita ao atelier, as mulheres amotinaram-se. Corre o boato de que somos potenciais compradoras e que representamos uma organização. Reclamaram, por isso, um aumento de salário.
- Não é nada. Don 't worry - tranquiliza-nos Azada quando percebe a nossa consternação.
A encarregada do atelier explicou-lhes, por mais de uma vez, quem somos e por que estamos aqui. Que não trazemos dinheiro, nem viemos comprar fosse o que fosse. Também lhes disse que têm a liberdade de continuar no atelier ou deixá-lo.
Mas a sensação de incomodidade persiste. O que de modo algum quereríamos seria desbaratar o bom funcionamento das coisas e criar expectativas a que não poderíamos corresponder. Aproveitamos a ocasião para conversar com Azada sobre a possibilidade de encontrar mercado para os produtos do atelier no nosso país. Em Barcelona tinham-nos aconselhado a sugerir-lhes que fizessem coisas pequenas, de preço acessível, que pudessem ter saída como prendas em conta: sacos, bolsas para óculos, porta-moedas. Ninguém está disposto a pagar um dinheirão por um bordado mesmo quando é feito à mão. E acresce a dificuldade dos gastos de transporte que encarecem o produto, a dificuldade em encontrar intermediário adequado que zele dedicadamente pelos interesses da organização. Nenhuma de nós faz a menor ideia de como funciona este negócio, não somos comerciantes. Falamos por falar. Sentámo-nos na varanda num catre enorme coberto por um tapete tosco. Chega então a outra avó de Azada, mulher miúda e viva de olhos brilhantes e cabelo branco que veio cumprimentar-nos. Vem com outra senhora idosa, com uns grandes olhos verdes de gato e com o cabelo e mãos vermelhos de hena. Cumprimentam-nos muito efusivas e a avó de Azada tira
1 Hena, Lawosina alba, planta indiana que entre os muçulmanos se usa para pintar mãos, pés e cabelo. (N. do T.)
de uma carteira uns rectângulos embrulhados em pano que afinal são fotografias encaixilhadas da família. A maior tem o vidro partido num dos cantos. Aponta para as pessoas enquanto fala. Detém-se no fim de cada frase e faz a Azada um gesto pedindo-lhe que traduza. São os filhos. Quatro já morreram. Na guerra. Não há no Afeganistão uma só família que não tenha os seus mortos de guerra. Azada já perdeu sete tios. A avó alisa os pedaços de pano. Coloca cada foto virada para baixo sobre o pano, dobra com esmero as bordas sobre a parte de trás do caixilho, acariciando o trapo com movimentos firmes e rápidos, cheios de vitalidade. Depois torna a meter tudo na carteira. Comove-me o cuidado com que o faz. Esse punhado de fotografias são o seu tesouro, a única coisa que lhe resta dos filhos.
Entretanto chegou a viúva do atelier, a dona da vaca velha e magra, e entrou na sala onde está a outra avó de Azada. A viúva trouxe um vestido lindíssimo que nos quer mostrar. É de veludo azul-escuro com aplicações de cordão dourado na parte de baixo, as mangas e o peitilho formando favos e desenhos. É o típico vestido pashtun de cerimónia. Admiramos-lhe a beleza e os enfeites. E convidam-me a prová-lo. Insistem entre risos e visto-o. Pesa. Então começa a confusão. Todas me arranjam como se eu fosse uma boneca. A segunda avó de Azada tira o tchador branco. A do cabelo vermelho tira uns ganchos do cabelo. Põem-me o tchador, seguram-no para que não resvale, põem-no para a frente, não lhes agrada, deixam-no cair-me pelas costas, voltam a pô-lo sobre os ombros.
- Faltam-lhe as calças. - Parece uma noiva.
Divertem-se à grande. Eu também. A Meme e a Sara estão mortas de riso. Azada penteia-me enquanto elogia o vestido e me explica que cada etnia tem o seu próprio estilo, os seus trajes de cerimónia e normais, típicos e tradicionais. Os dos hazara distinguem-se pela quantidade de vidrilhos que estão cosidos no tecido, os dos baluches também são especiais. A viúva e a professora dos cursos de alfabetização, que também apareceu, contemplam esta cena sentadas junto da primeira avó. Fazem-me sair para o pátio para uma fotografia. Quando tiro o vestido estou toda transpirada. Uma das mulheres pergunta-me se quero comprar o seu vestido de cerimónia. Agradeço a oferta, digo-lhe que estes vestidos são lindíssimos, mas que onde vivo não poderia usá-lo e seria uma pena tê-lo metido num guarda-fatos.
Azada põe fim a este alvoroço. O médico do campo está à nossa espera no centro de saúde e faz-se tarde. A primeira a despedir-se é a segunda avó, que parte com a amiga, com o saco de tecido bem agarrado e o andar ligeiro, como se fosse uma buliçosa rapariga de vinte anos.
Agarramos os tchadores e as máquinas fotográficas e saímos para a rua, a caminho do que no campo chamam "a clínica".
Na rua há patos, um par de cabras e um ou outro peru. Os animais andam soltos, como em casa de Azada, onde as quatro galinhas que a avó cria se passeiam pelo pátio, se empoleiram no catre e debicam por toda a parte.
Chegamos ao centro de saúde onde o médico está a atender um doente. Esperamos no vestíbulo que dá para o pátio. Visto da rua, o centro só se distingue das casas ao lado pelo letreiro pendurado na porta.
O doente sai e o médico manda-nos entrar no consultório. É um homem de cerca de cinquenta anos, cabelo negro e abundante, ligeiramente ondulado, barba cerrada e rosto quadrado. Pashtun. Senta-se atrás da secretária. Nós instalamo-nos num estreito banco de madeira diante dele e Azada na borda de uma marquesa com os ferros pintados de um branco descascado, por onde espreita a ferrugem. Começamos a conversa. Azada nunca se dirige ao homem pelo seu nome mas sempre pelo título, por doutor. A enfermeira, mulher alta e corpulenta, interrompe-nos. O médico levanta-se e convida-nos a acompanhá-lo à sala de curativos. Chegou um jovem que até há pouco esteve a lutar na frente. Foi ferido numa perna e esteve muito tempo no hospital. Agora já não está internado, mas tem que vir ao tratamento diariamente.
A Meme, que em Barcelona trabalha num consultório, espreita o instrumental que está à vista: seringas de vidro, agulhas de sutura.
- O mínimo indispensável.
Entramos na sala de curativos, onde mal cabemos. A surpresa do paciente é evidente. Trata-se de um rapaz magro e enfraquecido, com olheiras profundas. Está sentado numa cadeira. Ao seu lado, encostadas à parede, as muletas. Azada diz que ele fala uma das lín guas minoritárias do Afeganistão e que quase não sabe dari ou pashtu. A conversa é confusa. Fazemos por não estorvar enquanto o médico examina a ferida: um buraco do tamanho de uma moeda de duzentos escudos e com uma profundidade incalculável. A enfermeira, com a ajuda de umas pinças, mete naquele poço de carne gazes que se perdem nas profundidades. O médico indica-nos a perda da massa muscular que a extremidade da ferida sofreu e a dificuldade que há em fazer cicatrizar esse buraco causado pela metralha. Não é seguro que o jovem salve a perna. A preocupação desse homem, que apenas tem vinte e tal anos mas aparenta quase o dobro, é a responsabilidade de manter a família. O pai dele é já idoso.
Pedimos licença para tirar fotografias. Custa-me interromper assim a privacidade de uma consulta médica. A Sara insiste e é a primeira a aproximar-se do ferido para tentar tirar a fotografia enquanto a Meme continua a deitar uma olhadela profissional e faz o seu diagnóstico:
- Aqui falta tudo.
A Sara senta-se num banco, branca como a cal da parede. Descobrimos então que o sangue, as feridas, a mera descrição de uma doença ou de uma operação cirúrgica a deitam abaixo. Mas é uma profissional: tirou a fotografia que não sairá porque pouco depois verificará que o rolo está bloqueado desde o primeiro dia, e quando nos aproximamos dela para lhe perguntar se está bem e se quer que a acompanhemos até lá fora, só nos diz:
- Faz o favor de tirar as fotografias de uma vez por todas.
O que faço. Também não serão nenhum primor. A enfermeira metendo e tirando pensos esterilizados naquele desfiladeiro de carne, o médico a examinar a perna e a apalpar as bordas da ferida. Não há mais sítios para onde apontar a máquina, coisa para que, aliás, tenho pouco jeito.
Voltamos para o consultório do médico. Há mais de dez anos que vive neste campo e que trabalha no dispensário. Dantes, quando contavam com o apoio de diversas ONG pelas quais o ACNUR canalizava as suas ajudas, aquilo era outra coisa: o médico, as enfermeiras, a encarregada da farmácia... todos tinham um salário. Até havia um patologista. E no laboratório, agora praticamente abandonado, podiam fazer-se análises. Na actualidade, faz-se o que se pode. Dantes os médicos ganhavam quatro mil rupias por mês e as enfermeiras duas mil. Agora cobram aos doentes cinco rupias por consulta, ainda que alguns nem sequer isso possam dar, e é daí que é pago o pessoal. Acrescenta que o Conselho tem um fundo para os casos de indigência e que quando há um caso grave no campo faz-se uma colecta entre a população para levar essa pessoa ao hospital ou pagar-lhe uma operação.
Ao princípio, o médico tentou falar em inglês connosco, mas desiste, abanando a cabeça e rindo-se de si mesmo. Acaba por recorrer a Azada para que traduza as suas palavras e a conversa é distendida e amena. É o primeiro homem que fala connosco sem que apareça a barreira invisível mas palpável que cria esse distanciamento estranho entre homens e mulheres. Conta-nos que se licenciou na faculdade de medicina de Jalalabad, onde as aulas são dadas em pashtu. Para os alunos de língua persa há, ou havia, corrige-se, a faculdade de Cabul, onde as aulas são em dari. Falando do Afeganistão, o médico, que gosta de citar provérbios e falar por imagens, diz, a dado momento:
- Tem cuidado ao atacar a raposa, que esta pode transformar-se num leão. Eu e Azada perguntamos ao mesmo tempo:
- E quem é a raposa?
- O povo do Afeganistão - responde, surpreendido por ter que explicar o que para ele é evidente.
Sinto o mesmo orgulho que sentiria se fosse afegã. A analogia é tão clara que não necessita de mais palavras, mas quero saber mais, e mesmo que não queira deitar sal na ferida não me calo:
- Que aconteceu ao leão?
O médico olha-me. Talvez seja apenas a minha imaginação a funcionar, mas sinto que, nesse momento, falamos a mesma língua.
- O leão está muito cansado. Concordamos ambos e calamo-nos.
Depois fala-se de história e de literatura... Recomenda-me a leitura de um livro sobre a história do Afeganistão escrito por um paquistanês seu amigo. Aconselha-me a visitar esse amigo que vive perto de Peshawar. Peço-lhe que anote o título do livro e o nome do autor no caderno que trago sempre comigo. Por azar, durante a nossa estadia no Afeganistão teremos que destruir as nossas agendas e receio ter perdido esta informação. Pergunto-lhe por que é um paquistanês, e não um afegão, a escrever sobre a história do Afeganistão. Sorri e explica: - O meu amigo é pashtun.
Também eu sorrio. A população pashtun do Afeganistão ocupa o leste do país, mas o Pashtunistão natural abarca também toda a região ocidental do Paquistão e ficou dividido quando os britânicos estabeleceram a linha Durand, que marcava os limites das suas coló nias na Ásia. O mesmo sucedeu ao Baluchistão quando a Pérsia traçou as suas fronteiras. Desde essa altura, tanto baluches como pashtun reivindicam periodicamente a recuperação dos territórios.
Custa-nos a dar por acabada a conversa e Azada convida o médico para comer lá em casa. Comenta, em tom de brincadeira, que ele pode entrar e sair de todas as casas sem beliscar a respeitabilidade de quem quer que seja. Toda a gente conhece este homem, o seu carácter aberto e espontâneo, a sua paixão pela conversa. E como, além disso, é um homem casado, ninguém pode suspeitar que alimente más intenções no seu trato com as pessoas ou nas suas visitas espontâneas às casas.
O médico torna agradáveis o almoço e a conversa. Fala-nos das principais dificuldades com que se depara diariamente para praticar medicina. Não falando na falta de meios, de instrumentos, de pessoal e de medicamentos, que ele vai contornando da melhor maneira possível, o grande problema situa-se no âmbito da ginecologia. Se no campo houvesse uma médica ginecologista, talvez as coisas mudassem, porque as mulheres não querem ser observadas por um homem. Outro problema tem a ver com a superstição das pessoas. E com a concorrência que na mesquita o mullah representa.
A superstição é o pior. As pessoas menos cultas continuam a acreditar que as doenças se devem ao facto de um djinn, um espírito mau, um génio malvado, se ter apoderado da pessoa em questão, e que nenhum poder terreno, menos ainda o médico com os seus medi camentos, é capaz de desfazer esse agravo. Mais depressa iriam ao mufah do que ao médico. E o mullah, envolto na sua aura sagrada, escreverá um par de suras do Corão num papelito que a pessoa doente terá de dissolver em água e beber depois para recuperar a saúde. Um disparate. Mas ainda há gente que confia nestes remédios. Durante algum tempo a concorrência que o mullah fez ao médico foi feroz. Agora a sua atitude é um pouco melhor, já que o médico lhe curou uma filha. O mullah chamou-o, desesperado: a rapariga estava muito doente e os seus remédios eram ineficazes. A sorte do doutor foi que ainda não era demasiado tarde para salvar a rapariga. Desde essa altura, o mullah, quando as pessoas que o vêm consultar à procura de remédio contra doenças provocadas por djinns não melhoram, aconselha-os a recorrer ao médico. Sempre é um progresso.
Depois de comer, saímos para um passeio pelo campo. Acompanha-nos o médico e a tia de Azada. Saímos de casa por uma porta pequena no muro. À direita está o tanque que o Conselho quer transformar numa criação de peixe, um charco grande do tamanho de uma piscina. Atravessamos um campo verde onde se rebolam meninos que brincam e trepamos por uma das margens para alcançar o caminho que vai dar ao poço que fornece água ao campo. O poço está protegido por uma construção de madeira e há um grupo de homens que se azafama à sua volta e, entre eles, o engenheiro membro do Conselho com quem conversámos na primeira noite. Cumprimentámo-lo, agradecemos-lhe a sua amabilidade e aproveitamos a ocasião para nos despedirmos: esta mesma tarde regressamos a Peshawar.
Informa-nos do problema que surgiu: a bomba extractora de água que, ainda por cima, era nova, caiu ao fundo do poço e estão a tentar recuperá-la. Se o não conseguirem, isso será uma perda enorme para todos. Não só pela dificuldade no abastecimento da água, que já seria suficientemente grave, mas porque, para poder comprá-la e substituir a velha, que já não tinha conserto possível, houve que fazer um peditório entre todos os habitantes do campo.
Expõe-nos o problema sem espavento, com essa calma afegã diante da adversidade, a meio caminho entre a grandeza de espírito e o fatalismo.
Por último passamos por uma horta do tamanho de um campo de basquetebol. O médico cumprimenta o dono, um homem magro de barba cinzenta, que nos guia, orgulhoso, entre pimentos, tomates, batatas, cebolas, abóboras e outras verduras que aqui se comem habitual mente, mas que eu nunca vi nos nossos supermercados, nem sequer nos que têm à venda produtos exóticos vindos de todo o mundo. A horta é uma iniciativa privada deste lavrador entusiasta. Cultiva esta parcela de terra pela qual paga um aluguer e vende os seus produtos às pessoas do campo.
Regressamos passeando, e ao entrar pela porta pequena, como um raio, passa por nós uma cabra perseguida por um grupo de garotos que querem apanhá-la. Junto da porta, Azada mostra-nos o que, à vista desarmada, parece um simples montículo de argila, uma pequena plataforma elevada a que se chega por degraus, sob uma cobertura de ramos. É o forno público onde todas as manhãs, antes de o calor apertar, as mulheres cozem o pão de cada dia. Acaricio a superficie embelezada. Como me sucedia com as casas de adobe, estes fornos de tradição milenária sempre me fascinaram. O meu interesse pela vida quotidiana dos povos da Antiguidade, alheia às grandes gestas que a história narra, vem de longe, e encontrar vestígios seus que ainda sobrevivam, seja onde for, emociona-me. Estou certa de que este forno
não é muito diferente daqueles em que as mulheres de há milhares de anos também coziam o pão todas as manhãs. Mas estamos a meio da tarde e não há ninguém a cozer pão. Lamento não o ter sabido de antemão, porque me teria levantado cedo. Razão tem a avó de Azada ao dizer que se deve madrugar. Todavia tenho de dizer que terei a imensa sorte de realizar o meu desejo quando regressarmos ao campo, pouco antes da nossa partida para o Ocidente.
A camioneta espera-nos. Recolhemos as nossas coisas. Chega a segunda avó de Azada, que foi arranjar-se porque quer que lhe tiremos uma fotografia com os netos. Uma fotografia que, quase de certeza, irá guardar junto das outras, embrulhada num pano, dentro de um saco de pele castanha. Despedimo-nos da avó, do primo, da tia, do médico e partimos para Peshawar.
Passamos pelo aeroporto para saber se já chegou a mala extraviada da Meme.
- Acreditas que enganamos alguém com esta roupa e que, de facto, nos tomam por mulheres de cá? - pergunta-me a Sara enquanto atravessamos a rua. Olho-a e tenho um ataque de riso: traz o tchador de rastos pelo chão. Não. De certeza que não enganamos ninguém.
Vamos ao balcão respectivo, mas já passa das seis e o empregado mostra-se inflexível. Ninguém pode abrir o compartimento das bagagens até amanhã, pelas nove horas. A Meme tenta tudo: apela aos bons sentimentos do empregado, oferece-lhe uma gorjeta, ameaça reclamar e pedir uma indemnização. Tudo em vão. Vê-la tão digna, tão ocidental nos seus argumentos mas vestida de paquistanesa, com o tchador rígido emoldurando-lhe o rosto, provoca-nos, a mim e à Sara, um ataque de riso incontrolável.
Chegamos a casa de Najiba. Entre abraços e beijos, Najiba diz que ela e a filha tiveram saudades nossas e que sem nós a casa estava vazia. Deixamos as nossas coisas às três pancadas no quarto e sentamo-nos na varanda à conversa. Basira vem ter connosco, sorridente, expectante enquanto corta umas couves. Comunicam-nos que Rustam chegará amanhã de Islamabad. Rustam é outro mistério não resolvido, semelhante ao do acesso à internet. Há três semanas nem sabíamos que existia. Durante três meses só nos correspondemos com Azada. Um certo dia ela foi obrigada a ausentar-se e escreveu-nos: "Don't worry, se precisarem de alguma informação os meus colegas ajudar-vos-ão no que for preciso".
Mas nós preocupámo-nos. Julgávamos que só ela sabia inglês. Por muito boa vontade que os colegas tivessem, como é que nos entenderíamos? E se não regressasse a tempo de nos receber em Peshawar? Estivemos sobre brasas durante quase dois meses. Escrevíamos e-mails com a sensação de os mandarmos para o espaço sideral, onde se deveriam desintegrar ou perder-se nalgum buraco negro.
E por fim chegou uma resposta. Num inglês impecável, conciso, desfazendo dúvidas, aclarando pontos, fornecendo informação. Ficámos doidas de alegria. Um erro tipográfico e a ignorância dos nomes próprios afegãos fizeram-nos acreditar, durante vários dias, que se tratava de uma mulher com a qual poderíamos entender-nos muito bem, que dominava os assuntos e expunha as coisas com clareza. Lembro-me de ter chegado a pensar: "Como esta rapariga tem tão bem desenvolvida a sua parte masculina!". É que, recentemente, tinha lido um livro sobre os componentes masculino e feminino que todos nós temos e a necessidade de potenciar ambos para que se, complementem e enriqueçam a pessoa no seu todo. Mas rapidamente se verificou que o nosso interlocutor era um homem. Reconheço que, a princípio, me desagradou. De facto, na correspondência que mantínhamos já se tinha criado esse ambiente descontraído, próprio do mundo feminino que temos na casa de Najiba. Eu escrevia livremente, sem medir as minhas palavras ou a expressão dos meus sentimentos quando escrevia a Azada. Irritava-me ter de escolher as palavras ao escrever os meus e-mails, pelo simples facto de o meu interlocutor ser homem. Um homem afegão que eu não conhecia. Incomodava-me, sobretudo, porque não sabia o que ali seria correcto, no contacto com um homem. Por exemplo, como deveria acabar as minhas cartas? "Cumprimentos"? Perturbada, lembrei-me que nos anteriores e-mail até "beijos" lhe mandara. Mas ele não se deu por achado e a correspondência chegou a ser muito fluida e constante. Proporcionava-me muita da informação que eu lhe pedia, comentávamos o meu projecto de escrever um livro sobre o Afeganistão, dava-me indicações e informações sobre tradições e costumes. Era um prazer. Estamos as três intrigadas com este homem que finalmente iremos conhecer. Gracejamos.
Como já sabemos alinhavar meia dúzia de palavras em dari, ensaio a cena: Truz, truz, truz! Ki ast? - direi detrás da porta, como fazem eles quando alguém bate. Rustam - dirá ele. Abrirei a porta que range e cumprimentá-lo-ei com um breve Chetor ast Rustam? Um mero "Como estás?" e não a longa litania de perguntas e respostas sobre a saúde, a família e um longo etcétera com que habitualmente os afegãos se brindam enquanto trocam beijos e apertos de mão.
Rimo-nos durante uns momentos à conta da recepção que projectamos para Rustam no dia seguinte.
Anoitece. No Paquistão escurece cedo.
Pouco depois chega um homem ainda novo que nos é apresentado. É o guarda da escola. Cumprimenta-nos e depois senta-se longe de nós, quase fora do tapete. Azada e Najiba revezam-se para nos contarem como começou a escola.
As ruas de Peshawar estão cheias de crianças afegãs. Mendigos, meninos que andam ao lixo, que recolhem papel, trapos, pedaços de metal... Para Azada e para a HAWCA, desde o início da sua actividade, o objectivo é claro: dar ferramentas às mulheres e às crianças afegãs para que possam encarar um futuro melhor e mais digno. Trabalho e instrução para as mulheres, escola para as crianças. Daí que tenham centrado os seus esforços num dos bairros mais desfavorecidos, onde os refugiados chegados durante os últimos anos, quando já
ninguém queria saber deles ou sequer proporcionar-lhes uma ajuda básica, tinham conseguido organizar-se de molde a permanecerem juntos e formado pequenas comunidades, vivendo em barracas feitas de trapos e plásticos recuperados do lixo. Começaram por abordar as crianças da rua, perguntando-lhes se não gostariam de ir à escola, averiguando onde viviam e donde vinham. Depois falaram com os pais e com o responsável do grupo. As famílias concordaram: estavam dispostas a renunciar aos rendimentos das horas de trabalho que se perderiam por as crianças estarem na escola. Compreenderam que o simples facto de saberem ler e escrever, de serem pessoas instruídas, poderia trazer oportunidades e um futuro melhor para as crianças. O passo seguinte consistia em arranjar um local onde se dessem as aulas. Nem por sonhos se podia arranjar uma casa, visto não terem sequer uma rupia. Quando se discutiu o problema com os familiares, a solução apareceu com toda a naturalidade, fruto da generosidade discreta, própria desse princípio fundamental que impregna a sociedade afegã: o bem geral prevalece sobre o individual. O avô de uma criança cedeu a sua barraca para servir de escola. O ancião entendia que, mais importante do que o seu relativo conforto, era o facto de as crianças terem um sítio para aprender. Falara com um filho e este recebê-lo-ia em sua casa.
Isto acontecera há apenas um ano.
Os meios eram inexistentes e o trabalho das professoras começou por ser voluntário até que, graças a donativos pontuais recolhidos em Espanha e Itália, se atreveram a alugar uma casa no bairro. Começaram com sessenta crianças, mas em poucos meses já havia cem. Agora são quase cento e cinquenta e vêem-se obrigados a recusar pedidos de muitos pais porque não há meios para responder à procura. Necessitam de financiamentos para material escolar e para poderem contratar mais professoras que possam receber um ordenado, já que, sendo também refugiadas, as suas condições de vida são precárias.
O marido de Najiba chega do trabalho. Descubro no rosto desta, quando o vê à porta, uma fugaz expressão de irradiante felicidade. Envergonho-me um pouco por ter surpreendido esse olhar, porquanto diante de nós e, suponho, diante de quem quer que seja, não há efusões, não há contacto entre homens e mulheres, mesmo sendo casados. Cumprimenta-nos, contente por nos rever. Cumprimenta o guarda, que parece aliviado com a sua presença. Os homens agarram na televisão e levam-na para a varanda para ouvirem o noticiário. Najiba desaparece na cozinha, onde aliás ainda não entrámos.
Entretanto Azada conta-nos a história do guarda. Começa por nos explicar por que é necessário: em Peshawar uma casa fechada é um convite aos gatunos. Contrataram o jovem quando alugaram a escola, para evitar entradas indesejadas na casa que arranjaram. Não é que haja muito que roubar, mas... Procuraram alguém de confiança e a escolha recaiu sobre ele. Trabalhara durante quatro anos, e até oito meses antes, numa fábrica de tijolos que foi obrigado a abandonar após sofrer uma lesão que lhe afectara as costas e a perna direita. Tem vinte e cinco anos e uma família numerosa a seu cargo: mulher, três filhos, pai muito idoso, uma cunhada viúva com duas crianças. Só ele e um irmão mais novo de cerca de dezoito anos podem trabalhar, pelo que ambos têm que sustentar a família. Orgulhosa, Azada conta-nos que, há pouco, o guarda pediu autorização para usar uma das salas da escola durante a noite: queria abrir por sua conta um curso de alfabetização destinado aos homens jovens do bairro. As aulas seriam dadas à hora em que estes voltam dos empregos e ele mesmo as daria. A direcção da escola não lhe levantou nenhuma objecção.
Depois do jantar, quando servem o chá, o ambiente parece mais descontraído. O guarda, uma ou outra vez, já se atreve a olhar-nos e até a sorrir-nos. Perguntamo-nos, sinceramente intrigadas, o que é que se passa com estes homens. Nessa mesma noite, já sós, perguntá-lo-emos a Azada. Diante de um grupo de mulheres que conversam animadamente, os homens são presa de uma enorme timidez, receiam incomodar ou estar a mais. Não, não é isso, insistimos. É algo mais profundo, é a sensação de pertencer a mundos diferentes, e não é porque sejamos estrangeiras. É porque somos mulheres. Porventura a antiga purdah tradicional, a separação entre homens e mulheres, física e palpável, deixou o seu rasto nesse muro invisível que parece quase infranqueável nas relações entre homens e mulheres que trabalham juntos, que têm os mesmos objectivos, que se respeitam e podem conversar, gracejar mesmo, mas não atravessar essa barreira subtil que, como um vidro, se interpõe entre eles. Com ela, com Azada, os homens não mostram essa timidez. O médico, no campo, também não a manifesta.
- O médico é uma pessoa muito especial!
Contamos o que fizemos durante estes dias em que estivemos fora, fazemos sorrir o marido de Najiba quando lhe explicámos a surpresa do membro do Conselho, tão solene e protocolar, diante da nossa falta de compostura, fruto da ignorância. É tão gratificante fazer rir este homem tão afável, tão afectuoso e, no entanto, tão profundamente triste. Najiba até chora de tanto rir enquanto o bebé dorme deitado no tapete.
O guarda, como quem se desculpa, pede licença para poder estender a perna lesionada. Entreolhamo-nos: assim é que devemos comportar-nos.
As gargalhadas e a conversa descontraída vão dando lugar a temas mais sérios, e o marido de Najiba começa a falar.
Fala-nos dos jovens, das novas gerações afegãs que se vão tornando apáticas, que se abandonam a uma resignação passiva e perdem o interesse pelo futuro do Afeganistão, pois já não acreditam que alguma vez a paz chegue. Nem a liberdade. O problema está em que ao Paquistão não interessa que haja paz no Afeganistão, bem pelo contrário: ao Paquistão interessa a continuação da guerra, assim pode experimentar as suas armas num conflito real, num verdadeiro campo de batalha. E pode treinar a sua tropa para o conflito de Caxemira. Ao Paquistão não interessa de modo algum um Afeganistão em paz, forte e democrático,
que poderia reclamar o Pashtunistão, porque o Paquistão sem o Pashtunistão e Caxemira ficaria sem nada.
Azada traduz.
No Afeganistão entrou tudo em colapso, desde a economia até à vida social. Só floresce uma flor que, quando se abre na Primavera, converte o país inteiro num enorme tapete vermelho, a flor do ópio, com que os taliban traficam. Em Peshawar, há quem tenha visto com os seus próprios olhos contentores cheios de droga chegarem do Afeganistão sob escolta de polícias paquistaneses. É no Paquistão, em laboratórios situados perto da fronteira, que se processa a heroína a partir do ópio procedente do Afeganistão. De Peshawar vai para o porto de Carachi e daí para a Europa.
Este homem jovem, que quando ocorreu a invasão soviética era estudante universitário, suspeita mesmo, como muito boa gente, que o suposto líder carismático dos taliban, o mullah ornar, a quem dizem obedecer, nem sequer existe, que é uma invenção:
-Nunca ninguém o viu, não dá entrevistas, não aparece nos meios de comunicação... Então Najiba toma'a palavra. E metamorfoseia-se: a mulher doce e calma que até agora vimos, converte-se em alguém que fala com uma paixão, uma firmeza e uma convicção que nos impressiona. É breve. Sabe perfeitamente o que quer dizer:
- Enquanto a guerra contra os soviéticos durou, havia uma avalanche de jornalistas que pululavam por todo o lado, dando notícia de tudo o que sucedia. Depois o mundo inteiro fechou as portas ao Afeganistão. Agora muitos perderam a esperança. Antes da chegada dos taliban, eu nunca poderia ter imaginado que se chegassem a cortar dedos, pés e mãos nos estádios, que se lapidassem pessoas. Vivemos um período nefasto. Mas não conseguirão deter-nos. Continuaremos e alcançaremos a democracia para o Afeganistão. É possível que agora só possamos ensinar e educar os demais e convencer todos quantos sejam capazes a fazer o mesmo à sua volta. Mas conseguiremos. É certo que as nossas condições de vida são penosas, mas conseguiremos porque estamos decididos a alcançar o nosso objectivo e a nossa determinação é grande.
Calamo-nos, impressionadas. Penso no seu nome, Najiba, que significa a mulher nobre, íntegra.
"O mundo vive da esperança", reza um provérbio afegão. O Afeganistão vive da esperança.
'' Najiba é a esperança.
Quinta-feira, 3 de Agosto de 2000. Peshawar
Um rio faz-se gota a gota.
R ustam chega quando tomamos o pequeno-almoço. É um homem muito jovem e magro. Veste à ocidental. Renuncio à paródia dos cumprimentos. O carro vem buscar-nos para começar o percurso do dia. Em primeiro lugar, logo que recuperemos a mala da Meme no aeroporto, vamos pedir o visto no consulado taliban para podermos ir ao Afeganistão. Metemo-nos os cinco no carro: as quatro mulheres atrás e Rustam à frente com o motorista. É uma verdadeira façanha conseguir fechar a porta depois de encaixar num espaço tão exíguo traseiros, braços e pernas, todas as roupas dos nossos vestidos compridos, os tchadores, as carteiras, as garrafas de água. Vamos como sardinhas em lata. Ao calor permanente de Peshawar há que acrescentar o calor animal dos nossos corpos apertados. Baixamos os vidros das janelas, retocamos os tchadores para cobrir o rosto e estamos prontas para partir.
Recolhemos a mala da Meme no aeroporto, sem mais complicações e com natural alegria da parte dela. Metemo-la na bagageira e arrancamos para o principal objectivo do dia. O consulado taliban encontra-se numa zona residencial da cidade. Ruas amplas e tranquilas. O motorista tem que perguntar várias vezes antes de encontrar o lugar e depois estaciona numa pequena rua lateral. Apeamo-nos, respiramos fundo e lá vamos. Antes de entrar pela porta pequena que abre para a rua, recompomos as roupas, para causar boa impressão. O guarda que custodia a entrada indica-nos uma repartição à direita. O motorista acompanha-nos. Há uma meia dúzia de pessoas numa fila na antessala do escritório, que é mais ao fundo. Sentamo-nos num banco à espera. O motorista aproxima-se do postigo para perguntar, volta para nos chamar e acompanha-nos ao interior do escritório. Somos atendidas por um funcionário idoso que fala um inglês no mínimo curioso. Na mesa ao lado senta-se um taliban autêntico e a desumanidade do seus olhos claros provoca-me calafrios. É um homem jovem, belíssimo, turbante impecável, roupa imaculada, barba negra, comprida e cheia, os olhos pintados com um risco negro na pálpebra inferior. Se as lendas e superstições afegãs, que falam de djinns, diabos ou espíritos malignos encarnados em corpos formosíssimos, fossem verdadeiras, este taliban seria um perfeito exemplo. Só os seus olhos o denunciariam.
- Não olhes para ele - repreende-me a Meme.
` Mandam-nos preencher os requerimentos. Nome, direcção, nacionalidade, profissão... motivo da viagem: turismo; cidades para que se pede o visto: Cabul; lugar onde nos alojaremos. Só nos lembramos vagamente de um nome de hotel em Cabul e escrevemo-lo: depois repararemos que nos enganámos e que em vez de Hotel Intercontinental pusemos Internacional. Também temos que indicar, no fim da folha, quem nos acompanhará: um motorista e uma intérprete.
Entregamos os formulários. Mais uma vez, temos que esperar na antessala. O taliban da entrada revista os homens que entram. A outros aperta-lhes a mão, abraça-os, beija-os. Pouco depois, o funcionário idoso manda-nos a outra repartição. O motorista esperará na antessala. Atravessamos o jardim para chegar ao edifício principal. Uma vez ali, conduzem-nos até a uma sala atapetada, com poltronas forradas e uma grande secretária de madeira escura. Aí sentado, recebe-nos um taliban de turbante branco, vestido de azul-celeste. Tem com ele os nossos requerimentos. Convida-nos a sentar. Fala inglês. A Sara usará a sua voz cantante. O taliban lê os formulários enquanto conversa connosco, ainda que de uma forma um tanto rígida. Pergunta-me de que idiomas traduzo, quando vê que sou tradutora.
- Do alemão.
A Sara conta-lhe a nossa história: estamos de férias, viemos passar três semanas ao Paquistão para conhecer o país. Somos, as três, viajantes infatigáveis. E lembrámo-nos que, estando tão perto, seria uma pena, desaproveitar a ocasião e não visitar Cabul.
Quantos dias queremos estar em Cabul? Poucos, três dias,. um passeio.
Onde é que nos alojamos em Peshawar?
Damos o nome do único hotel que conhecemos na cidade. O taliban torna a ver os nossos requerimentos. Espanha. Pergunta algo acerca dos nossos monumentos.
O Alhambra de Granada, a Mesquita de Córdova, a Giralda de Sevilha.
Eu, para não parecer que queremos agradar-lhe mencionando unicamente o nosso passado islâmico, começo a enumerar outras coisas típicas: as touradas, as Fallas de Valência... A Sara traduz com ar de profundo espanto.
O taliban escreve umas linhas indecifráveis num dos formulários e dispensa-nos. Ao sair, a Sara diz-me:
- Estás maluca? As Fallas de Valência!
- Então ele não queria monumentos e festas típicas de Espanha?
- Islâmicos, mulher, islâmicos! As Fallas de Valência!...
O "islâmicos" tinha-me escapado. Acomete-nos um ataque de riso incontrolável.
- Não se riam que eles ainda vão pensar que os estamos a gozar - adverte a Meme. Tem razão. Acalmamo-nos e voltamos à repartição com os nossos formulários. Que quererão dizer estas garatujas?
O homem idoso manda a Sara a outra repartição, noutro edificio, para selar os requerimentos. Vai só ela e o nosso motorista. Cumpridos todos os requisitos, dizem-nos para voltarmos dentro de uma semana. Nessa altura já nos poderão dizer se obtivemos o visto ou não. Uma semana! Saímos, muito dignas e muito sérias, e até nos reunirmos a Azada e Rustam, no carro, não nos permitimos rir. A Sara conta a minha argolada:
- E quando o cônsul... - Ai esse era o cônsul? - Realmente tu não reparas em nada. Claro que era o cônsul.
Fico aturdida. Estive a falar com o próprio cônsul taliban sem sequer me dar conta. Assim as coisas já se percebem: o luxo do escritório, a elegância do seu traje, os seus modos... Mas não me tinha passado pela cabeça que pudéssemos estar no gabinete do côn sul. A minha imaginação tinha navegado por outras rotas. Vendo a Meme e a Sara com os seus trajes paquistaneses e os seus tchadores conversando tão sérias com o taliban do turbante branco, sentadas naquelas poltronas que mais pareciam tronos... julgava-me a protagonista de um filme ou a heroína de um romance policial: três professoras inglesas em viagem pelo Oriente. E perdera o essencial. O real.
- Não nos darão o visto - diz a Meme. - Não tenham ilusões. - Claro que vão dar. Para a, semana iremos ao Afeganistão. -Não darão. Mas se vocês tiverem razão, pago um jantar.
Dali partimos para o mercado, um dos grandes bazares de Peshawar, onde mulheres e crianças afegãs costumam mendigar. Ainda nem tínhamos parado e logo uma mulher coberta por uma burka verde-escura, gasta e suja, se aproximou da janela do carro. Só as mãos aparecem debaixo do tecido. Com uma gesticula, enquanto com a outra puxa o pano que lhe cobre a cara para poder ver melhor através da rede da viseira. Azada começa a falar com ela. Trata-a com respeito, chama-lhe mãe, maadar, e, uma vez mais, ficamos surpreendidas com a sua capacidade para interpelar as pessoas, para se relacionar com quem quer que se aproxime dela e meter conversa, para contactar e interessar-se pela sua vida, suas dificuldades e situação. Não lhes dá nada, não lhes pode dar nada senão respeito, tempo e a consolação de escutar a sua aflição.
Já nas arcadas das lojas, pelas ruelas do bazar, aproximamo-nos de outra mulher que pede, escondendo a sua vergonha, destá vez sob uma burka amarela. Junta-se ao grupo outra
mulher vestida de escuro. As suas histórias e as de milhares de outras como elas formariam um mosaico de desenho e cor uniformes: mulheres afegãs, viúvas, sozinhas, com família a seu cargo, com filhos ou mães doentes, com a fome como único muhrram, seu fiel acompanhante, com um passado digno, por vezes feliz, sem outro futuro do que a incerteza de poder sobreviver mais um dia. "Um rio faz-se gota a gota." E ainda que o provérbio se refira ao grão de areia com que cada um pode contribuir, não consigo deixar de pensar que também gota a gota, vida a vida, cresce o rio que deveria ser um mar salgado de dor. Mas a estas mulheres, de que lhes serviria chorar? Estas mulheres que mendigam, ocultas sob as suas burkas, só contam com o que está ao alcance da compreensão dos transeuntes: a fome, os filhos doentes, os maridos desaparecidos num bombardeamento, assassinados numa rusga ou mortos na frente de combate. Contam-nos a sua solidão, o seu desamparo de mulheres afegãs sozinhas. Para que uma mulher afegã medianamente jovem - e as mãos denunciam-nas - saia para a rua a pedir é porque a sua situação é desesperada. As extensas famílias afegãs acolhem as suas viúvas, os seus órfãos, os seus enfermos, e os seus membros velam uns pelos outros. Nem sequer entre os refugiados afegãos que vivem da mendicidade, as mulheres jovens saem para pedir esmola: são as velhas e os meninos que o fazem. Quando uma mulher jovem tem de recorrer à compaixão de quem anda na rua, é porque não tem nada, rigorosamente nada: está só, e, sem ajuda de quem quer que seja, acarreta com a responsabilidade dos que dela dependem. Dizem-nos da vergonha de pedir. Da solidão não falam. Nem do medo. Da vergonha, sim.
Hoje, por indicação de Azada, damos esmola.
Continuamos a percorrer as ruelas do bazar. Crianças rodeiam-nos tentando vender esferográficas, isqueiros, rotuladores. Na vitrina de uma alfaiataria há cabides com vestidos de cerimónia afegãos, pashtun, uzbeque, baluche. A Sara entrevista um rapaz que atende o público atrás de um balcão, numa paragem. Também é afegão. A loja é do pai. Fazem turnos com um tio que também fugiu do terror afegão.
Num cruzamento aproxima-se de nós um homem alto e magro. As maçãs do rosto, chupadas e cobertas pela barba, sobressaem. Debaixo do gorro circular e plano assoma o cabelo negro e frisado. Ao ombro, o tradicional lenço grande que os afegãos utilizam quer como turbante quer para transportar coisas. O homem quer vender-nos duas estatuetas que tem na mão. São dois pássaros de metal com as asas abertas sobre uma peanha de madeira. Diz que são de prata. Do museu de Cabul. Que pagou a uma mulher para que esta os roubasse. Então, olhando desconfiado em volta, tira do interior do casacão dois punhais com as bainhas lavradas. Garante-nos que são peças autênticas anteriores ao período do rei Zahir. E que veio a Peshawar só para as vender. Logo que se desfaça delas regressará ao Afeganistão, onde tem a mulher e os filhos. Por cada punhal pede seiscentas rupias. Valem muito mais, mas ele só quer seiscentas rupias. Sem razão aparente, fala-nos da asma que o atormenta. As figueiras provocam-lhe asma.
Não, não queremos comprar nada. Obrigado. Tashakor.
Afastamo-nos. Rustam não acredita que as peças sejam autênticas. Todavia é triste ver o património de todo um povo vendido a preço de saldo nas ruas de qualquer mercado. Talvez essas peças sejam falsas, mas foi assim que desapareceram, uma a uma, as verdadei ras jóias, as autênticas obras de arte que há alguns anos os visitantes poderiam contemplar no museu de Cabul. Perdas irreparáveis.
Rustam convida-nos para almoçar no Cabul, um restaurante afegão situado numa das avenidas de Peshawar. Azada graceja com a prodigalidade dele. O motorista pára mesmo à porta. Lavamos as mãos à entrada e Azada tira da carteira uma toalha pequena de algodão para nos secarmos. No mercado tínhamos visto vendedores ambulantes que percorriam as ruelas carregados de montanhas multicores de toalhitas, apregoando a sua mercadoria. Verifico quão prático pode ser trazer uma toalha pequena na carteira para qualquer eventualidade. O salão do restaurante está vazio. Somos os únicos clientes. No fundo há um estrado com quatro poltronas, quase tronos, forradas a veludo vermelho.
- São para os casamentos - instruem-nos os nossos amigos afegãos. - O costume é fazer a festa em casa, mas se há muitos convidados, ou se a casa é pequena, há cada vez mais famílias que optam pelo restaurante.
O casamento, na sociedade tradicional afegã, continua a ser um acordo familiar, sobretudo nas zonas rurais, ainda que esse costume ancestral vá caindo em desuso nas grandes cidades ou no seio das famílias instruídas, em que se respeita a liberdade de escolha dos jovens, de modo que os casamentos por amor já começam a ser habituais nesses ambientes.
As mulheres mais velhas da família, mães, tias e avós, são as que, em primeiro lugar, estudam e discutem as diferentes opções. Nalguns casos, os casamentos costumam celebrar-se entre membros da mesma família, que se conhecem desde a mais tenra idade, ou então os candidatos são escolhidos no estreito círculo dos amigos. As mulheres põem-se de acordo acerca daqueles que formam um par aceitável, por temperamento, interesses, afinidades, e fazem uma escolha que propõem ao resto da família e também aos possíveis futuros noivos. Se houver consenso e todos estiverem de acordo, jovens incluídos, tem lugar o primeiro passo oficial para o casamento, o Jasgari, ou o que nós chamaríamos o pedido de casamento: os homens e as mulheres mais velhos e mais respeitáveis da família do rapaz apresentam a sua proposta à família da rapariga. Neste primeiro encontro a resposta é sempre uma negativa, que deixa aberta a porta para segundo e terceiro requerimentos. Se a família da noiva não conhece bem o rapaz ou a família solicitante, fará as suas próprias investigações. Se não gostarem do que descobrirem recusá-lo-ão de novo e definitivamente, mas se a ideia desse casamento lhes agrada, entregarão à família do pretendente uma bolsa de doces ou de bons embrulhados num lenço. A isto chama-se Sharin-e-Dadan, literalmente, a entreg doces.
Depois a família do noivo preparará o Sharin-e Joree, a festa de compromisso propriamente dita, que terá lugar na casa da rapariga, ainda que as despesas corram integralmente por conta do pretendente. Nesse dia os jovens trocarão anéis e selam o compromisso oferecendo um ao outro um pedaço de bolo e umas colheradas de uma bebida doce, enquanto mulheres e a gente nova cantam e dançam ao ritmo do daria afegão, um instrumento local parecido com a pandeireta. Durante a festa, os noivos recebem presentes, que se expõe para que todos os assistentes possam vê-lo e admirá-lo. Também os familiares mais próximos dos noivos recebem algumas lembranças. Entretanto, serve-se uma grande quantidade de pratos, não faltando o famoso gabalee palau, o saboroso arroz de especial habitual em qualquer festa. No fim a família da noiva entrega à família do noivo uma grande cesta de doces profusamente decorada.
Durante o ano que decorrerá até à boda, ambas as famílias trocarão presentes, sobretudo nas grandes festas anuais. Os noivos, se pertencem a famílias instruídas ou urbanas poderão ver-se e sair juntos, com toda a liberdade, ao contrário das zonas rurais, onde isso não é permitido e os noivos só se poderão ver no dia do casamento.
A celebração do casamento, o Aroosee, é muito parecida com a festa do compromis só que o número de convidados é muito maior e as danças e cantos sucedem-se sem int rupção.
Na noite anterior, o noivo e a noiva dão, cada um na sua casa, pequenas festas onde canta, dança e graceja. Ambos terão as mãos e os pés decorados com hena: pelas amigas, noiva; pelos amigos, o noivo.
O Aroosee, a festa do casamento, começa nas casas da noiva e do noivo, separadamente. Depois de recebidos os convidados, parentes, vizinhos e amigos, começa o baile e os cantares em que, maioritariamente, participam rapazes e raparigas que, em algumas família chegam até a dançar juntos sem que isso seja mal visto. Durante o baile, os convidados atiram aos dançarinos moedas que as crianças se apressam a apanhar. A seguir tem lugar a cerimónia formal em casa da noiva. Os noivos, maquilhados e engalanados por um profissional, esperam em quartos separados. A noiva escolhe um dos seus tios, cunhados ou avô como representante para que, em seu nome, dê o sim ou o não definitivos. Um ancião ou um mullah recita o Nekah, as suras do Corão relativas ao casamento, e pergunta aos noivos se se aceitam mutuamente como marido e mulher. O noivo responde por si mesmo. A noiva fá-lo por intermédio do seu representante. Depois desta breve cerimónia, a noiva é entregue ao ma rido e, ainda em sua casa, sentar-se-ão juntos enquanto um representante da mulher mostra o dote que as duas famílias entenderam entregar ao novo casal. A cerimónia em casa da noiva finaliza quando os parentes do noivo, cantando uma canção muito popular, a "Ahista Biro", escoltam o par até à rua, onde os espera um carro decorado que os conduzirá ao seu futuro lar em casa dos pais do noivo. Uma vez ali, a festa continua até altas horas da noite e não se dá por concluída enquanto o casal não se retirar para o quarto. Este terá sido remodelado, mobilado e decorado de novo e por completo para que os noivos iniciem nele a sua vida em comum.
Uma semana depois celebra-se em casa do noivo o Tajt Jamee, um banquete de pratos escolhidos para o qual se convida a família mais próxima dos noivos. A primeira saída que o casal fará será para visitar os pais da noiva. Depois disto, a mulher poderá visitar livremente a sua família, e os seus parentes e amigos poderão convidá-la para almoçar e jantar.
Rustam encomendou a comida e temos a sensação de assistir a um banquete nupcial quando o empregado começa a trazer pratos e mais pratos: não falta o palau, arroz de festa, o frango assado, o kebab, espetadas de cordeiro, as saladas, as tigelas de iogurte, as garrafas de água mineral e as Coca-Colas. Os afegãos obsequiam os seus convidados com quantidades enormes de comida, fazem-nos servir-se vezes sem conta, repetir e encher o prato, sem nunca aceitar um não como resposta. Por parte do convidado, a correcção manda que aceite servir-se uma vez mais para render as honras devidas ao banquete. Mas não conseguimos comer tudo e é uma pena deixar tanta comida nas bandejas. Proponho que, pelo menos, levemos para casa essa deliciosa montanha de arroz que ficou quase intacta na travessa, mas no restaurante não há recipientes para o guardar e vemo-nos forçados a ir embora cheios de pena ante tal desperdício de comida.
Temos um encontro marcado.
Conseguimos uma entrevista com uma representante da RAWA que, além de realizar tarefas humanitárias entre os refugiados no Paquistão e mesmo no Afeganistão, também leva a cabo acções políticas de denúncia da situação das mulheres afegãs. Por motivos de segu rança marcamos encontro no vestíbulo de um dos muitos hotéis de Peshawar. Enquanto esperamos, tomamos um café que, depois de tantos dias de abstinência, nos sabe pela vida. Aqui, no Paquistão, o café é uma bebida de luxo que só se serve nos hotéis em que se alojam turistas. Todavia fói dificil o empregado prestar-nos atenção. Rustam teve que intervir, com um gesto autoritário. Será porque somos mulheres? Será porque o meu inglês é de tal modo deficiente que nem sequer me entendem quando peço um café?
Finalmente o nosso contacto aparece: é uma mulher jovem, bonita e elegante, acompanhada de um homem de idade avançada. O seu muhrram, o seu protector, quase o seu guarda-costas, tendo em linha de conta o facto de estas mulheres serem perseguidas não só por tali ban como por outros grupos fundamentalistas, mesmo aqui no Paquistão, onde os taliban se movimentam com todo o à-vontade. A jovem explica-nos os antecedentes: a RAWA foi fundada em 1977 por um grupo de mulheres intelectuais afegãs com a finalidade de defender os direitos da mulher no seu país. Durante a invasão soviética, os partidos fundamentalistas afegãos já recebiam apoio e ajuda do Irão, do Paquistão, da França e dos Estados Unidos. Quando estes partidos conquistaram Cabul, em 1992, começou, sobretudo para as mulheres, um dos piores períodos da sua história, que todavia ainda não terminou. Elas editam publicações, dão conferências pelo mundo inteiro, organizam manifestações, mesmo no paquistão, onde nalgumas ocasiões a polícia paquistanesa resolveu dissolvê-las à bastonada.
Em seguida expõe-nos os objectivos que a sua organização persegue e faz-nos uma breve descrição da situação actual.
No que toca ao futuro do Afeganistão, apenas consideram aceitável um governo democrático de que estejam excluídos todos e cada um dos partidos fundamentalistas que o Paquistão e o Irão apoiam. Estão conscientes de que neste momento seria quase impossível convocar eleições no Afeganistão, mesmo supondo que a ONU, que não faz nada de realmente sério pelo país, se decidisse a intervir e a enviar forças de paz. Primeiro há que devolver a esperança e a confiança à população.
Insiste no facto de isto não ser um objectivo de meia dúzia de intelectuais, ou do que resta deles, e muito menos de um reduzido número de mulheres educadas. A sua organização está a defender os direitos de todas as afegãs, porque também as mulheres sem formação académica querem o mesmo: qualquer mulher que precisa de cuidados médicos quer poder ir ao médico, saiba ou não ler; qualquer mulher recusa as tradições que atentam contra os seus direitos; qualquer mulher está contra as restrições e imposições que tenham por finalidade anular a sua liberdade... Para isso não é preciso saber exactamente o que significa a palavra democracia ou conhecer a existência da Declaração dos Direitos do Homem. Talvez muitas mulheres afegãs ignorem estas palavras, talvez não saibam dar às coisas os nomes certos, mas sabem muito bem o que querem e o que não querem.
No Afeganistão, continua esta mulher que arrisca a vida pelo simples facto de pertencer a uma organização que exige a democracia para o seu país, a tarefa mais urgente consiste em desarmar os partidos, não só os taliban mas também as forças fundamentalistas do Norte, as tropas comandadas por Mássud, apoiado pela França que tem interesses na zona. Repete que para isto seria necessária uma intervenção das forças de paz. As Nações Unidas deveriam definir-se e agir firmemente.
Falamos-lhe do nosso desejo de contribuir para a denúncia do que está a acontecer no Afeganistão. Um dos objectivos da nossa viagem é conhecer a realidade do país através dos próprios afegãos, das suas reivindicações, das actividades das suas organizações. Combinamos novo encontro para daqui a uns dias.
Ao chegar a casa, depois de pagar e despedir o motorista, comunicamos a Najiba, que está com ar cansado, a irrevogável decisão que tomámos durante a viagem: hoje somos nós quem faz o jantar. Quanto ao menu não há dúvida: frango ao alho e tortilha de batata. Perpassa no ar uma ligeira comoção: somos as convidadas!... Torneamos a questão: sentimo-nos em família, portanto vamos cozinhar. Rindo, mandamos Najiba descansar para a varanda. Fazemos uma lista e mandamos Rustam às compras, que nos obedece, divertido, ainda que ligeiramente escandalizado pela quantidade de batatas, azeite e cebola que pedimos. Que não se preocupe: se sobrar, logo se gastará nos dias seguintes. Pedimos também um melão afegão para sobremesa.
Nos livros que lera sobre o Afeganistão, nunca faltavam referências ao melão. Tinhamo-los visto por todo o lado, amontoados nas vendas de fruta, enormes, amarelos. Chegara a hora de os provar.
Finalmente apoderáramo-nos da cozinha, de onde expulsamos toda a gente. Um quartinho pequeno e sufocante. Uma superficie de trabalho e uma pia funda de pedra. Um esgoto no chão e um bidão grande com uma torneira na parte inferior, onde a água se armazena. Pendurado na parede, um escorredor de plástico, onde se amontoam os pratos, copos e talheres limpos. No chão de cimento, um fogão de gás de campismo, de vasilha pequena com uma só boca, terá que servir para tudo. No escasso trem de cozinha localizámos uma panela e uma sertã funda, sem pega, queimada e abaulada, e pusemos mãos à obra.
Sentamo-nos fora, na varanda, com Najiba, Azada e Rustam, a descascar batatas e cebolas e a cortá-las às rodelas. Azada deita os alhos crus numa caçarola com água: assim pelam-se melhor. Só há duas facas e pouco afiadas. Por sorte tínhamos pedido a Rustam que trouxesse o frango já cortado em pedaços pequenos.
A especialista em tortilhas é a Meme. O frango ao alho corre por conta da Sara, que garante que vai ser de comer e chorar por mais. Eu não passo de ajudante de cozinha. Aquecemos o óleo na panela grande para fritar as batatas. O óleo que por cá se usa é uma gordura.quase sólida que se vende em latas de dois litros. Temos que o tirar em colheradas gordurosas, mas quando aquece, a consistência, a cor e o aroma são os do óleo de girassol, e as batatas, a cebola e o frango estão a fritar-se como queremos. Trabalhamos acocoradas no chão junto do fogão, agarramos as panelas sem asa com trapos para não nos queimarmos, deixamo-las no chão, escorremos os fritos como podemos e vamo-los pondo de lado. Temos que ir lavando as louças à medida que as sujamos para poder voltar a usá-las. Também lavamos de cócoras, debaixo da torneira, com uma pastilha de sabão e uma bolsa de plástico pequena que faz as vezes de esfregão. A água suja de sabão cai no chão e escorre pelo esgoto. Dar a volta às tortilhas é o mais dificil, mas a Meme é do facto uma especialista e as duas que se fizeram, uma de cebola e outra de batata, não só estão inteiras mas também ficaram no ponto.
De vez em quando Azada entra para nos dar uma ajuda. Suamos como condenadas, metidas na cozinha com estes vestidos compridos. Por vezes vamos ao pátio para arejar.
O jantar é um verdadeiro êxito. As tortilhas estão húmidas, o frango estaladiço, no ponto. Não nos deixam lavar os pratos. Percebemos que uma insistência da nossa parte ofenderia os nossos anfitriões, pelo que cedemos.
Sorridente, o marido de Najiba corta o melão enquanto diz que consegue marcar-nos uma visita ao maior campo de refugiados de Peshawar. Toda a gente lhe chama campo de Cabul, porque quase todos os seus habitantes vieram dessa cidade. Agradecemos-lhe enquanto fazemos as honras às talhadas de fruta que enchem a travessa. Os melões afegãos são brancos e rijos, saborosos, de sequeiro. Os livros não mentiam.
Conversamos sobre as organizações humanitárias afegãs, sobre o trabalho que realizam, o seu financiamento - ou melhor a falta dele -, sobre as ajudas que podem encontrar-se na Europa, sobre o desconhecimento e impassibilidade da Europa e do mundo...
Depois, a nosso pedido, na varanda iluminada pelo luar de Peshawar, Rustam faz-nos um breve resumo da história recente do Afeganistão. Escuto a narração que este homem faz de uma realidade e de uns factos de hoje, com muito de ontem, com raízes num passado muito recente, que determinam e configuram o que à vista desarmada aparece como um grande imbróglio.
Somos surpreendidos pelo canto do mullah numa mesquita vizinha, chamando os fiéis para a primeira oração da manhã. Ainda está escuro, mas se o mullah canta é porque no horizonte já apareceu a primeira claridade que anuncia o dia.
E à medida que Rustam avança na sua narração, depois de meses de estudo em que tentei elaborar um esquema compreensível, as peças do puzzle começam a encaixar, a ter sentido. Nesse momento, o, prazer intelectual do conhecimento compara-se, a meus olhos, ao de ter finalmente saboreado o lendário melão afegão.
Reconheço que estou com a sensibilidade exacerbada, à flor da pele, como quem realiza um sonho. Um sonho que não decepciona e que é vivido de corpo e alma, a todo o gás.
Sexta-feira, 4 de Agosto de 2000. Peshawar
Quem dirá que a sua própria manteiga está rançosa?
A cordo cedo. Muito cedo. Tão cedo que não faz calor e em casa ainda todos dormem. A luz inunda o pátio e o quarto. Tento voltar a dormir, ainda que saiba que já não o conseguirei. Apesar de ter dormido poucas horas, sinto-me descansada, lúcida e desperta. Levanto-me, fazendo o possível por não acordar ninguém. Lavo-me e visto-me. Recupero, na cozinha, o meu cinzeiro particular e sento-me nos degraus do pátio a fumar um cigarro, gozando este raro momento de silêncio e solidão. Penso em tudo e em nada. Porque se é certo que gosto de viver assim, tão em comum, não acredito que me fosse possível prescindir de um espaço próprio por muito tempo. Pouco a pouco a casa vai acordando. O bebé de Najiba choraminga durante momentos.
Hoje o dia será intenso. Temos a agenda cheia de encontros interessantes. Foi fácil consegui-los. Em Barcelona, à medida que recebíamos os e-mail em resposta aos diversos contactos que íamos estabelecendo, inquietávamo-nos: todos tinham como denominador comum um factor a que, talvez devido à nossa mentalidade ocidental, não estamos habituados: "Teremos muito prazer em estar convosco. Logo que chegarem ao Paquistão, telefonem". Só íamos estar três semanas e sabíamos antecipadamente as datas. Por que não marcar os dias e horas dos encontros de antemão? Desse modo teríamos podido chegar ao Paquistão com um calendário razoavelmente organizado, combinar a nossa estadia nas diferentes cidades... numa palavra, organizar-nos. Mas não houve maneira: "Quando chegarem, telefonem que logo se combina". Chegámos a pensar que não conseguiríamos ver ninguém, mas enganávamo-nos. Que as pessoas nos recebam, mesmo aquelas que, pelos cargos que desempenham, poderiam estar demasiadamente ocupadas, é muito mais simples do que teríamos podido imaginar. Telefonamos e marcam encontro para o dia seguinte ou, no máximo, para dois dias depois.
A nossa primeira entrevista é com Nancy Dupree, uma americana que viveu durante mais de trinta anos no Afeganistão e publicou muitos livros. O seu marido era historiador e arqueólogo e contribuiu em muito para o esplendor do museu de Cabul. Actualmente, esta mulher de idade avançada, depois de se ter visto obrigada a abandonar o Afeganistão, ficou em Peshawar e empenha-se em recuperar o património artístico e cultural do Afeganistão. Além disso, o centro que dirige encarrega-se também de coordenar as diferentes ONG que trabalham para o Afeganistão e com os refugiados afegãos da zona. Recebe-nos numa sala atulhada de livros e publicações. Expomos-lhe o motivo da nossa visita e apresentamos-lhe Azada, que lhe fala das actividades que a HAWCA leva a cabo e das dificuldades que o governo paquistanês põe na legalização de qualquer espécie de ONG.
A senhora concorda. Conhece o problema. Desde há cinco anos que o Paquistão não permite o registo de qualquer ONG e até pôs termo a muitas das que já estavam legalizadas. Em menos de seis meses já vai em trinta o número de organizações que foram fechadas por motivos variados: algumas, porque, apesar de receberem dinheiro não tinham actividade; outras, porque eram meras coberturas de organizações terroristas. Acrescenta que o terrorismo é um dos principais problemas do Paquistão e do Afeganistão. A ideia do governo paquistanês não é má: teoricamente trata-se de desmascarar o conjunto de organizações humanitárias que na realidade nada fazem, mas isso prejudica as que de facto trabalham e que, por não estarem oficialmente registadas, se defrontam com sérias dificuldades com os potenciais doadores e vêem ameaçadas as actividades que já levam a cabo, dado que, a qualquer momento podem ser encerradas pela polícia.
- A burocracia paquistanesa é muito britânica - sorri a senhora. - A única opção das organizações afegãs que estão a trabalhar, e muito bem, ao que me consta, consiste em conseguir um certificado de não-objecção.
Anima Azada e Rustam a tentarem esta via de legalização para a escola e para as actividades do campo, indo ao Alto Comissariado para os Refugiados do governo paquistanês, e aconselha-os, como primeira medida, a abrirem um escritório na cidade: há uma grande desconfiança entre as autoridades em relação a todas aquelas organizações cuja sede é uma simples pasta. Deveriam igualmente apresentar estatutos, relatórios... alimentar a burocracia em seu favor.
- Vivi muito tempo no vosso país. Sei que os afegãos são gente de valor. Têm uma grande coragem.
Depois fala-nos da ACBAR (Agency Coordinating Body on Afghan Refugees), a agência de coordenação de actividades e organizações humanitárias para os refugiados afegãos. É formada por mais de sessenta membros, estrangeiros e afegãos, e as suas principais actividades
desenrolam-se no domínio da educação, saúde, agricultura. Possuem diversas subcomissões e actuam sobretudo em Cabul, Jalalabad e Herat. Todas as organizações de Cabul estão coordenadas pela agência. Quando ocorreu o último terramoto recolheram ajuda para os sinistrados. Agora estão a fazer o mesmo a favor das vítimas da seca, cujos efeitos ainda se sentirão pelo menos mais um ou dois anos. A seca está a provocar um grande número de deslocados do interior do país, que se dirigem às zonas que ainda estão irrigadas. Nessas zonas, situadas a norte, e em algumas cidades, nomeadamente em Mazar-i-Sharif, há alimentos mas não há dinheiro e a pobreza está a impor o regime de trocas. Tenta-se escavar poços profundos para o gado, mas são planos a longo prazo e não de efeito imediato. Por outro lado há um centro de informação que recolhe e publica (em inglês, francês, dari e persa) toda a informação escrita produzida pelas próprias ONG que trabalham com os refugiados afegãos. Publica também a documentação da ONU.
O ARIC, o Centro de Informação e Recursos da ACBAR, é o outro projecto a que esta idosa senhora dedica todos os seus esforços: a recuperação do património cultural do Afeganistão. Livros, revistas, mapas, panfletos, vídeos, cassetes e inclusivamente uma curiosa colecção de imprensa mujahedin. Toda esta enorme quantidade de material, resgatada à barbárie, está catalogada e arquivada e à disposição dos leitores, já que o centro dispõe de uma sala de leitura, de uma base de dados que recolhe toda a bibliografia, e de material que se pode imprimir, adquirir ou fotocopiar.
- A ignorância é o pior insulto que se pode fazer à cultura - afirma esta enérgica mulher.
A partir de 1996, quando os taliban tomaram o poder e proibiram a música, a leitura e qualquer manifestação cultural ou lúdica destruindo cassetes e vídeos, rebentando televisões e cinemas, queimando livros nas ruas, o ARIC estendeu a sua actividade ao interior do Afeganistão. Em 1999 já havia trinta e uma bibliotecas ambulantes em vinte e duas das vinte e nove províncias do país, com um total de dez mil livros em circulação. Livros técnicos sobre medicina e saúde, maternidade e cuidados com as crianças, agricultura e ganadaria; livros sobre o Islão, livros de história, poesia e literatura; livros especializados e também de entretenimento, que se actualizam periodicamente. O exemplo foi seguido por outras organizações e actualmente há cerca de quatrocentas bibliotecas disseminadas pelo Afeganistão. Presumo que funcionem clandestinamente.
- Têm meio milhão de dólares? - pergunta-nos enquanto tira das estantes alguns folhetos e publicações que quer mo.strar-nos e que, antes da despedida, nos oferecerá. Perante o nosso desânimo, informa-nos de que essa é a quantia que seria necessária para poder recuperar algumas das peças roubadas do museu de Cabul. Não foi a população que saqueou o museu, mas sim os grupos fundamentalistas. O museu está nos arrabaldes, a cerca de oito quilómetros. Desconhece-se quem roubou as peças porque, enquanto duraramos combates entre o partido da maioria hazara e os sunitas fundamentalistas, a linha da frente passava pela zona do museu. Depois os taliban retiraram do museu as peças que ainda existiam e guardaram-nas no centro da cidade, no Ministério da Informação.
A senhora Dupree mostra-nos algumas das publicações que recolhem relatórios sobre os trabalhos e tentativas de restauro de alguns elementos arquitectónicos e construções antiquíssimas destruídas pela guerra. Num dos folhetos aparece uma torre ou minarete belíssimo que se ergue, como um desafio, numa esplanada deserta, a superficie exterior decorada com uma profusão de motivos, mosaicos ou esmaltes; a própria construção é uma filigrana em pedra e argila. Na fotografia seguinte já não há nada. Um monte de ruínas.
- É irrecuperável.
Sinto um nó na garganta que me envergonha mas que não posso fazer desaparecer. Enchem-se-me os olhos de tantas lágrimas que não consigo eliminá-las pestanejando ou engolindo rapidamente em -seco, pelo que finjo concentrar-me no livrinho. Depois continuo
a fingir que examino o material que se acumula nas estantes, tento pensar noutra coisa para não me abandonar ao desejo premente de estalar em soluços. Digo para com os meus botões: "que me importa um minarete a mais ou a menos no meio de um deserto, quando tanta gente está a sofrer autênticas barbaridades perante um mundo indiferente!". Mas entristece-me tanto! Aflige-me de tal modo este sentimento de perda! Porque aquela belíssima prova de que os humanos também são capazes de fazer outras coisas já não existe. Consigo finalmente recuperar a compostura e continuar a participar na reunião.
Visitamos depois os arquivos do centro, a sala dos mapas, a biblioteca. Sinto-me melhor entre aquelas filas de estantes carregadas de livros salvos da fogueira. Agradeço do fundo do coração o trabalho desta mulher e da sua equipa, porque os livros são a minha vida, porque o passado e o conhecimento da história são a chave do nosso presente, porque todo este património milenário, enriquecido com a contribuição de cada século e de cada povo, constitui um livro onde aprender à custa dos erros, onde recuperar a sabedoria perdida, onde alimentar a esperança e a confiança numa humanidade que de vez em quando perde o sentido.
Saímos dali satisfeitas. Para os nossos amigos afegãos a reunião foi positiva. Para nós, instrutiva. E para mim, reveladora.
Rustam e Azada levam-nos a um estabelecimento afegão a tomar um gelado. "Nem água, nem saladas, nem fruta por descascar, nem cubos de gelo, nem gelados" eram as ordens dos médicos antes de empreendermos viagem. Até ao momento respeitámo-las, mas hoje esquecemo-las. O gelado afegão sabe a leite merengado. É esfriado numas cubas cilíndricas de metal rodeadas de gelo picado que se fazem girar sobre si mesmas. Servem-no no centro de copos de vidro quase flutuando no gelo, o gelado erguendo-se como um minarete, cremoso e doce, enrolado sobre si próprio. Delicioso. É aqui que, pela primeira vez, somos metidas num reservado. Sabíamos que os restaurantes dispunham de zonas ou de salas só para mulheres. É novamente a purdah, a separação estrita de sexos que nos mostra outro dos seus aspectos. Não são salas à parte, como podemos comprovar na gelataria, e continuaremos a comprovar sempre que comemos fora. À volta da mesa, com maior ou menor amplitude dependendo da casa, basta correr uma cortina para criar um recinto fechado a que só o empregado de mesa terá acesso. As mulheres ficam assim a salvo dos olhares do resto da clientela, que é masculina. É uma sensação estranha: entra-se num estabelecimento - alguns até entradas separadas têm - e, imediatamente, o chefe de mesa leva-nos até ao reservado, abrindo rapidamente caminho entre o pessoal. Todavia, uma vez ali, pode fazer-se o que se quiser, tirar o tchador e mesmo fumar.
O nosso encontro seguinte é com o membro do ACNUR que nos foi indicado em Islamabad.
Entramos muito dignas no escritório que nos indicam, com os nossos vestidos paquistaneses e os nossos tchadores que já começam a obedecer-nos. Um homem relativamente jovem levanta-se da poltrona que ocupa atrás da escrivaninha e estende-nos a mão. Depois, com um gesto expressivo que abarca os tchadores, diz-nos:
- Por favor, descubram-se, não estamos no Afeganistão:
É o que fazemos enquanto nos refastelamos nos assentos que nos oferece. Ele permanece sentado atrás da secretária, balançando-se levemente cada vez que interrompe a sua exposição ou escolhe a resposta a algumas das nossas perguntas. No começo parece distante, frio, quase aborrecido pela nossa presença. Pouco a pouco, ainda que sem perder essa aparente atitude displicente, começa a dizer coisas que, na boca de um membro de uma instituição como o ACNUR, num gabinete oficial, na sede das Nações Unidas, são, no mínimo, surpreendentes. Durante uma dessas curiosas pausas que faz, as mãos ocupadas com um clipe e meneando a cabeça ao ritmo do balanço da sua cadeira giratória, perguntamos-lhe a nacionalidade. "Norte-americano", responde. E continua a falar sobre o tema dos refugiados: este é pior momento numa história de vinte anos de refugiados afegãos, começara por dizer. A principal função do ACNUR, em qualquer das suas intervenções, é a protecção da população refugiada. Habitualmente, esta protecção concretiza-se em programas de saúde, educação primária, cursos de capacitação, ainda que não seja o ACNUR quem assegura a gestão dos campos, antes delegando tal tarefa em diferentes organizações humanitárias. A população afegã refugiada no Paquistão é muito numerosa. Metade dos habitantes de Peshawar são afegãos. É certo que se pode dizer que alguns já se integraram. Por toda a cidade surgiram bairros inteiros afegãos, com os seus próprios bazares, estabelecimentos e lojas. Há zonas da cidade onde alguém que conheça bem o Afeganistão tem a sensação de passear num bairro de Cabul. Mas também é certo que a grande maioria dos, afegãos não quer ficar no paquistão. O seu maior desejo, por muitos anos que já tenham passado, é regressar ao país. - Nunca seremos felizes aqui - garante Azada.
Se os afegãos partissem de Peshawar, continua o nosso interlocutor, a cidade e a economia local sofreriam um colapso. Mas de facto isso não acontecerá tão depressa. A situação no Afeganistão piora dia a dia e não se vê solução. As pessoas estão cada vez mais pobres; desde que os taliban tomaram o poder não há trabalho, não há escolas, não há assistência sanitária nem liberdade. Os refugiados que chegam ao Paquistão fazem-no porque são perseguidos pelos taliban e necessitam de protecção, mas o ACNUR já não tem capacidade económica para a oferecer. Há quinze anos, durante a guerra contra a União Soviética, o orçamento destinado aos refugiados era de cem milhões de dólares anuais. Agora é de doze. Até há uns meses, o único programa que estava em vigor era o de repatriamento voluntário. Foi agora suspenso devido à seca que assola o país, provocando uma nova avalanche de refugiados. O homem balança-se. O programa de repatriamento não tinha sentido. As pessoas iam, reconstruíam a casa, mas pouco depois estavam de volta ao Paquistão.
No ACNUR estamos conscientes de que se está a esbanjar o pouco dinheiro que as Nações Unidas dedicam aos refugiados afegãos, mas o verdadeiro objectivo deste programa é satisfazer o governo paquistanês.
Quando ocorreu a invasão soviética, e durante os primeiros anos de guerra civil, o governo paquistanês, apesar de o país não ter assinado os acordos e resoluções internacionais relativos aos refugiados, recebeu quantos afegãos passaram a fronteira e fè-lo por moti vos religiosos: a lei islâmica garante a quem quer que fuja de uma guerra o direito a ser acolhido. Mas a situação mudou agora que os taliban, aliados do Paquistão, controlam a quase totalidade do território. O governo paquistanês considera que não há motivos que impeçam os refugiados de regressar ao Afeganistão. Os taliban são mercenários do Paquistão, que os utiliza para ocupar o Afeganistão.
- Tudo no Afeganistão é um jogo sujo.
O homem balança-se de novo, em silêncio. Depois continua: Os Estados Unidos quiseram converter o Afeganistão no Vietname russo e depois da guerra fria continuaram a financiar e armar os partidos islamistas. O governo norte-americano nunca disse aos seus cida dãos que até há pouco apoiou os taliban e que se agora os condena, é apenas por uma questão de imagem. Se os Estados Unidos quisessem, poderiam acabar amanhã mesmo com a deplorável situação do Afeganistão. O regime taliban desapareceria em menos de uma semana. Mas para os Estados Unidos, a democracia, os direitos humanos, as Nações Unidas, nada significam, são simples ferramentas que utilizam como lhes convém e em beneficio próprio. Se os Estados Unidos quisessem acabar com os taliban, bastar-lhes-ia pressionar o Paquistão e condenar o seu incondicional apoio a esses criminosos. Mas não lhes interessa pôr em perigo o frágil equilíbrio entre a índia e o Paquistão. E se os Estados Unidos pressionassem o Paquistão com o assunto do Afeganistão, este equilíbrio romper-se-ia e o governo paquistanês ficaria extremamente descontente. Há que ter em linha de conta que oitenta por cento do orçamento deste país se destina a armamento e que todas as infra-estruturas, pontes, estradas que se construíram no Paquistão financiaram-se com empréstimos que terão de ser pagos.
Novo balanço meditabundo. Talvez a seca que está a devastar o Afeganistão acabe com o cultivo do ópio, que aumentou desde a chegada dos taliban, e isso provoque uma catástrofe total no Afeganistão e no Paquistão. Ainda que o mais provável seja que os Estados Unidos não permitam que o Paquistão seja afectado pelo colapso.
Escutamos, mudas de pasmo. Rustam concorda. Eu não acredito que que esteja a ouvir o que ouço. Chego mesmo a duvidar do meu inglês e não me atrevo a perguntar nada com medo de meter o pé na argola. Mas estou a compreender tudo. Essa é a verdade. E há al guém disposto a dizê-la. Penso no provérbio persa que recolhe essa triste realidade que nos faz silenciar os nossos erros, os nossos defeitos, o que fazemos mal: "Quem dirá que a sua própria manteiga está rançosa?". E sinto respeito por este homem capaz de chamar as coisas pelo seu nome.
Por outro lado, o Afeganistão é o único país que nunca reconheceu a partição da índia, porque isso equivaleria a reconhecer a fronteira com o Paquistão, conclui.
Despedimo-nos falando de outros assuntos. Comentamos o problema das ONG que trabalham no Paquistão e ele confirma-nos a informação que a senhora Dupree já nos dera. Oferece-se para ajudar a HAWCA no que puder. Despede-se e deseja-nos uma boa estadia no Paquistão com o mesmo distanciamento desconcertante e frio do início. Como se nada nos tivesse dito, como se não nos tivesse contado coisas que o mundo ignora ou finge ignorar. - Este homem é honesto, sabe a verdade e não a oculta - afirma Rustam, quase solene. Comemos a toda a pressa num restaurante afegão. Não dá tempo de ir a casa. Somos nós quem convida. A Sara e a Meme pedem frango grelhado. Os restantes pedem kebab, espetadas de carneiro. No futuro não mudaremos muito as nossas preferências. Desistimos do arroz, não vá sobrar de novo, mas encomendamos salada e iogurte. Água mineral e cinco Coca-Colas.
Chegamos pontualmente à entrevista seguinte com o responsável da agência de Peshawar de uma organização germano-afegã. De novo no vestíbulo de um hotel conhecido. Duas portas adiante há uma loja de artesanato. Obviamente afegã. Entramos para ver, dado que ainda temos tempo. Fico colada à vitrina dos brincos. São as únicas jóias de que gosto. Tudo o resto, colares, pulseiras, anéis... nunca me entusiasmaram, mas os brincos, sim.
Experimento alguns. Compridos, de prata, com muitos pendentes. Há mesmo uns que têm guizos minúsculos. Fico encantada com eles. Quinhentas rupias. Adorava comprá-los. Quinhentas rupias, só duas mil pesetas. Em Barcelona é dado. Mas aqui é muito. Pode pagar-se o salário de uma semana a uma professora; podem comprar-se duzentos quilos de farinha para fazer o pão de cada manhã, durante quase um ano; podem mandar-se e-mail desde o clube da internet durante seis horas e meia. Não sou capaz de comprar os brincos. Durante uns momentos dou-me ao prazer de os tocar, ver e experimentá-los diante do espelho. É suficiente.
Continuamos à espera tomando um café.
Começamos a suspeitar que a pontualidade não é uma das virtudes afegãs. Pelo menos, até agora, nos nossos encontros, ainda ninguém foi pontual. Entretemo-nos a comentar as entrevistas de hoje e tentando adivinhar, de cada vez que entra alguém, se é o nosso homem. - Não virá - diz Rustam, muito sério. - É afegão.
Que raio de explicação! Aparece finalmente, com um atraso digno do Guiness. Fala com rapidez, em inglês e num tom de voz quase inaudível. Desisto de ouvir. É a Sara quem lhe faz as perguntas que nos interessam sobre as actividades da organização a que pertence. Dada a semelhança de objectivos, talvez esta informação possa ser útil a Azada e Rustam. O homem responde rapidamente a todas as perguntas. Não nos convida nem para a sua escola nem para o escritório da organização. Despede-se e parte. A Sara põe-nos ao corrente: a organização tem escolas gratuitas em Peshawar e cursos no Afeganistão e também um atelier de tapetes. Recebe alguma ajuda do ACNÜR e financia-se com subvenções que recebe da Alemanha e com donativos privados. Os livros são-lhe dados pela UNESCO.
Fez-se muito tarde para que o marido de Najiba, que estava de folga por ser sexta-feira, dia santo muçulmano, ainda nos possa levar ao campo de refugiados que referiu ontem à noite. Também é tarde para ir ao bazar comprar tecidos para outro vestido: necessitamos de mudas de roupa, mas desta vez compraremos o tecido e levá-lo-emos ao alfaiate, porque é muito mais barato. Além disso, faremos roupa afegã.
Em casa tomamos notas, contamos o nosso dia a Najiba, lemos os folhetos que trouxemos do centro ACBAR- Rustam encontra, num deles, fragmentos de poemas que ilustram um texto, versos de autores clássicos persas. Lê um par deles ao acaso. Tradu-los. Peço-lhe que os volte a ler, mas em persa, tal como foram escritos, agora que já sei o que dizem, e fecho os olhos. Rustam recita com voz grave, declama bem, põe paixão nos versos que desfia. As outras riem, mas eu não acho graça. Para mim o momento é mágico. Rustam ressuscita para mim, em versão original, o que, no melhor dos casos, apenas poderei ler em tradução inglesa ou, eventualmente, castelhana. Aquilo termina numa aula magistral de literatura de que sou a única aluna fascinada.
Rustam fala-me dos grandes poetas e escritores de há mil anos. De Affis Sherazi, um asceta que escreveu contra tudo e sobretudo contra a religião institucionalizada, como também Faridudiu Attar; de Abnisinal de Balch, médico materialista e ateu, autor de importantes tratados de medicina, que utilizava as propriedades terapêuticas das plantas e que, segundo se conta, devolveu os sentidos a um homem aparentemente morto; de Zekria Rasí, médico, astrónomo e poeta; de Ornar Kahyham, também ele detractor da religião institucionalizada, que escreveu poemas sobre a vida quotidiana das pessoas e cuja filosofia era: "Se a vida e os prazeres estão aqui por que devemos esperar pela ida para o céu?". Fala-me igualmente de Saddi, poeta oficial do seu rei e adulador de reis; de Amashu Baba, rei poeta que escrevia em pashtu; de Rabia Balki, poetisa, e do grande Firdussi, autor do Livro dos Reis, o Sah-nama, três mil páginas de poesia escritas no mais puro persa para assim o proteger da influência do árabe que os invasores trouxeram. Rustam é o nome de um herói lendário que aparece neste livro, um homem poderoso e generoso, que lutou com bravura contra os inimigos e sempre esteve do lado dos humildes. À medida que os dias passam e que vamos conhecendo melhor o Rustam de carne e osso que convive connosco, venho a dar-me conta de como ele honra o nome.
Antes de partirmos para o campo de refugiados, como já disse, Nasreen convidou-nos para jantar esta noite. Estamos cansadas, depois de um dia tão longo e tão cheio de entrevistas, mas tomamos banho e preparamo-nos para ir para sua casa. Najiba conta-nos que se armou uma valente confusão quando uma das sobrinhas de Nasreen soube que tínhamos fotografado a avó. A pobre estava horrorizada: se os taliban soubessem que ela se tinha deixado fotografar e que falara com estrangeiras, prendê-los-iam a todos. O marido de Najiba interveio e deixou bem claro que não somos espias dos taliban. Como sempre, Azada diz-nos para não nos preocuparmos, mas deixamos as máquinas em casa. Não faz sentido incomodar as pessoas ou aumentar o medo destes adolescentes que crescem a lutar contra o terror.
É verdade que os taliban proibiram as pessoas de fotografar ou de se deixar fotografar em nome da proibição religiosa da reprodução da imagem de qualquer ser vivo. Admitem uma única excepção: as fotografias tipo passe para os documentos. Proibiram-nas a toda a gente, mas vi reportagens em revistas em que os taliban não só se deixam fotografar mas, ainda por cima, somem. Também está muito mal visto o contacto com estrangeiros, com ocidentais. Os taliban condenaram o Ocidente e a "perniciosa" influência que, no passado, exerceu sobre a população; também por isso, e entre outras coisas, destruíram televisores, cinemas, vídeos: por reproduzirem imagens de seres vivos e por propagarem, via satélite, a ideologia corrupta do Ocidente. Todavia, eles, os taliban, têm página na web e agência em Nova Iorque.
Na casa de Nasreen tratam-nos como rainhas e desvelam-se por nós. Sentamo-nos lá dentro, as costas amparadas pelos almofadões, as pernas correctamente tapadas como pessoas educadas. A sala está cheia de gente: o marido de Nasreen, cujos olhos, de facto achinesados, me fazem recordar o que se passou em Cabul; o cunhado, a sua mulher e as filhas, a avó, nós os cinco, o marido de Najiba e a menina. Najiba ficou em casa com a bebé. Faz um calor espantoso e ninguém fala. As mulheres entram e saem da sala trazendo e levando bandejas e pratos. Pelos seus olhares expectantes, a sua atitude respeitosa, os sorrisos radiantes e os cuidados em nos servir, intuo que a nossa visita, o facto de nos receberem em sua própria casa e poderem acolher-nos carinhosamente é, para eles, um grande acontecimento e motivo de grande alegria. Não sabemos como corresponder.
Com o chá chega o momento de conversar calmamente. O cunhado de Najiba é engenheiro. A sua mulher estudou pedagogia no Afeganistão e trabalhou três anos, até que tiveram de fugir do fundamentalismo e da guerra. Agora o engenheiro tem uma loja no bazar. As mulheres da família, com a excepção de Nasreen, que trabalha na escola, estão em casa. As crianças, um bom punhado, vão todas à escola afegã. A adolescente alta e distante, que já conhecemos das suas múltiplas visitas a nossa casa, conta que começou por ir para uma escola paquistanesa, mas tinha muitas dificuldades com a língua, com as suas colegas de classe, e porque os professores também não se interessavam muito por ela, mudou-se para uma escola afegã. Gostaria de estudar Medicina, mas a família já avisou que para isso não há dinheiro.
A filha de Najiba adormeceu nos braços do pai e este levanta-se e leva-a para casa. Pouco depois chega Najiba. Agora que o marido ficou com as crianças, ela pode participar na tertúlia.
A cunhada de Nasreen conta-nos que, quando fugiram do Afeganistão, se instalaram num dos campos oficiais de refugiados em Peshawar, mas não havia segurança. Bandos de gatunos actuavam com total impunidade com a conivência da polícia paquistanesa, que tinha um posto de vigilância no próprio campo.
A polícia fechava os olhos ou olhava para o lado quando, de noite, os ladrões entravam em acção. Quando eles mesmos foram vítimas de um assalto, fizeram queixa. Nessa mesma noite, os ladrões foram a casa deles, de cara descoberta e obrigaram-nos, mediante ameaças, a retirar a queixa. A polícia tinha-os informado. Foi então que decidiram abandonar o campo e mudar-se para o bairro. Pelo menos aqui não têm medo.
As meninas trazem o livro que utilizam na escola. A sua mãe, a pedagoga, uma vez superado o reparo inicial que a nossa presença havia causado ao princípio do serão, mostra-nos, indignada, a página onde aparece desenhada uma burka. O texto correspondente à vinheta fala de uma mulher doente que compra medicamentos para se tratar.
- Que medicamentos? - exclama a mulher com veemência.
O desenho e o texto encolerizam-na: no Afeganistão, não há medicamentos para as mulheres doentes. Além do mais, uma burka não é uma mulher. E se o fosse, será que por acaso uma mulher não é um ser humano, um ser vivo? Não são os taliban tão ciosos da lei que proíbe a reprodução em imagens de qualquer ser vivo? Por que é que então não censuraram este desenho, como fizeram a tantos outros no mesmo livro? Passa mais umas folhas e mostra-nos outro desenho: alguém que sega erva num campo com uma foice. A parte superior do desenho, onde a pessoa deveria aparecer, está em branco, só se pode ver a erva, na _ parte inferior, e a foice. Mas a burka-mulher está intacta.
- Nem sequer nos consideram seres vivos? Até na censura dos livros se evidencia que nós as mulheres nada mais somos do que objectos.
Oferecem-nos o livro. A verdade é que mesmo para censurar os taliban são grosseiros: noutra vinheta aparece uma serpente, uma cobra erguida, que como ser vivo também deveria ter sido eliminada.
Vamo-nos embora depois de agradecer a Nasreen e a todos os seus a hospitalidade. Uma vez instaladas na nossa varanda, ninguém pensa em dormir. Durante o dia fomos fazendo uma lista das coisas de que queremos falar. Najiba cuida do bébé que tem fome. A menina acorda e sai para a varanda. A mãe instala um mosquiteiro rectangular num canto da varanda, perto do sítio onde estamos à conversa, e deita-se com os filhos no tapete. Pouco depois os três dormem placidamente. Nós continuamos a falar em voz baixa até que, uma vez mais, o mullah canta.
Os lagartos de areia sobem pelas paredes aproximando-se da lâmpada acesa.
Sábado, 5 de Agosto de 2000. Peshawar
O sangue não pode lavar-se com sangue.
São seis e meia da manhã e já estou acordada. Da minha cama no tapete vejo Najiba desmontar o mosquiteiro. Leva a menina à retrete. A pequena está a largar as fraldas mas, de vez em quando, ainda não se controla. Nessas ocasiões, a mãe despeja um balde de água em cima e limpa o chão. Saem ambas da retrete e metem-se no quarto de banho. Seca a menina e veste-a. A seguir é a vez do bebé que palra no tapete. A mãe despe-o e lava-o também debaixo da torneira. O bebé não usa fraldas. Não vimos e nunca veremos um bebé com fraldas. Quando se suja, a mãe leva-o até à torneira e lava-o. Dada a precariedade de condições, a vida aqui é de uma simplicidade e singeleza assombrosas. Na vida quotidiana desta gente nada constitui problema. Najiba veste o menino com uma camisita e umas calças de seda. Lava debaixo da torneira as roupinhas sujas e o pano dobrado sobre o qual se deita o bebé quando dorme ou descansa no tapete, e estende tudo no pátio. Seguidamente varre o tapete da varanda com um atado de ramos finos e lenhosos que tem o tamanho aproximado de um braço. Fá-lo de cócoras, avançando sobre as plantas dos pés separados e bem assentes no chão.
Levanto-me.
Sobh bajair. Bons dias.
Tomo banho e, como Najiba, aproveito para lavar a minha roupa interior. Lembro-me que em Barcelona, quando preparávamos a viagem e nos mentalizávamos para o que pudéssemos encontrar, para viver em condições mais precárias, ou a Meme ou a Sara, não sei qual, dizia:
- Enquanto tiver um balde de água para poder lavar-me todos os dias, de pouco me importa o resto.
E o nosso desejo fez-se realidade: temos diariamente um balde de água para nos lavarmos. Podemos mesmo tomar banho mais de uma vez por dia. E lavar o cabelo todas as manhãs. Que mais poderíamos pedir? Aqui toma-se bem patente quanto de supérfluo há, realmente, no nosso tão exagerado estado de bem-estar. De facto não é necessário muito. Aprendemos a lavar-nos de cócoras ou na bacia grande de lata com muito pouca água, a reciclá-la quando já se enxaguou parte da roupa pondo de molho outras peças sujas. Um balde de água dá muito.
Depois de estender a roupa, sento-me nas escadas do pátio a escrever no meu caderno e volto a pensar que a avó de Azada tem razão: não há nada melhor do que levantarmo-nos cedo para começar bem o dia,
As cordas estendidas de muro a muro estão cheias de roupa pendurada. Ontem, pela tarde, quando regressámos dos nossos encontros, fizemos uma enorme barrela com os nossos vestidos e tchadores paquistaneses. Najiba foi buscar ao canto da varanda, onde está o frigorífico, uma engenhoca que colocou no meio do pátio. Uma máquina de lavar! Lembrou-me as primeiras máquinas de lavar que tivemos, lá em casa, quando eu era pequena: por junto só davam voltas à roupa, o resto era tudo à mão. Esta é desse tipo. Tivemos que a encher com a mangueira. Depois tirou-se a roupa e esvaziou-se a saponária, que inundou o pátio. Voltou-se a encher para enxaguar. Escorremos a roupa, uma de cada lado agarrando num dos extremos da peça e torcendo-a até deixar de pingar. Tudo no meio de uma barulheira festiva. Mexer na água, vê-la correr, molhar-se, salpicar-se, meter os pés em poças de água... há aqui algo de reminiscência infantil, mesmo quando se está só a fazer uma barrela. Pelo menos a mim produz-me um gozo curioso e profundo, reconcilia-me com a vida, com a terra, com o universo. Fartámo-nos de rir enquanto lavávamos. Acabamos feitas num pinto, mas neste calor de Peshavar, que mal faz?
A noite passada foi bem aproveitada. Mesmo assim ainda ficou muito por saber. Converteu-se num hábito deixar para a noite os temas de debate que vão aparecendo ao longo do dia. Convertemos em costume a ronda inicial nocturna em que cada um propõe a discussão de um tema.
No dia anterior, enquanto íamos de um lado para o outro, de reunião em reunião, havia uma coisa com que gracejámos até fartar: a história de Rustam. Queríamos que nos contasse tudo. Assim, quando voltámos da casa de Nasreen, recusámo-nos a ir para a cama.
E Rustam não teve outro remédio senão contar-nos a sua vida.
Estudou História e Literatura na Universidade de Cabul. Desvendava-se assim o mistério dos seus esmagadores conhecimentos em ambos os domínios, de que já tinha dado provas no escasso tempo que nos conhecíamos, e ficava justificada a paixão que punha sempre que a conversa ou as nossas perguntas versavam sobre algum desses temas. Como muitas outras famílias afegãs de Cabul, quando a capital do Afeganistão se converteu no objectivo principal das facções islamistas e os bombardeamentos e escaramuças bélicas ocorriam por todos os lados, destruindo tudo, arrasando a cidade, a família de Rustam também fugiu para o Paquistão e instalou-se na capital, Islamabad. Daí, pouco depois, a família emigrou para o Ocidente. Além dos quase dois milhões de refugiados que deve haver no Paquistão e de outros dois que terão fugido para o Irão, calcula-se que há mais um milhão de afegãos repartidos entre a América, a Europa e a Austrália. Entre estes está a família de Rustam. Portanto, Rustam vivera no Ocidente. Aí estudou informática e começou uma vida nova. Até que há um par de anos regressou a Cabul para visitar uns parentes. Os taliban já tinham aparecido e de dia para dia alargavam o seu domínio avançando por todo o território. Rustam também foi visitar outros familiares, refugiados no Paquistão. Nalguma altura coincidiu com Azada, a quem conhecia desde pequeno, quando ambos viviam em Cabul. Azada já trabalhava nos seus projectos humanitários organizando cursos de alfabetização, onde encontrara mais pessoas que compartilhavam a sua inquietude, e começava a criar-se uma rede de colaboradores. Rustam nunca voltou ao Ocidente.
- O meu povo precisa de mim. Não posso virar-lhe as costas. Não quero trair o meu país. Conheci muitos afegãos que se refugiaram no Ocidente e já não querem saber do Afeganistão para nada. Apenas querem esquecer as suas origens, iniciar uma nova vida, cómoda e agradável e não fazem nada pelo país nem pelo seu povo.
Compreendo a situação dilacerante deste homem jovem, a cavalo entre dois mundos: viveu nos dois e conheceu o melhor e o pior de ambos. O hedonismo, a frivolidade, o materialismo e o individualismo do Ocidente inspiram-lhe repulsa. As tradições arcaicas, os cos tumes inamovíveis, as estruturas sociais e familiares estabelecidas do Oriente repelem-no igualmente. Quer casar-se por amor, com uma mulher por quem esteja apaixonado, a quem tenha escolhido livremente; quer que as mulheres e as jovens afegãs gozem de liberdade total para estudar, para trabalhar, para se relacionar com os outros, com os homens e com os rapazes da mesma idade, mas ao mesmo tempo escandaliza-se, por exemplo, com a liberdade sexual de que gozam as raparigas no Ocidente, porque lhe parece vexatório que uma mulher permita que um homem a utilize para seu prazer. Não há maneira de o fazer compreender que uma mulher que decide usar a sua liberdade sexual não tem que envergonhar-se. Se um homem pode ter esse tipo de relações, por que não poderá tê-las uma mulher? Onde estaria, nesse caso, o respeito pelas liberdades e pelas opções pessoais de cada um?
Azada, muito mais equânime e reflexiva, admite que ambos os mundos, Oriente e Ocidente, têm coisas positivas e negativas. Do seu ponto de vista, trata-se de incorporar à própria forma de vida o que de bom têm outras culturas.
- Não queremos ser ocidentais. Muitas das nossas tradições são boas e não queremos perdê-las, não queremos renunciar a elas. Mas podemos incorporar o que o Ocidente tem de bom. O ideal seria aprendermos uns com os outros. O Oriente também pode oferecer coisas positivas ao Ocidente.
E tem razão.
Da sexualidade passamos à homossexualidade e Rustam entra em órbita. Para ele é uma aberração. Claro que não está de acordo em que tais comportamentos sejam punidos como os taliban propõem, lapidando o casal de homossexuais, mas não pode compreender este tipo de relações.
Discutimos por um largo momento. Os seus argumentos são os mesmos que se brandiam há anos na nossa própria sociedade, e nós temos a força suficiente para não nos deixarmos amedrontar. Além do que a conversa está tão calma, apesar do calor que nela pomos, que até é divertido provocar Rustam e desconcertá-lo.
- Imagina por um momento que fosse ao contrário e que o proibido ou o mal-visto fossem as relações heterossexuais. Tu apaixonavas-te por uma mulher, querias casar com ela, compartilhar as vossas vidas, ter filhos, e todos te atacam por isso. Consegues imaginar como te sentirias?
É novamente Azada, muito mais tolerante, quem tira a conclusão correcta que, apesar dos nossos exemplos, argumentos e hipóteses, não fomos capazes de expor. Surpreende-me esta mulher tão jovem que possui a sabedoria e a equanimidade a que, mesmo que vivam cem anos, muitos não chegam.
- Na verdade, nunca na minha vida tinha abordado estes assuntos tão abertamente e ainda menos na presença de um homem, mas creio que se o que nós todos defendemos com unhas e dentes é o respeito pelos direitos humanos, então a opção sexual de cada um faz parte desses direitos.
Daí passamos para o tema da poligamia, permitida pelo Islão. De facto, nas suas origens, quando estava pensada para proteger as numerosas viúvas que as guerras deixavam atrás de si, num mundo em que uma mulher sozinha não tinha qualquer forma de subsistên cia, poderá ter tido justificação. Argumentava-se também, durante o período de expansão do Islão, com a necessidade de trazer ao mundo o maior número possível de crentes num ambiente cheio de infiéis. A simples satisfação do desejo do homem é descartada e desacreditada, ainda que, para provocar e escandalizar Rustam, não posso deixar de fazer um comentário:
- A poligamia não me pareceria mal se nós, as mulheres, pudéssemos também ter vários maridos.
Azada conta-nos que, apesar de legal, a poligamia já tinha caído em desuso no Afeganistão, ainda que durante o reinado de Zahir Khan tenha estado na moda, em determinados estratos e classes sociais, tomar uma segunda esposa. Mas se, de facto, o Islão permite ter até quatro esposas, não se deve esquecer que isso requer poder mantê-las com o mesmo nível de bem-estar, com o mesmo respeito e tratar todas de modo igual.
Os taliban voltaram a trazer a poligamia ao Afeganistão e a maioria deles têm quatro .mulheres. Duvidamos muito que, dada a sua misoginia, a aversão e ódio que manifestam na sua relação com as mulheres, essas esposas sejam tratadas com respeito e sequer consideradas como seres humanos. Não consigo imaginar as relações entre um homem taliban e a sua mulher. Só me vem à ideia o inferno em casa, a repressão, a humilhação, a escravatura. Mas sei que também há mulheres que os apoiam, que aceitam de bom grado a visão do mundo e da vida que eles pretendem impor ao país e não consigo compreendê-lo. É dificil aceder à informação que eventualmente haja sobre essas mulheres. Na página web dos taliban não aparecem. Talvez a maioria delas seja movida apenas pelo medo ou pela necessidade. Não o sei.
No fim do serão, pensando na entrevista que hoje teremos com o nosso contacto da RAWA, que quer levar-nos a visitar diversas actividades, discute-se se será conveniente sermos acompanhadas por Rustam e Azada. Eles preocupam-se muito com a nossa segurança, temem que nos aconteça qualquer coisa se nos deixarem sozinhas, mas conseguimos tranquilizá-los. Não acontecerá nada de mal. Não há razão para isso. Não é necessário que tenham de ir connosco a toda a parte.
Com estas e outras, acabámos por nos deitarmos tardíssimo, mas aqui estou, manhãzinha cedo, sentada nas escadas do pátio.
O marido de Najiba levantou-se já há algum tempo para ir para o trabalho. Saudou-me com uma pequena vénia e um sorriso. Toda a gente se levanta. Azada insiste em que passemos os vestidos a ferro. É verdade que, depois de terem sido lavados, ficaram bastante enru gados, mas a simples ideia de passar a ferro.... Não temos outro remédio. Najiba estende um pano sobre o tapete e liga o ferro. Avisa-nos para termos cuidado e não tocarmos as peças metálicas que dão choque. De joelhos no chão, salpicamos a roupa molhando os dedos num prato fundo, e enrolamo-la para manter a humidade. Também isto me lembra as sessões de ferro de engomar da minha infância, quando ainda não havia ferros a vapor. Depois cada uma de nós passa o seu vestido, as calças e o tchador.
Azada e Rustam acompanham-nos até ao local da entrevista. Ainda que não venham à entrevista connosco, não nos deixam sós até que, pontuais, às onze, o nosso contacto e o seu muhrram nos recolhem, de novo num vestíbulo de hotel. Ainda reticentes a deixarem-nos noutras mãos, os nossos amigos insistem em que seja o nosso motorista a levar-nos. Azada beija-nos e abraça-nos como se não fôssemos voltar a ver-nos.
- Don't worry, don't worry - é a nossa vez de lhe dizermos.
Levam-nos para uma casa onde a organização tem um atelier de costura e de tecido para tapetes. Ninguém na vizinhança conhece as actividades que aqui se desenrolam. Para toda a gente, esta é uma casa normal e corrente, onde vive uma família que recebe a visita de nume rosos parentes. Estas mulheres estão em constante perigo devido às suas actividades e reivindicações de carácter político, e convém não esquecer que em Peshawar o fundamentalismo está na ordem do dia e que na cidade também há taliban. Hoje reuniram na casa várias mulheres de diferentes campos de refugiados e de diferentes zonas da cidade para que possamos falar com elas. Esperam-nos sentados em círculo numa sala grande. Descalçamo-nos na porta e saudamo-las ao entrar, antes de nos sentarmos no lugar de honra que nos reservaram.
- Salaam.
As mulheres fitam-nos expectantes. Pouco a pouco animam-se a contar-nos as suas histórias. A grandes traços interessa-nos conhecer- um pouco as suas vidas, as circunstâncias que as fizeram fugir do Afeganistão, a sua situação familiar, as suas experiências, as suas aspirações.
A primeira que começa a falar é uma mulher sorridente, relativamente jovem. É breve e lacónica: está em Peshawar há já oito anos, é viúva e tem três filhos, uma rapariga e dois rapazes de nove, onze e doze anos, que estudam num orfanato da organização. Tem ainda a cargo a mãe, muito idosa.
Seguidamente toma a palavra a mulher sentada a seu lado. É praticamente uma recém-chegada: fugiu de Cabul apenas há um ano, onde foi professora até à chegada dos taliban e ao consequente fecho das escolas.
- Sou viúva há doze anos. O meu marido morreu na guerra. Tenho um filho de dezoito anos e uma filha com dezasseis. Claro que vivíamos melhor antes de Massud, e depois os taliban, atacarem Cabul. Antes dos taliban já havia guerra, mas foi quando eles tomaram o poder que as mulheres começaram a querer sair de Cabul. Os taliban atacavam na rua as mulheres que não usavam burka. Quis pedir um documento do ACNUR para poder fugir da cidade, mas os taliban deram-me uma sova para que o não fizesse. Vivia aterrorizada e ainda hoje tenho medo. Os taliban cortam mãos, matam por razões religiosas. Decidi fugir quando soube que projectavam levar o meu filho para a linha da frente, para lutar contra Massud. Nessa mesma noite cruzámos a fronteira. Sabia que existia uma organização de ajuda às mulheres e às viúvas, e pensei que poderia colaborar com ela. Estudei, sou professora e aqui posso continuar a ensinar outras mulheres. Eu também quero ajudar. O meu maior desejo é que a guerra acabe, que o Afeganistão consiga um governo democrático, eleito pelo seu povo. Massud, os taliban, Gulbudin, Hekmatyar... todos eles converteram o país num cemitério.
Uma mulher pequena à nossa direita, muito magra, com a cabeça coberta por um tchador escuro com uma larga franja amarelo-ouro, continua.
- Tinha uma vida agradável no Afeganistão. Vivíamos numa aldeia, longe da cidade, e ali a guerra não tinha chegado. Mas chegaram os taliban. Separaram as mulheres dos homens e mandaram-nos para a frente de batalha. Às mulheres mais jovens meteram-nas num camião e levaram-nas. Nunca mais ninguém as viu. Queimaram todas as casas da aldeia e os campos cultivados. A minha casa foi queimada à minha frente.
À nossa esquerda, a irmã da mulher que acaba de falar acrescenta:
- Eu estava grávida quando os taliban chegaram. Amontoaram as nossas roupas e os restantes pertences no meio da casa, regaram tudo com gasolina e deitaram-lhe fogo. Fomosobrigados a fugir com o que tínhamos vestido. Foi há oito meses. Fugimos a pé. Os taliban ofereceram-me boleia, mas não aceitei porque tenho duas filhas adolescentes. Fugimos a pé, andando em plena noite com o meu marido, que está doente, e os meus nove filhos. De ma
drugada, vieram-me as dores e tive o meu filho em pleno caminho. E continuámos a andar até conseguirmos chegar à cidade pelas nove da manhã.
- Quando os taliban chegaram disse-lhes que era viúva, mas não acreditaram em mim. Agarraram em três dos meus filhos pequenos, de cinco, oito e dez anos, e começaram a dar-lhes palmatoadas para que dissessem onde é que estava escondido o pai e onde guardávamos as armas. Deram-lhes palmatoadas nos dedos até eles desmaiarem.
Uma mulher morena e corpulenta, expressiva e emotiva, oriunda da cidade de Herat, fala com paixão do ódio que sente pela burka e a voz quebra-se-lhe num soluço. Mas recupera rapidamente.
- Há quatro anos que fugi do Afeganistão com os meus três filhos que agora têm sete, dez e doze anos e estudam num dos orfanatos da organização. Um grupo de taliban, cerca de dez homens, chegou a minha casa e levou o meu marido. A mim deram-me uma sova que me deixou como sequela uma lesão nas costas. Não voltei a ver o meu marido nem nunca mais soube nada dele. - Depois acrescenta jocosa, num tom entre o gracejo e a verdade: - Tremam, taliban. Entreguem-nos às mulheres do Afeganistão. Matá-los-emos com as próprias mãos.
As mulheres riem e gracejam.
Quando os ânimos se acalmam, chega a vez de uma mulher com uma tremenda expressão de tristeza no rosto.
- O meu marido morreu há três anos num dos bombardeamentos que ocorreram durante as batalhas entre Massud e os taliban. Estes encerraram os velhos nas casas e depois incendiaram os edificios. Com os vizinhos e os meus três filhos fugi para as montanhas. Os taliban ofereceram-nos camiões para nos afastarmos da frente, mas preferimos ir a pé. Permanecemos nas montanhas, em péssimas condições, durante dez ou doze dias.
- Os taliban espancaram-me para que lhes dissesse onde se escondiam o meu marido e o meu filho.
- O meu marido morreu há dez anos na guerra contra os russos.
- Os jihadis chegaram lá a casa à meia-noite. Mataram o meu marido e queriam levar-me. Resisti e bateram-me. Saí, espavorida, e refugiei-me perto, em casa de uns vizinhos, sem sequer pensar nos meus filhos. Voltei por eles, acompanhada pelos vizinhos. Os jihadis tinham apanhado a minha filha mais nova de três anos e a criança chorava e gritava. Os meus vizinhos enfrentaram os jihadis. Estive um mês no hospital por conta da tareia que me deram e pelo que vi e nunca esquecerei.
- Antes de vir para o Paquistão e abandonar de vez o Afeganistão, refugiei-me em Cabul, em casa de parentes. Os taliban tinham assassinado o meu marido e queriam levar-me o meu filho. Fugimos de noite e chegámos a Cabul ao fim de um dia inteiro de caminhada. Agora vivo aqui com a minha sogra e a minha irmã. Somos todas viúvas. O meu sogro foi morto pelos russos, o meu cunhado pelos jihadis e o meu marido pelos taliban. Sobrevivemos como podemos. O meu filho vende verduras e a minha irmã apanha e vende lenha.
Não temos palavras. As mulheres contam e não acabam. Mostram-nos nos seus corpos as cicatrizes de feridas, de queimaduras. Uma ainda tem nas costas um fragmento de metralha. A nossa jovem contacto traduz-nos para inglês cada história, cada vida, cada desgosto. É só um grupo de mulheres que está nesta sala. Um punhado de histórias. Parecidas mas diferentes, porque cada uma é a história de uma mulher concreta, com nome, rosto, idade, memória e presente e quem sabe que futuro. Histórias que há que multiplicar por cem, por mil, até alcançar o número em milhões das mulheres que constituem a população do Afeganistão, porque cada afegã, na actualidade, tem uma história dolorosa para contar. Não clamam vingança, porque como diz o provérbio: "O sangue não pode. lavar-se com sangue". Querem justiça. E paz. E liberdade.
Agradecemos e despedimo-nos delas.
O nosso contacto acompanha-nos até a uma parte da casa onde uma mulher ensina a umas raparigas 'a arte de tecer tapetes em tear horizontal.
Os tapetes afegãos caracterizam-se por serem totalmente feitos de lã, enquanto que noutros tapetes orientais se misturam ou utilizam também a seda, o algodão ou até pêlo de camelo. Segundo a zona e o grupo étnico a que as tecedeiras pertencem, os tapetes são de trama simples ou dupla, e regra geral utiliza-se o nó persa, o sennah. Outra característica é a disposição rectilínea dos seus desenhos. As cores predominantes são os vermelhos, que se obtêm a partir da raiz de um arbusto que cresce abundantemente nas zonas de maior tradição tecelã; o castanho-escuro da casca da nogueira e o castanho-claro da pele da romã; o amarelo é proporcionado por uma flor silvestre da estepe. Para o azul usa-se o índigo. São tintos naturais, apesar de também se recorrer às anilinas. Todo o processo, desde a tosquia das ovelhas, a cardagem, a fiação e o tinto da lã e, claro, a tecelagem do tapete, é artesanal.
Tradicionalmente, eram as mulheres quem tecia os tapetes em teares horizontais. O desenho fazia-se de memória, a partir de elementos e motivos próprios e distintivos de cada grupo étnico, de cada tribo e de cada clã, carregados de símbolos, cujos significado e ori gens são de tal modo remotos que já quase ninguém os conhece. Na actualidade também há ateliers em que se utilizam desenhos e moldes em papel que as tecelãs reproduzem. A zona com maior tradição é todo o norte do país, cuja população é maioritariamente turquemnna, e a região de Herat, no oeste do Afeganistão, que tece os seus tapetes e kilins seguindo a tradição das tribos nómadas ou seminómadas da zona. Talvez os tapetes mais conhecidos sejam os turquemenos, tecidos com a lã das suas famosas ovelhas caracul, que produzem dois tipos de lã ao mesmo tempo: uma lã exterior, comprida, e outra curta junto à pele. As tecelãs de Ilerat usam, geralmente, a lã das raças locais, as ovelhas ghi jan e gaadi.
Um dos elementos mais comuns e mais fáceis de reconhecer na composição do desenho é o fil poi ou pata de elefante, o motivo octogonal grande, mais ou menos estilizado. No resto, cada grupo tem os seus, tão definidos, que permitem reconhecer à vista desarmada se um tapete é turquemeno ou baluche, saruk, mauri, waziri, kamshidi... Trata-se apenas de ver se corresponde ao desenho bukara dos tekke ou ao kepsi dos yamudes; ou se aparecem alguns dos típicos desenhos de Beshir: o colorido e geométrico desenho boteh ou o chamado bagh-i-shinar, folha de álamo; ou talvez nenhum deles, mas tão-só os elementos decorativos pequenos, geométricos e coloridos de Chichaktou. Os desenhos de cada cidade, de cada clã, de cada tribo, têm as suas peculiaridades, como as tem também cada peça em função do uso original que se lhes dava e se lhes dá: tapetes pequenos de oração de desenho assimétrico; tapetes que faziam as vezes de porta ou cortina nas casas, com o seu desenho característico que recebe o nome de purdah ou hatchlou: um rectângulo central vertical partido, com franjas na parte inferior e uma corda na superior para o suspender da armação.
Para além dos tapetes, sacos, arneses, adornos para os dintéis das portas, cestos, alforjes de uso comum, que continuam a tecer-se à maneira tradicional.
A mulher expressiva de Herat juntou-se a nós e comunicamos gesticulando. Acabamos a rir-nos muito com ela. Uma mulher chega e diz qualquer coisa à nossa acompanhante. O almoço está pronto. Ficamos surpreendidas. Não sabíamos que iam convidar-nos. O nosso motorista está à nossa espera. A rapariga diz-nos que também lhe darão de comer. Mas, discreta e prudente, acrescenta logo que se temos pressa ou estão à nossa espera... Não, não temos pressa, nem qualquer outro encontro. Esperam-nos em casa, seguramente ansiosos e temendo qualquer coisa até nos verem sãs e salvas com eles. Calamo-nos e aceitamos o convite. Fazemos as honras à refeição: uma travessa enorme de arroz, gabalee palau, salada, frango em molho e pudim. A mulher de Herat também nos acompanha. Felicitamos a cozinheira que vem cumprimentar-nos enquanto a herati nos enche o prato uma e outra vez, desafiando-nos a comer mais.
Despedimo-nos, gratas. Informamos a nossa contacto de que nos próximos dias talvez viajemos até Islamabad. Ela reage com rapidez: tratará de resolver tudo para que possamos visitar algumas actividades da RAWA na zona. Ligará para o nosso telemóvel. A mulher de Herat abraça-nos e beija-nos emocionada. Depois acompanham-nos até ao carro onde nos espera o nosso motorista.
Em casa recebem-nos como se voltássemos de uma expedição ao Hindu Kush. Azada beija-nos e abraça-nos como se não nos visse há séculos. Faz um calor sufocante e vamos todas para o quarto descansar. Soltamos a cortina de tecido e deixamos Rustam do lado de fora. purdah. Mas a janela do quarto fica quase rente ao chão, e parece que estamos na varanda.
A meio da tarde o motorista virá buscar-nos. Azada quer levar-nos ao mercado para comprarmos tecidos. Há já dias que se fala da necessidade de ter mais qualquer coisa que vestir e nunca temos tempo. Além do que, para ir a Cabul, teremos de nos vestir como afegãs.
- Não tenhamos ilusões, meninas, eles vão recusar-nos o visto - insiste a Meme, convencida.
Falamos da nossa viagem ao Afeganistão como se já tivéssemos os vistos na mão. E enquanto esperamos pelo motorista, na varanda, especulamos sobre os possíveis modelos de vestidos que poderemos fazer, ainda que sejam escassas as opções. A única variedade é o decote: redondo, quadrado ou em bico, com uma estranha forma de pião invertido que nos horroriza. O último grito da moda é uma espécie de tampa com uma fileira de botões falsos desde o pescoço até à cintura, igual à do vestido que Basira traz hoje, e com mangas franzidas no ombro. Rustam não gosta do modelo com botões. Dá a sua opinião sem ninguém lha ter pedido, mas eu digo-lhe, aplaudida por Azada, que os vestidos não são para ele. Rustam recusa-se a ir connosco ao bazar e fica por casa.
O bazar de tecidos está abarrotado de gente. Subimos escadas, entramos e saímos de um ror de estabelecimentos. As paredes das pequenas lojas que se amontoam nesta rua estão cheias até ao tecto de rolos de tecido entre os quais se movem os empregados, empoleirados numa tarimba que os torna mais altos do que as freguesas que atendem diligentemente ou que aguardam de pé ou sentadas num estreito passadiço. Numa das lojas há um banco junto ao balcão onde nos instalamos, enquanto, à nossa frente, o vendedor desdobra rolos e rolos de tecidos para que os apalpemos, enruguemos, observemos o estampado. Na hora de carregar rolo após rolo para tentar vender a um possível cliente, não se poupam esforços. Pesadas peças de tecido vão caindo com um golpe surdo por cima das anteriores. O vendedor separa os tecidos de dupla largura para podermos ver o avesso e o direito. Passeamos pelo bazar. Numa loja compramos tecido para um conjunto, noutra, outro, voltamos atrás para rever um tecido que ainda não nos convenceu de todo em todo, mas que, se calhar...
Num dos passadiços atulhados de lojas, uma menina afegã pede esmola. Terá, se tanto, oito anos. Agarra um punhado de notas que já obteve. Azada fala com ela durante um largo momento. Fotografamo-la e damos-lhe umas rupias.
O motorista está inquieto. A mulher está para ter um filho e ele ainda não encontrou outro colega para o substituir. Apressamo-nos.
A Meme escolhe um tecido salmão-claro, de algodão, cheio de bordados, para o vestido, o mesmo tecido, em liso, para as calças e mais alguns metros de tecido a condizer, ainda que menos carregado de bordados, para o tchador. O tecido e cor são lindíssimos. A Sara compra tecido para dois conjuntos, um azul-escuro e outro bordeaux com desenhos pequenos num vermelho mais claro. Noutra loja, onde só se vendem tchadores, escolhe um a condizer com o vestido vermelho, que é o seu favorito. O tchador é muito bonito, de gaze grená com aplicações em dourado e vermelho. Eu compro um tecido com franjas pretas e azul-cinza com um estampado entre geométrico e floral e um outro tecido com grandes quadrados verdes, negros e amarelos que combinamos com umas calças amarelas. Escolho um tchador branco e liso.
Enquanto vamos para o sítio onde o motorista deixou o carro, bisbilhotamos aqui e ali e a Sara pára para comprar um jornal. Em casa, Rustam não liga aos nossos trapitos. Azada manda recado à modista para que amanhã esteja cá cedo.
Sabemos então que Azada tinha previsto voltar ao campo hoje para poder estar com a avó. É o aniversário da morte do seu filho mais velho, tio de Azada. Mas ficou connosco para nos acompanhar ao bazar! Sentimo-nos culpadas. Parece-nos terrível este entendimento
da hospitalidade que prevalece sempre, esta entronização do hóspede que converte qualquer capricho ou necessidade sua em algo de suma importância. Raios partam os vestidos! Falamos com ela: sentimo-nos pesarosas por ela não ter podido estar com a avó, fazendo-lhe companhia num dia cheio de recordações dolorosas. Pedimos-lhe que não faça isto, que não renuncie aos seus planos por nossa causa.
- Don 't worry. Ela compreenderá. Ela sabe que vocês são minhas convidadas e que tenho de vos tratar como é devido.
Temos que engolir o nosso mal-estar e, mais uma vez, aceitar a generosidade destas pessoas.
Jantamos um guisado de batatas, cebola e tomate com pão e preparamo-nos para uma sessão de vídeo que nos programaram. Najiba manda um dos filhos do motorista pedir emprestado um leitor. Põem o televisor na varanda, montam tudo e começa a sessão.
O primeiro vídeo mostra o concerto de uma cantora afegã no estrangeiro, actuando para a comunidade afegã refugiada ou emigrada nesse país. O repertório consiste em canções tradicionais e, já para o fim, não falta o atan, a dança mais tradicional e a música emblemática por excelência. O público emociona-se. Primeiro, discretamente, um aqui, outro ali, os assistentes começam a estalar os dedos, a acompanhar com palmas a compasso da música, tal como se faz nas festas, quando se dança o atan. No fundo da sala, onde o espaço é maior, os mais atrevidos começam a dançar. Homens e mulheres. O atan dança-se sozinho, cada um mergulhado na música, ainda que os bailarinos também possam dançar em roda. Os braços levantados seguem a cadência, os pés marcam o bambolear das ancas e o movimento de todo o corpo, que pode avançar de lado ou de frente, girar sobre si mesmo, ou apenas mover-se imperceptivelmente enquanto o corpo vibra ao ritmo do atan, que se reconhece quase que ao primeiro compasso. A dança pode ser mais ou menos desenfreada, mais ou menos voluptuosa, dependendo de quem dança, mas é sempre sentida, e a sua própria contenção confere-lhe maior emoção. O som do atan é irresistível. O corpo exige a dança. Todos nós, ao ver dançar o público e ao escutar aquela música enebriante, afegãos ou não, sem sequer nos darmos conta, seguimos o ritmo com os pés, com as mãos ou balançando o corpo. E é emocionante ver no ecrã a expressão radiante de felicidade daqueles exilados que já dançam nas coxias, nos recantos da sala ou de pé diante das cadeiras.
Não acabamos de ver esse vídeo que inclui outro concerto. Faz-se tarde e falta ainda uma segunda reportagem: um documentário sobre a história recente do Afeganistão. o desenvolvimento pormenorizado, desde a aprovação da Constituição e o reinado de Zahir Kahn, dos sucessivos conflitos, governos e golpes de Estado; a invasão russa e a expulsão das tropas soviéticas, as imagens da sua retirada: o último tanque do exército derrotado cruzando a fronteira. E a guerra civil. O vídeo acaba com imagens e som da conversa por rádio mantida entre Gulbudin Hekmatyar e Massud antes de lançarem os seus exércitos sobre Cabul, o primeiro para a conquistar, e o segundo, supostamente, para a defender. Conseguiram ambos destruí-la. O documentário está em persa. Rustam traduz. Agora já podemos pôr uma cara nos nomes implicados na destruição do Afeganistão, os chefes comunistas, os golpistas, os dirigentes islamistas. O vídeo durará mais de três horas. Poucos dias depois decidimos arranjar uma cópia para a trazermos para casa e projectar algumas das imagens nas conferências que, ainda sem concretizar, temos a intenção de organizar quando voltarmos, para denunciar a situação do Afeganistão.
Quando, por fim, o documentário acaba, já o mullah chamou para a primeira oração. Todos se dispõem a dormir. Quero levar a noite até ao fim. Vou enredar-me numa discussão com Rustam acerca do que vimos, quando o marido de Najiba se aproxima e se senta connosco.
- Quantas horas dormem as pessoas no teu país?
A pergunta desconcerta-me. Seis, sete, oito, depende. - Para ti, dormir é um hábito ou uma necessidade? Suponho que as duas coisas...
- Para mim é uma necessidade. Quando durmo pouco, não me sinto bem, nem feliz. Fico triste e não trabalho com gosto, nem faço as coisas com alegria.
Não consigo perceber aonde quer ele chegar.
- Estamos todos muito preocupados contigo porque, desde que chegaste, quase não dormiste.
Comove-me o seu desvelo, a delicadeza do seu interesse e os rodeios que fez para chegar ao tema central do seu desassossego. Torno a sentir uma imensa ternura por esse homem discreto e sensível. Garanto-lhe que estou bem, que para mim estar ali é tão excepcional que não quero perder um só minuto, mas que lhe agradeço imenso a sua atenção e lamento a preocupação que causei. Ele ouve sorridente à medida que Rustam traduz o que lhe digo.
- Tashakor - digo-lhe do fundo do coração. E levanto-me imediatamente para me ir deitar. - Shab Bajair. Boa noite.
Domingo, 6 de Agosto de 2000. Peshawar
Se a água já te cobre a cabeça, tanto faz uma braçada como cem.
Oiço ranger a porta da rua. É muito cedo. Uma visita a estas horas? Levanto-me e, de dentro do quarto, vejo Najiba na varanda. Ela também me vê e põe-se a gesticular. Compreendo que devo vestir-me e ir até à varanda. Acordo as outras e transmito-lhes a mensagem.
Sentada no tapete está uma mulher pequena, muito bonita, de cabelo negro e maçãs do rosto arredondadas. É a vizinha de Najiba que se ofereceu para costurar os nossos vestidos. Tira-nos as medidas a todas, desenrola os tecidos, toma notas e faz cálculos. Depois pergunta como é queremos os decotes e vai-se embora.
Lavamo-nos e tomamos o pequeno-almoço. Queijo, pão e chá. Rustam parte para Islamabad porque tem que fazer.
Azada irá esta tarde ver, finalmente, a avó. É a debandada, mas ainda temos uma coisa importante a fazer: hoje conheceremos as famílias dos alunos da escola. Lala, outra das professoras, também virá. Najiba deixa os pequenos à guarda de Basira. Vamos de carro até a um bairro nos arrabaldes da cidade, onde as ruas são de terra batida. Estacionamos numa esplanada poeirenta e continuamos a pé. As professoras batem a uma porta enquadrada por uma parede de adobe que fecha uma parcela de terreno por construir. No interior do recinto, sob coberturas paupérrimas construídas por elas mesmas, vivem vinte famílias. Um murete de adobe de três ou quatro palmos de altura limita cada vivenda, uma superfície de cerca de seis metros quadrados; troncos e paus aguentam o tecto de trapos e plásticos cosidos entre si.
Somos recebidas pelo responsável do grupo, um homem de meia-idade. Os meninos rodeiam-nos. Curiosos e divertidos, não nos tiram a vista de cima. Estão encantados por verem as suas professoras e ansiosos pelo recomeço das aulas. Na primeira noite, o vigilante da escola já nos tinha contado que os miúdos todos os dias lhe perguntavam quando começavam as aulas. As férias parecem-lhes eternas.
Convidam-nos a entrar numa tenda e as mulheres acorrem para nos cumprimentar, às mais jovens com bebés nos braços. Pouco depois entram algumas mulheres idosas e Azada levanta-se e cumprimenta-as respeitosamente. Oferecem-nos chá e uns pequenos caramelos em forma de anises para o adoçar. As moscas cevam-se neles até Azada pedir às mulheres uns paninhos redondos para os cobrir. Não há ventilador.
O recinto murado pertence a um paquistanês. As famílias refugiadas pagam-lhe um aluguer mensal pela parcela que cada tenda ocupa. Cem rupias por tenda. A factura de electricidade, que pode atingir alguns milhares de rupias, é repartida entre todos. Quando não podem
pagar, a energia é cortada. Para dispor de água chegaram a um acordo com uma mesquita próxima, e agora um cano traz a água dali até a uma torneira perto da porta de entrada onde também se fez uma espécie de lavadouro. Em troca, cada família paga cerca de duzentas rupias anuais. Não muito longe da torneira está o forno-fogão, em barro, e que é alimentado com a madeira de caixas de fruta e cartão. Também este é comunitário.
Todas estas famílias vêm da mesma região do Afeganistão, de uma província do leste. Eram lavradores, comerciantes, talhantes. Até que, há dois anos apenas, chegaram os taliban e destruíram tudo.
- Fomos obrigados a fugir com o que tínhamos vestido. Antes, a nossa vida no Afeganistão não era fácil, mas comparada com a de agora, aquela foi uma época de ouro - diz-nos o chefe de família.
Para subsistir constroem gaiolas para pássaros. Cada família produz as suas e vende-as a armazenistas paquistaneses. As gaiolas pequenas valem vinte e cinco rupias, as grandes, sessenta. Uma gaiola pequena demora um dia a fazer. Uma grande, dois. Trabalham por empreitada. Todos: homens, mulheres e crianças. Para conseguir um pouco mais de dinheiro, as velhas e as crianças mendigam todos os dias.
Falamos com as mulheres e tomamos chá com elas. Chama-nos a atenção um bebé ao colo da mãe, apático, magro e abatido. Descobrimos que não é um bebé, mas um menino de dois anos, desnutrido até limites inimagináveis. Chega outra mulher trazendo um filho de meses. A mãozinha vermelha e negra produz-nos um calafrio. A Meme, que é puericultora, examina-o. A mãe conta que lhe caiu uma chaleira com água a ferver na mão. O negro é pele morta que lhe cortam com umas tesouras, o vermelho é hena. A mão está inchada e na dobra inferior do pulso a queimadura é profunda e não está cicatrizada. A Meme está horrorizada.
- Este menino tem de ser visto por um médico.
Mas não há médicos para os refugiados afegãos: não podem pagar a consulta. No Paquistão há um serviço de saúde pública, mas não abarca os afegãos.
- E esta criança sofre de desnutrição absoluta.
Começam a trazer-nos crianças para as vermos. Uma rapariga muito nova está grávida e não se sente bem. Outra mãe jovem. Mais meninos. Uma mulher que se cobre com o tchi dor, com um bócio enorme. Doenças da fome e da miséria.
Falamos com o responsável do grupo.
permitiriam que as estrangeiras pagassem a consulta do menino da mão queimada deixassem algum dinheiro para melhorar a alimentação da criança desnutrida?
O homem garante-nos que esses dinheiro se gastará com os dois meninos. Isso provoca uma avalanche de mães e de casos. Mas as estrangeiras não têm dinheiro para tudo. Não vieram para isso.
Admito que a situação me incomoda. Não gosto do que se está a passar. Prefiro trabalhar e contribuir com todo o meu esforço, o meu trabalho e o meu dinheiro para resolvera origem dos problemas, ainda que a longo prazo. No entanto, entendo que a urgência de cada caso, concreto e inadiável, não admite espera e que também deve haver gente para trabalha em situações de emergência. Mas não foi para isso que vim ao Paquistão e o que vejo fai -me sentir mal porque na realidade, diante de tanta pobreza, nada se soluciona com ui punhado de rupias. Bem, talvez levem a criança ao médico. Mas que farão depois, quando precisarem de mais dinheiro para os curativos e para os medicamentos? Onde irão buscá-la De que servirá um diagnóstico profissional, saber de que grau é a queimadura se o mais provável é que a mãe não tenha outra escolha que não seja deitar-lhe mais um pouco de hena "Se a água te cobre a cabeça, tanto dá uma braçada como cem", reza um provérbio afegã' Para mim é um conflito. Porquê esta criança e não outra? Porque a sua mão enegrecida chama mais a atenção? Quantas destas crianças não estarão doentes, alguns mesmo gravemente? Mas também não é possível negar uma hipótese, por pequena que seja, à esperança que um médico talvez pudesse salvar a mão daquele menino. De todo o modo, a minha incomodidade não pára de aumentar. As mães cercam-nos, falam todas ao mesmo tempo. Tenha sensação de que já não somos as amigas das professoras trazidas por estas para uma visita. Agora convertemo-nos nas estrangeiras, nas ocidentais que têm dinheiro.
Há um rapaz que se mantém à margem do reboliço que se organiza quando as rupii mudam de mão. Cumprimentou-nos antes. Também é aluno da escola. Najiba disse-nos que é o seu melhor aluno, o mais aplicado e o mais inteligente. Surpreende-me pela sua atitude digna. Não quer participar neste espectáculo.
Saímos da tenda para dar uma volta pelo recinto. Para que as crianças nos mostrem gaiolas que fabricaram. O responsável pelo grupo autoriza-nos a fotografar as crianças e recinto, mas não as mulheres. Entre as tendas há um quadro preto. Uma das professoras da escola dirige aqui mesmo um curso de alfabetização para as mães dos alunos. Os garotos sentem-se protagonistas. e, encantados, posam para nós, sentados no seu canto de trabalho. Mulheres com crianças doentes ao colo aproximam-se de nós: o seu filho também precisa de ir ao médico. O seu filho também passa fome. E, de facto, não mentem. Uma das anciãs tomba no chão, desmaiada.
- É por causa do calor. Garmí! - dizem-nos as mulheres que a rodeiam e lhe molham a cara.
Temos de sair dali. Há que dar por finda esta visita que está a degenerar numa espécie de concurso para mostrar às estrangeiras que a própria desgraça é maior do que a do vizinho e conseguir alguma ajuda.
Não me importa dar dinheiro, mas não suporto dar esmolas; detesto essa caridade de pacotilha que me faz pensar nessas damas da alta sociedade que uma vez por semana davam uma volta pelos bairros pobres distribuindo roupa usada, comida e algumas moedas entre os pobres, quando provavelmente eram os seus maridos quem provocava esse estado de indigna pobreza por não pagarem salários justos aos seus empregados. Considero a esmola um acto impulsivo destinado a tranquilizar a consciência de quem, ao ver-se confrontado com a realidade, se envergonha, por momentos, do que tem e dá um par de notas ou de moedas para calar esse remorso e sentir-se bom e generoso. Do que efectivamente esta gente precisa é de justiça, não de beneficência.
As mulheres pedem-nos que lhes arranjemos cheques-refeição do ACNUR. Desconhecem que isso já não existe. Que acabou. Que o mundo se está nas tintas para o facto de os afegãos terem ou não de comer. Essa é a ajuda que é precisa. Não a esmola. É urgente que as instituições actuem para o que foram concebidas. Em pouco mais de meio século avançamos muito no que toca às ferramentas que, em teoria, contribuem para fazer deste mundo um lugar melhor para viver: há a Cruz Vermelha, o Crescente Vermelho, as Nações Unidas, o Tribunal de Haia, os Direitos Humanos, a ACNUR. Há apenas que conseguir que eles funcionem, que nenhum poder possa pervertê-los, que nenhum interesse lhes ate as mãos, que a hipocrisia e a ambição não os convertam em palavras vazias, em perversas fachadas de conteúdo desvirtuado.
Despedimo-nos das famílias e dirigimo-nos ao edificio da escola, uma escola que oferece um futuro melhor ao punhado de crianças que consegue abrigar, uma escola que tem de ser financiada para que possa continuar a receber mais e mais crianças, refugiadas afegãs, e dar trabalho a mais professoras, mulheres afegãs que também são refugiadas e que também vivem precariamente. As crianças que frequentarem a escola serão homens e mulheres que poderão aceder a trabalhos melhor remunerados e isso permitir-lhes-á sair da pobreza, da fome, da exploração laboral, da vergonha da mendicidade. Se a escola conseguir subsídios,
poderá admitir mais crianças, criar uma cantina escolar, que, também ela, criará mais postos de trabalho e possibilitará uma alimentação adequada que evitará muitas doenças.
Na porta há um cartaz azul com letras brancas. Escola Primária. O guarda abre-nos a porta. No pátio há várias árvores muito altas, cuja sombra é gratificante. Ao fundo, um edifício de um piso, com uma varanda à frente. À esquerda outro. Quatro portas abrem para o pátio. Quatro salas, quatro classes. Uma esteira no chão e um quadro preto. No corpo principal do edificio, uma sala maior com uma mesa e um mapa do Afeganistão. É tudo. O vigilante vai buscar umas cadeiras para nos sentarmos. Num dos cantos do pátio há uma pia rectangular com uma torneira. Ao lado uma tina grande de barro onde se armazena a água potável.
Falamos das despesas que a manutenção da escola supõe. Há que pagar o aluguer, a água e a luz; o salário do guarda, os das duas professoras que recebem uma paga porque não há mais ninguém nas suas famílias que tenha trabalho remunerado; as despesas de transporte das duas outras professoras voluntárias que, todavia, não podem agravar a sua economia doméstica. A escola fornece o material escolar aos alunos: livros, cadernos, lápis... Cada criança tem o seu próprio livro, mas no fim do ano tem que devolvê-lo para outro aluno que vier. Compram os livros onde os há mais baratos, nos bazares, nos mercados e bancas de segunda mão, em saldo. Dos donativos conseguidos em Espanha e Itália ainda resta o dinheiro suficiente para manter a escola a funcionar por mais cinco meses. Quando o dinheiro acabar, serão obrigados a fechar. Estamos em Agosto.
Durante uns momentos, ficamos à conversa no pátio. Najiba fala-nos do seu aluno, o adolescente que conhecemos quando visitámos as famílias. Admitiram-no na escola, apesar da idade, porque ele tinha uma grande vontade de aprender, por estar gravemente doente e porque o pai dele é já idoso e terá de ser o rapaz a responsabilizar-se pela família, visto que só tem irmãs, todas mais novas. A Meme interessa-se pelo caso e decide fazer tudo o que puder para levar o rapaz a Barcelona para ser operado e assim melhorar a sua qualidade de vida e as suas possibilidades de sobrevivência.
Propomos ao grupo ir comer juntas. O motorista faz duas viagens para transportar toda agente e reunimo-nos num amplo restaurante afegão, com salão de banquetes para casamentos. Provamos o mantu, uma espécie de tortellini gigantes, recheados de carne de cordeiro e um pouco picantes. Também convidámos o guarda, mas este e o condutor preferem comer à parte, deixando-nos sozinhas no nosso reservado. Purdah. Sentem-se desconfortáveis entre tanta mulher.
A escola continua a ser o tema principal de conversa durante o almoço. Azada irá depois ao campo de refugiados, visitar a avó. Nós aproveitaremos a tarde para visitar o famoso museu de Peshawar onde existe uma magnífica colecção de arte budista. O motorista volta a fazer duas viagens. A primeira para levar a casa Azada e Najiba. A segunda para nos levar, a nós e a Lala, ao museu. No último momento, Lala, que é tímida e não fala inglês, prefere ir para casa. Insistimos em a levar até lá, pois fica-nos em caminho, e deixamo-la num cruzamento perto.
São quase cinco horas quando chegamos ao museu. Estão prestes a fechar. Decepcionadas, resolvemos dar meia volta, mas os guardas do museu propõem-nos adiar o fecho por mais algum tempo. Quanto? Combina-se até às cinco e um quarto e pagamos. Só nos cobram três bilhetes.
- Mas nós somos quatro - o motorista entrou connosco. - Esse homem é o vosso motorista, não é?
- É.
O motorista não paga. Mas dá-se por assente que entra connosco. Evidentemente. É o nosso muhrram, o nosso acompanhante. Mas a verdade é que há coisas nesta sociedade que continuam a ser chocantes para nós, por mais tempo que decorra.
O museu não é muito grande. A maioria das obras expostas são exemplares da arte de Gandhara: estátuas, relevos, esculturas de pedra negra, budas sentados, de pé, sorridentes, sérios. Obras muito trabalhadas, belas, plenas de movimento e de detalhes. As estátuas grandes estão presas à parede pelo pescoço com enormes cravos de ferro. Fazemos a visita numa corrida. Um percurso fugaz. Falta de maneiras... Gostaria, pelo menos, de comprar um guia do museu, um livrito em inglês onde se explica, a traço grosso, as características desta cultura, desta arte, mas o nosso motorista, muito dentro do seu papel, intervém imediatamente, regateando o preço que considera excessivo. Fico sem o livro graças ao seu excesso de zelo. E sem informação. Consolo-me pensando que depressa encontrarei outras fontes. Entre as peças, nos baixos-relevos e nas estampas, despertam-me a atenção os atlantes e outras figuras e seres mitológicos cuja existência desconhecia: os ictiocentauros, meio-homens, meio-peixes. Leio no livro de Nancy Dupree que o achado no sítio arqueológico de Ai Kanoun no Afeganistão, de uma estátua datada dos séculos ur-u a.C., demonstra que não é correcta a hipótese, até hoje defendida, segundo a qual a influência helenística na arte de Gandhara vem de Roma; aprendo igualmente que as origens desta peculiar arte, que reproduz de forma magistral o movimento, tem as suas raizes nesta zona da Ásia Central, concretamente na província de Bactriana.
As luzes vão-se apagando, correm connosco, expulsam-nos... e saímos praticamente a correr.
A caminho de casa compramos mangas, um melão e a nossa quotidiana provisão de água engarrafada. Najiba recebe-nos, faladora e divertida. O filho mais novo do motorista, que traz o bebé ao colo, vai a correr chamar o irmão, um adolescente que fala inglês e que será o nosso intérprete agora que Azada e Rustam não estão. Najiba tenta ensinar-nos umas palavras em dari, mas não somos grandes alunas. A conversa deriva para a música e para dança devido ao vídeo que vimos ontem. Najiba manda os rapazes pedir emprestado um leitor de vídeo e algumas cassetes. Ligamo-lo na varanda e reconhecemos imediatamente os compassos do atan. Pedimos à nossa anfitriã para nos ensinar a dançá-lo, mas ela recusa-se e limita-se a estalar os dedos e a bater palmas seguindo o compasso. Estamos de novo sozi ilhas nesse mundo de mulheres em que impera uma descontraída intimidade. Os filhos do motorista não contam, são ainda muito novos. Levantamo-nos e desinibimo-nos. Copiamos os movimentos de braços e de ancas que vemos no vídeo. Najiba ri-se, aprova ou desaprova com uma careta quando os requebros são excessivos para uma dança afegã. Dançamos durante um bom bocado. Depois Najiba pergunta pelas danças espanholas. Mais que folck' ricas e contribuindo para perpetuar o mito e o estereótipo de Espanha, propomo-nos umas sevilhanas. A Meme e a Sara, que sabem dançá-las bem, são as protagonistas. Eu canto bato palmas, ainda que, uma por outra vez, desafine. Passamos uma tarde agradabilíssima.
Já escurece quando Najiba nos lembra que ainda temos de levar os tecidos dos outros vestidos ao alfaiate. Observa-nos, pensativa, e decide que a Sara a acompanhará. Das três é que, pelo seu aspecto, chama menos a atenção. Pode passar por afegã sempre e quando esti ver calada. Najiba falará por ela. Morro de inveja quando as vejo sair com a saca de plástic onde vão os nossos tecidos. Nós as duas ficamos entregues à sobrinha mais velha de Nasreen, que se senta na varanda connosco e com as suas irmãs mais novas. Ninguém diz nada.
Pouco depois a Sara e Najiba regressam. Mortas de riso. Najiba disse ao alfaiate que Sara tinha acabado de chegar do Afeganistão, de uma zona perdida onde se fala um dialectl desconhecido, e que não entendia uma única palavra de dari ou de pashtu. O homem tirou-lhe as medidas por todo o lado, mais do que as necessárias, comentará ela depois, e mostrou-lhe todo o tipo de modelos para o decote.
- Não, não - limitava-se a Sara a dizer para recusar as propostas feíssimas, segundl ela, do alfaiate.
Fazemos uma barrela enquanto Najiba cozinha. Os filhos do taxista ocupam-se das crianças. O mais velho fica para o caso de ser necessário um tradutor. Atiramo-nos para varanda. Estamos cansadas. Os problemas intestinais de todo o género que a Meme e a Saci hoje tiveram e que foram motivo diário de troça, atingem-me agora. A todo o momento um de nós sai disparada para a retrete.
De noite chegam os maridos de Najiba e Nasreen. Jantamos juntos. Fazemo-los rir contando a história da Sara e do alfaiate. A seguir chegam Nasreen e a filha; e o taxista com a Mulher a quem não conhecíamos e uma filha adolescente que também ainda não tínhamos visto. Durante a sobremesa, Najiba menciona os nossos passos de iniciação ao atan e é a grande algazarra. Pedimos aos homens para dançarem. Riem-se e fazem-se desentendidos. Dizem que Najiba dança lindamente, mas ela continua a negar-se e desvia a atenção para o marido: que ele, sim, dança muito bem. Pomos a cassete, e o taxista, o mais extrovertido e falador dos homens afegãos que conheci, abre o baile. Coloca-se no centro do tapete e dança enquanto batemos palmas e estalamos os dedos. Gira sobre si mesmo, de braços levantados, com uma expressão extasiada. Aproxima-se, quase sem mover os pés, da filha, que, corando, se faz rogada, mas que finalmente, se levanta e substitui o pai no centro da roda que formamos, sentados no tapete. Dança uns segundos e pede à mãe que a substitua. Dança toda a gente, à excepção de Najiba. Dança o marido dela, com movimentos muito mais contidos que os do motorista, mas com tal sentimento que me arrepio, parece tão feliz enquanto dança que me dá vontade de chorar. As crianças dançam também. E o marido de Nasreen, que esperava escapar-se. Para agradecer, voltamos a dançar as nossas sevilhanas.
Em pleno folguedo a luz vai abaixo.
Esperamos durante algum tempo no escuro. Vamos à procura de uma lanterna. Parece que está para durar e as famílias começam a despedir-se.
No pátio, debaixo das cordas do estendal, há uma planta grande, como a copa de uma palmeira sem tronco, de folhas inteiras sem franjas, de um verde muito claro. Antes de me ir deitar, o meu olhar tropeça nela. Sem que me desse conta, a folha nova, enrolada como um barquilho gigante, abriu totalmente.
Segunda-feira, 7 de Agosto de 2000. Peshawar
Num formigueiro, o orvalho é uma inundação.
L evantarno-nos tarde. A noite foi um corrupio: da retrete ao quarto, do quarto à retrete. Faz calor. Dormitamos todo o dia.
O bebé de Najiba chora sem parar. Nada o acalma. A mãe dá-lhe de beber. Refresca-o debaixo da torneira da casa de banho. Embala-o. A menina não está muito melhor. Ambos têm febre. Najiba está preocupada. Mesmo calada, nota-se que está preocupada.
À tarde, Azada chega. Conversamos um pouco, contamos-lhe o que fizemos, mas a preocupação pelas crianças doentes paira sobre tudo o que dizemos. Nada pára o choro do bebé. Está cheio de febre. Não vale a pena lembrar que os bebés fazem febres altas. Nós, mães, preocupamo-nos à mesma. Para um bebé, estes febrões não anunciam nada de bom e os banhos refrescantes ou os pachos de água fria não fazem efeito. Basta tocá-lo. Aqui não há termómetro, nem gotas para a febre, supositórios, nada de nada.
O alfaiate e a vizinha terminaram os vestidos.
- Tabrik! -felicita-nos Azada. Quando se estreia roupa ou se compra algo de novo há o costume de felicitar o comprador: Tabrik. Felicidades.
- Tashakor.
Najiba apenas espera pelo marido. Quando este volta do trabalho, partem com as crianças. Para o médico. Tomarão um táxi e dormirão na casa da mãe de Najiba, que vive perto do consultório. Fico horrorizada só de pensar no que isto pesa no orçamento caseiro. "Num formigueiro, o orvalho é uma inundação", reza outro provérbio.
Preparamos o jantar. Azada deixa que a ajudemos. Fez-nos tanta falta... A sua avó e as pessoas do campo mandam-nos muitas saudades.
Estamos sós em casa. Não é preciso ocultar a suposta indecência dos nossos pijamas e camisas de dormir, pelo que nos deitamos cá fora, na varanda.
Terça-feira, 8 de Agosto de 2000. Islamabad
Não parecerás um estranho se te adaptares aos que tens a teu lado.
Levantamo-nos pelas cinco da manhã. Tal como estava combinado, hoje iremos as quatro a Islamabad. A viagem por estrada dura cinco horas, pelo que optamos pelos autocarros com ar condicionado, apesar de serem um pouco mais caros: um dólar por pessoa. Preparamos as nossas trouxas, visto que iremos lá passar duas noites. O motorista vem buscar-nos para nos levar à estação e não nos largará até nos ter bem sentadas no mini-autocarro carregado de homens de negócios paquistaneses que farão a viagem connosco. Somos as únicas mulheres. As cortinas escuras das janelas estão corridas e o interior do veículo está na penumbra.
A caminho da estação, pelas ruas de Peshawar, volto a ver os meninos das latas fumegantes. Azada explica-me que nelas se queimam substâncias aromáticas. Parece que a inalação dos seus vapores faz bem ao organismo.
Na estação de autocarros o ruído é ensurdecedor e a actividade constante. Viajantes, curiosos, mendigos, condutores e cobradores, crianças que vendem petiscos aos viajantes: refrescos, caramelos e biscoitos.
Ocupamos a parte traseira do mini-autocarro. À medida que se enche, aparecem por artes mágicas cadeiras desdobráveis que vão fechando o corredor. Uma vez cheio, o mini-autocarro parece a sala de um pequeno cinema. Finalmente partimos. Descerramos as corti nas para, ao menos, podermos contemplar os lugares por que passamos. Mas quando o sol começa a ter força, o condutor manda-nos corrê-las. Não quero atravessar o país sem ver nada e, metendo a cabeça entre o vidro e a cortina, cá me arranjo para continuar a ver. Por uma ponte, atravessamos um rio. Espanta-me ver água de duas cores: pardo-avermelhado e azul-esverdeado. Azada explica-me que neste ponto se misturam as águas de dois rios: um deles é o Cabul.
Cabul, Cabul... estas águas estiveram em Cabul? Conseguiremos chegar lá? Creio que sim. Acredito que nos darão o visto. E que tudo correrá bem.
À medida que nos aproximamos de Islamabad, tal como sucedeu no percurso contrário e visto do céu, a paisagem e as cores mudam. O pó, os ocres e a aridez dão lugar à humidade, aos verdes e à exuberância. À Índia de Kipling, porventura. Islamabad é a nova capital do novo Paquistão. Foi desenhada dez anos após a partição da índia, uma cidade sem história e sem passado, para se contrapor às grandes cidades tradicionais: o poder político de Lahore e o poder económico de Carachi. É uma cidade geométrica, com grandes avenidas, edificios modernos, embaixadas, sedes de instituições, escritórios. Formosa e fria. Ostentosa e artificial. Sou mais velha do que ela. Mas está mesmo ao lado de Rawalpindi, Pindi, como é familiarmente conhecida, a antiga, a lendária. Estamos no Pendjab, a região dos Cinco Rios.
Azada descalçou-se para dobrar as pernas sobre o assento. Com as sacudidelas do carro, perdeu as sandálias. Quando chega o momento de sairmos, os homens de negócios têm de se levantar e ajudá-la a encontrá-las. Azada confessa-se envergonhada, mas ri-se.
Apeámo-nos no que parece ser um descampado, um simples cruzamento de estradas. Mas caminhamos um pouco e chegamos a uma praça de táxis, ou melhor, de automóveis de aluguer, porque não trazem qualquer distintivo. Regateamos aqui e ali e conseguimos que nos levem ao sítio do nosso encontro com Rustam. Azada é acolhida por um dos seus primos. Será hóspede dos seus tios de Islamabad, já que, de acordo com os rígidos princípios que regem a sociedade afegã, seria inadmissível que fosse para casa dos parentes de Rustam, um homem que não é seu familiar. Separamo-nos e apanhamos outro carro. A família de Rustam vive no andar de cima de uma casinha com jardim. No salão há um sofá e uma poltrona. Cumprimentamos a sua tia que depois se retira. Rustam indica-nos o quarto em que dormiremos e vamos lá pôr os sacos. Deu-nos o seu próprio quarto, que é muito espaçoso. Há duas camas e uma estante de parede a parede, carregada de livros. Poesia, romance, ensaio, filosofia e história. Do Oriente e do Ocidente. Durante alguns momentos conversamos sobre literatura. Descobrimos alguns autores preferidos em comum. Sobre a mesa, um computador. Por outra porta acede-se ao quarto de banho. Com sanita e duche. Refrescamo-nos e voltamos para o salão. Rustam apresenta-nos os primos. Também eles falam inglês e vão à escola. Sentamo-nos no sofá e aproveitamos o resto da manhã para marcar encontros, ainda que desconheçamos os planos dos nossos amigos afegãos. Telefonamos para os escritórios do ACNUR em Islamabad e para a nossa contacto da RAWA. Conseguimos as duas entrevistas para amanhã. A Sara telefona para a embaixada dos Estados Unidos para solicitar uma entrevista com o cônsul ou com o embaixador, mas não consegue que nos recebam. Parece que ambos estão ausentes.
Fazemos tempo para o almoço discutindo novamente com Rustam sobre as tradições e reaparece o binómio Oriente-Ocidente. O erro estará, provavelmente, tanto em pretender a ocidentalização do mundo inteiro como na idealização ou na condenação daquilo que desconhecemos. Só a partir do respeito se poderá chegar à compreensão e apreciar a riqueza da diversidade. O horror aparece quando esquecemos que ninguém é dono da verdade absoluta; quando a ignorância e o desconhecimento geram esse medo que nos torna intolerantes e, por isso, violentos.
A imposição brutal e exacerbada, pelos taliban, e antes por outros fundamentalistas, de umas supostas leis, normas e tradições, com o único objectivo de esmagar a população e anular todas as liberdades, só pode inspirar a revolta. Mas, taliban à parte, Rustam afirma que as tradições afegãs que regem as relações entre rapazes e raparigas, entre homens e mulheres, são muito mais repressivas do que se pode imaginar.
A comida está pronta. Entramos numa sala grande e sentamo-nos no tapete com a tia e os primos de Rustam. Uma fumegante bandeja de arroz palau, uns óptimos hamburgueres de cordeiro, kofta, uma mesa servida com requinte. Rustam insiste: se comem no chão é porque não podem comprar uma mesa, se dormem no chão é porque não podem comprar uma cama. Depois do almoço saímos. Rustam pediu a um amigo que lhe emprestasse o carro para não termos de andar de táxi. Aproximamo-nos da zona de Pir Wadahai, situada na estrada que vai de Islamabad a Pindi. Dos dois lados da estrada levantam-se as tendas barraca, feitas de trapos, plásticos e cartão, dos refugiados afegãos mais pobres. Perto daqui está o popular mercado de frutas e legumes onde poderemos ver os meninos do lixo. As ruelas são estreitas e o espaço entre as bancas de fruta quase inexistente. Mas Rustam não quer que nos apeemos e vai abrindo caminho, como pode, por aqueles atalhos. O mercado tem um grande colorido e o bulício das pessoas vendendo, comprando, passeando enche-o de vida. Quanto mais olhamos, mais crianças descobrimos, esgaravatando nas pilhas de fruta deitada fora, percorrendo a parte traseira das bancas com os seus sacos ao ombro. Enormes sacos de plástico quase tão grandes como eles, onde vão metendo tudo o que encontram. Depois venderão o que puderem ou levá-lo-ão às suas mães para com esses restos prepararem as refeições. Fotografamo-los de dentro do carro. Rustam manobra para se aproximar. As crianças riem. Algumas chegam-se às janelas, outras escapam-se. Algumas meninas, que tinham começado a gritar ao ver as máquinas fotográficas, fogem. Param a uma distância prudente agora à gargalhada. Aproximam-se do carro quando Rustam as chama e mete conversa com elas. Sim, são afegãs. Não, não vão à escola. Estão tão junto da janela que nem uma foto decente se consegue fazer. Uma menina de uns dez anos conta que apanha verduras desde o meio-dia até às seis da tarde. Com os seus irmãos. O pai também anda pelo mercado: transporta as compras das pessoas até casa delas a troco de uma gorjeta. As meninas não se cansam de nos observar. Uma delas, de repente, suspira e diz qualquer coisa em dari. Rustam ri.
- Que é que ela disse? - queremos saber. - Que giras que são estas senhoras!
- Elas também são muito giras.
RusTecelãs de tapetes, Peshawar.
Os refugiados trabalham dia e noite fazendo tijolos nas fábricas paquistanesas.
Quarta-feira, 9 de Agosto de 2000. Islamabad
Mesmo nas montanhas mais altas e escarpadas, há um atalho que leva ao pico.
Tomamos o pequeno-almoço rapidamente. Às dez temos que estar no vestíbulo do hotel onde um membro da RAWA virá buscar-nos. Temos a grata surpresa de vermos aproximar-se a mesma mulher que nos recebera em Peshawar. Despedimo-nos de Rustam, que nos acompanhara até lá, e partimos com ela. O seu muhrram consegue um táxi e vamos para um dos orfanatos que a organização dirige.
Como em Peshawar, nada sabemos deste centro. O anonimato e o segredo são fundamentais para a segurança das mulheres que aqui trabalham e acolhem cerca de trinta orfãos. Estão todos matriculados em escolas particulares paquistanesas pagas pela organização. Passam as férias de Verão em casa de famílias afegãs.
- Na maioria são bons alunos, meninos e meninas inteligentes, com vontade de aprender - diz-nos uma das responsáveis com quem falamos numa sala grande e luminosa com as paredes cheias de desenhos feitos pelas crianças.
No centro são ensinadas a viver em comunidade: meninos e meninas participam em todos os trabalhos, aprendem a cozinhar e cada um tem a sua tarefa. Com eles vivem permanentemente duas mulheres e há duas professoras que diariamente vêm dar-lhes aulas de persa e de pashtu, as duas línguas maioritárias afegãs que não constam do programa escolar paquistanês.
Este orfanato não é o único que a RAWA tem no Paquistão.
- Por norma - informa-nos a responsável - as crianças chegam aos nossos centros porque algum familiar conhece as nossas actividades. Há alguns que sofrem muito quando chegam: têm saudades dos pais, têm pesadelos devido às desgraças de que foram testemu nhas. Aquela menina de vestido vermelho chorava dia e noite, quando há quatro anos a trouxeram. Os jihadis tinham-lhe assaltado a casa e assassinado o pai.
Perguntamos como se financia a despesa que a educação das crianças e a manutenção de um centro destes pressupõem. Calculam que, por residente, o custo será de mil e quinhentas rupias por mês, contabilizando-se nisto a alimentação, o vestuário, o alojamento e a escola... Fontes de financiamento? Donativos de simpatizantes da RAWA.
Despedimo-nos das crianças que nos cumprimentam em inglês e continuam a sua aula de línguas. A nossa contacto convida-nos a passar para outra sala onde se preparou uma sesão de vídeo, com gravações feitas por pessoas da organização. A maioria das imagens, feitas no Afeganistão, documentam os abusos e a violação dos direitos humanos perpetrados ob o domínio taliban e foram obtidos clandestinamente.
Entra uma das mulheres do centro e fica connosco.
Vemos um vídeo recente, gravado no princípio do Verão, e que documenta os danos ue a seca provocou em grande parte do país. Diz-se que esta é pior seca que a zona sofreu os últimos trinta anos, e poderá ter consequências funestas para a população. De facto, já as stá a ter e calcula-se que um milhão e meio de afegãos corre o risco de morrer nos próxi1os meses. Não há água. Os poços estão secos. Nos canais de rega só há pó. O gado, enfraquecido, não tem pastagens e rebanhos inteiros estão a ser vendidos ao Irão e ao Paquistão.
Noutro vídeo vemos imagens de manifestações organizadas pela RAWA no Paquistão, eclamando a democracia e o respeito pelos direitos humanos no Afeganistão. Enquanto escrevo, chegam-me notícias da última destas manifestações, levada a cabo em lslamabad a dez de Dezembro, dia dos direitos humanos. Os manifestantes, homens e mulheres, traziam letreiros exigindo novamente a liberdade e a democracia para o Afeganistão, afirmando que os direitos das mulheres também são direitos humanos e acusando os taliban de integrismo. Fundamentalistas vindos do Afeganistão e simpatizantes dos taliban agrediram as mulheres feriram gravemente várias pessoas. A polícia paquistanesa carregou sobre os manifestantes deteve alguns. A imprensa, no nosso país, não se fez eco disto.
O terceiro vídeo é o mais violento: a execução pública de uma mulher no estádio de Cabul.
Chamava-se Zarmena. Era mãe de sete filhos.
Acusavam-na de ter assassinado o marido, mas não havia provas. Dizia-se que o marido era taliban; dizia-se que Zarmena era vítima de maus tratos infligidos pelo marido; diziae que ela o teria matado a meio da noite.
Boatos.
Os taliban tinham-na prendido e condenado à morte.
O estádio está cheio de gente. Os taliban obrigam a população a assistir às execuções e presenciar os castigos públicos que se aplicam aos condenados nos estádios das cidades.
Do mesmo modo que obrigam rapazes que levam de casa a participar nestes actos para os embrutecer, para minar os seus espíritos, para os incorporar nas suas fileiras.
No centro do campo, um mullah lê fragmentos do Corão. Vários taliban falam. Expõe-se a acusação, a condenação e a sentença.
A sharia, a lei islâmica, é muito clara nos casos de assassínio e concede à família do morto o direito à vingança e de execução do assassino. Mas contempla outras opções: a família pode perdoar a vida do réu ou exigir-lhe uma indemnização. No estádio de Cabul, os familiares da vítima, no uso do direito que a lei islâmica lhes dá, perdoam Zarmena. Seria aqui que tudo deveria ter terminado: Zarmena deveria ser restituída à liberdade e voltar para casa com os seus filhos, presentes no estádio. Mas não será assim. Os taliban, que afirmam reger-se pela lei islâmica, a única que admitem como válida e que pretendem aplicar a todo o transe, discutem brevemente no centro do campo e anunciam pelos altifalantes que, apesar de tudo, a execução terá lugar. O estádio está cheio. Juntou-se o público para presenciar o que será um acto de escarmento, um castigo exemplar.
Introduzem Zarmena no' estádio, sentada na parte traseira de uma furgoneta descoberta, escoltada por duas mulheres. Mulheres taliban. As três cobertas por burkas azuis. Conduzem-na ao local da execução sobre a relva do campo de futebol. Mandam-na ajoelhar-se. Zarmena vira a cabeça para trás e, através da burka, que nunca deixa de lhe cobrir o corpo, diz qualquer coisa ao seu carrasco, que brande uma arma de cano comprido. Abaixa novamente a cabeça e dão-lhe um tiro na nuca. O corpo cai para trás. A parte de baixo da burka abre-se e deixa à vista as pernas cobertas por umas calças largas e estampadas. As mulheres taliban apressam-se a fechar a burka sobre o corpo inanimado. Os sete filhos de Zarmena assistiram à execução. O som ambiente da cassete grava a reacção do público: pranto e lamentações.
A mulher do centro, que assistiu connosco à projecção, seca os olhos. A nossa contacto traduz as suas palavras:
- Até quando será o Afeganistão uma prisão para as mulheres? Até quando teremos de nos tapar com uma burka para sair à rua e até quando nos negarão o direito de ir ao médico, de estudar e de trabalhar? Quantas mulheres afegãs com formação, profissionais, refu giadas aqui, no Paquistão, são obrigadas a vender hortaliças ou a recolher papel para poder subsistir! Vocês são mulheres como nós. Podem perceber como nos sentimos e o que estamos a passar.
As palavras estão a mais.
A mulher não consegue conter as lágrimas e abandona a sala. - Será possível obter uma cópia destes vídeos?
Queremos ajudar na denúncia. Difundir a realidade duríssima a que se vê submetida a população do Afeganistão e, especialmente, as mulheres.
Saímos do centro acompanhadas pela nossa contacto que nos leva até a um descampado cheio de tendas, as tendas de trapos e plástico que já conhecemos de tanto termos vista outras iguais por todo o lado. São os lares dos refugiados chegados nos últimos anos, o: mais desamparados. Este mísero acampamento, sem água nem luz, não está muito longe de uni dos bairros prósperos da cidade. No dia em que a polícia paquistanesa vier desalojá-los irão para outro lado. Para já estão aqui. Não têm de pagar aluguer pelo terreno que ocupam Muitas das novas casas do bairro, no outro lado da rua, foram construídas pelos refugiados das tendas. É mão-de-obra barata. É a mesma situação das fábricas de tijolos e de outros trabalhos por empreitada.
Para terem água, estas famílias batem á porta dos vizinhos paquistaneses. Alguns deixam-nas encher os baldes, as garrafas. Outros, não; em Rawalpindi a água escasseia, há que extraí-la com bombas que consomem muita energia eléctrica. Os homens que não trabalham na construção civil vendem verduras ou dedicam-se a apanhar papel ou a esgaravatar no lixo. Também recolhem caixotes de madeira que vendem como lenha e que eles mesmo também utilizam para manter a funcionar os fornos onde cozem o pão.
Receberam-nos numa das tendas. Uma mulher abana-nos com um paka. Há moscas por todo o lado. O calor é insuportável. Mal cabemos no pequeno recinto onde continuam entrar mulheres com crianças.
Um recém-nascido de vinte seis dias chora desabaladamente, nu, o corpo cheio de crostas.
- É do calor. Garmi! - diz a mãe.
Um bebé tem o corpito coberto de borbulhas. - Os mosquitos comem-no - diz a mãe.
Outro menino esquelético, que chega pela mão da sua mãe, mostra a barriga inchada pela fome.
Uma mulher traz a perna ligada por largas tiras de pano branco. Queimou-se. - Foi ao hospital?
Ri-se. Ela trata-se a si própria.
Outra mulher conta-nos que já lhe morreram de fome cinco filhos. O marido anda a' papel nas lixeiras. Em cada três ou quatro dias ganha entre cem e cento e cinquenta rupias. Ainda têm outros quatro filhos.
As crianças também trabalham.
A RAWA conseguiu convencer alguns pais de família, e uma professora vem até cá dar aulas a uma quinzena de crianças das- barracas. A organização também proporciona às mulheres alguns trabalhos remunerados de costura. Uma mulher pode bordar cerca de vinte lenços por semana.
As famílias que estão instaladas neste descampado procedem, na sua maioria, de províncias situadas no norte do Afeganistão. Acostumadas às temperaturas baixas, ao frio dos seus lugares de origem, sofrem muito com o calor do Paquistão, aonde chegaram fugidos dos taliban que queimaram as suas casas, os seus campos, as suas lojas.
Antes de partirmos, percorremos um pouco a zona. As caixas de madeira que vendem e utilizam como combustível amontoam-se entre as tendas. Num dos fornos-fogão, uma mulher aquece água. Subimos e descemos em fila indiana por veredas que o ir e vir das pessoas abriu na erva, uma faixa de terra nua e dura. Mais tendas. Mais barracas. Mas basta descer o terrapleno para chegar a uma rua asfaltada com casas verdadeiras e vidro nas janelas. Regressamos ao vestíbulo do hotel onde ficámos de nos encontrar com Rustam e Azada. A nossa contacto vai tratar do problema dos vídeos. Continuaremos em contacto. Despedimo-nos com três beijos.
Vemos Azada a entrar e vamos ao encontro dela. Estivemos apenas vinte e quatro horas sem nos vermos e pareceu-nos uma eternidade. Depressa me dou conta de quanto afecto, quanto carinho sinto por esta mulher e estou consciente da quantidade de laços que entre nós se criaram. Por um momento, aperta-se-me o coração só de pensar no dia em que partiremos, em que regressaremos à Europa, a Barcelona. Tão longe!
Rustam surpreende-nos: levou o carro à oficina e já não bufa nem se esganiça quando arranca.
Temos tempo à justa para chegar ao encontro seguinte na sede do ACNUR. Recebe-nos a pessoa com que já tínhamos contactado antes de partir para cá, a mesma que nos enviara, há uns dias, ao seu colega de Peshawar. Depois de nos cumprimentar afectuosamente, faz -nos um breve resumo da história dos refugiados afegãos e das tarefas que o ACNUR desempenha.
O Paquistão, apesar de nada o obrigar, acolheu os refugiados que começaram a chegar durante a invasão soviética. À medida que a guerra se prolongava, aumentavam as vagas de refugiados que cruzavam a fronteira: uns fugiam das purgas e das reformas comunistas, outros da repressão islamista, todos, definitivamente, da guerra e da destruição. Agora o que impele a população afegã a fugir do país é a seca e para o final do ano espera-se, por esse motivo, uma verdadeira avalanche de novos refugiados. Na altura própria, o Paquistão pediu ajuda ao ACNUR para cuidar dos refugiados. Actualmente existem duzentos e três campos de novos refugiados no Paquistão, todos com a sua escola e a sua clínica. O ACNUR financia as instalações, paga os salários dos professores e do pessoal de saúde bem como os medicamentos. O tratamento dos doentes é gratuito, ainda que, em alguns lugares, se lhes cobre um preço simbólico que é reinvestido no campo, o que já permitiu dotar as clínicas de alguns campos de uma sala de partos. A educação que é dada nas escolas dos campos superior à que recebem os paquistaneses pobres, porque no Paquistão o número de escolas públicas é insuficiente. Os refugiados afegãos estão numa situação melhor do que outros refugiados noutros países porque podem entrar e sair livremente dos campos, arranjar um trabalho e, inclusivamente, ir e vir do Afeganistão sem qualquer espécie de entrave. Por outro lado, quanto à assistência sanitária, não se pode esquecer que os hospitais paquistaneses têm no seu orçamento uma verba destinada ao atendimento dos pobres e indigentes, i que se os refugiados acodem ao hospital, de um modo geral são atendidos. Além disso, exis te um programa do ACNUR de repatriamento voluntário. Muitos dos refugiados que se acolhem a este programa são pobres no Paquistão e continuarão a sê-lo no Afeganistão, e assirr regressam, porque preferem estar no seu país, mas como nos últimos anos já não há registc dos refugiados que chegam, quando alguma família ou grupo de população solicita a ajuda à repatriação, nem sequer se lhe pede qualquer documento. De vez em quando voltam a abrir-se os registos para os recém-chegados se inscreverem nas listas, mas, na verdade, há muitos refugiados que querem ficar, visto já se terem integrado no Paquistão, onde a situação económica é melhor do que no seu país.
Mais uma vez não acredito no que ouço. Nem uma palavra sobre os taliban. Nem uma palavra acerca da violação permanente e sistemática dos direitos humanos no Afeganistão. Não sei onde estarão esses maravilhosos campos de que nos fala. Concluo que esta pessoa nunca entrou num campo e que, desde que chegou ao Paquistão, não saiu do seu escritório, porque manifesta um absoluto desconhecimento da verdade. Ou então, dada a sua posição, não pode falar abertamente da situação real e por isso remeteu-nos para o seu colega de Peshawar que, pelo contrário, o fez.
Metemo-nos no carro.
Sinto-me saturada de imagens e impressões. Quase no limite. Não é angústia, desespero nem mesmo tristeza, mas apenas uma absoluta necessidade de silêncio, de um parêntesis para digerir tudo isto. Uma necessidade imperiosa de estar sozinha para à minha maneira, me libertar desta aflição que até fisicamente me oprime.
Azada anuncia que vamos buscar um homem que já vivera no campo e trabalhara nas fábricas de tijolos, mas que se despedira por não ganhar o suficiente para sustentar a família. Este homem acompanhar-nos-á na visita ao consultório de um médico, também refugiado afegão e seu vizinho, que trata os refugiados de outro bairro, junto a outra fábrica de tijolos. Queria gritar: basta!, já basta de miséria!, já basta de horrores! Queria desistir, fechar os olhos. Mas aguento. Ainda que o desejo de ceder me tente, ainda que tenha vontade de exclamar que já não posso suportá-lo, sei que posso aguentar. Que só devo resistir mais um pouco para superar esta angústia de ter a alma em carne viva, sem protecção, receptiva à dor e, simultaneamente, acompanhada da serena certeza de que não há verdades insuportáveis. Sei que assimilar a dor, submergir-se nela sem resistir, me aproximará dessa linha que tem de se atravessar para crescer, para aprender. Fugir a correr não serve para nada. Avançar até à linha, até ao insuportável, cruzá-la sem medo, descobre-nos novos patamares de força despoja-nos do lastro, da pele velha e apertada da serpente, e arranca-nos do interior do casulo para nos transformar em borboletas.
- Estás bem? -pergunta-me Rustam enquanto guia. - Sim, estou bem. Don 't worry.
Não, de facto não estou bem, mas isto passa. Cruzarei a linha.
Num bairro de ruelas estreitas, cheias de gente, apanhamos o homem que nos guia até aos arrabaldes. Por uma chapada de terra aproximamo-nos de uma pequena construção quadrada, um cubo feito de tijolos sem reboco, mais pequeno do que uma garagem para um só carro, onde este médico, um homem alto e magro, já de certa idade, recebe a sua clientela, os deserdados da terra que vivem do outro lado da chapada. Espreito e a visão das barracas, amontoadas numa depressão do terreno, produz-me um nó na garganta e nubla-me os olhos. Cerro os dentes disposta a resistir e volto a sentar-me no catre de madeira, ouvindo e perguntando.
Durante quase uma década foi médico militar no Afeganistão. Háquatro anos que presta os seus serviços às pessoas da zona. De vez em quando tem problemas com a polícia paquistanesa, porque o seu consultório é ilegal e a todo o momento pode ser encerrado.
Demora três horas para percorrer a distância entre a sua barraca e esta bolsa de pobreza em que vivem os seus pacientes. Agora, no Verão, quase não há trabalho, e, ainda que isso possa variar, não atende mais do que uma quinzena de doentes por dia. Variam também as doenças mais frequentes, que dependem das estações do ano: no Inverno predominam as bronquites, as gripes, as anginas e as pneumonias; no Verão abundam as diarreias, as gastrenterites, a disentria, a malária e o tifo, doenças infecciosas, próprias de populações que vivem em condições higiénicas precárias, como sucede neste lugar onde não há latrinas nem esgotos e as moscas e os mosquitos se encarregam de transmitir os germes.
Este homem atende os doentes gratuitamente e só lhes leva o preço dos medicamentos que ele mesmo tem de comprar. Adquire-os no bazar. Se comprar por grosso fazem-lhe um desconto e é com essa margem que ele sobrevive. No consultório, além do catre em que estamos sentadas, há uma estante com medicamentos, uma mesa e uma cadeira. Em cima da mesa, um microscópio que lhe permite diagnosticar os casos de malária.
- Não, não há programa de vacinação infantil - responde à nossa pergunta, enquanto se sorri com certa tristeza mas sem um grama de amargura. É um homem animoso e tranquilo, que fala com esperança do seu trabalho, sentado numa cadeira de verga; com o aprumo, a dignidade e a elegância próprios de um médico de prestígio, um bom profissional respeitado pela comunidade.
Despede-se de nós à porta do consultório. Os seus modos, atitudes e respostas não teriam sido diferentes se nos tivesse recebido no escritório de uma clínica privada, com poltronas de couro, secretária de acaju, tapetes persas e títulos emoldurados nas paredes.
Fora espera-nos o seu vizinho, o homem que deixou a fábrica de tijolos por uma de sandálias, em que ganha mais. Agradece ao médico por nos ter recebido. Este responde-lhe com uma inclinação de cabeça enquanto lhe aperta a mão. Depois entra no consultório.
O nosso guia leva-nos para a zona da fábrica de tijolos onde se preparou mais um encontro. O responsável por um grupo de famílias acompanha-nos entre as fileiras de tijolos até a uma das vivendas. As crianças da vizinhança rodeiam-nos e seguem-nos para todos os lados: observam-nos, riem-se, competem entre eles para ficar nas fotografias, até que o responsável, com cara de poucos amigos, os corre. Chegamos à casa onde nos espera um grupo de mulheres. Rustam e o nosso contacto deverão esperar fora: purdah.
São mulheres das montanhas, pashtun na maioria. Chama-me a atenção a quantidade de jóias e pearcings de grande tamanho, numa das asas do nariz, com que se adornam. Os seus vestidos também têm uma profusão de ornatos de metal e fico fascinada pelo traje de uma delas: vermelho, pano grosso, inteiramente coberto por moedas, centenas de moedas que soam como guizos quando se move. Azada contar-me-á depois que as mulheres das montanhas costumam usar ainda mais adornos e vestidos mais ornamentados, e que algumas usam brincos e arrecadas ocos de prata que enchem de hawang, uma substância aromática que usam como perfume. Conheço esse aroma. Por várias ocasiões, nas nossas reuniões com mulheres, senti-o, ainda que o não soubesse identificar: um aroma denso, entre o incenso, o cardamomo e o cravinho, que impregna as suas roupas.
Estas famílias de refugiados chegaram ao Paquistão há dezoito anos, logo que começou o levantamento contra a invasão das tropas soviéticas. Estas mulheres não passaram pelos horrores da guerra civil: não foram vítimas das violações, raptos e maus tratos que os jiha dis, islamistas fundamentalistas, infligiram às mulheres do seu próprio povo; não padeceram a repressão e o terror impostos pelos taliban. Refugiadas desde há dezoito anos, vivendo em condições precárias, passando fome, talvez, mas não viveram o horror. E isto vê-se nos seus olhos alegres, na sua atitude descontraída. Quando riem, fazem-no sem nenhum véu de tristeza, dessa tristeza afegã que os olhos de outros refugiados, sobretudo os mais recentes, ressumam. Estar com elas é como um alento de ar fresco.
À saída aproxima-se de nós um ancião. Sentir-se-ia honrado se quiséssemos entrar em sua casa e tomar uma chávena de chá. Azada agradece em nosso nome, mas não pode ser. pois esperam-nos noutro lugar. Voltamos para o carro que se está a portar lindamente. Nós as quatro atrás, Rustarn ao volante e o homem no outro lugar da frente. Vamos a sua casa, à sua loja de roupas, onde a sua mulher e um nutrido grupo de vizinhas nos esperam. Entramos na loja e sentamo-nos no chão. Os homens ficam de fora. Rustam nem sequer entra no recinto. O dono da loja sente-se orgulhoso pela nossa visita. Para nos homenagear, traz do bazar um refresco para cada uma de nós. Relembra os tempos em que trabalhava fazendo tijolos e alegra-se por ter tomado a decisão de se mudar para cidade. Com o seu emprego na fábrica de sandálias pode dar de comer à sua família.
Olho à minha volta. A tenda abarracada é relativamente grande, tem paredes feitas de fardos, trapos e plásticos e um ventilador no tecto; a baixela amontoa-se num escorredor. Uma das mulheres com quem conversamos, ao ouvir dizer que a Sara é jornalista pergunta-lhe em que faculdade estudou, provavelmente confundida pelo seu aspecto afegão, e acrescenta:
- Eu estudei Jornalismo em Cabul. Novamente este nó na garganta.
A mulher morena que está sentada diante da jornalista de Cabul era professora na universidade. Aqui são refugiadas.
Queremos tirar umas fotografias. A professora universitária ajeita o cabelo e o tchador. Todavia, o dono da loja diz-nos que podemos fotografar as crianças e a tenda, mas não as mulheres. Levantam-se todas e saem sem protestar. Na porta da loja, debaixo de um lam pião, as mulheres admiram o tchador grená da Sara. Subitamente, atrás de mim, oiço uma voz que me chama:
- Madam, madam.
É uma menina de uns treze ou catorze anos. Fala um inglês que a mim me parece impecável, com facilidade, fluência e sobretudo desembaraço. Três ou quatro garotas da sua idade rodeiam-na, espantadas com o seu atrevimento. Felicito-a pelo seu inglês. Estuda em casa. As suas amigas não sabem inglês ou só um pouco, além do que, presume com graça, são tímidas e têm vergonha. Quando for grande quer ser jornalista para escrever nos jornais sobre o seu país. Interrogo-me se a sua vontade bastará para realizar os seus sonhos. Os pais dela são, com certeza, gente instruída, talvez seja filha da jornalista ou da professora universitária; talvez consiga os meios, os recursos necessários. Ou talvez não. Desejo ardentemente que essa rapariga o consiga. Um sistema de bolsas de estudo seria o ideal... Bolsas para meninas como esta, com uma vontade de ferro, como a sobrinha de Nasreen, que também não poderá estudar Medicina. Do fundo do coração, desejo a esta menina muita sorte, digo-lhe que tenho a certeza de que será uma grande jornalista. Tem no olhar tanta determinação, tanta segurança no que diz e no seu porte direito, que seria injusto não o conseguir. É uma lutadora. Pode ser que nela se cumpra o provérbio persa que reza: "Mesmo nas montanhas mais altas e escarpadas, há um atalho que leva ao pico". Inshallah!
Saímos do recinto amuralhado pela portinhola que dá para uma rua lateral. Rustam está à nossa espera junto do carro, na rua seguinte, mais larga e asfaltada. O nosso guia desta tarde leva-nos até lá. Gratas por tudo quanto fez por nós, despedimo-nos dele. Fica de pé, na esquina, até nos afastarmos.
Já escureceu. Propomos cear no restaurante de que Rustam nos falou ontem: um buffet situado no alto de uma das montanhas que rodeiam a cidade. O local iluminado desde baixo parece uma estrela mais no céu negro que se confunde com a sombra da montanha. No cruzamento em que começa a estrada que sobe a encosta, o nosso carro é mandado parar por uma patrulha militar. Do outro lado, um carro que vinha em sentido contrário também está a ser controlado. Rustam explica ao polícia que tencionamos ir para o restaurante. Somos turistas. Focam-nos com as lanternas. Observam-nos.
- Não se pode passar. É demasiado perigoso. Rustam insiste.
- Impossível. Voltem para trás.
Meliantes, assaltantes, bandidos, contrabandistas, traficantes... De noite, a montanha, cinco minutos de Islamabad, transforma-se na gruta de Ali Babá e os quarenta ladrões. Jantamos num restaurante afegão. E conversamos. Perguntamos-lhes se há mais pessoas, mais afegãos como eles, gente que dê uma mãozinha, lutando para melhorar as coisas e para ajudar outros a melhorar de vida. Claro que há. Ainda que muitos já estejam cansados, e outros tantos tenham que dedicar todos os seus esforços a ajudar a família e a encon trar o necessário para dar de comer aos filhos. Primeiro há que comer, as pessoas têm de poder viver com um mínimo de dignidade. Depois, então, poder-se-á levar a cabo projecta mais ambiciosos.
- Que é que os afegãos, realmente, querem? Rustam tem uma ideia muito clara sobre isso:
- Queremos que nos deixem viver em paz, que acabe a ingerência estrangeira qu desde há um século destrói o nosso país, que nos deixem a nós decidir, fazer as coisas à nossa maneira, estabelecer uma democracia e recuperar a liberdade que nos permita exercer
os nossos direitos. Os intelectuais afegãos não podem virar as costas ao país. Os que foram para longe, para o Ocidente, e querem esquecer a sua condição de afegãos,.traem o Afeganistão e o seu povo. Há que lutar pela mudança e há que lutar aqui.
Azada tem de estar cedo de volta à casa dos tios. Acompanhamo-la até ao sítio em que um dos primos a espera e regressamos à casa de Rustam. Ainda nem tínhamos retomado conversa quando cai um repentino dilúvio. A monção?
- Sabem o que me apetecia? - pergunto.
- Ir até lá fora - responde Rustam, sem hesitar. - Isso mesmo.
- Go! - diz-me com toda a naturalidade.
Salto pela janela para o terraço, para não incomodar a família de Rustam que já dorme. A água chega-me aos tornozelos. Num minuto estou molhada até aos ossos. Que maravilha. Sinto-me feliz. Atravessei a linha escura da tristeza e, como já adivinhara, a paz e um maior grau de consciência ocuparam o seu lugar. Tirito de frio. Volto a entrar pela janela.
- Rápido, toma um duche quente e muda de roupa - diz-me Rustam.
A Sara e a Meme tomam-me por louca, por inconsciente, por extravagante, por chalada. Pouco me importa. Aprecio, pelo contrário, a reacção de Rustam. Nada há que mais agradeça do que poder ser eu mesma, ser aceite tal como sou, e gosto das pessoas que assumem o insólito com naturalidade. Antes de me deitar, anoto no meu caderno:
"Dancei sob a monção!"
Quinta-feira, 10 de Agosto de 2000. Peshawar
Se o vento não soprar, a árvore não se move.
Logo de manhã: cedo, voltamos para Peshawar e seguimos directamente para o consulado taliban. Saberemos hoje se nos deram o visto. Como na semana passada, o motorista estaciona numa ruela lateral e acompanha-nos até ao interior da repartição. Fazem-nos esperar. Há mais gente na sala. Duas mulheres de aspecto ocidental que vestem à afegã e um homem com passaporte suíço. O funcionário do outro dia saí da repartição, cumprimenta-nos com uma pequena vénia, e segue para o edificio principal. Os minutos vão passando. Nem o funcionário regressa, nem ninguém nos dá qualquer informação. Dez minutos, quinze, vinte. Por fim, o nosso homem reaparece com um molho de papéis. Quando chega a nossa vez diz-nos que lamenta muito, mas que o cônsul saiu sem assinar os vistos e que até amanhã não se pode fazer nada.
Juntamo-nos a Azada, que nos espera no carro. - Até amanhã, nada.
Aproveitamos para fazer alguns recados. De repente lembramo-nos de que amanhã é sexta-feira. Dia santo! Será que o consulado abre? Damos meia volta e apresentamo-nos de novo ali. O nosso motorista vai pedir informações. Sim, amanhã estão abertos, mas só até ao meio-dia.
Respiramos de alivio. A verdade é que começávamos a pensar que nos estavam a aldrabar, que nos fariam vir dia após dia sempre com qualquer desculpa, que iriam deixando o tempo passar até que as férias se nos acabassem. Não negariam o visto, nem tão-pouco no-lo dariam. E eles ficavam bem. A ideia não é tão disparatada como à primeira vista possa parecer, dada a campanha para melhorar a sua imagem em que os taliban estão apostados para conseguirem reconhecimento e legítimação por parte da comunidade internacional.
Ao chegar a casa, Najiba recebe-nos afectuosa como sempre.
As crianças estão bem, sem ponta de febre, e já não há preocupação nos seus olhos de mãe.
Abriu-se outra esplêndida folha na palmeira do pátio.
Dedicamos a tarde a uma barrela, desta vez à mão, na grande vasilha de metal, e a conversar, deitadas na varanda.
Quando o marido de Najiba chega, Azada e ele enredam-se numa longa conversa acerca da nossa viagem a Cabul, para prevenir qualquer eventualidade, para não deixar pontas soltas, para decidir como e de que maneira deverão fazer-se as coisas. É emocionante.
Rustam não poderá acompanhar-nos porque a barba não está suficientemente crescida. Azada viajará sob nome falso. Um nome que nos seja fácil de recordar: olha-me e opta pelo nome que escolhera meses atrás, quando mal nos conhecíamos e lhe pedi que fosse ela a dar um nome à protagonista do meu romance sobre o Afeganistão.
Para todos os efeitos, nós seremos meras turistas e comportar-nos-emos como tal sempre que estivermos em público. A nossa relação com a intérprete será meramente profissional, para proteger a sua identidade e não pôr a sua segurança em perigo. Se surgir algum problema e ela não puder vir a algum dos nossos encontros, fará chegar-nos, por alguém de confiança, uma mensagem. E se tal também não for possível, deveremos continuar a comportar-nos como turistas e regressar por nossa própria conta ao Paquistão.
-Don't worry, vai correr tudo bem.
Descreve-nos em seguida o aspecto dos taliban, que se distinguem da população não só pelos seus magníficos turbantes, mas também pela roupa que envergam. Descreve-nos as cachamorras que costumam trazer e que enchem de moedas para que os golpes sejam mais contundentes: pessoas há que morreram em consequência de uma tunda de que qualquer um pode ser vítima em plena rua, por uma insignificância cometida.
Antes de nos deitarmos, Azada faz uma lista dos lugares de Cabul que considera importantes e nos quer mostrar. Estamos de tal modo certas de que amanhã teremos os vistos, que fazemos os planos como se já os tivéssemos. E por que não? Está tudo a correr tão bem...
Enquanto tento conciliar o sono, vou filosofando. Não acredito no destino, nem na sorte, menos ainda na casualidade ou na predestinação, mas creio sinceramente na vida e em mim mesma, nas escolhas que cada um faz frente à infinidade de possibilidades que se nos abrem. Olhando para trás, é fácil reconhecer um fio condutor de decisões concatenadas e de circunstâncias, favoráveis ou adversas, que de algum modo nos vão trazendo até ao presente. "Se o vento não soprar, a árvore não se move", reza um provérbio da região de Cabul. Tudo o que fazemos tem causa e consequência. Ainda que, na maioria das vezes, nós as desconheçamos.
Sexta-feira, 11 de Agosto de 2000. Peshawar
De coração para coração há sempre um caminho.
Levantamo-nos cedo, impacientes por ter o visto na mão. Dizemo-nos que, se fosse para os negarem, já ontem no-lo teriam comunicado. Na sala de espera há muita gente. Entre as pessoas há um rapaz ocidental, loiro e jovem, que me sorri.
- Pára de olhar para as pessoas - diz-me a Meme.
Demasiado tarde. O rapaz aproxima-se. Mascava um pouco de espanhol, o castelhano dos que viajaram pela América Latina. Quer saber se vamos para Cabul. Bem, se conseguirmos o visto... ele também irá para Cabul amanhã, se conseguir o visto. A conversa esmore ce. Nada fazemos para o evitar. Não queremos chegar ao ponto em que será inevitável falar da viagem até à capital e que pode degenerar na lógica e consabida pergunta: por que não irmos juntos? Não nos convém de maneira nenhuma. É melhor cortar já o mal pela raiz, mesmo correndo o risco de parecermos grosseiras, do que vermo-nos, depois, metidas num sarilho ou ter de dar explicações.
Finalmente mandam-nos entrar na repartição. O funcionário mais velho cumprimenta-nos, muito amável, com o habitual sorriso. Busca e rebusca num considerável monte de papéis até encontrar os nossos requerimentos que estão agrafados juntos. Pedem-nos os passaportes. O belíssimo diabo taliban preguiça atrás da secretária. Carimbam-nos o visto.
Vamos partir! Vamos partir!
Saímos da repartição reprimindo a nossa alegria e aguentamo-nos até nos juntarmos a Azada no carro.
- Vamos a Cabul!
A primeira coisa que fazemos é festejar. O motorista leva-nos até a uma loja afegã, estaciona e entramos para comer um gelado. Depois passamos por uma farmácia para repor as nossas provisões, quase esgotadas, de antidiarreicos, e acompanhamos Azada a um dos clubes de internet para pôr em dia a sua correspondência. Enquanto ela envia mensagens, metemo-nos num supermercado moderno que existe na mesma zona, e compramos mantimentos para a viagem: bolachas, doces, caramelos... e também adquirimos os ingredientes para fazer o jantar: macarrão com atum e molho de tomate.
Comemos perto porque o nosso motorista está indisposto. Enjoou. - É do calor. Garmí.
Depois de comer qualquer coisa e descansar durante algum tempo, recupera o suficiente para nos levar para casa, onde, ao ver os nossos vistos, Najiba nos manifesta a sua alegria. Também não poderemos visitar hoje o campo de refugiados a que o marido de Najiba nos poderia facilitar o acesso. De facto sairemos do Paquistão sem o ter visitado. É mais uma coisa a juntar à lista de visitas e entrevistas que ficarão para uma segunda viagem... Talvez no ano que vem?...
Vamos às compras. A um mercado onde vendem objectos e roupas em segunda mão. A Sara precisa de uma saca mais manejável que possa levar debaixo da burka e onde caibam o gravador, a máquina fotográfica e o seu caderno de notas. Azada procura sandálias. O homem que vende carteiras, malas e sacos de desporto usados é engenheiro. Era engenheiro no Afeganistão. Regressamos ao carro. Azada vai com o motorista tratar de outra coisa. Esperamo-la no interior do veículo. À torreira do sol. O calor é o sono dos lagartos. Numa das paragens do mercado que se avistam da janela do carro, um homem idoso lava os pés, as mãos e a cara e salpica o solo poeirento com o resto da água. Por fim, Azada regressa. Dá-me dois livros de contos que comprou para mim. Um deles, em dari. O outro é uma edição bilingue, inglês e dari, e contém alguns contos orientais que já conheço, mas o volume completa-se com uma colecção de histórias curtas e divertidas que tem o mesmo personagem como protagonista: Nasruddin. Um malandro, um aldrabão e um sobrevivente que vive do seu engenho e das debilidades alheias, o equivalente ao nosso Lazarillo, ao Buscón, ou ao Till Eulenspiegel alemão. Esses personagens descarados e simpáticos que fazem parte da tradição popular de todas as culturas e que, ao mesmo tempo, fazem rir e pensar. São muitos os países que disputam a paternidade e as origens de Nasruddin. Na Turquia até lhe dedicam um dia que se festeja com grande pompa, mas também o Irão reivindica este personagem, enquanto no Uzbequistão se afirma que Nasruddin nasceu na antiga e famosa cidade de Bukara que, na sua época de maior esplendor, foi pátria da cultura, da poesia e das artes. Seja donde for, o ponto é que Nasruddin é uma personagem famosa em toda a Ásia Central e que, no Afeganistão, toda a gente o conhece e se diverte com as suas aventuras.
Dali vamos até a um parque situado no centro da cidade onde é costume haver prostitutas afegãs, com o fito de entrevistar algumas delas. Seja pela hora, seja pela nossa inexperiência, não encontramos nenhuma, mas vemos, perto da entrada do parque, sentada no chão, junto a uma das veredas por onde as pessoas passeiam, uma mulher de idade, com a urka levantada por cima da cabeça, e que pede esmola. Azada, com a sua costumeira afabilidade, entabula conversa com ela. Solícita e respeitosa, trata-a por mãe, maadar, e interessa-se pela sua situação e pela sua vida.
A mulher, obviamente afegã, tem a cargo a filha e os netos. Quer ela quer a filha são viúvas. Há tempos conseguiu trabalho na casa de uma senhora estrangeira. Lavava-lhe a roupa. Até ao dia em que a senhora desapareceu. Agora pede esmola todo o dia e apanha tudo o que encontra. Abre um atado onde traz umas côdeas de pão duro e um saco de plástico com dois tomates.
- Que é que nos trazes, avó? - é a primeira pergunta que as crianças lhe fazem quando, de noite, a ouvem chegar.
A mulher desata a chorar, com a angústia do pranto que foi reprimido demasiado tempo, esse choro por todas as aflições acumuladas sem poder confiar-se a ninguém, tendo que aguentar, dia após dia, sem desfalecer, pela filha viúva, pelos netos esfomeados Encontrar alguém como Azada, com essa enorme humanidade que irradia normalmente, disposta a escutar com simpatia, com um sincero interesse, abre as comportas de todo o sofri mento acumulado.
Há umas semanas, Azada escreveu-me anunciando que pensava nesta mulher para ocu par um dos postos de trabalho que se poderiam criar no caso de se conseguir o financiamento para o projecto que a RAWCA elaborou para este ano e que inclui uma cantina escolar.
Conheço um provérbio que diz: "De coração para coração há sempre um caminho: Azada sabe encontrar esse caminho.
Antes de voltar para casa fazemos fotocópias dos nossos passaportes e do visto taliban. Pelo sim e pelo não, o marido de Najiba guardará uma cópia dos nossos documentos. Parece-nos uma medida inteligente de prudência, ainda que não tenhamos medo. Faz-nos bem comprovar a previsão dos nossos amigos, a sua sensatez e serenidade.
Numa loja de comidas preparadas, compramos dois frangos assados para o almoço amanhã quando já estivermos a caminho de Cabul e, numa loja do centro, Azada conseg finalmente, comprar as sandálias. Tabrik!
Já é noite quando chegamos a casa. Espera-nos aí o tio de Azada, que veio desde o campo de refugiados para nos acompanhar ao Afeganistão. Saúda-nos com essa estraordinária timidez dos homens afegãos e com um sorriso encantador. Azada avisou-o logo que obtivemos os vistos e este homem largou tudo para responder ao seu pedido. Não sei como funcionam as redes de comunicação entre eles, porque no campo não há telefone. Alguém deve ter ido lá para lhe dar o recado. Mais uma vez me parece admirável a simplicidade com que aquela gente evita e ultrapassa os obstáculos.
Najiba preparou um arroz branco, mas insistimos em cozer a massa e convidá-los.
As duas travessas de massa com o refogado de cebola, tomate e atum desaparecem. Hoje não há tempo para tertúlias. Preparamos os sacos. Azada arranjou duas burkas para a Meme e para mim. A Sara comprou outra no mercado. Provamo-las. Salpico com água de colónia a parte interior da minha na zona da cabeça e da cara. São burkas usadas reconheço que, em questão de odores, sou uma maníaca.
Pela milionésima vez fazemos contas para ver se o dinheiro nos vai chegar para o hotel transportes e despesas que possam surgir durante a viagem. Entregamos a Najiba as fotocópias dos documentos. Verificamos se temos tudo pronto. Estamos novamente todas metidas no quarto. Os homens fora. Purdah.
Saio para a varanda.
O tio de Azada fuma. O marido de Najiba diz-lhe qualquer coisa, provavelmente que eu sou fumadora, porque imediatamente me é oferecido um cigarro.
Aceito e fumamos em silêncio. Amanhã estaremos em Cabul.
Sábado, 12 de Agosto de 2000. Afeganistão
A prosperidade só se aprecia quando a calamidade bate à porta.
Tínhamos regulado os despertadores para as quatro e um quarto da manhã. Movemo-nos silenciosamente para não acordar as crianças nem despertar a atenção dos vizinhos. Ainda está escuro, mas uma ligeira claridade vai tingindo o céu negro de azul-marinho. Fazemos as camas, fazemos as malas, lavamo-nos e vestimo-nos. Saio para fumar um cigarro lá fora. O tio de Azada dormiu na varanda. Ainda está deitado no tapete, junto da parede. Para não o incomodar, afasto-me para o outro lado da varanda. Às cinco em ponto, o vizinho do táxi vem buscar-nos. Antes de sair de casa pomos as burkas com que atravessaremos Peshawar e viajaremos até à cidade fronteiriça de Torkam. A partir deste momento, Azada será Palwasha, a nossa intérprete afegã, e o seu tio será o nosso (e dela) muhrram. Palwasha é um nome de mulher pashtun que significa "luz do sol ao amanhecer".
A minha primeira sensação, ao desaparecer debaixo da burka, é precisamente essa. A de ter desaparecido, de ter deixado de existir, de não ser nem estar em parte alguma, excepto no interior deste sudário azul que limita o espaço em que existo, um espaço equivalente ao contorno do meu corpo.
Saímos da cidade e chegamos ao primeiro controle policial ainda em solo paquistanês. Um grande cartaz proíbe a passagem de estrangeiros. Entramos no território conhecido como zona tribal e sem lei da província paquistanesa da Fronteira do Noroeste. Esta franja de território fronteiriço é uma terra de ninguém sobre a qual nem o Paquistão nem o Afeganistão exercem qualquer espécie de controlo. Aqui quem manda são os chefes tribais e é a sua lei que impera. Junto à estrada que atravessa a lendária passagem do Khiber, sucedem-se os controlos. Param-nos em três deles, ainda que haja muitos mais. A cada ocasião, o nosso motorista apear-se-á do carro e terá de pagar aos soldados armados o preço que lhe fixarem: cinquenta, cem rupias. O corpo policial paquistanês é conhecido pela sua corrupção. Mesmo na cidade, a polícia de trânsito pode mandar parar qualquer carro e o incidente resolve-se, haja ou não infracção, pagando um suborno. Julgo que fazemos a viagem tapadas pelas burkas para evitar que a nossa condição de estrangeiras aumente a extorsão e nos faça pagar somas exorbitantes. Cada vez que ultrapassamos um controlo levantamos a viseira das burkas. A um sinal de Palwasha, voltamos a baixá-las.
Subimos e voltamos a subir, entranhando-nos nas montanhas, até que, ao olhar para trás, já se não vê o vale onde se encontra Peshawar. Subitamente, o motorista aponta para um lugar no declive, à nossa direita. Na encosta da montanha, trepando por um atalho invisível, uma fila de homens a pé, com volumes às costas, avança serpenteando montanha acima. Contrabandistas. Às escâncaras. O contrabando, em pequena ou grande escala, que entra no Paquistão, vindo do Afeganistão, adquiriu tais proporções que agora mesmo, enquanto escrevo, acabo de saber que o governo paquistanês encerrou a fronteira com o Afeganistão para impedir a entrada a uma nova avalanche de refugiados desesperados que fogem do país, mas também para tentar impedir a entrada de contrabando, porquanto os produtos paquistaneses não conseguem competir com os preços do mercado que se abastece com mercadorias trazidas deste modo.
Uma parte de mim está alerta para que nada nos denuncie e ninguém suspeite, para reagir à menor indicação de Palwasha ou do nosso muhrram, mas a outra parte voa entre os cumes, feliz e incrédula: estou aqui, atravesso a famosa e lendária passagem do Khiber que só adquiriu importância como estrada praticável com o advento do império mongol. Para as suas incursões e expedições de saque à índia, as anteriores dinastias no poder preferiram a passagem de Gomal, mais para sul, a leste de Ghazni, a magnífica e riquíssima capital que há mil anos competiu com Bagdad quanto a esplendor, e cujos exércitos, de maioria pashtun, criaram os seus próprios feudos na índia. Ghazni foi destruída século e meio depois e começou então a ascensão da estrela do sultanato de Delhi: um estado muçulmano, de cultura persa, situado num país hindu, governado por turcos que gozavam do apoio pashtun. Será aí que deveremos procurar as origens dos muçulmanos da índia e da partição que culminaria na criação do Paquistão?
Outra rota alternativa evitava a passagem do Khyber pelo norte. É a rota que Alexandre Magno utilizou depois de atravessar o Afeganistão e o Amu Daria para entrar no vale de Swat, onde conquistou as antigas fortalezas de Bazira e Ora, antes de avançar para a planície de Peshawar.
Chegamos ao posto fronteiriço de Torkam, cerca das oito da manhã, meia hora depois da abertura da fronteira. Há aqui um ror de gente. Na rua principal há sítios para comer e sucedem-se as filas de carros estacionados cujos condutores se disputam para atrair a aten ção dos viajantes. De um lado da linha invisível da fronteira estão os carros paquistaneses que levarão as pessoas até Peshawar. Do outro, os carros afegãos para os passageiros provenientes do Paquistão. Pela janela do carro vemos alguns soldados paquistaneses e, sobretudo, gente, muita gente: homens e mulheres afegãos que vão e vêm. A fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão é totalmente permeável.
O motorista acompanha-nos até ao posto fronteiriço paquistanês, onde temos de carim bar os nossos passaportes. Palwasha, a nossa intérprete, por ser afegã, não tem de mostrar o~ seus documentos para entrar ou sair do país e esperar-nos-á no carro, enquanto o seu tio, nosso muhrram, trata de alugar um carro para prosseguirmos viagem em território afegão. Saímos do carro e levantamos a parte dianteira da burka. Este traje tem incorporada uma espécie de capacete ou gorro redondo e plano que se encaixa no alto da cabeça. Pet frente, o tecido que cobre o rosto, com a rede à altura dos olhos, e a parte superior do corpo é liso e tem uma grande quantidade de bordados; a parte franzida e pregueada, que cai po trás até ao chão, envolve o corpo todo. Estão cosidas uma à outra e unidas ao perímetro cari cular do capacete, encaixado na testa de tal modo que a burka não escorrega mesmo se parte da frente for atirada para trás para deixar descoberto o rosto.
Agora é mais do que conveniente que se note que somos estrangeiras.
Apresentamos os passaportes na repartição paquistanesa. Um funcionário, sentado uma enorme mesa de madeira, convida-nos a sentar. Com grandes vagares, toma nota, à mão, numa folha de papel em branco, de todos os nossos dados. Esperamos com igual calma. Estamos a um passo de conseguir o que queremos. Paciência. Quando finalment escreveu tudo o que queria saber, levanta-se e sai da sala. Relaxamo-nos. Olhamo-nos , temos um ataque de riso ao vermo-nos em tais preparos, com as burkas enfiadas cabeça abaixo, como antigas toucas de freira. Quando regressa, diz-nos que temos de esperar uns momentos. Pouco depois entra um homem alto, de modos agradáveis, sorriso franco e olhar penetrante. Cumprimenta-nos, aperta-nos a mão e senta-se informalmente na borda da mesa Não se apresenta. Depois saberemos que pertence aos Serviços Secretos paquistaneses.
Começa por nos dizer que chegamos até aqui de modo ilegal, já que deveríamos ter pedido uma permissão especial para atravessar a passagem do Khyber, zona de bandidos traficantes e delinquentes, que ninguém pode atravessar sem escolta militar. Trata-se de un delito e deveria mandar-nos para trás. Enganámos os controles, ocultando-nos debaixo das burkas, e ele quer saber porquê.
Mostramo-nos genuinamente admiradas: quando pedimos o visto no consulado talibar ninguém nos disse que também era necessária uma autorização especial. Fingimo-nos moderadamente aflitas e suficientemente arrependidas: nem nos passava pela cabeça que estivéssemos a cometer um delito.
Provavelmente o que queríamos era entrar clandestinamente no Afeganistão, insinua enquanto nos olha firmemente. Será que somos jornalistas?
Nós? Jornalistas? Não, de forma alguma e, aliás, não queremos entrar no Afeganistã, ~ às escondidas. Para quê, se até temos o visto nos passaportes?
Volta ao uso das burkas.
Quem é que nos disse para as usar? Quem as forneceu? É obvio que já não são novas, que são em segunda mão. Onde é que as encontrámos?
Poderíamos ter dito que as comprámos ontem à tarde, na feira da ladra, mas preferimos largar-lhe uma enfiada de tolices: com a burka, sentimo-nos mais protegidas dos olhares das pessoas; estamos fartas de ser alvo das crianças na rua; os mendigos dão-nos cabo do juízo; tudo isso leva-nos a usar a burka. Além disso, sabemos que as mulheres no Afeganistão têm de a usar.
O homem de olhos e nariz de águia vira-se agora para as nossas profissões. Quer pormenores, o nome das empresas para que trabalhamos, o género de trabalho que realizamos...
Está atento, à espera de nos pilhar numa contradição, mas nós também estamos alerta, e respondemos às perguntas com secura, evitando explicações longas para não dizer mais do que o devido, para não cairmos nalguma esparrela. Somos, e devemos parecer, turistas. Nem sequer nos armamos em turistas bem informadas ou demasiado inteligentes. Quando não sabemos o que responder, fingimos que não percebemos a pergunta.
Muda de tom e, sereno e amável, parecendo ter terminado o interrogatório, pergunta como tem corrido a nossa estadia no Paquistão. Interessa-se pelo que fizemos durante estes dias. Pois visitámos o museu de Peshawar, passamos uns dias em Islamabad...
- Em que hotel de Islamabad estiveram hospedadas? - pergunta rapidamente. Nem hesitamos e pespegamos-lhe com o nome do melhor da cidade.
- Podem dizer-me o número do quarto? Entreolhamo-nos, desconcertadas. Abanamos a cabeça. Não. Não nos lembramos.
- Mas estavam em quartos individuais ou apenas num para as três? Um para as três, claro.
Faz uma pausa, provavelmente para nos inquietar ou para nos obrigar a preencher o silêncio com explicações que não pediu, mas nós também não nascemos ontem, já vimos muitos filmes de espiões e não caímos na armadilha. Caladas, esperamos.
Trabalhamos para o governo do nosso país ou para alguma instituição pública? Não. Então, se não somos jornalistas nem temos relações com o mundo da informação, a que título estamos no Afeganistão? Quem é que queremos encontrar por lá? Qual é o fim da nossa viagem?
Só queremos viajar, fazer turismo e visitar Cabul.
Não se pode fazer turismo no Afeganistão! Está tudo destruído, Cabul é uma ruína, o país está em guerra.
Proponho à Sara que lhe fale da rota da seda, do fascínio pela história antiga e pelo passado lendário da Ásia Central.
- Deixa-te de tolices. Qual rota da seda qual carapuça! - replica em catalão.
O nosso inquiridor passa para a questão da intérprete que vem connosco. Quer saber como é que a encontrámos, de onde a conhecemos.
- Foi o hotel que a arranjou. Quando nos deram o visto, perguntámos na recepção para ir ao Afeganistão precisamos de uma intérprete e nós preferíamos, caso fosse possível uma mulher.
Observa-nos pensativo com os seus olhos penetrantes e levanta-se determinado.
- Vamos lá falar com essa intérprete - diz, enquanto caminha para a porta. Diz ao motorista para o acompanhar.
Agora é que vão ser elas, pensamos nós. Depois de chegar até aqui, vamos ter que dar meia volta e adeus Afeganistão. Sobre estes pormenores não há nada de combinado com Palwasha e ela não pode adivinhar o que acabámos de inventar. Ou, se calhar?... Logo que vemos entrar, coberta pela burka, seguida pelo homem dos Serviços Secretos, a Sara, rapii díssima, exclama:
- Mas nós já lhe dissemos que foi o hotel quem nos arranjou a intérprete! Palwasha percebe logo tudo e confirma a nossa versão.
Agora, chega-lhe a vez de responder a um nunca mais acabar de perguntas: nome morada em Peshawar, nome dos pais, dos familiares com quem é suposto viver. Isso, pele menos, já estava combinado de antemão. Escondida pela burka, Palwasha responde, segura enquanto o homem toma nota de tudo e garante que vai verificar, de alto abaixo, tudo o que se declarou. Para a intérprete afegã não há sorrisos nem luva branca. O homem é correcto mas a simpatia reservou-a toda para nós, para as estrangeiras ocidentais. Talvez nem seja de propósito, se calhar, falar com uma burka faz com que a gente se esqueça que há um ser humano por debaixo.
Volta a insistir connosco: que interesse poderemos ter em visitar o Afeganistão, un país destruido pela guerra, sem qualquer atractivo turístico. Mas o que acima de tudo nos parece mais suspeito são as burkas, até que a Meme,intervém no seu inglês mascavado:
- No Paquistão, a paquistanesa - diz, enquanto agarra com as duas mãos o vestido paquistanês que usa debaixo da burka. - No Afeganistão, afegã - e leva as mãos à cabeça coberta pela burka.
O homem dos Serviços Secretos não consegue conter o riso. Uma explicação destas inclina definitivamente a balança das suas desconfianças e convence-se de que não temos dois dedos de testa e de que somos realmente o que parecemos, umas turistas extravagante, de poucas luzes e, por isso mesmo, inofensivas. Com um aceno manda o funcionário carim' bar os nossos passaportes. Seguidamente entregam-no-los, enquanto, num tom protector nos anuncia que abrirá uma excepção e nos deixará cruzar a fronteira. Adverte-nos, porém de que à volta nos quer ver, sem falta, para nos fornecer uma escolta que garanta a nossa segurança e nos leve até à cidade: somos hóspedes do governo paquistanês e, por conseguinte, sentem-se responsáveis. Não podem correr o risco de nos deixar cruzar a região fronteiriça onde poderíamos ser raptadas, violadas ou assassinadas sem que ninguém voltasse a saber de nós. Juramos-lhe que o faremos e repetimos que em nenhum momento tivemos a intenção de praticar uma ilegalidade; acontece que ninguém nos informara fosse do que fosse. Despede-se e, antes de sair da repartição, manda-nos despir as burkas que não nos fazem falta nenhuma.
Apressamo-nos a obedecer.
Uma vez fora do edifício, despedimos o motorista que assistiu a tudo sentado num canto da repartição. No regresso saberemos que teve de pagar mil rupias ao homem da secreta que nos interrogara para que o deixassem seguir caminho sem mais problemas.
Atravessamos a fronteira a pé, a cabeça só coberta pelo tchador e a burka pendurada no braço como se fosse um casaco. Entre a multidão, tentamos localizar o turbante do nosso acompanhante. Voltamos atrás, entrando e saindo do Afeganistão, até o encontrarmos já preocupado com a nossa demora. Arranjou um carro onde já estão as nossas bagagens, mas antes temos de passar pelo posto fronteiriço taliban, onde também teremos que carimbar os passaportes.
O taliban que nos recebe, ao ver as nossas burkas, sorri e, julgo, fica bem impressionado com a nossa boa disposição. Mas quando lhe perguntamos se devemos pô-las, dá-nos a entender que não, que nós não precisamos delas. Leva-nos para um alpendre coberto de ramos onde há uns catres de vime. Convida-nos a sentar e oferece-nos uma chávena de chá, que recusamos. Também quer saber qual o objectivo da nossa viagem, as nossas profissões, e depois pergunta se queremos entrevistar alguma mulher em Cabul. Não sei se está a facilitar-nos uma entrevista preparada ou se quer descobrir o que nos move. Talvez fosse uma oportunidade única para falar com uma mulher taliban, mas aceitar a sua velada proposta denunciar-nos-ia. No fim de contas, o que é que poderia dizer-nos uma afegã, taliban ou não, em presença dos seus verdugos? Repetimos que o nosso interesse pelo Afeganistão e por Cabul é meramente turístico.
E é tudo.
Em comparação com o interrogatório a que fomos submetidas no outro lado, este até nos sabe a pouco.
Depois o taliban passa à nossa intérprete. Quer saber quem é e por que veio connosco. Ela responde humildemente, corpo e cabeça ocultos pela burka e inclinada para a frente: as senhoras estrangeiras precisam de uma intérprete, tinham insistido muito para que fosse uma mulher e tinham-na contactado através do hotel em que se alojam. Mas, acrescenta, se houver problema ou, sequer, algum inconveniente, ela regressa a casa.
O taliban lembra-lhe que nenhuma mulher afegã pode trabalhar para organizações não-governamentais. Ela responde que não trabalha para nenhuma e que só acompanha as estrangeiras como intérprete.
O taliban não insiste.
Carimbam-nos os passaportes e partimos no carro que o nosso acompanhante alugou enquanto resolvíamos os nossos problemas. É um jipe conduzido por um homem, indubitavelmente taliban. Os taliban reconhecem-se e distinguem-se, à vista desarmada, pelo aspec to: os mais idosos têm barbas longas; todos usam grandes turbantes, enquanto o resto da população masculina usa um gorro circular ou cobre a cabeça com um turbante improvisado a partir do tradicional pano grande e quadrado, próprio do vestuário afegão, e que serve para tudo; as perneiras das calças são curtas e as fraldas das camisas compridas que vestem por cima são rectas e não semi-circulares como as do resto da população; usam casacos compridos; alguns usam hena e a maioria pinta uma linha escura debaixo dos olhos; consomem naswar, tabaco verde picado, que guardam numas bolsitas e metem debaixo da língua ou entre o lábio inferior e os dentes.
O condutor não nos dirá palavra durante todo o percurso. Não vale a pena dizer que também não põe música. No Afeganistão é proibido ouvir música.
São quase nove da manhã quando começa a viagem no flamante Toyota do nosso motorista. A viagem até Cabul demorará umas oito horas. Palwasha informa-nos de que dantes o trajecto se fazia em hora e meia. A distância da fronteira a Cabul é de apenas duzentos quilómetros, mas actualmente, depois de todos estes anos de guerra, a estrada moderna que unia a cidade à fronteira já quase não existe. Em muitos troços a calçada desapareceu devido aos bombardeamentos e à explosão de minas, e os buracos são enormes.
Deixando para trás uns laranjais, a estrada dirige-se para o deserto, flanqueada de quando em vez por alguns tamarindos que criam túneis de sombra, e, a partir de um certo ponto, corre paralela ao rio Cabul.
Atravessamos o vale onde tiveram lugar os violentos confrontos da terceira guerra anglo-afegã. A partir dos seus campos militares na índia, três vezes tentaram os exércitos ingleses apoderar-se do Afeganistão e três vezes foram rechaçados pelos afegãos, sofrendo estrepitosas derrotas.
A luta entre as potências estrangeiras pelo controle do Afeganistão não começou com a guerra fria nem com o conflito armado entre a União Soviética e os Estados Unidos. O Afeganistão já foi cenário e tabuleiro de jogo pelo controle da Ásia Central entre a Rússia dos czares, o Império Britânico e a Pérsia do Xá. Acordos e desacordos, pactos e estratégias, territórios e cidades afegãs perdidas e recuperadas. Herat, na zona ocidental; Peshawar, Candaar ou Quetta, no leste do país; os territórios uzbeques, tadjiques e turquemenos do norte, da outra margem do Amu Daria. Uma comissão anglo-russa estabeleceu a fronteira norte do Afeganistão; um acordo entre britânicos e persas fixou a fronteira afegano-persa que divide o Baluchistão; os britânicos traçaram a linha Durand, ainda vigente, que divide o Pashtunistão e marca a fronteira entre um Afeganistão inconquistável e a índia colonizada divisão ratificada pela posterior partição da índia, que o Afeganistão nunca reconheceu, e a aparição de um novo estado, o Paquistão, em 1947.
A paisagem é de uma dureza e beleza surpreendentes: um deserto de rocha, quase branco nalguns troços; extensões abrasadas de sol e solidão, terra vazia, parda e clara; um rio, o Cabul, mais azul do que o céu; uma ou outra franja verde, ali onde o subsolo rochoso se interrompe em lagunas de terra fértil. Ao longe as Montanhas Brancas, Safid Koh, em dari, Spin Ghar, em pashtu. Imponentes. E à direita, inesperadamente verdes, as montanhas do Nuristão. Ao longo da estrada há controles taliban que se distinguem pela bandeira branca que ondula no telhado do posto. A bandeira branca, que na linguagem universal é o símbolo da paz, da trégua, da rendição, do cessar-fogo, converteu-se, nas mãos dos taliban, na bandeira da violência, dos que oprimem a população pelo terror. Só as principais autoridades e os homens mais respeitáveis e santos podem trazer o turbante branco. Por isso, está proibido a todos, e sobretudo às mulheres, usar meias dessa cor.
Avançamos aos tombos, saltando nos assentos, chocando contra os vidros do carro. O tio de Palwasha sentou-se à -frente, junto ao motorista. Nós as quatro ocupamos o banco traseiro. Azada coberta pela burka. Apoiamo-nos no encosto do assento por turnos. Estamos empapadas em suor. A temperatura é de tal modo alta que a água engarrafada queima como fosse chá recém-fervido.
À direita, um campo de papoilas acabado de segar. Quando é tempo de a flor abrir, os campos do Afeganistão convertem-se num tapete vermelho. Para a ceifa contratam-se jornaleiros aos milhares, trabalhadores sazonais, como entre nós para a vindima, a apanha da azeitona ou de frutos. O ópio é a principal fonte de rendimento do poder taliban.
Aproximamo-nos de Jalalabad, "a morada do esplendor". Nas cercanias da cidade, fundada há cinco séculos por um imperador mongol da índia, a estrada está menos estragada, e percorremos uma longa avenida coberta pela densa folhagem das árvores que crescem dos dois lados, altas, grossas, provavelmente centenárias, cujas copas se misturam no alto formando um tecto. À esquerda, o aeroporto militar. Um pouco mais adiante, à direita, o quartel onde, a 13 de Janeiro de 1842, para se converter numa lenda, chegou o sargento Brydon, o único sobrevivente de um exército britânico formado por dezassete mil e quinhentos homens e destruído em sete dias pelos afegãos nos desfiladeiros, gargantas, barrancos e passagens entre Cabul e Jalalabad, capital da província de Ningrahar.
Esta cidade, situada num oásis rodeado de montanhas, foi sempre a capital de Inverno dos reis e, antes de as guerras mudarem por completo a vida do país, muitas famílias afegãs passavam aqui as suas férias de Inverno. Os seus famosos laranjais em flor eram tema de um concurso anual de poesia.
O vale de Jalalabad foi, durante os primeiros séculos da nossa era, um importante centro de peregrinação budista, e três diferentes fontes escritas certificam que o próprio Buda visitou o vale para vencer o dragão Gopala, um espírito atormentado que, com a sua sombra, Buda apaziguou. Também fez parte da rota comercial que unia a China com a índia, uma rota da seda secundária, por onde viajavam as caravanas que transportavam a seda crua da China, o algodão, as especiarias, o marfim da índia, os rubis, o lápis-lazuli e as turquesas do Afeganistão.
Nada disto tem agora importância. A arqueologia, a arte ou a conservação do património cultural do Afeganistão não são prioritárias. Sob o terror taliban, nada disso tem valor a não ser que seja para ser destruído, arrasado, eliminado para sempre.
Entramos em Jalalabad, que desde há anos apenas vê passar refugiados e tropa. Deixamos para trás a Faculdade de Medicina e recordo, com afecto, o médico do campo de refugiados que estudou aqui, ainda a guerra não tinha esgotado o país. Parece mentira que faz poucos anos - os taliban ocuparam Jalalabad a 11 de Setembro de 1996 - rapazes e raparigas afegãos pudessem ter aulas neste mesmo edifício, se vestissem como muito bem lhes dava na gana, se relacionassem e gracejassem juntos. Depois da expulsão das tropas soviéticas, e até 92, a cidade, como outras capitais urbanas, foi controlada pelo governo de Najibullah, ainda apoiado pela União Soviética, enquanto os grupos islamistas ocupavam as zonas rurais, atacavam as posições governamentais e bombardeavam a capital.
Paramos para comprar pão e fruta para a refeição. Um melão afegão. Entre as lojas do bazar podem ver-se casas de câmbio, montanhas de notas com mais de um palmo de altura, sobre caixas de fruta de madeira viradas para baixo. Não saímos do carro. É o nosso acompanhante quem faz as compras.
Seguimos viagem.
Os buracos e crateras na estrada sucedem-se. Agarramo-nos ao que podemos, todos os músculos em tensão para amortecer os solavancos. Dói-nos o corpo todo. Nos troços em que a estrada parece melhor o condutor acelera. Numa destas aceleradelas chega-se de tal modo ao carro da frente que, antes que alguém pudesse precatar-se, já tínhamos chocado com ele. Pálwasha, que estava sentada de lado, dá com o corpo no assento da frente. Nada de grave. O nosso taliban sai do Toyota.
O condutor do carro com que chocámos faz o mesmo.
Discutem durante algum tempo e gritam um com o outro. Depois regressam ambos aos respectivos veículos e cada um vai à sua vida. Não há declaração de acidente, nem nada que se lhe assemelhe. Quem grita mais alto tem razão. O nosso motorista nem sequer pergunta se nos ferimos. Fecha a porta, cospe pela janela e arranca.
Nalguns pontos da estrada, com maior ou menor frequência, vêem-se montículos de pedras: cinco ou seis calhaus do tamanho de uma batata grande, amontoados. Já me despertando a atenção há um bom bocado. Há-os por toda a parte e a sua distribuição não
parece ter lógica. Pergunto. Afinal indicam lugares onde há minas localizadas. Desta maneira, os condutores podem esquivar-se aos sítios perigosos. Muitos dos buracos na estrada são produto de explosões de minas. Talvez algumas dessas minas sejam de fabrico espanhol. A Espanha vendeu minas ao Paquistão e continua a vender outras armas a este país bem como à Arábia Saudita, aliados dos taliban, e também ao Irão, que apoia a facção contrária.
Junto à estrada não há povoados. Mas, a cada passo, podem ver-se, no que foi uma estrada, saídos do nada, caídos do céu, homens idosos ou meninos que, ao verem os carros aproximar-se, deitam pazadas de terra, de gravilha ou de pó que o vento leva, para dentro dos buracos e fazem sinal aos condutores para indicar o melhor caminho para passar. Os motoristas ou os viajantes, se lhes apetece, dão-lhes uma gorjeta. Sem parar. Deitam unr punhado de rupias pela janela. Ao fim de um par de horas já nos acostumámos aos saltos, às viragens bruscas, ao pó constante que se levanta à passagem dos veículos e ao calor que, noutras circunstâncias, nos teria parecido insuportável.
A estrada é muito frequentada: carros, furgonetas, alguns autocarros e, sobretudo, camiões. Uma das coisas que mais atenção desperta, nesta estrada que une o Paquistão e o Afeganistão, além do seu estado deplorável, é o trânsito, intenso e constante de grandes camiões nos dois sentidos. Alguns dos que circulam em direcção ao Paquistão vão carregados de pneus, de melões ou de troncos grossos. Mas muitos, como os que vão em direcção ao Afeganistão, estão hermeticamente fechados. São muitos. Demasiados para um país que está em guerra, desde há mais de vinte anos, submetido a sanções económicas, que não mantém relações comerciais ou diplomáticas com outros países. Não percebo a razão da trasfega de pneus. Os troncos enormes são consequência da deflorestação sistemática que se está a levar a cabo nas florestas que ainda havia no Afeganistão, para vender madeira ao Paquistão. Nos camiões fechados a sete chaves não pode seguir senão contrabando e droga. Como a Meme diz:
- Que o Afeganistão produz melões já se sabia. Mas tantos?...
O Afeganistão produz mais ópio que melão. Sob o domínio taliban, a sua produção tornou-se a maior do mundo e sai do país por estrada. No Afeganistão não há comboios. A companhia aérea nacional, devido às sanções aplicadas pela ONU, não voa. A droga sai por estrada, nesses camiões, maciçamente, via Paquistão. Nos camiões provenientes do Paquistão, também fechados a sete chaves, só podem viajar as armas que o Paquistão fornece aos seus aliados taliban. Que outra explicação há para o contínuo ir e vir de camiões por esta estrada, só comparável ao tremendo trânsito da hora de ponta da zona industrial de qualquer das nossas cidades?
A paisagem é de uma beleza indescritível, especialmente para mim, que adoro os lugares duros, inóspitos, em que a vida é um milagre. A Sara acha-o desolador, mas eu percebo nele uma grandeza, uma força e uma majestade que assimilo à constância e à dignidade dos seus habitantes. Sóbrios, lutadores, sobreviventes natos. O ocre branco das montanhas desertas o negro brilhante da rocha cortada dos seus desfiladeiros e gargantas, o azul radiante do rio, de tonalidades cambiantes, as tendas dos nómadas no horizonte e as esporádicas erupções irracionais de verde no meio do deserto parecem-me conformes à sobriedade das suas gentes, à firmeza das suas decisões, à capacidade de resistência sem lamúria, à doçura do seu afecto, à sua predisposição para o riso. Entre solavanco e solavanco, seguindo por esta estrada, sinto que vou apaixonar-me irremediavelmente por este país e pela sua gente. Um amor insensato, injustificado, e todavia tão cheio de sentido. E que a nostalgia do Afeganistão me acompanhará enquanto for viva.
Cerca do meio-dia e meia, paramos para comer junto ao rio, perto do desfiladeiro de Sarobi, conhecido na antiguidade como a Garganta da Seda. Por este exacto lugar, depois de ocupar Jalalabad, e pela força das armas, abriram caminho os taliban através do que parecia uma posição impossível. Ao fim de poucos dias de luta feroz e de recontros nos distritos orientais de Cabul, marcharam sobre a cidade e apoderaram-se dela a 26 de Setembro de 1996, varrendo do palco as tropas de Helanatyar, que no Inverno anterior e desde a sua base de Sarobi, sem interromper os ataques à capital, controlada por Massud, tinham submetido Cabul a um bloqueio brutal, impedindo a passagem aos comboios de ajuda humanitária. Entretanto, a população padecia os rigores de um Inverno duríssimo, com restrições de alimentação e de combustível e uma inflação que, dia a dia, mais a empobrecia. Dos dois lados da estrada podem ainda ver-se despojos da guerra: tanques e carcaças de veículos militares abandonados e oxidados.
Antes de desaparecer, o condutor estaciona junto à parede de um edifício de um só andar, perto da estrada: é um quiosque de merendas onde servem comida e bebida aos viajantes, ainda que também permitam comer o que se traz. Descemos por um pequeno talude até à margem do rio, formada por grandes calhaus. Descalçamos as sandálias e metemos os pés na água. Mas quando faço menção de subir ligeiramente as calças para estas não se molharem, Palwasha chama-me imediatamente a atenção. De costas para a estrada e frente ao rio, levantou a burka para molhar a cara. De pé, com os pés na água, envolvidas por metros e metros de pano e procurando que não nos caia o tchador, é dificil refrescarmo-nos. Opto por molhar um extremo do tchador e depois o outro, tanto quanto é possível sem destapar a cabeça. O algodão molhado, com o ar, é uma perfeita delícia. Também consigo molhar ligeiramente o cabelo com a mão a fazer de concha de água e agarrando o vestido com a outra. Uns metros adiante, o nosso muhrram mergulha o peito e a cabeça no rio, sem camisa nem turbante. Ai, que inveja!... Quando ficamos sós na margem do rio, tiramos algumas fotografias. Voltamos a rever o nosso plano, para prevenir algum azar, algum obstáculo, alguma pergunta, para o caso de não podermos encontrar-nos... Palwasha nada mais é do que uma intérprete que o hotel nos forneceu e a quem pagamos pelo serviço que nos presta. Somos turistas. Devemos comportar-nos como tal. O tio de Palwasha junta-se a nós. Temos que subir para ir comer.
Tiramos do carro a caçoila tapada e atada com um pano, onde trazemos, já partidos eu, pedaços, os frangos assados que comprámos ontem à tarde. Agarramos também no melão e no pão de Jalalabad e entramos numa grande sala da casa, destinada às famílias, e que está totalmente vazia. O tapete que cobre o chão é áspero e pica através dos tecidos dos nossos vestidos. Sobre as largas tiras de oleado castanho que fazem as vezes de toalha, há várias jarras de plástico com água que utilizamos para lavar as mãos, estendendo-as para fora da janela que dá para o rio. O nosso querido muhrram traz-nos uns refrescos de cola. O frango, o pão e o melão sabem-nos pelo céu. Palwasha recorda que, quando fugiu de Cabul, com a família, tiveram que pernoitar num sítio como este. Não havia luz e o local estava cheio de gente, de famílias que também fugiam. Os controlos que tinham tido que passar, o medo que a proximidade dos mujahedines armados lhes causava... Conta-nos, entre gargalhadas, que teve um pesadelo e acordou a gritar, acordando toda a gente que dormia em redor e dando origem a uma enorme agitação.
Guardamos o pão que sobrou e que Palwasha mete na caçoila com os restos de frango. Habilmente, converte a caçoila e o pano num atado que se leva comodamente com uma mão, agarrado pelo nó como se fosse uma asa.
- Era o que fazíamos quando havia piqueniques.
Palwasha conta-nos que, anos atrás, esta parte do rio era a zona favorita dos habitantes de Cabul para passear e comer no campo. Nos feriados, as pessoas saíam da cidade pela manhã, passavam ali o dia e regressavam ao fim da tarde. Com a estrada em condições, a distância não pesava. Na margem havia flores, erva, árvores...
Agora ninguém o faz. É proibido. Voltamos para o carro.
Deixamos para trás um tanque desmantelado. Pendendo da sua carcaça manchada pela ferrugem, madeixas enredadas, grandes como bolas de praia, longas e espessas como crinas de cavalo, de fitas de cassetes áudio e vídeo, música e filme destruídos. Não são as primeiras e também não serão as últimas que vemos. Aí estão os restos da destruição maciça de fitas de gravação de qualquer tipo: suspensas do ferro-velho, dos postes, serpenteando pelas valetas. Depois de conquistar uma cidade, os taliban percorrem as ruas proclamando os seus decretos e ordens através de megafones ou utilizando a única emissora de rádio que conservaram e controlam, a Rádio Voz da Sharia. Entre outras coisas, dá-se à população um prazo de quinze dias para deitar fora os televisores e os leitores de vídeo e destruí-los. Chegaram a pendurar televisores nas árvores, como se fossem enforcados, e se numa busca descobrem algum aparelho salvo da destruição, o castigo é exemplar.
A paisagem muda e entramos numa zona montanhosa. Já não se vê o rio. As encostas escarpadas, de proporções gigantescas, também escondem o sol. Paramos um momento. Os homens vão rezar. Nós também nos apeamos e tiramos fotografias. Sem disfarçar. Ninguém nos disse que não podíamos. Porventura não somos turistas?
A pausa é curta e depressa recomeçamos a viagem. À direita, deixamos para trás as instalações de uma central hidroeléctrica que fornecia energia às cidades de Cabul e Jalalabad. Agora está abandonada. Mais para cima encontraremos a barragem e as ruínas do pequeno povoado em que viviam os empregados da central, agora arrasado pelas bombas e desabitado. De repente a estrada recupera um certo aspecto de normalidade: o asfalto está inteiro enquanto subimos pelo desfiladeiro de Tangi Gharu, que, dizem os livros, é uma das vistas mais espectaculares do Afeganistão. Num dos túneis um rebanho de cabras impede-nos a passagem. Numa curva olhamos para baixo e a altura a que chegámos em poucos quilómetros de percurso é impressionante. Quase no alto, o condutor detém-se num ponto que oferece uma vista magnífica sobre o desfiladeiro e a estrada que se encarrapita na montanha. Diz qualquer coisa ao tio de Palwasha, este transmite o recado a Palwasha e ela a nós:
- Parou para o caso de quererem tirar uma fotografia do panorama.
A surpresa é total, porque em nenhum momento este homem taciturno nos dirigiu a palavra, nem sequer um olhar: é como se transportasse umas caixas. Mas reagimos com rapidez. Da parte dele é já um gesto e agradecemos. Fica imperturbável.
A ascensão termina quando alcançamos a meseta de Cabul. O nosso condutor pára numa venda de fruta e dá algumas rupias a um miúdo para que este dê ao carro umas mangueiradas. Temos que fechar as janelas. A partir daqui, a estrada mostra alguns estragos mas os buracos são esporádicos. Aproximamo-nos de Cabul. O calor e o cansaço produzem-nos, agora que estamos tão perto do nosso objectivo, uma modorra quase invencível. Vejo as minhas companheiras de jornada cabecear também e só os buracos me mantêm acordada. Não, agora não! Quero fazer esta última etapa com os olhos bem abertos, com a cabeça livre e os sentidos alerta.
À esquerda fica uma das maiores prisões da Ásia Central: Pul-i-Charji. E imediatamente a seguir, começa a zona industrial de Cabul, que teve um crescimento espectacular entre os anos sessenta e setenta. Fábricas têxteis, de plásticos, de produtos químicos, de bicicletas, de esmaltes... Agora é um deserto. Os edifícios e naves das fábricas que ainda estão de pé depois dos bombardeamentos e da destruição maciça de que a cidade foi vítima às mãos de Hekmatyar, Massud e outros cabecilhás islamistas, estão em ruínas, os tectos derribados, as paredes semiderruídas. Há quase dez anos que começou a destruição de Cabul, e nada se reconstruiu nos quatro anos que decorreram desde que os taliban ocuparam a cidade e a sub, meteram ao seu feroz controlo, porque os usurpadores não querem a recuperação económica do país, nem a sua reconstrução e, muito menos, têm um projecto de governo para a paz. Entramos na cidade, na sua aterradora desolação. As janelas dos prédios que ainda estão de pé têm os vidros partidos, alguns substituídos por plásticos. Cruzamos uma zona residencial, passamos junto da academia militar, da biblioteca, de um cinema, de uma escola secundária, do Ministério da Saúde... tudo fechado, paralisado, casas desertas, abandonadas, com vestígios de bombardeamentos e disparos nas fachadas enegrecidas. Circulamos por avenidas amplas. O provérbio local que reza: "A prosperidade só se aprecia quando a calamidade bate à porta" é aqui tão tangível como as pedras - da passada prosperidade nada mais resta do que a recordação.
Cabul, "a Formosa" é, agora, Cabul, "a Silenciosa".
O carro avança por uma ladeira que trepa por uma das colinas do noroeste de Cabul, até que chega ao cimo. Ante nós aparece o Hotel Intercontinental, onde nos hospedaremos. O condutor dá a volta à rotunda para nos deixar na porta. Num dos lados do edificio vejo um letreiro que me enche de alegria: Book Shop. Perfeito. São quase cinco da tarde.
Entramos os cinco no vestíbulo enorme que se estende à direita e à esquerda. Quase junto da porta encontra-se o balcão da portaria. Em frente, um amplo terno de maples. Pedimos um quarto para as três. Lamentam muito, mas não é possível. Podem, porém, oferecer dois quartos contíguos, com porta de comunicação interior, um duplo e um individual. Óptimo, quase é melhor, dizemo-nos; teremos mais espaço e dois quartos de banho em vez de um só.
Um empregado do hotel apanha as chaves e carrega a nossa bagagem no elevador disposto a mostrar-nos os nossos quartos. Convidamos Palwasha e o seu tio a subirem connosco. O recepcionista fala com Palwasha. E ela diz-nos que não pode subir, que temos de nos despedir imediatamente. Amanhã virão buscar-nos. Às oito da manhã. Encontrar-nos-emos ali mesmo, no vestíbulo.
Não há maneira de se saber o que se passa e Palwasha não pode dizer-nos porque o recepcionista sabe inglês. A burka impede qualquer piscadela cúmplice. Voltamos a sair do elevador e dirigimo-nos a ela, que nos estende a mão debaixo da burka. Nada de abraços e muito menos de beijos. É a nossa intérprete. Mal a conhecemos. Metemo-nos no elevador com uma certa sensação de incomodidade. O tio de Palwasha aproxima-se numa corrida. Tira do chão, entre os nossos haveres, o atado com o frango. Risos. Sorrisos. E fecham-se as portas do elevador.
Levam-nos aos nossos quartos. Amplos. Luminosos. As varandas dão para a parte de trás do hotel, e diante dos nossos olhos aparece uma vista imponente de Cabul que se estende pelo planalto e sobe pelas colinas arredondadas que a cercam. Ao longe, os altíssimos picos das montanhas que rodeiam a cidade.
Até voltarmos a juntar-nos com Palwasha, não saberemos o que aconteceu na recepção. Depois inteiramo-nos de que quando se dispunha a acompanhar-nos até aos nossos quartos, o recepcionista impediu-a e, além disso, avisou-a que não nos dissesse nada. Logo que desaparecemos no elevador, o homem quisera saber que fazia ela ali, onde trabalhava e porquê. Ela fingira não saber nada da situação no Afeganistão, não passava de uma pobre rapariga que estudava numa escola de Peshawar e quisera aproveitar o trabalho oferecido pelas senhoras estrangeiras. O porteiro aconselhou-a a afastar-se do hotel quanto antes, se não queria ter problemas. Informou-a de que a situação tinha piorado nos últimos dias, e que várias mulheres tinham sido presas porque tinham sido descobertas a trabalhar em obras sociais. Ela limitou-se a repetir que era só a intérprete das estrangeiras e foi-se embora com o seu muhrram.
Enquanto esta conversa tem lugar na recepção, nós, alheias a tudo, exploramos os nossos novos domínios. No quarto não há televisor. Ao pé da cama, vários botões do que seriam os comandos do rádio. Não funcionam. Também está proibido. Mas os quartos de banho parecem-nos esplêndidos. Tomamos banho de água quente e lavamos toda a nossa roupa numa orgia de água e sabão. Rimo-nos as três da paixão que desenvolvemos por transformar qualquer lugar num lavadouro. Descobrimos que no quarto individual, além da cama, há um sofá-cama que dá para duas pessoas. Poderíamos ter ficado só com um quarto e poupar alguns dólares. Aldrabaram-nos ao dizerem-nos que não era possível? Evidentemente. Que é que havemos de fazer!!!
Batem à porta. Trazem-nos uma jarra de flores e perguntam se está tudo bem. Sim, está tudo muito bem. Mas de cada vez que saímos do quarto, aparece um empregado do hotel. São todos homens, que se mostram solícitos e nos seguem por toda a parte. Acaba por incomodar. Vigiar-nos-ão?
Desço por momentos ao vestíbulo para localizar a loja de livros que, quando chegámos, vi anunciada. Está fechada. Consulto o horário de abertura e espreito através dos vidros. Está cheia de livros e de postais. Na montra há um livro de cozinha e outro de contos. Não queria sair de Cabul sem lhe dar uma olhadela e comprar um par de livros. Perto da livraria está um grupo de taliban.
Quando escurece, descemos para jantar.
A sensação de não conseguir dar um passo sem sermos seguidas pelos empregados do hotel é incómoda.
A Meme convida.
- Lembrem-se que apostei um jantar quando me convenci de que iam recusar-nos o visto. Há melhor lugar para pagar o que devo, agora que estamos em Cabul?
Elas pedem uma tortilha à espanhola, que aparece no menu. Eu quero o gabalee pala,,. Noutra mesa da sala de jantar estão dois homens de aspecto ocidental. Enquanto jantamos, chegam mais três homens que ocupam outra mesa. Ignoramo-los a todos, O que nos espanta
é que eles também não nos liguem. Não é estranho que nem sequer se aproximem para nos cumprimentarem?
Não há mais hóspedes. Este prédio enorme é um lugar deserto, um hotel fantasma. As luzes do vestíbulo estão apagadas. As lâmpadas da sala de jantar têm uma luz mortiça. o número de empregados é largamente superior ao de clientes; atendem-nos três ou quatro empregados de mesa de cada vez, que esperam ligeiramente afastados, suspensos do menor movimento da nossa parte, para nos atenderem com uma angustiante solicitude. Isto faz-nos sorrir. A tortilha espanhola, à moda de Cabul, é uma omelete redonda, feita numa sertã pequena, com ovos, tomate e cebola. As batatas fritas são a guarnição. Quando nos vê abanarmo-nos com os guardanapos, um dos nossos empregados de mesa descerra as cortinas e abre a janela. A brisa da noite de Cabul entra impetuosamente e a temperatura suaviza-se. Tomamos café e demoramos a sobremesa, como boas turistas que somos. O porteiro do hotel vem informar-nos que amanhã cedo virá um carro oficial buscar-nos para nos levar ao Ministério do Turismo, para levantar não sei que cartões que nos evitarão quaisquer problemas. Burocracia.
Novamente no quarto, revemos a lista dos lugares que queremos visitar de acordo com as indicações dos nossos amigos afegãos. Para que não aconteça que entre a ida ao Ministério para tratar do que quer que tenhamos de tratar, se chegue tarde ao encontro marcado com Palwasha.
Depois, durante uns momentos, o silêncio impõe-se para que cada uma de nós possa anotar no seu caderninho as impressões do dia. A Meme adormece. A Sara e eu comparamos as notas tomadas para ver se não nos esquecemos de nada.
À varanda, a lua crescente, como uma generosa talhada de melancia, reina sobre a noite de Cabul, invisível no negrume. Só alguns pontos de luz desenham o seu perfil.
Domingo, 13 de Agosto de 2000. Afeganistão
Que Cabul fique sem ouro, mas nunca sem neve!
Tomamos o pequeno-almoço servidas por tantos e tão solícitos empregados que mais parecem pajens e nós sultanas de um reino exótico. A Meme vai ao quarto. A Sara e eu esperamos pela nossa intérprete Palwasha, sentadas no terno de maples do vestíbulo, frente à recepção. Rodeados de malas e volumes, três dos homens que ontem à noite vimos a jantar despedem-se efusivamente do porteiro. Trazem máquinas fotográficas a tiracolo. Jornalistas com licença especial? Desde Fevereiro de 1999 que está proibida a entrada de jornalistas no Afeganistão. Turistas? Quem é que se iria lembrar de fazer turismo num país em guerra?
Oito em ponto. Entra o nosso acompanhante, o tio de Palwasha. Vem buscar-nos para iniciar o percurso clandestino, anteriormente combinado.
A Meme demora e subo para a avisar, mas não espero por ela e apresso-me a descer novamente para o vestíbulo. O porteiro sentou-se no terno de maples à frente da Sara e vejo-os a discutir em inglês.
Parece que a conversa começou com toda a normalidade. O porteiro mostrou-se interessado pelos nossos planos. A Sara diz-lhe que queremos passear por Cabul. O porteiro lembra-lhe que teremos de ir ao Ministério do Turismo carimbar os nossos passaportes e acrescenta que devemos contratar um intérprete oficial. Já sabemos que temos de carimbar os passaportes e será essa a primeira coisa a fazer, mas quanto a intérprete e carro, já temos a nossa própria intérprete, que veio connosco do Paquistão e que está lá fora à nossa espera no táxi.
Mas o porteiro impõe-se, categórico. Só poderemos sair do hotel no automóvel oficial que nos aguarda e acompanhadas de um intérprete oficial. A Sara desespera-se. Já temos intérprete e não estamos dispostas a pagar a dois intérpretes. O porteiro tem resposta para tudo. Compreende o problema e, neste mesmo instante, irá falar com a rapariga para que ela nos devolva o dinheiro. A Sara insiste que nós queremos uma mulher para nos acompanhar.
Então, o homem replica que no Afeganistão as mulheres não podem trabalhar, que portanto não há mulheres intérpretes e que a afegã que nos acompanha não pode ir connosco. E em continuação começa a interrogar a Sara acerca de Palwasha: Quem é ? Como se chama? De onde a trouxemos? De onde a conhecemos? Onde vive? E oferece-se para ser ele mesmo a despedi-la, de modo a que ela não volte. A Sara levanta-se. Não é necessário, ela mesma irá falar com a intérprete.
Lá fora, em frente à porta, está um carro branco com um emblema azul na porta e umas letras: Afghan Tours. Meia dúzia de talibans preguiçam à sombra. A Sara aproxima-se do táxi que a espera do outro lado da rotunda. Palwasha desce e aproxima-se para a cumprimentar. A Sara explica-lhe a situação: não nos deixam ir com ela e só poderemos movimentar-nos pela cidade no carro oficial que está à nossa espera... E desata a chorar: este hotel é pior do que uma prisão. Palwasha reage rapidamente
- Don't worry.
Aconselha-nos a obedecer e a dedicar o dia a fazer turismo, para não despertar suspeitas, como já combináramos para a eventualidade de surgir algum problema. Ela virá buscar-nos amanhã de manhã, pelas sete horas, e preparará tudo para que, apesar deste contratempo, possam levar-se a cabo alguns dos nossos projectos: falar com pessoas, visitar os cursos de alfabetização de mulheres e as escolas clandestinas de raparigas que há em diferentes lugares da região. Resignamo-nos desgostosas e de má vontade.
Despedimo-nos de Palwasha ali mesmo, na rotunda.
O porteiro oferece-se para intérprete, para que o dia não nos saia tão caro, mas deve pedir autorização. Estamos piores do que baratas porque nos deram cabo dos nossos planos e porque, além do mais, este contratempo supõe uma despesa considerável com que não contávamos. Por isso, é com satisfação que recebemos a notícia de que o porteiro poderá acompanhar-nos e pouco depois entramos no automóvel oficial de Afghan Tours. Com o nosso novo intérprete, vamos para o Ministério do Turismo.
Subimos por uma escadaria em mau estado e passamos por várias salas vazias até chegar a uma espécie de gabinete: um homem atrás de uma secretária, vários taliban e um banco de madeira, onde nos convidam a sentar. Pedem-nos os passaportes, folheiam-nos, observam-nos, olham para nós, um funcionário discute com o porteiro. Não carimbam os passaportes, não nos entregam nenhum cartão de turista. Nada. Devolvem-nos os documentos e voltamos para o carro.
Antes de iniciarmos o percurso combinamos com o motorista e o intérprete o preço que devemos pagar pelos seus serviços. Como já manifestamos o nosso agastamento, o porteiro mostra-se conciliador e compreensivo, dá um jeito ao preço e também convence o motorista a fazer-nos um desconto.
'Começamos o roteiro turístico.
Levam-nos primeiro ao alto de uma colina situada no outro extremo da cidade. O lugar tem o nome de Tapa Marankan e podem aí ver-se os restos de dois mausoléus, totalmente destruídos pelos bombardeamentos sobre Cabul. Um deles é o mausoléu do rei Nadir Khan. O porteiro, sempre com a ajuda do motorista, vai-nos contando a história dos monumentos. De regresso a Barcelona e depois de consultar vários livros, descubro que as histórias que aqueles dois nos impingiram não correspondem aos lugares visitados, e que a cada passo improvisam e colam pedaços de história e nomes. A visita turística é uma fraude. Mas como ainda não o sabemos, escutamos interessadas tudo quanto nos dizem.
Do alto do Tapa Marankan, tem-se uma vista magnífica da cidade. Junto ao promontório, uma extensão verde que no início do nosso século xx, durante o reinado do emir Habibullah, foi um campo de golfe. Mais tarde foi ponto de encontro e de corridas de cavalos nos dias feriados, e hoje é onde os rapazes de Cabul jogam futebol, sob a atenta vigilân cia dos grupos taliban. À frente deste campo fica o estádio desportivo de Cabul, o estádio Ghazi, onde se levam a cabo as execuções. Do outro lado do estádio, com uma interminável fachada que dá para a rua, ergue-se a mesquita de Id Gah, de proporções gigantescas, one se celebram as principais festas do calendário muçulmano e, sobretudo, a festa que põe fi ao Ramadão, o mês de jejum. Tiramos fotografias. Ninguém, em nenhum momento, nos disse que as não poderíamos tirar e, já que temos de dedicar o dia ao turismo, não paramos.
O intérprete indica-nos dois homens com um cão na ladeira. Diz-nos que estão a procurar minas para as desactivar.
Daqui pode também ver-se, no centro da cidade, a enorme torre de comunicações in lizada e reconvertida em escritórios desde que os taliban tomaram o poder. É uma torre impressionante, alta e quadrada, situada sobre o Koh-i-Asmai, a montanha de Asma "Grande Deusa-Mãe da Natureza", cujo nome remonta a épocas muito antigas, quando Cabul era hindu. Até há pouco tempo, pelo menos até à época anterior às guerras, a comunidade hindu de Cabul continuava a render o culto a esta deusa num antiquíssimo tenplo perto da mesquita do Rei das Duas Espadas, cujo nome faz referência a uma lenda dos tempos em que o Islão apareceu e se impôs pela força das armas. O grande guerreiro que com uma espada em cada mão foi um dos primeiros propagadores da nova religião e caíu frente às forças que defendiam o templo sagrado hindu de Cabul. Se o Islão não tivesse conseguido impor-se, ninguém se lembraria dele.
Queremos visitar o estádio. O motorista pára o carro em frente da porta de entrada e o porteiro-intérprete apeia-se e fala com alguns homens ali parados. Deixam-nos ente o carro até ao interior do campo. Por este mesmo ponto entrou Zarmena, a mulher exe há uns meses. O motorista pára o carro o tempo suficiente para tirar um par de fotografias.
O estádio está praticamente vazio. Há um ou outro homem sentado nos degraus do anfiteatro. Perguntamos quais as actividades que ali se levam a cabo.
- Aos domingos à tarde há futebol.
Não alude às execuções, ainda que continuem a ser habituais neste campo desportivo, anteriormente conhecido por ser o maior do Afeganistão: Execuções, amputações de membros, espancamentos, lapidações. As pessoas são obrigadas a a assistir. Os taliban cortam as ruas com barreiras amarelas e conduzem as pessoas para o estádio.
Pedimos, seguidamente, para nos levarem ao Museu de Cabul, mas à chegada os taliban dizem-nos que está encerrado e que para o visitar é necessária autorização do Ministério da Cultura. Desistimos. De qualquer modo, já sabemos que não há nada dentro, que as mag níficas colecções e peças que albergava e o tinham tornado famoso foram saqueadas e roubadas. Nada sobra dos restos e objectos da pré-história do Afeganistão. Nada, também, das deusas-mãe de pequeno tamanho e formas exuberantes, dotadas de poder sobre a vida e a fertilidade, sobre a morte e os horrores da escuridão. E os frescos dos vales de Bamiyan, ainda lá estarão? Pergunto-me por onde andarão a delicada colecção de estátuas kafir, dos infiéis do Nuristão, as colecções de moedas do período greco-bactriano e as peças mais recentes provenientes de jazidas escavadas há apenas vinte e cinco, trinta, quarenta anos.
Do museu vêem-se as ruínas de um enorme palácio. Visitamo-lo a seguir. Dizem-nos que era o palácio real. Provavelmente, o que o nosso guia nos indica como o palácio do rei, situado no fim da avenida de Darulaman, onde também se ergue o Museu de Cabul, é o edi fício destinado ao Parlamento, desenhado por um arquitecto francês na época do rei Amanullah, cujas tentativas de modernização do país escandalizaram o povo. O nosso motorista não dá com o caminho de acesso ao palácio e tem de perguntar a uns miúdos que apanham erva num descampado e depois a estendem no chão:
- Que estão eles a fazer?
- Secam erva para a utilizar como combustível.
No interior do suposto palácio, numa sala do segundo andar, encontramos um grupo de taliban, sentados e deitados entre os escombros, as armas encostadas a um catre. Estão a tomar chá e convidam-nos a sentarmo-nos. A Meme recusa-se terminantemente. A Sara e eu entreolhamo-nos. Acostumadas a perguntar tudo a Azada e a deixarmo-nos guiar pelo seu critério, caímos no erro de nos deixarmos assessorar pelo nosso intérprete. Erro imperdoável. Este homem faz-nos sair da sala a toda a pressa enquanto se desfaz em agradecimentos e desculpas diante dos taliban a quem parece temer ainda mais do que nós.
Subimos, em vão, outro andar, porque no que toca a aspectos artísticos, monumentais ou de edifícios emblemáticos, já nada resta que valha a pena ser visto dentro ou fora do palácio. O porteiro aproveita o momento para nos dizer que, sempre que houver taliban por perto, é preferível esconder as máquinas fotográficas e não tirar fotografias. No átrio do palácio, que anteriormente devia dar para uns jardins magníficos, comemos um melão que comprámos há pouco e que dividimos com o intérprete e com o motorista. Dizem-nos que o melão é excelente para o corpo recuperar da fadiga que o calor produz. O intérprete oferece-se para tirar uma fotografia às três juntas e aceitamos. A irritação vai-nos passando. Parece bom homem.
Já quase no centro da cidade, a entrada de um hipotético palácio da rainha está fechada e guardada por dois taliban armados, tão jovens que um ainda nem barba tem. O porteiro fala com eles e deixam-nos passar. Baixam a corrente e o carro avança devagar. Subimos a ladeira e no alto aparece-nos um edifício que de modo algum tem aspecto de palácio de recreio de uma rainha. O nosso porteiro-intérprete está nervoso; deixa o carro parar por momentos para fotografar o edificio e dá ordem ao motorista para fazer meia volta e regressar. Ao descer cruzamo-nos com um dos taliban que subia para nos acompanhar. Surpreendido com tanta pressa, também ele cumprimenta o porteiro e faz meia volta.
A Meme quer trocar dinheiro, cinco dólares. Para pagar a meia dúzia de coisas que possamos comprar e ficar com algumas notas como recordação. Voltamos a atravessar a cidade. Passaremos o dia inteiro a fazê-lo, circulando pelos mesmos sítios, as mesmas praças, as mesmas ruas e avenidas. O motorista estaciona. É o porteiro que se apeia. Se em Peshawar nos parecia cómodo que o motorista ou o nosso acompanhante fizesse todos os recados, aqui, isso resulta desesperante: não temos a menor possibilidade nem qualquer desculpa para sair do carro, caminhar pelas ruas, ver gente, bisbilhotar. Só de dentro do carro. Se o hotel é uma prisão, o carro oficial não lhe fica atrás. Imagino o horror de viver assim todos os dias, e ainda por cima tapada por uma burka. Sem poder ir às compras, sem poder passear livremente. Enquanto esperamos, da janela do carro tiramos fotografias às mulheres com burka que passam. Vultos azuis caminham no meio de uma multidão de homens, que vão e vêm, a pé ou de bicicleta, que, quando passam pelo carro, nos olham curiosos, sorriem, recordando, talvez, a época em que era habitual ver mulheres ocidentais na cidade. Todos com barba, todos com o tradicional gorro na cabeça tal como é prescrito pelos taliban. Não fazemos a menor ideia do sítio onde estamos. Nem sequer temos um plano da cidade. Por fim o porteiro regressa. Os cinco dólares, trocados em afeganes, são uma molhada que quase não cabe no porta moedas da Meme.
Vamos depois ao Jardim Zoológico e pagamos os bilhetes. O recinto está cheio de garotos e de rapazes. Somos nós, agora, a principal atracção do lugar porque os raros animais que restam estão num estado deplorável: um leão de olhar triste e um macaco que ainda con segue responder às provocações da garotada. Pouco mais se pode ver. Quando em Agosto de 1967 abriu as suas portas, correspondia ao conceito moderno de um jardim zoológico: grande número de espaços abertos, onde estava representada uma grande parte das aves e mamíferos autóctones, além das muitas espécies migratórias que, vindas da Sibéria, da África Oriental, da índia ou da Arábia, na Primavera e no Outono cruzam o Afeganistão. Posteriormente, acrescentaram-se ao zoo um aquário e um museu. Não vemos nada disso. Só gaiolas, vazias na maioria, um grupo de miúdos tomando banho num charco e outro seguindo-nos e querendo que os fotografemos. E com o desastre de guia que nos coube em sorte também não visitamos os dois grandes monumentos que, lado a lado, comemoram acontecimentos importantes da história moderna do Afeganistão: a leste, a coluna do Conhecimento e da Ignorância, erigida pelo rei Amanullah, e que contém os nomes dos que morreram em defesa da modernização do país frente à rebelião promovida pelos tradicionalistas; a oeste deveria haver outra coluna, dedicada a um general nuristanês do rei Nadir Kahn, mas é provável que nenhum dos dois monumentos continue de pé.
O motorista oficial nada mais faz que entrar e sair da cidade, no que parece uma tentativa de passar a maior parte do tempo nos arrabaldes, onde quase não há ninguém. E cada vez que, de novo, se atravessa o centro, passamos pelas mesmas ruas e praças, fazendo o mesmo percurso.
Numa destas saídas, quando mais uma vez tomamos a estrada que sai de Cabul, vemos erguer-se à nossa esquerda, por toda a pendente da montanha, uma linha do que parecem ser lajes de pedras gigantes, dispostas uma ao lado da outra, como se fossem as placas erguidas na espinha dorsal de um dragão lendário. São as antigas muralhas da cidade. E têm a sua própria lenda, como mais tarde descobriremos num dos livros que comprei em Cabul: houve um rei que quis construir uma grande muralha para proteger a cidade. Obrigava todos os homens a trabalhar na sua construção até à exaustão e à morte, mas ninguém se atrevia a desobedecer-lhe por receio do castigo e da repressão da sua guarda. Era tal a crueldade daquele rei, que os que desmaiavam eram emparedados vivos na própria muralha. Entre os trabalhadores estava o namorado de uma rapariga que não suportava a docilidade e a submissão com que os homens da cidade toleravam tantos atropelos. Até que um dia a jovem apresentou-se na obra e pôs-se a trabalhar no meio dos homens. O rei passava de vez em quando para inspeccionar o avanço do seu projecto, e depressa descobriu a rapariga, que, quando se viu surpreendida, cobriu o rosto com o tchador.
- Por que te cobres agora, se te vi a trabalhar no meio destes homens com o rosto descoberto? - perguntou o rei.
- Isto não são homens. Se o fossem não permitiriam que ninguém os tratasse como escravos, sem se revoltarem. E eu, que sou mulher, não me submeterei à crueldade das tuas leis.
A rapariga agachou-se, agarrou num calhau e atirou-o ao rei, alcançando-o no peito.
O rei caiu do cavalo e morreu. Ao ver o sucedido e o que a jovem tinha feito, os homens revoltaram-se e acabaram também com a guarda real, de tal modo que a muralha não chegou a ser construída.
As lendas e tradições afegãs estão cheias de histórias semelhantes. Mulheres que arengam às tropas, que reacendem a coragem nos guerreiros que estão quase a render-se. Ainda em Cabul, numa esquina da avenida Maiwand, erguia-se a coluna ou minarete de Maiwand, que celebra a vitória dos afegãos sobre as tropas britânicas. Passamos várias vezes junto das suas ruínas no centro de uma rotunda. A inscrição, em pashtu, relatava que, quando os afegãos se dispunham a render-se, uma jovem chamada Malalai os enfrentou, dizendo: "Se não cairdes hoje na batalha de Maiwand, quem vos protegerá da recordação desta vergonha?" Diz-se que, ao ouvir estas palavras, aqueles homens esgotados e desanimados se encheram de tal coragem que obtiveram uma grande vitória.
Mulheres afegãs. Mulheres valentes. Conheço-as. Estou orgulhosa por ter convivido com elas.
Regressamos às ruas de Cabul por onde circula um número considerável de carros todo-o-terreno, Toyotas, carregados de taliban armados, risonhos, sem qualquer outra função específica que não seja a de patrulhar, mostrar-se pela cidade. Estão em toda a parte. Arbitrários. Prepotentes. Podem fazer o que lhes der na gana. De facto, nesse mesmo dia, enquanto dávamos voltas e voltas pela cidade no carro oficial, a nossa intérprete Palwasha assiste a um desses atropelos. Um pelotão de taliban armados pára o autocarro em que viaja. Pedem as bolsas de todas as mulheres. Descobrem que três delas trazem um livro, obrigam-nas a sair do veículo e levam-nas detidas. Os taliban sabem que, apesar das suas proibições, há escolas clandestinas, que as mulheres se reúnem às escondidas para aprender a ler e a escrever, e tratam, por todos os meios, de descobrir estas redes clandestinas. Algumas vezes conseguem-no.
Os restantes veículos que circulam em Cabul são táxis e autocarros. A maioria das pessoas anda a pé, alguns de bicicleta. No interior dos autocarros, as mulheres, cobertas pela burka, apinham-se na plataforma traseira, separada por uma cortina do resto do autocarro. Na parte dianteira dos assentos viajam os homens.
Queremos ver o famoso lago de Cabul. Na ponte que cruza o rio paramos o carro para fotografar duas mulheres com burka. Uma delas leva uma criança nos braços. Um homem idoso acompanha-as. Devido à seca, o lago de Cabul está completamente seco. Agora com preendo o sentido do provérbio de Cabul: "Que Cabul fique sem ouro, mas nunca sem neve!". Se as montanhas que rodeiam Cabul ficarem sem neve, a seca estende-se pela meseta e pelo país e, com ela, a morte. De nada serve o ouro se o rio seca, se não há água para regar os campos. E Cabul está sem neve. A actual seca no Afeganistão converte-se numa sentença de morte: para os campos, para o gado, para milhões de afegãos.
Por volta do meio-dia, o intérprete e o motorista pretendem dar o passeio por terminado. Não o consentiremos. Estão muito enganados se pensam que nos obrigam a mudar todos os nossos planos, a aborrecermo-nos mortalmente com eles, a dar voltas sem sentido pela cidade para agora se desfazerem de nós. Negamo-nos a fecharmo-nos no hotel, não viemos a Cabul passar o dia num quarto. Queremos comer fora, num restaurante da cidade. Levam-nos, a contragosto, a um estabelecimento junto de um dos antigos cinemas de Cabul que também mostra sinais da guerra e tem a fachada enegrecida.
No restaurante fazem-nos ir para um reservado e fecham as cortinas que isolam a nossa mesa do resto da sala. Comemos sozinhas, kebab, espetadas de cordeiro, com nan e salada, enquanto o motorista e o intérprete se instalam na sala ampla destinada aos homens. De vez em quando, o intérprete vem cá dentro ver se está tudo bem, mas temos a sensação de que querem apressar-nos. Começamos a ficar pelos cabelos.
À saída do restaurante, afastamo-nos do carro e vamos fotografar a fachada do cinema. Um monte de crianças rodeia-nos, rindo e gracejando. O porteiro começa a gritar-lhes. Sai do carro e começa aos socos e aos pontapés aos miúdos que, com alguns a chorar, fogem. Novamente no carro, comunica-nos que vão levar-nos directamente ao hotel para descansarmos. Não admite réplica. Mas garante que pela tarde voltaremos a sair. Enquanto nos aproximamos do hotel, pede-nos para não dizermos a ninguém que almoçámos fora.
No hotel aproveitamos para visitar a livraria que, agora, está aberta. Está a cargo de um rapaz novo. Sabe inglês e conversa connosco. Folheamos os livros, compramos postais. Muitos livros têm postais com paisagens colados nas capas ou estão pintalgados com marcador preto. O empregado da loja diz-nos que isso foi feito pelos taliban. Borram todas as imagens de pessoas e de animais porque está proibida a reprodução de qualquer ser vivo. Se descobrem alguém a infringir esta proibição, o castigo pode ser uma tareia, a destruição da loja ou o seu encerramento por dez dias. Compro o livro de cozinha que vi ontem na montra. Os desenhos de um menino e uma ovelha na capa estão borrados. Também compro um exemplar mutilado de um livro que conta resumidamente os costumes, tradições e peculiaridades dos afegãos. E o livro de lendas afegãs onde se narra a história das muralhas de Cabul.
Deitamo-nos algum tempo para ler e fazer tempo. Dali a pouco volto a descer. Fizemos contas e calculo que ainda me sobram alguns dólares para continuar a comprar livros. É uma oportunidade única. Pena é que não tenha mais dinheiro e me veja obrigada a escolher. Uma gramática persa, um dicionário alemão-persa, poesia, postais. O empregado é uma pessoa encantadora, muito, culta, mesmo sendo tão jovem. Surpreende-o a minha vontade de adquirir livros de contos afegãos e explico-lhe que, sempre que viajo, gosto de comprar livros, especialmente compilações de histórias e lendas tradicionais dos países que visito. Compro também um folheto sobre os tapetes afegãos e folheio muitos outros livros. Há vários sobre o buzkashi, o desporto nacional afegão, próprio das zonas uzbeque e turquemena do norte, onde a arte equestre faz parte da herança da vida de estepe. Nas épocas de paz celebravam-se três grandes eventos anuais em diferentes datas e diversas cidades: os campeonatos regional e nacional de buzkashi e o torneio de Inverno. As principais cidades do norte do Afeganistão tinham as suas próprias equipas de campeões e favoritos e o buzkashi, além das partidas organizadas nos estádios, jogava-se nas planícies próximas das cidades e aldeias, até mesmo por ocasião de casamentos ou para celebrar o nascimento de um filho varão. O jogo consiste em um cavaleiro carregar o corpo decapitado de uma cabra, que no início do jogo está no centro do terreno, no interior de um círculo. Há que levá-lo até a um determinado ponto, a um ou dois quilómetros de distância, e voltar ao círculo. Os cavaleiros da equipa contrária - cada equipa tem entre vinte e trinta jogadores - tratam de o impedir e de lhe arrebatar os despojos da cabra, para, por sua vez, os levarem até ao seu extremo do campo. Uma queda no meio do jogo pode chegar a ser mortal. A luta pela cabra é feroz e, por vezes, os jogadores acabam por competir todos contra todos, arrebatando o animal morto ao jogador que se apoderou dele, seja da mesma equipa ou da adversária. O jovem livreiro conta-me que se costuma deixar o corpo já degolado da cabra toda uma noite em água para ficar mais pesado, e que os jogadores de buzkashi são autênticos colossos, homens de força e perícia incomparáveis. Também me informa que comem cinco quilos de carne por dia, um ror de ovos e quantidades ingentes de outros alimentos, mas que não são gordos:
- É tudo músculo.
Às três da tarde chamamos o nosso intérprete e o motorista porque queremos voltar a sair. Damos voltas e mais voltas passando pelos mesmos lugares, ruas e praças que já conhecemos de cor. Mas não cedemos. Agora somos nós quem lhes vai dar água pela barba: já que o porteiro nos estragou o dia, chateamo-lo nós agora, obrigando-o a passear-nos. Percorremos a zona universitária, situada junto da montanha de Asmai, a deusa hindu, na mesma encosta em que se ergue o nosso hotel. A universidade moderna ocupa uma extensa área e os edifícios mais recentes datam de 1976, quando este campus foi criado para reunir num único local todas as faculdades, antes dispersas em diferentes pontos da cidade. A faculdade mais antiga é a de Medicina, que iniciou a sua actividade docente em 1932, no reinado de Nadir Kahn. Perto da zona universitária está o hospital Aliabad. Todos os edificios mostram sinais da guerra. Não há vidros, as paredes têm impactos de metralha e estão enegrecidas pelo fogo. Não se vê vivalma nem há sinais de qualquer actividade, mas o nosso intérprete jura que está tudo a funcionar, que as aulas são dadas regularmente e que o hospital recebe doentes. Tenho a certeza de que está a mentir. Se os taliban estão a transformar as escolas de rapazes em madrasas; se as raparigas estão proibidas de ir às aulas e as suas escolas foram desde há muito encerradas; se os taliban são, na sua maioria, analfabetos, inimigos da cultura e da instrução; se, sempre que podem, mandam os mais jovens para a frente de combate, quem é que vai às aulas?
Pedimos para visitar o bairro construído na época dos governos pró-soviéticos, que estava na nossa lista de lugares aonde os nossos amigos afegãos tinham previsto levar-nos e que o próprio intérprete mencionou esta manhã. De novo atravessamos a cidade. Passamos, pela enésima vez pela mesquita de Id Gah, pela antiga estação de autocarros que faziam a linha de Cabul a Jalalabad e percorremos um bairro de prédios altos, edifícios cinzentos, de cinco ou seis andares, também bombardeados e chamuscados, que constituem o bairro popularmente conhecido, por razões que desconheço, como Microrayon.
Neste absurdo percurso pelas ruas de Cabul, passamos diante de uma fábrica de pão que, segundo o nosso intérprete, está em funcionamento. Há que saber como e em que condições.
Cruzamo-nos amiúde com grupos de taliban. Mais do que um, ao ver passar um grupo de mulheres num carro com a cara descoberta, tem uma reacção brusca e lança-nos um olhar furibundo, mas, ao ver que somos estrangeiras, rapidamente se tranquiliza.
Num dado momento, o intérprete diz-nos que estamos a passar diante do que foi a embaixada russa e olha-nos fixamente.
Não reagimos.
Depois saberemos que é ali que os taliban têm encerrado, em péssimas condições, um grupo de refugiados, deslocados procedentes do norte, mulheres na sua maioria, que vieram para Cabul fugindo de uma das frentes onde continua a guerra. Os homens estão na prisão de Pul-i-Charki. A RAWA divulgou impressionantes relatórios, baseados em testemunhos presenciais, sobre a situação em ambos os lugares.
Queremos ainda visitar a parte antiga, a cidade velha, meter-nos no bulício, abandonar as avenidas desertas, ver gente. Levam-nos por diferentes ruas, algumas realmente estreitas, onde reina alguma actividade, e saímos de novo para a avenida, passando em frente de uma mesquita que vem a ser a de Pul-i-Kishti, junto de uma das mais antigas pontes da cidade. Também já por aqui passámos um sem-número de vezes. O nosso mau humor aumenta. O )orteiro nota-o porque nos leva a uma rua cheia de lojas de artesanato: vestidos de festa trafcionais, objectos de metal lindíssimos, antiguidades, jóias. Trata-se, sem dúvida, da famosa Chicken Street, a rua-engodo para turistas dos bons velhos tempos de Cabul. Insistimos em sair do carro. Não há quase ninguém nesta rua que conheceu os tempos de esplendor, e ainda que as lojas estejam abertas, a maioria dos artesãos estão sem fazer nada. Imagino o bulício que antes devia reinar nesta rua, onde os ateliers de artesãos estão uns a seguir aos outros; imagino os seus donos à espreita de potenciais compradores, competindo por eles com o vizinho, desfazendo-se em amabilidade, convidando os transeuntes a entrar, oferecendo-lhes uma chávena de chá; imagino os turistas verdadeiros à caça entre os objectos, escolhendo, regateando, comprando. Agora, como no` resto da cidade, o silêncio apoderou-se desta rua. Não se vêem ourives a trabalhar a prata, nem a fazer filigrana ou a gravar. Vigiam a mercadoria e convidam-nos a entrar, ainda que sem esperança de vender qualquer coisa. Entramos nalgumas lojas, mas tudo é triste em Cabul. E mais ainda nestes antigos reinos do comércio e da transacção, onde hoje, essas maravilhas e objectos de adorno e de luxo parecem fora do seu lugar no meio de tanta destruição e de tanta opressão. Até aflige e envergonha bisbilhotar, para não mencionar o insuportável que é ter o porteiro à perna, irritando-nos, sem nos deixar respirar. Dá vontade de largar a correr e perdermo-nos.
Do outro lado da rua há várias lojas de vestidos de festa de diferentes etnias: pashtun, hazara, uzbeque e tadjique. Maravilhas carregadas de bordados e aplicações que cobrem praticamente a totalidade do tecido. Devem pesar toneladas. E custar uma barbaridade. Entra-se nas lojas por uma pequena passagem que dá para um pátio onde um grupo de homens tece tapetes, um trabalho que até há pouco era tradicionalmente feminino. Cumprimento os homens com um aceno de cabeça. Desde que estamos no Afeganistão procuramos não utilizar palavras em dari ou em pashtu para parecermos ainda mais turistas, para que ninguém pergunte onde é que as aprendemos, e respondemos a tudo em inglês. No pátio, fotografo a oficina e os vestidos que estão pendurados lá fora. Os homens murmuram e um deles consegue balbuciar em inglês, e sem levantar a voz, para termos muito cuidado e para não sermos vistas a fotografar pelos taliban porque isso está proibido e poderemos ter problemas. Agradecemos-lhe e guardamos as máquinas. O homem e os seus companheiros mostram-se aliviados ao ver que compreendemos a advertência e somem.
Voltamos para o carro depois de desenganar o dono da loja de vestidos. São lindos, mas nunca poderíamos usá-los no nosso país.
Percorremos, de seguida, uma rua larga, cheia de lojas e passeios onde há bastante gente: homens e até algumas mulheres, mais do que as que vimos durante todo o dia. Todas tapadas pela burka, pinceladas azuis sobre o asfalto cinzento. O carro detém-se e o intérpre te, conciliador, anima-nos a sair do carro, não para passear e deixar-nos ir e vir como nos aprouver, mas somente para nos meter num estabelecimento para comer um gelado. Do carro passamos rapidamente ao reservado, que por sorte dá para a rua, e donde o empregado acaba de correr umas mulheres ali sentadas antes de nós.
Para falar verdade, nós estamos de péssimo humor e, mais que fartas, furiosas. Tiramos fotografias a torto e a direito, corremos a cortina e tiramos fotografias do estabelecimento. Perante o enfado do empregado,umo abertamente e sem tchador. E saímos do reservado antes de o porteiro vir buscar-nos. Não queremos estar mais tempo ali encerradas. Voltamos para o carro de uma forma tão imprevisível que o motorista e o intérprete têm de correr. Que se lixem.
Voltamos a passar diante do estádio e do antigo campo de golfe onde, efectivamente, dezenas de jovens jogam futebol, enquanto grupos de taliban, sentados na relva, junto dos seus Toyotas, mandriam observando os jogadores. O motorista volta a levar-nos ao alto da colina onde começámos o percurso matutino e onde o porteiro nos tinha pedido que lhe tirássemos fotografias, apesar de proibido, e lhas mandássemos. Como é que as mandaremos se no Afeganistão não há serviços postais? Isso não lhe dissemos, claro, nem ele tampouco. A meio da manhã mudou de opinião e sugeriu comprar um rolo para as suas fotografias. Ele encarregar-se-ia de as revelar e assim não tínhamos de lhas mandar. Finalmente fica tudo na mesma. No entanto, tanto ele como o motorista posam satisfeitos diante das nossas máquinas. Passeamos pela esplanada e a luz vai mudando à medida que o crepúsculo se aproxima. - Atrás daquelas montanhas é a frente, onde a guerra continua.
Fingimo-nos surpreendidas e desinteressadas. Como fonte de informação este homem é uma nulidade e como guia uma chatice. De repente chega à esplanada do museu um Toyota. Dois taliban estendem um pano rectangular branco no chão e rezam.
Não nos atrevemos a fotografá-los. Dou-me conta de como a apreensão é contagiosa. Estou certa de que de manhã cedo não teríamos tido dúvidas em sacar das máquinas - ao fim e ao cabo estão de costas - e roubar-lhes essa fotografia. Mas depois de ver limitada a nossa autonomia durante todo o dia, duvidamos tanto que já o não fazemos. Se tivesse de viver aqui, em Cabul, sob a pressão constante dos taliban, acossada pelas suas patrulhas de vigilância, pelas suas proibições e ameaças, quantas coisas me atreveria a fazer? Até que ponto me submeteria, como agora, pensando que não vale a pena correr o risco?
Vamo-nos embora. Está visto que o nosso passeio turístico por Cabul com carro oficial e intérprete oficial, ou pseudo-oficial, é um desastre. O dia acaba finalmente e podemos dar por finda esta pantomina. Já não era sem tempo.
- Para o hotel! - ordenamos ao motorista.
O porteiro, suponho que encantado ante a perspectiva de se livrar de nós e cobrar, mostra-se falador. Tanto nos faz. Até que, subitamente, ficamos alerta:
- Para amanhã já está tudo combinado - num qualquer momento do dia perguntara-nos a que horas pensávamos sair do hotel e tínhamos-lhe dito. - Às sete em ponto um carro oficial e um intérprete oficial virão buscá-las para as levar à fronteira.
Entreolhamo-nos e replicamos que não é preciso, que lhe agradecemos o trabalho mas que regressaremos ao Paquistão com a nossa intérprete e no carro que escolhermos. Insiste até nos deixar claro que não há outra opção e que não poderemos abandonar o hotel sem ser no carro oficial e com o intérprete oficial. Ficamos emudecidas. Será possível que tenhamos feito toda esta viagem para nada? Será que não há forma de nos livrarmos deste férreo controlo? Depois de um silêncio muito tenso, volta a mostrar-se amável e diz-nos que poderíamos ir embora com a nossa intérprete - a nossa amiga, diz - e com o carro que quiséssemos; mas que isso nos custará dez dólares. Cinco para ele e cinco para o motorista. Mostramo-nos de acordo, mas, dadas as circunstâncias, só pagaremos quando estivermos no nosso carro e com a nossa intérprete.
= Então não fazemos negócio. - Muito bem, não o fazemos.
Fingimos que não nos importamos, ainda que comecemos a sentir alguma inquietação. O porteiro acrescenta que nos quis ajudar e que se amanhã à hora da partida tivermos problemas, ele já não poderá intervir nem fazer nada por nós.
Na porta do hotel há um grupo de taliban. Pagamos ao motorista e ao intérprete,6`preço em dólares que de manhã combinámos. Agora não se mostram de acordo e querem fazer-nos crer que o preço estabelecido era mais alto. Não caímos na esparrela e deixamo-los a discutir no interior do carro.
No nosso quarto voltamos a contar o dinheiro. Os dólares de que dispomos, depois do gasto extra a que fomos obrigadas por ter de aceitar o carro oficial e o intérprete do hotel, são poucos e, ante a incerteza do que vai passar-se amanhã, quando quisermos sair do hotel, decidimos esquecer o jantar. Sentadas na cama, comemos as bolachas e os doces que comprámos em Peshawar para a viagem. A Sara e eu não nos perdoamos ter perdido a oportunidade de conversar com os taliban esta manhã quando nos convidaram a tomar chá nas ruínas do palácio.
- Somos parvas. Perdemos uma oportunidade única.
Lá em baixo, no vestíbulo do hotel, há taliban. Se descermos e nos deixarmos ver, talvez tenhamos uma segunda oportunidade: talvez estes também se mostrem sociáveis e comunicativos. Para a Meme, o nosso desejo de conversar com taliban é uma monstruosidade e recusa-se a vir connosco. Prefere ficar no quarto. A Sara e eu descemos até à sala de jantar. Um numeroso grupo de taliban, de oito a dez homens, janta num dos lados da sala. Sentamo-nos a uma mesa, nem muito longe nem muito perto, e pedimos café. É evidente que durante o jantar, e por várias vezes, falam de nós, porque nos olham amiúde e riem. Não voltamos a ver os dois ocidentais de ontem à noite e do pequeno-almoço de hoje. Quem seriam? Que fazem em Cabul? Pedimos mais café. Não, não queremos jantar, respondemos ao empregado quando este pergunta o que desejamos. Os taliban acabam de comer. Levantam-se e saem. Nem se aproximam de nós.
Vamos tarde para o quarto. A Meme diz-nos que ligaram da recepção. Pensa que terão perguntado se queríamos ser acordadas a alguma hora em especial, mas ela respondeu que tínhamos despertador. Espanta-nos um pouco essa súbita solicitude, mas também não lhe damos demasiada importância. Vamos conversar para o quarto da Meme e, pouco depois, alguém bate à porta. É tarde, mas também isso não nos surpreende porque já não é a primeira vez: desde que chegámos ao hotel já cá vieram três vezes a perguntar se está tudo bem, a trazer jarras de flores para um quarto e depois para o outro.
- A estas horas?!
A Sara põe o tchador na cabeça e vai ver quem bate. A Meme está deitada na cama e eu no sofá do quarto dela. De tudo o que uma voz de homem diz lá fora no corredor, só percebo a palavra "intérprete".
- Que chatos, com a intérprete! - comento para a Meme.
De onde estamos, não vemos a porta do quarto, situada no fim de um pequeno corredor para onde também dá a porta da casa de banho. A Sara fecha a porta e junta-se a nós. Está abatida.
- Que é que foi?
A Sara engole em seco e nota-se que faz um grande esforço para manter a calma. Foi um homem novo e que ela nunca tinha visto que bateu à porta. Começou por dizer que tinha uma coisa importante a comunicar-nos, mas que, antes ela tinha de prometer que o não denunciaria e que em nenhuma circunstância diríamos que ele nos tinha avisado. O homem suava e não parava de olhar para todos os lados, tentando ver se aparecia alguém do hotel ou de fora. Estava visivelmente nervoso e assustado. A Sara, mesmo sem imaginar o que é que poderia ele dizer-nos de tão importante, deu-lhe a entender que podia confiar em nós. Ficou petrificada ao ouvi-lo dizer que tinha sabido que na manhã seguinte, pelas sete horas, os taliban estariam à espera da nossa intérprete, quando ela viesse buscar-nos, para a prender a ela e a quem a acompanhasse. O homem queria saber se tínhamos algum telefone, alguma direcção para prevenir a mulher e avisá-la para não aparecer.
A Sara disse-lhe a verdade: não tínhamos nenhum telefone.
- Ainda por cima, nem conhecemos a mulher e, muito menos, sabemos onde mora.
O homem fartou-se de insistir que era importante avisar a intérprete e sugeriu que a Sara falasse connosco para ver se nos ocorreria uma solução.
A Sara disse-lhe para esperar no corredor e fechou a porta.
Ficámos em pânico quando a Sara nos conta o que se passa, mas decidimos fingir que não era nada connosco e até mostrarmo-nos indignadas por virem incomodar-nos a estas horas da noite com histórias tão estranhas.
A Sara volta ao corredor mas o homem já lá não está. Foi-se embora.
Mal acaba de fechar a porta, voltam a ouvir-se as pancadinhas e ali está ele, mais nervoso do que antes, insistindo na necessidade de manter secreto este encontro, suplicand que não digamos a ninguém que ele nos avisara, porque isso poderia acarretar-lhe problemas muito sérios.
A Sara, então, actua magistralmente:
- Olhe lá, estamo-nos nas tintas para os seus problemas. Somos clientes do hotel, pagamos para cá estar e não estamos dispostas a deixar que nos dêem cabo da paciência com tolices. É meia-noite e queremos descansar e dormir - e fecha-lhe a porta na cara com brusquidão.
Agora que estamos sozinhas, sentimo-nos destroçadas. Que poderemos fazer?
Primeiro, ter muita calma e reflectir.
Dizer isto é fácil, o pior é actuar em conformidade...
Mas conseguimo-lo, ainda que, nos primeiros momentos, eu, pelo menos, me sinta incapaz de pensar, com a cabeça vazia e o medo a avançar. Num par de segundos secaram-se-me a boca e a garganta. Nunca tive tanto medo. Não por mim, mas pelo que vai suceder amanhã, pelas sete, quando a nossa intérprete chegar para nos levar, sem saber o que a espera, contente por se reunir a nós, acompanhada pelo tio, um homem tão simpático e sorridente e, de repente, cair-lhes em cima o horror, porventura a morte.
Não podemos preveni-los porque, de facto, não temos qualquer direcção, tão-pouco um telefone. E mesmo que o tivéssemos... nunca nos lembraríamos de ligar do hotel, tão repleto que está de taliban, nem de dar o número a um desconhecido.
Também não podemos sair do hotel para telefonar doutro sítio... aliás, que sítio, se todo o sistema de comunicações está mais que rebentado? Não temos aonde ir: não há embaixadas, nem consulados, nem sedes de nada nem de ninguém neste país, em que os crimes se levam a cabo sem testemunhas, com total impunidade. A polícia são eles, os taliban, as autoridades são eles, os taliban, que amanhã virão pela nossa intérprete porque é mulher e supostamente trabalha para nós.
E se amanhã bem cedo, enquanto duas entretêm os do hotel, uma de nós sair a correr para avisar o táxi de Palwasha para desandar a todo o gás? Parvoíces! De qualquer modo, quando ela chegar será demasiado tarde.
Ainda que a prendam à nossa frente, mesmo que possamos intervir, que nos atiremos a eles ou tentemos proteger Palwasha com os nossos próprios corpos, de nada servirá. Podem ferrar-lhe um tiro ali mesmo. E a nós, metem-nos num carro e expulsam-nos do país. Mas o mais provável é que se não atrevam a prendê-la diante de nós, as turistas estrangeiras que poderiam, depois, contar tudo. De facto, o mais certo é que nem sequer assistamos à detenção: basta que os taliban esperem o táxi mais abaixo, no início da ladeira que vai dar ao hotel, para que nunca mais voltemos a ver Palwasha ou o tio, e ninguém saberá o que foi feito deles.
Horroriza-nos pensar que a nossa vontade de visitar o Afeganistão possa custar a vida à nossa intérprete e ao seu muhrram. É horrível esta impotência de não poder avisá-los do que os aguarda.
Imaginamos a cena mil vezes: Palwasha chegando de táxi e os taliban, no Toyota, à espera dela, na rotunda que fica diante da porta do hotel. Temos a certeza de que connosco não há problema, somos estrangeiras, entrámos legalmente no Afeganistão, com o visto do consulado taliban. E também porque, neste momento, não lhes convém um escândalo, estão em pleno processo de melhoria de imagem para conseguir o reconhecimento e a legitimação por parte da comunidade internacional. Nada nos podem fazer excepto meter--nos num carro e pôr-nos na fronteira. Mas com os nossos amigos afegãos, o caso muda de figura.
A sensação de desamparo é total.
- Tudo isto porque vocês não quiseram pagar os dez dólares ao porteiro. Vamos mas é lá abaixo, damos-lhe o dinheiro e pronto - diz, entretanto, a Meme.
Nem a Sara nem eu pensamos que a coisa seja assim tão fácil. Mesmo no pressuposto de que seja assim, mesmo que o porteiro, por vingança, tenha denunciado a nossa intérprete, não há volta a dar-lhe. Havendo já ordem de prisão, também ele não pode parar os taliban. Aliás, descer e oferecer-lhe os dez dólares a estas horas da madrugada denunciar-nos-ia e a única maneira de proteger Palwasha é continuar com o jogo: somos turistas, contratámos uma rapariga num hotel de Peshawar e a sua eventual detenção é, a nosso ver, um abuso e um insulto. Não há dúvidas: esta é a única atitude possível. Não podem saber que estamos assustadas nem que tememos pela vida de Palwasha. Devemos mostrar-nos mais ocidentais e mais prepotentes que ninguém.
Concluímos que temos de nos adiantar aos acontecimentos. Uma vez presa já não se poderá fazer nada. Portanto, não podemos esperar para ver o que acontece, temos de agir antes para impedir a detenção. Aferramo-nos a esta premissa e tentamos estabelecer um racio cínio lógico e claro a partir daí. Entrámos legalmente no país, temos um visto. No requerimento do mesmo indicámos claramente que traríamos connosco uma intérprete. A intérprete cruzou a fronteira connosco, com pleno conhecimento dos taliban.
Decidimos exigir a presença de um responsável do "governo" taliban para aclarar a situação antes que a detenção ocorra. Se uma autoridade superior intervier há a hipótese, para evitar um escândalo, de que nos deixem partir com a intérprete e o seu acompanhante. Esperar que aconteça o pior para reagir, já não servirá de nada; quando muito, conseguiremos que nos mintam e que nos mandem embora com palavras tranquilizadoras, enquanto
Palwasha e o tio desaparecem ou são castigados, encarcerados, torturados ou assassinados, tão impunemente como acontece com milhares de cidadãos afegãos.
Desceremos cedo para a recepção e exigiremos que avisem imediatamente um representante do "governo" taliban, a quem, indignadas, exporemos a situação. A Sara terá que arcar com o peso da negociação devido ao seu domínio do idioma. Nós só poderemos prestar-lhe apoio moral. Poderá fazê-lo e fa-lo-á muito bem porque é a única possibilidade que temos de salvar os nossos amigos.
Sentadas no chão, junto do ventilador, falamos em voz baixa, para o caso de haver alguém no corredor à coca.
- Levámos isto demasiado longe. Não deveríamos ter insistido em vir ao Afeganistão, - diz a Sara.
Mas o que está feito, feito está.
A mim o que mais me atormenta é a certeza de ter de viver o resto da minha vida com vida de duas pessoas, a de Palwasha e a do tio, a pesar-me na consciência, porque não há dúvida que se amanhã as coisas derem para o torto, se de facto acontecer o que nos anunciaram, os taliban não terão qualquer pejo em ferrar um tiro a cada um nem que seja à porta do hotel. Não posso suportar a ideia de regressar ao Paquistão sem eles, de explicar a Najiba, Rustam e a todos os nossos amigos afegãos o sucedido, de voltar para a Europa e, dia após dia, até ao fim da minha vida, sentir a responsabilidade do final terrível da nossa aventura afegã.
Para me tranquilizar, vou pensando que não faz sentido que uma mulher tão jovem capaz morra ou desapareça de um modo tão gratuito, tão arbitrário. Mas, ao mesmo tempo torna-se-me evidente que, segundo a absurda lógica do nosso mundo, até seria normal Palwasha morrer, porque o mundo destrói aqueles que trazem alguma luz às trevas do poder da ambição e da destruição.
Consideramos também a hipótese de que tudo se complique e que não se limitem a deter a nossa intérprete e o seu muhrram; que a patrulha de taliban que vier amanhã às sete desconheça os planos dos seus superiores, empenhados em ter uma boa imagem junto do exterior. Ao fim e ao cabo, estas patrulhas actuam por conta própria, com total arbitrariedade e impunidade. Lembramo-nos de que em Julho, pouco antes de termos começado a nossa viagem, foram detidos sete homens e nove mulheres, uma delas norte-americana, que trabalhavam prestando assistência médica ao domicílio. Aos homens libertaram-nos ao fim de poucas horas, a americana foi deportada dias depois, mas do resto das mulheres ninguém sou mais nada. Assim, se por acaso nos prenderem antes de nos expulsarem, ou nos revistar antes de nos deixarem partir, há que destruir tudo o que de comprometedor trazemos. Felizmente deixámos em Peshawar a maioria das nossas notas e apontamentos, mas nas nossas agendas e cadernos também estão os telefones de diversas organizações afegãs, da RAWA~ do ACNUR, provas mais que evidentes de que somos mais do que meras turistas. Começamos, portanto, a arrancar as páginas e a queimá-las no cinzeiro do quarto da Meme. Ainda não tínhamos destruido três papéis e já o quarto está tão cheio de fumo que temos de abrir as janelas para não nos intoxicarmos.
- Que parvas que somos! - exclama então a Meme ou a Sara já não sei bem. - Para que estamos a queimar a papelada se temos as retretes?
Começamos a rasgar em pedacinhos as folhas carregadas de dados, e toca de lançá_los, às mãos cheias, pela retrete abaixo. E zás, é só puxar o autoclismo.
- Ainda entopem tudo com tanto papel! - protesta a Meme. - Deixem passar alguns momentos entre as descargas.
Também mudamos os rolos das máquinas fotográficas, não vá dar-se o caso de no-las requisitarem.
Estamos realmente horrorizadas perante a perspectiva do que pode ocorrer amanhã, mas fazemos o possível para não ceder ao pânico. Creio que as três estamos conscientes de que, agora, não podemos perder a calma. A serenidade de cada uma é vital para as outras.
- Só quero que isto passe e que amanhã à noite estejamos em casa da Najiba, contando tudo isto e rindo-nos do sucedido - diz, a certa altura, a Sara.
Sim. Seria maravilhoso estar já em casa, recordando, mortas de riso, o que fizemos. Mas para isso, há ainda que passar pela incerteza, pela provação de amanhã, pela angústia de não saber o que vai suceder.
- Com sorte, Palwasha não vem.
Era uma esperança tonta. É certo que tínhamos falado da possibilidade de surgir algum imprevisto e de ela faltar a algum dos nossos encontros, mas a probabilidade de que isso suceda amanhã é praticamente inexistente.
- Oxalá não venha!
Mas sabemos que virá. Sabemos que nada nem ninguém vai poupar-nos esta agonia. Apagamos a luz.
Já deixamos preparadas as nossas malas para o dia seguinte. Pusemos o despertador para as cinco da manhã. Assim estaremos na recepção às seis para enfrentar a situação, jogando tudo por tudo, lançando-nos numa fuga para diante. Tudo o que se passe antes das sete será de importância vital.
Segunda-feira, 14 de Agosto de 2000. Afeganistão
É melhor ver as coisas do que esperar que contem.
Dormimos pouco e mal.
No escuro, a Sara vai e vem da casa de banho, descomposta. Quanto a mim, as náuseas são terríveis, e só desejo vomitar.
- Sonhei que Palwasha não vinha - diz a Sara. Nem lhe respondo.
Tomamos um duche e vestimo-nos tentando manter a calma. Descemos para a recepção com um nó no estômago.
Aproximamo-nos do balcão da portaria, onde não está ninguém. Chamamos, insolentes, até que um empregado aparece.
- Preparem a factura enquanto tomamos o pequeno-almoço e chamem imediatamente um representante do "governo" taliban.
O rapaz fica estupefacto, mas não aguardamos a sua reacção. Fazemos meia volta e vamos para o restaurante.
Os empregados estão junto da porta da cozinha e não fazem a menor menção de servir, ainda que não tirem a vista de cima de nós. Até que, impacientes, fingindo irritação, golpeamos a mesa com os nós dos dedos para chamar a atenção e, autoritariamente, exigimos o pequeno-almoço. Imediatamente se gera um grande movimento e aparecem as torraFdas, a manteiga, o café... Pedimos também três garrafas de água para a viagem.
Nem sei como é que conseguimos comer as torradas. Passa das seis e meia.
Aproxima-se da nossa mesa o porteiro, o nosso intérprete de ontem. Já lhe disse que queremos falar com as autoridades taliban e quer saber o que se passa, se há algum problema.
- O que precisamente queremos é não ter qualquer problema para sair do país: por isso queremos falar com o "governo" taliban, para que as autoridades nos informem directamente sobre o que devemos fazer.
O homem desfaz-se em explicações: podemos partir quando quisermos e com quem quisermos. Acaba de falar com o ministério ao telefone e já lhe confirmaram o que acaba de dizer.
A Sara mostra-se atrevida.
- Queremos falar pessoalmente com uma autoridade competente e é evidente que você não o é. Aliás, não acreditamos em si. Ontem disse uma coisa, hoje outra. Já não acreditamos em nada do que nos diga. Estamos neste país legalmente, a nossa intérprete tam bém. Faça, portanto, o favor de providenciar para que aqui esteja um representante do "governo" taliban que possa garantir a nossa segurança.
O porteiro tenta convencer-nos, mas nem o ouvimos.
- Não arredamos pé daqui enquanto não vier a autoridade taliban.
O porteiro afasta-se com ar preocupado e isso tranquiliza-nos um pouco. Os empregados estão suspensos de tudo o que acontece.
Sete menos um quarto.
Aproximamo-nos do balcão da portaria com a bagagem na mão, preparadas para partir. A factura não está pronta. O porteiro insiste em que podemos partir sem problemas com a nossa intérprete e no carro que escolhermos. Quanto mais assustado está ele, mais seguras nos sentimos nós. Pedimos a factura e exigimos a presença do taliban.
Aparece então o director do hotel:
- Desculpem, creio que ontem à noite alguém as incomodou e...
- Andam a incomodar-nos desde que chegámos. Fomos obrigadas a prescindir dos serviços da nossa intérprete, disseram-nos que só podíamos sair do hotel e do país num carro oficial, quando nunca isso nos foi dito pelo consulado taliban. Queremos uma garantia de que não se vai passar mais nada. Temos todos os nossos documentos em ordem, portanto vamos aclarar, de uma vez por todas, esta questão e confirmar que não temos qualquer problema com as autoridades, que aliás são os taliban e não vocês.
O porteiro quer devolver-nos os dólares que ontem lhe pagamos.
- Não queremos o seu dinheiro! Queremos partir tranquilas. Façam o favor de chamar os taliban.
Entretanto, entra no vestíbulo o tio de Palwasha e dá-nos a entender que ela está lá fora à nossa espera. Ficamos aliviadas e ao mesmo tempo preocupadas. Ele olha-nos assombrado ao ver o escândalo que armámos. Não sabe inglês e não podemos dizer-lhe que surgiu um problema e que eles correm perigo. Na noite anterior, tínhamos procurado no dicionário de dari que comprei, a palavra correspondente a "problemas", mas já não temos tempo. Cada vez mais animadas, protestamos, damos rédea solta à nossa indignação. Atrás do balcão vários empregados assistem à discussão. O homem que ontem à noite nos avisou do periga que corria a nossa intérprete também está na recepção. Exigimos que, de uma vez por todas nos tirem a conta, e, finalmente, alguém trata da factura.
Entretanto a representação continua. A Sara não pára de se queixar do tratamento dado pelo hotel.
- É inacreditável o modo como aqui tratam os turistas.
Pelo rabo do olho vemos o tio de Palwasha a falar com o porteiro. Saberemos, depois que está a dizer-lhe que veio buscar o dinheiro que as senhoras estrangeiras tinham prometido à sua sobrinha.
- Vamo-nos daqui quanto antes - murmura a Meme.
Fingimos dar-nos por satisfeitas, ainda que continuemos a exigir que nos escrevam na factura o número de telefone do Ministério do Turismo. Para o que der e vier. Estala outra discussão:
- Não temos o número que nos pede, madam.
- Ora essa! Ainda há pouco, no restaurante, não nos disseram que tinham falado com o ministério?
Já não sabem onde se meter. Agora são eles que estão verdadeiramente assustados. Exigimos, indignadas, a presença dos taliban.
O homem jovem que ontem à noite veio ao nosso quarto, agarra na factura e, à pressa escreve um número. Fingimo-nos satisfeitas, ainda que, provavelmente, seja um número inventado: agora há que retirar rápida e velozmente e não abusar da sorte. Já quase na porta a Sara pára e dá meia volta. Num gesto definitivamente teatral, ameaça a roda de empregados do hotel que nos segue:
- Lembrem-se que a viagem daqui até à fronteira é muito longa, e que se tiver algum problema, vocês terão muitos e bicudos.
Saímos do vestíbulo e dirigimo-nos para o táxi, em passo estugado, mas sem correr. Palwasha abre a porta e dispõe-se a sair para nos cumprimentar, mas empurramo-la para dentro.
-Não, não, vamo-nos já daqui, corremos perigo.
Palwasha fala despreocupadamente. Pedimos-lhe que preste atenção, que a situação é grave e não há tempo a perder. A Sara faz-lhe um resumo rápido do que se passou. O perigo ainda é real. O porteiro ainda pode reagir denunciando-nos, denunciando-a a ela. Se continuarmos juntas, se ficar connosco, corre um risco desnecessário. Propomos-lhe separarmo-nos e pedimos-lhe que regresse ao Paquistão com o seu muhrram. Se os taliban querem realmente prendê-la, nada mais fácil do que procurar na estrada de Cabul à fronteira uma afegã acompanhada de três turistas ocidentais, provavelmente as únicas que haverá em todo o Afeganistão.
A Sara desata a chorar. Foi muita a tensão que teve de suportar. Palwasha discute longamente com o tio. Depois rompem em gargalhadas. Nós não percebemos patavina.
- Julgamos que não se corre qualquer perigo e que eles apenas quiseram assustar-vos para vos forçarem a usar os carros deles e sacar mais dinheiro. Caso se atrevam a continuar, podemos seguir o nosso plano e tentar levar a cabo parte do que se combinou. Mas se quiserem voltar já para o Paquistão, basta dizê-lo.
Garantimos-lhe que só a segurança dela nos preocupa, que tememos pelas vidas dela e do tio e que faremos o que ela achar melhor e mais prudente. Mas que não se exponha sem necessidade.
- Muito bem. Então vamos. Onde estão as vossas burkas?
Em dois dias visitaremos cinco cursos clandestinos em diferentes lugares do Afeganistão. Mudaremos de carro e de motorista várias vezes. Deslocar-nos-emos de carro, de riquexó, a pé, ocultas pelas burkas, que vestiremos num sítio pouco frequentado, dentro de um carro conduzido por um motorista de absoluta confiança, depois de passar pelo controlo taliban.
Os cursos clandestinos destinam-se às mulheres e às meninas a quem o regime taliban proíbe o acesso ao ensino. Perante este abuso, a população reage. Há os que fogem do país para se tornarem refugiados desamparados, votados a um futuro incerto. Entre os que ficam, há os que não podem suportar este estado de coisas, sobretudo as mulheres que até há pouco tinham uma vida muito diferente, gozavam de liberdade de movimentos, trabalhavam fora de casa, frequentavam as universidades, reuniam-se, dançavam, cantavam. Muitas destas mulheres, e alguns homens também, não conseguiram ultrapassar a perda de todas as suas liberdades e também fugiram, libertando-se pelo suicídio. Outros optam pela subversão, pela desobediência consciente e clandestina a essas proibições destinadas apenas a minar a resistência do povo e a impedir o progresso e a recuperação do país. Foi assim que se criaram as redes clandestinas, coordenadas por diferentes organizações humanitárias que lhes dão apoio. Mulheres que antes trabalhavam de forma aberta e pública nos diversos estabelecimentos de ensino do país, dão agora aulas nas suas residências ou em outros domicílios particulares; mulheres, que trabalhavam no campo da saúde dão assistência domiciliária a outras mulheres, visitando-as clandestinamente ou dão pequenos cursos básicos de higiene, saúde e prevenção de doenças a grupos de mulheres.
Antes de entrar no Afeganistão já nos tínhamos posto em contacto com diferentes organizações e os seus membros já sabem da nossa viagem ao interior do país e estão à nossa espera. Ocultas pelas burkas, visitamos uma das coordenadoras dos cursos de alfabetização, que nos explica as respectivas regras de funcionamento.
Os cursos de alfabetização e saúde básica para mulheres organizam-se por iniciativa das próprias mulheres. Não se deve esquecer que o nível de analfabetismo entre a população afegã, maioritariamente rural, já era altíssimo antes do começo das guerras. Agora, quando as vizinhas de uma rua, um bairro ou uma aldeia querem aprender a ler e escrever, formam grupos de dez a doze mulheres. Escolhem, por acordo, a casa que lhes parece mais segura ou de mais fácil acesso para servir de escola. As diferentes organizações humanitárias que prestam ajuda a este tipo de iniciativas, fornecem-lhes o material didáctico e as professoras. As escolas clandestinas para raparigas funcionam de modo parecido e, dentro do possível, tentam seguir um horário e um programa escolar completos.
Os taliban sabem da-existência destes cursos, pelo que todos os implicados neles estão conscientes de que devem usar da máxima cautela. As alunas entram e saem das casas-escola a horas diferentes e nunca em grupo; escondem os livros debaixo das burkas e algumas inventaram mesmo formas engenhosas de o fazer. Até as meninas mais pequenas sabem que, em circunstância alguma, devem mostrar o livro aos taliban se estes as mandarem parar na rua. Também sabem que, se suspeitam que estão a ser seguidas pelos taliban, devem despistá-los ou, inclusivamente, faltar à escola nesse dia para não pôr em perigo o resto do grupo e a professora. Por estranho que isto possa parecer, é uma situação que já se vive com toda a naturalidade.
As professoras são profissionais formadas que trabalharam no ensino e na docência até os taliban proibirem as mulheres de exercer todo e qualquer trabalho remunerado. Para as aulas, e com o fito de evitar represálias mais graves no caso de serem descobertas, usa-se o manual autorizado pelos taliban para escolas de rapazes. Afirmam-nos que estas escolas são de duvidosa qualidade e que os taliban estão a convertê-las em escolas corânicas.
Noutros cursos que visitaremos, utiliza-se um manual diferente, cheio de desenhos, com gente vestida à ocidental. É uma experiência-piloto que tem apenas um mês de existência, mas será certamente abandonada por ser demasiado perigosa. Pergunto por que é que não deixam os livros na casa onde se dão as aulas. Se o risco é assim tão grande, não compreendo a necessidade de passear os livros todos os dias pela rua.
- As alunas precisam dos livros para fazerem os trabalhos de casa - respondem-me com toda a tranquilidade.
Convém dizer que, nisto tudo, também os homens têm o seu papel. Cada menina que vai à escola, cada mulher que faz as suas duas horas de aula diárias, cada professora tem o apoio e conta com a cumplicidade de todos os membros da família, homens e mulheres. De outro modo seria impensável, impossível. No Ocidente, tem-se, por vezes, a ideia de que no Afeganistão os homens são taliban e as mulheres sofrem as consequências. Não é assim: no Afeganistão há os taliban, um grupo armado minoritário apoiado pelo exterior, que tomou o poder, e há o povo, os homens e as mulheres afegãos, a quem são negados todos os direitos, mesmo se, de facto, são as mulheres quem tem a pior sorte.
Contam-nos que, apesar de todas as precauções, já se teve que encerrar mais do que uma escola, ainda que, de momento, nenhuma aluna tenha tido problemas ou sido presa. Houve uma ocasião em que os taliban apanharam uma professora e acusaram-na de leccio nar em casa. Na busca que se seguiu não encontraram nenhuma aluna nem nada que pudesse sustentar as suas acusações. O grupo escolheu outra casa para prosseguir a actividade e as aulas recomeçaram com toda a normalidade.
O principal problema com que se defrontam as organizações humanitárias que prestam apoio a estas actividades docentes está em que a procura excede a oferta e cada vez há mais mulheres a pedir cursos de alfabetização e famílias a querer que as suas filhas frequentem a escola. Algumas são quase adolescentes, já nascidas no tempo da guerra e sob regimes fundamentalistas, que nunca puderam receber educação escolar. Os pedidos são atendidos por rigorosa ordem de entrada. As organizações contactam com outras professoras, estas, por sua vez, com antigos colegas. Também é costume animar as mulheres que frequentaram as aulas a tomarem conta de grupos, a ensinar as vizinhas e amigas para, deste modo, criar redes de formação cada vez mais alargadas. Outro problema de importância capital é a falta de fundos. As aulas são gratuitas para as alunas, mas as professoras deveriam poder receber um salário que lhes permitisse subsistir e ter uma fonte de rendimento. Sem dinheiro e sem ajuda do exterior, dificilmente se poderá continuar a desenvolver este trabalho.
A coordenadora da zona acompanha-nos na visita a outro curso. Travamos conhecimento com a professora e com as alunas. Perguntamos-lhes por que se arriscam tanto.
- Queremos ter educação para o dia de amanhã.
Para ir de um lugar para outro envergamos as burkas. Dois dos cursos estão relativamente perto pelo que vamos a pé. Também nós saímos de casa separadamente, em pequenos grupos, para não chamar a atenção.
Eu vou com a Sara e uma afegã. Antes de sair, dizem à Sara que baixe as calças porque se lhe vêem os tornozelos e isso poderia denunciar-nos.
Não é fácil andar na rua com a burka posta. Não se vê quase nada através da rede que cobre essa única janela para o exterior. Se não se inclinar a cabeça, não se vê o chão, e muito menos os buracos, os desníveis do terreno, e o risco de tropeçar é constante. A trama da rede da viseira força a vista e a pressão do gorro encaixado na fronte acaba por fazer dores de cabeça. Se não se virar a cabeça também não se vê nada para os lados.
Sem me dar conta, afasto-me do grupo e, concentrada em andar para a frente, deixo as minhas companheiras para trás sem que elas possam chamar-me, visto haver mais gente na rua que não deve saber que somos estrangeiras. No percurso seguinte,. que também fazemos a pé, a mulher que nos acompanha fala-nos continuamente na sua língua, como se nós fossemos afegãs. Quando não permanecemos caladas, limitamo-nos a largar uns sons guturais. Ouvir a voz dela permite-nos guardar o rumo e manter a mesma passada.
A burka não pesa, o tecido é fino e leve, mas é como estar dentro de uma sala blindada. Se fosse de chumbo não seria mais angustiante. Não se trata de claustrofobia, mas de perda de identidade: já não és nada, debaixo da burka já não és ninguém. Podes ouvir; vês qualquer coisa através do rendilhado da viseira; sentes o calor e os cheiros; mas estás excluída do mundo e da vida que estão lá fora, do outro lado da burka. Penso na estranha relação amor-ódio que as mulheres afegãs devem sentir por esta peça de vestuário: odeiam sair de casa com o seu cárcere privado por cima mas, ao mesmo tempo, a burka é objecto do desejo de quantas, não podendo comprá-la, estão confinadas entre quatro paredes e não podem sair à rua.
Numa das casas-escola que visitamos espera-nos também uma das responsáveis do RAWA. É amiga de uma das professoras da HAWCA e reunimo-nos na sua casa. Esta organização afegã, além das actividades de carácter humanitário que assumiu ao longo dos vários anos de guerra, organiza, em diferentes províncias e áreas do país, cursos de formação política e grupos de discussão com mulheres intelectuais que já têm um certo grau de conhecimento, em que se fala dos direitos das mulheres, da situação política actual e das possíveis opções e soluções, ainda que todas elas estejam conscientes de que o movimento democrático clandestino não está suficientemente consolidado. Por outro lado, para que o problema Afeganistão possa ter solução, é urgente que o mundo para lá das suas fronteiras tenha consciência da realidade terrível que se está a viver aqui, e que a ONU intervenha com actuações práticas e se defina com clareza. A ONU, se quisesse, também poderia estabelecer as bases necessárias para que se convocasse e reunisse a Loya Jirga, a Grande Assembleia, não permitindo que nela participassem os grupos e facções integristas, para finalmente dar ao povo a oportunidade de se manifestar. Para isso, as Nações Unidas deveriam actuar com independência, sem considerar os interesses das diversas potências.
Esta mulher diz-nos que é obrigada a mudar de domicílio de dois em dois meses para evitar ser localizada pelos taliban, os quais emitiram ordens de busca e captura conta militantes da RAWA e que, através da Rádio Voz da Sharia, convidam a população a entregá-las.
Durante a conversa, contam-nos que as execuções nos estádios continuam a ser habituais: às sextas, dia santo, é a vez dos homens, quer se trate de execuções quer de amputações ou bastonadas; quanto às mulheres, dado que não são dignas de ser castigadas num dia santo, reserva-se-lhes as terças-feiras. Há já alguns dias que em Cabul, a Rádio Voz da Sharia anuncia a próxima execução de três mulheres, duas delas condenadas por adultério, mas a data definitiva ainda não está fixada.
Informam-nos de que a situação piorou muito nas últimas semanas e que a repressão, as rusgas e as actuações dos pelotões taliban mais violentos, os que actuam em nome do Ministério da Preservação da Virtude e da Prevenção do Vício, são ainda mais brutais. Quando as pessoas os vêem aparecer nalguma praça ou rua, fogem espavoridas. Felizmente estas patrulhas não saem todos os dias, mas só às terças e quintas, e ainda que as mulheres sejam as principais vítimas dos taliban, que as perseguem e torturam para as obrigar a obedecer, a submeter-se e a perder assim a sua identidade, os homens e as crianças também são maltratados: há os que acabaram na prisão por não ter a barba regulamentar ou não vestir como é devido, ou rapazes que apanharam uma sova em plena rua por terem o cabelo demasiado comprido. Também obrigam os homens a frequentar diariamente a mesquita, as cinco vezes prescritas para rezar. De pouco importa que o homem esteja entre os afortunados que ainda têm um emprego, um negócio, uma banca no bazar: cada vez que o mullah chama para a oração, deve largar o trabalho ou fechar a loja e ir para a mesquita, onde a sua presença é controlada. A quem não obedece, vão-no buscar a casa e multam-no ou aplicam-lhe um castigo corporal.
As mulheres voltam a insistir na importância e na necessidade de que, lá fora, se levantem vozes que gritem em seu nome e impeçam que se continue a silenciar a situação de que padece a população do Afeganistão. A campanha "Uma flor para as mulheres de Cabul" conseguiu chamar a atenção do mundo inteiro, mas não teve continuidade e as mulheres afegãs perguntam hoje: onde é que está agora Emma Bonino?
- Emma Bonino já nos esqueceu - comentam sem acrimónia, com essa serenidade tão afegã que afronta e assume a realidade sem vitimização.
Trazem-nos fruta e um refresco. As uvas são verdes e pequenas como pérolas, a pele grossa e ácida contrasta com o sabor doce da polpa. Alivia a sede e o calor.
Antes de partir, as nossas anfitriãs oferecem a cada uma de nós um par de brincos, um broche e um anel de prata e esmalte azul: o da Meme com estrelas, o da Sara com corações e o meu com uma flor de lótus. O seu afecto, a sua alegria por compartilharem este momento connosco, que não somos ninguém, é tão comovedor que tenho de esconder a minha emoção. De uma das janelas, escondidas pelas cortinas, vemos um homem acompanhado por crianças que bate à porta da casa da frente: pede esmola. Muitos dos homens que mendigam no Afeganistão são antigos professores ou funcionários públicos.
- A mendicidade, sobretudo entre as mulheres, também se converteu em algo de habitual no Afeganistão, onde o facto de ter de mendigar sempre foi considerado uma humilhação e uma vergonha - continuam as mulheres a contar-nos.
A proibição de aceder a um trabalho remunerado é muito grave para as mulheres, que muitas delas estão sozinhas e são as chefes de família, visto os maridos terem morrido ou desaparecido,
Um país de viúvas. Um país arrasado. Um país na mão de um punhado de criminosos que têm o povo subjugado e negam ao grupo maioritário, as mulheres, todos os direitos: entre eles, o direito de participar na reconstrução do Afeganistão, a qual não será possível sem elas. Mas, de facto, os taliban não pensam na reconstrução, nem no futuro, nem na recuperação económica, social e cultural do país. Os taliban não são uma força política, não têm programa de governo, ideologia ou projectos. Nem sequer é certo que sejam uma força religiosa, que os mova o zelo pela pureza da sua suposta fé, em nome da qual impõem uma particular e falsa interpretação do Islão e da lei islâmica, que eles ofendem quando lhes convêm. A sua recusa do Ocidente e de tudo o que é ocidental, que condenam como perder da pureza do seu credo, é outra das suas mentiras: de onde vêm as suas armas? Por que têm uma página web? Como se compreende que tenham representação em Nova Iorque? Tudo neles é falso menos a brutalidade e as armas. Nem o seu fundamentalismo é autêntico. Proíbem o consumo de drogas, mas a cultura do ópio é a sua principal fonte de financiamento; proíbem a prostituição, mas utilizam as prostitutas e, ainda por cima, não lhes pagam serviços ou divertem-se a torturá-las.
Verificou-se um grande aumento da prostituição no Afeganistão. Costumam ser viúvas jovens, mulheres sós, com filhos pequenos. Primeiro, levadas pela necessidade, vendem tudo quanto tinham em troca de comida. Depois mendigam pelas ruas, apesar da mendicidade estar proibida. E quando, devido à pobreza generalizada, nem esmolas conseguem, vêm-se forçadas à prostituição. A RAWA publicou, em Agosto de 1999, um extenso relate sobre este assunto, carregado de testemunhos das próprias mulheres.
Chegamos a outra casa-escola. O filho da professora tem onze anos e quer conhecernos. A mãe conta-nos que hoje fez gazeta só para estar presente quando chegássemos. Cumprimentamo-lo e ele aperta-nos a mão., radiante. Para ele a nossa visita é um verdadeiro acontecimento. Mas ainda mal tínhamos despido as burkas e sentado a falar com as mulheres, batem à porta. A dona da casa sai e quando regressa à sala onde estamos, desculpa-se e teremos que ir embora quanto antes. Um vizinho viu-nos entrar e quer saber o que se passa e por que é que se reuniram tantas mulheres na casa. Ela disse-lhe que não se passava nada mais do que uma simples visita de amigas para tomar chá que, de resto, não demorarão. Não tardamos em sair mas evitamos passar pela mesma rua.
Saímos da casa e, imediatamente, vejo o nosso muhrram à nossa espera. Meteu as nossas sacas no enorme pano que também lhe serve de turbante. Carrega o embrulho às costas logo que nos vê e começa a andar depois de, com um aceno, nos mandar segui-lo. Ao vê-lo sinto um nó na garganta. Começo a andar atrás dele, sem deixar de o fitar através da rede da viseira, oculta sob a burka, e permito-me chorar à vontade. Ninguém me pode ver. Só tenho que soluçar baixinho para ninguém ouvir. Não sei por que choro tanto. Só posso pensar em quanto esta gente se arrisca por nós, três mulheres irrelevantes, sem poder, desconhecidas, sem contactos e sem influência, que querem perceber o que se passa no Afeganistão, conhecer em primeira mão a situação do povo deste país a que o mundo inteiro virou costas, e comprovar que, apesar de tudo, as suas mulheres e homens continuam a lutar para sobreviver, para preservar a sua dignidade. "É melhor ver as coisas do que esperar que no-las contem", reza outro provérbio afegão. Só quem tiver visto sabe até que ponto isso é verdade.
Continuo a andar, o olhar cravado no fardo bamboleante que carrega o nosso muhrram. Este homem deixou tudo para nos acompanhar, para que "possamos ver": a sua família no campo de refugiados, as suas filhas pequenas, a pequena tendinha que permanecerá fechada até ao seu regresso. No regresso saberemos que, durante a sua ausência, uma raposa entrou no galinheiro e matou três galinhas. Continuo a andar, cega pelas lágrimas que a burka esconde. Quando decidi vir ao Paquistão e ao Afeganistão, uma das coisas que me propus foi não chorar, acontecesse o que acontecesse, como sinal de respeito para com os homens e mulheres afegãos que não dão sinais de fraqueza.
- Quando tudo isto acabar e o horror se desvanecer, talvez me dê ao luxo de chorar, recordando tudo o que passámos - disse-me Azada numa ocasião.
As minhas lágrimas, as lágrimas dos que, da barreira, olham o touro, parecem-me um insulto à sua dor, um alívio egoísta, quase um acto sentimentaloide de auto-compaixão que, muito provavelmente, os desconcertaria, obrigando-os a consolar-me de uma aflição que me não pertence, de uma tristeza a que só eles têm direito.
Uma das coordenadoras de cursos di-lo com a maior clareza:
- Infelizmente, estamos habituadas a que, no Ocidente, as pessoas se limitem a exprimir-nos o seu apoio chorando ou dizendo quão oprimidas estão as mulheres aqui, quando, efectivamente, do que precisamos é de ajuda e de colaboração.
Noutra rua há um carro à nossa espera. O condutor também está dentro do segredo. De novo, numa zona com pouco movimento, tiramos as burkas, pomos os tchadores e recuperamos a nossa identidade de turistas. O motorista deixa-nos numa zona central da povoação. Para o percurso que se segue temos de alugar outro carro. É conduzido por um homem jovem, de riso fácil, que não cessa de nos olhar pelo retrovisor. Não sabemos se podemos confiar nele, se está a favor dos taliban ou se é mais um dos inúmeros cidadãos que fazem resistência passiva às leis impostas pelo terror. O carro é uma autêntica chocolateira. É um ponto a favor do proprietário, já que os taliban guiam imponentes Toyotas. Temos de parar várias vezes porque o motor aquece e a água ferve e desaparece, convertida numa nuvem de vapor que impede a visibilidade. O motorista não perde a calma nem o bom humor e acabamos todos por acolher com um sorriso as paragens frequentes que a cada momento somos obrigados a fazer para esfriar o motor e encher o depósito de água.
Depois de passar o controle taliban, o condutor saca de um esconderijo uma cassete que mete no rádio do carro e continuamos a jornada com música. Isto acaba com qualquer receio que pudéssemos sentir do jovem, de tal modo que até me dou ao luxo de fumar no carro, para regozijo do condutor, que liga mais ao retrovisor do que à estrada. Apesar dos buracos e do mau estado do pavimento, de vez em quando dá-lhe para acelerar, como se guiasse um carro de corrida, coisa que nos obriga a agarrarmo-nos com força e nos faz rir como loucas. O rapaz pergunta-nos se sabemos guiar. Claro que sim, todas temos carta. Mas quando pergunta se quereríamos conduzir por esta estrada, dizemos-lhe que nem pensar. Sorri, satisfeito, e mete o prego a fundo.
Aproximamo-nos de outro lugar onde nos esperam.
- Só pedimos, por motivos de segurança, que nunca mencionem os nomes das povoações onde visitaram casas-escola - foi a recomendação de todos os nossos contactos no Afeganistão.
Temos de pôr de novo as burkas que escondemos num dos sacos. O nosso motorista nem quer acreditar no que está a ver, e os seus olhos enchem-se de assombro, de riso e de cumplicidade. Entramos na povoação já convertidas em afegãs e saímos do carro numa das ruas. Daí continuamos a pé até à casa da família que nos irá acolher. O chefe da família sai ao nosso encontro. Temos de entrar no prédio às escondidas e sem falar, para que ninguém, e ainda menos os vizinhos, se dê conta de que somos estrangeiras. Não podemos esquecer que uma das coisas que os taliban proibiram, e castigam duramente, é o contacto com estrangeiros e, sobretudo, com ocidentais. A casa está num andar alto. A retrete é no pátio e é comum às famílias que ocupam as casas que dão para o mesmo recinto fechado. Por isso, se precisarmos de descer, teremos que cobrir-nos bem com o tchador e ser acompanhadas por qualquer mulher da família, para evitar encontros fortuitos. Logo que chegamos, fazem-nos entrar numa sala e oferecem-nos água com gelo. Apesar da sede e do calor, não nos atrevemos a beber. Não podemos permitir-nos um descalabro intestinal em plena jornada pelo Afeganistão. Nem água, nem gelo, nem gelados, nem fruta por descascar. Foi essa a ordem dos médicos quando nos fomos vacinar, um mês antes da partida. De modo que dissimulamos como podemos, já que também não queremos ofender estas pessoas que nos oferecem tudo o que têm.
Pouco depois, uma das mulheres avisa-nos que já podemos tomar banho. Em casa não há água corrente, muito menos electricidade, como verificaremos ao anoitecer. Tomamos banho com um balde de água que nos trouxeram cá para cima. Estamos como novas. As raparigas pedem-nos a roupa para lavar, mas agradecemos e garantimos-lhes que não é preciso. Trazemos mudas suficientes. Convidam-nos para ir até ao terraço, mas pedem-nos para pôr os tchadores e para nos sentarmos no sítio mais protegido e menos visível para quem está de fora, perto do toldo que cobre o varandim. Ninguém deve ver-nos ou ouvir-nos. Antes de escurecer, começam a chegar outras mulheres, professoras na zona, colaboradoras e responsáveis de projectos.
A coordenadora da zona fala-nos das dificuldades que enfrentam. A arbitrariedade e a falta de um sistema legal e judicial fazem com que a dureza da repressão taliban varie de zona para zona, dependendo do rigor e da violência empregados por cada pelotão. Esta mulher é responsável por oito cursos, que visita uma vez por semana para estar a par dos problemas e necessidades que surjam e para recolher os pedidos de material. Além disso, as visitas também servem para trocar impressões e notícias com as mulheres e as professoras, para se animarem umas às outras e não se sentirem tão isoladas, tão sós, nos seus projectos e actividades. As visitas da coordenadora são praticamente o seu único nexo com o mundo, a sua única relação com o exterior, já que, desde que os taliban tomaram o poder, nem sequer é possível comunicar por carta, porque ainda está tudo como se a guerra tivesse acabado no dia anterior. Nada funciona. Nem sequer o correio. Se alguém quer escrever aos familiares e amigos que abandonaram o país, tem de ir até ao Paquistão.
Comemos no terraço. Não será um risco desnecessário, se temos de evitar a todo o transe que os vizinhos saibam que estamos cá? Não, não é, desde que falemos baixo, não espreitemos, nos cubramos com o tchador e desçamos acompanhadas até à retrete. Fascina-me de novo a capacidade que têm de discernir frente ao perigo. Não são temerárias nem vivem dominadas pelo medo.
A dona da casa é uma mulher nova, com vários filhos pequenos. Quase não esteve connosco, ocupada que está em cozinhar para todas as convidadas. Senta-se a jantar ao lado do marido, suada e cansada, atenta a tudo para que nada falte. O chão está coberto de várias travessas cheias de diferentes verduras, carne, arroz, saladas... Tudo delicioso. Quando já não podemos mais, retiram os restos do festim e trazem o chá.
As mulheres falam entusiasmadas do projecto de assistência sanitária ao domicílio, de cursos de primeiros socorros. Uma delas leva a cabo este tipo de actividade: vai de casa em casa, com a maleta escondida debaixo da burka, atendendo as mulheres doentes. Se os pro blemas económicos, que empurram as mulheres para a mendicidade, para a prostituição e para a morte por inanição, são graves, não menos o é o da assistência médica. Às mulheres não só se negam os direitos à educação, à liberdade de movimentos, ao trabalho, mas também o de ir ao médico. As relações entre homens e mulheres que não pertençam ao mesmo núcleo familiar estão proibidas: uma mulher não pode relacionar-se com o merceeiro, com o alfaiate, com qualquer homem. Portanto, também o médico lhe está vedado. E as médicas afegãs não podem trabalhar. Uma mulher doente não tem qualquer possibilidade de ser assistida. Dizem-nos que o número de mortes por parto disparou, tal como o de outras doenças que, em princípio, não são mortais.
Perguntamos-lhe com que meios conta e qual o material de que dispõe.
A mulher levanta-se e vai buscar a maleta, que traz sempre consigo. É uma mala pequena, de couro. Lembra-me as dos médicos de família de há muitos anos ou as que apareciam nos filmes. Mostra-nos o seu conteúdo com certa vaidade: um aparelho para medir tensões, um estetoscópio, umas pinças e um frasco de iodo. Mais nada.
Ficamos sem palavras. Ela dá-se conta da nossa estupefacção porque comenta: - Para os casos mais graves não tenho material suficiente.
Quando escurece trazem uma grande lâmpada de azeite. O dono da casa diz-nos que os taliban têm luz eléctrica em casa, apesar de haver várias centrais eléctricas na região, que estão paradas ou sem funcionar. Os motores das centrais foram substituídos por motores de fabrico paquistanês que rapidamente se avariaram, e a água das barragens vai directamente para o Paquistão. Da varanda, verificamos que a maioria das casas está às escuras mas entre elas, como ilhas luminosas, distinguem-se as casas dos taliban. As pessoas comentam que eles vivem luxuosamente e que, apesar da proibição por eles mesmos imposta, pode ver-se de noite o brilho dos ecrãs das televisões.
O homem continua a dizer que a população está cansada, esgotada depois de tantos anos de guerra, que às pessoas já não restam forças para lutar contra os taliban.
Todavia, creio que, de facto, eles estão a combater, que estão a levar a cabo a grande revolução, a única possível e a única construtiva: a revolução da cultura, da educação. E redes de escolas clandestinas, essas tentativas de prestar assistência médica às mulheres demonstram que as pessoas no Afeganistão não se renderam, não abandonaram a luta.
O homem suspira e abana a cabeça. As mulheres não dizem nada.
Dormimos no terraço, vestidas, todas juntas, com as professoras, a enfermeira e Palwasha, que nos explica que as mulheres falaram pouco porque não nos conhecem, porque são tímidas.
Um gato passeia entre os corpos adormecidos. Uma esplêndida lua cheia contempla a cidade. Tapo-me com o tchador.
Terça-feira, 15 de Agosto de 2000. Afeganistão
O amigo verdadeiro é o que te dá a mão nos tempos de aflição e angústia.
Levantamo-nos cedo. Lavamo-nos e tomamos o pequeno-almoço antes de sair, cobertas pela burka, para visitar outras escolas clandestinas. Hoje, o nosso muhrram é um menino de uns nove anos que pára um riquexó na rua para nós. Senta-se ao lado do condutor, que conduz com uma perna cruzada sobre a outra como muitos condutores de riquexó. O banco de trás, onde temos de nos sentar, não tem mais do que um palmo de largura. Subir com a burka posta e as bagagens é uma verdadeira proeza. Meter-nos às três nesse espaço reduzido, é outra.
Fazemos o percurso em silêncio. O rapazinho vai indicando o caminho ao condutor. A burka converte-me numa criatura invisível, que vê sem ser vista, de novo excluída da vida que passa aí fora. Apeamo-nos do riquexó numa ruela pouco frequentada e continuamos a seguir o nosso pequeno muhrram, que nos guia pelas ruas até à casa-escola seguinte onde o resto do grupo, que tomou outro riquexó, se reunirá connosco. Encontramo-nos em casa de uma mulher idosa, uma professora que durante vinte anos deu aulas numa escola de Cabul. É uma senhora afável e carinhosa. Passamos algum tempo com ela e com as alunas, que interromperam as aulas para estar connosco. Ficamos a saber que nos esperavam ontem, com tudo preparado, para almoçar.
Visitamos, ainda, outra professora que dá aulas a um grupo de meninas. Uma mulher alta, de aspecto elegante e expressão triste, cuja única esperança é que este horror sem sentido passe, que não se instaure com carácter de permanência, e, com essa esperança, educa as suas alunas, para que saibam que o que estão vivendo - há crianças que não conheceram outra situação - não é o que deve ser, que o facto de serem meninas não é motivo para que a sua existência se veja condenada; que as únicas armas de que dispõem contra a desrazão taliban são a educação, o conhecimento e a cultura.
Dou-lhe os parabéns. Tabrik!
E partimos para a fronteira. Temos que regressar ao Paquistão. Hoje, em Peshawar, festeja-se a abertura do curso escolar na escola da HAWCA. Ontem, Palwasha mandou alguém a casa de Najiba para a avisar de que não se preocupassem com o nosso atraso e também para lhe pedir que tentasse adiar para a tarde a festa na escola.
Recuperamos o nosso muhrram, que aparece vindo do nada sempre que dele necessitamos e desaparece logo que nos deixa a bom recato nalgum sítio. Não sabemos onde dormiu porque ontem não esteve no jantar nem o vimos lá por casa. Seguimo-lo até a um carro que nos espera, no interior do qual despimos as burkas. O motorista é amigo. Também havia connosco um homem jovem, que a partir deste momento passará por irmão de Palwasha. Houve alterações ao plano anterior.
- Eu cruzarei a fronteira a pé, com ele. Vocês continuam de carro com o meu tio. Achamos que é melhor não sermos vistas juntas pelo homem da secreta.
Num dos controles da estrada param-nos para revista. Não temos muito que esconder. Os rolos de fotografias? Os livros que comprei poderão acarretar problemas? E os cartuchos das balas que apanhei no palácio em ruínas? Alguns taliban espreitam-nos pela janela do carro. Parece que se divertem. O irmão de Palwasha graceja porque pensaram que ele também era estrangeiro. Acabam por nos deixar seguir, e finalmente chegamos ao posto fronteiriço. Palwasha e o seu irmão apeiam-se pouco antes de lá chegar. Um rapaz afegão junto a uma burka azul-celeste que leva uma panela embrulhada. Quando os perdemos de vista, saímos do carro e vamos para o controlo taliban, onde não nos prestam a mínima atenção. Carimbam-nos os passaportes e vamos de carro até ao posto paquistanês, onde nos aguarda a última provação desta viagem tão cheia de emoções.
O funcionário de turno convida-nos a sentarmo-nos. O tio de Palwasha não nos larga. Não tarda em aparecer o nosso interrogador de há dias, o membro da polícia secreta de olhos e nariz de águia. Cumprimenta-nos sorridente e amável. Alegra-se por nos rever e volta interrogar-nos. Pergunta-nos como se passou a estadia, que é que achamos de Cabul, se viagem não foi incómoda, se nos trataram bem no Intercontinental, se voltamos para o mesmo hotel de Peshawar.
Não, agora iremos para outro hotel. Respondemos com secura, limitando as respostas às perguntas. Oferece-nos um refresco; pode, se quisermos, arranjar uma sala para descansarmos durante algum tempo no posto fronteiriço. Agradecemos; a viagem foi cansativa e só queremos chegar ao hotel. Então, sem que isso viesse à colação, pergunta-nos pela intérprete - Tivemos que despedi-la logo à chegada a Cabul. No hotel disseram-nos que no Afeganistão as mulheres não podem trabalhar. Não voltamos a vê-la - respondemos com indi ferença.
Pergunta-nos quem é o homem que nos acompanha e dizemos-lhe que nos foi indicado pela direcção do hotel para nos levar até à fronteira. Diz-nos que já não precisamos dele e que devemos dizer-lhe para se ir embora. A partir desse momento será ele quem ficará responsável pela nossa segurança e vai dar-nos uma escolta que nos acompanhará até Peshawar. O homem de nariz e olhos de águia deixa-nos ao cuidado de um soldado que viajará connosco e despede-se. Com o soldado e com o nosso muhrram, que não tem a mínima intenção de nos deixar, alugamos um carro e percorremos de novo o desfiladeiro do Khyber, rumo a Peshawar. O carro é tipo furgoneta, e na plataforma traseira para a carga sobe um monte de pessoas a quem, julgo, pagamos a viagem. Mulheres com burka, homens, crianças. Em boa verdade, estamo-nos nas tintas. Dormitamos, embaladas pelo calor e pelo ronronar do motor. Deixamos para trás o último controle da zona tribal e atravessamos a cidade em direcção ao hotel onde supostamente iremos alojar-nos. Pelo caminho fomos perdendo os nossos passageiros clandestinos. O soldado armado continua connosco. Não parece ter qualquer intenção de nos abandonar até que, subitamente, sai num cruzamento. O nosso muhrram dá-lhe umas rupias e o homem despede-se. Desconhecemos se lhe pagou para se ir embora ou para que o soldado o deixasse vir connosco desde o posto fronteiriço até Peshawar.
O nosso muhrram deixa-nos à porta do hotel.
Os nossos amigos afegãos virão buscar-nos às três da tarde, com um motorista de confiança para nos levar para casa.
Sujas, suadas, cobertas de pó e de manchas, entramos no vestíbulo de um dos hotéis mais luxuosos de Peshawar. Imediatamente o porteiro vem ter connosco e cumprimenta-nos cerimoniosamente. Não sei se é um grande profissional e por isso ignora o nosso ar maltra pilho, ou se é porque somos ocidentais, e portanto, apesar de parecermos um desastre, merecemos todas as reverências. Também muito dignas no nosso papel de turistas ocidentais, dizemos-lhe que só pretendemos tomar um café. Conduz-nos até a um terno de maples e corre com os homens que lá estão sentados. Há lugares vazios, mas nenhum paquistanês vem sentar-se. Às vezes esta treta do purdah tem as suas vantagens.
Tomamos café. Uma, duas, três chávenas. Vamos à vez ao lavabo do hotel retocar-nos um pouco. O porteiro começa a chatear. As senhoras vão ficar no hotel? Ainda não sabemos. Estamos à espera de amigos. Acabamos de chegar. O homem insiste: os quartos são muito cómodos e amplos e, se quisermos, põe-nos num quarto para três, com dois quartos de banho, para que descansemos da viagem. Obrigado, mas ainda não podemos decidir, temos que falar antes com os nossos amigos. Poderia trazer-nos outro café? Já não sabemos como nos livrar deste homem que nos sufoca com tanta solicitude. Entram e saem turistas de toda a parte, sempre impecavelmente vestidos: famílias paquistanesas, as mulheres com vestidos e tchadores de sonho, um casal hindu, um grupo de japoneses. Cada vez nos sentimos mais sujas e descompostas. Até que, finalmente, pela porta giratória, entra Azada. Abraçamo-nos como loucas. Agarramos nas bagagens e saímos para a rua, onde, emocionado e expressivo, nos cumprimenta o vizinho taxista. Quando já estamos no carro, conta-nos que ontem subiu até Torkham para nos ir buscar. Esperou até à hora em que a fronteira fecha. E voltou de mãos a abanar. Ninguém sabia o que poderia ter-se passado e as pessoas estavam preocupadas. Repete que somos umas verdadeiras heroínas. Rimo-nos e recusamos tal epíteto. Paramos num sítio de fast food para comprar umas sanduíches. Não há tempo a perder se queremos chegar a tempo à abertura do curso. Pelos vistos, Najiba recebeu a tempo o recado. Passamos por casa, tomamos banho, mudamos de roupa, antes de sair a correr de novo com o nosso taxista. Chegamos mesmo a tempo à escola. Najiba e todas as professoras estão elegantíssimas. A mãe de Najiba está presente, bem como mais algumas pessoas que não conhecemos. Puseram a mesa na varanda, que se converteu em estrado. Os tapete das salas de aula estão estendidos no chão do pátio e sobre eles apinha-se uma centena de crianças. Algumas já conhecemos desde o dia em que visitámos as suas famílias. Também eles estão com a sua melhor roupa. Na porta da escola e no pátio há fiadas de bandeirinhas coloridas para realçar o ambiente festivo.
A cerimónia começa com uma alocução de Najiba. As professoras falam seguidamente e as crianças participam com leitura de textos e recitação de poesia. Azada também se dirige a elas, e quando nos pedem para intervir, delegamos na Sara, que se dirige às crianças em inglês, enquanto Azada traduz:
- Quando no nosso país nos disseram que havia uns meninos afegãos que gostavam muito de ir à escola porque tinham muita vontade de aprender, nós nem queríamos acreditar e, por isso, viemos cá ver se era verdade. Agora que já vimos que sim, quando voltarmos ao nosso país vamos contá-lo a toda a gente.
Estava a festa no fim quando temos a alegria de ver aparecer Rustam com Mikel, o fotógrafo companheiro de trabalho da Sara, que chegou ontem ao Paquistão depois de passar por toda a espécie de peripécias: voos desviados, perda de bagagem... Apesar de as cerimónias oficiais já terem terminado, Mikel tira algumas fotografias. A Sara e eu negociamos com as crianças a compra de algumas gaiolas pequenas que fizeram para nós. Compramos uma a cada criança. A Meme toma nota dos dados necessários à ficha médica do rapaz quer levar a Barcelona para ser operado.
Chega, então, banhada em lágrimas, uma das meninas que deveria intervir na cerimónia : a pequena Rahima. Tem doze anos. No ano passado frequentou as aulas, mas hoje o pai, disse-lhe que está muito crescida e proibiu-a de continuar a estudar. Nas aulas há meninos: purdah! E agora que, por fim, o pai saiu e ela pode escapar à sua vigilância, a festa acabou. As professoras consolam-na. Falarão com o pai. Desafiamo-la a recitar o texto que decorou para a ocasião. Pomo-nos à volta dela, pedimos silêncio e escutamo-la atentamente e tiramos-lhe fotografias. Ela oferece-nos às três umas luvas de lã tricotadas. Najiba dá-nos a entender que são para o duche. Agradecemos-lhe. Tashakor. E cobrimo-la de beijos.
Para os adultos há chá, muito açucarado. Os meninos e meninas brincam no pátio.
Depois despedem-se aos poucos até amanhã, dia em que as aulas começam. Mikel continua a fotografar.
Ao fim da tarde reunimo-nos todos em casa. Lala também está. Enquanto Najiba faz o jantar, nós, ai não!, fazemos uma barrela. Chega o marido de Najiba que se alegra imenso por voltar a ver-nos. Na noite anterior, enquanto não foram avisados de que não chegaríamos no dia previsto, toda a gente tinha estado extremamente inquieta.
E por fim, depois do jantar, enquanto tomamos chávena após chávena de chá, contamos a nossa odisseia e cumpre-se o desejo da Sara: estamos outra vez em casa, reunidos, rindo-nos do medo que tivemos.
O marido de Najiba também se ri, mas quando terminamos a nossa narração quer saber o que teríamos feito se tivéssemos tido um telefone ou uma direcção onde encontrar os nossos amigos afegãos.
- Nada - respondemos. - Estávamos perfeitamente conscientes de que não podíamos fiar-nos em ninguém no hotel e de que qualquer erro poderia ser fatal.
Ele concorda. E que teríamos feito se, nessa noite horrível, pudéssemos falar de Cabul para as nossas famílias em Espanha? Eu, por minha parte, digo que teria pedido ao meu marido que alertasse imediatamente todos os meios de comunicação, que tentasse falar com as autoridades para que se soubesse o que se estava a passar em Cabul, que armasse o maior escândalo possível, porque a nós nem nos passava pela cabeça regressar do Afeganistão sem Palwasha.
Continuamos a falar da impressão que nos causou o Afeganistão. Eu falo da beleza do país e acrescento que a paisagem é como a gente: forte, lutadora e disposta a enfrentar as dificuldades como se de um desafio se tratasse.
O marido de Najiba começa a falar, tranquilo, pausado, com voz compassada e em surdina. Sente-se feliz e honrado por nos ter em sua casa; para ele, o que fizemos foi heróico. Protestamos. Por acaso os heróis são eles, são as pessoas que nos acompanharam para todo o lado, que velaram por nós, que se arriscaram; eles, que dia após dia desafiam o perigo e as proibições para dar um futuro às gerações seguintes. Mas ele não aceita os nossos protestos. - O que fizeram é uma prova de verdadeira amizade. Para mim, para nós, sois, sereis sempre, nossas irmãs.
Sinto um nó na garganta. Diz um provérbio persa: "O amigo verdadeiro é o que te dá a mão nos tempos de aflição e angústia". Do fundo do coração, desejo fazê-lo e sinto-me infinitamente honrada pelo facto de este homem me considerar irmã. Talvez algum dia seja merecedora desse título. Inshallah! Apenas podemos agradecer-lhe.
- Tashakor!
- Tashakor a vocês.
Quarta-feira, 16 de Agosto de 2000. Campo de refugiados
Não há rosas sem espinha
Depois de ir ao hotel buscar Mikel, voltamos de novo à escola. As aulas já começaram. Cada professora está a trabalhar com os seus alunos. Najiba anota o nome dos novos. De momento é um grupo de trinta e oito meninos e meninas, que esperam sentados na varanda.
Espanta-nos ver a pequena Rahima. Terá conseguido convencer o pai? Não, mas o homem sai cedo para trabalhar e, como está todo o dia fora, não tem por que saber disto. Aliás, a mãe está de acordo com o facto de ela frequentar a escola.
Passamos por todas as salas para falar um pouco com as meninas e meninos. É evidente, ao vê-los ali sentados nos tapetes, dentro dessas salas sem ventilador, e contemplando; suas caritas radiantes, que gostam realmente de andar na escola. Dizem que gostam de aprender porque assim, quando forem crescidos, não serão analfabetos. Muitos deles trabalham, e não só a fazer gaiolas em casa. Dois irmãos, de seis e dez anos, quando saem da escola vão tecer tapetes. Algumas das meninas fazem trabalhos de costura. Um menino de sete anos ajuda o pai, que é mecânico, e encarrega-se de soldar tubos. Outro trabalha num forno de pão e outro ainda numa gelataria. A pequena Zakia tem oito anos e, todos os dias das quatro às seis e meia, vai a casa de uma família paquistanesa fazer a limpeza. Pagam-lhe cem rupias por mês.
- Às vezes dão-me um pedaço de gelo...
Deixamos Mikel tirar fotografias e sentamo-nos à sombra.
É então, durante esse momento aprazível que passamos no pátio da escola, que me apercebo pela primeira vez de que essa tristeza afegã, profunda e serena como as águas profundas e negras de um poço, se apoderou de mim. Reconheço-a e amo-a. Dou-me conta i que tem vindo a impregnar-me, que já faz parte de mim e que será motor e fonte de tudo que farei. Porque esta tristeza não paralisa, não desanima, não chora nem debilita.
Rustam consegue alugar um carro sem condutor para que caibamos todos, agora que Mikel chegou. Levamo-lo a diversos lugares para que possa fotografar os mendigos, os meninos do lixo, as mulheres e os drogados.
A maioria dos drogados que há no Paquistão é composta de afegãos. Refugiam-se na droga fugindo da situação desesperada em que se encontram, da recordação dos horrores vividos. Vagueiam pelas ruas como espíritos perdidos, vestidos de farrapos, arrastando os pés,
com a as pontas dos dedos enegrecidas de tanto queimar heroína: aquecem-na sobre um pedaço de papel de alumínio e inalam o fumo cobrindo a cabeça com um trapo. Pedem esmola para continuarem a consumir droga. Antes já venderam tudo o que tinham, até os filhos e, sobretudo, as filhas.
Estamos já em contagem decrescente dos dias que faltam para o regresso à Europa. E falta-nos ainda tanto que fazer!
Antes de almoçar, passamos pelo Alto Comissariado para os Refugiados do governo paquistanês para solicitar por escrito uma entrevista, tal como nos recomendaram por telefone. É nestes escritórios que se decide se uma organização como HAWCA pode ou não regis tar-se. Esta tarde voltaremos ao -campo de refugiados para que Mikel possa fotografar e amanhã estaremos lá todo o dia, pelo que pedimos que nos recebam na sexta-feira, último dia da nossa estadia em Peshawar.
No caminho de casa lembramo-nos de que, já que no Afeganistão perdemos a oportunidade de falar com os taliban, pelo menos poderíamos entrevistar-nos com o responsável de alguma escola corânica. Os taliban foram criados, formados e moldados nas madrasas do Paquistão, pelo que poderá ter interesse uma entrevista com os seus professores. Se a sharia, a lei islâmica aplicada pelos taliban, é boa para o Afeganistão, por que é que não se impõe também no Paquistão? Paramos numa mesquita para perguntar se poderiam informar-nos e responder a um par de perguntas. Não nos dizem não, mas apenas que de momento é impossível e que deveríamos voltar noutra ocasião.
Não podemos visitar a madrasa. Esta entrevista avolumará a lista de coisas pendentes à espera de uma futura viagem.
Islão, religião, fanatismo, integrismo: temas importantes. Distinguir, sim. Confundir, não. E, muito menos, manipular a opinião pública, porque actualmente o Ocidente, que necessita continuamente de um demónio com que enfrentar-se e que sabe criar o fantasma de um medo difuso e generalizado a uma ameaça comum (que justifique, por sua vez, uma retorsão), fê-lo em relação ao islão. E assim, todos receamos o integrismo islâmico que é suposto querer invadir-nos, tal como já acontecera com a ameaça vermelha do comunismo que durante décadas o Ocidente temeu e demonizou. O islão, como o cristianismo, o judaísmo, o budismo ou qualquer religião da terra, é apenas um modelo de vida e de comportamento cujo objectivo original é realçar a dignidade do ser humano e contribuir para criar uma sociedade melhor. No islão, como no cristianismo, perverteram-se muitos dos princípios originais à força de interpretações, muitas vezes interesseiras, e à força de cumplicidades mesquinhas e alianças com o poder. Em nome da religião perpetraram-se os maiores crimes, manipularam-se povos e pessoas. A Inquisição fê-lo em Espanha, os taliban fazem-no no Afeganistão, mas o objectivo é o poder: utiliza-se a religião para justificar a repressão; alimenta-se o fanatismo do braço repressivo, o zelo religioso dos verdugos. Os que na sombra movem os fios, nada têm a ver com o Corão nem com a Bíblia; nem com o Profeta nem com o Mestre; nem com Deus nem com Alá.
A repressão que se abate sobre o povo do Afeganistão não tem nada a ver com o islão nem com a tão cacarejada lei islâmica, que nem os taliban respeitam. A violação de direitos humanos nada tem a ver com o Corão, onde está escrito "que as mulheres devem obter benefício do quê ganharem" ou que "instruir-se é obrigação do homem e da mulher.
De tarde, à hora combinada, alguém do campo de refugiados vem buscar-nos. Esta noite voltaremos a visitar as fábricas de tijolos. A Sara pediu a Mikel que traga material apropriado para fotografar à noite. Queremos provas gráficas do que estão a fazer com os refugiados afegãos.
Ficamos contentes por voltar a casa de Azada. A sua família recebe-nos amavelmente e preparou-nos um jantar esplêndido. Rustam e Mikel terão que dormir noutra casa. Mikel, que acaba de chegar da Europa, acha isto muito chocante. Para ele tudo é novidade. A comida, os costumes, as relações, o que é ou não é correcto.
À hora de jantar temos uma óptima surpresa. O doutor jantará connosco. Além disso, como é membro do Conselho, acompanhar-nos-á durante a nossa ronda nocturna que foi autorizada para as três da manhã. Durante o jantar e a longa tertúlia que mantemos até à hora de partir, a conversa é agradável, leve. Sucedem-se os assuntos transcendentes e banais, sérios e divertidos; expressamo-nos livre e francamente, discutimos, manifestamos opiniões controvertidas. O melhor de tudo é que ninguém quer ter razão, respeitam-se os diferentes pontos de vista e a contribuição de cada um para a discussão.
Tomamos várias chávenas do café solúvel que trouxemos.
Às três, saímos para a rua onde já nos aguarda a ambulância do campo e uma furgoneta com um numeroso grupo de homens armados que nos escoltará. Tínhamos contado ao Mikel que a zona era insegura e agora ele comprova que não brincávamos. Mas chegamos à fábrica sem qualquer incidente, aparcamos os veículos e começamos a caminhar no escuro. No céu, a lua conforta-nos. Só se ouve o rumor dos nossos passos e som rítmico dos moldes de ferro a serem esvaziados. Efectivamente, ali toda a gente trabalha mergulhada na escuridão.
Uma família apanha um susto medonho ao ouvir-nos chegar com o grupo dos homens armados. Num primeiro momento pensaram que éramos assaltantes.
Caminhamos pela noite, subindo e descendo terraplenos, aproximando-nos das pessoas para falar com elas, tentando não pisar as fileiras de tijolos que se alinham no escuro, pedindo licença para poder fotografar o trabalho. Homens, mulheres e crianças. Reconhecemos pessoas com quem já estivemos na outra tarde e à luz do dia. A mulher surda, o homem que tinha uma quinta no Afeganistão.
Meninos que terão seis, sete anos trabalham sem resmungar. Uma mulher lamenta não poder oferecer-nos uma chávena de chá. Um homem conta-nos que antes vivia com a sua família na cidade, onde ele e os filhos apanhavam papel e cartão no lixo, mas a polícia estava sempre a causar-lhes problemas: os meninos foram parar à cadeia várias vezes e libertá-los custava muito dinheiro. Fazer tijolo é mais duro como trabalho, mas pelo menos não se anda sempre a fugir da polícia.
Compreende-se que queiram aproveitar as horas menos penosas da noite para trabalhar, mas daqui a pouco o sol nascerá, e continuarão a trabalhar sob o seu calor implacável. Só há turnos para os homens que mantêm os fornos acesos. Agacho-me e ponho a mão na areia. Mesmo de noite, o solo sobre os fornos arde.
Mais além, uma mãe de família desculpa-se por não poder apertar-nos a mão, suja de argila, enquanto eu continuo esta nova descida aos infernos. Em silêncio. Com um profundo respeito por essas existências condenadas. Porquê eles e não eu? Porquê os filhos deles e não os meus? Sinto tanta dor perante as suas vidas que qualquer expressão convencional ficaria muito aquém do devido e ofenderia a dignidade dessas pessoas. Vejo Rustam deambular perto de nós, também em silêncio, mergulhado na sua própria tristeza. Oiço Azada traduzindo as nossas perguntas e as suas respostas com essa delicada deferência com que se dirige às pessoas, com essa familiaridade afectuosa com todos e cada um desses homens e mulheres, escravos do século xxi. Cada um com um rosto, um nome, um passado, uma história. Terão, ao menos, ainda os sonhos?
Voltamos para os carros. Vamos embora.
- Deveríamos entrevistar os donos destas fábricas.
Anotamos os telefones e direcções de algumas que aparecem nos cartazes junto ao caminho. Apesar das tentativas, não haverá forma de nos pormos em contacto com nenhum. Na furgoneta reina o silêncio.
- Que me dizes depois desta visita? - pergunta-me o médico. Não posso responder-lhe. Não tenho palavras.
- Não há palavras para o exprimir. Em nenhuma língua. No escuro, o médico concorda.
Mesmo hoje ainda não encontrei as palavras.
Chegamos a casa quase ao amanhecer. Toda a gente se vai deitar, mas eu e a Sara não. Estamos na varanda. Ela toma notas à luz da lanterna. Junto da lâmpada, imóvel, dormita um par de lagartos pardos de olhos enormes. Trepo para cima do catre de madeira à procura do escuro. Enquanto aqui estou deitada, eles continuam a fabricar tijolos. A primeira claridade do dia rasga o céu. Mais do que pensar, sofro, livre e consciente, até à última gota desta dádiva que me foi feita, desta tristeza que me foi concedida como uma honra imerecida. "Não há rosas sem espinhos." Não, de facto não há. E aperto os dedos à volta do caule da minha rosa afegã.
Quinta-feira, 17 de Agosto de 2000. Campo de refugiados
Um bom perfume conhece-se pelo seu aroma e não pelos louvores do vendedor.
Começo a acordar. A avó de Azada aproximou o ventilador da varanda do catre de madeira onde, de madrugada, sem dar por isso, adormeci. Na porta do pátio parece-me distinguir o nosso querido muhrram que veio cumprimentar-nos. Vai-se embora porque lhe dizem que estamos a dormir. Pouco a pouco, lá nos vamos levantando todas. Tomamos o pequeno-almoço. Mikel e Rustam estão atrasados. Azada manda o primo chamá-los. Rustam não tarda. Mikel não está bem. Chega pouco depois e deita-se no que foi o nosso quarto. Não quer comer nada. Tudo lhe cai mal. Quase não comeu desde que chegou ao Paquistão. A Meme prepara-lhe um chá e cuida dele. Esperamos que ele recupere um pouco para ir fazer o percurso fotográfico. A clínica, o atelier, o curso de alfabetização, as ruas e instalações do campo.
Enquanto esperamos a furgoneta, Azada diz-me que uma mulher vai cozer pão. Aproximamo-nos do forno. Com esta viagem, todos os meus desejos se fazem realidade e, agora, vou poder assistir ao processo da cozedura. A mulher que está de cócoras na parte superior, debaixo do tecto de ramagens, é a viúva morena do atelier de bordados, a dona da vaca velha e magra. Cumprimentamo-nos quando nos reconhecemos e peço-lhe que me deixe fotografá-la enquanto faz pão. Ela consente, sorridente. Está agachada junto a um buraco profundo, com uns dois palmos de diâmetro: o forno. No fundo do espaço cilíndrico arde a lenha, num fogo vivo, que aquece as paredes. A mulher apaga as chamas e cobre a cara com o tchador para evitar o fumo que as paredes desprendem quando passa por elas um trapo molhado em água para as limpar. Depois retira o pano que, ao seu lado, no chão, cobre uma bandeja grande e redonda onde repousa a massa crua, já repartida em bolas brancas que a mulher vai agarrando, uma a uma. Com rapidez e destreza espalma a massa no ar até formar círculos planos que vai colando nas paredes do forno. O calor coze a massa, empola-a em alguns pontos, dá-lhe uma cor de tostado. À medida que os pães cozem, há que desprendê-los da parede e, para acabar de tostar a parte superior, que não esteve em contacto com a pedra, a mulher atira-os com essa parte para baixo para as cinzas quentes. Quando tira o primeiro pão, sacode as cinzas e oferece-mo. Tiro um bocado que me sabe de maravilha, quente, tenro, suave.
- Tashakor.
O nosso muhrram veio despedir-se. Saúda-nos efusivo junto do forno e convida-nos a passar pelo seu botequim para tomar um refresco. Aí conhecemos as suas duas filhas. Despedimo-nos depois de lhe agradecer tudo quanto fez por nós.
Continua a contagem decrescente.
Há pouco, na clínica, enquanto Mikel fotografava as instalações, despedimo-nos do médico.
Em casa despedimo-nos da avó de Azada, que dá a cada uma de nós uma fronha de almofadão, quadrada, grande, de tecido amarelo com bordados, azuis os da Sara e da Meme, castanhos os meus. Bordou-os ela, há muitos anos, quando era jovem e ainda via bem. Gostaria que nos recordássemos dela quando nos recostarmos nos almofadões. Gostaria de voltar a ver-nos, mesmo sabendo que vivemos muito longe e que decorrerá muito tempo antes que possamos regressar. Talvez então ela já não seja viva.
Beijamo-la emocionadas e agradecemos-lhe a prenda.
Logo que chegamos a Peshawar, passamos pelo aeroporto para confirmar o voo. Surpresa! Os nossos bilhetes foram cancelados. O empregado que nos atende atrás do balcão diz-nos que deveríamos ter passado ali com quatro dias de antecedência, e que só há voo a partir de 4 ou de 15 de Setembro.
A Meme e a Sara reagem com lógica preocupação: na próxima segunda-feira terão de voltar ao trabalho. Eu não caibo em mim de alegria: vou ficar! Vou ficar mais umas semanas. O coração até se me acelera, tanta é a emoção. Não consigo reprimir o meu regozijo. Parece tão inevitável, tão certo, que começo a traçar planos: Azada tem em casa um velho
computador. De certeza que mo emprestará. Escreverei o livro, ali mesmo, no campo de refugiados. Dou-me conta de que não me apetece regressar. Não sei o que é que daria para que o meu lugar fosse, realmente, aqui. Sei que devo regressar à Europa, que é dali, do meu próprio mundo, que tenho de lutar pelo Afeganistão, mas esta trégua que o cancelamento dos bilhetes me proporciona, estes dias a mais antes de partir, parecem-me caídos do céu.
O funcionário da companhia aérea não pára de tentar resolver o problema. Só há uma possibilidade: pagar um suplemento de cinquenta dólares e voar em primeira, onde ainda há lugares.
A Meme e a Sara irritam-se comigo:
- Não percebes que nós, com o emprego que temos, somos obrigadas a estar em Barcelona, na segunda? Eu estou disposta a pagar o que for preciso desde que me garantam o voo de sábado - diz a Meme.
- Queres acabar de rir? Pareces parva! Isto não tem graça nenhuma - zanga-se a Sara.
Estão cheias de razão, mas eu não consigo.
A reserva em primeira classe não é automática: o funcionário mandará um fax para Paris e teremos que aguardar a confirmação. Dada a diferença horária, o escritório de Paris ainda não abriu. Só teremos resposta daqui a umas horas.
Vamos comer e voltamos. Não. Ainda não há nada. Sentamo-nos no vestíbulo do aeroporto.
Chega a hora do fecho do escritório da companhia aérea e da saída do funcionário sem haver resposta de Paris. Aconselha-nos a passar pela sede da companhia amanhã de manhã. Tínhamos um encontro marcado com uma responsável da RAWA que nos devia entregar as publicações, os vídeos e as cassetes áudio, como antes combináramos. Tentámos avisá-la da nossa demora, mas não recebe o nosso recado a tempo e, apesar de irmos ter ao sítio do encontro e aí esperarmos cerca de uma hora, não nos encontramos. Também ela esteve à nossa espera uma hora, enquanto ainda estávamos no aeroporto.
Neste ir e vir, numa das ocasiões em que parámos, pude, finalmente, ver e cheirar o mistério das latas fumegantes que os miúdos oferecem aos transeuntes e aos ocupantes dos carros nos semáforos. É um fumo aromático para inalar. Azada chama um dos garotos. No fundo de uma lata, algumas brasas. Deita-se por cima destas um nico de ispand ou de maro. O ispand parece pimenta moída enquanto o maro é uma semente alongada. O miúdo que se aproximou tem ispand. Azada toma um bocadinho e atira-o para as brasas, que, imediatamente, soltam uma fumarada branca que, não fora o vento, conseguiria inalar. Damos umas rupias ao miúdo e voltamos para o carro.
Já é noite quando chegamos a casa. Os nossos amigos querem homenagear-nos com um jantar de despedida. Virão todos: a família do taxista, a família de Nasreen, a mãe de Najiba e dois familiares recém-chegados de Cabul. Nós queremos contribuir com uma salada de frutas. Quando chegamos reina no pátio grande actividade: as mulheres ainda estão a acabar os preparativos do jantar, Nasreen adorna as travessas da salada e a cozinha está cheia como um ovo. O filho mais novo do taxista, simpático e bem-disposto, ajuda toda a gente. Os homens estão todos sentados na varanda, à conversa. Nós metemo-nos rápidas no quarto de banho, as três ao mesmo tempo, e lavamo-nos apressadamente. Num instante estamos no pátio de joelhos a descascar e cortar a fruta. Já não há travessas. Nasreen, que está a ajudar-nos, manda o filho mais novo do taxista a casa dela para procurar um recipiente grande. Rustam sentou-se com os homens. Uma vez tudo pronto, as mulheres também se sentam a conversar, mas no outro extremo da varanda. Pergunto a Azada se isto vai ser assim toda a noite; se homens e mulheres vão comer separados. Mas não. Quando chega o momento e o encerado grande estendido no solo se cobre de travessas repletas de comida, sentamo-nos dos juntos, embora os homens ocupem dois dos lados do quadrado e as mulheres os outros dois. Uma das fronteiras é formada por Najiba e o marido. Na outra intersecção, Rustam e uma de nós.
O taxista trouxe um vídeo com uma festa familiar de há anos, onde aparecem vários dos presentes dançando, conversando e divertindo-se. As mulheres, quase irreconhecíveis, maquilhadas, com vestidos elegantíssimos, no estilo tradicional. Vemos o vídeo depois do jantar.
Quando o televisor emudece e parece que a tertúlia vai começar, sucede o mais insólito: as mulheres afastam-se, formam um círculo fechado, íntimo, alheio. Só nós e Azada ficamos com os homens e mantemos uma conversa interessante com o mais velho dos parentes de Najiba recém-chegados de Cabul. Falamos sobre o futuro do Afeganistão, da comunidade internacional, do papel das Nações Unidas, da atitude do Ocidente face ao problema do Afeganistão. Passamos pela vergonha habitual: no nosso país, o Afeganistão não é notícia, as pessoas praticamente ignoram o que está a acontecer, os governos não tomam posição, ninguém se indigna com o que se passa porque ninguém conhece a realidade. Uma vez mais aceitamos a velada censura que o nosso próprio refraneiro ilustra perfeitamente: "Quem cala, consente". Intervêm mais homens. Conversamos até tarde. Nenhuma mulher se junta à conversa nem dá opinião.
Nem sequer Najiba, de quem sabemos de ciência certa, porque a ouvimos falar do assunto com paixão, que tem ideias próprias sobre o tema. Para mim isto é tão incompreensível, que o comento com Azada, horas depois, quando os convidados já se foram e a maioria dos habitantes da casa dormem, as mulheres no quarto de Najiba, os homens, incluindo o seu marido, noutro quarto que dá para a varanda, e a Meme no nosso.
- São mulheres com estudos, mulheres que levam a cabo uma grande tarefa com a escola, que tomaram uma opção clara frente ao que se passa, mulheres que sabem muito bem que querem para elas, para os filhos, para o Afeganistão. Por que se puseram de fora da discussão?
É algo que ela também não compreende, porque são elas mesmas que se excluem. Nenhum dos homens que esta noite esteve aqui teria ficado incomodado com a participação delas na conversa. São elas. Recordo a noite passada no Afeganistão, quando estivemos com as professoras e coordenadoras, também elas mulheres arrojadas, com critérios tão claros que têm por natural arriscar a vida e a segurança só para mitigar os efeitos que as imposições dos taliban têm na sua vida. Também elas permitiram que fosse o dono da casa a fazer as despesas da conversa e intervieram pouco, e algumas nem abriram a boca.
Falamos até muito tarde com Azada, as três deitadas juntas no tapete, as cabeças recostadas nos grandes almofadões forrados de veludo vermelho. Falamos de coisas pessoais, íntimas, com enorme franqueza, como se fôssemos amigas desde sempre. Confissões, desejos, aborrecimentos, emoções, segredos, cumplicidades.
Decidimos dormir quando a palidez invade o rosto de Azada, sinal inequívoco de um cansaço mortal que aprendemos a reconhecer ao longo destes dias em que esta mulher não se poupou esforços para nos dar a conhecer a sua realidade.
- Vou ter saudades vossas.
Nós também. Dolorosamente. Inevitavelmente. Gozosamente.
"Um bom perfume conhece-se pelo aroma e não pelos elogios do vendedor", diz um provérbio de Cabul. O mesmo sucede com Azada.
Sei que encontrei uma mulher excepcional, que convivi com uma dessas pessoas que brilham com luz própria e que nem sequer o sabem, tão grandes são as suas simplicidade e naturalidade. A sua luz não deslumbra, mas irradia calor e faz-nos desejar ser melhores.
Sexta-feira, 18 de Agosto de 2000. Peshawar
Ninguém pode agarrar dois melões com uma só mão
Esgota-se-nos o tempo.
Em vez de se reduzir, a nossa lista de assuntos pendentes, e já materialmente irrealizáveis, não cessa de aumentar. Como é que não nos tínhamos lembrado de visitar uma madrasa? Que pena não termos decidido contactar com os donos das fábricas de tijolo durante a primeira visita no início da nossa estadia! E se no regresso do Afeganistão tivéssemos entrevistado o cônsul taliban? Por que é que recusámos o convite dos taliban do palácio destruído para tomar chá? Teria sido interessante falar com uma mulher taliban. Poderíamos ter aproveitado melhor o tempo? Não. Definitivamente, não.
"Ninguém pode agarrar dois melões com uma só mão." Quase diria que o provérbio é falso: nem um melão se pode agarrar com uma única mão. Teremos que optar entre o urgente e o importante, termos que, por vezes, tendem a ser confundidos.
Fica muito por fazer, mas julgo que este frenesi do último dia se assemelha demasiadamente a uma tentativa para esquecer que vamos partir, e que com toda esta demonstração de actividade tentamos anestesiar a tristeza que, de outro modo, nos produziria a proximidade da despedida, que construímos muros defensivos de adobe para não permitir a invasão da saudade que, antes de partir, nos ronda como uma fera.
Hoje temos um encontro, solicitado há dois dias, com o Alto Comissário Paquistanês para os Refugiados. Comparecemos acompanhados de Azada e Rustam. A pessoa por quem tínhamos perguntado não está ou prefere que outra nos atenda. Mostra-nos um grosso dossier que compendia os esforços e as ajudas destinados aos refugiados afegãos. Especificamos-lhe que o motivo da nossa visita é informarmo-nos do modo como a HAWCA poderá conseguir reconhecimento legal. No nosso país há um crescente interesse em contribuir economicamente para os projectos da organização.
- Se querem ajudar os refugiados afegãos, mandem-nos as vossas dádivas e nós encarregar-nos-emos de as distribuir. No que toca a legalizar uma nova organização, há que preencher os requerimentos necessários e iniciar o processo de oficialização, que demora o seu tempo.
Saímos dali decepcionados. E se legalizássemos a HAWCA em Espanha? A organização humanitária germano-afegã está registada na Alemanha. Talvez pudéssemos fazer a mesma coisa. Azada e Rustam acham que é boa ideia. Teremos que tratar disto quando chegarmos.
É de novo sexta-feira, mas é impensável visitar o campo de refugiados com o marido de Najiba. Antes de tudo, há que resolver a questão das passagens do voo de regresso. Portanto, logo de seguida, apresentamo-nos no escritório central da companhia aérea. Agarramos nos bilhetes e entregamo-los ao encarregado. Para alegria da Meme e da Sara e meu desconsolo, confirmam-nos voo. Sem problemas. O mesmo voo que tínhamos em turística, e que há vinte e quatro horas estava cancelado. Que é que, afinal, se passou ontem? Na sede ninguém faz a mínima ideia. Está tudo bem. Por que é que o funcionário do aeroporto nos disse o contrário? Por que nos terá feito perder toda uma tarde? O encarregado encolhe os ombros. Nós também não percebemos patavina.
Agora, sim, já é definitivo: à tarde partiremos com Rustam para Islamabad. Amanhã, às cinco da manhã, sai o nosso voo para a Europa.
Comemos juntos pela última vez. Os cinco. Plenamente conscientes da falta que iremos sentir uns dos outros. Voltaremos a ver-nos? Inshallah! Mas não o sabemos. Rustam faz uma aposta comigo: se eu for capaz de aprender dari pelos livros que comprei em Cabul, pagar-me-á a passagem; se ele aprender primeiro o espanhol, pago eu. Entretanto escrever-nos-emos. Evidentemente. Continuaremos em contacto via e-mail. Fazemos o balanço, um balanço bastante pessoal dos dias que passámos juntos: o melhor e o pior episódio para cada um de nós. As conversas à, noite levam a palma, mas fico comovidíssima quando Rustam afirma que o melhor momento da viagem é anterior à nossa chegada:
- Foi quando soube que vocês vinham. Que três mulheres ocidentais achavam tão importante conhecer a nossa situação, que vinham cá pessoalmente.
Em casa fazemos as malas.
Trocamos presentes no meio do já habitual caos do nosso quarto.
- Se estivessemos em Espanha, dar-te-ia dois beijos - digo a Rustam enquanto lhe aperto a mão.
- Beija-o, então! - exclama alegremente Azada.
Najiba dá-nos a saca que contem os vídeos e cassetes da RAWA. Ontem, quando conseguimos falar com elas, propuseram-nos fazer chegar o material, durante a manhã, à escola de Najiba. O marido de Najiba conseguiu arranjar-nos o vídeo do documentário histórico que vimos há um par de noites.
O tempo voa.
Despedimo-nos. Um forte abraço. Montes de beijos.
O autocarro espera-nos e vamos em dois táxis até à estação.
Rustam encontrar-se-á lá connosco. Tem de passar pelo hotel para apanhar o Mikel. Viajaremos juntos até lslamabad, onde o fotógrafo prevê passar alguns dias.
Na estação de autocarros o bulício é o mesmo da vez anterior: os mesmos miúdos a vender biscoitos e refrescos aos viajantes; os mesmos gritos dos motoristas que trepam aos tejadilhos para pôr as bagagens; as mesmas transacções com os cobradores enquanto verificar os bilhetes e pedem troco aos passageiros. Os mesmos mendigos, os mesmos curiosos... Temos de nos despedir.
Do taxista. Do outro motorista.
De Azada, a mulher livre. De Palwasha, a luz do sol ao amanhecer. Abraçamo-nos. Perdemos a conta dos beijos.
O tempo aperta.
O autocarro arranca.
Anoitece ainda antes de chegarmos a lslamabad.
Deixamos Mikel no seu hotel. Voltaremos a ver-nos em Barcelona. Em casa de Rustam, a sua tia oferece-nos um magnífico jantar.
Trabalhamos até ao último minuto: com Rustam, voltamos a visionar o documentário histórico para anotar a que correspondem as imagens. Beijo a beijo, abraço a abraço, em tantas despedidas sucessivas, fomos soltando amarras e encaramos já com energia o trabalho que começaremos logo que chegarmos. Há que preparar o guião de uma conferência, de um vídeo que ilustre a situação dos afegãos e do Afeganistão. Tenho que começar a estruturar o conteúdo do livro. Sim, para começar um diário da viagem.
- Contem o que viram.
É a primeira coisa que vou fazer. Para isso vim. Porque esse é o pacto que estabeleci em Barcelona, em Março, com essa mulher. Refugiada afegã, a quem nunca vira antes e da qual nem sequer o nome sabia.
Levantamo-nos às três da manhã.
Rustam leva-nos ao aeroporto no carro do seu amigo. Falamos pouco. Nada.
No vestíbulo do aeroporto juntam-se multidões de passageiros que se encaminham para os diferentes balcões para registar a bagagem. É melhor irmos tomar a vez.
- Adeus, Rustam, obrigada por tudo.
Lá vamos: perdemo-nos na multidão, passamos o controle policial e juntamo-nos a uma enorme bicha. Não registamos as gaiolas que os meninos nos fizeram. Levamo-las na mão. Embarcamos. Passa uma hora. O avião continua em terra. Duas horas. O atraso deve-se ao facto de um passageiro ter faltado ao controle e agora têm de encontrar a bagagem dele para a descarregar. O calor começa a ser insuportável. A espera é interminável. Por este andar perderemos a ligação com o voo seguinte. Já é dia quando finalmente levantamos voo.
Ao fim de um momento levanto-me para ir fumar um cigarro na cauda do avião. Junto aos lavabos há um espaço vazio, sem assentos e uma janela. Aproximo-me para olhar. Montanhas. Terra ocre. Sob um céu azul, radiante de sol que eu sulco. Pergunto a um auxiliar de voo onde estamos.
- Sobrevoamos o Afeganistão, madam.
Ao exorcismo destas palavras, a nostalgia à espreita, escondida num recanto, irrompe avassaladora, arrasando tudo à frente.
Colo-me ao vidro. Afeganistão.
Ainda estou a partir e já só penso em regressar.
Segunda-feira, 15 de Janeiro de 2001. Vallirana
A tarefa do trompetista é soprar o seu instrumento.
Tratei de tudo. Acabei.
Sou apenas o trompetista que sopra o seu instrumento.
Aos que escutarem a sua melodia corresponde-lhes dançar, tapar os ouvidos, sair da sala ou agarrar o seu próprio instrumento e formar duos, trios, grupos de câmara, uma orquestra inteira. Cordas, sopros e percussão: a mesma peça com partituras diferentes.
Desde que regressámos a Barcelona, a Meme, a Sara e eu, dentro das nossas possibilidades, continuámos a trabalhar em prol do Afeganistão e para os refugiados em Peshawar, cada uma no domínio em que melhor se move. Temos dado conferências por toda a península; na Catalunha constituiu-se uma associação geminada com a HAWCA e procuramos financiamento para projectos humanitários; conseguimos o apoio de políticos, jornalistas e profissionais de todos os âmbitos para denunciar e sensibilizar, exercer pressão com o objectivo de conseguir o restabelecimento de um governo democrático no Afeganistão e evitar o reconhecimento e a legitimação do regime taliban por parte da comunidade internacional; tentamos criar uma rede que permita unificar e canalizar os esforços das entidades, pessoas, instituições e organizações a favor dos homens e mulheres afegãos.
Acendo o último cigarro.
Arquivo. Guardar como. Disco de 3112. O Grito Silenciado. Sair.
Agora posso apagar o computador.
Ana Torjada
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