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I
Para a razão humana, o conjunto das causas dos fenômenos é inalcançável. Mas a exigência de encontrar as causas foi incutida na alma do homem. E a razão humana, que não depreende a infinidade e a complexidade das condições dos fenômenos, das quais cada uma em separado pode ser apresentada como uma causa, agarra-se à primeira e mais compreensível semelhança que encontra e diz: aqui está a causa. Nos acontecimentos históricos (em que o objeto de estudo é a ação das pessoas), a relação mais primitiva é estabelecida com a vontade dos deuses, e em seguida com a vontade das pessoas que se acham na posição histórica mais visível — os heróis históricos. Porém basta penetrar na essência de cada acontecimento histórico, ou seja, na ação de toda a massa de pessoas que tomaram parte dos acontecimentos, para constatar que a vontade do herói histórico não só não dirige as ações das massas, como é ela mesma constantemente dirigida. Tem-se a impressão de que não faz nenhuma diferença compreender o significado de um acontecimento histórico de uma forma ou de outra. Mas, entre uma pessoa que afirma que as nações do Ocidente vieram para o Oriente porque Napoleão quis assim e uma pessoa que afirma que isso aconteceu porque tinha de acontecer, existe a mesma diferença que há entre as pessoas que asseguram que a Terra está parada e os planetas se movem em seu redor e as pessoas que dizem que não sabem por que a Terra se move, mas sabem que existem leis que regem o movimento dela e dos demais planetas. Não há nem pode haver causas dos acontecimentos históricos — exceto a causa única de todas as causas. Mas existem leis que regem os acontecimentos, em parte desconhecidas, em parte alcançadas por nós de modo tateante. A descoberta de tais leis só é possível quando renunciamos completamente à procura das causas na vontade de uma pessoa, assim como a descoberta das leis do movimento dos planetas só se tornou possível quando as pessoas renunciaram ao conceito da imobilidade da Terra.
Depois da batalha de Borodinó, da tomada de Moscou pelo inimigo e do incêndio da cidade, os historiadores consideram que o episódio mais importante da guerra de 1812 foi o deslocamento do exército russo de Riazan para a estrada de Kaluga, rumo ao acampamento de Tarútino — a chamada marcha de flanco, para além de Krásnaia Pakhrá.1 Os historiadores atribuem a glória desse feito genial a diversas pessoas e discutem na tentativa de determinar a quem ela pertence em particular. Mesmo os historiadores estrangeiros e os franceses reconhecem a genialidade dos chefes militares russos ao comentar essa marcha de flanco. Mas por que os escritores militares, e com eles todos os demais, supõem que essa marcha de flanco tenha sido uma invenção arguta de uma pessoa específica, que salvou a Rússia e destruiu Napoleão — é algo muito difícil de entender. Em primeiro lugar, é difícil de entender em que consiste a argúcia e a genialidade de tal deslocamento; pois, para adivinhar que a melhor posição do exército (quando não está sendo atacado) é o local onde houver mais provisões, não é preciso nenhum formidável esforço mental. E qualquer um, até um menino tolo de treze anos, poderia adivinhar sem a menor dificuldade que, no ano de 1812, a posição mais vantajosa para o exército, depois da retirada de Moscou, era a estrada de Kaluga. Portanto é impossível compreender, em primeiro lugar, que raciocínios levaram os historiadores a ver nessa manobra algo tão arguto. Em segundo lugar, é ainda mais difícil de compreender o que exatamente os historiadores viram, nessa manobra, de salvador para os russos e de fatal para os franceses; pois a marcha de flanco, entre outras circunstâncias precedentes, concomitantes e subsequentes, poderia ter sido fatal para os russos e salvadora para as tropas francesas. Se, a partir do momento em que se cumpriu aquele deslocamento, a posição das tropas russas melhorou, isso não quer dizer que a causa de tal melhora foi aquele deslocamento.
A marcha de flanco não só não podia trazer nenhuma vantagem como poderia ter sido a perdição do exército russo, se não houvesse a coincidência de outras condições. O que teria acontecido se Moscou não tivesse ardido em chamas? Se Murat não tivesse perdido os russos de vista?2 Se Napoleão não tivesse ficado inativo? Se o exército russo, conforme a recomendação de Bennigsen e Barclay, tivesse travado batalha em Krásnaia Pakhrá? O que teria acontecido se os franceses atacassem os russos quando eles cruzaram o rio Pakhrá? O que teria acontecido se Napoleão tivesse atacado os russos quando se aproximavam de Tarútino, ainda que empregasse apenas um décimo da energia com que havia atacado em Smolensk? O que teria acontecido se os franceses fossem para Petersburgo?... Em todas essas hipóteses, o salvamento da marcha de flanco poderia se transformar em perdição.
Em terceiro lugar, e mais incompreensível, é o fato de que as pessoas que estudam a história não querem, intencionalmente, enxergar que é impossível atribuir a marcha de flanco a alguém, que ninguém jamais a previu, que tal manobra foi algo exatamente igual à retirada de Fili, que na realidade ninguém nunca imaginou tal manobra em sua integridade, mas passo a passo, acontecimento a acontecimento, minuto a minuto, ela foi nascendo a partir de uma quantidade inumerável de condições as mais diversas, e só se apresentou em sua integridade quando afinal havia se realizado e se tornara passado.
No conselho de guerra em Fili, a ideia predominante no comando russo, ideia que se apresentava por si mesma, era a de uma retirada em linha reta para trás, ou seja, pela estrada de Níjni-Nóvgorod. Prova disso é o fato de que a maioria das opiniões no conselho tinha esse sentido e, acima de tudo, a célebre conversa após o conselho entre o comandante em chefe e Lanskói, o encarregado de obter provisões. Lanskói comunicou ao comandante em chefe que as provisões das tropas tinham sido reunidas sobretudo às margens do rio Oká, nas províncias de Tula e de Kaluga, e que no caso de uma retirada por Níjni as provisões de reserva ficariam separadas do exército pelo grande rio Oká, cuja travessia no início do inverno é impossível. Foi o primeiro sinal da necessidade de evitar um caminho em linha reta para Níjni, que antes se apresentava como o mais natural. O exército se manteve mais ao sul, na estrada de Riazan, e mais próximo das provisões. Mais tarde, a inatividade dos franceses, que haviam até perdido de vista o exército russo, as preocupações com a defesa do arsenal de Tula e sobretudo as vantagens de manter-se próximo de suas reservas de provisões forçaram o exército a se desviar ainda mais para o sul, na estrada de Tula. Ao cruzar o rio Pakhrá para chegar à estrada de Tula, num movimento desesperado, os chefes militares do exército russo pensavam em ficar em Podólsk, e ninguém imaginava tomar posição em Tarútino; mas uma incontável quantidade de circunstâncias e o reaparecimento das tropas francesas, que antes haviam perdido os russos de vista, e os projetos de uma batalha, e sobretudo a abundância de provisões em Kaluga forçaram o nosso exército a se desviar mais ainda para o sul e a atravessar no meio das rotas de seu abastecimento, da estrada de Tula para a estrada de Kaluga, rumo a Tarútino. Só quando as tropas já estavam chegando a Tarútino, devido a inúmeros fatores diferentes, só então as pessoas passaram a acreditar que elas queriam aquilo mesmo e que desde muito tempo tinham planejado assim.
II
A célebre marcha de flanco consistiu apenas em que as tropas russas, que vinham recuando sempre em linha reta na direção contrária à da invasão, depois da interrupção do avanço dos franceses, desviaram-se da linha reta que tomaram de início e, não vendo nenhum perseguidor no seu encalço, de modo muito natural deslocaram-se para o lado onde a fartura de provisões as atraía.
Se no comando do exército russo não houvesse chefes geniais, mas apenas um exército sem comandantes, também esse exército não poderia ter feito outra coisa que não um deslocamento contrário a Moscou, descrevendo um arco no lado onde havia mais provisões e onde a região tinha mais fartura.
Esse deslocamento, da estrada de Níjni-Nóvgorod para a de Riazan, para a de Tula e para a de Kaluga, era a tal ponto natural que foi naquela mesma direção que haviam fugido os saqueadores do exército russo, e também de Petersburgo vieram exigências para que Kutúzov levasse seu exército naquela mesma direção. Em Tarútino, Kutúzov recebeu quase uma repreensão do soberano por ter conduzido o exército pela estrada de Riazan, e lhe foi indicada exatamente a posição diante de Kaluga, onde ele já se encontrava no momento em que recebeu a carta do soberano.
Depois de recuar na direção do impulso que tinha recebido durante toda a campanha, e também na batalha de Borodinó, a bola das tropas russas, com o esgotamento da força daquele impulso, e sem receber novos impulsos, tomou a posição que lhe era natural.
O mérito de Kutúzov não consistiu numa genial, como chamam, manobra estratégica, mas no fato de que só ele compreendeu o significado do acontecimento que se cumpria. Só ele compreendeu o significado da inatividade do exército francês, só ele continuou a sustentar que a batalha de Borodinó tinha sido uma vitória; só ele — que, à primeira vista, por sua posição de comandante em chefe, deveria estar ansioso para convocar um ataque —, só ele empregou toda a sua força para conter o exército russo e evitar batalhas inúteis.
O animal ferido em Borodinó jazia em algum lugar, lá onde o caçador em fuga o havia largado; mas, se estava vivo, se tinha forças, ou se apenas estava escondido, isso o caçador não sabia. De repente, ouviu-se um gemido daquela fera.
Esse gemido do animal ferido, o exército francês, que denotava sua ruína, foi o envio de Lauriston ao acampamento de Kutúzov com uma proposta de paz.
Napoleão, com sua convicção de que o bem não era o bem, e sim aquilo que lhe vinha à cabeça, escreveu para Kutúzov as primeiras palavras que lhe vieram à cabeça, palavras que não tinham nenhum sentido. Ele escreveu:
“Monsieur le prince Koutouzov”, escreveu ele,
j’envoie près de vous un de mes aides de camp généraux pour vous entretenir de plusieurs objets intéressants. Je désire que Votre Altesse ajoute foi à ce qu’il lui dira, surtout lorsqu’il exprimera les sentiments d’estime et de particulière considération que j’ai depuis longtemps pour sa personne... Cette lettre n’étant à autre fin, je prie Dieu, monsieur le prince Koutouzov, qu’il vous ait en Sa sainte et digne garde,
Moscou, le 30 octobre, 1812.
Signé: Napoléon.3
“Je serais maudit par la postérité si l’on me regardait comme le premier moteur d’un accommodement quelconque. Tel est l’esprit actuel de ma nation”,4 respondeu Kutúzov, e continuou a empregar todas as suas energias para conter as tropas e evitar que avançassem.
Durante o mês em que o exército francês saqueou Moscou e as tropas russas tiveram uma estadia tranquila junto a Tarútino, ocorreu uma mudança na correlação de forças dos dois exércitos (quanto ao ânimo e ao contingente), em razão da qual a vantagem de forças passou para o lado dos russos. Apesar de a posição das tropas francesas e seu contingente serem ignorados pelos russos, assim que a correlação se alterou, a necessidade de um ataque logo se manifestou numa quantidade inumerável de sinais. Tais sinais eram: o envio de Lauriston, a abundância de provisões em Tarútino, as informações que chegavam de todos os lados dando conta da inatividade e da desordem dos franceses, a vinda de novos recrutas que completaram nossos regimentos, o tempo bom, o contínuo repouso dos soldados russos, a ansiedade para entrar em combate, habitual em tropas descansadas e prontas para a luta, a curiosidade de saber o que tinha acontecido com o exército francês, que os russos tinham perdido de vista havia muito tempo, a audácia com que agora os postos avançados russos rondavam os franceses que andavam perto de Tarútino, as notícias das vitórias fáceis dos mujiques e guerrilheiros sobre os franceses, a inveja que isso despertava nas tropas, o sentimento de vingança que havia na alma de todos desde o momento em que os franceses invadiram Moscou, e (acima de tudo) a obscura consciência, formada no espírito de cada soldado, de que agora a correlação de forças havia se alterado e a vantagem passara para o nosso lado. A correlação de forças fundamental havia se alterado, e um ataque se tornara necessário. Assim como o carrilhão no relógio começa a bater e a tocar quando um ponteiro completa uma volta inteira, prontamente ocorreu nas altas esferas do Exército uma intensificação dos movimentos, do alarido e do ressoar dos carrilhões, em conformidade com a alteração essencial de forças.
III
O Exército russo era comandado por Kutúzov e seu Estado-Maior, e também pelo soberano, de Petersburgo. Ainda antes da chegada da notícia do abandono de Moscou, foi traçado em Petersburgo um plano minucioso de toda a guerra, logo enviado para Kutúzov a fim de servir de orientação. Apesar de esse plano ter sido traçado na suposição de que Moscou ainda estava em nossas mãos, o plano foi aprovado pelo Estado-Maior e posto em execução. Kutúzov apenas deixou registrado que era sempre difícil executar manobras planejadas à distância. E, a fim de solucionar as dificuldades que surgissem, eram enviadas novas instruções e novas pessoas, encarregadas de acompanhar as ações de Kutúzov e de fazer relatórios sobre elas.
Além disso, no Exército russo, agora, o Estado-Maior tinha sido inteiramente modificado. Preencheram os postos vagos de Bagration, que morrera, e de Barclay, que se afastara, magoado. Pensavam a sério o que seria melhor: A no lugar de B e B no lugar de D, ou, ao contrário, D no lugar de A, e assim sucessivamente, como se isso pudesse produzir qualquer outra coisa além da satisfação de A e de B.
No Estado-Maior do Exército, por causa da hostilidade de Kutúzov pelo seu chefe do Estado-Maior, Bennigsen, por causa da presença dos enviados do soberano e por causa dessas modificações, havia um jogo de partidos mais complexo do que o habitual; A sabotava B, D sabotava C, e assim sucessivamente, em todas as combinações e permutas possíveis. Em todas essas sabotagens, o objeto da intriga era a operação militar que todas essas pessoas acreditavam comandar; mas tal operação militar transcorria independentemente daquelas pessoas, exatamente da forma como tinha de transcorrer, ou seja, nunca de acordo com o que elas imaginavam, mas fluindo da essência da atitude das massas. Todas aquelas invenções, que se entrecruzavam e se embaralhavam, só nas altas esferas representavam um reflexo fiel daquilo que tinha de acontecer.
“Príncipe Mikhail Ilariónovitch!”, escreveu o soberano numa carta do dia 2 de outubro, recebida após a batalha de Tarútino.
Desde o dia 2 de setembro Moscou está nas mãos dos inimigos. Seu último relatório data do dia 20; e ao longo de todo esse tempo não só nada foi realizado tendo em vista uma ação contra o inimigo e a libertação de nossa antiga capital, como também, pelos seus últimos relatórios, o senhor recuou ainda mais. Sérpukhov já foi ocupada pelo inimigo, e Tula, com seu famoso arsenal, tão necessário para o exército, está em perigo. Segundo os relatórios do general Wintzingerode, vejo que uma tropa inimiga de dez mil homens se desloca pela estrada de Petersburgo. Outra tropa, de alguns milhares de soldados, também se desloca para Dmítrov. Uma terceira tropa se deslocou para a frente, pela estrada de Vladímir. Uma quarta tropa, bastante considerável, estacionou entre Ruja e Mojáisk. O próprio Napoleão estava em Moscou no dia 25. Por todas essas informações, quando o inimigo desmembrou suas forças em destacamentos poderosos, quando o próprio Napoleão ainda está em Moscou, com sua guarda, será possível que as forças inimigas, que se acham diante do senhor, sejam tão consideráveis que não permitam que o senhor tome a ofensiva? Ao contrário, é provável que se deva supor que ele está seguindo o senhor com destacamentos ou, pelo menos, com um corpo de tropa, imensamente mais fraco do que o exército comandado pelo senhor. Tem-se a impressão de que, tirando partido de tais circunstâncias, o senhor poderia, com proveito, atacar um inimigo mais fraco do que o senhor e aniquilá-lo, ou pelo menos forçá-lo a recuar e tomar em nossas mãos a parte principal da província, hoje ocupada pelo inimigo, e também, desse modo, afastar o perigo que ronda Tula e outras de nossas cidades do interior. Caberá ao senhor a responsabilidade se o inimigo ficar em condições de deslocar uma tropa considerável na direção de Petersburgo a fim de ameaçar esta capital, na qual não foi possível manter muitas tropas, pois, com confiança no exército do senhor, agindo com determinação e afinco, o senhor tem todos os meios para rechaçar esse novo infortúnio. Lembre-se de que o senhor já tem de prestar contas à pátria ofendida pela perda de Moscou. O senhor teve a experiência da minha presteza em nomeá-lo. Essa mesma presteza não se debilitou, em mim, mas eu e a Rússia estamos no direito de esperar de sua parte todo o ardor, firmeza e sucesso que sua inteligência, seus talentos militares e a bravura das tropas, comandadas pelo senhor, nos permitem prever.
Mas na ocasião em que essa carta estava a caminho, provando que a alteração da correlação de forças já se refletia também em Petersburgo, Kutúzov já não conseguia mais conter o exército comandado por ele e evitar um avanço, e assim uma batalha já havia sido travada.
No dia 2 de outubro, o cossaco Chapoválov, que estava em patrulha, matou uma lebre com um tiro de fuzil e feriu outra. Ao perseguir a lebre ferida, Chapoválov desgarrou-se para longe, dentro da mata, e acabou topando com o flanco esquerdo do exército de Murat, que se achava estacionado ali, sem nenhuma precaução. O cossaco, rindo, contou aos camaradas como por pouco não tinha caído nas mãos dos franceses. Um subtenente, tendo ouvido aquele relato, contou-o ao comandante.
Chamaram o cossaco, interrogaram-no; os comandantes do cossaco queriam tirar proveito daquele caso a fim de capturar cavalos, mas um dos chefes, que tinha conhecidos nos altos escalões do Exército, comunicou o fato a um general do Estado-Maior. Ultimamente, no Estado-Maior do Exército, a situação era a mais tensa possível. Ermólov, alguns dias antes, encontrara-se com Bennigsen e implorara que usasse sua influência sobre o comandante em chefe para que lançassem um ataque.
— Se eu não conhecesse o senhor, pensaria que não deseja aquilo que me pede. Basta que eu sugira uma coisa para que o excelentíssimo, com toda a certeza, faça o contrário — respondeu Bennigsen.
A notícia dos cossacos, confirmada por patrulhas enviadas ao local, era a prova definitiva de que os acontecimentos estavam maduros. A corda esticada se rompeu, o relógio deu as horas e os carrilhões ressoaram. Apesar de todo o seu suposto poder, inteligência, experiência e conhecimento dos homens, Kutúzov, depois de levar em conta o bilhete de Bennigsen, que havia mandado uma mensagem pessoal ao soberano, depois de levar em conta o suposto desejo do soberano, desejo expresso igualmente por todos os generais, e também a informação trazida pelos cossacos, já não podia mais conter o movimento inevitável e ordenou aquilo que ele julgava inútil e prejudicial — deu sua bênção a um fato consumado.
IV
O bilhete entregue por Bennigsen sobre a necessidade de um ataque e as informações dos cossacos sobre a abertura no flanco esquerdo dos franceses eram só os últimos sinais da necessidade de ordenar o ataque, e o ataque foi marcado para o dia 5 de outubro.
Na manhã de 4 de outubro, Kutúzov assinou a ordem de batalha. Toll leu-a para Ermólov, recomendando que ele se incumbisse das últimas providências.
— Muito bem, muito bem, agora o tempo é curto — disse Ermólov e saiu da isbá. A ordem de batalha traçada por Toll era muito bonita, a exemplo da ordem de batalha de Austerlitz, embora não fosse redigida em alemão, e dizia o seguinte:
“Die erste Kolonne marschiert 5 para tal direção, die zweite Kolonne marschiert 6 para tal direção”, e assim por diante. Todas essas colunas, no papel, chegavam na hora prevista ao seu destino e aniquilavam o inimigo. Como em todas as ordens de batalha, tudo estava lindamente imaginado e, como ocorre com todas as ordens de batalha, nenhuma coluna chegava ao seu destino na hora prevista.
Depois de preparado o devido número de cópias da ordem de batalha, chamaram um oficial para que entregasse as cópias a Ermólov, a quem cabia tomar as providências. O jovem oficial da cavalaria, um ordenança de Kutúzov, satisfeito com a importância da missão que lhe fora atribuída, dirigiu-se aos aposentos de Ermólov.
— Ele saiu — respondeu o ordenança de Ermólov. O oficial da cavalaria foi ao alojamento de um general, para onde Ermólov ia com frequência.
— Não, o general não está.
O oficial da cavalaria montou seu cavalo e foi à casa de outro general.
— Não, ele saiu.
“Tomara que não me culpem pelo atraso! Que aborrecimento!”, pensou o oficial. Percorreu o acampamento inteiro. Uns diziam que tinham visto Ermólov ir com outros generais para certo local, outros diziam que ele, com toda a certeza, estava em casa outra vez. O oficial, sem almoçar, ficou procurando-o até as seis horas da tarde. Ermólov não estava em parte alguma, e ninguém sabia onde ele andava. O oficial comeu alguma coisa às pressas na casa de um camarada e foi de novo para os postos avançados, a fim de falar com Milorádovitch. Também Milorádovitch não estava em casa, mas ali lhe disseram que Milorádovitch tinha ido a um baile na casa do general Kíkin e que Ermólov também devia estar lá.
— Mas onde fica?
— Ah, fica lá embaixo, em Étchkino — disse um oficial cossaco, apontando para uma casa senhorial, ao longe.
— Mas como, depois de nossas linhas?
— Mandaram dois regimentos nossos para vigiar, estão fazendo a maior farra lá, logo hoje, que raiva! Dois músicos, três corais de cantores.
O oficial atravessou as linhas e foi a Étchkino. Ainda de longe, enquanto se aproximava da casa, ouvia os sons alegres, festivos, de canções dançantes de soldados.
“Nas campi-i-i-nas... nas campi-i-inas!...”, ele ouvia as vozes, acompanhadas por assovios e por um torbán,7 que às vezes eram abafadas por gritos. O espírito do oficial alegrou-se com aqueles sons, mas ao mesmo tempo ele tinha medo de levar a culpa por ter demorado tanto tempo para entregar a ordem tão importante que lhe havia sido confiada. Já passava de oito horas. Ele desceu do cavalo, entrou na varanda e no vestíbulo da grande casa senhorial, que se mantivera em perfeito estado e se encontrava bem na fronteira entre os russos e os franceses. Na despensa e na antessala, os lacaios se apressavam para servir os vinhos e as comidas. Ao pé das janelas, estavam os cantores. Levaram o oficial para dentro e, de repente, ele viu juntos todos os generais mais importantes do Exército, entre eles a figura volumosa e notável de Ermólov. Todos os generais estavam com as túnicas desabotoadas, de caras vermelhas e animadas, e riam alto, formando um semicírculo. No meio do salão, um general bonito e baixo, de cara vermelha, ensaiava os passos do trepak, com audácia e agilidade.
— Ha! Ha! Ha! Muito bem, Nikolai Ivánovitch! Ha! Ha! Ha!
O oficial sentiu que, ao chegar naquele instante com uma ordem importantíssima, ele se tornava duplamente culpado e preferiu esperar um pouco; mas um dos generais o avistou e, ao saber por que estava ali, avisou Ermólov. Com o rosto franzido, Ermólov veio falar com o oficial, escutou-o e pegou os papéis sem lhe dizer nada.
— Você acha que foi por acaso que ele saiu? — perguntou naquela noite um camarada do oficial de cavalaria no Estado-Maior, referindo-se a Ermólov. — Foi um truque, foi tudo de propósito. Para complicar a vida de Konovnítsin. Você vai ver só a confusão que vai ter amanhã!
V
No dia seguinte, de manhã cedo, o decrépito Kutúzov levantou, fez suas orações, trocou de roupa e, com a desagradável consciência de que devia comandar uma batalha que ele não aprovava, sentou-se na carruagem e saiu de Letachóvka, quatro verstas atrás de Tarútino, local onde deveriam se reunir as colunas incumbidas do ataque. A caminho, Kutúzov cochilava, acordava e escutava, para ver se não havia tiros do lado direito, imaginando que talvez o combate já tivesse começado. Mas tudo estava em silêncio. Era só o amanhecer de um dia cinzento e úmido de outono. Ao aproximar-se de Tarútino, Kutúzov viu cavalarianos que levavam seus cavalos para banhar-se, através da estrada por onde passava sua carruagem. Kutúzov observou com atenção, mandou parar a carruagem e perguntou qual era o regimento deles. Os cavalarianos eram da coluna que deveria estar bem longe dali, prontos para uma emboscada. “Deve ter havido um engano”, pensou o velho comandante em chefe. Porém, seguindo mais adiante, Kutúzov avistou regimentos de infantaria, os fuzis ensarilhados, os soldados comendo mingau, levando lenha, em roupas de baixo. Chamou um oficial. O oficial explicou que não haviam recebido nenhuma ordem de atacar.
— Como não... — começou Kutúzov, mas calou-se imediatamente e mandou que chamassem um oficial mais graduado. Ele desceu da carruagem e andou de um lado para outro, de cabeça baixa, a respiração ofegante, enquanto aguardava em silêncio.
Quando apareceu Eíkhen, um oficial do quartel-general, Kutúzov ficou muito vermelho, não porque aquele oficial fosse culpado de algum erro, mas porque era um alvo suficiente para Kutúzov descarregar sua raiva. Trêmulo, ofegante, beirando um estado de cólera em que poderia rolar no chão de tanta raiva, o velho voltou-se contra Eíkhen, ameaçou-o com as mãos, gritou e praguejou, usando palavrões. Outro oficial, o capitão Brózin, que apareceu por acaso e não tinha culpa de nada, sofreu a mesma sina.
— E esse outro canalha, quem é? Fuzilem esse bandido! — gritou Kutúzov com voz rouca, sacudindo os braços e balançando o corpo. Ele experimentava um sofrimento físico. O comandante em chefe, o excelentíssimo, aquele que todos garantiam ter mais poder do que qualquer outra pessoa jamais tivera na Rússia, ver-se colocado naquela situação — ser motivo de riso diante de todo o exército. “Foi à toa que me dei ao trabalho de rezar pelo dia de hoje, foi à toa que fiquei a noite inteira sem dormir, pensando em tudo!”, disse para si mesmo. “Quando eu era ainda um oficialzinho de nada, ninguém se atrevia a zombar de mim... Mas agora!” Kutúzov experimentava um sofrimento físico, como um castigo corporal, mas não podia exprimir tal sofrimento com gritos de raiva e de dor; porém, em pouco tempo, suas forças se debilitaram e, olhando para os lados, sentindo que dissera muitas calúnias e muitas coisas ruins, sentou-se na carruagem e voltou em silêncio.
A raiva, já extravasada, não voltou mais, e Kutúzov, piscando os olhos de leve, escutava as explicações e as palavras de desculpa (o próprio Ermólov não apareceu senão no dia seguinte), e também as recomendações insistentes de Bennigsen, Konovnítsin e Toll de que o movimento que havia falhado devia ser executado no dia seguinte. E Kutúzov, de novo, teve de concordar.
VI
No dia seguinte, as tropas se reuniram à tarde nos locais determinados e partiram à noite. Era uma noite de outono, com nuvens pretas e arroxeadas, mas sem chuva. A terra estava molhada, mas não havia lama, e as tropas andavam sem barulho, apenas se ouvia de vez em quando o leve tilintar da artilharia. Estava proibido falar alto, fumar cachimbo, acender fogo; os cavalos eram impedidos de relinchar. O segredo da manobra aumentava seu encanto. As pessoas iam alegres. Algumas colunas paravam, ensarilhavam os fuzis e deitavam na terra fria, supondo que haviam chegado aonde deviam chegar; outras colunas (a maioria) caminharam a noite inteira e obviamente chegaram a locais que não eram aqueles aonde deviam ter chegado.
Só o conde Orlóv-Deníssov e seus cossacos (o destacamento mais insignificante de todos) chegaram ao lugar devido e no horário certo. Esse destacamento estacionou na orla de uma floresta, no caminho da aldeia de Stromílova para Dmítrov.
Antes do raiar do dia, acordaram o conde Orlóv, que estava dormindo. Trouxeram um traidor do acampamento dos franceses. Era um sargento polonês das tropas de Poniatowsky. Em polonês, o sargento explicou que havia fugido porque tinha sido humilhado, que já devia ser oficial havia muito tempo, que ele era o mais corajoso de todos e por isso tinha desertado e queria castigá-los. Disse que Murat estava pernoitando a uma versta de onde estavam e que, se lhe dessem uma escolta de cem homens, ele o traria vivo. O conde Orlóv-Deníssov fez uma reunião com seus camaradas. A proposta era atraente demais para recusar. Todos se apresentaram como voluntários para a missão, todos recomendaram fazer uma tentativa. Depois de muitas discussões e ponderações, o major-general Grékov resolveu ir com o sargento, acompanhado por dois regimentos de cossacos.
— Mas lembre bem — disse o conde Orlóv-Deníssov para o sargento, ao soltá-lo —, se você mentiu, vou mandar enforcá-lo como um cão, mas, se for verdade, vai ganhar cem tchervónets.8
O sargento, com ar resoluto, não respondeu àquelas palavras, montou seu cavalo e seguiu depressa com Grékov. Penetraram na floresta. O conde Orlóv, encolhendo-se por causa da friagem da manhã que começava a clarear, agitado com a responsabilidade que havia assumido, acompanhou Grékov por um breve tempo, voltou, saiu da floresta e pôs-se a observar o acampamento do inimigo, agora visível de modo vago na luz do início da manhã e das fogueiras que terminavam de queimar. As nossas colunas deveriam aparecer à direita do conde Orlóv-Deníssov, num declive descoberto. O conde Orlóv olhou bem para lá; porém as colunas não estavam à vista, embora devessem ser visíveis, mesmo de longe. No acampamento francês, assim pareceu ao conde Orlóv-Deníssov, e sobretudo ao seu ajudante de ordens, que tinha uma visão muito aguçada, começou uma agitação.
— Ah, já sei, é tarde demais — disse o conde Orlóv, depois de olhar para o acampamento. Como acontece muitas vezes depois que o homem em quem confiamos não está mais diante de nossos olhos, de repente tudo ficou perfeitamente claro para ele, e era óbvio que o sargento era um impostor, estava mentindo, e todo o ataque seria estragado pela ausência daqueles dois regimentos que ele havia conduzido só Deus sabe para onde. Como seria possível capturar um comandante em chefe no meio de tamanha massa de tropas?
— É claro, ele mentiu, aquele patife — disse o conde.
— Podem voltar — disse um dos membros de sua comitiva que, a exemplo do conde Orlóv-Deníssov, duvidou do sucesso daquela empresa ao olhar para o acampamento francês.
— Ah? É mesmo?... O que acha, devem continuar? Ou não?
— O senhor ordena que voltem?
— Voltem, voltem! — exclamou o conde Orlóv, de repente, em tom resoluto, olhando para o relógio. — Vai ficar tarde, já está claro demais.
E o ajudante de ordens galopou para a floresta, atrás de Grékov. Quando Grékov voltou, o conde Orlóv-Deníssov, perturbado com a tentativa inútil e nula, e também com a espera inútil das colunas de infantaria, que continuavam sem aparecer, e também com a proximidade do inimigo (todos no seu destacamento experimentavam a mesma sensação), resolveu atacar.
Num sussurro, deu a ordem: “Montar!”. Tomaram seus lugares, fizeram o sinal da cruz...
— Com Deus!
“Hurraaaaa!”, ressoou pela floresta, e, às centenas, uma após a outra, como que derramados de um saco, os cossacos dispararam cheios de alegria, com suas lanças inclinadas, através do riacho e do acampamento.
Um só grito de susto e desespero do primeiro francês que avistou os cossacos — e todos os que estavam no acampamento, ainda sem trocar de roupa, semiadormecidos, largaram para trás os canhões, os fuzis, os cavalos e correram em fuga para qualquer direção.
Se os cossacos tivessem perseguido os franceses, sem prestar atenção no que estava atrás e em volta de si, teriam capturado Murat e todos os que ali estivessem. Os comandantes queriam isso. Mas era impossível pôr os cossacos em movimento, depois que punham as mãos em despojos e em prisioneiros. Ninguém dava ouvidos às ordens. Foram feitos mil e quinhentos prisioneiros, foram apresados trinta e oito canhões, bandeiras e, o mais importante de tudo para os cossacos, cavalos, selas, mantas e grande variedade de objetos. Era preciso organizar tudo isso, pôr os prisioneiros e os canhões em local seguro, dividir os despojos, berrar e até brigar uns com os outros: os cossacos estavam ocupados com tudo isso.
Os franceses, que não estavam mais sendo perseguidos, aos poucos começaram a se refazer, reagruparam os pelotões e passaram a atirar. Orlóv-Deníssov continuava aguardando as colunas e não avançou mais.
Enquanto isso, conforme a ordem de batalha, “die erste Kolonne marschiert” etc., as tropas de infantaria das colunas atrasadas, comandadas por Bennigsen e dirigidas por Toll, partiram em perfeita ordem e, como sempre acontece, acabaram chegando a algum lugar que não era aonde deveriam ter ido. E, como também sempre acontece, as pessoas que haviam partido tão alegres começaram a parar; ouviram-se queixas, havia uma sensação de confusão e, por fim, houve um movimento de recuo. Os ajudantes de ordens e os generais rodavam a galope, gritavam irritados, discutiam, diziam que não era absolutamente ali o lugar combinado e se atrasavam, repreendiam alguém etc., e por fim desistiam e continuavam andando, só para chegar a algum lugar, qualquer que fosse. “Vamos lá, para qualquer lugar, mas vamos lá!” E de fato foram, não para um lugar, mas para diversos lugares, porém se atrasaram tanto que não adiantou nada chegarem lá, só serviu para que atirassem contra eles. Toll, que nessa batalha desempenhou o papel de Weyrother em Austerlitz, galopava com afinco de um lugar a outro e em toda parte encontrava tudo ao contrário do que devia ser. Assim ele encontrou a companhia de Baggovut na floresta, quando o dia já estava completamente claro e aquela tropa já devia estar junto à de Orlóv-Deníssov havia muito tempo. Perturbado, aflito com o fracasso e supondo que alguém devia levar a culpa, Toll galopou na direção do comandante da tropa e pôs-se a repreendê-lo com severidade, dizendo que devia ser fuzilado por causa daquilo. Baggovut, militar antigo, general calmo e experiente em combates, também estava cansado de todas aquelas paradas, confusões, contradições e, para surpresa de todos, de um modo totalmente contrário à sua índole, teve um acesso de raiva e esbravejou coisas bem desagradáveis contra Toll.
— Não vou aceitar lições seja lá de quem for e sei morrer com meus soldados tão bem quanto qualquer um — disse e avançou com uma divisão.
Entrando no campo de batalha sob os tiros dos franceses, o abalado e corajoso Baggovut, sem querer saber se era útil ou inútil sua participação no combate agora, avançou em linha reta com uma divisão e conduziu sua tropa debaixo do tiroteio. Perigo, balas de canhão, balas de fuzil, era exatamente disso que ele precisava em seu acesso de raiva. Uma das primeiras balas o matou, as outras mataram muitos soldados. E sua divisão ficou assim, parada sob o fogo inimigo, sem a menor necessidade.
VII
Naquele momento, outra coluna do front devia “atacar” os franceses, mas Kutúzov estava nessa coluna. Ele sabia muito bem que nada, a não ser confusão, resultaria daquela batalha, iniciada contra sua vontade, e retinha as tropas o mais que podia. Ele não se moveu.
Kutúzov andava em silêncio no seu cavalinho cinzento, respondendo preguiçosamente às propostas de atacar.
— O senhor está sempre com a palavra “atacar” na ponta da língua, mas será que não vê que não sabemos fazer manobras complicadas? — disse para Milorádovitch, que pedia para avançar.
— Não fomos capazes de fazer Murat prisioneiro nem de chegar ao lugar certo na hora marcada: agora não há nada a fazer! — respondeu a outro.
Quando informaram a Kutúzov que na retaguarda dos franceses, onde antes, segundo as informações dos cossacos, não havia ninguém, agora havia dois batalhões de poloneses, ele lançou um olhar para trás, na direção de Ermólov (ainda não havia falado com ele, desde o dia anterior).
— Só fazem pedir um ataque, sugerem uma porção de projetos, mas na hora de entrar em ação não tem nada pronto, e o inimigo, já prevenido, tomou suas providências.
Ermólov estreitou os olhos e sorriu de leve, ao ouvir aquelas palavras. Entendeu que, para ele, a tempestade havia passado e que Kutúzov ia se contentar com aquele comentário.
— Ele se diverte à minha custa — disse Ermólov em voz baixa, batendo no joelho de Raiévski, que estava a seu lado.
Logo depois, Ermólov avançou na direção de Kutúzov e informou respeitosamente:
— Ainda não é tarde demais, vossa excelência, o inimigo não foi embora. E se o senhor der ordem de atacar? Do contrário, a guarda não vai ver sequer um pouco de fumaça.
Kutúzov nada disse, mas, quando lhe comunicaram que as tropas de Murat estavam em retirada, ele ordenou o ataque; mas ordenou que a cada cem passos fizessem uma pausa de quarenta e cinco minutos.
A batalha inteira resumiu-se naquilo que os cossacos de Orlóv-Deníssov haviam feito; o resto das tropas apenas perderam à toa centenas de homens.
Por causa dessa batalha, Kutúzov recebeu uma medalha de diamante, Bennigsen também ganhou diamantes e mais cem mil rublos, outros também ganharam muitas homenagens, conforme seu posto, e depois da batalha fizeram novas alterações no Estado-Maior.
“Aí está como sempre fazemos as coisas, tudo ao contrário!”, diziam os oficiais e generais russos, depois da batalha de Tarútino — exatamente como falam agora, dando a entender que algum idiota foi lá e fez as coisas ao contrário, mas que nós não fazemos assim. Porém as pessoas que falam desse modo ou não entendem do assunto de que estão falando ou estão enganando a si mesmas de propósito. Toda batalha — de Tarútino, de Borodinó, de Austerlitz — transcorre sempre de modo diferente do que imaginaram seus dirigentes. Isso é uma condição essencial.
Uma incontável quantidade de forças livres influencia os rumos da batalha (pois em parte nenhuma o homem é mais livre do que durante uma batalha, que é uma questão de vida ou morte), e tais rumos nunca podem ser conhecidos antecipadamente e nunca estão de acordo com a direção de uma só força, qualquer que seja.
Se muitas forças, de modo concomitante e diversificado, agem sobre um determinado corpo, a direção do movimento desse corpo não pode coincidir com a de uma dessas forças; mas será sempre uma direção média, aproximada, aquilo que em mecânica se denomina a diagonal do paralelogramo das forças.
Se, nas descrições dos historiadores, em especial dos franceses, vemos que suas guerras e batalhas transcorrem segundo um plano definido de antemão, a única conclusão que podemos extrair disso é que tais descrições não são fiéis.
A batalha de Tarútino obviamente não alcançou o objetivo que Toll tinha em mira: pôr as tropas em ação segundo as determinações definidas na ordem de batalha; nem tampouco o objetivo que o conde Orlóv podia ter em mira: fazer Murat prisioneiro; nem o objetivo de aniquilar a tropa inteira de um só golpe, como podiam querer Bennigsen e outros; nem o objetivo do oficial que desejava entrar em combate e se destacar; nem o objetivo do cossaco, que queria se apoderar de despojos maiores do que aqueles que conseguiu etc. Porém, se o objetivo era aquilo que de fato aconteceu e aquilo que para todos os russos era então o desejo comum (a expulsão dos franceses da Rússia e a aniquilação de seu exército), então ficará perfeitamente claro que a batalha de Tarútino, justamente por causa de suas incongruências, trouxe o que era o mais necessário naquele período da campanha. É difícil e mesmo impossível imaginar, para essa batalha, qualquer desfecho mais conveniente do que o que ocorreu. Com o mínimo de esforço, com uma formidável confusão e com baixas insignificantes, foram alcançados os melhores resultados de toda a campanha, fez-se a transição da retirada para o ataque, foi desmascarada a fraqueza dos franceses e foi dado o empurrão que as tropas napoleônicas apenas aguardavam para iniciar sua debandada.
VIII
Napoleão entra em Moscou depois da brilhante vitória de la Moskowa; não pode haver dúvida sobre a vitória, pois o campo de batalha fica sob o domínio dos franceses. Os russos recuam e entregam a capital. Moscou, repleta de provisões, armas, munição e imensas riquezas, está nas mãos de Napoleão. As tropas russas, duas vezes mais fracas do que as francesas, durante um mês não fazem nenhuma tentativa de atacar. A posição de Napoleão é a mais brilhante possível. Seja para lançar-se contra o restante do exército russo com forças duas vezes superiores e aniquilá-lo, seja para negociar um acordo de paz vantajoso ou, no caso de uma recusa, fazer um movimento de ameaça contra Petersburgo, seja até para, no caso de um fracasso, voltar para Smolensk ou para Vilna, ou mesmo ficar em Moscou — seja para, numa palavra, manter a posição brilhante em que se encontravam as tropas francesas naquele momento, tem-se a impressão de que não era preciso nenhuma genialidade especial. Para tanto era preciso fazer o mais simples e o mais fácil: não permitir que as tropas promovessem saques, providenciar roupas para o inverno, que apanharia todo o exército em Moscou, e reunir adequadamente as provisões que havia em Moscou, mais do que o suficiente para abastecer o exército inteiro durante meio ano (segundo as indicações dos historiadores franceses). Napoleão, o maior gênio de todos os gênios, e que tinha o poder de comandar o exército, como asseguram os historiadores, não fez nada disso.
Não só não fez nada disso, como, ao contrário, empregou seu poder para escolher, entre todos os caminhos que se apresentavam, justamente o mais tolo e mais nefasto. De tudo aquilo que Napoleão podia fazer — passar o inverno em Moscou, ir para Petersburgo, ir para Níjni-Nóvgorod, ir para trás, mais para o norte ou mais para o sul, pelo caminho que depois Kutúzov seguiu —, era impossível imaginar algo mais tolo e nefasto do que aquilo que Napoleão acabou fazendo, ou seja, ficar em Moscou até outubro, deixando que as tropas saqueassem a cidade, e depois, em dúvida entre manter ou não uma guarnição em Moscou, sair da cidade, seguir na direção de Kutúzov, não travar batalha, ir para a direita, chegar a Malo Iaroslávets, mais uma vez evitando o risco de um combate, seguir não pela estrada por onde seguia Kutúzov, mas recuar para Mojáisk, pela devastada estrada de Smolensk — era impossível imaginar qualquer coisa mais tola e mais nefasta do que essa para o exército, como as consequências depois comprovaram. Mesmo que os estrategistas mais doutos tivessem suposto que o objetivo de Napoleão era destruir seu próprio exército, não conseguiriam imaginar outra linha de ação que, com tamanha certeza e com tamanha independência de tudo aquilo que as tropas russas pudessem empreender, destruísse o exército francês tão completamente como aquilo que Napoleão fez.
O genial Napoleão fez isso. Mas dizer que Napoleão destruiu seu exército porque quis fazer isso, ou porque era muito tolo, seria uma injustiça tão grande quanto dizer que Napoleão conduziu suas tropas até Moscou porque queria isso e porque era muito inteligente e genial.
Num caso e no outro, sua ação pessoal não tinha mais força do que a ação pessoal de um soldado qualquer, apenas coincidia com as leis que regiam os fenômenos.
Estão totalmente equivocados os historiadores que nos dizem que as energias de Napoleão se debilitaram em Moscou (só porque as consequências não justificam as ações de Napoleão). Tal como antes, e como depois, no ano de 1813, ele empregou toda a sua inteligência e toda a sua energia a fim de fazer o melhor para si e para seu exército. A ação de Napoleão durante aquele tempo não foi menos formidável do que no Egito, na Itália, na Áustria e na Prússia. Não sabemos ao certo qual o grau da genialidade real de Napoleão no Egito, onde quarenta séculos contemplaram sua grandeza,9 porque todas aquelas façanhas grandiosas nos são descritas apenas por franceses. Não podemos avaliar corretamente sua genialidade na Áustria e na Prússia, pois as informações sobre sua ação lá têm de provir de historiadores franceses e alemães; e a incompreensível rendição de tropas inteiras sem combate e de fortalezas sem um sítio devem inclinar os alemães ao reconhecimento de sua genialidade como única explicação para a guerra que ocorreu na Alemanha. Mas nós, graças a Deus, não precisamos reconhecer sua genialidade para esconder nossa vergonha. Nós pagamos caro para ter o direito de encarar a guerra de modo simples e direto e não vamos abrir mão desse direito.
A ação de Napoleão em Moscou foi tão formidável e genial como em toda parte. Ordens após ordens, planos após planos não pararam de emanar de Napoleão, desde seu ingresso em Moscou, até o dia em que saiu da cidade. A ausência dos habitantes e de delegados para negociar um acordo de paz e até o incêndio de Moscou não lhe trouxeram embaraço. Ele não perdia de vista nem o bem-estar de seu exército, nem as ações do inimigo, nem o bem-estar das populações da Rússia, nem os assuntos de governo em Paris, nem as especulações diplomáticas sobre as futuras condições de um acordo de paz.
IX
Quanto às questões militares, assim que invadiu Moscou, Napoleão deu ao general Sébastiani ordens rigorosas para que acompanhasse os movimentos do exército russo, enviando tropas para diversas estradas, e ordenou a Murat que encontrasse Kutúzov. Em seguida tomou providências rigorosas para fortificar o Krêmlin. Depois elaborou o plano genial da campanha futura, no mapa de toda a Rússia. Quanto às questões diplomáticas, Napoleão chamou o espoliado e andrajoso capitão Iákovlev, que não soube como sair de Moscou, explicou-lhe minuciosamente toda a sua política e sua generosidade e, após redigir uma carta para o imperador Alexandre, na qual considerava seu dever comunicar a seu amigo e irmão que Rostoptchin havia se comportado de maneira muito condenável, enviou Iákovlev para Petersburgo. Tendo expressado de forma igualmente minuciosa suas opiniões e sua generosidade a Tutólmin, despachou também aquele velho para Petersburgo, a fim de abrir negociações.
Quanto às questões jurídicas, logo depois dos incêndios, determinou que encontrassem os culpados e os castigassem. E puniu o malfeitor Rostoptchin dando ordens para queimar sua casa.
Quanto às questões administrativas, outorgou uma constituição para Moscou, instituiu um conselho municipal e fez a seguinte proclamação:
Habitantes de Moscou!
Os infortúnios dos senhores são cruéis, mas sua alteza o imperador e rei quer evitar seu prolongamento. Exemplos terríveis ensinaram aos senhores como ele castiga a desobediência e o crime. Medidas severas foram tomadas a fim de interromper a desordem e restabelecer a segurança geral. Uma administração paternal, escolhida entre os senhores, irá formar um conselho municipal ou um governo municipal. Ele irá cuidar dos senhores, de suas necessidades, de seus interesses. Seus membros vão se diferenciar por uma fita vermelha que usarão no ombro, e o chefe da municipalidade usará por cima dela uma faixa branca. Mas, fora do horário de suas obrigações, todos eles usarão apenas uma fita vermelha em torno do braço esquerdo.
A polícia da cidade será instituída conforme o regulamento anterior, e graças à sua atividade já vigora uma ordem melhor. O governo nomeou dois comissários-gerais, ou chefes de polícia, vinte comissários, ou agentes especiais, distribuídos em todas as partes da cidade. Os senhores irão identificá-los por uma fita branca que eles usarão em torno do braço esquerdo. Várias igrejas, de diversas confissões, estão abertas, e nelas o serviço religioso é realizado sem restrições. Seus concidadãos estão voltando todos os dias às suas residências, e demos ordens para que, nelas, encontrem a ajuda e a proteção que devemos prestar no infortúnio. Esses são os meios que o governo adotou a fim de restabelecer a ordem e aliviar a situação dos senhores; porém, a fim de chegar a isso, é preciso que os senhores unam seus esforços aos nossos, que esqueçam, se possível, os infortúnios que acabaram de padecer, que tenham esperança num destino menos cruel, que se convençam de que a morte inevitável e a desonrosa aguarda aqueles que se atreverem a ameaçar a pessoa dos senhores e aquilo que resta de seus bens, e por fim que não tenham dúvida de que estes serão salvaguardados, pois tal é a vontade do mais justo e supremo de todos os monarcas. Soldados e habitantes, qualquer que seja a nação dos senhores! Restabeleçam a confiança pública, fonte de felicidade do soberano, vivam como irmãos, ajudem-se e protejam-se mutuamente, unam-se, a fim de rechaçar as intenções dos malfeitores, obedeçam às autoridades militares e civis, e que suas lágrimas logo parem de correr.
Quanto à questão do abastecimento das tropas, Napoleão decretou que todas as tropas entrassem alternadamente em Moscou à la maraude10 a fim de obter provisões, para que o exército assegurasse suprimentos para o futuro.
Quanto às questões religiosas, Napoleão ordenou ramener les popes11 e retomar os serviços religiosos nas igrejas.
Quanto às questões comerciais, e tendo em vista o abastecimento do exército, foi afixado em toda parte o seguinte:
PROCLAMAÇÃO
Os senhores pacíficos habitantes de Moscou, gente trabalhadora e industriosa, a quem os infortúnios afastaram da cidade, e também os senhores lavradores dispersos, a quem temores infundados ainda mantêm afastados nos campos, escutem! A tranquilidade está retornando a esta capital, e a ordem está sendo restabelecida. Seus compatriotas estão corajosamente deixando seus esconderijos, vendo que são respeitados. Todas as agressões contra eles e suas propriedades serão castigadas prontamente. Sua alteza o imperador e rei os protege e não considera ninguém entre os senhores como seu inimigo, exceto aqueles que desobedecem aos seus pedidos. Ele quer que seus infortúnios cessem e que os senhores voltem para seus lares e suas famílias. Assim, correspondam às intenções generosas do imperador e venham ao nosso encontro sem nenhum risco. Habitantes! Voltem para suas residências com confiança: os senhores logo encontrarão meios de satisfazer suas necessidades! Artesãos e artífices industriosos! Voltem às suas manufaturas: casas, lojas, guardas de segurança os esperam, e pelo seu trabalho receberão o dinheiro devido! E, por fim, senhores camponeses, saiam das florestas, onde foram se esconder por medo, voltem sem temor para suas isbás, com a promessa rigorosa de que encontrarão proteção. Foram criadas feiras na cidade, para onde os camponeses podem trazer o excedente de suas provisões e os frutos de sua lavoura. O governo tomou as seguintes medidas a fim de assegurar a eles a liberdade de venda: 1) A partir de hoje, o camponês, o lavrador e o habitante das cercanias de Moscou podem, sem nenhum risco, trazer para a cidade seus suprimentos, de qualquer espécie, e vender nas duas feiras indicadas, ou seja, na rua Mokhovaia e no mercado Okhótni. 2) Esses alimentos serão comprados com eles pelo preço acordado entre o comprador e o vendedor; mas, se o vendedor não receber o valor por ele cobrado de modo justo, ficará livre para levá-los de volta para sua aldeia, sem que ninguém possa impedi-lo sob nenhum pretexto. 3) Semanalmente, todo domingo e toda quarta-feira, haverá feiras; por isso um contingente suficiente de tropas será posto à disposição na terça-feira e no sábado, em todas as maiores cidades e a certa distância das cidades, a fim de proteger os comboios. 4) Medidas semelhantes serão tomadas a fim de que, em seu caminho de volta, os camponeses, com suas carroças e cavalos, não encontrem obstáculos. 5) Medidas urgentes serão tomadas para a reconstrução dos mercados de costume. Habitantes da cidade e das aldeias, e senhores trabalhadores e artesãos, de qualquer nacionalidade! Apelamos aos senhores que cumpram as intenções paternais de sua alteza o imperador e rei e colaborem com ele para o bem-estar geral. Deponham aos pés dele o respeito e a confiança e não demorem a se unir a nós!
Quanto à questão de elevar o moral das tropas e do povo, faziam-se frequentes paradas, distribuíam-se condecorações. O imperador andava a cavalo pelas ruas e consolava os habitantes; e, apesar de toda a preocupação com os negócios de Estado, o próprio imperador comparecia aos teatros, criados por ordens dele.
Quanto à questão da caridade, a melhor virtude dos monarcas coroados, Napoleão também fazia tudo o que dependia dele. Nas instituições beneficentes, mandou inscrever Maison de ma mère, associando com esse gesto o afetuoso sentimento filial à grandeza do monarca benfeitor. Visitou o asilo de crianças, ofereceu suas mãos brancas para serem beijadas pelos órfãos que ele salvara, palestrou de modo indulgente com Tutólmin. Depois, segundo o eloquente relato de Thiers, Napoleão mandou distribuir às suas próprias tropas dinheiro russo falso, que ele mesmo mandara fazer. Relevant l’emploi de ces moyens par un acte digne de lui et de l’armée française, il fit distribuer des secours aux incendiés. Mais les vivres étant trop précieux pour être donnés à des étrangers la plupart ennemis, Napoléon aima mieux leur fournir de l’argent afin qu’ils se fournissent au dehors, et il leur fit distribuer des roubles papiers.12
Quanto à disposição do exército, deu ordens incessantes para aplicar punições rigorosas por falhas no cumprimento do dever e também com o propósito de cessar os saques.
X
No entanto, por estranho que pareça, todas essas ordens, preocupações e planos, em nada piores do que outros adotados em situações semelhantes, não afetavam a essência da questão e, assim como os ponteiros no mostrador de um relógio desligados do mecanismo, giravam em vão e de modo aleatório, sem fazer rodar as engrenagens.
Quanto às questões militares, o genial plano da campanha, sobre o qual Thiers diz que son génie n’avait jamais rien imaginé de plus profond, de plus habile et de plus admirable,13 e a respeito do qual Thiers entrou em polêmica com o sr. Fain14 para provar que aquele plano genial deve ser referido não ao dia 4, e sim ao dia 15 de outubro, tal plano genial não foi executado nem poderia ser, porque não tinha nada a ver com a realidade. A fortificação do Krêmlin, que exigia a demolição de la Mosquée 15 (assim Napoleão chamava a igreja de Basílio Bem-Aventurado), revelou-se completamente inútil. A instalação de minas aos pés do Krêmlin apenas serviu para ajudar a cumprir o desejo do imperador de explodir o Krêmlin quando ele fosse embora de Moscou, ou seja, algo semelhante a uma criança que dá pancadas no chão onde ela caiu e se machucou. A perseguição do exército russo, que tanto preocupava Napoleão, produziu um fenômeno nunca visto. Os chefes militares franceses perderam de vista o exército russo de sessenta mil soldados e, segundo as palavras de Thiers, só graças à habilidade e, ao que parece, graças à genialidade de Murat, foi possível localizar, como se fosse um alfinete, aquele exército russo de sessenta mil soldados.
Quanto às questões diplomáticas, todos os argumentos de Napoleão em defesa de sua generosidade e justiça, diante de Tutólmin e diante de Iákovlev, que estava preocupado acima de tudo em conseguir um capote e uma carroça, revelaram-se inúteis: Alexandre não recebeu aqueles enviados e não respondeu às suas embaixadas.
Quanto às questões jurídicas, depois da execução dos supostos incendiários, a outra metade de Moscou ardeu em chamas.
Quanto às questões administrativas, a criação de um conselho municipal não deteve os saques e só teve utilidade para algumas pessoas que participaram desse conselho municipal e que, sob o pretexto de manter a ordem, saquearam Moscou ou protegeram suas propriedades para que não fossem saqueadas.
Quanto às questões religiosas, tão facilmente resolvidas no Egito com uma simples visita de Napoleão a uma mesquita, aqui não se alcançou nenhum resultado. Dois ou três sacerdotes que se encontravam em Moscou tentaram cumprir a vontade de Napoleão, mas um deles levou um tapa na cara de um soldado francês durante o serviço religioso, e, a respeito de outro sacerdote, um funcionário francês comunicou o seguinte: “Le prêtre que j’avais découvert et invité à recommencer à dire la messe, a nettoyé et fermé l’église. Cette nuit on est venu de nouveau enfoncer les portes, casser les cadenas, déchirer les livres et commetre d’autres désordres”.16
Quanto às questões comerciais, a proclamação dirigida aos industriosos artesãos e a todos os camponeses não obteve a menor resposta. Não existiam industriosos artesãos, e os camponeses capturaram os comissários, que viajaram longe demais para levar aquela proclamação, e os assassinaram.
Quanto à questão do entretenimento do povo e das tropas com espetáculos teatrais, também não se alcançou nenhum sucesso. Os teatros criados no Krêmlin e na casa de Pozniakóv foram imediatamente fechados, porque os atores e as atrizes foram roubados.
A filantropia também não produziu os resultados esperados. Moscou estava cheia de dinheiro falso e verdadeiro, e o dinheiro não tinha mais valor. Os franceses, ocupados apenas em saquear, só tinham necessidade de ouro. Não só o dinheiro falso que Napoleão distribuiu aos desafortunados de modo tão generoso não tinha nenhum valor, como também a prata era trocada pelo ouro por um valor abaixo do preço.
Porém a manifestação mais impressionante da nulidade das ordens superiores naquela ocasião foi o esforço de Napoleão para deter os saques e restabelecer a disciplina.
Eis o que as autoridades do Exército comunicaram:
“Os saques continuam na cidade, apesar dos apelos para que cessem. A ordem ainda não foi restabelecida, e não há nenhum comerciante que venda mercadorias de forma legal. Apenas os vivandeiros se permitem fazer comércio, e mesmo assim apenas com produtos obtidos de saques.”
“La partie de mon arrondissement continue à être en proie au pillage des soldats du troisième corps, qui, non contents d’arracher aux malheureux réfugiés dans les souterrains le peu qui leur reste, ont même la férocité de les blesser à coups de sabre, comme j’en ai vu plusieurs exemples.”17
“Rien de nouveau outre que les soldats se permettent de voler et de piller. Le 9 octobre.”18
“Le vol et le pillage continuent. Il y a une bande de voleurs dans notre district qu’il faudra faire arrêter par de fortes gardes. Le 11 octobre.”19
“O imperador está extremamente insatisfeito porque, apesar das ordens rigorosas de cessar os saques, tudo o que se vê chegar ao Krêmlin são destacamentos da guarda formados por saqueadores. Na velha guarda, a desordem e o saque recrudesceram com mais força que nunca na noite de ontem e no dia de hoje. É com desgosto que o imperador vê que soldados seletos, convocados para proteger sua pessoa, que deviam dar um exemplo de obediência, levam a insubordinação a tal ponto que arrombam as adegas e os armazéns reservados para o exército. Outros se rebaixam a ponto de não obedecer às sentinelas e aos guardas dos oficiais, xingam e batem neles.”
“Le grand maréchal du palais se plaint vivement”, escreveu o governador, “que malgré les défenses réitérées, les soldats continuent à faire leurs besoins dans toutes les cours et même jusque sous les fenêtres de l’empereur.”20
Aquela tropa, como um gado solto que pisoteia o feno que poderia salvá-lo de morrer de fome, se desintegrava e perecia a cada dia que permanecia em Moscou.
Mesmo assim a tropa não se movia.
Só fugiu quando, subitamente, foi tomada pelo pânico produzido pela notícia de que carroções de carga tinham sido capturados na estrada de Smolensk e pela notícia da batalha de Tarútino. Essa mesma notícia sobre a batalha de Tarútino, que Napoleão recebeu de surpresa durante uma parada militar, despertou nele o desejo de castigar os russos, como diz Thiers, e assim ele deu ordens de se pôr em marcha, como a tropa inteira exigia.
Ao fugir de Moscou, os soldados daquela tropa carregaram consigo tudo o que haviam saqueado. Napoleão também levou consigo um trésor 21 particular. Ao ver as carroças de carga que tolhiam o movimento do exército, Napoleão se horrorizou (como diz Thiers). Porém, com toda a sua experiência militar, ele não mandou queimar todas as carroças excedentes, como tinha feito com as carroças de certo marechal quando se aproximava de Moscou, em vez disso observou aquelas carroças e carretas, nas quais iam os soldados, e disse que estava tudo muito bem, que aquelas carroças seriam usadas para as provisões, para os feridos e para os doentes.
A situação de toda a tropa era semelhante à de um animal ferido que pressente sua perdição e não sabe o que fazer. Estudar as manobras engenhosas de Napoleão e de sua tropa é a mesma coisa que estudar o significado dos pinotes e dos espasmos de um animal mortalmente ferido e agonizante. Muitas vezes um animal ferido, ao ouvir um rumor qualquer, precipita-se exatamente na direção da arma do caçador, corre para a frente, para trás, e assim apressa seu próprio fim. O mesmo fez Napoleão sob a pressão de toda a sua tropa. O rumor da batalha de Tarútino assustou a fera, e ela se precipitou para a frente, na direção da arma, correu até o caçador, voltou atrás, de novo foi para a frente, de novo para trás e, por fim, como todo animal, correu pelo caminho mais desvantajoso e perigoso para si, que no entanto era uma trilha antiga e já conhecida.
Napoleão, que nos parece o regente de todos esses movimentos (assim como, aos selvagens, a figura esculpida na proa de um barco parece ser a força que conduz o barco), Napoleão, durante todo esse tempo, em toda a sua atividade, assemelha-se a uma criança que, segurando barbantes amarrados dentro de uma carroça, imagina que a está dirigindo.
XI
No dia 6 de outubro, de manhã cedo, Pierre saiu do barracão e, voltando para trás, parou na porta e ficou brincando com o cachorrinho comprido, avermelhado, de pernas tortas, que rodopiava à sua volta. O cachorrinho vivia com eles no barracão e passava a noite com Karatáiev, mas às vezes ia para algum canto da cidade e depois voltava. Seguramente, nunca tivera um dono, e agora não era de ninguém e não tinha nome. Os franceses o chamavam de Azor, o soldado que adorava contar histórias o chamava de Femgalka, Karatáiev e outros o chamavam de Cinzento, às vezes de Vísli.22 O fato de não pertencer a ninguém e de não ter nome, nem sequer uma raça, e pelo visto nem mesmo uma cor definida, nada disso parecia perturbar o cachorrinho avermelhado. O rabo cheio e felpudo ficava levantado, feito um capacete, firme e redondo, as pernas tortas o serviam tão bem que muitas vezes, como que desdenhando o emprego das quatro patas, levantava graciosamente uma pata traseira e, com muita destreza e rapidez, corria usando só três patas. Para ele, tudo era motivo de alegria. Ora ganindo de alegria, o cachorrinho se espojava de costas no chão, ora ficava assando debaixo do sol, com ar pensativo e importante, ora saltitava, brincando com lascas de madeira ou pedaços de palha.
A roupa de Pierre agora consistia numa camisa imunda e rasgada, a única peça que restara de sua indumentária anterior, calças de soldado, amarradas com barbante nos tornozelos por recomendação de Karatáiev, a fim de aumentar o calor, um cafetã e um chapéu de mujique. Durante aquele tempo, Pierre havia mudado muito fisicamente. Já não parecia gordo, embora tivesse o mesmo aspecto de volume e de força, hereditário em sua família. A barba e o bigode se avolumavam na parte de baixo do rosto; o cabelo crescido, revolto sobre a cabeça, cheio de piolhos, agora se enroscava como um gorro. A expressão dos olhos era firme, serena e animadamente madura, um olhar que Pierre nunca tivera até então. O seu relaxamento anterior, que se exprimia também no olhar, agora dera lugar a uma presteza enérgica para a ação e a resistência. Seus pés estavam descalços.
Pierre olhava ora para o campo mais abaixo, onde naquela manhã passavam carroças e homens a cavalo, ora para além do rio, ao longe, ora para o cachorrinho que de brincadeira fingia querer mordê-lo, ora para seus pés descalços, que ele com prazer mudava a toda hora de posição, remexendo os dedos imundos, grossos e grandes. E toda vez que olhava para os pés descalços, um sorriso de animação e de contentamento atravessava seu rosto. O aspecto daqueles pés descalços trouxe à sua memória tudo o que Pierre tinha vivido e compreendido naquele tempo, e tais recordações lhe deram prazer.
Já fazia alguns dias que o tempo andava claro e calmo, com ligeiras geadas pela manhã — o chamado verão da camponesa.
No ar, no sol, havia um calor, e esse calor, com o frescor revigorante da geada matinal, que ainda se fazia sentir no ar, era especialmente agradável.
Em tudo, nas coisas próximas e nas distantes, havia aquele brilho cristalino e mágico que só existe nessa época do outono. Ao longe, viam-se os montes Vorobióv, com uma aldeia, uma igreja e uma grande casa branca. Árvores nuas, areia, pedras, telhados de casas, a ponta verde da torre de uma igreja, os ângulos de uma casa branca e distante — tudo isso recortado com linhas finas e com uma nitidez incrível no ar translúcido. Perto, viam-se os conhecidos detritos de uma casa senhorial semidesmoronada, ocupada pelos franceses, com arbustos de lilases ainda verde-escuros, que cresciam ao longo da cerca. E até aquela casa destroçada e emporcalhada de fezes, repulsiva com sua feiura nos dias escuros, agora, no brilho claro e imóvel, parecia algo belo e tranquilizador.
Um cabo francês, de roupa desabotoada e ar de quem está em casa, de gorro e cachimbinho curto entre os dentes, saiu de trás do canto do barracão e, piscando o olho com ar amistoso, aproximou-se de Pierre.
— Quel soleil, hein, monsieur Kiril? (assim os franceses chamavam Pierre). On dirait le printemps.23 — E o cabo encostou-se na porta e ofereceu o cachimbo a Pierre, apesar de Pierre sempre recusar, toda vez que ele oferecia. — Si l’on marchait par un temps comme celui-là...24 — começou ele.
Pierre perguntou-lhe se tinha ouvido falar de um movimento das tropas, e o cabo contou que quase todas as tropas estavam indo embora, e que naquele dia deveria chegar alguma ordem acerca dos prisioneiros. No barracão onde estava Pierre, um dos soldados, Sokolóv, estava doente, à beira da morte, e Pierre disse ao cabo que era preciso cuidar daquele soldado. O cabo falou que Pierre podia ficar sossegado, que tinham enfermarias ambulantes e hospitais fixos e que viriam ordens acerca dos doentes, e que, no geral, tudo o que podia acontecer seria previsto pelos superiores.
— Et puis, monsieur Kiril, vou n’avez qu’à dire un mot au capitaine, vous savez. Oh, c’est un... qui n’oublie jamais rien. Dites au capitaine quand il fera sa tournée, il fera tout pour vous.25
O capitão do qual o cabo estava falando conversava muitas vezes e demoradamente com Pierre e lhe fazia toda sorte de concessões.
— Vois-tu, Saint-Thomas, qu’il me disait l’autre jour: Kiril c’est un homme qui a de l’instruction, qui parle français; c’est un seigneur russe, qui a eu des malheurs, mais c’est un homme. Et il s’y entend le... S’il demande quelque chose, qu’il me dise, il n’y a pas de refus. Quand on a fait ses études, voyez-vous, on aime l’instruction et les gens comme il faut. C’est pour vous que je dis cela, monsieur Kiril. Dans l’affaire de l’autre jour, si ce n’était grâce à vous, ça aurait fini mal.26
E, depois de conversar durante mais um tempo, o cabo saiu. (O caso ocorrido dias antes, a que o cabo se referia, foi uma briga entre os prisioneiros e os franceses, na qual Pierre conseguiu apaziguar seus camaradas.) Alguns prisioneiros escutaram a conversa entre Pierre e o cabo e logo depois vieram perguntar o que ele tinha dito. Na hora em que Pierre estava contando a seus camaradas o que o cabo tinha dito sobre o movimento das tropas, um soldado francês, magricela, amarelo e andrajoso, chegou à porta do barracão. Com um movimento rápido e tímido, levantou os dedos até a testa, num sinal de continência, voltou-se para Pierre e lhe perguntou se estava no barracão o soldado Platoche, com quem ele tinha deixado uma camisa para costurar.
Uma semana antes, os franceses tinham recebido peças de pano e material para fazer calçados e entregaram tudo aos soldados prisioneiros, para que costurassem botas e camisas.
— Está pronto, está pronto, meu amigo! — disse Karatáiev, trazendo uma camisa cuidadosamente dobrada.
Por causa do calor e para trabalhar mais confortavelmente, Karatáiev estava só de calça e com uma camisa rasgada preta feito terra. Seu cabelo, como fazem os artesãos, estava amarrado com uma tira de casca de árvore e seu rosto redondo parecia ainda mais redondo e mais simpático.
— Prometer é irmão de sangue de fazer. Como falei que ficava pronto na sexta-feira, está pronto — disse Platon, sorrindo e abrindo a camisa que havia costurado.
O francês olhou para trás inquieto e, como que vencendo sua dúvida, desfez-se rapidamente do uniforme e vestiu a camisa. Debaixo do uniforme, o francês não tinha camisa e, sobre o corpo nu, amarelo e magro, vestia um colete comprido, de seda, seboso, com florzinhas. O francês, obviamente, temia que os prisioneiros, ao vê-lo daquele modo, começassem a rir e enfiou a cabeça às pressas na camisa. Nenhum dos prisioneiros disse nenhuma palavra.
— Olhe só, como ficou bem — exclamou Platon, ajeitando a camisa. O francês, depois de enfiar a cabeça e os braços, levantou os olhos, deu uma olhada na camisa e examinou a costura. — Pois é, meu amigo, isto aqui não é nenhuma alfaiataria e não tem ferramentas de verdade por aqui; é como dizem: sem nada na mão, não se mata nem uma pulga — disse Platon, com um sorriso na cara redonda e bastante contente com o próprio trabalho.
— C’est bien, c’est bien, merci: mais vous devez avoir de la toile de reste? 27 — disse o francês.
— Vai ficar ainda melhor quando você vestir direito no corpo — disse Karatáiev, que continuava a alegrar-se com sua criação. — Olhe só como está bom, e vai ficar confortável.
— Merci, merci, mon vieux, le reste?... — repetiu o francês, sorrindo e, pegando uma nota de dinheiro, entregou-a para Karatáiev. — Mais le reste?...28
Pierre viu que Platon não queria entender o que o francês estava dizendo e, sem se intrometer, olhava para os dois. Karatáiev agradeceu pelo dinheiro e continuou a se admirar do próprio trabalho. O francês insistia nas sobras de pano e pediu a Pierre para traduzir o que estava dizendo.
— Mas para que ele quer as sobras? — perguntou Karatáiev. — Vai dar para fazer umas bonitas perneiras para a gente. Ora, que Deus o abençoe. — E Karatáiev, numa transformação brusca, com o rosto desgostoso, tirou do peito um bolinho de trapos e, sem olhar para ele, entregou ao francês. — Droga! — exclamou Karatáiev, e foi para trás. O francês olhou para os panos, pensou um pouco, lançou um olhar pensativo para Pierre, e a fisionomia de Pierre pareceu lhe dizer alguma coisa.
— Platoche, dites donc, Platoche — gritou com voz estridente o francês, que de repente ficou muito vermelho. — Gardez pour vous 29 — disse ele, devolveu os trapos, virou-se e foi embora.
— Olhe só como é que são as coisas — disse Karatáiev, balançando a cabeça. — Dizem que eles não são cristãos, mas também têm alma. Antigamente diziam: a mão suada é branda, a mão seca é severa. Ele mesmo anda nu, e ainda devolveu. — Karatáiev sorriu com ar pensativo e, olhando para os trapos, ficou um tempo calado. — Pois é, amiguinho, isto aqui vai dar para fazer umas perneiras muito boas — disse e voltou para o barracão.
XII
Haviam passado quatro semanas desde o dia em que Pierre fora feito prisioneiro. Apesar de os franceses terem proposto transferi-lo do barracão dos soldados para o dos oficiais, Pierre ficou mesmo no barracão onde tinha sido deixado no primeiro dia.
Na Moscou devastada e incendiada, Pierre experimentou quase o máximo de privação que um homem pode suportar; porém, graças à sua constituição forte e à sua saúde, da qual até então ele não tinha consciência, e sobretudo graças ao fato de tais privações terem vindo de maneira tão imperceptível que era impossível dizer quando tinham começado, ele suportou sua situação não só com facilidade, mas até com alegria. E justamente naquele momento ele havia adquirido a tranquilidade e a satisfação consigo mesmo a que antes aspirava sem sucesso. Em sua vida, Pierre procurara por muito tempo, em várias direções, aquela tranquilidade, aquela concordância consigo mesmo, aquilo que tanto o impressionara nos soldados na batalha de Borodinó — havia procurado aquilo na filantropia, na maçonaria, na dispersão da vida mundana, no vinho, nas proezas heroicas do autossacrifício, no amor romântico por Natacha; havia procurado aquilo por meio do pensamento, e todas as buscas e experiências o frustraram. E, sem sequer pensar nisso, acabou adquirindo aquela tranquilidade e aquela concordância consigo mesmo apenas por meio do horror da morte, por meio das privações e por meio do que havia compreendido em Karatáiev. Os minutos terríveis que padecera na hora da execução dos prisioneiros como que varreram para sempre de sua imaginação e de suas memórias os pensamentos e sentimentos aflitos que antes lhe pareciam tão importantes. Não lhe vinham mais pensamentos sobre a Rússia, nem sobre a guerra, nem sobre política, nem sobre Napoleão. Era evidente para ele que tudo aquilo não lhe dizia respeito, que ele não fora chamado a julgar nada daquilo e por isso não podia fazê-lo. “A Rússia e o verão não fazem união”, repetia Pierre as palavras de Karatáiev, e aquelas palavras, estranhamente, o tranquilizavam. Agora lhe parecia incompreensível e até ridícula sua intenção de assassinar Napoleão e também seus cálculos sobre números cabalísticos e sobre a besta do Apocalipse. Sua exasperação com a esposa e sua preocupação com a possibilidade de seu nome ser desonrado agora lhe pareciam não só insignificantes como também cômicas. O que podia lhe importar o fato de aquela mulher levar a vida que lhe agradasse, onde bem entendesse? O que podia importar a qualquer um, muito menos a ele, o fato de os franceses saberem ou não saberem que o nome do prisioneiro deles era conde Bezúkhov?
Agora ele recordava muitas vezes sua conversa com o príncipe Andrei e concordava inteiramente com ele; apenas compreendia o pensamento do príncipe Andrei de forma ligeiramente diversa. O príncipe Andrei achava e dizia que a felicidade só existe de forma negativa, mas ele o dizia com uma pitada de amargura e de ironia. Como se, ao dizê-lo, exprimisse outro pensamento — o de que todos os anseios de uma felicidade positiva incutidos em nós têm o único propósito de nos atormentar, por nunca serem satisfeitos. Mas Pierre, sem nenhuma segunda intenção, reconhecia a justiça de tal pensamento. A ausência de sofrimento, a satisfação das necessidades e por conta disso a liberdade de escolha de uma ocupação, ou seja, de uma forma de vida, agora pareciam a Pierre a felicidade incontestável e suprema do ser humano. Aqui, só agora, pela primeira vez, Pierre apreciava plenamente o prazer da comida quando queria comer, da bebida quando queria beber, do sono quando queria dormir, do calor quando sentia frio, da conversa com as pessoas quando tinha vontade de falar e de ouvir a voz humana. A satisfação das necessidades — a boa comida, a limpeza, a liberdade —, agora, quando estava privado de tudo isso, parecia a Pierre a felicidade perfeita, e a escolha de uma ocupação, ou seja, de uma vida, agora, quando tal escolha se mostrava tão limitada, parecia-lhe uma coisa tão fácil que ele até esquecia que o excesso dos confortos de uma vida destrói toda a felicidade da satisfação das necessidades, e a grande liberdade da escolha de uma ocupação, essa liberdade que, em sua vida, lhe fora dada pela educação, pela riqueza, pela posição social, essa mesma liberdade torna a escolha de uma ocupação insoluvelmente difícil e aniquila a própria necessidade e a possibilidade de uma ocupação.
Todos os devaneios de Pierre, agora, se voltavam para o tempo em que fora livre. E, no entanto, desde então e por toda a vida, Pierre pensou e falou com emoção sobre aquele mês em que fora prisioneiro, sobre aquelas sensações indeléveis, fortes e alegres, e acima de tudo sobre aquela tranquilidade espiritual plena, aquela perfeita liberdade interior que ele experimentou apenas naquela ocasião.
Quando ele, no primeiro dia, levantou bem cedo, saiu do barracão ao amanhecer e avistou de início as cúpulas e as cruzes escuras do mosteiro de Novodiévitchi, viu o orvalho congelado no capim poeirento, viu as colinas Vorobióv e as margens cobertas de florestas que serpenteavam ao longo do rio e se ocultavam na distância lilás, quando sentiu o toque do ar fresco e ouviu os sons das gralhas que vinham voando de Moscou através do campo e quando, depois, ergueu-se de repente uma luz no oriente, e a borda do sol emergiu com ar festivo de trás das nuvens, e as cúpulas, as cruzes, o orvalho, a distância, o rio, tudo começou a cintilar na luz alegre — Pierre provou um sentimento novo, nunca experimentado antes, e uma força de vida.
E tal sentimento não só não o deixou durante todo o tempo em que ficou preso, como, ao contrário, aumentou à medida que recrudesciam as dificuldades de sua situação.
Tal sentimento de prontidão para tudo e de uma consolidação moral reforçou mais ainda a opinião elevada que se formara acerca de Pierre entre seus camaradas, desde que ele chegara ao barracão. Com seu conhecimento de idiomas, com o respeito que os franceses lhe demonstravam, com sua simplicidade, que o levava a ceder tudo o que lhe pediam (ele recebia os três rublos semanais concedidos aos oficiais), com sua força, que ele demonstrava aos soldados enterrando pregos com as mãos na parede do barracão, com a docilidade que ele demonstrava na maneira de tratar seus camaradas, com sua capacidade, incompreensível para eles, de ficar sentado e imóvel, sem fazer nada, e de pensar, Pierre aparecia aos olhos dos soldados como uma espécie de criatura misteriosa e superior. Essas mesmas qualidades que, no mundo onde ele vivera antes, eram para ele, se não prejudiciais, pelo menos vexatórias — sua força, seu desdém pelos confortos da vida, o jeito distraído, a simplicidade —, aqui, entre aquelas pessoas, lhe conferiam a posição quase de um herói. E Pierre sentia que aquele olhar punha em seus ombros certas obrigações.
XIII
Na noite de 6 para 7 de outubro, teve início o movimento de retirada dos franceses: demoliram cozinhas, barracões, carregaram carretas, e as tropas e os carroções se puseram em movimento.
Às sete da manhã, um comboio de franceses em uniforme de combate, com barretinas emplumadas, fuzis, mochilas e bolsas imensas, estava parado diante dos barracões, e vozes francesas animadas, entremeadas por xingamentos, rolavam por todas as fileiras.
No barracão, todos estavam prontos, vestidos, com cintos afivelados, de pés calçados, e só aguardavam as ordens para partir. O soldado doente Sokolóv, pálido, magro, com círculos azuis em volta dos olhos, sozinho, descalço e despido, estava sentado em seu canto e, com os olhos saltados por causa da magreza, fitava de modo interrogativo os camaradas, que não prestavam atenção nele, e gemia baixo e ritmado. Obviamente, era menos o sofrimento — estava doente, com diarreia hemorrágica — do que o medo e o desgosto de ficar sozinho o que o obrigava a gemer.
Pierre, com uma corda em lugar do cinto, calçado em botinas que Karatáiev havia costurado para ele com pedaços de couro não curtido que um francês havia arrancado de uma caixa de chá a fim de remendar suas botas, aproximou-se do doente e ficou de cócoras na frente dele.
— Sabe, Sokolóv, eles não estão indo todos embora! Tem um hospital deles aqui. Quem sabe você vai ficar ainda melhor do que a gente — disse Pierre.
— Ah, meu Deus! Ah, minha morte! Ah, meu Deus! — desatou a gemer o soldado, bem alto.
— Pois vou pedir para eles agora mesmo — disse Pierre e, ficando de pé, foi até a porta do barracão. Na hora em que Pierre chegou à porta, veio de fora, com dois soldados, o mesmo cabo que no dia anterior havia oferecido um cachimbo a Pierre. E o cabo e os soldados estavam em uniformes de combate, com mochilas e barretinas emplumadas, presas por tiras que passavam embaixo do queixo e enfeitadas com botões de bronze, o que dava um aspecto diferente a seus rostos bem conhecidos.
O cabo foi até a porta a fim de fechá-la, segundo a ordem do seu superior. Antes de serem soltos, os prisioneiros tinham de ser contados.
— Caporal, que fera-t-on du malade?...30 — começou Pierre; mas, no instante em que dizia aquilo, teve dúvidas de que aquele era o cabo seu conhecido e não outro, uma pessoa desconhecida, tão diferente estava o cabo naquele momento.
Além do mais, no instante em que Pierre dizia aquilo, ouviu-se de repente, dos dois lados, um rufar de tambores que abafou os gemidos do doente.
“Aí está ela!... De novo, ela!”, disse Pierre para si mesmo, e um calafrio inesperado correu por sua espinha. No rosto transformado do cabo, no som de sua voz, no ensurdecedor e aflitivo rufar dos tambores, Pierre reconheceu aquela força misteriosa e impassível que obrigava as pessoas, contra sua vontade, a massacrar seus semelhantes, a força cujo efeito ele tinha visto na hora da execução dos prisioneiros. Ter medo, tentar fugir daquela força, dirigir apelos ou argumentos às pessoas que serviam de instrumentos para aquela força era inútil. Pierre agora sabia disso. Era preciso esperar e suportar. Pierre não se aproximou mais do doente nem voltou os olhos para ele. Em silêncio, de sobrancelhas franzidas, Pierre ficou parado junto à porta do barracão.
Quando as portas do barracão foram abertas e os prisioneiros, como um rebanho de carneiros, espremendo-se uns aos outros, se amontoaram na saída, Pierre abriu caminho no meio deles e se aproximou do mesmo capitão que, segundo a opinião do cabo, estava pronto a fazer qualquer coisa por Pierre. O capitão também estava em uniforme de combate, e do seu rosto frio “ela” também olhava, a mesma coisa que Pierre havia identificado nas palavras do cabo e no rufar dos tambores.
— Filez, filez 31 — exclamou o capitão, de rosto carrancudo e olhando com ar severo para os prisioneiros, que passavam aglomerados na sua frente.
— Eh bien, qu’est-ce qu’il y a? 32 — perguntou o oficial, olhando para trás com ar frio, como se não soubesse. Pierre lhe falou sobre o doente.
— Il pourra marcher, que diable! 33 — disse o capitão. — Filez, filez! — continuou a exclamar, sem olhar para Pierre.
— Mais non, il est à l’agonie...34 — Pierre fez menção de explicar.
— Voulez-vous bien?! 35 — gritou o capitão com raiva e carrancudo.
Dram da da dam, dam, dam, rufaram os tambores. E Pierre entendeu que a força misteriosa já se apoderara completamente daquelas pessoas e que agora seria inútil falar qualquer outra coisa.
Os prisioneiros oficiais foram separados dos prisioneiros soldados e lhes foi ordenado que seguissem na frente. Os oficiais, entre os quais estava Pierre, eram uns trinta homens, os soldados eram uns trezentos.
Os prisioneiros oficiais, retirados de outros barracões, eram todos desconhecidos, estavam muito mais bem-vestidos do que Pierre e olhavam para ele, para seus sapatos toscos, com desconfiança e má vontade. Perto de Pierre caminhava um major gordo, de túnica de Kazan, cingida por uma toalha, de cara gorducha, amarela e zangada, que obviamente gozava do respeito geral de seus camaradas prisioneiros. Trazia a mão no peito, segurando uma bolsinha de tabaco, e com a outra mão sustentava um cachimbo. Bufando e arquejando, o major ralhava com todos, porque achava que o estavam empurrando, porque todos andavam apressados, quando não havia por que se apressar, e porque todos se admiravam, quando não havia nada de que se admirar. Outro oficial, pequeno e magro, conversava com todos, sugeria hipóteses de lugares para onde eles estavam sendo levados agora e uma estimativa da distância que conseguiriam percorrer naquele dia. Um funcionário de botas de feltro e uniforme da intendência andava correndo de um lado para outro, observava Moscou incendiada, comunicava em voz alta suas observações sobre o que havia sido queimado e qual era essa ou aquela parte de Moscou que se avistava dali. Outro oficial, um polonês, a julgar pelo sotaque, discutia com o funcionário da intendência, mostrando a ele que estava enganado na identificação dos bairros de Moscou.
— Por que estão discutindo? — disse o major, irritado. — Seja São Nicolau, seja São Vlás, não faz diferença. Vejam, tudo pegou fogo, acabou-se... Por que ficam empurrando, será que a estrada é pequena demais para vocês? — voltou-se zangado para alguém que vinha atrás e não estava empurrando nem um pouco.
— Ai, ai, ai, o que foi que fizeram? — ouviam-se, entretanto, de um lado e de outro, as vozes dos prisioneiros que olhavam para o incêndio. — A outra margem do Moskvá, e Zúbova, e o Krêmlin, olhem lá, não sobrou nem metade... Eu bem que disse, a outra margem do rio Moskvá inteirinha, olhem só.
— Está certo, todo mundo sabe que pegou fogo, então para que ficar discutindo? — falou o major.
Ao chegar a Khamóvniki (um dos poucos bairros de Moscou que não tinha sido incendiado) e ao passar pela igreja, toda a multidão de prisioneiros de repente se comprimiu de um lado e ouviram-se exclamações de horror e de repulsa.
— Ah, que canalhas! Não são cristãos! Está morto, está morto, sim... E ainda sujaram com alguma coisa.
Pierre também se aproximou da igreja, junto à qual estava aquilo que provocara as exclamações, e avistou confusamente algo apoiado no muro da igreja. Pelas palavras dos camaradas que podiam ver melhor do que ele, Pierre soube que era o cadáver de um homem, colocado na vertical junto ao muro, e com o rosto sujo de fuligem...
— Marchez, sacré nom... Filez... trente mille diables...36 — ouviram-se xingamentos dos membros da escolta, e os soldados franceses, com uma exasperação nova, dispersaram com golpes do lado cego da lâmina das espadas a multidão de prisioneiros que observava o homem morto.
XIV
Pelos becos de Khamóvniki, os prisioneiros caminhavam seguidos apenas pela sua escolta e pelas carroças e carroções que pertenciam à escolta e iam atrás; porém, ao chegar aos armazéns de provisões, toparam com um imenso comboio de carga da artilharia, que se deslocava com dificuldade, tolhido por carroças particulares.
Bem na ponte, todos pararam e ficaram esperando que os que iam na frente afinal passassem. Da ponte, os prisioneiros puderam ver que, atrás e na frente, havia filas intermináveis de outros comboios de carga em movimento. À direita, lá onde a estrada de Kaluga faz uma curva na frente de Neskútchni, sumindo ao longe, estendiam-se filas intermináveis de tropas e de carroções. Eram as tropas de Beauharnais, que tinham saído antes de todos; atrás, ao longo do cais e na ponte de Pedra, estendiam-se as tropas e as carroças de Ney.
As tropas de Davout, nas quais estavam os prisioneiros, seguiam através do vau da Crimeia e em parte já haviam chegado à rua Kaluga. Mas as filas de comboios se estendiam tanto que os últimos carroções de Beauharnais ainda não haviam deixado Moscou pela rua Kaluga quando a cabeça das tropas de Ney já estava saindo da Grande Ordinka.
Depois de passar pelo vau da Crimeia, os prisioneiros avançaram alguns passos e se detiveram, e de novo avançaram, e de todos os lados os veículos e as pessoas, cada vez mais, tolhiam a passagem uns dos outros. Depois de demorar mais de uma hora para atravessar as poucas centenas de passos que separavam a ponte da rua Kaluga e chegar à praça, para onde convergiam as ruas da outra margem do rio Moskvá e a rua Kaluga, os prisioneiros, comprimidos num bolo, detiveram-se e ficaram algumas horas naquele entroncamento. De vários lados, ouvia-se o incessante rumor das rodas das carroças, que parecia o barulho do mar, e também a batida dos pés, os xingamentos e os gritos irritados e incessantes. Pierre estava espremido no muro de uma casa incendiada, escutando aquele barulho, que se fundia na sua imaginação com o som dos tambores.
Alguns prisioneiros oficiais, a fim de enxergar melhor, subiram no muro da casa incendiada, junto ao qual estava Pierre.
— Quanta gente! É gente que não acaba mais!... Subiram até nos canhões! Olhe: as peles... — diziam. — Veja só que canalhas, roubaram tudo... Olhe aquele ali atrás, em cima da telega... Puxa, aquilo foi arrancado dos ícones, meu Deus!... São alemães, só podem ser. E os nossos mujiques, por onde andam?... Ah, patifes!... Olhe ali, pegou tanta coisa que mal consegue andar! Olhe lá, roubaram até uma sege!... Olhe aquele ali, sentado em cima dos baús. Meu Deus!... Até se atracaram uns com os outros!...
— É isso mesmo, dá um murro no focinho dele, no focinho! Desse jeito a gente só sai daqui de tarde. Olhe, olhe lá... Na certa é o próprio Napoleão. Puxa, que cavalos! Têm monogramas com uma coroa e tudo. É uma verdadeira casa desmontável. O outro deixou cair o saco no caminho e nem notou. De novo começaram a se atracar... Tem uma mulher com uma criancinha, e não é feia. Claro, essa eles vão deixar passar... Olhem, isso não acaba mais. Moças russas, meu Deus, são meninas! Olhe como vão calmamente empoleiradas em cima das carretas!
A exemplo do que havia acontecido em torno da igreja de Khamóvniki, uma nova onda de curiosidade geral arrastou todos os prisioneiros para a estrada, e Pierre, graças à sua estatura, avistou por cima das cabeças dos demais aquilo que tanto atraía a curiosidade dos prisioneiros. Em três carroças, misturadas nas caixas de munição, sentadas muito juntas umas das outras, iam mulheres muito enfeitadas, em roupas coloridas, de ruge na cara, gritando algo com voz estridente.
Desde o momento em que Pierre tomou consciência do surgimento da força misteriosa, nada mais lhe pareceu estranho ou terrível: nem o cadáver, que haviam sujado com fuligem só para se divertir, nem aquelas mulheres que se apressavam para ir a algum lugar, nem o incêndio de Moscou. Tudo o que Pierre via agora não deixava nele quase nenhuma impressão — como se sua alma estivesse se preparando para uma luta difícil e por isso se recusasse a guardar impressões que pudessem enfraquecê-la.
Os veículos das mulheres passaram. Atrás, arrastavam-se mais telegas, soldados, carretas, soldados, carroças, carroções, soldados, caixas, soldados, raramente mulheres.
Pierre não enxergava as pessoas individualmente, mas via o movimento delas.
Todas aquelas pessoas e aqueles cavalos pareciam acossados por uma força invisível. Todas elas, durante a hora em que Pierre as observou, se derramavam de várias ruas com o mesmo desejo de passar o mais depressa possível; todas se empurravam umas às outras da mesma forma, começavam a se irritar, a brigar; arreganhavam os dentes brancos, franziam as sobrancelhas, berravam todas elas os mesmos xingamentos, e em todos os rostos havia a mesma expressão corajosamente resoluta e friamente cruel que, de manhã, havia impressionado Pierre no rosto do cabo, ao som dos tambores.
Já quase ao anoitecer, o comandante da escolta reuniu seus homens, e com gritaria e discussões eles se misturaram à força com os comboios de carga, e os prisioneiros, agora cercados de soldados por todos os lados, tomaram a estrada de Kaluga.
Andaram muito ligeiro, sem descansar, e só pararam quando o sol começou a se pôr. As carroças encostaram-se umas nas outras, e as pessoas começaram a se preparar para acampar durante a noite. Todos pareciam irritados e insatisfeitos. Por muito tempo, e de vários lados, ouviam-se xingamentos, gritos raivosos e brigas. Uma carreta que vinha atrás dos soldados da escolta bateu numa carroça da escolta e perfurou-a com seu varal. De várias direções, soldados correram na direção da carroça; uns bateram na cabeça dos cavalos atrelados à carreta e os derrubaram, outros brigaram entre si, e Pierre viu que bateram brutalmente com uma espada na cabeça de um alemão.
Agora, ao se deterem no meio do campo, no frio crepúsculo de outono, parecia que todas aquelas pessoas experimentavam o mesmo sentimento de um desagradável despertar daquela afobação e daquele movimento irrefletido sem nem saber para onde, que a todos havia dominado na saída de Moscou. Ao pararem, tinha-se a impressão de que todos haviam compreendido que ainda ignoravam para onde estavam indo e que muita coisa penosa e difícil os aguardava naquele caminho.
No acampamento, os soldados da escolta trataram os prisioneiros ainda pior do que na hora da partida. No acampamento, pela primeira vez, deram carne de cavalo para os prisioneiros comerem.
Dos oficiais até o último soldado, notava-se em cada um deles uma espécie de exasperação pessoal contra todos os prisioneiros, a qual, de modo muito inesperado, havia tomado o lugar das relações amistosas de antes.
Essa exasperação aumentou mais ainda quando, na hora da chamada dos prisioneiros, descobriu-se que, na confusão da saída de Moscou, um soldado russo, fingindo estar com dor de barriga, havia escapado. Pierre viu que um francês espancou um soldado russo por ter se afastado da estrada e ouviu como o capitão, o seu amigo, repreendeu o sargento por causa da fuga do soldado russo e ameaçou-o com a corte marcial. À desculpa do sargento, que alegou que o soldado estava doente e não conseguia andar, o oficial retrucou que a ordem era fuzilar os que ficassem para trás. Pierre sentia que aquela força fatal que o havia esmagado na hora da execução dos prisioneiros e que não se fizera notar durante o tempo de cativeiro, agora dominava outra vez sua existência. Pierre sentia um terror; mas sentia também que, graças às investidas daquela força para esmagá-lo, crescia e se fortificava em sua alma uma força de vida independente dela.
Pierre jantou um caldo de farinha de centeio com carne de cavalo e conversou um pouquinho com os camaradas.
Nem Pierre nem nenhum de seus camaradas falavam do que tinham visto em Moscou, nem da brutalidade dos franceses, nem da ordem de fuzilamento que tinha sido proclamada contra eles: como que numa recusa da piora da situação, todos estavam especialmente animados e alegres. Falavam de recordações pessoais, de cenas engraçadas que tinham visto durante a campanha, e evitavam conversas sobre a situação presente.
Fazia tempo que o sol havia se posto. Estrelas brilhantes queimavam em vários pontos do céu; o fulgor vermelho da lua cheia, que subia, semelhante a um incêndio, se derramava pela orla do céu, e a imensa bola vermelha boiava de modo espantoso no nevoeiro acinzentado. Clareou. O entardecer havia terminado, mas a noite ainda não começara. Pierre levantou-se, afastou-se de seus novos camaradas e seguiu entre as fogueiras rumo ao outro lado da estrada, onde tinha a impressão de que estavam os prisioneiros soldados. Sentia vontade de conversar com eles. Na estrada, um guarda francês o deteve e o mandou dar meia-volta.
Pierre voltou, mas não para a fogueira, para os camaradas, e sim para uma carroça desatrelada, onde não havia ninguém. Sentado sobre as pernas dobradas e de cabeça baixa, Pierre acomodou-se na terra fria, junto à roda da carroça, e ficou imóvel por muito tempo, pensando. Passou mais de uma hora. Ninguém incomodou Pierre. De repente, ele soltou uma gargalhada, com seu riso grosso, alegre, tão alto que, de vários lados e com surpresa, pessoas se viraram para olhar aquele riso estranho e obviamente solitário.
— Ha, ha, ha! — riu Pierre. E exclamou bem alto para si mesmo: — O soldado não me deixou passar. Me prenderam, me trancafiaram. Me fizeram prisioneiro. A quem, a mim? A mim? A minha alma imortal! Ha, ha, ha!... Ha, ha, ha!... — gargalhou, com lágrimas nos olhos.
Um homem se levantou e veio ver de perto do que ria aquele homem grande e estranho. Pierre parou de rir, levantou-se, afastou-se para longe do curioso e olhou à sua volta.
O acampamento enorme, interminável, antes tão ruidoso com os estalidos das fogueiras e com as conversas das pessoas, agora estava em silêncio; as chamas vermelhas das fogueiras se extinguiam e empalideciam. Alta, no céu luminoso, pairava a lua cheia. As florestas e os campos, que antes não se avistavam do acampamento, agora surgiam ao longe. E, além daquelas matas e daqueles campos, avistava-se a vastidão remota, luminosa, flutuante, infinita, que atraía e chamava para si. Pierre lançou um olhar para o céu, para a profundeza onde as estrelas cintilavam e fugiam. “E tudo isso é meu, e tudo isso está em mim, e tudo isso sou eu!”, pensou Pierre. “E tudo isso eles apanharam e puseram dentro de um barracão, fechado com tábuas!” Pierre sorriu e foi se ajeitar para dormir, junto com seus camaradas.
XV
Nos primeiros dias de outubro, Kutúzov recebeu mais um mensageiro com uma carta de Napoleão e uma proposta de um acordo de paz, falsamente datada de Moscou, quando Napoleão já se encontrava não muito distante de Kutúzov, à sua frente, na estrada velha de Kaluga. Kutúzov respondeu àquela carta da mesma forma que à primeira, trazida por Lauriston: disse que não podia haver negociações de paz.
Pouco depois, chegou uma mensagem do destacamento de guerrilheiros de Dórokhov, que andava à esquerda de Tarútino, dizendo que haviam descoberto tropas em Fomínski, que se tratava da divisão de Broussier, e que aquela divisão, separada de outras tropas, podia ser facilmente aniquilada. Os soldados e os oficiais de novo exigiram um ataque. Os generais do Estado-Maior, agitados com a lembrança da vitória fácil em Tarútino, insistiram com Kutúzov para que se executasse a sugestão de Dórokhov. Kutúzov não achava necessário nenhum ataque. O resultado foi um meio-termo, o que tinha de acontecer; um pequeno destacamento foi enviado para Fomínski, a fim de atacar Broussier.
Por um estranho acaso, essa missão — a mais difícil e a mais importante de todas, como mais tarde se descobriu — coube a Dokhtúrov; o mesmo modesto e pequeno Dokhtúrov, que ninguém nos retratou como o autor de complexos planos de batalha, nem como alguém que se lança à frente dos regimentos ou atira condecorações da Cruz de São Jorge para as baterias de canhões etc.,37 o mesmo Dokhtúrov a quem consideravam indeciso e homem de visão curta, e que assim era chamado, o mesmo Dokhtúrov que, em todas as guerras russo-francesas, a partir de Austerlitz, por treze anos seguidos, encontramos em posições de comando onde quer que haja uma situação difícil. Em Austerlitz, ele foi o último a deixar o açude de Auguesd, reunindo os regimentos, salvando o que era possível, enquanto todos corriam, afundavam e não havia nenhum general na retaguarda. Doente e febril, ele foi a Smolensk com vinte mil soldados para defender a cidade contra todo o exército napoleônico. Em Smolensk, nos portões Molókhovski, ele mal havia pegado no sono, num paroxismo de febre, quando foi acordado por um canhoneio sobre Smolensk, e Smolensk resistiu o dia inteiro. No dia da batalha de Borodinó, quando Bagration foi morto e nove décimos de nossas tropas do flanco esquerdo foram destruídos, e toda a força da artilharia francesa foi direcionada para lá — não mandaram nenhum outro que não exatamente o indeciso Dokhtúrov, de vista curta, e dessa forma Kutúzov se apressava em corrigir seu próprio erro, por ter inicialmente pensado em mandar para lá um outro. E o pequeno e mansinho Dokhtúrov foi para lá, e Borodinó foi a maior glória das tropas russas. Em versos e em prosa, muito se escreveu sobre vários heróis, mas sobre Dokhtúrov não há quase nenhuma palavra.
Mais uma vez, mandaram Dokhtúrov, dessa vez para Fomínski e depois para Malo Iaroslávets, o local onde ocorreu a última batalha contra os franceses, o local onde obviamente teve início a derrocada dos franceses, e de novo são muitos os heróis e os gênios retratados para nós nesse período da campanha, mas sobre Dokhtúrov não há nenhuma palavra, ou falam muito pouco, ou de forma dúbia. Tal silêncio sobre Dokhtúrov é a prova mais evidente de seu mérito.
É natural que um homem que não entende o funcionamento de uma máquina, ao vê-la em movimento, tenha a impressão de que a parte mais importante de todo o mecanismo seja um estilhaço que por acaso caiu dentro dele e, atrapalhando seu funcionamento, faz a máquina se sacudir. O homem que não conhece a estrutura da máquina não pode compreender que aquele estilhaço perdido que atrapalha seu funcionamento não é uma das partes essenciais da máquina, mas sim aquela pequenina roda de transmissão que gira sem fazer barulho nenhum.
No dia 10 de outubro, o mesmo dia em que Dokhtúrov percorreu a metade do caminho até Fomínski e se deteve na aldeia de Aristovo, preparando-se para cumprir com exatidão a ordem que recebera, toda a tropa francesa, em seu movimento convulsivo, alcançou a posição de Murat, aparentemente a fim de travar batalha, e, de repente, sem nenhum motivo, virou à esquerda na estrada nova de Kaluga e passou a seguir rumo a Fomínski, onde antes estava apenas Broussier. Nesse momento Dokhtúrov tinha sob seu comando, além do destacamento de Dórokhov, dois destacamentos pequenos, de Figner e de Seslávin.
No entardecer do dia 11 de outubro, Seslávin chegou a Aristovo e conduziu ao comando um prisioneiro francês da guarda. O prisioneiro disse que as tropas que tinham entrado em Fomínski naquele dia eram formadas pela vanguarda de todo o grande exército, que Napoleão estava lá, que já fazia cinco dias que o exército inteiro havia saído de Moscou. Naquela mesma tarde, um criado doméstico que chegara de Boróvski contou que tinha visto a chegada de uma tropa imensa na cidade. Os cossacos do destacamento de Dórokhov comunicaram que tinham visto a guarda francesa andando pela estrada rumo a Boródsk. Todas aquelas notícias deixavam claro que, no lugar onde pensavam estar apenas uma divisão, agora se encontrava todo o exército francês, que ia de Moscou para uma direção inesperada — pela estrada velha de Kaluga. Dokhtúrov não quis tomar nenhuma medida, pois agora não estava claro para ele qual era sua obrigação. Suas ordens eram para atacar Fomínski. Mas antes, em Fomínski, estava apenas Broussier, e agora estava todo o exército francês. Ermólov queria agir segundo seu próprio juízo, mas Dokhtúrov insistia em que era preciso receber ordens do excelentíssimo. Resolveram mandar uma mensagem ao Estado-Maior.
Para tanto escolheram o sensato oficial Bolkhovítinov, que além de uma mensagem escrita deveria relatar todo o problema com sua própria voz. À meia-noite, Bolkhovítinov, depois de receber um envelope e uma ordem oral, partiu a galope rumo ao Estado-Maior, acompanhado por um cossaco e com cavalos de reserva.
XVI
Era uma noite escura, quente, outonal. Fazia quatro dias que chovia de leve. Depois de mudar de cavalos duas vezes e de galopar trinta verstas em uma hora e meia pela estrada lamacenta e pesada, Bolkhovítinov chegou a Letachóvka depois da uma hora da madrugada. Desmontou do cavalo diante de uma isbá, onde uma tabuleta na cerca viva indicava “Estado-Maior”, deixou as rédeas soltas e entrou no vestíbulo escuro.
— Rápido, o general de serviço! É muito importante! — exclamou para alguém que se levantou e fungou o nariz no vestíbulo escuro.
— Ele está passando muito mal desde a tarde, faz três noites que não consegue dormir — sussurrou em tom de desculpa a voz do ordenança. — O senhor podia acordar o capitão primeiro.
— É muito importante, uma mensagem do general Dokhtúrov — disse Bolkhovítinov, enquanto abria a porta e entrava, tateando no escuro. O ordenança tomou a sua frente e passou a acordar alguém:
— Vossa excelência, vossa excelência, um correio.
— Como, o quê? Da parte de quem? — exclamou uma voz sonolenta.
— Da parte de Dokhtúrov e de Aleksei Petróvitch.38 Napoleão está em Fomínski — disse Bolkhovítinov, sem enxergar no escuro quem lhe fizera a pergunta, mas supondo, pelo som da voz, que não era Konovnítsin.
O homem que acordara bocejou e espreguiçou-se.
— Não estou com vontade de acordá-lo — disse ele, enquanto tateava alguma coisa. — Está doente demais! Talvez seja só um boato.
— Aqui está a mensagem — disse Bolkhovítinov —, acabei de receber a ordem de entregá-la ao general de serviço.
— Espere, vou acender a luz. Onde é que você se mete toda vez que a gente precisa de você, seu bandido? — falou o homem que se espreguiçava, dirigindo-se ao ordenança. Era Cherbínin, ajudante de ordens de Konovnítsin. — Achei, achei — exclamou ele.
O ordenança riscou a pederneira, Cherbínin tateava em busca de um castiçal.
— Ah, canalhas — disse ele com ódio.
À luz da fagulha, Bolkhovítinov reconheceu o rosto jovem de Cherbínin, com uma vela, e num canto à frente viu também um homem dormindo. Era Konovnítsin.
Quando as lascas de madeira com enxofre inflamável arderam, de início com uma chama azul e depois vermelha, Cherbínin acendeu uma vela de sebo, de cujo castiçal fugiram correndo as baratas que o estavam roendo, e observou o mensageiro. Bolkhovítinov estava todo enlameado e, ao enxugar-se com a manga, enlameou também o rosto.
— Mas quem deu a informação? — perguntou Cherbínin, segurando o envelope.
— A informação é fidedigna — disse Bolkhovítinov. — Os prisioneiros, os cossacos, os espiões, todos são unânimes, dizem a mesma coisa.
— Não há nada a fazer, vamos ter de acordar — disse Cherbínin, levantando-se e aproximando-se do homem com touca de dormir, coberto por um capote. — Piotr Petróvitch! — exclamou. Konovnítsin nem se mexeu. — É para o Estado-Maior! — exclamou e sorriu, sabendo que aquelas palavras seguramente iriam acordá-lo. E, de fato, a cabeça metida na touca de dormir levantou-se imediatamente. No rosto bonito e firme de Konovnítsin, com as faces febrilmente ruborizadas, demorou-se ainda por um instante a expressão dos devaneios de um sonho, distante da situação real, mas logo em seguida, de repente, ele teve um sobressalto: seu rosto tomou a expressão firme e serena de costume.
— Puxa, o que foi? Quem mandou? — perguntou sem pressa, mas com presteza, piscando os olhos por causa da luz. Enquanto escutava a mensagem do oficial, Konovnítsin tirou o lacre do envelope e leu a mensagem. Mal terminou de ler, baixou os pés, enfiou-os nas meias de lã sobre o chão de terra e tratou de calçar-se. Depois tirou a touca, penteou as suíças e vestiu o quepe.
— Você veio depressa? Vamos falar com o excelentíssimo.
Konovnítsin entendeu imediatamente que a notícia tinha grande importância e que não podia perder tempo. Se era bom ou se era mau, nisso ele nem pensava e nem sequer formulava a pergunta. Não lhe interessava. Ele avaliava toda a questão da guerra não com o intelecto, não com o raciocínio, mas com algo bem diferente. Em sua alma, havia uma convicção profunda, tácita, de que tudo daria certo; mas também de que não era preciso confiar nisso, menos ainda falar sobre isso, somente era preciso fazer a sua parte. E a sua parte era o que ele tratava de fazer, empenhando todas as suas energias.
Piotr Petróvitch Konovnítsin, a exemplo de Dokhtúrov, parece ser incluído por mera formalidade na lista dos chamados heróis do ano de 1812 — os Barclay, os Raiévski, os Ermólov, os Plátov, os Milorádovitch — e, também a exemplo de Dokhtúrov, gozava da reputação de um homem de capacidade e de cultura absolutamente limitadas e, também a exemplo de Dokhtúrov, Konovnítsin nunca elaborou projetos de batalha, mas sempre se encontrava onde a situação era a mais difícil; desde o momento em que fora nomeado general de serviço, sempre dormia de porta aberta, deixando ordens para que todo mensageiro pudesse acordá-lo; sempre se colocava sob o fogo na hora da batalha, tanto assim que Kutúzov o repreendia por isso e temia enviá-lo para o combate, e era, a exemplo de Dokhtúrov, uma dessas rodas de engrenagem imperceptíveis, que, sem estalar e sem fazer barulho, constituem a parte essencial da máquina.
Ao sair da isbá na noite escura e úmida, Konovnítsin franziu as sobrancelhas, em parte por causa da dor de cabeça, que havia aumentado, em parte por causa de um pensamento desagradável que lhe veio à cabeça, a ideia de como, dali a pouco, todo aquele covil de pessoas influentes do Estado-Maior ficaria agitado com a notícia, sobretudo Bennigsen, que depois de Tarútino vivia às turras com Kutúzov; como iriam dar sugestões, discutir, ordenar, voltar atrás. E tal pressentimento lhe era desagradável, embora ele também soubesse que sem aquilo era impossível.
De fato, Toll, a quem ele foi comunicar a novidade, imediatamente pôs-se a explicar suas ideias ao general que coabitava com ele, e Konovnítsin, escutando em silêncio e cansado, fez ver a Toll que era preciso avisar ao excelentíssimo.
XVII
Kutúzov, como todos os velhos, dormia pouco à noite. De dia, muitas vezes cochilava de modo inesperado; mas de noite, sem trocar de roupa, ficava na maior parte do tempo deitado em sua cama sem dormir e apenas pensava.
Assim estava deitado na sua cama agora, a cabeça grande, pesada, desfigurada, apoiada na mão gorducha, e pensava, enquanto olhava para a escuridão com seu único olho aberto.
Desde que Bennigsen, que se correspondia com o soberano e tinha mais poder do que qualquer outro no Estado-Maior, passara a evitá-lo, Kutúzov estava mais tranquilo quanto à possibilidade de que viessem obrigar a ele e a suas tropas a participar novamente de ações ofensivas inúteis. A lição da batalha de Tarútino e do dia anterior a ela, dolorosamente memorável para Kutúzov, também havia de influenciar os outros, pensava ele.
“Eles têm de compreender que nós só podemos perder se agirmos ofensivamente. Paciência e tempo, eis os meus heróis de guerra!”, pensava Kutúzov. Ele sabia que não era preciso arrancar a maçã enquanto ela estava verde. Ela cairia sozinha quando ficasse madura, mas colher a maçã verde só serviria para estragar a maçã e também a árvore, além de nos deixar com um travo na boca. Como um caçador experiente, ele sabia que a fera estava ferida, e ferida a tal ponto como só a força russa toda poderia feri-la, mas, se estava ferida mortalmente ou não, ainda era uma questão em aberto. Agora, pelas informações de Lauriston e de Berthélemi e pelos comunicados dos guerrilheiros, Kutúzov tinha quase certeza de que a fera estava ferida mortalmente. Mas ainda era preciso uma comprovação, era preciso esperar.
“Eles sempre têm vontade de correr para ver se mataram o animal. Esperem que vão ver. Só sabem falar em manobras, só sabem falar em atacar!”, pensava ele. “Para quê? Vivem querendo sobressair! Como se houvesse alguma coisa muito agradável em lutar. São como crianças que nem conseguem contar como as coisas se passaram, porque só pensam em mostrar como sabem lutar bem. Mas agora a questão não é essa.
“E que manobras engenhosas todos ficam me sugerindo! Eles acham que, por terem imaginado duas ou três possibilidades (Kutúzov se lembrava do plano geral que mandaram de Petersburgo), já imaginaram todas. Só que as possibilidades são inumeráveis!”
Já fazia um mês que a questão do ferimento sofrido pelo exército francês em Borodinó ser mortal ou não pairava suspensa sobre a cabeça de Kutúzov. De um lado, os franceses ocupavam Moscou. De outro, Kutúzov, de modo seguro e com todo o seu ser, sentia que o golpe terrível, em que ele e todos os russos empregaram todas as suas forças, devia ser mortal. No entanto, pelo sim, pelo não, era necessário ter provas, e já fazia um mês que estava esperando, e quanto mais o tempo passava, mais impaciente ele ficava. Deitado em sua cama nas noites insones, fazia o mesmo que faziam os generais jovens, aquilo mesmo por que Kutúzov os repreendia. Kutúzov ficava imaginando todas as circunstâncias possíveis em que se tornaria patente a já certa, a já consumada derrocada de Napoleão. Ficava imaginando possibilidades, assim como os jovens, apenas com a diferença de que não usava tais hipóteses para fundamentar coisa alguma e de que não vislumbrava duas ou três, mas milhares. Quanto mais tempo pensava, maior o número de tais hipóteses. Fantasiava todos os tipos de movimento do exército napoleônico, de todo ele ou só de uma parte — rumo a Petersburgo, rumo ao próprio Kutúzov, contornando-o —, e imaginava (aquilo que ele mais temia) a possibilidade de Napoleão passar a lutar com a mesma arma que ele, ou seja, que Napoleão ficasse em Moscou, esperando por ele. Kutúzov imaginou até um movimento da tropa napoleônica para trás, rumo a Medin e Iúkhnov; mas a única possibilidade que ele não pôde prever foi o que de fato aconteceu e, a louca e convulsiva arremetida da tropa napoleônica, ao longo dos primeiros onze dias após a partida de Moscou — arremetida que tornou possível aquilo que, apesar de tudo, Kutúzov ainda não se atrevera a pensar: a aniquilação cabal dos franceses. A informação de Dórokhov sobre a divisão de Broussier, as notícias dos guerrilheiros sobre as desgraças do exército de Napoleão, os boatos sobre os preparativos para a partida de Moscou — tudo confirmava a hipótese de que o exército francês estava desbaratado e se preparava para fugir; mas eram só hipóteses, que pareciam importantes para os jovens, mas não para Kutúzov. Com sua experiência de sessenta anos, ele sabia que peso devia dar a boatos, sabia como as pessoas que desejam algo são capazes de organizar todas as notícias de modo que pareçam confirmar o que desejam, e sabia como, naquele caso, elas omitiam, com satisfação, qualquer coisa que contradissesse o seu desejo. E, quanto mais Kutúzov o desejava, menos se permitia acreditar naquilo. Tal questão absorvia todas as suas forças mentais. Todo o resto era para ele apenas o cumprimento da rotina da vida. Tal cumprimento e tal subordinação à rotina da vida eram suas conversas com o Estado-Maior, as cartas para Madame de Staël,39 que ele escrevia de Tarútino, a leitura de romances, a distribuição de condecorações, a correspondência com Petersburgo etc. Mas a derrocada dos franceses, prevista só por ele, era o seu único desejo sincero.
Na noite de 11 de outubro, Kutúzov estava deitado, apoiado nos braços, e pensava nisso.
No cômodo contíguo, havia uma agitação, e ouviam-se os passos de Toll, de Konovnítsin e de Bolkhovítinov.
— Ei, quem é você? Entre, entre! Qual é a novidade? — gritou o marechal para eles.
Enquanto o lacaio acendia uma vela, Toll transmitia o conteúdo da notícia.
— Quem trouxe? — perguntou Kutúzov com um rosto que, quando a vela foi acesa, impressionou Toll por sua severidade fria.
— Não pode haver dúvida, vossa excelência.
— Mande vir aqui, traga-o para cá!
Kutúzov sentou, com uma perna pendente da cama, e com a barriga grande escorada na outra perna, dobrada. Estreitou o olho são a fim de examinar melhor o mensageiro, como se quisesse enxergar nas feições do homem aquilo que o preocupava.
— Fale, fale, meu amigo — disse para Bolkhovítinov, com sua voz suave de velho, fechando a camisa aberta no peito. — Venha cá, chegue mais perto. Que novidadezinhas você me trouxe? Hein? Napoleão saiu de Moscou? É mesmo verdade? Hein?
Bolkhovítinov, de início, informou em minúcias tudo aquilo que lhe fora ordenado.
— Fale, fale logo, não torture minha alma assim — interrompeu-o Kutúzov.
Bolkhovítinov contou tudo e calou-se, à espera das ordens. Toll fez menção de falar, mas Kutúzov o interrompeu. Ia dizer algo, mas de repente seu rosto se contraiu, enrugou-se; ele acenou para Toll, virou-se para o outro lado, na direção do oratório da isbá, ensombrecido pelos ícones.
— Senhor, meu Criador! Ouviste nossas preces... — disse ele com voz trêmula e de mãos postas. — A Rússia está salva. Agradeço a Ti, meu Deus! — E começou a chorar.
XVIII
Desde a chegada daquela notícia até o final da campanha, toda a atividade de Kutúzov concentrou-se apenas, com autoridade, astúcia e apelos, em conter suas tropas e evitar ataques, manobras e conflitos inúteis com um inimigo moribundo. Dokhtúrov foi a Malo Iaroslávets, é verdade, mas Kutúzov retardou o passo de seu exército e deu ordem para evacuar Kaluga, pois lhe parecia perfeitamente possível uma retirada para trás daquela cidade.
Em toda parte, Kutúzov recuava, mas o inimigo, sem esperar seu recuo, fugiu para trás, na direção oposta.
Os historiadores de Napoleão nos descrevem suas engenhosas manobras em Tarútino e Malo Iaroslávets e formulam hipóteses do que aconteceria se Napoleão tivesse conseguido penetrar nas ricas províncias meridionais.
Mas, sem falar que ninguém impedia Napoleão de ir para aquelas províncias meridionais (pois o exército russo não lhe barrava o caminho), os historiadores esquecem que nada poderia salvar o exército de Napoleão, porque ele já levava consigo, então, as condições da catástrofe inevitável. Por que aquele exército, que em Moscou tinha encontrado fartura de provisões e, em vez de conservá-las, esmagou-as sob os próprios pés, por que aquele exército, que, ao chegar a Smolensk, em vez de organizar as provisões, promoveu a pilhagem, por que aquele mesmo exército poderia se recuperar na província de Kaluga, habitada pelos mesmos russos que habitavam Moscou, e onde o fogo tinha a mesma capacidade de queimar aquilo que incendiassem?
O exército não podia se recuperar em parte alguma. Desde a batalha de Borodinó e a pilhagem de Moscou, o exército trazia em si como que os fatores químicos da sua derrocada.
As pessoas daquele ex-exército fugiam com seus comandantes, sem saber para onde, desejando (Napoleão e cada um dos soldados) apenas uma coisa: desvencilhar-se pessoalmente, o mais depressa possível, daquela situação sem saída, de que todos tinham consciência, embora de forma vaga.
Só por isso, no conselho de guerra em Malo Iaroslávets, quando eles, os generais, fingiram fazer um conselho e deram diversas opiniões, a última opinião, a de Mouton, um simples soldado que disse aquilo que todos estavam pensando, ou seja, que era preciso apenas fugir o mais depressa possível, fez calar todas as bocas, e ninguém, nem Napoleão, pôde dizer nada contra tal verdade, sabida de todos.
Mas, apesar de todos saberem que era preciso fugir, restava ainda a vergonha de saber que era preciso fugir. E era necessário um impulso externo que sobrepujasse a vergonha. E tal impulso apareceu na hora certa. Foi o que os franceses chamaram de le Hourra de l’empereur.40
No dia seguinte, depois do conselho, de manhã cedo, Napoleão, com o pretexto de que queria observar as tropas e o campo da batalha passada e da batalha futura, com os marechais da comitiva e sua escolta, seguiu pelo meio das linhas das tropas. Uns cossacos, à espreita, em busca de possíveis saques, deram de cara com o próprio imperador e por pouco não o capturaram. Se os cossacos não capturaram Napoleão daquela vez, o que o salvou foi aquilo mesmo que estava matando os franceses: em Tarútino e também ali, os cossacos apanhavam o saque e deixavam de lado as pessoas. Sem prestar atenção em Napoleão, eles se atiraram ao saque, e Napoleão conseguiu escapar.
Se por pouco les enfants du Don41 não puderam capturar o próprio imperador no meio do seu exército, estava claro que não havia mais nada a fazer, apenas fugir o mais depressa possível, pelo caminho mais próximo e conhecido. Napoleão, com sua barriga de quarenta anos, sem sentir em si a agilidade e a audácia de outros tempos, compreendeu aquele sinal. E, sob a influência do medo incutido pelos cossacos, concordou imediatamente com Mouton e, segundo os historiadores, deu ordem de retirada pela estrada de Smolensk. O fato de Napoleão ter concordado com Mouton e de o exército ter recuado não prova que ele deu tal ordem, mas que as forças que agiam sobre todo o exército e o encaminhavam para estrada de Mojáisk agiam ao mesmo tempo sobre Napoleão.
XIX
Quando uma pessoa está em movimento, sempre imagina uma finalidade para esse movimento. A fim de percorrer mil verstas, é indispensável pensar que há algo muito bom no fim das mil verstas. É necessária a imagem de uma terra prometida, a fim de se ter forças para mover-se.
A terra prometida no ataque dos franceses era Moscou; na retirada, era sua terra natal. Mas a terra natal estava longe demais, e uma pessoa que percorre mil verstas precisa dizer para si mesma, esquecendo seu objetivo final: “Hoje vou andar quarenta verstas até o local onde vou descansar e passar a noite”, e na primeira marcha esse local de descanso encobre o objetivo final e concentra todos os desejos e esperanças. As aspirações que se manifestam num indivíduo isolado sempre se tornam mais fortes na multidão.
Para os franceses que recuavam pela estrada velha de Smolensk, o objetivo final, sua pátria, estava distante demais, e o objetivo próximo, aquele para o qual se voltavam todos os desejos e esperanças, que ficaram imensamente mais fortes na multidão, era Smolensk. Não porque as pessoas soubessem que em Smolensk havia muitas provisões e tropas descansadas, não porque lhes houvessem dito isso (ao contrário, as altas autoridades do Exército e o próprio Napoleão sabiam que lá havia pouca provisão), mas porque só aquilo lhes podia dar forças para mover-se e suportar as privações de então. Eles, os que sabiam, e também os que não sabiam se iludiam igualmente ao procurar Smolensk como se fosse a terra prometida.
Ao chegar à estrada principal, os franceses, com uma energia incrível, com uma rapidez nunca vista, correram para seu objetivo imaginário. Além dessa causa do anseio geral, que os unia em uma multidão coesa de franceses e lhes dava alguma energia, havia ainda outro fator que os unia. Tal fator era a quantidade deles. A própria massa enorme que formavam, como na lei da atração dos corpos, atraía para si os átomos de pessoas isoladas. Elas se moviam, com sua massa de cem mil pessoas, como um Estado inteiro em marcha.
Cada uma daquelas pessoas desejava a mesma coisa — render-se, ser feita prisioneira, livrar-se de todos os horrores e infortúnios. Porém, de um lado, a força da aspiração geral de chegar a Smolensk arrastava todos para a mesma direção; de outro lado, era impossível todo um corpo de exército entregar-se como prisioneiro a uma simples companhia, e apesar de os franceses aproveitarem toda oportunidade para se separar uns dos outros e diante do mais ínfimo pretexto se entregar como prisioneiros, tais pretextos nem sempre apareciam. Seu grande número e seu movimento rápido e compacto privavam as tropas de tais oportunidades e tornavam não só difícil, mas também impossível, para os russos, deter aquele movimento, para o qual estava dirigida toda a energia da massa de franceses. A dilaceração mecânica do corpo não podia acelerar, além de determinado limite, o processo de putrefação já em andamento.
É impossível derreter uma bola de neve instantaneamente. Existe um determinado limite de tempo antes do qual nenhum aumento de calor pode derreter a neve. Ao contrário, quanto maior o calor, mais coesa fica a neve.
Entre os comandantes militares russos, ninguém, além de Kutúzov, compreendia isso. Quando ficou bem definido que a fuga do exército francês se fazia pela estrada de Smolensk, começou a se realizar aquilo que Konovnítsin havia previsto na noite de 11 de outubro. Todos os altos comandantes do Exército quiseram se destacar, interceptar, bloquear, aprisionar, aniquilar os franceses, e todos exigiam ataques.
Só Kutúzov empregava todas as suas forças (forças muito pequenas em qualquer comandante em chefe) para combater a ideia de um ataque.
Não podia lhes dizer o que agora dizemos: para que uma batalha, o bloqueio das estradas, a perda de soldados, a matança cruel de infelizes? Para que tudo isso, quando, de Moscou até Viazma, sem nenhuma batalha, um terço daquelas tropas havia se dissolvido? Mas Kutúzov, extraindo de sua sabedoria de velho aquilo que eles podiam entender, falou-lhes da ponte de ouro,42 e eles, rindo de Kutúzov, o caluniavam, se exaltavam, se desvairavam e se vangloriavam, montados sobre uma fera morta.
Perto de Viazma, Ermólov, Milorádovitch, Plátov e outros ficaram próximos dos franceses e não conseguiram conter o desejo de interceptá-los e abater dois corpos de tropas francesas. A fim de comunicar sua intenção a Kutúzov, enviaram-lhe, dentro de um envelope, em lugar de uma mensagem, uma folha de papel em branco.
E, por mais que Kutúzov tentasse conter o exército, nossas tropas atacavam, tentavam barrar o caminho do inimigo. Regimentos de infantaria, segundo contam, atacaram com tambores e música, matando e perdendo milhares de pessoas.
Mas barrar o caminho — não barraram o caminho de ninguém, nem aniquilaram ninguém. E as tropas francesas, mais fortes em virtude do perigo, porém se dissolvendo pouco a pouco, continuaram sua marcha fatal para Smolensk.
1 Aldeia situada na outra margem do rio Pakhrá, afluente do rio Moskvá. Ficava na antiga estrada de Kaluga.
2 As tropas comandadas por Murat perseguiram o exército russo, que se retirara de Moscou. Mas, numa bifurcação, em vez de seguir o corpo principal das tropas, foram no encalço de dois regimentos destacados por Kutúzov para prosseguir pela estrada de Riazan e despistar os franceses.
3 Francês: “Senhor príncipe Kutúzov [...] envio ao senhor um de meus ajudantes de campo para lhe falar sobre vários assuntos interessantes. Desejo que vossa alteza dê fé no que ele lhe dirá, sobretudo quando exprimir os sentimentos de estima e de particular consideração que nutro há longo tempo pela sua pessoa... Como esta carta não tem outra finalidade, rogo a Deus, senhor príncipe Kutúzov, que Ele mantenha o senhor em Sua santa e digna proteção,
“Moscou, 30 de outubro de 1812.
“Assinado: Napoleão.”
4 Francês: “Serei amaldiçoado pela posteridade se me encararem como o primeiro motor de qualquer acordo. Tal é o espírito atual de minha nação”.
5 Alemão: “A primeira coluna marcha”.
6 Alemão: “A segunda coluna marcha”.
7 Instrumento de cordas ucraniano, com trinta ou quarenta cordas.
8 Moeda de ouro no valor de três rublos.
9 Expressão atribuída a Napoleão, em sua campanha no Egito.
10 Francês: “como saqueadores”.
11 Francês: “trazer os popes à sua presença”.
12 Francês: “Elevando o emprego desses meios por um gesto digno dele e do exército francês, ele mandou distribuir ajuda às vítimas dos incêndios. Mas, como os víveres eram escassos demais para serem dados a estrangeiros, em sua maior parte inimigos, Napoleão preferiu lhes dar dinheiro a fim de que eles se abastecessem fora, e mandou distribuir para eles rublos de papel”.
13 Francês: “que seu gênio nunca havia imaginado algo mais profundo, mais hábil e mais admirável”.
14 Agathon-Jean-François, barão Fain (1778-1837), historiador francês, secretário e arquivista do gabinete de Napoleão e autor de uma série de escritos memorialísticos sobre o período napoleônico.
15 Francês: “a Mesquita”.
16 Francês: “O padre, que eu havia descoberto e convidado a celebrar a missa, limpou e fechou a igreja. Esta noite, arrombaram de novo as portas, quebraram os cadeados, rasgaram os livros e praticaram outras desordens”.
17 Francês: “Parte do meu bairro continua a ser vítima do saque dos soldados do terceiro corpo, que, não contentes de arrancar dos infelizes refugiados nos subterrâneos o pouco que lhes restou, chegam ao ponto de ter a ferocidade de feri-los a golpes de sabre, como vi muitas vezes”.
18 Francês: “Nada de novo, senão que os soldados se permitem roubar e saquear. 9 de outubro”.
19 Francês: “O roubo e o saque prosseguem. Existe um bando de ladrões em nosso distrito, os quais é preciso capturar usando guardas bem armados. 11 de outubro”.
20 Francês: “O grande marechal do palácio se lamenta intensamente [...] de que, apesar das reiteradas proibições, os soldados continuam a fazer suas necessidades em todos os locais e até embaixo das janelas do imperador”.
21 Francês: “tesouro”.
22 “De orelhas caídas.”
23 Francês: “Que sol, hein, senhor Kiril? [...] Até parece primavera”.
24 Francês: “Se a gente pudesse marchar com um tempo feito este...”.
25 Francês: “E, depois, senhor Kiril, basta o senhor dizer uma palavra ao capitão, o senhor sabe. Ah, é uma pessoa... que não esquece nada. Diga ao capitão quando ele vier fazer a ronda, ele fará tudo pelo senhor”.
26 Francês: “Veja, São Tomás, o que ele me disse outro dia mesmo: Kiril é um homem com instrução, fala francês; é um nobre russo que sofreu infelicidades, mas é um homem. E ele entende o... Se ele pedir alguma coisa, pode me dizer, não há por que recusar. Quando a pessoa faz seus estudos, veja bem, ela gosta de instrução e de pessoas decentes. É para o senhor que digo isso, senhor Kiril. Naquela história do outro dia, se não fosse o senhor, o caso teria terminado mal”.
27 Francês: “Está bem, está bem, obrigado: mas o senhor deve ter uma sobra de pano, não é?”.
28 Francês: “Obrigado, obrigado, meu velho, e o resto? [...] Mas, o resto?”.
29 Francês: “Platocha, escute aqui, Platocha [...] Fique para o senhor”.
30 Francês: “Cabo, o que vai ser do doente?...”.
31 Francês: “Andando, andando”.
32 Francês: “Então, qual é o problema?”.
33 Francês: “Que diabo, ele vai poder andar!”.
34 Francês: “Claro que não, ele está agonizante”.
35 Francês: “Quer fazer o favor?!”.
36 Francês: “Andem, que inferno... Em frente... com trinta mil diabos...”.
37 Referência ao episódio protagonizado pelo general Ermólov, citado no tomo III, segunda parte, capítulo xxxii.
38 Referência a Ermólov.
39 Anne-Louise Germaine Necker, baronesa de Staël-Holstein (1766-1817), escritora francesa opositora de Napoleão. Exilou-se na Rússia e, em 1812, estava em São Petersburgo.
40 Francês: “o Hurra do imperador”.
41 Francês: “os filhos do Don”.
42 Alusão a um provérbio francês: “É preciso fazer uma ponte de ouro para o inimigo em fuga”. Kutúzov gostava de citá-lo.
I
A batalha de Borodinó, com a subsequente ocupação de Moscou e a fuga dos franceses, sem outras batalhas, é um dos fenômenos mais instrutivos da história.
Todos os historiadores concordam que a ação externa dos Estados e das nações, em seus confrontos entre si, se exprime por meio de guerras; e que, em consequência dos grandes ou pequenos sucessos militares, a força política dos Estados e das nações aumenta ou diminui imediatamente.
Por mais estranhas que sejam as descrições históricas de como certo rei ou imperador, depois de se desentender com outro rei ou imperador, convocou as tropas, bateu-se contra as tropas inimigas, conquistou a vitória, matou três, cinco, dez mil pessoas e, em consequência, subjugou um Estado e um povo inteiro, formado por alguns milhões de pessoas; por mais incompreensível que seja que a derrota de um exército, um centésimo de todas as forças de um povo, obrigue um povo a se subjugar — todos os fatos históricos (até onde os conhecemos) confirmam a veracidade de que os grandes ou pequenos êxitos das tropas de um povo contra as tropas de outro povo constituem a causa ou, pelo menos, os sinais decisivos do aumento ou da diminuição da força dos povos. Assim que uma tropa consegue uma vitória, logo aumentam os direitos do povo vitorioso em detrimento do povo vencido. Uma tropa é derrotada, e imediatamente, na proporção da derrota, seu povo perde direitos e, no caso de uma derrota completa de suas tropas, submete-se completamente.
Assim foi (segundo os historiadores) desde os primórdios dos tempos até o presente. Todas as guerras de Napoleão servem para confirmar essa regra. Na proporção da derrota das tropas austríacas, a Áustria perdeu seus direitos, e aumentaram os direitos e as forças da França. A vitória dos franceses em Iena e em Austerlitz aniquilou a existência independente da Prússia.
Porém, de repente, em 1812, a vitória foi alcançada pelos franceses nos arredores de Moscou, Moscou foi ocupada e, em seguida, sem outras batalhas, não foi a Rússia que deixou de existir, e sim o exército de seiscentos mil homens, e depois a França napoleônica. Forçar os fatos para que encaixem nas leis históricas, dizer que o campo de batalha em Borodinó ficou sob o domínio dos russos, que depois de Moscou houve batalhas que aniquilaram o exército de Napoleão, é impossível.
Depois da vitória dos franceses em Borodinó, não só não ocorreu nenhuma batalha geral, como também não ocorreu nenhuma batalha importante, e assim mesmo o exército francês deixou de existir. O que isso significa? Se fosse um exemplo retirado da história da China, poderíamos dizer que tal fenômeno não é histórico (escapatória dos historiadores quando algo não se enquadra nos seus moldes); se fosse o caso de um confronto descontínuo, do qual participassem pequenas porções das tropas, poderíamos tomar o fenômeno como uma exceção; mas esse acontecimento se passou sob os olhos de nossos pais, para quem a vida e a morte da pátria estavam em jogo, e aquelas tropas eram as maiores já vistas, em todas as guerras conhecidas...
O período da campanha de 1812 que vai da batalha de Borodinó até a expulsão dos franceses provou que uma batalha vencida não só não é causa de uma conquista, como também não é um sinal evidente de uma conquista; provou que a força que decide a sorte dos povos não repousa nos conquistadores, nem nos exércitos, nem nas batalhas, mas em outra coisa.
Os historiadores franceses, ao descrever a situação das tropas francesas antes da retirada de Moscou, afirmam que todo o Grande Exército estava em ordem, exceto a cavalaria, a artilharia e os transportes de carga, e que não havia forragem para alimentar os cavalos e o gado. Tal desastre nada poderia remediar, pois os mujiques dos arredores queimavam seu feno, mas não o davam aos franceses.
A batalha vencida não trouxe os resultados de costume, porque os mujiques Karp e Vlas, que depois da retirada dos franceses foram com suas carroças para Moscou, a fim de saquear a cidade, e que, no geral, não demonstraram nenhum sentimento heroico, a exemplo de toda uma incontável quantidade de mujiques, não levaram seu feno para Moscou a fim de vendê-lo pelo preço alto que lhes foi oferecido pelos franceses, em vez disso queimaram o próprio feno.
Imaginemos duas pessoas que vão duelar com espadas de acordo com todas as regras da arte da esgrima; a luta se prolonga por muito tempo; de súbito, um dos oponentes sente que foi ferido e, dando-se conta de que aquilo não era uma brincadeira e que sua vida estava em jogo, larga a espada, pega o primeiro sarrafo que vê no chão e começa a brandi-lo no ar. Mas vamos imaginar que o duelista que empregou de forma tão sensata os melhores e mais simples meios para alcançar seu objetivo fosse inspirado pela tradição da nobreza e, querendo esconder os fatos, insistisse em dizer que havia ganhado o duelo segundo todas as regras da arte da luta de espadas. Podemos imaginar que confusão e que obscuridade resultaria de tal descrição do duelo.
O esgrimista que exigiu um combate segundo as regras da arte da esgrima foram os franceses; seu oponente, que largou a espada e pegou um sarrafo no chão, foram os russos; as pessoas que se esforçam para explicar tudo dentro das regras da esgrima são os historiadores que escreveram sobre tal acontecimento.
Desde o tempo do incêndio de Smolensk, teve início uma guerra que não se adapta a nenhuma das tradições bélicas anteriores. O incêndio das cidades e das aldeias, o recuo depois das batalhas, o golpe infligido em Borodinó e seguido por uma nova retirada, o abandono e o incêndio de Moscou, a prisão dos saqueadores, a captura dos transportes, a guerra de guerrilha — tudo isso se desviava das regras.
Napoleão sentiu isso e, desde o momento em que, na pose correta do esgrimista, ficou em Moscou e, em lugar da espada de seu oponente, avistou um sarrafo erguido contra si, Napoleão não parou de se queixar a Kutúzov e ao imperador Alexandre de que a guerra estava sendo conduzida de forma contrária a todas as regras (como se existissem regras para matar pessoas). Apesar das queixas dos franceses sobre regras não cumpridas, apesar de russos situados em altos cargos acharem vergonhoso, por algum motivo, combater com um sarrafo e desejarem, conforme todas as regras, manter-se em posição en quarte ou en tierce, fazer uma hábil estocada em prime1 etc. — o sarrafo da guerra popular foi erguido com toda a sua força assustadora e grandiosa e, sem querer saber de gostos nem de regras, com tola simplicidade, mas com total senso prático, sem analisar nada, foi levantado, baixado, e golpeou os franceses até que toda a invasão fosse destruída.
Feliz do povo que não age como os franceses em 1813, que, depois de fazer a saudação conforme todas as regras da arte da esgrima e depois de girar a espada pelo punho, de modo gracioso e respeitoso, a entregaram ao seu magnânimo conquistador, e feliz do povo que, no momento de provação, sem querer saber se outros, em situações semelhantes, agiram conforme as regras, levanta com simplicidade e ligeireza o primeiro sarrafo que encontra à mão e com ele desfere seus golpes até que, em sua alma, o sentimento de ofensa e de vingança tenha dado lugar ao sentimento de desprezo e de compaixão.
II
Uma das mais tangíveis e proveitosas transgressões das chamadas regras da guerra é a ação de pessoas dispersas contra pessoas aglomeradas em massa. Tal tipo de ação sempre foi praticado nas guerras que adquiriram um caráter popular. Essa ação consiste em que, em lugar de lançar uma multidão contra outra, as pessoas se espalham, atacam isoladamente e fogem de imediato quando são atacadas por forças superiores, e depois atacam outra vez, quando surge a oportunidade. Assim fizeram os guerrilheiros na Espanha; assim fizeram os montanheses no Cáucaso; assim fizeram os russos em 1812.
Esse tipo de guerra é chamado de guerrilha, e supunham que, chamando-a por esse nome, explicavam seu significado. Contudo esse tipo de guerra não só não segue nenhuma regra, como se opõe frontalmente a uma regra tática famosa, tida como infalível. Tal regra diz que o atacante deve concentrar suas tropas a fim de que, no momento do combate, esteja mais forte do que seu oponente.
A guerra de guerrilha (sempre bem-sucedida, como a história demonstra) contradiz frontalmente essa regra.
Tal contradição resulta do fato de que a ciência militar avalia a força das tropas na exata medida do seu contingente. A ciência militar diz que, quanto mais tropas, maior a força. Les gros bataillons ont toujours raison.2
Ao dizer isso, a ciência militar se assemelha à mecânica, que, apoiando-se na avaliação das forças apenas com relação à massa, diria que as forças são iguais ou desiguais entre si porque a massa é igual ou desigual.
A força (a quantidade de movimento) é o produto da massa vezes a velocidade.
Na guerra, a força das tropas é também o produto da massa vezes algo, uma incógnita x.
Vendo na história a incontável quantidade de exemplos em que a massa das tropas não concorda com a força, e em que pequenos destacamentos vencem grandes, a ciência admite confusamente a existência desse fator desconhecido e tenta descobri-lo ora numa construção geométrica, ora nos armamentos, ora — o mais habitual — na genialidade dos comandantes militares. Mas a substituição do fator desconhecido por todos esses valores não produz nenhum resultado em conformidade com os fatos históricos.
Entretanto basta renunciar ao olhar ilusório, tão conveniente para os heróis, que atribui eficácia às ordens das altas autoridades em tempo de guerra para descobrir a incógnita x.
Esse x é o ânimo das tropas, ou seja, o maior ou menor desejo de lutar e de sujeitar-se aos perigos, da parte de todos os que constituem as tropas, de forma completamente independente de estar lutando sob o comando de gênios ou não, em duas ou em três linhas, com sarrafos ou com fuzis que disparam trinta tiros por minuto. As pessoas que têm maior desejo de lutar sempre se colocam nas condições mais vantajosas para o combate.
O ânimo das tropas é o fator que, multiplicado pela massa, dá como resultado a força. Determinar e exprimir o valor do ânimo das tropas, o fator incógnito, é a tarefa da ciência.
Essa tarefa só será possível quando pararmos de pôr arbitrariamente no lugar do valor de toda incógnita x aquelas condições em que a força se manifesta, como por exemplo as ordens de um comandante, os armamentos etc., tomando-as pelo valor do fator, e quando reconhecermos essa incógnita em toda a sua integridade, ou seja, como o desejo maior ou menor de lutar e de se expor ao perigo. Só então, exprimindo os fatos históricos conhecidos em forma de equações e comparando o valor relativo dessa incógnita, pode-se esperar a determinação da própria incógnita.
Dez homens, batalhões ou divisões combatendo quinze homens, batalhões ou divisões venceram os quinze, ou seja, mataram e fizeram prisioneiros a todos, sem sobrar nenhum, e perderam quatro; vale dizer, foram aniquilados de um lado quatro e de outro lado quinze. Portanto, quatro foram iguais a quinze e, portanto, 4x = 15y. Portanto x:y = 15:4. Essa equação não dá o valor da incógnita, mas dá a relação entre as duas incógnitas. E, da aplicação de tais equações às unidades históricas tomadas individualmente (as batalhas, as campanhas, as fases de uma guerra), obtém-se uma série de números, nos quais devem existir certas leis, que podem ser descobertas.
A regra tática de que é preciso agir com massas compactas nos ataques e de modo disperso na retirada apenas confirma, de forma inconsciente, a verdade de que a força das tropas depende do seu ânimo. A fim de levar pessoas a se expor a balas de canhão é preciso mais disciplina, obtida apenas por meio do movimento de massas compactas, do que para resistir aos ataques. Mas essa regra, que deixa de fora o ânimo das tropas, constantemente se mostra incorreta e, acima de tudo, contradiz de modo chocante a realidade de todas as guerras populares, nas quais se manifesta uma forte ascensão ou um forte declínio do ânimo das tropas.
Os franceses, ao recuarem em 1812, embora segundo a tática devessem se defender isoladamente, aglomeraram-se em um bloco, porque o ânimo das tropas decaíra a tal ponto que só a massa podia manter a tropa unida. Os russos, ao contrário, segundo a tática, deveriam atacar em massa, mas se dispersaram porque o ânimo havia subido a tal ponto que os homens separadamente golpeavam os franceses sem receber nenhuma ordem e não precisavam de coerção para se sujeitar aos rigores e aos perigos.
III
A chamada guerra de guerrilha teve início com a entrada do inimigo em Smolensk.
Antes que a guerra de guerrilha fosse oficialmente assumida por nosso governo, milhares de pessoas do exército inimigo — saqueadores retardatários, soldados desgarrados em busca de comida — foram aniquiladas por cossacos e por mujiques, que espancavam essas pessoas da mesma forma inconsciente como cães matam a dentadas um cão atacado pela raiva. Denis Davídov, com seu faro russo, entendeu antes de qualquer pessoa o significado desse terrível sarrafo, que sem querer saber das regras da arte da guerra, aniquilou os franceses, e cabe a ele a glória de ter dado o primeiro passo para legitimar esse método de guerra.
No dia 24 de agosto, foi criado o primeiro destacamento de guerrilheiros de Davídov e, depois desse destacamento, foram criados outros. Quanto mais a campanha avançava, mais aumentava o número de tais destacamentos.
Os guerrilheiros aniquilaram o Grande Exército em partes. Eles recolhiam as folhas que caíam, que se desprendiam por conta própria da árvore seca que era o exército francês, e às vezes até sacudiam seu tronco. Em outubro, na ocasião em que os franceses fugiam para Smolensk, existiam centenas desses bandos, de diversos tamanhos e espécies. Havia bandos de guerrilheiros que adotavam todos os procedimentos de um exército, com infantaria, artilharia, Estado-Maior e as comodidades da vida; existiam bandos só de cossacos, cavalarianos; havia bandos pequenos, que misturavam infantes e cavalarianos, havia bandos de mujiques e de proprietários, que ninguém conhecia. Havia um sacristão que era o comandante de um bando de guerrilheiros e que, num mês, fez centenas de prisioneiros. Houve uma certa Vassílissa, esposa de um estaroste, que dizimou centenas de franceses.
Nos últimos dias de outubro, a guerra de guerrilha chegou ao auge. Já chegara ao fim a primeira fase dessa guerra, fase em que os guerrilheiros, espantados com o próprio atrevimento, temiam a todo instante ser apanhados e cercados pelos franceses e, sem tirar os arreios dos cavalos e quase sem desmontar, ficavam escondidos nas matas, esperando a todo instante que viessem no seu encalço. Agora aquela guerra já estava estabelecida, para todos estava claro o que era possível e o que não era possível fazer contra os franceses. Agora, só os chefes dos destacamentos, que, acompanhados por membros do Estado-Maior e obedientes aos regulamentos andavam longe dos franceses, ainda achavam que não era possível fazer grande coisa. Já os pequenos bandos de guerrilheiros, que tinham começado suas atividades desde muito tempo e que observavam os franceses de perto, achavam possível aquilo que os chefes dos grandes destacamentos nem se atreviam a pensar. Os cossacos e os mujiques, que se enfiavam no meio dos franceses, achavam que agora qualquer coisa era possível.
No dia 22 de outubro, Deníssov, que era um dos guerrilheiros, estava com seu bando no auge do fervor guerrilheiro. Desde manhã cedo, ele e seu bando estavam em marcha. Avançando por dentro das matas que margeavam a estrada principal, eles vinham seguindo o dia inteiro um grande comboio que transportava carga da cavalaria francesa e prisioneiros russos, um comboio separado de outras tropas, mas sob forte escolta, e que, como tinham sabido por meio de espiões e de prisioneiros, se dirigia a Smolensk. Sabiam daquele comboio não só Deníssov e Dólokhov (também chefe de um pequeno grupo de guerrilheiros), que andava perto de Deníssov, mas também os chefes de grandes destacamentos acompanhados por membros do Estado-Maior: todos sabiam daquele comboio e, como dizia Deníssov, afiavam os dentes. Dois comandantes de grandes destacamentos — um polonês e outro alemão —, quase ao mesmo tempo, mandaram para Deníssov um chamado para que viesse se unir ao seu destacamento, com o propósito de atacar o comboio.
— Não, meu irmão, confio no meu bigode — disse Deníssov, ao ler as mensagens, e escreveu ao alemão que, apesar do desejo sincero que tinha de servir sob o comando de um general tão famoso e bravo, ele tinha de se privar daquela felicidade, porque já tinha aceitado ficar sob o comando do general polonês. Ao general polonês, escreveu a mesma coisa, avisando que já estava sob o comando do alemão.
Ao tomar tal atitude, Deníssov tencionava, sem comunicar nada disso a seus superiores, atacar o comboio junto com Dólokhov e se apoderar de sua carga, usando para tal fim suas forças reduzidas. No dia 22 de outubro, o comboio seguia da cidade de Mikúlino para Chámchevo. Do lado esquerdo da estrada de Mikúlino para Chámchevo havia grandes florestas, com locais em que a mata chegava à beira da estrada, e locais em que a mata se afastava da estrada uma versta ou mais. Por dentro daquelas matas, o dia inteiro, ora indo mais para o fundo, ora chegando até a margem da estrada, marchavam Deníssov e seu bando de guerrilheiros, sem nunca perder os franceses de vista. De manhã, não longe de Mikúlino, num ponto em que a mata se aproximava da beira da estrada, os cossacos do bando de Deníssov se apoderaram de duas carroças francesas que tinham atolado na lama, cheias de selas de cavalaria, e as levaram para dentro da mata. Desde então até a noite, o bando de guerrilheiros seguiu o movimento dos franceses, sem atacar. Era preciso deixar que fossem tranquilamente até Chámchevo, sem assustá-los, e lá, unindo-se com o bando de Dólokhov, que ao anoitecer deveria chegar a um posto de vigia na mata para receber instruções (a uma versta de Chámchevo), atacar de dois lados, ao raiar do dia, como se fosse uma avalanche de neve que cai em cima da cabeça, e de um só golpe dizimar e apossar-se de tudo.
Na retaguarda, a duas verstas de Mikúlino, num ponto em que a floresta chegava à beira da estrada, foram deixados para trás seis cossacos, encarregados de avisar assim que aparecessem novas colunas de franceses.
Para além de Chámchevo, Dólokhov devia explorar a estrada exatamente da mesma forma, a fim de saber a que distância haveria outras tropas francesas. No comboio, calculavam haver mil e quinhentos homens. Deníssov contava com duzentos homens, Dólokhov poderia ter outros tantos. Mas a desvantagem numérica não detinha Deníssov. Ele só precisava saber de mais uma coisa: que tropas exatamente eram aquelas; para tanto, Deníssov tinha de capturar um “língua” (ou seja, um homem da coluna inimiga). O ataque às carroças pela manhã foi feito com tamanha pressa que os franceses foram todos mortos e só foi capturado vivo um garoto tamboreiro retardatário, que por isso nada podia dizer com certeza a respeito das tropas daquela coluna.
Deníssov achava perigoso atacar de novo, o que poderia alarmar a coluna inteira, por isso enviou na frente, para Chámchevo, o mujique Tíkhon Cherbáti, que fazia parte de seu bando, incumbido de capturar, se possível, pelo menos um sargento francês que estivesse nas linhas de frente.
IV
Era um dia quente e chuvoso de outono. O céu e o horizonte estavam da cor de água turva. Ora uma névoa parecia baixar, ora batia de repente uma chuva forte e oblíqua.
Num cavalo puro-sangue, magro, de flancos encolhidos, avançava Deníssov, de burka3 e gorro de pele, dos quais a água da chuva escorria. A exemplo de seu cavalo, ele balançava a cabeça e encolhia as orelhas, franzia as sobrancelhas por causa da chuva oblíqua e olhava preocupado para a frente. Mais magro e mais escurecido por causa da barba densa, curta e preta, seu rosto parecia zangado.
Ao lado de Deníssov, também de burka e gorro de pele, montado num cavalo do Don, bem nutrido e forte, vinha um essaul4 cossaco, colaborador de Deníssov.
O essaul Lováiski Terceiro, também de burka e gorro de pele, era um homem alto, reto e chato feito uma tábua, pálido e louro, de olhos estreitos e radiantes, e expressão tranquila e satisfeita no rosto e no porte. Embora fosse impossível dizer em que consistia a singularidade do cavalo e do cavaleiro, ao primeiro olhar para o essaul e para Deníssov, era evidente que Deníssov estava encharcado e incomodado — era evidente que Deníssov era um homem montado num cavalo; ao passo que olhando para o essaul via-se que ele estava tranquilo e confortável, como sempre, e que não era um homem montado num cavalo, mas um homem que formava uma criatura só com o cavalo, ampliada por uma força em dobro.
Um pouco à frente deles, todo ensopado, ia um mujique que servia de guia, num cafetã cinzento e de gorro branco.
Um pouco atrás, num cavalinho magro, franzino, da Quirguízia, de cauda e crina imensas e lábios rasgados e sangrentos, ia um jovem oficial, num capote azul francês.
A seu lado, ia um hussardo, levando consigo, na garupa do cavalo, um garoto num uniforme francês rasgado e de gorro azul. O garoto segurava-se ao hussardo com as mãos vermelhas de frio, balançava os pés descalços para aquecê-los e, de sobrancelhas levantadas, olhava em volta com ar admirado. Era o tamboreiro francês capturado pela manhã.
Atrás, em filas de três e de quatro, pela estrada da floresta, estreita, encharcada e esburacada, iam devagar os hussardos, depois os cossacos, uns de burka, outros de capotes franceses, outros com um xairel sobre a cabeça. Os cavalos, baios e alazões, pareciam todos pretos cor de azeviche, por causa da chuva que escorria sobre eles. Os pescoços dos cavalos pareciam estranhamente finos, por causa das crinas encharcadas. Um vapor se erguia dos cavalos. As roupas, as selas, as rédeas — tudo estava molhado, escorregadio, pegajoso, assim como a terra e as folhas que tinham caído e recobriam a estrada. Os homens ficavam encolhidos sobre as selas, tentando não se mexer, a fim de aquecer a água que espirrava no corpo e também para não deixar que entrasse a água fria e nova que escorria sob a sela, pelos joelhos e por trás do pescoço. No meio dos cossacos espalhados, duas carroças, puxadas por cavalos franceses e por cavalos cossacos selados, rangiam por cima de tocos de árvore e de galhos e borbulhavam nos sulcos cheios de água da estrada.
O cavalo de Deníssov, ao desviar de uma poça na estrada, resvalou para o lado, e o joelho de Deníssov esbarrou numa árvore.
— Eh, diabo! — gritou Deníssov com raiva e, arreganhando os dentes, bateu três vezes com o açoite no cavalo, respingando de lama a si e os camaradas. Deníssov não estava de bom humor: por causa da chuva, por causa da fome (não tinha comido nada desde a manhã) e, acima de tudo, porque até aquele momento Dólokhov não mandara notícias, e o homem enviado para trazer um “língua” não tinha voltado.
“Vai ser difícil aparecer outra oportunidade como a de hoje para atacar um comboio de carga. Atacar sozinho é arriscado demais, só que, se eu adiar por mais um dia, algum bando maior de guerrilheiros vai acabar tomando de mim a presa, bem embaixo do meu nariz”, pensava Deníssov, enquanto olhava mais à frente o tempo todo, achando que tinha visto o esperado mensageiro mandado por Dólokhov.
Ao chegar a uma clareira de onde se podia avistar uma grande distância, do lado direito, Deníssov parou.
— Alguém está vindo — disse ele.
O essaul olhou na direção apontada por Deníssov.
— Estão vindo dois... um oficial e um cossaco. Mas presumivelmente não é o tenente-coronel — disse o essaul, que adorava empregar palavras desconhecidas dos cossacos.
Ao descer pela encosta, os dois homens que se aproximavam sumiram de vista e reapareceram depois de alguns minutos. Na frente, num galope cansado, brandindo a nagaica,5 vinha o oficial — desgrenhado, todo ensopado e com as calças arregaçadas acima do joelho. Atrás, de pé sobre os estribos, trotava o cossaco. O oficial, rapaz muito jovem, de rosto largo e avermelhado, olhos ligeiros e alegres, veio a galope na direção de Deníssov e lhe entregou um envelope molhado.
— Do general — disse o oficial. — Desculpe por não estar muito seco...
Deníssov, de cara feia, pegou o envelope e começou a abrir.
— Olhe, todos estão dizendo que é perigoso, perigoso — falou o oficial, dirigindo-se ao essaul, enquanto Deníssov lia a mensagem que lhe fora enviada. — De resto, eu e Komárov — apontou para o cossaco — estamos preparados. Temos duas pisto... Mas o que é isso? — perguntou ao ver o tamboreiro francês. — Um prisioneiro? Já travaram batalha? Posso falar com ele?
— Rostóv! Pétia! — gritou Deníssov no mesmo instante, depois de ler depressa a mensagem. — Mas por que não disse logo que é você? — E Deníssov, com um sorriso, virou-se e estendeu a mão para o oficial.
O oficial era Pétia Rostóv.
Durante todo o caminho, Pétia havia planejado a maneira como iria se comportar diante de Deníssov, a maneira como um adulto e oficial devia se comportar, sem fazer a menor alusão ao conhecimento prévio que existia entre os dois. Porém, assim que Deníssov sorriu para ele, Pétia logo ficou radiante, vermelho de alegria e, esquecido da postura de oficial que planejara adotar, começou a contar como havia passado perto dos franceses, como estava contente de ter recebido aquela missão e que já estivera numa batalha, perto de Viazma, e que lá um certo hussardo havia se distinguido no combate.
— Puxa, estou contente de ver você — interrompeu Deníssov, e seu rosto ficou de novo com uma expressão preocupada. — Mikhail Feóklitch — voltou-se para o essaul —, olhe só, mais uma do alemão. Ele está servindo com o alemão. — E Deníssov contou ao essaul que o conteúdo do papel trazido naquele instante consistia na repetida exigência do general alemão de unirem-se a ele, para atacarem juntos o comboio. — Se nós não tomarmos o comboio amanhã, ele vai tirá-lo de nós, bem debaixo de nosso nariz — concluiu Deníssov.
No momento em que Deníssov falava com o essaul, Pétia, confundido pelo tom frio de Deníssov e supondo que a causa daquele tom de voz fosse o estado de sua calça, desdobrou as pernas da calça por baixo do capote, a fim de que ninguém reparasse, tentando o mais possível adotar um aspecto militar.
— Não haverá nenhuma ordem de vossa excelência? — perguntou Pétia para Deníssov, tocando a mão na viseira do chapéu e voltando a representar o papel de ajudante de ordens do general, que ele antes havia planejado representar. — Ou devo ficar à disposição de vossa excelência?
— Ordens?... — disse Deníssov, com ar pensativo. — Mas você não pode ficar até amanhã?
— Ah, por favor... Posso ficar com o senhor? — exclamou Pétia.
— Mas o que foi que o general mandou você fazer, mandou voltar logo? — perguntou Deníssov. Pétia ruborizou-se.
— Ele não deu nenhuma ordem. Acho que eu podia, não é? — disse Pétia, em tom interrogativo.
— Então está certo — disse Deníssov. Virou-se para seus subordinados e ordenou que um grupo seguisse para o local de descanso combinado, perto do posto de vigia, na floresta, e que o oficial no cavalo da Quirguízia (oficial que cumpria a função de ajudante de ordens) fosse procurar Dólokhov, saber onde ele estava e se viria mesmo ao anoitecer. O próprio Deníssov, com o essaul e Pétia, pretendia se aproximar da orla da floresta, vizinha a Chámchevo, a fim de observar o local em que estavam os franceses, para onde devia ser dirigido o ataque do dia seguinte.
— Muito bem, seu barbudo — virou-se para o mujique que servia de guia —, leve a gente para Chámchevo.
Deníssov, Pétia e o essaul, acompanhados por alguns cossacos e pelo hussardo que levava o prisioneiro, seguiram para a esquerda, por uma ravina, rumo à orla da floresta.
V
O chuvisco tinha parado, só caíam uma neblina e umas gotinhas de água dos ramos das árvores. Deníssov, o essaul e Pétia iam em silêncio atrás do mujique de gorro que, batendo de leve e sem ruído seus pés enfiados em alpercatas de palha, sobre as folhas e as ervas molhadas, os guiava rumo à orla da floresta.
Ao chegar a um declive, o mujique parou, olhou em redor e dirigiu-se para uma barreira de árvores bem esparsa. Perto de um grande carvalho que ainda não perdera as folhas, ele parou e chamou com um aceno misterioso.
Deníssov e Pétia aproximaram-se dele. Do local onde o mujique havia parado, era possível avistar os franceses. Logo depois da floresta, num pequeno declive, havia uma plantação de trigo de primavera. À direita, do outro lado de um barranco íngreme, via-se um pequeno vilarejo e uma casinha senhorial destelhada. Naquele vilarejo e na casa senhorial, bem como em toda a colina, no pomar, no poço e no lago, e também em todo o caminho que ia da ponte até a aldeia, passando por um morro, numa distância de não mais de duzentas braças, via-se, no meio da neblina oscilante, uma multidão de pessoas. Dava para ouvir nitidamente seus gritos, numa língua que não era o russo, dirigidos aos cavalos que, atrelados a carroças, subiam o morro com esforço, e também chamando uns aos outros.
— Traga o prisioneiro aqui — disse Deníssov em voz baixa, sem afastar os olhos dos franceses.
Um cossaco desceu do cavalo, desmontou o garoto e foi com ele para junto de Deníssov. Deníssov, apontando para os franceses, perguntou que tropas eram aquelas. O garoto, com as mãos enregeladas metidas nos bolsos e as sobrancelhas erguidas, olhava assustado para Deníssov e, apesar do evidente desejo de falar tudo o que sabia, confundia-se nas respostas e apenas confirmava aquilo que Deníssov perguntava. Deníssov, de cara franzida, deu as costas para o garoto e voltou-se para o essaul, transmitindo a ele suas conjeturas.
Balançando a cabeça com movimentos rápidos, Pétia olhava ora para o tamboreiro, ora para Deníssov, ora para o essaul, ora para os franceses na aldeia e na estrada, tentando não deixar escapar nada de importante.
— Quer venha o Dólokhov, quer não venha, é preciso atacar!... Hein? — disse Deníssov, com os olhos alegres e cintilantes.
— O lugar é conveniente — disse o essaul.
— A infantaria vai por baixo, pelos brejos — prosseguiu Deníssov. — Eles vão se infiltrar pelo pomar; você e os cossacos vão por lá. — E Deníssov apontou para a floresta, além da aldeia. — E eu vou dali, com meus hussardos. E ao tiro de aviso...
— Não vai dar para passar na ravina, tem um pântano — disse o essaul. — Os cavalos vão afundar, tem de dar a volta pela esquerda...
Na hora em que estavam conversando a meia-voz, lá embaixo, na ravina perto do lago, soou um tiro, uma baforada de fumaça branquejou, soou mais um tiro e ouviu-se o grito uníssono, aparentemente alegre, de centenas de vozes dos franceses que estavam no declive. No primeiro momento, Deníssov e o essaul recuaram. Estavam tão perto que tiveram a impressão de que eram eles a causa dos tiros e dos gritos. Mas os tiros e os gritos não tinham relação com eles. Embaixo, nos brejos, corria um homem com algo vermelho. Era óbvio que os franceses estavam atirando nele e para ele gritavam.
— Olhe, é o nosso Tíkhon — disse o essaul.
— Puxa, é ele mesmo!
— Bandido — disse Deníssov.
— Vai escapar! — disse o essaul, estreitando os olhos.
O homem que eles chamavam de Tíkhon, depois de chegar correndo a um riacho, mergulhou de tal modo que a água espirrou e, depois de ficar oculto por um momento, todo preto por causa da água, saiu engatinhando e correu mais para longe. Os franceses que corriam atrás dele pararam.
— Puxa, é esperto — disse o essaul.
— Que malandro! — exclamou Deníssov, com a mesma expressão de raiva. — Mas o que ele andou fazendo esse tempo todo?
— Quem é? — perguntou Pétia.
— É o nosso batedor. Mandei que ele nos trouxesse um “língua”.
— Ah, sim — disse Pétia, desde a primeira palavra de Deníssov, balançando a cabeça, como se entendesse tudo, embora não tivesse compreendido absolutamente nada.
Tíkhon Cherbáti era um dos homens mais necessários ao bando. Era um mujique de Pokróvskoie, à margem do rio Gjat. Quando, no início de suas atividades, Deníssov chegou a Pokróvskoie e, como sempre, chamou o estaroste e perguntou o que ele sabia dos franceses, o estaroste respondeu, como sempre respondiam todos os estarostes, como que para se defender, que não sabia nada de nada, não tinha visto nada de nada. Porém, quando Deníssov lhe explicou que seu objetivo era arrasar os franceses e quando perguntou se os franceses não andavam por ali, o estaroste disse que de fato uns saqueadores andavam por ali, mas que na aldeia só Tíkhon Cherbáti cuidava daqueles assuntos. Deníssov mandou chamar Tíkhon e, depois de elogiá-lo por suas ações, disse diante do estaroste algumas palavras sobre a lealdade ao tsar e à pátria e sobre o ódio aos franceses que os filhos da pátria deviam nutrir.
— A gente não faz mal nenhum aos franceses — disse Tíkhon, obviamente intimidado com as palavras de Deníssov. — A gente só fez umas bobagens por aí, com a turma, sabe, por diversão, mais nada. Só pegamos umas duas dezenas de saqueadores, mas a gente não fez mal nenhum... — No dia seguinte, quando Deníssov deixava Pokróvskoie, totalmente esquecido daquele mujique, vieram lhe comunicar que Tíkhon estava junto ao bando e pedia que o deixassem ficar com eles. Deníssov mandou que o deixassem ficar.
Tíkhon, que de início fora encarregado de serviços inferiores, acender fogueiras, trazer água, esfolar os cavalos mortos etc., logo demonstrou grande ânimo e capacidade para a guerra de guerrilha. À noite, saía para buscar presas de guerra e sempre trazia roupas e armas francesas, mas quando lhe ordenavam trazia também prisioneiros. Deníssov afastou Tíkhon do trabalho inferior, passou a levá-lo consigo nas patrulhas e designou-o para ficar entre os cossacos.
Tíkhon não gostava de andar a cavalo e sempre ia a pé, sem nunca ficar para trás da cavalaria. Suas armas eram um bacamarte, que levava mais por diversão, uma lança e um machado, que ele manejava como um lobo usa os dentes, ou seja, serviam tanto para catar uma pulga enfiada na roupa de lã como para esmigalhar grossos pedaços de osso. Com a mesma precisão, Tíkhon tanto rachava lenha de um só golpe com o machado, como, segurando o machado pela cabeça, aparava varetas finas e entalhava colherzinhas de pau. No bando de Deníssov, Tíkhon ocupava um lugar especial, exclusivo. Quando era preciso fazer algo particularmente difícil e brutal — empurrar com o ombro uma carroça atolada na lama, tirar um cavalo preso no pântano, puxando-o pelo rabo, esfolar um cavalo, infiltrar-se bem no meio dos franceses, percorrer cinquenta verstas num dia —, todos, rindo, sempre indicavam Tíkhon.
— O que esse diabo não faz? Tem uma saúde de ferro — diziam sobre ele.
Certa vez, um francês que Tíkhon havia capturado lhe deu um tiro de pistola e acertou na parte carnuda das costas. Aquele ferimento, que Tíkhon tratou só com água, interna e externamente, foi motivo das mais divertidas brincadeiras em todo o destacamento e de piadas que Tíkhon aceitava de bom grado.
— E aí, irmão, não vai mais? Pôs o rabo entre as pernas? — diziam-lhe os cossacos entre risadas, e Tíkhon, de cara feia e rosto franzido de propósito, fingindo estar zangado, xingava os franceses com os palavrões mais engraçados. A única influência que aquele caso teve sobre Tíkhon foi que, depois do ferimento, ele raramente fazia prisioneiros.
Tíkhon era o mais útil e corajoso membro do bando. Ninguém mais do que ele descobria oportunidades para atacar, ninguém capturava e matava mais franceses do que ele; e por isso era motivo de gozação de todos os cossacos e hussardos e se prestava de muito bom grado a esse papel. Daquela vez, Tíkhon foi enviado por Deníssov, ainda à noite, para Chámchevo a fim de capturar um “língua”. Mas, ou porque não se contentou só com um francês, ou porque dormiu demais à noite e foi se infiltrar de dia entre os arbustos, bem no meio dos franceses, acabou sendo descoberto por eles, como Deníssov tinha visto do alto do morro.
VI
Depois de conversar por um tempo com o essaul sobre o ataque do dia seguinte, que agora, vendo a proximidade dos franceses, Deníssov parecia ter finalmente tomado a decisão de executar, ele virou o cavalo e voltou para trás.
— Pois é, amigo, agora a gente tem de se enxugar — disse para Pétia.
Chegando ao posto de vigia na floresta, Deníssov se deteve, observando o interior da mata. Na mata, entre as árvores, um homem de braços compridos e oscilantes, jaqueta, alpercatas de palha e um chapéu de Kazan, caminhava a passos largos e ágeis, em suas pernas compridas, com um fuzil pendurado nos ombros e um machado na cintura. Ao ver Deníssov, o homem jogou algo dentro de uma moita, tirou o chapéu molhado, de abas caídas, e aproximou-se de seu superior. Era Tíkhon. Seu rosto, furado pela varíola, cheio de rugas, de olhos pequenos e estreitos, brilhava com uma alegria satisfeita. Depois de levantar a cabeça bem alto, e como que contendo a vontade de rir, encarou Deníssov.
— Puxa, onde foi que você se meteu? — perguntou Deníssov.
— Onde me meti? Fui atrás dos franceses — respondeu Tíkhon com audácia e sem demora, numa voz rouca, mas melodiosa e em tom de baixo.
— Para que foi se meter lá em plena luz do dia? Sua besta! E aí, não pegou nenhum?...
— Pegar eu peguei — disse Tíkhon.
— E onde está?
— Pois é, eu peguei um logo de cara, antes do sol subir — prosseguiu Tíkhon, afastando mais um pouco os pés chatos, enfiados nas alpercatas de palha. — E fugi para dentro da floresta. Aí vi que ele não servia. Pensei, vou lá pegar outro, mas vou escolher melhor.
— Ah, então foi isso, que sem-vergonha — disse Deníssov para o essaul. — Por que não trouxe esse, então?
— E para que eu ia trazer? — cortou Tíkhon, depressa e irritado. — Não servia para nada. Acha que não sei do que o senhor precisa?
— Que animal!... E aí?...
— Fui atrás de outro — continuou Tíkhon. — Fui rastejando assim pela mata, deitado. — De modo flexível e inesperado, Tíkhon deitou de bruços no chão e fazia as caras que tinha feito na hora. — E lá veio um — prosseguiu ele. — Agarrei ele desse jeito aqui. — Tíkhon se levantou com rapidez e agilidade. — Vamos lá falar com o coronel, eu disse. Ele desandou a berrar. Aí apareceram mais quatro. Pularam em cima de mim com aquelas espadinhas. Mandei o machado em cima deles desse jeito: o que é que estão pensando, Cristo tenha pena de vocês — gritou Tíkhon, brandindo os braços no ar e franzindo o rosto com ar ameaçador, erguendo o peito.
— Sei, sei, a gente viu lá do morro como você saiu correndo feito um louco pelo pântano — disse o essaul, estreitando os olhos cintilantes.
Pétia sentiu muita vontade de rir, mas via que todos continham o riso. Rapidamente, desviou o olhar do rosto de Tíkhon para o rosto do essaul e de Deníssov, sem entender o que significava tudo aquilo.
— Escute aqui, não se faça de bobo comigo — disse Deníssov, tossindo irritado. — Por que não trouxe logo o primeiro?
Tíkhon pôs-se a coçar as costas com a mão e a cabeça com a outra mão, e de repente toda a sua fisionomia se distendeu num sorriso tolo e radiante, deixando à mostra um dente que faltava (razão por que era chamado de Cherbáti).6 Deníssov sorriu, e Pétia soltou uma risada alegre, à qual se uniu o próprio Tíkhon.
— Puxa, não dava para confiar nele — disse Tíkhon. — Tinha uma roupinha muito da ruim, para que eu ia trazer? Além do mais, era um mal-educado, vossa excelência. Foi logo dizendo: como é que pode, eu sou filho de um anaral, não vou não, ele disse.
— Que besta você é! — disse Deníssov. — Eu preciso interrogar...
— Ah, mas eu interroguei — disse Tíkhon. — Ele disse: sei pouco. Tem muitos dos nossos por aí, ele disse, mas estão muito ruinzinhos; é só dar um grito. É só você dar um berro, disse ele, e vai pôr todo mundo para correr — concluiu Tíkhon, olhando alegre e decidido nos olhos de Deníssov.
— Olhe aqui, vou ter de mandar dar cem chicotadas no seu lombo se você não parar de se fazer de bobo comigo — disse Deníssov, com severidade.
— Mas para que se zangar? — disse Tíkhon. — Então eu não fui lá e vi os seus franceses? Olhe, deixe escurecer um pouco que eu trago quantos você quiser, até três de uma vez só.
— Vamos indo — disse Deníssov e seguiu a cavalo para o posto de vigia, calado e com a cara irritada.
Tíkhon foi andando atrás, e Pétia ouvia como os cossacos riam junto com ele e como zombavam dele por causa de umas botas que ele jogou dentro da moita.
Quando passou o riso que o dominara por causa das palavras e do sorriso de Tíkhon, Pétia num estalo compreendeu que Tíkhon havia matado o homem e sentiu-se incomodado. Olhou para trás, para o tamboreiro preso, e alguma coisa apertou seu peito. Mas aquele incômodo só durou um instante. Pétia sentiu uma necessidade mais forte de erguer a cabeça, mostrar um jeito atrevido e perguntou ao essaul, com ar de importância, sobre a operação do dia seguinte, para não parecer indigno da companhia em que se encontrava.
O oficial enviado encontrou Deníssov na estrada com a notícia de que Dólokhov viria em pessoa dali a pouco e que, do seu lado, estava tudo correndo bem.
Deníssov alegrou-se de repente e chamou Pétia.
— Pronto, agora me conte o que anda fazendo — disse ele.
VII
Pétia, ao partir de Moscou, onde deixara seus familiares, integrou-se ao seu regimento e logo depois foi escolhido para ser ordenança de um general que comandava um grande destacamento. Desde sua promoção a oficial e sobretudo desde seu ingresso nas tropas ativas, com as quais participara da batalha de Viazma, Pétia estava sempre num constante estado de felicidade e de empolgação, por ser agora um adulto, e numa constante e fervorosa ansiedade para não perder nenhuma chance de se comportar como um verdadeiro herói. Estava muito feliz com o que via e experimentava no Exército, mas ao mesmo tempo tinha a impressão de que era sempre em algum outro lugar, e não onde ele estava, que praticavam os mais autênticos atos heroicos. E vivia numa ânsia de ir para onde ele não estava.
Quando seu general, no dia 21 de outubro, expressou o desejo de enviar alguém ao destacamento de Deníssov, Pétia pediu de modo tão patético para ser o escolhido que o general não pôde negar. Porém, ao despedir-se dele, o general, lembrando-se da loucura cometida por Pétia na batalha de Viazma, na qual, em vez de seguir pelo caminho que lhe fora indicado, ele havia galopado direto contra a linha de frente do inimigo, debaixo dos tiros dos franceses, e tinha dado dois tiros com a sua pistola — ao despedir-se, o general proibiu Pétia expressamente de participar de quaisquer ações praticadas por Deníssov. Por isso Pétia ficou ruborizado e confuso quando Deníssov perguntou se ele podia ficar. Antes de chegar à orla da floresta, Pétia achava que devia voltar imediatamente, cumprindo as ordens à risca. Mas, quando viu os franceses, viu Tíkhon, soube que à noite seguramente iriam atacar, Pétia, com a rapidez que têm os jovens para mudar de opinião, resolveu por conta própria que seu general, a quem até então ele respeitava muito, era um lixo, um alemão, e que Deníssov era um herói, o essaul era um herói e Tíkhon era um herói, e que era vergonhoso se afastar deles naquele momento de dificuldade.
Já havia escurecido quando Deníssov, Pétia e o essaul chegaram ao posto de vigia. Na penumbra, viam-se cavalos com selas, cossacos e hussardos, que armavam barracas numa clareira e (para que os franceses não vissem a fumaça) acendiam fogueiras avermelhadas no fundo de uma ravina, na floresta. Na entrada de uma pequena isbá, um cossaco de mangas arregaçadas trinchava a carne de um cordeiro. Na mesma isbá, havia três oficiais do bando de Deníssov que estavam transformando uma porta em tampo de mesa. Pétia tirou a roupa molhada, pôs para secar e logo tratou de se unir aos oficiais na tarefa de preparar a mesa de jantar.
Em dez minutos, a mesa ficou pronta, coberta de guardanapos. Sobre a mesa, havia vodca, um pequeno frasco de rum, pão branco, cordeiro assado e sal.
Sentado à mesa com os oficiais, partindo o aromático cordeiro assado com as mãos, pelas quais a gordura escorria, Pétia se encontrava num estado de empolgação infantil, cheio de um amor afetuoso por todos e, por isso mesmo, convicto de que todos o amavam da mesma forma.
— Então, o que você acha, Vassíli Fiódorovitch? — voltou-se para Deníssov. — Não tem importância se eu ficar só um diazinho com vocês? — E, sem esperar a resposta, ele mesmo respondeu: — Mandaram que eu viesse me informar. Pois bem, estou me informando... Só quero que o senhor me deixe ir para o mais... para o principal. Não preciso de condecoração... E que tenho vontade de... — Pétia cerrou os dentes e olhou em redor, sacudindo a cabeça para cima e brandindo as mãos no ar.
— Para o principal... — repetiu Deníssov, sorrindo.
— Por favor, queria só que me desse o comando de alguma coisa, para eu comandar — prosseguiu Pétia —, e o que isso custa ao senhor? Ah, quer uma faca? — voltou-se para um oficial que queria cortar a carne de cordeiro. E deu sua faquinha dobrável.
O oficial elogiou a faca.
— Por favor, fique para você. Tenho muitas iguais... — disse Pétia, corando. — Puxa vida! Eu tinha esquecido completamente — exclamou de súbito. — Tenho aqui umas passas maravilhosas, sabe, daquelas sem caroço. Temos um novo mascate lá na tropa, e ele tem cada coisa linda. Comprei dez libras. Estou acostumado a comer coisas doces. Quer?... — E Pétia correu para o seu cossaco, na entrada da isbá, e trouxe umas sacolas nas quais havia umas cinco libras de passas. — Comam, senhores, comam. E será que o senhor não precisa de uma cafeteira? — perguntou para o essaul. — Comprei uma com o nosso mascate, é uma maravilha! Ele tem coisas lindas. E é muito honesto. Isso é que é importante. Vou trazer uma para vocês, sem falta. E talvez suas pederneiras estejam gastas, isso acontece, sabe? Trouxe umas comigo, olhem, estão aqui... — Mostrou uma sacola. — Cem pederneiras. Comprei muito barato. Por favor, tenham a bondade, quantas precisarem, podem pegar todas... — E de súbito, com medo de ter falado demais, Pétia parou e ficou vermelho.
Puxou pela memória para ver se não tinha feito alguma bobagem. E, interrompendo as recordações daquele dia, veio a lembrança do tamboreiro francês. “Para nós, está tudo bem, mas o que será dele? Para onde o levaram? Deram comida a ele? Será que o machucaram?”, pensava. Mas, ao notar que tinha falado demais das pederneiras, ele agora tinha medo.
“Podia perguntar”, pensou Pétia, “mas aí vão dizer: ele também é um menino e tem pena do outro menino. Amanhã vou mostrar a eles se sou menino! Será que é uma vergonha perguntar?”, pensou Pétia. “Ora, tanto faz.” E imediatamente, ruborizado e olhando assustado para os oficiais, para ver se no rosto deles não havia zombaria, falou:
— Eu posso chamar aquele menino que foi feito prisioneiro? Para lhe dar alguma coisa para comer... será que pode...
— Claro, coitado do menino — disse Deníssov, que obviamente não via nada de vergonhoso naquela lembrança. — Mande vir aqui. Vincent Bosse é o nome dele. Mande chamar.
— Eu vou chamar — disse Pétia.
— Chame, sim, coitado do menino — repetiu Deníssov.
Pétia estava de pé junto à porta quando Deníssov falou aquilo. Pétia esgueirou-se entre os oficiais e chegou bem perto de Deníssov.
— Permita que eu beije o senhor, meu caro — disse ele. — Ah, que ótimo! Que bom! — Depois de beijar Deníssov, foi correndo para fora.
— Bosse! Vincent! — começou a gritar Pétia, parando depois da porta.
— O senhor quer falar com quem? — disse uma voz na escuridão. Pétia respondeu que era com o menino francês que tinha sido pego naquele dia.
— Ah! O Vessiéni? — disse um cossaco.
Já haviam transformado o nome Vincent: os cossacos, em Vessiéni, e os mujiques e os soldados, em Vissiénia. Em ambas as transformações, a lembrança da primavera, viesná, combinava com a evidente juventude do menino.
— Ele foi se esquentar perto da fogueira. Ei, Vissiénia! Vissiénia! Vissiénii! — ouviam-se no escuro vozes e risos que se comunicavam.
— É um garoto esperto — disse um hussardo que estava perto de Pétia. — A gente deu comida para ele há pouco tempo. Estava morto de fome!
No escuro, ouviram-se passos, e, estalando os pés descalços na lama, o tamboreiro veio até a porta.
— Ah, c’est vous! — disse Pétia. — Voulez-vous manger? N’ayez pas peur, on ne vous fera pas de mal — acrescentou, tocando com timidez e afeição a mão do menino. — Entrez, entrez.7
— Merci, monsieur — respondeu o tamboreiro com voz trêmula, quase infantil, e esfregou os pés enlameados na soleira da porta. Pétia tinha muita vontade de falar com o tamboreiro, mas não se atrevia. Mudando a posição dos pés, ele ficou parado perto do menino, na entrada da isbá. Em seguida, no escuro, pegou a mão dele e apertou.
— Entrez, entrez — repetiu, num sussurro delicado.
“Ah, o que será que posso fazer por ele?”, pensou Pétia e, após fechar a porta, deixou o menino passar na sua frente.
Quando o tamboreiro entrou na pequena isbá, Pétia sentou-se um pouco afastado dele, julgando humilhante lhe dar atenção. Apenas apalpava um dinheiro que tinha no bolso e ficava em dúvida se não seria vergonhoso dar o dinheiro a ele.
VIII
A entrada de Dólokhov na isbá desviou a atenção de Pétia, voltada até então para o tamboreiro, a quem Deníssov ordenara dar vodca, carne de cordeiro e a quem ordenara vestir com um cafetã russo, a fim de manter o menino junto ao seu bando e não confundi-lo com os demais prisioneiros. No Exército, Pétia ouvira falar muito da extraordinária bravura e crueldade de Dólokhov com os franceses e por isso, no instante em que Dólokhov entrou na isbá, Pétia fitou-o, sem desviar os olhos, e, enchendo-se cada vez mais de coragem, retesou a cabeça bem erguida, a fim de não se mostrar indigno da companhia de alguém como Dólokhov.
A aparência de Dólokhov impressionou Pétia de forma estranha.
Deníssov estava de tchekmién,8 tinha o rosto barbado, no peito trazia uma imagem de Nicolau Milagreiro e no jeito de falar e em todas as suas maneiras demonstrava a peculiaridade de sua situação. Já Dólokhov, ao contrário, que antes, em Moscou, vestia roupas persas, agora tinha o aspecto mais esmerado de um oficial da guarda. Tinha o rosto bem barbeado, vestia a sobrecasaca estofada da guarda, com a condecoração de São Jorge na lapela, e um quepe simples, bem reto, na cabeça. No canto, tirou a burka molhada e, aproximando-se de Deníssov, sem cumprimentar ninguém, começou logo a fazer perguntas sobre o que interessava. Deníssov lhe contou dos planos que os destacamentos maiores alimentavam acerca do comboio de carga, contou sobre a mensagem trazida por Pétia e também falou da forma como havia respondido aos dois generais. Depois Deníssov contou tudo o que sabia sobre a situação do destacamento francês.
— Pois é, mas é preciso saber que tropas são essas e quantos são — disse Dólokhov —, é preciso ir lá e ver. Sem saber com certeza quantos são, não é possível entrar em combate. Gosto de fazer as coisas com exatidão. Escute, será que algum dos senhores não quer ir comigo ao acampamento deles? Tenho um uniforme aqui comigo.
— Eu, eu... eu vou com o senhor! — exclamou Pétia.
— Não tem a menor necessidade de ir — disse Deníssov, voltando-se para Dólokhov —, e além do mais não vou deixar ele ir de jeito nenhum.
— Mas que loucura! — exclamou Pétia. — Por que não posso ir?...
— Porque não há motivo nenhum.
— Puxa, o senhor me desculpe, porque... porque... eu vou, e pronto, acabou. O senhor vai me levar? — voltou-se para Dólokhov.
— Por que... — respondeu Dólokhov, distraído, olhando para o rosto do tamboreiro francês. — Esse pirralho está com vocês há muito tempo? — perguntou para Deníssov.
— Pegamos hoje, mas não sabe de nada. Fiquei com ele perto de mim.
— Sei, mas e o resto, para onde levou? — perguntou Dólokhov.
— Como para onde? Eu despacho e pego o recibo! — gritou Deníssov, vermelho de repente. — E me atrevo a dizer que não tenho a vida de nenhum homem na minha consciência. Falando francamente, por acaso é mais difícil para você mandar trinta ou trezentos homens sob escolta para a cidade do que manchar nossa honra de soldado?
— Para este condezinho rapazola aqui de dezesseis anos, até que podia ficar bem dizer essas amabilidades — disse Dólokhov, com frio desdém —, mas já passou da hora de você parar com essas histórias.
— Puxa, não estou dizendo nada, só estou dizendo que irei com você de qualquer jeito — disse Pétia timidamente.
— Mas para nós dois, irmão, já está na hora de deixar de lado essas amabilidades — continuou Dólokhov, como se encontrasse um prazer especial em falar sobre aquele assunto, que irritava Deníssov. — Agora, por que foi que ficou com esse aí? — perguntou, balançando a cabeça. — Teve pena dele? Afinal, a gente conhece esses seus recibos. Você mandou cem homens, mas só trinta vão chegar. Vão morrer de fome, ou vão ser mortos. No final, não dá na mesma, irmão?
O essaul, estreitando os olhos brilhantes, mexeu a cabeça em sinal de aprovação.
— Não interessa, não vou discutir nada aqui. Não quero levar esse peso na minha alma. Você está dizendo que vão morrer. Pois bem, está certo. Só que não vai ser por minha causa.
Dólokhov começou a rir.
— Quem foi que mandou eles não me capturarem nas vinte vezes que tentaram? Mas quando capturarem, a mim e a você, com sua nobreza, vão nos enforcar numa árvore do mesmo jeito. — Ficou em silêncio um instante. — Mas temos de fazer nosso trabalho. Mande o meu cossaco pegar minha trouxa! Tenho dois uniformes franceses. E aí, vai comigo? — perguntou para Pétia.
— Eu? Sim, sim, claro — exclamou Pétia, ruborizando-se quase até as lágrimas e lançando um olhar para Deníssov.
Enquanto Dólokhov começava a discutir com Deníssov a respeito do que era preciso fazer com os prisioneiros, Pétia sentiu de novo um incômodo e uma premência; mas novamente não conseguiu entender direito do que estavam falando. “Se os adultos, as pessoas famosas, pensam que tem de ser desse jeito, então tem de ser desse jeito, e está certo”, pensou ele. “O importante é que Deníssov não se atreva a pensar que vou obedecer a ele, que ele pode me dar ordens. Vou com Dólokhov a todo custo para o acampamento dos franceses. Ele pode, então eu também posso.”
A todos os apelos de Deníssov para que Pétia não fosse, ele respondia que também estava acostumado a fazer tudo com exatidão, e não feito um desmiolado, e que de resto nunca pensava nos perigos que corria.
— Porque, o senhor há de admitir, se não soubermos exatamente quantos estão lá, isso pode pôr em risco a vida de centenas de pessoas, e aqui vamos nós dois sozinhos, e além do mais eu quero muito ir, e irei, a todo custo, a todo custo, e o senhor não vai me impedir — disse ele —, que isso só vai piorar as coisas...
IX
Com capotes e barretinas dos franceses, Pétia e Dólokhov seguiram pelo atalho de onde Deníssov havia espiado o acampamento e, depois de sair da mata na escuridão completa, desceram a ravina. Ao chegar lá embaixo, Dólokhov mandou os cossacos que o acompanhavam esperarem ali e avançou a trote acelerado pelo caminho rumo à ponte. Pétia, quase desmaiando de emoção, seguia a seu lado.
— Se formos apanhados, não vou me entregar vivo, trago uma pistola comigo — sussurrou Pétia.
— Não fale russo — disse Dólokhov num rápido sussurro, e naquele instante, na escuridão, ouviu-se uma saudação: “Qui vive?”9 e o barulho de um fuzil sendo empunhado.
— Lanciers du sixième 10 — exclamou Dólokhov, sem acelerar nem reduzir o passo do cavalo. O vulto escuro da sentinela estava parado na ponte.
— Mot d’ordre?11 — Dólokhov refreou o cavalo e avançou a passo lento.
— Dites donc, le colonel Gérard est-il ici? 12 — disse ele.
— Mot d’ordre! — falou a sentinela, sem responder à pergunta, bloqueando o caminho.
— Quand un officier fait sa ronde, les sentinelles ne demandent pas le mot d’ordre... — gritou Dólokhov, exaltando-se de repente e guiando o cavalo na direção da sentinela. — Je vous demande si le colonel est ici.13
E, sem esperar a resposta da sentinela, que dera um passo para o lado, Dólokhov seguiu para o morro a passo lento.
Ao notar o vulto negro de um homem que se movia pela estrada, Dólokhov o deteve e perguntou onde estavam o comandante e os oficiais. O homem, um soldado com um saco no ombro, parou, veio para perto do cavalo de Dólokhov até tocar em seu braço e, com voz simples e amistosa, disse que o comandante e os oficiais estavam no alto do morro, do lado direito, no pátio da granja (assim ele chamou o terreno da casa senhorial).
Depois de passar pela estrada, ouvindo de ambos os lados vozes que falavam francês junto às fogueiras, Dólokhov virou na direção do pátio da casa senhorial. Atravessou o portão, desceu do cavalo e se aproximou de uma grande fogueira que ardia, em torno da qual estavam sentados alguns homens conversando em altas vozes. Na beirada do fogo, algo cozinhava num caldeirão, e um soldado de boné e capote azul estava de joelhos, claramente iluminado pelo fogo, e mexia o caldeirão com uma vareta de limpar fuzil.
— Oh, c’est un dur à cuire 14 — disse um dos oficiais sentados na sombra, do lado oposto da fogueira.
— Il les fera marcher, les lapins...15 — disse outro com uma risada. Os dois ficaram calados, olhando para o escuro, na direção dos passos de Dólokhov e de Pétia, que iam rumo à fogueira em seus cavalos.
— Bonjour, messieurs!16 — exclamou Dólokhov em voz alta e clara.
Os oficiais se remexeram na sombra da fogueira, e um oficial alto, de pescoço comprido, aproximou-se de Dólokhov contornando o fogo.
— C’est vous, Clément? — disse ele. — D’où diable...17 — Mas não terminou, pois se deu conta de seu engano, e franzindo as sobrancelhas de leve cumprimentou Dólokhov como um desconhecido, perguntando em que poderia ajudá-lo. Dólokhov contou que ele e seu camarada estavam tentando alcançar seu regimento e perguntou, voltando-se para todos em geral, se sabiam de algum oficial do sexto regimento. Ninguém sabia; e Pétia teve a impressão de que os oficiais passaram a olhar com hostilidade para ele e para Dólokhov. Todos ficaram em silêncio por alguns segundos.
— Si vous comptez sur la soupe du soir, vous tenez trop tard18 — disse com um riso contido uma voz que veio de trás da fogueira.
Dólokhov respondeu que não tinham fome e que ainda precisavam viajar naquela noite.
Entregou os cavalos ao soldado que estava mexendo no caldeirão e sentou-se de cócoras junto à fogueira, ao lado do oficial de pescoço comprido. Esse oficial, sem desviar os olhos, observava Dólokhov e perguntou mais uma vez: qual era seu regimento? Dólokhov não respondeu, como se não tivesse escutado a pergunta, e, fumando um cachimbo curto francês que tirou do bolso, perguntou aos oficiais até que altura a estrada à sua frente estava a salvo do ataque de cossacos.
— Les brigands sont partout 19 — respondeu um oficial do outro lado da fogueira.
Dólokhov disse que os cossacos eram temíveis só para os retardatários avulsos, como ele e seu camarada, mas que os cossacos seguramente não se atreviam a atacar os grandes destacamentos, acrescentou em tom interrogativo. Ninguém respondeu nada.
“Bem, agora ele vai embora”, pensava Pétia a cada minuto, parado na frente da fogueira, enquanto ouvia a conversa.
Mas Dólokhov recomeçou a conversa que havia cessado e passou a perguntar de forma direta quantos soldados havia no batalhão, quantos eram os batalhões, quantos eram os prisioneiros. Ao perguntar sobre os prisioneiros russos que havia no destacamento, Dólokhov disse:
— La vilaine affaire de traîner ces cadavres après soi. Vaudrait mieux fusiller cette canaille 20 — e desatou a rir bem alto, um riso tão estranho que Pétia teve a impressão de que os franceses agora iriam descobrir o engodo, e ele, sem pensar no que estava fazendo, recuou um passo, afastando-se da fogueira. Ninguém respondeu às palavras e ao riso de Dólokhov, e um oficial francês que não se podia ver (estava deitado, enrolado num capote) ergueu-se um pouco e sussurrou algo para um camarada. Dólokhov levantou-se e chamou o soldado que estava com os cavalos.
“Será que vão nos entregar os cavalos?”, pensou Pétia, aproximando-se de Dólokhov involuntariamente.
Entregaram os cavalos.
— Bonjour, messieurs — disse Dólokhov.
Pétia quis dizer bonsoir,21 e não conseguiu pronunciar as palavras. Os oficiais falaram algo entre si, em sussurros. Dólokhov demorou a montar em seu cavalo, que não queria ficar parado; em seguida foi a passo lento para fora do portão. Pétia ia a seu lado, queria mas não ousava olhar para trás, a fim de ver se os franceses vinham correndo atrás deles.
Ao chegar à estrada, Dólokhov não voltou para o campo, mas seguiu ao longo da aldeia. Num determinado local, parou, escutando com atenção.
— Está ouvindo? — disse ele.
Pétia reconheceu o som de vozes russas, avistou junto às fogueiras os vultos escuros dos prisioneiros russos. Ao descer até a ponte, Pétia e Dólokhov passaram pela sentinela, que, sem dizer nenhuma palavra, caminhava com ar soturno pela ponte, e foram dar na ravina, onde os cossacos aguardavam.
— Bem, agora adeus. Diga ao Deníssov que vai ser ao raiar do dia, ao soar do primeiro tiro — Dólokhov disse e quis ir embora, mas Pétia segurou-o pelo braço.
— Não! — gritou ele. — O senhor é um herói. Ah, que bom! Que ótimo! Como gosto do senhor.
— Está bem, está bem — disse Dólokhov, mas Pétia não o largava, e no escuro Dólokhov percebeu que ele estava curvado na sua direção. Queria beijá-lo. Dólokhov beijou-o, começou a rir, virou o cavalo e sumiu na escuridão.
X
De volta ao posto de vigia, Pétia encontrou Deníssov na entrada. Deníssov o esperava, emocionado, inquieto e aborrecido consigo mesmo por ter deixado Pétia ir.
— Graças a Deus! — gritou ele. — Puxa, graças a Deus! — repetiu, enquanto ouvia o relato comovido de Pétia. — E que o diabo carregue você, por sua causa eu nem dormi! — exclamou Deníssov. — Puxa vida, graças a Deus, agora vá deitar e dormir. Ainda vamos dar uma cochilada até de manhã.
— Sim... Não — disse Pétia. — Não estou com vontade de dormir. Mas eu me conheço, se eu dormir, não paro mais. Além disso, estou acostumado a não dormir antes de uma batalha.
Pétia ficou sentado algum tempo na isbá, recordando com alegria detalhes de sua incursão e imaginando de forma vivaz o que iria acontecer no dia seguinte. Depois, ao notar que Deníssov havia adormecido, levantou-se e foi para fora.
Lá fora, ainda estava totalmente escuro. A garoa tinha passado, mas algumas gotas ainda caíam das árvores. Perto do posto de vigia, viam-se os vultos negros das cabanas cossacas e dos cavalos amarrados uns aos outros. Por trás de um casebre, via-se a sombra de dois carroções junto aos quais estavam os cavalos, e na ravina rebrilhava vermelho o fogo quase extinto. Nem todos os cossacos e hussardos dormiam: aqui e ali, junto ao barulho dos pingos que caíam e ao som próximo da ruminação dos cavalos, ouviam-se umas vozes baixas, como que sussurradas.
Pétia saiu, olhou em redor no escuro e se aproximou dos carroções. Debaixo dos carroções, alguém roncava, e em volta havia cavalos selados que mastigavam aveia. No escuro, Pétia reconheceu seu cavalo, que ele chamava de Karabákh,22 embora fosse um cavalo da Ucrânia, e chegou perto dele.
— Pois é, Karabákh, amanhã vamos ter trabalho — disse Pétia, cheirando e beijando as narinas do cavalo.
— Puxa, patrão, não está dormindo? — disse um cossaco, sentado debaixo do carroção.
— Não. Mas... Seu nome é Likhatchióv, não é? Pois é, acabei de chegar agorinha. Fomos lá onde estão os franceses. — E Pétia contou em detalhes para o cossaco não só sua incursão, como também por que ele foi e por que achava que era melhor arriscar a vida do que fazer as coisas de qualquer jeito.
— Puxa, mas devia dormir — disse o cossaco.
— Não, eu estou acostumado — respondeu Pétia. — E então, as pederneiras nas suas pistolas não estão gastas? Tenho umas aqui comigo. Não está precisando? Pode pegar.
O cossaco esticou a cabeça por baixo do carroção a fim de observar Pétia mais de perto.
— É porque estou habituado a fazer tudo com exatidão — disse Pétia. — Tem gente que é assim, não se prepara, depois se arrepende. Não gosto disso.
— Está mais do que certo — disse o cossaco.
— Escute uma coisa, meu amigo, por favor, afie meu sabre; está cego... (mas Pétia tinha medo de mentir) é que ele nunca foi afiado. Pode fazer isso?
— Posso, como não?
Likhatchióv levantou-se, remexeu na sua bagagem, e Pétia logo ouviu o som marcial do aço raspando na pedra de amolar. Pétia subiu no carroção e sentou-se na beirada. O cossaco que estava embaixo do carroção amolava o sabre.
— E então, os rapazes estão dormindo? — disse Pétia.
— Uns dormem, outros ficam assim.
— E o garoto, o que está fazendo?
— O tal Vessiéni? Está lá, se enfiou lá pela porta. Depois de ficar morto de medo, pegou no sono. Estava muito contente.
Depois disso, por muito tempo, Pétia ficou em silêncio, escutando atentamente. No escuro, ouviam-se passos e surgiu um vulto negro.
— O que está afiando? — perguntou o homem, aproximando-se do carroção.
— Este patrão aqui mandou amolar o sabre.
— Muito bem — disse o homem, que a Pétia pareceu um hussardo. — Vocês não têm uma xícara aí?
— Lá, olhe, pertinho da roda.
O hussardo pegou a xícara.
— Deve faltar pouco para o dia clarear — exclamou ele, bocejando, e foi para algum lugar.
Pétia tinha de saber que estava na mata, no bando de Deníssov, a uma versta da estrada, que estava sentado num carroção tomado dos franceses, em torno do qual havia cavalos amarrados, e que embaixo dele estava sentado o cossaco Likhatchióv, que amolava o sabre para ele, que a grande mancha negra à direita era o posto de vigia e a mancha vermelha e clara embaixo e à esquerda era uma fogueira que se apagava, tinha de saber que o homem que viera buscar uma xícara era um hussardo que estava com sede; mas Pétia não queria saber de nada disso. Estava no reino da fantasia, onde não havia nada parecido com a realidade. A grande mancha negra podia ser de fato o posto de vigia, mas também podia ser uma caverna que ia dar nas profundezas da terra. A mancha avermelhada podia ser uma fogueira, mas podia ser o olho de um monstro imenso. Talvez ele estivesse apenas sentado no carroção, mas podia muito bem acontecer de ele não estar sentado num carroção, e sim numa torre tremendamente alta, de onde, se caísse, teria de voar um dia inteiro para alcançar a terra, um mês inteiro — ia voar a vida toda e nunca ia pousar. Talvez embaixo do carroção estivesse apenas o cossaco Likhatchióv, mas podia muito bem acontecer que aquela fosse a pessoa mais bondosa, destemida, a pessoa mais fantástica e mais sublime que existia no mundo e que ninguém conhecia. Talvez aquele fosse só um hussardo que tinha vindo buscar água para beber e que depois fora para a ravina, mas podia acontecer de aquele homem, assim que sumiu no escuro, ter sumido de verdade e não existir mais.
Qualquer coisa que Pétia visse naquele momento não o deixaria nem um pouco espantado. Ele estava no reino da fantasia, onde tudo era possível.
Olhou para o céu. E o céu estava tão mágico quanto a terra. O céu estava limpando, e acima do cume das árvores as nuvens corriam ligeiro, pareciam desvelar as estrelas. Às vezes dava a impressão de que o céu limpava e revelava um céu negro e limpo. Às vezes parecia que aquelas manchas negras eram nuvens. Às vezes parecia que o céu se erguia alto, alto, acima de sua cabeça; às vezes o céu descia muito, como se fosse possível tocá-lo com a mão.
Pétia fechou os olhos e balançou a cabeça.
Gotas caíam. Ouviam-se vozes suaves. Os cavalos começavam a relinchar e a se sacudir. Alguém roncava.
— Ojig, jig, ojig, jig... — assoviava o sabre ao ser amolado. E de repente Pétia ouviu um harmonioso coro de instrumentos musicais, que executava um hino desconhecido, solenemente doce. Pétia era amante da música, como Natacha, e mais ainda do que Nikolai, mas nunca estudara música, não pensava em música, e por isso as melodias que lhe vinham de surpresa à cabeça eram para ele algo especialmente novo e encantador. A música era cada vez mais audível. O canto se expandia, passava de um instrumento a outro. Teve início aquilo que chamam de fuga, embora Pétia não tivesse a menor ideia do que era uma fuga. Cada instrumento, ora um parecido com um violino, ora outro parecido com um trompete — mas melhores e mais claros do que um violino e um trompete —, cada instrumento tocava sua parte e, ainda antes de terminar a melodia, fundia-se com outro que havia começado a tocar quase a mesma melodia, e com um terceiro e com um quarto, e todos eles se fundiam em um só e de novo se dispersavam rapidamente, e de novo se fundiam, ora com uma solenidade litúrgica, ora de modo brilhante e triunfal.
“Ah, puxa, mas parece que estou no céu”, disse Pétia consigo, inclinando-se para a frente. “Está nos meus ouvidos. Quem sabe essa música é minha? Vamos, de novo. Toque, minha música! Vamos!...”
Fechou os olhos. E de vários lados, como se viessem de longe, palpitaram sons, começaram a se ordenar, a se dispersar, a se fundir, e de novo tudo se uniu no mesmo hino doce e solene. “Ah, mas que maravilha! Quanta coisa eu quero e como eu quero!”, disse Pétia consigo. Experimentou reger aquele imenso coro de instrumentos.
“Pronto, mais baixo, mais baixo, agora não se ouve nada.” E os sons obedeciam a ele. “Isso, agora mais forte, mais forte, mais alegre. Mais, mais festivo.” E de uma profundeza desconhecida ergueram-se e intensificaram-se os sons triunfantes. “Pronto, vozes, venham se juntar!”, ordenou Pétia. E de início ouviram-se de longe vozes masculinas, depois femininas. As vozes aumentaram, aumentaram num ímpeto ritmado e festivo. Para Pétia, era terrível e alegre sorver aquela beleza extraordinária.
Uma canção se fundiu com a marcha triunfal e festiva, e gotas caíam, e ojig, jig, jig... o sabre assoviava, e de novo os cavalos relincharam e se sacudiram, sem perturbar o coro, mas juntando-se a ele.
Pétia não soube quanto tempo aquilo durou: ele se deleitava, o tempo todo admirado com seu prazer, e lamentava não ter ninguém com quem compartilhar aquilo. A voz carinhosa de Likhatchióv despertou-o.
— Pronto, vossa excelência, vai partir um francês em dois.
Pétia acordou.
— Puxa, o dia já está clareando, está clareando! — exclamou.
Os cavalos antes invisíveis ficaram visíveis da cabeça até a cauda, e através dos galhos nus via-se uma luz fluida. Pétia animou-se, deu um pulo, tirou do bolso uma moeda de um rublo e deu para Likhatchióv, e depois brandiu o sabre, experimentou-o e enfiou-o na bainha. Os cossacos estavam soltando os cavalos e apertavam as barrigueiras das selas.
— Olhe lá o comandante — disse Likhatchióv.
Do posto de vigia, veio Deníssov e, depois de chamar Pétia com um grito, deu ordem para ele se preparar.
XI
Na penumbra, rapidamente pegaram os cavalos, apertaram as barrigueiras e formaram-se divididos em pelotões. Deníssov estava no posto de vigia, dando as últimas ordens. Os infantes do bando passaram à frente pela estrada, centenas de pés estalando na lama, e rapidamente sumiram no meio das árvores na escuridão que antecede a alvorada. O essaul ordenou algo aos cossacos. Pétia segurava seu cavalo pelo cabresto, esperando com impaciência as ordens de montar. Lavado com água fria, seu rosto e sobretudo seus olhos brilhavam como fogo, um frio corria por suas costas, e em todo o corpo algo estremecia, depressa e ritmado.
— E então, está tudo pronto? — disse Deníssov. — Tragam os cavalos.
Trouxeram os cavalos. Deníssov irritou-se com um cossaco porque a barrigueira estava frouxa e, depois de xingá-lo, montou. Pétia subiu no estribo. O cavalo, como de hábito, quis morder seu pé, mas Pétia, sem sentir o próprio peso, rapidamente saltou sobre a sela e, olhando para trás, para os hussardos que se moviam no escuro, aproximou-se de Deníssov.
— Vassíli Fiódorovitch, o senhor não pode me dar uma missão? Por favor... pelo amor de Deus... — disse Pétia. Deníssov parecia ter se esquecido da existência de Pétia. Virou-se para ele.
— Vou pedir uma coisa para você — disse ele em tom severo. — Me obedeça e não meta o nariz onde não é chamado.
Desde a partida, durante todo o tempo, Deníssov não falou mais nenhuma palavra para Pétia e seguia calado. Quando se aproximaram da orla da floresta, já se começava a ver o dia clarear no campo. Deníssov disse algo num sussurro ao essaul, e os cossacos começaram a passar por Pétia e por Deníssov. Quando todos eles tinham passado, Deníssov atiçou seu cavalo e desceu o morro. Escorregando e baixando a garupa até o chão, os cavalos desciam para a ravina com seus cavaleiros nas costas. Pétia seguia ao lado de Deníssov. O tremor no corpo ficava cada vez mais forte. O dia clareava cada vez mais, só uma neblina encobria as formas distantes. Ao chegar lá embaixo, Deníssov virou-se e inclinou a cabeça para um cossaco que estava a seu lado.
— O sinal! — exclamou ele.
O cossaco ergueu o braço, um tiro ressoou. E no mesmo instante ouviram-se o tropel de cavalos que avançaram a galope, gritos de vários lados e outros tiros.
No mesmo instante, assim que soaram os primeiros sons do tropel e dos gritos, Pétia esporeou seu cavalo, soltou as rédeas e, sem dar ouvidos a Deníssov, que gritava para ele, galopou para a frente. Pétia teve a impressão de que, no exato instante em que se ouviu o tiro, de modo totalmente repentino, o dia clareou como se fosse meio-dia. Ele galopou na direção da ponte. À frente, pela estrada, galopavam os cossacos. Na ponte, Pétia chocou-se com um cossaco retardatário e continuou a galopar. À frente, algumas pessoas — na certa eram franceses — corriam do lado direito para o lado esquerdo da estrada. Um caiu na lama aos pés do cavalo de Pétia.
Junto a uma isbá, os cossacos se aglomeraram, fazendo alguma coisa. Do meio da multidão, soou um grito terrível. Pétia galopou para aquela multidão e a primeira coisa que viu foi o rosto pálido de um francês, com a mandíbula trêmula, segurando a haste de uma lança atirada contra ele.
— Hurra!... Camaradas... são nossos... — gritou Pétia, deu rédea solta ao cavalo afogueado e galopou em frente pela rua.
Ouviram-se tiros à frente. Cossacos, hussardos e prisioneiros russos esfarrapados correram de ambos os lados da estrada, grita algo cada vez mais alto e de forma cada vez mais rude. Um francês robusto, sem chapéu, de capote azul e rosto vermelho e contraído, enfrentava os hussardos com uma baioneta. Quando Pétia chegou a galope, o francês já havia caído. Cheguei tarde outra vez, passou pela cabeça de Pétia, e ele partiu a galope para o lugar de onde se ouviam tiros constantes. Os tiros ressoavam no pátio da casa senhorial onde ele havia estado com Dólokhov na noite anterior. Os franceses se abrigaram ali, no jardim, atrás de uma sebe espessa de moitas crescidas, e atiravam nos cossacos que se aglomeravam no portão. Ao chegar ao portão, Pétia avistou Dólokhov no meio da fumaça de pólvora, com o rosto pálido, esverdeado, gritando algo para os soldados. “Vamos dar a volta! Vamos esperar a infantaria!”, gritava, na hora em que Pétia chegou perto dele.
— Esperar?... Hurraaaa!... — começou a gritar Pétia e, sem hesitar nem um minuto, partiu a galope rumo ao local de onde se ouviam os tiros e onde era mais densa a fumaça de pólvora. Ouviu-se uma descarga, assoviaram balas que passavam em branco e outras que se chocaram com alguma coisa. Os cossacos e Dólokhov galoparam atrás de Pétia para dentro do portão da casa. Alguns franceses, na densa fumaça que pairava no ar, apenas largaram as armas e correram das moitas ao encontro dos cossacos, outros correram para baixo do morro, rumo ao poço. Pétia galopou em seu cavalo ao longo do pátio senhorial e, em vez de segurar a rédea, abanava estranhamente os braços no ar e escorregava mais e mais para um lado sobre a sela. O cavalo correu na direção de uma fogueira quase extinta sob a luz da manhã, estacou, e Pétia tombou com violência na terra molhada. Os cossacos viram como suas pernas e seus braços se contorceram por um momento, embora a cabeça não se mexesse. Uma bala acertara sua cabeça.
Depois de trocar algumas palavras com um oficial francês que veio de trás da casa ao seu encontro com um lenço preso na espada e comunicou que estavam se rendendo, Dólokhov desmontou e aproximou-se de Pétia, que jazia imóvel, de braços abertos.
— Bateu as botas — disse, de sobrancelhas franzidas, e foi para o portão, ao encontro de Deníssov, que vinha em sua direção.
— Morreu?! — gritou Deníssov, ao ver Pétia ainda de longe na posição, que conhecia bem, de um corpo obviamente sem vida.
— Bateu as botas — repetiu Dólokhov, como se pronunciar aquelas palavras lhe desse prazer, e rapidamente foi até os prisioneiros, que os cossacos se apressaram em cercar. — Não vamos levar ninguém! — gritou ele para Deníssov.
Deníssov não respondeu; aproximou-se de Pétia, desceu do cavalo e, com as mãos trêmulas, virou para si o rosto de Pétia, já empalidecido e manchado de sangue e de lama.
“Estou acostumado a comer coisas doces. Tenho aqui umas passas ótimas, podem pegar todas”, lembrou-se. E os cossacos, com surpresa, viraram-se ao ouvir o som, semelhante a latidos de cachorro, com o qual Deníssov rapidamente se voltou, foi até a sebe e agarrou-se a ela.
Entre os prisioneiros russos resgatados por Deníssov e Dólokhov estava Pierre Bezúkhov.
XII
Não houve nenhuma nova ordem do comando francês acerca do grupo de prisioneiros de que Pierre fazia parte, durante todo o tempo em que foram levados desde Moscou. No dia 22 de outubro, aquele grupo não estava mais com as tropas e com os comboios de carga com que havia saído de Moscou. Metade do comboio com pão seco, que seguira atrás deles nas primeiras marchas, fora tomada pelos cossacos, a outra metade se adiantou e foi na frente; dos cavalarianos a pé, que iam na frente, nenhum havia sobrado; todos desapareceram. A artilharia, que nas primeiras marchas era sempre vista à frente, tinha sido substituída pelo imenso comboio de carga do marechal Junot, escoltado por tropas da Vestfália. Atrás dos prisioneiros ia um comboio com bagagens da cavalaria.
Desde Viazma, as tropas francesas, que antes marchavam em três colunas, seguiam agora em um só amontoado. Os sinais de desordem que Pierre havia notado na primeira parada, depois de sair de Moscou, agora tinham chegado ao nível mais alto.
A estrada pela qual viajavam, de ambos os lados, estava coalhada de cavalos mortos; soldados esfarrapados, retardatários de diversas companhias, que se sucediam sem cessar, ora se uniam às tropas, ora de novo ficavam para trás das colunas em marcha.
Várias vezes durante a marcha aconteceram rebates falsos, e os soldados da escolta erguiam os fuzis, atiravam e fugiam às pressas, empurrando-se uns aos outros, mas depois de novo se reuniam e se xingavam uns aos outros pelo susto à toa.
Os três amontoados de gente que iam juntos — a bagagem dos cavalarianos, o grupo de prisioneiros e o comboio de carga de Junot — ainda continuavam a constituir algo definido e coeso, embora tanto o primeiro como o segundo e o terceiro estivessem se dissolvendo rapidamente.
No comboio da bagagem dos cavalarianos, no qual havia no início cento e vinte carroças, agora sobravam não mais de sessenta; as demais tinham sido tomadas ou abandonadas. Do comboio de carga de Junot, também tinham sido tomadas e abandonadas várias carroças. Três carroças foram saqueadas por soldados retardatários das tropas de Davout. Pela conversa dos alemães, Pierre soube que aquele comboio de carga contava com uma vigilância maior do que o grupo de prisioneiros e que, entre eles mesmos, um soldado alemão tinha sido fuzilado por ordem do próprio marechal, porque encontraram com o soldado uma colherzinha de prata que pertencia ao marechal.
Porém, entre aqueles três amontoados de gente, o que mais se dissolvia era o grupo de prisioneiros. Dos trezentos e trinta homens que tinham saído de Moscou, agora restavam menos de cem. Para os soldados da escolta, os prisioneiros davam ainda mais trabalho do que as selas da bagagem da cavalaria e do que o comboio de carga de Junot. As selas da cavalaria e as colheres de Junot, isso eles entendiam, era algo que podia servir a alguém, mas para que os soldados famintos e enregelados da escolta deviam vigiar e controlar russos igualmente famintos e enregelados, que congelavam e ficavam largados pela estrada, contra os quais, neste caso, os soldados tinham ordem para atirar — isso era não só incompreensível, como também ultrajante. E os soldados da escolta, como se temessem, na condição deplorável em que estavam, ceder a um sentimento de pena dos prisioneiros e com isso piorar ainda mais sua situação, tratavam-nos de forma especialmente rigorosa e amarga.
Em Dorogobuj, na hora em que os soldados da escolta, depois de trancarem os prisioneiros numa cocheira, foram saquear seus próprios armazéns, alguns soldados prisioneiros enfiaram-se por baixo da parede e fugiram, mas foram apanhados pelos franceses e fuzilados.
A organização anterior, adotada na partida de Moscou, em que os oficiais prisioneiros seguiam separados dos soldados, tinha sido abolida já fazia muito tempo; todos aqueles que podiam caminhar andavam juntos, e Pierre, desde a terceira marcha, voltara a se unir a Karatáiev e ao cachorro avermelhado de pernas tortas que havia escolhido Karatáiev como dono.
No terceiro dia após a partida de Moscou, Karatáiev voltou a ter a mesma febre que o deixara de cama num hospital de Moscou, e à medida que Karatáiev enfraquecia Pierre se afastava dele. Pierre não sabia por quê, mas, desde o momento em que Karatáiev começara a enfraquecer, Pierre tinha de fazer um grande esforço para se aproximar dele. E ao se aproximar e ouvir os gemidos baixos com que Karatáiev em geral se deitava nos acampamentos e sentir o cheiro agora mais forte que Karatáiev exalava, Pierre afastava-se e não pensava nele.
No cativeiro, no barracão, Pierre aprendera não com a razão, mas com todo o seu ser, com a vida, que o homem foi criado para a felicidade, que a felicidade estava dentro dele mesmo, na satisfação das necessidades humanas naturais, e que toda infelicidade advém menos da falta do que do excesso; mas agora, naquelas últimas três semanas de marcha, ele aprendera uma verdade nova e consoladora — aprendera que no mundo não existia nada de terrível. Aprendera que, assim como não existia uma situação em que um homem fosse feliz e inteiramente livre, também não existia uma situação em que ele fosse infeliz e sem liberdade. Pierre aprendera que existia um limite para o sofrimento e um limite para a liberdade e que esses limites ficavam muito próximos; que um homem que sofria porque, deitado em seu leito de rosas, havia uma folhinha dobrada, sofria como ele, que agora dormia na terra nua, úmida, com um lado do corpo frio e outro aquecido; que quando ele, antigamente, calçava seus finos sapatos de baile, sofria como agora, andando totalmente descalço (seus sapatos tinham se desmanchado fazia muito tempo), com os pés cobertos por chagas. Pierre aprendera que, quando ele, assim lhe parecia, havia casado com sua esposa por livre e espontânea vontade, não era mais livre do que agora, quando o trancavam numa cocheira para passar a noite. De tudo aquilo que, depois, também ele iria chamar de sofrimento, mas que agora quase não sentia, o principal eram os pés descalços, esfolados, cobertos de feridas. (A carne de cavalo era gostosa e nutritiva, o sabor de salitre da pólvora, usada em lugar do sal, era até agradável; não fazia muito frio, e durante o dia, em marcha, fazia calor, e à noite acendiam fogueiras; os piolhos que picavam o corpo aqueciam de forma agradável.) Só havia uma coisa penosa naqueles primeiros dias — os pés.
No segundo dia de marcha, ao examinar suas feridas junto à fogueira, Pierre achou que seria impossível pisar nelas; mas, quando todos se levantaram, ele caminhou mancando e, depois, quando esquentou, andou sem dor, embora à tarde tenha olhado para os pés e achado mais terrível ainda. Mas Pierre não olhava para os pés e pensava em outras coisas.
Só agora Pierre entendia toda a força da vitalidade humana e o poder redentor do deslocamento da atenção de que o homem é dotado, a exemplo da válvula de segurança de uma máquina a vapor, que deixa escapar o excesso de vapor quando sua densidade ultrapassa determinado nível.
Pierre não via e não ouvia que fuzilavam os prisioneiros retardatários, embora mais de cem já tivessem sido mortos daquela maneira. Não pensava em Karatáiev, que enfraquecia mais e mais a cada dia e, era evidente, em breve teria o mesmo destino. Menos ainda, Pierre pensava em si mesmo. Quanto mais difícil era sua situação, quanto mais terrível era o futuro, vinham-lhe, de modo ainda mais independente da situação em que se encontrava, pensamentos, recordações e ideias alegres e tranquilizadoras.
XIII
No dia 22 de outubro, ao meio-dia, Pierre andava num morro por uma estrada lamacenta e escorregadia, olhando para os pés e para as irregularidades do caminho. De vez em quando lançava um olhar para a multidão conhecida que o rodeava e olhava de novo para os pés. Tanto uma coisa quanto a outra eram igualmente bem conhecidas dele. O cachorro chamado Cinzento, avermelhado e de pernas tortas, corria num lado da estrada e de vez em quando, a fim de demonstrar sua agilidade e seu contentamento, encolhia a pata traseira e saltava apoiado só em três patas e depois disparava de novo nas quatro patas, latindo para os corvos pousados sobre corpos putrefatos. Cinzento estava mais alegre e mais rechonchudo do que em Moscou. Em todos os lados, pelo chão, havia carne de vários animais — de homens até cavalos, em vários graus de decomposição; e os lobos não se aproximavam por causa das pessoas que andavam por perto; assim Cinzento podia se empanturrar o quanto quisesse.
Caía uma garoa desde a manhã, e parecia que logo ela ia passar e o céu ia limpar, mas depois de uma parada rápida para um descanso a chuva caiu com ainda mais força. A estrada encharcada pela chuva já não absorvia mais a água, e pequenos regatos corriam pelos sulcos.
Pierre andava olhando para os lados, contava nos dedos seus passos, de três em três. Dirigindo-se à chuva, dizia interiormente: vamos, vamos lá, caia mais.
Parecia-lhe que não estava pensando em nada; porém, bem longe e no fundo, em algum canto, sua alma pensava algo importante e consolador. Era uma passagem muito sutil e espiritual que extraíra da conversa com Karatáiev no dia anterior.
Na véspera, na parada noturna, enregelado junto a uma fogueira quase apagada, Pierre levantara-se e seguira rumo a uma fogueira que ardia mais forte ali perto. Junto ao fogo a que Pierre se dirigira, Platon estava sentado, abrigado num capote que levava sobre a cabeça, como uma casula de padre, e contava aos soldados, com sua voz agradável, rápida, mas fraca, doente, uma história que Pierre já conhecia. Já passava de meia-noite. Era a hora em que Karatáiev costumava se animar por causa do acesso de febre e ficava especialmente agitado. Ao chegar perto da fogueira e ouvir a voz fraca e doente de Platon, e ao ver, claramente iluminado pelo fogo, seu rosto de dar pena, o coração de Pierre se apertou de modo desagradável. Assustou-se com a pena que sentiu daquele homem e quis ir embora, mas não havia outra fogueira, e Pierre, tentando não olhar para Platon, agachou-se junto à fogueira.
— E aí, como vai a saúde? — perguntou ele.
— O que tem a saúde? Se a gente fica choramingando na doença, Deus não dá a morte — disse Karatáiev, e logo voltou ao relato já iniciado.
— ... Pois é isso, meu irmão — prosseguiu Platon com um sorriso no rosto magro e pálido e com um brilho diferente e alegre nos olhos —, pois é isso, meu irmão...
Pierre conhecia aquela história fazia muito tempo, Karatáiev tinha contado umas seis vezes aquela mesma história só para ele e sempre com um sentimento especial e alegre. Porém, por mais que Pierre conhecesse a história, agora ele a escutava como algo novo, e aquele entusiasmo sereno que, ao contar, Karatáiev obviamente sentia contagiou Pierre também. Era a história de um velho mercador, bonito e temente a Deus, que morava com a família e que certa vez viajou para Makar,23 em companhia de um amigo mercador rico.
Os dois mercadores pararam numa estalagem de muda de cavalos e adormeceram, e no dia seguinte o camarada do mercador foi encontrado assassinado e roubado. Uma faca ensanguentada foi achada embaixo do travesseiro do velho mercador. Julgaram o mercador, castigaram-no com chicotadas e, depois de arrancarem suas narinas — como se deve fazer, disse Karatáiev —, baniram-no para os trabalhos forçados.
— Pois é, meu irmão (nesse ponto Pierre começou a ouvir o relato de Karatáiev), e assim passam dez anos ou mais. O velhinho está vivendo nos trabalhos forçados. Como deve ser, ele obedece, não faz mal nenhum. Só reza a Deus e pede a morte. Muito bem. Aí eles se reúnem, certa noite, os condenados aos trabalhos forçados, assim como a gente está aqui agora, e o velhinho está junto. E aí começam a falar por que cada um está sofrendo, de que cada um é culpado perante Deus. Começaram a contar, um tirou a vida de uma pessoa, outro de duas, outro é um incendiário, outro é um fugitivo, outro não tinha feito nada. Começaram a perguntar ao velhinho: e você, vovô, por que foi castigado? Eu, irmãos, meus caros, estou pagando pelos meus pecados e pelos pecados dos outros. Não tirei a vida de ninguém, não tomei nada dos outros, na verdade compartilhava o que tinha com meus irmãos mais pobres. Eu, meus caros, sou um mercador; e possuo uma grande riqueza. E assim vai falando. E conta para eles como tudo aconteceu, assim, sabe, na ordem. Eu, diz ele, não me aflijo por mim. Quero dizer, Deus foi me buscar. Tenho pena é da minha velha e dos filhos, diz ele. E o velhinho começou a chorar. Aconteceu que entre eles estava aquele mesmo homem, quer dizer, o que matou o outro mercador. Pergunta: onde foi que aconteceu isso, vovô? Quando, em que mês? Perguntou tudo. Seu coração começou a doer. Chega perto do velhinho desse jeito, assim, e se joga nos pés dele. Velhinho, você está perecendo por minha causa, diz ele. É a verdade verdadeira; este homem está sendo torturado, diz, sem culpa nenhuma, à toa. Fui eu mesmo que fiz isso, diz ele, e pus a faca embaixo da cabeça adormecida. Me perdoe, vovô, diz ele, pelo amor de Cristo.
Karatáiev calou-se, sorrindo alegre, olhando para o fogo, e ajeitou um pedaço de lenha.
— Aí o velhinho vem e diz: Deus na certa vai perdoar você, e a nós todos também, diz, pecadores perante Deus, mas eu estou sofrendo por causa dos meus pecados. Ele mesmo começa a chorar com lágrimas ardentes. O que você acha, meu amigo — disse Karatáiev, com um sorriso comovido e cada vez mais luminoso, como se naquilo que tinha para contar agora se encerrasse o principal encanto e todo o sentido da história —, o que você acha, meu amigo, pois aquele assassino foi lá e se confessou às autoridades. Eu, diz ele, tirei a vida de seis pessoas (era um grande malfeitor), mas o que mais lamento é aquele velhinho. Soltem o homem para que não chore por minha causa. Confessou: anotaram, mandaram o papel, como deve ser. O lugar ficava longe, e o tempo ia passando enquanto julgavam, enquanto escreviam os papéis como deve ser, as autoridades, quero dizer. Chegou até o tsar. Então veio uma ordem do tsar: soltar o mercador, dar a ele uma indenização, o quanto julgassem correto. Chegou o papel, foram buscar o velhinho. Onde está aquele velhinho que sofre sem culpa e à toa? O papel veio do tsar. Foram procurar. — A mandíbula de Karatáiev tremia. — Mas Deus já tinha perdoado... Ele tinha morrido. Pois é, meu amigo — concluiu Karatáiev e ficou olhando para a frente, sorrindo, durante muito tempo.
Não era aquele conto propriamente, mas seu sentido misterioso, aquela alegria comovida que brilhava no rosto de Karatáiev depois de contar a história, o sentido misterioso daquela alegria, era isso o que enchia agora a alma de Pierre de um modo vago e alegre.
XIV
— A vos places! 24 — gritou de repente uma voz.
Entre os prisioneiros e os soldados da escolta produziram-se uma confusão alegre e uma expectativa de algo feliz e festivo. De todos os lados ouviram-se gritos de comando, e do lado esquerdo cavalarianos contornaram os prisioneiros, passando a trote, bem-vestidos, em bons cavalos. Havia em todos os rostos a expressão de tensão que se vê nas pessoas diante da aproximação de autoridades supremas. Os prisioneiros se aglomeraram, foram empurrados para fora da estrada; os soldados da escolta puseram-se em forma.
— L’empereur! L’empereur! Le maréchal! Le duc!25 — E mal haviam passado os garbosos soldados da escolta quando chegou com estrépito uma carruagem puxada por cavalos cinzentos. De relance, Pierre avistou um rosto calmo, bonito, gordo e branco de um homem com um chapéu de três pontas. Era um dos marechais. O olhar do marechal voltou-se para o vulto volumoso e chocante de Pierre e, na expressão com que o marechal franziu as sobrancelhas e virou o rosto, Pierre pareceu ver compaixão e o desejo de escondê-la.
O general no comando do comboio das bagagens, com o rosto vermelho e assustado, conduzindo seu cavalo magro, galopou atrás da carruagem. Alguns oficiais foram junto, os soldados os cercaram. Todos tinham o rosto perturbado e tenso.
— Qu’est-ce qu’il a dit? Qu’est-ce qu’il a dit?...26 — ouviu Pierre.
Na hora em que o marechal passou, os prisioneiros tinham se aglomerado, muito juntos, e Pierre viu Karatáiev, que ainda não tinha visto desde a manhã. Com seu capote, Karatáiev estava sentado, recostado numa bétula. Em seu rosto, além da expressão da emoção alegre do dia anterior, quando contara a história dos sofrimentos do mercador inocente, reluzia também uma expressão de serena solenidade.
Karatáiev olhou para Pierre com seus olhos bondosos e redondos, agora encobertos por lágrimas, e obviamente chamava Pierre para perto de si, queria dizer algo. Mas Pierre sentiu um medo terrível de si mesmo. Fingiu que não viu o olhar de Karatáiev e afastou-se depressa.
Quando os prisioneiros foram postos em movimento outra vez, Pierre olhou para trás. Karatáiev estava sentado na beira da estrada, junto à bétula, e dois franceses falavam algo perto dele. Pierre não se virou mais para olhar. Caminhava mancando pelo morro.
Atrás, no local onde estava Karatáiev, soou um tiro. Pierre ouviu nitidamente aquele tiro, mas no instante em que o ouviu Pierre lembrou-se de que ele não havia terminado o cálculo, iniciado ainda antes da passagem do marechal, de quantos dias de marcha faltavam para chegar a Smolensk. E começou a calcular. Dois soldados franceses, um deles com um fuzil fumegante nas mãos, passaram por Pierre. Os dois estavam pálidos, e a expressão em seus rostos — um deles olhou timidamente para Pierre — era semelhante à que ele tinha visto naquele soldado jovem na hora da execução. Pierre observou o soldado e lembrou que dois dias antes aquele mesmo soldado, ao tentar secar a camisa na fogueira, tinha deixado que ela pegasse fogo e rira de si mesmo.
O cachorro começou a uivar lá atrás, no lugar onde estava Karatáiev. “Que tolo, para que está uivando?”, pensou Pierre.
Os camaradas soldados que andavam ao lado de Pierre, assim como ele, não olharam para trás, para o lugar de onde tinham ouvido o tiro e depois o uivo do cachorro; mas havia uma fisionomia severa em todos os rostos.
XV
O comboio de bagagens da cavalaria, os prisioneiros e o comboio de carga do marechal pararam na aldeia de Chámchevo. Todos se aglomeraram em torno das fogueiras. Pierre aproximou-se de uma fogueira, comeu carne de cavalo cozida, deitou-se de costas para o fogo e logo adormeceu. Dormiu de novo com o mesmo sono que havia dormido em Mojáisk, depois da batalha de Borodinó.
De novo os acontecimentos da realidade se uniram com os do sonho e de novo alguém, ele mesmo ou outra pessoa, disse-lhe uns pensamentos, na verdade os mesmos pensamentos que ele tinha ouvido no sonho em Mojáisk.
“A vida é tudo. A vida é Deus. Tudo muda e se movimenta, e esse movimento é Deus. E enquanto existe vida, existe o prazer da consciência da divindade. Amar a vida é amar a Deus. O mais difícil e o mais sagrado de tudo é amar esta vida em seus sofrimentos, nos sofrimentos da inocência.”
“Karatáiev!”, lembrou-se Pierre.
E de súbito Pierre viu mentalmente, como se estivesse vivo, o gentil professor velhinho, esquecido havia muito tempo, que lhe dava aulas de geografia na Suíça. “Espere”, disse o velhinho. E mostrou para Pierre o globo terrestre. O globo era uma esfera viva, oscilante, que não tinha limites definidos. Toda a superfície da esfera era formada por gotas compactamente comprimidas umas às outras. Todas aquelas gotas se moviam, se transformavam, e ora muitas se fundiam em uma só, ora uma só se desmembrava em muitas. Cada gota se empenhava em transbordar, ocupar um espaço maior, mas as outras se empenhavam da mesma forma, a espremiam, às vezes a aniquilavam, outras vezes se fundiam com ela.
— Isto é a vida — disse o velhinho professor.
“Como é simples e claro”, pensou Pierre. “Como pude ignorar isso antes?”
— No meio está Deus, e cada gota luta para se expandir a fim de refletir Deus em dimensões maiores. E cresce, funde-se, comprime-se, desmancha-se na superfície, vai embora para o fundo e de novo emerge. Lá está ele, Karatáiev, veja, transbordou e desapareceu. Vous avez compris, mon enfant 27 — disse o professor.
— Vous avez compris, sacré nom28 — começou a gritar uma voz, e Pierre acordou.
Ergueu-se nos cotovelos e sentou-se. Junto à fogueira, de cócoras, estava um francês que acabara de empurrar um soldado russo para o lado e assava uma carne enfiada numa vareta de fuzil. Suas mangas estavam arregaçadas, e as mãos gordurosas, vermelhas, cobertas de pelos, com dedos curtos, giravam com agilidade a vareta de fuzil. Via-se claramente na luz das brasas o rosto sombrio, marrom, de sobrancelhas grossas e pretas.
— Ça lui est bien égal — resmungou, voltando-se rapidamente para o soldado que estava de pé atrás dele — ... brigand. Va! 29
E o soldado que girava a vareta de fuzil lançou um olhar soturno para Pierre. Pierre virou-se, olhou para a sombra. Um soldado russo prisioneiro, aquele que o francês havia empurrado, sentou-se junto à fogueira e afagava algo com a mão. Pierre olhou mais de perto e reconheceu o cachorrinho avermelhado que, sacudindo o rabo, estava sentado junto ao soldado.
— Ah, ele veio? — disse Pierre. — Ah, o Pla... — começou e não terminou de falar. De repente, em sua imaginação, misturando-se todas ao mesmo tempo, vieram as lembranças do olhar com que Platon o fitara sentado ao pé da bétula, do tiro que ouvira naquele lugar, do uivo do cachorro, dos rostos culpados dos dois franceses que passaram por ele correndo, do fuzil fumegante, da ausência de Karatáiev naquele acampamento, e Pierre já estava à beira de compreender que Karatáiev tinha sido morto, mas naquele exato instante, em sua alma, vinda só Deus sabe de onde, acudiu a recordação de uma noite de verão que ele havia passado com uma linda jovem polonesa na sacada de sua casa em Kíev. E, mesmo sem estabelecer nenhuma relação com as lembranças daquele dia e sem tirar dali nenhuma conclusão, Pierre fechou os olhos, e a imagem da natureza de verão misturou-se com a lembrança de um banho, de uma esfera líquida oscilante, e ele afundou naquela água de tal modo que a água se fechou por cima de sua cabeça.
Antes do nascer do sol, gritos e tiros altos e repetidos acordaram Pierre. Franceses passaram correndo por ele.
— Les cosaques! 30 — gritou um dos franceses, e um minuto depois uma multidão de rostos russos rodeou Pierre.
Pierre demorou muito tempo até entender o que estava acontecendo. De todos os lados, ouvia brados de alegria dos camaradas.
— Irmãos! Minha gente, queridos! — gritavam chorando os velhos soldados, enquanto abraçavam os cossacos e os hussardos. Os hussardos e os cossacos rodearam os prisioneiros e se apressaram em oferecer roupas a uns, a outros sapatos, a outros pão. Pierre chorava, sentado no meio deles, e não conseguia pronunciar nenhuma palavra; abraçou o primeiro soldado que se aproximou e, chorando, beijou-o.
Dólokhov estava de pé junto ao portão da casa arruinada, deixando passar na sua frente uma multidão de franceses desarmados. Os franceses, abalados com tudo o que havia ocorrido, falavam alto entre si; mas quando passavam por Dólokhov, que batia de leve com o chicote nas próprias botas e olhava para eles com seu olhar frio, vidrado, que nada prometia de bom, suas vozes silenciavam. Do outro lado estava um cossaco de Dólokhov que contava os prisioneiros, marcando cada centena com um risco de giz preto no portão.
— Quantos? — perguntou Dólokhov ao cossaco que contava os prisioneiros.
— É a segunda centena — respondeu o cossaco.
— Filez, filez — exclamava Dólokhov, que havia aprendido aquela expressão com os franceses, e, quando seus olhos cruzavam com os dos franceses que passavam, seu olhar chamejava com um brilho cruel.
Deníssov, de rosto sombrio, havia tirado da cabeça o gorro alto de pele e caminhava ao lado de uns cossacos que carregavam para uma cova, escavada no jardim, o corpo de Pétia Rostóv.
XVI
Desde o dia 28 de outubro, quando os saques tiveram início, a fuga dos franceses adquiriu um caráter ainda mais trágico, com homens que congelavam ou assavam até morrer perto das fogueiras, enquanto pessoas em casacos de pele e em carruagens continuavam a passar, com os despojos tomados pelo imperador, pelos reis e pelos duques; mas na realidade o processo da fuga e da desintegração do exército francês, desde a saída de Moscou, não sofreu nenhuma alteração.
De Moscou até Viazma, do exército francês de setenta e três mil soldados, sem contar a guarda (que durante toda a guerra nada fez a não ser saquear) — de setenta e três mil, restavam trinta e seis mil (daquele contingente, não mais de cinco mil morreram em batalha). Esse é o primeiro termo de uma progressão, a partir do qual os termos seguintes são matematicamente determinados com precisão.
O exercito francês se desfazia e se destruía, nessa mesma proporção, no percurso de Moscou a Viazma, de Viazma a Smolensk, de Smolensk a Bereziná, de Bereziná a Vilna, independentemente do maior ou menor grau do frio, da perseguição, dos empecilhos do caminho e de todas as demais condições, tomadas isoladamente. Depois de Viazma, as tropas francesas, em lugar de marchar em três colunas, se amontoaram em um bando e assim continuaram até o fim. Berthier escreveu para seu soberano (é sabido como os comandantes se permitem afastar-se da verdade quando descrevem a situação do exército). Berthier escreveu:
Je crois devoir faire connaître à Votre Majesté l’état de ses troupes dans les différents corps d’armée que j’ai été à même d’observer depuis deux ou trois jours dans différents passages. Elles sont presque débandées. Le nombre des soldats qui suivent les drapeaux est en proportion du quart au plus dans presque tous les régiments; les autres marchent isolément dans différentes directions et pour leur compte, dans l’espérance de trouver des subsistances et pour se débarrasser de la discipline. En général ils regardent Smolensk comme le point où ils doivent se refaire. Ces derniers jours on a remarqué que beaucoup de soldats jettent leurs cartouches et leurs armes. Dans cet état de choses, l’intérêt du service de Votre Majesté exige, quelles que soient ses vues ultérieures, qu’on rallie l’armée à Smolensk en commençant à la débarrasser des non-combattants, tels que les hommes démontés, et des bagages inutiles et du matériel de l’artillerie, qui n’est plus en proportion avec les forces actuelles. En outre, les jours de repos, des subsistances sont nécessaires aux soldats qui sont exténués par la faim et la fatigue; beaucoup sont morts ces derniers jours sur la route et dans les bivouacs. Cet état de choses va toujours en augmentant et donne lieu de craindre que, si l’on n’y prête un prompt remède, on ne soit plus maître des troupes dans un combat. Le 9 novembre, à trente verstes de Smolensk.31
Ao irromper em Smolensk, que a eles parecia ser a terra prometida, os franceses se mataram uns aos outros em luta pelas provisões, pilharam seus próprios armazéns e, quando tudo estava saqueado, continuaram a fugir.
Todos andavam sem saber para onde nem para quê. Menos ainda do que os demais, sabia-o o gênio de Napoleão, porque a ele ninguém dava ordens. No entanto Napoleão e os que o rodeavam mantiveram seus hábitos antigos: redigiam ordens, cartas, relatórios, ordres du jour,32 chamavam-se uns aos outros de “sire, mon cousin, prince d’Ekmühl, roi de Naples” etc. Mas as ordens e os relatórios ficavam só no papel, nada se concretizava, porque não podia se concretizar, e, apesar de tratarem-se uns aos outros por majestades, altezas e primos-irmãos, todos eles sentiam que eram pessoas patéticas e torpes, que tinham causado muita desgraça pela qual agora teriam de pagar. E, apesar de fingirem estar muito ocupados com o exército, cada um só pensava em si e em como fugir e salvar-se o mais depressa possível.
XVII
Os movimentos das tropas russas e francesas na campanha do retorno de Moscou para o Niemen pareciam um jogo de cabra-cega em que dois jogadores vendam os olhos e um deles de vez em quando toca uma sineta a fim dar notícia de si ao jogador que o persegue. De início, aquele que é perseguido toca a sineta sem temer o inimigo, mas quando sua situação piora ele se esforça para andar sem ser ouvido, foge do inimigo e muitas vezes, pensando que foge, corre direto para as mãos dele.
No início as tropas napoleônicas ainda avisavam de sua presença — foi na primeira fase do deslocamento pela estrada de Kaluga, mas, depois que optaram pela estrada de Smolensk, passaram a correr segurando na mão o badalo da sineta e, muitas vezes, pensando que fugiam, corriam direto para os russos.
Graças à rapidez da fuga dos franceses, à rapidez dos russos no seu encalço e, por conta disso, graças à exaustão dos cavalos, o principal meio de conhecer de modo aproximado a situação do inimigo — as patrulhas de cavalaria — não existia. Além disso, por causa das constantes e rápidas mudanças de posição de ambos os exércitos, as informações que se obtinham não podiam ser entregues em tempo hábil. Se num dia chegava a informação de que no dia anterior o exército inimigo estava em determinado local, no terceiro dia, quando enfim era possível fazer alguma coisa, aquelas tropas já tinham feito dois dias de marcha e estavam numa localização completamente distinta.
Um exército fugia, o outro perseguia. A partir de Smolensk, ofereciam-se aos franceses muitas estradas diferentes; e pode parecer que, depois de ficarem ali quatro dias, os franceses teriam condições de saber onde estava o inimigo, planejar alguma ação proveitosa e realizar algo novo. Porém, depois de uma estada de quatro dias, seus bandos de novo saíram em debandada, não para a direita, nem para a esquerda, mas, sem nenhuma manobra e sem nenhuma razão, por uma estrada velha, a pior de todas, que passava por Krásnoie e Orchá — onde eles já haviam deixado suas pegadas.
Como esperavam o inimigo por trás, e não pela frente, os franceses corriam, ultrapassavam-se e afastavam-se uns dos outros, abrindo distâncias de até vinte e quatro horas de marcha. À frente de todos, corria o imperador, depois os reis, depois os duques. O exército russo, pensando que Napoleão seguiria para o lado direito depois do rio Dniepr, a única coisa razoável a fazer, também seguiu para a direita e foi dar na grande estrada para Krásnoie. Lá, como num jogo de cabra-cega, os franceses deram de cara com a nossa vanguarda. Ao ver inesperadamente o inimigo, os franceses se confundiram, pararam com a surpresa do susto, mas depois correram de novo, largando para trás seus camaradas que os seguiam. Ali, como se percorressem um corredor polonês formado pelas tropas russas, durante três dias as várias partes do exército francês passaram separadamente, de início as tropas do vice-rei, depois as de Davout, depois as de Ney. Todas abandonaram umas às outras, abandonaram toda a sua carga, a artilharia, a metade do seu contingente e fugiram, desviando-se dos russos à noite com semicírculos para a direita.
Ney, que ia por último (porque, apesar da situação infeliz dos franceses, ou justamente por causa disso, eles queriam castigar o solo que os havia ultrajado, e Ney havia se ocupado com a demolição das muralhas de Smolensk, que não estavam atrapalhando ninguém) — Ney, por último, com seu corpo de tropa de dez mil soldados, chegou às pressas a Orchá, ao encontro de Napoleão, apenas com mil homens, depois de ter abandonado todos os outros e todos os canhões e depois de ter cruzado o rio Dniepr furtivamente à noite, por dentro da floresta.
De Orchá continuaram a correr pela estrada para Vilna, como se brincassem de cabra-cega com o exército que os perseguia. Em Bereziná de novo se confundiram, muitos se afogaram, muitos se renderam, mas aqueles que atravessaram o rio continuaram a correr. Seu principal comandante estava de casaco de pele e, sentado num trenó, galopava sozinho, depois de deixar seus camaradas para trás. Quem podia fugiu também, quem não podia rendeu-se ou morreu.
XVIII
Tinha-se a impressão, na campanha da fuga dos franceses, quando eles mesmos faziam todo o possível para se destruir, quando nenhum movimento daquela multidão, desde a curva para a estrada de Kaluga até a fuga do comandante do exército, fazia o menor sentido — tinha-se a impressão de que, naquela fase da campanha, seria impossível para os historiadores, que atribuem a ação da massa humana à vontade de uma pessoa, descrever tal retirada segundo suas teorias. Mas não. Montanhas de livros foram escritas pelos historiadores a respeito daquela campanha, e em toda parte foram analisadas as ordens de Napoleão e seus planos argutos — as manobras executadas pelas tropas e as ordens geniais de seus marechais.
A retirada de Malo Iaroslávets, quando ele tinha caminho livre rumo a uma região de fartura e quando tinha caminho aberto por uma estrada paralela, pela qual Kutúzov depois o seguiu, a retirada desnecessária por uma estrada devastada, tudo isso nos é explicado por meio de diversas considerações argutas. Por meio das mesmas considerações argutas, é explicada sua retirada de Smolensk para Orchá. Depois ele é descrito de forma heroica em Krásnoie, onde pelo que dizem ele estava pronto para travar batalha e comandá-la pessoalmente, enquanto andava com uma bengala feita de bétula na mão e dizia:
— J’ai assez fait l’empereur, il est temps de faire le général 33 — e, apesar disso, logo depois continuou a fugir, abandonando à sanha do destino os pedaços dispersos do exército que estavam mais atrás.
Em seguida nos descrevem os grandes espíritos dos marechais, em especial de Ney, grandeza de espírito que consistiu em que, à noite, ele tomou um desvio pela floresta, cruzou o rio Dniepr e, sem bandeiras nem artilharia, chegou a Orchá, sem nove décimos de suas tropas.
E por fim a última despedida do grande imperador do seu exército heroico nós é apresentada pelos historiadores como algo grandioso e genial. Até esse último ato de fuga, que na linguagem humana recebe o nome de último grau da infâmia, algo de que toda criança aprende a ter vergonha, esse mesmo ato na linguagem dos historiadores recebe uma justificação.
Nessa altura, quando já é impossível esticar ainda mais os fios tão elásticos dos raciocínios históricos, quando as ações já se mostram claramente contrárias àquilo que toda a humanidade chama de bem e até de justiça, ocorre aos historiadores a noção redentora de grandeza. A grandeza parece excluir a possibilidade de um padrão do bom e do mau. Para o grande, não existe o mau. Não há horror que possa ser atribuído à responsabilidade de quem é grande.
“C’est grand!”,34 dizem os historiadores, e então já não existe bom nem mau, existe o “grand” e o “não grand”. Grand é bom, não grand é ruim. Grand é, no entendimento deles, a característica de alguns animais especiais, a que eles chamam de heróis. E Napoleão, escapulindo às pressas para casa, envolto num quente casaco de pele, deixando para trás, para perecer, não só seus camaradas como também pessoas (no seu modo de ver) levadas até lá por ele mesmo, sente que c’est grand, e sua alma fica tranquila.
“Du sublime (ele vê em si algo de sublime) au ridicule il n’y a qu’un pas”,35 diz ele. E o mundo todo repete durante cinquenta anos: “Sublime! Grand! Napoléon le Grand! Du sublime au ridicule il n’y a qu’un pas”.
E não passa pela cabeça de ninguém que admitir que a grandeza é imensurável pela medida do bom e do mau é apenas admitir sua insignificância e imensurável pequenez.
Para nós, com a medida do bom e do mau que Cristo nos deu, não é imensurável. E não existe grandeza onde não existem a simplicidade, o bem e a verdade.
XIX
Quem entre os russos, ao ler as descrições da última fase da campanha de 1812, não experimentou uma penosa sensação de irritação, de descontentamento e de incerteza? Quem não se fez a pergunta: como não capturaram, não aniquilaram todos os franceses, quando três exércitos inteiros os cercavam, em vantagem numérica, quando os franceses, em desordem, passando fome e congelando, rendiam-se em multidões, e quando (como nos conta a história) o objetivo dos russos era justamente deter, cortar o caminho e aprisionar todos os franceses?
De que forma o exército russo, que, quando em desvantagem numérica em relação aos franceses, travou a batalha de Borodinó, de que forma esse exército que cercava os franceses por três lados e tinha o objetivo de capturá-los não alcançou seu propósito? Será que os franceses tinham tamanha superioridade sobre nós que nossas tropas, que os haviam cercado com forças superiores, não podiam vencê-los? Como isso pôde acontecer?
A história (aquilo que é designado por tal palavra), em resposta a essas perguntas, diz que aquilo aconteceu porque Kutúzov, Tormássov, Tchitchagóv, e fulano e sicrano não fizeram tais e tais manobras.
Mas por que não fizeram todas aquelas manobras? Por que, se eram culpados por não ter sido atingido o objetivo traçado de antemão — por que não foram julgados e condenados? Porém, mesmo se admitirmos que a culpa pelo fracasso dos russos foi de Kutúzov, Tchitchagóv etc., mesmo assim é impossível compreender por que, nas condições em que se encontravam as tropas russas em Krásnoie e Bereziná (em ambos os casos os russos contavam com forças superiores), por que as tropas francesas não foram feitas prisioneiras com seus marechais, reis e imperadores, quando era esse o objetivo dos russos.
A explicação dada para esse estranho fenômeno (explicação apresentada pelos historiadores militares russos), a saber, que Kutúzov impediu o ataque, não tem fundamento, porque sabemos que a vontade de Kutúzov não pôde conter as tropas nos ataques em Viazma e em Tarútino.
Por que as tropas russas, que, com forças inferiores, tinham alcançado a vitória em Borodinó sobre um inimigo que então contava com sua força máxima, dessa vez, em Krásnoie e em Bereziná, com forças superiores, foram batidas por bandos de franceses desorganizados?
Se o objetivo dos russos consistia em cortar o caminho e aprisionar Napoleão e os marechais, e tal objetivo não só não foi atingido como todas as tentativas de atingi-lo foram derrotadas da maneira mais vergonhosa, é totalmente justo que essa última fase da campanha seja apresentada pelos franceses como uma série de vitórias, e é totalmente injusto que seja apresentada pelos historiadores russos como vitoriosa.
Os historiadores militares russos, na medida em que se sujeitam à lógica, são obrigados a chegar a tal conclusão e, apesar do apelo lírico à bravura, à abnegação etc., são obrigados a reconhecer que a retirada dos franceses de Moscou é uma série de vitórias de Napoleão e de derrotas de Kutúzov.
Porém, deixando totalmente de lado o orgulho nacional, percebe-se que essa mesma conclusão encerra em si uma contradição, pois a série de vitórias dos franceses resultou no seu completo aniquilamento, ao passo que a série de derrotas dos russos resultou, para eles, no total aniquilamento do inimigo e na libertação de sua pátria.
A fonte de tal contradição repousa em que os historiadores, que têm notícia dos acontecimentos por meio das cartas dos soberanos e dos generais, por meio de comunicados, relatórios, planos etc., atribuíram à última fase da guerra de 1812 um objetivo falso, que jamais existiu — o objetivo de cortar o caminho e aprisionar Napoleão, os marechais e o exército.
Tal objetivo nunca existiu e não poderia existir, porque ele não tem sentido e atingi-lo seria totalmente impossível.
Tal objetivo não tinha nenhum sentido, primeiro, porque o exército desorganizado de Napoleão fugia da Rússia com a maior rapidez possível, ou seja, estava fazendo exatamente aquilo que todo russo podia desejar. Para que realizar diversas operações contra os franceses, que estavam fugindo o mais depressa que podiam?
Em segundo lugar, era um absurdo barrar o caminho de pessoas que empenhavam todas as suas energias em fugir.
Em terceiro lugar, era um absurdo sacrificar suas tropas para aniquilar os exércitos franceses, já aniquilados sem a ajuda de fatores externos, e em tal escala progressiva que, mesmo sem nenhum obstáculo em seu caminho, não conseguiram cruzar a fronteira mais do que aqueles que a atravessaram no mês de dezembro, ou seja, a centésima parte do exército inteiro.
Em quarto lugar, seria um absurdo querer tomar como prisioneiro o imperador, os reis, os duques — pessoas que, presas, trariam gravíssimas dificuldades para as ações dos russos, como admitiam os diplomatas mais experientes da época (J. Maistre e outros).36 Ainda mais absurdo seria o desejo de capturar as tropas francesas quando as próprias tropas russas haviam se dissolvido até a metade do que eram, ainda antes de chegarem a Krásnoie, quando seria preciso destacar uma divisão para escoltar as tropas capturadas e quando, além disso, os soldados russos nem sempre recebiam provisões completas e os prisioneiros já capturados estavam morrendo de fome.
Todo esse plano engenhoso de cortar o caminho e capturar Napoleão e o exército se assemelhava ao plano do hortelão que, para manter afastada da horta uma vaca que pisoteava seus canteiros, corria até o portão e começava a bater na cabeça do animal. A única coisa que se poderia dizer para justificar o hortelão é que estava muito irritado. Mas nem isso é possível dizer a respeito dos criadores do projeto, porque não foram eles que tiveram a horta pisoteada.
Porém, além de ser absurdo, cortar o caminho de Napoleão e de seu exército era algo impossível.
Era impossível em primeiro lugar porque, assim como a experiência demonstra que em uma batalha o movimento de colunas de soldados ao longo de três verstas jamais coincide com os planos, a probabilidade de Tchitchagóv, Kutúzov e Wittgenstein conseguirem reunir suas tropas num determinado local num horário marcado era tão insignificante que se equiparava à impossibilidade, como já pensava Kutúzov, que na hora mesma em que recebeu o plano disse que manobras diversionistas em distâncias muito grandes não produziam os resultados desejados.
Em segundo lugar era impossível porque, a fim de deter a força de inércia com que se moviam para trás as tropas de Napoleão, seriam necessárias tropas incomparavelmente maiores do que aquelas de que os russos dispunham.
Em terceiro lugar, era impossível porque o termo militar “cortar o caminho” não tem nenhum sentido. É possível cortar um pedaço de pão, mas não um exército. Cortar o exército — cortar seu caminho — é totalmente impossível, porque sempre existem muitos lugares em redor por onde é possível desviar-se, e existe a noite, horário em que nada se enxerga, fato de que os sábios militares poderiam se convencer, com a ajuda dos exemplos de Krásnoie e de Bereziná. É totalmente impossível tomar prisioneiros se aqueles que serão feitos prisioneiros não concordarem com isso, assim como é impossível apanhar uma andorinha, a menos que ela pouse em nossa mão. É possível fazer prisioneiros aqueles que, como os alemães, se rendem conforme as regras da tática e da estratégia. Mas as tropas francesas, com total razão, não achavam isso conveniente, porque a mesma morte de fome e de frio os aguardava tanto na fuga quanto no cativeiro.
Em quarto lugar, e o mais importante, era impossível porque, desde que o mundo existe, nunca houve uma guerra em condições tão terríveis como foi a do ano de 1812, e as tropas russas empenharam todas as suas energias na perseguição dos franceses e não poderiam fazer mais do que fizeram sem aniquilar a si mesmas.
No deslocamento do exército russo de Tarútino até Krásnoie, foram abandonados cinquenta mil doentes e retardatários, ou seja, um número igual ao da população de uma grande cidade de província. Metade do contingente russo ficou fora de combate sem travar batalha.
E é sobre tal fase da campanha, quando o exército, sem botas e sem casacos de pele, com provisões escassas, sem vodca, dormindo sobre a neve durante meses, num frio de quinze graus negativos; quando o dia tinha apenas sete ou oito horas de duração, e o resto era noite, horário em que não se podia exercer a influência da disciplina; quando as pessoas lutavam a cada minuto contra a morte pela fome e pelo frio e assim estavam vivendo havia meses, à diferença do que ocorre numa batalha, ocasião em que só por algumas horas as pessoas adentram o território da morte, onde não existe disciplina; quando em um mês pereceu metade do exército — é sobre essa fase da campanha que os historiadores nos explicam como Milorádovitch deveria ter feito uma marcha de flanco em tal direção, e Tormássov em tal direção, e como Tchitchagóv deveria ter se deslocado para tal lugar (deslocar-se com a neve acima dos joelhos), e como assim apanhariam de surpresa e cortariam o caminho etc. etc.
Os russos, metade dos quais morreu, fizeram tudo o que era possível e tudo o que se devia fazer para atingir um objetivo digno do povo, e não têm culpa de que russos sentados em cômodos aquecidos achem que se devia fazer algo que era impossível.
Toda essa contradição, agora estranha e incompreensível, entre os fatos e a descrição da história ocorre apenas porque os historiadores que escreveram sobre tal acontecimento redigiram a história dos lindos sentimentos e palavras de alguns generais, e não a história dos acontecimentos.
Para eles, parecem muito notáveis as palavras de Milorádovitch, as condecorações recebidas por este ou aquele general, bem como suas conjeturas; mas a questão daqueles cinquenta mil que ficaram nos hospitais e nas sepulturas nem interessa a eles, porque não dizem respeito a seu estudo.
Todavia basta apenas dar as costas para o estudo dos relatórios e dos planos dos generais e embrenhar-se no movimento das centenas de milhares de pessoas que tomaram parte direta, imediata, nos acontecimentos, para que tudo o que antes parecia insolúvel, de repente, com uma facilidade e simplicidade extraordinárias, receba uma solução incontestável.
O objetivo de cortar o caminho de Napoleão e do exército nunca existiu, a não ser na imaginação de uma dezena de pessoas. Nem poderia existir, porque era absurdo e sua realização era impossível.
O objetivo do povo era um só: libertar da invasão a terra toda. Tal objetivo foi alcançado em primeiro lugar por si mesmo, pois os franceses fugiram, e portanto cumpria apenas não interromper esse movimento. Em segundo lugar, tal objetivo foi alcançado por meio das ações da guerra popular, que foi aniquilando os franceses, e em terceiro lugar pelo fato de que um grande exército russo foi atrás dos franceses, pronto para empregar a força, no caso de uma interrupção do movimento dos franceses.
O exército russo tinha de agir como um chicote contra um animal que corre. E um carroceiro experiente sabe que é mais vantajoso manter o chicote erguido e ameaçador do que fustigar a cabeça do animal que corre.
1 Francês: “Em quarta [...] em terça [...] em primeira.” Referência às posições da esgrima.
2 Francês: “Os grandes batalhões têm sempre razão”.
3 Casaco caucasiano de feltro.
4 Capitão dos cossacos.
5 Chicote curto, grosso, de couro, usado pelos cossacos.
6 “Que tem uma lacuna”, em russo.
7 Francês: “Ah, é você! [...] Não quer comer? Não tenha medo, ninguém vai lhe fazer mal [...] Entre, entre”.
8 Casaco curto, típico de povos do Cáucaso e do sul da Sibéria.
9 Francês: “Quem vem lá?”.
10 Francês: “Lanceiros do sexto”.
11 Francês: “Senha?”.
12 Francês: “Diga lá, o coronel Gérard está aqui?”.
13 Francês: “Quando um oficial faz sua ronda, as sentinelas não pedem a senha... [...] Estou perguntando se o coronel está aqui”.
14 Francês: “Ah, ele é duro de roer”.
15 Francês: “Ele vai pôr os coelhos para correr...”.
16 Francês: “Bom dia, senhores!”.
17 Francês: “É você, Clément? [...] Em que diabo de lugar...”.
18 Francês: “Se vocês estão contando com a sopa da noite, chegaram tarde”.
19 Francês: “Os bandidos estão em toda parte”.
20 Francês: “Coisa mais detestável, ter de arrastar esses cadáveres a reboque. Era melhor fuzilar essa escória”.
21 Francês: “boa-noite”.
22 Região do Cáucaso famosa por seus cavalos.
23 Nome da feira da cidade de Níjni-Nóvgorod.
24 Francês: “A seus lugares!”.
25 Francês: “O imperador! O imperador! O marechal! O duque!”.
26 Francês: “O que foi que ele disse? O que foi que ele disse?...”.
27 Francês: “Você compreendeu, meu menino”.
28 Francês: “Você compreendeu, que diabo”.
29 Francês: “Para ele tanto faz [...] bandido. Ora!”.
30 Francês: “Os cossacos!”.
31 Francês: “Creio ser meu dever dar a conhecer a vossa majestade o estado de suas tropas nos diversos corpos do exército, como pude verificar nos últimos dois ou três dias, em diferentes ocasiões. As tropas quase debandaram. O número de soldados que seguem as bandeiras mal chega à proporção de um quarto em quase todos os regimentos, os demais marcham isoladamente em direções diferentes e por conta própria, na esperança de encontrar meios de subsistência e a fim de se desvencilhar da disciplina. No geral, encaram Smolensk como o ponto onde deverão se refazer. Nos últimos dias, viu-se que muitos soldados abandonam sua munição e suas armas. Em tal estado de coisas, o interesse do serviço a vossa majestade exige, quaisquer que sejam suas providências ulteriores, que o exército seja reagrupado em Smolensk e que comecemos a nos desvencilhar dos não combatentes, tais como de homens sem montaria, de bagagens inúteis e de material de artilharia que não guarda mais proporção com as forças atuais. Além de dias de repouso, são necessários meios de subsistência para os soldados que se encontram extenuados pela fome e pela fadiga; muitos morreram nos últimos dias, na estrada e nos acampamentos. Tal estado de coisas se agrava continuamente e dá lugar ao medo de que, se não lhe dermos pronto remédio, não será mais possível manter o comando das tropas num combate. 9 de novembro, a trinta verstas de Smolensk”.
32 Francês: “ordens do dia”.
33 Francês: “Já estou farto de fazer o papel de imperador, está na hora de fazer o papel de general”.
34 Francês: “É grande!”.
35 Francês: “Do sublime [...] ao ridículo é só um passo”.
36 Referência a Joseph de Maistre (1753-1821), embaixador da Sardenha em Petersburgo e escritor de ideias ultraconservadoras, que viveu quinze anos na Rússia.
I
Quando uma pessoa vê um animal que morre, um horror a domina: aquilo que é ela mesma deixa de existir — sua essência está obviamente sendo aniquilada diante de seus olhos. Mas quando o que morre é uma pessoa — e uma pessoa querida — experimenta-se então, além do horror diante do aniquilamento da vida, uma sensação de dilaceramento e de uma ferida espiritual que, a exemplo de uma ferida corporal, às vezes mata, às vezes cicatriza, mas sempre dói e receia qualquer toque externo que a irrite.
Depois da morte do príncipe Andrei, Natacha e a princesa Mária sentiram isso em igual medida. Moralmente prostradas e de olhos semicerrados em face da aterradora nuvem da morte que pairava acima delas, as duas não se atreviam a olhar a vida de frente. Com zelo, protegiam suas feridas abertas dos toques ofensivos e dolorosos. Tudo: uma carruagem que passava depressa na rua, um chamado para jantar, uma pergunta de uma criada sobre um vestido que era preciso consertar; pior ainda, uma palavra fraca e insincera de simpatia irritava a ferida, parecia uma afronta e perturbava o silêncio indispensável em que as duas tentavam escutar o coro terrível, severo, que ainda não se calara em sua imaginação, e também as impedia de perscrutar as distâncias misteriosas e infinitas que, por um momento, se revelaram diante delas.
Só quando as duas ficavam sozinhas uma com a outra não sentiam ofensa nem dor. Pouco falavam uma com a outra. Se falavam, era sobre os assuntos mais insignificantes. Uma e outra evitavam da mesma forma qualquer menção a coisas relacionadas ao futuro.
Reconhecer a possibilidade de um futuro lhes parecia um ultraje à memória dele. Com mais cuidado ainda, esquivavam-se em suas conversas de tudo aquilo que pudesse ter relação com o falecido. Parecia-lhes que o que haviam sofrido e o que sentiam não podia ser expresso por meio de palavras. Parecia-lhes que qualquer menção, por meio de palavras, a pormenores da vida dele transgredia a grandeza e a santidade do mistério que havia se celebrado diante de seus olhos.
A permanente abstinência de palavras, a maneira cansativa e constante de evitar tudo aquilo que pudesse conduzir a falar sobre ele: as barreiras que encontravam em várias direções quando chegavam à fronteira do que não se podia falar expunham de modo ainda mais claro e mais puro, diante de sua imaginação, aquilo que as duas sentiam.
Mas uma tristeza pura, total, é tão impossível quanto uma alegria pura e total. A princesa Mária, em sua condição de senhora única e soberana do próprio destino, tutora e educadora de seu sobrinho, foi a primeira a ser chamada pela vida a sair do mundo de tristeza no qual vivera nas duas primeiras semanas. Ela recebeu uma carta de parentes à qual era preciso responder; o quarto em que haviam instalado Nikólienka era úmido, e ele tinha começado a tossir. Alpátitch chegou a Iaroslavl com notícias sobre as finanças e também com propostas e conselhos sobre mudar para Moscou, para a casa da rua Vzdvíjenka, que se mantivera íntegra e demandava apenas pequenos reparos. A vida não parava, e era preciso viver. Por mais penoso que fosse para a princesa Mária sair daquele mundo de contemplação solitária em que vivia até então, por mais que fosse lastimável, e como que vergonhoso, deixar Natacha sozinha, os afazeres da vida exigiam sua participação, e a princesa Mária teve de se dedicar a eles. Conferiu as contas com Alpátitch, pediu conselhos a Dessalles acerca do sobrinho, deu ordens e fez preparativos para sua mudança para Moscou.
Natacha ficou sozinha e, desde o momento em que a princesa Mária passou a se ocupar dos preparativos para a partida, evitava também a ela.
A princesa Mária propôs à condessa levar Natacha consigo para Moscou, e a mãe e o pai aceitaram com alegria aquela proposta, pois notavam a cada dia o declínio das forças físicas da filha e supunham que seria benéfico para ela uma mudança de ambiente bem como a ajuda dos médicos moscovitas.
— Não irei nunca — respondeu Natacha, quando lhe fizeram a proposta. — Só me deixem em paz, por favor — disse ela e saiu do quarto, contendo com dificuldade as lágrimas, menos de tristeza do que de irritação e despeito.
Depois que se sentiu abandonada pela princesa Mária e solitária em sua tristeza, Natacha ficava a maior parte do tempo sozinha em seu quarto, sentada num canto do sofá, com as pernas encolhidas, e enquanto rasgava ou retorcia algo em seus dedos finos e tensos, fitava com um olhar imóvel e obstinado qualquer coisa em que seus olhos se detivessem. Aquela solidão a esgotava, a atormentava; mas era necessária para Natacha. Assim que alguém entrava para falar com ela, Natacha se levantava rapidamente, mudava a posição do corpo e a expressão do olhar e se apegava a um livro ou a um trabalho de costura, enquanto esperava com evidente impaciência a saída da pessoa que a incomodava.
Sempre lhe parecia que estava prestes a entender, a penetrar naquilo para onde seu olhar espiritual se dirigia com uma pergunta terrível e opressiva.
No fim de dezembro, num vestido preto de lã, com uma trança precariamente presa num coque, magra e pálida, Natacha estava sentada com as pernas encolhidas sobre o sofá, amassando e soltando de modo tenso a ponta do cinto, enquanto olhava para o canto onde ficava a porta.
Olhava para onde ele tinha partido para o outro mundo. E aquele outro mundo, no qual ela antes nunca havia pensado, que antes lhe parecia algo muito remoto e inacreditável, agora era algo próximo e mais afim, mais compreensível do que este mundo, em que tudo era ou vazio e destruição, ou sofrimento e humilhação.
Natacha olhava para onde sabia que ele estava; mas não conseguia vê-lo senão como ele tinha sido aqui. Ela o via de novo como ele era nos Mitíchi, em Tróitsa, em Iaroslavl.
Via seu rosto, ouvia sua voz e repetia suas palavras e também as palavras que ela mesma dissera para ele, e às vezes inventava para si e para ele palavras novas, que poderiam ter sido ditas naquela ocasião.
Aí está ele na poltrona, em seu casaco de veludo, a cabeça apoiada na mão magra e pálida. O peito terrivelmente afundado e os ombros erguidos. Lábios fortemente comprimidos, olhos brilhantes, rugas saltam e desaparecem na testa pálida. Uma perna estremece rapidamente, de modo quase imperceptível. Natacha sabe que ele luta contra uma dor torturante. “O que é essa dor? Para que a dor? O que ele sente? Como é a dor dele?”, pensa Natacha. Ele percebeu a atenção de Natacha, levantou os olhos e, sorrindo, começou a falar.
“Uma coisa horrível”, disse ele, “é unir-se para sempre a alguém que sofre. É um tormento eterno.” E fitou-a com um olhar perscrutador — Natacha via agora aquele olhar. Como sempre, ela respondeu antes de ter tempo de pensar no que ia responder; disse: “Isso não pode continuar assim, não vai ser assim, o senhor vai se curar... totalmente”.
Agora ela o via de novo e sofria tudo o que sentira então. Lembrou-se de seu olhar insistente, triste, severo, ao dizer aquelas palavras e entendeu o sentido de censura e de desespero daquele olhar insistente.
“Eu concordei”, disse agora Natacha para si mesma, “que seria horrível se ele ficasse sempre sofrendo. Falei assim na hora só porque, para ele, aquilo seria horrível, mas ele entendeu de outro modo. Pensou que aquilo seria horrível para mim. Naquele momento, ele ainda queria viver... temia a morte. E eu lhe falei de modo tão bruto, tão estúpido. Não pensei nisso. Eu estava pensando numa coisa muito diferente. Se eu dissesse aquilo que estava pensando, diria: não importa que ele fique morrendo, que ele fique o tempo todo morrendo diante dos meus olhos. Eu ficaria feliz, em comparação com o que sinto agora. Agora... Não existe nada, ninguém. Será que ele sabia disso? Não. Ele não sabia e nunca vai saber. E agora nunca mais, nunca, já é impossível corrigir isso.” E de novo ele disse para Natacha as mesmas palavras, mas agora, em sua imaginação, Natacha lhe respondia de outra forma. Ela o interrompeu e disse: “Horrível para o senhor, mas não para mim. O senhor sabe que, sem o senhor, para mim não existe nada na vida, e sofrer com o senhor é para mim a melhor felicidade”. E ele segurou a mão de Natacha, apertou-a como a havia apertado naquela noite terrível, quatro dias antes de sua morte. E em sua imaginação, Natacha lhe disse também outras palavras ternas, amorosas, que poderia ter dito então, e que disse agora. “Amo você... você... amo, amo...”, disse ela, apertando as mãos convulsivamente, cerrando os dentes com um esforço encarniçado.
E uma tristeza doce a dominou, e lágrimas já surgiam em seus olhos, mas de repente ela disse para si: para quem ela está dizendo isso? Onde está ele e quem é ele agora? E de novo tudo ficou encoberto por uma perplexidade árida e cruel, e, de novo, com um movimento tenso das sobrancelhas, Natacha lançou um olhar para onde ele estava. E lhe pareceu que estava prestes a penetrar no mistério... Mas, no instante em que lhe parecia que o incompreensível ia se revelar, um golpe violento na fechadura da porta feriu dolorosamente sua audição. De modo rápido e descuidado, com uma fisionomia de susto e também de despreocupação com Natacha, a criada Duniacha entrou no quarto.
— Por favor, vá falar com o papaizinho, depressa — disse Duniacha com uma expressão diferente e vivaz. — Uma desgraça, com o Piotr Ilitch... uma carta — falou, entre soluços.
II
Além do sentimento geral de um alheamento de toda gente, Natacha experimentava na ocasião um sentimento diferente pelas pessoas da própria família. Todos eles: o pai, a mãe, Sônia, lhe eram tão próximos, habituais, tão corriqueiros que todas as palavras e sentimentos deles lhe pareciam ofensivos quando vistos daquele mundo em que ela vivia ultimamente, e Natacha não só se mostrava indiferente como os encarava de maneira hostil. Ouviu as palavras de Duniacha sobre Piotr Ilitch, sobre uma desgraça, mas não compreendeu.
“Que desgraça pode acontecer com eles, que desgraça pode ser essa? Estão sempre levando sua velha vida, rotineira e parada”, disse Natacha para si.
Quando entrou no salão, o pai estava saindo rapidamente do quarto da condessa. Tinha o rosto enrugado e molhado de lágrimas. Era evidente que tinha saído às pressas daquele quarto a fim de dar vazão aos soluços que o oprimiam. Ao ver Natacha, abanou os braços no ar em desespero e irrompeu num pranto espasmódico e doloroso que desfigurou seu rosto redondo e mole.
— Pé... Pétia... Vá, vá, ela... ela... está chamando... — E, soluçando como uma criança, em passinhos curtos e ligeiros de suas pernas fracas, aproximou-se de uma cadeira e quase caiu sobre ela, cobrindo o rosto com as mãos.
De súbito, uma espécie de choque elétrico percorreu todo o corpo de Natacha. Algo terrivelmente doloroso golpeou seu coração. Sentiu uma dor terrível; pareceu-lhe que algo havia se rompido dentro dela e que estava morrendo. Mas, depois da dor, imediatamente Natacha sentiu que tinha se libertado da interdição de viver que pesava sobre ela. Ao ver o pai e ouvir, por trás da porta, o grito terrível e brutal da mãe, imediatamente Natacha se esqueceu de si e de sua tristeza. Correu para o pai, mas ele, abanando o braço sem forças, apontou para a porta da mãe. A princesa Mária, pálida, com o queixo trêmulo, saiu de trás da porta e segurou a mão de Natacha, dizendo-lhe algo. Natacha não a via, não a ouvia. A passos rápidos, entrou no quarto, parou um instante como se lutasse consigo mesma, e correu para junto da mãe.
A condessa jazia numa poltrona, sacudia-se de um jeito estranho e desajeitado e batia com a cabeça na parede. Sônia e uma criada a seguravam pelos braços.
— Chamem Natacha, chamem Natacha!... — gritava a condessa. — Não é verdade, não é verdade... Ele está mentindo... Chamem Natacha! — gritava, repelindo as pessoas que a cercavam. — Vão todos embora daqui, não é verdade! Mataram!... ha-ha-ha-ha!... não é verdade!
Natacha ajoelhou-se na beira da poltrona, debruçou-se sobre a mãe, abraçou-a, ergueu-a com uma força inesperada, virou o rosto dela para si e aninhou-se no corpo da mãe.
— Mamãezinha!... Querida!... Estou aqui, minha amiga. Mamãezinha — sussurrou, sem calar-se nem por um segundo.
Não soltava a mãe, lutava carinhosamente com ela, exigiu travesseiros, água, desabotoou e rasgou a roupa da mãe.
— Minha amiga, querida... mãezinha, meu anjo — sussurrava ela sem parar, enquanto beijava sua cabeça, suas mãos, seu rosto e sentia que as lágrimas, de modo incontrolável, comichando em seu nariz e em suas faces, escorriam como gotas de chuva.
A condessa apertou a mão da filha, fechou os olhos e sossegou por um momento. De repente se levantou com uma rapidez fora do comum, olhou em redor com ar desnorteado e, ao ver Natacha, pôs-se a apertar a cabeça da filha com todas as suas forças. Depois virou para si o rosto da filha, enrugado de dor, e perscrutou-o demoradamente.
— Natacha, você me ama — disse ela num sussurro suave, confiante. — Natacha, você não vai me enganar? Vai me contar toda a verdade?
Natacha fitou-a com os olhos cheios de lágrimas, e em seu rosto só havia um desejo ardente de perdão e de amor.
— Minha amiga, mãezinha — repetia, enquanto empregava toda a força de seu amor para tomar da mãe para si o excesso de dor que a oprimia.
E de novo, numa luta impotente contra a realidade, a mãe, recusando-se a acreditar que pudesse viver quando tinha sido morta a vida em botão de seu menino querido, salvava-se da realidade indo para o mundo da loucura.
Natacha não lembrava como haviam passado aquele dia, a noite, o dia seguinte, a noite seguinte. Ela não dormiu e não se afastou da mãe. O amor de Natacha, obstinado, paciente, parecia abraçar a condessa de todos os lados, a cada segundo, não como uma explicação, nem como um consolo, mas como um apelo à vida. Na terceira noite, a condessa aquietou-se por alguns minutos, e Natacha fechou os olhos, a cabeça apoiada no braço da poltrona. A cama rangeu. Natacha abriu os olhos. A condessa estava sentada na cama e falava em voz baixa.
— Como estou contente por você ter vindo para casa. Está cansado, quer chá?
Natacha aproximou-se da mãe.
— Você ficou mais bonito e mais crescido — prosseguiu a condessa, segurando a mão da filha.
— Mãezinha, não é ele, ele não existe mais! — E, abraçando a filha, a condessa pela primeira vez começou a chorar.
III
A princesa Mária adiou sua partida. Sônia e o conde tentaram substituir Natacha, mas não conseguiram. Viam que só ela podia evitar que a mãe caísse num desespero louco. Por três semanas, Natacha viveu tenazmente ao lado da mãe, dormia na poltrona em seu quarto, dava-lhe de comer e de beber e não parava de conversar com ela — falava, porque só sua voz terna, carinhosa, tranquilizava a condessa.
A ferida espiritual da mãe não conseguia sarar. A morte de Pétia lhe havia arrancado metade da vida. Um mês depois da notícia da morte de Pétia, que a apanhara de surpresa como uma mulher bem-disposta e animada, de cinquenta anos, a condessa saiu do seu quarto como uma velha semimorta, que não tomava parte na vida. Mas aquela mesma ferida que matou metade da condessa, aquela ferida nova, despertou Natacha para a vida.
Uma ferida espiritual, decorrente da ruptura do corpo espiritual, por mais estranho que pareça, tal como uma profunda ferida corporal, que depois cicatriza e parece estar fechada, também vai cicatrizar só por meio da força da vida que age a partir de dentro.
Assim cicatrizou a ferida de Natacha. Ela achou que sua vida estava acabada. Mas de repente o amor pela mãe lhe mostrou que a essência de sua vida — o amor — ainda vivia dentro dela. O amor despertou, e a vida também despertou.
Os últimos dias do príncipe Andrei tinham unido Natacha à princesa Mária. Uma nova infelicidade as aproximou ainda mais. A princesa Mária adiou sua partida e nas últimas três semanas cuidava de Natacha como se fosse uma criança doente. As últimas semanas que Natacha passara no quarto da mãe esgotaram suas forças físicas.
Certa vez, no meio do dia, a princesa Mária notou que Natacha tremia num calafrio de febre, levou-a para o próprio quarto e deitou-a em sua cama. Natacha ficou deitada, mas, quando a princesa Mária baixou a persiana e fez menção de sair, Natacha chamou-a.
— Não tenho vontade de dormir. Mária, fique comigo.
— Você está cansada... tente dormir.
— Não, não. Por que me trouxe para cá? Ela vai me chamar.
— Ela está muito melhor. Hoje falou muito bem — disse a princesa Mária.
Natacha estava deitada na cama e, na penumbra do quarto, observava o rosto da princesa Mária.
“Ela parece com ele?”, pensou Natacha. “Sim, parece e não parece. Mas ela é distinta, diferente, totalmente nova, desconhecida. E me ama. O que ela tem no espírito? Tudo de bom. Mas como? O que ela pensa? Como ela me vê? Sim, é linda.”
— Macha — disse Natacha, puxando timidamente a mão dela para si. — Macha, você não acha que sou ruim, não é? Macha, querida. Como eu amo você. Vamos ser muito, muito amigas.
E Natacha abraçou a princesa Mária, beijou seu rosto e suas mãos. A princesa Mária encabulou-se e alegrou-se com aquela manifestação dos sentimentos de Natacha.
Desde aquele dia, entre a princesa Mária e Natacha, estabeleceu-se essa amizade apaixonada e terna que só existe entre mulheres. Beijavam-se sem cessar, diziam uma à outra palavras ternas e passavam juntas boa parte do tempo. Se uma saía, a outra ficava inquieta e apressava-se em estar de novo em sua companhia. As duas sentiam uma harmonia maior consigo mesmas quando estavam juntas do que quando ficavam sozinhas. Entre elas se estabeleceu um sentimento mais forte do que a amizade: era o sentimento particular de que a vida só era possível se uma estivesse na presença da outra.
Às vezes ficavam em silêncio durante uma hora inteira; às vezes, já deitadas em suas camas, elas começavam a conversar, e conversavam até amanhecer. Em geral, falavam sobre o passado remoto. A princesa Mária falava de sua infância, de sua mãe, de seu pai, dos próprios sonhos; e Natacha, que antes, com a mais pacífica incompreensão, dava as costas para aquela vida de devoção, de obediência, para a poesia da abnegação cristã, agora, sentindo-se unida à princesa Mária pelo amor, amava o passado da princesa Mária e compreendia um lado da vida antes incompreensível para ela. Natacha não pensava em adotar a obediência e a abnegação em sua própria vida, porque estava acostumada a procurar outras alegrias, mas compreendia e amava na outra aquela virtude antes incompreensível. Para a princesa Mária, que ouvia as histórias de infância e de adolescência de Natacha, também se revelara um lado da vida antes incompreensível, a crença na vida, no prazer da vida.
Da mesma forma que antes, nunca falavam sobre ele, a fim de não violar com palavras, assim lhes parecia, a elevação de sentimento que existia nelas, porém tal silêncio a respeito dele fez com que, aos poucos, e sem acreditarem nisso, as duas se esquecessem dele.
Natacha emagreceu, ficou mais pálida, e seu corpo ficou tão fraco que todos não paravam de falar de sua saúde, e isso lhe agradava muito. Mas às vezes lhe ocorria inesperadamente não só um temor da morte, como um temor da doença, da fraqueza, da perda da beleza, e às vezes, sem querer, observava com atenção seu braço nu, espantando-se com sua magreza, ou então, de manhã, mirava no espelho o próprio rosto, que lhe parecia repuxado e digno de pena. Parecia-lhe que tinha de ser assim, e ao mesmo tempo era triste e terrível.
Certa vez ela subiu a escada correndo e sentiu uma forte falta de ar. Imediatamente, sem pensar, inventou um motivo para descer e depois subir de novo a escada, a fim de experimentar suas forças e observar-se.
De outra vez, chamou Duniacha, e sua voz estremeceu. Gritou para ela de novo e, apesar de ouvir seus passos chegando, gritou com a voz de peito com que antes cantava e escutou-a com atenção.
Natacha não sabia daquilo, e nem acreditaria, mas, por baixo do que lhe parecia a camada de lodo impenetrável que toldava sua alma, já rompiam as pontinhas finas e tenras das folhas de grama que teriam de se enraizar e assim recobrir, com seus brotos de vida, a tristeza que a oprimia e que em breve não seria mais visível nem perceptível. A ferida estava cicatrizando por dentro. No fim de janeiro, a princesa Mária partiu para Moscou, e o conde fez questão de que Natacha fosse com ela a fim de consultar-se com os médicos.
IV
Depois do combate em Viazma, onde Kutúzov não conseguiu frear o desejo de suas tropas de atacar, cortar o caminho etc., a continuação do deslocamento dos franceses em fuga e também dos russos em seu encalço, até Krásnoie, transcorreu sem batalhas. A fuga foi tão acelerada que o exército russo que corria atrás do francês não conseguia acompanhá-lo, os cavalos da cavalaria e da artilharia paravam, e as informações sobre os movimentos dos franceses eram sempre incorretas.
Os soldados do exército russo estavam tão esgotados com aquele deslocamento incessante de quarenta verstas por dia que não conseguiam andar mais depressa.
Para se ter uma ideia do grau de exaustão do exército russo, basta apenas compreender claramente o fato de que, depois de perder não mais de cinco mil homens entre feridos e mortos durante todo o tempo do seu deslocamento a partir de Tarútino, tendo perdido apenas uma centena de prisioneiros, o exército russo, que havia partido de Tarútino com cem mil soldados, chegou a Krásnoie com um contingente de cinquenta mil.
O rápido deslocamento dos russos no encalço dos franceses produzia no exército russo um efeito tão destrutivo quanto a fuga nos franceses. A diferença era apenas que o exército russo se movia livremente, sem a ameaça de aniquilamento que pesava sobre o exército francês, e também que os doentes retardatários dos franceses caíam nas mãos do inimigo, ao passo que os retardatários russos ficavam em sua terra natal. A causa principal da redução do exército de Napoleão foi a rapidez do deslocamento, e a prova incontestável disso é a redução correspondente das tropas russas.
Toda a atividade de Kutúzov, como havia ocorrido em Tarútino e em Viazma, foi direcionada — na medida de suas possibilidades — não para deter aquele deslocamento mortífero para os franceses (como desejavam em Petersburgo e também os generais no exército russo), mas para favorecê-lo e ao mesmo tempo para tornar menos oneroso o deslocamento das tropas russas.
No entanto, além do cansaço e dos enormes estragos evidentes nas tropas desde algum tempo, causados pela rapidez do deslocamento, Kutúzov via outro motivo para reduzir o ritmo do deslocamento das tropas e para ganhar tempo. O objetivo das tropas russas era a perseguição dos franceses. O caminho dos franceses era desconhecido, e por isso, quanto mais de perto nossas tropas seguissem as pegadas dos franceses, maior a distância que teriam de percorrer. Apenas seguindo a certa distância seria possível cortar o zigue-zague dos franceses e assim perfazer um caminho mais curto. Todas as manobras engenhosas que os generais propunham se apoiavam em deslocamentos de tropas, no aumento dos percursos, ao passo que o único objetivo razoável era diminuir aqueles percursos. E foi para tal objetivo, durante toda a campanha de Moscou até Vilna, que Kutúzov direcionou sua atividade — não de maneira fortuita nem eventual, mas de forma tão coerente que não a modificou nem uma vez.
Kutúzov sabia, não com a razão nem com a ciência, mas com toda a sua essência russa, sabia e sentia aquilo que cada soldado russo sentia, ou seja, que os franceses estavam derrotados, que o inimigo estava em fuga e que era preciso levá-lo embora; mas ao mesmo tempo sentia, em sintonia com os soldados, todo o peso daquela marcha, algo nunca visto, pela rapidez e pela época do ano em que ocorria.
Porém, para os generais, em especial para os que não eram russos, que desejavam se distinguir, chamar a atenção para si e, não se sabe por que razão, fazer prisioneiro algum duque ou rei — para aqueles generais parecia agora, quando toda e qualquer batalha seria algo cruel e estúpido, para eles parecia que era o momento perfeito para travar batalha e derrotar quem quer que fosse. Kutúzov se limitava a encolher os ombros quando lhe apresentavam, um depois do outro, os planos de manobras com aqueles soldados mal calçados, sem agasalhos, semiesfomeados, que em um mês, sem batalhas, haviam se reduzido à metade e com os quais, se aquela fuga continuasse, teriam de chegar à fronteira nas melhores condições possíveis, percorrendo uma distância maior do que a distância que já haviam percorrido.
Aquele empenho para se distinguir, para manobrar, para rechaçar ou cortar o caminho do inimigo se manifestava em especial nas horas em que as tropas russas se viam face a face com as tropas francesas.
Assim aconteceu em Krásnoie, quando acharam que tinham encontrado uma das três colunas dos franceses e deram de cara com o próprio Napoleão, com dezesseis mil soldados. Apesar de todos os meios empregados por Kutúzov para evitar aquele confronto funesto e para salvar suas tropas, durante três dias transcorreu o massacre do bando de franceses alquebrados pelas tropas russas exaustas.
Toll redigiu um dispositivo: die erste Kolonne marschiert etc. E, como sempre, não se fez nada do que dizia o dispositivo. O príncipe Evguéni Württemberg atirava de um morro ao lado de onde estavam passando em fuga os bandos de franceses e exigiu reforços, que não vieram. Os franceses, desviando-se dos russos durante as noites, espalharam-se, esconderam-se na mata e foram em frente, como podiam.
Milorádovitch, que dizia que não queria saber de nada a respeito das questões de intendência do seu destacamento, e que ninguém conseguia localizar quando era preciso, “chevalier sans peur et sans reproche”,1 como ele mesmo se denominava, e apreciador das negociações com os franceses, mandava negociadores que exigiam a rendição, perdia tempo e não fazia o que lhe ordenavam.
— Entregarei essa coluna a vocês, meus jovens — disse ele, cavalgando até seus cavalarianos, e apontou para os franceses. E os cavalarianos, em seus cavalos magros, estropiados, que mal conseguiam andar, atiçando-os com esporas e sabres, a trote curto, após esforços prementes, partiram na direção da coluna indicada, ou seja, um bando de franceses cobertos de queimaduras causadas pelo frio, enregelados e famintos; e a coluna indicada abandonou as armas e rendeu-se, aquilo que mais desejavam fazer havia muito tempo.
Em Krásnoie, foram capturados vinte e seis mil prisioneiros, centenas de canhões e um pedaço de pau, que chamavam de bastão de marechal,2 e discutiram sobre quem havia se destacado mais ali, e ficaram contentes com isso, porém lamentaram muito não terem capturado Napoleão ou pelo menos algum herói ou um marechal qualquer, e por causa disso se acusaram uns aos outros e sobretudo acusaram Kutúzov.
Tais pessoas, fascinadas por suas paixões, eram apenas cegos instrumentos da mais lamentável lei da necessidade; mas se consideravam heróis e imaginavam que aquilo que faziam era a coisa mais digna e mais nobre do mundo. Acusavam Kutúzov e diziam que, desde o início da campanha, ele os impedia de vencer Napoleão, que ele só pensava em satisfazer suas paixões e que não queria sair de Polotniáni Zavódi3 porque ali ele podia ficar sossegado; que ele, em Krásnoie, detivera o movimento das tropas só porque, ao saber da presença de Napoleão, ficara completamente desnorteado; que era possível supor que ele estava travando contatos secretos com Napoleão, que ele tinha sido subornado por Napoleão4 etc. etc.
Não apenas seus contemporâneos, arrebatados pelas paixões, falavam assim — a posteridade e a história declararam que Napoleão era grand, já Kutúzov, para os estrangeiros, era um velhote cortesão, astuto, lascivo e fraco; para os russos, era algo indefinido — uma espécie de fantoche, útil apenas por causa do seu nome russo...
V
Nos anos de 1812 e 1813, culparam Kutúzov diretamente pelos erros. O soberano ficou aborrecido com ele. E numa história escrita há pouco tempo, por ordem de sua majestade, diz-se que Kutúzov era um cortesão farsante e astuto, que temia até o nome de Napoleão e que, com seus erros em Krásnoie e Bereziná, privou o exército russo de uma glória — a vitória completa sobre os franceses.5
Tal destino não é o dos grandes homens, não é o destino de um grand homme que a mente russa não reconhece, mas o destino de pessoas raras e sempre solitárias que, compreendendo a vontade da Providência, subordinam a ela sua vontade pessoal. O ódio e o desprezo da multidão castigam tais pessoas pela clarividência com que entendem as leis superiores.
Para os historiadores russos — é terrível e estranho dizer isso —, Napoleão — esse instrumento insignificante da história —, que nunca e em parte nenhuma, nem no exílio, deu provas de dignidade humana —, Napoleão é objeto de admiração e de entusiasmo; ele é grand. Já Kutúzov, o homem que do início ao fim de sua atividade em 1812, de Borodinó até Vilna, nenhuma vez, em nenhuma palavra e em nenhum gesto traiu a si mesmo, e que oferece na história um exemplo extraordinário de abnegação e de consciência no presente da importância futura dos acontecimentos — Kutúzov é apresentado por eles como algo indefinido e digno de pena, e quando se referem ao Kutúzov de 1812 sempre parecem um pouquinho envergonhados.
Todavia é difícil conceber um personagem histórico cuja ação tenha sido, de modo tão invariável e constante, direcionada para um único objetivo. É difícil conceber um objetivo mais digno e mais de acordo com a vontade de todo um povo. Mais difícil ainda é encontrar na história outro exemplo em que um objetivo estabelecido para si por um personagem histórico tenha sido alcançado de forma tão cabal quanto o objetivo para o qual foi direcionada toda a atividade de Kutúzov em 1812.
Kutúzov nunca falou dos quarenta séculos que nos contemplam do alto das pirâmides, nem dos sacrifícios que ia fazer pela pátria, nem do que pretendia realizar ou tinha realizado: no geral, não falava nada sobre si mesmo, não representava nenhum papel, parecia sempre o homem mais simples e mais comum possível e só dizia as coisas mais simples e rotineiras. Escrevia cartas para as filhas e para Madame de Staël, lia romances, gostava da companhia de mulheres bonitas, dizia brincadeiras para os generais, oficiais e soldados e jamais contradizia as pessoas que queriam provar alguma coisa para ele. Quando o conde Rostoptchin, na ponte do rio Iaúza, foi a galope ao encontro de Kutúzov com acusações pessoais sobre quem era o culpado pela destruição de Moscou e disse: “O senhor não prometeu que não ia abandonar Moscou sem travar uma batalha?”, Kutúzov respondeu: “E não vou abandonar Moscou sem travar uma batalha”, apesar de Moscou já ter sido abandonada. Quando Araktchéiev o procurou, em nome do soberano, e disse que era preciso nomear Ermólov comandante da artilharia, Kutúzov respondeu: “Sim, eu mesmo acabei de falar sobre isso”, embora um minuto antes tivesse dito algo totalmente distinto. O que importava para ele, o único que então havia compreendido toda a enorme significação do acontecimento, em meio à multidão de tolos que o cercava, o que lhe importava que o conde Rostoptchin atribuísse a catástrofe da capital a si mesmo ou a ele? Menos ainda podia lhe importar quem seria nomeado comandante da artilharia.
Não só nesses casos, mas continuamente, aquele velho, a quem a experiência de vida levara à convicção de que os pensamentos e as palavras que lhes servem de expressão não são os motores das pessoas, dizia palavras totalmente sem sentido — as primeiras palavras que lhe vinham à cabeça.
Mas esse mesmo homem, tão indiferente às próprias palavras, nenhuma vez em toda a sua atividade falou alguma palavra que não estivesse de acordo com aquele único objetivo cuja realização ele perseguiu durante todo o tempo da guerra. É claro, contra sua vontade, com a penosa certeza de que não seria compreendido, ele exprimiu seu pensamento repetidas vezes e nas circunstâncias mais diversas. Já na batalha de Borodinó, quando teve início sua discórdia com os que o rodeavam, só ele disse que a batalha de Borodinó é uma vitória, e repetiu isso em conversas e em relatórios e comunicados, até sua morte. Só ele disse que perder Moscou não é perder a Rússia. Em resposta a Lauriston, que propôs assinar um acordo de paz, respondeu que não pode haver paz, porque essa é a vontade do povo; por ocasião da retirada dos franceses, só ele disse que todas as nossas manobras são desnecessárias, tudo o que acontecer por si mesmo será melhor do que aquilo que podemos desejar, que é preciso oferecer uma ponte de ouro para o inimigo, que nem a batalha de Tarútino, nem a de Viazma, nem a de Krásnoie são necessárias, que é preciso guardar energias para chegar à fronteira, que não daria um russo em troca de dez franceses.
E só ele, esse cortesão, como nos é retratado, o homem que mentiu para Araktchéiev com o objetivo de agradar ao soberano — só ele, esse cortesão, e por isso mereceu a desaprovação do soberano, disse em Vilna que levar a guerra além da fronteira é prejudicial e inútil.
Mas as palavras sozinhas não provariam que ele, então, havia compreendido o significado dos acontecimentos. Suas ações — sempre sem o menor desvio — foram direcionadas para o mesmo objetivo, que se traduzia em três ações: 1) concentrar todas as suas forças para enfrentar os franceses, 2) vencê-los e 3) expulsá-los da Rússia, aliviando o mais possível os sofrimentos do povo e do exército.
Ele, o procrastinador Kutúzov, cujo lema era paciência e tempo, o inimigo das ações definitivas, travou batalha em Borodinó, revestindo os preparativos da batalha de uma solenidade inigualável. Ele, esse Kutúzov, que antes do início da batalha de Austerlitz disse que ela seria perdida, só ele afirmou até a morte, em contradição com todos, que a batalha de Borodinó foi uma vitória, apesar do exemplo inédito na história de um exército se retirar depois de vencer uma batalha. Só ele, durante todo o tempo da retirada, persistiu na ideia de não travar batalhas, que então eram inúteis, de não começar uma nova guerra e de não cruzar as fronteiras da Rússia.
Agora é fácil compreender o significado dos acontecimentos, contanto que não queiramos atribuir à ação da massa objetivos que só existiam na cabeça de uma dezena de pessoas, pois todos os acontecimentos e suas consequências estão na nossa frente.
Mas de que forma, na época, aquele velho, sozinho, em contradição com a opinião de todos, pôde deduzir, e deduzir de modo tão seguro, o sentido da percepção popular dos acontecimentos e nem uma vez em todas as suas ações o trair?
A fonte dessa extraordinária força de discernir o significado do fenômeno que estava em curso se baseava no sentimento popular que ele trazia dentro de si, em toda a sua pureza e força.
Apenas a percepção de tal sentimento em Kutúzov compeliu o povo, por caminhos tão estranhos e contra a vontade do tsar, a escolher a ele, um velho que se encontrava em desgraça, como seu representante na guerra popular. E foi só aquele sentimento que o colocou na altura humana suprema de onde ele, o comandante em chefe, direcionou todas as suas forças não para matar e massacrar pessoas, mas para salvar e apiedar-se delas.
Essa figura simples, humilde e por isso verdadeiramente grande não podia se adaptar à forma mentirosa do herói europeu, que supostamente comanda as pessoas e que a história inventou.
Para um criado, não pode existir um grande homem, porque um criado tem sua própria ideia da grandeza.
VI
Cinco de novembro foi o primeiro dia da chamada batalha de Krásnoie. Antes do entardecer, quando depois de muitas discussões e equívocos dos generais, que não foram para onde deveriam ir; depois do envio de ajudantes de ordens com contraordens, quando já estava claro que o inimigo estava em fuga por toda parte e que não poderia haver nem haveria batalha nenhuma, Kutúzov saiu de Krásnoie e foi para Dóbroie, para onde o quartel-general fora transferido naquele dia.
O tempo estava claro, fazia um frio glacial. Kutúzov, acompanhado de uma imensa comitiva de generais, que o aborreciam e sussurravam em seus ouvidos, andava em seu cavalo gordo e branco rumo a Dóbroie. A estrada estava toda atravancada por bandos de prisioneiros franceses que se aglomeravam junto às fogueiras, capturados naquele mesmo dia (sete mil foram apanhados naquele dia). Não longe de Dóbroie, uma enorme multidão de prisioneiros esfarrapados, amarrados e agasalhados com qualquer coisa em que pudessem pôr as mãos, erguiam o rumor de suas conversas, parados na estrada ao lado de uma longa fila de canhões franceses desatrelados. Ante a aproximação do comandante em chefe, as conversas cessaram, e todos os olhos se fixaram em Kutúzov, que com seu gorro de fita vermelha e seu capote acolchoado, que formava uma corcunda em seus ombros arqueados, aproximava-se lentamente pela estrada. Um dos generais informou a Kutúzov onde tinham sido capturados os canhões e os prisioneiros.
Kutúzov parecia preocupado com alguma outra coisa e não escutava as palavras do general. Sem querer, piscava os olhos e fitava com atenção e insistência os vultos dos prisioneiros, que apresentavam um aspecto tão lamentável. Grande parte dos rostos dos soldados franceses tinha o nariz e as faces desfigurados pelas queimaduras do frio e quase todos tinham os olhos vermelhos, inchados e supurados.
Um grupo de franceses estava parado perto da estrada, e dois soldados — o rosto de um deles estava coberto de chagas — rasgavam com as mãos um pedaço de carne crua. Havia algo de terrível e de animalesco no olhar esquivo que lançaram para os militares que passavam na estrada e também na expressão malévola com que o soldado com as chagas no rosto, depois de olhar para Kutúzov, lhe deu as costas e prosseguiu em sua atividade.
Kutúzov se demorou a observar com atenção aqueles dois soldados; com o rosto ainda mais enrugado, contraiu os olhos e balançou a cabeça com ar pensativo. Em outro local, notou um soldado russo que, rindo e dando tapinhas no ombro de um francês, lhe dizia algo em tom amistoso. Kutúzov, outra vez com a mesma expressão, balançou a cabeça.
— O que é que você está dizendo? O que é? — perguntou ao general, que continuava a informá-lo e a chamar a atenção do comandante em chefe para as bandeiras francesas capturadas, que estavam à frente do regimento de Preobrajénski.
— Ah, as bandeiras! — disse Kutúzov, desvencilhando-se com visível dificuldade do assunto que ocupava seu pensamento. Olhou em volta com ar distraído. De todos os lados, mil olhos o fitavam, à espera de resposta.
À frente do regimento de Preobrajénski, ele se deteve, suspirou profundamente e fechou os olhos. Alguém na comitiva fez um sinal para que os soldados que seguravam as bandeiras se aproximassem e cravassem na terra os mastros das bandeiras, em torno do comandante em chefe. Kutúzov ficou em silêncio alguns segundos e, visivelmente a contragosto, curvando-se à necessidade de sua posição, ergueu a cabeça e começou a falar. A multidão de oficiais o rodeava. Percorreu com um olhar atento o círculo de oficiais e reconheceu alguns deles.
— Agradeço a todos! — disse ele, dirigindo-se aos soldados e de novo aos oficiais. No silêncio que reinava em seu redor, ouviam-se com clareza suas palavras, pronunciadas com lentidão. — Agradeço a todos por seu serviço difícil e leal. A vitória é completa, e a Rússia não esquecerá os senhores. Glória aos senhores, para sempre!
Calou-se, olhando em redor.
— Abaixe, abaixe a cabeça dela — disse Kutúzov para um soldado que segurava uma águia francesa e, sem querer, a havia abaixado na frente da bandeira do regimento de Preobrajénski. — Mais baixo, mais baixo, assim. Hurra, minha gente! — exclamou com um rápido movimento do queixo, voltando-se para os soldados.
— Hurra-ra-ra! — bradaram milhares de vozes.
Enquanto os soldados gritavam, Kutúzov inclinou-se na sela, curvou a cabeça, e seu olho se acendeu num brilho suave, como que zombeteiro.
— Vejam só, irmãos — disse ele quando as vozes silenciaram...
E de repente a sua voz e a expressão de seu rosto modificaram-se: parou de falar o comandante em chefe e começou a falar um velho simples, e parecia haver algo muito importante que ele desejava comunicar agora a seus camaradas.
Na multidão de oficiais e nas fileiras de soldados, houve um movimento geral, a fim de escutar melhor o que ele ia falar agora.
— Vejam só, irmãos. Eu sei que para vocês é difícil, mas o que se vai fazer? Tenham paciência; falta pouco tempo. Vamos mandar embora nossos visitantes, aí então descansaremos. O serviço de vocês, o tsar não esquecerá. É difícil para vocês, mas pelo menos estão na sua terra; já eles... vejam a que ponto chegaram — disse Kutúzov, apontando para os prisioneiros. — Estão piores do que os mendigos mais miseráveis. Enquanto estavam fortes, nós não nos poupamos, mas agora podemos ter pena deles. Também são gente. Não é isso, minha gente?
Olhou à sua volta e nos olhares obstinados, respeitosamente perplexos, dirigidos a ele, Kutúzov leu a simpatia pelas suas palavras: seu rosto ficou cada vez mais radiante, com um sorriso dócil de velho, que se enrugou com estrelas nos cantos dos lábios e dos olhos. Ficou em silêncio e baixou a cabeça como que em dúvida.
— Mas, é preciso dizer, afinal quem foi que os convidou para vir aqui? É bem feito para esses desgraçados, safados e filhos da mãe — exclamou de repente, levantando a cabeça. E, depois de brandir o chicote no ar, partiu a galope, pela primeira vez em toda a campanha, deixando para trás as fileiras de soldados desfeitas, que riam alegremente e davam hurras.
As palavras ditas por Kutúzov mal foram compreendidas pelas tropas. Ninguém conseguiria reproduzir o conteúdo do discurso do marechal de campo, de início solene e no final de uma ingenuidade de velho; mas o significado crucial daquele discurso foi não apenas compreendido como também aquele sentimento, o sentimento de um triunfo magnífico unido à piedade pelo inimigo e à consciência da própria justiça expressos por aquele, e logo por aquele, velhote simpático que falava grosserias — o mesmo sentimento habitava a alma de todos os soldados e se exprimiu com um grito alegre que demorou muito tempo para silenciar. Depois disso, quando um dos generais se voltou para o comandante em chefe e perguntou se não daria ordens para trazerem sua caleche, Kutúzov, ao responder, desatou a soluçar de modo inesperado, visivelmente dominado pela força da emoção.
VII
Oito de novembro foi o último dia da batalha de Krásnoie; já havia escurecido quando as tropas chegaram ao lugar onde iam passar a noite. O dia inteiro tinha sido calmo, gelado, com uma neve que caía leve e rala; à noite, o tempo começou a limpar. Por entre os flocos de neve, via-se o céu estrelado negro lilás, e a friagem começou a ficar mais forte.
Um regimento de mosqueteiros que deixara Tarútino com três mil soldados, agora com um contingente de novecentos homens, foi um dos primeiros a chegar ao local combinado para o acampamento noturno, numa aldeia na estrada principal. Os militares incumbidos de preparar os alojamentos vieram comunicar que todas as isbás estavam ocupadas por franceses doentes e mortos, por cavalarianos e por membros do Estado-Maior. Só restara uma isbá para o comandante do regimento.
O comandante do regimento seguiu para a sua isbá. O regimento atravessou a aldeia, e os soldados ensarilharam seus fuzis na estrada junto às isbás.
Como um animal imenso e de muitas pernas e braços, o regimento se lançou ao trabalho de construir a própria toca e de preparar o próprio alimento. Uma parte dos soldados, com a neve chegando aos joelhos, se dispersou dentro da floresta de bétulas que ficava à direita da aldeia, e logo se ouviu na mata a batida de machados, de facões, o estalo de galhos partidos e vozes alegres; outra parte formou um grupo em torno do centro onde estavam as carroças e os cavalos do regimento, ficou às voltas com caçarolas e bolachas e dava capim para os cavalos; uma terceira parte dos soldados se dispersou pela aldeia, arrumando as acomodações dos membros do Estado-Maior, retirando os corpos dos franceses mortos que jaziam dentro das isbás, arrancando tábuas, apanhando lenha seca e tirando a palha dos telhados para as fogueiras e arrancando tapumes das cercas para fazer abrigos.
Uns quinze soldados, atrás das isbás e nos arredores da aldeia, com gritos alegres, sacudiam um tapume alto de um telheiro do qual já fora retirado o telhado.
— Vamos, vamos, todos juntos, força! — gritavam as vozes, e na noite escura a imensa tela do tapume polvilhado de neve sacudia entre estalos de gelo. As estacas de baixo estalavam cada vez mais, e por fim o tapume tombou junto com os soldados que o puxavam. Ouviu-se um grito alto, rude e alegre e uma gargalhada.
— Vamos segurar dois de cada lado! Traga uma alavanca! Vamos, isso. Para que lado está empurrando?
— Vamos, todos juntos... Esperem aí, minha gente!... Vamos cantar!
Todos se calaram, e uma voz baixa, aveludada e agradável entoou uma canção. No fim da terceira estrofe, na hora em que a última nota terminou, vinte vozes bradaram em harmonia: “Uuuu! Agora vai! Todos juntos! Empurra, gente!...”. Mas, apesar dos esforços conjuntos, o tapume pouco se mexeu, e no silêncio cansado ouvia-se uma respiração ofegante.
— Ei, vocês aí da sexta companhia! Demônios do diabo! Venham cá dar uma mão... A gente depois ajuda em outra coisa.
Uns vinte soldados da sexta companhia que estavam entrando na aldeia uniram-se aos que faziam força; o tapume de cinco braças de comprimento e de uma braça de largura arqueou-se e, espremendo e cortando os ombros dos soldados ofegantes, foi carregado para a frente, pelas ruas da aldeia.
— Vamos lá, vamos lá... Olha aí, está caindo... Parou por quê? Vai...
Os palavrões alegres e feios não cessavam.
— O que estão fazendo aí? — ouviu-se de repente a voz autoritária de um soldado que veio correndo até os carregadores.
— Os patrões estão aí; na isbá tem até um general, e vocês, seus diabos, seus demônios, boçais. Vou mostrar para vocês! — gritou o sargento e deu um soco nas costas do primeiro soldado que passou. — Será que não podem ficar sem fazer barulho?
Os soldados se calaram. O soldado que levou o murro do sargento ficou gemendo e esfregando a cara, que tinha sido cortada e começou a sangrar quando ele caiu em cima do tapume.
— Está vendo, diabo, o que dá bater! Fiquei todo sujo de sangue — disse ele num sussurro tímido, quando o sargento se afastava.
— Não gostou, não? — disse uma voz que ria; e, moderando o som das vozes, os soldados seguiram em frente. Saíram da aldeia e de novo começaram a falar tão alto como antes, entremeando as conversas com os mesmos palavrões sem nenhum propósito.
Na isbá junto à qual os soldados haviam passado, reunia-se o alto-comando, e durante o chá houve uma conversa animada sobre o dia anterior e sobre hipotéticas manobras futuras. Planejavam fazer uma marcha de flanco à esquerda, cortar o caminho do vice-rei e capturá-lo.
Quando os soldados terminaram de arrastar o tapume, já de vários lados chamejavam as fogueiras das cozinhas. A lenha estalava, a neve derretia, e as sombras negras dos soldados agitavam-se para lá e para cá em toda a área ocupada, coberta de neve pisada.
Machados e facões trabalhavam em todos os lados. Tudo era feito sem que ninguém desse nenhuma ordem. Traziam lenha para abastecer as fogueiras durante a noite, montavam barracas para os comandantes, as panelas ferviam, os fuzis e a munição eram limpos.
O tapume arrastado pela oitava companhia foi colocado num semicírculo no lado norte, escorado em varas, e à frente dele acenderam uma fogueira. Deram o toque de recolher, fizeram a chamada, jantaram e se acomodaram junto às fogueiras para passar a noite — um consertava a bota, outro fumava o cachimbo, outro tirava a roupa para catar piolhos.
VIII
Era de supor que, nas condições de vida inconcebivelmente penosas em que se achavam os soldados russos naquela ocasião — sem botas quentes, sem casacos de pele de carneiro, sem um teto sobre a cabeça, sob a neve e um frio de dezoito graus abaixo de zero, até sem a quantidade completa de provisões, que nem sempre chegavam a tempo ao exército —, era de supor que os soldados apresentassem o espetáculo mais lamentável e desolador.
Ao contrário, nunca, mesmo nas melhores condições materiais, as tropas apresentaram um espetáculo mais alegre e animado. Isso acontecia porque a cada dia desapareciam das tropas todos aqueles que desanimavam ou perdiam as forças. Todos aqueles que estavam enfraquecidos, física e moralmente, tinham ficado para trás havia muito tempo: só restara a flor das tropas — pela força do espírito e do corpo.
Atrás do tapume montado pela oitava companhia, reunia-se o maior grupo. Dois sargentos se sentaram com eles, e sua fogueira ardia mais brilhante do que as outras. Pelo direito de ficar junto ao tapume, exigiam uma doação de lenha.
— Ei, Makéiev, o que foi que houve com você?... Se perdeu ou foi comido pelos lobos? Traga uma lenha aí — gritou um soldado ruivo, de cara vermelha, que contraía e piscava os olhos por causa da fumaça, mas não se afastava um palmo da fogueira. — Vamos lá, corvo, traga uma lenha aí — disse o mesmo soldado para o outro. O ruivo não era sargento, nem cabo, mas um soldado saudável, e por isso tiranizava os que estavam mais fracos do que ele. O soldado magricela, miúdo, com um narizinho pontudo, a quem chamavam de corvo, levantou-se obediente e fez menção de ir cumprir a ordem, mas naquele momento, na luz da fogueira, surgiu o vulto esguio e bonito de um soldado jovem, que trazia uma braçada de lenha.
— Me dê aqui. Assim é que se faz!
Partiram a lenha, comprimiram a lenha na fogueira, sopraram com a boca e abanaram com a aba dos capotes, e as chamas chiaram e irromperam. Os soldados chegaram mais perto e começaram a fumar seus cachimbos. O soldado jovem e bonito que havia trazido a lenha pôs as mãos na cintura e, depressa e com agilidade, pôs-se a pisotear o seu lugar.
— Ah, mãezinha, que orvalho mais gelado, mas é bonito ser um mosqueteiro... — cantarolava, como que soluçando a cada sílaba da canção.
— Ei, vai soltar a sola! — gritou o ruivo ao notar que a sola da bota do dançarino estava pendurada. — Essa dança é de matar!
O dançarino parou, arrancou o couro solto e jogou no fogo.
— Pois é, irmão — disse ele; sentou-se, tirou da mochila um pedaço de pano azul francês e começou a enrolar o pé com ele. — É o vapor que estraga elas assim — acrescentou, estendendo os pés na direção do fogo.
— Logo vão dar umas novas. Dizem que, quando a gente der cabo deles, vão dar para a gente couro cortado para fazer dois pares de botas.
— Está vendo só, e o filho da mãe do Petrov que ficou para trás — disse o sargento.
— Eu estava de olho nele faz muito tempo — falou outro.
— Mas, também, uns soldadinhos de papel...
— É, mas na terceira companhia disseram que ontem faltaram nove homens na chamada.
— Também, pense só, com os pés congelados como é que se pode andar?
— Eh, conversa fiada! — disse o sargento.
— Por acaso queria que acontecesse isso com você? — perguntou um soldado velho, em tom de censura, dirigindo-se ao que tinha falado dos pés congelados.
— E o que é que você acha? — de repente, levantando-se de trás da fogueira, falou com voz estridente e trêmula o soldado de nariz pontudo que chamavam de corvo. — Quem é gorducho está emagrecendo, e magreza é morte. Olhe só para mim. Estou que não me aguento mais — disse ele de repente em tom resoluto, dirigindo-se ao sargento. — Me mande para o hospital, o reumatismo está me matando; senão vou acabar ficando para trás e sozinho...
— Ora, vai conseguir, vai conseguir — disse o sargento, tranquilo.
O soldadinho calou-se, e a conversa prosseguiu.
— Hoje até que pegaram um bocado de franceses; mas bota que é bom não apareceu nenhuma que a gente pode chamar de bota — um dos soldados começou uma nova conversa.
— Os cossacos pegaram tudo. Limparam a isbá para o coronel, levaram embora os franceses. Dava pena de ver, minha gente — disse o dançarino. — Enquanto reviravam os franceses, tinha um ainda vivo, acreditem, e resmungou alguma coisa lá na língua dele.
— Mas é um povo limpo, minha gente — disse o primeiro. — Branco, branco feito uma bétula, e tem uns corajosos, até parecem uns nobres.
— E o que é que você queria? São recrutados em todas as classes.
— Mas não sabem nada da nossa língua — disse o dançarino com um sorriso perplexo. — Eu falo para ele: “De que coluna você vem?”, e ele balbucia lá na língua dele. Um povo esquisito!
— Vejam só que coisa mais estranha, meus irmãos — continuou o que estava admirado com a brancura deles —, os mujiques disseram que, em Mojáisk, quando começaram a retirar os mortos, lá onde teve aquela batalha, sabe, pois é, os mortos já estavam lá jogados fazia um mês. E aí, veja só, um mujique disse que eles estavam lá deitados, branquinhos feito papel, limpos, e nem sombra de fedor.
— Quem sabe não é por causa do frio? — perguntou um.
— Como você é inteligente! Por causa do frio! Só que estava quente. Se fosse por causa do tempo gelado, os nossos também não fediam. Mas disseram que, quando chegavam perto dos nossos, estavam cheios de minhocas. Disseram que tinham de amarrar um lenço na cara e virar o focinho, para poder arrastar; não dava para aguentar. Mas já eles estavam brancos feito papel, nem sombra de fedor.
Todos ficaram calados.
— Quem sabe é por causa do que eles comem — disse o sargento. — Se entopem com a comida dos patrões.
Ninguém respondeu.
— O tal mujique lá de Mojáisk, onde teve a tal batalha, disse que tiraram os mortos de dez aldeias, levaram em carroças por vinte dias, mas nem tiraram todos os mortos. Disse que tinha por lá cada lobo...
— Aquilo é que foi uma batalha de verdade — disse o soldado velho. — A única que vale a pena lembrar; tudo o que veio depois... É só para fazer o povo sofrer.
— Pois é, vovô. Anteontem a gente correu para cima deles, mas nem deixaram a gente se aproximar. Na mesma hora puseram os fuzis no chão. Ficaram de joelhos. Pardon, disseram. E isso é só um exemplo. Contaram que o Plátov por duas vezes pegou o próprio Poleão. Ele não sabe as palavras mágicas. Aí, pegar ele pegou: mas quando estava ali nas mãos dele, virou um passarinho, saiu voando e foi embora. E também não tem jeito de matar.
— Puxa, mentir é com você mesmo, hein, Kisselióv? Não sou bobo, não.
— Que mentira? É a mais pura verdade.
— Pois se fosse comigo, na hora em que eu pegasse, eu tratava logo de enterrar e pronto. E cravava uma estaca de choupo em cima. Quanta gente ele matou.
— De todo jeito, a gente vai dar fim nisso, ele não vai escapar — disse o soldado velho, bocejando.
A conversa cessou, os soldados começaram a se acomodar.
— Olhe só as estrelas, que maravilha, como brilham forte! Até parece que as mulheres estenderam os lençóis de linho para secar — disse um soldado, admirando a Via Láctea.
— Pois é, minha gente, este ano a colheita vai ser farta.
— Ainda tem de pegar mais um pouquinho de lenha.
— As costas estão quentes, mas a barriga está geladinha. Que coisa.
— Ah, meu Deus!
— Por que está empurrando aí? Acha que o fogo é só para você, é? Olhe só... está espalhando tudo.
Por trás do silêncio que se estabeleceu, ouvia-se o ronco de alguns soldados que dormiam; os outros se reviravam e se esquentavam, de vez em quando trocavam algumas palavras. De uma fogueira distante, a uns cem passos, ouviu-se uma risada alegre, amiga.
— Olhe só, estão dando risada lá na quinta companhia — disse um soldado. — E quanta gente tem lá, nossa!
Um soldado levantou-se e foi para a quinta companhia.
— É mesmo para rir — disse ele quando voltou. — Apareceram dois franceses. Um está todo congelado, mas o outro é um tremendo gaiato, um gozador! Fica lá cantando.
— Ah, puxa! Vamos lá ver... — Alguns soldados foram na direção da quinta companhia.
IX
A quinta companhia estava bem na beira da mata. Uma fogueira enorme ardia brilhante no meio da neve, iluminando os galhos das árvores, pesados de gelo.
No meio da noite, os soldados da quinta companhia tinham escutado, dentro da mata, passos sobre a neve e o estalido de galhos.
— Minha gente, tem um urso aí — disse um soldado. Todos levantaram a cabeça, escutaram com atenção e, da mata, na luz clara da fogueira, saíram dois vultos humanos vestidos de um jeito estranho e apoiando-se um no outro.
Eram dois franceses que haviam se escondido na floresta. Falando algo em voz rouca numa língua desconhecida dos soldados, aproximaram-se da fogueira. Um era de estatura elevada, chapéu de oficial e parecia completamente debilitado. Ao se aproximar da fogueira, fez menção de sentar, mas caiu na terra. O outro, um soldado miúdo, troncudo, com um lenço enrolado nas faces, era mais forte. Levantou seu camarada e, apontando para a boca, disse algo. Os soldados rodearam os franceses, estenderam um capote para o doente e trouxeram mingau e vodca para os dois.
O oficial francês debilitado era Ramballe; o que tinha o lenço enrolado era seu ordenança, Morel.
Quando Morel terminou de beber a vodca e de comer o mingau, de repente se alegrou de modo doentio e desatou a falar algo que os soldados não compreendiam. Ramballe não quis comer e ficou deitado em silêncio, apoiado no cotovelo, junto ao fogo, enquanto fitava os soldados russos com os olhos vermelhos e perplexos. De vez em quando soltava um gemido desolado e de novo ficava em silêncio.
Morel, apontando para os ombros, sugeriu aos soldados que o outro era um oficial e que precisava se aquecer. Um oficial russo que se aproximara da fogueira mandou alguém perguntar ao coronel se ele não permitia que o oficial francês fosse para a sua isbá a fim de se aquecer; e, quando voltaram dizendo que o coronel mandara levar o oficial, disseram para Ramballe ir para lá. Ramballe levantou-se e quis andar, mas vacilou e teria caído se o soldado ao seu lado não o tivesse segurado.
— O que é que foi? Não quer ir, não? — disse um soldado, piscando o olho com ar zombeteiro e abraçando Ramballe.
— Eh, sua besta! Fica aí falando bobagem, seu animal! Você é um mujique mesmo, não passa de um mujique — ouviram-se de vários lados as censuras contra o soldado zombeteiro. Cercaram Ramballe, dois soldados o levantaram nos braços, ergueram-no do chão e o levaram para a isbá. Ramballe abraçou-se àqueles soldados e, enquanto o levavam, disse em tom lastimoso:
— Oh, mes braves, oh, mes bons, mes bons amis! Voilà des hommes! Oh, mes braves, mes bons amis! 6 — e, como uma criança, inclinou a cabeça ao ombro de um soldado.
Enquanto isso, Morel sentou-se no melhor lugar, cercado pelos soldados.
Morel, um francês pequeno e troncudo, de olhos inflamados e lacrimosos, com um lenço amarrado por cima do quepe como uma camponesa, vestia um casaquinho feminino, feito de pele de carneiro. Obviamente já um pouco embriagado, com o braço em volta do soldado a seu lado, ele cantava com voz rouca e vacilante uma canção francesa. Os soldados olhavam para ele, com as mãos na cintura.
— Puxa, vamos lá, vamos aprender também, que tal? Eu vou imitar direitinho. Como é que é mesmo?... — disse o cantor zombeteiro que Morel abraçava.
Vive Henri Quatre,
Vive ce roi vaillant!7
cantou Morel, piscando o olho.
Ce diable à quatre...8
— Vivariká! Vif seruvaru! Sidiabliaká... — repetiu o soldado, sacudindo a mão no ar e, de fato, repetindo a melodia.
— Olhe só, muito bom! Ho-ho-ho-ho-ho! — um riso alegre e bruto ergueu-se de vários lados. Morel, de cara enrugada, riu também.
— Vai, fala mais, fala mais!
Qui eut le triple talent,
De boire, de battre,
E d’être un vert-galant...9
— Puxa, isso também é bonito. Vai, vai, Zaletáiev...
— Kiu... — disse Zaletáiev com esforço. — Kiu-iu-iu... — continuou, torcendo os lábios com capricho. — Letriptalá die bu die ba e dietravagalá — cantou ele.
— Ah, muito bem! É um francês sem tirar nem pôr! Ah... ho-ho-ho-ho!.. E então, não quer comer mais?
— Dá um mingau para ele; com a fome que tem, não vai ficar satisfeito tão depressa assim.
De novo, deram-lhe mingau; e Morel, rindo, partiu logo para a terceira tigela. Havia um sorriso alegre no rosto de todos os soldados jovens que olhavam para Morel. Os soldados velhos, que julgavam indecoroso se ocupar com tais bobagens, estavam deitados do outro lado da fogueira, mas de vez em quando se erguiam um pouco, apoiados num cotovelo, e com um sorriso lançavam um olhar para Morel.
— Também são gente — disse um deles, enrolando-se no capote. — Até o absinto cria raízes e cresce.
— Ooh! Meu Deus, meu Deus! Olhe como está estrelado, que coisa incrível! Vai vir a maior friagem... — E tudo ficou em silêncio.
As estrelas, como se soubessem que agora ninguém as observava, começaram a brincar no céu negro. Ora chamejavam, ora apagavam, ora tremeluziam, enquanto sussurravam afoitas umas para as outras algo alegre, mas misterioso.
X
As tropas francesas se dissolviam de maneira contínua, segundo uma progressão matemática precisa. E a travessia do rio Bereziná, sobre a qual se escreveu tanta coisa, foi apenas um dos passos intermediários da destruição do exército francês e de maneira nenhuma foi o episódio decisivo da campanha. Se tanta coisa foi escrita e ainda se escreve sobre Bereziná, é só porque, do lado dos franceses, as desgraças sofridas até então de maneira uniforme pelo exército francês, de repente, na ponte tombada do Bereziná, se concentraram com mais força em um só momento e num só espetáculo trágico, que ficou na memória de todos. Já do lado dos russos, só falaram e escreveram tanto sobre Bereziná porque em Petersburgo, longe do teatro de guerra, foi traçado um plano (pelo mesmo Pfuhl) para capturar Napoleão numa armadilha estratégica no rio Bereziná. Todos estavam convencidos de que tudo havia de acontecer na realidade tal como estava descrito no plano e por isso insistiam que a travessia do rio Bereziná foi a causa da destruição dos franceses. Na verdade, os resultados da travessia do Bereziná foram muito menos danosos para os franceses, em termos de perda de canhões e de prisioneiros, do que aquilo que ocorreu em Krásnoie, como provam os números.
A única importância da travessia do Bereziná consiste em que essa travessia, de forma óbvia e incontestável, provou a balela de todos os planos para cortar o caminho do inimigo e a justeza da única forma possível de agir, exigida por Kutúzov e por todas as tropas (a massa) — apenas seguir o inimigo. A multidão de franceses fugia numa celeridade cada vez maior, com toda a sua energia voltada para alcançar seu objetivo. Ela fugia como uma fera ferida e não podia parar no caminho. Isso ficou provado não tanto pela organização da travessia, quanto pela movimentação nas pontes. Quando as pontes foram destruídas, soldados desarmados, habitantes de Moscou, mulheres com crianças que estavam nos carroções de carga dos franceses — todos, por força da inércia, não se deram por vencidos e correram para a frente, rumo aos botes, sobre a água coberta de gelo.
Aquele impulso fazia sentido. A situação dos que fugiam e dos que perseguiam era igualmente ruim. Enquanto estavam com os seus iguais, cada um em sua desgraça podia esperar ajuda de algum camarada, de acordo com a posição determinada que ocupava entre os seus. Quem se entregava aos russos ficava na mesma situação de desgraça que antes, só que no último lugar da fila para a partilha dos bens necessários à vida. Para os franceses, não era preciso ter informações corretas sobre o fato de que metade dos prisioneiros, com os quais os russos não sabiam o que fazer, apesar de todo o desejo dos russos de salvá-los, haviam morrido de frio e de fome; eles sentiam que não podia ser de outro modo. Os comandantes russos mais compassivos e simpáticos aos franceses, e mesmo os franceses que haviam se incorporado ao exército russo, nada podiam fazer pelos prisioneiros. A desgraça em que o exército russo se encontrava estava destruindo os franceses. Era impossível tirar o alimento e a roupa de soldados famintos e necessitados para dar aos franceses, que não eram prejudiciais, nem detestáveis, nem culpados, mas simplesmente inúteis. Alguns até fizeram isso; mas foram apenas exceções.
Para trás, havia a perdição certa; para a frente, havia a esperança. Os barcos tinham sido incendiados; não havia outra salvação senão a fuga coletiva, e todas as forças dos franceses se concentraram na fuga coletiva.
Quanto mais os franceses fugiam, mais lamentável era aquilo que restava deles, sobretudo depois de Bereziná, onde, segundo o plano de Petersburgo, depositavam-se grandes esperanças e por isso ardiam mais fortes ainda as paixões dos comandantes russos, que punham a culpa uns nos outros, e sobretudo em Kutúzov. Supondo que o fracasso do plano de Petersburgo para Bereziná seria atribuído a Kutúzov, o descontentamento com ele, o desprezo por ele e a galhofa de que ele era alvo se manifestaram com força cada vez maior. A galhofa e o desprezo, bem entendido, eram expressos de forma respeitosa, de uma forma que Kutúzov não pudesse nem questionar de que e por que o acusavam. Não falavam com ele a sério; ao lhe apresentar um relatório ou ao pedir uma decisão sua, fingiam estar cumprindo uma formalidade lúgubre, mas pelas costas piscavam o olho e faziam de tudo para enganá-lo a cada passo.
Todas aquelas pessoas, exatamente porque não conseguiam compreendê-lo, acreditavam que não adiantava falar com o velho; que ele jamais entenderia toda a profundidade dos seus planos; que ele iria responder com seus provérbios (a eles, pareciam meros provérbios) sobre a ponte de ouro, sobre ser impossível ir além da fronteira com um bando de mendigos etc. Já haviam escutado tudo isso dito por ele. E tudo o que Kutúzov dizia — por exemplo, que era preciso esperar as provisões, que os soldados não tinham botas —, tudo isso era tão simples, ao passo que tudo aquilo que eles propunham era tão complexo e inteligente que, para eles, estava muito claro que Kutúzov era um tolo e um velho, enquanto eles eram comandantes geniais, mas sem poder.
Sobretudo depois da união com o exército do formidável almirante e herói de Petersburgo, Wittgenstein, essa atitude e as intrigas no Estado-Maior alcançaram o nível mais alto. Kutúzov percebia isso e, suspirando, apenas encolhia os ombros. Só uma vez, depois de Bereziná, ele se irritou e escreveu a seguinte carta para Bennigsen, que mantinha contatos em separado com o soberano:
Por causa das crises causadas por sua saúde precária, peço a vossa excelência que, ao receber esta carta, se dirija para Kaluga, onde irá aguardar novas ordens e instruções de sua alteza o imperador.
Mas, depois do afastamento de Bennigsen, chegou ao exército o grão-duque Konstantin Pávlovitch, que havia participado do início da campanha e fora afastado do exército por Kutúzov. Agora, o grão-duque, ao chegar ao exército, comunicou a Kutúzov a insatisfação do soberano imperador com os fracos êxitos de nossas tropas e com a lentidão do movimento. O próprio soberano imperador tinha a intenção de unir-se ao exército em poucos dias.
O velho, tão experiente em assuntos da corte quanto em assuntos militares, o mesmo Kutúzov que em agosto daquele mesmo ano tinha sido escolhido para o cargo de comandante em chefe contra a vontade do soberano, aquele Kutúzov que afastara do exército o grão-duque e herdeiro do trono e determinara o abandono de Moscou, o mesmo Kutúzov agora compreendeu de imediato que seu tempo havia terminado, que seu papel havia chegado ao fim e que o suposto poder que detinha já não existia mais. E compreendeu isso não apenas pela atitude da corte. De um lado, viu que os assuntos militares em que ele desempenhava seu papel estavam encerrados e sentiu que sua missão tinha sido cumprida. De outro lado, ao mesmo tempo, começava a sentir um cansaço físico em seu corpo velho e a necessidade de um repouso físico.
No dia 29 de novembro, Kutúzov entrou em Vilna — sua boa Vilna, como ele dizia. Duas vezes em seu tempo de serviço, Kutúzov fora governador de Vilna. Na rica Vilna, que havia sobrevivido à guerra, além dos confortos da vida dos quais ele estava privado havia tanto tempo, Kutúzov encontrou velhos amigos e recordações. E ele, de repente pondo de lado todas as preocupações militares e de governo, mergulhou numa vida sossegada, rotineira, ao menos na medida em que as paixões que ardiam à sua volta lhe davam repouso, como se tudo o que acontecia agora, e o que tinha de acontecer no mundo histórico, não lhe dissesse o menor respeito.
Tchitchagóv, um dos mais fervorosos defensores de cortar o caminho dos franceses e desbaratar o inimigo, Tchitchagóv, que no início queria fazer uma manobra diversionista na Grécia e depois em Varsóvia, mas nunca queria ir para onde o mandavam, Tchitchagóv, conhecido por seu destemor ao falar com o soberano, Tchitchagóv, que considerava que Kutúzov lhe devia favores porque, quando foi enviado em 1811 para assinar a paz com a Turquia, sem a participação de Kutúzov, ele, convencido de que a paz já fora selada, admitiu diante do soberano que o mérito de selar a paz cabia a Kutúzov; o mesmo Tchitchagóv foi o primeiro a receber Kutúzov em Vilna, no palacete onde Kutúzov devia se instalar. Tchitchagóv, em uniforme da Marinha, com um punhal na cintura, o quepe preso embaixo do braço, entregou a Kutúzov um relatório sobre a guarnição e as chaves da cidade. Aquela atitude de desprezo respeitoso da juventude, em relação a um velho cuja cabeça já não funciona muito bem, se manifestava no mais alto grau em todas as maneiras de Tchitchagóv, que já sabia das acusações levantadas contra Kutúzov.
Ao conversar com Tchitchagóv, Kutúzov lhe disse, entre outras coisas, que as carroças que lhe haviam sido tomadas em Boríssov estavam com todas as peças de porcelana intactas e lhe seriam entregues.
— C’est pour me dire que je n’ai pas sur quoi manger... Je puis au contraire vous fournir de tout dans le cas même où vous voudriez donner des dîners 10 — falou Tchitchagóv, que se exaltou e quis, em cada palavra, comprovar sua retidão e por isso mesmo supôs que também Kutúzov tinha a mesma preocupação. Kutúzov abriu seu sorriso sutil, perspicaz e, encolhendo os ombros, respondeu:
— Ce n’est que pour vous dire ce que je vous dis.11
Em Vilna, Kutúzov, contra a vontade do soberano, reteve a maior parte das tropas. Como diziam as pessoas próximas a ele, Kutúzov ficou extremamente abatido e fisicamente debilitado naquela estadia em Vilna. Cuidava com relutância dos assuntos militares, entregando tudo a seus generais, e, enquanto esperava o soberano, levava uma vida dissipada.
No dia 7 de dezembro, o soberano saiu de Petersburgo com sua comitiva — o conde Tolstói, o príncipe Volkónski, Araktchéiev e outros — e chegou a Vilna no dia 11 de dezembro, onde logo se dirigiu para o palacete, em seu trenó de viagem. Diante do palacete, apesar da violenta friagem, aguardavam-no cerca de cem generais e oficiais do Estado-Maior em uniformes de gala, além da guarda de honra do regimento de Semiónov.
O correio, que numa troica suada chegara ao palacete antes do soberano, exclamou: “Está vindo!”. Konovnítsin precipitou-se no vestíbulo a fim de avisar Kutúzov, que aguardava no pequeno quartinho do porteiro.
Um minuto depois, o vulto grande e gordo do velho, em uniforme de gala, com todas as condecorações cobrindo o peito e uma faixa amarrada na barriga, saiu cambaleante para a varanda. Kutúzov estava de chapéu virado para a frente e segurava as luvas na mão, desceu com dificuldade e meio de lado a escadinha até o último degrau e pegou o relatório que havia preparado para entregar ao soberano.
Uma correria, um sussurro, a passagem de uma troica numa pressa louca, e todos os olhos se lançaram para o trenó que se aproximava a galope, no qual já se avistavam as figuras do soberano e de Volkónski.
Apesar dos cinquenta anos de experiência, tudo aquilo produziu um efeito fisicamente perturbador no velho general; ele se apalpou às pressas e, preocupado, ajeitou o chapéu e, no minuto em que o soberano desceu do trenó e ergueu os olhos para ele, esticou-se, animou-se, entregou o relatório e começou a falar com sua voz cadenciada e insinuante.
O soberano lançou um olhar rápido para Kutúzov, da cabeça aos pés, no mesmo instante franziu as sobrancelhas, mas logo se controlou, aproximou-se, estendeu os braços e abraçou o velho general. Aquele abraço, por força de uma antiga impressão e de seus pensamentos íntimos, produziu em Kutúzov o efeito de costume: ele começou a chorar.
O soberano saudou os oficiais, a guarda de honra do regimento de Semiónov, apertou mais uma vez a mão do velho e entrou com ele no palacete.
A sós com o marechal de campo, o soberano expressou seu descontentamento com a demora na perseguição, com os erros cometidos em Krásnoie e no rio Bereziná, e comunicou suas considerações sobre a futura campanha no estrangeiro. Kutúzov não fez objeções nem comentários. A mesma expressão obediente e vazia com que ele, sete anos antes, escutara as ordens do soberano no campo de batalha de Austerlitz instalou-se então em seu rosto.
Quando Kutúzov saiu do gabinete e, em seu passo pesado e cambaleante, de cabeça baixa, passou pela sala, uma voz o deteve.
— Vossa excelência — disse alguém.
Kutúzov ergueu a cabeça e fitou demoradamente os olhos do conde Tolstói, que estava parado na sua frente, com uma bandeja de prata, na qual havia uma coisinha miúda. Kutúzov pareceu não compreender o que queriam dele.
De repente, pareceu entender: um sorriso quase imperceptível lampejou no seu rosto rechonchudo, e ele, curvando-se respeitosamente, apanhou o objeto que estava na bandeja. Era a medalha da Ordem de São Jorge de primeira classe.
XI
No dia seguinte houve um jantar na casa do marechal de campo e também um baile que o soberano honrou com sua presença. A Ordem de São Jorge de primeira classe tinha sido concedida a Kutúzov; o soberano lhe conferia a mais alta distinção; mas a insatisfação do soberano com o marechal de campo era conhecida de todos. Mantinham-se as aparências, e o próprio soberano era o primeiro a dar o exemplo; mas todos sabiam que o velhote era culpado e que não servia mais para nada. No baile, quando Kutúzov, segundo um antigo costume dos tempos da tsarina Catarina, no momento da entrada do soberano no salão, mandou estender aos seus pés as bandeiras tomadas dos franceses, o soberano franziu o rosto e disse palavras que só alguns ouviram: “Velho comediante”.
A insatisfação do soberano com Kutúzov aumentou em Vilna sobretudo porque Kutúzov obviamente não queria ou não conseguia entender a importância da campanha futura.
Quando, no dia seguinte pela manhã, o soberano disse para os oficiais reunidos à sua volta: “Os senhores salvaram não só a Rússia; salvaram a Europa”, todos já haviam entendido que a guerra não havia terminado.
Só Kutúzov não queria entender aquilo e manifestava abertamente sua opinião de que uma nova guerra não poderia melhorar a situação e aumentar a glória da Rússia, mas poderia apenas piorar a situação e rebaixar a glória suprema que, a seu ver, a Rússia então havia alcançado. Tentou mostrar ao soberano a impossibilidade de convocar tropas novas; falou da situação penosa da população, da possibilidade de um fracasso etc.
Como é natural, em tal estado de espírito, o marechal de campo só podia representar um estorvo e um empecilho à guerra vindoura.
Para evitar confrontos com o velho, encontrou-se espontaneamente uma saída que, tal como ocorrera em Austerlitz e com Barclay no início da campanha, consistia em retirar a base de poder em que o comandante em chefe se mantinha de pé, sem alarmá-lo e sem comunicar-lhe o assunto, e transferi-la para o próprio imperador.
Com tal objetivo, o Estado-Maior foi reformulado aos poucos, e todo o núcleo do poder do Estado-Maior de Kutúzov foi suprimido e transferido para o soberano. Toll, Konovnítsin, Ermólov receberam novas atribuições. Falavam cada vez mais alto que o marechal de campo estava muito enfraquecido e com a saúde abalada.
Ele só podia mesmo estar com a saúde abalada para transmitir seu posto para aquele que o substituiu. E, de fato, sua saúde estava debilitada.
De modo tão natural, simples e gradual como Kutúzov tinha vindo da Turquia para o palácio do Tesouro em Petersburgo, a fim de formar as milícias, e depois fora para o Exército, justamente na hora em que ele era indispensável, de modo igualmente natural, gradual e simples, agora, quando o papel de Kutúzov já havia se esgotado, surgia em seu lugar o ator novo que se requeria.
A guerra de 1812, além de seu significado, caro ao coração do povo russo, deveria ter outro significado — europeu.
Após o movimento dos povos do Ocidente para o Oriente, deveria se seguir outro, do Oriente para o Ocidente, e para aquela nova guerra era necessário um ator novo, com características e opiniões diferentes de Kutúzov e guiado por outras motivações.
Para o movimento dos povos do Oriente para o Ocidente e para a restauração das fronteiras nacionais, Alexandre I era tão necessário quanto tinha sido Kutúzov para a salvação e a glória da Rússia.
Kutúzov não entendia o que significava a Europa, o equilíbrio, Napoleão. Não conseguia compreender isso. Para o representante do povo russo, depois que o inimigo fora aniquilado, a Rússia estava liberta e se alçara à sua glória suprema; para um russo, enquanto russo, não tinha sentido fazer ainda algo mais. Para o representante da guerra popular, não restava outra coisa senão a morte. E ele morreu.
XII
Como acontece na maior parte das vezes, Pierre só sentiu todo o peso das privações físicas e das pressões que havia sofrido no cativeiro quando aquelas pressões e privações terminaram. Após sua libertação do cativeiro, Pierre foi para Oriol e, no terceiro dia em que estava lá, quando se preparava para partir rumo a Kíev, adoeceu e ficou adoentado em Oriol durante três meses; tinha, como diziam os médicos, uma febre biliosa. Apesar de os médicos o terem tratado, terem tirado seu sangue e lhe dado remédios para beber, mesmo assim Pierre recobrou a saúde.
Tudo o que havia ocorrido com Pierre desde sua libertação até a doença não deixara nele quase nenhuma impressão. Só lembrava o tempo cinzento, sombrio, ora chuvoso, ora nevoso, uma aflição física interior, a dor nas pernas, no quadril; lembrava uma sensação geral de infelicidade, de sofrimento das pessoas; lembrava a curiosidade dos oficiais, dos generais que o importunavam com interrogatórios, a preocupação que tinham de encontrar um comboio de carga e cavalos, e também, acima de tudo, Pierre lembrava sua incapacidade de pensamento e de sentimento durante aquele tempo. No dia de sua libertação, viu o cadáver de Pétia Rostóv. No mesmo dia soube que o príncipe Andrei ainda estava vivo mais de um mês após a batalha de Borodinó e que só havia morrido pouco antes, em Iaroslavl, na casa dos Rostóv. E também no mesmo dia Deníssov, que dera aquelas notícias a Pierre, mencionou de passagem, no meio de uma conversa, a morte de Hélène, supondo que Pierre já soubesse do fato havia muito tempo. Tudo aquilo pareceu então a Pierre apenas estranho. Sentiu que não podia entender o significado de todas aquelas notícias. Na ocasião, só pensava em ir embora daqueles lugares bem depressa, o mais rápido possível, lugares onde pessoas se matavam umas às outras, ir para algum refúgio sossegado e lá pôr os pensamentos em ordem, repousar e refletir sobre todas as coisas estranhas e novas que ele havia aprendido durante aquele tempo. Porém, assim que chegou a Oriol, adoeceu. Quando voltou a si após a doença, Pierre viu ao seu redor seus dois criados, que haviam chegado de Moscou — Terénti e Vaska —, e a princesa mais velha, que, morando em Eliéts, numa propriedade de Pierre, e tendo sabido de sua libertação e de sua doença, viera para junto dele a fim de ajudá-lo.
Durante sua convalescença, só aos poucos Pierre se desfez das impressões dos últimos meses, impressões que para ele haviam se tornado habituais, e acostumou-se ao fato de que ninguém o açoitaria para continuar a andar no dia seguinte, de que ninguém viria tomar sua cama quente, e de que era seguro que teria o que comer no almoço, no chá e no jantar. Mas em sonho ele por muito tempo ainda se via nas condições de prisioneiro. Da mesma forma, só aos poucos Pierre compreendeu as notícias que lhe tinham chegado após a saída do cativeiro: a morte do príncipe Andrei, a morte da esposa, o aniquilamento dos franceses.
Um sentimento alegre de liberdade — daquela liberdade inalienável, inerente ao homem —, a consciência que ele experimentara pela primeira vez no primeiro acampamento após sair de Moscou, enchia a alma de Pierre durante sua convalescença. Ele se admirava ao ver que tal liberdade interior, independente das circunstâncias exteriores, agora se cercava também de uma liberdade exterior que parecia demasiada, ostentosa. Estava sozinho numa cidade estranha, sem conhecidos. Ninguém exigia nada dele; ninguém o mandava para nenhum lugar. Tinha tudo o que queria; os pensamentos sobre a esposa, que antes o atormentavam sem cessar, não existiam mais, pois ela mesma já não existia mais.
— Ah, como é bom! Que agradável! — dizia para si, quando empurravam para junto dele uma mesa limpa, bem-arrumada, com uma sopa fumegante, ou quando se deitava à noite numa cama limpa e macia, ou quando lembrava que a esposa e os franceses não existiam mais. — Ah, como é bom, que agradável! — E, por força de um antigo costume, ele se fazia a pergunta: muito bem, mas e agora? O que vou fazer? E de pronto respondia: nada. Vou viver. Ah, como é agradável!
A mesma coisa que antes o atormentava, aquilo que ele procurava o tempo todo, um objetivo para a vida, agora não existia para ele. Aliás, para Pierre, não era só naquele momento que o procurado objetivo da vida não existia; Pierre sentia que tal objetivo não existia nem poderia nunca existir. E tal ausência de objetivo lhe dava a plena e alegre consciência da liberdade que, naquela ocasião, constituía sua felicidade.
Pierre não podia ter um objetivo porque agora ele tinha uma fé — não a fé em algum princípio, ou em palavras, ou em ideias, mas a fé num Deus vivo e sempre percebido. Antes ele o procurava em objetivos que traçava para si. Aqueles objetivos procurados eram apenas a busca de Deus; e de repente ele aprendera em seu cativeiro, não por meio de palavras nem de raciocínios, mas por um sentimento imediato, aquilo que sua babá lhe dizia muito tempo antes: que Deus está bem junto, aqui, em toda parte. No cativeiro, ele descobrira que o Deus de Karatáiev era maior, mais infinito e inapreensível do que o Arquiteto do Universo concebido pelos maçons. Pierre experimentava o sentimento de um homem que encontra bem junto aos pés aquilo que procurava, depois de forçar os olhos ao máximo a fim de avistar ao longe. Por toda a vida, Pierre havia olhado para outros lugares, por cima da cabeça das pessoas à sua volta, quando não havia necessidade de forçar os olhos, mas apenas olhar bem na sua frente.
Antes, Pierre não conseguia enxergar o grandioso, o inapreensível e o infinito em nada. Apenas sentia que aquilo devia estar em algum lugar e o procurava. Em tudo que estava perto e era compreendido, ele só enxergava o limitado, o pequeno, o mundano, o absurdo. Ele se munia de uma luneta mental e olhava ao longe, lá onde aquele pequeno e mundano, oculto num nevoeiro distante, lhe parecia grande e infinito só porque não se via com clareza. Assim ele representava a vida europeia, a política, a maçonaria, a filosofia, a filantropia. Mas mesmo então, em momentos que ele considerava de fraqueza, seu pensamento penetrava também naquela distância e lá ele via também o pequeno, o mundano e o absurdo. Agora ele aprendera a enxergar em tudo o grande, o eterno e o infinito, e portanto, a fim de enxergá-lo, a fim de deleitar-se com a consciência disso, Pierre pôs de lado com toda a naturalidade a luneta em que até então olhava por cima da cabeça das pessoas e com alegria passara a contemplar à sua volta a vida eternamente mutável, grandiosa, inapreensível e infinita. E, quanto mais olhava para o que estava perto, mais ficava tranquilo e feliz. A terrível pergunta “para quê?”, que antes destruía todas as suas construções mentais, agora não existia mais para Pierre. Agora, para a pergunta “para quê?”, havia sempre pronta em sua alma uma resposta simples: porque existe Deus, o Deus sem cuja vontade não cai um fio de cabelo da cabeça de um homem.
XIII
Pierre quase não mudara em suas maneiras exteriores. Na aparência, era exatamente o mesmo de antes. Tal como antes, vivia distraído e parecia ocupado não com o que tinha diante dos olhos, mas com algo próprio, particular. A diferença entre sua situação anterior e a atual consistia em que antes, quando ele esquecia o que tinha à sua frente ou aquilo que lhe diziam, Pierre franzia com força a testa, como se tentasse e não conseguisse enxergar algo distante e fora de seu alcance. Agora, da mesma forma esquecia o que lhe diziam e o que estava na sua frente; porém agora, com um sorriso aberto e quase jocoso, ele observava o que estava à sua frente, escutava o que lhe diziam, embora obviamente visse e escutasse algo totalmente distinto. Antes, parecia um homem bom, mas infeliz; e por isso as pessoas, sem querer, afastavam-se dele. Agora, um sorriso de alegria com a vida sempre pairava em torno da sua boca, e em seus olhos brilhava uma simpatia pelas pessoas — e a pergunta: será que elas estão satisfeitas como eu? E as pessoas sentiam-se bem em sua presença.
Antes ele falava muito, exaltava-se quando falava e escutava pouco; agora era raro deixar-se arrebatar por uma discussão e conseguia escutar, por isso as pessoas lhe contavam de bom grado seus segredos mais íntimos.
A princesa, que jamais gostara de Pierre e tinha por ele um particular sentimento de hostilidade desde a morte do velho conde, quando se sentira em dívida com ele agora, depois da breve estadia em Oriol, para onde ela fora com a intenção de mostrar a Pierre que, apesar de sua ingratidão, considerava seu dever ir cuidar dele, a princesa, para sua vergonha e surpresa, em pouco tempo sentiu que o amava. Pierre nada fazia para tentar ganhar a simpatia da princesa. Apenas a fitava com curiosidade. Antes a princesa sentia que no olhar de Pierre havia indiferença e zombaria, e ela, como fazia também diante de outras pessoas, se retraía diante de Pierre e só mostrava seu lado agressivo; agora, ao contrário, sentia que Pierre parecia alcançar até os pontos mais íntimos de sua vida; e ela, de início com incredulidade, depois com gratidão, mostrava-lhe os lados bondosos e secretos de seu caráter.
As pessoas mais astutas não conseguiriam se insinuar e ganhar a confiança da princesa daquele modo, evocando as melhores lembranças de seus tempos de juventude e mostrando-lhe compaixão. Por sua vez, toda a astúcia de Pierre consistia apenas em demonstrar o próprio prazer, suscitando um sentimento humano na princesa rancorosa, seca e orgulhosa à sua maneira.
— Sim, ele é um homem muito, muito bondoso, quando não está sob a influência de outras pessoas, mas só de pessoas como eu — dizia a princesa para si.
A transformação ocorrida em Pierre era notada também, à sua maneira, por seus criados — Terénti e Vaska. Eles achavam que Pierre tinha ficado muito mais simples. Muitas vezes, depois de ajudar o patrão a trocar de roupa antes de dormir, com os sapatos e a roupa de Pierre na mão, Terénti lhe desejava boa-noite e demorava a sair, esperando para ver se o patrão não começava uma conversa. E em geral Pierre retinha Terénti, notando que ele estava com vontade de conversar.
— E então, me conte... como é que vocês conseguiam arranjar comida? — perguntava. E Terénti começava a falar sobre a devastação de Moscou, sobre o falecido conde, e ficava muito tempo com a roupa na mão, contando, e de vez em quando escutava as histórias de Pierre e, com a consciência satisfeita da proximidade que havia entre ele e o patrão e da amizade por ele, saía para o corredor.
O médico que tratava de Pierre e o visitava todos os dias, apesar de, por sua condição de médico, se julgar no dever de ter o aspecto de um homem para quem cada minuto é precioso para a humanidade sofredora, se demorava horas com Pierre, contava-lhe suas histórias prediletas e suas observações sobre os costumes dos pacientes em geral e, em especial, das senhoras.
— Pois é, é difícil achar na província um homem com quem se possa conversar de forma tão agradável como faço com o senhor — dizia ele.
Em Oriol, viviam alguns oficiais do Exército francês prisioneiros, e o médico trouxe um deles, um jovem oficial italiano.
Aquele oficial passou a visitar a casa de Pierre, e a princesa ria dos sentimentos de ternura que o italiano exprimia a Pierre.
Era evidente que o italiano só se sentia feliz quando podia ir à casa de Pierre conversar com ele e contar-lhe seu passado, sua vida em sua terra, seus amores, e extravasar sua indignação com os franceses e em especial com Napoleão.
— Se todos os russos fossem pelo menos um pouco parecidos com o senhor — dizia para Pierre —, c’est un sacrilège de faire la guerre à un peuple comme le vôtre.12 Vocês que sofreram tanto com os franceses não têm nenhum rancor deles.
E o amor apaixonado do italiano por Pierre agora se devia apenas ao fato de ele ter suscitado no italiano os melhores aspectos de sua alma e de ter se admirado com eles.
Nos últimos dias da estada de Pierre em Oriol, vinha à sua casa um velho conhecido maçom — o conde Villárski —, o mesmo que o havia introduzido na loja maçônica em 1807. Villárski era casado com uma russa rica, dona da maior propriedade rural da província de Oriol, e ocupava na cidade um cargo provisório no departamento encarregado da distribuição de alimentos.
Ao saber que Bezúkhov estava em Oriol, Villárski, embora nunca tivesse sido muito próximo a ele, foi visitá-lo com as declarações de amizade e de afinidade que em geral manifestam mutuamente as pessoas que se encontram no meio de uma vastidão deserta. Villárski sentia-se entediado em Oriol e ficou feliz por encontrar um homem do mesmo círculo que o seu e, assim supunha, com os mesmos interesses.
Porém, para sua surpresa, Villárski notou logo que Pierre se afastara muito da vida real e caíra na apatia e no egoísmo, como dizia para si mesmo.
— Vous vous encroûtez, mon cher 13 — disse para Pierre. Apesar disso, Villárski agora se sentia melhor do que antes com Pierre e ia à sua casa todo dia. Já Pierre, quando olhava para Villárski e o escutava, achava estranho e incrível pensar que pouco tempo antes ele mesmo tinha sido daquele jeito.
Villárski era um homem casado e de família, ocupado com os assuntos da propriedade da esposa, com seu trabalho no serviço público, com a família. Achava que todos aqueles afazeres eram obstáculos para a vida e que todos eram desprezíveis, porque tinham por objetivo o bem-estar pessoal e da família. Considerações militares, administrativas, políticas e da maçonaria absorviam suas atenções o tempo todo. E Pierre, sem tentar modificar o ponto de vista de Villárski, sem criticá-lo, com o seu agora constante ar de ironia alegre e serena, se deliciava com aquele fenômeno estranho e tão conhecido dele.
Em suas relações com Villárski, com a princesa, com o médico, com todos aqueles que agora encontrava, havia em Pierre um traço novo que o levava a ganhar a simpatia de todos: era o reconhecimento da possibilidade de cada pessoa pensar, sentir e ver as coisas à sua maneira; o reconhecimento da impossibilidade de dissuadir uma pessoa por meio de palavras. Aquela peculiaridade legítima de toda pessoa, que antes perturbava e irritava Pierre, agora constituía a nova simpatia e o novo interesse que ele sentia pelas pessoas. A diferença e, às vezes, a completa contradição entre os pontos de vista das pessoas e a vida delas, e também entre as próprias pessoas, alegravam Pierre e provocavam nele um sorriso irônico e manso.
Nas questões práticas, Pierre inesperadamente sentia que agora tinha um centro de gravidade, o que antes não existia. Antes, toda questão de dinheiro e em especial os pedidos de dinheiro, aos quais ele, na condição de homem muito rico, estava sujeito com muita frequência, o levavam a perturbações e incertezas inextricáveis. “Dar ou não dar?”, perguntava-se. “Eu tenho e ele precisa. Mas outro precisa mais ainda. Quem precisa mais? E quem sabe não são ambos impostores?” E para todas essas hipóteses ele antes não encontrava nenhuma saída e dava dinheiro para todos, enquanto tinha o que dar. Antes ele se achava exatamente no mesmo embaraço em face de qualquer questão relativa à sua fortuna, quando alguém lhe dizia que era preciso agir de um modo, e outra pessoa, de modo diferente.
Agora, para sua surpresa, Pierre descobriu que em todas aquelas questões não havia mais dúvidas nem embaraço. Dentro dele surgira agora um juiz que, segundo certas leis desconhecidas dele mesmo, resolvia o que era preciso e o que não era preciso fazer.
Tal como antes, Pierre era indiferente a assuntos de dinheiro; mas agora sabia de modo inquestionável o que devia e o que não devia fazer. A primeira intervenção daquele novo juiz ocorreu no pedido de um coronel francês prisioneiro que veio à sua casa, falou muito de suas façanhas e no final reivindicou quase como uma exigência que Pierre lhe desse quatro mil francos para mandar para a esposa e para os filhos. Pierre, sem o menor esforço e embaraço, recusou, admirando-se mais tarde de como tinha sido fácil e simples o que antes parecia uma dificuldade insolúvel. Ao mesmo tempo que recusou o pedido do coronel, resolveu que era necessário usar de astúcia para, ao partir de Oriol, obrigar o oficial italiano a aceitar algum dinheiro, do qual obviamente precisava. Uma nova prova para Pierre de sua forma renovada de encarar os assuntos práticos foi sua decisão sobre a questão das dívidas da esposa e sobre a reconstrução ou não de suas casas e datchas em Moscou.
Seu principal administrador foi a seu encontro em Oriol, e com ele Pierre calculou seus prejuízos. O incêndio de Moscou custara a Pierre, pelas contas do administrador, cerca de dois milhões.
O administrador, a título de consolo por tais prejuízos, apresentou a Pierre um cálculo que mostrava que, apesar dos prejuízos, suas receitas não só não diminuiriam como até aumentariam, caso ele se recusasse a pagar as dívidas deixadas pela condessa, das quais ele não podia ser responsabilizado, e caso ele não reconstruísse as casas de Moscou e dos arredores de Moscou, que custavam oitenta mil por ano e não lhe traziam nada.
— Sim, sim, é verdade — disse Pierre, sorrindo com alegria. — Sim, sim, não preciso mesmo de nada disso. A ruína acabou me deixando ainda muito mais rico.
Mas em janeiro Savélitch chegou de Moscou, contou-lhe como andava a situação por lá, apresentou a estimativa feita pelo arquiteto para a reconstrução das casas em Moscou e nos arredores da cidade, falando sobre isso como se fosse algo já decidido. Ao mesmo tempo Pierre recebeu cartas do príncipe Vassíli e de outros conhecidos de Petersburgo. Nas cartas, falava-se das dívidas da esposa. E Pierre resolveu que os planos do administrador, que ele tanto havia apreciado, estavam errados e que tinha de ir a Petersburgo liquidar os negócios da esposa e reconstruir as casas de Moscou. Por que aquilo era necessário, ele não sabia; mas sabia sem sombra de dúvida que era necessário. Suas receitas, por causa de tal decisão, se reduziram em três quartos. Mas aquilo era necessário. Pierre o sentia.
Villárski ia para Moscou, e os dois resolveram partir juntos.
Durante todo o tempo de sua convalescença em Oriol, Pierre experimentara um sentimento de alegria, de liberdade, de vida; mas quando ele, por ocasião de sua viagem, se viu na amplidão do mundo e encontrou centenas de pessoas novas, aquele sentimento ficou ainda mais forte. Durante todo o tempo da viagem, Pierre experimentou a alegria de um estudante em férias. Todas as pessoas: o cocheiro, o zelador, os mujiques na estrada ou na aldeia — todos tinham um significado novo para ele. A presença e as observações de Villárski, que o tempo todo lastimava a pobreza e a ignorância da Rússia, seu atraso em relação à Europa, apenas despertavam a alegria de Pierre. Lá onde Villárski enxergava mortandade, Pierre via uma extraordinária e poderosa força vital, a força que na neve, naquela vastidão, sustentava a vida daquele povo completo, único, especial. Pierre não contradizia Villárski e parecia concordar com ele (pois a concordância fingida era o meio mais curto de esquivar-se de discussões, das quais nada poderia sair), e sorria com ar alegre, enquanto o escutava.
XIV
Da mesma forma que é difícil explicar para que e para onde correm as formigas cujo formigueiro foi arrasado, umas carregando para fora restos do monte de terra, larvas e corpos mortos, outras voltando para o formigueiro — e para que se esbarram, passam por cima umas das outras e brigam entre si —, também seria difícil explicar as causas que obrigaram os russos, após a partida dos franceses, a se aglomerar no lugar antes conhecido pelo nome de Moscou. Mas, da mesma forma como, quando olhamos as formigas dispersas em redor do formigueiro destruído, apesar da completa devastação do formigueiro, é visível pela tenacidade, pela energia, pelo número incontável dos insetos fervilhantes, que tudo foi devastado exceto algo indestrutível, imaterial, que constitui toda a força do formigueiro — assim também Moscou, no mês de outubro, apesar de não haver nem autoridades, nem igrejas, nem religião, nem riquezas, nem casas, continuava a ser a mesma Moscou que tinha sido em agosto. Tudo estava destruído, exceto algo imaterial, mas poderoso e indestrutível.
As motivações das pessoas que acudiam ansiosas a Moscou, vindas de todos os lados, depois que os inimigos foram embora, eram as mais diversas, particulares e, no início, na maior parte, eram motivações selvagens, brutais. Só uma motivação era comum a todos — o impulso de ir para lá, o lugar que antes era chamado de Moscou, a fim de executar lá suas atividades.
Uma semana depois, em Moscou, já havia quinze mil habitantes, em duas semanas já eram vinte e cinco mil, e assim por diante. Aumentando cada vez mais, a população alcançou, no outono de 1813, um número superior ao do ano de 1812.
Os primeiros russos que voltaram a Moscou foram os cossacos do destacamento de Wintzingerode, mujiques de aldeias vizinhas e habitantes que tinham fugido de Moscou e se escondido nas cercanias. Os russos que entraram na Moscou destruída, ao encontrá-la saqueada, saquearam-na também. Continuaram o que os franceses tinham feito. As carroças dos mujiques foram a Moscou a fim de levar para as aldeias tudo o que estava abandonado nas casas e nas ruas destruídas de Moscou. Os cossacos levaram o que podiam para seus acampamentos; os proprietários de imóveis apanharam tudo o que acharam em outras casas e levavam para suas casas sob o pretexto de que era de sua propriedade.
Mas depois dos primeiros saqueadores vieram outros, e vieram os terceiros e, à medida que os saqueadores aumentavam, a pilhagem se tornava mais difícil a cada dia e tomava formas mais definidas.
Os franceses encontraram Moscou vazia, porém com todas as formas organizadas de governo de uma cidade viva, com suas distintas atribuições de comércio, luxo, administração pública, religião. Tais formas estavam sem vida, mas ainda existiam. Havia feiras, oficinas, lojas, galerias, bazares — em geral, ainda com suas mercadorias; havia fábricas, centros de manufatura; havia palácios, mansões ricas, repletas de objetos de luxo; havia hospitais, prisões, repartições do governo, igrejas, catedrais. Quanto mais tempo os franceses ficavam, mais eram destruídas aquelas formas de vida citadina, e no final tudo se fundiu num único e indivisível campo de pilhagem, sem vida.
O saque dos franceses, quanto mais se prolongava, mais devastava as riquezas de Moscou e consumia as forças dos saqueadores. O saque dos russos, com o qual teve início a reocupação da cidade pelos russos, quanto mais se prolongava, quanto mais pessoas dele participavam, mais depressa restabelecia a riqueza de Moscou e a vida normal da cidade.
Além dos saqueadores, pessoas as mais variadas, atraídas umas pela curiosidade, outras pela obrigação do serviço público, outras por interesse — proprietários de imóveis, membros do clero, funcionários de alto e baixo escalão, comerciantes, artesãos, mujiques —, afluíam para Moscou de várias direções, como o sangue aflui para o coração.
Em uma semana, os mujiques que haviam chegado com as carroças vazias a fim de levar objetos consigo já eram detidos pelas autoridades e coagidos a levar os cadáveres para fora da cidade. Outros mujiques, tendo sabido do fracasso de seus camaradas, foram para a cidade com trigo, aveia, feno, e abaixavam o preço cada um mais que o outro, até o preço baixar ao mesmo valor de antes. Grupos de carpinteiros chegavam a Moscou todos os dias na esperança de receber altos salários, e por todo lado erguiam-se casas novas e restauravam-se casas incendiadas. Comerciantes abriam pontos de venda em barracas. Restaurantes e estalagens eram montados em casas incendiadas. O clero reiniciou os serviços religiosos nas muitas igrejas que não haviam pegado fogo. Os benfeitores trouxeram bens que tinham sido saqueados da Igreja. Funcionários públicos improvisaram em pequenas saletas suas mesas com panos e seus arquivos de papéis. As altas autoridades e a polícia controlavam a distribuição do que os franceses haviam deixado para trás. Os donos das casas onde tinham sido abandonadas muitas coisas retiradas de outras casas reclamaram da injustiça que havia na remoção de todos os objetos para o palácio Facetado;14 outros enfatizavam que os franceses tinham removido coisas de várias casas para um só lugar e que por isso era injusto entregar ao dono de uma casa as coisas que ela continha. Acusavam a polícia; subornavam policiais; decuplicavam as estimativas do valor dos bens do tesouro que tinham sido queimados; exigiam auxílios pecuniários. O conde Rostoptchin redigia seus decretos.
XV
No fim de janeiro, Pierre chegou a Moscou e instalou-se numa ala da casa que havia sobrevivido. Foi visitar o conde Rostoptchin e alguns conhecidos que haviam regressado a Moscou e preparou-se para partir para Petersburgo dali a dois dias. Todos comemoravam a vitória; tudo fervia de vida na capital devastada e renascida. Todos se mostravam alegres com Pierre; todos queriam vê-lo e todos lhe perguntavam acerca do que tinha visto. Pierre sentia uma disposição particularmente amistosa com relação a todos que encontrava; no entanto, agora, sem querer, mantinha-se em guarda diante de todos a fim de não se prender a nada. A todas as perguntas que lhe faziam — as importantes e também as mais insignificantes —, ele respondia da mesma forma vaga; se lhe perguntavam onde ele ia morar, se ia construir uma casa, quando iria para Petersburgo e se não se importaria de levar consigo uma caixinha, Pierre respondia: sim, pode ser, acho que sim etc.
Sobre os Rostóv, tinha ouvido dizer que estavam em Kostromá, e raramente lhe vinham pensamentos sobre Natacha. Se vinha algum pensamento, era apenas como uma lembrança agradável de um passado distante. Pierre sentia-se livre não só das condições mundanas como também do sentimento que, assim lhe parecia, ele havia intencionalmente alimentado em si mesmo.
No terceiro dia após sua chegada a Moscou, soube por intermédio dos Drubétskoi que a princesa Mária estava em Moscou. A morte, os sofrimentos, os últimos dias do príncipe Andrei muitas vezes ocupavam o pensamento de Pierre e agora, com renovada vivacidade, lhe vinham à cabeça. Ao saber durante o jantar que a princesa Mária estava em Moscou e morava em sua própria casa, que não pegara fogo, na rua Vzdvíjenka, foi visitá-la naquela mesma noite.
A caminho da casa da princesa Mária, Pierre não parava de pensar no príncipe Andrei, em sua amizade por ele, nos diversos encontros que tiveram e em especial no último, em Borodinó.
“Será que ele morreu no estado de ânimo rancoroso em que estava naquele dia? Será que, em face da morte, não se revelou para ele a explicação da vida?”, pensava Pierre. Lembrou-se de Karatáiev, de sua morte e, sem querer, passou a comparar as duas mortes, tão distintas e ao mesmo tempo tão semelhantes por causa do amor que Pierre tinha por ambos, e também por ambos terem vivido e morrido.
Na disposição de espírito mais séria possível, Pierre se aproximou da casa do velho príncipe. A casa tinha sobrevivido. Nela, viam-se vestígios da devastação, mas o caráter da casa havia perdurado. Ao encontrar Pierre, o velho copeiro de rosto severo, como se quisesse dar a entender à visita que a ausência do príncipe não iria perturbar a ordem da casa, disse que a princesa tinha se dignado a retirar-se a seus aposentos e que ela recebia aos domingos.
— Avise a ela; talvez me receba — disse Pierre.
— Sim, senhor — respondeu o copeiro. — Tenha a bondade de vir para a sala dos retratos.
Alguns minutos depois, o copeiro e Dessalles vieram ao encontro de Pierre. Dessalles, em nome da princesa, comunicou a Pierre que ela estava muito contente em vê-lo e pedia que lhe perdoasse pela falta de cerimônia e subisse para o seu quarto no primeiro andar.
No quarto de teto baixo, iluminado por uma vela, estava a princesa e mais alguém, de vestido preto. Pierre lembrou que a princesa estava sempre com damas de companhia. Quem eram e como eram aquelas damas de companhia Pierre não sabia e não lembrava. “Essa é uma de suas damas de companhia”, pensou ele, lançando um olhar ligeiro para a dama de vestido preto.
A princesa ergueu-se depressa, foi ao encontro dele e lhe estendeu a mão.
— Sim — disse ela, observando seu rosto tão mudado, depois que Pierre beijou sua mão —, veja em que circunstâncias voltamos a nos encontrar. Nos últimos dias, ele falava do senhor com frequência — disse, desviando os olhos de Pierre para a dama de companhia com uma timidez que impressionou Pierre por um momento. — Fiquei muito contente ao saber que o senhor fora salvo. Foi a única notícia feliz que recebemos em muito tempo. — De novo, de modo ainda mais inquieto, a princesa virou-se para a dama de companhia e fez menção de falar algo; mas Pierre a interrompeu.
— A senhora imagine que eu não soube nada a respeito dele — disse Pierre. — Julguei que tinha sido morto. Tudo o que eu soube foi por outros, por meio de terceiros. Só soube que ele foi parar na casa dos Rostóv... Mas que destino!
Pierre falava depressa, animado. Olhou uma vez de relance para o rosto da dama de companhia, percebeu um olhar curioso, atento, afetuoso, voltado para ele e, como acontece muitas vezes durante uma conversa, Pierre por algum motivo teve a sensação de que a dama de companhia de vestido preto era uma criatura bondosa, encantadora, excelente, que não representava nenhum obstáculo para sua conversa com a princesa Mária.
Mas, quando falou as últimas palavras a respeito dos Rostóv, o embaraço no rosto da princesa Mária se exprimiu com mais força ainda. De novo ela desviou seu olhar do rosto de Pierre para o rosto da dama de vestido preto e disse:
— Será que o senhor não a está reconhecendo?
Pierre lançou mais um olhar para o rosto pálido, fino, de olhos pretos e boca estranha da dama de companhia. Algo querido, esquecido havia muito tempo, e mais do que meigo o fitava naqueles olhos atentos.
“Não, não é possível”, pensou ele. “Esse rosto severo, magro, pálido e envelhecido? Não pode ser ela. É só uma lembrança que estou tendo.” Mas naquele momento a princesa Mária falou: “Natacha”. E o rosto de olhos atentos, com dificuldade, com esforço, como se abrisse uma porta enferrujada, sorriu, e daquela porta aberta, de repente, soprou e envolveu Pierre uma baforada daquela felicidade esquecida havia muito tempo, sobre a qual ele não pensava, muito menos agora. Bafejou, dominou e absorveu Pierre completamente. Quando ela sorriu, já não podia haver dúvida: era Natacha, e ele a amava.
Já no primeiro minuto, Pierre sem querer revelou a ela, à princesa Mária e sobretudo a si mesmo um segredo que ele mesmo desconhecia. Ficou ruborizado de modo alegre e dolorosamente sofrido. Quis ocultar sua perturbação. Porém, quanto mais queria esconder, de modo tanto mais claro — mais claro do que as palavras mais exatas —, dizia, para si, para ela e para a princesa Mária, que a amava.
“Não, isto é só fruto da surpresa”, pensou Pierre. Mas, assim que tentou prosseguir a conversa iniciada com a princesa Mária, olhou de novo para Natacha, e um rubor ainda mais forte cobriu seu rosto, e uma agitação de alegria e de terror dominou sua alma com mais força ainda. Embaralhou-se com as palavras e parou no meio da fala.
Pierre não havia notado Natacha porque não esperava nem de longe vê-la ali, mas não a reconhecera porque a transformação ocorrida com ela, desde a última vez que a vira, tinha sido enorme. Tinha emagrecido e ficado pálida. Mas também não era aquilo que a tornara irreconhecível: foi impossível reconhecê-la no primeiro minuto, assim que entrou, porque naquele rosto, nos olhos em que antes sempre cintilava o furtivo sorriso da alegria da vida, agora, na hora em que Pierre entrou e olhou para ela pela primeira vez, não havia nem sombra daquele sorriso; só havia os olhos atentos, bondosos e tristemente interrogativos.
A perturbação de Pierre não se refletia como perturbação em Natacha, e sim apenas como uma satisfação que iluminava o rosto dela inteiro de modo quase imperceptível.
XVI
— Ela veio se hospedar em minha casa — disse a princesa Mária. — O conde e a condessa virão daqui a alguns dias. A condessa se encontra num estado horrível. Mas a própria Natacha precisava consultar um médico. Eles a forçaram a vir comigo.
— Sim, e haverá alguma família sem os seus desgostos? — disse Pierre, dirigindo-se a Natacha. — A senhora sabe que aquilo aconteceu no mesmo dia em que fomos libertados? Eu o vi. Que rapaz encantador era ele.
Natacha o fitava e, em resposta às palavras de Pierre, seus olhos apenas se abriram e se iluminaram ainda mais.
— O que se pode dizer ou pensar que sirva de consolo? — disse Pierre. — Nada. Para que havia de morrer aquele garoto tão amável e cheio de vida?
— Sim, em nosso tempo, seria difícil viver sem fé... — disse a princesa Mária.
— Sim, sim. É a mais pura verdade — interrompeu Pierre às pressas.
— Por quê? — perguntou Natacha, olhando atenta para os olhos de Pierre.
— Como por quê? — disse a princesa Mária. — Só a ideia do que nos espera...
Natacha, sem escutar as palavras da princesa Mária, fitou Pierre de novo com atenção.
— E também porque — prosseguiu Pierre — só quem acredita que existe um Deus que nos governa consegue suportar tamanha perda, como a dela e... a da senhora — disse Pierre.
Natacha já estava abrindo a boca a fim de dizer algo, mas de repente parou. Pierre se apressou em virar-se de novo para a princesa Mária e lhe perguntou acerca dos últimos dias de vida de seu irmão. A perturbação de Pierre agora havia quase desaparecido; mas ao mesmo tempo ele sentia que havia desaparecido toda a sua liberdade anterior. Sentia que acima de toda palavra ou ação sua agora havia um juiz, cujo julgamento lhe era mais precioso do que o julgamento de todas as pessoas no mundo. Agora ele falava e, junto com suas palavras, imaginava a impressão que suas palavras produziriam em Natacha. Não falava intencionalmente aquilo que poderia agradar a ela; mas, em tudo o que falava, Pierre se julgava pelo ponto de vista de Natacha.
A princesa Mária, com relutância, como sempre acontece, começou a contar a situação em que encontrou o príncipe Andrei. Mas as perguntas de Pierre, seu olhar inquieto e animado, seu rosto trêmulo de emoção aos poucos obrigaram a princesa a entrar em detalhes que ela, em seu íntimo, temia trazer à memória.
— Sim, sim, pois é... — dizia Pierre, curvado com todo o corpo para a frente, na direção da princesa Mária, escutando com avidez seu relato. — Sim, sim; então ele se acalmou? Ficou tranquilo? Com todas as forças da alma ele procurou sempre uma só coisa: ser plenamente bom, assim ele podia não ter medo da morte. Os defeitos que tinha, se é que tinha algum defeito, não vinham dele mesmo. Então ele se acalmou, não é? — disse Pierre. — Que felicidade ele ter reencontrado a senhora — disse para Natacha, virando-se de súbito para ela e fitando-a com os olhos cheios de lágrimas.
O rosto de Natacha estremeceu. Ela franziu as sobrancelhas e baixou os olhos por um momento. Hesitou um minuto: falar ou não falar?
— Sim, foi uma felicidade — disse ela com voz baixa e triste. — Para mim sem dúvida foi uma felicidade. — Calou-se um momento. — E ele... ele... ele disse que desejava aquilo, no momento em que vim para perto dele... — A voz de Natacha se desfez. Ela ficou ruborizada, apertou as mãos nos joelhos e de repente, fazendo um visível esforço sobre si mesma, ergueu a cabeça e começou a falar depressa. — Nós não sabíamos de nada quando saímos de Moscou. Eu não me atrevia a perguntar sobre ele. E de repente Sônia me contou que ele estava conosco. Não pensei nada, não podia imaginar em que situação ele estava; só precisava vê-lo, estar com ele — disse ela, tremendo e sufocando. E, sem deixar que fosse interrompida, contou aquilo que nunca havia contado a ninguém: tudo o que havia suportado naquelas três semanas da viagem deles e da vida em Iaroslavl.
Pierre escutava de boca aberta e sem desviar dela os olhos, cheios de lágrimas. Enquanto a escutava, não pensava nem no príncipe Andrei, nem na morte, nem naquilo que Natacha estava contando. Escutava-a e apenas tinha pena dela pelo sofrimento que padecia agora, ao contar.
A princesa, com os olhos semicerrados no esforço de conter as lágrimas, estava sentada ao lado de Natacha e pela primeira vez escutava a história daqueles últimos dias do amor de seu irmão e de Natacha.
Aquele relato cruel e alegre era obviamente algo necessário para Natacha.
Ela falava, misturando detalhes insignificantes com os segredos mais íntimos, e parecia que jamais conseguiria terminar. Diversas vezes, repetia a mesma coisa.
Por trás da porta, ouviu-se a voz de Dessalles, perguntando se Nikóluchka podia entrar para dar boa-noite.
— Pois é, isso é tudo, tudo... — falou Natacha. Levantou-se depressa no mesmo instante que Nikóluchka entrou e quase correu na direção da porta encoberta por uma cortina, bateu com a cabeça na porta e, com um gemido de dor ou de tristeza, saiu do quarto.
Pierre ficou olhando para a porta por onde ela havia saído e não entendia por que, de repente, havia ficado tão sozinho no mundo.
A princesa Mária retirou Pierre de seu alheamento, chamando a atenção dele para o sobrinho, que entrara no quarto.
O rosto de Nikóluchka, parecido com o do pai, no momento de brandura de espírito em que Pierre agora se encontrava, produziu nele um efeito tão forte que, depois de dar um beijo em Nikóluchka, levantou-se depressa, pegou um lenço e se afastou na direção da janela. Quis se despedir da princesa Mária, mas ela o deteve.
— Não, eu e Natacha às vezes só vamos dormir às três horas; por favor, fique mais um pouco. Vou mandar servir a ceia. Desça para o térreo; nós iremos em seguida.
Antes de Pierre sair, a princesa lhe disse:
— Foi a primeira vez que ela falou sobre ele.
XVII
Conduziram Pierre a uma grande sala de jantar iluminada; alguns minutos depois, ouviram-se passos, e a princesa e Natacha entraram no cômodo. Natacha estava calma, embora com ar austero, sem nenhum sorriso, a expressão no rosto de novo controlada. A princesa Mária, Natacha e Pierre experimentavam o mesmo sentimento de desconforto que em geral se segue a uma conversa séria e íntima. Era impossível prosseguir a conversa anterior; falar de banalidades daria vergonha, e calar-se era desagradável porque tinham vontade de falar, e aquele silêncio parecia forçado. Em silêncio, aproximaram-se da mesa. Os copeiros puxaram e empurraram as cadeiras. Pierre desdobrou um guardanapo frio e, decidido a romper o silêncio, lançou um olhar para Natacha e para a princesa Mária. As duas, pelo visto, haviam tomado a mesma decisão naquele momento: nos olhos de ambas brilhavam uma satisfação com a vida e o reconhecimento de que, além da dor, existe também a alegria.
— O senhor bebe vodca, conde? — perguntou a princesa Mária, e tais palavras desmancharam de repente as sombras do passado. — Fale sobre o senhor — disse ela. — Contam a seu respeito prodígios inacreditáveis.
— Pois é — respondeu Pierre, agora com seu habitual sorriso manso de ironia. — Até para mim já vieram contar prodígios que não vi nem em sonho. Mária Abrámovna convidou-me à sua casa e contou-me tudo o que aconteceu comigo, ou que devia ter acontecido. Stiepán Stiepánitch também me ensinou como eu tinha de contar. No geral, notei que é muito fácil ser uma pessoa interessante (agora sou uma pessoa interessante); me chamam e me contam tudo.
Natacha sorriu e fez menção de dizer algo.
— Contaram-nos — a princesa Mária a interrompeu — que o senhor perdeu dois milhões em Moscou. É verdade?
— Mas na verdade eu fiquei duas vezes mais rico — disse Pierre. Apesar de as dívidas da esposa e a necessidade das reconstruções terem afetado suas finanças, Pierre continuava a dizer que tinha ficado duas vezes mais rico. — Porém o que ganhei mesmo, sem sombra de dúvida — disse ele —, foi a liberdade... — E ia começar a falar em tom sério; mas resolveu não prosseguir ao notar que era um tema de conversa demasiado egoísta.
— E o senhor vai reconstruir as casas?
— Sim, o Savélitch mandou.
— Diga-me, o senhor ainda não sabia do falecimento da condessa quando estava em Moscou? — perguntou a princesa Mária e imediatamente se ruborizou, ao notar que, ao fazer tal pergunta após as palavras de Pierre sobre sua liberdade, atribuía às palavras dele um significado que talvez não tivessem.
— Não — respondeu Pierre, que obviamente não achara constrangedora a interpretação que a princesa Mária tinha dado ao comentário sobre sua liberdade. — Eu soube disso em Oriol, e a senhora nem pode imaginar como fiquei chocado. Não éramos cônjuges exemplares — disse rapidamente, lançando um olhar para Natacha e notando em seu rosto uma curiosidade para saber de que forma ele iria se referir à esposa. — Mas essa morte me chocou de forma tremenda. Quando duas pessoas brigam, as duas sempre são culpadas. E a culpa de repente se torna terrivelmente pesada diante de uma pessoa que já não existe mais. E além disso uma morte como aquela... sem amigos, sem consolo. Tenho muita, muita pena dela — concluiu Pierre e, com satisfação, notou uma aprovação alegre no rosto de Natacha.
— Sim, e agora o senhor está de novo solteiro e livre para casar — disse a princesa Mária.
Pierre de repente se ruborizou muito e tentou ficar muito tempo sem olhar para Natacha. Quando decidiu lançar um olhar para ela, o rosto de Natacha estava frio, severo e até desdenhoso, ou assim lhe pareceu.
— Mas é verdade que o senhor viu Napoleão e falou com ele, como nos contaram? — perguntou a princesa Mária. Pierre deu uma gargalhada.
— Nem de longe, nunca. Sempre acham que estar preso é o mesmo que ser um hóspede na casa de Napoleão. Não só não vi Napoleão como nem ouvi falar dele. Estive em companhia muito inferior.
A ceia chegou ao fim, e Pierre, que de início se recusara a falar de seu cativeiro, aos poucos foi levado para aquele assunto.
— Mas é mesmo verdade que o senhor ficou em Moscou a fim de assassinar Napoleão? — perguntou Natacha, com um ligeiro sorriso. — Eu adivinhei logo, quando nos vimos perto da torre Súkharev; lembra?
Pierre confessou que era verdade e, a partir daquela pergunta, aos poucos, guiado pelas perguntas da princesa Mária e sobretudo de Natacha, foi levado a fazer relatos detalhados de suas aventuras.
De início contava com aquele olhar irônico e manso com que agora encarava as pessoas e em especial a si mesmo; porém, depois, quando chegou aos relatos dos horrores e dos sofrimentos que presenciara, mesmo sem se dar conta disso, Pierre se empolgou e passou a falar com a emoção contida de um homem que revive na lembrança impressões muito fortes.
A princesa Mária, com um sorriso dócil, olhava ora para Pierre, ora para Natacha. Em todo aquele relato, ela só enxergava Pierre e sua bondade. Natacha, apoiada no cotovelo, com uma expressão no rosto que não parava de se alterar conforme o relato, acompanhava Pierre sem desviar-se nem por um minuto, obviamente experimentando junto com ele tudo o que ele contava. Não só seu olhar como também suas exclamações e as breves perguntas que fazia mostravam para Pierre que, de tudo o que ele contava, Natacha compreendia exatamente o que ele queria transmitir. Era evidente que Natacha compreendia não só o que ele contava como também o que queria e não conseguia exprimir por meio de palavras. O episódio em que quis defender a criança e a mulher, e por isso foi preso, Pierre contou da seguinte forma:
— Era um espetáculo horrível, crianças abandonadas, algumas nas chamas... Arrastaram uma criança bem na minha frente... Havia mulheres das quais roubavam tudo o que tinham, arrancavam até os brincos...
Pierre ruborizou-se e hesitou.
— Então apareceu uma patrulha e levaram todos os que não estavam saqueando, todos os homens. E também a mim.
— O senhor certamente não está contando tudo; certamente o senhor fez alguma coisa... — disse Natacha e calou-se um instante — ... boa.
Pierre continuou a contar. Quando falou da execução dos condenados à morte, quis contornar os detalhes terríveis; mas Natacha exigiu que ele não deixasse nada de lado.
Pierre começou a falar sobre Karatáiev (já havia se levantado da mesa e andava pela sala, enquanto Natacha o seguia com os olhos), mas parou.
— Não, as senhoras não podem compreender quanta coisa aprendi com aquele homem analfabeto... simplório.
— Não, não, conte — disse Natacha. — Onde ele está?
— Assassinaram-no quase diante de meus olhos. — E Pierre passou a contar os últimos dias da retirada, a doença de Karatáiev (sua voz tremia sem parar) e sua morte.
Pierre contava suas aventuras como nunca havia contado a ninguém, como ele mesmo nunca as recordava em seu íntimo. Agora parecia enxergar um significado novo em tudo o que tinha vivido. Agora, quando contava aquilo tudo para Natacha, Pierre experimentava o raro prazer que as mulheres proporcionam a um homem quando o escutam — não as mulheres inteligentes que, ao escutar, ou tentam memorizar o que lhes dizem a fim de enriquecer seu intelecto e, se houver oportunidade, recontar tudo de novo, ou tentam adaptar a seu próprio modo de ver aquilo que lhes dizem e exprimir bem depressa seus comentários inteligentes, elaborados em sua pequena morada mental; mas sim o prazer que proporcionam as mulheres verdadeiras, dotadas da capacidade de selecionar e de absorver tudo o que há de melhor naquilo que um homem manifesta. Natacha, sem se dar conta disso, era toda atenção: não perdia nenhuma palavra, nenhuma oscilação da voz, nenhum olhar, nenhuma palpitação de um músculo do rosto, nenhum gesto de Pierre. Apanhava ainda no ar uma palavra que ele não havia sequer terminado de pronunciar e no mesmo instante a levava para dentro de seu coração aberto, adivinhando o sentido secreto de toda a elaboração mental de Pierre.
A princesa Mária compreendia o relato, compadecia-se de Pierre, mas agora via outra coisa, que absorvia toda a sua atenção; via a possibilidade do amor e da felicidade entre Natacha e Pierre. E tal pensamento, que lhe ocorria pela primeira vez, encheu sua alma de alegria.
Eram três horas da madrugada. Os copeiros, com rostos tristes e severos, vieram trocar as velas, mas ninguém reparou neles.
Pierre terminou seu relato. Natacha, com olhos radiantes, animados, continuava a fitar Pierre com atenção e insistência, como se desejasse compreender o que talvez ainda restasse, o que ele talvez ainda não tivesse dito. Pierre, num constrangimento encabulado e feliz, de vez em quando lançava um olhar para Natacha, tentando inventar alguma coisa para dizer, a fim de desviar a conversa para outro assunto. A princesa Mária se mantinha calada. Não passava pela cabeça de ninguém que já eram três da madrugada e que estava na hora de dormir.
— Dizem: desgraças, sofrimentos — começou Pierre. — Mas se agora, neste instante, me dissessem: você quer permanecer como era antes do cativeiro ou viver tudo aquilo outra vez desde o início? Pelo amor de Deus, prefiro ser prisioneiro de novo e comer carne de cavalo. Achamos que quando nos arrancam de nossas trilhas rotineiras tudo está perdido; mas é só então que começa algo novo e bom. Enquanto existe vida, existe felicidade. Há muita coisa pela frente, muita coisa. Garanto isso à senhora — falou, dirigindo-se a Natacha.
— Sim, sim — disse Natacha, respondendo a uma coisa totalmente distinta. — Eu também não queria outra coisa, senão viver tudo outra vez desde o início.
Pierre fitou-a com atenção.
— Sim, e mais nada — confirmou Natacha.
— Não é verdade, não é verdade — gritou Pierre. — Não tenho culpa de estar vivo e querer viver; e tampouco a senhora.
De repente, Natacha baixou a cabeça nas mãos e começou a chorar.
— O que foi, Natacha? — perguntou a princesa Mária.
— Nada, nada. — Ela sorriu para Pierre, entre as lágrimas. — Boa noite, está na hora de dormir.
Pierre levantou-se e despediu-se.
A princesa Mária e Natacha, como sempre, subiram juntas para o quarto. Conversaram sobre o que Pierre havia contado. A princesa Mária não disse sua opinião a respeito de Pierre. Natacha também não falou sobre ele.
— Bem, boa noite, Marie — disse Natacha. — Sabe, muitas vezes tenho receio de que, já que nunca falamos sobre ele (o príncipe Andrei), como se tivéssemos medo de rebaixar nosso sentimento, vamos acabar esquecendo-o.
A princesa Mária suspirou profundamente e, no suspiro, reconheceu a verdade das palavras de Natacha; mas, em suas palavras, não concordou com ela.
— Será possível esquecer? — perguntou.
— Hoje, me fez muito bem contar tudo o que aconteceu; foi difícil, doloroso e bom. Foi muito bom — disse Natacha. — Estou convencida de que ele o amava de fato. Por isso contei para ele... Será que fiz mal em contar para ele? — perguntou Natacha, ruborizada de repente.
— Para Pierre? Ah, não! Como ele é encantador — disse a princesa Mária.
— Sabe, Mária — falou Natacha de repente, com um sorriso travesso que a princesa Mária não via em seu rosto havia muito tempo. — Ele ficou todo limpo, arrumado, fresco; parece que saiu do banho, entende? Um banho moral. Não é?
— Sim — respondeu a princesa Mária. — Ele melhorou muito.
— Uma sobrecasaca curtinha, cabelos curtos; como se tivesse saído de um banho, sem tirar nem pôr... igual ao papai, antigamente...
— Compreendo por que ele (o príncipe Andrei) gostava dele mais do que de qualquer outra pessoa — disse a princesa Mária.
— Sim, e é tão diferente dele. Dizem que os homens são amigos quando são muito diferentes. Deve ser verdade. Na realidade, Pierre não tem nada parecido com ele, não é?
— Sim, mas é maravilhoso.
— Bem, boa noite — respondeu Natacha. E o mesmo sorriso travesso permaneceu muito tempo em seu rosto, como que por um esquecimento.
XVIII
Pierre demorou muito tempo para dormir naquele dia; caminhava de um lado para outro dentro do quarto, ora franzia as sobrancelhas, refletindo sobre algo difícil, encolhendo os ombros e estremecendo de repente, ora sorria feliz.
Pensava no príncipe Andrei, em Natacha, no amor deles, e ora sentia ciúmes do falecido, ora se condenava ou então se perdoava por aquilo. Já eram seis horas da manhã, e ele continuava a andar dentro do quarto.
“Bem, o que fazer? Não é possível evitar! O que fazer? Se é assim, tem de ser”, disse para si e, trocando de roupa às pressas, deitou-se na cama, feliz e emocionado, mas sem dúvidas e indecisões.
“É preciso, por mais estranha e por mais impossível que seja essa felicidade, é preciso fazer tudo para que eu e ela sejamos marido e esposa”, disse para si.
Alguns dias antes disso, Pierre tinha marcado para sexta-feira sua partida para Petersburgo. Quando acordou na quinta-feira, Savélitch veio ao seu quarto pedir instruções sobre a bagagem que devia levar na viagem.
“Como assim, Petersburgo? Para que Petersburgo? Quem está em Petersburgo?”, perguntou Pierre sem querer, embora para si mesmo. “Sim, mas isso faz muito tempo, muito tempo, foi antes de ter acontecido, por algum motivo eu queria ir para Petersburgo”, lembrou Pierre. “Para quê? Mas talvez eu vá. Como ele é bom, atento, como se lembra de tudo!”, pensou Pierre, fitando o rosto velho de Savélitch. “E que sorriso simpático!”, pensou.
— E então, Savélitch, continua sem querer sua liberdade? — perguntou Pierre.
— Para que serve a liberdade, vossa excelência? Vivemos sob o falecido conde, que Deus o guarde no Reino dos Céus, e sob o senhor, e não vemos nada de mau.
— Mas e os filhos?
— Os filhos vão viver, vossa excelência: com senhores assim, pode-se viver.
— Bem, e os meus herdeiros? — disse Pierre. — De repente eu me caso... Afinal, pode acontecer — acrescentou com um sorriso involuntário.
— E me atrevo a dizer: isso seria muito bom, vossa excelência.
“Como ele pensa que é fácil”, refletiu Pierre. “Não sabe como é terrível, como é perigoso. Pode ser cedo demais ou tarde demais... Que terrível!”
— Como o senhor quer que faça? O senhor gostaria mesmo de partir amanhã? — perguntou Savélitch.
— Não; vou adiar um pouquinho. Na hora eu aviso. Você me desculpe a confusão — disse Pierre e, olhando para o sorriso de Savélitch, pensou: “Mas como é estranho que ele não saiba que agora Petersburgo não me interessa nem um pouco e que antes de tudo é preciso resolver esse assunto. Pensando bem, ele na certa já sabe, apenas está fingindo. Vou dizer a ele? Perguntar o que ele acha?”, pensou Pierre. “Não, depois, mais tarde.”
No café da manhã, Pierre comunicou à princesa que na noite anterior tinha estado na casa da princesa Mária e que — a senhora nem imagina quem estava lá — havia encontrado Natália Rostova.
A princesa fingiu não ver naquela notícia nada de extraordinário, e era como se Pierre tivesse encontrado Anna Semiónovna.
— A senhora a conhece? — perguntou Pierre.
— Vi a princesa — respondeu ela. — Soube que querem casá-la com o jovem Rostóv. Seria muito bom para os Rostóv; dizem que estão totalmente arruinados.
— Não, é a Rostova, a senhora a conhece?
— Apenas soube daquela história de tempos atrás. Muito triste.
“Não, ela não compreende, ou está fingindo”, pensou Pierre. “É melhor até nem dizer a ela.”
A princesa havia preparado provisões para Pierre levar na viagem.
“Como todos são bons”, pensou Pierre. “E como todos se interessam por isso agora, quando seguramente o assunto não pode ter para eles o menor interesse. E tudo é para mim; isso é que é de admirar.”
Naquele mesmo dia Pierre recebeu a visita do chefe de polícia, que veio propor que Pierre mandasse um representante para o palácio Facetado a fim de reaver objetos que naquele dia seriam devolvidos a seus proprietários.
“Até esse homem”, pensou Pierre, olhando para o rosto do chefe de polícia, “que oficial simpático e bonito, e como é bondoso! Agora se ocupa de tais ninharias. E ainda dizem que ele é desonesto e que se aproveita da situação. Que absurdo! Mas, de resto, por que não haveria de se aproveitar? Foi educado desse modo. E todo mundo faz isso. Mas que rosto agradável, bondoso, e como sorri enquanto olha para mim.”
Pierre foi jantar na casa da princesa Mária.
Ao passar pelas ruas, entre as casas incendiadas, Pierre se admirava com a beleza daquelas ruínas. As chaminés das casas, as paredes desmoronadas, recordações vivas do Reno e do Coliseu,15 iam passando devagar, ocultando-se umas às outras nos quarteirões queimados. Os cocheiros das carruagens de aluguel e os passageiros que ele encontrava, os carpinteiros que serravam vigas, os comerciantes e os merceeiros, todos com rostos alegres, radiantes, olhavam para Pierre e pareciam dizer: “Oh, lá está ele! Vamos ver no que vai dar”.
Ao entrar na casa da princesa Mária, veio a Pierre uma dúvida a respeito da ideia de ter estado ali no dia anterior, ter visto Natacha e falado com ela. “Quem sabe não imaginei tudo isso? Quem sabe eu vou entrar e não vou encontrar ninguém na casa?” Porém mal teve tempo de entrar na sala e logo, com todo o seu ser, por meio da perda instantânea da liberdade, sentiu a presença dela. Estava com o mesmo vestido preto de pregas fofas e penteada da mesma forma que no dia anterior, todavia estava muito diferente. Se estivesse assim na véspera, quando Pierre entrou na sala, ele não poderia deixar de reconhecê-la imediatamente.
Ela estava igual ao que era quando Pierre a conhecera, quase criança, e depois, quando era noiva do príncipe Andrei. Um fulgor alegre e interrogativo brilhava em seus olhos; no rosto havia uma expressão carinhosa e estranhamente travessa.
Pierre jantou e teria ficado a noite inteira; mas a princesa Mária foi à missa das vésperas, e Pierre saiu com elas.
No dia seguinte, Pierre chegou cedo, jantou e ficou muito tempo. Apesar de a princesa Mária e Natacha estarem obviamente alegres com a visita; apesar de todo o interesse da vida de Pierre estar concentrado agora naquela casa, chegou um momento em que eles já haviam falado de tudo, e a conversa passava de um assunto banal para outro e muitas vezes se interrompia. Pierre, naquela noite, ficou até tão tarde que a princesa Mária e Natacha se entreolhavam, pelo visto esperando que ele saísse logo. Pierre percebia aquilo, mas não conseguia ir embora. Sentia-se confuso, desconfortável, mas continuava ali, porque não conseguia se levantar e ir embora.
A princesa Mária, sem vislumbrar um fim para aquilo, levantou-se primeiro e, queixando-se de uma enxaqueca, começou a se despedir.
— Então o senhor amanhã vai partir para Petersburgo? — perguntou.
— Não, não vou mais — falou Pierre às pressas, com surpresa e como que ofendido com tal ideia. — Sim, não, para Petersburgo? Amanhã; mas não vou me despedir agora. Virei ver se a senhora quer alguma coisa de lá — disse, pondo-se de pé diante da princesa Mária, vermelho, mas não fez menção de sair.
Natacha lhe estendeu a mão e saiu da sala. A princesa Mária, ao contrário, em vez de sair, sentou-se na poltrona e, com seu olhar radioso, profundo, fitou Pierre com ar severo e atento. O cansaço, que ela havia demonstrado antes, agora havia sumido de todo. Deu um suspiro profundo e demorado, como que se preparando para uma longa conversa.
Todo o embaraço de Pierre no momento da saída de Natacha desaparecera instantaneamente e se transformara numa vivacidade agitada. Rapidamente puxou uma poltrona para bem perto da princesa Mária.
— Sim, eu queria mesmo falar com a senhora — disse ele, em resposta ao olhar dela, como se houvesse falado. — Princesa, me ajude. O que devo fazer? Posso ter esperança? Princesa, minha amiga, me escute. Sei de tudo. Sei que não estou à altura dela; sei que agora é impossível falar sobre isso. Mas quero ser um irmão para ela. Não, eu não posso... não posso...
Deteve-se e esfregou o rosto e os olhos com as mãos.
— Bem, veja — prosseguiu, obviamente fazendo um esforço a fim de falar de modo coerente. — Não sei desde quando eu a amo. Mas apenas a ela e só a ela eu amei em toda a minha vida, e amo de tal modo que não consigo nem imaginar a vida sem ela. Não acho adequado pedir a mão dela agora; mas a ideia de que talvez ela possa vir a ser minha e de que eu posso perder essa possibilidade... a possibilidade... é horrível. Diga, posso ter esperança? Diga o que devo fazer, querida princesa — falou Pierre e, depois de ficar um momento calado, tocou sua mão, porque ela demorava a responder.
— Estou pensando no que o senhor me disse — respondeu a princesa Mária. — Vou explicar ao senhor. O senhor está certo ao dizer que falar agora com ela sobre amor... — A princesa se deteve. Queria dizer: falar com ela agora sobre amor é impossível; mas parou, porque nos três últimos dias observava uma mudança repentina em Natacha e via que Natacha não só não se ofenderia se Pierre lhe declarasse seu amor, como ela não desejava mesmo outra coisa.
— Falar com ela agora... é impossível — disse a princesa Mária, apesar de tudo.
— Mas o que devo fazer?
— Confie em mim — disse a princesa Mária. — Eu sei...
Pierre fitou os olhos da princesa Mária.
— E então, e então... — disse ele.
— Eu sei que ela ama... vai amar o senhor — emendou-se a princesa Mária.
Mal ela terminou de falar aquelas palavras, Pierre levantou-se de um pulo e, com o rosto assustado, agarrou a mão da princesa Mária.
— Por que a senhora acha? A senhora acha então que posso ter esperança? A senhora acha mesmo?!
— Sim, é o que penso — respondeu sorrindo a princesa Mária. — Escreva para os pais dela. E confie em mim. Vou falar com ela, quando for possível. Eu desejo isso. E meu coração sente que vai acontecer.
— Não, não é possível! Como estou feliz! Mas não é possível... Como estou feliz! Não, não é possível! — disse Pierre, beijando as mãos da princesa Mária.
— Viaje para Petersburgo; é melhor assim. Eu vou escrever para o senhor — disse ela.
— Para Petersburgo? Viajar? Está bem, sim, eu vou. Mas posso vir aqui amanhã?
No dia seguinte, Pierre veio se despedir. Natacha estava menos animada do que nos dias anteriores; mas naquele dia, ao olhar para os olhos dela de vez em quando, Pierre sentia que ele estava desaparecendo, que ele não existia mais, nem ela, e que só existia o sentimento de felicidade. “Será mesmo? Não, não pode ser”, dizia consigo a cada olhar dela, a cada gesto, a cada palavra, que enchiam sua alma de alegria.
Quando Pierre, ao despedir-se, pegou sua mão magra, fina, sem querer ficou segurando a mão de Natacha na sua por um tempo um pouco mais longo.
“Será possível que esta mão, este rosto, estes olhos, todo este tesouro de encanto feminino tão estranho a mim, será possível que tudo isso será meu para sempre, será tão familiar a mim como sou eu mesmo? Não, é impossível!...”
— Adeus, conde — ela falou alto. — Vou esperar o senhor com muita ansiedade — acrescentou num sussurro.
E aquelas palavras simples, o olhar e a expressão do rosto que as acompanharam, constituíram ao longo de dois meses o objeto das inesgotáveis recordações, interpretações e devaneios felizes de Pierre. “Vou esperar o senhor com muita ansiedade... Sim, sim, como foi mesmo que ela falou? Sim, vou esperar o senhor com muita ansiedade. Ah, como sou feliz! Como é que pode uma coisa assim, eu ser tão feliz?!”, dizia Pierre consigo.
XIX
Na alma de Pierre, agora, não acontecia nada parecido com o que havia ocorrido em circunstâncias semelhantes, na época de seu casamento com Hélène.
Ele não ficava repetindo com vergonha doentia as palavras ditas por ele, como fizera então, nem dizia para si: “Ah, por que não falei isso, por quê, por que então fui dizer je vous aime?”. Agora, ao contrário, Pierre repetia na imaginação cada palavra dela e dele, com todos os detalhes do rosto, do sorriso, e não queria suprimir nada nem acrescentar nada: queria apenas repetir. Quanto à dúvida sobre ser bom ou ruim aquilo que estava fazendo — agora não havia nem sombra disso. Só de vez em quando lhe vinha à cabeça outra dúvida terrível. Será que tudo isso não é um sonho? Será que a princesa Mária não está enganada? Será que não estou sendo orgulhoso e presunçoso demais? Acredito; mas de repente quem sabe se não vai acontecer de a princesa Mária contar para ela e ela sorrir e responder: “Que estranho! Sem dúvida ele entendeu mal. Será que ele não percebe que é apenas um homem, um homem e mais nada, enquanto eu... Eu sou muito diferente, superior”.
Só essa dúvida vinha à cabeça de Pierre muitas vezes. Ele também não fazia nenhum plano, agora. Parecia-lhe tão incrível a felicidade atual que bastaria aquilo se realizar para que nada mais pudesse existir. Acabaria tudo.
Dominava-o uma loucura alegre e inesperada, da qual Pierre se julgava incapaz. Todo o sentido da vida, não só para ele, mas para o mundo inteiro, lhe parecia estar contido apenas em seu amor e na possibilidade do amor dela por ele. Às vezes tinha a impressão de que todos estavam ocupados só com uma coisa — a felicidade futura dele próprio. Às vezes tinha a impressão de que todos estavam alegres como ele e apenas tentavam esconder aquela alegria, fingindo que estavam voltados para outros interesses. Em todas as palavras e movimentos, ele via sinais de sua própria alegria. Muitas vezes causava admiração nas pessoas que encontrava, com seus notáveis sorrisos e olhares de felicidade, que exprimiam uma harmonia misteriosa. Mas, quando ele compreendia que as pessoas podiam não saber daquela felicidade, Pierre sentia pena das pessoas, com toda a sua alma, e experimentava o desejo de lhes explicar de algum jeito que tudo aquilo com que elas se ocupavam tanto era um completo absurdo, meras bobagens, que não mereciam atenção.
Quando lhe sugeriam entrar para o serviço público ou quando debatiam sobre algum assunto geral, sobre questões de governo e sobre a guerra, sugerindo que de um determinado efeito de uma determinada ação dependia a felicidade de todos, Pierre escutava com um sorriso manso e compassivo, e causava admiração nos interlocutores com suas observações estranhas. Porém, tanto as pessoas que a Pierre pareciam compreender o verdadeiro sentido da vida, ou seja, o sentimento de Pierre, como também aqueles infelizes que pelo visto não o compreendiam — todas as pessoas naquele período lhe surgiam sob a luz de um sentimento que brilhava dentro dele com tamanha clareza que, sem o menor esforço, de uma só vez, ao encontrar-se com qualquer pessoa que fosse, via nela tudo o que era belo e digno de amor.
Ao examinar os negócios e os documentos de sua falecida esposa, Pierre não experimentou nenhum sentimento ao se lembrar dela, exceto pena por ela não ter conhecido a felicidade que ele agora experimentava. O príncipe Vassíli, agora especialmente orgulhoso por ter ganhado novas condecorações e um novo posto, pareceu a Pierre um velho comovente, bondoso e patético.
Tempos depois, muitas vezes Pierre recordava aquele tempo de loucura feliz. Todas as opiniões que formulou para si acerca das pessoas e das circunstâncias durante aquela fase permaneceram para sempre corretas para ele. Não só não rejeitou posteriormente aquelas opiniões sobre pessoas e coisas como, ao contrário, quando tinha dúvidas e questionamentos íntimos, recorria à opinião que havia formulado durante aquele tempo de loucura, e tal opinião sempre se revelava correta.
“Pode ser”, pensava ele, “que eu então parecesse estranho e ridículo; mas eu não estava tão louco quanto parecia. Ao contrário, naquela época eu estava mais inteligente e lúcido do que nunca e compreendia tudo o que vale a pena compreender na vida, porque... eu estava feliz.”
A loucura de Pierre consistia em que ele não esperava, como antes, motivos pessoais, que ele chamava de virtudes, para amar as pessoas, mas o amor enchia completamente seu coração, e ele, ao amar as pessoas sem nenhum motivo, acabava encontrando motivos inquestionáveis para amar as pessoas.
XX
Desde aquela primeira noite, quando Natacha, após a partida de Pierre, com um sorriso alegre e zombeteiro disse para a princesa Mária que ele parecia ter saído do banho, com sua sobrecasaca curta e seu cabelo bem cortado, desde aquele minuto despertara na alma de Natacha algo oculto, totalmente desconhecido para ela e irresistível.
Tudo: o rosto, o modo de andar, o olhar, a voz — tudo em Natacha se modificou de repente. Inesperadas para ela mesma, a força da vida e as esperanças de felicidade subiram à superfície e exigiram uma satisfação. Desde a primeira noite, Natacha parecia ter esquecido tudo o que tinha acontecido antes. Desde então, ela não se queixou nenhuma vez de sua situação, não falou nenhuma palavra sobre o passado e já não receava fazer planos alegres para o futuro. Pouco falava sobre Pierre, mas, quando a princesa Mária o lembrava, um brilho extinto havia muito tempo reacendia em seus olhos, e os lábios se contraíam num sorriso estranho.
A mudança ocorrida em Natacha de início surpreendeu a princesa Mária; mas, quando entendeu seu significado, aquela mudança deixou-a entristecida. “Será que ela amava meu irmão tão pouco assim para esquecê-lo tão depressa?”, pensava a princesa Mária quando estava sozinha e refletia sobre a transformação ocorrida. Mas quando estava com Natacha não se zangava com ela nem a censurava. A força da vida que despertara e dominara Natacha era, obviamente, tão irresistível, tão inesperada para ela mesma que a princesa Mária, em presença de Natacha, sentia não ter o direito de censurá-la nem em sua alma.
Natacha se rendera tão inteiramente e com tamanha sinceridade ao novo sentimento que nem tentava esconder que agora não estava amargurada, mas alegre e contente.
Na noite em que a princesa Mária conversou a sós com Pierre, quando ela terminou a conversa e voltou para o quarto, Natacha foi ao seu encontro na soleira da porta.
— Ele falou? Foi? Ele falou? — repetia Natacha. E uma expressão alegre e ao mesmo tempo patética, que pedia desculpas por sua alegria, se instalou no rosto de Natacha.
— Eu queria escutar por trás da porta; mas eu sabia que você ia me contar.
Por mais incompreensível, por mais comovente que fosse para a princesa Mária o olhar com que Natacha a fitava, por mais que lhe desse pena ver sua emoção, as palavras de Natacha, num primeiro momento, ofenderam a princesa Mária. Lembrou-se do irmão, do amor dele.
“Mas o que fazer? Ela não pode agir de outro modo”, pensou a princesa Mária; e com o rosto tristonho e um pouco severo transmitiu a Natacha tudo o que Pierre dissera. Ao saber que ele estava de partida para Petersburgo, Natacha ficou espantada.
— Para Petersburgo? — repetia, como se não entendesse. Mas, ao lançar um olhar para a expressão tristonha no rosto da princesa Mária, Natacha adivinhou a causa daquela tristeza e de repente começou a chorar. — Marie — disse ela —, me diga o que devo fazer. Tenho medo de ser má. O que você disser eu farei; me diga...
— Você o ama?
— Sim — sussurrou Natacha.
— Então por que está chorando? Estou feliz por você — disse a princesa Mária, que com aquelas lágrimas já desculpara inteiramente a alegria de Natacha.
— Não vai ser logo, logo, mas um dia. Pense só que felicidade quando eu for esposa dele e você casar com Nicolas.
— Natacha, já pedi a você que não falasse sobre isso. Vamos falar sobre você.
Ficaram em silêncio alguns momentos.
— Mas para que ele tem de ir a Petersburgo? — falou Natacha de repente e ela mesma respondeu depressa: — Não, não, tem de ser assim... Sim, Marie. Tem de ser assim.
1 Francês: “cavaleiro sem medo e sem defeitos”.
2 Referência ao bastão do marechal Davout, um dos símbolos de sua autoridade.
3 Povoado situado na província de Kaluga, onde Kutúzov se manteve com boa parte do exército russo.
4 Diário de Wilson. (N. A.) [Robert Thomas Wilson (1777-1849) foi um general britânico destacado para o Estado-Maior de Kutúzov em 1812. Seu relato sobre o período, Private Diary, foi publicado postumamente, em 1861.]
5 História do ano de 1812, de Bogdánovitch: retrato de Kutúzov e considerações sobre os resultados insatisfatórios da batalha de Krásnoie. (N. A.)
6 Francês: “Oh, meus bravos, oh, meus bons, meus bons amigos! Isso é que são homens! Oh, meus bravos, meus bons amigos!”.
7 Francês: “Viva Henrique iv/ Viva esse rei valente!”.
8 Francês: “Esse diabo a quatro...”.
9 Francês: “Quem tem o triplo talento/ De beber, de lutar,/ E de ser um grande galanteador...”.
10 Francês: “Está querendo dizer que eu certamente não tenho o que comer... Ao contrário, posso fornecer de tudo ao senhor, mesmo que queira oferecer banquetes”.
11 Francês: “Não quis dizer senão aquilo que eu disse ao senhor”.
12 Francês: “é um sacrilégio fazer a guerra a um povo como o do senhor”.
13 Francês: “O senhor está se fechando numa casca, meu caro”.
14 Situado no Krêmlin.
15 Às margens do Reno, restaram ruínas de castelos medievais.
I
Sete anos se passaram, após 1812. O turbulento mar histórico da Europa havia retrocedido às suas margens. Parecia ter sossegado; mas as forças misteriosas que movem a humanidade (misteriosas porque desconhecemos as leis que determinam seus movimentos) continuavam a agir.
Apesar de a superfície do mar histórico parecer imóvel, a humanidade se movimentava sem cessar, a exemplo do movimento do tempo. Diversos grupos de pessoas se formavam e se desfaziam; preparavam-se as causas da formação e da dissolução dos Estados e do deslocamento dos povos.
O mar histórico não arremetia mais em ondas de uma margem à outra, como antes: ele borbulhava no fundo. Os personagens históricos não flutuavam mais nas ondas de uma margem à outra; agora pareciam dar voltas num lugar só. Os personagens históricos, que antes, à frente de exércitos, por meio de ordens de guerra, de campanhas, de batalhas, refletiam os movimentos das massas, agora refletiam o movimento borbulhante por meio de considerações políticas, diplomáticas, por meio de leis, tratados...
Tal atividade dos personagens históricos é chamada pelos historiadores de reação.1
Ao descrever as ações dos personagens históricos que, na opinião deles, foram a causa do que chamam de reação, os historiadores os condenam com severidade. Todas as pessoas conhecidas daquele tempo, desde Alexandre e Napoleão até Madame de Staël, Fótius,2 Schelling, Fichte, Chateaubriand e outros, são levadas para diante do seu severo tribunal e absolvidas ou condenadas conforme tenham cooperado com o progresso ou com a reação.
Na Rússia, naquele período, segundo os relatos deles, também ocorreu a reação, e o principal responsável por tal reação foi Alexandre I — o mesmo Alexandre I que, segundo os relatos dos mesmos historiadores, foi o principal responsável pelas iniciativas liberais do início de seu reinado e também pela salvação da Rússia.
Na literatura russa atual, desde a dos estudantes até a dos historiadores eruditos, não há ninguém que não tenha jogado sua pedrinha contra Alexandre I por seus atos injustos naquele período de seu reinado.
“Ele deveria agir assim e assado. No caso tal ele agiu bem, nesse outro agiu mal. Comportou-se de modo excelente no início do reinado e no ano de 1812; mas agiu mal ao dar uma Constituição para a Polônia, ao formar a Santa Aliança, ao dar poder para Araktchéiev, ao incentivar Golítsin e o misticismo e depois ao incentivar Chichkóv e Fótius. Agiu mal ao ocupar-se da linha de frente do exército; agiu mal ao dissolver o regimento de Semiónov etc.” 3
Seria preciso consumir dezenas de páginas para enumerar todas as acusações feitas pelos historiadores contra Alexandre, com base na noção que eles têm do que é o bem da humanidade.
O que significam tais acusações?
As mesmas ações que levam os historiadores a aprovar Alexandre I — por exemplo, as iniciativas liberais de seu reinado, a guerra contra Napoleão, a firmeza demonstrada em 1812 e a campanha de 1813 — não decorrem afinal das mesmas fontes — as condições de sangue, de educação, de vida que fizeram da personalidade de Alexandre aquilo que era — das quais decorrem também as ações pelas quais os historiadores o criticam, como, por exemplo, a Santa Aliança, a restauração da Polônia, a reação na década de 20?
Em que consiste a essência de tais acusações?
Consiste em que um personagem histórico como Alexandre I, que ocupava o nível mais alto possível do poder humano, que parecia estar no foco da luz ofuscante de todos os raios históricos, concentrados sobre ele; um personagem sujeito às mais fortes influências que existem, das intrigas, dos engodos, da bajulação, das ilusões consigo mesmo, inerentes ao exercício do poder; um personagem que, em todos os minutos da vida, sentia sobre si a responsabilidade de tudo o que acontecia na Europa; um personagem que não era imaginário, mas vivo, como qualquer pessoa, com seus costumes, paixões, com suas aspirações do bem, da beleza, da verdade — consiste em que tal personagem, cinquenta anos atrás, não que não tenha sido um homem virtuoso (nisso os historiadores não o condenam), mas que não tenha tido as mesmas ideias do bem da humanidade que agora tem um professor que desde a mocidade se ocupa com a ciência, ou seja, com a leitura de livros, com palestras, e em fazer anotações de tais livros e palestras num caderninho.
Porém se supusermos que, cinquenta anos atrás, Alexandre I enganou-se na visão que tinha do que era o bem da humanidade, também somos obrigados a supor que o historiador que agora julga Alexandre, com o decorrer do tempo, vá se revelar incorreto em sua visão sobre o que é o bem da humanidade. Tal suposição é tanto mais natural e necessária porquanto, ao observarmos o desenvolvimento da história, vemos que a cada ano, a cada novo escritor, se modifica a opinião sobre o que é o bem da humanidade; assim, aquilo que um dia parecia ser o bem dez anos depois parece ser um mal; e o contrário também. Além disso, encontramos ao mesmo tempo na história visões totalmente opostas sobre o que é o bem e o que é o mal: alguns sustentam que a Constituição outorgada à Polônia e a Santa Aliança são um mérito, outros acham que são um motivo de censura para Alexandre.
Sobre a atividade de Alexandre e Napoleão, é impossível dizer se foi útil ou prejudicial, pois não podemos dizer para que foi útil e para que foi prejudicial. Se tal atividade desagrada a alguém, ela desagrada apenas por causa do desacordo entre aquela atividade e o entendimento limitado de tal pessoa sobre o que é o bem. Ainda que imaginemos que para mim, em 1812, o bem era a conservação da casa do meu pai em Moscou, ou a glória das tropas russas, ou a prosperidade da Universidade de Petersburgo e de outras, ou a liberdade da Polônia, ou o poder da Rússia, ou o equilíbrio da Europa, ou este famoso tipo de ilustração europeia — o progresso —, tenho de admitir que a atividade de todo personagem histórico, além de tais objetivos, tinha outros objetivos, mais gerais e inacessíveis para mim.
No entanto, vamos supor que a chamada ciência tem a possibilidade de conciliar todas as contradições e possui, para os personagens históricos e para os acontecimentos históricos, um critério invariável do bem e do mal.
Vamos supor que Alexandre podia fazer tudo diferente. Vamos supor que, sob a orientação daqueles que o condenam, daqueles que professam um conhecimento dos objetivos últimos do movimento da humanidade, Alexandre pudesse governar segundo o programa da nacionalidade, da liberdade, da igualdade e do progresso (não há outro, ao que parece), que lhe oferecem os acusadores atuais. Vamos supor que tal programa fosse possível, fosse adotado, e que Alexandre o seguisse. O que seria então da atividade de todas aquelas pessoas que contrariavam os ditames do governo da época — daquela atividade que, segundo a opinião dos historiadores, é boa e útil? Tal atividade nem existiria; não existiria vida; não existiria nada.
Se admitirmos que a vida humana pode ser governada pela razão, a possibilidade da vida é aniquilada.
II
Se admitirmos, como fazem os historiadores, que as pessoas grandes conduzem a humanidade rumo a determinados objetivos, sejam eles a grandeza da Rússia e da França, ou o equilíbrio da Europa, ou a difusão de ideias revolucionárias, ou o progresso geral, ou o que quer que seja, então é impossível explicar os fenômenos da história sem o conceito do acaso e do gênio.
Se o objetivo das guerras europeias do início do século atual consistia na grandeza da Rússia, tal objetivo poderia ser alcançado sem todas as guerras precedentes e sem invasões. Se o objetivo era a grandeza da França, tal objetivo poderia ser alcançado sem revolução e sem império. Se o objetivo era a difusão de ideias, a impressão de livros teria alcançado isso de forma imensamente melhor do que o emprego de soldados. Se o objetivo era o progresso da civilização, seria muito fácil supor que, a par do extermínio de pessoas e de suas riquezas, existem outros caminhos mais práticos para desenvolver a civilização.
Por que então aconteceu desse modo, e não de outro?
Porque aconteceu desse modo. “O acaso criou a condição; o gênio a aproveitou”, diz a história.
Mas o que é o acaso? O que é o gênio?
As palavras “acaso” e “gênio” não designam nada de fato existente e por isso não podem ser definidas. Tais palavras designam apenas um determinado nível de compreensão dos fenômenos. Não sei por que ocorre um determinado fenômeno; acho que não posso saber; por isso não quero saber e digo: acaso. Vejo uma força que produz um efeito incomensurável com os atributos comuns à humanidade; não entendo por que isso acontece e digo: gênio.
Para um rebanho de ovelhas, a ovelha que o pastor separa toda noite num cercado especial para ser alimentada e assim fica duas vezes mais gorda do que as outras deve parecer um gênio. E a circunstância de que toda noite exatamente aquela mesma ovelha não fica no curral comum, mas num cercado especial para comer aveia, e o fato de que a ovelha, exatamente aquela ovelha, inchada de gordura, é morta para se extrair a carne deve parecer um impressionante elo entre a genialidade e toda uma série de acasos extraordinários.
Mas para as ovelhas basta apenas que parem de pensar que tudo o que acontece com elas ocorre apenas para o cumprimento de seus objetivos de ovelha; basta admitirem que os fatos que se passam com elas podem ter objetivos incompreensíveis para elas — e imediatamente verão uma unidade, uma coerência, naquilo que acontece com a ovelha cevada. Se elas não vão saber para que fim a ovelha foi cevada, pelo menos saberão que tudo o que aconteceu com a ovelha não foi por acidente e não terão mais necessidade dos conceitos de “acaso” e de “gênio”.
Só quando renunciarmos ao conhecimento de um objetivo imediato e compreensível e admitirmos que o objetivo final nos é inacessível, veremos a coerência e a pertinência na vida dos personagens históricos; irá se revelar para nós a causa daquela desproporção entre o efeito que tais personagens produzem e seus atributos humanos comuns, e não precisaremos mais das palavras “acaso” e “gênio”.
Basta apenas reconhecer que o objetivo das turbulências dos povos da Europa nos é desconhecido e que só conhecemos os fatos, que consistem nos morticínios, primeiro na França, depois na Itália, na África, na Prússia, na Áustria, na Espanha, na Rússia, e que os deslocamentos de povos do Ocidente para o Oriente e do Oriente para o Ocidente constituem a essência e o objetivo de tais acontecimentos, e que nós não só não precisaremos mais ver nada de excepcional nem de genial nos caracteres de Napoleão e de Alexandre, como também será impossível conceber tais personagens de outro modo que não como pessoas iguais, como todas as outras; e não só não será preciso explicar o acaso dos acontecimentos pequenos que fizeram de tais pessoas aquilo que elas foram, como ficará claro que todos aqueles acontecimentos pequenos eram necessários.
Tendo renunciado ao conhecimento do objetivo final, compreenderemos com clareza que, da mesma forma como é impossível imaginar para uma planta outras flores e sementes mais adequadas do que as que ela mesma produz, também será impossível imaginar outras duas pessoas, com todo o seu passado, que correspondam a tal ponto, em todos os ínfimos pormenores, à função que os dois tinham de cumprir.
III
O significado básico, essencial, dos acontecimentos europeus do início do século atual é o deslocamento militar de massas de povos europeus do Ocidente para o Oriente e depois do Oriente para o Ocidente. O primeiro instigador de tal deslocamento foi o deslocamento do Ocidente para o Oriente. Para que os povos do Ocidente pudessem realizar o deslocamento militar até Moscou era necessário: 1) que eles formassem um grupamento militar de tal grandeza que lhes permitisse resistir ao conflito com o grupamento militar do Oriente; 2) que eles renunciassem a todas as tradições e hábitos estabelecidos; e 3) que, ao executar seu deslocamento militar, tivessem no comando um homem capaz de justificar, para si e para eles, as fraudes, os roubos e os assassinatos que tinham de se realizar durante aquele deslocamento.
E o primeiro grupamento, de tamanho insuficiente, oriundo da Revolução Francesa, foi dissolvido; as antigas tradições e hábitos foram destruídos; passo a passo, desenvolveram-se grupamentos de novas dimensões, novas tradições e novos hábitos, e preparou-se o homem que devia estar no comando do futuro deslocamento e que deveria atribuir a si toda a responsabilidade daquilo que tinha de se cumprir.
Um homem sem convicções, sem hábitos, sem tradições, sem nome, e que nem era francês, se destaca, por força do que parecem ser os acasos mais estranhos, entre todos os partidos que se agitam na França e, sem aderir a nenhum deles, é alçado a uma posição de proeminência.
A ignorância de seus camaradas, a fraqueza e a insignificância dos opositores, a sinceridade na mentira e a estreiteza mental inflamada e autoconfiante daquele homem conduziram-no ao comando do Exército. O excelente conjunto de soldados do Exército italiano, a falta de vontade de lutar que tinham os oponentes, a audácia e a autoconfiança infantis lhe trouxeram a glória militar. Uma incontável quantidade de assim chamados acasos o acompanha em toda parte. A desgraça em que ele cai junto ao governo da França acaba lhe sendo útil. Suas tentativas de mudar o caminho determinado para ele são infrutíferas; seus serviços não são aceitos na Rússia, e ele não consegue uma nomeação na Turquia. Na época da guerra na Itália, ele se vê diversas vezes à beira da morte e sempre se salva de forma inesperada. Por força de várias considerações diplomáticas, as tropas russas, que podem destruir sua glória, não avançam para a Europa senão quando ele já não se encontra mais lá.4
Ao voltar da Itália, ele encontra o governo em Paris num processo de decomposição tão grande que as pessoas que ocupam o governo são inevitavelmente eliminadas e destruídas. E do nada surge para ele uma forma de escapar daquela situação perigosa, numa absurda e despropositada expedição à África. Mais uma vez, os mesmos assim chamados acasos o acompanham. A inexpugnável Malta se rende sem um tiro; as ordens mais imprudentes são coroadas de sucesso. A armada inimiga, que depois não permitirá a passagem de nenhum barco, deixa caminho aberto para um exército inteiro.5 Na África, em face de habitantes quase desarmados, comete-se uma série de atrocidades. E as pessoas que praticaram tais atrocidades, em especial seu líder, se convencem de que aquilo é belo, de que aquilo é a glória, semelhante a César e Alexandre da Macedônia, e de que aquilo é bom.
Tal ideal de glória e de grandeza consiste não só em não considerar ruim nada que a pessoa faça, como também em orgulhar-se de todos os seus crimes, atribuindo a eles um significado sobrenatural e inexplicável — tal ideal, destinado a guiar essa pessoa e as pessoas ligadas a ela, é posto em prática com toda a liberdade na África. Qualquer coisa que ele faça dá certo. A peste não o abala. A crueldade do assassinato dos prisioneiros não é imputada a ele. O atrevimento infantil de sua ignóbil e arbitrária partida da África, abandonando seus camaradas em desgraça, é tida como um mérito seu, e mais uma vez a armada inimiga o deixa passar duas vezes. Na ocasião em que, já totalmente intoxicado pelos crimes bem-sucedidos praticados por ele e pronto para representar o seu papel, ele chega a Paris sem nenhum objetivo, a decomposição do governo republicano, que poderia tê-lo destruído um ano antes, tinha chegado agora ao extremo, e a presença dele, um homem alheio aos partidos, agora só pode servir para a sua elevação.
Ele não tem nenhum plano; tem medo de tudo; mas os partidos se apegam a ele e exigem sua participação.
Só ele, com seu ideal de glória e de grandeza elaborado na Itália e no Egito, com sua louca admiração por si mesmo, com sua audácia nos crimes, com sua sinceridade na mentira — só ele pode justificar aquilo que tem de acontecer.
Ele é necessário para a função que o aguarda e por isso, de forma quase independente de sua vontade e apesar de sua indecisão, da ausência de um plano e de todos os erros que comete, ele se envolve numa conspiração cujo objetivo é a tomada do poder, e a conspiração alcança sucesso.
Levam-no à força para uma reunião do governo. Assustado, quer fugir, julgando-se perdido; finge ter um desmaio; fala coisas absurdas que deveriam ser sua perdição. Mas os governantes da França, antes sagazes e orgulhosos, agora, sentindo que seu papel terminou, ficam ainda mais confusos do que ele e não falam as palavras que teriam de falar para manter o poder e aniquilá-lo.
O acaso, um milhão de acasos lhe dão o poder, e todas as pessoas, como que numa conspiração, colaboram para ratificar esse poder. Os acasos criam o caráter dos governantes da França de então, subordinados a ele; os acasos criam o caráter do tsar Paulo I, que reconhece a autoridade dele; o acaso cria contra ele uma conspiração que não só não o abala como reforça seu poder. O acaso põe nas suas mãos o duque d’Enghien e por acidente o obriga a matá-lo, com o que convence a multidão, de maneira mais forte do que qualquer outra, de que ele tem o direito, pois tem a força. O acaso o leva a dirigir todas as forças para uma expedição contra a Inglaterra que, obviamente, teria sido sua perdição, mas ele nunca leva a efeito tal intento e, por acidente, ataca Mack e os austríacos, que se rendem sem travar batalha. O acaso e o gênio lhe dão a vitória em Austerlitz, e por acaso todas as pessoas, não só os franceses, mas a Europa inteira, exceto a Inglaterra, que não tomará parte nos acontecimentos que vão se realizar, todas as pessoas, apesar do horror anterior e da repulsa por seus crimes, agora reconhecem nele a autoridade, o título que conferiu a si mesmo, e também seu ideal de grandeza e de glória, que parece a todos algo belo e razoável.
Como que para se pôr à prova e se preparar para o deslocamento vindouro, as forças do Ocidente, várias vezes, em 1805, 1806, 1807 e 1809, voltam-se para o Oriente, cada vez maiores e mais poderosas. Em 1811, o grupo de pessoas que se formou na França se funde num imenso grupo com os povos da Europa Central. Com o aumento do grupo de pessoas, expande-se mais ainda a capacidade justificadora do homem que está na liderança do deslocamento. No período de dez anos de preparação que precedeu o grande deslocamento, esse homem rebaixa todas as figuras coroadas da Europa. Os reis nus do mundo não podem se contrapor ao ideal napoleônico de glória e de grandeza, não possuem um sentido, nenhum ideal razoável. Um depois do outro, todos se empenham para mostrar-lhe a própria insignificância. O rei prussiano manda a esposa para conquistar a clemência do grande homem; o imperador da Áustria considera um favor que tal homem tenha recebido em seu leito a filha dos Césares; o papa, o guardião do santuário dos povos, põe sua religião a serviço da glorificação do grande homem. É menos Napoleão que se preparara para representar seu papel do que todos aqueles que o cercam que o preparam para assumir todas as responsabilidades daquilo que está se realizando e tem de se realizar. Não existe nenhuma ação, nenhuma atrocidade, nenhuma fraude insignificante que ele tenha praticado e que logo não tenha se refletido, na boca das pessoas que o rodeiam, na forma de uma façanha grandiosa. A melhor festividade que os alemães conseguem imaginar para ele é a celebração de Iena e de Auerstadt. Não só ele é grande, como são grandes também seus ancestrais, seus irmãos, seus enteados, seus cunhados. Tudo é feito para privá-lo das últimas forças da razão e prepará-lo para um papel terrível. Quando estiver pronto, as forças também estarão prontas.
A invasão precipita-se para o Oriente, alcança o objetivo final — Moscou. A capital é ocupada; as tropas russas são destroçadas, mais do que foram as tropas inimigas em todas as guerras anteriores, de Austerlitz a Wagram. Mas de repente, em lugar dos acasos e da genialidade que o conduziam até então de maneira tão persistente numa série ininterrupta de êxitos rumo ao objetivo traçado, surge uma quantidade inumerável de acasos adversos, desde o resfriado em Borodinó até as geadas e as fagulhas que puseram fogo em Moscou; e em lugar da genialidade surgem uma tolice e uma infâmia sem precedentes.
A invasão foge, volta atrás, foge de novo, e todos os acasos agora já não são mais sempre a favor, e sim contra ele.
Ocorre um deslocamento contrário do Oriente para o Ocidente, com uma notável semelhança com o deslocamento precedente, do Ocidente para o Oriente. As tentativas de deslocamento do Oriente para o Ocidente em 1805, 1807 e 1809 precedem o grande deslocamento; também há uma aglutinação num grupo de enormes proporções; também há a adesão dos povos centrais ao deslocamento; também há uma hesitação no meio do caminho e uma aceleração à medida que o objetivo se mostra mais próximo.
Paris, o objetivo final, é alcançada. O governo napoleônico e as tropas são destruídos. O próprio Napoleão não tem mais nenhum significado; todas as suas ações são obviamente lastimáveis e repulsivas; mas de novo ocorre um acaso inexplicável: os aliados odeiam Napoleão, no qual veem a causa de suas desgraças; despojado de poder e de autoridade, desmascarado em suas vilanias e trapaças, ele devia surgir aos olhos deles da mesma forma como era dez anos antes e um ano depois — um bandido fora da lei. No entanto, por algum acaso estranho, ninguém enxerga assim. Seu papel ainda não terminou. O homem que, dez anos antes e um ano depois, eles consideravam um bandido fora da lei é despachado para uma ilha a dois dias de viagem da França, a ele é conferido o poder sobre a ilha, uma guarda própria e milhões, que lhe pagam por não se sabe que razão.
IV
O deslocamento das populações começa a se assentar em suas margens. As ondas do grande deslocamento refluem, e no mar apaziguado formam-se círculos nos quais flutuam os diplomatas, que imaginam que eles mesmos produziram tal apaziguamento.
Mas o mar apaziguado de súbito se agita. Os diplomatas têm a impressão de que eles, suas discordâncias, são a causa dessa nova pressão de forças; eles esperam a guerra entre seus soberanos; a situação lhes parece insolúvel. Mas a onda cuja ascensão eles pressentem não vem do lado que eles esperam. Tal onda se ergue justamente do ponto inicial do deslocamento — Paris. Ocorre a última contracorrente do deslocamento, que vem do Oriente; essa contracorrente deve solucionar as dificuldades diplomáticas que parecem insolúveis e pôr um fim no deslocamento militar do período.
O homem que devastou a França, sozinho, sem um plano, sem soldados, volta para a França. Todos os guardas podem prendê-lo; mas, por uma estranha casualidade, não só ninguém o prende como todos recebem com entusiasmo o homem que haviam amaldiçoado um dia antes e que vão amaldiçoar um mês depois.
Esse homem ainda é necessário para justificar um último ato coletivo.
O ato é executado. O último papel é desempenhado. O ator é obrigado a despir-se e a lavar a maquiagem e o ruge: ele não é mais necessário.
E passam alguns anos durante os quais esse homem, no isolamento de sua ilha, representa para si mesmo uma comédia lamentável, mente e faz intrigas de maneira banal para justificar seus atos, quando tal justificação já não é necessária, e mostra a todo mundo o que era aquilo que as pessoas tomavam como o poder, quando uma mão invisível o conduzia.
O diretor de cena, terminado o drama e despido o ator, mostra-o para nós.
— Vejam em que vocês acreditaram! Aqui está ele! Estão vendo agora que não era ele, mas sim Eu que movi vocês?
Porém, cegas por causa da força do deslocamento, as pessoas ficaram muito tempo sem compreender aquilo.
Uma coerência e uma necessidade ainda maiores se manifestam na vida de Alexandre I, a pessoa que estava à frente do contradeslocamento do Oriente para o Ocidente.
O que era necessário para a pessoa que, eclipsando os demais, se achava à frente daquele deslocamento do Oriente para o Ocidente?
Era preciso um sentimento de justiça, um envolvimento nos assuntos da Europa, mas a certa distância, para que tal envolvimento não fosse obscurecido por interesses mesquinhos; era preciso uma preponderância na estatura moral sobre seus confrades — os soberanos daquela época; era preciso uma personalidade dócil e cativante; era preciso um sentimento de afronta pessoal a Napoleão. E tudo isso havia em Alexandre I; tudo isso fora preparado pelas inúmeras assim chamadas casualidades de toda a sua vida passada: a educação, as inovações liberais, os conselheiros que o rodeavam, Austerlitz, Tilsit e Erfurt.
No tempo da guerra popular, tal personagem ficou inativo, pois não era necessário. Porém, assim que surge a necessidade de uma guerra europeia geral, esse personagem de repente aparece em seu lugar e, unindo os povos europeus, os conduz rumo ao objetivo.
O objetivo é alcançado. Após a última guerra de 1815, Alexandre se encontra no cume do poder humano possível. Como ele o emprega?
Alexandre I, o pacificador da Europa, o homem que desde a mocidade se empenha apenas em obter o bem para seus povos, o primeiro defensor das inovações liberais em sua pátria, agora, quando parece exercer o poder máximo e por isso tem a possibilidade de fazer o bem para seus povos, na hora em que Napoleão no exílio elabora planos infantis e ilusórios de como faria a humanidade feliz se tivesse o poder, Alexandre I, tendo cumprido sua missão e sentindo sobre si a mão de Deus, de súbito reconhece a insignificância daquele poder imaginário e desfaz-se dele, entrega-o nas mãos de pessoas que ele despreza e que são desprezíveis e diz apenas:
— “Não é por nós, não é por nós, mas em Teu nome!”6 Também sou um homem, como vocês; deixem-me viver como um homem e pensar em minha alma e em Deus.
Assim como o Sol e cada átomo do éter são uma esfera fechada em si mesma e ao mesmo tempo são só um átomo de um todo inacessível ao homem por sua enormidade — assim também cada personalidade carrega consigo seus objetivos e ao mesmo tempo carrega seus objetivos a fim de servir a objetivos gerais, inacessíveis ao homem.
Uma abelha, depois de pousar numa flor, pica uma criança. A criança teme a abelha e diz que o objetivo da abelha é picar as pessoas. Um poeta admira a abelha que chupa o cálice de uma flor e diz que o objetivo da abelha é chupar os aromas das flores. O apicultor, ao notar que a abelha recolhe o pólen das flores e o leva para a colmeia, diz que o objetivo da abelha é a coleta do mel. Outro apicultor, que estudou a vida da colmeia mais detidamente, diz que a abelha coleta o pólen para a nutrição das abelhas jovens e para incubação de uma mãe e que o objetivo da abelha é a continuação da espécie. Um botânico observa que, ao voar com pólen de uma flor dioica para um pistilo, a abelha o fertiliza, e o botânico vê nisso o objetivo da abelha. Outro, ao observar a migração das plantas, vê que a abelha contribui para essa migração, e esse novo observador pode dizer que nisso reside o objetivo da abelha. Mas o objetivo final da abelha não se esgota no primeiro, no segundo nem no terceiro objetivo que a razão humana está em condições de descobrir. Quanto mais alto se ergue a razão humana na descoberta de tais objetivos, mais fica evidente para ela a inacessibilidade do objetivo final.
Ao homem só é acessível a observação da correlação entre a vida da abelha e outros fenômenos da vida. O mesmo se passa com os objetivos dos personagens históricos e dos povos.
V
O casamento de Natacha com Bezúkhov, em 1813, foi o último acontecimento alegre na antiga família dos Rostóv. No mesmo ano, o conde Iliá Andréievitch morreu e, como sempre acontece, com sua morte desintegrou-se a antiga família.
Os acontecimentos do ano anterior: o incêndio de Moscou e a fuga da cidade, a morte do príncipe Andrei e o desespero de Natacha, a morte de Pétia, o desgosto da condessa — tudo isso, como um golpe após o outro, atingiu a cabeça do velho conde. Ele parecia não compreender e sentia-se sem forças para entender o significado de todos esses acontecimentos e, com a velha cabeça moralmente curvada, parecia já esperar e pedir novos golpes que lhe dessem um fim. Parecia ora temeroso, ora constrangido, ora anormalmente ativo e animado.
O casamento de Natacha, por um tempo, o manteve ocupado, em seu lado exterior. Ele marcava almoços, jantares, e visivelmente queria parecer alegre; mas sua alegria não contagiava como antes, ao contrário, despertava compaixão nas pessoas que o conheciam e o amavam.
Após a partida de Pierre e da esposa, ele se aquietou e passou a se queixar de melancolia. Alguns dias depois, adoeceu e ficou de cama. Desde os primeiros dias de sua doença, apesar do consolo dos médicos, ele compreendeu que não ia se levantar. A condessa, sem trocar de roupa, passou duas semanas numa poltrona à cabeceira do conde. Toda vez que ela lhe dava um remédio, ele, soluçando, beijava em silêncio a mão da condessa. No último dia, chorando, pediu perdão à esposa e ao filho ausente pelo desperdício do patrimônio — cuja responsabilidade principal o conde sentia caber a si mesmo. Depois de receber a comunhão e a extrema-unção, morreu em silêncio, e no dia seguinte a multidão dos conhecidos que vieram lhe prestar as últimas homenagens lotou a residência alugada onde moravam os Rostóv. Todos aqueles conhecidos que tantas vezes jantaram e dançaram na casa do conde, que tantas vezes riram dele, todos agora, com o mesmo sentimento de acusação interior e de ternura, como se quisessem se justificar diante de alguém, diziam: “Sim, apesar de tudo, era uma pessoa maravilhosa. Não se encontram mais pessoas assim... E afinal, quem é que não tem suas fraquezas?”.
Exatamente na hora em que as finanças do conde se emaranharam de tal modo que era impossível imaginar como aquilo iria terminar, caso a situação continuasse do mesmo jeito por mais um ano, ele morreu de repente.
Nikolai estava com as tropas russas em Paris quando recebeu a notícia da morte do pai. Imediatamente pediu seu desligamento e, sem esperar a resposta, tirou folga e foi para Moscou. Um mês depois da morte do conde, a situação das finanças veio à luz por completo e surpreendeu a todos pela imensidade da soma de diversas dívidas miúdas, de cuja existência ninguém desconfiava. As dívidas eram duas vezes maiores do que o patrimônio.
Familiares e amigos aconselharam Nikolai a renunciar à herança. Mas Nikolai via nisso a manifestação de uma censura à memória do pai, para ele sagrada, e portanto não quis saber de renunciar à herança e recebeu-a junto com a obrigação de saldar as dívidas.
Os credores, que se mantiveram em silêncio por tanto tempo, tolhidos durante a vida do conde pela influência vaga, mas poderosa, que o conde exercia sobre eles com sua benignidade desenfreada, de repente passaram todos a exigir o rigoroso pagamento das dívidas. Como sempre acontece, ocorreu uma competição — quem ia receber primeiro —, e exatamente aquelas pessoas que, como Mítienka e outros, possuíam notas promissórias recebidas como presentes mostravam-se agora os credores mais exigentes. Não davam para Nikolai nem tempo, nem descanso, e aqueles que pareciam ter pena do velho, o culpado dos prejuízos deles (se é que tinha havido prejuízos), agora atacavam sem nenhum remorso o jovem herdeiro, que obviamente não tinha nenhuma culpa do que lhes havia ocorrido e que voluntariamente assumira as dívidas.
Nenhuma das transações propostas por Nikolai deu certo; o patrimônio foi vendido em leilão pela metade do valor, mas ainda assim metade das dívidas continuava sem ser paga. Nikolai aceitou os trinta mil rublos oferecidos por seu cunhado Bezúkhov para o pagamento da parte das dívidas que ele reconhecia como dívidas reais, feitas em dinheiro. E para não ser posto na cadeia por causa das dívidas restantes, como ameaçavam fazer os credores, Nikolai ingressou de novo no serviço público.
Ir para o Exército, onde ele era o primeiro da fila para a vaga de comandante do regimento, seria impossível, porque a mãe agora se aferrava ao filho como a última coisa que a prendia à vida; e por isso, apesar da relutância em ficar em Moscou, no círculo de pessoas que o conheciam antes, apesar de sua aversão ao serviço público civil, ele aceitou um emprego público em Moscou e, após tirar o seu adorado uniforme, instalou-se com Sônia e a mãe num pequeno apartamento na rua Sívtsev Vrajók.
Naquela ocasião, Natacha e Pierre estavam morando em Petersburgo, sem ter uma ideia clara da situação de Nikolai. Ao receber o dinheiro do cunhado, Nikolai esforçou-se para esconder sua situação de penúria. A situação de Nikolai era especialmente difícil porque, com seus mil e duzentos rublos de salário, ele tinha não só de sustentar a si, Sônia e a mãe, como devia também sustentar a mãe de modo que ela não percebesse que estavam pobres. A condessa não conseguia entender a possibilidade da vida sem as condições de luxo a que estava acostumada desde a infância e exigia constantemente, sem entender como aquilo era difícil para o filho, ora uma carruagem — que eles não possuíam — para mandar trazer uma conhecida, ora uma comida cara para si e vinho para o filho, ora dinheiro para dar um presente de surpresa para Natacha, para Sônia e para o próprio Nikolai.
Sônia tratava dos assuntos da casa, cuidava da tia, lia para ela em voz alta, suportava seus caprichos e sua enraizada antipatia e ajudava Nikolai a esconder da velha condessa a situação de penúria em que se encontravam. Nikolai sentia-se com uma impagável dívida de gratidão em relação a Sônia por tudo o que ela fazia por sua mãe, maravilhava-se com a paciência e a dedicação de Sônia, mas se esforçava para manter-se distante dela.
Bem no fundo, parecia censurar Sônia por ser tão perfeita e por não haver motivo para censurá-la. Nela, havia tudo o que se estima numa pessoa; mas havia pouco daquilo que levaria Nikolai a amá-la. E ele sentia que, quanto mais a estimava, menos a amava. Tomara Sônia ao pé da letra na carta em que ela lhe dera liberdade e agora se portava com ela como se tudo o que tinha ocorrido entre os dois já fosse algo esquecido havia muito tempo e que não podia se repetir em nenhuma hipótese.
A situação de Nikolai se tornava cada vez pior. A ideia de economizar uma parte do salário revelou-se uma fantasia. Não só não economizava como, ao satisfazer as exigências da mãe, contraía pequenas dívidas. Nikolai não enxergava nenhuma saída para sua situação. A ideia de casar com uma herdeira rica, que algumas parentas lhe propuseram, repugnava-lhe. A outra saída para sua situação — a morte da mãe — nunca lhe passava pela cabeça. Nikolai não desejava nada, nem tinha esperança nenhuma; no fundo da alma, experimentava um prazer sombrio e severo na sujeição sem queixas à sua situação. Tentava se esquivar dos antigos conhecidos, de sua comiseração e de suas humilhantes propostas de ajuda, evitava todo gasto supérfluo e diversão, e mesmo em casa não fazia nada, senão jogar cartas com a mãe, andar em silêncio dentro do quarto e fumar um cachimbo depois do outro. Parecia alimentar cuidadosamente dentro de si um estado de ânimo sombrio, a única forma de conseguir suportar sua situação.
VI
No início do inverno, a princesa Mária chegou a Moscou. Por rumores que corriam na cidade, soube da situação dos Rostóv e de como “o filho se sacrificava pela mãe” — assim diziam na cidade.
“Dele eu não esperava outra coisa”, disse para si a princesa Mária, sentindo a alegre confirmação de seu amor por ele. Ao recordar suas relações amigáveis e quase familiares com toda a família, sentiu-se obrigada a visitá-los. Porém, ao recordar sua relação com Nikolai em Voróniej, teve medo. Todavia, fazendo um grande esforço, algumas semanas após sua chegada à cidade foi à casa dos Rostóv.
Nikolai foi o primeiro a recebê-la, pois para chegar ao quarto da condessa era preciso atravessar o quarto dele. Ao primeiro olhar para o rosto de Nikolai, em lugar da expressão de alegria que a princesa Mária esperava ver nele, havia uma expressão de frieza, secura e orgulho, que a princesa não vira até então. Nikolai perguntou sobre sua saúde, levou-a ao quarto da mãe e, depois de ficar uns cinco minutos, retirou-se.
Quando a princesa saiu do quarto da condessa, Nikolai recebeu-a de novo e conduziu-a de modo bastante seco e cerimonioso até a antessala. Não respondeu nenhuma palavra aos comentários da princesa sobre a saúde da condessa. “O que a senhora tem a ver com isso? Deixe-me em paz”, dizia seu olhar.
— Para que ela vem se meter? O que ela quer? Não consigo suportar essas fidalgas e todas essas amabilidades! — disse em voz alta para Sônia, visivelmente incapaz de conter sua mágoa, logo depois que a carruagem da princesa se afastou da casa.
— Ah, como pode falar assim, Nicolas? — disse Sônia, que mal conseguia esconder sua alegria. — Ela é tão boa, e maman gosta muito dela.
Nikolai nada respondeu e gostaria de não falar mais nada a respeito da princesa. Porém, desde aquela visita, a velha condessa, todos os dias e por qualquer motivo, falava sobre ela.
Nikolai fazia força para ficar calado quando a mãe falava sobre a princesa, mas seu silêncio irritava a condessa.
— É uma jovem muito digna e encantadora — dizia ela. — E você precisa ir visitá-la. Você devia visitar os outros; afinal acho que deve ser maçante para você ficar sempre conosco.
— Mas não tenho a menor vontade, mamãe.
— Antes queria, mas agora não tem vontade. Meu querido, sinceramente, não compreendo você. Ora acha maçante, ora, de repente, não quer ver ninguém.
— Mas eu não disse que achava maçante.
— Como não, você mesmo falou que não tem vontade de vê-la. É uma jovem muito digna, e você sempre gostou dela; agora de repente aparecem não sei que razões. Escondem tudo de mim.
— Nada disso, mamãe.
— Se eu ainda estivesse pedindo para você fazer algo desagradável, mas só estou pedindo para você fazer uma visita. Além do mais, parece que a cortesia exige... Eu já pedi a você e agora não vou mais me intrometer, pois você tem segredos para sua mãe.
— Está bem, eu vou, se a senhora quer.
— Para mim, tanto faz; quero isso por você.
Nikolai suspirou, mordendo o bigode, e pôs as cartas sobre a mesa na tentativa de desviar a atenção da mãe para outro assunto.
No dia seguinte, no outro e no outro ainda, repetiu-se a mesma conversa.
Após sua visita aos Rostóv e a recepção inesperada e fria de Nikolai, a princesa Mária reconheceu que estava com a razão quando pensara antes em não ir à casa dos Rostóv.
“Eu não esperava mesmo outra coisa”, dizia consigo, apelando ao orgulho para ajudá-la. “Nada tenho a ver com ele, e eu só queria ver a velha, que sempre foi boa comigo e a quem sou muito agradecida.”
Mas não conseguia se acalmar com tais raciocínios: um sentimento semelhante ao remorso a afligia, quando recordava sua visita. Apesar de estar firmemente resolvida a não ir mais à casa dos Rostóv e a esquecer tudo aquilo, ela se sentia o tempo todo numa situação indefinida. E, quando se perguntava o que era aquilo que a afligia, tinha de reconhecer que eram suas relações com Rostóv. O tom frio e respeitoso dele não provinha de seus sentimentos por ela (disso a princesa sabia), mas escondia algo. Era o que a princesa precisava esclarecer; e não conseguiria se acalmar antes disso.
Em meados do inverno, ela estava no quarto de estudos, tomando a lição do sobrinho, quando vieram lhe comunicar a chegada de Rostóv. Com a firme resolução de não trair seu segredo e de não demonstrar sua perturbação, chamou Mlle Bourienne e com ela foi para a sala de visitas.
Ao primeiro olhar para o rosto de Nikolai, ela percebeu que tinha vindo apenas para cumprir um dever de cortesia e resolveu com firmeza responder no mesmo tom em que ele lhe falasse.
Começaram a conversar sobre a saúde da condessa, sobre conhecidos comuns, sobre as últimas notícias da guerra e, quando haviam se passado os dez minutos exigidos pelo decoro, depois dos quais a visita deve se levantar, Nikolai levantou-se para se despedir.
Com a ajuda de Mlle Bourienne, a princesa Mária suportou muito bem a conversa; mas no último minuto, na hora em que ele se levantou, ela se sentiu tão cansada de falar sobre coisas que não lhe interessavam, e tanto lhe pesou o pensamento de que só a ela eram dadas tão poucas alegrias na vida, que a princesa, num acesso de distração, com seus olhos radiosos fixos à sua frente, ficou sentada e imóvel, sem notar que ele se levantara.
Nikolai fitou-a e, querendo dar a impressão de que não percebera a distração da princesa, disse algumas palavras a Mlle Bourienne e de novo lançou um olhar para a princesa. Ela continuava sentada e imóvel e, no rosto meigo, exprimia-se um sofrimento. De repente, Nikolai sentiu pena dela e lhe pareceu, de maneira confusa, que talvez fosse ele a causa da tristeza que se exprimia em seu rosto. Teve vontade de ajudá-la, dizer-lhe algo agradável; mas não conseguiu inventar algo para lhe dizer.
— Adeus, princesa — disse. Ela voltou a si, ruborizou-se e suspirou.
— Ah, me desculpe — disse ela, como se tivesse acordado. — O senhor já está indo, conde; bem, adeus! Mas e a almofada para a condessa?
— Espere, vou buscar agora mesmo — disse Mlle Bourienne e saiu.
Os dois ficaram em silêncio, olhando um para o outro de vez em quando.
— Pois é, princesa — disse por fim Nikolai, sorrindo com tristeza —, parece que faz muito pouco tempo, mas quanta água passou por baixo da ponte desde quando nos vimos pela primeira vez em Bogutchárovo. Como todos parecíamos infelizes... e, no entanto, eu daria tudo para aquele tempo voltar... mas ele não volta.
A princesa fitou-o nos olhos fixamente, com seu olhar radioso, enquanto ele falava. Ela parecia fazer força para entender o significado secreto de suas palavras, que explicaria o sentimento de Nikolai por ela.
— Sim, sim — disse a princesa —, mas o senhor não tem nada para lamentar em seu passado, conde. Do modo como entendo sua vida agora, o senhor sempre irá recordar sua vida com prazer, porque a abnegação com que tem vivido agora...
— Não concordo com seus elogios — apressou-se em interrompê-la. — Ao contrário, eu me censuro o tempo todo; mas isso não tem nenhum interesse e é uma conversa triste.
E de novo seu olhar tomou a expressão fria e seca de antes. Mas a princesa já tinha percebido nele de novo o mesmo homem que ela conhecia e amava e agora falava só com aquele homem.
— Pensei que o senhor me permitiria falar sobre isso — disse ela. — Estive tão próxima do senhor... e de sua família, e pensei que o senhor não julgaria impertinente meu interesse; mas me enganei — disse ela. Sua voz de repente estremeceu. — Não sei por quê — prosseguiu, recuperando-se —, o senhor antes era diferente e...
— Existem mil razões por quê (ele deu uma ênfase especial às palavras “por quê”). Agradeço à senhora, princesa — disse em voz baixa. — Às vezes é penoso.
“Pronto, aí está por quê! Aí está por quê!”, falou uma voz interior na alma da princesa Mária. “Não, eu não me apaixonei só por aquele olhar alegre, bondoso e franco, por aquela bela aparência que ele tinha; eu adivinhei seu espírito nobre, firme, abnegado”, disse ela consigo. “Sim, ele agora é pobre, e eu sou rica... Sim, é só por isso... Sim, e se isso não existisse...” E, recordando sua antiga ternura e vendo agora o rosto bondoso e triste de Nikolai, a princesa de súbito compreendeu a causa de sua frieza.
— Por quê, conde, por quê? — quase exclamou de súbito e, inconscientemente, chegou mais perto dele. — Por quê, me diga? O senhor deve dizer. — Ele ficou em silêncio. — Não conheço, conde, o seu porquê — prosseguiu a princesa. — Mas para mim é doloroso, para mim... Confesso isso ao senhor. Por algum motivo, o senhor quer privar-me da amizade de antes. E isso me dói. — A princesa tinha lágrimas nos olhos e na voz. — Tenho tão poucas alegrias na vida que qualquer perda me é muito dolorosa... Perdoe-me, adeus. — De repente começou a chorar e andou para sair da sala.
— Princesa! Espere, pelo amor de Deus — exclamou ele, tentando detê-la. — Princesa!
Ela olhou para trás. Por alguns segundos, fitaram-se em silêncio nos olhos um do outro, e o que era distante, impossível, de súbito tornou-se próximo, possível e inevitável.
VII
No outono de 1814, Nikolai casou-se com a princesa Mária e partiu com a esposa, a mãe e Sônia para a casa de Montes Calvos.
Em três anos, sem tocar no patrimônio da esposa, ele saldou as dívidas restantes e, após receber uma pequena herança pela morte de um primo, saldou também a dívida com Pierre.
Três anos depois, em 1820, Nikolai havia administrado tão bem suas finanças que comprou uma pequena propriedade vizinha a Montes Calvos e começou as negociações para comprar Otrádnoie, a propriedade paterna, que era seu sonho mais acalentado.
Tendo começado a cuidar dos assuntos agrícolas por necessidade, logo se afeiçoou de tal modo à agricultura que ela se tornou sua atividade predileta e quase sua ocupação exclusiva. Nikolai era um administrador simples, não gostava de inovações, em especial das inovações inglesas, que na época tinham entrado na moda, ria dos livros teóricos sobre agricultura, não gostava de fábricas, de produtos caros, do cultivo de sementes caras de cereais e, no geral, não se interessava por uma parte da propriedade separada do resto. Diante dos olhos, tinha sempre e apenas uma única propriedade rural, e não alguma parte dela em separado. Na propriedade rural, o principal não era o nitrogênio nem o oxigênio nem o adubo nem o arado — era o trabalhador mujique. Quando Nikolai passou a cuidar da propriedade e a observar a fundo suas diversas partes, o mujique em especial chamou a sua atenção; o mujique surgiu diante dele não só como um instrumento, mas como um objetivo e um juiz. De início, ele observava o mujique, esforçava-se para compreender do que ele precisava, o que ele considerava ruim e bom, e apenas fingia dar ordens e instruções, pois no fundo estava apenas aprendendo com os mujiques, aprendendo os métodos, o linguajar e os juízos sobre o que é bom e o que é ruim. E só quando entendeu os gostos e as aspirações do mujique, quando aprendeu a falar sua linguagem e conseguiu entender o sentido secreto de seu linguajar, só quando se sentiu unido ao mujique, só então começou a chefiá-los sem timidez, ou seja, a cumprir em relação ao mujique a mesma obrigação cujo cumprimento exigiam dele. E a administração de Nikolai obteve os resultados mais notáveis.
Ao assumir a direção da propriedade, Nikolai prontamente, sem engano, graças a algum dom de clarividência, nomeou como intendente, como estaroste e como representante as mesmas pessoas que teriam sido escolhidas pelos próprios mujiques, caso pudessem escolher, e seus chefes nunca eram trocados. Antes de investigar as propriedades químicas do adubo, antes de entrar nas questões do dever e haver (como gostava de dizer com ironia), ele verificava o número de cabeças de gado dos camponeses e aumentava essa quantidade de todas as formas possíveis. Ele mantinha as famílias camponesas com o maior contingente possível e não permitia que se dividissem. Os preguiçosos, os libertinos e os fracos, ele os perseguia igualmente e tentava afastá-los da comunidade.
Nas colheitas e na ceifa do feno e dos cereais, ele observava exatamente com o mesmo cuidado seus próprios campos e os dos mujiques. E eram raros os senhores de terra cujos campos eram ceifados e colhidos tão cedo e tão bem, e com um rendimento tão alto, como os campos de Nikolai.
Com os servos domésticos, ele não gostava de ter nenhuma relação, chamava-os de parasitas e, como todos diziam, os deixava na indolência e os estragava; quando era necessário tomar alguma decisão com respeito a um servo doméstico, sobretudo quando era necessário castigar, ele ficava indeciso e pedia o conselho de todos em casa; só quando era possível alistar no Exército um servo doméstico em vez de um mujique, ele agia sem nenhuma hesitação. Em todas as medidas relativas aos mujiques, ele nunca experimentava a menor dúvida. Todas as suas medidas — ele sabia disso — seriam aprovadas por todos, com exceção de um ou de alguns poucos.
Da mesma forma, ele não se permitia atormentar ou punir um homem só porque tinha vontade de fazer aquilo, nem se permitia aliviar ou premiar um homem porque era esse o seu desejo pessoal. Não saberia dizer em que consistia o critério para decidir o que se devia e o que não se devia fazer; mas tal critério se encontrava firme e inabalável em sua alma.
Muitas vezes, ao falar com desgosto de algum insucesso ou desordem, dizia: “Com o nosso povo russo...”, e imaginava que não conseguiria suportar o mujique.
No entanto, com todas as forças da alma, ele amava o nosso povo russo e seu modo de vida e só por isso entendera e assimilara aquele caminho e aquele método peculiar de trabalho agrícola, que produziam tão bons resultados.
A condessa Mária tinha ciúmes do marido por causa daquele seu amor e lamentava não poder compartilhar tal amor, porém não conseguia entender as alegrias e as aflições que aquele mundo remoto, alheio a ela, proporcionava ao marido. Não conseguia entender por que ele se mostrava tão empolgado e feliz quando, depois de sair da cama ao raiar do dia e passar a manhã inteira na lavoura ou no curral do estábulo, voltava da semeadura, da ceifa ou da colheita para tomar chá com ela. Não compreendia com que ele tanto se entusiasmava ao falar com animação sobre o parcimonioso e rico mujique Matviei Ermíchin, que, junto com a família, carregara feixes a noite inteira e, enquanto ninguém havia sequer começado a colher, ele já juntara uma meda inteira. A condessa não entendia por que o marido, ao passar da janela para a varanda, sorria com tanta alegria por baixo do bigode e piscava os olhos quando uma garoa morna e constante caía sobre os brotos de aveia que estavam começando a murchar, ou por que, quando na ceifa ou na limpa o vento carregava para longe uma nuvem ameaçadora, o marido voltava do celeiro de rosto vermelho, queimado de sol e suado, com um odor de absinto e de genciana nos cabelos, esfregando as mãos com alegria, e dizia: “Muito bem, mais um diazinho só e toda a colheita, minha e dos camponeses, vai estar no celeiro”.
E menos ainda conseguia entender por que ele, com seu bom coração, com sua constante presteza para prever os desejos dela, chegava quase ao desespero quando a esposa lhe transmitia quaisquer pedidos que camponesas ou mujiques tivessem feito a ela para liberá-los do trabalho, e por que ele, o bom Nicolas, lhe negava obstinadamente e implorava com irritação que não se intrometesse em seus assuntos. Ela sentia que o marido possuía um mundo especial, que ele amava apaixonadamente, um mundo com certas leis que ela não compreendia.
Quando às vezes, no esforço para compreendê-lo, ela lhe falava sobre seu mérito, que consistia em promover o bem a seus súditos, ele se irritava e respondia: “Não é nada disso: nunca passou pela minha cabeça; e não faço isso pelo bem deles. Toda essa história é poesia e conversa para mulheres... toda essa história de fazer bem ao próximo. Eu preciso é que nossos filhos não tenham de pedir esmola; preciso é construir nossa fortuna enquanto estou vivo; é só isso. E para isso é preciso ordem, é preciso rigor... E pronto!”, dizia ele, cerrando seu punho sanguíneo. “E justiça, está claro”, acrescentava, “pois se o camponês está faminto e nu, e só tem um pangaré, ele não serve de nada, nem para ele nem para mim.”
E, na certa porque Nikolai não se permitia pensar que fazia algo pelo bem dos outros ou por alguma virtude, tudo o que fazia era frutífero; a fortuna rapidamente aumentou: os mujiques vizinhos vinham lhe pedir que os comprasse, e muito tempo depois de sua morte o povo ainda guardava uma memória devota de sua maneira de administrar. “Aquilo é que era um patrão... Primeiro a parte do mujique, depois a minha. Está certo que não dava moleza. Numa palavra, um patrão!”
VIII
A única coisa que afligia Nikolai em relação a sua atividade agrícola era seu temperamento irascível, junto com o antigo hábito de hussardo de dar livre uso às mãos. No início não viu naquilo nada de repreensível, mas no segundo ano de seu casamento sua visão a respeito de tal tipo de represália se modificou.
Certa vez, no verão, mandou chamar o estaroste de Bogutchárovo, que tomara o lugar do falecido Dron e era acusado de diversas fraudes e negligências. Nikolai foi ao seu encontro na varanda e, logo às primeiras respostas do estaroste na entrada da casa, ressoaram gritos e pancadas. Ao voltar para casa, para o almoço, Nikolai aproximou-se da esposa, sentada com a cabeça curvada sobre o bastidor, e começou a lhe contar, como de costume, tudo o que havia feito naquela manhã e, entre outras coisas, contou a respeito do estaroste de Bogutchárovo. A condessa Mária ruborizou-se, empalideceu, contraiu os lábios e continuou na mesma posição, de cabeça baixa, e nada respondeu às palavras do marido.
— Que patife descarado — disse ele, exaltando-se ao recordar. — Ora, se ele tivesse me dito que estava bêbado e que não viu... Mas o que há com você, Marie? — perguntou de repente.
A condessa Mária levantou a cabeça, quis dizer algo, mas abaixou-se de novo e cerrou os lábios.
— O que foi? O que você tem, minha amiga?...
A feia condessa Mária sempre ficava mais bonita quando chorava. Nunca chorava de dor nem de despeito, mas sempre por causa de tristeza e de compaixão. E, quando chorava, os olhos radiosos adquiriam um encanto irresistível.
Assim que Nikolai segurou sua mão, ela não teve forças para se conter e desatou a chorar.
— Nicolas, eu vi... ele agiu mal, mas você, por que você fez aquilo? Nicolas!... — E cobriu o rosto com as mãos.
Nikolai nada disse, ruborizou-se muito e, afastando-se dela, pôs-se a andar em silêncio pelo quarto. Ele compreendeu por que ela estava chorando; mas não conseguiu em sua alma de uma hora para a outra concordar com a esposa que aquilo com que ele estava habituado desde a infância e que ele considerava a coisa mais rotineira era algo ruim.
“Essas gentilezas todas são lorotas de mulheres, ou será que ela tem razão?”, perguntou a si mesmo. Sem chegar a uma resposta, lançou mais um olhar para o rosto sofrido e amado da mulher e de súbito compreendeu que a esposa tinha razão e que ele havia muito se sentia culpado perante si mesmo.
— Marie — disse em voz baixa, chegando perto dela —, isso não vai acontecer nunca mais; dou minha palavra. Nunca mais — repetiu com voz trêmula, como um menino que pede perdão.
As lágrimas escorreram mais ainda dos olhos da condessa. Segurou a mão do marido e beijou-a.
— Nicolas, quando você quebrou o camafeu? — disse ela a fim de mudar de assunto, observando a mão do marido, na qual havia um anel com a cabeça de Laocoonte.
— Hoje; foi naquela hora. Ah, Marie, não me lembre mais isso. — Ele se ruborizou outra vez. — Dou a você minha palavra de honra que não vai acontecer mais. E que isto sirva para eu me lembrar sempre — disse, apontando para o anel quebrado.
A partir de então, nas discussões com os estarostes e com os feitores, quando o sangue subia ao seu rosto, e os punhos começavam a cerrar-se, Nikolai girava o anel quebrado no dedo e baixava os olhos diante do homem que o irritara. No entanto, duas vezes por ano ele se esquecia e então procurava a esposa, confessava-se e de novo prometia que tinha sido a última vez.
— Marie, você deve me desprezar, não é? — dizia Nikolai. — Eu mereço.
— Você deve afastar-se, afastar-se depressa, se sentir que não é capaz de se conter — dizia a condessa Mária com tristeza, tentando consolar o marido.
Entre os nobres, a administração de Nikolai era respeitada, mas não estimada. Os interesses da nobreza não o preocupavam. E só por isso alguns o julgavam orgulhoso, e outros, um tolo. Todo o seu tempo no verão, do plantio da primavera até a colheita, transcorria nos afazeres agrícolas. No outono, com a mesma seriedade compenetrada com que se ocupava da agricultura, dedicava-se à caça, ficava fora de casa durante um mês ou dois, com seu grupo de caça. No inverno, ia para outras aldeias e ocupava-se com leituras. Suas leituras consistiam sobretudo em livros de história, com os quais gastava uma determinada soma todos os anos. Assim formou para si, como dizia, uma biblioteca séria e tinha como regra ler todos os livros que comprava. Em seu gabinete, instalava-se com um ar grave para aquelas leituras, que de início considerava uma obrigação, mas que depois se tornaram uma ocupação rotineira, que lhe proporcionava um tipo especial de prazer e a consciência de que se ocupava com assuntos sérios. Exceto pelas viagens de negócios, ele passava a maior parte do inverno em casa, junto à família, e participando dos pormenores das relações entre a mãe e os filhos. Tornou-se cada vez mais apegado à esposa, todo dia se revelavam nela novos tesouros íntimos.
Sônia, desde o casamento de Nikolai, morava na casa dele. Ainda antes de seu casamento, Nikolai, censurando a si mesmo e louvando Sônia, contou para sua noiva tudo o que houvera entre ele e Sônia. Pediu à princesa Mária que fosse carinhosa e boa com sua prima. A condessa Mária percebeu perfeitamente a culpa do marido; percebeu também sua própria culpa perante Sônia; pensou que sua fortuna tivera influência na escolha de Nikolai; não podia censurar Sônia por nada e desejava amá-la; mas não só não a amava como muitas vezes descobria na própria alma sentimentos malévolos contra ela e não conseguia dominá-los.
Certa vez conversou com sua amiga Natacha a respeito de Sônia e de sua antipatia por ela.
— Sabe — disse Natacha —, você leu muito o Evangelho, não foi? Lá tem um trecho exatamente sobre a Sônia.
— Qual é? — perguntou a condessa Mária com surpresa.
— “A quem tem será dado, e de quem não tem será tirado”,7 lembra? Ela é a que não tem: por quê? Não sei; nela não existe egoísmo, talvez... Não sei, mas dela é tirado, e tudo foi tirado. Às vezes sinto uma pena horrível dela; antigamente, eu tinha uma vontade tremenda de que Nicolas se casasse com ela; mas sempre parecia pressentir que não ia acontecer. Ela é uma flor estéril, sabe, como aquela que dá no meio dos morangos? Às vezes sinto pena dela, mas às vezes eu penso que ela não sente isso como nós sentiríamos.
E, apesar de a condessa Mária dizer para Natacha que tais palavras do Evangelho deviam significar outra coisa, ao olhar para Sônia, concordava com a interpretação de Natacha. De fato, parecia que Sônia não se sentia oprimida pela sua situação e se resignara inteiramente à sua função de flor estéril. Parecia prezar não tanto as pessoas, mas a família inteira. Como um gato, ela se apegava não às pessoas, mas à casa. Cuidava da velha condessa, mimava as crianças de carinhos, estava sempre pronta a prestar os menores serviços para os quais estivesse apta; mas tudo isso era automaticamente recebido com uma gratidão demasiado fraca...
A casa senhorial de Montes Calvos foi reconstruída, mas já não no mesmo padrão que na época do falecido príncipe.
As construções, iniciadas em tempos de dificuldades, eram mais do que simples. A enorme casa, sobre os antigos alicerces de pedra, era de madeira, revestida de estuque apenas por dentro. A grande casa espaçosa, com piso de tábuas nuas, era mobiliada com sofás e poltronas mais simples e duros, cadeiras e mesas feitas com a madeira de suas próprias bétulas e pelos seus próprios marceneiros. A casa era espaçosa, com quartos para os criados e seções para hóspedes. Os parentes dos Rostóv e dos Bolkónski às vezes se hospedavam em Montes Calvos com seus familiares, seus dezesseis cavalos e dezenas de criados, e ali ficavam durante meses. Além disso, quatro vezes por ano, no aniversário e nos dias dos santos padroeiros dos donos da casa, chegava a haver cem hóspedes durante um ou dois dias. No resto do ano, a vida normal transcorria sem abalos, com as ocupações de costume, os chás, os desjejuns, os almoços, os jantares, feitos com os alimentos produzidos na propriedade.
IX
Era inverno, dia 5 de dezembro de 1820, véspera do dia de São Nicolau. Naquele ano, Natacha, os filhos e o marido estavam hospedados na casa do irmão desde o início do outono. Pierre tinha ido para Petersburgo, aonde fora tratar de um assunto particular, como disse, por três semanas, e onde havia ficado por quase sete semanas. Aguardavam-no a qualquer minuto.
No dia 5 de dezembro, além da família dos Bezúkhov, também estava hospedado ali o velho amigo de Nikolai, o general da reserva Vassíli Fiódorovitch Deníssov.
Nikolai sabia que no dia 6, dia da cerimônia da qual os hóspedes iriam participar, tinha de tirar o bechmiét,8 vestir a sobrecasaca e, com meias apertadas, calçar as botas estreitas e ir para a nova igreja construída por ele, e depois receber as congratulações, e oferecer petiscos e falar sobre as eleições dos nobres e sobre a colheita; mas, quanto à véspera, ele ainda se julgava no direito de passar esse dia como de costume. Antes do jantar, Nikolai conferiu as contas do administrador de uma aldeia de Riazan, de propriedade do sobrinho da esposa, redigiu duas cartas de negócios e foi ao celeiro, ao curral do gado e dos cavalos. Após tomar as providências para evitar a já esperada bebedeira geral no dia seguinte, por que era um feriado religioso, foi jantar e, sem que tivesse tempo de falar com a esposa em particular, sentou-se à mesa comprida servida para vinte pessoas, na qual estavam reunidas todas as pessoas de casa. À mesa, estavam a mãe, a velha Belova, que estava sempre com ela, a esposa, os três filhos, a preceptora, o preceptor, o sobrinho com o seu preceptor, Sônia, Deníssov, Natacha, seus três filhos, a preceptora deles e o velhinho Mikhail Ivánitch, arquiteto do príncipe, que morava em Montes Calvos.
A condessa Mária sentou-se na extremidade oposta da mesa. Assim que o marido se sentou em seu lugar, pelo gesto com que ele puxou o guardanapo e moveu rapidamente o copo e a taça que estavam à sua frente, a condessa Mária logo concluiu que o marido estava de mau humor, como às vezes lhe acontecia, sobretudo antes da sopa e quando vinha direto do trabalho no campo para a mesa. Ela conhecia muito bem aquele seu estado de ânimo e, quando ela mesma estava de bom humor, esperava tranquilamente que ele tomasse a sopa e só depois começava a falar com ele e o obrigava a admitir que estava irritado à toa; mas naquele dia ela esqueceu completamente sua cautela; ficou incomodada por ele estar irritado com ela sem nenhum motivo e sentiu-se infeliz. Perguntou-lhe onde estivera. Ele respondeu. Perguntou também se estava tudo em ordem na propriedade. Ele franziu as sobrancelhas com ar desagradável diante do tom de voz forçado da esposa e respondeu às pressas.
“Então eu não estou enganada”, pensou a condessa Mária. “E por que está irritado comigo?” No tom de voz com que o marido respondeu, a condessa Mária ouviu um rancor contra ela e o desejo de encerrar a conversa. Sentiu que suas palavras eram forçadas; mas não conseguiu se conter e fez mais algumas perguntas.
Graças a Deníssov, a conversa durante o jantar logo envolveu a todos e se tornou animada, e a condessa Mária não falou com o marido. Quando se levantaram da mesa e foram dar seus agradecimentos à velha condessa,9 a condessa Mária beijou o marido, lhe estendeu a mão e perguntou por que estava irritado com ela.
— Você tem sempre ideias estranhas; não estou nada irritado — disse ele.
Mas a palavra “sempre” respondia à condessa Mária: sim, estava irritado e não queria falar.
Nikolai vivia tão bem com a esposa que até Sônia e a velha condessa, que por ciúme desejavam que houvesse desavenças entre os dois, não conseguiam encontrar nenhum pretexto para censuras; mas entre eles havia minutos de hostilidade. Às vezes, justamente após os períodos mais felizes, vinha-lhes de repente um sentimento de estranheza e de hostilidade; tal sentimento surgia sobretudo durante os períodos de gravidez da condessa Mária. Agora ela estava num daqueles períodos.
— Bem, messieurs et mesdames 10 — Nikolai falou alto e como que alegre (a condessa Mária teve a impressão de que aquilo era de propósito, para ofendê-la) —, estou de pé desde as seis horas. Amanhã vou ter de sofrer, portanto hoje vou descansar. — E, sem dizer mais nada para a condessa Mária, saiu para a saleta de repouso e deitou-se no sofá.
“Pronto, é sempre assim”, pensou a princesa Mária. “Fala com todos, menos comigo. Vejo, vejo que sou repulsiva para ele. Sobretudo nesta situação.” Olhou sua barriga alta e, no espelho, para seu rosto emagrecido, pálido e amarelado, de olhos maiores do que nunca.
E tudo para ela tornou-se desagradável: o grito e a risada de Deníssov, a conversa de Natacha e sobretudo o olhar apressado que Sônia lhe dirigiu.
Sônia era sempre o primeiro pretexto que a condessa escolhia para descarregar sua fúria.
Sentada com as visitas e sem entender nada do que diziam, ela se retirou em silêncio e foi para o quarto das crianças.
Nas cadeiras, as crianças brincavam de viajar para Moscou e convidaram-na para viajar com elas. A condessa Mária sentou-se, brincou com as crianças, mas o pensamento no marido e a sua irritação sem motivo não paravam de atormentá-la. Levantou-se e, caminhando com dificuldade na ponta dos pés, andou na direção da saleta de repouso.
“Talvez ele não esteja dormindo; vou conversar com ele”, disse consigo. Andriucha, o menino mais velho, imitando a mãe, foi atrás dela na ponta dos pés. A condessa Mária não percebeu.
— Chère Marie, il dort, je crois; il est si fatigué 11 — disse Sônia na sala maior (e a condessa tinha a impressão de que vivia se encontrando com ela em toda parte). — Andriucha, não vá acordá-lo.
A condessa Mária virou-se, viu Andriucha atrás de si, sentiu que Sônia tinha razão e justamente por isso exasperou-se e, visivelmente, só a custo conteve uma palavra rude. Não disse nada e, para não obedecer a Sônia, fez um sinal com a mão para Andriucha não fazer barulho, mas para mesmo assim vir atrás dela, e aproximou-se da porta. Sônia foi para a outra porta. Do cômodo onde Nikolai dormia, ouvia-se a sua respiração ritmada, conhecida da esposa até em seus mínimos matizes. Ouvindo aquela respiração, ela via à sua frente a testa bonita e lisa, o bigode, o rosto inteiro, que ela tantas vezes mirava demoradamente enquanto o marido dormia, no silêncio da noite. Nikolai de repente teve um sobressalto e gritou. Naquele instante, Andriucha, de trás da porta começou a gritar:
— Papai, mamãe está aqui.
A condessa Mária empalideceu e começou a fazer sinais para o filho. Ele ficou em silêncio, e então se passou um terrível minuto de silêncio para a condessa Mária. Ela sabia que Nikolai não gostava de ser acordado. De súbito, atrás da porta, ouviu-se uma tosse, um movimento, e a voz descontente de Nikolai falou:
— Não me dão nem um minuto de sossego. Marie, é você? Para que o trouxe aqui?
— Vim só para ver, eu não tinha visto que... desculpe...
Nikolai tossiu e ficou calado. A condessa Mária afastou-se da porta e levou o filho para o quarto das crianças. Cinco minutos depois, a pequena Natacha, de três anos e de olhos negros, a predileta do pai, ao saber pelo irmão que o pai estava dormindo na saleta de repouso, foi para onde o pai estava, sem que a mãe notasse. A menina de olhos negros empurrou atrevidamente a porta, que rangeu, aproximou-se do sofá com os passos enérgicos de seus pezinhos duros e, depois de observar a posição do pai, que dormia de costas para ela, ergueu-se na ponta dos pés e beijou a mão do pai, embaixo de sua cabeça. Nikolai virou-se com um sorriso de ternura no rosto.
— Natacha, Natacha! — ouviu-se por trás da porta o sussurro assustado da condessa Mária. — Papai quer dormir.
— Não, mamãe, ele não quer dormir — respondeu com toda a convicção a pequena Natacha. — Ele está rindo.
Nikolai baixou as pernas, levantou-se e tomou a filha nos braços.
— Entre, Macha — falou para a esposa. A condessa Mária entrou e sentou-se ao lado do marido.
— Eu não vi que ele estava vindo atrás de mim — disse ela, timidamente. — Eu estava tão...
Nikolai, segurando a mão da filha, olhou para a esposa, notou a expressão de culpa em seu rosto e, com o outro braço, abraçou-a e beijou seu cabelo.
— Posso beijar a mamãe? — perguntou para Natacha.
Natacha sorriu, tímida.
— De novo — disse ela, apontando com um gesto imperativo para o local onde Nikolai havia beijado a esposa.
— Não sei por que você acha que estou de mau humor — disse Nikolai, respondendo à pergunta que ele sabia estar na mente da esposa.
— Você nem pode imaginar como fico infeliz, solitária, quando você está assim. Parece que...
— Marie, chega de bobagem. Como é que você não se envergonha? — disse ele, alegre.
— Parece que você não pode me amar, que sou tão feia... e sempre... e agora... nesta si...
— Ah, como você é ridícula! Não amamos porque é belo, mas é belo porque amamos. Só a Malvina12 e outras como ela são amadas porque são bonitas; mas minha esposa, será que eu amo? Eu não amo, mas não sei como lhe dizer. Sem você, e quando alguma coisa ocorre entre nós, como agora, tenho a impressão de que estou perdido e não consigo fazer nada. Ora, será que amo o meu dedo? Não amo, mas tente só cortá-lo...
— Não, eu não sou assim, mas eu entendo. Então, não está zangado comigo?
— Estou horrivelmente zangado — disse ele, sorrindo, levantou-se, ajeitou o cabelo e começou a andar pela sala. — Sabe, Marie, no que é que estou pensando? — e agora, quando haviam feito as pazes, começou logo a pensar em voz alta diante da esposa. Não perguntou se ela estava disposta a escutar; para ele era indiferente. Um pensamento lhe veio à cabeça, portanto era um pensamento dela também. E contou-lhe sua intenção de convencer Pierre a ficar com eles até a primavera.
A condessa Mária escutou-o, fez um comentário e, por seu turno, pôs-se a pensar em voz alta. Seus pensamentos eram sobre os filhos.
— Já está parecida com uma mulher — disse em francês, apontando para Natacha. — Vocês acusam a nós, as mulheres, de falta de lógica. Aí está ela, a nossa lógica. Eu digo: papai quer dormir, e ela diz: não, ele está rindo. E ela tem razão — disse a condessa Mária, sorrindo feliz.
— Sim, sim! — E Nikolai, pegando a filha em seu braço forte, ergueu-a e colocou-a sobre os ombros, segurou-a pelas perninhas e começou a andar pela sala. Os rostos do pai e da filha ficaram ambos loucamente felizes.
— Sabe, talvez você não esteja sendo justo. Você gosta demais dessa aí — disse a condessa em francês e num sussurro.
— Sim, mas o que vou fazer?... Tento não demonstrar...
Naquele instante, na entrada e no vestíbulo, ouviram-se os sons da mola da porta e de passos, semelhantes aos ruídos da chegada de alguém.
— Alguém chegou.
— Aposto que é o Pierre. Vou lá ver — disse a condessa Mária e saiu.
Na ausência da esposa, Nikolai se permitiu andar a galope pela saleta com a filha sobre os ombros. Sem fôlego, rapidamente livrou-se da menina, que ria, e apertou-a contra o peito. Seu galope lhe fez lembrar uma dança e, olhando para o rostinho feliz, redondo e infantil, pensou em como seria a filha quando ele, já envelhecido, a levasse para dançar a mazurca pelo salão, como seu falecido pai dançara com a filha o Danilo Cooper.
— É ele, é ele, Nicolas — falou a condessa Mária entrando na saleta alguns minutos depois. — Agora a nossa Natacha ganhou vida nova. Tem de ver a animação dela e como está repreendendo o marido por ter demorado demais a voltar. Vamos lá, vamos logo! Vamos, separem-se agora — disse ela, sorrindo e olhando para a menina, que se agarrava ao pai. Nikolai saiu, segurando a filha pela mão.
A condessa Mária ficou na saleta de repouso.
— Eu nunca, nunca acreditaria — sussurrou sozinha — que fosse possível ser tão feliz. — Seu rosto iluminou-se com um sorriso; mas no mesmo instante ela suspirou, e uma tristeza muda exprimiu-se em seu olhar profundo. Parecia que, além da felicidade que ela experimentava, havia outra felicidade, inalcançável nesta vida, que sem querer ela recordara naquele momento.
X
Natacha casou-se no início da primavera de 1813 e em 1820 já tivera três filhas e também um filho, que ela tanto quisera ter e que estava amamentando. Ficara mais gorda e mais larga, e era difícil reconhecer naquela mãe robusta a antiga Natacha, fina e ágil. Os traços de seu rosto estavam mais delineados e tinham uma expressão de serena suavidade e clareza. Em seu rosto não havia, como antes, aquele fogo de animação que ardia sem cessar e que constituía seu encanto. Agora muitas vezes viam-se apenas seu rosto e seu corpo, mas o espírito não se via de maneira nenhuma. Via-se uma fêmea forte, bonita e fecunda. Muito raramente se acendia nela agora a antiga chama. Isso só acontecia quando, como naquele momento, o marido voltava, quando o bebê melhorava de saúde, ou quando ela e a condessa Mária lembravam-se do príncipe Andrei (ela nunca falava com o marido sobre o príncipe Andrei, supondo que teria ciúmes de suas lembranças), e quando, muito raramente, algo por acaso a levava a cantar, o que ela havia deixado completamente de fazer depois do casamento. E naqueles raros momentos em que a antiga chama se acendia em seu corpo bonito, que amadurecera, Natacha se mostrava ainda mais encantadora do que antes.
Desde o tempo de seu casamento, Natacha morava com o marido em Moscou, em Petersburgo, na aldeia nos arredores de Moscou e na casa da mãe, ou seja, na casa de Nikolai. A jovem condessa Bezúkhova era pouco vista na sociedade, e os que a viam ficavam insatisfeitos. Não era nem meiga, nem afável. Não que Natacha gostasse da solidão (não sabia se gostava disso ou não; até lhe parecia que não), mas ela, gerando, dando à luz, amamentando os filhos e participando de cada minuto da vida do marido, não podia atender tais necessidades sem abster-se da sociedade. Todos que conheceram Natacha antes do casamento se admiravam com a transformação que nela ocorrera como se fosse algo extraordinário. Só a velha condessa, que com o faro maternal compreendia que todos os antigos arroubos de Natacha tinham por origem apenas a necessidade de ter uma família, de ter um marido, assim como ela gritava em Otrádnoie, não de brincadeira, mas a sério, a mãe se admirava com o espanto das pessoas, que não compreendiam Natacha, e repetia que ela sempre soubera que Natacha seria uma esposa e uma mãe exemplar.
— Ela apenas leva seu amor pelo marido e pelos filhos a tais extremos — dizia a condessa — que chega a parecer uma coisa tola.
Natacha não seguia a regra de ouro preconizada por pessoas inteligentes, em especial pelos franceses, que consiste em que uma jovem, ao casar, não deve relaxar, não deve abandonar seus talentos, deve, mais ainda do que as mocinhas, ocupar-se de sua aparência, deve seduzir o marido como antes seduzia aqueles que não eram seu marido. Natacha, ao contrário, abandonou de uma só vez todos os seus feitiços, entre os quais ela possuía um especialmente poderoso — o canto. Abandonou-o justamente porque era um feitiço poderoso. Ela, como dizem, relaxou. Natacha não se preocupava nem com suas maneiras, nem com a delicadeza da fala, nem em se mostrar diante do marido nas poses mais favoráveis, nem com sua toalete, nem em não incomodar o marido com suas exigências. Fazia tudo em contradição com tais regras. Sentia que os feitiços que seu instinto, em outros tempos, lhe ensinara a usar agora seriam meramente ridículos aos olhos do marido, a quem ela desde o primeiro minuto se rendera de todo — ou seja, com toda a alma, sem deixar nenhum recanto encoberto para ele. Sentia que seu vínculo com o marido não se baseava nos sentimentos poéticos que o atraíram para ela, baseava-se, sim, em outra coisa, indeterminada, mas firme, como o vínculo entre sua própria alma e seu corpo.
Fazer cachinhos no cabelo, usar anquinhas e cantar romanças com a intenção de atrair o marido lhe pareceria tão estranho como enfeitar-se para ficar mais satisfeita consigo mesma. Enfeitar-se para agradar aos outros — quem sabe agora isso lhe seria agradável — Natacha não sabia —, mas não tinha tempo para isso. O motivo principal pelo qual ela não se interessava nem pelo canto, nem pela toalete, nem pela escolha cuidadosa de suas palavras era que não tinha tempo nenhum para se preocupar com isso.
Sabemos que as pessoas têm a capacidade de ficar totalmente absorvidas por um assunto, por mais insignificante que pareça. E sabemos que não existe um assunto tão insignificante que não se expanda ao infinito, quando concentramos nele toda a nossa atenção.
O assunto que absorvia Natacha inteiramente era a família, ou seja, o marido, que era necessário segurar de modo que pertencesse a ela de forma indivisível, a casa e os filhos, que era preciso gerar, dar à luz, amamentar, educar.
E, quanto mais ela observava, não com a razão, mas com toda a alma, com todo o seu ser, o assunto que lhe interessava, mais aquele assunto se expandia sob sua atenção, e mais fracas e mais insignificantes lhe pareciam suas forças, e assim ela as concentrava por inteiro numa coisa só, e mesmo assim não conseguia fazer tudo o que lhe parecia necessário.
Discussões e argumentos sobre os direitos da mulher, sobre as relações dos cônjuges, sobre a liberdade e seus direitos, embora ainda não fossem denominados questões, como agora, já eram exatamente a mesma coisa que são hoje; mas tais questões não só não interessavam Natacha, como ela decididamente não as compreendia.
Tais questões na época, como agora, só existiam para as pessoas que viam no casamento apenas o prazer que os cônjuges recebiam um do outro, ou seja, só o início do casamento, e não toda a sua significação, que consiste na família.
Os argumentos e as questões atuais são semelhantes à questão sobre de que forma obter a maior satisfação possível num jantar e, agora como naquela época, eles não existem para quem o objetivo do jantar é a nutrição e o objetivo do casamento é a família.
Se o objetivo do jantar é a nutrição do corpo, aquele que come de uma só vez dois jantares alcança, talvez, uma grande satisfação, mas não alcança o objetivo, porque os dois jantares não serão digeridos pelo estômago.
Se o objetivo do casamento é a família, quem quiser ter muitas esposas e maridos receberá, talvez, muita satisfação, mas em nenhuma hipótese terá uma família.
Se o objetivo do jantar é a nutrição e o objetivo do casamento é a família, toda a questão se resolve em não comer mais do que o estômago pode digerir e em não ter mais esposas e maridos do que o necessário para uma família, ou seja, uma só e um só. Natacha precisava de um marido. O marido lhe foi dado. E o marido deu a ela uma família. E ela não só não via necessidade de outro marido, de um marido melhor, como também todas as suas forças espirituais estavam voltadas para servir aquele marido e aquela família, e além disso ela não conseguia imaginar, nem via nenhum interesse em imaginar, como seria se as coisas fossem diferentes.
Natacha não gostava nem um pouco da sociedade, mas prezava com mais razão ainda o convívio da família — a condessa Mária, o irmão, a mãe e Sônia. Prezava o convívio com as pessoas diante das quais ela podia sair do quarto das crianças despenteada, de roupão, com o rosto alegre e a passos largos e mostrar uma fralda com uma mancha amarela, em vez de verde, e de quem ouviria um consolo ao dizer que agora o bebê estava muito melhor.
Natacha havia relaxado a tal ponto que suas roupas, seu penteado, suas palavras descuidadas, seus ciúmes — tinha ciúmes de Sônia, da preceptora, de toda e qualquer mulher, bonita ou feia — eram motivo rotineiro de piadas entre as pessoas próximas. A opinião geral era de que Pierre vivia sob o tacão da bota da esposa, e de fato era assim. Desde os primeiros dias do casamento, Natacha declarou suas exigências. Pierre admirou-se com as exigências da esposa, mas ficou lisonjeado com elas e acatou-as.
A submissão de Pierre consistia em que ele não se atrevia não só a cortejar, como nem se atrevia a falar com um sorriso a outra mulher, não se atrevia a ir a jantares no clube para passar o tempo, não se atrevia a gastar dinheiro com caprichos, não se atrevia a viajar por um tempo mais longo, exceto para tratar de negócios, entre os quais a esposa incluía seus interesses científicos, dos quais ela nada entendia, mas a que atribuía grande importância. Em troca, Pierre em sua casa tinha todo o direito de tomar as decisões que quisesse, não só quanto a si mesmo como também quanto a toda a família. Em casa, Natacha se colocava na posição de escrava do marido; e todos na casa andavam na ponta dos pés quando Pierre estava ocupado — lendo ou escrevendo em seu gabinete. Bastava Pierre demonstrar alguma predileção para que aquilo de que ele gostava sempre se realizasse. Bastava ele exprimir algum desejo para Natacha erguer-se de um salto e correr para satisfazê-lo.
A casa inteira era governada apenas pelos supostos pedidos do marido, ou seja, pelos desejos de Pierre, que Natacha se esforçava para adivinhar. A forma e o lugar de viver, os conhecidos, as relações, as ocupações de Natacha, a educação dos filhos — tudo não só se cumpria segundo a vontade expressa de Pierre, como também Natacha se empenhava para adivinhar o que poderia ser deduzido dos pensamentos de Pierre, expressos em conversas. E de fato adivinhava corretamente aquilo que constituía a essência dos desejos de Pierre e, depois de adivinhá-lo, Natacha se aferrava à escolha que havia feito. Quando o próprio Pierre queria mudar seu desejo, ela voltava contra ele sua artilharia.
Foi assim na época difícil, sempre lembrada por Pierre, após o nascimento do primeiro e debilitado bebê, quando eles tiveram de trocar de ama de leite três vezes e Natacha adoeceu de desespero; Pierre um dia comunicou a ela os pensamentos de Rousseau, com os quais ele estava plenamente de acordo, sobre a falta de naturalidade e os perigos de recorrer às amas de leite. No filho seguinte, apesar da opinião contrária da mãe, dos médicos e do próprio marido, que se opunham a que ela amamentasse, algo tido como inconcebível e prejudicial na época, Natacha fincou pé e desde então amamentou ela mesma seus filhos.
Com muita frequência, em momentos de irritação, ouvia-se o marido e a esposa discutirem demoradamente, e mais tarde, após a discussão, para sua alegria e surpresa, Pierre descobria não só nas palavras como também nas ações da esposa suas próprias ideias, contra as quais ela havia discutido. E Pierre não só encontrava aquelas ideias, como descobria também que a esposa as expurgara de tudo aquilo que era supérfluo e que o conflito e a discussão haviam se introduzido sem querer na expressão dos pensamentos de Pierre.
Após sete anos de matrimônio, Pierre sentia a consciência alegre, firme, de que não era uma pessoa ruim, e sentia isso porque se via refletido na esposa. Sentia que, dentro de si, tudo de bom e de ruim se misturava e se obscurecia mutuamente. Mas na esposa ele só se refletia no que era verdadeiramente bom: tudo o que não fosse totalmente bom era descartado. E tal reflexo não decorria do pensamento lógico, mas vinha por outro caminho — era um reflexo misterioso, imediato.
XI
Dois meses antes, Pierre, já hóspede dos Rostóv, recebera uma carta do príncipe Fiódor, convidando-o para ir a Petersburgo debater questões importantes, do interesse dos membros de uma sociedade em Petersburgo da qual Pierre era um dos principais fundadores.
Ao ler aquela carta, Natacha, que lia todas as cartas do marido, apesar de sofrer muito com a ausência do marido, propôs ela mesma que ele fosse a Petersburgo. A tudo o que dizia respeito aos assuntos intelectuais e abstratos do marido, ela atribuía uma enorme importância, mesmo sem compreendê-los, e sempre tinha medo de ser um empecilho para aquelas atividades do marido. Ao olhar tímido e interrogativo de Pierre após a leitura da carta, Natacha respondeu com o pedido de que ele viajasse para lá, porém determinasse com exatidão a data do regresso. E lhe foram dadas cinco semanas de férias.
Desde o momento em que se expirara o prazo das férias de Pierre, duas semanas antes, Natacha se encontrava num constante estado de horror, melancolia e irritação.
Deníssov, general da reserva, descontente com a situação atual, havia chegado naquelas duas últimas semanas e olhara para Natacha com surpresa e lástima, como se olhasse para um retrato irreconhecível da mocinha antes adorada. O olhar cansado, entediado, as respostas despropositadas e as conversas sobre os filhos eram tudo o que ele via e ouvia da feiticeira de outros tempos.
Naquela ocasião, Natacha andava sempre melancólica e irritadiça, sobretudo quando, para consolá-la, a mãe, o irmão ou a condessa Mária tentavam desculpar Pierre e inventar motivos para seu atraso.
— É tudo bobagem, tudo besteira — dizia Natacha —, todas essas especulações dele que não levam a nada, e toda aquela sociedade idiota — dizia a respeito dos mesmos assuntos em cuja alta relevância ela acreditava firmemente. E saía para o quarto das crianças a fim de amamentar seu único filho homem, Pétia.
Ninguém conseguia lhe dizer nada tão tranquilizador, tão razoável, quanto aquela pequena criatura de três meses de vida, quando estava no peito de Natacha e quando ela sentia o movimento de sua boca e o fungar de seu narizinho. Aquela criatura dizia: “Você se irrita, tem ciúmes, queria se vingar, você tem medo, mas eu sou ele. Eu sou ele...”. E não havia o que responder. Era mais do que verdade.
Naquelas duas semanas de inquietação, Natacha corria tantas vezes para junto do bebê atrás de consolo, tanto o cercava de atenções que o alimentou demais, e o bebê adoeceu. Natacha ficou horrorizada com a doença, no entanto era disso que ela precisava. Enquanto cuidava do bebê, suportava com mais facilidade a inquietação a respeito do marido.
Estava amamentando quando em frente da casa ouviu-se o barulho do trenó de Pierre, e a babá, que sabia como alegrar a patroa, atravessou a porta depressa e sem fazer barulho, com o rosto radiante.
— Chegou? — perguntou Natacha num sussurro ligeiro, com receio de mexer-se e acordar o bebê, que dormia.
— Chegou, sim, minha cara — sussurrou a babá.
O sangue abandonou o rosto de Natacha, e as pernas se moveram sem ela querer; mas era impossível erguer-se de um pulo e sair correndo. O bebê abriu os olhinhos de novo, lançou um olhar. “Você está aqui”, pareceu dizer e de novo mexeu os lábios como se desse uns beijinhos preguiçosos.
Tirando o peito cuidadosamente, Natacha embalou o menino, entregou-o à babá e seguiu a passos rápidos rumo à porta. Mas na porta ela parou, como se tivesse sentido uma censura da consciência por ter, em sua alegria, deixado de lado a criança depressa demais, e olhou para trás. A babá, de cotovelos erguidos, estava colocando o bebê no berço.
— Vamos, vá logo, minha cara, pode ficar sossegada, vá — sussurrou a babá, sorrindo com a familiaridade que se formara entre a babá e a patroa.
E Natacha correu para a entrada em passos ágeis.
Deníssov, com um cachimbo, saiu do gabinete para a sala e ali pela primeira vez reconheceu Natacha. Uma luz clara, radiante, alegre se derramava em jatos de seu rosto transfigurado.
— Ele chegou! — exclamou ela para Deníssov, enquanto corria, e Deníssov sentiu que ele mesmo estava entusiasmado com o regresso de Pierre, de quem não gostava muito. Ao entrar correndo no vestíbulo, Natacha viu um vulto alto, de casaco de pele, que tirava uma echarpe do pescoço.
“É ele! É ele! É verdade! Ele está aqui!”, exclamou para si mesma e, voando na direção de Pierre, abraçou-o, apertou-se a ele, a cabeça contra o peito, e depois se afastou um pouco e fitou o rosto de Pierre, avermelhado, feliz e coberto de geada. “Sim, é ele; feliz, satisfeito...”
E de repente se lembrou de todos os tormentos da espera que havia padecido nas últimas duas semanas: a alegria que reluzia em seu rosto se apagou; ela franziu as sobrancelhas, e um fluxo de censuras e de palavras rudes derramou-se sobre Pierre.
— Pois é, você está bem! Está muito alegre, divertiu-se... Mas e quanto a mim? Pelo menos devia mostrar consideração pelos filhos. Estou amamentando, meu leite se estragou. Pétia esteve à beira da morte. E você aí, todo alegre. Pois é, você está muito alegre.
Pierre sabia que não tinha culpa porque era impossível ter vindo antes; sabia que aquela explosão da parte dela não tinha sentido e sabia que dali a dois minutos aquilo iria passar; sabia, acima de tudo, que ele mesmo estava alegre e contente. Tinha vontade de sorrir, mas nem se atrevia a pensar naquilo. Fez uma cara assustada, sentida, e inclinou a cabeça.
— Não pude, por Deus! O que há com o Pétia?
— Agora está bem, vamos. Como você não se envergonha? Se pudesse ver como eu fico sem você, como eu sofri...
— Você está bem de saúde?
— Vamos, vamos — disse ela, sem soltar as mãos dele. E os dois entraram em seus aposentos.
Quando Nikolai e a esposa foram ao encontro de Pierre, ele estava no quarto das crianças e segurava na enorme palma da mão direita o bebê, que havia acordado, e fazia brincadeiras com a criança. No rosto largo do bebê, detinha-se um sorriso alegre na boca sem dentes. A tempestade havia passado já fazia algum tempo, um sol claro e alegre reluzia no rosto de Natacha, que fitava com ternura o marido e o filho.
— E você e o príncipe Fiódor conversaram tudo direitinho? — perguntou Natacha.
— Sim, foi ótimo.
— Olhe, ele segura (Natacha se referia à cabeça do bebê). Puxa, como ele me deixou assustada! E a princesa, você viu? É verdade que está apaixonada por aquele...?
— Sim, imagine só...
Naquele momento, entraram Nikolai e a condessa Mária. Pierre, sem tirar o filho da mão, curvou-se, beijou-os e respondeu às suas perguntas. Mas, estava claro, por mais interessante que fosse aquilo que tinham de conversar, toda a atenção de Pierre era absorvida pela criança de gorrinho, que balançava a cabeça.
— Que graça! — disse a condessa Mária, olhando para o bebê e brincando com ele. — Veja, isto é uma coisa que não compreendo, Nicolas — voltou-se para o marido —, como você não entende o encanto desses milagres graciosos.
— Não entendo, não consigo — disse Nikolai, olhando com frieza para a criança. — É um pedaço de carne. Vamos, Pierre.
— O importante é que ele é um pai muito carinhoso — disse a condessa Mária, justificando o marido. — Mas só depois de um ano, mais ou menos...
— Não, o Pierre sabe bancar a babá direitinho — disse Natacha. — Ele diz que sua mão parece feita sob medida para o traseiro do bebê. Olhem só.
— Ora, mas não é só para isso — disse Pierre, rindo e, de repente, segurou o bebê e entregou-o para a babá.
XII
Como em todas as famílias de verdade, em Montes Calvos viviam juntos vários mundos perfeitamente distintos, que ao mesmo tempo que mantinham, cada um deles, sua singularidade e faziam concessões uns aos outros, fundiam-se em um todo harmonioso. Todo fato que acontecia na casa era — de maneira alegre ou triste — igualmente importante para todos aqueles mundos; mas cada mundo tinha causas totalmente próprias, independentes dos demais, para alegrar-se ou para entristecer-se com um fato ou outro.
Desse modo a chegada de Pierre foi um fato alegre, importante, e assim se refletia em todos.
Os criados, os juízes mais leais dos senhores, porque julgam não por conversas e por expressões de sentimentos, mas pelas ações e pela forma de vida, estavam alegres com a chegada de Pierre, porque com sua presença ali, eles sabiam, o conde Nikolai ia parar de ir todo dia cuidar da propriedade e ficaria mais alegre e mais bondoso, e também porque todos eles iriam ganhar ótimos presentes nas festas.
As crianças e as preceptoras se alegravam com a chegada de Pierre porque ninguém os envolvia tanto como Pierre na vida comum. Só ele sabia tocar aquela escocesa no clavicórdio (a única música que sabia tocar), ao som da qual podiam dançar, como ele dizia, umas danças incríveis, e ele seguramente havia trazido presentes para todos.
Nikólienka, que agora era um menino de quinze anos, magro, de cabelos louros e encaracolados, de olhos lindos, inteligente e doentio, estava alegre porque o tio Pierre, como ele o chamava, era objeto de sua admiração e de um amor apaixonado. Ninguém incutira nele um amor especial por Pierre, e Nikólienka só o via raramente. Sua tutora, a condessa Mária, empregava todas as suas energias para obrigar Nikólienka a amar seu marido da mesma forma como ela o amava, e de fato Nikólienka amava o tio; só que o amava com um toque quase imperceptível de desprezo. Pierre, todavia, ele adorava. Não queria ser nem hussardo, nem herói da cavalaria, como o tio Nikolai, queria ser sábio, inteligente e bondoso, como Pierre. Em presença de Pierre, havia sempre em seu rosto um brilho alegre, e ele ficava vermelho e ofegante quando Pierre falava com ele. Não perdia nenhuma palavra dita por Pierre e depois, com Dessalles e até sozinho, recordava e analisava o significado de cada palavra de Pierre. A vida passada de Pierre, suas agruras em 1812 (sobre as quais, a partir das palavras que ouvira, Nikólienka havia composto uma imagem poética e confusa), suas aventuras em Moscou, a prisão, Platon Karatáiev (sobre o qual Pierre lhe contara), seu amor por Natacha (que o menino também amava de maneira especial) e sobretudo sua amizade pelo pai, de quem Nikólienka não se lembrava — tudo isso tornava Pierre, aos seus olhos, um herói e um santo.
Das palavras que irrompiam às vezes sobre seu pai e Natacha, da emoção com que Pierre lhe falava sobre o falecido, da ternura cuidadosa e devotada com que Natacha falava sobre ele, o menino, que apenas começava a adivinhar o que era o amor, ele formara a ideia de que o pai amava Natacha e, ao morrer, a deixara para o amigo. Aquele pai, do qual o menino não se lembrava, lhe parecia uma divindade que era impossível retratar e em quem ele nunca pensava sem o coração se abater, sem lágrimas de tristeza e sem emoção. E o menino estava feliz por causa da chegada de Pierre.
Os hóspedes estavam felizes com Pierre, porque era alguém que sempre animava e integrava as pessoas.
Os adultos da casa, para não falar da esposa, estavam alegres porque ele era um amigo que tornava a vida mais leve e mais tranquila.
As velhas ficavam contentes com os presentes que ele trazia e sobretudo porque Natacha ficaria alegre outra vez.
Pierre sentia tais diferenças na maneira como era visto pelos mundos distintos e se apressava em dar o que todos esperavam.
Pierre, o homem mais distraído e esquecido que havia, agora comprava tudo segundo uma lista preparada pela esposa, sem esquecer as encomendas da mãe e do irmão, o presente para o vestido de Belova, os brinquedos dos sobrinhos. No início de seu casamento, parecia-lhe terrível aquela exigência da esposa — que ele não esquecesse nada daquilo tudo que tinha de comprar, e ficara seriamente impressionado com a mágoa da esposa quando, em sua primeira viagem, ele esquecera tudo. Mas depois se habituou àquilo. Sabendo que Natacha não pedia nada para si, e para os outros só pedia quando ele mesmo se oferecia, Pierre agora descobria um prazer infantil, inesperado para ele mesmo, naquelas compras de presentes para todos da casa e nunca esquecia nada. Se merecia repreensões de Natacha, era só porque comprara demais e coisas muito caras. A todos os seus defeitos, na opinião da maioria — aparência desleixada, falta de vaidade —, ou qualidades, na opinião de Pierre, Natacha acrescentara mais uma, a avareza.
Desde o tempo em que Pierre começara a viver na casa grande, em família, o que demandava grandes despesas, ele, para sua surpresa, notara que estava gastando duas vezes menos do que antes e que seus negócios, tão confusos nos últimos tempos, em especial por causa das dívidas da primeira esposa, tinham começado a melhorar.
A vida se tornara mais barata porque sua existência estava bem delimitada: os luxos caríssimos, que constituem um tipo de vida em que tudo podia mudar a cada minuto, Pierre já não tinha e não queria ter. Sentia que sua forma de vida estava agora determinada de uma vez por todas, até a morte, que não estava a seu alcance mudá-la, e por isso aquela forma de vida era barata.
Com o rosto alegre e sorridente, Pierre ia separando os presentes.
— Olhe só isto! — disse ele, como um vendedor, enquanto desembrulhava um corte de chita. Natacha, segurando sobre os joelhos a filha mais velha e rapidamente desviando os olhos do rosto do marido para aquilo que ele mostrava, estava sentada à sua frente.
— É para Belova? Que ótimo. — E apalpou o tecido. — Custou um rublo, não foi?
Pierre disse o preço.
— É caro — disse Natacha. — Bem, as crianças vão ficar contentes, e maman também. Só que não precisava comprar isso para mim — acrescentava ela, incapaz de conter um sorriso, enquanto admirava um pente de ouro com pérolas, que acabara de entrar na moda.
— Adelle insistiu comigo: compre, compre — disse Pierre.
— Mas quando é que vou usar? — Natacha prendeu-o na trança. — Vai ficar para Máchenka usar; quem sabe nessa época tenha voltado a ficar na moda? Bem, vamos lá.
E, depois de separar os presentes, foram primeiro para o quarto das crianças e depois ao quarto da condessa.
A condessa, como de costume, estava com Belova, jogando paciência, quando Pierre e Natacha entraram no quarto com os embrulhos embaixo dos braços.
A condessa já tinha sessenta anos. Estava totalmente grisalha e usava uma touca com uma fita que contornava todo o seu rosto. Tinha o rosto enrugado, o lábio inferior murcho e os olhos turvos.
Depois das mortes seguidas do filho e do marido, ela se sentia uma criatura esquecida por acidente naquele mundo, sem propósito nem sentido. Comia, bebia, dormia, acordava, mas não vivia. A vida não lhe dava nenhuma sensação. Ela não precisava de nada da vida, exceto tranquilidade, e tal tranquilidade ela só poderia encontrar na morte. Mas, enquanto a morte não chegava, ela precisava viver, ou seja, empregar seu tempo, suas energias de vida. Nela se percebia no mais alto grau aquilo que se percebe em crianças muito pequenas e em pessoas muito velhas. Em sua vida não se avistava nenhum propósito exterior, só se percebia a necessidade de exercitar suas diversas tendências e capacidades. Ela precisava beliscar petiscos, cochilar, pensar um pouco, conversar um pouco, chorar um pouco, trabalhar um pouco, zangar-se um pouco etc. Só porque tinha estômago, tinha cérebro, tinha músculos, nervos e fígado. Tudo aquilo ela fazia sem ser estimulada por algo exterior, como fazem as pessoas em pleno vigor da vida, quando não se percebe, por trás do objetivo que almejam, o outro objetivo — de exercitar suas forças. Ela falava só porque tinha uma necessidade física de exercitar os pulmões e a língua. Chorava como um bebê, porque precisava assoar o nariz etc. Aquilo que para pessoas em pleno vigor da vida representava um objetivo, para ela era obviamente um pretexto.
Assim, de manhã, sobretudo se na véspera havia comido algo gorduroso, ela sentia necessidade de zangar-se e então escolhia o pretexto mais próximo que havia — a surdez de Belova.
Do outro lado do quarto, ela começava a falar algo em voz baixa.
— Hoje parece mais quente, minha querida — dizia ela num sussurro. E quando Belova respondia: “Pois é, ele chegou”, ela se irritava e exclamava: — Meu Deus, como é surda e burra.
Outro pretexto era o rapé, que ora lhe parecia seco, ora úmido, ora mal triturado. Depois daquelas irritações, a amargura se derramava em seu rosto, e suas criadas sabiam pelos primeiros sinais quando seria de novo a vez da surda Belova, e de novo o rapé estaria úmido, e quando o rosto da condessa ficaria tomado de amargura. E assim como ela precisava dar vazão à sua bile, também precisava às vezes exercitar as faculdades de pensar que lhe restavam, e para isso o pretexto era o jogo de paciência. Quando era preciso chorar, o pretexto era o falecido conde. Quando era preciso se preocupar, o pretexto era Nikolai e sua saúde; quando era preciso dizer coisas sarcásticas, o pretexto era a condessa Mária. Quando era preciso exercitar os órgãos vocais — isso acontecia em geral às sete horas, depois do repouso após a refeição, no quarto escuro —, então o pretexto eram os relatos sempre das mesmas histórias e sempre para os mesmos ouvintes.
Todos na casa compreendiam a situação da velha, embora ninguém jamais falasse sobre o assunto e todos fizessem o maior esforço possível para satisfazer as necessidades dela. Apenas num olhar ocasional e num meio sorriso tristonho que Nikolai, Pierre, Natacha e Mária dirigiam um ao outro, exprimia-se aquela compreensão mútua da situação da condessa.
Mas aqueles olhares, além disso, diziam também outra coisa: diziam que ela já havia cumprido seu papel na vida, que ela já não estava presente de fato naquilo que dela se via, que todos nós um dia seremos assim também, e que era com alegria que se resignavam à condessa, que se continham em favor daquela criatura outrora preciosa, outrora plena de vida, como nós, e agora digna de pena. Memento mori 13 — diziam aqueles olhares.
Só as pessoas totalmente maldosas e tolas, e as crianças pequenas, entre todos na casa, não compreendiam aquilo e evitavam a condessa.
XIII
Quando Pierre e a esposa entraram na sala, a condessa se achava naquele estado costumeiro em que precisava se ocupar com o trabalho intelectual do jogo de paciência, e por isso, apesar de ela, como de costume, dizer as palavras que sempre dizia quando Pierre ou o filho voltavam: “Já não era sem tempo, não era sem tempo, meu querido: estávamos cansados de tanto esperar. Que bom, graças a Deus”, e apesar de dizer também na hora da entrega dos presentes outras palavras de costume: “Não é o presente que tem valor, meu caro... obrigada por presentear a mim, uma velha...” — apesar disso, era visível que não lhe agradava a chegada de Pierre naquele minuto, porque a desviava do jogo ainda não terminado. Ela terminou seu jogo de paciência e só então foi tratar dos presentes. Os presentes eram um lindo estojo trabalhado para guardar baralhos, uma linda chávena azul-clara de Sèvres, com uma tampinha e a imagem de pastores estampada, e uma tabaqueira de ouro com um retrato do falecido conde, que Pierre havia encomendado a um miniaturista em Petersburgo. (Havia muito que a condessa desejava aquilo.) Agora ela não estava com vontade de chorar e por isso fitou o retrato com indiferença e ficou mais interessada no estojo para cartas.
— Muito obrigada, meu amigo, você me consola — disse ela, como sempre dizia. — Mas o melhor de tudo é que você tenha chegado. As coisas aqui não são as mesmas quando você está longe de casa; você devia repreender sua esposa. Como é que pode? Sem você, ela parece uma louca. Não enxerga mais nada, não compreende nada — disse a condessa as palavras de costume. — Veja, Anna Timoféievna — acrescentou —, que estojo o nosso filho trouxe para nós.
Belova elogiou os presentes e admirou-se com a chita que ganhara.
Embora Pierre, Natacha, Nikolai, Mária e Deníssov tivessem necessidade de conversar a respeito de muitas coisas, não tratavam daquilo diante da condessa, não porque quisessem esconder algo, mas porque ela perdia tanta coisa do que se dizia que, em sua presença, era necessário responder às perguntas fora de propósito que ela fazia e repetir de novo palavras que tinham sido ditas várias vezes: contar que fulano tinha morrido, sicrano tinha casado, coisas que ela não conseguia guardar na memória; mas eles, por costume, sentavam-se juntos na sala em torno do samovar para tomar chá, e Pierre respondia às perguntas da condessa, perguntas supérfluas para ela e sem interesse para ninguém: se o príncipe Vassíli tinha envelhecido, se a condessa Mária Alekséievna mandara cumprimentos e lembranças etc.
Tal conversa não interessava a ninguém, mas era necessária e se estendia durante todo o tempo do chá. Em torno da mesa redonda e do samovar, junto ao qual estava Sônia, reuniam-se todos os adultos da família. As crianças, os preceptores e as preceptoras já haviam tomado o chá, e suas vozes soavam no cômodo vizinho. Durante o chá, todos ficavam sentados em seus lugares de costume; Nikolai ficava junto à estufa, diante de uma mesinha, onde lhe serviam o chá. A velha cadela borzói Milka, com o rosto completamente grisalho, do qual apontavam ainda mais aguçados os olhos grandes e pretos, filha da primeira Milka, estava deitada perto dele numa poltrona. Deníssov, com os cabelos crespos, os bigodes e as costeletas grisalhos até a metade, num dólmã de general desabotoado, sentava-se ao lado da condessa Mária. Pierre sentava-se entre a esposa e a velha condessa. Falava daquilo que — ele sabia — podia interessar à mulher idosa e ser por ela compreendido. Falava de acontecimentos exteriores, sociais, e sobre as pessoas que no passado tinham formado o círculo de contemporâneos da velha condessa, que no passado tinham constituído um círculo real, vivo e distinto, mas que agora, na maior parte, estavam dispersas pelo mundo, assim como ela, e terminavam de viver os seus dias colhendo os últimos frutos daquilo que haviam semeado ao longo da vida. Mas eles, aqueles contemporâneos da velha condessa, pareciam aos seus olhos a única coisa séria e real no mundo. Pela animação de Pierre, Natacha percebia que a viagem tinha sido interessante, que ele tinha muito o que contar, mas que não se atrevia a dizê-lo em presença da condessa. Deníssov, por não ser membro da família, não compreendia os cuidados de Pierre e, além disso, como vivia interessado pelo que se passava em Petersburgo, mostrava-se descontente e a toda hora pedia a Pierre que falasse ora do que ocorrera com o regimento de Semiónov, ora sobre Araktchéiev, ora sobre a Sociedade Bíblica. Pierre às vezes cedia e passava a falar daquilo, mas Nikolai e Natacha sempre o faziam retornar à saúde do príncipe Ivan e da condessa Mária Antónovna.
— Ora, mas o que são todas essas loucuras desses tais Gossner e Tatárinova?14 — perguntou Deníssov. — Será possível que tudo isso continue?
— Claro que continua — exclamou Pierre. — E mais forte que nunca. A Sociedade Bíblica ocupa agora todo o governo.
— Como assim, mon cher ami? — perguntou a condessa, parando de tomar seu chá e, visivelmente, desejando encontrar um pretexto para irritar-se após a refeição. — O que é que tem o governo? Não compreendo.
— Pois é, sabe, maman — interveio Nikolai, ciente de que era preciso traduzir para a linguagem da mãe —, o príncipe Aleksandr Nikoláievitch Golítsin organizou uma sociedade, e assim dizem que tem um grande poder.
— Araktchéiev e Golítsin — falou Pierre com descuido —, agora eles controlam todo o governo. E que governo! Veem conspirações em todo canto, têm medo de tudo.
— Como assim? O príncipe Aleksandr Nikoláievitch tem alguma culpa? É um homem muito honrado. Eu o encontrei uma vez na casa de Mária Antónovna — disse a condessa, ofendida, e ainda mais ofendida porque todos ficaram em silêncio, prosseguiu: — Hoje em dia todo mundo se acha no direito de criticar. Uma sociedade evangélica... ora, que mal há nisso? — Levantou-se (todos se levantaram também) e, com a fisionomia severa, deslizou rumo à sua mesa na sala de repouso.
Em meio ao silêncio tristonho que se estabeleceu, ouviram-se no cômodo vizinho os risos e as vozes das crianças. Obviamente, havia uma agitação alegre entre as crianças.
— Pronto! Pronto! — ouviu-se a voz da pequena Natacha, mais alta que todo o alegre alvoroço. Pierre trocou olhares com a condessa Mária e com Nikolai (para Natacha ele olhava o tempo todo) e sorriu feliz.
— É uma música maravilhosa! — disse ele.
— É que a Anna Makárovna terminou as meias — disse a condessa Mária.
— Ah, vou ver — disse Pierre, rindo. — Sabe — disse ele, detendo-se na porta — por que eu gosto tanto dessa música? Porque são eles os primeiros a me avisar de que tudo está bem. Hoje, quando eu estava chegando, quanto mais perto da casa, maior o meu medo. Assim que entrei e ouvi o Andriucha dar risada, logo soube que tudo estava bem...
— Eu conheço, sim, conheço essa sensação — confirmou Nikolai. — Não posso ir lá, pois as meias são uma surpresa para mim.
Pierre entrou no quarto das crianças, e os risos e os gritos ressoaram ainda mais fortes.
— E então, Anna Makárovna — ouviu-se a voz de Pierre —, venha aqui no meio, ao meu comando. Um, dois, e quando eu disser três, você fica bem aqui. E pego você nos braços. Muito bem, um, dois... — exclamou a voz de Pierre; fez-se um silêncio. — Três! — E o brado de empolgação das vozes infantis ergueu-se no quarto.
— Duas, duas! — gritaram as crianças.
Eram as duas meias que, por um método secreto que só ela conhecia, Anna Makárovna tinha feito ao mesmo tempo com as agulhas e que ela, sempre com ar solene e diante das crianças, retirava uma de dentro da outra quando as meias ficavam prontas.
XIV
Pouco depois disso, as crianças vieram dar boa-noite. As crianças beijaram todos, os preceptores e as preceptoras fizeram uma reverência e saíram. Só restou Dessalles com seu pupilo. O preceptor, num sussurro, convidou seu pupilo para descer.
— Non, monsieur Dessalles, je demanderai à ma tante de rester 15 — respondeu Nikólienka Bolkónski, também num sussurro.
— Ma tante, permita que eu fique — disse Nikólienka, aproximando-se da tia. Seu rosto exprimia súplica, emoção e entusiasmo. A condessa Mária fitou-o e voltou-se para Pierre.
— Quando o senhor está aqui, ele não quer se afastar... — disse ela.
— Je vous le ramènerai tout à l’heure, monsieur Dessalles; bonsoir 16 — disse Pierre, estendendo a mão para o suíço e, sorrindo, voltou-se para Nikolai. — De fato, eu ainda não tinha falado com você. Marie, como ele está ficando parecido — acrescentou, voltando-se para a condessa Mária.
— Com meu pai? — perguntou o menino, muito vermelho, e olhando para Pierre de baixo para cima, com olhos extasiados e brilhantes. Pierre fez que sim com a cabeça e prosseguiu o relato interrompido pelas crianças. A condessa Mária estava bordando no bastidor; Natacha olhava para o marido sem desviar os olhos. Nikolai e Deníssov levantaram-se, pediram os cachimbos, fumaram, pegaram chá com Sônia, que estava tristonha e obstinadamente sentada ao lado do samovar, e faziam perguntas para Pierre. O menino doentio e de cabelos cacheados, com seus olhos brilhantes, estava sentado num canto, sem que ninguém desse por ele, e só de vez em quando, virando na direção de Pierre a cabeça encaracolada sobre o pescoço fino, que se projetava do colarinho dobrado, ele estremecia e sussurrava algo consigo mesmo, pelo visto experimentando um sentimento novo e forte.
A conversa girava sobre os mexericos a respeito de pessoas das altas esferas do governo, aquilo em que a maioria das pessoas vê o principal interesse da política interna. Deníssov, descontente com o governo por causa de seus fracassos no serviço militar, recebia com alegria a notícia de qualquer tolice que, na sua opinião, se fazia então em Petersburgo, e com expressões fortes e ríspidas fazia seus comentários às palavras de Pierre.
— Antes era preciso ser alemão, agora é preciso dançar com Tatárinova e com Madame Krüdener,17 ler... Eckartshausen18 e companhia. Ah! Se soltassem de novo o nosso bravo Bonaparte! Ele ia dar cabo de toda essa bobagem. Afinal, onde é que já se viu, dar ao soldado Schwartz o regimento de Semiónov?— gritou ele.
Nikolai, embora não tivesse o impulso de achar tudo ruim, como era o caso de Deníssov, julgava também inteiramente justo e relevante criticar o governo e analisar a nomeação de A para o cargo de ministro e de B para o de governador-geral de determinado lugar, analisar o que o soberano dissera, o que um ministro dissera, e achava todos esses assuntos muito importantes. Nikolai julgava necessário interessar-se por aquilo e fazia perguntas a Pierre. As perguntas feitas pelos dois interlocutores impediam que a conversa se afastasse daquele caráter habitual de mexericos das altas esferas do governo.
Mas Natacha, que conhecia todas as maneiras e os pensamentos do marido, percebia que Pierre havia muito tempo que desejava e não conseguia conduzir a conversa para outro rumo e expressar seu pensamento mais íntimo, o próprio motivo de sua viagem a Petersburgo: ouvir os conselhos de um novo amigo, o príncipe Fiódor; e Natacha ajudou-o com a pergunta: e como andava aquela questão com o príncipe Fiódor?
— Do que se trata? — perguntou Nikolai.
— O mesmo de sempre — disse Pierre, lançando um olhar à sua volta. — Todos estão vendo que as coisas andam tão mal que é impossível deixar que fiquem assim, e a obrigação de todas as pessoas honradas é reagir na medida de suas forças.
— O que podem fazer as pessoas honradas? — perguntou Nikolai, franzindo de leve as sobrancelhas. — O que se pode fazer?
— Veja, é o seguinte...
— Vamos para o meu escritório — disse Nikolai.
Natacha, que já adivinhara havia muito tempo que iriam chamá-la para amamentar, ouviu o chamado da babá e foi para o quarto das crianças. A condessa Mária foi com ela. Os homens seguiram para o escritório, e Nikólienka Bolkónski, sem que o tio notasse, foi até lá e ficou sentado, na sombra, junto à janela, diante da escrivaninha.
— Então, o que você vai fazer? — perguntou Deníssov.
— Sempre essas fantasias — disse Nikolai.
— Vejam — começou Pierre, sem se sentar, e andava pelo escritório, às vezes parava, ciciava entre os dentes e fazia gestos bruscos com as mãos, ao mesmo tempo que falava. — Vejam do que se trata. A situação em Petersburgo é a seguinte: o soberano não quer mais saber de nada. Está totalmente voltado para esse misticismo (agora Pierre não perdoava a ninguém o misticismo). Ele só procura a serenidade, e a serenidade só lhe podem dar essas pessoas sans foi ni loi, que destroem e sufocam tudo: Magnítski, Araktchéiev e tutti quanti...19 Você concorda em que, caso você não se interessasse pela propriedade e só quisesse a serenidade e mais nada, quanto mais cruel fosse seu administrador, mais depressa você alcançaria seu objetivo? — perguntou para Nikolai.
— Bem, mas para que você está dizendo isso? — perguntou Nikolai.
— Veja, tudo vai afundar. Nos tribunais, é a roubalheira, no Exército, só há a pancadaria: exercícios de marcha forçada, os assentamentos...20 Torturam o povo, sufocam a instrução. Aquilo que é jovem e honrado, eles aniquilam! Todos estão vendo que isso não pode continuar assim. A corda está esticada demais e vai ter de arrebentar — disse Pierre (da maneira como sempre falam as pessoas quando examinam as ações de qualquer governo, desde que passou a existir governo). — Eu só lhes disse uma coisa em Petersburgo.
— Para quem? — perguntou Deníssov.
— Bem, vocês sabem para quem — respondeu Pierre, olhando de soslaio, com ar revelador. — Para o príncipe Fiódor e todos eles. Fomentar a instrução e a beneficência, tudo isso é muito bom, está claro. É um belo propósito e tudo mais; porém, nas circunstâncias concretas, é preciso outra coisa.
Naquele momento, Nikolai notou a presença do sobrinho. Seu rosto se tornou sombrio; aproximou-se dele.
— O que está fazendo aqui?
— O que tem? Deixe-o ficar — disse Pierre, segurando Nikolai pelo braço, e prosseguiu: — Isso é pouco, e eu lhes disse: agora é preciso outra coisa. Enquanto ficam parados e esperam que essa corda esticada arrebente; enquanto todos esperam a revolta inevitável, é preciso que o povo esteja de mãos dadas, mais unido e em número maior, a fim de reagir à catástrofe geral. Tudo o que é jovem e forte está sendo atraído e corrompido. Um é seduzido por mulheres, outro por honrarias, um terceiro pela vaidade, pelo dinheiro, e eles passam para o outro lado. De pessoas independentes, livres, como os senhores e eu, já não resta ninguém. Eu digo o seguinte: ampliem o âmbito da sociedade; que o mot d’ordre21 não seja apenas a virtude, mas a independência e a ação.
Nikolai, que deixara de lado o sobrinho, moveu irritado a poltrona, sentou-se nela e, enquanto escutava Pierre, tossia descontente e franzia as sobrancelhas cada vez mais.
— Mas qual é a finalidade dessa ação? — exclamou ele. — E que relações vocês têm com o governo?
— Vou lhe dizer quais são! As relações de colaboradores. A sociedade pode deixar de ser secreta, se o governo autorizá-la. Ela não só não é inimiga do governo, como é uma sociedade de autênticos conservadores. Uma sociedade de gentlemen, no pleno sentido dessa palavra. Só queremos que amanhã não apareça um Pugatchóv22 para massacrar meus filhos e os seus, e que Araktchéiev não me mande trabalhar num assentamento militar... Só nos unimos, de braços dados, com o objetivo de alcançar o bem comum e a segurança geral.
— Certo; mas se uma sociedade é secreta é por consequência hostil e prejudicial e pode apenas trazer malefícios — disse Nikolai, elevando a voz.
— Por quê? Por acaso a Tugendbund,23 que salvou a Europa (na época, ainda não se atreviam a pensar que a Rússia tinha salvado a Europa), produziu algo prejudicial? A Tugendbund é uma liga da virtude, é o amor, a assistência mútua; é o que Cristo pregou na cruz.
Natacha, que entrara no meio da conversa, fitava o marido com alegria. Não estava alegre por causa daquilo que ele dizia. Nem mesmo lhe interessava, pois achava que tudo aquilo era extremamente simples e achava que já sabia de tudo aquilo havia muito tempo (Natacha tinha tal impressão porque conhecia a fonte de onde tudo aquilo provinha: a alma inteira de Pierre). Mas ela se alegrou, olhando para a figura animada e entusiasmada do marido.
Quem fitava Pierre ainda mais alegre e entusiasmado, e ali esquecido de todos, era o menino com o pescoço fino que se projetava do colarinho dobrado. Cada palavra de Pierre incendiava seu coração e, com um movimento nervoso dos dedos, ele quebrava — sem reparar nisso — os lacres e as penas da mesa do tio que lhe caíam nas mãos.
— Não é nada do que vocês estão pensando, mas vejam bem o que era a Tugendbund alemã e aquilo que estou propondo.
— Ora, meu amigo, a Tugendbund pode ser muito boa para aqueles comedores de salsicha. Só que eu não entendo essa história e não consigo nem pronunciar a palavra — ressoou a voz alta e decidida de Deníssov. — Tudo está corrompido e estragado, eu concordo, só que a Tugendbund eu não entendo e não gosto... Se é um bunt,24 que seja! Je suis votre homme! 25
Pierre sorriu, Natacha riu, mas Nikolai contraiu as sobrancelhas ainda mais e passou a mostrar para Pierre que não havia perspectiva de nenhuma revolta e que todo o perigo de que ele estava falando só existia em sua imaginação. Pierre mostrou o contrário e, como sua capacidade intelectual era mais forte e mais ágil, Nikolai sentiu-se num beco sem saída. Isso o deixou ainda mais irritado, pois no fundo de seu espírito, não por meio do raciocínio, mas de algo mais forte que o raciocínio, ele sabia da justeza inquestionável de sua opinião.
— Vou lhe dizer uma coisa — prosseguiu Nikolai, erguendo-se e, com movimentos nervosos, tentando colocar o cachimbo num canto, até que afinal o largou de lado. — Não posso provar para você. Diz que tudo vai muito mal e que vai haver uma revolta; mas não vejo nada disso; você diz que o juramento de lealdade é uma questão convencional, e a isso eu digo que você é meu melhor amigo, você sabe disso, mas se vocês criarem uma sociedade secreta e começarem a agir contra o governo, qualquer que seja, eu sei que meu dever é obedecer a ele. E se Araktchéiev me mandasse atacar vocês com um esquadrão e fazer todos em pedaços eu iria sem titubear nem um segundo. E você pode falar o que quiser.
Depois daquelas palavras, houve um silêncio incômodo. Natacha foi a primeira a falar, defendendo o marido e atacando o irmão. Sua defesa foi fraca e desajeitada, mas seu objetivo foi alcançado. A conversa reanimou-se outra vez e já não mais no tom hostil em que foram ditas as últimas palavras de Nikolai.
Quando todos se levantaram para jantar, Nikólienka Bolkónski aproximou-se de Pierre, pálido, com olhos brilhantes e radiosos.
— Tio Pierre... o senhor... não... Se o papai fosse vivo... ele concordaria com o senhor? — perguntou.
De repente Pierre entendeu que trabalho de sentimento e de pensamento complexo, especial, independente e forte devia ter se processado naquele menino durante sua conversa e, lembrando-se de tudo o que tinha dito, ficou aborrecido com o fato de o menino ter escutado. No entanto era preciso lhe dar uma resposta.
— Acho que sim — respondeu com relutância e saiu do escritório.
O menino inclinou a cabeça e pela primeira vez pareceu notar o que havia feito na mesa. Ficou vermelho e aproximou-se de Nikolai.
— Titio, me desculpe, fiz isso sem querer — disse ele, mostrando os lacres e as penas quebradas.
Nikolai, irritado, teve um sobressalto.
— Está bem, está bem — disse ele, jogando para debaixo da mesa os pedaços dos lacres e das penas. E, contendo obviamente com esforço a raiva que se erguera dentro dele, lhe deu as costas. — Você nem mesmo devia ter ficado aqui — disse ele.
XV
Durante o jantar, a conversa não tratou mais de política e de sociedades, mas, ao contrário, de algo muito mais agradável para Nikolai — as recordações do ano de 1812, evocadas por Deníssov, assunto em que Pierre se mostrava especialmente cordial e divertido. E os parentes se separaram com o ânimo mais amigável possível.
Depois do jantar, Nikolai trocou de roupa no escritório, deu ordens ao seu administrador que o esperava havia muito tempo, seguiu de roupão para o quarto de dormir e encontrou a esposa ainda na escrivaninha: estava escrevendo algo.
— O que está escrevendo, Mária? — perguntou Nikolai. A condessa Mária ruborizou-se. Temia que aquilo que estava escrevendo não fosse compreendido e aprovado pelo marido.
Gostaria de esconder dele o que estava escrevendo, mas ao mesmo tempo estava contente por ele ter chegado naquela hora e por ser necessário mostrar para ele.
— É um diário, Nicolas — respondeu, entregando para ele um caderno azulado, escrito com sua letra firme e grande.
— Um diário?... — falou Nikolai, com um toque de ironia, e segurou o caderno. Estava escrito em francês:
4 de dezembro. Hoje Andriucha, o filho mais velho, acordou e não quis trocar de roupa, e Mlle Louise mandou me chamar. Ele estava de birra e teimava. Tentei ameaçar, mas só serviu para ele ficar ainda mais irritado. Então me controlei, deixei-o de lado e fui com a babá cuidar das outras crianças, e disse ao Andriucha que eu não gostava dele. Andriucha ficou muito tempo em silêncio, como que surpreso; depois, só de camisolão, pulou na minha direção e desatou a chorar de tal maneira que demorei muito tempo para acalmá-lo. Era evidente que o que mais o afligia era ter me causado dor; depois, ao anoitecer, quando lhe entreguei seu boletim, ele desatou a chorar outra vez de um modo que causava pena, enquanto me dava beijos. Com ele, consegue-se tudo por meio da ternura.
— Que boletim é esse? — perguntou Nikolai.
— Passei a dar aos mais velhos, no fim do dia, uma nota de comportamento diária.
Nikolai lançou um olhar para os olhos radiantes que o fitavam e continuou a folhear e ler. O diário registrava tudo aquilo que, para a mãe, parecia digno de nota na vida dos filhos, expressava o caráter dos filhos ou indicava ideias gerais sobre métodos educacionais. Na maior parte, eram as bagatelas mais triviais; porém não pareciam assim nem à mãe nem ao pai, quando ele agora, pela primeira vez, lia aquele diário infantil.
No dia 5 de dezembro, estava escrito:
Mítia pulou por cima da mesa. Papai mandou não dar a ele a sobremesa. Não deram; mas ele ficou olhando para os outros de um jeito tão faminto e angustiado enquanto comiam! Acho que castigar, não dando um doce, desenvolve a gula. Falar com Nicolas.
Nikolai pôs de lado o caderno e olhou para a esposa. Os olhos radiantes o fitavam com ar indagador (ele aprovava ou não o diário?). Não podia haver dúvida não só da aprovação, como também do encantamento de Nikolai com sua esposa.
“Talvez não seja necessário fazer isso de maneira tão pedante; talvez nem precise ser feito”, pensou Nikolai; mas aquela tensão espiritual incansável e constante, que tinha por objetivo apenas o bem moral dos filhos — aquilo o deixava embevecido. Se Nikolai conseguisse tomar consciência de seu sentimento, veria que o fundamento principal de seu amor firme, terno e orgulhoso pela esposa sempre tivera como alicerce aquele sentimento de espanto diante da benevolência da esposa, diante daquele mundo moral elevado, quase inalcançável para Nikolai, no qual a esposa sempre vivia.
Nikolai se orgulhava por ela ser tão inteligente e boa, reconhecia sua insignificância diante dela no mundo espiritual e se alegrava ainda mais porque ela, com sua alma, não só pertencia a ele, como era até uma parte dele mesmo.
— Aprovo muito, muito mesmo, minha cara — disse ele com um ar sério. E, depois de um breve silêncio, acrescentou: — Hoje eu me comportei mal. Você não estava no escritório. Eu e Pierre discutimos, e eu me exaltei. Mas é impossível. É tão infantil. Não sei o que seria dele se Natacha não segurasse suas rédeas. Você nem imagina por que ele foi a Petersburgo... Eles organizaram...
— Sim, eu sei — disse a condessa Mária. — Natacha me contou.
— Bem, então você sabe — prosseguiu Nikolai, agitando-se com a lembrança da discussão. — Ele quer me convencer de que a obrigação de todo homem honrado é opor-se ao governo, quando o dever e o juramento de lealdade... Lamento que você não estivesse lá. Porque todos foram contra mim, Natacha, Deníssov... Natacha é cômica. Pois ela o mantém debaixo do tacão de sua bota, mas, quando a questão envolve algum raciocínio, ela não tem palavras próprias, pega as palavras dele e repete — acrescentou Nikolai, cedendo à tendência inexorável que nos incita a criticar as pessoas mais queridas e mais próximas. Nikolai esquecia que aquilo que ele dizia a respeito de Natacha podia ser dito, palavra por palavra, a respeito dele em relação à esposa.
— Sim, já notei isso — disse a condessa Mária.
— Quando eu lhe disse que o dever e o juramento estavam acima de tudo, ele quis provar sei lá o quê. É pena que você não estivesse lá; o que você diria?
— Para mim, você tem toda a razão. Foi o que eu disse para Natacha. Pierre diz que todos sofrem, se afligem, se depravam, e que nosso dever é ajudar o próximo. Claro, ele está certo — disse a condessa Mária —, mas esquece que temos outras obrigações mais imediatas, que Deus mesmo nos indicou, e esquece que podemos nos arriscar, mas não podemos pôr em risco nossos filhos.
— Pronto, aí está, foi isso mesmo o que eu disse para ele — cortou Nikolai, que de fato tinha a impressão de ter dito exatamente aquilo. — E ele insistiu: o amor ao próximo, o cristianismo, e tudo isso na frente de Nikólienka, que se enfiou ali no escritório e quebrou uma porção de coisas.
— Ah, sabe, Nicolas, Nikólienka muitas vezes me deixa aflita — disse a condessa Mária. — É um menino extraordinário. E receio que eu o deixe um pouco de lado, para cuidar de meus filhos. Todos nós temos filhos, todos temos familiares. Mas ele não tem ninguém. Está sempre sozinho com seus pensamentos.
— Bem, mas me parece que você não tem por que se recriminar. Tudo o que a mãe mais afetuosa pode fazer por seu filho você fez por ele. E eu, é claro, estou contente com isso. Ele é um menino formidável, formidável. Hoje mesmo ele escutou Pierre com tanta concentração. E imagine só: nós saímos de lá para jantar; quando olhei, vi que ele havia quebrado em pedacinhos todas as minhas coisas na escrivaninha, e na mesma hora ele me disse que tinha feito aquilo. Nunca vi Nikólienka dizer uma mentira. Um menino formidável, formidável! — repetiu Nikolai, que no fundo não gostava de Nikólienka, mas sempre estava pronto a admitir que era um menino formidável.
— Mesmo assim, não sou o mesmo que uma mãe — disse a condessa Mária. — Sinto que é assim, e isso me aflige. É um menino maravilhoso; mas tenho receios terríveis por ele. Vai ser bom para ele viver com mais gente.
— Mas já não falta muito tempo; no verão que vem, vou levá-lo para Petersburgo — disse Nikolai. — Sim, Pierre sempre foi e continua a ser um sonhador — prosseguiu, voltando a falar da conversa no escritório, que obviamente o havia perturbado. — Mas o que eu tenho a ver com tudo o que acontece lá, com o fato de Araktchéiev não ser bom e tudo o mais, o que eu tinha a ver com isso, quando me casei e estava com tantas dívidas que pouco faltava para me jogarem na cadeia, e minha mãe não conseguia enxergar nem compreender nada disso. E depois, você, os filhos, os negócios. Por acaso é para o meu prazer que trabalho de manhã até a noite no escritório e cuido dos negócios? Não, eu sei que devo trabalhar, acalmar a mamãe, pagar minha dívida com você e não deixar os filhos numa penúria tão grande como aquela em que eu estive.
A condessa Mária teve vontade de dizer que não é só com o pão que o homem mata sua fome, que Nikolai atribuía uma importância excessiva àqueles negócios; mas sabia que dizer aquilo era desnecessário e inútil. Ela apenas pegou a mão do marido e beijou-a. Nikolai tomou o gesto da esposa como uma aprovação e uma confirmação de seus pensamentos e, após refletir um pouco em silêncio, continuou a expressar seus pensamentos em voz alta.
— Sabe, Mária — disse ele —, hoje chegou Iliá Mitrofánitch (era o administrador das finanças), veio da aldeia de Tambóv e contou que já estão oferecendo oitenta mil pela floresta. — E Nikolai, com o rosto animado, passou a falar da possibilidade de comprar Otrádnoie dali a muito pouco tempo. — Só mais dez anos de vida e vou deixar os filhos em excelente situação.
A condessa Mária escutava o marido e compreendia tudo o que dizia. Ela sabia que, quando ele ficava pensando assim em voz alta, de vez em quando lhe perguntava o que estava dizendo e se irritava ao notar que a esposa estava pensando em outra coisa. Mas ela fazia um grande esforço para escutá-lo, pois não tinha o menor interesse pelo que o marido estava dizendo. Ela o fitava e, mais do que pensar em outra coisa, ela sentia outra coisa. Sentia um amor terno e submisso por aquele homem que nunca entenderia tudo o que ela entendia e parecia que por isso mesmo ela o amava com uma ternura ainda mais forte e com um toque de paixão. Além de tal sentimento que a absorvia por completo e a impedia de penetrar nos detalhes dos planos do marido, em sua cabeça moviam-se outros pensamentos, que nada tinham a ver com o que ele dizia. Ela pensava no sobrinho (o relato do marido sobre o entusiasmo do menino ao ouvir a explanação de Pierre impressionara a condessa Mária), recordou determinados traços do caráter terno e sensível do sobrinho; e ela, ao pensar no sobrinho, pensava também nos próprios filhos. Não comparava o sobrinho com os filhos, mas comparava seu sentimento por eles e, com tristeza, descobria que faltava algo em seu sentimento por Nikólienka.
Às vezes lhe vinha a ideia de que a diferença decorria da idade; mas sentia-se culpada diante dele e, em sua alma, prometia se corrigir e fazer o impossível — ou seja, naquela vida, amar o marido, os filhos, Nikólienka e todos os próximos, assim como Cristo amava a humanidade. A alma da condessa Mária sempre aspirava ao infinito, ao eterno e ao perfeito, e por isso jamais conseguia ficar tranquila. Em seu rosto surgiu a expressão severa do profundo e enraizado sofrimento da alma oprimida pelo corpo. Nikolai estava observando a esposa.
“Meu Deus! O que será de nós se ela morrer, o que sempre me parece que vai acontecer quando ela fica com o rosto assim?”, pensou ele e, pondo-se diante do ícone, começou a fazer as orações da noite.
XVI
Natacha, ao ficar a sós com o marido, também conversou como só uma esposa e um marido conversam, ou seja, com uma clareza e uma rapidez extraordinárias, enquanto davam a conhecer seus pensamentos um para o outro, de maneira contrária a todas as regras da lógica, sem ajuda de juízos, de deduções e de conclusões, mas de um modo totalmente especial. Natacha estava a tal ponto habituada a conversar com o marido daquele modo que, para ela, um sinal seguro de que algo não estava bem entre ambos era o fato de os pensamentos de Pierre seguirem um caminho lógico. Quando ele começava a argumentar, a falar de maneira raciocinada e tranquila, e quando ela, induzida pelo exemplo do marido, começava a fazer o mesmo, Natacha sabia que era certo acabarem brigando.
A partir do momento em que ficaram a sós e Natacha, com os olhos muito abertos e felizes, aproximou-se dele sem fazer barulho e, de repente, agarrou depressa sua cabeça, apertou-a contra o peito e disse: “Agora é todo, todo meu, meu! Não vai fugir!” — a partir desse momento teve início aquela conversa contrária a todas as leis da lógica, contrária porque se falava ao mesmo tempo sobre os assuntos mais diversos. Aquela discussão concomitante de muitos assuntos não prejudicava a clareza do entendimento, mas, ao contrário, era um sinal seguro de que eles se compreendiam mutuamente.
Assim como num sonho tudo é enganoso, absurdo e contraditório, exceto o sentimento que guia o sonho, também naquele diálogo, contrário a todas as regras da razão, a coerência e a clareza não estavam nas palavras, mas apenas no sentimento que as guiava.
Natacha falava com Pierre sobre o modo de vida do irmão, sobre como ela sofria e não conseguia viver sem o marido, sobre como amava Mária ainda mais, e sobre como Mária era melhor do que ela em todos os aspectos. Ao dizer aquilo, Natacha reconhecia sinceramente que via a superioridade de Mária, porém, ao mesmo tempo, ao dizer aquilo, exigia de Pierre que a preferisse a Mária e a todas as outras mulheres, e então mais uma vez, em especial depois de ele ter visto muitas mulheres em Petersburgo, queria que repetisse aquilo para ela.
Em resposta às palavras de Natacha, Pierre lhe contou como era insuportável para ele estar com as damas em jantares e em festas de Petersburgo.
— Eu desaprendi completamente a conversar com as damas — disse ele —, é simplesmente maçante. Ainda mais porque eu estava muito ocupado.
Natacha o observou atentamente e prosseguiu:
— Marie é tão encantadora! — disse. — Como ela sabe compreender as crianças. Parece até enxergar a alma delas. Ontem, por exemplo, Mítienka começou com uma birra...
— Ah, e como ele é parecido com o pai — cortou Pierre.
Natacha entendeu por que Pierre tinha feito aquela observação sobre a semelhança entre Mítienka e Nikolai: incomodava-o a recordação da discussão com o cunhado e queria saber a opinião de Natacha sobre o assunto.
— Nikólienka tem a fraqueza de só concordar com aquilo que agrada a todos. Mas eu compreendo que você dá muito valor ao que pode ouvrir une carrière 26 — disse, repetindo as palavras ditas por Pierre certa vez.
— Não, o principal é que para Nikolai — disse Pierre — as ideias e os argumentos são uma diversão, quase um passatempo. Veja, ele está formando uma biblioteca e estabeleceu a regra de não comprar um livro novo sem haver terminado o livro anterior, e lá vão Sismondi, e Rousseau, e Montaigne — acrescentou Pierre com um sorriso. — De resto, você sabe como eu o... — Pierre fez menção de atenuar suas palavras; mas Natacha o interrompeu, dando a entender que aquilo não era necessário.
— Então você está dizendo que para ele as ideias são uma diversão...
— Sim, mas para mim tudo o mais é que é diversão. O tempo todo em Petersburgo, eu parecia ver tudo como num sonho. Quando uma ideia me interessa, tudo o mais vira diversão.
— Ah, que pena que eu não estava presente na hora em que você encontrou as crianças — disse Natacha. — Qual delas mais se alegrou? Liza, não foi?
— Sim — respondeu Pierre e continuou aquilo que o preocupava. — Nikolai diz que não devemos pensar. Mas eu não consigo. Sem falar que em Petersburgo eu sentia (para você eu posso dizer) que sem mim tudo aquilo se desintegraria, pois cada um puxava para seu lado. Mas consegui unir todos, e depois minha ideia é tão simples e tão clara. Pois eu não digo que temos de reagir a isso e àquilo. Podemos nos enganar. O que digo é: vamos nos unir, de braços dados, as pessoas que amam o bem, e que exista só uma bandeira: a da virtude atuante. O príncipe Serguei é um homem honrado e inteligente.
Natacha não tinha dúvida de que a ideia de Pierre era uma grande ideia, mas só uma coisa a perturbava. Era o fato de ele ser seu marido. “Será possível que esse homem tão importante e necessário para a sociedade seja ao mesmo tempo meu marido? Por que isso aconteceu?” Teve vontade de exprimir ao marido sua dúvida. “Afinal quem são essas pessoas capazes de decidir se de fato ele é tão mais inteligente do que todos?”, perguntava-se Natacha e, na imaginação, selecionava as pessoas mais respeitadas por Pierre. A julgar pelos relatos do marido, nenhuma daquelas pessoas ele respeitava mais do que Platon Karatáiev.
— Sabe no que estou pensando? — disse ela. — Em Platon Karatáiev. O que ele iria achar? Aprovaria você agora?
Pierre não ficou nem um pouco surpreso com a pergunta. Compreendia os passos do pensamento da esposa.
— Platon Karatáiev? — disse ele e pensou um pouco, tentando sinceramente deduzir o juízo de Karatáiev a respeito daquele assunto. — Ele não compreenderia, mas, na verdade, acho que aprovaria, sim.
— Amo você tremendamente! — exclamou Natacha de repente. — Tremendamente. Tremendamente!
— Não, ele não aprovaria — disse Pierre, depois de pensar mais um pouco. — O que ele aprovaria é a nossa vida em família. Ele queria tanto ver em tudo a bondade, a felicidade, a tranquilidade, e eu com orgulho lhe mostraria a nossa vida. Veja, você sempre fala do tempo em que ficamos afastados. Mas não pode imaginar que sentimento especial tenho por você depois de uma separação...
— Ora, veja só... — Natacha começou a dizer.
— Não, não é isso. Eu nunca vou deixar de amar você. E não é possível amar mais; só que isso é diferente... Bem, sim... — Não terminou de falar porque os olhares de ambos, ao se encontrar, disseram o resto.
— Quanta tolice — falou Natacha de repente — falam sobre a lua de mel e que o tempo melhor é no início. Ao contrário, agora é muito melhor. E se pelo menos você não viajasse tanto... Lembra como nós brigávamos? E eu sempre era a culpada. Sempre eu. E por que brigávamos? Eu nem lembro mais.
— Era sempre o mesmo motivo — disse Pierre, sorrindo. — Ciúmes...
— Não fale, não consigo suportar — exclamou Natacha. E um brilho frio, cruel, acendeu-se em seus olhos. — Você a viu? — acrescentou, após um breve silêncio.
— Não, mas se visse nem reconheceria.
Ficaram em silêncio.
— Ah, sabe? Enquanto você estava conversando no escritório, observei você — começou Natacha, obviamente tentando afastar a nuvem que surgira. — Pois é, vocês dois são iguaizinhos, feito duas gotas de água, você e o menino. (Ela chamava assim o filho.) Ah, está na hora de ir vê-lo... Está na hora... Mas dá pena sair.
Ficaram em silêncio alguns segundos. Depois, de repente, ao mesmo tempo, voltaram-se um para o outro e começaram a falar algo. Pierre começou com ardor e satisfação; Natacha, com um sorriso feliz e tranquilo. Como tinham começado a falar ao mesmo tempo, os dois pararam e deram a vez um ao outro.
— Não, o que você acha? Diga, diga.
— Não, fale você, eu digo tanta bobagem — disse Natacha.
Pierre falou o que havia começado. Era a continuação de seus raciocínios satisfeitos com seu sucesso em Petersburgo. Naquele momento, tinha a impressão de que fora chamado a dar um rumo novo a toda a sociedade russa e ao mundo inteiro.
— Eu só queria dizer que todas as ideias que têm consequências enormes são sempre simples. Toda a minha ideia se resume em que, se as pessoas sórdidas estão unidas e constituem uma força, as pessoas honradas precisam fazer o mesmo. Veja como é simples.
— Sim.
— E você, o que queria dizer?
— Eu? Era uma bobagem.
— Não, fale assim mesmo.
— Mas não é nada, bobagens — disse Natacha, ainda mais radiante com um sorriso no rosto. — Eu só queria falar sobre o Pétia: hoje a babá veio tomá-lo de mim, ele começou a rir, semicerrou os olhos e agarrou-se a mim... com certeza achou que estava se escondendo. É tremendamente meigo. Ouça, ele está gritando. Bem, até logo! — E saiu do quarto.
Enquanto isso, no térreo, nos aposentos de Nikólienka Bolkónski, em seu quarto, como sempre, ardia uma lamparina (o menino tinha medo do escuro, e não conseguiam livrá-lo daquela fraqueza). Dessalles dormia profundamente com seus quatro travesseiros, e seu nariz aquilino emitia sons de roncos ritmados. Nikólienka, que acabara de acordar, suando frio, com os olhos muito abertos, estava sentado em sua cama e olhava para a frente. Um sonho terrível o havia despertado. No sonho, via Pierre e a si mesmo de capacetes — como os que vinham desenhados em sua edição de Plutarco. Ele e o tio marchavam à frente de um enorme exército. Tal exército era formado por linhas brancas oblíquas, que enchiam o ar, à semelhança das teias de aranha que flutuam no outono e que Dessalles chamava de le fil de la Vierge.27 À frente estava a glória, igual àqueles fios, apenas um pouco mais compacta. Eles — Nikólienka e Pierre — precipitavam-se com agilidade e alegria, chegavam cada vez mais perto do objetivo. De repente os fios que os movimentavam começaram a enfraquecer, a emaranhar-se; ficou difícil andar. E o tio Nikolai Ilitch parou na frente deles, numa atitude terrível e severa.
— Vocês fizeram isso? — disse ele, apontando para os lacres e para as penas quebrados. — Amo vocês, mas Araktchéiev me deu ordens, e vou matar o primeiro que avançar. — Nikólienka virou-se para Pierre; mas Pierre não estava ali. Pierre era seu pai, o príncipe Andrei, e o pai não tinha imagem nem forma, porém era ele, e ao vê-lo Nikólienka sentiu a fraqueza do amor: sentiu-se sem forças, sem ossos, fluido. O pai o acariciava e tinha pena dele. Mas o tio Nikolai Ilitch chegava cada vez mais perto deles. Um horror dominou Nikólienka, e ele acordou.
“O pai”, pensou, “o pai (apesar de haver em casa dois retratos bem parecidos com ele, Nikólienka nunca imaginava o príncipe Andrei em forma humana), o pai estava comigo e me fazia carinhos. Ele me aprovava, ele aprovava o tio Pierre. O que ele disser para fazer, eu farei. Mucius Scaevola queimou a mão no fogo. Então por que a mesma coisa não pode acontecer na minha vida? Eu sei, eles querem que eu estude. E vou estudar. Mas um dia vou parar; e aí vou agir. Só peço a Deus uma coisa: que aconteça comigo o que acontece com as pessoas nos livros de Plutarco, e aí vou agir do mesmo jeito. Vou agir ainda melhor. Todos vão me reconhecer, todos vão me admirar, todos vão ficar deslumbrados comigo.” E de repente Nikólienka sentiu os soluços que apertavam seu peito e desatou a chorar.
— Êtes-vous indisposé? 28 — ouviu-se a voz de Dessalles.
— Non — respondeu Nikólienka e deitou-se no travesseiro. “Ele é bondoso e gentil, eu gosto dele”, pensou a respeito de Dessalles. “E o tio Pierre! Ah, que homem incrível! E o pai? O pai! O pai! Sim, eu farei coisas que até ele iria admirar...”
1 Referência à Santa Aliança, formada por Prússia, Áustria e Rússia, após o fim do império napoleônico, em 1815.
2 Fótius (1792-1838) foi diretor do convento de Nóvgorod e destacado militante religioso da Igreja ortodoxa.
3 Em 1820, o regimento de Semiónov recusou-se a obedecer às ordens de seu comandante alemão, Schwartz, em protesto contra sua brutalidade. Por isso o tsar desfez o regimento, dispersando seu contingente em outras tropas.
4 As tropas russas comandadas por Suvórov entraram na Itália em 1799. Napoleão tinha ido para o Egito no ano anterior.
5 Referência à esquadra inglesa, no Mediterrâneo, sob o comando do almirante Nelson.
6 Sl 113 (Bíblia ortodoxa; 115 da Bíblia ocidental).
7 Lc 19,26.
8 Túnica usada por turcos, mongóis e tártaros.
9 Era costume na Rússia, após as refeições, as pessoas agradecerem a dona da casa ou a mulher mais velha da família, beijando sua mão.
10 Francês: “senhores e senhoras”.
11 Francês: “Cara Marie, ele está dormindo, eu acho; está tão cansado”.
12 Referência à personagem do romance homônimo de Sophie Cottin, publicado em 1801.
13 Latim: “Lembrem-se da morte”.
14 Johannes Gossner (1773-1858) foi um padre e místico alemão. Expulso de Munique, fundou um grupo em Petersburgo ligado à Sociedade Bíblica. Também foi banido da Rússia. Ekaterina Filippovna Tatárinova (1783-1856) fundou uma seita mística em Petersburgo em 1817. Teve certa influência sobre o tsar Alexandre i.
15 Francês: “Não, senhor Dessalles, vou pedir à minha tia que me deixe ficar”.
16 Francês: “Vou devolvê-lo ao senhor daqui a pouco, senhor Dessalles; boa noite”.
17 Juliane Krüdener (1764-1824) foi uma mística russa, com duradoura influência sobre o tsar Alexandre i.
18 Karl von Eckartshausen (1752-1803), escritor místico traduzido e muito lido na Rússia.
19 Francês: “sem fé nem lei”; italiano: “todos do mesmo tipo”.
20 Uma das reformas de Araktchéiev obrigava os soldados a cultivar a terra vizinha aos acampamentos, para que as tropas se sustentassem. Esse regime, vizinho da escravidão, foi causa de revoltas no Exército.
21 Francês: “palavra de ordem”.
22 Líder cossaco de uma grande revolta camponesa no século xviii.
23 Liga da Virtude, associação criada na Alemanha em 1808 para educar a juventude no espírito das tradições nacionais; teve influência política em vários países. Proibida por Napoleão, continuou a existir clandestinamente.
24 Trocadilho com Bund (“Liga” em alemão) e bunt (“revolta” em russo).
25 Francês: “Estou com vocês”.
26 Francês: “abrir um caminho”.
27 Francês: “o fio da Virgem”.
28 Francês: “O senhor está se sentindo mal?”.
I
O objeto da história é a vida dos povos e da humanidade. Captar e explicar de forma direta, por meio de palavras — descrever a vida não só da humanidade como também de um único povo é tido como algo impossível.
Todos os historiadores antigos empregaram o mesmo método para isso, descrever e captar algo que parece inapreensível — a vida de um povo. Eles descreveram a atividade de pessoas individuais que guiavam um povo; e tal atividade, para eles, exprimia a realidade de todo um povo.
Às perguntas sobre de que forma pessoas individuais forçavam um povo a agir conforme a vontade delas e o que guiava a própria vontade de tais pessoas, os antigos respondiam: à primeira pergunta — com o reconhecimento da vontade de uma divindade, que submete os povos à vontade de uma pessoa escolhida; à segunda pergunta — com o reconhecimento da mesma divindade, que guia a vontade dessa pessoa escolhida para um objetivo determinado.
Para os antigos, essas perguntas se resolviam por meio da fé na participação direta da divindade nos assuntos da humanidade.
A nova ciência da história nova, em sua teoria, rejeitou as duas teses.
Tem-se a impressão de que, ao rejeitar a crença dos antigos na submissão das pessoas à divindade e num objetivo determinado rumo ao qual os povos são conduzidos, a história nova deveria investigar não as manifestações do poder, mas os fatores que o constituem. No entanto a história nova não fez isso. Ao rejeitar em teoria a opinião dos antigos, na prática ela os acompanha.
No lugar de pessoas dotadas de um poder divino e diretamente guiadas pela vontade de uma divindade, a história nova colocou ou heróis dotados de faculdades extraordinárias, não humanas, ou simplesmente pessoas de atributos os mais diversos, desde monarcas até jornalistas, que conduzem as massas. No lugar dos antigos objetivos dos povos agradáveis a uma divindade, o povo judeu, o grego, o romano, que os antigos concebiam como o objetivo da marcha da humanidade inteira, a história nova colocou seus próprios objetivos — o bem do povo francês, alemão, inglês e, em sua suprema abstração, o bem da civilização de toda a humanidade, palavras com o que em geral se designam os povos que ocupam um pequeno recanto a noroeste do grande continente.
A história nova rejeitou as crenças dos antigos, sem pôr em seu lugar um novo conceito, e a lógica da situação forçou os historiadores, que supostamente teriam rejeitado o poder divino dos reis e o fatum dos antigos, a chegar por outro caminho ao mesmo destino: o reconhecimento de que: 1) os povos são guiados por pessoas individuais; e 2) existe um objetivo conhecido rumo ao qual os povos e a humanidade se movimentam.
Em todas as obras dos novos historiadores, de Gibbon a Buckle,1 a despeito do aparente desacordo entre eles e da aparente renovação de pontos de vista, na base repousam essas duas teses antigas e inevitáveis.
Em primeiro lugar, o historiador descreve a atividade de pessoas individuais que, na sua opinião, guiaram a humanidade (um considera assim apenas os monarcas, os comandantes militares, os ministros; o outro — além de monarcas e oradores — sábios, reformadores, filósofos e poetas). Em segundo lugar, o objetivo rumo ao qual a humanidade é conduzida é conhecido pelo historiador (para um, o objetivo é a grandeza dos soberanos romanos, espanhóis e franceses; para o outro, é a liberdade, a igualdade, um conhecido tipo de civilização de um pequeno recanto do mundo chamado Europa).
Em 1789, a fermentação se levanta em Paris; ela cresce, transborda e se exprime por meio do movimento dos povos do Ocidente para o Oriente. Várias vezes, esse movimento se dirige para o Oriente, entra em choque com um movimento contrário, do Oriente para o Ocidente; em 1812, ele alcança seu limite máximo — Moscou —, e com uma simetria notável ocorre um movimento contrário, do Oriente para o Ocidente, carregando consigo os povos centrais, exatamente como ocorrera no primeiro movimento. O movimento contrário alcança, no Ocidente, o ponto de partida do primeiro movimento — Paris — e se aquieta.
Naquele período de vinte anos, uma enorme quantidade de campos não é lavrada; casas são incendiadas; a direção do comércio muda; milhões de pessoas empobrecem, enriquecem, migram, e milhões de pessoas cristãs, que professam a lei do amor ao próximo, assassinam umas às outras.
O que tudo isso quer dizer? Por que isso aconteceu? O que obrigou tais pessoas a incendiarem casas e a assassinarem seus semelhantes? Quais as causas de tais acontecimentos? Que força obrigou as pessoas a se comportar de tal forma? Aí estão perguntas espontâneas, inocentes e totalmente legítimas que a humanidade se propõe, ao deparar com os monumentos e as tradições do período do movimento que passou.
Para a solução de tais perguntas, o bom senso da humanidade se volta para a ciência da história, que tem por objetivo o autoconhecimento dos povos e da humanidade.
Se a história retivesse o ponto de vista dos antigos, diria: a divindade, em prêmio ou recompensa a seu povo, deu a Napoleão o poder e guiou a vontade dele a fim de que fossem alcançados os objetivos divinos. E a resposta seria completa e clara. Seria possível acreditar ou não acreditar no significado divino de Napoleão; mas, para quem acreditasse nisso, tudo estaria entendido em toda a história daquele tempo, e não poderia haver nenhuma contestação.
Porém a história nova não pode responder dessa forma. A ciência não reconhece o ponto de vista dos antigos sobre a participação direta de uma divindade nos assuntos da humanidade e por isso tem de dar outra resposta.
A história nova, ao responder a tais perguntas, diz: vocês querem saber o que significa esse movimento, por que aconteceu e que força produziu tais fatos? Escutem:
“Luís XIV era muito orgulhoso e arrogante; tinha tais e tais amantes e tais e tais ministros e governou mal a França. Os herdeiros de Luís também eram fracos e também governaram mal a França. E tinham tais e tais favoritos e tais e tais amantes. Além disso, algumas pessoas escreveram livros naquela época. No final do século XVIII, em Paris, reuniram-se duas dezenas de pessoas que começaram a dizer que todas as pessoas eram iguais e livres. Com isso, em toda a França as pessoas passaram a furar e trucidar umas às outras. Essas pessoas mataram os reis e muitos outros. Ao mesmo tempo, na França, havia um homem genial — Napoleão. Ele derrotou todos e em toda parte, ou seja, assassinou muita gente, porque ele era muito genial. E por algum motivo foi assassinar os africanos e os assassinou tão bem e se mostrou tão astuto e inteligente que, ao chegar de volta à França, mandou que todos obedecessem a ele. E todos obedeceram. Depois de se fazer imperador, ele foi de novo assassinar o povo na Itália, na Áustria e na Prússia. E lá assassinou muitos. Na Rússia, porém, havia o imperador Alexandre, que resolveu restaurar a ordem na Europa e por isso travou guerra contra Napoleão. Mas em 1807 ele de repente ficou amigo de Napoleão, só que em 1811 brigou outra vez, e de novo eles começaram a assassinar muita gente. E Napoleão levou seiscentas mil pessoas para a Rússia e conquistou Moscou; depois, de repente, ele fugiu de Moscou, e aí o imperador Alexandre, com a ajuda dos conselhos de Stein e de outros, uniu a Europa para a resistência ao infrator de sua tranquilidade. Todos os aliados de Napoleão de repente viraram seus inimigos; e tal resistência marchou contra as novas forças que Napoleão reunira. Os aliados derrotaram Napoleão, invadiram Paris, obrigaram Napoleão a renunciar ao trono e mandaram-no para a ilha de Elba, sem privá-lo do título de imperador e demonstrando todo o respeito por ele, e, no entanto, cinco anos antes e um ano depois disso, todos o consideravam um bandido fora da lei. Quem passou a reinar foi Luís XVIII, de quem até então os franceses e os aliados apenas escarneciam. Napoleão, derramando lágrimas diante de sua velha guarda, renunciou ao trono e partiu para o exílio. Depois, engenhosos políticos e diplomatas (em especial Talleyrand, que conseguira sentar-se antes de qualquer um numa determinada poltrona e com isso ampliara as fronteiras da França) confabularam em Viena e mediante tais conversações deixaram os povos felizes ou infelizes. De repente os diplomatas e os monarcas ficaram à beira de brigar uns com os outros; já estavam prontos para ordenar a seus exércitos que assassinassem uns aos outros; mas naquele momento Napoleão chegou à França com um batalhão, e os franceses, que o odiavam, na mesma hora se submeteram a ele. Mas os monarcas aliados se zangaram com isso e foram de novo guerrear contra os franceses. E derrotaram o genial Napoleão e o mandaram para a ilha de Santa Helena, reconhecendo de repente que era um bandido. E lá, exilado, separado dos que eram queridos ao seu coração e de sua adorada França, morreu uma morte lenta naquele rochedo e legou à posteridade seus grandes feitos. Mas na Europa ocorreu uma reação, e todos os soberanos passaram outra vez a oprimir seus povos.”
Seria fútil pensar que isso é uma zombaria, uma caricatura das descrições históricas. Ao contrário, é a expressão mais suave das respostas contraditórias, e que não respondem às perguntas, oferecidas por toda a história, desde os compiladores de memórias e das histórias de cada uma das nações, até os autores de histórias gerais e do novo tipo de história da cultura daquela época.
A estranheza e a comicidade de tais respostas decorrem do fato de que a nova história é semelhante a um homem surdo que responde a perguntas que ninguém lhe faz.
Se o objetivo da história é a descrição do movimento da humanidade e dos povos, então a primeira pergunta, sem cuja resposta nada do que resta se pode compreender, é a seguinte: que força move os povos? A essa pergunta, a nova história responde com presteza ou que Napoleão era muito genial, ou que Luís XIV era muito orgulhoso, ou ainda que tais e tais escritores escreveram tais e tais livros.
Tudo isso é muito possível, e a humanidade está pronta a concordar; porém não é isso o que ela pergunta. Tudo isso poderia ser interessante, se admitíssemos um poder divino, fundado em si mesmo e sempre igual a si mesmo, que guiasse seus povos por meio de Napoleões, Luíses e escritores; mas não admitimos tal poder e, portanto, antes de falar sobre Napoleões, Luíses e escritores, é preciso mostrar o vínculo existente entre essas pessoas e o movimento dos povos.
Se, em vez de um poder divino houvesse outra força, seria preciso explicar em que consiste essa nova força, pois exatamente nessa força se encerra todo o interesse da história.
A história parece supor que essa força explica a si mesma e é conhecida de todos. Mas, apesar de todo o desejo de admitir que essa nova força é conhecida, quem ler muitas obras de história não poderá deixar de duvidar de que essa nova força, entendida de formas diversas pelos próprios historiadores, seja perfeitamente conhecida de todos.
II
Que força move os povos?
Os historiadores de biografias particulares e os historiadores de povos tomados isoladamente entendem essa força como um poder imanente aos heróis e aos chefes. Segundo suas descrições, os acontecimentos se produzem exclusivamente pela vontade de Napoleões, de Alexandres ou das pessoas em geral que o historiador particular descreve. As respostas dadas por historiadores desse tipo à pergunta a respeito da força que move os acontecimentos são satisfatórias, mas só na condição de que exista um só historiador para cada acontecimento. Porém, assim que historiadores de nacionalidades e pontos de vista diferentes começam a descrever os mesmos acontecimentos, as respostas dadas por eles imediatamente perdem todo o sentido, pois cada um entende essa força não só de maneira diferente, como muitas vezes de forma totalmente contrária. Um historiador afirma que um acontecimento foi produzido pelo poder de Napoleão; outro afirma que foi produzido pelo poder de Alexandre; um terceiro, que foi pelo poder de algum terceiro personagem. Além disso, os historiadores desse tipo se contradizem uns aos outros até mesmo nas explicações da força em que se baseia o poder de um mesmo personagem. Thiers, bonapartista, diz que o poder de Napoleão se baseava em sua virtude e em sua genialidade. Lanfrey,2 republicano, diz que se baseava em sua impostura e na ilusão do povo. Assim, os historiadores desse tipo, ao aniquilar mutuamente a tese uns dos outros, aniquilam da mesma forma o conceito de uma força que produz os acontecimentos e não dão nenhuma resposta à pergunta essencial da história.
Os historiadores gerais, que se ocupam de todos os povos, parecem admitir o erro da opinião dos historiadores particulares sobre a força que produz os acontecimentos. Eles não reconhecem essa força como um poder imanente aos heróis e aos chefes, mas a reconhecem como o resultado de muitas forças diferentemente direcionadas. Ao descrever uma guerra ou a sujeição de um povo, o historiador geral procura a causa do acontecimento não no poder de uma pessoa, mas na ação recíproca de muitas pessoas relacionadas com o acontecimento.
Segundo essa tese, o poder dos personagens históricos, tido como fruto de muitas forças, já não poderia ser visto, ao que parece, como uma força que por si só produz os acontecimentos. No entanto, os historiadores gerais, na maioria dos casos, usam a noção do poder de novo como uma força que por si só produz os acontecimentos e que tem com eles uma relação de causa. Segundo sua explicação, ora o personagem histórico é produto do seu tempo, e seu poder é apenas um produto de causas diversas; ora seu poder é uma força que produz os acontecimentos. Gervinus, Schlosser,3 por exemplo, e outros ora provam que Napoleão é um produto da revolução e das ideias de 1789 etc., ora dizem de forma direta que a campanha de 1812 e outros acontecimentos de que eles não gostaram são apenas produtos da vontade de Napoleão erroneamente direcionada e que as próprias ideias de 1789 tiveram seu desenvolvimento barrado por causa da tirania de Napoleão. O próprio poder de Napoleão suprimiu as ideias da revolução e o estado de ânimo geral.
Essa estranha contradição não existe por acaso. Ela não só se encontra em cada passo, como todas as descrições dos historiadores gerais são formadas por uma coerente sucessão de tais contradições. Essa contradição ocorre porque, ao entrar no terreno da análise, os historiadores gerais param no meio do caminho.
Para encontrar forças componentes iguais ao composto ou à resultante, é necessário que a soma dos componentes seja igual ao composto. Tal condição jamais é observada pelos historiadores gerais e, por isso, a fim de explicar a resultante, eles necessariamente têm de admitir, além de componentes insuficientes, uma força não explicada que age sobre o composto.
O historiador particular, ao descrever a campanha de 1813 ou a restauração dos Bourbon, diz de forma direta que tais acontecimentos foram produzidos pela vontade de Alexandre. Mas o historiador geral Gervinus, para refutar essa tese do historiador particular, empenha-se em demonstrar que a campanha de 1813 e a restauração dos Bourbon tiveram como causas, além da vontade de Alexandre, a ação de Stein, Metternich, Madame de Staël, Talleyrand, Fichte, Chateaubriand e outros. O historiador obviamente decompôs o poder de Alexandre em componentes: o de Talleyrand, o de Chateaubriand etc.; a soma desses componentes, ou seja, a influência recíproca de Chateaubriand, Talleyrand, Madame de Staël e outros, obviamente, não é igual a toda a resultante, ou seja, o fato de milhões de franceses terem se sujeitado aos Bourbon. Da circunstância de Chateaubriand, Madame de Staël e outros dizerem uns para os outros tais e tais palavras resultaram apenas as relações que eles tiveram uns com os outros, mas não a sujeição de milhões de pessoas. E portanto, a fim de explicar de que forma a sujeição de milhões de pessoas resultou das relações entre eles, ou seja, como de componentes iguais a um A decorreu uma resultante igual a A vezes mil, o historiador deve necessariamente admitir de novo a mesma força de poder que ele nega, reconhecendo nela um resultado de forças, ou seja, ele deve admitir uma força não explicada que age por meio de um componente. É o que fazem os historiadores gerais. E em consequência contradizem não só aos historiadores particulares, como também a si mesmos.
A gente do campo, que não tem uma ideia clara das causas da chuva, conforme prefira que chova ou que faça tempo seco, diz: o vento dispersou as nuvens, e o vento juntou as nuvens. Exatamente o mesmo fazem os historiadores gerais: às vezes, quando eles assim preferem, quando isso concorda com suas teorias, dizem que o poder é resultado dos acontecimentos; e às vezes, quando é preciso provar o contrário, dizem que o poder produz os acontecimentos.
Outros historiadores, chamados de historiadores da cultura, seguindo pelo caminho aberto pelos historiadores gerais, que às vezes admitem escritores e damas como forças que produzem acontecimentos, entendem essa força de uma forma ainda totalmente distinta. Eles a veem na chamada cultura, na atividade intelectual.
Os historiadores da cultura são perfeitamente coerentes com respeito a seus antecessores — os historiadores gerais —, pois, se é possível explicar os acontecimentos históricos pela circunstância de algumas pessoas terem se relacionado umas com as outras desta ou daquela forma, então por que não explicá-los pela circunstância de algumas pessoas terem escrito tais e tais livros? Entre o enorme número de traços associados a qualquer fenômeno vivo, aqueles historiadores escolhem o traço da atividade intelectual e dizem que esse traço é a causa. Porém, apesar de todos os seus esforços para provar que a causa do acontecimento reside na atividade intelectual, só com grande complacência é possível concordar que existe algo de comum entre a atividade intelectual e o movimento dos povos, mas não é possível, em nenhuma hipótese, admitir que a atividade intelectual guia a ação das pessoas, pois fenômenos como os cruéis assassinatos da Revolução Francesa, decorrentes das pregações a respeito da igualdade do homem, e as atrozes guerras e execuções decorrentes das pregações a respeito do amor não confirmam essa hipótese.
No entanto, mesmo admitindo que são justos todos os argumentos capciosos que enchem essas histórias; mesmo admitindo que os povos são usados por certa força indefinível, chamada ideia — ainda assim a pergunta essencial da história continua sem resposta, e ao antigo poder dos monarcas e à influência dos conselheiros e de outras pessoas, introduzida pelos historiadores gerais, acrescenta-se a nova força da ideia, cuja relação com as massas exige, por sua vez, uma explicação. É possível entender que Napoleão tinha o poder e por isso o acontecimento se deu; com alguma complacência é possível ainda entender que Napoleão, junto com outras influências, tenha sido a causa do que aconteceu; mas de que forma o livro Contrat social fez com que os franceses se trucidassem uns aos outros — eis o que não se pode compreender sem uma explicação da relação de causa que existe entre essa força nova e o acontecimento.
Sem dúvida, existe uma ligação entre todos os que vivem num mesmo tempo e por isso existe a possibilidade de encontrar alguma ligação entre a atividade intelectual das pessoas e seu movimento histórico, assim como é possível encontrar uma ligação entre o movimento da humanidade e o comércio, a indústria, a horticultura e o que mais quiserem. Porém, por que razão a atividade intelectual das pessoas é apresentada pelos historiadores da cultura como a causa ou a expressão de todo o movimento histórico — é difícil entender isso. Só as seguintes razões poderiam levar os historiadores a tal conclusão: 1) a história é escrita por intelectuais e por isso é natural e agradável para eles pensar que a atividade de sua classe é a base do movimento de toda a humanidade, assim como é natural e agradável aos comerciantes, agricultores e soldados pensar da mesma forma (isso só não é declarado porque os comerciantes e os soldados não escrevem a história); e 2) a atividade espiritual, a instrução, a civilização, a cultura, a ideia — todas essas noções são obscuras e indefinidas, sob sua bandeira é imensamente cômodo usar palavras cujo significado é ainda menos claro, e por isso elas se adaptam facilmente a qualquer teoria.
Porém, sem falar no valor intrínseco desse tipo de histórias (talvez elas sejam úteis para alguém ou para alguma coisa), as histórias da cultura, com as quais as histórias gerais começam a se identificar cada vez mais, são reveladoras pelo fato de que, analisando com seriedade e minúcia diversas doutrinas religiosas, filosóficas, políticas, como causas dos acontecimentos, toda vez que precisam descrever um fato histórico real, como, por exemplo, a campanha de 1812, descrevem-no involuntariamente como o produto de uma força e dizem de forma direta que aquela campanha é produto da vontade de Napoleão. Ao falar assim, os historiadores da cultura involuntariamente contradizem a si mesmos ou comprovam que essa força nova que eles inventaram não expressa os acontecimentos históricos, e que o único meio de entender a história está no poder que eles parecem não reconhecer.
III
Uma locomotiva anda. Pergunta-se: por que ela se movimenta? Um mujique diz: é o diabo que a movimenta. Outro diz que a locomotiva anda porque tem rodas que se movimentam. Um terceiro afirma que a causa do movimento reside na fumaça que o vento arrasta para trás.
O mujique é irrefutável. Para refutá-lo, é preciso provar para ele que o diabo não existe, ou que outro mujique lhe explique que não é o diabo, e sim um alemão que movimenta a locomotiva. Só então, graças a tais contradições, eles se dariam conta de que os dois estão errados. Porém quem diz que a causa é o movimento das rodas refuta a si mesmo, pois, se ele entrou no terreno da análise, tem de ir sempre em frente: tem de explicar a causa do movimento das rodas. E enquanto não chegar à última causa do movimento da locomotiva, ao vapor comprimido dentro da caldeira, não terá o direito de parar na busca da causa. Já aquele que explicou o movimento da locomotiva pela fumaça arrastada para trás, ao notar que a explicação sobre as rodas não fornece as causas, tomou o primeiro traço que viu na sua frente e, por sua vez, encarou-o como a causa.
A única noção capaz de explicar o movimento da locomotiva é a noção de uma força igual ao movimento que se vê.
A única noção por meio da qual se pode explicar o movimento dos povos é a noção de uma força igual a todo o movimento dos povos.
No entanto essa noção é entendida por diferentes historiadores como forças totalmente diferentes e nunca iguais ao movimento que se vê. Nela, os historiadores veem uma força inerente aos heróis de forma imediata — assim como o mujique vê o diabo na locomotiva; outros veem uma força produzida por algumas outras forças, como o movimento das rodas; e outros ainda veem a influência intelectual — como a fumaça arrastada para trás.
Enquanto se escrever a história de pessoas individuais — sejam elas Césares, Alexandres ou Luteros ou Voltaires, e não a história de todos, de todas as pessoas, sem exceção, que tomaram parte no acontecimento —, não existe nenhuma possibilidade de se descrever o movimento da humanidade sem a noção da força que obriga as pessoas a dirigir sua atividade para um objetivo. E a única noção desse tipo conhecida pelos historiadores é a de poder.
Essa noção é a única ferramenta por meio da qual é possível dominar o material da história em sua disposição atual, e quem quis quebrar essa ferramenta, como fez Buckle, sem reconhecer outro modo de tratar o material histórico, apenas se privou da última possibilidade de lidar com ele. A inevitabilidade da noção de poder para a explicação dos fenômenos históricos é comprovada acima de tudo pelos próprios historiadores gerais e pelos historiadores da cultura, que supostamente renunciaram à noção de poder, mas inevitavelmente a empregam a cada passo.
Com relação às perguntas da humanidade, a ciência histórica, até agora, assemelha-se ao dinheiro circulante — cédulas e moedas sonantes. As histórias biográficas e nacionais são semelhantes às cédulas. Podem andar e circular, cumprindo sua função, sem prejuízo para ninguém, e até com algum proveito, contanto que não surja a questão sobre o que garante as cédulas. Basta apenas esquecer a questão sobre de que forma a vontade dos heróis produz os acontecimentos que logo as histórias dos Thiers se tornarão interessantes, instrutivas e, além disso, terão um toque de poesia. Porém, assim como logo surge a dúvida sobre o valor real das cédulas, ou porque fazê-las é fácil e começam a fazê-las em quantidade excessiva, ou porque querem trocá-las por ouro — assim também surge a dúvida sobre o significado real das histórias desse tipo — ou porque elas aparecem em número excessivo, ou porque alguém, em sua simplicidade de espírito, pergunta: mas por meio de que força Napoleão fez isso? — ou seja, quer trocar uma cédula corrente pelo ouro puro da noção real.
Já os historiadores gerais e os historiadores da cultura são semelhantes a pessoas que, tendo reconhecido a inconveniência do papel-moeda, resolveram, em lugar de uma cédula, fazer uma moeda sonante de um metal que não tem a densidade do ouro. E a moeda de fato ficaria sonante, mas apenas sonante. A cédula ainda podia enganar os ignorantes; já a moeda sonante, mas sem valor, não pode enganar ninguém. Assim como o ouro só é ouro quando pode ser usado não só para troca, mas também como matéria-prima, também os historiadores gerais não serão ouro senão quando tiverem a capacidade de responder à pergunta essencial da história: o que é o poder? Os historiadores gerais respondem a essa pergunta de forma contraditória, mas os historiadores da cultura em geral se afastam dela, respondem a algo totalmente distinto. E, assim como medalhas que parecem ser de ouro só podem ser usadas no âmbito de um grupo de pessoas que concordam em aceitá-las como ouro e de pessoas que ignoram as características do ouro, também os historiadores gerais e os historiadores da cultura, sem responder às perguntas essenciais da humanidade, servem para alguns objetivos próprios como moeda corrente na universidade e entre a clientela de professores — apreciadores de livros sérios, como eles chamam.
IV
Tendo renunciado à tese dos antigos da sujeição divina da vontade de um povo a alguém escolhido e da sujeição dessa vontade à divindade, a história não pode dar nenhum passo sem uma contradição, caso não escolha uma das duas opções: ou voltar à crença antiga na participação imediata da divindade nos assuntos da humanidade, ou explicar de forma definida o significado da força que produz os acontecimentos históricos e que é chamada de poder.
Voltar ao ponto de vista anterior é impossível: a crença foi destruída e por isso é necessário explicar o significado do poder.
Napoleão deu ordem para reunir as tropas e partir para a guerra. Estamos a tal ponto habituados a essa ideia, a tal ponto nos acostumamos a essa visão que a questão de saber por que seiscentos mil homens vão para a guerra quando Napoleão diz tais palavras nos parece um absurdo. Ele tinha o poder e por isso o que ele ordenava era cumprido.
Essa resposta é perfeitamente satisfatória, se acreditarmos que o poder foi dado a ele por Deus. No entanto, assim que deixamos de reconhecer isso, é necessário determinar o que é esse poder de um homem sobre os outros.
Esse poder não pode ser o poder imediato da predominância física de uma criatura forte sobre as fracas, predominância baseada na aplicação, ou na ameaça de aplicação, da força física — como o poder de um Hércules; também não pode ser baseado na predominância da força moral, como pensam alguns historiadores, em sua simplicidade de espírito, dizendo que os atores históricos são os heróis, ou seja, pessoas dotadas de uma força de espírito e de intelecto especial, que chamam de genialidade. Esse poder não pode ser baseado na predominância da força moral, pois, para não falar das pessoas-heróis como os Napoleões, cujos méritos morais são avaliados das maneiras mais discrepantes, a história nos mostra que nem os Luíses XI, nem os Metternich, que governaram milhões de pessoas, tinham quaisquer atributos especiais de força moral; ao contrário, eram em sua maioria moralmente mais fracos do que qualquer um dos milhões de pessoas governadas por eles.
Se a fonte do poder não reside nos atributos físicos nem morais da pessoa que detém o poder, é evidente que a fonte desse poder deve se encontrar fora da pessoa — nas relações com as massas, no interior das quais se encontra a pessoa que detém o poder.
Exatamente assim o poder é entendido pela ciência do direito, essa caixa bancária da história, que promete trocar a noção histórica de poder por ouro puro.
O poder é a totalidade das vontades das massas transferida, por meio de um acordo tácito ou declarado, a governantes escolhidos pelas massas.
No domínio da ciência do direito, constituída por raciocínios sobre como se pode organizar um Estado e o poder, se é que é mesmo possível organizar tal coisa, tudo isso está muito claro, mas quando aplicado à história essa definição de poder exige esclarecimentos.
A ciência do direito encara o Estado e o poder como os antigos encaravam o fogo — como algo que existe de forma absoluta. Já para a história, o Estado e o poder são apenas fenômenos, assim como para a física de nosso tempo o fogo não é um elemento, mas um fenômeno.
Dessa diferença básica entre a concepção da história e a da ciência do direito decorre que a ciência do direito pode explicar em pormenores como, no seu modo de ver, é preciso organizar o poder e o que é o poder, o qual existe de modo estático e fora do tempo; mas, quanto às perguntas históricas sobre o significado do poder que se modifica no correr do tempo, ela nada pode responder.
Se o poder é a totalidade das vontades transferida para o governante, então Pugatchóv era um representante das vontades das massas? Se não era, por que Napoleão I é um representante? Por que Napoleão III, quando o prenderam em Bolonha, era um criminoso, e depois foram criminosos aqueles que o haviam prendido?
Nas revoluções palacianas, das quais às vezes participam duas ou três pessoas, a vontade da massa também é transferida para um personagem novo? Nas relações internacionais, a vontade da massa de um povo é também transferida para o seu conquistador? Em 1808, a vontade da Confederação do Reno foi transferida para Napoleão? A vontade da massa do povo russo foi transferida para Napoleão em 1809, quando nossas tropas, em aliança com as tropas francesas, travaram guerra contra a Áustria?
A tais perguntas é possível responder de três maneiras:
Ou 1) reconhecer que a vontade das massas é sempre transmitida de forma incondicional àquele ou àqueles governantes que elas escolheram, e por isso todo surgimento de um poder novo e toda luta contra um poder conferido anteriormente devem ser encarados apenas como uma infração ao poder verdadeiro.
Ou 2) reconhecer que a vontade das massas é transmitida aos governantes de forma condicional, sob condições determinadas e conhecidas, e mostrar que toda limitação, todo conflito e mesmo todo aniquilamento do poder decorrem da desobediência às regras das condições sob as quais o poder foi conferido a eles.
Ou 3) reconhecer que a vontade das massas é transferida aos governantes de forma condicional, mas sob condições desconhecidas, indeterminadas, e que o surgimento de muitos poderes, a luta deles e sua queda decorrem apenas do maior ou menor cumprimento das regras daquelas condições desconhecidas, sob as quais a vontade das massas é transferida de algumas pessoas para outras.
Dessas três maneiras, os historiadores explicam as relações das massas com os governantes.
Alguns historiadores que, em sua simplicidade de espírito, não entendem as questões sobre o significado do poder, aqueles mesmos historiadores particulares e biográficos de que falamos acima, parecem reconhecer que a totalidade das vontades das massas é transferida para os personagens históricos de forma incondicional e por isso, ao descrever algum poder individual, esses historiadores supõem que esse mesmo poder é o poder absoluto e verdadeiro, e que qualquer outra força que se oponha a esse poder verdadeiro não é um poder, e sim uma violação do poder — um crime.
A teoria deles, adequada para períodos da história primitivos e pacíficos, quando aplicada a períodos complexos e turbulentos da vida dos povos, durante os quais diversos poderes se levantam e lutam entre si, tem o inconveniente de que um historiador legitimista poderá demonstrar que a Convenção, o Diretório e Bonaparte foram apenas violações do poder, ao passo que um republicano e um bonapartista poderão demonstrar: um que a Convenção e o outro que o Império eram o poder verdadeiro e que todo o restante foi uma violação do poder. É óbvio que, dessa forma, refutando-se mutuamente, as explicações do poder de tais historiadores podem satisfazer apenas pessoas da mais tenra idade.
Reconhecendo a falsidade dessa visão da história, outro tipo de historiador diz que o poder se baseia na condição da transmissão aos governantes da totalidade das vontades das massas e que os personagens históricos só têm o poder sob a condição de concretizar os programas que a vontade do povo, mediante um acordo tácito, prescreveu a eles. Porém, em que consistem essas condições, isso os historiadores não nos dizem, ou, se o dizem, sempre se contradizem uns aos outros.
Cada historiador, ao examinar de seu ponto de vista aquilo que constitui o objetivo do movimento de um povo, vê tais condições na riqueza, na grandeza, na liberdade, na instrução dos cidadãos da França ou de outra nação. Porém, mesmo sem falar da contradição dos historiadores a respeito do que seriam tais condições, e até admitindo que exista de fato um programa de tais condições comum a todos, veremos que os fatos históricos quase sempre contradizem essa teoria. Se as condições sob as quais o poder é transferido consistem na riqueza, na liberdade, na instrução de um povo, então por que os Luíses XIV e os Ivans IV 4 vivem tranquilos até o fim de seus reinados, e os Luíses XVI e os Carlos I são executados pelo povo? A tal pergunta esses historiadores respondem que a atividade de Luís XIV, contrária ao programa, refletiu-se em Luís XVI. Mas por que então ela não se refletiu em Luís XIV e em Luís XV, por que tinha exatamente de se refletir em Luís XVI? E qual é o prazo de tal reflexo? Para essas perguntas não existem nem podem existir respostas. Da mesma forma, essa concepção pouco explica por que razão durante vários séculos a totalidade das vontades não é retirada de seus governantes e de seus herdeiros e então, de repente, num intervalo de cinquenta anos, é transferida para a Convenção, para o Diretório, para Napoleão, para Alexandre, para Luís XVIII, de novo para Napoleão, para Carlos X, para Luís Filipe, para o governo republicano, para Napoleão III. A fim de explicar essas transferências de vontades, cumpridas tão rapidamente, de uma pessoa para a outra, sobretudo em face das relações internacionais, das conquistas, das alianças, esses historiadores não podem deixar de reconhecer que uma parte de tais fenômenos já não são transferências normais das vontades, mas acasos que dependem ora de uma astúcia, ora de um erro, ou então de uma fraude ou da fraqueza de um diplomata, ou de um monarca, ou de um líder de um partido. Assim, a maior parte dos fenômenos da história — guerras civis, revoluções, conquistas — é apresentada por esses historiadores não como resultados da transferência de vontades livres, mas como o resultado da vontade de uma ou de várias pessoas erroneamente direcionada, ou seja, de novo são violações do poder. E por isso os acontecimentos históricos são concebidos pelos historiadores desse tipo como transgressões da teoria.
Tais historiadores assemelham-se ao botânico que, ao notar que alguns vegetais brotam da semente com duas folhazinhas unidas, deduzem que tudo o que brota também nasce com duas folhazinhas; e que a palmeira, o cogumelo e até o carvalho, que se ramifica quando plenamente desenvolvido e não tem mais semelhança com a forma de duas folhazinhas, escapam à teoria.
Um terceiro tipo de historiador reconhece que a vontade das massas é transferida para os personagens históricos condicionalmente, mas que não conhecemos essas condições. Eles dizem que os personagens históricos têm o poder apenas porque atendem a vontade da massa transferida para eles.
Porém, nesse caso, se a força que movimenta os povos não reside nos personagens históricos, mas nos próprios povos, então em que consiste a importância daqueles personagens históricos?
Os personagens históricos, dizem esses historiadores, exprimem a própria vontade das massas; a atividade dos personagens históricos serve como um representante da atividade das massas.
Mas nesse caso surge a pergunta: toda a atividade dos personagens históricos serve como expressão da vontade das massas ou é apenas o seu lado conhecido? Se toda a atividade dos personagens históricos serve como expressão da vontade das massas, como pensam alguns, então as biografias dos Napoleões, das Catarinas, com todos os pormenores dos mexericos da corte, servem como expressão da vida dos povos, o que é um evidente absurdo; se, porém, só um lado da atividade de um personagem histórico serve como expressão da vida dos povos, como pensam outros, os supostos filósofos-historiadores, então, para determinar que lado da atividade de um personagem histórico exprime a vida de um povo, é preciso antes saber em que consiste a vida de um povo.
Ao deparar com tais dificuldades, os historiadores desse tipo inventam uma abstração muito obscura, intangível e geral, sob a qual é possível abrigar o maior número de acontecimentos, e dizem que essa abstração constitui o objetivo do movimento da humanidade. As abstrações gerais mais costumeiras, aceitas por quase todos os historiadores, são: liberdade, igualdade, instrução, progresso, civilização, cultura. Tendo fixado alguma dessas abstrações como o objetivo do movimento da humanidade, os historiadores estudam as pessoas que deixaram para trás o maior número de registros — reis, ministros, comandantes militares, escritores, reformadores, papas, jornalistas —, na medida em que todos esses personagens, na opinião deles, agiram a favor ou contra uma determinada abstração. Porém, como não está provado de forma alguma que o objetivo da humanidade consiste na liberdade, na igualdade, na instrução ou na civilização, e como a ligação das massas com os governantes e com os propagadores da instrução da humanidade se baseia apenas na suposição arbitrária de que a totalidade das vontades das massas é sempre transferida para pessoas notáveis para nós, assim a atividade de milhões de pessoas que migram, incendeiam casas, abandonam a lavoura, aniquilam-se umas às outras nunca se expressa na descrição da atividade de uma dezena de pessoas que não incendiaram casas, não trabalharam na lavoura, não assassinaram seus semelhantes.
A história prova isso a cada passo. A agitação dos povos do Ocidente no final do século passado e seu afã de ir para o Oriente se explicam, por acaso, pela atividade dos Luíses XIV, XV e XVI, de suas amantes, de seus ministros, pela vida de Napoleão, de Rousseau, de Diderot, de Beaumarchais e outros?
O movimento do povo russo para o Oriente, para Kazan e para a Sibéria, expressa-se, por acaso, nos pormenores do caráter doentio de Ivan IV e em sua correspondência com Kúrbski?5
O movimento dos povos no tempo das Cruzadas se explica, por acaso, pelo estudo dos Godofredos6 e dos Luíses e de suas senhoras? Para nós, continua incompreensível o movimento dos povos do Ocidente para o Oriente, sem nenhum objetivo, sem liderança, com uma multidão de mendigos, com Pedro, o Eremita.7 E continua mais incompreensível ainda a interrupção desse movimento, quando os atores históricos determinaram com clareza o objetivo lógico e sagrado das Cruzadas — a libertação de Jerusalém. Papas, reis e cavaleiros incitaram o povo para a libertação da Terra Santa; mas o povo não foi, porque a causa desconhecida que antes o incitava ao movimento já não mais existia. A história dos Godofredos e dos menestréis, obviamente, não pode conter em si a vida dos povos. E a história dos Godofredos e dos menestréis continuou sendo a história dos Godofredos e dos menestréis, mas a história da vida dos povos e de sua motivação continuou desconhecida.
A história dos escritores e dos reformadores nos explica ainda menos a vida dos povos.
A história da cultura nos explica as motivações, as condições da vida e do pensamento de um escritor ou reformador. Sabemos que Lutero tinha um caráter irascível e fez tais e tais discursos, sabemos que Rousseau era um incrédulo e escreveu tais e tais livros. Mas não sabemos por que, depois da Reforma, os povos se massacraram entre si e por que no tempo da Revolução Francesa executaram uns aos outros.
Se unirmos essas duas histórias, como fazem os novos historiadores, teremos as histórias dos monarcas e dos escritores, mas não a história da vida dos povos.
V
A vida dos povos não cabe na vida de algumas pessoas, pois não foi encontrada a relação entre essas pessoas e os povos. A teoria de que tal relação está baseada na transferência da totalidade das vontades para um personagem histórico é uma hipótese não confirmada pela experiência da história.
A teoria da transferência da totalidade das vontades das massas para um personagem histórico talvez possa explicar muita coisa no domínio da ciência do direito e talvez seja necessária para seus objetivos; porém em sua aplicação à história, assim que têm início as revoluções, as conquistas, as guerras civis, assim que tem início a história — essa teoria não explica nada.
Essa teoria parece incontestável justamente porque o ato da transferência das vontades de um povo não pode ser verificado, pois ele nunca existiu.
Qualquer que seja o acontecimento, quem quer que esteja à frente do acontecimento, a teoria sempre poderá dizer que tal e tal pessoa estava à frente do acontecimento porque a totalidade das vontades foi transferida para ela.
As respostas dadas por tal teoria às questões históricas assemelham-se às respostas de um homem que, olhando para um rebanho que se move, sem prestar atenção nem nas diferentes qualidades da pastagem em diversos pontos do campo, nem nos gestos do pastor que tange o rebanho, julga que as causas desta ou daquela direção do rebanho estão no animal que caminha à frente dele.
“O rebanho caminha por aquela direção porque o animal que vai à frente o conduz, e a totalidade das vontades de todos os demais animais é transferida para aquele governante do rebanho.” Assim responde a primeira categoria de historiadores, que reconhecem a transmissão tácita do poder.
“Se os animais que vão à frente do rebanho são substituídos, isso ocorre porque a totalidade das vontades de todos os animais é transferida de um governante para o outro, conforme aquele animal siga ou não na direção escolhida por todo o rebanho.” Assim respondem os historiadores que reconhecem que a totalidade das vontades das massas é transmitida para um governante sob condições que eles consideram conhecidas. (Com tal método de observação, muitas vezes acontece que o observador, conforme a direção por ele escolhida, considera líderes aqueles que, por causa da mudança de direção das massas, já não estão à frente, e sim ao lado e às vezes atrás.)
“Se os animais que estão à frente mudam constantemente, e a direção de todo o rebanho muda constantemente, isso acontece porque, a fim de avançar numa direção conhecida por nós, os animais transmitem sua vontade aos animais por nós percebidos, e, a fim de estudar o movimento do rebanho, é preciso observar todos os animais percebidos por nós que andam em todos os lados do rebanho.” Assim dizem os historiadores da terceira categoria, que reconhecem como expressões de seu tempo todos os personagens históricos, de monarcas a jornalistas.
A teoria da transferência das vontades das massas para personagens históricos é apenas uma perífrase — apenas a expressão, com outras palavras, das mesmas palavras da pergunta.
Qual é a causa dos acontecimentos históricos? — O poder. O que é o poder? — O poder é a totalidade das vontades transferida para uma pessoa. Em que condições as vontades das massas são transmitidas para uma pessoa? — Na condição de que uma pessoa exprima a vontade de todos. Ou seja, o poder é o poder. Ou seja, o poder é uma palavra cujo significado não compreendemos.
Se o domínio do conhecimento humano se limitasse a um conceito abstrato, então, tendo submetido à crítica a explicação do poder que nos dá a ciência, a humanidade chegaria à conclusão de que o poder é apenas uma palavra e não existe de fato. Porém, para o conhecimento dos fenômenos, além dos conceitos abstratos, o homem possui a arma da experiência, com a qual ele verifica os resultados do pensamento. E a experiência diz que o poder não é uma palavra, mas um fenômeno de fato existente.
Sem falar que não se pode entender nenhuma descrição da totalidade da atividade das pessoas sem a noção do poder, a existência do poder é comprovada tanto pela história quanto pela observação dos acontecimentos contemporâneos.
Sempre que ocorre um acontecimento, surge uma pessoa ou surgem pessoas por cuja vontade o acontecimento parece ter se realizado. Napoleão III dá uma ordem, e os franceses vão para o México. O rei da Prússia e Bismarck dão uma ordem, e as tropas vão para a Boêmia. Napoleão I ordena, e as tropas marcham para a Rússia. Alexandre I ordena, e os franceses coroam os Bourbon. A experiência demonstra que todo acontecimento sempre está ligado à vontade de alguma ou de algumas pessoas que o ordenaram.
Os historiadores, em função do antigo costume de admitir a participação divina nos assuntos humanos, querem ver a causa de um acontecimento na expressão da vontade de uma pessoa investida de poder; mas tal conclusão não é confirmada nem pelo raciocínio, nem pela experiência.
De um lado, o raciocínio demonstra que a expressão da vontade de um homem — sua palavra — é apenas uma parte da atividade geral expressa no acontecimento, como, por exemplo, numa guerra ou numa revolução; e por isso, sem a admissão de uma força incompreensível e sobrenatural — um milagre —, é impossível admitir que as palavras possam ser a causa imediata do movimento de milhões de pessoas; de outro lado, mesmo se aceitarmos que palavras podem ser a causa de um acontecimento, a história demonstra que a expressão da vontade de personagens históricos, na maior parte dos casos, não produz nenhuma ação, ou seja, que as ordens deles muitas vezes não só não se concretizam, como às vezes até acontece algo totalmente contrário ao que eles ordenaram.
Sem admitir a participação divina nos assuntos da humanidade, não podemos aceitar o poder como causa dos acontecimentos.
O poder, do ponto de vista da experiência, é apenas a dependência que existe entre a expressão da vontade de uma pessoa e a concretização dessa vontade por outras pessoas.
A fim de explicar para nós mesmos as condições de tal dependência, temos, antes de tudo, de restabelecer o conceito de expressão da vontade, remetendo-o para o homem, e não para uma divindade.
Se uma divindade emite uma ordem e expressa sua vontade, como nos mostra a história dos antigos, a expressão dessa vontade não depende do tempo e não é provocada por nada, pois nada liga uma divindade a um acontecimento. No entanto, ao falar sobre ordens que são expressões da vontade das pessoas, que agem no tempo, ligadas umas às outras, nós, a fim de explicar a relação entre a ordem e os acontecimentos, temos de restabelecer: 1) as condições de tudo o que ocorre: do movimento ininterrupto no tempo tanto do acontecimento quanto da pessoa que dá a ordem; e 2) as condições da relação necessária existente entre a pessoa que dá a ordem e as pessoas que cumprem sua ordem.
VI
Só a expressão da vontade de uma divindade, que não depende do tempo, pode referir-se a toda uma série de acontecimentos que têm de se realizar ao longo de alguns anos ou séculos, e só uma divindade, que não tem causa nenhuma, pode determinar por sua vontade própria a direção do movimento da humanidade; por sua vez, o homem age no tempo e participa dos acontecimentos.
Restabelecendo a primeira condição negligenciada — a condição do tempo —, vemos que nenhuma ordem pode ser concretizada sem que haja uma ordem anterior, que torna possível a concretização da última ordem.
Nunca uma ordem surge de forma espontânea e tampouco encerra em si uma série inteira de acontecimentos, mas toda ordem decorre de outra e nunca se refere a toda uma série de acontecimentos, mas sempre apenas a um momento de um acontecimento.
Quando dizemos, por exemplo, que Napoleão ordenou às tropas que fossem para a guerra, estamos unindo numa ordem expressa uma vez só uma série de ordens consecutivas, que dependem umas das outras. Napoleão não podia ordenar a campanha na Rússia e jamais ordenou tal coisa. Ele ordenou, hoje, escrever tais e tais documentos para Viena, para Berlim e para Petersburgo; amanhã, tais e tais decretos e comandos para os exércitos, para a frota e para a intendência etc. etc. — milhões de ordens, das quais se formou uma série de ordens, que por sua vez correspondem a uma série de acontecimentos que trouxeram as tropas francesas para a Rússia.
Se Napoleão, durante todo o seu reinado, dá ordens para uma expedição para a Inglaterra e em nenhuma de suas iniciativas despende mais esforços e mais tempo do que faz para esse projeto e, apesar disso, em todo o seu reinado, nenhuma vez tenta executar sua intenção, e em troca promove uma expedição à Rússia, com a qual ele, segundo uma convicção repetidamente manifesta, se julga orgulhoso de estar em aliança, isso ocorre porque as primeiras ordens não corresponderam a uma série de acontecimentos, mas as segundas, sim.
Para que uma ordem seja concretizada de modo seguro, é preciso que uma pessoa exprima uma ordem que possa ser concretizada. Saber o que pode e o que não pode ser concretizado é impossível não só para a campanha napoleônica na Rússia, da qual milhões de pessoas tomaram parte, mas também para o acontecimento mais simples, pois para a concretização tanto de uma coisa como de outra sempre podem surgir milhões de obstáculos. Toda ordem concretizada é sempre uma em meio a uma enorme quantidade de outras não concretizadas. Todas as ordens impossíveis não estão ligadas a um acontecimento e não são concretizadas. Só as que são possíveis se ligam a séries de ordens consecutivas, que correspondem a séries de acontecimentos, e são concretizadas.
Nosso conceito ilusório de que a ordem que precede o acontecimento é a causa do acontecimento existe porque, quando o acontecimento se verifica e, entre milhares de ordens, só aquelas ordens que se ligaram aos acontecimentos se concretizaram, nós esquecemos as ordens que não se concretizaram porque não podiam se concretizar. Além disso, a fonte principal de nossa ilusão nesse aspecto decorre do fato de que, na narração histórica, toda uma série de acontecimentos inumeráveis, variados, ínfimos, como, por exemplo, tudo aquilo que conduziu as tropas francesas para a Rússia, sintetiza-se em um só acontecimento, de acordo com o resultado que toda aquela série de acontecimentos produziu, e, em conformidade com essa síntese, sintetiza-se também toda uma série de ordens numa única expressão da vontade.
Dizemos: Napoleão quis e fez a campanha na Rússia. Na realidade, nunca encontraremos em toda a atividade de Napoleão nada parecido com uma expressão dessa vontade, mas veremos uma série de ordens ou de expressões de sua vontade, dirigidas da maneira mais variada e indefinida. Em meio à inumerável série de ordens napoleônicas não concretizadas, formou-se uma série de ordens concretizadas para a campanha de 1812, não porque tais ordens diferissem de alguma forma das ordens não concretizadas, mas porque a série dessas ordens correspondia à série de acontecimentos que levaram as tropas francesas para a Rússia; da mesma forma, num clichê de impressão se desenha esta ou aquela figura não porque as tintas foram passadas só de um certo modo e num certo lado, mas porque a tinta foi passada em todos os lados sobre a figura riscada no clichê.
Assim, ao examinar no tempo as relações entre as ordens e os acontecimentos, descobrimos que uma ordem não pode, em nenhuma hipótese, ser a causa de um acontecimento, mas que existe entre uma coisa e outra uma dependência definida e clara.
A fim de entender em que consiste tal dependência, é necessário restabelecer outra negligenciada condição de qualquer ordem emanada não de uma divindade, mas de um homem, e que consiste em que o próprio homem que dá a ordem participa do acontecimento.
Isso é a relação de quem ordena com aqueles a quem ordena, e é exatamente isso o que se chama de poder. Tal relação consiste no seguinte:
Para uma atividade comum, as pessoas sempre se unem em determinadas combinações, nas quais, apesar da diferença dos objetivos fixados para a ação coletiva, a relação entre as pessoas que participam da ação é sempre a mesma.
Ao se unir em tais combinações, as pessoas sempre formam entre si uma tal relação em que a maioria das pessoas participa de modo mais direto e a minoria das pessoas participa de modo menos direto da ação coletiva para a qual elas se combinam.
De todas as combinações em que as pessoas se unem a fim de concretizar as ações coletivas, uma das mais incisivas e definidas é o Exército.
Todas as tropas são constituídas pelos membros situados no nível mais baixo da hierarquia militar: soldados rasos, que são sempre em maior quantidade; pelos membros seguintes, subindo na hierarquia militar — cabos, sargentos, que existem em número menor do que os primeiros; e pelos membros de um nível ainda mais alto, que são em número ainda menor, e assim por diante, até chegar ao poder militar supremo, que se concentra numa só pessoa.
A organização militar pode ser representada com perfeição pela figura de um cone, no qual a base, com o diâmetro maior, é constituída pelos soldados rasos; a parte menor, acima da base, por membros superiores do Exército, e assim por diante, até o cume do cone, ponto que representa o comandante-geral.
Os soldados, que são a maioria, constituem a extremidade inferior do cone e sua base. O próprio soldado é quem, diretamente, fura, corta, incendeia, rouba e sempre em tais ações recebe a ordem dos superiores; ele mesmo nunca ordena nada. O sargento (o número dos sargentos já é menor) executa ele mesmo a ação com menos frequência do que o soldado; mas já ordena. O oficial executa a ação com ainda menos frequência e ordena com mais frequência. O general, por sua vez, apenas ordena que as tropas avancem, aponta o objetivo e quase nunca usa armas. Já o comandante-geral nunca pode tomar parte direta da própria ação e apenas dá ordens gerais sobre o movimento das massas. Essa mesma relação entre as pessoas se verifica em qualquer união de pessoas para uma atividade comum — na agricultura, no comércio e em qualquer governo.
Assim, sem separar artificialmente todas as partes unidas de um cone e as patentes dos membros do Exército, ou a hierarquia ou os postos de qualquer governo ou da administração pública, desde os mais inferiores aos superiores, surge a lei segundo a qual as pessoas, a fim de concretizar as ações coletivas, se associam em uma relação tal que, quanto mais imediatamente participam na concretização da ação, menos podem dar ordens, e tanto maior é o seu número; e quanto menor sua participação direta na ação propriamente dita, mais dão ordens e tanto menor é o seu número; e seguiremos dessa forma, partindo das camadas mais baixas até chegarmos ao último homem, que tem a participação menos direta de todos no acontecimento e que, mais do que todos, conduz sua atividade para dar ordens.
Essa é a relação entre as pessoas que dão ordens e as que recebem suas ordens e constitui a essência do conceito denominado poder.
Depois de restabelecer as condições do tempo, nas quais se cumprem todos os acontecimentos, descobrimos que uma ordem só se concretiza quando remete a uma série correspondente de acontecimentos. Ao restabelecer a condição necessária da ligação entre os que ordenam e os que executam, descobrimos que, por sua própria característica, os que ordenam tomam a menor parte possível no próprio acontecimento e que a atividade deles está dirigida exclusivamente para dar ordens.
VII
Quando algum acontecimento se concretiza, as pessoas expressam suas intenções, seus desejos a respeito do acontecimento, e, assim como o acontecimento decorre da ação coletiva de muitas pessoas, uma das intenções ou um dos desejos expressos terá por força de se concretizar, ainda que só aproximadamente. Quando uma das intenções expressas é concretizada, essa intenção se liga ao acontecimento como uma ordem que o precedeu.
Pessoas arrastam um tronco. Cada uma exprime sua opinião sobre como e para onde arrastar o tronco. As pessoas terminam de arrastar o tronco e se verifica que isso foi feito do modo como um deles havia falado. Ele deu a ordem. Aí está a ordem e o poder em seu aspecto primordial.
Aquele que trabalhou mais com as mãos menos pôde refletir sobre o que estava fazendo e especular o que poderia resultar da atividade comum, e menos pôde dar ordens. Aquele que mais ordenou, por causa de sua atividade com as palavras, obviamente menos pôde agir com as mãos. Quando um grande agrupamento de pessoas dirige uma atividade para um objetivo, separa-se de modo ainda mais incisivo a classe de pessoas que participam tanto menos diretamente na atividade comum, quanto mais sua atividade é direcionada para dar ordens.
Um homem, quando age sozinho, sempre carrega consigo uma determinada série de ideias que, assim lhe parece, guiaram sua atividade passada, serviram para justificar sua atividade presente e o guiaram nas conjeturas sobre as realizações futuras.
Exatamente o mesmo fazem os agrupamentos de pessoas quando permitem àqueles que não participam dos acontecimentos inventar ideias, justificativas e hipóteses sobre sua atividade coletiva.
Por motivos conhecidos ou desconhecidos para nós, os franceses começaram a queimar e cortar uns aos outros. E, em correspondência com o acontecimento, segue-se sua justificação na vontade expressa da pessoa de que aquilo é necessário para o bem da França, para a liberdade, para a igualdade. As pessoas param de cortar umas às outras e tal acontecimento é seguido pela justificativa da necessidade de um poder unificado, da resistência à Europa etc. As pessoas vão do Ocidente para o Oriente, assassinando seus semelhantes, e esse acontecimento é seguido por palavras sobre a glória da França, a baixeza da Inglaterra etc. A história nos mostra que tais justificativas do acontecimento não têm nenhum sentido geral, contradizem a si mesmas, como o assassinato de uma pessoa devido ao reconhecimento de seus direitos, e o assassinato de milhões na Rússia a fim de humilhar a Inglaterra. Mas essas justificativas, no sentido contemporâneo, têm uma significação necessária.
Essas justificativas retiram a responsabilidade moral das pessoas que produzem os acontecimentos. Esses objetivos temporários são como as escovas fixadas à frente de um trem para a limpeza dos trilhos: limpam e retiram do caminho a responsabilidade moral das pessoas. Sem tais justificativas, não poderia ser explicada nem a mais simples questão que surge ao observarmos qualquer acontecimento: de que forma milhões de pessoas praticam crimes coletivos, guerras, assassinatos etc.?
Nas complexas formas atuais da vida política e social na Europa, seria possível imaginar algum acontecimento que não fosse prescrito, indicado, ordenado por soberanos, ministros, parlamentos, jornais? Será que existe alguma ação coletiva que não encontraria sua justificativa na unidade de governo, na nacionalidade, no equilíbrio da Europa, na civilização? Assim, qualquer acontecimento que se cumpra é inevitavelmente acompanhado por algum desejo expresso e, ao receber sua justificativa, é apresentado como um produto da vontade de uma pessoa ou de várias pessoas.
Para onde quer que um barco se dirija, à sua frente sempre veremos o fluxo das ondas que ele ergue na superfície. Para as pessoas que estão no barco, o movimento desse fluxo será o único movimento percebido.
Apenas acompanhando mais de perto, um momento após o outro, o movimento desse fluxo e comparando esse movimento com o movimento do barco, ficaremos convencidos de que cada momento do movimento do fluxo é determinado pelo movimento do barco, e que o que nos ilude é o fato de nós mesmos nos movermos sem perceber isso.
O mesmo veremos ao acompanhar, momento a momento, o movimento dos personagens históricos (ou seja, restabelecendo a condição necessária de tudo o que ocorre — a condição da continuidade do movimento no tempo), sem perder de vista a necessidade da relação entre os personagens históricos e as massas.
Quando o barco vai numa só direção, à sua frente está o mesmo fluxo; quando ele muda de direção muitas vezes, os fluxos à sua frente mudam e desviam muitas vezes. Porém, para onde quer que ele tenha virado, sempre haverá um fluxo que precede seu deslocamento.
O que quer que ocorra, sempre parece que foi previsto e ordenado. Para onde quer que o barco se volte, o fluxo, que não guia, não força seu movimento, borbulha à sua frente e, de longe, vai nos parecer que não só movimenta o barco arbitrariamente, como também guia seu movimento.
Observando apenas as expressões da vontade dos personagens históricos que se relacionam aos acontecimentos como aqueles que ordenam, os historiadores supõem que os acontecimentos se encontram na dependência de ordens. Observando os mesmos acontecimentos e a relação com as massas nas quais estão os personagens históricos, achamos que os personagens históricos e suas ordens se encontram na dependência dos acontecimentos. Serve como uma demonstração indiscutível dessa conclusão o fato de que, haja quantas ordens houver, o acontecimento não se concretizará se não houver outras causas para isso; no entanto, assim que o acontecimento se concretizar — qualquer que seja ele —, então, entre todas as vontades, continuamente expressas por diferentes pessoas, iremos encontrar algumas que, pelo sentido e pelo tempo, se relacionam com o acontecimento como ordens.
Ao chegar a tal conclusão, podemos responder de forma direta e positiva às seguintes duas questões essenciais da história:
1) O que é o poder?
2) Que força produz o movimento dos povos?
1) O poder é a relação entre uma pessoa determinada e outras pessoas, na qual a pessoa em questão participa tanto menos da ação, quanto mais exprime opiniões, hipóteses e justificativas da ação coletiva que se concretizou.
2) O movimento dos povos é produzido não pelo poder, nem pela atividade intelectual, nem mesmo pela união das duas coisas, como pensavam os historiadores, mas pela atividade de todas as pessoas que participam do acontecimento e que sempre se unem de tal forma que aqueles que participam mais diretamente do acontecimento atribuem a si a menor responsabilidade; e vice-versa.
Do ponto de vista moral, o poder é apresentado como a causa do acontecimento; do ponto de vista físico, a causa são aqueles que se submetem ao poder. Porém, como a atividade moral é inconcebível sem a atividade física, a causa do acontecimento não se encontra nem numa coisa nem na outra, e sim na união das duas.
Ou, em outras palavras, a noção de causa é inaplicável para o fenômeno que estamos examinando.
Em última análise, chegamos ao círculo da eternidade, à última fronteira que a razão humana alcança no domínio do pensamento, quando não está brincando com seu assunto. A eletricidade produz o calor, o calor produz a eletricidade. Os átomos se atraem. Os átomos se repelem.
Ao falar sobre a ação recíproca do calor e da eletricidade e sobre os átomos, não podemos dizer por que isso acontece e dizemos que é assim porque é inconcebível de outra forma, porque tem de ser assim, que isso é uma lei. O mesmo se aplica aos fenômenos históricos. Por que ocorre a guerra ou a revolução? Não sabemos; só sabemos que, para concretizar uma ou outra ação, as pessoas se combinam numa determinada relação, e todos participam; e dizemos que é assim porque é inconcebível de outra forma, que isso é uma lei.
VIII
Se a história tivesse a ver com os fenômenos exteriores, bastaria um decreto dessa lei simples e evidente e poríamos fim à nossa discussão. Mas a lei da história tem a ver com o ser humano. Uma partícula de matéria não pode nos dizer que ela não sente de forma alguma a necessidade de atração e de repulsão e que isso é falso; já a pessoa, que é o objeto da história, diz de forma direta: eu sou livre e por isso não estou sujeito às leis.
Embora não declarada, a presença da questão do livre-arbítrio do homem é sentida a cada passo da história.
Todos os historiadores que refletiram a sério, querendo ou não, chegaram a tal questão. Todas as contradições, as obscuridades da história e o caminho falso trilhado por essa ciência têm por base apenas a falta de solução para essa questão.
Se a vontade de cada pessoa fosse livre, ou seja, se cada pessoa pudesse agir como quisesse, a história inteira seria uma série de acasos desconexos.
Mesmo se uma pessoa entre milhões num período de milhares de anos tivesse a possibilidade de agir de forma livre, ou seja, como quisesse, é evidente que um ato livre de tal pessoa, contrário às leis, aniquilaria a possibilidade da existência de quaisquer leis para toda a humanidade.
Se existir ainda que só uma lei regendo as ações das pessoas, então não pode existir vontade livre, pois a vontade das pessoas tem de estar sujeita a essa lei.
Nessa contradição se encerra a questão sobre o livre-arbítrio, da qual se ocuparam, desde os tempos mais antigos, as melhores inteligências da humanidade e que, desde os tempos mais antigos até hoje, conservou toda a sua enorme relevância.
A questão consiste em que, encarando o homem como objeto de observação de qualquer ponto de vista — teológico, histórico, ético, filosófico —, descobrimos a lei geral da necessidade, à qual ele está sujeito, como todas as criaturas. Já encarando o homem a partir de nós mesmos, como aquilo de que temos consciência, nos sentimos livres.
Tal consciência é uma fonte de autoconhecimento totalmente separada e independente da razão. Por meio da razão, o homem observa a si mesmo; porém só se conhece por meio da consciência.
Sem a consciência de si é inconcebível qualquer observação e qualquer aplicação da razão.
A fim de compreender, observar, concluir, o homem precisa antes ter consciência de si como uma pessoa viva. Uma pessoa não se reconhece a não ser como alguém que quer, ou seja, que tem consciência de sua vontade. E essa vontade, que constitui a essência de sua vida, a pessoa a entende e só pode entendê-la como livre.
Se, ao sujeitar-se à observação, a pessoa vê que sua vontade é sempre dirigida por uma única lei (se a pessoa observa a necessidade de se alimentar, ou a atividade do cérebro, ou o que quer que seja), ela não consegue entender essa direção sempre única de sua vontade senão como uma restrição de sua vontade. O que é livre não pode sofrer restrição. A vontade da pessoa lhe parece restrita exatamente porque a pessoa tem consciência de sua vontade apenas como livre.
Você diz: eu não sou livre. Mas eu levanto e abaixo o braço. Todos entendem que essa resposta ilógica é uma demonstração incontestável de liberdade.
Tal resposta é uma expressão da consciência não sujeita à razão.
Se a consciência da liberdade não fosse uma fonte de autoconhecimento separada e independente da razão, ela estaria subordinada à razão e à experiência; mas na realidade tal subordinação nunca existe e é inconcebível.
Uma série de experiências e de raciocínios prova para cada pessoa que, como objeto de observação, ela está sujeita a determinadas leis, e a pessoa se submete a elas e nunca luta contra a lei da gravidade ou da impenetrabilidade da matéria, uma vez que as aprendeu. No entanto, a mesma série de experiências e de raciocínios prova para a pessoa que a liberdade completa, que ela reconhece em si, é impossível, que todas as suas ações dependem de sua organização, de seu caráter e dos motivos que agem sobre ela; mas a pessoa nunca se submete às deduções de tais experiências e raciocínios.
Tendo aprendido pela experiência e pelo raciocínio que uma pedra cai, a pessoa acredita nisso de modo indiscutível e em todos os casos espera o cumprimento da lei que ela aprendeu.
Porém, tendo aprendido também de modo indiscutível que sua vontade está sujeita a leis, a pessoa não acredita nisso e não consegue acreditar.
Por mais vezes que a experiência e o raciocínio demonstrem para a pessoa que, nas mesmas condições, com o mesmo caráter, ela fará o mesmo que fez antes, a pessoa, mesmo empreendendo mil vezes nas mesmas condições, com o mesmo caráter, uma ação que sempre termina da mesma forma, sente-se incontestavelmente segura de que pode agir da maneira que quiser, como era antes da experiência. Toda pessoa, um selvagem e um pensador, por mais que a experiência e o raciocínio lhe demonstrem de forma irresistível que é impossível conceber duas ações exatamente nas mesmas condições, sente que sem essa noção absurda (que constitui a essência da liberdade) ela não consegue conceber a vida. Sente que, por mais que seja impossível, isso existe; pois sem tal noção de liberdade ela não só não entenderia a vida como não poderia viver nenhum momento sequer.
E não poderia porque todos os esforços das pessoas, todas as motivações para a vida, são apenas esforços de um aumento da liberdade. A riqueza e a pobreza, a glória e a obscuridade, o poder e a servidão, a força e a fraqueza, a saúde e a doença, a instrução e a ignorância, o trabalho e o ócio, a saciedade e a fome, a bondade e a maldade são apenas graus maiores ou menores de liberdade.
Para uma pessoa, imaginar a si mesma sem liberdade é o mesmo que se imaginar alguém privado de vida.
Se a noção de liberdade se apresenta à razão como uma contradição absurda, tal como a possibilidade de executar dois atos num mesmo momento do tempo ou uma ação sem causa, isso apenas prova que a consciência não está sujeita à razão.
Essa consciência da liberdade, inabalável, incontestável, não sujeita à experiência nem ao raciocínio, identificada por todos os pensadores e sentida por todas as pessoas, sem exceção, a consciência sem a qual é inconcebível qualquer imagem de um ser humano, constitui o outro lado da questão.
O ser humano é uma criação de um Deus Todo-Poderoso, benevolente e onisciente. Então o que vem a ser o pecado, conceito que deriva da consciência da liberdade da pessoa? Eis a questão da teologia.
Os atos das pessoas estão sujeitos a leis gerais invariáveis, expressas pela estatística. Então em que consiste a responsabilidade da pessoa perante a sociedade, conceito que deriva da consciência da liberdade? Eis a questão do direito.
As ações de uma pessoa decorrem do caráter congênito e dos motivos que agem sobre ela. O que é a consciência e o sentido do bem e do mal das ações decorrentes da consciência da liberdade? Eis a questão da ética.
A pessoa, em ligação com a vida geral da humanidade, vê-se sujeita às leis que determinam esta vida. Mas essa mesma pessoa, independentemente de tal ligação, se imagina livre. Como se deve encarar a vida passada dos povos e da humanidade — como um fruto da ação livre ou não livre das pessoas? Eis a questão da história.
Só em nossa época autoconfiante, de popularização do conhecimento, graças à arma poderosa da ignorância que é a difusão de textos impressos, a questão do livre-arbítrio foi conduzida para um terreno onde a questão nem sequer pode ser formulada. Em nossa época, a maioria das chamadas pessoas avançadas, ou seja, um bando de ignorantes, tomou os trabalhos dos naturalistas, que se ocuparam só de um lado da questão, como a solução da questão em seu todo.
Não existe alma nem liberdade, porque a vida da pessoa se exprime pelos movimentos musculares, mas os movimentos musculares são condicionados pela atividade nervosa; a alma e a liberdade não existem porque nós, num período indeterminado de tempo, viemos do macaco — falam, escrevem e imprimem eles, sem desconfiar sequer por um instante que, milhares de anos atrás, essa mesma lei da necessidade que com tamanho esforço eles se empenham em demonstrar agora, por meio da fisiologia e da zoologia comparada, não só era reconhecida por todas as religiões e por todos os pensadores, como nunca foi contestada. Não veem que o papel das ciências naturais nessa questão consiste apenas em servir de instrumento para esclarecer de um lado do problema. Pois supor que, do ponto de vista da observação, a razão e a vontade são apenas uma secreção (sécrétion) do cérebro e que a pessoa, segundo a lei geral, pôde evoluir de animais inferiores num período indeterminado de tempo, não faz mais do que explicar de um ângulo novo a verdade reconhecida por todas as religiões e teorias filosóficas milênios atrás, a saber, que do ponto de vista da razão o homem está sujeito às leis da necessidade, mas não avança nem um fio de cabelo rumo à solução da questão, que tem outro lado oposto a esse, fundado na consciência da liberdade.
Se os homens evoluíram do macaco num período indeterminado de tempo, isso é tão compreensível quanto terem os homens evoluído de um punhado de terra num determinado período de tempo (no primeiro caso, X é o tempo; no segundo, origem), e a questão sobre de que forma a consciência da liberdade do homem se une à lei da necessidade, à qual o homem está sujeito, não pode ser resolvida pela fisiologia comparada e pela zoologia, pois na rã, no coelho e no macaco podemos observar apenas a atividade muscular e nervosa, ao passo que no homem podemos observar a atividade muscular e nervosa e também a consciência.
Os naturalistas e seus adeptos, que julgam resolver essa questão, assemelham-se a estucadores a quem mandaram estucar um lado da parede de uma igreja e que, aproveitando a ausência do mestre de obras, num ímpeto de zelo, recobriram com seu estuque também as janelas, as imagens, os andaimes e as paredes ainda não devidamente consolidadas e se alegraram com isso, pois, do seu ponto de vista de estucadores, tudo ficou bem nivelado e liso.
IX
A solução da questão da liberdade e da necessidade, para a história — diante de outros ramos do conhecimento, nos quais a mesma questão é debatida —, tem a vantagem de que, para a história, essa questão diz respeito não à própria essência da vontade da pessoa, mas à representação da manifestação dessa vontade no passado e em determinadas condições.
A história, na solução dessa questão, encontra-se, em relação às demais ciências, na posição de uma ciência experimental em face das ciências especulativas.
A história tem por objeto não a própria vontade da pessoa, mas nossa representação dessa vontade.
E por isso, para a história, não existe, como para a teologia, para a ética e para a filosofia, um mistério insolúvel sobre a união das duas contradições, a liberdade e a necessidade. A história examina a representação da vida do ser humano, em que a união daquelas duas contradições já se efetuou.
Na vida real, todo acontecimento histórico, toda ação do homem é entendida de forma totalmente clara e determinada, sem a sensação da mais ínfima contradição, apesar de todo acontecimento ser representado como parcialmente livre, parcialmente necessário.
Para a solução da questão de como se unem a liberdade e a necessidade e em que consistem esses dois conceitos, a filosofia da história pode e deve seguir o caminho contrário ao seguido pelas outras ciências. Em lugar de definir em si mesmos os conceitos de liberdade e de necessidade e submeter os fenômenos da vida às definições estabelecidas, a história deve extrair uma definição dos conceitos de liberdade e de necessidade a partir da imensa quantidade de fenômenos que a ela se oferecem, sempre representados em dependência da liberdade e da necessidade.
Qualquer que seja a representação que examinemos da ação de muitas pessoas ou de uma só pessoa, nós não a entendemos senão como resultado em parte da liberdade da pessoa, em parte das leis da necessidade.
Quer falemos das migrações dos povos, ou das incursões dos bárbaros, ou das ordens de Napoleão III, ou de um ato de uma pessoa executado uma hora atrás e que consistiu em que, entre várias direções para um passeio, ela optou por uma direção — nós não vemos a menor contradição. A medida de liberdade e de necessidade que guiou os atos de tais pessoas está claramente definida para nós.
Com muita frequência, a representação da maior ou menor liberdade difere, conforme os diferentes pontos de vista de onde observamos o fenômeno; porém — sempre de maneira igual — toda ação do ser humano não se apresenta a nós senão como uma determinada união da liberdade e da necessidade. Em todo ato examinado, vemos uma determinada parcela de liberdade e uma determinada parcela de necessidade. E, sempre, quanto mais liberdade vemos num ato, tanto menos necessidade vemos nele; e quanto mais necessidade, tanto menos liberdade.
A relação da liberdade com a necessidade diminui e aumenta conforme o ponto de vista de onde se examina a ação; mas essa relação sempre permanece inversamente proporcional.
O homem que está se afogando e se agarra a outro e o afunda, ou a mãe que, esfomeada e esgotada pela amamentação do filho, rouba, ou o homem que, habituado à disciplina, por força da ordem de um superior mata um homem indefeso — tais pessoas se apresentam como menos culpadas, ou seja, menos livres e mais sujeitas à lei da necessidade para aquele que conhece as condições em que se encontram essas pessoas, e mais livres para quem não sabe que o próprio homem estava afundando, que a mãe estava faminta, que o soldado estava submetido à hierarquia etc. Da mesma forma, um homem que vinte anos atrás cometeu um assassinato, e depois disso viveu de modo tranquilo e inofensivo na sociedade, é representado como menos culpado; seu ato está mais sujeito à lei da necessidade para quem o observa da perspectiva de vinte anos, e mais livre para quem observa o mesmo ato um dia após sua execução. Assim também todo ato de um homem louco, bêbado ou fortemente perturbado é representado como menos livre e mais necessário por quem conhece o estado mental da pessoa que praticou o ato, e mais livre e menos necessário por quem não sabe disso. Em todos esses casos, aumentou ou diminuiu o conceito de liberdade e, de maneira correspondente, diminuiu ou aumentou o conceito de necessidade — conforme o ponto de vista do qual se observa o ato. E, assim, quanto maior se representa a necessidade, tanto menor se representa a liberdade. E vice-versa.
A religião, o bom senso da humanidade, a ciência do direito e a própria história entendem da mesma forma essa relação entre a necessidade e a liberdade.
Todos os casos, sem exceção, em que aumenta ou diminui nossa representação da liberdade e da necessidade têm apenas três fundamentos:
1) A relação do homem que praticou uma ação com o mundo exterior;
2) com o tempo;
3) com as causas que produziram o ato.
1) O primeiro fundamento é a relação, mais visível ou menos visível para nós, do homem com o mundo exterior, a ideia mais clara ou menos clara sobre o lugar determinado que cada homem ocupa com relação a tudo o que existe ao mesmo tempo que ele. Esse é o fundamento devido ao qual é evidente que o homem que se afoga é menos livre e mais sujeito à necessidade do que o homem que está em terra firme; é o fundamento devido ao qual as ações do homem que vive em estreita ligação com outras pessoas em locais densamente povoados, as ações do homem ligado à família, ao serviço militar, aos negócios, são representadas como incontestavelmente menos livres e mais sujeitas à necessidade do que as ações de um homem solitário e isolado.
Se observamos um homem isolado, sem sua relação com tudo o que o cerca, qualquer ato seu nos parece livre. Porém, se observarmos qualquer relação dele com o que o cerca, se observarmos seu vínculo com o que quer que seja — com um homem que fala com ele, com um livro que ele lê, com o trabalho a que ele se dedica, até mesmo com o ar que o rodeia, até mesmo com a luz que ilumina os objetos que o cercam —, veremos que cada uma dessas condições tem influência sobre ele e dirigem pelo menos um aspecto de sua atividade. E quanto mais observarmos tais influências, tanto menor será nossa representação de sua liberdade, e tanto maior será a representação da necessidade a que ele está sujeito.
2) O segundo fundamento é: as maiores ou menores relações temporárias visíveis do homem com o mundo; a ideia mais clara ou menos clara do lugar que a ação do homem ocupa no tempo. Esse é o fundamento devido ao qual a queda do primeiro homem, que teve por consequência o surgimento da espécie humana, é obviamente representada como menos livre do que uma pessoa que contrai matrimônio hoje em dia. É esse o fundamento devido ao qual a vida e a atividade das pessoas que viveram séculos atrás e estão ligadas comigo no tempo não podem me parecer tão livres quanto a vida contemporânea, cujas consequências me são ainda desconhecidas.
O grau da representação da maior ou menor liberdade e necessidade nessa relação depende do maior ou menor intervalo de tempo entre a execução do ato e seu julgamento.
Se examino um ato executado por mim um minuto atrás, aproximadamente nas mesmas condições em que me encontro agora, meu ato se apresenta a mim como incontestavelmente livre. Porém, se considero um ato praticado um mês atrás, então, como me encontro em outras condições, tenho de reconhecer que, se aquele ato não fosse praticado, muitas coisas úteis, agradáveis e até desnecessárias decorrentes daquele ato não existiriam. Se me transporto pela memória a um ato ainda mais remoto no tempo, de dez anos atrás ou mais, as consequências do meu ato me parecem ainda mais evidentes; e será difícil para mim imaginar o que teria ocorrido se não houvesse tal ato. Quanto mais eu recuar no tempo em minha memória, ou então, o que vem a dar na mesma, quanto mais eu projetar meu juízo para o futuro, tanto mais duvidoso me parecerá meu raciocínio sobre a liberdade do ato.
É exatamente o mesmo progresso da convicção sobre a participação do livre-arbítrio nos assuntos gerais da humanidade que encontramos também na história. Um acontecimento contemporâneo nos parece indiscutivelmente uma criação de todas as pessoas conhecidas; no entanto, num acontecimento mais afastado, vemos já suas inevitáveis consequências, a par das quais não conseguimos imaginar nada diferente. E quanto mais nos transportamos para o passado na observação dos acontecimentos, tanto menos eles nos parecem aleatórios.
A Guerra Austro-Prussiana nos parece uma consequência indiscutível da ação do astuto Bismarck etc.
As guerras napoleônicas, embora já de forma duvidosa, ainda nos parecem a criação da vontade de heróis; mas nas Cruzadas já vemos um acontecimento que ocupa seu lugar de forma bem determinada e sem o qual a nova história da Europa seria inconcebível, e, no entanto, para os cronistas das Cruzadas, aquele acontecimento parecia também a mera criação da vontade de algumas pessoas. No caso da migração dos povos, não passa pela cabeça de ninguém em nosso tempo que a renovação do mundo europeu dependia das atrocidades de Átila. Quanto mais recuado na história for o nosso objeto de observação, tanto mais duvidosa se torna a liberdade das pessoas que produziram os acontecimentos e tanto mais evidente se torna a lei da necessidade.
3) O terceiro fundamento é o maior ou menor acesso que temos à infinita cadeia de causas, que constitui uma exigência inevitável da razão e na qual cada fenômeno é entendido, e também na qual, por isso, cada ato do homem deve ter seu lugar determinado como uma consequência para os que o antecedem e como uma causa para os que o sucedem.
Esse é o fundamento devido ao qual nossas ações e as ações das demais pessoas nos são representadas, de um lado, tanto menos livres e mais sujeitas à necessidade quanto mais conhecidas por nós forem as leis fisiológicas, psicológicas e históricas extraídas da observação, leis a que o homem está sujeito, e quanto mais exata for a causa fisiológica, psicológica ou histórica da ação observada por nós; e, de outro lado, quanto mais simples for a própria ação observada e quanto mais complexo o caráter e a mente do homem cuja ação observamos.
Quando não compreendemos de maneira alguma as causas de um ato — se é um crime, uma virtude ou até algo indiferente ao bem e ao mal — nós, em tal ato, reconhecemos uma parcela maior de liberdade. No caso de um crime, acima de tudo exigimos um castigo para esse ato; no caso de uma virtude, valorizamos ao máximo tal ato. No caso de algo indiferente, reconhecemos uma maior individualidade, originalidade, liberdade. Se, porém, ainda que apenas uma das inúmeras causas for conhecida por nós, logo reconhecemos uma determinada parcela de necessidade e exigimos uma retaliação menor pelo delito, reconhecemos menos méritos no ato virtuoso, menos liberdade no ato que parecia original. O fato de o criminoso ter sido educado entre facínoras já atenua sua culpa. Os sacrifícios de um pai, de uma mãe, sacrifícios que compreendem a possibilidade de uma recompensa, são mais compreensíveis do que um sacrifício sem causa e por isso são representados como menos merecedores de compaixão, menos livres. Um fundador de uma seita, de um partido, um inventor nos causa menos admiração quando sabemos como e com que foi preparada sua atividade. Se tomarmos uma grande série de experiências, se nossa observação for constantemente dirigida para a busca da correlação entre causas e efeitos nas ações das pessoas, as ações das pessoas são representadas por nós como tanto mais necessárias e tanto menos livres quanto mais exatamente associarmos as consequências com as causas. Se as ações observadas forem simples e se nós, para a observação, tivermos uma enorme quantidade de tais ações, nossa representação da necessidade de tais ações será ainda mais completa. Um ato desonroso do filho de um pai desonroso, o comportamento impróprio de uma mulher que calhou de viver num determinado ambiente, um bêbado que volta a beber etc. são atos que representamos como tanto menos livres quanto mais compreensível para nós for sua causa. Já se a mesma pessoa cuja ação observamos se encontra no nível mais baixo do desenvolvimento mental, como um bebê, um louco, um idiota, nós, cientes da causa da ação e da simplicidade do caráter e da mente, já vemos uma parcela tão grande de necessidade e uma parcela tão pequena de liberdade que, tão logo conhecemos a causa que produz a ação, podemos prever o ato.
Só sobre esses três fundamentos se alicerçam a irresponsabilidade pelos crimes e a redução da culpa à luz das circunstâncias, que figuram em todas as legislações. A responsabilidade é representada como maior ou menor conforme o maior ou menor conhecimento das condições em que se encontrava a pessoa cujo ato está em julgamento, conforme o maior ou menor intervalo de tempo entre a execução do ato e seu julgamento, e conforme a maior ou menor compreensão das causas do ato.
X
Assim, nossa representação da liberdade e da necessidade diminui e aumenta gradualmente conforme a maior ou menor ligação com o mundo exterior, conforme a maior ou menor distância no tempo e a maior ou menor dependência das causas, nas quais observamos o fenômeno da vida de uma pessoa.
Assim, se observarmos uma situação em que a ligação de um homem com o mundo exterior é conhecida ao máximo, em que o período de tempo entre o julgamento e a execução do ato é o mais longo possível, e em que as causas do ato são acessíveis ao máximo, obteremos uma representação de uma necessidade máxima e de uma liberdade mínima. Porém, se observarmos um homem numa dependência mínima das condições exteriores; se sua ação foi praticada no momento mais próximo do presente e se a causa de seu ato não nos é acessível, obteremos a representação de uma necessidade mínima e de uma liberdade máxima.
Mas tanto num caso como no outro, por mais que mudemos nosso ponto de vista, por mais que esclareçamos a relação em que a pessoa se encontra com o mundo exterior, ou ainda por mais que elas nos pareçam acessíveis, por mais que o período de tempo se alongue ou se encurte, por mais que as causas sejam compreendidas ou inescrutáveis para nós, nunca conseguimos conceber nem a liberdade total, nem a necessidade total.
1) Por mais que representemos o homem como isento das influências do mundo exterior, jamais obtemos um entendimento da liberdade no espaço. Toda ação do homem é inevitavelmente condicionada por aquilo que o cerca, e até pelo próprio corpo. Eu levanto e abaixo o braço. Minha ação parece-me livre; porém, quando eu me digo: será que eu poderia levantar o braço em todas as direções?, vejo que levantei o braço na direção em que havia menos obstáculos para tal ato, obstáculos que se encontram nos corpos que me cercam e também na constituição de meu corpo. Se, entre todas as possíveis direções, escolhi aquela, eu a escolhi porque naquela direção havia menos obstáculos. Para que meu ato fosse livre, era necessário que não encontrasse nenhum obstáculo. Para representarmos um homem como livre, temos de representá-lo fora do espaço, o que obviamente é impossível.
2) Por mais que aproximemos o tempo do julgamento do tempo do ato, jamais obteremos o conceito da liberdade no tempo. Pois, se eu observo um ato praticado um segundo antes, apesar de tudo tenho de reconhecer que é um ato sem liberdade, porque o ato está contido no momento de tempo em que ele é praticado. Será que posso erguer o braço? Eu o levanto; mas me pergunto: será que posso não levantar o braço naquele momento de tempo já passado? A fim de me convencer disso, no momento seguinte não levanto o braço. Mas quando não levanto o braço não é mais aquele primeiro momento quando me fiz a pergunta sobre a liberdade. Passou o tempo, cuja passagem não posso conter, e o braço que então eu levantei, e o ar no qual eu fiz aquele movimento, já não são o ar que agora me rodeia, nem o braço com o qual não faço nenhum movimento. Aquele momento em que o primeiro movimento foi executado não pode voltar, e naquele momento eu só pude fazer um movimento, e qualquer movimento que eu tenha feito só pode ser apenas um. O fato de eu, no minuto seguinte, não ter levantado o braço não provou que posso não levantá-lo. E como meu movimento só podia ser um num momento do tempo, então ele não poderia ser nenhum outro. A fim de representá-lo como livre, é preciso representá-lo no presente, na fronteira entre o passado e o futuro, ou seja, fora do tempo. O que é impossível, e:
3) Por maior que seja a dificuldade de acesso às causas, jamais chegaremos à representação da liberdade completa, ou seja, à ausência de uma causa. Por mais que nos seja inacessível a causa da expressão de uma vontade em qualquer ato, próprio ou alheio, a primeira exigência da razão é a suposição e a busca de uma causa, sem a qual é inconcebível qualquer fenômeno. Eu levanto o braço a fim de praticar um ato independente de qualquer causa, porém o fato de eu querer praticar um ato sem causa é a causa de meu ato.
No entanto, ainda que representássemos um homem completamente isento de todas as influências, observando apenas seu ato instantâneo no presente e não provocado por nenhuma causa, teríamos de admitir um resíduo de necessidade infinitamente pequeno, igual a zero, e nem chegaríamos então ao conceito da liberdade completa de um homem; pois uma criatura que não recebe influências do mundo exterior e que se encontra fora do tempo e independente de causas já não é um ser humano.
Da mesma forma, jamais podemos representar a ação de um homem sem a participação da liberdade e sujeita apenas à lei da necessidade.
1) Por mais que aumente nosso conhecimento das condições espaciais em que se encontra uma pessoa, tal conhecimento jamais pode ser completo, porque o número de tais condições é infinitamente grande, da mesma forma como o espaço é infinitamente grande. E por isso, já que não estão determinadas todas as condições e as influências sobre uma pessoa, não existe uma necessidade completa, mas existe uma determinada parcela de liberdade.
2) Por mais que alonguemos o período de tempo do fenômeno que observamos até o tempo de seu julgamento, esse período será finito, ao passo que o tempo é infinito, e por isso também nessa relação não pode haver uma necessidade completa.
3) Por mais que seja acessível a cadeia de causas de um ato qualquer, jamais podemos conhecer toda a cadeia, pois ela é infinita, e de novo nunca obteremos uma necessidade completa.
Porém, além disso, mesmo se admitíssemos um ínfimo resíduo de liberdade igual a zero, reconheceríamos em certos casos, como, por exemplo, num homem moribundo, num feto, num idiota, a ausência completa de liberdade, e dessa forma aniquilaríamos o próprio conceito de ser humano, aquilo mesmo que estamos observando; pois, se não há liberdade, não existe o ser humano. E por isso a representação da ação do homem como sujeita apenas à lei da necessidade, sem o menor resíduo de liberdade, é tão impossível quanto a representação da ação humana completamente livre.
Assim, a fim de representar a ação do homem como sujeita apenas à lei da necessidade, sem liberdade, temos de admitir o conhecimento de uma quantidade infinita de condições espaciais, de um período de tempo infinito e de uma série de causas infinita.
A fim de representar o homem como totalmente livre, não sujeito à lei da necessidade, temos de representá-lo sozinho, fora do espaço, fora do tempo e fora da dependência das causas.
No primeiro caso, se fosse possível a necessidade sem a liberdade, chegaríamos à definição de uma lei da necessidade por meio dessa mesma necessidade, ou seja, a uma forma sem conteúdo.
No segundo caso, se fosse possível a liberdade sem a necessidade, nós chegaríamos a uma liberdade absoluta, fora do espaço, do tempo e das causas, que pelo fato mesmo de ser incondicional e não ser delimitada por nada não seria outra coisa que não um conteúdo sem forma.
Chegaríamos, em suma, aos dois fundamentos dos quais decorrem toda a concepção de mundo do homem — chegaríamos à inescrutável essência da vida e à lei que determina tal essência.
A razão diz: 1) o espaço e todas as formas que lhe dão visibilidade — a matéria — são infinitos e não podem ser concebidos de outro modo; 2) o tempo é um movimento infinito sem um momento de pausa e não pode ser concebido de outro modo; e 3) a relação entre a causa e o efeito não tem início e não pode ter fim.
A consciência diz: 1) só eu existo e tudo sou eu; portanto eu contenho o espaço; 2) eu meço o tempo que corre pelo momento imóvel do presente, o único em que tomo consciência de mim como vivo; portanto estou fora do tempo; e 3) estou fora das causas, pois sinto-me como a causa de qualquer manifestação de minha vida.
A razão exprime as leis da necessidade. A consciência exprime a essência da liberdade.
A liberdade, que nada delimita, é a essência da vida na consciência do ser humano. A necessidade sem conteúdo é a razão do ser humano em suas três formas.
A liberdade é aquilo que é observado. A necessidade é aquilo que observa. A liberdade é o conteúdo. A necessidade é a forma.
Só com a separação das duas fontes de conhecimento, relacionadas uma à outra como forma e conteúdo, alcançam-se os conceitos, mutuamente excludentes e separadamente incompreensíveis, de liberdade e de necessidade.
Só com a união deles se alcança uma representação clara da vida do ser humano.
Fora desses dois conceitos, que se determinam mutuamente em sua ligação — como forma e conteúdo —, é impossível qualquer representação da vida.
Tudo o que sabemos sobre a vida das pessoas é apenas uma determinada relação entre a liberdade e a necessidade, ou seja, entre a consciência e as leis da razão.
Tudo o que sabemos sobre o mundo exterior da natureza é apenas uma determinada relação entre as forças da natureza e a necessidade, ou entre a essência da vida e as leis da razão.
As forças da vida da natureza se acham fora de nós, não temos consciência delas, e chamamos tais forças de gravidade, inércia, eletricidade, força animal etc.; porém temos consciência das forças da vida do ser humano e as chamamos de liberdade.
Mas, assim como a força da gravidade, sentida por qualquer pessoa, é incompreensível em si mesma e só nos é compreensível se conhecemos as leis da necessidade a que ela está sujeita (desde o primeiro conhecimento de que todo corpo é pesado até a lei de Newton), assim também é incompreensível em si mesma a força da liberdade, de que qualquer pessoa tem consciência, e que só nos é compreensível se conhecermos as leis da necessidade, às quais ela está sujeita (desde o fato de que todo homem morre até o conhecimento das mais complexas leis econômicas ou históricas).
Todo saber é apenas a submissão da essência da vida às leis da razão.
A liberdade do ser humano difere de qualquer outra força porque é uma força da qual o ser humano tem consciência; mas para a razão ela não difere em nada de qualquer outra força. A força da gravidade, da eletricidade ou dos processos químicos só diferem umas das outras porque tais forças são definidas de formas diferentes pela razão. Assim também, para a razão, a força da liberdade do ser humano difere das demais forças da natureza só pela definição que a razão lhe dá. Já a liberdade sem necessidade, ou seja, sem as leis da razão que a determinam, não difere em nada da gravidade, ou do calor, ou da força do crescimento vegetativo — ela é, para a razão, apenas uma indeterminada e passageira sensação de vida.
E, assim como a essência indeterminada da força que move os corpos celestes, a essência da força do calor, da eletricidade ou a essência da força dos processos químicos, ou da força vital constituem o conteúdo da astronomia, da física, da química, da botânica, da zoologia etc., assim também a essência da força da liberdade constitui o conteúdo da história. Porém, da mesma forma como o objeto de qualquer ciência é uma manifestação dessa desconhecida essência de vida, essa mesma essência só pode ser objeto da metafísica — e assim também uma manifestação da força da liberdade das pessoas no espaço, no tempo e na dependência de causas constitui o objeto da história; a própria liberdade é objeto da metafísica.
Nas ciências experimentais, chamamos de leis da necessidade aquilo que conhecemos; o que desconhecemos, chamamos de força vital. A força vital é apenas uma expressão do resíduo desconhecido daquilo que sabemos sobre a essência da vida.
Assim também ocorre na história: aquilo que conhecemos, chamamos de leis da necessidade; o que desconhecemos, chamamos de liberdade. A liberdade, para a história, é apenas a expressão de um resíduo desconhecido daquilo que sabemos sobre as leis da vida do ser humano.
XI
A história examina as manifestações da liberdade do ser humano em relação com o mundo exterior, no tempo e na dependência das causas, ou seja, define essa liberdade por meio das leis da razão, e por isso a história só é uma ciência na medida em que a liberdade é determinada por tais leis.
Para a história, a admissão da liberdade das pessoas como uma força capaz de influenciar os acontecimentos históricos, ou seja, que não está sujeita às leis — é o mesmo que, para a astronomia, a admissão de uma força livre que move os corpos celestes.
Admitir tal coisa aniquila a possibilidade da existência de leis, ou seja, de todo e qualquer saber. Se existir ainda que seja um só corpo que se movimenta com liberdade, não existem mais as leis de Kepler e de Newton e não existe mais nenhuma representação dos movimentos dos corpos celestes. Se existir um ato humano livre, não existe mais nenhuma lei histórica e nenhuma representação dos acontecimentos históricos.
Para a história, existem linhas do movimento das vontades humanas, das quais uma extremidade se esconde no desconhecido e a outra extremidade — a consciência da liberdade das pessoas no presente — se estende no espaço, no tempo e na dependência das causas.
Quanto mais se alastra, diante de nossos olhos, essa área de movimento, tanto mais evidentes são as leis desse movimento. Apreender e determinar tais leis é a tarefa da história.
Do ponto de vista do qual a ciência encara hoje seu objeto, pelo caminho que ela hoje segue ao procurar a causa dos fenômenos na vontade livre das pessoas, é impossível a formulação de leis para a ciência, pois, por mais que delimitemos a liberdade das pessoas, assim que a reconhecemos como uma força que não está sujeita a leis, é impossível a existência de uma lei.
Só delimitando tal liberdade até o infinito, ou seja, examinando-a como uma grandeza infinitamente pequena, nos convenceremos da total inacessibilidade das causas, e então, em vez da procura das causas, a história se atribuirá a tarefa de procurar leis.
A pesquisa de tais leis já começou há muito tempo, e os novos métodos de pensamento que a história tem de adotar são elaborados ao mesmo tempo que ocorre a autodestruição rumo à qual a história antiga avança, quando subdivide cada vez mais as causas dos fenômenos.
Todas as ciências humanas seguiram também tal caminho. Ao chegar ao infinitamente pequeno, a matemática, a mais exata das ciências, abandona o processo de subdivisão e marcha rumo a um novo processo de soma de incógnitas infinitamente pequenas. Renunciando ao conceito de causa, a matemática procura a lei, ou seja, a propriedade comum a todas as incógnitas infinitamente pequenas.
Embora numa outra forma, mas pelo mesmo caminho de pensamento, também seguiram as demais ciências. Quando Newton formulou a lei da gravidade, não disse que o Sol ou a Terra tinham a faculdade da gravidade; disse que todos os corpos, desde o maior até o mais ínfimo, têm a faculdade de atrair uns aos outros, ou seja, deixando de lado a questão da causa do movimento dos corpos, ele formulou uma faculdade comum a todos os corpos, desde os infinitamente grandes até os infinitamente pequenos. O mesmo fazem as ciências naturais: deixando de lado a questão da causa, elas procuram leis. No mesmo caminho se encontra a história. E, se a história tem por objeto a pesquisa do movimento dos povos e da humanidade, e não a descrição de episódios da vida das pessoas, ela deve deixar de lado o conceito de causa e procurar as leis comuns a todos os elementos de liberdade infinitamente pequenos, iguais e indissoluvelmente ligados entre si.
XII
Desde que foi descoberta e provada a lei de Copérnico, a simples admissão de que não é o Sol que se move, e sim a Terra, aniquilou toda a cosmografia dos antigos. Talvez fosse possível, uma vez refutada a lei, conservar o antigo conceito do movimento dos corpos, porém, como ela não foi refutada, seria impossível, pelo visto, prosseguir o estudo dos mundos ptolomaicos. No entanto, mesmo após a descoberta da lei de Copérnico, os mundos ptolomaicos continuaram a ser estudados por muito tempo.
Desde que o primeiro homem disse e provou que a quantidade de nascimentos ou de crimes está subordinada a leis matemáticas, e que determinadas condições geográficas e político-econômicas determinam esta ou aquela forma de governo, e que determinadas relações da população com a terra produzem os movimentos dos povos — desde então, foram destruídas, a rigor, as bases sobre as quais se edificou a história.
Talvez fosse possível, uma vez refutadas as novas leis, conservar o conceito anterior de história, no entanto, como ele não foi refutado, pareceu impossível continuar a estudar os acontecimentos históricos como frutos da vontade livre das pessoas. Pois, se tal forma de governo se estabeleceu ou se tal movimento de um povo se executou devido a determinadas condições geográficas, etnográficas ou econômicas, a vontade das pessoas que representamos como as determinantes da forma de governo ou como os motores do movimento de um povo já não pode ser vista como uma causa.
E, no entanto, a história antiga continua a ser estudada em pé de igualdade com as leis da estatística, da geografia, da economia política, da filologia comparada e da geologia, frontalmente opostas aos seus postulados.
Na filosofia física, houve por muito tempo e de modo obstinado uma luta entre a visão antiga e a nova. A teologia pôs-se em guarda na defesa da visão antiga e acusou a nova de destruir a revelação. Mas, quando a verdade venceu, a teologia edificou-se de forma igualmente firme sobre o solo novo.
Assim também, em nossa época, existe há muito tempo e de forma obstinada uma luta entre a visão antiga e a visão nova da história, e a teologia também se põe na defesa da visão antiga e acusa a nova de destruir a revelação.
Num caso e no outro, de ambas as partes, a luta desperta paixões e sufoca a verdade. De um lado, aparecem o medo e a compaixão por todas as construções erguidas pelos séculos; de outro lado, existe a luta da paixão de destruir.
Para as pessoas que lutaram contra a verdade suscitada pela filosofia física, parecia que, se reconhecessem aquela verdade, seria destruída a fé em Deus, na criação do firmamento, no milagre de Josué, filho de Naum. Para os defensores da lei de Copérnico e de Newton, para Voltaire, por exemplo, parecia que as leis da astronomia demoliam a religião e ele usou a lei da gravidade como uma arma contra a religião.
Da mesma forma parece ocorrer hoje em dia: basta reconhecer a lei da necessidade, e se destrói o conceito da alma, do bem e do mal e todas as instituições governamentais e eclesiásticas construídas com base nesses conceitos.
Da mesma forma, assim como Voltaire em sua época, hoje em dia os defensores não declarados da lei da necessidade empregam a lei da necessidade como uma arma contra a religião; da mesma forma que a lei de Copérnico na astronomia, a lei da necessidade na história não só não destrói como até reforça o solo sobre o qual são construídas as instituições governamentais e eclesiásticas.
Tal como na questão da astronomia antigamente, também agora na questão da história toda a diferença de opinião está fundamentada na admissão ou na rejeição da unidade absoluta que serve de medida aos fenômenos visíveis. Na astronomia, era a imobilidade da Terra; na história, é a independência da personalidade — a liberdade.
Assim como para a astronomia a dificuldade da admissão do movimento da Terra consistia em ter de renunciar à sensação do movimento dos planetas, também para a história a dificuldade da admissão da subordinação da personalidade às leis do espaço, do tempo e das causas consiste em ter de renunciar ao sentimento imediato da independência da própria personalidade. No entanto, assim como na astronomia a opinião nova dizia: “De fato, não sentimos o movimento da Terra, porém, ao admitir sua imobilidade, chegamos a um absurdo; mas ao admitir o movimento, que nós não sentimos, chegamos às leis” — também na história a opinião nova diz: “De fato, não sentimos nossa independência, porém ao admitir nossa liberdade chegamos a um absurdo; ao admitir a própria independência em face do mundo exterior, do tempo e das causas, chegamos às leis”.
No primeiro caso, era preciso renunciar à consciência de uma inexistente imobilidade no espaço e reconhecer um movimento que nós não sentimos; no caso presente, é igualmente necessário renunciar a uma liberdade inexistente e reconhecer uma dependência que não sentimos.
FIM
1 Edward Gibbon (1737-94) e Henry Thomas Buckle (1821-62), historiadores ingleses do século xix, autores, respectivamente, de Declínio e queda do Império Romano (1776-78) e História da civilização na Inglaterra (1857-61).
2 Pierre Lanfrey (1828-77), historiador francês, autor de Histoire de Napoléon I.
3 Georg Gottfried Gervinus (1805-71) e Friedrich Christoph Schlosser (1776-1861), historiadores alemães do século xix.
4 O tsar Ivan, o Terrível (1530-84).
5 Andrei Kúrbski (1528-83), um dos boiardos que se opuseram às reformas de Ivan, o Terrível.
6 Godofredo de Bulhão (1060-1100), líder da primeira Cruzada.
7 Ou Pedro de Amiens (1053-1115), líder do ramo extraoficial da primeira Cruzada, chamada de Cruzada dos Mendigos.
LISTA DE PERSONAGENS E FATOS HISTÓRICOS
Alexandre I (1777-1825): imperador da Rússia de 1801 a 1825. Filho de Paulo I e neto de Catarina II, a Grande, que o enviou ao exterior para que fosse educado e fez dele seu herdeiro em 1796. Seu reinado foi marcado por uma política externa flutuante e pelas lutas com Napoleão. A partir de 1818 seu governo assume uma postura política considerada retrógrada, favorecendo o surgimento de sociedades secretas. Morto por conta da malária que contraiu durante uma viagem de inspeção, foi sucedido por seu irmão, Nicolau I.
Apráksin, conde Stiepan Stiepánovitch (1757-1827): general de cavalaria. Participou da Guerra Russo-Turca entre 1787 e 1791. Foi governador de Smolensk de 1803 a 1807. Entre 1807 e 1808 retornou ao Exército para, de novo, combater os turcos. Em 1809 retirou-se definitivamente para Moscou, onde passou o resto da vida.
Araktchéiev, Aleksei Andréievitch (1769-1834): comandou um batalhão do regimento de Preobrajénski na época de Paulo I, que também o nomeou como general e conde. Amigo do imperador Alexandre, foi seu ministro da Guerra entre 1808 e 1825.
Arkhárov: família nobre de Moscou. Ivan Petróvitch Arkhárov gozava de renome por sua larga hospitalidade.
Armfeldt, Gustaf Mauritz (1757-1814): general e homem de Estado sueco. Acusado de traição, fugiu para a Rússia. Foi membro do Conselho de Estado a partir de 1811. Depois de conspirar contra Speránski, tornou-se um dos homens mais próximos a Alexandre, acompanhando-o em 1812, na ocasião em que ele esteve no Exército.
Asch, barão Kazímir Ivánovitch: governador de Smolensk, de 1807 a 1822.
Auersperg von Mattern (1740-1822): marechal de campo austríaco. Caiu na armadilha armada por Murat na ponte de Thabor. A tomada dessa ponte pelos franceses acarretou a ocupação de Viena por Napoleão.
Austerlitz, batalha de: travada no dia 2 de dezembro de 1805 (20 de novembro no calendário juliano), é considerada uma das maiores vitórias de Napoleão. A derrota sofrida pelo exército austro-russo, liderado pelo imperador Alexandre, é justificada pela tática militar do imperador francês, que atraiu e derrotou seus inimigos simulando que batia em retirada.
Baggovut, Karl Fiódorovitch (1761-1812): general do Exército russo. Participou na Guerra Russo-Turca, em 1787. Juntou-se às tropas de Bennigsen, em 1806, lutando em Pultusk, em dezembro daquele ano. Destacou-se em Borodinó por mover-se do flanco direito do exército russo até o esquerdo para reforçar as tropas de Bagration. Morto na batalha de Tarútino, em 1812.
Bagration, príncipe Piotr Ivánovitch (1765-1812): general russo. Participou de quase todas as batalhas das campanhas de 1805 a 1807, destacando-se em Austerlitz, onde combateu os batalhões comandados por Lannes e Murat. Em 1812, comandou o segundo exército ocidental. Ferido gravemente durante a batalha de Borodinó, morreu dias depois.
Balachov, Aleksandr Dimítrievitch (1770-1837): estadista russo. Foi chefe da polícia de Moscou entre 1805 e 1807 e governador militar de Petersburgo entre 1809 e 1810. Tornou-se membro do Conselho de Estado em 1810. Acompanhou Alexandre em Vilna, em 1812, levando a carta do imperador a Napoleão. A partir de 1819, foi governador de várias cidades, entre elas Tula e Riazan.
Barclay de Tolly, príncipe Mikhail Bogdánovitch (1761-1818): marechal de campo russo, de origem escocesa. Participou da Guerra Russo-Turca entre 1788 e 1789 e da campanha da Polônia, onde recebeu a Cruz de São Jorge. Foi general em chefe do Exército russo em 1809, durante a campanha da Finlândia, e ministro da Guerra a partir de 1810. No início de 1812 foi general em chefe do Exército novamente, até Alexandre substituí-lo por Kutúzov.
Bassano, duque Hugues-Bernard Maret (1763-1839): estadista francês e jornalista. Em 1800 assumiu o comando do Moniteur, o jornal oficial do Estado francês. Tornou-se ministro do Exterior em 1811.
Beauharnais, Eugène Rose de (1781-1824): vice-rei da Itália, duque de Lichtenberg, príncipe do Império e enteado de Napoleão I, que o adotou em 1806. Participou da batalha de Borodinó e de Malo Iaroslávets. Comandava, em 1812, o quarto corpo do exército francês.
Beausset, Louis-François-Joseph (1770-1835): escritor e cortesão francês. Em 1805, tornou-se prefeito do palácio de Napoleão e acompanhou o imperador em suas campanhas até 1812. Seu livro Mémoires anecdotiques sur l’intérieur du palais é um interessante registro desse período.
Belliard, Augustin-Daniel (1769-1832): general francês, embaixador em Viena e Bruxelas. Chefe do Estado-Maior dos exércitos de Murat entre 1805 e 1808, lutou contra a Áustria, a Rússia e a Prússia, sendo recompensado com o governo de Madri. Participou da campanha na Rússia em 1812, novamente sob o comando de Murat.
Bennigsen, conde Leónti Leóntievitch (1745-1826): tenente-geral no governo de Paulo I, foi um dos líderes da conspiração que pretendia tirá-lo do poder. Não sofreu, contudo, represálias durante o governo de Alexandre, tornando-se governador militar de Vilna em 1801. Como general da cavalaria, em 1806 conquistou uma vitória sobre os franceses em Pultusk. Em 1807, tornou-se comandante em chefe do Exército russo, mas perdeu o cargo devido às derrotas sofridas pelo Exército em Friedland. Exilado até 1812, voltou ao exército e foi contra o abandono de Moscou pelas tropas russas. Por conta dos desentendimentos com Kutúzov foi afastado do Exército no mesmo ano.
Berlim, entrevista de: entre Alexandre I e o rei da Prússia, Frederico III, no momento da coligação contra a França, em 1805.
Bernadotte, Jean-Baptiste (1764-1844): marechal francês. Participou da batalha de Austerlitz e foi eleito em 1810 o sucessor de Carlos XII no trono sueco. Aliou-se à Rússia contra a França em 1813. Tornou-se rei da Suécia e da Noruega (1818-44), sob o nome de Carlos XIV ou Carlos João.
Berthier, Louis-Alexandre (1753-1815): marechal francês. Foi comandante do Estado-Maior dos exércitos de Napoleão, nas guerras de 1794 a 1814, destacando-se nas campanhas de Austerlitz, de Iena e de Friedland. Depois da queda de Napoleão, aliou-se a Luís XVIII e, em 1814, acompanhou-o em sua entrada em Paris.
Bessières, Jean-Baptiste, duque da Istria (1768-1813): marechal francês. Em 1796 foi capitão de Napoleão na campanha da Itália. Comandou a cavalaria da guarda entre 1805 e 1807 e a guarda e o corpo de cavalaria em 1812, durante a batalha de Borodinó e a retirada de Moscou.
Borodinó, batalha de: batalha travada entre o exército francês comandado por Napoleão e o exército russo, comandado por Kutúzov, na aldeia de Borodinó, no dia 7 de setembro de 1812 (26 de agosto no calendário juliano). Considerada, do ponto de vista militar, uma batalha sem grandes manobras táticas e sem vencedores, ainda assim é vista como a mais importante da campanha de 1812 por causa do grande número de baixas dos exércitos e pelas suas consequências imediatas. Após o confronto, o exército russo bateu em retirada para Moscou, abandonando-a, em seguida, aos franceses, que depois de ocupá-la acabaram se retirando da Rússia.
Broussier, Jean-Baptiste (1766-1814): general francês. Participou de numerosas batalhas na campanha da Rússia, entre elas a de Borodinó e de Malo Iaroslávets.
Buxhöwden, conde Fiódor Fiódorovitch (1750-1811): general do Exército russo, participou da Guerra Russo-Sueca (1788-90). Comandou um corpo do Exército no início da campanha de 1806-7 e tomou parte na batalha de Austerlitz. Rival de Bennigsen, retirou-se para Riga depois que este se tornou comandante em chefe do Exército, em 1807.
Catarina II, a Grande (1729-96): imperatriz russa entre 1762 e 1796. Seu reinado revitalizou a Rússia, que se expandiu e se modernizou, tornando-se uma das maiores potências da Europa.
Caulaincourt, Armand-Augustin-Louis (1772-1821): general e diplomata francês. Enviado por Napoleão, foi embaixador em Petersburgo, de 1807 a 1811, com o objetivo de manter em vigor o tratado de Tilsit e espionar o governo russo. Acompanhou Napoleão durante a campanha de 1812.
Chevardinó, batalha de: primeiro grande combate entre franceses e russos na campanha de 1812, ocorrido em 5 de setembro de 1812 (24 de agosto no calendário juliano), na aldeia de Chevardinó. Nessa batalha, com muitas perdas para os dois exércitos, os franceses conquistaram a fortificação erguida pelos russos na colina de Chevardinó.
Chichkóv, Aleksandr Semiónovitch (1754-1841): estadista russo, sucedeu Speránski como secretário de Estado. Autor da carta que sugeria ao tsar o afastamento das tropas e a volta para Moscou, em 1812.
Claparède, Michel Marie (1774-1841): general francês. Participou das batalhas de Ulm, Austerlitz e Pultusk. Chefe de um corpo do Exército polonês durante a campanha de 1812, esteve na batalha de Borodinó.
Clausewitz, Karl von (1780-1831): considerado um dos grandes estrategistas militares e teóricos da guerra. Em 1804 tornou-se ajudante de ordens do príncipe Augusto da Prússia. Demitiu-se do cargo que ocupava em 1811 como forma de protesto quando Napoleão forçava a Prússia a dar passagem a seu exército para invadir a Rússia. Esteve a serviço da Rússia entre 1812 e 1814. Escreveu Vom Kriege [Da guerra], obra publicada postumamente.
Clube Inglês: clube aristocrático de Moscou, fundado em 1770.
Compan, Jean Dominique (1769-1845): general francês. Logo após ser promovido a general, feriu-se na batalha de Austerlitz. Na campanha de 1812, lutou em Smolensk, Borodinó e Malo Iaroslávets.
Corvisart des Marets, barão Jean-Nicolas (1755-1821): professor, em 1797, no Collège de France, fez renome como cardiologista. Em 1804 foi nomeado médico de Napoleão e o acompanhou em todas as suas campanhas, inclusive em seu exílio em Santa Helena.
Czartoryski, príncipe Adam (1770-1861): estadista polonês. Íntimo de Alexandre no início de seu governo, tornou-se ministro do Exterior da Rússia entre 1804 e 1806. Acompanhou o imperador russo no Congresso de Viena.
Davídov: célebre família de nobres de Moscou.
Davout, Louis Nicolas, duque de Eckmühl (1770-1824): marechal francês. Homem de confiança de Napoleão. Célebre pela crueldade com seus subordinados.
Dessaix, Joseph Marie (1764-1834): general francês. Comandava uma divisão do Exército francês na campanha de 1812. Participou da batalha de Borodinó, foi ferido e passou o comando ao general Rapp.
Dezoito de Brumário: golpe de Estado que iniciou a ditadura napoleônica na França. Ao derrubarem o Diretório, os idealizadores do golpe criaram o Consulado, estabelecendo um novo governo no país. O general Napoleão Bonaparte assumiu o cargo de primeiro-cônsul.
Dokhtúrov, Dmítri Serguéievitch (1759-1816): general do Exército russo. Participou da Guerra Russo-Sueca (1788-90). Durante a campanha de 1805, comandou uma das colunas do Exército russo, destacando-se nas batalhas de Krems e de Austerlitz. Durante a campanha de 1812, defendeu Smolensk e destacou-se em Borodinó, liderando o segundo exército ocidental no lugar de Bagration.
Dolgorúkov, príncipe Iúri Vladímirovitch (1740-1830): general russo. Aristocrata dignitário na época da imperatriz Catarina II, foi membro do Conselho de Estado sob Paulo I, em 1799, e ajudante de ordens de Alexandre I.
Dórokhov, Ivan Semiónovitch (1762-1815): general russo e famoso guerrilheiro. Tomou parte nas campanhas da Turquia, de 1806 a 1807. Comandou, em 1812, uma das brigadas do primeiro exército e depois um destacamento de guerrilheiros, que se distinguiu durante a retirada dos franceses.
Duque d’Enghien, Louis Antoine Henri de Bourbon-Condé (1772 -1804): príncipe e militar francês. Em 1804, tem seu nome ligado a um grupo de conspiradores, entre eles Jean-Victor Moreau, e é aprisionado em território germânico. Foi executado por ordem de Napoleão, ato que prejudicou a relação do imperador com o papa Pio VII e com a maior parte dos monarcas europeus.
Duroc, duque Gérard Christophe Miche (1772-1813): marechal francês. Considerado um dos poucos amigos de Napoleão, acompanhou-o em todas as suas campanhas, de 1805 a 1813.
Elizavieta Alekséievna (1779-1826): imperatriz da Rússia, mulher de Alexandre I.
Ermólov, Aleksei Petróvitch (1772-1861): general russo. Preso em 1799, sob acusação de conspiração contra o tsar, passou dois anos exilado até que Alexandre o restituiu ao Exército, em 1801. Durante a campanha de 1805 distinguiu-se em Amstetten e Austerlitz, e foi promovido a coronel em 1806. Tornou-se chefe do Estado-Maior do Exército na campanha de 1812.
Finlândia, guerra da: também conhecida como Guerra Russo-Sueca, foi um conflito ocorrido entre a Suécia e o Império russo em 1808-9. O território da Finlândia, até então pertencente à Suécia, tornou-se, em teoria, um grão-ducado autônomo ligado à Rússia. A ocupação da Finlândia interessava à Rússia pois afastaria Petersburgo da fronteira com outros países.
Francisco I (1768-1835): filho de Leopoldo II e de Maria Luísa de Bourbon, Francisco I da Áustria foi o último imperador do Sacro Império Romano-Germânico, desintegrado em 1806 em consequência das guerras napoleônicas. Sogro de Napoleão, aliou-se à Inglaterra e à Rússia contra ele. Depois da derrota de Napoleão em 1814 e, após o Congresso de Viena em 1815, Francisco recobrou grande parte de seus territórios.
Friedland, batalha de: travada em 1807 entre o exército de Napoleão e o russo, sob o comando de Bennigsen. Depois da vitória em Austerlitz, Napoleão enfrentou e derrotou o exército da Prússia na batalha de Iena, em 1806, e em 1807 os russos rumaram em direção à Prússia para juntar forças contra Napoleão, sendo interceptados e derrotados pelos franceses em Friedland. O tratado de Tilsit foi assinado, estabelecendo a paz entre franceses e russos e a promessa de Napoleão de não interferir no caso de uma invasão russa à Finlândia. A invasão ocorreu no ano seguinte, causando a guerra da Finlândia.
Gazeta de Hamburgo: periódico fundado em 1792, que informava o público russo a respeito dos principais acontecimentos europeus.
Glinka, Serguei Nikoláievitch (1775-1847): fundador de O Mensageiro Russo, publicação de tendência patriótica editada em Moscou de 1808 a 1822. Em 1812, quando Napoleão invadiu a Rússia, Glinka tornou-se um dos mais ativos e influentes oradores públicos, incentivando o povo a erguer-se contra os franceses.
Golítsin, príncipe Aleksandr Nikoláievitch (1773-1844): estadista russo, foi procurador-geral do Santo Sínodo em 1803 e ministro da Instrução Pública de 1816 a 1824.
Hardenberg, Karl August von Hardenberg (1750-1822): estadista prussiano, foi ministro do Exterior entre 1803 e 1806. Odiado por Napoleão, uma das condições dos termos de concessão para a Prússia pelo Tratado de Tilsit foi justamente a demissão de Hardenberg.
Haugwitz, conde Christian August Heinrich Curt von (1752-1832): estadista prussiano, foi ministro do Exterior em 1802. Indicou Hardenberg como seu sucessor.
Iena, batalha de: travada em 14 de outubro de 1806, em Iena, na Prússia, entre o exército de Napoleão e o da Prússia. A Prússia ficou sob o domínio de Napoleão até 1812.
Ismail: fortaleza turca no rio Danúbio. Durante a Guerra Russo-Turca de 1787-91, travada pelo Império Otomano na tentativa de recuperar os territórios perdidos para a Rússia na Guerra Russo-Turca de 1768-74, foi tomada de assalto pelo Exército russo em 1791, sob o comando de Suvórov e com a participação de Kutúzov.
Junot, Jean-Andoche, duque de Abrantès (1771-1813): general francês. Próximo a Napoleão desde 1793, foi afastado do Exército por este, em 1812, acusado de permitir a retirada do exército russo após a batalha de Smolensk.
Kaissárov, Paíssi Serguéievitch (1783-1844): general russo. Foi ajudante de ordens de Kutúzov durante a campanha e chefe de um destacamento de guerrilheiros em 1813.
Kamiénski, conde Nikolai Mikháilovitch (1777-1811): general russo. Na campanha de 1805 lutou sob as ordens de Buxhöwden. Distinguiu-se em Austerlitz, onde seu regimento sofreu enormes baixas e onde sobreviveu a uma bala de canhão que acertou seu cavalo. Em 1807, participou da campanha da Polônia. Em 1810, substituiu Bagration como comandante do Exército na Moldávia, na campanha contra os turcos.
Kamiénski, Mikhail Fedótovitch (1738-1809): marechal de campo russo. Destacou-se na Guerra Russo-Turca de 1769-74. Foi nomeado governador militar de Petersburgo em 1802 e demitido no mesmo ano. Por causa das divergências entre Buxhöwden e Bennigsen, Alexandre nomeou-o general em chefe do Exército russo, em 1806. Kamiénski serviu apenas por poucos dias devido a problemas de saúde. Morreu assassinado por seus servos.
Karamzin, Nikolai Mikháilovitch (1766-1826): escritor russo, autor de novelas sentimentais, das quais a mais célebre é Pobre Liza.
Kliutcharióv, Fiódor Petróvitch (1754-1820): escritor de tendência mística e franco-maçom. Funcionário dos correios a partir de 1799, indispôs-se com Rostoptchin por interceder em favor de Verecháguin e foi demitido sob acusação de difundir ideias martinistas. Alexandre I o nomeou senador em 1815.
Konovnítsin, Piotr Petróvitch (1764-1822): general russo. Na campanha de 1812 comandou uma divisão e depois a retaguarda do Exército russo, combatendo junto a Kutúzov em Tarútino, Malo Iaroslávets e Viazma. Foi ministro da Guerra de 1815 a 1819.
Konstantin Pavlovítch, grão-duque (1779-1822): irmão de Alexandre I. Comandante da guarda em 1805, participou da batalha de Austerlitz, regressando depois a Petersburgo. Esteve no início da campanha de 1812, mas foi afastado por Kutúzov.
Kotchubei, conde Viktor Pavlovítch (1768-1834): estadista russo. De 1802 a 1807, colaborou na elaboração das amplas reformas na administração pública do Império russo e foi ministro do Interior. Protetor de Speránski, em 1810 foi membro do Conselho de Estado.
Kozlóvski, Mikhail Timofiéievitch: comandante de um batalhão do regimento de Preobrajénski entre 1807 e 1810.
Krems, batalha de: vencida pelos russos, comandados por Kutúzov, em 11 de novembro de 1805 (30 de outubro no calendário juliano), a batalha conteve o avanço de Napoleão sobre Viena. Conhecida também como batalha Dürrestein.
Kurákin, Aleksandr Boríssovitch (1752-1818): diplomata russo, embaixador em Viena, de 1806 a 1808, depois em Paris, de 1808 a 1812.
Kutáissov, Aleksandr Ivánovitch (1784-1812): general russo. Destacou-se nas batalhas de 1806 a 1807. Entre 1809 e 1811 viajou pela Europa, aprendendo seis línguas e estudando artilharia. Em 1812, retornou ao Exército e foi comandante de artilharia. Morreu na batalha de Borodinó.
Kutúzov, príncipe Mikhail Ilariónovitch (1747-1813): figura central da resistência russa à invasão napoleônica. Filho de um general e senador, Kutúzov ingressou ainda jovem no Exército, lutando na Polônia, de 1764 a 1769. Entre 1770 e 1774, combateu os turcos e foi promovido a tenente-coronel, após perder um dos olhos durante uma batalha. Participou da Guerra Russo-Turca de 1787-91 e foi governador militar de Petersburgo entre 1801 e 1802. Nomeado comandante em chefe em 1805, foi ferido levemente na batalha de Austerlitz e culpado pela derrota russa. Em 1812, Alexandre nomeou-o general em chefe do Exército. Depois da batalha de Borodinó, abandonou Moscou aos franceses, mesmo contra a pressão pública. Reorganizou o Exército e combateu os franceses em Tarútino, Malo Iaroslávets e Viazma. No início de 1813 foi contra a decisão de Alexandre de continuar a guerra na Alemanha.
Langeron, conde Alexandre Louis Andrault (1763-1831): após ter servido no Exército francês e emigrado por conta da Revolução Francesa, passou a servir na Rússia em 1790. Participou da batalha de Austerlitz.
Lannes, Jean, duque de Montebello (1769-1809): marechal francês. Apesar da origem humilde, teve grande ascensão no Exército francês, participando das batalhas de 1805-6, contra a Prússia e a Áustria, e da batalha de Pultusk. Morreu na batalha de Essling.
Larrey, Dominique-Jean (1766-1842): médico e cirurgião, acompanhou Napoleão em todas as campanhas da República e do Império.
Lauriston, conde Jacques Jean Alexandre Bernard Law de (1768-1828): marechal francês. Napoleão escolheu-o como ajudante de campo, em 1800. Participou das campanhas de 1805 e de 1809. Em 1811 foi nomeado embaixador em Petersburgo.
Lemarrois, Jean-Leonard-François (1776-1836): general francês. Ajudante de campo de Napoleão até 1814.
Leppich, Franz: holandês que, em 1812, construiu um grande balão de ar com o intuito de destruir o exército de Napoleão.
Lichtenstein, príncipe Johann-Joseph de (1769-1836): marechal de campo austríaco. Liderou as forças austríacas na batalha de Austerlitz. Comandante de um corpo do Exército em 1809, lutou nas batalhas de Essling e Wagram. Participou da assinatura do tratado de Schönbrunn.
Ligne, Charles Joseph, príncipe de (1735-1814): político e escritor belga a serviço da Áustria. Morou na Rússia no tempo de Catarina II.
Lopukhin, príncipe Piotr Vassílievitch (1753-1827): governador de Iaroslavl e de Vologda, no reinado de Catarina II; ministro da Justiça no reinado de Alexandre I, de 1803 a 1810; presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros.
Mack von Leiberich, Karl (1752-1828): general austríaco, rendeu-se a Napoleão quando se viu cercado pelo Exército francês em Ulm. Essa derrota fez com que fosse levado à corte marcial e condenado a dois anos de prisão.
Magnítski, Mikhail Leontievitch (1778-1855): diretor do comitê do estatuto militar e amigo de Speránski. Fez sua carreira graças à proteção de Araktchéiev e do príncipe Golítsin.
Malo Iaroslávets, batalha de: travada entre russos e franceses em 24 de outubro de 1812 (12 de outubro no calendário juliano), em Malo Iaroslávets, distrito da província de Kaluga, durante a retirada do Exército francês. A cidade ficou em poder dos franceses, que depois tiveram que bater em retirada pela antiga estrada de Smolensk.
Mamónov, conde Aleksandr Matviéievitch Dmítriev (1758-1803): franco-maçom. Montou por conta própria, em 1812, um regimento de cavalaria. O regimento de Mamónov se distinguiu nos combates de Tarútino e de Malo Iaroslávets.
Maria Fiódorovna (1759-1828): imperatriz-mãe da Rússia. Nascida princesa de Württemberg, foi a segunda esposa do imperador Paulo I e mãe do imperador Alexandre I.
Markóv, conde Arkádi Ivánovitch (1747-1827): diplomata russo, foi embaixador em Haia, Estocolmo e Paris; de onde foi revocado a pedido de Napoleão.
Metternich, Klemens Wenzel von (1773-1859): diplomata e estadista austríaco, foi ministro do Exterior de 1809 a 1847. Presidiu o Congresso de Viena e, após a queda de Napoleão, foi um dos grandes apoiadores dos Bourbon na França.
Michaux, Alexandre, conde de Beauretour (1771-1841): coronel francês, passou do serviço da Sardenha ao da Rússia em 1805. Em 1812, foi enviado por Kutúzov para anunciar a Alexandre I o abandono de Moscou.
Milorádovitch, Mikhail Andréievitch (1771-1825): general russo, participou das batalhas de 1805 e 1806, distinguindo-se em Amstetten e na batalha de Krems. Foi governador militar de Kiev, em 1810-2, e comandou ora a vanguarda, ora a retaguarda russa, em 1812-3. Em seguida tornou-se governador de Petersburgo (1813) e foi membro do Conselho de Estado (1818).
Moreau, Jean-Victor (1763-1813): general francês. Inicialmente aliado de Napoleão, auxiliou-o durante o golpe de Estado e lutou na campanha da Itália. Tornou-se seu rival e foi exilado nos Estados Unidos. Regressou à Europa em 1813, foi apresentado por Bernadotte ao tsar e tomou parte nas derradeiras campanhas contra os franceses.
Mortier, Edouard-Adolphe Casimir, duque de Treviso (1768-1835): marechal da França. Participou de quase todas as campanhas da Revolução e do Império. Comandava uma divisão na batalha de Krems, que foi vencida por Kutúzov. Entre 1812 e 1813, comandou a guarda imperial francesa.
Mouton-Duvernet, Régis Barthélemy (1770-1816): general francês. Participou de todas as guerras da Revolução e do Império, distinguindo-se na campanha da Itália. No conselho de guerra realizado após a batalha de Malo Iaroslávets, apoiou a retirada imediata do Exército francês. Foi fuzilado em 1816, na época da Restauração.
Murat, Joachim (1767-1815): general francês, nomeado rei de Nápoles por Napoleão. Casou-se com Caroline Bonaparte, irmã mais nova do imperador.
Naríchkin, Aleksandr Lvóvitch (1760-1826): diretor dos teatros imperiais da Rússia, de 1799 a 1819.
Ney, Michel, duque de Elchingen (1769-1815): marechal francês. Apelidado de “o bravo dos bravos” por Napoleão, participou de inúmeras batalhas, entre elas Iena, Friedland e Ulm. Na campanha de 1812 lutou em Borodinó. Durante a retirada de Moscou comandou a retaguarda francesa, recebendo a alcunha de “o último francês em solo russo”.
Novossíltsev, conde Nikolai Nikoláievitch (1761-1836): estadista russo. Curador do distrito escolar de Petersburgo, de 1803 a 1804, e presidente da Academia das Ciências. Executou várias missões diplomáticas, de 1805 a 1806. Foi nomeado, em 1813, presidente do Conselho Provisório, criado para administração do grão-ducado de Varsóvia. Membro, e depois presidente, do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros.
O mensageiro russo: ver Glinka, Serguei Nikoláievitch.
Oldenburg, duque Jorge de (1784-1812): nobre alemão. Em janeiro de 1811, Napoleão apropriou-se do ducado de Oldenburg. Como o duque era casado com a irmã de Alexandre I, o ato foi visto como uma grande afronta pelos russos, sendo um dos muitos fatores que levaram ao desentendimento do tsar russo com o imperador francês. O ducado foi devolvido à família após a derrota de Napoleão.
Orlóv-Deníssov, Vassíli Vassílievitch, (1775-1843): general russo. Filho do primeiro general cossaco a receber o título de conde na Rússia, entrou para o Exército em 1789. Tornou-se coronel em 1799. Participou da campanha da Polônia em 1807 e das operações na Finlândia em 1808-9. Lutou em quase todas as batalhas da campanha de 1812, destacando-se em Tarútino.
Osterman-Tolstói, conde Aleksandr Ivánovitch (1772-1857): general russo. Entrou para o regimento de Preobrajénski em 1774. Participou da Guerra Russo-Turca de 1787-91 e das principais batalhas de 1805-9. Em 1812, comandou o quarto corpo do primeiro exército ocidental. Participou da batalha de Borodinó, onde foi seriamente ferido, retornando ao Exército em 1813.
Otchákov, sítio de: tomada da fortaleza turca de Otchákov, na embocadura do Dniepr, pelo exército russo sob o comando de Suvórov, em 1788, durante a Guerra Russo-Turca de 1787-91.
Oudinot, Nicolas Charles Marie, duque de Reggio (1767-1847): marechal francês. Comandava um corpo de granadeiros nas campanhas de 1805 e 1806.
Pahlen, conde Fiódor Petróvitch (1780-1863): diplomata russo e conselheiro secreto. Foi embaixador da Rússia em Washington e membro do Conselho de Estado.
Paulo I, Pável Petróvitch (1754-1801): pai de Alexandre I e filho de Catarina II, foi imperador da Rússia entre 1796 e 1801. Considerado autoritário, foi assassinado por um grupo de oficiais descontentes.
Paulucci, Filippo Ossípovitch, marquês (1779-1849): general ajudante de campo. Nascido em uma família de marqueses em Modena, lutou contra os franceses em 1794. Entre 1801 e 1806 serviu em Nápoles e juntou-se, brevemente, ao Exército francês em 1806. Em 1807, entrou para o Exército russo. Em 1812, foi chefe do Estado-Maior do primeiro exército. Retornou à Itália em 1830.
Pfuhl, Karl Ludwig August Friedrich von (1757-1826): general e teórico militar prussiano. Serviu no Exército da Prússia, de 1779 a 1806, e foi um dos autores do plano de guerra que culminou com a derrota do Exército prussiano para Napoleão em Iena e Auerstadt. Passou para o serviço da Rússia em 1807 e traçou, em 1812, a pedido de Alexandre I, o plano das operações contra Napoleão.
Plátov, Matviei Ivánovitch (1753-1818): general russo. Nascido em uma família de cossacos, lutou na Guerra Russo-Turca de 1787-91 e nas campanhas de 1806 e 1807, na Polônia. Em 1812 comandou um exército de cossacos e apoiou o general Bagration durante as batalhas. Em Borodinó liderou um ataque da cavalaria contra o flanco esquerdo dos franceses. Distinguiu-se ao liderar as tropas cossacas durante a retirada francesa.
Poniatowsky, príncipe Józef (1763-1813): general polonês. Sobrinho do rei da Polônia, foi ministro da Guerra do grão-ducado de Varsóvia em 1807. Participou da campanha de Napoleão na Rússia, em 1812, como comandante de um corpo do Exército polonês.
Potiómkin, Grigóri Aleksándrovitch (1739-91): general e político russo. Muito influente no reinado da tsarina Catarina II, a Grande, de quem foi amante por muitos anos. Participou da Guerra Russo-Turca de 1768-74.
Preobrajénski, regimento de: um dos dois primeiros regimentos de infantaria da guarda russa, ao lado do regimento de Semiónov. Formado em 1687 por Pedro, o Grande.
Pultusk, batalha de: travada entre os russos, sob o comando de Bennigsen, e os franceses, sob o comando de Lannes, em 26 de dezembro de 1806 (13 de dezembro no calendário juliano), perto da cidade de Pultusk, na Polônia. Os russos resistiram aos ataques franceses e se retiraram no dia seguinte.
Raiévski, Nikolai Nikoláievitch (1771-1829): general russo. Comandou o sétimo corpo de infantaria do exército de Bagration, no início da campanha de 1812. Na batalha de Borodinó, comandava o reduto no centro da posição russa, que recebeu o nome de reduto Raiévski. Participou das batalhas de Tarútino e Malo Iaroslávets.
Rapp, conde Jean (1773-1821): general francês. Destacou-se na campanha do Egito, em 1798, e tornou-se ajudante de campo de Napoleão em 1800 (posto que ocupou até 1814). Destacou-se na batalha de Austerlitz e salvou Napoleão de um atentado em 1809, em Viena, durante a assinatura do tratado de Schönbrunn. Participou da campanha de 1812 e foi ferido na batalha de Borodinó. Salvou a vida de Napoleão uma segunda vez, repelindo um ataque de cossacos durante a retirada francesa, e feriu-se novamente na travessia do rio Bereziná.
Razumóvski, príncipe Andrei Kirílovitch (1752-1836): diplomata russo. Em 1792, foi nomeado embaixador russo em Viena, um dos postos diplomáticos mais importantes durante a era napoleônica. Teve papel fundamental no Congresso de Viena, assegurando os direitos da Rússia sobre a Polônia. Ficou conhecido em Viena por encomendar a Beethoven, em 1806, a composição de três quartetos de corda com temas russos. Beethoven, em vez disso, incluiu temas ucranianos nos dois primeiros da série Quartetos de Corda 7-9, Opus 59 — “Razumovsky”.
Repnin, Nikolai Grigoriévitch Repnin-Volkónski, príncipe (1778-1845): general russo. Em 1805 liderou um esquadrão em Austerlitz onde foi seriamente ferido e capturado. Libertado semanas depois foi condecorado por sua bravura nessa batalha. Em 1812 liderou a nona divisão de cavalaria. Em 1815 participou do Congresso de Viena.
Rostoptchin, Fiódor Vassílievitch (1763-1826): estadista russo. Favorito de Paulo I, teve grande influência sobre o imperador, que o nomeou ministro do Exterior. Em 1799, recebeu o título de conde. Foi governador-geral de Moscou, de 1812 a 1814, e mandou imprimir, em 1812, panfletos patrióticos que ele próprio redigia, incitando a população de Moscou a defender a cidade dos franceses. Em 1815 acompanhou o imperador Alexandre I no Congresso de Viena. Foi culpado pelos incêndios de Moscou e exilado, logo após o Congresso, retornando à Rússia somente em 1825.
Ruchuk: fortaleza turca situada na margem direita do rio Danúbio. Durante a Guerra Russo-Turca de 1806-12, foi sitiada pelas tropas russas. Em julho de 1810, Kamiénski finalmente conquistou-a, trazendo grandes perdas para o Exército russo.
Rumiántsev, Nikolai Petróvitch (1754-1826): estadista russo. Senador e ministro do Comércio no reinado de Paulo I, foi depois ministro do Exterior e chanceler no reinado de Alexandre I.
Santa Aliança: aliança realizada, em 1815, entre Rússia, Prússia e Áustria com o intuito de assegurar a realização das medidas aprovadas no Congresso de Viena (1815), bem como impedir o avanço das ideias nacionalistas e constitucionalistas e combater as revoltas liberais.
Santo Sínodo: colegiado eclesiástico, criado por Pedro, o Grande, em 1721, que tinha sob sua alçada todos os assuntos espirituais. Composto de metropolitas, arcebispos e bispos designados pelo tsar. Tolstói foi excomungado por ele em 1901.
Savary, Anne-Jean-Marie-René, duque de Rovigo (1774-1833): general francês. Ajudante de campo e homem de confiança de Napoleão, a partir de 1800. Participou das campanhas de 1805 e 1807 como general de divisão.
Schmidt, general Heinrich (1743-1805): militar austríaco. Foi ajudante de Kutúzov em 1805. Morreu na batalha de Krems.
Schwartz, Fiódor Efimovitch: coronel alemão, comandante do regimento de Semiónov. Os castigos corporais e as humilhações que impunha aos soldados culminaram numa revolta, em 1820, e na consequente dissolução do regimento.
Schönbrunn, tratado de: tratado assinado pela França e pela Áustria em 14 de outubro de 1809, em Viena. Nele, a Áustria reconhecia as conquistas anteriores de Napoleão sobre outros países.
Schwartzenberg, Karl Philipp (1771-1820): marechal de campo austríaco. Em 1805 lutou em Ulm, sob as ordens de Mack. Foi embaixador em Petersburgo em 1808. Comandou um corpo do Exército austríaco em 1812. Em 1813, quando a Áustria ficou do lado dos aliados contra Napoleão, Schwartzenberg foi nomeado comandante em chefe do Exército da Boêmia.
Sébastiani, Horace (1775-1851): conde e marechal francês. Participou da batalha de Austerlitz e foi nomeado embaixador em Constantinopla, em 1806. Comandou uma divisão de cavalaria na batalha de Borodinó e foi um dos primeiros comandantes franceses a entrar em Moscou.
Semiónov, regimento de: um dos primeiros regimentos de infantaria da guarda russa, criado por Pedro, o Grande, ao lado do regimento de Preobrajénski. Revoltou-se em 1820, para protestar contra os castigos corporais infligidos pelo coronel Schwartz.
Seslávin, Alexander Nikítitch (1780-1858): general russo. Durante a campanha de 1805, serviu no exército do conde Tolstói. Em 1807, participou da campanha da Polônia. Combateu os turcos em 1810; em 1812 participou das batalhas em Smolensk e Borodinó e comandou um destacamento independente de guerrilheiros. Descobriu que os franceses haviam deixado Moscou tomando a estrada de Kaluga e os perseguiu com seu grupo.
Sociedade Bíblica: sociedade para difusão da Bíblia, fundada em Petersburgo em 1813, com numerosas ramificações em outras cidades russas. Sua atividade foi encorajada por Alexandre I, que dela era membro. Em 1824 o governo mudou subitamente de atitude e ela foi interditada por decreto de Nicolau I.
Speránski, conde Mikhail Mikháilovitch (1772-1839): estadista russo de ideias reformistas, considerado o pai do liberalismo russo. Foi encarregado por Alexandre I de redigir um projeto de Constituição. Durante muito tempo foi o principal conselheiro de Alexandre até que, em 1812, acusado de traição por pessoas próximas ao imperador, como Armfeldt e Rostoptchin, foi exilado em Níjni-Nóvgorod.
Stein, Heinrich-Friedrich-Karl (1757-1831): ministro e reformador prussiano, exilado da Alemanha por Napoleão.
Strógonov, Pável Aleksándrovitch (1774-1817): general e senador russo. Entrou para o Exército em 1779 e entre 1781 e 1790 viajou pela Rússia e pela França, onde testemunhou os eventos da Revolução Francesa. Em 1790 frequentou o Clube Jacobino e, por esse motivo, foi chamado à Rússia onde ficou sob vigilância em uma propriedade próxima a Moscou. Sob Paulo I, em 1792, tornou-se junker. Quando Alexandre assumiu o trono, Strógonov tornou-se seu confidente e convenceu-o da urgência de outorgar uma Constituição. Tornou-se senador em 1802. Durante a campanha de 1805, acompanhou Alexandre em Austerlitz e em 1812 lutou em Borodinó.
Suvórov, Aleksandr Vassílievitch (1729-1800): generalíssimo do Exército russo. Participou da Guerra dos Sete Anos, entre 1757 e 1763, e da guerra contra os turcos em 1773-4. Em 1799, esteve nas campanhas da Itália e da Suíça contra a França, à frente do exército austro-russo. Cercado nos Alpes, realizou a travessia destes, fato que o tornaria um dos mais famosos militares russos. Morreu em 1800, em Petersburgo.
Tarútino, batalha de: após a retirada de Moscou, o exército russo estabeleceu um acampamento em Tarútino, na província de Kaluga. Nesse mesmo local, no dia 18 de outubro de 1812 (6 de outubro no calendário juliano), travou-se uma batalha entre a vanguarda do exército francês, sob o comando de Murat, e o exército russo, sob o comando de Bennigsen.
Tcherníchev, Alexander Ivánovitch (1786-1857): general e estadista russo. Participou das campanhas de 1805 e 1807, distinguindo-se em Austerlitz e Friedland. Em 1808 foi enviado à França para uma série de missões diplomáticas e tornou-se próximo de Napoleão, para quem serviu em numerosas missões diplomáticas entre 1810 e 1811, tornando-se o principal espião russo em Paris. Obteve alguns dos planos franceses de invasão à Rússia e deixou a França em 1811, quando foi descoberto. Em 1812 comandou um destacamento de cavalaria na perseguição aos franceses. Foi ministro da Guerra, de 1827 a 1852, e presidente do Conselho de Estado em 1848.
Tchitchagóv, Pável Vassílievitch (1767-1849): ministro da Marinha e membro do Conselho de Estado no reinado de Alexandre I. Comandante da frota do mar Negro, em 1811. Encarregado por Alexandre I de perseguir o exército francês em retirada, permitiu que os franceses atravessassem o Bereziná, em novembro de 1812. Apesar de Kutúzov e Wittgenstein terem assumido parte da culpa, foi quase acusado de crime de alta traição por conta do fracasso da operação.
Tilsit, tratado de: assinado em 7 de julho de 1807 (25 de junho no calendário juliano), por Napoleão e Alexandre, estabeleceu a paz entre os dois países após a batalha de Friedland. Em 9 de julho (27 de junho no calendário juliano), o governo da Prússia assinou com o governo francês o mesmo tratado e perdeu quase metade de seu território.
Toll, capitão Karl Fiódorovitch (1777-1842): general russo. Participou da campanha de 1805 e de ações contra os turcos em 1806. Combateu em Borodinó, apoiou a decisão de abandonar Moscou e lutou em várias das batalhas seguintes, como Tarútino e Malo Iaroslávets. Tornou-se membro do Conselho de Estado e chefe do Exército, em 1830.
Tolstói, conde: general russo. Participou das campanhas de 1805.
Tormássov, Aleksandr Petróvitch (1752-1819): participou da Guerra Russo-Turca, de 1787-91. Em 1799, foi afastado do Exército pelo imperador Paulo I, voltando a servir um ano depois. Em 1812, comandou o terceiro exército ocidental, e em 1814 foi nomeado governador-geral de Moscou, no lugar de Rostoptchin.
Uvárov, Fiódor Petróvitch (1773-1824): general russo. Destacou-se liderando a cavalaria russa durante a batalha de Austerlitz, em 1805. Em 1807 participou da batalha de Friedland. Em 1812, durante a batalha de Borodinó, atacou, junto com Plátov, o flanco esquerdo do exército de Napoleão.
Verecháguin, Mikhail Nikoláievitch (1790-1812): filho de um negociante de Moscou, traduziu para o russo dois artigos da Gazeta de Hamburgo a respeito de Napoleão e foi acusado por Rostoptchin de crime de alta traição. Condenado a trabalhos forçados por toda a vida, foi entregue à multidão no dia da entrada dos franceses em Moscou e morto por ela.
Viázemski, príncipe Andrei Ivánovitch (1750-1807): conselheiro de Estado moscovita, frequentador do Clube Inglês e pai do escritor Piotr Andréievitch Viázemski.
Viazma, batalha de: travada em outubro de 1812, em Viazma, sede de distrito da província de Smolensk, entre o exército francês, que batia em retirada de Moscou, e a vanguarda do exército russo, comandada por Milorádovicth e Plátov.
Viazmitínov, conde Serguei Kuzmitch (1749-1819): administrador russo e governador-geral de Petersburgo em 1805, 1812 e 1816. Foi presidente do Conselho de Ministros.
Villiers: famoso médico de origem escocesa. Acompanhou Alexandre I em todas as suas campanhas, viagens e congressos.
Vinesse: célebre miniaturista. Vivia em Petersburgo em 1812.
Volkónski, príncipe Piotr Mikháilovitch (1776-1852): marechal de campo russo. Foi general ajudante de campo em 1805, primeiro no exército de Buxhöwden, depois no de Kutúzov, destacando-se em Austerlitz. Fez parte da escolta de Alexandre I, em 1812, quando o tsar esteve no Exército.
Weyrother, Franz von (1755-1806): general austríaco e teórico militar. Graças à intervenção de Kutúzov, foi nomeado chefe do Estado-Maior do Exército austríaco. Redigiu o plano da batalha de Austerlitz.
Wimpfen, Max (1770-1851): general austríaco. Participou da campanha de 1805, sob as ordens de Kutúzov.
Wintzingerode, Ferdinand Fiódorovitch (1770-1818): general e diplomata austríaco a serviço dos russos. Na campanha de 1805 distinguiu-se na batalha de Krems. Em 1812, durante a ocupação francesa, foi a Moscou para negociar com os franceses e tentar impedir que destruíssem o Krêmlin. Foi detido por eles e resgatado por cossacos perto de Vilna.
Wittgenstein, Piotr Khristiánovitch (1769-1843): marechal de campo russo, de origem prussiana. Participou da campanha de 1805, lutando em Amstetten e Austerlitz. Participou do início da Guerra Russo-Turca de 1806-12. Na campanha de 1812, comandou um corpo do Exército que defendia as estradas para Petersburgo, tornando-se conhecido como o “herói de Petropol”. Assumiu, por um breve período, o comando do exército russo, após a morte de Kutúzov, sendo substituído por Barclay de Tolly.
Woltzogen, Ludwig-Justus, barão de (1774-1845): general prussiano. Teórico militar, passou ao serviço da Rússia em 1807. Traçou, junto com Pfuhl, o plano da campanha de 1812. Acusado de traição pelos círculos militares russos.
Wrbna, conde Rudolph (1761-1823): estadista austríaco. Serviu de intermediário nas negociações entre o governo austríaco e o francês quando Viena foi tomada por Napoleão.
Württemberg, duque Aleksandr Friedrich von (1771-1833): irmão de Maria Fiódorovna e primeiro rei de Württemberg. Na campanha de 1812, lutou em Smolensk, Borodinó, Tarútino, Malo Iaroslávets e outras batalhas.
Zúbov, conde Platon Aleksándrovitch (1767-1822): favorito de Catarina II.
ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O LIVRO GUERRA E PAZ1
Liev Tolstói
Ao publicar esta obra, na qual empenhei cinco anos de trabalho ininterrupto e exclusivo, nas melhores condições de vida, eu pretendia escrever uma introdução para explicar minha visão a seu respeito e, desse modo, evitar as incompreensões que pudessem surgir entre os leitores. Eu não desejava que os leitores vissem e procurassem em meu livro aquilo que eu não quis ou não soube expressar; gostaria que voltassem sua atenção justamente para aquilo que eu queria expressar, mas em que não julguei conveniente me deter (em razão das condições do trabalho). Nem o tempo nem minha capacidade me permitiram fazer, plenamente, aquilo que eu pretendia, e aproveito a acolhida de uma revista especializada2 para, ainda que de forma incompleta e sucinta, explicar a visão do autor sobre sua obra, para os leitores a quem isso possa interessar.
1) O que é Guerra e paz? Não é um romance, muito menos uma epopeia, menos ainda uma crônica histórica. Guerra e paz é aquilo que o autor quis e conseguiu expressar, na forma em que a obra foi expressa. Tal declaração sobre o descaso do autor com respeito às formas convencionais da produção artística em prosa poderia parecer presunção, se fosse premeditada e não contasse com exemplos anteriores. A história da literatura russa, desde o tempo de Púchkin, não só apresenta muitos exemplos desse desvio das formas europeias, como não fornece sequer um exemplo contrário. Desde Almas mortas, de Gógol, até Memórias da casa dos mortos, de Dostoiévski, entre as obras artísticas em prosa que se destacam um pouco da mediocridade no período novo da literatura russa, não existe nenhuma que se enquadre totalmente na forma de romance, poema ou novela.
2) O caráter do tempo não está definido de modo suficiente em minha obra, como alguns leitores me disseram na época da publicação da primeira parte. Eu sei em que consiste esse caráter do tempo que não se encontra em meu romance: são os horrores do regime da servidão, as esposas emparedadas, os filhos adultos vergastados, Saltitchíkha3 etc.; mas esse caráter do tempo que vive em nossa mente, para mim, não é verdadeiro e eu não desejava expressá-lo. Ao estudar cartas, diários, lendas, não encontrei todos os horrores dessa violência num grau maior do que encontro hoje ou em qualquer época. Naquele tempo, as pessoas também amavam, invejavam, buscavam as verdades, as virtudes, também eram arrebatadas pelas paixões; existia a mesma complexa vida moral e mental, às vezes até mais refinada do que hoje, na classe social superior. Se em nosso entendimento se formou uma opinião sobre o caráter de arbitrariedade e a força bruta daquele tempo, é só porque, nas lendas, relatos, novelas e romances que chegaram até nós só se apresentam casos de crimes e violência. Concluir que a característica predominante daquele tempo era a violência é tão injusto quanto seria alguém que viu o topo de árvores por trás de um monte concluir que, em tal lugar, não existe nada senão árvores. Aquele tempo tem seu caráter (como qualquer outra época tem o seu), que decorre da grande alienação da esfera social superior em relação às demais classes, da filosofia dominante, das peculiaridades da educação, do hábito de usar a língua francesa etc. Tentei exprimir esse caráter o melhor que pude.
3) O emprego da língua francesa numa obra russa. Por que, em minha obra, não só os russos, mas também os franceses, falam em parte russo e em parte francês? A objeção de que as pessoas falam e escrevem em francês num livro russo se assemelha à objeção que faria um homem que olha para um quadro e nota manchas pretas (sombras) que na verdade não existem. O pintor não tem culpa se, para algumas pessoas, uma sombra que ele fez no rosto de um quadro é percebida como uma mancha preta que não existe na realidade; o pintor será culpado apenas se essas sombras forem dispostas de modo incorreto e tosco. Ao examinar a época do início do século atual, ao retratar pessoas russas de determinada sociedade e também Napoleão e os franceses, que tiveram uma participação muito direta na vida daquele tempo, sem perceber, acabei me deixando levar, mais do que o necessário, pela forma de expressão daquela modalidade do pensamento francês. Por isso, sem negar que as sombras que pus no quadro sejam provavelmente incorretas e toscas, eu desejaria apenas que aqueles que acharem muito ridículo que Napoleão fale ora em russo, ora em francês, soubessem que assim lhes parece só porque, a exemplo da pessoa que olha para um retrato, eles estão vendo não um rosto com luz e sombra, mas uma mancha preta embaixo do nariz.
4) Os nomes dos personagens. Bolkónski, Drubetskói, Bilíbin, Kuráguin e outros lembram nomes russos conhecidos. Ao justapor personagens não históricos a outros que são históricos, senti um incômodo no ouvido, quando obrigava o conde Rostoptchin a conversar com o príncipe Prónski, com Striélski ou quaisquer outros príncipes ou condes de sobrenomes de família inventados, simples ou compostos. Bolkónski ou Drubetskói, embora não sejam nem Volkónski nem Trubetskói, soam como algo conhecido e natural, na esfera da aristocracia russa. Eu não soube inventar, para todos os personagens, nomes que não me parecessem falsos ao ouvido, como Bezúkhov ou Rostóv, e também não soube contornar essa dificuldade de outro modo que não tomando ao acaso nomes mais familiares ao ouvido russo e substituindo algumas letras. Eu lamentaria muito se a semelhança entre os nomes inventados e os reais pudesse dar a alguém a ideia de que eu quis descrever esta ou aquela pessoa real; sobretudo porque a atividade literária que consiste na descrição de pessoas que existem ou existiram na realidade não tem nada em comum com a atividade a que me dediquei.
M. D. Akhrossímova e Deníssov: aí estão os únicos personagens a quem, de forma involuntária e impensada, dei nomes estreitamente semelhantes aos de dois personagens bastante representativos e queridos da sociedade daquele tempo. Foi um erro meu, decorrente da característica especial daquelas duas figuras, porém meu erro, nesse caso, limitou-se à apresentação desses dois personagens; e é provável que os leitores concordarão que nada semelhante à realidade aconteceu com eles. Todos os demais personagens são completamente fictícios e não têm, nem mesmo para mim, modelos específicos, nas lendas ou na realidade.
5) A divergência entre minha descrição dos eventos históricos e os relatos dos historiadores. Isso não foi acidental, mas inevitável. O historiador e o artista, ao descrever uma época histórica, têm dois temas completamente distintos. Assim como o historiador estaria errado se tentasse representar um personagem histórico em toda a sua inteireza, em toda a complexidade de relações com todos os aspectos da vida, também o artista não cumpriria sua tarefa se representasse uma pessoa sempre em sua significação histórica. Kutúzov nem sempre estava com a luneta, apontando para os inimigos, montado num cavalo branco. Rostoptchin nem sempre estava com uma tocha, ateando fogo à casa de Vorontsóvski (aliás, ele nunca fez isso), e a imperatriz Maria Fiódorovna nem sempre estava com um manto de arminho, com a mão apoiada sobre um código de leis; mas é assim que a imaginação popular os representa.
Para o historiador, na medida em que se refere à colaboração de uma pessoa, tendo em vista algum objetivo, existem heróis; para o artista, na medida em que se refere à relação dessa pessoa com todos os aspectos da vida, não podem e não devem existir heróis, mas sim gente.
O historiador, às vezes, torcendo a verdade, é obrigado a subordinar toda a ação de um personagem histórico a uma ideia que ele introduziu nesse personagem. O artista, ao contrário, vê no próprio caráter unilateral dessa ideia uma incompatibilidade com sua tarefa e tenta apenas entender e mostrar, não uma figura famosa, mas uma pessoa.
Na descrição dos próprios eventos, a diferença é ainda mais aguda e essencial.
O historiador tem em vista os resultados do evento; o artista, o próprio fato em si. Ao descrever uma batalha, o historiador diz: “o flanco esquerdo de tal tropa foi deslocado contra tal aldeia, expulsou o inimigo, mas foi obrigado a recuar; então a cavalaria, que se lançou ao ataque, derrotou...” etc. O historiador não pode falar de outro modo. Enquanto isso, para o artista, tais palavras não têm nenhum sentido nem mesmo chegam a tocar no que aconteceu. A partir de sua própria experiência ou de cartas, memórias e relatos, o artista deduz sua representação de como se deu o evento e, com muita frequência (para ficarmos no exemplo da batalha), a dedução que o historiador se permite fazer sobre a ação de tais e tais tropas se revela exatamente o contrário da dedução do artista. A diferença dos resultados alcançados se explica, também, pelas fontes das quais um e outro extraem seus dados. Para o historiador (continuemos com o exemplo da batalha), a fonte principal são os relatórios dos comandantes secundários e do comandante-geral. De tais fontes, o artista não pode extrair nada; para ele, nada dizem, nada explicam. Mais ainda, o artista dá as costas para tais fontes, pois vê nelas uma mentira necessária. Sem falar que, em qualquer batalha, os dois lados inimigos sempre descrevem o combate de maneira totalmente oposta; em toda descrição de uma batalha, é inevitável que exista uma mentira, decorrente da necessidade de, por meio de algumas palavras, descrever as ações de milhares de pessoas, que se espalham por várias verstas4 e se encontram na mais forte exasperação moral, sob o efeito do medo, da vergonha e da morte.
Nas descrições de batalhas, em geral, se diz que tais tropas foram lançadas ao ataque em tal ponto e depois receberam ordem de recuar etc., como se houvesse o pressuposto de que a mesma disciplina que, numa parada militar, subjuga a vontade de dezenas de milhares de pessoas à vontade de uma só produzisse o mesmo efeito numa batalha, onde o que está em jogo é uma questão de vida ou morte. Qualquer um que esteve numa guerra sabe como isso é inexato;5 entretanto, é nesse pressuposto que se baseiam os relatórios oficiais e, por sua vez, é nos relatórios que se baseiam as descrições militares. Visite todas as tropas logo depois de uma batalha, ou até um ou dois dias mais tarde, enquanto ainda não foram escritos os relatórios oficiais, e pergunte a todos os soldados, aos oficiais mais graduados e menos graduados, como se deu a ação; todas essas pessoas contarão o que experimentaram e viram, e se formará em você uma impressão grandiosa, complexa, infinitamente diversificada, penosa e obscura; e de ninguém, muito menos do comandante-geral, você saberá como se deu toda a ação. Porém, passados dois ou três dias, os relatórios começam a ser distribuídos, os tagarelas começam a contar como aconteceu aquilo que não viram; por fim, compõe-se uma narrativa geral e, por meio dessa narrativa, se forma a opinião geral do Exército. Para todos, é um alívio substituir suas dúvidas e perguntas por aquela representação mentirosa, mas clara e sempre lisonjeira. Um ou dois meses mais tarde, pergunte a um homem que tomou parte na batalha — você já não sentirá, em seu relato, aquela matéria viva e crua que havia antes; ele contará segundo o relatório oficial. Foi assim que me contaram, acerca da batalha de Borodinó, muitas pessoas inteligentes que participaram dos combates. Todos disseram a mesma coisa, segundo a descrição incorreta de Mikhailóvski-Danílevski, de Glinka etc.; até os pormenores que contaram eram os mesmos, apesar de essas pessoas se encontrarem a verstas de distâncias umas das outras.
Depois da queda de Sebastopol, o comandante da artilharia, Krijanóvski, me entregou os relatos dos oficiais de artilharia de todos os bastiões e pediu que eu, a partir de mais de vinte relatos, compusesse um só. Lamento não tê-los copiado. Era o melhor exemplo da mentira militar ingênua e inevitável com que se formam as descrições de batalhas. Suponho que muitos daqueles meus camaradas de tropa que, então, redigiram tais relatos, ao lerem estas linhas, rirão com a lembrança de como, por ordem de seu superior, escreveram aquilo que não poderiam saber. Todos que experimentaram a guerra sabem como os russos são capazes de cumprir seu dever militar e sabem, também, como são pouco aptos a descrevê-la com a mentira lisonjeira, indispensável em tais casos. Todos sabem que, em nossos exércitos, a tarefa de redigir os relatórios e as narrativas oficiais é atribuída a estrangeiros.
Digo tudo isso para mostrar a inevitabilidade da mentira nas descrições militares, que servem de material para os historiadores, e assim mostrar a inevitabilidade das divergências parciais entre o artista e o historiador no entendimento dos eventos históricos. Contudo, além da inevitabilidade da mentira na narração dos eventos históricos, encontrei, entre os historiadores da época de que me ocupei (talvez em consequência do costume de agrupar os fatos, exprimi-los de modo sucinto e adaptar-se ao seu tom trágico), uma forma especial de linguagem bombástica, na qual, não raro, a mentira e a distorção envolvem não só o evento, mas também a compreensão de seu significado. Muitas vezes, ao examinar as duas principais obras históricas daquela época, a de Thiers e a de Mikhailóvski-Danílevski, cheguei a ficar perplexo com o fato de que tais livros pudessem ser publicados e lidos. Além do fato de que as narrações dos mesmos acontecimentos, feitas num tom sério e solene, com referências a fontes, são diametralmente opostas em um e no outro, encontrei também nesses historiadores tais descrições que não sei se é o caso de rir ou chorar, quando lembro que os dois livros constituem a única memória daquela época e contam com milhões de leitores. Citarei um só exemplo do livro do célebre historiador Thiers. Depois de contar que Napoleão havia trazido consigo notas falsas de dinheiro, ele diz: “Relevant l’emploi de ces moyens par un acte de bienfaisance digne de lui et de l’armée française, il fit distribuer de secours aux incendiés. Mais les vivres étant trop précieux pour être donnés longtemps à des étrangers, la plupart ennemis, Napoléon aima mieux leur fournir de l’argent, et il leur fit distribuer de roubles papier”.6
Esse trecho, tomado de forma isolada, impressiona por sua clamorosa, nem se pode dizer imoralidade, mas simples idiotice; entretanto, no livro em conjunto, isso já não impressiona, porque corresponde inteiramente ao tom geral da linguagem, bombástica, solene e sem nenhum sentido direto.
Portanto, a tarefa do artista e a do historiador são muito distintas e a discordância com o historiador presente nas descrições de eventos e pessoas em meu livro não deve impressionar o leitor.
Mas o artista não deve esquecer que a representação de pessoas e fatos históricos que se formou no povo se baseia não na fantasia, mas sim em documentos históricos, na forma como os historiadores conseguiram agrupá-los; por isso, ao entender e representar de modo distinto essas pessoas e eventos, o artista deve, assim como o historiador, orientar-se por materiais históricos. Em meu romance, em todas as partes nas quais personagens históricos reais falam e agem, eu não inventei, mas sim utilizei o material histórico do qual, durante o tempo de meu trabalho, formei uma biblioteca completa, com livros cujos títulos não vejo necessidade de reproduzir aqui, mas a que sempre posso me remeter.
6) Por fim, a sexta e mais importante consideração diz respeito à pouca relevância que, em meu modo de ver, têm os chamados grandes homens nos eventos históricos.
Ao estudar uma época tão trágica, tão rica de acontecimentos grandiosos e tão próxima de nós, e sobre a qual continuam vivas tradições tão diversificadas, cheguei à compreensão evidente de que as causas dos eventos históricos são inacessíveis à nossa mente. Dizer (o que parece muito simples, para todos) que as causas dos acontecimentos de 1812 residem no espírito de conquista de Napoleão e na firmeza patriótica do imperador Alexandre Pávlovitch é tão absurdo quanto dizer que as causas da queda do Império Romano se encerram na circunstância de certo bárbaro ter guiado seus povos para o Ocidente e de certo imperador romano ter governado mal, ou que um enorme morro escavado por mineradores desmoronou porque o último operário bateu na terra com sua pá.
Um evento dessa ordem, em que milhões de pessoas tentaram matar umas às outras, e mataram meio milhão, não pode ter sua causa na vontade de um indivíduo: assim como um homem não pode, sozinho, solapar um morro, tampouco pode uma pessoa assassinar 500 mil. Mas então quais são as causas? Alguns historiadores dizem que a causa foi o espírito de conquista dos franceses, o patriotismo da Rússia. Outros falam do elemento democrático que as hostes de Napoleão disseminavam e da necessidade que a Rússia tinha de estabelecer relações com a Europa etc. Mas como milhões de pessoas começaram a matar umas às outras, quem lhes deu essa ordem? Parece que todos tinham claro que aquilo não poderia ser bom para ninguém, e que seria até pior para todos; então, por que fizeram isso? É possível tirar, e tiram de fato, inumeráveis conclusões retrospectivas sobre as causas desse evento absurdo; porém, a enorme quantidade de explicações e a convergência de todas elas para um mesmo objetivo apenas demonstram que tais causas são de uma quantidade inumerável e que nenhuma delas pode ser chamada de causa.
Por que milhões de pessoas mataram umas às outras, quando, desde a criação do mundo, se sabe que isso é física e moralmente ruim? Porque isso era tão inexoravelmente necessário que, ao fazê-lo, as pessoas cumpriam a lei zoológica elementar que as abelhas cumprem quando matam umas às outras no outono, ou os animais machos quando se matam entre si. Não é possível dar outra resposta a essa pergunta terrível.
Essa verdade não só é evidente como é tão inata em cada pessoa que nem seria preciso demonstrá-la, se não existisse no homem outro sentimento e também a consciência que o persuade de que ele é livre sempre que pratica alguma ação.
Ao examinar a história de um ponto de vista geral, nos convencemos, sem dúvida nenhuma, da existência de uma lei eterna, segundo a qual os eventos ocorrem. Olhando do ponto de vista pessoal, nos persuadimos do contrário.
A pessoa que mata outra, Napoleão, que dá a ordem de atravessar o rio Niemen, você e eu, quando apresentamos um pedido para ingressar no Exército, quando levantamos e baixamos a mão, estamos todos convencidos, sem dúvida nenhuma, de que cada gesto nosso tem base em causas racionais e em nosso arbítrio, e que depende de nós agir desse ou daquele modo, e tal convicção é tão inerente e cara a todos nós que, apesar das razões da história e das estatísticas criminais nos convencerem da ausência de arbítrio na ação das outras pessoas, estendemos a consciência de nossa liberdade para todas as nossas ações.
A contradição parece insolúvel: ao praticar uma ação, estou convencido de que eu a executo por meu arbítrio; ao examinar essa ação no sentido de seu envolvimento na vida geral da humanidade (em seu significado histórico), eu me convenço de que essa ação foi predeterminada e inevitável. Onde está o erro?
As observações psicológicas sobre a capacidade humana de, em retrospectiva e de modo instantâneo, insinuar num fato uma série de conclusões supostamente livres (tenho intenção de explicar isso em mais detalhes em outro lugar) confirmam a hipótese de que a consciência da liberdade da pessoa, ao praticar determinado tipo de ação, é enganosa. Porém as mesmas observações psicológicas demonstram que existe outro tipo de ação, em que a consciência da liberdade não é retrospectiva, mas imediata e incontestável. Eu posso, sem dúvida nenhuma, digam o que disserem os materialistas, praticar uma ação ou dela me abster, contanto que a ação diga respeito só a mim. Com toda a certeza, é apenas por minha vontade que, agora, levanto e abaixo o braço. Eu posso, agora, parar de escrever. Você, agora, pode parar de ler. Sem dúvida nenhuma, é só por minha vontade, livre de quaisquer obstáculos, que eu, agora, transporto meu pensamento para a América ou para qualquer questão matemática. Experimentando minha liberdade, eu posso erguer e baixar a mão com força, no ar. Fiz isso. Mas a meu lado está uma criança, eu ergo a mão acima dela e, com a mesma força, quero baixar a mão na criança. Eu não posso fazer isso. Um cachorro se joga sobre a criança e eu não posso deixar de erguer a mão para o cachorro. Estou na frente de batalha e não posso deixar de seguir os movimentos da tropa. Numa batalha, não posso deixar de atacar com minha tropa nem deixar de fugir quando todos à minha volta estão em fuga. Quando estou num tribunal e sou advogado de defesa, não posso deixar de falar nem deixar de saber o que vou falar. Não posso deixar de piscar quando um golpe se dirige contra meu olho.
Portanto, existem dois tipos de ação. Um depende da minha vontade, o outro não. E o erro que produz a contradição decorre apenas do fato de que a consciência da liberdade, que legitimamente acompanha toda ação relacionada com meu eu, até a mais alta abstração de meu ser, é por mim transferida, de modo errôneo, para meus atos praticados em conjunto com outras pessoas e que dependem da conjunção de outros arbítrios com o meu. Determinar a fronteira entre o território da liberdade e o da dependência é extremamente difícil e constitui a tarefa essencial e única da psicologia; porém, ao observar as condições em que se manifestam nossa máxima liberdade e nossa máxima dependência, é impossível deixar de ver que, quanto mais abstrata e, portanto, quanto menos nossa ação está ligada à ação de outras pessoas, tanto mais ela é livre e, ao contrário, quanto mais nossa ação está ligada à de outras pessoas, tanto menos livre ela é.
A ligação mais forte, indissolúvel, opressiva e constante com outras pessoas é o chamado poder sobre os outros, o qual, em seu verdadeiro sentido, não é nada mais do que a máxima dependência em relação a outrem.
Errado ou não, porém inteiramente convencido disso no curso de meu trabalho, eu, de forma natural, ao descrever os eventos históricos de 1807 e, em especial, de 1812, em que essa lei da predeterminação atua de modo mais saliente,7 não pude atribuir importância à ação das pessoas que pareciam ter o controle dos acontecimentos, mas que, menos do que todos os outros participantes, introduziram neles alguma atividade humana livre. A ação dessas pessoas foi notável, para mim, apenas no sentido de ilustrar a lei de predeterminação, que, em minha convicção, dirige a história, e a lei psicológica, que obriga a pessoa que pratica o ato menos livre que existe a insinuar, em sua imaginação, toda uma série de conclusões retrospectivas, cujo objetivo é provar, para ela mesma, sua liberdade.
1 Texto original russo utilizado: ????????? ???? ?? ?????? ????? “????? ? ???”, no tomo 16 das Obras completas de Tolstói em noventa volumes (Moscou: Gossudárstvennoie Izdátielstvo Khudojestvenói Literaturi, 1955). (N. T.)
2 Trata-se da revista russa Russki Arkhiv [Arquivo Russo], em que o texto foi publicado, em 1868. (N. T.)
3 Apelido de Dária Nikoláievna Saltikóva (1730-1801), senhora de terras que torturou e matou dezenas de servos. Foi presa, condenada e confinada num convento até o fim da vida. (N. T.)
4 Uma versta equivale a 1,067 quilômetro. (N. T.)
5 Depois da publicação da primeira parte de meu livro, em que figura a descrição da batalha de Schöngraben, me foram transmitidas as palavras de Nikolai Nikoláievitch Muravióv-Kárski a respeito daquela descrição, e isso confirmou minha convicção. N. N. Muravióv, o comandante-geral, declarou que nunca leu uma descrição de batalha mais fiel e que sua experiência o convenceu de que, durante uma batalha, é impossível cumprir as ordens de um comandante-geral.
6 Francês: “Engrandecendo o emprego de tais meios por um gesto de caridade digno dele e do exército francês, mandou distribuir ajuda às vítimas dos incêndios. Porém, como os víveres eram preciosos demais para ser dados, por muito tempo, a estrangeiros, em sua maior parte inimigos, Napoleão preferiu lhes dar dinheiro e mandou distribuir entre eles cédulas de rublos.”
7 Vale a pena observar que quase todos os autores que escreveram sobre o ano de 1812 viram nesse evento algo de extraordinário e fatal.
O PORCO-ESPINHO E A RAPOSA*
Isaiah Berlin
Uma combinação esquisita: o cérebro de um químico inglês
e a alma de um budista indiano.
E. M. de Vogüé1
I
Há um verso entre os fragmentos do poeta grego Arquíloco que diz: “A raposa conhece muitas coisas, mas o porco-espinho conhece uma grande coisa”.2 Os estudiosos divergem sobre a interpretação correta dessas palavras obscuras, que talvez signifiquem apenas que a raposa, mesmo com toda sua astúcia, é derrotada pela única defesa do porco-espinho. No entanto, tomadas figuradamente, tais palavras podem encerrar um sentido que caracteriza uma das mais profundas diferenças que dividem escritores e pensadores e, talvez, os seres humanos em geral. Existe um fosso profundo entre os que, de um lado, relacionam tudo a uma única visão central, a um sistema mais ou menos coerente e articulado, por meio do qual compreendem, pensam e sentem — um princípio organizador único e universal, em função do qual tudo o que são e dizem possui significado — e, de outro lado, aqueles que perseguem vários fins, muitas vezes desconectados e até mesmo contraditórios, ligados — se é que o são — apenas de facto, por algum motivo psicológico ou fisiológico, cujo relacionamento não obedece a nenhum princípio moral ou estético. Estes últimos vivem vidas, realizam atos e cultivam ideias mais centrífugas que centrípetas. Seu pensamento é difuso ou disperso, movem-se em muitos níveis, apreendem a essência de uma ampla variedade de experiências e objetos pelo que são em si mesmos, sem tentar, consciente ou inconscientemente, encaixá-los ou excluí-los de uma visão interior unitária, inalterável, que a tudo abrange e que às vezes mostra-se contraditória, incompleta e fanática. O primeiro tipo de personalidade intelectual e artística pertence aos porcos-espinhos, o segundo, às raposas; e, sem insistir numa classificação rígida, poderemos, sem grande receio de nos contradizer, afirmar que nesse sentido Dante pertence à primeira categoria, Shakespeare à segunda; Platão, Lucrécio, Pascal, Hegel, Dostoiévski, Nietzsche, Ibsen e Proust são, em variados graus, porcos-espinhos; Heródoto, Aristóteles, Montaigne, Erasmo, Molière, Goethe, Púchkin, Balzac e Joyce são raposas.
É claro que, como em todas as classificações excessivamente simples, a dicotomia, quando forçada, torna-se artificial, escolástica e, em última análise, absurda. Mas se ela não auxilia a crítica séria, nem por isso deveria ser rejeitada como algo meramente superficial ou frívolo: como todas as distinções que encerram algum grau de verdade, ela oferece um ponto de vista a partir do qual podemos olhar e comparar, um ponto de partida para uma investigação genuína. Assim, não temos dúvidas da violência do contraste entre Púchkin e Dostoiévski. O célebre discurso deste último sobre o primeiro, a despeito de toda sua eloquência e profundidade emotiva, raramente foi considerado por qualquer leitor atento como algo que iluminasse o gênio de Púchkin, mas sim o do próprio Dostoiévski, precisamente por representar Púchkin com obstinação — uma arquirraposa, a maior de todo o século XIX — à semelhança de Dostoiévski, que não passa de um porco-espinho. E assim transforma, e até distorce, Púchkin num profeta dedicado, portador de uma mensagem única e universal, a qual, na verdade, constituía o centro do próprio universo de Dostoiévski, mas excessivamente distante dos muitos e variados domínios do proteiforme gênio de Púchkin. Não seria absurdo afirmar que a literatura russa está balizada por essas figuras gigantescas — num polo Púchkin, no outro Dostoiévski —, e que as características dos outros escritores russos podem, até certo ponto, ser definidas em relação a esses grandes opostos, por aqueles que acham útil ou divertido fazer tal tipo de indagação. Perguntar como Gógol, Turguêniev, Tchékhov, Blok se comportam em relação a Púchkin e Dostoiévski leva — ou pelo menos levou — a críticas férteis e esclarecedoras. Quando, porém, nos deparamos com o conde Liev Nikoláievitch Tolstói e lhe formulamos essa pergunta — se pertence à primeira ou à segunda categoria, se é monista ou pluralista, se sua visão é una ou diversa, se é feito de uma única substância ou composto de elementos heterogêneos —, não obtemos uma resposta clara e imediata. A pergunta, de certo modo, não parece totalmente cabível: parece mais alimentar a obscuridade do que dissipá-la. Mas não é a falta de informação que nos faz hesitar. Tolstói nos disse mais a respeito de si e de suas opiniões e atitudes do que qualquer outro escritor russo, talvez mais do que qualquer outro escritor europeu. Sua arte tampouco pode ser considerada obscura, no sentido comum da palavra: seu universo não possui cantos sombrios, seus romances são luminosos como a luz do dia. Ele explicou seus trabalhos, bem como a si mesmo, discutiu a respeito deles e dos métodos pelos quais são construídos, demonstrando maior clareza, vigor, sanidade e lucidez do que qualquer outro escritor. Seria ele uma raposa ou um porco-espinho? O que devemos dizer? Por que é tão curiosamente difícil encontrar uma resposta? Ele se parece mais com Shakespeare e Púchkin ou com Dante e Dostoiévski? Ou seria ele totalmente diferente deles, e a pergunta se torna assim irrespondível, por ser absurda? O que é esse misterioso obstáculo com que nossa indagação parece se defrontar?
Não me proponho, neste ensaio, a formular uma resposta a tal questão, pois ela envolveria nada menos do que um exame crítico da arte e do pensamento de Tolstói como um todo. Limitar-me-ei a sugerir que, pelo menos em parte, a dificuldade pode estar no fato de que o próprio Tolstói não deixava de ter consciência do problema, e fez o que estava a seu alcance para falsificar a resposta. A hipótese que desejo levantar é que Tolstói, por natureza, era uma raposa, mas se julgava um porco-espinho; que seu talento e sua obra são uma coisa, e suas crenças — e, por conseguinte, o modo como interpretava a própria obra — outra. Por isso, seus ideais o levaram, juntamente com os que se deixaram envolver por sua genial capacidade de persuasão, a um erro sistemático de interpretação sobre o que ele e outros estavam ou deveriam estar fazendo. Ninguém pode se queixar de que tenha deixado aos leitores qualquer dúvida sobre o que pensava a respeito desse assunto. Suas opiniões permeiam todos os seus textos discursivos: diários, obiter dicta anotadas, ensaios e contos autobiográficos, panfletos sociais e religiosos, crítica literária, cartas a correspondentes particulares e públicos. No entanto, o conflito entre o que era e o que acreditava em nenhum momento surge com maior clareza do que quando expõe seu conceito sobre a história, ao qual são dedicadas algumas de suas páginas mais brilhantes e paradoxais. Este ensaio é uma tentativa de abordar suas doutrinas históricas, de refletir sobre os motivos que o levaram a manter determinados conceitos e de esmiuçar algumas de suas prováveis fontes. Em resumo, é uma tentativa de encarar a atitude de Tolstói em relação à história com a mesma seriedade que ele pretendia que seus leitores a encarassem, ainda que por uma razão um tanto diversa: pela luz que ela projeta sobre um homem de gênio, mais que sobre o destino de todo o gênero humano.
II
De modo geral, a filosofia da história de Tolstói não recebeu a atenção que merece, seja como visão intrinsecamente interessante ou como episódio na história das ideias, ou mesmo como um dado no desenvolvimento do próprio Tolstói.3 Aqueles que o trataram basicamente como romancista por vezes consideram as passagens históricas e filosóficas presentes em Guerra e paz como uma interrupção impertinente da narrativa, como uma disposição lastimável para digressões irrelevantes, característica desse grande mas excessivamente obstinado escritor, como uma metafísica capenga, tosca, de pouco ou nenhum interesse intrínseco, profundamente não artística e totalmente alheia ao propósito e à estrutura da obra de arte como um todo. Turguêniev, que considerava antipáticas a personalidade e a arte de Tolstói, embora, em anos posteriores, reconhecesse generosamente e de bom grado seu talento literário, liderou o ataque. Em cartas a Pavel Annenkov,4 Turguêniev refere-se ao “charlatanismo” de Tolstói, a suas pesquisas históricas como “farsescas”, “trapaças” que enganam os incautos, introduzidas em sua obra por um “autodidata” como um substituto inadequado do verdadeiro conhecimento. Apressa-se em acrescentar que Tolstói, é claro, compensa tudo isso com o seu maravilhoso gênio artístico. Acusa-o, em seguida, de inventar “um sistema que parece resolver tudo de modo muito simples. Tome-se, por exemplo, o fatalismo histórico: ele entra na dança e vai em frente! Somente ao tocar no solo é que ele, a exemplo de Anteu, recobra sua verdadeira força”.5 O mesmo tom se encontra na célebre e tocante súplica de Turguêniev em seu leito de morte, dirigida ao velho amigo e inimigo, implorando-lhe que não mais se abrigue sob o manto de profeta e retorne à sua verdadeira vocação — a de “o grande escritor da terra russa”.6 Flaubert, a despeito de seus “protestos de admiração” provocados por passagens de Guerra e paz, sente-se igualmente horrorizado: “il se répète et il philosophise”,7 escreve numa carta a Turguêniev, que lhe enviara a versão francesa daquela obra-prima, então quase desconhecida fora da Rússia. Na mesma veia, o amigo íntimo e correspondente de Bielinski, o filósofo comerciante de chá Vassili Botkin, simpático a Tolstói, escreve ao poeta Afanasii Fet:
Os especialistas literários [...] acham que o elemento intelectual do romance é muito fraco, a filosofia da história é trivial e superficial, a negação da influência decisiva das personalidades individuais sobre os acontecimentos não passa de um amontoado de sutilezas místicas, mas, afora isso, o dote artístico do autor é inquestionável. Ontem ofereci um jantar e Tiuttchev esteve presente. Repito o que todo mundo disse.8
Os historiadores contemporâneos e os especialistas militares, entre os quais pelo menos um combatera em 1812,9 queixaram-se indignados da inexatidão dos fatos. Desde então, foram acrescentadas provas comprometedoras da falsificação de detalhes históricos pelo autor de Guerra e paz,10 aparentemente feita com propósitos deliberados, com pleno conhecimento das fontes originais disponíveis e reconhecida inexistência de quaisquer provas em contrário. A falsificação teria sido cometida, ao que parece, com vistas a uma finalidade não tanto artística, mas sim “ideológica”.
Esse consenso da crítica histórica e estética parece ter dado o tom a praticamente todas as avaliações posteriores do conteúdo “ideológico” de Guerra e paz. Pelo menos Tchelgunov o homenageou com um ataque direto pelo seu quietismo social, que chamou de “filosofia do pântano”;11 outros, em sua maioria, ou ignoraram-no polidamente ou trataram-no como uma típica aberração, que atribuíam a uma combinação entre a conhecida tendência russa de pregar sermões (e com isso estragar obras de arte) e o fascínio simplório por ideias gerais, próprio dos jovens intelectuais de países afastados dos centros de civilização. “É uma sorte para nós que o autor seja melhor artista que pensador”, pronunciou-se o crítico Nicolai Akhcharumov.12 Por mais de três quartos de século, esse sentimento repercutiu entre a maioria dos críticos de Tolstói, russos e estrangeiros, pré-revolucionários e soviéticos, “reacionários” e “progressistas”, entre quase todos os que o encaram basicamente como escritor e artista, e aqueles para quem ele é um profeta e professor, um mártir, uma influência social ou um “caso” sociológico ou psicológico. A teoria da história de Tolstói apresenta igualmente pouco interesse para Vogüé e Merejkovski, Stefan Zweig e Percy Lubbock, Biriukov e E. J. Simmons, para não mencionar nomes de menor importância. Os historiadores do pensamento russo13 tendem a rotular esse aspecto de Tolstói como “fatalismo”, e dedicam-se às teorias históricas mais interessantes de Leontiev ou Danilevski. Os críticos dotados de maior cautela ou humildade não vão tão longe, mas tratam a “filosofia” com respeito tenso. Até mesmo Derrick Leon, que trata os conceitos de Tolstói dessa época com um cuidado maior do que a maioria de seus biógrafos, após apresentar um elaborado relato das reflexões do escritor sobre as forças que dominam a história, particularmente na segunda parte do longo epílogo que vem após o final da parte narrativa de Guerra e paz, segue Aylmer Maude ao não fazer a menor tentativa de avaliar sua teoria ou de relacioná-la com o restante da vida ou do pensamento de Tolstói, e ainda assim é um caso quase único.14 Aqueles que se interessam por Tolstói principalmente como profeta e professor concentram-se nas últimas doutrinas do mestre, apregoadas após sua conversão, quando deixou de se considerar basicamente um escritor e se firmou como professor da humanidade, objeto de veneração e peregrinação. Normalmente representa-se a vida de Tolstói como se fosse constituída de duas partes distintas: em primeiro lugar vem o autor de obras-primas imortais, em segundo, o profeta da regeneração pessoal e social; primeiro, o escritor aristocrático, o conturbado romancista genial, difícil, um tanto inacessível, em seguida o sábio — dogmático, intratável, exagerado, mas com vasta influência, sobretudo em seu próprio país —, uma instituição mundial de importância única. De vez em quando tenta-se ligar este último período às suas raízes na fase anterior, carregada de prenúncios de uma vida posterior de renúncia a si mesmo. É este último período que é considerado importante; existem estudos filosóficos, teológicos, éticos, psicológicos, políticos e econômicos sobre o Tolstói da última fase, sob todos seus aspectos.
No entanto, há aí um claro paradoxo. O interesse de Tolstói pela história e pelo problema da verdade histórica era apaixonado, quase obsessivo, antes e durante o período em que escreveu Guerra e paz. Ninguém que leia seus diários e cartas, ou mesmo o próprio romance, poderá duvidar de que pelo menos o autor considerava esse problema como o âmago de todo o assunto, a questão central em torno da qual é construído o romance. “Charlatanismo”, “superficialidade”, “debilidade intelectual” — certamente Tolstói é o último dos escritores a quem se possam aplicar semelhantes epítetos. Parcialidade, obstinação, arrogância, talvez; autoengano, falta de moderação, possivelmente; inadequação moral ou espiritual — disso ele tinha mais consciência do que seus inimigos; mas deficiência intelectual, falta de capacidade crítica, tendência à vacuidade, propensão a embarcar em alguma doutrina patentemente absurda e superficial, em detrimento da descrição ou análise realista da vida, fascínio por alguma teoria da moda, que Botkin ou Fet facilmente perceberiam — o que, infelizmente, não seria o caso de Tolstói —, tais acusações parecem grotescas e implausíveis. Nenhum homem em seu perfeito juízo, pelo menos durante este século, jamais sonharia em negar a capacidade intelectual de Tolstói, seu espantoso talento para desmascarar quaisquer disfarces convencionais, aquele ceticismo corrosivo que lhe valeu, por parte do príncipe Viazemski, o estranho termo russo “netovschtchik”15 (“negativista”) — primitiva versão do niilismo que, posteriormente, Vogüé e Albert Sorel lhe atribuíram com absoluta naturalidade. Com toda certeza, algo está errado: a rejeição violentamente a-histórica, e até anti-histórica, de Tolstói a todas as tentativas de explicar ou justificar a ação ou a natureza humana em termos de um crescimento individual ou social ou de um “enraizamento” no passado, paralelamente a um interesse absorvente e duradouro pela história, que levou a resultados artísticos e filosóficos que provocaram comentários tão depreciativos e duvidosos da parte de críticos habitualmente equilibrados e acolhedores — eis algo que, sem dúvida, merece atenção.
III
A inclinação de Tolstói pela história manifestou-se muito cedo em sua vida. Ao que parece, surgiu não como um interesse pelo passado enquanto tal, mas do desejo de descobrir as causas primeiras, de compreender por que e como as coisas acontecem de determinada maneira e não de outra, pela insatisfação com aquelas explicações habituais que nada explicam e não satisfazem a mente, de uma tendência a duvidar, colocar sob suspeita e, se necessário, rejeitar tudo o que não responda inteiramente às indagações, penetrar no cerne de todas as questões a qualquer preço. Foi esta a atitude de Tolstói durante toda a vida, e dificilmente seria um sintoma de “impostura” ou “superficialidade”. Ao lado disso, manifestava-se um amor incurável pelo concreto, pelo empírico, pelo verificável, e uma desconfiança instintiva pelo abstrato, pelo impalpável, pelo sobrenatural. Tratava-se, em suma, de uma tendência básica a uma abordagem científica e positivista, hostil ao romantismo, a formulações abstratas e à metafísica. Sempre e em todas as situações, ele procurava fatos “sólidos”, que pudessem ser apreendidos e verificados pelo intelecto normal, que não se deixa corromper por teorias intrincadas, divorciadas das realidades tangíveis, ou por mistérios sobrenaturais, teológicos, poéticos e metafísicos. Tolstói era atormentado pelas questões últimas com que se deparam os jovens de todas as gerações — o bem e o mal, a origem e a finalidade do universo e seus habitantes, as causas de tudo o que acontece. Mas as respostas oferecidas pelos teólogos e metafísicos lhe pareciam absurdas, quando menos pelos termos em que eram formuladas, termos sem nenhuma referência visível ao mundo cotidiano do habitual senso comum, ao qual se aferrava obstinadamente, mesmo antes de ter consciência do que fazia, como sendo a única coisa real. A história, e só a história — apenas a soma dos acontecimentos concretos no tempo e no espaço, a soma da real experiência de homens e mulheres reais, em relação mútua e com um meio físico real, tridimensional, empiricamente vivenciado —, apenas ela continha a verdade, o material a partir do qual seria possível chegar a respostas autênticas, que, para sua apreensão, não exigiriam sentidos ou faculdades especiais que os seres humanos normais não possuíssem.
Este, claro, era o espírito de investigação empírica que animava os grandes pensadores antiteológicos e antimetafísicos do século XVIII. O realismo e a incapacidade de Tolstói em se deixar iludir por fantasmas tornaram-no o discípulo natural desses pensadores, antes que tomasse conhecimento de suas doutrinas. A exemplo de M. Jourdain, ele fazia prosa muito antes de saber, e manteve-se inimigo do transcendentalismo desde o início até o final de sua vida. Tolstói cresceu durante o apogeu da filosofia hegeliana, que procurava explicar todas as coisas em termos do desenvolvimento histórico, mas concebia esse processo como sendo, em última análise, inacessível pelos métodos da investigação empírica. O historicismo de sua época sem dúvida influenciou o jovem Tolstói, assim como influenciara todas as pessoas questionadoras de seu tempo. Mas ele rejeitava instintivamente seu conteúdo metafísico e, em uma de suas cartas, descreveu os textos de Hegel como uma algaravia ininteligível, entremeada de lugares-comuns. Somente a história, a soma de dados passíveis de ser empiricamente descobertos, detinha a chave do mistério que explicava por que aquilo que acontecia se dava de determinada maneira e não de outra; e, por conseguinte, apenas a história poderia iluminar os problemas éticos fundamentais que o obcecavam, a exemplo do que aconteceu a todos os pensadores russos do século XIX. O que deve ser feito? Como uma pessoa deve viver? Por que estamos aqui? O que devemos ser e fazer? O estudo dos nexos históricos e a exigência de respostas empíricas a essas prokliatie voprossi16 fundiram-se na mente de Tolstói, conforme atestam muito eloquentemente seus primeiros diários e cartas.
Em seus primeiros diários encontramos referências a suas tentativas de comparar as Nakaz1124 de Catarina, a Grande, com as passagens de Montesquieu, em que ela afirmava tê-las fundamentado.17 Tolstói lê Hume e Thiers,18 bem como Rousseau, Sterne e Dickens.19 Obseda-o a ideia de que os princípios filosóficos só podem ser compreendidos em sua expressão concreta na história.20 “Escrever a verdadeira história da Europa de nossos dias: eis aí um projeto para toda uma vida.”21 Ou então: “As folhas de uma árvore nos encantam mais do que as raízes”,22 querendo dizer com isso que, na verdade, tal observação não passa de uma visão superficial do mundo. Paralelamente, nota-se aqui o início de um sentimento nítido de decepção, a sensação de que a história, conforme é escrita pelos historiadores, faz exigências que ela não consegue satisfazer, porque, a exemplo da filosofia metafísica, pretende ser algo que não é — uma ciência capaz de chegar a conclusões corretas. Como os homens não conseguem resolver as indagações filosóficas através dos princípios da razão, eles tentam fazê-lo historicamente. A história é, porém, “uma das ciências mais atrasadas — uma ciência que perdeu seu objetivo”. A razão disso é que a história não resolverá, por não dispor de meios próprios, as grandes interrogações que atormentaram os homens de todas as gerações. No processo de procurar responder a tais questões, os homens acumulam um conhecimento dos fatos conforme se sucedem no tempo. Trata-se, porém, de um mero subproduto, uma espécie de “questão lateral”, estudada como um fim em si mesma — e é aí que está o erro.
A história jamais nos revelará em que momento e que ligações existem entre a ciência, a arte e a moral, entre o bem e o mal, a religião e as virtudes cívicas. [...] O que ela nos dirá, sim, e incorretamente, é de onde vieram os hunos, quando viveram, quem fundou os alicerces do seu poder etc.
Segundo seu amigo Nazariev, Tolstói disse-lhe no inverno de 1846:
A história nada mais é do que uma coleção de fábulas e ninharias inúteis, amontoadas desordenadamente com um enorme conjunto de números e nomes próprios desnecessários. A morte de Igor, a serpente que picou Oleg — o que é isso, a não ser conversa fiada de velhas comadres? Quem quer saber que o segundo casamento de Ivan com a filha de Temriuk realizou-se em 21 de agosto de 1562, e o quarto, com Anna Alekseievna Koltovskaia, ocorreu em 1572...?23
A história não revela causas; apresenta apenas uma sucessão inexpressiva de acontecimentos inexplicados.
Tudo é encaixado dentro de um molde padronizado, inventado pelos historiadores: o tsar Ivan, o Terrível, sobre o qual o professor Ivánov dá cursos no momento, transforma-se subitamente, após 1560, de homem sábio e virtuoso que era, num tirano louco e cruel. Como? Por quê? Eis aí uma pergunta que não se deve fazer...24
Meio século mais tarde, em 1908, ele declara a Gusev: “A história seria algo excelente, se fosse verdadeira”.25 A proposição de que a história poderia e deveria se tornar científica é um lugar-comum no século XIX; não é grande, porém, o número daqueles que interpretaram o termo “ciência” com o significado de ciência natural, a seguir perguntando se a história coletiva poderia ser transformada em ciência nesse sentido específico. A postura mais intransigente foi a de Auguste Comte, que, segundo seu mestre Saint-Simon, tentou transformar a história em sociologia, com as fantásticas consequências que não precisamos aqui enumerar. Entre todos os pensadores, Karl Marx foi talvez o homem que encarou seu programa com maior seriedade, e fez a mais corajosa tentativa — mesmo que das menos bem-sucedidas — de descobrir as leis gerais que governam a evolução histórica, concebida segundo a analogia, então sedutora, entre a biologia e a anatomia, tão triunfalmente transformada pelas novas teorias evolucionistas de Darwin. A exemplo de Marx, sobre quem ele aparentemente nada sabia à época em que escreveu Guerra e paz, Tolstói percebeu claramente que, se a história era uma ciência, deveria ser possível descobrir e formular um conjunto das verdadeiras leis da história que, aliado aos dados da observação empírica, tornaria a predição do futuro (e a “retrodição” do passado) tão factível quanto se tornara, digamos, na geologia ou na astronomia. Ele viu porém, mais claramente do que Marx e seus seguidores, que isso não fora de fato alcançado, e expressou-o com sua habitual franqueza dogmática, reforçando sua tese com argumentos destinados a demonstrar que a perspectiva de alcançar essa meta era inexistente. Encerrou o assunto observando que a realização dessa esperança científica poria um fim à vida humana tal como a conhecíamos: “Se admitirmos que a vida humana pode ser governada pela razão, a possibilidade da vida [isto é, de uma atividade espontânea que envolve a consciência do livre-arbítrio] é aniquilada”.26
No entanto, o que oprimia Tolstói não era simplesmente a natureza “não científica” da história, nem o fato de que, por mais escrupulosa que fosse a técnica da pesquisa histórica, não se poderia descobrir nenhuma lei confiável do tipo exigido mesmo pelas ciências naturais menos desenvolvidas. Ele pensava, além do mais, que não poderia justificar para si mesmo a seleção visivelmente arbitrária do material e a escolha não menos arbitrária da ênfase, às quais todos os escritos históricos pareciam condenados. Ele deplora que, embora os fatores que determinam a vida da humanidade sejam muito variados, os historiadores selecionam entre eles apenas alguns aspectos isolados, digamos o político ou o econômico, e apresentam-no como a causa primordial e eficiente da mudança social. Mas então o que dizer da religião, dos fatores “espirituais” e muitos outros aspectos — uma multiplicidade literalmente incontável — de que se revestem todos os acontecimentos? Como podemos escapar à conclusão de que as histórias existentes representam aquilo que Tolstói declara ser “talvez apenas 0,001% dos elementos que efetivamente constituem a história real dos povos”? A história, tal como é normalmente escrita, costuma representar os acontecimentos públicos — “políticos” — como os mais importantes, enquanto os acontecimentos espirituais — “íntimos” — são largamente esquecidos. No entanto, prima facie, eles, os acontecimentos “íntimos”, são a experiência mais real e imediata dos seres humanos; eles e somente eles são aquilo de que, em última análise, é feita a vida. Portanto, os historiadores políticos usuais estão dizendo tolices vazias.
Durante a década de 1850, Tolstói sentia-se obsedado pelo desejo de escrever um romance histórico. Um de seus principais objetivos era contrastar a substância “real” da vida, a dos indivíduos e a das comunidades, com o quadro “irreal” apresentado pelos historiadores. Repetidas vezes, nas páginas de Guerra e paz, notamos uma nítida justaposição da “realidade” — o que aconteceu “realmente” — ao meio distorcido através do qual o fato será apresentado mais tarde, nos relatos oficiais oferecidos ao público, e evocado pelos próprios atores que dele participaram. As lembranças originais agora foram retocadas por suas mentes traiçoeiras, inevitavelmente traiçoeiras por serem automaticamente racionalizantes e formalizantes. Tolstói insere constantemente os heróis de Guerra e paz em situações onde isso se torna particularmente evidente.
Nikolai Rostóv, na batalha de Austerlitz, vê aquele grande soldado, o príncipe Bagration, a cavalgar com seu séquito rumo à aldeia de Schöngraben, de onde avança o inimigo. Nem ele, nem seus homens, nem os oficiais que se aproximam a galope trazendo mensagens, nem mais ninguém está ou pode estar consciente do que acontece exatamente, nem onde, nem por quê; e o caos da batalha não se torna de forma nenhuma mais claro, seja nos fatos, seja na mente dos oficiais russos, com o aparecimento de Bagration. No entanto, sua chegada infunde ânimo a seus subordinados; sua coragem, sua calma, sua mera presença criam a ilusão da qual ele mesmo se torna a primeira vítima, isto é, de que aquilo que está acontecendo está de certa forma ligado à sua capacidade, aos seus planos, ao fato de que é a sua autoridade que, de certo modo, conduz o rumo da batalha; isso, por sua vez, exerce um efeito marcante sobre o moral de todos que se encontram à sua volta. Os despachos escritos mais tarde inevitavelmente creditarão a ele e a suas disposições todos os gestos e acontecimentos ocorridos no lado russo; o crédito ou o descrédito, a vitória ou a derrota pertencerão ao príncipe, embora esteja claro para todos que ele terá menos a ver com a conduta e o desfecho da batalha do que aqueles soldados humildes e desconhecidos que, no mínimo, participam de algum combate real, isto é, atiram uns nos outros, ferem, matam, avançam, recuam etc.
O príncipe Andrei também sabe disso, e com mais clareza em Borodinó, onde é mortalmente ferido. Começa a compreender a verdade um pouco antes, quando está empenhado em se encontrar com as pessoas “importantes” que parecem estar conduzindo os destinos da Rússia. Aos poucos, convence-se de que o principal conselheiro de Alexandre, o famoso reformador Speránski, e seus amigos, além do próprio Alexandre, iludem-se sistematicamente ao supor que suas atividades, palavras, memorandos, decretos, resoluções, leis etc., são os fatores motivadores que provocam a mudança histórica e determinam os destinos dos homens e das nações, ao passo que, na realidade, não são nada: apenas um presunçoso girar no vazio. Assim Tolstói chega a um de seus célebres paradoxos: quanto mais alto os soldados e estadistas se encontram na pirâmide da autoridade, mais distantes estão de sua base, formada por aqueles homens e mulheres comuns, cujas vidas constituem a verdadeira matéria da história. Por conseguinte, tanto menor será o efeito das palavras e ações daqueles personagens tão distantes sobre essa história, apesar de toda a sua teórica autoridade.
Numa passagem famosa, em que aborda o estado em que se encontra Moscou em 1812, Tolstói observa que, a partir dos feitos heroicos da Rússia após o incêndio daquela cidade, seria possível inferir que seus habitantes estavam totalmente entregues a atos de autossacrifício — salvando seu país ou lamentando sua destruição —, ao heroísmo, ao martírio, ao desespero etc. Na realidade, não era bem assim. As pessoas se preocupavam com seus interesses próprios. Os que continuavam com seus afazeres costumeiros, sem experimentar emoções trágicas ou pensar que eram atores no palco iluminado da história, revelaram-se os mais úteis para seu país e sua comunidade, enquanto os que tentavam apreender o rumo geral dos acontecimentos e queriam tomar parte na história, os que desempenhavam atos de autossacrifício ou heroísmo inauditos e participavam dos grandes eventos, foram os mais inúteis. O pior de todos, aos olhos de Tolstói, eram os incessantes faladores que se acusavam mutuamente daquele tipo de coisa “pela qual ninguém, na verdade, poderia ter sido responsável”. E isso porque
Nos acontecimentos históricos, é mais evidente do que em qualquer outro caso a proibição de provar o fruto da árvore do conhecimento. Só a ação inconsciente dá frutos, e a pessoa que desempenha um papel nos acontecimentos históricos nunca entende seu significado. Se tenta compreendê-lo, dá-se conta de que isso é infrutífero.27
Tentar “entender” algo através de meios racionais é garantir o fracasso. Pierre Bezúkhov perambula “perdido” no campo de batalha de Borodinó, e procura o que imagina ser uma espécie de cenário, uma batalha tal como é representada pelos historiadores ou pintores. Depara-se, porém, com a confusão normal de pessoas satisfazendo casualmente esta ou aquela necessidade humana.28 Pelo menos isso é concreto, não se deixa contaminar por teorias e abstrações. Pierre está, portanto, mais próximo da verdade sobre o decorrer dos acontecimentos — pelo menos como os homens os veem — do que os que acreditavam que eles obedecem a um conjunto de leis ou regras a serem descobertas. Pierre enxerga apenas uma sucessão de “acidentes”, cujas origens e consequências são, de modo geral, inapreensíveis e imprevisíveis; vê diante de si apenas uma série de eventos frouxamente ligados, que formam uma configuração sempre cambiante e não seguem nenhuma ordem visível. Qualquer pretensão de perceber modelos suscetíveis a fórmulas “científicas” deve ser enganosa.
O escárnio mais amargo e a ironia mais corrosiva de Tolstói são reservados àqueles que posam de especialistas oficiais na administração dos assuntos humanos, neste caso os teóricos militares ocidentais, um general Pfuhl ou os generais Bennigsen e Paulucci, que aparecem proferindo os mesmos absurdos no Conselho de Drissa, quer defendam ou se oponham a determinada teoria estratégica ou tática. Esses homens devem ser impostores, já que nenhuma teoria pode ajustar-se à imensa variedade de um possível comportamento humano, à vasta multiplicidade dos efeitos e causas diminutas e indiscerníveis que compõem a interação do homem com a natureza que a história pretende registrar. Os que afetam ser capazes de encerrar essa infinita multiplicidade em suas leis “científicas” devem ser charlatães deliberados ou líderes cegos de quem é cego. Em consonância com isso, o julgamento mais rigoroso é reservado para o próprio teórico-mor, o grande Napoleão, que hipnotiza os outros, levando-os a crer na premissa de que ele compreende e controla os acontecimentos graças a seu intelecto superior, ou por lampejos de intuição, ou ainda por conseguir responder corretamente aos problemas colocados pela história. Quanto maior a pretensão, maior a mentira: em consequência, Napoleão é o mais deplorável, o mais desprezível de todos os atores da grande tragédia.
Esta é, pois, a grande ilusão que Tolstói se propõe expor: que os indivíduos, por meio de seus próprios recursos, podem entender e controlar o rumo dos acontecimentos. Os que acreditam nisso revelam-se terrivelmente equivocados. E ao lado desses rostos públicos — esses homens vazios, em parte autoiludidos, em parte conscientes de serem fraudulentos, que escrevem e falam desesperadamente e sem propósito para manter as aparências e evitar encarar as desoladoras verdades —, ao lado de toda essa elaborada maquinaria para escamotear o espetáculo da impotência, irrelevância e cegueira humanas, situa-se o mundo real, a corrente da vida que os homens compreendem, os cuidados com os detalhes comuns da existência cotidiana. Quando Tolstói contrasta essa vida real — a experiência efetiva, diária, “viva” dos indivíduos — com a visão panorâmica evocada pelos historiadores, torna-se claro para ele o que é real e o que é uma construção coerente, às vezes refinadamente elaborada, mas sempre fictícia. Totalmente diverso de Virginia Woolf sob quase todos os demais aspectos, Tolstói é talvez o primeiro a propor a famosa acusação que a escritora, meio século mais tarde, levantou contra os profetas públicos de sua própria geração, Shaw, Wells e Arnold Bennett, materialistas cegos que nem sequer começaram a entender em que consiste verdadeiramente a vida, que confundiram seus acidentes externos, os aspectos pouco importantes que se situam fora da alma do indivíduo — as chamadas realidades sociais, econômicas e políticas — com a única coisa que é autêntica, isto é, a experiência individual, a relação específica dos indivíduos uns com os outros, as cores, odores, gostos, sons e movimentos, os ciúmes, amores, ódios, paixões, os raros lampejos das percepções interiores, os momentos transformadores, a sucessão cotidiana comum de dados pessoais que constituem tudo o que existe, que são a realidade.
Qual seria então a tarefa do historiador? Descrever os dados últimos da experiência subjetiva, a vida pessoal vivida pelos homens, “com seus interesses no pensamento, na ciência, na poesia, na música, no amor, na amizade, na inveja, nas paixões”29 de que, para Tolstói, compõe-se a vida “real”, e apenas isso? Era a tarefa para a qual Turguêniev convocava Tolstói o tempo inteiro — ele e todos os escritores, mas ele em particular, pois aí residia seu verdadeiro gênio, seu destino de grande escritor russo. Essa tarefa ele rejeitou com violenta indignação, até mesmo durante os anos da maturidade, antes da fase religiosa final. Pois isso não responderia a certas questões: o que existe, por quê, como vem a ser e desaparece? Significava dar as costas a essas mesmas questões, abafar o desejo de descobrir como os homens vivem em sociedade, como são afetados mutuamente e pelo que os rodeia, e para que finalidade. Essa espécie de purismo artístico, pregado em seus dias por Flaubert, de preocupação com a análise e a descrição da experiência, dos relacionamentos, problemas e vida interior dos indivíduos — mais tarde advogado e praticado por Gide e os escritores a quem influenciou, na França e na Inglaterra —, chocava Tolstói como algo trivial e falso. Ele não tinha a menor dúvida sobre o altíssimo talento com que exercia essa mesma arte, e que era admirado precisamente por isso, mas condenava-a definitivamente.
Em carta escrita quando elaborava Guerra e paz, declarou com amargura que não tinha dúvidas de que aquilo que o público mais admiraria seriam as cenas da vida social e pessoal, suas damas e cavalheiros, com suas intrigas mesquinhas, suas conversas divertidas e suas pequenas idiossincrasias, maravilhosamente descritas.30 Estas são, porém, as “flores” triviais da vida, não suas “raízes”. O propósito de Tolstói é a descoberta da verdade e, portanto, é preciso descobrir em que consiste a história, para recriar apenas a ela. A história simplesmente não é uma ciência, e a sociologia, que pretende sê-lo, é um embuste. Não se descobriu nenhuma lei autêntica da história, e os conceitos de emprego corrente — “causa”, “acaso”, “gênio” — nada explicam. Não passam de tênues disfarces para a ignorância. Por que os acontecimentos, cuja totalidade denominamos história, ocorrem de determinada maneira? Alguns historiadores os atribuem às ações dos indivíduos, mas isso não é resposta. Esses historiadores não explicam como tais ações “causam” os acontecimentos que alegadamente “causam” ou “originam”.
Existe uma passagem de selvagem ironia, na qual Tolstói pretende parodiar as histórias escolares comuns de sua época, suficientemente típica para que valha a pena reproduzi-la na íntegra:
Luís XIV era muito orgulhoso e arrogante; tinha tais e tais amantes e tais e tais ministros e governou mal a França. Os herdeiros de Luís também eram fracos e também governaram mal a França. E tinham tais e tais favoritos e tais e tais amantes. Além disso, algumas pessoas escreveram livros naquela época. No final do século XVIII, em Paris, reuniram-se duas dezenas de pessoas que começaram a dizer que todas as pessoas eram iguais e livres. Com isso, em toda a França as pessoas passaram a furar e trucidar umas às outras. Essas pessoas mataram os reis e muitos outros. Ao mesmo tempo, na França, havia um homem genial — Napoleão. Ele derrotou todos e em toda parte, ou seja, assassinou muita gente, porque ele era muito genial. E por algum motivo foi assassinar os africanos e os assassinou tão bem e se mostrou tão astuto e inteligente que, ao chegar de volta à França, mandou que todos obedecessem a ele. E todos obedeceram. Depois de se fazer imperador, ele foi de novo assassinar o povo na Itália, na Áustria e na Prússia. E lá assassinou muitos. Na Rússia, porém, havia o imperador Alexandre, que resolveu restaurar a ordem na Europa e por isso travou guerra contra Napoleão. Mas em 1807 ele de repente ficou amigo de Napoleão, só que em 1811 brigou outra vez, e de novo eles começaram a assassinar muita gente. E Napoleão levou seiscentas mil pessoas para a Rússia e conquistou Moscou; depois, de repente, ele fugiu de Moscou, e aí o imperador Alexandre, com a ajuda dos conselhos de Stein e de outros, uniu a Europa para a resistência ao infrator de sua tranquilidade. Todos os aliados de Napoleão de repente viraram seus inimigos; e tal resistência marchou contra as novas forças que Napoleão reunira. Os aliados derrotaram Napoleão, invadiram Paris, obrigaram Napoleão a renunciar ao trono e mandaram-no para a ilha de Elba, sem privá-lo do título de imperador e demonstrando todo o respeito por ele, e, no entanto, cinco anos antes e um ano depois disso, todos o consideravam um bandido fora da lei. Quem passou a reinar foi Luís xviii, de quem até então os franceses e os aliados apenas escarneciam. Napoleão, derramando lágrimas diante de sua velha guarda, renunciou ao trono e partiu para o exílio. Depois, engenhosos políticos e diplomatas (em especial Talleyrand, que conseguira sentar-se antes de qualquer um numa determinada poltrona31 e com isso ampliara as fronteiras da França) confabularam em Viena e mediante tais conversações deixaram os povos felizes ou infelizes. De repente os diplomatas e os monarcas ficaram à beira de brigar uns com os outros; já estavam prontos para ordenar a seus exércitos que assassinassem uns aos outros; mas naquele momento Napoleão chegou à França com um batalhão, e os franceses, que o odiavam, na mesma hora se submeteram a ele. Mas os monarcas aliados se zangaram com isso e foram de novo guerrear contra os franceses. E derrotaram o genial Napoleão e o mandaram para a ilha de Santa Helena, reconhecendo de repente que era um bandido. E lá, exilado, separado dos que eram queridos ao seu coração e de sua adorada França, morreu uma morte lenta naquele rochedo e legou à posteridade seus grandes feitos. Mas na Europa ocorreu uma reação, e todos os soberanos passaram outra vez a oprimir seus povos.
Tolstói continua:
[...] a nova história é semelhante a um homem surdo que responde a perguntas que ninguém lhe faz. [...] a primeira pergunta [...] é a seguinte: que força move os povos? [...] A história parece supor que essa força explica a si mesma e é conhecida de todos. Mas, apesar de todo o desejo de admitir que essa nova força é conhecida, quem ler muitas obras de história não poderá deixar de duvidar de que essa nova força, entendida de formas diversas pelos próprios historiadores, seja perfeitamente conhecida de todos.32
Ele prossegue afirmando que os historiadores políticos que escrevem dessa maneira nada explicam. Simplesmente atribuem os acontecimentos ao “poder” que os indivíduos importantes exercem — ao que se diz — sobre outros, mas não nos informam o que significa o termo “poder”. No entanto, este é o âmago da questão. O problema do movimento histórico se acha diretamente ligado ao “poder” exercido por alguns homens sobre outros: mas o que é o “poder”? Como é possível adquiri-lo? Pode ele ser transferido de um homem para outro? Acaso aquilo a que se quer aludir não seria simplesmente a força física? Ou moral? Napoleão possuiria uma ou outra?
Os historiadores gerais, em oposição aos nacionais, segundo Tolstói, simplesmente ampliam essa categoria, sem elucidá-la. Em vez de um país ou uma nação, introduzem-se diversas, mas o espetáculo da interação de “forças” misteriosas não torna mais claro por que alguns homens ou nações obedecem a outras, por que as guerras são feitas, as vitórias alcançadas, por que homens inocentes, que acreditam que o assassinato é um mal, matam uns aos outros com entusiasmo e orgulho, sendo glorificados por isso; por que ocorrem grandes movimentos de massas humanas, às vezes do Ocidente para o Oriente, às vezes no sentido contrário. Tolstói irrita-se particularmente com as referências à influência dominante dos grandes homens ou das grandes ideias. Afirma-se que os grandes homens são típicos dos movimentos de sua época; por isso, o estudo de suas personalidades “explica” tais movimentos. As personalidades de Diderot ou Beaumarchais “explicam” o avanço do Ocidente sobre o Oriente? As cartas de Ivan, o Terrível, ao príncipe Kurbski “explicam” a expansão russa em direção ao Ocidente? Os historiadores da cultura não se saem melhor, pois simplesmente acrescentam como fator adicional algo chamado de “força” das ideias ou dos livros, embora ainda não tenhamos noção do significado de palavras como “força”. Mas por que Napoleão, Mme de Staël, o barão Stein ou o tsar Alexandre, ou todos eles, mais o Contrat social, deveriam “levar” os franceses a se decapitarem ou se afogarem mutuamente? Por que isso é chamado de “explicação”? Quanto à importância que os historiadores da cultura atribuem às ideias, sem dúvida todos os homens são capazes de exagerar a importância de suas próprias mercadorias. As ideias são o artigo com que os intelectuais negociam — para um sapateiro não existe nada melhor que o couro. Os professores simplesmente tendem a exagerar a importância de suas atividades pessoais, como se fossem a “força” central que impele o mundo. Tolstói acrescenta que uma obscuridade ainda maior é lançada à questão pelos teóricos políticos, moralistas e metafísicos. O celebrado conceito de contrato social, por exemplo, apregoado por alguns liberais, refere-se ao “investir” das vontades, isto é, do poder, de muitos homens sobre um indivíduo ou um grupo de indivíduos; mas que espécie de ato é essa “investidura”? Talvez possua um significado legal ou ético, talvez seja pertinente em relação ao que deve ser considerado permitido ou proibido, ao mundo dos direitos e deveres, ou do bem e do mal, mas nada significa enquanto explicação factual da maneira como um soberano acumula suficiente “poder” — como se fosse uma mercadoria — que o capacita a efetuar este ou aquele resultado. Tal conceito declara que conferir o poder a alguém o torna poderoso, mas essa tautologia é excessivamente obscura. O que é “poder” e o que é “conferir”? E quem o confere, e como realiza esse ato?33 Parece ser um processo muito diverso daquilo que constitui o objeto de discussão nas ciências físicas. Conferir é um ato, mas ininteligível; conferir poder, adquiri-lo, usá-lo não se assemelha em absoluto a comer, beber, pensar ou andar. Permanecemos na obscuridade: obscurum per obscurius.
Após demolir os juristas, moralistas e filósofos políticos — entre eles seu amado Rousseau —, Tolstói empenha-se em demolir a teoria liberal da história, de acordo com a qual tudo pode girar em torno de algo que talvez pareça um acaso insignificante. Daí as páginas em que tenta obstinadamente provar que Napoleão sabia tão pouco do que realmente acontecia durante a batalha de Borodinó quanto o mais raso de seus soldados, e que, portanto, seu resfriado na véspera da batalha, a que os historiadores deram tanta ênfase, poderia não ter feito uma diferença apreciável. Com grande vigor argumenta que apenas as ordens ou decisões dos comandantes agora nos parecem decisivas (e nelas se concentram os historiadores), o que acabou coincidindo com o que de fato ocorreu mais tarde; ao passo que muitas outras ordens e decisões, exatamente idênticas e perfeitamente corretas, que não pareciam menos decisivas e vitais para os que as davam naquele momento, caem no esquecimento pois, tendo sido frustradas pelo rumo desfavorável dos acontecimentos, não foram cumpridas (pois não podiam ser). Por isso, elas agora parecem-nos historicamente irrelevantes.
Após descartar-se da teoria heroica da história, Tolstói volta-se com virulência ainda maior contra a sociologia científica, que pretende ter descoberto as leis da história, mas que, na verdade, não encontrou nenhuma, pois o número de causas em torno das quais giram os acontecimentos é grande demais para o conhecimento ou o cálculo humano. Conhecemos pouquíssimos fatos e os selecionamos ao acaso, de acordo com nossas inclinações subjetivas. Não resta a menor dúvida de que, se fôssemos oniscientes, seríamos capazes, como o observador ideal de Laplace, de traçar a trajetória de cada gota de que é feita a torrente da história. É claro, porém, que somos pateticamente ignorantes e as áreas de nosso conhecimento são incrivelmente pequenas, em comparação ao que é desconhecido e (Tolstói insiste nisso) incognoscível. A liberdade da vontade é uma ilusão que não pode ser descartada, mas, como afirmaram os grandes filósofos, ainda assim é uma ilusão, que deriva unicamente da ignorância das verdadeiras causas. Quanto mais conhecemos as circunstâncias de um ato, mais distanciado no tempo esse ato se encontra de nós, e mais difícil se torna cogitar suas consequências a longo prazo. Quanto mais solidamente se acha incrustado um fato no mundo real em que vivemos, menos poderemos imaginar como as coisas teriam se tornado, se algo diferente tivesse acontecido. Pois agora ele parece inevitável, e pensar de outro modo perturbaria demais a ordem de nosso mundo. Quanto mais estreitamente relacionamos um ato ao seu contexto, menos livre parece o ator, menos responsável por seu ato, e menos dispostos nos mostramos em considerá-lo responsável ou censurável. O fato de que jamais identificaremos todas as causas e relacionaremos todos os atos humanos às circunstâncias que os condicionam, não implica que eles sejam livres, mas apenas que nunca saberemos como eles se tornam necessários.
A tese central de Tolstói que, sob certos aspectos, não difere da teoria da inevitável “autoilusão” da burguesia, defendida por seu contemporâneo Karl Marx — só que o que Marx reserva para uma classe, Tolstói enxerga em quase toda a humanidade —, é que existe uma lei natural pela qual as vidas dos seres humanos, tanto quanto a natureza, são determinadas; mas que os homens, incapazes de enfrentar esse processo inexorável, procuram representá-lo como uma sucessão de escolhas livres, atribuindo a responsabilidade pelo que acontece a pessoas por eles revestidas de virtudes ou vícios heroicos, a quem chamam de “grandes homens”. O que são os grandes homens? São seres humanos comuns, suficientemente ignorantes e vaidosos para aceitar a responsabilidade pela vida da sociedade, indivíduos que preferem assumir a culpa por todas as crueldades, injustiças, infortúnios justificados em seu nome, em vez de reconhecer a própria insignificância e impotência no fluxo cósmico, que prossegue sua trajetória independentemente de suas vontades e ideais. É este o ponto central das passagens onde o curso real dos acontecimentos é descrito (e Tolstói superou-se em tais descrições), ao lado das explicações absurdas e egocêntricas que as pessoas infladas com a sensação da sua própria importância necessariamente lhes conferem. É também o ponto central daquelas maravilhosas descrições dos momentos de iluminação, nos quais a verdade sobre a condição humana desponta para os que possuem a humildade de reconhecer a sua irrelevância e falta de importância. É esse também o propósito daquelas passagens filosóficas em que, com uma linguagem mais feroz que a de Spinoza, mas com intenções semelhantes, são expostos os erros das pseudociências.
Há uma analogia particularmente eloquente,34 segundo a qual um grande homem é comparável à ovelha que o pastor ceva para mais tarde matar. O animal, como não poderia deixar de ser, engorda cada vez mais e, como talvez seja usado para guiar todo o rebanho, pode facilmente imaginar que é o líder, e que as demais ovelhas a seguem, obedecendo unicamente à vontade dela. Ela pensa assim e o rebanho poderá pensar o mesmo. No entanto, a finalidade da escolha não se refere ao papel que ela julga desempenhar, mas à morte, finalidade concebida por seres cujos objetivos nem ela, nem as demais ovelhas podem imaginar. Para Tolstói, Napoleão é apenas essa ovelha. Até certo ponto, o mesmo acontece com Alexandre e todos os grandes homens da história. Com efeito, conforme assinalou um perspicaz historiador da literatura,35 Tolstói de vez em quando parece ignorar quase deliberadamente as evidências históricas e, mais de uma vez, distorce conscientemente os fatos, a fim de sustentar sua tese preferida.
A personalidade de Kutúzov é um exemplo. Heróis como Pierre Bezúkhov ou Karatáiev são pelo menos imaginários, e Tolstói tinha o inegável direito de dotá-los de todos os atributos que admirava — humildade, despojamento de qualquer tipo racionalista de cegueira, burocrática, científica ou outras. Mas Kutúzov era uma pessoa real, e é extremamente instrutivo observar os procedimentos com que o autor o transforma. O cortesão dissimulado, idoso, entregue às fraquezas da carne, corrupto e um tanto velhaco dos primeiros esboços de Guerra e paz, baseados em fontes autênticas, converte-se no símbolo inesquecível do povo russo em toda sua simplicidade e intuitiva sabedoria. Ao chegarmos à célebre passagem, uma das mais comoventes de toda a literatura, onde Tolstói descreve o momento em que o velho é despertado no seu acampamento em Fili e comunicam-lhe que o exército francês bate em retirada, deixamos os fatos para trás e entramos num reino imaginário, numa atmosfera histórica e emocional que carece de provas palpáveis, mas artisticamente indispensável ao projeto de Tolstói. A apoteose final de Kutúzov é totalmente a-histórica, apesar dos repetidos protestos de Tolstói sobre sua inflexível dedicação à sagrada causa da verdade.
Em Guerra e paz, Tolstói trata os fatos com arrogância quando isso lhe convém, pois, acima de tudo, está obcecado por sua tese — o contraste entre a experiência universal do livre-arbítrio, extremamente importante mas ilusória, o senso de responsabilidade, os valores da vida privada em geral, por um lado; e, por outro, a realidade do determinismo histórico inexorável, que de fato não é experimentado diretamente, mas sabe-se ser verdadeiro por razões teóricas irrefutáveis. Isso corresponde, por sua vez, a um conflito interno atormentador, um dos muitos que ocorrem com o próprio Tolstói, entre os dois sistemas de valor, o público e o privado. Por um lado, se tais sentimentos e experiências imediatas, sobre os quais em última instância repousam os valores comuns dos indivíduos privados e dos historiadores, não passam de uma enorme ilusão, o fato deve ser apresentado cruamente, em nome da verdade, e os valores e explicações que derivam dessa ilusão precisam ser desmascarados e desacreditados. Num certo sentido Tolstói tenta fazê-lo, sobretudo quando está filosofando, como nas grandes cenas públicas do próprio romance, nas passagens das batalhas, nas descrições dos deslocamentos dos povos, nas dissertações metafísicas. Por outro lado, ele faz exatamente o oposto, ao contrastar com este panorama de vida pública o valor superior da experiência pessoal, “pensamento, ciência, poesia, música, amor, amizades, inveja, paixões”, de que é composta a vida real, ao contrastar a realidade concreta e multicolorida das vidas individuais com as pálidas abstrações dos cientistas ou historiadores, sobretudo destes últimos, “de Gibbon a Buckle”, a quem denuncia tão asperamente por confundirem suas próprias categorias vazias com os fatos reais. E, no entanto, a primazia dessas experiências, relacionamentos e virtudes pessoais pressupõe aquela visão da vida, com seu senso de responsabilidade pessoal, aquela crença na liberdade e na possibilidade de uma ação espontânea, a que são dedicadas as melhores páginas de Guerra e paz, e que são a própria ilusão a ser exorcizada, caso se deva encarar a verdade.
Esse terrível dilema jamais é definitivamente resolvido. Às vezes Tolstói vacila, como durante a exposição de suas intenções, que publicou antes do aparecimento da parte final de Guerra e paz.36 O indivíduo, “num certo sentido”, é livre quando apenas ele está envolvido; assim, ao erguer o braço, ele está livre dentro de limites físicos. Quando, porém, envolve-se em relacionamentos com outros, deixa de ser livre, torna-se parte do fluxo inexorável. A liberdade é real, mas está confinada a atos triviais. Em outros momentos, mesmo esse tênue raio de esperança se extingue. Tolstói declara que não consegue admitir sequer pequenas exceções à lei universal; o determinismo causal ou invade tudo ou nada é, e então reina o caos. As ações humanas podem parecer livres do nexo social, mas não são livres, não podem sê-lo, fazem parte dele. A ciência não consegue destruir a consciência da liberdade, sem a qual a moral e a arte não existem, mas pode refutá-la. “Poder” e “acaso” não passam de nomes para a ignorância das cadeias causais, mas essas cadeias existem, quer as sintamos ou não. Felizmente tal não se dá, pois, se acaso sentíssemos seu peso, dificilmente sequer poderíamos agir. A perda da ilusão haveria de paralisar a vida, que é vivida na base de nossa feliz ignorância. Tudo, porém, está bem, pois jamais descobriremos todas as cadeias causais que operam. O número de tais causas é infinitamente grande e as próprias causas infinitamente pequenas. Os historiadores selecionam, dentre elas, uma fração absurdamente diminuta, e tudo atribuem a esse minúsculo segmento arbitrariamente escolhido. Como operaria uma ciência histórica ideal? Recorrendo a uma espécie de cálculo por meio do qual esse “diferencial”, os infinitésimos — ações e eventos humanos e não humanos infinitamente pequenos — se integrariam. Desse modo, o continuum da história não mais seria distorcido, ao ser fragmentado em segmentos arbitrários.37 Tolstói expressa essa ideia de cálculo dos infinitésimos com muita clareza, mediante o uso preciso das palavras, como de hábito simples e vívido. Henri Bergson, que se tornou conhecido graças à teoria da realidade encarada como um fluxo fragmentado artificialmente pelas ciências naturais e, portanto, distorcido e privado de continuidade e vida, desenvolveu um conceito bastante semelhante, elaborando-o numa extensão infinitamente maior, com menor clareza e plausibilidade, recorrendo a uma ostentação terminológica desnecessária.
Não se trata de uma visão mística ou intuicionista da vida. Nossa ignorância sobre a forma como as coisas acontecem não se deve a alguma intrínseca inacessibilidade das primeiras causas, mas apenas à sua multiplicidade, à pequenez das unidades últimas e à nossa própria incapacidade de ver, ouvir, lembrar, registrar e coordenar o suficiente entre o material disponível. A onisciência, em princípio, é possível até para os seres empíricos, mas é claro que é inatingível na prática. Apenas isso, e nada mais profundo ou interessante, constitui a fonte da megalomania humana e de todas as nossas absurdas ilusões. Já que não somos livres de fato — mas não conseguiríamos viver sem a ilusão de que o somos —, o que devemos fazer? Tolstói não chega a nenhuma conclusão clara, apenas à opinião, em certo sentido semelhante à de Burke, de que é melhor nos darmos conta de que compreendemos o que está acontecendo como de fato compreendemos — da mesma forma que as pessoas espontâneas, normais, simples, que não se deixam corromper por teorias ou cegar pela poeira levantada pelas autoridades científicas, realmente compreendem a vida — do que procurarmos subverter tais crenças do senso comum que, pelo menos, possuem o mérito de terem sido testadas pela longa experiência, a favor das pseudociências, as quais, baseando-se em dados absurdamente inadequados, não passam de engodo e ilusão. É esse o argumento de Tolstói contra todas as formas de racionalismo otimista, as ciências naturais, as teorias liberais do progresso, a especialização militar alemã, a sociologia francesa, a engenharia social confiante, seja de que tipo for. E foi essa a razão para criar um Kutúzov que seguia seu instinto russo, simples, sem peias, e desprezava ou ignorava os especialistas alemães, franceses e italianos, conferindo-lhe o estatuto de herói nacional que, em parte devido à descrição de Tolstói, ele manteve desde então.
“Seus personagens”, disse Akhcharumov em 1868, imediatamente após o lançamento da última parte de Guerra e paz, “são reais e não meros joguetes nas mãos de um destino ininteligível”;38 a teoria do autor, por outro lado, era engenhosa, mas inaplicável. Essa opinião geral dos críticos literários russos e da maioria dos críticos estrangeiros persistiu. Os intelectuais russos de esquerda atacaram Tolstói devido à sua “indiferença social”, por depreciar todos os nobres impulsos sociais como um misto de ignorância e tola monomania e um ceticismo “aristocrático” em relação à vida, encarada como um pântano que não pode ser recuperado. Como vimos, Flaubert e Turguêniev consideravam sua tendência a filosofar como algo infeliz em si mesmo. O único crítico que encarou seriamente a doutrina e tentou apresentar uma refutação racional foi o historiador Kareiev.39 Com brandura e paciência, ele assinalou que, por mais fascinante que fosse o contraste entre a realidade da vida pessoal e a vida social de um formigueiro, daí não se deduziam as conclusões de Tolstói. É bem verdade que o homem é, ao mesmo tempo, um átomo que vive a sua vida consciente “por si mesma” e, simultaneamente, o agente inconsciente de certa corrente histórica, um elemento relativamente insignificante no vasto todo composto de um enorme número de tais elementos. Guerra e paz, diz-nos Kareiev, “é um poema histórico sobre o tema filosófico da dualidade” — “as duas vidas vividas pelos homens”, e Tolstói estava perfeitamente certo ao objetar que a história não se faz acontecer devido à conjunção de entidades tão obscuras como o “poder” ou a “atividade mental”, pressupostas por historiadores ingênuos. Na realidade, segundo a apreciação de Kareiev, ele alcançava seus melhores momentos ao denunciar a tendência dos escritores de orientação metafísica a atribuir eficácia causal ou idealizar entidades tão abstratas como os “heróis”, “forças históricas”, “forças morais”, “nacionalismo”, “razão” e assim por diante, com isso cometendo simultaneamente dois pecados mortais: o de inventar entidades inexistentes para explicar acontecimentos concretos, e o de dar livre curso a preconceitos pessoais, nacionais, classistas ou metafísicos.
Até aqui, tudo bem, e Tolstói teria demonstrado um discernimento mais profundo — “maior realismo” — do que a maioria dos historiadores. Ele também tinha razão ao exigir que se integrassem os infinitésimos da história. Mas a seguir ele mesmo agira assim, criando em seu romance indivíduos que não são triviais, precisamente na medida em que, em suas personalidades e ações, eles “somam” inúmeros outros que, entre esses dois lados, realmente “movem a história”. É nisso que consiste a integração de infinitésimos, que se dá, é claro, não por meios científicos, mas através de meios “artístico-psicológicos”. Tolstói tinha razão ao abominar as abstrações, mas isso levou-o longe demais, de modo que terminou por negar não só que a história fosse uma ciência natural como a química — o que era correto —, mas que fosse simplesmente uma ciência, uma atividade com seus próprios conceitos e generalizações, o que, se fosse verdade, aboliria toda a história enquanto tal. Tolstói tinha razão ao afirmar que as “forças” e “finalidades” impessoais dos historiadores mais antigos eram mitos, e mitos perigosamente enganosos. Mas, a menos que possamos indagar o que levou este ou aquele grupo de indivíduos — que afinal, é claro, são os únicos reais — a se comportar desta ou daquela maneira, sem antes precisar proceder a análises psicológicas de cada membro do grupo e, em seguida, “integrá-los” todos, não poderíamos absolutamente pensar em história ou sociedade. No entanto é assim que agimos, e com proveito. Negar que possamos descobrir muitas coisas através da observação social, da inferência histórica e meios semelhantes equivaleria, para Kareiev, a negar que dispúnhamos de critérios mais ou menos confiáveis para distinguir entre a verdade e a falsidade histórica. Isso, com toda certeza, não passava de mero preconceito e obscurantismo fanático.
Kareiev declara que são inquestionavelmente os homens que fazem as formas sociais, mas essas formas — os modos como os homens vivem — por sua vez afetam os que nelas nasceram; as vontades individuais talvez não sejam onipotentes, mas tampouco são totalmente impotentes, e algumas se mostram mais eficazes do que outras. Talvez Napoleão não seja um semideus, mas também não é um mero epifenômeno de um processo que, sem ele, teria ocorrido sem nenhuma alteração; as “pessoas importantes” são menos importantes do que elas ou os historiadores mais tolos podem supor, mas tampouco são meras sombras. Os indivíduos, além de suas íntimas vidas interiores, que são as únicas a parecerem reais a Tolstói, têm propósitos sociais e alguns também têm vontades poderosas. Estes, de vez em quando, transformam as vidas das comunidades. O conceito de Tolstói sobre leis inexoráveis que funcionam por si sós, a despeito de tudo o que os homens possam pensar ou desejar, é, em si, um mito opressivo; as leis são apenas probabilidades estatísticas, pelo menos nas ciências sociais, e não “forças” abomináveis e inexoráveis — um conceito cuja obscuridade, segundo Kareiev assinala, o próprio Tolstói, em outros contextos, desmascarou com grande brilho e malícia, quando seu adversário lhe parecia excessivamente ingênuo ou esperto, ou sob o domínio de alguma metafísica grotesca. Afirmar porém que, a menos que os homens façam a história, eles não passam, sobretudo os “grandes” homens, de meros “rótulos” porque a história se faz a si mesma, e apenas a vida inconsciente da colmeia social, o formigueiro humano, possui significado ou valor e “realidade” autênticos — o que significa isso, a não ser um ceticismo ético, inteiramente dogmático e a-histórico? Por que deveríamos aceitá-lo, quando a evidência empírica aponta em outra direção?
As objeções de Kareiev, muito razoáveis, são as mais sensatas e mais claramente formuladas entre todas as que se levantaram contra a visão da história de Tolstói. Mas, num certo sentido, ele se equivocou. Tolstói não estava basicamente empenhado em denunciar as falácias das histórias baseadas neste ou naquele esquematismo metafísico, ou daquelas que procuravam explicar demais em termos de algum elemento determinado, particularmente caro ao autor (e Kareiev aprova-as todas), ou em contestar a possibilidade de uma ciência empírica da sociologia (o que Kareiev julga irracional da parte dele), com o fito de estabelecer uma teoria rival própria. A preocupação de Tolstói com a história deriva de uma fonte mais profunda do que o interesse abstrato pelo método histórico ou as objeções filosóficas a determinados tipos de prática histórica. Ela parece brotar de algo mais pessoal, um amargo conflito interior entre sua experiência real e suas crenças, entre sua visão da vida e sua teoria do que essa vida e ele próprio deveriam ser, se afinal tivesse de sustentar tal visão; entre os dados imediatos, que ele era honesto e inteligente demais para ignorar, e a necessidade de uma interpretação sua que não levasse aos absurdos infantis de todas as visões precedentes. Pois a única convicção a que seu temperamento e seu intelecto foram fiéis durante toda a vida era a de que todas as tentativas prévias de uma teodiceia racional — explicar como e por que aquilo que ocorreu, ocorreu daquela forma e naquele momento, e por que foi bom ou mau que tivesse ou não ocorrido assim —, todos esses esforços não passavam de absurdos grotescos, reles enganos que uma única palavra, incisiva e honesta, teria o poder de afastar para longe.
Boris Eikhenbaum, o crítico russo, autor do melhor trabalho crítico sobre Tolstói escrito em qualquer língua,40 nele desenvolve a tese de que o que mais oprimia Tolstói era sua falta de convicções positivas: a famosa passagem de Anna Kariênina, na qual o irmão de Liévin lhe diz que ele — Liévin — não tem crenças positivas, que mesmo o comunismo, com sua simetria artificial, “geométrica”, é melhor do que o tal ceticismo dele, na realidade está se referindo ao próprio Liev Nikoláievitch e aos ataques que recebeu do seu irmão Nikolai Nikoláievitch. Seja ou não essa passagem literalmente autobiográfica — e há pouca coisa nos escritos de Tolstói que, de um modo ou de outro, não o seja —, a teoria de Eikhenbaum parece de modo geral válida. Tolstói, por natureza, não era um visionário; enxergava os múltiplos objetos e situações na Terra em sua plena multiplicidade; apreendia suas essências individuais, e o que as separava do que não eram, com uma clareza sem par. Qualquer teoria consoladora que tentasse coligir, relacionar, “sintetizar”, revelar substratos ocultos e conexões internas encobertas, os quais, embora não sendo visíveis a olho nu, ainda assim garantiam a unidade de todas as coisas, o fato de que, “em última análise”, eles faziam parte uns dos outros sem pontas soltas — o ideal do todo inconsútil —, todas essas doutrinas Tolstói demoliu com desprezo e sem dificuldades. Seu talento consistia na percepção de propriedades específicas, a qualidade individual quase inexprimível, em virtude da qual um determinado objeto é inteiramente diverso de todos os demais. Ele, no entanto, ansiava por um princípio explicativo universal, isto é, a percepção de semelhanças, origens comuns, uma única finalidade ou uma unidade na aparente variedade dos fragmentos e partes mutuamente excludentes, que compunham o recheio do mundo.41 Como todos os analistas muito penetrantes, muito imaginativos, muito perspicazes, que dissecam ou pulverizam com o intuito de atingir o âmago indestrutível e justificar suas próprias atividades aniquiladoras (das quais em nenhum caso conseguem se abster) pela crença de que existe tal âmago, Tolstói continuou a derrubar as frágeis construções de seus rivais com um frio desprezo, considerando-as indignas de homens inteligentes, sempre com a esperança de que a unidade “real”, procurada com tamanho desespero, acabaria por emergir da destruição das imposturas e fraudes — o exército cambaio das filosofias da história dos séculos XVIII e XIX. Quanto mais obsessiva a desconfiança de que talvez a procura fosse vã, de que nenhum cerne, nenhum princípio unificador jamais seria descoberto, mais ferozes as medidas para afugentar tal pensamento, com eliminações cada vez mais impiedosas e engenhosas daqueles falsos pretendentes ao título da verdade, em número cada vez maior. À medida que Tolstói se afastou da literatura e entregou-se aos escritos polêmicos, essa tendência se tornou cada vez mais preponderante. A irritada percepção, em seu íntimo, de que em princípio nunca se poderia encontrar uma solução final, levou-o a atacar as soluções espúrias, tanto mais furiosamente devido ao falso consolo que elas proporcionavam, e também por constituírem um insulto à inteligência.1150 A capacidade puramente intelectual de Tolstói para esse tipo de atividade letal era enorme, até mesmo excepcional e, durante toda sua vida, ele procurou algum edifício suficientemente forte para resistir à sua maquinaria de destruição, às suas minas e às investidas de seus aríetes. Queria ser detido por um obstáculo irremovível, desejava que seus violentos projéteis fossem barrados por fortificações inexpugnáveis. A profunda sensatez e os métodos experimentais do professor Kareiev, sua branda censura acadêmica, eram por demais diferentes daquele sólido alicerce da verdade, impenetrável e irredutível, o único sobre o qual se poderia erguer aquela firme interpretação da vida que ele desejou encontrar durante toda sua existência.
A tênue doutrina “positiva” da mudança histórica, presente em Guerra e paz, é tudo o que resta dessa busca desesperada, e é a imensa superioridade das suas armas ofensivas sobre as defensivas que sempre fez com que sua filosofia da história — a teoria das minúsculas partículas que requerem integração — parecesse tão gasta e artificial para o leitor médio do romance, razoavelmente crítico e moderadamente sensível. Daí a tendência da maioria dos que escreveram a respeito de Guerra e paz, imediatamente após seu lançamento e em anos posteriores, de manter a tese de Akhcharumov, segundo a qual o gênio de Tolstói se encontrava em sua qualidade como escritor, como criador de um mundo mais real do que a própria vida; ao passo que as dissertações teóricas — embora o próprio Tolstói possa tê-las encarado como o ingrediente mais importante do livro — na verdade não iluminavam o caráter ou o valor do próprio trabalho, e tampouco o processo criativo através do qual ele foi realizado. Isso antecipava a abordagem daqueles críticos psicológicos que sustentam que o autor raramente conhece as fontes da sua própria atividade: as nascentes do gênio lhe são invisíveis, o próprio processo é em sua maior parte inconsciente, e seu propósito expresso não passa de mera racionalização mental dos verdadeiros motivos e métodos, praticamente não conscientes, envolvidos no ato da criação. Em consequência, muitas vezes não passam de mero estorvo para aqueles desinteressados estudiosos da arte e da literatura que se entregam à análise “científica”, isto é, naturalista, de suas origens e evolução.
Independentemente do que possamos pensar sobre a validade geral de tal visão, até certo ponto não deixa de ser uma ironia histórica o fato de que Tolstói tenha sido tratado dessa maneira, pois é praticamente a sua própria atitude em relação aos historiadores acadêmicos, de quem zomba com ironia tão voltairiana. E, no entanto, existe aí uma grande justiça poética, pois a proporção desigual entre elementos críticos e construtivos em sua própria filosofia parece se dever ao fato de que seu sentido de realidade — uma realidade que reside unicamente nos indivíduos e em seus relacionamentos — serviu para mandar pelos ares todas as vastas teorias que ignoravam as descobertas daquele realismo, mas se revelou insuficiente por si só para fornecer a base de uma apresentação geral mais satisfatória dos fatos. E não há prova alguma de que o próprio Tolstói jamais tenha julgado possível que ali estivesse a raiz do dualismo, o fracasso em reconciliar as duas vidas vividas pelo homem.
O conflito irresolvido entre a crença de Tolstói de que apenas os atributos da vida pessoal eram reais e sua doutrina de que a análise deles é insuficiente para explicar o curso da história (isto é, o comportamento das sociedades) encontra paralelo, em um nível mais profundo e pessoal, no conflito entre, por um lado, seus próprios dotes de escritor e homem e, por outro, seus ideais, aquilo que ele, de vez em quando, acreditava ser, e no que acreditava profundamente em todos os momentos, desejando sê-lo.
Se pudermos retomar uma vez mais nossa divisão dos artistas entre raposas e porcos-espinhos, diremos que Tolstói percebeu a realidade em sua multiplicidade, como um conjunto de entidades separadas, em torno e dentro das quais enxergava com uma clareza e uma penetração raramente sequer igualadas. Ele acreditava, porém, em um todo vasto e unitário. Até hoje não existiu nenhum autor que tenha demonstrado tamanha percepção da multiplicidade da vida — as diferenças, os contrastes, as colisões das pessoas, coisas e situações, cada uma delas apreendida em sua absoluta singularidade e traduzida com um grau de integridade e precisão de imagens concretas que não se encontra em nenhum outro escritor. Ninguém jamais sobrepujou Tolstói ao expressar o sabor específico, a qualidade exata de um sentimento — o grau de sua “oscilação”, a montante e a vazante, os movimentos mínimos (dos quais Turguêniev zombava, considerando-os uma simples brincadeira do autor) —, a textura interna e externa e o “tato” de um olhar, de um pensamento, da manifestação de um sentimento, assim como de uma situação específica, de um período completo, das vidas de indivíduos, famílias, comunidades e nações inteiras. Em seu mundo, a conhecida semelhança com a vida de cada objeto, de cada pessoa deriva dessa espantosa capacidade de apresentar cada ingrediente em sua mais plena essência individual, em todas suas múltiplas dimensões, por assim dizer. Não se trata jamais de um mero dado, por mais vívido que seja, no interior de algum fluxo de consciência, com margens indefinidas, de um esboço, uma sombra, uma representação impressionista; também não busca, nem depende de nenhum processo de raciocínio na mente do leitor, mas sempre se apresenta como um objeto sólido, visto simultaneamente de longe e de perto, à luz natural e inalterável do dia, encarado de todos os possíveis ângulos de visão, situado num contexto absolutamente específico no tempo e no espaço — um acontecimento plenamente presente aos sentidos ou à imaginação em todas suas facetas, com cada matiz expresso de modo firme e penetrante.
E, no entanto, Tolstói acreditava no contrário. Ele advogava uma única visão abrangente; apregoava não a variedade, mas a simplicidade, não muitos níveis de consciência, mas a redução a algum nível simples — em Guerra e paz, ao modelo do homem bom, da alma singela, espontânea, aberta: como posteriormente o modelo dos camponeses ou de uma ética cristã simples, divorciada de qualquer teologia ou metafísica complexa, um critério simples de feitio utilitário, por meio do qual tudo se inter-relaciona diretamente e todos os componentes podem ser avaliados em relação uns aos outros com alguma régua simples. O gênio de Tolstói se encontra na capacidade de reproduzir o irreprodutível com maravilhosa precisão, de evocar quase milagrosamente a plena e intraduzível individualidade do indivíduo, que induz no leitor uma aguda consciência da presença do próprio objeto, e não de uma simples descrição sua. Tendo em vista essa finalidade, ele recorre a metáforas que fixam a qualidade de uma determinada experiência enquanto tal, evitando aqueles termos gerais que a relacionam com casos semelhantes e ignoram as diferenças individuais — “as oscilações do sentimento” — em favor daquilo que é comum a todas elas. No entanto, este mesmo escritor advoga e até chega a apregoar com grande veemência, sobretudo em sua derradeira fase, a religiosa, exatamente o oposto: a necessidade de expulsar tudo o que não se submete a algum modelo muito geral e simples, digamos, aquilo de que os camponeses gostam ou não gostam, ou aquilo que os evangelhos declaram ser bom.
Essa violenta contradição entre os dados da experiência, da qual Tolstói não conseguia se libertar e que, é claro, durante toda a vida soube ser real, e sua crença profundamente metafísica na existência de um sistema ao qual elas devem pertencer, independentemente de parecer fazê-lo ou não, esse conflito entre o julgamento instintivo e a convicção teórica, entre seus talentos e suas opiniões, espelha o conflito irresolvido entre a realidade da vida moral, com seu senso de responsabilidade, alegrias, pesares, sentimento de culpa e sentimento de realização — todos os quais aliás, não passam de ilusão — e as leis que tudo governam, embora não possamos conhecer delas nada além de uma porção negligenciável — de modo que mentem e enganam todos os cientistas e historiadores que afirmam que as conhecem e são por elas guiados —, mas que no entanto são as únicas que são reais. Em comparação a ele, Gógol e Dostoiévski, cuja anormalidade é tão frequentemente contraposta à “sanidade” de Tolstói, são personalidades bem integradas, com um ponto de vista coerente e uma visão única. No entanto, desse violento conflito nasceu Guerra e paz. Sua maravilhosa solidez não nos deve cegar para a profunda fenda que se rasga a cada vez que Tolstói recorda, ou melhor, se lembra — não consegue esquecer — do que e por que está fazendo.
IV
As teorias raramente nascem do vazio, e a questão das raízes da visão da história de Tolstói é, portanto, razoável. Tudo o que Tolstói escreve sobre a história traz o selo de sua personalidade original, uma qualidade de primeira mão negada à maior parte dos autores que abordam tópicos abstratos. Sobre tais temas ele escreveu como um amador, não como um profissional. É preciso lembrar, porém, que ele pertencia ao mundo dos grandes negócios; era membro da classe dirigente de seu país e de sua época, conhecia-a e compreendia-a plenamente; viveu num ambiente excepcionalmente povoado de teorias e ideias, examinou muito material tendo em vista Guerra e paz (embora, conforme vários estudiosos russos demonstraram, não tanto quanto se supõe algumas vezes),42 viajou muito e conheceu várias personalidades públicas notáveis na Alemanha e na França.
Não pode haver a menor dúvida de que lia muito e foi influenciado por suas leituras. É corrente afirmar que devia muito a Rousseau e provavelmente desse autor, tanto quanto de Diderot e do Iluminismo francês, derivaram seus métodos analíticos e anti-históricos de abordar os problemas sociais, em particular a tendência de tratá-los em termos de categorias intemporais, lógicas, morais e metafísicas, e não de procurar sua essência, conforme preconizava a escola histórica alemã, em termos de crescimento e resposta a um ambiente histórico em transformação. Permaneceu admirador de Rousseau e, avançado em anos, ainda recomendava Émile como o melhor livro jamais escrito sobre educação.43 Rousseau deve ter fortalecido, se é que de fato não a gerou, sua tendência crescente a idealizar a terra e seus cultivadores — o camponês simples que, para Tolstói, é o repositório de um cabedal de virtudes “naturais” quase tão rico quanto o bom selvagem de Rousseau. Este também deve ter reforçado o camponês rude e grosseiro em Tolstói, com sua tendência fortemente moralista, puritana, sua desconfiança e antipatia em relação aos ricos, aos poderosos, aos felizes enquanto tais, seus traços de autêntico vandalismo e as ocasionais explosões de uma raiva cega e muito russa contra o artificialismo e o refinamento ocidentais, além daquela adulação da “virtude” e dos gostos simples, da vida moral “saudável”, do militante barbarismo antiliberal, que é uma das contribuições específicas de Rousseau ao sortimento das ideias jacobinas. Talvez Rousseau o tenha influenciado também ao atribuir um valor tão grande à vida familiar, e em sua doutrina da superioridade do coração em relação à cabeça, ou da moral em relação às virtudes intelectuais e estéticas. Isso foi notado antes, e é verdadeiro e esclarecedor, mas não explica a teoria da história de Tolstói, da qual poucos traços se encontram em Rousseau, profundamente a-histórico. Com efeito, quando Rousseau procura derivar o direito de alguns homens a exercer autoridade sobre outros de uma teoria da transferência do poder, de acordo com o Contrato Social, Tolstói o contesta desdenhosamente.
Estaremos um pouco mais próximos da verdade se considerarmos a influência que os eslavófilos contemporâneos, românticos e conservadores, exerceram sobre ele. O escritor era próximo de alguns deles, sobretudo de Pogodin e Samarin, em meados da década de 1860, quando escrevia Guerra e paz, e certamente opunha-se como eles às teorias científicas da história então em voga, quer se tratasse do positivismo metafísico de Comte e seus seguidores ou dos conceitos mais materialistas de Tchernichevski e Pissarev, ou os de Buckle, Mill e Herbert Spencer, além da tradição empírica inglesa em geral, com tintas do materialismo científico francês e alemão, à qual todos esses autores, muito diferentes em suas várias tendências, pertenciam. Os eslavófilos — e talvez especialmente Tiuttchev, cuja poesia Tolstói tanto admirava — podem ter contribuído para que ele desacreditasse das teorias históricas que tomavam como modelo as ciências naturais, as quais, para Tolstói assim como para Dostoiévski, não conseguiam apresentar uma verdadeira explicação sobre o que faziam e sofriam os homens. Essas teorias históricas se mostravam insuficientes, quanto mais não fosse por ignorarem a experiência “interior” do homem, tratando-o como um objeto natural manipulado pelas mesmas forças que regiam todos os outros componentes do mundo material. Adotando a posição dos enciclopedistas franceses, eles tentavam estudar o comportamento social como se estudaria uma colmeia ou um formigueiro, e então se queixavam porque as leis que formulavam não conseguiam explicar o comportamento vivo dos homens e das mulheres. Esses medievalistas românticos, além do mais, podem ter fortalecido o natural anti-intelectualismo e antiliberalismo de Tolstói, bem como sua visão profundamente cética e pessimista sobre a força dos motivos não racionais no comportamento humano, que ao mesmo tempo dominam os homens e os iludem em relação a si mesmos. Tratava-se, em resumo, daquela perspectiva congenitamente conservadora que, desde muito cedo, tornou Tolstói uma figura profundamente suspeita à intelligentsia russa radical dos anos 1850 e 1860, levando-a a considerar, constrangida, que afinal de contas ele não passava de um conde, um oficial e um reacionário, não alguém como eles, nem de forma alguma autenticamente esclarecido ou révolté, a despeito de seus mais corajosos protestos contra o sistema político, suas heterodoxias e seu niilismo destrutivo.
Embora Tolstói e os eslavófilos tenham talvez lutado contra um inimigo comum, seus conceitos positivos divergiam profundamente. A doutrina eslavófila derivava principalmente do idealismo alemão, sobretudo da formulação de Schelling, apesar dos falsos protestos de admiração por Hegel e seus intérpretes, segundo a qual o verdadeiro conhecimento não poderia ser obtido pelo uso da razão, mas apenas por uma espécie de autoidentificação imaginativa com o princípio central do universo — a alma do mundo, de que os artistas e pensadores se apoderam em momentos de inspiração divina. Alguns dos eslavófilos identificavam essa visão com as verdades reveladas da religião ortodoxa e a tradição mística da Igreja russa, e legaram-na aos poetas e filósofos simbolistas de uma geração posterior. Tolstói situava-se no polo oposto. Acreditava que unicamente pela observação empírica paciente seria possível obter qualquer conhecimento; que esse conhecimento sempre é falho, que as criaturas simples muitas vezes conhecem melhor a verdade do que as pessoas ilustradas, pois sua observação dos homens e da natureza é menos toldada por teorias vazias, e não por serem veículos privilegiados da inspiração divina. Há um lado marcante de senso comum em tudo o que Tolstói escreveu, que automaticamente expulsa fantasias metafísicas e tendências indisciplinadas à experiência esotérica ou às interpretações poéticas e teológicas da vida, que constituem o cerne da visão eslavófila e que, como no caso análogo do romantismo anti-industrial do Ocidente, determinaram ao mesmo tempo seu ódio à política e à economia, no sentido comum, e seu nacionalismo místico. Além do mais, os eslavófilos eram cultores do método histórico, como o único capaz de desvendar a verdadeira natureza das instituições individuais, revelada apenas em seu impalpável desenvolvimento no tempo, bem como das ciências abstratas.
Nada disso poderia ter encontrado uma ressonância positiva naquele Tolstói muito obstinado e muito prático, sobretudo o Tolstói realista dos anos intermediários. Se o camponês Platon Karatáiev possui algo em comum com o espírito agrário dos ideólogos eslavófilos e mesmo pan-eslavos — a sabedoria rural simples que se opõe aos absurdos do Ocidente excessivamente inteligente —, já Pierre Bezúkhov, nos primeiros esboços de Guerra e paz, termina a vida como dezembrista, exilado na Sibéria, e não é possível concebê-lo, em suas perambulações espirituais, como alguém que acaba por encontrar consolo em algum sistema metafísico, muito menos no seio da Igreja ortodoxa ou de qualquer outra igreja estabelecida. Os eslavófilos não aceitavam as pretensões da ciência social e psicológica ocidental, e Tolstói encarava tal fato com simpatia, mas suas doutrinas positivas pouco o interessavam. Ele se colocava contra todos os mistérios ininteligíveis, contra as névoas da Antiguidade, contra qualquer tipo de recurso à superstição. A descrição hostil que faz dos maçons em Guerra e paz é sintomática da atitude que ele manteve até o fim. Isso só se reforçaria com o seu interesse pelos escritos do exilado Proudhon, a quem visitou em 1861. Era evidente que lhe agradavam o irracionalismo confuso, o puritanismo, o ódio à autoridade e aos intelectuais burgueses, além do apego a Rousseau e a violência de tom que constituíam a marca daquele autor. É mais do que possível que Tolstói tenha recorrido a La Guerre et la paix de Proudhon, publicado no mesmo ano, para dar o título a seu romance.
Se os idealistas alemães clássicos não exerceram efeito direto sobre Tolstói, houve pelo menos um filósofo alemão por quem ele exprimiu admiração. Com efeito, não é difícil perceber por que achava Schopenhauer atraente. Aquele pensador solitário desenhou um quadro melancólico da vontade humana impotente, que se debate desesperadamente contra as leis rigidamente determinadas do universo. Referia-se à vaidade de todas as paixões humanas, ao absurdo dos sistemas racionais, ao fracasso universal em compreender as fontes não racionais da ação e do sentimento, ao sofrimento a que toda carne está sujeita, com a conclusão de que seria desejável reduzir a vulnerabilidade humana reduzindo o próprio homem à condição de máxima passividade, em que, desprovido de paixões, não poderá ser frustrado, humilhado ou ferido. Essa famosa doutrina refletia os posteriores conceitos de Tolstói — de que o homem muito sofre por procurar demais, é tolamente ambicioso e superestima grotescamente suas capacidades. Também de Schopenhauer deriva talvez a amarga ênfase que ele atribui ao conhecido contraste entre a ilusão do livre-arbítrio e a realidade das leis férreas que governam o mundo, e sobretudo à explicação do sofrimento inevitável que essa ilusão deve necessariamente provocar, já que não é possível fazê-la desaparecer. Isso, para Schopenhauer e Tolstói, é a tragédia central da vida humana: se pelo menos os homens soubessem quão pouco os mais inteligentes e dotados entre eles podem controlar, quão pouco podem conhecer da multiplicidade de fatores, cujo movimento ordenado constitui a história do mundo; e, acima de tudo, que insensatez presunçosa é pretender perceber uma ordem, unicamente pelo fato de acreditar desesperadamente que tal ordem deve existir, quando, na verdade, tudo o que se pode detectar é um caos desprovido de sentido — um caos cujo ponto culminante é a guerra, microcosmo onde a desordem da vida humana se reflete em intenso grau.
De todas as dívidas literárias de Tolstói, a mais óbvia, evidentemente, é aquela que se refere a Stendhal. Em sua conhecida entrevista com Paul Boyer em 1901,44 Tolstói citava Stendhal e Rousseau como os dois escritores a quem mais devia, acrescentando que tudo o que aprendera sobre a guerra fora através da descrição que Stendhal faz da batalha de Waterloo em A cartuxa de Parma, quando Fabrice vagueia pelo campo de batalha “sem nada entender”. Acrescentou que essa concepção — a de uma guerra “sem panache” ou “embelezamentos” —, de que lhe falara seu irmão Nikolai, foi por ele verificada mais tarde, ao servir durante a Guerra da Crimeia. Nada recebeu tantos elogios dos soldados na ativa quanto as vignettes de Tolstói sobre os episódios da guerra, suas descrições de como as batalhas se mostram para os que delas realmente participam.
Sem dúvida, Tolstói tinha razão ao declarar que muito devia a Stendhal por essa visão tão despojada. No entanto, por trás de Stendhal, há uma figura ainda mais despojada e destrutiva, à qual o próprio Stendhal pode ter emprestado, pelo menos em parte, seu novo método de interpretar a vida social. Trata-se de um célebre escritor, com cuja obra Tolstói certamente se achava familiarizado e à qual devia mais do que se supõe comumente. A surpreendente semelhança entre as concepções de ambos dificilmente poderá ser atribuída ao acaso ou às misteriosas operações do Zeitgeist. Essa figura foi o famoso Joseph de Maistre. A história completa de sua influência sobre Tolstói, embora notada por aqueles que estudaram este último e pelo menos por um crítico de Maistre,45 ainda está para ser escrita.
V
No dia 1o de novembro de 1865, quando chegava à metade de Guerra e paz, Tolstói anotou em seu diário: “Estou lendo Maistre”46 e, no dia 7 de setembro de 1866, escreveu ao editor Barteniev, que atuava como uma espécie de assistente-geral, solicitando-lhe que enviasse o “arquivo Maistre”, isto é, suas cartas e anotações. Havia todos os motivos para Tolstói ler aquele autor, agora relativamente pouco consultado. O conde Joseph de Maistre era um defensor da casa real de Savoia que, no início de sua carreira, fez-se conhecido por escrever panfletos antirrevolucionários durante os últimos anos do século XVIII. Embora normalmente classificado como um escritor católico, reacionário e ortodoxo, um pilar da restauração dos Bourbon e um defensor do status quo pré-revolucionário, sobretudo da autoridade papal, ele era muito mais do que isso. Tinha opiniões implacavelmente não convencionais e misantrópicas sobre a natureza dos indivíduos e das sociedades, e escreveu com seca e irônica violência sobre a natureza do homem, incuravelmente selvagem e perversa, a inevitabilidade do morticínio perpétuo, o caráter divinamente instituído das guerras e o papel esmagador desempenhado nos assuntos humanos pela paixão da autoimolação, a qual, mais do que a socialidade natural ou os acordos artificiais, cria exércitos e também as sociedades civis. Enfatizava a necessidade de uma autoridade absoluta, a punição e a contínua repressão para a sobrevivência da civilização e da ordem. O conteúdo e o tom de seus textos estão mais próximos de Nietzsche, D’Annunzio e os arautos do fascismo moderno do que dos respeitáveis realistas de sua época, e provocaram sensação entre os legitimistas e na França napoleônica. Em 1803, Maistre foi enviado por seu soberano, o rei de Savoia, então exilado em Roma como vítima de Napoleão — em breve ver-se-ia forçado a mudar-se para a Sardenha —, como seu representante semioficial na corte de São Petersburgo. Maistre, dotado de um considerável encanto mundano, bem como de uma aguçada percepção do que o rodeava, provocou forte impressão na sociedade da capital russa como cortesão polido e observador político espirituoso e sagaz. Permaneceu em São Petersburgo de 1803 a 1817, e seus despachos e cartas diplomáticas, escritos com requinte e muitas vezes extraordinariamente penetrantes e proféticos, bem como sua correspondência particular e várias notas dispersas sobre a Rússia e seus habitantes, enviadas a seu governo, a amigos e consultores entre a nobreza russa, constituem valiosa e excepcional fonte de informação sobre a vida e as opiniões dos círculos dirigentes do Império russo durante e imediatamente após o período napoleônico.
Maistre morreu em 1821, autor de vários ensaios teológico-políticos, mas a edição definitiva de sua obra, em particular as festejadas Soirées de Saint-Pétersbourg, que, sob a forma de um diálogo platônico, tratavam da natureza e sanções do governo humano e outros problemas políticos e filosóficos, além de sua Correspondance diplomatique e suas cartas, foi publicada na íntegra somente na década de 1850 e no início da de 1860, graças a seu filho Rodolphe e outros. O ódio declarado de Maistre contra a Áustria, seu antibonapartismo, assim como a crescente importância do reino piemontês antes e depois da Guerra da Crimeia naturalmente intensificaram o interesse por sua personalidade e seu pensamento, naquele momento. Começaram a aparecer livros sobre ele, despertando muitas discussões nos círculos literários e históricos russos. Tolstói tinha as Soirées, bem como a correspondência e as cartas diplomáticas de Maistre, cujos exemplares seriam um dia encontrados na biblioteca de Iásnaia Poliana. Em todo caso, é absolutamente claro que Tolstói recorreu amplamente a elas para Guerra e paz.47 Assim, a famosa descrição da intervenção de Paulucci no debate do Estado-Maior geral russo em Drissa é reproduzida quase integralmente a partir de uma carta de Maistre. Do mesmo modo, o diálogo do príncipe Vassili, por ocasião da recepção na casa de Mme Scherer, com o “homme de beaucoup de mérite” a respeito de Kutúzov, baseia-se obviamente numa carta de Maistre, onde se encontram todas as expressões em francês de que é recheada essa conversa. Além do mais, existe nos primeiros esboços de Tolstói uma nota relativa a “Maistre — Visconde — em casa de Anna Pávlovna”, que se refere ao raconteur que conta à bela Hélène e a um círculo de ouvintes admiradores a tola anedota sobre o encontro de Napoleão com o duque d’Enghien, por ocasião de uma ceia com a célebre atriz Mlle Georges. E o hábito do velho príncipe Bolkónski de mudar sua cama de um aposento para outro foi provavelmente extraído de uma história narrada por Maistre, sobre o idêntico hábito do conde Stroganov. Finalmente, o nome de Maistre surge no próprio romance, como um daqueles que concordam que seria incômodo e inútil capturar os mais eminentes príncipes e marechais do exército de Napoleão, já que isso simplesmente criaria dificuldades diplomáticas. Jikharev, a cujas memórias, conforme se sabe, Tolstói recorreu, conheceu Maistre em 1817 e descreveu-o com cores brilhantes.48 Parte da atmosfera que se encontra nessas memórias integra a descrição que Tolstói faz dos ilustres émigrés presentes na sala de visitas da Anna Pávlovna Scherer, com que se abre Guerra e Paz, além das outras referências do autor à elegante sociedade de São Petersburgo daquela época. Esses ecos e paralelos foram cuidadosamente cotejados pelos estudiosos de Tolstói, e não deixam a menor dúvida sobre a extensão dos empréstimos a que recorreu o autor.
Entre esses paralelos existem semelhanças ainda mais importantes. Maistre explica que a vitória dos lendários Horácios sobre os Curiácios — como todas as vitórias em geral — foi devida ao intangível fator do ânimo moral e Tolstói, do mesmo modo, refere-se à suprema importância dessa desconhecida quantidade na determinação do desfecho das batalhas, o “espírito” impalpável das tropas e de seus comandantes. Semelhante ênfase sobre o imponderável e o incalculável é parte e parcela do irracionalismo geral de Maistre. Com mais clareza e ousadia do que qualquer escritor antes dele, Maistre declarou que o intelecto humano não passava de um débil instrumento, quando competia com o poder das forças naturais; que as explicações racionais da conduta humana raramente explicavam o que quer que fosse. Sustentava que apenas o irracional, exatamente porque desafiava as explicações e, portanto, não podia ser minado pelas atividades críticas da razão, era capaz de persistir e ser forte. E dava exemplos de instituições irracionais, como a monarquia hereditária e o casamento, que sobreviveram de uma era para a outra, ao passo que instituições racionais como a monarquia eletiva ou os relacionamentos pessoais “livres” fracassaram rapidamente, sem nenhuma “razão” óbvia, em todos os lugares em que foram introduzidos. Maistre concebia a vida como uma batalha selvagem em todos os níveis, entre as plantas e os animais, tanto quanto entre os indivíduos e as nações, uma batalha da qual nenhum proveito era de esperar, mas que se originava de algum anseio primitivo de autoimolação, misterioso e sanguinário, implantado por Deus. Esse instinto era muito mais poderoso do que os débeis esforços dos homens racionais, que tentavam alcançar a paz e a felicidade — o que, em todo caso, não constituía o desejo mais profundo do coração humano, somente de sua caricatura, o intelecto liberal —, planejando a vida da sociedade sem levar em conta as violentas forças que, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente fariam com que suas frágeis estruturas desmoronassem como tantos castelos de cartas. Maistre encarava o campo de batalha como típico da vida sob todos seus aspectos, e escarnecia dos generais que pensavam que estavam realmente controlando os movimentos de suas tropas e dirigindo o curso da luta. Declarava que ninguém, no verdadeiro calor da batalha, pode sequer começar a dizer o que está acontecendo:
Neste mundo muito se fala das batalhas sem que se saiba o que são; sobretudo mostramo-nos muito inclinados a considerá-las como pontos localizados, ao passo que elas cobrem duas ou três léguas de terreno. Dizem-nos com gravidade: Como não sabeis o que se passou no combate, já que dele participastes?, mas é precisamente o contrário que se poderia afirmar com frequência. Aquele que se encontra à direita saberá o que se passa à esquerda? Saberá sequer o que acontece a dois passos dele? Imagino facilmente uma dessas cenas aterrorizantes: sobre um vasto terreno coberto com todos os preparativos para uma carnificina e que parece abalar-se sob os passos dos homens e dos cavalos, no meio do fogo e dos turbilhões de fumaça, atordoado, envolvido pelo tinir das armas de fogo e dos instrumentos militares, pelas vozes que comandam, vociferam ou se apagam, rodeado de mortos, de agonizantes, de cadáveres mutilados, possuído sucessivamente pelo temor, pela esperança, pela raiva, por cinco ou seis diferentes formas de embriaguez, em que se transforma o homem? O que ele vê? O que sabe ele, decorridas algumas horas? Que pode ele, em relação a si mesmo e aos outros? Entre essa multidão de guerreiros que combateram o dia inteiro, frequentemente não existe um só, nem mesmo o general, que saiba onde se encontra o vencedor. Só dependeria de mim citar-vos batalhas modernas, batalhas famosas, cuja memória jamais se extinguirá, batalhas que modificaram a face dos negócios na Europa, e que só foram perdidas porque um ou outro homem assim acreditou; de tal modo que, admitindo a igualdade de condições e que nenhuma gota de sangue a mais foi derramada de um e de outro lado, um outro general faria cantar o Te Deum em seus domínios, forçando a história a dizer o contrário do que ela dirá.49
E posteriormente: “Não acabamos até mesmo por ver perder as batalhas ganhas? [...] Acredito em geral que de forma alguma as batalhas se ganham ou se perdem fisicamente”.50
E, mais uma vez, seguindo o mesmo raciocínio:
Assim, um exército de 40 mil homens é fisicamente inferior a um outro de 60 mil: mas se o primeiro tiver mais coragem, experiência e disciplina, poderá derrotar o segundo, pois ele desenvolve mais ação com menos massa, e é o que observamos em cada página da história. 51
E finalmente: “É a opinião que perde as batalhas e é a opinião que as ganha”. 52
A vitória é uma questão moral ou psicológica, não física:
O que é uma batalha perdida? [...] É uma batalha que se acredita ter perdido. Nada é mais verdadeiro. Um homem que combate com outro é vencido quando morre ou é arremessado ao chão, e o outro permanece de pé. O mesmo não se dá com dois exércitos: um não pode ser morto, enquanto o outro fica de pé. As forças se equilibram, assim como os mortos, e sobretudo depois que a invenção da pólvora introduziu maior igualdade nos meios de destruição, uma batalha não mais se perde materialmente, isto é, por haver mais mortos de um lado que de outro. Frederico II, que entendia um pouco disso, afirmava: Vencer é avançar. Mas quem é que avança? Aquele cuja consciência e capacidade fazem o outro recuar. 53
Não existe e nem pode existir uma ciência militar, pois “é a imaginação que perde as batalhas” 54 e “poucas batalhas são perdidas fisicamente — vós atirais, eu atiro [...] o verdadeiro vencedor, como o verdadeiro vencido, é aquele que o acredita ser”. 55
É essa a lição que Tolstói afirma dever a Stendhal, mas as palavras do príncipe Andrei em relação a Austerlitz — “Perdemos por dizer a nós mesmos que perdemos” —,56 assim como a atribuição da vitória russa sobre Napoleão à intensidade do desejo russo em sobreviver, fazem lembrar Maistre e não Stendhal.
Esse estreito paralelismo entre as visões de Maistre e Tolstói sobre o caos e a impossibilidade de controlar as batalhas e as guerras, com suas implicações mais amplas para a vida humana em geral, juntamente com o desprezo de ambos pelas ingênuas explicações fornecidas pelos historiadores acadêmicos para a violência humana e o apetite pela guerra, foi notado pelo eminente historiador francês Albert Sorel, numa conferência pouco conhecida, feita na École des Sciences Politiques em 7 de abril de 1888.57 Ele estabeleceu um paralelo entre Maistre e Tolstói observando que, embora Maistre fosse um teocrata e Tolstói um “niilista”, ainda assim ambos encaravam as causas primordiais dos eventos como algo misterioso, que envolve a redução das vontades humanas à nulidade. “A distância que separa um teocrata de um místico e este de um niilista é menor do que a que separa a borboleta da larva, a larva da crisálida e esta da borboleta.” Tolstói assemelha-se a Maistre ao se mostrar acima de tudo curioso em relação às causas primeiras, ao formular indagações como as de Maistre — “Explicai por que o que existe de mais honroso no mundo, aos olhos de todo o gênero humano sem exceção, é o direito de derramar inocentemente o sangue inocente?” —,58 ao rejeitar todas as respostas naturalistas ou racionalistas, ao enfatizar intangíveis fatores psicológicos, “espirituais” e, algumas vezes, “zoológicos” como determinantes para os acontecimentos, às expensas de análises estatísticas do poderio militar, muito a exemplo do que fazia Maistre nos despachos que enviava, a seu governo em Cagliari. Com efeito, o relato que Tolstói faz dos movimentos das massas — na batalha, na fuga dos russos de Moscou, ou na dos franceses quando se retiram da Rússia — quase poderia caber como ilustração concreta da teoria de Maistre sobre o caráter não planejado e implanejável de todos os grandes acontecimentos. O paralelo, porém, vai ainda mais longe. O conde saboiano e o russo reagem, e reagem violentamente, ao otimismo liberal sobre a bondade humana, à razão humana e ao valor ou à inevitabilidade do progresso material. Ambos denunciam furiosamente a ideia de que a humanidade pode tornar-se eternamente feliz e virtuosa através de meios científicos e racionais.
A primeira grande onda de racionalismo otimista, que se seguiu às guerras de religião, defrontou-se contra a violência da grande Revolução Francesa, do despotismo político e da miséria social e econômica que viera em seguida. Na Rússia, uma situação semelhante foi abalada pela longa sucessão de medidas repressivas adotadas por Nicolau I com o objetivo de contrapor-se principalmente aos efeitos da revolta dezembrista e, quase um quarto de século mais tarde, à influência das revoluções europeias de 1848-9; a isso deve-se acrescentar, uma década mais tarde, o efeito material e moral da derrota na Crimeia. Em ambos os casos, a emergência da força bruta eliminou grande parte de um idealismo compassivo e resultou em vários tipos de realismo e brutalidade — entre outros, o socialismo materialista, o neofeudalismo autoritário, o nacionalismo implantado a ferro e fogo, bem como outros movimentos asperamente antiliberais. Nos casos de Maistre e de Tolstói, a despeito de todas as suas diferenças religiosas, culturais, sociais e psicológicas profundas e intransponíveis, a desilusão assumiu a forma de um agudo ceticismo em relação ao método científico enquanto tal, de uma desconfiança de todo racionalismo, liberalismo, positivismo e todas as formas daquele secularismo arrogante que então gozava de influência na Europa ocidental. Esse ceticismo levou a uma ênfase deliberada sobre os aspectos “desagradáveis” da história humana, da qual os românticos sentimentais, os historiadores humanistas e os teóricos sociais otimistas pareciam desviar os olhos com tamanha determinação.
Maistre e Tolstói referiam-se aos reformadores políticos (em um exemplo interessante, ao mesmo indivíduo que representava esses reformadores, o estadista russo Speránski) com o mesmo tom de amarga e desdenhosa ironia. Maistre era suspeito de ter contribuído ativamente para a queda e o exílio de Speránski; Tolstói, através dos olhos do príncipe Andrei, descreve o pálido semblante daquele que, em certa época, fora o favorito de Alexandre, suas mãos macias, seus modos meticulosos e enfatuados, a artificialidade e vacuidade de seus movimentos, como se, de certo modo, eles indicassem a irrealidade de sua pessoa e de suas atividades liberais, com um estilo que Maistre só teria aplaudido. Ambos se referem aos intelectuais com desprezo e hostilidade. Maistre encara-os não só como casualidades grotescas do processo histórico — horrendas advertências criadas pela Providência a fim de assustar a humanidade e fazê-la retornar à antiga fé católica —, mas como seres perigosos para a sociedade, uma seita pestilenta de questionadores e corruptores da juventude. Todos os dirigentes prudentes deveriam tomar medidas contra sua atividade corrosiva. Tolstói trata-os com mais desprezo do que ódio e apresenta-os como criaturas pobres, desarvoradas, de mente fraca, com ilusões de grandeza. Maistre os vê como um bando de gafanhotos políticos e sociais, um cancro no seio da civilização cristã, a qual, de tudo o que existe, é o que há de mais sagrado e que somente será preservada pelos esforços heroicos do papa e de sua Igreja. Tolstói encara-os como tolos astuciosos, urdidores de sutilezas vazias, cegos e surdos às realidades que os corações mais simples conseguem apreender, e de vez em quando ataca-os com a violência brutal de um velho camponês anárquico e carrancudo, vingando-se, após anos de silêncio, daqueles tolos símios loquazes, criados nas cidades, tão sabichões, cheios de palavras que tudo explicam, superiores, impotentes e vazios. Ambos descartam qualquer interpretação da história que não situe em primeiro plano a questão da natureza do poder, e ambos se referem com grande desdém às tentativas de uma explicação racionalista. Maistre diverte-se às custas dos enciclopedistas, com suas engenhosas superficialidades, suas categorias concisas, porém vazias, muito ao estilo adotado por Tolstói em relação a seus descendentes, um século mais tarde — os historiadores e sociólogos científicos. Ambos professam a crença na profunda sabedoria do povo simples que não se deixa corromper, embora os mordazes obiter dicta de Maistre sobre a barbárie, a venalidade e a ignorância irremediáveis dos russos não devam ter sido ao gosto de Tolstói, se é que ele os leu.
Maistre e Tolstói encaram o mundo ocidental como se, de certo modo, estivesse “apodrecendo”, entregue a uma rápida decadência. Era essa a doutrina que os contrarrevolucionários católicos apostólicos romanos praticamente inventaram na virada do século, e que integrava a visão que tinham da Revolução Francesa, encarando-a como um castigo divino infligido aos que se desgarraram da fé cristã e, em particular, da Igreja de Roma. A partir da França, essa denúncia do secularismo passou por muitas rotas tortuosas, sobretudo graças a jornalistas de segunda categoria e seus leitores acadêmicos, chegando à Alemanha e à Rússia (a este país, tanto por via direta como através de versões alemãs), onde encontrou solo fértil entre aqueles que, tendo evitado os levantes revolucionários, achavam lisonjeiro para seu amour propre acreditar que, em todo caso, ainda poderiam estar a caminho de um poder e glória maiores, enquanto o Ocidente, destruído pela derrota de sua antiga fé, desintegrava-se rapidamente, no plano moral e político. Sem dúvida, Tolstói devia esse elemento de sua visão tanto aos eslavófilos e outros chauvinistas russos quanto a Maistre, mas vale a pena notar que essa crença é excepcionalmente vigorosa nesses dois observadores secos e aristocráticos, regendo suas visões estranhamente semelhantes. Os dois, au fond, eram pensadores obstinadamente pessimistas, cuja impiedosa destruição das ilusões correntes assustavam seus contemporâneos, mesmo quando eles concordavam relutantes em reconhecer a verdade do que era dito. Apesar de Maistre ser um fanático ultramontano e apoiar as instituições estabelecidas, enquanto Tolstói, apolítico no período inicial de sua obra, não dava provas de um sentimento radical, sentia-se obscuramente que ambos eram niilistas. Os valores humanos do século XIX foram por eles reduzidos a pó. Ambos procuraram escapar de alguma forma a seu inelutável e irrespondível ceticismo, procurando uma verdade ampla e inexpugnável que os protegesse dos efeitos de suas próprias inclinações naturais e de seu temperamento: Maistre na Igreja, Tolstói no coração humano incorruptível e no amor simples e fraterno — estado que ele deve ter conhecido apenas raramente, um ideal perante o qual toda sua capacidade descritiva o abandona e, em geral, resulta em algo pouco artístico, rígido e ingênuo, dolorosamente tocante, dolorosamente não convincente e visivelmente distante de sua própria experiência.
No entanto, não se deve exagerar a analogia. É verdade que Maistre e Tolstói atribuem a maior importância possível à guerra e ao conflito, mas Maistre, como Proudhon posteriormente,59 glorifica a guerra, declara-a misteriosa e divina, ao passo que Tolstói a detesta e a considera explicável em princípio, mas apenas se conhecêssemos um número suficiente das pequenas causas, o conhecido “diferencial” da história. Maistre acreditava na autoridade por se tratar de uma força irracional, acreditava na necessidade da submissão, na inevitabilidade do crime e na suprema importância dos inquéritos e do castigo. Considerava o carrasco a pedra angular da sociedade, e não foi por acaso que Stendhal o chamou de l’ami du bourreau, e que Lamennais disse que, para ele, existiam apenas duas realidades — o crime e o castigo. “Até parece que suas obras foram escritas no cadafalso.”60 A visão de mundo de Maistre é a de um universo de criaturas selvagens estraçalhando-se mutuamente, membro por membro, matando pelo prazer de matar, com violência e sangue, que encara como a condição normal de toda vida animada. Tolstói está muito distante de tamanho horror, crime e sadismo.61 Pace Albert Sorel e Vogüé, ele não é de modo algum um místico. Não receia questionar o que quer que seja, e acredita que deve existir uma resposta singela, se simplesmente não insistirmos em nos atormentar, procurando-a em lugares estranhos e remotos, quando, o tempo todo, ela se encontra junto a nós.
Maistre defendia o princípio da hierarquia e acreditava numa aristocracia voltada para o autossacrifício, no heroísmo, na obediência e no mais rígido controle das massas por parte de seus superiores sociais e teológicos. Advogava da mesma forma que a educação na Rússia deveria ser entregue aos jesuítas; estes, pelo menos, inculcariam nos bárbaros citas a língua latina, que era a língua sagrada da humanidade quando menos por incorporar os preconceitos e as superstições de eras anteriores — crenças que tinham passado pelo teste da história e da experiência —, a única capaz de erguer uma barreira suficientemente forte para deter os terríveis corrosivos do ateísmo, do liberalismo e da liberdade de pensamento. Acima de tudo, ele encarava a ciência natural e a literatura secular como mercadorias perigosas nas mãos daqueles que não tinham sido completamente doutrinados contra elas, um vinho embriagante que poderia excitar perigosamente qualquer sociedade que não estivesse acostumada a ele, acabando por destruí-la.
Durante a vida inteira, Tolstói lutou contra o obscurantismo declarado e a repressão artificial do anseio pelo conhecimento. Suas palavras mais duras eram dirigidas àqueles estadistas e publicistas russos do último quartel do século XIX — Pobedonostsev e seus amigos e apaniguados — que praticavam exatamente essas máximas do grande reacionário católico. O autor de Guerra e paz odiava claramente os jesuítas e, sobretudo, detestava seu sucesso em converter as damas russas da sociedade, durante o reinado de Alexandre. Os acontecimentos finais ocorridos na vida da indigna esposa de Pierre, Hélène, quase podem ter se baseado nas atividades de Maistre como missionário junto à aristocracia de São Petersburgo. Com efeito, há todas as razões para se supor que os jesuítas foram expulsos da Rússia, e Maistre foi praticamente cassado quando o próprio imperador passou a julgar sua interferência excessivamente aberta e eficiente.
Nada, portanto, chocaria e irritaria tanto Tolstói quanto ouvir que tinha muito em comum com esse apóstolo das trevas, defensor da ignorância e da servidão. Mas, entre todos os que escreveram sobre questões sociais, o tom de Maistre é o que mais se aproxima do de Tolstói. Ambos preservam a mesma descrença sardônica, quase cáustica, no aperfeiçoamento da sociedade por meios racionais, pela promulgação de boas leis ou pela difusão do conhecimento científico. Ambos se referem com a mesma ironia raivosa a todas as explicações em voga, a toda panaceia social, sobretudo à ordenação e ao planejamento da sociedade de acordo com algumas fórmulas humanas. Em Maistre existe abertamente — o que em Tolstói é menos óbvio — uma atitude profundamente cética em relação a todos os especialistas e a todas as técnicas, a todas as presunçosas profissões de fé secular e esforços de melhoria social feitos por pessoas bem-intencionadas, mas infelizmente idealistas. Existe neles a mesma aversão por quem quer que lide com ideias e acredite em princípios abstratos. Ambos se mostram profundamente atingidos pelo talento de Voltaire e rejeitam asperamente suas concepções. Ambos, em última análise, apelam para uma fonte elementar oculta nas almas dos homens, Maistre mesmo quando denuncia Rousseau como falso profeta, e Tolstói, com sua atitude mais ambígua em relação a ele. Ambos, acima de tudo, rejeitam o conceito de liberdade política individual, de direitos civis garantidos por algum sistema impessoal de justiça. Maistre, por considerar qualquer desejo de liberdade pessoal — política, econômica, social, cultural ou religiosa — como uma indisciplina obstinada e uma insubordinação estúpida, defendia a tradição em suas formas mais obscuramente irracionais e repressivas, pois somente ela propiciava a energia que dava vida, continuidade e ancoradouro seguro às instituições sociais. Tolstói rejeitava a reforma política por acreditar que a regeneração final poderia vir apenas de dentro, e que a vida interior só era vivida verdadeiramente nas profundezas intocadas da massa do povo.
VI
Existe, porém, um paralelo ainda maior e mais importante entre a interpretação da história de Tolstói e as ideias de Maistre, que levanta questões de princípio fundamentais, relativas ao conhecimento do passado. Um dos elementos que mais chamam a atenção, comuns ao pensamento desses penseurs distintos e até mesmo antagônicos, é sua preocupação com o caráter “inexorável”, a “marcha” dos acontecimentos. Tolstói e Maistre pensam o mundo como uma teia espessa, opaca, inextricavelmente complexa de acontecimentos, objetos e características, ligados e divididos por elos literalmente incontáveis e inidentificáveis, além de lacunas e súbitas descontinuidades, visíveis e invisíveis. É uma visão da realidade que faz com que todas as construções claras, lógicas e científicas — os padrões simétricos e bem definidos da razão humana — pareçam gastas, tênues, vazias, “abstratas” e totalmente insuficientes como meios de descrição ou análise de tudo o que vive ou jamais viveu. Maistre atribui esse fato à incurável impotência das capacidades humanas de observação e raciocínio, pelo menos quando funcionam sem o auxílio das fontes sobre-humanas do conhecimento — a fé, a revelação, a tradição e, acima de tudo, a visão mística dos grandes santos e doutores da Igreja, seu especial sentido de realidade, que não é passível de análise e para o qual a ciência natural, a crítica livre e o espírito secular se apresentam como algo fatal. Os gregos mais sábios, muitos entre os romanos eminentes e, depois deles, os eclesiásticos e estadistas ilustres da Idade Média, segundo nos diz Maistre, possuíam essa percepção; dela derivavam seu poder, dignidade e sucesso. Os inimigos naturais desse espírito são a destreza e a especialização; daí o desprezo tão diretamente demonstrado no mundo romano pelos especialistas e técnicos — os Graeculus esuriens —,62 remotos mas inconfundíveis ancestrais daquelas figuras encarquilhadas e manhosas da moderna era alexandrina, aquele terrível século XVIII, com toda a écrivasserie et avocasserie,1172 a miserável caterva de escrevinhadores e advogados, tendo à frente a figura de Voltaire, arreganhando os dentes, sórdida e predatória, destrutiva e autodestrutiva, por ser cega e surda à verdadeira Palavra de Deus. Apenas a Igreja compreende os ritmos “interiores”, as correntes “mais profundas” do mundo, a marcha silenciosa das coisas; non in commotione Dominus,63 não em ruidosos manifestos democráticos, nem na agitação de fórmulas constitucionais ou na violência revolucionária, mas na ordem natural eterna, governada pela lei “natural”. Somente os que a compreendem sabem o que pode e o que não pode ser alcançado, o que deve e não deve ser tentado. Eles, e somente eles, detêm a chave do êxito secular e da salvação espiritual. A onisciência pertence unicamente a Deus, mas somente ao mergulharmos em Sua Palavra, em Seus princípios teológicos ou metafísicos, encarnados da maneira mais baixa nos instintos e antigas superstições, que não passam de modos primitivos, testados pelo tempo, de adivinhar e obedecer às Suas leis — ao passo que o raciocínio é um esforço de substituí-las por nossas regras pessoais arbitrárias —, é que ousaremos ter a esperança da sabedoria. A sabedoria prática é, em ampla medida, o conhecimento do inevitável, daquilo que, dada a ordem do nosso mundo, não pode deixar de acontecer e, inversamente, de como às coisas não podem ou não poderiam ter sido feitas; é o conhecimento daquilo que faz com que alguns planos devam inevitavelmente redundar em fracasso, embora não se possa invocar para isso nenhuma razão demonstrativa ou científica. À rara capacidade de enxergar esse fato denominamos “sentido de realidade”: é um sentido sobre o que se adapta a quê, sobre o que não pode coexistir com outra coisa. Ela atende por muitos nomes: discernimento, sabedoria, talento prático, sentido do passado, compreensão da vida e do caráter humano.
A visão de Tolstói não é muito diferente, mas, para ele, a causa da insensatez de nossas exageradas pretensões em compreender ou determinar acontecimentos nada insensatos, de nossos esforços blasfemos em agirmos sem um conhecimento especial, isto é, sobrenatural, deve-se unicamente à ignorância do imenso número de inter-relações, das minúsculas causas que determinam os acontecimentos. Se começássemos a conhecer a rede causal em sua infinita variedade, deixaríamos de elogiar e censurar, de nos vangloriar e nos arrepender, de encarar os seres humanos como heróis ou vilões, e nos submeteríamos com a devida humildade à necessidade inevitável. No entanto, dizer apenas isso é caricaturar as crenças de Tolstói. Com efeito, sua explícita doutrina em Guerra e paz é que toda a verdade se encontra na ciência, no conhecimento das causas materiais, e que nós, por conseguinte, tornamo-nos ridículos ao chegarmos a conclusões baseados em provas demasiado insuficientes. A esse respeito, ele nos compara desfavoravelmente aos camponeses e selvagens que, não sendo muito mais ignorantes, pelo menos alimentam pretensões mais modestas. Não é essa, porém, a visão do mundo que de fato atravessa Guerra e paz, Anna Kariênina ou qualquer outra obra desse período da vida de Tolstói. Kutúzov é sábio e não simplesmente esperto como o oportunista Drubetskói ou Bilíbin. Ele não é uma vítima de teorias ou dogmas abstratos, ao contrário dos especialistas militares alemães. É diferente deles, mais sábio do que eles, mas não por conhecer mais fatos, nem por saber na ponta da língua um número maior das “pequenas causas” dos acontecimentos do que seus conselheiros ou seus adversários — do que Pfuhl, Paulucci, Berthier ou o rei de Nápoles. Karatáiev traz esclarecimentos a Pierre, coisa que os maçons não fizeram, mas não porque tenha informação científica superior à das lojas maçônicas de Moscou. Liévin passa por uma experiência durante seu trabalho nos campos, e o mesmo acontece com o príncipe Andrei, enquanto está ferido no campo de batalha de Austerlitz, mas em nenhum dos dois casos ocorreu uma descoberta de fatos novos ou novas leis em qualquer sentido comum. Ao contrário, quanto mais uma pessoa acumula fatos, mais fútil se torna sua atividade, mais inevitável é seu fracasso, como demonstra o grupo de reformistas que rodeiam Alexandre. Eles, e os homens como eles, só são salvos do desespero faustiano por estupidez (como os alemães, os especialistas militares e os especialistas em geral), por vaidade (como Napoleão), por frivolidade (como Oblónski) ou por falta de coração (como Kariênin).
O que Pierre, o príncipe Andrei e Liévin descobrem? O que buscam eles, o que é o centro e o clímax da crise espiritual resolvida pela experiência que transforma suas vidas? Não é a mortificadora percepção de quão pouco é o que eles — Pierre, Liévin e os outros — podem pretender ter descoberto, em comparação à totalidade dos fatos e leis, conhecidos pelo onisciente observador que era Laplace; não é um mero reconhecimento de uma ignorância socrática. E menos ainda consiste naquilo que se situa quase no polo oposto, numa percepção nova e mais precisa das “leis férreas” que governam nossas vidas, numa visão da natureza como máquina ou fábrica, na cosmologia dos grandes materialistas, Diderot, Lamettrie ou Cabanis, ou dos escritores científicos de meados do século XIX idolatrados pelo “niilista” Bazarov em Pais e filhos, de Turguêniev; e tampouco em algum sentido transcendental da inexprimível unicidade da vida, que os poetas, místicos e metafísicos testemunharam em todas as eras. Algo, porém, é realmente percebido; há uma visão ou, pelo menos, um vislumbre, um momento de revelação que, em certo sentido, explica e reconcilia, uma teodiceia, uma justificação e elucidação do que existe e acontece. E em que consiste isso? Tolstói não nos diz em muitas palavras, pois quando se dispõe a fazê-lo, em seus trabalhos posteriores, explicitamente didáticos, sua doutrina já não é mais a mesma. No entanto, nenhum leitor de Guerra e paz pode ficar inteiramente inconsciente do que lhe está sendo dito. E não apenas nas cenas em que aparecem Kutúzov ou Karatáiev, ou em outras passagens de perfil teológico ou metafísico, mas ainda mais, por exemplo, na parte narrativa, e não filosófica, do epílogo, onde Pierre, Natacha, Nikolai Rostóv e a princesa Mária aparecem assentados em suas novas vidas sólidas e sóbrias, com sua rotina cotidiana estabelecida. O que se pretende claramente é que vejamos que esses “heróis” do romance — a gente “boa” —, após as tempestades e angústias de dez anos ou mais, alcançaram uma espécie de paz, baseada em algum grau de compreensão. Mas compreensão de quê? Da necessidade de se submeter. A quê? Não simplesmente à vontade de Deus (certamente não na época em que eram escritos os grandes romances, na década de 1860 ou 1870) ou às “leis férreas” das ciências, mas às permanentes relações entre as coisas,64 à substância universal da vida humana, onde, e apenas aí, podem se encontrar a verdade e a justiça, através de uma espécie de conhecimento “natural”, de certo modo aristotélico.
Compreendê-lo é, acima de tudo, captar o que a vontade e a razão humanas podem realizar ou não. E como é possível sabê-lo? Não através de uma indagação e descoberta específica, mas por uma consciência, não necessariamente explícita ou lúcida, de certas características gerais da vida e da experiência humanas. A mais importante e penetrante dessas características é a linha decisiva que divide a “superfície” e as “profundezas” — de um lado, o mundo dos dados perceptíveis, descritíveis, analisáveis, tanto físicos como psicológicos, “externos” e “internos”, públicos e privados, com os quais as ciências podem lidar, embora em alguns campos — a física exterior — tenham feito tão poucos progressos; e, por outro lado, a ordem que, por assim dizer, “contém” e determina a estrutura da experiência, o quadro no qual ela — isto é, nós e tudo aquilo que vivenciamos — deve ser concebida, que faz parte de nossos hábitos de pensamento, ação, sentimento, nossas emoções, esperanças, desejos, nossos modos de falar, acreditar, reagir, ser. Nós, criaturas conscientes, em parte vivemos num mundo cujos componentes podemos descobrir, classificar e neles atuar através de métodos racionais, científicos, deliberadamente planejados; mas em parte (Tolstói e Maistre, além de vários pensadores, afirmam que é, de longe, a maior parte) estamos imersos e submersos num meio que não observamos, nem podemos observar como se estivéssemos fora dele, precisamente na medida em que, inevitavelmente, o assumimos como parte de nós mesmos. Não podemos identificar, medir e tentar manipular esse meio. Não podemos sequer estar inteiramente conscientes dele, visto que ele participa com demasiada intimidade de toda a nossa experiência, está por demais entrelaçado com tudo o que somos e fazemos, para que possamos retirá-lo do fluxo — ele é o fluxo — e observá-lo com afastamento científico, como um objeto. Ele — o meio em que estamos — determina nossas mais permanentes categorias, nossos modelos de verdade e falsidade, de realidade e aparência, do bem e do mal, do central e do periférico, do subjetivo e do objetivo, do belo e do feio, do movimento e do repouso, do presente, passado e futuro, do uno e do plural; portanto, nem essas nem quaisquer outras categorias ou conceitos explicitamente concebidos podem ser aplicados a ele, já que, em si mesmo, não passa de um nome vago para a totalidade que inclui essas categorias e conceitos, a estrutura última, os pressupostos básicos a partir dos quais funcionamos.
No entanto, embora não possamos analisar o meio sem o auxílio de alguma (impossível) posição privilegiada situada em seu exterior (pois o “exterior” não existe), ainda assim alguns seres humanos estão mais conscientes — embora não as possam descrever — da composição e direção dessas porções “submersas” de sua própria vida e da vida de todos os demais; mais conscientes desse fato do que outras pessoas que, ou ignoram a existência desse meio difuso que tudo impregna (o “fluxo da vida”) e são com razão consideradas superficiais, ou então tentam aplicar a esse meio instrumentos — científicos, metafísicos etc. — adaptados unicamente a objetos acima da superfície, isto é, a parcela relativamente consciente e manipulável da nossa experiência, e assim realizam absurdos em suas teorias e malogros humilhantes em suas práticas. A sabedoria é a capacidade de fazer concessões ao meio inalterável (pelo menos por nós) no qual agimos, do mesmo modo que concedemos, digamos, ao caráter impregnante do tempo e do espaço, que caracteriza todas nossas experiências; e de levar em conta, mais ou menos conscientemente, as “correntes inevitáveis”, os “imponderáveis”, o “modo como as coisas caminham”. Não se trata de um conhecimento científico, mas de uma sensibilidade especial para os contornos das circunstâncias em que nos encontramos; é uma capacidade de vivermos sem colidir com alguma condição ou fator permanente que não pode ser alterado, e nem mesmo plenamente descrito ou calculado; é uma capacidade de sermos guiados por regras práticas — a “sabedoria imemorial” que, ao que se diz, encontra-se nos camponeses e em outras “pessoas simples” — quando as regras da ciência, em princípio, não se aplicarem. Esse inexprimível senso de orientação cósmica é o “sentido de realidade”, “o conhecimento” de como viver.
Algumas vezes Tolstói fala como se a ciência pudesse em princípio, se não na prática, tudo penetrar e tudo conquistar. Nesse caso, então conheceríamos as causas de tudo o que existe, saberíamos que não somos livres, mas totalmente determinados — e isso é tudo o que os mais sábios podem saber. Maistre também se expressa como se os mestres conhecessem mais do que nós, através de suas técnicas superiores. Mas o que eles conheciam ainda era, num certo sentido, os “fatos”, o tema das ciências. São Tomás conhecia incomparavelmente mais do que Newton, e com maior precisão e certeza, mas aquilo que conhecia era da mesma espécie. Mas, apesar desse falso protesto de admiração pela capacidade da ciência natural ou da teologia em detectar a verdade, eles se mantêm puramente formais, e uma crença muito diferente encontra expressão nas doutrinas positivas de Maistre e Tolstói. São Tomás de Aquino é elogiado por Maistre não por ser melhor matemático do que D’Alembert ou Monge; de acordo com Tolstói, a virtude de Kutúzov não consiste no fato de ser um teórico da guerra melhor e mais científico do que Pfuhl ou Paulucci. Estes grandes homens são mais sábios, não mais instruídos; não é seu raciocínio indutivo ou dedutivo que os faz mestres; sua visão é “mais profunda”, veem algo que os outros não conseguem enxergar; observam como o mundo caminha, como as coisas se encaixam e as coisas que nunca se reunirão; veem o que pode e o que não pode ser; como os homens vivem, com que finalidades, o que fazem e sofrem, como e por que agem e deveriam agir de determinada maneira e não de outra.
Esse “modo de ver”, num certo sentido, não traz novas informações sobre o universo; trata-se de uma consciência da inter-relação do imponderável com o ponderável, da “forma” das coisas em geral, de uma situação ou de um caráter específico, precisamente aquilo que não se pode deduzir ou sequer formular em termos das leis da natureza, exigidas pelo determinismo científico. Os cientistas conseguem lidar com tudo o que possa ser subordinado a tais leis, e isso não requer “sabedoria”. Negar à ciência seus direitos, devido à existência dessa “sabedoria” superior, é uma invasão irrefletida do território científico e uma confusão de categorias. Tolstói, pelo menos, não chega ao extremo de negar a eficácia da física em sua própria esfera. Julga, porém, tal esfera insignificante, em comparação ao que se encontra permanentemente fora do alcance da ciência — os mundos social, moral, político e espiritual, que não podem ser classificados, descritos e previstos por qualquer ciência, pois neles a proporção da vida “submersa”, não analisável, é alta demais. A percepção que desvenda a natureza e a estrutura desses mundos não é um mero substituto temporário, um pis aller a que se recorre apenas enquanto as técnicas científicas adequadas não estão suficientemente refinadas. Sua esfera de ação é totalmente diferente: ela faz o que ciência alguma pode pretender fazer; ela distingue o real do simulacro, o que vale a pena daquilo que é inútil; o que pode ser feito ou criado do que não o pode; e age assim sem oferecer explicações racionais para seus pronunciamentos, quanto mais não seja porque “racional” e “irracional” são termos que adquirem seus significados e usos em relação a essa mesma percepção, ao “se originarem” dela, e não ao contrário. Pois o que são os dados de tal compreensão senão o terreno último, a estrutura, a atmosfera, o contexto, o meio — para empregarmos a metáfora que for mais expressiva — em que todos nossos pensamentos e atos são sentidos, avaliados e julgados das maneiras inevitáveis como o são?
É o sentido sempre presente dessa estrutura, desse movimento dos acontecimentos ou padrão mutável das características, como algo “inexorável”, universal, impregnante, que não é alterável por nós, que não está em nosso poder (na acepção de “poder” segundo a qual o progresso do conhecimento científico nos concedeu poder sobre a natureza), é isso que se encontra na raiz do determinismo de Tolstói, de seu realismo e pessimismo, de seu desprezo — e o de Maistre — pela fé que a ciência e o senso comum mundano depositam na razão. “Lá” está — a estrutura, o alicerce de tudo —, e apenas o homem sábio o percebe. Pierre o procura às apalpadelas; Kutúzov o sente em seus ossos; Karatáiev está em harmonia com ele. Todos os heróis de Tolstói alcançam pelo menos vislumbres intermitentes seus, e é isso que faz com que todas as explicações convencionais, científicas, históricas, bem como as do “bom senso” irrefletido, pareçam tão vazias e, entre as mais pretensiosas, tão vergonhosamente falsas. O próprio Tolstói também sabe que a verdade está lá e não “aqui”, não nas regiões acessíveis à observação, à discriminação e à imaginação construtiva, nem no poder da percepção e análise microscópica, em que ele é, em tão larga medida, o maior mestre do nosso tempo. Porém, ele mesmo não a viu frente a frente, pois, independentemente do que pudesse ter feito, não possuía a visão do todo. Ele não é, e está longe de ser um porco-espinho. O que ele vê não é o uno, mas, sempre com uma minúcia cada vez maior, em toda sua prolífica individualidade, com uma lucidez obsessiva, inelutável, incorruptível, que tudo penetra e o enlouquece, é o múltiplo.
VII
Fazemos parte de um sistema de coisas mais amplo do que nossa compreensão pode alcançar. Não temos condição de descrevê-lo do mesmo modo que os objetos externos ou as personalidades das outras pessoas, isolando-os de certa forma do “fluxo” histórico em que têm seu ser, e das suas próprias porções “submersas”, insondáveis, nas quais os historiadores profissionais, de acordo com Tolstói, prestaram tão pouca atenção. Nós mesmos vivemos nesse todo e por ele, e somos sábios apenas na medida em que nos pacificamos com ele. Pois, a menos e até que assim o façamos — somente após muito sofrimento amargo, a crer em Ésquilo e no Livro de Jó —, protestaremos e sofreremos em vão, fazendo-nos de pobres bobos, como Napoleão, nessa tentativa de acordo. Esse sentido de uma corrente circundante, cuja natureza, se for desafiada pela estupidez ou por um egoísmo arrogante, fará malograr nossos atos e pensamentos, é a visão da unidade da experiência, o sentido da história, o verdadeiro conhecimento da realidade, a crença na intransmissível sabedoria do sábio (ou do santo) que, mutatis mutandis, é comum a Tolstói e a Maistre. Seu realismo é semelhante: inimigo natural do romantismo, do sentimentalismo e do “historicismo”, bem como de um “cientificismo” ativo. O propósito de ambos não é distinguir o pouco que se sabe ou se faz daquele ilimitado oceano que abrange, em princípio, tudo o que poderia ou, um dia, viria a ser conhecido e feito, seja pelo avanço no conhecimento das ciências naturais, da metafísica ou das ciências históricas, seja por um retorno ao passado ou algum outro método. O que eles procuram delimitar são as fronteiras eternas de nosso conhecimento e poder, demarcando-as em relação àquilo que, em princípio, jamais poderá ser conhecido ou alterado pelos homens. De acordo com Maistre, nosso destino se encontra no pecado original, no fato de sermos humanos, finitos, falíveis, viciosos, vaidosos, e nosso conhecimento empírico, em contraposição aos ensinamentos da Igreja, encontra-se contaminado pelo erro e pela monomania. De acordo com Tolstói, todo nosso conhecimento é necessariamente empírico — não existe outro —, mas ele jamais nos conduzirá à verdadeira compreensão, apenas a um acúmulo de pedaços e fragmentos de informação arbitrariamente abstraídos. Ainda assim, isso lhe parece — como a qualquer metafísico da escola idealista que ele tanto desprezava — inútil e ininteligível, exceto na medida em que deriva e aponta para aquela espécie muito palpável, mas inexprimível, de compreensão superior, a única que me parece ser buscada.
Algumas vezes, Tolstói parece perto de dizer do que se trata. Ele afirma que, quanto mais sabemos a respeito de uma dada ação humana, mais inevitável e determinada ela nos parece. Por quê? Porque quanto mais sabemos a respeito de todas as condições e antecedentes respectivos, mais difícil achamos refletir sobre as várias circunstâncias e conjeturar o que poderia ter ocorrido sem elas. À medida que eliminamos em nossa imaginação o que sabemos ser verdade, fato após fato, isso se torna não simplesmente difícil, mas impossível. O que Tolstói quer dizer não é obscuro. Somos o que somos, e vivemos numa determinada situação que tem as características — físicas, psicológicas, sociais etc. — que tem. O que pensamos, sentimos, fazemos é condicionado por ela, inclusive nossa capacidade de conceber alternativas possíveis, seja no presente, no futuro ou no passado. Nossa imaginação e capacidade de calcular, nosso poder de conceber, digamos, o que poderia ter sido, caso o passado, neste ou naquele pormenor, fosse diferente, logo alcançam seus limites naturais, criados ao mesmo tempo pela insuficiência de nossa capacidade em calcular alternativas — os “poderiam-ter-sido” — e (podemos acrescentar como extensão lógica do argumento de Tolstói) ainda mais pelo fato de que nossos pensamentos, os termos em que eles ocorrem, os próprios símbolos, são o que são, acham-se determinados pela estrutura real de nosso mundo. Nossas imagens e poderes de concepção são limitados pelo fato de que nosso mundo possui certas características e não outras. Um mundo diferente demais não é (empiricamente) concebível. Algumas mentes são mais imaginativas do que outras, mas todas se detêm em algum ponto.
O mundo é um sistema e uma rede. Conceber os homens como “livres” é pensar neles como capazes de terem agido, em algum momento do passado, de algum outro modo que não aquele como realmente agiram. É pensar quais as consequências que teriam resultado de tais possibilidades irrealizadas, e sob quais aspectos o mundo teria sido diferente do que é hoje, em decorrência disso. Já é bastante difícil fazê-lo no caso de sistemas artificiais, puramente dedutivos, como por exemplo no xadrez, onde as permutações são de número finito e tipo definido, dispostas por nós dessa forma artificial, de modo que as combinações são calculáveis. Mas, se aplicamos esse método à rica e indefinida substância do mundo real e tentamos formular as implicações deste ou daquele plano irrealizado ou ação não executada, seu efeito sobre a totalidade de eventos posteriores, baseando-nos no conhecimento das leis causais, das probabilidades etc. de que dispomos, acabamos por descobrir que, quanto maior é o número de causas “diminutas” que isolamos, mais assombrosa se torna a tarefa de “deduzir” qualquer consequência do “desconjuntamento” dessas causas, uma por uma. Isso porque cada uma das consequências afeta o restante da incontável totalidade das coisas e dos acontecimentos, a qual, ao contrário do xadrez, não se define em termos de um conjunto finito e arbitrariamente escolhido de conceitos e regras. E se, na vida real ou mesmo no xadrez, começamos a nos envolver com noções básicas — a continuidade do espaço, a divisibilidade do tempo e coisas que tais —, em breve alcançamos um estágio onde os símbolos deixam de funcionar e nossos pensamentos se confundem e se paralisam. Em consequência, quanto mais amplo o nosso conhecimento dos fatos e suas ligações, mais difícil é conceber alternativas; quanto mais claros e exatos os termos — ou categorias — através das quais concebemos e descrevemos o mundo, tanto mais rígida é nossa estrutura do mundo, menos “livres” parecem os atos. Conhecer esses limites da imaginação e, em última análise, do próprio pensamento, significa defrontar-se com o padrão unificador “inexorável” do mundo; perceber nossa identidade com ele, submeter-se a ele é encontrar a verdade e a paz. Não se trata meramente de fatalismo oriental, nem do determinismo mecanicista dos celebrados materialistas alemães daquela época, Büchner, Vogt ou Moleschott, tão profundamente admirados pelos “niilistas” revolucionários da geração de Tolstói na Rússia. Não se trata tampouco de um anseio por iluminação ou integração mística. É algo escrupulosamente empírico, racional, enérgico e realista. Mas sua causa emocional é o desejo apaixonado de uma visão monista da vida por parte de uma raposa amargamente decidida a enxergar à maneira de um porco-espinho.
Isso se encontra notavelmente próximo das afirmações dogmáticas de Maistre: devemos alcançar uma atitude de concordância com as exigências da história, que são a voz de Deus falando através de Seus servos e de Suas instituições divinas, que não foram feitas pelas mãos do homem e não podem ser destruídas por elas. Devemos nos sintonizar com a verdadeira palavra de Deus, o “andamento” interno das coisas. No entanto, o que isso significa em casos concretos, como devemos conduzir nossas vidas privadas ou nossas ações públicas, pouco nos dizem esses dois críticos do liberalismo otimista. E nem podemos esperar que nos digam, pois escapa-lhes a visão positiva. A linguagem de Tolstói, bem como a de Maistre, está adaptada à atividade oposta. É ao analisar, identificar com precisão, marcar as diferenças, isolar exemplos concretos, chegar ao âmago de cada entidade individual per se, que Tolstói atinge o ápice de seu gênio. Do mesmo modo, Maistre obtém seus efeitos brilhantes ao denunciar e oferecer à condenação pública, através de um montage sur l’épingle, os absurdos cometidos por seus adversários. Ambos são observadores agudos das variedades da experiência. Cada tentativa de representá-las falsamente, ou de oferecer explicações enganosas sobre elas, é imediatamente detectada e ridicularizada com violência. No entanto, os dois sabem que é numa visão sinóptica que se encontra a verdade completa, isto é, a base última da correlação mútua de todos os ingredientes do universo, o único contexto no qual poderá ser verdadeiro ou falso, insignificante ou importante tudo aquilo que eles ou outros possam afirmar. Por não possuírem essa visão, não conseguem expressá-la.
O que foi que Pierre descobriu — e o casamento da princesa Marie é uma aceitação disso — e que o príncipe Andrei procurou a vida inteira com tamanha angústia? A exemplo de Santo Agostinho, Tolstói só pode dizer o que não é. Seu talento é arrasadoramente destrutivo. Ele pode apenas tentar apontar para seu objetivo denunciando as falsas indicações, só lhe é possível isolar a verdade aniquilando o que não é verdadeiro, isto é, tudo o que pode ser dito na linguagem clara, analítica, que corresponde à visão das raposas, extremamente precisa, mas necessariamente limitada. Como Moisés, ele precisa deter-se nas fronteiras da Terra Prometida. Sem ela, sua jornada carece de sentido, mas ele não pode aí entrar. No entanto, sabe que ela existe e tem condições de nos dizer, como ninguém jamais nos disse, tudo o que ela não é: acima de tudo, nada que a arte, a ciência, a civilização ou a crítica racional possam alcançar.
O mesmo se dá com Joseph de Maistre. Ele é o Voltaire da reação. Toda nova doutrina, desde os tempos da fé, é reduzida a frangalhos com uma habilidade e uma malícia ferozes. Os pretendentes são denunciados e abatidos um por um; o arsenal de armas empregadas contra as doutrinas liberais e humanitárias é o mais eficaz que já se montou. Porém o trono permanece vago, e a doutrina positiva é muito pouco convincente. Maistre suspira pela Idade das Trevas, mas basta que seus companheiros exilados sugiram planos para desfazer a Revolução Francesa — um retorno ao status quo —, e ele os denuncia como insensatez infantil, uma tentativa de se comportar como se o que ocorreu e nos modificou irremediavelmente jamais tivesse existido. Tentar reverter a Revolução, escreveu ele, seria o mesmo que convidar alguém a secar o lago de Genebra engarrafando suas águas numa adega de vinhos.65
Não há nenhum parentesco entre ele e os que acreditavam realmente na possibilidade de algum tipo de retorno — os neomedievalistas desde Wackenroder, Görres e Cobbett a G. K. Chesterton, eslavófilos, distribucionistas, pré-rafaelistas e outros românticos nostálgicos. A exemplo de Tolstói, Maistre acreditava exatamente no oposto, isto é, no poder “inexorável” do momento presente, em nossa incapacidade de lidar com a soma de condições que determinam cumulativamente nossas categorias básicas, uma ordem que nunca poderemos descrever plenamente ou, exceto por uma sua percepção imediata, chegar a conhecer.
É muito antiga a disputa entre esses tipos antagônicos de conhecimento — o que resulta de uma investigação metódica e aquele, mais impalpável, que consiste no “sentido de realidade”, na “sabedoria”. Reconhece-se, em geral, que as pretensões de ambos têm uma certa validade. Os confrontos mais ásperos se referiam à linha precisa que delimita a fronteira entre seus territórios. Os que faziam a ampla defesa do conhecimento não científico foram acusados por seus adversários de irracionalismo e obscurantismo, de rejeitar deliberadamente, em favor das emoções ou de preconceitos cegos, os critérios públicos confiáveis de verificação da verdade. Eles, por sua vez, atacavam seus opositores, os ambiciosos paladinos da ciência, acusando-os de reivindicações absurdas, de prometer o impossível, apresentar falsas perspectivas, propor-se a explicar a história, as artes, os estados da alma — e também a modificá-los — quando, na verdade, é patente que ainda nem começaram a entender o que são, quando o resultado de seus empreendimentos, mesmo quando não são insignificantes, tende a trilhar caminhos imprevisíveis e frequentemente catastróficos. Tudo isso se deve ao fato de que eles, por vaidade e teimosia, não admitem que muitos fatores, em muitas situações, são sempre desconhecidos e não podem ser descobertos através dos métodos da ciência natural. O melhor, com certeza, é não pretender calcular o incalculável, não imaginar que existe fora do mundo um ponto de Arquimedes a partir do qual tudo é mensurável e alterável. É preferível empregar em cada contexto os métodos que melhor parecem se adaptar e dão os resultados pragmaticamente melhores, é preferível resistir às tentações de Procusto, e, acima de tudo, distinguir o que é isolável, classificável, passível de um estudo objetivo e, algumas vezes, de medição e manipulação precisas, daquilo que constitui os traços mais permanentes, ubíquos, inelutáveis e intimamente presentes em nosso mundo. Além do mais, esses traços são extremamente familiares, de modo que sua “inexorável” pressão, ao nos acompanhar excessivamente, mal é sentida, dificilmente é notada, e é inimaginável que possa ser observada em perspectiva e convertida em objeto de estudo.
Tal é a distinção que permeia o pensamento de Pascal e Blake, Rousseau e Schelling, Goethe e Coleridge, Chateaubriand e Carlyle, enfim, de todos os que falam das razões do coração, da natureza moral ou espiritual do homem, do sublime e da profundidade, da percepção “mais intensa” dos poetas e profetas, de tipos especiais de compreensão, de entendimento interior ou de unificação com o mundo. Tolstói e Maistre se incluem entre esses pensadores. Tolstói atribui tudo à nossa ignorância das causas empíricas, e Maistre ao abandono da lógica tomística ou da teologia da Igreja católica. Mas essa fé expressa é desmentida pelo tom e pelo conteúdo daquilo que os dois grandes críticos afirmam de fato. Ambos enfatizam reiteradamente o contraste entre o “interior” e o “exterior”, a “superfície”, a única a ser iluminada pelos raios da ciência e da razão, e as “profundezas” — “a vida real vivida pelos homens”. Para Maistre, e mais tarde para Barrès, o verdadeiro conhecimento — a sabedoria — está na compreensão e na comunhão com la terre et les morts66 (o que tem isso a ver com a lógica tomística?), o grande movimento inalterável criado pelos laços entre os vivos, os mortos, os que ainda não nasceram e a terra em que vivem. Talvez seja isso, ou algo próximo, que, à sua maneira, Burke, Taine e seus muitos imitadores tentaram transmitir.
Quanto a Tolstói, considerava esse conservadorismo místico particularmente detestável, já que lhe parecia fugir à questão central simplesmente reformulando-a, oculta por uma nuvem de retórica pomposa, e apresentando-a como a própria resposta. No entanto, ele também acaba por nos apresentar a visão, vagamente percebida por Kutúzov e Pierre, da Rússia em sua imensidão, do que ela podia e não podia fazer ou sofrer, como e quando isso se daria — tudo o que Napoleão e seus conselheiros, que conheciam muitas coisas, mas não o que se referia à questão, não perceberam. Por isso, foram devidamente levados à ruína, embora seu conhecimento da história, da ciência e das minúsculas causas fosse talvez maior do que o de Kutúzov ou Pierre. Os louvores de Maistre à ciência superior dos grandes soldados cristãos do passado e os lamentos de Tolstói sobre nossa ignorância científica não devem iludir ninguém quanto à natureza do que de fato defendem: a percepção das “correntes profundas”, as raisons de cœur, que na verdade eles próprios não conheciam por experiência direta. Estavam, porém, convencidos de que, ao lado dela, os expedientes da ciência não passavam de armadilha e ilusão.
A despeito da sua profunda dessemelhança e, na verdade, da violenta oposição mútua, o realismo cético de Tolstói e o autoritarismo dogmático de Maistre são irmãos de sangue. Ambos nascem de uma crença agonizante numa visão simples e serena, através da qual todos os problemas se resolvem, todas as dúvidas se aquietam, a paz e a compreensão finalmente são alcançadas. Privados dessa visão, dedicaram todos os formidáveis recursos de suas posições muito diferentes, e mesmo muitas vezes incompatíveis, à eliminação de todos os possíveis adversários e críticos daquela visão. Os credos por cuja mera possibilidade abstrata eles lutaram, de fato não eram iguais. É a difícil situação em que ambos se encontravam e que os levou a consagrar sua energia a uma tarefa de destruição por toda a vida, são seus inimigos comuns e a grande semelhança entre seus temperamentos que os tornam díspares, mas inconfundíveis aliados numa guerra que ambos tinham consciência de travar até o último dia de suas vidas.
VIII
Por maior que fosse a oposição entre Tolstói e Maistre — um, o apóstolo do evangelho segundo o qual todos os homens são irmãos, o outro, frio defensor das pretensões de violência, sacrifício cego e sofrimento eterno —, ambos estavam unidos pela incapacidade de se subtrair ao mesmo trágico paradoxo. Eram ambos, por natureza, duas raposas de olhar penetrante, inelutavelmente conscientes das absolutas diferenças de facto que dividem e das forças que dilaceram o mundo humano, observadores totalmente incapazes de ser iludidos pelos muitos estratagemas sutis, pelos sistemas, fés e ciências unificadores, com os quais os superficiais ou os desesperados procuravam ocultar o caos a si e aos outros. Ambos buscavam um universo harmonioso, mas em todos os lugares encontraram a guerra e a desordem, fato que não poderia ser escondido, por mais disfarçada que fosse a tentativa de burlá-lo. Assim, num estado de desespero final, dispuseram-se a lançar fora as terríveis armas da crítica de que ambos, sobretudo Tolstói, eram mais que generosamente dotados, em favor da grande visão única, algo indivisivelmente simples demais e demasiado afastado dos processos intelectuais normais para que fosse alcançado pelos instrumentos da razão, e que, portanto, talvez oferecesse um caminho para a paz e a salvação.
Maistre começou como liberal moderado e terminou pulverizando o novo mundo do século XIX, na cidadela solitária da sua variedade pessoal de catolicismo ultramontano. Tolstói começou com uma visão da vida humana e da história que contradizia todo seu conhecimento, todos seus dotes e inclinações. Por isso, dificilmente se poderia dizer que a adotou, no sentido de tê-la posto em prática, seja como escritor ou como homem. Em sua velhice, passou para uma forma de vida em que tentou resolver a evidente contradição entre o que acreditava sobre os homens e os acontecimentos, e o que imaginava acreditar ou dever acreditar, comportando-se, no final, como se as questões factuais desse tipo não fossem os assuntos realmente fundamentais, mas apenas preocupações corriqueiras de uma vida ociosa e mal conduzida, ao passo que as verdadeiras questões eram totalmente diferentes. De nada adiantou, porém: a musa não se deixa enganar. Tolstói era o menos superficial dos homens. Não conseguia nadar a favor da corrente sem ser atraído irresistivelmente da superfície para o fundo, a fim de investigar as profundezas mais sombrias. Não conseguia deixar de ver o que via e até de duvidar disso. Conseguia fechar os olhos, mas não esquecer que o fazia. Sua assombrosa e destrutiva percepção do que era falso frustrou seu esforço final de autoilusão, como sucedeu com todos os esforços anteriores. Morreu angustiado, oprimido pelo fardo de sua infalibilidade intelectual e seu senso de eterno erro moral, o maior entre os que não podem reconciliar, nem deixar irreconciliado o conflito entre o que é e o que deveria ser.
O sentido de realidade de Tolstói foi, até o fim, arrasador demais para se mostrar compatível com qualquer ideal moral que fosse capaz de construir a partir dos fragmentos em que seu intelecto despedaçou o mundo. Ele dedicou toda sua enorme força de espírito e de vontade à negação, por toda a vida, desse fato. Ao mesmo tempo insanamente orgulhoso e cheio de ódio por si mesmo, onisciente e duvidando de tudo, frio e violentamente apaixonado, desdenhoso e pronto a se humilhar, atormentado e desapegado, rodeado por uma família que o adorava, por seguidores dedicados, pela admiração de todo o mundo civilizado e, ainda assim, quase totalmente isolado, ele é o mais trágico entre os grandes escritores, um velho desesperado, além do auxílio humano, perambulando semicego por Colona.
* Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura (Pensadores russos, São Paulo: Companhia das Letras, 1988), atualizada para este volume com base na edição revista The Hedgehog and the Fox (Londres: Weidenfeld & Nicolson, 2014).
1 “On dirait l’espirit d’un chimiste anglais dans l’âme d’un bouddhiste hindou; se charge qui pourra d’expliquer cet étrange accouplment”. E. M. de Vogüé, Le Roman russe. Paris: Plon, 1886.
2 “p???’ ??d’ ???p??, ???’ ?????? ?? µ??a.” “Archilochus”, frag. 201. In: M. L. West (Org.), Iambi et elegi graeci ante Alexandrum cantata. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1971. v. 1. [O fragmento foi preservado numa coleção de provérbios do sofista grego Zenóbio (5. 68), que declara que o encontrou tanto em Arquíloco como em Homero — “Homerus”, frag. 5. In: M. L. West, op. cit., v. 2. Como o metro é iâmbico em vez de datílico, pode ter sido atribuído a Homero porque apareceu no (agora considerado pseudo-homérico) poema épico cômico Margites, provavelmente escrito depois do poema de Arquíloco. Ver C. M. Bowra, “The Fox and the Hedgehog”, Classical Quarterly, n. 34, pp. 26-9 (ver 26), 1940, artigo reimpresso com revisões em C. M. Bowra, On Greek Margins. Oxford: Oxford University Press, 1970, pp. 59-66 (ver p. 59), e evidentemente desconhecido a Berlin. Em todo caso, pode ser um provérbio empregado por ambos os autores; entretanto, como imagens de animais são frequentes em Arquíloco, a tendência é pensar que ele foi o primeiro a usá-lo e deu-lhe a métrica. (N. E.)]
3 Tendo em vista os objetivos deste ensaio, proponho limitar-me quase que inteiramente à filosofia da história explícita contida em Guerra e paz e ignorar, por exemplo, Contos de Sebastopol, Os cossacos, os fragmentos do romance inédito sobre os dezembristas e as reflexões dispersas de Tolstói sobre o tema, a menos que se baseiem em concepções expressas em Guerra e paz.
4 Cartas de 14 de fevereiro e 13 de abril de 1868. I. S. Turguêniev, Polnoe sobranie sochinenii i pisem. Moscou, Leningrado, 1960-8, Pis’ma, vii 64, p. 122.
5 Ibid.
6 Carta a Tolstói, 29 de junho de 1883. Ibid., xiii 180.
7 Francês: “ele se repete e filosofa”. Carta de 21 de janeiro de 1880. Gustave Flaubert, Lettres inédites à Tourguéneff. Mônaco: Éditions du Rocher, 1946, p. 218.
8 A. A. Fet, Moi vospominaniya. Moscou: [s.n.], 1890, 2a parte, p. 175.
9 Ver as severas observações de A. Vitmer, historiador militar muito respeitável, em 1812 gad v “Voine i mire” (São Petersburgo: [s.n.], 1869), e o tom de crescente indignação nas notas críticas contemporâneas de A. S. Norov, A. P. Piatkovski e S. Navalikhin. O primeiro serviu na campanha de 1812 e, apesar de alguns erros fatuais, faz críticas ponderáveis. Os dois últimos, enquanto críticos literários, não têm quase nenhum valor, mas parecem ter se dado ao trabalho de verificar alguns fatos pertinentes.
10 Ver V. B. Chklovski, Mater’ial i stil’ v romane L’va Tolstogo “Voina i mir”. Moscou: [s.n.], 1928, passim, mas sobretudo os caps. 7 e 8. Ver adiante, p. 1487.
11 N. V. Tchelgunov, “Filosofiya zastoya” (resenha de Guerra e paz), Delo, n. 1, pp. 1-29, 1870.
12 [Literalmente: “Felizmente, o autor [...] é dez mil vezes mais poeta e artista do que filósofo”.] N. D. Akhcharumov, Voina i mir, sochnenie grafa L. N. Tolstogo, chasti 1-4: razbor. São Petersburgo: [s.n.], 1868.
13 Por exemplo, os professores Ilin, Iakovenko, Zencovski e outros.
14 As exceções honrosas cabem aos textos dos escritores russos N. L Kareiev e B. M. Eikhenbaum, bem como aos dos pesquisadores franceses E. Haumant e Albert Sorel. Entre as monografias dedicadas ao tema, conheço apenas duas que apresentam mérito. A primeira delas, “Filosofiya istorii L. N. Tolstogo”, de autoria de V. N. Pertsev, em “Voina i mir”: sbornik pamyati L. N. Tolstogo, org. de T. I. Polner e V. P. Obninski (Moscou, 1912), após censurar brandamente Tolstói pelas suas obscuridades, exageros e incoerências, descamba rapidamente em generalidades inócuas. A outra, “Filosofiya istorii v romane L. N. Tolstogo, ‘Voina i mir’”, de M. M. Rubinshtein, em Russkaya mysl (julho de 1911), pp. 78-103, é muito mais elaborada, mas no final parece-me não estabelecer nada. (Muito diferente é o juízo de Arnold Bennett, do qual tomei conhecimento após escrever estas linhas: “A última parte do epílogo é repleta de boas ideias, que o leitor ocioso não consegue acompanhar. É claro que, no fraseado dos críticos, melhor seria que tivessem ficado de fora. Seria, só que Tolstói não poderia fazê-lo. Foi para isso que ele escreveu o livro”. Newman Flower (Org.), The Journals of Arnold Bennett, 3 v. Londres: Cassell & Co., 1932-3; v. 2, 1911-21, p. 62). Quanto aos inevitáveis esforços para relacionar os conceitos históricos de Tolstói aos de vários marxistas posteriores — Kautski, Lênin, Stálin etc. —, eles pertencem mais às curiosidades da política ou da teologia do que às da literatura.
15 P. A. Viazemski, “Vospominaniya o 1812 god”. Russkii arkhiv, n. 7, colunas 181-92, 01-016, esp. 185-7, 1869.
16 “Malditas questões” — expressão que se tornou um clichê na Rússia do século XIX, referente àquelas questões morais e sociais fundamentais de que todo homem honesto, sobretudo cada escritor, deverá se conscientizar mais cedo ou mais tarde. Então enfrentará uma dupla escolha: ou entrar na luta ou dar as costas aos seus semelhantes, consciente da responsabilidade de seu gesto. [Embora “voprossi” tenha sido amplamente usado na década de 1830 para se referir a essas questões, parece que a frase específica “prokliatie voprossi” foi cunhada em 1858 por Mikhail L. Mikhailov, quando ele a usou para verter “die verdammten Fragen” em sua tradução do poema de Heinrich Heine “Zum Lazarus” (1853-4): ver ‘Stikhotvoreniya Geine’. Sovremennik, n. 3, p. 125, 1858; e Oskar Walzel (Org.). Heinrich Heines Sämtliche Werke. Leipzig: Insel, 1911-20, v. 3, p. 225. Outra possibilidade é que Mikhailov tenha aproveitado o fato de que uma expressão russa existente caía como uma luva para as palavras de Heine, mas ainda não a vi publicada anteriormente.]
17 Instruções dadas a seus especialistas em legislação.
18 L. N. Tolstói, Polnoe sobranie sochinenii. Org. de V. G. Tchertkov. Moscou: [s.n.], 1934, v. 46, pp. 4-28.
19 Ibid., Hume: pp. 113-4, 117, 123-4, 127 (11-27 jun. 1852); Thiers: pp. 97, 124 (20 mar., 17 jun. 1854).
20 Ibid., Rousseau: pp. 126-7, 130, 132-4, 167, 176 (24 jun. 1852-28 set. 1853), p. 249 (Journal of Daily Tasks, 3 mar. 1847); Sterne: p. 82 (10 ago. 1851), p. 110 (14 abr. 1852); Dickens: p. 140 (1 set. 1852).
21 Ibid., p. 123 (11 jun. 1852).
22 Ibid., pp. 141-2 (22 set. 1852).
23 “Filosoficheskie zamechaniya na rechi Zh. Zh. Russo” (1847), T i 222, onde as duas próximas citações também aparecem.
24 V. N. Nazariev, “Liudi bylogo vremeni”, L. N. Tolstoi v vospominaniyakh sovremennikov. Moscou: [s.n.], 1955, v. I, p. 52.
25 Ibid., pp. 52-3.
26 N. N. Gusev, Dva goda s L. N. Tolstym. Moscou: Moskva, 1973, p. 188.
27 Guerra e paz, epílogo, primeira parte, cap. I, p. 1343.
28 Ibid., v. 2, tomo IV, primeira parte, cap. 4, pp. 1127-8.
29 Sobre a sua ligação com A cartuxa de Parma, de Stendhal, ver Paul Boyer (1864-1949) chez Tolstoï: entretiens à la Iasnaïa Poliana. Paris: Institut d’Études Slaves de l’Université de Paris, 1950, p. 40.
30 Guerra e paz, v. 1, tomo II, terceira parte, cap. I, p. 496.
31 Ver a profissão de fé em sua conhecida e militantemente moralista introdução a uma edição de Maupassant, cujo gênio, a despeito de tudo, ele admira [“Predislovie k sochineniyam Gyui de Mopassana”, Polnoe sobranie sochinenii, op. cit., v. 30, pp. 3-24]. Ele tem Bernard Shaw em muito menor conta e acha sua retórica social gasta e cheia de banalidades (registro em seu diário, 31 jan. 1908, ibid., v. 56, pp. 97-8).
32 Poltronas imperiais de certo formato são até hoje denominadas na Rússia “poltronas Talleyrand”.
33 Guerra e paz, epílogo, segunda parte, cap. I, pp. 1401-2.
34 Um dos críticos russos de Tolstói, M. M. Rubinshtein (op. cit.), diz que cada ciência emprega alguns conceitos não analisados, para explicar o que é o objetivo de outras ciências, e que o “poder” vem a ser o conceito inexplicado central da história. Mas a colocação de Tolstói é que nenhuma outra ciência pode “explicá-lo”, já que se trata de um termo desprovido de significado, tal como os historiadores o empregam. Não é um conceito, mas absolutamente nada — vox nihili.
35 Guerra e paz, epílogo, primeira parte, cap. II, p. 1343-4.
36 Ver V. B. Chklovski, op. cit., caps. 7-9, e também K. V. Pokrovski, “Istochniki romana ‘Voina i mir’”. In: Polner e Obninski, op. cit.
37 “Neskol’ko slov po povodu knigi: ‘Voina i mir’”. Russkii arkhiv, n. 6, colunas 515-28, 1868.
38 Guerra e paz, v. 2, tomo III terceira parte, cap. I, p. 990.
39 N. D. Akhcharumov, op. cit., pp. 34, 40.
40 N. I. Kareiev, “Istoricheskaia filosofiya v ‘Voina i mir’”. Vestnik evropi, v. 22, n. 4, pp. 227-69, jul.-ago. 1887.
41 B. M. Eikhenbaum, Liev Tolstoi. Leningrado: [s.n.], 1928-60, v. I, pp. 123-4.
42 Aqui surge uma vez mais o paradoxo, pois os “infinitésimos”, cuja integração constitui a tarefa do historiador ideal, precisam ser razoavelmente uniformes, a fim de permitir tal operação. No entanto, o sentido de “realidade” consiste na percepção de suas diferenças específicas.
43 Em nossos dias, os existencialistas franceses, por razões psicológicas semelhantes, insurgiram-se violentamente contra todas as explicações enquanto tais, pois não passam de mero paliativo para questões ainda sérias, remédios efêmeros para ferimentos insuportáveis, mas que têm de ser suportados, e acima de tudo não devem ser negados nem “explicados”, pois toda explicação é vã e nega o dado — o existente —, os fatos brutos.
44 Por exemplo, V. B. Chklovski, op. cit., passim; e B. M. Eikhenbaum, op. cit., v. I, pp. 259-60.
45 “On n’a pas rendu justice à Rousseau. [...] J’ai lu tout Rousseau, oui, tous les vingt volumes, y compris le Dictionnaire de musique. Je faisais mieux que l’admirer; je lui rendais une culte véritable [...].” (Não se fez justiça a Rousseau. [...] Li-o inteiro, todos os vinte volumes, incluindo o Dicionário de música. Mais do que admirá-lo, prestava-lhe um verdadeiro culto.) Paul Boyer (1864-1949) chez Tolstoï, op. cit., p. 40.
46 Ver Paul Boyer (1864-1949) chez Tolstoï, op. cit., p. 40.
47 Ver Adolfo Omodeo, Un reazionario. Bari: Laterza, 1939, p. 112, nota 2.
48 “Chitayu Maistre”, citado por B. M. Eikhenbaum, op. cit., v. 2, pp. 309-17.
49 Ver Eikhenbaum, op. cit., v. 1, pp. 308-17.
50 S. P. Jikharev, Zapiski sovremennika. Moscou: [s.n.], 1934, v. 2, pp. 112-3.
51 “On parle beaucoup de batailles dans le monde sans savoir ce que c’est; on est surtout assez sujet à les considérer comme des points, tandis qu’elles couvrent deux ou trois lieues de pays; on vous dit gravement: Comment ne savez-vous pas ce qui s’est passé dans ce combat puisque vous y étiez? tandis que c’est précisément le contraire qu’on pourrait dire assez souvent. Celui qui est à la droite sait-il ce qui se passe à la gauche? sait-il seulement ce qui se passe à deux pas de lui? Je me représente aisément une de ces scènes épouvantables: sur un vaste terrain couvert de tous les apprêts du carnage, et qui semble s’ébranler sous les pas des hommes et des chevaux; au milieu du feu et des tourbillons de fumée; étourdi, transporté par le retentissement des armes à feu et des instruments militaires, par des voix qui commandent, qui hurlent ou qui s’éteignent; environné de morts, de mourants, de cadavres mutilés; possédé tour à tour par la crainte, par l’espérance, par la rage, par cinq ou six ivresses différentes, que devient l’homme? que voit-il? que sait-il au bout de quelques heures? que peut-il sur lui et sur les autres? Parmi cette foule de guerriers qui ont combattu tout le jour, il n’y en a souvent pas un seul, et pas même le général, qui sache où est le vainqueur. Il ne tiendrait qu’à moi de vous citer des batailles modernes, des batailles fameuses dont la mémoire ne périra jamais; des batailles qui ont changé la face des affaires en Europe, et qui n’on été perdues que parce que tel ou tel homme a cru qu’elles l’étaient; de manière qu’en supposant toutes les circonstances égales, et pas une goutte de sang de plus versée de part et d’autre, un autre général aurait fait chanter le Te Deum chez lui, et forcé l’histoire de dire tout le contraire de ce qu’elle dira.” J. de Maistre, Les Soirées de Saint-Pétersbourg (1821). Œuvres complètes de J. de Maistre. Lyon; Paris: Librairie Générale Catholique, 1884-7, diálogo 7, v. 5, pp. 33-4.
52 “N’avons-nous pas fini même par voir perdre des batailles gagnées? [...] Je crois en général que les batailles ne se gagnent ni ne se perdent point physiquement.” Ibid., p. 35.
53 “De même une armée de 40.000 hommes est inférieure physiquement à une autre armée de 60.000: mais si la première a plus de courage, d’expérience et de discipline, elle pourra battre la seconde; car elle a plus d’action avec moins de masse, et c’est ce que nous voyons à chaque page de l’histoire.” Ibid., p. 29.
54 “C’est l’opinion qui perd les batailles, et c’est l’opinion qui les gagne.” Ibid., p. 31.
55 “Qu’est ce qu’une bataille perdue? [...] C’est une bataille qu’on croit avoir perdue. Rien n’est plus vrai. Un homme qui se bat avec un autre est vaincu lorsqu’il est tué ou terrassé, et que l’autre est debout; il n’en est pas ainsi de deux armées: l’une ne peut être tuée, tandis que l’autre reste en pied. Les forces se balancent ainsi que les morts, et depuis surtout que l’invention de la poudre a mis plus d’égalité dans les moyens de destruction, une bataille ne se perd plus matériellement; c’est-à-dire parce qu’il y a plus de morts d’un côté que de l’autre: aussi Frédéric II, qui s’y entendait un peu, disait: Vaincre, c’est avancer. Mais quel est celui qui avance? C’est celui dont la conscience et la contenance font reculer l’autre.” Ibid., p. 32.
56 “C’est l’imagination qui perd les batailles.” Ibid., p. 33.
57 “Peu de batailles sont perdues physiquement — vous tirez, je tire [...] le véritable vainqueur, comme le véritable vaincu, c’est celui qui croit l’être.” Carta de 14 de setembro 1812. Ibid., v. 12, pp. 220-1.
58 [Literalmente: “mas muito cedo dissemos a nós mesmos que tínhamos perdido a batalha... e perdemos.] Guerra e paz, v. 2, tomo III, segunda parte, cap. XXV, p. 934.
59 A. Sorel, “Tolstoï-historien”. Revue Bleue, n. 41, pp. 460-9, jan.-jun. 1888. Essa conferência, não reproduzida nas obras reunidas de Sorel, foi injustamente negligenciada pelos estudiosos de Tolstói. É de grande valia para corrigir as opiniões daqueles que omitem todas as referências a Maistre [por exemplo, P. I. Biriukov, Lev Nicolaevich Tolstoi: biografiya. Moscou: [s.n.], 1906-8; e K. V. Pokrovski, op. cit.; para não mencionar os posteriores críticos e historiadores literários que, quase todos, se apoiam em sua autoridade]. E. Haumant é quase o único, entre os primeiros estudiosos, a ignorar autoridades secundárias e a descobrir a verdade por si mesmo. Ver, de sua autoria, La Culture française en Russie (1700-1900). Paris: Hachette, 1910, pp. 490-2.
60 “Expliquez-moi pourquoi ce, qu’il y a de plus honorable dans le monde, au jugement de tout le genre humain sans exception, est le droit de verser innocemment le sang innocent?” J. de Maistre, op. cit., diálogo 7, v. 5, p. 10.
61 Tolstói visitou Proudhon em Bruxelas em 1861, no mesmo ano em que este publicou um livro intitulado La Guerre et la paix, traduzido para o russo três anos depois. A partir desse fato, Eikhenbaum tenta deduzir a influência de Proudhon sobre o romance de Tolstói. Proudhon segue Maistre, ao considerar as origens das guerras como um mistério sombrio e sagrado, e em toda sua obra há muito de irracionalismo confuso, puritanismo, amor ao paradoxo e um rousseauísmo geral. Essas características, porém, são muito difundidas no pensamento radical francês, e é difícil encontrar algo especificamente proudhonista em Guerra e paz de Tolstói, além do título. A extensão da influência geral exercida por Proudhon sobre todos os tipos de intelectuais russos durante esse período era muito grande, como não poderia deixar de ser. Afirmar que Dostoiévski ou Máximo Górki eram proudhonisants seria tão ou até mais fácil do que dizer o mesmo de Tolstói. Isso, porém, não passaria de um exercício gratuito de engenhosidade crítica, pois as semelhanças são vagas e gerais, enquanto as diferenças são muito mais profundas, numerosas e mais específicas.
62 Carta de 8 de outubro de 1834 a Gräfin Senfft von Pilsach. Félicité de Lamennauis, Correspondance générale. Org. de Louis le Guillou. Paris: A. Colin, 1971-81, carta 2338, v. 6, p. 307.
63 No entanto, Tolstói também afirma que milhões de homens se matam, sabendo que é um mal físico e moral, porque é “necessário”, porque, ao fazê-lo, eles “obedeciam [...] a uma lei elementar, zoológica”. Trata-se do mais puro Maistre, e estamos muito distantes de um Stendhal ou de um Rousseau.
64 Juvenal Satire 3.78: “Graeculus esuriens in caelum jusseris, ibit” [Se você ordenar ao grego faminto que vá ao céu, ele irá].
65 “Escrevinhando” e “esquivando”. Ver Saint-Simons, “Catéchisme politique des industriels” (1823-4). In: Œuvres de Saint-Simon & d’Enfantin. Paris: Librarie de la Société des Gens de Lettres, 1865-78, v. 37, pp. 131-2.
66 1o Reis 19,11, Vulgata (King James: “o Senhor não estava no terremoto”).
67 Quase no sentido em que esta expressão é empregada por Montesquieu na frase “relações necessárias que derivam da natureza das coisas” (“les rapports nécessaires qui dérivent de la nature des choses”), que abre O espírito das leis.
68 Carta a Vignet des Étoles, 9 dez. 1793. J. de Maistre, op. cit., v. 9, p. 58.
69 [“A terra e os mortos”, recorrente leitmotiv nacionalista usado por Barrès (e por autores posteriores que seguiam suas ideias). Ver Maurice Barrès, “La Terre et le morts (sur quelles réalités fonder la conscience française”), [Ligue de] La Patrie Française, Troisième Conférence, Paris, [1899].]
MAPAS
SUGESTÕES DE LEITURA
TEXTOS DE ESCRITORES SOBRE TOLSTÓI
COETZEE, J. M. “Confession and Double Thoughts: Tolstoy, Rousseau, Dostoevsky” [1985]. Doubling the Point: Essays and Interviews, org. David Atwell. Harcard: Harvard University Press, 1992.
GINZBURG, Natalia. “Prefazione” a Lev Tolstoj. Resurrezione, trad. Clara Coisson. Turim: Einaudi, 1982. / Serrote, n. 5, trad. Maurício Santana Dias, jul. 2010.
GÓRKI, Máximo. Leão Tolstói, trad. Rubens Pereira dos Santos. São Paulo: Perspectiva, 1983.
MANN, Thomas. “Goethe e Tolstói: Fragmentos sobre o Problema da Humanidade” [1922]. Ensaios, sel. Anatol Rosenfeld, trad. Natan Robert Zins. São Paulo: Perspectiva, 1998, pp. 59-135.
NABOKOV, Vladimir. “Anna Karenin” e “The Death of Ivan Ilych”. Lectures on Russian Literature, org. e intr. Fredson Bowers. Nova York: Harcourt, 1981.
PIGLIA, Ricardo. “O lampião de Anna Kariênina”. O último leitor, trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 132-56.
ESTUDOS SOBRE TOLSTÓI
BERLIN, Isaiah. “O porco-espinho e a raposa” e “Tolstói e o Iluminismo”. Pensadores russos, org. Henry Hardy e Aileen Kelly, trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Companhia das Letras, São Paulo, 1988.
CHKLÓVSKI, Victor. “A arte como procedimento”, in D. Toledo (org.). Teoria da literatura: Formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1972.
_____. “Os paralelos em Tolstói”, in O diabo e outras histórias, trad. André Pinto Pacheco. São Paulo: Cosac Naify, Col. Prosa do Mundo, 2000; 2. ed., 2010.
EIKHENBAUM, Boris. The Young Tolstoy. Michigan: Ardis Publishing House, 1972.
_____. Tolstoy in the Sixties. Michigan: Ardis Publishing House, 1982.
_____. Tolstoy in the Seventies. Michigan: Ardis Publishing House, 1982a.
GINZBURG, Carlo. “Estranhamento: Pré-história de um procedimento literário” [1998]. Olhos de madeira: Nove reflexões sobre a distância, trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 15-42.
GOURFINKEL, Nina. Tolstoï sans tolstoïsme. Paris: Seuil, 1946.
HAMBURGER, Käte. Tolstoi, Gestalt und Problem. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1963.
LUKÁCS, Georg. “Narrar ou descrever?”. Ensaios sobre literatura, org. Leandro Konder, trad. Giseh Vianna Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, pp. 47-99.
_____. “Tolstói e extrapolação das formas sociais de vida”. A teoria do romance [1914-5], trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora 34 / Duas Cidades, 2000, pp. 150-62.
_____. “Tolstoy and the Development of Realism” e “Leo Tolstoy and Western European Literature”. Studies in European Realism, intr. Alfred Kazin, trad. Edith Bone. Nova York: Grosset and Dunlap, 1964, pp. 126-205 e 242-64, respectivamente.
ORWIN, Donna T. Tolstoy’s art and Thought, 1847-1880. Princeton: Princeton University Press, 1993.
SCHNAIDERMAN, Boris. Leão Tolstói: Antiarte e rebeldia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski: Um ensaio sobre o velho criticismo, trad. Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2006.
VERÍSSIMO, José. “Tolstói”. Homens e coisas estrangeiras: 1899-1908, prefácio João Alexandre Barbosa. Rio de Janeiro: ABL / Topbooks, 2003. Texto sobre tradução francesa de Ressurreição.
MATERIAIS BIOGRÁFICOS
CITATI, Pietro. Tolstoj [1983]. Milão: Adelphi, 1996.
PARINI, Jay. A última estação. Rio de Janeiro: Editorial Presença, 2007.
QUINTERO ERASSO, Natalia Cristina. Os diários de juventude de Liev Tolstói: Tradução e questões sobre o gênero de diário. Dissertação de mestrado. São Paulo: Departamento de Letras Orientais; Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2011.
TOLSTOY, Sofia. The Diaries of Sofia Tolstoy, intr. Doris Lessing, trad. Cathy Porter. Nova York: Harper Collins, 2010.
TOLSTÓI, Liev. Diarios (1847-1894), sel., ed. e trad. Selma Ancira. Barcelona: Editorial Acantilado, 2003.
_____. Diarios (1895-1910), sel., ed. e trad. Selma Ancira. Barcelona: Editorial Acantilado, 2004.
_____. Correspondencia, sel., ed. e trad. Selma Ancira. Barcelona: Editorial Acantilado, 2008.
SOBRE GUERRA E PAZ
BLOOM, Harold (org.). Leo Tolstoy’s “War and Peace”. Nova York: Chelsea House, Col. Modern Critical Interpretations, 1988.
CANDIDO, Antonio. “Batalhas”. O albatroz e o chinês. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010, pp. 71-9.
FEUER, Kathryn B. Tolstoy and the Genesis of War and Peace, org. Robin Feuer Miller e Donna Tussing Orwin. Nova York: Cornell University Press, 1996.
GINZBURG, Leone. “Prefazione” [1942] a Lev Tolstoj. Guerra e pace, trad. Enrichetta Carafa d’Andria. Turim: Einaudi, 2005.
JAMESON, Fredric. “O romance histórico ainda é possível?”. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 77, pp. 185-203, mar. 2007.
MITCHELL, Juliet. “Nataša ed Hélène”, in F. Moretti (org.). Il romanzo: Temi, v. IV. Turim: Einaudi, 2003, pp. 705-13.
RANCIÈRE, Jacques. “Sur Le Champ de bataille”. Politique de la littérature. Paris: Éditions Galilée, 2007.
WHITE, Hayden. “Contro il realismo storico”, in F. Moretti (org.). Il romanzo: Lezioni, v. V. Turim: Einaudi, 2003, pp. 221-37.
GUERRA E PAZ NO CINEMA
War and Peace. Dir. King Vidor. Color, 208 min. Paramount Pictures/ Ponti-De Laurentiis, EUA / ITA, 1956. Com Audrey Hepburn e Henry Fonda.
War and Peace / Voina i mir. Dir. Serguei Bondarchuk. Color, 403 min. Mosfilm, URSS, 1965-7.
War and Peace. Dir. Robert Dornhelm. Color, 394 min. Lux Vide / EOS Entertainment / Pampa Production e outros, ITA / FRA / ALE / RUS/ POL, 2007.
SOBRE O AUTOR
Liev Nikoláievitch Tolstói nasceu no dia 28 de agosto de 1828 (9 de setembro, pelo calendário atual), em Iásnaia Poliana, propriedade rural de sua família, na Rússia. Tinha três irmãos mais velhos e uma irmã mais nova — Nikolai, Serguei, Dmítri e Mária. Embora tivesse boas relações com todos eles, foi Nikolai quem lhe marcou mais profundamente o temperamento. De um lado, era seu modelo de homem, belo, elegante, forte e corajoso. De outro, estimulava sua imaginação, afirmando possuir um segredo capaz de instaurar no mundo uma nova Idade de Ouro, sem doenças, miséria e ódio, e na qual toda a humanidade seria feliz. Nikolai alegava ter gravado este segredo num graveto verde, o qual enterrara numa ravina da floresta de Zakaz.
Nascido num meio aristocrático, a infância de Tolstói, entretanto, foi bastante sofrida. Antes de completar dois anos, perdeu a mãe. Sete anos depois, sua família mudou-se para Moscou, onde Tolstói encontrou uma nova realidade. Então, durante uma viagem de trabalho para Tula, em 1837, seu pai morreu. Além de órfãos, Liev e seus irmãos encontraram-se em situação financeira precária. Logo em seguida, morreu sua avó, e Tolstói viu-se abrigado na casa de uma tia, na região de Kazan.
Ingressando na universidade, em 1844, para estudar línguas e leis, Tolstói de início entusiasmou-se com a vida de estudos. Porém, decepcionou-se com os métodos tradicionais de ensino e, por fim, abandonou a escola.
Herdando sua parte da herança familiar, retornou a Moscou e iniciou um período de vida boêmia e dívidas de jogo, que o obrigaram a vender algumas de suas propriedades. Ingressou no Exército em 1852, fascinado com as experiências militares de um irmão. Como soldado, foi logo transferido para o Cáucaso, e data dessa época a composição do livro Infância, que marca sua estreia na literatura.
Em 1856, já fora do Exército, Tolstói libertou seus servos e doou-lhes as terras onde trabalhavam. Estes, porém, desconfiados, devolveram-lhe as propriedades. No ano seguinte, viajou para a Alemanha, a Suíça e a França. Ao voltar, fundou uma escola para crianças e adultos, empregando novos métodos pedagógicos, nos quais eram abolidos os testes, as notas e os castigos físicos.
Em 1862, casou-se com Sônia Andréievna Behrs, então com dezessete anos, e fundou uma revista pedagógica. No ano seguinte, teve início a redação do romance Guerra e paz, cujo pano de fundo é a invasão napoleônica da Rússia, ocorrida no princípio do século XIX. Concluído em 1869, o livro trouxe para Tolstói a consagração como escritor.
Entre o ano de seu casamento e 1888, Tolstói teria doze filhos. Entre 1873 e 1877, escreveu Anna Kariênina. Sua recorrente inclinação a desfazer-se de seus bens materiais produziu, a partir de 1883, uma disputa ferrenha entre sua esposa e Tchértkov, militar que se tornou um abnegado paladino das ideias de Tolstói e em quem o escritor tinha grande confiança. A partir dessa época o distanciamento entre marido e mulher só fez crescer.
Sua desconfiança em relação à justiça, ao governo, à propriedade, ao dinheiro e à própria cultura ocidental gerou o que passou a ser chamado de “tolstoísmo”, de todo hostil à Igreja ortodoxa russa.
Finalmente, devido ao apoio dado pelo escritor a um grupo religioso de camponeses que se recusara a servir o Exército em nome de uma vida comunitária de base cristã, Tolstói viu-se excomungado pelo sínodo da Igreja ortodoxa de 1901.
Escreveu ele, a respeito da decisão:
Dizer que eu reneguei a Igreja que se chama Ortodoxa, isso é inteiramente justo. Porém eu a reneguei não porque tenha me insurgido contra o Senhor, mas, ao contrário, apenas porque queria servi-lo com todas as forças de minha alma. Antes de renegar a Igreja e a unidade com o povo, que me era inexprimivelmente cara, e diante de certos sinais tendo duvidado da correção da Igreja, dediquei alguns anos a pesquisar a teoria e a prática de seu ensinamento: na parte teórica, li tudo o que pude sobre o ensinamento da Igreja, estudei e analisei criticamente a teologia dogmática; na prática, obedeci com rigor, no decorrer de mais de um ano, todas as ordens da Igreja, observando todos os jejuns e frequentando todas as cerimônias religiosas. E então me convenci de que o ensinamento da Igreja é, em sua teoria, uma mentira pérfida e maléfica e, em sua prática, a reunião das superstições mais grosseiras e de sortilégios que ocultam completamente todo o sentido do ensinamento cristão.*
Finalmente, em 1910, aos 82 anos, Tolstói fugiu de casa. No entanto, durante a viagem, sua saúde debilitada obrigou-o a saltar do trem na aldeia de Astápovo, onde viria a morrer no dia 7 de novembro de 1910.
Dois anos antes de sua morte, Tolstói ditara as seguintes palavras, que remetem ao segredo que seu irmão Nikolai teria enterrado na floresta de Zakaz:
Embora seja um assunto desimportante, quero dizer algo que eu gostaria que fosse observado após a minha morte. Mesmo sendo a desimportância da desimportância: que nenhuma cerimônia seja realizada na hora em que meu corpo for enterrado. Um caixão de madeira, e quem quiser que o carregue, ou o remova, a Zakaz, em frente a uma ravina, no lugar do “graveto verde”. Ao menos, há uma razão para escolher aquele e não qualquer outro lugar.
Leâo Tolstoi
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