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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GUERREIRO TIGRE - P.2 / David Gibbins
GUERREIRO TIGRE - P.2 / David Gibbins

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

O homem que segurava o rifle podia ver claramente as duas figuras à beira do lago, imóveis entre os seixos perto da costa, emolduradas pelas montanhas de Tien Shan a leste, limite do próprio império celestial. Ele ficara observando-as durante toda a tarde, esperando que o sol às suas costas baixasse, para acentuar as formas. Ele aprendera tudo o que po­dia sobre o comportamento delas, observou cada movimento mínimo, da maneira que sua avó lhe ensinara a fazer. O homem mais alto era desajei­tado, ossudo, dado a movimentos e gestos súbitos, especialmente quando estava trabalhando com o trator. Mas o homem alto também observava de vez em quando a mulher, quando ela estava curvada, raspando e esco­vando, fotografando. Quando ela fazia isso, o homem alto ficava parado durante muitos minutos, às vezes meia hora ou mais, como se não qui­sesse que a mulher soubesse que ele a estava observando. O homem que segurava o rifle fez uma careta. Os quirguizes eram nômades da estepe, como seus próprios antepassados, mas nômades que haviam abandona­do os modos de guerreiro e tinham se tornado pouco melhor que uma ovelhinha. Ele os menosprezava. Desejou que pudesse mirar o homem primeiro, mas a mulher era a prioridade. Ele desviou o olhar para ela. Tinha os cabelos muito pretos e brilhantes, uma linda estrutura de corpo, a Lycra apertada contra suas coxas quando se agachava mostravam nádegas atléticas, mas curvilíneas. Ela o excitou, e isso aumentou seu fervor. Seu clã se espalhara. A fraternidade exigiria sua recompensa.

 

 

 

 

A luz agora estava perfeita. Ele olhou para a linha de montanhas co­bertas de neve do outro lado do lago, e então deixou que os olhos vol­tassem para as duas figuras. Sempre comece no horizonte, a avó dele lhe ensinara, e então tudo entrará em seu lugar. Ele se lembrou do rosto da avó, as bonitas feições dos cazaques que adornavam selos postais e murais por toda a pátria, o verdadeiro retrato da marcha soviética de progresso. Somente sua unidade de produção tinha sido destruída. O mestre dela, Zaitsev, lhe dera o nome de zaichata, pequena lebre, mas os alemães a chamavam de Todesengel, o anjo de morte. A conta dos que ela matara em Estalingrado chegara a centenas. Estrela de Ouro de Herói da União Soviética. Ele se lembrava do que ela lhe dissera em seu leito de morte no alto das montanhas, na fronteira chinesa, a pátria deles. Ela lhe contara que, no fi­nal, ela não matara por uma causa. Ela matara porque era isso o que fazia. Ela vira isso nos olhos dele também, quando olhou para ela, sem emoção, querendo continuar sua atividade assim que ela partisse.

Agora ele possuía o rifle que fora dela. Ele se deitou e virou de bruços no buraco rochoso no cume. Abriu o longo pacote marrom que estava ao seu lado, a capa de couro ainda flexível depois de setenta anos, im­pregnada com o óleo da arma. Ergueu o rifle e apoiou a parte dianteira na mão direita, com cuidado para não modificar a distância da operação. Passou a mão esquerda sobre a empunhadura de madeira, tocando nos entalhes e marcas de guerra, ferimentos que tinham fortalecido a arma, em vez de diminuí-la. As francoatiradoras soviéticas femininas sempre davam nomes para suas armas. Essa fora chamada de Dragão de Fogo. Ele olhou para as marcas no metal. Mosin-Nagant, 1917, feito sob contrato em Williamsburg, Maryland. A avó dele rira da ironia desse fato, durante os longos anos da Guerra Fria, quando ela havia treinado várias gerações de franco-atiradores para lutar contra os americanos. Mas ela tinha dito que instrumentos de morte não mantêm nenhuma fidelidade. Ele o tomara dela, e chegara a conhecê-lo como conhecia a si próprio. Ela havia dito que cada matança era como um ato de paixão com um amante e que, quanto mais o rifle disparasse, mais conheceria suas próprias necessida­des e mais se tornaria parte de sua própria alma.

Abriu o ferrolho, tocando no brilho fresco de óleo no receptor e pe­gou dois cartuchos de uma bolsa de couro. Ele próprio os tinha recarre­gado, usando o mesmo lote de munições, a mesma pólvora, medindo o carregamento até em microgramas. Ela também lhe ensinara isso. Tinha polido as balas até que ficassem brilhando. Empurrou os cartuchos para dentro da câmara de repetição, então empurrou o ferrolho para diante e para baixo, acomodando a bala na câmara. Lentamente, apontou para o pequeno saco de areia encostado na lateral do seixo, tomando cuida­do para não pressionar a extremidade do cano, depois empurrou o corpo para diante, sobre os cotovelos e os joelhos, segurando a coronha contra o ombro. Havia esfregado giz e sujeira no rosto, e não havia nada que cau­sasse reflexo no rifle. Ele ficaria invisível contra o pôr-do-sol. Viu as duas figuras novamente. Oitocentos e oitenta metros. Eu sinto isso. Esse era o seu dom. Ele regulou a distância, ajustando as torres de mira de acordo com a força do vento e a elevação. O ar estava leve, e havia pouco vento. O objetivo estava mais abaixo no declive, e a gravidade faria que a bala descesse. tinha compensado isso, acrescentando um oitavo na distância. Ele vira o brilho do ar ao redor do trator, a distorção óptica. Apontaria um metro à esquerda da cabeça da mulher, para a pedra ao lado dela com as esculturas atrás. A bala levaria mais de um segundo para chegar. Ela nem mesmo ouviria a detonação. A bala passaria pelo seu pescoço, rompendo sua espinha dorsal. Ele inspirou profundamente, depois exalou e deixou de respirar. Reduziu a velocidade da batida de seu coração. Sincronize-se com sua própria alma. Ele curvou o dedo ao redor do gatilho e abaixou os olhos para o alvo. Grande é a virtude do primeiro imperador. O universo inteiro é seu reino.

Então parou. Deslizou novamente para dentro do buraco e girou, com o rosto virado para o céu, puxando o rifle para si, segurando-o contra o tórax, abrindo o ferrolho. fizera a mesma coisa inúmeras vezes, indo até o limite máximo. Sua avó havia dito que isso era shiatsu, auto-discipli­na. Ele lidara com a mulher do tio, aquele cujo lugar ele ocuparia entre os doze membros. Sabia que o homem não diria nada, um homem trei­nado da maneira de um guerreiro tigre, assim ele o tinha deixado morrer de maneira sórdida, ser devorado pelos ratos dentro do santuário da selva. Ele e seus homens tinham encontrado a inscrição dentro, e bastante tempo se passara antes que os maoístas os encontrassem por acaso para ler as palavras e ver aonde levaria a busca do tesouro sagrado. Mas antes ele fora para ali para observar, esperar, para ver se a mulher os levaria mais adiante. A fraternidade sabia que o tio lhe falara sobre a própria busca, sobre as pistas que encontrara. A fraternidade tinha olhos e ouvidos em todos os lugares. E o destino dela estava selado. Quando um dos doze se desviava do rumo certo, seu clã era castigado. Sempre tinha sido desse modo. Mas ele teve que se lembrar. Ele não estava ali para matar, mas para observar, para seguir. Era seu teste, o dever estabelecido pela frater­nidade, seu rito de passagem antes que ele pudesse unir-se aos doze. Do­brou a manga e tocou a imagem tatuada em seu antebraço, ainda ferida e sangrando. Foi até o cavalo que estava parado atrás dele no buraco, seus flancos subindo e descendo quase imperceptivelmente, olhos meio aber­tos, avermelhados. Apertou a tatuagem contra seu flanco, e o antebraço inteiro ficou vermelho, coberto com o sangue que transpirava como suor sobre o cavalo. Ele se deitou novamente, triunfante. O sangue deles tinha se misturado. Eles tinham se tornado uno. O sangue do corcel divino. O sangue do guerreiro tigre.

Jack despertou com um sobressalto quando o avião balançou e estreme­ceu. O barulho dos motores aumentava como um queixume e depois diminuía novamente. Ele apertou o cinto de segurança. Rebecca estava sentada ao seu lado, lendo. Defronte deles Costas e Pradesh cochilavam intermitentemente. Jack observou o mapa de navegação na tela dobrável à sua frente, depois olhou para fora da janela à sua direita. Viu onde o vale do Indo dera lugar aos contrafortes cheios de sulcos do Baluquistão, a província norte-ocidental do Paquistão. Eles estavam perto da fronteira com o Afeganistão, em cima das terras tribais que haviam mudado muito pouco desde os dias do governo britânico. Além do Afeganistão estava o destino deles, a antiga República Soviética do Quirguistão, entalada entre as montanhas que levavam para a China de um lado e para a Rússia de outro, transversalmente às rotas das antigas caravanas e desfiladeiros em terras altas que formavam o braço setentrional da Rota da Seda. Jack fita­va a neblina, agarrado ao descanso dos braços. Katya estava fora em algum lugar, em uma das paisagens mais proibitivas da Terra. Ali em cima, a perspectiva de encontrá-la parecia inacreditavelmente remota, contudo, se tudo desse certo eles estariam com ela em uma questão de horas.

Jack olhou para os dois homens. Costas estava usando outra camisa havaiana, que ele deixara de reserva no Seaquest II, substituindo a que se rasgara na selva. Havia uma protuberância em seu ombro direito, onde um curativo cobria a ferida da bala que recebera do pistoleiro chinês, fe­lizmente de raspão. Pradesh usava uma roupa cáqui do exército in­diano, com todas as insígnias identificadoras arrancadas, uma precaução sensata em espaço aéreo paquistanês. Na noite anterior, ele e os dois sa­padores haviam mantido os terroristas maoístas à distância enquanto o helicóptero pousava na selva, o que lhes permitiu escapar com somente alguns poucos danos na fuselagem. Pradesh sabia exatamente o que es­tava fazendo, e Jack lhe agradeceu. Uma vez de volta ao Seaquest II, eles puderam se lavar e mudar de roupa, mas não havia tempo para dormir. O jato Embraer do IMU tinha voado da Inglaterra para encontrá-los, e nas primeiras horas da manhã o Lince os havia levado do navio até um aeródromo militar perto de Chennai para subir a bordo do Embraer para o longo voo em direção ao norte. Jack olhou para o relógio. haviam se passado quase quatro horas. Eles deveriam chegar à base dos Estados Unidos em Bishkek no Quirguistão no meio da manhã.

A imagem assustadora da cachoeira ainda estava impressa na mente de Jack. Ele não tinha nenhuma dúvida de que o corpo em decomposição era de Hai Chen, o tio de Katya. A tatuagem que eles tinham visto no braço dele era mais elaborada que as dos cadáveres dos chineses do lado de fora do santuário, mas mostrava a mesma imagem de um tigre terrível, quase um dragão. Era evidente que Hai Chen não era apenas uma vítima inocente, um antropólogo ingênuo no lugar errado no momento errado. Alguém o deixara morrer lentamente, de um modo cruelmente calcula­do. Ele estava numa pista que parecia cada vez mais ser paralela àquela em que o próprio Jack se encontrava, e o resultado parecia decididamente desagradável. Havia em jogo ali algo mais que uma especulação sobre mi­nas. Jack precisava falar pessoalmente com Katya. Ela ia ter que lhe contar tudo o que sabia.

Jack tentou esquecer a imagem e se concentrou na arqueologia. Sua mente ainda estava repassando a descoberta que haviam feito. Uma tumba romana no sul da Índia. Uma tumba perto do sítio romano em Arikamedu sempre fora algo concebível, talvez a de um comerciante ou um capitão de mar. Mas eles tinham descoberto a tumba de um legionário roma­no. Um legionário que podia ter sido um sobrevivente da batalha de Carrhae. Era uma ligação extraordinária com o fragmento do antigo Périplo do Egito, com a prova de que alguns desses legionários tinham fugido para o Leste na Ásia. Se o legionário que esculpira aquelas cenas de batalha na selva tinha sido realmente um dos homens de Crasso, ele deve ter seguido o caminho para o sul a partir da Rota da Seda, em algum lugar abaixo da rota de voo que eles estavam percorrendo. E havia a incrível referência na inscrição da tumba. Jack espiou pela janela na direção do Afeganistão, ainda sem ver nada por causa da neblina matutina. Uma palavra da inscri­ção continuava girando em sua cabeça. Sappheiros. lápis-lazúli. O legioná­rio tinha encontrado alguma coisa, algo tão precioso que ele deixara uma pista na inscrição de sua tumba. Algo que outro legionário, Fabius, seu irmão de armas, o soldado da escultura, também tinha e levara embora consigo. Algo em duas partes. Jack começou a tamborilar no descanso de braços do assento. Aquilo tinha se tornado mais que uma pista fantástica de fuga e uma aventura de dois mil anos atrás. Tinha se tornado uma caça ao tesouro.

- Pai. - Rebecca o cutucou. - Este livro é incrível.

Rebecca estava usando a luz de leitura, e Jack viu o título na página. Tenente John Wood, marinha de Bengala. Uma narrativa pessoal de uma viagem para a nascente do rio Oxus. Jack pôs seu assento na vertical. - É um de meus favoritos. Ele escreveu este livro nos anos 1830, antes que a Ingla­terra tivesse começado a interferir no Afeganistão - ele disse, tomando um gole de uma garrafa de água. - Como outros exploradores britânicos anteriores que viajaram para lá, você pode perceber que ele realmente sentia empatia pelas pessoas. Era escocês e diz que isso tem a ver com o fato de nascer e ser criado nas montanhas. Também é uma grande história de aventura. Na pista de Alexandre, o Grande. E esse livro era um tesou­ro que seu tatatataravô possuía. Ele estava sempre debruçado sobre ele. Quando pus as mãos no livro, me senti perto dele.

- Eu também - disse Rebecca. Ela fechou o livro, marcando a página com uma papeleta, e apanhou uma cópia datilografada que Jack também lhe dera. - E isto é incrível, também. Sua biografia do coronel Howard. Quase chorei quando li sobre o bebê dele, sendo levado doente e ago­nizante para um local que ficava a um dia de Bangalore, enquanto o pai estava a centenas de quilômetros na selva. É de partir o coração. Não consigo imaginar como a mãe do menino se sentiu, acordando uma ma­nhã com seu bebê nos braços e depois vendo-o ser baixado à sepultura naquela mesma noite. - Rebecca estava falando baixinho, tentando não despertar os outros dois, mas suas palavras estavam sufocadas pela emoção. - Você não ouve falar muito das mulheres, não é? Essas aventuras, as guerras, elas são quase todas sobre homens. Mas as mulheres tiveram que lidar com muitas perdas e angústias. Muita gente poderia pensar que elas estavam acostumadas com todas as mortes de crianças naqueles dias, mas aposto que não. Talvez toda aquela história de coragem fosse uma maneira de lidar com o fato.

Jack concordou com a cabeça. - Isto aqui era uma grande aventura para os britânicos, mas a vida era frágil. Doenças como cólera, difteria, complicações da malária podiam matar uma pessoa em um dia, atingi-la sem aviso. Todas essas imagens que temos das requintadas e exageradas maneiras vitorianas na Índiachás, as batidas suaves das bolas do críquete, famílias mimadas sentadas nas varandas - tudo isso era uma espé­cie de verniz superficial. Este era um lugar onde se acordava sem nunca saber se iria novamente para a cama naquela noite ou se seria baixado a uma sepultura. Era um lugar para pessoas que gostavam de arriscar, para quem apreciava viver no limite.

É por isso que você gosta daqui, não é, pai? Todas essas histórias. Você realmente desejaria ter sido um desses oficiais da engenharia real, não é mesmo? Você teria tido guerra, aventura, teria comandado pessoas por toda parte, sabe, até mesmo praticado arqueologia se você fosse um oficial de pesquisa, mais todos aqueles feriados que eles tinham quando podiam sair por explorando montanhas e procurando algum tesouro perdido. Perfeito.

Jack riu. - Afortunadamente, posso ser todas essas coisas hoje e ain­da me transportar para o passado. Para realmente seguir a trilha de uma descoberta, você tem que ter empatia por aqueles que estiver seguindo, conhecer sua mente.

Costas diz que seu grande dom é a diversão. Ele diz que sempre que você está perseguindo algo, outra coisa surge. Ele diz que você precisa de uma mulher para mantê-lo aqui embaixo. Torná-lo mais seguro.

Jack acenou com a cabeça para a figura amarrotada, que roncava ali em frente. - Ele mal pode falar.

Ele tem, você sabe, algum amigo? -, Rebecca perguntou.

Bem, ele tem a mim, e todo mundo na IMU.

Não, eu quero dizer uma namorada.

Jack bufou, apontando para Costas. - O quê? Você deve estar brincan­do. Elas duram tanto quanto o tempo que ele leva para voltar para dentro de um submersível.

Rebecca sacudiu a cabeça. - Os homens são tão estúpidos consigo mesmos. Eles nem sequer sabem o que torna um homem atraente para uma mulher.

Sim, bem, ele é um tecnólogo idiota. Não liga pra isso.

Rebecca sacudiu a cabeça e suspirou. As luzes da cabine piscaram, e a voz do piloto soou pelo alto-falante. - Jack, você pediu para ser desperta­do quando passássemos pela fronteira do Afeganistão. Estamos a menos de duas horas de nosso destino.

Costas e Pradesh se mexeram e acordaram. Houve outra sacudidela, devido à turbulência, e Pradesh se inclinou sobre Costas para olhar pela janela. Eram quatro horas da manhã, hora local, ainda estava escuro, e as luzes cintilavam bem abaixo. - Essa turbulência está em cima da hora - ele disse, - parece que sempre ocorre aqui. Nós acabamos de passar por Quetta, no norte do Paquistão, e devemos estar agora sobrevoando a Pas­sagem de Bolan. Estamos voando sobre o Afeganistão.

Carregar e travar - disse Costas, bocejando e estirando-se de ma­neira extravagante. Endireitou o assento e pegou um suco de laranja do refrigerador ao lado deles. - Estou com dor de cabeça - disse ele. - Acho que foi por causa da selva. Fiquei desidratado. - Tomou o suco, depois pegou outro.

Provavelmente foi aquele vinho de palmeira que você bebeu -, disse Jack. - Eu o avisei.

tomei alguns goles -, replicou Costas. - Mas de agora em diante seguirei minha regra. Nunca beba durante uma operação. - Terminou o segundo suco e guardou a lata. - Ela tornará aquela primeira tequila na praia ainda mais deliciosa. Quando chegarmos ao Havaí. Amanhã. - Ele lançou a Jack um olhar indefinido, ligeiramente acusatório.

Nós somos uma espécie de chefe por - disse Jack. - De forma indireta.

Do norte da Índia para o Quirguistão, na Ásia Central - disse Cos­tas. - Sim, certo.

Quirguistão. Em menos de duas horas pousariam no aeroporto de Bishkek, e um par de horas depois ele estaria com Katya. Uma mensagem dela estava esperando por ele quando voltaram da selva para o Seaquest II, sobre uma nova e surpreendente descoberta que ela fizera. Ele ligou para ela imediatamente e lhe contou sobre o tio. A resposta dela foi prá­tica, como ele esperava que fosse, mas ela pareceu distante. Ele desviou a conversa para a arqueologia. Ela resumiu para ele sua descoberta e pe­diu seu conselho. Aquela era uma boa razão para adiar um pouco mais o cronograma, mas agora havia uma urgência. Ele fez imediatamente outra chamada pedindo que o Embraer do IMU estivesse pronto e com com- bustível esperando por eles no aeroporto de Chennai quando chegassem, em pouco menos de duas horas.

Certo, Jack - disse Costas. - Continue a contar sobre seu antepas­sado. sei até o ponto em que Howard e o outro sujeito, o oficial ame­ricano irlandês, Wauchope, escaparam da selva. E minha suposição é que o que aconteceu com eles depois da fuga tem algo a ver com o fato de estarmos voando agora por cima desta região. E com a inscrição naquela tumba. Nós não viemos para somente para ver Katya.

Jack respirou profundamente e assentiu com a cabeça. - Certo. Va­mos ao resto da história. Howard e Wauchope voltaram com os sapadores para o barco a vapor Shamrock. Enterraram o corpo de Bebbie na selva, não na aldeia onde vimos a inscrição memorial. Mas nenhum deles dei­xou nehum relato sobre o que tinha acontecido. Nós temos o registro do tenente Hamilton sobre a escaramuça na selva, e a memória popu­lar de povo Kóya sobre o que aconteceu naquele dia, aquilo que Pradesh nos contou. Mas nada de Howard. O diário dele termina abruptamente naquela manhã no Shamrock. Isso confiita com seu profissionalismo. Foi isso que fez soar o primeiro alarme em mim.

Talvez fosse uma maneira de encobrir a morte daquele sujeito, Beb­bie - disse Costas. - Se ele realmente tiver sido morto pelos sapadores.

Acho que havia mais que isso - respondeu Jack cuidadosamente. - Penso que ele sofreu um choque com a visão da cena do sacrifício, com o que eles viram quando estavam no Shamrock. Então acho que eles viram o que nós vimos dentro daquele santuário. Ambos deviam ser bem versa­dos em latim, que aprenderam na escola. Wauchope era conhecido por ler grego e latim clássico quando estava em campanha. Acho que eles viram aquela inscrição. E penso que esse era o pacto que os unia. Não contar a ninguém o que haviam lido. Eles viram o terremoto lacrar o santuário depois que escaparam, portanto, o segredo era deles.

O que aconteceu com eles depois da rebelião?

Wauchope deixou os Sapadores de Madras para unir-se à Agência Central de Mapeamento e Levantamento Topográfico da Índia, uma das mais cobiçadas nomeações para um oficial engenheiro. Ele passou a maior parte dos vinte anos seguintes na Fronteira Norte-Oeste, começando no Baluquistão e trabalhando no leste, fazendo pesquisas para a Comissão de Fronteiras, trabalho que ficou conhecido como a Linha de Durant, deli­mitando a fronteira do Afeganistão. As marcas de limites que ele colocou ainda estão lá, como os altares dos dias finais de Alexandre, o Grande. Ele ficou famoso por sua habilidade em escaladas e por sua persistência, um montanhês nato. Mas a malária que ele contraiu em Rampa finalmente o atingiu e o forçou a uma aposentadoria precoce. Cinco anos depois, ao recuperar a saúde nas montanhas da Suíça, ele voltou para sua ama­da índia, dedicando-se a explorar os vales remotos da região fronteiriça, adotando o traje tradicional e vivendo com membros de tribos. A última coisa que ouvimos falar sobre ele é que estava em Quetta no começo do verão de 1908, quando contava cinquenta e cinco anos.

E Howard?

Ele era o último sapador oficial fora de Rampa, meses depois, o úni­co que podia resistir à malária, provavelmente por ter passado a infân­cia na Índia. A morte do filho Edward aos dezoito meses de idade em Bangalore, enquanto ele estava na selva, foi um golpe terrível. Howard era cotado para a realização de grandes ações como soldado, mas ele op­tou por seguir a carreira de engenheiro, juntando-se ao Departamento de Trabalhos Públicos da Índia e voltando depois à Inglaterra, para a Escola de Engenharia do Exército em Chatham. Ensinou topografia para oficiais jovens e mergulhou na vida acadêmica do corpo do exército. Tornou-se um partidário ardente do movimento que eventualmente conduziria ao idioma universal, o esperanto. Talvez esse anseio tenha surgido da sua ex­periência em Rampa, onde eles não conseguiam falar o idioma Kóya sem um intérprete. Talvez fosse uma espécie de compensação. Ele voltou à Índia depois que seus filhos estavam crescidos, e eles foram para um internato. Sempre achei que sua decisão sobre a carreira teve a ver com seu filho Edward, com sua necessidade de proporcionar um lar melhor para seus filhos, na Inglaterra. Mas agora acho que havia algo mais que isso. Penso que sua decisão remonta àquele dia na selva em 1879. Não quero dizer que tenha a ver com o que eles possam ter visto no santuário, mas outra coisa, algo que ele viu ou fez e que o traumatizou. Talvez; tenha sido um sacrifício humano. Algo que ele se sentia impotente para impedir.

Não é exatamente a imagem gloriosa do trabalho de um soldado - disse Costas.

Pradesh mudou de posição e pigarreou. - Concordo. A pior coisa para um soldado é ser enviado a uma missão para a qual ele não tem a von­tade política ou os recursos para terminar o trabalho. Eu experimentei isso em uma missão de pacificação na África. Sentia-me impotente para impedir um genocídio. Se você intervier, pode aliviar a pessoa que está sofrendo, mas isso pode tornar o sentimento de impotência ainda pior. Um de meus sapadores atirou numa mulher que tinha sido terrivelmente mutilada. Ele ficou assombrado com o rosto dela. Ele disse que todos os rostos que antes eram uma massa de humanidade atormentada de repen­te tinham se tornado indivíduos reais, e isso se tornara intolerável para ele. Tinha pesadelos com todos se aproximando dele e perguntando por que ele não tinha escolhido terminar também com o sofrimento deles. Ele não conseguiu viver com isso, e deu um tiro em si mesmo.

Jack viu o rosto de Rebecca e apertou sua mão. - Com Howard tam­bém pode ter sido assim - ele disse baixinho. - Muito pouco do co­nhecimento sobre como era a resposta emocional para trauma durante o período vitoriano chegou a nossos dias. Ainda assim, alguns homens criados em meio a romance e ações corteses acabavam vendo e fazendo coisas terríveis. Eles interiorizaram essas experiências durante toda a vida, usando o reservatório de coragem vitoriana varonil para de alguma ma­neira conviver com elas, refreando-as até o fim.

Você disse que ele voltou para a Índia - disse Costas.

E que a coisa fica realmente fascinante - Jack respondeu. - Em 1905, com a idade de cinquenta anos, ele finalmente voltou a ser um verdadeiro soldado. Tornou-se o comandante da Engenharia Real da Di­visão de Quetta do exército da Índia, para cima, na fronteira afegã no Baluquistão. Era uma das áreas arriscadas do Império Britânico, quase o lugar mais perigoso no mundo. Howard apreciou fazer isso, e durante algum tempo era como se ele estivesse compensando o tempo perdido. Entretanto, em 1907, como coronel, ele abruptamente aceitou metade de seu soldo e se aposentou.

Quetta - Costas murmurou. - O mesmo lugar onde Wauchope estava?

Exatamente - Jack exclamou. - Essa é a chave da história. Depois de Rampa, os dois homens tomaram caminhos diferentes. Talvez em um pacto feito na selva eles tenham traçado seu futuro, quando voltariam a estar juntos. Eles se encontraram uma vez, em 1889, quando Wauchope fez um curso de atualização na escola de pesquisas em Chatham. Eles até foram coautores num ensaio sobre as moedas romanas do sul da índia. Eles deviam apresentar esse estudo conjunto ao Instituto Real de Servi­ços Unidos em Londres, mas Wauchope foi chamado a assumir seu de­ver. Depois, aparecem juntos em Quetta, quase vinte anos mais tarde, em 1907, ambos aposentados. Jantaram como convidados de honra no res­taurante do regimento, conheceram o explorador Aurel Stein, passaram horas no bazar falando com viajantes, enquanto se equipavam. E então, numa manhã de abril, em 1908, saíram para marchar, botas pregadas com tachas grandes e bandagem do joelho ao para proteger as pernas, calças de montanha ajustadas às pernas, de lã, casacos de pele de carneiro, tur­bante, mochila, revólver. Dois velhos coronéis partem para uma grande aventura final. Quetta havia visto esse tipo de coisa. O criado tibetano de Howard, Huang-li, acenou para eles. Ele estava com Howard havia anos, desde que ele fora levado, ainda menino, para um refúgio no Tibete durante a Rebelião Indiana. Huang-li também nunca mais foi visto. Os dois coronéis marcharam para a Passagem de Bolan, no Afeganistão, e desapareceram no grande despenhadeiro das montanhas. Esta foi a última vez que alguém ouviu falar deles.

Isso está tão legal - disse Rebecca. - É exatamente igual ao livro O homem que queria ser rei, a história de Kipling. Agora sei por que você pôs este livro no topo da pilha para mim no Seaquest II, pai. Dois soldados bri­tânicos que desaparecem nas montanhas, à procura de um tesouro.

Tesouro? -, perguntou Costas.

Acho que Rebecca está um passo à nossa frente - Jack murmurou.

Ela é um chip do mesmo material do pai, Pradesh disse, sorrindo.

Então, qual era a atração para esses sujeitos no Afeganistão? - per­guntou Costas.

Aventura. Guerra. - Pradesh abriu um pequeno estojo que estava em seu colo. Dentro havia uma fileira com oito medalhas, três estrelas elaboradas na esquerda e três medalhas de serviço à direita, duas delas com múltiplos fechos de campanha sobre as tiras. - Estas são as medalhas de Wauchope. Antes de desaparecer, ele deu todas as suas posses milita­res para os restaurantes regimentais dos Sapadores de Madras, com estas instruções: elas deviam ser leiloadas entre os oficiais, e o valor auferi­do, distribuído como caridade para alívio da fome. Como jovem oficial antes de Rampa, ele estivera em Madras durante a escassez terrível de alimentos em 1877, e isso o afetou profundamente. Mas na época que um inquérito foi feito em 1924 sobre o desaparecimento, e os dois ho­mens foram declarados mortos, havia pouco interesse nas medalhas. Elas ficaram desde então em um almoxarifado em Bangalore. Eu achava que elas deviam ficar na sede da Agência Central de Mapeamento e Levanta­mento Topográfico da Índia, onde seriam exibidas ao lado das coisas de outros pioneiros dignas de ser lembradas. Esses homens são lembrados por comprometer sua vida para mapear a Índia e melhorar o bem-estar das pessoas. São lembrados pelos seus sucessores da Índia e do Paquistão com orgulho e afeto. E bastante emocionante.

O quartel-general não se situa onde agora é o Paquistão? - pergun­tou Costas.

Essa é outra razão pela qual estou vindo com vocês para o Quirguistão, Pradesh respondeu alegremente. - um contingente de sapadores paquistaneses ligados à base de coalizão em Bishkek. Eu mesmo comprei as medalhas sob as condições que Wauchope queria, e cuidei para que o di­nheiro fosse para a caridade. Agora vou passá-las para o oficial comandante dos sapadores paquistaneses, e ele as levará seguramente para o museu.

Achei que vocês estivessem em guerra - disse Costas.

nossos países. O major Singh e eu somos amigos íntimos. Fomos ambos aprovados, ao mesmo tempo, para ensinar levantamento na selva na Escola de Engenharia do Exército em Chatham. Foi assim que fiquei sabendo algo sobre a carreira posterior de Howard e Wauchope, pelos re­gistros de lá. Quando Jack me revelou seu interesse pela rebelião Rampa, fiquei atordoado. Eu não tinha nenhuma idéia de que ele fosse da mesma família de Howard.

Costa examinou as medalhas. - Essas duas à direita, com fechos. São campanhas diferentes?

Pradesh assentiu com a cabeça. - São as medalhas do Serviço Geral da Índia, com fechos, por serviços em Hazara, Waziristão, Tirah. Como oficial de levantamento, Wauchope estava envolvido em quase todas as expedições de fronteira afegãs dos anos 1880 e 1890.

Mas nenhuma de fecho para Rampa - disse Jack.

Pradesh sacudiu a cabeça. - O governo considerou a rebelião uma per­turbação civil. Era uma questão de política, tudo ultrassecreto. Ninguém queria que uma perturbação interna fosse anunciada, depois do Motim Indiano. Eles concordaram em considerá-la serviço ativo nos registros dos soldados, mas nenhuma medalha foi concedida.

E esta aqui? - Costas apontou para a terceira medalha de campanha.

Na guerra afegã de 1878 a 1880. Wauchope estava lá, como enge­nheiro assistente na Operação de Força no Vale de Bazar, antes de ser deslocado para Rampa. - Ele ergueu a medalha e virou-a. Os olhos de Costas se iluminaram. - Um elefante!

Jack sorriu para Pradesh. - Tenho que me desculpar por meu ami­go. Ele tem uma fixação por elefantes. Nós encontramos alguns debaixo d'água no Egito.

Debaixo d'água? - Pradesh parecia incrédulo. - Será que ouvi direi­to? Você achou elefantes debaixo d'água?

Falaremos sobre isso mais tarde.

Rebecca inclinou-se e tocou a medalha. - Ela se parece com Aníbal[1] nos Alpes -, disse ela. - Minha mãe me falou uma vez sobre isso quando nós nos encontramos, e eu até fiz um desenho. Então eles também usa­vam elefantes no Afeganistão. Isso é muito legal. - Jack sorriu para ela, e examinou a medalha também. Era uma medalha bonita pendurada numa tira vermelha e verde. No verso estava a rainha Victoria, imperatriz da Índia. No reverso havia uma coluna em marcha, com cavalaria e infanta­ria, dominada por um elefante que carregava nas costas armas de campo desmontadas. Na parte mais atrás havia uma cadeia de montanhas muito altas, e no exergo a palavra "Afeganistão" e as datas 1878-79-80. Era a me­dalha que John Howard teria recebido se tivesse se juntado à Operação de Forças Khyber, depois da selva, como se pretendia que ele fizesse. Se a rebelião Rampa não tivesse continuado por meses, alongando-se mais do que se esperava, e ele não tivesse sido o único oficial a resistir à febre. Se seu filho Edward não tivesse ficado doente e se outro oficial não tives­se se oferecido para assumir seu lugar no Afeganistão, para que pudesse ficar mais próximo de sua família. Foi um gesto de bondade que deu em nada, porque seu filho Edward morrera muito rápido, enquanto Howard ainda estava na selva. Para Jack, a medalha parecia representar todas as armadilhas estranhas do destino e a angústia da perda. E muitos oficiais sapadores tinham morrido no Afeganistão. Se Howard tivesse ido para lá, era possível que Jack não estivesse ali naquele momento.

Costas viu algo de repente e apertou o nariz contra a janela. - Santa vaca. O que foi aquilo?

Eles seguiram seu olhar. Uma linha de flashes vermelhos pontuava a escuridão ao longe, bem abaixo. - Um ataque aéreo contra um cume de montanha murmurou Pradesh. - Aviões de guerra americanos ou britânicos, talvez paquistaneses, em voo rasante. Nós agora estamos em cima da área central do Taliban. País de bandidos.

Temos algumas medidas preventivas? O dispensador de contramedi­das? perguntou Costas, enquanto olhava ansiosamente para Jack.

Nós estamos voando muito alto, acima de quarenta mil pés. Os talibans não têm nada que possa nos atingir. Os americanos não propor­cionaram aos mujahideens, nos anos 1980, nada maior que o Stingler, e a maioria desses desapareceu.

Certo - disse Costas. - Eu me esqueci. Nós armamos esses sujeitos.

Antes dos russos chegarem, os afegãos tinham principalmente ar­mas britânicas velhas, remanescentes do Grande Jogo - replicou Pra­desh. - Rifles Lee-Enfleld, Martini-Henrys, até mesmo Snider-Enfields dos anos 1860. Eles fizeram suas próprias imitações, os chamados rifles Khyber Pass. Essas armas ainda estão por hoje em dia e não devem ser subestimadas. Os afegãos eram atiradores brilhantes com suas próprias armas nacionais, os mosquetes jezails com travas. Com rifles britânicos eles eram soberbos. Este é um país de franco-atiradores, perspectivas enormes com muitos pontos favoráveis nas terras altas. O bom atirador afegão tradicional menospreza o recruta do Taliban que borrifa o ar com a Kalashnikov enquanto grita slogans de jihadistas. Ele o menospreza por sua fraca pontaria bem como por seu fanatismo wahabista.[2] Na sociedade afegã, a morte violenta está sempre presente, mas dentro de uma tradição de honra. Nenhum guerreiro afegão quer morrer. Ele despreza o bom­bardeio suicida. Ele detesta o fundamentalismo. A mentalidade de mártir e a Kalashnikov são os dois pontos fracos na armadura taliban.

Parece que esta guerra deveria ser ganha para nós pelos afegãos - dis­se Costas.

Algumas centenas de homens afegãos, montanheses armados com rifles Sniper, poderiam incapacitar o Taliban. Os afegãos apenas devem ser persuadidos de que os talibans são seu pior inimigo. E eles precisam saber que a coalizão ficaria aqui depois para reconstruir o país.

Muito trabalho para os sapadores - disse Costas.

Nós estamos prontos para isso - Pradesh respondeu entusiastica­mente. - Meus companheiros oficiais e eu estudamos atentamente todos os arquivos da guerra de 1878, quando os Sapadores de Madras constru­íram pontes na Passagem de Khyber. Nós poderíamos fazer isso nova­mente. - Eles ergueram o olhar quando o co-piloto apareceu no corredor, gesticulando para Pradesh. - E minha vez de voar - Pradesh disse, levan­tando. - Preciso atualizar meu número de horas de voo e a distância per­corrida em meu registro de voos em aeronaves de asa fixa. Até logo mais.

Pai. - Rebecca estava olhando novamente para o livro em seu colo. - Notei isso pouco. algo escrito a lápis na margem. Quase não consigo ler o que é.

Qual é o livro? perguntou Costas.

-A nascente do rio Oxus - de Wood, disse Jack. - Estava na minha cabi­ne. E a própria cópia de Howard.

Oh, sim. Um material fascinante sobre minas.

Enquanto você estava roncando, cheguei onde ele descobre as minas de lápis-lazúli - disse Rebecca. - E inacreditavelmente excitante. E como um romance de aventura. Ele diz que havia três classes de lápis-lazúli. Ela leu em voz alta uma passagem: - Estes são o Neeli, ou a cor índigo; o Asmani, ou luz azul; e o Suvsi, ou verde. O Neeli é o mais valioso. As cores mais valiosas são achadas na pedra mais escura, e quanto mais próxima a mina está do rio diz-se que é maior a pureza da pedra.

Neeli - disse Costas. - Parece com "Nielo", que estava na inscrição da tumba.

Jack assentiu com a cabeça. - E a mesma palavra, em Pashtun e em latim. Deve ser a raiz indo-européia da palavra. Se tenho razão, o escul­tor romano na selva, o sujeito que fez aquela inscrição, esteve de fato nas minas do Afeganistão. Sua escolha daquela palavra para "escuridão" pode bem ter vindo do contato com os habitantes locais que descreveram o melhor lápis-lazúli daquela maneira. - Ele se inclinou sobre Rebecca. - E esta escrita na margem? Esta que estou vendo?

Ao lado do parágrafo que acabei de ler.

Jack examinou de perto. - Você tem razão. Eu não tinha visto isso. tantas outras anotações de Howard nas margens do livro, e eu não tinha observado de perto esta página. - Ele pegou o livro aberto e olhou atenta­mente, colocando-o sob a luz de seu assento. - Definitivamente é a letra de Howard. Absolutamente distintiva, embora você quase não consiga ler o que está a lápis. - Ele examinou novamente e depois leu em voz alta, lentamente. - "Diz-se que se você colocar juntos a olivina e o lápis-lazúli, então terá o segredo da vida eterna. Eles devem ser os cristais apropria­dos. A sabedoria chinesa antiga me contou isso por intermédio de minha aia indiana. - Ele abaixou o livro. - Meu Deus!

Olivina e lápis-lazúli - exclamou Costas. - Aquela combinação no­vamente.

Quem era a aia indiana dele? - Rebecca perguntou.

Sua babá - murmurou Jack. - Ela cuidou dele quando menino em Bihar, onde seu pai tinha uma plantação de índigo, perto da fronteira com o Nepal. Ela era a tia-avó do criado de Howard, Huang-li, aquele que acenou para eles quando saíram de Quetta em 1908. Durante a rebelião Indiana, quando Howard era um menino pequeno, ela o levou para o Himalaia. Depois se tornou a aia indiana dos filhos dele e mais tarde da geração seguinte. Ninguém sabia quantos anos tinha, mas ela viveu até uma idade avançada, bem mais de cem anos. Nos anos 1930, ela se apo­sentou para viver o resto da vida nas montanhas do Tibete. Ela afirmava que seus antepassados vieram de um lugar muito distante no leste, ori­ginários do norte da China. Quando meu avô era menino, ela lhe con­tava histórias sobre o primeiro imperador, o grande imperador Qin, que unificou a China no século 3 a.C. Ela lhe dizia que era descendente do guardião da tumba do primeiro imperador. Uma lenda, talvez, mas que cativou meu avô. Um dos outros livros que ele me deu foi Os registros do grande historiador, o relato da dinastia Qin. Foi outro dos livros de John Howard encontrados em seu estúdio depois que ele desapareceu.

Falando de lendas familiares, o que você sabe sobre o desapareci­mento de Howard? - Costas perguntou. - Falar sobre isso teria cativado as crianças. Você devia querer saber se ele e Wauchope encontraram al­gum tesouro lendário e viveram a vida como reis em alguma montanha escondida, difícil de ser encontrada, como na história de Kipling.

Bem, havia uma história. Ela era contada pela esposa de Howard, minha trisavô. Todo mundo, exceto meu avô, rejeitava o que ela dizia porque ela adoeceu. Howard tinha feito tudo o que podia por ela. Mas assim que as crianças cresceram, ela caiu doente. Nunca conseguira lidar com a morte de seu primeiro filho. Ela foi cuidada depois por suas irmãs, mas em seguida foi para uma instituição. Howard tinha o dinheiro da herança de índigo de seu pai, e não fez nenhuma economia para o con­forto dela. quando soube que não havia nenhuma esperança para ela, Howard retornou à índia. Mas ele a viu novamente em várias ocasiões na Inglaterra antes de desaparecer, a última vez em 1907, logo depois que ele se aposentou. Ele a levou para passar alguns dias num chalé no País de Gales. Parecia ser uma breve janela de felicidade. Era um belo começo de verão, e eles caminhavam pelas colinas. Era como ela se lembrava disso, em momentos de lucidez, quando meu avô ia visitá-la no hospital anos mais tarde. Depois que Howard se encontrou com Wauchope em Quetta, ele nunca mais viu a esposa. Mas ela viveu durante muitos anos mais, numa espécie de Terra das Sombras, vindo a morrer em 1933.

Ela se lembrava de alguma outra coisa? - perguntou Rebecca, com voz emocionada.

Dizia para meu avô que quando fechava bem os olhos, ficava de mãos dadas com o filho Edward, olhando para um lugar de beleza cin­tilante, como uma caverna mágica. que Edward aparecia mais velho do que quando morreu, era um menininho e não um bebê de colo. E via Howard, um jovem homem orgulhoso em seu uniforme, com uma centelha nos olhos, o pai de Edward e seu marido amado, e o menininho correndo para ele de braços estendidos, muitas vezes dizendo a palavra "Dadá", uma palavra que ele, em sua curta vida, nem tinha idade para di­zer. Disse que naquele momento estava no lugar perfeito. Passava muito tempo naquele hospital de olhos bem fechados.

Rebecca estava em lágrimas, e Jack segurou sua mão. - Ela disse outra coisa, que todo mundo descartou porque o hospital era administrado por freiras, e elas achavam que ela estava apenas repetindo algum mantra reli­gioso. Disse que o marido tinha ido à procura do Filho do Céu.

Um convento cristão? - perguntou Costas. - Devem ter dito isso para muitas viúvas.

Foi o que todo mundo pensou. - Jack se inclinou para a frente, com os olhos brilhantes. - Mas isso tocou meu avô, na época um jovem ofi­cial da marinha, e permaneceu com ele. Cinquenta anos depois, quando era um homem velho, ele me chamou na escola. Estava tão incrivel­mente entusiasmado, que tive que deixar tudo o que estava fazendo e fui visitá-lo. Foi quando ele me deu os Registros do grande historiador. Ele andara folheando o livro, e viu estas palavras exatas: "Filho do Céu". Ele se lembrou de repente onde as tinha visto. Mandado para Xangai como cadete naval, ele viajou para Xian, para ver a tumba lendária do primeiro imperador. Essa fotografia dele, de 1924, foi uma das primeiras a alcançar o Ocidente. Foi que ele viu as palavras "Filho do Céu". Tratava-se do título tradicional do imperador chinês.

Rebecca esfregou os olhos. - Eu me lembro disso, da exposição dos Guerreiros de Terracota.

Mas ainda mais coisas - Jack continuou. - Meu avô achou uma velha estampa que ele tinha do monte onde se encontrava a vasta tumba, tão grande quanto uma pirâmide egípcia, ainda completamente intoca­da, anos antes da descoberta dos Guerreiros de Terracota. Era a tumba do primeiro imperador, Shihuangdi, o Filho do Céu. Leu em voz alta a passagem dos Registros que descrevia o que havia dentro: os tesouros fa­bulosos, uma réplica do mundo em miniatura, a decoração da câmara re­presentando os céus, com a maior luz de todas incidindo sobre a tumba. Então lhe ocorreram várias ideias. Foi quando ele me chamou. A esposa de Howard não estava dizendo "Filho do Céu", mas "Sol do Céu". O sol, a maior luz do céu, a luz que asseguraria a imortalidade do imperador. A maior joia dos céus. Era isso que a esposa de Howard queria dizer. Ele lhe dissera que ia à procura de uma jóia lendária perdida.

Eu sabia. - Costas sorriu. - Uma caça ao tesouro.

Todo esse material -, Rebecca murmurou. - Como você pensou nis­so? Legal.

Jack se sentou novamente. - Tudo o que fiz foi abrir uma velha arca com gavetas e deixar que tudo saísse.

A luz vermelha de advertência piscou acima deles. Jack olhou para o cinto de segurança de Rebecca e depois para fora da janela, na luz cinzen­ta do amanhecer. A descida para o aeroporto de Bishkek era reconheci­damente acidentada, por causa dos ferozes ventos cruzados. Através de buracos nas nuvens ele via flashes da terra embaixo, um solo improdutivo, sombrio e o perímetro do aeródromo. Uma fila de gigantescas aero­naves de transporte C-7 Galaxy estava estacionada no pátio onde a base de trânsito dos Estados Unidos para o Afeganistão compartilhava a pista com o aeroporto civil. Os motores do Embraer se aceleraram de repente, até soar como um lamento. A aeronave havia dado um solavanco bastante baixo e estava fazendo um círculo antes de tentar pousar novamente. Jack se recostou no assento e fechou os olhos, sentindo-se bastante cansado para adormecer imediatamente. Teve uma lembrança vívida do rosto do avô, de repente, do dia que eles haviam passado juntos examinando os registros chineses. Seu avô lhe falara sobre a velha busca da vida eterna, sobre as expedições do primeiro imperador para encontrar as ilhas dos Imortais. Jack era apenas um menino, mas havia dito para o avô que um dia ele procuraria tesouros assim. Ele se lembrou do que o avô lhe contara quando se separaram, na última vez que o viu. Disse que havia velejado mais de um milhão de milhas em sua vida no mar e que as via­gens eram o que ele mais apreciava, não os destinos. Agora, anos mais tarde, depois de passar a metade da vida procurando os maiores tesouros do mundo, Jack achou que compreendia. Então ele se lembrou da brin­cadeira do avô quando o empurrava, fingindo ser um velho sábio chinês: "Tome cuidado com as ilhas Sagradas. A busca da imortalidade é a missão de um tolo e o primeiro imperador era o maior de todos os tolos. Aproxime-se muito, e você vai enfrentar um perigo mortal."

O avião deu um solavanco violento. Sobressaltado, Jack abriu os olhos. Costas estava olhando para ele com um ar brincalhão. Jack adivinhou o que ele estava pensando.

Ansioso para ver Katya? - perguntou Costas.

Ansioso para ver o que ela achou - respondeu Jack.

Pai. - Rebecca o chamou com um olhar desdenhoso.

Certo, certo. Ansioso para vê-la - disse Jack. - Mas ela está presa perto do lago porque eu sugeri isso. Estou indo vê-la como cientista. Te­nho um interesse nesse projeto.

Rebecca, quando você a encontrar, não use aquela palavra, "namo­rada", murmurou Costas, - se não quiser despertar o Genghis Khan que dentro dela.

se me uma folga -, disse Rebecca. - O que está acontecendo aqui? Parece que vocês, rapazes, precisam de um banho de realidade. Ka­tya e eu somos ambas mulheres. Nós podemos falar.

Felizmente -, disse Jack, sorrindo docemente para ela, - você não vai ver Katya hoje. Depois de encontrar aqueles corpos na selva, não vou assumir nenhum risco. Katya era muito chegada ao tio e estava envolvida com sua pesquisa. Se ele estava em uma lista negra, então Katya também pode estar. E isso põe qualquer um próximo dela em perigo potencial.

-Você contou para Katya sobre ele? - perguntou Costas.

Jack pegou o telefone celular. - Logo antes de sairmos.

Então você está dizendo que não posso ir com vocês - disse Rebecca com ar desafiador.

Você vai ficar com Ben e Andy na base, ajudando-os com o equi­pamento. Depois vai voar para o leste com eles num helicóptero do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos para a outra extre­midade do lago Issyk-Gul, onde foram encontradas ruínas submersas. Prometi que nós examinaríamos essas também, assim como vou ver o que Katya tem para nós. Você vai ajudar a preparar as coisas em cima, e nos esperar.

Assim eu perco toda a ação - disse Rebecca.

Você vai estar com uma equipe da marinha dos Estados Unidos de Mar, Ar e Terra - disse Costas. - Não pode conseguir nada melhor que isso.

Você fala russo, não é, Rebecca? - perguntou Jack.

Ela acenou com a cabeça, depois olhou para Costas. - As pessoas com quem eu morava em Nova York, escolhidas por minha mãe, eram russas - Petra e Michael, que fugiram em meado dos anos 1980, enquanto esta­vam na América para uma conferência. São ambos paleolinguístas. Petra havia conseguido permissão dos soviéticos para estudar na Itália, onde ficou amiga de minha mãe. Isso foi antes de você conhecer mamãe, pa­pai. Depois que Petra voltou para Moscou, ficou conhecendo Michael no Instituto de Paleografia.

Foi onde Katya se formou, não é? - exclamou Costas.

Rebecca fez que sim com a cabeça. - Eu soube sobre Katya antes de conhecer você, pai. A primeira vez que vi você e Costas foi quando eu estava sentada uma noite em nossa cabana de verão no Hamptons com Petra e Michael, assistindo a um documentário sobre a Atlântida. Katya estava sendo entrevistada.

Mundo pequeno -, disse Costas.

Jack olhou para fora da janela, de repente dominado pelo pensamento de quanto mais ele ainda tinha que aprender sobre sua filha. Parecia incon­cebível que ele a tivesse conhecido alguns meses atrás. Respirou fundo e recostou-se no assento. Eles estavam agora na aproximação final, e o avião estava balançando por causa da turbulência. Ele olhou para Rebecca. - Seu russo será muito conveniente. O lugar para o qual irá perto do lago é uma área de instalação russa que testa a atuação de equipamentos submersíveis em combate, uma área recentemente reaberta no local de antigas instala­ções soviéticas. Foi uma grande sorte conseguir que eles aceitassem uma equipe do IMU para operar na área restrita deles, e para o exército dos Estados Unidos isto é muito mais que apenas um feriado interessante para as Forças Especiais fora do Afeganistão. Esta operação vai requerer tato, equilíbrio e charme. Este será seu primeiro papel oficial no IMU.

Mas Costas ainda não me ensinou a mergulhar - disse Rebecca.

Porque Costas ainda não teve permissão para levá-la ao Havaí - res­mungou Costas.

Você pode dirigir o barco - disse Jack.

Rebecca se recuperou. - Como é?

Jack apontou para o chão da aeronave. - Acondicionado no compar­timento de carga do avião. Um Zodiac zero quilômetro com seis metros e meio, um barco rígido inflável, com dois motores Evinrudes 80, com a mais recente tecnologia de GPS para navegação, fixação de posição e equipamento de perfil de fundo.

Legal.

Jack sorriu para Costas. As rodas do avião deslizaram no asfalto, e o nariz do avião abaixou. Os motores funcionaram no sentido inverso, e Rebecca gritou acima do barulho, - Então, quando eu o verei?

Não sei. - A voz de Jack estava estremecendo com o avião. - Depen­de do que Katya encontrou. Nós poderíamos estar com você um pouco mais tarde hoje. Mas poderia haver pouca diversão.

Pouca o quê?

Pouca diversão.

Costa olhou desanimado para sua camisa havaiana, depois para Re­becca. -Você devia saber o que isso significa.

 

Jack e Costas estavam parados junto do lago acenando para o caminhão do exército enquanto ele se afastava lentamente para o leste, acelerando nas mudanças de marcha e desaparecendo por cima do cume. De­pois de deixar Pradesh e Rebecca na base aérea, enfrentaram uma viagem exaustiva de quatro horas desde Bishkek, espremidos na cabine com o motorista quirguiz e seu guarda. O helicóptero Chinnok do exército dos Estados Unidos que devia tê-los levado para tinha tido um problema mecânico, e em vez de esperar em Bishkek e se arriscar a perder um dia, haviam optado por pegar uma carona em um caminhão de suprimentos que se dirigia para a base naval de testes até a extremidade do outro lado do lago. A expectativa de Jack crescera durante a última hora, à medida que o caminhão ia balançando pelo caminho em direção ao lago, passan­do por uma paisagem extraordinária de desfiladeiros e cumes, formada pela catarata tempestuosa que outrora fluía do lago e agora era novamente modelada pelo vento. Ele imaginava os pensamentos dos antigos viajantes que outrora enfrentavam corajosamente a passagem, sabendo que cada recanto escuro poderia esconder um bando de ladrões, prontos para in­fligir o destino assassino que atingira tantos outros na Rota da Seda. E então o caminhão venceu a elevação final, e eles viram o lago Issyk-Gul estendendo-se diante deles, com os cumes cobertos de neve das monta­nhas do Tien Shan alinhadas no lado mais distante. O motorista parou abruptamente e gesticulou para um campo rochoso em direção a uma cabana redonda solitária, uma yurt. Eles agradeceram e desceram, penduraram a mochila no ombro e começaram a andar pela paisagem rochosa. Jack começou a ver as características que tornaram esse lugar tão sedutor para Katya: redemoinhos, padrões curvilíneos nos seixos, esculturas que pareciam tão antigas quanto as próprias rochas. Ele parou perto de uma, encostando nela sua palma, sentindo a mão do escultor mais de dois mil anos atrás.

Um cemitério? -, perguntou Costas de trás. - Elas parecem lápides.

Possivelmente -, disse Jack. - Mas muita coisa xamanista aqui também. Estende-se por milhas, onde os seixos caíram pelo declive abai­xo e vieram descansar perto da praia do lago. Katya acha que os primeiros petróglifos datam da Idade do Bronze, do final do segundo milênio a.C., mas os nômades esculpiam aqui durante o período da antiga Rota da Seda, no final do primeiro milênio d.C. Da mesma forma que os nômades, os comerciantes fizeram o percurso leste ou oeste entre essas pedras durante mil anos ou mais, parando aqui depois de sobreviver àquela passagem ou antes de se arriscar a passar por ela. Incluindo toda a arte nômade, uma chance de achar algo realmente assombroso, inscrições feitas por pessoas como os báctrias, sogdianos, persas, chineses, quem lhe ocorra. Foram esses comerciantes que deram a esta rota seu lugar na história, contudo, eles quase não deixaram nenhuma marca. Qualquer descoberta poderia ser uma revelação enorme.

Jack protegeu os olhos com a mão e olhou pelo campo de seixos e pe­dras, para longe do lago e de novo para a passagem. O sol do fim da tarde batia em seus olhos, e era impossível ver muita coisa: havia flashes de luz vindos das superfícies muito gastas da rocha, sombras onde havia sulcos e ravinas. Seria muito fácil perder-se nesse lugar, e muito fácil nunca ser encontrado novamente.

estão eles -, disse Costas. - Estou vendo Katya. Venha. - Costas parecia ligeiramente deslocado em seus shorts folgados, a camisa havaia­na enorme, botas de caminhada e óculos de sol de aviador cobrindo a tes­ta, mas ele era surpreendentemente ágil e saltava com facilidade de rocha em rocha. Chegou até onde um homem alto de chapéu de feltro estava parado entre os seixos e cumprimentou-o com um aperto de mão. Jack se juntou a eles e também apertou sua mão. O homem tinha aproxima­damente sua idade, com impressionantes olhos azuis, o rosto causticado pelo sol e o vento como o das pessoas que vivem nas estepes. Katya es­tava atrás dele, dando a impressão de que ela também tinha adquirido a coloração da paisagem. Ela atraiu o olhar de Jack, mas sua expressão nada dizia. Ela se voltou para o homem. - Conheça Altamaty -, ela disse. - Ele é o curador do Cholpon-Ata, o museu de petróglifos ao ar livre. Assim como sua língua natal, o quirguiz, ele também fala russo e vários dialetos afegãos, mas está começado a aprender o inglês. Ele adquiriu experiência em mergulho com a antiga marinha soviética. Quer participar das inves­tigações subaquáticas da extremidade oriental do lago. lhe falei a res­peito dele, Jack.

Onde fica o museu? -, Costas perguntou.

Katya gesticulou ao redor de si. - Você está dentro dele. Provavelmen­te é o maior museu do mundo. E o que tem menos recursos. Ele é basica­mente um show de um único personagem.

Jack olhou para Katya. Ela estava usando calças compridas desbotadas do exército e uma camiseta cáqui, e seus antebraços estavam cobertos de sujeira. O longo cabelo preto estava amarrado atrás, e seu rosto estava bastante bronzeado, acentuando as maçãs salientes. Parecia mais cansada e castigada pela exposição ao ar livre que da última vez ele a vira, na con­ferência, três meses atrás, mas o bronzeado lhe caía bem. Jack sabia que sua mãe era dessa região, e o rosto dela parecia combinar com o do alto quirguiz ao seu lado.

Eu informei as pessoas de nossa equipe sobre Altamaty -, disse Jack. - Assim que o Chinook esteja em condições de voar, Ben e Andy irão de Bishkek diretamente para a antiga base naval soviética na extremidade oriental do lago. Os americanos conseguiram pôr as coisas para andar por lá, e quero mergulhadores na água o mais cedo possível, para mostrar o que podemos fazer. Rebecca está indo com eles.

Sua filha está com você? -, perguntou Katya.

Jack falara com Katya sobre Rebecca na conferência. - Eu ia trazê-la para cá, mas decidi não fazer isso depois do que aconteceu na selva. Este lugar poderia estar numa zona de perigo. E ela terá bastante diversão com os sujeitos no lago. Esta é sua primeira expedição no IMU, e quero que seja uma experiência boa, especialmente logo depois de ter perdido a mãe.

Estou ansiosa para conhecê-la -, disse Katya.

A equipe de manutenção achou que o helicóptero ficaria em terra durante mais um dia. Espero que eles consigam chegar bastante rápido para que as coisas estejam instaladas e funcionando antes de nossa chega­da. A última vez que mergulhamos foi no Egito, uma semana atrás. Nun­ca mergulhei num lago da Ásia Central. Estou ansioso para fazer isso.

Vou segurar um pouco a ansiedade, até podermos passar um con­tador Geiger por cima da água -, disse Costas, esfregando a barba cur­ta. - Quarenta anos de testes de submersíveis e de torpedos soviéticos. Sei exatamente como eles abastecem de combustível seus equipamentos. Essa foi minha tese de mestrado no MIT.

O problema maior são as primeiras e antigas estações de vigilância soviéticas localizadas nos cumes das montanhas, que funcionavam com energia nuclear, portanto, não precisavam ser tripuladas -, disse Katya. - Os habitantes as invadiram e voltaram com os bolsos cheios de urânio, e em uma semana estavam mortos. O pesadelo é que qualquer dessas coi­sas acaba achando o caminho do mercado negro. É por isso que os ame­ricanos estão tão interessados em assumir o serviço de limpeza da antiga base naval. Não se trata tanto de uma preocupação com o meio ambiente, mas com o terrorismo.

Jack achou que tinha visto um flash de luz ao longe. Olhou para os seixos espalhados no declive atrás deles. Poderia ter sido um reflexo de vidro ou metal, ou apenas uma ilusão de ótica. Protegeu os olhos da luz do sol, olhando atentamente, então se voltou para Katya. - alguém mais por aqui?

Um pastor estranho, algumas vezes um caçador que desaparece em cima e parece que não vai mais voltar. - Ela se virou para Altamaty e falou com ele em quirguiz. Ele seguiu o olhar de Jack para o cume em cima, depois falou depressa com Katya. - Altamaty tem olhos de águia -, ela disse. - Está dizendo que viu a fumaça de um cavalo exalando quando estava frio bem cedo nesta manhã, longe em cima do cume. Os caçado­res às vezes ficam num local durante dias, esperando um cervo.

Você tem certeza de que é um caçador disse Jack.

Katya o olhou. - Quem mais você acha que poderia ser?

Você está armada? -, Costas perguntou.

Altamaty tem sua velha pistola de serviço Makarav e um rifle SKS que ele retirou do armazém da marinha daqui quando o império sovi­ético desmoronou. Nós saímos para caçar juntos. Para complementar a carne de carneiro, que é o alimento principal aqui.

Eu me esqueci murmurou Costas. - Uma paleolinguista que co­nhece armas.

Katya gesticulou em direção a um agrupamento de seixos aproximada­mente cinquenta metros adiante, onde o topo de um trator mal aparecia acima das pedras. - Venha -, ela disse. - A luz está perfeita agora, como estava ontem, quando fizemos nosso achado. E Altamaty conseguiu um pouco de guisado chiando em uma panela grande fora do yurt. Vocês es­tão convidados para uma festa tradicional quirguiz hoje à noite.

Estou morrendo de fome -, disse Costas. - E sei que a carne de car­neiro é uma das favoritas de Jack. - Jack lhe deu um olhar tímido e engo­liu em seco. Essa era uma coisa que ele vinha temendo. Ele podia engolir virtualmente qualquer coisa, exceto ovelha cozida. Quando criança, ele havia morado durante vários anos na Nova Zelândia, e uma vez abusa­ra dessa carne. Desde então, até o cheiro o fazia sentir-se enjoado. Sabia que era uma questão de extrema importância que superasse o problema agora. Sua virilidade estava em jogo. Sorriu para Altamaty, depois seguiu Katya ao longo de uma trilha entre os seixos. O chão era duro, cozido como tijolo, com apenas alguns tufos de vegetação grossa crescendo ao redor da beirada dos seixos. Era como se um mar de lama e pedras tivesse deslizado para baixo pela encosta da montanha e se solidificado em uma massa, com seixos incrustados nela. Jack viu mais pedras com desenhos esculpidos, e algumas estavam tão corroídas que as inscrições eram pouco discerníveis. Ele fez uma pausa para examinar uma delas, e Costas apro­veitou, passou por ele e foi atrás de Katya. - Eu queria dizer -, disse Cos­tas baixinho. - Sinto muito por seu tio.

Katya o olhou e assentiu com a cabeça, mas não disse nada. Ela cami­nhava à frente, e eles a seguiam em silêncio pelas pedras, até que che­garam perto do trator. Costas parou extasiado, como um menino que acabara de ganhar o presente de seus sonhos. - Um quatro sessenta e cinco -, ele murmurou com reverência. - Um Nuffield quatro sessenta e cinco. Foi por isso que entrei para a engenharia. Fiz um trabalho de verão em uma fazenda no Canadá. Este foi o primeiro quatro cilindros a diesel que desmontei. Altamaty abriu a capota da máquina, e os dois homens examinaram dentro. Costas olhou para Jack. - Acho que posso me enten­der com este sujeito. Penso que encontramos um idioma comum.

De jeito nenhum -, disse Jack. - Nós não viemos aqui para desmon­tar um trator. - Costas suspirou, Altamaty bateu no ombro de Costas, demonstrando pesar, depois seguiu Jack para onde Katya estava ajoelha­da diante de uma pedra alguns metros adiante. Viram para onde a pedra tinha sido arrastada para trás pelo trator, revelando outra placa de pedra que estava parcialmente enterrada. Entre as duas pedras havia uma área de escavação marcada de cerca de quatro metros de largura por dois metros de comprimento. No centro havia uma pilha de pedras menores cuida­dosamente escavadas, com cerca de um metro de largura por dois metros de comprimento. Jack se agachou e olhou para as marcações nas pedras recentemente expostas. Ele sabia que era por causa delas que Katya o cha­mara para ali. - Raios me partam -, ele murmurou.

Outra inscrição na pedra -, disse Costas. - Parece estar mais bem preservada que as outras.

Não é apenas mais uma pedra esculpida disse Jack. - É fantás­tico. - Sua mente estava se acelerando. Uma coisa era ouvir Katya falar disso ao telefone, mas outra era ver ao vivo. Ele sentiu o poder do passado quando a tocou. Cartas em latim. - É o mesmo número, o mesmo símbo­lo. XV Apollinaris.

Costas se ajoelhou ao lado de Jack. - Aquela inscrição romana da ca­verna no Uzbequistão. A que o tio de Katya registrou.

Definitivamente é o mesmo escultor -, disse Katya. - Eu fotografei e digitalizei a foto, comparando-a com a imagem da caverna. O escultor tem uma maneira distintiva de fazer os arremates, terminando cada linha com uma inclinação do cinzel de novo e tirando um pedaço de pedra grosso e triangular.

Um cidadão-soldado -, murmurou Jack. - Um que se lembrava de sua profissão, e ainda a praticava com cuidado. Ele era o único que cha­mavam quando precisavam fazer uma inscrição.

Na caverna no Uzbequistão, acho que havia uma marcação casual, "Licinius esteve aqui", disse Katya. - Talvez a caverna fosse o lugar por onde eles realmente sentiram que escaparam de Merv, onde o deserto do Uzbequistão se tornou os contrafortes da Ásia Central. De lá, a Rota da Seda seguia por desfiladeiros e passagens de montanhas que finalmente vinham dar neste lugar. Mas esta inscrição aqui perto do lago foi feita por uma razão diferente. Você quase não consegue entender a primeira linha, mas é um nome pessoal diferente, acho que é Appius. E olhe para essas duas letras mais embaixo.

DM -, disse Jack, passando os dedos embaixo. - Dis Manibus. Isso significa "dado para Dis", o deus do mundo subterrâneo. Uma inscrição funerária. - Ele olhou para a pilha de pedras entre os seixos. - Esta é uma sepultura.

Costas examinou a inscrição. - E aquele símbolo. Aquela é a águia de uma legião romana, não é? Não foi aquela que nós vimos no santuário da selva?

É a mesma legião -, murmurou Jack.

É exatamente o que sonhei que acharíamos - disse Katya - O lugar da sepultura de alguém que morreu aqui, ou na passagem abaixo. Para alguns, este deve ter sido um lugar de júbilo, de recuperação antes do próximo estágio da jornada. Para outros, teria sido um lugar para morrer. Deve ter havido muitas mortes entre os comerciantes, persas, báctrias, sogdianos, chineses. Mas romanos? É surpreendente.

-Você achou alguma coisa enterrada na sepultura? - perguntou Costas.

Foi um enterro precipitado, como você poderia esperar - ela repli­cou. - O chão é duro como pedra e não bastante madeira aqui para abastecer uma cremação. O corpo estava coberto com pedras, talvez turfa cortada. Um pedreiro qualificado levaria uma hora ou pouco mais para esculpir aquela inscrição.

Pedreiro qualificado? - perguntou Costas. - Você está realmente certa disso?

Não nenhuma dúvida a esse respeito. - Jack passou os dedos por cima dos símbolos. - Ele tinha de alguma maneira feito um cinzel com a largura certa na parte de cima e sabia precisamente onde colocar o cinzel para cada pancada. Conhecia as características deste tipo de pe­dra, de modo que podia dar uma pancada com um golpe de vista sem fragmentar a superfície. Foi o que pensei no santuário da selva. Um cidadão-soldado.

Você acha que este é o mesmo sujeito? - perguntou Costas.

Vamos esperar para ver o que mais Katya tem para nos mostrar.

Katya olhou para ele, respirou fundo e apontou para um engradado de madeira no chão com os artefatos. - A terra é muito alcalina, e os ossos teriam desaparecido muito tempo. Mas quando o trator desalojou o seixo, ele revelou isto. - Ela retirou o pano que cobria o conteúdo do engradado. Costas assobiou. - Isso é uma arma. - Dentro havia uma mag­nífica ponta de alabarda com um furo, cor de prata, com manchas verdes onde tinha sido corroída. De um lado havia uma lâmina curva estraga­da, estendendo-se aproximadamente dez polegadas para fora, e no outro uma lâmina reta, mais estreita, com a forma de uma navalha de cortar pescoço.

Eu vi uma assim no Museu Britânico exclamou Jack. - Estados Combatentes Tardios, início do período Han ocidental?

Katya acenou com a cabeça. - A lâmina moldada da navalha é seme­lhante nas proporções às espadas do período Han, que se parecem com as espadas de samurai japonesas.

Isto não é bronze? -, perguntou Costas. - Isto não seria muito pre­coce para nós?

Katya sacudiu a cabeça. - Não necessariamente. O ferro foi introduzi­do na China por volta século 5, mas a fundição inicial do ferro era frágil e então ainda se usava o bronze. E este bronze foi revestido com cromo, o que o tornou mais duro, capaz de manter uma extremidade afiada.

E uma arma como esta poderia ter sido valiosa, passada de geração em geração - murmurou Jack, tocando a lâmina. - Poderia ter sido feita no período inicial de Han, não muito tempo depois do primeiro impe­rador. Mas poderia ter sobrevivido em uso durante dois séculos ou mais, até o período em que achamos que esses romanos vieram para cá.

Mas o que está fazendo uma arma chinesa de prestígio neste lugar? -, perguntou Costas. - Um guerreiro chinês imperial passou por aqui e jogou-a numa sepultura romana? Não compreendo isso. - Ele olhou de relance para Katya, que devolveu o olhar com olhos brilhantes. - Ah - disse Costas. - Esse seu olhar é tão misterioso quanto aquele do Jack. Significa que você achou alguma outra coisa.

Katya levantou uma pequena bandeja de plástico com artefatos que estava ao lado do engradado. - A alabarda estava no centro da sepultura, como se tivesse sido colocada no torso do corpo. Estes dois objetos esta­vam onde a cabeça poderia ter estado. - Havia duas moedas na bandeja, uma de prata e uma verde, corroída, um disco com um buraco quadra­do no centro. Jack pegou a moeda de prata, segurando-a no alto sob a luz solar que se desvanecia. - E um tetradracma prateado de Alexandre o Grande!

E não destinada a circular - disse Katya. - É como aquelas moedas romanas do sul da índia sobre as quais você estava me falando, ouro em barra não destinado a circular.

Jack passou a moeda para Costas. Viram a efígie no anverso, a cabeça familiar de Alexandre usando a juba de leão, a forma clássica dava uma súbita realidade à ideia de viajantes do antigo mundo greco-romano que iam para o leste distante, para as regiões fronteiriças com a China. Cos­tas virou a moeda, examinando novamente a efígie, e um olhar confuso voltou ao seu rosto. - Se minha história está certa, Alexandre, o Grande viveu no final do século 5 a.C. Quer dizer, cem anos antes do primeiro imperador e trezentos anos antes de nossos romanos. Deve ter havido antigas moedas gregas que também vieram parar aqui, usadas como ourõ em barra, como joia. Mas elas deviam estar gastas. - Ele olhou de maneira dúbia para a inscrição latina no seixo, depois de novo para a moeda. - Isso significa que o homem enterrado aqui, para o qual estamos olhando, não seria um romano, afinal de contas, mas sim um soldado de Alexandre o Grande?

Você leu o Périplo do mar da Eritreia? -, perguntou Katya.

O guia dos comerciantes? Século 1 a.C., o grego-egípcio. Estou me tornando um perito.

Bem, ele diz que moedas antigas dos gregos seriam encontradas em Barygaza, da mesma maneira que você sugere -, disse Katya. - Depois as novas linhas do Périplo que apareceram na escavação de Hiebermeyer no Egito, descrevendo os legionários de Crasso. Jack me informou pelo telefone. Eles mencionam especificamente um altar de Alexandre, con­siderado oriental. Isso teria sido no Uzbequistão, perto da caverna com aquela inscrição da Décima Quinta Legião. Os soldados romanos teriam ouvido lendas sobre o tesouro perdido de Alexandre. Tendo chegado àquele altar varrido pelo vento do deserto, às montanhas da Ásia Central que apareceram indistintamente à frente, eles provavelmente tinham se livrado de quaisquer perseguidores de Merv e puderam relaxar um pou­co. Então, o que eles fazem? Cavam ao redor, procurando. Se Alexandre tinha se preocupado em construir um altar, ele devia incluir oferendas, e o que seria melhor que moedas novas com imagens perfeitas de si mes­mo? Acho que os romanos podem ter achado esta moeda por lá, e a le­varam com eles.

Jack pegou a moeda de Costas, virando-a. - Então eles colocam isto sobre o olho do morto, como uma oferenda a Caronte, o barqueiro do rio Estige.

E a outra moeda? -, perguntou Costas. - No outro olho? Isso me parece chinês. Fale-me dessa outra, Katya.

Ela apanhou a segunda moeda, com o buraco quadrado no centro. - três símbolos chineses nela, um à direita do buraco quadrado e dois à esquerda. Esta é uma moeda da dinastia de Han, um wushu que significa cinco grãos, com um peso equivalente a quatro gramas, igual a um dra­cma grego ou um denário romano. Foram produzidos milhões destas, e elas são achados comuns na Ásia Central chinesa.

Você pode estabelecer a data? - perguntou Costas.

Os símbolos à esquerda são os do imperador reinante, tão peculiar ao chinês quanto era a mudança da efígie para um romano. E da mesma maneira que em Roma, um imperador novo tentaria substituir as moe­das existentes por suas próprias moedas novas. Moedas simbólicas como estas, sem valor de lingotes de prata ou de ouro, teriam sido inúteis com o nome de um imperador anterior, e poderia até mesmo ser perigoso ser visto com uma. Assim, esta moeda provavelmente não deve ter estado em circulação além do reinado daquele imperador. E ele era o imperador Cheng de Han, que reinou aproximadamente de 32 a 5 a.C.

Jack expirou lentamente. - Perfeito - ele disse suavemente. - Isso se ajusta com meu próprio palpite sobre a data da fuga dos legionários de Crasso, 19 ou 18 a.C. Isso corresponde a cerca de uma década dentro do reinado de Augusto, mais ou menos a época em que ele negociou a paz com os partas e viu a devolução das águias das legiões perdidas.

Então como os nossos romanos que escaparam conseguiram uma moeda chinesa? - Costas perguntou.

Jack franziu os lábios. - Eles deviam ser homens desesperados, assas­sinos treinados com nada a perder. Qualquer comportamento moral teria desaparecido com a perda das águias em Carrhae, e eles devem ter ficado brutalizados por causa de anos de tortura e sofrimento sob os partas. Eles podem ter roubado ouro dos partas quando escaparam, mas ainda pre­cisavam comer. Os comerciantes da Rota da Seda empacotavam tudo de que precisavam para a viagem. Os romanos devem ter atacado qualquer caravana que encontraram, provavelmente matando todo mundo, levan­do cativo um estranho, talvez como guia, devorando a comida e a bebida deles, pilhando qualquer coisa de valor que pudessem levar. Esta moeda pode ter estado no alforje de algum desafortunado comerciante de Sogdian. Mas esta moeda não tinha muito valor, era algo que eles poderiam deixar aqui para satisfazer Caronte e aliviar a viagem de seu companheiro após a morte.

E a alabarda? -, perguntou Costas. - Isso teria sido um sacrifício muito maior.

Um guerreiro sempre é enterrado com sua arma - murmurou Jack. - Com sua águia desaparecida, os legionários tinham um ao outro, e eles provavelmente acalentavam o sonho de marchar uma vez mais ao lado dos companheiros mortos, de cabeça erguida nos campos do Elí­sio. Mesmo que isso significasse reduzir suas próprias defesas, eles nunca teriam enterrado um camarada sem uma arma para a vida após a morte. Até mesmo uma arma tão conflitante com o equipamento normal de um legionário.

Então você acha que eles pilharam essa arma também de um comer­ciante? - Costas perguntou.

Os romanos teriam se armado com tudo o que encontrassem - Jack respondeu. - Espadas e lanças teriam sido suas armas favoritas como le­gionários, mas na falta delas qualquer coisa servia.

Costas tocou a lâmina curva com o dedo. - Parece improvável que um comerciante usasse esta baioneta.

Havia outras pessoas na Rota da Seda além de comerciantes - disse Katya baixinho. - Mercenários, empregados como guardas de caravana. Bandos de assaltantes, atacando as caravanas como ladrões de estrada. Essa região era como o Oeste Selvagem. As estepes e o alto das mon­tanhas eram o lugar mais duro para um estranho viver, e as gangues mais assassinas sobreviviam lá. Não havia nenhuma clemência. E havia outros mais.

Guerreiros do leste. - Jack olhou cuidadosamente para Katya. - Guerreiros que ostentavam a tatuagem de um tigre.

Katya lhe lançou um olhar de relance, e olhou para baixo novamente, para a alabarda. - Havia gangues de assassinos aqui fora, mas havia também grupos de ataque da China, do próprio império guerreiro. Eram os mais temidos de todos, soberbamente armados e equipados, a cavalo, sempre acompanhados por um toque de tambor, que ia aumentando num crescen­do quando atacavam sua presa. Eles deviam ter uma aparência de invencí­veis. Para os nômades que vivem aqui, para o povo de minha mãe, o som de uma batida de tambor distante ainda transmite um calafrio à alma. Até eu posso sentir isso, quando deixo minha imaginação correr solta.

Então os chineses atacavam seus próprios comerciantes? - pergun­tou Costas de maneira incrédula.

Para compreender por que, você tem que entender a natureza da sociedade chinesa. O império era um estado totalitário e voltado para o interior, um universo em si mesmo. Extravagâncias no controle sempre precisam de uma fronteira, entre o mundo que eles podem dominar e o mundo exterior, que é temido, rejeitado. Não meio termo nebuloso. Quando você olhar para a Grande Muralha da China, lembre-se dessa psicologia. Em casos extremos, a fronteira age como uma parede de pri­são, e o controlador envia tentáculos para recuperar qualquer um que além do limite. Em alguns períodos, foi o que aconteceu com a China.

Assim, como os comerciantes chineses podiam operar na Rota da Seda? - perguntou Costas.

Eles não operavam. Oficialmente, pelo menos. Mas as pessoas da Ásia Central e da China ocidental se parecem, e um chinês intrépido po­dia atravessar a rota sem ser percebido. Poderiam ir disfarçados entre gru­pos de sogdianos. Havia fartos lucros no comércio da seda, e as tentações para um comerciante chinês deviam ser grandes.

Então você está dizendo que eles foram perseguidos?

Katya assentiu com a cabeça. - Mas havia outro aspecto para expli­car aquela moeda. A elite chinesa desfrutava de seus luxos. Como todos os megalomaníacos, os imperadores eram vítimas da tentação humana.

Matérias-primas apreciadas podiam ser adquiridas no estrangeiro, como a pedra preciosa lápis-lazúli e a olivina. Os imperadores se faziam de cegos para o comércio, contanto que os comerciantes fossem invi­síveis. Mas se qualquer pessoa ficasse conhecida por ter se desviado, ela era implacavelmente procurada. Os Registros do grande historiador, os anais imperiais chineses, estão cheios de histórias de filhos mais jovens extra­viados, sobrinhos buscando fortunas por todo lugar, fazendo pactos com estrangeiros. Nesse sentido, as dinastias reais chinesas, embora fossem como qualquer outra, eram inigualáveis na busca inexorável de qualquer um que tentasse ir embora, trazendo-o de volta e punindo-o. - Katya fez um gesto para a arma na caixa. - Aquela alabarda é uma arma chinesa imperial, um artigo valorizado como a espada de um oficial. Você nunca teria achado uma arma assim nas mãos de um mero guarda de caravana. Aquela arma foi trazida para por um guerreiro chinês.

Então, como um romano se apoderou disso? - perguntou Costas.

Katya olhou para ele. - Especulação em cima de especulação, certo?

Nós temos um grupo de romanos, homens desesperados, prisioneiros fu­gitivos, ex-legionários resistentes que estão indo para o leste. Seu número está encolhendo. Eles foram atacados novamente, talvez naquela passa­gem atrás de nós. Seus atacantes não são somente outro bando de ladrões, mas guerreiros espantosos, oponentes notáveis. Os romanos lutaram bem e capturaram algumas armas. Mas eles estão muito apressados. Um dos seus companheiros caiu, e eles imediatamente o enterraram. Eles partem novamente para o leste.

Se seus atacantes eram chineses, por que eles estão vindo atrás dos romanos?

Recue no tempo um ou dois dias - disse Katya. - Imagine um grupo de comerciantes de Sogdian, carregados com seda. Eles se deparam com o lago, enquanto se dirigem para oeste. Deixam os barcos aqui e trans­ferem sua carga para os camelos que os esperam. Encaminham-se para a passagem. Em seguida são atacados por um bando de desesperados da pior espécie, que eles nunca haviam visto, os romanos. Os comercian­tes são todos massacrados, com exceção de um, mantido vivo para guiar os romanos através da passagem. que o comerciante com quem eles ficaram não é sogdiano. É chinês. E está sendo seguido. É um dos que tinham se desviado do rumo certo.

Com algo que não devia estar com ele - murmurou Jack. - Com aquilo que nós descobrimos na inscrição do santuário. Uma jóia.

Katya lançou um olhar penetrante, que Jack sustentou por um mo­mento. Costas apontou para o engradado. - Alguma coisa mais para nos mostrar?

Ela ergueu outra bandeja. - Nós achamos algo totalmente fantástico. Eu estava deixando isto para o fim. - Ela retirou o pano. Embaixo dele havia uma massa enegrecida, como uma casca murcha de fruta que tives­se sido descascada em tiras e posta para secar. - É couro de camelo, um camelo local de Báctria - disse ela muito excitada. - É uma pele não cur­tida, tirada de um animal morto. Altamaty diz que quando os nômades fazem isso eles saturam o couro com urina para mantê-lo flexível. Você ainda pode sentir o cheiro de ácido úrico. Foi provavelmente por isso que resistiu, debaixo das pedras, onde os pés do corpo deviam estar. - Ela apanhou uma prancheta e lhes mostrou um desenho que parecia ter sido cortado de um papel dobrado, cheio de triângulos e losangos. - Retirei isto de um relatório de escavação de uma fortaleza de legionários na fron­teira alemã - disse ela. - Um soldado romano que foi treinado para fazer algo de certa maneira, sempre reproduzirá a mesma coisa, especialmente um desenho tão experimentado e testado.

Costas olhou fixamente. - Certo, Katya. Eu me rendo.

O camelo indispensável - disse Jack, sorrindo amplamente. - Para um legionário romano que precisa de equipamento, o primeiro pensa­mento ao ver um camelo não é que ele serve para montar ou carregar apetrechos, mas pensa no couro para fazer botas.

Botas - exclamou Costas. - É claro. Os pedaços que sobressaem são onde ele as amarra com cordão.

Estes são caligae - disse Jack. - Todos os legionários os usam, aon­de quer que vão. O padrão foi estabelecido mais ou menos na época de Júlio César, quando esses sujeitos faziam seu treinamento básico. - Ele se inclinou e cheirou. Katya tinha razão. Ele podia sentir o cheiro deles. Era um sentimento extraordinário, uma arremetida impetuosa do passado, e durante uma fração de segundo ele pôde sentir tudo, o suor, a adrenalina, o medo, o odor doentio-doce de decadência naquele pequeno pedaço de couro, o cheiro desagradável de homens com a intensidade animal au­mentada que surge com a proximidade da morte.

Ele olhou para fora. Percebeu que Altamaty tinha desaparecido.

Outro cheiro chegou até ele, flutuando acima deles, vindo daywri. Jack endureceu. Poderia estar na hora de quebrar seu tabu no campo e beber algo forte. Muito forte. Ele poderia brindar às pessoas de origem quir-guiz. Katya estava olhando para ele com um vestígio de sorriso nos lábios. - Você está pronto para conceder a Altamaty uma grande honra e festejar com carne de carneiro, preparada do modo tradicional, como uma grande demonstração de estima por nossos convidados? - Jack engoliu em seco e assentiu com a cabeça. Ela sabia. Deixou de sorrir e olhou seriamente para ele. - E depois subiremos àquela colina atrás de nós. outra coisa que preciso lhe mostrar. Você tinha razão a respeito daquele sogdiano, Jack. Ele levava consigo algo que nunca deveria estar com ele. Algo de va­lor incalculável. Podemos estar simplesmente na mais extraordinária caça ao tesouro que você poderia imaginar.

 

Duas horas depois, Jack e Costas acompanharam Katya na subida de uma ladeira rochosa na extremidade ocidental do lago, acima do caminho que, atravessando uma paisagem cortada por ravinas e sulcos, ia em direção à planície central do Quirguistão. Estava anoitecendo, e o sol estava quase se pondo, mas ia ser uma noite de lua cheia, e o lago estava banhado por um brilho sinistro. Katya achou uma saliência rochosa e se sentou nela, e Jack e Costas se sentaram um de cada lado, olhando para a superfície brilhante do lago. A algumas centenas de metros do norte ou­viu-se o rugido de um motor a diesel, e uma lufada de fumaça se elevou do trator quando Altamaty o ligou para levá-lo de volta à yurt. Sua figura subia e descia sobre a trilha desigual que saía do sítio onde eles tinham es­cavado o túmulo romano. Enormes rochas estavam enterradas no declive até onde a vista alcançava, como um vasto e tosco exército lutando para se livrar da terra.

A mente de Jack voltou para aquele pequeno grupo que, agora eles sabiam, havia passado por esse lugar mais de dois mil anos atrás, homens que nutriam uma fidelidade tão feroz por seu símbolo maior, a águia da legião, que haviam parado para esculpi-la na lápide de um companheiro nesse lugar onde ninguém, a não ser eles a reconheceriam. Ele se lembrou de algo que Pradesh lhe contara sobre a Cachemira, onde sua unidade ha­via lutado contra as tropas paquistanesas pela posse de um platô deserto na montanha. Era a velha sabedoria do soldado, segundo a qual, quando se luta, não se faz isso por uma causa maior, mas por seus companhei­ros, por sua unidade. Jack estreitou os olhos e se perguntou se aqueles legionários teriam visto o que ele estava vendo naquele lugar, se haviam erguido o olhar e sentido a proximidade dos céus, o leve sibilar do ven­to. Durante um momento ele não viu apenas um bando de sobreviven­tes maltrapilhos, mas uma legião completamente formada e em marcha, guerreiros da sombra que haviam estado com eles desde o campo de batalha em Carrhae, mas que ali estavam mais próximos do que nunca, em um lugar onde podia parecer que a vida estava a um pequeno passo dos campos do Elísio.

Costa estendeu uma xícara que trouxera da yurt para Jack, que sacudiu a cabeça firmemente. - Não, obrigado. - Ele podia sentir o cheiro do leite fermentado. Havia evitado uma desgraça no jantar, aceitando para comer os bocados mais escolhidos, umas bolotas insípidas, parecidas com borracha, da cabeça da ovelha, que eram reservadas para o convidado mais honrado. Então Rebecca salvou o dia ao chamá-lo pelo telefone de satélite exatamente quando Altamaty estava servindo o guisado de carne de carneiro e Jack saía, levando seu prato para fora junto com o fone, apa­rentemente ansioso para não perder um momento antes que se empanzinasse. Devolveu o prato com uma pilha convincente de cartilagens do lado, e até havia devolvido esses restos ao caldeirão para que amolecessem um pouco mais, seguindo escrupulosamente o costume, que Katya lhe explicara. Costas olhou inocentemente para ele do outro lado da mesa baixa, pegando o prato de Jack e a concha, mas os olhos de Jack o fuzi­laram. Fora uma saída muito rápida, mas era um arranjo temporário. Como ele tinha claramente passado no teste, inúmeros banquetes deviam vir por aí. Ele tinha a imagem dos olhos dos quirguizes colados nele en­quanto guisados de carne de carneiro nadando em banha eram colocados em seu prato. Consultou o relógio. O helicóptero devia chegar para pegá-los em menos de uma hora. Ele se virou para Katya. - Você tem algo mais para nos dizer, não é?

Katya olhou para a capa do livro que trazia consigo e pigarreou. - Cer­to. O período da história em que esses legionários marchavam por este lugar era a época do maior império que o Ocidente conheceu. Quan­do os legionários deixaram a Itália para ir para o leste, Roma ainda era uma República, logo antes das guerras civis. Mas na época em que eles escaparam dos partas, mais de três décadas depois, Roma era governada por seu primeiro e maior imperador, Augusto. Esses legionários não eram emissários de Roma. Eles podem nem mesmo ter ficado sabendo que Roma era governada por um imperador. Mas involuntariamente, eram uma ponte entre Roma e o maior império do leste, um que começara na China dois séculos antes. Isso foi no tempo de rei Zheng da dinastia Qin, o líder militar que unificou a China e governou de 221 a 210 a.C. Ele foi aquele que a história conheceu como Shihuangdi, o primeiro imperador.

O sujeito dos Guerreiros de Terracota - disse Costas.

Katya aquiesceu com a cabeça. - Os guerreiros foram enterrados com ele, cercando a maior tumba não escavada da história. Para os legionários, a imagem fantasiada daquela tumba pode ter sido até a luz no fim do seu túnel, uma lenda sobre grandes riquezas que não tinham sido saqueadas e que pode tê-los persuadido a ir para o leste quando escaparam dos partas. Logo falarei sobre isso. Jack, o que você sabe acerca do Res Gestae?

Significa "coisas que fiz", - disse Jack. - Era o registro das realizações de Augusto, inscritas em placas de bronze e colocadas por todo o Impé­rio. Listas de conquistas, projetos de edifícios, obras beneficentes, leis, esse tipo de coisa. O registro de um homem que viu a si mesmo primus inter pares, um cidadão que tinha assumido o cargo temporário para res­tabelecer a República. Acima de tudo, era uma celebração de paz, a Pax Romana, a inspiração para a Pax Britannica, que levou homens como meu trisavô a acreditar que seus propósitos eram nobres, que um império be­nigno era verdadeiramente possível.

E agora para Shihuangdi, o primeiro imperador - disse Katya. - Ele também deixou um registro de realizações, inscritas em bronze e pedra e colocadas no alto das montanhas, em lugares que ele visitava para realizar sacrifícios aos poderes cósmicos. Mas é assustadoramente diferente. Em vez de listar os inimigos derrotados, o primeiro imperador celebra a or­dem interna. Ele se orgulha de estabelecer um estado policial totalitário. O império de Augusto, como o Império Britânico, era cosmopolita, com uma tolerância para a diversidade cultural que era peça chave do sistema imperial. Na China era diferente. O império do primeiro imperador foi um império das pessoas chinesas, e ponto final. O mundo externo era pouco conhecido. Augusto era um homem do povo, um perfeito romano. O primeiro imperador era um estranho, um chefe militar que varrera a área central da China da mesma maneira que Genghis Khan faria séculos depois. Mas enquanto Genghis Khan gastava sua energia em conquistas infindáveis mundo afora, o primeiro imperador parou nos limites geográ­ficos da China, enquanto ele ainda estava explodindo com fúria guerreira. Ele deu vazão a essa fúria com uma mania de controle. Realmente, ele não regeu um império. Ele mesmo disse isso. Ele unificou a China. Criou a China. Antes dele, a China era uma terra caótica de estados em guerra. Ele agrupou tudo aquilo, voltou o relógio para o zero.

Plus ça change[3], murmurou Jack.

Katya abriu o livro. - Virtualmente tudo o que conhecemos vem dos Registros do grande historiador, de Sima Qian, escrito cerca de um século de­pois da morte do primeiro imperador. Ele registra advertências, editos, leis incansavelmente emitidos pelo Grande. Ele ajusta regras, fixa padrões para tudo, "as dez mil coisas". Regula as estações e os meses, retifica os dias, torna uniformes os sons e as medidas. Tudo o que existe está sob o domínio de sua mente, sua vontade. Escute isto: "Sua grande regra purifica os costumes do povo, o império inteiro reconhece sua influência; ele cobre o mundo com esplêndidos regulamentos. A posteridade obedecerá às suas leis, seu con­trole constante não conhece fim. A virtude luminosa do Grande Imperador alinha e ordena o universo inteiro. Ele até apagou o conceito de dúvida.

Costas assobiou. - Parece mania de controle de toda mãe.

Katya acenou com a cabeça. - O credo de Augusto era sentir-se bem, o credo de uma idade dourada. O credo do primeiro imperador era o da ordem, da certeza. E com isso veio a negação de qualquer coisa que não pudesse ser controlada, a negação do mundo exterior. Escute isto: "No vigésimo sexto ano de seu governo ele primeiro unificou o mundo; não havia ninguém que não tivesse vindo a ele em submissão". E novamente: "Aonde quer que rastros humanos possam chegar, não ninguém que não seja seu súdito". Essas são mentiras patentes, como qualquer um que tenha estado além das fronteiras saberia. Mas ele tentou resolver isso im­pedindo que qualquer pessoa partisse.

E quanto aos deuses? - Costas perguntou. - Ou esse sujeito também era divino?

Katya pôs o livro de lado e pegou na bolsa um saquinho com um ob­jeto dentro. Era a moeda chinesa que eles tinham achado no túmulo, a de buraco quadrado no centro. - Esta moeda representa dois dos símbolos chineses mais poderosos de poder cosmológico, no qual a Terra é quadra­da e os céus são circulares. A moeda mostra os céus como um conceito delimitado, como algo finito. - Ela colocou o saquinho de volta na bolsa. - Para o habitante da estepe, rodeado por vastos espaços abertos e pelo céu, ou ele fica intimidado ou isso como a definição de seu mundo. O chinês antigo tentou racionalizar os céus, trazê-los para dentro de seu alcance. uma olhada na yurt de Altamaty. A forma de cúpula é uma representação dos céus, como um planetário. Sentado dentro, rodeado pela imensidão da estepe, você pode sentir que atraiu os céus para você e que os controla. É assim que deve ser compreendido o primeiro impe­rador. Suas cidades e seus palácios eram análogos aos céus, e era assim o mundo subterrâneo que ele criou para sua existência eterna.

Fale sobre isso -, disse Costas.

Essa era outra diferença enorme em relação aos romanos. Augusto pode ter sido divinizado depois, mas ele viveu a vida como um mortal. O primeiro imperador não teve necessidade alguma de vida após a mor­te. Ele tinha criado seu próprio céu sobre a terra. Quando ele foi para as montanhas e fez sacrifício aos poderes cósmicos, ele realmente estava sacrificando a si mesmo. Não pôde aguentar reconhecer a própria mor­talidade.

Você está falando sobre o conceito de wu di, não-morte - disse Jack. Katya acenou com a cabeça. - Para muitos chineses antigos, não havia ne­nhum mundo espiritual além do presente. O morto formava uma comu­nidade na Terra, um mundo análogo ao mundo dos vivos. Eles podiam até mesmo se misturar, em lugares onde a Terra e o cosmo estavam próximos, onde ilusão e realidade eram intercambiáveis. Lugares como este, altos, nas montanhas. E para um imperador, wu di era um conceito de controle. Cada um conservava seu papel - soldados, cortesãs, o próprio imperador. Para ele, isso significava poder eterno.

O primeiro imperador não tentou prolongar sua vida efetiva? - per­guntou Costas.

Katya assentiu com a cabeça de maneira esquisita. - Ele enviou ex­pedições para um lugar chamado Penglai, as ilhas dos Imortais, o lugar mítico de habitação do Santificado. Comia em recipientes e utensílios de ouro e jade, tidos como bons para dissipar a decadência física. Empregava feitiços e encantamentos para lutar contra os demônios que ele achava que causavam o envelhecimento. E de acordo com Sima Qian, ele bebeu mercúrio, outra suposta panacéia. Foi isso, provavelmente, que o matou.

E isso nos leva à tumba dele - disse Jack.

Katya folheou o livro até encontrar uma página marcada. - A passagem mais famosa dos Registros do grande historiador. - Ela leu:

 

No nono mês o primeiro imperador foi enterrado no monte Li. Quando o imperador subiu ao trono, ele começou a escavar a terra e a formar o monte Li. Depois, quando unificou o império, ele tinha levado ao local mais de 700 mil homens, originários de toda parte do império. Eles es­cavaram até a terceira camada das fontes subterrâneas e verteram bronze para fazer o caixão. Réplicas de palácios, torres cênicas e centenas de ofi­ciais, bem como utensílios raros e objetos maravilhosos, foram levados para preencher a tumba. Ordenou-se aos artesãos que montassem bestas e flechas, aparelhando-as de modo tal que pudessem atirar imediatamente em qualquer um que tentasse arrombar. Usou-se mercúrio para imitar os cem rios. O rio Amarelo e o Yangtsé, e os mares, foram construídos de tal modo que eles pareciam fluir. Acima havia representações de todos os corpos celestes, abaixo, as feições da terra.

 

Incrível - murmurou Costas. - E todo aquele material ainda está lá?

Katya passou uma fotografia para ele. Ela mostrava um vasto morro coberto de árvores. - Não nenhuma razão para duvidar da descrição de Sima Qian, embora a tumba estivesse cheia e lacrada antes que ele nascesse ela disse. - A descoberta dos Guerreiros de Terracota fora sugere que seu relato da câmara funerária pode não ser exagerada. Cien­tistas chineses usando equipamento de sensoriamento remoto descobri­ram altas concentrações de mercúrio sob o morro.

Então você está dizendo que ele não estava se preparando para a vida após a morte, mas para um tipo de existência paralela.

O primeiro imperador tinha pavimentado o caminho na vida real. planejando seus palácios e templos na capital Xian como imitações dos céus, com o rio Wei como a Via Láctea. Ele alinhou uma ordem política e cosmológica, exatamente como havia proclamado em seus editos. Tam­bém estava mapeando seus palácios nas estrelas, impondo as moradas de um ser supremo no cosmos.

E como ser supremo entenda-se primeiro imperador - disse Costas.

Certo. E agora, a razão pela qual estamos aqui. - Katya apanhou o livro, e leu a passagem seguinte:

Depois que o túmulo estava completo, alguém evidenciou que os artesãos e os profissionais que tinham construído a tumba sabiam quem estava enter­rado ali, e se eles revelassem uma palavra sobre os tesouros seria um assun­to sério. Portanto, depois que os artigos tinham sido colocados na tumba, o portão interno foi fechado e o externo, abaixado, de forma que todos os artesãos e profissionais foram encerrados na tumba, impedidos de sair. Ár­vores e arbustos foram plantados para dar a aparência de uma montanha.

 

Ela fechou o livro e falou baixinho. - O que eu lhes disse até agora está tudo documentado. O que estou para lhes dizer nenhum outro ocidental ouviu, e ninguém na China além de um pequeno grupo de pessoas que inclui minha própria família.

Aqui vamos nós - murmurou Costas, olhando para Katya.

uma lenda antiga -, ela disse, depois fez uma pausa, e Jack podia ver como era difícil para ela a decisão de revelar algo mantido em segredo por gerações de seus antepassados. Katya o olhou nos olhos, e ele acenou com a cabeça. Ela respirou fundo e continuou. - Uma lenda sobre um par de pedras preciosas colocadas juntas na tumba do primeiro imperador junto ao ápice dos céus. Um par de pedras que brilhavam com luz des­lumbrante, uma luz que, o imperador acreditava, asseguraria seu poder imortal. E um mito sobre o guardião da tumba, que teria retirado secreta­mente essas pedras antes que a câmara funerária fosse lacrada. De acordo com aqueles que juraram proteger a tumba, assegurar o reinado eterno do imperador, perseguiram o guardião e seus descendentes implacavel­mente através das eras, mas nunca encontraram as jóias roubadas.

Meu Deus - murmurou Jack. - A inscrição na tumba da selva.

Avançamos dois mil anos - disse Katya. - Estamos, em uma noi­te nebulosa, na Londres vitoriana, no Instituto Real de Serviços Unidos. Era o lugar habitual de encontros, na quinta-feira à noite, xerez e san­duíches seguidos de uma conferência. - Ela pegou um saco de plástico transparente que continha uma folha grande de papel marrom desbotado e passou-a para Jack. Ele olhou para ela por um momento, atordoado. - Raios me partam - ele murmurou. Ele leu em voz alta:

 

Conferência ilustrada no Instituto Real de Serviços Unidos, das 18h30 às 19h30, na quinta-feira, 26 de novembro de 1888. "Antiguidades romanas do sul da índia". Mostra acompanhada por um projetor de imagens cha­mado lanterna mágica e por artefatos. Pelos Capitães J. L. e Howard, R. E., da Escola de Engenharia do Exército, antigamente Grupo de Sapado­res e Mineiros da Rainha em Madras.

 

Jack olhou com ar incrédulo para Katya. - Como você conseguiu isso? Eu sabia sobre a conferência de Howard, mas nunca havia visto um pôs­ter original.

Ele está coberto de notas rabiscadas, em caracteres chineses - disse Costas, examinando de perto. - A lápis, tão apagado que quase não se consegue ler. Como se alguém estivesse tomando notas.

Era um diplomata chinês chamado Wu Che Sianghu, um cazaque mongol - disse Katya. - Ele tinha sido indicado no ano anterior para a embaixada chinesa em Londres e frequentemente comparecia a confe­rências públicas. Tinha um interesse especial pela índia porque o governo chinês o havia enviado para investigar o comércio de ópio que continu­ava florescendo, apesar do opróbrio moral vitoriano. Ele estava particu­larmente preocupado com a expansão do uso de ópio entre as tribos da colina na parte superior do rio Godavari que se seguiu ao final da rebelião Rampa e com a partida das tropas no início de 1881. Sei disso porque os documentos de Wu Che entraram na posse de meu tio.

Seu tio? - perguntou Costas. - O tio cujo coipo nós achamos na selva?

Katya assentiu com a cabeça. - Mas o pôster provavelmente nunca te­ria sido guardado, não fosse por uma coisa que Howard disse naquela conferência, a única coisa que explica como meu tio foi parar na selva e morrer lá. Está escrito naquelas anotações a lápis.

Continue - disse Jack.

Ela tirou o papel do plástico. - Está no final. Aqui diz "esculturas em estilo romano militar, encontradas na selva". E depois "templo da Caver­na?". A primeira nota foi tomada daquilo que Howard disse, e a segunda são conjecturas feitas por Wu Che. Quase todas as esculturas antigas que foram achadas mais tarde no sul da Índia eram de templos ou santuários em cavernas, então essa era uma conjectura razoável.

Incrível - murmurou Jack. - Não nenhum desenho que tenha sobrevivido da conferência, e ela nunca foi publicada. Tenho uma troca de cartas com o editor do diário da instituição pedindo a Howard uma cópia datilografada. O pôster tinha sido feito em coautoria com Robert Wauchope, que havia sido enviado de volta para a Agência Central de Mapeamento e Levantamento Topográfico da Índia. Howard reivindicou que os dois precisariam colaborar para produzir uma versão bem acaba­da, mas isso nunca aconteceu. Houve uma troca de editor alguns anos mais tarde, e o assunto foi deixado de lado. Sempre me pareceu estranho Howard não ter publicado. A coleção de moedas romanas da Índia era sua paixão. Mas o que você disse poderia esclarecer isso. Alguma coisa o estava impedindo.

Algo que ele disse na conferência e que não deveria ter dito? - Cos­tas sugeriu.

Eis o que sei - disse Katya. - No final desta folha, Wu Che escre­ve: "Falei reservadamente depois da conferência com o capitão Howard, não obtive mais nenhuma informação". Entretanto, penso que ele tentou contatar Howard novamente.

De repente, a mente de Jack estava disparando. - Sabia que isso me dizia alguma coisa. Ele realmente tentou novamente. Está em outra carta nos documentos de Howard, na arca no Seaquest II. Ela data de um par de anos mais tarde, de 1891. Alguém da embaixada chinesa em Londres escreveu a Howard sobre a rebelião Rampa. É por isso que me lembro dela. Tenho certeza de que era o mesmo nome chinês, Wu Che Sianghu. O teor da carta era sobre ópio. Ele soube que Howard tinha sido um dos oficiais britânicos que prestaram serviços durante longo período em Rampa. Ele queria saber se Howard conhecia algum contexto ritual no qual o ópio podia ser usado pelos habitantes da selva em cerimônias, cavernas, templos.

Ele estava procurando mais detalhes sobre aquele santuário - suge­riu Costas.

Wu Che deve ter feito alguma pesquisa depois da conferência, de alguma forma fora do habitual, porque trabalhou no local onde Howard ficou durante o tempo que passou na índia com os Sapadores de Madras. Detalhes sobre a organização e preparação de oficiais para combate eram publicados na Lista do Exército anual. Então, ele teria visto a organização e preparação de oficiais para combate que Howard fizera em Rampa em 1879 e 1880. Rampa estava perto da área de influência romana no sul da Índia, que no entanto quase não era explorada por europeus, com cente­nas de milhas quadradas de selva nem nenhuma inspeção. Era exatamen­te o tipo de lugar onde os soldados em patrulha poderiam ter se deparado com um santuário antigo. Os oficiais da Engenharia Real e os oficiais não comissionados dos Sapadores de Madras eram as únicas pessoas do exér­cito britânico em contato com o Campo Força de Rampa, e é possível que Howard fosse o único veterano da Inglaterra na hora da conferên­cia. Wu Che podia ter contado com aquilo também. Ele podia ter achado que Howard estivesse ansioso para responder a qualquer questão sobre a campanha. Mas a carta enviada por Wu Che tem anotações no alto com a letra de Howard. Não respondida. Era obviamente uma decisão firme de Howard, mas talvez fosse um engano. O fato de não ter respondido nada pode ter alertado Wu Che.

Pensei que Howard tivesse ficado calado a respeito da rebelião por timidez - disse Costas. - Algo que você acha que aconteceu para ele na­quele local. Algum trauma.

Mas Wu Che não poderia saber sobre isso - disse Jack. - Ele teria assumido que a falta de resposta se devia ao fato de Howard não se dispor a falar sobre algo que encontrara.

Howard pode ter lamentado seu deslize durante a conferência, ao mencionar a escultura, e estava determinado a não cometer o erro no­vamente - disse Katya. - Quando a carta chegou, ele teria se lembrado de Wu Che, com quem falara depois da conferência, e isso pode ter feito soar seu próprio alarme também. Ele poderia ter se lembrado do pacto que Jack pensa que ele e Wauchope fizeram depois de deixar o santuário. Talvez tenha sido por isso que ele decidiu não prosseguir com a publica­ção do documento.

Costas parecia confuso. - O que excita e leva um diplomata chinês em 1888 a se interessar por relatórios sobre escultura romana num santuário na selva, no sul da Índia? O que isso tem a ver com o ópio?

Katya fez uma pausa. - Foi por isso que eu quis lhes falar sobre o pri­meiro imperador. uma conexão. É bem surpreendente. E vocês são os primeiros estranhos a ouvir isto. - Ela respirou profundamente. - Quando o primeiro imperador estava planejando sua vida após a morte, ele confiou a santidade da sua tumba a sua guarda mais confiável, a homens de seu clã que haviam cavalgado com ele para a China, partindo da pátria de Qin nas estepes do Norte. Eles eram mongóis, cavaleiros nômades ferozes, esco­lhidos entre aqueles que iriam um dia produzir Genghis Khan e o exército mais aterrador que o mundo conhecera. Os homens da guarda do impe­rador usavam peles de tigre por cima de sua armadura e brandiam grandes espadas. Eles chamavam a si mesmos de guerreiros tigre.

Jack olhou para Katya. - Continue.

Havia doze deles, os que formavam sua guarda mais próxima - Ka­tya continuou. - Seis era o número sagrado do primeiro imperador, e qualquer múltiplo desse número tinha um poder especial. Até mesmo durante a vida do imperador os guerreiros eram secretos, e eles se re­velavam aos inimigos do imperador, àqueles que eram enviados para aba­ter, que nunca viveriam para contar o que viram. Com o tempo, um deles se tornou o assassino, o guarda mais próximo do imperador, e somente ele era conhecido como guerreiro tigre. Em seu leito de morte, o impe­rador confiou aos doze o anel externo de defesa de sua tumba. O sanctum interno foi confiado a uma família hereditária de guardiões que viveram dentro dos limites da tumba. Os guerreiros tigre juraram infiltrar-se na sociedade de Xian nas gerações vindouras, como cortesãos, funcionários, oficiais do exército, um poder invisível sempre pronto para agarrar sua presa. Foi-lhes prometida a imortalidade através de reencarnações infi­nitas, a eterna vanguarda terrestre do exército de guerreiros de terracota que foram enterrados ao redor da tumba do imperador. Durante mais de dois mil anos os guerreiros tigres mantiveram a tumba inviolada, prote­gida dos ladrões de túmulos, de imperadores posteriores, de arqueólogos. Inviolada, com uma exceção.

Algo foi levado - murmurou Jack.

Katya assentiu com a cabeça. - De todos os tesouros maravilhosos da tumba, somente o guardião e os doze sabiam o que havia no ápice dos céus, diretamente em cima da própria tumba. Sima Qian, autor dos Regis­tros do grande historiador, não sabia nada disso.

Um par de pedras preciosas - murmurou Jack. - Pedras que intera­giam para produzir uma luz como a de uma estrela nos céus. Uma joia dupla. Ajoia de imortalidade.

Katya o fitou, fazendo que sim com a cabeça, depois disse baixinho: - No último ato do ritual fúnebre, somente o guardião ficou na tumba, passando da câmara central para a entrada, antes de selar a abóbada por toda a eternidade. Algo fez com que os guerreiros suspeitassem que ele estava roubando o maior tesouro, e suas suspeitas se fortaleceram pelo fato de o guardião ter vivido até uma idade muito avançada, bem mais de cem anos. Isso não era incomum na estepe dos mongóis, mas foi o bastante para convencê-los de que ele tinha levado algo que prolongava a vida, um tesouro que deveria ter sido deixado na tumba justamente para libertá-los de sua servidão e permitir que o imperador se levantasse nova­mente. Eles nunca viram o guardião morrer. Ele voltou para as estepes do norte, entregando a função de zelador a seu filho, uma tradição que con­tinuou. Entretanto, depois de cinco gerações, o próprio filho do guardião desapareceu. Ele não voltou às estepes mas foi para o Ocidente, além do limite do império, desviou-se do rumo certo, indo para um lugar aonde não deveria ir. Os doze decidiram agir. O guerreiro tigre foi solto.

Deixe-me adivinhar - murmurou Jack. - Isso foi no século 18 a.C., talvez um pouco mais cedo?

Katya o fitou novamente e continuou. - O filho do guardião se disfar­çou como um comerciante de Sogdian e se uniu a uma caravana na Rota da Seda, depois a outra. O guerreiro tigre e seu companheiro de crime o perseguiram pelo deserto de Taklamakan, em direção às montanhas de Tien Shan, até aqui em cima no lago Issyk-Gul, nos desfiladeiros e nas passagens longínquas. Eles o tinham ao seu alcance, entretanto algo se interpôs no caminho.

Um bando de legionários romanos renegados - murmurou Jack.

Na tradição oral secreta deles, os doze homens que formavam a guarda se lembravam deles como kauvanas, uma palavra chinesa antiga para designar os ocidentais - disse Katya. - Mas meu tio estava convenci­do de quem eles eram.

Eu estava querendo saber quando seu tio ia entrar nesta história - disse Costas.

Essa foi a história que ele compôs. Ajusta-se com seu enredo, Jack. Os romanos atacam a caravana e agarram o sogdiano disfarçado. Eles o mantêm vivo, como guia. Os guerreiros percebem que os romanos es­tão com ele e atacam, mas são repelidos por um inimigo mais forte que qualquer outro encontrado. Um deles é eliminado nos desfiladeiros, e um dos romanos também. Essa é a sepultura que nós encontramos perto do lago. Então, resta somente uma dúzia de romanos sobreviventes. Os guerreiros os perseguem até este lugar, então veem que os sobreviventes estão embarcando no lago e remando para o leste. Eles encontram o cor­po do sogdiano, mas o tesouro desapareceu. Seguem o barco ao longo da costa, até que ele desaparece numa tempestade perto do final do lago. Mas eles percebem que os romanos no barco estavam em menor número do que deveriam estar. Está faltando um. Voltam para a extremidade oci­dental do lago, onde encontraram o sogdiano assassinado. Localizam o romano perdido e seguem o sangue que goteja da arma que o homem usou. Eles o vislumbram no alto, nas passagens das montanhas para o sul. Eles o perseguem implacavelmente, durante semanas, meses, algu­mas vezes chegando perto, outras vezes perdendo-o. Eles o seguem pelos vales do Afeganistão, pela Passagem de Khyber dentro da índia, descem o Ganges para a baía de Bengala. Então, nas selvas do sul, eles o perdem de vez. Eles sabem que ele está em algum lugar por ali, mas é como se a selva o tivesse absorvido. Mas os chineses não se rendem. Eles se infiltram na colônia romana de comércio em Arikamedu, fingindo que são comerciantes de seda. Durante gerações permanecem observando, esperando. Mas então os romanos partem, e com o aparecimento dos árabes termina o comércio por mar com o Ocidente. Os chineses retornam para casa, e a história de sua busca entra no domínio da lenda, parte da mitologia de uma sociedade secreta obscura que parece desaparecer da história viva.

- E agora nós sabemos os nomes deles, dos romanos - disse Jack. - Da inscrição da tumba na selva. Fabius, líder do grupo que foi para o leste pelo lago. E o melhor amigo dele Licinius, aquele que escapou para o sul. E nós sabemos que eles estavam com o tesouro. Fabius ficou com uma joia, a olivina. Licinius com a outra, sappheiros, o lápis-lazúli. Eles devem ter se separado sem saber o que tinham compartilhado entre si, o valor das jóias juntas. O chinês pode ter pensado que Licinius tinha levado ambas as partes da joia e fugido dos camaradas, conhecendo o poder do que ele tinha roubado, algo que poderia torná-lo um imperador em seu pró­prio mundo.

O tio de Katya pode também ter lido aquela inscrição, antes de ser assassinado - disse Costas. - E aqueles que o assassinaram também po­dem ter descoberto.

Então, o que aconteceu ao guerreiro tigre e aos doze? - Jack perguntou.

Katya fez uma pausa. - Sua promessa de proteger a tumba, recuperar o tesouro perdido, permaneceu forte, passando por todas as vicissitudes da história chinesa, por todos os imperadores e dinastias que poderiam ter pilhado os monumentos de seus antepassados. Os guerreiros cultivaram o culto do primeiro imperador, a mística que ainda cerca seu nome até hoje em dia. Wu Che, o diplomata chinês que foi para a conferência de Howard, era um deles. Era um historiador perspicaz e escreveu a história que acabei de lhes contar, a tradição oral narrada detalhadamente em suas reuniões secretas. E então parecia que sua busca poderia ser retomada. Pela segunda metade do século 19, os estudantes europeus estavam len­do o Périplo do mar da Eritreia, então recentemente traduzido, e estavam começando a compreender a verdade sobre o envolvimento mercantil romano no sul da Índia. Wu Che mantinha-se atento à opinião pública e aos acontecimentos, buscando qualquer coisa incomum, qualquer coisa nas descobertas arqueológicas que pudesse sugerir um romano legionário dissidente. Quando Howard mencionou o santuário na selva com a escultura romana, uma luz surgiu.

E é por isso realmente que você está aqui, perto do lago Issyk-Gul - disse Jack baixinho. - Não era para registrar mais petróglifos e encon­trar inscrições na Rota da Seda. Você queria achar aquele romano. Você também está nessa pista. Você e seu tio fazem parte de tudo isso.

Costa olhou para Katya. - E então? Seu tio era um dos doze, não era?

Katya fez outra pausa. - Meu tio e meu pai souberam da história, ela foi passada para eles. Meu pai herdou os documentos da família, mas se interessou pouco pela mitologia da fraternidade. Para ele a joia estava per­dida para sempre, se é que existira. Ele estava no mercado negro de antiguidades e atrás de prêmios mais fáceis. Foi meu tio que encorajou meu interesse por idiomas antigos e arqueologia. Dois anos atrás, enquanto es­távamos no mar Negro, depois da morte de meu pai, meu tio se deparou com essas notas escritas por Wu Che, enquanto olhava apressadamente os documentos de meu pai no Cazaquistão, antes que a Interpol chegasse. Meu tio tinha feito a conexão entre a lenda do guerreiro tigre e os le­gionários perdidos de Crasso. Ele continuou de onde Wu Che parou. Ele foi para o escritório da Índia em Londres, a fim de pesquisar nos arquivos dos Procedimentos Militares em Madras para tentar localizar onde Howard estava durante a rebelião Rampa.

Os mesmos registros que estudei - Jack exclamou.

Katya assentiu com a cabeça. - Vocês estavam ambos na mesma pista. Em um dicionário geográfico de distrito ele encontrou a menção de um santuário, em Rama. Essa era a prova concludente. E foi que você o encontrou. O corpo dele.

Você contou para Katya sua teoria sobre aquele nome, Jack? - per­guntou Costas. Katya respondeu primeiro. - Meu tio poderia ter es­tado lá. Rama parecia ser uma palavra muito semelhante a Romano. Ele mencionou isso, mas nós não quisemos falar sobre o assunto até estarmos em terreno mais firme. A semelhança parecia muito óbvia.

Nada é muito óbvio neste jogo - murmurou Jack, examinando Ka­tya. - alguma outra coisa que você tenha deixado de nos contar?"

Meu tio estava sendo reservado, mas por uma boa razão. Ele sabia que, uma vez que havia se tomado alvo, o mesmo aconteceria com todos os seus parentes próximos. Sempre foi assim. Se um dos doze se desvias­se, seu clã inteiro pagaria o preço. Essa era a maneira como o primeiro imperador satisfazia sua versão de justiça. E como ninguém foi poupado na família de meu tio, esse clã significa eu.

Muito bem, Katya - disse Costas. - Entendi, você está falando da­queles sujeitos com as tatuagens, cujos restos nós achamos perto do santuário.

Jack me contou - disse Katya baixinho. - Quantos deles se encon­travam lá?

Nós contamos seis corpos. Aparentemente, o sétimo tinha desapa­recido na selva, chegando de helicóptero. Eram todos chineses e usavam camisas com o logotipo de uma empresa de mineração, INTACON. Fo­ram feitas licitações para a realização de mineração de superfície nas coli­nas de Rampa em busca de bauxita, e os nativos de Kóya são usados para procurar exploradores. Tudo isso é feito para dirigi-los, mais adiante, para as mãos dos terroristas maoístas, que usam a selva como esconderijo. Os maoístas atacam os grupos de mineração ocasionalmente porque isso for­talece seu apoio entre os tribais, e como resultado a polícia faz que não percebe quando os grupos de mineração entram armados até os dentes. O que nós vimos no santuário sugere que os chineses entraram na ca­verna, encontraram e assassinaram seu tio, depois foram emboscados do lado de fora. Seus corpos tinham sido parcialmente esfolados e mutilados pelos maoístas, e nós vimos a pele. Todos eles tinham a mesma tatuagem preta na parte superior do braço esquerdo.

Katya fez um esboço em seu caderno de anotações. - Como isto?

Costa acenou com a cabeça. - Exatamente assim. Como uma cabeça de tigre.

Os guerreiros tigres? - perguntou Jack.

Katya sacudiu a cabeça. - Somente um dos doze é chamado assim. É ele que faz o trabalho sujo, em geral é o mais novo deles, como um rito de iniciação. Os outros chamam a si mesmos de fraternidade. E os chine­ses que vocês viram eram meros soldados a pé, membros de clãs menores ligados por nascimento para servir à fraternidade.

Nós encontramos três maoístas, e um deles não estava completa­mente morto. - Costas apontou para a bandagem em seu ombro. - Eu deveria estar de férias, e não cuidando de um ferimento de tiro. Você pre­cisa esclarecer tudo nesta coisa, Katya.

seis corpos - ela disse. - Então, um escapou?

Aparentemente, ele retornou pela selva para o banco do rio onde o helicóptero tinha pousado. O Kóya com quem falamos não conseguiu distingui-lo do outro chinês. Mas eles disseram que o homem carregava um rifle com mira telescópica numa capa de couro velha, uma arma incomum para a selva.

Não é nada estranho - murmurou Katya. - Não para ele.

-Você conhece esse sujeito?

Katya olhou intensamente para Jack. - Você acha que ele viu o que você viu? O que estava no santuário? As esculturas, a inscrição?

É possível - Jack respondeu baixinho. - E seu tio podia ter lhes fala­do. É possível, ele foi torturado.

É certeza, você quer dizer - disse Katya.

Quando Licinius esculpiu aquela inscrição em sua tumba, ele pro­vavelmente estava vivendo num mundo sombrio, seu. A jóia tinha se tornado uma parte da imagem da devoção que ele sentia por Fabius, o su­jeito que ele quase divinizara naquela escultura da cena de batalha. Se ele estava, conscientemente ou não, deixando pistas para algum futuro caça­dor de tesouro, escolheu usar aquela palavra, sappheiros, para lápis-lazúli. Para alguém que estivesse na pista isso teria um significado imediato.

Será que esse sujeito está em algum lugar por aqui agora? - Costas olhou atentamente para o cume sombrio do lado oeste, onde o sol quàse havia se posto. - O sétimo, aquele que sobreviveu aos maoístas? Será que estamos sob a mira de alguém?

Katya franziu os lábios. - AINTACON tem concessões para explora­ção de minas no Quirguistão, nas montanhas de Tien Shan. - Ela apon­tou ao longe para os cumes nevados. - Esses homens cujos corpos vocês encontraram eram empregados da companhia, mas todos têm conexões de clã com a fraternidade. A INTACON tem uma frota de jatos privados, e ele poderia ter voado facilmente para ontem. Eles têm helicópteros e cavalos muito fortes que usam para expedições de prospecção, uma raça famosa originária da Mongólia. Se ele estiver aqui, está nos observando agora. Eles precisam ver o que encontrei, e aonde nós vamos em seguida. A matança vem depois.

Formidável - disse Costas. - Isso é verdadeiramente formidável. En­tão estamos lidando com uma companhia de mineração? Esta é a face moderna daqueles guerreiros?

É a operação mais lucrativa da INTACON. - Ela se voltou para Jack. - Quanto tempo nós temos?

Um helicóptero Apache do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos deve chegar aqui em trinta minutos. - Ele conferiu o relógio. - O Embraer deve ser abastecido e esperar na pista em Bishkek. O equipa­mento de que precisamos está acondicionado.

Certo. - Katya olhou para Costa. - Sobre aqueles cavalos que men­cionei pouco, trata-se de cavalos divinos da mitologia chinesa, que transpiram sangue. De acordo com a lenda, quem os monta nunca irá falhar na batalha. Os cavalos eram altamente apreciados pelo primeiro imperador, e ajudou a convencer seus súditos de sua invencibilidade.

Transpirar sangue? - perguntou Costas sem acreditar.

Eles são chamados de akhal-teke, e são incrivelmente raros, uma das raças mais puras que sobreviveram à Antiguidade. Eles são renomados por sua velocidade e força. Dizem que o aparecimento da transpiração de sangue é causado por uma doença parasitária endêmica na raça, mas ninguém tem certeza.

Você viu um? - Costas perguntou.

Katya lhe lançou um olhar desdenhoso. - Sou filha de um líder mi­litar do Cazaquistão, lembra? Meu pai me ensinou a montar quando eu era menina. O akhal-teke vivia em alguns vales isolados no Cazaquistão, Turquemenistão, Afeganistão, criado em segredo por famílias que man­tiveram a pureza da raça. O criador de cavalos de meu pai disse que essa linhagem remontava ao tempo do primeiro imperador, que enviou emis­sários para os vales para manter uma vigilância eterna sobre os criadores, a fim de assegurar que os cavalos divinos estivessem esperando por sua guarda quando mais uma vez ele entrasse no mundo mortal. Hoje em dia na China uma certa excitação acerca da raça, um símbolo de unidade nacional e força de antes da era comunista.

Então seu mestre de equitação lhe transmitiu alguma outra sabedo­ria? - perguntou Costas.

Ele disse que aqueles que têm sangue de tigre nas veias podem sentir o akhal-teke, e que os cavalos o sentem também. Ele disse que quando os guerreiros se preparam para a batalha eles sobem até aqui, além das mon­tanhas de Tien Shan para Issyk-Gul, e os chamam com seus tambores de guerra. Os akhal-teke chegam galopando pelas passagens das montanhas e ao longo das praias do lago, espumando, suando e borrifando o ar com uma névoa de sangue.

Isso está ficando melhor a cada segundo - disse Costas. - Isso tam­bém está em seus genes?

Katya olhou de maneira pensativa para o lago. - Sinto coisas aqui em cima. Talvez seja por causa do ar rarefeito. Eu nunca durmo bem, e é que o mundo do sonho e da realidade se entrelaçam. Tenho acordado achando que a batida de meu coração é o chão trepidando com o bater dos cascos e o estrondo dos tambores. Como se os guerreiros estivessem vindo atrás de mim, também.

Não mande todos os Genghis Khan sobre nós, Katya.

Ela lhe deu um sorriso cansado, depois olhou novamente para o lago. - Deitada meio desperta à noite, tenho visto imagens de meu pai nova­mente, de quando eu era menina e ele ainda era professor de história da arte em Bishkek. Eu quase não pensava nele desde que deixei o mar Ne­gro quase dois anos atrás. Minha mente o havia excluído.

Jack olhou para Katya, pensando nas emoções complexas que ela havia sentido desde a morte do pai: mágoa, libertação, fúria com o pai, com ele, consigo mesma. A melhor coisa que ele tinha a fazer era não dizer nada, deixar que o processo seguisse seu curso. Costas percebeu a reticência de Jack e olhou para Katya. - Seu pai, aquilo em que ele se transformou, es­tava montado num submarino russo afundado cheio de mísseis intercon­tinentais balísticos - disse. - Ele deve ter vendido alguns para a Al-Qaeda, e isso apenas para começar. Muitas pessoas inocentes estão vivas hoje por causa do que nós fizemos. - Ele se levantou, se estirou, limpou a poeira na parte de trás de seus shorts e virou-se para um buraco na colina atrás deles. - Está na hora de desaparecer atrás de algumas rochas. - Lançou a Jack um olhar divertido. - Deve ser toda aquela banha de ovelha.

Tenha cuidado. - Katya acenou para ele e se voltou. Jack viu que Altamaty tinha parado o trator ao lado da yurt, e a fumaça do fogo que usara para cozinhar havia desaparecido. Duas mochilas estavam empilhadas fora da barraca. - Parece que faz muito tempo desde que sentamos juntos na praia do mar Negro -, ele disse baixinho. Katya fez que sim com a cabeça, mas não disse nada. Jack ficou calado por um momento, depois apontou para a yurt. - Ainda tem certeza de que quer vir conosco?

Ela fez que sim com a cabeça. - Altamaty também. Ele respeita sua experiência militar, mas diz que o Afeganistão é uma história diferente. Esteve neste vale para onde vamos como recruta da marinha durante a guerra soviética nos anos 1980. Atiraram em seu helicóptero, que caiu, e ele foi o único sobrevivente. Lutou em vários ataques, mas ficou sem munição. Os mujahideens o pouparam porque ele era quirguiz. Viveu com eles nas montanhas durante mais de um ano.

Jack balançou a cabeça. - Bom. Outra pessoa está vindo conosco, um sujeito chamado Pradesh. Ele está encarregado das escavações subaquá­ticas em Arikamedu e voou conosco até Bishkek. É capitão do Corpo de Engenheiros do exército indiano, com experiência de combate na Cachemira. Também é perito em tecnologia de mineração antiga. Esteve conos­co na selva. Eu realmente quero que as atividades do IMU se expandam aqui. Se Altamaty está falando sério sobre assumir a pesquisa subaquática na extremidade oriental do lago, ele e Pradesh poderiam ser exatamen­te as pessoas de que precisamos para conseguir que as coisas andem por aqui. Pradesh fala russo. Gostaria de ver como eles vão se dar.

Houve uma agitação nas pedras atrás deles. - Ei, rapazes - gritou Cos­tas. - Venham ver isto aqui.

Jack se levantou e girou o corpo. - Você realmente quer...?

- evite o rego à sua esquerda. Estou um pouco mais adiante.

Katya se levantou, e cada um deles escolheu um caminho por cima das pedras para ir até onde Costas estava. Jack levava consigo sua tocha compacta de mergulho, e a movimentava na escuridão. Viu Costas incli­nado sobre uma fenda na pedra, e eles desceram por um pequeno declive rochoso até onde ele estava. Era um buraco na encosta da colina, com o lago mal aparecendo ao norte, os cumes do desfiladeiro atrás deles a oeste e os picos nevados do Tien Shan ao sul.

Bem? disse Jack, parando cuidadosamente ao lado de Costas.

Eu estava voltando, depois de lavar minhas mãos no córrego, e vi isto - disse Costas. Ele apontou para duas pedras denteadas enterradas na encosta do cume, e havia uma fenda entre elas. - algo de metal en­fiado ali. Provavelmente é algo moderno, mas estou com espadas antigas girando na cabeça depois de ver aquela alabarda chinesa.

Katya se agachou ao lado dele, e Jack direcionou a tocha. Havia um pedaço de metal enterrado na fenda, exatamente como se fosse uma lâmi­na quebrada. Katya tocou no objeto e depois o agarrou e puxou, mas ele não se moveu.

Olhe para essa matéria-prima prateada em meus dedos. Isso é cromo - ela disse muito excitada. - O metal embaixo está oxidado, mas outrora era aço, de alta qualidade, forjado a mão. Os chineses chapearam suas melhores lâminas com cromo para impedir que se enferrujassem. Esta é uma lâmina de espada chinesa antiga. Um achado fantástico, Costas.

me uma tigela de banha de ovelha e depois me mande sair pe­las colinas - murmurou Costas. Ele examinou de perto. - a impressão de que alguém a empurrou para dentro da pedra, para depois rompê-la. Talvez eles precisassem de uma lâmina mais curta.

Jack estava concentrado, pensando. - Alguma idéia sobre o tipo de es­pada?

Katya passou os dedos ao longo da lâmina. - Sei exatamente de que tipo ela é - respondeu baixinho. - Uma espada longa e reta usada em cavalaria, um tipo de espada apreciada pelos mongóis. Um tipo que é realmente praticável se a pessoa estiver a cavalo. Assim, se ela estivesse a e desesperada por uma arma, poderia querer quebrá-la para torná-la uma espada mais útil e confiável.

Jack respirou fundo. Lembrou-se da tumba na selva. O guerreiro na escultura, o adversário dos romanos na cena de batalha. O guerreiro com o ornato de cabeça em forma tigre. Ele se voltou para Katya. - Você não está se referindo a uma espada acoplada a uma luva de punho largo e comprido, está? Uma pata?

Ela acenou com a cabeça. - Cresci vendo imagens de espadas como esta à minha volta. A luva com a forma de tigre, dourada, estava sempre brilhando. É o que está faltando aqui. Por isso fiquei tão atordoada quan­do você me disse que tinha uma. Eu sabia que sua pata devia ser a espada de um guerreiro tigre, mas eu não podia estar segura da conexão. Bem, aqui está ela, diante de nós. Tenho certeza disso. A luva desta lâmina é aquela que John Howard encontrou dentro daquele santuário na selva.

Raios me partam - disse Jack.

Katya tocou a lâmina novamente e expirou lentamente. - Então a len­da é verdadeira - ela sussurrou.

O que é? - perguntou Costas.

Outra parte da lenda. - Ela olhou para cima e ao redor. Jack sen­tia sua apreensão. - Nós devíamos sair daqui. - Ela apanhou uma pedra plana e colocou em cima da fenda entre as pedras, escondendo a lâmina. Katia os conduziu de volta ao alto da colina até a borda onde eles estavam sentados, onde ela deixara o livro. - A lenda daqueles que foram enviados para destruir o guardião da tumba, o que havia transgredido - ela disse. - Aquele que seguiu sua presa implacavelmente, passando por montanhas e através da selva, cujos sucessores mantiveram a vigilância durante sécu­los, buscando aquilo que havia sido retirado da tumba de seu imperador. O guerreiro tigre.

E a espada? - Jack perguntou.

A espada pata original dos guerreiros tigres foi arrebatada na batalha pelos Raumanas, os romanos. A lenda conta que quando ela for recupera­da, o guerreiro tigre aparecerá mais uma vez e derrotará tudo, encontrará o que ele vem buscando.

Antes que você pergunte, ela está segura, trancada em minha cabine no Seaquest II - disse Jack.

Posso sentir novamente agora - Katya murmurou. - O que você me disse uma vez, Jack, sobre entrar no passado, vendo-o com o olho da mente. Senti isso quando estava fazendo buscas entre essas rochas com Altamaty, olhando para essas esculturas de pedra feitas por meus antepassados. Mas tocar naquela lâmina me provocou outra coisa. Fi­quei revigorada.

- E que fico amedrontado - murmurou Costas.

Jack se voltou para o lago. A luz das estrelas refletia em sua superfí­cie, como fosforescências deixadas pela esteira de um barco, um rastro fantasmagórico do passado. Sentiu de novo um formigamento na pele. Uma vez, um caçador Innu no Ártico tinha lhe contado que o formi­gamento na pele é o vento divino, um vento de velocidade estupenda que você quase não sente porque o ar nas alturas é muito rarefeito. Outro tinha rido, dizendo que era apenas frio. Jack pensava com frequência nisso quando estava em montanhas altas. Talvez fosse apenas vertigem, privação de oxigênio. Dessa vez era um sentimento intranquilo, algo que levantava o cabelo na nuca. Olhou para as montanhas ao sul, uma parede proibida de pedra e neve. Era para que Licinius devia ter ido. Ele sentia o romano cambaleando para longe desse desfiladeiro, enquanto olhava seus companheiros desaparecendo no lago em direção ao leste, depois se voltando para as montanhas, correndo bastante, cada tendão de seu corpo esticando-se ao máximo. Jack se virou e voltou para o cume escuro atrás deles, olhando atentamente. Uma vibração distante transformou-se num rugido, e as luzes de aterrissagem de um helicóptero passaram acima de­les e se dirigiram para o contorno da costa.

Katya se levantou. Virou-se para Costas e lhe lançou um olhar de aço. - Está na hora de ir. E descobrir sobre a fraternidade do tigre. A versão moderna.

 

- Aqui é o piloto falando. Estamos entrando em espaço aéreo afegão agora.

Jack trocou de posição e se estirou, depois apertou o controle para le­var o assento de volta à posição vertical. Ele estava na cabine dianteira do jato Embraer do IMU e tinha passado as últimas três horas dormindo de maneira intermitente, duas horas e meia delas no asfalto do aeroporto de Bishkek no Quirguistão, esperando condição de tempo mais favorável para partir. O voo para Faizabad, no nordeste do Afeganistão, levava uma hora e meia, o capitão queria chegar ao amanhecer e voltar a Bishkek assim que eles tivessem desembarcado. Um aeroporto no Afeganistão não era um lugar onde se demorar, até mesmo num aeroporto sob o controle nominal da Força Internacional de Assistência à Segurança, mas o Em­braer seria abastecido de combustível para retornar de Bishkek e apanhá- los assim que fosse chamado.

Jack tinha, apertado na mão, um esboço da inscrição que havia na tumba da selva. Ele abaixou o olhar e viu a palavra latina Sappheiros. Na Antiguidade, ela significava lápis-lazúli e isso podia se referir ao lápis-lazúli retirado da mina no proibido vale do Corão, situado no alto das montanhas do Indo Kush no Afeganistão. Uma das partes da história do rastro do tesouro tinha apontado para o lago Issyk-Gul no Quirguistão, em direção à praia oriental, para o lugar onde Jack tinha começado a pen­sar que um barco podia ter naufragado numa tempestade dois mil anos atrás. A outra parte da história conduzia às profundezas do coração do Afeganistão, a rota deles agora.

Jack olhou novamente para as palavras da inscrição. Hic iacet Licinius optio XV Apollinaris. Sacra iulium sacularia in sappheiros nielo minium. Altra Fabiafrater ad Pontus ad aelia acundus. (Aqui jaz Licinius, suboficial da Dé­cima Quinta Legião de Apollinário. Guardião da joia celestial nas minas escuras de sappheiros. A outra está com Fabius, irmão, do outro lado do lago na direção do sol nascente.) Então, Licinius não tinha levado a jóia com ele para o sul, para dentro da selva. O vélpu, o tubo sagrado de bam­bu do Kóya, a proteção subtraída por Howard e Wauchope do muttadar, pode ter sido santificado por sua associação com os Raumanas, com aque­le que fora para a selva e morrera no santuário. Mas o tubo de bambu continha um tesouro fantasma. O tesouro real tinha sido escondido em algum lugar ali, nas terras selvagens do Afeganistão, durante a fuga de Licinius do lago em direção ao sul. Estava em algum lugar nas minas de lápis-lazúli, onde os veios de um azul precioso tinham sido trabalhados desde o tempo dos faraós egípcios.

Jack se lembrou daquilo em que ele estava pensando enquanto co­chilava. O vale com as minas estava em uma rota para a Índia, ao sul do lago Issyk-Gul, no rumo da comunidade de comerciantes romanos, a meio mundo de distância do local de destino de Licinius. Ele podia ter adivinhado que os guerreiros que o perseguiam estavam atrás do que ele tinha tirado do sogdiano. Podia ter visto as queixas acumuladas contra ele e decidiu esconder a jóia. Podia ter sabido o valor daquilo que ele tirara. Talvez o sogdiano tivesse falado sobre isso com ele, sobre o poder da joia quando ela fosse reunida com a outra, a que fora levada por Fabius através do lago. Talvez o sogdiano tivesse falado por desespero, esperando que sua vida fosse poupada. Ou talvez tivesse advertido o romano, contando-lhe algo que fez Licinius querer se livrar do tesouro. Talvez tivesse dito que ele seria procurado implacavelmente e que as minas eram o único lugar onde a jóia poderia ser escondida de maneira segura, onde o poder do cristal seria absorvido pela rocha, na sua fonte. lá, talvez, não fosse atrair mais aqueles que viriam atrás dele, que o caçariam como um tigre, como se tivessem algum sexto sentido para isso.

Jack saiu para o corredor, calçou as botas e caminhou em direção à par­te dianteira do avião, entrando na cabine principal, onde várias cortinas das janelas estavam abertas do lado do porto. O piloto tinha efetuado uma rota em sentido anti-horário em cima do Tajiquistão, para aproximar-se de Faizabad pelo oeste, e Jack podia ver os fracos vislumbres da aurora em cima das montanhas do Pamir e o solo improdutivo do deserto de Taklamakan além. Ele se inclinou sobre os assentos e olhou para a aterradora paisagem de montanhas abaixo. Era um lugar onde os obstáculos para a existência humana pareciam insuperáveis, contudo, para aqueles que haviam suportado essa condição, a recompensa era viver a meio cami­nho do céu. Jack empertigou para dar passagem para os outros. Altamaty e Pradesh estavam sentados lado a lado, falando em russo. Jack sentou no lado oposto e se serviu de café, que estava sobre uma pequena mesa com rodinhas. Costas estava com eles quando Jack se ajeitou para dormir. Descrevia para eles em detalhes o plano de sua amada ala de engenharia no campus do IMU em Cornwall. Costas também resolveu dormir, e Jack percebeu que os dois homens estavam concentrados nos catálogos de equipamento de mergulho da biblioteca de bordo.

Jack estava ansioso para estar novamente debaixo d'água. Pensou em Rebecca. Ela tinha ficado meia hora com ele na pista de decolagem em Bishkek, repassando as anotações que tinha feito na obra de Wood, A nas­cente do rio Oxus. Ela deu o livro para Jack e o abraçou, antes de ser levada depressa para um helicóptero Apache do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Jack sorriu para a última imagem dela, com capacete de voo, rodeada por quatro robustos membros da marinha dos Estados Uni­dos. Rebecca amara todos os segundos de sua aventura. Se tudo desse certo, de acordo com os planos, eles estariam novamente juntos na costa oriental do lago Issyk-Gul em menos de vinte e quatro horas, e até o equipamento do IMU ordenado por Costas teria sido transportado por via aérea. As ruínas submersas no lago eram instigantes e poderiam ser um dos maiores achados da Rota da Seda. O lago também era navegado por barcos que levavam os comerciantes, e sempre havia a possibilidade de se encontrar um naufrágio. Jack pensou em Fabius e no destino dos romanos, que tinham remado para o leste para salvar a vida. Olhou para Katya, que estava sentada sozinha algumas fileiras à frente olhando pela janela. Eles também poderiam achar petróglifos debaixo d'água, se os sei­xos se estendessem para dentro do lago. Havia um projeto de colabora­ção importante para um futuro próximo. Ele podia se ver passando mais tempo por ali. Olhou para fora da janela e se lembrou do local para onde estavam se dirigindo. Se conseguissem nas próximas vinte e quatro horas.

Costas chegou tropeçando pelo corredor e caiu no assento ao lado de Jack. Olhou pela janela, e Jack acompanhou seu olhar. Eles podiam distinguir claramente a ondulação de colinas e vales e as superfícies dos cumes cobertos de neve. Costas abriu o monitor do descanso de braço e ativou o mapa. - É isto aqui - ele disse. - Nós passamos pela fronteira e entramos no Afeganistão. Não deve demorar muito mais que meia hora.

É possível discernir com dificuldade o vale do Panjshir - disse Jack. - Está escondido em névoa, com cumes dos dois lados, estendendo-se para o leste. É o vale do lendário Oxus, o rio que marcou a extremidade oriental da expedição de Alexandre, o Grande. Oitocentos quilômetros a oeste daqui, ele deságua no mar de Aral, um lago. No caminho, passa por Merv, onde os legionários de Crasso foram aprisionados. Os roma­nos que escaparam podem ter vindo por este caminho, mas ao se deparar com a parede de montanhas a leste podem ter mudado de direção e ru­mado para o norte pelos contrafortes das montanhas da Rota da Seda que atravessa o Quirguistão, passando pelo lago Issyk-Gul.

E Howard e Wauchope? - perguntou Costas. - Foi aqui que eles vieram parar, depois que desapareceram no interior do Afeganistão em 1908?

Jack apertou os lábios. - Eles eram suficientemente experientes para vir tão longe. Ambos conheciam bem a região da fronteira afegã por causa de suas funções no exército. Wauchope havia estado, de fato, no Afega­nistão, durante a segunda guerra Afegã.

- A medalha que Pradesh ganhou, com o elefante? - perguntou Costas.

Jack assentiu com a cabeça. - Isso foi em 1879, precisamente antes que ele fosse se juntar a Howard na selva. Era a época do Grande Jogo, o esfriamento das relações entre a Inglaterra e a Rússia. Foi uma década de derrotas heróicas. A derrota de Custer na batalha de Little Big Horn contra os sioux, em 1876. A derrota britânica sofrida contra os zulus, em Isandlwana, e em Rorke's Drift. Depois a batalha de Maiwand no Afe­ganistão, em 1880. Quase mil tropas britânicas e indianas morreram na planície do lado de fora de Kandahar, lutando até o último homem. Os afegãos profanavam os corpos da mesma maneira que o sioux e os zulus. Trinta anos antes, durante a primeira guerra afegã, o exército britânico do Indo tinha sido massacrado quando se retiraram pela Passagem de Khyber, quando apenas um sobrevivente britânico conseguiu passar. Esses acontecimentos foram representados como fracassos heroicos, encoraja­dos na imaginação popular para exaltar as virtudes do guerreiro. Mui­tos dos oficiais britânicos apareciam impregnados de gestos de bravura. Tenho o conjunto completo dos romances Waverley de Sir Walter Scott, assinados por John Howard. Ele vivera naquele mundo quando menino e subscreveu uma nova edição nos anos 1880, como se estivesse tentando recuperar o romance. Essa visão foi arrancada deles depois que experi­mentaram a realidade brutal. E os britânicos deveriam conhecer melhor o Afeganistão. havia homens deles muito antes, exploradores como o tenente Wood. Eles conheciam não os problemas do terreno, como também as pessoas.

Como era a situação em 1908?

A de uma paz intranquila. O Afeganistão ainda era uma zona proi­bida. A viagem longa e difícil de Howard e Wauchope para a partir de Quetta deve ter demorado semanas, até mesmo meses. Para conseguir provisões, eles tinham que confiar na benevolência das pessoas com as quais se encontravam. Wauchope tinha muita experiência com os mem­bros das tribos da fronteira, mas as negociações deviam ser longas, tinham que observar sutilezas sociais, aturar desvios de rumo quando seus guias os levavam para perto de territórios de feudos de chefes guerreiros. Uma vez eles chegaram a ir para o vale de Panjshir, pois, se não fossem, pro­vavelmente os teriam deixado sozinhos. O inverno possivelmente co­meçara, e teria sido uma caminhada árdua pelas montanhas para chegar aonde acho que eles estavam indo.

Pradesh, que estava escutando atentamente, se inclinou para a frente e disse: - O que lhe tanta certeza de que esse era o lugar?

Porque o vale do Panjshir é a rota para a mina de lápis-lazúli - disse Jack.

É claro - Pradesh murmurou. - Sappheiros, lápis-lazúli. Howard e Wauchope tinham visto isso na inscrição no santuário da selva anos antes e estavam procurando o lugar onde você acha que Licinius escondeu a jóia.

Jack movimentou a tela com o mapa em seu assento, de modo que to­dos eles pudessem ver. Apontou para uma série de cumes que conduziam para o sul desde o vale principal. - Aqui, nas profundezas da extensão do Indo Kush. As minas se situam em um estreito vale de montanha. aproximadamente vinte minas, algumas trabalham milhares de anos. O lápis-lazúli que decorava o caixão do rei Tut no Egito saiu daqui, co­mercializado e transportado para o oeste mais de mil anos antes que os romanos chegassem a esta região.

Os romanos? - perguntou Costas. - Pensei que fosse apenas Licinius.

Ele estava sozinho quando veio esconder a jóia, depois que fugiu para o sul de Issyk-Gul - disse Jack. - Mas para ele saber como chegar às minas acho que o bando de legionários que escaparam deve ter vindo nesta direção durante sua difícil caminhada de Merv para a Ásia Central. O vale do Panjshir pode ter sido o lugar a que eles foram forçados a ir, na direção norte, em direção ao Quirguistão. Se você ler o livro de Wood, A nascente do rio Oxus, perceberá por quê. As montanhas que ele descreve na extremidade oriental do vale parecem ser o fim do mundo, totalmente intransponíveis. Mas antes de se virar e ir para o norte, os romanos po­deriam ter penetrado no vale o suficiente para ouvir falar das minas len­dárias, talvez até mesmo vê-las. Se o sogdiano tivesse dito para Licinius levar a joia para lá, ele teria sabido aonde ir.

Katya deslizou para o assento na frente de Pradesh. - E quando ele alcançou a selva, não precisou deixar um mapa do tesouro - ela disse. - Tudo o que teve que fazer foi inscrever em sua tumba a palavra - lápis-lazúli. Todo mundo na índia sabe que o lápis-lazúli vem do Afeganis­tão. Todo mundo no Afeganistão sabe que ele vem do vale do Panjshir. E sempre alguém no vale que pode apontar as minas para você, um mineiro que pode lhe mostrar até mesmo a mina que produz o azul mais escuro, o nielo. Mas é como falar para as pessoas sobre Shangri-lá, porque na verdade dificilmente alguém sonharia em ir até lá, e qualquer um que o fizesse teria pouca chance de sobrevivência. Era um prêmio que somen­te tentaria alguém desesperado, ou tolo. Ou velhos soldados românticos como Howard e Wauchope, com um desejo ardente de aventura.

Como você tem certeza que Howard e Wauchope estavam neste ras­tro? - perguntou Costas.

Jack apontou para o livro. - Tenente John Wood, marinha de Bengala. Uma narrativa pessoal de uma viagem para a nascente do rio Oxus. Essa era a própria cópia de Howard, estudada por ele, cheia de anotações. Achei isto na ga­veta mais baixa daquela arca de documentos familiares que você viu em minha cabine no Seaquest II, empacotada como se fosse algo que ele esti­mava, mas não queria que ninguém mais visse. As seções do livro sobre o vale do Panjshir e as minas de lápis-lazúli estão densamente cobertas por anotações que são virtualmente indecifráveis.

E anotações escritas por outra mão, também - disse Costas, exa­minando o livro.

Robert Wauchope - disse Jack. - Eu vi alguns dos documentos ma­nuscritos dele na biblioteca do Escritório da índia em Londres e confir­mei a letra.

É estranho que eles não tenham levado o livro com eles, em sua via­gem final - disse Costas.

Acho que eles conheciam o livro de cor. E devem ter levado so­mente o mínimo necessário. Ninguém quer carregar livros ao redor do Indo Kush.

Mas você diz que ele contém pistas para nós.

Temos que agradecer a Rebecca por isso. Enquanto estávamos em Issyk-Gul, ela ficou lá, de cabeça baixa, decifrando as notas. Ela acha que encontrou as pistas para a entrada da mina a que eles estavam querendo chegar, entre as muitas minas na encosta da montanha.

É uma grande pesquisadora - disse Costas.

Ela adquiriu um bom olho para detalhes, e paciência para fazer isso. Herdou muita coisa da mãe.

-Você lhe disse isso? - Katya perguntou.

Direi quando chegar o momento. Nossa relação ainda é muito recente.

Falarei com ela. Nós temos isso em comum. A perda violenta de um dos pais. Avise-me quando você quiser que eu fale.

Jack fez que sim com a cabeça, e olhou para fora da janela. Eles esta­vam agora baixando de altitude, e a aeronave estava abaixo do nível dos cumes das montanhas que ficavam de cada lado do vale. Era possível ver, ocasionalmente, as luzes das casas e o estranho facho de luz dos faróis dos veículos, na mesma rota que Wood deve ter feito quase dois séculos antes. Ele fechou o livro. - A beleza da narrativa de Wood é que pré-data o Grande Jogo. Para compreender o Afeganistão, você pode se voltar para aqueles viajantes que vieram para antes que as geopolíticas entrassem em jogo. Robert Wauchope em suas anotações no final deste livro diz que, se fossem deixados por sua própria conta, num instante os afegãos dariam de ombros para toda aquela história de interferência externa.

O sistema de alto-falantes estalou novamente. - Aqui é o capitão. Cal­culamos a aterrissagem dentro de trinta e cinco minutos. Estamos en­trando em uma zona de mísseis lançados de terra. Apenas por precaução, armamos os dispensadores de contramedidas.

Costas grunhiu e verificou seu cinto de segurança. - Entendi esses ca­ras quando pousamos em Bishkek. Esses pilotos ex-combatentes às vezes esquecem que estão voando comercialmente.

Jack se virou para Katya. - Esta é a última chance antes que nos ponha­mos a caminho. Se alguma coisa mais para nos dizer, este é o momento.

Katya bebeu um pouco de água, depois assentiu com a cabeça. - Cer­to. A fraternidade do tigre. No final do século 19, na época do diplomata

Wu Che, aquele que compareceu à conferência de John Howard, a fra­ternidade era uma das muitas sociedades secretas na China. Mas ela era mais secreta que a maioria. Poucas outras sociedades poderiam reivindi­car uma linhagem autêntica que remontasse ao primeiro imperador. E elas nunca buscaram ampliar sua sociedade. O primeiro imperador vi­nha da família Qin, e quando subiu ao poder ele transformou as pessoas de sua família em nobres, dando a seus irmãos e primos terras para go­vernar como feudos. Seu compromisso era servir ao imperador na vida e na morte. Eles assumiram os nomes dos seus feudos. Havia doze deles: oXu, o Tan, oju, o Zhongli, o Yunyan, o Tuqiu, o Jiangliang, o Huang, o Jiang, o Xiuyu, o Baiming, e o Feilian. Esses formavam sua guarda ori­ginal. À medida que cada um morria, a fraternidade selecionava outro do mesmo clã para assumir seu lugar. Com o passar do tempo, a fraternida­de chegou a representar todos os escalões superiores do poder na China. Eles eram ricos proprietários de terras, senhores de feudos, mas também generais, diplomatas, ministros de estado. Todos tinham sido preparados desde o nascimento nos métodos do guerreiro tigre. Cada clã propor­cionava uma seleção de meninos prontos para a próxima vaga, treinados em artes marciais, para brandir a grande espada pata, na arte de se tornar uno com o akhal-teke, o cavalo divino que transpira sangue. Um deles seria escolhido para entrar na fraternidade, sentar no conselho dos doze. Os outros permaneceriam ao longo da vida como guerreiros dele, uma companhia assassina de cem ou mais que poderia ser convocada quase imediatamente para defender o credo do primeiro imperador. E aquele que era escolhido, o mais novo da fraternidade, se tornava o guerreiro tigre. Era seu papel ir montado à frente da companhia. Executar as or­dens da fraternidade. Essa era sua iniciação. O diplomata Wu Che era da família de Jiang, e ele era um dos doze. A família de meu pai, meu tio, era Huang. Descendo de muitos daqueles que foram escolhidos para o manto de guerreiros tigres.

- É hoje? - perguntou Costas. - Nós estamos basicamente conside­rando o crime organizado?

Katya respirou profundamente. - Seu credo era defender a tumba do imperador. Até a chegada do comunismo ao ao poder, eles mantiveram sua terra e privilégios, não tinham necessidade de mais riquezas. Duran­te gerações eles ficaram por trás da cena em Xian, oficiais do exército, conselheiros do imperador, burocratas, sempre perto da grande tumba, cujo monte aparecia ao lado da cidade, assegurando seu status sagrado. To­dos eles nutriam superstições sobre mexer indevidamente no legado do primeiro imperador, superstições que continuam até hoje, mesmo entre arqueólogos chineses. Eles asseguravam que ninguém jamais cavasse o túmulo. E não eram assassinos. O diplomata Wu Che era um homem tí­pico da fraternidade do século 19, um homem altamente educado, ansio­so para representar os interesses da China no estrangeiro. Mas foi então que as coisas começaram a mudar. Durante quase dois mil anos a fra­ternidade tinha tomado parte na sociedade fechada da China, separada do mundo externo e até retornando de mãos vazias depois de perder o rastro de Licinius na selva indiana. Wu Che reabriu aquela busca, e uma vez mais a fraternidade estava disposta a brigar. A busca reacendeu uma paixão, uma obsessão. E também fez outra coisa. Involuntariamente, ele lhes proporcionou uma tentação a que alguns da geração seguinte da fra­ternidade não puderam resistir.

- Deixe-me adivinhar - murmurou Jack. - Ópio.

Katya assentiu com a cabeça. - As viagens de Wu Che para a índia tinham sido uma tentativa de descobrir a extensão do uso do ópio, os provedores, persuadir o governo britânico a ser severo com esse comér­cio. Seus documentos mostram que suas preocupações eram morais e es­tavam muito distantes dos interesses chineses oficiais. Ele visitou a selva de Rampa um par de anos depois da rebelião e viu a extensão do vício do ópio entre os membros das tribos da colina, uma presa fácil para os nego­ciantes depois que as tropas partiram. Ele encontrou um ouvido simpa­tizante em John Howard. E havia mais uma coisa. Como diplomata em Londres, Wu Che inspecionava os antros de ópio que estavam surgindo nas cidades portuárias da Europa. Quando voltou para a China pela úl­tima vez, nos anos 1890, levou consigo uma quantidade prodigiosa de pesquisa, um relatório detalhado sobre o uso e fornecimento de ópio no mundo ocidental. Isso poderia ter sido a base para aniquilar o comércio de ópio. Mas estava aberto a um abuso enorme. Era também um plano para o controle do comércio.

Nós estamos falando sobre a época da ascensão do comunismo? - perguntou Costas.

Katya acenou com a cabeça. - A China estava se fragmentando, e a república foi declarada em 1912. O Partido Nacionalista tinha somente uma tênue influência, e durante anos houve uma aliança constrangedo­ra com o Partido Comunista. Grande parte do país era governada pelos líderes militares. A abdicação do último imperador em 1912 marcou o início da moderna fraternidade do tigre. Na mitologia da fundação da fraternidade, o período dos Reinos Combatentes tinha sido seguido pela ascensão do primeiro imperador. Eles viram uma analogia com isso no que estava acontecendo ao redor deles nos anos 1920 e 1930. Era como se uma segunda vinda do imperador fosse iminente. A mitologia da funda­ção começou a se alterar, e novos elementos foram inventados. E acon­teceu outra coisa. Eles perderam os feudos, que foram confiscados pelo estado. Assim, precisavam de outra fonte de riqueza.

O comércio de ópio - disse Jack.

Wu Che foi assassinado em 1912, uma vítima do expurgo da Corte Imperial Chinesa - Katya continuou. - O filho dele foi seu sucessor na fraternidade. Pela primeira vez, uma pessoa ameaçava reger os doze. Ele herdou tudo dos registros do pai, e construiu o maior e mais secreto império de drogas que o mundo conheceu. A cumplicidade britâni­ca no comércio do ópio havia quase arruinado a China no século 19, e ele manipulou isso em seu favor, usando todas as rotas de fornecimento existentes para suprir cada vez mais de ópio o Ocidente, sustentando a explosão do uso de heroína dos anos 1950 em diante.

Costas apontou com o dedo no mapa de rota. - Afeganistão? O prin­cipal provedor?

Katya fez que sim com a cabeça. - Durante séculos a fraternidade vem enviando guerreiros para cima para adquirir cavalos puro-sangue. O treinamento com os corcéis divinos sempre fez parte do credo deles, um rito essencial de passagem para qualquer um que pudesse vir a ser um dos doze. Por volta dos anos 1920, o comércio de cavalos tinha se tornado uma cobertura para o comércio de narcóticos. O ópio era transportado pelo sul para a índia e pelo oeste para a Europa. A fraternidade transferiu seu novo centro de operações para fora da China, primeiro para Hong Kong e Ma­lásia e depois para o próprio Ocidente, em Londres e na América. Eles se integraram com bastante facilidade. De forma ostensiva, os descendentes dos endinheirados expatriaram as famílias de Hong Kong e Cingapura que estavam educando seus filhos nas escolas de elite da Europa e América, tornando-se parte da infraestrutura capitalista do Ocidente.

Eles devem estar em algum lugar nas telas de radar, se o envolvi­mento com drogas era tão grande quanto você afirma - disse Costas.

Katya lhe lançou um olhar esquisito. - Eles eram inteligentes. Não eram gângsteres como outras sociedades chinesas secretas. Para a fra­ternidade, o comércio de ópio era mais uma espécie de reembolso pela cumplicidade do Ocidente na exportação de ópio para a China no século 19 do que um empreendimento criminoso. Eles tinham uma noção romântica de lealdade para com a China, uma China que era uma história antiga. Mas a seu credo não interessava fazer parte do mundo subterrâ­neo do crime, e eles saíram do comércio das drogas depois da Segunda Guerra Mundial. Reinvestiram na prospecção mineral e em mineração. Isso provou ser imensamente lucrativo depois do colapso da União So­viética. As novas repúblicas da Ásia Central provaram ser um solo madu­ro e lucrativo para empresários de fora. Sua companhia, a INTACON, tornou-se muito lucrativa e eclipsou os outros interesses empresariais da fraternidade.

E em 1949 - disse Jack, - com a tomada do poder pelo comunista Mao Zedong? A ordem volta à China.

O comunismo tinha feito parte da força que demoliu o velho mun­do, no qual a fraternidade existira durante séculos, ocupando sua terra. Mas o ano de 1949 também representou o retorno da ordem sobre o caos, uma analogia do fim dos Reinos Combatentes e a ascensão do Qin. A nova certeza, o novo controle, era sedutor para a fraternidade. E o regime comunista tinha sua própria estrutura de poder, sua própria hierarquia. A fraternidade logo recuperou seu lugar na China, seu olho alerta. Eles incentivaram o culto de Mao Zedong, a ponto de ele quase rivalizar com o culto do primeiro imperador. Mas com a morte de Mao, voltaram com paixão renovada ao seu credo original.

Um palpite, a mitologia - murmurou Jack.

De acordo com wu di, o conceito de não-morte, eles acreditam que o primeiro imperador não se foi, mas existe em um mundo paralelo. Eles esperam uma espécie de duplicação de nossa realidade naquele mundo, o mundo de wu di. então o imperador será capaz de mais uma vez impor sua vontade no universo. Para a fraternidade, essa esperança mística se tornou um dogma fanático depois de 1912. Apenas com a fusão dos dois mundos paralelos a ordem viria novamente. Eles procuraram sinais no antigo mito dos poderes elementais. O primeiro imperador tinha subido ao trono sob shuide, o poder da água, superando o poder do fogo. A fra­ternidade acredita que a próxima era do imperador será anunciada pela vinda de siandhe, o poder da luz.

Jack olhou para Katya. - É isso, não é? É por isso que o par de jóias é tão importante. O poder da luz.

Katya assentiu com a cabeça. - Foi o diplomata Wu Che que reavivou a lenda da joia desaparecida da tumba, a jóia celestial cujas duas partes se combinariam para fazer brilhar uma luz deslumbrante na tumba do im­perador e interromper a barreira do wu di. quando a joia for achada é que siandhe, a era da luz, pode começar.

E quando se supõe que isso acontecer? - perguntou Costas.

Para o primeiro imperador, shuide estava associado com o número seis, bem como com o inverno, a escuridão, a crueldade, a morte. A fra­ternidade é doze, um múltiplo de seis. Eles chegaram à crença de que a era da luz começaria na sexagésima sexta geração depois que a tumba fosse lacrada.

Deixe-me adivinhar - murmurou Costas. - Isso seria a geração atual?

Katya fez que sim com a cabeça. - É por isso que tudo está ressurgindo agora. Meu tio confiou tudo a mim. Ele sabia que eu estava bastante fa­miliarizada com a história da fraternidade para compartilhar seus medos e também sabia que o rastro arqueológico que ele seguia ia precisar de alguém com uma habilidade tão boa quanto a dele. Ele me preparou para isso. Tinha grande confiança em mim. Ele sabia que o tempo estava con­tra ele, mas nunca pensei que fosse terminar tão cedo. - Katya olhou para baixo por um momento, depois continuou. - Meu tio começou a estudar do ponto onde Wu Che parou. Mas quando ele percebeu que a jóia ce­lestial podia ser mesmo achada começou a temer as consequências. Uma década atrás, a fraternidade perdeu o representante do clã de Zhao, que morreu de repente. Ele foi sucedido por seu filho, Shang Yong.

A China estava mudando novamente. O comunismo estava se des­gastando, o capitalismo ganhava terreno. Alguns tinham lucros enormes, mas muitos não. Na Rússia, alguns olhavam para trás, para a época dos czares como uma espécie de idade dourada mítica. Na China, também olhavam para trás, para o primeiro imperador. Shang Yong estava entre eles, embora ganhasse muito dinheiro com as novas oportunidades. Meu tio viu sinais perturbadores em Shang Yong. Sua família, os Feilian, con­trolava a INTACON. Com o aumento da riqueza da companhia, Shang se tornou um megalomaníaco. Transformou a fraternidade em seu próprio conselho de guerra. Foi ele que introduziu a INTACON na exploração de minas, em terras aborígines ao redor do mundo. Uma dessas áreas era a selva de Rampa, na índia oriental. Uma fortuna enorme foi acumulada, ao se despojar a selva de bauxita. Meu tio se opunha veementemente ao esquema. Ele era um antropólogo comprometido e um humanitário, um dos que compunham a fraternidade e que não havia deixado que a crença o consumisse. Desde o começo ele se opôs à supremacia de Shang. Meu tio tinha sido ingênuo e percebeu o perigo muito tarde. No período em que me contou a história toda, ele era um homem caçado.

E ele pagou o preço mais alto - murmurou Jack.

Assim, da mesma forma que o diplomata Wu Che, involuntariamen­te ele abriu uma lata de vermes - disse Costas devagar. - Wu Che deu para a fraternidade o comércio de ópio. Seu tio reabriu a busca da jóia, mas também os conduziu para um lugar onde outro tesouro sem dono seria encontrado - a extração de minério da selva.

Essa foi outra coisa que ficou clara para meu tio muito tarde - disse Katya. - E temo que ele possa até ter entrado em negociações com os maoístas rebeldes. Teria sido um ato de desespero, mas pode não ter havido ninguém a quem se dirigir, com o governo prestes a firmar um contrato com a INTACON, e o povo Kóya impotente para resistir. Teria sido um ato suicida, entretanto, ele sabia que de qualquer maneira se encontra­va sob uma sentença de morte. E sei que ele tinha rejeitado a fraterni­dade. Ele viu a crença mover-se do primeiro imperador para o próprio Shang Yong, como se Shang estivesse se vendo como imperador, como Shihuangdi renascido.

Então, onde Shang Yong está baseado? - Jack perguntou.

No deserto de Taklamakan, do outro lado das montanhas de Tien Sien - Katya respondeu. - Cem mil quilômetros quadrados de areias que se deslocam e de desolação absoluta, uma região fustigada por ventos fe­rozes. Para viajantes que vão para o leste pela Rota da Seda, o Taklamakan é o último grande obstáculo antes de descer para a China central e chegar ao fim da estrada em Xian, fonte da seda e local da tumba do primeiro imperador. Qualquer um que tivesse se desviado do rumo certo no de­serto se arriscaria a se perder para sempre, e qualquer um que controlasse os lugares seguros do deserto poderia atacar à vontade as caravanas que margeiam seus limites. O deserto continua sendo uma das últimas gran­des áreas sem lei na terra. Nem sequer os comunistas puderam controlá-lo. muitas fortalezas arruinadas quase enterradas na areia, que foram construídas ao lado de oásis muito tempo engolidos. Shang Yong se estabeleceu em uma delas, a centenas de quilômetros da estrada mais próxi­ma. Ele construiu uma pista de pouso e começou a converter o lugar em seu próprio mundo de fantasia. Para a fraternidade, o Taklamakan sempre teve um enorme significado simbólico, um baluarte contra o mundo ex­terno, um lugar onde eles podiam simular que apoiavam a reivindicação do imperador de que não havia nada além. Para Shang Yong, o deserto também era uma sede perfeita para as empresas de mineração da INTACON na Ásia Central, no Tien Shan e nas montanhas de Karakorum. E meu tio sabia ainda mais. Prospectores da INTACON acharam evidência de uma enorme reserva de petróleo sob o próprio deserto. O Taklamakan se tornou o feudo de Shang. E não está mais voltado para o interior. Shang ameaça controlar toda a parte ocidental da China e exercer uma influência amedrontadora no mundo externo.

Então era nisso que seu tio estava realmente envolvido - murmurou Jack.

O que você quer dizer acerca de um mundo de fantasia? - pergun­tou Costas.

Katya fez uma pausa. - É aqui que o real significado da jóia, o real perigo, entra em jogo. Para a reunião final da fraternidade a que meu não compareceu, ele foi levado de avião até a sede no deserto. No centro das ruínas havia uma estrutura em forma de cúpula, uma antiga igreja nestoriana. Ele foi conduzido para baixo por uma passagem inclinada e por grandes portas de bronze. Numa quase escuridão, sentou-se a uma mesa baixa com os outros onze e Shang Yong na cabeceira. O que meu tio viu dentro o espantou e horrorizou. Era imediatamente reconhecível por causa dos Registros do grande historiador. Shang Yong tinha recriado a tumba do primeiro imperador dentro da igreja. Para a antiga fraternidade isso teria sido uma heresia inimaginável. Acima deles estava a cúpula celeste, e de cada lado se encontravam rios, montanhas e palácios. Havia também imagens dos Guerreiros de Terracota. Ele disse que era como estar senta­do em um planetário, com a mais recente tecnologia, imagens holográficas, havia até sons de água e vento, o relinchar de cavalos. Com o passar dos dias, ele percebeu que Shang Yong estava passando cada vez mais tempo sozinho no quarto. Ele sempre se preocupara com Shang desde que era um menino. Shang ficou viciado em jogos de computador, viven­do num mundo de satisfação imediata e certeza absoluta, um mundo em que a moralidade e a humanidade são irrelevantes. Meu tio percebeu que Shang tinha se transformado de jogador diante de uma tela em jogador dentro do próprio jogo, parte dele.

Crianças zumbis que mal distinguem a realidade da fantasia - mur­murou Costas. - Que crescem e fazem fortuna e pensam que podem dar aquele passo extra que o menino que mora no porão não pode, e entram na tela, num mundo que eles acham que podem controlar completamen­te, de uma maneira que nunca podem controlar a realidade.

Katya concordou com a cabeça. - Exatamente. Na mente de Shang, aquilo era uma extensão do conceito de wu di, a mistura dos mundos da vida e da morte que viria com a era da luz, com a jóia celestial. Era como se ele tivesse achado um portal para aquele outro mundo. Meu tio sabia que os poderes da jóia podiam significar somente uma invenção do mito, mas para Shang Yong eles ainda podiam ter uma potência aterradora. Se ele acreditava que a jóia era a chave final para sua apoteose, para alguma espécie de fusão com o primeiro imperador, isso poderia impeli-lo para uma megalomania terrificante. Foi isso que mais amedrontou meu tio. A partir daí ele decidiu manter em segredo sua pesquisa, sem a revelar para a fraternidade, e tentar descobrir a jóia ele mesmo.

Mas Shang sabia - murmurou Jack. - Seu tio sobreviveria até que o levasse para o lugar onde ele achava que a joia estava escondida.

Então, quem você acha que é o sujeito que está nos seguindo de per­to? - perguntou Costas.

Katya o encarou. - Você me contou o que o Kóya havia visto na selva - ela respondeu. - Sete homens da INTACON entraram, uma pessoa saiu, armada com um rifle provido de luneta. Ele era o iniciado. O assassinato de meu tio era seu teste. Ele se tornou então membro da fraternidade. Se­gundo a tradição, quando um membro da fraternidade se desvia do rumo certo, ele e sua família imediata (parentes em primeiro grau) são elimina­dos. Sua substituição entre os doze recai sobre um membro de outra fa­mília do mesmo clã, escolhido por sua coragem de guerreiro pelos outros onze membros da fraternidade.

-E esse novo membro é o guerreiro tigre - disse Jack baixinho.

Uma versão distorcida. Um psicopata. E ele tem uma especialidade particular. A avó dele era uma cazaque, também francoatiradora do Exér­cito Vermelho cazaque durante a Segunda Guerra Mundial, uma dessas pessoas que marcam com giz o número de suas matanças. Ele aprendeu tudo com ela. Ele é profissional, aperfeiçoou sua arte na Bósnia, na Chechênia, na África. O número de suas matanças deve exceder o de sua avó agora. Ele usa o velho Mosin-Nagant que roubou dela.

O rifle de um francoatirador é como o pincel favorito de um artista - murmurou Jack. - Um antigo rifle de ação com ferrolho pode matar tão bem quanto o mais recente Barrett.

Uma pergunta - disse Costas. - Sua família tem feito parte disso desde o tempo do primeiro imperador. Sessenta e seis gerações. Como vamos saber se você não é um dos sujeitos maus?

Katya lhe lançou um olhar sinistro. - Porque eles assassinaram meu tio. Porque não outros membros em minha família. Por causa de uma promessa que meus antepassados fizeram mais de dois mil anos atrás. E porque a crença de Shang Yong não tem nada a ver com aquela história. É uma abominação. E porque ele tentará me matar a todos nós assim que o conduzirmos até a jóia.

Assim como a esse vale para onde estamos indo - disse Costas, olhando para Jack. - Parece ser uma ruela de francoatiradores. Nós temos alguma proteção da OTAN ou dos Estados Unidos?

Você poderia ter um batalhão de forças especiais vasculhando os de­clives em cima, que eles não iam descobrir um franco-atirador tão bom - Jack respondeu.

Pradesh, que estava escutando sem dizer nada, olhou para Costas e disse: - Jack e eu conversamos sobre isso. Se estamos querendo ajuda para caçar um homem com um rifle estamos no lugar errado. Aqui em cima estão alguns dos chefes locais que são fortes o suficiente para se confron­tar com os próprios talibans. Os comandos nos Estados Unidos e OTAN sabem que o melhor é não mexer com eles, para não se tornar inimigo deles também. Quando estavam no poder, os talibans, em seu caminho para cá, assassinaram e estupraram, e os afegãos ainda vão se lembrar dis­so por muito tempo. De modo que vamos conseguir ajuda limitada ou evacuação médica, em caso de necessidade. Depois que atravessarmos a base aérea de ISAF em Feyzabad, ficaremos por nossa própria conta até encontrarmos um ex-combatente árabe que Altamaty conhece, que é o chefe militar local. Assim, vamos ter que enfrentar situações difíceis em um par de aldeias nas quais pode haver talibans infiltrados, e sempre a possibilidade de toparmos com homens-bomba suicidas. Mas se Altama­ty realmente pode conseguir que o chefe militar fique do nosso lado, isso é um grande avanço.

Qual é nossa história de cobertura? - perguntou Costas. - Eles não vão todos supor que somos da CIA ou algo parecido?

Uma equipe de filmagem - respondeu Jack. - Estamos seguindo a exploração realizada por John Wood em 1836, em busca da nascente do rio Oxus. Temos até o velho livro danificado para comprovar a autenticidade.

Soa como um projeto de sonho seu, Jack - disse Katya.

Um dia - disse Jack, lançando-lhe um sorriso. - Eu amaria fazer isso. Quando a luta terminar.

Costa investigava o mapa. - Como se chama mesmo o lugar onde es­tão as minas?

O vale do Corão - disse Jack.

A aeronave virou à esquerda, e eles ouviram o barulho do trem de pouso baixando. Altamaty estava olhando para fora da janela, mas se vol­tou quando Jack falou, ouvindo o que ele dizia. Olhou para Katya e disse suavemente: - Agur janub doshukh na-kham buro, zinaar murrow ba janub tungee Koran.

Costa voltou-se para ela. - Significando?

Ela lhe lançou um olhar de aço. - É pashtun. Algo que Altamaty apren­deu quando foi capturado pelo combatente árabe aqui em cima. Se você não quiser ir para destruição, evite o vale estreito do Corão.

O avião pousou na pista. - Perfeito - murmurou Costas. - Outra es­colha apaixonante para as férias.

 

                   Afeganistão, 22 de setembro de 1908

Os dois homens saltaram e caíram rolando pela pilha de lascas de pe­dra que quase encobriam a entrada para a mina, procurando deses­peradamente onde pudessem se agarrar e chutando o acúmulo de pedras para achar algum ponto de apoio. Pararam, deitados um ao lado do outro perto da parte mais baixa da pilha. Ainda podiam ver a entrada da mina, o céu cinzento do lado de fora, uma ligeira luz no topo do monte situado a uma distância de um tiro de pistola. Para além deles, o poço continuava numa escuridão de breu. A mais de 3.700 metros de altitude o ar era ra­refeito, e eles arquejavam e tossiam dentro da cortina de poeira que se levantara quando rolaram pelo declive. John Howard virou a cabeça para a figura ao seu lado, então piscou com dificuldade e examinou a parede do poço da mina. Ele podia ver marcas de picaretas por toda parte na pedra. Um feixe de luz da entrada iluminava o teto. Não havia nenhuma dúvi­da. Listras azuis, salpicadas de dourado. Ele começou a rir, ou chorar, não sabia, depois tossiu de modo penoso. - Robert - ele sussurrou. - Você viu? É lazurite.

- Recolhi pouco um espécime. - Howard sentiu alívio ao ouvir a voz de Wauchope, o sotaque irlandês com o som anasalado americano ainda forte apesar de todos os anos que passara no serviço britânico. Na briga desesperada que houve do lado de fora, ele se perguntara se a ouvi­ria novamente. Piscou com dificuldade e tentou avaliar a situação. Estava deitado de bruços, os membros estendidos e separados, as mãos para a frente, a mão direita ainda segurando o velho revólver Colt que tinha atirado alguns momentos antes, com um fio de fumaça ainda saindo do cano. Sua mão esquerda estava fechada em punho, agarrada em volta do antigo tubo de bambu, de dez polegadas de comprimento, enegrecido e brilhante por causa da idade. Eles haviam ficado com ele para ler o papiro que trazia dentro, imediatamente antes que fossem atacados, depois de terem escondido as mochilas no chão do vale, e ele conservara o tubo apertado contra si durante a subida desesperada para esse lugar, buscando caminhos que o cavalo do perseguidor não pudesse transpor.

Wauchope rolou e foi para o lado dele. Howard o observava enquanto ele abria seu revólver Webley, jogava fora os cartuchos gastos e recarre­gava, tirando cartuchos de uma cartucheira no cinto, olhando para a en­trada do túnel enquanto fazia isso. Pôs o revólver de lado e apanhou algo na mão esquerda. Era um fragmento de pedra azul. Desajeitadamente, com a outra mão procurou alguma coisa dentro de uma pequena bol­sa de couro pendurada em seu pescoço, enquanto se erguia sobre um cotovelo, estremecendo ao bater na pedra. Tirou um velho monóculo arranhado da bolsa, colocou-o sobre o olho esquerdo e então esticou o pescoço, examinando o fragmento de perto. - Quando o tenente Wood veio para este lugar, setenta anos atrás, ele disse que havia três classes de pedra. - Wauchope examinou-a novamente. - Esta é de classe superior. Aquela cintilação de ouro é pirita de ferro. É o nielo, exatamente como Licinius a descreveu. - Tirou o monóculo e deitou-se de costas. Durante um momento tudo o que Howard podia ouvir era o som da sua própria respiração, aguda, áspera. Observava o ar expirado se cristalizar no frio ar de montanha. Wauchope girou a cabeça e olhou para ele. - Você sabe o que isso significa.

Significa - disse Howard, - que por algum ato da providência divina, esses demônios nos perseguiram até o poço da mina certa. Wood disse que havia um poço que produzia este tipo superior. E olhe para estas marcas de picareta, aqui na pedra acima de nós, e a fuligem da substância que usaram para quebrar a pedra. Este poço foi escavado para a obtenção de pedras durante milhares de anos.

Howard fechou os olhos. A pedra lascada sobre a qual estava deitado era denteada e implacável, mas ele parecia quase nem senti-la. Era estra­nho. Abriu os olhos e fixou-os em Wauchope. Os dois homens estavam praticamente irreconhecíveis, completamente diferentes de como eram três meses antes, quando tinham partido uma noite de Quetta e tomado o caminho em direção à Passagem de Bolan, desaparecendo nas terras selvagens do Afeganistão. E agora ali estavam eles, trinta anos depois que haviam escapado do santuário na selva, com o rosto chamuscado pelo sol e sulcado como vales de montanhas, homens velhos açoitados pelo clima, com barba cinzenta e emaranhada. Usavam turbante, impregnado de poeira, e pesado casaco afegão de pele de carneiro amarrado na cintura, forrado de para proteção contra o frio muito forte que começara a cir­cular pelas montanhas em sua traiçoeira aproximação das minas. Sob o colarinho virado para cima de Wauchope, Howard podia ver o cinturão de couro a tiracolo e o cáqui de seu uniforme, com a insígnia de coronel e a coroa visíveis em um ombro. Estavam ambos oficialmente aposentados, mas sabiam que seriam tratados como espiões pelos afegãos se estivessem sem uniforme e sofreriam um destino pior que a morte. Durante trinta e cinco anos haviam sido oficiais do Corpo de Engenheiros Reais, e pa­recia ser a coisa mais natural que se vestissem, em sua grande aventura final juntos, com os uniformes que haviam usado durante toda a sua vida adulta.

Howard captou o olhar de Wauchope. Ambos sorriram e depois co­meçaram a tremer, rindo descontroladamente. Eles tinham conseguido. De repente Howard tossiu e cuspiu sangue em cima das pedras.

Meu Deus, homem - disse Wauchope, endireitando-se e inclinando-se sobre de Howard. - Você está ferido!

Levei um estocada de espada. - Howard engoliu com dificuldade, provando o sabor do sangue. - Do cavaleiro que veio atrás de nós no rastro. Aquele com a máscara de tigre. Exatamente quando estávamos su­bindo com dificuldade naquela pedra no caminho para cá. Nas minhas costas. Do lado esquerdo.

Howard sentiu Wauchope desamarrar seu casaco de pele de carneiro. Ele tirou o tubo de bambu da mão esquerda de Howard, colocando-o cui­dadosamente nas pedras, e tirou o braço do amigo da manga. - Faça isso gentilmente. - Ele ergueu o casaco e sentiu a umidade do lado esquerdo de Howard, embaixo. Recolocou o casaco, comprimindo-o cuidadosa­mente sob as costas, e repôs o braço na manga, deitando-o suavemente sobre as pedras em sua posição original. Pôs a mão no ombro direito de Howard, que sentiu a tensão em seus dedos.

É ruim, não é? - ele disse baixinho.

A espada não acertou o fígado, isso é certo. Pode ter entrado na cavidade pleural, abaixo do pulmão. Eu vi alguns homens se recuperarem rapidamen­te de um ferimento assim e ficarem novamente ativos em pouco tempo.

Ela entrou no pulmão, Robert. O sangue é espumoso. Minha respi­ração está ficando mais curta.

Howard viu Wauchope se ajoelhar, olhar intensamente para a entrada da caverna, respirar profundamente, depois desamarrar o cinto e livrar- se de seu casaco. Ajustou o cinturão, deslizou o coldre para a posição correta e escovou a parte da frente da túnica. Howard fechou os olhos. Então era isso.

Nós sabemos que a joia está em algum lugar aqui. Sabemos o que estamos procurando. - Wauchope levantou a cabeça para a escuridão atrás deles.

Eles também sabem.

Eles não sabem em qual entrada da mina nos escondemos. Quando esvaziei meu revólver neles, eles caíram para trás. Isso nos deu algum tempo. E quando nos acharem, não vão saber que este é o poço bom. Não saberão que aconteceu de termos nos deparado precisamente com o poço que estávamos procurando. O lugar onde Licinius escondeu a jóia dois mil anos atrás.

- Eles procurarão em todos os poços. Eles nos acharão, depois acharão a jóia.

A jóia. Howard sentia o sangue bem no alto da garganta. Sentia como se estivesse se afogando lentamente. Não vou mostrar medo. Olhou para o antigo cilindro de bambu que Wauchope tinha colocado na pedra ao lado dele. O vélpu, a relíquia sagrada que eles haviam tirado do santuário na selva quase trinta anos atrás, a garantia de sua passagem segura para fora do inferno naquele dia escuro, estava tão gravado na consciência de Howard que era como se tivesse sido no dia anterior. Howard guardara a lembrança junto com a luva de punho largo e comprido em forma de cabeça de tigre, a forma que reaparecera de maneira tão aterradora no braço de seu perseguidor apenas algumas horas atrás. Eles haviam adivinhado que estavam sendo seguidos, mas seu inimigo agira na área do vale, assim que alcançaram as lendárias minas de lápis-lazúli de Sar-e-Sang. Howard tinha visto o medonho guerreiro montado que conduzira as tropas de homens armados vale acima atrás deles, mascarado como um dragão-tigre; vislumbrou o flash de ouro em seu pulso quando ele tirou a grande espada de punho largo e comprido, com a forma de cabeça de tigre, exatamente como aquela que ele havia retirado da tumba na selva.

Ele não tinha a luva consigo, mas haviam trazido o vélpu por causa de seu conteúdo. Dez anos depois da fuga da selva, seus caminhos tinham se cruzado novamente na Escola de Engenharia do Exército em Chatham, e uma noite eles se fecharam na biblioteca e abriram o tubo de bambu. O que eles acharam não era um ídolo, nem um deus, mas um rolo de papiro antigo, papel feito com palha de cana prensada que Howard reconhece­ra de suas visitas quando menino ao Museu Britânico. - Papiro egípcio, na selva ao sul da Índia. - Isso fora algo bastante incrível. Mas havia escrita nele, palavras que Wauchope reconheceu como sendo de estilo idêntico às outras que ele vislumbrara esculpidas na tumba do santuário na selva. Hic iacet Licinius, optio XV Apollinaris. Sacra iulium sacularia. (Aqui jaz Licinius, suboficial da Décima Quinta Legião de Apolinário. Guardião da joia celestial.) A inscrição no papiro era mais longa, e o que dizia era surpreendente, as palavras ficaram gravadas desde então na mente de Howard.

Eles haviam usado seu conhecimento de latim para decifrar a mensagem, curvados juntos à luz de vela. Eram palavras que levaram Howard de volta aos seus sonhos de juventude, sonhos de grandes aventuras. Elas pareciam tirá-lo da escuridão que tinha envolvido sua alma desde aquele dia na sel­va, dando-lhe uma meta a aspirar, que não fosse a redenção por uma ação que ele nem sabia se havia praticado, mas que permanecera espreitando abaixo de sua consciência em cada momento de sua vida desde que aperta­ra aquele gatilho no navio a vapor no rio. O pequeno menino Kóya, o me­nino que chorava, que ele não conseguira deixar que sofresse, quando seu próprio filho gritava por ele em suas horas derradeiras. Ali, naquele poço de mina, ao término de sua jornada, ele olhou para Wauchope e sussurrou as palavras finais da passagem que eles haviam lido pela primeira vez naquela noite: - Cave tigris bellator. Tome cuidado com o guerreiro tigre.

Howard se sentia tonto. Engoliu novamente e sentiu o sangue escor­rer pela garganta. Ele vira a tatuagem no braço do cavaleiro, o dragão-tigre rosnando, enquanto o homem trovejava para eles no vale abaixo. De alguma maneira, aqueles que haviam conduzido Licinius para esse esconderijo na selva dois mil anos antes ainda estavam vivos, vigiando qualquer um que se arriscasse a seguir o rastro, buscando o que Licinius havia encontrado e escondido em outro lugar. Howard atormentara seu cérebro enquanto eles subiam a encosta da montanha, perguntando-se como eles podiam ter sido descobertos. Em Quetta, nas preparações que haviam feito, eles planejaram deixar que as pessoas soubessem que sua intenção era apenas para refazer a expedição de Wood para encontrar a nascente do rio Oxus, acima do vale do Panjshir, no norte do Afeganistão. Eles haviam se aconselhado com o explorador Aurel Stein, mas não revelaram sua verdadeira intenção. Stein pensou que eles fossem uns suicidas, por querer ir ao Indo Kush sem carregadores ou guias, mas lhes desejou boa viagem. Eles formavam um par de velhos coronéis excêntricos enga­jados numa aventura final, segundo a melhor tradição britânica.

Então Howard se lembrou. Anos antes, quando voltara para a Ingla­terra depois do serviço com os Sapadores de Madras. Quando ele tentou afastar Helen do luto pelo pequeno Edward, tentando lhes proporcionar uma vida nova. Ele havia sido recentemente promovido a capitão e ensi­nava Levantamento Topográfico na Escola de Engenharia Militar. Tinha dado uma conferência no Instituto Real de Serviços Unidos em Londres sobre as antiguidades romanas no sul Índia, sua paixão desde a juven­tude, quando colecionava moedas romanas de ouro e prata que o pai e os tios compravam para ele nos bazares de Madras e Bangalore. Ele ha­via mencionado um rumor, nada mais, de um templo numa caverna que continha esculturas que pareciam romanas, cenas de batalha. Ele queria mostrar que no sul da índia podia ter havido soldados romanos, assim como comerciantes. Era uma possibilidade fora do comum. Tinha sido uma descoberta extraordinária.

Mas havia deixado que o entusiasmo tomasse conta dele. Percebia agora que havia desejado que algo bom resultasse daquela experiência na rebelião que tanto o assombrara, e ficara de guarda baixa. Não tinha dito nada além disso, não indicara nada sobre nenhum local, sobre qual­quer verdade por trás da história. Ele e Wauchope tinham feito um pacto de nunca revelar o que haviam achado dentro do santuário, contudo, na conferência, pode ter transparecido algo em seu entusiasmo, um brilho no olhar, uma parte reprimida que queria contar para todo mundo a des­coberta que haviam feito, que pode ter revelado alguma coisa a um obser­vador cuidadoso.

Depois, um funcionário da embaixada imperial chinesa tinha subido para felicitá-lo e saber de suas fontes. Howard educadamente declinou fornecer qualquer informação, repetindo que se tratava apenas de um rumor. Isso acontecera mais de vinte anos atrás. Será que ele tinha sido seguido, observado, para descobrir qualquer coisa incomum, qualquer coisa que pudesse revelar o que ele sabia? O vélpu de bambu tinha ficado escondido em um quarto fechado na escola em Chatham, no meio de uma desordem enorme de artefatos exóticos deixados por oficiais du­rante décadas. Howard tinha sido o curador, e ele tinha a chave. Era impossível que outra pessoa pudesse ter tido conhecimento disso. Então pensou naqueles que o tinham servido durante os anos. Somente um ha­via estado com ele ao longo de todo o tempo, o fiel Huang-li, do Tibete, o sobrinho neto da aia adorada de sua infância. Huang-li tinha ido com ele de Bangalore para Chatham e depois novamente para seu posto na Ín­dia depois que seus filhos cresceram. Huang-li sempre mantivera amigos orientais, trabalhadores indianos ou chineses, marinheiros, homens com os quais se encontrava à noite em espeluncas onde se vendia ópio, mas Howard sempre ignorara isso, achando que era melhor tolerar as socieda­des secretas e os rituais do que proibi-los. Huang-li havia estado antes que eles partissem, guardando comida nas mochilas em Quetta, acenando para eles quando se puseram a caminho, subindo em direção à Passagem de Bolan. Ele estava animado, algo um tanto estranho num homem que talvez estivesse vendo o patrão pela última vez. Havia arrumado suas mo­chilas com mais coisas do que precisavam, medicinas chinesas, remédios, herbários, pacotes que eles acabaram descartando rapidamente. Huang-li tinha feito tudo o que podia para assegurar que eles permanecessem vi­vos até que chegassem a seu destino. Aquilo parecia um comportamento correto num criado fiel, e Howard ficou tocado. Mas agora ele voltou a pensar nisso. Mantê-los vivos até que chegassem a seu destino, pois assim eles poderiam conduzir outros para o mesmo lugar. Poderia ser?

Howard tossiu. Isso não tinha importância. Ele tentou mover a cabeça e de repente teve ânsia, vindo-lhe à boca um bocado de sangue espumoso, que tentou engolir. Ele sentia uma dor lancinante. Huang-li havia empacotado um pouco de láudano, e ele desejou tê-lo consigo ago­ra. Wauchope se inclinou sobre ele, segurando sua cabeça. Howard olhou para ele. - Ainda não estou morrendo - ele sussurrou com voz rouca. - Nós ainda temos que achar aquela jóia.

Wauchope virou a cabeça novamente para a escuridão do poço. - Está em algum lugar por aqui. Tenho certeza disso.

E agora a outra joia. A joia levada pelo outro romano mencionado na inscrição, Fabius.

Uma coisa de cada vez, meu velho.

Howard fez uma careta. - Imortalidade. A joia celestial diz respeito a isso, não é? Nós poderíamos arranjar uma dose dela agora.

Wauchope olhou para a entrada, esquadrinhando-a ansiosamente, e de novo para Howard. - Talvez no fim, na selva, Licinius também tenha sentido isso. Eu me perguntei que tipo de homem ele era. Se podemos nos espelhar nele. As vezes, esse me pareceu ser o único modo de pene­trar nesse caminho misterioso em que nos encontramos. Todas as pistas, a inscrição na tumba, a mensagem no vélpu, a geografia que nós compu­semos durante anos, tudo isso acrescenta muito pouco se não se tentar conhecer o homem por trás de tudo.

Howard deu um sorriso fraco. Ele tossiu e engoliu, tomou fôlego por um momento para se acalmar, então continuou falando, e sua voz era pouco mais que um murmúrio. - Você se lembra da escultura que nós vi­mos na parede de caverna, a mulher com a criança? Buscar a imortalidade teria sido buscá-la onde a perda e a dor também estão para sempre. E de que adianta, se todos aqueles que você amou se foram antes e se você esgotou todo o seu reservatório de amor? Acho que ele teve sua chance com a mortalidade. Talvez o Elísio fosse uma melhor aposta, afinal.

Então o que estamos fazendo aqui? Você e eu? Neste lugar?

A mesma coisa que impeliu Licinius e Fabius. Talvez eles estivessem realmente buscando o Elísio, buscando a morte com glória, não a imor­talidade. Talvez o engodo de imortalidade os tenha surpreendido por acaso ao longo do caminho. Talvez Licinius tenha compreendido isso depois que Fabius partiu, quando Licinius enveredou para o sul. Talvez ele estivesse com o homem que trouxe as duas jóias do Leste, quem sabe um comerciante que eles haviam roubado e escravizado, usado como guia. Se os romanos tiveram conhecimento disso antes, é difícil entender por que Licinius e Fabius se afastaram e separaram as jóias.

Talvez os deuses não quisessem que o gênero humano achasse o se­gredo da imortalidade.

Talvez os deuses levem em conta nossos melhores interesses.

Você ainda não respondeu à minha pergunta. O que nós estamos fazendo aqui? - Wauchope estava olhando atentamente para ele, com os olhos cheios de preocupação. Howard sabia que Wauchope estava ten­tando mantê-lo vivo, consciente, impregnando-se com a última gota da amizade deles, apreciando tudo o que pudesse nesses momentos. Ele de­volveu o olhar. - Nós estamos aqui pela mesma razão que levou aqueles romanos a fazer sua última grande viagem. Você se lembra da inscrição que vimos no santuário na selva tantos anos?

Décima Quinta Apollinaris. Pela glória da legião. Eles estavam mar­chando ao lado dos mortos de sua legião, seguindo-os de perto, buscando o truque do destino que os impeliria para o outro lado, a morte com gló­ria. Estavam fazendo o que haviam sido treinados a fazer. Eram soldados. Talvez seja por isso que estamos aqui. Pela glória de nossa legião, o Corpo de Engenheiros Reais. Por todos aqueles que se foram antes de nós, por todos os que caíram. "Ubique".

"Ubique", Wauchope repetiu suavemente. - Dito como um verda­deiro sapador.

A visão de Howard tinha se tornado um túnel, com as extremidades escuras e borradas.

Tudo o que ele conseguia ver era a barba e a cabeça coberta por um tur­bante de Wauchope, como se ela fosse um velho retrato cor de sépia numa moldura. Howard parecia estar levitando e ter sido picado por mil alfinetes e agulhas, um sentimento não desagradável. Ele sentia que devia tentar se mover, mas se perguntava se havia ficado preso num sonho, no qual um movimento quebraria o feitiço. Se ele ficasse imóvel, a qualquer momento poderia se erguer e caminhar por aquele túnel em direção à luz. - Robert - ele murmurou. - Não estou conseguindo mais enxergar direito.

Wauchope apertou a mão de Howard e a manteve assim. Houve uma comoção súbita na entrada. Um som de relincho, de patas de animais ba­tendo no chão. Ambos olharam para cima, para o declive rochoso. Uma expiração morna, densa, soprou dentro, inspirada do ar montanhês de fora e lançada na direção deles, como um golpe da respiração de um dragão contra o brilho da pedra. Eles ouviram mais resfôlegos, barulho de patas de animais, seus olhos foram se acostumando com a luz, e eles vi­ram a silhueta de um cavalo delineada contra o sol vermelho, tão quente que parecia fazer que o suor brilhasse como sangue quando ele sacudiu sua crina, borrifando manchas de vermelho no ar. Montava-o a figura com a assustadora máscara de tigre, os quadris cobertos com lâminas de armadura, a grande espada com a manopla larga e comprida flamejando contra o céu, listrado de vermelho com sangue recentemente congelado. Meu sangue. O coração de Howard disparou, enquanto sua boca espuma­va. Soou ma batida de tambor, lenta e insistente, que foi ficando mais alta, subindo pelo declive em direção a eles.

Aquele cavalo não entrará aqui - disse Wauchope. - Mas os outros logo estarão em cima de nós, os que nos seguiam a pé. Ainda temos al­guns minutos.

Howard estendeu a mão esquerda e apertou com força os dedos de Wauchope, olhando firme para ele. - Eu fiz algo de bom, Robert? Eu construí canais, pontes e estradas. Eu lhes mostrei como mapear a terra. Eu fiz algo de bom?

Você construiu uma família. Você foi um pai amoroso. Não coisa melhor que um homem possa fazer.

O rosto de Howard perdera o vigor. - Meu filho Edward. Meu menino. Eu nunca devia tê-lo deixado em Bangalore. Devia estar junto dele no final.

Você era um oficial sapador, e estava cumprindo seu dever para com a rainha.

Dever? Na selva? O que estávamos fazendo lá?

Wauchope agarrou a mão de Howard. - Você se lembra do nosso ami­go dr. Walker? Ele relatou a terrível febre da selva que dizimou nossos homens para o cirurgião chefe Ross, e ele veio para a selva para ver por si mesmo. Se você não tivesse contado para Walker sua teoria sobre os mosquitos e a febre, isso poderia nunca ter acontecido. Sir Ronald Ross, o vencedor do Prêmio Nobel de medicina. Eliminar aquela rebelião foi uma tareia ingrata, mas dela brotou algo para o bem comum.

O bem comum. - Howard tossiu e engoliu com dificuldade. - O Kóya era imune à febre. Nós matamos grande número deles. Queima­mos suas aldeias. As estradas que tracei com meus sapadores ainda estão lá, inacabadas, cobertas pelo mato. As poucas que terminamos trou­xeram agiotas, negociantes de ópio, doenças. Nós estávamos porque o governo tentou extorquir mais algumas rupias dos Kóya, e nós falha­mos porque o governo não podia ser incomodado por causa de um lu­gar improdutivo. Praticamos grandes feitos com ideais elevados, Robert, mas esses não eram os ideais dos nativos, e isso influenciou minha vida.

Howard, de repente, foi tomado por convulsões, sufocado pela tosse. Escorria sangue de seu queixo, e ele apertou o ferimento úmido em seu flanco, o sangue borbulhava para fora do pulmão. Ele olhou Wauchope nos olhos, com o rosto cinzento. Sua voz era um sussurro. - Não posso mais sentir minhas pernas, Robert.

A batida de tambor ficou mais alta. Wauchope pôs a mão no ombro de Howard, e se inclinou para ele, limpando o sangue de sua boca com a manga. - Fique firme, meu velho.

Howard agarrou a mão de Wauchope. - Ache a joia, vai fazer isso? Le­ve-a para a selva, para os Kóya. E devolva o vélpu sagrado deles. Nós lhes devemos isso. - A voz dele estava arrastada. Tossiu novamente e então sussurrou - Volte para o santuário e ponha-o na tumba dele.

Wauchope apertou a mão de Howard. - Uma coisa de cada vez, meu velho, preciso de você para me ajudar a levantar a tampa.

Olhe debaixo do caixão, - murmurou Howard. - Deve haver um buraco do tamanho certo para aquele tubo. Licinius era um pedreiro, você lembra? Um sarcófago romano sempre tem um buraco, para deixar sair os eflúvios da decomposição. Deixar a alma voar livremente.

Sempre disse que você deveria ter sido um arqueólogo - Wauchope respondeu.

Howard forçou um sorriso, mostrando os dentes brilhantes de san­gue. - Nós empreendemos uma grande aventura, não foi?

Realmente. - Wauchope apanhou o tubo de bambu com a mão es­querda, envolvendo-o nos dedos até quase se tocarem, depois estendeu a mão direita e apanhou seu Webley. - E ainda não terminou. - Ele apon­tou para a pistola na mão de Howard onde ela ficara depois que ele caiu.

Sobrou alguma bala?

Duas.

Não posso acreditar que você ainda usa essa coisa velha. Um revól­ver Cap & Ball. Hoje em dia e com essa idade. Você realmente deveria adquirir um revólver de cartucho.

Foi o que você me disse na selva trinta anos atrás. Consegui evitar dar um tiro com raiva desde então. E tem me servido bem.

Somente enquanto se mantém a pólvora seca.

Um soldado sempre cuida de sua arma, Robert.

Você ainda é um soldado. O melhor.

Mas não sempre - murmurou Howard, - um cavaleiro numa arma­dura lustrosa.

Sentiu-se bem? Quero dizer, em atirar novamente com raiva? Justa­mente agora?

Sempre gostei do cheiro de pólvora.

Bem, então vejamos se podemos compensar o tempo perdido. De­vemos?

Hann til Ragnaroks.

O que disse?

Howard ergueu a mão esquerda. Os dedos estavam curvados, como se ele ainda estivesse segurando o bambu, mas ele não conseguia senti-los. A voz dele era suave, quase um sussurro. - Olhe para o anel de sinete. A insígnia da família, com a âncora. E feito de prata viking, levada para a In­glaterra por meus antepassados escandinavos. Hann til Ragnaroks era o lema deles. SignificaAté que nos encontremos em Ragnaroks", no Valhalla[4].

Como você sabe disso? - perguntou Wauchope.

Howard conseguiu dar um leve sorriso. - História familiar. Foi sem­pre uma paixão. Não espere, entretanto, que ela passar adiante. Nin­guém mais está interessado. Mas pelo menos eu sei o que dizer, quando chegar lá, àqueles que se foram antes.

Bem, serei amaldiçoado se for para o Valhalla sem uma briga, Wau­chope disse. - Venha.

Minha mão, Robert - sussurrou Howard. - Você viu? Ela parou de tremer. Tremeu todos estes anos, desde a selva. Desde que apertei aquele gatilho. Agora não posso mais senti-la.

Wauchope estendeu a mão e armou o cão do Colt de Howard, colo­cando sua mão flácida ao redor do gatilho. - Eu vou recuar. Sua tarefa é atirar em qualquer coisa que aparecer na entrada do poço.

Está certo. - A voz de Howard soava pouco audível. - Soldado pri­meiro, engenheiro em segundo.

Quofas et Gloria ducunt. Nós somos soldados.

Guerreiros - sussurrou Howard. - Cavaleiros.

O que você disse? Hann til Ragnaroks.

Hann til Ragnaroks. - Howard sussurrou as palavras, depois respirou com um som áspero, vomitando mais sangue, e apertou o braço de Wauchope. Ele estava tremendo novamente, e sua respiração era fraca. - Eu fiz aquilo? - ele sussurrou. - Na selva? Eu fiz aquilo? Atirei naquele menininho? - Ele ergueu o olhar de maneira suplicante, mas não podia ver Wauchope. Tudo o que via agora era a impressão de luz no final da ca­verna, e a aura de azul da pedra que a cercava. Wauchope segurou a mão dele e a apertou, depois procurou na túnica de Howard, no lugar em que sabia que ela estava, e tirou de uma fotografia desbotada de uma jovem mulher segurando um bebê. Colocou-a na mão encharcada de sangue de Howard e pôs sua própria mão ao redor dela. Howard estava chorando, as lágrimas fluindo de seus olhos cegos, chorando pela primeira vez. - Eu posso vê-lo - ele sussurrou. - O querido Edward. - Ele os viu descendo o túnel em sua direção, vindo da luz, a mulher e o menino. O menino correu à frente, atirando-se em seus braços, e ele o segurou alto, rindo, chorando com alegria. Wauchope se inclinou e o beijou na testa, depois se colocou de joelhos, cambaleando para ficar em pé, o Webley pendendo de uma mão e o tubo de bambu da outra. A silhueta desaparecera, e tudo o que Howard podia ver era uma luz ofuscante, como o sol nascente que fazia desaparecer tudo o mais em seu feixe de luz. O azul nas paredes se iluminou e canalizou a luz para fora novamente, um fluxo de energia que parecia pô-lo em e levá-lo adiante. Então ele ouviu novamente os tam­bores, mais perto agora, reverberando pela caverna, e sentiu o vento que vinha de fora, afiadas estocadas de vento que pareciam perfurá-lo como flechas, e tudo desapareceu.

 

Jack se sentia livre enquanto se deixava cair através da água, de pernas e braços abertos, com o peso do corpo levando-o para baixo. No prin­cípio achara difícil descer a uma profundidade onde não podia flutuar, e então forçou o ar restante nos pulmões para a boca, usando esse proce­dimento para equilibrar a pressão nos ouvidos. Ele estava conseguindo provar a água agora, estava fresca, picante, com um resquício de sal. Podia ver o fundo do lago abaixo dele, cinzento e nivelado, não ondulado como no mar. Viu a forma que o atraíra para baixo, o contorno de um barco an­tigo que estava meio enterrado no sedimento. Dentro dele havia um bri­lho verde pulsando, como se alguém tivesse deixado cair no fundo uma luz estroboscópica. Ele se deixou cair na direção da luz, depois estendeu o braço, enfiou-o na lama e agarrou o objeto. Ele o tirou e o segurou no alto. Era uma jóia brilhante, uma olivina verde, peridoto de uma ilha dis­tante do Egito. Sentiu o calor que vinha dela, o brilho espalhando-se pelo seu corpo. Sentiu-se repentinamente sonolento, pesado e atraído para ela, era como se ele tivesse encontrado o que vinha procurando por toda a vida, e não havia nenhuma outra parte aonde ir, e tudo o que ele queria era deixar que o sedimento o envolvesse e dormir para sempre. Mas ele voltou à vida com um solavanco, o coração batendo. Teve que voltar para a superfície. Havia algo mais precioso lá. Deu um impulso para cima, com a jóia na mão, e movimentou as pernas com força, batendo com os pés-de-pato em direção à luz solar, que fluía de cima. Estou tranquilo. Sou forte. Ele repetiu o mantra, mas não precisava. Não havia nenhuma ânsia por oxigênio, nenhum desejo de respirar. Mas depois, quando viu o contorno do barco de mergulho acima, as figuras agitadas na lateral do barco, observando-o, sentiu o peso novamente, um formigamento que subia dos membros para o coração. A joia, que estava pesada no leito do lago, ficara muito mais pesada, um fardo impossível. Ele viu o rosto de Rebecca olhando atentamente para baixo, o cabelo longo flutuando na superfície da água. Tentou alcançá-la, mas a jóia estava arrastando-o para baixo. Ele abriu a boca e inspirou, absorvendo a água do lago nos pul­mões, recuando, sentindo apenas um vazio terrível, sem saber se estava chorando, as mãos estendidas para uma forma que recuava para dentro da centelha de luz do sol até desaparecer.

- Jack. Acorde. Katya e Altamaty estão voltando. - Jack sentiu uma mão sacudindo-o e despertou com um sobressalto. Ele estava sentado no assento de passageiro dianteiro do jipe, e Costas estava ao seu lado. Ouviu um som como o de papel sendo amassado e viu que estava co­berto por uma manta de sobrevivência. Costas devia ter achado uma no equipamento médico do jipe. Jack sentia um formigamento nas mãos, a circulação estava voltando. Lembrou-se de como tinha sentido frio quan­do chegaram a esse lugar, ao amanhecer, com o orvalho ainda pesado no chão. Puxou a mão esquerda para fora da manta e olhou para o relógio. Era quase meio-dia. Estavam ali havia quase três horas, e ele devia ter dormido durante umas duas. Eles estavam concentrados no relato do te­nente Wood sobre a caminhada final e árdua até a mina de lápis-lazúli, em algum lugar no vale agora diante deles. Jack se lembrava de ter fechado os olhos quando Pradesh tinha ido ferver água para o chá. Ele olhou para Costas, que estava usando um casaco do exército de um verde desbotado em cima de uma roupa de escura, um chapéu de pele de carneiro de um motorista de tanque, puxado para baixo e ajustado em cima da cabeça. Eles não estavam preparados para aquele frio, e tinham completado seu vestuário com aquilo que encontraram na caixa que estava na parte de trás do jipe. Jack abaixou a manta e pigarreou. - Sinto muito. Cochilei.

Eu notei. Parecia que o motor ainda estava ligado.

Eu não ronco.

Claro que não.

Pradesh apareceu ao lado da porta do jipe. - Você precisava dormir. - Ele também estava usando um chapéu de pele de carneiro e um suéter verde do exército indiano. Agachou-se perto de um fogão Primus peque­no e passou uma xícara fumegante para Jack. - Bebida fresca fermentada. O melhor Darjeeling. Sempre trago alguns comigo. É uma tradição militar que herdamos de vocês britânicos e que não podemos jogar fora.

Obrigado. - Jack pegou a xícara de metal e segurou-a com as duas mãos. Ele examinou o vale à frente. As montanhas do Indo Kush subiam além, enormes recôncavos de rocha dura e acúmulo de pedras na base das montanhas, polvilhados de branco nos cumes mais próximos e um tapete de neve nos outros, além. O vale formava uma fenda profunda que se estreitava à medida que as montanhas subiam, com um rio corrrendo pe­los seixos. Jack ergueu os binóculos compactos que estavam pendurados em seu pescoço e olhou atentamente através deles. Pôde distinguir Katya e Altamaty descendo por um caminho que margeava a encosta do vale. Havia outra figura com eles, usando roupa afegã. Jack abaixou os binóculos e olhou para Pradesh, que acenou com a cabeça. Tudo parecia estar de acordo com o plano. Eles tinham chegado ao aeroporto de Feyzabad no norte do Afeganistão logo após amanhecer, saíram do avião e entraram direto no jipe. Jack tinha um velho amigo que administrava uma agência de ajuda em Feyzabad, e ele tinha conseguido um veículo, completo com as palavras - TELEVISÃO - pintadas no teto e nas laterais. Eles tinham optado por não chamar a atenção sobre si, para evitar qualquer tipo de re­cepção militar da OTAN. Havia uma equipe de reconstrução da ISAF na região, mas depois de uma conversa telefônica com o coronel dinamarquês, eles tinham decidido que não precisariam de escolta. O coronel os advertira sobre o risco. Um ataque do Taliban era possível em qualquer lugar, até mesmo ali em cima, no norte do país. Mas o líder militar local era conhecido como sendo um independente, uma pessoa decidida da antiga Aliança do Norte, alguém que eles precisavam cultivar, não pro­vocar. O coronel lhes garantira que forneceria um helicóptero Medevac (para evacuação médica) se eles necessitassem, mas a não ser por isso eles estavam por conta própria.

Jack ergueu os binóculos novamente, esquadrinhando o declive do outro lado do vale, procurando flashes de reflexos, sinais de movimento entre as pedras, mas sabendo que não veria nada. Em algum lugar fora, num ponto distante mas de frente para eles, encontrava-se o franco-atirador, Katya tinha certeza de que ele os observara no lago no Quirguistão, e devia estar ali agora. Eles estariam a salvo enquanto seu destino fosse claro, até que eles achassem o que a fraternidade queria, mas a cada passo que dessem para se aproximar do local, ficariam mais vulneráveis, até que o franco-atirador não tivesse mais nenhum motivo para não atirar. Jack se sentia impotente e exposto, mas sabia que eles agora não tinham outra es­colha senão jogar o jogo e esperar que pudessem encontrar um modo de controlar as chances. Os outros conheciam o resultado. Tudo dependia de Katya e Altamaty terem conseguido sucesso em seu objetivo durante as duas horas em que avançaram pelo vale para fazer o reconhecimento, depois que saíram do jipe.

Pradesh dobrou o fogão e alojou-o em sua mochila. - Está na hora de "pôr a sela", rapazes.

Costa pôs as pernas para fora do jipe. - Não sei onde você consegue essas expressões, Pradesh.

Na Escola de Engenharia do Exército dos Estados Unidos, Forte Leonard Wood, Missouri. Seis meses passados no destacamento no ano passado.

Costas parou e olhou atentamente para ele. - Realmente? Você conhe­ceu Jim Praeder?

Tecnologia de Submersíveis, com o suporte da Escola Naval? Fiz o curso dele lá.

Costas olhou para Jack, e ergueu o polegar para Pradesh. - Nós real­mente precisamos deste sujeito. Durante muito tempo. Na equipe per­manente do IMU.

Jack lançou um sorriso a Pradesh, depois saiu do jipe e parou, estirando-se. Estava usando seu próprio kit, que trouxera no avião, botas de caminhada de couro liso, um casaco de revestido de Goretex verde, um boné de azul de que gostava muito e que ganhara quando menino de um membro da equipe do capitão Cousteau. Colocou sua velha mochila cáqui de um jeito confortável, sentindo a forma do coldre dentro. Era reconfortante, mas eles precisaram de mais do que armas. Ele esprei­tou o caminho acima e observou a figura afegã se separando de Katya e Altamaty, tomando outro caminho e desaparecendo de vista. Respirou profundamente e disse uma oração silenciosa. Altamaty estivera ali em cima vinte anos antes, e sabia aonde ir. Ele e Katya falavam Dari, o princi­pal idioma do Afeganistão, e ambos conheciam o código de Pashtun. Era melhor que fossem eles a estabelecer o primeiro contato. Muitos ocidentais tinham ido para prometendo ajuda promissora e paz, mas levaram somente traição e morte. Jack sabia que eles tinham um francoatirador para combater, e se estabelecessem hostilidades com o líder militar tam­bém não iam ter nenhuma chance de sair vivos do vale.

Ele voltou para o jipe e apanhou o livro A nascente do rio Oxus, de Wood. Abriu o velho volume no lugar onde havia um marcador de páginas e viu as anotações enfraquecidas feitas por John Howard, seu trisavô, e depois as anotações nítidas em uma folha intercalada, feitas por Rebecca, sua própria filha. Parecia haver um fluxo entre elas, uma continuidade, e o livro parecia ter ligado as gerações. Olhou para o texto, para as palavras que estavam em sua cabeça quando adormeceu. - Depois de uma longa e penosa caminhada alcançamos o das montanhas de Ladjword. - Ladjword, ele sabia, era o antigo nome persa dado ao lugar onde havia minas de lápis-lazúli. Eles estavam agora, onde Wood estivera, no ponto mais distante a que podiam chegar de jipe, no fim da estrada. Dali em diante teriam que ir a pé, como Howard e Wauchope deviam ter feito, se é que eles realmente chegaram a esse local distante. Jack fechou o livro e o colocou na mochila. Ele pensou em Rebecca, com a equipe de mergulho no lago Issyk-Gul. Seu sonho, alguns momentos atrás, ainda era visceral, aguçado em sua mente. Ele se lembrou do que Katya dissera sobre sonhar ali, no topo do mundo. Era mais difícil distinguir os sonhos da realidade, como se você sempre estivesse a meio caminho dentro de um mundo de so­nhos. Ela tinha dito que era por causa do ar rarefeito, do sono inquieto. Jack se sacudiu e se concentrou em Katya e Altamaty, enquanto eles des­ciam para o jipe. Estava na hora de focalizar a realidade dura.

Katya estava envolta em um casaco grosso de alpinista, mas parecia estar em seu elemento. - Muito bem. Eis o resultado. As notícias boas são que nós estabelecemos contato com o velho amigo de Altamaty.

O combatente árabe que o capturou durante a guerra soviética? - perguntou Costas.

Katya assentiu com a cabeça. - Rahid é o nome dele, Mohamed Rahid Khan. A notícia de que estávamos a caminho tinha passado por aqui. Ele sabia seu nome, Jack. Sabe quem você é. Sabia até que havia um quir-guiz entre nós. E assombroso como a informação passa por aqui, em um lugar quase desprovido de gente.

Ele tem visto mais alguém? - perguntou Pradesh.

Eu não perguntei. Ele tinha outras coisas em mente. Mais cedo, nes­ta manhã, o Taliban atacou uma aldeia no vale seguinte em direção ao norte. Foi um ato de vingança que data do tempo em que o Taliban esta­va no poder no Afeganistão, antes de 11 de setembro. Vingança contra o primo de Rahid, um professor. Vocês não querem saber os detalhes, não é? Rahid enviou todos os seus homens com a maioria das armas, e ele próprio está partindo em menos de uma hora.

Assim, nenhum apoio para nós afinal de contas - disse Costas.

Poderia haver. Eu lhe contei o que Jack queria. Não lhe disse a real razão por que estamos aqui, mas ele não é bobo. Jack Howard não vem a uma zona de guerra para fazer um filme documentário. Mas essas pessoas sabem quando não é para fazer perguntas. Com o Pashtun, você fala em torno das intenções, fica dando voltas em torno dos assuntos, adivinha- -os, primeiro, um fica julgando o outro. Ele disse que algumas pessoas que moram no vale, e sempre é possível que haja simpatizantes dos talibans. Quando um ataque, como o desta manhã, uma agitação geral, e a visão de qualquer estrangeiro poderia ser uma provocação. Ele disse que deveríamos continuar pelo caminho alto, evitar o vale. Quando lhe contei o que você pediu, Jack, ele perguntou se havia alguém entre nós que poderia lidar com um rifle Lee-Enfield. Eu lhe falei sobre você e os guardas florestais canadenses. Você me contou uma vez.

-Jack? -, Pradesh o chamou.

Quando eu era adolescente - Jack respondeu. - Meu pai era pintor, e nós passamos um par de verões no Ártico canadense. Os guardas flo­restais fazem parte da milícia, principalmente da Innu e Inuit. Eles usam como arma o velho rifle Lee-Enfield, usam-no para caçar. E me ensina­ram a atirar.

Eles lhe ensinaram a ser um francoatirador, Jack - disse Costas. - Tenho visto isso.

Eu nunca alegaria isso na frente de um líder militar afegão - Jack murmurou. - O Pashtun pode atirar antes de andar. De qualquer ma­neira, Pradesh também está familiarizado com o Lee-Enfield. Ele ainda é usado na Índia. Pradesh provavelmente atira melhor que eu.

Você é nosso líder, Jack, e ele sabe disso - Pradesh disse. - Um co­mandante Pashtun vai respeitar um líder que possa ele mesmo se en­carregar da matança.

Katya olhou para Jack. - Ele está em um complexo de cavernas a cer­ca de vinte minutos daqui, subindo pelo declive onde nos deixou. Nós não queremos perdê-lo. Então, vamos. - Ela se virou e os conduziu de volta caminho acima. Eles contornaram um ângulo, com o vale rocho­so expandindo-se abaixo deles. Quase imediatamente se encontraram em meio a destroços, grandes fragmentos de metal torcidos, seções de fuse­lagem, um rotor caído como uma gigantesca flor murcha. Os fragmentos tinham uma pintura escamosa que fora antes uma camuflagem cáqui, e em dois lugares podia-se ver uma estrela vermelha desbotada. - O heli­cóptero Hind de Altamaty - disse Katya disse. - Aquele em que foi abati­do quando tinha dezoito anos, durante a guerra soviética. Ele foi o único que se salvou. Dois outros ainda estavam vivos, mas foram mortos por Rahid.

Você quer dizer o sujeito amigável que nós estamos prestes a encon­trar? - perguntou Costa.

Aqui em cima as coisas se passam dessa maneira - Pradesh disse. - Não se espera nenhuma clemência, e nenhuma é dada.

Jack observou Altamaty andando no meio dos destroços, os olhos do quirguiz inabaláveis, olhando à frente para além dos fragmentos espalha­dos pelo caminho rochoso à frente. Vindo de algum lugar distante, houve um estrondo, o som de jatos rasantes, com seu barulho ensurdecedor, passando por um vale distante. Então o barulho desapareceu, eles deixa­ram para trás os destroços, e tudo o que podiam ver era a trilha íngreme e estreita à frente, nada mais que rocha nua e acúmulo de pedras na base dos penhascos. Era como se ali, nos limites das montanhas, o fim violen­to da história tivesse sido sempre apenas um transgressor ocasional, como uma maré de esforço humano varrida das planícies por um momento, mas voltando em seguida e deixando somente fragmentos de detrito e um eco desvanecido. A guerra que estava sendo empreendida agora poderia ter sido qualquer outra guerra que estivesse viva na memória, as guerras enfrentadas pelos britânicos, a guerra contra os soviéticos, guerras que surpreenderam e destruíram seu modo de vida através das planícies, mas deixaram as montanhas sem cicatrizes, quase inalteradas desde o dia em que John Wood fora para procurando as minas em 1836. Ali em cima, os humanos pareciam minúsculos, inconsequentes, e até mesmo o cul­tivo e os assentamentos dos vales davam a impressão de que podiam ser removidos num piscar de olhos. Pradesh havia dito a mesma coisa sobre a selva, sobre o rio Godavari. A selva e as montanhas eram lugares que não ofereciam nenhuma acolhida, lugares que os humanos nunca poderiam dominar.

Jack subiu o declive na frente dos outros. O caminho ficava menos óbvio à medida que se tornava mais íngreme, mas a rota era isenta dos lustrosos fragmentos de pedra, apoios para mãos, pés, por onde muitos haviam passado antes. A pedra era formada por xisto e dolomita, dura como a pedra de North Wales onde Jack aprendera a escalar. Ele aprecia­va isso nesse momento, movendo-se com velocidade por cima de aflora­mentos onde tinha que usar as mãos, desfrutando do frio, enchendo de ar os pulmões, sentindo-se limpo, revitalizado. As montanhas eram um lugar onde ele se sentia confortável, à vontade, da mesma maneira como se sentia bem debaixo d'água. Depois de aproximadamente vinte minu­tos, ele chegou à borda de uma saliência rochosa próxima do ápice do cume. Fez uma pausa para regularizar a respiração e ergueu o olhar. Um homem estava parado ali, à distância de alguns metros. Estava usando um turbante e uma túnica afegã, com uma grossa jaqueta de pele de carneiro por cima. Olhou fixamente para Jack com olhos verdes, penetrantes. Seu rosto era escuro e sulcado, e a barba tinha vestígios cinzentos. Jack presu­miu que o homem tivesse sua idade, mas seu rosto tinha uma expressão atemporal, como as montanhas que o emolduravam. Jack subiu e lhe es­tendeu a mão. - Mohamed Rahid Khan. Salaam.

Salaam, doutor Howard.

Ouviu falar de mim?

Nós também temos o History Channel, sabe? - disse Rahid, com um sorriso estranho. - Estive num internato na Inglaterra, antes que a guerra soviética me fizesse voltar para cá. Meu pai era ministro no antigo governo afegão. Desde seu assassinato, eu governo aqui.

Eu sei que você não tem muito tempo. - Jack puxou a cópia do livro de Wood, A nascente do rio Oxus, da mochila e entregou-o a ele.

Eu li este livro. - Rahid abriu-o com cuidado e leu silenciosamente durante um momento. - Mas nunca havia visto um com tantas anota­ções. Acho que você não está apenas seguindo o tenente Wood, doutor Howard. Acho que está seguindo os passos de outra pessoa.

Dois oficiais britânicos, em 1908. Oficiais aposentados, que estavam numa busca. Um deles era meu trisavô. Nós pensamos que eles vieram para cá, para cima deste vale.

Então nossos caminhos se cruzaram antes. Seus antepassados e os meus.

Eu sei.

um provérbio antigo sobre este vale.

Este aqui? - Jack fez uma pausa, depois disse: - Agur janub doshukh na-kham buro, zinaar murrow ba janub tungee Koran. Se você deseja não ir para a destruição, evite o vale estreito do Corão.

Rahid ergueu os olhos. - Como você sabe disso?

Jack lançou a cabeça para trás. - Um amigo do Quirguistão.

Rahid observou Altamaty, que surgia no declive. - Ele se lembra bem.

Ele lhe disse por que nós viemos?

Rahid estreitou os olhos. - Meu avô se lembrava do dia, um século atrás. Os membros de nossa tribo souberam que eles tinham vindo, e viu aqueles que perseguiam os dois viajantes subindo do vale para as minas. Depois meu avô foi para cima. Ele disse que tinha visto algo terrível, que os poços superiores eram assombrados, que ninguém deveria ir para lá. que eu era bastante valente, quando menino.

Nós achamos que outra pessoa aqui agora. Está nos seguindo, observando-nos. em cima, esperando.

Rahid estreitou de novo os olhos, depois olhou através do vale. - Esta terra é como minha pele. Sinto quando animais daninhos rastejando nela. Seu inimigo é meu inimigo. Inshallah. Mas hoje meus homens estão em guerra. Teremos vingança.

Seu inimigo é meu inimigo.

Rahid examinou Jack, mantendo seu olhar por um momento, então acenou com a cabeça. Enfiou a mão no casaco e retirou uma fotografia. - Você tem filhos?

Jack fez que sim com a cabeça. - Uma filha.

Esta é minha filha. - Jack olhou para o retrato de uma menina afegã sorridente e sem véu, o cabelo preto caindo nos ombros. - Se eu não lu­tar com eles, um dia eles farão com minha filha o que pouco fizeram com meu primo. Eles a chicotearão por andar sem véu. Eles irão mutilá-la por ler livros. E eles a estuprarão porque são animais.

Estes não são homens. Eles não têm nada a ver com Alá.

Rahid franziu os lábios. - O Taliban? Al-Qaeda? Os Wahabists estive­ram aqui desde a época dos britânicos, tentando nos incitar. Eles não têm nada a ver com o Afeganistão. E agora os recrutas deles veem do Ociden­te. Eles vão para os chamados acampamentos de treinamento, são muçul­manos jovens que acham que aprenderam a atirar jogando videogame e lançando uma rajada de metralhadora numa encosta de colina enquanto cantam versos sagrados. Meninos estúpidos, meninos gordos, com olhos muito juntos. Eles até fazem insignificantes exercícios de tiro ao alvo. E morrem facilmente também.

Katya e Altamaty chegaram à borda, e Costas pulou para cima atrás de­les. Ele tirou a luva e apertou a mão de Rahid, com voz ofegante. - Costas Kazantzakis.

Ah. - Rahid se curvou ligeiramente. - O perito de submersíveis que ganhou a Cruz de Marinha.

Jack lhe falou?

- Eu li nos jornais.

Jack lançou um olhar a Costas. - Rahid e eu estamos discutindo o Taliban. Nosso inimigo.

Nós estamos do mesmo lado, presumo.

Os olhos de Rahid pousaram sobre Costas. - Quando um Pashtun está levando tiros, ele mata a pessoa que está atirando nele. Quando os britânicos chegaram, nós os matamos. Quando os soviéticos vieram, nós os matamos. E agora os talibans vieram, e nós os matamos.

Mas vinte anos atrás, você poupou Altamaty - disse Costas.

Ocasionalmente nós levamos os reféns. E ele é quirguiz, não russo. Mas talvez eu devesse tê-lo matado.

Bem, agora é a sua chance - disse Costas.

Rahid franziu os lábios. - Não posso. Ele me trouxe a cabeça de uma ovelha.

O quê?

Aquela mochila, em cima. Quando ele veio aqui com a mulher, Katya. - Rahid apontou. Jack percebeu de repente. Isso explicava tudo. Ele suportara o cheiro ao longo do vôo, depois no jipe. Graças a Deus eles agora não tinham tempo para ferver a cabeça. - Quando nós o captura­mos durante a guerra soviética, foi isso que lhe dei para comer.

Foi por isso que você o poupou -, disse Costas. - Quando você o capturou, você o avaliou. Soube que ele traria esta cabeça, se ele viesse novamente para cá.

Rahid olhou para Jack, e gesticulou em direção a Costas. - Eu gosto deste homem.

É assim também na Grécia - disse Costas. - Onde os homens são homens.

Os homens - Katya murmurou, - são tolos.

Rahid guardou a fotografia da filha. - Basta disso. Tenho que ir logo. Venham comigo. - Ele os conduziu por trás da borda para uma caverna na encosta, escondida atrás de uma confusão de pedras que pareciam ter-se acumulado ali naturalmente. Atravessaram uma porta e entraram num corredor esculpido na pedra. - Esta era uma caverna natural, então meus antepassados a cinzelaram formando um refúgio na época da primeira guerra britânica, nos anos 1840. Os homens que fizeram isto trabalha­ram na mina de lápis-lazúli, portanto, sabiam o que estavam fazendo. Nós vivemos aqui durante a guerra soviética. Temos nosso próprio ge­rador, energia solar. Os soviéticos tentaram destruir a caverna pelo ar, mas eles não tinham bombas bunker-busting. Tentaram inúmeras vezes um assalto por terra. Era isso que Altamaty estava fazendo aqui. Mas a encosta inteira é cheia de armadilhas projetadas para matar ou ferir gra­vemente as pessoas. Mesmo agora, vocês subiram por aquele caminho e permaneceram vivos porque eu sabia que vocês estavam vindo. - Ele abriu uma porta de aço corrediça no fim do corredor, acendeu uma luz e desconectou um equipamento usado para reduzir o vapor de água no ambiente que estava pulsando num canto. - Este quarto é nosso arsenal. Meus homens levaram nossas armas modernas, mas bastante aqui para o que vocês precisam.

Eles entraram atrás de Rahid. As paredes eram cobertas de prateleiras de madeira para armas, a maioria delas vazias, mas havia ainda várias dú­zias de armas. Circulava no ar um cheiro de lubrificante de arma, e tudo estava imaculado. Jack caminhou até a prateleira mais próxima. No topo havia uma espingarda longa e ornada, antiga, de carregar pela boca, com um extravagante cabo curvo e anéis decorativos trabalhados em metal em cima do cano. - Um jezail - disse Jack. - Trava de mosquete, cano sem raias, início do século 19.

Rahid olhou para ele de maneira apreciativa. - Você conhece armas.

Uma tradição de família.

Meus antepassados mataram com todas estas. Eles se mantinham prontos para atirar.

Assim estou vendo. - Debaixo do jezail havia vários mosquetes de percussão, espingardas da Companhia das Índias Orientais similares àquela da cabine de Jack no Seaquest II. Abaixo delas encontravam-se meia dúzia de rifles Martini-Henry, com monograma da rainha Victoria nos receptores. Nas prateleiras do meio havia um Snider-Enfield de carrega­mento pela culatra, com a data 1860, visível na trava. Pradesh apontou para a extremidade da coronha. - Olhem isso - ele disse. - O disco timbrado do próprio Grupo de Sapadores e Mineiros da Rainha de Madras. Meu regimento, e o de John Howard. Ele pode ter tocado nesta arma, Jack.

Todos estes rifles foram tirados dos britânicos - disse Rahid. - O Snider-Enfield foi recuperado no campo de batalha em Maiwand, em ou­tubro de 1880. Era usado por um sargento britânico que lutou até a últi­ma bala, defendendo seus sapadores indianos. Seu nome era O'ConneII. É esse o significado daquelas letras persas na coronha. Elas foram escul­pidas por membros da tribo que encontraram o nome dele nas medalhas. Respeitamos nossos inimigos quando eles são valentes. Nós nos sentimos honrados em levar e usar as armas deles.

Pradesh olhou para Jack. - Alguns dos sapadores foram transferidos para da selva de Rampa, não muito tempo depois do incidente com o navio a vapor no rio. Esse sujeito pode até mesmo ter sido um dos ho­mens de Howard.

Jack tocou a coronha do rifle, olhando o lugar onde havia um conserto cuidadoso perto da coronha, um pedaço mais escuro de madeira indiana inserido na madeira de nogueira inglesa. Ele pensou por um momento nos sapadores naquele dia em 1879 no rio Godavari, a cerca de mais de mil quilômetros deste lugar. Ele deu um passo atrás. Os restantes eram Lee-Enfields, os rifles Mark 3, com um cano menor que três polegadas, feitos pela Ishapore, uma fábrica de armamento na Índia, como também o posterior rifle Mark 4 do Arsenal de Armas Canadense Long Branch, muitos deles renovados com mogno indiano.

Nós ainda usamos estes - disse Rahid. - Os .303 têm um impac­to maior do que as munições apropriadas ao padrão militar moderno, e o Lee-Enfield é altamente preciso, com uma capacidade notável de fogo para uma arma manual de ferrolho. Desde o tempo do jezail, nós fomos ensinados a matar com uma única bala. Qualquer um de meus homens com um Lee-Enfield pode dar conta de um grupo inteiro de talibans que carregam armas automáticas que não sabem usar.

Eles não são como o sargento sapador. Eles são um inimigo que nós menosprezamos. Nós profanamos o corpo deles e destruímos suas armas.

Jack olhou novamente os rifles, parando em um com mira telescó­pica. - Long Branch, Número 4, Mark 1, 1943 - ele murmurou. - Foi com este rifle que aprendi a atirar. - Ele o retirou da prateleira, conferiu o comprimento da coronha, então levantou a cobertura de couro da lente ocular. - Binóculo padrão 1918, número 32, mark 1 - ele murmurou.

3.5 vezes de ampliação. - Ele empurrou a trava de segurança, soltou a cabeça do ferrolho, depois levou o rifle até a luz e examinou atentamente o cano da espingarda. - Está em perfeito estado

Nós cuidamos de nossas armas - disse Rahid.

Jack recolocou o ferrolho no lugar, puxou a alça para cima e para bai­xo, empurrou-a para diante e para baixo a fim de armar o cão, apertou o gatilho, repetiu o processo, mas deixando o ferrolho estalar atrás, depois a empurrou adiante enquanto puxava o gatilho. Provocou estalidos com a câmara de repetição e pressionou para baixo o receptor, sentindo a tensão da mola. Rahid lhe deu uma bandoleira de cor cáqui com cinco cartucheiras. Jack a colocou em cima do ombro esquerdo, sentindo o peso da munição. Abriu uma cartucheira e tirou um pente contendo cinco balas.

É um .303 britânico, Mark 7 - ele disse. Puxou para trás o ferrolho do rifle, encaixou o pente no receptor e liberou as balas dentro da câmara do rifle com o polegar, então repetiu o processo com outro pente de balas.

Fechou o ferrolho sobre elas e depois a trava de segurança com o polegar. - Vou levar este rifle; não precisarei de habilidade para mirar.

O binóculo está ajustado para 270 metros. fiz isso.

Não é uma distância muito grande - murmurou Costas.

Nós não tínhamos binóculos quando destruímos o exército britânico dos indianos com nossos jezails em 1841 - Rahid replicou veementemente.

Entendi.

Pradesh estendeu a mão e retirou um dos rifles Ishapore da prateleira de cima, inspecionando-o rapidamente. - Pedirei emprestado um destes, se você não se importar.

Jack passou dois pentes da bandoleira para Pradesh, que os colocou em seu rifle. O receptor de rádio de Rahid se iluminou, e ele falou depressa. Ele o fechou, depois deu para Jack um tecido comprido de turbante cin­zento velho e um par de luvas grossas de pele de carneiro, sem separação para os dedos. - Use o tecido para camuflar o rifle. Olhe no binóculo fora da luz solar. Mantenha suas mãos aquecidas nessas luvas até ter que apertar o gatilho. Nós temos que partir. - Ele os conduziu de volta para a entrada da caverna, então se voltou e falou com Jack, baixinho. - Eu lhe contarei o que você precisa saber. Quando meninos, nós brincávamos nas minas de lápis-lazúli. Eu conheço todas, cada derradeira passagem, cada recanto e cada fenda. Logo abaixo do cume superior três poços, que não são visíveis do chão do vale. Eles estão em uma fileira acima dos lo­cais de exploração principais, afastados dos poços onde houve exploração de lápis-lazúli mais recentemente. As explorações nos locais superiores são poços velhos, muito velhos, onde não se encontra mais lápis-lazúli de boa qualidade. Quando éramos meninos nos disseram que eles eram poços que foram trabalhados na época dos antigos egípcios, de Alexandre, o Grande. Era para que meu avô nos dizia para não ir nunca, porque se fôssemos, um demônio guardião nos devoraria. Mas eu lhe disse que eu fui uma vez. O que você procura está no poço central, aquele que é pou­co visível do caminho que você irá tomar e que leva para cima do vale.

Ninguém mais vai lá?

Ao longo de gerações nós controlamos as minas. Durante a guerra soviética vendemos lápis-lazúli para comprar armas. As minas estavam sob meu controle e de meus antepassados. Nossa palavra era lei. Proi­bimos qualquer um de ir para as antigas escavações sob pena de morte. Era o que meu avô queria. Foi somente com o surgimento do Taliban que nosso controle se afrouxou, quando tivemos que olhar para outro lugar, defender nossas aldeias, como aquela que está sendo atacada ago­ra, do outro lado do vale. Mesmo assim, tenho certeza de que as minas não são perturbadas. Agora, apenas os poços mais baixos produzem o lápis-lazúli de classe superior. E ninguém que viva nestas montanhas sobe acima do que é absolutamente necessário para eles. em cima se encontrará a morte.

Enquanto ele estava falando, os outros andavam em fila atrás. Houve um relincho em algum lugar abaixo, depois um berro estranho e som de patas no chão. Katya prendeu a respiração. - Você tem o akhal-tekel

Rahid a encarou. - Você o conhece - ele disse baixinho. - É claro. Você me contou. Sua família é do Cazaquistão.

Nenhum outro cavalo emite um som como esse - ela disse, com a voz sumindo. - E o grito de guerra do akhal-teke.

Eles correm solitários pelo vale. Este é um dos últimos lugares onde eles são conservados puros. E por essa razão que nós os mantemos dis­tantes de estranhos.

Você os cria? - perguntou Costas.

Rahid fez uma pausa, depois olhou para ele. - Eu sou o herdeiro mas­culino direto de Qais Abdul Rashid, progenitor de todas as tribos de Pashtun - ele disse. - Ele, por sua vez, era descendente do clã que vivia neste vale antes de Alexandre, o Grande. Meus antepassados criaram o akhal-teke para o primeiro imperador da China, Shihuangdi, depois que seus guerreiros vieram até aqui procurando por eles.

Katya o olhou, atordoada. - Seu clã é de criadores dos cavalos impe­riais? - ela perguntou. - Nós pensávamos que eles tinham todos passados para a história.

Nós somos os últimos. Os nossos são os últimos animais puro-sangue remanescentes.

Você ainda atende pedidos? - perguntou Katya baixinho. - Os guer­reiros ainda vêm aqui?

- A palavra de um Pashtun é seu juramento. Meu antepassado deu sua palavra sessenta e seis gerações atrás.

Quando foi a última vez que eles vieram? Jack lhe disse que acho que estamos sendo seguidos?

O juramento era de sigilo.

Eu sentia o akhal-teke perto de Issyk-Gul - Katya murmurou. - Eu ouvia aquele barulho, e sentia o cheiro.

Nosso juramento era para Shihuangdi e para aqueles que podem nos provar que são os guardiães eternos dele.

A fraternidade do tigre - disse Costas.

Katya tirou do bolso uma fotografia. - Você quer dizer aqueles que podem lhe mostrar isto. A tatuagem.

Rahid permaneceu silencioso, olhando para o vale. Houve uma sú­bita tensão no ar. Jack lançou a Costas um olhar de advertência, e Katya percebeu. Ela guardou a fotografia e confrontou Rahid. - Você sabe que a fraternidade está corrompida. Aquele que a controla agora foi tentado, e a controla como se ele fosse a reencarnação do próprio Shihuangdi. Ao fazer isso, ele quebrou seu juramento ao imperador. O juramento de seu clã não é mais obrigatório.

Rahid olhou para ela silenciosamente, e depois disse: - Duas semanas atrás, um grupo de uma companhia de mineração veio para o vale, reivin­dicando que eu devia submissão a eles. Oito homens, prospectores. Eles queriam que eu os levasse para as minas de lápis-lazúli.

Uma companhia de mineração - Jack murmurou. - Chinesa?

INTACON.

Jack prendeu a respiração. - O que você fez?

Eu lhe contei o que nós fazemos. - Rahid apontou para o rifle nas mãos de Jack. - Meus antepassados prestaram juramento à fraternidade, não a esses animais. Eu os matei todos.

E o outro? - Jack perguntou baixinho. - Aquele que os seguia, onde está agora? Esperando por nós?

Rahid tocou o rifle, e olhou fixamente para Jack. - Seu inimigo é meu inimigo. Deus esteja com você. Inshallah.

Jack olhou-o nos olhos intensamente e compreendeu. Pela passagem da entrada eles ouviram o som de fogo de artilharia distante, e então o berro do cavalo, um som estranho, enervante. Katya ainda parecia distraí­da pelo som, transtornada. - Posso tocá-lo? - ela perguntou. - Não toco em um deles desde que era criança.

Rahid sacudiu a cabeça. - Agora não. Quando você voltar. Quando você devolver aquele rifle, com uma bala faltando. - Ele olhou para Jack, depois apontou o caminho para as montanhas. - Essa é a sua rota.

Jack estendeu a mão. - Tashakkurr. Eu lhe devo.

Rahid a sacudiu. - Este é o nosso código. Pashtunwali. Hospitalidade para os viajantes.

Mas não para todos eles - disse Costas.

Não, não para todos. Você tem tido sorte. - Rahid bateu nas costas de Costas. - Salaam. Agora vá. - Ele se voltou e desapareceu do outro lado do caminho. Alguns momentos depois eles ouviram o som de um relincho, depois o ruído de tropel de cascos, diminuindo declive abaixo. Então o barulho desapareceu, e tudo o que Jack ouviu foi um sussurro de vento passando pelas pedras, um vento afiado e seco que vinha dos cumes do Indo Kush. Jack colocou o rifle em cima do ombro esquerdo e olhou para cima do vale. Tirou a Beretta da mochila e deu-a a Costas. Pradesh ergueu seu rifle e passou seu revólver para Altamaty. Eles sabiam que Katya tinha sua própria baioneta. Costas puxou para trás o ferrolho da Beretta, armando o percussor, afrouxando-o até a posição de seguran­ça e enfiou a arma no bolso de seu casaco. - Eu estou pronto - ele disse.

Eu conduzirei - Jack disse, caminhando adiante.

Não. - Pradesh, cortesmente, colocou-se ao lado de Jack e passou à frente, tomando a direção para subir o caminho. Jack cedeu, e olhou para o relógio. - Levaremos duas horas para chegar lá, de acordo com Rahid. O que quer dizer que chegaremos no meio da tarde. O que os afegãos que vivem nestas montanhas provavelmente fazem em duas horas apenas. O ar está bem rarefeito, e nós não estamos aclimatados. É melhor continu­armos andando. Não queremos chegar em cima depois de escurecer.

Costa calçou um par de luvas de lã. - Entendido.

 

Duas horas mais tarde, Jack abaixou o rifle e se sentou numa pedra, esperando que os outros o alcançassem. O frio penetrante do iní­cio da manhã se fora, mas ele sabia que se ficasse sentado durante alguns minutos ali o frio voltaria com ímpeto e pareceria ainda pior por falta de sono e de comida. Ele pegou seus binóculos e esquadrinhou a fenda que se estreitava à frente, nas montanhas, procurando sinais de movimen­to, o flash indicador de luz solar incidindo contra o metal. Ainda nada. Colocou os binóculos em outro lugar e anotou mentalmente que devia evitar usá-los novamente, a menos que fosse absolutamente necessário. Se ele tivesse que usar o rifle, precisava estar em sintonia com aquilo que pudesse ver a olho nu, tinha que ser capaz de avaliar distâncias, sen­tir a diferença, a uma distância de novecentos metros, entre uma pedra e uma forma animada. Olhou para o cume acima, ao longe, piscando sob a luz solar severa. O vale tinha se tornado mais estreito e mais alto à medida que eles avançavam pelas montanhas. A fenda à frente não tinha mais que duzentos metros de largura, pedra nua e acúmulo de pedras em ambos os lados, o solo entre os dois lados era seco e cheio de rachaduras. Eles tinham seguido o conselho de Rahid e se mantiveram no caminho mais alto, cerca de uns bons cem metros acima do chão do vale. Jack estendeu o braço para baixo e apanhou um pedaço de pedra. Apesar do ar gelado ela estava quente, assada pelo sol. Não havia nada de azul nela, mas era denteada, fraturada. Os acúmulos de pedras à fren­te poderiam ser resíduos da mina, escombros resultantes de milhares de anos de mineiros cortando e escolhendo pedra, acendendo fogueiras para quebrá-la e expor os veios do precioso azul. Jack olhou novamente para os declives. O que via se ajustava exatamente com a descrição no livro do tenente Wood. Percebeu que ele devia estar olhando para as len­dárias minas de Sar-e-Sang. O coração dele começou a bater forte. Esta era a própria.

Os outros quatro chegaram em cima por trás. Costas se deixou cair ao lado de Jack, e Pradesh se ajoelhou numa pedra, com o rifle sobre os joelhos. Altamaty apontou para uma cortina de poeira acima do chão do vale, e Katya subiu numa pedra para acompanhar o olhar dele. Jack sabia que ela andara olhando à procura dos cavalos desde que eles haviam dei­xado Rahid. Eles não tinham visto nenhum, mas ela havia dito para Jack que Altamaty vira sinais que ele podia discernir, pois se tornara sensí­vel por sua criação nômade. Jack olhou para o chão do vale. Não viu ne­nhum cavalo, mas pessoas, um homem e um menino. Estavam parados diante de uma barraca armada entre os seixos na base do declive oposto, envoltos em pele de carneiro, e um fio de fumaça subia diante deles. Estavam distantes cerca de seiscentos metros, talvez setecentos. Jack fez uma anotação mental de seu tamanho àquela distância e deixou que seus olhos vagueassem para cima do declive atrás deles, olhando para as ro­chas e cumes, para pontos de esconderijo, dimensionando a inclinação do agrupamento de pedras e a distância, que aumentava à medida que o declive seguia para o cume uns quinhentos metros acima.

- Vamos dar um alô? - Costa esfregou as luvas uma contra a outra, para se proteger do frio, apertando a de carneiro do forro. Gostei do aspecto daquele fogo.

Jack sacudiu a cabeça. - Rahid disse para não acender fogo. Quando os mineradores sobem aqui, eles usam dinamite, e algumas das pessoas que foram atraídas para trabalhar para eles, também servem ao Taliban fora da temporada de mineração, quando os mineiros vão embora, fazendo bom­bas. Provavelmente é o que eles estão fazendo aqui agora. Está muito frio para a mineração e não colheita nos vales. Os talibans gostam de ter os homens que fabricam bombas aqui em cima, porque se algo der errado é tratado como acidente, ninguém fica sabendo ou se preocupa. As bombas são levadas principalmente para ser usadas em Kabul e no sul, mas o Taliban, em Feyzabad, recentemente ofereceu uma recompensa pela morte de ocidentais, e essas pessoas aqui em cima podem ficar tentadas a usar uma bomba contra nós. Eles não têm terra, nenhuma outra fonte de ren­da. E para pessoas desesperadas suicidar-se com bombas se tornou uma rota fácil para o paraíso. Nós precisamos ter cuidado.

Eles não verão nossas armas? - perguntou Costas.

Todo mundo aqui carrega armas - Katya disse. - Eles provavelmente pensarão que somos prospectores. Outros vieram aqui para cima.

Inclusive aquele que está atrás de nós.

Ele será invisível - Katya disse. - Ele é um francoatirador. Aquele homem e o menino devem ter nos visto agora, mas não o viram.

Vamos dar uma olhada novamente naquela passagem do relato de Wood - disse Costas. - Precisamos manter nossa determinação e conti­nuar andando. - Seus dentes estavam batendo, e Pradesh passou a garrafa térmica com o chá que havia feito ao lado do jipe. Costas pegou-a, agra­decido, girando a tampa. Enquanto ele se servia, Jack tirou A nascente do rio Oxus e leu em voz alta um trecho marcado:

Onde se encontra o depósito de lápis-lazúli, o vale do Kokcha tem aproxi­madamente 180 metros de largura. Em ambos os lados, as montanhas são altas e nuas. A entrada para as minas fica na frente da montanha, na mar­gem direita da barragem da correnteza, aproximadamente a quinhentos metros acima de seu nível. A formação é de pedra calcária preta e branca, não estratificada, entretanto, ela apresenta abundância de linhas marmóreas. O ápice das montanhas é íngreme, e suas encostas, destituídas de terra ou vegetação. O caminho em direção às minas é íngreme e perigoso.

Costa terminou o chá e passou a garrafa térmica para Pradesh, exami­nando a rota à frente. - íngreme e perigoso - ele murmurou. - Você pode repetir isso.

Você pode ver algumas das entradas de poços de minas ao longo do declive à nossa frente, do nosso lado do vale - disse Katya. Jack pendurou seu rifle no ombro e se levantou. Agora ele sentia o frio tocando seu âma­go. Esse lugar tinha uma beleza absoluta, mas também um perigo brutal. Um lugar que não proporciona refúgio. Ele subiu ao lado de Katya na rocha e seguiu seu olhar. Acima dos refugos da mina ele podia ver as entradas dos poços, pelo menos meia dúzia delas, buracos negros na pedra. Em algum lugar mais alto estavam aqueles que eles buscavam, três deles perto do cume. - Se Howard e Wauchope viessem aqui, eles não iam ter nenhuma ideia de qual poço continha o que eles estavam buscando.

-Você quer dizer a jóia - disse Costas. - Aquele lápis-lazúli.

Jack acenou com a cabeça. - A única pista que achamos que eles ti­nham era a inscrição do santuário na selva, insinuando que Licinius tinha escondido seu tesouro em algum lugar aqui em cima nas minas, no seu rumo para o sul da Rota da Seda em direção à Índia. Howard e Wauchope poderiam ter ficado aqui durante dias, procurando em todos os poços. Nós deveríamos dar a impressão de estar fazendo o que eles fizeram. Não queremos dar nenhuma pista de que sabemos para onde vamos. Se isto é o que Katya pensa que é e se o francoatirador tem seu rifle consigo, o caminho mais curto e direto para o poço no topo, identificado por Rahid, deve ser o último caminho difícil que qualquer um de nós vai tomar.

Então, o que vai acontecer se ele nos descobrir? - perguntou Costa. - Ele não vai deixar que saiamos caminhando daqui.

Jack saltou da pedra. - Altamaty subiu aqui uma vez quando ele era prisioneiro de Rahid e se lembra de um par de sangars feitos por ele, mu­ros de pedras empilhadas, usados como proteção contra ataques aéreos. Pradesh e eu discutimos isso durante o caminho aqui para cima. Ele vai encontrar um desses e se pôr com seu rifle. Os sangars estão aproximadamente a meio caminho da subida do declive. Abaixo deles ficam os poços principais, os que ainda são explorados. Katya e Altamaty, sugiro que vocês explorem esses. Costas e eu vamos subir acima de Pradesh, procurando esses três poços superiores. Nosso francoatirador deve estar em algum lugar no lado oposto do vale, com o melhor campo de tiro para o declive inteiro. Se nós nos separarmos, Altamaty e Katya embaixo, Pradesh no meio, e Costas e eu mais no alto, então isso dividirá a atenção dele. Ele ainda não sabe qual de nós é seu alvo, e não vai poder se concen­trar em quem o esteja mirando. Se ele estiver aqui, está nos vendo e sabe que dois de nós temos rifles.

Costa virou-se para Jack. - Então, o que exatamente estamos procu­rando?

Rahid disse que está em cima. Ele parecia saber atrás do que estou.

Algum detalhe? Como um mapa de tesouro?

Ele me contou o que eu precisava saber. Tudo o que ele disse era que está na caverna central. Ele entrou quando menino. Ninguém mais vai lá. Eles pensam que o lugar é assombrado.

Oh, legal. - Costa fez uma pausa. - Se ele tivesse encontrado a joia, ele não a teria levado? Ou não nos daria mais detalhes, como nos dizer onde procurar no poço da mina?

Ele me contou o que eu precisava saber - Jack repetiu. - Eu confio nele.

Você acha que alguma outra coisa em cima.

Katya falou baixinho. - Não se trata apenas do que nós vamos encon­trar. Trata-se de Shang Yong. Ele acha que estamos na pista dajoia levada por Licinius, que nós vamos conduzi-lo até lá. Isso é o que o franco-atirador quer ver. Durante anos eles pensaram que a joia estivesse escon­dida na selva, desde a conferência de John Howard em Londres, quando a história da tumba chegou à fraternidade. E agora eles estão no mesmo rastro que nós, seguindo as mesmas pistas. Até mesmo se eles não ti­vessem torturado meu tio para obter o que ele sabia antes que morres­se, eles podiam ter visto a inscrição eles mesmos, a palavra sappheiros, lápis-lazúli. E é aqui que isso termina. O guerreiro tigre nos mata, ou nós o matamos. Se tivermos sucesso, o poder de Shang Yong acaba. Ele exerce poder sobre a fraternidade pela força e intimidação. Sem seu adepto inescrupuloso, a fraternidade se revoltará contra ele, enfrentará a corrupção dentro dela. Eles voltarão a proteger a eternidade do primeiro imperador, de Shihuangdi.

E se formos embora agora? - perguntou Costa.

Então haverá outra confrontação, e as vantagens contra nós serão até maiores. Se nós deixarmos Shang Yong acreditar que ele ganhou, então seu mundo parecerá inviolável. Para ele, a joia celestial é um estado men­tal. Era o que meu tio mais temia. Na recriação de Shang Yong da tumba do primeiro imperador, em sua projeção fantasiosa dos céus, ele está a meio caminho de acreditar que a joia está lá, em seu legítimo lugar, acima dele, dando-lhe a imortalidade que almeja. Se nós desistirmos da busca, então a ilusão pode se tornar completa. Precisamos que ele acredi­te que a joia ainda pode ser achada, manter uma pequena dúvida naquela parte dele que ainda sabe que o que ele criou é uma ilusão. Precisamos manter essa porta aberta. Se ele permanecer encerrado dentro de sua ilusão, então o mundo se tornará um lugar muito mais amedrontador. Verdadeiramente, parecerá que Shihuangdi despertou, e temos que fazer tudo o que estiver em nosso poder para impedir isso. muito mais em jogo aqui do que encontrar uma joia antiga.

Os olhos de Jack estavam duros como o aço. Ele olhou para Katya, de­pois para a parte de cima do vale. Pendurou o rifle no ombro e olhou para o relógio. - temos três horas de luz do dia. Vamos embora.

Uma hora mais tarde, Jack e Costas se sentaram encostados no declive cheio de pedras, não longe do cume, depois de ter seguido um caminho traiçoeiro, passando por cima de saliências e superfícies curvas de rocha frágil. Estavam agora a 4 mil metros de altura, e Jack abriu e fechou a boca para diminuir a pressão nos ouvidos. Durante o tempo todo tinham consciência de que estavam sendo observados, possivelmente pelo visor de um rifle, mas haviam admitido a hipótese de que se tornariam alvo so­mente quando mostrassem alguma evidência de ter chegado ao fim de sua busca. Estavam a menos de cem metros abaixo dos três poços da entrada da mina que Rahid mencionara para Jack. Eles se enfiaram num rego formado por uma barreira de saliências rochosas da mina, que os escondia do declive oposto do vale. Jack se ajoelhou na rocha cheia de cascalho e esforçou-se para ir até a extremidade, com o rifle ao seu lado. Podia ver Pradesh numa depressão no cascalho, cerca de cento e cinquenta metros abaixo, com o rifle posicionado ao lado de uma pedra. Em algum lugar mais embaixo estavam Katya e Altamaty, explorando a fila de entradas de poços mais próximas do chão do vale.

Atirando em fantasmas que se escondem atrás de pedras em uma colina - Jack murmurou.

O quê?

O que disse um soldado britânico da primeira guerra afegã - disse Jack. Costas se acomodou pesadamente ao lado de Jack e rolou sobre os cotovelos. Estava arquejante, e sua respiração se cristalizava em nuvens no ar imóvel. - Devia ter trazido meu telêmetro à laser.

Os guardas florestais canadenses me ensinaram a calcular a distân­cia na planície das regiões árticas, onde o fundo branco faz que o alvo se destaque. Seu ponto de referência era um lote de sondagem de quarenta hectares, com pouco menos de setecentos metros de lado. É uma distân­cia com a qual as pessoas estão habituadas no Canadá, e foi dessa maneira que a terra foi dividida em lotes ali. Os guardas florestais pensavam que era por ser essa a distância máxima para se dar um tiro mirando com o olho, com uma espingarda .303, sem precisar da ajuda de um visor. Além dessa distância, você tem pouca chance de distinguir uma forma humana parada, especialmente se for um fundo rochoso como este.

A menos que você tenha olhos de águia, como nosso oponente.

Jack olhou para o altímetro em seu relógio. - Baixei um mapa topográ­fico antes que saíssemos de Bishkek. A distância do chão do vale ao topo do cume é de aproximadamente quinhentos metros. O tenente Wood calculou certo em 1836, mil e quinhentos pés ou 450 metros. Nós esta­mos talvez a pouco mais de cem metros abaixo do cume, e o aclive que estamos subindo deve ter em média pelo menos quarenta e cinco graus.

Um triângulo isósceles - murmurou Costas. - Isso uma distância até o chão do vale de cerca de quatrocentos metros. Mas nosso francoati- rador poderia estar em qualquer lugar acima disso no declive oposto, e também a distância lateral.

Você tem que se pôr na mente dele - disse Jack. - Vamos admitir que ele tenha chegado aqui com bastante tempo para escolher sua po­sição. Ele quer ter uma visão de todas as entradas dos poços das minas, está certo? Ele não sabe qual delas vai ser seu alvo. Os poços acima des­te ponto, perto do cume, são os mais distantes da encosta oposta. Rahid disse que eles são pouco visíveis do caminho que se estende do chão do vale, a continuação daquele pelo qual viemos. Isso lhe proporciona uma distância mínima para o alvo mais distante possível, onde nós estamos agora. Ele vai querer se posicionar de maneira equidistante entre os alvos possivelmente mais distantes em cada lado. Isso o coloca em um cone de probabilidade centrado naquela fenda larga que você pode ver acima do caminho oposto a nós.

Lembre-se do que Katya disse sobre como esse sujeito é bom. Você está pensando em setecentos metros, mas talvez ele possa fazer novecen­tos, mil e cem, ou até mais.

Jack acenou com a cabeça. - Ele também vai levar em conta um fran­co-atirador como adversário. Ele viu nossos rifles, mas vai assumir que nenhum de nós é treinado. Lembra-se do que Rahid disse sobre os recru­tas do Taliban e sua funesta perícia em tiro ao alvo. É com isso que esse sujeito está acostumado, onde quer que ele tenha trabalhado em zonas de guerra ao redor do mundo. Meninos soldados, terroristas que atiram rajadas com Kalashnikovs. Ele nunca se sentiu muito ameaçado. No tra­balho de francoatirador oponente, você tem sempre que tentar achar uma fraqueza em seu adversário, e esse é o jeito dele. Ele acha que é o mestre deste vale, mas não é.

Você tem que acreditar nisso, Jack.

É a psicologia do francoatirador. A pessoa precisa ter completa con­fiança em si. Essa é a força fundamental do francoatirador, mas é também uma fraqueza. Confiança cria super-confiança.

Costa deslizou pelos refugos da mina para dentro do rego. - Apenas espero que você não fique com tremores. Meus dentes estão começando a bater e não tenho certeza se é por causa do frio. Vou dar uma olhada naquele poço acima de nós. Mas eu vou descer e ver Pradesh primeiro. Ele precisa saber sobre aquele cone de probabilidades.

Bom. Quanto mais movimento nosso oponente vir, mais tempo te­remos.

Quanto tempo?

Não muito. Ele vai querer atacar antes de escurecer. Está vendo que não estamos equipados para passar a noite aqui em cima. Ele vai ficar pro­curando algum sinal de que encontramos o que estamos buscando.

Você acha que ele sabe que temos conhecimento dele?

Ele viu Katya. Ele sabe que ela deve ter nos falado dele. Ele viu que nos separamos para subir. Poderia adivinhar por quê.

Se eu estiver erguendo minha cabeça acima da superfície, quero que me cubra.

Entendido.

Costas tremia de frio e batia os braços ao redor do corpo; passou por cima dos refugos da mina e desceu até o local onde Pradesh era visível no sangar abaixo. Costas deslizou de modo desajeitado pelo acúmulo de pe­dras, ficando completamente exposto. Jack estava muito mais preocupado do que deixara transparecer. Se o francoatirador fosse tão bom, mesmo que somente a metade do que Katya dissera que era, o primeiro objetivo dele seria Jack, ou Pradesh. Ele procuraria se livrar primeiro dos dois ri­fles, a única ameaça para ele, depois apanhar o restante deles sem pressa. Jack fechou os olhos, e tentou se pôr na mente do outro homem, que estava em algum lugar, no lado oposto do vale, olhando intensamente para eles, os olhos indo de Katya e Altamaty para Pradesh, para ele, vendo Costas descer o declive. Jack abriu os olhos, examinando o espaço aberto e procurando algum sinal no declive oposto, mas ainda não vendo nada.

O barulho que Costas fez ao tropeçar abaixo nas pedras reverberou pelo vale. Jack rezou para que ele estivesse certo, que o rifle fosse apon­tado primeiro para ele, e não para Pradesh. Ele respirou fundo algumas vezes e se forçou a se levantar, segurando o próprio rifle, tornando-se um alvo claro durante alguns momentos, depois voltou para trás das pedras.

Seu rifle tinha binóculo; o rifle de Pradesh, não. Ele tirou as luvas de pele de carneiro, lembrando-se do que Rahid havia dito. O frio entorpeceria seus dedos e tornaria seu tiro ineficaz. Mas com aquele ato simples ele estava se comprometendo mentalmente com a tarefa à frente. Tinha que acreditar que seu oponente também estava equilibrado para a ação. De­sembrulhou o Lee-Enfleld do pano do turbante. Jack tentou retirar tudo da mente, exceto o rifle e o alvo. Começou a respirar lenta e profunda­mente, parando depois de algumas respirações antes de inalar novamen­te, tentando reduzir a velocidade com que seu coração batia. Tateou a parte dianteira do rifle, secou o óleo de linhaça na madeira de nogueira, testou o cabo. Segurou o rifle com a mão esquerda e usou a mão direi­ta para arrumar o pano onde os cotovelos se apoiariam, protegendo-os contra as partes denteadas da pedra. Envolveu o braço direito na tipóia, mas não muito apertado, lembrando que a pulsação das artérias poderia ser suficiente para sua pontaria se desviar completamente do alvo àquela distância.

Jack removeu as coberturas das lentes e a tampa dos ajustes laterais e de elevação da torre do binóculo, mas manteve uma tira de tecido de tur­bante em cima da lente dianteira para minimizar a chance de reflexo. A mais leve cintilação, o mais leve movimento, poria tudo a perder. Assim que o oponente soubesse que ele estava tomando posição, a espera acaba­ria, e os outros seriam os alvos principais. A menor vacilação poderia pôr a vida de todos eles em perigo. Ele soltou a trava de segurança do rifle, depois puxou o ferrolho para trás. Viu o brilho do cartucho na câmara, empurrou o ferrolho para diante, viu o cartucho saltar e se introduzir na câmara, depois sentiu a resistência quando empurrou o ferrolho de volta e soltou suavemente a alça. Ergueu o rifle, com cuidado para não deixar que a boca do cano aparecesse acima das pedras. Moveu-se para cima no declive, nivelando o rifle e depois abaixando, prendendo a parte dianteira em uma fenda na rocha, apontando para o caminho que se estendia pelo declive oposto do vale. Olhou ao longo da lateral do binóculo, tentando medir a distância a olho nu. Escolheu a pedra que tinha estudado com Costas. Setecentos metros. Ficava numa inclinação descendente, mas o ar estava rarefeito, seco, e a resistência menor compensaria a gravidade extra. Jack estendeu a mão e tateou à sua volta. Não havia nenhuma vegetação para medir a velocidade do vento, mas ele era virtualmente inexistente, um formigamento no rosto vindo do norte. Ele colocou a mão no ajuste lateral da torre de elevação, girando-o um ponto. Deixou a mão direita escorregar até a alça do gatilho, depois puxou com força a coronha em di­reção ao ombro, apoiando a bochecha na madeira da coronha. Mantendo os dois olhos abertos, com o olho direito no binóculo, moveu-se ligeira­mente para trás para conseguir uma posição mais confortável para o olho. Era um binóculo de retícula simples, e apesar da ampliação de três vezes e meia, a pedra parecia ainda muito distante. Ele se lembrou do que lhe haviam ensinado. Projetou a mente na direção do alvo, até imaginar a si­lhueta escura de um corpo nas pedras, depois a bala indo na direção dela, ficando menor à medida que a silhueta se tornava maior. Sem mover a cabeça, deu uma olhada ao redor. O alvo ainda podia estar, de seu ponto de mira, visível através do binóculo. Ele curvou o dedo indicador ao re­dor do gatilho, puxando-o sem interrupção no primeiro estágio, sentindo a resistência. Respirou profundamente, inspirando o forte cheiro metáli­co da pedra, e expirou pela metade. Parou de respirar. Ficou imóvel.

Olhou pelo binóculo. Mostre-se.

De repente, Jack notou movimento no chão do vale. Seu coração co­meçou a bater forte. Desesperadamente queria que seu coração se acal­masse. onde uma cortina de poeira flutuara no alto do outro lado do vale, uma forma emergia. Era um cavalo, mas sem cavaleiro, a meio ga­lope ao longo do leito seco do rio que corria no meio do desfiladeiro. O cavalo passou pela tenda que eles tinham visto entre os seixos e parou aproximadamente noventa metros além, lançando a cabeça para cima e batendo as patas no chão. Jack se manteve imóvel. Então ele viu outra figura, caminhando no lado oposto do declive, abaixo dele, em direção ao cavalo. Ele tirou os olhos do visor e fitou com descrença. Era Katya. Ele lembrou de sua fascinação pelos akhal-teke, os corcéis divinos. Ela cami­nhou até o cavalo, com as mãos estendidas, completamente exposta. Era como se ela estivesse em transe. Então Jack viu alguma outra coisa, um flash, um reflexo que vinha de mais acima. É ele. Instantaneamente Jack recuperou o seu alvo. O flash tinha estado aproximadamente vinte metros mais alto que seu ponto de mira. Ele ergueu o rifle um pouquinho. O francoatirador fora atraído pelo cavalo, por Katya, assim como Jack. Ele teria imediatamente percebido seu engano, e agora agiria.

E eu sou seu primeiro alvo.

Um estalido forte ecoou acima de sua cabeça, uma bala atingiu uma pedra atrás dele, ricocheteou e se perdeu na distância. Pareceu que a de­tonação e o eco vieram juntos, repercutindo nas encostas do vale. Depois desapareceu, deixando Jack aturdido. Concentre-se. Ele havia visto a boca do cano brilhar nas pedras. Apertou novamente o dedo no gatilho. Respi­rou fundo e expirou lentamente.

Então surgiu alguma outra coisa. Katya não era a única a surgir no chão do vale. Outra pessoa tinha aparecido, correndo, tropeçando, saindo da barraca. É o menino afegão. Katya chegara até o cavalo e acariciava seu pescoço. O menino estava se aproximando de Katia pelo outro lado, sem que ela o estivesse vendo, a uns oitenta, noventa metros. De repente, Jack começou a se sentir mal. Algo estava terrivelmente errado. O menino tinha os dois braços estendidos para a frente e havia algo volumoso ao redor de seu tórax. Ele estava gritando, gritos ásperos, mas o som de sua voz era perfeitamente audível, e as palavras que ecoavam vale acima eram terríveis, de desafio, agressivas. Alá akbar. Alá akbar.

A mente de Jack vacilou.

- O grito de um ataque suicida.

Jack olhava fixo para aquela cena, com uma certeza súbita e fria. Tinha que tomar uma decisão. Imediatamente. Poderia ser a única chance para Katya.

Outra bala passou por cima de sua cabeça, batendo na rocha e fazendo saltar lascas de pedra acima dele. Nesse momento Katya notou a detona­ção e olhou para cima. Agora, ela estava segurando o cavalo apertado; im­pedindo-o de disparar. Devia ter ouvido o menino, mas ainda não o tinha visto. A boca de Jack estava seca, o coração, disparado. Era apenas outro alvo. Abaixou o rifle. O francoatirador sabia onde ele estava. Jack não tinha escolha. Pegou o binóculo para se apoiar. Era um alvo móvel, quase impossível de acertar àquela distância. De repente o menino tropeçou e caiu, e estava tentando ficar de joelhos. Era a chance de Jack. Ele apontou para o tronco. Katya saltou no cavalo, e ele se ergueu sobre as patas traseiras. Houve um tiro de rifle na parte de baixo. Então Jack se lembrou. Pradesh. Jack podia vê-lo, espreitando com o olho esquerdo, deitado de bruços ao lado de Costas no sangar abaixo, com o rifle apontado para o menino. Então Jack ouviu outro estalido, um ricochete que passou por ele com um barulho alto, e uma detonação do outro lado do vale. Viu Pradesh lançar-se de volta para dentro do sangar como uma boneca de tra­po e seu rifle cair com estrépito pelo declive. Jack olhou novamente para o chão do vale. O menino estava caído no chão. Katya tinha começado a galopar, e Jack viu Altamaty correr ao lado, ao longo do declive, saltando para cima do cavalo atrás dela. De repente houve um flash de poeira e fogo no lugar onde o menino estivera, e um segundo depois um estron­do sombrio. A nuvem de poeira da explosão parecia perseguir o cavalo enquanto ele se deslocava ruidosamente vale abaixo. E então Jack viu a boca do cano flamejar novamente no declive oposto. O franco-atirador tinha exposto a cabeça e estava atirando no cavalo. O rifle de Jack ainda estava mirando o alvo. Ele estava firme como uma rocha. Jack apertou o gatilho. O rifle escoiceou fortemente, e ele experimentou uma sensação de sucção, como se o vórtice da bala estivesse levando todos os sons com ele, produzindo toda a energia possível para manter-se no alvo. Oitocen­tos metros. Um segundo e meio. Os ouvidos de Jack estavam zumbindo. Ele não podia ouvir nada. E então houve mais um flash do outro lado do vale, e movimento. Algo subiu no ar. Jack pegou seus binóculos. O mo­vimento tinha sido de um rifle caindo contra as pedras. Ele olhou inten­samente para as sombras e então viu. Uma figura humana estatelada de costas, imóvel, uma mancha escura na pedra atrás da cabeça. Jack fechou os olhos e forçou para fora o ar dos pulmões. Começou a tremer incontrolavelmente. Tudo o que ele sentia era frio, um frio gelado. Ele pôs novamente as luvas e cruzou os braços apertados contra o tórax, as mãos enfiadas debaixo das axilas, deitando sobre o monte de pedras, tremendo.

Homem ferido!

Costas estava gritando do sangar abaixo. Jack pulou por cima das pe­dras e saiu tropeçando declive abaixo. Costas tinha aberto a mochila de Pradesh e estava rasgando um grande pacote de curativos. Pradesh, que estava consciente, olhou para Jack sorrindo fracamente. Jack viu sangue escorrendo sob suas costas e ajoelhou-se sobre ele, arquejando. - Como está isso?

Não muito ruim. - Pradesh batia os dentes e fez uma careta quando Costas usou um par de tesouras do pacote para cortar o tecido de seu casaco, revelando um buraco limpo de meia polegada logo abaixo do om­bro direito. Costas bateu levemente numa garrafa plástica para espalhar coagulante sobre a ferida e apertou o curativo, depois cuidadosamente acomodou Pradesh do outro lado e repetiu o processo em suas costas. - É um ferimento de saída limpa - murmurou. - Você teve sorte. Acho que era uma 7.62 milímetros, se ele estava usando o rifle Mosin-Nagant, uma bala sólida em vez de uma explosiva. A essa distância, menos cavitação e dano de tecido. Não parece ter atingido nenhum vaso sanguíneo importante. O que você tem é um ferimento desagradável na carne. Algu­mas polegadas mais abaixo, e teria sido uma história diferente.

Pradesh olhou para Jack. - O francoatirador?

Um tiro na cabeça.

Pradesh fechou os olhos. - Parabéns. - Ele olhou para baixo, de re­pente se contorcendo de dor. - É o menino - ele perguntou, fazendo uma careta. - Esse foi meu tiro.

A explosão veio alguns segundos depois que sua bala atingiu o alvo. Ele pode ter se apavorado e detonou a bomba quando viu que Katya esta­va indo embora.

Eu fui o responsável - Pradesh disse. - Ou eu atirava nele, ou meu tiro o assustaria a ponto de ele mesmo se matar.

Meu rifle também estava apontado para ele. Foi um acaso você ter apertado o gatilho primeiro. Ele ia ser abatido de qualquer modo. E você salvou a vida de Katya.

Com isso você pôde tirar o francoatirador do caminho.

Nós fizemos o trabalho.

Pradesh dirigiu a Jack um olhar insondável, depois estremeceu. - um rádio em meu pacote. Você pode chamar um helicóptero para uma evacuação médica. Eu acho que isso pode ser considerado um incidente do Taliban. Eles vão querer enviar uma equipe de reconhecimento aqui para cima agora. Espero que eles estejam monitorando o ataque de Rahid ao Taliban naquela aldeia, assim provavelmente haverá um par de helicópteros de prontidão em Feyzabad.

Costa olhou fixamente para o vale abaixo, e seu rosto estava branco de poeira. - O que leva uma criança a fazer isso? - ele murmurou. Através da nuvem de eles podiam ver o homem da barraca vagando sem rumo, os braços gesticulando, como se ele estivesse procurando algo, aonde o menino tinha ido.

Não se trata do que leva a criança - disse Jack, tremendo, com os braços apertados em volta do tórax. - Trata-se do que dirige o pai. Aquele homem embaixo amarrou as bombas no filho e o enviou para a morte.

Parece um demente.

Essa gente da jihad não prepara as pessoas para o que vem a seguir.

Eu apenas espero que o ISAF faça tudo o que for preciso para retirar todos os talibans desta área, que levaram esse pobre homem a seguir o caminho do inferno.

Acho que Rahid pode cuidar disso - disse Pradesh debilmente. - Eles provavelmente exerceram bastante interferência externa aqui. Onde estão Katya e Altamaty?

Eles cavalgaram para fora do vale, tomaram o caminho pelo qual en­tramos - disse Costas. - Nós chamaremos o helicóptero para apanhá-los depois que você estiver seguro fora daqui.

Entendido - murmurou Pradesh. - Levará pelo menos uma meia hora, o que lhes dará tempo para dar uma olhada.

alguma coisa mais que podemos fazer por você? - perguntou Jack.

Poderia usar um pouco de morfina.

Costas tirou uma ampola da mochila, deu uma pancadinha nela e de­pois a esmagou com força na coxa de Pradesh. - Isso deve ajudar. - Pegou também uma manta térmica de emergência e envolveu Pradesh nela, e Jack tirou seu casaco e colocou-o por cima.

- Melhor. Muito melhor. - Pradesh fechou os olhos, depois acenou com a mão. - Vocês podem ir agora. Acho que está na hora de você dar uma olhada naquele poço da mina.

Vinte minutos depois, Jack e Costas pararam na frente da entrada do poço central, olhando para dentro do buraco escuro acima de uma grande pilha de refugos da mina que bloqueava parcialmente a entrada. Costas estava com a cópia de Jack do livro A nascente do rio Oxus de Wood nas mãos e rapidamente leu em voz alta a passagem sobre as minas de lápis-lazúli:

O poço pelo qual você desce para a galeria tem aproximadamente um me­tro quadrado e não é tão perpendicular, de modo que não impede a descida. A galeria tem oitenta passos de comprimento, com uma descida suave; mas ela termina abruptamente num buraco de seis metros de diâmetro e outro tanto de fundo. A largura e a altura da galeria, embora irregular, podem ser calculadas em aproximadamente quatro metros; mas em alguns lugares onde o teto desabou sua seção ficou tão limitada que o visitante é forçado a avançar engatinhando. Parece que os acidentes têm sido frequentes, e um lugar dentro da mina leva o nome de alguns sofredores infelizes que foram esmagados pela queda do teto. Nenhuma precaução foi tomada para apoiar, por meio de pilares, o teto da mina, que, formada por blocos pressionados uns contra os outros, exige apenas uma pequena expansão mais lateral para cair dentro da cavidade. Qualquer operação adicional pode ser realizada, que com iminência de risco máximo para os mineiros.

Fechou o livro cuidadosamente e o deu para Jack, que o colocou den­tro de sua mochila cáqui. Costas começou a subir na pilha de cacos de pe­dra, escorregando para trás a cada passo. - Bem, não parece menos seguro que qualquer outra coisa que fizemos hoje - ele murmurou. - Você diz que ninguém mais sobe aqui?

Foi o que Rahid me contou. As pessoas pensam que a mina é assom­brada.

Jack seguiu Costas. Ele se sentia pesado, repentinamente cansado. Cada passo lhe parecia um esforço monumental, como se estivesse en­fiando os pés em neve muito profunda. Mas eles deslizavam para trás nos cacos de pedra, e a meio caminho para o alto do monte ele teve a im­pressão de que não ia a lugar nenhum. Sentiu como se estivesse constantemente se esforçando por um objetivo que estava além de seu alcance, como num sonho. Finalmente, parou em cima de um montículo de refu­gos, com o teto da entrada da caverna ao alcance de seu braço levantado. Costas estava dez metros ou mais à frente, dentro do poço abaixo de Jack, engatinhando. Jack viu-o tirando uma mini-lanterna Maglite e passando a luz sobre as paredes. A rocha era escura, quase preta. Jack se lembrou das descrições, da camada grossa de carbono formada pelos fogos usados du­rante milhares de anos por mineiros para arrebentar a pedra e descobrir os veios de lazurite. Ele olhou de novo para a entrada. Não tinha certeza, mas a luz parecia refletir uma névoa azulada que vinha das paredes, como o azul-celeste do céu. Ele retrocedeu. Costas avançou mais alguns passos e estava inclinado para diante, perto da base do montículo, onde ele des­cia para dentro da caverna. Ficou imóvel, olhando intensamente para os cavacos de pedra iluminando um lugar diretamente à sua frente. Ele se endireitou, depois olhou para trás. - Jack - disse ele baixinho.

Estou aqui.

Houve um silêncio por um momento. Costas pigarreou. - Aquele ve­lho revólver Colt de John Howard. O outro do par, aquele que você disse que o pai dele tinha usado na rebelião Indiana.

Sim? - A voz de Jack parecia desencarnada, como se ele estivesse se ouvindo falar de muito longe.

Você sabe onde ele foi fabricado?

A mente de Jack estava vazia. Ele lutava para pensar. - Deve ter sido na fábrica da Colt de Londres. O endereço deve estar gravado no cano.

Costa se levantou, apagou a Maglite e voltou até o lugar onde Jack es­tava parado. Ele o olhou cara a cara. - Sei o que Rahid encontrou. Sei por que eles nunca deixam ninguém chegar perto deste lugar.

Jack pôs a mão no ombro de Costas. Ele lhe ofereceu a Maglite, mas Jack sacudiu a cabeça, enfiou a mão no fundo de sua mochila e quando a tirou segurava algo apertado. Ele deixou Costas ali e saiu tropeçando para baixo, deslizando nos cavacos de pedra, sentindo que estava con­gelado por baixo. Chegou ao lugar onde Costas havia estado e ficou de joelhos. Deixou que seus olhos se acostumassem com a escuridão. Então ele viu o que Costas havia visto. Estava meio enterrado nos refugos, mas era inconfundível. O revólver tinha sido bem lubrificado, por isso não se enferrujara, mas adquirira uma cor de ameixa escura. Ele podia ver o endereço no cano. Col. Colt, London. O cabo e a alça do gatilho estavam envolvidos em trapos, um tecido grosso, bastante danificado. O tecido estendia-se para trás sob os cavacos de pedra, depois subia novamente num montículo, e então se estendia novamente para cima, a menos de um metro de distância. A forma era simétrica. Jack se sentiu vacilar. Dois braços estendidos. Ele olhou para o outro lado. Não havia nenhuma pis­tola ali, mas um buraco onde algo havia estado, algo que tinha sido agar­rado outrora.

Jack examinou novamente. O buraco poderia ter abrigado qualquer coisa. Poderia ter sido algo com a forma de uma mão fechada, retratada na morte. Poderia ter segurado outra arma, uma espada talvez ou qual­quer outra coisa. A forma daquilo. O vélpu sagrado, que uma vez estivera naquela mão, agora estava desaparecido.

Jack engoliu com dificuldade. Estava chorando e não sabia por quê. Respirou profundamente, segurou a respiração e depois exalou lenta­mente, piscando forte. Ele pensou no que sabia do homem, seu amor pelos filhos, pela família. Ele esperava que eles tivessem chegado ali no final. Ele confiava em que fosse o que fosse o que o atormentara, a an­gústia, a perda, tivessem ido embora dele ali, naqueles momentos finais. Esperava que ele tivesse encontrado o que andara buscando todos aqueles anos desde a selva, o maior tesouro imaginável.

Jack esfregou os olhos e olhou para cima. Havia um barulho fora, que pulsava dentro da caverna, o ruído de um helicóptero aproximando-se do vale. Ouviu um barulho de passos na pedra atrás. Costas o deixara sozinho com o corpo durante alguns minutos, mas Jack tinha uma vaga consciência dele andando em círculos e explorando o lugar. - Verifiquei o local - disse Costas, com a respiração cristalizando no feixe de luz solar que vinha da entrada. - A mina se estende por aproximadamente vinte metros mais adiante, depois desce para um poço de água de aproxima­damente cinco metros de profundidade. Se foi neste lugar que Licinius escondeu aquela pedra, minha suposição é de que deve ter sido naquele poço de água. saliências na rocha criadas por um antigo trabalho de picareta, mas eu verifiquei e não nada solto. É como se alguém tivesse estado aqui dentro e trabalhado metodicamente o lugar todo. Se aquela jóia estava aqui, agora ela desapareceu.

Jack pigarreou e apontou, com voz rouca, - Olhe para a mão dele, a que está vazia. É exatamente como se ele estivesse segurando um bambu onde os Kóya colocam o vélpu. Acho que eles trouxeram o vélpu com eles, o que eles muitos anos antes haviam tirado da selva, e agora o vélpu tam­bém desapareceu. Assim como Robert Wauchope. Não nenhum sinal de outro corpo aqui. Talvez, quando eles vieram para o vélpu estives­se vazio, mas quando foi levado embora ele estava pesado com outro. Tal­vez Wauchope o tenha tirado da mão de Howard e escapado daqui. Talvez eles realmente tenham achado a jóia.

Costa olhou para Jack. - Nós achamos o que nos trouxe aqui, não foi?

Jack não disse nada. Enfiou a mão dentro da mochila e pegou aquilo que ele estava segurando apertado ao entrar na caverna. - Sei que temos que ir. Dê-me apenas um momento.

-Você quer ficar sozinho?

- Não, fique. - Jack abriu a mão e desembrulhou o que segurava. Era o pequeno elefante de lápis-lazúli, o brinquedo de infância de John Ho­ward, alisado por anos de manuseio de pequenas mãos, o próprio Jack brincara com ele quando menino. Estava com uma tira cintilante amar­rada ao redor do pescoço, que Rebecca havia posto nele quando o levou para sua cabine no Seaquest II. Jack apertou com força o elefante. O lápis-lazúli, nascido neste lado da montanha, agora retornava. Ele o pôs embaixo e o empurrou para os farrapos retorcidos, a mão estendida vazia, cuidadosa e suavemente. Ele o tocou, e o deixou lá, retirando depois a própria mão.

O helicóptero passou novamente com estrondo. Jack se levantou e en­direitou sua mochila. Respirou profundamente, expirando uma última vez nas profundidades da caverna, observando sua respiração se cristalizar e cair na escuridão. Pôs a mão no ombro de Costas. Lembrou-se de Pra­desh. Estava na hora de ir.

 

Dois dias depois, Jack estava sentado na popa de um barco patrulha da marinha dos Estados Unidos que navegava velozmente pelas águas tranquilas do Issyk-Gul, sua esteira formando um grande V na superfície do lago. A visão era estupenda. Issyk-Gul era o lago de montanha mais pro­fundo da terra, 3 mil quilômetros quadrados de área, cinco vezes o tama­nho do lago de Genebra. Para Jack, a esteira sobre a água parecia uma seta gigantesca que apontava para o leste, o percurso final do maciço monta­nhoso da Ásia Central para os desertos da China. Para o sul, as montanhas que rodeavam o lago apareciam fantasticamente acima da neblina, uma sucessão de cumes nevados que pareciam destacados da terra, flutuando a meia altura no ar como uma miragem. No lado ocidental ficava o contorno da costa, com seixos espalhados, onde ele e Costas tinham se encontrado com Katya e Altamaty três dias antes. Eles a tinham deixado novamente naquela manhã, para registrar o sítio do cemitério romano, antes que um helicóptero a pegasse para ir se encontrar com eles. Havia um último lugar que Jack insistira em que eles visitassem, além do lago, além do deserto de Taklamakan, perto do final da Rota da Seda. A visita levaria alguns dias para ser acertada, e enquanto isso Jack estava entusiasmado com a perspectiva de mergulhar novamente pela primeira vez desde que o Seaquest II deixara o mar Vermelho cerca de uma semana antes.

Jack pensou em Pradesh, no ferimento provocado pelo tiro. Ele fica­ria durante semanas em terapia intensiva, mas o prognóstico era bom. Estava nas melhores mãos possíveis, com os recursos médicos dos Es­tados Unidos em Bishkek, e logo seria enviado para Landstuhl na Ale­manha. Depois de voar de volta com ele do Afeganistão, Jack e os outros tinham ido de helicóptero para o lago, encontrar o barco patrulha da antiga base naval soviética que fora unir-se a eles na costa oriental. Jack queria refazer a rota que os romanos, sob o comando de Fabius, podiam ter feito, ir para o leste atravessando o lago depois que Licinius se sepa­rou deles e fugira em direção ao sul pelas montanhas. O barco patrulha estava chegando ao fim de sua jornada, quase dez horas em velocidade máxima. Deveria ter sido um empreendimento muito difícil para alguns homens em barco aberto, dois mil anos antes, esgotados pela viagem longa e difícil, a pé, ao escapar dos partos em Merv. Não havia maneira de saber até onde eles tinham ido, se haviam chegado à costa oriental. Jack supunha que eles teriam lutado até o fim, contra os elementos, con­tra o esgotamento, contra o inimigo, que podia ter ficado à espera de que eles chegassem à terra. Eram homens que tinham sido treinados para en­frentar qualquer desafio, que lutariam até o último homem para manter a honra de sua legião, para ganhar o direito de unir-se às sagradas fileiras de seus irmãos de armas que haviam partido antes deles. E Fabius podia nem mesmo saber que estava com a joia, uma de um par, que estava numa bolsa pilhada que ele partilhara com Licinius. Jack olhou aten­tamente para as águas cor de aço, vendo apenas reflexos, céu colorido, salpicado de nuvens minúsculas. Talvez ela realmente tivesse estado ali, perdida na destruição de seu barco, da mesma maneira que ele a vira em seu sonho. A jóia celestial.

O motor diminuiu a rotação, e a água morna da esteira espirrou para o alto sobre a janela da popa do barco. O vento se extinguiu, e o ar estava rarefeito, frio. Olhando de novo para o lago, Jack podia ver o contorno da costa desaparecendo no oeste, distante o bastante para reconhecer a curvatura da terra. Ele sentia como se tivessem alterado o equilíbrio entre o leste e o oeste e atingido um ponto onde a Rota da Seda conduziria os via­jantes por canais que desciam pelo lado das montanhas protegidos contra o vento, em direção à China. Era uma ilusão, como a armadilha mortal do deserto de Taklamakan do outro lado, mas para viajantes do Ocidente, a grande passagem montanhosa à frente podia ter sido um sinal de espe­rança. Jack sentou-se inclinado, olhando para a frente. Costas continuava na cabine onde estava desde a manhã, falando e examinando as telas de navegação. À frente deles, os contornos do lago finalmente convergindo. Antes, a costa parecera seca, corroída pelo vento, mas ali o vento ocidental que levava a umidade da evaporação para o leste tinha atapetado os cumes e vales de uma cor verde-azeitona. Abrigados no contorno da costa havia edifícios, estruturas pardas de concreto, os restos dilapidados de cais e molhes. Enquanto Jack observava, a superfície do lago estremeceu e pare­ceu que escurecera e depois ficou tranquila novamente. Ele se perguntou se seria um tremor sísmico. Olhou novamente para a costa. Em algum lugar estava Rebecca, com o IMU e a equipe da marinha dos Estados Unidos. Eles haviam feito uma descoberta, os prováveis esboços de pa­redes reveladas pelo perfil da camada abaixo do fundo. Era o bastante para lhes dar uma base de operações na arqueologia desse lugar. Seu trabalho nesse dia era confirmar essa descoberta, antes que Katya se juntasse a eles para acompanhá-los na viagem que haviam planejado fazer mais adiante para o leste, sobre as montanhas na China.

Costas voltou da cabine balançando e subiu no equipamento de mer­gulho empilhado na parte de trás. Puxou dois macacões de mergulho do canhão de 20 mm situado atrás da cabine da popa e deixou cair uma roupa de mergulho diante de Jack. - Você também pode se vestir agora. Estamos indo diretamente para o sítio. Rebecca e dois membros da equipe estão vindo num Zodiac para nos receber. Vamos ser os primeiros a descer.

Rebecca não ficará muito contente com isso.

Este não é um lugar apropriado para seu primeiro mergulho. De jei­to nenhum. Geralmente não confio em lagos, e este aqui deveria ter um adesivo com um aviso vermelho bem grande sobre ele.

Jack jogou um pouco de água dos embornais nas mãos. - A água é li­geiramente salina. Isso ajuda a limpá-la. E o leito do lago tem seiscentos metros de profundidade no centro. Debaixo de uma enorme camada de lodo. Qualquer coisa tóxica descarregada aqui, provavelmente está bem enterrada.

Costas parou de esticar sua roupa de mergulho e parecia incrédulo. - Você está brincando? Um lugar de teste de submersíveis soviéticos? Nós monitoramos esses lugares quando eu estava na marinha. Você quase po­dia esquentar as mãos em cima das imagens de satélite. E não precisavam ser armas ou reatores. Nos primeiros dias, os soviéticos deviam ter usado barras de urânio para acionar alegremente as escovas de dente elétricas.

Altamaty contou para Katya que aqui eram testados principalmente torpedos, e sempre que perdiam algum eles faziam esforços enormes para encontrá-lo. Os primeiros relatórios vieram de fortificações subaquáticas, aquelas que os membros de nossa equipe podem ter achado novamente. Altamaty liberou alguns dos arquivos em 1991 quando ele estava na ativa na base, quando a União Soviética estava trabalhando em fusão nuclear. Ele disse que qualquer torpedo perdido que não conseguissem encon­trar era considerado irrecuperável e provavelmente o melhor a fazer era deixá-lo onde estava.

Bem, isso é tranquilizador - Costas murmurou, cutucando a cabeça através da gola de borracha da roupa de mergulho. - Algumas palavras mais de sabedoria antes que fiquemos radiativos?

Katya diz que os quirguizes acham que o lago está cheio de tesouros. Alguns deles acreditam que Genghis Khan está enterrado aqui. Suas sagas falam de um caixão de ouro sepultado em um mar prateado. E acreditam que um mosteiro nestoriano afundado na costa norte. Eles acham que este lugar está cheio de todos os tesouros que seus antepassados viram na passagem ao longo da Rota da Seda. Mas as águas também são sagradas. Alguns dos quirguizes mais velhos não nadam nestas águas.

Isso me parece sensato - grunhiu Costas, enquanto puxava as mãos pelas guarnições de borracha dos punhos. - Nesse caso, vou acompanhar a sabedoria popular qualquer dia destes.

-Algumas das histórias podem ser verdadeiras. Se você estudar o con­torno da costa, vai ver até onde o nível do lago subiu. Este é um lugar es­tranho. Centenas de correntes de água das montanhas desembocam nele, mas dificilmente alguma coisa flui para fora. Assim, o nível do lago sobe ou desce quando períodos de grande evaporação, como agora. E acima de tudo esta é uma zona de grandes terremotos.

Costas terminou de vestir a roupa de mergulho e se sentou, apanhan­do uma prancheta que tinha trazido da cabine. - Eu consegui isto aqui. Os sujeitos da marinha fizeram um resumo. Pelo menos três tremores principais foram registrados na história; um aproximadamente em 250 a.C., o Grigorevka, outro em 500 d.C., o Toru-Aigir, e outro em 1475, o Balasogun, todos provavelmente entre oito e nove graus na escala Richter, material muito quente. - Deu as costas para Jack, arqueando os braços para esticar o zíper do ombro da roupa de mergulho.

Certo. - Jack puxou o zíper para fechar e deu um tapa nas costas de Costas. - O segundo desses terremotos, aquele de 500 d.C., poderia coincidir com a história do mosteiro afundado. Mas a lenda de Genghis Khan não bate. Genghis morreu no século 13 d.C. Seus sucessores fica­ram notoriamente calados sobre sua tumba, assassinando todos os que encontravam durante o cortejo fúnebre. De acordo com o ritual mongol, os cavalos teriam pisoteado o local para escondê-lo. Mas acho que a tum­ba ficava onde a história dizia que estava, num lugar chamado Burqan Qaldun, na Mongólia, centenas de milhas a leste daqui.

E os engodos? - perguntou Costas. - Quero dizer, histórias deli­beradamente enganosas? Se eles eram tão reservados, talvez espalhassem histórias sobre diferentes lugares onde poderia estar o túmulo . Daí a len­da deste lugar.

Jack acenou com a cabeça. - É possível. E não em relação a túmulos escondidos, mas também a tumbas muito visíveis e extravagantes. Para essas tumbas, é a aparência externa que importa para a posteridade, por causa do modo como as gerações posteriores verão o morto. Mas os con­teúdos normalmente importam mais para o defunto, sua apólice de segu­ro privada para a vida após a morte. Assim, eles podem estar escondidos em outro lugar, com o corpo verdadeiro. Afinal de contas, até mesmo as pirâmides egípcias foram roubadas.

E a tumba do primeiro imperador em Xian foi roubada - disse Cos­tas. - Pelo guardião, se a história da jóia é verdadeira.

Jack se levantou, olhando atentamente para o contorno da costa. Ele procurava o Zodiac, Rebecca, mas ainda não havia nenhum sinal. Ele se sentou e começou a puxar para cima as pernas da roupa de mergulho. - Então, onde exatamente nós estamos entrando?

Costas puxou outro pedaço de papel da prancheta. - Imprimi isso no computador náutico. O local fica a meio quilômetro da costa, aproxima­damente duas horas de onde estamos agora. um riacho com alguns edifícios nas margens.

Jack protegeu os olhos. - Estou vendo.

É onde o perfil aponta aquelas imagens de paredes.

Isto coincide com o antigo relatório soviético?

Coincide exatamente com a história de Altamaty, que Kátia me con­tou. E não consigo imaginar que Katya tenha qualquer coisa para esconder.

Jack ergueu as sobrancelhas e ficou calado por um momento. - Bem, para tranquilizá-lo, Altamaty falou também com Rebecca, em russo. Ele disse que os primeiros relatórios subaquáticos encontrados neste local vieram dos exploradores russos que chegaram a este lugar no século 19. Você se lembra de Sir Aurel Stein, o explorador da Rota da Seda? Bem, havia russos que também entraram naquele carro de propaganda política enviado pela Sociedade Geográfica de Moscou. Era como uma versão ar­queológica do Grande Jogo, russos contra britânicos. Ninguém sabe com certeza o que os russos encontraram. Muitas coisas desapareceram dos museus e dos arquivos, depois da Revolução Russa. Mas nós sabemos que dois exploradores russos vieram para cá, Nikolai Przhevalsky e Piotr Semyonov Tianshansky. Os dois ouviram as histórias de ruínas afunda­das, cidades debaixo do lago. Quando eles chegaram aqui, o lugar parecia assombrado por causa disso. Tianshansky estivera em Veneza e encontra­ra um mapa do século 14 mostrando um mosteiro armênio perto do lago. A lenda da tumba de Genghis parece que era local. Indubitavelmente, os russos foram alimentados com aquilo que queriam ouvir, mas também lhes foram mostrados artefatos genuínos que tinham sido encontrados por pescadores.

Então, uma repassada rápida no período soviético.

Jack assentiu, empurrando a cabeça pela guarnição de borracha da roupa de mergulho. - Os exploradores partiram, mas as lendas cresce­ram. Fantasistas nazistas acharam que esta era uma pátria ariana e uti­lizaram lendas locais de que era um lugar de pureza, um tipo de céu na Terra. Então, nos anos 1950, os soviéticos estabeleceram sua base de teste de torpedos aqui, e os mergulhadores entraram pela primeira vez no lago. Como sabemos, eles acharam algo enquanto procuravam um torpedo perdido, e o Ministério de Segurança Interna foi envolvido. Isso terminou no período de Khrushchev, no início dos anos 1960, quando a Guerra Fria esquentou e a atenção foi focalizada em outro assunto. Então mais anos se passaram, mais rumores, mais lendas. Um professor em Bishkek começou a falar sobre a Atlântida. Foi quando o pai de Katya ficou interessado.

A conexão familiar. Soube disso.

O professor estava errado, é claro. E o pai de Katya nunca veio para cá. Este lugar era o próximo de sua lista quando pusemos um fim defini­tivo em seus planos dois anos.

Então, o que mais Altamaty sabe sobre o que os soviéticos acharam?

Os registros dão coordenadas de mapa. uma quantidade enor­me de lodo embaixo, e nenhum registro diz se eles acharam o torpedo. Mas rumores começaram a circular em Karakol, a cidade local onde o pessoal soviético vivia. Eles falaram de antigas paredes debaixo do lodo, como se fossem paredes convergentes de um grande corredor de entrada, com esculturas em estilo chinês. Em Karakol uma mesquita de ma­deira construída aproximadamente cem anos pelos Dungan chineses, muçulmanos de origem chinesa impelidos para o oeste pela perseguição na China. A mesquita parece um templo chinês, com dragões na cornija. Os Dungans parecem ter alimentado a lenda da tumba de Genghis. Katya acha que é uma questão de tempo o departamento de turismo se apropriar da idéia e a transformar num espetáculo embaraçoso, com estátuas gigantescas em estilo soviético de Genghis Khan na praça da cidade. O que ela quer é que eles invistam em petróglifos, a verdadeira arqueologia que ela encontra aqui, e fazer disso uma atração internacional.

Costas colocou a folha de novo na prancheta e mostrou para Jack uma cópia impressa. - Bem, o que quer que os mergulhadores tenham vis­to, parece ajustar-se com os dados do perfil de sub-fundo. Para começar, o perfil apenas mostrou estriamentos lineares que descem da costa, es­coamentos superficiais do rio dentro do leito de rocha carcomido. Foi Rebecca quem primeiro viu como um dos canais vistos parecia regular. Quase uma forma de V de cabeça para baixo, convergindo para a costa.

Então, foi Rebecca quem de fato percebeu isso? Ela não me disse nada.

Ela é modesta. Como você.

Jack ergueu as sobrancelhas. - Ela está muito ocupada, sendo mimada por uma equipe de quinze fuzileiros navais da marinha dos Estados Uni­dos, você quer dizer.

Cada um deles é um cavalheiro.

Jack parecia sério. - Ainda não quero os mergulhadores da marinha aqui. Apenas nós dois.

Eles estão muito ocupados, de qualquer maneira. autênticas bombas-relógio na antiga área do porto soviético, cascos abandonados com reatores nucleares. O local onde nós estamos mergulhando é oficial­mente uma zona proibida. Eles vão ficar durante meses ocupados em tirar a contaminação desta área. Isso é nossa camuflagem. Lembre-se de que encontrar um torpedo perdido era a única razão para esses mergulhado­res soviéticos terem vindo para este local distante, e eles não o acharam.

Jack estendeu a mão para o lago para jogar um pouco de água no capa­cete. - A água está morna. Como sua xícara de chá.

Se ficar mais morna quando descermos, saio daqui mais rápido do que você consegue dizer contador Geiger.

Estes macacões foram feitos para isso. Você os projetou.

Nós ainda vamos precisar dar uma boa esfregadela para nos limpar depois disto.

No Havaí?

Costas ficou radiante. - Esta é a primeira vez que você diz esta palavra. Naturalmente e sem ser estimulado.

Jack olhou para o lago. Na baía, a água era de um azul brilhante como o lápis-lazúli, como a aura que tinha emanado da mina no Afeganistão onde eles haviam estado dois dias antes. Mas ali, distante da costa, era diferente. O sol caía diretamente sobre a cabeça e banhava a água com um brilho iridescente. Alguma qualidade da água, ou talvez a intensidade absoluta do sol, prenunciava que o lago parecia absorver a luz e refleti-la alguns metros abaixo, como se uma camada de prata líquida estivesse flu­tuando logo abaixo da superfície. Jack olhou para baixo e não conseguiu ver nenhum reflexo dele, nada. A camada parecia real, como mercúrio espalhado, vindo de alguma fonte de baixo. Jack olhou novamente para o contorno da costa na frente deles. Ele viu uma ave alta, uma garça, parada à entrada do riacho, a algumas centenas de metros dali. Estava imóvel como uma estátua, depois enfiou o bico na água. Jack se lembrou de sua visita com Rebecca à exposição dos Guerreiros de Terracota, exibida em Londres alguns meses antes, quando parou diante de uma elegante ave de bronze que outrora adornava uma reprodução de paisagem de beira d'água dentro da tumba do primeiro imperador. Ele olhou para a linha de montanhas ao sul e ergueu a mão para proteger os olhos, deslumbrado pelo reflexo dos cumes nevados que pareciam flutuar acima, como se es­tivessem numa outra dimensão.

Costas o cutucou. - Uma coisa tem me aborrecido desde o Afeganis­tão - disse. - Nós sabemos o que aconteceu a Howard, mas não a Wauchope. Na mina de lápis-lazúli não havia nenhum sinal do vélpu sagrado. Howard podia estar agarrando o bambu quando caiu, mas depois alguém o tirou dele. Se foram os sujeitos maus, eles podem também ter achado a joia, e a história inteira teria sido diferente. Shang Yong teria então ficado lá, sentado em sua fortaleza no deserto, com a joia da imortalidade gruda­da no teto, enquanto planejava a dominação do mundo.

Jack acenou com a cabeça. Desde que deixara o Afeganistão, ficara concentrado em Pradesh, como se seu próprio instinto de sobrevivência estivesse sendo guiado de acordo com o estado do amigo. Foi somente com a garantia de que Pradesh se livraria das dificuldades que ele come­çou a pensar no resto, no homem em quem ele havia atirado, no menino com a bomba suicida. Pelo homem ele sentia indiferença; pelo menino, uma espécie de entorpecimento, como se tivesse visto a explosão num noticiário. O choque daquela morte ia acabar passando, mas não ainda. A experiência de confrontar o corpo de Howard, seu trisavô, ainda esta­va vívida, era como se ele ainda a estivesse vivendo, era muito cedo para refletir. Mas o destino de Wauchope o tinha preocupado enquanto eles velejavam pelo lago, quando ele pensara na convergência de todas as suas rotas, os legionários romanos, Howard e Wauchope, os exploradores da Rota da Seda, eles próprios, tudo focalizado naquele lugar místico acima do horizonte, onde o sol se levantava, em Chryse, a lendária Terra do Ouro no antigo Périplo.

Ele se virou para Costas e disse: - Você se lembra do livro de Wood A nascente do rio Oxus, que usamos para localizar as minas de lápis-lazúli?

Claro. Com todas as anotações do Howard e do Wauchope.

Uma das anotações que chamou a atenção de Rebecca estava à mar­gem do mapa, no começo do livro. Uma seta do vale do Oxus em direção ao nordeste, e o nome sublinhado a lápis, Issyk-Gul, ao lado da palavra "Przhevalsky".

O explorador russo?

Jack acenou com a cabeça. - Przhevalsky na verdade morreu aqui, de tifo, em 1888. Rebecca fez alguma pesquisa. Acontece que antes disso ele esteve em Londres e deu uma palestra na mesma série de conferências no Instituto de Serviços Reais Unidos onde Howard fez sua palestra sobre os romanos no sul da índia. Isso foi pouco antes de Wauchope retornar da licença para seu trabalho no departamento de Pesquisa da índia, e ele e Howard compareceram à conferência de Przhevalsky. Era sobre uma raça rara de cavalos que ele tinha descoberto na Mongólia, e ele mencionou que os cavalos transpiravam sangue. Depois ele falou em vir para este lugar, mencionou os tesouros legendários do lago. Falou da extensão do Tien Shan, de suas explorações nas profundezas das montanhas. Pen­so que Wauchope teria ficado encantado com isso, como um montanhês apaixonado.

De forma que é para onde você acha que Wauchope foi?

Tien Shan quer dizer montanhas celestiais. Do deserto de Taklamakan, elas parecem mais próximas do céu que qualquer dos cumes na China. O primeiro imperador era obcecado por esses lugares, sem­pre tentando ir o mais alto que podia para liberar seus editos. Ele deve ter olhado para o Tien Shan quando sentiu a própria mortalidade. - Jack estendeu o braço para o oeste. - Se Wauchope sobreviveu, ele pode ter retraçado a rota de Licinius e vindo para Issyk-Gul, depois foi para as montanhas. Talvez ele fosse como os romanos e sentisse que nunca ia po­der voltar para seu próprio mundo. Talvez ele e Howard nunca tenham tido a intenção de voltar. Przhevalsky contou sobre vales que não eram desertos e implacáveis como o Afeganistão, mas abundantes, luxuriantes, perdidos no tempo, como Shangri-Lá. Até mesmo se eles não encontras­sem as jóias, essas histórias poderiam tê-los tentado, por causa de algo que a lenda da jóia celestial parecia prometer.

Ou eles poderiam ter achado a joia na mina. Wauchope talvez ti­vesse voltado com ela para a selva. Quem sabe ter posto a joia dentro do tubo de bambu e ter devolvido o vélpu sagrado para o povo Kóya com um verdadeiro tesouro dentro. Ele poderia ter entrado no santuário da selva pela parte de trás da cachoeira e escondido o vélpu lá, dentro da tumba de Licinius. O que eles fizeram na selva em 1879 devia estar na mente de Howard em suas horas finais. É nesse momento que as pessoas pensam em compensação, redenção. Wauchope pode ter-lhe feito uma promessa e depois a cumpriu. Esse é o tipo de coisa que os amigos fazem. Eles eram soldados, irmãos de sangue. Como Licinius e Fabius.

Jack olhou de esguelha para Costas e disse: - Sim. Talvez.

Nós estamos quase lá. - O barco reduziu a velocidade e começou a traçar um amplo arco em direção à costa. - algo mais imediato que precisamos discutir.

Continue.

Costas olhou para a água. - Você notou que quando uma brisa, ela apenas agita levemente a superfície da água?

Jack fez que sim com a cabeça. - Faz a água parecer lenta, pesada, como metal fundido.

É porque o vento ocidental se afunila no alto quando se aproxima da terra. Mas você viu a superfície da água se agitar alguns minutos atrás? - Jack assentiu com a cabeça. - Abalo sísmico secundário?

Pior. Trabalho de parto sísmico. houve um terremoto grande, e certamente outro quase chegando. Hoje, talvez amanhã. Não são condições ideais para mergulhar, mas poderia ser bom para nós. Estamos procurando depósitos proximais e distais, algum depósito de areia e cas­calho transportado pela água corrente a partir do derretimento de gelo, com marcas de canais convergentes. Muito lodo empilhado por cima.

Você quer dizer um turbidito.

Uma deformação, algum deslize de sedimento. Poderia revelar aquelas paredes, se elas existem. Elas poderiam ficar visíveis por um mo­mento, e então puf, mais um tremor e outro sedimento desliza, e elas desaparecem. Nós poderíamos ter sorte. Se houver alguma coisa lá, agora pode ser o momento de vê-la.

Você se lembra da última vez que mergulhamos?

Costas suspirou.

Faz oito dias. No Mar Vermelho. Água bonita, recifes de coral. Para­íso. - Ele fez uma pausa. - Elefantes. Elefantes subaquáticos.

Era nisso que eu estava pensando. Seus elefantes. Você ouviu a antiga história indiana dos homens cegos e o elefante?

Costas olhou para trás preocupado. - Três homens cegos foram condu­zidos até um elefante, e ninguém lhes disse o que era. Um deles sente o rabo, e pensa que é uma corda. O outro sente a tromba, e pensa que é uma cobra. O terceiro sente uma presa de elefante, e pensa que é uma lança.

Lembra-se de como eu quase não vi aquele elefante no leito do mar? Eu estava muito perto dele. Lembre-se disso quando estivermos em­baixo hoje.

O que vamos ver? Uma camada de marrom, depois um marrom mais escuro. Fica mais morno, depois quente. Nós começamos a sentir muito calor. Algum criminoso russo nos pesca e nos vende para a Al-Qaeda como componentes de uma bomba suja.

Jack sorriu. - Os geólogos dizem que o lago está gradualmente se es­vaziando, você sabe.

Esvaziando?

Sempre foi um mistério para onde vai todo o escoamento glacial superficial que desce por aquelas encostas do Tien Shan. O lago é como um tanque ornamental enorme, cujas fontes parecem nunca conseguir encher. É como se em algum lugar nas profundezas houvesse um ralo gigantesco.

Essa é outra razão para não mergulhar aqui. Não vou ser sugado para dentro de nenhum buraco negro.

Falando de negro, você sabe que dizem que a Peste Negra saiu da­qui?

O quê?

A Peste Negra. A pestilência. Em algum momento do século 24, transmitida ao longo da Rota da Seda pelos ratos.

Você está me gozando. A Peste Negra. Deste lago. No qual estou a ponto de entrar para nadar?

Eu não me preocuparia com isso. Pessoalmente acho que é outro mito, criado para manter as pessoas longe deste lugar. Maior razão ainda para explorá-lo, se você quer saber minha opinião.

Havaí! - Costas murmurou, elevando as mãos em oração. - Por que é que toda vez que uma luz no final do túnel, você me faz passar por outro pesadelo?

Jack lhe deu um soco de brincadeira no ombro. - Porque você é meu companheiro de mergulho. É preciso que você cuide de mim.

O barco agora estava com o motor desligado. Jack cheirou o ar. Era um cheiro inesperado, não o odor ligeiramente malcheiroso habitual de beira de lago, mas o cheiro de ervas, de lavanda, de folhas secas esmaga­das. O vento ali soprava poderosamente do oeste, varrendo a água como um exército de fantasmas, mas o cheiro mantinha a fragrância exótica do Oriente. Quando estavam na costa, Jack havia visto de relance plataformas distantes, o minarete de uma mesquita caída, derrubada por algum terre­moto, e ele sentira uma força que vinha do alto, da passagem pela mon­tanha, além dos contrafortes da China. A extremidade ocidental do lago, onde eles tinham se encontrado com Katya e Altamaty entre petróglifos, era um lugar de desolação, um lugar que as pessoas atravessavam por necessidade; mas dali para o leste havia permanência, era um lugar que algumas pessoas haviam escolhido para se estabelecer, comerciantes de antiguidades de Han, sogdianos, seguidores mongóis de Genghis Khan, e muçulmanos Dungan, expulsos das camadas ocidentais da China ainda presentes na memória.

Um dos homens da equipe caminhou para eles vindo da sala de co­mando. - Nós entramos em contato com a costa. Os dados de leitura sísmica permanecem inalterados, mas ainda é uma condição laranja. Os mergulhadores da marinha estão limpando um molhe desmoronado e é por isso que o Zodiac está atrasado. Eles esperam se dirigir para em aproximadamente quinze minutos. Nós estamos agora em cima das co­ordenadas do GPS. O conselho é para que não se entre, mas, se tiverem que entrar, façam-no agora. Mantenham-se dez metros pelo menos aci­ma do leito do mar e evitem qualquer rego fundo. Repito, o conselho é para não entrar.

Conselho entendido, Brad - disse Costas, lutando com a correia da mochila do cilindro com oxigênio. O homem da equipe se adiantou para ajudá-lo. - Jack e eu mergulhamos em uma cavidade de lava, você sabe - ele disse, ofegante. - Em um vulcão ativo. Na Atlântida.

É mesmo? Legal.

Não. Quente. - Costas olhou atentamente para o homem, que apontou de maneira cética para o lago. Eles tinham passado a maior parte da viagem juntos na sala de comando, falando acerca de torpedos e va­zamentos de radiação. - Não diga nada sobre aquela água, Brad - disse Costas. - não diga nada, nada.

Eu ia dizer boa sorte, senhor.

Senhor novamente - grunhiu Costas. - Eu, senhor?

Tenente comandante, Marinha dos Estados Unidos, se bem me lem­bro - disse Jack.

Um faz-tudo. Um homem só. E nunca usei o poder de meu cargo.

Isso porque você é um líder nato, e todo mundo sempre o escuta - disse Jack, empurrando o ombro de Costas.

Todo mundo, exceto você.

Não preciso escutar. Eu apenas sigo. - Jack bateu no ombro de Cos­tas, depois acenou com a cabeça para o homem, que encaixou a máscara no capacete de Costas, fazendo a mesma coisa com Jack. Os dois homens examinaram seus sistemas de segurança, conferindo a leitura na tela do computador dentro dos capacetes, depois um examinou o outro. O ho­mem levantou uma mão com os dedos separados e apontou para seu re­lógio. Jack acenou com a cabeça para ele. Cinco minutos para ir. O motor acelerou ligeiramente, e ele sentiu o movimento do barco enquanto eles se posicionavam novamente. Durante alguns momentos antes de ativar o sistema de comunicação interna, Jack ficou completamente isolado. Tudo o que ele conseguia ouvir era sua própria respiração, o batimento cardía­co, um leve tinido nas orelhas, herança de fogo de artilharia.

Ele pensou novamente em Wauchope, e depois nos romanos. Talvez um dos romanos também tivesse sobrevivido, ido até a praia, escapado para o leste por cima do cume das montanhas para Chryse, a terra do ouro. Talvez fosse o próprio Fabius. Jack se perguntou se eles um dia saberiam. Ele tinha somente seu instinto para continuar, e este lhe dizia que a história não terminava ali naquelas águas.

Jack olhou para dentro da água. Viu a camada de reflexo novamente, como mercúrio. Mandou o pensamento para longe e ligou o interfone. Costas fez o sinal com o polegar virado para baixo, e Jack o repetiu. Ele sentia o fluxo do ar de seu regulador e conferiu novamente a leitura de medida. Eles deslizaram juntos por cima da lateral do barco. Jack des­ceu abaixo da superfície, depois flutuou novamente para cima. Ele se encontrava em seu elemento e estava muito excitado. Soube de repente que eles estavam no lugar certo. Era novamente seu instinto falando. Ele olhou para Costas, que estava subindo e descendo na água e olhando para ele. Jack pôs a mão na válvula de flutuabilidade, e pressionou o interfone. Eles sempre faziam isso. Era seu ritual. O talismã de boa sorte deles. Ele sorriu para Costas. - Pronto para ir?

Pronto para ir.

Três minutos depois, eles haviam descido mais de vinte metros abaixo da superfície. Não havia nenhum sinal do fundo, mas Jack soube pela bússola que eles estavam se orientando para o chão do leito do lago no lugar onde ele se inclinava, subindo até o contorno da costa cerca de meio quilômetro para o leste. Para começar, a água estava notavelmente clara, e Jack subiu um pouco e viu a forma escura do casco do barco acima, as figuras dos dois homens da equipe apenas delineadas, oscilantes, enquan­to eles os seguiam com os olhos por cima da lateral do barco. Ele girou e de novo foi para trás, exatamente quando atingiram um termoclino, uma faixa de água em que a temperatura diminui acentuadamente qunato mais se desce, impercetível dentro da roupa de mergulho, mas registrado por uma queda na temperatura nos dados de leitura dentro do capacete.

Está ficando mais fria. Esta talvez não seja, afinal de contas, uma água radiativa - disse Jack no interfone.

Somente enquanto toda essa atividade sísmica não tumultuar nada -, replicou Costas, com uma voz de estanho por causa da pressão aumenta­da. - Como disse Altamaty, é melhor não perturbar o que quer que esteja embaixo.

Eu o lembrarei disso da próxima vez que virmos algo que precisa ser desativado.

Eles continuaram descendo. Abaixo do termoclino a visibilidade se reduziu dramaticamente, em consequência de substâncias particuladas cinzentas e marrons dentro da água. Jack sentia a escuridão subjacente às águas sombrias abaixo deles. Ele ligou a lanterna de cabeça, mas imediata­mente lamentou ter feito isso, pois foi ofuscado pelo clarão das partículas suspensas na água. Apagou-a e piscou para que sua vista se adaptasse à escuridão. Conferiu o dado de leitura de profundidade. Trinta e cinco metros. De repente apareceu ali uma planície cinzenta, sem traços carac­terísticos, a aproximadamente oito metros abaixo deles, ondulando suavemente para cima do declive. - Retiro o que disse sobre a radiatividade -, murmurou. - Parece que alguma coisa matou tudo neste lugar.

Neutralizou sua flutuabilidade dois metros acima do fundo, toman­do cuidado para não tumultuar o lugar com os pés de pato. - Isto não está tão sólido quanto parece disse Costas. - Com toda essa atividade sísmica, aqui está líquido. Feche os olhos, desça mais e você nem saberá que entrou nesta planície. Depois de um tempo o lugar se torna viscoso, e você fica aderido. O único consolo é que seu corpo não seria comido pelos predadores marinhos. Nem eles viveriam aqui.

Jack contemplou o sedimento. - Dificilmente vamos ver qualquer coisa antiga sobressaindo neste material. Vamos?

Nós podemos. O terremoto sacudiu tudo para cima, e o lodo que normalmente cobre protuberâncias de leito de rocha e outras caracterís­ticas sólidas pode ter deslizado declive abaixo. A neblina marrom na água mostra que houve movimento, um turbidito. Mas o terremoto também deixa tudo instável. Poderia haver outra massa de sedimento mais adian­te, acima do declive, pronto para cair e enterrar tudo o que poderia ser revelado.

Jack deu uma olhada. - Então as paredes, o desfiladeiro, tudo o que Rebecca viu nos dados de leitura do sonar poderia estar, na verdade, visível.

Eles fizeram a pesquisa do perfil do subfundo mais de vinte e quatro horas atrás. De acordo com as posições que carreguei em meu compu­tador, deveríamos seguir este contorno por aproximadamente cinquenta metros, em direção ao sul. Isso deveria nos posicionar acima do rego, di­retamente oposto àquele riacho no contorno da costa. Os antigos rela­tórios sismológicos soviéticos situaram este contorno aproximadamente no nível do contorno da costa dois mil e quinhentos anos atrás. Tudo por aqui, subindo o declive, era terra seca. Eles acham que houve um único evento que tornou toda esta região subaquática, um terremoto localizado e violento cerca dois mil e duzentos anos atrás.

Eles se viraram com cuidado e começaram a nadar para o sul, Costas na dianteira. Estavam dentro de um horizonte com melhor visibilidade, capazes de ver cinco ou seis metros à frente, debaixo da manta de sedi­mento suspenso alguns metros acima deles. Jack esquadrinhou a região cinzenta abaixo procurando qualquer coisa sólida, qualquer protuberân­cia. Depois de aproximadamente vinte metros, Costas de repente parou de nadar. - Encontrei algo - ele disse. Jack veio para perto dele. O chão do lago estava mais mosqueado, irregular. Jack estendeu uma mão de­vagar. Era barro duro, sujou sua luva. - Parece um espinhaço saindo da costa - murmurou. - Poderia ser tijolo de lama deteriorado, mas não nenhuma construção de pedra visível, nenhuma alvenaria.

uma olhada nisto. - Costas apontou para algo enterrado no barro. Jack ligou a lanterna e ofegou com surpresa. - É uma manivela de bronze -, ele exclamou. Costas arrancou-a do sedimento. A manivela estava pre­sa a um disco do tamanho de um prato de jantar. Jack o pegou, retirando o barro que estava aderido. - É um espelho - ele disse. - A superfície oxi­dou e está verde, mas está intacto.

Que coisa estranha para encontrar neste lugar - disse Costas.

Jack inverteu o objeto. - foram achados bronzes como este ao lon­go desta costa, que foram puxados para cima por pescadores - ele disse. - Espelhos, arreios, caldeirões. Foi o que primeiro chamou a atenção do russo, Przhevalsky. Os objetos estavam todos assim, intactos, um arte­sanato de muito alta qualidade e não o tipo de coisa que normalmente as pessoas jogam fora. Espalharam-se rumores de um palácio afundado, uma cidade submersa.

Ou uma tumba? - disse Costas.

Esse é meu instinto visceral - disse Jack. - Mas esses achados não se combinam com a história de Genghis Khan. As tumbas mongóis eram escondidas, discretas. E eu não acho que um líder militar mongol teria tido bens como esses, espelhos, caldeirões. Isso não faz sentido. Mas aposto que esses artigos devem ter sido removidos de um local fúnebre pelo terremoto, algo bem prestigioso. O que explicaria também os acha­dos passados. E também não se trata de resultados de roubos em tumbas da antiguidade, quando este declive ainda era terra seca. Os ladrões de tumbas não abandonam artigos valiosos como estes.

Costas apontou para um lugar onde linhas finas de incisão eram visí­veis na manivela, formas sinuosas e olhos bulbosos. - Essa decoração me faz lembrar aquela alabarda que Katya achou no enterro romano do outro lado do lago. Parece idêntico, chinês.

Concordo - respondeu Jack. - A população local aqui incluía aque­les chineses muçulmanos que se deslocaram das margens do deserto de Taklamakan, e houve migrações anteriores, os uigures. Este espelho pa­rece ter mais de 2 mil anos, mas naquela época esta extremidade do lago deve ter sido um caldeirão de mesclas culturais, um lugar de parada entre o Ocidente e o Oriente. Artefatos chineses valiosos poderiam ter vindo parar aqui. Mas não acho que isso explique esses achados. Artefatos como esses não seriam lançados no lago. Essas pessoas eram comerciantes.

Jack deixou cair o bronze, e Costas colocou uma miniatura de boia lu­minosa eletrônica ao lado dele. Jack tomou a dianteira desta vez, nadando ao longo do contorno a quarenta metros de profundidade. A visibilidade, embora fosse de alguns metros, era suficiente para se ver que o cume de barro fazia uma curva para a esquerda, e o leito do lago descia à direi­ta. - Um canal de erosão - disse Costas atrás de Jack. - Esta deve ser a extremidade do rego que conduz para baixo do riacho, cortando um des­filadeiro dentro do leito do lago. É consistente com os dados de leitura do perfil. Ele deve estar descendo por dez metros de profundidade e ter vinte metros ou mais de lado a lado. Acho que esta parte do rego normalmente fica encoberta pelo sedimento, mas o terremoto a sacudiu para fora. Esta deve ser a característica convergente que Rebecca estava olhando na cópia impressa, que parecia tão promissora. Talvez não tenha sido feita por mão humana, afinal de contas.

Quero olhar um pouco mais adiante. para ter certeza.

O espelho é um grande achado, Jack. Nós podemos ir para a su­perfície com isto como um par de caçadores de tesouro. Rebecca ficará impressionada.

Jack estava nadando à frente. - Tive um pressentimento sobre isto.

- Sim, também tenho - Costas respondeu com urgência. - E é um ruim. Você viu isso? - Houve uma agitação na água, depois um tremor. - Jack, uma parede de sedimento de aproximadamente três metros acima de você. Foi onde o turbidito deslizou, o que revelou o canal. A qualquer momento tudo vai vir abaixo. Nós precisamos sair daqui. Agora.

Jack olhou para cima, viu a escuridão da parede de sedimento, depois olhou para baixo novamente. Ele estava imóvel, de braços abertos como uma águia sobre o leito do lago. O tremor erguera um véu de lodo que obscureceu sua visão quase completamente. O brilho da lanterna atrás dele diminuiu quando Costas começou a subir. Jack sabia que Costas permaneceria alguns metros de um lado até ter certeza de que Jack o es­tava seguindo. Ligou sua headlamp, para que Costas pudesse vê-lo e olhou para os dados de leitura em sua bússola. Tinha se deslocado para bastante longe. Não havia nada mais para ver. - Entendido - ele disse. Levou a mão ao controle de flutuabilidade de sua roupa de mergulho. Costas ti­nham razão. Aquele não era um lugar para morrer.

Houve outra agitação na água. Jack ficou repentinamente cauteloso, sentindo que ele era uma parte ativa das forças ao redor deles, que seu próprio movimento poderia ativar o próximo tremor. Olhou para a vál­vula de flutuabilidade na frente de sua roupa de mergulho, verificando se estava isenta de sedimentos que poderiam pressioná-la e abri-la. Era uma falha de funcionamento que eleja havia notado. Falaria com Costas sobre isso. Jack manteve a mão direita em cima da válvula, depois ergueu a cabeça. Seu capacete bateu em algo. Ele deu uma volta por cima e ob­servou, vendo o reflexo fora do sedimento. Costas não ficaria tão pró­ximo acima dele quando sabia que Jack estava subindo. Devia ser alguma outra coisa. Jack foi um pouco para trás e tateou para diante com a mão esquerda. Era um objeto sólido orientado para fora do leito do lago, em sua direção. Parecia ser um tronco de árvore. De repente, ele se lembrou do torpedo perdido. Mas aquilo estava errado. A superfície estava coberta por uma casca, como num velho bordo, densamente segmentada. Ele ta­teou com ambas as mãos e sentiu que o tronco se desenvolvia para cima, havia um lugar onde formava um ângulo acima dele. Se aquilo fosse um velho tronco de árvore, era muito velho, entrelaçado, com os restos de galhos de cada lado. Ele sentiu a parte de cima. O tronco se estreitou, depois aumentou novamente antes de terminar, como um crescimento bulboso.

Jack gelou. Ele tinha visto algo.

Você está bem? - A voz de Costas chegou severa pelo interfone.

A voz de Jack hesitou. - Eu consegui algo.

Largue isso. Você precisa sair daí agora.

Entendido. - Houve outro tremor, e o sedimento suspenso que tinha obscurecido sua visão de repente cintilou, como um cardume de peixes minúsculos. Houve um momento de clareza total. Jack podia ver claramente agora.

Era uma cabeça humana.

Era uma estátua de pedra, maior que uma figura normal de um ho­mem, e estava apoiada no chão do lago. Ele olhou para o rosto. Parecia uma máscara mortuária, os olhos quase fechados, a boca uma careta, as maçãs do rosto eram altas, o nariz, achatado, tinha bigodes finos, para baixo, entrelaçados. As palavras da lenda quirguiz passaram rapidamente pela mente de Jack. Um caixão dourado sepultado em um mar prateado. Mas isso era sobre Genghis Khan. Ele tinha repudiado a história. Será que estava tão errado? Olhou novamente. O que tinha sentido como casca de árvore eram camadas finas de armadura, segmentadas, sobrepostas. Viu que a estátua estava segurando uma espada, uma grande lâmina reta, fina­mente modelada, que saía da pedra. A espada tinha uma parte arredonda­da no punho, que escondia completamente a mão. Jack olhou novamente para o rosto, e então percebeu o que tinha visto. Não era um punho. Uma manopla. Ele mal ousava acreditar em seus olhos. Mergulhou, e olhou de perto. Estava tudo ali: as orelhas felinas, os olhos amendoados, a boca fazendo careta onde a lâmina se projetava para fora. Ele encarou com sur­presa a figura esculpida que se inclinava sobre ele.

Uma espada com manopla.

Um guerreiro tigre.

Jack ergueu o olhar. Ele mal podia distinguir Costas alguns metros acima, soltando um marcador de boia. Havia um rugido distante em seus ouvidos, um barulho que parecia vir das entranhas da terra, misturado com o som de um motor de barco. Ele viu a parede de lodo atrás da es­tátua, e percebeu quão perto havia estado. Agora estava acontecendo novamente. O lodo estava tremendo, borrado. Ele notou que estava sendo empurrado por alguma força na água para baixo do declive. Repentina­mente, encontrou-se sobre a extremidade de uma cova preta, cujas late­rais se estendiam para dentro do lodo em turbilhão mais além. O tremor passou, e ele afundou. Estava agora a cinquenta metros de profundidade. Podia ver onde a cova estivera outrora completamente enterrada, onde o terremoto rachara e abrira a superfície de barro duro e revelara um espaço oco abaixo, agora quase preenchido com lodo. Ele viu algo branco iluminado por sua headlamp. Era um crânio. Um crânio humano. E então ele viu mais. Havia crânios em todos os lugares, crânios humanos, fileiras de­les, com órbitas oculares vazias, mandíbulas caídas, deslocadas, algumas indolentemente viradas para a esquerda, outras para a direita. Debaixo dos crânios havia flashes de verde e marrom. Ele mergulhou mais para o fundo, dentro de um espaço na cova, até que pudesse ver mais. Não havia nenhuma dúvida sobre aquilo. O verde e o marrom eram metal, bronze. Armaduras segmentadas. Fileiras de esqueletos, um regimento inteiro estava enterrado verticalmente em uma cova, usando armadura de bronze segmentada. Armadura chinesa antiga. Ele olhou novamente, mal acredi­tando no que estava vendo. Cada esqueleto tinha restos de uma corda ao redor do pescoço, preservada na água fresca do lago. Eles formavam um exército para a vida após a morte. Um exército que tinha ido de boa vontade para sua morte.

A mente de Jack estava acelerada. A estátua, o guerreiro, devia ser um guardião. Ele olhou novamente para os crânios, que desapareciam rapidamente embaixo de uma cascata de lodo. As palavras de um antigo cronista passaram por sua mente. - Os cem oficiais, assim como utensí­lios raros e objetos maravilhosos, foram levados para preencher a tumba. Ele olhou para a estátua no declive, pouco visível na escuridão, e então percebeu. O guerreiro tigre não era um guardião. Era um executor. Jack olhou novamente para os crânios. Eles formavam a verdadeira guarda do imperador, os soldados leais, os serviçais, aqueles que haviam construído a tumba e levado o corpo para lá, que tinham se dedicado a cumprir os caprichos de seu líder, que tinham jurado proteger o segredo, prestado um juramento que não os havia protegido. Eles não eram um exército voluntário para a vida após a morte. Eram as vítimas de um assassinato em massa. Tinham sido assassinados não para satisfazer a vaidade de alguém que acreditava que governaria para sempre, mas para satisfazer a fome de imortalidade daqueles que achavam que eles eram seus vassalos de maior confiança, os guerreiros cuja proteção do segredo asseguraria seu poder por toda a eternidade. De repente, Jack soube com certeza. Rebecca tinha razão. Havia algo ali, algo na escuridão além, algo tão sur­preendente que ele quase não conseguia acreditar. O segredo da tumba do primeiro imperador.

De repente estava acontecendo novamente. Algo o sugava para baixo. Ele começou a nadar com movimentos firmes. Pela primeira vez no mer­gulho ele sentiu o aperto frio de medo, como se houvesse algum espaço vazio no exército macabro abaixo reservado para ele, por ter ousado ver o que vira. Ele percebeu que o leito inteiro do lago estava se movendo, deslizando declive abaixo. A estátua e a cova tinham desaparecido. Uma onda volumosa o lançou para o lado, empurrando-o para longe do rego. Então ele estava milagrosamente limpo, flutuando sobre a tempestade de sedimento, banhado pela luz solar. Viu que Costas estava distante apenas alguns metros. A luz vermelha do sinalizador de interfone dentro do ca­pacete dele estava piscando, e ele percebeu que devia ter falhado. Fez com a mão um sinal de que tudo estava certo e viu Costas fazendo o mesmo. Olhou para baixo novamente, tomando fôlego, esperando que sua pulsa­ção se acalmasse antes de subir.

Jack fechou os olhos. Tinha visto alguma outra coisa. Algo na fração de segundo daquele tremor. Algo que tinha relampejado em sua visão enquanto o sedimento era sugado do leito do lago em um vórtice turbilhonante. Ele havia visto paredes, grandes paredes de pedra, revestindo os lados de uma passagem, convergindo para uma via de acesso escura na lateral do declive, lacrada com mais pedras. Ele abriu os olhos. Ti­nha certeza disso. Pensou no que mais havia visto embaixo, no que ele tinha tocado. Olhou para a superfície, através da água que estava agora brilhante e clara. Eles estavam a menos de vinte metros de profundidade, e ele tinha a certeza de que vira a linha oscilante dos cumes nevados ao sul, atravessando o reflexo prateado da luz solar na superfície. As palavras do cronista chinês voltaram à sua mente. "Para formar imitações dos cem rios, o rio Amarelo e o Yangtsé, e os mares, foi usado mercúrio, e foram construídos de tal modo que pareciam fluir. Acima havia representações de todos os corpos celestes, abaixo, as feições da terra." Então ele percebeu. Lá, na tumba em Xian, tudo havia sido artifício. Ali, debaixo das montanhas celestiais, onde o lago era igual a mercúrio líquido, tudo era real. Ali, onde o reino do céu estava no horizonte para ser visto, e o orbe terrestre e os céus verdadeiramente poderiam ser o domínio de um imperador.

Um imperador. Jack mal estava conseguindo respirar. Não Genghis Khan. Um imperador muito maior que ele. Um imperador de tudo aqui­lo que era conhecido abaixo do céu.

Shihuangdi. O primeiro imperador.

Jack se lembrou do sogdiano, o homem cujo ato realizado mais de dois mil anos atrás os tinha conduzido para esse lugar, um homem cuja pró­pria existência era parte conjectura e parte realidade. Eles teriam acertado a respeito dele? Ele realmente roubou a joia celestial debaixo do nariz dos guerreiros tigres de Xian? Ou ele estava cumprindo uma promessa, aquela que o primeiro guardião tinha feito ao imperador agonizante, de levar a joia de Xian para esse lugar, a tumba real? Teria o imperador per­dido a confiança nos guerreiros tigres? Teria ele previsto o futuro, visto como seu legado seria usurpado por aqueles que simulavam protegê-lo? A fraternidade do tigre vivera uma mentira, apoiada por assassinatos, uma fantasia de proteção que tinha sido sempre somente sua própria ganância e poder?

Jack pensou na jóia celestial, o tesouro ilusório que os levara a essa viagem extraordinária. Teria a joia sido instalada sobre o caixão vazio debaixo do Monte Li, um símbolo inestimável do sonho do imperador que eles tinham jurado proteger e que, no entanto, um dia, um descendente do guardião teria removido e tentado levar para seu legítimo lugar? Jack se lembrou do tio de Katya, a história dos guerreiros tigre contada por ela própria, fluxos de conhecimento que pareciam vir de algum reservató­rio profundo do passado, lembrados com exatidão, passados de geração em geração. Jack pensou novamente em Katya. Teria havido uma pessoa entre os membros da fraternidade, uma em quem Shihuangdi confiava, ele que acreditava em tão poucos, a ponto de manter os olhos dos outros longe da verdade? Teriam eles vivido uma mentira durante sessenta e seis gerações, sempre protegendo uma tumba em Xian que um deles sempre soube que estava vazia? Será que o tio de Katya teria ido buscar a joia não para mantê-la longe de ShangYong, mas para levá-la secretamente para lá? Jack pensou em algo que Katya tinha lhe dito sobre o tio. Ele estava me preparando. Será que ela tinha lhes contado a história inteira? Quem era o guardião da tumba agora?

O interfone dele deu um estalido. - Jack. Você pode me ouvir?

Alto e nítido.

Estou gritando até perder a voz. Você precisa fazer uma parada de descompressão de dez minutos. A onda que surgiu pode ter pressurizado a água e você deve aumentar seu tempo de subida sem parar.

Cinco minutos a vinte metros, cinco a dez metros.

Entendido.

A interferência no interfone deve ter sido eletromagnética.

Fiquei preocupado com isso. O tremor pode ter desalojado aquele torpedo perdido, e reativado algo na eletrônica.

Nós vamos querer isolar a área com um cordão - disse Jack. - Este setor inteiro da costa se torna uma zona proibida. Essa é nossa condição para trabalhar com a OTAN e os russos. Vamos financiar toda a operação de limpeza e colocar os russos em qualquer programa de treinamento su­baquático que quiserem. Assim que tudo estiver pronto, dois anos, talvez três, em algum momento no futuro, iniciaremos a busca. Ninguém entra na água antes disso. Saúde e segurança.

Certo, Jack. Como se saúde e segurança sempre fossem fundamentais em sua lista. Então, o que exatamente você encontrou embaixo? Supo­nho que estávamos olhando para algo mais que um espelho de bronze.

Este nosso canal é seguro?

Um sistema fechado. Somente você e eu. O barco da marinha não tinha o receptor adequado e nós não pudemos conseguir um que chegas­se a tempo.

Jack pigarreou e disse: - Encontrei uma estátua e alguns ossos.

Eu disse, o que você encontrou, Jack?

Foi isso que eu vi, com certeza. Foi nisso que toquei.

Certo.

Muito bem, poderia ter achado uma tumba.

Aquela da lenda local? A de Genghis Khan?

Não tenho certeza. Nós precisamos de mais dados para continuar.

Você não achou a jóia. A outra. A olivina?

Não, não achei a joia. Mas este pode ser o lugar certo. Se Fabius e os outros chegaram de fato até a costa oriental do lago e afundaram por cau­sa de uma tempestade, este é aproximadamente o lugar onde teria ocorri­do o naufrágio. Tudo o que traziam com eles ainda poderia estar aqui, em algum lugar dentro do lodo, debaixo de nós agora. Ou Fabius pode ter escapado e levado a joia com ele para a China, a Xian.

De volta para a tumba do primeiro imperador.

Para o lugar que a história chama de a tumba do primeiro imperador.

Houve um breve silêncio. - Você está dizendo aquilo que penso que

você está dizendo?

Eu vi o que havia durante um segundo. Menos de um segundo. Mas tenho certeza do que vi.

Costas conferiu o velho Rolex, o relógio de mergulho que usava em cima da roupa de mergulho e ergueu o polegar. Jack repetiu o gesto e observou a medida de profundidade dentro do capacete quando eles su­biram para dez metros. Seus sistemas de flutuabilidade se ajustaram au­tomaticamente para o ponto neutro, e Costas se virou para encarar Jack. - Então, como você vai explicar a sua filha que ela é responsável por uma das maiores descobertas arqueológicas feitas, algo que poderia mudar a percepção da história asiática, ou não vamos dizer nada sobre isso, mas apenas falar sobre um torpedo ou, se pressionado, talvez você resmungue algo sobre Genghis Khan?

Não quero contar para ninguém pela razão que você acaba de men­cionar. História asiática. muita coisa em jogo. Todo um mito nacional. Agora mesmo, o chinês poderia precisar daquele mito, o mito da tumba do primeiro imperador em Xian, o mito de riqueza inenarrável enterrada com seu maior governante. A revelação da verdade poderia desencadear um desdobramento difícil de ser controlado na China.

Você não acredita nisso. Nunca soube que você deixou de escavar um tesouro porque se preocupou com um mito nacional.

Muito bem, quero esperar até que a atividade sísmica se acalme. Isso pode levar um par de anos. E isso deverá nos dar tempo para desen­volver um equipamento que atravesse uma montanha de sedimento do lago. Dar tempo a você, eu diria.

Eu estava projetando um novo escavador de subfundo em minha mente enquanto você estava pesquisando embaixo. Eu sabia que você tinha conseguido algo, e que voltaríamos aqui. Então, e sobre Rebecca?

Dois, talvez três anos, num momento futuro. Quando nós estiver­mos prontos para voltar aqui. Então vou lhe contar o que vi. Prefiro que sua primeira grande descoberta não seja algo que poderia transtornar a ordem mundial inteira.

As crianças sabem tudo. Ela vai interrogá-lo assim que vir aquele seu olhar. E mostre-me uma de nossas descobertas que não tenham transtor­nado o curso da história. Se ela vai continuar conosco, terá que se acostu­mar com isso.

Ela deve estar em cima no barco, agora - disse Jack.

Aposto que você vai lhe contar, no momento em que aparecermos.

Jack olhou para cima. Eles tinham alguns minutos. Ele provou um pouquinho de sal do lago. Lembrou-se de algo que Katya lhe havia contado, uma antiga lenda quirguiz sobre como os nômades mantinham afastado o espírito de seus antepassados. Ficavam se lamentando no lago, ao longo do contorno da costa, junto às pedras esculpidas que haviam marcado seu passamento. Se os enlutados chorassem, as águas subiriam, envolveriam os fantasmas, e eles se afogariam. Mas agora havia muito poucos enlutados, muito poucos ficaram para ser lembrados. Jack tinha visto os seixos secando ao sol perto do recuo do contorno da costa e a mancha da marca da água alguns metros acima. Agora eram as próprias montanhas que precisavam se lamentar, para libertar a água derretida em correntes, manter o espírito abaixo delas na baía, o espírito de Shihuang- di, o primeiro imperador.

Jack pensou em onde eles estavam novamente, na lendária Rota da Seda. Um lugar varrido pelo vento divino onde pouco fora deixado, a não ser mito e lenda, histórias que ainda persistiam porque eram tão luminosas e irreais.

Mas não aqui. Não no mundo subaquático. Aquilo era real.

Houve outro tremor, mais violento dessa vez, e fez-se uma escuridão sobre o leito do lago abaixo deles, obscurecendo-o completamente. Jack conferiu seu computador. Estava na hora de ir. Costas ergueu o polegar. Jack olhou para cima e viu a sombra do barco patrulha e, atracado ao lado dele, um Zodiac, com a popa diretamente acima da cabeça deles. Um grupo de rostos era visível acima da popa do barco patrulha, ao redor da escada de mão onde Costas estava começando a subir, mas um rosto solitário olhava atentamente para ele da lateral do Zodiac. Os cascos eram como nuvens escuras, mas os rostos refletidos na superfície prateada da água como estrelas, o mais luminoso diretamente sobre ele. Jack subiu e apareceu na superfície, levantou a viseira do capacete e se agarrou na lateral do Zodiac, olhando para o rosto de óculos de sol e longos cabelos escuros que o contemplava. Ele se ergueu, examinou por cima do alto da ponte flutuante, e viu que eles estavam fora do alcance dos ouvidos dos outros. Então ele se abaixou novamente e gesticulou para Rebecca se aproximar mais. Ele resfolegou na água e limpou a garganta. Estava tão excitado quanto jamais estivera na vida.

Você se lembra de nossa viagem para Londres para ver a exposição dos Guerreiros de Terracota? - ele perguntou. - Bem, você não vai acre­ditar naquilo que acabamos de encontrar.

Experimente, pai.

 

                     Província de Gansu, China

Quarenta e oito horas depois, Jack estava de em frente a uma pare­de baixa, os restos de uma muralha que outrora tivera vários metros de espessura, dentro de um complexo de ruínas antigas. Ele se ajoelhou e tocou a superfície, sentindo que ela se desfazia sob seus dedos. Era marga, argila compactada com fragmentos de granito cor-de-rosa e cinza. Esse lugar precisava desesperadamente de chuva, mas a parede estava tão res­secada que a chuva aceleraria sua destruição, dissolvendo-a em vez de fortalecê-la. A marga parecia concreto antigo, igual a argamassa, mas não era. Esta muralha não era Romana. Ele se virou e acenou para Costas, que vinha subindo atrás dele, uma figura ligeiramente desconsolada imersa na poeira. Mais atrás ele podia ver Katya e Rebecca, desvendando à sua ma­neira o caminho por entre as pedras, e além delas uma nuvem de onde o rotor do helicóptero da Lince estava sendo desligado. O helicóptero os levara até em etapas, do lago Issyk-Gul no Quirguistão, a leste e acima da passagem montanhesa do Tien Shan, margeando os limites ao norte do deserto de Taklamakan, e depois para baixo, em direção ao estreito da passagem de Gansu, no coração do império chinês antigo. Tinha sido uma viagem maravilhosa, seguindo a Rota da Seda pelo ar, e eles haviam acampado nos locais dos caravançarás abandonados muito tempo. Naquela manhã haviam feito um voo rasante sobre a Grande Muralha de China, em cima de uma seção construída durante a dinastia de Han, dois mil anos atrás. Elas ficavam a algumas horas de Xian, a extremida­de oriental da Rota da Seda e o lugar da tumba do primeiro imperador. Mas, para Jack, esse lugar era o fim de sua busca, o último sinal de uma extraordinária e antiga viagem que eles vinham fazendo de outro mundo longínquo, inimaginável para o Ocidente.

Uma lufada de brisa trouxe a sugestão de algo exótico, até mesmo ine­briante, alguma colheita no vale talvez, mas o ar estava calmo, e tudo o que Jack podia sentir era o cheiro desagradável de decadência e desam­paro, elemento vital e familiar aos arqueólogos. Inspirou, apreciando. Queria que Hiebermeyer estivesse ali. Ele o ajudaria a encontrar sentido nas paredes, na confusão de ruínas. Ou talvez tivesse se passado tempo demais para desvendar e nada mais houvesse para observar além do que via agora à sua frente.

Jack olhou em volta. O lugar era de uma beleza desoladora. Eles ha­viam passado por casas em ruína, paredes de tijolos sem cor, alvejadas pelo sol, rodeadas por trechos de cultivo de milho e cevada que pareciam sentenciados a perder a batalha contra o sol ardente. Trilhas cheias de sul­cos atravessavam campos pedregosos, as cicatrizes da aração e os canais de irrigação estavam secos muito tempo, endurecidos pela ação do sol. Ao longe, uma cabra ou ovelha solitária vasculhava o chão em busca de algu­ma coisa entre o pedregulho e o pó. O próprio céu parecia chamuscado, incolor, e na maior parte do tempo não se podia ver nada além do baixo platô onde ele estava, mas então vinha do alto um vento que afastava a poeira, e o céu surgia riscado de vermelho. Nesses momentos, ele via os contrafortes das montanhas de Xaipan, grandes concavidades e espigões que se erguiam numa linha de horizonte recortada contra o céu. Ao norte havia outra linha de montanhas, mais distante, e entre as duas cadeias estava a Passagem de Gansu, a Rota da Seda oriental. Ali o progresso ge­rado pela passagem das caravanas de camelos levantara uma tempestade contínua de poeira, cujos resíduos pareciam permanecer no chão do vale como um resíduo da história, uma grande exalação do passado que ainda permanecia suspensa.

Jack percebeu que ele havia estado em lugares como esse antes, na extremidade das montanhas Atlas, no Marrocos, no deserto sírio do nor­teiem Andaluzia, na Espanha. Lugares nos quais as comunidades antigas outrora haviam prosperado na periferia, mas o esgotamento da terra e do espírito subjugara todas as tentativas de esculpir uma existência fora dos bolsões preciosos de terra, tão facilmente varridos pelos caprichos do cli­ma e da erosão. Disseram-lhe que chovia cada vez menos agora ali e que a agricultura que outrora sustentara a aldeia estava sendo soprada pelo ven­to. Em breve, até as paredes antigas se tornariam parte da nuvem de que turbilhonava e fluía ao longo da Rota da Seda, entre a cadeia infinita de montanhas que definiam aquela passagem que antes unia os grandes impérios do Oriente e Ocidente.

Jack se sentou sobre um muro de pedras. Costas subiu e se acomodou ao lado dele, tirando a poeira do rosto. Encarou a parede com uma car­ranca. - É assim que você sabe que está na presença de um arqueólogo real - disse. - Uma das maiores maravilhas da história está logo além do horizonte, a tumba lendária do primeiro imperador, o Exército de Terra­cota. Mas não, nós estamos sentados diante de uma parede desmoronada num solo improdutivo, sofrendo com a poeira e o calor ardente. Famin­tos, sedentos, cansados e precisando urgentemente de umas férias.

Jack passou a garrafa de água para ele. - Mas não consigo encontrar um sentido nisso sem você. A arqueologia, quero dizer. Você mantém meus pés no chão.

- Certo. - Costas bebeu a grandes goles a água da garrafa, depois a de­volveu. - Então, qual é a verdade sobre este lugar, Jack? Foi para ver isto que você nos trouxe por todo esse caminho?

Jack passou um pedaço de papel para Costas. - Imprimi isto do com­putador do helicóptero esta manhã. Sabia que você ia precisar de um antídoto para uma parede arruinada. Manchete de notícia, na CNN. Seu navio elefante ao largo da costa do Egito. Lembra-se? Acho que está no mesmo nível dos Guerreiros de Terracota, você não acha? E nós os encontramos.

Costas examinou a fotografia e seus olhos se iluminaram. - Olhe, eles colocaram meu novo submersível na foto, o ROV-6. Eu pedi para a equi­pe de filmagem do IMU para colocá-lo nas fotos de publicidade. Você pode ver até a nova matriz estroboscópica. Perfeito.

Os elefantes, Costas, os elefantes.

Sim, isto também. - Eles olharam por um momento para a imagem extraordinária que tinham visto pela primeira vez dez dias antes, a forma incrustada de coral de um elefante sentado no fundo do mar Vermelho. Costas leu em voz alta a legenda. "O egiptólogo Maurice Hiebermeyer anuncia o achado de um naufrágio sensacional". - Ele deu um tapa no papel. - Não acredito nisto. Nenhuma menção a nós em lugar algum. Hiebermeyer.

Nós tínhamos que permitir que o arqueólogo do vivesse um mo­mento de glória -, disseJack. - Afinal de contas, foi ele que nos persuadiu a ir para o Egito em primeiro lugar.

Isso aconteceu quando nós achamos a Atlântida -, grunhiu Costas. - Eu tinha projetado uma demonstração especial do Anthropod, o progra­ma avançado de exploração em águas profundas. A imprensa estava toda em cima de Hiebermeyer e de suas múmias miseráveis.

Isso é egiptologia para você.

De qualquer maneira, você é que deveria estar dando as entrevistas.

O Maurice é melhor nisso que eu. Ele tem toda aquela energia bor­bulhante. E é menos ameaçador.

Ameaçador? - Costas olhou de maneira penetrante para ele. - Dei- xe-me adivinhar. Você não quer o mundo saiba que um verdadeiro Indiana Jones por aqui, quer? Poderia pôr os sujeitos maus na defensiva. Você gosta de manter um perfil modesto.

Exatamente.

Você não respondeu à minha pergunta. A verdade sobre este lugar.

Jack apontou para a parede que se desfazia. - É o que você à sua frente. Alguns anos atrás, arqueólogos chineses identificaram estas pare­des como sendo da dinastia Han, contemporânea ao Império Romano. Eles achavam que este poderia ser o sítio de Lijian, um assentamento na passagem de Gansu mencionado nos registros de Han. Lijian poderia derivar da palavra chinesa "Han" para designar o ocidental, aqueles que viviam mais além dos persas. Mais tarde este lugar pode ter sido reno­meado de Jielu, que possivelmente significava "cativos pela conquista de uma cidade. Era comum para o povo de Han instalar seus prisioneiros de guerra em lugares que eram depois nomeados segundo sua origem. A grande sacada de imaginação foi conectar este lugar com a teoria de que os chineses haviam empregado mercenários romanos, os sobreviventes das legiões de Crasso que tinham escapado da prisão persa.

Então é isso - murmurou Costas. - É por essa razão que estamos aqui.

Não está claro e preciso -, disse Jack. - A história de Fabius e dos outros poderia ter terminado no Lago Issyk-Gul. Mas também poderia não ter sido assim. Qualquer coisa é possível.

Continue.

Os sobreviventes romanos de Carrhae foram aprisionados em Merv em 53 a.C. Licinius, Fabius e seu grupo encontraram a chance de fugir aproximadamente trinta anos depois. Ao longo dos anos, outros devem ter tentado escapar. Talvez um grupo tenha tido êxito, e ressurgiram em Merv os rumores sobre as oportunidades que havia para os mercenários no Leste e as grandes riquezas que podiam ser obtidas. Talvez tenha sido isso que inspirou Licinius e Fabius. E as alusões sobre este lugar parecem referir-se a um grupo anterior. A História da primeira dinastia Han registra soldados que lutaram em 36 a.C. para um líder militar renegado, Hun, e que organizam as tropas em uma formação que lembra a manobra ro­mana chamada testudo, em que os escudos são superpostos sobre as cabe­ças. Esse é o único fragmento de evidência no qual toda a teoria se apoia. Uns poucos que foram persuadidos pelo argumento do livro começaram a identificar Lijian com o assentamento romano. E aqui estamos nós.

Algum artefato romano? - perguntou Costas, chutando a poeira. Eles ergueram o olhar quando as duas mulheres se aproximaram. Rebec- ca continuou a andar, caminhando ao redor das ruínas à frente deles, exa­minando as paredes. Costas mudou de lugar para abrir espaço para Katya se sentar no muro.

Jack sacudiu a cabeça. - Foi o que Katya disse no sítio do enterro ro­mano ao lado do lago Issyk-Gul. Você não esperaria achar nada. Se os ro­manos estiveram aqui, eles não teriam consigo nada de sua vida anterior. Suas coisas teriam sido subtraídas deles no campo de batalha, e depois em Merv. Mas uma característica fascinante neste lugar. Não artefatos ou ruínas, mas as pessoas. uma incidência notável de traços bonitos nos habitantes locais: olhos verdes, cabelos cor de linho, nariz grande. Alguns estudiosos chineses que vieram para consideraram que havia nessas feições traços asiáticos ocidentais, então alguém se lembrou da conexão romana, e a ideia pegou.

O que eles sabem sobre isso? - perguntou Costas. - Os habitantes locais, quero dizer?

É impossível dizer. Poderia haver alguma memória residual de seus ancestrais. Mas eles são desesperadamente pobres, e aceitar a teoria roma­na poderia ser um caminho para o ingresso de dólares turísticos.

Katya disse: - Em qualquer lugar ao longo da Rota da Seda você pode­ria ter uma contribuição genética do Ocidente: persa, sogdiana, bactriana, indiana e ainda grega e romana, mas com essa contribuição que remonta a tão longe quanto o início do período Neolítico e até mesmo aos indo- europeus que vieram para este local tão longínquo, realmente não pode­ria ter certeza.

Jack assentiu com a cabeça. - Estudos feitos com DNA resultaram bas­tante inconclusivos. E tudo se baseia numa ideia equivocada dos chineses acerca dos romanos: que eles eram gigantes de olhos azuis e cabelos loiros. Ironicamente, os legionários romanos da área central da Itália teriam tido muito maior semelhança com a fisionomia dos guerreiros chineses Han: baixos, atarracados, cabelos escuros e olhos castanhos. O que os chineses estavam imaginando está muito mais próximo do tipo celta ou nórdico. É claro que na época de Júlio César e de Crasso havia muitos homens como esses nas legiões: celtas no norte da Itália, gauleses, até bretões. Os hunos não eram os únicos a empregar mercenários em seus exércitos.

Qual é sua sensação instintiva? - perguntou Costas.

Jack franziu os lábios. Ao longe ele viu um fazendeiro trabalhando a terra com a picareta, o instrumento saltando da superfície de pedra dura. Além dele as montanhas se erguiam como papel amarrotado, as depres­sões e vales dentro de sombras escuras. - Meu instinto visceral - ele repe­tiu, - é que esta terra teria sido mais fértil na Antiguidade, permitindo um assentamento agrícola mais viável, mas sempre foi um lugar de grande exigência, não um lugar de escolha. Meu instinto visceral é que os prisio­neiros de guerra podiam ter-se estabelecido aqui.

Rebecca se aproximou e parou na frente deles. Ela havia tirado o pulôver de e exibia uma camisa cinza com a sigla USMC estampada na frente.

Você parece ter feito alguns amigos novos -, disse Jack.

Costas examinou a camisa e fez que sim com a cabeça em sinal de aprovação. - Hoo-ah -, ele disse.

Hoo-ah replicou Rebecca, levantando a mão e dando uma palma­da contra a mão dele. Jack afastou os olhos. Ela se deixou cair na parede baixa ao lado dele e tirou o boné, enxugando a testa. - Está excessivamen­te quente - ela disse.

Jackvirou-se para ela surpreso. - O que você acabou de dizer?

Eu disse que está excessivamente quente. - Ela olhou para ele emba­raçada. - Isso é o que John Howard teria dito. Li isso numa carta que ele escreveu à esposa, sobre a selva, quando o filhinho deles estava doente. Era uma das expressões que ele usava. Tenho pensado muito nele. Ele queria tanto estar com a família, mas não conseguiu. Espero que a tenha encontrado no final.

Jack pôs o braço ao redor dela e sorriu. Ele se lembrou da mina de lápis-lazúli, do corpo. Por um momento ele viu Howard e Wauchope, em juntos, não os homens velhos vestidos com peles de carneiro ras­gadas, mas jovens oficiais com capacetes brancos e túnicas cáqui, com telescópios e mapas, fitando o horizonte. Ele estreitou Rebecca e depois retirou o braço. - Você pouco telefonou a Bishkek pelo celular, não foi? Como está Pradesh?

Ele está bem. - Rebecca pareceu ter ficado abatida de repente. - Altamaty e eu fomos vê-lo no complexo médico dos Estados Unidos em Bishkek, pouco antes de voarmos para cá. A bala não acertou nenhum órgão vital. Mas sem os primeiros socorros ele teria sangrado até a morte. Ele está muito agradecido a você por ter salvo sua vida.

Costas fez os primeiros curativos. E é pouco provável que eu o tenha salvo. Fui eu que o coloquei em situação de perigo.

O médico do exército disse que se tivesse sido uma bala explosiva ou uma calibre cinquenta Browning, ele teria morrido com o impacto. Disse que quando a bala bateu em Pradesh ela estava numa velocidade subsônica e deve ter sido atirada de uma distância incrível, aparentemente com um rifle velho. Alojou-se apenas a uma polegada do coração. Ele disse que nunca vira uma coisa assim.

E nunca mais verá - murmurou Costas.

Como vai indo sua palestra sobre arqueologia? -, perguntou Jack.

- Ele a está aperfeiçoando. Quer mais informações. Disse que estava vendo os artefatos romanos encontrados em Arikamedu sob um novo as­pecto, como evidência de comércio, sociedade, crenças - romanas, egíp­cias, indianas, sua própria história. Ele está ansioso para voltar lá.

É isso que gosto de ouvir - murmurou Jack.

E Altamaty? - Jack olhou para Katya.

Ele vai ficar com Pradesh até que eles o levem de volta de avião. Pra­desh está tentando lhe ensinar o inglês. Eles continuam se dando muito bem. Altamaty até levou para ele uma tigela com guisado de carne de car­neiro. Diz que cura qualquer coisa.

Costas limpou a garganta. - Bem, Jack. Talvez você queira juntar-se a eles para comer um pouco mais de beiço de ovelha.

Rebecca parecia incrédula. - O quê?

É verdade - disse Costas. - No Quirguistão, quando conhecemos Altamaty, ele comeu beiço de ovelha. Seu pai comeu beiço de ovelha.

Oh meu Deus.

Tive que comer - protestou Jack. - Seria uma grande ofensa eu ti­vesse recusado. Altamaty nunca mais voltaria a falar comigo.

Pensei que você odiasse carne de carneiro.

É a única comida que não suporto.

Você não poderia ter escolhido outro pedaço? Tinha que ser o beiço?

Não tive escolha. - Ele olhou desamparado para Katya. - Tinha que ser o beiço.

Eu consegui - Rebecca disse baixinho, - o pai mais asqueroso... de todos.

Jack sorriu. - Nós precisamos mostrar para Pradesh e Altamaty as cordas. Um curso intensivo no campus do IMU, e algumas experiências com nossas embarcações de pesquisa. Preciso falar com o comandante do Grupo de Engenharia de Madras para organizar um destacamento. Pra­desh precisa de uma licença para recuperação, de qualquer maneira, e o campus em Cornwall é perfeito. Em relação a Altamaty, o treinamento dele pode fazer parte de nosso financiamento para o trabalho subaquático em Issyk-Gul e o projeto de pesquisa dos petróglifos. Nós podemos pôr um pessoal temporário enquanto ele estiver fora.

Isso seria maravilhoso -, Katya murmurou. - O financiamento.

Foi o que prometi - Jack respondeu. - Você pode muito bem ir se encontrar comigo de novo.

Se Altamaty está fora, Katya certamente vai precisar de companhia disse Rebecca. Costas tossiu, e Rebecca continuou. - Quando Costas finalmente for me ensinar a mergulhar no Havaí, o que ele prometeu fa­zer, vou ensinar a Altamaty todas as palavras inglesas para os equipamen­tos, de modo que ele possa encomendar tudo o que precisa do pessoal técnico do IMU sem ter que passar por Costas. Eu disse a ele que Costas é um grande sujeito, mas normalmente vive obcecado por algum novo submersível ou coisa semelhante, e se Altamaty quiser material ele deverá se dirigir a mim. - Ela se inclinou e lançou a Costas um olhar aveludado.

E bom ver que você está no topo das coisas, Rebecca -, Jack disse, erguendo as sobrancelhas para Costas.

E a dificuldade com você, pai, é ficar pulando de uma aventura para outra. Foi o que Hiemy me contou. Você sabe, no Egito. Disse que quando ele encontra algo, se apega àquilo, procura insistentemente qual­quer possível fragmento de informação no local. Obsessivamente.

Fale sobre isso -, disse Costas.

Ele diz que ele, professor Hiebermeyer, é o verdadeiro arqueólo­go. Ele disse que quando encontra aqueles fragmentos de cerâmica com gravações do Périplo, ele os põe de lado deliberadamente, não se permite ficar excitado.

Jack estreitou os olhos. - Depois que ele os encontrou me telefonou em aproximadamente dez segundos. Você se lembra, Costas? Até veio nos visitar quando estávamos escavando a enseada em Istambul, procurando o menorá, o candelabro sagrado judaico. Eu é que estava muito ocupado. Apegado ao meu projeto.

Hiemy disse que se ele não tivesse passado meses escavando meti­culosamente aquela casa romana perto do Mar Vermelho, essa aventura inteira nunca teria acontecido. Disse que ele fez o trabalho real enquan­to vocês estavam fora procurando pelo Santo Graal ou algo assim. Disse ainda que era como Jornada nas estrelas, vocês tinham ido para o lado escu­ro. Eu disse que era Guerra nas estrelas, não Jornada nas Estrelas. Acho que ele não assistiu a nenhum dos dois. Ele disse que você havia se tornado apenas um caçador de tesouros, e que ele somente estava dizendo isso porque você ainda tem potencial, e é para seu próprio bem.

Acho que preciso trocar umas palavras com o velho Hiemy -, disse Jack.

Não se preocupe respondeu Rebecca. - Aysha está cuidando dis­so. Ela diz que o que ele precisa é de uma família. Crianças, você sabe. Ela diz que está trabalhando nisso.

Costas quase engasgou ao dizer: - Trabalhando nisso.

Dia e noite -, disse Rebecca.

Hiemy, que velho sortudo -, comentou Jack.

E meu próximo projeto vai ser o sul da Índia -, disse Rebecca afir­mativamente.

Seu próximo projeto é a escola disse Jack.

Desde que vi todo aquele material na velha arca, toda a nossa história familiar, fiquei fascinada por ela -, disse Rebecca, olhando de maneira de­safiadora para Jack. - Pradesh se ofereceu para me levar àquele santuário na selva, para ver as esculturas por mim mesma. Ele acha que o próximo passo é entrar dentro da tumba. Ver o que lá. Diz que o governo in­diano está enviando sapadores para construir mais estradas, na realidade, para terminar várias das trilhas que foram feitas por Howard e seus sapa­dores em todos aqueles anos tempos atrás.

E a INTACON? - perguntou Costas. - E Shang Yong? Será que a morte do francoatirador no Afeganistão acabou com ele, Katya?

Ela respondeu baixinho. - Sem seu fiel companheiro de crime, a fra­ternidade se recusará a reconhecê-lo. Mas os membros se agarrarão à convicção de que eles protegem o legado de Shihuangdi e sua tumba.

E quanto tempo isso vai durar? - perguntou Costas.

O legado do primeiro imperador está seguro, por ora.

Jack olhou firme para Katya, depois se voltou novamente para Costas. - A INTACON era do próprio Shang Yong, e ela foi fechada. Pradesh informou o fato à sede dele em Bangalore assim que nós saímos da selva. Ele levou uma pancada com um soco inglês nas juntas por entrar num país de bandidos sem autorização e além do mais levando dois sapadores com ele, mas o coronel imediatamente despachou uma companhia de as­salto aéreo. O tiroteio com os maoístas foi a desculpa de que precisavam para entrar no local com mão de ferro.

Pradesh diz que o governo indiano retirou todos os contratos de mineração dos distritos da selva -, disse Rebecca. - O que nós acionamos poderia ser a primeira grande oportunidade para os habitantes da selva, mas Pradesh está preocupado, achando que essa retirada é apenas tempo­rária e que ainda uma batalha pendente. Nós precisamos mostrar para os habitantes da selva que eles podem obter mais lucro com o turismo de aventura na selva do que com a permissão que é dada às companhias estrangeiras para a exploração da mineração na selva. Pradesh diz que isso depende da profundidade da corrupção. Os funcionários do governo podem obter pagamentos maiores das multinacionais de mineração do que das companhias de ecoturismo iniciantes.

Você deveria trabalhar para uma ONG, Rebecca Katya disse, sor­rindo.

Eu ia falar com meu pai sobre isso. Você sabe, sobre dar para o IMU outra aparência. Não é a primeira vez que suas descobertas criam inúme­ros problemas novos quando tentam resolver um. E nós não podemos simplesmente nos afastar e passar os problemas para outra pessoa.

Quando você for para a selva -, Jack disse, - tenho algo para você devolver.

A manopla de tigre?

Jack fez que sim com a cabeça. - Nós não podemos devolver o vélpu sagrado, porque ele não está conosco -, ele disse. - Mas a manopla fi­cou naquele santuário durante dois mil anos e também foi venerada pelos Kóya como a arma que lhes foi dada por Rama, o deus que outrora viveu entre eles. Pode não ser a joia da imortalidade, mas poderia simplesmente lhes dar uma vantagem. Você pode fazer isso pelo seu tatataravô.

Talvez isso venha a significar um fechamento para ele, afinal ela murmurou.

O que você quer dizer?

Katya estava falando agora mesmo comigo sobre isso, enquanto ví­nhamos caminhando aqui para cima -, ela disse. - Sobre minha mãe. So­bre como nós não conseguimos nos preparar para a dor, como nós nunca devíamos deixar ninguém nos dizer o que vai acontecer. Howard viveu aflito durante muito tempo de sua vida, e de alguma maneira ficou en­volvido com o que houve com ele na selva. É estranho, é como se eu pudesse sentir isso. Talvez herdemos essas coisas de nossos antepassados, coisas não resolvidas. Ele não conseguiu encontrar um fecho em vida, mas talvez agora nós possamos fazer isso.

Jack olhou para Katya. Os olhos deles se encontraram por um mo­mento, e ele desviou o olhar. Ela havia dito a Rebecca coisas que ele não soubera dizer. Ele sabia que Katya ainda sentia raiva a respeito de seu pró­prio pai, ainda havia um vazio não preenchido em Rebecca, mas por um momento ele sentiu como se houvesse um laço transcendental que pode­ria protegê-las. Ela o viu olhando para Katya. - Depois que eu for para o santuário, Pradesh quer que eu estude a cerâmica que eles têm encontra­do sob a água em Arikamedu. Quem sabe Aysha possa vir me ajudar com os materiais egípcios e romanos, eu vou.

Costas pigarreou. - Se Hiemy puder dispensá-la.

Talvez ele precise de um descanso -, disse Rebecca, olhando para ele com ar inexpressivo. Jack sorriu. Ela jogou o cabelo para trás. - De qual­quer maneira, acho que isso vai ser meu doutorado.

Espere um pouco disse Jack. - Você nem mesmo terminou o se­gundo grau.

Segundo grau? Depois disso tudo? Você deve estar brincando. Estes últimos dias foram a maior aventura de minha vida. Agora sei o que você quer dizer quando fala de expedições, sobre como você se aproxima das pessoas. Sinto-me como se conhecesse todos vocês a minha vida toda.

Jack repentinamente se sentiu desarmado e se virou para o outro lado, engolindo com dificuldade. Pensou naquilo que eles haviam encontra­do no lago, e o sentimento de alegria que experimentou quando olhou para cima do subaquático e viu o rosto de Rebecca contemplando o dele. Costas pôs uma mão no ombro dele, depois se levantou, estirando-se e alisando os braços, olhando de olhos semicerrados para cima das ruínas. Chutou uma pedra, depois se agachou e a apanhou, girando-a repetidas vezes na mão, esfregando-a para limpá-la. Jack percebeu que o chão esta­va repleto de fragmentos espalhadoscerâmica, tijolo quebrado, tudo se desfazendo e deteriorando na cortina de poeira que parecia muito perto de remover esse lugar da história. Costas se voltou para ele, com olhos interrogativos. - Eu me pergunto se eles fizeram isso.

Os romanos? Fabius e os outros?

Nós estamos 1.600 quilômetros a leste de Issyk-Gul. Se algum deles sobreviveu à destruição no lago, foi ele. Digamos que um tenha sobre­vivido, um desconhecido lançado em algum lugar na praia, infiltrando- se de maneira imperceptível nas caravanas de comerciantes que iam para Xian, da mesma maneira que Liu Jian, o comerciante, pode ter se metido entre os sogdianos que se dirigiam para oeste.

Talvez um tenha conseguido disse Jack, balançando lentamente com a cabeça.

Este lugar não é exatamente um lendário paraíso oriental, é?

Jack olhou novamente para as ruínas. Em sua imaginação, ele viu os outros lugares que visitara, no Norte da África, Alemanha, os vales montanhosos de Gales, situados na periferia do Império Romano, onde o chão revelava algumas pistas para um olhar perspicaz, as protuberâncias de paredes enterradas, fragmentos de cerâmica, um monte de cotas de malha enferrujadas, lugares onde veteranos tinham deixado sua marca, vivido dias miseráveis. - É para isso que eles foram treinados Jack mur­murou. - Até certo ponto, um soldado se torna um soldado velho. Ele não anseia morrer gloriosamente numa batalha. A legião de fantasmas que marcharam ao seu lado, os camaradas que caíram, seguem para o Elí­sio, onde vão esperá-lo. Ele não precisa provar nada a si mesmo. Ele sabe que chegará e se juntará a eles. Ele fez o bastante.

E velhos soldados, veteranos, deram para o Império sua verdadeira força, estabelecendo as fronteiras - disse Katya.

Jack concordou com a cabeça. - Era o jeito romano. Um lugar com mulheres, a chance de criar uma família, construindo coisas, um peque­no pedaço de terra. Era o bastante.

No entanto, haviam dito a eles que a tumba do primeiro imperador estava exatamente acima do horizonte -, disse Costas. - Riquezas lendá­rias, além da imaginação.

Talvez, para o velho soldado, o aventureiro, o tesouro lendário sem­pre estaria apenas acima do horizonte, como o Elísio - Katya murmurou.

Quando você passou toda a sua vida procurando, esse se torna o único modo de viver.

E se fosse Fabius, eles podiam estar com o tesouro, lembra-se? - disse Rebecca. - Eles pegaram o que podiam carregar, o material que haviam pilhado dos partos em Merv, de comerciantes ao longo da Rota da Seda. E talvez eles realmente tivessem a joia, a olivina.

Um garotinho apareceu de repente nas ruínas à frente deles.Olhem disse Costas. - Ele tem aquele cabelo de palha do qual vocês estavam falando. - A cabeça pequena subia e descia indo na direção deles. Ele pa­rou, em meio à poeira, erguendo a cabeça, podia ouvi-los mas não os en­tendia. Ele continuou adiante no meio da poeira, então emergiu acima da parede de marga, olhando cuidadosamente ao redor. Seu cabelo era cor de linho, mas mais vermelho que loiro. Eles acenaram e sorriram para o menino. Jack protegeu os olhos, fitando o rosto do garoto. Os olhos do menino eram de uma cor verde notável, quase azeitona. E havia algo estranho acerca do seu aspecto, algo transitoriamente familiar. Ele subiu por cima da parede e desceu, ficando na frente deles, ainda parado alguns metros distante, cautelosamente. Suas roupas eram trapos, e ele estava descalço. De repente ele pareceu seguro, com a confiança de uma criança. Sorriu para eles e lhes estendeu a mão.

- O que você para uma criança assim? - Katya murmurou.

Costas ainda estava girando entre os dedos a pedra que pegara pou­co do chão. Ele parou de girá-la, depois a ergueu para que o menino pu­desse vê-la. Uma luz brilhou nos olhos de Jack, e ele percebeu que a pedra estava refletindo a luz solar nebulosa que a penetrava agora. Ele olhou para ela, e viu que tinha uma rica coloração laranja, translúcida, como âmbar. Ele fitou novamente. Âmbar. Então viu um inseto preserva­do dentro da pedra, um mosquito. Viu também que a pedra tinha um bu­raco no centro. Evidentemente, uma corda passara por ela anteriormente, talvez tivesse sido uma jóia. Estava velha, usada. Observou que havia nela uma marca. Parecia ser uma decoração entalhada, em espiral. Um animal, uma criatura. O coração de Jack começou a se acelerar. Estendeu a mão para pegá-la.

era muito tarde. Costas não havia percebido que Jack a queria e lan­çara-a para o menino, que a pegou e ergueu, com o rosto extasiado de prazer. A luz brilhou através da pedra. Era âmbar, não havia nenhuma dúvida. Ela podia ter vindo de milhares de milhas de distância. Âmbar do Báltico. A mente de Jack voava. Os pertences de um legionário romano? Um legionário que viera do norte céltico, da Gália ou da Alemanha, ou mesmo da Inglaterra? Ele se lembrou de Fabius, alto, o Fabius de rabo-de- cavalo, da tumba esculpida na selva. Seria possível? Uma peça de herança tradicional, de alguma maneira escondida durante todos aqueles anos de cativeiro? Entretanto, essa era a Rota da Seda. Todas as riquezas do mun­do passaram alguma vez por esse caminho. O menino sorriu maliciosa­mente e segurou a pedra firmemente com o punho fechado. Ele tinha visto a mão de Jack. Não ia dá-la a ele. Encarou Jack com olhos inescrutá­veis. Então foi embora, saindo correndo pelas ruínas. Seus cabelos cor de linho de repente pareciam combinar perfeitamente com o lugar, a cor das montanhas, a poeira que rolava pelo vale. A cor da Rota da Seda. Mas ha­via qualquer outra coisa, algo que Jack sabia com certeza absoluta. Alguém havia estado ali. Ele inspirou profundamente, depois expirou lentamente. Ave atque salve, frater. Ele se virou para os outros. - Eu me pergunto se pouco estávamos fitando os olhos de um legionário romano.

Rebecca segurou Jack pelo braço. - Você acha que ajoia esteve aqui?

Jack esfregou o queixo. - E possível que a tenhamos encontrado pouco. Aquele menino. O legado.

Ela quer dizer ajoia real, Jack - disse Costas.

Talvez seja melhor deixá-la meramente além do horizonte -, Jack murmurou.

Sim, certo. Não me diga que você não queria achá-la. Não me diga que você não queria reunir as duas jóias e ver o que ia acontecer.

Não sei. - Jack estreitou os olhos. - Eu realmente não sei.

No entanto, teria sido divertido tentar, não é? -, perguntou Costas. - uma vez, quero dizer. Ver como é. A imortalidade. Então, poderíamos colocar as jóias no museu em Cartago, em lados opostos do aposento. Bem próximas, para criar um vago sentimento afetuoso. As pessoas sai­riam do museu se sentindo muito bem. E fazendo doações.

Jack olhou para Rebecca e apontou com a cabeça na direção de Costas. - É isso que quero dizer. Ele é criativo. Traz as coisas para terra. Com um estrondo.

Costas sorriu. - Tenho um laboratório, portanto, posso verificar as propriedades do peridoto e do lápis-lazúli. Pradesh falou sobre tentarmos descobrir. Essa é outra coisa que ele pode fazer no campus. Pode haver algo nelas. Não a imortalidade, você sabe, mas algo mais que um tru­que de luz, um efeito prismático. Alguma canalização de energia. Alguma qualidade refrangente.

Alguma qualidade refrangente. Jack olhou para o sol e fechou os olhos. Os últimos dias tinham sido uma série de refrações, entre o passado e o pre­sente, entre o mundo de um século atrás e dois milênios antes dele, entre vidas que pareciam correr em trajetórias paralelas. Por um momento ele sentiu como se eles fossem a mesma pessoa, Licinius, o legionário roma­no, John Howard, seu antepassado, ele próprio, todos eram movidos pelo mesmo anseio. Talvez a joia provocasse isso, a idéia de imortalidade, per­mitindo que aqueles que se sentissem atraídos por ela palmilhassem uma velha estrada para muito além do efêmero. Ele respirou profundamente e pôs o braço ao redor de Rebecca. - Creio que a mortalidade vai me ocu­par durante algum tempo.

Costas olhou para sua camisa amassada e alisou-a desanimado. Olhou para Jack. - A imortalidade poderia nos dar tempo para chegar ao Havaí.

Jack ficou em pé. - Entendido.

Agora sei o que Costas quer dizer - disse Rebecca.

Sobre o quê?

Sobre diversões. Ele sempre disse que suas expedições acabam sendo diversões. Nunca se sabe aonde elas levarão. Ele diz que isso o mantém alerta. Esta foi uma, não foi?

Jack respirou profundamente e fitou as ruínas. Procurou algo na mo­chila, então lembrou que não tinha o pequeno elefante de lápis-lazúli. Ele se lembrou de onde tinham estado e surpreendeu-se ao constatar como ele mudara. Dirigiu a Rebecca um sorriso cansado. - Um pouco mais que diversão, eu diria.

Costas olhou esperançosamente para Jack. - Então, para onde vamos daqui?

Você tem alguma idéia?

Pensei que poderíamos ir à procura das ilhas dos Imortais. Você sabe, aquele lugar sobre o qual Katya nos falou. O primeiro imperador enviou expedições para encontrá-las. Em algum lugar no oceano oriental, no centro do Pacífico, para ser exato. Uma cadeia pequena mas encantadora de ilhas vulcânicas.

- Aloha - disse Rebecca.

- Aloha - Costas replicou. Ele fez um movimento giratório com os de­dos, e apontou para o helicóptero. Jack esfregou o queixo, olhando para o rosto de Costas queimado de sol. - Sabe, você está dando a impressão de que pode passar alguns dias numa praia.

É certíssimo que posso.

Mas Rebecca quer ir para a selva. Para o santuário.

Costas se levantou e se esticou. - Isso pode esperar. De qualquer ma­neira, provavelmente não mais muita coisa para ver. Quando estáva­mos lá, senti que havia um buraco na base da tumba. Eu me lembrei de você me mostrando caixões de pedra em Roma, com o buraco de dre­nagem para deixar que os produtos da decomposição fluíssem para fora. Se Licinius estava naquela tumba, provavelmente, não deve haver muita coisa agora.

Jack fitou Costas. - Um buraco, você diz.

Costas ergueu a mão e fez um círculo com os dedos. - Deste tama­nho, mais ou menos.

A mente de Jack se acelerou. - Grande o bastante para deixar passar um tubo de bambu.

Acho que sim. Um pequeno.

Jack tinha se lembrado de algo. Uma possibilidade que Rebecca men­cionara. Ela olhava para ele agora, lendo seu pensamento. - Robert Wauchope ela murmurou. - O vélpu?

Seria possível? Será que ele podia ter deixado o bambu lá? O coração de Jack havia disparado. Ele sentia a emoção familiar da excitação. Pendurou a velha mochila cáqui no ombro, ainda pasmo.

Oh!, não. - Costas sacudiu a cabeça de modo desafiador. - De jeito nenhum. Conheço esse olhar.

Nós temos que voltar de qualquer maneira ao Seaquest II. Ele está na baía de Bengala. Seria apenas uma diversão.

Costas lançou um olhar desamparado para Rebecca. - Você percebe o que quero dizer?

Rebecca pôs o braço ao redor de Jack. - Não se preocupe, pai. Ele o seguirá a qualquer lugar.

Jack olhou de maneira interrogativa para Costas. - Então?

Você realmente pensa que poderíamos encontrá-lo?

Sem promessas.

Costas suspirou. Olhou novamente para sua camisa havaiana, depois tristemente para Jack. Eles se fitaram nos olhos. O rosto de Jack abriu-se em um amplo sorriso, e Costas olhou para baixo, sacudindo a cabeça. - O que posso dizer?

Pronto para ir?

Pronto para ir.

 

 

[1]      O cartaginês Aníbal foi um dos maiores líderes militares da história. (N. T.)

[2]     Wahabismo é um movimento religioso de muçulmanos criados na Arábia central no século 18. (N. T.)

[3]     Quanto mais as coisas mudam. (N. X.) [?]

[4]     Local onde os guerreiros vikings eram recebidos depois de morrer com honra em bata­lha. (N. T.)

 

 

                                                                                                    David Gibbins

 

 

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