Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
GUERREIROS DA LUZ
Volume I
Segunda Parte
Quatro dias depois do Sabbath, participei de mais uma Ministração com a Grace. Isso foi em uma terça-feira. Já no outro dia, quarta, Isabela e eu fomos normalmente à nossa reunião semanal com Dona Clara. Chegamos cedo à Igreja, bem antes do horário do Culto. Foi um período muito bom. Já fazia três meses que estávamos orando com Dona Clara todas as semanas!
Descemos da nossa sala quando os primeiros acordes do Louvor já se faziam ouvir. Eu me sentia animado, Isabela da mesma maneira. Fomos nos sentar mais ou menos no meio da Igreja, normalmente a gente não sentava por ali, mas naquele dia foi assim. Não queríamos atrapalhar as pessoas, e como fosse um Culto de quarta-feira, a Igreja não ficava lotada. Ali naquele lugar, mais ou menos no meio, nós estávamos praticamente sentados atrás de toda a congregação.
O Pastor Joel pregou, foi uma Palavra boa, desafiadora, que levava todo mundo a se sentir melhor e mais incentivado em experimentar um verdadeiro Cristianismo.
No finalzinho, depois que o grupo de Louvor voltou lá na frente e tocava um pouco para o encerramento, o Pastor Joel pediu que as pessoas se ajuntassem em dupla para orar. Antes que a gente pudesse perceber, ou se mexer, uma mulher se aproximou de nós dois e começou a orar por nós.
Foi uma oração diferente!... Ela orou de uma maneira especial, vinha de encontro a algumas coisas que tínhamos acabado de colocar para Deus com Dona Clara.
Quando terminou de orar, foi a vez de nós orarmos por ela. Então, ela voltou para o seu lugar, umas três fileiras mais pra frente. Nem todo mundo tinha terminado sua oração, de forma que o conjunto de Louvor continuava tocando, o Pastor continuava orando lá na frente, direcionando a congregação... estava meio barulhento até... só que aí aconteceu uma coisa estranha!
Senti-me observado. Acho que essa foi a primeira das sensações.
E exatamente como acontece com todo mundo que se sente observado por algum tempo, uma hora, mesmo sem querer, virei o rosto na direção da pessoa que estava a me olhar.
Foi o que eu fiz, instintivamente.
Como estivéssemos praticamente no fundo da Igreja, olhei para a minha direita e para trás. A Igreja era dividida em duas alas principais, uma à direita e outra à esquerda, separadas por um corredor central. Nós estávamos na ala da esquerda. Do outro lado, ao voltar o meu rosto, vi quem estava me mirando: um moço que eu não conhecia. Ele estava parado na outra ala, umas duas fileiras atrás da nossa, mais ou menos no meio da fileira. Somente ele estava ali, mais ou menos atrás de um grupo de três moças.
Quando nossos olhos se cruzaram, ele me enviou um sorriso aberto. Retribuí o sorriso porque imaginei que talvez fosse algum antigo aluno de Kung Fu. Não era difícil que isso acontecesse, às vezes eu cruzava com alguém que me era totalmente estranho, mas aí a pessoa vinha, me cumprimentava, dizia que tinha treinado comigo e "Há quanto tempo, hein?", etc. .. e tal.
Quem seria aquele moço?...
Ele tinha o cabelo liso e preto, escorrido como de índio, cobrindo as orelhas e um pouco mais comprido atrás. Os olhos eram também escuros, ligeiramente alongados; a pele, da tonalidade dos índios.
É verdade que eu tive muitos alunos; além disso, na época da "29", havia muitas pessoas que me conheciam de vista, mas eu não as conhecia de fato.
Por algum motivo estranho continuei olhando para o rapaz. Talvez fosse o olhar dele, tão sereno, tão brando... ou acho que era mesmo aquele sorriso, ele parecia estar feliz em me ver ali. Por alguns instantes continuei tentando me lembrar de onde eu o conhecia...
Mas aí ele falou comigo. Não saberia dizer porque escutei a sua voz clara e alta como se estivesse ao meu lado... e não do outro lado da Igreja. Na hora não me perturbei muito com isso, parecia perfeitamente aceitável... já nem escutava o som do Louvor. Só ouvi as suas palavras, de forma perfeita:
— Você está vendo aquele senhor lá na frente? — e apontou. Eu olhei na direção que ele apontava e perguntei:
— Aquele? Aquele ali de camisa xadrez?
— É. Aquele mesmo. Ele está passando por muita dificuldade... vai até lá depois, e ora por ele. Porque tudo que você pedir em oração, o Pai vai atender! — e sorriu de novo.
Aquele sorriso era muito bonito, espelhava muito amor. Por algum motivo ele parecia me conhecer muito bem, mas... por que eu não me lembrava dele?
Olhei de novo para a frente, para aquele senhor de camisa xadrez... então ia perguntar alguma outra coisa para aquele moço, voltei-me novamente na sua direção, e...
"Ué?? Cadê ele? Será que já foi embora? Mas não pode ser, estava aqui agora mesmo!"
Então fiquei cabreiro...
"Meu Deus... será que eu estou vendo coisas?! Será que eu imaginei isso?... Ou será... que era um anjo...?!"
Comecei a procurar por ele na Igreja, virava o pescoço para todos os lados. Nem reparei que a essa altura o Louvor já estava encerrando, e o Pastor Joel já dava a bênção final para poder despachar as pessoas.
Isabela olhava para mim, já tinha percebido alguma coisa:
— Que foi, Nenê? Que aconteceu?
— Peraí... será possível?
— Que foi? Você viu alguma coisa? — e a voz dela já soou preocupada. — Você está com uma cara estranha!
— Estou?... Espera um pouco... eu preciso fazer uma coisa antes, pra ter certeza... aí eu te falo! — eu quase nem olhava pra ela, encafifadíssimo, só continuava virando o pescoço para todos os lados.
Isabela esperou sem perguntar mais nada. O Culto tinha acabado. Voei lá na frente atrás do tal senhor de camisa xadrez. Isabela nem veio atrás de mim, ficou me esperando sentada no mesmo lugar. Desconfiada. Um tantinho temerosa.
Observei de longe o homem antes de falar com ele. Eu o conhecia de vista. Ele estava sempre bem vestido... já tinha uma certa idade... e estava acompanhado da esposa.
"Será possível que esse homem tá mesmo passando muita dificuldade?. Quem olha pra ele assim, não parece..."
Bati no seu ombro. Não via a hora de tirar aquilo a limpo!
— Desculpe-me, mas... — me engasguei todo. — Humm... a Paz do Senhor! Sabe o que é? Eu acho... eu acho que eu vi um anjo... e ele me disse pra vir aqui orar pelo senhor, porque o senhor está passando por dificuldades... hum...
Na minha cabeça já imaginei a resposta: na certa, ia achar que eu era um maluco!
Mas, para minha surpresa, os olhos dele se encheram de lágrimas, e a mulher se apressou em anotar o nome e o telefone deles no boletim da Igreja, para imediatamente empurrar pra mim!
— Ah, irmão... eu estou mesmo com problemas muito sérios! Perdi meu emprego, e na minha idade não é fácil arrumar outro. Eu era gerente de uma boa Empresa, mas fui mandado embora. Estamos mesmo atravessando um deserto muito difícil!
Foi a minha vez de sentir uma emoção forte subindo até a garganta, e meus olhos marejando em lágrimas.
— Puxa vida... — eu não sabia o que dizer. — Então foi verdade mesmo, eu vi um anjo! O senhor pode até não acreditar, mas ele me mandou aqui pra orar por você!
— Ah, mas eu acredito sim! Eu acredito, sim!
— Então vamos orar, né? Vamos orar pelo seu sustento, pelo seu emprego... Nós três oramos ali mesmo, rapidamente, entre lágrimas. Então ele me abraçou, e nos despedimos. Tudo não levou mais do que cinco minutos. Olhei de longe e vi que Isabela me observava, lá do seu lugar. Voltei para junto dela.
— Eduardo, me diz o que está acontecendo... nem levantei daqui, estou preocupada... você por acaso viu algum... quer dizer, algum... — baixou o tom de voz. — Satanista por aqui?
Até dei risada.
— Por que você acha isso?
— Ué... você não parava de olhar pra todos os lados, como se estivesse procurando alguém... por acaso você viu alguém que conhecia? Alguém de lá? Porque a sua cara estava muito estranha!
— Ah, Gatinha, não foi nada disso! — eu dava risada à toa. — Foi uma outra coisa que eu vi... eu acho que eu vi um anjo!!!
Isabela arregalou os olhos de espanto. O semblante preocupado se desfez na mesma hora.
— Um anjo, Nenê?! Sério? Você viu mesmo? Conta como foi isso!
— Lembra quanto que eu pedi, né? Quanto que eu pedi para ver anjo! A Grace até mesmo ungiu meus olhos, pediu que Deus os abrisse, pra poder ver os anjos... até Dona Clara orou por isso também! Mas estava demorando tanto...
Isabela me puxou pela mão, super ansiosa.
— Conta! Conta tudo, Nenê!!
— Pois é... — eu estava flutuando em nuvens, meio aéreo. — Meu Deus... eu não imaginava uma coisa dessas, eu imaginava que fosse ver um anjo de asas, que ele fosse me visitar em casa, no meu quarto... nunca pensei que fosse acontecer desse jeito! Parecia um homem, sabe? Um homem normal.... só que bem alto!
— Ai, Eduardo, conta direito! Mas onde foi que você viu, como foi que ele apareceu?
— Estava ali... — apontei para a cadeira do outro lado da Igreja, mais ou menos uns cinco ou seis metros de onde a gente estava. Fiquei quieto de novo, só pensando.
Isabela interrompeu meus pensamentos de novo.
— Mas e aí, Nenê? Conta, conta! Como é que ele era?
— Era alto, mais alto do que a maioria. Mas não de uma altura sobrenatural, era uma altura que um homem pudesse ter! Estava vestindo uma camisa branca fechada até em cima, de mangas compridas, presas no punho... de tecido mole, sabe? De gola redonda, me pareceu que era fechada do lado por um botão. E usava uma calça... tipo linho... linho azul escuro. Tinha traços que lembravam um boliviano... engraçado... mas não era magro, dava pra perceber que era forte, encorpado. Ele sorriu para mim!
— E como era o sorriso dele?
— Perfeito! Uma dentição perfeita! Era um índio boa pinta! — segurei novamente as lágrimas no meio da risada.
— Ele falou comigo... e eu escutei como se ele estivesse aqui perto... aqui do nosso lado... e daí...
Fui contando aquela deliciosa experiência. O rosto de Isabela se iluminava, e nós dois acabamos chorando juntos antes que eu terminasse de falar. Uma alegria muito grande invadiu os nossos corações.
— Deus atendeu! — falei, ainda sem acreditar. — Atendeu meu pedido! Eu vi anjo! Ele tinha um olhar tão especial... um olhar cheio de amor... — senti a voz embargada novamente. — Tão diferente do olhar dos demônios...
— Deus sabia que você precisava disso...
— E por que você ficou assustada?
— Eu não sabia o que estava acontecendo, olhei pra você e o vi com um ar estranho, uma cara estranha. Eu já conheço essa sua cara, e nunca é boa coisa! E você ficava olhando pra todos os lados, então olhei também, eu queria ver o que é que você estava vendo... como a gente só tem tido surpresas desagradáveis, imaginei que você tinha visto alguém da "Church" aqui dentro, tinha sentido algum demônio, alguma coisa assim... — ela suspirou de alegria. — Mas, graças a Deus, dessa vez foi uma coisa boa!! Eu também olhei por toda a Igreja, vi muito bem aquelas três meninas sentada ali do outro lado... mas não vi nenhum boliviano boa pinta!
Isabela riu de novo, um riso claro e aliviado. Eu ri também, e não perdi a oportunidade de brincar:
— E não é pra ver mesmo! Se você visse, ia querer paquerar o anjo! Ficamos ali rindo que nem dois bobos durante algum tempo, falando e falando sem parar sobre aquilo. Então Isabela lembrou:
— Vamos contar pra Dona Clara! — Isso!
Dona Clara já estava lá fora, na calçada. Corremos atrás dela para contar a novidade como duas crianças. Dona Clara ouvia, e enquanto ouvia dava risada, feliz da vida com o ocorrido. Acabou até chorando também umas lagriminhas.
— Deus é bom! Deus é bom! Atendeu ao nosso pedido!
Esse seria um assunto que nós dois iríamos falar durante bastante tempo.
Dois dias depois, na sexta-feira, Isabela encontrou comigo e foi logo falando:
— E aí? Tem o Seminário da Grace neste fim de semana. Não conseguimos fazer daquela vez, por causa do seu sarampo, lembra?
— Pois é — respondi.
— E tem também o acampamento da Igreja. — É.
Procurei saber primeiro o que ela achava. Fui logo direto.
— Você tá a fim de ir?
Conversamos e conversamos sobre as duas possibilidades.
Nós sempre temos o livre-arbítrio para escolher o melhor. As possibilidades aparecem, basta fazer bom uso desse livre-arbítrio. Naturalmente não era obrigatório refazer o curso da Grace, e não estávamos tão animados para o acampamento. Mas a verdade é que talvez aquele final de semana fosse menos complicado se tivéssemos nos ocupado com um dos dois eventos.
Mas nós estávamos constantemente buscando a Deus, constantemente em oração com Dona Clara. Estávamos também cansados de uma semana de trabalho. Nada mais justo: optamos por ficar em casa.
No sábado saímos para passear um pouco e acabamos indo ao Shopping Iguatemi. Era mais raro que a gente fosse lá. Mas resolvemos fazer um programa diferente dessa vez e, depois de rodar pra cima e pra baixo pelas lojas, olhar de tudo um pouco, comprar balas da Sweet Sweet Way (que Isabela adorava), fomos comer no Galleto's.
— Eu vinha muito aqui na época da Stylel — olhei para o cardápio.
— É, né, Nenê...? Nem sei bem o que escolher neste restaurante! Acho tudo tão caro...
Eu tinha um fraco por restaurantes legais. E não era sempre que dava para ir ao Galleto's. Isso era coisa dos idos de antigamente.
— O galeto daqui é bom. — sugeri. — E não é só coisa do nome, é bom mesmo... você pode experimentar! — olhei um pouco mais o cardápio e decidi logo. — Eu vou querer o espeto misto.
Isabela continuou olhando o cardápio, indecisa.
— A Gatinha ainda vai demorar a escolher, né? — brinquei, puxando um dos pãezinhos do couvert para o meu prato.
— Pois é, tenha paciência. Pra que a pressa? Vamos aproveitar, né? Hoje ninguém tem horário.
O garçom veio solícito até nossa mesa e foi dispensado. Fomos comendo o couvert, enquanto Isabela continuava dando umas analisadas no cardápio.
— Escolheu, menina? — perguntei, carinhoso.
— Acho que sim. Acho que vou comer o tal frango que você falou. Pedimos os pratos quando a costumeira coca com gelo e limão chegou acompanhada da tônica shweppes também com gelo e limão de Isabela.
— Esse pãozinho italiano do couvert é uma delícia, hein? — exclamou Isabela passando patê no seu pãozinho. — Acho que eles não esqueceram do pão de queijo, não?
— Não, não... já vem, vem quentinho!
O almoço foi ameno e agradável, apesar do restaurante estar um pouco cheio. Conversamos, contamos coisas da semana um ao outro, rimos das partes engraçadas. Depois pegamos o gravadorzinho e tratamos de dar seqüência no trabalho. Fazia pouco tempo que Isabela tinha retomado a escrita do livro.
Tínhamos adquirido um pequeno gravador de bolso para Isabela. Antes ela costumava fazer anotações numa folha de papel enquanto conversava comigo. Depois seguia suas anotações e contava com sua memória para escrever o texto completo. Mas agora nós íamos de fato entrar em doutrinas da Irmandade, em coisas mais relacionadas ao Satanismo. Por isso era muito importante que as informações não se perdessem.
Eu liguei o discreto aparelho e tratei de falar com a boca bem perto dele para encobrir o burburinho à nossa volta. Conversamos bastante e foi proveitoso.
Dependendo daquilo que estivéssemos tratando, Isabela costumava fazer muitas perguntas. Ela somente se dava por satisfeita depois de ter compreendido muito bem cada ponto da doutrina.
Depois oramos um pouco pedindo proteção,(selando nossa conversa no mundo espiritual, pedido o cerco das muralhas de fogo do Senhor, como tínhamos aprendido a fazer com a Grace.
Encerramos nosso gostoso almoço com o infalível cafezinho expresso.
— Vamos caminhar um pouco? Estou cansado de ficar sentado.
— Tá.
Saímos de mãos dadas, satisfeitos, ainda olhando um pouco para as vitrines.
— Você quer alguma sobremesa? — Indaguei. Eu sabia o quanto Isabela era louca por um docinho.
— Daqui a pouco eu quero mesmo, Nenê! Deixa assentar o almoço, depois a gente escolhe alguma coisa pra dividir.
Isabela me puxava pela mão para ver isto, ou aquilo. Achando isto ou aquilo bonito, xeretando em tudo. Ela era compulsiva por roupas, sempre precisava de alguma coisa. Como aquele vestido, que um dia ela precisaria... mas depois fica guardado... é uma saga ... desmonta a loja, não tem preguiça de experimentar todas as peças. Mal de família! Dona Márcia também é assim, compulsiva por sapatos... um dia experimentou a loja toda, a vendedora fez uma verdadeira maratona. Conclusão da cliente: "Muito obrigada, mas não gostei de nada".
Para Isabela, comprar quinquilharias era outro ponto alto de qualquer passeio. Brinco de maritaca... colarzinho... bijuterias... bugigangas... esporte predileto! Mas tudo que ela compra, depois troca. Mesmo passando horas escolhendo... depois... "não é bem aquilo".
Puxa, ela mostrava suas manias. Essa era uma. Mas tinha outras. Por exemplo: mudanças radicais! Mudar a decoração do quarto, mudar tudo de lugar, pôr tudo de pernas para o ar, fazer algum desenho na parede ou, melhor ainda, mudar a cor da parede.
As mudanças também podiam ser nela mesma! Como perfurar a orelha, fazer da orelha um colar de brincos! Que coisa horrível, eu ficava apavorado só de ver, mas ela achava que grampear a orelha era muito legal. Também tinha as modas com o cabelo: cortes curtos, repicados, longos, retos, tingir o cabelo de vermelho... como um pica-pau... de loiro...
Até essa mania me foi imposta, ela me convenceu a tingir o cabelo de caju. Diante de toda a família dela, apareci assim. "Quem é o namorado da Isabela?" Uma gazela que tinge o cabelo de caju. Até touca térmica usei... imagine o terrível Catatau... usando touca!
Então, no meio daquela placidez, no meio daquela tarde super gostosa, no clima de intimidade e companheirismo que sempre existia entre a gente, aconteceu de novo. Como um manto denso, invisível, uma discussão teve lugar. Do nada. Por causa de uma faísca tola.
A faísca era pequena, sempre: uma frase mal colocada, um pequeno mal-entendido. Mas as chamas oriundas da faísca tornavam-se gigantescas. Violentas. Inexplicavelmente. Não tinha lógica.
Ela se afastou de mim, sem querer conversar. Eu me indignava porque Isabela não queria conversar, e acabava por desacatá-la verbalmente. Quase sempre ela acabava revidando.
O passeio acabou.
Naquela época nós não conseguíamos ainda ver uma seqüência lógica em eventos que aparentemente eram desconexos, sem nenhuma relação entre si.
Ainda tentamos salvar o dia indo até o "Shopping do livro", como a gente chamava, e que ficava pertinho da avenida Pedroso de Morais. Mas não conseguimos nos reatar. O sábado foi totalmente estragado.
No domingo fui até a casa dela, como sempre, na hora do almoço.
Só que eu continuava meio emburrado, e ela mais ainda. Dona Márcia percebeu algo no ar e fez um comentário sobre se "estava tudo bem". Típica pergunta que não ajudou em nada, uma vez que tudo estava ruim. Explicamos em palavras herméticas, aproveitando para lançar farpas um no outro.
A verdade é que logo acabei me abespinhando, eu detestava aquele tipo de intromissão. Fui embora logo após o almoço, furioso.
Só conseguimos resolver o impasse na segunda-feira. Isabela passou uma noite agitada, nervosa, e levantou muito cansada. Mas ela ainda não sabia sobre o que se passara na véspera, no final do domingo. Claro que ninguém tinha ido ao Culto, antes tivéssemos mesmo ido ao curso da Grace ou ao acampamento!
Na segunda-feira à noite, quando finalmente pudemos voltar a conversar como duas pessoas normais, comentei com ela depois de abraçá-la e beijá-la. Procurei não mudar o tom de voz nem apagar o sorriso.
— Ele ligou em casa ontem — comecei. Isabela deu uma leve estremecida. Leve.
— De novo? Ele quem, Nenê, quer dizer... ele mesmo? — ela sabia muito bem a resposta.
Eu ainda sorria um sorriso que, ela sabia, era um sorriso um pouco nervoso.
— É... ele mesmo, o Marlon.
Isabela franziu a testa ainda sem dizer nada, ficou quieta alguns segundos processando a idéia. Então sua voz soou séria e apreensiva, naturalmente não era uma boa notícia. Exatamente como das outras vezes.
Para sermos francos, aquilo estava realmente incomodando, aquele assédio. Aquele fato desagradável pelo visto ameaçava tornar-se mais freqüente.
Não havia outro jeito a não ser aprender a lidar com a tensão que tudo aquilo causava!!
Àquela altura, nem eu e nem ela podíamos fazer qualquer associação na certeza!
Volto a dizer: Os eventos pareciam não ter qualquer relação entre si. Quer dizer, nossa briga no sábado podia não ser nada demais à primeira vista. Mas era o preparo para o telefonema do domingo: era preciso que eu não estivesse bem emocionalmente. O terreno tinha de estar preparado, meu coração tinha de estar envenenado. A nossa briga preparara tudo...
A Irmandade sempre age dentro de uma determinada lógica. É preciso aprender a reconhecer o padrão. Mas eu não tinha cabeça para raciocinar, não conseguir conectar as coisas. Estava perdido, não parava para relembrar e esmiuçar informações que havia me esforçado tanto para esquecer, que tinha lutado tanto para soterrar no esquecimento. Já bastava o que tinha de fazer durante as Ministrações!
Foi mesmo Isabela quem começou a perceber a lógica após darmos muitas cabeçadas.
Marlon ligou, de fato, na véspera. No dia 9 de novembro, nove dias depois do Sabbath. Nove dias depois de Zórdico.
— Mas o que foi que ele disse? Foi você quem atendeu ao telefone?! — continuou Isabela, querendo que eu dissesse logo tudo. — Conta logo... não me deixa na expectativa!
Ergui as sobrancelhas, demorei um pouquinho a responder.
— Antes tivesse sido eu mesmo... mas dessa vez ele mudou o padrão, você acredita que ele falou com a minha mãe?!
— Sua mãe?! Mas a troco de que isso?
— Pois é, Gatinha, não sei. Ele só queria dar o recado. — afirmei, sem ênfase, certo do que falava.
— Bom, e qual foi o recado?
Tanto eu quanto ela tínhamos o estômago meio agitado, com aquela sensação ligeiramente enjoada que sempre antecedia o desconforto de ter de lidar com aquela situação.
— Foi rápido. Ele se apresentou como sendo um amigo meu, disse que sabia que eu não estava em casa, mas queria só que eu recebesse o seu recado.
— E...?
— Então ele disse que sabia que eu estava chateado... mas ninguém à minha volta ligava pra isso... e que eu sabia onde encontrar meus verdadeiros irmãos, caso precisasse de alguma coisa...
Ficamos calados por alguns segundos.
— E que eu ligasse para ele! Deixou o número. Novamente ficamos calados, processando as idéias.
— Como se ele precisasse deixar o número! — acrescentei por fim.
Isabela me olhou:
— Você se lembra?
— Sim. Não mudou. Continua o mesmo.
Ela inspirou fundo, pronta para ajudar-me a rebater todas aquelas idéias, eu sabia. Seu semblante era de preocupação. Eu sabia que eles não tinham a menor pressa de agir. Estavam só cutucando, espetando. Pondo a água pra ferver! Plantando idéias. Como que dizendo: "Não está sentindo esquentar? É só uma farpinha... vai querer levar uma facada de verdade, ou já está bom? Vai escutar... ou temos de continuar esquentando?"
— Bem, Nenê... e você? O que você achou disso? Eu me sentia melancólico.
— Ah! O que eu poderia achar?
— Puxa... pensa bem. — Isabela falava com cuidado, com carinho. Mas também com firmeza. — Você sabe que eles não são seus irmãos, não são sua família, não querem o seu bem. Isso tudo é um jogo da parte deles. Você sabe disso, não é?
Assenti:
— Sei, claro que sei.
Ela continuava olhando para mim, perscrutando meu rosto, lendo nas entrelinhas. Isabela sabia que havia um vínculo emocional entre Marlon e eu. Talvez naqueles momentos ela se desse conta disso até com mais facilidade do que eu. Eu sabia que hoje era um vínculo virtual. Mesmo assim... de certa forma, poderoso. Ele tinha sido meu amigo. No entanto, eu não iria ceder, apesar de que me mexia com a alma.
— Você. não vai ligar pra ele, né? — indagou Isabela.
Fiz que não com a cabeça. Ela ainda insistiu, preocupada.
— Mas não vai mesmo, né, Eduardo? O diabo sabe escolher as palavras, puxa vida... ele vai falar aquilo que mexe com você. Olha... promete que você não vai ligar.
Respondi convictamente:
— Não, não vou ligar. Eu sei que ele só está articulando bem as palavras... — fiz uma pequena pausa, mudei o tom de voz, olhei para ela como um menino privado do melhor amigo. — Ele sabia que eu estava chateado...
Ela segurou em minha mão, procurando consolar-me.
— É... ele sabia. — procurou as melhores palavras. — Ele sabia que você estava fragilizado por causa da nossa briga. E sabe também que nós não temos muito com quem contar. Excetuando Dona Clara, quem está conosco mais freqüentemente? Mesmo Grace... ela faz o que pode, mas a gente só fala com ela de vez em quando. Só a vê de vez em quando. Ele sabe que você não tem nenhum amigo... pelo menos nenhum como ele, como ele mesmo foi.
Tive de dar um longo suspiro.
— É uma triste realidade. A Igreja é muito dividida. Ninguém quer saber de ninguém, com honrosas exceções...! Depois, ele já tinha dito que ninguém ficaria ao meu lado.
— Mas, de qualquer forma, não importa! Ele não é mais seu amigo, é seu inimigo! Só quer o seu mal!!
— É tão fácil saber onde bater... saber onde dói.
— Vamos e venhamos, é incrível como eles conseguem ligar na hora H, né? Impressionante!
— Bom, os demônios estão aí, à nossa volta. Eles viram a briga, sabem como me senti. Sabem que fui à sua casa e voltei sem a gente ter se acertado. Eles vêem as coisas!
Isabela ficou um pouco calada, pensando naquela realidade: nuvens de demônios ao redor; observando, levando informações.
— Puxa, a culpa não é minha — falou de forma sentida.
— Não estou dizendo que a culpa sua, só que eles vêem, ele sabem. E levam o recado rapidamente.
Nós não tínhamos a menor idéia do que fazer — ou, até mesmo, se havia algo a fazer — para evitar que os demônios levassem toda e qualquer informação da nossa vida até nossos inimigos.
— Bom... não vamos mais pensar nisso. Ele não quer o seu bem, mas não vai dizer isso, claro!
— Talvez ele até queira o meu bem, não duvido disso... mas o que ele entende como sendo o "bem" pra mim, não é o mesmo que eu vejo hoje.
— Vamos orar, então? — pediu-me ela. — Vamos pedir a Deus para nos proteger. Oramos um pouco, cada um por sua vez. Pedimos a proteção do sangue do
Cordeiro, o revestimento com a armadura de Deus, a presença dos anjos; tudo que podia ser pedido em termos de proteção, nós pedimos. E que o Senhor nos ajudasse a continuar caminhando, frustrasse os intentos do maligno contra as nossas vidas.
Terminamos e ainda ficamos calados um pouco, nos entreolhamos. Ninguém sabia bem o que dizer.
— Mas o que será que eles tanto insistem com você? — a voz de Isabela veio num tom ainda preocupado.
— Querem que eu volte.
— Puxa, eu sei, mas que coisa. Você não vai voltar. Será que eles não vão desistir? Que fixação com você!
Ela não podia mesmo compreender exatamente porque o diabo insistia tanto. Não tinha dados suficientes naquele tempo, o meu destino espiritual não tinha sido descortinado, as Ministrações ainda eram, de certa forma, "superficiais". Isto é, estavam tirando "o grosso", "o externo". E no que dependesse de mim, ia ficar só nisso. Eu não tinha falado nada de importante, e eles sempre sabiam de tudo. Imagine só se eu falasse!
O livro Filho do Fogo era pouco mais do que páginas de papel sulfite rascunhadas, ainda bem no início da história.
E eu...! Não sabia o que fazer para me defender. Eu sempre tinha estado "do outro lado". As Ministrações me faziam sentir bem, eu estava vendo um outro ângulo da Guerra. Mas ainda era pouco. E isso não quer dizer que eu fosse ficar invisível. Não sabia guerrear! E Isabela... também não sabia, seu conhecimento era quase todo teórico, mas ela estava certa que era preciso guerrear, fosse lá o que fosse isso!
O máximo que ela podia fazer era insistir para que orássemos juntos, e nos comunicássemos com a Grace, com Dona Clara, para orar mais. Fomos nos acostumando a contar com elas, as únicas pessoas compromissadas conosco.
No restante daquela noite procuramos fazer isso mesmo: desabafar com as duas, orar por telefone. Grace só atendia ao telefone lá pela meia-noite. Dona Clara tinha um horário mais normal.
Uma vez terminada a conversa e as orações, nós conseguiríamos dormir mais tranqüilamente. Deus tomaria conta de nós.
Dois dias depois, estávamos voltando da Igreja, após uma longa é proveitosa conversa com Dona Clara, seguida de oração. Era excepcionalmente horário de almoço; normalmente nós nos encontrávamos no começo da noite.
Eu tinha saído do meu emprego, após um ano naquele lugar, por isso agora tinha mais tempo livre. Isabela trabalhou de manhã, e depois nós fomos direto para a Igreja. Era já horário de verão e fazia bastante calor.
Saímos de lá aliviados. Não havia nada que não pudéssemos conversar com Dona Clara, nenhum assunto era delicado demais, ou sério demais... ou perigoso demais. Ela nos fazia sentir sempre um acolhimento diferente. No fim sempre vinha aquele alívio, depois de compartilharmos abrindo nossas almas.
Eu tinha mais dificuldade em falar de mim mesmo, de abordar sentimentos. Mas, como Isabela me conhecia bem, procurava sempre me incentivar a não esconder nada, nem mesmo as menores coisas. Ela não deixava nada passar batido!
No momento, tínhamos de orar por um novo trabalho pra mim, porque tinha feito um acordo na Empresa onde trabalhava. Precisava de um emprego melhor. A história do meu emprego tinha sido assim:
Depois daquele processo de seleção bastante árido, tive uma semana de treinamento antes de assumir oposto propriamente dito. Fui apresentado ao meu gerente, o Wagner. O mesmo com quem fizera uma das entrevistas no processo de seleção, e que tinha sido transferido do Rio de Janeiro para São Paulo especialmente para assumir o Departamento Financeiro. Ele já tinha 17 anos de casa! Naturalmente, esperavam muito dele.
Comecei o serviço bastante animado, era uma Empresa conceituada, multinacional, líder no mercado dentro do seu ramo de atividade. Eu cheguei mais ou menos no mesmo período em que o meu gerente estava também assumindo seu posto.
Logo de cara entrei em contato com o plano de metas que deveriam ser cumpridas. Essas metas eram chamadas de RDF, a resultante de vários cálculos de medição de resultados; na verdade, aquela numeração espelhava o percentual de aproveitamento e desempenho do setor.
O mais legal naquela Empresa era nosso ambiente de trabalho. Tinha outros analistas com quem eu me dava bem, e também um estagiário que fazia parte do nosso grupo de amigos. Além de trabalhar, a gente vivia brincando e dando risada o dia todo, por tudo e por nada. Era muito engraçado quando alguém ia ao banheiro "tingir a porcelana"! Porque se avisasse aonde ia — o que era de muito bom-tom, dentro do horário de expediente — logo alguém escapulia atrás para jogar papel higiênico molhado na cabeça do infeliz.
A gente também vivia tirando barato das roupas um do outro. O Mauro só tinha um par de sapatos. O Rodrigo fazia o nó da gravata grosso como um melão. Isso era motivo de chacota! Quanto a mim, não largavam do meu pé por causa das minhas gravatas, as gravatas que Isabela comprava. Naquela época era moda usar gravatas de bichinho. Eram muito bonitas as minhas gravatas, mas o pessoal não perdoava.
— Qual vai ser a gravata do mestre de Kung Fu amanhã? Será que ele vem com a gravata de patinho?!
Era linda minha gravata de patinho, não sei porque tanto implicavam com ela!
O estagiário era o mais irreverente de todos. Trabalhava com a gente, mas tinha vindo de outro setor justamente por indisciplina. Ele realmente não estava a fim de nada! No entanto, como fosse engraçado e vivesse fazendo pequenas sabotagens no departamento, a gente deixava passar e não dedurava para o Wagner. Isso porque era a sua última chance na Empresa!
Mas o mais engraçado de tudo era mesmo tirar sarro por causa do RDF! Durante um ano, nós só atingimos a meta uma vez! A culpa não era nossa, todo mundo fazia sua parte, e fazia bem. A realidade é que o departamento estava funcionando muito mal por outros motivos, por motivos administrativos.
De quebra, o Wagner não sabia lidar bem com o pessoal: quase que só nos dirigia a palavra para dar ordens, ou broncas. Logo no primeiro mês, no dia em que saía o resultado do RDF, quando vimos que não tinha sido satisfatório, Wagner reuniu todo mundo e lascou o sabão!
Nosso estagiário recém adquirido, em vez de se animar, ficou mais desanimado ainda. Depois disso ele chegava tarde quase todos os dias, e lia o jornal inteiro antes de se pôr em campo para trabalhar. Sempre em ritmo de cruzeiro. A gente até achava graça, ele ainda estava fazendo Faculdade e ganhava uma mixaria. deixamos que ele fosse levando na maciota... por pura pena!
Em outro mês: pressão, pressão, pressão em cima de todos nós. Reunião atrás de reunião. Metas, metas e mais metas. Resultado: RDF abaixo do esperado novamente.
Essa história do RDF era a piada do ano! No dia em que ia sair o resultado eu costumava até chegar mais cedo. Aí encontrava outro colega que, ansioso como eu, tinha chegado ainda mais cedo. E punha um cartaz colado bem à vista de todos que entrassem: não atingimos a metal
Quando Wagner chegava, meio quieto, logo ficava sabendo. E marcava reunião. Sempre que ficava roxo de raiva todo mundo tinha a impressão de que sua cabeça parecia inchar. Com isso ganhou o carinhoso apelido de "Caixa d' água". A cada mês ele ficava mais desesperado, tinha vindo justamente para conseguir pôr o Departamento Financeiro em ordem.
Até mesmo Isabela costumava me ligar nesse dia para saber do resultado.
Talvez tenha sido por isso que convocaram uma auditoria. Nosso chefe, preocupado, fez uma reunião e disse com todas as letras:
— Nós vamos ser auditados, e eu quero que todos vocês digam que os processos estão em ordem! Que estão todos funcionando perfeitamente! E que nós estamos seguindo todos os manuais da Empresa!
Detalhe: esses manuais, "Padrão de Qualidade Total", estavam desaparecidos há um bom tempo. Ninguém nem sabia onde é que eles andavam, para todos os efeitos cada departamento tinha o seu. No nosso, "misteriosamente", não tinha. E o pobre do estagiário era o principal suspeito do sumiço do manual... a gente sabia que ele tinha arquivado o manual no sexto arquivo: no cesto de lixo!
Todo mundo ria pelas costas do Wagner, que a cada dia vinha com a cara mais vermelha para o serviço.
Fosse como fosse, a auditoria ia acontecer. E nosso chefe esperava que todos mentissem a respeito dos processos. Não falei nada para ninguém, mas pra mim mesmo decidi que não ia mentir coisa nenhuma! .
Meus colegas de serviço sabiam que eu era evangélico. Não sei que conversa estávamos tendo um dia, e cada um acabou falando se era católico, ou espírita, ou outra coisa qualquer. Além de mim, só tinha mais uma moça evangélica ali, e nem era do meu setor, era de um setor coligado.
Volta e meia, na hora do almoço, eu contava alguma história Bíblica para os meus colegas. Contava, porque contava. E eles gostavam! Viam em mim uma pessoa sincera, pelo menos, eu não precisava ficar me esforçando muito, aquilo já estava fazendo parte de mim. Não era difícil falar sobre a Bíblia, sobre aquilo em que eu acreditava. Esse foi um ponto positivo, porque depois, eles mesmos me pediam que contasse histórias na hora do almoço.
— Mastral, conta uma história!
Eu contava as que sabia. Eles ouviam. Gostavam.
Por esse motivo eu não estava a fim de dar um péssimo testemunho mentindo descaradamente, como queria o Wagner! Optei por arcar com as conseqüências de falar a verdade. Quando a auditoria veio, e eu fui entrevistado, falei mesmo a verdade.
— Os processos estão todos irregulares... nós tentamos ajustar, mas ninguém está conseguindo seguir as normas.
O auditor ficou até meio sem jeito.
— Puxa... mas é assim mesmo?
— É, sim. Quer ver uma coisa? Vou te mostrar alguns exemplos... — e trouxe para eles algumas pastas de processos que estavam cem por cento irregulares. Não fiz por mal, apenas fiz o que achei que era certo. — Nós queremos acertar isso tudo, basta vocês passarem metas tangíveis pra nós, e teremos prazer em fazer!
Depois disso os auditores saíram da minha sala e foram atrás do Wagner. Eu pude ver, através das divisórias de vidro, que a coloração do rosto do meu chefe mudou de vermelha para arroxeada, e ele me lançava olhares de ódio à distância, fulminantes. Ganhava forma de caixa d'água.
No final do dia o Wagner fez uma reunião com todos nós, depois que os auditores tinham ido embora. E reclamou de mim. Senti que tinha feito a coisa certa, mas mesmo assim seria punido.
— O Mastral me deixou com a calça na mão! — e gesticulava impetuosamente. — Eu não tive o que falar, e agora certamente nós vamos receber uma pontuação negativa! O gerente geral está de olho em mim! Ele vai dizer que o meu setor está naufragando, e com toda razão!
Aliás, o gerente geral era um verdadeiro cavalo, todo mundo tinha medo dele. Eu conhecia a figura porque tinha feito a minha entrevista final com ele.
Os auditores deram três dias para nós colocarmos em ordem tudo o que estava errado.
No final daquela semana havia um feriado prolongado, um feriado na quinta que a Empresa inteira iria emendar com a sexta. Mas por causa daquela situação de termos de colocar o departamento em ordem, o Wagner nos convocou a todos na sexta e no sábado.
Eu inventei uma desculpa, e não fui. Dessa vez optei por dar uma de crente carnal.
— E o Mastral, cadê o Mastral? — perguntou o Wagner na sexta-feira.
— Não sei, ele ligou aí, parece que pisou num prego...
— Hum... estranho isso... pisar num prego bem na sexta-feira?
No final tudo deu certo, ele não me recriminou porque eu fazia um serviço muito bom. E, no final do período de auditoria, o resultado foi diferente do que todos nós imaginávamos. Eles acabaram me parabenizando pela minha atitude, me elogiaram:
— Ele foi o único funcionário correto, que admitiu o erro e pediu ajuda para nós solucionarmos o problema. Porque o objetivo da auditoria não é acusar, é antes orientar. Enquanto todo mundo estava mentindo, não havia como ajustar nem homogeneizar os processos!
Isso foi parar no relatório da auditoria, que subiu para o gerente geral. Eu acabei me saindo bem por ter escolhido não mentir, meu salário aumentou, e o Wagner foi transferido de setor.
Veio então outro gerente para assumir a nossa área. Ele era bacana, mais comunicativo do que o Wagner. Mas a primeira coisa que fez foi demitir o meu xará, um outro Eduardo que sempre fazia hora extra e trabalhava aos sábados. No mês anterior ele tinha ganhado o prêmio de melhor funcionário do mês, o prêmio "superação", isto é, quando você consegue se superar.
O Eduardo ganhou um certificado "superação" e R$ 100 em compras na... onde era mesmo aquele lugar? Sei lá, algum supermercado! A gente brincava com ele que era a "quitanda da vovó"!
Mas nem bem o gerente assumiu e mandou o coitado do "funcionário superação do mês" embora! E o estagiário continuava ali, ensebando...
Eu criei uma amizade com o novo gerente, tinha um bom relacionamento com ele. Tudo estava indo bem, eu estava cuidando muito bem de todos os meus territórios, estava tudo prosperando. Mas eu estava ganhando mal pela função que exercia. Mesmo tendo recebido aquele aumento de salário. Os outros analistas ganhavam menos ainda.
Várias vezes fui me queixar, numa boa, com meu gerente:
— Chefe, eu tô ganhando mal... puxa, veja só o resultado do meu trabalho. Todas as metas que vocês me colocaram, eu estou cumprindo.
Ele sabia que eu estava fazendo um bom trabalho. Então falou:
— Olha... vou ser sincero com você. Você sabe que é um funcionário terceirizado, não é? Você não é funcionário da Empresa efetivamente. Vou te falar uma coisa: eles não estão efetivando ninguém.
Isso era um problema. Até então eu não participava dos benefícios da Empresa, mas esperava que em breve essa situação mudasse. Não recebia décimo quarto salário no final do ano; não tinha a mesma assistência Médica que os funcionários efetivos tinham; alguns bônus, como aquele por atingir o RDF, eu também não teria direito. Nós é que não atingimos a meta, mas se tivéssemos atingido, eu não faria jus ao bônus. Dentre outras coisas mais. Havia uma série de benefícios e regalias aos quais eu nunca teria direito como funcionário terceirizado.
Então, embora o meu salário fosse maior do que o deles, eu perdia por outro lado. Estava esperando ser efetivado, mas depois do que meu gerente falou, fiquei um pouco reticente. E ele mesmo acrescentou:
— Você está perdendo com isso, faz um bom serviço, mas eu acho que ficar aqui nessa Empresa vai acabar te amarrando. Você tem muito potencial, é um ótimo funcionário, mas... eles não vão efetivá-lo, não estão efetivando ninguém! Vou te dar um conselho: acho melhor você procurar outro lugar. Você tem tudo para crescer e ir adiante na vida.
Então eu e Isabela conversamos, achamos que talvez fosse melhor mesmo partir em busca de outro trabalho, em outra Empresa. Eu nunca tinha tido dificuldade para arrumar emprego, excetuando o período em que deixei a Irmandade.
Meu chefe programou muito bem a minha saída, combinamos com quase 40 dias de antecedência. Recebi toda a minha rescisão contratual e saí.
A primeira semana que eu tinha livre era aquela segundo semana de novembro. Como não tinha tirado férias em um ano, resolvi tirar alguns dias para descansar, e depois sairia em busca de outro emprego.
Além de orar com Dona Clara pelo emprego, havia outro motivo, mais sutil, mais obscuro... nós sentíamos muita falta de mais pessoas Cristãs ao nosso lado. Amigos de verdade... claro que Grace e Dona Clara eram amigas... mas a gente precisava de pessoas da nossa idade, de outros casais. Pessoas com quem a gente pudesse rir e brincar, e não apenas tratar de coisas sérias! Nós tínhamos tido nossos amigos na outra Igreja, mas agora parecia ser mais difícil de enturmar.
Eu também tinha tido meus amigos no serviço, Isabela continuava encontrando com Mayra, tinha também seus colegas de trabalho... mas a gente gostaria de se entrosar melhor dentro da nova Igreja. Dona Clara entendia a nossa necessidade, fazia empatia conosco.
Depois de conversarmos bastante e orarmos, já era hora de ir embora.
— Tchau, Dona Clara!
Fomos caminhando devagar até a porta da Igreja, ainda conversando. Despedimos dela com um beijo. Ela sorria a maior parte do tempo, não porque fizesse disso um "tipo espiritual", mas porque ela era assim mesmo. Sempre risonha e de bom humor.
— Tchau, "Bem"! — Respondeu ela, indo para o telefone da secretaria. — Vamos esperar pra ver o que o Senhor vai fazer.
Saímos lado a lado, abraçados e animados, com a alma mais leve. O Palio estava estacionado na viela lateral, vermelhinho, todo lindo, que delícia!
— Ai, como é bom depois que a gente ora com a Dona Clara, né? — comentou Isabela.
— É, sim. — respondi eu sentando no banco de passageiros. — Você dirige?
— Que milagre! Nenê não vai dirigir?
O comentário era meio por troça, porque normalmente ela dirigia mais do que eu.
— Tá bom, então! Nenê vai dirigir, porque a Gatinha já dirigiu muito. É isso aí, o Speed vai nessa, então!
Isabela deu um muxoxo só para provocar-me, de brincadeira. — Tss,tss... Speed, né?! Hum... pois sim!
— Claro, "Mô"! Nenê é Speed! Eu nunca bati!
— Sorte, pura sorte! — provocou de novo. — Esse seu volante agressivo é realmente muito agressivo — e ela queria dizer justamente o contrário.
Eu ria e levava suas indiretas numa boa, aproveitando para revidar:
— Não sou eu que levo buzinada toda hora. Isabela indignou-se:
— Buzinada?! Quem leva buzinada? Eu??! Até parece, coitado...
— Pois é, você passa no farol vermelho, sobe na calçada, vira na contramão!
— Isso prova como eu dirijo bem.
— Tá bom, tá bom! Você dirige bem.
Demos a volta no quarteirão e pegamos o rumo da casa de Isabela, para irmos almoçar.
— Será que minha mãe já almoçou? — indagou Isabela parada no farol.
— Vai ver ainda não, ela sempre come tarde.
— Eu nem avisei que a gente ia, não sabia se ia dar tempo.
Depois de mais uma meia dúzia de frases amenas retomei o assunto mais importante, após divagar um pouco em pensamentos.
— Como seria diferente, não, Isabela...? Se houvesse mais pessoas na Igreja de Cristo como a Dona Clara... como a Grace?
Isabela deu um longo suspiro.
— É, Eduardo. Seria diferente. Mas a Igreja é tão dividida...
— O mais incrível é que aqueles que servem ao diabo são capazes de ser unidos, e nós não. A gente não pode esperar muito das pessoas.
— Eu sei, é difícil, mas temos de olhar pra Deus.
— É difícil olhar para Deus, e ao mesmo tempo constatar tanta coisa fora do lugar dentro do Corpo. Triste isso.
Eu estava particularmente frustrado porque até agora não tinha conseguido falar com o Pastor Lucas.
Chegamos em casa e Dona Márcia tinha acabado de almoçar havia poucos minutos. Estava de saída para ir até o supermercado.
— Tchau pra vocês, estou indo. Isabela, peça que Marina dê uma esquentada no almoço, eu nem sabia que vocês vinham!
— Tchau!
Isabela encomendou um almoço para nós dois com a Marina, e fez festa para o Wolfi, o Gorbie e a Bitinha, que pulavam na porta da cozinha.
— Oi, fofitos! Seus coisas lindas!
Eles ficavam sempre na mesma ordem: o Wolfi no meio, a Bitinha no canto esquerdo, o Gorbie no canto direito, os três se espremendo e pulando um pouquinho, com aqueles olhares tão meigos. Agitavam-se para ver quem ganhava mais agrado.
Fui ao banheiro e Isabela ainda estava ali falando com os cachorros, quando o telefone tocou. Do banheiro mesmo ouvi-a atendendo.
— Alô?
— Alô?
Do outro lado havia alguém, mas o tal alguém não falava nada, pelo visto.
— Alô?
Diante da negativa em obter resposta, Isabela desligou. Algo até mesmo natural, quem nunca atendeu ao telefone e a pessoa do outro lado não respondeu? Pode ser tanta coisa.
Mas a verdade é que algo me incomodou. A gente já tinha visto aquele filme. Mas, será...?
Abri logo a porta do banheiro a fim de ir à cozinha novamente, e dei de cara com Isabela.
— Quem era?
Nossos olhares se cruzaram e havia em nós dois uma impressão que preferimos não traduzir em palavras. Ela deu de ombros.
— Ninguém.
— Ninguém?
— É, falei "alô", mas ninguém respondeu. Vai ver é engano! — Vai ver. Foi lavar as mãos de cachorro e sentamos para almoçar. Quando a gente se servia, o telefone tocou de novo. Sem olhar para mim, ela foi novamente até a sala.
— Alô?
Nada. O episódio se repetiu. E a pessoa não se manifestou.
Isabela sentou outra vez ao meu lado e terminamos de nos servir. Marina já não estava na cozinha, nós estávamos sozinhos. Engatamos outro assunto, comentando de coisas que deveríamos fazer no resto da semana.
Passou-se, talvez, um quarto de hora. E novamente o som do telefone nos perturbou. Desta vez foi minha vez.
— Deixa tocar, Nenê! — retrucou ela rapidamente. — A gente não precisa escutar o que eles têm a dizer!
— Acho melhor atender.
Fui até a sala enquanto Isabela ficou sentada, só ouvindo. — Alô?
Nossas impressões tinham razão de ser. Logo a voz de Marlon veio pelo telefone.
— Filho... eu concordo com você, a Igreja é mesmo uma instituição medíocre. São divididos, são podres, e a sua decepção com eles está só começando. Você vai se decepcionar muito mais ainda. Você sabe o quanto estou ocupado, mas sempre tive tempo para você. E eu ainda tenho tempo pra você! Você é especial, tem um enorme potencial que a Igreja nunca vai reconhecer. Eles nunca vão ajudá-lo. Eu gostaria de conversar pessoalmente... você ainda tem um tempo pra pensar, mas não muito. Volte até o seu aniversário! O tempo é curto. E lembre-se: preservar os segredos é preservar a vida... ah! Por sinal... estão precisando de um Gerente de Marketing numa excelente multinacional! Esse cargo pode ser seu, não precisa ficar perdendo tempo de procurar emprego por aí. Não vou voltar a ligar, espero você ligar pra mim.
Desliguei o telefone devagar, sem responder palavra alguma. Parece até que Marlon tinha estado com a gente no carro. Voltei para a cozinha. Isabela terminava sua oração, baixinho... durante os minutos em que fiquei no telefone, ela havia ficado orando
— Ai, Senhor meu Deus... protege Teu filho de todo mal, de toda artimanha do Inferno, toda a mentira. Fecha o coração dele para todo engano, Senhor.... protege a gente, Pai. — e por aí afora.
Sentei-me. Isabela me olhava ansiosamente tentando ler meus pensamentos e sondar minha reação antes que eu falasse.
— Era ele mesmo.
Ela ficou muda alguns instantes, observando o meu sorriso um tanto nervoso. Eu tentava amenizar o desconforto da situação. Por isso sorria, embora nada houvesse de engraçado naquilo.
Isabela procurou manter-se calma. Aquilo já estava virando rotina.
— Bom... e o que foi desta vez?
Contei tudo. Ela se impressionava como as informações chegavam rápido à Irmandade... quanto tempo fazia aquilo??!
— E começou direto assim? Logo depois do "alô"?
— É. Nem se apresentou, nada.
— E era ele mesmo?
— Era. Chamou-me como antigamente, de filho.
— Ahh! Dando uma de bonzinho de novo!
— Pois é. Falou que eu sou especial, tenho um grande potencial... quer conversar pessoalmente comigo.
— Mas isso é um absurdo, e você não vai, né, Edu? Você não vai atrás desse cara!
Sorri de novo.
— Claro que não, menina, fica tranqüila! Mas não foi só isso.
— E o que mais?
— Eles querem que eu volte até o meu aniversário...
Isabela deu um leve muxoxo. Nenhum de nós tinha vontade de comer.
— Eles vão realmente procurar nos intimidar. Mas nós vamos continuar orando. Não podem simplesmente obrigá-lo a voltar pra lá — continuou Isabela.
— Ele também sabe que eu estou procurando emprego...
Suspirei. Quanta coisa dá para se dizer num minuto. Isabela estava um tanto indignada.
— Puxa, eles sabem tudo da nossa vida! Balancei a cabeça, assentindo.
— É... eu sei disso.
Difícil descrever a sensação que ficava depois. Uma sensação ímpar, como se nada daquilo fosse real. Como se nada daquilo estivesse realmente acontecendo. Eu até tinha o meu histórico, mas e Isabela!? Ela vivia situações com as quais nunca sonhou, e aquele era somente o começo, eu tinha certeza! Por enquanto... eram só os telefonemas... depois, eu sabia... viria todo o resto! Restava saber o que era esse resto.
A verdade é que o caminho seria muito longo.
Eu sabia do que eles eram capazes. A idéia de Isabela era bem mais turva. Pelo menos naquele momento.
— Vamos comer, vai! O que adianta a gente ficar pensando nisso? — tentei animar o clima.
Isabela concordou comigo, embora acrescentasse:
— Sim, mas depois temos de ligar para a Grace e a Dona Clara. Precisamos deixar as duas informadas do que está rolando.
Foi exatamente o que fizemos. Mas só conseguimos contatar a Grace tarde da noite. Para nós era importante que elas estivessem a par de tudo, pois a nossa única esperança era que nossas orações pudessem fazer aquilo que nós não podíamos.
Depois, deixamos o assunto para lá.
O que mais havia para ser feito?
As repercussões do Sabbath daquele ano ainda estavam em andamento. Apesar de termos orado e procurado nos resguardar espiritualmente, eles continuavam fazendo contato e lançando sementes. Tanto verbalmente quanto pela manipulação de situações. O objetivo era me enfraquecer, enfraquecer o meu relacionamento com Isabela e trazer-me decepções com a Igreja. Para no fim desistir de Cristo e retornar à Irmandade.
Isabela às vezes me questionava um pouco:
— Nenê, você acha mesmo que eles querem você de volta? Pára pra pensar... você consegue imaginar o diabo perdoando alguém? O que você fez foi muito sério, abandonou tudo e todos, cuspiu na cara do diabo... e agora ele fala manso com você, te oferece emprego e toda a vida que você tinha, de volta, assim?... Sem mais essa nem aquela?! Por pura bondade?!.
— É, eu sei. O Marlon falou brando, macio, paternal. Eu sei que Lúcifer não perdoa mas, por outro lado... eles precisavam de mim.
Ela não entendia isso, nem tinha como:
— Puxa, mas ninguém é insubstituível.
— É verdade, mas o diabo não age assim. Quando ele escolhe alguém há todo um conjunto de condições que precisam ser satisfeitas. Especialmente se ele escolheu alguém para um ponto estratégico, para uma função importante. Talvez por isso realmente ele até me queira de volta. Quer dizer, não haveria tempo pra preparar outra pessoa nas mesmas condições, entende?
— Hum. Por isso ele disse que o tempo é curto? Curto pra quê?
— Existe um calendário que precisa ser cumprido, um cronograma. O ano que vem é muito importante.
— Mas por quê? E por que você era tão importante?
Expliquei em poucas palavras, pela primeira vez, o destino que a Irmandade me tinha designado. Falei rapidamente dos Três Ciclos. Sei lá porque falei, não fazia parte dos meus planos. Agora... já tinha falado! Fosse o que Deus quisesse. (Leia Filho do Fogo).
Isabela escutava num misto de espanto e agitação, fazendo perguntas vez por outra.
— Meu Deus, Eduardo, mas isso é muito, muito sério! Por que é que você não falou nada disso para a Grace? Que você ia atuar na política, que fazia parte de uma nata de poucos escolhidos?!
— Ah! Não sei. Nenê esqueceu! Isabela sorriu.
— Mas que carinha de menininho.
— Nenê esqueceu...
— Mas, Nenê... claro que a gente tem que falar. Precisamos cancelar isso, né? A Ministração é pra isso. Por isso eles não largam do seu pé.
— OK! Mas vamos na ordem. Tem outras coisas pra falar antes.
— Eu sei, não deu tempo de ministrar tudo ainda. Mas você não pode esquecer, hein? Isso é muito importante.
A conversa encerrou por aí. De repente, tão estranho como sempre, começamos a nos desentender por nada. Qualquer casal de noivos passa por desentendimentos, por períodos de adaptação. Nada disso é o fim do mundo, nós éramos normais, não havia nada de diferente. A não ser aquele contexto espiritual todo particular! Não fosse por isso, tenho certeza que nós dois não teríamos passado por aquele calvário todo de discussões.
Quem tinha culpa? Difícil dizer... afinal, os dois tinham culpa: o maior problema de Isabela era a dificuldade de conversar, a dificuldade de dar o braço a torcer, de abaixar a cabeça. E eu não tinha um pingo de controle sobre a minha língua, no auge da irritação ia falando bobagem sobre bobagem, o que tornava o diálogo cada vez mais impossível. Ela ia ficando mais e mais calada, e eu mais e mais sem controle da boca.
Mas eu não via dessa maneira naquela época.
Eu costumava culpá-la por nossas brigas, especialmente porque também me influenciava por todas as vezes em que vi Isabela ser tida por culpada dentro da sua própria casa. Tudo o que eu podia perceber é que ela estava se comportando comigo da mesma maneira que se comportou em casa; sendo tão ruim quanto tinha sido ali. Portanto, a culpa era dela, não minha. Então eu falava sem sabedoria, sem ser conciliatório. Quando tentava abraçá-la, ela me repelia. Estava já muito machucada, mas eu não compreendia isso, não enxergava isso. Sua reação me deixava mais furioso.
E, calada, Isabela sentia sua ira crescendo como vapor dentro de uma panela de pressão. Ira idêntica à minha. Ela não gostava de perder, nem eu. Ao vê-la tão muda, eu falava mais ainda, tocando — verbalmente — em pontos sensíveis da sua alma, pontos nevrálgicos. Eu não tinha idéia se isso doía, ou não... eu só queria que ela percebesse o quanto estava errada! Eu me sentia agredido, e revidava com mais agressão... muita agressão!
Finalmente, quando ela explodia, explodia pra valer: gritava, chorava, dava o maior escândalo. Como eu odiava isso!
Aquele nosso descontrole emocional podia durar horas. Era impressionante o desenrolar daquelas discussões.
Naquela noite, infelizmente, não foi diferente. Ah! Nós não sabíamos quanto ainda iríamos sofrer com aquele problema... e que preço tão alto seria pago para começar a solucioná-lo, simplesmente começar.
Então, se por um lado a nossa carnalidade, o nosso ego, as feridas da alma, as inclinações da personalidade etc. .. etc. .. eram as "culpadas" por esses episódios, por um outro lado havia outro inimigo. Um inimigo que sabia potencializar tudo aquilo.
Tão inclementes quando a nossa própria alma, mas certamente muito mais vorazes do que ela, os demônios à nossa volta sabiam usar bem das podridões humanas. Oh! sim, como sabiam! E divertiam-se às nossas custas.
A culpa não era somente deles, nem somente nossa. Mas aí estava uma deliciosa associação para agradar o Inferno: carnalidade associada à ação de espíritos imundos.
A briga começou em casa de Dona Márcia, lá pelas sete e meia da noite, três dias depois do telefonema de Marlon. Tudo aconteceu como os demônios esperavam, porque depois de apimentarmos mutuamente as nossas mentes a ponto de nos descontrolarmos por completo, não havíamos ainda chegado a nenhuma conclusão.
— Bom, pelo visto você não quer conversar, né? Então chega... eu vou indo. Vê se discute com as paredes agora. Eu preciso de sossego, de paz — vociferei.
Fui até a porta. Ela não se mexia. Antes de sair ainda me virei de novo para ela. Não dava para acreditar naquilo, que uma pessoa adulta não se dispusesse a conversar.
— Não vai falar, hein? — lancei novamente, em tom de voz agressivo.
Ela não me respondeu. Apenas lançou mais um olhar furioso na minha direção. Sabia que meu próximo passo era pegar o ônibus e ir pra casa, mas ficou sentada na ponta do sofá. Harpa, a gata siamesa, olhava para nós como se nada acontecesse. Isabela chacoalhava a perna cruzada numa atitude hostil, irritadíssima. Virei as costas e saí.
Para entender melhor o desenrolar dessa situação, é preciso entender como Isabela estava pensando. Eu fui embora, me sentindo coberto de razão e sem peso na consciência. E ela ficou em casa, pensando o que eu nem suspeitava:
"Como é que ele tem a capacidade de se comportar assim? Como tem coragem de me falar esse monte de barbaridades?!?"
Quanto mais ela pensava, mais nervosa ficava. A mente já estava enevoada pela raiva.
"Como ele pode me tratar tão mal, justo eu, que estou sempre do lado dele! Como pode me apunhalar tanto?? Eu tenho a minha parcela de culpa, mas não é toda minha... o Eduardo também tem a sua culpa em cada uma dessas discussões! Nada justifica tudo isso. Sim, certamente ele acha que pode me virar as costas e ir embora como se nada fosse! Agora ele chega em casa, toma banho e vai dormir, e eu fico aqui, me atormentando até sei lá que horas. Já disse mil vezes que deixar essas coisas pendentes pro dia seguinte é a pior coisa. Amanhã eu vou estar pior ainda, com mais raiva, sem ter dormido direito! É muito fácil virar as costas".
Eu teria dito: "Você é que não quis conversar"; e Isabela responderia que:
"Não conversei porque você foi agressivo, grosso, me tratou muito mal."
Ah! Se nós dois tivéssemos tido mais sabedoria naqueles momentos! Do meu lado, bastaria abrandar a voz, mudar o discurso, tratar com amor, não me vingar, não acusar... e ela, se conseguisse simplesmente esquecer as minhas palavras, deixar por menos aquilo que falei no momento da raiva, esfriar a cabeça, esperar pelo dia seguinte, não gritar...
Mas era impossível.
O fato de sentir-me extremamente magoado transformava-me quase em alguém irracional. Isabela também perdia o controle, chegava um certo ponto em que ela já não era mais capaz de medir conseqüências.
Lá na sala da sua casa, Isabela pensava:
"Eduardo acha que só ele pode revidar! Pois ele vai ver só..."
A essa altura, eu já estava dentro do ônibus que tinha passado assim que coloquei os pés no ponto. Percebi que Isabela não tinha nem aparecido no jardim. Dali, esticando o pescoço, ela podia enxergar ao longe, na avenida, o ponto de ônibus aonde eu deveria estar parado. Ela não apareceu, e mesmo se aparecesse, agora já estava a caminho da minha casa! Ela realmente acabou levantando do sofá, abriu a porta da rua e desceu os degraus até o portãozinho do jardim.
Mas, nada de mim! Eu já estava longe!
Isso irritou Isabela ainda mais.
"Que desfaçatez!!!"
Quando cheguei em casa, Isabela já estava lá. Tinha estacionado o carro a alguns metros de distância do meu portão, para não ficar exatamente na frente da janela que dava para a rua. Ela estava parada, só esperando. Certamente me viu pelo espelho retrovisor quando virei a esquina.
Eu tinha me acalmado um pouco durante a viagem de ônibus, mas novamente me irritei ao vê-la. Fui em direção ao carro, mas meu semblante continuava duro e minha voz áspera.
Claro que não ia dar para sair nenhuma conversa. Talvez Isabela quisesse se acertar, mas não conseguia agir diferente, eu também não colaborava. Já tinha ultrapassado minha capacidade de colaborar!
As minhas primeiras frases desagradáveis e agulhadas puseram Isabela louca de raiva novamente.
— Como é que você tem coragem, meu Deus? Você sabe o quanto tudo isso me machuca, mas não pensa em nada, só em você mesmo! Que te importa a minha tristeza? Que te importa se eu tivesse batido o carro, dirigindo de qualquer jeito até aqui? Não pensei duas vezes, entrei furiosa dentro de casa e peguei a chave do carro. Entrei no Palio e dei ré à toda, saí cantando o pneu. Você não está nem aí comigo!
— Se você quer se matar, eu que tenho culpa?!
Isabela falava cada vez mais alto, e eu não tinha mais cabeça. Continuei revidando com agressividade, à altura. Nem me recordo direito, mas acho que ela me deu uns tapas no braço e na perna, de puro desespero com a situação. Claro que não doeu, mas eu não podia ser tocado. Aquilo detonava dentro de mim um estopim indescritível de violência. Despertava os mesmos instintos da época da "29".
Embora Deus já tivesse tratado muita coisa... e estava tratando... muita coisa ainda permanecia viva.
Dessa vez Isabela ia ver com quem estava lidando. Acho que foi a primeira vez que realmente perdi o controle da situação e de mim mesmo, desde que estávamos namorando.
— Vai embora daqui antes que aconteça algo sério!!!
Bati a porta do carro, entrei em casa. Eu estava cego de raiva, já conhecia aquela sensação. Naquele estado eu era capaz de fazer qualquer coisa!
Daí pra frente, lembro-me de pouca coisa. A noite terminou nesse ponto para mim, a próxima lembrança que tenho é da manhã seguinte. Eu lembrava da briga, de ter entrado em casa, e... mais nada!
Dormi e acordei com dor de cabeça. Acordei cedinho por causa da claridade que entrava pela janela da sala, aberta. Nem parei para pensar porque estava dormindo na sala. Só me dava conta da dor de cabeça. Não era nada demais ter dormido na sala, antigamente isso acontecia às vezes.
Então fui pra cima terminar de dormir na cama. Mais tarde, quando acordei, ainda na cama, não entendi porque estava dormindo de tênis...
Não pude conter um sorriso de desconsolo: "Nossa, será que eu estava tão cansado assim ontem?"
Foi aí que percebi que estava sem a minha aliança. Era meu hábito sempre dar uma rolada nela, costumava rolá-la no dedo; por isso percebi logo que estava sem ela. A primeira coisa que fiz foi descer para procurar. Eu me lembrava de ter brigado com Isabela... mas até aí... o que isso tinha a ver com a minha aliança?
Foi então que me lembrei vagamente de ter tirado a aliança do dedo e jogado longe. Tinha escutado até o "plim". Saí na rua, olhei na calçada... fui até lá embaixo olhando com todo cuidado. Fiquei morrendo de raiva, vai ver alguém já tinha achado. Achar uma aliança assim, de ouro, de brinde...
"Que droga!!"
Entrei irritado em casa, e minha mãe veio perguntar se estava tudo bem.
— Vocês brigaram ontem, né? — já foi ela dizendo. Eu nem falei nada, só comentei da aliança.
— Acho que perdi minha aliança. Você não a viu por aí?
— Não vi, não! — e ela, com seu típico "otimismo", já veio completando: — A essa altura alguém já deve ter pegado. Vocês se acertaram?
— Como assim, "se acertaram"? Eu a mandei embora para casa, acho que você se lembra, não?
— Mas imagina só! Ela entrou, ficou com você um tempão! Levei até um choque, eu não lembrava; então desconversei de novo com a história da aliança.
— Você não viu mesmo a minha aliança?
— Não vi. E se eu fosse você não ia mais gastar dinheiro com aliança, agora fica assim mesmo... ela com aliança e você sem.
Fui tomar banho, encafifado com tudo aquilo. Era sábado, e no final da manhã, Isabela me telefonou. Eu estava arredio e rebelde, bravo com ela. Por culpa dela eu tinha perdido a aliança. Mas ela estava plácida.
— Você está melhor? — indagou Isabela.
— Estou.
— Passou aquela sensação ruim?
— Que sensação ruim!
— Aquilo que você estava sentindo ontem, depois que entramos na sala... Fiquei cabreiro de novo. '
— Você entrou aqui ontem?
Foi a vez de Isabela se espantar:
— Entrei, entrei sim... fiquei com você um tempão, orei por você... — seu tom de voz foi de incredulidade. — Você não se lembra?
Eu não queria admitir que não me lembrava, então respondi com evasivas.
— Lembro mais ou menos.
Isabela deve ter ficado desconfiada, então perguntou de novo:
— Você não se lembra do que me disse?
— Claro que eu lembro... disse para você ir embora para casa! — respondi com maus modos.
— Sei. Mas não é disso que estou falando. E depois? Você não lembra do que falou depois?
— Não lembro. Pra mim você foi embora pra casa e eu fui dormir! Naturalmente Isabela deve ter percebido que havia uma lacuna em minha mente sobre o que havia ocorrido. Ela foi prudente em não me adiantar o assunto pelo telefone. Então, se despediu com cuidado:
— A gente conversa melhor pessoalmente... daqui a pouco eu estou aí, tá bom? A gente pode tomar um capuccino no Fran's.
Apesar do meu mau humor, concordei.
Ela nem precisou buzinar, eu ouvi o motor do Palio e saí. Fomos para o Fran's, que era bem pertinho. Eu deixei que ela entrasse no assunto devagar, só esperei. Não falei muito, porque não sabia o que falar.
Na verdade, eu não estava muito disposto a conversar, acertar. Eu tinha a sensação de que Isabela estava me atrapalhando.
Mesmo assim, aos poucos, ela foi conversando comigo. Muito sutilmente procurou perceber o que eu realmente recordava. Seu rosto parecia bastante preocupado ao perceber que eu não sabia do que ela estava falando.
— Então você se lembra de ter entrado em casa, e...
— Aí eu dormi... — declarei. — Dormi e acordei com dor de cabeça. Ela falou brandamente:
— Não. Não foi só isso.
— O que aconteceu, então? — já estava amuado. Ela foi falando aos poucos.
Senti atordoado em ter-me olvidado de boa parte da noite anterior. Às vezes, de acordo com o que Isabela falava, alguma coisa parece que me brotava na mente. Com olhar distante, eu fazia força para relembrar.
Ficamos os dois quietos um pouco. Meu capuccino jazia esquecido à minha frente. Isabela bebeu mais um pouco do seu.
Fiquei bastante chateado com o que ela foi me contando. Tempos mais tarde admitiria o meu próprio questionamento naquele instante: dúvidas sobre dúvidas! Claro que eu não era de ferro, toda a conjuntura desde que aquela carta da Irmandade tinha me chegado às mãos fazia pensar. Eu queria servir a Deus, sabia que devia seguir a Cristo.
Por outro lado, sentia-se só e sem amigos. Isabela era especial, e minha melhor amiga... mas a briga da noite anterior me fez questionar se esse era de fato o caminho certo. Marlon falava que eu estava errado, Zórdico também... diziam que Isabela ia me destruir... que ninguém ia me dar atenção, inclusive meu pastor...
Naquele momento me senti dividido, confuso. Praticamente tudo o que eles me diziam estava acontecendo. Será mesmo que a doutrina da Irmandade não tinha nenhuma razão de ser?
Ouvir a voz de Marlon mexia no meu íntimo. Chacoalhei a cabeça para não pensar, sentia-me massacrado na alma. Embora eu quisesse estar com Cristo, às vezes parecia que dar um passo ao Seu lado custava um preço enorme.
Por outro lado, embora eu amasse Isabela e nunca tivesse pensado em desistir do nosso relacionamento... que já durava quase três anos... brigas assim me desgastavam. Claro que de forma diferente nós dois nos sentíamos desgastados. Mas era mais fácil eu me preocupar apenas comigo mesmo. Não parava muito pra pensar se ela estava sofrendo, ou não. Era mais fácil olhar para o meu próprio sofrimento, e apenas isso. Não entendia seu jeito de pensar, de agir e reagir. Era mais fácil simplesmente crer que eu estava com a razão.
Eu não sabia, mas a Irmandade tinha como me manipular a distância. Eles ainda podiam fazer isso, mesmo que eu não soubesse. Havia coisas não tratadas dentro de mim.
Mas naquela hora Isabela não estava preocupada em discutir quem tinha razão. Ela estava preocupada comigo.
— Depois que você me mandou embora a primeira vez, entrou de novo em casa, lembra? Eu fiquei sem saber o que fazer, fiquei meio paralisada e só perguntei: "Meu Deus, o que eu faço???" Bem baixinho, pra mim mesma. Assim que você entrou, sua mãe saiu, nem sei por que, pois ela não é de muita conversa comigo. Ela havia percebido a briga e comentou que você só estava nervoso, mas que ia passar. Eu não sabia o que dizer, nem ia falar nada com ela. Mas não deu tempo. Você apareceu no portão outra vez, furioso, veio em direção ao carro e deu um murro no vidro, berrando: "Vai embora daqui! Eu não quero mais ver a sua cara!!"
— Eu falei isso?
— Falou. — Isabela estava meio passada. — Até sua mãe estranhou o seu jeito, gritou também alguma coisa, algo do tipo: "Eduardo! Que que é isso?" Mas você ignorou totalmente, e eu estava meio petrificada pra olhar pra ela ou dizer qualquer coisa. Olha... você estava esquisito, alucinado. Foi aí que tirou do dedo a aliança, e olhou pra mim com tanto ódio... "Tá vendo isso aqui? Eu não quero mais saber disso!!". Eu só conseguia olhar para os seus olhos, nem deu pra falar nada... nessa altura estava mais preocupada com você do que comigo mesma. Aí você berrou de novo: "E vê se você vai embora daqui!"
Eu me esforçava sobremaneira para recordar de qualquer um daqueles detalhes.
— Eu me lembro vagamente de ter tirado a aliança e jogado longe... mas tudo isso aí que você está falando... realmente apagou da minha lembrança.
Isabela continuou a narrativa com semblante sério.
— Já nem lembrava da briga, já nem tinha mais importância. Ver você naquele estado fez com que o sentimento de raiva do meu coração mudasse na mesma hora para preocupação. Fiquei muito nervosa, e imaginava, atropelando os pensamentos, o que deveria fazer. Eu não vi se você tinha mesmo jogado a aliança, deu a impressão que sim, mas naquela hora não era bem o momento de pensar nisso.
A expressão do seu rosto me fez imaginar o quanto seu coração teria diminuído, de pura dor com aquele meu gesto de desprezo.
— Daí... foi mais terrível ainda: com muito ódio, Nenê... você estava com muito ódio. Chegou perto da janela do carro e falou alto uma frase de Encantamento. Não sei se dá pra você imaginar como eu fiquei. Fiquei enregelada, óbvio que aquilo era um Encantamento! Aquela frase não tinha sido dita em português. Como era possível estar acontecendo uma coisa daquelas?! Em seguida você fez o gesto do Pentagrama no ar e empurrou na minha direção.
— Não acredito... não é possível que eu fiz isso!
— Eduardo, você estava completamente fora de si... o que mais eu ia pensar? Enquanto você voltava pra dentro de casa, por mais que estivesse assustada, é lógico que eu não podia ir embora e deixar você daquele jeito! Fiquei mesmo muito preocupada com você. Tive medo de entrar, medo do que podia acontecer... mas não podia deixá-lo sozinho. Saí do carro, fechei a porta... sua mãe ainda perguntou se eu ia mesmo entrar. Respondi que sim, respondi com calma, procurando não deixar transparecer o meu temor. Eu estava completamente mudo diante daquilo.
— Entrei na sala meio assustada, não tinha mais ninguém na sua casa, além da sua mãe. Pelo que me pareceu, pelo menos. E você estava realmente enraivecido, sentado no sofá, quando olhei parecia que toda a sua musculatura estava tensa, retesada, e a sua cabeça estava meio abaixada, de forma que eu não conseguia ver seus olhos. Assim que me viu parada ali, você levantou e bateu a porta da rua, super violento, e falou um palavrão. Sua mãe, que tinha entrado atrás de mim, já gritou de novo perguntando se você estava ficando louco! Nessa hora você deu um urro: "Vê se me deixa em paz! Que encheção de saco!!"
— Puxa.....eu não me lembro disso...
— Eu só fiquei observando um pouco, orando pra mim mesma, procurando compreender o que estava acontecendo. Realmente... você não estava normal. Então falei pra sua mãe que era melhor se a gente pudesse conversar um pouco. Acho que ele entendeu e nos deixou sozinhos na sala. Mas você estava de um jeito... estremecia um pouco, encolhia as mãos e os pés, se remexia todo. Assim que sua mãe saiu da sala, meio espavorida até, por causa de toda aquela ira, você continuou gritando, me mandando embora. E continuava falando aquelas coisas, aqueles Encantamentos. No meio disso tudo, você começou a invocar a presença de entidades... senti meu coração gelar de medo, fiquei quase em pânico. Não sabia o que fazer!
— Não é possível que fiz isso... — não lembrava de ter falado nenhum Encantamento. — Eu falei Encantamentos?!!
— Falou, Nenê.... você falou! A gente precisa quebrar isso agora. O que será que era aquilo que você falou? Meu Deus do céu! — Isabela punha a mão na cabeça. — Que coisa terrível! Era alguma coisa que termina em "...." — repetiu umas três sílabas que tinham ficado arquivadas em sua mente.
Mudei a expressão do rosto e soube imediatamente do que se tratava. — Huummm...
— Fez, sim... e eu só continuei orando, meu Deus do céu, nos ajuda, que Deus nos ajude! Falava pra Deus não deixar aquilo acontecer. Você mesmo estava dando abertura para os demônios! Fui orando e me aproximando, procurei sentar ao seu lado no sofá. Acho que você nem via que eu estava ali, só ficava falando aquela coisa horrível: "Vem, que eu estou aqui!" Por isso que eu digo que você estava completamente fora de si, obviamente só podia estar, pra chamar os demônios.
— E daí?
— Comecei a chorar e instintivamente fui orando em línguas, minha mente se recusava a raciocinar. Não que você estivesse endemoninhado, nem poderia estar, depois das Ministrações, das renúncias. Mas entendi que o seu descontrole emocional estava sendo potencializado por alguma entidade, certamente. Na verdade, acho que foi justamente essa ira, esse descontrole, que abriu a porta para eles atuarem...
— Eu mudei a voz? Ou o rosto? — perguntei, estarrecido.
— Não... o tempo todo foi sua voz mesmo, mas você estava agitado, seu corpo parecia estar agitado. Eu não podia ver, nem sentir nada, mas certamente os demônios estavam ali, né? Eu só perguntava: "Meu Deus, o que eu devo fazer?!"
— O que você fez?
— Bom, não parei muito pra pensar, numa situação como aquela, nova, estranha... eu sentia medo e preocupação por sua causa! Tudo que pude fazer foi ficar orando baixinho ao seu lado. Mas não passaram muitos minutos e você tornou a reclamar, desta vez com a voz um pouco pastosa... como se tivesse bebido, sabe? E você insistia em dizer alguma coisa do tipo: "Você está me atrapalhando! Já disse pra ir embora daqui! Vai embora daqui!" Você estava encurvado, encolhido... nem liguei para aquilo que você estava dizendo, era bom se eu realmente pudesse atrapalhar aquela sua comunicação com as Trevas. Meu sangue gelava cada vez que escutava as palavras de Encantamento que saíam de sua boca, afinal era isso que os demônios queriam: uma legalidade confessada, assumida. Pouco importava se o descontrole humano o tinha despejado bem no meio daquela crise. Os demônios queriam uma palavra proferida. Eu sabia que era isto você estava fazendo! Mas quem sabe minha presença podia "atrapalhar" alguma coisa, podia mudar alguma coisa. Toda hora tentava ver o seu rosto, mas você mantinha os olhos baixos. Sua respiração estava profunda e um pouco ruidosa. Optei por defendê-lo, custasse o que custasse. Nem pensei muito, estendi a mão nas suas costas, sem tocar, e mesmo sentada ali do seu lado no sofá, comecei a resistir àquele ataque. As palavras exatas é claro que não vou saber, nada que tenha pensado antes, nenhuma frase bonita... ensaiada! Simplesmente vomitei o meu mais ardente pedido, o que expressava a angústia da minha alma naquele momento super estranho. Inquietante. O mais incrível foi que assim que eu disse aquela primeira frase de resistência, seu corpo caiu pra frente, a cabeça foi parar no meio dos joelhos, a respiração relaxou, os seus braços caíram ao longo do corpo, tudo mole! Não sei se dá pra você imaginar como eu me sentia... que situação mais desesperadora! É óbvio que os demônios deviam estar ali, você tinha chamado... mas Deus era o único que podia impedir que aquilo fosse adiante. Assim que você despencou continuei só impondo as mãos, orando conforme me vinha na cabeça: para Deus cobrir você com o sangue do Cordeiro... todo o corpo, a alma e o espírito. Que Deus refreasse toda investida, que o revestisse com a armadura, com toda a armadura! Fui citando peça por peça à medida que, com as mãos, simbolicamente eu ia ajustando no seu corpo. Pedia pro Senhor queimar todo o mal que foi feito, acabar com todo Feitiço e Encantamento, ah! Sei lá o que mais! Só sei que fui orando, orando... estava ainda assustada, acho que depois fiquei ainda orando em línguas, passando a mão pela sua cabeça, pelas costas... nem sei mais! Parece que essas coisas desaparecem da mente...
Eu continuei quieto, bebendo meu capuccino devagar.
— Aí tentei então erguer sua cabeça. Mas ela rolava de um lado pro outro. Fui chamando: "Nenê? Nenê?!" E você só resmungava. Eu continuei tentando: "Eduardo, levanta! Tá tudo bem?". Empurrei seus ombros para trás, a cabeça veio junto. Você parecia bêbado mesmo, aí reclamava da luz: "Está muito forte essa luz... apaga essa luz!". Só que agora, apesar daquela moleza toda, era você mesmo! Não estava mais com toda aquela ira, só tentava encobrir o rosto. E enfiou a cabeça no meio das pernas de novo. Eu não sabia o que fazer, então falei, te explicando: "Só está acesa a luz da sala, olha bem".
— Agora que você está falando... eu me lembro disso... me lembro dessa luz forte, que me ofuscava. Chegou a doer na vista! Bem forte... bem forte... parecia que queimava a minha vista.
— Vai ver era a luz de um anjo, né?
Isabela continuou contando. Eu não lembrava das orações, nem de ter ficado bobo como alguém bêbado.
— Eu vi que você meio que se esforçava pra olhar, mas continuava reclamando da intensidade da luz. Dentro de mim eu achava que você devia estar enxergando outra luz. Procurei manter a calma e fui conversando brandamente com você. Reparei que seus olhos estavam muito vermelhos, irritados, até meio inchados. Orei pouco mais em línguas, toda hora eu parava e o chamava de novo: "Nenê?! Tá tudo bem?" Aí você começou a me responder, mas dizia que estava com dor de cabeça. Com dor de estômago também. E se contorcia apertando a barriga! Era tão claro aquele ataque demoníaco! Mas parecia que o pior já tinha passado, porque você já estava mais calmo. Já era bem tarde, Eduardo, quase uma hora da manhã! Eu nem tinha visto o tempo passar, me sentia exausta, esgotada. Mas não tinha paz ainda com o estado das coisas. Não podia largá-lo enquanto não tivesse certeza de que você estava bem. Como você estava completamente sem força, ficou largado no sofá, quieto. Achei melhor ligar para Dona Clara. Toquei até que alguém atendesse.
— Você ligou para a Dona Clara?! Então ela está sabendo disso?
— Claro, né, Eduardo? Eu estava preocupada com você, não? Afinal, você estava jogado no chão da sala sem falar coisa com coisa. Eu não sabia o que fazer, as coisas pareciam estar mais calmas, mas achei melhor orar em concordância com alguém. Na verdade foi o seu Benito quem atendeu. Pedi desculpas pelo horário, que mais podia fazer? E pedi pra falar com Dona Clara! Sempre de olho em você... coitados! Eles já estavam dormindo! .
Até fiz uma careta. Que situação desastrosa! Que constrangimento!
— E que foi que ela disse? Achou tudo isso um horror?!
— Não... fica tranqüilo! Eu expliquei, me desculpei... está tudo bem. Comecei até pelas desculpas.
— Ela não ficou brava?
— Ela entendeu que era uma emergência. Disse que "Tudo bem". Tentei explicar em poucas palavras o que estava acontecendo. E aí contei que você estava ali, meio esquisito, não sabia dizer se estava dormindo ou não. Mas que não tinha motivos pra você apagar assim. Que eu estava assustada... enfim... pedi que ela orasse comigo! Ela orou...
Eu continuava quieto, pesando a situação.
— E então?
— Ela só orou comigo, oramos por você, que Deus o protegesse, fortalecesse. Que as armadilhas do diabo fossem canceladas. Que você ficasse bem... essas coisas. Mas, olha... agora tá tudo bem. Já passou.
— Foi só isso? — quis novamente saber Eduardo..
— Eu concordava com a oração dela, mas sempre prestando atenção em você. Daí, a coisa mais estranha: de repente você me levanta do sofá, apaga ostensivamente a luz da sala e se encolhe no chão. Ai! Que coisa horrível!
Isabela até parou um pouco para tomar fôlego.
— Quando a escuridão tomou conta da sala fiquei novamente assustada. Até segurava o telefone com mais força, tinha receio que você me fizesse alguma coisa, sei lá! Mas continuei orando. A luminosidade que vinha da rua fez com que a gente não ficasse totalmente no escuro, e logo minha vista se acostumou. Como você estava deitado, quieto, vi que não era assim tão terrível. Terminamos nossa oração e Dona Clara foi se despedindo. Afinal, o que havia para ser feito já estava feito. Mesmo antes de telefonar, aquela fúria sua já estava abrandada. A oração em concordância serviu para me tranqüilizar um pouco mais. Parece que o ataque tinha passado, pelo menos o pior. Mas emocionalmente eu estava bastante abalada e continuava preocupada. Você não estava fingindo! Realmente tinha acontecido algo muito estranho!... fui acender a luz do hall de entrada para que a sala ficasse um pouco mais clara, indiretamente. Então sentei no sofá e fiquei observando, era impensável ir embora, né? Você dava umas risadas de vez em quando, bobo de tudo, Eduardo....
— Caramba, não dá nem para imaginar isso.
— No meio daquele torpor todo você reclamou algumas vezes que seus olhos estavam doendo. Eu fiquei sentada no chão, do seu lado, e dizia que já ia passar... aquele tipo de coisa que se diz para os pacientes. Então resolvi buscar um pouco de água para você, fui até a cozinha e trouxe. Agachei no chão e tratei de fazer com que você levantasse e bebesse, fui pegando as suas mãos, puxando-o pelos braços. "Levanta desse chão, vai, Nenê...", tive de falar várias vezes! Eu estava muito chateada com aquela situação, não sabia o que mais poderia fazer pra que você melhorasse. Insisti que você tomasse um pouquinho de água, que ia fazer você se sentir melhor! Foi só aí que você sentou no chão, olhou pro copo... e não quis: "Não, eu não quero água". E aí, de novo ficou com bobeira, você colocava a mão estendida sobre a borda do copo, com aquele sorriso abobalhado no rosto.
Vi que realmente seus olhos continuavam avermelhados, irritados, como quem tem alergia a cloro de piscina. Mais ou menos daquele jeito. E então você diz: "Bebe você a água!" Dá pra acreditar, Eduardo?
— Se você está dizendo... eu realmente não me lembro. E eu bebi a água?
— Finalmente! Tomou um gole, mas daí fez uma careta, e não quis mais beber. Disse que estava com gosto ruim. Deixei o copo de lado. Faltava fazer mais uma coisa, e fui mais incisiva: "Nenê, vamos orar um pouco?" Nada de resposta. Você não parecia muito disposto, nem em condições. Mas insisti. Falei que ia orar e você repetia o que eu dissesse. Você fez que sim então eu fiz uma oração rápida, com poucas frases. Aquilo talvez fosse o mais necessário. Pedimos perdão pelos nossos erros e afirmamos aliança com Jesus novamente. Fui falando o que achei fundamental, depois do que tinha visto acontecer. Orei pra que você confessasse Jesus novamente. Você repetia com voz mole, entrecortada. Aquilo já devia ser o suficiente. Então você levantou do chão sozinho, deitou no sofá e dormiu imediatamente. Eu sentei na poltrona ao lado, de olho no relógio. Ainda orei por você um pouco, pedi a proteção dos anjos e das muralhas de fogo de Deus. Observei durante um tempo, mesmo na penumbra da sala. Quando você começou a roncar, achei que poderia ir embora. Peguei o carro e voltei pra casa, ainda apreensiva. Intercedi um pouco mais. Eram quase três horas da manhã quando cheguei em casa. Claro que dormi mal e muito pouco. Foi uma noite de cão!
Era difícil descrever as sensações que nos invadiam a alma. Não era pânico, nem desespero. Mas ficava uma desagradável mistura de desconforto, de temor, de incredulidade pelo que estava acontecendo. Para dizer a verdade, nós nem sabíamos direito o que tinha acontecido. Agora, era resolver as conseqüências.
— Acho que me lembro também dessa história de você me trazer um copo d'água...
— Tadinho!... Por que você não quis beber?
— Não sei... — sacudi a cabeça de leve. — Parece que tinha um vulto ali. Quando olhei, vi no hall esse vulto, atrás de você.
— Atrás de mim? Um vulto? Será? Devia ser um demônio, afinal você ficou chamando por eles...
Mas eu estava amuado. Não me sentia disposto a melhorar. Isabela tentou me animar durante um tempo, mas também tinha limitações. Seu coração também estava magoado, e começou a perceber que dali pra frente acabaria por se irritar com aquela atitude hostil e pouco convidativa da minha parte, e que eu também não conseguia mudar.
Estávamos já nos levantando para ir, paguei a conta e íamos pegar o carro parado na esquina. Então demos de cara com Marco.
— Oi! — falou Marco. — Como é que tá? — ele olhava para mim com ar ligeiramente indagador, preocupado.
— E aí, Marco? — respondi, apertando-lhe a mão.
Isabela havia comentado com Marco sobre o ocorrido um pouco antes de sair de casa. Eu nem sabia disso, mas ela, ao sair, comentou que estava vindo conversar comigo. E pediu que ele orasse.
Marco tinha ficado sinceramente preocupado e perguntou a ela:
— Mas ele não está pensando em voltar pra lá, não é?
Isabela nem sabia o que dizer, conforme me contou depois... só sacudiu um pouco a cabeça, suspirou fundo.
— Não sei.
Ele ficou realmente preocupado, acabou largando os estudos para vir atrás da gente. E agora estava ali, na nossa frente.
— Como é que você achou a gente? — perguntei. Até então não sabia que ele tinha vindo por minha causa.
— Bom, a Isabela falou que vinha pra sua casa. Eu tentei estudar, mas não estava conseguindo. Então liguei pra sua casa, sua mãe disse que vocês tinham saído. Supus que talvez estivessem aqui. Vocês estão sempre aqui no Fran's!
— É. Adivinhou bem. — comentou Isabela, sem ter mais nada para dizer. Marco era muito espontâneo. Ele certamente percebeu que nós ainda não tínhamos conseguido nos entender. Naquele dia a chegada dele, de última hora, nos ajudou muito. Sabe-se lá o que poderia acontecer no restante do dia... Marco foi entrando:
— Vocês já vão? Já está tudo bem?
— Não, não está, não. — e Isabela não se fez de rogada.
Sentamos de novo os três. Eu não sabia o que pensar daquela situação, mas Marco estava sendo simpático. Fui logo perguntando se ele queria um café ou um refrigerante.
— Não. Não vim aqui pra isso. Na verdade, vim aqui pra falar com você, Eduardo.
Marco falou claramente, então não fiz de conta que não sabia do que se tratava. Fiquei quieto e escutei. Sua atitude estava sendo sincera, então me dispus a ouvir. Isabela ficou calada, cansada e sem ter mais o que falar. Talvez ela visse no meu semblante que as palavras de seu irmão, e sua atitude em correr atrás de nós, estavam sendo benéficas.
Eu não tinha muitas pessoas que se preocupavam realmente comigo a ponto de deixar afazeres importantes. O único que fazia isso, antigamente, era Marlon. Mas naquela tarde vi em Marco uma consideração verdadeira, uma vontade genuína de me ajudar.
E foi o que terminou de destravar aquela bagunça.
Marco não falou muito, usou um exemplo simples de uma historinha infantil. A do Chapeuzinho Vermelho, que desobedeceu a recomendação da mãe e saiu da estrada, pegou o atalho pela floresta. Desobedecendo, foi enganada pelo lobo, e se deu mal.
Era fácil entender a analogia.
— Em outras palavras, estou incentivando-o a não sair da estrada, a não desobedecer a voz de Deus. O "atalho" pode parecer mais fácil, mais rápido. O caminho da floresta é mais fresco, mais agradável. Mas, no fim, você acaba ficando à mercê do lobo, e o lobo mostra a sua verdadeira cara. E vai destruí-lo. Você entende o que eu quero dizer?
Eu me sentia mais leve, mais quebrantado. Parecia pouco a pouco voltar à realidade. Compreendia muito bem.
— Fica firme! — Marco deu uma leve batida no meu ombro.
Todos nós nos levantamos e nos despedimos dele.
— Obrigado, hein, Marco... pela sua disposição!
— Não tem problema. Você estava precisando!
Começava a garoar um pouquinho, apesar do calor. Faltava pouco mais de um mês para o início do verão.
— Tchau! — acenamos para ele, que deu a volta com o fusquinha, pronto para voltar ao seu estudo.
Isabela estava imensamente aliviada porque agora eu parecia voltar a ser eu mesmo. Sorriu para mim, e eu a abracei.
— Ama Gatinha... — disse-lhe com carinho.
As lágrimas vieram aos seus olhos. Voltamos para o Fran's a fim de terminar nossa conversa. Contei minha parte pela primeira vez. Não era muito. Isabela não pôde conter um sorriso de desconsolo:
— Tadinho!...
— Bom... pois é... e no fim de tudo, de manhã senti que estava sem a aliança... Isabela ficou quieta, esperando. Eu continuei:
— Eu costumo rodá-la no dedo, por isso percebi logo que estava sem ela. Então desci para procurar.
— Achou?! — Perguntou ela, ansiosa.
— Não... — respondi. — Saí à rua, olhei na calçada... mas, nada!
Isabela estava triste. Tínhamos escolhido lindas alianças da H. Stern. Enfim...
— Bom, Nenê... depois a gente pensa nisso.
De certa forma, ainda que não percebesse isso, eu estava muito acostumado ao caminho fácil. Antes, nos meus relacionamentos, era o senhor absoluto da situação. Tudo acontecia dentro do que me era conveniente. Era fácil sumir, enganar, não ter de ceder, não ter de mudar. Estava acostumado a sempre ter razão, mesmo que não tivesse.
E ainda tinha o Inferno a meu favor.
Mas agora, tudo era diferente. Eu ainda não tinha percebido essa realidade. E falava coisas que magoavam ao extremo Isabela.
— Vamos ver a coisa por outro ângulo, Nenê. De certa forma, o que aconteceu tem sua razão de ser. De que outro modo viria à tona tudo isso? Sinal que ainda há o que tratar dentro de você, dentro de mim.
— É.
Devagar, ela sentiu que podia ir falando um pouco sobre si mesma. Sobre os seus sentimentos feridos, sobre o que eu havia dito a ela. Só então nós nos entendemos de vez, e compreendemos o por quê de nossa reação inicial. Entre lágrimas, ela contou sua parte da história. E enfim, finalmente entendi! Ela não era a vilã absoluta da história.
Depois disso, naquele final de tarde acabamos encontrando alguns colegas daquela cidade de interior que estavam em São Paulo. Fomos ao Culto à noite. Espairecemos a cabeça, recebemos a Palavra. Ninguém poderia imaginar que horas terríveis a gente tinha passado há bem pouco tempo.
Depois, mais tarde da noite, consegui falar com Ricardo. Oramos juntos, e Isabela também intercedeu enquanto nós estávamos no telefone. Foi bom. No domingo estávamos lá no Culto de novo. Oramos com Dona Clara.
A tempestade tinha passado. Mas eu continuava sem aliança.
Durante a semana nós dois estávamos em clima de romance de novo.
Isto é, estava tudo bem entre nós, como sempre. A maior parte do tempo a gente estava muito bem. E um não ficava sem o outro.
Olhei para o relógio. Faltavam alguns minutos para dar o horário de saída de Isabela. Resolvi dar uma ligadinha para ela, como de costume, para "falar oi". Nesse dia, eu estava ansioso em vê-la porque tinha uma sugestão especial. Não agüentei esperar e já fui propondo logo pelo telefone:
— Vamos fazer alguma coisa diferente, menina?! — Exclamei alegremente. — O Nenê quer fazer alguma coisa especial pra Gatinha.
— E o que é que Nenê está querendo fazer?
— Vamos jogar boliche, "Mô"?
— Boliche?! Você quer mesmo?
— Vamos? Eu sei que você nunca jogou boliche! Queria que você pudesse fazer alguma coisa diferente hoje! E eu vou te mostrar como é que se joga.
Isabela entendeu a provocação. E não deixou passar.
— Ah! E desde quando você é tão expert assim? Que eu saiba, você nunca jogou muito isso.
— É, menina, mas eu não preciso jogar muito pra ser bom pra caramba nessa história! — retruquei.
Então ela deu risada e concordou.
— Tá bom, então! Então a gente vai. Quero só ver, hein, Nenê? É capaz que eu ganhe de você! — e suspirando de leve. — Ufa! Agora eu me animei... não vejo a hora de sair daqui!
— Tá muito puxado, é?
— Não, até que não. Tá com o mesmo movimento de sempre. Mas já estou cansada de ficar aqui. Quero ver o Nenê!
— Logo, logo a gente já se vê.
— Ichhh! Escutei um "ploft" aí na minha porta. Isso quer dizer que tem mais uma ficha na caixinha. Acho até que já deve ter umas duas. Vou atender, tá?
— Tá bom, "Mô". Depois a gente se vê! Ama Gatinha!
— Também ama Nenê! Tchau!
— Tchau! Bom serviço. Juízo, hein? Apareceu algum carinha bonito pra você examinar?
Ela suspirou exageradamente alto. Provocação era com ela mesmo.
— Nem te conto. Bye Bye!
— Pera aí! Onde você quer se encontrar?
— Nenê que sabe.
— Posso te esperar na sua casa... daí a gente já vai direto pro Shopping que tem boliche!
— Tá. Agora sossega, deixei eu atender aos pacientes!
Comemos no Shopping, conversamos. Nossos programas, na maioria, eram assim. Sossegados, não extravagantes. Era gostoso apenas sentar, contar o dia um para o outro, fazer planos. Estar juntos. Para nós dois não havia melhor momento no dia.
— Então... — comecei enquanto terminava meu cafezinho expresso. — Vamos jogar o boliche?
— Vamos, né? Você não está querendo?
— Eu queria fazer alguma coisa diferente com a Gatinha! — falei enquanto segurava as mãos dela com as minhas.
Eu sempre era carinhoso com ela. E ela gostava disso. Eu sabia que Isabela adorava pequenos gestos cavalheirescos, aquele clima à moda antiga, como quando eu abria as portas para ela passar. Dava o casaco quando ela estava com frio. Levava flores, bombons, cartões... tantas vezes! Isabela adorava ser mimada. Quem não gosta? Do meu lado, eu gostava de mimá-la! Queria ela muito mi-ma-da! Nada seria muito difícil para mim se fizesse Isabela feliz. Adorava vê-la rindo, contente, com cara de bonequinha.
Então fomos para o boliche.
Custou um pouco a chegar lá porque Isabela engastalhava em uma ou outra loja, olhando vitrinas. Eu olhava junto, com paciência. Ela queria me mostrar tudo, fazer comentários sobre tudo, perguntar o que eu achava a respeito de tudo. No fundo, também gostava de olhar as vitrinas. Não exatamente as mesmas vitrinas que ela, mas também gostava de olhar!
— Vamos ver se a gente consegue chegar lá antes de fechar, hein, Isabela? — brinquei numa boa.
— Puxa, não seja tão chato, Nenê! Só estou dando uma olhadinha. Chegamos ao boliche, compramos um período de apenas meia hora. Eu estava bem entusiasmado, talvez influenciado pelo Marco, que era fã de boliche. Isabela estava ali mais para fazer a minha vontade, porque ela mesma achava aquele jogo meio bobo. Mas foi mesmo gostoso! Ela começou errando umas duas vezes, mas aí pegou o jeito e ficamos bem empatados.
— Ah! É assim que você é um grande jogador de boliche, Eduardo? Estou quase alcançando você!
— Que é isso, Isabela...? Eu ainda estou aquecendo. Espera só para ver! Estava sendo divertido. Até mesmo na hora em que ela fez o primeiro strike.
Pura sorte/
— Aííí! — gritou ela. — Estou virando esse jogo, Nenê! Abracei Isabela antes que ela jogasse de novo.
— Passei você, Nenê!
— Aguarde... aguarde! Isso é pura sorte!
Peguei a bola azul e me preparei para lançá-la. Dei alguns passos, fiz pose e já ia lançar a bola. No momento em que a atirei, tanto eu quanto ela ouvimos perto de nós um "plim".
Olhamos para o lado do barulho e até esquecemos de ver quantos pinos a bola ia derrubar.
— Acho que caiu alguma coisa do seu bolso... — comentou Isabela.
Ela não viu o que foi. Mas eu percebi alguma coisa que rolou perto de mim, e me abaixei pra pegar.
— Puxa......— murmurei, embasbacado. — Puxa.....
— Que foi? — Isabela chegou perto de mim.
Eu fiquei muito espantado, quase incrédulo, e apenas estendi a mão para que ela visse. Isabela olhou. E reconheceu de cara. — A aliança?!?
— Pois não é? — olhei bem para ver se era a minha mesmo.
— Mas de onde ela caiu? Você tinha achado?
— Não, eu não tinha achado. Desde aquele dia que ela sumiu.
— Tem certeza, Eduardo? — ela pegou a aliança para olhar por si mesma. Dentro dela, em letras delicadas, estava escrito o seu nome.
— Tem certeza de que não estava no seu bolso? Em algum bolso?!
— Absoluta! Peguei esta roupa hoje no armário. Se estivesse em algum bolso, haveria de ser no da calça que usei naquele dia, né?
Ficamos os dois olhando um pra cara do outro. Completamente mudos. Esquecidos do jogo!
— Caramba... — murmurou ela por fim.
— Você está pensando o mesmo que eu?
— Bom... e você tá pensando o quê? Meus olhos até marejaram.
— Deus devolveu! Ele mandou um anjo devolver. O anjo veio até aqui, e trouxe de volta. O que mais posso pensar? Essa aliança tinha ficado perdida na rua!
— É... eu estava pensando isso...
Ficamos quietos por mais um tempo, enquanto coloquei de volta a aliança no meu dedo.
Terminamos de jogar nosso boliche num outro clima. Uma satisfação toda especial permeava a nossa alma agora. Aquele gesto sobrenatural de Deus queria dizer muita coisa. Era uma maneira clara, inequívoca, do Senhor confirmar a nossa futura união.
Aquilo foi claro para nós dois. Deus havia perdoado a nossa insensatez e trouxera de volta o símbolo do nosso compromisso. Sinal que havia algo especial no elo que nos unia. Algo que realmente estava nos planos e no coração do Pai.
Naquele momento aquilo foi importante.
Porque os ataques sobre o nosso relacionamento continuariam, e seriam cada vez mais intensos. Eu ainda não tinha conseguido perceber que as nossas brigas absurdas tinham, de fato, um contexto espiritual. Mas, independentemente disso, sabia muito bem que o diabo não nos queria juntos: pelo simples motivo de que ele havia escolhido outra pessoa para mim.
O futuro nos mostraria que este não era o único motivo. Mas parece que Deus realmente desejava — e se alegrava — com nosso relacionamento.
Aquela atitude amorosa do Pai caiu como bálsamo nos nossos corações.
Mesmo assim, a sexta-feira seguinte nos surpreendeu com nova desavença.
Naquele dia tínhamos combinado de ir ao Culto numa outra unidade de nossa Igreja, em outro bairro, onde haveria uma programação especial. Era ultra longe!
Mas com aquele clima de discussão pairando sobre nós, acabamos indo pra lá brigados e obrigados. Simplesmente porque já havíamos prometido a Dona Clara que estaríamos presentes.
Eu olhava o guia de ruas com má vontade, lacônico. E Isabela estava muda, respondendo de vez em quando com maus modos. Para piorar a situação, começou a chover bem forte. Quase desistimos. Mas, graças a Deus, chegamos ao nosso destino em segurança.
Foi a salvação naquele dia!
Entramos na Igreja quando começava o Louvor. Foi melhor assim.
Louvamos o Senhor, esquecemos momentaneamente um do outro. Mas o coração de Isabela continuava triste. Percebi quando algumas lágrimas acabaram rolando dos seus olhos, então fiquei com pena e segurei sua mão. Já estava com remorso e, ao olhar para mim, Isabela encontrou no meu rosto um olhar mais simpático, de alguém que se desculpa.
Normalmente ela seria mais turrona em aceitar a reconciliação, mas o clima que nos envolveu durante o Louvor facilitou.
Não encontramos ninguém conhecido da nossa unidade, talvez justamente por causa da chuva. Atravessar a cidade na sexta-feira, debaixo de chuva, era uma tarefa hercúlea que todo mundo evitava se pudesse.
Quando saímos, já não chovia. Entramos no carro e fomos para a casa de Dona Márcia. Ela estava assistindo a um filme na televisão, de forma que fomos tomar lanche sozinhos, excepcionalmente.
Novamente foi melhor assim, porque pudemos conversar com mais sossego e liberdade. Conseguimos então pôr em pratos limpos nossa desavença sem maiores estragos naquela noite. Mas aconteceu algo diferente.
Nós dois estávamos já com o lanche feito e conversávamos à mesa quando dei um pulo na cadeira e levantei de supetão. Isabela levou o maior susto:
— Puxa, que foi, Eduardo?!
Corri até a porta da cozinha, olhei desconfiado, primeiro para a sala, e depois para o corredor que dava acesso aos quartos. A porta do corredor estava fechada No entanto, eu podia jurar...
— Que foi?! — Perguntou ela de novo.
Voltei para a minha cadeira e me sentei. Meneei a cabeça. Certamente era coisa da minha imaginação, por isso nem dei seqüência ao assunto.
— Ah!... não foi nada... eu... achei que tinha visto um vulto passar ali na porta. — Vulto??
— É. Mas acho que foi só minha impressão. Não foi nada. Ela me olhou firme, sondando minha reação.
— Tem certeza? — perguntou, enfática, novamente.
— Tenho, tenho. Não foi nada. — e procurei afastar da mente aquela impressão. Diante de minha categórica afirmação, Isabela deixou o assunto de lado.
— Dá para você me passar o queijo, Nenê?
Continuamos conversando normalmente, ali mesmo na cozinha, mesmo depois de terminado o lanche. Afinal, Dona Márcia estava na sala com a TV ligada.
Nem sei como o assunto voltou à baila, porque Isabela nem estava mais lembrando. Como poderia? Não foi ela quem viu ou sentiu alguma coisa. Mas ela xeretava no congelador e comentava comigo:
— Minha mãe fez supermercado e deve ter sorvete aqui. Quer, Nenê? — Quero.
Creio que talvez Deus não quisesse o nosso esquecimento. Porque falei de novo, nem sei por que fiz isso:
— Puxa, foi tão real o que eu vi.
— Mas o que foi que você viu, afinal?
— Vi um vulto, já disse.
— Um vulto pode ser tanta coisa... como era esse? — Enorme. Ela ergueu as sobrancelhas.
— Enorme?? — inquiriu. — Como assim? — Enorme. Do tamanho da porta!
Ela ergueu mais ainda as sobrancelhas.
— Do tamanho da porta??? Mas... mas então deve ser alguma coisa séria, Eduardo! Por que você não disse antes?
— Ah, sei lá. Será que não é coisa da minha cabeça?
— Quando você falou em vulto, não imaginei isso. Pensei que você viu o vulto da Harpa, da Viola, e se enganou. Por isso nem liguei!
Harpa e Viola eram as gatas de Isabela.
— Bom... certamente não era o gato! Era alto, bem alto como a porta, quase do tamanho do teto... e passou rápido. Veio da sala e passou pro corredor. Eu vi por visão periférica, sabe? Estava entretido com o lanche, e de repente vi aquilo passando, furtivamente. Mas foi tão nítido, tão nítido que pensei que alguém tinha entrado aqui, algum estranho. Isabela ficou indignada.
— Mas por que você não falou antes, Nenê?! Puxa vida, Deus começa a te dar um Dom e você não usa?
— Eu sei... — assenti. — É que eu acabo relativizando porque acontece quando menos estou esperanto. Fico pensando se não estou viajando na maionese... sabe?
— PUXA VIDA, passou um demônio aí, Nenê! Temos de orar!
— É — concordei. — Vamos orar.
Oramos ali mesmo como estávamos, sentados à mesa. E nossas palavras eram sempre as mesmas, sempre no mesmo sentido: pela proteção, pela guarda dos anjos, o revestimento das muralhas de fogo, a cobertura do sangue de Cristo. E que Deus desfizesse toda armadilha, Encantamentos, Feitiço e maldição contra nós. Especialmente as que tinham sido lançadas recentemente, no Sabbath.
Quando terminamos, eu continuei olhando pra frente; sabia que devia estar com aquela expressão no rosto já bem conhecida de Isabela.
— Que foi? — indagou ela.
Continuei olhando para os lados, perscrutando, e por fim falei:
— Não sei, enquanto a gente estava orando senti uma presença tão ruim aqui, uns calafrios nas costas. Quando eles estão perto dá mesmo essa sensação de frio... não é qualquer coisa que tinha aqui, não é qualquer coisa... é um demônio forte! Um demônio da Irmandade... como se ele estivesse aqui para nos monitorar... pra criar alguma coisa, alguma situação ruim.
— Você acha mesmo que eles realmente usaram a ocasião do Sabbath para fazer algo mais forte contra a gente?
— Não tenha dúvida disso — retorqui sem pestanejar. Nem precisava pensar dois segundos para dar aquela resposta.
— Puxa vida! Somos tão importantes assim?! Dei de ombros.
— O diabo não gosta de levar a pior. Eles vão continuar lançando Encantamentos... para que eu faça como eles querem.
— Não acho possível que eles o aceitem de volta! Fiquei quieto.
— Não sei. Se por um lado meu papel era importante, por outro também não ignoro que os demônios adorariam me pagar com juros e correção monetária. Todo mal feito à Irmandade deve ser retribuído nove vezes.
— Ui! — Isabela sacudiu a cabeça, indignada. — Fato é que pouco importa se iriam ou não aceitá-lo, porque você não vai dar essa satisfação a eles.
— Isso! — concordei.
— Puxa... Deus está mesmo te dando esse Dom. Passou a sensação ruim?
— Passou. Enquanto a gente orava, foi diminuindo.
Diante disso, deixamos o assunto de lado. Já era tarde e fui me despedindo.
— Aonde você vai? — Pra casa, ué!
— Sozinho? De ônibus?! — Falou em tom de voz mais alto.
— Ah! "Mô"! Tá tudo bem, não precisa se preocupar!
— Eduardo, não adianta fazer essa sua carinha de nenê número um.
— Não precisa me levar, Gatinha. Vai descansar, vai!
— Descansar! Como? Se eu pudesse descansar, enquanto você fica vagando por aí, à noite, sozinho? De jeito nenhum!
Seu tom não admitia argumentação. Eram muito raras as vezes em que eu voltava sozinho da casa dela. Agora que nós tínhamos o Palio, Dona Márcia me havia emprestado o fusca, só de quebra-galho. Mas o fusca estava no conserto! Então Isabela preferia me levar, não era longe, bastavam 40 a 45 minutos pra ela ir e voltar. Mas eu não gostava de incomodar, mesmo porque depois ela voltava sozinha.
— Eu posso ir sozinho... — ainda argumentei enquanto Isabela rodava o banheiro e o quarto, procurando onde deixara seus sapatos. Ela possuía o hábito de chegar em casa e tirar os sapatos em qualquer lugar, instintivamente, depois tinha de ficar procurando.
Era um pouquinho desorganizada... no seu quarto tinha sempre uma montanha de roupas empilhadas na escrivaninha. Às vezes Marina era incumbida de dobrar as roupas. Gastava o dia naquilo... nem dava para ver a escrivaninha, o piano, de tanta coisa em cima. Nas suas refeições noturnas, deixava tudo espalhado... papéis de bala, chocolate... vasilhas...
Por isso os sapatos estavam perdidos. Ufa!
Esperei.
— Vamos indo, Nenê! Quantas vezes saí de madrugada do Hospital, e voltei sozinha? Agora vou deixar você zanzando por aí?
Passamos pela sala.
— Tchau, Dona Márcia, já estou indo.
— Tchau, Eduardo, até amanhã. A Isabela está indo levar você?
— Tá... mas eu disse que não precisava.
— Mas é melhor assim! — respondeu ela já do jardim.
A noite estava fresca agora e não havia trânsito. Eu dirigi na ida. Paramos em frente a minha casa em pouco mais de quinze minutos. Despedimo-nos e Isabela pulou para o banco do motorista.
Fui destrancando o portão da frente.
— Vai, Gatinha.
— Entra, Nenê! — respondeu ela sorrindo, acenando, meio marota. — Trata de ficar bem guardado aí.
— Tchau! Espero você me ligar.
— Tá. Tchau!
Só acelerou quando eu já havia novamente trancado o portão por dentro.
Quando nos encontramos no dia seguinte, eu ainda teria algo mais a contar. Embora não me lembrasse de imediato. A verdade é que aquela experiência não tinha terminado ali. Nós havíamos marcado nosso costumeiro encontro naquele parque, pertinho de casa, para fazer ginástica pela manhã.
Fomos caminhando de mãos dadas, sentindo o ventinho agradável, vendo o sol escorregar por entre a copa das árvores, observando as pessoas que passavam por nós fazendo cooper.
Aquele lugar sempre me dava uma sensação de nostalgia, gostava de contar histórias do tempo em que tinha meus alunos de Kung Fu. Dei muitas aulas naquele parque! Parece que cada canto tinha uma lembrança engraçada ou agradável. (Leia Filho do Fogo).
Isabela sempre gostava de ouvir as minhas histórias. Era motivo pra muita risada! Quando passamos pela casinha que guardava material de limpeza e manutenção, comecei a rir, comentando:
— Tinha um senhor antigamente aqui, que era chefe da manutenção, sabe? Ele vivia de cabelo em pé com a gente porque nós pegávamos todas as suas vassouras.
— E pra quê, hein? Continuei rindo.
— Pra fazer uns nunchakus. Às vezes a gente também usava pra fazer bastões curtos. Vassoura é ótimo pra isso, coitado do cara!
— Ah! Você, hein? Você era fogo!
— O homem não podia ver a gente chegando que já ia atrás de salvar as suas vassouras!
Fizemos nossa ginástica. Comecei com corrida. Isabela não gostava de correr, preferia a marcha acelerada, por causa da sua coluna. Depois fomos fazer o resto juntos.
Agora eu já não fazia Kung Fu, estava afastado da academia do Mestre Zhy havia alguns meses. Mas estava levando bem. No final do nosso treino fomos comprar água de coco na barraquinha da entrada do parque.
— Bem que a gente podia fazer matrícula numa academia boa de verdade, né? Acabou não dando certo daquela vez, mas bem que fiquei com água na boca de ser aluna numa academia como aquelas! — começou Isabela. — Você não vai dar aula, mas o que nos impede de sermos alunos? E fazer ginástica?
Até parei de beber o meu coco.
— Taí! Sabe que eu já tinha pensado nisso? É uma ótima idéia. Você estaria disposta? Podemos usar uma parte do dinheiro da minha rescisão!
— Ah! Acho que vai ser bom pra nós dois. Especialmente pra você, né, Nenê? Porque você não pode virar uma pessoa sedentária. Quem é atleta tem que continuar sendo!
— É isso mesmo! Eu posso não fazer mais Kung Fu, mas posso perfeitamente continuar a ginástica, a atividade física.
— Pois então, nós não podemos descuidar da nossa saúde. Quem sabe consigo emagrecer um pouco. Seria muito bom!
Ainda comentando sobre os benefícios de ingressarmos em uma academia de porte, fomos vagarosamente caminhando pela calçada em direção ao carro.
— Pode deixar que eu dirijo, Isabela!
— Tá bom. Eu estou tão cansada desse exercício todo, agora vou descansando aqui do lado.
— Tomo um banho bem rápido em casa e nós já saímos!
— Tá. Não sei nem se vou entrar...
— Ah, mas eu vou deixar você sozinha na rua?
— Que é que tem? É hora de almoço, não é hora de assalto.
— Como se tivesse hora pra assalto acontecer! Você entra e sobe, fica no quarto esperando. Eu me arrumo logo.
— Tá bom, tá bom.
Em cinco minutos já estávamos lá. Isabela cumprimentou minha mãe e subiu atrás de mim. Enquanto eu pegava minha caixinha cheia de cosméticos dentro do guarda-roupa, ela se acomodou sentada na minha cama.
— Já, já, estou aqui! — e tirei a camiseta jogando-a sobre a cama.
Ao me virar para pegar os cosméticos, parece que Isabela reparou em algo diferente nas minhas costas.
— Ué, Nenê... que é isso aí nas suas costas?
Olhei para ela.
— O quê?
— Essa mancha aí, meio sobre as espáduas... ali, olha, meio à esquerda. Não consegui ver nada, então fui olhar no espelho do banheiro. Ela veio atrás de mim para olhar melhor.
— Que esquisito... você bateu em algum lugar? — Não.
— Ela é tão redondinha... o que pode ter sido?
— Não sei, vai ver me machuquei e nem percebi.
— Puxa, meio difícil, né? Ninguém arruma um hematoma desse sem saber como.
— É um hematoma?
— Parece. Você tem que ter batido em algum lugar. Está doendo? — ela apalpou de leve a lesão avermelhada, ligeiramente arroxeada nas bordas, redonda.
— Não dói nada.
— Bom... vai tomando seu banho e pensa um pouco para ver se lembra.
— OK, Gatinha! Nenê está indo.
Quando voltei, já vestido e perfumado, estava com uma expressão mais séria no olhar. Mas procurei fazer de conta que nada havia acontecido. Talvez Isabela nem estivesse mais lembrando do tal hematoma. Saímos e, uma vez dentro do carro, ela perguntou incisiva. — Pelo visto você não vai falar nada espontaneamente, né? — não adiantava eu querer esconder nada. — Que foi, Nenê?
Ela olhou para mim mais uma vez, sem desviar a atenção do volante. Iríamos direto para sua casa a fim de que ela pudesse tomar banho também.
— Pois é... — fiz uma pausa mais longa. Sorria de leve.
Isabela conhecia aquela minha cara. De alguém que quer esconder algo e não está conseguindo.
— Mas o que foi, Eduardo? Fala logo de uma vez, que você me deixa nervosa!
— Não sei se é coisa da minha cabeça...
— O que, Eduardo? Que foi que aconteceu?!
— Essa mancha... eu fiquei pensando... e aí lembrei de uma coisa que eu sonhei.
— Essa noite? — indagou ela, ansiosa em saber logo de que se tratava.
— É. — respondi com calma, ainda processando as idéias. — Eu sonhei que estava num Ritual... mas não pra participar, entende?... Na verdade... eu estava numa cama... de mármore.
Ela me olhava com seriedade. Erguia as sobrancelhas sentindo já aquela sensação desconfortável, antevendo o restante:
— Você quer dizer... uma mesa de sacrifício? — falou, baixo.
— É. — retorqui; e fiquei quieto.
Ela esperava. Como eu não dissesse nada, cutucou de novo, impaciente e tensa:
— Puxa, e daí?
— Bom... foi tão real que às vezes nem parece sonho. Foi tão vivido... me lembro de cada detalhe... que não vem ao caso! Mas sentia muito calor... calor de fogo! Estava muito quente. Uma sensação horrível! Então, vi uns olhos olhando para mim, só uns olhos, no escuro...
— Olhos de quem?
— Dele...
Naturalmente que o assunto era bastante desagradável.
— Do Abraxas, é isso?...
— Eu creio que sim. Apertei os lábios um no outro, não sabia o que dizer. Ela esperava para ouvir o resto.
— Daí, de repente comecei a consegui distinguir o vulto dele, sabe? No escuro. Percebi que na mão dele tinha uma faca longa. Vi muito bem.
Tornei a apertar a boca. Quanto a Isabela, olhava para mim com ar de espanto e assustada ao mesmo tempo, sempre que o volante permitia.
— E...? — incentivou ela de novo.
— Bom, então ele... me atacou! Veio com aquela faca bem direto pro meu coração... só que, não sei como, eu não estava amarrado. Então me virei bruscamente para que a faca não atingisse o meu peito, e daí... ela pegou nas costas... entende?
— Nas... costas?! Sei. Hum... — Ela olhou para mim realmente sem saber o que dizer. Puxa, mas... será possível, meu Deus?!...
— Sei lá. O sonho foi muito real. E ficou uma marca. — inspirei fundo. — E difícil de acreditar que isso possa acontecer de verdade.
A voz de Isabela soou séria de pesar. Deu um muxoxo ressentido, seguido de um largo suspiro como o meu.
— Ai! Eu nem sei o que pensar. O que mais podemos pensar??
— Pois é. A verdade é que não importa muito "como" aconteceu, e sim, que aconteceu. Quer a gente queira aceitar, ou não, entender ou não.
— Entender realmente fica difícil. Mas o ferimento ficou aí.
Nós sabíamos que os demônios poderiam ter causado o sonho, afinal eles têm esse poder de interferir na mente. Seria também muito simples para Abraxas, parado ao lado da minha cama, causar também aquela marca no meu corpo. Tudo bem, aquele era um conhecimento teórico... muito diferente era ver acontecer. Conosco.
Não havia nada que pudéssemos fazer a não ser orar. Melhor dizendo, continuar orando! Continuar pedindo proteção de Deus. Claro que o recado do Inferno tinha sido dado... de novo. Nem parecia que as orações surtiam efeito.
Oramos um pouco ali mesmo, no carro. Quando chegamos a casa de Isabela, ela foi tomar seu banho. Tão logo acabou, veio comentando:
— Acho que a gente podia ungir isto, não?
— Pode ser. É uma boa coisa. Vamos fazer.
Grace nos havia dado óleo de unção, orientou para que ungíssemos nossos quartos, nossas camas, consagrando ao Senhor, pedindo proteção.
Isabela pegou o frasquinho. Oramos primeiro em concordância. Se Deus,, através daquela situação, sinalizava a intenção do inimigo, a verdade é que não era nenhuma novidade. Deus nada permite sem propósito definido. Embora tudo aquilo sempre nos pegasse de surpresa, desabando desagradavelmente sobre nós, se assim era... era porque o Senhor o permitia!
E se Ele permitia, é porque queria mostrar as reais intenções do inimigo. Talvez nem se tratasse de morte física, pode ser que o sonho simbolizasse a morte espiritual. Ela seria o estopim, o ponto fundamental, a coisa certa a ser feita para que eu retornasse à Irmandade. Decepção. Frustração. Morte espiritual.
Certamente eles estavam agindo nesse sentido, o sonho apenas confirmava uma coisa que nós já sabíamos. Mas é claro que a sensação de temor ficava durante um tempo... isso era inevitável!
A reação imediata de Isabela era orar; e ela me arrastava junto neste propósito.
Pedimos força e coragem, fundamental para que pudéssemos percorrer aquele caminho difícil. Que Deus embaraçasse os planos dos nossos inimigos.
Depois, Isabela mesma pegou o óleo de unção, abriu o frasquinho, pôs uma pequena quantidade na palma da mão.
— Senhor, em nome de Jesus, toca nesse ferimento com a Tua mão, toca com o Teu sangue. Limpa de toda contaminação do inimigo, passa Teu bálsamo de cura, e faz com que não seja mais do que um ferimento comum. Limpa o Teu filho, protege Teu filho de todo mal, e toda artimanha de Satanás. Destrói os planos dele. Amém!
Ela orou com toda a convicção que lhe foi possível, com todo ímpeto e determinação.
— Pronto, "Mô". — murmurei. — Está entregue a Deus. Amém. — Amém.
Três dias depois, no nosso encontro semanal com Dona Clara, compartilhamos o sonho. Mas foi mais por desencargo de consciência e zelo espiritual, porque o tal hematoma já praticamente nem existia mais.
— É incrível, Dona Clara! — comentei. — Nós ungimos e já quase desapareceu tudo.
— Realmente um hematoma como aquele não ia reabsorver tão rápido! — acrescentou Isabela.
— Sinal que a coisa tinha origem espiritual mesmo! — respondeu ela. — Quando Deus mostra algo assim, não quer dizer que aquilo vai acontecer. Na verdade, ao revelar a intenção do inimigo, o que o Senhor quer de nós é que tomemos posição no Reino do Espírito em relação a isso. A nossa parte é essa: interceder! Porque assim podemos frustrar os planos do maligno. Nós fazemos nossa parte, Deus faz a dele. Deus apenas confirmou aquilo que vocês já sabiam!
Nós ouvíamos sempre com atenção.
Esse foi um princípio que aprendemos com Dona Clara, que nunca esqueceríamos. A questão de tomar posição no Reino Espiritual. Deus não estava revelando aquilo para nos trazer pânico, mas para nos fazer participantes daquela guerra. E qual era a maneira de participar? Naquele momento não havia outra: orando. Haveria momentos em que o Senhor daria outras diretrizes.
Por sinal, essa história de ferimento espiritual aconteceu mais duas vezes.
No futuro, conheceríamos pessoas que ficavam apavoradas com visões ou discernimento espiritual de "tragédias". Quando Deus traz a revelação é sempre para o bem, para que possamos fazer melhor a nossa parte, para que não fiquemos ignorantes do que intenta o inimigo.
Aprendemos que, quando procuramos verdadeiramente nos alinhar com a Vontade de Deus, e buscar o Seu caminho perfeito de todo coração, Ele não deixa encobertas as ciladas do diabo.
— Vocês estão procurando servir ao Senhor com seriedade, por isso Ele traz a revelação. Esse é o nosso Deus! — e Dona Clara ria.
Nós sorrimos de volta, mais confiantes. Nunca Dona Clara pareceu incerta do Poder e do Amor de Deus. O seu Cristianismo era como o de uma criança, cheio de fé, cheio de temor. Ela foi a conselheira mais cheia de sabedoria que conhecemos... quando abria a boca, trazia sempre uma direção sábia!
Não houve uma única vez, nos quase quatro anos de acompanhamento semanal que tivemos com ela, em que nos faltasse o alívio necessário. Dona Clara não julgava, não especulava, não era curiosa nem fofoqueira, de ouvidos sempre atentos, com um coração disposto e cheio de empatia para conosco; nossa alegria a alegrava, e a nossa tristeza a entristecia. Foi um suporte todo especial naqueles anos. Ao nosso lado, ela produziria muitas coisas para o Reino de Deus.
— Nenê, e o que era mesmo aquilo lá que você falou sobre estar decepcionado com a Igreja? Isso tem a ver com isso que eles querem, com essa morte espiritual.
— Bom, é verdade... — desembuchei. — Se eu for pensar em uma morte espiritual, de certa forma isso tem que envolver a Igreja... e as pessoas! Sabe, Dona Clara, é impossível não haver uma certa... comparação!
Dona Clara entendeu logo. Aliás, ela já sabia do nosso sentimento:
— Comparação com o lado "de lá".
— É — afirmou Isabela.
— A senhora sabe... a Igreja não é unida... o povo de Deus não se ajuda!
— É, "Bem"... essa é uma realidade! Mas nós, que estamos vendo isso, temos de nos colocar na brecha por essa situação. Infelizmente, nós não chegamos lá ainda. Só o Senhor para dar Graça, força...
— É que é difícil escutar o Marlon, né, Dona Clara? A senhora sabe que faz falta pro Eduardo ter um amigo, um amigo homem... — continuou Isabela.
— Eu sei que eu não posso olhar para as pessoas. Mas é difícil!
E ela ia aconselhando com calma, com brandura, mas ao mesmo tempo com firmeza. Compreendia nossa decepção, mas nunca a encorajava. Não é porque os outros erravam, que nós tínhamos o direito de errar também. Dona Clara sempre procurou, até mesmo sem perceber, forjar em nós um caráter íntegro.
— Deus vai prover o amigo, o companheiro. Vai suprir! O diabo é sujo mesmo, ele vai usar as deficiências da Igreja pra jogar. Eu sei que é difícil... mas o que eu posso dizer pra vocês? Não posso endossar o erro. Nem sempre o caminho do Senhor será fácil. Mas, no final, a nossa coroa vai estar preparada! Vamos permanecer firmes!
Outras vezes, ela guerreava ferreamente conosco. E no final da reunião, virava para nós, rindo, espantada muitas vezes:
— Puxa, eu nem imaginava o que o Senhor ia fazer hoje... Ele está sempre nos surpreendendo! Vamos aguardar pra ver o livramento que o Senhor vai trazer. 0 que Ele fez aqui hoje nós ainda nem imaginamos!
Assim era Dona Clara, praticamente uma mãe para nós. E Deus a usava.
Nós não sabíamos bem que coisas o Senhor nos reservava para o futuro. A bem da verdade, nem queríamos saber! Certamente que uma delas haveria de ser o livro Filho do Fogo. Mas esse era um trabalho moroso. Isabela escrevia durante um tempo, depois parava outro tanto, quando as coisas apertavam pro nosso lado... então voltava a escrever... e pensava se aquilo realmente era vontade de Deus, então parava de novo. Aí achava que era sim, então reescrevia. O relato era uma colcha de retalhos, de pedaços, de emendas, de coisas que eu ia lembrando dentro e fora das Ministrações.
Nós queríamos e não queríamos escrever. Àquela altura dos acontecimentos, ninguém dava muita bola para o livro, mas a Grace nos havia incentivado a pôr a história no papel. Nem nós, nem Grace, nem Dona Clara estávamos muito preocupados com o livro. Embora a gente achasse que um dia — a gosto de Deus — talvez aquela história devesse estar escrita.
Nós tínhamos optado por não esconder nada de Dona Clara e Grace. Era preciso confiar em alguém. E, para elas, nós contávamos tudo.
Naquela noite, depois da reunião, saímos alegres e com a alma mais leve, as emoções mais balizadas. Como aquelas reuniões faziam bem... davam uma sensação boa de "dever cumprido". Isto é, nós já havíamos orado e colocado diante de Deus tudo o que havia. Agora, o Pai faria o resto.
No final do mês de novembro fomos para uma cidadezinha do interior de Minas Gerais. Tratava-se de uma programação especial da nossa Igreja, um encontro de casais. Para dizer a verdade, era o primeiro encontro de casais organizado pela liderança.
Nossas brigas, embora tivessem um componente espiritual, talvez pudessem melhorar se nós dois procurássemos acertar em todos os âmbitos. Isso é, tínhamos que levar em conta também o lado emocional do relacionamento. Diferenças, divergências, defeitos... todo mundo tem, e todo casal precisa aprender a lidar com isso.
Tanto eu quanto Eduardo queríamos investir no nosso relacionamento. Já tínhamos passado por muitas coisas juntos, admitíamos as virtudes um do outro e, enfim... nenhum de nós queria jogar o noivado pro alto, mas sim buscar melhorar mais e mais.
Especialmente agora, que um anjo do Senhor havia trazido de volta a aliança de Eduardo!
Foi Dona Clara quem sugeriu, fazendo eco com a inclinação do nosso próprio coração.
— Vocês vão para o encontro? Eu e o Benito vamos! — Ah, vamos sim!
— Vocês somente precisam pedir permissão ao Pastor Jaime, porque o encontro, na verdade é para casais casados. Mas eu acho que vocês vão se beneficiar bastante.
— Eu estou super a fim de ir. Acho que não vai ter problema, né? — perguntei.
— Não vai, não, porque o Pastor Joel vai também com a noiva. Eles também não são casados.
— Oba! Então a gente se acerta.
De fato não houve problema. O encontro seria num hotel fazenda, começava na sexta-feira à noite e ia até domingo no horário de almoço.
Optamos em ir com o Palio, e não com o ônibus fretado, porque poderíamos passear na cidadezinha turística no domingo antes de voltar para São Paulo. Nós nunca saíamos de casa assim, era muito raro. Foi divertido arrumar as coisas no carro, falar tchau e pegar a estrada.
— Que gostoso poder fazer algo diferente! — comentávamos um com o outro. Paramos uma ou duas vezes na estrada para tomar café, mas chegamos no horário certo apesar de levarmos mais de três horas na viagem. O ônibus fretado ainda não tinha chegado e não havia ninguém.
Achei estranho perceber que havia outras pessoas no hotel. Não imaginei que o nosso encontro seria feito num local tão grande e tão cheio de gente. Minha idéia de acampamento era aquela: retiro espiritual mesmo! Eu estava acostumada com o acampamento em que tinha levado Eduardo.
— Que estranho, né, Eduardo? Vamos ficar junto com toda essa gente? — Não sei.
— Imaginei que o local estava separado só pra gente.
— Eu também. Enfim.... vai ser diferente. E foi mesmo.
Eu, particularmente, não apreciei muito o ambiente. Era estranho ver gente quase sem roupa na piscina, e os caras paquerando a mulher dos outros. Mas, fora isso, a palestra da noite foi boa e o jantar também. Eu fiquei com um quarto só pra mim, pois a noiva do Pastor Joel não pôde ir, e eu estava escalada para ficar no mesmo quarto que ela.
Eduardo também ficou sozinho no quarto que iria compartilhar com o Pastor Joel.
— Caramba... — ele estava frustrado. — Eu estava tão animado pra ficar aqui com o Pastor Joel... já tinha formulado um monte de perguntas, ia ter o Pastor pra conversar só comigo.
Fiz um cafunézinho de leve no alto da sua cabeça:
— Tadinho! Perdeu a chance!.......
Fitei o semblante um pouco decepcionado dele e procurei animá-lo:
— Por outro lado, você tem o quarto só pra você! Isso também é bom!
Ele fez um muxoxo de pouco caso e tratamos de ir dormir após combinar o horário de nos encontrarmos pela manhã pra tomar café. Eduardo era sempre todo aflito com o horário, tinha sempre que fazer tudo com muita antecedência; eu, pelo contrário, gostava de dormir mais, me aprontar rápido e chegar no horário cravado.
Nossas diferenças de personalidade e modo de agir faziam com que, não raro, nossas previsões de horário variassem em mais de uma hora. Daí, era preciso achar o meio termo: eu levantava mais cedo, e Eduardo controlava sua ansiedade um pouco. Coisa tremendamente difícil!
Aliás, foi justamente por causa disso que a encrenca começou logo cedo no sábado. Conseguimos controlar a situação, embora nossos ânimos ficassem um pouco à flor da pele. Fomos os dois meio de ovo para a palestra da manhã.
No entanto o Louvor, o tema abordado e a Ministração do final ajudaram a gente a acalmar. Ficamos de bem novamente, de mãos dadas, sorrindo.
— Todo mundo está faminto, o refeitório está cheio... — comentou Eduardo espiando pela janela.
— É mesmo. Mas e se a gente fosse mais tarde? O salão só fecha às duas e meia.
Olhamos para o outro lado: na mesma proporção em que o refeitório estava cheio, a piscina estava vazia. E o sol estava forte, poderoso, a pino.
— Que tal se a gente experimentasse a piscina agora e fosse comer depois?! — Exclamei.
— Acho uma boa! Taí!
— Outra hora não vai dar. Não é legal o clima dessa piscina, tem gente demais, que nem é irmão.
— Isso, Gatinha! Vamos rápido, então!
— Tá, vou trocar a roupa e te encontro lá.
Ficamos com a piscina só pra gente. Todo mundo naquele hotel tinha ido cuidar do estômago.
— Olha! — falou Eduardo. — Eu trouxe a máquina fotográfica.
— Oba! Vamos tirar várias fotos!
Nossa máquina era simples, sem muitos recursos, mas sempre pra lá de requisitada. Um dos nossos fracos era bater fotografias, tínhamos já vários álbuns.
Ficamos inventando poses e ângulos diferentes. Temos estas fotos até hoje, saíram coloridas, iluminadas. Já perto das duas horas da tarde, quando o pessoal já ia invadindo a área novamente, pusemos a roupa por cima dos maiôs e fomos almoçar. Ainda tinha um pessoalzinho retardatário da Igreja por ali. Sentamos perto, conversamos, tiramos papelzinho de amigo secreto. Seria realizado no domingo, no encerramento do encontro.
Eduardo sacou o papelzinho com o nome de um casal que nós não conhecíamos.
— Vocês presenteiam o casal, tá? — explicaram-nos.
— OK! E como comprar o presente?
— Hoje à tarde é livre. Todo mundo pode dar uma volta pela cidade. Vocês podem ir de carro próprio, ou com o ônibus.
— Ah, entendi!
Como atrasamos no almoço, já não dava tempo de tomar banho com sossego e aproveitar a saída do ônibus. O centro comercial da cidade não ficava longe, e resolvemos sair com o Palio.
Pra quê?!?
Por causa de um desencontro tolo na cidade, os ânimos exaltados da manhã voltaram com carga dupla. E acabamos discutindo. Sorte que eu já havia escolhido o presente para o casal! Mas a verdade é que nossa tarde ficou estragada. Que desperdício!...
Algumas vezes nosso relacionamento parecia um campo minado, não parecia uma situação normal. Aliás... não era mesmo uma situação normal, sabíamos que éramos alvo. Nosso noivado tinha que acabar de qualquer jeito, no entender dos nossos inimigos!
E que falta de sensatez nossa, não sabíamos exatamente como resistir àquelas situações. Brigar num encontro de casais era realmente o fim da picada!!! Não tinha o menor sentido, eu amava Eduardo, Eduardo me amava, e estávamos ali justamente em busca de aprimoramento... que coisa indescritível.
Não conseguimos nos entender e voltamos para o hotel. Eduardo me largou sozinha e passei o resto da tarde no lago, chorando. Nós dois éramos culpados e inocentes ao mesmo tempo.
Inocentes, porque pontos vulneráveis da nossa alma eram tocados. Tanto eu quanto ele nos desestabilizávamos ao mesmo tempo. E culpados, porque dávamos vazão à carne, sem retroceder. Boas intenções não bastam!
Que situação difícil!...
E difícil para explicar. Não peço que ninguém compreenda, apenas que aceite como uma situação sobre a qual não conseguíamos ter controle! Ia totalmente além das nossas forças! Nosso desejo era acertar, agradar um ao outro. Mas como parecia ser impossível atingir este objetivo naqueles delicados e terríveis momentos!
À noite, Eduardo jantou sozinho. Não dá para acreditar, não?! Fiquei no quarto até quase dar o horário da palestra.
"Ele me largou, foi comer sem mim: pois que coma sozinho, então!"
Foi duro arrumar ânimo para ir à palestra da noite, da Pastora Ruth. Eu estava muito triste e queria que Eduardo se sentisse culpado por ter me tratado mal. Fiquei dando voltas e mais voltas no quarto. Inquieta, abri a janela, senti o ar fresco da noite, escutei ao longe o som de música.
Por fim, repensei e resolvi sair. Desvencilhei-me de perguntas e acabei entrando no salão da palestra no horário justo de começar.
"Acho que ninguém vai reparar se eu sentar aqui atrás...", pensei comigo mesma ao vislumbrar a cabeça de Eduardo lá na frente.
Eu não queria ter que dar o braço a torcer, sentando ao lado dele. Ele tinha me largado! No entanto, se as pessoas percebessem iriam, no mínimo, achar muito estranho que estivéssemos tão distantes.
"Ele me largou sozinha, fiquei sozinha à tarde toda, chorando sozinha!"
E aquilo me doía no coração.
Por fim resolvi ir até lá. Tudo o que eu queria era ficar de bem com Eduardo novamente, mas sem ter que dar o braço a torcer, sem ter que voltar atrás! Quem diz que eu conseguia tomar uma atitude mais conciliatória? Aquilo era muito difícil pra mim...
Mesmo querendo, não conseguia agir diferente. Quando a raiva de Eduardo passava, ele tentava ser bonzinho, mas antes que isso acontecesse ele usava todo tipo de frases erradas, em cujo fundo havia sempre aquele tom acusativo.
Sentei ao lado dele já no início do Culto, exatamente para não dar tempo de nenhuma manifestação mal colocada. Meu rosto demonstrava exatamente o que eu sentia, não estava acostumada a fazer tipo. E não gostava daquela situação!
Ao final da reunião da noite, Eduardo estava mais ameno. Tratou-me bem, abraçou-me e, embora eu estivesse chateada ainda, o tom de voz amoroso terminou por dobrar meu orgulho. Sempre que Eduardo falava com sabedoria e mansidão conseguia de mim o melhor.
Fomos conversar sentados no corredor, perto da porta dos nossos quartos. Os casais da Igreja passavam por nós, cumprimentavam, entravam e saíam. Por fim, foram dizendo boa-noite, e só sobramos nós dois sentados no corredor perto da porta, falando baixinho pra não incomodar ninguém. Nos aceitamos plenamente, e continuamos conversando outros assuntos.
— Olha... — disse por fim Eduardo. — Acho que Deus realmente tem apurado o Dom que me deu. Eu é que tenho sido negligente em não dar atenção àquilo que Deus sinaliza.
Olhei pra ele com atenção:
— Por quê? Que foi que aconteceu?!
— Não foi nada. Tá tudo bem agora.
— O que foi, Eduardo? Que aconteceu?
— Eu não sei lidar com isso — murmurou Eduardo sacudindo a cabeça. — Deus precisa me ajudar!
— Sim, mas... que foi agora? — indaguei novamente muito apreensiva.
— De manhã cedinho eu senti opressão... sabe, não me pergunte o que é essa "opressão", porque não sei dizer. Só sei que é, entende? Era como se Deus avisasse de uma armadilha! Deus avisou, eu não liguei. De manhã, conseguimos estar imunes porque fomos pro Culto, pra palestra, logo de cara. Não sei se você se lembra, mas logo cedo quase brigamos. Só que, à tarde... acabamos brigando mesmo... é tão claro que as nossas desavenças têm também esse forte contexto espiritual! E depois, não sei... este lugar não está leve, é como se fôssemos... intrusos!
— De certa forma somos mesmo... esse lugar não foi separado só pra nossa Igreja, nós é que estamos ocupando um lugar que é do mundo! Mais ou menos por aí, sabe?
Eduardo sacudiu a cabeça várias vezes.
— Não, não, não... não é isso que estou falando. Quero dizer, o ambiente não está bom. Espiritualmente falando. Nós somos intrusos de verdade! Entende?
Baixei os olhos, insatisfeita. Suspirei com força, deixando o ar fluir dos pulmões ruidosamente.
— Pôxa, Nenê... caramba! Por que você esconde essas coisas de mim? O que precisa acontecer pra você falar?! Como posso saber se você não me diz nada?
Eduardo cerrou os olhos, ergueu uma das mãos:
— Eu sei, eu sei... você não precisa falar mais nada. Eu errei. Relativizei de novo. Achei que era coisa da minha cabeça.
Virei pra ele com firmeza.
— Mas não é! Não é coisa da sua cabeça, será que você não percebe? Deus não tem te dado prova suficiente? No fundo, no fundo, quando vêm essas sinalizações você não sabe que são verdade! Sabe ou não sabe?
Ele assentiu.
— Sei. Mas parece que minha mente se recusa a aceitar esse sobrenatural. Estou aprendendo!
— Olha... daqui pra frente, não deixa de me falar. Quando Deus te mostra algo, é pra gente orar, e não ignorar. Temos que orar na hora, não podemos deixar pra depois, pro dia seguinte, porque pode ser tarde para isso. Entende? Temos que tomar posição! Se Deus fala, é porque quer uma postura da gente!
Eduardo fez uma carinha de quem aprontou e não quer mais levar bronca. E falou com ar sorridente e de quem pede desculpas ao mesmo tempo:
— Tem mais uma coisa...
— O que?
— Senti opressão de novo agora à noite, durante a palestra. Mas não era como de manhã. De manhã Deus estava sinalizando uma armadilha contra nós... e nós caímos nela, infelizmente... já foi. Mas agora à noite era um outro tipo de alerta, como se algo estivesse acontecendo, algo que precisasse da minha oração... naquela hora. Algo na sua casa — falou ele com cuidado.
Senti meu coração gelar.
— O quê? O quê?! Você ligou? Que aconteceu?! — Minha cabeça tinha facilidade pra imaginar montes de coisas horríveis em flashes.
— Calma, eu liguei. Liguei assim que acabou a palestra, enquanto você falava com Dona Clara. Está tudo bem, calma. Foi o Wolfi que caiu do telhado.
— O Wolfi?! — Meu ar certamente era de horror. — Mas como ele está? Como foi que isso aconteceu?
— Calma, está tudo bem. Aconteceu agora à noite, durante a palestra, mas graças a Deus ele não se machucou. Está bem. Foi só um susto.
Eu já estava à beira das lágrimas por causa do meu cachorro.
— Ah, meu Deus! Foi como da outra vez. Mas que falta de sossego! Por que aconteceu isso?
— Olha... você sabe que se eles não puderem nos atacar de frente todas as vezes, vão atacar à nossa volta. Vão procurar nos desestabilizar emocionalmente. Quando nos desestabilizamos, então vem outro golpe, mais certeiro. É assim que funciona! Você sabe que também comprou uma briga com o Inferno, Isabela! Eles não te querem ao meu lado, sabem que você tem sido companheira, amiga, tem incentivado a orar, a buscar as Ministrações. Vão procurar te derrubar também! Se derrubarem você, fica mais fácil me derrubar também. O que aconteceu com o Wolfi é só pra desviar sua atenção, pra fazer você ficar deprimida, questionando valores, questionando Deus. Questionando a proteção de Deus! Esse não é o principal golpe!
Enxuguei duas lágrimas, com a cabeça baixa. Certamente o diabo sabia como mexer comigo. Uma das maneiras mais fáceis e rápidas era provocar uma briga com Eduardo. Ou com meus familiares. Outra era tocar nos meus animais.
Eduardo tentava me animar:
— Mas, veja, o cachorrinho está bem. Os demônios tentaram, mas Deus não permitiu que nada de pior acontecesse.
— É — resmunguei passando a mão no nariz.
Ficamos em silêncio algum tempo, enquanto Eduardo segurava minha mão. Fiz a pergunta que me incomodava:
— Você orou? Orou quando sentiu o aviso de Deus? Eduardo também estava triste consigo mesmo.
— Não. Não orei. Mas fiquei com aquilo na cabeça e fui ligar pra sua mãe assim que pude.
— Bom, Eduardo... eu não posso fazer isso por você. Você vai ter que resolver se vai dar atenção, ou não, ao que Deus fala. — Não falei mais nada.
— Eu sei. Isso não vai mais acontecer. Vamos orar agora? Balancei a cabeça seguidas vezes, meio contrariada.
— Vamos — concordei.
Foi o que fizemos. Depois disso, parece que a exaustão tomou conta de nós. Tanto eu quanto ele já estávamos mais pra lá do que para cá. Eu sabia lidar melhor com o cansaço, mas Eduardo já nem conseguia manter os olhos abertos. Com o tempo, mas aprenderíamos que o cansaço mais intenso é aquele que vem como fruto de sobrecarga espiritual.
O Reino do Espírito se movia à nossa volta, muito mais real do que o Reino Físico. O Reino Físico, o que é? Pura ilusão! Pessoas correndo atrás do vento, perseguindo a felicidade, os bens materiais, a beleza, a prosperidade financeira, o sucesso... coisas que passam!
O Reino Espiritual, ao contrário... é eterno!
Ele se movia, era vivo, palpável. Nossos olhos ainda não viam bem, nosso espírito não captava bem os sinais espirituais. Nossa mente não compreendia o sobrenatural nem os propósitos Deus. Mas algo muito sério estava sendo armado em torno de nós, ainda que não pudéssemos ver e, na maior parte das vezes, perceber.
Às vezes, Deus permitia que uma fagulha de tudo aquilo chegasse ao nosso conhecimento. Por quê? Por quê?
Não porque Ele não fosse suficientemente Poderoso, ou porque gostasse de contemplar nosso sofrimento. Mas aquilo era o início de um lapidar, o início de um treinamento.
Começamos a entender que quando Deus mostrava algo Ele queria, na verdade, a nossa participação. Seria muito fácil para Ele resolver tudo sozinho. Mas isso não traria nenhum conhecimento, nenhum aprendizado para nós.
Beijei Eduardo rapidamente e fui para o meu quarto, pensativa.
— Vê se descansa, Nenê.
Entrei, escovei os dentes olhando pra mim mesma no espelho. Então fui deitar. Demorei a dormir, dormi mal, como sempre. Dormir fora de casa era horrível!
No domingo — o último dia do encontro — acordamos cedo.
— Nenê? Nenê!? — eu chamava Eduardo pela sacada do meu quarto, onde batia um sol forte já desde cedinho.
Ele abriu a porta de madeira que dava acesso à sua própria sacada. Abriu logo o sorriso:
— Oi, Gatinha! Você já tá acesa?
— Acabei acordando antes... então imaginei que você já devia estar em pé. A gente pode tomar café mais cedo e dar uma voltinha por aí.
— É mesmo, né? Foi tudo tão corrido e aqui é tão grande! Vamos explorar um pouco.
— Você descansou? Eduardo fez ar de alívio:
— Descansei. E você?
— Mais ou menos. Deu pro gasto.
— Peraí! Deixa eu tirar uma foto sua aí na sacada.
— Tá bom, pega lá a máquina.
Eduardo correu pra dentro e voltou com a câmera. Ele tirou minha foto e depois eu quis tirar a dele. Primeiro gastei vários segundos vendo qual seria o melhor ângulo e a melhor vista.
— Quando você estiver pronta, avisa, hein? — caçoou Eduardo por causa da minha demora.
— Calma... OK! Vou bater!
Eduardo fez pose com a perna em cima da balaustrada e o muque estendido.
— Como você gosta de fazer pose!
Terminada a sessão de fotos, fomos para o refeitório. Nós já sabíamos o lugar onde o pessoal da Igreja ficava. Tomamos nosso café e fomos dar nossa voltinha por ali mesmo. Embora fosse tudo muito grande, cheio de cantos pra explorar, ia ficar para depois do Culto. Não dava tempo.
— Oi, Dona Clara! Oi, seu Benito! — cumprimentamos ao sair do refeitório. — Estão indo tomar café?
— Sim, estamos.
— A gente vai dar uma rodada por aí. Até mais!
— Até mais. Andamos um pouco pelo jardim, observando os canteiros, as peças decorativas...
— Como tem mosca nesse lugar, não? — comentei. — É impressionante! Nunca vi nada igual.
— O mais engraçado é que não tem motivo, já reparou?
— Pois é. Não tem lixo, não tem nada pra atrair tanta mosca assim. Até na piscina, lembra?
— Lembro. E ali só tinha água, cadeiras de sol... realmente é estranho. Será que é da região, ou da época?
— Sei lá. Só sei que elas incomodam mesmo.
Em determinado local, uma espécie de salão ao ar livre, havia enormes vasos ornamentais pesadíssimos. Foi Eduardo que chamou minha atenção, após observar um pouco.
— Olha só isso, Isabela... — murmurou com espanto.
— O que?
Discretamente ele apontou os desenhos em alto relevo, em toda a borda dos vasos. Olhei, e entendi logo.
— Puxa... é o que estou pensando?
— É. Isso não está aí por acaso.
Eram cenas de uma Festa Ritual, com símbolos subliminares entre elas.
— Ah! Às vezes tá aí por acaso. Esse é um hotel do mundo! Não viaja! Eduardo continuou olhando. Eu não liguei muito, porque nada provava que aquilo tinha sido colocado ali de propósito.
— É. Mas ontem de manhã Deus mostrou que esse ambiente não estava leve. Mesmo sendo um hotel do mundo. A questão não é essa, tem alguma coisa a mais aqui. Alguma coisa forte...
— Bom... então vamos sair daqui! Tendo ou não, o Culto já vai começar. A gente podia orar um pouco lá no salão, antes de começar.
— Tá bom. Vamos sim!
Entramos no nosso salão, sentamos na frente, num dos cantos. Estavam arrumando a aparelhagem de som e as pessoas iam chegando aos poucos. Logo alguém começou a dedilhar o violão, sozinho, melodiosamente. Aquela melodia entrou em nossos ouvidos, o lugar estava relativamente silencioso ainda.
— Vamos orar? — perguntou Eduardo.
— E como oramos? Em que sentido?
— Não temos que guerrear contra ninguém. Se aqui existe algo mais, estamos no território dele.
— Puxa, mas e se for verdade?
— Temos somente que pedir proteção pra nós, para os filhos de Deus que estão aqui.
— Será possível que viemos parar num lugar que tem alguma coisa a ver com o Satanismo?
— Não que aconteça algo aqui. Mas, o dono... ou os donos... sei lá!
— Não vamos ficar achando nada. Vamos orar!
Foi o que fizemos, no embalo da melodia. Eduardo pediu que se houvesse algo que o Pai quisesse mostrar, que o fizesse. Talvez nós não tivéssemos visto aqueles objetos por mero acaso, e o Senhor tivesse um propósito nisso. Pedimos também proteção e livramento para todos nós que participávamos do congresso.
— Amém! — falei, ao fim da oração.
Eduardo ainda permaneceu de olhos fechados, absorto, com uma expressão diferente no rosto, difícil de descrever em palavras. Eu olhava para ele, nossos ombros se tocavam e nós nos apoiávamos com os cotovelos nos joelhos. Esperei que ele se manifestasse, sem querer quebrar sua introspecção.
Quando abriu os olhos, e me olhou, murmurei a pergunta:
— Que foi? — eu sempre sabia quando tinha acontecido algo, quando o Senhor falava algo.
— Eu disse que não ia mais relativizar... quando a gente estava orando, era como se Deus dissesse que aqui neste lugar, neste hotel, tem algo espiritual realmente. Algo relacionado à Irmandade. As moscas não são por acaso.
Eu estava espantada:
— Por quê?
— Sabia que Belzebu é também chamado de "senhor das moscas"? Uma espécie de linguagem popular.
— É?
Eduardo explicou rapidamente (Leia Filho do Fogo).
— As moscas são um sinal da contaminação espiritual deste lugar, não da contaminação física, do acúmulo de lixo.
— É, porque nem tem lixo
— Sabe, quando eu servia a Irmandade, as moscas não nos tocavam. Às vezes havia churrascos enormes em fazendas, ao ar livre... e não tinha uma só mosca!
Fiquei admirada. — Caramba...
— O Senhor também disse que eu preciso ligar pra casa. — A sua? — A minha. Até eu duvidei um pouco naquele instante. Aquilo tudo era tão diferente para nós dois...
— Eduardo, pensa bem... você tem certeza? Tem certeza do que está falando? Ele fez que sim com a cabeça. E acrescentou:
— Tenho!
Saiu para ligar, tal era a sua convicção. Quando voltou, o Louvor já tinha começado. Perguntei apenas o que interessava naquele momento:
— Tá tudo bem? Ele apertou minha mão. —Tá.
Continuamos louvando, de mãos dadas, e eu não perguntei mais nada. Podia ficar para depois. O Culto foi bom, a palestra igualmente. Certamente que os casais iam sair renovados. Nós, pelo menos, estávamos sendo edificados. Ao final da manhã, terminada a Palavra, os Pastores nos informaram que iam fazer uma coisa diferente para encerrar o encontro.
— Nós vamos ungir as alianças dos casais como um símbolo da entrega e consagração destes relacionamentos ao Senhor. Que Ele os capacite a serem transformados! Claro que ninguém é obrigado a participar, mas os casais que quiserem receber esta oração especial e a unção das alianças, podem ir formando uma fila ali no corredor da esquerda. Deus os abençoe!
Alguns casais já foram levantando e formando fila. Olhei para Eduardo, a pergunta nos meus olhos:
— Nós também vamos, né?
— Acho que sim, não faz mal que não somos ainda casados. Vamos consagrar o relacionamento da mesma forma, e esperar pelo casamento.
Sorri abertamente.
— Isso!
Fomos então nos postar também na fila. Ela caminhava morosa porque cada casal estava recebendo uma oração específica do casal de Pastores ali na frente.O ambiente estava gostoso, o Louvor continuava baixinho, os casais permaneciam abraçados na fila, em clima de harmonia, de serenidade. Alguns oravam juntos antes mesmo de chegar a sua vez de serem ungidos.
O clima estava fresco dentro do salão por causa do ar-condicionado, mas o sol passava por baixo das grossas cortinas fechadas em toda extensão da parede esquerda. Ali também eu e Eduardo estávamos encostados, de mãos dadas, esperando. Oramos um pouco agradecendo a Deus um pelo outro, por estarmos juntos, por podermos caminhar lado a lado. Pedimos que o Senhor protegesse o nosso relacionamento, ajudasse nas dificuldades naturais e espirituais, além de permitir o casamento em breve. Nos consagramos e oferecemos a Deus o nosso noivado.
Então chegou a nossa vez.
Colocamo-nos defronte ao casal de Pastores, que sorriram e começaram a orar por nós. Baixei a cabeça, Eduardo também; cerramos os olhos e ficamos concordando com a oração deles. Reconhecíamos a importância daquele momento...
Quando terminaram, todos nós abrimos os olhos. Então eles pediram para a gente estender a mão direita, onde estavam nossas alianças. Tornei a fechar os olhos quando senti o óleo tocar minha pele, colocado pelas mãos da Pastora. O Pastor fazia o mesmo com Eduardo.
— Amém! — dissemos todos.
Voltamos para o nosso lugar. Eu caminhei na frente e ele atrás de mim; assim que nos sentamos olhei para Eduardo, sorrindo, satisfeita... e notei aquela expressão no rosto dele! Aquela expressão que já estava se tornando freqüente.
— Que que foi, Nenê? — perguntei baixinho e com voz suave. Não queria quebrar a docilidade daquele momento.
— Isso é bom.....— respondeu Eduardo por fim, balbuciando.
Ele olhava pra frente, incapaz de falar, as lágrimas pensando já em escorrer... e seus olhos percorriam o púlpito. Fiquei quieta por um pouco, mas voltei a insistir, plácida.
— O que foi que você viu? — eu estava adivinhando.
Ele olhava, olhava, e chorava. Senti um nó na minha garganta também. Baixei a cabeça, esperei, ainda orando em línguas e aproveitando o mover do Espírito Santo. Então Eduardo também se inclinou, orando um pouco mais, sozinho.
Por fim, quando olhei de novo, ele já estava mais recomposto, tinha enxugado as lágrimas. Eu não agüentava de curiosidade, praticamente antecipando o que ele iria me dizer. Ainda tinha gente na fila, por isso cheguei bem perto, passando meu braço pelo dele, e indaguei ansiosamente:
— Que foi? Que foi, Nenê?! O que você viu? O que?!?
Eduardo ainda olhou novamente para o púlpito, de relance, e respondeu:
— Eu vi... eu vi quatro anjos!! — E quase começou a chorar de novo.
— Quatro?! Ai, Nenê, que coisa! Me conta, me conta!
— Bom... o primeiro estava mais ou menos ali... naquele canto do púlpito...
— Mas você viu assim, sem mais nem menos? Do nada? Conta direito!
— Quando os Pastores começaram a ungir as nossas alianças eu estava de olhos fechados, normalmente. Então, de repente eu senti que minha vista foi iluminada, sabe?
— Quer dizer, você abriu os olhos?
— Não... sabe quando você está de olhos fechados e alguém acende a luz? Dá pra sentir que a luz acendeu, mesmo sem abrir os olhos, não é? Foi assim, me pareceu que alguém tinha aberto as cortinas ali da janela, e a luz do sol bateu no meu rosto. Senti aquele calor no rosto, como se o sol realmente estivesse batendo em mim ... — fez uma pausa, relembrando as recentes sensações, com os olhos distantes. — Não... não era como o sol, não era como o calor do sol... não sei... era um calor diferente!
— E aí? — eu até atropelava as palavras.
— Aí eu comecei a sentir uma sensação... que não sei descrever... uma tranqüilidade, uma sensação de aconchego... da presença de alguém... muito difícil de traduzir. Algo bom... algo bom... uma presença forte!
— A presença de alguém?...
— Não sei... sabe quando alguém passa perto, bem perto, e você sente aquele ventinho, o deslocamento de ar causado pelo movimento do corpo da pessoa? A diferença é que esse ventinho vinha... mas de forma constante... como se algo estivesse vindo. Simplesmente vinhal Parece que aquela "brisa" me atravessava, não sei dizer, porque não era só no rosto, eu sentia nas costas, nos braços... no corpo todo.
— Você imaginava que era um anjo? — meus olhos estavam bem abertos.
— De jeito nenhum... pensei que fosse o efeito da oração! Mas então abri os olhos... e vi que ninguém tinha mexido nas cortinas. — Eduardo fez força para segurar as lágrimas outra vez. — Aí eu vi...! Vi uma luz forte, enorme, e ela foi formando um vulto. Um vulto muito grande; e então, apareceu! Apareceu mesmo. Não sei dizer o que me impactou mais, se a sensação, ou se a visão propriamente dita.
Senti novamente a garganta apertar.
— Ele estava olhando pra gente... e sorria. Nem sei dizer! Acho que a mente da gente vai rodando muito rápido. Eu não conseguia acreditar! A primeira coisa que reparei foi no tamanho!
— Qual é o tamanho?
— Enorme!!! Não dá pra quantificar direito, mas certamente uns oito metros de altura, pelo menos. Eu forçava a vista, piscava. Será que eu estou mesmo vendo isso? Ah! Mas como eu vejo e os outros não? E pensava rápido, as idéias vinham. Então eles existem mesmo!! Finalmente aquela visão distorcida da Irmandade caiu por terra. Eu já tinha visto aquele outro anjo na Igreja, mas ele parecia um homem. Esse era totalmente diferente! Aí vi que não tinha asa, não tinha, que coisa!
— E como era o rosto?
— Eu não pude ver bem, por causa do brilho. Brilhava muito, mas de novo não era como o brilho do sol, não ofuscava! Mesmo assim não dava para ficar olhando muito tempo.
— Você disse que ele olhava pra gente? — eu não sabia bem como perguntar. — Pra mim também?? — Aquilo era muito importante.
Eduardo nem pestanejou, nem entendeu minha pergunta:
— Sim, claro. Pra nós dois! E ficou claro pra mim que ele estava satisfeito com o que a gente estava fazendo.
Uma ou duas lágrimas correram pelas minhas faces. Como aquela manifestação de amor do Pai aquecia os nossos corações!
— Ele estava satisfeito? — perguntei tolamente.
— É... — respondeu Eduardo em tom de voz quase infantil. — Era como se dissesse que nós estávamos tomando a decisão certa.
— Como se Deus confirmasse a nossa aliança, é isso?
— É.
Eduardo fez nova pausa.
— Continua! — incitei.
— Então ele disse: "Deus não tira nada sem dar em dobro".
— Pôxa... — estava tão extasiada com o relato.
— Aí ele fez um gesto... ergueu o braço e apontou na minha direção, sempre olhando pra mim. Depois deslizou o braço na direção do púlpito... e apontou pra lá. Imediatamente eu entendi o que ele estava querendo dizer; é engraçado isso... o entendimento vem como uma claríssima revelação no espírito... queria dizer que eu ia estar ali.
— No púlpito?!
— É... estranho isso. Eu nunca quis... não quero! Aí eu me lembro que pensei: "No púlpito? Eu? Não... ali é um lugar muito desprotegido, é muito arriscado". E foi como se ele pudesse ler meus pensamentos. Então sorriu de novo, fez um gesto, apontou para o púlpito de novo. De repente, rápido, foi como se uma cortina invisível fosse puxada... ela foi puxada e minha visão abriu mais... então vi mais três anjos lado a lado, grandes como o primeiro! Eram guerreiros!... Todos eles! — exclamou Eduardo com a voz embargada. — O que mais me tocava era aquela sensação da presença deles... uma coisa muito, muito forte... um Poder muito grande!
Eu olhava para ele, olhava e tentava absorver tudo o que Eduardo estava dizendo.
— Por que você diz que eram guerreiros?
— Porque o peito deles brilhava tanto, como um espelho... como o sol batendo num espelho, e dava a impressão de que era a armadura que refletia aquele brilho.
— Nossa, que coisa mais linda! Que coisa linda!
— E não é só isso, era como se eles estivessem ali observando tudo, protegendo. Na época, Eduardo não entendeu porque o primeiro anjo revelou os outros.
Anos mais tarde, tendo aprendido com o Senhor, Eduardo compreenderia melhor aquele gesto. Diante da sua reação temerosa em expor-se num púlpito, abraçar um Ministério, diante do risco que isso representava, o Senhor mostrava que podia cercar aquele lugar com anjos.
Mas, naquela manhã de domingo, nem eu nem ele compreendemos exatamente tudo o que acontecia. Apenas uma coisa ficou latejando no coração: aquilo parecia ser um chamado. Um chamado de Deus para um Ministério que nós ainda não conhecíamos. E que certamente envolvia um risco, caso contrário o Senhor não se daria pressa em mostrar a proteção. E eu fazia parte disso também, de uma forma ou de outra, porque Deus confirmava a nossa aliança!
Saindo do Culto nós ainda estávamos meio zonzos com o que acontecera. Eduardo estava alheio a tudo em derredor, tendo que ser chamado várias vezes para prestar atenção ao que eu dizia. Da minha parte, uma alegria enorme e uma satisfação me invadiam. Toda hora voltávamos a comentar o ocorrido.
— E como foi que eles sumiram?
— Não sei. Num piscar de olhos. De repente, não estavam mais lá... aquela sensação do início, da presença deles, foi diminuindo aos poucos, como se eu estivesse sendo levado de volta à realidade. Mas eles continuavam lá, apesar de eu não poder mais ver e nem sentir.
— Puxa... isso é tremendo, né?
— Deus trouxe um recado, o recado foi dado. Ele aprova a nossa união... e está preparando algo... algo Ministerial!
Fiquei quieta, pensativa. Depois, indaguei:
— Mas o que será? Será que Deus quer que você seja Pastor?!
— Não sei. Só sei que ele apontou o púlpito. É meio vago, né? Pode ser tanta coisa. Eu entendi que é algo Ministerial.
— E você conseguiu ver o rosto dos outros?
— Não. Brilhava muito. Não dava pra olhar muito tempo.
— E o primeiro? Você conseguiu ver?
— Ele estava mais perto, embaixo, na frente do púlpito, de frente pra mim... não pude ver os detalhes do rosto, apenas o sorriso... e, puxa... ele era ruivo! Taí uma coisa que eu nunca ia imaginar! O anjo era ruivo.
Passou o encontro.
Quando compartilhamos com Dona Clara a visão e o recado dos anjos, ela ria à toa, satisfeita, em júbilo.
— Deus é bom! — repetia ela. — Glória a Deus!
Nós dois também ríamos por tudo e por nada, animados, um atropelando o outro na hora de contar.
— Puxa, Deus atendeu meu pedido! Eu vi anjo, Dona Clara! — exclamou Eduardo novamente.
Dona Clara riu de novo.
— Não é mesmo, "Bem"? Ele sabia que você precisava de uma experiência assim!
— Isso dá um outro ânimo pra gente!
— Ah, mas teve mais coisa. Conta pra ela, Nenê!
— É verdade. Não sei se a senhora notou algo estranho naquele lugar, mas... não sei dizer, parece que Deus me sinalizou alguma coisa.
Interrompi-o:
— Ele está dizendo "parece", mas não foi bem assim, Dona Clara! É aquela mente racional dele tentando negar que Deus está lhe dando um Dom de Discernimento!
Dona Clara concordou. Olhava para Eduardo sorrindo, sem recriminá-lo.
— Pára de fazer isso, menino! Deus está falando com você!
Então Eduardo contou tudo. Da sensação de opressão, da armadilha que nos tinha sido criada, dos vasos ornamentais, das moscas, do tombo do Wolfi...
— E não foi só isso. Antes do último Culto, Deus me disse pra ligar para minha casa. Nós tínhamos orado, pedindo proteção, se realmente havia influência espiritual maligna ali. E que se Deus tivesse algo a mostrar, se aquilo não era uma "viajada", que confirmasse a minha impressão. Foi aí que senti a direção de ligar pra casa.
Dona Clara ouvia com atenção, apenas murmurando, absorta no relato.
— Hã...hã.......
— Pois é... aí foi mais estranho ainda. Eu liguei mais por desencargo de consciência, porque não imaginei realmente que pudesse haver nada de importante... — Eduardo sorria, como que se desculpando por sua atitude incrédula.
— Tá vendo só, Dona Clara? — retruquei.
— Então falei com minha mãe, e em casa estava tudo bem. Mas já tinham telefonado pra lá duas vezes e deixado um recado que ela não entendeu.
— Sim — fez Dona Clara.
— Eu entendi o que eles quiseram dizer. Em suma: alguém ligou duas vezes perguntando se eu já havia telefonado pra casa. Minha mãe falou que não, então a pessoa disse que quando eu ligasse, que me fosse transmitido o seguinte recado: "Se ele não foi bem recebido na nossa casa, a culpa não é nossa".
— Hummm.....— fez novamente Dona Clara, entendendo tudo.
Em momento algum ela tratava aquelas informações com pouco caso, de maneira especulativa, sensacionalista ou leviana. Era isso o que a fazia totalmente confiável.
— O que a senhora acha? — indaguei.
— É, é realmente estranho.
— Será possível que aquele lugar tem alguma coisa a ver com a Irmandade? Como é que pode? Seria terrível o encontro ter sido feito justo ali. Mas quando a gente pediu confirmação, Deus mandou telefonar... e alguém da Irmandade tinha ligado falando justamente em "casa deles".
— Quando o Senhor permite que coisas assim aconteçam, são para nos ensinar. Não houve muita oração no sentido de procurar o melhor lugar. Pode ter havido um engano. Mas quando a gente cai numa armadilha, é pra aprender a não cair de novo.
— A senhora notou aqueles vasos no salão de fora?
Para nossa surpresa, Dona Clara também tinha visto os tais.
— Eu notei, até falei pro Benito. Naquela noite tive um sonho estranho, que estava num lugar com muita sujeira, muita sujeira. Que nós tentávamos varrer aquela sujeira, puxar com rodo, mas ela voltava. Mais alguém do grupo de oração teve sensações semelhantes em relação ao lugar, e estivemos intercedendo.
Suspiramos, eu e Eduardo. Dona Clara queria mais informações de cunho prático:
— Se de fato isso realmente aconteceu... e estivemos expostos... que tipo de coisa eles procurariam fazer contra nós?
— Ahh! Se foi mesmo, eles lançariam todo tipo de Encantamento para que o encontro não tivesse qualquer fruto. Para que fosse algo totalmente estéril Certamente também colocariam coisas na nossa comida, na bebida, pra ajudar a contaminar. Lançariam Feitiços e Maldições nos quartos, deixariam tudo bem preparado. Afinal, era território deles! O objetivo principal seria amaldiçoar os casais e famílias da Igreja.
— O Senhor tem Poder pra reverter isso. Se Ele revelou, mostrou as artimanhas do inimigo, cabe a nós pedir perdão pela nossa ingenuidade, em primeiro lugar. Depois, em segundo, pedir a restauração dos casais e o cancelamento de tudo que foi feito. E, numa próxima vez, temos que ser mais prudentes, aprender a ter mais visão, depender mais de Deus e da Sua orientação.
O assunto morreu ali. Fomos compartilhando outras coisas e outros motivos de oração pessoais. De qualquer forma, quer aquilo tivesse ou não afetado a Igreja, já tínhamos entregado o recado a Dona Clara. Ela poderia levar naquela informação à Liderança.
Nunca soubemos se alguma coisa prática foi feita, nem mesmo se aquela informação foi levada em consideração. Mas, coincidência ou não, nunca mais houve outro encontro de casais.
A intenção era que houvesse um por ano.
Passou a semana. Entramos no mês de dezembro. Completamos três anos de relacionamento. A vida continuava normalmente. Ou melhor, "normalmente" dentro do possível. Era tão difícil a gente conseguir estar em paz por muito tempo, levar uma vida corriqueira! Nós queríamos levar uma vida normal, mas parecia ser isso impossível. Nossa realidade era tão diferente de todos os que nós conhecíamos...
Havia um fogo cruzado, uma manifestação estranha do Reino Espiritual, algo denso, inexplicável... e que sempre acabava por nos tomar de sobressalto, de forma quase sempre imprevisível. Havia algo em derredor, algo que não se cansava nunca, não desistia nunca, jamais retrocederia sem ter antes seu objetivo concretizado.
Quer quiséssemos aceitar... ou não!
Mas agora Eduardo começava a perceber com mais freqüência as sinalizações de Deus. Duro era saber lidar com isso! Como naquela noite em que fomos ao Teatro. Foi para comemorar nosso aniversário. Compramos as entradas com antecedência, no começo da semana, pois estava em cartaz uma peça que já fazia tempo que me interessava. Fazia parte da nossa comemoração de três anos! Eu continuava adorando Teatro. Se bem selecionadas, a peça podia ser um entretenimento bastante válido.
No começo Eduardo não gostava.
— Como que uma coisa chata como Teatro pode atrair tanta gente?
— Porque Teatro não é chato!
Assim iniciado, Eduardo percebeu que vez por outra não era tão terrível assim, pelo contrário.
Naquela noite Eduardo pressentiu algo nos acompanhando desde o minuto em que saímos de casa. Mais tarde, irritado, nervoso, a caminho do Fran's depois da peça, finalmente ele desabafou.
— Desde que a gente saiu de casa que sinto algo nos acompanhando...
— Algo? Algo?! Sei! O que você quer dizer com algo?
— Algo ruim.
— Sim, pois é, já entendi! — eu estava brava e indignada, meu tom de voz não ajudou. — E posso saber por que cargas d'água você não disse nada, Eduardo?
E continuei falando até chegarmos no Fran's. Confesso que fui chata.
— Aliás... você ainda está sentindo que algo nos acompanha?
— Sim
Oramos.
— Então...? — inquiri um tanto seca.
— Melhorou — respondeu Eduardo, com ar mais aliviado. — O ar está limpo agora!
Entramos para tomar o nosso infalível capuccino com pão de batata. Mesmo assim, meu desapontamento não passou por completo. A questão agora já não era espiritual, mas uma reação natural da alma.
Eduardo procurou me animar, mas só fui melhorar mais tarde, em casa.
Foi uma semi-vitória...
Naturalmente que o Senhor queria ensinar algo a nós, senão não permitiria tantos ataques seguidos. Praticamente a gente não conseguia passar uma semana sem ter problemas naquela esfera. Mês após mês, semana após semana. Era final de ano e estávamos cansados. Queríamos poder descansar, queríamos poder tirar a cabeça daquela história de guerra! Mas assim como ninguém aprende a nadar sem entrar na água... sem beber água... também ninguém aprende a guerrear sem entrar na guerra. Sem receber os duros golpes do inimigo.
Claro que não tínhamos a menor idéia de porque Deus não nos permitia descansar... vez por outra chegávamos a ficar meio desacorçoados. Por que Deus permitia aquilo?!
A maioria das pessoas já estava em ritmo de cruzeiro, pensando nas férias. Será que não haveria uma trégua para nós?...
Pelo visto, não.
Dois dias depois do Teatro foi aquela incrível dor de estômago de Eduardo. No dia do aniversário da minha mãe tínhamos saído para fazer umas compras. Precisávamos comprar um presentinho para Grace, Dona Clara e o intercessor Ricardo.
O passeio foi estragado pela dor e mal-estar. Voltamos para casa. Eduardo ficou mal a tarde toda, acabou tendo que deitar e dormir na cama do Marco. À noite, tudo continuava igual a despeito do medicamento.
Resolvi sugerir:
— Você não acha que devemos orar?
— Você acha que devemos?
— Mal não vai fazer, né?
— Tá bom — ele novamente se contorcia de dor. — Você ora?
— Eu posso começar. Mas depois você ora também, com a sua boca, tá? — Tá.
Orei de maneira simples, pedindo que se havia alguma influência espiritual naqueles sintomas, que fosse cancelada. Pedi que Deus arrancasse todas as setas envenenadas do inimigo e protegesse Eduardo, cobrindo-o com o sangue de Cristo. E que o Senhor desse ordem aos seus anjos para guerrear a nosso favor.
— Amém!
Eduardo continuou em seguida, pedindo ele mesmo a proteção sobre si, o livramento, a recuperação.
— E então? — arrisquei.
Eduardo me olhava com ar de incredulidade.
— Passou.
— Passou? — eu não esperava ouvir aquilo.
— Passou. — Passou mesmo?!
— Passou! — ele riu. — Incrível!
E prestava atenção para ver se era verdade.
— Estou ótimo! Não sinto nada.
— Como nas outras vezes... não te disse?
— Puxa vida... não sei nem o que pensar...
— E mesmo, né? A gente precisa dar mais valor à oração. Levamos o dia inteiro pra chegar nisso. Mas agora vamos comer! Ainda sobrou bolo!
Através destas pequenas coisas Deus nos mostrava Sua Fidelidade, mostrava que estava ouvindo nossas orações, e que estava pronto a atendê-las. Bastava que nós nos decidíssemos a abrir a boca. Esta certeza seria muito preciosa no futuro.
Coisas assim viraram feijão com arroz. Parecia que conseguíamos, aos poucos, discernir melhor o Mundo do Espírito à nossa volta.
— Por que será que Deus permite isso? — a gente se questionava vez por outra.
— Não sei. Um propósito deve ter, né? Deus não há de querer que a gente só fique se estrepando!
— E verdade. Tem acontecido umas coisas bem diferentes, bem estranhas.
— Temos que ficar firmes. Uma hora a gente vai entender melhor.
— Já reparou que quando as coisas apertam, a gente se aproxima mais de Deus? De que outro jeito a gente ia ver Deus se mover? Já parou pra pensar nisso?
— E. Essas situações têm servido pra isso. Pelo menos pra isso.
— A gente começa a ver que o Poder de Deus é real mesmo, que Deus fala, se move, interfere! Hoje você já não vê Deus de maneira diferente? — perguntei eu.
— Vejo... com certeza. Você também, né?
— Também.
— Hoje eu percebo que não tem outra maneira de apreender certas coisas...
— A gente cresce no deserto. Essa é uma maneira de Deus lapidar o caráter. Eu nem precisaria ter dito isso, Eduardo também já estava percebendo por ele mesmo.
— Não é fácil! — acrescentei. — Mas essa é a maneira de Deus fazer algo novo em nós. E por nós!
E por falar em fazer algo novo, um pouco antes do Natal haveria mais uma Ministração de Eduardo com a Grace. Certamente aquela era também uma maneira de transformar todas as coisas velhas em novas!
Era difícil arrumar vaga para o carro naquele lugar, por isso fomos de metrô. A Grace costumava atender numa Igreja de fácil acesso pelo metrô.
Fazia já um tempo que não a víamos pessoalmente, embora ela estivesse a par de tudo o que nos acontecia. Pelo telefone, é claro, e quase sempre depois da meia-noite!
A cada dia, a cada encontro, a cada conversa Grace tornava-se uma pessoa mais cara ao nosso coração. E não perdia o lado maternal. Grace era especial, disso nós não tínhamos dúvida. Se por um lado Dona Clara era um pilar de aconselhamento, Grace era um pilar de guerra. E, mesmo sem querer, ela foi também uma "professora" para nós.
Uma parte do nosso aprendizado, talvez a parte mais substancial, veio como fruto das nossas próprias — e algumas vezes malfadadas — experiências. Todas elas, depois de bem compreendidas, acrescentavam um novo conhecimento. Outra parte do aprendizado veio através de Dona Clara e Grace, que utilizavam as suas próprias experiências para nos ensinar, mas também daquelas que Deus permitiu que todos nós vivêssemos juntos.
Dona Clara trabalhava com as experiências atuais; Grace, mais com as experiências antigas. E tudo isso somado trouxe para todos nós um aprendizado completamente novo.
Dona Clara ouvia nossas petições do dia-a-dia, nossos queixumes, nossas alegrias, nossas derrotas e conquistas. Era com ela que a gente podia falar de todos os aspectos de nossa vida pessoal, familiar, profissional, etc.
Já Grace enfrentou outro aspecto da guerra, a guerra de libertar Eduardo de todas as fortes amarras que o prendiam ainda. A guerra contra os verdadeiros filhos do diabo, o verdadeiro Satanismo, contra as mais altas hierarquias do Inferno. Ela viveu aquela história conosco! Cada detalhe, cada pormenor, mas sem alegrar-se com o sensacionalismo, muitas vezes entristecida por tudo o que Eduardo passara. Grace fez tudo praticamente sozinha ao longo daqueles anos, contando apenas com a ajuda de um intercessor nestes momentos.
Se pararmos para pensar, nada de estratosférico acontecia ali. Deus é simples, seu modo de agir é simples. Do início ao fim, a Ministração era uma grande oração em concordância, que clamava pela destruição de todos os envolvimentos apresentados e a cura de suas conseqüências na vida de Eduardo. Era um processo lento justamente por ser muito específico, como passaríamos a perceber. Nada podia ser esquecido. O próprio Deus se incumbiu de nos mostrar que assim deveria ser. O Espírito Santo se movia tanto, e de maneira tão incontestável, que não restavam dúvidas sobre o caminho a seguir.
O ritmo das Ministrações era variável. Por vezes, ficávamos quase cinco ou seis horas seguidas, e tinha mais na semana seguinte. Outras vezes passavam semanas, até meses, sem nada para ministrar.
Então Eduardo se lembrava de algo, comentava alguma coisa, e eu logo dizia:
— Precisamos contar isso para a Grace. Precisamos ministrar isso!
— Será? — Eduardo nem sempre estava muito animado.
Ele não teria condição alguma de fazer tudo de uma vez. Em Sua Sabedoria, o Senhor ia aprofundando as Ministrações aos poucos, na medida em que Ele sabia ser suportável a Eduardo. Normalmente nós conversávamos antes, ele me contava tudo, anotava os pontos importantes numa folha de papel, e nós íamos. Na expectativa, sim, e quase sempre com o coração apertado... mas confiantes na atuação do Senhor!
Cada Ministração era diferente da anterior, Deus sempre nos surpreendia!
Se Eduardo não tivesse se submetido ao processo de libertação, hoje talvez não estivesse mais entre nós. Havia muita legalidade em sua vida, mesmo após a conversão. Todas as práticas da Irmandade abriram grandes lacunas, que precisavam ser fechadas.
Todo pecado confessado é perdoado. O pecado ocultado, que desgraça! Cedo ou tarde seria a nossa ruína!
Chegamos no horário certinho, Grace já estava lá. Ela nunca atrasava, e nós a admirávamos pela pontualidade.
— Oi, Grace! — fomos chegando sorridentes e abaixando para beijá-la. Grace tinha um jeitinho especial de falar, uma entonação de voz diferente às vezes.
— Oi... como é que vocês estão? Tava com saudade! — A gente também!
— Ainda bem que sobrou um espacinho ainda neste ano, né, Grace?
— Pois é, eu tenho corrido tanto que vocês não fazem idéia — ela começou a contar sobre a Ministração da manhã. — Atendi um Pastor tão quebrantado, coitadinho! Com a vida arrebentada... graças a Deus que o Senhor já está começando a restaurar. Deixa eu beber um pouco de água, vocês não querem? — Grace olhou no relógio. — O Ricardo ainda não chegou... vão entrando, que eu vou até o banheiro e já volto. Comi por aqui mesmo hoje, não tinha muito tempo.
Coloquei minhas coisas e as de Eduardo sobre uma cadeira, ao lado da sacolinha com as duas caixinhas de presente: a blusa de Grace e a camisa de Ricardo. Dentro da caixa, com a roupa, eu tinha colocado também um pequeno chocolate artesanal, com cartõezinhos de agradecimento. Ficava para depois da Ministração.
Eduardo foi com Grace pegar água no bebedouro e logo voltou, trazendo-me um copo e deixando o outro de reserva sobre a mesa. Era bom estar ali, mas no nosso íntimo havia aquela sensação de tensão porque o assunto abordado era pesado. Já tinha completado um ano desde o início das Ministrações de Eduardo.
Grace voltou, sempre falante, foi sentando após ajustar o ventilador mais na nossa direção. A saleta era pequena, sem janelas, e estava bem abafado. Havia uma mesinha branca de plástico no centro, algumas cadeiras ao redor encostadas nas paredes.
— Eduardo, você não quer trazer mais uns copos de água pra deixar aqui? Eduardo foi e voltou, colocando mais três copos d'água sobre a mesa, ao lado do rolo de papel higiênico. Água e papel higiênico eram indispensáveis para a Ministração. Dava sede, e não se pode ficar saindo a toda hora para beber água. E lágrimas sempre faziam parte, por isso o papel. O costumeiro cestinho de lixo, já conhecido de Eduardo, estava bem ali, estrategicamente posicionado.
Sentamos lado a lado, eu e Eduardo, de frente para Grace que cruzou a perna e olhou para nós, sorridente:
— Mas, então, e vocês? Como é que estão as coisas?
— Bom... — respondeu Eduardo. — As principais coisas foram aquelas que já te contei pelo telefone. De lá para cá está tudo tranqüilo.
Ela nunca tomava postura de dona da verdade, ou de quem sabe tudo por ter um Ministério já tão antigo voltado para a Batalha Espiritual. Ouvia com atenção e sua admiração pela ousadia dos Satanistas era verdadeira. As informações que Eduardo trazia, ao que parece, eram valiosas para Grace.
— ... e foi assim que aconteceu... depois disso...
Grace o interrompeu de repente, com um gesto muito particular dela:
— Vamos orar pedindo para o Pai selar esse lugar... Pai, em nome de Jesus envia todos os anjos necessários para esta tarde, para esta Ministração, todos, todos, todos os que vamos precisar. Cerca com paredes de fogo esta sala, com carpetes de fogo, teto de fogo! Sela esta nossa conversa, cada palavra que for dita aqui, que seja encoberta no Reino Espiritual. Mandamos embora agora todo espião, todo demônio, Principado ou Potestade que possa ter acompanhado Eduardo, ou Isabela, ou a mim. Torna este lugar invisível no Reino Espiritual, e nada, nada, nada do que formos falar caia em mãos do inimigo.
Mesmo de olhos fechados ouvimos Grace levantar da sua cadeira e pegar seu frasquinho de óleo, aproximando-se de nós.
— Pai, entregamos esta mente a ti! — disse ela passando várias vezes a mão sobre a cabeça de Eduardo, ungindo-o vigorosamente. — Faz com que ele se lembre de cada coisa que for importante, que ele possa colocar tudo nas Tuas mãos. Fortalece esse Teu filho, e traz o genuíno arrependimento nesta tarde.
Eduardo orava baixo, com as palmas das mãos estendidas, em sinal de submissão e recebimento. Seu rosto contraído demonstrava sua convicção da presença do Espírito Santo e dos anjos. Eu orava junto com ele, a maior parte do tempo em línguas, intensamente.
Então Grace aproximou-se de mim:
— Guarda essa Tua filha, nós agradecemos porque o Senhor colocou Isabela junto de Eduardo, para que ele não caminhasse sozinho. Muito, muito obrigada! E agora eu peço que o Senhor dê a ela a unção necessária para interceder hoje de acordo com a Tua Vontade, meu Pai! Muito obrigada. Amém!
As orações de Grace eram curtas, intensas, sem muitos arroubos de vocabulário, simples como quem conversa, como quem sabe da autoridade que tem em Cristo e não precisa ficar repetindo e repetindo as mesmas coisas. Nunca gritava. Esse era o seu jeito.
Abrimos os olhos e ajeitamos o cabelo, despenteados pelas mãos de Grace durante a unção. Limpamos o óleo da testa e ela foi novamente sentando:
— Vamos começar. Ricardo está atrasado, mas ele deve chegar.
— Ele falou que vinha? — perguntei, preocupada que não houvesse um intercessor "de verdade". Eu não me considerava intercessora, embora orasse todo o tempo com toda a força que tinha, sentindo a dor de Eduardo junto com ele.
— Sim, ele confirmou com a minha secretária que estava tudo certo. Acho que ele deve estar vindo. Mas não vamos perder tempo, não é?
Assentimos. Ela indagou, olhando para Eduardo.
— OK. Então?
Eduardo começou a falar, a explicar cada item da sua lista. Grace ouvia, comentava, fazia algumas perguntas e anotava o que era importante para ser ministrado depois. Vez por outra, arregalava os olhos, compadecia-se com Eduardo. Nunca — nunca, em hipótese alguma — Grace julgava.
Ricardo chegou com duas horas de atraso. Bateu na porta, entrou bem no meio de uma parte delicada. Naquele dia a Grace ministrava o envolvimento de Eduardo dentro do contexto dos Rituais. (Leia Filho do Fogo).
Como isso era feito?
Eduardo contou em termos gerais cada etapa do Ritual de Iniciação, e o objetivo delas. Grace era perspicaz em não se ater à história em si, que não era relevante, mas aos itens que tinham efeito legal no Reino do Espírito.
Isto é: não importava saber como estava o dia, nem como Eduardo se sentia, por exemplo. Realmente, os detalhes que criariam o romance Filho do Fogo seriam contados muito mais tarde, apenas para mim, para que eu pudesse escrever. Não tinham nada a ver com a Ministração. Ali, o objetivo era outro! Não se tratava de um bate-papo com intento especulativo.
Visava cancelar toda e qualquer legalidade diabólica sobre a vida de Eduardo.
Por esse motivo a Ministração às vezes tinha o aspecto de uma grande colcha de retalhos, pedaços de uma história que ia se formando aos poucos. Aprendemos que um território, ou área da vida, que uma vez foi entregue ao diabo consciente ou inconscientemente tem que ser tomado de volta. Satanás não devolve espontaneamente nada que um dia foi dele. O texto Bíblico de Isaías 53 diz que Jesus toma sobre si as nossas Maldições. Sabemos que Jesus trouxe
Redenção espiritual, emocional e física. Jesus já pagou o preço na Cruz há mais de 2000 anos, mas só recebemos o Dom da Salvação, por exemplo — a redenção espiritual —, uma vez que tomamos posse desta, pela confissão da nossa boca, crendo no coração.
Não é diferente em se tratando de Maldições. Toda área ocupada pelo diabo torna-se maldita. Mas sabemos que Jesus tomou no madeiro toda Maldição, no entanto, da mesma forma como acontece com a Salvação, é preciso tomar posse disto! A Salvação está disponível a todo ser o humano, mas só a recebemos quando tomamos posse dela. Com as maldições é a mesma coisa.
A Ministração não é um passe de mágica, nem uma prática mirabolante. O seu objetivo é libertar e curar.
Claro que Deus tinha feito muito quando Eduardo aceitou Cristo como Senhor e Salvador. Desde aquele dia ele estava perdoado, lavado, purificado, era feito filho de Deus, recebeu o selo do Espírito Santo. Nunca mais Abraxas ou qualquer outro demônio poderia canalizá-lo sem o seu consentimento. Já não era filho do Fogo, mas filho de Deus.
Apesar disso, seu andar ainda era coxo! Coxo, sim, em conseqüência das feridas profundas causadas pelo diabo ao longo da sua vida, e especialmente nos anos em que pertenceu à Irmandade. Coxo por causa de amarras e cadeias invisíveis que ainda existiam como conseqüência do pecado. Deus perdoou o pecado, mas sobraram efeitos na vida de Eduardo.
Esse é o ponto aonde entra o nosso livre-arbítrio, a nossa própria vontade: é preciso querer que nosso andar não seja mais coxo, antes perfeito e saudável.
Jesus poderia ter ressuscitado Lázaro sem a ajuda daqueles que retiraram a pedra e as tiras de pano do seu corpo! Lázaro não podia fazer isso sozinho, por si mesmo. Ele precisava dos homens que se dispuseram a crer na ordem de Jesus. Embora o Filho de Deus não dependesse destes, quis contar com a sua participação.
Assim também é a Ministração: Deus poderia fazer tudo sozinho, literalmente ressuscitar Eduardo, tirá-lo são e salvo das Trevas para a Luz. Não no sentido do novo nascimento, mas no sentido de libertá-lo e curá-lo completamente de todo o efeito danoso que ainda existia em decorrência da sua vida passada. No entanto, para pôr em andamento esse processo, Deus preferiu contar com a ajuda de Grace para "retirar a pedra e as faixas", pois Eduardo não poderia fazê-lo por si mesmo.
Terminado o relato, Grace cumprimentou Ricardo.
— Que aconteceu? — quis ela saber.
— Só tive problema. Passei mal. Engraçado que meu cachorro também.
— A gata da Isabela também! — retrucou Eduardo. — Vomitou, teve diarréia.
— E você não resistiu em oração? — perguntou Grace a Ricardo novamente.
— Bom... não exatamente.
Grace olhava meio indignada para ele. Apesar disso, falou calma e baixinho:
— Mas que que é isso, irmão? Você discerne o ataque, tem que orar! Não pode fazer assim.
Pedi licença para beber água. Nossos copos já haviam secado. Fui e trouxe mais água para todos. Agora podíamos dar continuidade à Ministração com a presença de Ricardo.
— Eduardo, você senta de frente para Ricardo e olha nos olhos dele. Eu oro e você repete, sempre olhando pra ele.
Grace foi renunciando cada ponto importante do Ritual. Eduardo repetia, começando pelas "palavras".
— Cada palavra de Encantamento que foi pronunciada sobre a minha cabeça, eu cancelo agora, rejeito, torno sem efeito. Toda consagração feita pela minha boca, toda oração "ao contrário", toda palavra que entregou minha vida ao Satanismo e à Irmandade, torno sem efeito. Toda renúncia do Cristianismo, cada palavra nesse sentido eu quero apagar do Reino Espiritual e cancelar todos os seus efeitos. Toda palavra que saiu da minha boca para entregar minha vida a Abraxas, eu também cancelo agora. Declaro que ele não é meu Guardião, nem meu protetor; meu Protetor é Jesus Cristo, Ele é meu Senhor e Salvador!
Depois, Grace pedia que Eduardo orasse por ele mesmo, pedindo perdão por toda palavra de consagração. Nós intercedíamos todo o tempo. Então íamos adiante: "alianças". Grace orava, Eduardo repetia.
— Senhor Jesus, eu renuncio a toda aliança firmada naquela noite. Renuncio à aliança com minha "alma gêmea". Eu não tenho parte com ela, porque eu sou da Luz. Corto agora toda a aliança espiritual. Não tenho alma gêmea, quem decidiu isso foi o diabo, e eu não tenho mais parte com ele nem com nenhum plano que ele tenha preparado para mim.
— Em que dedo você usava a aliança dela? — interrompeu Grace.
— Neste — fez Eduardo.
— Então, simbolicamente, tire esta aliança do dedo e entregue a Jesus. Eduardo não questionou, apenas obedeceu, orando e fazendo o gesto de retirar o anel.
— Eu tiro agora a aliança de Thalya do meu dedo, declarando que todo contrato está desfeito, todo acordo que nos envolvia, todo o futuro que estava proposto. Em nome de Jesus, amém!
— Deus, passa Teu Fogo sobre esta aliança e a destrói completamente. Declaramos que ela está anulada pelo Poder maior da Aliança que o Teu filho tem com Cristo. Tudo o que ela representou um dia nós renunciamos e tornamos sem efeito! — continuou Grace logo em seguida. — Pode repetir agora, Eduardo...!
Eduardo foi repetindo:
— Toda a aliança firmada com a Irmandade naquela noite, eu também cancelo completamente. Declaro com minha boca que eles não são meus irmãos e eu nada mais tenho com eles. Também da aliança com Lúcifer, da aliança com Abraxas eu me desfaço, em nome de Jesus, me desligo. Peço a Deus que torne tais alianças inoperantes, que passe Fogo sobre a minha vida e me purifique.
Normalmente eu ficava calada a maior parte do tempo, pois não queria interromper e nem atrapalhar a Ministração. Apenas orava e observava. Mas naquele momento fiz um aparte, assim que Grace terminou:
— Ele não deveria renunciar também à aliança com Marlon? Indiretamente ela também foi confirmada no Rito de Iniciação.
— Sim — fez Grace. — Pode orar você, Eduardo, e depois já ore também pedindo perdão por ter consentido nestas alianças.
Eduardo obedeceu. E nós seguimos adiante.
— Nesta noite você abriu um Portal, certo? — perguntou Grace, olhando para suas anotações. — Como era mesmo que isso funcionava?
Eduardo explicou. Então Grace novamente tomou as rédeas da Ministração:
— Quais eram os Portais que Abraxas usava?
Eduardo continuou explicando. Sem maiores delongas, Grace levantou-se para ungir os ditos Portais. Pediu a limpeza, a descontaminação, o fechamento daquelas portas de entrada para Abraxas. E seguiu nas orações de renúncia e consagração.
— O que mais foi dito naquela noite? — Grace relanceou com os olhos suas anotações.
— Bem... teve o que comi e bebi.
— OK. Olhe para Ricardo.
Eduardo foi repetindo frase após frase.
— Toda espécie de "hóstia" que recebi, e comi, como símbolo de consagração da minha vida ao Inferno, peço que o Senhor esteja anulando completamente hoje! Limpa também o meu organismo de toda contaminação. Senhor Jesus, passa Teu Sangue pelo meu aparelho digestivo e por todos os sistemas que foram contaminados. Limpa-me completamente! E todo o efeito espiritual, todo o efeito de consagração eu também cancelo e renuncio. Declaro que não faço parte da Irmandade e nem da mesa de Lúcifer. Declaro que eles não são minha família, minha família é o Povo de Deus. Da mesma forma, tudo que bebi para me consagrar à Irmandade e a Abraxas, eu também vomito agora espiritualmente. Limpa meu organismo de toda a sujeira e efeito maléfico. Toda bebida que foi fruto de magia e Encantamento, toda a bebida do caldeirão eu rejeito. Cada componente, cada ingrediente, e todo efeito está cancelado agora pelo sangue de Jesus!
Grace ungiu a boca de Eduardo, e também seu estômago.
Ele estava visivelmente incomodado, entristecido. Tudo aquilo era um assunto que o desgastava bastante. Além do peso espiritual havia uma carga emocional muito forte. A Ministração seguiu adiante até o fim, até o último ponto.
Em dado momento, Grace pediu que Eduardo renunciasse às palavras de Encantamento que eram usadas para invocar Abraxas.
— Tinha uma maneira certa de fazer isso não?
— Oh, sim! Certamente. Em aramaico.
— Tudo bem! — apressou-se em advertir Grace. — Pode falar aqui. Depois ore para renunciar essas palavras de invocação específicas para ele, que era o seu principal Guia.
— Tá bem... é melhor mesmo ir por partes!
— OK, sempre olhando para Ricardo... pode falar.
Grace nessa altura já estava de pé ao lado deles, que se olhavam um ao outro enquanto Eduardo orava alto e Ricardo intercedia baixo. Eduardo estava com a respiração ligeiramente acelerada.
— Pode orar você, Eduardo.
— Senhor Deus, eu me desfaço completamente da aliança com Abraxas, renuncio ao Poder dele sobre mim e também ao Poder de invocá-lo por meio dessas palavras.... — então falou aquela frase estranha, uma língua completamente desconhecida.
— Amém! — falou Grace, observando-o.
— Amém — repetiu Eduardo. — Nossa......mas que coisa!!...
— Que foi? — indagou Grace.
— Você também sentiu? — perguntou Ricardo, desta vez um tanto surpreso.
— Senti... que estranho! Que coisa horrível!... Quer dizer, você sentiu? Parecia uma anestesia de dentista... quando orei e falei aquela frase senti todo o meu lado esquerdo paralisado, dormente. Ele... Abraxas... sempre se aproximava de mim deste lado!
— Exatamente! Boa descrição, como uma anestesia de dentista... uma opressão muito forte! Só que eu senti do meu lado direito, pois estamos frente a frente. Sinal que algo realmente se aproximou por este canto da sala.
— Mas que ousadia! — exclamou Eduardo. — Como é que pode?!! Vir até aqui? Grace não parou para ficar com comentários. Firmemente declarou, sem pestanejar:
— Vamos continuar.
Eu somente observava e intercedia. Realmente Eduardo tornava-se sensível. Eu via Deus confirmando e confirmando aquele Dom de Discernimento para ele. Ricardo não se espantava tanto porque ele próprio tinha visões e discernimento espiritual daquela maneira. Incrível! Os dois perceberam do mesmo jeito, no mesmo instante, sem qualquer aviso prévio.
Mais tarde eu entenderia que Principados e Potestades são demônios de características peculiares, muito Poderosos. Tinha ficado claro que Abraxas ainda podia aproximar-se de Eduardo, e mesmo invadir nossa sala apesar da oração de Grace resistindo ao inimigo. Ele estava ali desde o início. E no momento exato da renúncia, Deus permitiu que a presença dele fosse revelada.
Ficava cada vez mais claro que enquanto a Ministração não terminasse, e todas as portas abertas na vida de Eduardo estivessem fechadas, nem sempre as nossas orações de resistência teriam realmente Poder para impedir o avanço do inimigo. Enquanto existissem legalidades, eles poderiam aproximar-se.
Depois do grosso, as arestas foram sendo aparadas. Tudo foi colocado em oração de renúncia: as vestes utilizadas, as músicas ouvidas, os cheiros inalados, tudo o que entrou pelos órgãos dos sentidos e ficou arquivado na mente de uma forma ou de outra. Até mesmo o jantar foi renunciado.
Enfim: todo simbolismo daquela noite foi devidamente cancelado no Reino Espiritual. Aquilo se traduzia em muitas "portas fechadas" na vida de Eduardo, portas estas que estavam antes abertas e permitiam o acesso das Trevas.
Tinham sido muitas horas de conversa e oração, tanto as que Grace pedia que Eduardo repetisse, quanto as que ele devia fazer sozinho. Mas o Senhor agiu. Muitas foram as lágrimas de Eduardo e vários foram os momentos difíceis.
Na seqüência, Grace aproveitou e ministrou rapidamente os pontos importantes dos outros tipos de Rituais: os de Abertura de Portais e as Festas Rituais. Para isso bastou levar em conta as diferenças básicas entre um e outro, ao mesmo tempo em que os Principados que haviam feito aliança com Eduardo eram rigorosamente rejeitados. Foi uma grande limpeza espiritual naquele dia!
Foram horas bastante duras para Eduardo, que chorava várias vezes e de vez em quando não conseguia ir adiante. Eu me desgastava junto com ele, sofrendo também, inclusive chorando junto. Mas sempre intercedendo em línguas.
Certa vez, alguém que também labutava na área de Batalha Espiritual nos disse algo sobre a questão da especificidade da Ministração.
Eu havia me questionado sobre se era necessário orar e renunciar cada detalhezinho, ou apenas os pilares fundamentais. Trocando em miúdos, se o diabo plantou sementes malignas na vida de alguém, e estas frutificaram produzindo uma grande árvore, é necessário derrubá-la. Mas basta podar apenas as raízes e os principais galhos, ou é necessário ater-se a cada folhinha que brotou em cada galho? Ou seja, não basta cortar o tronco, mas é preciso incendiar cada folha de cada galho?
Pelo que estávamos aprendendo e vivenciando, a resposta era que cada folhinha deveria ser apresentada diante do Trono de Deus para ser confessada e destruída pelo Fogo consumidor do Senhor dos Exércitos. E não apenas os galhos e raízes principais.
Longe de querermos fazer disso uma doutrina, compreendemos hoje que isso foi Rhema para nós. Porque o envolvimento de Eduardo tinha sido muito profundo.
Mas aquela pessoa havia nos dito o contrário, que quando você destrói um grande galho, todos os envolvimentos e práticas menores (as "folhinhas e galhinhos") caem instantaneamente sem que haja necessidade de ministrar um a um. E secam!
Ou seja, no caso do Rito de Iniciação bastaria ter renunciado ao Rito como um todo, os pontos principais, sem a necessidade de nos preocuparmos com detalhes de menor importância como roupas usadas, músicas ouvidas, alimentos ingeridos, etc. .. pois a raiz principal já tinha sido derrubada.
São visões doutrinárias diferentes, e durante um tempo nós não sabíamos exatamente qual seria a resposta correta. Até que Deus nos mostrou algo que terminou de tirar nossas dúvidas. Então deixamos de nos questionar. Deus se alegra com o questionamento genuíno e que visa edificação; Ele sabia que o nosso desejo era agradá-Lo acima de tudo, então Deus deixou bem claro que, no nosso caso, cada detalhe tinha valor pelo simples fato de que a Irmandade não desperdiça os seus simbolismos. Cada um daqueles detalhes tinha por objetivo realmente agradar a Lúcifer e ao Inferno, realmente eram práticas — todas elas — capazes de abrir grandes lacunas na vida espiritual de alguém.
Não quer dizer que essa direção vá ser igual para tudo e todos. É importante buscar e discernir a direção de Deus para cada caso.
A experiência que Deus nos deu foi a seguinte: naquele mesmo dia, quando já praticamente Grace dava por encerrada a Ministração, o Senhor trouxe algo mais. Isso é o que eu achava mais tremendo de tudo! Quando o nosso entendimento humano chega ao fim, quando fazemos cabalmente a nossa parte, Deus mesmo se incumbe de nos trazer a ajuda específica no momento certo.
— Grace... — começou Ricardo. — Deus está me mostrando uma coisa. Posso falar?
— Claro que pode!
Ricardo voltou-se para Eduardo:
— Eu não sei se isso aconteceu, ou não, mas eu vi você falando uns Encantamentos e olhando num espelho. Então, por trás de você apareceu a imagem de um demônio, e o reflexo dele apareceu também no espelho, ao seu lado, meio por trás... e aí foi esquisito, era como se o seu rosto e o rosto desse demônio — que não era Abraxas — se sobrepunham e se tornavam uma coisa só!
Durante alguns segundos Eduardo olhou para Ricardo com admiração. Então sorriu:
— É, Deus te mostrou mesmo isso, porque eu mesmo já nem lembrava mais. Não era nem uma coisa importante!...
Eduardo explicou que aquela foi uma das primeiras práticas realizadas na Escola de Iniciados e que tinha por objetivo revelar um "ser de uma dimensão superior".
— Foi uma coisa tola, nem sei que demônio era aquele. Tratava-se apenas de uma experiência — concluiu Eduardo. (Leia Filho do Fogo).
Essa foi a primeira vez que o Senhor trouxe à tona episódios que Eduardo nem sequer nomearia, por considerá-los sem importância diante do resto. Eram apenas pequenas "folhas", um "galhozinho" de nada. Mas a verdade é que Satanás pode fazer de uma coisinha aparentemente sem importância uma porta de entrada escondida em nossas vidas. Esta foi a lição do Senhor naquele dia. É um buraquinho aqui e outro ali que podem tornar uma pessoa comprometida com Cristo ainda vulnerável aos ataques do diabo.
Mas teríamos no futuro muitas ocasiões para comprovar a veracidade disto!
Ao final, um pouco brilhante por causa do óleo com o qual foi ungido várias vezes, Eduardo estava com o semblante renovado e Grace o mirava com olhos compassivos.
— Que estrago o diabo fez nessa sua alma... — murmurou ela de maneira terna. — Mas o nosso Deus é grande, não é mesmo?
Todos nós assentimos com um "amém".
— Que coisa.... — ela ainda orou mais uma vez por ele. — Obrigada pelos Teus feitos neste dia, Senhor. Nosso coração agradece pois não há nada que o Senhor não possa fazer! Derrama Teu Bálsamo sobre a alma do Teu filho, traz sobre ele a Paz, cobre com Bênçãos a vida dele. Que nestes dias o Teu Espírito continue se movendo. Obrigada pela libertação, pela restauração que o Senhor está fazendo, preparando Teu filho para as coisas que hão de vir. Muito, muito obrigada!
Então ela aproximou-se de mim:
— Guarda também Tua filha, nós agradecemos pela vida dela. Dá também a Tua Paz e a Tua Proteção sobre a Isabela, sobre sua família, seus animais, seu emprego. Que ela seja mais e mais uma auxiliadora do Eduardo. E agora leva os dois debaixo de Tuas Asas, debaixo da proteção do Sangue do Cordeiro. Obrigada pelos anjos que estão sempre acompanhando os Teus filhos, e traz mais anjos, Pai. Guarda o carro deles, e as suas casas. Tenha Misericórdia! Amém!
— Amém!
Todos nós sorríamos mais leve agora. Um grande peso havia sido tirado de mim e de Eduardo, aquela montoeira de lixo havia sido entregue a Deus, com arrependimento e lágrimas, com quebrantamento e fé. Já não existia mais! Mais uma etapa fora vencida!
Que alegria!!!
Fomos todos nos erguendo. Sem aviso, novamente, Grace lembrou-se em tempo:
— Vamos limpar esta sala! — sem esperar a resposta, ela pediu a Ricardo que o fizesse.
Ricardo orou efetivamente pondo ponto final naquela batalha.
— Senhor Deus, em nome de Jesus nós pedimos que toda contaminação que possa ter ficado aqui neste lugar, como conseqüência desta Ministração, seja retirada agora. Limpa este ambiente, esta sala, este ar. E tudo o que é do inimigo nós mandamos embora, em nome de Jesus, para bem longe daqui, para o lugar que o Senhor determinar. Nós também nos limpamos, limpamos a nossa armadura. Passa sobre nós o Sangue de Cristo e nos purifica. Amém.
— Glória a Deus! — exclamou Grace. — Deus é bom!
Eduardo foi ao banheiro, Ricardo saiu atrás dele para ir também. Eu e Grace ficamos na salinha, ainda conversando. Ela quis saber como estava minha mãe, como estava Marco. Eu fui falando um pouco. Grace arrumava suas coisas, e por fim me abraçou:
— Você é muito amada, viu?!
— Você também é! — respondi meio sem jeito. — Você é muito querida, de verdade!
Eu amava muito a Grace, e sabia também que ela me falava aquilo com sinceridade. Eu sentia! Meu feeling sempre foi muito aguçado, e Grace não estava falando apenas por falar. Ela provava seu amor em cada atitude, cada palavra, cada gesto. Era dispensável que dissesse qualquer coisa. As palavras apenas reiteravam o que eu já sabia através das atitudes práticas. Nós sabíamos do seu amor, carinho e zelo por nós.
A bem da verdade, eu e Eduardo íamos ouvir muitas vezes aquelas palavras: "vocês são amados"! Pena que fossem somente palavras, na maioria das vezes.
Eduardo e Ricardo foram entrando na sala novamente, conversando com animação. Os dois tinham mais ou menos a mesma idade. Olhei para Eduardo significativamente. Ele lembrou e falou pra mim, sem interromper Ricardo, que contava de um filme que ele julgava satânico.
— Pode dar, pode dar...
— Olha, Grace, isso aqui é pra você! — falei eu me animando e estendendo a caixinha decorada para ela.
— Ahh... mas não precisava! O que é isso? Muito obrigada! — falou Grace em resposta, sorridente, sempre no tom de voz calmo tão característico.
— Este é pra você, Ricardo! — foi a vez de Eduardo estender a outra caixinha, dando-lhe uns tapinhas no ombro. — Pensou que pra você não tinha nada, é?
— Puxa, obrigado!
— Isso é só uma lembrancinha, um símbolo do nosso carinho por vocês.
— Vocês são muito especiais pra gente! — Que Deus abençoe!
— Oh, que bonita! Fico muito agradecida.
— A gente achou que combinava com você, Grace.
— Abre logo o seu, Ricardo. Tem que ver agora!
— Olha só... — observava Grace. — É a cara dele, combina muito bem! — Obrigado, obrigado mesmo pela lembrança.
— Tem até bombom. — Façam bom uso!
Fomos saindo da sala abafada. Já tinha caído a noitinha. Grace e Ricardo iam ficar ali ainda um pouco mais. Despedimo-nos. Grace realmente era ocupada. Ela não parava nunca, que fôlego tinha aquela mulher!
— Tchau!
— Tchau, Deus abençoe!
Saímos. Cansados, mas alegres. A Ministração esgotava o corpo e as emoções, mas a alegria que vinha do espírito passava por cima daquilo. E nós sempre tínhamos muito o que comentar, muito o que agradecer! E mais ainda, do que nos alegrar!
Eu e Eduardo saímos da academia. Da nova academia! Da Coliseum! Faltavam apenas três dias para o Natal e tínhamos que aproveitar para gastar muitas calorias! Melhor compensar antes, do que depois.
Mas gastar calorias não era o único motivo de malhar. Nós havíamos realmente empenhado um bom dinheiro na matrícula, na mensalidade, no exame Médico, no início daquele mês de dezembro. Eduardo ainda contava com recursos da sua rescisão contratual e apesar de não haver dúvidas de que logo conseguiria outro emprego melhor, não se podia desperdiçar dinheiro. Por isso tínhamos mais é que aproveitar, sem ficar preocupados com aquele gasto.
Afinal, estávamos investindo, em última análise, em saúde! Nada melhor do que cuidar bem dela.
E assim a gente fazia: Eduardo era louco para correr naquela formidável esteira pneumática e computadorizada, para fazer musculação. Eu fazia minha parte aeróbica de maneira mais diversificada, com spinning, com transport ou, principalmente, com aulas de aerodance, street funk, coisas assim. Eu gostava dessas aulas em que o professor ia dando aos poucos uma coreografia, e cada aluno acompanhava por si mesmo. Eu matava um pouco minhas bichas de vontade de dançar, e Eduardo não se implicava, afinal ninguém dançava aos pares. Depois, deixava para fazer a minha parte muscular nas aulas de ginástica localizada. Não era ainda plenamente adepta da musculação, embora fosse ser no futuro. Muito adepta.
Foi assim durante o mês todo. Mas naquele dia começamos a ter mais motivos para nos preocupar com a questão financeira.
Eu já estava tendo alguns problemas com meu emprego há algum tempo, e eles acabaram por estourar naquela data. Certamente que em parte a culpa era minha porque negligenciei um pouco o esquema dos convênios. Para dizer a verdade, eu nem sabia qual era o "esquema" dos convênios. Para mim Medicina era Medicina.
Sempre estive acostumada com uma outra realidade, com a realidade do Hospital Escola, do Hospital Público. Agora eu trabalhava num Ambulatório de Empresa, e a coisa era completamente diferente. O que mais me incomodava era o fato de que quase cem por cento das consultas eram bobocas, corriqueiras, e eu tinha que ficar paparicando pessoas que queriam boicotar o serviço pelo maior espaço de tempo possível.
Realmente às vezes os funcionários abusavam da comodidade de ter o serviço Médico ali mesmo, no ambiente de trabalho. Tinha sempre os espertinhos que queriam me fazer de otária, inventando problemas para conseguir um atestado. E tinha gente que só queria mesmo bater um bom papo, não se limitava a falar sobre o problema em si, pegar a receita, e voltar para o departamento.
E eu não tinha muito jogo de cintura para aquilo, confesso. Pelo simples fato de não estar acostumada. Era meu primeiro emprego, eu vinha de um ritmo diferente, minha mente ainda era mente de PS, mente de UTI, mente de enfermaria e de Ambulatórios de doenças específicas. Confesso que era muito chato aturar gripe, dores de estômago, de coluna... em suma, males do cotidiano! Para que estudar tanto, se agora meu dia a dia se resumia nisso? Não que o Ambulatório de Empresa não fosse importante, mas a realidade é que eu não gostava daquilo!
No entanto, eu atendia as pessoas bem, fazia o melhor que estava ao meu alcance. Conversava sobre o problema, explicava, receitava. Mas de maneira concisa. Às vezes pedia um exame um pouco mais complexo do que o velho "check-up", mas isso era, quando muito, uma EDA ou um ECO. As patologias mais específicas eram encaminhadas para os especialistas, geralmente o Gineco, ou o Gastro ou o Cárdio.
Que serviço chato! O tempo não passava. Na Faculdade a gente não via o tempo passar. Ali era o contrário.
Eu entrava às sete horas, mas vez por outra chegava atrasada propositadamente porque preferia que os pacientes agendados fossem atendidos todos de uma vez só, um atrás do outro. Então fazia com que eles esperassem um pouco para facilitar meu trabalho.
Não raro nove horas da manhã já tinha atendido todas as consultas. Era tudo muito simples. Eu tinha consciência de que fazia meu trabalho direito, mas comecei a perceber que os pacientes do convênio, que pagam, não querem apenas sair com a receita. Precisam ser paparicados, mimados, lambidos para sentirem-se confortáveis com o dinheiro investido no plano de saúde.
Ah! Que problema.
Por outro lado, pedir exames era problemático: durante um período apareceu tanta gastrite que pedi várias EDA's: elas me revelaram até mesmo algumas úlceras e helicobacter pylorii, era legal tratá-las, ver melhorar. No meu entender não havia o menor problema, nunca fui ensinada a economizar exames no Hospital Escola. Se era para o bem do paciente... além do que, estes pacientes pagavam por isso.
Logo fui chamada à ordem por pedir exames demais. Não acreditei! Isso nunca teria acontecido na Faculdade. Fiquei meio implicada com aquela postura, a partir daí lavei as mãos: encaminhava a maioria das minhas queixas digestivas, ao invés de tratá-las ali mesmo. Tratava só os casos mais brandos. Ficava pior para o paciente, que tinha que agendar uma nova consulta com o especialista fora da Empresa, e perdia normalmente um período inteiro do expediente. Claro que também ficava pior para a Empresa, que tinha que dispensar o funcionário.
Problema do Gastro! Eu que não ia me complicar por causa das Endoscopias! As queixas mais leves curavam somente com tratamento e dieta, não havia necessidade de uma investigação maior.
Depois foi o problema dos atestados. Eu tinha um critério para dispensar alguém. No mês de inverno surgiu ali uma epidemia forte de gripe, a ponto de 90% das consultas serem todas iguais. Eu mesma peguei uma horrível gripe de tanto que tossiam e espirravam em cima da minha mesa. Fato é que ninguém com febre merece ficar no serviço, a febre derruba muito!
Dispensei vários pacientes naquele mês e isso foi o suficiente para que voltassem a advertir-me: "Você está dispensando gente demais!" Quase respondi: "Que posso fazer? As gripes chegam no Clínico Geral, não no dentista!"
Novamente, então, procurei segurar ao máximo as dispensas. Mas aí eram os pacientes que ficavam de bico e saíam boquejando contra mim: "A Médica ingrata e insensível!!"
Que situação, eu ficava entre a cruz e a caldeirinha! Por que simplesmente não me deixavam trabalhar em paz? Já não bastava terem seu diagnóstico e tratamento bem feito?! Que droga!
Às vezes eu via as anotações de Clínicos anteriores, em prontuários mais antigos, certas coisas absurdas, conclusões grotescas, diagnósticos errados. Que Faculdade teriam feito??? Eu podia não ter paciência de lamber os pacientes como mamãe-gata com seus gatinhos, mas eu não ia cometer aquele tipo de engano! Minha formação tinha ficado deficiente, claro, pela falta da Residência, mas o básico era sempre o básico!
Finalmente meu chefe ligou-me um dia. Ele era um senhor grisalho bastante paternal, educado muito simpático.
— Tenho uma boa notícia! — ele amenizava a situação tentando convencer-me de que aquilo era um negócio da China.
E me falou sobre uma vaga em outro Ambulatório do convênio, que não era Empresarial.
— Precisamos de alguém pra cobrir umas férias, e pensei em você, sabe por quê?
— Por quê?
— Porque vai vagar um horário no Ambulatório da Lapa que você queria, à tarde, no mês que vem, então imaginei que você poderia ir desligando-se já daí. Você cobre as férias no Ambulatório que estamos precisando, agora, e no mês que vem vai para a Lapa.
De fato, quando fui contratada, e me inteirei dos diversos Ambulatórios, fiquei bastante interessada pelo do Alto da Lapa. Era um bairro gostoso, residencial, a meio caminho entre minha casa e a casa de Eduardo. Mas, na época, não havia vaga ali. Meu chefe garantiu que, caso vagasse, entraria em contato comigo.
— Puxa, mas eu já estou adaptada aqui... a bem da verdade... são vários meses...
— Tudo bem, olha, não há nada definitivo, pense um pouco! — dissera ele. — E a gente volta a conversar no fim da semana.
Na verdade, como entendi depois, não haveria escolha. Eu não estava muito a fim de sair da Empresa porque já me acostumara com o ambiente, com as enfermeiras, com o serviço (apesar de um pouco chato!). Eu estava me esforçando!
E, embora bastante longe, o que me fazia pegar um bom trecho de trânsito todo dia na Marginal Pinheiros, aquele lugar tinha um diferencial: era ultra perto do serviço de Eduardo. Durante o ano, muitas e muitas vezes nos encontramos no horário de almoço, comemos juntos antes de eu voltar para casa e ele para o trabalho.
Enfim... agora Eduardo já não trabalhava mais lá! Que haveria de ser feito?!?...
Quando meu chefe tornou a ligar, foi mais incisivo. Certamente queriam trocar-me por alguém mais adequado ao perfil de Empresa. Fiquei chateada, mas tive que concordar.
Então, durante um mês fui cobrir o horário vago no outro Ambulatório. A vantagem daquele lugar era ser extremamente perto da casa de minha mãe. O ambiente era gostozinho e, diferente da Empresa, havia vários Médicos pois funcionavam ali também algumas outras especialidades além da Clínica Geral.
Tinha uma cozinha bem ajeitada pra gente, com cafezinho e bolacha. No meio das consultas dava para fazer uma pausa, dar uma descida, e fui conhecendo aos poucos os outros colegas, fui me adaptando. Adaptei-me rápido.
A facilidade de ir e vir contava, naturalmente, pois as distâncias e o trânsito de São Paulo não são brinquedo. Depois de um tempo comecei a achar que realmente tinha sido o melhor, e minha vontade era continuar ali mesmo. Além do quê, não tinha mais o tormento dos atestados. Quem vinha já tinha agendado consulta com antecedência, era difícil que alguém acordasse com diarréia e viesse buscar atestado pra faltar ao serviço. Isso era mais coisa de pronto atendimento, de PS... e de Ambulatório de Empresa!
Mais ou menos no meio do mês, conversando com os colegas, fiquei sabendo que era provável que aquela vaga ficasse em aberto, que talvez o antigo Clínico não retornasse. Fiquei satisfeita e imaginei que talvez pudesse continuar ali. Nem estava mais querendo ir para a Lapa. Liguei para meu chefe, apenas para receber a triste notícia.
— Infelizmente já foi contratada uma pessoa para ficar aí, que já está trazendo os documentos e tudo mais. Nós já colocamos você na Lapa e não tem como voltar atrás.
— Puxa, não tem mesmo? Está tão fácil pra mim trabalhar aqui! É tão perto!
— Não tem jeito porque não fui eu que a contratei, mas o outro Médico recrutador. Nós dois selecionamos os Médicos para os Ambulatórios, mas cada um tem os seus territórios, por assim dizer. E ele é o responsável aí pelo Ambulatório onde você está. Eu emprestei você provisoriamente, mas quem fecha as vagas é ele. E como você estava interessada na Lapa...
Encurtei a conversa. Nada podia fazer para mudar aquilo. Ficaria ali apenas mais duas semanas, e só:
— Tudo bem, doutor Paulo, eu entendo. Não tem problema nenhum.
— Tudo bem mesmo? — Tudo bem.
Mas fiquei triste. Que droga! De repente, estava tudo tão complicado........
No final do mês eu fui para o Ambulatório no Alto da Lapa.
Não que aquele lugar não fosse bom, pelo contrário. Era uma Clínica ampla, agradável, bonita... minha sala era ensolarada e eu passaria a trabalhar de tarde, o que era bom para mim. Pelo menos, era antes. Eu queria estar ocupada à tarde para sair do serviço mais ou menos em horário compatível com o de Eduardo. Mesmo porque, preferia poder levantar mais tarde porque gostava de ir para a cama tardíssimo!
Mas agora — que pena! — ele estava livre e eu ocupada o dia todo. Fiquei amargurada com aquela falta de sorte! Se ele levasse um mês ou dois para arrumar outro trabalho teríamos tido a chance de aproveitar bem melhor os nossos dias... mas agora eu teria as tardes ocupadas!...
Para ele de certa forma era bom, pois teria todo o tempo para ir em busca de emprego, sem ter que preocupar-se comigo. Mas eu estava frustrada!
Mais frustrada fiquei quando recebi o holerite referente ao mês que ficara cobrindo as tais "férias" lá no outro Ambulatório. Havia um déficit de quase 20% no valor total.
"Pôxa, mas o que significa isso?", pensei comigo mesma, indignada. "Será possível uma coisa dessas? Deve ser um engano. Por que será?"
Liguei para o Departamento Pessoal para checar o holerite. Informaram-me que aquele era o valor correto, o valor pago naquela região.
— Como assim, "naquela região"?
— Fora de São Paulo.
Suspirei. De fato. Embora encostado em São Paulo, a ponto de uma rua pertencer à capital e a esquina seguinte já não mais, a verdade é que estávamos fora do perímetro urbano. Desliguei o telefone, furiosa. Claro que ninguém se daria ao trabalho de me avisar!
"Que falta de ética! Esses convênios não têm mais onde lucrar em cima da gente!"
Tive que me conformar. Passou o mês, eu esperava novamente pelo meu pagamento, agora o primeiro salário que receberia após estar trabalhando na Lapa. Os demonstrativos eram entregues a nós, os Médicos, no próprio Ambulatório.
A atendente bateu na porta, no meio de uma consulta.
— Doutora, o holerite!
Eu estava de costas, tirando a pressão do homem deitado na maca. Virei-me para ela:
— Ah, obrigada! Pode deixar aí. Obrigada.
Terminada a consulta, enviei o paciente à salinha da medicação para tomar o seu Adalat SL e ficar em observação um pouco até sair do ápice da crise hipertensiva.
— Seu Cristóvão, não pode parar de tomar o remédio da pressão. Seu cardiologista não explicou isso pro senhor, não?
— Ah, Doutora... mas é que a gente fez um churrasquinho nesse final de semana... daí a patroa disse que não era bom misturar cerveja com remédio...
— OK, então o senhor se enche de sal de churrasco e pára a medicação? Não pode fazer isso, seu Cristóvão... hoje não aconteceu nada de mais sério, mas em hipótese alguma o senhor pode interromper a medicação por conta própria, ouviu?
Expliquei rapidamente os malefícios daquilo e as prováveis conseqüências.
— Mas é que eu não estava sentindo nada...
— Tudo bem, seu Cristóvão... o mais importante agora é o senhor tomar a medicação e ficar deitado lá no repouso. Daqui a pouco vou lá pra medir de novo a sua pressão e ver se você já está melhorando, tá bom? Depois conversamos de novo. E eu vou encaminhá-lo para o seu Cardiologista outra vez, viu?
Seu Cristóvão saiu do consultório em companhia da enfermeira, direto para o repouso. E eu fui abrir meu holerite.
"E não é que meu salário está reduzido outra vez??"
Aquilo me enfureceu novamente e liguei imediatamente para o Departamento Pessoal. No entanto, eles me garantiram que o salário estava correto e sugeriram que eu entrasse em contato com meu chefe. Foi o que fiz em seguida após ter-me acalmado um pouco conversando com Eduardo pelo telefone.
— Liga lá — dissera ele. — Devem ter errado em alguma coisa. Vai ver você ainda está cadastrada como estando no outro Ambulatório, fora de São Paulo. Do jeito como tudo funciona bem neste País!
— É... — resmunguei. — Há de ser isso. Eu não posso abdicar de quase 20% do meu salário outra vez. A gente trabalha o mês inteiro contando com um determinado valor, puxa vida! Que falta de respeito!!
Então liguei para o doutor Paulo a fim de tomar informação.
— Mas o salário é esse mesmo! — falou ele após eu ter explicado o ocorrido. Fiquei muda por alguns instantes. Mas logo me recobrei e indaguei:
— Mas... como assim?
— O salário pago aos Médicos do Ambulatório é esse, o que você recebia a mais era um bônus concedidos aos Médicos que trabalham em Ambulatórios de Empresa.
— Mas... mas ninguém me avisou sobre isso e já faz dois meses que meu salário vem reduzido! — respondi em tom azedo, embora não fosse essa a minha intenção. Ou melhor, até era, mas eu tinha que me controlar.
— É uma pena que este detalhe tenha passado despercebido.
— Pôxa, não é um detalhe qualquer! Eu não fui contratada para ganhar este salário. A obrigação de vocês era ter avisado sobre isso! Eu nunca soube que ganhava nenhum bônus, na verdade fui contratada para ganhar um salário naquele valor.
— Olha, você nos perdoe a nossa falha. Mas o salário é esse mesmo. Suspirei fundo e fiquei quieta na linha ainda por um tempo.
— OK — respondi meio seca. — Obrigada pela informação!
— Precisando de algo, é só ligar.
— Obrigada. Até logo.
Desliguei o telefone insatisfeita, irritada, me sentindo lesada, roubada. Feita de idiota!
"Como que ninguém me avisa nada, e me largam trabalhando dois meses como se eu tivesse obrigação de adivinhar?! Não tenho bola de cristal! Eu deveria ter tido a chance de optar se queria continuar aqui depois de baixarem o meu salário!!!"
Certa ou errada na minha posição, aquilo realmente foi um tremendo banho de água fria para mim. Procurei fazer o melhor que pude, mas não gostava daquele trabalho chato de Ambulatório de convênio! Mesmo assim, estava ali trabalhando, e trabalhando direito.
No entanto aquele serviço estava muito longe da Medicina que conhecia. Eu fazia força para não pensar nisso, não me influenciar. Mas aquele estado de coisa serviu para me baquear um pouco.
Quando contei a Eduardo, ele também não gostou e concordou comigo que era um grande desaforo. Eu só estava esperando pela palavra de aval dele.
Nós nem sequer pensamos em orar, ou consultar Deus sobre o que fazer naquela situação. A impulsividade da nossa alma, uma característica já nossa, potencializada pela ira e indignação, falou mais alto. E nem paramos para pensar se éramos ou não Cristãos naquele momento. Nem o que Deus desejava que fizéssemos.
Realmente Deus teria ainda muito trabalho para nos moldar, para nos ensinar que Ele deveria ser consultado em toda e qualquer situação. Nós não percebemos, mas durante todos aqueles meses os demônios tinham trabalhado para fomentar aquela crise que estávamos vivendo agora. Tocando nas fraquezas da minha alma, que eles conheciam tanto por observar quanto por ouvir minhas declarações de insatisfação, eles criaram situações de desconforto. Uma após a outra!
E agora, eu mesma deflagraria o estopim da minha sorte. Não tínhamos pensando em orar mais especificamente pedindo proteção sobre os nossos empregos, não tínhamos idéia de que isso fosse necessário. Eram áreas desguarnecidas, onde os demônios tiveram chance de agir. Eram áreas não devidamente cobertas por oração.
Então, Eduardo declarou diante do meu semblante cheio de expectativa e rancor:
— Chuta logo o balde deste emprego duma vez, Isabela! Me enchi de regozijo por dentro.
— Você acha?
Ele deu de ombros.
— Descansa um pouco, umas duas ou três semanas. Deixa passar o Natal e o Ano Novo. Depois você arruma coisa melhor!
Era tudo o que eu queria ouvir. Ele me tirava um enorme peso das costas.
— É isso aí! Vou fazer isso mesmo!
— Pois faça mesmo, deixa essa gente falando sozinha!
Olhei para Eduardo com o rosto iluminado, não pude conter o sorriso que teimava em estampar-se no meu rosto.
— Ai, Nenê, obrigada por você ficar do meu lado!
Ele me abraçou e ficou alegre por eu estar de alma lavada pelo que iria fazer. Nem pensamos, novamente, se era para ter sido assim.
— É verdade. Então, vou dizer que não vai dar pra continuar trabalhando com esse salário. Talvez eles até me mandem embora.
— Se mandarem, você recebe rescisão completa. Cocei a cabeça:
— Acho difícil, ninguém faz acordo!
— Ah, tudo bem. Se você avacalhasse um pouco...
— Não... não levo jeito! Vou pedir demissão.
A verdade é que o tiro saiu pela culatra. Começou que, de cara, eles me obrigaram a cumprir o aviso prévio tão logo dei entrada com o pedido de demissão. Estaria presa ali por 30 dias ainda, até quase o final do mês de dezembro!
— Eu me recuso!!! Estou pedindo demissão e eles ainda querem que eu fique mais um mês, recebendo esse salário?! — Eu reclamava com Eduardo. — Não vou fazer! Não vou fazer isso!
Ele me acalmava.
— Estranho exigirem isso. Todo mundo sabe que é um perigo conservar funcionário insatisfeito em aviso prévio... pra que isso?
— Não sei, não sei, não sei! — eu subia pelas paredes, enfurecida com aquela situação de desconforto. — Agora que não vejo mesmo a hora de sair de lá!!!
— Bom... você pode simplesmente faltar... Encarei Eduardo subitamente interessada:
— Faltar?? Mas o mês todo!?
— Não, isso não pode. Parece que se você faltar mais de quinze dias seguidos, é demissão por justa causa. Então, você falta uns catorze dias, vai uns dois dias, e depois falta o resto do mês!
— Puxa... será que pode fazer isso?...
— Poder, pode... se você tiver cara de pau para isso. O detalhe é que eles vão te descontar as faltas. Mas, mesmo sendo demitida, você tem direito ao seu décimo terceiro e férias proporcionais ao tempo de trabalho. Você não vai receber esses dias que faltar, mas férias e décimo terceiro é direito de todo trabalhador!
Foi nessa informação que Eduardo acabou por equivocar-se.
Ele sempre fizera acordo ao desligar-se das Empresas aonde trabalhou, e não sabia que as férias e o décimo terceiro eram pagos ao funcionário que pede demissão após um ano de casa. Pelo menos foi isso que o convênio alegou, mais tarde, para não me pagar.
Afoita como eu estava para dar um chute naquele emprego que tinha começado tão bom, mas que a cada dia me deixava mais insatisfeita, optei por fazer o que ele dissera. Quanta inconseqüência nossa!
Ele, por me estimular ao erro... eu, por aceitar sem questionar. Nós queríamos que a nossa vontade prevalecesse. E ponto!
Assim aconteceu. Faltei, faltei e faltei. Despistei as perguntas da minha mãe, que estava com a pulga atrás da orelha com minhas faltas. Isso porque ela só viu algumas! Eu e Eduardo saíamos de tarde, íamos passear nos dias em que ele não tinha nenhuma entrevista ou processo de seleção marcado. Aproveitávamos as nossas "férias" do nosso jeito, do jeito que dava... isto é, agora não dava para fazer muita coisa porque estávamos os dois sem trabalho! Não exatamente por vontade nossa, mas tanto para mim quanto para ele as circunstâncias colaboraram para que chegássemos neste fim.
Eduardo queria arrumar logo um bom emprego. Mas, no entender dele, eu podia descansar um pouco.
— Só um pouco, Nenê. Depois arrumo outro lugar melhor para trabalhar. Agora já estou mais escolada; antes, não tinha nem idéia do que era trabalhar em convênio.
Dei as caras no aviso prévio por dois dias apenas.
— Passa um óleo de peroba aí, Isabela!
— Óleo de peroba?
— Nessa sua cara de pau! — ele morria de rir com meu jeito do tipo "não tô nem aí, faço mesmo".
— Quem manda eles me obrigarem a fazer o que não quero? Se eu quero ser demitida, eles têm mais é que me demitir. Que história é essa de piorar a situação? Eles querem uma situação ruim? Pois vão ter!
E acabou acontecendo assim mesmo. Nenhum de nós dois teve juízo! Finalmente iria receber o último holerite e o salário proporcional seria depositado. Fui buscar o holerite ansiosamente no Ambulatório, no dia 22 de dezembro. Minha surpresa foi igualmente desagradável: estava bem aquém do esperado. Havia lá o valor proporcional aos dois dias trabalhados, mas nada de 13° e férias pagas.
— Ué? — senti já um calafrio. Já tinha aprendido que estava sempre tudo certo, e nunca nada era mudado. Se o valor era aquele... era porque era aquele.
Foi no horário de almoço, e Eduardo não estava em casa. Naquela manhã ele tinha uma dinâmica em grupo e iria direto para minha casa almoçar.
Voltei para casa voando e fui direto pro telefone, tomar informações. Quando Eduardo chegou eu já tinha brigado com minha mãe, que me acusava de ter jogado para o alto meu emprego. Com razão. (Mas ela poderia falar de outro jeito)!
Eu já estava tensa, o clima também estava tenso, tudo estava tenso.
— Eduardo, não tenho direito a receber nada além dos dois dias que trabalhei!
— Mas como não?
— Eu precisava ter um ano de casa, Eduardo! Você não me avisou!
— E você não tem?
Eu olhava para ele com ar glacial, completamente azeda.
— Sabe quanto tempo faltava? Seis dias. SEIS DIAS!!!! Por causa de seis dias eu deixei de receber uma bolada de grana! Se eu tivesse esperado mais uma semana pra pedir demissão agora estaria tudo certo. Por que você não se informou antes de falar do que não sabia?
Comecei a gritar, mesmo sem querer, nervosa e inconformada. Quanto dinheiro eu havia perdido em três meses! Quanto roubo!
Em vez de Eduardo procurar me acalmar, só pôs mais lenha na fogueira. Em suma: briga!
À tarde fomos para a academia emburrados, em clima de velório, quase sem falar um com o outro. Estávamos tão revoltados e decepcionados com a situação que nem a ginástica serviu para amenizar. Ele foi para o canto dele fazer musculação e eu fui para a minha aula de localizada.
Depois nos encontramos. Orar que é bom, nada! Nossa alma gritava, a carne falava alto, ninguém se posicionava espiritualmente. Em suma: mais briga!
Impossível descrever a tensão daquele dia. Já ia além do normal, além do puramente natural. Uma faísca perto de nós era suficiente para detonar quilos de mau humor e amargura.
— Acho que já deu o que tinha que dar por hoje! — retruquei eu, super nervosa e já sem forças para continuar a aturar Eduardo.
Naturalmente ele sentia-se do mesmo jeito.
— Pois eu estou indo, então! — vociferou ele em resposta.
Nos separamos. Eduardo foi de ônibus e eu peguei o carro. Quando cheguei em casa minha mãe continuava de ovo comigo. Eu só queria dormir! Parecia que minha cabeça ia estourar de tanta dor. Me entupi de analgésico e fui para o quarto.
— Ai! — suspirei. — Deus que me perdoe, mas estou cheia de tudo......
Assim perdi meu primeiro emprego. Eu tinha minha parcela de culpa, mas não era de todo minha. Ali havia também o dedo do diabo. Tudo fora muito bem calculado.
A verdade é que a gente muitas vezes tem que errar.... colher as conseqüências........compreender que errou.......para então acertar!
Comigo e com Eduardo não foi diferente. Nós também erramos muito, caímos muitas vezes, batemos com a cabeça na parede. Errar faz parte do processo de aprendizado.
E aprendemos que não podemos esperar que Deus faça a parte Dele, se não fizermos a nossa.
No dia seguinte, antevéspera de Natal, Eduardo teria uma entrevista com os diretores de uma determinada Empresa, um processo de seleção que já estava bem adiantado. Seria no final da manhã, de forma que eu simplesmente fiquei em casa esperando que ele aparecesse com uma boa notícia e aquilo pusesse fim à nossa divergência.
Agora nós não tínhamos todo o dinheiro que pensávamos ter, e isso mudava totalmente as coisas. Teríamos que nos apressar em arrumar outro trabalho.
"Por causa de seis dias..."
Eu já estava conformada com aquilo, não adiantava chorar sobre o leite derramado. Mais difícil de tudo era me conformar em estar mal com Eduardo. Certamente esse era o ponto nevrálgico que causava toda a tristeza e desânimo daquela manhã. Não havia nada capaz de me afetar tanto...
Realmente Eduardo ligou assim que saiu da entrevista. Estava diferente, o tom de voz brando, ameno. Aquilo tinha o poder de um bálsamo! Quando ele falava assim, se minha raiva já tinha passado e se transformado apenas em tristeza, suas palavras tinham um poder conciliatório indescritível.
— Oi, Gatinha. Você dormiu bem? — Mais ou menos...
— Será que você não quer sair para tomar um café, para a gente conversar?
— Sei lá. — respondi, meio chocha. — Você que sabe.
— Vamos sair, sim — ele respondeu carinhosamente. Aquele era o Eduardo que eu conhecia. — Vai ser melhor. Olha, eu estou indo aí. Você se apronta que eu chego em meia hora, quarenta minutos, tá? Aí a gente conversa.
— Tá.
— Ama Gatinha... — fez Eduardo simplesmente. Demorou um pouco, mas a resposta veio.
— Tá, Nenê. Gatinha também ama.
Fui me trocar. Senti imediatamente o desânimo diminuir, a tristeza começar a me abandonar. Como era horrível acordar sabendo que eu e Eduardo não estávamos bem. Nada era tão bom quanto ouvir ele falar comigo carinhosamente!
Esperei por ele na sala. Ouvi quando abriu o portão, e depois a porta. Não levantei, mas esperei ali sentada, com ar murcho. Eduardo tinha muito mais facilidade do que eu em abraçar, demonstrar afeto.
"Anos de prática", eu costumava dizer para pegar no pé dele.
— Oi, Gatinha.
— Oi, Nenê... — naquele momento nada disse, apenas aproveitei o seu abraço forte, carinhoso, acolhedor. No começo ainda estava meio dura, algumas lágrimas já estavam caindo.
— Desculpa, menina... perdoa minha insensibilidade.
— Eu estava tão nervosa ontem por causa do emprego... já tinha brigado com a minha mãe, não estava no meu normal.
— Eu sei, Isabela. Eu devia ter tido mais cabeça... sabe... ontem, assim que cheguei aqui, sentia a opressão...
— Aqui em casa? — indaguei me afastando um pouco dele. Sentei na ponta do sofá. — Mas você não disse nada...
— Eu sei. Eu relativizei de novo, errei. Estava uma opressão forte, desde lá da rua eu já estava sentindo. Quando entrei, estava um clima ruim. Mas não era porque vocês tinham brigado, era opressão mesmo. Forte... de um demônio forte!
— Realmente não dá nem pra te dizer em palavras o quanto eu estava angustiada.
— Pois é. E eu fui pelo caminho errado, tentei te acalmar na alma ao invés de orar. Havia um demônio forte aqui pra tornar a situação bem pior do que já estava. Essa história toda do seu emprego não deve ter sido por acaso...
Fiquei quieta.
— Bom... nem vou falar nada. Acho que você já sabe, né? Se a gente tivesse orado, talvez nosso dia e nossa noite fossem diferentes.
— Eu sei... — Eduardo baixou a cabeça.— Eu estou procurando acertar. É difícil, é algo tão novo para mim.
— Tá bom, Nenê. OK. Já foi. Passou. E o emprego?
— Ainda não foi desta vez. Mas não tem problema. Logo, logo aparece.
— Que pena.
— Vamos tomar um café aí em cima? Ou vamos no Fran's? — Eduardo sorria tentando me animar.
— Podemos ir aí em cima mesmo — eu ainda estava desanimada.
Saímos. Fomos conversando de coisas mais amenas até estarmos com nosso café à frente. Então Eduardo começou a contar.
— Ontem, depois que nos separamos, eu estava inconformado com a situação. Parece que o diabo tem levado a melhor contra nós...
— Também não é assim!
— Era como eu me sentia... estava triste, chateado... imaginando quanto tempo vamos conseguir permanecer de pé.
Fiquei quieta, só escutei.
— Eu sei que Poder tem a Irmandade. Uma coisa é a gente somente ouvir falar... outra, é ver de perto esse Poder. Sei que Deus é mais Poderoso... que Ele quer nos ensinar. Mas, mesmo assim, às vezes as circunstâncias mexem comigo.
— Eduardo... — eu tentava fazê-lo ver por outro ângulo, embora suas palavras me assustassem. Eu sentia na pele uma pequena parte do Poder do inimigo. Aquela pequena parte que Deus permitia que nos tocasse. — Nós temos que aprender a resistir... não é isso que a Bíblia diz? Temos que orar mais, resistir mais. Quando você sente a opressão, especialmente, aí que temos que orar mesmo!
Eu falava meio atropelada; a verdade é que nós não sabíamos exatamente o que fazer para resistir. A única arma parecia ser a oração, o jejum que volta e meia fazíamos as Ministrações. O que mais???
Porém, parecia que não estava adiantando como deveria... pois o inimigo se aproximava aparentemente com muita facilidade. Sabia tudo a nosso respeito, e vivia dificultando a nossa vida. Até mesmo na Ministração, afinal Abraxas tinha entrado lá sem ter que fazer muito esforço! Quanto mais fora dela! O que estaria acontecendo?
Somente o futuro poderia nos ensinar.
— Eu sei. Eu sei disso — respondeu Eduardo. — Mas ontem eu estava triste, imaginando que tudo isso é somente o começo... eles não estão fazendo nada ainda). Estão esperando.
Fiquei quieta de novo, mordi o lábio inferior sem saber o que dizer. Como eu poderia argumentar contra aquilo, se eu mesma já tinha me pegado pensando a mesma coisa?
— Mas... — eu ia começar de novo, ansiosa em fazer Eduardo enxergar de outra maneira.
— Espera... — ele fechou os olhos por uns instantes, segurou minha mão.
— Espera. Fica calma. Estou dizendo como eu estava me sentindo quando cheguei em casa... mas aconteceu uma coisa.... é isso que quero contar.
Olhei para ele com um rosto curioso e cheio de expectativa, de repente. O tom da sua voz me fez calar e esperar. Eu não desgrudei mais os olhos dele, escutando sua história. Sua incrível história!
— Quando cheguei em casa fui para o quarto, fui orar. Orei bastante, li a Bíblia. Então deitei e dormi. E sonhei. Sonhei que estava dormindo! — ele até riu.
— Sonhar que está dormindo é legal, hein?
— Mas então? O que você sonhou?
— Bom, eu estava sonhando que estava ali no meu quarto mesmo, deitado na minha cama... dormindo. Mas aí a luz acendeu, e eu pensei que fosse o Otávio chegando. Levantei a cabeça meio indignado: "Pôxa, ele chega tarde e acende a luz na minha cara?". Mas aí vi que a luz não vinha do teto, da lâmpada no teto, mas da porta. O hall, me pareceu, estava iluminado... e a luz entrava pela porta, mas não era uma luz que ofuscava.... — Eduardo falava mais devagar, escolhendo as palavras para descrever. — Era uma luminosidade tênue, num tom meio azulado, meio esverdeado. Não era branca, nem amarela! E aí aquela luz que estava no hall parece que entrou pela porta do quarto, chegou mais perto... e foi formando um contorno. E eu vi ele!!
— Ele quem?
— Dessa vez foi com muitos detalhes! Era aquele mesmo anjo ruivo que eu vi no encontro, há um mês e pouco! Ainda que a minha primeira sensação fosse de espanto, de surpresa... parece que tinha consciência de que aquilo era um sonho, por uma fração de segundos eu pensei comigo mesmo: "Gozado... eu estou sonhando com aquele anjo".
— Puxa, Eduardo, que legal! E aí? Conta, conta! Que sonho legal! — eu me sentia animada agora.
— Então... como a luz era tênue, diferente daquele dia lá no encontro, pude ver os detalhes do rosto dessa vez. Porque ele chegou bem perto. Vi os olhos, os dentes, o cabelo...
— E como ele é? — eu já estava até esquecida de que se tratava de um sonho. E embora Eduardo já tivesse dito isso, eu queria escutar de novo.
— Ele é muito bonito. Uma beleza perfeita. Os olhos me olhavam com brandura, com amor... com simpatia! Os dentes são perfeitos, o sorriso é perfeito, parece um piano, bem branco, bem claro! O cabelo, como eu já disse, é ruivo, mas não aquele ruivo excessivamente vermelho. É um ruivo meio alourado. E não é liso, é meio ondulado e chega até aqui. — Eduardo bateu na altura do ombro, repetindo tudo de novo. — Sem franja!
— Puxa....
— Me chamaram muito a atenção os braceletes nos seus braços, do punho ao cotovelo, de ouro, que brilhavam... e tinham umas inscrições gravadas, alguns desenhos... mas nada que eu pudesse entender... era alguma outra língua.
— Ele entrou no quarto devagar, sorrindo, como que aguardando a minha reação. Esperando que eu absorvesse aquilo. Não senti medo nenhum, a presença dele me trazia uma sensação de paz. De paz! A luz que emanava era como o calorzinho de um sol cálido, brando... e dava uma sensação de tranqüilidade, de refrigério.
Eu ouvia sorvendo cada palavra, sem falar, como se cada palavra que saía da boca de Eduardo pudesse me trazer uma parte daquela sensação.
— Aí ele falou comigo... eu tinha perdido a noção do tempo, a noção do espaço... até esqueci que eu estava ali no quarto... e quando ele falou, fiquei realmente surpreso, e pensei comigo: "Puxa, é pra mim mesmo essa palavra... esse anjo veio especialmente para falar comigo!" E eu me senti importante... honrado... Deus estava me dando uma atenção especial. No meu inconsciente eu ainda me lembrava das visitações das Entidades demoníacas, quando um demônio vinha até minha casa aquilo era especial, era específico para mim. Então, numa fração de segundos eu entendi que aquele anjo estava vindo até ali especialmente para falar comigo!
— E o que foi que ele falou?
— Bom... eu fiquei esperando, cheio de expectativa, sabendo intimamente que ele tinha vindo com um propósito. Com voz suave, mas firme, ele disse: "Acorda, você que está dormindo, e abra bem seus ouvidos para o que eu vou te dizer. É hora de começar o trabalho". Então eu respondi, me justificando: "Mas eu estou procurando emprego".
Dei uma risada meio molhada, já emocionada. Certamente aquele não era um sonho comum. Eduardo também riu, igualmente molhado. Continuou:
— Bem... ele ignorou esse meu comentário, e falou: "Na segunda quinzena de fevereiro você começa o seu Ministério". Aí quem não entendeu fui eu, e perguntei com espanto: "Mas começo como?". E ele responde: "Primeiro com os seus, com os que estão mais próximos. Na sua Igreja. Você deve falar do seu testemunho e alertar o povo quanto à estratégia do inimigo. Mais tarde isso será expandido."
Eu estava até com a respiração presa. Quando Eduardo fez uma pausa, inspirei profundamente sem falar nada. Claro que eu tinha uma idéia das implicações daquilo tudo.
— Você tem certeza de que foi isso que ele disse? — indaguei, meio apreensiva.
— Absoluta. Eu sei o que você está pensando. E é claro que eu pensei a mesma coisa, que isso é muito perigoso! Nós estamos aqui quietinhos, sem falar nada, e já percebemos que as coisas não estão normais para nosso lado. Imagine sair por aí testemunhando! Por isso mesmo que eu já fui dizendo: "Não... não tem condições... eu não estou pronto! Não tenho condições de fazer isso". Neste momento, no meu íntimo, eu achei que ele estivesse enganado. Talvez ele tivesse errado a casa! Não era possível que aquele fosse o recado!
— E aí?
— Eu não queria dizer "Não quero". Isso pareceria pouco gentil da minha parte, então procurei de todas as maneiras encontrar algum outro empecilho. Mas tudo que conseguia dizer era que não seria capaz! Falei várias vezes, mas ele deu um leve sorriso, e ignorou de novo as minhas respostas. Continuou: "Você vai escrever uma carta para o seu Pastor. E eu vou tocar fundo nele para que ele compreenda o propósito do Pai"; é claro que eu tornei a perguntar: "Mas o que eu vou escrever?" Ele, sempre sorrindo, respondeu outra vez: "Quando você for fazer isso, ore antes. O Espírito Santo irá inspirá-lo e a carta irá fluir. Não precisa se preocupar agora. Mas escreva esta carta no início do ano. Porque o tempo é curto!".
Eduardo parou novamente com os olhos fixos no vazio. Passava a mão de leve pela cabeça.
— Ele disse isso várias vezes. Que o tempo "era curto". Seja lá o que for que isso queira dizer. Eu não conseguia entender exatamente o que ele queria de mim, e que Ministério seria esse que vai começar. Então perguntei, meio nervoso: "Mas e o meu trabalho, meu emprego?... E a Isabela?". "Não se preocupe com o trabalho", ele respondeu, "Quanto a Isabela, este não é ainda o momento dela abandonar a profissão. Isso vai acontecer, mas não agora. Neste ano que chega, ela tem de terminar o que já foi começado; pois esta informação é importante. Antes de concluir este ano, o livro vai estar publicado. Porque o tempo é curto!"
— Meu Deus... isso quer dizer que é mesmo pra escrever, né? Realmente nós vamos publicar essa história.
Por um lado, a sensação era de regozijo pela direção de Deus; mas, por outro, também de temor pelo que teríamos de enfrentar. Sabíamos que o fato de Deus estar conosco não nos isentaria das lutas, das perseguições... e sabe-se lá do que mais.
— "Mas eu não estou preparado", eu retruquei de novo, muito incomodado. "Não estou preparado para nada disso. Tenho medo!". Aí o anjo disse: "Nós estaremos guardando vocês. Haverá doze anjos com você, e doze anjos com Isabela". Ainda assim choraminguei, não estava a fim de concordar: "Eu não estou preparado!"
Eu estava ansiosa.
— Sim, e o que ele respondeu?!
— Dessa vez... nada! Fez um gesto com as mãos, juntou-as e ergueu para o alto. A manga da camisa, que parecia de um tecido mole, sedoso, escorregou pelo braço. E então eu vi aquela musculatura, Isabela... perfeita! Puxa vida, que musculatura! Foi nessa hora que vi os braceletes! E vi também que escorreu pelo antebraço dele, lentamente, uma espécie de líquido grosso, transparente... mas ele não tinha nada nas mãos antes! Não sei de onde saiu... e eu ainda pensei: "Será que isso aí é óleo de unção?!" Durante alguns flashes eu me lembrei de Davi, por quem sempre tive muita admiração, Davi, que foi ungido por Samuel... lembrei do significado da unção, que estava começando a aprender com a Grace... e refleti de novo, quase sem compreender: "Mas o que será que esse óleo está fazendo na mão dele?". Aí ele caminhou na minha direção... dava a impressão que o assoalho ia balançar, Isabela, com aquele peso enorme dele. Mas não fez nenhum barulho! Ele chegou bem perto e falou: "Não se preocupe, você vai saber como agir. Eu estou te trazendo a capacitação". Então ele derramou aquilo que tinha nas mãos sobre a minha cabeça. E, olha... eu senti mesmo, senti escorrer aquele líquido por toda a minha cabeça e por trás do pescoço, o frescor daquele óleo! Senti aquilo com muita intensidade... e meu coração se aquietou, eu tinha uma certeza diferente de que tudo estaria no controle de Deus... tudo o que viesse a acontecer dali pra frente. Mas aí já era como se tudo aquilo não estivesse acontecendo, a realidade se misturou com a ficção... era como se não estivesse acontecendo... enquanto ele derramava o óleo sobre a minha cabeça, falou algumas coisas em outra língua, algumas coisas que não entendi. Naquele momento senti como se estivesse sendo mergulhado numa piscina de água morna, gostosa, de alívio... eu podia perceber a leveza do meu corpo... alguma coisa nesse sentido. Um alívio! O chão não tremeu, não caiu fogo do céu, nada disso... foi só uma sensação de paz, de leveza, de tranqüilidade...
— Nossa, Nenê, sério? Que coisa mais diferente! Foi um sonho muito diferente!
— Calma... — murmurou Eduardo de novo. — Não acabou ainda. Eu ainda estou processando as idéias, mas... não acabou ainda!
Super empolgada, continuei ouvindo. — Não me lembro de mais nada depois disso. Durante todo o tempo havia essa sensação de sonho... foi como se fosse um sonho, entende? Eu não me lembro de ter dormido, nem de ter acordado... nem de ter voltado a dormir. Por isso que eu achava que tinha sido sonho.
— E não foi? — eu estava meio incrédula, olhava para ele tentando sondá-lo. Eduardo tentava achar as melhores palavras ao mesmo tempo em que perscrutava seu próprio coração.
— Eu acho que não...
— Mas por quê?
— De manhã eu acordei e não lembrei de nada, nadinha. Tinha esquecido completamente. Desci, brinquei com a Maila, comi panettone. Daí liguei para sua casa, falei com sua mãe.
— Ah, foi? Falou?
— E fui tomar banho. Tinha que me arrumar pra entrevista. No banho... quando fui molhar o cabelo.... os fios estavam oleosos, Isabela! Passei a mão e saiu na minha mão aquele negócio transparente, perfumado. Era como um bálsamo, era mesmo óleo de unção! — e Eduardo não mais segurou as lágrimas, sua voz embargou pela emoção. — Então percebi que não tinha sido sonho, tinha sido real! Foi um impacto tremendo, de repente lembrei de tudo... e aí achei que ninguém ia acreditar, que essa minha história seria um verdadeiro absurdo, que se eu contasse isso para as pessoas todo mundo ia achar que eu estava ficando louco! Estava surtando, precisava de um psiquiatra! Então decidi contar só para você... talvez conte para Dona Clara...
Eu estava sem fala. Olhava para ele, olhava... como era possível acontecer algo assim?!!
— Chorei muito ali no banheiro... fui lembrando devagar de cada detalhe daquele "sonho"... que não foi sonho! Talvez Deus tenha feito assim para minimizar um pouco o impacto dessa experiência... talvez tenha sido necessário que parecesse um sonho, numa primeira instância... mesmo assim, foi tão real!
Nós nos entreolhamos e nos abraçamos sentindo o coração transbordante. Deus era bom! Estava conosco!
— Puxa vida............. isso é incrível! Você tem certeza disso tudo? — não sabia o que dizer, queria ter certeza de que Eduardo tinha certeza de que tudo aquilo era verdade.
— Tenho, tenho certeza. Eu sou o primeiro que tomo cuidado com isso. Mas foi verdade, sim!
Ficamos calados por um tempo, de mãos dadas apenas, deixando aquela experiência e o seu significado caírem nos nossos corações profundamente. Iria levar um pouco de tempo para que o significado mais profundo de tudo aquilo realmente penetrasse nos nossos corações. Não parei para pensar que a intensidade das experiências vividas com Deus também seriam à altura da intensidade das provas a que seríamos submetidos com o inimigo. Naquela hora nada disso importava... o que importava era que Deus tinha se manifestado. O cansaço, o mal-estar, a tristeza, as dúvidas, tudo isso se dissipou diante do Amor do Pai. Como era real o Reino Espiritual!
Depois daqueles momentos de introspecção e embevecimento, voltamos um pouco à realidade e Eduardo pediu uma Coca-Cola com duas coxinhas. Foi a deixa para que eu voltasse a enchê-lo de perguntas sobre o anjo ruivo. Eduardo repetia cada detalhe e eu me deleitava naquilo, sugando das suas palavras algo novo, algo inédito também para mim. Não fazia diferença que eu não tivesse visto nem ouvido: a direção também tinha sido dada para mim! O recado tinha sido para nós dois! De certa forma, Deus tinha traçado um futuro para nós dois!
— Então quer dizer que realmente Deus está nos separando para o Ministério, não é?
— Acho que sim...
— O que será esse Ministério?
— Não sei. Mas ele disse que começa na segunda quinzena de fevereiro do ano que vem.
Nós não podíamos vislumbrar nada que pudesse acontecer até lá para mudar nossas vidas a esse ponto. O que não entendíamos é que todo Ministério começa com o preparo para ele. Não que algum preparo já não estivesse acontecendo. Mas a partir daquele período seria mais específico e mais intenso. Só que, na cabeça de Eduardo, ele já imaginava que tinha que sair pregando... e não entendia como isso poderia acontecer em tão pouco tempo.
— Puxa, já está aí mesmo!... O que será que vai acontecer??
— Não sei... mas algo vai acontecer — falou Eduardo com convicção. Sua convicção me bastava.
— Realmente é uma coisa arriscada...— falei, ponderadamente.
— Mas Deus disse que estava dando uma guarda: doze anjos para mim e doze para você.
— Será que aqui do nosso lado tem, então, vinte e quatro anjos? Agora mesmo?!
— Deve ter, né?
Ficamos sorrindo apenas em contemplar aquela possibilidade. Chegou a nossa coca com coxinha. Eduardo serviu nossos copos em silêncio.
— Se Deus está dando essa guarda, é porque vamos precisar — continuei.
— Sim. Vamos precisar.
— Ele disse mesmo que tinha doze comigo? Só comigo?
— Disse.
— Então, é sinal que o ataque é o mesmo sobre nós dois. Porque a guarda é a mesma.
— Mas não tenha dúvida disso! — ele brincou um pouco, procurando descontrair.
— Todos esses demoninhos chatos estão loucos da vida com a Gatinha! Eles olham pra ela e pensam logo: "De novo?" — e Eduardo fazia voz de falsete, imitando desenho animado. — "De novo, não!".
Dei risada. Mas depois fiquei séria de novo.
— Será, Eduardo? Será mesmo que eles estão me atacando também? De verdade?
— Não tem a menor dúvida, já disse. Mas Deus já deu a guarda, por isso não vamos nos preocupar.
— Por que será que ele disse que o tempo é curto?
— Não sei. Mas falou várias vezes!
— E a tal da carta para o Pastor Lucas? Você vai escrever, né?
— Vou. Mas só no começo do ano. Parece que Deus quer que nosso Pastor esteja a par de minha história. Talvez agora a gente consiga conversar melhor com ele!
— Acho que sim.
Nós já havíamos tentado marcar um encontro de verdade, mas nunca dava certo. Parecia realmente haver um impedimento na nossa comunhão. Por mais de uma vez Eduardo havia tentado compartilhar parte da sua experiência passada com os Pastores, e também o que vínhamos vivendo naqueles últimos meses. Mas até aquele momento as tentativas tinham sido frustradas.
— Mas Deus tem interesse nisso. Agora há de ser diferente! — falei.
E realmente ficamos naquela expectativa. Então mudei novamente o curso da conversa:
— E o anjo falou que não era ainda o tempo de abandonar a Medicina? Então, isso quer dizer que não vou mais ser Médica?
— Foi o que eu entendi. Mas futuramente. Não ainda. Eu entendi que você estará ao meu lado nesse Ministério que Deus vai dar. O Ministério não é só meu. E quando chegar esse tempo... o tempo de "ser expandido"... então não haverá mais ocasião para trabalho secular. Mas ainda não chegou esse tempo!
— Isso quer dizer que Deus quer que eu arrume outro emprego agora. Será que Ele não ficou muito satisfeito em eu ter saído do convênio?...
— Ele não disse isso, Isabela. Apenas que você ainda vai trabalhar como Médica durante um tempo. Depois, não mais! E eu também vou trabalhar agora.
Eu estava pensativa. — E tem o livro... — É.
— Se a gente ainda tinha dúvida, agora não temos mais desculpa... Eduardo suspirou.
— É...
— Tenho de recomeçar, então. Parece que nossos problemas aumentam vertiginosamente assim que ponho a mão na caneta. Não dá nem ânimo! Mas agora que Deus deixou claro... não vou discutir. Com ou sem ataque, com ou sem ameaça... tenho que ir em frente. Temos, né? Precisamos voltar a conversar, a gravar nossas fitas. Preciso ver em que pé está esse livro!
Eu me animava em poder fazer algo de acordo com os planos de Deus.
— Vai dar tudo certo, menina. Nós vamos conseguir! Não importa o tamanho da luta, Deus provou que está conosco.
Aquela não era uma frase feita. Ali estávamos somente nós dois, não havia por que fingir ou fazer de conta. Deus tinha mandado Seu recado na hora certa, mandava Sua coragem, capacitação, ânimo e força.
Quanto a nós... continuamos falando do anjo, tudo de novo, e de novo outra vez.
Que alegria isso trazia sobre nós!
Durante dias a sensação de reconforto gerada pela visitação do anjo ruivo seria um bálsamo para nós dois. Volta e meia a gente voltava a comentar, voltava a tentar entender mais ainda o recado de Deus.
— Você foi ungido... você foi ungido, Eduardo... por mãos que não eram humanas. Sabe-se lá o que é isso, não?
Volta e meia ele ainda tornava a emocionar-se com o ocorrido. E custava reter as lágrimas.
— O tempo vai dizer.
Certamente que a visitação desse anjo também tinha colocado os demônios em polvorosa. Claro que eles sabiam! Outro detalhe caprichoso de Deus é que tinha acontecido exatamente na noite da Festa do Verão (Leia Filho do Fogo). Como Deus era caprichoso!
O fato é que aquela visita não tinha sido encoberta no Reino do Espírito, e certamente que haveria agora um "contra mover" por parte do diabo, porque a Irmandade estaria informada sobre a unção, sobre a promessa, sobre a direção. Nossas conversas teriam sido suficientes para denunciar a direção que Deus havia dado, se os demônios ainda não estivessem a par do que acontecera.
Claro que haveria um contra-ataque!
Mas, naquela época... nem mesmo nos lembramos desta possibilidade. Mas sempre que a Irmandade vê algo promissor em alguém, vê alguém em quem Deus tem interesse, a verdade é que fazem um cerco e tornam a vigilância bastante acirrada. Justamente com a intenção de impedir que haja avanço em qualquer direção.
No dia de Natal retomei a escrita do livro. Eu tinha novos dados sobre a vida passada de Eduardo, também novos dados sobre a Irmandade. Agora era necessário colocar aquilo numa seqüência coerente e transformar aquele árido relato num texto agradável de ler. Aquelas experiências desconectas tinham que ser unidas, eu precisava entender o porquê de cada uma delas. Haveria necessidade de mergulhar na doutrina, na forma de pensar, viver e ver o mundo da Irmandade. Eu teria que ajudar Eduardo a olhar novamente para cada dia, cada momento experimentado naquele Inferno. Para poder escrever bem... eu teria que saber do que estava falando.
Muitas vezes Eduardo não parava para pensar em sentimentos, pensamentos, sensações. Às vezes ele misturava momentos diferentes, contextos diferentes. Adiantava idéias que, para ele, já estavam completas. Mas não para mim. Não tinha outro caminho: teríamos que ir devagar, teríamos que sentar e nos dispor a horas e horas de trabalho para a reconstrução daquela história. Parte por parte.
Praticamente toda a infância e a adolescência de Eduardo estava relatada. Agora eu poderia deixar esta parte de lado e começar pelo começo.
— E qual é o começo? — perguntou Eduardo no dia de Natal.
— E é você que me pergunta? O começo é o começo! Me fala das cartas para São Francisco, seu primeiro encontro com Marlon. Em detalhes. Depois, começa a me contar sobre a Escola de Iniciados.
Os dias que se seguiram teriam parte deles consumida naqueles relatos. Não especulei detalhes irrelevantes, mas eu tinha que entender o porquê das práticas, o objetivo de cada uma delas. Eduardo explicava. Ele tinha uma memória fantástica!
A minha pergunta mais comum era mais ou menos do tipo:
— Por que era assim? Para que vocês faziam isso?
Eduardo explicava de novo. Eu entendia. Quando não, interrogava até ficar satisfeita, interrogava até compreender tudo de maneira muito clara. A segunda pergunta mais comum era mais ou menos assim:
— E o que foi que você sentiu? O que você pensou? Como você encarava isso? Me descreva com detalhes. Vai lá!
Além disso, a vida continuava como sempre. E o nosso final de ano continuava também sendo visitado e monitorado por demônios. Volta e meia Eduardo sentia opressão. Ele nada dizia e nós não orávamos. Logo acabava começando uma nova briga. Situações desgastantes e desconfortáveis se sucediam a intervalos curtos entre uma e outra.
Parecia que os demônios se esforçavam ao máximo em desfazer os feitos de Deus. Era como um cabo-de-guerra, intenso e inexorável. De um lado, Deus trazia revelações e experiências sobrenaturais. Do outro, o Reino das Trevas tentava nos enredar numa rede tão densa de angústias a ponto de que nós mesmos nos cansássemos de tudo aquilo e jogássemos para o alto. Estava começando ali uma luta de nuanças diferentes, coisas que não conseguiríamos descrever em palavras, mas o corpo, a alma e o espírito absorveriam os efeitos.
Quando se enfrenta um inimigo inteligente e Poderoso como os demônios que têm aliança com a Irmandade, muita coisa acontece que a gente não consegue expressar humanamente. Eles são inteligentes, muito inteligentes... muito mais do que os homens! Têm Poderes realmente especiais, uma capacidade toda especial de interferir no físico, no emocional, no espiritual. São capazes de manipular pessoas e situações de uma maneira indescritível. Quando tecem a sua teia, quando armam a sua armadilha... geralmente ela é bem feita, certeira...
Naquele momento nós não sabíamos de nada disso, ou melhor, Eduardo até sabia... mas ele nunca tinha experimentado estar do lado de cá... e eu... menos ainda! Por isso a melhor palavra para descrever aquele período era "difícil". Por uma série de coisas não muito fáceis de serem explicadas mas que, quando somadas, tinham forte impacto sobre o ser humano.
O diabo não pode impedir que o plano de Deus se concretize. Mas, em sua fúria e indignação, ele pode criar situações para que nós mesmos, com nossas mãos e vontade própria, desistamos do plano e da Vontade de Deus. Era mais ou menos isso o que ele estava fazendo nos últimos meses.
Houve muitas e muitas vezes em que, não fosse a lembrança de experiências como a da unção de Eduardo, e nós teríamos desistido. Desistido de lutar, de caminhar, de escrever, de ministrar, de orar e buscar a ajuda de pessoas. Desistido de tudo! Até mesmo de crer em Deus... o Poder denso do Inferno, em última análise, ao fazer com que a nossa vida se tornasse "difícil" em todos os sentidos... nos punha por vezes pensando que seria melhor desistir de Deus... afinal, a única realidade que conseguíamos contemplar eram as mentiras do diabo! Porque o corpo, a alma e o espírito também se tornam cansados e, cansados, é mais fácil perceber o mover das Trevas do que o mover de Deus.
O Senhor sabia disso, sabia que Eduardo — especialmente — precisava vivenciar o sobrenatural Divino. Somente isso nos faria continuar caminhando. Hoje eu penso que, se Deus não nos tivesse dado algumas experiências especiais com Ele... teríamos realmente jogado tudo para o alto!
E assim nós íamos vivendo, não havia trégua alguma. Os demônios nos impediam de ter mais do que dois ou três dias de paz. Aquela era uma época de festas, onde todo mundo procurava descanso, saía de viagem. Inclusive Grace, Dona Clara...
Mas para nós não houve descanso. Digo isso no sentido literal da palavra, claro que havia um descanso que vinha como conseqüência direta do mover de Deus... mas não havia descanso real, isto é, descanso físico, descanso emocional. Aquela coisa de tirar a cabeça dos problemas, calçar o chinelo, passear... não pensar em nada!
A verdade é que isso não aconteceria tão cedo para nós. Todo o refrigério que conheceríamos seria uma breve trégua no meio daquela luta que teimava em crescer a cada dia! E, naquele período, ainda por cima não tínhamos ninguém para orar conosco.
Sabíamos que tudo estava no controle de Deus. Mas nós não éramos diferentes de ninguém: o corpo pede arrego, cedo ou tarde. Especialmente eu, futuramente, encontrar-me-ia em um estado de fadiga crônica.
Nada além da Poderosa Mão de Deus poderia ter nos mantido em pé durante tanto tempo.
Todo tipo de problema era criado ao nosso redor. Até nas coisas mais simples, mais corriqueiras, os demônios colocariam suas patas para interferir; especialmente agora haveria um aperto maior na área financeira, momento "perfeito" para as coisas quebrarem causando gastos imprevistos de dinheiro.
Mas o contra-ataque verdadeiro viria cinco dias depois da visitação do anjo. Dia 27. Dia "sugestivo"!
Eduardo sentiu a opressão, mas demoramos a nos posicionar. Passamos horas em pé de guerra um com outro, e não com o inimigo. Só quando Eduardo perdeu de vez as estribeiras comigo, e berrou no volante do carro, com o perigo de provocar um acidente, é que tentei eu mesma contornar a situação. Sozinha.
Comecei a orar, depois oramos um pouco juntos, muito pouco, na rua mesmo. Melhorou levemente, parece que parte da tensão do ar ao nosso redor relaxou. Quando voltamos para minha casa entramos sozinhos na cozinha para comer, eu ainda estava entristecida mas já tinha dado o assunto por encerrado.
Era já noite, pus a toalha na ponta da mesa.
— O que você vai querer?
— O que tiver. Não precisa se preocupar.
De costas para ele, rebuscando na geladeira, eu ia dizendo as opções.
— Você quer comer comida, ou só tomar lanche?
— Só lanche.
Fui pondo a mesa, sentei. Eu me sentia muito cansada. Começamos a comer, meio em silêncio. No meio da refeição, Eduardo parou.
— Acho que nós temos que orar...
— Por quê? O que foi?
— Desde que entramos aqui... — ele até falava esquisito, meio entrecortado. — Que tem uma opressão medonha nessa cozinha, nunca senti nada assim, tem um demônio Poderoso nos acompanhando, já faz tempo... sinto peso de morte... ao nosso redor.
Percebi que Eduardo estava realmente sentindo alguma coisa. Ele podia até questionar o discernimento que Deus tinha dado, mas eu não questionava. Todas as vezes que Deus mostrava alguma coisa, era certeira. Eduardo estremeceu, e voltou a falar:
— Sinto calafrios no meu corpo, o ar está denso... quase irrespirável!
— Vamos orar! — não havia nada mais a perguntar, muito menos a esperar. Assim fizemos, sem alarido, sentados na mesa, somente nós dois. Pedimos que Deus afastasse todo demônio dali, nos trouxesse a proteção. Assim pedimos, até que Eduardo sentiu paz, em poucos minutos. Terminada a oração, retomamos nosso prato mais calados do que antes. Depois do lanche ainda voltamos a orar um pouco mais.
Mais tarde, quando Eduardo já ia se despedir de mim, na rua, parado ao lado do carro, orientou-me:
— Devemos orar pelos animais.
— Tem certeza? — eu olhava para ele, receosa. Tinha pavor de pensar que meus animais pudessem ser tocados. — É você que está dizendo isso, ou é algo que Deus te mostra?
— Creio que é Deus que mostra.
— OK — não questionei mais nada. — Eu vou orar. Você também ora, né?
— Sim. Já vou orando pelo caminho.
— Tchau, então, vai com Deus.
— Tchau. Vê se descansa!
— Me liga quando chegar.
— Tá. — Eduardo bateu a porta do carro. Agora que eu não precisava do Palio para trabalhar, ele ficava mais à disposição de Eduardo.
Em vinte minutos liguei eu mesma para Eduardo:
"Já está demorando! Será que ele teve qualquer problema pelo caminho?"
Foi ele quem atendeu ao telefone.
— Oi, Gatinha! Acabei de fechar a porta e você ligou. Já cheguei!
— Que bom... você orou pelos bichos?
— Orei. Agora vamos ficar em paz.
— Tá, descansa, hein? Ama Nenê!
— Também ama Gatinha... — Tchau.
— Tchau!
Depois que desliguei o telefone acabei indo assistir um pouco de TV, espairecer a cabeça. Num dos intervalos fui à cozinha pegar algum quitute da geladeira. Era tão bom lambiscar à noite! Pena que não era muito saudável para o corpo, o que fazia com que a gente tivesse que malhar mais durante a semana.
De repente, escutei o Gorbie latindo compulsivamente. A Bitinha acompanhava, os dois estavam no maior desespero. Eu já conhecia aqueles latidos.
— Meu Deus, que foi isso?!
Abri o portãozinho e fui para perto do Wolfi, que babava e ofegava profundamente. A convulsão foi passando. A musculatura relaxou.
— Fica quieto, Gorbie! — ao me abaixar perto do outro, o Gorbie pulava e lambia a minha orelha.
Mas eu só queria ver como o Wolfi estava. Segurei sua cabeça e orei baixinho ali no meio dos três. O Wolfi ficou meio letárgico por alguns segundos, com olhar abobalhado. Então levantou, normalmente, como se nada fosse. E foi beber água. Não tinha sido nada grave.
Observei-o ainda um pouco. Fazia tempo que ele não convulsionava. Estava sendo acompanhado por uma veterinária de confiança.
Seria só questão de reajustar a dose do remédio... ou aquilo também tinha algo espiritual no meio?
Pelo sim, pelo não, voltei a ligar para Eduardo. Ele ainda estava acordado. Passava um pouquinho da meia-noite. Expliquei em poucas palavras o que acontecera e nós dois oramos em concordância. Mais tranqüila, o resto da noite decorreu sem problemas.
Mas no dia seguinte o Wolfi voltou a convulsionar mais duas vezes. Aumentei ligeiramente a dose da medicação dele.
E eu e Eduardo também jejuamos naquele dia, orando e declarando a Palavra. Sabíamos que os ataques sobre os animais tinham sempre aquele efeito de desajustar nosso emocional, de impedir a gente de ficar em paz, de criar preocupação... e isso preparava para outros golpes. Por isso resolvemos ficar bem alertas!
Na semana seguinte, na outra sexta-feira, a primeira do ano, o problema foi com a Viola, minha gata. Ela simplesmente desapareceu, coisa muito rara de acontecer. Eu acordei de madrugada e ouvi ela miar na porta do meu quarto, a porta que dava para o quintal. Abri, deixei Vivi entrar, e permiti que ela passasse pelo corredor e fosse dormir na cozinha, onde ela gostava.
Voltei para a cama, acordei tarde no sábado. E nada de Viola!
Procurei-a por todo canto, chamei, vasculhei tudo. Minha mãe ajudou um pouco, Eduardo também, depois que chegou. Mas de nada resolveu. Eu fiquei arrasada. A Viola já tinha quase doze anos e eu adorava aquela coisinha fofa, branquinha, peludinha!
Eduardo tentou me animar, então fomos passear num Shopping mais afastado, o Lar Center. Era gostoso ficar olhando coisas para casa, pensando no casamento. Mas naquele dia eu não tinha ânimo, me sentia esgotada, volta e meia acabava lembrando e chorando por causa da Viola. Estava morta de medo que aquilo tivesse alguma coisa a ver com as lutas que estávamos enfrentando.
— Mas nós oramos pelos bichos! Por todos eles! A gente sempre ora! Não pode acontecer nada de sério!
Foi muito difícil, mas finalmente oramos ali no Shopping mesmo, sentados num banco, e eu consegui entregar a Viola para Deus. E falei com toda a força e fé que podia tirar do meu coração:
— O dia da morte dela só o Senhor é que sabe. Eu desejo que ela volte, mas tudo está nas Tuas Mãos. De qualquer forma, somente o Senhor pode levá-la, não nossos inimigos, porque ela está coberta pelas nossas orações. Se isso vem das Tuas Mãos, meu Pai, eu aceito. Mas se vem dos nossos inimigos, nós resistimos a esse intento, e cancelamos os seus efeitos. Eu não aceito que o diabo tire a minha gata de mim, Deus! Torno a falar, só o Senhor tem esse direito, só o Senhor sabe qual vai ser esse dia, e como ela vai morrer. Toda interferência do Inferno nessa situação, te pedimos que desfaça! E agora, por favor, ajuda meu coração a ficar em paz... eu quero ficar em paz...
A gente sabia que também nisso Deus queria nos ensinar. Nem sempre as coisas acontecem como queremos e perdas são inevitáveis. Eu sempre ficava muito desestabilizada com qualquer problema referente aos animais. Isso era uma maneira de me enfraquecer, de me fazer baixar a guarda.
— O golpe final não é esse... — dizia Eduardo. — Eles estão preparando o terreno, e tocar nos bichos é uma boa forma de fazer isso, você sabe. Temos que nos reestruturar!
Há que diferenciar duas hipóteses, e isso nós sabíamos bem: há coisas que fazem parte do plano de Deus, e nossa oração não tem o poder de mudar isso. No entanto, outras situações de perda têm o dedo do diabo no meio. Nesses casos a oração é eficaz para reverter o plano do inimigo. Nem sempre a gente consegue diferenciar as duas coisas, portanto o mais sábio era colocar tanto uma, quanto outra hipótese diante de Deus.
No fundo, no fundo, embora não falássemos mais claramente, tanto eu quanto Eduardo tínhamos por bem achar que aquilo era um ataque espiritual. Mesmo porque Deus tinha avisado sobre esse ataque contra os animais.
Quando Eduardo pressentiu aquele ataque de morte, se nós não pudéssemos ser atingidos diretamente, a verdade é que aqueles que estão à nossa volta podem sofrer retaliação. Nós sabíamos que Deus não permitiria que ninguém da nossa família fosse tocado, mas o diabo também sabia que parte do seu intento podia ser concretizado se ele começasse atacando um dos bichos. Criando a situação de desconforto, ele poderia conseguir desviar nossa atenção e isso facilitaria agressões posteriores mais intensas.
Realmente, no fundo do nosso espírito ficava a inquietação, o desconforto. A dúvida. Somente a oração liberada tinha o poder de diminuir a sensação de mal-estar. Uma vez tendo feito a nossa parte, isto é, entregado aquele problema nas mãos de Deus, tínhamos a certeza de que agora era Ele que daria as diretrizes. E não o inimigo.
Encerrada a oração, procurei não falar mais a respeito, não chorar, não pensar mais. Apenas me distrair um pouco. Apesar da tristeza, tudo aquilo estava completamente entregue nas mãos do Senhor. E, se tivesse o dedo de Satanás, não seria por falta de intercessão que ele ia continuar agindo livremente.
Tudo o que havia para ser feito nós já havíamos feito, Deus já tinha ouvido nossa súplica. Era o que bastava.
À noite, depois do passeio, Eduardo deixou-me em casa.
— Me liga quando chegar — pedi. Quando ele ligou, falei mais uma vez:
— Vamos orar de novo pela Viola? Só mais uma vez? Eduardo orou. E depois, falou:
— Não se preocupe. Ela vai voltar. Deus quer te ensinar a descansar Nele, a não idolatrar os bichos. Você tem que aprender. Fica em paz, ela vai voltar!
Ainda chorei um pouco, apesar de estar procurando com todas as forças fazer o que era certo. Ao desligar o telefone, enquanto ia preparando as coisas para tomar banho, entre lágrimas fui falando com Deus:
— Eu quero te agradar, sabe, Deus... quero mesmo, o Senhor sabe disso. Sei que tenho que conseguir entregar os bichos a Ti... esse é um ponto fraco meu. Mas não quero fazer nada errado, me comportar errado... me ajuda na minha fraqueza, na minha dificuldade... que cada coisa ocupe o seu devido lugar e tenha o seu devido valor, nem mais nem menos. Mas eu gosto tanto da Vivi, Senhor... onde será que ela pode estar? Ela não some! Trás ela de volta, o Senhor pode fazer isso! O Senhor pode fazer qualquer coisa... não deixa nossos inimigos levarem ela embora, tirarem ela de mim...
Saí do banho, fui para a sala onde minha mãe fazia palavras cruzadas. Liguei uma música, fiquei zanzando por ali ainda. Lá pela meia-noite fui chamar a Viola mais uma vez, antes de ir deitar. Abri a porta da cozinha, olhei para o quintal. O Wolfi, o Gorbie e a Bitinha já vieram para se empoleirar no portãozinho.
— Pss, pss, pssss.... Viooola! — chamei em tom baixo. Não precisava mais do que isso: ela conhecia a minha voz. Eram doze anos da mesma coisa, todos os dias.
Se estivesse por perto, responderia ao meu chamado. E, miando, viria pelos telhados e pelo muro. Era sempre assim!
Os três cachorros rebolavam no degrau na porta. Passei a mão pela cabeça deles, distraída. Voltei a olhar para o céu escuro e para o telhado do rancho, para o muro.
— Pss, pss....Viviiiii!
— Pruauuuu.... — eu conhecia aquele sonzinho. — Vivi!!!
— Miau!
Ela sempre conversava comigo. E, de repente, a Viola estava ali, bem em cima da laje do vizinho.
— Ah, Violinha, que alegria! Você tá aí, sua coisinha?! Mãe, a Viola voltou! Minha mãe veio até a cozinha, nós duas olhávamos para a Viola que continuava sentadinha na laje.
— Mas que sem vergonha essa gata! Onde será que ela estava?
Viola veio, entrou. Parecia cansada e estava bem suja. Comeu um monte de ração e foi dormir. Eu olhava para aquela rodinha suja sobre o tapete da cozinha. — Ah, meu Deus... obrigada! Obrigada! Encostei de leve nela.
— Prúúú! — ela sempre fazia aquele barulhinho, parecia uma pomba arrulhando. A Viola só iria morrer com 16 anos, e era tão especial que o Senhor avisou que ela iria embora. Falou para Eduardo a causa da morte, apesar dos veterinários não terem podido precisar um diagnóstico. Ela teve um derrame.
Tivemos uns oito ou nove dias de sossego. Aproveitamos os dias e a companhia um do outro. Na segunda quinzena de janeiro eu começaria a procurar outro emprego, por isso queria tentar descansar tudo o que pudesse. O final do ano tinha sido muito cansativo... o começo daquele ano também!
Eduardo procurava o emprego dele criteriosamente, participando de entrevistas. Agora era começar tudo de novo, pois começavam a aparecer novas oportunidades no mercado. Os processos de seleção dele, ao contrário dos meus, eram sempre muito morosos, cheios de testes, dinâmicas, entrevistas... e depois mais entrevistas à medida que os candidatos iam sendo eliminados.
Eduardo era inteligente, vivaz, dinâmico. Mas estava demorando tanto desta vez a achar alguma coisa que valesse a pena em termos de cargo e salário! Ele já estava sem emprego há mais de dois meses, e apesar de procurarmos economizar ao máximo nosso dinheiro, logo acabaria.
Porque na nossa aplicação financeira nós nem pensávamos em mexer, é claro! Podia apertar o quanto fosse, mas aquele dinheiro era sagrado. Logo poderíamos nos casar... já tínhamos visto montanhas de apartamentos para comprar nos bairros que nos interessavam. Faltava somente juntar um pouco mais de dinheiro, e então... era só dar entrada no nosso lar!
Eu tinha guardada comigo uma pasta enorme cheia de anúncios de apartamentos e de orçamentos de corretores. Visitamos muita coisa, o que eu mais gostava de fazer era colecionar os recortes de jornal de domingo, aqueles que falavam das oportunidades no mercado imobiliário. Muitas vezes eu tinha ido até mesmo sozinha, rodava pelos bairros, dando uma olhada na fachada dos prédios. Mais tarde, no final de semana, voltava com Eduardo. Eu sonhava de olhos abertos com o dia em que pudéssemos encontrar o nosso ninho.
Faltava só mais um pouco! Agora, de acordo com o último extrato bancário que Eduardo recebera, tínhamos quase R$ 25.000,00 na aplicação. As economias de três anos! Isso sem contar que tínhamos financiado o carro, fazíamos agora uma boa academia também.
A gente falava com entusiasmo e alegria sobre o casamento, apesar das nossas brigas. Porque se fôssemos pensar, em quase todo o tempo nós nos dávamos muito bem. Na verdade, excepcionalmente bem. Nós dois éramos muito amigos, companheiros, havia fidelidade no nosso relacionamento, sinceridade, atração, envolvimento. Havia cumplicidade. E, acima de tudo, gostávamos realmente da companhia um do outro, era muito bom estar junto.
Quanto às brigas... nós tínhamos nossos defeitos e haveríamos de tratá-los com o tempo. Isso era algo totalmente normal, totalmente aceitável em qualquer relacionamento. Era algo humano.
Tudo o que ia além disso — uma boa e considerável parte, aliás — nós sabíamos, tinha a ver com nosso contexto espiritual. Nós sabíamos de cor e salteado o quanto tramavam contra nós, especialmente contra a nossa aliança.
Eles queriam Eduardo sozinho a todo custo, mas eu teimava em estar ao lado dele. Não ia ser assim tão fácil nos separar! Aquilo que Deus juntou, ninguém pode separar. Por isso fazíamos, sim, planos e planos para o casamento. Nosso noivado já durava dois anos, era hora de pensar seriamente em algo mais.
— Acertando nossos empregos acho que em mais uns três ou quatro meses já teremos dinheiro pra dar entrada no apartamento, né, Nenê?
— Acho que sim, "Mô"! No mais tardar no meio do ano. Você sabe que vamos ter uma dívida grande durante muito tempo, por isso temos que estar bem satisfeitos com os empregos, bem estabelecidos.
— É, eu sei... mas vai dar tudo certo. É só fazer a coisa bem "pé no chão". Temos que ter uma prestação com a qual possamos arcar sem nos desgastar demais.
— Nós temos condição disso. Dando uma boa entrada, não vai ter problema. Se a gente der R$ 30.000,00 de entrada está ótimo!
— E nós somos novos ainda, vamos conseguir construir o nosso patrimônio aos poucos. Né, Nenê, né?! Você não acha?
Eduardo sorria e participava do meu entusiasmo.
— É, Gatinha, vamos conseguir. Temos tudo pra isso! Somando forças a gente consegue.
— O mais legal de tudo isso é que a gente está conseguindo as coisas pela gente mesmo. Nem você nem eu somos parasitas do papai e da mamãe.
— Isso é verdade. Eu, nem que quisesse, ia poder contar com ninguém nesse sentido...
— Ah, em casa também não tem jeito! Mesmo que minha mãe quisesse, não ia poder me dar um apartamento de presente de casamento.
— É... é bem mais fácil casar hoje em dia quando os outros ajudam. Dei de ombros.
— Isso lá é verdade... tem tanta gente que casa com a maior facilidade. Os pais de um dão a casa, os pais do outro dão a mobília...
— E os avós montam o casamento inteiro! — Eduardo já ria.
— E os outros avós dão a lua-de-mel! — eu ria também. — E perguntam o que está faltando!
— É... assim é mais fácil!
Parei um pouco para pensar no tamanho da despesa. Era assustador!
— Nossa, Eduardo... como é que as pessoas casam hoje em dia sem contar com a família? Precisa ter muito dinheiro!
— Ah, naquela base, né? Não dá pra fazer muita extravagância.
— Mas a gente só casa uma vez na vida... não dá também pra economizar em tudo, caramba! O problema é que São Paulo é uma cidade caríssima! Se a gente morasse no interior seria muito mais fácil!
— Gatinha, não se desespere de antemão. Nós vamos ter condição de fazer as coisas como a gente quer.
— Isso, Nenê. Só temos que economizar mais alguns meses. Assim que a gente estiver empregado, cada centavo extra vai pro banco!
E nós fazíamos planos e planos, continuávamos colecionando propagandas de imóveis, pesquisando preços, agendando visitas com corretores. Era muito importante conhecer os bairros e as opções, que eram infindáveis.
Então novamente chegaram dias de luta e ataque, dias tortuosos, carregados de tensão.
Tudo sempre começava com a desestabilização emocional. Em quase cem por cento das vezes era assim que a porta das nossas vidas ficava aberta à ação demoníaca. O conflito, a ira, as palavras afiadas, a separação entre nós dois, a ausência de resistência em oração... tudo isso era um terreno perfeito para o inimigo. As portas eram escancaradas e eles atuavam rapidamente, potencializando ainda mais o conflito.
Como era terrível.....e como nós demoraríamos a aprender!
O fato é que, uma vez minada nossa resistência e conseguido o afastamento, nós nos tornávamos extremamente vulneráveis. Juntos, éramos mais fortes..... separados.... era sempre o prenúncio de um caos.
Nós não percebíamos essa realidade com clareza. E cada um queria fazer prevalecer seus direitos e o seu ponto de vista.
Certa noite, ainda na primeira quinzena de janeiro, fomos jantar com um casal de amigos. Eles eram Missionários, muito simpáticos, um pouco mais velhos do que nós. Foi uma noite agradável, comemos, conversamos, demos risada, descontraímos.
Ao sair, já nem me recordo o motivo, mas Eduardo e eu começamos a ter problemas. Era já muito tarde para estender qualquer discussão, de modo que tudo acabaria por arrastar-se para o dia seguinte. Fui deitar quase quatro horas da manhã.
Com Eduardo não foi diferente. Mesmo assim, orando ao chegar em sua casa, sem sono, ele decidiu-se a escrever a carta para nosso Pastor. A carta que tinha sido encomendada pelo anjo ruivo, e que deveria ser escrita no começo do ano.
No dia seguinte tudo voltou ao normal. Oramos, nos reconciliamos. Eduardo mostrou-me a carta, a qual li com calma, observando os detalhes. Era relativamente curta e contava em poucas linhas sobre seu passado, além de acrescentar que aquele relato era fruto de obediência a uma ordem de Deus. Certamente o Senhor queria que o Pastor Lucas conhecesse o testemunho de Eduardo, por isso mostramos interesse em agendar uma conversa para compartilhar.
Sem dúvida não era algo muito fácil para nós. Expor a nossa vida e os nossos problemas para alguém que não conhecíamos bem, a não ser de escutar suas Pregações. As quais eram, aliás, muito boas!
Nós admirávamos o Pastor Lucas pela unção que ele tinha na Palavra. Mas daí a sair compartilhando aquela história de Irmandade... nós queríamos a convivência, não necessariamente a exposição.
Enfim, o anjo deixara claro que "aquela era uma informação importante, que Eduardo deveria começar falando com os seus, com aqueles da nossa própria Igreja... com nosso Pastor". Não havia outra alternativa senão obedecer.
Naquele mesmo dia após o Culto — domingo —, Eduardo entregou a carta em mãos. E avisou que iria procurar a secretária da Igreja na segunda-feira e marcar um horário para conversarmos. Dito e feito, assim foi.
Ficou agendado para dali a quinze dias, com o Pastor Lucas e um dos Pastores auxiliares, o Joel, seu principal companheiro, um homem simples mas com uma especial unção Profética.
Ficamos aguardando pelo encontro no fim do mês. Eduardo, especialmente, estava bastante ansioso. Embora ele não dissesse muito a esse respeito eu sentia o quanto necessitava de um amigo. Um homem, alguém que o "adotasse", que caminhasse com ele. Eu estaria ao seu lado sempre para o que desse e viesse, e Eduardo considerava isso com valor. Mas... eu sabia... o lugar que Marlon havia ocupado em sua vida estava vazio havia anos. Quem sabe Deus não lhe mandaria um outro amigo? Quem sabe o Pastor não ocuparia, pelo menos em parte... aquele lugar?
Eduardo animava-se com essa possibilidade, especialmente porque tinha sido Grace quem indicara aquela Igreja.
Quanto a mim, particularmente não acreditava muito. Nem esperava muito das pessoas. Se acontecesse, muito que bem... mas, se não... também não ia ser o fim do mundo para mim. Minha história de vida tinha me ensinado isso, assim era. Vim de um contexto muito diferente do de Eduardo. Se ele aprendeu a contar com amigos que lhe foram caros, dentro da "29", mas principalmente na Irmandade (justiça seja feita), eu, pelo contrário, conhecia melhor a índole dos Cristãos. Excetuando meu tempo de A.B.U., nunca tive ninguém que se me tornasse especial dentro da Igreja: era mais ou menos "cada um por si e Deus por todos".
Por isso, já não esperava muito de ninguém. Já tinha me acostumado.
Neste aspecto Eduardo era mais crédulo do que eu, mais esperançoso, mais carente, mais ingênuo. Ele realmente esperava algo de bom dos outros, acreditava nas pessoas, caía mais "de cabeça". Tinha o coração mais puro. E eu, do meu lado, ia com cautela, ponderava, não me entregava logo de cara, muito menos confiava abertamente. Ainda que desejasse me relacionar com as pessoas, esperava um pouco mais para saber em que terreno estava pisando. Até prova em contrário, todo "irmão" ou " irmã" tem um enorme potencial para machucar o coração alheio. Pelo menos eu assim sentia. Coisas da vida...!
E claro que Grace e Dona Clara vinham provando ser a exceção desta triste regra. Eu dava graças a Deus por elas!
Então... esperamos pelo encontro. Eduardo, ansioso e cheio de expectativa; eu, um pouquinho desconfiada. Porém, aquela era a vontade de Deus, então nos rendíamos a ela.
O Mundo Espiritual ia mover-se, disso não havia dúvida. Afinal, havia um decreto especial naquele sentido, de que não nos relacionaríamos com nosso Pastor. O Inferno estaria incomodado com aquele encontro, pelo menos imaginávamos que sim. O motivo principal, como já foi dito, era fazer com que Eduardo se decepcionasse com a Igreja e ficasse mais propenso em retornar à Irmandade. Se Deus tinha algum outro propósito em fazer o Pastor Lucas ciente da realidade da Irmandade, isso já era um outro assunto... não nos dizia respeito pessoalmente. Caberia a ele buscar de Deus o que fazer com aquelas informações.
Realmente a coisa não ia ser muito fácil porque no dia seguinte mesmo, na terça-feira, fomos surpreendidos numa briga feia, desconcertante, interminável. Ou melhor, terminou quando Eduardo foi só para a academia. Eu desisti, não tinha a menor condição de fazer ginástica.
Mas estava furiosa com Eduardo!!!
Fiquei em casa tentando fazer de tudo para me sentir melhor, o que não adiantou de nada. A noite não nos falamos pelo telefone, isso nunca acontecia, dormi tarde e muito mal. O dia seguinte encontrou-me ao meio-dia ainda na cama, cheia de mau humor. Não adiantava querer falar com Eduardo pois ele tinha saído naquela manhã para dar continuidade à sua procura de emprego. Eu sabia que ele ficaria o dia todo na rua, o que significava que eu teria ainda pela frente uma tarde horrível e desagradável. Não porque fosse ficar sem ele, mas sim porque estávamos mal um com outro.
Como aquilo tinha o poder de transformar a minha vida num Inferno!
Era terrível a gente estar brigado. Eu gostaria muito de saber virar a página, esquecer, fazer alguma coisa que me relaxasse e tirasse aquele peso indescritível do corpo, da mente. Uma sensação ruim, angustiante, horrorosa...
As horas correram lentamente e nada me entretinha.
"Por que ele não liga? Estará tudo bem?!"
A sensação de inquietação me invadia, me enchia de mal-estar. Era impossível concentrar-me em qualquer coisa. Orei frases soltas, esparsas, o que me vinhal cabeça.
— Deus, ajuda a gente a se reconciliar...
Intimamente eu sabia que não era seguro manter aquela situação por muito tempo.
"Ah, que sensação de inquietação!..."
Ao cair da tardezinha Eduardo me ligou, mais calmo e animado com oportunidades de trabalho. Não era a melhor coisa conversarmos por telefone, de modo que combinamos um encontro na Comunidade, no Culto de todas as quartas-feiras.
— Tá bem — concordei.
Nós costumávamos mesmo ir a todos os Cultos da semana, todos os domingos e quartas.
— Assistimos o Culto, depois podemos tomar um café e conversamos — sugeriu Eduardo.
Ficou assim combinado e, como já estivesse pronta, peguei o carro e fui para a Igreja. Já eram oito horas da noite e o Culto estava começando; acabei me atrasando um pouquinho por motivo de força maior.
Eduardo também se atrasaria pois tinha que pegar ônibus. De qualquer forma, seria a melhor coisa nos encontrarmos na Igreja, assistir o Culto, receber a Palavra como sempre fazíamos... para depois conversar! Era possível até mesmo orar um pouco com Dona Clara, se fosse necessário, apesar de não ser dia de encontro. Ela tinha viajado um pouco no fim do ano, mas já estava de volta.
Cheguei à Igreja, escutei de fora o som do Louvor. Ia ser bom, muito bom restaurar as forças, o corpo, a alma e o espírito. Sentei mais ou menos atrás, diferente do nosso costume de pegar lugar na primeira ou segunda fileira. Assim Eduardo poderia me achar com mais facilidade quando chegasse. A Igreja nunca lotava nas quartas-feiras.
Me afundei no Louvor e, com os olhos fechados o tempo todo, não me distraí com nada. Quando terminou aquele período e foram dados os avisos, olhei para trás. Notei que Eduardo ainda não tinha chegado. "Nada dele!"
Não me perturbei, afinal podia ser tudo culpa do ônibus. Logo ele estaria ali!
Começou a pregação. Nas quartas-feiras era sempre o Pastor Joel que pregava.
Chegou o meio da pregação... e Eduardo não aparecia! Procurei controlar a preocupação à medida que olhava para o relógio e via os minutos passando vagarosamente. Sem perder o fio da meada do sermão, imaginei então que Eduardo deveria ter-se demorado em casa antes de sair. Era isso.
Esperei mais um pouco, vez por outra olhando por cima do ombro. Como ele não aparecesse imaginei mil coisas.
"Acho que além de se demorar em casa, o ônibus também deve ter atrasado muito... ."
Já fazia um bom tempo que eu orava em línguas, baixinho, sem conseguir deixar de me sentir conturbada.
O Culto estava acabando e Eduardo não vinha! Durante a oração final, eu me levantei e saí antes mesmo que ela terminasse.
"Não é possível... alguma coisa deve ter acontecido, meu Deus! Ele já deveria estar aqui de velho!"
Bem defronte à Igreja havia um orelhão. Peguei o telefone e comecei a discar... nada!
"Mas que droga de orelhão!!"
Bati várias vezes no botão, tentando linha. Estava quebrado. Mas havia outro logo ali no quarteirão de cima. Atravessei a rua correndo, tentei ligar do outro telefone. Sentia meu coração batendo forte na garganta, estava extremamente preocupada.
— Droga, droga, droga! — falei alto e bati com força o telefone no gancho novamente. — Que hora pra todos os orelhões quebrarem!!
Voltei correndo para a frente da Igreja. O Culto estava acabando e eu não sabia exatamente o que fazer.
"Onde será que está o Nenê?? Onde?"
Eu olhava o tempo todo para os lados, andando pela calçada com o semblante carregado de preocupação e pensando no que deveria fazer a seguir.
"Bom, vou até lá! Pego o carro em quinze minutos tô lá!"
Caminhei em passos rápidos até o carro, nem lembrei de pôr o cinto de segurança e saí desabaladamente, como só eu sabia fazer. Sem parar de orar, mas sentindo toda a musculatura cervical tensionada, voei rua acima. Algumas quadras lá na frente relanceei o olhar de repente num outro orelhão.
"Será?..."
Minha dúvida durou menos de um segundo. Num rápido olhar nos espelhos, virei o carro rapidamente e embiquei na calçada do outro lado da rua. Assim que o fluxo permitiu fiz uma rápida contramão para parar bem em frente ao telefone público. Pulei do carro, deixando-o ligado ali ao meu lado, sob minhas vistas. Tirei o telefone do gancho e escutei ansiosamente:
— Arre! Algo ainda funciona neste mundo!
Disquei para a casa de Eduardo. Estava tão nervosa que errei na discagem e caí em outro lugar. A voz respondeu sem muita educação:
— É engano!
Nem respondi nada, desliguei e liguei de novo, desta vez com mais calma. Foi Dona Odete quem atendeu. Procurei dar o tom mais casual possível à minha voz. Cumprimentei, e perguntei logo por Eduardo.
— Puxa, já faz tempo que ele saiu, viu, Isabela?! Saiu dizendo que ia para a Igreja.
— Mas a que horas ele saiu mesmo? — eu falava naturalmente. — Será que o ônibus demorou pra passar? Porque ele ainda não chegou.
— Ele saiu umas oito e pouco, oito e quinze, por aí.
Agora eu me sentia assustada de verdade... eram mais de dez horas da noite! Mesmo assim ainda usei um tom corriqueiro. Ela não poderia ajudar mesmo!
— Tá bom, então... se ele ligar, diz que eu liguei — aquilo era só pró-forma.
— Eu falo. Mas o que será que pode ter acontecido, hein? Porque logo que ele saiu daqui, não deu nem cinco minutos, e ligou um amigo dele da Igreja.
Senti novamente uma onda de preocupação aguda percorrer o meu corpo.
— Amigo da Igreja? Mas... que amigo?!
— Ele disse que se chamava Marlon, era um amigo do Eduardo, da Igreja. Aí perguntou se o Eduardo ia hoje no Culto.
Eu estava muda. Em choque. Estática. Dona Odete continuou:
— Eu disse que sim, que ele tinha acabado de sair. Então o tal amigo perguntou se o Eduardo estava de ônibus; como eu disse que sim, ele então desligou avisando que passava no ponto pra pegar o Eduardo. Dava uma carona pra ele porque também estava indo para o Culto. Vai ver eles pararam em algum lugar antes!
Eu sentia o pânico me invadir de maneira indescritível.
— Ah... deve ser isso, então.........— respondi calmamente. — Tá bom, qualquer coisa diz pra ele me ligar quando chegar.
— Tudo bem, Isabela. — Tá... tchau, então... — Tchau!
Desliguei o telefone com as mãos frias. Montei no carro e desci a rua em direção à Igreja novamente, a toda velocidade. Parei o carro em frente, como deu, nem sei se podia parar ali.
Corri para procurar Dona Clara. Ela estava conversando com alguém, sentada num cantinho da Igreja, no último banco, perto da porta.
— Dona Clara, ah! Me desculpe, mas eu preciso conversar um pouco com a senhora! — fui dizendo.
Acho que alguma coisa na expressão do meu rosto deve ter feito com que a pessoa diante de Dona Clara se apressasse na despedida.
— Tchau, querida... a gente se fala!
— Tchau, "Bem"! — respondeu Dona Clara, e em seguida olhou para mim.
— Vamos conversar ali dentro, Dona Clara? — apontei uma espécie de ante-sala, perto da Secretaria e das escadas, que estava mais privativa naquele momento.
Ela concordou, então entramos as duas e eu encostei a porta.
— Dona Clara, precisamos orar pelo Eduardo, eu não sei o que aconteceu com ele, Dona Clara! — comecei já a chorar, embora fosse difícil que isso acontecesse. Comecei a explicar o mais depressa que pude. — Eu... quer dizer, nós brigamos ontem... mas conversamos hoje pelo telefone... e marcamos de nos encontrar aqui no Culto! Mas ele não chegou, eu liguei pra lá... e a mãe dele me disse que o Marlon foi buscar ele no ponto de ônibus. Até agora não sei dele! Não sei onde ele está, e aquele homem foi atrás dele!
— Calma — disse Dona Clara com semblante sério. — Vamos orar e entregar essa situação ao Senhor. Ele está no controle. Vamos orar.
— Vamos!
Dona Clara orou alto, e eu concordava fortemente com a sua oração, chorando bem quietinha e torcendo ligeiramente as mãos. Pedimos a proteção do Senhor e o desmantelamento da armadilha do inimigo. Força e sabedoria sobre Eduardo.
Não foi uma oração longa. Dona Clara parecia confiante de que nada de mal aconteceria. Não fez escândalo, nem alarido.
No final, eu enxuguei as lágrimas mais aliviada. Não havia o que fazer a não ser ir para casa. Estava entregue ao Senhor! Ele era Poderoso, faria o que mais ninguém podia fazer: trazer paz no meio daquela confusão!
— Obrigada, Dona Clara, pela sua ajuda... — tornei, com o coração realmente grato.
— O Senhor é quem nos sustenta, né, "Bem"? — ela respondeu, sorrindo. — Vai ficar tudo bem. Tem coisas que a gente tem que passar, não tem jeito, mas o Senhor é conosco! Vamos em frente, né?!
Dona Clara não era demagoga. Ela falava aquilo sempre com a simplicidade decorrente da fé genuína, fruto de quem conhece o Pai.
Acalmei-me. Passou aquela sensação de desespero. Deus estava no controle. Mas minha alma estava entristecida.
— Bom... vou indo, então...
— Tá bom, vai com Deus!
Trocamos um beijo de despedida. Eu saí devagar da Igreja e resolvi ligar de novo para a casa de Eduardo. Fazia uns vinte minutos que tinha ligado, talvez até um pouco mais. Voltei até o orelhão que funcionava, estacionei o carro. Liguei.
E Eduardo atendeu!!!
— Alô? — Fez a voz dele pelo aparelho.
— Nenê??? É você?? O que aconteceu?! Por que você não veio?!
— Eu acabei de te ligar, pensei que você já devia ter voltado do Culto. Aconteceu uma coisa... por isso não fui.
— Eu sei, eu sei! — parte daquele pânico ainda me tomava. — O Marlon te procurou, não foi? Ele se espantou:
— Como é que você sabe?
— Foi sua mãe que disse. Eu já tinha ligado!
— Ela me falou. Mas o que foi que ela te disse? Contei. Mas eu estava ansiosa e preocupada.
— E então, Nenê? Ele foi mesmo atrás de você? — Foi, Gatinha...
— Mas... mas que ousadia dessa gente, Eduardo!! Será que não vão mesmo te deixar em paz, esquecer que você existe?
— Pois é... você já comeu?
— Se comi? Claro que não, né? Vê lá se tinha algum clima pra comer! Fiquei orando o Culto todo, depois fiquei orando com Dona Clara por você, aí antes de ir pra casa resolvi ligar de novo...
— Então você não está em casa!?
— Não, estou no meio da rua, no orelhão.
— Ah, Isabela, não fica aí, não! Estamos em São Paulo!
Olhei ao redor. A rua estava deserta, o carro continuava ligado. Realmente não era prudente!
— Tá bom. Eu vou para casa e te ligo em seguida. Nenê... está tudo bem com você?
— Tá tudo bem, menina. Eu tô bem.
— Mas tá bem mesmo? — Tô, tô sim.
Desabafei um longo suspiro, finalmente sentindo a tensão da noite antepor, de todo o dia e das últimas horas começando a relaxar.
— Ai, que bom que você está em casa... ama Nenê...
— Eu sei, "Mô". Nenê também ama. Vai pra casa agora, não fica aí, não!
— Tá. Tô indo.
Peguei o carro novamente, agradecendo a Deus por Eduardo estar em casa. Eu necessariamente tinha que passar diante da Igreja para ir para minha casa. Então parei rapidamente, talvez Dona Clara ainda estivesse lá.
De fato. Despedia-se na porta. Eu pulei do carro, satisfeita, fui até ela com o sorriso estampado no rosto.
— Liguei pra ele, Dona Clara! Ele tinha acabado de chegar.
— Tá vendo? Graças a Deus! Está tudo bem, então? — Parece que sim. Não sei ainda o que aconteceu, mas o pior já passou...
— Tá bem. Deus abençoe!
— Tchau!
Até no dia seguinte eu e Eduardo ainda comentávamos o que tinha acontecido. Realmente, eles estavam fazendo pressão... primeiro a carta, depois aquele monte de telefonemas, agora...
— Quando cheguei no ponto, estava só com a Bíblia na mão e tinha umas duas ou três pessoas ali. Lembro que reparei quando vi passar o carro preto, importado, de vidros escuros. Não é toda hora que a gente vê um assim. Mas não imaginei que pudesse ser ele, justo ele! Nem vi que o carro estacionou bem ali mesmo, em frente à Igreja Católica, no mesmo lugar de antigamente. Eu estava distraído olhando os ônibus, queria que passasse logo algum que me servisse pra ir embora. De repente, alguém bateu no meu ombro... e era ele!
— E você? Você assustou?
— Não. A bem da verdade, não... ele era meu amigo! Confesso que fiquei feliz em vê-lo! Ele tomou a iniciativa e me abraçou forte, como sempre fazia, então... abracei ele também! E falei a primeira coisa que me veio na cabeça, nem pensei pra dizer isso: "Puxa, Marlon, você não mudou nada, hein, cara?" Ele riu e disse que tinha vindo especialmente pra me ver. "Você não deveria estar em Brasília, em plena quarta-feira?" perguntei depois. Então ele respondeu que sabia que eu estava precisando... e que pra mim ele sempre teria tempo.
— Humpf! — dei um muxoxo seco.
— Então ele foi falando, super simpático: "Você não quer dar uma volta, bater um papo?"
Fiquei de cabelo em pé.
— E você foi, Eduardo? — exclamei horrorizada.
— Não, não! Também não sou tão louco assim!
— Então vocês ficaram todo aquele tempo conversando no ponto de ônibus?!
— No carro dele. Parados ali, o tempo todo.
— Ah, menos mal. E qual foi a dele?
— Bom... a gente falou bastante... fazia tempo mas... em suma...
— Em suma, não! Me conta isso direito.
— De cara ele veio falando da minha situação financeira. Conhecia muito bem os problemas que temos passado. Eles sabem mesmo de tudo... e sabem que nosso dinheiro está miando. Mesmo quando você começar a trabalhar, não vai ser suficiente para toda a nossa despesa. Logo me ofereceu R$ 5.000,00. Abriu a carteira, tirou, foi me dando enquanto falava: "Aceita isso como uma ajuda de um amigo, você vai precisar". E eu respondi: "Peraí, Marlon... eu não quero seu dinheiro!" Mas ele continuou: "É sem compromisso, olhe... você vai precisar". Eu olhei e, óbvio, fiquei tentado. Cinco mil, assim, ali na minha frente, dando sopa.
— Você não pegou mesmo, né?
— Não. Eu achei que não era certo.
— Fez bem, Nenê. Imagina só, aceitar dinheiro dessa gente... Deus nos livre!
— Aí ele começou a dizer que sente minha falta... todos sentem... foi muito paternal, me tratou muito bem... foi falando como estavam as coisas, como estava o preparo...
— Claro! Ele não ia vir mesmo soltando fogo pela boca — eu tinha receio que Eduardo se deixasse envolver emocionalmente. — Ele pode ter sido seu amigo, mas hoje é seu inimigo.
— Não ele... — retorquiu Eduardo. — Não a pessoa dele...
— Eu sei, mas o que está por trás dele, sim, com certeza... você não pode esquecer que ele está sendo manipulado para servir aos interesses do diabo. Você não vai se deixar levar por isso, né? — eu falava com brandura na voz, mas também com convicção. — Né, Nenê?...
— Não, não vou me deixar levar... tanto é que estou aqui. Se dependesse dele...
— Ai, Eduardo, nem me fala uma loucura dessas... pelo amor de Deus! — só de pensar meu coração apertava.
— Bom... então ele disse que as coisas vão piorar. Vão piorar muito mais. Ate agora ninguém do lado de lá está fazendo nada. Tudo vai ficar difícil... e ninguém vai me ajudar. Foi muito categórico em dizer isso, que ninguém ficaria ao meu lado! Acho que ele quis dizer financeiramente falando... e também em termos de amizade... eu não vou ter nenhum amigo. E quando as coisas apertarem, o dinheiro vai faltar.
Fiquei calada, esperando pelo resto. Eduardo tinha o aspecto triste e preocupado ao mesmo tempo, assim como eu.
— Ele já sabia da carta que escrevi e entreguei ao Pastor Lucas. E me disse que ele não vai dar nenhuma importância pra isso. Não vai ligar pra minha história, e nem pra mim.
— E você falou o quê?
— Eu quase não falei muito, só escutei. Mas nessa altura tive que retrucar, disse que não me importa se as pessoas vão, ou não, ficar ao meu lado. "Deus é meu Pai", respondi. "E Ele vai cuidar de mim". Marlon riu, nem ligou pro que eu disse. Continuou afirmando: "Esse seu Pastor não vai dar a mínima pra você. Você duvida? Então liga pra ele", e me estendeu o telefone. Eu respondi: "Não tenho o número da casa dele"; e aí ele mesmo me deu. "O número é tal".
Fiquei surpresa.
— Ele tinha o número da casa do Pastor?!
— Não há nenhuma dificuldade nisso, você sabe. Me deu o número, falou para eu fazer um teste. Como eu não quisesse, então mudou o rumo da conversa e continuou me advertindo de que o meu tempo se esgotava, e não haveria nada, nem ninguém capaz de me proteger. "Deus não poderá te proteger". Então pegou minha Bíblia, educadamente, e abriu em Lamentações 2.13. Leu: "Que poderei dizer-te? A quem te compararei, ó filha de Jerusalém? A quem te assemelharei, para te consolar a ti, ó virgem, filha de Sião? Porque grande como o mar é a tua calamidade; quem te acudirá?" E continuou dizendo que Deus não está me protegendo. "Na verdade, eu é que estou te protegendo, porque eu ainda te amo muito, te quero muito bem. Eu tenho intercedido a seu favor, impedindo que o cálice de ira seja derramado sobre você. Tenho impedido, desta forma, que algo de muito ruim te aconteça. Você é especial, filho, e só nós reconhecemos o seu potencial. Eles estão dispostos a te dar uma nova chance, você sabe disso, mas o seu tempo se esgota. Esses Cristãozinhos de bosta não vão ficar ao seu lado quando a coisa apertar de verdade, e nem Deus poderá te livrar".
Volta e meia eu coçava a cabeça, apertava a mão contra a outra, quieta, escutando. Que dura situação para Eduardo enfrentar!...
— Puxa, Nenê... eu sei que isso tudo mexe com a gente. O que mais ele disse?
— Tentei eu dizer alguma coisa. E falei que Deus tinha protegido o Pastor Brintti... não me veio nada melhor para dizer.
— E...?
— Ele disse que certas Maldições são como certos tipos de frutos... levam tempo para amadurecer. "Como ele está hoje? Você sabe?" Eu não sabia, não sei nada do Brintti... então fiquei quieto. Ele estava muito confiante! Parecia saber de coisas que não sei.
— Onde será que está esse Pastor, não?
— Não sei. Ninguém sabe dele. Nem a Grace!
De fato nós já tínhamos tentado saber do Pastor Brintti de todos os modos mas nossas buscas terminavam em nada. Era sempre alarme falso! Mas ele estava vivo, isso nós sabíamos.
— Então, eu tentei por outro lado, e disse que os anjos me protegiam. Ele deu outra risada e retrucou que os anjos são uns bichas, e que devem estar dormindo pois não impediram que ele se aproximasse de mim naquele momento. Mais ou menos a mesma coisa que Zórdico disse pelo telefone. Eu também não soube o que responder. O que eu ia dizer? Tinha sido pego de surpresa completamente. Aí começou a falar de Thalya, que ela sentia minha falta, que ela era a pessoa certa pra mim...
Rilhei os dentes fortemente, mas nada falei.
— Ficou dizendo que você não é mulher para mim, que você vai me levar pro Inferno, que eu tinha que me afastar de você... coisas assim. Foi muito incisivo nesse ponto.
Fiquei triste e calada.
— Mas isso não é verdade... — reiterou Eduardo. — Ele fala isso só pra me convencer a fazer o que ele quer. Pareceu muito insistente em que eu largasse de você. E você sabe, nós temos tido tanto problema... tem sido tão difícil! E ele tem que aparecer bem na hora em que a gente não tá bem. Ele sabe a hora certa!
Olhei para ele com olhos de cachorrinho esperando agrado.
— Ah, Nenê... — eu estava sentida. — A gente precisa parar de ter tanto problema...
— É, Gatinha. — Eduardo acomodou minha cabeça no seu ombro. — Vai dar tudo certo.
Aquela frase parecia ter um amplo significado em si mesma. Queria dizer muita coisa.
— E foi só isso? — meio inquieta, eu levantei novamente a cabeça para poder vê-lo melhor.
— Aí ele disse que tinha que ir para resolver uns compromissos. Me ofereceu de novo o dinheiro... que recusei, claro... e disse para eu pensar no que ele havia dito. "Você tem até o seu aniversário para me dar uma resposta. Depois desta data eu não vou mais poder ajudá-lo. Este ano é diferente, você sabe!", terminou ele por fim.
— Foi tudo?
— Falou que até o final da semana eu veria como ele tinha razão, meu Pastor não vai me dar importância. Antes de nos despedirmos, peguei a Bíblia, lembrando subitamente do texto de Malaquias 3.14-18. Li, mas ele não pareceu ligar muito. Antes que eu saísse do carro, pensei em orar por ele. E disse mesmo: "Vou orar por você". Mas ele me olhou com uma cara, Isabela... o semblante dele se transformou! Eu desisti, né? Vai que ele ficava possesso ali dentro do carro... de qualquer forma, ele não ia mesmo permitir que eu orasse! Aí saí do carro... e voltei para casa!
No fim de semana, nós estávamos um pouco preocupados. Tudo aquilo estava mexendo tanto com a gente que, em certos momentos, acabávamos titubeando. Acabávamos até mesmo nos esquecendo da unção e ficávamos pensando se aquele "sonho" tinha sido mesmo enviado por Deus!
Tudo parecia confuso. Nossas emoções ficavam de tal forma em polvorosa, e havia também uma influência espiritual tão grande na mente que, por instantes, parecia realmente que o diabo estava falando a verdade, e Deus estava mentindo. Havia uma pressão grande à volta... se assim não fosse, não chegaríamos a questionar a Verdade de Deus.
Certamente que estávamos procurando fazer tudo conforme o anjo ruivo tinha dito. Por outro lado, Marlon também estava confiante e, ainda por cima, eles tinham estabelecido uma data limite para o retorno de Eduardo. O seu aniversário seria em pouco menos de dois meses!
Eles não pareciam dispostos a desistir. E nós sabíamos, sentindo na pele, que aquela luta que apenas começava não parecia ter hora para acabar. Mesmo porque... de que jeito acabaria?
Saímos de minha casa no início da noite e fomos tomar nosso capuccino no Fran's. Não havia dinheiro para muito mais do que aquilo. Na segunda-feira eu retornaria minha busca por um emprego melhor, já havia descansado quase quatro semanas. Não dava para chamar isso de férias... mas fazer o quê?...
Agora era tempo de pensar em trabalho.
Estacionamos perto do Fran's e, antes de descer, começamos a conversar um pouco sobre nossas dúvidas, com o coração um pouco temeroso. Estava um tempo meio geladinho, coisa da frente fria, e caía uma garoinha no pára-brisa do carro. Eu cruzei os braços me aconchegando na malha fina da blusa.
— Eu sei que o sonho veio de Deus... — dizia Eduardo. — Foi tudo tão claro... e teve o óleo... e a sensação de paz, de força que vinha dele... mas, mesmo assim, vamos pedir para Deus confirmar tudo isso?
— Se você acha... então podemos pedir, mas sabe... será que esse "sonho" já não foi uma espécie de confirmação de outro sonho? Sabe que eu estava pensando nisso? Você não lembra mais?
— Do quê?
— No começo de novembro do ano passado, está fazendo mais ou menos uns dois meses... você teve aquele sonho, com aqueles anjos... lembra?
O rosto de Eduardo iluminou:
— Ahh! E verdade! Aquilo foi sonho realmente, mas mesmo assim foi um sonho diferente. Sonhei que fui pra Igreja, que estava na última quarta-feira da corrente de oração do Pastor Joel, a sétima quarta-feira. Então, o Pastor falou que eu iria pregar naquele dia, e não ele, porque Deus tinha lhe dado essa direção Daí eu lembro que pensei em contar sobre Mefibosete... Eu lembrava com ele.
— Pois é, desde que você assistiu aquela pregação daquele Pastor estrangeiro na Igreja de minha mãe, que você só fala no Mefibosete!
— Eu gostei muito do que ele disse, me tocou bastante. E, no sonho, já que o Pastor estava dizendo para eu pregar na Igreja, que Deus tinha trazido essa direção, pensei em falar sobre Mefibosete.
— Mas aí apareceram os anjos!
— Pois é... nessa altura eu não tinha ainda visto os anjos no Congresso de Casais, só aquele na Igreja, que parecia um homem. Que coisa, né? Mas aí, no sonho, quando subi ao púlpito vi um anjo ao meu lado, e ele disse que primeiro eu deveria dar o meu testemunho. E depois podia falar de Mefibosete. Então eu morri de medo, fiquei realmente assustado com aquela ordem. Gozado, né?... Eu ainda não tinha recebido nenhuma direção nesse sentido, a primeira foi no Encontro de Casais, depois o anjo ruivo confirmou de novo, em casa. Como tivesse ficado assustado, então o anjo do sonho respondeu: "Nós estamos com você!" — a voz de Eduardo tremeu levemente. Ele sempre se comovia ao falar dos anjos. — Daí eu vi mais anjos ao redor do púlpito, eles tinham espadas, eram enormes, e apoiavam as espadas desembainhadas com a ponta no chão... então eu me decidi a falar. Aí, conforme eu falava ia entrando muita gente na Igreja... tinha gente até do lado de fora! Depois que dei o testemunho, falei de Mefibosete e fiz apelo, falei também do Salmo 40 que lembrei na hora. E via mais anjos, muitos, muitos... eles flutuavam, parecia que a Igreja já não tinha mais teto, e eles tocavam as pessoas que pediam.
Eduardo parou um instante, relembrando. E comentou:
— Puxa, eu já tinha até esquecido disso.
— Mas o mais importante é que você pediu para Deus confirmar esse sonho. Antes do final do ano!
— É verdade, acordei com uma sensação estranha, como se aquele sonho fosse diferente de alguma maneira... porque não era como os outros, parecia algo que veio mesmo de Deus. E foi antes do Encontro de Casais, né? Puxa vida! Eu pedi mesmo que Deus confirmasse esse sonho, dando um sinal através de um anjo ou de um profeta.
— Aí, no Encontro, você vê anjos de verdade, e o ruivo aponta o púlpito para você... semanas mais tarde ele vem, te unge, fala do nosso Ministério, diz para escrever a carta, fala do livro, que as informações que você tem são importantes... falou até da Medicina! E tudo isso veio antes do fim do ano! Você havia pedido que Deus desse direção pra nossa vida antes do fim do ano, e Ele deu. Por isso que tudo isso já é uma confirmação. Será que se a gente pedir outra vez, Deus vai atender?
— Eu acho que Deus vai atender, sim! — respondeu Eduardo. — Eu sei que foi Ele que falou através do anjo ruivo, que praticamente não existe nenhuma possibilidade de engano. Mas, por mais remota que seja essa chance... acho que é bom a gente ter cem por cento de certeza. Não podemos tomar o caminho errado. Qualquer erro... é morte certa! Esse é um caminho muito perigoso. Deus também sabe disso, por isso tem sido pronto em atender nossas orações, no sentido de confirmar a direção.
Assenti várias vezes com a cabeça:
— Pois é... já que vamos ter que pôr o pescoço na guilhotina... — procurei tornar a coisa mais amena. — É bom mesmo estarmos certos disso. É uma coisa séria demais, arriscada demais, para nós dois...
— Se Deus confirmar de novo, então vamos saber que é isso mesmo!
— Tá. Ah, e teve também os três sonhos com o bebê...
— Isso foi super esquisito, mas também tinha aquele jeito de diferente, de ser um sonho diferente...
— Você sonhou com o nosso filho, né?
— Pois é... taí uma coisa que eu nunca ia pensar, a gente ainda nem casou. Mas foi três vezes seguidas, eu vi ele direitinho.
— E você tem certeza que eu era a mãe, não é? — perguntei, sorrindo, só para ter certeza mais uma vez.
— É. Você era a mãe. Você estava lá! E a gente não estava aqui no Brasil...
O tempo futuro mostraria que todos esses sonhos eram proféticos. Naquela hora, no entanto, eu não tinha lá muita convicção de que Deus fosse falar mais alguma coisa. Aquelas experiências que Eduardo tivera valiam por muito mais do que palavras. Mas.......realmente era bom ter certeza. Nosso coração ficava pequeno cada vez que a gente pensava no assunto de Ministério. Era muito legal que o Senhor estivesse nos chamando para isso, mas... tinha que envolver algo tão perigoso? Quem éramos nós na ordem das coisas?! Há tantos Ministérios bem menos perigosos.......!
— Então vamos orar. Vamos pedir.
Oramos com toda força que possuíamos, com toda a fé que nos era possível ter. Fomos sinceros em falar de nossa insegurança, nosso temor... afinal, de Deus é que nós não estávamos escondendo nada! Falamos também do nosso desejo de agradarmos ao coração do Pai. E pedimos por fim que o Senhor voltasse a confirmar o caminho Ministerial, se era isso mesmo... e também se Ele estaria realmente conosco!
Depois, enquanto eu enxugava minhas lágrimas e olhava para Eduardo, ele falou:
— Deus vai responder. Nosso pedido é sincero... é justo... você vai ver! Não se preocupe.
— Eu me preocupo mais por você do que por mim. Deus tem que estar te protegendo, Nenê!
— É... — Eduardo murmurou. — Nós dois! Tem que proteger nós dois.
— E minha família também!
Eduardo sorria; nós ainda estávamos com aquela sensação de temor espelhada no semblante.
— Vamos lá! Vamos tomar o nosso capuccino! Agora a Gatinha vai ganhar capuccino com mentinha!
Procurei me animar. Olhei para o vidro todo respingado de chuva e para a folhagem das plantas sacudida pelo vento. Estava um bom tempo para capuccino. — Isso, vamos lá! Corremos, fugindo da garoa, e entramos no Café.
Realmente Deus atendeu nossa oração. Falou mais três vezes o que só nós sabíamos.
No dia seguinte pela manhã fomos a uma outra unidade de nossa Igreja que ficava bem longe, na zona norte da cidade. Uma das Pastoras havia me pedido se seria possível que eu desse uma examinada numa mulher pobre que vinha freqüentando a Igreja.
— Me parece que ela está grávida! — tinha dito a Pastora. — Comecei a notar a barriguinha dela e fui dar os parabéns. Pra minha surpresa ela nem sabe se está ou não grávida. Não tem convênio, não tem nada. Será que você podia examinar?
— Eu posso, sim. Pelo exame ginecológico dá pra ter uma idéia. Mas ela tem que fazer o teste de gravidez, né? E tem que fazer o pré-natal, nem que seja no posto de saúde.
— Eu queria tirar a dúvida. Depois disso a gente dá um jeito de encaminhar. Então ficou combinado assim. Então Eduardo e eu fomos de manhã até lá.
Assistimos o Culto e, mais ou menos no final, o Pastor pediu para que orássemos uns pelos outros.
Um diácono gordinho que nós conhecíamos de vista aproximou-se de Eduardo para orar com ele. Eu orei com uma senhora ao meu lado.
Terminado o Culto, Eduardo ficou conversando e a Pastora veio para me apresentar a paciente. Junto com a filha, que era estudante de Enfermagem, improvisaram numa sala um lugar que servisse de maca. Fiz um exame clínico e também o ginecológico. O exame clínico estava normal, a pressão arterial boa. Eclampsia existe!
— Existe a possibilidade de você estar grávida? — perguntei, antes de continuar o exame.
— Existir, existe...
Realmente o útero estava aumentado, quase alcançando a cicatriz umbilical.
Tirei a luva e expliquei:
— Olha, é quase certo você estar grávida. Já está com mais ou menos uns quatro meses, hein? É bom fazer o teste e já começar o pré-natal no posto. Não pode largar, viu?
Dadas as orientações, fui saindo da sala ao lado da Pastora.
— Obrigada — disse ela. — Quanto eu te devo? Até dei uma risadinha.
— Bom, não é nada, né? Não tem cabimento cobrar por isso.
— Mas foi uma consulta.
— Ah, mas deixa pra lá.
Agradecimentos à parte, conversamos um pouco mais e logo Eduardo veio para o meu lado.
— Vamos indo?
— Vamos. Tchau, Pastora! — Vão com Deus!
Já no carro, eu fui dirigindo. E Eduardo comentou:
— Sabe, confirmação ou não... o diácono, ao orar por mim, pediu muita proteção e falou para que "eu não selasse os meus lábios, porque o Senhor é comigo. Que espantasse as dúvidas do meu coração porque Deus tinha me chamado para ser um guerreiro". Dentre outras tantas coisas. Foi uma oração profunda para quem não me conhece!
— É mesmo. Legal isso, né? Será que já é a resposta da nossa oração?
— Veio em boa hora!
No final de semana seguinte, de sexta a domingo, nós dois participamos de um "Congresso Internacional de Batalha Espiritual". Seria numa Igreja bastante grande, e Grace era uma das preletoras. Ela estava voltando de férias e tinha nos incentivado a fazer o curso. De forma que ali estávamos nós.
No sábado de manhã chegamos cedo, trouxemos até garrafinha de água e almofada para pôr na cadeira de plástico, pouco confortável. A manhã correu rápida, e o calor foi aumentando. No horário de almoço estava abafadíssimo, o ar parado, sem nenhuma brisa. Os ventiladores não serviam para muita coisa. No entanto, todo mundo estava animado com o evento, nós inclusive.
Haveria lanche ali mesmo para quem quisesse. A Igreja estava apinhada de gente, havia filas enormes nos banheiros e também para pegar o lanche. Mesmo assim eu e Eduardo não nos preocupamos.
— Acho que a gente deve esperar um pouco mais antes de ir pegar o lanche, né, Nenê?
— Também acho. Por enquanto, eu só vou ao banheiro. Você também vai?
— Ah, ainda não. Deixo pra mais tarde, quando tiver menos fila. Eu espero você aqui sentada, então!
— Tá. Espero não demorar.
— Os homens são mais rápidos!
Fiquei observando o enorme salão, a movimentação das pessoas. Nós havíamos visto Grace de longe, no púlpito, sentada ao lado de mais alguns Pastores convidados. Ela tinha uma sala privativa e não adiantava ir atrás para nada, pois estaria ocupada. Portanto, só nos restava comer, descansar, olhar os livros que estavam à venda, os CDs.
Quase não havia conhecidos nossos ali. Às vezes, de longe, no meio da multidão, eu reconhecia alguém de nossa Igreja. Mas foram pouquíssimos os rostos conhecidos.
Puseram um Louvor para tocar, e era uma música que eu gostava muito. Fiquei ouvindo, orando um pouco mais, devagar, aproveitando aquele momento. Fechei os olhos agradecendo a Deus, só falando com Ele frases soltas, pensamentos... sentimentos...
Subitamente alguém encostou em mim e até dei um pulo de susto!
— Pôxa, Nenê! Você me assustou! Foi rápido, hein?
— Como você disse, os homens são rápidos! Não tinha nem espelho nesse banheiro... — Eduardo estava com o rosto diferente, iluminado.
Eu ia fazer um comentário sobre o banheiro feminino também não ter espelhos, e que isso deveria ser estratégico, para fazer as filas andarem mais depressa. No entanto, olhando para ele, desisti. E perguntei, desconfiada:
— Que foi?
— Agora acho que Deus confirmou mesmo! Aconteceu um negócio tão estranho lá no banheiro... — Eduardo sentou ao meu lado.
Pessoas passavam perto de nós, sorriam, riam e conversavam, mas por alguns minutos ficamos alheios à elas.
— Eu estava lavando as mãos, já pra sair e voltar pra cá, e estava aquele clima de congresso no banheiro, sabe? "Amém", "Aleluia", "Irmão" pra cá e pra lá. É gostoso isso, né?
— É, é gostoso sim.
— Então tinha um senhor perto de mim, um Pastor. Ele ficou me olhando... me olhando um tempo. Já estava até desconfiando, vai saber... mas aí ele veio para perto de mim e falou, sem mais essa nem aquela: "Você vai ser um grande Ministro de Deus".
— Falou assim, é? Do nada?
— Pois é, do nada! Mas no começo eu não liguei muito, esse clima de congresso influencia as pessoas, todo mundo começa a achar que todo mundo tem um grande Ministério. Mas aí ele continuou olhando e continuou falando, muito categoricamente: "Você vai ser, porque Deus não dá uma guarda dessas para qualquer um". Pôxa, Isabela, quando ele disse isso até senti um frio na espinha. E aí fui eu que fiquei olhando para ele, mudo...
Muda fiquei eu. Eduardo começou a chorar e eu fui atrás.
— Aí ele falou... "Eu estou vendo doze anjos com você!"
— Ah, Nenê...! — não havia nada de melhor para dizer naquele momento. Nosso coração se encheu de alegria. Não havia palavras para descrever, era algo único, completamente ímpar. Realmente Deus tinha nos ouvido e estava respondendo!
— Deus está respondendo... isso quer dizer que nosso caminho é esse. Senti tremores involuntários pelo meu corpo. Então veio novamente o medo, misturado com aquela alegria, aquele verdadeiro espanto por estarmos vivendo aquelas experiências. Deus parecia ter tanta presteza em responder-nos. Eu nunca tinha experimentado nada igual.
— Ai, Nenê, mas como é que vai ser?
— Não sei. Eu também tenho medo. Mas Deus está garantindo que vai estar conosco. Vamos orar, vamos agradecer pelo que Deus fez, e por ter atendido nossa oração.
Começamos a orar, abraçados, com a cabeça bem curvada, perto dos joelhos. Entre lágrimas confessamos nosso medo, nossa fraqueza, ao mesmo tempo em que agradecíamos o Amor e Fidelidade do Senhor.
O espaço e barulho à nossa volta pareciam não existir...
Até que alguém começou a orar conosco, tendo primeiro abraçado Eduardo por trás, colocando as mãos nos ombros dele. Era o mesmo diácono, nosso conhecido, que tinha orado com ele na Igreja. Orou um pouco conosco e por fim falou novamente o que precisávamos ouvir.
— Deus está com vocês. Não tenham medo porque Ele está com vocês. Ele tem colocado uma dúzia de anjos ao lado de vocês!
Ele se despediu de nós sem falar praticamente mais nada e foi cuidar de outras coisas. E nós ficamos ali ainda um tempo, pisando em nuvens, flutuando, entre animados e estupefatos. Deus era tremendo!
— Quem vai ao banheiro agora sou eu! — anunciei, olhando o banheiro praticamente liberado ao longe. — Vê se me espera aí, Nenê!
Entrei no banheiro sorridente, cantarolando.
"Não precisamos ter medo. Deus é grande!"
Naquele momento tanto eu quanto ele sentíamos ser tudo possível. Quando saí, Eduardo estava parado ao lado de uma das enormes portas do salão, observando o tempo.
— Você não acha que seria melhor eu trazer o carro para colocar aqui dentro? — indagou Eduardo.
Ele era todo cismado em deixar o carro na rua. Quando chegamos de manhã não havia a menor possibilidade de estacionar no pátio da Igreja.
— Ah, Eduardo... não precisa, vai! O carro tá aí mesmo, não tem nem dois quarteirões de distância daqui. Tá numa ótima vaga. Pra que cismar, perder tempo? Deixa lá mesmo. Vamos almoçar!
Mas Eduardo foi irredutível.
— Tá armando o maior pé d'água: olha só o céu.
— Pois vai ser bom mesmo chover um pouco. Do jeito que está calor! Vai ficar bem melhor aqui no congresso se refrescar um pouco.
— Então eu vou buscar o carro rapidinho, menina. E estaciono aqui dentro acho que é melhor. Se você quiser, vai pegando a fila do lanche.
— Não, eu te espero... pôxa, que coisa, vai de uma vez buscar esse carro, já que você quer tanto. Não sei pra que isso!
— Shhhhh! — brincou ele. — Não fica "Pit"! Eu já volto. São só cinco minutos. Dei um sorriso de volta.
— Tá bom, vai logo, vai!
Nem pensei em ir junto porque o carro estava muito perto. Eduardo foi. Antes não tivesse ido. Teimosia!
Nem bem ele saiu e em segundos desabou o mundo num aguaceiro só! Fiquei na porta, observando de longe o portão do pátio, imaginando que em poucos minutos nosso Palio vermelho entraria por ali, pilotado pelo Nenê!
Eu espero, que espero, que espero!......
"Cadê Eduardo, meu Deus?"
Comecei a andar de um lado pro outro, esforçando-me para manter a calma. Olhava a toda hora no relógio, já passava de meia hora, o que podia ter havido??? Minha cabeça rodopiava com todo tipo de pensamentos e possibilidades. Já pensava em tudo, até que Eduardo pudesse ter sido raptado por Satanistas! Pode parecer engraçado, mas na hora não foi nem um pouco.
"Quarenta minutos!"
E nada de Eduardo. Já estava muito difícil manter a cabeça fria. Instintivamente eu orava em línguas, mas naquele instante vi Ricardo passando por ali: ele também fora convocado por Grace. Fui até ele, expliquei o que acontecia, pedi que ele estivesse orando.
Felizmente Eduardo levou apenas mais cinco minutos para aparecer, exatamente 45 minutos depois de ter saído. Meu coração relaxou no peito quando vi o Palio, e voei até ele pela chuva mesmo, que já estava mais branda, tão logo ele entrou pelo portão.
— Nenê! Que aconteceu? Meu Deus, estou super preocupada!
Ele estava irritado:
— Nem te conto! As drogas das ruas desse bairro não têm um pingo de lógica, não são bem programadas. Não tinha mão pra voltar para cá!
— Como não tinha, Eduardo? — aquilo para mim parecia inconcebível, inexplicável. — Você ficou rodando até agora?
— Sorte minha estar aqui. Eu não enxergava nada com essa chuva, caí na avenida lá em cima e, de repente, vi um ônibus virar à direita. Achei que devia ser esse o sentido pra vir para cá... já estava tudo alagado, enxurradas para todo lado!
Entendi tudo. Pus as mãos na cintura.
— Então você se perdeu, Nenê!?
Ele fez carinha de menino, e admitiu:
— Me perdi, "Mô"... Nenê se perdeu debaixo da chuva! Hú! — aquele barulhinho era característico dos momentos em que Eduardo se sentia constrangido. — Mas aí, só ônibus podia fazer conversão à direita. Assim que ultrapassei o ônibus, percebi que estava em plena contramão. Aí, que azar! Bem ali tinha um posto de gasolina... e um policial estava com o carro estacionado, e me viu. Escutei na mesma hora o apito!
— Nenê, e o que você fez?
— Parei, né? O guardinha veio correndo, apitando, debaixo da chuva. Se ensopou todo! Aí, imaginei que se eu esperasse por ele ia ser pior...
Comecei a esboçar um sorriso involuntário:
— Então você não esperou o guarda?
— Não, "Mô"... pesei a situação e achei que era melhor levar só multa por trafegar na contramão, e não por dirigir sem carta, além de tudo. Daí acelerei e larguei ele lá, debaixo de chuva, apitando mais ainda. — Eduardo não pôde conter uma risadinha. — Ele deve ter ficado louco da vida porque veio debaixo de chuva!
Comecei a rir também. — Não acredito!
— Ele já tava com a cara na janela, e me mandei!
Nós dois começamos a rir compulsivamente e descontraímos.
— Ah, não tinha o que fazer. Deus que me perdoe! — fez Eduardo.
Fomos almoçar rapidamente o nosso lanche porque já nem havia tanto tempo para isso. E o resto do congresso transcorreu sem outros imprevistos.
Quando voltávamos para casa Eduardo teve apenas mais um comentário a acrescentar.
— Encontrei com Ricardo na livraria um pouco antes da gente vir embora. E sabe o que foi que ele me disse? Falou direitinho sobre o final do Terceiro Ciclo! É incrível, hein? (Leia Filho do Fogo).
— O Terceiro Ciclo termina agora... neste ano Ótimo! E o que isso significa?
— Já explico. Mas o mais incrível é que Ricardo falou isso!
— Dos três Ciclos?
— Não, não dos três Ciclos, mas do período de 666 dias depois que termina o Terceiro Ciclo. Olha só, ele veio me dizer que Deus tinha revelado algo para ele quando orava por mim. Deus mostrou que estava terminando um importante período para a Irmandade, e que começava um novo período, um período de 666 dias. E que esse seria um período muito difícil para nós. A data para esse período começar é 6 de março.
— E é aí que termina o Terceiro Ciclo?
— Sim. De 6 de março até a virada de 1999 para 2000 tem 666 dias. Esse é um importante período de preparo estratégico da Irmandade. Senti até um arrepio.
— E ele disse que esse vai ser um período difícil pra gente... quer dizer, mais difícil?
— Mas repare só no detalhe: isso bate com a data limite que foi estabelecida pela Irmandade, e que Marlon veio trazer. Eu não tinha me tocado disso, fiz tanta força para esquecer todos esses detalhes... Marlon disse que eu tinha que voltar até o meu aniversário porque, depois disso, não poderia fazer mais nada por mim. Isso é óbvio...
— Por quê?
— Porque eles entram nesse outro período de preparo... quem está dentro... está... e quem não está, não está... é isso! Segundo Marlon, essa é minha última chance.
Dei de ombros. Procurei não prestar atenção na sensação de desconforto que aquilo causava.
— Bom, o que ele diz é o que menos importa!
Eduardo ficou um tempo em silêncio, olhando a Marginal que passava rápida pelo vidro do banco de passageiros. O sol estava brilhante, quente, as cores estavam vivas depois da chuva da véspera. Eu também fiquei quieta e pensativa, dirigia sem prestar atenção no caminho, por inércia.
"666 dias..."
As revelações vinham, uma após outra, e muito daquilo era difícil de acreditar, de aceitar, por isso eu tornava-me introspectiva e calada. E, naquela introspecção... pensava e pensava... e pensava. Não fazia sentido.
"Por que Eduardo? Por que eu?!"
Ele quebrou o silêncio:
— O mais incrível é Ricardo ter acertado em cheio. Ele já tinha comentado isso com Grace.
Realmente tudo o que ele diz, quando fruto de discernimento, vem de Deus. Vai além de qualquer coincidência!
— É.
E continuamos pensativos.
Realmente o Senhor sabia que nós precisávamos das Suas confirmações. Porque o caminho seria sobremodo árido. Por isso Ele não economizou em sinais naquele período, como fruto das nossas orações.
Engraçado como, na época, não percebemos muito claramente esse mover do Espírito Santo. Não como hoje o enxergamos.
Talvez o temor, a inquietação gerada pelo desconhecido, o fato de estarmos tão atônitos tantas vezes... quer fosse pelo sobrenatural de Deus ou pelas investidas do inimigo... fato é que tudo isso facilmente nos cegava e impedia de discernir com maior clareza.
Relembrando hoje percebemos que Deus foi Fiel em nos apontar o caminho a ser seguido.
Mas naquele tempo a gente não estava tão à vontade assim em caminhar por estas novas veredas. Tão novas que, por vezes, eram terrivelmente assustadoras!
O encontro com o Pastor Lucas aproximava-se. Seria na semana seguinte. Estávamos um pouco cabreiros, até mesmo Eduardo se sentia dessa forma, mas mesmo assim continuava ansioso.
Marlon havia dito que ele não nos ouviria. Tinha dito inclusive que "antes do final daquela semana Eduardo teria confirmação de que o que ele estava dizendo era verdade".
Por causa dessa afirmação, Eduardo, um tanto incomodado, abordou o Pastor no final do Culto naquele fim de semana. Tinha que tirar a limpo aquela história. Puxou conversa, perguntou o que ele tinha achado da carta, comentou que o encontro já estava marcado para o fim do mês... etc... etc.
Nosso Pastor estava apressado e não teve muito que falar. Realmente não pareceu muito preocupado e nem interessado na história cuja prévia fora relatada na carta.
— Na verdade, todo aquele que nao serve Cristo é do diabo!
Eduardo tentou discordar em poucas palavras, não era bem assim porque há níveis e níveis de compromisso com as Trevas... conseqüentemente, níveis e níveis de guerra. O homem incrédulo, ou até mesmo um pai-de-santo, são muito diferentes dos verdadeiros Satanistas, e...
— Bom, a gente conversa no fim do mês!
Eduardo decepcionou-se tremendamente com aquela atitude. Mesmo assim preferimos acreditar que tinha sido meramente obra do acaso, que ele estava de fato apressado. Durante a semana estivemos orando com Dona Clara para que Deus preparasse o encontro, a conversa, o que devia e o que não devia ser dito. E, principalmente, que o propósito de Deus fosse cumprido.
Tínhamos intenção de compartilhar com o Pastor Lucas e com seu principal auxiliar, o Pastor Joel, de uma só vez. Mas não tinha sido possível por falta de horários comuns. Então não nos demos por achados, marcamos dois encontros: no primeiro dia, com o Pastor Joel; e no dia seguinte, com o Pastor Lucas.
Fomos para o primeiro encontro cheios de expectativa. Eduardo começou compartilhando o "sonho" como sendo o estopim daquele encontro. Depois explicou também as ameaças de Marlon. Um pouco de cada coisa, apenas o suficiente para contextualizar, para que ele compreendesse o que estávamos dizendo. Eduardo também explicou o que foi possível do seu envolvimento passado com a Irmandade, naquele curto espaço de tempo.
O Pastor ouvia com olhos espantados, ar sério. Sei lá se estava acreditando de verdade no que a gente dizia. Mas, no final das contas, o encontro foi muito bom porque, tendo ele uma unção Profética, quando orou por nós no final, Deus o usou para trazer novas confirmações. E direções.
Nós não havíamos falado nada sobre o chamado Ministerial porque Deus havia dito para compartilharmos o testemunho.
Mas o Pastor Joel, orando primeiro por Eduardo, trouxe muitas palavras de encorajamento e confirmou o chamado dizendo que Deus lhe dava algo especial, grande, como poucos receberam. Falou um pouco mais sobre isso, sobre como seria no futuro, o que não convém liberar até que se cumpra. Ele foi o primeiro a dizer isso, mas este aspecto do nosso futuro Ministério viria outras vezes ao longo dos anos.
Depois, orou por mim. Engraçado que orou mais por mim do que por Eduardo, o que não era comum. E como ele não sabia bulhufas a meu respeito, recebi de coração aberto suas palavras porque os detalhes provaram que elas vinham do alto.
— Você é formosa, filha minha, bela aos Meus olhos. Às vezes você acha que sua oração como intercessora não tem valor, não tem Poder, mas eu estou ouvindo cada palavra sua. Estou preparando lugar, filha, no Ministério que tenho guardado para ti. Eu vou curar toda ferida na sua alma, todo trauma emocional.
Depois, através da boca daquele Profeta, o Senhor também acalmou meu principal medo. Nessa altura eu já chorava, porque aquelas palavras eram tão certeiras.
O Pastor então repreendeu o ataque noturno contra mim, e todo espírito de morte.
— Protege a mente da Tua filha. Protege a mente dela de todo o ataque... Terminou dizendo que Deus estava me preparando. Preparando para o Ministério que Ele tinha nos dado. Mais uma vez ficava claro que Deus estava chamando nós dois, e não somente Eduardo.
Saímos de lá renovados, encorajados, animados. Quando Deus realmente age é incontestável. Quando se tem contato com alguém que manifesta os Dons verdadeiros do Espírito, encontramos paz, força e amor.
No dia seguinte compartilhamos praticamente a mesma coisa com o Pastor Lucas. Foi um pouco mais difícil chegarmos aos finalmente porque ele falava bastante e toda hora perdíamos o fio da meada em conversas paralelas. Por fim, não permitiu que Eduardo desse qualquer testemunho de sua história na Igreja, nem mesmo com os líderes ou o grupo de intercessores pessoais dele. Compreendemos que talvez realmente não fosse o tempo de fazer isso. Mas cumprimos nossa parte ao deixá-lo devidamente informado.
Depois, ao saber de nossos problemas mais recentes, ofereceu-se para encaminhar um currículo de Eduardo.
— Se você não se ofender, tenho também algumas roupas, um par de sapatos quase novo. Eu poderia te dar!
— Não me ofendo, não, Pastor! Se o senhor quiser me dar, eu agradeço.
Mas saímos de lá sem saber se ele tinha compreendido realmente o propósito do encontro. Nem mesmo se tinha acreditado em nós. O fato do anjo ruivo ter dado diretamente essa direção parece que passou despercebido.
No d ia 11 de fevereiro Grace ligou para Eduardo.
— Oi, Daniel... como vocês estão? — ela sempre chamava Eduardo de Daniel e sempre falava no plural, me incluindo.
— Tudo bem, Grace... e aí, como está você também? A gente não se vê e nem se fala desde o congresso.
— Pois é... eu vou indo bem, estive viajando, mas agora já cheguei. E as coisas? Eduardo contou um pouco. Então Grace falou ao que vinha:
— Na verdade, estou pedindo sua ajuda, Daniel. Não precisa me responder já, OK?
— Sim, Grace! Pode falar!
— Estou organizando um pequeno evento, na verdade nem dá para chamar de congresso, é um encontro para alguns líderes. Escolhi a dedo algumas pessoas, só gente de confiança e que já tem um Ministério voltado para a área de Batalha Espiritual. Dentre eles, conto com a presença de seu Pastor!
Eduardo escutava ainda sem entender: — Sim...OK!
— Olha, eu te peço que você confie em mim, tá? "Nossa, que será?!?", Eduardo pensava consigo. E alto:
— Claro que eu confio em você, Grace.
— Bem... nós vamos falar sobre Satanismo nesse encontro. Serão só dois dias e vamos passar o tempo juntos nas dependências de uma Missão que fica pertinho de São Paulo. Sabe, estou percebendo que temos que abordar esse assunto. Eu mesma tenho tido várias experiências com grupos de adoradores do diabo. Não pessoas como você, da Irmandade, mas... isso é algo que está aí! E você me ajudaria muito se pudesse vir. Não vai ser nada muito formal, vamos conversar, compartilhar experiências... dividir experiências, na verdade!
— E eu iria... pra falar alguma coisa? — Eduardo tinha uma leve preocupação na voz. Grace talvez tenha percebido.
— Olha, não precisa responder agora. Ora um pouco, e vamos ver o que o Senhor te diz.
— Quando vai ser o encontro?
— No final da semana. Na verdade, eu gostaria que você desse um pequeno testemunho no dia 14.
Aquilo de repente veio como fogo no seu coração. — Grace... eu... olha... puxa vida!
— Que foi?
— Lembra daquele sonho com o anjo ruivo? Aquilo que te contei?
— Lembro, lembro sim.
— Pois é... ele falou segunda quinzena de fevereiro! Isto é, na segunda metade... e dado que fevereiro não tem 30 dias... dia 14 já é a segunda metade!... Acho que não tem o que orar, né?
— Eu não me lembrava desta data. Realmente nós nem pensamos nisso. E, a bem da verdade, eu estava indecisa se devia expor você ou não, por isso não avisei com antecedência. Mas parece que Deus colocou isso no meu coração de última hora!
— Bem... você pode contar comigo então. Deus já avisou, mas... essas pessoas são de confiança mesmo, né, Grace?
Tendo Deus avisado ou não, aquela era uma situação que gerava um leve desconforto. Ia haver uma exposição diante de pessoas desconhecidas. Enfim, nós tínhamos certeza de que Grace sabia o que estava fazendo! Tanto eu quanto Eduardo confiávamos muito nela.
— Eu convidei um a um, por carta, pedi a confirmação por escrito. Não seremos mais do que 40 ou 50 pessoas. — explicou a Grace.
No dia seguinte Eduardo veio me contar com detalhes aquela conversa. A princípio fiquei um pouco em estado de choque. Não porque ele fosse falar qualquer coisa, mas...
— Caramba, Deus cumpriu mesmo a data, hein?!
Nem parecia realidade, especialmente por causa daquela data tão certeira...
— E nós vamos dormir lá? — perguntei a Eduardo depois de colocar os pés no chão outra vez.
— Vamos, sim. A Grace disse que o lugar é muito agradável. Já fez retiro da equipe dela lá! Disse que nós vamos gostar. Vamos na sexta-feira de manhã.
— Tá bom. Acho então que você vai ter que ir com alguém, porque não sei se dá para sair do serviço mais cedo...
— Ela ficou feliz de saber que você começou a trabalhar!
— Pois é, e não posso faltar assim de cara.
— Será que não tem jeito mesmo?
— Acho melhor não... eu vou mais tarde, sozinha. Com quem será que você pode ir?
— A Grace disse que não tem problema pra eles me darem uma carona, me convidou pra ir com ela!
Eduardo foi para o tal encontro com Grace, na sexta-feira de manhã, enquanto eu ainda estava no serviço.
Saí do trabalho rapidamente e peguei a estrada, pensativa, escutando um Louvor e divagando em idéias. Cheguei na Missão com a tarde já avançada, sem problemas para encontrar o lugar. Só tive de perguntar uma vez. O lugar parecia ser bem grande, procurei estacionar o carro sem perder tempo. O tempo estava fechado, o céu cheio de nuvens escuras. Certamente vinha chuva por aí. Um pouco mais difícil do que achar a Missão foi achar a sala onde Grace estava com os participantes do congresso.
Finalmente me deram a informação certa e entrei na sala no meio de uma palestra em andamento. Sentei-me numa cadeira vazia mais ou menos do outro lado de onde Eduardo se encontrava. Ao seu lado não havia cadeira vaga, pois as duas estavam ocupadas por Grace e Ricardo. Sorri de leve para ele, acenando com a mão.
Aliás, as únicas pessoas conhecidas ali eram Ricardo e uma Pastora de nossa Igreja. Aquela mesma que me tinha pedido para examinar a mulher grávida. Eu observei cada rosto enquanto escutava, quieta no meu canto. Estávamos sentados lado a lado na sala não muito grande, as cadeiras espalhadas em círculo, onde todos podiam ver todos.
Não demorou muito mais e Grace encerrou.
— Vou dar um período de descanso agora, antes do jantar. Retomamos mais tarde, à noite.
Fui direto para perto de Eduardo, cumprimentei Grace e Ricardo. Todo mundo foi saindo ao mesmo tempo, conversando e falando entre eles.
— E aí? — perguntei a Eduardo.
— Todo mundo se apresentou, mas Grace falou por mim. Não me apresentou formalmente, disse apenas que eu era alguém que ela vinha ministrando há pouco mais de um ano.
— Vamos indo também? Você já conheceu aí fora?
— Eu não tive ainda oportunidade de xeretar, mas podemos dar uma olhadinha agora.
— Tá bom.
Na verdade não deu para irmos muito longe porque começou a chover. Então, tratamos de conhecer os dormitórios, onde já estava a maioria das pessoas. Eu fui para o das mulheres junto com a Pastora da nossa Igreja, com quem cruzamos pelo caminho. Eduardo foi com Ricardo conhecer o seu.
Assim que ajeitamos nossas coisas voltamos a nos encontrar do lado de fora.
— Estou num quarto junto com Ricardo e mais cinco ou seis Pastores — falou Eduardo. Embora ele nada comentasse comigo, Eduardo notara que, quando eles começaram a arrumar suas coisas, na bagagem deles havia algo crucial que faltava na sua: roupa de cama!
Puxa vida!.... Que mancada! Grace não lhe tinha dito nada sobre isso imaginando que fosse algo óbvio. Eduardo não falou nada, e deixou sua mochila sobre o colchão pelado. A caminha de todos ficou arrumada, menos a dele.
"Não é o fim do mundo."
E nem se preocupou mais.
Depois do jantar, voltamos para nossa salinha para darmos seqüência ao encontro. Eu e Eduardo, de mãos dadas dessa vez, perguntamos para Grace:
— E o Pastor Lucas? Você não disse que ele vinha?
— Vinha. Mas parece que ele teve um imprevisto de última hora. Que coisa. É uma pena!
Realmente era uma pena, porque se ele participasse do encontro talvez mudasse de opinião sobre o testemunho de Eduardo na Igreja.
No final da noite, pouco antes de encerrar, Grace dirigiu o grupo todo a orar pedindo proteção naquele lugar. Ao que parecia, mais de uma pessoa tinha ido falar com ela sobre uma inquietação neste sentido.
— É como se estivéssemos sendo espionados. Mas vamos orar agora em concordância! — fez Grace após explicar o motivo pelo qual pedia uma oração tão insistente.
Foi levantado um clamor de guerra ali. Quando terminou, um Pastor de cabelos grisalhos compartilhou a visão que o Senhor lhe trouxera. Nós dois já estávamos nos acostumando com aquilo.
— Enquanto a gente orava, o Senhor foi estendendo uma cúpula de proteção ao redor de toda a Missão, englobando todo o perímetro deste lugar. Ela foi se erguendo de baixo para cima e, quando a cúpula estava para se fechar, alguma coisa perfurou o bloqueio e entrou. Entrou aqui dentro, ficou dentro da cúpula — avisou ele.
— Seja lá o que for... — retorquiu Grace. — Vamos continuar orando para que seja paralisado.
Terminadas as orações e o período de estudo da noite, Eduardo me acompanhou até a porta do meu dormitório.
— Boa noite, "Mô"! — falou ele. — Vê se descansa bem, tá?
— Amanhã é o dia, né? — comentei só para puxar papo, só para descontrair um pouco a minha própria inquietação.
— Você está preocupada?
— Não é bem essa a palavra... estou mais ansiosa do que qualquer coisa. Como será que vai ser?
— A Grace falou para eu não me preocupar, ela vai dirigir tudo. Não vou ter que falar sozinho.
Suspirei. Dei-lhe um abraço e bocejei:
— Foi um dia cheio. Dorme bem, Nenê!
— Tchau! Até amanhã.
Dormi mais ou menos. Demorei um pouco a sair debaixo da coberta, fiquei apenas deitada na cama, quieta, observando as mulheres que se levantavam uma após a outra.
— Levanta, menina! — fez uma das Pastoras.
— Estou tentando acordar.
Me arrumei, arrumei minha cama, acabei conhecendo a moça japonesa que estava dormindo na cama ao lado da minha. Diferente das demais mulheres, mais velhas do que nós, ela também era novinha. Conversamos um pouco e fomos caminhando para o refeitório, para o café da manhã.
Eduardo já estava lá, e veio ao nosso encontro, todo sorridente. Fiz as apresentações, e fomos para a mesa. Naquela hora ele não me contou nada sobre como tinha sido logo cedo por causa da presença da moça. No entanto, depois de comermos, acabamos voltando para o dormitório a fim de escovar os dentes. Então ele contou.
— Foi esquisito hoje de manhã... não entendi nada! — Que foi?
— Eu dormi bem à noite, bem até demais. Para mim foi uma noite tranqüila e só acordei no dia seguinte. De manhãzinha os Pastores estavam todos levantando e eu fui direto para o banheiro tomar um banho. Como sempre. Fui falando "bom-dia" para aqueles com quem cruzava pelo caminho. "Bom-dia!", respondeu um dos Pastores, "Você dormiu bem?...". E foi aí que comecei a achar estranho, senti algo nas entrelinhas daquela pergunta, muito sutil, mas não dei importância. Respondi que tinha dormido bem, sim... mas dali a pouco era outro: "Dormiu bem...?" E eu respondia de novo que sim. Aí eu estava escovando os dentes e mais um outro, que tinha ficado me olhando pelo espelho, veio com a mesma pergunta. Gozado!... Parecia que tinha algo mais na expressão deles, no tom, sei lá! Algo além de uma simples cortesia, sabe?
— Ué...
— Fiquei encafifado, me perguntando "que será?" Quando saí do banho dei de cara com Ricardo. Ele deixou transparecer uma preocupação a mais que os outros não deixaram. Talvez porque já me conhecesse melhor. E veio logo dizendo a mesma coisa: "Você dormiu bem?" Eu já estava implicado né? "Dormi, pôxa! Por que todo mundo tá me perguntando isso e me olhando com cara estranha?"
— Pois é! — exclamei.
— Mas ele insistiu um pouco mais e perguntou de novo: "Dormiu bem mesmo!? Não sentiu nada de diferente, de anormal?" Eu falei que não, que estava tudo normal.
— Mas por que tudo isso?
— Olha, vou te contar. Aconteceu um negócio bem esquisito à noite. — Mas o que foi?
— O Ricardo acabou me dizendo. Acho que todo mundo estava meio dormindo no nosso quarto, já devia ser bem tarde. Ele acabou acordando com alguém que abriu a porta do quarto, e pensou que era um dos Pastores voltando do banheiro. Nessa hora viu que um outro Pastor também estava acordado, e este perguntou ao que entrava: "Tá tudo bem?" Certamente também pensando que o cara tava passando mal, tendo que ir ao banheiro naquela hora. — Sei.
— Daí o tal que entrou fez sinal de silêncio, pôs o dedo sobre a boca como quem diz para ficar quieto. Ricardo diz que viu muito bem, o outro Pastor também. Mas aí é que foi o mais estranho, o que entrou no quarto foi até minha cama e me pegou pelo pescoço, começou a me enforcar!
Isabela franziu a testa, achando aquela história um osso duro de roer.
— Mas serááá....? Essa história não está meio mal contada, não?
— Alguma coisa eles devem ter visto, porque estava todo mundo cabreiro de manhã. Mas escuta o resto... Ricardo disse que foi aí que eu emiti um som alto, um som de quem está engasgado, sufocado mesmo. E com isso mais uns dois ou três acordaram! Por isso que está todo mundo meio estranho comigo, sem entender.
— Você não sentiu nada mesmo? — indagou Isabela novamente.
— Eu fiquei mais encafifado do que eles depois que Ricardo me contou essa história. Pelo que ele me disse, todo mundo garantiu que viu e ouviu a mesma coisa... mas eu... nossa ... não senti nada, não vi nada. Ricardo disse que eles oraram. E foi só.
— E a tal figura que entrou no quarto? Que que aconteceu?
— Do mesmo jeito que entrou, saiu... pelo que ele disse.
— Que coisa mais estranha... vai ver foi um demônio, o que mais?
— Mas todo mundo orou ontem pedindo proteção.
— É... mas lembra que aquele Pastor falou que alguma coisa entrou aqui antes da cúpula fechar?
— Então sei lá! Vamos falar com a Grace?
— Lembra também quando Abraxas entrou dentro da nossa sala de Ministração, até que você e Ricardo sentiram o mesmo tipo de opressão? Nós também tínhamos orado pedindo proteção, pedindo que Deus selasse aquele lugar. E ele entrou do mesmo jeito!
— Vamos falar com a Grace.
Corremos até ela. Grace já estava a par de tudo. Pelo visto a história tinha corrido rápido e todos estavam incomodados com aquilo.
— Sim, vieram me contar — começou ela. — Vamos conversar sobre isso antes do almoço. Deus permitiu, então é porque há um propósito.
Realmente. Um dos Pastores, justamente o que tinha visto o vulto entrar no quarto e colocar o dedo sobre os lábios em sinal de silêncio, estava particularmente confuso.
— Não sei dizer... — ele repetia várias vezes. — Eu conheço a opressão demoníaca, mas quem entrou ali não era demônio... porque não transmitia opressão, entendem? Por isso naquela hora fiquei sem saber se era de Deus ou do diabo aquela aparição. Se por um lado a atitude dele pareceu suspeita, por outro... não tinha nenhuma opressão, nenhuma! Parecia uma pessoa comum. Por isso que, logo que a gente acordou, pensamos que fosse um dos nossos entrando no quarto.
— E como era o vulto?
— Um homem! Um homem de cinqüenta e poucos anos, um pouco grisalho...
— É isso mesmo! — Ricardo concordou, falando também.
Eu demorei um pouco para compreender, mas Eduardo, já sentindo um calafrio por dentro, compreendeu imediatamente. Sabia exatamente de que se tratava. Não era realmente um demônio, mas o espírito humano de alguém... alguém que viera por desdobramento... e, exercendo seu Poder, invadira a área de proteção estendida ao redor da Missão. (Leia Filho do Fogo.)
"Esse alguém... um homem... cinqüenta e poucos anos. Seria Marlon?! Ou... Zórdico?!"
Ninguém havia orado especificamente pedindo proteção contra aquele tipo de artimanha. Se os demônios tiveram que obedecer ao comando daqueles homens e mulheres de Deus, a verdade é que um espírito humano não é demônio. Nossa oração não tinha sido específica o suficiente. Por isso o Pastor não sentiu qualquer opressão, claro. O espírito de alguém não transmite opressão!
A falta de oração neste sentido permitiu que ele tivesse liberdade de entrar no nosso meio. Eduardo nada falou, mas assistiu à discussão e viu a que conclusões foram chegando. Elas tinham sido precisas. A revelação acerca dos espíritos humanos vinha chegando à Igreja, especialmente depois do lançamento do livro de Rebecca Brown.
Deus permitira o acontecido. Todos puderam comprovar naquela ocasião a veracidade destes fatos. Embora eles ainda não pudessem vislumbrar por que aquele espírito tinha atacado Eduardo, a verdade é que aquilo era mais um aviso da Irmandade para ele.
Eles sabiam que Eduardo iria falar...
Mais tarde, ele comentou somente comigo. Estávamos bastante conscientes do verdadeiro motivo daquele episódio. Eu estava um pouco preocupada, como não podia deixar de ser. Mas Eduardo se sentia estranhamente tranqüilo. Fomos comentar com Grace:
— Pode ser que tenha sido Marlon, eu sei que ele acompanha cada passo meu, mas também pode ter sido Zórdico — falou Eduardo. — Certamente eles sabem da sua proposta, Grace, sabem que eu estou aqui. Sabem que eu vou falar... não tem nenhuma dificuldade para um Sumo Sacerdote da Irmandade usar o Poder do desdobramento.
— Mas Deus revelou a intenção do inimigo, e também te protegeu. Não vamos ficar com medo e fazer a vontade do diabo!
Após o almoço, sentada ao lado de Eduardo, só larguei da sua mão quando Grace começou a direcionar o testemunho.
Não durou muito, nem ele precisou falar demais. Grace tinha montado aquele período em forma de perguntas e respostas. Ela fazia uma pergunta direcionada e Eduardo respondia. Dessa forma, em pouco mais de quarenta minutos, Eduardo deixou claro aos presentes que a Irmandade de fato existia, que ele tinha feito parte desta organização, e que ela estava empenhada em concretizar seus objetivos a todo custo.
O grupo todo olhava para ele estranhamente, e ouvia. Não sei até que ponto acreditaram na realidade daquilo. Agora já não se tratava de algo tão distante, uma realidade dos Estados Unidos, uma realidade de outra cultura. A julgar pelas caras e pelos olhares, aquilo que Eduardo compartilhou, em breves nuanças, não era exatamente o que as pessoas esperavam. Quer dizer, ninguém esperava ouvir falar na Irmandade como fazendo parte do nosso cotidiano, sendo algo tão próximo de todos nós.
Eduardo era brasileiro e o que ele estava contando fazia parte da nossa sociedade brasileira. Depois, ele era também muito novo; uma pessoa comum. Creio que também por isso a maioria dos presentes tinha uma certa relutância em aceitar sua história.
Confesso que, fragmentada, era mesmo um osso duro de roer. Estratosférica demais para ser digna de crédito.
Mas a verdade era uma só: Deus cumprira com a Sua Promessa!
Para Eduardo, para mim, era o que contava naquele momento!
* * * *
Aquilo havia sido um sinal de Deus para nós. Na nossa cabeça, imaginávamos que talvez Eduardo já fosse começar a dar testemunhos em Igrejas, afinal, o que mais Deus haveria de querer? Mas não foi assim que aconteceu.
Todo Ministério começa com o preparo para ele!
Assim foi com Davi que, ungido por Samuel, ocupou o trono apenas anos mais tarde, depois das perseguições que serviram de treinamento para ele. Assim foi também com Moisés, que passou quarenta anos no deserto antes de voltar ao Egito como libertador... assim foi com os apóstolos de Jesus, que primeiro caminharam com o Mestre, e somente depois da descida do Espírito Santo é que estiveram aptos a prosseguir adiante
Começamos a aprender naquele ano que a unção leva um tempo para se manifestar. O caráter precisa ser lapidado para que sejamos de fato transformados em vasos de honra, prontos para exercer a função predestinada a nós. Geralmente esse lapidar não acontece sem dor, sem perdas, sem lágrimas.
E, sem isso, não há como a unção se manifestar.
Davi foi perseguido por Saul e sofreu muito. Moisés abandonou toda a opulência do Egito para viver entre aqueles que nada eram. Conosco também seria assim, embora nós não o percebêssemos naquele início da nossa trajetória.
Teríamos que esperar, o Ministério estava começando, sim... mas ele começava com treinamento! A partir daquele final de mês o treinamento seria de outra estirpe.
Enquanto Eduardo não entendeu isso, errou. E eu, também por não entender endossei o seu erro algumas vezes, fizemos coisas em tempo errado, da maneira errada.
Foi mais ou menos isso o que aconteceu logo depois, no carnaval. Viajamos para aquela mesma cidadezinha de interior onde tínhamos estado no ano passado. Claro que se lembravam de Eduardo e do pequeno testemunho que ele havia dado (sob pressão!). O Pastor Décio logo veio insistindo para que ele falasse novamente, o que acabamos concordando com menos relutância, afinal... Deus havia dito mesmo para Eduardo falar.
Só que ainda não era tempo de falar. Foi uma pena que tenha acontecido assim. O Reino Espiritual foi sacudido mais uma vez, eles estavam em processo de mudança, tentando banir de uma vez por todas a maçonaria do seu meio. Mas não conseguiriam suportar o contra-ataque do Inferno. Era preciso uma série de cuidados, principalmente oração intercessória!
Não demorou muito tempo para o Pastor Décio ser destituído, e os membros começarem a se dispersar. A Maçonaria continuou sediada ali naquela Igreja. Seria um local que, futuramente, daria pena de ver. Tudo porque todos nós acabamos fazendo aquilo que Deus não tinha mandado fazer.
Mas... naquele carnaval ninguém estava pensando nisso, muito menos tinha condição de vislumbrar isso!
Eu já estava implicada e tinha lá minhas razões. Não havia nem uma hora para estarmos juntos, pois o tempo inteiro as pessoas assediavam Eduardo com perguntas. Ele não se importava muito. Mas realmente não conseguimos descansar naquele feriado.
Aproximava-se o momento em que Eduardo deveria falar, no último dia, mas não havia ninguém orando e eu me sentia muito preocupada com esse descuido. Recordava-me do recente episódio com o espírito humano e ficava imaginando o quão desguarnecido estava aquele acampamento! Eduardo ia novamente se expor, falar das mesmas coisas, sem nenhuma cobertura de oração... aquilo me parecia completamente inconcebível! No ano anterior, ainda vá lá... mas agora de novo?!
Eu o chamei várias vezes para orar naquele dia, mas ele não conseguia se desvencilhar das pessoas. Parecia mesmo esquecido da importância de orarmos um pouco.
— Pelo menos vamos orar nós dois, Eduardo! — eu havia dito, meio em pânico, com o rosto tenso. — Não vai se expor assim desse jeito!
Mas havia pessoas ao redor dele falando, falando, falando, batendo no seu ombro, fazendo perguntas, cercando. E nós não sabíamos como sair dali sem sermos mal-educados. Eu olhava no relógio toda hora, sorria meio amarelo e já nem prestava atenção a nada. Talvez achassem que eu fosse chata, apavorada. Só conseguia me recordar de Grace e de todos aqueles Pastores orando em concordância, e mesmo assim aquele espírito humano invadiu o quarto e pôde tocar em Eduardo...
Sentia meu coração apertado porque todos aqueles jovens à nossa volta tratavam daquele assunto como quem discute um filme muito interessante de televisão!
Não agüentei mais e cochichei para Eduardo, baixo, sem que os outros percebessem:
— Olha, eu vou começar a orar sozinha, tá? — meu tom de voz prenunciava um pouco de irritação. — Estou lá no carro!
Sem esperar mais, escapuli sem nem voltar o rosto novamente para trás. Entrei no carro, fechei a porta e cruzei as pernas sobre o banco, abraçando os joelhos perto do peito. Na primeira frase da minha oração já estava chorando, de pura tensão, de puro nervoso com aquela situação desleixada. Desabei em lágrimas diante de Deus...
— Senhor, tenha misericórdia de nós, por favor! Estou me sentindo mal, não consigo me sentir em paz, sinto meu coração apertado. Tenha misericórdia dessa situação porque as pessoas não sabem exatamente com o que estão lidando... por favor, Pai, estende Tua Proteção sobre este lugar.
Chorei, orando em línguas no meio das minhas súplicas por proteção.
— Envia Teus anjos para cá, Senhor, dá ordem a eles para que venham nos cercar! — abri os olhos e comecei a orar de olhos abertos, enquanto observava as árvores perto do carro. — Que os Seus anjos formem uma cerca viva em todo o perímetro desta chácara, não deixa nenhum espaço vazio, que eles cerquem completamente todo este lugar... uma cerca dupla, com anjos por dentro e por fora, costas a costas, lado a lado. Enche esse lugar com anjos, meu Pai!
Continuei orando nesse sentido por mais algum tempo, depois outra vez em línguas, depois voltava a falar nos anjos e na cerca viva que eu gostaria que o Senhor formasse.
Eduardo só conseguiu vir ao meu encontro uns vinte minutos depois. Ele não se sentia tão preocupado assim, eu não conseguia compreender aquela calma. Quando ele abriu a porta do carro eu estava com o rosto banhado de lágrimas, e até me assustei com a sua presença pois não estava prestando muita atenção ao que acontecia à volta.
— Que foi?
— Nada, não foi nada. Vamos orar em concordância que é mais importante, não tem muito tempo.
Oramos, cada um por sua vez. Mesmo que eu já tivesse orado, sabia ser muito importante orarmos em concordância. Entardecia e garoava, realmente o único lugar privativo e sossegado ali na chácara era o interior do nosso carro.
Eduardo também observava as fileiras de árvores ao redor da chácara enquanto orava, o chão de terra coberta de cascalho, as gotinhas de chuva que respingavam no pára-brisa.... de repente, enquanto eu orava, ele soltou uma interjeição de espanto:
— Nossa! Olha, eles estão ali! E ali também!!
Eduardo já chorava olhando em todas as direções, virando a cabeça para todos os cantos. Seu corpo até parecia tremer de emoção.
— Ali em cima do telhado também tem!
Comecei a agradecer a Deus, com o rosto marejado, sentindo sumir o que ainda restava da minha tensão. Eu sabia do que Eduardo estava falando! Eu não os pude ver como ele, embora tivesse olhado com olhos meio compridos para onde Eduardo apontava. Mas, em segundos, percebi que a visão fechou. Durou apenas alguns instantes, só para que soubéssemos que eles estavam ali. Logo que encerramos nossa oração eu o cravejei de perguntas sobre os anjos:
— Eles estavam onde?!
— Em toda a volta do acampamento, formando como se fosse mesmo uma cerca... dupla!
— Por dentro e por fora?!
— É, é isso mesmo. A fileira de dentro estava de costas para a fileira de fora, a de dentro olhava para dentro da chácara, e a fileira de fora olhava para fora...
Foi a minha vez de ficar emocionada.
— Eu pedi isso!! Exatamente isso! Antes de você chegar. Eu nunca tinha pensado em pedir isso, mas estava assustada, então pedi essa cerca de anjos por dentro e por fora, em toda a volta deste lugar!
— Puxa... então Deus atendeu! Foi exatamente isso que eu vi. Deus abriu a visão certamente para que você soubesse da proteção, porque você estava muito nervosa. Ele me mostrou justamente para que eu pudesse te descrever, e você ficasse sabendo que sua oração foi atendida. Aconteceu tão de repente, enquanto a gente orava vi uma luz brilhando perto de mim, meio que por visão periférica. Mas aí, quando dei por mim, eu já estava enxergando eles: uma longa fileira de anjos... uma verdadeira cerca viva de anjos!! Ia até lá embaixo! Custei a acreditar, parece que a mente pára de trabalhar nesses momentos. Tinha anjos também em cima do telhado ali da casa principal, e a mesma luz aparecia meio indistinta em algumas árvores, como se eles estivessem também na copa das árvores. Quer dizer, esse lugar está repleto da proteção de Deus. Ainda bem que oramos!
Eu estava muito feliz, Eduardo também. Como o sobrenatural de Deus era real!!!
— Aqui está cheio de anjos! — murmurei novamente. — Eu pedi que Deus enchesse esse lugar de anjos!
— Mais os vinte e quatro que estão conosco.
— Isso você não viu, né?
— Não. Mas eles estão aqui — afirmou Eduardo.
Nós nos abraçamos, alegres e gratos. Deus estava nos protegendo. Apesar — hoje nós cremos assim — de que, mais uma vez, aquela não era a Vontade Perfeita do Pai, mas Sua Vontade Permissiva. Ele conhecia a intenção do nosso coração Nós achávamos que o Ministério deveria começar, por isso nós fizemos de coração puro, de pura ingenuidade. Aquele erro poderia ter sido evitado se tivéssemos perguntado a opinião de Grace.
O Culto de encerramento, em que o Pastor cedeu seu lugar para Eduardo, acabou às dez da noite. Mas fomos até as duas da manhã conversando, compartilhando, orando com os colegas do acampamento.
Depois disso o Pastor Décio se animou pois percebeu que Eduardo facilmente arrebanhava as pessoas com a fascinação da sua história e carisma pessoal. Então quis aproveitar para organizar logo depois um evento que, segundo ele, seria "mega". Um Louvorzão para todas as cidades da região com o testemunho de Eduardo no final. Para "salvar vidas"!
Eduardo ficou bastante animado, não viu mal. Mas eu fui imediatamente do contra:
— Ele não está preocupado com você, nem mesmo se essa é a maneira de Deus. Não acho isso bom! Ele está te explorando, esquecendo que é um assunto muito sério.
— Eu não confirmei ainda se vou ou não. Mas mesmo assim ele está dando andamento nas coisas.
— Tá vendo? Ele já está certo que você vai! Acho que você devia consultar a Grace antes de sair por aí.
— Mas Deus falou! — retruquei. — E ela mesma me convidou pra testemunhar. Continuei insistindo, paciente:
— É, mas veja a diferença! Foi tudo feito direitinho, tinha oração pelo menos! Grace escolheu a dedo os participantes. Não era um evento evangelístico, feito no meio do nada, para pessoas do mundo!! Uma coisa não combina com a outra.
Discutimos ainda um pouco mais, pesando prós e contras. Eduardo era cabeça dura, teimoso. Mas eu também era. Preocupava-me com a sua segurança, e especialmente se Deus queria que a gente fizesse daquela maneira.
— Eu também quero agradar a Deus! — continuei. — Mas não sei se essa direção desse Pastor está correta... desde o ano passado que eles deviam ter se posicionado melhor contra essa história de Maçonaria e não fizeram! Desde o ano passado que eles deviam ter orado melhor pelo seu testemunho, e também não fizeram. Eles não conseguem pôr a casa deles em ordem, e vão dizer o que você deve fazer? Cuidado com essa história!
Consegui convencê-lo a comunicar Grace antes de dar qualquer resposta ao Pastor. Aquele era um princípio fundamental que iríamos introjetar dentro de nós: pedir conselho a pessoas idôneas.
— Isso! Fale com a Grace! — disse eu mal-humorada com tanta teimosia.
— Isso!! Vou falar com a Grace.
— O que ela disser... tá valendo! OK?
— Tá bom.
Dei de ombros e nem falei mais nada. Mudamos de assunto.
Mais tarde, em sua casa, Eduardo ligou para Grace certo de que ela ficaria muito feliz com a oportunidade. Mas, para sua grande surpresa, ela foi terminantemente contra. Exatamente como eu havia dito.
— Mas por que não, Grace?...
— Porque você não está pronto para uma exposição dessas. — explicou ela, calma a princípio. — No nosso encontro, mesmo com todo o cuidado que tivemos, com pessoas que têm visão aberta e tudo mais, aquele fulano conseguiu entrar e ir até o seu quarto. Imagine uma coisa assim, num evento destes. Esse Pastor não está agindo bem. Acho melhor eu falar com ele... precisa tomar mais cuidado...
Eduardo ainda questionou um pouco mais, totalmente inconformado.
"Talvez, se eu insistir, mesmo que ela continue não concordando... talvez, quem sabe, pelo menos não me proíba...", pensou ele.
Mas Grace não permitiu mesmo.
Conhecemos nessa ocasião uma outra faceta do seu amor. Muitas vezes o amor exorta e disciplina. Se ela tivesse passado a mão na cabeça de Eduardo, e se isentado de qualquer responsabilidade, ele talvez ficasse muito satisfeito num primeiro momento. Mas ela estaria lhe fazendo o mal, e não o bem. Ele era um verdadeiro bebê dentro do contexto Ministerial. Hoje louvamos a Deus pela vida da Grace, porque quando Eduardo foi mais incisivo...
— Então você não me dá a sua bênção?
— Não. Para isso não. — Grace foi categórica, muito firme, sem meias palavras. — Eu não estou autorizando você a ir. E se você for, não venha me procurar depois quando estiver sendo retaliado! Porque eu não vou te ajudar!
Eduardo ficou até mudo. E não teve outra alternativa senão concordar. De bico.
— Tá bom.
Mas ficou mesmo de bico. Durante vários dias, talvez até mesmo algumas semanas.
"Quem é que ela pensa que é?"
E sua vontade era ir assim mesmo. Que sorte eu ter ficado ao seu lado nessas horas, para colocar os seus pezinhos no chão. Ao saber da opinião de Grace, coloquei um sorrisinho no rosto:
— Não te disse? — espetei carinhosamente.
— Ah, "Mô"!!! Eu não entendo por que isso.
Fiz o papel de consoladora, procurando convencê-lo por bem que não havia prudência nenhuma naquilo. E que o tempo certo chegaria. Não tivemos coragem de desobedecer a Grace, começamos a aprender logo de início que obediência e totalmente fundamental para quem quer exercer qualquer cargo Ministerial. Às vezes a gente se acha muito capaz, muito esperto, muito maduro... usamos a desculpa de que "Deus me falou", e não escutamos ninguém... mas nisso já está explícita boa parte da nossa infantilidade!
Como bebês que nós éramos, pelo menos em termos ministeriais, nada melhor do que escutar Grace... que tinha anos e anos e anos de experiência nas costas. Mais ainda: conhecia nosso contexto!
Com o passar dos dias Eduardo ficou mais calmo, mas não de todo. Como era difícil ter que se submeter! Ele não estava muito acostumado a isso.
Dona Clara foi outra que escutou seus resmungos de indignação contra a Grace:
— E você acha, Dona Clara? Ela disse pra eu nem procurar mais ela se desobedecesse! — aquilo realmente o tinha incomodado. — Está sendo difícil pra mim, Grace está querendo me controlar.
— Isso é zelo pela sua vida. Cuidado com você! Deus colocou você perto dela, para ela cuidar de você. É isso que ela está fazendo!
E foi falando. Eu também ajudei. E ele foi se acalmando. Até o ponto de ficar bem de novo.
Depois, no próximo encontro com Grace, Eduardo desabafou seus sentimentos. Se não falasse, não conseguiria ficar em paz de todo. Isso nós também teríamos sempre como princípio... acertar nossas pendências com os irmãos! Não tem prato mais cheio para o diabo do que um coração magoado.
Grace escutou e aí explicou, com carinho e paciência, o que Dona Clara já tinha dito:
— É zelo, Daniel... eu não posso aprovar uma coisa dessas. Deus trouxe você até aqui, me incumbiu de uma responsabilidade em relação a você... entende? Eu estou vendo aquilo que você não vê, não posso deixar você ir direto para a boca do lobo.
E etc. .. etc. .. etc. ..!
Eduardo entendeu. E tudo ficou bem. Mas bem que dou umas risadinhas até hoje!
Naquele mês de fevereiro começamos a fazer uma espécie de Seminário na Comunidade. Na verdade, era o chamado "Curso de Formação de Líderes". Nós tínhamos assistido à Formatura dos participantes do primeiro curso, que tinha acontecido no ano passado, e ficamos sabendo que um novo curso teria início naquele mês. Seria toda sexta-feira à noite, até dezembro, e aprenderíamos com os diversos Pastores da nossa Igreja o básico sobre diversas matérias teológicas. Eu me entusiasmei logo de cara e Eduardo também achou interessante, de forma que fizemos nossa matrícula. Muita coisa que seria ensinada ali eu já tinha aprendido por conta própria, em leituras que tinha feito ou mesmo através dos estudos da A.B.U. Desde sempre eu costumava estudar a Bíblia por conta própria, fazia devocional no carro, cedinho, desde a época da Faculdade.
Mas alguns temas pude aprender melhor, como certos aspectos da História panorâmica de Israel, que estava no Velho Testamento, e dicas de cunho prático sobre a montagem de Sermões. Para Eduardo boa parte de todo o curso foi nova e bastante proveitosa. A gente fazia todos os trabalhos e ao longo do ano faríamos todas as provas.
O coordenador daquele curso já tinha explicado que bem menos da metade das pessoas efetivamente se formava no final do ano, e ele desejava que naquela turma mais pessoas estivessem dispostas a encarar os estudos até o fim. Intimamente, Eduardo e eu nos dispusemos àquilo.
Assim nossa vida continuou rolando normalmente.
No final de fevereiro, não muitos dias depois do acampamento, eu iria passar por uma dura prova. Sozinho.
Esta foi a única vez em que eu não contei nada a Isabela. Nem a Dona Clara. Nem a Grace.
Tivemos algumas brigas no começo do mês e tanto eu quanto ele estávamos angustiados com tudo aquilo. Me recusava a aceitar que minhas atitudes durante as discussões — e as dela também — pudessem ser fruto, pelo menos em parte, de uma série de ataques que visavam algo maior. Por mais incrível que pareça, levei muito tempo para enxergar isso, simplesmente não conseguia ver com muita clareza.
Isabela tinha uma visão mais balizada do Reino Espiritual, e estava sempre me chamando a atenção nesse sentido. Mas minha mente talvez estivesse cauterizada, e a Irmandade certamente lançou Feitiços fortes para cegar-me ainda mais.
Eu não conseguia ver o contexto espiritual nos nossos desentendimentos. Claro, nem tudo é culpa do diabo, temos as nossas áreas de fraqueza. Isso é natural em todo ser humano. Mas o que os demônios faziam, e muito bem-feito, diga-se de passagem, era tocar exatamente nestas áreas de fraqueza. Depois disso ficavam à volta, só esperando a gente reagir para poderem atuar mais.
E a gente reagia. Isso facilitava — muito! — a sua capacidade de influência. O principal ficava para depois: eram estes os melhores momentos para lançar novas sementes malignas no meu coração, logo após as crises emocionais geradas pelas desavenças. Quando eu não enxergava mais nada, a não ser que Isabela era culpada!
Hoje percebemos melhor como foi que o inimigo agiu.
Eu estava desgastado, ela também. As promessas de Deus já pareciam longínquas e sem brilho diante da agressividade dos ataques de Potestades e Principados. Sabíamos bem o quanto éramos visitados por eles.
Nós íamos vivendo e esperando para ver o que aconteceria. Isto é, se Deus realmente ia abrir a porta do Ministério. No meu íntimo, para dizer a verdade, quando vinha a crise emocional meu desejo era que antes não acontecesse nada!
Foi nessa altura que levei um golpe que quase me derrubou. Se por um lado Deus dissera que o Ministério começava na segunda quinzena de fevereiro, Marlon também tinha estabelecido a primeira semana de março como prazo limite para meu retorno.
Certamente que estava havendo aí um confronto, mas eu não estava pensando nisso, não estava vendo. A gente procurava não pensar nisso, tínhamos que nos preocupar com as coisas do dia-a-dia. Ninguém pensa em guerra o tempo todo!
Mas a verdade é que eu teria que escolher... eles não iam simplesmente deixar barato!
E num péssimo dia, levantei chateado depois da nossa indisposição na véspera... e resolvi sair para caminhar um pouco. Nada melhor do que ir até o parque perto de casa. Levantei, tomei banho e saí.
Fui andando devagar, minha mente estava povoada pelas lembranças dos últimos dias... eu pensava em todas as coisas que Deus tinha feito! Ainda estava embasbacado porque Grace me tinha chamado exatamente na segunda quinzena de fevereiro... que coisa! Eu ficava matutando o que seria aquele Ministério, como ia ser no futuro. Não tinha idéia.
"O que será que vai ser, será que eu vou ficar dando testemunho por aí? Mas de que adianta? Lá no acampamento as pessoas foram movidas somente pela curiosidade... mesmo no congresso da Grace... eram todos Líderes, Pastores, mas não sei se me deram crédito... que será que Deus quer de mim?"
Apesar das promessas de Deus eu me sentia um pouco temeroso a respeito do que viria pela frente, como se estivesse sendo lançado num quarto escuro, não soubesse o que tinha ali, e o caminho fosse iluminado a cada passo. Apenas a cada passo.
"Eu entendo que Deus está iluminando este caminho, mas é um caminho onde eu posso enxergar apenas o próximo passo, quando muito."
Não podia contemplar nada a distância, não era nada muito claro, não era nada muito cheio de luz... não dava para saber o que ia acontecer. Isso me assustava um pouco, incomodava; por outro lado, nossa situação financeira também estava particularmente me perturbando.
"Meu Deus... e essa questão financeira? Puxa vida... como vou ter um Ministério assim desse jeito, como vou me sustentar, como posso pensar em ter uma família? Deus precisa me abrir uma porta de emprego!"
Nunca me passou pela cabeça que fôssemos viver do Ministério, quer dizer, financeiramente falando. Deus havia dito que Isabela largaria a Medicina, mas não havia dito que eu deixaria de ter meu trabalho secular, meu emprego, minha fonte de renda. Eu imaginava que o Ministério do qual Deus estava falando significava dar ocasionalmente um testemunho, escrever o livro... mas nunca largar meu trabalho, minha segurança!
Vislumbrei ao longe as árvores do parque. Eu carregava comigo meu san-ti-kuan, ali era o único lugar com espaço suficiente para manejá-lo. Embora tivesse realmente entregado o Kung Fu para Deus, vez por outra ainda mexia com o nunchaku, com o san-ti-kuan.
Atravessei o portão e percebi que o lugar estava praticamente vazio, como era comum num dia de semana, naquele horário. Estava muito agradável, o sol atravessava a copa das árvores e pessoas idosas caminhavam ou se sentavam nos bancos. Fui até meu local costumeiro, rodei um pouco meu san-ti-kuan, mas me cansei logo. Minha cabeça estava em outro lugar.
Então fui beber água e sentei sobre uma daquelas mesinhas de pedra que ficam ali perto. Estava uma manhã pacata, silenciosa, e apenas apoiei o cotovelo sobre o joelho, o queixo no punho, e fiquei escutando o canto dos passarinhos enquanto observava um senhor entretido nos seus movimentos lentos e suaves de Tai-Chi. Fiquei me lembrando das aulas que eu mesmo dava naquele exato lugar. Se dissesse que não fiquei ligeiramente saudosista estaria mentindo. Quanto que minha vida tinha mudado....
Um dos funcionários do parque acabou vindo até onde eu estava para reclamar comigo:
— Você não pode ficar sentado em cima da mesa. Seria melhor que você sentasse no banco.
— Pôxa, mas a mesa é de concreto... até parece que estou quebrando a mesa!
— Mas não pode... é ordem da segurança. Depois, sobra pra mim.
Fiquei um pouco irritado com aquele cara. Ele foi embora esperando que eu acatasse sua ordem, mas ignorei, não desci. Acho que eu estava um pouco irritado com tudo. Não demorou muito e ele voltou, tentou me convencer a descer da mesa humildemente. Como ele fosse educado, acabei cedendo. Mas fiquei um pouco emburrado.
"Mas que cara chato... custa me deixar em paz? Estou aqui, quieto, sem incomodar ninguém! Será que ele não tem mais nada pra fazer, não?"
Fiquei um pouco sentado no banco, mas estava incômodo porque ele era muito pequeno. Então voltei a sentar na mesa. Não demorou muito e escutei passos atrás de mim.
"Pronto, aquele cara já está voltando para me encher...", pensei ao voltar a cabeça.
Mas não era o funcionário do parque. Era Marlon! Vinha caminhando devagar, sem pressa, vestindo um jeans, uma camisa para fora da calça, bem despojado.
Ainda de longe ele me enviou um sorriso e falou:
— Eu já conheço essa sua cara!
— Que cara? — respondi devolvendo o sorriso.
— Já implicaram com você, né? Tive que rir um pouco mais.
— É... implicaram... não querem que eu sente aqui em cima!
A presença dele ali dispensava maiores explicações. Eu não tinha por que sentir medo de Marlon, nem raiva, nem mágoa. Ele sempre tinha sido meu amigo. Eu estava introspectivo, queria conversar com alguém... então fiquei feliz em vê-lo ali ao meu lado. Não vi nenhuma maldade naquela situação, nada premeditado da parte dele.
Ele chegou perto da mesa e, meio injuriado, reclamou:
— Você não vai nem me dar um abraço? — Ah!
Levantei e nós dois nos abraçamos. Realmente estava contente em vê-lo de novo. Era alguém com quem podia bater um papo. Não era um inimigo.
— Que que você está fazendo por aqui? — indaguei.
— Vim caminhar um pouco. Às vezes eu venho caminhar aqui!
— Pô... e você não tá ocupado com outras coisas?
— Hoje não. Está tudo sob controle! Mesmo porque, eu imaginava que ia te encontrar aqui.
— Ah,é?
Como era do feitio de Marlon, ele se acomodou e começou simplesmente a conversar comigo da mesma maneira de antes.
— Puxa... você mudou em algumas coisas, não? Já reparou isso? Você tá diferente!
— Não acho, eu ainda sou o mesmo... o que mudou foi a minha forma de pensar... minha maneira de agir. A experiência que tenho tido com Deus tem feito isso, tem feito minha vida mudar, mas é um processo gradativo!
Ele se limitou a dar um sorriso e não contestou. Mas colocou a mão sobre o meu ombro num gesto amigável. Sua voz soou amistosa.
— Você está de fato feliz? Você está contente com a sua decisão? Eu tenho estado preocupado com você... — ele olhava bem dentro dos meus olhos.
— Sim. Eu estou contente!
Talvez eu não tenha usado de muita convicção.
Ele tinha me pegado numa manhã em que eu não estava muito bem. Não tinha mais o mesmo número de amigos, e isso me frustrava, sem dúvida. Também me sentia como um mero objeto de curiosidade, ninguém se aproximava de mim por mim mesmo, mas por causa da minha história. Quando as pessoas vieram conversar comigo, no acampamento, foi apenas para me encher de perguntas. Mesmo no congresso da Grace: ninguém ligou para mim, nem mesmo para me emprestar um lençol. Eu tinha dormido usando a mochila de travesseiro e o casaco de cobertor; todo mundo viu isso, mas ninguém me ofereceu nada.
A verdade é que ninguém queria saber quem eu era de fato. E a minha grande dúvida é se o Ministério ia ser isso, se eu ia ser tratado como um macaquinho amestrado o tempo todo! E as pessoas iam me chamar para repetir e repetir e repetir a mesma coisa...
Isso, claro, não me deixava contente. Especialmente naquela manhã. Parece que essa perspectiva estava pesando um pouco mais.
Claro que eu não ia dizer nada disso a ele, mas acho que Marlon percebeu que as minhas palavras estavam um pouco vazias. Meu semblante não condizia com o que estava falando.
— Olha... talvez você não se lembre, mas os Estados Unidos é um lugar muito bom! — ele começou a me contar sobre várias cidades.
Para mim aquilo era pouco familiar por isso não me lembro quais foram as cidades que ele citou.
— .... e nesse lugar as ruas são lindas, largas, tudo é cheio de árvores! Os shoppings são enormes, uma coisa indescritível, muito diferente daqui. Isso sem falar na qualidade de vida, país de primeiro mundo é outra coisa! Aliás, eu estive lá pela última vez não faz muito tempo. Tenho até algumas fotos aqui comigo!
Casualmente Marlon foi tirando do bolso as tais fotos. Foi me mostrando diversos lugares, paisagens bonitas, lagos, montanhas... eu escutava, fazendo um ou outro comentário de vez em quando. Então, numa das fotos estava Thalya.
— Ah, eu tinha esquecido de te falar que Thalya também esteve conosco. Isso aqui é a vista de uma casa que nós temos lá, num condomínio fechado. Essa é a sacada que mostra uma das vistas mais bonitas!
Thalya estava naquela sacada, sozinha, mostrando a paisagem. Não fiz qualquer comentário.
— Nós fomos pra lá desta vez num grupo pequeno, porque havia uma reunião especial. Você sabe, né? Estamos caminhando! Você tem acompanhado? Tudo o que nós falamos que ia acontecer, está acontecendo! E vai acontecer!
— Marlon, eu não vou discutir isso com você. Eu creio numa coisa, você crê em outra, nós vemos tudo sob pontos de vistas diferentes.
— Mas será mesmo que você não está no engano? Será que... em algum momento você não se deixou enganar? Por que afinal... o que é o diabo? O que são os demônios? Se você for olhar ao longo da História toda crença, toda religião tinha os seus Deuses. E os judeus fizeram questão de chamar os deuses dos outros povos de demônios. Poderia muito bem ter sido o contrário! Você sabe que todo ser humano tem uma certa porção de maldade dentro de si, o mal está dentro de cada ser humano. E o ser humano, para tentar se desculpar da maldade dele, joga a culpa no diabo. Você sabe muito bem que nem tudo é culpa do diabo! Você sabe muito bem como Lúcifer age... muita coisa que os Cristãos pintam e crêem, dizem por aí que é culpa dele, você sabe muito bem que não é, que ele não tem nada a ver. Ele só age aonde existe a essência, e a essência do mal está em todo ser humano, então ele tem liberdade de agir em todo ser humano! Assim como Deus também tem a liberdade de agir em todo ser humano porque a essência do bem também existe em todo mundo. Não é preciso ensinar isto a ninguém: todo mundo tem consciência do Bem e do Mal, ninguém precisa ensinar porque está dentro de você.
Fiquei ouvindo porque eu gostava de ouvir Marlon falar. Sabia que ele estava lançando sementes para tecer uma idéia... e ele sempre falava com inteligência e profundidade, por isso gostei de escutar. Mas naquele momento tive que interromper:
— Bem, não vou ficar discutindo isso... esse é o seu ponto de vista! O que para mim é fato, é inevitável, é que hoje eu tenho uma paz que eu nunca tive — e isso realmente era verdade. Fui muito sincero ao dizer. — Quanto sangue é derramado pelas tuas mãos? Quanto? O que você acha disso? Quer dizer, isso é a essência do mal que Deus colocou dentro de você, quando te criou? Ou seja, o culpado de tudo isso é Deus?!
— Não! Mais uma vez eu te digo: nós não temos que culpar Deus, nem o diabo... nós, humanos, temos o livre-arbítrio, temos poder de decisão! Mas, veja bem, não é isso que eu quero discutir, não é isso que eu quero falar com você. Não vim aqui para deblaterar com você, eu te amo, quero o seu bem... e você faz falta na nossa família! Aonde você está hoje, não faz parte de nenhuma família. Ou faz?
E aí Marlon começou a pegar no ponto certo.
— Alguém te dá atenção? Alguém te ouve? Alguém está de fato preocupado com você? Ou será que eles estão mais preocupados com a história que podem tirar de você? O que é o Cristianismo, afinal? Esse Cristianismo que você está vendo nas Igrejas? Será que você não pára pra pensar, pra fazer um mínimo de comparação? Em qual das duas famílias você se sentia melhor?
Ele fez uma pausa e eu não respondi. Pelo que ele continuou:
— Vou te dizer uma coisa, Eduardo... você não quer mudar de vida?
— Não. Eu já tomei uma decisão. Não posso voltar atrás!
— Talvez você esteja com receio, com medo. Do que as pessoas vão pensar, ou como você vai lidar com essa situação... eu sei, se eu estivesse no seu lugar, pensaria a mesma coisa.
Eu compreendi que ele estava se referindo aos poucos amigos que eu tinha construído naqueles anos: Grace, Dona Clara... Isabela...
— Talvez você esteja preocupado porque, se aceitar minha sugestão, vai decepcionar os poucos que investiram em você, que acreditaram em você. Eu sei que você sempre procurou o acolhimento de alguém, e de repente encontrou um pouco disso, está recebendo uma atenção diferente de algumas pessoas. Na sua carência emocional você se entregou a estas pessoas, e elas conseguiram te convencer de que Lúcifer tem um Poder limitado. Não me importo se elas de fato acreditam nisso, nem estou questionando se estes laços que você criou são realmente verdadeiros, ou não... mas a verdade é que eles estão enganados! Eu sei que você tem estado exposto a uma outra doutrina, e talvez tenha medo de decepcionar algumas pessoas.
Marlon sabia muito bem do que estava falando. E eu sei que falava sinceramente, como alguém preocupado em ver um amigo caminhar pelo caminho que julgava ser o errado. Sabia muito bem que ao longo de todos aqueles anos eu
não tinha conseguido criar vínculos fortes com nenhum Cristão; mas sabia também das duas ou três pessoas que estavam mais próximas de mim. E sabia que isso tinha um peso, no mínimo, emocional. Como ele me conhecia profundamente, era capaz de adivinhar que eu não gostaria de decepcionar aqueles que tinham me feito algo de bom. Talvez Marlon estivesse achando que esse era o verdadeiro empecilho.
— Vamos fazer uma coisa? Eu vou simplificar pra você: você some! Te dou a chance de você simplesmente desaparecer, de se tornar um fantasma.
— Como assim, um fantasma?
— É isso que estou dizendo, você some. Nós podemos simular a sua morte! E nisso eu te poupo do constrangimento de ter que dar as costas para essas poucas pessoas... você pode morrer num acidente aéreo, por exemplo, eu coloco seu nome na lista dos mortos, o seu corpo nunca mais vai ser achado, ponto final! Ou num acidente de carro, mais fácil ainda. E você vai com outra identidade para os Estados Unidos. Nós vamos juntos, e eu vou te dar uma outra vida, uma outra oportunidade. Todos nós somos a sua verdadeira família, queremos receber você de braços abertos. Eu já tinha te falado da última vez sobre a data limite, é importante que você tome consciência disso de uma vez por todas!
Novamente ele fez uma pausa. Então concluiu:
— Eu te ofereço uma nova vida! Uma vida de verdade! Não uma Vida depois da vida, mas uma vida agora... enquanto você tem vida! Vida depois da vida é aquilo que Deus promete, você pasta na Terra para depois ganhar a Eternidade. Mas Lúcifer, não... ele oferece vida, na vida!
— Puxa... mas há um preço a ser pago por isso. Para onde você vai depois?
— Deus cobra dos seus filhos à prestação... dia a dia! Então, para você estar alinhado com Deus é preciso fazer uma série de coisas... isso, isso, e isso... e não olha para o lado, e não peca, e não fala isso, e não pensa em sexo, e domina a ira, e larga disso e mais aquilo... e te limita. O que é isso? Você está pagando um preço nessa sua vida Cristã dia a dia, em parcelas. Deus cobra em parcelas! Todos os dias você tem que pagar uma prestação, até o último dia da sua vida, para somente no final, depois que a vida já passou, você ter direito ao Céu, ao Paraíso. O que Lúcifer oferece? A vida aqui, agora! Os custos são os mesmos... nós vamos pagar um preço, sim... não estou dizendo que estamos isentos deste preço. Mas nós vamos pagar numa parcela só: no final. O que é este pagamento à vista? E a Batalha Final! O último Confronto. Quando eu sei que nós vamos ter baixas... assim como do outro lado também vai haver baixas... em muitos segmentos! A proposta é simples, e ela inclui você também: nós vamos ter muitos anos de felicidade, mas vai haver um momento, o momento desta Guerra, desta Peleja Final, e então nós teremos que pagar parte deste preço... parte do custo! Porque para tudo há um preço...
Eu ouvia Marlon articulando aquelas idéias sem interromper. Queria ver aonde ele ia chegar.
— Deus condiciona o homem a pagar parcelas na Terra, para depois usufruir da Eternidade, mas estas parcelas estão dentro de um limite temporal. Da mesma maneira eu estou dizendo a você que, talvez no último ano da sua vida, Lúcifer vá exigir mais. Ele vai exigir uma dedicação toda especial: "Eu investi em você, meu filho, durante todos estes anos. Agora é o momento! É o momento de você me dar o retorno!" Entende o que eu digo? No final vai haver esse momento, quando todo o seu tempo, toda a sua alma, todo seu sangue tem que estar voltado para a causa... que você sabe muito bem qual é! Nos últimos anos você vai ter que ceder a sua vida, vai ter que ceder tudo para ele. O momento da cobrança é o momento da reta final, é o momento do tudo ou nada! É ganhar... ou ganhar! Ninguém vai ficar de brincadeira nessa hora. Ele vai dizer para você: "Todos esses anos eu te dei tudo, agora eu preciso de você, agora é você que tem que me dar, tem que fazer o que eu mando. Tem que seguir as minhas ordens, não deve questioná-las!"
Ele estava falando exatamente do período do anticristo, preparando a minha mente para isso.
— A vida toda Deus dá ordens aos seus filhos, e não permite que elas sejam contestadas. Você tem que obedecer, porque se não obedecer, está em pecado. Não é assim? E se o Cristão fica em pecado, o diabo vem e chuta a bunda dele... essa é a filosofia de Deus, mas a filosofia de Lúcifer é diferente. Ele sempre te dá toda a liberdade ao longo da sua vida, mas durante um momento, agora sim! Durante o período final ele vai exigir de você, durante esse período você vai ter que estar disposto a uma obediência cega. Ele vai exigir que você faça tudo o que ele disser, sem questionar: matar... morrer... qualquer coisa! Esse é o preço. Marlon não tinha uma postura triunfalista, sabia muito bem do preço. Do custo. Daquilo que a sua escolha exigiria dele mesmo. E novamente me fazia ver dois Reinos quase que de igual para igual, apenas com um "sistema de gerenciamento" diferente. A Eternidade não estava em jogo porque, para eles, o Inferno era a casa do pai.
Por mais que eu entendesse a sua lógica como sendo até que muito lógica... o meu interior me dizia algo diferente. Minha razão entendia a posição de Marlon, e a princípio até gostei da idéia. Mas não havia testificação no meu interior.
— Com Deus você está sempre em débito... você nunca tem crédito! Ou você não está sentindo na pele uma parte do preço que Deus já começou a cobrar? Com Lúcifer não é assim, primeiro ele te dá o crédito. E só vai cobrar depois. "Ele está mentindo, em algum lugar tem mentira nessa história..." Mas eu não conseguia saber aonde estava a mentira, me sentia um pouco enredado por toda aquela argumentação. Eu tinha imaginado o nosso encontro como realmente uma casualidade, somente depois, muito depois, por incrível que pareça, foi que consegui discernir que nada daquilo foi por acaso. E os demônios vieram com ele, para influenciar minha mente e minhas emoções. Por isso é que não tive capacidade de perceber a dimensão do engano.
Naquele momento, Marlon argumentava sabendo exatamente que tocava nos pontos certos da minha alma... nenhuma das suas palavras foi à toa, jogada ao vento. Os demônios sabiam exatamente onde tocar fundo. Ele me pegou num momento interessante e usou uma argumentação que, ele sabia, iria me confundir. Naquela época eu não sabia o que sei hoje sobre a obra Redentora de Cristo. Que a Salvação não vem das obras, mas é Dom de Deus, vem por meio da fé. Foi certeiro da parte deles.
— Veja só Paulo... "sejam meus imitadores, como eu sou de Cristo". De que adiantou isso? De que adiantou isso no fim da vida dele? Ou Pedro? Adiantou?
— Tá bom... e qual é a sua proposta? — perguntei por fim, suspirando. Então ele se interessou. Até aprumou o corpo. E me convidou:
— Então vamos ali na padaria! Vamos comer alguma coisa!
Saímos do parque e atravessamos a rua. Bem em frente tinha aquela velha e antiga padaria.
— Peça o que você quiser! — exclamou Marlon, bem-humorado. — Você não quer uma coca?
— Não, quero só um café mesmo... e um pão com manteiga.
Enquanto a gente esperava pelo lanche ele bateu no meu ombro e retomou a conversa.
— Imagina só uma coisa, imagina os Estados Unidos... imagina você vivendo num país de primeiro mundo! E com muito dinheiro... dinheiro que nunca mais vai acabar! Por mais que você gaste ele nunca vai ter fim. É como se você tivesse uma Coca-Cola pra tomar e um iceberg inteiro de gelo: nunca ia faltar gelo na sua Coca-Cola! — Marlon brincava, entusiasmado. — É isso que eu estou te oferecendo: um iceberg de oportunidades! O que estou te falando agora é só a ponta dele. Nós vamos mudar a sua identidade, o seu nome... você vai mudar de país, vai para os Estados Unidos... e vai ter muito dinheiro! E você retoma o seu lugar, o lugar que está preparado pra você desde o seu nascimento. Eu já vou providenciar o seu passaporte, e tudo mais que você vai precisar!
— Peraí um pouquinho! Mas... eu estou namorando! Você sabe disso! Tem a Isabela! — e fiz a pergunta chave. — Ela vai também?
Marlon estava sorrindo, mas naquele instante fechou a cara. Ficou sério.
— Não. É lógico que não! — foi até rude. — Ela não é mulher pra você! Você não percebeu isso ainda? Ela só tem feito você sofrer!! Tem destruído sua vida, tem sido um câncer... está te matando! Olha só a sua cara, sabia que você está envelhecendo? Você nunca passou tanto nervoso na sua vida, tanto sofrimento! Alguma vez a Thalya fez isso pra você? Alguma vez ela fez você gritar e perder o controle? Pára pra pensar! Ela é a tua alma gêmea, ela que te ama de verdade, foi criada pra estar ao seu lado... é uma mulher bonita, meiga, charmosa e gostosa....
E blábláblá, blábláblá, blábláblá! Começou a usar um monte de adjetivos, inclusive aqueles que eu mesmo sabia que não se adequavam muito bem em Thalya.
— Você não acha isso? — inquiriu Marlon indignado.
— Eu gostei dela... isso acontece... mas, agora eu encontrei uma pessoa que me complementa, que está do meu lado de verdade! E vou dizer uma coisa pra você, Marlon... quer você acredite ou não, quer você entenda ou não... eu amo a Isabela! Eu amo ela... não teria coragem de largar dela assim, desse jeito!
— O que é você pra ela? Um estepe, um bom substituto... um embuste! Como o amor da vida dela morreu, aquele tal de Renato, ela está transferindo isso para você... daqui a pouco ela vai querer que você tinja o cabelo de loiro! Você não tem cérebro, não? Não sabe olhar e ver o que está olhando? Será possível que você perdeu a noção? A Thalya sempre gostou de você como você é! Para que isso? Você está sendo um tapa buraco, fruto de uma carência, de uma necessidade. Você não é o principal, é o secundário... o bote salva-vidas!
Ele tentava me persuadir nesse ponto a qualquer custo. Mas fui obrigado a discordar.
— Não. Você está enganado! Tudo bem, teve horas em que eu fiquei mesmo bravo com isso, mas não é assim como você está falando... eu não vejo assim, não!
— Você não vê porque não quer ver! Eu estou abrindo seus olhos: essa é uma menina complicada, ela só vai te causar problemas, te dar dor de cabeça, trazer desgraça na sua vida. Ela tem muitos problemas!
— Mas ela tem me ajudado!
— Ajudar! Ela é só mais uma que está interessada na sua história!
— Eu não sinto assim.
— Pára com isso, que bobagem você está falando...
Continuei contestando. Em relação àquilo, eu sabia que Marlon estava enganado. Como ele continuasse insistindo demais, comecei a ficar desconfiado. Por que ele parecia tão incomodado com o nosso relacionamento? Nunca tinha sido assim antes.
— Ela não vai ficar muito tempo em pé — retrucou ele por fim. — E se você insistir nisso, nós vamos acabar com ela, nós vamos matá-la. Antes que ela acabe com você! Ela não é sua alma gêmea!!! Ela está ocupando o lugar da pessoa certa!! Deus nunca fez nada por você, nós é que sempre fizemos. Ter te dado esta mulher faz parte da negligência Dele! Tudo que você sempre teve de bom, foi Lúcifer que te deu. Então pense bem, estamos dispostos a te perdoar... na verdade, não precisaria nem perdoar porque nós nunca tivemos raiva de você, mágoa de você! Volta pra gente, acerta seu prumo, pensa melhor... eu vou te dar um tempo pra pensar. E eu tenho certeza da sua resposta! — afirmou ele categoricamente.
— Enquanto isso eu já vou providenciando os documentos. Assim que você partir nós vamos arrumar a maneira certa de forjar tudo! Eu cuido de tudo isso e te dou cinco dias. Em cinco dias a gente está viajando.
— Mas eu vou sumir assim, Marlon?
— Você vai sumir. Pra todos os efeitos, você está morto! As pessoas vão chorar, vão se lamentar... depois esquecem! E você vai ser somente uma sombra. Nunca ninguém vai ficar se preocupando com você, nem lembrando da sua existência. Você não fez nada de importante para eles! Então... essa dor vai ser só durante um tempo... depois, pensa bem: você está no meio de um bando de loucos! Eles são um bando de loucos!
— Como assim?
— Eu sei exatamente. A Grace e aquela equipe dela, você não viu o que eles fizeram com você? Eles estão vendo fios na sua cabeça, raciocina, Eduardo!
— Não, você não entende, Marlon... aquilo é uma linguagem metafórica!
— Pouco se me dá. O que eu sei é que o pessoal daquela equipe é tudo orgulhoso, altivo, são um bando de prepotentes, além de loucos! Eles são mais usados pelo diabo do que por Deus. Você acha que está no meio de Cristãos? — ele meneou a cabeça. — Pois não está... eles não são seus amigos, e nem nunca vão ser. O tempo iria te mostrar isso. Mas você não precisa estar aqui para ver. Você sabe que não houve nenhuma dificuldade em saber de tudo que aconteceu naquele Congresso, não é?! E por quê? Porque eles não têm força pra fazer resistência, não neste nível de guerra. Se você soubesse o que eu sei, da podridão na vida de tanta gente ali...
Fiquei quieto. Ele passou o braço pelos meus ombros.
— Cinco dias. Em cinco dias eu te ligo. Levantou, deu-me um abraço e foi embora.
— Que você tome a decisão certa!
Eu fiquei pensando. Mas não senti tranqüilidade naquilo. Era algo estranho demais, insistente demais.
"E por que me tirar do País? Será que eu não posso simplesmente ir para um outro Estado?"
Aquela história de querer me deixar muito, muito longe, completamente inacessível não cheirava bem. Se eu aceitasse uma coisa dessas nunca mais conseguiria fugir deles, nunca mais conseguiria me comunicar com ninguém. Com Isabela, com Grace... com quem quer que seja, para pedir qualquer tipo de ajuda!
Mil coisas me passavam pela cabeça... de certa forma, nas entrelinhas, a insistência de Marlon me fazia crer que aquelas pessoas tinham realmente o poder de influenciar o meu destino. Se não fosse assim a Irmandade não estaria tão inclinada a me afastar deles. Ou melhor... delas! Especialmente aquela rejeição em relação a Isabela me encafifou.
Voltei para o parque, orei um pouco, do meu jeito. Embora eu não soubesse discernir muito bem a Voz de Deus, o Espírito Santo habitava em mim! Com isso realmente Marlon não contava.
"Pôxa, Senhor... isso é uma direção Sua? Você quer que eu volte para a Irmandade? O Senhor não me quer mais? Não estou sendo um bom filho pra Você? Está me mandando de volta pro meu velho lar... me tirou do orfanato pra agora me mandar de volta?"
Nos dias que se seguiram pensei nas promessas de Deus, no anjo ruivo, na unção, no Ministério... pensei em Isabela... era a primeira vez que eu estava de fato empolgado com uma mulher...
"Hoje eu contemplo a idéia de um casamento... antes não era assim! Nunca foi assim... enquanto eu pudesse enrolar, melhor. Puxa... a Isabela tem um bom coração, é boazinha comigo. Tem valores nobres!"
E de repente fui invadido por uma convicção:
"Não vou fazer isso... imagina só! Só se eu estivesse louco..." E fiquei com a minha decisão tomada, aguardando pelo telefonema. Marlon ligou antes mesmo que completassem os cinco dias. Em três dias o telefone tocou e quando atendi, ele já foi falando imediatamente, animado:
— Olha! Já estou com o seu passaporte aqui na minha mão! Toda a sua documentação está pronta. OK? Vamos nos encontrar? Aonde você prefere que seja? Pode ser no Shopping Ibirapuera?! Quer que eu mande um carro para te buscar? Vou te mostrar tudo, toda a documentação, vamos combinar o plano direitinho, e em mais cinco dias estamos indo embora! Você já está fora do País!
— Não... eu já pensei...
— Eu sei. Eu sei que você já pensou! Você tinha que tomar a decisão certa mesmo. :
— Eu não vou.
Silêncio do outro lado. Ele ficou mudo. Eu até podia imaginar a sua cara.
— Marlon!?... Você tá aí?...
— O que é que você falou? — a voz dele veio seca.
— E isso mesmo que você ouviu. Eu não vou. Eu pensei melhor... e, olha, você pode até não acreditar... mas eu vi um anjo, e esse anjo falou que eu tenho um Ministério! E também não vou largar a Isabela, eu sei que encontrei a mulher da minha vida, eu quero casar, ter filhos com ela... eu amo a Isabela e não vou trocar ela por nada, não!
Novamente ele ficou mudo. Então a voz dele veio mais uma vez, ligeiramente paternal, como eu conhecia.
— Hum... você está gostando mesmo dessa moça, hein? — Tô!
— É... isso não é bom... ela vai acabar com você. Espero que você acorde enquanto é tempo.
Senti uma grande tristeza na voz dele. Um grande pesar pela minha decisão.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, desligou. Eu não veria Marlon pessoalmente tão cedo.
Eu havia recusado a oferta, tinha traçado o meu destino. Tinha feito minha escolha. Até então eles estavam esperando. Tinha sido um período de "bandeira branca", de pura sedução da parte deles. Mas esse tempo tinha acabado. A partir daí, eu sabia que haveria de colher alguma conseqüência. Algum outro tipo de conseqüência!
Meu tempo tinha se esgotado... se eu não estava com eles, estava contra eles!
Logo chegaria meu aniversário, eu faria 31 anos. Isabela estava com 28. O episódio do parque ainda estava fresco em minha memória quando veio o baque pior de todos, o mais terrível até então. Certamente deste nós levaríamos mais tempo para nos recuperar.
Mesmo sabendo que tudo estava debaixo do controle do Senhor, e que tudo coopera para o nosso bem, para o bem daqueles que são chamados segundo o Seu propósito... quando vem a crise... não dá para dizer que a dor não vem também junto com ela! Ah, e que dor!
Não foi nada fácil na hora, e nas semanas e meses que se seguiram eu nada compreendi. Simplesmente confiamos em Deus, procuramos descansar na certeza de saber que Ele era Senhor sobre tudo... e sobre todos! Inclusive a Irmandade e seus adeptos...
Apesar de eu ter conhecido o "outro lado", e saber que praticamente tudo poderia acontecer conosco agora que eu tinha recusado a oferta de Marlon, normalmente eu não me ligava em datas.
Claro, eu poderia saber de cor e salteado os melhores dias, as melhores horas... poderia até quase adivinhar o que viria, e quando viria. Mas minha mente parecia um pouco bloqueada! Não que eu "me recusasse" a pensar. Mas eu não me lembrava de pensar em nada daquilo. Era mais fácil Isabela ter consciência dessas coisas antes do que eu!
Acho que talvez eu não quisesse pensar. Queria esperar. E, principalmente, esperar na Proteção de Deus, na Fidelidade de Deus. Se a toda hora ficasse matutando do que a Irmandade seria capaz de nos fazer, a mim e a ela, não conseguiria mais viver.
Então eu procurava esperar na esperança de que Deus estaria comigo, me valeria na hora certa... no fundo, no fundo da alma eu desejava não ter que me preocupar com o que meus ex-irmãos procurariam arquitetar contra minha vida... contra a vida de Isabela.
Era mesmo ela quem costumeiramente me tirava deste torpor mental, fazendo-me lembrar de datas importantes. Como na época das Festas de passagem de estação, por exemplo. Era também Isabela que muitas vezes descobria padrões nas ações do inimigo: em datas derivadas do número nove... ou nas sextas-feiras e finais de semana. Quando ela falava chamando minha atenção e convidando-me para orar, dependendo das circunstâncias eu acabava me dando conta de que Isabela tinha razão.
Mas naquela ocasião não havia porque ela pensar em algo, não havia como prever algo. Isabela nem sabia da minha conversa com Marlon. Quando nos demos conta, já não tinha mais jeito. Creio que, de qualquer modo, não haveria nada que pudesse ter sido feito!
Era sexta-feira, dia 27 de fevereiro. O fato da soma dos dígitos dar nove não tinha a menor importância para mim naquela manhã.
Eu tinha levantado cedinho e saía do banho para me enfarpelar todo num dos meus ternos. Agora eu quase não tinha roupas boas. Isabela é quem vivia investindo no meu guarda-roupa, mas da maneira como a maioria dos mortais faz: em pequenas quantidades e muitas vezes a prazo. Eu mesmo já não me preocupava em gastar dinheiro comigo mesmo. Mas Isabela gostava de me ver bem arrumado; sempre que podia trazia camisas e gravatas novas.
Vesti a melhor calça que tinha: a preta (presente de Isabela); junto usei a camisa azul de gola e punhos brancos (presente de Isabela), pus a gravata azul de patinhos (também presente da Gatinha), a mesma que meus colegas de trabalho viviam caçoando. E calcei os sapatos pretos (que Isabela insistiu para que eu comprasse).
Dei-me por arrumado. Faltava apenas passar gel no cabelo. Olhando no espelho, estava pronto para a entrevista daquela manhã. Olhei no relógio porque não poderia atrasar-me de forma alguma. Desci as escadas de madeira, rangedoras, e já estava vistoriando minha pochette para sair. Eram sete horas da manhã. Então o telefone tocou.
"Puxa, quem pode ser nessa hora? Será Isabela, ligando para dar bom dia?" Já com um sorriso no rosto, atendi: — Alô?
A voz feminina do outro lado não era da minha noiva. — Seu tempo está esgotado. E o que você tinha, agora não tem mais. Mas quando você descobrir, não vão acreditar. Porque a raiz do mal habita em ti — disse a pessoa com voz dura. E desligou.
Passado o choque inicial, fiquei muito encafifado. Eu sabia que era alguém da Irmandade, óbvio. Mas não era Thalya. Embora já fizesse tempo, aquela voz me parecia ser de Rúbia.
"Mas que raio de recado é esse que mandaram entregar?! Não entendi." Fui pensando um pouco pelo caminho, mas logo cheguei ao local da entrevista. Entretido com os afazeres da seleção, aquilo caiu no esquecimento. Eu estava esperançoso porque precisava de dinheiro o quanto antes. O salário de Isabela segurava a barra, mas não era suficiente. Ela poderia ter dois empregos, mas não daria conta, não seria justo. Isabela não gostava do convênio; eu sabia o quanto ela estava se esforçando, um emprego era o máximo que ela podia dar de si.
No dia seguinte também não houve tempo para eu me lembrar daquele telefonema. Porque eu e Isabela discutimos (no sábado, claro, nosso dia de descanso). Voltei para casa bravo e somente quando cheguei lá é que verifiquei que a chave do estacionamento desaparecera. Nós tínhamos alugado uma vaga num estacionamento pequeno porque algumas vezes eu vinha com o carro para casa, especialmente aos finais de semana, e não era prudente deixá-lo na rua.
Como não pude estacionar o carro, liguei de volta para Isabela para saber se tinha esquecido a chave lá. Não estava. Não tinha coragem de deixar o Palio dormir na rua, então resolvi voltar para a casa dela.
Fui dirigindo normalmente, agora já um pouco mais calmo. Quando fui passar por aquele farol perto da avenida do cemitério, o volante do carro simplesmente travou! Travou mesmo, e o volante de um automóvel não trava quando ele está em movimento. Fiz força tentando fazê-lo funcionar e, quase instintivamente, orei alto algumas frases em línguas.
Não vinha ninguém na contramão, por sorte, mas naqueles breves segundos de pânico, de repente vi uma luz ao lado do carro. No meu espírito quase pude vislumbrar a espada de fogo do anjo que partiu a corrente que prendia o volante. Não me peça para explicar, somente sei que foi assim! Aconteceu tão rápido, que depois custei a acreditar.
No entanto, o volante voltou a funcionar imediatamente! Minha curtíssima oração de socorro foi atendida. Fui orando o resto do caminho.
Aquele contratempo todo serviu para, pelo menos, acalmar nossos ânimos, o meu e o de Isabela. Cheguei em sua casa e fui abrindo a porta da rua com a minha chave. Dona Márcia estranhou minha chegada.
— Ué? Que aconteceu?
— A senhora acredita que sumiu a chave do estacionamento?! — Respondi. — Ela está sempre no chaveiro, na pochette, mas desapareceu... a gente não fica muito à vontade de deixar o carro dormir na rua.
Isabela apareceu, vindo lá de dentro:
— É, mãe, acho que hoje ele vai dormir aqui. Amanhã a gente tenta achar algum chaveiro.
— Não precisa, meu irmão tem a chave — falei novamente. — Mas esperar ele chegar em pleno sábado à noite...
— Tudo bem, então — respondeu Dona Márcia. — Dorme aí, é melhor mesmo não facilitar com o carro.
Então contei para Isabela o que tinha acontecido, apenas para ela, sobre o volante do carro. E voltamos à razão, pondo um fim na desavença. Dormi por lá mesmo, mais tranqüilo em saber que o carro estaria seguro, na garagem da casa de Dona Márcia.
O domingo nos encontrou extremamente cansados. Aquele era um cansaço diferente, desproporcional. O esgotamento não era físico, numa primeira instância, mas principalmente espiritual e emocional: uma guerra travava-se ali, não havia trégua. O espírito capta. As emoções se abalam. E o corpo se ressente.
Foi uma tarde modorrenta, mas encontramos alento ao fazermos as pazes completamente um com o outro. Foi somente depois do Culto, um pouco antes de irmos embora da Igreja, que me lembrei:
— Ah, Isabela... recebi um telefonema na sexta-feira!
Expliquei. Nem sabia o que explicar diante de um recado tão esdrúxulo. Mesmo assim, compartilhei com ela. Isabela também ficou na mesma.
— Temos que orar, só não sei em que sentido... que será isso?! Esquisito!
O dia seguinte traria resposta. Uma tremenda e desagradável e desconcertante resposta...!
Levantei mais ou menos às nove horas, tomei banho e desci. Minha mãe estava na cozinha e tinha café fresco. Sentei para tomar um gole. Não sei nem a troco de que saiu a conversa.
Estávamos lembrando de quando eu e meus irmãos éramos pequenos, então minha mãe comentou do meu nascimento, meio que do nada. Conversa vai, conversa vem, recuamos no tempo e ela acabou contando algo sobre o dia em que nasci.
Contou uma história totalmente imprevisível para mim, sobre ter-me consagrado a "São" Leviathan por orientação de uma capela católica na maternidade (Leia Filho do Fogo). Fiquei estarrecido e até me esqueci do café. Incrível aquela informação nunca, nunca ter vindo à tona! Mais incrível ainda era minha mãe lembrar direitinho daquele nome — Leviathan —, tão pouco comum para ela.
A revelação caiu no meu coração de forma esquisita, com gosto de fel.
"Como que eu nunca fiquei sabendo disso??? Como é possível eu ter sido consagrado na época do meu nascimento? Por quê?! Por que Marlon nunca disse nada?"
Claro que aquilo não era obra do acaso!
Aquilo tudo teve o poder de me incomodar de tal forma que fiquei quieto, pensativo, e minha mãe ficou falando com as paredes.
"Eu sempre imaginei que havia buscado a Irmandade de livre e espontânea vontade aos 17 anos. Mas... e aquela consagração? Eles já estavam esperando que eu seguisse aquele caminho... quanto do meu destino futuro teve a ver com isso??"
Por enquanto aquelas eram perguntas sem resposta. Eu ouvia minha mãe tagarelando sem parar perto de mim, mas já nem escutava o que ela dizia. Só digeria aquela estranha informação nova. Fiquei completamente alheio até que ela foi para a sala, comentando:
— Vou ligar pra sua avó e ver se ela achou a sua fotografia que sumiu! "Sumiu.....?"
Saí da minha névoa de pensamentos num estalo só. Aquele não foi um "estalo qualquer, mas uma sensação parecida com aquela quando eu tinha discernimento espiritual de alguma coisa.
"A minha chave também sumiu..." E alto:
— Sumiu uma fotografia? Que fotografia? Sumiu alguma fotografia minha? Era uma verdadeira onda de sumiços: primeiro tinha sido meu sapato; algumas semanas antes, mais ou menos no começo do ano, perdi uma entrevista porque meu único par de sapatos sociais simplesmente desapareceu! Há poucos dias tinha sido a chave do estacionamento; e agora, mais essa... fotos?! "A troco de quê?"
— Pois é — foi dizendo minha mãe. — Sua avó comentou comigo que foi olhar o álbum de fotos de vocês esses dias, e deu por falta de algumas. Os buracos estavam vazios e, pela legenda embaixo, ela percebeu que eram fotografias só suas, fotografias em que você aparecia sozinho! Ela até ligou para mim nesse fim de semana querendo saber se não tinha sido você mesmo quem pegou. Eu disse que achava que não, que você não tinha comentado nada. Você não pegou, né?
— Não peguei.
— E também neste fim de semana ela reclamou que sumiu a sua foto grande, aquela que estava no porta-retrato em cima da estante. Sabe qual é, né? Aquela quando você era pequeno...
— Sei, sei, sei... vai ver a empregada quebrou o porta-retrato e deu sumiço na foto achando que a vó não ia notar!
— Não, não, o porta-retrato está lá, no lugar dele. Só a foto é que sumiu. Que esquisito, né? Não foi mesmo você?
— Não, não mexi em nada!
Enquanto ela ficava de papo com minha avó, gritando pelo telefone porque a vó não estava escutando muito bem, minha cabeça literalmente girava. Lembrei confusamente de todos os recentes sumiços, e agora mais isso. Todos esses acontecimentos se misturavam na minha mente e eu não conseguia achar o fio da meada da lógica.
Fora isso, lembrei também do Pastor Lucas, que tinha se esquecido da promessa de dar-me o par de sapatos e as roupas que prometera... já fazia mais de um mês. Era muita coisa junta. Muita perda junta!
Então senti novamente aquela sensação no espírito. Recordei do telefonema da sexta-feira como num eco, num sussurro: "...o que você tinha, você não tem mais..."
De imediato algo me incomodou. E desta vez não foi em relação às fotos.
"O que eu tinha... não tenho... mais..." Como uma seta o pensamento me penetrou na mente: "O dinheiro! Nossa aplicação financeira^
Com o coração batendo forte no peito a ponto de poder sentir a cabeça latejar junto, subi que nem furacão até meu quarto. Eu costumava guardar o contrato, os extratos e todos os comprovantes de depósito na minha pasta de documentos. A pasta ficava dentro do guarda-roupa, e tinha um fecho com segredo.
Abri a pasta com dedos nervosos, meus olhos bateram na ponta do invólucro de plástico dentro do qual estavam os documentos do banco. Quase suspirei de alívio.
"Mas não parece haver alívio no ar..."
A frase me passou pela mente em milésimos de segundo. Ao mesmo tempo puxei o invólucro... estava leve demais! Meus olhos e meus sentidos recusavam-se a acreditar no que viam... vazio!!! Vazio!!
Rebusquei pela pasta, tirando tudo no lugar, revirando tudo, falando sozinho de mim para mim. Mas não encontrei nada. Absolutamente nada que se referisse à nossa conta!
"Não... isso não está acontecendo... isso não é possível, simplesmente não é possível... Deus não pode estar permitindo isso !!"
Joguei tudo de volta na pasta de qualquer jeito. Havia uma última esperança: há alguns dias eu havia recebido um extrato... e ele ainda deveria estar lá embaixo, na estante da sala, naquela gamelinha, com outras correspondências.
"Sim, claro, ele tem que estar lá, afinal eu não tinha ainda guardado com os outros..."
Minha mãe ainda falava ao telefone, contando proezas do Otávio, e me olhou com olhares indagativos quando revirei a gamelinha.
"Tem que estar aqui, tem que estar... meu Deus do céu, por favor, tem que estar aqui!"
Mas não estava. Isso queria dizer que eu não tinha comigo qualquer comprovante da nossa conta aplicação. Comecei a entrar em pânico. Uma sensação angustiante, terrivelmente desagradável me invadia. Eu só imaginava o que estava por vir à luz!
"O que você tinha você não tem mais."
Aquela frase me martelava o cérebro, vez após vez.
Saí de casa, e literalmente corri até o banco. Era um pouco longe, por isso cheguei lá meio com a língua de fora. Em parte por causa da corrida, em parte por causa da adrenalina extra que jorrava no meu sangue.
Consultei a conta pelo caixa eletrônico, como estava acostumado a fazer. Meus dedos tremiam. Não consegui completar a transação. O computador informava "conta inexistente" todas as vezes. Tentei mais vezes. Decididamente aquilo não era real!
"Há de ter uma explicação!"
Desisti do caixa eletrônico e entrei no banco, fui direto para as mesas da gerência:
— O sistema está com problema? — perguntei.
— Não, está tudo funcionando.
— É que... olha, não estou conseguindo consultar a minha aplicação... não sei o que está acontecendo! Acho que devo ter digitado algum número errado, esqueci algo, sei lá! Será que você podia verificar? — procurei manter a calma.
— Pois não! Me dá o número do seu CPF e o seu nome. Sente-se, por favor! Eu estalava os dedos, em silêncio, sentindo as mãos geladas, olhando fixamente para ele, aguardando o resultado. Eu já sabia... mas quem sabe, por um milagre... somente um milagre... eu precisava de um milagre!
O gerente olhava para a tela do computador, aí olhava para o meu CPF e o meu nome, tornava a digitar. Então olhava novamente... digitava outra vez...
Não era real!
— Engraçado... essa conta aparece como inexistente.
— Mas não é possível! — meu coração saía pela boca. — Não é possível!!
— Tem certeza que você tem conta nesse banco?
— Claro! Claro que tenho!
— Há quanto tempo você tem conta aqui?
— Tenho essa aplicação há três anos, ainda na semana passada mesmo recebi um extrato! — comecei a entrar em genuíno desespero, perdi completamente a noção de onde eu estava.
— Você está com o extrato aí? — fez o gerente.
— Não... não está aqui.
— Você tem algum comprovante de depósito, alguma coisa? Minha compostura foi para o espaço. Eu me sentia desesperado. Comecei a falar cada vez mais alto, batendo na mesa, torcendo as mãos.
— Não tenho! Não tenho! Eles sumiram! Meus comprovantes sumiram! Mas isso não é possível, você pode consultar de novo? Como pode desaparecer o meu dinheiro desse jeito do banco?! Olha aí de novo!
Ele fez o que eu pedia só que infelizmente nada mudou. Eu continuei gritando e dando murros na mesa do gerente. As pessoas à volta olhavam com estranheza. Comecei a chorar de aflição. Nem me reconhecia, nunca tive uma reação semelhante.
— Esse é todo meu dinheiro, todo Tem quase R$ 25.000,00 aí!!! Não é possível, tem que ter algum registro da minha conta em algum lugar. Eu tenho essa conta há três anos!!! Como pode sumir assim?!
— Senhor, por favor... procure se acalmar! — dizia ele polidamente, com um semblante de compaixão. — Solange!
Uma moça veio para perto de nós meio assustada, e ele pediu para ela trazer água com açúcar.
— Eu não quero água com açúcar, quero meu dinheiro!
— Olha, eu sei que você está falando a verdade... nós vamos pesquisar isso, eu mesmo vou verificar. Mas leva alguns dias... — ele começou a me explicar o que poderia ser feito.
A tal Solange pôs o copo de água com açúcar na minha frente e eu bebi sem perceber, sem pensar. Precisava fazer alguma coisa com as mãos.
— Vou fazer todo o possível. Por enquanto, procure ficar calmo... Agradeci ao gerente e saí do banco me sentindo amassado por um caminhão. "Isso não está acontecendo.........."
No meu íntimo eu precisava crer, por toda lei, que a tal pesquisa teria sucesso. Em algum lugar alguma coisa referente à minha conta surgiria.
"Nós vamos orar e... e Deus vai reverter esse roubo!"
Aquilo acabou com o meu dia. Aproveitei que estava por ali mesmo e fui até a Caixa Econômica para receber uma das parcelas do meu seguro desemprego que estava prevista para aquele dia.
Neca! Não havia chegado ainda.
Voltei para casa que nem um robô, completamente aéreo.
Mais tarde encontrei com Isabela na academia. Ela ia para lá direto do serviço.
Eu estava certo de que Isabela teria uma das três reações: primeiro, entraria em franco desespero junto comigo, e passaríamos a semana chorando juntos.
Segundo, ela ficaria terrivelmente assustada e se recusaria a continuar trilhando naquele caminho. Parece até que eu já podia ouvir suas palavras: "Estamos lutando contra uma máfia e daqui pra frente tudo pode acontecer. Vamos desistir dessa loucura!"
E, em terceiro lugar, Isabela também poderia ficar furiosa. Especialmente porque ela tinha pedido para que eu deixasse os comprovantes de depósito com ela (Isabela achava que eu não estava guardando direito).
Quando cheguei, ela estava fazendo aula de spinning, por isso não a vi de imediato. Entrei no salão de musculação por pura inércia, tinha que me obrigar a fazer um pouco de ginástica. Mas parece que os pesos tinham ficado mais pesados de repente! Alheio ao que acontecia à minha volta, sem reparar no trança-trança de alunos e professores, nem vi Isabela chegar.
— Oi, Nenê!
— Ah, oi, Gatinha! — procurei sorrir e me comportar normalmente. Ela foi sentando no banco de um dos aparelhos ao lado.
— E aí? Já fez a parte aeróbica?
— Não fiz. Acho que hoje não vou fazer, estou meio cansado. E você? Como foi de serviço?
— Tudo bem, nada de especial, né? — ela foi contando um pouco. — E como foi o seu dia?
— Não saiu minha parcela do seguro-desemprego. Tá atrasada!
Eu preferia ir falando de amenidades. Na verdade, seria melhor se eu nem precisasse lhe contar nada. Talvez pudesse esperar uns dias para ver o que o gerente teria a dizer, quem sabe ele tinha alguma boa notícia e assim eu a pouparia de passar pelo mesmo desgosto.
Mas Isabela tinha sempre aquele feeling aguçado. Ela cheirava as coisas no ar. Não adiantava querer disfarçar!
— Que que foi, hein, Nenê? — perguntou ela não muito depois com o olhar cravado no meu rosto, analisando-o.
— Nada, Gatinha... por quê?
— Não inventa, Eduardo. Você tá esquisito. Diz logo, vai! Que aconteceu? — ela já falava em tom preocupado, como quem pressente "o que foi desta vez?"
Como continuasse me olhando inquiridora, eu me sentei ao lado dela com um profundo suspiro.
— Não tenho uma boa notícia pra te dar.
Ela mudou a expressão do rosto, visivelmente assustada, pensando imediatamente nas piores coisas.
— Que aconteceu, Eduardo?
— Não é definitivo ainda... pode ser que a situação reverta... — eu tentava realmente amenizar as palavras.
— Tá bem, mas o que foi?
Inspirei fundo: "Lá vai!"
— Hoje eu fui consultar a nossa conta... e.... nosso dinheiro sumiu.....
Ela continuava me olhando sem entender, sem esboçar ainda nenhuma reação.
— Como assim, sumiu?
— Sumiu. Simplesmente sumiu. A conta não existe mais.
Isabela ficou muda por uns dois ou três segundos. E raciocinou:
— Bom, se foi um problema do banco, então não importa, nós temos os comprovantes, é só...
— Eles também desapareceram — interrompi.
Aí ela percebeu a gravidade da nossa situação. Mas não entrou em pânico como eu, o que me surpreendeu bastante. Ficou calada por mais alguns segundos, processando as idéias. Ao nosso redor um monte de alunos puxava peso, se esbaforiam. Nós nem ligávamos para eles. Por fim, Isabela falou com voz até que bem controlada:
— Mas como é possível isso, Eduardo?
Eu sabia o que ela estava perguntando. Não me fiz de rogado.
— Possível é... você sabe.
— Será que foi um espírito humano que entrou na sua casa e levou os comprovantes.....?
— Pode ser. Mas também pode ter sido um demônio. Mais provável até, porque eles teriam toda facilidade pra desmaterializar os documentos...
— E alguém facilmente deletaria a conta do computador bancário. Uma pessoa da Irmandade, de alto escalão, talvez... não haveria nenhuma dificuldade... tudo se compra com dinheiro nesse País. Nesse mundo!
— Nem seria necessária a intervenção dessa pessoa que você está cogitando. O próprio demônio poderia fazer isso. Ou, nesse caso, um espírito humano. Nem haveria necessidade de comprar alguém com dinheiro. Isso é algo simples para a Irmandade! Como você pode ver, as possibilidades são muitas.
— É.... — Isabela continuava pensativa. Então concluiu tristemente: — Mas, então... a nossa conta simplesmente deixou de existir, é isso? É como se ela nunca tivesse existido?
Assenti.
— E não temos como provar nada.
Isabela abraçou os dois joelhos, apoiou o queixo neles e, distraída em pensamentos, séria, deixou-se ficar por alguns momentos. Abracei-a.
— Mas, veja... o gerente vai pesquisar. Talvez ache alguma coisa. Ela inspirou profundamente:
— Ah, você acha?... Não sei, não. Vamos orar, e tudo, mas... será?
Um clima profundo de tristeza recaiu sobre nós. A gente olhava um para o outro, sem saber o que mais dizer, e já não havia nenhum sentido em continuar ali na academia.
— Acho que já chega de ginástica por hoje.
Nem fomos tomar banho, simplesmente saímos para tomar um café e conversar. Por incrível que pareça, Isabela não teve nenhuma das reações que eu esperava! Eu esperava tudo dela, menos aquela placidez! Realmente fiquei surpreso, pois ela permaneceu calma e com a cabeça no lugar. Entristecida, sim, mas não desesperada nem desanimada.
Já eu me encontrava totalmente em frangalhos... foi Isabela quem passou a me consolar, com voz suave e firme ao mesmo tempo, com olhar compassivo, mais preocupada comigo do que com o dinheiro.
— Nenê... olha... pensa bem... não há de ser o fim do mundo! Dinheiro a gente junta de novo. Muito pior seria se alguém tivesse morrido, não é verdade? Só pra isso não tem solução.
— Isso é.
— E também nenhum de nós está doente, com alguma doença séria, nem ninguém da nossa família. Tá tudo bem, vai! Estamos aqui, estamos juntos. Isso é o que importa! Não vamos nos deixar abalar. Tudo bem, a gente vai ter que mudar um pouco de planos, mas... estamos juntos...
Eu escutava, murcho, desanimado. Anestesiado, para dizer a verdade. Ela continuou:
— Pode ter certeza: Deus é Deus, né, Eduardo? O nosso casamento não vai atrasar nem um dia por causa disso. Deus é Deus! Não quero dizer que a gente tem que cair no conformismo, mas não vamos também achar que a vida acabou. — Eu sei. Mas quando penso em toda privação que a gente já passou, economizando aqui e ali, guardando dinheiro todo mês... você sabe que foi com sacrifício que a gente juntou R$ 25.000,00! Isabela sacudiu a cabeça..
— Mas a gente junta de novo.
Eu não me contentava com aquela idéia. Continuei tentando provar a mim mesmo que nem tudo estava perdido.
— Talvez apareça — falei novamente.
— Pois é, talvez! — Isabela terminou seu café. E foi mais prática do que eu. — Precisamos falar com a Grace, com Dona Clara, temos de pedir oração. Agora que esse gerente vai estar procurando o rastro da nossa conta, temos que perseverar e pedir que Deus intervenha.
— Tem também aquele casal que conhecemos no encontro da Grace. Eles inspiraram confiança.
— É verdade! Você já ligou pra alguém?
— Não, nem pensei nisso. Isabela começou a se mexer.
— Então vamos. Vamos telefonar. Não podemos ficar parados!
— Ah, eu não estou a fim de falar com ninguém — resmunguei.
— Tudo bem, eu falo. Vamos. Não podemos ficar aqui sentados sem fazer nada. Se orarmos, pode ser que nosso dinheiro volte!
— Não quero falar com ninguém.
Isabela me olhava com ar compadecido, preocupado.
— Vamos, Nenê, vai! Ânimo! Não fica desse jeito, temos que contatar as pessoas.
Então fomos à procura de um orelhão vazio no Shopping. Só tinha lá embaixo. Isabela foi discando com determinação. O telefone da Grace caía na secretária eletrônica, então ela deixou recado dizendo que algo sério tinha acontecido e que voltaríamos a ligar. Dona Clara não estava em casa. Tinha reunião nas segundas-feiras à noite.
Então resolvemos ligar para o casal conhecido da Grace: Sarah e Jefferson. Eles eram mais ou menos da mesma idade da Grace, muito mais velhos do que nós. Mas foram simpáticos conosco no encontro e haviam nos convidado para ir à casa deles compartilhar com calma o meu testemunho.
Não vimos mal naquilo, e realmente fomos, acompanhados por Dona Clara. Eles moravam num condomínio fechado, um lugar muito bonito.
Essa foi a primeira vez que Dona Clara, de olhos espantados, escutou boa parte da minha história. E, bem tratados, confiamos neles. Sarah e Jefferson agora também eram referenciais para nós.
Isabela ligou. Foi Jefferson que atendeu, e ela tentou explicar em poucas palavras do que se tratava. Ele ouviu, ficou aparentemente atônito e disse que estariam orando. Isabela volta e meia olhava para mim. Eu realmente me sentia sem forças, então me quedei quieto, sentado no banco um pouco a distância, apenas olhando.
— Posso falar um pouco com a Sarah? — escutei Isabela pedir.
Fiquei observando ela falar, gesticulando enquanto se explicava. Aí fez um sinal me chamando. Fui a contragosto:
— Não quero falar com ninguém.
— Ela que quer falar com você.
Não era verdade. Mas Isabela estava preocupada com meu estado de ânimo e tinha pedido que Sarah conversasse comigo, orasse comigo. Peguei o telefone. Sarah procurou me acalmar e garantiu que eles estariam orando.
— Satanás vai devolver esse dinheiro. Fica tranqüilo!
Sarah normalmente passava uma visão otimista, forte, de maneira que me senti um pouco melhor. Marcamos um encontro na casa deles para a próxima quinta-feira. Então ela orou comigo, enquanto Isabela também intercedia ali ao meu lado, bem perto de mim, ora em línguas, ora em português. O que ela mais queria era que eu estivesse bem.
Quando terminamos, agradeci e desliguei o telefone.
Isabela me olhava, sondando meu semblante, tentando perceber se eu estava melhor. Nós nos abraçamos, sem dizer palavra, sentindo o gosto amargo da decepção misturado com uma sensação de alívio. Algo muito difícil de descrever. Aquela era uma situação totalmente ímpar, ninguém pode supor o que é isso. Então Isabela convenceu-me a falar também com Ricardo.
— É importante que essas pessoas estejam sabendo. — Tá.
Dessa vez eu liguei, já me sentia um pouco melhor. Mas não consegui conversar, O telefone começou a dar uma horrível interferência que boicotou o diálogo, Deixamos pra lá. No dia seguinte, logo cedo, consegui falar com Grace da minha casa. Mas começou novamente a mesma interferência.
— Alô? A...Ô?.. A...lô?! — Eu ouvia a voz dela longe, entrecortada. Finalmente consegui entender:
— Vamos orar! — exclamou Grace.
Ela orou de um lado, eu do outro. Com isso a interferência cessou e pude explicar o ocorrido. Grace ficou sinceramente condoída, além de muito admirada, nunca tinha vivido uma situação semelhante, nem conhecia ninguém que tivesse passado algo assim.
Então orou comigo novamente pelo assunto, orou por Isabela, pediu proteção sobre nós. E arrumou um jeito de nos encontrarmos pessoalmente no dia seguinte, dada a gravidade do ataque.
Eu sabia o quanto ela nos considerava, o quanto nos queria bem. Sua agenda era muito apertada, mas Grace sempre dava um jeito de arrumar tempo para nos. Mesmo porque, aquela era uma situação de emergência, algo totalmente inesperado, eu e Isabela não sabíamos o que fazer. Na verdade ninguém sabia bem o que fazer!
Mas a verdade é que se o dinheiro não aparecesse, adeus o sonho ao apartamento! E a última coisa que nós queríamos era casar tendo que começar a vida pagando aluguel!...
Depois de falar com Grace dei um pulo no banco procurando pelo gerente que tinha me atendido na véspera.
— Nada por enquanto... — esclareceu ele.
Meu Deus, meu Deus... que situação!
A semana passou. Encontramos com Grace, oramos. Encontramos com Sarah e Jefferson, oramos. Encontramos com Dona Clara... oramos. Pedimos, naturalmente, a restituição do dinheiro. Agora cabia a Deus fazer o resto. Fosse lá o que fosse que isso significasse.
Isabela procurou ser forte o quanto pôde durante os dias que se seguiram. Sempre me consolava e procurava ajudar-me, pois confesso que aquilo realmente me abalou, me colocou completamente fora do prumo. Mas apesar dessa força que demonstrou ter, claro que também estava arrasada e triste, com os nervos abalados.
No sábado seguinte, talvez como conseqüência de toda esta somatória, brigamos novamente. Para variar, no final de semana. Aquele seria o primeiro dia daquela semana tensa e atribulada que Isabela teria para descanso. Mas não aconteceu assim.
Pobre da Isabela! Ela se ressentia pela falta de descanso. Eu ainda não tinha conseguido emprego, mas ela estava trabalhando fora e também escrevendo o livro. Havia bastante responsabilidade sobre ela.
Aqueles dias tinham sido muito desgastantes porque, à procura de ajuda, correndo atrás de oração, tivemos que repetir várias vezes a mesma história, as mesmas coisas. As pessoas escutavam e naturalmente se sentiam enternecidas. Mas, depois, cuidavam de sua própria vida e seus próprios afazeres. Punham a cabeça no travesseiro e dormiam com tranqüilidade porque aquilo não estava acontecendo com eles, era conosco que estava acontecendo!
O peso era muito diferente. O alvo estava desenhado nas nossas costas, era contra nós que a Irmandade avançava! E não há palavras fortes o suficiente para traduzir o estado de alma em que nos encontrávamos, várias vezes. Não era pânico, não era desespero... antes era uma constante sensação de peso sobre os ombros, muito peso. O único alívio vinha da certeza do Poder maior do Senhor.
Mas por que o Senhor permitia todas essas coisas???...
Às vezes nós ficávamos cheios de incertezas e questionamentos. Realmente... o que mais nos poderia fazer a Irmandade?! E se Deus não nos protegesse?
Era melhor não pensar muito nisso.
Agora, mais do que nunca, eu preferia pensar em arrumar um trabalho; agora, mais do que nunca eu estava aflito com aquilo. Nosso casamento dependia de conseguirmos juntar dinheiro. Como juntar dinheiro se todo o salário de Isabela era consumido durante o mês, e ainda faltava?
E o meu seguro desemprego não saía, de forma que estávamos muito apertados financeiramente. Eu sabia que a Irmandade devia estar fazendo alguma coisa muito forte, nunca tinha sentido aquela maré de azar em relação aos empregos. Nada dava certo!
Isso me angustiava terrivelmente, não conseguia dormir direito e não conseguia pensar em outra coisa. Também o dinheiro do banco, apesar de nossas orações, não dava o ar da graça. Dia a dia a gente tinha menos esperança de recuperá-lo. Aquela tensão toda me fazia irritadiço e impaciente.
Por isso não poupei palavreado na nossa discussão daquele sábado e, louco de raiva, deixei Isabela sozinha em casa no início da noite. Ela estava fora de si e, para variar, veio atrás de mim com o carro. Isto é, eu não sabia que ela tinha vindo atrás do ônibus.
Quando desci, acabei cruzando com alguns antigos amigos da época em que eu ainda era o Catatau (Leia Filho do Fogo). O pessoal me fez festa e eu, sobrecarregado como estava, fiquei jogando um pouco de conversa fora, relaxando a cabeça. Conforme contou Isabela depois, ela ficou no carro em frente de minha casa, esperando. Orou um pouco, se acalmou. E, como eu não aparecesse, voltou para sua casa.
Quando finalmente eu cheguei, mais descontraído, já estava me roendo de remorsos pelo que tinha feito a ela. Então liguei. Como estivesse mais calmo, controlei melhor a língua. Isabela estava muito triste. Fui falando com mais sabedoria do que antes, então Isabela teve paciência de me escutar.
— Tá bom... não vamos deixar isso estragar o nosso sábado — considerei eu. — Vou até aí de novo!
— Vou esperar você.
Não era tarde. Saí novamente e caminhei até a avenida. De lá eu poderia pegar somente um ônibus e economizar dinheiro. A caminhada era meio longa, mas a economia valia a pena. Naquela época, às vezes Isabela surrupiava umas moedinhas da Dona Márcia para eu pegar condução. Foi um tempo em que dividimos até xampu e cafezinho expresso. Nosso plano na academia venceu e não pudemos renová-lo. Que pena!... Meu maior temor era atrasar a prestação do Palio. Também tinha que pagar as contas em casa, pôr gasolina no carro, cobrir os cheques pré-datados que já havíamos dado... além de ter um dinheirinho para passar o mês.
Entrei no ônibus, sentei. Fiquei olhando o caminho sem vê-lo, afastado do mundo, mergulhado em mim mesmo, pensando na vida. Lá pelas tantas, quando acordei dos meus sonhos de divagação, vi que estava num lugar totalmente nada a ver, fora da rota que me levaria à casa de Isabela.
Olhei, olhei, e não reconheci o caminho.
"Será que peguei o ônibus errado?!"
Perguntei ao cobrador. Ele respondeu meio de má vontade:
— Esse ônibus aqui é "relógio", passa só de vez em quando e dá um monte de voltas pelos bairros. Tava escrito "relógio" lá fora, no painel. Você não viu, não?
Fiz uma negativa com a cabeça, meio azedo.
"Como se eu fosse enxergar isso, à noite, justo hoje, justo agora! Que droga!!!"
E tive que me armar de paciência. Já estava tenso de novo, preocupado... eu sabia que, nessa altura, Isabela também já deveria estar preocupada com minha demora. Com tantas coisas estranhas acontecendo uma atrás da outra, até detalhes simples como me enganar de ônibus já causavam mal-estar. Para ela, que não sabia o que estava acontecendo, certamente causava todo tipo de pensamentos absurdos.
Além do mais aquele ônibus não me deixava na esquina da casa dela, mas algumas quadras mais adiante. Finalmente saltei, e fui direto para o orelhão.
"Vou avisar que está tudo bem e que chego em cinco minutos!"
Toca, toca, toca... e ninguém atende!
"Mas onde está a Isabela?! Ela ia me esperar em casa!"
Aí fui eu que fiquei preocupado.
"Será que ela saiu pra me procurar? Não pode ser."
Corri até a casa dela. Entrei com minha chave após tocar estridentemente a campainha. Ela atendeu a porta de mau humor.
— Que foi? — perguntei, ansioso, ao sentir o clima carregado.
— Nada — fez ela em resposta. — Se você não ia sair naquela hora não custava nada ter avisado, afinal...
— Mas eu saí! Eu saí! — tudo o que eu não queria era brigar de novo.
— Saiu!! Saiu e chega aqui só agora? Eu estava morta de preocupação, vai que você está no ponto e me aparece aquele fulano de novo!
— Que fulano?
— O Marlon, né?! Quem mais?
— Não foi nada disso, peguei o ônibus errado, um tal de "relógio" que faz um caminho doido. Me deixou lá na outra avenida!
Então Isabela falou com mais moderação.
— Puxa vida... não paguei nem pro susto!
— Eu liguei pra cá assim que desci. Você não atendeu!
— E nem podia. Eu estava te esperando no ponto, tão nervosa que fiquei!
— Bom, mas eu liguei.
Aquela noite parecia interminável para nós dois. Depois de uma semana daquela, um sábado como aquele!
Fizemos errado mais uma vez. Ao invés de orarmos primeiro e depois conversarmos, tentamos conversar logo de cara. Apesar dos ânimos terem sido apaziguados momentaneamente, o cansaço aumentava e a recordação das recentes injustiças que fizemos um ao outro acabaram não sendo boa combinação.
Logo mais estávamos novamente discutindo. Incrível... que poder aquilo tinha de sugar as forças! Eram já onze e meia da noite, nosso sábado tinha sido jogado no lixo. Minha indignação não tinha limites. Eu só conseguia enxergar meu próprio ponto de vista e Isabela já estava completamente exausta, esmagada, embora eu nem notasse isso.
— Se você veio aqui pra isso, pra me deixar louca, não sei pra que vir — vociferou ela lá pelas tantas.
Foi para a cozinha pegar um copo de água. Seu rosto estava muito triste, seus olhos estavam tristes. Fui atrás dela, mas novamente não liguei muito, nem enxerguei seu estado, nem percebi. Especialmente porque comecei a sentir a opressão crescendo em derredor.
Dessa vez foi muito diferente das anteriores. Eu reconheci o cheiro... adocicado... intenso... familiar! Sabia que era Abraxas... Abraxas estava ali. E por algum motivo que eu não sabia explicar, não houve medo em mim. Era uma sensação semelhante à do homem que ficou muito tempo longe do seu cachorro de estimação...
Abraxas vinha para perto de mim, como um cão, me rondando, me sentindo, farejando. Eu fiquei quieto. Esperei. Da mesma maneira que Marlon, não conseguia ver Abraxas como um inimigo em potencial.
"Ele é um demônio, apenas isso... é a natureza dele. Eu fico quieto... e espero... talvez ele não me faça nada."
Isabela apenas bebia água, não sentia isso, não percebia a presença dele. Então, continuou a conversa exatamente do lugar aonde a gente tinha parado. A presença de Abraxas se fazia cada vez mais palpável, a opressão aumentava, mas eu não chamava aquilo de opressão. Fui ficando cada vez mais introspectivo, mais calado, apenas esperando. O que, eu não sabia, eu apenas esperava...
Isabela voltou para a sala, sentou-se no sofá. Eu fui atrás novamente... mas o ambiente daquela sala... estava indescritível! Assim que adentrei nela parecia que me enfiava dentro de um freezer. Caminhei até a cadeira de balanço e me acomodei ali. Perguntei apenas por perguntar:
— Está frio aqui?
— Não.
Tornei a me calar.
Agora já não era somente a sensação da presença dele, eu sentia aquele campo energético fortíssimo ao meu redor... e frio, frio, frio, cada vez mais frio. Somente então percebi que não era a sala que estava fria, era realmente Abraxas tirando minha energia de superfície, sugando o meu biocampo, arrancando calor do meu corpo. Uma sensação semelhante àquela de antes de uma canalização (Leia Filho do Fogo). Só que mais intensa.
"Mas Abraxas não pode me canalizar mais", pensei, meio voando.
E continuei à espera. Eu já nem sabia o que Isabela estava falando, nem conseguia escutar mais nada. Perdi a noção do espaço. Meu corpo tremia involuntariamente de vez em quando.
Ele não parava mais. Continuava fazendo aquilo, simplesmente não parava. Então comecei a sentir o meu corpo enfraquecer. Minha mente começou a ficar ainda mais longe. Agora eu sabia que Abraxas estava também roubando minha energia vital porque eu sentia as pernas ficando dormentes, os braços também, os lábios formigavam.
Ele ia tirar minha energia vital até que meu coração parasse de bater. Seria essa a solução para mim?
"Eu vou pro Céu e meus problemas acabam....."
— Eduardo? — de repente ouvi a voz de Isabela. — Eduardo? Tá tudo bem?!
— Hã...? — eu percebi que estremecia de frio, estava com o corpo semi-inclinado para frente na intenção de me aquecer.
— Você está bem?
O tom de voz dela ainda não era dos mais cordiais. Ela não podia adivinhar o que estava acontecendo. Eu não queria ter que falar nada, falar o que estava acontecendo... não conseguiria falar... sentia uma enorme fraqueza, o corpo pesado, dormente... um sono forte. Mal conseguia abrir os olhos.
Tive a impressão de que ele continuaria me sugando até que meu corpo e mente desfalecessem, e meu coração silenciasse. Então, por algum motivo, vinda não sei de onde... aquela certeza...
"Abraxas vai me matar......"
Então me arrisquei a falar, fiz força e balbuciei:
— Acho que precisamos orar... agora. Senti Isabela mudar de atitude na mesma hora. E inquiriu rapidamente:
— Mas o que foi?
Eu não tinha condição de explicar nada, o tempo todo apenas cruzava fortemente os braços sobre mim mesmo, tentava me aquecer, estremecia e meus olhos queriam permanecer fechados. Não tinha forças para mais nada. Consegui falar novamente:
— Não pergunta nada agora... só faz o que estou te pedindo. Vamos orar um pouco.
Então perdi a noção de tudo.
Não sei mais dizer exatamente o que aconteceu. Para Isabela, aquele foi um dos momentos mais difíceis até então. Ela ainda demorou alguns segundos sem saber o que fazer. A sua alma estava em polvorosa, as emoções em turbilhão, a tristeza gritando no coração, a mente cansada, frustrada, decepcionada... e eu lhe pedia para simplesmente esquecer de tudo isso, tudo o que era natural de se sentir... e orarV. Partir imediatamente para o espiritual?!!
Tarefa árdua. Muito difícil! Ela curvou a cabeça e fechou os olhos. Mais alguns segundos de silêncio. Então eu acho que a ouvi dizer:
— Não consigo orar.... — revelou. — Não consigo! Você não quer começar desta vez?
Já nem sabia por que ela estava dizendo aquilo.
— Hãã?...Não... — eu só sentia aquela sensação desesperadora, lancinante. — Começa você.
Isabela suspirou fundo. Foi difícil, mas ela começou.
— Pai... nos dá força agora.....— aquilo foi uma súplica. Sua voz estava amarga.
Procurou buscar dentro de si toda a coragem necessária, inspirou profundamente buscando ar como se ele pudesse aumentar sua força. Eu já não ouvia mais nada. Não sei o que ela falou.
— Pai... perdoa a nossa insensatez, nossa atitude... por favor... nos ajuda agora... precisamos de Ti!
Ela orava mais para si mesma do que para mim. Orava lentamente, baixo. Recordo-me que não conseguia acompanhá-la, volta e meia minha mente sumia. Ela lutou sozinha naquele momento, mesmo sem saber. Eu só tive forças para pedir socorro, não para lutar. Quem lutou foi ela. Eu sentia um sono... e um tremendo cansaço.
"Que sono!..."
— Cerca a gente com Tua proteção... com Teu cerco de anjos... com Tuas muralhas de fogo. Precisamos de Ti, meu Deus, como precisamos de Ti! Desfaz as armadilhas do inimigo contra nós — ela orava sem saber exatamente o que acontecia. — Tem sido tão duro, meu Pai!
Isabela deve ter olhado para mim e achado que eu não estava bem, pois indagou após orar um pouco mais:
— Você tá sentindo alguma coisa? — sua voz soou assustada.
Eu continuava encolhido, de olhos fechados, e quando ela falava comigo parece que isso me ajudava a sair do torpor.
— Continua orando... continua orando...
Nessa altura Isabela já estava certa de que havia algo ao nosso redor, embora não pudesse sentir por si mesma. Mas confiava muito no Dom que eu tinha recebido do Senhor. Ela sabia que eu estava captando alguma coisa espiritual, sofrendo as conseqüências de algum ataque.
Então começou a orar com mais intensidade buscando a proteção de Deus.
— Senhor... todo demônio, toda a força do mal que está aqui... manda embora, em nome de Jesus. Senhor, protege com o Teu Sangue o Teu filho. Nós resistimos a toda ação do inimigo! Cobre o seu coração, os seus pulmões, cada célula desse corpo com o Sangue do Cordeiro. Cobre toda essa musculatura! Protege Teu filho de toda a investida do Mal!
Eu não escutei nem uma palavra dessa oração, mas em dado momento percebi que ela se ergueu de onde estava, e acho que caminhou até a outra sala sem parar de orar:
— Para isso se manifestou o Filho de Deus... para destruir as obras do diabo!
Ela continuava orando, baixinho; depois orava em línguas, sempre baixinho. Eu até tentava concordar com ela, mas só consegui pescar uma palavra ou outra. Parece que escutei Isabela folhear algo. Depois voltei a me dispersar. Mas ela orava a Palavra, com decisão, embora eu não escutasse nada.
— Te invocamos, Senhor Deus, e seremos salvos dos nossos inimigos. Gritamos por socorro a Ti, ouve nossa voz, ouve nosso clamor. Faz a terra se abalar e tremer, por causa da Tua indignação. Que saia fumaça das Tuas narinas, saia fogo devorador da Tua boca, agora, eu te peço! Saiam brasas ardentes... destrói nossos inimigos!... Troveja, Senhor! Troveja, Altíssimo! Levanta a Tua Voz contra eles, Senhor dos Exércitos! Dispara Tuas setas e espalha nossos inimigos, desbarata-os.
Comecei a sentir alívio à medida que ela orava declarando a Palavra. Minha mente parece que desanuviou. O frio intenso e a opressão foram diminuindo, os tremores foram cessando, a dormência foi sumindo. Menos nas pernas.
Isabela parece que percebeu que sua oração estava fazendo efeito. Ao todo, ela não precisou orar mais do que cinco minutos. A Potestade que estivera ali, fosse Abraxas ou outro qualquer, e que me atacara fisicamente, parecia ter ido embora. O ar estava leve!
Mesmo assim Isabela ainda orou um pouco mais, declarando trechos de agradecimento e adoração:
— Nós te amamos, Senhor, pois Tu és nossa força. Nossa rocha, nossa cidadela, nosso libertador. Tu és o nosso Deus, o rochedo onde podemos encontrar refúgio. Nosso escudo, a força da nossa salvação, nosso baluarte! Obrigada, Deus, por tua intervenção hoje. Tu és digno de ser louvado, fomos salvos de nossos inimigos nessa noite... obrigada, Pai... amém!
— Amém.... — respondi também. Então olhei para ela. Ela olhava para mim com ar desconfiado.
— Você tá bem?
Eu estava bem porque Abraxas tinha saído dali. Estava bem porque Deus respondera com presteza nossa oração. Mas a nossa negligência e demora em nos posicionarmos no Reino Espiritual fez com que colhêssemos muitas conseqüências naquele dia. Essa era tão somente a última delas.
Tentei me movimentar na cadeira... e nada! Minhas pernas estavam paralisadas.
— Estou bem — falei. Era melhor esperar um pouco. Talvez passasse logo. "Ou... será?..." Fiquei nervoso. Teria ele causado alguma lesão mais séria??!
Isabela continuava me olhando, me analisando, em silêncio. Com que cara eu estaria? Atordoado? Atônito? Assustado? Ou talvez não fosse nada disso, talvez fosse apenas a sua extrema sensibilidade.
— Você tem certeza, Nenê? Quer orar um pouco mais?
— Não precisa. Deus já ouviu.
— Mas o que você está sentindo? — ela continuava a insistir. Eu não queria dizer que minhas pernas estavam insensíveis e completamente imóveis. Isabela iria assustar-se à toa. "Logo já deve melhorar..." Como ela continuasse a me observar com ar preocupado, tentei dar um jeito de distrair sua atenção. Tinha que ver como estavam minhas pernas sem que ela percebesse.
— Me traz um copo de água? — pedi. — Gelada! — Tá.
"Ótimo!"
Assim que ela saiu um pouco da sala eu tentei mudar rapidamente de lugar.
Queria sair da cadeira de balanço e deitar no sofá, pois me sentia muito cansado.
Além disso, deitado ficava mais fácil disfarçar o problema. Precisava pesar o prejuízo sem que ela notasse. Mas a verdade é que eu não conseguia me levantar.
"Não é possível eu estar assim...", pensei comigo mesmo enquanto ouvia Isabela abrindo a geladeira na cozinha.
"Eu preciso conseguir levantar... preciso me mexer....!"
No desespero, consegui me jogar da cadeira de balanço para o chão e fui me arrastando até o sofá. Isabela fez que demorou, de propósito. Enquanto eu arrastava e puxava minhas pernas com as mãos, pois não me obedeciam, ela espiava no cantinho da parede. Logo veio ao meu encontro com o semblante muito assustado. Ajoelhou-se ao meu lado, a meio caminho entre a cadeira e o sofá. Largou o copo no chão:
— Eduardo... que é isso?! Você não tá conseguindo se mexer?!?
Meus pés jaziam caídos ao meu lado, então eu os arrumei com as mãos para deixá-los em posição mais normal. Procurei tranqüilizá-la:
— Calma, tá tudo bem. Já vai passar. É assim mesmo.
— Mas, como "é assim mesmo"? Você não tá bem, meu Deus do céu... você não tá bem!
— Tô, eu tô, sim. Vai passar!
Ficamos sentados no chão lado a lado. Isabela estava aflita comigo, assustada com o ocorrido, com o Poder demonstrado pelo inimigo, que ela não conhecia.
Mas não tinha perdido a cabeça, era uma aflição controlada. A bem da verdade, nunca vi Isabela em pânico, desesperada. Isso era bom. Ela só se descontrolava de verdade quando brigava comigo! Estiquei o braço para alcançar a água, esquecida no chão. Isabela alcançou antes e estendeu-a para mim. Bebi. Ela continuava esperando uma explicação para aquilo. Fui explicando que quando demônios fortes como Principados e Potestades se aproximam dos seres humanos, precisam roubar parte da sua energia de superfície porque eles próprios têm um fortíssimo campo eletromagnético. Para que não haja interferência na aproximação, e os demônios possam canalizar o filho do fogo, é preciso que o biocampo humano seja enfraquecido. Por isso aquela sensação de frio!
Mas naquela noite a intenção de Abraxas não era simplesmente me "canalizar".
Ele queria sugar-me até a morte.
— Ele não tirou somente a minha energia de superfície, ele estava arrancando também a minha energia vital... e quando ela é retirada em excesso o corpo fica assim, sem forças, mole, não responde a comandos motores. Mas depois passa.
— Oh, meu Deus, Eduardo... por que você não pediu para orar antes?
— Não tinha clima. Depois... não achei que ele fosse me fazer mal! Isabela suspirou, desta vez atordoada.
— Pôxa, Nenê... como não achou?
Estávamos exaustos. Ficamos ali lado a lado, oramos um pouco mais, pedimos a restauração física, emocional e espiritual. Desta vez consegui orar.
Aos poucos comecei a recuperar os movimentos, comecei a ter novamente sensibilidade nas pernas, passou a dormência. Graças a Deus!
— Quer tentar sentar no sofá? — perguntou ela.
— Quero... bom... resta saber se consigo... Isabela tinha no rosto um ar de desalento, seus olhos estavam tristes e
preocupados.
— Vamos... eu te ajudo.
Com a ajuda dela eu consegui erguer-me e sentei no sofá. Depois deitei. Que esgotamento!
Isabela acomodou minha cabeça em seu colo, começou a fazer cafunézinho, em silêncio. Adormeci.
Não sei como Dona Márcia não notava essas coisas, como a gente conseguia passar com todos aqueles problemas despercebidos. A verdade é que ela estava assistindo TV no seu quarto e, naquela hora da noite, estava bem mais entretida com o filme do que conosco. Mesmo porque, para todos os efeitos, eu já tinha ido embora de velho! Coitada...! Era melhor assim. Nós dois realmente víamos nisso que Deus a poupava.
Lá pelas tantas acordei com Isabela me chamando:
— Vem deitar na cama do Marco, Nenê.
— Hum? Hum...? Não, eu vou pra casa. Já estou bem. Isabela falava baixinho, e eu estava grogue. Ela nem discutia:
— Vem. Já falei com minha mãe, tá tudo certo. Vem dormir direito, na cama. Aqui tá ruim pra você.
A última coisa que eu queria era incomodar. Minha voz saía mais mole que maria-mole.
— Avisou sua mãe...? Tudo bem? Isabela me puxava pelos braços, devagar.
— Tudo, tudo bem. Vem, Nenê. Eu te ajudo.
Nessa hora percebi que minhas pernas, embora bambas e muito cansadas, já me obedeciam. Mas eu me sentia como se pesasse duzentos quilos. Isabela me ajudou e cheguei ao quarto do Marco apoiando-me nela e nas paredes.
Desabei na cama. Acho que Isabela deve ter tirado meus sapatos, porque despertei sem eles. Mas eu não me recordo. Dormi a noite toda sem acordar.
Minhas pernas voltaram ao normal embora eu tenha ficado com uma tênue dor durante um dia. Parecia dor muscular, como aquela que dá depois de muito exercício físico. Além de uma ligeira fraqueza. Mas tudo passou em um dia. Dois dias depois foi meu aniversário, que transcorreu sem incidentes. Isabela e eu ficamos um pouco perturbados depois, pensando naquilo. Por que Deus permitia que os demônios se aproximassem tanto? Chegassem tão perto? A gente não tinha entendido ainda o conceito das brechas... a culpa não era de Deus... era nossa! Com as nossas próprias mãos abríamos a porta para os demônios. Nós estávamos procurando nos acertar... sim, isso era fato, mas havia brechas! E a gente não conseguia entender por que tudo aquilo acontecia conosco. Mas onde há brechas... os demônios podem se aproximar. O futuro nos mostraria que, mesmo mínimas, os demônios conseguem perceber e utilizar tais brechas. Não haveria nenhuma possibilidade de acerto sem viver essas terríveis situações. Mas demoramos muito a aprender, demoramos a compreender o mecanismo daqueles ataques.
Segundo Marlon, agora as coisas iam esquentar para valer. E, também segundo ele, ninguém ficaria ao nosso lado.
Só nos restava esperar.
Isabela conversou comigo depois sobre aquela sensação estranha que tive, de não temer a aproximação de Abraxas, não conseguir enxergá-lo como um inimigo. Realmente minha mente deveria estar ainda cauterizada, pois eu não via os demônios como meus adversários. Reais adversários! E Isabela parecia tremendamente desconfortável com aquela minha maneira de pensar.
— Eduardo, eles são seus inimigos! Querem a sua morte, sua destruição. Se você pressente uma opressão, você tem que sinalizar, e nós temos que orar. Me promete, vai, que você não vai mais agir assim, Nenê?
— Eu sei, entendo o que você está falando. É que eu não imaginava que ele fosse me fazer mal, imaginava que ele estava... só ali.
Isabela meneava a cabeça.
— Os demônios nunca vão estar "só ali", né, Eduardo? Se Deus te mostra a presença deles, está na realidade mostrando o mal que eles querem fazer contra você, contra mim. Viu a que ponto chegou ontem à noite?
— Eu sei. Foi uma coisa nova para mim também. É que, só pelo fato de eu pressentir um demônio, não imaginei que tinha que mandar uma chuva de fogo em cima dele, entende? Eu sei que isso está errado, eu sou filho de Deus e por isso eles me odeiam. Mas é que eu conheci o outro lado... na minha alma ainda lembro de Abraxas como o meu Guia, meu Guardião. Mas hoje eu tive certeza de que realmente ele me odeia, assim como toda a Irmandade! Começou um novo tempo...
Isabela compreendeu.
— Entendi... eu posso te entender. Mas você não pode mais ver o Reino Espiritual com olhos humanos, com olhos da alma. Se um demônio se aproxima de você, nunca é por acaso, nunca ele vai deixar de agir. E sempre que fizer isso vai ser querendo teu mal! Essa é a verdadeira natureza deles: má! Aquela natureza "bondosa", "amiga" era totalmente falsa. Você precisa se desvincular totalmente disso! Eles são seus inimigos... eles chegam perto... e você se defende! Entendeu? Não fique achando que existe neles coisa alguma boa.
— Eu sei. Sei disso perfeitamente. Sei porque a Bíblia diz. Incrível como eu agia mesmo pelas minhas emoções.
Depois disso Isabela entregou-me para Grace. No dia seguinte ao meu aniversário nós tínhamos uma Ministração agendada, e Isabela colocou aquele meu sentimento no rol de aspectos a serem ministrados.
— Compreendo — disse ela. — É preciso haver um desligamento de almas aí. O desligamento espiritual já aconteceu, mas há marcas que foram deixadas na alma... nas emoções.
A gente entendia isso meio que intuitivamente. Vou tentar explicar.
Quando existe envolvimento com as Trevas, mais especificamente com um demônio qualquer, existem basicamente dois tipos de seqüelas. A primeira é puramente espiritual. Em se tratando de Abraxas, eram várias as conseqüências espirituais decorrentes do meu envolvimento com ele: o fato dele poder me canalizar quando quisesse, poder manipular o meu corpo, a minha mente, falar comigo, me dar poderes sobrenaturais, etc. .. (Leia Filho do Fogo).
A segunda conseqüência é fruto da primeira, mas muito mais sutil, e envolve a alma. Minha alma, indiretamente, também ficou marcada por Abraxas: minhas emoções foram tocadas, minha vontade, meu intelecto... e essas marcas às vezes perduram por muito mais tempo do que as primeiras.
As conseqüências espirituais de certa forma já tinham sido tratadas no exato momento em que me converti, e depois durante as Ministrações também. Abraxas já não podia me canalizar, não podia manipular meu corpo; e os Poderes que eu tinha, deixei de ter.
Mas as marcas que ele deixou na minha alma ainda podiam ser manipuladas, de alguma maneira. Ele ainda podia interferir na minha vontade, nos meus sentimentos, na minha mente.
Isso ficou claro depois daquele último episódio. Obviamente que eu não agi de uma forma espiritual sadia naquela situação, mas de uma maneira puramente emocional, fruto de uma contaminação nas minhas emoções. Quer dizer, em algum lugar obscuro da minha alma eu ainda enxergava Abraxas como um amigo, e isso foi mais forte do que qualquer outra impressão naquele momento crítico.
Isso é mais ou menos o que acontece quando um casal se separa, por exemplo. O relacionamento de um casal é intenso, portanto quando acontece a separação é como se cada um levasse consigo uma parte da alma do outro. Não literalmente, mas cada um carrega consigo as influências que sofreu durante a convivência com o outro. Se uma mulher conviveu com um marido violento, durante muito tempo ela pode ter medo de brigas tolas com qualquer outro homem. Isso é uma marca que ficou na alma dela como fruto daquele relacionamento!
Mesmo os dois tendo-se separado fisicamente, terem deixado de ser uma só carne, durante muito tempo, ou até mesmo pelo resto da vida, em algum momento vão manifestar as influências que receberam na alma.
Meu relacionamento com Abraxas tinha sido tão profundo quanto um casamento. Nós tínhamos uma aliança de sangue um com o outro!
Grace explicava melhor o "desligamento de almas" usando um exemplo simples: ela costumava mostrar duas folhas de papel, de cores diferentes, coladas uma na outra.
— Veja só: a folha verde é o homem, a amarela é a mulher. Se este relacionamento acaba, e eles se separam... — Grace puxou as duas folhas. Elas descolaram, mas parte de uma ficou na outra, e vice-versa. — Percebem? Esse pedaço aqui, amarelo, não faz parte da folha verde. Mas ficou grudado nela! E um pedaço da verde ficou grudado na amarela. É mais ou menos isso o que acontece depois de envolvimentos profundos com pessoas, ou até mesmo Entidades Espirituais. E preciso pedir perdão e orar a Deus pela restituição de cada coisa ao seu lugar.
Aquele episódio fez com que eu começasse a perceber o quanto minha alma tinha sido afetada por Abraxas... talvez aquela minha reação fosse apenas a ponta de um iceberg.
Compreendi melhor aquele tópico da Ministração, o "desligamento de alma", como sendo algo importante. Eu já conhecia Grace o suficiente para saber que esse termo era apenas uma questão de nomenclatura. Mas, em última análise, não deixava de ser uma parte periférica da Cura Interior. Que visava sanar feridas não mais espirituais, mas emocionais, resultantes do meu envolvimento com Abraxas.
— O fato de Daniel ter tido dificuldade em expulsar Abraxas, foi porque alguma coisa de Abraxas ficou com ele: lembranças, palavras, acontecimentos, promessas... — continuou explicando Grace. — Parte da personalidade de Abraxas ficou impregnada no Daniel, e isso o paralisou naquele momento crucial. Mas agora vai ser diferente! Deus vai tratar desta ferida emocional. E quando Daniel estiver curado, vai conseguir olhar para o Reino das Trevas com outros olhos. Sob um novo prisma.
Ricardo estava chegando, desta vez no horário.
Naquela tarde começamos então exatamente por aí, pelos "desligamentos de alma".
— Eduardo, comece pedindo perdão pelo seu envolvimento com Abraxas. Você já renunciou à aliança espiritual em outras Ministrações, mas agora renuncie toda conversa, toda orientação, toda promessa, todo Encantamento do qual ele participou com você e através de você.
— Tinha também aquele Rito de Celebração, logo no começo, que era feito especialmente para entrar em simbiose com Abraxas... — lembrou Isabela
Eu orei enquanto os demais intercediam em concordância. Depois Grace continuou:
— Olhe agora para Ricardo e repita comigo: Senhor Deus, entrego todos estes pecados diante de Teu Altar, todos os pecados que cometi ao me envolver com Abraxas, ao permitir que ele tivesse aliança comigo, e usasse meu corpo. Peço que o Senhor passe Teu Fogo em todos eles. E agora, em nome de Jesus, eu me desligo emocionalmente de Abraxas. Tudo o que é meu, e ficou com ele, tudo que faz parte da minha alma, e ficou impregnada nele, eu trago de volta para mim. E tudo que é dele, mas ficou em mim, eu devolvo a ele! Declaro que estamos totalmente separados emocionalmente pelo Sangue de Cristo. Eu me limpo, limpo a minha alma de toda a contaminação de Abraxas. Amém!
Pode parecer curioso orar neste sentido em relação a um ser espiritual. Porém o relacionamento de todo Satanista com os seus Guias é estreito demais.
— Seria bom fazer o desligamento de almas também com Marlon e Thalya. Eles foram importantes para o Eduardo... — lembrou novamente Isabela.
Embora já tivéssemos orado pelo desvinculamento de toda aliança, esta era uma outra etapa. A quebra das alianças destrói um elo espiritual. O desligamento de almas pressupõe elos emocionais. E no meu caso, meu relacionamento com Marlon, quase como o de um filho com um pai, também merecia ser tratado desta maneira especial. Com Thalya, conforme explicou Grace, a questão era mais sexual.
— Faça o desligamento de alma com Thalya, mas aproveite para renunciar também a todo relacionamento sexual que você tenha tido com outra mulher. Sempre que existe envolvimento sexual é mais delicado. Quando acontece a separação, a alma fica muito ferida. Daniel, pode orar agora, do mesmo jeito, primeiro pedindo perdão. Depois, vamos devolver a alma deles que está em você, e pegar de volta a sua que ficou com eles.
Feito isso, repetia a oração de Grace para consolidar o desligamento de alma. O próximo passo foi orar entregando Camila e outras moças com que tive relacionamento "próximo" do sexual. Fiquei meio envergonhado de fazer aquilo, dar nomes e tudo mais.
No entanto ninguém parecia estar me julgando, nem Isabela, que continuava em oração. Todos mantinham a seriedade que o momento requeria e aquilo me aliviou!
A Ministração foi fluindo. Ponto a ponto, etapa por etapa, tudo que me parecia relevante eu ia compartilhando. E Grace anotava o que deveria ser orado depois.
Deus foi bom comigo. Eu tinha consciência de estar como que coberto por tiras de pano sujo, como Lázaro. O trabalho de Grace era ir tirando, uma a uma, todas estas tiras. Começando das mais externas, as mais evidentes, as mais grossas, as maiores. Depois viriam as menores. Depois até aquilo que eu não tinha nem consciência.
Quando a Ministração acabava eu saía mais leve, mais contente... agora estava completamente livre! Mas então, em poucos dias vinham novas lembranças. Ou então, eram os acontecimentos do dia-a-dia, as minhas reações, certos tipos de pensamentos repetitivos que traziam à tona novos pontos a serem ministrados. Quase cem por cento das vezes era Isabela que percebia estes padrões de comportamento "defeituosos".
Era como se Deus estivesse me "descascando", como uma cebola. Tirando pele por pele. Às vezes sangrava. Às vezes, por baixo de uma película aparentemente inocente havia uma grande e terrível ferida infectada. Tão dolorosa que somente a Mão do Espírito Santo, através de Grace, poderia tocar ali. Feridas que se mostravam surpreendentes até mesmo para mim, eu nem imaginava que as possuía!
Fui percebendo que as camadas internas nunca seriam tratadas se eu não tivesse primeiro tratado as externas. Era um processo lento... em Sua Sabedoria o Senhor foi fazendo parte a parte, momento a momento, lembrança a lembrança. Quando imaginava que tinha acabado, percebia que ainda existia algo mais. E depois... algo mais. E depois... ainda algo mais!
As lembranças não vieram todas de uma vez, nem seria possível uma coisa dessas. Mas à medida que me submetia ao processo, muitas vezes com urros de dor e lamento, eu ia mergulhando em mim mesmo. E tudo aquilo resultava em cura para mim.
Hoje eu sei que, sem as Ministrações, eu não poderia abraçar o chamado que Deus tinha feito. Nunca estaria pronto para ser usado por Ele sem ter passado por aquilo. O soldado nunca é enviado ao front de guerra ferido. Primeiro ele é tratado... depois treinado... depois enviado.
Mais tarde eu e Isabela fomos compreender por que Deus dissera que o Ministério começava na segunda quinzena de fevereiro. Seria um tempo em que nossos inimigos arrochariam a perseguição, e daí tiraríamos o nosso treinamento. Além do que, o processo de Libertação e Cura na minha vida continuaria, agora em outro nível. Um nível já mais profundo.
Realmente foi necessário. Deus fez literalmente milagres de transformação em minha vida. Milagres que não seriam concretizados sem aquelas horas e horas de oração, arrependimento e renúncia, em companhia de servos de Deus.
Quantas amarras eu tinha em mim, quantas! Quantas lacunas, quantas portas abertas, fruto de meu envolvimento com a Irmandade.
Todo pecado não confessado: uma porta, uma janela aberta... uma brecha para o inimigo.
Naturalmente a transformação não vem do dia para a noite. O processo de santificação pode durar toda uma vida. A Bíblia diz que "as coisas velhas se passaram e tudo se fez novo"!
Isso é um fato. Mas às vezes não acontece num piscar de olhos.
Uma vez convertido, há um tempo de se "desvestir" das roupas velhas. Isto é as roupas da mentira, falta de honra, orgulho, idolatria, avareza, etc. .. etc. Alguém que se converte não deixa de lado toda a prática pecaminosa de imediato. Claro, há coisas que são instantâneas, com todo novo convertido. Outras vão vindo aos poucos, na medida em que percebemos o pecado, nos arrependemos dele, e o deixamos. Nem sempre deixar o pecado é fácil, pois a carne grita e fala alto. "O bem que queremos fazer, nem sempre fazemos... mas o mal que não queremos, ah, este sim o fazemos"! Não é assim?
Comigo não foi diferente. Muita coisa mudou da água para o vinho no momento em que me converti. Mas depois disso, aos poucos eu teria que desvestir cada peça de roupa de Satanista, até estar nu de tudo aquilo. E então eu me vestiria das roupas do Cristão. É um processo de uma vida toda. Mas creio que Deus tinha pressa conosco. Ele queria que nos alinhássemos o quanto antes.
Não foi fácil me desvestir. Foi terrivelmente doloroso. Não foi fácil me vestir com roupas novas.
Às vezes eu me contentava em saber que tinha abandonado o Satanismo, isso deveria ser suficiente. Na minha mente, no meu inconsciente era mesmo. Aos poucos fui vendo que somente isso não era suficiente. Eu tinha que ser transformado à imagem de Cristo, transformado num verdadeiro Cristão.
As lutas que estávamos vivendo tinham, certamente, esse objetivo. Lapidar a mim e a Isabela.
Depois que terminamos a Ministração daquela tarde e já Grace ia orar para "limpar" a sala, Ricardo interrompeu.
— Só mais uma coisa, Grace. Quando orei por ele desta última vez o Senhor me mostrou uma lança atravessando o coração e o pulmão dele.
— Vamos tirar então! — fez Grace em resposta.
Nós já estávamos, de certa forma, acostumados com a linguagem simbólica das visões. Deus mostrava um ataque de morte, revelava a intenção do inimigo. Em suma: nada de novo!...
Cabia a nós orar, contra-atacar, resistir, defender-nos no Reino do Espírito.
O mais interessante é que três dias antes, durante o ataque de Abraxas, Isabela orou especificamente cobrindo meu sistema respiratório e meu coração. E também minha musculatura, que foi afetada na hora.
— Senhor, em nome de Jesus, tiramos esta lança agora do Teu filho! — orou Grace, e fez o movimento de puxar dali aquela arma. — E todo intento do inimigo nós destruímos, e proibimos Satanás e seus demônios de tocar em Daniel. Toda armadilha, todo Encantamento, todo Feitiço e retaliação nós can-ce-la-mos, em nome de Teu Filho Jesus Cristo de Nazaré!
Eu orei junto, de olhos fechados, compenetrado. Senti que Grace ungiu meu coração e também minhas costas, na altura dos pulmões. Ungiu-me a cabeça, pediu proteção sobre mim.
Quando ia fazer o mesmo por Isabela, Ricardo interveio novamente: — Eu vi você — falou para Isabela. — Você estava com um escudo na mão, sabe? Um escudo desses de exército antigo, exército romano, não sei. E eu via você. Virando este escudo para um lado, depois para outro. Às vezes você quase caía, mas logo se erguia, e continuava na defensiva, com o escudo na mão. Para todo o lado!
Grace olhava para Isabela:
— Mas que bom isso! Isso é tua oração intercessória por Daniel, e por você mesma.
— Eu nem oro muito por mim. Oro mais por ele, e com ele.
— Mas o problema, Grace, é que eu a via muito cansada. Muito cansada. — É... na verdade vocês dois precisam de intercessores. Quem ora por vocês? Eu e Isabela nos entreolhamos.
— Bom... — comecei. — Até agora, só temos Dona Clara. E você, Grace. Não consigo me fazer entender na minha Igreja.
— É. Nós já tentamos, mas não parece que tenha dado resultado.
Grace escutou um pouco mais. Então ela mesma orou para que as barreiras colocadas entre nós e a liderança de nossa Igreja caíssem e os propósitos de Deus fossem alcançados.
— Vou falar com seu Pastor! Agradecemos. Nos despedimos.
Mais adiante, depois de eu já ter sido bem "descascado", Deus começaria a tratar as feridas de Isabela. Então o processo continuaria para os dois. Naturalmente nós não sabíamos disso ainda.
As minhas últimas Ministrações seriam marcadas não muito depois desta data.
Pelo menos, todos nós achávamos que eram as últimas! Inclusive Grace. Tudo que era possível ser feito naquele primeiro momento já tinha sido feito. Já se tinham passado pouco mais de quinze meses desde a primeira Ministração; foram cerca de dez longos encontros, e a metade deles nos primeiros doze meses. Eu relatara todo meu envolvimento, tudo quanto eu me recordava tinha sido colocado para fora. Pelo menos aquilo que eu julgava menos comprometedor. Algumas coisas simplesmente omiti.
Mas, como já mencionei, Deus estava apenas mudando de fase, mudando de nível. Como nós viríamos a perceber, haveria muito a ministrar ainda. Haveria muitos "algo mais"!...
Mas estes somente viriam à tona em cerca de um ano, um ano e pouco. Eu e Isabela saímos abraçados na noite quente, resolvemos comer esfiha no Habib's, pois era mais barato. Nosso dinheiro estava no fim. Estávamos alegres por mais uma etapa da Ministração ter sido completada.
Por outro lado, às vezes a gente se lembrava da nossa conta aplicação e dos sonhos que tinham ido por água abaixo.
Grace havia perguntado logo no início da Ministração.
— Tem alguma notícia?
— Nada, Grace. O gerente do banco não achou qualquer registro. Para todos os efeitos, essa conta nunca existiu.
Quando Ricardo ficou sabendo, seu semblante se encheu de fascinação. Ele se esqueceu que por trás daquela situação estavam dois seres humanos, eu e Isabela.
— Nossa! — dissera ele. — Mas que Poder indescritível. Como eles se fortaleceram! A que ponto podem chegar!
Fiquei escutando. Mas Isabela, apesar de ter Ricardo em alta conta por causa do seu Dom de Discernimento, não conseguiu. Logo deu um jeito de ir beber água, ir ao banheiro.
— Puxa...— comentou ela depois. — Só falta ele bater palma como criança, como quem assistiu "mágica". Que falta de empatia! Que falta de bom senso!
Dei um muxoxo.
— É. Ele nem ligou para a gente. Mas não fez por mal... é que nunca viu nenhuma atuação demoníaca superior. E para ele, né, que lida com isso deve ser muito interessante!
— Interessante! — Isabela estava exasperada. Só porque ele está na cadeira de espectador. Vem participar do filme para ver se é gostoso!
Comemos nossas esfihas comentando a Ministração. Mas depois nossa satisfação foi sendo progressivamente substituída por preocupações financeiras.
— Amanhã acabará todo meu dinheiro. Precisamos fazer umas contas para ver se o seu salário cobre nossas despesas. Temos que pagar o carro, e também os cartões de crédito. Tenho que pagar as contas de casa. Tem que sobrar um dinheiro para passar o mês...
— Quando será que vai dar para a gente começar a juntar de novo? — indagou Isabela com tristeza.
Por vezes era ela quem ficava abatida com a situação, e aí chorava um pouco. E então eu que fazia as vezes de consolador, de "forte".
— Sabe de uma coisa? — disse ela depois de enxugar as lágrimas. — Nós estamos fazendo algo muito errado em relação à nossa área financeira... nós não estamos dizimando, né, Nenê? Eu bem que falei.
Realmente eu era meio avesso ao dízimo, ainda influenciado por idéias subversivas da doutrina Satânica. E nunca dizimava, apesar de Isabela ter sugerido que, antes de fazermos o depósito em nossa conta, deveríamos dar o dízimo do salário.
Naquela época desconversei um pouco, pensando em todas as falcatruas que líderes fazem com o dinheiro dos fiéis, explorando a fé, tornando-se verdadeiros mercadores da credulidade do povo. Profissionais da fé! Mas havia concordado em dar o dízimo quando sacássemos o dinheiro para comprar nosso apartamento.
— Aí a gente dizima — eu dissera.
Isabela, por não ter sido membro de Igreja durante muito tempo, aprendera pouco sobre o dízimo e a sua importância. Por isso não insistiu muito.
Tivemos que aprender pelo pior caminho como se fecha a boca do devorador.
— É, Isabela... você tem razão. Acho que nós erramos mesmo. E deixamos aí uma área desguarnecida. Demos uma legalidade. Aquele dinheiro era nosso Isaque, nossa "segurança"...
— Pois você não acha? O nosso dinheiro não tinha proteção nenhuma! Não adianta orar por isso. O que adianta, de agora em diante, é dizimar, ofertar, obedecer. Temos que começar.
Eu assenti. Pensativo e preocupado.
— Eu sei. Por um lado eu sei... por outro... justo agora que a gente está com a grana tão curta?
— Ah, Eduardo, não vamos mais pensar nisso. Vamos obedecer e acabou!
A partir daí, nunca mais falhamos nos dízimos. Depois, aprendemos a ofertar. Ofertar de verdade, sem mesquinharia. E, num futuro próximo veríamos que aquele tombo tinha sido necessário, porque nos ensinara a respeitar e a cumprir um princípio espiritual.
No dia seguinte saiu o pagamento de Isabela, que foi quase todo torrado no pagamento de nossas contas. Usamos também R$ 50,00 que eu havia ganhado de minha avó, de presente de aniversário, para ajudar a pagá-las.
Na verdade minha avó tinha dado R$ 100,00 na mão de minha mãe para comprar bolo e coisinhas para fazer uma festinha. O resto do dinheiro seria meu. Mas minha mãe comprou um bolo no supermercado mais barato, comeram sem mim. Aproveitou para comprar carne, ovos, e algumas outras coisas para a casa.
No fim, fiquei sem festinha, e só com R$ 50,00. Eu não fazia conta da festa, nunca tive isso na vida. Ninguém me esperou, meu irmão Otávio é que comeu tudo. E meu presente ficou reduzido pela metade. R$ 100,00 reais cairiam bem naquela ocasião. Como pagamos a prestação do carro com atraso, houve um acréscimo de R$ 30,00. Os juros do cheque especial estourado, "comeram" mais R$ 40,00.
Em uma semana estávamos sem dinheiro. Sobrou o básico para a gasolina e ônibus.
— Nossa salvação é a parcela do seguro desemprego! Logo já vem outra. Deve sair no fim do mês.
— Mas faltam mais dez dias ainda. O que a gente faz?
— Bom, vamos "esticando" o dinheiro... quem sabe antecipam? — Eu sabia que aquilo era muito improvável, mas quem sabe?
Estacionamos o carro perto da Igreja. Eram quase oito horas da noite, o Culto de quarta-feira logo começaria.
Entramos na Igreja já nos primeiros acordes do Louvor. Não havia ainda muita gente, era comum as pessoas se atrasarem um pouco. Fomos ao nosso lugar costumeiro, no canto da parede, na primeira fila ou na segunda.
Os Cultos de quarta-feira tinham o poder de levantar nosso ânimo muitas vezes. Era um verdadeiro pronto-socorro no meio da semana.
Naquela noite foi feito um apelo. Um desafio na verdade. Com base no texto pregado, "Pedi, e dar-se-vos-á".
A pregação tinha me tocado muito, e senti-me encorajado a dar aquele passo de fé.
"Deus, você sabe que nós precisamos de dinheiro. Para as mínimas coisas. O Senhor sabe disso."
Fiquei em pé. Isabela também. Não sei o que ela pediu. Mas eu pedi pela parcela do meu seguro desemprego:
"Faltam ainda quase duas semanas, mas o que temos não vai dar. Antecipa a parcela, meu Deus. Antecipa a parcela porque o Senhor sabe que eu preciso dela. Este é meu pedido para o Senhor, hoje!"
Saímos os dois da Igreja mais aliviados pelo Louvor, pela Pregação, pelo consolo do Amor de Deus sobre nós.
Isabela levou-me para casa, depois foi para a casa dela. Telefonou para dizer que tinha chegado. Cumprido nosso ritualzinho, bem despedidos e acomodados em nossas respectivas casas, voltei a pensar no pedido que tinha feito para Deus naquela noite.
No dia seguinte, levantei cheio de expectativa e, muito ansioso, fui até a Caixa Econômica. No meu coração eu sabia que Deus deveria ter atendido ao meu pedido, e meu dinheiro estaria exatamente lá, no banco, à minha disposição, esperando por mim!
Levantei e nem tomei banho, como de costume. Vesti qualquer roupa e fui trotando até a avenida. Intimamente eu falava para Deus:
"O Senhor sabe que eu preciso. Sabe que está fazendo falta. Eu pedi... o Senhor vai me dar porque meu pedido é justo!"
Cheguei ao banco, peguei minha senha e esperei, confiante com a expectativa aumentando. Logo chegou minha vez e eu me aproximei do caixa correspondente a minha senha.
— Pois não? — fez a moça do caixa.
— Vim pegar minha parcela do seguro desemprego! — eu nem cogitei em pedir para verificar se estava lá: era claro que estava.
— Você pode me emprestar seu cartão do PIS?
Entreguei-o. Ela digitou no computador. E rapidamente veio a resposta:
— Olha, é só no fim do mês, viu?
— Só no fim do mês...? — indaguei, frustrado.
— É, a sua remessa só vem no fim do mês.
Esperei alguns segundos processando tudo aquilo. Minha reação foi rápida e talvez impensada, mas eu me recusava a aceitar que Deus recusaria um pedido tão justo de minha parte. Afinal, todo nosso dinheiro havia sido roubado! Então falei, com convicção:
— Olha, eu não sei qual é a sua crença. Mas eu sou filho do Rei! Amanhã eu vou voltar aqui, e meu dinheiro vai estar na conta. E você vai ver a Glória de Deus!
Ela me olhou com os olhos meio espantados, esperando qualquer reação, menos aquela.
— Oh, sim? — a moça exibia uma expressão um tanto irônica. Peguei meu cartão do PIS.
— Você vai ver que Deus vai me atender! — exclamei eu, ainda, antes de dar meia volta guardando o cartão.
Fui para casa orando. Até de forma inconsciente, dialoguei com Deus tentando dar as diretrizes a Ele:
"Olha só, Senhor... se o dinheiro estiver lá, aquela mulher vai ver que eu disse a verdade, que o Senhor é Poderoso mesmo. E vai se converter! Se o Senhor agir vai ser um grande testemunho. Talvez até mais gente daquele banco se converta.
Talvez o banco vire uma Igreja. Afinal, eu nem estou te pedindo muito, só o valor da parcela, só aquele dinheirinho. O Senhor sabe que eu preciso. E eu testemunhei no Teu Nome, não deixa Teu Nome ser envergonhado!"
E fui falando, argumentando. Eu me convenci com meus argumentos, procurei permanecer firme na minha fé. E esperava que tivesse conseguido convencer também a Deus que eu tinha razão. No meu coração a petição era genuína, minha oração era sincera. Eu insisti com Deus por saber que Ele era Pai, não iria... não poderia me deixar na mão.
"Quando o filho pede pão, o Pai não dá pedra...", murmurei para mim mesmo.
Mas eu não percebi que estava barganhando com Deus, empenhando o Nome Dele para, de certa forma, colocá-lo contra a parede e fazer com que me atendesse.
Naquele dia comentei com Isabela das minhas expectativas, e ela foi um pouco mais pé no chão. Procurou balizar meus sentidos cautelosamente, sem necessariamente me desanimar.
— Se for o propósito de Deus, Ele vai fazer, porque Deus pode fazer qualquer coisa. Se não for... Ele dá um outro jeito. Eu posso também pedir emprestado a minha mãe.
Eu não queria pedir nada emprestado. Não respondi nada. Mas Deus tinha que fazer algo, tinha que me atender. Naquela altura eu já achava que, se o dinheiro estivesse lá na sexta-feira, podia ser que o banco inteiro se convertesse, olha só!!!
No dia seguinte levantei bem mais cedo. Eu tinha uma entrevista de emprego naquele dia, no final da manhã, por isso precisava ser o primeiro atendido no banco. Além do que, eu não tinha nem um centavo para nada, nem mesmo para pagar o ônibus.
"Não faz mal... quando pegar o dinheiro acaba este problema."
Fui tomar banho e novamente me enfarpelei todo com terno, gravata, perfume, gel no cabelo, tudo o que eu estava acostumado a usar normalmente no dia-a-dia. Quando estava empregado.
Desci olhando o relógio, peguei minha pochette à busca de meu precioso vasoconstritor nasal. Eu usava aquilo há mais de 20 anos por causa da rinite alérgica. Já tinha feito vários tratamentos para tentar me livrar da droga, mas nada havia surtido efeito. O jeito era continuar usando.
Isabela vivia de cabelo em pé por causa daquilo, preocupada com o uso crônico do vasoconstritor tópico. Mas nenhum alergista ou otorrino tinha dado jeito em mim.
E naquela manhã....
"Oh, que azar!!!!"
O frasquinho estava vazio. Acho que tinha usado muito à noite sem perceber. Agora aquela catástrofe! O nariz já estava começando a entupir. Quando entupia de verdade eu ficava com dois verdadeiros tampões horríveis enfiados no nariz, não passava nem um fio de ar; até engolir era difícil, o ouvido também se ressentia. Era uma sensação medonha, insuportável. Eu precisava daquele remédio!
"Tudo bem... pego o dinheiro e vou direto para a farmácia. Vai dar tudo certo. Não posso ir para a entrevista deste jeito."
Joguei algumas gotas de água dentro do frasquinho do vasoconstritor, chacoalhei vigorosamente e esguichei todo o conteúdo nas duas narinas. Ajudou um pouquinho. Pelo menos uma das narinas começou a funcionar melhor.
Saí de casa caminhando devagar, pois era relativamente cedo, e eu teria que esperar o banco abrir. Fazia uma manhã bonita, ensolarada. Eu estava confiante. Tudo daria certo.
Fiquei esperando em frente à Caixa Econômica, perto exatamente daquele outro banco que há anos eu me preparei para assaltar com amigos... (Leia Filho do Fogo). Hoje, nenhum deles vivia mais. Eu tinha sido poupado.
Fiquei ali sentado, observando os transeuntes e o movimento dos estabelecimentos comerciais. Olhava no relógio a todo minuto. Logo eu estaria com meu seguro desemprego nas mãos!
"Finalmente! Vai abrir!"
Fui o primeiro a entrar, o primeiro a ser atendido. Meu número de senha correspondia ao caixa exatamente vizinho ao que tinha me atendido na véspera. A moça com quem eu conversara estava abrindo seu próprio caixa e olhou-me de esguelha, procurando ser discreta. Aliás, acho que não tinha como não me reconhecer, depois do que eu disse. Ela ficou na dela, fazendo de conta que não estava nem ai, mas certamente de anteninhas ligadas.
— Bom dia! — cumprimentou a moça que atendia.
— Bom dia! Vim sacar meu seguro desemprego.
— O cartão do PIS, por favor.
Novamente entreguei-o. Senti minha respiração até acelerando, era hora! Ela digitou no seu computador o número de meu cadastro e deu a fatídica resposta:
— Não está aqui, não. Só no fim do mês.
Senti como se não apenas um balde de água gelada fosse despejado sobre mim, mas pelo menos uma meia dúzia. Fiquei mudo por alguns segundos, olhando para a atendente. Aí a moça ao lado não perdeu a deixa e largou a sua espetada, com classe:
— Pois é, eu falei isso ontem para este menino, e ele disse que é filho do Rei, e coisa e tal...!
Em suma. Eu era um maluco!
Acho que a fila inteira ouviu. Senti um calorão me subir para o rosto, eu tinha certeza de que estava roxo como uma acerola mais que madura. Peguei meu cartão e saí mudo, envergonhadíssimo. O nariz nesta hora entupiu de vez! A boca se abriu automaticamente para respirar.
Já na porta, olhei para os dois lados, atônito, perdido, com a cara roxa, nariz entupido e boca aberta! Para onde eu iria agora?
Não tinha dinheiro para o ônibus... não tinha dinheiro para o remédio...
O choque e a humilhação, fizeram o nariz entupir de verdade. Estava triste e frustrado.
E agora??? Certamente minha mãe não iria me emprestar nada, nem que tivesse.
Fui subindo a avenida, devagar, cabisbaixo.
"Puxa vida... Deus me deixou na mão....."
De repente...
— Ei! Psiu!Olá!
Era comigo. Olhei e dei de cara com um homem sorridente à minha frente, saído de dentro da cafeteria pequena na esquina.
— Ah...! Olá!
— Tudo bem? — inquiriu ele. — Como é que você vai?
— Tudo bem — procurei disfarçar meu desapontamento e sorrir.
Era o dono da cafeteria. Eu o havia conhecido por acaso há algumas semanas. Como saía todas as manhãs para procurar trabalho, logo percebi aquela nova cafeteria recém inaugurada. Entrei uma vez para tomar um cafezinho expresso antes de pegar o ônibus para minha jornada.
O lugar estava jeitosinho, agradável. Quando fui pagar, falei para a mulher do caixa, que tinha toda pinta de ser a dona:
— Está muito bonito seu café! Que Deus abençoe o seu negócio. O semblante dela se iluminou:
— Muito obrigada! Você é Pastor, é? Até achei engraçado. Só porque eu tinha dito "Deus abençoe"?
— Não, não sou Pastor, não. Sou evangélico, mas não sou Pastor.
— Puxa, irmão, olha... eu e meu marido investimos todo nosso dinheiro neste café. As coisas estão difíceis e demos este passo de fé. Somos recém convertidos, sabe, freqüentamos a Igreja...
Ela foi falando, explicando a sua situação, e porque era tão importante que aquele negócio prosperasse. Por fim, pediu:
— Será que você pode orar para que Deus abençoe e guarde nosso café? Não me pareceu um pedido absurdo, de forma que logo fiz o que ela pedia para poder ir cuidar da vida. Orei rapidamente, ali mesmo no caixa, de frente para ela, pedindo a proteção e a prosperidade.
— Muito obrigada, hein? Volte mais vezes!
— Eu é que agradeço — respondi polidamente. — Tenha um bom-dia!
Saí de lá sorrindo, os recém convertidos geralmente são tão genuínos, têm uma fé tão especial!
Alguns dias depois estava passando por ali de novo, e resolvi tomar outro café. O marido dela estava também, e a mulher foi logo me cumprimentando e chamando seu marido:
— Olha, ele é aquele rapaz que eu te falei, que orou pela gente e que vai ser Pastor.
"De onde ela tirou isso?", pensei comigo mesmo.
— Bom dia! Obrigado pela sua oração, viu? — falou de novo. — Fique à vontade. — Tá. Mas, olha, eu não sou Pastor...
Novamente quando fui pagar, eles não resistiram:
— Será que você podia orar de novo? — pediu o homem. — É que naquele dia eu não estava, e sem querer abusar...
Sorri de volta. Realmente os recém-convertidos são diferentes, especiais:
— OK. Podemos orar.
Fiz de novo uma oração ali no caixa. Os dois ficaram de olhos fechados, e no ruidoso "amém" alguns rostos se voltaram para nós, indagativos e curiosos.
— Muito obrigado, hein, irmão? Foi muito bom isso que você fez! Não deixe de aparecer, viu? — o homem me deu uns tapinhas no ombro, todo sorrisos, acompanhando-me até a calçada.
Depois eu até me esqueci daquele episódio, mas agora aí estava ele, bem na minha frente. Será que queria mais oração?
— Entra um pouco! — convidou. — Toma um café.
Eu bem que precisava de um café, mas com que dinheiro?! Então desconversei:
— Obrigado... eu... ãh... já estou satisfeito. — a voz saía distorcida com o nariz entupido.
Ele não aceitou recusa.
— Toma um cafezinho, sim. E por conta da casa!
Bem, assim as coisas mudavam de figura. A palavra "grátis" é realmente chamativa, taí uma palavra que tem "Poder"! Eu já não tinha mais compromissos. Perdera a entrevista, meu nariz estava totalmente entupido... teria que passar o dia em casa, até que Isabela viesse me buscar.
Diante deste quadro, um café parecia um presente inusitado.
— Obrigado. Eu aceito!
Sentei na mesinha. Só estava ele ali dentro, e enquanto preparava um caprichado café, foi falando:
— O irmão sabe... nós chamamos esses dias aí uma irmãzinha da nossa Igreja para vir orar aqui. Não se ofenda, não, nós não estamos desprezando a sua oração, mas é que esta irmã é daquelas, do "Fogo", sabe? E como investimos tudo o que a gente tinha neste negócio, então queríamos ter certeza de que Deus estava protegendo, e abençoando, sabe?
Ele pôs a xícara diante de mim, e acrescentou não apenas uma, mas duas bolachinhas como acompanhamento. Comecei a tomar meu café sentindo aquilo me aquecer emocionalmente por onde passava, estava sendo um refrigério para mim.
— Ah! O seu café é muito bom!
— Obrigado. Mas o irmão sabe... então convidamos a irmãzinha do Fogo para vir orar aqui com a gente. Sem querer te desprezar, viu, que fique claro. Aí aconteceu uma coisa interessante. Assim que ela chegou aqui, antes de orar, ficou olhando um pouco aqui para a porta, sabe?
Eu fui escutando meio por escutar. Ele continuou, mudando um pouco o tom de voz:
— Olhou para a porta como se observasse algo. Então ela disse assim: "Não precisa mais orar pela proteção, alguém já orou aqui, tem um anjo ali na porta protegendo este lugar".
— Puxa...— fiz eu, interessado desta vez. Eu gostava, e gosto muito de ouvir falar de anjos.
— Pois então! Aí nós comentamos que realmente tinha vindo aqui um rapaz que ia ser Pastor, e que orou com a gente. E expliquei. Ela sorriu, e ficou assim quieta, nem respondeu. Só continuava olhando para a porta, observando, como se escutasse, sei lá! Eu não entendo ainda muito bem estas coisas do Espírito. Mas aí ela disse para nós que Deus estava nos dando uma direção. E se fôssemos obedientes, Ele iria nos trazer a prosperidade que estávamos pedindo para este negócio. O anjo que falou isso para ela, o anjo que estava na porta, que estava ali por causa da sua oração!
Eu ouvia sentindo meu coração bater mais forte, até esqueci das bolachas.
— "Invista na vida deste rapaz, porque ele está passando uma grande dificuldade", foi isso o que o anjo disse para ela.
Ele estava segurando as lágrimas e eu também. Deus é grande! Quem olhasse para mim ali, vestindo terno e gravata, não poderia supor minhas necessidades financeiras. Mas o homem parecia disposto a ir até o fim naquela direção do Alto.
— Bem, o irmão, sabe... eu não sabia quem você era, muito menos minha esposa. Coisas como seu nome, ou seu endereço. Então nós dois fizemos um trato com Deus. E combinamos que quando você passasse por aqui de novo, nós lhe ofertaríamos o que tivéssemos no caixa.
Fiquei completamente aturdido, e desta vez fui eu que não contive as lágrimas. Grande era a Fidelidade do Senhor, misteriosos e únicos os Seus caminhos! Um casal desconhecido de recém-convertidos era o instrumento da minha bênção! Novamente o sobrenatural de Deus me apanhava em cheio, me atingia numa onda de alegria e surpresa, totalmente desprevenido, totalmente inesperado. Quando minhas esperanças já se faziam em pedaços pelo chão.
Compreendi imediatamente que Deus ouvira o meu pedido, e o considerava justo. Mas competia a Ele escolher o modo, não cabia a mim decidir pelo Senhor.
Compartilhei o que era viável para alimentar a fé daquele homem, e falei que procurava emprego há vários meses, que realmente a situação estava difícil para mim. Que eu não tinha dinheiro nem para aquele cafezinho que ele me oferecia.
Foi a vez dele emocionar-se. Nos encaramos, sentindo o elo que só pelo Espírito de Deus pode existir entre dois desconhecidos. Enxugamos nossas lágrimas e ele foi ver o dinheiro do caixa. Era cedo, não havia muito ainda. Mas Deus foi caprichoso em assinar o Seu nome naquela oferta: o valor era exato... exatamente o valor correspondente à parcela de meu seguro desemprego.
Nem mais, nem menos!
Corri para ver se conseguia chegar à entrevista, logo depois de aliviar-me com o vasocontritor. As lágrimas haviam dado um toque final ao entupimento, e foi um verdadeiro alívio jorrar ali aquele remédio!
Depois fui encontrar-me com Isabela na saída do serviço dela, no Shopping.
Dava para a gente dividir um prato no Viena, e eu queria fazer-lhe uma surpresa. Fazia tempo que não podíamos comer fora!
Eu a enganei de propósito, convidando-a só para um capuccino. Aí, na hora perguntei se ela não preferia dividir nosso prato preferido.
— Mas com que dinheiro, Nenê?
— Ah! Eu tenho! Eu tenho dinheiro!
O rosto dela iluminou-se pela expectativa da boa notícia que eu tinha para dar.
— Tem? Então deu certo o seguro desemprego? Fiz suspense, todo empolgado.
— Nãããão.... foi outra coisa!
— Mas o que? O que foi que aconteceu? — e dessa vez a pergunta tinha um tom de satisfação, de alegria. Normalmente quando Isabela perguntava "o que foi que aconteceu?", eu tinha algo desagradável para contar a respeito da Irmandade.
— Vamos pedir primeiro? Aí eu te conto com calma.
— Mas e aí? E a história que você ia contar do dinheiro?
Feito o pedido, segurei as mãos dela apertando a palma com as minhas.
A garçonete pôs diante de nós a cestinha de pão, cortesia do restaurante. Era um pãozinho tipo ciabatta, quentinho, com manteiga. A gente adorava. Aqueles eram momentos simples, mas muito especiais, momentos de apenas conversar, curtir a comida. Um ao outro. Não tinha preço, nem para mim nem para ela! Era muito bom!
Apesar de nosso contexto espiritual, nós continuávamos sendo duas pessoas comuns, um casal como outro qualquer, com as mesmas vontades, os mesmos desejos. Um casal que conversava de coisas comuns, que tinha um cotidiano normal, que queria levar uma vida normal.
A gente também ria, chorava, sentia, e pensava como pessoas comuns.
Ninguém falava o tempo todo de Satanismo, como tantos incautos viriam a pensar no futuro. Ninguém espiritualizava as coisas o tempo todo.
Excetuando o sobrenatural de Deus e do diabo que permeava nosso dia a dia... nós procurávamos viver normalmente. E vivíamos. Na medida do possível. Isabela foi escutando meu relato, deliciando-se com cada palavra, cada frase A história lhe parecia bastante fantástica, e seus olhos tornavam-se ora grandes e expressivos, ora cheios de lágrimas, revelando como o relato lhe caía na alma e no espírito.
— Pôxa... que coisa legal.... né?
— Pois é. Legal mesmo.
Ela tomava seu suco de abacaxi com norteia, pensativa. Então falou:
— Esse jantar é especial! É um presente de Deus para a gente! Foi o "Papai do Céu" que deu este jantar hoje...
— É mesmo, né?...
— Acho que Ele sabia que nós precisávamos de uma coisa boa assim, mesmo sendo simples. Temos muito que agradecer a Deus!
— Eu já agradeci!
— Eu sei, mas a gente deve agradecer em concordância. Deus trouxe a provisão que era necessária para estes dias.
Na semana seguinte, havia outra Ministração marcada. Havia muito o que colocar naqueles dias. Era assim que Deus fazia comigo: trazia "blocos" de lembranças, de envolvimentos. Naquele período veio um bloco grande, cheio de detalhes.
Novamente era Ricardo que vinha ser o intercessor.
Desde o início o Senhor comprovou sua atuação através da vida dele.
Dons existem, os Dons verdadeiros existem, são muito diferentes dos falsos por um motivo principal: são certeiros!
Não se trata de uma direção acinzentada, meio fruto da mente, meio fruto do espírito... não! São contundentemente certíssimos, existe uma imediata testificação por parte de todos que estão ali presentes conosco.
Era algo impressionante... inquestionável!
Naquela tarde íamos ministrar questões relacionadas à Irmandade, mas no final Deus trouxe à baila o Kung Fu.
Ricardo me viu cheio de armas, pelo que espiritualmente retirei-as de mim, uma a uma; viu também as vestes de guerreiro Kung Fu... que eu despi. Às vezes ele via ideogramas ou símbolos em minha testa, que eram ungidos.
Me desfiz espiritualmente dos troféus, medalhas, número de registro da federação etc. Também do que comi e bebi ritualmente, das oferendas nos altares a Bodhidharmah, das reverências a espíritos ancestrais familiares, dos sentimentos da ira e violência, dos sentimentos de auto-suficiência. Cancelei as palavras de juramento, e as rezas da filosofia Kung Fu.
Apagamos do Reino do Espírito meu novo nome, com o qual tinha sido batizado ao atingir o grau de Professor. Naquela antiga cerimônia meu nome foi mudado e eu fui inserido na árvore genealógica da família criadora daquele estilo. Embora eu já não tivesse mais o pingente comigo, retirei-o simbolicamente do pescoço.
Além disso, anulamos as semi-canalizações esporádicas de Abraxas no contexto do Kung Fu, desde a quebra das vigas de madeira, até os campeonatos. Também pedi perdão pela consagração da faixa preta, e do próprio Kung Fu, que fagocitava minha vida. (Leia Filho do Fogo.) Enfim... mais uma vez aquelas horas ali com Grace foram palco de uma faxina espiritual em regra!
Na semana seguinte, a terceira Ministração seguida.
Quando terminamos foi a vez de Isabela receber um pouco de atenção. Algo como um "pronto-socorro espiritual". Ela não vinha bem há alguns dias, triste, deprimida, cheia de dúvidas com Deus.
Não era a Isabela de sempre, forte e determinada. Por vezes, chorava e questionava se Deus realmente estava no controle da situação e de nossas vidas. Era muita coisa ao mesmo tempo. Eram muitos acontecimentos para digerir ao mesmo tempo.
Mas ela nunca cogitou deixar-me. A culpa não era minha, no seu entender, era do diabo. Seu lugar era ao meu lado, Isabela sabia disso.
No entanto, é comum e perfeitamente compreensível que, às vezes... a gente se sinta abatido.
Uma qualidade de Isabela era que ela não "dourava a pílula". Isto é; não escondia nada, não escondia seus sentimentos; por mais estranhos ou desprezíveis ou chocantes que pudessem ser.
Isabela encontrara em Grace alguém de confiança, alguém que ela julgava capaz de escutar qualquer coisa, sem julgamentos precipitados. Assim era Isabela com Grace e também com Dona Clara. Com mais ninguém.
Felizmente as duas tinham sabedoria para ouvir e entender. E permanecer ao seu lado, mesmo que isso significasse apenas uma oração, uma palavra amiga, uma frase de incentivo.
Isabela realmente não escondeu seus sentimentos de insegurança, temor, tristeza naquela tarde diante de Grace.
— Não estou me sentindo bem nestes dias... não sei bem o que é. Motivos de certa forma não faltam. Eu sei que Deus tem permitido um monte de coisas, porque é necessário. Mas não entendo bem o propósito, e me sinto cansada, cansada... com o corpo cansado, com a mente cansada, o espírito cansado. Não estou conseguindo orar direito, nem dormir direito, e parece que Deus não está preocupado com isso. Poxa, de vez em quando, preciso de uma trégua. Às vezes consigo escrever o livro, às vezes, não.
Isabela continuou o seu desabafo, e Grace ouvia. Então, orou por ela, ungiu-a, pedindo a proteção das muralhas de fogo, a cobertura do sangue do Cordeiro, e a guarda dos anjos do Senhor. Pediu o alívio para a alma, a paz que excede o entendimento.
Isabela chorava baixinho, as lágrimas pingando na sua roupa. Eu orei um pouco junto com Grace e depois abracei minha companheira:
— Você vai ficar bem, menina... isso vai passar, a tempestade vai passar! Grace ajuntava suas coisas e falava, preocupada com o mesmo assunto. O mesmo que tantas vezes já abordara!
— Quem ora por vocês, além de Dona Clara? Vocês precisam de intercessores com urgência.
— Nós bem que tentamos, Grace... mas é muito difícil... — retruquei devagar.
— Você não falou com seus Pastores?
— Bom... de certa forma eu falei sim. Eles têm uma idéia do que está acontecendo.
Isabela já foi mais específica:
— A Igreja é muito grande. Ele não pode dar atenção a todos. Grace suspirava e ficou quieta. E prometia:
— Vou ver se falo com eles.
— O Marlon disse que ninguém ia ficar do nosso lado...— murmurou Isabela.
— Mas eu estou aqui, não estou? — interveio Grace. — E Dona Clara também tem estado firme.
Isabela não se deu por vencida no seu argumento.
— Eu sei. Mas acho que não era de vocês que eles estavam falando. Temos orado com Dona Clara nesse sentido, para que as barreiras caíam por terra, mas... Deus tem que fazer algo novo. Vamos aguardar... nós também sentimos que precisamos de mais gente orando por nós. Orando de verdade!
— Tem gente que diz que ora, mas não há um compromisso real com a intercessão diária. E também não é para todo mundo que a gente pode abrir estas coisas — expliquei.
— OK! — fez Grace. — Mas vamos continuar confiando no Senhor.
O mês de abril trouxe um Congresso muito comentado no meio evangélico, de um preletor estrangeiro. Teria a duração de uma semana e terminaria no Domingo de Páscoa.
Foram Sarah e Jefferson que nos convidaram para estar presentes, pois eles próprios participariam com o seu grupo de intercessores. Fariam parte dos bastidores do Congresso, contribuindo com sua intercessão.
Então eu e Isabela nos programamos para ir na sexta-feira, e no sábado, pois Isabela trabalhava durante a semana e eu continuava compromissado com aqueles intermináveis processos de seleção que não davam em coisa alguma. As portas pareciam estar fechadas para mim.
Durante a semana tudo correu normalmente, exceto por estarmos atravessando um período de depressão e abatimento. Apesar das Ministrações com Grace, eu não vinha muito bem, nem Isabela.
— O que você acha de escrevermos uma carta para aqueles Pastores que estiveram presentes naquele encontro da Grace? Naquele dia em que ela me convidou para falar algo? — perguntei para Isabela certa noite, sentado na mesa da cozinha da casa dela.
— Por quê?
— Não sei bem. Pedir oração. Pedir ajuda. Não consigo arrumar trabalho... tenho certeza de a Irmandade tem fechado todas as portas de emprego, e isso é só o começo, como disse Marlon. Havia mais de cinqüenta Pastores ali, quem sabe alguém assumisse compromisso de oração pela gente? Não vai dar para a gente se arrumar nesta miséria por muito tempo. Já recebi a última parcela do seguro desemprego.
— Eu talvez pudesse trabalhar em período integral... posso arrumar outro emprego.
— Não! Não quero te sobrecarregar. Não é justo. Vamos escrever uma carta padrão compartilhando nossas dificuldades, pedindo oração. Quem sabe alguém pode nos ajudar de alguma forma?
No meu coração eu imaginava que aquelas pessoas, por terem conhecido uma pequena parte da minha história, e por serem meus irmãos, estariam do meu lado. E não nos negariam ajuda. Poderiam orar por nós. Encaminhar meu currículo, sei lá! Eu só queria poder dividir a insegurança daqueles dias. Receber uma palavra a mais... um incentivo qualquer!
E tinha que provar para mim mesmo que Marlon estava errado. Se ele dissera que ninguém ficaria do meu lado, era hora de mostrar ao Reino Espiritual que ele estava errado.
— Tá bem...— assentiu Isabela, procurando sentir-se animada. — Talvez você tenha razão... não custa pedir oração, compartilhar. Eles agora têm uma idéia de sua história. Vamos falar um pouco do que temos vivido desde aquele dia.
Ela sentou-se ao meu lado e escrevemos uma carta sincera, mas um pouco tensa. Parte de nosso temor ficou impregnado naquele desabafo. Talvez tenha sido por isso que não recebemos resposta de ninguém.
Isabela não falava nada, como que já adivinhando que seria assim mesmo. Mas eu estava decepcionado. Por que o diabo decretava sentenças e assim acontecia?!?
Mas, com ou sem resposta, nossa depressão passou e novamente nos reerguemos, contando apenas com nossas próprias orações e o consolo invisível do Espírito Santo. Pelo menos naqueles dias. O Culto da quarta-feira, antes do feriado de Páscoa, nos trouxe renovação. Naquele dia em especial, Isabela estava muito desanimada, nervosa, e só chorava. Não era medo, não era falta de amor a Deus. Difícil dizer o que era, difícil traduzir em palavras. Só alguém que do dia para a noite, passa a ter sua vida ameaçada pode sentir, pode entender.
A insegurança e a incerteza por vezes nos invadiam. Era só isso.
Como terminaria a nossa história? Para que se arriscar? Em nome de quê? Por causa de quem? Se sequer tinham se dado ao trabalho de responder nossa carta... ou ouvir nossa história... ou fazer empatia conosco?!?
Excetuando poucos, quem mais estava ao nosso lado?
Quem realmente se importava com o que pudesse nos acontecer? Se o pior acontecesse, a maioria se limitaria a dizer: "Que pena... Deus quis assim". E continuariam a vida.
Por que deveríamos nos arriscar por causa da Igreja, se ela sequer sabia de nossa existência?
Eram tantas dúvidas, às vezes; amarguras reclusas da nossa alma, pensamentos insólitos, sentimentos pouco nobres... mas reais, verdadeiros!
E o Pai conhecia cada um deles. Talvez, justamente por conhecê-los, é que trazia sobre nós uma força desconhecida, uma coragem especial que nos fazia sacudir a poeira da mente e, nos convencia de que valia a pena servir a Deus. A qualquer preço. Com Ele estaríamos salvos, mesmo que a morte nos rondasse, mesmo que falar nos custasse a vida. Vida humana, sim, mas não a Vida Eterna.
Talvez o Corpo de Cristo não soubesse de nossa existência, talvez aqueles ao nosso redor pouco se importassem com nossa sorte. Mas o Senhor dos Exércitos merecia ser atendido. E Ele havia dito: "Ide!"
Era isso que faríamos. Isabela enxugou as lágrimas, e nossos corações subitamente se alegraram.
Mais uma crise tinha passado.
Grace sabia das cartas, pois alguns haviam comentado com ela. Dissemos não ter recebido nenhuma resposta. Nossa amiga foi discreta em não tecer comentários, apenas explicou que minha história era "diferente", e nem todos iriam colocar a mão no fogo por mim. Uma coisa é você sentar, ouvir e saber. Outra... é se envolver. Entendemos o que ela queria dizer e não perguntamos mais nada.
Apesar disso, Grace pediu meu currículo, pois conhecia alguém que talvez pudesse ajudar-me. Um empresário. Eu fiquei novamente na expectativa; e Isabela não ligou muito.
Naquela semana, como se já não bastasse o resto, chegou uma multa de trânsito de mais de R$ 200,00. Isso porque Isabela já estava tão "domesticada" que não cometia mais infração no trânsito. Foi uma distração... e uma surpresa a mais para nós.
Porém fomos animados para o Congresso na sexta-feira da Paixão. O evento estava acontecendo em um ginásio e havia gente por todos os lados. A parte mais legal, pelo menos para mim, era o Louvor. Raramente eu vi tantos Cristãos reunidos e louvando a Deus em um só lugar.
Coisas assim, grandes, de porte, eu estava acostumado a conhecer apenas dentro da Irmandade. Era bom ver que os Cristãos de vez em quando também se reuniam naquelas proporções.
Na hora do almoço eu comi sanduíche com Isabela, e depois sentamos perto de um gramado na parte externa do Estádio. Ficamos ali conversando até que começasse o período da tarde. Quando íamos entrando pelo portão de uma das alas, dei de cara com Jeíferson. Ele veio todo sorrisos para nos abraçar:
— Oi, Daniel, Isabela! Que bom que vocês vieram. Aonde vocês estavam?
— Aí dentro, na ala 09 — respondi.
— Durante a semana não pudemos vir por causa do meu serviço — disse Isabela.
— Bom, mas agora vocês estão aqui! Já encontraram a Sarah?
— Não, ela está aí?
— Está lá dentro, na salinha de intercessão. Está havendo um revezamento por equipes.
— Ah!
Nós ficamos impressionados com tudo o que acontecia nos bastidores de um Congresso, conforme foi explicando Jefferson.
— E aí? — perguntou-me ele por fim. — Como está a procura por emprego? Recebemos sua carta, estamos orando por vocês.
— Pois é... — respondi. — Vamos aguardar em Deus, porque parece que tudo tem se fechado...
— Isso é verdade, sabe? — fez Isabela. — Não é querer falar demais não, mas Eduardo tem capacidade. Realmente nós estamos precisando de intercessão, nisso tem o dedo do diabo.
— Ele está procurando secar nossa fonte financeira, arroxar de todos os lados. Desabafamos um pouco, Jefferson ouviu e procurou nos tranqüilizar dizendo que perseverariam em oração. Então foi chamar Sarah. Ela veio amorosa e cheio de incentivo para dar.
— Oi, queridos, recebemos a carta de vocês! — ela nos abraçava fortemente, um de cada vez. — Olha, não se preocupem, não. O Senhor está com vocês. Ele é o Deus Todo-Poderoso, simplesmente o Todo-Poderoso.
Sarah falava com firmeza e convicção, e nós passamos a ouvi-la deixando suas palavras de fé entrarem em nosso coração. Ela nos transmitia força e coragem naqueles minutos. Parecia que perto dela nos sentíamos mais seguros, e tudo daria certo. Ela tinha razão no que dizia. Deus nos consolou através dela.
— E como é que vocês estão?
Falamos novamente do emprego, do dinheiro desaparecido, das nossas dúvidas.
Depois Sarah mudou de assunto, e comentou que Deus havia revelado a presença de Satanistas naquele lugar. Eu particularmente não liguei muito, Isabela tampouco. Se havia algo com o que nós não queríamos realmente nos preocupar naquele momento era com Satanistas. Já era necessário que perdêssemos muito tempo nos preocupando com eles, e naquele dia nós estávamos ali para receber a Palavra e a Ministração do Senhor. Pelo que não esticamos demais o assunto.
— Olha, eu já tenho que voltar! — exclamou Sarah mirando no relógio. — Mas não sumam, vocês dois, hein?! Nós vamos estar aqui, sempre atrás desta porta. Se vocês precisarem de qualquer coisa, é só vir aqui, tá bem?
Eu e Isabela sorrimos abertamente, agradecemos pela gentileza do seu oferecimento. Nós tínhamos aprendido a gostar muito de Sarah, a confiar nela. Parecia ter um compromisso autêntico com o Senhor e não temia a luta que enfrentávamos. Era alguém que parecia não recear colocar-se ao nosso lado.
Ali mesmo, antes de entrar, orou conosco pedindo livramento, direção e proteção. Sua oração foi forte e convicta, nos ajudou muito.
— Ah, amados! — falou Sarah com carinho. — Mantenham contato com a gente. Estamos orando também pelo dinheiro que desapareceu. Deus vai restituir o que foi roubado.
— Não sei se vai ser da maneira como a gente gostaria... — murmurou Isabela, transparente.
E explicou sobre nosso erro com o dízimo.
— Ah! — Sarah balançou a cabeça. — Realmente foi um duro aprendizado esse. Mas Deus é grande, vai trazer resposta! Nada é por acaso.
— Obrigado por suas orações! — acrescentei, sinceramente comovido pela atitude amigável dela. — Você e o Jefferson têm sido pessoas preciosas para nós. Muito obrigado mesmo.
— Deus é grande, e vamos caminhar juntos. Deus abençoe vocês! — ela outra vez nos estendeu seus braços.
— Tchau!
Dei a mão para Isabela e fomos nos encaminhando para a ala 09.
— Puxa... que simpatia dos dois! — fiz eu, ligeiramente atordoado pela atitude do casal.
— É verdade. Eles parecem ser diferentes dos demais. Quem sabe serão amigos de verdade? Pelo menos já são referencial para nós.
Eu me sentia com a alma mais aquecida depois daqueles abraços, mais tranqüilo, mais em paz. Às vezes eu precisava de abraços assim...! Gestos como estes, de pessoas que se intitulam "irmãos de fé", já tinham ficado perdidos no passado. Num negro passado.
A tarde passou sem nada de diferente. Não encontramos ninguém conhecido, embora soubéssemos que Dona Clara e algumas pessoas de nossa Igreja estavam ali, em algum lugar.
Caiu a noite. O local encheu-se mais ainda para o Culto noturno. Lá pelas sete e meia da noite, os primeiros acordes de Louvor começavam a encher o ar. Agora o ginásio estava bem cheio, e em todas as arquibancadas nós podíamos ver a movimentação das pessoas que iam chegando atrasadas e procuravam lugar para sentar. Era muito difícil o povo se aquietar por inteiro, mas eu procurei não dar atenção para o trança-trança. Eu estava ali por outro motivo. Olhei de soslaio para Isabela que estava com os olhos totalmente fechados, com as mãos por vezes erguidas, o semblante denotava que estava concentrada somente na Pessoa do Senhor.
Ergui meu braço direito, alto, cantei aquela canção que começava agora, o som fez meu corpo estremecer. Eu gostava dos dizeres daquele cântico.
Concentrei meus pensamentos em Deus, na Sua Fidelidade, Seu amor... a voz de centenas e centenas de pessoas cantando juntas tinha um impacto diferente.
No entanto....................
O Louvor não estava ainda na metade e eu me recusava a prestar atenção naquela sensação incômoda...
Sim, uma sensação leve... completamente... desagradável... a presença de algo que não deveria estar ali.
"Lógico! É óbvio que não deve estar aqui, é só uma coisa da minha cabeça..."
E procurei continuar concentrado no Louvor. Mas meu esforço foi em vão. Desta vez abri os olhos e perscrutei ao meu redor. Não havia nenhuma congruência naqueles sentimentos, naqueles pensamentos da minha cabeça. Naturalmente era só um alarme falso!
"Mas eu conheço esta sensação..."
Novamente olhei ao redor. Dessa vez, por algum motivo os olhos de Isabela se abriram e eles cruzaram com os meus. Talvez meu rosto demonstrasse parte do que eu estava sentindo, porque ela perguntou:
— Você não vai louvar? O que foi? Fiquei quieto.
— Nada.
Ela deu um leve sorriso e me cutucou com o cotovelo:
— Então louva e não pensa em mais nada.
"Sim, eu quero louvar... ela não precisa me dizer isso... eu sempre louvo... mas, pôxa, isso está me incomodando!"
Realmente não podia continuar ignorando aquilo, mas era totalmente sem lógica.
"Estou sentindo opressão, sei disso. Conheço isso! Mas como é que pode, meu Deus? Estamos em um Congresso Internacional... grupos de intercessores se revezam durante o dia todo... estamos reunidos com o Corpo de Cristo, bem no meio do Louvor.... então...? Como pode um demônio estar aqui??? Bem aqui... por perto... eu sei... aqui dentro! Se está aqui tem permissão para estar..."
Tornei a abrir discretamente os olhos. Diante de mim eu via o púlpito montado no palco, lá embaixo, os instrumentistas e levitas..., ao redor, arquibancadas cheias de crentes.
Ao longo do tempo parece que Deus vinha aprimorando o Dom, pois eu sabia que se tratava de um Principado. Dele desprendia aquela opressão forte, densa, pesada. E ele estava ali dentro. Tinha a ousadia de estar ali dentro!
"Mas se tem um Principado aqui, é porque certamente deve estar acompanhando alguém... e é claro que não está acompanhando um pai-de-santo. Somente alguém realmente compromissado... com Lúcifer... tem esta guarda!"
A opressão vinha de trás. Nós estávamos na primeira fila da arquibancada, então virei a cabeça devagar.
"Eles são muito cabalísticos. Se tem alguém aqui, talvez esteja justamente aqui... na plataforma 09!"
Realmente a sinalização de Deus foi perfeita, não precisei nem procurar.
À minha esquerda, na diagonal, duas fileiras acima, dei de cara com eles. Senti meu sangue gelar e o coração bater mais forte. Nossos olhares se cruzaram pelo que parecia uma eternidade. Eles também estavam fixados na nossa direção. Quando digo "nossa", quero realmente dizer nossa. O ódio se desprendia deles por minha causa e também por causa de Isabela. O rosto era frio, o olhar cortante, frio, congelado de desprezo e ira.
Virei imediatamente para frente sentindo as batidas descompassadas de meu coração. Novamente Isabela olhava para mim. Parece que ela pressentia!
— O que foi? — perguntou, preocupada.
Não quis alarmá-la. Mas eu os conhecia muito bem, sabia que Zórdico e Taolez eram Sumo Sacerdotes, treinados para suportar o Louvor e Unção de lugares como aquele. Na verdade os demônios de alta patente conseguem entrar em qualquer lugar, mesmo que seja uma Igreja, um congresso, ou uma reunião de oração. A questão é basicamente a legalidade que deveria haver em algum lugar. Eu não sei onde. Só sei que eles são legalistas, e aquele Principado estava bem ali!
Às vezes, quando há muita unção no lugar, os demônios se afastam, mas os seus colaboradores humanos ficam. Se saem podem voltar por desdobramento. Para impedir a entrada deles é preciso muito, muito preparo espiritual. Jejum, intercessão por muitos dias, unção com óleo. Além de santidade na vida de quem está imbuído de fazer tudo isso. Senão... não adianta! E o fato era um só: ali estavam eles. Procurei manter a calma. Eu só queria ter certeza. Talvez meus olhos tivessem me enganado, talvez fosse uma alucinação. Há quantos anos eu não os via, e lá estavam eles... mortos de ódio!
— O que foi, Eduardo? — perguntou Isabela outra vez.
— Olha para trás nessa direção... — apontei discretamente com a cabeça. — Dá uma olhadinha para a terceira fila do lado de lá, onde tem dois homens. Veja se eles estão olhando para cá.
O olhar dela revelou uma ponta de susto diante do meu comentário, mas Isabela virou lentamente o pescoço para trás. Eu só esperei, virado para frente.
— Nossa, Eduardo... eles me fuzilaram com os olhos! Quem é essa gente, você... você conhece? São da Irmandade? — ela já havia compreendido tudo só de ver a atitude deles.
Isabela parecia mais aturdida do que assustada.
— Que ar de ódio. Se pudessem nos comiam vivos.
— Continua louvando. Eu conheço eles, sim.
Isabela olhava para frente, e não disse mais nada. Fechou novamente os olhos, ergueu a mão, continuou louvando. Mas eu não consegui, porque a opressão continuava ali e estava me incomodando.
Eu não queria ficar na vista deles.
— Vamos lá para trás? Lá no fundo? — perguntei.
— Tá bom! — fez Isabela.
Nos mudamos para o fundo do ginásio, lá no alto. Fomos bem longe, para o outro lado. E quando sentamos de novo e demos por nós, nada deles. Tinham saído de lá!
Eu e Isabela oramos um pouco pedindo proteção. Sabia que eles seriam capazes de fazer qualquer coisa ali... no meio da multidão... e o tumulto poderia escondê-los.
E lá pelas tantas, depois da Palavra (na qual não conseguimos prestar atenção), nós decidimos comunicar Sarah e Jefferson no dia seguinte para que o grupo intercedesse e orasse mais especificamente.
Sabendo ou não da presença de Satanistas — como ela mesma havia comentado, mais cedo —, fato é que eles continuavam ali. Não tinham se dado ao trabalho de ir embora. E nem parecia haver nenhuma dificuldade em estar ali. Não era a primeira vez que nós constataríamos a presença de Satanistas da Irmandade, nas horas e lugares mais inusitados e improváveis, furando o cerco, mesmo em vigência da oração dos servos de Deus. Tinha sido assim nas minhas Ministrações, tinha sido assim no evento da Grace... agora ali, num Congresso daquele porte. Como parecia ser fácil para eles irem e virem, sem que nós, Cristãos, tivéssemos força para impedir!
Por que isso acontecia, por quê?
No dia seguinte, penúltimo dia do Congresso, chegamos no horário de almoço para poder participar da parte da tarde. Antes disso fomos bater na porta atrás da qual Sarah nos disse que estaria.
A pessoa que abriu a porta não era conhecida.
— Por favor, a Sarah e o Jefferson estão aí?
— Só um minuto.
Sarah veio em seguida. Nós comunicamos o ocorrido e ela não pareceu se espantar.
— Pessoas de nossa equipe já tinham tido discernimento.
— Bom... orem bastante neste sentido, porque eles estavam aí.
— Talvez já não estejam mais. Qualquer coisa, é melhor vocês virem para cá. Ficam mais protegidos. Mas acho que já não deve ter ninguém aí.
Contou algumas histórias do que vinha acontecendo durante a semana e como Deus havia mostrado as pessoas compromissadas com as Trevas. Como estava já na hora de começar, nos despedimos.
— Mas com ou sem oração, a verdade é que eles estavam aqui ontem — disse Isabela mais uma vez.
Fomos nos acomodar em outro lugar completamente diferente daquele da véspera. E inacreditavelmente, novamente no meio do Louvor lá veio de novo aquela opressão.
"Não é possível!"
Virei o pescoço para trás. Lá estava Zórdico bem atrás de nós, duas fileiras mais acima.
Nem precisei falar para Isabela, ela já estava esperta ao ver Zórdico pelas costas. Ele se levantara e saía do seu lugar. Num impulso impensado Isabela também se ergueu e subiu as escadas atrás dele.
— Quero ver melhor a cara deste homem.
Não tive tempo de impedi-la. Mas que atitude tola!?! Logo ela retornou. Sentou-se ao meu lado. O Louvor continuava, e todos à nossa volta estavam alheios ao que acontecia.
— Por que você fez isso? — perguntei.
— Ah, sei lá... só queria ver ele melhor.
— E viu?
— De relance. Quando passei ele estava de papo com um dos responsáveis pela segurança. Por que ele saiu depressa?
Dei de ombros.
— Talvez porque já tenha feito o que tinha que fazer — respondi enquanto Isabela ficou quieta, tinha o semblante indignado.
— Puxa! Que audácia desta gente! Tiram barato da nossa cara dando uma de "espião", e ninguém nem nota. Olha só!
Novamente respondi sem emoção. Eu já conhecia esta história.
— Eles monitoram os eventos evangélicos.
— Mas tem gente orando. Será que isso não conta, não?
— Bom... há um preparo para isso. Depois como oram? "Abençoe esta reunião?" isso não adianta... ninguém os proibiu de entrar, então entram. Ou talvez alguns até orem proibindo que eles venham, mas não têm autoridade para isso. Consegue imaginar um padeiro te parando na rua e lhe pedindo seus documentos? Ele não pode fazer isso, pois não tem poder de polícia. Já um delegado ou um policial tem esta autoridade, tem preparo e treinamento para isso! Aí você tem que obedecer, reconhecer a autoridade dele. No Mundo Espiritual é a mesma coisa! Muitos usam de uma autoridade que não têm! São meras palavras... sem efeito no Reino Espiritual. Por isso eles até manipulam situações para colocar pessoas sem preparo no comando destes eventos... e aí ficam com toda a liberdade para entrar e sair... entende? Assim me diziam que era, quando eu estava lá!
— Puxa... será que eles lançariam algum Encantamento na gente? Aproveitariam a oportunidade de ter dado de cara...?
— Certamente!
— Bom, vamos orar e nos cobrir, então. Puxa, é o fim da picada. A gente veio aqui para participar de um Congresso e ter um pouco de sossego. Esquecer dessa coisa de Satanismo. Que perseguição!
Oramos um pouco, cancelando toda palavra de maldição, que tivesse sido enviada sobre nós durante aqueles momentos de contato visual. A melhor coisa a fazer era não subestimar o Poder do inimigo. E nem o Poder de Deus, forte o suficiente para destruir todo o Poder maligno.
Que outra arma tínhamos em mãos além da oração?
Daí Isabela continuou a questionar: — Será seguro continuar aqui? — Você acha que deveríamos ficar lá na intercessão com Sarah?
— Vamos? — fez Isabela, sorrindo.
— Vamos.
Saímos de onde estávamos e fomos para lá. Novamente avisamos o que tínhamos visto. De lá, por incrível que pareça, foi possível localizar Zórdico com o binóculo, sentado exatamente no lugar de antes.
Justamente neste momento havia um clima de adoração, e o levita que dirigia o Louvor pediu que todos dessem as mãos. Eu e Isabela observávamos do corredor separado aos intercessores com olhos compridos, e Sarah mantinha os olhos no binóculo, orando.
Vi Zórdico dar suas mãos para quem estava ao seu lado. Então todos os presentes ergueram suas mãos dadas, e o momento era muito bonito e especial, a não ser pelo fato de Zórdico também erguer suas mãos. Terminado aquele curto momento, não sei se pelo fato da oração de guerra ter saído dali como um raio, a verdade é que ele levantou de lá e sumiu. Nós não o vimos mais.
— Sabe que ele nem costuma usar essas roupas? — comentei com Isabela. — Ele sempre usa roupas mais elegantes, e caras.
— É, mas aqui esse tal precisava estar mais parecido com o povo evangélico. Ficamos ali até o término da Pregação. Observávamos as pessoas intercedendo o tempo todo. Não eram muitas, quando comparado ao grande número lá fora, no ginásio.
Dona Clara também fazia parte do grupo voluntário de intercessão.
Em dado momento alguém bateu no meu ombro: era uma pessoa do grupo de intercessão.
— Estão chamando você lá na sala. — Ah... OK.
Isabela olhou para mim e cochichou no meu ouvido:
— Também vou.
Eu olhei para a pessoa que tinha vindo me chamar.
— Ela pode ir também?
— É melhor você vir sozinho.
Isabela fez um ar contrariado, e dessa vez eu via preocupação genuína em seus olhos. Sabia o que ela deveria estar pensando: "O que será tão grave que eu não posso ouvir?"
— Espera aqui, tá, "Mô"? Eu já volto.
Quando cheguei à pequena sala, Sarah me esperava com mais duas mulheres. Uma delas era irmã Esther, da equipe da Grace, a outra era cunhada de Dona Clara. Jefferson ficou num canto, quieto.
Sarah apontou o lugar para eu me acomodar, sorrindo:
— Oi, amado. Que bom que você já está aqui. Senta um pouco, nós queremos orar por você.
Estranhei um pouco.
— Mas e Isabela?
— Já estamos orando por ela. Deus trouxe nesta madrugada revelação sobre ela. Mas talvez ainda não esteja pronta para ouvir, então queremos passar isso a você.
Elas oraram e então conversaram comigo. Eu escutei. A revelação testificava, não era novidade, apenas trazia confirmação de nossas próprias convicções. Realmente Deus tinha falado claro com elas. E a orientação vinha do Alto.
— Mas, olha... não tem problema Isabela ficar sabendo disso. Na verdade ela já sabe. Isabela tem estado ao meu lado nisso tudo desde o início.
— Você acha que não tem problema? — perguntou Sarah.
— Acho que não.
Todos então concordaram, menos a cunhada de Dona Clara. Retornei ao banco onde Isabela me esperava. Imediatamente ela quis saber se estava tudo bem. — Tá tudo bem, sim. Pode se tranqüilizar.
— Então? — Lembra que Sarah falou que estava orando pelo nosso dinheiro roubado?
— Hã-hã!
— Pois é... ele não vai mais voltar. A irmã Esther teve uma visão do dinheiro sendo retirado de nossa conta e sendo transferido para outras seis contas diferentes. E Deus disse que este dinheiro não virá de novo a nossas mãos... pelo menos agora.
Isabela não sorriu, mas também não teve o que acrescentar.
— Bom... — fez ela tristonha. — De certa forma a gente já sabia. — Pois é...
— E foi só isso? O que mais? Você ficou lá tanto tempo. Eu não mentiria para ela.
— Olha... procure entender... — fui falando em tom manso. — Talvez seja melhor você não saber o resto.
Imediatamente a expressão dela mudou, assumindo um ar horrorizado:
— Como assim? O que é que vai acontecer?
— Elas queriam te poupar... é isso! Já oraram, está tudo bem!
— Mas eu não quero ser poupada. Não fui poupada até agora. Faço parte desta história com você.
Sarah estava passando por ali, e logo Isabela foi até ela para inquiri-la sobre o que estava acontecendo. Sarah sentou-se ao nosso lado, e mandou chamar as outras intercessoras. Falou calmamente a Isabela:
— Realmente não é bom você ficar na ignorância. Na verdade era uma preocupação com a sua preservação, mas acho que não saber é pior mesmo. Ontem à noite, a irmã Esther e a cunhada da irmã Clara oravam por vocês dois, e tiveram uma visão. Viram uma mulher loira fazendo Encantamentos, e o alvo não era ele, mas sim você!
Isabela só ouvia.
— O desaparecimento do dinheiro era somente, digamos assim, para distrair a atenção de vocês, apenas para desestabilizar o Daniel, e enfraquecê-los. Para um outro golpe mais forte.
— Bom... eu sei que tenho sido alvo — falou Isabela, subitamente demonstrando alívio. — Eu pensei que fosse alguma coisa com ele, eu não iria poder respirar sem saber de que se tratava. Isso não é nada de muito especial, saber que estão me atacando. Não precisava todo esse segredo!
Irmã Esther vinha ao nosso encontro.
— Você contou para ela?
— Achamos melhor ela ficar sabendo — explicou Sarah. — Explica para ela o que você viu.
— Eu vi uma reunião com algumas pessoas da Irmandade, e nesta reunião estavam acertando tudo em relação a ela, todos os ataques, metas, estratégias. Não é um ataque qualquer, mas uma sentença de morte. O tiro foi apontado para você.
Isabela novamente assentiu. Aquilo não era novidade para ela. O discernimento daquelas servas de Deus apenas faria com que orássemos mais especificamente e em concordância. Marlon havia dito aquilo, que eles iriam matá-la.
A cunhada da Dona Clara também chegou e falou da visão da mulher loira fazendo Encantamentos contra Isabela.
A verdade é que ela estava bem mais tranqüila depois da revelação. Nós nunca corremos atrás de Profecias, ela tão somente vinham até nós. E traziam confirmação daquilo que já sabíamos ou desconfiávamos. Nunca eram visões mirabolantes, trazendo direção totalmente nova.
Havia sempre um padrão nas revelações, uma marca de Deus, uma assinatura do Espírito Santo. Que testificava com nosso espírito. E não trazia dores, antes alívio, mesmo diante da adversidade. O fato de Deus revelar o ataque mostrava Sua Fidelidade, Sua Proteção; mostrava que Ele não se descuidava das nossas vidas.
Então todas elas oraram de novo por nós, agora especificamente por Isabela, com ela.
A semana passou sem qualquer intercorrência. O Congresso tinha passado. A injeção de ânimo maior veio através da oração daquelas mulheres. Mas o fato de saber com certeza que nosso dinheiro não mais voltaria era uma faca de dois gumes.
Por um lado aliviava, pois a expectativa adiada traz males ao coração. Era bem melhor saber que nossas economias estavam perdidas do que continuar achando que um milagre poderia acontecer a qualquer momento. Deus deixava claro que este milagre Ele não iria fazer. Pelo menos não agora, não do jeito que imaginávamos.
Saber que havia um ataque de morte sobre Isabela também não era novidade, mas isso já estava coberto em oração. De forma que pusemos uma pedra em cima de tudo aquilo e continuamos tocando nossa vida.
Nós queríamos casar.
Já não era sem tempo. Eu só precisava arrumar um emprego, e nós tínhamos que conseguir juntar a maior quantia possível de dinheiro em pouco tempo.
Mas naquele sábado de abril nós estávamos em clima de romance, de pombinhos apaixonados, passeando no Shopping Morumbi, olhando as lojas, de mãos dadas, abraçados, sem nos preocuparmos com absolutamente nada que dissesse respeito a Batalha Espiritual, a demônios, a Satanistas, a Irmandade, a ataques de morte, perseguições, Ministrações etc. ..etc. ..etc. ..etc. ..
Éramos somente um casal de jovens comuns, totalmente comuns. Completamente esquecidos daquela eterna luta com o Império das Trevas. Antes eles também se esquecessem de nós por um minuto que fosse. Mas... seria esperar demais!
A tarde tinha sido agradável. Isabela tinha algum dinheiro a mais de algumas horas extras que tinha feito, de forma que nos sobrava uns trocados para satisfazer o desejo de tomar um sorvete, um café. O restante seria para nossas despesas do mês, mas dava para algo simples naquele dia.
Olhando as lojas, acabamos por entrar na "Little Darling". Naquela época Isabela vivia entrando naquela loja, gostava dela. Das roupas que tinha lá!
— Só vou dar uma olhadinha....
— Sei... sei que é só uma olhadinha! — olhadinhas da Isabela levavam horas!
— É, sim. Só vou ver.
Eu andava atrás dela, olhando junto, rindo, fazendo brincadeiras. Isabela ria de volta, descontraída. Aí eu a vi olhando muito para certa blusinha. Aproximei-me mais, abraçando-a.
— A Gatinha gostou?
— Ah, gostei... mas não dá para gastar dinheiro com isso.
— Pôxa, mas se a Gatinha quer... ganha! Podemos fazer a "loucura" de gastar R$ 15,00 nesta blusinha. Depois a gente vê...
Isabela procurou pôr o pé no chão.
— Não, não, não, Nenê! Não dá. Vamos, vamos indo!
Continuamos olhando as coisas, mas a minha cabeça dava voltas tentando achar uma solução. Me partia o coração ver Isabela querer algo tão simples e não poder lhe dar.
Então dei um estalo:
— Já sei! Podemos fazer um cartão de crédito da "Little Darling"! Fica pronto na hora, e você poderá parcelar no cartão, até em cinco vezes!
Isabela parou para pensar. — Será...?
— É, sim, "Mô"! Vem! Vamos lá no atendimento ao cliente para a gente se informar.
Eu a peguei pela mão e fomos. Era só entrar com o pedido do cartão, eles
consultavam o SPC na hora e já podíamos usufruir do parcelamento. Então preenchemos a ficha cadastral, apresentamos os documentos. Isabela estava radiante.
— Oba! Oba! Nenê vê se escolhe alguma coisa para você também! Aqui também tem artigos masculinos.
— Não, Nenê não precisa de nada.
— Ah, mas eu quero dar alguma coisa para você! O dinheiro é meu! Faz tanto tempo que a gente não se dá um presente... vai escolher algo pra você!
— Não, Gatinha... não preciso mesmo de nada agora!
— Precisa, sim! Nenê precisa tanto quanto a Gatinha. Vamos lá! Vamos ganhar presente. Todo mundo ganha presente!
Então escolhemos, experimentamos, demoramos um tempão. Isabela me fez experimentar um monte de coisas para no fim escolhermos uma camisa.
Munidos com minha camisa e a blusinha dela, sorridentes e animados, fomos tratar de ver a quantas andava a aprovação do cartão para poder passar no caixa.
Foi a surpresa das surpresas:
— Nós não vamos poder lhe conceder o cartão porque constam débitos em seu nome...— explicou gentilmente a moça do balcão.
Eu gelei e Isabela também deixou morrer o sorriso:
— Débitos? Mas não é possível! Que débitos?!? Ela olhava para o computador.
— Tem um cheque devolvido aqui... de uma concessionária de automóveis, não de aluguel de automóveis...
— Ah! Eu sei o que é isso! Mas... não é possível... isso já foi resolvido há anos!
— Mas ainda consta em aberto?
— Olha, eu sei que você não tem nada com isso...— fui dizendo para a moça. — Mas tudo isso já foi resolvido. Isabela foi furtada anos atrás, e já foi tudo esclarecido. Isso remonta à época dos cruzados. Não pode ter esta pendência aí! Ela tem cheque especial, cartão de crédito, e tudo o mais... posteriores a este problema. Ela não pode então parcelar no cartão de crédito dela?
— Não, nesta rede de lojas só parcelamos com o nosso próprio cartão.
Ela foi educada e nós agradecemos, não havia mais nada a ser feito. Deixamos as compras ali mesmo e saímos, calmamente, com a cara no chão, envergonhadíssimos pelo constrangimento.
Paramos na porta da loja, totalmente atordoados. Nós nos sentíamos como quem acaba de levar uma pancada na cabeça. Ficamos mudos e sem saber o que fazer por um momento. Estava estranho aquilo...
Decidimos voltar e perguntar melhor para a moça sobre aquilo. Precisávamos de mais dados. Voltamos.
— Nós gostaríamos de pegar todos os dados do cheque para podermos tomar as providências.
— Tudo bem. Qual é mesmo o CPF?
Isabela falou, e logo a moça abria a tela do computador mais uma vez.
— Não estou entendendo... cadê o cheque? — perguntou Isabela.
— É assim: a tela está dividida em duas partes. Na parte de cima aparecem seus dados, está vendo? Nome completo, data de nascimento, etc. Se houver algum protesto, aparece no campo inferior da tela — ela apontava com o lápis. — Embaixo está o cheque de R$ 13.000,00; e seus dados aparecem novamente.
Isabela notou algo que até então a moça não havia notado:
— Olha só! A minha data de nascimento está errada aí na parte de baixo da tela, olha só!
— É mesmo... deve ser um erro de digitação. Isabela foi sincera até demais:
— Erro de digitação?! Mas errar tudo deste jeito?
Isabela olhou significativamente para mim e falou em tom sério:
— Vem só dar uma olhada.
Eu olhei e houve entendimento na hora. O significado era claro como água.
— Está escrito 31.12.1999... — Pois é...
A moça não podia entender o porquê de nossa inquietação. Copiamos o número do cheque, agradecemos e saímos de novo. Eu estava indignado.
— Que audácia!!! Mexer comigo tudo bem, aí tem sentido. Eu traí a Irmandade. Mas o que você tem a ver com isso?
Isabela olhava para o papel com os dados.
— A soma dos dígitos do número do cheque resulta em 9. O número 13, valor do cheque, é número de morte, certo? E aquela data... na tela do computador... parecia... parecia ser...
— Uma lápide, não é isso? Isabela me olhou estranhamente:
— Você também achou isso?
— Para mim é muito claro.
— Foi o que pensei. Em cima a data de meu nascimento, e meu nome; embaixo a data da minha morte... o cheque foi reinserido no computador, para dar um aviso... falta mais de um ano para esta data chegar...
Abracei Isabela, mas meu sangue fervia de raiva.
— Nada vai acontecer. Você sabe que Deus é por nós.
— Eu sei... só estou digerindo isso... aquele cheque foi escolhido a dedo, hein? Os seus números também nos trazem uma mensagem subliminar.
— Isso é verdade. Eles deixaram a assinatura, para que nós pudéssemos saber.
— Quando a Esther falou sobre a revelação de ataque de morte, imaginei que eles tentariam algo mais imediato. Mas marcaram a data para longe.
— Não seria agora. A morte, no entender deles é um prêmio. Uma libertação.
Tem que haver, antes, muito sofrimento! A ponto de desejarmos a morte e não a encontrarmos. Não seria agora. Aliás... não vai ser nem agora nem depois! Mas acabei deixando escapar:
— Um pouco antes da minha, pelo que parece.
Dessa vez Isabela sobressaltou-se de verdade. O que se referia a ela parecia não pesar tanto, mas tudo que se referia a mim era angustiante:
— Como assim, a sua? Você acha que vai mesmo morrer?! ? Me dei conta de ter dado com a língua nos dentes.
— Ah! É bobagem...
— Bobagem?! Sua morte?
— Não vai acontecer... Deus está guardando. Mas disseram que eu morreria com dor e sofrimento como Ele mesmo morreu.
— Deus não vai permitir isso...— ela procurava convencer tanto a si mesma quanto a mim. — Que sentido teria isso? Labutar, labutar, comer literalmente "o pão que o diabo amassou"... para no fim... simplesmente se cumprir o decreto deles? "Você vai morrer"... e você morre mesmo! Que sentido tem isso? Ou eu...? Chega o dia 31.12.1999, e eu morro também? — Isabela procurava engolir o temor e ficar bem convencida do contrário.
— Então... por isso que estou dizendo: Deus está nos guardando.
— Claro, está guardando! — Isabela elevou um pouco o tom de voz, levemente irritada, fruto da tensão de sua alma. — Oxa, que gente que não desiste!!
Procurei brincar um pouco para descontrair o clima tenso.
— Eles estão loucos da vida com a gente, né? Agora até você entrou para o rol dos "procurados": Procura-se vivos ou mortos, Kid Nenê e Gatinha Miau!
Isabela riu meio nervosa.
— Sabe de uma coisa? Nunca imaginei estar vivendo uma história dessa. Só acredito porque está acontecendo comigo. É duro crer que Deus vai dar um fim feliz nisso tudo bem, agora que nosso dinheiro sumiu, meu nome está protestado de novo, e não encontramos apoio de quase ninguém. Exatamente como eles disseram que seria. Disseram que tudo pioraria depois de março, e assim está sendo. Às vezes é difícil ter bom ânimo, não é mesmo?
Abraçamo-nos. Claro que o emocional se abala. Nós não somos de ferro! Mas lá no fundo, no íntimo, uma certeza reinava. Podia até parecer que o diabo estava ganhando terreno, e os filhos do Fogo tinham aparentemente mais Poder que nós, Cristãos... mas não seria assim para sempre. Era como Isabela disse: "Que sentido teria tudo isso... se no final o diabo triunfasse?"
— OK. Eu vou falar com Grace para nós orarmos logo sobre isso. Agora temos que orar também por você. Estou me lembrando melhor acho que realmente havia um decreto sobre isso também... se alguém "tomasse" o lugar de Thalya, a suposta "alma gêmea", morreria de forma violenta e inesperada, um pouco antes de mim. Bate bem, né? Você em 31.12.1999... e eu, no mais tardar, no início de março de 2000. Antes de eu morrer, tudo à minha volta teria que ser destruído. Isabela balançou várias vezes a cabeça, bufando. — Bom... isso eles dizem. Nós temos que fazer nossa parte, que é compartilhar e orar.
— Faremos isso.
De fato foi o que fizemos. De resto, passado o desconforto passado na "Little Darling", eu fui atrás de saber o que tinha acontecido com aquele cheque de R$ 13.000,00. O dono do estabelecimento sabia menos do que eu.
— Ah, é? — exclamou ele, estupefato. — Foi reinserido o cheque? Mas que coisa mais esquisita! Não fomos nós que fizemos isso.
— Pois eu é que não estou entendendo nada. O senhor podia fazer o favor de ver o que aconteceu?
— Certamente.
Ele ficou com meu número de telefone para me dar um retorno. Em dois dias ligou novamente:
— Olha, como aconteceu eu não sei... mas de alguma forma o cheque foi novamente inserido, no mês de março deste ano, no SPC. Desculpe-me... já tomei as providências e está tudo em ordem. Perdoem-me pelo transtorno.
— Em março... tudo bem, obrigado!
Depois contei a Isabela que tudo já estava resolvido.
— Eles só queriam dar o recado. — Bem, conseguiram dar.
— O recado, sim. O resto... cabe a Deus. — É isso!
Parecia que a Irmandade estava em todos os lugares e tinha Poder sobre tudo.
Naquele mês de abril, apenas uma semana depois, fomos obrigados a vender o pouco que tínhamos. Precisávamos arcar com nossas despesas. A solução que encontramos foi vender nossa geladeira e nossa televisão, os únicos bens comprados para o casamento antes da nossa conta ser deletada do banco.
A geladeira estava fechada na caixa e guardada no quintal da casa de Isabela há vários meses. A TV e o vídeo de última geração estavam sendo usados por ela, mas não tinha outro jeito. Isabela nunca teve TV e vídeo particular, no quarto, mas eu tinha achado ótimo que ela pudesse usufruir deste pequeno benefício. Às vezes o tempo esquentava na sua casa, e era bom que tivesse um lugar de refrigério no seu quarto.
Realmente era uma alegria para mim saber que podia proporcionar a ela o conforto de pegar um filme de vídeo e assisti-lo com pipoca e refrigerante, sozinha, em seu quarto.
Anunciamos primeiro a TV por um preço bem abaixo do mercado. Vendeu rápido como um raio. No final de semana aquele homem foi até a casa de Isabela para pegar a TV Estava felicíssimo!
Para mim foi uma dor tão grande...
— Puxa... tanta privação nós tivemos para comprar essas coisas, para juntar nosso dinheiro. Não temos quase nada e o pouco que temos está indo embora... — desabafei com Isabela.
— Ah, Nenê... — Isabela passou a mão de leve ajeitando meu cabelo. — Eu também estou triste, mas não vamos nos deixar abater, não. Olha só... com esse dinheiro viveremos com mais tranqüilidade até que você encontre um bom trabalho. Isso vai ser bom, não vai?
Senti um nó na garganta. Mas eu só conseguia pensar em nossa TV Philips de 25 polegadas, novinha, brilhando, indo para aquele carro. E o homem feliz da vida com nossa desgraça.
Pode parecer bobo, mas até chorei. Não tinha sido fácil conseguir estas coisas. Tudo era fruto de nosso trabalho, nosso esforço. Eu nunca tinha conseguido acumular nada, e pelo visto ia continuar sem ter nada.
— Nenê, nós temos um ao outro e temos nossa saúde. A TV é de menos, depois compramos outra. Parece que o diabo está ganhando, mas isso é ilusão, as coisas vão mudar!
— Você está certa... uma hora isso termina. A tempestade não vai durar para sempre. O sol há de brilhar em nossas vidas! É só uma TV
— Pelo menos vendemos rápido. Agora temos para as despesas básicas.
— Assim que eu arrumar um emprego, compro outra! Uma TV melhor ainda!
— Tá bom. Mas agora procura não pensar mais nisso.
Isabela ficou quieta um pouco... e falou de uma vez, só relembrando.
— Olha... minha mãe vai mesmo ficar com a geladeira, viu?
— Eu sei. Vender para alguém da família é melhor. Não dá tanto peso... pelo menos estamos ajudando-a de alguma forma. A geladeira dela está ruim mesmo. E vamos vender a um bom preço.
Logo fomos pegar a linda e enorme Brastemp no quintal e colocamos na cozinha. Ficou jóia!
E nós desafogamos um pouco financeiramente falando.
Eu levaria mais um mês para estar empregado. Arre!!! Não era o emprego dos meus sonhos, nem o salário dos sonhos. Mas estava bem empregado em uma Multinacional, como Analista Econômico Financeiro, pertinho do serviço da Isabela.
Aquela situação não estava fácil... muitas vezes tinha que dividir até mesmo um cafezinho com Isabela, bem como o frasco de xampu. Mas no período de escassez aprendemos muito sobre dízimos e ofertas. Mais tarde compreenderíamos que tudo aquilo fora necessário, e muito importante. Não era o diabo que estava triunfando, mas Deus permitindo o ataque do inimigo para nos ensinar. Há princípios que só são aprendidos através da dor, no meio da tristeza. Foi importante ter passado por tudo aquilo.
Realmente, embora constatássemos o Poderoso ataque contra nós, me sentia amortecido, paralisado. Isabela insistia na oração em concordância e no jejum, que tantas vezes fizemos. Ela cria não haver outro caminho. Mas... seria mesmo suficiente?
Não era medo, não era terror ou pânico! Só estava um pouco sem direção. Talvez na minha mente, bem lá no fundo, eu esperasse pelo Pastor Brintti.
Se eu pudesse encontrá-lo! Se alguém pudesse me dizer aonde aquele homem se encontrava! Ele certamente poderia me dizer algo mais.
Claro, Grace era ótima, tinha grande autoridade. Disso eu estava certo. Há mais de um ano ela me ministrava, e por incrível que pareça, continuava firme!
O nome dela não era mencionado entre aqueles que o diabo jurou que derrubaria, jurou que não ficariam ao nosso lado. Dona Clara era outra pessoa especial, e também continuava caminhando conosco.
Nós havíamos aprendido muito com ela.
Porém as bombas continuavam estourando e continuavam nos atingindo! Essa era a verdade! Será que estávamos mesmo tendo vitória? A vitória esmagadora e indiscutível prometida na Palavra de Deus?
Será mesmo que nossos pés pisavam serpentes e escorpiões, e tínhamos autoridade sobre todo o Poder do maligno??! Será que mil caíam de um lado, dez mil a direita e... nós não éramos atingidos?
Jesus era cabeça de todo Principado e Potestade, eu sabia disso, eu cria nisso porque estava escrito. No meu íntimo e no de Isabela havia uma latente convicção de que seríamos acudidos na hora "H", e nossos olhos não contemplariam a escuridão da morte.
Não agora. Não na data marcada por eles...
Mas, até lá... até lá o que estava destinado a nós? Que linhas Deus escrevera a nosso respeito?
Nesse exato momento, nesta semana.... estaria realmente a Mão do Senhor dos Exércitos sobre nós???
É claro que estava... às vezes a pressão emocional e espiritual era tão grande que nossos olhos, como os de Pedro, desviavam-se de Jesus. E contemplávamos a tempestade. Por alguns instantes era possível afundar num mar de dúvidas e inquietações, o gosto e o pavor da morte quase penetravam em nossa boca.
Mas a mão de Jesus era estendida, nos livrava da força das águas e da tempestade. Nos punha novamente em terra firme.
— Ah! Filhos de pequena fé!
De fato. Por um dia, dois, três, a fé esmorecia, ficava pequena. A amargura e o desânimo cresciam.
Mas lá estava a mão de Jesus.
Sim. A mão de Jesus não nos abandonou.
Era quase o fim do mês de setembro.
Sarah tinha convidado Isabela para participar de um jejum de 21 dias. Ela e sua pequena equipe de discipulantes iam jejuar pelo Ministério de Sarah e Jefferson, e também por suas vidas pessoais.
Como nós estávamos agora em contato mais freqüente com eles, indo a uma reunião de oração que dirigiam em sua casa, Sarah comentou sobre o jejum e Isabela aderiu. A primeira semana tirava do cardápio carnes vermelhas, doces, refrigerantes, feituras. Na segunda semana somente se comia frutas, legumes e verduras. Na terceira semana somente líquidos, embora Sarah tivesse dito que poderia ser igual à segunda semana.
Isabela fez o jejum direitinho, separou um período para oração e leitura da Palavra. E também procurou outro emprego, o qual veio rápido. Ela tinha muita facilidade para arrumar trabalho, e dos bons. Agora ela iria trabalhar no período da manhã, perto de sua casa, num Ambulatório sediado no Centro Administrativo um grande banco. Era um lugar muito amplo e bonito. O salário era cerca de 25% maior. Os colegas de trabalho eram acessíveis, tanto os Médicos como a equipe de enfermagem.
No entanto, Isabela agora não tinha tanto tempo livre no horário de trabalho para escrever o livro. Porque aumentou bastante o número de consultas. Então, para compensar, ela trabalhava em Filho do Fogo arduamente na parte da tarde. As partes um e dois do livro já estavam escritas, mas tudo a mão. Então Isabela resolveu começar a digitar e reler aquele material, uma vez que muitas coisas já estavam perdidas em sua memória ao longo daqueles três anos e meio desde que iniciara a escrita.
O único detalhe é que Isabela não sabia digitar. Nunca tinha aprendido datilografia e não estava inteirada dos recursos do computador. Determinada, mesmo assim ela encarou a digitação do texto. Passava a tarde toda trabalhando, até a hora de encontrar-se comigo na academia, que tínhamos retomado. Eu ia direto do serviço para lá, e ela vinha da casa dela.
Estava um pouco mais fácil agora, pois Dona Márcia tinha me emprestado o fusquinha amarelo e eu podia me locomover mais rápido com carro. Isabela ficou com o Palio.
Nossa semana estava bem puxada, às segundas-feiras íamos para a casa de Sarah e Jefferson, para a reunião de oração.
Terça, academia. Quarta tínhamos aconselhamento com Dona Clara, e em seguida o Culto. Quinta, academia de novo. Sexta-feira, à noite, o curso de preparação de líderes da Comunidade.
Saíamos de lá em torno das dez e meia da noite e íamos direto para a casa de Isabela, brincando pela rua de ultrapassar um ao outro. Afinal, eu chegara no fusca e ela no Palio. Normalmente sexta-feira era dia de fazer macarrão. A gente ia para a cozinha, Dona Márcia ia atrás, comia junto conosco. Era bastante agradável, a gente punha o papo em dia, conversava sobre a semana.
Eu gostava de Dona Márcia, me dava muito bem com ela. Quase sempre ela me tratava como mais um filho na casa.
Assim íamos levando as semanas, o mês. Sábado era dia de passear, espairecer, ir ao Shopping, olhar vitrinas, tomar um café. Coisas assim. Ou então pegar um filme de vídeo e assistir com pipoca e refrigerante.
Domingo, dia de comida especial na casa de Dona Márcia. E à noite, Culto, onde renovávamos nossas forças espirituais com o Louvor e a Palavra.
Éramos praticamente os últimos a sair da Igreja, quase sempre tinham que nos "expulsar", por causa das conversas intermináveis com Dona Clara. Lógico que a gente jogava uma conversa fora com outras pessoas. Mas com Dona Clara era diferente, aquela para quem a gente tinha prazer em contar tanto as bênçãos, quanto as lutas, aquela que estava sempre a par de tudo, aquela que tinha sempre a palavra certa para dar.
O marido dela, seu Benito, era paciente; deixava Dona Clara com a gente até as luzes da Igreja começarem a apagar. Este seria um tempo do qual sentiríamos falta no futuro...
Daí, vinha outra segunda-feira, outra semana...
Outubro foi mês de eleições.
Naturalmente era espantoso e estranho ao mesmo tempo dar de cara com alguns daqueles noventa, aqueles escolhidos pelo príncipe deste mundo para ocuparem posições estratégicas dentro do contexto político brasileiro.
Mais espantoso ainda era observar que o palco estava sendo armado, o cenário se completava, e nada parecia impedi-los. Grace e Dona Clara foram as únicas que acreditaram realmente em mim, naquela época. A oração destas servas de Deus, com mais um pequeno grupo de guerreiros, impediu que um daqueles homens abraçasse o poder.
Foi algo que nos ensinou alguns princípios que valeriam muito, e sobre os quais nos pautaríamos em decisões futuras. Aprendemos que Deus não precisava de muita gente especulando e fuxicando, poucos guerreiros compromissados com a oração intercessória podem mudar a história!
Aquele homem caiu, e me enchi de espanto. E muito no íntimo, enquanto todos se regozijavam, eu senti uma ponta de incômodo. Não por causa do Morrit (Leia Filho do Fogo), afinal eu o vira muito pouco, mas porque Marlon o havia apresentado a mim, confiando aquele segredo.
Outros entraram. Há certas coisas que são inevitáveis. Uma delas é o Apocalipse. O Apocalipse vai acontecer, e ninguém vai mudar nem impedir isso. O placo será montado. Vai acontecer.
Mas o fato de vê-los me trouxe certo pesar. Eu sabia que estavam cumprindo um cronograma. Tive pena, tão enganados.... foi bom ver o rosto deles, mesmo que por poucos segundos. Tinham sido meus amigos enquanto eu também estava no engano. Não senti ira, nem aversão: apenas misericórdia.
Realmente era uma sensação esquisita, ímpar, difícil de descrever. Eu deveria estar entre eles. Eu era um dos 90. Seria lançado naquele ano, subiria ao poder, parte do meu destino começaria naquele mês de outubro.
No entanto o Senhor dos Exércitos havia mudado tudo aquilo. Era confortável lembrar que se não fosse a Misericórdia e o Amor de Deus eu ainda estaria entre eles. Ainda bem que escolhi permanecer do lado de Deus. Mas... quem teria tomado meu lugar?
Marlon tinha dito em algum momento que a estratégia tinha sido modificada, não havia tempo e nem condições de me substituir. Isso me deixara um pouco confuso, afinal, eu tinha passado apenas seis anos na Irmandade! Outros seis anos não teriam preparado outro nas mesmas condições e com as mesmas características?! Porque seria tão insubstituível!?
Aquele mês trouxe-me um pouco de confusão. É um grande equívoco pensar que todos os traumas de um ser humano podem ser apagados como o vento que sopra, e passa, de um dia para o outro.
Aparentemente o processo de libertação havia terminado, mas meu coração e alma tinham verdadeiros abismos a serem tratados, ainda chagas e feridas profundas para serem curadas.
Eu passei alguns dias pensando... pensando... orei... repensei. Quando estava convencido, Isabela já tinha até mesmo pedido oração e compartilhado o problema com Grace, Dona Clara e Sarah.
Um destes problemas veio logo depois das eleições.
Tinha falado para Isabela:
— Tenho me sentindo mal, sabe?... Um verdadeiro traidor, um... um Judas!
— Ué? O que você quer dizer com isso?
Nem eu sabia explicar direito, mas aquela era uma sensação tênue que vinha me invadindo já havia algum tempo. Eu não sabia traduzi-la bem, mas o termo mais próximo era talvez aquele: traição.
— É difícil de explicar... Isabela tentava entender.
— Mas espera um pouco! Você está se sentindo um Judas por ter saído da Irmandade e abandonado o barco, deixando esse pessoal para trás!?
— Não, não... — sacudi a cabeça. — Eu optei por abandonar Lúcifer! Mas as pessoas foram minhas amigas enquanto eu estava lá... eles me deram o que tinham de melhor. Entende? Por mais que estivessem enganados, mesmo seu engano não os isentou de me proporcionar o melhor. Aquilo que entendiam como sendo verdade. Eu recebi muito deles, não sei se você está entendendo...
Isabela tinha seu rosto compassivo, os olhos cheios de compreensão e uma certa ternura expressa neles. Suspirou.
— Eu entendo, Nenê!
— É isso... sabe... eu não tenho raiva deles, das pessoas. O culpado é o diabo. Eu recebi muito deles, muito mais do que tenho recebido dos crentes. Marlon me confiou segredos, planos, estratégias. E aqui estou eu, dedurando tudo.
Desta vez Isabela se mexeu na cadeira.
— Mas, Eduardo, aí você se engana. Você não fez nada errado, fazia parte da sua Ministração, e...
— Eu sei!
— Mas você não deve fidelidade a eles, Nenê, mas a Cristo.
— Você não está entendendo, eu sei disso! Mas no meu íntimo fica essa sensação... uma sensação de ser um Judas! Claro que minha fidelidade é para com Deus, mas entenda isso. Se eventualmente, por algum motivo qualquer, de repente eu começasse a achar que o Cristianismo não expressa a Verdade. E me convertesse, por exemplo, ao Islamismo, ou virasse um Krishna... eu nunca ia falar mal da Grace, da Dona Clara... de você! Entende? Ainda que não mais compartilhasse da mesma visão, eu iria trazer na lembrança o bem que vocês me fizeram.
Isabela calou um pouco... e por fim disse:
— Eu entendo seu sentimento, Nenê. Ainda que o seu espírito tenha tomado a decisão certa... a alma se ressente mesmo. Eu compreendo, no espírito, que você tomou a decisão certa. Porém você não pode viver assim. Deus não quer isso para sua vida. A confissão e o perdão de Deus tem que trazer paz em sua alma Imagine o que Moisés não deve ter sentido quando saiu do Egito! Para todos os efeitos, era sua terra natal. Tinha amigos lá! Depois teve que voltar e confrontar Faraó, que um dia foi seu amigo...
— É... não deve ter sido fácil...
— De qualquer forma vamos pedir oração, viu? Vamos conversar sobre isso com a Grace e buscar de Deus o livramento deste peso sobre sua alma.
Nos próximos dias realmente eu compartilhei aqueles sentimentos que me incomodavam, com toda a sinceridade, sem ocultar nada. Foi um alívio não me sentir julgado, nem crucificado, mas compreendido. Realmente há aspectos da transformação que não acontecem do dia para a noite. Seria hipocrisia e uma grande mentira dizer o contrário.
Saí bem cansado do serviço naquela tarde. Não era por causa do excesso de trabalho, mas devido a eu não ter dormido bem na noite anterior.
Meu sono fora agitado, e pela manhã meus olhos pesavam. Levantei dando-me conta pela primeira vez que aquele sonho já se repetia por três vezes consecutivas.
Por algum motivo eu esquecia assim que me arrumava para o trabalho, e não comentava com ninguém. Mas desta vez... foi tão real, que pensei nele o dia inteiro. No meio da agitação do trabalho em um Departamento Financeiro, volta e meia eu me via lembrando daquele estranho sonho...
"Será um aviso de Deus?... Por que eu sonharia isso por três vezes???"
No fim do dia fui encontrar com Isabela na academia.
Atravessei a catraca eletrônica como de costume.
A música tocava animada, mas não de forma ensurdecedora, gente bonita elegantemente uniformizada zanzava por todos os lados. Fui colocar a roupa de ginástica e tentei me motivar a fazer um treino leve.
Mas não consegui... fiquei ali parado...
Isabela chegou logo.
— Você já acabou?
— Não, nem fiz nada. É que eu dormi mal esta noite.
— Foi? Mas por quê?
— Sei lá. Tive um sonho esquisito, acho que foi isso.
— Que sonho?
— Já é a terceira vez. Mas acho que não deve ter nada a ver, não, sabe? Deve ser coisa de minha cabeça.
— Mas, o que foi?
— Bom... são sempre situações diferentes, mas acaba caindo na mesma coisa, e foi isso que me marcou.
— Hã-hã...!
— Lembro que estava em algum lugar, não me recordo qual, mas eu percebia alguém que não parava de me encarar. Um homem. Eu não gostei dele, e logo pensei em me afastar. Peguei o carro e fui embora, em direção da minha casa. Ele veio atrás de mim, continuou me seguindo.
— Sei...
— Quando eu desci do carro, ele desceu também e veio na minha direção. Lembro-me bem dele: era bem alto, muito magro, bem magro mesmo, ossudo. Dava para ver o contorno dos ossos faciais, sabe? Tinha uns cinqüenta anos. O que me chamava a atenção nele era seu olhar. Era um olhar maldoso, cruel!
— Como assim? — fez Isabela, muito intrigada.
— Não sei como descrever... — pensei um pouco. — É uma coisa tão sem parâmetros!
Ainda pensei um pouco mais. Lembrei de um antigo exemplo que Marlon usou comigo para me explicar um ponto da doutrina Satânica.
— Uma vez Marlon me disse que não temos o rosto simétrico. Por isso se pegássemos uma foto de alguém e no centro desta colocássemos um espelho, este iria refletir o mesmo lado da face, e aí teríamos um conjunto simétrico. Um destes conjuntos vai resultar num semblante bondoso... representa o lado bom... o outro conjunto terá um semblante ruim, maligno, é o lado negro. Claro, isso era só para ilustrar uma questão, não podemos nos pautar neste exemplo como sendo realidade. Mas isso ilustra bem o que aquele rosto representava. Um rosto cem por cento mal.
— Hummm...
— Pois, é. O tal homem se aproximou de mim me tratando com muita educação e polidez. Apesar daquele olhar. Ele me estendeu a mão e perguntou por que eu estava fugindo dele.
— .......
— E aí me deu um aperto de mão. Com uma força descomunal, parecia que meus ossos iriam estourar. Tinha uma força desproporcional à sua estatura. Suas mãos mais se pareciam com morsas.
— Pôxa, que coisa. E você sonhou isso três vezes?
— Foi, mas as outras situações eram diferentes. Mas sempre terminava com o mesmo homem magro, alto, cerca de cinqüenta anos, olhar maligno, me perseguindo e depois apertando minha mão. Quase quebrando meus ossos.
— Bom... pelo sim, pelo não, vamos orar por isso. Talvez Deus nos fale algo! Retruquei com um "é" meio da boca para fora. Eu não queria pensar muito a respeito daquilo. Nem me lembro se realmente oramos a respeito.
Eu e Isabela tínhamos decidido pôr um fim em nosso noivado e enfrentar o
desafio do matrimônio. Escolhemos a data. Calhou de contarmos primeiro para Sarah e Jefferson, que aprovaram nossa decisão. Naquela noite, oramos os quatro, selando no Reino do Espírito aquela data. Final de fevereiro do próximo ano
— Creio que Deus nos convenceu de que é o tempo... — dissera Isabela.
— É verdade — eu acrescentei. — Nunca tivemos coragem de dar esse passo de fé, mesmo quando tínhamos mais condições. Mas agora estamos convencidos de que o tempo chegou. Se ficarmos esperando juntar dinheiro, ter isso aqui, aquilo ali... não casaremos nunca! Não vai dar para comprar apartamento, mas tudo bem.
Sarah acrescentou convicta:
— Vocês estão dando um importante passo de fé. Deus fará grandes coisas, vocês vão ver.
Naquela noite saímos de lá felizes. Não havia outra palavra.
Isabela comunicou Dona Márcia. Aquela notícia ela não esperava, assim tão de repente. Nem acreditou muito, imaginando que fosse apenas um alarme falso.
Mas não seria assim. Não voltaríamos atrás. Isso era certo tanto para Isabela como para mim. Aquela data não seria adiada!
Grace aprovou sem contestação. Dona Clara imediatamente. Havia completa unanimidade e testificação em todos!
Claro que não seria tão fácil...
A começar pela minha insatisfação com meu novo emprego. Meu chefe era um chato! O departamento uma bagunça. Estavam implantando ou melhor tentando implantar um novo sistema de trabalho. E nada funcionava como o previsto, era trabalho e retrabalho o tempo todo. Como eu entrei em uma posição acima dos mais antigos, também tinha que conviver com a inveja de meus colegas de serviço. Queria algo melhor!
— Nenê, você sempre me apoiou com os meus desvarios em relação ao meu trabalho. Desde a época em que larguei a residência, você me apoiou e me ajudou a encontrar a solução para minha insatisfação. Eu não poderia agir diferente com você. Quero que esteja bem, satisfeito.
Fiquei sinceramente comovido. Ela continuou, com sinceridade:
— Uma coisa é certa... por enquanto... enquanto você está na casa de sua mãe e não estamos casados, é perfeitamente plausível procurar outro emprego. Ainda temos alguns meses até o casamento, pode ser que neste tempo você ache algo melhor. Seja estivéssemos casados, não poderia ser assim. Mas agora, podemos arriscar!
Me animei com a postura otimista dela.
— Pôxa, Gatinha... talvez você tenha razão! Será mesmo?
— Claro, Nenê! Não custa você tentar procurar algo melhor, né? Eu estou do seu lado para isso!
— Mas como vou procurar emprego se trabalho o dia todo? Eu precisaria de uns dias livres para poder ir atrás.
— É verdade — os olhos de Isabela brilharam. — E quem disse que a gente não pode dar um jeitinho nisso?
Olhei para ela, já com uma risada na garganta.
— Você acha... que talvez eu possa ficar "muito doente"? Isabela começou a rir também.
— E por que não? Se você tivesse uns dez dias já era uma boa oportunidade, não é?
Geralmente Isabela dava conselhos bons e balizados, mas hoje reconheço que daquela vez nós dois chutamos o balde. Engraçado como é isso... nossa consciência para com Deus nem doeu. Na verdade, nem ligamos para o fato de estarmos armando uma mentira, nem pensamos em perguntar para Deus se aquela era a direção certa, a coisa certa a fazer: procurar outro emprego.
Querer melhorar não é errado, mas aquela tramóia toda...
— Mas o que a gente faz, então? — tornei a perguntar. — Como vou conseguir atestado Médico? Tem que ser um Médico do convênio que a Empresa tem, senão eles não vão aceitar. Tem que ser atestado do convênio Banco Classe A.
— Tolinho! Você se esqueceu que eu trabalho no Centro Administrativo do Banco Classe A? Todos os formulários de saúde estão ali, na minha mesa!
Nós riamos com a corda toda, animados com aquela facilidade tão a mão. Deus ficou do lado de fora daquela trama toda.
— Bem, o que eu vou ter?
— Hummm... que tal um problema ortopédico? Além dos dias em que você estiver "engessado", ainda virão depois as sessões de "fisioterapia".
— Fechado!
— Mas vamos fazer direito, lentamente. Primeiro você começa a se queixar de dor, manca uns dias, você se machucou na academia fazendo ginástica. Depois diz que não está mais agüentando, que não passa com nada... então vai ao Médico.
— E o que eu terei?
— Bom... como todos sabem que você faz ginástica, e corre... mas não sabem o quanto você corre. Vamos criar uma sintomatologia de tendinite de Aquiles. Do tendão de Aquiles, comum em corredores. Depois eu faço o encaminhamento, para você passar naquele Hospitalzinho perto de sua casa. Ele faz parte da rede de seu convênio.
— Ah, sim. O que tem má fama?
— Pois é, eu dou uma induzida no encaminhamento e acho que você sai de lá engessado. Eu, como Clínica Geral não posso pedir que te engessem. Mas o ortopedista pode. E o Hospital é conveniado, então...
— Ótimo, amanhã mesmo já estarei com dor na perna. Aonde eu devo sentir dor?
Isabela me explicou tudo sobre a dor, principalmente porque eu deveria convencer o ortopedista.
Na manhã seguinte comecei a falar para todo mundo do meu "problema" No final do dia várias pessoas já tinham me orientado.
— Vê se vai ao Médico, cara! E se piorar?
No dia seguinte até o chato do meu chefe comentou que eu deveria me tratar.
— Tá bom, vou ver o que é isso amanhã pela manhã, mas sinto um "peso" em ficar faltando aqui no serviço, tem tanto o que fazer... chego antes do almoço, tá?
Passei um óleo de peroba facial, para hidratar a cara de pau.
Fui no Médico no dia seguinte, pela manhã. Contei ao ortopedista tudo o que tinha sido orientado a falar. Fui engessado!
Aquele Hospital tinha fama de engessar todo mundo. Chegava lá com uma dorzinha na mão; gesso nela! Dor no pé; gesso nele! Se sentisse dores pelo corpo... saia de lá uma múmia!
Mas logo constatei que não tinha condições de voltar para casa sozinho... o gesso pesava e estava ainda meio mole, se andasse ele iria se destruir.
Meu irmão Roberto estava em casa e liguei para ele me buscar. Imagine o testemunho que eu estava dando! Meu Deus...!!!
"Ficaria" com o gesso por dez dias!
Isabela me pegou em casa mais tarde e me levou para a Empresa, onde fiz questão de desfilar com o gesso e entregar pessoalmente o atestado nas mãos de meu chefe:
— Sinto muito... mas tiveram que engessar... vou ficar dez dias em casa. Se eu puder fazer algo em casa mesmo para ajudar... (torci para que a resposta fosse negativa).
— Não, não há o que você possa fazer, cuide-se!
"Yessssss."
Cheguei ao carro que me aguardava no estacionamento, com Isabela no volante, animada!
— E aí? Tudo certo? — perguntou ela.
— Tudo em cima! Vamos comemorar! Estou de "férias"!
— Puxa, que loucura nós fizemos.
— É, mas foi por uma boa causa, amanhã mesmo passarei o dia todo procurando algo novo!
Foi exatamente o que fiz. Encontrei uma boa oportunidade. O processo seletivo estava iniciando. Foi super moroso. Os dez dias não foram suficientes para as três entrevistas, uma dinâmica de grupo e duas provas escritas, fora os psicotécnicos. Isso foi gradativamente eliminando os concorrentes. Eu fui ficando, ficando, ficando e logo era um dos finalistas.
Nesse ínterim, eu já estava fazendo "fisioterapia". Mas estávamos com a consciência pesando... queríamos que aquela mentira terminasse logo.
Fiquei na final com outro rapaz. Mas o Diretor Financeiro estava viajando, e a última palavra seria dele. Por isso tive que esperar.
O peso de estar desagradando a Deus começou a incomodar. Pedimos perdão, e prometemos nunca mais nos comportar daquela maneira. Existe um preço a ser pago pela verdade. E como filhos de Deus, nosso compromisso deveria ser com a verdade a todo o custo.
Oh, que Deus tivesse misericórdia!
E não é que o emprego tão sonhado, gorou? O Diretor Financeiro trouxe uma pessoa do exterior para preencher a vaga em aberto. Fiquei na mesma. Aprendemos mais uma vez, pelo pior caminho, que é melhor sempre consultar a Deus para TUDO, antes de tomar qualquer decisão louca e impensada. De nada adiantou toda aquela nossa enrolação.
E por falar em Diretor Financeiro, também nosso departamento estava vivendo uma situação bem atípica.
Fazia já seis meses que nosso ex-diretor tinha sido sumariamente demitido, após vários anos de casa. Eu o vi pouco, porque ele saiu logo depois que eu entrei. Tinha sido com ele uma das entrevistas finais no processo de seleção.
Logo de cara o homem comentou comigo algo sobre Jesus, naturalmente, ali, no meio da conversa.
"Será que este homem é Cristão?"
Depois de admitido, tão logo surgiu oportunidade dei um jeito de perguntar a ele. Apareceu a deixa e fui indagando:
— Você é evangélico?
— Sou. Há um mês. Me converti há um mês, e logo serei batizado.
— Puxa! Que coisa boa!
Ele me contou seu testemunho de conversão em poucas palavras. E do pouco que ouvi pude notar a fé genuína daquele homem. Mas tão logo assumi o cargo, em uma semana ele convocou uma reunião com todo o departamento e avisou do seu desligamento.
— Estou indo para um lugar melhor. Sei que Deus tem o melhor para a minha vida. Se esta porta está se fechando, Ele abrirá outra ainda maior — e fez um discurso de pregador, com entusiasmo e muita fé. — Que Deus abençoe a todos vocês.
Achei estranho. Parecia que sua conversão tinha lhe rendido o bilhete azul.
Lembrei do que Ricardo dissera, sobre haver pessoas da Irmandade naquele lugar. O que era bem provável, pois o ramo de atividade ali estava diretamente ligado à Mídia, um filão muito importante.
Tudo tinha um ar esotérico. A proteção de tela dos computadores, os quadros nas paredes, até o desenho dos carpetes no chão... tudo era permeado com uma mensagem subliminar.
Um dia Márcio, meu chefe, chamou a todos nós para dar a notícia:
— Olha — disse ele — quanto ao nosso trabalho, temos que deixar tudo muito organizado, hein? O cara está vindo direto importado dos Estados Unidos e dizem que é um verdadeiro "Bam-Bam-Bam"! Ele tem que encontrar nosso departamento nos "trinques".
— Quem está vindo? — perguntei.
— Ah, vocês não estão sabendo ainda?! O novo Diretor Financeiro.
— Ah, é mesmo?
— Puxa, um gringo... não encontraram nenhum brasileiro à altura?
— Quando ele chega?
Márcio tinha tudo bem informado:
— Na segunda quinzena de novembro ele está aí. Por isso não quero nada fora do lugar. Vamos trabalhar dobrado para pôr a casa em ordem, está bem?
Fui encarregado de supervisionar o trabalho do grupo de perto, especialmente dos estagiários. Meu chefe não parava de me perguntar:
— Mastral! Está tudo em ordem?
— Sim, Márcio, tudo em ordem. — Tudo tem que estar direitinho!
— OK! Tudo vai sair direitinho!
Nove dias depois do Sabbath eu tinha marcado um encontro com meu antigo amigo Wang. Não era sempre que ele estava no Brasil.
Infelizmente no dia do encontro eu e Isabela discutimos feio, pelo telefone. E eu acabei indo ver meu amigo tenso, atordoado, irado. E sem orar.
Isso era importante pois eu já tinha evangelizado Wang algumas vezes e desejava muito sua conversão. Isabela, que conhecia Wang de vista, vinha orando por ele já havia algum tempo.
Fui ao encontro, no Shopping West Plaza, reclamando muito na mente.
"Como Isabela faz isso comigo? Parece que está contra mim!"
Ele ainda não estava lá. Logo apareceu acompanhado de um amigo chinês.
Tínhamos marcado o ponto de encontro em frente ao América, um restaurante.
— Vamos sentar? — convidou Wang.
Fomos entrando e ocupamos uma das mesas do canto. Não entendi por que Wang trouxe seu amigo Chen, mas me pareceu que eles tinham algo a fazer depois daquele encontro comigo.
Wang estava bem animado, de blêiser, todo arrumadinho. E Chen estava à vontade de calça jeans e camisa. Fui obrigado a reparar no enorme medalhão que ele usava e que eu podia perceber, apesar de estar por baixo da camisa. Em um verdadeiro "escudo"!
A impressão que eu tinha era que ele estava enjoado com o jantar e não via a hora daquilo acabar para poder ir embora. Apesar de tudo, ele riu um pouco. Logo nos sentamos, e ele perguntou algo ao Wang em chinês.
— Ele quer saber se você fala algo de chinês! — disse Wang.
— Eu, não falo. Você sabe disso. Mas, peraí! Ele não falava português? Pelo amor de Deus! Não é casado com uma brasileira?
— É, ele fala sim — tornou Wang.
Chen só me olhava com certo desprezo. Então eu retribuí o olhar e disse a ele:
— Então fala na minha língua comigo!
Ele respondeu em chinês, para Wang me traduzir.
— Ele fala português, sim. Mas não quer falar — ele está meio de frescura hoje! — arrematou Wang.
— Pois é, estou percebendo!!! — me enfezei. Que chinês chato! — tá bom, já que ele não fala português, posso ficar mais à vontade. Por sinal esse seu amigo tem uma cara de "Bambi", você não notou? E este "escudo" que ele pendura no pescoço, não dá problema de coluna?
Agora Chen já falava meu idioma:
— Não, não... este medalhão aqui é muito especial! — respondeu.
— Ah, você fala, hein?
— Sim, eu falo! — disse secamente.
— Prazer, sou Eduardo, terráqueo, natural do hemisfério sul do globo terrestre. Como vão as coisas em Saturno? Você deve ser saturnino... aliás, sabia que quando era criança eu assistia um filme que o herói era um pato? Com este nome, Saturnino! Você via este filme? Lembra um pouco de você, com as penas arrepiadas em cima da cabeça!
Todos nós demos boas risadas, incluindo ele mesmo.
— Nasci em Pequim.
Enquanto Wang olhava o cardápio, eu conversei um pouco com Chen, que passou a me explicar o significado do tal medalhão.
— Puxa, legal!
Depois disso puxei assunto para Pequim, senão a gente não sairia do tema: "medalhão"! Ele passou a discorrer com entusiasmo:
— Lá a densidade populacional é enorme. Mas os índices de violência, roubo e crimes como seqüestro são praticamente inexistentes. Se fôssemos tão desorganizados como vocês aqui do Brasil, estaríamos no meio do caos! Lá há um senso de valores nobres! Honra, dignidade, honestidade, fidelidade, respeito. Aqui é tudo descambado! Ninguém respeita ninguém, é uma lata de lixo gigante, suja, que fede de longe... e muito bagunçada!
E continuou seu discurso metendo a boca nos brasileiros. Eu me irritei com tamanha grosseria. O que estava fazendo aqui, então? Detesto estrangeiro que vem aqui e mete o pau no Brasil. Por que não ficam lá na terra deles? Então retruquei:
— Ah, é? Então volta para a China! O que você está fazendo aqui?
— Aqui é um excelente lugar para ganhar dinheiro — respondeu Chen, sem se intimidar. — É muito fácil ganhar dinheiro aqui, onde as leis não funcionam, não há fiscalização, todo mundo aceita suborno, e ainda por cima o povo é burro, ignorante, compram até cocô enlatado, se for importado! Não acreditei no que eu estava ouvindo!
— Ah, é?!! Você se acha mesmo, né? Acha a China muito melhor? Vocês comem qualquer coisa que ande ou rasteje, cobra, minhoca, tatu, besouros, até cachorro! Se cocô andasse vocês comeriam também! Depois, pelo que vejo na TV, lá é tudo muito sujo, vocês nem tomam banho, pensa que não sei?! — chutei o balde!
— Você esteve lá, por acaso? — rosnou ele.
— Não estive, não, mas eu sei!
Wang nem ligava para nossa discussão e já tinha feito o pedido por todos nós.
— O Mestre Zhy me contou que lá eles usam a manga da camisa, como guardanapo! Ela é branca para este fim! Ali, sim, é um chiqueirão!
— Isso foi em outro tempo. Mas apesar de tudo é um chiqueiro com ordem!
— Pô! Calma, calma! Que conversa, hein? Vocês mal se conhecem! — disse Wang colocando paz.
Apaziguamos os ânimos, ficou provado que todo povo tem sua elite e sua escória. Suas qualidades e defeitos; deixamos de lado a polêmica.
— O Eduardo é gente boa, Chen — disse Wang.
— Eu percebi isso! Olha, não me entenda mal, você me parece mesmo excelente pessoa. Não estava falando de você, viu, Eduardo?
Apesar daquele pseudopedido de desculpas, Chen não tirava do rosto aquele arzinho de superioridade. Deixei aquilo de lado. Logo o garçom trouxe o refrigerante e uma porção de batatas fritas.
— Refrigerante? Não vamos tomar um drink? — indagou Chen.
— Não, depois temos que dirigir, não vamos beber — respondeu Wang. Chen foi logo acendendo um charuto.
— Chen, aqui não pode fumar, você não viu a placa? — repreendeu Wang de novo.
— Não leio em português. Quando pedirem para eu parar, eu paro. Não agüentei:
— Pô, Chen, se toca. Depois vem dizer que nós é que não temos educação! Aqui é o povo que não tem educação, né?
Chen ouviu, e continuou fumando. Só fez cara de quem comeu e não gostou.
Como iria conseguir evangelizá-los com esse clima? Mas tinha que aproveitar a oportunidade. Toda hora Chen mudava de assunto passava a contar uma ou outra vantagem e mostrar o quanto ele era superior. Então resolvi fazer outro caminho.
— Chen, você é budista, né? Como o Wang, certo?
— Sim, somos budistas — fez uma leve pausa, sempre me olhando com aquele ar petulante. — Você é Cristão, né? Wang me contou.
— Sim, sou Cristão.
— Pois é.... não é muito mais bonito ver a imagem de Buda feliz, sorrindo, alegre, saudável... do que a imagem de Cristo crucificado, pendurado, sangrando, sofrendo, agonizando? O que lhe traz mais paz?
Bem, consegui chegar no tema. Mas não exatamente como queria. Procurei com sabedoria as palavras.
— Não distorça as coisas. A imagem de Cristo crucificado é muito comum em Igrejas Católicas, para lembrar do sofrimento dEle por nós. Porém, entre os Protestantes, os Evangélicos, não é assim. Não colocamos mais Cristo na cruz, nem você verá numa Igreja evangélica uma cruz. Se tiver, ela estará vazia porque Jesus ressuscitou. A crucificação já foi, tudo foi consumado... e agora Jesus vive, ressurreto! Não está mais morto, está vivo e ativo!
Chen deu de ombros. Wang só escutava. Eu continuei.
— Não vou discutir com você os valores de sua crença. Mas a verdade é que Jesus ressuscitou dentre os mortos, curou enfermos, fez milagres e prodígios, e hoje a História da Humanidade foi dividida por Sua causa! Nosso calendário demonstra este marco. Antes e depois de Cristo. Também quase em todo o mundo se comemora o Natal, lembrando do nascimento de Jesus, embora a data não seja essa. Buda não ressuscitou, não fez milagres, não mudou o calendário. Porque foi homem. Sábio, bondoso, ajudou muita gente, mas era apenas homem. Limitado. Jesus é Deus em forma de homem! Jesus é o único Caminho, a Verdade e a Vida!
Virei-me para Wang:
— E você, Wang, leu o Evangelho de João como lhe orientei?
— Sim, li. Mas comparando com os outros evangelistas, vi que existem diferenças em suas narrações. O cego de Jericó, o endemoninhado Gadareno, por exemplo. Não entendi o por que disso...
(Ele falava de Mateus 8.28 e Lucas 8.27. O mesmo acontece com Mateus 20.30 e Marcos 10.46).
— Cada Evangelho teve uma abordagem, e destinava-se a pessoas diferentes. Mateus, por exemplo, escreveu para os judeus, por isso ele faz tantas citações do velho testamento. As pequenas diferenças acontecem porque às vezes um fato é narrado sob pontos de vista diferentes. Cada evangelista que viu aquele mesmo fato acabou contando a história de forma pessoal, ressaltando o que, a seu ver, era de maior importância. Havia dois homens possessos, mas um deles chamou mais a atenção. Dois cegos, mas um deles era mais popular ali. Isso não faz da Bíblia um livro mentiroso.
Wang ouvia com atenção. Chen olhava de canto de olho, mas prestava atenção. Mesmo assim insistia em parecer desinteressado e comer suas batatas fritas.
— Olha só que legal! Jesus ressuscitou mesmo! Imagine só, lembram do exército romano? Era o exército mais bem preparado do mundo conhecido na época. A armadura deles não tinha proteção nas costas, pois um soldado romano jamais daria as costas a seu inimigo. Eram super treinados! Um pelotão de elite foi destacado para tomar conta do túmulo de Jesus, para evitar que seus discípulos levassem o corpo e saíssem dizendo que Ele havia ressuscitado. Havia rumores disso. O que acontece? Aqueles homens super treinados, talvez quinze ou vinte, tinham a missão de tomar conta de um... túmulo! Imagina só isso, aqueles soldados altamente qualificados vigiando um túmulo. De repente... alguma coisa aconteceu... e aqueles homens são lançados por terra! Ficaram assombrados! Pois Jesus ressuscitou de fato! Como será que ficou o capitão daquele pelotão diante de seus subordinados? E como este pelotão ficou diante do exército? Claro que algo de sobrenatural aconteceu ali... algo que eles não conheciam... que os assustou... Jesus ressuscitou!
Wang prestava muita atenção. Via a questão da ressurreição de Cristo por um outro prisma.
— Sabe... nunca tinha pensado nisso...
Mas naquele instante não pude prestar muita atenção em Wang, pois o olhar de Chen na minha direção destilava ódio puro. Foi a primeira vez que olhei diretamente para ele. Seu rosto mudou completamente em segundos, de uma maneira estranha. A musculatura retesou repuxando a pele do rosto, até os ossos da mandíbula e do maxilar pareciam assumir contornos diferentes. Os olhos dele — o branco dos olhos — começaram a avermelhar-se como se os microvasos estivessem estourando, como alguém com conjuntivite.
Realmente, ele foi literalmente transformado, transfigurando diante dos meus olhos. Eu nunca tinha visto algo assim... a canalização de demônios na Irmandade não deixava a pessoa com aquela aparência. Mas aquilo era um endemoninhamento real!
Wang continuava falando comigo, e a princípio não percebeu aquela situação tenebrosa ao lado dele. Eu fiquei sem fala. Os olhos dele estavam cravados em mim, com ira. A respiração de Chen estava agora profunda, pesada, e suas mãos crispavam-se furiosas sobre a mesa.
Não consegui processar o que estava acontecendo até Chen abrir a boca e falar. Um som grave saiu de sua boca, um som gutural, poderoso. Mas em tom baixo, sem escândalo, sem alarido, calmo.
— Você está falando tanto da Bíblia, dos discípulos, mas está se esquecendo de um personagem.
Wang olhou, estranhando o tom. Do ângulo em que ele se encontrava não podia vislumbrar perfeitamente a mudança ocorrida em Chen. O demônio literalmente o ignorava, sem voltar-se em sua direção. Estava mais preocupado em despejar seu ódio sobre mim.
— Você deve gostar muito de Judas, não? — tornou o demônio. Wang se rebelou:
— O que é isso, Chen? Por que você está falando assim? E por que seu rosto está esquisito? Você está bem?
A entidade de alta patente que tinha semicanalizado Chen não parecia importar — se com Wang. E continuou:
— Você está esquecendo de falar de Judas.
— Chen você está bem? Sua voz está diferente! — retorquiu Wang.
Até então o duelo de olhares se travava entre mim e aquele demônio, talvez um Principado, pois a opressão naquele lugar estava enorme!
— Você é o Judas. Você é o traidor! — o som daquela voz medonha me deixava paralisado.
— Não é nada disso, Chen... ele só está contando uma história, você não está entendendo — continuou Wang.
— Cala a boca, você! — rugiu o demônio.
À nossa volta ninguém parecia tomar conhecimento de nada. O restaurante estava vazio e nós num canto.
— A destruição em sua vida está só começando. Você era especial para mim, mas agora não tem mais família. Quem se levantar para te ajudar, eu derrubarei! Você vai ficar sozinho. E aí você verá quem é mais forte!
Naquele instante eu senti como se alguma coisa impedisse minha voz de sair. Não era um aperto externo na garganta, não era isso, mas algo semelhante a quando alguém põe a mão sobre as cordas de um violão e elas não podem mais vibrar. Era como se aquela Entidade parada ali na minha frente, semicanalizando Chen, tivesse suas mãos livres para literalmente paralisar minhas cordas vocais. Eu queria abrir a boca, orar, fazer alguma coisa, mas minha voz tinha desaparecido. Era uma incapacidade total de produzir som.
Seria possível que aquilo estava mesmo acontecendo de verdade???
Estava aturdido... a opressão entrou em cada poro do meu ser, densa, forte, sinistra... estranha... uma sensação difícil de descrever! Como estar em uma enorme montanha-russa, sentindo aquele frio na barriga, e a certeza de que, no final daquela descida vertiginosa, há um abismo. Algo assim: alguma coisa ruim está prestes a acontecer, mas não há como evitar. A iminência de algo terrível!
Tentei, tentei por alguns segundos falar algo em som audível, aquele demônio não poderia continuar ali! Foi aí que lembrei que Deus podia ouvir meus pensamentos, Deus é Onisciente! Deus poderia escutar meu pedido de ajuda, mesmo que a palavra não me chegasse à boca.
"Em nome de Jesus, Senhor Deus, me ajude! Cadê seus anjos?"
Na hora em que orei assim, em pensamento, parece que minha garganta "soltou". Como se uma rolha fosse retirada dali. As cordas vocais se moveram, num engasgo, e instintivamente falei algo, uma frase, em línguas. Apenas saiu.
No meu íntimo eu temia que aquele demônio se debatesse, e fizesse um escândalo ali. Mas não foi o que aconteceu. O braço de Chen recuou lentamente, seus dedos voltados para baixo como garras riscando a mesa.
O ódio expresso naqueles olhos não pode ser descrito em parâmetros humanos.
— Lembre bem do que te disse hoje!
Ele não parecia intimidado. O recado foi dado.
E então o corpo de Chen desabou!
Ele se inclinou para frente como quem desmaia profundamente. O rosto foi direto para o prato de batatas fritas cheio de catchup que ele tinha puxado para bem perto de si.
Wang tentou puxá-lo de volta, desta vez visivelmente assustado.
— Chen! Que foi? Que aconteceu?
Eu também tentei ajudar e, ao tocar suas mãos e braços na tentativa de erguê-lo, percebi que estava frio, gelado... como se não circulasse sangue em seu corpo.
Wang passava o guardanapo pelo seu rosto e o garçom desta vez notou o que se passava. Aproximou-se solícito e com um ar de interrogação:
— Ele desmaiou? Posso ajudá-los?
Eu olhava para Chen tentando ver como ele estava. O demônio havia sugado muito sua energia vital, poderia tê-lo matado. Chen inspirava com dificuldade. Enquanto Wang continuava falando, explicando ao garçom, eu o observava.
— Acho que ele desmaiou mesmo!
— Você está bem, Chen? — perguntei.
Ele estava atordoado. Nem conseguia falar nada.
— Onde é o banheiro? — fez Wang.
— Por aqui, venham, vamos jogar uma água no rosto dele, me acompanhem — disse o garçom.
Fiquei ali na mesa em estado de choque, tanto pelo ocorrido como pelas palavras ameaçadoras. Fiquei orando baixinho, pedindo ao Senhor que trouxesse o livramento para Chen, que o livrasse de toda a contaminação espiritual que tinha ficado nele.
Quando eles voltaram, Chen já parecia melhor. Se bem que ainda frio.
— Como você está? — perguntei novamente.
— Estou com uma dor de cabeça muito forte... o que aconteceu comigo? Wang pediu a conta e logo saímos. Ele estava bem preocupado com o amigo.
— Puxa Chen... mas o que será que aconteceu? Chen tinha perdido seu ar arrogante:
— O que aconteceu comigo? Eu não lembro....
— Você não lembra, Chen? — perguntei. — Não lembra de nada mesmo?
— Ah, lembro que você estava conversando, falando... de repente... eu só lembro que já estava com a cara no prato. E... puxa... minha cabeça tá explodindo!
Chegamos no estacionamento e instintivamente entramos no carro.
— Olha, vou te dizer uma coisa Chen... e isso serve para você também, Wang. Vocês podem não acreditar, mas... lembra de Shakespeare? Existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. E, quer vocês acreditem ou não, demônios existem, assim como os anjos de Deus também existem — fui falando, meio sem pensar, os dois olhavam com atenção. — O diabo existe, assim como Deus existe. Você, Chen, canalizou um demônio, quer dizer, ficou possesso! Uma Entidade demoníaca usou seu corpo!
— Ele foi "possuído"? Isso que você quer dizer? — retorquiu Wang. — Nossaaa! Bem que eu achei que a sua cara estava estranha... e a sua voz mudou mesmo, Chen! Será possível uma coisa dessas em pleno século vinte? Meu Deus...!!!
— Mas como não me lembro de nada?
— Isso foi um demônio? — continuou Wang. — Isso foi um demônio.
Embora budistas, eles tinham bem idéia do que seria um demônio por causa dos filmes de terror.
— Não agüento mais de dor de cabeça... acho que vou ao banheiro de novo — e Chen foi saindo do carro.
Fiquei sozinho com Wang.
— Acredite no que te falo. Foi um demônio. Ele se incomodou com a nossa conversa.
Wang me olhava demoradamente:
— Mas se foi isso de fato... que negócio é esse de destruição que ele te disse? Ele te ameaçou. O que você fez?!
É óbvio que eu não podia dizer.
— Isso é uma história antiga... o que aconteceu tem sua razão de ser. Mas eu não posso te falar agora.
Eu estava bastante desconfortável com as palavras do demônio, e também pelo fato dele não ter ido embora estrebuchando. Tinha ido tão calmo, tão na dele...
— O que foi aquilo que você falou, Eduardo? Algum Encantamento? Pois quando você falou, meu amigo caiu!
— Aquilo foi uma linguagem espiritual. Mas não fui eu que fiz ele cair, foi a Entidade que saiu do corpo dele.
Wang ficou pensativo. Logo chegou Chen de novo.
— Olha, o que aconteceu com você hoje tem um propósito, Chen. Deus se interessa pela sua vida. Vamos ver se tornamos a nos encontrar. Procure pensar um pouco no que te falei.
Chen apertou-me a mão, desta vez olhando-me com ternura: — Realmente há algo diferente em você... — foi tudo o que disse. As palavras daquela noite ficaram em minha mente. Martelando.
Nove dias se passaram depois deste episódio. Eu estava calmamente no serviço retornando do almoço. Naquela manhã nós estivemos esperando pelo novo Diretor Financeiro, que assumiria então o seu posto. Mas até aquele momento nós não o tínhamos visto, uma vez que ele passara toda manhã em reuniões com a alta cúpula da Empresa.
Márcio estava alvoroçado. E os demais, esperançosos com a vinda do novo Diretor. Quem sabe ele mandava comprar mais mesas de trabalho? O "movimento dos sem-mesa" estava atento! Muitos estagiários tinham que dividir o mesmo espaço de trabalho.
No início da tarde o homem finalmente chegou. Eu já estava em minha mesa trabalhando em alguns relatórios financeiros. Não percebi que se tratava do novo Diretor, apenas notei um burburinho por ali.
Até que vislumbrei, ali de onde eu estava, lá na porta do departamento, um homem de características tipicamente americanas: meia-idade, cabelos dourados bem penteados, pele clara. Vinha em companhia da secretária, mansinho, cumprimentando um a um, sendo apresentado, falando polidamente e com sotaque.
"Que cara magro, meu Deus! Parece até que vai quebrar!", refleti alternando o olhar entre o computador e a figura bastante alta que caminhava ali do outro lado.
Mas não perdi muito tempo, uma vez que estava no meio de um cálculo complexo. Logo ele estaria ali, acabaria por chegar à minha mesa.
Dito e feito, a secretária aproximou-se de mim.
— Boa-tarde, Eduardo! Deixa eu te apresentar nosso novo Diretor Financeiro, Dr. Arnold.
Parada ali na minha frente, ela continuou:
— Esse é Eduardo, Analista Sênior e responsável pelos estagiários do departamento.
De perto o homem parecia ainda mais alto. Os olhos claros, acinzentados, pousaram em mim. Ele me olhou profundamente e falou alguma coisa meio baixo, uma frase solta, que pensei ser em inglês. Eu me ergui educadamente.
— Muito prazer! — estendi a mão.
Ele também estendeu a sua. E me esmagou fortemente num aperto brutal. Parecia que meus ossos iam trincar. O cumprimento durou alguns segundos, durante os quais eu tentei em vão me libertar!
— O prazer é todo meu — retrucou ele com polidez.
Eu nada disse, pensando que realmente fosse o jeito dele. Cada um tem uma maneira de apertar a mão. Uns dão a mão mole, fraca; outros apertam com força; outros dão as pontas dos dedos... sei lá..!
Ele afastou-se com a secretária, e eu fiquei com uma vaga sensação de "dejà vú", de já ter visto ou vivido aquela cena. Aquilo me parecia levemente familiar, embora não conseguisse me recordar de imediato...
"De onde será que eu conheço este homem?"
Eu massageava a mão levemente enquanto observava a figura alta e magra se afastar.
"Engraçado..."
Retornei a meus afazeres.
Cerca de uns quinze minutos mais tarde, vi a sombra de alguém se aproximar novamente de minha mesa. Ergui a cabeça e era ele. Bateu com os nós dos dedos no tampo da mesa e falou:
— Por favor, venha à minha sala. Quero conversar com você!
Fiquei animado. Eu era o único Analista Sênior daquele departamento. Certamente ele iria elogiar meu trabalho, ou quem sabe? Me promover?
"Tenho já um monte de idéias para discutir com ele!"
Todo sorridente eu me levantei prontamente para acompanhá-lo. A sala dele, envidraçada, tinha aquelas persianas de fechar.
— Sente-se por favor! — convidou ele apontando a cadeira diante da mesa. Fechou a porta. — Fique à vontade!
Acomodei-me e o observei cerrar todas as persianas. Pelo visto tínhamos muito trabalho a discutir!
Assim que ficamos realmente sozinhos e ele se sentou diante de mim, sua atitude mudou. O semblante endureceu e ele olhou-me nos olhos, silencioso, durante um pequeno tempo. Parecia analisar-me durante aqueles instantes, mas seu olhar era desagradável.
Por fim lançou a sua primeira frase em tom frio e cortante, um tom de quem tem diante de si um espécime raro.
— Então é você o traidor?
Eu não entendi. Aquele não era bem o feliz início de uma reunião de trabalho.
— Traidor? Que traidor?! Como assim?
O Diretor ignorou minha pergunta. Meneou a cabeça devagar, sempre com os olhos fixos em mim.
— Você tinha tudo. Tudo! Tudo para crescer. Tinha tanto potencial. Sabe quanto foi investido em você? Não só em tempo e dedicação... mas em dólares! Você tem idéia do custo do investimento em sua pessoa?
Eu ainda não estava entendendo; ou talvez, não quisesse entender. Retruquei:
— Mas, peraí! Eu acho que você deve estar me confundindo com alguém!... Você sabe meu nome completo? Não confundiu com outro Eduardo?
— Não, não confundi. Você é Eduardo Daniel Mastral. — A seguir deu minha ficha completa: idade, data de nascimento, filiação, endereço, telefone, amigos mais próximos...
Eu estava atordoado! O Diretor continuou.
— Inclusive eu lhe trago lembranças da Tassa, ou melhor... da Thalya Edna Legrad. Ou você já se esqueceu dela? Também transmito os cumprimentos do Marlon. Mais conhecido como (....) — e falou o nome verdadeiro de meu antigo mentor e amigo.
Era verdadeiramente estarrecedor. Eu estava grudado no chão. Minha língua estava grudada, minhas mãos grudadas na mesa, não conseguia esboçar reação. Apenas meu coração parecia continuar funcionando, batendo surdamente no peito. Estava completamente chocado com aquela revelação nua e crua, sem rodeios.
Um sorriso irônico brotou-lhe nos lábios.
— Você acha que esse seu Deus pode te proteger?
A pergunta me fez despertar um pouco, mas a surpresa do momento ainda me dominava.
— Sim... — gaguejei. — Sim! Claro... a Bíblia diz que Deus cuida até dos pardais... dos pássaros do campo! Então, nós... nós que somos filhos de Deus... quer dizer, eu, né? Eu que sou filho de Deus, não você... — acho que estava me enrolando todo. — Ele cuida dos Seus filhos... e cuida de mim!
— Tá bom. Você acha que Deus esta cuidando de você agora? Neste instante?
— Tá, sim.
— Pois você está demitido!! — afirmou ele rispidamente, fuzilando-me.
Eu fiquei mudo. Literalmente paralisado. Não sabia o que dizer ou o que fazer.
— Mas... mas por quê?
— Simples. Porque você agora se tornou nosso inimigo. E isso é só o começo. A destruição na sua vida está só começando. Hoje — no dia de hoje — é o início do fim — lançou-me um olhar ruim. — Você ainda vai ter inveja dos mortos. Vai arrepender-se amargamente do que fez!
Num momento inusitado de bravura tentei esboçar uma reação.
— Você está enganado. Deus é mais forte! Você que está no engano.
— Ah, é? — ele era cínico. — Olhe à sua volta...
Eu já sabia o que vinha depois: aquela filosofia distorcida do diabo.
— Quem será que está ganhando, não? — continuou ele. — Aliás... olhe para a Igreja que você freqüenta. Quem está do seu lado? Você tem amigos de verdade lá como os que tinha antes?
Calei-me.
— Fidelidade... aonde está a fidelidade? Esta realidade que você contempla hoje na Igreja, nunca enfrentou dentro da Irmandade. Ali realmente somos um só! Caminhamos juntos, somos unidos. Você sabe disso. Agora... aqui fora, onde você acha que Deus é Soberano, Supremo... que engano o seu! A Igreja é fraca, é dividida, você está vendo isso com seus próprios olhos! Na Igreja é cada um por si e Deus contra todos. Deus não faz nada para melhorar a vida de ninguém. Não fez nada para melhorar sua vida! Ou fez? E hoje, eu te digo, isso é só o começo. Você ainda vai sofrer muito por causa dessa sua decisão, vai colher as conseqüências!
Eu não sabia o que dizer. Estava estático! O eco das suas palavras me trazia à lembrança o confronto com aquele demônio, nove dias antes. Que, por sinal, também tinha sido nove dias depois do Sabbath.
Em tudo eles tinham que deixar sua assinatura!
— Alguns instantes de incômodo silêncio, e a voz dele cortou o ar mais uma vez:
— Ninguém vai te ajudar! Os únicos amigos que você tinha estão do outro lado. Mas agora você já tomou a sua decisão — e grosseiramente continuou.
— Saia de minha sala!
Me levantei para sair, e ele ainda lembrou-se de dar mais um recado:
— Ah, a propósito! Esse "Filho" não vai nascer.
Fechei a porta atrás de mim, caminhei até minha mesa sem sentir o chão, sem enxergar nada. Ser sumariamente demitido assim, desse jeito, nessas circunstâncias... realmente eu estava sem chão!
Peguei minhas coisas calado, mas o Márcio viu e veio até mim. — Vai embora? Você tem Médico hoje?
— Não... — desembuchei. — Fui despedido. Tô saindo. O Diretor me mandou embora.
— Mas como? Mandou embora?! Ele acaba de chegar, nem te conhece!!! Não sabe a qualidade do seu trabalho! Isso é um absurdo, não, não, não! Espere aqui um pouco, eu vou falar com ele.
Voou na sala do Diretor. Não ia adiantar nada. Ele retornou em cinco minutos, desenxabido.
— Puxa... por essa eu não esperava. Não entendi! Ele disse que você não se enquadra no perfil da Empresa, além do que pretende cortar gastos. Infelizmente não pude fazer nada.
— Eu sei. Eu entendo. Bom... vou indo! Tchau, Márcio, nem vou me despedir dos demais, diga que deixei um abraço a todos!
Fui ao departamento pessoal completamente arrasado e com aquelas palavras martelando em meus ouvidos.
"Ninguém vai te ajudar... você acha que Deus te guarda? Veja o que acontece com você agora... esse "Filho" não vai nascer.... Deus te ajuda?... Quem são os teus amigos?.... A destruição está só começando..."
Saí super chateado, perdido, sem rumo. Peguei até ônibus errado. Tinha que fazer exame Médico demissional em outro lugar, quando dei por mim, estava num caminho nada a ver.
"Tenho que ligar para Isabela. Certamente ela vai me ligar mais tarde. É melhor eu ligar antes."
Fui ao orelhão e liguei para o serviço dela.
— Alô?! Nenê? — Sua voz veio em tom preocupado. — O que aconteceu?
— Oi Gatinha! — dei um tom alegre à minha voz. — Tudo bem?
— Eduardo, eu liguei lá no seu trabalho. Onde você está? O que aconteceu?
— Ah... você já sabe, então?
— Faz uns 40 minutos e te liguei para falar oi. Simplesmente disseram que você não trabalhava mais lá!
— Estou indo fazer meu exame Médico demissional, depois conversamos pessoalmente. Você não vai nem acreditar!
— Não! Me adianta alguma coisa. Não vou conseguir fazer nada se você não me contar.
— Ele era um deles. — Ele quem?!
— O Diretor.
— O Diretor Financeiro?! ? Mas... você tem certeza, Eduardo?
— Absoluta.
— Ele... ele falou isso? Ele afirmou isso? Como você pode ter certeza?
Fui contando e Isabela também ficava praticamente em estado de choque, como eu.
— Meu Deus... eu nem sei o que dizer... é duro lidar com isso. É muito duro dizer que isso não tem o poder de nos afetar! E agora, como é que vai ser? E nosso casamento? Faltam três meses. Não pretendo adiar a data.
— Nem eu! Seria o fim da picada! Acabamos de selar essa data no Reino do Espírito! Deus vai ter que dar um jeito. Preciso de outro emprego, e logo! Amanhã mesmo saio em campo, não se preocupe.
— Tá. Vamos ficar calmos. Vai dar tudo certo... não é, Nenê?
— Vai. Tudo dará certo! Vou indo fazer o exame Médico, depois nos encontramos no Shopping, e te conto melhor!
— Até lá, fique com Deus. — Amém.
Passei a procurar emprego como um desvairado. A única coisa boa naquilo é que eu tinha recebido uma boa verba rescisória. Meu chefe também foi muito legal, e deu um jeito de eu receber um bônus por bom desempenho. Eu não contava com isso.
Lá veio a saga de compartilhar com Dona Clara, Grace e Sarah. Estavam indignadas com a ousadia dos Satanistas. E se mantinham na brecha por nossas vidas!
A decisão de não adiarmos nosso casamento foi tomada de forma homogênea por todos nós. Oramos então para que Deus nos desse as condições.
Eu e Isabela tínhamos conseguido juntar novamente um pequeno capital, ao qual se somava o dinheiro da rescisão. Mas não era muito. Cada passo agora teria que ser muito bem calculado. Mas... eu precisava de um trabalho fixo.
Mais por desencargo de consciência resolvemos nos aconselhar com nossos Pastores e o Pastor Jaime, vice-presidente da Comunidade. Tínhamos tido algumas matérias do seminário com ele. Já fazia quase três anos que freqüentávamos aquela Igreja assiduamente. Embora a liderança soubesse um pouco de nossa história, muitos ainda não acreditavam nela. Mas o vice-presidente naquele momento nos inspirou confiança, e fomos buscar conselho prudente com ele.
Ele nos recebeu e expusemos nossa situação a ele, com todos os detalhes possíveis. O Pastor não falava muito, apenas ouvia, com os olhos fixos em nós.
— Bem... — disse por fim Isabela. — Nós não podemos nos dar ao luxo de errar agora. Já nos aconselhamos com Dona Clara, e com Grace. Gostaríamos de ouvir sua opinião como nosso Pastor.
— Com relação ao casamento, creio que vocês é que têm que atrapalhar os planos do diabo, não ele os de vocês. Casem!
Eu e Isabela nos entreolhamos. De fato aquilo era mesmo o certo a fazer. Saímos de lá alegres. Fomos tomar uma água de coco e conversar melhor.
— Vamos esboçar aqui um pouco do que temos que preparar? — mesmo sem esperar resposta Isabela já ia rabiscando idéias.
— Eu não sei quanto vamos gastar. Talvez seja melhor fazermos uns orçamentos. O que é necessário para casar? — falei entusiasmado.
Isabela vivia olhando revistas de noivas. Nem sempre comprava, as importadas eram caras. Mas a verdade é que realizar o casamento dos sonhos é uma tarefa bem detalhista e incrivelmente árdua.
Tivemos que pensar na recepção, na decoração da Igreja, em que Igreja casar, nas fotografias, no vestido de noiva, no meu traje, no traje dos padrinhos, e quem seriam eles, etc. etc. etc. ...
Fizemos primeiro uma planilha do nosso dinheiro. Tínhamos que usar com muito critério, não podia haver desperdício. A questão financeira era um incômodo para mim... mas eu cria que Deus iria dar um jeito, e uma porta de emprego em breve seria aberta!
Isabela tratou de cuidar dos orçamentos dos Buffet's e também fomos visitar várias Igrejas. As mais bonitas. Mas cobravam um absurdo de aluguel... ficamos um pouco desanimados...
— A solução vai ser a gente casar em nossa Igreja mesmo, pelo menos não vão nos cobrar aluguel! E, de certa forma, estamos em casa!
— Pois é... o templo não é muito bonito, mas acho que vai ser melhor. Conversei com o Pastor e a data ficou marcada.
Agora era decidir onde fazer a festa! Durante o mês de dezembro Isabela fazia vários orçamentos por telefone, dentro do que nosso orçamento permitia. Depois, fomos a vários lugares para a prova de salgadinhos. Tinham alguns simplesmente horríveis! Já levava um sal de fruta junto comigo.
Estava em um processo de seleção muito competitivo. Era para uma Multinacional com sede na Avenida Paulista. Todos os concorrentes eram muito bem preparados, a maioria falava mais de uma língua. De início fiquei um pouco receoso de concorrer com candidatos tão fortes. Mas logo as dinâmicas e as entrevistas afunilaram o processo, restando apenas cinco candidatos. Eu estava entre eles.
Minha entrevista durou mais de uma hora. O Diretor estava curiosíssimo comigo.
— Como é que alguém que não fez uma Faculdade consegue acumular tanto conhecimento e se virar tão bem? — perguntou ele com simpatia e sorrisos. — Depois de ver seus testes e seu currículo fiquei com vontade de conhecê-lo.
— Bem, a Faculdade é muito importante, mas há outros meios de se obter conhecimento. Sou um pouco autodidata e isso facilita muito. Existem pessoas que precisam do ensino para aprender, outros não necessitam tanto. A história está cheia de exemplos assim, temos pintores, músicos, cientistas e até líderes políticos que nunca cursaram uma Faculdade. Mas isso não refletiu negativamente em seu desempenho como profissional.
— Você tem um excelente currículo. Impressionante! Bem, aguarde nossa avaliação, mas antecipo que gostei de você. Às vezes temos candidatos muito bem preparados, PHD, etc. Mas não têm a mínima noção de relacionamento interpessoal, isso afeta a inteligência emocional da equipe, causando uma quebra na capacidade produtiva do departamento. Precisamos de pessoas jovens, dinâmicas, ativas, capazes de aceitar novos desafios e principalmente, que aceitem serem moldadas dentro do perfil da Empresa. Você parece possuir alguns destes atributos. Vamos ver... ah! E ainda você pratica Kung Fu há mais de vinte anos!?
— Não, não pratico mais. Não sobra tempo.
— Bem, isso denota que você tem disciplina e perseverança. Vinte anos... é um bom tempo! Espero que você não se importe de resolver algumas questões para mim agora. Aceita?
— Sim.
Não era praxe aquela situação, fazer um teste prático ali na frente do diretor. Mas aceitei. Estava acostumado com as rotinas do departamento financeiro, FASB, balanços, investimentos, relatórios, mapas financeiros, análise de custos e contratos, etc. ...
O teste foi específico, mas me saí bem! Deu-me a calculadora financeira HP12C e fiz vários procedimentos de amortização de juros pela tabela Price, e cálculos usando várias variantes de indexadores.
Tudo foi relativamente fácil, pois eram coisas a que eu já estava acostumado no dia a dia. Não me fiz de rogado nem diante do único problema real.
— Você não fala francês... por ora não é fundamental. Mas se fizer carreira aqui, mais pra frente será necessário. O que você tem a dizer?
— Posso aprender. Vocês não vão se arrepender se investirem em mim. Não tenho medo de trabalho. Vou dar o retorno à altura!
Ele levantou-se e me estendeu a mão.
— Se você for selecionado, arcaremos com seu curso de francês.
Saí de lá certo de que o emprego seria meu! Todos estavam orando para que tudo desse certo.
"Quem sabe Deus não vai me dar algo bem melhor?"
Neste ínterim, voltei a me encontrar com Wang e Chen.
Era quase boca do Natal e eles iriam viajar na época de festas. Mas tanto eu quanto eles estávamos sentindo a necessidade de um novo encontro.
Wang conversava comigo pelo telefone para marcar o dia e comentou da estranheza que ambos ainda sentiam com relação ao desastroso episódio.
— Queremos conversar de novo — disse Wang. — Entender melhor o que aconteceu, sabe? Foi tudo muito estranho.
— Tudo bem, vamos marcar o dia. O Chen também vai?
— Vai, vai sim. Ele ficou confuso, acho que precisa ouvir um pouco mais do que você tem a dizer.
E marcamos a data. Eu e Isabela estávamos em oração. Ela se animava com o que estava acontecendo:
— Eles vão se converter! É só uma questão de tempo.
No dia do encontro eles estavam com outra postura, particularmente Chen. Ele tinha o semblante mais sério, duro, como se estivesse sentindo muita dor.
Nem bem chegaram e já fui falando, falando... compartilhei meu testemunho, sem muitos detalhes, claro. Expliquei sobre o plano da Salvação, a Bíblia, falei de Jesus, fiz até apelo.
Eles não atenderam ao apelo, embora estivessem sérios e compenetrados.
Acabamos por mudar de assunto. E eles se comprometeram a "pensar a respeito" sobre o que eu tinha dito.
Chen por fim falou:
— Desde aquele último encontro que estou com uma dor de cabeça que não passa com nada, tomei tudo quanto foi remédio, consultei Médicos, fiz exames. Ninguém acha nenhuma causa para isso! Até ressonância magnética eu fiz!
Ele não estava associando aquilo com o episódio do demônio. Mas naquele momento senti um desejo muito forte de orar por ele.
— Posso orar por você, Chen? Chen aceitou, para minha surpresa!
— OK, mas não aqui, no Shopping — eu tinha medo de que houvesse alguma manifestação estranha, ali em público. Tudo podia acontecer depois do que eu tinha visto. — Será que a gente pode ir para o seu carro?
— Claro, vamos.
Os dois me acompanharam. Chegamos ao estacionamento e sentamos os três no banco de trás do carro espaçoso de Chen. Eu fiquei ao lado de uma das janelas e Chen ficou no meio.
— Você pode fechar os olhos? — pedi. — Vamos falar com Deus, e fechando os olhos você não se distrai com nada ao seu redor. Mas se quiser falar com Deus de olhos abertos, também pode, viu? Os dois concordaram.
— Deus vai te curar — afirmei.
Eles não responderam nada. Eu orei, pedi a visitação de anjos, da presença de Deus, do toque do Espírito Santo, e que eles percebessem o Amor do Pai!
— Pai, escuta meu pedido agora e cura esta dor do Chen, que seja um sinal para ele de Seu Poder. Amém!
Erguemos nossas cabeças e eu olhei para ele:
— Então? Como você está? Melhorou? Ele foi categórico:
— Não melhorou nada!
Wang me encarava como se eu fosse louco.
— Vou orar de novo, tá?
Imediatamente eles curvaram suas cabeças e fecharam os olhos.
Reuni toda a fé que pude, toda a coragem, impus as mãos sobre a cabeça de Chen e tornei a orar. Desta vez eu não escolhi palavras, deixei-me levar pelo Espírito Santo. Orei em línguas, em português, fui orando sem pensar no que eles estariam pensando.
Comecei a sentir aquela opressão. Forte. Parecia que minhas mãos estavam geladas, a cabeça de Chen estava fria. Orei, orei, orei, clamei o Poder da Cruz! Comecei a sentir a opressão diminuir... então parei. Abri os olhos.
Chen estava com a cabeça bem baixa entre as pernas. Ergueu-se levemente e percebi que lágrimas escorriam pela sua face.
Ele não olhou para mim, olhou antes para Wang. E falou algo em chinês. Wang respondeu e os dois trocaram algumas frases. Wang então se voltou para mim, com um semblante que deixava transparecer sua emoção.
— A dor passou... — murmurou ele.
E traduzia as frases do Chen, que continuava a falar seu idioma. Desta vez não porque estivesse querendo zombar de mim, mas porque, tomado pela intensidade do momento, talvez nem se recordasse que eu não entendia o que ele falava.
— Eu não conheço esse seu Deus... — repetia Wang, após Chen. — Mas Ele deve te amar muito... pois atendeu seu pedido.
A alegria da presença de Deus foi invadindo nossos corações. Abracei os dois e choramos na presença do Criador! O Deus que tudo pode! Uma semente foi plantada naqueles corações naquele dia.
A decisão final de meu emprego sairia na ante véspera do Natal. A entrevista com o Diretor tinha sido boa, de verdade. Uma coisa era fato: eles gostaram de mim, do meu perfil como pessoa e como profissional.
"Que expectativa... ah! Tem que dar certo!"
Aparentemente tudo estava se encaixando. Deus sabia que eu queria e precisava daquele emprego. Queria constituir família, me aquietar em um só emprego, e fazer carreira! Aquela Empresa era excelente! Um lugar muito promissor; e teria um salário muito bom!
"Puxa! Como estou ansioso... não consigo pensar em mais nada, meu Deus..."
Isabela também estava na expectativa. Tanto que a gente até evitava falar do assunto, para não ter um treco.
"Talvez Deus tenha permitido que eu fosse despedido naquelas circunstâncias para transformar a maldição em bênção. Não é possível que esse decreto de destruição que vem do Inferno vá se cumprir. Tudo bem que de fato não tem muitas pessoas ao nosso lado, mas Grace e Dona Clara estão fazendo a parte delas. Temos também convivido com Sarah. Deus não precisa de quantidade, mas de poucos guerreiros fiéis."
Enfim o resultado saiu. Era dia 23 de dezembro. Isabela estava no Ambulatório esperando ansiosamente. E eu não conseguia criar coragem para ligar para ela.
Sentia um nó na garganta, uma sensação indescritível de impotência, uma revolta na alma. A tristeza tomou conta de mim.
Eu esperava que Deus nos desse um presente especial de Natal.
Mas tinha acontecido assim. Infelizmente.
"Por que teve que ser desse jeito, Deus? Por acaso o Senhor acha que eu sou de ferro??"
Há pouco tinha desligado o telefone, emudecido, acabado, atordoado.
"Do que nós vamos viver, meu Deus? É justo Isabela trabalhar por dois e eu ficar aqui, vendo as nuvens, Senhor? Se ela quiser adiar o casamento vou entender muito bem!"
Custei a conter as lágrimas. Tomei o telefone nas mãos novamente. Era preciso dar-lhe a notícia.
— Oi Nenê! Tudo bem?
— Não,"MÔ"...
Isabela compreendeu logo.
— Ah, Nenê... te deram a resposta, é? — Deram...
— Então eles não te escolheram?... Mas estavam tão interessados.... Suspirei fundo, lutando para conter a emoção.
— Eles me escolheram, sim, Gatinha. A recrutadora já tinha me dado os parabéns, já estava me passando a lista de documentos para levar e tudo o mais, eu ia acertar tudo antes de te ligar, mas ela ligou de volta dizendo que havia um problema...
— Mas que problema, Eduardo? Que foi dessa vez? Foi algo da Irmandade?
— Não. O meu nome está protestado! — exclamei, amargurado. Isabela sabia disso, e não acreditava na argumentação.
Quando saí da Irmandade perdi tudo o que tinha. E ainda não consegui pagar dívidas contraídas em viagens, roupas, etc. Tentei vários acordos, que consegui pagar aos poucos, mas alguns destes acordos não deram certo... e tinham me protestado!
— Isso nunca foi problema antes, Eduardo! Por que agora?
— É um banco internacional, Isabela, uma Instituição Financeira de porte. Faz parte. É praxe. Quando consultaram minhas referências viram o protesto. E o valor é muito elevado, não tenho como pagar.
— Pôxa... a gente orou tanto... foi um ano tão difícil...
— Não entendo... é assim que Deus quer abençoar nosso casamento? Desabafei, entre irado e amargurado. — Não seria melhor que Deus não tivesse me deixado passar, que não chegasse ao fim... para que este sofrimento?
— Eu te entendo... não tenho a resposta. Procure se acalmar, deve ter um motivo, um propósito!
— Sim, um motivo que só Ele sabe!
— Não fale assim, vamos orar? — Vamos...
— Senhor Deus... esse é um momento muito difícil, o Senhor sabe. Toda nossa expectativa, a angústia, o nosso desejo... agora estamos frustrados. Mas apesar de tudo, Deus... continuamos confiando em Ti. Confiando na Tua Proteção, e que o Senhor vai prover o que precisamos... o Senhor sabe que vamos nos casar, que é chegado o tempo. Se preciso for casaremos mesmo sem emprego!
Entregamos tudo o que temos diante de Teu Altar. Consola nossos corações de forma especial. Temos a certeza de que foi o Senhor, e não o diabo, que fechou esta porta, porque nós oramos... sentimo-nos como talvez Davi tenha se sentido no salmo 13. Ajuda-nos Pai! Protege-nos na sombra de Tua Mão, guia nossos passos, não permita que a chama da nossa fé se apague! Em nome de Jesus te pedimos, amém!
— Amém!
Isabela estava fungando do outro lado da linha.
— Foi bom termos orado, Gatinha.
— Você está se sentindo melhor?
— Sabe, Nenê?
— O quê?
— Gatinha tem orgulho do Nenê, viu?
— Mas não consegui o emprego.
— Por causa do protesto, não por causa da sua capacidade.
— OK, tudo vai dar certo. Deus é por nós! Um beijo, bom serviço.
— Outro, fique com Deus.
Dia 30, antevéspera de Ano Novo, mais um stress sobreveio sobre nós, particularmente sobre Isabela.
Quando cheguei em sua casa, no final da tarde, ela estava assustadíssima com o estado de saúde da Bitinha, sua cachorrinha preta.
— A Bitinha não está bem, Eduardo! — falou Isabela com ar preocupado. — Não sei o que está havendo. Ela vomitou um pouco, pensei que fosse apenas uma indisposição, comprei Plasil e apliquei nela... mas ainda não está melhor.
— Será possível, Isabela? — fui olhar a cachorra pela porta da cozinha. Isabela sofria visivelmente, angustiada em ver sua cachorrinha piorar a olhos vistos, do nada, de repente! Ela estava bem, era forte, sadia, com pêlo brilhante, ativa, não tinha nenhum problema de saúde.
Talvez tenha sido nossa exaustão que nos impediu de tomar uma atitude mais drástica, mais ativa.
— A Vanessa acabou de viajar! Faz dois dias!
Vanessa era a veterinária que conhecíamos e confiávamos, e que costumeiramente vinha consultar os animais em casa e estava também acompanhando o Wolfi. Que, por sinal, veio piorando muito do quadro convulsivo ao longo dos meses. Claro que nada iria acontecer enquanto fosse fácil localizá-la. Era sempre assim! Nos piores momentos. O Hospital Veterinário da USP já estava fechado.
— Ela piorou repentinamente, senão já teria levado no Hospital da USP. Bitinha estava deitada na porta da cozinha, com seus olhos plácidos olhando para nós, a respiração meio acelerada.
— O que a gente faz? — perguntou Isabela.
— Vamos esperar. Não pode ser nada grave. Vai ver comeu alguma coisa e está passando um pouco mal. Vamos orar por ela.
Oramos. No dia seguinte Isabela me liga logo cedinho.
— Nenê, vem aqui! — ela chorava, quase desesperada. — Ela vai morrer, a Bitinha vai morrer!
— Fica calma! Eu já vou até aí. Vamos levá-la a outro veterinário.
— Acho que não vai dar tempo....
Saí à toda de casa. Isabela esperou que eu chegasse olhando para a cachorrinha de longe. Cheguei lá antes das sete da manha. Isabela tinha um aspecto horrível por causa da angústia que passara.
— Como ela está? — perguntei rápido ao entrar.
— Não tenho mais coragem de olhar. Levantei cedo e fui direto para o quintal na esperança que ela estivesse bem. Mas...
Corri para fora sozinho, apenas para encontrá-la morta. Não retíve as lágrimas de pura revolta.
— Até quando, Senhor? Até quando?...
Era 31 de dezembro. Isabela estava sem rumo. Mas nessa altura tínhamos aprendido a não mais mentir e ter sempre zelo com tudo o que fazíamos. Isabela não quis faltar ao emprego. Sei que aquilo foi duríssimo para ela. Tempos atrás Isabela não hesitaria em inventar a morte de um parente para faltar no emprego, sem culpa alguma na consciência. Mas isso hoje não seria mais cogitável. Deus teve que trabalhar muito em sua vida para conseguir esse resultado. Acho que nem eu pude supor quanta força de vontade ela usou naquele dia.
Levei-a ao trabalho. Como ela estava tão triste...
Despedi-me com um beijo e um forte abraço, voltei à sua casa e passei toda a manhã cavando um túmulo para a Bitinha no jardim de Dona Márcia. Bitinha tinha dez anos. E era a mais meiga dos três.
Depois, no final da manhã, fui buscar Isabela no serviço.
Claro que a passagem de ano estava estragada. Comemorar o quê? Até Marco não pôde vir naquele ano.
Eu estava um pouco encafifado com aquela história, mas minhas suspeitas só ficariam mais claras depois.
Naquela noite procuramos não pensar no assunto. Ainda durante a ceia, outro problema; o Wolfi que estava até compensado, agora piorava, piorava... toda hora Isabela ia até o quintal vê-lo. Depois que a "comemoração" acabou, fui embora e Dona Márcia foi deitar também. Mas Isabela passou mais uma noite em vigília observando o Wolfi, acariciando-o, ouvindo seus últimos lamentos.
Pela manhã, vimos que ele não tinha mais recuperação. Liguei para uma Clínica veterinária que estava de plantão e pedimos que o sacrificassem. Era dia primeiro do ano.
A veterinária veio e o examinou. Só executam o sacrifício se realmente não há mais nada a fazer. Não tinha...
Isabela ficou no seu quarto, chorando, orando, suportando sua dor.
Eu acompanhei a veterinária, e a partida do Wolfi. Seu sofrimento estava acabado!
Isabela estava esgotada com olhos inchados e muita dor de cabeça por tantas horas de tensão.
O dia estava claro, ensolarado. Dona Márcia fez café e eu fui cavar outro túmulo no jardim. Sentada nos degraus do jardim, pálida, Isabela ficou olhando.
Foi um duro fim de ano!...
Depois disso, Isabela ficou alguns dias colhendo a tristeza daqueles dias, tanta coisa acumulada. Dormia mal, mas não faltou um só dia no seu trabalho.
Volta e meia falava dos animais. Tinham sido tantos ataques sobre eles que já havíamos perdido a conta. Vários estranhos sumiços da Viola, a Harpa que foi mordida pelo Wolfi e teve que ser operada, quase morreu. Depois desapareceu, e só surgiu depois de muita oração.
— Na primeira vez que ungi a casa e os animais, foi tão esquisito... quando ungi a Bitinha ela foi logo para a casinha dela e vomitou — lembrou Isabela.
— É mesmo, é? Não sabia disso!
— Pois é... uma cachorra não é sugestionável como o ser humano... eu orei no mesmo tom de voz que falo com eles. Quando a ungi, ela vomitou, na hora. Exatamente como acontece com pessoas debaixo de forte opressão.
— Coitadinhos...
— Que fim de ano... você reparou o dia em que a Bitinha morreu? Parece que há algo a mais nisso, não acha? — Isabela estava séria.
— Dia 31.
— É, 31 de dezembro. Isso não te lembra nada? — Acho que sim...
— Lembra de 31.12.1999? É como se a morte da Bitinha fosse um prenúncio... de minha morte... um sinal do inimigo, sabe? E o Wolfi morreu logo depois dela... de sofrer muito. Só não sofreu mais porque o sacrificamos. A Bitinha morreu de repente, de forma súbita, sem causa aparente. O Wolfi lentamente.
A ficha caiu pesada. Era verdade!
— Uma fêmea, e um macho. Um casal. Ela primeiro; ele depois, com dor. Numa data tão "sugestiva". Um ano antes. Entende o recado? — continuou Isabela. — Por que Deus permitiu isso não sei... por que esse avanço do inimigo, por que meus animais inocentes têm que passar por isso? — e já chorava de novo. — Mas eu entendi bem o recado, muito bem.
Senti em mim a testificação imediata. Não poderia ter sido mera casualidade! No ano seguinte, na data marcada, nós saberíamos que não estávamos sonhando!
Isabela & Eduardo Mastral
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