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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


GUIA DE CAMPO / Tony Diterlizzi
GUIA DE CAMPO / Tony Diterlizzi

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

GUIA DE CAMPO

 

Em que os irmãos Grace

Conhecem sua nova casa e alguém perguntasse a Jared Grace qual a profissão que o seu irmão e a sua irmã gostariam de ter quando crescessem, ele responderia sem problemas. O menino diria que seu irmão, Simon, seria ou um veterinário ou um domador de leões. Já Mallory, sua irmã, seria uma esgrimista olímpica ou então iria presa por atingir alguém com uma espada. Mas Jared não saberia dizer que trabalho ele mesmo gostaria de ter quando crescesse. Não que alguém perguntasse para ele. Não que alguém pedisse sua opinião sobre alguma coisa. A nova casa, por exemplo. Jared Grace olhou para ela e cerrou os olhos. Embaçada talvez ela parecesse um pouco melhor. — É uma cabana — disse Mallory enquanto saía da perua.

Na verdade, não era bem isso. Parecia mais uma dúzia de cabanas amontoadas umas sobre as outras. Havia várias chaminés e todas elas tinham em seu topo uma tira de cerca de ferro, que parecia um chapéu muito espalhafatoso em cima do telhado.

— Não é tão ruim — disse a mãe deles, com um sorriso que parecia levemente forçado —, é uma casa vitoriana.

Simon, o irmão gêmeo idêntico a Jared, não parecia chateado. Provavelmente ele estava pensando nos bichos que agora poderia ter. Na verdade, lembrando que o irmão tinha colocado dentro de seu pequenino quarto em Nova York, Jared imaginou que talvez um bando de coelhos e ouriços e o que mais estivesse ao alcance poderiam satisfazer Simon.

 

— Venha, Jared — chamou Simon. Jared percebeu que todos já estavam na frente da casa e ele tinha ficado sozinho na grama, observando a construção.

As portas eram de um cinza desbotado, gasto por causa do tempo. Os únicos traços de pintura eram uma tinta de cor creme irreconhecível, entranhada nas frestas e ao redor das dobradiças. Um gancho de cabeça de carneiro enferrujado pendia em um solitário e enorme prego no meio da porta.

A mãe deles experimentou uma chave cheia de dentes na fechadura, girando-a e empurrando a porta fortemente com o ombro. Ela dava para um saguão meio escuro. A única janela estava na metade das escadas e suas vidraças manchadas deixavam as paredes com um brilho avermelhado e assustador.

— É igualzinho como me lembro — disse ela sorrindo.

— Um pouco mais mórbido — observou Mallory.

A mãe deles riu mas acabou não respondendo.

O saguão conduzia a uma sala de jantar. Uma grande mesa com algumas manchas de água desbotadas era a única mobília. O reboco do forro do teto estava rachado em alguns lugares e um lustre balançava pendurado por alguns fios gastos.

— Por que vocês três não começam a trazer as coisas do carro? — sugeriu a mãe.

— Para cá? — perguntou Jared.

— É, para cá. — A mãe colocou sua bolsa na mesa, ignorando a nuvem de poeira. — Se a tia-avó de vocês, Lúcia, não tivesse deixado a gente ficar, não sei para onde teríamos ido. Precisamos ser gratos.

Nenhum dos três falou nada. Apesar de tudo, Jared não sentia nada muito perto de gratidão. Desde que o pai deles foi embora, as coisas pioraram. A mancha roxa desbotada sobre o seu olho esquerdo não o deixava esquecer da confusão que ele arrumara na escola. Mas esse lugar... esse lugar era a pior coisa até aqui.

— Jared — chamou sua mãe enquanto ele ia atrás de Simon descarregar o carro.

— O que foi?

Ela esperou até que os outros dois irmãos saíssem para falar.

— Esta é a chance para começar de novo... para todos nós, certo?

Jared concordou de má vontade. Ele não precisava ouvir o resto da história — que ele não tinha sido expulso da escola só porque eles estavam se mudando. Outro motivo para supostamente o menino estar grato. Mas não estava.

 

Do lado de fora, Mallory tinha amontoado duas malas sobre o cano de uma caldeira.

— Ouvi dizer que ela parou de comer para morrer.

— Tia Lúcia? Ela só está velha — respondeu Simon. — Velha e gagá.

Mas Mallory balançou a cabeça.

— Ouvi mamãe ao telefone. Ela estava falando para o tio Pedro que tia Lúcia acredita que uns homenzinhos trazem sua comida.

— O que você queria? Ela está pirada — afirmou Jared.

Mallory fez que não tinha ouvido.

— Ela disse para os médicos que nunca tinha experimentado uma comida tão boa como aquela.

— Você está inventando. — Simon arrastou-se até um banco e abriu uma das malas.

Mallory deu de ombros.

— Se ela morrer, este lugar vai ficar de herança para alguém e nós vamos ter que mudar outra vez.

— Talvez a gente volte para a cidade — arriscou Jared.

— Que baita chance — ironizou Simon. Ele retirou um chumaço de meias três-quartos. — Ah, não! Tomás e Jeferson abriram um buraco para fugir!

— A mamãe falou para você não trazer os ratos — avisou Mallory. — Ela falou que agora você pode ter animais normais.

— Se eu os soltasse, ficariam presos em alguma armadilha de cola ou de qualquer outra coisa — revelou Simon, tirando uma meia com um dedo aparecendo em um buraco. — Além disso, você trouxe toda a sua parafernália de esgrima!

— Não é parafernália — resmungou Mallory. — E não está viva.

— Calem a boca. — Jared deu um passo em direção à irmã.

— Não é só porque você está com um olho roxo que eu não posso deixar o outro do mesmo jeito. — Mallory balançou seu rabo-de-cavalo enquanto ia na direção dele. A garota jogou uma pesada mala nas mãos do irmão. — Vá em frente e carregue, já que você é tão corajoso.

Embora Jared soubesse que seria maior e mais forte que ela algum dia — quando ela não tivesse treze e ele nove anos —, era difícil imaginar aquilo.

 

Jared conseguiu arrastar a mala pela porta antes de largá-la. Ele viu que poderia arrastá-la pelo resto do corredor se precisasse, e ninguém seria mais indicado para isso do que ele. Sozinho no saguão da casa, contudo, Jared de jeito nenhum se lembrou de como chegar à sala de jantar. Dois diferentes corredores se dividiam a partir desse, desaparecendo no meio da casa.

— Mamãe... — Mesmo que ele quisesse chamá-la bem alto, sua voz parecia muito suave, até para ele mesmo.

Ninguém respondeu. Ele tentou uma vez e mais outra, até que o barulho de um assoalho debaixo dos seus pés o fez parar.

Assim que ele ficou quieto, alguma coisa dentro da parede fez um ruído. Ele podia ouvir a coisa arranhando para cima, até que o barulho desapareceu por trás do forro. Seu coração tinha disparado no peito.

 

Deve ser só um esquilo, o garoto falou para si mesmo. Além de tudo, a casa parecia estar caindo aos pedaços. Alguma coisa podia estar morando lá dentro; eles teriam muita sorte se não fosse um urso no porão ou pássaros nos canos do aquecedor. Isso é, se aquele lugar tivesse um aquecedor.

— Mamãe... — disse outra vez, ainda mais suave-mente.

Então a porta atrás dele se abriu e Simon entrou, carregando potes de conserva com dois ratos cinzentos de olhos esbugalhados dentro. Mallory estava bem atrás dele, franzindo a testa.

— Ouvi alguma coisa — alertou Jared. — Na parede.

— O quê? — quis saber Simon.

— Eu não sei... — Jared não queria admitir que por um momento tinha pensado que fosse um fantasma. — Provavelmente um esquilo.

Simon olhou interessado para a parede. Papéis de parede bordados em dourado se penduravam frouxa-mente, descascados e cheios de bolha em alguns lugares.

— Você acha mesmo? Na casa? Eu sempre quis um esquilo.

Como ninguém pensou que o que estivesse nas paredes pudesse ser algo preocupante, Jared não falou mais nada sobre aquilo. Mas enquanto carregava a mala para a sala de jantar, Jared não conseguia fazer nada enquanto pensava no pequeno apartamento deles em Nova York e em sua família antes do divórcio. Ele desejava que aquilo fosse uma espécie de férias estratégicas e não a vida real.

 

Em que duas paradas são exploradas por uma enormidade de métodos diferentes

As goteiras no telhado tinham estragado tudo. Apenas três dos quartos do andar de cima não estavam com o chão perigosamente apodrecido. A mãe deles ficou com um, Mallory com o outro e Jared e Simon divi-diram o terceiro.

Enquanto desempacotavam as coisas, as penteadeiras e escrivaninhas do lado de Simon foram ficando cobertas de recipientes de vidro. Alguns estavam cheios de peixes. O resto estava abarrotado de ratos, lagartos e outros animais que Simon havia confinado em gaiolas de barro. A mãe deles falara que ele poderia trazer tudo, menos os ratos. Ela achava os ratos nojentos porque Simon os salvara de uma armadilha embaixo da escada do apartamento da dona Estela. Ela fingiu não ter notado que ele os trouxera mesmo assim. Jared se agitava e se movia no colchão encaroçado, pressionando o travesseiro contra o seu rosto como se fosse perder o fôlego, mas não conseguia dormir. O menino não se incomodava de dividir um quarto com Simon, mas ficar em um lugar com gaiolas de animais que chiavam, guinchavam e arranhavam era mais assustador do que dormir sozinho. Isso fazia Jared pensar na coisa nas paredes. Ele dividia antes um quarto com Simon e os monstrengos na cidade, mas o barulho deles era menor por causa dos carros, das sire-nes e das pessoas. Aqui, tudo era estranho.

O rangido das dobradiças deu calafrios e assustou o garoto. Na porta estava um vulto com um estranho vestido branco e com cabelos longos e pretos. Jared nem percebeu, de tão rápido que foi, que tinha pulado da cama.

— Não é nada, sou eu — sussurrou o vulto.

Era Mallory de camisola. — Acho que ouvi o seu esquilo.

Jared contraiu-se em pé, tentando pensar se era tão rápido como uma galinha ou se apenas tinha bons reflexos. Simon estava roncando calmamente na outra cama.

Mallory colocou as mãos na cintura.

— Vamos. Ele não vai ficar esperando que nós o agarremos.

Jared balançou os ombros do irmão.

— Simon, acorde. Um novo animal de estimação. Um animaaaaaal novo.

Simon debateu-se e suspirou, tentando puxar as cobertas para cima do rosto. Mallory riu.

— Simon! — Jared inclinou-se mais perto, fazendo uma voz propositalmente de emergência. — Esquilo! Esquilo!

Simon abriu os olhos e encarou-os ferozmente.

— Eu estava dormindo.

— Mamãe foi à mercearia comprar leite e cereais — disse Mallory, afastando as cobertas do menino. — Ela me pediu para olhar vocês. Não temos muito tempo antes que ela volte.

 

Os três irmãos se arrastaram pelos cômodos escu-ros da nova casa. Mallory ia na frente, caminhando al-guns passos e então parando para escutar. De vez em quando eles ouviam arranhões ou um som de pequeni-nos passos dentro das paredes.

O barulho aumentou mais assim que eles se apro-ximaram da cozinha. Na pia, Jared viu uma frigideira com os restos do macarrão com molho de queijo que eles haviam jantado.

— Acho que está ali. Ouçam — balbuciou Mallory.

O som parou completamente.

Mallory pegou uma vassoura e segurou o cabo de madeira como se fosse um taco de beisebol.

— Vou ver se quebro a parede — disse ela.

— Mamãe vai ver o buraco quando voltar — aler-tou Jared.

— Nessa casa? Ela nunca vai perceber.

— Mas e se você acertar o esquilo? — ponderou Simon. — Você machucaria...

 

— Chiii — sussurrou Mallory. Ela caminhou silen-ciosamente na ponta dos pés e lançou o cabo da vassoura contra a parede. O golpe quebrou o reboco espalhando pó como se fosse farinha. A poeira foi parar no cabelo de Mallory, que ficou parecendo mais ainda com um fantasma. Ela alcançou o buraco e quebrou um pedaço da parede.

Jared chegou mais perto. Podia sentir os pêlos de seus braços se arrepiando.

Tiras rasgadas de roupa faziam estofo entre as tá-buas. Enquanto ela retirava mais pedaços, outras coisas iam aparecendo. Restos de cortinas. Pedaços esfarrapa-dos de pano de seda e cadarços de sapato. Alfinetes enfiados na madeira brilhavam em cada lado, formando uma linha sinuosa ascendente. Uma cabeça de boneca estava largada em um canto. Baratas mortas estavam presas feito uma grinalda. Pequeninos soldados de chumbo com mãos e pés derretidos estavam espalhados pelas tábuas

como um exército derrota do. Pedaços recortados de espelho brilhavam de onde tinham sido presos com cola velha.

Mallory enfiou a mão no ninho e tirou uma medalha de esgrima. Era de prata com uma grossa fita azul.

— É minha.

— O esquilo deve ter roubado isso aí — concluiu Simon.

— Não, é muito estranho — disse Jared.

— Diana Moraes tinha uns furões e eles costumavam roubar as cabeças das bonecas dela — revelou Si-mon. — Muitos animais gostam de objetos brilhantes.

— Mas olhe! — Jared apontou para as baratas. — Que furão faz um enfeite tão grande para si mesmo?

— Vamos tirar essa confusão daqui — sugeriu Mallory. — Se ele não tiver um ninho, quem sabe saia da casa com mais facilidade.

Jared hesitou. Ele não queria colocar suas mãos dentro da parede e apalpar ao redor. E se o animal ainda estivesse lá e o mordesse? Talvez o menino não entendesse muito daquilo, mas realmente não achava que esquilos normalmente causassem tanta confusão.

— Não sei se devemos fazer isso — resmungou.

Mallory nem ouviu. Ela estava ocupada puxando uma lata de lixo. Simon começou retirando punhados de roupas mofadas.

— Mas não tem sujeira de bicho aqui. É esquisito. — Simon jogou fora o que estava segurando e retirou outro punhado. Nos soldadinhos, ele parou:

— São legais, não são, Jared?

Jared teve que concordar.

— Mas seriam mais bacanas se tivessem as mãos.

Simon colocou vários deles no bolso de seu pi-jama.

— Simon, você já ouviu falar de um animal como esse? Acho que uma parte dessa confusão é mesmo muito estranha, você não acha? — perguntou Jared. — Esse esquilo deve estar tão doido quanto a tia Lúcia.

— É, deve estar muito louco — respondeu Simon, dando uma risadinha.

Mallory suspirou e então se calou de repente.

— Eu ouvi de novo.

— O quê? — perguntou Jared.

— O barulho. Chiii. Está aqui pertinho. — Mallory apanhou de novo a vassoura.

— Silêncio — balbuciou Simon.

— Nós estamos quietos — Mallory sibilou de volta.

— Chiii — insistiu Jared.

Os três foram lentamente até o local de onde o som vinha, então o próprio barulho mudou.

Em vez de escutar o ruído de pequeninas garras arranhando a madeira, eles podiam claramente ouvir o rangido de unhas no metal.

— Olha só. — Simon se agachou para tocar uma pequena porta corrediça colocada na parede.

— É um elevadorzinho — observou Mallory. — Os empregados usavam isso para mandar bandejas de café da manhã e outras coisas para o andar de cima. Deve haver outra porta como essa em um dos quartos.

— Isso parece mais um fosso — disse Jared.

Mallory espremeu seu corpo inteiro dentro da caixa de metal.

— É muito pequeno para mim. Um de vocês tem que ir.

Simon olhou para ela meio sem acreditar.

— Eu não sei. E se a corda já não estiver muito boa?

— Vai ser só um tombinho — disse Mallory e ambos os garotos olharam para ela espantados.

— Certo, eu vou. — Jared estava satisfeito por achar alguma coisa que Mallory não pudesse fazer. Ela parecia um pouquinho desconcertada. Simon parecia apenas preocupado.

O lado de dentro estava sujo e o cheiro parecia o de madeira velha. Jared dobrou suas pernas e inclinou a cabeça. Depois de muita dificuldade, se acomodou.

— O esquilo ou o que for ainda está no buraco do elevadorzinho? — A voz de Simon soava estranha e distante.

— Eu não sei — disse Jared delicadamente, ouvindo o eco de suas palavras.

— Eu não ouço nada.

 

Mallory puxou a corda. Com um pequeno tranco e balançando um pouco o elevadorzinho começou a erguer Jared por dentro da parede.

— Você consegue ver alguma coisa?

— Não — respondeu Jared. Ele podia ouvir os arranhões, mas estavam distantes. — Está totalmente escuro.

Mallory trouxe o elevador de volta.

— Há luz por aqui em algum lugar. — Ela abriu algumas gavetas até que achou um punhado de velas brancas e um pires. Virando um botão do fogão ela acendeu o pavio em uma das bocas, pingou a cera da vela no pires e pressionou-a contra ele para prendê-la. — Aqui, Jared, leve isso.

— Mallory, eu não estou mais ouvindo a coisa — disse Simon.

— Talvez tenha se escondido — disse Mallory, e puxou com força a corda.

Jared tentou se aconchegar mais fundo no elevadorzinho, mas não havia lugar. Gostaria de falar para os irmãos que aquilo era uma estupidez e que ele estava com medo, mas não disse nada. Ao contrário, deixou-se levar na escuridão, segurando a lanterna improvisada.

A caixa de metal subiu alguns centímetros dentro da parede. A luz da vela formava um pequeno halo, refletindo coisas de um jeito estranho. O esquilo ou o que fosse podia estar muito perto dele, talvez até tocando-o e ele nem perceberia.

— Não enxergo nada — disse ele lá para baixo, mas não teve certeza de que alguém o estava ouvindo.

A subida era lenta. Jared sentia-se como se não pudesse respirar. Os joelhos pressionavam seu peito e ele sentia câimbras nos pés por estarem dobrados tanto tempo. Pensava se a vela poderia sugar todo o oxigênio disponível.

Então, com uma sacudida, o elevadorzinho parou. Alguma coisa arranhou a caixa de metal.

 

— Não sobe mais — gritou Mallory dentro do fosso. — Você vê alguma coisa?

— Não — respondeu Jared —, acho que está preso.

Não havia arranhão agora, mas alguma coisa estava tentando unhar a parte de cima do elevadorzinho. Jared grunhiu e tentou golpear o lado de fora, tentando espantar o bicho.

Repentinamente, o elevadorzinho deslizou um pouco e deu outra parada, desta vez em um cômodo turvamente iluminado pela luz da lua que vinha de uma janela bem pequenininha.

Jared arrastou-se para fora da caixa.

— Eu consegui. Estou em pé.

O quarto tinha um forro baixo e as paredes estavam cheias de prateleiras de livros. Olhando ao redor, ele achou que não houvesse porta.

Inesperadamente, Jared não tinha certeza de onde estava.

 

Em que surgem muitos enigmas

Jared observou o quarto. Era uma pequena biblioteca, com uma mesa enorme no meio. Nela havia um livro aberto e um par de óculos redondos fora de moda que refletiam a luz da vela. Jared se aproximou. A escuridão brilhou iluminando um título quando ele estava examinando as prateleiras. Tudo era estranho: Uma história dos duendes escoceses, Compêndio sobre Gnomos, Visitas ao redor do mundo e Anatomia dos insetos e outras criaturas voadoras.

 

Uma coleção de vidros contendo grãos, plantas secas. Um deles cheio de pedras aquáticas estranhas estava em uma ponta da mesa. Perto, uma aquarela mostrava a cena de uma garotinha e um homem brincando na grama. Os olhos de Jared pousaram num bilhete largado sobre um livro aberto, ambos cobertos por uma fina camada de pó. O papel estava amarelado de tão velho, mas nele estava escrito à mão um pequenino e esquisito poema:

 

No tronco de um homem vocês acharão

Meu segredo para toda a população

Se falsa ou verdadeira for a mesma história

Logo vocês saberão da minha glória

Para cima, para cima, para cima outra vez

Bastante sorte para vocês

 

Jared apanhou o papel e leu com todo cuidado. Era como se uma mensagem houvesse sido deixada ali especialmente para ele. Mas por quem? O que significava aquele poema?

Ele ouviu um barulho vindo debaixo.

— Mallory! Simon! O que vocês estão fazendo?

Jared resmungou. Aquilo só podia significar que mamãe chegara da mercearia bem agora.

— Tinha um esquilo na parede. — Jared pôde ouvir Mallory dizendo.

A mãe deles a interrompeu.

— Onde Jared está? — Nenhum dos irmãos respondeu coisa alguma.

— Traga o elevador para baixo agora. Se o seu irmão estiver nele...

Jared correu e chegou a tempo de ver a caixa desaparecer dentro da parede. Sua chama de vela chocou-se com a cera e vacilou por causa do movimento brusco, mas não apagou.

— Olha aí! — disse Simon baixinho.

O elevadorzinho deve ter aparecido vazio.

— Certo, então onde ele está?

— Eu não sei — respondeu Mallory. — Na cama, dormindo?

Sua mãe sorriu.

— Ótimo, então vão vocês também para a cama. Agora!

 

Jared ouvia os passos enquanto eles fugiam. Os dois teriam que esperar um pouco antes de escapar para trazê-lo de volta. Isto é, se eles não estiverem pensando que o elevadorzinho o deixou no andar de cima. Provavelmente ficariam surpresos ao não encontrá-lo na cama. Como poderiam saber que ele estava aprisionado em um quarto sem porta?

Houve um barulho por trás dele. Jared girou ao redor. Vinha da mesa.

Quando Jared apanhou sua lanterna improvisada, viu que tinha alguma coisa rabiscada no pó da mesa. Alguma coisa que não estava lá antes.

 

Clack Zás, olhe para trás

 

Jared deu um pulo, fazendo a vela se inclinar. A cera escorrendo apagou a chama. Ele ficou parado na escuridão, de tão assustado se mexia com muita dificuldade. Alguma coisa estava ali, no quarto, e podia escrever!

O menino foi em direção ao fosso vazio, mordendo o lado de dentro dos lábios para não gritar. Ele podia ouvir o ruído das sacolas lá embaixo enquanto sua mãe desempacotava as compras.

— O que está aí? — sussurrou ele na escuridão. — O que é você?

Somente o silêncio o respondeu.

— Eu sei que você está aí — afirmou Jared.

Mas não houve nem resposta nem outro ruído.

Então ele ouviu sua mãe nas escadas, uma porta batendo e mais nada. Nada; só um silêncio forte e pesado que o assustava. Ele sentia que mesmo sua respiração alta iria denunciar sua localização. A qualquer momento a coisa poderia estar em cima dele.

Houve um barulho dentro da parede. Assustado, Jared deixou cair o pires, e então percebeu que era somente o elevadorzinho. Ele encontrou o caminho no meio da escuridão.

— Entre — sussurrou sua irmã para o alto do po-ço.

Jared deslizou para dentro da caixa de metal. Ele estava tão aliviado que quase nem percebeu a descida até a cozinha.

Assim que saiu, começou a falar.

— É uma biblioteca. Uma biblioteca secreta com livros misteriosos. E tinha também alguma coisa lá, que escreveu no pó.

— Chiii, Jared — disse Simon. — Mamãe vai nos ouvir.

Jared balançava o pedaço de papel com o poema.

— Olhe para isso. Tem uma espécie de instrução nele.

— Você realmente viu alguma coisa? — perguntou Mallory.

— Vi a mensagem no pó. Dizia: “olhe para trás” — respondeu Jared animado.

Mallory balançou a cabeça.

— Pode ter sido escrito há décadas.

— Não foi — insistiu Jared. — Eu vi a mesa e não tinha nada escrito antes.

— Fica quieto! — disse Mallory.

— Mallory, eu vi aquilo!

Mallory agarrou com o punho a camiseta dele.

— Sossega!

— Mallory! Largue seu irmão! — A mãe deles estava no último degrau da pequenina escada da cozinha com uma expressão de poucos amigos. — Acho que já falamos sobre isso. Se eu vir um de vocês fora da cama, vou trancá-los dentro dos quartos.

Mallory soltou a camiseta de Jared com um sorriso.

— E se precisarmos ir ao banheiro? — perguntou Simon.

— Agora, para a cama — respondeu a mãe.

Quando eles subiram as escadas, Jared e Simon se mandaram para o quarto deles. Jared escondeu a cabeça debaixo das cobertas e fechou os olhos com toda força.

— Eu acredito em você... acredito no bilhete e em tudo — sussurrou Simon, mas Jared não respondeu. O menino se sentia muito feliz por estar na cama. Ele achava que poderia ficar ali por uma semana inteirinha.

 

Em que surgem respostas. Mas não

Necessariamente para as perguntas certas

Jared despertou com o som dos berros de Mallory. O menino pulou da cama e foi para o corredor, com Simon atrás, em direção à cama da irmã. Várias mechas do cabelo dela tinham sido amarradas na cabeceira da cama. O rosto dela estava vermelho, mas a pior coisa eram as manchas estranhas que enfeitavam seus braços. A mãe deles estava sentada no colchão, e seus dedos desfaziam os nós.

— O que aconteceu? — quis saber Jared.

— Apenas corte — gemia Mallory. — Corte tudo fora. Quero sair dessa cama! Quero ir embora dessa casa! Odeio esse lugar!

— Quem fez isso?

Sua mãe olhava para Jared muito brava.

— Eu não sei — Jared deu uma olhadinha para Simon em pé na porta, com o olhar confuso. Deve ter sido a coisa nas paredes.

Os olhos da mãe deles estavam esbugalhados. Era assustador.

— Jared Grace, eu vi você discutindo com a sua irmã ontem à noite!

— Mamãe, eu não fiz isso. De verdade. — Estava chocado com o fato de a mãe pensar que ele pudesse ter feito uma coisa daquelas. Ele e Mallory brigavam sempre, mas isso não queria dizer nada.

— Pegue a tesoura, mamãe — berrou Mallory.

— Vocês dois. Fora daqui.

Jared, vou conversar com você mais tarde — disse a mãe virando-se em seguida para a filha.

Jared saiu do quarto, seu coração pulava. Quando pensava nos cabelos amarrados de Mallory, não podia segurar o arrepio.

— Você acha que foi a coisa que fez aquilo, não acha? — perguntou Simon

enquanto os dois voltavam para o quarto.

Jared olhou desanimado para seu irmão.

— Você não?

Simon concordou.

— Estou pensando no poema que eu achei — disse Jared. — É a nossa única pista.

— Como um poema boboca pode nos ajudar?

— Eu não sei. — Jared riu amarelo. — Você é o espertinho aqui. Já deveria estar pensando nisso.

— Por que nada aconteceu conosco? Ou com mamãe?

Jared não tinha pensado naquilo.

— Eu não sei — repetiu.

Simon olhou longamente para ele.

— Certo? E o que você acha? — perguntou Jared.

Simon parou perto da porta.

— Eu não sei o que eu acho, mas vou pensar. Vou sair para ver se apanho uns grilos.

Jared observou-o sair e pensou no que poderia fa-zer. Ele conseguiria mesmo resolver alguma coisa sozinho?

Vestindo-se, ele pensava no poema.

“Para cima, para cima, para cima novamente”, era o verso mais simples, mas o que ele significava exatamente? Para cima da casa? Para cima do telhado? Para cima de uma árvore? Talvez o poema não passasse de algo que um velho, um parente morto tinha largado por aí, algo que não ajudaria em nada.

Mas enquanto Simon dava comida para os seus animais e Mallory estava sendo libertada da cama, ele não tinha nada melhor a fazer do que pensar a que distância “para cima, para cima, para cima novamente” ele precisava ir.

Então, tudo bem. Talvez, afinal, aquela não fosse a pista mais fácil. Mas Jared percebeu que não perderia nada se subisse, deixando para trás o segundo andar, para o sótão.

As escadas estavam sem pintura, e várias vezes os cantos em que pisava rangiam tão dramaticamente que Jared tinha medo de que desabassem com o seu peso.

O sótão era um quarto enorme com um teto inclinado e um belo buraco no chão em uma das extremidades. Através dele, o menino podia ver um dos quartos que não estava sendo usado.

Sacolas de roupas velhas estavam amarradas em um varal de arame fino esticado por toda a largura do sótão. Gaiolas de pássaros se espalhavam aos montes pelas vigas e um manequim de costureira estava sozinho em um canto, com um chapéu sobre a sua cabeça cheia de buracos. No centro do quarto havia uma escadaria em espiral.

Para cima, para cima e para cima novamente. Jared subiu as escadas rapidinho.

O quarto onde entrou era claro e pequeno. Havia janelas em todos os lados, e quando ele olhava para fora, podia ver a quebrada e desgastada telha do teto acima dele. O menino podia ver o carro de sua mãe lá fora em uma garagem sobre as pedras. Podia ver inclusive o trailer e a longa campina que se arrastava além das árvores. Essa deveria ser a parte da casa que tinha a estranha cerca de ferro no teto. Que belo lugar! Até a Mallory ficaria impressionada quando ele a levasse lá em cima. Talvez isso a deixasse menos chateada por causa do cabelo.

Não havia muita coisa na sala. Um velho baú, um pequeno banco, uma vitrola, e rolos de pano desbotado.

Jared sentou-se, retirou o poema dobrado de seu bolso, e o leu de uma vez.

“No tronco de um homem

vocês acharão o meu segredo para

toda a população”.

 

Esses versos o aborreceram. Ele não queria achar um corpo velho e morto, nem se houvesse alguma coisa realmente bacana dentro dele.

A luz amarela e brilhante se espalhava pelo chão acalmando-o. Nos filmes coisas ruins raramente aconteciam em pleno dia, mas ele ainda hesitava em abrir o baú. Talvez ainda pudesse sair e trazer Simon com ele. Mas e se o baú estivesse vazio? E o que dizer se o poema não tivesse nada a ver com as manchas e o cabelo amarrado de Mallory?

Sem realmente saber o que fazer, ele se ajoelhou e limpou as teias de aranha e a sujeira da tampa do baú. Pesadas tiras de metal enferrujado se estendiam pelo couro velho. Pelo menos ele podia dar uma olhada. Talvez a pista ficasse mais clara se soubesse o que havia dentro.

Tomando fôlego, Jared levantou a tampa. Estava cheio de roupas velhas e carcomidas. Debaixo delas, havia um relógio de bolso em uma longa corrente, um gorro esfarrapado, e uma bolsa de couro cheia de velhos lápis e pedaços quebrados de carvão.

Nada no baú se parecia com um segredo, para a população ou para alguém mais.

Nada se parecia com um corpo morto, também.

“No tronco de um homem vocês acharão o meu segredo para toda a população.”

Olhou outra vez para o conteúdo da caixa e isso o angustiou.

Estava olhando para uma caixa. O tronco de um homem poderia ser a sua caixa, caixa torácica.

Jared suspirou frustrado. Como ele poderia estar certo e não conseguir nada? A caixa não tinha nada de bom, e as outras linhas do poema não faziam sentido de jeito nenhum. “Se falsa ou verdadeira for a mesma história, logo vocês saberão da minha glória.” Como aquilo podia ser respondido com uma coisa concreta? Parecia um jogo de palavras.

De qualquer jeito, o que seria falso? Alguma coisa naquela situação toda? Alguma coisa com relação aos objetos na caixa? A própria caixa? Ele pensava sobre os baús e os baús faziam-lhe pensar sobre piratas na praia, enterrando um tesouro bem fundo na areia fria.

 

Enterrado embaixo! Não um baú falso, mas um baú com um fundo falso! Olhando com cuidado, ele pôde ver que o lado de dentro parecia mais alto do que deveria ser. Ele teria resolvido mesmo o enigma?

Jared ajoelhou e começou a tirar as coisas do fundo do baú, passando os dedos através do pó para procurar fendas que poderiam permitir-lhe abrir um compartimento escondido. Como ele não achou nada, começou a apalpar o lado de fora, arranhando a caixa. Finalmente, quando pressionou três dedos contra a ponta do lado esquerdo, um compartimento estalou e se abriu.

Mais excitado do que nunca, Jared espremeu sua mão no lado de dentro. Tinha apenas um pacote meio quadrado, embrulhado em um pano sujo. Ele retirou-o, desamarrou e começou a tirar o tecido que embrulhava um velho e esfarelado livro que cheirava a papel queimado. Gravado no couro marrom, o título era: Guia de Campo de Artur Spiderwick para o mundo fantástico ao nosso redor.

 

A capa estava torcida nas extremidades, e quando ele abriu percebeu que o livro estava cheio de aquarelas. A escrita tinha sido feita com tinta, mas o tempo e a umidade mancharam e pontilharam tudo. Ele folheou rapidamente, olhando as explicações colocadas no volume. Elas foram escritas em estilo aracnóide muito similar à letra do enigma.

A coisa mais estranha, contudo, era o assunto. O livro estava cheio de informações sobre seres fantásticos.

 

Em que Jared lê um livro e prepara uma armadilha

Mallory e Simon tinham saído para o campo, para esgrimir, quando Jared encontrou-os. O rabo-de-cavalo de Mallory estava de fora do seu capacete de esgrima, e Jared pôde ver que ele estava menor do que era antes. Ela estava aparentemente tentando compensar sua fraqueza anterior através de uma luta implacável de espadas. De qualquer maneira, Simon não conseguiria surpreendê-la. Ele estava sendo empurrado para o lado do depósito da casa e suas defesas tornavam-se cada vez mais desesperadas.

— Eu achei uma coisa — disse Jared. Simon levantou seu capacete da cabeça. Mallory aproveitou a oportunidade para golpear, empurrando a ponta falsa de sua espada contra o peito dele.

—É o terceiro, para acabar — disse Malloy. — Detonei você.

— Você trapaceou — reclamo ele.

— Você é que ficou distraído — revidou Mallory.

Simon tirou o capacete da cabeça, jogou-o no chão e olhou para Jared.

— Obrigado.

— Desculpe — respondeu Jared automaticamente.

— Você é que sempre luta com ela; eu só vim aqui apanhar alguns girinos. — Simon olhou com a cara feia.

— Certo, mas estou ocupado. Só porque eu não tenho um punhado de animais bobos para cuidar isso não significa que não possa estar ocupado — replicou Jared.

— Calem a boca, os dois. — Mallory levantou o próprio capacete. Seu rosto estava vermelho. — O que você achou?

Jared tentou reavivar um pouco da sua excitação de antes.

— Um livro no sótão. É sobre seres fantásticos, seres fantásticos de verdade. Olhe como eles são feios.

Mallory tomou o livro das mãos dele e começou a observá-lo.

— Isso é coisa de criança. É um livro de histórias.

— Não é — disse Jared defensivamente. — É um guia de campo. Sabe, como os de pássaros. Para saber distinguir os diferentes tipos.

— Você acha que um ser encantado amarrou meu cabelo na minha cama? — perguntou Mallory. — A mamãe acha que foi você. Acha que você está agindo de um jeito esquisito desde que papai foi embora. Como se meter em todas aquelas brigas na escola.

Simon não dizia nada.

— Mas você não acredita nisso. — Jared esperava que ela concordasse. — E você vive se metendo em brigas.

Mallory suspirou profundamente.

— Eu não acho que você é tonto o suficiente para fazer uma coisa como aquela — disse ela, cerrando os punhos para mostrar o que faria se tivesse sido ele. — Mas também não acho que foram os seres fantásticos.

 

Depois do jantar, a mãe deles estava estranhamente quieta enquanto colocava frango e purê de batatas no prato dos filhos. Mallory também não estava lá muito falante, mas Simon tagarelava sobre os girinos que encontrara e como eles logo se tornariam sapos porque já tinham uns braços pequenininhos.

Jared havia visto os girinos. Eles ainda tinham um longo caminho pela frente. O que Simon chamava de braços pareciam muito mais anteninhas de peixe.

— Mamãe — disse Jared finalmente —, nós temos um parente chamado Artur?

A mãe deles levantou suspeitosamente os olhos de seu prato.

— Não, eu acho que não. Por que você está perguntando?

— Eu só estava pensando — murmurou Jared. — E Spiderwick?

— Esse é o sobrenome da tia-avó Lúcia — a mãe deles respondeu. — Era o nome de solteira da minha mãe. Talvez Artur fosse um dos parentes dela. Agora me diga por que você está querendo saber essas coisas?

— É que encontrei uma coisa dele no sótão... só isso — disse Jared.

— No sótão! — Sua mãe derrubou a maior parte do chá gelado. — Jared Grace, como você sabe, metade de todo o segundo andar está tão apodrecido que, se você pisar em um lugar errado, vai cair em um cômodo do andar de baixo.

— Eu fiquei no lado seguro — alegou Jared.

— Não sabemos se há um lado seguro no sótão. Não quero ninguém brincando lá, especialmente você — disse ela, olhando direto para ele.

Ele mordeu os lábios. Especialmente você. Jared não falou mais nada pelo resto do jantar.

 

— Você vai ler isso durante a noite toda? — perguntou Simon. Ele estava sentado no seu lado do quarto. Tomás e Jeferson corriam pelo acolchoado, e seus novos girinos estavam em um dos aquários.

— E se eu for? — quis saber Jared. Com cada página esfarelada, Jared aprendia fatos estranhos. Poderia realmente ter gnomos na casa dele? Fadas no quintal? Ondinas no rio lá atrás? O livro tornava esses seres muito reais. Ele não queria falar com ninguém naquele momento, nem mesmo com Simon. Só queria continuar lendo.

— Eu não sei — disse Simon —, achei que talvez você já estivesse entediado a uma hora dessas. Você não tem o costume de ler.

Jared levantou os olhos e vacilou. Era verdade. Simon é que era o leitor. Jared, na maioria das vezes, ape-nas se metia em problemas.

Ele virou uma página.

— Eu posso ler se quiser.

Simon bocejou.

— Você está preocupado em cair no sono? Quero dizer com o que pode acontecer essa noite.

— Olhe para isso — Jared apontou para uma página na frente deles. — Esse é um ser encantado chamado gnomo. — Ele colocou a folha na frente de Simon. Na folha amarelada havia um desenho de um homenzinho, posando com um espanador feito de pena de peteca e um alfinete reto. Perto dele havia um vulto arqueado, também pequeno, mas esse segurava um pedaço de caco de vidro.

— O que é isto? — Simon apontou para a segunda figura, intrigado.

— Esse tal de Artur diz que é um diabrete. Veja, gnomos são aqueles gentis homenzinhos, mas se você os perturba, eles ficam loucos. Começam a fazer coisas ruins e você não é capaz de contê-los. Então eles viram diabretes. É o que eu acho que nós temos.

— Você acha que nós o perturbamos mexendo na casa dele?

— Pode ser. Ou talvez ele já fosse um tipo doido antes disso. Quero dizer, olhe para esse aqui. — Jared apontou para o gnomo. — Ele não é o tipo que vive em uma casa esquisita decorada com insetos mortos.

Simon concordou, olhando para os desenhos.

— Já que você achou o livro nessa casa — disse ele —, você acha que esse é o desenho do nosso diabrete?

— Nunca pensei nisso — disse Jared, baixinho. — Mas bem que faz sentido.

— No livro diz o que devemos fazer?

Jared balançou a cabeça.

 

— Ele fala sobre diferentes formas de apanhá-lo. Não capturá-lo de verdade, mas de vê-lo... ou de ter evidências.

— Jared — Simon parecia duvidar —, mamãe disse para fechar a porta e ficar aqui. A última coisa que ela quer é outra razão para acreditar que foi você que fez aquilo com Mallory.

— Mas ela acha de qualquer jeito que fui eu. Se a-contecer alguma coisa essa noite, ela vai pensar que fui eu também.

— Ela não vai. Vou dizer para ela que você ficou aqui a noite inteira. Além disso, desse jeito, nós dois vamos ter certeza de que com a gente nada vai acontecer.

— E Mallory? — perguntou Jared.

Simon deu de ombros.

— Eu a vi indo para cama com uma de suas espa-das de esgrima. Eu não mexeria com ela.

— Certo. — Jared voltou para cama e abriu o livro novamente. — Só vou ler mais um pouco.

 

Simon concordou com a cabeça e foi colocar os ratos de volta em seus potes. Então foi para a cama, colocou as cobertas sobre a cabeça, resmungando em seguida:

— Boa-noite.

À medida que Jared lia, cada página o levava mais fundo naquele estranho mundo de florestas e rios, na companhia de criaturas que pareciam tão próximas que ele podia mesmo acariciar a escorregadia e escamosa costela das sereias. Ele podia sentir inclusive o calor da respiração do troll e ouvir o rumor dos passos do duende.

Quando virou a última página, era tarde da noite. Simon estava tão enrolado no cobertor que Jared podia ver somente a ponta de sua cabeça. Jared apurou os ouvidos, mas os únicos barulhos na casa eram o vento assobiando no teto sobre eles e a água pelos canos. Nada correndo ou se mexendo. Até os bichos do Simon estavam dormindo.

Jared mudou para a página em que leu: Diabretes adoram atormentar aqueles que antes protegiam e fazem o leite azedar, as portas baterem, os cães mancarem e outras travessuras mal-intencionadas.

Simon acreditava nele — ainda bem, ao menos —, mas Mallory e a mãe deles não. E, além disso, ele e Simon eram gêmeos. Não fazia diferença para ninguém que Simon acreditasse nele. Jared observou a sugestão do livro: Espalhar açúcar ou farinha no chão é um jeito de conseguir pegadas.

Se ele tivesse pegadas para mostrar, então acreditariam nele.

Jared abriu a porta e arrastou-se escada abaixo. Estava escuro na cozinha e tudo parecia quieto. Ele andou na ponta dos pés sobre os azulejos frios até onde sua mãe tinha colocado a farinha — em um velho vidro de farmácia na prateleira. O garoto retirou vários punhados e espalhou-os no chão generosamente. Não parecia muito. Ele não tinha certeza do jeito que as pegadas se mostrariam ali.

Talvez o diabrete nem mesmo caminhasse pelo chão da cozinha. Até ali, o bicho parecia decidido a mover-se entre as paredes. Ele pensava no que sabia sobre diabretes do livro. Ardilosos. Odiosos. Difícil de se livrar deles.

Quando estavam sob a forma de gnomos eram gentis e belos, faziam todo tipo de trabalho por uma bela tigela de leite. Talvez... Jared foi até a geladeira e derramou leite em um pequeno pires. Talvez se ele deixasse por ali, a criatura ficaria tentada a sair das paredes e deixaria pegadas na farinha.

Quando o menino olhou para o pires de leite ali no chão, não pôde deixar de se sentir um pouco mal e estranho ao mesmo tempo. Em primeiro lugar, era esquisito que ele estivesse ali naquela hora, preparando uma armadilha para alguma coisa que nem acreditava existir duas semanas atrás.

 

Mas a razão por que ele se sentia mal era que... bom, ele sabia que aquilo parecia ser uma loucura, e sabia como era simples tudo virar uma confusão, mesmo se fosse realmente maluquice ou qualquer coisa assim. E ele achava que talvez o diabrete se sentisse também daquele jeito.

Foi então que percebeu ainda outra coisa. Poderia deixar suas próprias pegadas na farinha por todo o caminho do leite até o corredor.

— Droga — murmurou enquanto ia apanhar a vassoura. A luz acendeu.

— Jared Grace — era a voz de sua mãe, no topo da escada.

Jared virou-se rápido, mas não sabia se pareceria muito culpado.

— Volte para a cama — disse ela.

— Eu só estava tentando pegar... — Mas ela não o deixou terminar.

— Agora, senhor. Vá.

Depois de pensar sobre aquilo por um instante, ele ficou feliz por ter sido interrompido. Sua idéia sobre o diabrete provavelmente não teria sido grande coisa.

Com uma olhadela sobre seus ombros para a fari-nha espalhada no chão, Jared fugiu pelas escadas.

 

Em que eles acham coisas inesperadas na geladeira

Jared levantou-se com o som da voz de sua mãe. Ela estava brava.

— Jared, é melhor você levantar.

— O que está acontecendo — perguntou Jared sonolento, livrando-se das cobertas. Por um segundo, pensou que tinha faltado à escola, mas então lembrou que tinham se mudado e que até agora ele nem tinha colocado um pé na escola nova.

— Em pé, Jared! — ordenou sua mãe. — Você

quer fingir que não sabe de nada? Certo, vamos descer as escadas e você vai ver o que está acontecendo.

A cozinha estava uma bagunça, Mallory com uma vassoura estava varrendo os cacos de uma tigela de porcelana. As paredes estavam pintadas com achocolatado e suco de laranja. Ovos crus escorriam pelas vidraças.

Simon estava sentado na mesa da cozinha. Seus braços estavam cobertos com as mesmas manchas que Mallory exibira somente um dia antes, e seus olhos estavam vermelhos, como se ele tivesse chorado.

— O que me diz? — sua mãe perguntou com expectativa.

— Eu... eu não fiz isso — disse Jared, olhando pa-ra eles. Eles não acreditariam mesmo que tivesse feito uma coisa como aquela, acreditariam?

E lá, no chão da cozinha, perto de um monte de cereal e pedaços espalhados de casca de laranja, Jared viu pequenos rastos na farinha. Eram do tamanho de seu dedo mindinho, e ele podia claramente ver o sinal dos calcanhares de um pé à frente daquilo que podia ser alguns dedinhos.

— Olhem — disse Jared, apontando. — Vejam, umas pegadinhas.

Mallory olhou para ele e seus olhos estavam apertados de fúria.

— Fica quieto, Jared. A mamãe disse que te viu aqui de noite. Você fez aquelas pegadas!

— Não fiz! — gritou Jared de volta.

— Por que você não olha dentro do congelador então?

— O quê? — perguntou Jared.

Simon deu um gemido especialmente alto.

A mãe deles pegou a vassoura das mãos de Mallory e começou a varrer a farinha e os cereais.

— Mamãe, não, as pegadas — pediu Jared, mas a mãe não deu a menor atenção para ele. Duas passadas de vassoura, e a única prova que ele tinha estava varrida em uma pilha de lixo.

Mallory abriu a porta do congelador. Cada um dos girinos de Simon estava congelado em um pequeno cubo na bandeja. Próximo a eles estava um bilhete escrito em um pedaço de caixa de cereal:

 

Não é belo ato congelar os ratos.

 

— E Tomás e Jeferson desapareceram — disse Si-mon.

— Agora por que você não conta para a gente o que fez com os ratos do seu irmão? — ordenou sua mãe.

— Mamãe, eu não fiz isso. Juro que não fiz.

Mallory agarrou Jared pelos ombros.

— Eu não sei o que você pensa que está fazendo, mas pode começar a arrumar isso.

 

— Mallory — sua mãe interveio. A irmã saiu, mas a olhada que deu continha a promessa de briga uma outra hora.

— Acho que Jared não fez isso — disse Simon, choramingando. — Acho que foi o diabrete.

A mãe não respondeu. A expressão no seu rosto mostrava que manipular Simon era a pior coisa que Jared podia ter feito.

— Jared — disse ela —, comece levando esse monte de lixo lá para fora. Se você achou que isso seria engraçado, vamos ver como vai ser engraçado passar o dia inteiro limpando tudo.

Jared baixou sua cabeça. Não havia jeito de fazê-la acreditar nele. Silenciosamente ele se vestiu, depois apa-nhou três sacos de lixo pretos e começou arrastando-os para a frente da casa.

Do lado de fora, o tempo estava quente e o céu, azul. O ar tinha um cheiro de folhas de pinheiro e grama fresca cortada. Mas a luz do dia de maneira nenhuma parecia ser um consolo.

Um dos sacos se prendeu em um galho, e quando Jared puxou, o plástico rasgou. Suspirando, ele largou os sacos e observou o estrago. O buraco era grande, e a maioria do lixo tinha caído para fora. Quando começou a recolher as coisas, percebeu o que estava apanhando. Eram as coisas da casa do bicho!

Olhou para os pedaços de roupa rasgada, a cabeça da boneca, e os alfinetes com a ponta perolada. A luz do dia, dava para ver outras coisas que ele não tinha notado antes. Viu o ovo de um pintarroxo, mas estava esmagado. Finos recortes de jornal estavam espalhados por toda parte, cada um com uma palavra esquisita diferente escrita. “Entendido” em um. “Solilóquio” no outro.

Juntando todos os pedaços do ninho, Jared colocou-os cuidadosamente ao lado do resto do lixo. Poderia fazer uma casa nova para o diabrete? Funcionaria? Isso o pararia? Pensou em Simon chorando e nos pobres e estúpidos girinos congelados em cubos de gelo. Ele não queria ajudar o diabrete. Queria agarrá-lo e chutá-lo e fazê-lo lamentar ter saído de dentro da parede.

Arrastando o resto do lixo para a frente do campo, o menino olhou para a pilha de coisas do diabrete. Ainda não tinha certeza se iria queimar tudo aquilo ou trazer de volta; na dúvida, levou tudo para dentro.

Sua mãe estava na porta esperando por ele.

— Que negócio é esse? — perguntou ela.

— Nada — respondeu Jared.

Dessa vez, ela não o questionou. Pelo menos não sobre a pilha de lixo nas mãos dele.

— Jared, eu sei que você está aborrecido porque seu pai foi embora. Todos estamos aborrecidos.

Jared olhou para os próprios pés incomodado. Não é porque ele estava aborrecido por seu pai ter ido embora que ele bagunçaria sua nova casa ou pintaria seu irmão de preto e azul, ou amarraria os cabelos da sua irmã à cabeceira da cama.

— E? — perguntou, achando que o silêncio da mãe significava que ela estava esperando por uma resposta.

— E? — repetiu ela. — E você precisa parar de deixar sua raiva dominar você, Jared Grace. Sua irmã cuida disso quando ela está esgrimando e seu irmão tem os animais dele, mas você...

— Não foi eu quem fez isso — disse Jared. — Por que você não acredita em mim? Só por causa da briga na escola?

— Tenho que admitir que fiquei chocada ao saber que você quebrou o nariz de um garoto — disse a mãe. — É sobre isso que estou tentando falar. Simon não arranja brigas. E nem você arranjava antes de seu pai nos deixar.

Ele olhava para os pés cada vez mais seriamente.

— Posso entrar agora?

Ela concordou com a cabeça, mas depois o segurou com a mão em seu ombro.

— Se alguma outra coisa acontecer aqui, vou ter que levar você para fazer uma consulta com alguém. Você me entende?

Jared fez que sim, mas se sentia estranho. Ele lem-brou-se do que tinha dito sobre tia Lúcia e a maluquice e de repente se sentiu muito, muito arrependido.

 

Em que o destino dos ratos é solucionada

–Eu não preciso mesmo da ajuda de vocês — disse Jared. Seu irmão e sua irmã estavam deitados no tapete em frente à televisão. Cada um tinha um controle remoto e, de onde ele estava, podia ver as cores movendo-se no rosto deles enquanto a tela mudava.

Mallory bufou, mas não disse nada. Jared tomou isso como uma resposta positiva. Aquela altura, qualquer coisa que não envolvesse cacetadas era uma resposta positiva.

— Sei que vocês pensam que fui eu que fiz aquilo — disse Jared, abrindo o livro na página sobre diabretes. — Mas, de verdade, não fui eu. Vocês ouviram a coisa nas paredes. Havia a inscrição na mesa e as pegadas na farinha. E lembrem-se do ninho. Lembrem-se de como vocês tiraram tudo daquele ninho.

Mallory se levantou e tomou o livro das mãos dele.

— Me devolva — implorou Jared, tentando agarrá-lo.

Mallory ergueu o livro sobre a cabeça.

— Foi esse livro que deu início a toda essa confusão.

— Não! — reagiu Jared. — Não é verdade. Achei esse livro depois que seu cabelo tinha sido amarrado. Me devolva, Mallory. Me devolva, por favor.

Agora ela segurava o livro com as duas mãos, uma em cada lado das páginas abertas, pronta para rasgá-las em duas metades.

 

— Mallory, não! Não! — Jared estava quase sem fala por causa do pânico. Se ele não pensasse logo em alguma coisa, o livro ficaria em pedaços.

— Espere, Má — disse Simon, levantando-se do chão.

Mallory esperou.

— Que tipo de ajuda você quer, Jared?

Jared deu um suspiro profundo.

— Estou pensando se foi a bagunça que fizemos no ninho que chateou o diabrete, então talvez pudéssemos fazer um novo ninho para ele. Eu... eu peguei uma casinha de passarinho e coloquei alguma estofa dentro.

“Eu acho... bem... acho que talvez o diabrete esteja meio chateado, igual à gente, porque está preso aqui também. Acho que, talvez, ele nem quisesse estar aqui. Talvez esse lugar o deixe louco.”

— Certo, mas antes de eu dizer que acredito em você — falou Mallory, segurando o livro em uma posi-ção menos ameaçadora —, diga-me exatamente o que você quer que a gente faça.

— Preciso de vocês para mover o elevadorzinho — disse Jared. — Então posso levar a casa até a biblioteca. Acho que seria seguro lá.

— Deixe-me ver essa tal casa —disse Mallory. Ela e Simon seguiram Jared no corredor e ele mostrou-a para eles.

Era uma casa de pássaro feita de madeira, grande o suficiente para um corvo morar lá dentro. Járed tinha encontrado no meio de umas coisas no sótão. Trazendo-a para fora, ele mostrou como tinha organizado tudo, menos as baratas, direitinho lá dentro. Ele tinha forrado as paredes com folha de jornal e também colocado pequenas fotografias de revistas.

— Você usou as coisas da mamãe para fazer isso? — perguntou Simon.

— Usei — respondeu Jared encolhendo os ombros.

— Você teve mesmo trabalho — observou Mal-lory.

— Então vocês vão me ajudar? — Jared esperou mais um pouco para pedir o livro de volta, pois não queria deixar sua irmã brava outra vez.

Mallory olhou para Simon e concordou com a cabeça.

— Eu vou primeiro, porém — disse Simon.

Jared hesitou um pouco, mas acabou respondendo.

— Claro.

Passando calmamente pelo lugar onde sua mãe estava telefonando para o pessoal da construção, eles foram para a cozinha.

Simon parou na frente do elevadorzinho.

— Você acha que os meus ratos estão vivos?

Jared não sabia o que dizer. Pensou nos girinos congelados. O menino desejava a ajuda de Simon mas não queria mentir.

Simon ajoelhou e entrou no elevadorzinho. Em poucos instantes, Mallory tinha-o erguido dentro da parede. Simon deu um pequeno suspiro quando começou a se mover, mas depois eles não ouviram nada, mesmo quando o elevadorzinho parou.

— Você disse que tinha uma mesa lá, e papéis — disse Mallory.

— Sim. — Jared não tinha certeza do que ela estava insinuando. Se não acreditasse nele, ela poderia perguntar a Simon quando ele voltasse.

— Bem, eles precisaram entrar lá em algum momento. E a escrivaninha não era pequena, não? Então um adulto entrou lá, mas como um adulto chegou até lá?

Jared ficou confuso por um instante, então entendeu:

— Uma porta secreta?

Mallory concordou.

— Talvez.

O elevadorzinho voltou e Jared entrou nele, com a pequenina casa cravada no seu colo. Mallory elevou-o dentro do túnel escuro. A viagem foi rápida e ele estava muito, muito feliz por ver a biblioteca.

Simon estava em pé no meio do cômodo, olhando tudo pasmo.

Jared sorriu.

— Está vendo?

— É tão legal aqui — disse Simon. — Olhe para esses livros sobre animais.

Pensando na porta secreta, Jared tentava imaginar onde ela poderia estar em relação ao resto dos cômodos acima. Ele tentou imaginar em que direção estava o corredor.

— Mallory acha que há uma porta secreta — comentou Jared.

Simon se aproximou. Havia uma estante de livros, um quadro enorme, e um armário em frente à parede que Jared estava olhando.

— O quadro — disse Simon, e juntos retiraram a enorme pintura a óleo. Era de um homem magro com óculos sentado com elegância em uma cadeira verde. Jared pensou se aquele não seria o Artur.

Atrás do quadro não tinha nada, só a parede lisa.

— Talvez nós pudéssemos retirar alguns dos livros? — disse Jared, pegando um, chamado Cogumelos misteriosos, fungos fabulosos.

Simon abriu as portas do armário.

— Ei, olhe para isto. — Elas davam para a roupa-ria do andar de cima.

Poucos instantes depois, Mallory estava olhando o cômodo também.

— Esse lugar é assustador — disse Mallory.

Simon deu uma risadinha.

— Sim, e ninguém sabe sobre ele, só nós.

— E o diabrete — acrescentou Jared.

Ele pendurou a casinha de pássaro em um candelabro na parede. Mallory e Simon ajudaram-no a ter certeza de que os lados de dentro estavam arrumados, e então cada um deles enfiou alguma coisa na casa. Jared colocou uma de suas luvas de inverno, achando que o diabrete podia usá-la como um colchonete. Simon acrescentou um pequeno prato que ele uma vez usou para dar água para as suas lagartixas. E Mallory deve ter acreditado ao menos um pouco em Jared, pois devolveu sua medalha de prata de esgrima com a fita azul elegantemente para dentro.

Quando terminaram, pareciam satisfeitos. Todos achavam que era uma boa casa.

— Vamos deixar um bilhete para ele — sugeriu Simon.

— Um bilhete? — perguntou Jared.

— É. — Simon mexeu nas gavetas da escrivaninha e achou alguns papéis, uma caneta-tinteiro, e uma garrafa de tinta.

— Ei, eu não tinha notado isso — disse Jared. O menino apontou para uma aquarela de um homem e uma meni-ninha na escrivaninha. Debaixo dela em uma grafia desbotada estava a inscrição: “Minha querida filha Lúcia, 4 anos”.

— Então Artur era o pai dela? — perguntou Mallory.

— Acho que sim — disse Simon, arrumando espaço na mesa para escrever.

— Deixa que eu faço isso — disse Mallory. — Vocês, garotos, vão demorar uma eternidade. Apenas me diga o que escrever. — Ela abriu a tinta e mergulhou a caneta, que fez uma frase torta mas legível no papel.

— Caro Diabrete — começou Simon.

— Você acha que isso é educado? — questionou Jared.

— Eu já escrevi — disse Mallory.

— Caro Diabrete — falou Simon novamente —, nós estamos escrevendo para dizer que lamentamos a bagunça que fizemos na sua outra casa. Nós esperamos que goste dessa outra que fizemos e, mesmo que não goste muito, pedimos que pare de nos incomodar, e outras coisas, e que se estiver com Tomás e Jeferson, por favor cuide bem deles porque são bons ratinhos.

— Ótimo — disse Mallory.

— Então está certo - concordou Jared.

Os irmãos colocaram o bilhete no chão, perto da pequenina casa, e saíram da biblioteca.

 

Durante a semana seguinte, nenhum deles teve tempo para visitar a biblioteca, mesmo através da porta da rouparia. Os pedreiros e o pessoal da transportadora estiveram andando de um lado para outro ao redor da casa durante o dia, e a mãe deles estava de olho durante a noite, não dava para ir além dos corredores.

As aulas haviam finalmente começado, e não eram tão ruins quanto Jared temia. A nova escola era pequena, mas tinha uma equipe de esgrima para Mallory, e ninguém prestou atenção neles nos primeiros dois dias de aula. E até agora, Jared estava conseguindo se comportar.

O melhor de tudo, não aconteceu mais nenhum ataque noturno, nenhuma outra corrida nas paredes — nada, só os cabelos mais curtos de Mallory davam sinal de que tudo aquilo acontecera.

Exceto por Simon e Mallory que estavam muito ansiosos para visitar aquele cômodo novamente, assim como Jared.

Eles tiveram sua chance no sábado, quando a mãe deles saiu para fazer compras e deixou Mallory cuidando de tudo. Tão logo o carro da mãe sumiu na estrada, eles correram para a rouparia.

Dentro da biblioteca, pouca coisa tinha mudado. O quadro estava pendurado direitinho na parede, a casa do pássaro estava no candelabro, tudo parecia estar do jeito que eles tinham deixado.

— O bilhete desapareceu! — anunciou Simon.

— Você o pegou? — Mallory perguntou a Jared.

— Não! — insistiu Jared.

Então ouviram o barulho de uma garganta tossindo e os três olharam para a mesa. Em cima dela, em um velho macacão e com um chapéu de brim velho, estava um homenzinho mais ou menos do tamanho de um lápis. Seus olhos eram tão pretos quanto um besouro, o nariz era grande e vermelho, e ele se parecia muito com o desenho do Guia. Ele estava segurando um par de rédeas com dois ratos cinzentos choramingando na ponta da escrivaninha.

— Tomás! Jeferson! — gritou Jared.

— Tibério gosta à beça da nova casa — disse o homenzinho —, mas não é isso que ele veio dizer.

Jared fez que sim com a cabeça, sem saber exata-mente o que dizer. Parecia que alguém tinha esbofeteado o rosto de Mallory, mas que ela ainda não tinha se dado conta.

O homenzinho continuou.

— O livro de Artur Spiderwick não é para sua raça. Há muito ali que pode causar desgraça. Todo mundo que encostou nele acabou em prantos. Ou por causa da violência, ou dos encantos. Joguem o livro fora, queimem na fogueira. Se vocês não fizerem isso, eles ficarão furiosos e não será de brincadeira.

 

— Eles? Quem são eles? — perguntou Jared, mas o homenzinho apenas puxou seu gorro e pulou para fora da escrivaninha. Ele caiu na corrente brilhante da luz do sol na janela aberta e desapareceu.

Mallory parecia estar com os cabelos em pé.

— Eu posso ver o livro? — perguntou ela.

Jared concordou. Ele levava o livro para todo lugar que ia.

Mallory ajoelhou-se e passeou pelas páginas com seus dedos, mais rápido do que Jared podia ler.

— Ei — disse Jared —, o que você está fazendo?

A voz de Mallory soava estranha.

— Eu só estava olhando. Eu acho... esse livro é um grande livro.

Não era um livro pequeno.

— É, acho que é.

— E todas essas explicações... Todas essas coisas são de verdade, não é Jared? É tudo verdade.

 

E então, de repente, Jared compreendeu o que ela estava falando. Se a gente olhar dessa forma, aquele era um livro grande, um livro absolutamente enorme, grande mesmo até para ser compreendido. E o pior de tudo é que eles estavam apenas no começo.

 

                                                                                            Tony Diterlizzi  

 

                      

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