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GULAG - P.3 / Anne Applebaum
GULAG - P.3 / Anne Applebaum

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

ASCENSÃO E QUEDA DO COMPLEXO INDUSTRIAL DE CAMPOS - 1940-86

 

  1. Início da guerra

 

Era soldado, hoje sou prisioneiro

Minha alma congela, minha língua cala.

Que poeta, que artista

Pintará meu terrível cativeiro?

E os corvos malignos não sabiam

Que espécie de pena dar

Quando nos torturaram e caçaram

Da prisão ao degredo ao campo

Mas o indizível ocorrei

Acima da presa

Uma estrela livre brilha

A alma congela - mas não se quebra

A língua cala - mas vai falar!

Leonid Sitko, 1949.[1]

 

A memória coletiva do Ocidente costuma reconhecer o dia 1o de setembro de 1939, data da invasão do oeste da Polônia pela Alemanha, como o início da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, na consciência histórica da Rússia, nem esse dia, nem o 15 de setembro de 1939 -data da invasão soviética do leste da Polônia - contam como o início da batalha. Apesar de dramática, essa invasão conjunta, definida com antecedência durante as negociações que culminaram com o pacto Hitler-Stalin, não afetou diretamente a vida da maioria dos soviéticos.

 

 

 

 

Nenhum cidadão soviético se esquece, porém, de 22 de junho de 1941, o dia em que Hitler deslanchou a Operação Barba Ruiva, um ataque-surpresa contra os aliados russos. Karlo Stajner, então prisioneiro em Norilsk, ouviu a notícia no rádio do campo:

Subitamente, a música foi interrompida e ouvimos Molotov falar do "ataque desleal" contra a União Soviética. Depois de algumas palavras, o programa saiu do ar. Havia cerca de cem pessoas no alojamento, mas o silêncio era completo: olhávamos fixamente uns para os outros. O vizinho de Vasily disse: "E o nosso fim".[2]

Acostumados à idéia de que todo evento político de grandes proporções era ruim para eles, os prisioneiros políticos receberam a notícia da invasão com particular horror. E eles tinham razão: em alguns casos, os "inimigos do povo", agora encarados como uma potencial quinta-coluna, eram alvo imediato do aumento da repressão. Alguns (até hoje o número é desconhecido) foram executados. Stajner se lembra de que, no segundo dia da guerra, a comida foi racionada: "o açúcar foi banido, e mesmo a ração de sabão caiu pela metade". No terceiro dia da guerra, todos os detentos estrangeiros foram reunidos. Stajner, um cidadão austríaco (embora ele se considerasse um comunista iugoslavo), foi detido novamente, retirado do campo e colocado numa cadeia. Os promotores do campo reabriram seu caso.

O mesmo padrão se repetiu em todos os campos. Em Ustvymlag, no primeiro dia de guerra o comandante do campo proibiu as cartas, as encomendas, os jornais, e retirou as caixas acústicas do rádio.[3] Os chefes de Kolyma tiraram dos prisioneiros políticos o direito de ler cartas e jornais e também cortaram o acesso aos rádios. Em todos os cantos, as revistas aumentaram, a contagem da manhã ficou mais longa. Os comandantes dos lagpunkts organizaram um alojamento de segurança máxima para os prisioneiros de origem alemã. "Todos os Burgs, Bergs e Steins, um passo para a esquerda. Todos os Hindenbergs e Ditgensteins e assim por diante", os guardas gritavam, indicando que Evgeniya Ginsburg deveria se juntar a eles. Ela conseguiu correr para o escritório de Registro e Triagem e persuadiu o inspetor a examinar sua nacionalidade: "Essa deve ter sido a primeira vez na história em que ser judeu era uma vantagem".[4]

A administração de Karlag removeu todos os prisioneiros de origem finlandesa e germânica da marcenaria do campo e os mandou cortar madeira. Um prisioneiro fino-americano se lembra de que "depois de cinco dias, a marcenaria interrompeu a produção porque os finlandeses e os alemães eram os únicos que sabiam fazer o trabalho [...] Sem a autorização de Moscou, eles nos levaram de volta à marcenaria".[5]

A mudança mais dramática foi o decreto - baixado também a 22 de junho de 1941 - que proibia todos os prisioneiros condenados por "traição à pátria, espionagem, terrorismo, trotskismo, tendências direitistas e banditismo" (em outras palavras, presos políticos) de deixar os campos. Os detentos chamavam esse decreto de "extratermo", embora se tratasse de fato de uma ordem administrativa, não uma nova sentença. Segundo os registros oficiais, 17 mil prisioneiros foram afetados de imediato. Outros seriam incluídos mais tarde.[6] Em geral, não havia notificação antecipada: no dia em que iam ser soltos, aqueles que se enquadravam nos termos   do decreto simplesmente recebiam um documento instruindo-os a permanecer nos limites do arame farpado "até a guerra terminar".[7] Para muitos, isso significava que ficariam na prisão para sempre. "Só então percebi a real extensão da tragédia que se abatera sobre minha vida", recordou-se um prisioneiro.[8]

A tragédia foi ainda pior para as mulheres com filhos. Uma prisioneira polonesa conta a história de uma mulher que havia sido obrigada a deixar o bebê num berçário fora do campo. Durante todos os dias em que esteve presa, ela não pensava em nada além de recuperar o filho. Então, quando chegou a hora de ser solta, ela soube que continuaria presa por causa da guerra: "Ela jogou o trabalho para o lado, inclinou-se sobre a mesa e começou a urrar como um animal selvagem".[9]

Olga Adamova-Sliozberg também conta a história de uma mulher, Nadya Fyodorovich, que devia ser libertada a 25 de junho de 1941. O filho, que na época vivia com parentes distantes que queriam livrar-se dele, esperava pela mãe. Ela lhe escrevera, pedindo que tivesse paciência. Quando soube que não seria libertada, escreveu-lhe de novo. Ele não respondeu:

Afinal, no inverno de 1942, ela recebeu uma carta de um estranho. Ele havia encontrado Borya em alguma estação remota da Sibéria, perto de Irkutsk, e descoberto que o garoto estava com pneumonia. O estranho cuidara de Borya até ele melhorar e agora reprovava Nadya por ter se esquecido do filho assim que fora solta; era uma péssima mãe; provavelmente, tinha se casado e estava indo muito bem enquanto o filho de catorze anos, viajando de carona num trem de Ryazan a Irkutsk, morria de fome.

Nadya tentou entrar em contato com o estranho, mas não conseguiu: os censores não enviavam mais as cartas dos prisioneiros, especialmente as que se referiam à extensão indefinida das penas. Mais tarde, Nadya soube que o filho havia se juntado a uma gangue. Em 1947, condenado a cinco anos de prisão, ele também acabou em Kolyma.[10]

Para todos os que permaneceram atrás do arame farpado, a vida tornou-se mais dura à medida que a guerra avançava. Novas leis determinavam uma jornada de trabalho maior. Agora, recusar-se a trabalhar não era apenas ilegal, mas um ato de traição. Em janeiro de 1941,Vasily Chernyshev, comandante da administração central do Gulag, enviou uma carta aos chefes de todos os campos e colônias descrevendo o destino de 26 prisioneiros. O sistema de justiça do campo julgara-os, considerou-os culpados por se recusarem a trabalhar e dera a cinco deles uma pena adicional de dez anos no campo. Os outros 21 foram condenados à morte. Lacônico, Chernyshew disse aos subalternos para "informar os prisioneiros de todos os campos e das colônias de trabalho corretivo" sobre essas sentenças.[11]

A mensagem se espalhou rapidamente. Todos os prisioneiros, escreveu Gustav Herling, sabiam muito bem que "espalhar o derrotismo e recusar-se a trabalhar estavam entre os mais graves delitos que se podia cometer nos campos depois de 22 de junho de 1941; nos novos regulamentos de segurança, eles estavam incluídos na categoria 'sabotagem contra o esforço de guerra'".[12]

O resultado de todas essas políticas, aliadas à grande escassez de comida, foi dramático. Embora as execuções em massa não fossem tão comuns quanto haviam sido em 1937 e 1938, a taxa de mortalidade entre os detentos em 1942 e 1943 foram as mais altas de toda a história do Gulag. Segundo as estatísticas oficiais, certamente subestimadas, 352.560 prisioneiros morreram em 1942, ou seja, um quarto deles. Um quinto morreu em 1943, ou seja, 267.826.[13] Oficialmente, 22% dos detentos estavam doentes em 1943 e 18% em 1944, mas o número devia ser muito maior, pois o tifo, a disenteria e outras epidemias varriam os campos.[14]

Em janeiro de 1943, a situação chegara a tal ponto que o governo soviético criou um "fundo" especial de alimentos para o Gulag: os prisioneiros podiam ser "inimigos", mas eram necessários para manter a produção em tempo de guerra. A situação da comida realmente melhorou à medida que a maré da guerra se tornava favorável à União Soviética, mas, mesmo com as rações extras ao final da guerra os presos recebiam apenas dois terços das calorias que consumiam no final da década de 1930.[15] No total, bem mais de 2 milhões de pessoas morreram nos campos e nas colônias do Gulag nos anos de guerra, sem contar aqueles que morreram no degredo ou sob outras formas de encarceramento. Mais de 10 mil foram executados, por traição ou sabotagem, a mando dos promotores dos campos.[16]

Para colocar esses dados e essas mudanças em contexto, é preciso dizer que a população livre da União Soviética também sofreu durante a guerra e que os regimes de trabalho mais rígidos afetaram os operários dentro e fora dos campos. Já em 1940, na esteira da invasão da Polônia e dos países bálticos, o Soviete Supremo estabeleceu uma jornada de trabalho de oito horas diárias, inclusive nos finais de semana, em todas as fábricas e instituições. E o governo foi ainda mais drástico, pois proibiu os trabalhadores de deixar o local de trabalho. Quem desobedecesse era passível de ser punido com uma pena nos campos. A produção de bens de "baixa qualidade" ("sabotagem") também se tornou crime, e as penas para os outros delitos ficaram mais duras. Operários acusados de surrupiar peças sobressalentes, ferramentas, papel ou material de escrita do local de trabalho eram condenados a passar um ano em um campo - ou mais.[17]

Fora dos campos, as pessoas passavam fome tanto quanto os prisioneiros. Durante o bloqueio alemão a Leningrado, a ração de pão caiu para 120 gramas por dia, o que era insuficiente para alguém se manter vivo, e não havia óleo para o aquecimento, o que transformou o inverno no extremo norte em um tormento. A população caçava pássaros e ratos, roubava comida das crianças moribundas, comia cadáveres e cometia assassinatos para ficar com os cartões de racionamento. "Em casa as pessoas lutavam pela vida como exploradores polares à beira da morte", recorda um sobrevivente.[18]

Leningrado não era a única cidade a passar fome. Relatórios da NKVD escritos em abril de 1945 atestam a escassez de víveres e a fome coletiva na Ásia central - Uzbequistão, Mongólia e República Tártara. As famílias que haviam perdido seu arrimo para as frentes de batalha eram as que mais sofriam. A fome também atingiu a Ucrânia: em 1947, casos de canibalismo ainda era registrados.[19] Ao todo, a União Soviética alega ter perdido 20 milhões de cidadãos durante a guerra. Entre 1941 e 1945, o Gulag não foi a única fonte de sepulturas coletivas do país.

Além do aumento do controle e das regras mais rígidas, a declaração de guerra trouxe também o caos. A invasão alemã prosseguia com uma rapidez chocante. Nas primeiras quatro semanas da Operação Barba Ruiva, quase todas as 319 unidades soviéticas destacadas para a batalha foram destruídas.[20] No outono, as forças nazistas haviam ocupado Kiev e cercado Leningrado, e pareciam estar na iminência de capturar Moscou.

       Os postos avançados do Gulag a oeste foram dominados nos primeiros dias da guerra. Em 1939, a direção havia fechado os acampamentos remanescentes nas ilhas Solovetsky e transferido todos os detentos para prisões do continente: achava que o campo ficava próximo demais da fronteira com a Finlândia.[21] (Durante a evacuação e a subseqüente ocupação da Finlândia, o arquivo do campo desapareceu. Provavelmente, ele foi destruído, seguindo os procedimentos-padrão, mas há rumores, nunca confirmados, de que os papéis foram roubados pelo exército finlandês e ainda estão guardados num cofre ultra-secreto do governo em Helsinki.)[22] A direção também instruiu Belbaltlag, o campo que cuidava do canal do mar Branco, a evacuar os detentos em julho de 1941, mas para deixar os cavalos e o gado para o Exército Vermelho. Não se sabe se os soldados soviéticos puseram as mãos neles antes da chegada dos alemães.[23]                                                              

Nas demais localidades, a NKVD simplesmente entrou em pânico, e muito mais ainda nos territórios recém-ocupados do leste da Polônia e dos países bálticos, onde as prisões estavam lotadas de prisioneiros políticos. A NKVD não tinha tempo para evacuá-los, mas também não podia deixar "terroristas anti-soviéticos" nas mãos dos alemães. Em 22 de junho, dia da invasão alemã, a NKVD começou a executar os prisioneiros de Lwów, a cidade polaco-ucraniana próxima à frente germano-soviética. No entanto, durante a operação, um levante ucraniano engolfou a cidade, obrigando a NKVD a abandonar as prisões de uma hora para outra. Encorajados pela súbita ausência de guardas e pelo som de fogo de artilharia, um grupo de detentos da prisão de Brygidka, no centro de Lwów, fugiu. Outros se recusaram a partir, temerosos de que os guardas estivessem a postos do lado de fora dos portões, esperando uma desculpa para matá-los.

Os que decidiram ficar pagaram pelo erro. A 25 de junho, a NKVD, com o reforço dos guardas de fronteira, voltou a Brygidka, libertou os criminosos... e metralhou os prisioneiros políticos nas celas subterrâneas. Os carros e os caminhões que transitavam acima abafaram o ruído das metralhadoras. Os presos das outras cadeias da cidade tiveram destino semelhante. A NKVD matou um total de 4 mil prisioneiros em Lwów, largando-os em sepulturas coletivas que mal teve tempo de cobrir com uma camada fina de areia.[24]

Atrocidades semelhantes aconteceram em todas as regiões de fronteira. Na esteira da retirada soviética, a NKVD deixou para trás cerca de 21 mil prisioneiros e libertou outros 7 mil. Num surto final de violência, porém, tropas da NKVD em retirada e soldados do Exército Vermelho assassinaram quase 10 mil presos em dezenas de cidades e aldeias polonesas e bálticas - Vilna, Drohobycz, Pinsk.[25] Eles foram mortos nas celas, nos pátios das prisões, nas florestas próximas. Enquanto se retiravam, as tropas da NKVD também incendiavam edifícios e atiravam em civis, muitas vezes matando os donos das casas em que estiveram alojadas.[26]

Longe da fronteira, onde havia mais tempo para os preparativos, o Gulag tentou organizar adequadamente a evacuação dos prisioneiros. Três anos depois, em,seu longo e pomposo resumo sobre o esforço de guerra do Gulag, seu chefe na época, Viktor Nasedkin, descreveu essas evacuações como "ordeiras". Os planos haviam sido "elaborados em conjunto com a relocação da indústria", ele declarou, embora "devido às bem conhecidas dificuldades de traslado, alguns prisioneiros tenham sido evacuados a pé".[27]

Na verdade, não houve planejamento, e as evacuações foram conduzidas em meio ao pânico, com freqüência enquanto as bombas alemãs caíam por perto. As "bem conhecidas dificuldades de traslado" significavam que as pessoas morriam sufocadas nos vagões superlotados dos trens ou que estes eram destruídos pelas bombas antes de chegar a seu destino. Um detento polonês, Janusz Puchinski, preso e deportado a 19 de junho, escapou de um trem em chamas cheio de prisioneiros, junto com a mãe e os irmãos:

A certa altura, houve uma explosão forte e o trem parou. As pessoas começaram a escapar dos vagões [...] vi que o trem estava numa ravina profunda. Pensei que jamais sairia de lá. Os aviões passavam acima da minha cabeça, minhas pernas pareciam feitas de algodão. Não sei como, pulei para fora e comecei a correr na direção das árvores, a cerca de 200 ou 250 metros dos trilhos. Quando cheguei, virei-me e vi que atrás de mim, no espaço aberto, havia uma multidão de pessoas. Nesse momento, um novo grupo de aviões chegou e começou a atirar [...] [28]

As bombas também atingiram um trem que transportava os detentos da prisão de Kolomyja, matando alguns, mas permitindo a fuga de trezentos. Os guardas do comboio recapturaram 150, mas depois os soltaram. Conforme explicaram, não tinham como alimentar os prisioneiros nem onde deixá-los. Todas as prisões da área haviam sido evacuadas.[29]

Entretanto, a experiência de estar num trem de prisioneiros durante um ataque aéreo era um tanto incomum - no mínimo porque estes raramente eram incluídos nos trens de evacuação. A família e a bagagem dos guardas e administradores não deixavam lugar para mais ninguém nos trens que partiam dos campos.[30] Nos outros locais, o equipamento industrial tinha prioridade sobre as pessoas, tanto por questões práticas quanto por motivos publicitários. Esmagada a oeste a liderança soviética prometeu reedificar-se a leste dos Urais.[31] Como resultado, a "proporção significativa" de prisioneiros - na verdade, a esmagadora maioria - que, segundo Nasedkin, eram "evacuados a pé", suportou longas marchas forçadas, cuja descrição guarda uma semelhança assustadora com as marchas empreendidas pelos prisioneiros dos campos de concentração nazistas quatro anos depois: "Não temos transporte", um guarda disse a um grupo de prisioneiros enquanto as bombas caíam ao redor. "Quem puder andar, que ande. Gostem ou não, todos vão andar. Quem não puder andar será morto. Não deixaremos ninguém para os alemães [...] escolham seu destino".[32]

E então eles andaram - embora a jornada de vários tenha sido abreviada. O rápido avanço dos alemães deixava a NKVD nervosa, e quando estavam nervosos, eles atiravam. A 2 de julho, 954 prisioneiros da prisão de Czortków, na Ucrânia ocidental, começaram a marchar para o leste. Ao longo do caminho, o oficial que escreveu o relatório subseqüente identificou 123 deles como ucranianos nacionalistas e os executou por "tentativa de rebelião e fuga". Depois de caminhar por mais de duas semanas, com o exército alemão a menos de 20 ou 30 quilômetros, ele matou todos os que ainda estavam vivos.[33]

Muitas vezes, a situação dos que não eram assassinados era pouca coisa melhor. Nasedkin escreveu que "o aparato do Gulag nas regiões de conflito foi mobilizado para garantir que os prisioneiros evacuados tivessem assistência médico-sanitária e comida".[34] Esta é a descrição que M. Shteinberg, uma prisioneira política encarcerada pela segunda vez em 1941, fez da sua evacuação da prisão de Kirovograd:

Tudo estava envolvido pela luz cegante do sol. Ao meio dia, ficou insuportável. Estávamos na Ucrânia, no mês de agosto. Fazia 35 graus todos os dias. Uma imensa quantidade de pessoas caminhava, e sobre essa multidão pairava uma nuvem de poeira. Não havia como respirar, era impossível respirar [...]

Todos tinham uma trouxa nas mãos. Eu também. Tinha levado ate um casaco, pois era difícil sobreviver à prisão sem um casaco. Ele serve de travesseiro, de cobertor, de disfarce - tudo. Na maioria das prisões, não há camas, nem colchões, nem lençóis. Mas depois de termos percorrido 30 quilômetros naquela calor, deixei tranqüilamente minha trouxa na beira da estrada. Sabia que não conseguiria carregá-la. A grande maioria das mulheres fez o mesmo. Quem não largou a trouxa depois dos primeiros 30 quilômetros largou depois dos 200. Ninguém chegou ao final com ela. Depois de mais 15 quilômetros, tirei os sapatos e abandonei-os também [...]

Quando passamos por Adzhambka, arrastei minha companheira de cela, Sokolovskaya, por 30 quilômetros. Ela era uma mulher velha, tinha mais de setenta anos, cabelos totalmente grisalhos [...] para ela, era muito difícil caminhar. Ela se agarrou a mim e ficou falando sobre o neto de quinze anos, com quem vivia. O terror final na vida de Sokolovskaya era o de que ele fosse preso também. Era difícil arrastá-la, e comecei a vacilar. Ela me disse "descanse um pouco, vou sozinha". Em pouco tempo, ficou mais de um quilômetro para trás. Éramos as últimas do comboio. Quando senti que ela havia ficado para trás, me virei para alcançá-la - e então vi quando eles a mataram. Esfaquearam-na com uma baioneta. Pelas costas. Ela nem viu. Obviamente, eles sabiam como esfaquear. Ela nem se mexeu. Mais tarde, percebi que sua morte fora fácil, mais fácil que a dos outros. Ela não viu a baioneta. Não teve tempo de sentir medo [...]. [35]

Ao todo, a NKVD evacuou 750 mil prisioneiros de 27 campos e 210 colônias de trabalho forçado.[36] Outros 140 mil foram evacuados de 272 prisões e enviados a novas cadeias no leste.[37] Uma porcentagem significativa, embora ainda não se saiba o número real, jamais chegou a seu destino.

 

  1. "Estranhos"

 

Salgueiros são salgueiros em todo lugar

Salgueiro de Alma-Ata, que belo és vestido de branco gelado e brilhante.

Mas se eu te esquecer, meu salgueiro seco de Varsóvia, Rua Rozbat.

Minha pena secará também

Montanhas são montanhas em todo lugar

Diante de meus olhos, o Tian Shan mergulha no céu púrpura [...]

Mas se eu vos esquecer, picos do Tatra que deixei para trás,

Riacho Bialy, onde eu e meu filho vivemos sonhos vividos de viagens pelo mar [...]

Uma rocha do Tian Shan me tornarei.

Se eu te esquecer

Se eu esquecer minha terra natal[...]

Aleksander Wat, "Salgueiros de Alma-Ata", janeiro de 1942.[38]

 

Desde o início, os campos do Gulag sempre tiveram uma quantidade notável de prisioneiros estrangeiros. Em sua maior parte, eram comunistas do Ocidente e membros do Comintern, embora também houvesse um punhado de mulheres britânicas e francesas, esposas de cidadãos soviéticos, além dos peculiares homens de negócio expatriados. Eles eram tratados como raridades, curiosidades, mas ainda assim sua origem comunista e sua experiência anterior na União Soviética os ajudava a se entrosarem com os outros detentos. Conforme escreveu Lev Razgon:

Eles eram "nossos" porque eles tinham ou nascido ou crescido no pais, ou ainda porque haviam vindo para cá de livre e espontânea vontade. Mesmo quando falavam russo muito mal, eram nossos. E, no caldeirão de raças dos campos, eles logo deixaram de se destacar ou de parecer diferentes. Os que sobreviveram ao primeiro e ao segundo anos no campo só podiam ser diferenciados de "nós" pelo russo mal falado.[39]

Já os estrangeiros que surgiram depois de 1939 eram bem diferentes. Sem aviso prévio, depois da invasão soviética do leste da Polônia, uma região multiétnica, da Bessarábia e dos países bálticos, a NKVD arrancou esses recém-chegados - poloneses, bálticos, ucranianos bielo-russos e moldávios - de seu mundo agrícola ou burguês e jogou, em grande número, no Gulag e nas aldeias de degredo. Comparando-os com "nossos" estrangeiros, Razgon chamou-os de "estranhos". Tendo sido "arrancados de seu próprio país por uma força histórica alienígena e hostil que não compreendiam", eles eram instantaneamente identificáveis por seus bens: "Em Ustvymlag, sempre éramos alertados de sua chegada pelo surgimento de peças de roupa exóticas entre os detentos criminosos: o chapéu alto e felpudo e as faixas coloridas da Moldávia, e, de Bukovina, os coletes bordados elegantes e justos, com ombreiras".[40]

As prisões tiveram início nos territórios ocupados logo depois da invasão soviética do leste da Polônia, em setembro de 1939, e continuaram depois das invasões da Romênia e dos países bálticos. Os objetivos da NKVD eram a segurança (ela queria evitar as rebeliões e a formação de quinta-colunas) e a sovietização, por isso o alvo eram as pessoas que, em sua opinião, podiam se opor ao regime soviético. Isso incluía não apenas os integrantes do antigo governo polonês, mas também comerciantes e mercadores, poetas e escritores, camponeses e fazendeiros ricos - todos cuja prisão provavelmente contribuísse para o colapso psicológico dos habitantes do leste da Polônia.[41] Eles também tinham como alvo os refugiados do oeste do país, ocupado pela Alemanha, entre os quais havia milhares de judeus fugindo de Hitler.

Posteriormente, o critério para as prisões tornou-se mais preciso, ou, pelo menos, tão preciso quanto sempre foram os critérios para as prisões na União Soviética. Um documento de maio de 1941 relativo à expulsão dos elementos "socialmente estranhos" dos países bálticos, da Romênia ocupada e da Polônia ocupada exigia, entre outras coisas, a prisão dos "membros ativos das organizações contra-revolucionárias" - ou seja, os partidos políticos; antigos integrantes da polícia ou dos presídios; capitalistas e burgueses importantes, ex-oficiais das forças armadas; familiares de todos os mencionados acima; qualquer repatriado da Alemanha; refugiados da "antiga Polônia"; assim como ladrões e prostitutas.[42]

Outro lote de instruções, anunciado em novembro de 1940 pelo comissário da recém-sovietizada Lituânia, afirmava que os deportados deveriam incluir, além das categorias acima,

os que viajam ao exterior com freqüência, os que se correspondem com o exterior ou se comunicam com representantes de outros países; esperantistas, filatelistas; os que trabalham com a Cruz Vermelha-refugiados, contrabandistas; os que foram expulsos do Partido Comunista; padres e membros ativos de congregações religiosas; nobres, proprietários de terras, comerciantes ricos, banqueiros, industriais e donos de hotéis e restaurantes.[43]

Quem violasse as leis soviéticas, inclusive as que proibiam a "especulação" - qualquer forma de comércio -, poderia ser preso. Assim como poderiam ser presos os que tentassem atravessar a fronteira e fugir para a Hungria ou a Romênia.

Devido à escala das prisões, os líderes da ocupação soviética tiveram de suspender rapidamente até mesmo o disfarce de legalidade. Poucas pessoas capturadas pela NKVD nos novos territórios a oeste foram levadas a julgamento, encarceradas ou condenadas. Em vez disso, mais uma vez a guerra promoveu um renascimento da "deportação administrativa", o mesmo procedimento que, instigado pelos czares, tinha sido usado contra os kulaks. "Deportação administrativa" é um nome bonito para um procedimento simples. As tropas da NKVD ou os guardas dos comboios chegavam a uma residência e mandavam os moradores sair. Às vezes eles tinham um dia para se preparar, às vezes alguns minutos. Então chegavam os caminhões que os levavam à estação de trem e adeus. Não havia prisão, nem julgamento, nenhum procedimento formal.

Os números em questão eram muito grandes. O historiador Aleksandr Gurjanow estima que 108 mil pessoas tenham sido presas no leste da Polônia e enviadas aos campos do Gulag, enquanto 320 mil teriam sido deportadas para aldeias de degredo - algumas fundadas pelos kulaks - no extremo norte do Casaquistão.[44] E preciso acrescentar também os 96 mil prisioneiros e os 160 mil deportados dos países bálticos, assim como os 36 mil moldávios.[45] O efeito combinado das deportações e da guerra sobre a demografia dos países bálticos é chocante: entre 1939 e 1945, a população da Estônia diminuiu 25%.[46]

A história dessas deportações, como a história das deportações dos kulaks, é diferente da história do Gulag, e, corno eu disse, a saga completa dessa movimentação indiscriminada de famílias não cabe no contexto deste livro, embora ela não seja um fato totalmente isolado. É difícil entender por que a NKVD decidia deportar determinada pessoa para uma aldeia de degredo e prender outra num campo, já que os antecendentes de prisioneiros e deportados eram os mesmos. Às vezes, quando um homem era mandado para um campo, a mulher e os filhos eram deportados. Ou, se um filho era preso, então os pais eram deportados. Alguns presos cumpriam a pena no campo e depois passavam a morar nas aldeias de degredo, às vezes com os familiares anteriormente deportados.

À parte a função punitiva, as deportações se encaixavam perfeitamente no grande plano de Stalin de povoar a região norte da Rússia. Como o Gulag, as aldeias de degredo estavam deliberadamente situadas em áreas remotas, e pareciam ser permanentes. Certamente, os oficiais da NKVD disseram a muitos degredados que eles jamais voltariam, chegando até a congratular os "novos cidadãos", enquanto eles embarcavam nos trens, pela emigração definitiva para a União Soviética.[47] Nas aldeias de degredo, os comandantes costumavam lembrar os recém-chegados de que a Polônia, então dividida entre a União Soviética e a Alemanha, jamais voltaria a existir. Um professor russo disse a uma estudante polonesa que o renascimento da Polônia era tão provável quanto "o nascimento de pêlos em suas mãos".[48] Enquanto isso, nas cidades e nas aldeias que eles haviam deixado para trás, os oficiais soviéticos confiscavam e redistribuíam seus bens. Transformaram suas casas em edifícios públicos - escolas, hospitais, maternidades - e deram seu conteúdo (aquilo que não fora roubado pelos vizinhos ou pela NKVD) a creches e abrigos para crianças.[49]

Os deportados sofriam tanto quanto os conterrâneos que tinham sido enviados aos campos de trabalho, se é que não sofriam mais. Pelo menos os prisioneiros tinham uma ração diária de pão e um lugar para dormir. Com freqüência, os degredados não tinham nem uma coisa nem outra. As autoridades despejavam-nos na floresta virgem ou em aldeias minúsculas, no norte da Rússia, no Casaquistão, na Ásia central, e os deixavam lutar pela vida, muitas vezes sem ter como. Na primeira onda de deportações, os guardas dos comboios proibiram as pessoas de levar com elas o que quer que fosse, nem utensílios de cozinha, nem roupas, nem ferramentas. Somente em novembro de 1940 o corpo administrativo dos guardas de comboio soviéticos reverteu essa decisão: até as autoridades soviéticas perceberam que a falta de pertences dos deportados aumentava a taxa de mortalidade e ordenaram que os guardas avisassem aos deportados que levassem roupas quentes para três anos.[50]

Ainda assim, muitos deportados não estavam preparados física e psicologicamente para a vida de forasteiro ou nas fazendas coletivas.

A própria paisagem parecia alienígena e aterrorizante. Uma mulher descreveu-a em um diário assim que a avistou do trem: "Somos levados por este espaço sem fim; uma terra enorme e plana, com alguns povoados aqui e ali. Invariavelmente, vemos cabanas de terra esquálidas com teto de sapê e janelas pequenas, sujas e dilapidadas, sem cercas nem árvores..."[51]

Quando chegavam, a situação costumava piorar. Muitos degredados eram advogados, médicos, lojistas e comerciantes, acostumados a viver em cidades relativamente sofisticadas. Mas, segundo um relatório arquivado com data de dezembro de 1941, os degredados dos "novos" territórios ocidentais viviam em alojamentos superlotados: "As instalações são sujas, por isso a incidência de doenças e mortes é alta, especialmente entre as crianças [...] a maioria dos degredados não tem roupas quentes e não está habituada ao frio".[52]

Nos meses e anos que se seguiram, o sofrimento apenas aumentou, como um lote de documentos incomuns registra. Depois da guerra, o governo polonês no exílio patrocinou e preservou uma compilação de "memórias" das crianças sobre as deportações. Elas ilustram, melhor do que qualquer adulto, tanto o choque cultural quanto as privações físicas experimentados pelos deportados. Um garoto polonês de treze anos na época da "prisão" escreveu o seguinte relato:

Não tinha nada para comer. As pessoas comiam urtiga, inchavam e iam embora para o outro mundo. Obrigavam a gente a ir para a escola russa porque não nos davam pão se não fôssemos. Lá ensinavam a não rezar para Deus porque Deus não existe, e quando a gente começava a rezar, depois da aula, o comandante do povoado me trancava na tyurma [prisão].[53]

As histórias de outras crianças refletem o trauma dos pais. "Mamãe queria tirar a própria vida e a nossa para não viver naquele tormento, mas quando eu disse que queria ver papai e voltar para a Polônia, o ânimo dela melhorou", escreveu um menino que tinha oito anos quando foi preso.[54] Mas nem todas as mulheres conseguiram se animar. Uma criança que tinha catorze anos na época da deportação descreveu a tentativa de suicídio da mãe:

Mamãe foi ao alojamento, pegou uma corda e um pedaço de pão e foi para a floresta. Eu segurei mamãe, mas ela estava triste e me bateu com a corda e foi embora. Algumas horas depois encontraram mamãe numa árvore, com uma corda em volta do pescoço. Tinha umas moças embaixo da árvore, mamãe pensou que eram minhas irmãs e quis dizer alguma coisa mas as moças gritaram com o comandante que tinha levado um machado no cinto e cortou a árvore [...] Ainda brava, mamãe agarrou o machado e acertou o comandante nas costas, e ele caiu no chão [...]

No dia seguinte levaram mamãe para uma cadeia a 350 quilômetros daqui. Entendi que eu tinha de trabalhar e continuei a carregar a madeira. Eu tinha um cavalo que estava fraco como eu. Carreguei madeira durante um mês e então fiquei doente e não pude trabalhar. O comandante notificou o vendedor de que não devia nos dar pão, mas o vendedor compreendia as crianças e nos dava pão escondido [...] logo que mamãe veio da cadeia os pés dela congelaram e o rosto se enrugou [...].[55]

Tampouco todas as mães sobreviveram - conforme escreveu outra criança:

Chegamos ao povoado e, no segundo dia, eles nos mandaram para o trabalho, que a gente tinha de trabalhar de madrugada até a noite. Quando o dia do pagamento de quinze dias chegou 10 rublos foi o pagamento máximo de modo que em dois dias não havia o suficiente para o pão. As pessoas morriam de fome. Elas comiam cavalos mortos. Foi assim que minha mãe trabalhou e pegou um resfriado porque ela não tinha roupa quente ela pegou pneumonia e ficou doente cinco meses ela ficou doente dia 3 de dezembro. No dia 3 de abril ela foi para o hospital. No hospital eles não cuidaram dela se ela não tivesse ido para o hospital talvez ainda estivesse viva ela voltou para o alojamento do povoado e morreu não tinha nada pra comer então ela morreu de fome no dia 30 de abril de 1941. Minha mãe estava morrendo e eu e minha irmã estávamos em casa. Papai não estava ele estava no trabalho e minha mãe morreu quando papai voltou pra casa do trabalho então mamãe morreu e então minha mãe morreu de fome. Então veio a anistia e fomos embora daquele inferno.[56]

Comentando essa compilação de histórias, incomuns pela natureza e pela quantidade, Bruno Bettelheim tentou descrever o desespero especial que elas transmitem:

Como foram escritas logo depois de as crianças terem sido libertadas e estarem em segurança, teria sido razoável que elas falassem de sua esperança na libertação, se tivessem alguma. A ausência de afirmações nesse sentido sugere que elas não tinham. Roubaram dessas crianças o direito de expressar sentimentos profundos e normais. Para sobreviver por mais um dia, tiveram de reprimi-los. Um criança privada de ter qualquer esperança no futuro é uma criança que habita o inferno [...].[57]

Igualmente cruel foi o destino de outro grupo de degredados, que se juntariam aos poloneses e aos bálticos ao longo da guerra. Tratava-se das minorias soviéticas. No início da guerra, Stalin as tratava como possível quinta-coluna; no fim, apontava-as como "colaboradoras" dos alemães. Os "quinta-colunistas" eram os alemães do Volga, cujos ancestrais haviam sido convidados a viver na Rússia no tempo de Catarina, a Grande (outra governante russa profundamente preocupada em povoar as grandes áreas vazias do país), e a minoria de fala finlandesa que tinha morado na República Careliana. Embora nem todos os alemães do Volga falassem alemão e nem todos os finlandeses da Carélià falassem finlandês, eles realmente viviam em comunidades distintas e tinham costumes diferentes dos vizinhos russos. No contexto da guerra contra a Finlândia e a Alemanha, isso era suficiente para torná-los objeto de suspeita. Num raciocínio tortuoso até mesmo para os padrões soviéticos, todos os alemães do Volga foram condenados, em setembro de 1941, como "inimigos ocultos":

Segundo informação fidedigna recebida pelas autoridades militares, há entre a população germânica que vive na área do Volga dezenas de milhares de diversionistas e espiões que, a um sinal da Alemanha, vão realizar sabotagens na área [No entanto] nenhum dos alemães do Volga relatou às autoridades soviéticas a existência desse grande número de diversionistas e espiões; conseqüentemente, a população germânica da área do Volga esconde inimigos do povo soviético e das autoridades soviéticas.[58]

As autoridades soviéticas tinham "informações fidedignas" de que havia milhares de espiões, mas nenhum espião havia sido denunciado. Logo, todos eram culpados de esconder o inimigo.

Entre os "colaboradores" estavam várias pequenos povos caucasianos - os caracenos, os baleares, os calmuques, os tchetchenos e os inguches -, além dos tártaros da Criméia e de outros grupos minoritários: turcos mesquetes, curdos e khemshils, além de grupos ainda menores de gregos, búlgaros e armênios.[59] Entre eles, apenas a deportação dos tártaros e dos tchetchenos tornou-se pública durante a vida de Stalin. Seu degredo, embora tenha acontecido de fato em 1944, foi anunciado no jornal Izvestiya como se tivesse acontecido em junho de 1946:

Durante a Grande Guerra Patriótica, quando os povos da União Soviética defendiam heroicamente a honra e a independência da pátria na luta contra os invasores germano-fascistas, muitos tchetchenos e tártaros da Criméia, instigados por agentes alemães, juntaram-se voluntariamente a unidades organizadas pelos alemães [...] Por causa disso, os tchetchenos e os tártaros da Criméia foram assentados em outras regiões da URSS.[60]

Na verdade, não há provas de colaboração maciça dos tchetchenos ou dos tártaros, embora os alemães os recrutassem ativamente e não recrutassem russos. As forças alemãs pararam a oeste de Grosni, capital da Tchetchênia, e não mais que poucos tchetchenos cruzaram o front.[61] Um relatório da NKVD menciona apenas 335 "bandidos" na república.[62] Do mesmo modo, embora os alemães tenham de fato ocupado a Criméia, cooptado e alistado tártaros - como alistaram franceses e holandeses -, não há provas de que eles tenham colaborado mais ou menos que os povos de outras regiões ocupadas da União Soviética (ou da Europa) ou de que tenham participado do assassinato de judeus da Criméia. Um historiador ressaltou que, de fato, mais tártaros lutaram ao lado do Exército Vermelho contra os nazistas do que o contrário.[63]

Provavelmente, o objetivo de Stalin, ao menos no episódio das deportações dos caucasianos e dos tártaros, não era vingar-se pelo colaboracionismo. Ele parece ter usado a guerra como um meio de encobrir e levar adiante operações de limpeza étnicas havia muito planejadas. Os czares sonhavam com uma Criméia livre dos tártaros desde quando Catarina, a Grande incorporara a península ao império russo. Os tchetchenos também incomodavam os czares russos e causavam ainda mais problemas para a União Soviética. A Tchetchênia foi palco de uma série de levantes anti-russos e anti-soviéticos, alguns depois da revolução, outros após a coletivização de 1929. Outra rebelião aconteceu em 1940. Todos os indícios apontam para o fato de Stalin simplesmente querer se livrar desse povo incômodo, profundamente anti-soviético.[64]

Como acontecera na Polônia, as deportações dos alemães do Volga, dos caucasianos e dos tártaros da Criméia envolveram grandes números. No final da guerra, havia 1,2 milhão de alemães soviéticos deportados, 90 mil calmuques, 70 mil caracenos, 390 mil tchetchenos 90 mil inguches, 40 mil baleares e 180 mil tártaros, além de 9 mil finlandeses e outros.[65]

Tendo em vista esses números, a velocidade das deportações foi notável, pois superou até a rapidez com que poloneses e bálticos foram expulsos. Talvez isso tenha acontecido porque a NKVD já tivesse bastante experiência: nessa altura, não havia indecisão quanto a quem poderia levar o quê, quem deveria ser preso ou que providências deveriam ser tomadas. Em maio de 1944, 31 mil funcionários da NKVD, entre oficiais, soldados e ajudantes, deportaram 200 mil tártaros em três dias, usando cem jipes, 250 caminhões e 67 trens. Uma ordem especial, preparada de antemão, limitava a quantidade de bagagem que cada família poderia levar. Porém, como eles dispunham de apenas quinze ou vinte minutos para fazer as malas, muitos não levavam sequer metade do permitido. A grande maioria dos tártaros foi colocada em trens e despachada para o Uzbequistão - homens, mulheres, crianças e velhos. Entre 6 mil e 8 mil morreram antes de chegar.[66]

Na Tchetchênia, a operação foi ainda mais cruel. Muitos observadores se lembram de que a NKVD utilizou Studebakers americanos recém-comprados pelo programa Lend-Lease e transportados pela fronteira com o Irã. E descrevem como os tchetchenos foram arrancados dos Studebakers e colocados em trens lacrados: não eram privados apenas de água, como os prisioneiros "comuns", mas também de alimento. Cerca de 78 mil tchetchenos podem ter morrido apenas nos trens de traslado.[67]

Na chegada aos locais designados para o degredo - Casaquistão, Ásia central e norte da Rússia -, os deportados que não haviam sido presos separadamente e enviados ao Gulag foram colocados em aldeias especiais, como as que os poloneses e os bálticos povoaram, e avisados de que qualquer tentativa de fuga resultaria numa pena de vinte anos nos campos. Sua experiência também foi parecida. Desorientados, arrancados de suas aldeias e tribos, muitos não conseguiram se adaptar. Geralmente desprezados pela população local, freqüentemente desempregados, logo se enfraqueceram e adoeceram. Talvez o choque diante do novo clima tenha sido maior: "Quando chegamos ao Casaquistão", recorda um tchetcheno deportado, "o solo estava congelado, e pensamos que todos íamos morrer".[68] Em 1949, centenas de milhares de caucasianos e entre metade e um terço dos tártaros estavam mortos.[69]

No entanto, do ponto de vista de Moscou, havia uma diferença importante entre as ondas de deportação e prisão da época de guerra e as que tinham acontecido antes: o alvo escolhido era novo. Pela primeira vez, Stalin decidira eliminar não apenas os integrantes de nacionalidades suspeitas específicas ou "inimigos" políticos, mas nações inteiras - homens, mulheres, crianças, velhos -, varrendo-as do mapa.

Talvez "genocídio" não seja a palavra certa para definir essas deportações, já que não houve execuções em massa. Anos depois, Stalin buscaria colaboradores e aliados entre esses grupos "inimigos", portanto seu ódio não era puramente racial. Entretanto, o termo "genocídio cultural" não é inadequado. Depois da partida, o nome de todas as pessoas deportadas foi retirado dos documentos oficiais - até mesmo da Grande Enciclopédia Soviética. As autoridades eliminaram sua terra natal do mapa, abolindo a República Autônoma dos Tchetchenos e Inguches, a República Autônoma dos Alemães do Volga, a República Autônoma dos Cabardinos e Baleares e a Província Autônoma dos Caracenos. A República Autônoma da Criméia também foi liquidada e simplesmente se tornou outra província soviética. As autoridades regionais destruíram cemitérios, renomearam cidades e aldeias e baniram os antigos habitantes dos livros de história.[70]

Em seus novos lares, todos os muçulmanos deportados - tchetchenos, inguches, baleares, caracenos e tártaros - foram forçados a enviar os filhos para escolas russas. Todos foram desencorajados de falar a própria língua, de praticar sua fé, de lembrar-se do passado. Sem sombra de dúvida, esperava-se que os tchetchenos, os tártaros, os alemães do Volga e as pequenas nações do Cáucaso - e, por um período mais longo, os bálticos e os poloneses - desaparecessem, que fossem absorvidos pelo mundo soviético de língua russa. No final, essas nações "reapareceram" depois da morte de Stalin, ainda que vagarosamente. Embora os tchetchenos tenham obtido permissão para voltar para casa em 1957, os tártaros não puderam fazer o mesmo até a era

Gorbatchev. Eles receberam a "cidadania" criméia - o direito legal de residência - apenas em 1994.

Devido ao clima da época, à crueldade da guerra e à presença, alguns quilômetros a oeste, de outro genocídio planejado, alguns se perguntaram por que Stalin simplesmente não matou as etnias que ele tanto desprezava. Meu palpite é que a destruição da cultura, e não dos povos, servia melhor a seus propósitos. A operação livrou a União Soviética do que ele considerava estruturas sociais "inimigas" - as instituições burguesas, religiosas e nacionais, as pessoas educadas que poderiam se opor a ele. Ao mesmo tempo, ela preservava mais "unidades de trabalho" para o futuro.

Mas a história dos estrangeiros nos campos não termina com os tchetchenos e os poloneses. Os forasteiros podiam acabar nos campos soviéticos de outras maneiras - e a maioria absoluta dava entrada como prisioneiro de guerra.

Tecnicamente, o Exército Vermelho estabeleceu o primeiro campo soviético para prisioneiros de guerra em 1939, após a ocupação do leste da Polônia. O primeiro decreto regulamentando esses campos foi baixado em 19 de setembro desse ano, quatro dias depois de os tanques soviéticos cruzarem a fronteira.[71] No fim de setembro, o Exército Vermelho mantinha presos 230 mil soldados e oficiais poloneses.[72] Muitos foram soltos, especialmente os soldados mais jovens, de patente mais baixa, embora alguns, tidos como guerrilheiros potenciais, tenham ido parar no Gulag ou em um dos cerca de cem campos para prisioneiros de guerra nas regiões mais recônditas do país. Após a invasão alemã, esses campos foram evacuados e seus detentos, enviados aos campos do leste.[73]

No entanto, nem todos os prisioneiros de guerra poloneses foram deslocados para os campos orientais. Em abril de 1940, a NKVD assassinou em segredo com um tiro na cabeça mais de 20 mil oficiais poloneses, obedecendo a uma ordem direta de Stalin.[74] Stalin matou os oficiais pela mesma razão pela qual ordenara a prisão de padres e professores poloneses (sua intenção era eliminar a elite do país), mas encobriu a matança. Apesar de se esforçar muito, o governo polonês no exílio não conseguiu descobrir o destino dos oficiais - até que os alemães os encontraram. Na primavera de 1943, o regime de ocupação alemã encontrou 4 mil corpos na floresta de Katyn.[75] Embora as autoridades soviéticas negassem a responsabilidade pelo massacre de Katyn, como ele passou a ser conhecido, e embora os aliados tenham apoiado essa versão (eles chegaram a citar o massacre como um crime dos alemães no Tribunal de Nuremberg), os poloneses sabiam, através de fontes próprias, que a NKVD era a responsável. O caso viria a minar a "aliança" polaco-soviética não apenas durante a guerra, mas nos cinqüenta anos seguintes. O presidente russo Boris Yeltsin admitiu a responsabilidade soviética no massacre apenas em 1991.[76]

Embora prisioneiros de guerra poloneses continuassem a apresentar-se em batalhões de trabalho forçado e nos campos do Gulag ao longo de toda a guerra, os primeiros campos de trabalho construídos em escala verdadeiramente maciça não foram erguidos para os poloneses. À medida que a sorte dos soviéticos mudava, o Exército Vermelho começou a capturar um grande número de prisioneiros do Eixo, aparentemente de forma inexplicável. E as autoridades estavam muito despreparadas. Na esteira da rendição alemã após a Batalha de Stalingrado - sempre lembrada como o ponto de virada da guerra -, o Exército Vermelho prendeu 91 mil soldados inimigos, para os quais não havia instalações nem comida. Os alimentos enviados três ou quatro dias depois não eram suficientes: "Um pão era dividido entre dez homens, além de uma sopa feita com água, sementes de painço e peixe salgado".[77]

Nas primeiras semanas de cativeiro, as condições não eram muito melhores, e não apenas para os sobreviventes de Stalingrado. Enquanto o Exército Vermelho avançava para o oeste, os soldados capturados eram conduzidos às campinas abertas, onde eram deixados com um mínimo de comida e nenhum remédio, isso quando não eram mortos de imediato. Sem abrigo, os prisioneiros dormiam abraçados, amontoados na neve, e, quando acordavam, descobriam que estavam agarrados a cadáveres.[78] Nos primeiros meses de 1943, o índice de mortalidade entre os prisioneiros de guerra estava em torno de 60%, e cerca de 570 mil foram oficialmente dados como mortos em cativeiro. Morreram de fome, de doenças, de ferimentos não tratados.[79] E possível que a quantidade real tenha sido ainda maior, pois muitos podem ter morrido antes que alguém os tivesse contado. Entre os soldados soviéticos capturados pelos alemães, os índices de mortalidade eram semelhantes: a guerra nazi-soviética foi mesmo uma batalha de morte. No entanto, a partir de março de 1944, a NKVD encarregou-se de "melhorar" a situação e criou um novo departamento de campos de trabalho forçado, especialmente projetado para os prisioneiros de guerra. Embora estivessem sob a jurisdição da polícia secreta, tecnicamente esses campos não pertenciam ao Gulag, mas à Agência de Prisioneiros de Guerra (UPV) da NKVD, e, depois de 1945, à Agência de Prisioneiros de Guerra e Internos (GUPVI).[80]

A nova burocracia não trouxe melhora no tratamento. As autoridades japonesas, por exemplo, calculam que o inverno de 1945-46 - após o final da guerra - tenha sido o pior para os prisioneiros japoneses. Um décimo deles morreu no cativeiro soviético. Embora não estivessem em condição de passar informações militares úteis, as restrições severas à correspondência continuaram: os prisioneiros de guerra só tiveram permissão para escrever para casa em 1946, em formulários especiais classificados como "carta de prisioneiro de guerra".

Foram criados escritórios especiais nos quais censores que falavam línguas estrangeiras liam as cartas deles.[81]

A superlotação também não deixou de existir. No último ano da guerra, e mesmo depois, a quantidade de pessoas enviadas ao novos campos continuou a crescer, chegando a níveis alarmantes. Segundo as estatísticas oficiais, a União Soviética manteve 2.388 milhões de prisioneiros de guerra alemães entre 1941 e 1945. Também caíram em mãos soviéticas 1.097 milhão de soldados europeus que lutavam pelo Eixo - em sua maioria italianos, húngaros, romenos e austríacos, além de alguns franceses, holandeses e belgas - e cerca de 600 mil japoneses, um número surpreendente se levarmos em conta que a guerra entre a União Soviética e o Japão foi relativamente breve. Na época do armistício, o total de soldados capturados ultrapassava 4 milhões.[82]

Mas esses dados não incluem todos os estrangeiros jogados nos campos soviéticos durante a marcha do Exército Vermelho pela Europa. No rastro do exército, a NKVD também procurava por outros tipos de prisioneiros: qualquer pessoa acusada de crimes de guerra, qualquer pessoa suspeita de espionagem (mesmo que para um governo aliado), qualquer pessoa considerada anti-soviética por alguma razão, qualquer pessoa de quem a polícia secreta não gostasse. Seu interesse era particularmente amplo nos países da Europa central em que pretendiam ficar depois da guerra. Em Budapeste, por exemplo, logo capturaram 75 mil civis húngaros e os enviaram primeiramente a campos provisórios na Hungria e depois ao Gulag - junto com centenas de milhares de prisioneiros de guerra húngaros que ainda estavam lá.[83]

Quase todo mundo podia ser preso. Entre os húngaros apanhados em Budapeste, por exemplo, estava George Bien, de dezesseis anos. Ele foi preso com o pai porque eles possuíam um rádio.[84] Na outra ponta do espectro social, os oficiais da NKVD também prenderam Raul Wallenberg, um diplomata sueco que, sozinho, salvara milhares de judeus húngaros da deportação aos campos de concentração nazistas. No curso das negociações, Wallenberg teve de lidar com as autoridades fascistas e os líderes ocidentais. Além disso, ele vinha de uma família sueca proeminente e rica. Para a NKVD, essas eram razões suficientes para considerá-lo suspeito. Ele foi preso em Budapeste em janeiro de 1945, junto com o motorista. Os dois desapareceram nas prisões soviéticas (Wallenberg foi registrado como "prisioneiro de guerra") e nunca mais se ouviu falar deles. Nos anos 1990, o governo sueco procurou pistas do paradeiro de Wallenberg, mas nada descobriu. Hoje se acredita que ele tenha morrido sob interrogatório ou que tenha sido executado logo após a prisão.[85]

Na Polônia, a NKVD voltou os olhos para os líderes remanescentes do Exército da Pátria. Até 1944, esse exército de guerrilheiros lutou ao lado das tropas soviéticas contra os alemães. No entanto, assim que o Exército Vermelho cruzou a antiga fronteira polonesa, as tropas da NKVD capturaram e desarmaram suas unidades e prenderam seus líderes. Alguns se esconderam nas florestas polonesas e continuaram a lutar até meados da década de 1940. Outros foram executados. O restante foi deportado. Assim, dezenas de milhares de cidadãos poloneses, civis e militares, foram parar no Gulag e nas aldeias de degredo depois da guerra.[86]

Nenhuma nação ocupada foi poupada. Corno eu disse, os países bálticos e a Ucrânia sofreram ampla repressão no pós-guerra, assim como a Tchecoslováquia, a Bulgária, a.Romênia e, mais do que todos, a Alemanha e a Áustria. A NKVD arrastou para interrogatórios em Moscou todos os que foram encontrados no bunker de Hitler quando o Exército Vermelho avançou sobre Berlim. Eles também capturaram vários parentes distantes de Hitler na Áustria. Entre eles havia uma prima, Maria Koopensteiner, para quem Hitler tinha enviado um pouco de dinheiro, o marido, os irmãos e um sobrinho. Nenhum deles, nem mesmo Maria, tinha posto os olhos em Hitler depois de 1906. Todos morreram na União Soviética.[87]

Em Dresden, a NKVD também prendeu um cidadão americano, John Noble, que fora detido na Alemanha nazista e mantido em prisão domiciliar durante a guerra junto, com o pai, um alemão naturalizado americano. Noble voltou aos Estados Unidos nove anos depois. Ele passou grande parte desse tempo em Vorkuta, onde os companheiros o apelidaram de "Amerikanets".[88]

A grande maioria dos que foram atropelados pelos acontecimentos acabou nos campos de trabalho para prisioneiros de guerra ou nos campos do Gulag. A diferença entre os dois tipos de campo nunca ficou clara. Embora tecnicamente pertencessem a estruturas burocráticas diferentes, em pouco tempo a administração dos campos de prisioneiros de guerra ficou parecida com a dos campos de trabalho forçado - a tal ponto que é difícil separá-los quando se tenta investigar sua historia. As vezes, os campos do Gulag criavam lagpunkts especiais apenas para os prisioneiros de guerra, e os dois tipos de detentos trabalhavam lado a lado.[89] Sem nenhum motivo claro, às vezes a NKVD enviava prisioneiros de guerra diretamente ao Gulag.[90]

No final da guerra, as rações de comida dos prisioneiros de guerra e dos presos comuns era quase a mesma, assim como o alojamento em que ficavam e o trabalho que faziam. Gomo os zeks, os prisioneiros de guerra trabalhavam na construção civil, nas minas, nas fábricas e na abertura de estradas e ferrovias.[91] Como os zeks, alguns prisioneiros de guerra mais educados encontravam seu caminho nas sharashki, onde projetavam aeronaves militares para o Exército Vermelho.[92] Até hoje os moradores de certos distritos de Moscou falam com orgulho dos blocos de apartamento que eles habitavam, supostamente muito bem construídos pelos meticulosos prisioneiros de guerra alemães.

Também como os zeks, os prisioneiros de guerra acabaram recebendo uma "educação política" ao estilo soviético. Em 1943, a NKVD começou a organizar escolas e cursos "antifascistas" nos campos de prisioneiros de guerra. A intenção era persuadir os participantes a "conduzir a luta pela reconstrução 'democrática' de seus países e eliminar os resquícios do fascismo" quando retornassem à Alemanha, à Romênia ou à Hungria - e, é claro, a pavimentar o caminho para a dominação soviética.[93] De fato, vários ex-prisioneiros de guerra alemães terminaram trabalhando para a polícia da Alemanha Oriental.[94]

No entanto, nem aqueles que demonstravam lealdade voltavam para casa rapidamente. Embora a URSS tenha repatriado um grupo de 225 mil prisioneiros em junho de 1945, em sua maioria soldados rasos feridos, e embora outros tenham voltado para casa desde então num fluxo regular, a repatriação completa de todos os prisioneiros de guerra em mãos soviéticas levou mais de uma década: em 1953, quando Stalin morreu, 20 mil permaneciam no país.[95] Ainda convencido da eficácia da escravidão estatal, Stalin encarava o trabalho dos prisioneiros como uma forma de reparação e considerava seu longo cativeiro totalmente justificável. Nos anos 1940 e 1950 (e depois, na verdade, como o caso Wallenberg ilustra), as autoridades soviéticas continuaram a ocultar a questão dos estrangeiros presos com confusões, propaganda e contrapropaganda, libertando-os quando lhes convinha e negando sua existência quando assim lhes parecia melhor. Em outubro de 1945, por exemplo, Beria escreveu a Stalin pedindo-lhe autorização para libertar prisioneiros de guerra húngaros pouco antes das eleições na Hungria: os americanos e os britânicos haviam soltado seus prisioneiros de guerra, e caía mal se a União Soviética não fizesse o mesmo.[96]

A névoa persistiu durante décadas. Nos primeiros anos depois da guerra, enviados de todo o mundo pressionaram Moscou com listas de cidadãos que haviam desaparecido em meio à ocupação da Europa pelo Exército Vermelho ou que, por qualquer razão, tinham ido para os campos do Gulag ou os de prisioneiros de guerra. Não era fácil conseguir respostas, pois muitas vezes nem a NKVD sabia do paradeiro dos presos. No final, as autoridades soviéticas criaram comissões especiais para descobrir por que ainda havia estrangeiros presos na URSS, estudar cada caso e liberá-los.[97]

Os casos mais complexos podiam levar anos para ser solucionados. Jacques Rossi, um comunista francês nascido em Lyon e enviado a um campo depois de ter passado alguns anos dando aulas em Moscou, ainda tentava voltar para casa em 1958. Depois que lhe recusaram um visto de saída para a França, ele tentou ir para a Polônia, onde, conforme disse às autoridades, viviam um irmão e uma irmã seus. Esse pedido também foi recusado.[98] Por outro lado, de vez em quando as autoridades suspendiam todas as objeções e permitiam que os estrangeiros fossem embora. Em 1947, no auge da fome do pós-guerra, a NKVD libertou inesperadamente centenas de milhares de prisioneiros de guerra. Não havia uma razão política: os líderes soviéticos apenas concluíram que não dispunham de comida suficiente para manter todos vivos.[99]

A repatriação não tinha mão única. Se um grande número de europeus ocidentais estava na Rússia ao final da guerra, um número igualmente grande de russos estava na Europa Ocidental. Na primavera de 1945, mais de 5,5 milhões de cidadãos soviéticos viviam fora do país. Alguns eram soldados capturados e encarcerados nos campos nazistas para prisioneiros de guerra. Outros haviam sido levados para os campos de trabalho escravo da Alemanha e da Áustria. Alguns colaboraram com a força de ocupação e se retiraram do país com o exército alemão. Cerca de 150 mil eram "vlasovitas", soldados que tinham combatido - ou, mais freqüentemente, que tinham sido obrigados a combater - o Exército Vermelho sob o comando do general Andrei Vlasov, um oficial russo capturado que se voltara contra Stalin e lutara ao lado de Hitler, ou em outras brigadas pró-Hitler e anti-Stalin da Wehrmacht. Por mais estranho que possa parecer, alguns nem eram cidadãos soviéticos.

Espalhados pela Europa, notadamente na Iugoslávia, havia também imigrantes anticomunistas: os russos brancos, os que haviam perdido a disputa com os bolcheviques e se estabelecido no Ocidente. Stalin também os queria de volta: ninguém deveria escapar da punição bolchevique.

No final, ele os conseguiu. Entre as várias decisões controversas da Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945, Roosevelt, Churchill e Stalin acordaram que todos os cidadãos soviéticos, fosse qual fosse sua história específica, tinham de voltar à União Soviética. Embora os protocolos assinados em Ialta não obrigassem os aliados a devolver os cidadãos soviéticos contra a vontade deles, foi isso o que aconteceu.

Alguns desejavam voltar para casa. Leonid Sitko, soldado do Exército Vermelho que passou um tempo num campo nazista e que mais tarde passaria outra temporada num campo soviético, lembra-se de ter decidido voltar para casa. Posteriormente, ele descreveu seus sentimentos em versos:

Eram quatro estradas - quatro países.

Em três haveria paz e conforto.

No quarto, eu sabia, destruiriam as rimas

E a mim, provavelmente, matariam.

E o que fiz? Aos três países disse: pro inferno!

E escolhi minha terra natal.[100]

Outros, com medo do que os aguardava, foram convencidos a voltar pelos oficiais da NKVD que viajavam pelos campos de prisioneiros e deslocados de guerra espalhados por toda a Europa. Os oficiais procuravam os russos nesses campos e lhes ofereciam uma visão cor-de-rosa do futuro. Tudo seria perdoado, diziam: "Nós os consideramos cidadãos soviéticos, apesar de vocês terem sido obrigados a se juntar ao exército alemão [...]".[101]

Alguns, em especial aqueles que já haviam experimentado o lado errado da justiça soviética, naturalmente não quiseram retornar. "Há espaço para todos na terra natal", o adido militar soviético na Grã-Bretanha afirmou a um grupo de soldados soviéticos que viviam nos campos de prisioneiros de guerra de Yorkshire. "Sabemos que tipo de espaço teremos", um prisioneiro respondeu.65 Porém, os oficiais alia" dos tinham ordens para mandá-los de volta - e assim fizeram. em Fort Dix, Nova Jersey, 145 prisioneiros soviéticos, que trajavam uniformes alemães quando foram presos, entrincheiraram-se dentro do alojamento para não serem mandados para casa. Quando os soldados americanos jogaram gás lacrimogêneo no edifício, os que ainda não tinham se suicidado correram para fora com facas de cozinha e porretes ferindo alguns americanos. Mais tarde explicaram que queriam incitar os americanos a atirar neles.[102]

O pior foram os incidentes que envolveram mulheres e crianças. Em maio de 1945, seguindo ordens diretas de Churchill, as tropas britânicas começaram a repatriar mais de 20 mil cossacos que viviam na Áustria, antigos guerrilheiros antibolcheviques. Alguns haviam se juntado a Hitler como forma de combater Stalin, muitos tinham deixado a URSS depois da Revolução, e a maioria não tinha mais passaporte soviético. Depois de passar muitos dias prometendo-lhes um bom tratamento, os britânicos os enganaram. Convidaram os oficiais cossacos para uma "conferência", entregaram-nos às tropas soviéticas e reuniram seus familiares no dia seguinte. Num incidente particularmente feio em um campo perto de Lienz, Áustria, soldados britânicos usaram baionetas e a coronha dos fuzis para colocar milhares de mulheres e crianças em trens com destino à URSS. Em vez de voltar, as mulheres jogavam os bebês das pontes e saltavam atrás. Um homem matou a mulher e os filhos, depositou seus corpos cuidadosamente na grama e se suicidou. É claro que os cossacos sabiam o que os esperava no retorno à União Soviética: pelotões de fuzilamento - ou o Gulag.[103]

Mesmo os que retornaram de livre e espontânea vontade podiam se tornar suspeitos. Quer tenham saído da União Soviética voluntariamente ou pela força, quer tenham colaborado ou sido capturados, quer tenham voltado de bom grado ou obrigados em vagões de gado, todos foram solicitados, na fronteira, a preencher um formulário que perguntava se tinham colaborado. Os que confessaram (alguns o fizeram) e os que pareciam suspeitos - inclusive muitos prisioneiros de guerra soviéticos, a despeito dos tormentos que sofreram nos campos alemães - foram retidos em campos de triagem para futuro interrogatório. Esses campos, criados no início da guerra, pareciam os campos do Gulag. Cercados com arame farpado, os internos eram trabalhadores forçados em todos os aspectos, exceto pelo nome.

De fato, a NKVD deliberadamente montou vários campos de triagem perto de centros industriais, de modo que os "suspeitos" pudessem contribuir com o país com trabalho gratuito, enquanto seu caso era investigado.[104] Entre 27 de dezembro de 1941 e 1º de outubro de 1944, a NKVD investigou 421.199 detentos nos campos de triagem. Em maio de 1945, mais de 160 mil ainda viviam neles, executando trabalhos forçados. Mais da metade extraía carvão.[105] Em janeiro de 1946, a NKVD extinguiu os campos e repatriou mais 228 mil pessoas à URSS para investigação.[106] Supõe-se que muitos terminaram no Gulag.

No entanto, mesmo entre os prisioneiros de guerra havia casos especiais. Como a NKVD distribuía condenações aos prisioneiros de guerra e aos trabalhadores escravos, pessoas que, na verdade, não tinham cometido nenhum crime, as autoridades inventaram um novo tipo de sentença para os verdadeiros criminosos de guerra: pessoas que haviam cometido crimes de verdade. Já em abril de 1943, o Soviete Supremo declarou que, enquanto libertava o território soviético, o Exército Vermelho descobrira "atos de bestialidade e violência sem precedentes praticados por monstros fascistas alemães, italianos, romenos, húngaros e finlandeses, por agentes de Hitler e por espiões e traidores soviéticos"[107] Como resposta, a NKVD declarou que os criminosos de guerra condenados receberiam penas de quinze, vinte ou 25 anos, que deveriam ser cumpridas em lagpunkts especiais. Os lagpunkts foram convenientemente erguidos em Norilsk, Vorkuta e Kolyma, os três campos setentrionais mais rígidos.[108]

Com uma linguagem curiosamente floreada e uma percepção histórica irônica que pode muito bem ser indício do envolvimento direto de Stalin, a NKVD batizou esses lagpunkts com um termo da história penal da Rússia czarista: katorga. Essa escolha não teria sido acidental. Sua ressurreição, que ecoava a ressurreição da terminologia czarista em outras esferas da vida soviética (escolas militares para os filhos dos oficiais, por exemplo), devia ter como intenção caracterizar um novo tipo de punição para uma nova espécie de prisioneiro, perigoso e irreformável. Ao contrário dos criminosos comuns, que recebiam a punição comum nos campos de trabalho do Gulag, onde seriam corrigidos, nem em teoria se esperava que os presos da katorga se corrigissem ou redimissem. O renascimento da palavra parece ter causado certa consternação. Os bolcheviques haviam lutado contra a katorga, mas agora a instituíam novamente, como os porcos de A revolução dos bichos, de George Orwell, que proibiram os animais de beber álcool mas começaram a tomar uísque. A katorga também foi reinventada no momento em que o mundo começava a descobrir a verdade sobre os campos de concentração nazistas. A palavra sugeria que os campos soviéticos eram um pouco mais parecidos com os campos "capitalistas" do que as autoridades admitiam.

Talvez por isso o general Nasedkin, o chefe do Gulag durante a guerra, tenha preparado a pedido de Beria um histórico da katorga czarista. Entre outras "notas explanatórias", o histórico tentava explicar cuidadosamente a diferença entre as katorgas bolcheviques e czaristas e as outras formas de punição do Ocidente:

no Estado socialista soviético, a punição por meio da katorga - degredo com trabalho forçado - baseia-se num princípio diferente daquele que havia no passado. Na Rússia czarista e nos países burgueses, essa pena severa era infligida aos elementos mais progressistas da sociedade [...] no Estado soviético, a katorga permite a redução das penas de morte e é aplicada a inimigos especialmente perigosos [...].[109]

Ao ler as instruções do novo regime, é de se perguntar se alguns dos que foram enviados à katorga não preferiam a pena de morte. Os condenados à katorga eram separados dos outros prisioneiros por cercas altas. Eles recebiam uniformes diferentes, listrados, com números costurados nas costas. A noite, eram trancados no alojamento, cujas janelas eram cerradas com trancas. Trabalhavam mais que os prisioneiros comuns, tinham menos dias de descanso e eram proibidos de executar qualquer trabalho leve, pelo menos durante os dois primeiros anos. Eram cuidadosamente guardados: cada grupo de dez prisioneiros tinha dois guardas e cada campo devia dispor de pelo menos cinco cães. Os prisioneiros da katorga não podiam sequer ser transferidos de um campo para outro sem a autorização expressa da administração do Gulag em Moscou.[110]

Os presos da katorga também parecem ter se tornado o esteio de uma indústria soviética nova em folha. Em 1944, ao listar suas realizações econômicas, a NKVD afirmava ter produzido 100% do urânio do país. "Não é difícil deduzir", escreve a historiadora Galina Ivanova, "quem extraía e processava o minério radiativo".[111] Os prisioneiros e os soldados também construiriam o primeiro reator nuclear em Chelyabinsk, após a guerra. "Nessa época, todo o canteiro de obras era um campo de várias classes", um operário recorda. Ali, chalés "finlandeses" especiais seriam erguidos para os especialistas alemães que também eram obrigados a trabalhar no projeto.[112]

Sem dúvida, entre os prisioneiros da katorga havia muitos colaboradores dos nazistas e criminosos de guerra, inclusive os responsáveis pelo assassinato de centenas de milhares de judeus soviéticos. Com essas pessoas na cabeça, Simeon Vilensky, um sobrevivente de Kolyma, alertou-me para não considerar inocentes todos os que estavam no Gulag: "Essas pessoas teriam ido para a cadeia, deveriam ter ido para a cadeia, sob qualquer regime". Como regra geral, os detentos evitavam os condenados por crimes de guerra, chegando até a agredi-los.[113]

Ainda assim, dos 60 mil prisioneiros condenados à katorga em 1947, boa parte tinha sido sentenciada por razões mais ambíguas.[114] Havia, por exemplo, milhares de guerrilheiros anti-soviéticos da Polônia, dos países bálticos e da Ucrânia, muitos dos quais lutaram contra os nazistas antes de se voltar contra o Exército Vermelho. Fizeram isso por acreditar que lutavam pela libertação do próprio país. De acordo com um documento enviado a Beria em 1945 sobre os menores de idade presos na katorga, Andrei Levchuk, acusado de fazer parte da Organização dos Ucranianos Nacionalistas (OUN), um dos dois principais grupo de oposição aos soviéticos na Ucrânia, era um desses guerrilheiros. Enquanto estava a serviço deles, Levchuk supostamente teria "participado do assassinato de cidadãos inocentes , do desarmamento dos soldados do Exército Vermelho e da apropriação de seus bens". Na época em que foi preso, em 1945, Levchuk tinha quinze anos de idade.

Yaroslava Krutigolova era outra "criminosa de guerra". Também integrante da OUN - serviu como enfermeira -, foi presa com dezesseis anos.[115] A NKVD também prendeu uma mulher de origem germânica que trabalhara como tradutora para guerrilheiros soviéticos. Ao ouvir que ela tinha sido presa por "ajudar o inimigo", o líder da brigada guerrilheira deixou a frente de batalha e foi depor a seu favor. Graças a ele, Krutigolova recebeu uma pena de dez anos na katorga, e não de 25.[116]

Finalmente, entre os prisioneiros da katorga estava Aleksandr Klein, um oficial do Exército Vermelho que, capturado pelos alemães, conseguiu fugir e voltar para a divisão soviética. Assim que voltou, foi interrogado, como relatou posteriormente:

De repente o major se levantou e perguntou: "Pode provar que é judeu?"

Eu sorri, constrangido, e disse que podia... tirando as calças.

O major olhou para Sorokin e depois voltou-se em minha direção.

"Está dizendo que os alemães não sabiam que você era judeu?"

"Acredite. Se eles soubessem, eu não estaria aqui."

"Arre, judeu de uma figa!", o janota exclamou, e me deu um soco no estômago que me fez engasgar e cair.

"Que mentira é essa? Diga, filho-da-puta, por que foi mandado de volta? Com quem está metido? Quando se vendeu? Por quanto? Por quanto se vendeu, criatura? Qual é o seu codinome?"

O interrogatório resultou na condenação de Klein à morte. Depois sua pena foi comutada para vinte anos na katorga.[117]

"Havia todo tipo de gente nos campos, especialmente depois da guerra", escreveu Hava Volovich. "Mas todos éramos atormentados do mesmo jeito: os bons, os maus, os culpados e os inocentes".[118]

Se durante a guerra milhões de estrangeiros entraram no Gulag contra a vontade, pelo menos um se apresentou voluntariamente. A guerra pode ter conduzido os líderes soviéticos a novos paroxismos de xenofobia; graças a ela, no entanto, um velho político americano visitou o Gulag pela primeira e única vez. Henry Wallace, vice-presidente dos Estados Unidos, viajou a Kolyma em maio de 1944 - e jamais soube que visitava uma prisão.

A visita de Wallace aconteceu no auge da amizade entre americanos e soviéticos na guerra, no momento mais caloroso da aliança, quando a imprensa dos Estados Unidos se habituara a chamar Stalin de "Tio Joe". Por essa razão, talvez, Wallace estava inclinado a olhar a União Soviética com bondade mesmo antes de chegar. Em Kolyma, viu todas as suas idéias confirmadas. Logo que chegou, percebeu muitos paralelos entre a Rússia e os Estados Unidos: ambos eram duas "novas" grandes nações que não carregavam a bagagem aristocrática da Europa. Ele acreditava, conforme disse aos anfitriões, que a "Ásia soviética" era, na verdade, o "oeste selvagem da Rússia". Acreditava "não haver países mais parecidos do que a União Soviética e os Estados Unidos : "As grandes extensões de seu território, as florestas virgens, os rios e lagos amplos, todos os tipos de clima - do tropical ao polar - a riqueza infindável, lembram-me a minha pátria".[119]

Ele se agradou da paisagem e daquilo que considerou a força industrial do país. Nikishov, o chefe da Dalstroi, corrupto notório com alto padrão de vida, acompanhou Wallace por Magadan, a principal cidade de Kolyma. Por sua vez, Wallace imaginou que Nikishov, um antigo oficial da NKVD, fosse o equivalente de um capitalista americano: "Ele gerencia tudo por aqui. Comandando os recursos da Dalstroi, ele se tornou milionário". Wallace apreciou a companhia do amigo "Ivanº e observou-o "brincar" na taiga, "aproveitando imensamente o ar maravilhoso". Ele também ouviu com atenção o relato de Ivan sobre a origem da Dalstroi: "Tivemos de cavar muito para pôr este lugar em funcionamento. Doze anos atrás chegaram os primeiros colonos, que ergueram oito casas pré-fabricadas. Hoje Magadan tem 40 mil habitantes, e todos moram bem".

Nikishov deixou de mencionar, é claro, que os "primeiros colonos" eram prisioneiros e que os 40 mil habitantes eram na maioria degredados, proibidos de ir embora. Wallace também ignorava a situação dos operários - quase todos prisioneiros - e continuou aprovando os trabalhadores das minas de ouro. Recordava que eles eram "jovens grandes e vigorosos", trabalhadores livres que davam muito mais duro do que os prisioneiros políticos que ele supunha habitarem o extremo norte na época dos czares: "A população da Sibéria é valente e vigorosa, mas não por ser levada na ponta do chicote".[120]

Naturalmente, os chefes da Dalstroi queriam que Wallace pensasse exatamente isso. Conforme o relatório que o próprio Nikishov escreveu a Beria mais tarde, Wallace pediu para ver um campo de prisioneiros, mas não foi atendido. Nikishov também assegurou aos chefes que os únicos operários que Wallace encontrou eram trabalhadores livres, e não prisioneiros. É possível que muitos deles fossem membros da Komsomol, a juventude comunista, e tenham recebido uniforme e botas de mineiro minutos antes da chegada de Wallace. Eles saberiam responder perguntas. "Conversei com alguns", Wallace observou mais tarde. "Estavam entusiasmados com a vitória na guerra".[121]

Depois, Wallace conheceu prisioneiros de verdade, embora não soubesse: eram os cantores e músicos que se apresentaram para ele no teatro de Magadan, vários deles artistas de ópera presos em Moscou e Leningrado. Informado de que eram integrantes de um "coral não-profissional do Exército Vermelho" estacionado na cidade, ele se encantou com o alto nível artístico dos amadores. Na verdade, todos foram avisados de que "uma palavra ou sinal que desse a entender que éramos prisioneiros seriam considerados um ato de traição".[122]

Wallace também viu o artesanato produzido pelos prisioneiros, embora mais uma vez não tivesse conhecimento disso. Nikishov levou-o a uma feira de bordados e disse-lhe que os trabalhos expostos eram realizados por um grupo de "mulheres que se juntavam regularmente durante o inverno rigoroso para estudar costura". É claro que as prisioneiras haviam feito tudo de antemão para a visita de Wallace.

Quando Wallace parou diante de um dos trabalhos, visivelmente admirado, Nikishov tirou-o da parede e entregou-o a ele. Para sua (agradável) surpresa, a esposa de Nikishov, a temida Gridasova, modestamente explicou que era ela a artista. Posteriormente, a prisioneira Vera Ustieva soube que seu quadro fora um dos dois dados ao vice-presidente como recordação da viagem: "Nosso chefe recebeu uma carta da mulher do vice-presidente agradecendo pelo presente e dizendo que os quadros haviam sido pendurados na parede", ela escreveu mais tarde.[123] Wallace também descreveu os presentes em suas memórias: "Hoje em dia, esses dois quadros transmitem àqueles que visitam minha casa em Washington toda a beleza da paisagem rural da Rússia".[124]

A visita de Wallace coincidiu mais ou menos com a chegada das "doações americanas" a Kolyma. O programa Lend-Lease, cujo objetivo era o envio de armas e equipamento militar para ajudar os aliados a se defender contra a Alemanha, levou tratores, caminhões, escavadeiras e ferramentas a Kolyma, o que não era bem a intenção do governo americano. Também levou um sopro de ar do mundo exterior. As peças chegaram embrulhadas em jornais velhos, e, por eles, Thomas Sgovio soube da guerra no Pacífico. Até então, como a maioria dos prisioneiros, ele pensava que o exército soviético lutava sozinho e que os americanos apenas enviavam suprimentos.[125] O próprio Wallace notara que os mineiros de Kolyma (ou membros da Komsomol fingindo-se de mineiros) usavam botas americanas, também elas fruto do Lend-Lease. Quando perguntou sobre a questão - as doações do Lend-Lease não se destinavam às minas de ouro -, os anfitriões responderam que haviam comprado as botas.[126]

A grande maioria das roupas enviadas pelos Estados Unidos acabou no corpo dos administradores do campo e no de suas mulheres, embora algumas peças tenham mesmo sido utilizadas nas produções de teatro dos campos e algumas latas de carne de porco tenham chegado aos prisioneiros. Eles a comeram com prazer: muitos jamais haviam visto carne enlatada antes. Melhor ainda, usaram as latas vazias como canecas, lamparinas, potes, panelas, chaminés de fogão e até botões - sem fazer idéia da surpresa que tanta engenhosidade teria causado no país de onde as latas vieram.[127]

Antes de Wallace ir embora, Nikishov ofereceu um elaborado banquete em sua homenagem. Pratos extravagantes foram servidos - os ingredientes foram extraídos da ração dos prisioneiros; brindaram a Roosevelt, a Churchill e a Stalin. Wallace fez um discurso que continha as seguintes palavras memoráveis:

Cada um à sua maneira, russos e americanos buscam um estilo de vida que permita ao homem comum em todo o mundo tirar o melhor da tecnologia moderna. Não há nada de inconciliável em nossos objetivos e nossos propósitos. Aqueles que afirmam o contrário querem a guerra, consciente ou inconscientemente - e, na minha opinião, isso é um crime.[128]

 

  1. A ANISTIA... E DEPOIS

Hoje disse adeus ao campo com um sorriso alegre,

Às cercas que por um ano afastaram a liberdade [...]

Nada restará de mim neste lugar,

Nada impedirá meus passos apressados?

Oh não! Atrás das cercas deixo um Gólgota de dor,

Que ainda tenta me empurrar a extremos de tormento.

Deixo túmulos de angústia e restos de compaixão

E, em segredo, choro as contas do nosso rosário [...]

Tudo agora parece ter sido levado, como a folha

arrancada de uma árvore

Por fim nos livramos da escravidão.

E meu coração se esvaziou do ódio

Pois hoje um arco-íris rompeu as nuvens!

Janusz Wedów, "Adeus ao campo".[129]

Muitas das metáforas que foram utilizadas para descrever o sistema de repressão soviético - moedor de carne, rolo compressor - fazem-no soar implacável, inexorável, inflexível. Ao mesmo tempo, porém, o sistema não era estático: ele mudava, dava voltas e produzia novas surpresas. E verdade que os anos de 1941 a 1943 significaram morte, doença e tragédia para os prisioneiros soviéticos, mas a guerra também proporcionou a liberdade de milhões de pessoas.

A anistia para os homens saudáveis, em idade de lutar, começou apenas alguns dias depois do início da guerra. Já em 12 de julho de 1941, o Soviete Supremo ordenou ao Gulag que liberasse determina-das categorias de prisioneiros diretamente para o Exército Vermelho: "os condenados por faltar ao trabalho e por crimes administrativos e financeiros comuns e insignificantes". Posteriormente, a ordem se repetiu várias vezes. Ao todo, a NKVD liberou 975 mil prisioneiros nos três primeiros anos de guerra, junto com várias centenas de milhares de ex-kulaks, degredados especiais. Mais pessoas continuaram a ser anistiadas até, e durante, o assalto final a Berlim.[130] A 21 de fevereiro de 1945, três meses antes do fim da guerra, houve nova ordem para libertar prisioneiros: o Gulag foi avisado de que eles deveriam estar prontos para entrar no exército no dia 15 de março.[131]

O volume de anistiados teve um impacto enorme sobre a demografia dos campos durante a guerra, e, conseqüentemente, sobre a vida dos que ficaram para trás. Novos prisioneiros afluíam aos campos, a anistia em massa libertava outros tantos, e milhões morriam, o que torna as estatísticas dos anos de guerra extremamente enganosas. Os dados de 1943 demonstram um aparente declínio da população carcerária, de 1,5 para 1,2 milhão. Nesse ano, no entanto, outro dado indica que 2.421 milhões de prisioneiros passaram pelo Gulag, alguns recentemente presos, alguns recém-libertados, alguns transferidos entre os campos e muitos mortos.[132] Ainda assim, a despeito da chegada de centenas de milhares de prisioneiros todos os meses, a quantidade total de detentos no Gulag efetivamente diminuiu entre junho de 1941 e julho de 1944. Vários campos nas regiões de floresta, criados às pressas para receber o excesso de novos detentos em 1938, foram eliminados com a mesma rapidez.[133] Os presos remanescentes trabalhavam cada vez mais, e ainda assim a falta de mão-de-obra era endêmica. Em Kolyma, durante a guerra, até os trabalhadores livres tinham de garimpar ouro nas horas de descanso.[134]

Nem todos os prisioneiros tiveram permissão para partir: as ordens de anistia excluíam explicitamente os "criminosos reincidentes" - ou seja, os criminosos de carreira - e os prisioneiros políticos. Poucas exceções foram feitas. Talvez graças ao reconhecimento do prejuízo causado ao Exército Vermelho pela prisão de oficiais no final dos anos 1930, alguns dos condenados por questões políticas foram silenciosamente soltos depois da invasão soviética da Polônia. Entre eles estava o general Aleksandr Gorbatov, que foi chamado a Moscou de um distante lagpunkt de Kolyma no inverno de 1940. Depois de ver Gorbatov, o interrogador designado para reabrir o caso olhou de novo para a fotografia tirada antes da prisão e imediatamente pôs-se a fazer perguntas. Tentava se certificar de que o esqueleto que tinha à sua frente era mesmo um dos mais talentosos jovens oficiais do exército: "Minha calça estava remendada, minhas pernas estavam cobertas de trapos e eu usava as botas de mineiro. Também vestia uma jaqueta acolchoada e muito suja. Usava um boné com tapa-orelhas imundo e esfarrapado [...]"[135] Gorbatov foi afinal libertado em março de 1941, imediatamente antes da ofensiva alemã. Na primavera de 1945, liderou um dos assaltos a Berlim.

Quanto aos soldados comuns, a anistia não lhes garantia a sobrevivência. Muitos especulam, embora os arquivos não confirmem, que os prisioneiros liberados do Gulag para o Exército Vermelho foram designados para "batalhões penais" e enviados diretamente aos locais mais perigosos do front. O Exército Vermelho era notório pela disposição de sacrificar homens, e não é difícil imaginar que os comandantes estivessem ainda mais dispostos a sacrificar antigos prisioneiros. Um destes, o dissidente Avraham Shifrin, disse ter sido colocado em um batalhão penal porque era filho de um "inimigo do povo". Segundo seu relato, ele e os camaradas foram mandados diretamente para o front, apesar da falta de armas: quinhentos homens receberam cem fuzis. "Suas armas estão nas mãos dos nazistas", os oficiais lhes disseram. "Peguem-nas." Shifrin sobreviveu, embora tenha sido ferido duas vezes.[136]

No entanto, os prisioneiros soviéticos que se juntavam ao Exército Vermelho costumavam sobressair. Surpreendentemente, poucos parecem ter se recusado a lutar por Stalin. Pelo que conta, o general Gorbatov jamais teve um momento de hesitação quanto a reintegrar-se ao exército soviético ou quanto a lutar pelo Partido Comunista, que o tinha prendido sem motivo. Quando soube da invasão alemã, pensou apenas na sorte que tivera por ser solto: poderia usar a força reconquistada em benefício da pátria. Ele também fala com orgulho das "armas soviéticas" que os soldados utilizaram "graças à industrialização do nosso país", sem fazer nenhum comentário sobre os meios pelos quais essa industrialização fora alcançada. É verdade que em varias ocasiões ele revela desprezo pelos "oficiais políticos" do Exército Vermelho - a polícia secreta militar -, que interferiam demais no trabalho dos soldados, e que uma ou duas vezes foi maltratado por oficiais da NKVD, que sombriamente murmuravam que ele "não tinha aprendido muito em Kolyma". É difícil duvidar, no entanto, da sinceridade de seu patriotismo.[137]

A julgar pelos arquivos da NKVD, o mesmo parece valer para muitos outros prisioneiros libertados. Em maio de 1945, o chefe do Gulag, Viktor Nasedkin, produziu um relatório elaborado, quase efusivo, sobre o patriotismo e o espírito de luta dos ex-prisioneiros que tinham entrado no Exército Vermelho, citando muitas cartas enviadas aos antigos campos. "Primeiramente, informo que estou num hospital em Kharkov, ferido", um deles escreveu. "Defendi a pátria amada sem pensar na minha vida. Eu também fui condenado por trabalhar mal, mas nosso amado Partido me deu uma chance de pagar minha dívida com a sociedade conquistando a vitória no front. Pelos meus cálculos, matei 53 fascistas com balas de aço."

Outro escreveu para agradecer:

Antes de mais nada, escrevo para agradecer sinceramente por ter me reeducado. No passado, era um criminoso considerado perigoso para a sociedade, e por isso mais de uma vez fui colocado numa prisão, onde aprendi a trabalhar. Agora, o Exército Vermelho confiou ainda mais em mim, ensinou-me a ser um bom comandante e confiou a mim camaradas combatentes. Com eles, entro corajosamente na batalha, eles me respeitam porque cuido deles e porque desempenhamos nossas tarefas militares com correção.

De vez em quando, os oficiais também escreviam para os comandantes dos campos. "Durante o assalto a Chernigov, o camarada Kolesnichenko comandou uma companhia", um capitão escreveu. "O ex-prisioneiro se transformou num comandante refinado, firme e combativo."

Com exceção de cinco ex-zeks que se tornaram Heróis da União Soviética e receberam a mais alta distinção militar do Exército Vermelho, parece não haver registros isolados dos ex-prisioneiros que ganharam medalhas. Mas os registros dos mais de mil zeks que escreveram para os campos são instrutivos: 85 se tornaram oficiais, 34 se inscreveram no Partido Comunista e 261 ganharam medalhas.[138] Provavelmente, essa amostragem não é representativa de todos os prisioneiros, mas não há razão para acreditar que seja muito incomum. A guerra gerou um surto de patriotismo na União Soviética, e os ex-prisioneiros tiveram permissão para participar dele.[139]

Talvez o mais surpreendente seja o fato de alguns prisioneiros que ainda cumpriam pena nos campos terem sido tomados pelo mesmo sentimento patriótico. As regras ainda mais rígidas e os cortes no suprimento de comida não transformaram todos os zeks do Gulag em oponentes duros do regime soviético. Ao contrário, posteriormente muitos escreveram que a pior coisa de ter estado num campo de concentração em junho de 1941 era não ter podido ir ao front e lutar. A guerra corria solta, os camaradas lutavam... e eles ficaram para trás, ardendo de patriotismo. Instantaneamente, passaram a tratar todos os prisioneiros alemães como fascistas, a insultar os guardas por não estarem no front e a trocar mexericos e boatos sobre a guerra. Como recorda Evgeniya Ginzburg, "Estávamos prontos para perdoar e esquecer agora que toda a nação sofria, prontos para apagar a injustiça de que fomos vítimas [...]"[140]

Em algumas ocasiões, os prisioneiros dos campos próximos ao front tiveram a oportunidade de colocar o patriotismo em prática. Num relatório com o qual pretendia contribuir para a história da Grande Guerra Patriótica, Pokrovkii, ex-funcionário de Soroklag, um campo na República Careliana, perto da fronteira finlandesa, descreveu um incidente ocorrido durante a apressada evacuação do campo:

A coluna de tanques se aproximava, a situação se tornava crítica, então um dos prisioneiros [...] pulou para a cabine de um caminhão e começou a dirigir o mais rápido que pôde na direção do tanque. O choque destruiu o caminhão e o prisioneiro-herói, mas o tanque também parou e se incendiou. A estrada ficou bloqueada, os outros tanques viraram na direção oposta. Graças a isso foi possível evacuar o restante da colônia.

Pokrovskii também descreveu como um grupo de mais de seiscentos prisioneiros libertados, retidos no campo por falta de trens, atirou-se voluntariamente ao trabalho de erguer as defesas da cidade de Belomorsk:

Todos concordaram e imediatamente se dividiram em brigadas de trabalho, apontando brigadeiros e capatazes. Esse grupo de prisioneiros libertados trabalhou nas defesas por mais de uma semana com zelo excepcional, da manhã bem cedo até tarde da noite, treze ou catorze horas por dia. A única coisa que pediram em troca foi que alguém conversasse sobre política com eles e os informasse sobre a situação no front. Eu desempenhei essa tarefa escrupulòsamente.[141]

Nos campos, esse patriotismo era estimulado pela propaganda, que ficou mais veloz durante a guerra. Como em toda a União Soviética, havia pôsteres, filmes de guerra e palestras. Os prisioneiros ouviam que "agora teríamos de trabalhar ainda mais, uma vez que cada grama de ouro garimpado seria um golpe contra o fascismo".[142] Naturalmente, é impossível saber se esse tipo de propaganda funcionou, assim como é impossível determinar se qualquer propaganda funciona. Provavelmente, porém, a administração do Gulag levou a mensagem mais a sério quando a capacidade de produção do Gulag se tornou vital para o esforço de guerra soviético. Em seu panfleto sobre reeducação, "Retorno à vida", Loginov, oficial do KVCh escreveu que o slogan "Todos para o front, todos pela vitória" encontrou "um eco caloroso" no coração dos que trabalhavam na linha de frente dos campos do Gulag: "Temporariamente isolados da sociedade, os prisioneiros duplicaram e triplicaram a velocidade do trabalho. Trabalhando generosamente em fábricas, canteiros de obras, florestas e campos, jogaram toda a força produtiva no apressamento da derrota do inimigo no front".[143]

Sem dúvida, o Gulag contribuiu para o esforço de guerra. Nos primeiros dezoito meses, 35 de suas "colônias" foram convertidas para a produção de munição. Muitos dos campos madeireiros passaram a fabricar caixas de munição. Pelo menos vinte campos confeccionaram os uniformes do Exército Vermelho, enquanto outros fabricaram telefones de campanha, mais de 1,7 milhão de máscaras de gás e 24 mil suportes para morteiros. Mais de 1 milhão de detentos trabalharam na construção de ferrovias, estradas e campos de pouso. Sempre que surgia a necessidade de trabalhadores para a construção (quando um oleoduto cedia ou uma nova ferrovia tinha de ser construída), o Gulag era chamado. Como no passado, Dalstroi produziu todo o ouro da União Soviética.[144]

Porém, como em tempo de paz, esses dados e a eficiência que eles parecem sugerir são enganosos. "Desde os primeiros dias da guerra o Gulag organizou suas indústrias para atender às necessidades dos que lutavam no front", Nasedkin escreveu. Essas necessidades poderiam ter sido mais bem atendidas por trabalhadores livres? Nos outros locais, ele registra que a produção de certos tipos de munição quadruplicou.[145] Quanta munição a mais poderia ter sido fabricada se os prisioneiros patrióticos tivessem trabalhado em fábricas comuns? Milhares de soldados que poderiam estar no front foram mantidos atrás das linhas, guardando a mão-de-obra encarcerada. Milhares de homens da NKVD foram destacados para prender e depois soltar poloneses. Eles também poderiam ter sido mais bem utilizados. Assim, o Gulag contribuiu para o esforço de guerra... e provavelmente ajudou a solapá-lo também.

Além do general Gorbatov e de uns poucos militares, havia outra exceção, muito maior, à regra geral contra a anistia política. A despeito do que a NKVD havia dito, no final o degredo dos poloneses nos confins da União Soviética não seria permanente. A 30 de julho de 1941, um mês depois do lançamento da Operação Barba Ruiva, o genera Sikorski, líder do governo polonês no exílio, em Londres, e o embaixa dor Maisky, enviado soviético à Grã-Bretanha, assinaram uma trégua. O pacto Sikorski-Maisky, como o tratato ficou conhecido, restabeleceu o Estado polonês - com fronteiras a ser determinadas - e garantiu a anistia a "todos os cidadãos poloneses que no momento estão privados da liberdade em território da URSS".

Os prisioneiros do Gulag e os degredados foram oficialmente libertados e receberam permissão para se juntar a uma nova divisão do exército polonês, a ser formada em solo soviético. Em Moscou, o general Wladyslaw Anders, oficial polonês que estivera preso na Lubyanka durante vinte meses, soube que havia sido nomeado comandante do novo exército em uma reunião inesperada com o próprio Beria. Depois do encontro, o general Anders deixou a prisão num carro da NKVD com motorista, trajando calça e camisa, mas descalço.[146]

Do lado polonês, muitos objetavam ao fato de a União Soviética usar a palavra "anistia" para descrever a libertação de pessoas inocentes, mas não era hora de tergiversar: as relações entre os novos "aliados" eram instáveis. As autoridades soviéticas se recusaram a assumir qualquer responsabilidade moral pelos "soldados" do novo exército - todos em péssimo estado de saúde - e não deram ao general Anders comida nem suprimentos. "Vocês são poloneses... que a Polônia os alimente", os oficiais do exército escutaram.[147] Os comandantes de alguns campos chegaram a se negar a libertar os prisioneiros poloneses. Gustav Herling, ainda preso em 1941, percebeu que "não sobreviveria ate a primavera" se não fosse solto, e teve de fazer uma greve de fome até ser libertado.[148]

As autoridades soviéticas complicaram a situação ainda mais ao afirmar, alguns meses depois, que a anistia não se aplicava a todos os cidadãos poloneses, mas apenas aos de etnia polonesa: os poloneses de etnia ucraniana e bielo-russa e os judeus poloneses deveriam permanecer na URSS. O resultado foi uma tensão terrível. Muitos integrantes dessas minorias tentaram se passar por poloneses, mas foram desmascarados por estes, que temiam ser novamente presos se a identidade dos "falsos" camaradas fosse revelada. Posteriormente, os passageiros de um trem que levava poloneses para o Irã tentaram expulsar um grupo de judeus: eles temiam que o trem não conseguisse sair da URSS com passageiros "não-poloneses".[149]

Outros prisioneiros poloneses foram soltos dos campos ou das aldeias de degredo, mas não receberam dinheiro algum nem instruções sobre para onde ir. Um ex-prisioneiro se recorda de que "com a desculpa de que não sabiam nada sobre o exército polonês, as autoridades soviéticas em Omsk não quiseram rios ajudar e propuseram que procurássemos emprego perto de Omsk".[150] Um oficial da NKVD deu a Herling uma lista dos locais onde ele poderia obter um visto de residência, mas negou ter qualquer conhecimento sobre o exército polonês.[151] Guiando-se por boatos, os prisioneiros poloneses libertados viajaram a pé e de trem pela União Soviética em busca do exército polonês.

Os familiares de Stefan Waydenfeld, que cumpriam o degredo no norte da Rússia, não foram informados da existência do exército polonês nem receberam um meio de transporte: disseram-lhes simplesmente que podiam partir. Para ir embora da remota aldeia de degredo, construíram uma jangada e desceram o rio em direção à "civilização" - uma cidade que tinha estação de trem. Meses depois foram resgatados de sua peregrinação quando, num café da cidade de Chimkent, no sul do Casaquistão, Stefan reconheceu uma colega de classe da Polônia. Finalmente, ela lhe disse onde encontrar o exército polonês.[152]

No entanto, os ex-zeks e as esposas e os filhos deportados seguiram vagarosamente para Kuibyshev, o acampamento-base do exército polonês, e para os outros postos avançados espalhados pelo país. Na chegada, muitos foram tomados pela experiência de redescobrir a Polônia, como escreveu Kazimierz Zarod: "Em todas as direções à nossa volta, a língua polonesa, rostos poloneses familiares! Eu mesmo encontrei velhos conhecidos, homens e mulheres se cumprimentavam com beijos e abraços, em momentos de júbilo e exultação".[153] No dia da chegada do general Anders, outro ex-zek, Janusz Wedów, compôs um poema intitulado "Boas-vindas ao líder":

Ai, meu coração! Volta a bater tão forte, tão feliz

Pensei que estivesse endurecido, morto dentro de mim [.. .][154]

Em poucos meses, porém, o otimismo havia diminuído. O exercito não tinha comida, remédios, equipamento - nada. Em sua maioria, os soldados eram homens doentes, cansados, meio famintos, que precisavam de ajuda profissional e cuidados médicos. Um oficial lembra o horror que sentiu ao perceber que "uma imensa maré de seres humanos que tinham deixado os lugares onde viviam degredados ou deportados [...] afluía agora aos distritos famélicos do Uzbequistão, aglomerando-se em torno de um exército mal nutrido e dizimado por doenças".[155]

Além disso, as relações com as autoridades soviéticas continuavam precárias. Empregados da embaixada polonesa espalhados pelo país ainda sofriam prisões inexplicáveis. Temeroso de que a situação piorasse, o general Anders mudou os planos em março de 1942. Em vez de levar seu exército para o oeste, na direção do front, ele obteve permissão para evacuar totalmente as tropas da União Soviética. Foi uma operação ampla: 74 mil militares e 41 mil civis poloneses, inclusive muitas crianças, embarcaram em trens com destino ao Irã.

Na pressa de partir, o general Anders deixou milhares de poloneses para trás, juntamente com antigos cidadãos judeus, ucranianos e bielo-russos. Mais tarde, alguns se juntaram à Kosciuszko, uma divisão polonesa do Exército Vermelho. Outros tiveram de esperar o fim da guerra para serem repatriados. Outros ainda jamais foram embora. Até hoje seus descendentes vivem em comunidades polonesas no Casaquistão e no norte da Rússia.

Os que partiram continuaram lutando. No Irã, depois de se recuperar, o exército de Anders conseguiu se juntar às forças aliadas na Europa. Viajando pela Palestina - e em alguns casos pela África do Sul -, posteriormente lutaram pela libertação da Itália na Batalha de Montecassino. No decorrer da guerra, os civis poloneses foram distribuídos por várias partes do império britânico. Crianças polonesas acabaram em orfanatos na Índia, na Palestina e até mesmo no leste da África. Muitos jamais retornariam à Polônia do pós-guerra, ocupada pela União Soviética. Os clubes, as sociedades históricas e os restaurantes poloneses do West End londrino são um testemunho de seu degredo pós-guerra.[156]

Depois de sair da URSS, esses poloneses prestaram um serviço inestimável aos ex-companheiros de prisão, menos afortunados. No Irã e na Palestina, o exército e o governo poloneses realizaram vários levantamentos sobre os soldados e suas famílias, a fim de determinar com exatidão o que acontecera aos poloneses deportados para a União Soviética. Como os comandados de Anders foram o único grande grupo autorizado a sair do país, o material produzido por esses questionários e essa investigação um tanto apressada foram a única prova substancial da existência do Gulag durante meio século, e uma prova surpreendentemente acurada: embora não compreendessem de fato a história do Gulag, os prisioneiros poloneses conseguiram transmitir a assombrosa dimensão do sistema de campos - tudo que tinham de fazer era listar a ampla variedade de lugares para onde haviam sido enviados - e as terríveis condições de vida durante a guerra.

Findo o conflito, as descrições feitas pelos poloneses foram a base dos relatórios sobre os campos soviéticos de trabalho forçado produzidos pela Biblioteca do Congresso americano e pela American Federation of Labor. Os francos relatos sobre o sistema soviético de trabalho escravo foi um choque para muitos americanos, cujo conhecimento sobre os campos se obscurecera desde os boicotes soviéticos à madeira nos anos 1920. Esses relatórios circularam amplamente, e em 1949, numa tentativa de persuadir as Nações Unidas a investigar a prática de trabalho forçado entre seus membros, a AFL apresentou um grosso dossiê de sua existência na União Soviética:

Menos de quatro anos atrás, os trabalhadores do mundo tiveram sua primeira vitória, a vitória contra o totalitarismo nazista, depois de uma guerra travada com grandes sacrifícios - contra a política nazista de escravizar a população de todos os países que eles invadiram [...].

Entretanto, apesar da vitória aliada, o mundo está profundamente preocupado com comunicados que parecem indicar que o mal que lutamos para erradicar, por cuja derrota tantos morreram, ainda viceja em várias partes do mundo [...].[157]

Começara a Guerra Fria.

A vida dentro dos campos freqüentemente espelhava e ecoava a vida na União Soviética como um todo - e isso foi ainda mais verdadeiro nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. À medida que a Alemanha desmoronava, Staliri passou a pensar na colonização pós-guerra. Seus planos de arrastar a Europa central para a esfera de influência soviética se solidificaram. Não foi coincidência o fato de a NKVD também entrar numa fase que pode ser descrita como expansiva, "internacionalista". "Esta não é como as guerras do passado", Stalin observou numa conversa com Tito, relembrada pelo comunista iugoslavo Milovan Djilas. "Quem ocupa um território impõe a ele seu sistema social. Todos impõem o próprio sistema social até onde o exército alcança."[158] Os campos de concentração eram uma parte fundamental do "sistema social" soviético, e, à medida que o conflito se aproximava do fim, a policia secreta soviética começou a exportar métodos e pessoal para os territórios ocupados, ensinando aos novos clientes estrangeiros o regime e os procedimentos que havia aperfeiçoado em casa.

Dos campos criados no que viria a ser chamado de "bloco soviético", na Europa Oriental, talvez os mais brutais tenham sido os da Alemanha Oriental. Enquanto o Exército Vermelho marchava pela Alemanha, em 1945, a Administração Militar Soviética imediatamente começou a construí-los. Ao final, foram erguidos sete campos de concentração "especiais" - spetslagerya. Dois deles, Sachsenhausen e Ruchenwald, situavam-se no mesmo local de antigos campos de concentração nazistas. Todos ficavam sob o controle direto da NKVD, que os organizava e gerenciava como fazia nos campos do Gulag, com normas de trabalho, rações mínimas e alojamentos superlotados. Nos anos de guerra, assolados pela fome, esses campos alemães parecem ter sido ainda mais letais que os congêneres soviéticos. Em cinco anos de existência, quase 240 mil prisioneiros, em sua maioria políticos, passou por eles. Desses, 95 mil - mais de um terço - são dados como mortos. Se a vida dos prisioneiros soviéticos nunca foi especialmente importante para as autoridades, a vida dos alemães "fascistas" importava ainda menos.

Em sua maior parte, os detentos dos campos da Alemanha Oriental não eram nazistas de alto coturno nem criminosos de guerra comprovados. Essa espécie de prisioneiro costumava ser transferida para Moscou, interrogada e jogada diretamente nos campos soviéticos para prisioneiros de guerra ou no Gulag. Os spetslagerya tinham a mesma função das deportações de poloneses e bálticos: quebrar a espinha da burguesia alemã. Por isso não abrigavam líderes nazistas nem criminosos de guerra, mas juizes, advogados, empresários, executivos, médicos e jornalistas. Entre eles havia até mesmo alguns dos pouquíssimos oponentes de Hitler, a quem a União Soviética - paradoxalmente - também temia. Afinal, quem ousara enfrentar os nazistas poderia ousar enfrentar o Exército Vermelho.[159]

A NKVD prendia o mesmo tipo de gente nos campos da Hungria e da Tchecoslováquia, criados pela polícia secreta local a conselho dos soviéticos quando o Partido Comunista se consolidou em Praga, em 1948, e em Budapeste, em 1949. As prisões eram realizadas com o que foi descrito como "caricatura" da lógica soviética: um meteorologista foi preso depois de anunciar "uma massa de ar gelado vinda do nordeste, da União Soviética" no dia em que a divisão soviética chegou à Hungria; um executivo tcheco acabou num campo depois que um vizinho o acusou de referir-se ao "imbecil do Stalinº.[160]

No entanto, os campos não eram uma caricatura. Em suas memórias de Reczk, o mais notório campo da Hungria, o poeta húngaro Gyorgy Faludy esboça o retrato de um sistema que parece cópia fiel do Gulag, inclusive pela prática da tufta e pelos prisioneiros famintos em busca de frutas silvestres e cogumelos nas florestas.[161] O sistema tcheco tinha uma característica especial: um conjunto de dezoito lagpunkts agrupados em torno das minas de urânio de Yachimov. Retrospectivamente, fica claro que os prisioneiros políticos com penas longas, equivalentes aos detentos da katorga soviética eram enviados a esses campos para morrer. Embora trabalhassem extraindo urânio para o projeto da bomba atômica soviética, não recebiam roupas especiais nem proteção de espécie alguma. Sabe-se que o índice de mortalidade era alto, embora os números exatos ainda sejam desconhecidos.[162]

Na Polônia, a situação era mais complicada. No final da guerra, uma proporção significativa de poloneses vivia em alguma espécie de campo, fosse um campo para desalojados (judeus, ucranianos, antigos trabalhadores escravos dos nazistas), um campo de detenção (alemães e Volksdeutsche, poloneses que alegavam ter ascendência germânica) ou um campo de prisioneiros. O Exército Vermelho montou campos de prisioneiros de guerra na Polônia e os encheu não apenas com alemães, mas também com integrantes do Exército da Pátria a caminho da deportação soviética. Em 1954, 84.200 prisioneiros políticos ainda estavam encarcerados na Polônia.[163]

Também existiam campos na Romênia, na Bulgária e - apesar da reputação de anti-soviético - na Iugoslávia de Tito. Como os campos da Europa central, no início os campos dos Bálcãs eram parecidos com os do Gulag, mas com o tempo começaram a ficar diferentes. A maioria fora criada pela polícia local com orientação dos soviéticos. A policia secreta romena, a Securitate, parece ter trabalhado sob as ordens diretas das congêneres soviéticas. Por essa razão, talvez, os campos romenos sejam os que mais lembravam o Gulag, ao ponto de levarem a cabo projetos ambiciosos e absurdos como os que o próprio Stalin privilegiava na União Soviética. O mais famoso, o Canal Mar Negro-Danúbio, aparentemente não teve função econômica. Até hoje ele esta totalmente vazio e abandonado, como o Canal do Mar Branco, com quem tanto se assemelha. Um slogan de propaganda declarava que o "Canal Mar Negro-Danúbio é o túmulo da burguesia romena!" Como cerca de 200 mil pessoas devem ter morrido em sua construção, esse pode ter sido de fato seu real objetivo.[164]

Os campos da Bulgária e da Iugoslávia tinham um espírito diferente. A polícia búlgara parecia menos preocupada em desempenhar um plano e mais interessada em punir os presos. Uma atriz búlgara que sobreviveu a um desses locais contou como foi espancada até quase morrer depois de sucumbir ao calor:

Cobriram-me com trapos e me deixaram sozinha. No dia seguinte, todos foram para o trabalho, enquanto eu fiquei trancada o dia todo, sem comida nem remédio. Estava fraca demais para levantar, por causa dos machucados e de tudo que eu tinha passado no dia anterior. Fui brutalmente espancada. Fiquei em coma por catorze horas e sobrevivi graças a um milagre.[165]

Ela também viu pai e filho serem espancados até a morte um na rente do outro, apenas para satisfazer ao sadismo dos que batiam. Outros sobreviventes dos campos búlgaros descrevem como eram atormentados pelo calor, pelo frio, pela fome e por abusos físicos.[166] A localização desses campos, mais ao sul, também trazia outros tipos de sofrimento: entre os mais infames campos iugoslavos estava um construído na ilha de Saint-Gregoire, no mar Adriático, onde a água era escassa e o principal tormento era a sede.[167]

Ao contrário do Gulag, a maioria desses campos não durou, e muitos fecharam antes ainda da morte de Stalin. De fato, os spetslagerya da Alemanha Oriental foram desativados em 1950, principalmente porque contribuíam para a grande impopularidade do Partido Comunista da Alemanha Oriental. A fim de melhorar a imagem do novo regime e de impedir que os alemães fugissem para o Ocidente, o que ainda era possível na época -, a polícia secreta da Alemanha Oriental cuidou da saúde dos prisioneiros antes de libertá-los e deu-lhes roupas novas. Nem todos foram soltos: aqueles tidos como os mais sérios oponentes da nova ordem foram, como os poloneses presos nesse período, deportados para a União Soviética. Membros dos batalhões de sepultamento dos spetslagerya também parecem ter sido deportados. Do contrário, eles poderiam ter exposto a existência de sepulturas coletivas nos campos, que só foram localizadas e exumadas nos anos 1990.[168]

Os campos tchecos também não duraram: eles alcançaram o apogeu em 1949 e começaram a encolher até desaparecer completamente. O líder húngaro Imre Nagy extinguiu os campos do país logo após a morte de Stalin, em julho de 1953. Os comunistas búlgaros, por outro lado, mantiveram vários campos de trabalho forçado até os anos 1970, muito tempo depois de o sistema de campos soviéticos ter sido desmontado. Lovech, um dos campos mais cruéis no país, funcionou de 1959 a 1962.[169]

Inesperadamente, a exportação da política do Gulag obteve o impacto mais duradouro fora da Europa. No início dos anos 1950, no auge da colaboração sino-soviética, "especialistas" soviéticos ajudaram a criar vários campos chineses e organizaram brigadas de trabalho forçado nas minas de carvão de Fushun. Os campos chineses - laogai -ainda existem, embora pouco lembrem os campos stalinistas que emulavam. Ainda são campos de trabalho - e uma condenação a um deles costuma ser seguida por um período de degredo, como no sistema de Stalin -, mas os comandantes parecem menos obcecados com normas e planejamentos centrais. Em vez disso, concentram-se numa forma rígida de "reeducação". A expiação dos prisioneiros e sua degradação ritual diante do Partido parecem importar tanto às autoridades - se não mais - quanto os bens que eles conseguem produzir.[170]

No final, os detalhes da vida diária nos campos dos países satélites e dos aliados da União Soviética - para que serviam, quanto tempo duravam, o nível de rigidez ou desorganização, de crueldade ou liberalismo - dependiam da cultura específica de cada país. Como se descobriu, era relativamente fácil alterar o modelo soviético para ir ao encontro das próprias necessidades. Ou talvez eu deva dizer que é relativamente fácil. O trecho a seguir, extraído de uma antologia publicada em 1998, descreve uma experiência ainda mais recente num campo de concentração no último país comunista em território eurasiano:

No primeiro dia - eu tinha nove anos -, recebi uma cota. A primeira tarefa que tive de cumprir foi caminhar até as montanhas, apanhar lenha e levar um grande carregamento para a escola. Me mandaram repetir a tarefa dez vezes. A viagem de ida e volta levava três horas. Só podia ir para casa se terminasse tudo. Trabalhei a noite toda, ate depois da meia-noite, e, quando acabei, caí no chão. Naturalmente, as crianças que estavam lá havia mais tempo eram mais rápidas [...]

Também tínhamos de garimpar ouro na areia do rio, com uma rede que sacudíamos e lavávamos. Isso era bem mais fácil; quando dávamos a sorte de completar a cota mais cedo, brincávamos um pouco, em vez de dizer ao professor que já tínhamos terminado [...].[171]

O escritor Chul Hwan Kong desertou da Coréia em 1992. Antes, passou dez anos, junto com toda a família, num campo de punição. Um grupo de direitos humanos de Seul estima que cerca de 200 mil norte-coreanos ainda vivem em campos semelhantes, por "crimes" como ler jornais estrangeiros, escutar rádios estrangeiras, conversar com estrangeiros ou, de algum modo, "desacatar a autoridade" dos líderes da Coréia do Norte. Cerca de 400 mil prisioneiros teriam morrido nesses campos.[172]

Mas os campos norte-coreanos não estão confinados à Coréia do Norte. Em 2001, o Moscow Times anunciou que o governo norte-coreano pagava a dívida com a Rússia enviando mão-de-obra para os campos de mineração e derrubada de madeira, fortemente guardados, em regiões isoladas da Sibéria. Esses campos - "um Estado dentro do Estado" - dispunham de redes internas de distribuição de comida, prisões e guardas próprios. Estima-se que houvesse ali 6 mil trabalhadores. Não se sabe se eles eram pagos ou não - mas com certeza não eram livres para partir.[173]

A concepção de campo de concentração não era apenas universal o bastante para ser exportada, mas também resistente ao ponto de durar até o presente.

 

  1. O APOGEU DO COMPLEXO INDUSTRIAL DE CAMPOS

 

Aos dezessete, amávamos estudar.

Aos vinte, aprendemos a morrer.

Saber que nos deixaram viver significa que nada aconteceu - ainda.

Aos vinte e cinco, aprendemos a trocar

A vida por peixe seco, lenha e batatas [...]

O que sobrou para os quarenta?

Pulamos tantas páginas

Quem sabe aprendemos que a vida é curta –

Mas isso sabíamos aos vinte [...]

Mikhail Frolovsky, "Minha geração".[174]

 

Enquanto isso, 1949, irmão gêmeo de 1937, avançava em nosso território, em toda a Europa Oriental, e, antes de tudo, nos locais de prisão e degredo [...}

Evgeniya Ginzburg, No olho do furacão.[175]

Com o fim da guerra vieram as paradas da vitória - reuniões sentimentais - e a convicção generalizada de que a vida seria, e deveria ser, mais fácil. Milhões de homens e mulheres suportaram privações terríveis para vencer a guerra. Agora desejavam uma vida mais fácil. No campo, os boatos da extinção das fazendas coletivas se espalharam rapidamente. Na cidades, a população reclamava abertamente dos preços cobrados pela comida racionada. A guerra também expusera milhões de cidadãos soviéticos, soldados e trabalhadores escravos, à vida relativamente luxuosa do Ocidente, e agora o regime soviético não podia mais alegar, como já fizera, que os trabalhadores ocidentais eram muito mais pobres que os soviéticos.[176]

Várias autoridades também sentiam que era hora de reorientar a produção soviética para os bens de consumo de que as pessoas precisavam desesperadamente, em vez de fabricar armamentos. Num telefonema particular entre dois generais soviéticos, gravado e registrado para a posteridade pela polícia secreta, um deles disse que "Todo mundo diz abertamente que todos estão descontentes. Nos trens, em todo lugar, na verdade, é o que todos dizem".[177] Com certeza, o general especulava, Stalin também sabia disso e logo tomaria uma providência. Na primavera de 1945, os prisioneiros também estavam esperançosos. Em janeiro daquele ano, as autoridades tinham declarado outra anistia geral para as mulheres grávidas ou que tivessem filhos pequenos, e elas foram libertadas em grande número - 734.785 em julho, mais precisamente.[178] As restrições da guerra tinham sido afrouxadas, e os prisioneiros voltaram a receber comida e roupas da família. A anistia para as mulheres - que naturalmente excluía as prisioneiras políticas - não representava uma mudança de idéia; era apenas uma resposta ao aumento vertiginoso da quantidade de órfãos e aos problemas que ele acarretava, como os meninos de rua, o vandalismo e o surgimento de gangues de crianças por toda a URSS: com relutância, as autoridades reconheceram que a solução passava pelas mães. A suspensão das restrições à entrada de pacotes nos campos também não tinha nada a ver com bondade, era apenas uma tentativa de amenizar o impacto da fome pós-guerra: se eles não podiam alimentar os prisioneiros, por que não deixar que as famílias ajudassem? Uma dura diretriz central declarou que "na questão da comida e das roupas dos prisioneiros, os pacotes e as ordens de pagamento devem ser tratados como um importante suplemento".[179] Ainda assim, muitos ficavam esperançosos com esses decretos, interpretando-os como arautos de uma nova era, uma era menos rígida.

Não seria assim. Um ano depois da vitória começou a Guerra Fria. As bombas atômicas que os americanos lançaram sobre Hiroshima e Nagasaki persuadiram os líderes soviéticos de que a economia do país deveria se dedicar irrestritamente à produção militar e industrial e não à manufatura de refrigeradores e sapatos infantis. Apesar da devastação causada por cinco anos e meio de batalhas, os planejadores soviéticos tentaram com todo o afinco economizar e construir rapidamente - e utilizar o máximo possível o trabalho forçado.[180]

A emergência de uma nova ameaça à União Soviética servia aos propósitos de Stalin: essa era a desculpa de que precisava para voltar a apertar o controle sobre a população depois de ela ter sido exposta à influência corruptora do mundo externo. Portanto, ele ordenou aos subordinados que "dessem um golpe duro" no falatório sobre democracia, antes mesmo que tal falatório se espalhasse.[181] Ele também fortaleceu e reorganizou a NKVD, que foi dividida em dois órgãos, em março de 1956. O Ministério de Assuntos Internos - ou MVD - continuava a controlar o Gulag e as aldeias de degredo, tornando-se, na prática, o ministério do trabalho forçado. O outro órgão, mais glamoroso - o MGB, mais tarde chamado de KGB -, controlaria a contra-inteligência e a inteligência estrangeira, os guardas da fronteira e, em última análise, a vigilância dos oponentes do regime.[182]

Finalmente, em vez de diminuir a repressão depois da guerra, os líderes soviéticos embarcaram numa nova série de prisões, mais uma vez atacando o exército e algumas minorias étnicas, como os judeus soviéticos. Uma a uma, a polícia secreta "descobriu" conspirações anti-stalinistas em quase todas as cidades do país.[183] Em 1947, novas leis proibiram o casamento - e, na prática, qualquer relacionamento afetivo - entre cidadãos soviéticos e estrangeiros. Os acadêmicos que compartilhassem informações científicas com colegas no estrangeiro também estavam sujeitos a processos criminais. Em 1948, as autoridades recolheram 23 mil agricultores. Todos foram acusados de não trabalhar o número obrigatório de dias no ano anterior e foram degredados em áreas remotas, sem investigação nem julgamento.[184]

Existem provas de algumas prisões menos comuns no final dos anos 1940. Segundo o interrogatório de um prisioneiro de guerra alemão recentemente aberto ao público, dois pilotos americanos podem ter acabado no Gulag depois da guerra. Em 1954, o ex-prisioneiro alemão disse aos investigadores americanos que tinha encontrado dois integrantes da força aérea americana no campo de prisioneiros na região de Komi, perto de Ukhta, em 1949. Eles pilotavam o avião que caíra perto de Kharkov, na Ucrânia. Foram acusados de espionagem e colocados no que parece ser, pela descrição do alemão, uma unidade da katorga. Um deles teria morrido no campo, assassinado por um criminoso comum. O outro foi levado depois, supostamente para Moscou.[185]

Rumores vagos, ainda mais torturantes, circulavam na região de Komi. Segundo a lenda local, outro grupo de ingleses, ou pelo menos de falantes de inglês, foi preso num lagpunkt - Sedvozh, também perto de Ukhta - nos anos 1940. Segundo o relato de um morador, os ingleses eram espiões lançados de pára-quedas na Alemanha no fina da guerra. O Exército Vermelho capturou-os, interrogou-os e deportou-os para o Gulag secretamente, afinal a URSS e a Grã-Bretanha tinham sido aliadas na guerra. Os indícios de sua presença são exíguos: um lagpunkt que chamavam de "Angliiskaya Koloniya", "Colônia Inglesa", e uma única referência nos arquivos militares de Moscou a "dez escoceses", seja lá o que isso quer dizer, num campo de prisioneiros de guerra da região.[186]

Graças a esses acréscimos, o Gulag não diminuiu depois da guerra. Ao contrário, ele se expandiu e atingiu o apogeu no início dos anos 1950. Segundo as estatísticas oficiais, a 1º de janeiro de 1950, o Gulag mantinha 2.561.351 prisioneiros em campos e colônias - 1 milhão a mais do que havia cinco anos antes, em 1945.[187] A quantidade de degredados especiais também aumentou, devido às grandes operações de deportação nos países bálticos, na Moldávia e na Ucrânia, deliberada-mente pensadas para completar a "sovietização" dessas populações. E, mais ou menos na mesma época, a NKVD resolveu de uma vez por todas a espinhosa questão do futuro dos degredados, decretando que todos haviam sido deportados "perpetuamente" - junto com os filhos. Na década de 1950, o número de degredados era equivalente ao de prisioneiros nos campos.[188]

A segunda metade de 1948 e a primeira metade de 1949 trouxeram outra tragédia inesperada para os antigos detentos do Gulag: uma série de prisões, ou recapturas, melhor dizendo, de ex-prisioneiros, em sua maioria da leva que havia sido encarcerada em 1937 e 1938, recebido penas de dez anos e recentemente libertada. As recapturas eram sistemáticas, meticulosas, e, curiosamente, não havia derramamento de sangue. As novas investigações eram raras, e a maior parte dos presos passava apenas por um interrogatório superficial.[189] A comunidade de degredados de Magadan e do vale de Kolyma soube que algo estava errado quando ouviu falar da prisão de antigos "políticos" cujos nomes começavam com as primeiras três letras do alfabeto russo: a polícia secreta, eles perceberam, estava recapturando as pessoas em ordem alfabética.[190] Seria engraçado, se não fosse trágico. Evgeniya Ginzburg escreveu que, enquanto "em 1937 o mal tinha assumido uma aparência monumentalmente trágica [...] em 1949, a Serpente da Geórgia, bocejando de saciedade, redigia despreocupadamente a lista dos que seriam exterminados [...]".[191]

A esmagadora maioria dos recapturados expressa sentimentos de indiferença. A primeira prisão fora um choque, mas também um aprendizado: muitos foram obrigados a encarar a verdade sobre seu sistema político pela primeira vez. A segunda prisão não trazia nenhum conhecimento novo. "Em 49 eu já sabia que o sofrimento purifica até certo ponto. Quando ele se arrasta por décadas e se torna rotineiro, deixa de purificar; ele simplesmente amortece todas as sensações", escreveu Ginzburg: "após minha segunda prisão, eu com certeza me transformaria num pedaço de madeira".[192]

Quando a polícia foi atrás dela pela segunda vez, Olga Adamova-Sliozberg encaminhou-se ao armário para fazer as malas, então parou. "Por que me dar ao trabalho de levar alguma coisa? As crianças podem fazer melhor uso dos meus pertences", pensou. "É claro que desta vez não vou sobreviver; como iria suportar?"[193] A esposa de Lev Razgon foi recapturada, e ele exigiu que a razão fosse explicada. Quando soube que ela havia sido condenada pelos mesmos crimes de antes, pediu mais explicações:

"Ela já cumpriu a pena. A lei permite que uma pessoa seja punida duas vezes pelo mesmo delito?"

O procurador me olhou, espantado.

"É claro que não. Mas o que a lei tem a ver com isto?"[194]

A maior parte dos recapturados não foi enviada de volta aos campos, mas ao degredo, em geral em regiões especialmente remotas e despovoadas do país: Kolyma, Krasnoyarsk, Novosibirsk, Casaquistão.[195] Ali eles viviam num tédio implacável. Como eram considerados "inimigos" pela população local, tinham dificuldade para encontrar moradia e trabalho. Ninguém queria ser associado a espiões ou sabotadores.

Para as vítimas, os planos de Stalin pareciam bastante claros: aqueles que recebessem uma condenação por espionagem, sabotagem ou qualquer forma de oposição política jamais teriam permissão para voltar para casa. Se fossem libertados, receberiam "passaportes de lobo", que os proibia de viver perto das grandes cidades, e estariam constantemente sujeitos a uma nova prisão.[196] O Gulag e o sistema de degredo que o complementava não eram mais castigos temporários. Haviam se tornado o estilo de vida dos que a eles foram condenados. Ainda assim, a guerra realmente teve um impacto duradouro sobre o sistema de campos, muito embora seja difícil quantificá-lo. As regras e os regulamentos não foram liberalizados logo após a vitória, mas os prisioneiros haviam mudado, especialmente os presos políticos.

Para começar, eles eram em maior número, graças às sublevações demográficas dos anos de guerra e às anistias, das quais sempre foram excluídos. Em 1o de julho de 1946, mais de 35% dos prisioneiros de todo o sistema haviam sido condenados por crimes "contra-revolucionários". Em determinados campos a porcentagem era ainda mais alia, acima da metade.[197]

Embora a quantidade geral viesse a cair novamente, a posição dos presos políticos também tinha mudado. Os que foram presos nos anos 1930, especialmente em 1937 e 1938, eram intelectuais, membros do Partido e trabalhadores comuns. A maior parte ficou chocada com a prisão, não tinha preparo psicológico para a vida na cadeia nem preparo físico para o trabalho forçado. Nos anos que se seguiram à guerra, entretanto, os presos políticos passaram a incluir ex-soldados do Exército Vermelho, oficiais do Exército da Pátria, guerrilheiros ucranianos e bálticos e prisioneiros de guerra alemães e japoneses. Esses homens e essas mulheres tinham lutado em trincheiras, conspirado, comandado tropas. Alguns eram sobreviventes dos campos alemães; outros haviam liderado grupos de guerrilheiros. Muitos eram abertamente anti-soviéticos ou anticomunistas e não se surpreenderam nem um pouco ao se ver atrás das cercas de arame farpado, como um deles recorda: "Depois de olhar a morte nos olhos, de passar pelos fogos e pelo inferno da guerra, de sobreviver à fome e à tragédia, essa era uma geração completamente diferente dos detentos do período anterior ao conflito".[198]

Tão logo começou a aparecer nos campos, essa nova espécie de prisioneiro começou a causar problemas para as autoridades. Em 1947, os criminosos de carreira já não os dominavam com tanta facilidade. Entre as várias tribos criminosas que comandavam a vida nos campos, um novo clã surgiu: os krasnye shapochki, ou "chapéus vermelhos". Em geral, o grupo era formado por ex-soldados ou ex-guerrilheiros que se juntaram para lutar contra a dominação dos mafiosos - e, por extensão, contra a administração que os tolerava. Apesar de todos os esforços empreendidos para desmantelá-los, esses grupos continuaram em atividade por muito tempo na década seguinte. No inverno de 1954-55, Viktor Bulgakov, então prisioneiro em Inta, um campo de mineração no extremo norte, na região de Vorkuta, testemunhou uma tentativa da administração de "dissolver" um grupo de presos políticos com a admissão de sessenta mafiosos no campo. Os mafiosos se armaram e se prepararam para atacar os presos políticos:

De repente, eles conseguiram armas brancas [facas], como era de se esperar nesse tipo de situação [...] soubemos que tinham roubado o dinheiro e os pertences de um velho. Pedimos que devolvessem as coisas, mas eles não estavam acostumados a devolver nada. Então, por volta das duas horas da manhã, quando estava clareando, cercamos o alojamento deles por todos os lados e atacamos. Começamos a bater neles, e batemos até não conseguirem mais se levantar. Um pulou pela janela [...] correu para o vakhta e caiu na soleira. Porém, quando o guarda chegou não havia mais ninguém [...] Eles retiraram os mafiosos da área.[199]

Um incidente semelhante aconteceu em Norilsk, como recorda um prisioneiro:

Um grupo de mafiosos chegou a um lagpunkt só de presos políticos e começou a tentar impor o próprio sistema. Os prisioneiros, todos ex-oficiais do Exército Vermelho, fizeram picadinho deles, mesmo sem armas. Gritando como loucos, os mafiosos que sobraram correram para os guardas e para os oficiais, implorando por socorro.[200]

Até as mulheres haviam mudado. Cansada de ser intimidada, uma prisioneira política disse a um grupo de ladras que se não devolvessem o dinheiro que tinham roubado, "vamos jogar vocês e seus trapos lá fora, e vocês vão dormir ao relento". As ladras devolveram o dinheiro.[201]

Naturalmente, nem sempre os mafiosos perdiam. Num incidente em Vyatlag, uma batalha entre os dois grupos terminou com a morte de nove presos políticos. Os mafiosos exigiram 25 rublos de cada prisioneiro e simplesmente assassinaram quem se recusou a pagar.[202]

As autoridades prestavam atenção. Se os prisioneiros políticos se juntavam para combater os mafiosos, podiam também se juntar para combater a administração do campo. Em 1948, prevendo uma rebelião, os chefes do Gulag em Moscou ordenaram que os presos políticos "mais perigosos" fossem colocados em um novo grupo de "campos especiais" (psobye lagerya). Especialmente projetados para "espiões, diversionistas, terroristas, trotskistas, direitistas, mencheviques, social-revolucionários, anarquistas, nacionalistas, russos brancos e integrantes de outras organizações anti-soviéticas", os campos especiais eram, na verdade, uma extensão do regime da katorga, e apresentavam varias características iguais: os uniformes listrados; os números na testa, nas costas e no peito; as janelas gradeadas; e os alojamentos trancados a noite. A comunicação dos prisioneiros com o mundo externo era mínima, em alguns casos, apenas uma ou duas cartas por ano. A correspondência com pessoas que não fossem da família era estritamente proibida. A jornada de trabalho era de dez horas diárias, e os prisioneiros só podiam executar tarefas braçais. O atendimento médico era mínimo: nenhum "campo para inválidos" foi criado nos complexos dos campos especiais.[203]

Como os lagpunkts da katorga, aos quais logo se sobrepuseram, os campos especiais foram criados apenas nas regiões mais inóspitas do país, em Inta,Vorkuta, Norilsk e Kolyma - todos campos de mineração perto ou acima do Círculo Ártico -, assim como no deserto do Casaquistão e nas florestas geladas da Mordóvia. Com efeito, eram campos dentro dos campos, já que muitos se localizavam em complexos de trabalho forçado que já existiam. Uma única coisa os distinguia. Numa atitude surpreendentemente poética, as autoridades do Gulag batizaram-nos com nomes oriundos do mundo natural: Mineral, Montanha, Carvalho, Estepe, Litoral, Rio, Lago, Areia e Prado, entre outros. Presumivelmente, o objetivo era esconder a natureza dos campos, pois não havia nenhum carvalho no campo Carvalho e certamente não havia nenhum litoral no campo que ostentava esse nome. E claro que logo os nomes foram abreviados, como era o costume soviético, para Minlag, Gorlag, Dubravlag, Steplag e assim por diante. No início de 1953, os dez campos especiais contavam com 210 mil detentos.[204]

No entanto, o isolamento dos presos políticos "mais perigosos" não os tornou mais dóceis. Ao contrário, os campos especiais livraram esses prisioneiros dos conflitos com os criminosos comuns e da influência apaziguadora dos outros detentos. Sozinhos, sua oposição ao sistema só fez crescer: estavam em 1948 e não em 1937. No final, embarcariam numa batalha longa, determinada e sem precedentes contra as autoridades.

À medida que os mecanismos repressivos recrudesceram, os prisioneiros políticos deixaram de ser os únicos a merecer atenção. Agora que os lucros eram mais importantes do que nunca, os chefes do Gulag começaram a reexaminar sua postura em relação aos criminosos de carreira. A corrupção, a preguiça e o comportamento ameaçador deles em relação aos guardas prejudicava a produtividade dos campos. Agora que eles não controlavam os presos políticos, não ofereciam nenhum benefício. Os criminosos comuns jamais atrairiam a mesma inimizade que os presos políticos, nem receberiam o mesmo tratamento odioso dos guardas do campo, mas, ainda assim, depois da guerra, os líderes do Gulag decidiram pôr um fim ao seu reinado - e a eliminar de vez os mafiosos que se recusavam a trabalhar.

Na prática, a guerra contra os mafiosos foi ao mesmo tempo aberta e velada. Para começar, os criminosos de carreira mais perigosos e devotados foram simplesmente separados dos outros detentos e condenados a penas mais longas - dez, quinze, 25 anos.[205] No inverno de 1948, o Gulag também requisitou a criação de uma série de lagpunkts de regime rígido para os criminosos reincidentes. De acordo com as instruções de Moscou, apenas os guardas mais disciplinados e "com melhor saúde física" poderiam trabalhar nesses lagpunkts, que deveriam receber cercas particularmente altas e reforçadas. Instruções à parte ofereciam as especificações. O Gulag determinou a criação imediata de 27 desses campos, com espaço para mais de 115 mil presos.[206]

Infelizmente, muito pouco se sabe sobre a vida nesses lagpunkts de castigo, ou se todos chegaram a ser criados: caso tenham sobrevivido, esses criminosos seriam ainda menos propensos a escrever as memórias do que os colegas dos campos comuns. Na prática, porém, a maioria dos campos dispunha de alguma forma de isolamento para os criminosos mais perigosos, e, devido a um grande azar, Evgeniya Ginzburg descobriu-se em um deles por um breve período: lzvestkovaya, um lagpunkt de castigo em Kolyma. Ela era a única prisioneira política em meio a um grupo de criminosas comuns.

Durante sua estada em lzvestkovaya, Ginzburg passava os dias numa pedreira de calcário. Como não conseguia cumprir a norma, não recebia comida alguma. Nas primeiras noites, ela se sentava "totalmente ereta" no canto do alojamento, pois não havia espaço nos beliches, e observava as mulheres, em sua maioria nuas, beber uma imitação de álcool no cômodo superaquecido. Mais tarde, uma das mulheres, uma sifilítica nos estágios finais da doença, abriu espaço para Ginzburg e permitiu que ela se deitasse, mas isso não foi muito reconfortante. "O odor insuportável de putrefação" que vinha do nariz esfacelado da mulher quase a sufocou. "Em lzvestkovaya, como no mais real dos infernos, não se tratava apenas de não haver dia nem noite, não havia sequer um temperatura intermediária para tornar a existência suportável. Era o frio glacial da pedreira de calcário ou o caldeirão infernal da cabana".

Nesse campo, Ginzburg quase foi estuprada. Certa noite, os guardas do campo, que estavam "muito, muito distantes dos chefes", irromperam no alojamento e começaram a atacar as mulheres. Outra vez, um deles jogou-lhe um inesperado pedaço de pão. A administração do campo estava à espera de uma equipe de inspeção e temia que ela morresse. "Com o isolamento total, a gula, o álcool e as escaramuças constantes com as garotas, nossos soldados estavam completamente desorientados e mal sabiam o que poderia comprometê-los. Com certeza eles não precisavam de um atestado de óbito."[207]

Mas ela escapou. Com a ajuda de amigos, usando a influência da faxineira do chefe de Sewostlag, nada menos, Ginzburg conseguiu a transferência para outro campo. As outras não teriam tanta sorte.

No entanto, os regimes mais rígidos e as penas mais longas não eram a única arma da administração contra os líderes criminosos. Em toda a Europa central, o grande trunfo da União Soviética como força de ocupação era sua capacidade de corromper as elites locais, transformando-as em colaboradores que, de boa vontade, oprimiam a própria população. A mesma técnica foi utilizada para controlar a elite dos criminosos nos campos. A abordagem foi direta: ofereceram privilégios e tratamento especial aos criminosos de carreira - os mafiosos - que abandonassem seu código de conduta e colaborassem com as autoridades. Os que aceitaram a oferta receberam total liberdade para abusar dos antigos camaradas, inclusive para torturá-los e matá-los, enquanto os guardas do campo olhavam para outro lado. Esses criminosos colaboracionistas totalmente corrompidos ficaram conhecidos como suki, ou "cachorros", e as brigas violentas que irromperam entre eles e os outros criminosos de carreira vieram a ser chamadas de "guerra entre cachorros e mafiosos".

Como a luta dos presos políticos pela sobrevivência, a guerra dos mafiosos foi um dos elementos que caracterizaram a vida nos campos no pós-guerra. Embora os conflitos entre grupos criminosos acontecessem antes, nenhum tinha sido tão selvagem, nem tão clara e abertamente provocado: em 1948, batalhas isoladas irromperam simultaneamente em todo o sistema, deixando pouca dúvida sobre o papel desempenhado pelas autoridades.[208] Muitos, muitos memorialistas registraram momentos dessas batalhas, embora mais uma vez a maioria não tenha participado delas. Ao contrário, assistiram a tudo como observadores horrorizados e às vezes como vítimas. "Os cachorros e os mafiosos lutavam até a morte", escreveu Anatolii Zhigulin:

Os mafiosos que se achavam num lagpunkt de cachorros freqüentemente enfrentavam um dilema se não conseguissem se esconder num alojamento de castigo: morrer ou tornar-se um cachorro. Do mesmo modo, se um grande grupo de mafiosos chegasse a um lagpunkt, todos os cachorros se escondiam nos alojamentos de castigo, pois o poder havia trocado de mãos [...] quando o regime mudava, os resultados costumavam ser sangrentos.[209]

Um mafioso disse a um prisioneiro que todos os cachorros eram "homens mortos, condenados por nós, e na primeira oportunidade um blatnoi [mafioso] os mataria".[210] Outro presenciou as conseqüências de uma das brigas:

Depois de uma hora e meia, os mafiosos do nosso grupo foram carregados e jogados no chão. Estavam irreconhecíveis. Suas belas roupas haviam sido rasgadas e removidas. Em troca, receberam jaquetas do campo esfarrapadas e, no lugar das botas, uma proteção para os pés. Apanharam como animais, muitos perderam os dentes. Um deles não conseguia erguer o braço: tinha sido quebrado com um cano de ferro.[211]

Leonid Sitko testemunhou o início de uma briga particularmente selvagem:

Um guarda veio pelo corredor e gritou 'Guerra! Guerra!'. Na seqüência, todos os mafiosos, menos numerosos que os cachorros, correram para se esconder nas solitárias. Os cachorros foram atrás e assassinaram vários. Então os guardas ajudaram os restantes a se esconder, pois não queriam que todos morressem, e no dia seguinte tiraram-nos do campo às escondidas.[212]

Às vezes, os prisioneiros não-mafiosos também se envolviam nas brigas, especialmente quando os comandantes do campo garantiam amplos poderes aos cachorros. Embora "não valha a pena tratar com romantismo os mafiosos e suas leis, que é o que eles fazem", Zhigulin continuou:

Os cachorros eram verdadeiramente terríveis para os prisioneiros comuns dos campos e das cadeias. Eles serviam fielmente aos diretores das prisões, desempenhavam o papel de capatazes, comandantes e líderes de brigadas. Tratavam os trabalhadores comuns com bestialidade, espoliavam-nos de seus pertences, arrancavam suas roupas. Os cachorros não eram apenas informantes: eles cometiam assassinatos em conluio com os diretores do campo. A vida dos prisioneiros nos campos controlados pelos cachorros era mesmo difícil.

Ainda assim, estávamos no pós-guerra, e os prisioneiros políticos não eram mais indefesos diante dessas agressões. No campo de Zhigulin, um grupo de ex-soldados do Exército Vermelho conseguiu primeiro espancar o séquito do odiado líder dos cachorros do lagpunkt e depois matar o próprio líder, amarrando-o a uma das máquinas de serrar madeira. Quando o resto dos cachorros se trancou nos alojamentos, os presos políticos enviaram uma mensagem: cortem a cabeça do substituto do homem, mostrem-na pela janela, e não matamos vocês. Assim eles fizeram. "Obviamente, a própria vida era mais importante do que a cabeça do líder."[213]

A guerra aberta tornou-se tão detestável que até as autoridades acabaram por se cansar dela. Em 1954, o MVD propôs que os comandantes dos campos designassem "campos separados para a incineração de tipos específicos de reincidentes" sob ameaça. O "isolamento de grupos hostis" era a única maneira de evitar o derramamento de sangue generalizado. A guerra começara porque as autoridades queriam controlar os mafiosos - e foi encerrada porque as autoridades perderam o controle sobre ela.[214]

No início dos anos 1950, os senhores do Gulag viram-se diante de uma situação paradoxal. Eles queriam dar uma dura nos criminosos reincidentes, aumentar a produção e assegurar o funcionamento tranqüilo dos negócios do campo. Queriam isolar os contra-revolucionários e impedi-los de infectar os outros prisioneiros com seus pontos de vista perigosos. Ao aumentar a repressão, no entanto, dificultaram ainda mais a própria tarefa. A rebeldia dos presos políticos e a guerra entre os criminosos acelerou o início de uma crise ainda mais profunda: finalmente ficou claro para as autoridades que os campos eram dispendiosos, corruptos e, acima, de tudo, não davam lucro.

Ou melhor, ficou claro para todos, exceto para Stalin. Mais uma vez, sua mania de repressão e sua dedicação à economia do trabalho escravo eram tão imbricadas que era difícil aos observadores da época dizer se ele aumentava as ordens de prisão para construir mais campos ou se construía mais campos a fim de acomodar aquela quantidade de presos.[215] Ao longo de toda a década de 1940, Stalin insistiu em dar ainda mais poder econômico ao MVD. Tanto que, em 1952, no ano anterior à sua morte, o MVD controlava 9% dos investimentos da Rússia, mais do que todos os outros ministérios. O Plano Qüinqüenal de 1951 a 1955 solicitava que esses recursos mais do que dobrassem.[216] Mais uma vez, Stalin deslanchou uma série de projetos de construção espetaculares e chamativos no Gulag, que lembravam os que

havia patrocinado nos anos 1930. Por causa da insistência direta de Stalin, o MVD construiu uma nova fábrica de asbesto, um projeto que demandava um alto grau de especialização tecnológica, precisamente o tipo de coisa que o Gulag não conseguia fornecer direito. Stalin também defendia pessoalmente a construção de uma nova ferrovia através da tundra ártica, de Salekhard a Igarka - um projeto que ficou conhecido como "A Estrada da Morte".[217] O final da década de 1940 também foi a era dos canais Volga-Don, Volga-Báltico e Grande Turcomano e das estações hidrelétricas de Estalingrado e Kuibyshev, a maior do mundo. Em 1950, o MVD também iniciou a construção de um túnel e de uma linha de trem para a ilha Sacalina, um projeto que empregaria dezenas de milhares de prisioneiros.[218]

Dessa vez, não havia nenhum Gorki para tecer louvores às novas obras soviéticas. Ao contrário, esses projetos foram considerados um grandioso desperdício. Embora não tenham enfrentado objeções abertas enquanto Stalin vivia, vários deles, inclusive a Estrada da Morte e o túnel para Sacalina, foram abortados dias depois da morte dele. A inutilidade cabal dessas obras fora compreendida, como provam os arquivos do próprio Gulag. Uma inspeção realizada em 1951 mostrou que os 83 quilômetros de uma ferrovia no extremo norte, construída a preços altos e ao custo de muitas vidas, não eram usados havia três anos. Outros 370 quilômetros de uma estrada igualmente cara não eram usados havia dezoito meses.[219]

Em 1953, outra inspeção, dessa vez conduzida a pedido do Comitê Central, mostrou que o custo de manutenção dos campos excedia em muito os lucros auferidos do trabalho dos prisioneiros. Em 1952, na verdade, o Estado subsidiara o Gulag com 2,3 milhões de rublos, mais de 16% de toda a verba orçamentária.[220] Um historiador russo observou que todos os memorandos do MVD sobre a expansão dós campos endereçados a Stalin começavam com "de acordo coro sua vontade", como que para enfatizar a sutil objeção do remetente.[221]

Os chefes do Gulag em Moscou tinham consciência da disseminação da insatisfação e da inquietude dentro dos campos. Em 1951, a recusa dos criminosos e dos presos políticos em trabalhar atingiu o ponto de uma crise: nesse ano, o MVD calculou ter perdido mais de 1 milhão de dias de trabalho com greves e protestos. Em 1952, o número dobrou. Segundo as estatísticas do próprio Gulag, em 1952, 32% dos prisioneiros não atingiu as normas de trabalho.[222] A lista das maiores greves e protestos entre 1950 e 1952, mantida pelas próprias autoridades, é surpreendentemente extensa. Entre outros, houve um levante armado em Kolyma no inverno de 1949-50; uma fuga armada de Kraslag em março de 1951; greves de fome em massa em Ukhtizhemlag e Ekibastuzlag, em Karaganda, em 1951; e uma greve em Ozerlag em 1952.[223]

A situação se tornou tão grave que, em janeiro de 1952, o comandante de Norilsk mandou uma carta ao general Ivan Dolgikh, então comandante-chefe do Gulag, listando os passos que tomara para evitar rebeliões. Ele sugeria o abandono das grandes zonas de produção onde os prisioneiros não pudessem ser supervisionados o suficiente, dobrar a quantidade de guardas (o que ele mesmo achava difícil) e isolar as várias facções de prisioneiros. Isso também seria difícil, ele escreveu: "dado o grande número de prisioneiros que pertencem a uma ou outra facção rival, teríamos sorte se conseguíssemos isolar apenas os líderes". Ele também propôs que se isolassem os trabalhadores livres dos prisioneiros nos locais de produção - e acrescentou, por fim, que seria bastante útil libertar 15 mil presos de uma só vez, pois seriam mais úteis como trabalhadores livres. Não é preciso dizer que essas sugestões colocavam em dúvida toda a lógica do trabalho forçado.[224]

Nos níveis superiores da hierarquia soviética, outros estavam de acordo. "Agora precisamos de tecnologia de ponta", Kruglov, então chefe do MVD, concedeu: obviamente, a tecnologia de terceira classe encontrada no Gulag não era mais considerada suficiente. Uma reunião do Comitê Central realizada a 25 de agosto de 1949 chegou a discutir uma carta recebida de um prisioneiro educado, identificado como Zhdanov. "A deficiência mais importante do sistema de campos é o fato de ele se apoiar no trabalho forçado", Zhadanov escreveu. "A produtividade real dos prisioneiros é muitíssimo baixa. Sob condições diferentes, metade das pessoas faria o dobro do trabalho que os prisioneiros realizam hoje." [225]

Em resposta a essa carta, Kruglov prometeu aumentar a produtividade dos prisioneiros, principalmente pela reinstituição de salários aos de alto desempenho e da política de redução de pena para quem mostrasse bons resultados. Ao que parece, ninguém ressaltou que essas práticas de "motivação" haviam sido eliminadas no final dos anos 1930 (a ultima pelo próprio Stalin) precisamente com o argumento de que diminuíam a lucratividade dos campos. Mas não importava muito, pois as mudanças faziam pouca diferença. Uma parte ínfima do dinheiro dos prisioneiros chegava aos bolsos deles: uma investigação conduzida após a morte de Stalin mostrou que o Gulag e outras instituições tinham confiscado ilegalmente 126 milhões de rublos das contas pessoais dos prisioneiros.[226] Mesmo a pequena soma de dinheiro que de fato era entregue aos detentos era provavelmente mais destruidora do que útil. Em muitos campos, os líderes criminosos criaram sistemas de proteção e coleta de dinheiro obrigando os prisioneiros dos níveis inferiores da hierarquia a pagar pelo privilégio de não apanhar nem morrer. Também tornou-se possível "comprar" cargos de confiança, cujo trabalho era mais fácil.[227] Nos campos políticos, os prisioneiros utilizavam o salário para subornar os guardas. O dinheiro também levou a vodca para os campos, e mais tarde, as drogas.[228]

A promessa de penas menores para quem trabalhasse mais pode ter ajudado a aumentar um pouco o entusiasmo dos trabalhadores. Certamente, o MVD apoiou essa política com entusiasmo, e em 1952 até propôs a libertação de uma grande quantidade de presos dos três maiores empreendimentos do norte - as minas de carvão de Vorkuta e Inta e a refinaria de óleo de Ukhtinsky - e sua utilização como trabalhadores livres. Parece que até os gerentes do MVD preferiam, simplesmente, lidar com homens livres do que com prisioneiros.[229]

A preocupação com a situação econômica dos campos era tão grande que, no outono de 1950, Beria mandou Kruglov inspecionar o Gulag e descobrir a verdade. O relatório subseqüente de Kruglov afirmava que os prisioneiros "empregados" pelo MVD não eram menos produtivos que os trabalhadores comuns. No entanto, ele reconhecia que o custo de manutenção dos prisioneiros - comida, roupas, alojamentos e, acima de tudo, guardas, agora necessários em grande número - excedia em muito o custo dos trabalhadores livres.[230]

Em outras palavras, os campos não eram lucrativos, e agora muitas pessoas sabiam disso. Ainda assim, ninguém, nem mesmo Beria, ousou tomar uma atitude enquanto Stalin ainda era vivo, o que talvez não fosse de surpreender. Qualquer integrante da roda de Stalin teria considerado os anos de 1950 a 1952 um período particularmente perigoso para dizer ao ditador que os projetos dele eram um fracasso econômico. Embora doente e moribundo, Stalin não amolecera com a idade. Ao contrário, estava cada vez mais paranóico e inclinado a enxergar conspiradores em todos os cantos. Em junho de 1951, ordenou a prisão de Abakumov, o cabeça da contra-inteligência soviética, de modo inesperado. No outono desse ano, sem nenhuma consulta anterior, ditou pessoalmente ao Comitê Central a resolução que descrevia uma "conspiração nacionalista mingrélia". Os mingrélios eram um grupo étnico da Geórgia cujo membro mais proeminente era ninguém menos que o próprio Beria. Ao longo de todo o ano de 1952, uma onda de prisões, incêndios e execuções envolveu a elite comunista da Geórgia, atingindo vários protegidos e colegas próximos de Beria. É quase certo que Stalin queria que Beria fosse o alvo final do expurgo.[231] No entanto, Beria não teria sido a última vítima da loucura final de Stalin. Em 1952, ele estava interessado em perseguir mais um grupo étnico. Em novembro desse ano, o Partido Comunista Tcheco, então no controle da Tchecoslováquia, levou catorze líderes a julgamento -onze judeus -, denunciando-os como "aventureiros sionistas". Um mês depois, Stalin afirmou numa reunião do Partido que "todo judeu é nacionalista e agente da inteligência americana". Então, a 13 de janeiro de 1953, o Pravda, o jornal do Partido Comunista, revelou a existência do Complô dos Médicos: "grupos de médicos terroristas", diziam, "-tinham decidido abreviar a vida de figuras públicas em atividade na União Soviética sabotando o tratamento médico". Entre os "médicos terroristas", seis eram judeus. Todos foram denunciados por supostas ligações com o Comitê Judeu Antifascista, cuja liderança durante a guerra - proeminentes escritores e intelectuais judeus - tinha sido condenada alguns meses antes pelo crime de promover o "cospomolitanismo".[232]

O Complô dos Médicos foi uma ironia terrível e trágica. Apenas dez anos antes, centenas de milhares de judeus soviéticos que viviam na região ocidental do país tinham sido assassinados por Hitler. Centenas de milhares mais saíram deliberadamente da Polônia para a União Soviética, fugindo dos nazistas. No entanto, Stalin passou seus últimos anos planejando outra série de julgamentos fictícios, outra onda de execuções em massa e de deportações. É possível que ele tenha até planejado deportar para a Ásia central e para a Sibéria todos os judeus residentes nas principais cidades soviéticas.[233]

O medo e a paranóia tomaram conta do país mais uma vez. Intelectuais judeus aterrorizados assinaram uma petição condenando os médicos. Mais uma centena de médicos judeus foi presa. Outros judeus perderam o emprego, enquanto uma onda de amargo anti-semitismo varria o país. Em seu degredo em Karaganda, Olga Adamova-Sliozberg soube pelas moradoras do local de pacotes enviados ao correio por pessoas com nomes judeus. Segundo se alega, eles continham bolas de algodão cheias de piolhos contaminados com tifo.[234] Em Kargopollag, no campo ao norte de Arkhangelsk, Isaak Filshtinskii também ouviu boatos de que prisioneiros judeus seriam enviados a campos especiais no extremo norte.[235]

Então, quando parecia que o Complô dos Médicos mandaria dezenas de milhares de novos prisioneiros para os campos ou para o degredo, quando o laço se apertava em torno de Beria e seus cupinchas, quando o Gulag entrou no que parecia uma crise econômica insolúvel, Stalin morreu.

 

  1. A morte de Stalin

 

Nas últimas doze horas, a falta de oxigênio se acentuou. O rosto e os lábios ficavam roxos à medida que ele era sufocado aos poucos. A agonia da morte foi terrível. Ele morreu literalmente sufocado diante de nossos olhos. Naquele que pareceu ser o momento final, ele abriu os olhos e lançou um olhar a todos os que estavam no quarto. Um olhar terrível, insano ou talvez irado, e cheio de medo da morte [...]

A filha de Stalin, Svetlana, descreve os momentos finais do pai.[236]

 

Se na década de 1930 muitos prisioneiros soviéticos acreditavam que o Gulag era um grande engano, um imenso erro que de alguma forma tinha sido escondido do olhar bondoso do camarada Stalin, nos anos 1950 poucos alimentavam essa ilusão. A opinião, conforme recorda o médico de um campo, era generalizada: "A grande maioria sabia e entendia do que o homem era feito. Eles sabiam que ele era um tirano, que trazia um grande país sob o tacão da bota e que o destino de todos os prisioneiros de alguma forma estava ligado ao destino de Stalinº.[237]

Nos últimos anos, os prisioneiros políticos esperavam e rezavam pela morte de Stalin, discutindo-a constante e sutilmente, de modo a não atrair a atenção dos informantes. Eles diziam "Ah, os georgianos vivem muito tempo", uma frase que transmitia o desejo de sua morte sem de fato cometer traição. A cautela permaneceu mesmo quando Stalin caiu doente. Maya Ulyanovskaya soube daquela que seria sua moléstia terminal por uma mulher que sabia ser informante. Ela respondeu com cuidado: "E daí? Todo mundo fica doente. Os médicos dele são bons, vão curá-lo".[238]

Quando a morte de Stalin foi finalmente anunciada, em 5 de março de 1953, alguns continuaram cautelosos. Na Mordóvia, os presos políticos tiveram o cuidado de esconder sua excitação, pois temiam que ela lhes trouxesse uma segunda condenação.[239] Em Kolyma, as mulheres "prantearam diligentemente o falecido".[240] Em um lagpunkt de Vorkuta, Pavel Negretov escutou o anúncio, lido em voz alta, no refeitório do campo. Nem o comandante que leu a notícia da morte nem os prisioneiros disseram palavra. "A novidade foi recebida com um silêncio tumular. Ninguém disse nada."[241]

Num lagpunkt de Norislk, os prisioneiros se reuniram no pátio e escutaram solenemente a notícia do falecimento do "grande líder do povo soviético e dos seres humanos livres de todos os lugares". Uma longa pausa se seguiu. Então um preso ergueu a mão: "Cidadão comandante, minha mulher me mandou um pouco de dinheiro, está em minha conta. Não preciso dele, por isso gostaria de gastá-lo numa coroa de flores para nosso amado líder. Posso?"[242]

Outros prisioneiros, no entanto, festejaram abertamente. Em Steplag, houve gritos e urros de comemoração. Em Vyatlag, os prisioneiros jogaram os bonés para o alto e gritaram "Urra!".[243] Nas ruas de Magadan, um prisioneiro cumprimentou outro: "Desejo-lhe muita alegria neste dia de ressurreição!"[244] Ele não era o único tomado por um sentimento religioso: "Tinha geado e estava tudo muito, muito quieto. Logo o céu ficaria azul. Yuri Nikolaevich ergueu os braços e declarou com fervor "Pela Rússia sagrada, que os galos cantem! Logo o dia vai raiar na Rússia sagrada!".[245]

Fossem quais fossem seus sentimentos, quer ousassem expressá-los ou não, a maior parte dos prisioneiros e dos degredados logo se convenceu de que as coisas iriam mudar. No degredo em Karaganda, assim que soube da novidade, Olga Adamova-Sliozberg começou a tremer e cobriu o rosto com as mãos para que as colegas de trabalho suspeitas não vissem sua alegria. "É agora ou nunca. Tudo vai mudar. Agora ou nunca."[246]

Em outro lagpunkt de Vorkuta, Bernhard Roeder escutou a noticia no rádio do campo enquanto vestia o equipamento de mineiro:

Olhares furtivos foram trocados, nos quais um ódio triunfante flamejava, palavras foram furtivamente murmuradas, uma movimentação excitada [...] logo o corredor ficou vazio. Todos correram para contar a boa nova [...] Nesse dia, ninguém trabalhou em Vorkuta. As pessoas permaneceram em grupos, conversando animadamente [...] ouvimos os guardas nas torres de vigia ligando uns para os outros em grande agitação e, logo depois, os primeiros bêbados vociferando.[247]

Entre os administradores dos campos, a confusão era profunda. Olga Vasileevna, que na época trabalhava no escritório do Gulag em Moscou, lembra-se de chorar: "Eu chorei e todos choraram, mulheres e homens também, todos choraram abertamente".[248] Como milhões de compatriotas, os empregados do Gulag choravam não apenas pelo líder morto, mas também por temer por si mesmos e pela carreira. Mais tarde, o próprio Khrutchev escreveu que "Eu não chorava apenas por Stalin. Estava muito preocupado com o futuro do país. Já sentia que Beria começaria a mandar em todos à sua volta e que esse poderia ser o princípio do fim".[249]

Por "fim", é claro, Khrutchev queria dizer o fim dele mesmo: com certeza a morte de Stalin traria uma nova onda de derramamento de sangue. Temendo o mesmo, vários manda-chuvas do Gulag sofreram ataques cardíacos, surtos de pressão alta e casos graves de gripe e febre. A angústia e o estado de completa confusão mental os tinham deixado doentes de verdade. Estavam morrendo de medo.[250]

Se os guardas das prisões estavam confusos, os novos ocupantes do Kremlin não tinham uma visão muito mais clara do futuro. Como Khrutchev temera, Beria, que mal conseguira conter o júbilo diante do cadáver de Stalin, assumiu de fato o poder e começou a fazer mudanças com uma velocidade espantosa. A 6 de março, antes que Stalin tivesse sido sequer enterrado, Beria anunciou uma reorganização da polícia secreta. Ele instruiu o chefe dela a transferir a responsabilidade pelo Gulag ao Ministério da Justiça, mantendo apenas os campos especiais para prisioneiros políticos sob a jurisdição do MVD. Transferiu vários negócios do Gulag para outros ministérios, como a administração florestal, a mineração e as fábricas.[251] A 12 de março, Beria também abortou mais de vinte projetos do Gulag, alegando que eles "não iam ao encontro das necessidades econômicas nacionais". As obras do Grande Canal Turcomano pararam, assim como as do Canal Volga-Ural, do Canal Volga-Báltico, da represa no curso inferior do rio Don, do porto de Donetsk e do túnel da ilha Sacalina. A Estrada da Morte, a ferrovia entre Salekhard e Igarka, também foi abandonada sem nunca ter sido concluída.[252]

Duas semanas mais tarde, Beria escreveu ao presidium do Comitê Central um memorando no qual descreveu o estado dos campos de trabalho com surpreendente clareza. Ele informou que havia 2.526.402 detentos, dos quais apenas 221.435 eram realmente "criminosos perigosos", e argumentou em favor da libertação de muitos dos restantes:

Entre os prisioneiros, 438.788 são mulheres, das quais 6.286 estão grávidas e 35.505 estão acompanhadas de filhos menores de dois anos. Muitas mulheres têm filhos com menos de dez anos que estão sendo criados por parentes ou em abrigos para crianças.

Entre os prisioneiros, 238 mil são idosos - homens e mulheres acima de cinqüenta anos - e 31.181 são adolescentes com menos de dezoito anos, em sua maioria condenados por roubos insignificantes e por vandalismo;

Cerca de 198 mil prisioneiros sofrem de doenças graves e incuráveis e estão totalmente incapacitados para o trabalho.

E bem conhecido o fato de que os prisioneiros dos campos [...] deixam a família em situação muito difícil, freqüentemente desintegrando-se, com sérias conseqüências negativas para o resto da vida.[253]

Com esses argumentos humanitários, Beria solicitou uma anistia para todos os prisioneiros com penas de cinco anos ou menos, para todas as mulheres grávidas ou que tivessem filhos pequenos, e para todos os menores de dezoito anos - 1 milhão de pessoas no total. A anistia foi anunciada a 27 de março. A libertação começou de imediato.[254]

Uma semana depois, a 4 de abril, Beria também cancelou a investigação sobre a Conspiração dos Médicos. Essa foi a primeira mudança visível para o público em geral. Mais uma vez, o anúncio apareceu no Pravda: "As pessoas acusadas de conduzir incorretamente a investigação foram presas e devem responder a processo".[255]

As implicações eram claras: a justiça stalinista era deficiente. Em segredo, Beria também promoveu outras mudanças. Proibiu que os funcionários da polícia secreta usassem a força física contra os detentos - efetivamente acabando com a tortura.[256] Ele tentou liberalizar as políticas empregadas na Ucrânia, nos países bálticos e até mesmo na Alemanha Oriental, revertendo a sovietização e a russificação, que, no caso da Ucrânia, haviam sido implantadas pelo próprio Nikita Khrutchev.[257] Quanto ao Gulag, a 16 de junho ele colocou todas as cartas na mesa, declarando abertamente a intenção de "liquidar o sistema de trabalho forçado, pois ele era economicamente ineficiente e não tinha nenhuma perspectiva de futuro".[258]

Até hoje as razões de Beria para realizar mudanças tão rápidas são um mistério. Alguns tentaram pintá-lo como um liberal secreto que padecia sob o sistema stalinista e ansiava por reformas. Os colegas de partido suspeitavam que ele estava tentando concentrar mais poderes na polícia secreta, à custa do próprio Partido Comunista: livrar o MVD do fardo incômodo e caro dos campos era simplesmente uma maneira de fortalecer o órgão. Beria também podia estar tentando se tornar popular entre o povo e os antigos integrantes da polícia secreta que agora retornariam dos campos distantes. No final da década de 1940, ele havia criado a prática de contratar os ex-prisioneiros, garantindo assim sua lealdade. Entretanto, talvez a explicação mais provável para o comportamento de Beria seja o seu conhecimento: mais do que qualquer outra pessoa na URSS, Beria realmente sabia que os campos eram dispendiosos e que a maioria dos presos era inocente. Afinal, ele se dedicara a supervisionar os primeiros e a prender os últimos durante boa parte da década anterior.[259]

Fossem quais fossem os seus motivos, Beria andou depressa demais. Suas reformas perturbaram os colegas. Khrutchev, a quem Beria subestimou profundamente, foi o mais abalado, talvez por ter ajudado a organizar as investigações sobre a Conspiração dos Médicos, talvez por causa da forte ligação com a Ucrânia. Khrutchev também deve ter calculado que, cedo ou tarde, entraria na nova lista de inimigos de Beria. Aos poucos, por meio de uma intensa campanha de difamação, colocou os outros líderes do Partido contra Beria. No final de junho, tinha conquistado a todos. Numa reunião do Partido, cercou o prédio com tropas leais. Seguiu-se a surpresa. Chocado, gaguejando, o homem que havia sido a segunda pessoa mais poderosa na URSS foi preso.

Beria permaneceu na prisão pelos poucos meses que lhe restaram. Como Yagoda e Yezhov, ele se ocupava escrevendo cartas, pedindo clemência. Seu julgamento foi realizado em dezembro. Não se sabe se ele foi executado então ou mais cedo - o fato é que no final de 1953 estava morto.[260]

Os líderes da União Soviética abandonaram algumas políticas de Beria com a mesma rapidez com que elas tinham sido implantadas. Mas nem Khrutchev nem nenhum outro ressuscitou os grandes projetos de construção do Gulag. Nem revogaram a anistia de Beria. As libertações continuaram - uma prova de que a dúvida a respeito da ineficiência do Gulag não era apenas de Beria, por mais que ele tenha caído em desgraça. A nova liderança soviética sabia perfeitamente bem que os campos eram um estorvo para a economia, assim como sabia que milhões dos prisioneiros ali detidos eram inocentes. O relógio começou a soar: a era do Gulag chegava ao fim.

Talvez seguindo o exemplo que vinha de Moscou, os administradores do Gulag e os guardas também se adaptaram à nova situação. Assim que se recuperaram do medo e das doenças, vários guardas mudaram de atitude quase da noite para o dia, relaxando as regras antes mesmo de receberem ordens para tal. Um dos comandantes do lagpunkt de Alexander Dolgun em Kolyma começou a apertar a mão dos prisioneiros e a chamá-los de "camarada" assim que soube da doença de Stalin, antes mesmo que ele fosse oficialmente declarado morto.[261] "O regime nos campos afrouxou, tornou-se mais humano", recorda um prisioneiro.[262] Outro explicou a situação de forma diferente: "Os guardas deixaram de apresentar o tipo de patriotismo que mostravam quando Stalin estava vivo".[263] Os prisioneiros que se recusavam a realizar uma tarefa particularmente extenuante, desagradável ou injusta não eram mais punidos. Os prisioneiros que se recusavam a trabalhar aos domingos não eram mais punidos.[264] Protestos espontâneos irromperam, e os manifestantes também não foram castigados, como lembra Barbara Armonas:

De alguma forma essa anistia alterou a disciplina básica do campo [...] A administração nos mandava para o banho sem deixar que pegássemos nossas coisas antes. Não gostávamos disso, pois queríamos trocar a roupa molhada por peças secas. A longa fila de prisioneiras começou a gritar insultos, chamando os administradores de "chekistas" e "fascistas". Então nos recusamos a continuar andando. Nada funcionou, nem as tentativas de persuasão, nem as ameaças. Depois de uma hora de batalha silenciosa, os administradores desistiram e nos deixaram buscar roupas secas.[265]

A mudança também alterou as prisões. Nos meses que se seguiram à morte de Stalin, Susanna Pechora vivia numa solitária e passava por um segundo interrogatório: como "contra-revolucionária" judia, fora tirada do campo e levada a Moscou por conta da Conspiração dos Médicos. Então, de repente, o interrogatório cessou. O interrogador a chamou para uma reunião. "Você entende, não a tratei mal, nunca lhe bati, nunca a machuquei", ele disse, e colocou-a numa nova cela, onde ela ouviu uma mulher falando sobre a morte de Stalin pela primeira vez. "O que aconteceu?", perguntou. As companheiras de cela fizeram silêncio: como todos sabiam que Stalin tinha morrido, supuseram que ela fosse uma informante que tentava sondar a opinião das outras. Pechora levou o dia inteiro para convencê-las de que sua ignorância era genuína. Depois disso, ela recorda, a situação começou a mudar dramaticamente.

Os guardas estavam com medo de nós, fazíamos o que queríamos, gritávamos na hora dos exercícios, fazíamos discursos, saíamos pelas janelas. Não nos levantávamos quando eles vinham até as celas e nos diziam para não deitar nas camas. Meio ano antes teríamos sido mortas por fazer coisas assim.[266]

Nem tudo mudou. Leonid Trus também estava sob interrogatório em março de 1953. A morte de Stalin pode tê-lo livrado da execução, mas ainda assim ele recebeu uma pena de 25 anos. Um de seus companheiros de cela foi condenado a dez anos por fazer um comentário pouco delicado sobre a morte de Stalin.[267] E nem todos foram libertados. Afinal, a anistia fora limitada aos muito jovens, aos muito velhos, às mulheres com filhos e aos prisioneiros com penas de cinco anos ou menos. A imensa maioria dos que cumpriam penas pequenas eram criminosos comuns ou presos políticos cujos casos eram pouco consistentes. Restavam ainda 1 milhão de prisioneiros no Gulag, inclusive centenas de milhares com penas extensas.

[268]

Outros tipos de violência também irromperam. Alguns prisioneiros que cumpriam penas grandes pediram aos médicos dos campos o cobiçado certificado de "inválido", que garantiria a libertação imediata. Os médicos que se recusaram a atender o pedido foram ameaçados ou espancados. Em Percholag, houve seis incidentes como esse: os médicos eram "sistematicamente aterrorizados", espancados e até esfaqueados. Em Yuzhkuzbasslag, quatro prisioneiros fizeram ameaças de morte ao médico. Em outros campos, a quantidade de prisioneiros libertados como inválidos excedia o número anterior de inválidos registrados no campo.[269]

Mas um grupo específico de prisioneiros, em um grupo específico de campos, experimentou emoções bastante diferentes. Os prisioneiros dos "campos especiais" eram de fato um caso especial: em sua maioria, cumpriam penas de dez, quinze ou 25 anos e não tinham nenhuma esperança de se beneficiar da anistia de Beria. Nos primeiros meses após a morte de Stalin, o regime sob o qual viviam sofreu mudanças mínimas. Agora os detentos podiam receber pacotes, por exemplo, mas apenas um por ano. Com má vontade, a administração permitiu que se formassem times de futebol. Mas eles continuaram vestindo uniformes numerados, os alojamentos continuaram trancados à noite e suas janelas continuaram gradeadas: O contato com o mundo externo continuou reduzido ao mínimo.[270]

Estavam aí os ingredientes para uma rebelião. Em 1953, fazia já cinco anos que os moradores dos campos especiais viviam isolados dos presos "comuns" e dos criminosos. Sozinhos, desenvolveram meios de organização interna e resistência sem paralelo na história anterior do Gulag. Durante anos elos estiveram à beira de um levante organizado, conspirando e planejando, e a única coisa que os detinha era a esperança de que a morto de Stalin significasse sua libertação. Quando isso não aconteceu, a esperança foi substituída pelo ódio.

 

  1. A REVOLUÇÃO DOS ZEKS

 

Não consigo dormir.

Ouço as nevascas

De um tempo passado, desconhecido.

E as barracas coloridas do Tamerlão

Estão lá fora, na estepe [...] fogueiras flamejantes,

fogueiras flamejantes

Vou virar princesa mongol

Galopar de volta ao passado

E atar à história do meu cavalo

Amigos e inimigos [...]

E então, numa das batalhas

Numa impensável orgia de sangue

No momento da derrota total

Me atiro contra minha espada [...]

Anna Barkova, "Nos alojamentos do campo de prisioneiros".[271]

 

Logo depois da morte de Stalin, os campos especiais, como o resto do país, foram inundados por boatos. Beria assumiria; Beria estava morto. O marechal Zhukov e o almirante Kuznetsov tinham marchado para Moscou e atacavam o Kremlin com tanques; Khrutchev e Molotov tinham sido assassinados. Todos os prisioneiros seriam libertados; os campos haviam sido cercados por tropas armadas do MVD, prontas para reprimir qualquer sinal de rebelião. Os prisioneiros repetiam essas histórias em voz baixa e aos gritos, confiando e especulando.[272]

Ao mesmo tempo, nos campos especiais, as organizações nacionais ficavam cada vez mais fortes e as ligações entre elas, cada vez mais estáveis. A experiência de Viktor Bulgakov é típica desse momento. Ele foi preso na primavera de 1953 (na noite da morte de Stalin, na verdade) e acusado de participar de um círculo político de estudantes anti-stalinistas. Logo depois, chegou a Minlag, o campo especial no complexo mineiro de Inta, ao norte do Círculo Polar Ártico.

A descrição que Bulgakov faz da atmosfera em Minlag contrasta demais com as lembranças dos prisioneiros de um período anterior. Ainda adolescente na época da prisão, ele entrou numa comunidade anti-stalinista e anti-soviética bem organizada. Greves e protestos ocorriam "com regularidade". Os prisioneiros haviam se dividido em vários agrupamentos nacionais com características próprias. Os bálticos tinham uma "organização firme, mas com uma hierarquia mal-administrada". Os ucranianos, em sua maioria ex-guerrilheiros, eram "extremamente bem-organizados, pois seus líderes tinham comandado a guerrilha antes da prisão, todos se conheciam e se estruturaram quase automaticamente".

O campo também tinha prisioneiros que acreditavam no comunismo, embora eles tenham se dividido em dois grupos: os que simplesmente seguiam a linha do partido e os que se consideravam comunistas por fé ou convicção - e acreditavam na reforma da União Soviética. Por fim, tornara-se possível ser um marxista anti-soviético, algo impensável alguns anos antes. Bulgakov pertencia à União Operária Popular - Narodno-Trudovoi Soyuz, ou NTS -, um movimento anti-stalinista que ganharia bastante notoriedade uma ou duas décadas depois, quando as autoridades, paranóicas, começaram a ver sinais de sua influência em todos os cantos.

As preocupações de Bulgakov no campo também teriam atordoado a geração anterior de prisioneiros. Em Minlag, os detentos conseguiram publicar um jornal secreto, que era escrito à mão e distribuído pelos campos. Eles intimidaram os pridurki, que, conseqüentemente, "ficaram com medo dos presos". Além disso, não perdiam de vista os informantes - como os outros detentos nos campos especiais. Dmitri Panin também descreveu a guerra cada vez mais intensa contra os informantes:

As represálias eram sistemáticas. Ao longo de oito meses, 45 informantes foram mortos. As operações contra eles eram comandadas de um centro clandestino [...] Nós vimos muitos delatores, incapazes de suportar a ameaça de morte que pairava sobre eles, tentarem escapai ao seu destino trancando-se na cadeia do campo - o único local onde podiam se esconder de retaliações. Todos eram mantidos na mesma cela, que foi batizada de "buraco dos covardes".[273]

Um historiador dos campos escreveu que o assassinato de informantes se tornara "uma ocorrência tão comum que ninguém se surpreendia nem se mostrava interessado", e observou que os informantes "morriam rapidamente"[274] Mais uma vez, a vida dentro dos campos refletia e amplificava a existência fora deles. As organizações guerrilheiras anti-soviéticas na Ucrânia ocidental também tentaram com afinco destruir os informantes, e seus líderes levaram essa obsessão para os campos.[275] Talvez cientes disso, as autoridades do campo de Panin isolaram os prisioneiros ucranianos, já que eles eram tidos como os responsáveis pelas mortes dos informantes. Isso serviu apenas para aumentar sua solidariedade e seu ódio.[276]

Em 1953, os camaradas de Bulgakov em Minlag também tentavam sistematicamente acompanhar seus próprios números e as condições em que viviam, transmitindo as informações para o Ocidente por meio da cooperação de guardas e de outras técnicas que seriam aperfeiçoadas nos campos para dissidentes dos anos 1970 e 1980, como veremos adiante. Bulgakov ficou encarregado de esconder esses documentos, bem como cópias de canções e poesias compostas pelos presos. Leonid Sitko realizou a mesma tarefa em Steplag e escondeu os documentos no porão de um edifício que os prisioneiros estavam construindo. Entre eles havia "breves descrições da vida de cada um, cartas dos detentos mortos, um documento curto assinado pela médica Galina Mishkina atestanto as condições desumanas nos campos (inclusive com estatísticas de mortes, fome etc), uma explicação sobre a organização e o crescimento dos campos do Casaquistão e um relato detalhado da história de Steplag - além de poemas".[277]

Sitko e Bulgakov simplesmente acreditavam que um dia os campos seriam fechados, que os alojamentos seriam incendiados e que as informações poderiam ser recuperadas. Vinte anos antes ninguém ousara pensar algo assim, quanto mais tomar alguma atitude.

Graças à administração do Gulag, táticas e estratégias de conspiração se espalharam pelos campos especiais com rapidez. No passado, os prisioneiros suspeitos de tramar conspirações eram isolados. As principais autoridades mudavam os detentos de um campo para outro, aniquilando as redes rebeldes antes que elas se formassem. No ambiente mais homogêneo dos campos especiais, porém, essa tática foi um tiro pela culatra. A movimentação constante dos prisioneiros foi um meio excelente de disseminar a rebelião.[278]

Ao norte do Círculo Ártico, os verões são muito curtos e muito quentes. No final de maio, o gelo dos rios começa a se quebrar. Os dias ficam cada vez maiores, até a noite desaparecer de vez. Em algum momento de junho - dependendo do ano, em julho - o sol começa a brilhar ferozmente, às vezes por um mês, às vezes por dois. De um dia para outro, as flores do Ártico desabrocham, e durante algumas semanas a tundra fica imersa em cores. Para os seres humanos, que viveram trancados durante nove meses, o verão traz uma vontade avassaladora de sair, de ser livre. Nos poucos dias quentes do verão que passei em Vorkuta, os habitantes da cidade pareciam passar todos os dias e todas as noites ao ar livre, passeando pelas ruas, sentando nos parques, conversando nos degraus das casas. Não era por acaso que os prisioneiros tentavam fugir na primavera. Assim como não foi obra do acaso os três levantes mais famosos, perigosos e importantes terem acontecido nos campos do norte durante a primavera.

Em Gorlag, o campo especial do complexo de Norilsk, a atmosfera estava especialmente carregada de ódio na primavera de 1953. No outono anterior, uma grande quantidade de presos, cerca de 1.200, havia chegado de Karaganda, muitos dos quais estariam envolvidos nas tentativas de fuga armadas e nos protestos que aconteceram alguns meses antes. Todos tinham sido presos por "atividade revolucionária na Ucrânia ocidental e nos países bálticos". Segundo os arquivos do MVD, eles começaram a organizar um "comitê revolucionário" quando ainda estavam em trânsito para Norilsk.

De acordo com os relatos dos detentos, eles também mataram quatro informantes do campo - com picaretas - pouco depois da chegada.[279] Na primavera de 1953, enraivecidos ao extremo contra a anistia que os deixara de lado, esse grupo criou o que o MVD descreveu como uma "organização anti-soviética" no campo, o que provavelmente significa que eles haviam fortalecido as organizações nacionais já existentes.

A inquietação cresceu ao longo de maio. No dia 25, os guardas dos comboios mataram um prisioneiro a caminho do trabalho. Na manhã seguinte, duas divisões do campo protestaram com uma greve. Alguns dias depois, guardas abriram fogo contra detentos que jogavam mensagens sobre o muro que separava os campos dos homens e das mulheres. Alguns foram feridos. Então, no dia 4 de junho, um grupo prisioneiros pôs abaixo a barreira de madeira que separava o alojamento de castigo do resto da zona e libertou 24 detentos. Eles também capturaram um integrante da administração do campo, levaram-no para a zona e fizeram-no refém. Os guardas abriram fogo, matando cinco prisioneiros e ferindo catorze. Mais quatro divisões do campo aderiram ao protesto. Em 5 de junho, 16.379 detentos estavam em greve. Os soldados cercaram o campo, e todas as saídas foram bloqueadas.[280]

Mais ou menos na mesma época, protestos semelhantes aconteceram em Rechlag, o campo especial do complexo mineiro de Vorkuta. Ali os prisioneiros tentaram organizar uma greve geral ainda em 1951; posteriormente, as autoridades diriam ter descoberto nada menos que cinco "organizações revolucionárias" entre 1951 e 1952.[281] Quando Stalin morreu, os detentos de Rechlag também estavam particularmente bem-equipados para acompanhar o que acontecia no mundo. Não apenas se organizaram em grupos nacionais, como em Minlag e em outros campos, como também destacaram alguns prisioneiros para acompanhar as transmissões do Ocidente em rádios emprestados e escrever as notícias em forma de boletins comentados, que eles distribuíam com cuidado entre os prisioneiros. Portanto, eles sabiam da morte de Stalin e da prisão de Beria, mas também da greve geral em Berlim Oriental, que ocorreu a 17 de junho de 1953 e foi esmagada pelos tanques soviéticos.[282]

Essa notícia parece ter galvanizado os prisioneiros: se os berlinenses podiam entrar em greve, eles podiam também. John Nobel, um americano preso em Dresden logo depois da guerra, recorda que "a coragem deles nos inspirou, e só se falou sobre isso nos dias seguintes [...] No outro mês éramos escravos arrogantes. O sol de verão derretera a neve e o calor renovara nossa energia e nossa disposição. Discutimos a possibilidade de entrar em greve pela liberdade, mas ninguém sabia como fazer".[283]

Em 30 de junho, os detentos da mina de Kapitalnaya distribuíram panfletos convocando os prisioneiros a "interromper a entrega de carvão . No mesmo dia, alguém escreveu um slogan nas paredes da mina nº 40: "Não haverá entrega de carvão até a anistia". Os caminhões ficaram vazios: os prisioneiros tinham parado de extrair o carvão.[284] Em 17 de julho, as autoridades da mina de Kapitalnaya tiveram uma razão ainda maior para se alarmar: nesse dia, um grupo de presos espancou o capataz porque ele teria mandado "parar a sabotagem". Quando deu a hora do segundo turno, o próximo capataz se recusou a descer até a mina.

Enquanto os detentos de Rechlag ainda absorviam as novidades, um grande contingente de prisioneiros chegou - outra vez de Karaganda. Todos tinham recebido a promessa de melhores condições de vida e reexame de seus casos. Quando chegaram ao trabalho na mina nº 7 de Vorkuta, encontraram não uma melhoria, mas as piores condições de todo o sistema de campos. No dia seguinte - 19 de julho -350 entraram em greve.[285]

Outras greves se seguiram - graças, em parte, à própria geografia de Vorkuta. Vorkutalag estava no centro de uma vasta bacia de carvão - uma das maiores do mundo. Para explorar o combustível, uma série de minas foi aberta num amplo círculo em torno da bacia. Entre as minas havia outros empreendimentos - estações de energia, fábricas de cimento e tijolos - cada uma ligada a um campo, assim como à cidade de Vorkuta e ao pequeno povoado de Yur-Shor. Um ferrovia ligava todos esses locais. Os trens, como tudo mais em Vorkuta, eram operados por prisioneiros - e foi assim que a rebelião se espalhou: junto com o carvão e outros suprimentos que eles transportavam de um lagpunkt para outro, os ferroviários prisioneiros contavam as novidades da greve no campo nº 7. Enquanto os trens viajavam pelo grande círculo, milhares de prisioneiros ouviam os relatos murmurados, outros milhares viam os slogans pintados nas laterais dos trens: "Para o diabo com seu carvão! Queremos liberdade".[286] Um campo após o outro se juntou à greve, até que, em 29 de julho de 1953, seis das dezessete divisões de Rechlag - 15.604 pessoas - estavam em greve.[287]

Na maior parte dos lagpunkts em greve em Vorkuta e Norilsk, comitês de grevistas se encarregaram de uma situação visivelmente perigosa. Aterrorizados, os administradores deixaram os campos, e a possibilidade de anarquia era grande. Em alguns casos, esses comitês se viram organizando a comida dos detentos. Em outros, tentavam persuadir os internos a não agredir os informantes, então completamente indefesos. Tanto no que diz respeito a Rechlag como a Gorlag, memórias e arquivos concordam que os responsáveis (na medida em que havia alguém responsável) eram quase sempre ucranianos, poloneses e bálticos. Mais tarde, o MVD apontou um ucraniano chamado Herman Stepanyuk como o líder em Norilsk, e o polonês Kendzerski - "ex-capitão" do exército polonês - como um dos líderes - em Vorkuta. Em seu relato da rebelião, Edward Buca, outro polonês, reivindicava a liderança da greve na mina nº 29 de Vorkuta. Embora ele estivesse mesmo nesse campo na época, há razões para duvidar de sua história, no mínimo porque muitos dos verdadeiros líderes grevistas foram mortos.[288]

Anos depois, os nacionalistas ucranianos afirmariam que todas as grandes greves do Gulag foram planejadas e executadas por suas organizações secretas, que se ocultavam atrás de comitês grevistas multinacionais: "O prisioneiro médio, e nos referimos especificamente aos prisioneiros ocidentais e russos, eram incapazes de participar das decisões ou de compreender o mecanismo do movimento". Como prova, citavam os dois "étaps de Karaganda", os contingentes de ucranianos transferidos para ambos os campos pouco antes das greves.[289]

As mesmas provas levaram outros indivíduos a concluir que as greves foram provocadas por pessoas dentro do MVD. Talvez integrantes dos sistemas de segurança temessem que Khrutchev fechasse os campos de uma só vez e demitisse todas as autoridades. Assim, fomentavam as rebeliões para reprimi-las e mostrar como ainda eram necessários. Simeon Vilensky, editor e ex-zek que organizou duas conferências sobre a oposição nos campos, explica melhor: "Quem dirigia os campos? Milhares de pessoas que não tinham uma profissão civil, pessoas acostumadas à completa ausência de leis, acostumadas a ser donas dos prisioneiros, a fazer com eles o que bem entendiam. Em comparação aos outros cidadãos, esse tipo de gente ganhava muito bem".

Vilensky continua convencido de que testemunhou uma provocação em seu campo em Kolyma, em 1953. De repente, ele diz, uma nova leva de prisioneiros chegou. Um deles começou a organizar abertamente os mais jovens em um grupo rebelde. Eles falavam de greves, escreviam panfletos, aliciavam novos prisioneiros. Chegaram até a usar a oficina do campo para fabricar facas. Agiam tão abertamente e de forma tão provocativa que Vilensky considerou-os suspeitos: a administração do campo não tolerava aquele tipo de atividade por acaso. Ele liderou a oposição aos recém-chegados até ser transferido para outro campo.[290]

Na essência, essas teses são compatíveis. É possível que indivíduos do MVD colocassem rebeldes ucranianos dentro dos campos a fim de causar problemas. Também é possível que os líderes grevistas ucranianos acreditassem estar agindo por vontade própria. No entanto, os relatos oficiais e os das testemunhas oculares parecem indicar que, muito provavelmente, as greves só ganharam ímpeto por causa da cooperação entre os vários grupos nacionais. Nos locais em que os grupos competiam entre si de modo mais aberto - como em Minlag - era mais difícil organizar greves.[291]

Fora dos campos, as greves não recebiam nenhum apoio. Os grevistas de Gorlag, cujos campos ficavam bem próximos da cidade de Norilsk, tentaram chamar atenção para a sua causa com uma faixa: "Camaradas, habitantes de Norilsk! Ajudem nossa luta".[292] Como a maioria da população de Norilsk era de ex-prisioneiros, é quase certo que estava apavorada demais para responder. Apesar da linguagem burocrática, os relatórios do MVD escritos algumas semanas depois desses acontecimentos transmitem muito bem o terror que as greves geraram entre os prisioneiros e os trabalhadores livres. Um dos contadores de Gorlag jurou ao MVD que "se os grevistas saírem da zona lutaremos contra eles como se fossem inimigos".

Outro trabalhador livre contou ao MVD sobre seu encontro casual com os grevistas: "Fiquei um pouco além do término do turno a fim de acabar de perfurar o veio de carvão. Um grupo de prisioneiros se aproximou. Agarrando minha furadeira elétrica, ordenaram que eu parasse de trabalhar e me ameaçaram com uma punição. Fiquei com medo e parei de trabalhar [...]". Felizmente para ele, os prisioneiros iluminaram seu rosto com uma lanterna, viram que era um trabalhador livre e deixaram-no em paz.[293] Sozinho, na escuridão da mina, cercado por grevistas hostis, irados, ele deve ter mesmo sentido muito medo.

Os chefes locais dos campos também estavam intimidados. Ao sentir isso, os grevistas de Gorlag e Rechlag exigiram um encontro com representantes do governo soviético e do Partido Comunista de Moscou. Eles argumentavam que os comandantes locais não podiam tomar nenhuma decisão sem a permissão de Moscou, o que era a pura verdade.

E Moscou apareceu. Ou seja, em várias ocasiões, representantes das "comissões de Moscou" se reuniram com comitês de prisioneiros em Gorlag e Rechlag para escutar e discutir suas exigências. Eu poderia descrever essas reuniões como sem precedentes, mas essas palavras não transmitem a magnitude da novidade. Nunca antes as exigências dos prisioneiros tinham sido recebidas com algo que não fosse a força bruta. Nesse período pós-stalinista, entretanto, Khrutchev parecia disposto a pelo menos tentar conquistar os prisioneiros com concessões genuínas.

Ele, ou melhor, seus representantes não foram bem-sucedidos. No quarto dia de uma greve em Vorkuta, a comissão de Moscou liderada pelo general 1.1. Maslennikov apresentou aos presos uma nova lista de privilégios: jornada de trabalho de nove horas, remoção dos números dos uniformes, permissão para encontrar familiares, permissão para receber cartas e dinheiro. Segundo o relatório oficial, vários líderes grevistas receberam a proposta com "hostilidade" e permaneceram em greve. Uma oferta semelhante em Gorlag obteve a mesma reação Ao que parece, os prisioneiros queriam anistia e não apenas a melhoria das condições de vida.

No entanto, embora eles já não estivessem em 1938, ainda não estavam em 1989. Stalin morrera, mas seu legado continuava vivo. O primeiro passo podia ser a negociação, mas o segundo era a força bruta. Em Norilsk, a princípio as autoridades prometeram "examinar as exigências dos presos". Em vez disso, conforme o relatório do MVD explica, "a comissão do MVD da URSS decidiu liquidar os grevistas". Essa decisão, quase certamente tomada pelo próprio Khrutchev, teve efeitos imediatos e dramáticos. Os campos foram cercados por soldados. Lagpunkt a lagpunkt, eles esvaziaram os campos, prenderam os líderes grevistas e transferiram os outros presos.

Em alguns casos, a "liquidação" foi realizada com relativa tranqüilidade. Ao chegar à primeira divisão do campo, as tropas pegaram os prisioneiros de surpresa. Pelo alto-falante, o promotor-chefe de Norilsk, Babilov, ordenou aos prisioneiros que deixassem a zona, assegurando-lhes que aqueles que saíssem de forma pacífica não seriam punidos pela participação na "sabotagem". De acordo com o relato oficial, a maior parte dos presos saiu. Vendo-se isolados, os líderes saíram também. Lá fora, na taiga, os soldados e os comandantes do campo dividiram os prisioneiros em grupos. Os suspeitos de instigar a greve foram colocados em caminhões que estavam à espera, e os "inocentes" puderam voltar para o campo.

Algumas das "liquidações" posteriores não correram com a mesma tranqüilidade. No dia seguinte, quando as autoridades seguiram o mesmo procedimento em outro lagpunkt, primeiro os líderes grevistas ameaçaram os que queriam sair - e então se trancaram em um alojamento, do qual teriam de ser removidos à força. No campo das mulheres, as prisioneiras formaram um círculo, hastearam uma bandeira preta - símbolo das camaradas injustamente assassinadas - no centro e começaram a gritar slogans. Depois de cinco horas, os guardas começaram a molhá-las com mangueiras poderosas. Só então o círculo se abriu o suficiente para os guardas tirarem as mulheres de lá.

No lagpunkt nº 5, um total de 1.400 prisioneiros, em sua maioria ucranianos e bálticos, recusou-se a sair da zona. Em vez disso, eles penduraram bandeiras negras nos alojamentos e se comportaram, nas palavras de um burocrata do MVD, com "extrema agressividade". Então, quando os guardas do campo, auxiliados por quarenta soldados, tentaram isolar os alojamentos com cordas e proteger os suprimentos de comida, uma multidão de quinhentos prisioneiros atacou. Gritando palavrões e vivas, jogaram pedras, acertaram os soldados com porretes e picaretas, tentaram arrancar-lhes as armas das mãos. O relatório oficial descreve o que aconteceu a seguir: "No momento mais crítico do ataque aos guardas, os soldados abriram fogo contra os prisioneiros. Ao final do tiroteio, os presos foram obrigados a se deitar no chão. Depois desse episódio, eles passaram a obedecer a todas as ordens dos guardas e dos administradores do campo".[294]

Segundo o mesmo relatório, 23 prisioneiros morreram nesse dia De acordo com testemunhas oculares, várias centenas morreram ao longo de vários dias em Norilsk, numa série de incidentes semelhantes.

A greve em Vorkuta foi debelada de forma similar. Lagpunkt a lagpunkt, soldados e tropas policiais forçaram os prisioneiros a sair, dividiram-nos em grupos de cem e passaram-nos por um processo de "filtragem", isolando os supostos líderes. Para que os presos saíssem de forma pacífica, a comissão de Moscou também prometeu em voz alta que todos os casos seriam revistos e que os cabeças não seriam mortos. O estratagema funcionou: graças à postura "paternal" do general Maslennikov, "acreditamos nele", um dos participantes explicou mais tarde.[295]

Em um campo, porém - o lagpunkt ao lado da mina nº 29 -, os prisioneiros não acreditaram no general, e quando Maslennikov lhes disse para voltar ao trabalho, eles não obedeceram. Os soldados chegaram num carro de bombeiros, com a intenção de usar as mangueiras de água para dispersar a multidão:

Mas antes que as mangueiras pudessem ser desenroladas e utilizadas contra nós, Ripetsky acenou aos presos que dessem um passo a frente, e eles avançaram em bloco, colocando o veículo para fora dos portões como se ele fosse de brinquedo [...] Os guardas atiraram contra a massa de prisioneiros. Como estávamos de braços dados, a princípio ninguém caiu, embora houvesse vários mortos e feridos. Apenas Ihnatowicz estava só, um pouco à frente do cordão. Por um momento, ele pareceu parar, atônito, então se virou para nos seus lábios se moveram, mas não se ouviu uma palavra. Ele esticou um braço e caiu.

Enquanto ele caía, veio uma segunda salva de tiros, seguida de urna terceira e uma quarta. Então, pesadas metralhadoras abriram fogo.

Mais uma vez, são muito variadas as estimativas dos mortos na mina nº 29. Os documentos oficiais mencionam 42 mortos e 135 feridos. As testemunhas oculares falam de "centenas" de baixas.[296]

As greves terminaram. Mas nenhum campo foi verdadeiramente pacificado. No restante do ano de 1953 e ao longo de 1954, irromperam protestos esporádicos em Vorkuta e Norilsk, nos outros campos especiais e nos campos comuns também. "Um espírito triunfante, que se mantinha à tona graças ao aumento de salário que tivemos, foi a herança da greve", Noble escreveu. Quando ele foi transferido para a mina n° 29, cenário do massacre, os sobreviventes mostravam com orgulho as cicatrizes deixadas por aquele dia.[297]

Praticamente nenhum campo ficou imune ao aumento da audácia dos presos. Em novembro de 1953, por exemplo, 530 prisioneiros recusaram-se a trabalhar em Vyatlag. Eles exigiam salários melhores e o fim das "anormalidades" na distribuição de roupas e nas condições de vida. Os administradores do campo concordaram em atender às exigências, mas no dia seguinte os prisioneiros entraram em greve de novo. Dessa vez, exigiam ser incluídos na anistia de Beria. A greve terminou quando seus organizadores foram capturados e encarcerados.[298] Em março de 1954, um grupo de "bandidos" assumiu o controle do lagpunkt de Kargopollag e ameaçou fazer uma rebelião a menos que recebessem uma alimentação melhor... e vodca.[299] Em julho de 1954, novecentos prisioneiros de Minlag organizaram uma greve de fome de uma semana em protesto contra a morte de um prisioneiro, que fora queimado vivo quando um bloco de solitárias se incendiou. Os prisioneiros distribuíram panfletos pelo campo e pela aldeia vizinha explicando as razões da greve, que só teve fim com a chegada de uma comissão de Moscou e a promessa de um tratamento melhor. Em todo o Minlag, as greves se tornaram parte do cotidiano; às vezes, eram organizadas por brigadas, às vezes por minas inteiras.[300]

Como era de conhecimento das autoridades, mais tumultos estavam planejados. Em junho de 1954, o MVD enviou o relatório de um informante diretamente a Kruglov, o ministro do Interior. O relatório descrevia uma conversa travada entre um grupo de prisioneiros ucranianos que o informante encontrara no campo de transição de Sverdlovsk. Os prisioneiros eram de Gorlag e tinham participado de uma greve por lá. Eles estavam sendo transportados para outro local, mas já se preparavam para a próxima:

Todos na cela tiveram de explicar a Pavlishin e Stepanyuk o que fizeram durante a greve, inclusive eu [...] Na minha frente, Morushko relatou a Stepanyuk um incidente na barcaça que levava de Norilsk a Krasnoyarsk. Nessa barcaça, ele conduziu uma triagem de prisioneiros e destruiu os que não eram úteis. "Você cumpriu a missão que recebeu e agora nossos feitos entrarão para a história da Ucrânia" Stepanyuk disse a Pavlishin. Então, ele abraçou Morushko e disse

"Pan Morushko, você prestou um grande serviço a nossa organização [...] por isso receberá uma medalha, e, depois do colapso da União Soviética, ocupará um cargo importante."[301]

Embora seja perfeitamente possível que o informante que escreveu esse relatório tenha escutado uma conversa parecida com essa, ele também fez elucubrações: mais adiante, ele pôs-se a acusar os ucranianos de organizar um complô bastante improvável para matar Khrutchev. Ainda assim, o fato de essas informações dúbias terem sido enviadas diretamente a Kruglov indica como as autoridades levavam a sério a ameaça de novas rebeliões. As comissões enviadas para investigar a situação em Rechlag e Gorlag concluíram ser necessário aumentar o número de guardas, apertar o regime e, acima de tudo, aumentar a quantidade de informantes.[302]

E eles tinham razão em se preocupar. O levante mais perigoso ainda estava por vir.

Como os dois predecessores, o levante que Soljenitsin batizou de "Os quarenta dias de Kengir" não foi repentino ou inesperado.[303] Ele emergiu devagar, na primavera de 1954, a partir de uma série de incidentes no campo especial de Steplag, que se localizava ao lado da aldeia de Kengir, no Casaquistão.

Como os colegas de Rechlag e de Gorlag, os comandantes de Steplag foram incapazes de lidar com os prisioneiros depois da morte de Stalin. Um dos historiadores da greve, que estudou os arquivos do campo a partir de 1953, conclui que a administração tinha "perdido totalmente o controle". Nos momentos que antecederam a greve, os comandantes de Steplag enviavam relatórios periódicos a Moscou dando conta das organizações secretas do campo, dos tumultos e da "crise" que afetava a rede de informantes, na época quase totalmente incapacitada. Moscou respondeu ordenando que os prisioneiros ucranianos e bálticos fossem isolados. Nessa altura, quase metade dos 20 mil detentos do campo eram ucranianos e um quarto eram poloneses e bálticos; talvez não houvesse meio de isolá-los. Assim, os presos continuaram a violar as regras com protestos e greves intermitentes.[304]

Incapazes de intimidar os prisioneiros com ameaças de punição, os guardas recorriam à violência de fato. Algumas pessoas acreditam - Soljenitsin, por exemplo - que esses incidentes eram também provocações destinadas a detonar a revolta que se seguiu. Quer isso seja verdade ou não - até hoje não existem registros esclarecedores -, durante o inverno de 1953 e a primavera de 1954 os guardas do campo realmente atiraram contra prisioneiros que não cooperavam, matando vários deles. Então, talvez numa tentativa desesperada de reassumir o controle, os administradores colocaram um grupo de criminosos nos campos, instruindo-os abertamente a provocar brigas com os presos políticos no lagpunkt na 3 - o mais revoltoso de Steplag. O tiro saiu pela culatra. "E aqui", escreve Soljenitsin, "vemos como é imprevisível o curso das emoções humanas e dos movimentos sociais! Ao injetar em Kengir nº 3 uma dose cavalar de ptomaína já testada, os chefes não conseguiram a pacificação do campo, mas o maior motim do Arquipélago Gulag".[305] Em vez de brigar, os dois grupos decidiram cooperar.

Como em outros campos, os prisioneiros de Steplag estavam organizados por nacionalidade. Os ucranianos, porém, pareciam ter elevado sua organização a um esquema de conspiração. Em vez de escolher os líderes abertamente, eles formaram um "centro" conspira-tório, um grupo secreto cujos integrantes jamais foram conhecidos publicamente e que, é provável, contava com todas as nacionalidades do campo. No momento em que os mafiosos chegaram, o Centro já tinha começado a produzir armas - facas improvisadas, porretes e picaretas - nas oficinas do campo e já estava em contato com os prisioneiros de dois lagpunkts vizinhos, o nº 1 - uma zona para mulheres - e o nº 2. E possível que os presos políticos tenham impressionado os mafiosos com seu trabalho manual, ou talvez eles os tenham aterrorizado. Seja como for, sabe-se que, numa reunião à meia-noite, representantes dos dois grupos - políticos e criminosos - cumprimentaram-se e decidiram se unir.

       Em 16 de maio, essa cooperação gerou o primeiro fruto. A tarde, um grande grupo de prisioneiros do lagpunkt nº 3 começou a derrubar o muro de pedra que os separava dos dois campos vizinhos a partir do pátio de serviços, onde ficavam as oficinas e os armazéns. Antigamente, o objetivo principal teria sido o estupro. Agora, com guerrilheiros nacionalistas ucranianos dos dois lados do muro, os homens acreditavam estar indo ao socorro de suas mulheres - familiares, amigas e até esposas.

A demolição do muro continuou pela noite. Os guardas responderam com tiros. Eles mataram treze presos, feriram quarenta e espancaram outros tantos, inclusive mulheres. No dia seguinte, furiosos com as mortes, os prisioneiros do lagpunkt nº 3 iniciaram um enorme protesto e escreveram slogans anti-soviéticos nas paredes do refeitório Nessa noite, eles invadiram a solitária - literalmente desmontando-a com as mãos - e libertaram 252 presos. Assumiram o controle dos armazéns, da cozinha, da padaria e das oficinas, que imediatamente puseram a serviço da fabricação de facas e porretes. Na manhã do dia 19 de maio, a maior parte dos presos estava em greve.

Nem Moscou nem o comando local do campo pareciam saber o que fazer em seguida. O comandante do campo prontamente informou Kruglov, o chefe do MVD, sobre os acontecimentos. Com a mesma prontidão, Kruglov ordenou a Gubin, chefe do MVD casaque, que investigasse. Gubin voltou ao ponto de partida e ordenou ao Gulag que enviasse uma comissão de Moscou. A comissão chegou. Seguiram-se as negociações - e a comissão, tentando ganhar tempo, prometeu aos prisioneiros que investigaria as execuções ilegais, que manteria aberta a passagem entre os campos e que aceleraria a revisão de seus casos.

Os presos acreditaram. Em 23 de maio, voltaram ao trabalho. Porém, quando os trabalhadores do turno diurno voltaram, perceberam que pelo menos uma das promessas havia sido quebrada: os muros que separavam os lagpunkts haviam sido reconstruídos. Em 25 de maio, o chefe de Kengir, V M. Bochkov, voltou a telegrafar frenetica-mente, pedindo permissão para impor um "regime rígido" aos prisioneiros: nada de cartas, nada de reuniões, nada de ordens de pagamento, nada de revisão de casos. Além disso, ele retirou cerca de 420 criminosos do campo e os enviou a outro lagpunkt, onde entraram em greve.

Resultado: em 48 horas, os prisioneiros escorraçaram todas as autoridades para fora da zona, depois de ameaçá-las com as novas armas. Embora as autoridades dispusessem de revólveres, estavam em menor número. Mais de 5 mil prisioneiros viviam nas três divisões do campo e a maioria deles aderira ao levante. Os que não aderiram estavam intimidados demais para protestar. Os que mantinham uma postura neutra foram tomados pelo espírito do levante dos quarenta dias. Na primeira manhã da greve, um prisioneiro recordou assombrado, "não fomos acordados pelos guardas, não fomos recebidos com gritos".

A princípio, os comandantes do campo esperavam que a greve perdesse força de maneira espontânea. Imaginavam que, cedo ou tarde, os mafiosos e os presos políticos se desentenderiam. Os prisioneiros se entregariam à anarquia e à libertinagem, as mulheres seriam estupradas, a comida seria roubada. No entanto, embora o comportamento dos prisioneiros durante a greve não deva ser idealizado, a verdade é que ocorreu quase o oposto: o campo começou a funcionar com urna harmonia surpreendente.

Rapidamente os prisioneiros escolheram um comitê de greve, encarregado das negociações e da organização do cotidiano do campo. Os relatos da origem desse comitê são radicalmente diferentes entre si. Segundo o registro oficial dos acontecimentos, as autoridades mantinham negociações gerais com grupos de prisioneiros quando, subitamente, um grupo de pessoas que alegavam fazer parte do comitê de greve apareceu em cena e proibiu todos os outros de falar. No entanto, várias testemunhas afirmam que foram as próprias autoridades que sugeriram a formação de um comitê de greve, que foi escolhido pelo voto, de forma democrática.

A verdadeira ligação entre o comitê de greve e a liderança "real" do levante também permanece nebulosa, como provavelmente era na época. Mesmo que não tenha planejado as coisas passo a passo, está claro que o Centro ucraniano foi a força que impulsionou a greve e desempenhou um papel decisivo na eleição "democrática" do comitê. Os ucranianos parecem ter insistido em um grupo multinacional: não queriam que a greve parecesse muito anti-soviética ou anti-russa e desejavam um líder russo.

Esse russo foi o coronel Kapiton Kuznetsov, que sobressai como um figura notadamente ambígua, mesmo na história obscura de Kengir. Ex-oficial do Exército Vermelho, Kuznetsov fora capturado pelos nazistas e enviado a um campo de prisioneiros de guerra. Em 1948, foi preso e acusado de colaborar com a administração do campo nazista e de se juntar à luta contra os guerrilheiros soviéticos. Como já havia desempenhado o papel de vira-casaca, estaria bem preparado para assumir um papel duplo mais uma vez.

Aparentemente, os ucranianos escolheram Kuznetsov na esperança de que ele desse uma feição "soviética" ao levante e tirasse das autoridades uma desculpa para esmagar os prisioneiros. O que ele certamente fez - chegando a extremos, talvez. Incitados por Kuznetsov, os prisioneiros em greve penduraram faixas pelo campo: "Vida longa à constituição soviética!", "Vida longa ao regime soviético!", "Abaixo os partidários de Beria, assassinos!". Ele fazia discursos aos prisioneiros, argumentando que deveriam parar de escrever panfletos, que a agitação "contra-revolucionária" serviria apenas para prejudicar sua causa Cortejou assiduamente os prisioneiros "soviéticos", os detentos que mantinham a fé no Partido, e persuadiu-os a ajudar a manter a ordem.

E embora os ucranianos tenham ajudado a elegê-lo, Kuznetsov com certeza não fez jus à fé nele depositada. Na longa e cuidadosamente detalhada confissão que escreveu quando a greve chegou ao inevitável final sangrento, ele afirmou que sempre considerara o Centro ilegítimo e que havia lutado contra seus éditos secretos durante toda a greve. Mas os ucranianos jamais confiaram muito em Kuznetsov. Ao longo da greve, dois guardas ucranianos armados o seguiam por toda parte. A desculpa era que ele precisava de proteção. Na realidade, o objetivo era provavelmente evitar que ele traísse a causa e se esquivasse do campo à noite.

Os ucranianos podiam ter motivos para temer a fuga de Kuznetsov, pois um outro membro do comitê de greve, Aleksei Makeev, acabou deixando o campo algumas semanas depois. Posteriormente, pelo rádio do campo, Makeev exortou os prisioneiros a retornar ao trabalho. É possível que ele logo tenha entendido que a greve estava fadada ao fracasso - ou talvez tenha sido um instrumento da administração desde o início.

Mas nem todos os integrantes do comitê tinham comportamento dúbio. O próprio Kuznetsov admitiu mais tarde que pelo menos três membros - "Gleb" Sluchenkov, Gersh Keller e Yuri Knopmus - eram de fato representantes do Centro. Posteriormente, os comandantes do campo também descreveram um deles, Gersh Keller, como representante da conspiração ucraniana, e sua biografia parece de fato corroborar esse retrato. Listado nos registros do campo como judeu, Keller era na verdade um ucraniano - seu sobrenome verdadeiro era Pendrak -que conseguira esconder a própria etnia do MVD. Keller se encarregou do departamento "militar" da greve, organizando os presos para responder caso os guardas atacassem o campo. Foi ele quem deu inicio à produção em massa de armas - facas, cajados, porretes, picaretas - e quem montou um "laboratório" para fabricar granadas, coquetéis molotov e outras armas "quentes". Keller também supervisionou a construção de barricadas e providenciou um barril de vidro moído para cada alojamento - o vidro deveria ser jogado nos olhos dos soldados, se e quando eles chegassem.

Se Keller representava os ucranianos, Gleb Sluchenkov estava ligado aos criminosos do campo. O próprio Kuznetsov o descreveu como "representante do mundo do crime", e as fontes ucranianas nacionalistas também o descreviam como líder dos mafiosos. Durante o levante, Sluchenkov dirigiu a operação de "contra-inteligência" do comitê. Ele tinha a própria "polícia", que patrulhava o campo, mantinha a ordem e prendia possíveis vira-casacas e informantes. Organizou o campo em divisões e designou um "comandante" para cada uma. Mais tarde, Kuznetsov reclamou do fato de os nomes desses comandantes serem mantidos em sigilo; apenas Sluchenkov e Keller os conheciam.

Kuznetsov era menos mordaz que Knopmus, um russo de etnia germânica nascido em São Petersburgo que dirigia o departamento de "propaganda" do levante. Ainda assim, retrospectivamente, as atividades de Knopmus durante a rebelião foram as mais revolucionárias e as mais anti-soviéticas de todas. A "propaganda" de Knopmus incluía a produção de panfletos - distribuídos à população local, fora dos campos -, a impressão de um "jornal mural" para os prisioneiros em greve e, o mais extraordinário, a criação de uma rádio.

Como as autoridades tinham cortado a energia nos primeiros dias da greve, essa rádio não foi apenas uma fanfarronice, mas uma grande conquista técnica. Primeiro, os zeks montaram uma estação "hidrelétrica" - usando uma torneira. Um motor foi convertido em gerador, e eles conseguiram produzir energia suficiente para o sistema de telefonia do campo e para a rádio. Esta, por sua vez, foi montada com peças dos projetores portáteis do campo.

Em poucos dias, a rádio tinha locutores e programas de notícias destinados aos prisioneiros e à população local, fora do campo, inclusive os guardas e os soldados. As estenógrafas do campo registraram o texto de um dos pronunciamentos da rádio depois de um mês de greve, quando os suprimentos de comida estavam chegando ao fim. Dirigido aos soldados, que agora montavam guarda do lado de fora, a estenógrafa o encaminhou para os arquivos do MVD:

Camaradas soldados! Não temos medo de vocês e pedimos que não entrem em nossa zona. Não atirem em nós, não se curvem diante da vontade dos partidários de Beria. Não temos medo deles, assim como não temos medo da morte. Preferimos morrer de fome neste campo a nos render a esse bando. Não sujem as mãos com o mesmo sangue que mancha as mãos dos seus oficiais [...][306]

Enquanto isso, Kuznetsov organizava a distribuição da comida, que era preparada pelas mulheres do campo. Todos os prisioneiros recebiam a mesma ração - não havia porções extras para os pridurki -, que foi diminuindo ao longo das semanas, à medida que os estoques baixavam. Grupos de voluntários também limpavam os alojamentos, lavavam as roupas e montavam guarda. Um detento recorda que "a ordem e a limpeza" reinavam no refeitório, que no passado era imundo e caótico. Os banheiros do campo funcionavam como de costume, assim como o hospital, embora os comandantes do campo se recusassem a fornecer os remédios e os suprimentos necessários.

Os prisioneiros também organizavam o próprio "entretenimento". Segundo um memorialista, um aristocrata polonês chamado conde Bobrinski abriu um "bar" no campo, onde servia "café": "Ele jogava alguma coisa na água, fervia, e, no meio de um dia quente, os prisioneiros bebiam esse negócio com prazer, rindo". O conde se sentava num canto do bar, tocava violão e cantava velhas canções românticas.[307] Outros prisioneiros organizavam séries de palestras, além de espetáculos. Um grupo de atores ensaiou e apresentou uma peça. Uma seita religiosa, que vira todos os seus membros reunidos depois da derrubada do muro que separava homens e mulheres, apregoava que seu profeta havia previsto que todos seriam levados para o céu, vivos. Durante vários dias eles permaneceram sentados em colchões na praça principal, no centro da zona, esperando serem levados para o céu. Mas nada aconteceu.

Surgiram também muitos recém-casados, unidos pelos vários padres que tinham sido presos junto com as levas de bálticos ou ucrania-nos. Entre os casais havia aqueles que tinham se casado enquanto estavam separados pelo muro e que agora se encontravam pela primeira vez. Mas embora homens e mulheres se misturassem livremente, todas as pessoas que descreveram a greve concordam que as mulheres nao foram molestadas nem estupradas, como era freqüente acontecer nos campos comuns.

Naturalmente, canções foram escritas. Alguém compôs um hino ucraniano que, de vez em quando, era cantado em uníssono pelos 13.500 prisioneiros em greve. O refrão era o seguinte:

Não seremos, não seremos escravos

Não iremos mais carregar o fardo [...]

Outro verso dizia:

Irmãos de sangue em Vorkuta e Norilsk, Kolyma e Kengir [...]

"Foi uma época maravilhosa", recorda Irena Arginskaya, 45 anos depois. "Nem antes nem depois eu me senti tão livre como naquele momento." Lyuba Bershadskaya se lembra de que "fizemos tudo inconscientemente: ninguém sabia o que nos esperava nem pensava nisso".

As negociações com as autoridades continuavam. Em 27 de maio, a comissão do MVD designada para cuidar da greve realizou a primeira reunião com os prisioneiros. Entre os que Soljenitsin chama de "personagens de dragona dourada" estavam Sergei Yegorov, o delegado-chefe do MVD; Ivan Dolgikh, chefe do Gulag; e Vavilov, o procurador público responsável pela supervisão do Gulag. Eles foram recebidos por um grupo de 2 mil prisioneiros liderados por Kuznetsov, que lhes entregou uma lista de exigências.

No momento em que a greve estava no auge, eles exigiram que os guardas que atiraram nos presos fossem criminalmente responsabilizados - algo que pediam desde o início. Fizeram também exigências claramente políticas, como a redução das penas de 25 anos; a revisão dos casos de todos os prisioneiros políticos; a extinção das celas e dos alojamentos de castigo;mais liberdade de comunicação cornos familiares; a eliminação do degredo forçado aos prisioneiros libertados; melhores condições de vida para as prisioneiras; e a reunião permanente de homens e mulheres nos campos.

Os prisioneiros também exigiram encontrar-se com um membro do Comitê Central do Partido Comunista. Eles continuaram a fazer essa exigência até o fim, alegando que não podiam confiar que as autoridades de Steplag ou que o MVD fossem cumprir as promessas: "De onde vocês tiraram esse ódio pelo MVD?", o delegado Yegorov lhes perguntou.

Naturalmente, se a greve tivesse acontecido alguns anos antes não teria havido negociação alguma. Mas, em 1954, a revisão dos casos dos prisioneiros políticos já tinha começado, ainda que lentamente. Ao longo da greve, aconteceu de alguns prisioneiros serem convocados a deixar o campo para participar de audiências no tribunal que investigava os casos de novo. Sabendo que muitos prisioneiros já tinham morrido e, ao que parece, desejoso de uma solução rápida e pacífica para o conflito, Dolgikh logo começou a atender às demandas menores, ordenando que retirassem as grades das janelas dos alojamentos, estabelecendo uma jornada de trabalho de oito horas e transferindo de Kengir alguns guardas e oficiais especialmente odiados. Obedecendo a ordens diretas de Moscou, a princípio Dolgikh não usou a força. No entanto, tentou quebrar a resistência dos prisioneiros exortando-os muitas vezes a sair do campo e proibindo novas remessas de comida e remédios.

Com o passar do tempo, porém, Moscou perdeu a paciência Num telegrama enviado a 15 de junho, Kruglov desancou Yegorov por causa de seus relatórios repletos de estatísticas inúteis - por exemplo, quantos pombos haviam deixado o campo carregando panfletos - e informou-o de que um escalão de homens e cinco tanques T-34 estavam a caminho.

Os últimos dez dias da greve foram de fato muito tensos. A comissão do MVD enviava avisos duros pelo sistema de alto-falantes do campo. Como resposta, os prisioneiros transmitiam mensagens pela rádio, contando ao mundo que morriam de fome. Em um discurso, Kuznetsov falou do destino de sua família, que havia sido destruída por sua prisão. "Muitos de nós também haviam perdido familiares, e, ao escutá-lo, fortalecemos nossa decisão de ir até o fim", recordou um detento.

Às três da manhã do dia 26 de junho, o MVD atacou. Na noite anterior, Kruglov telegrafara a Yegorov e o aconselhara a utilizar "todos os recursos possíveis": 1.700 soldados, 98 cães e cinco tanques T-34 cercaram o campo. A princípio, os soldados dispararam sinais luminosos sobre os alojamentos e dispararam as armas descarregadas. Avisos insistentes começaram a soar pelos alto-falantes: "Os soldados estão entrando no campo. Os prisioneiros que desejarem cooperar devem sair com calma. Quem resistir será morto [...]".

Enquanto os prisioneiros corriam pelo campo, desorientados, os tanques passaram pelos portões. Tropas armadas, trajadas com equipamento de combate completo, vieram atrás. Segundo alguns relatos, todos os soldados estavam bêbados. Muito embora essa possa ser uma lenda que cresceu na esteira do assalto, é verdade que o Exército Vermelho e a polícia secreta costumavam dar vodca aos soldados designados para executar um trabalho sujo: quase sempre há garrafas vazias nas sepulturas coletivas.

Bêbados ou não, os motoristas dos tanques não tiveram nenhum escrúpulo de passar por cima dos que avançavam em sua direção. "Eu parei no meio", recorda Lyubov Bershadskaya, "e à minha volta os tanques esmagavam as pessoas vivas". Eles passaram direto sobre um grupo de mulheres que, não acreditando que ousariam matá-las, deram-se os braços e permaneceram em seu caminho. Eles esmagaram um casal que se abraçou e se jogou deliberadamente à sua frente. Destruíram alojamentos onde as pessoas dormiam. Resistiram às granadas caseiras, às pedras, às picaretas e aos outros objetos de metal que os prisioneiros jogavam. Com rapidez surpreendente - em uma hora e meia, de acordo com o relatório escrito depois -, os soldados pacificaram o campo, retiraram os prisioneiros que tinham concordado em sair calmamente e algemaram o restante.

Segundo os documentos oficiais, 37 prisioneiros morreram naquele dia. Nove morreram mais tarde. Um total de 106 presos e quarenta soldados ficaram feridos. Mais uma vez, esses números são muito menores do que os registrados pelos próprios prisioneiros. Bershadskaya, que ajudou o médico do campo, Julian Fuster, a cuidar dos feridos, fala em quinhentos mortos:

Fuster me disse para vestir uma touca branca e uma máscara cirúrgica (que guardo até hoje) e pediu que eu ficasse ao lado da mesa de operação e anotasse o nome dos que ainda conseguiam falar. Infelizmente, quase ninguém conseguia. A maioria dos feridos morreu na mesa, olhando-nos com desespero e pedindo "escreva para minha mãe [...] para meu marido [...] para meus filhos" e assim por diante.

Quando não suportava mais o ar quente e abafado, tirei a máscara e me olhei no espelho. Tinha a cabeça completamente branca. A princípio, achei que, por alguma razão, houvesse talco dentro da touca. Não percebi que, em meio àquela carnificina inacreditável, observando tudo que acontecia, todo o meu cabelo tinha ficado branco em quinze minutos.

Fuster ficou em pé durante treze horas e salvou quantos pôde. Finalmente, aquele cirurgião talentoso e animado sucumbiu. Ele perdeu a consciência, desmaiou, e as operações acabaram [...].[308]

Depois da batalha, todos os sobreviventes que não estavam hospitalizados tiveram de marchar para fora do campo, até a taiga. Armados com metralhadoras, os soldados ordenaram que se deitassem com o rosto no chão e os braços abertos - como se estivessem crucificados - durante várias horas. A partir das fotografias tiradas nas reuniões públicas e dos poucos relatórios feitos pelos informantes, as autoridades prenderam 436 pessoas, inslusive todos os integrantes do comitê de greve. Seis viriam a ser executados, entre eles, Keller, Sluchenkov e Knopmus. Kuznetsov, que entregou às autoridades uma confissão escrita longa e elaborada apenas 48 horas após a prisão, foi condenado à morte - e depois poupado. Ele foi transferido para Karlag e libertado em 1960. Outros mil prisioneiros - quinhentos homens e quinhentas mulheres - foram acusados de apoiar a rebelião e despachados para Ozerlag e Kolyma. Ao que parece, a maior parte deles também foi libertada no final da década.

Durante o levante, as autoridades não deram mostra de ter conhecimento de qualquer força organizadora dentro do campo que não fosse o comitê oficial de grevistas. Mais tarde, começaram a juntar todas as peças, provavelmente graças ao detalhado relatório de Kuznetsov. Cinco representantes do Centro foram identificados - o lituano Kondratas; os ucranianos Keller, Sunichuk e Vakhaev; e o mafioso conhecido no submundo como "Bigode". Chegaram até a desenhar um organograma, com as linhas de comando partindo do Centro, passando pelo comitê de grevistas, pelos departamentos de propaganda, defesa e contra-inteligência. Descobriram as brigadas que haviam sido organizadas para defender os alojamentos, a estação de rádio e o gerador.

No entanto, jamais chegaram a identificar todos os integrantes do Centro, os verdadeiros arquitetos da rebelião. De acordo com um relato, muitos dos "verdadeiros ativistas" permaneceram no campo à espera da anistia, cumprindo suas penas em tranqüilidade. Seus nomes são desconhecidos - e provavelmente continuarão assim.

 

  1. Degelo e libertação

 

Chega de rodeios

Chega de estupidez.

Somos os filhos da devoção.

Somos seu sangue

Fomos criados na névoa

Deveras ambígua,

Megalomaníaca

E pobre de espírito [...]

Andrei Voznesensky, "Filhos do culto", 1967.[309]

 

Embora tenham perdido a batalha, os grevistas de Kengir venceram a guerra. Como conseqüência da rebelião em Steplag, as autoridades da União Soviética de fato perderam o apetite pelos campos de trabalho forçado - e com uma velocidade estonteante.

No verão de 1954, a falta de lucratividade dos campos era amplamente reconhecida. Outro levantamento das finanças do Gulag, realizado em junho de 1954, demonstrou mais uma vez que os campos recebiam pesados subsídios e que o custo dos guardas, em particular, os tornava não lucrativos.[310] Em uma reunião entre os comandantes dos campos e o mais alto escalão do Gulag, realizada logo após os acontecimentos em Kengir, vários administradores reclamaram abertamente da má organização do suprimento de comida, da burocracia fora de controle (nessa altura havia dezessete normas alimentares diferentes) e da péssima organização dos campos. Alguns ainda estavam abertos, mas poucos tinham prisioneiros. As greves e os tumultos continuaram. Em 1955, os prisioneiros de Vorkuta entraram em greve geral outra vez.[311] Os incentivos à mudança eram avassaladores - e a mudança veio. Em 10 de julho de 1954, o Comitê Central emitiu uma resolução que restaurou a jornada de trabalho de oito horas, simplificou o regi-me dos campos e tornou mais fácil aos presos reduzir a pena por meio de trabalho pesado. Os campos especiais foram dissolvidos. Seus prisioneiros tiveram permissão para mandar cartas e receber pacotes, em geral sem restrições. Em alguns campos, os detentos puderam se casar e até viver com as esposas. Os cães e os guardas dos comboios tornaram-se coisas do passado. Os presos passaram a dispor de novas mercadorias para comprar: roupas, que antes inexistiam, e laranjas.[312] Os detentos de Ozerlag puderam até plantar flores.[313]

Nessa época, os altos escalões da elite soviética também tinham iniciado um debate mais amplo sobre a justiça stalinista. No início de 1954, Khrutchev havia solicitado - e recebido - um relatório de quantos presos tinham sido acusados de crimes contra-revolucionários desde 1921 e de quantos ainda estavam presos. Por definição, esses números eram incompletos, pois não incluíam os milhões enviados ao degredo, aqueles acusados de crimes tecnicamente não-políticos, os que foram julgados em tribunais comuns e os que sequer foram julgados. Ainda assim, dado que esses números revelam a quantidade de pessoas mortas ou presas sem nenhum motivo, sua magnitude é chocante. Pelas contas do próprio MVD, 3.777.380 pessoas foram consideradas "culpadas" de fomentar a contra-revolução pelos colégios da OGPU, pelas tróicas da NKVD, pelas comissões especiais e por todos os colégios e tribunais militares que produziram condenações em massa nas três décadas anteriores. Dessas pessoas, 2.369.220 foram enviadas aos campos, 765.180 foram degredadas e 642.980, executadas.[314]

Alguns dias depois, o Comitê Central encarregou-se de reexaminar todos esses casos - bem como o caso dos "repetentes", prisioneiros que receberam um segunda condenação ao degredo em 1948. Khrutchev criou um comitê nacional, encabeçado pelo procurador-chefe da União Soviética, para supervisionar a tarefa. Ele também montou comitês locais em todas as repúblicas e regiões do país para rever as penas dos condenados. Alguns presos políticos foram libertados nesse momento, embora as sentenças originais não tivessem sido ainda anuladas: a reabilitação de fato - a admissão do Estado de que havia cometido um erro - viria mais tarde.[315]

As libertações tiveram início, embora durante um ano e meio tenham acontecido a um passo dolorosamente lento. Às vezes, aqueles que já tinham cumprido dois terços da pena eram soltos sem mais explicações nem reabilitação. Outros foram mantidos nos campos sem nenhum motivo. Apesar de tudo que sabiam sobre a não-lucratividade dos campos, os oficiais do Gulag eram incapazes de fechá-los. Ao que parece, precisavam de um tranco dos superiores.

Então, em fevereiro de 1956, o tranco chegou na forma de um "discurso secreto" proferido por Khrutchev numa sessão fechada do XX Congresso do Partido Comunista. Pela primeira vez, Khrutchev atacou abertamente Stalin e o "culto à personalidade" que o cercava:

É imperdoável - e alheio ao espírito do marxismo-leninismo - elevar uma pessoa ao ponto de transformá-la em um super-homem com poderes sobrenaturais, um deus. Supostamente, esse homem sabe tudo, enxerga tudo, pensa por todos, faz o que quer, é infalível. Durante muitos anos nós cultivamos essa crença a respeito de um homem, Stalin.[316]

Em sua maior parte, o discurso era tendencioso. Ao listar os crimes de Stalin, Khrutchev concentrou-se quase exclusivamente nas vítimas de 1937 e 1938, lembrando os 98 integrantes do Comitê Central que foram mortos e um punhado de velhos bolcheviques. "A onda de prisões em massa começou a perder a força em 1939", ele declarou-o que era uma inverdade patente, pois a quantidade de prisioneiros aumentou na década de 1940. Ele chegou a mencionar as deportações dos tchetchenos e dos balcânicos, talvez porque não tivesse participado delas. Mas não mencionou a coletivização, ou a fome na Ucrânia, ou a repressão maciça na Ucrânia ocidental e nos países bálticos, talvez porque houvesse o dedo dele nessas operações. Khrutchev falou de 7.679 reabilitações, e embora tenha sido aplaudido pelos presentes, essa era uma porcentagem muito pequena dos milhões que foram falsamente acusados, como era de seu conhecimento.[317]

Apesar das falhas, o discurso transmitido com rapidez, também em segredo, para as células do Partido em todo o país - sacudiu a União Soviética. Nunca antes um governante confessara um crime, muito menos em quantidade tão grande. Nem mesmo Khrutchev tinha certeza das reações ao discurso. "Estávamos saindo de um estado de choque", ele escreveu mais tarde. "Ainda havia pessoas nos campos e nas prisões, e não sabíamos explicar o que tinha acontecido ou o que fazer com elas assim que estivessem livres."[318]

O discurso galvanizou o MVD, a KGB e os administradores dos campos. Em poucas semanas, a atmosfera nos campos ficou ainda mais leve, e o processo de libertação e reabilitação finalmente se acelerou. Enquanto pouco mais de 7 mil pessoas foram reabilitadas nos três anos que antecederam o discurso, 617 mil foram reabilitadas nos dez meses seguintes. Criaram-se novos mecanismos para acelerar ainda mais o processo. Ironicamente, vários prisioneiros condenados pelas tróicas eram agora libertados por tróicas. Comissões compostas por três pessoas - um procurador, um membro do Comitê Central e um membro reabilitado do Partido - visitavam os campos e os locais de degredo em todo o país. Eles tinham poder para investigar um caso rapidamente, entrevistar os prisioneiros e libertá-los na hora.[319]

Nos meses que se seguiram ao discurso secreto, o MVD também se preparou para efetuar alterações muito mais profundas na estrutura dos campos. Em abril, o novo ministro do interior, N. P. Dudorov, enviou ao Comitê Central uma proposta de reorganização. "A situação nos campos e nas colônias", ele escreveu, "é terrível." Dudorov argumentou que eles deveriam ser fechados e que os criminosos mais perigosos deveriam ser isolados em prisões nas regiões remotas do país, e citou especificamente o canteiro de obras da inacabada Ferrovia Salekhard-Igarka como uma possibilidade. Os criminosos menos perigosos, por sua vez, deveriam permanecer na região de origem e cumprir a pena em "colônias", trabalhando nas indústrias leves e nas fazendas coletivas. Nenhum deveria ser obrigado a trabalhar como lenhador, mineiro ou mestre-de-obras, nem executar qualquer tarefa não especializada e pesada.[320]

A linguagem de Dudorov era mais importante que as sugestões específicas. Ele não propunha apenas a criação de um sistema de campos menor; ele sugeria a criação de um sistema qualitativamente diferente, o retorno a um sistema prisional "normal", ou que pelo menos fosse reconhecido como tal nos países europeus. As novas colônias penais iriam parar de fingir que eram economicamente auto-suficientes. Os prisioneiros passariam a trabalhar para aprender um ofício útil, não para enriquecer o Estado. O objetivo do trabalho dos prisioneiros seria a reabilitação, não o lucro.[321]

Surpreendem as objeções iradas contra essas sugestões. Embora os representantes dos ministérios econômicos tenham sinalizado seu apoio, I. A. Serov, o chefe da KGB, atacou violentamente as propostas do ministro do Interior, classificando-as de "incorretas" e "inaceitáveis", além de caras. Ele se opunha à construção de novas colônias penais porque essa política "criaria a impressão da existência de um enorme quantidade de locais de encarceramento na União Soviética". Ele se opunha à extinção dos campos e não entendia por que os zeks não podiam trabalhar como lenhadores ou mineiros. Afinal de contas, o trabalho pesado ajudaria a "reeducá-los no espírito do trabalho honesto da sociedade soviética".[322]

O resultado do conflito entre os dois braços do serviço de segurança foi uma reforma mista. Por um lado, o Gulag, o Glavnoe Upravleine Lagerei - Centro de Administração dos Campos - foi dissolvido. Em 1957, Dalstroi e Norilsk, dois dos maiores e mais poderosos complexos, foram desmantelados. O mesmo aconteceu com outros campos. Cada ministro - das Minas, da Indústria, dos Recursos Florestais, dos Transportes - assumiu o controle de grandes nacos do antigo complexo industrial.[323] O trabalho escravo jamais voltaria a ser uma parte importante da economia da União Soviética.

No entanto, o sistema judicial permaneceu intocado. Os juizes continuaram tão políticos, tendenciosos e injustos como sempre foram. O sistema prisional também permaneceu intocado. Os mesmos carcereiros continuaram a impor o mesmo regime nas mesmas celas sem pintura. Com o tempo, quando o sistema começou a se expandir outra vez, até mesmo os programas de reabilitação e reeducação, foco de tanta preocupação e interesse, voltaram a ser inconsistentes e ilusórios como antes.

O embate surpreendentemente mordaz entre o chefe do MVD, Dudorov, e o chefe da KGB, Serov, também era o prenuncio dos conflitos maiores que estavam por vir. Obedecendo ao que consideraram uma ordem de Khrutchev, os liberais queriam fazer mudanças rápidas em todas as esferas da vida soviética. Ao mesmo tempo, os defensores do antigo sistema queriam parar, reverter ou até mesmo alterar as mudanças, em especial quando elas afetavam a vida dos poderosos. O resultado do confronto era previsível: não apenas celas inalteradas, mas também reformas incompletas, novos privilégios rapidamente revogados e discussões públicas que eram imediatamente silenciadas. A era que veio a ser chamada de "Degelo" foi na verdade uma época de mudança, mas um tipo particular de mudança: as reformas davam um passo à frente e depois dois, às vezes três, para trás.

A libertação, fosse em 1926 ou em 1956, sempre produzia nos prisioneiros sentimentos mistos. Gennady Andreev-Khomiakov, que foi libertado nos anos 1930, mostrou-se surpreso com a própria reação:

Imaginei que eu ia ter vontade de dançar, que ficaria bêbado com a liberdade quando eu finalmente a conquistasse. Porém, quando me soltaram, não senti nada disso. Passei pelos portões e pelo último guarda sem nenhum sentimento de felicidade ou de que as coisas iriam melhorar [...] Ali, na plataforma ensolarada, duas garotas trajando vestidos leves riam com alegria. Olhei-as, atônito. Como elas podiam rir? Como todas aquelas pessoas podiam andar por aí, conversando e rindo, como se nada de estranho estivesse acontecendo no mundo, como se não houvesse um pesadelo em seu caminho [...][324]

Depois da morte de Stalin e do discurso de Khrutchev, as libertações aconteciam com mais rapidez, e as reações ficaram ainda mais confusas. Prisioneiros que esperavam passar mais uma década atrás do arame farpado eram soltos com um dia de aviso. Certo grupo de degredados foi convocado ao escritório da mina em que trabalhavam no horário de expediente e convidado a ir embora. Como um deles recorda, o Spetskomandant Isaev "abriu um cofre, pegou nossos documentos e entregou-os a nós [...]".[325] Os prisioneiros que preencheram uma petição após a outra exigindo o reexame de seus casos,de repente descobriram que as cartas não eram mais necessárias - eles podiam simplesmente partir.

Os detentos que não pensavam em nada exceto na liberdade pareciam estranhamente relutantes em experimentá-la: "Embora eu mesmo mal pudesse acreditar, chorei enquanto caminhava para a liberdade [...] sentia-me como se estivessem arrancando de mim o bem mais querido e precioso, meus camaradas de infortúnio. Os portões se fecharam - estava tudo acabado".[326]

Muitos simplesmente não estavam preparados. Yuri Zorin, que viajava num trem lotado de prisioneiros ao sul de Kotlas, em 1954, andou apenas duas estações. "O que vou fazer em Moscou?", perguntou-se, e então voltou para o velho campo, onde o ex-comandante o ajudou a arrumar um emprego como trabalhador livre. Ele permaneceu ali por mais dezesseis anos.[327] Evgeniya Ginzburg conheceu uma mulher que realmente não queria deixar o alojamento: "A verdade e que eu... eu não consigo encarar a vida lá fora. Quero ficar no campo , ela disse a amigos.[328] Uma outra escreveu em seu diário que "Realmente não quero a liberdade. O que a liberdade trará para mim? Tenho a impressão de que lá fora [...] há mentiras, hipocrisia, imprudência. La fora tudo é fantasticamente irreal; aqui tudo é real".[329] Muitos não acreditavam em Khrutchev, achavam que a situação iria piorar e aceitaram empregos como trabalhadores livres em Vorkuta e Norilsk. Preferiram não viver as emoções nem passar pelo estresse do retorno para, no final, serem recapturados.

Porém, mesmo os que queriam voltar para casa descobriam que era quase impossível. Não tinham dinheiro, e a comida era muito pouca. Os campos libertavam os prisioneiros com o equivalente a 500 gramas de pão para cada dia que, em tese, passariam na estrada - uma ração de fome.[330] Além do mais, era comum que ficassem na estrada muito mais tempo que o esperado, pois era quase impossível conseguir passagens para os poucos aviões e trens com destino ao sul. Ao chegar à estação de Krasnoyarsk, Ariadna Éfron encontrou "uma multidão tão grande que era impossível partir, simplesmente impossível. Havia ali pessoas de todos os campos, de Norilsk inteira". Afinal ela conseguiu uma passagem inesperada de um "anjo", uma mulher que, por acaso, tinha duas. Não fosse por isso, poderia ter esperado durante meses.[331]

Diante de um trem também lotado, Galina Usakova e muitos outros resolveram o problema viajando no compartimento de bagagem.[332] Mas outros simplesmente não tiveram sucesso: não era incomum os prisioneiros morrerem na difícil jornada de retorno ou semanas ou meses depois da chegada. Enfraquecidos pelos anos de trabalho forçado, cansados da viagem extenuante, cercados de emoções esmagadoras, sofriam ataques cardíacos e derrames. "Como morreu gente dessa liberdade!", surpreendeu-se um prisioneiro.[333]

Alguns acabaram na cadeia. O próprio MVD fez um relatório em que revelava que os prisioneiros que saíam dos campos de Vorkuta, Pechora e Inta não podiam comprar roupas, sapatos ou roupa de cama, pois "as cidades acima do Círculo Ártico não têm lojas". Desesperados, alguns cometeram pequenos delitos para serem presos de novo. Na prisão eles tinham uma ração de pão, pelo menos.[334] Não que os encarregados dos campos se importassem com isso: enfrentando uma crise de falta de mão-de-obra, a administração de Vorkuta desobedeceu as ordens superiores e tentou de fato impedir que certas categorias de detentos deixassem as minas.[335]

Quando conseguiam retornar a Moscou, Leningrado ou qualquer que fosse a cidade de origem, a vida dos ex-prisioneiros também não ficava mais fácil. A simples libertação não era suficiente para restabelecer uma vida "normal". Sem documentos atestando a reabilitação - documentos que anulavam a sentença original - os ex-prisioneiros políticos ainda eram suspeitos.

É verdade que alguns anos antes eles haviam recebido os temidos "passaportes de lobos", que proibiam os ex-presos políticos de morar nas maiores cidades da União Soviética ou perto delas. Outros haviam sido mandados diretamente para o degredo. Agora os "passaportes de lobos" estavam extintos, mas continuava difícil conseguir trabalho, um lugar onde viver, e, em Moscou, permissão para permanecer na capital. Ao voltar, os prisioneiros descobriram que sua casa havia sido requisitada muito tempo atrás, que seus bens tinham sido gastos.

Vários parentes, "inimigos" por associação, estavam mortos ou empobrecidos: muito tempo depois de os prisioneiros terem sido soltos, sua família continuou estigmatizada, sujeita a várias formas oficiais de discriminação e proibida de realizar determinados trabalhos. As autoridades locais ainda suspeitavam dos antigos detentos. Thomas Sgovio passou um ano "enviando petições e importunando" até receber permissão para residir oficialmente no apartamento da mãe.[336] Os prisioneiros mais velhos não conseguiam uma pensão apropriada.[337]

As dificuldades pessoais e o sentimento de que eram vítimas de uma injustiça convenceram muitos a buscar a reabilitação completa - mas esse processo também não era simples. Para muitos essa opção nem sequer existia. O MVD se recusava categoricamente a rever qualquer caso anterior a 1935, por exemplo.[338] Os que tinham recebido uma sentença extra no campo por insubordinação, dissidência ou roubo também jamais recebiam a cobiçada certidão de reabilitação.[339] Os casos dos bolcheviques de alto coturno - Bukharin, Kamenev, Zinoviev -permaneceram um tabu, e os que foram condenados junto com eles só foram reabilitados nos anos 1980.

Para quem podia, o processo de reabilitação era longo. Os pedidos tinham de ser feitos pelo prisioneiro ou pela família, que freqüentemente tinham de escrever duas, três ou inúmeras cartas para serem atendidos. E, quando conseguiam, o processo às vezes andava para trás: Anton Antonov-Ovseenko recebeu a certidão de reabilitação póstuma de seu pai, que acabou por ser revogada em 1963.[340] Vários ex-prisioneiros continuavam temerosos de apelar. Aqueles que eram convocados a comparecer diante da comissão de reabilitação, em geral formada por oficiais do MVD ou do Ministério da Justiça, costumavam surgir com várias camadas de roupa, segurando pacotes de comida, ao lado de parentes em lágrimas, certos de que seriam presos outra vez.[341]

Nos níveis superiores, muitos temiam que o processo de reabilitação andasse depressa demais e fosse muito longe. "Estávamos apavorados, realmente apavorados", Khrutchev escreveu mais tarde. "Tínhamos medo de que o Degelo causasse uma inundação que não conseguíssemos controlar e que nos afogasse."[342] Um antigo investigador da KGB, Anatoly Spragovsky, recordou-se de que entre 1955 e 1960 ele viajara pela região de Tromsk entrevistando testemunhas e visitando as cenas de supostos crimes. Entre outras coisas, soube que ex-prisioneiros tinham sido acusados de planejar a explosão de fábricas ou pontes que nunca existiram. Ainda assim, quando Spragovsky escreveu a Khrutchev e propôs dinamizar o processo de reabilitação e torná-lo mais rápido, foi rechaçado: ao que parecia, os oficiais de Moscou não desejavam que os erros dos anos de Stalin parecessem grandes ou absurdos demais, por isso não queriam que a investigação dos casos antigos corresse muito depressa. Anastas Mikoyan, membro stalinista do Politburo que sobreviveu na era Khrutehev, explicou por que era impossível reabilitar as pessoas muito depressa. Se todos fossem declarados inocentes de uma vez, "ficaria claro que o país não era administrado por um governo legal, mas por um bando de gângsteres".[343]

O Partido Comunista também temia admitir muito erros. Das mais de 70 mil petições de ex-integrantes exigindo a recondução ao Partido, menos da metade foi atendida.[344] Em conseqüência, a reabilitação completa, com a restituição de casa, trabalho e pensão, era muito rara.

Muito mais comuns do que a reabilitação foram a experiência e os sentimentos mistos de Olga Adamova-Sliozberg, que entrou com o pedido de reabilitação para si e para o marido em 1954. Ela esperou dois anos. Então, depois do discurso secreto de Khrutehev, em 1956, ela recebeu a certidão. E esta declarava que seu caso havia sido revisto e encerrado por falta de provas. "Fui presa em 27 de abril de 1936. Portanto, paguei por esse engano com vinte anos e 41 dias da minha vida." Gomo compensação, dizia a certidão, Adamova-Sliozberg tinha direito a dois meses de salário, por ela e pelo marido morto, e a um extra de 11 rublos e 50 copeques como restituição do dinheiro que estava com o marido quando ele morreu. Só isso.

Enquanto estava parada numa sala de espera da Suprema Corte de Moscou, absorvendo a notícia, ela ouviu alguém gritar. Era uma senhora ucraniana que tinha recebido uma notícia semelhante:

A velha ucraniana começou a gritar: "Não preciso do seu dinheiro em troca do sangue do meu filho; fique com ele!" Ela rasgou as certidões e jogou-as no chão.

O soldado que tinha entregado as certidões se aproximou: "Acalme-se, cidadã", ele começou.

Mas a velha começou a gritar de novo e sufocou num acesso de raiva.

Todos emudeceram, acabrunhados. Aqui e ali escutei lágrimas e soluços abafados.

Voltei a meu apartamento, do qual nenhum policial poderia me expulsar agora. Não havia ninguém em casa, e finalmente pude chorar à vontade.

Chorar por meu marido, que sucumbiu nos porões da Lubyanka aos 37 anos de idade, no auge da força e do talento; por meus filhos, que cresceram órfãos, estigmatizados como filhos de inimigos do povo; por meus familiares, que morreram de desgosto; por Nikolai, que foi torturado nos campos; o por todos os amigos que não viveram para ser reabilitados e que jazem sob o solo congelado de Kolyma.[345]

Embora o fato costume ser ignorado nas histórias que se contam da União Soviética, o retorno de milhões de pessoas dos campos e do degredo deve ter atordoado os milhões de cidadãos soviéticos que encontraram ao chegar. O discurso secreto de Khrutchev fora um choque, mas era um evento distante, dirigido ao Partido. Ao contrário, o reaparecimento de pessoas havia muito consideradas mortas levou a mensagem do discurso de forma muito mais direta a um número bem maior de pessoas. A era de Stalin tinha sido de tortura e violência. De repente, os veteranos dos campos eram a prova viva do que tinha acontecido.

Eles também traziam notícias, boas e más, dos desaparecidos. Na década de 1950, tornou-se costume os prisioneiros soltos visitarem a casa dos camaradas vivos ou mortos, para transmitir mensagens ou repetir as últimas palavras. M. S. Rotfort voltou para Kharkov via Chita e Irkutsk a fim de visitar a família dos amigos.[346] Gustav Herling fez uma visita estranha à família do colega de campo general Kruglov, cuja esposa implorou que não contasse à filha sobre a nova condenação do pai, passou o tempo todo olhando o relógio e pediu que ele fosse embora logo.[347]

Os prisioneiros que retornavam eram também uma fonte de terror - para os chefes, os colegas e as pessoas que os tinham mandado para a prisão. Anna Andreevna recordou que todos os trens que partiam de Karaganda e Potma para Moscou estavam cheios de ex-prisioneiros no verão de 1956. "Tudo estava repleto de alegria e seu oposto, pois as pessoas encontravam aqueles que as tinham condenado, que tinham condenado outros. Era alegre e trágico, e em pouco tempo Moscou inteira estaria repleta daquilo".[348] No romance Pavilhão dos cancerosos, Soljenitsin imagina a reação de um chefe do Partido, acometido pelo câncer, quando a esposa lhe conta que um antigo amigo - um homem que havia denunciado pessolmente para ficar com o aparta-mento dele - seria reabilitado:

Uma fraqueza tomou conta de todo o seu corpo - dos quadris, dos ombros; os braços também ficaram fracos, e o tumor pareceu deslocar a cabeça para o lado.

"Por que me conta isso?", gemeu num tom de voz infeliz, débil.

"Minha desgraça não é suficiente?" E por duas vezes a cabeça e o peito foram sacudidos por soluços [...]

"Que direito eles têm de soltar essas pessoas agora? Eles não têm pena? Como ousam causar tantos traumas!"[349]

O sentimento de culpa podia ser insuportável. Após o discurso secreto de Khrutchev, Aleksandr Fadeev, stalinista comprometido e burocrata literário muito temido, caiu na bebedeira. Bêbado, confessou a um amigo que enquanto era chefe do Sindicato dos Escritores havia sancionado a prisão de muitos autores que sabia serem inocentes. Fadeev se suicidou no dia seguinte. Alegam que teria deixado um bilhete de uma linha endereçado ao Comitê Central: "Essa bala era para a política de Stalin, a estética de Zhdanov e a genética de Lysenko".[350] Outros enlouqueceram. Olga Mishakova, funcionária da Komsomol, tinha denunciado o líder da organização, Kosarev. Depois de 1956, Kosarev foi reabilitado, e o Comitê Central da Komonsol expulsou Mishakova. Ainda assim, durante um ano ela continuou a ir ao edifício da organização, a sentar-se o dia todo no escritório vazio, a fazer horário de almoço. Quando a Komonsol confiscou-lhe o crachá, ela ia para lá e ficava parada na entrada durante todo o expediente. Quando o marido foi transferido para Ryazan, ela pegava o trem para Moscou todos os dias às quatro da manhã, ficava na frente do antigo escritório e só voltava no final da tarde. No fim, foi internada numa instituição psiquiátrica.[351]

Mesmo quando o resultado não era insanidade ou suicídio, os encontros constrangedores que atormentaram a vida social de Moscou depois de 1956 podiam ser excruciantes. "Dois russos se olham nos olhos", escreveu Anna Akhmatova, "o que esteve na prisão e o que o colocou lá."[352] Vários membros do governo, inclusive Khrutchev, conheciam pessoalmente muitos dos egressos. Segundo Antonov-Ovseenko, um desses "velhos amigos" apareceu na porta de Khrutchev em 1956 e persuadiu-o a acelerar o processo de reabilitação.[353] O pior eram os encontros entre os ex-prisioneiros e os homens que haviam sido seus carcereiros e interrogadores. Uma memória publicada sob pseudônimo no jornal clandestino de Roy Medvedev, em 1964, descrevia o encontro de um homem com seu interrogador, que lhe implorou dinheiro para uma bebida: "Dei-lhe tudo que sobrara da viagem, e era bastante. Dei-lhe para podermos ir embora depressa. Tive medo de não me segurar. Senti um desejo avassalador de soltar meu ódio, contido por tanto tempo, em cima dele e dos de sua laia".[354]

Também podia ser muito constrangedor encontrar os antigos amigos, agora prósperos cidadãos soviéticos. Lev Razgon encontrou um amigo íntimo em 1968, mais de uma década depois de retornar "Ele me cumprimentou [...] como se tivéssemos nos despedido na noite anterior. Expressou seus pêsames pela morte de Oksana, é claro, e perguntou por Yelena. Mas tudo isso aconteceu muito rápido, como num encontro de negócios [...] e foi tudo".[355] Yurii Dombrovskii expressou em versos o que sentiu por um amigo que ofereceu suas condolências tarde demais. O poema se chama "A um famoso poeta":

Nem nossos filhos tiveram pena de nós

Nem nossas esposas nos quiseram

Só um sentinela atirou em nós, hábil

Fazendo de nossos números seu alvo [...]

Você perambulava por restaurantes

E contava piadas de copo na mão

Entendia tudo e recebia a todos

Sem notar que havíamos morrido

Então me explique: por que agora,

que eu volto de um túmulo ao norte

enquanto revêem a ordem de guerra

você se aproxima como se eu fosse herói?

Mulheres lambiam suas mãos –

Para lhe dar coragem? Pelas torturas que sofreu?[356]

Lev Kopelev escreveu esse poema depois de voltar, não suportava mais a companhia de pessoas bem-sucedidas, preferia a companhia dos fracassados.[357]

Outra fonte de tormento para os ex-prisioneiros era como falar sobre os campos - e quanto falar - com os amigos e os farmliares. Muitos tentaram proteger os filhos da verdade. A filha do projetista de foguetes Sergei Korolev só soube que o pai estivera na prisão no final da adolescência, quando, ao preencher um formulário, teve de informar se alguém na família já tinha sido preso.[358] Ao deixar os campos, vários prisioneiros foram solicitados a assinar documentos que os proibiam de contar o que quer que fosse. Alguns emudeceram de medo, mas houve quem não se acovardasse. Susanna Pechora se recusou a assinar papéis ao sair do campo, e, em suas próprias palavras, "tenho falado sobre ele desde então".[359]

Outros descobriram que os amigos e os parentes não queriam saber com muitos detalhes onde eles tinham estado e o que lhes tinha acontecido. Sentiam medo - não apenas da onipresente polícia secreta mas também do que poderiam descobrir sobre as pessoas que amavam O romancista Vasily Aksyonov - filho de Evgeniya Ginzburg -escreveu uma cena trágica mas horrivelmente plausível na trilogia As gerações do inverno, ao descrever o que acontecia quando um homem e a mulher se encontram depois de passarem anos em campos de concentração. Imediatamente ele observa que ela parecia saudável demais: "Primeiro me diga como conseguiu não ficar feia [...] você nem emagreceu!", ele diz, conhecendo muito bem todas as maneiras pelas quais as mulheres conseguiam sobreviver no Gulag. Nessa noite, eles se deitam na cama distantes um do outro, incapazes de falar: "A melancolia e a dor os reduzira a cinzas".[360]

O escritor e poeta popular Bulat Okudzhava também escreveu uma história em que descreve o encontro de um homem com a mãe, que tinha passado dez anos nos campos. Ele esperava o retorno da mãe com alegria, acreditando que iria pegá-la na estação de trem, levá-la para jantar em casa depois de um reencontro cheio de lágrimas mas feliz, contar-lhe sobre sua vida e talvez até levá-la ao cinema. Em vez disso, encontrou uma mulher de olhos secos e expressão vaga: "Ela me olhou mas não me viu, seu rosto estava endurecido, congelado". Ele esperava que ela estivesse fisicamente debilitada, mas não estava preparado para os danos emocionais - uma experiência que deve ter sido compartilhada por milhões de pessoas.[361]

As histórias reais costumavam ser igualmente tristes. Nadezhda Kapralova escreveu sobre o encontro com a mãe depois de treze anos. Quando se separaram, ela tinha apenas oito anos: "Éramos mãe e filha, tínhamos a mais íntima das relações, mas ainda assim éramos estranhas, conversamos sobre coisas irrelevantes e passamos a maior parte do tempo chorando ou em silêncio".[362] O prisioneiro Evgeny Gagen reuniu-se a esposa depois de catorze anos, mas descobriu que não tinham nada em comum. Ele sentia ter "crescido" ao longo daqueles anos, ao passo que ela permanecera a mesma.[363] Olga Adamova-Sliozberg sentiu-se pisando em ovos quando se reuniu ao filho, em 1948: "Eu tinha medo de contar-lhe o que havia descoberto 'no outro lado'. Sem duvida eu poderia tê-lo convencido de que havia muita coisa errada em nosso país, de que Stalin, seu ídolo, estava longe de se perfeito, mas meu filho tinha apenas dezessete anos. Tive medo se ser totalmente franca com ele".[364]

No entanto, nem todos se sentiram estranhos na sociedade soviética. Surpreendentemente, talvez, muitos egressos estavam loucos para voltar ao Partido Comunista, não apenas pelo status e pelos privilégios, mas também para se sentirem mais uma vez integrantes do projeto comunista. "O compromisso com um sistema de crenças pode ter raízes profundas, irracionais." É assim que a historiadora Nanci Adler tenta explicar os sentimentos de um prisioneiro ao ser reconduzido ao Partido:

O fator mais importante a assegurar minha sobrevivência naquelas condições duras foi minha fé inabalável no Partido Leninista, em seus princípios humanistas. Foi o Partido que me deu a força física para agüentar os julgamentos [...] Voltar às fileiras do meu Partido Comunista nativo foi a maior felicidade da minha vida.[365]

A historiadora Catherine Merridale vai um pouco mais longe e argumenta que o Partido e a ideologia coletiva da União Soviética realmente ajudaram as pessoas a se recuperar dos traumas que sofreram: "Os russos parecem mesmo ter convivido com suas histórias de perdas indescritíveis trabalhando, cantando e balançando a bandeira vermelha. Hoje alguns riem disso, mas quase todos sentem saudade de um coletivismo e de um objetivo comum que se perderam. Até certo ponto, o totalitarismo funcionou".[366]

Embora em determinado nível eles soubessem que aquela batalha era falsa, embora soubessem que a nação não era tão gloriosa quanto apregoavam seus líderes, embora soubessem que cidades inteiras haviam sido construídas sobre os restos de pessoas condenadas injustamente ao trabalho forçado, mesmo assim algumas vítimas dos campos se sentiam melhor quando faziam parte do esforço coletivo.

De todo modo, a imensa tensão entre o que estiveram "lá" e os que permaneceram em casa não poderia ficar confinada aos quartos e trancada atrás das portas para sempre. Os responsáveis pelos acontecimentos ainda estavam vivos. Finalmente, no XXII Congresso do Partido, em outubro de 1961, Khrutchev, então brigando por espaço, começou a dar nome aos bois. Ele anunciou que Molotov, Kaganovich, Voroshilov e Malenkov eram "culpados de repressão ilegal a oficiais do Partido, do Soviete, das forças armadas e da Komonsol e responsáveis diretos por sua destruição física". Ameaçador, fez insinuações a "documentos em nosso poder" que poderiam provar essa culpa.[367]

No fim, porém, Khrutchev não divulgou nenhum documento ao longo da batalha contra os stalinistas que se opunham às suas reformas. Talvez ele não tivesse força suficiente para isso, ou talvez esses documentos acabassem por revelar sua própria participação na repressão de Stalin. Em vez disso, Khrutchev usou uma nova tática: ampliou o debate público sobre o stalinismo para além do Partido e disseminou-o pelo mundo literário. Embora provavelmente Khrutchev não se interessasse muito pelos poetas e pelos romancistas soviéticos, já no início dos anos 1960 ele previu que eles poderiam colaborar com sua busca de poder. Aos poucos, nomes banidos começaram a reaparecer em publicações oficiais, sem que se explicasse por que tinham sumido e agora reaparecido. Personagens até então inaceitáveis na ficção soviética - burocratas gananciosos, detentos egressos dos campos - começaram a surgir nos romances publicados.[368]

Khrutchev percebeu que essas publicações poderiam fazer sua propaganda: os escritores poderiam desacreditar seus inimigos imputando-lhes os crimes do passado. De qualquer maneira, parece ter sido essa a razão para permitir o lançamento de Um dia na vida de Ivan Denisovich, de Aleksandr Soljenitsin, o mais famoso romance sobre o Gulag.

Graças à sua importância na literatura e ao papel que desempenhou ao divulgar no Ocidente a existência do Gulag, Aleksandr Soljenitsin certamente merece menção especial na história dos campos soviéticos. Mas sua breve carreira de autor soviético "oficial", famoso e amplamente publicado, também merece ser contada, pois ela marca um importante momento de transição. Quando Ivan Denisovich foi impresso pela primeira vez, em 1962, o Degelo estava no auge, havia poucos prisioneiros políticos, e o Gulag parecia coisa do passado. No verão de 1965, quando um jornal do partido descreveu Ivan Denisovich como "uma obra indubitavelmente controversa do ponto de vista ideológico e artístico", Khrutchev tinha sido expulso, o retrocesso havia começado e a quantidade de presos políticos aumentava a uma velocidade sinistra. Em 1974, quando O Arquipélago Gulag - a história do sistema de campos narrada em três volumes - surgiu na Inglaterra, Soljenitsin tinha sido expulso do país e seus livros só eram publicados no exterior. A instituição dos campos de prisioneiros havia sido firmemente restabelecida e o movimento dissidente estava em plena atividade.[369]

A carreira de Soljenitsin na prisão começou da maneira típica entre os zeks de sua geração. Depois de entrar na escola de oficiais, em 1941, ele lutou no front ocidental no outono e no inverno de 1943, escreveu algumas críticas a Stalin numa carta enviada a um amigo em 1945 - e foi preso logo depois. Até então um comunista mais ou menos crente, o jovem oficial ficou atordoado com a brutalidade e a crueza com que foi tratado. Mais tarde, ele ficaria ainda mais chocado diante do tratamento agressivo dispensado aos soldados do Exército Vermelho que tinham sido capturados pelos nazistas. Em sua opinião, esses homens deveriam ter sido recebidos como heróis.

Sua estada subseqüente nos campos foi um pouco menos típica. Graças aos seus conhecimentos de matemática e física, cumpriu parte da pena na sharashka, uma experiência que veio a registrar em O primeiro círculo. Exceto por esse fato, é justo dizer que ele passou por uma série de lagpunkts pouco notáveis, inclusive um em Moscou e outro num complexo de campos especiais em Karaganda. Ele também foi um prisioneiro pouco notável. Flertou com as autoridades, serviu de informante antes de cair em si e acabou trabalhando como pedreiro. Foi essa a profissão que escolheu para Ivan Denisovich, o zek "comum" que protagonizou seu primeiro romance. Depois da libertação, passou a dar aulas em uma escola de Ryazan e começou a escrever sobre suas experiências. Isso também não era comum: as centenas de memórias do Gulag que foram publicadas desde a década de 1980 são um testemunho da eloqüência e do talento dos ex-prisioneiros soviéticos, entre os quais muitos escreveram em segredo durante anos. No final, o que tornou Soljenitsin verdadeiramente único foi o fato de sua obra ter sido publicada na União Soviética enquanto Khrutchev estava no poder.

Muitas lendas cercam a publicação de Um dia na vida de Ivan Denisovich, ao ponto de Michael Scammell, o biógrafo de Soljenitsin, afirmar que "foram tantos os floreios acrescentados pelo caminho que é difícil separar os fatos das invenções". A obra caminhou para a fama lentamente. O manuscrito de Ivan Denisovich passou pelas mãos de Lev Kopelev - uma figura do círculo literário de Moscou e colega de campo de Soljenitsin - e pela editora de texto da Novyi Mir. Excitada com a descoberta, a editora repassou-o a Aleksandr Tvardovsky, editor-chefe da Novyi Mir.

Diz a lenda que Tvardovsky começou a ler Ivan Denisovich deitado na cama. Depois de algumas páginas, porém, estava tão impressionado que achou melhor se levantar, vestir-se e continuar lendo sentado. Passou a noite lendo, e, assim que o dia raiou, correu para o escritório e ordenou às datilógrafas que produzissem mais cópias, de modo que pudesse distribuir o livro aos amigos, o tempo todo saudando o nascimento de um novo gênio da literatura. Não se sabe se foi exatamente assim que as coisas aconteceram, mas essa foi a história contada por Tvardovsky. Posteriormente, Soljenitsin escreveu-lhe para dizer como se sentira feliz ao saber que ele achava que Ivan Denisovich "valia uma noite de sono".[370]

O romance era bastante direto: registrava um dia na vida de um prisioneiro comum. Os leitores atuais - mesmo os russos - podem achar difícil entender por que o livro gerou tanto furor nos meios literários de Moscou. Mas ele teve o impacto de uma revelação para quem o leu em 1962. Em vez de mencionar os "egressos" e a "repressão" de maneira vaga, como outras obras da época, Ivan Denisovich descrevia sem rodeios a vida nos campos, um assunto que até então não havia sido discutido em público.

Ao mesmo tempo, o estilo de Soljenitsin - em particular a utilização da gíria dos campos - e a descrição do tédio e do desgosto da vida na prisão contrastavam vivamente com a ficção vazia e falsa que se publicava. O credo oficial da literatura soviética, o "realismo socialista", não era realismo de fato, mas uma versão literária da doutrina política de Stalin. A literatura das prisões não havia mudado desde os dias de Gorki. Se houvesse um ladrão num romance soviético, ele veria a luz e se converteria à verdadeira fé soviética. O herói podia sofrer, mas no final o Partido lhe mostrava o caminho. A heroína podia verter lágrimas, mas assim que aprendia o valor do Trabalho, descobria o seu papel na sociedade.

Ivan Denisovich, ao contrário, era genuinamente realista: não era otimista nem dava lições de moral. O sofrimento dos heróis era inútil. Seu trabalho era extenuante, e eles tentavam evitá-lo. O Partido não triunfava no final, e o comunismo não emergia vencedor. Essa honestidade, tão rara num escritor soviético, foi precisamente o que Tvardovsky admirou: ele disse a Kopelev que a história "não tinha um pingo de falsidade". E essa foi precisamente a qualidade que perturbou muitos leitores, em especial os do establishment soviético. Até mesmo um dos editores da Novyi Mir considerou a franqueza do livro perturbadora.Nos comentários sobre a obra, ele escreveu que "ele mostra a vida por um único ângulo, distorcendo involuntariamente as proporções".

Para as pessoas acostumadas a conclusões simplistas, o final do romance parecia terrivelmente aberto e amoral.

Tvardovsky desejava publicá-lo, mas sabia que se mandasse uma cópia datilografada aos censores eles a baniriam de imediato. Em vez disso, ofereceu Ivan Denisovich a Khrutchev, para que ele o usasse contra os inimigos. Segundo Michael Scammel, Tvardovsky escreveu um prefácio que apresentava o livro exatamente sob essa luz e começou a distribuí-lo a pessoas que poderiam entregá-lo ao próprio Khrutchev.[371]

Depois de muitas idas e vindas, muita discussão e algumas alterações no manuscrito - Soljenitsin foi persuadido a acrescentar pelo menos um "herói positivo" e a incluir uma sutil condenação ao nacionalismo ucraniano -, o romance por fim chegou a Khrutchev. Ele o aprovou. Chegou até a elogiar o livro por ter sido escrito "no espírito do XXII Congresso do Partido", o que presumivelmente significa que, em sua opinião, ele iria incomodar os inimigos. Finalmente, o romance apareceu impresso na edição da Novyi Mir de novembro de 1962. "O pássaro está livre! O pássaro está livre", Tvardovsky teria gritado com um exemplar nas mãos.

A princípio, o elogio da crítica foi fastidioso, principalmente porque o enredo ia ao encontro da linha oficial do momento. O crítico de literatura do Pravda desejou que daquele momento em diante "a luta contra o culto à personalidade continue a facilitar o aparecimento de obras de arte notáveis pelo valor artístico inesgotável". O crítico do Izvestiya disse que Soljenitsin "havia se mostrado um verdadeiro colaborador do Partido numa causa sagrada e vital - a luta contra o culto à personalidade e suas conseqüências".[372]

No entanto, não foi bem essa a reação dos leitores comuns que afogaram Soljenitsin em cartas nos meses seguintes à publicação da Novyi Mir. O paralelo com a nova linha do Partido não impressionou os ex-prisioneiros que lhe escreveram de todo o país. O que aconteceu e que eles ficaram muito satisfeitos de ler algo que refletia a própria experiência e os próprios sentimentos. Pessoas temerosas de deixar escapar uma palavra aos amigos mais próximos de repente se sentiram libertas. Uma mulher descreveu sua reação: "Meu rosto se encheu de lágrimas. Não as enxuguei porque naquelas poucas páginas da revista estava o retrato de todos os dias dos quinze anos que passei nos campos".

Outra carta endereçada ao "Caro amigo, camarada e irmão" Solienitsin dizia: "Lendo sua história eu me lembrei de Sivaya Maska e Vorkuta [...] as geadas e as nevascas, os insultos e as humilhações [...] Eu chorei enquanto lia - os personagens eram todos familiares, como se fossem da minha brigada [...] Obrigado mais uma vez! Continue assim - escreva, escreva".[373]

As reações mais fortes vieram daqueles que ainda estavam presos. Leonid Sitko, que então cumpria a segunda pena, soube da publicação no distante Dubravlag. Quando um exemplar da Novyi Mir chegou à biblioteca do campo, os administradores o retiveram por dois meses. Finalmente, os zeks conseguiram um exemplar e formaram um grupo de leitura. Sitko recordou que os prisioneiros ouviam "sem respirar":

Depois que a última palavra foi lida, houve um silêncio mortal. Então, após dois ou três minutos, a sala explodiu. Todos tinham vivido aquela história dolorosa [...] em meio à fumaça de tabaco, eles falaram sem parar [...]

E com freqüência cada vez maior, perguntavam: "Por que publicaram isso?"[374]

De fato, por quê? Parece que as próprias lideranças do Partido começaram a se perguntar. Talvez o retrato honesto que Soljenitsin pintou da vida nos campos tenha sido demais para eles: ele representava uma mudança significativa demais, sua publicação foi rápida demais para homens que ainda temiam que a própria cabeça fosse a próxima a rolar. Ou talvez já estivessem cansados de Khrutchev, talvez pensassem que ele já tinha ido longe demais e usaram o romance de Soljenitsin como desculpa. De fato, Khrutchev foi deposto pouco tempo depois, em outubro de 1964. Seu substituto, Leonid Brejnev, era o líder dos neo-stalinistas - reacionários, oponentes da mudança e do Degelo.

Seja como for, está claro que depois da publicação do romance os conservadores se reorganizaram com velocidade impressionante. Ivan Denisovich surgiu em novembro. Em dezembro - alguns dias depois de Khrutchev encontrar Soljenitsin e cumprimentá-lo - Leonid Ilyichev, presidente da Comissão Ideológica do Comitê Central, discursou para um grupo de quatrocentos escritores reunidos em seu sindicato. A sociedade soviética, disse-lhes, não devia ser "abalada e enfraquecida sob o pretexto de se lutar contra o culto ao indivíduo [...]".[375]

A rapidez da mudança refletia a postura ambivalente da União Soviética em relação à própria história - ambivalência que não foi resolvida até hoje. Para a elite soviética, aceitar que o retrato de Ivan Denisovich era autêncito significava admitir que pessoas inocentes haviam sofrido inutilmente em vão. Se os campos fossem realmente estúpidos, e dispendiosos, e trágicos, então a União Soviética também era estúpida, e dispendiosa, e trágica. Para os cidadãos soviéticos fossem eles membros da elite ou simples camponeses, era e ainda é difícil aceitar que sua vida foi guiada por um amontoado de mentiras.

Após um período de oscilação - alguns argumentos a favor, alguns argumentos contra - Soljenitsin começou a ser atacado com severidade. Em capítulos anteriores, descrevi a reação irada de guardas e prisioneiros aos esforços de Denisovich para evitar o trabalho pesado. Mas também houve críticas mais elaboradas. Lydia Fornenko, crítica da Literaturnaya Rossiya, acusou Soljenitsin de não "revelar toda a dialética da época". Em outras palavras, Soljenitsin tinha condenado o "culto à personalidade", mas deixara de apontar o caminho para um futuro otimista e não incluíra personagens comunistas "bons", que triunfariam no final. Vários outros fizeram coro a essa crítica, e alguns até tentaram corrigir os erros de Soljenitsin de forma literária. A história de um sobrevivente, de Boris Dyakov, o romance "leal" sobre os campos lançado em 1964, continha descrições explícitas de prisioneiros soviéticos leais e trabalhadores.[376]

Como o romance de Soljenitsin estava sendo considerado para o Prêmio Lenin, o mais importante prêmio literário na União Soviética, os insultos pioraram. No final - por meio de táticas que viriam a ser repetidas anos depois - o establishment recorreu a insultos pessoais. Em uma reunião do Comitê do Prêmio Lênin, o chefe da Komsomol, Sergei Pavlov, levantou-se e acusou Soljenitsin de ter se rendido aos alemães durante a guerra e de ter sido condenado como criminoso. Tvardovsky fez Soljenitsin buscar a certidão de reabilitação, mas era tarde demais. O Prêmio Lenin foi para O sino da ovelha, livro cuja melhor descrição é "completamente esquecido", e a carreira literária oficial de Soljenitsin chegou ao fim.

Ele continuou escrevendo, mas nenhum de seus romances sub-seqüentes foi publicado na União Soviética - pelo menos não legal-mente - até 1989. Em 1974, foi expulso do país e acabou por fixar residência em Vermont. Até a era Gorbatchev, apenas um minúsculo grupo de cidadãos soviéticos - aqueles que tinham acesso a cópias clandestinas datilografadas ou exemplares contrabandeados - lera O arquipélago Gulag, seu relato do sistema de campos.

Mas Soljenitsin não foi a única vítima do recuo conservador. No momento em que a controvérsia em torno de Ivan Denisovich ficava mais inflamada, outro drama literário de desenrolava: a 18 de fevereiro de 1964, o jovem poeta Joseph Brodsky foi julgado por "parasitismo". A era dos dissidentes estava para começar.

 

  1. A ERA DOS DISSIDENTES

 

Não festejem cedo demais

E deixem que um oráculo proclame

Que as feridas não serão reabertas

Que as hordas do mal não vão se reerguer.

E que me arrisco a parecer demente;

Deixem-no orar. Tenho certeza de que Stalin não morreu.

Como se os mortos importassem

E os anônimos sumidos no Norte.

Não causou verdadeiro estrago

O mal que insulou em nosso coração?

Como a pobreza vem da riqueza

Como continuamos a mentir

E não desaprendemos a temer

Stalin não morreu

Boris Chichibabin, "Stalin não morreu", 1967.[377]

 

A morte de Stalin realmente sinalizou o final da era de trabalho escravo em massa na União Soviética. Embora as políticas de repressão no país viessem a assumir formas um tanto duras nos quarenta anos subseqüentes, ninguém voltou a propor que se revivessem os campos de concentração em larga escala. Ninguém voltou a tentar transforma-los no centro da economia ou usá-los para encarcerar milhões de pessoas. A polícia secreta nunca mais controlou uma fatia tão grande do setor produtivo da nação, e os comandantes dos campos nunca mais chefiaram um empreendimento industrial tão grande. Mesmo o edifício da Lubyanka, o quartel-general da KGB no pós-guerra, deixou de ser uma prisão: Gary Powers, o piloto-espião americano cujo avião, um U-2, foi derrubado em solo soviético em 1960, foi a última pessoa presa em suas celas.[378]

Ainda assim, os campos não desapareceram de uma vez.Tampouco as prisões soviéticas passaram a fazer parte de um sistema penal "comum", organizado apenas para criminosos. Os campos evoluíram.

Para começar, a natureza dos prisioneiros políticos evoluiu. No tempo de Stalin, o sistema repressivo lembrava uma grande roleta: qualquer um podia ser preso, por qualquer razão, a qualquer momento - camponeses, operários e burocratas do Partido. Depois de Khrutchev, a polícia secreta continuou fazendo prisões ocasionais "a troco de nada", segundo definição de Anna Akhmatova. Na maior parte do tempo, porém, a KGB de Brejnev prendia as pessoas por alguma razão - se não por um ato criminoso genuíno, então pela oposição literária, religiosa ou política ao sistema soviético. Em geral chamados de "dissidentes" e às vezes de "presos de consciência", os presos políticos dessa geração sabiam por que estavam presos, identificavam-se como prisioneiros políticos e eram tratados como tal. Eles eram isolados dos criminosos comuns, tinham uniforme diferente e estavam sujeitos a um regime diferenciado. Também seriam estigmatizados como dissidentes pelo resto da vida, estariam sujeitos a discriminação no trabalho e perderiam a confiança de parentes e vizinhos.

Também havia muito menos presos políticos agora do que na época de Stalin. Em meados dos anos 1970, a Anistia Internacional estimava que de cerca de 1 milhão de prisioneiros soviéticos, não mais de 10 mil eram presos políticos, em sua maioria encarcerados em dois complexos de campos "políticos", um na Mordóvia, ao sul de Moscou, e outro em Perm, no lado ocidental dos Urais.[379] Em um ano se faziam não mais de alguns milhares de prisões políticas. Essa quantidade seria considerada alta em qualquer outro país, mas certamente era baixa em comparação ao padrão da União Soviética de Stalin.

Segundo os relatos de ex-detentos, essa nova espécie de prisioneiro começou a aparecer nos campos no início de 1957, na esteira da revolução húngara de outubro de 1956, quando foram presos soldados e cidadãos soviéticos que simpatizavam com a revolta.[380] Mais ou menos nessa época, a primeira leva de "refuseniks", judeus que foram proibidos de imigrar para Israel, também surgiu nas prisões soviéticas. Em 1958, Bym Gindler, um judeu polonês que fora deixado do lado soviético da fronteira depois da guerra, teve negado o pedido para ser repatriado para a Polônia, com o argumento de que ele aproveitaria a oportunidade Para imigrar para Israel.[381]

O final dos anos 1950 também assistiu à prisão dos primeiros batistas soviéticos, que logo se tornariam o maior grupo dissidente por trás do arame farpado, além de membros de outras seitas religiosas. Em 1960, o dissidente Avraham Shifrin encontrou até um grupo de Fiéis Antigos, seguidores dos velhos ritos da igreja Ortodoxa, numa solitária em um campo político em Potma. Sua comunidade imigrara para as florestas virgens ao norte dos montes Urais em 1919 e ali vivera em segredo durante cinqüenta anos, até ser descoberta por um helicóptero da KGB. Quando Shifrin os encontrou, já eram residentes permanentes das solitárias, pois se recusavam categoricamente a trabalhar para o anticristo soviético.[382]

O próprio Shifrin era representante de uma nova categoria de prisioneiro: a dos filhos dos "inimigos do povo", que no final dos anos 1950 se descobriram incapazes de abrir espaço na vida soviética. Nos anos que se seguiram, uma quantidade impressionante de integrantes da geração dissidente, em especial os ativistas dos direitos humanos, acabariam por se revelar filhos ou parentes das vítimas de Stalin. Os gêmeos Medvedev, Zhores e Roy, estão entre os exemplos mais famosos. O historiador Roy tornou-se um dos mais conhecidos publicistas clandestinos da União Soviética; Zhores foi um cientista dissidente, que por isso foi trancado num hospital psiquiátrico. Eles eram filhos de um "inimigo do povo": seu pai havia sido preso quando eles ainda eram crianças.[383]

Havia outros. Em 1967, 43 filhos de comunistas, todos vítimas da repressão de Stalin, enviaram uma carta aberta ao Comitê Central, alertando para a ameaça do neo-stalinismo. A carta, a primeira de uma série de missivas de protesto encaminhadas às autoridades, continha o nome de vários editores clandestinos e líderes dissidentes, muitos dos quais logo estariam na prisão também: Pyotr Yakir, filho do general Yakir; Anton Antonov-Ovseenko, filho do bolchevique revolucionário; e Larisa Bogoraz, cujo pai tinha sido preso por atividade trotskista em 1936. Ao que parecia, a experiência familiar com os campos podia ser suficiente para tornar radicais os membros mais jovens.[384]

Se os prisioneiros tinham mudado, o mesmo aconteceu com alguns aspectos do sistema legal. Em 1960 - o ano que costuma ser lembrado como o apogeu do Degelo - um novo código criminal foi promulgado. Sem dúvida, o novo código era mais liberal. Ele abolia os interrogatórios noturnos e limitava os poderes da KGB (que conduzia as investigações policiais) e do MVD (que administrava o sistema prisional). Ele garantia mais independência aos promotores e, acima de tudo, abolia o odiado Artigo 58.[385]

Algumas mudanças foram imediatamente consideradas uma simples camuflagem, alterações lingüísticas e não mudança de fato. "Você está enganado", o romancista Yuli Daniel escreveu alguns anos depois, numa carta que conseguiu contrabandear para um amigo. "Você está enganado se pensou que eu estava na prisão. Eu era 'mantido em isolamento investigativo', portanto não fui jogado na cadeia, mas 'instalado num local de castigo'. E isso não foi feito por carcereiros, mas por 'controladores', e esta carta não está sendo enviada de um campo de concentração, mas de uma 'instituição'."[386]

Daniel tinha razão em outra coisa: se o governo quisesse prender alguém como suspeito de pensar diferente, ainda podiam fazê-lo. No lugar do Artigo 58, o código criou o Artigo 70, que regulava a "Agitação e Propaganda Anti-Soviética", e o Artigo 72, sobre "Atividade Organizacional de Crimes Especialmente Perigosos contra o Estado e Também a Participação em Organizações Anti-Soviéticas". Além disso, as autoridades acrescentaram o Artigo 142, sobre "Violação da Lei e Separação entre Igreja e Estado". Em outras palavras, se a KGB quisesse prender alguém por sua religião, ainda havia formas.[387]

Mas nem tudo continuou como antes. Na era pós-stalinista, as autoridades - os promotores, os guardas dos campos, os carcereiros - estavam muito mais sensíveis às aparências e tentavam de fato transmitir uma imagem de legalidade. Por exemplo, quando a linguagem utilizada na redação do Artigo 70 se mostrou frouxa demais para condenar todos aqueles que as autoridades achavam necessário colocar atrás das grades, acrescentaram ao código o Artigo 190-1, que proibia a "disseminação oral de maquinações deliberadas para desacreditar o sistema político e social da União Soviética". O sistema judicial devia parecer um sistema judicial, mesmo que todos soubessem que se tratava de uma impostura.[388]

Numa clara reação ao antigo sistema de tróicas e comissões especiais, a nova lei estipulava que as prisões tinham de ser julgadas num tribunal de justiça. E isso acabou se tornando um inconveniente muito maior do que o previsto.

Embora Joseph Brodsky não tenha sido condenado pelas novas leis antidissidentes, seu julgamento anunciou os novos tempos que estavam a caminho. O simples fato de que tenha sido realizado já era uma novidade: no passado, as pessoas que irritaram o Estado só tiveram um julgamento público em casos pré-combinados, para exibição, se é que foram mesmo julgadas. E o mais importante é que a própria postura de Brodsky no julgamento já era uma prova de que ele pertencia a uma geração diferente da de Soljenitsin e da geração de presos políticos do passado recente.

Certa vez Brodsky escreveu que sua geração havia sido "poupada" da experiência de doutrinação por que passaram as pessoas apenas alguns anos mais velhas. "Nós surgimos do entulho do pós-guerra, quando o Estado estava preocupado demais em remendar a própria pele e não podia cuidar de nós muito bem. Entramos na escola, e a despeito da bobajada nobre que nos ensinaram por lá, o sofrimento e a pobreza eram visíveis à nossa volta. Não se esconde uma ruína com uma página do Pravda."[389]

Se fossem russos, os integrantes da geração de Brodsky teriam chegado à crítica do statu quo soviético por meio do gosto artístico ou literário, que não podiam ser expressos na União Soviética de Brejnev. Se fossem bálticos, caucasianos ou ucranianos, o mais provável é que tivessem chegado a ela graças ao nacionalismo herdado dos pais. Brodsky era o clássico dissidente de Leningrado. Ele rejeitou a propaganda soviética ainda muito pequeno e abandonou a escola aos quinze anos. Teve uma série de empregos temporários e começou a escrever poesia. Quando tinha vinte e poucos anos já era bem conhecido no meio literário da cidade. A velha Akhmatova fez dele seu protegido. Seus poemas circulavam entre os amigos e eram lidos em voz alta em encontros literários secretos, outra característica dos novos tempos.

Confio era de se esperar, toda essa atividade não oficial atraiu a atenção da polícia secreta. Primeiro, Brodsky foi hostilizado; depois, preso. A acusação era de "parasitismo": como Brodsky não era um poeta licenciado pelo Sindicato dos Escritores, foi considerado vadio. No julgamento, realizado em fevereiro de 1964, o Estado apresentou testemunhas, na maioria desconhecidas de Brodsky, que afirmaram que ele era "moralmente depravado, que fugira do serviço militar e que escrevia versos anti-soviéticos". Em sua defesa havia cartas e discursos de poetas e escritores famosos, inclusive de Akhmatova, aos quais as testemunhas da promotoria responderam iradas:

Eles não passam de amigos extravagantes tocando todos os sinos e exigindo "Salvem esse jovem!". Mas ele deveria ser tratado com trabalho forçado, e ninguém o ajudaria, nenhum amigo extravagante. Não o conheço pessoalmente, só pelos jornais. E estou familiarizado com certidões. Tenho dúvidas sobre as certidões que o liberaram do serviço militar. Não sou médico, mas tenho dúvidas.[390]

Visivelmente, aquele não era o julgamento de Brodsky apenas, mas dos remanescentes da classe intelectual independente, de sua suposta oposição às autoridades soviéticas e de seu desprezo pelo "trabalho duro". E, num certo sentido, os organizadores do julgamento acertaram um alvo: Brodsky realmente se opunha às autoridades soviéticas; realmente desprezava o trabalho inútil, estéril; e ele realmente representava uma classe alienada, um grupo de pessoas profundamente frustradas com a repressão que se seguiu ao Degelo. Como sabia disso muito bem, Brodsky não ficou surpreso com a prisão nem desconcertado com o julgamento. Em vez disso, discutiu com o juiz:

Juiz: Qual é a sua profissão? Brodsky: Sou poeta.

Juiz: Quem o reconhece como poeta? Quem lhe deu autoridade para se intitular poeta?

Brodsky: Ninguém. Quem me deu autorização para lazer parle da raça humana?

Juiz: Estudou para isso? Brodsky: Para quê?

Juiz: Para ser poeta. Por que não continua os estudos numa escola onde podem prepará-lo, onde pode aprender?

Brodsky: Não acho que se possa aprender poesia.

Juiz: Como assim?

Brodsky: Acho que ela é [...] um dom de Deus.

Depois, quando lhe perguntaram se tinha alguma petição a apresentar ao tribunal, Brodsky respondeu "Gostaria de saber por que estou preso". O juiz respondeu "Isso é uma pergunta, não uma petição". E Brodsky retrucou "Nesse caso, não tenho petições".[391]

[392]

Tecnicamente, Brodsky perdeu a briga: o juiz condenou-o a cinco anos de trabalho pesado numa colônia penal perto de Arkhangelsk, sob o argumento de que ele havia "sistematicamente deixado de cumprir suas obrigações como cidadão soviético, que não tinha produzido nada de valor material, que não era capaz de se sustentar, como comprovavam as mudanças constantes de emprego". Citando afirmações feitas pela Comissão de Trabalho com Jovens Poetas, o juiz também declarou que Brodsky - que viria a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura - "não era poeta".

Ainda assim, de certo modo Brodsky "venceu", algo que a geração anterior de prisioneiros russos não teria conseguido. Ele não apenas desafiou a lógica do sistema legal soviético em público, mas também registrou esse desafio para a posteridade. Sub-repticiamente, um jornalista fez anotações durante o julgamento, e estas acabaram sendo contrabandeadas para o Ocidente. Graças a isso, Brodsky tornou-se logo famoso, na Rússia e no exterior. Além de se tornar um modelo a ser seguido por outros, sua postura no tribunal também influenciou escritores russos e estrangeiros a entrar com petições de soltura. Dois anos depois, ele foi solto e, ao final, acabou expulso da União Soviética.

Nada parecido aconteceu quando Stalin estava vivo. "Como sempre, as pessoas são jogadas atrás das grades e transportadas para o leste", escreveu pouco depois Valentyn Moroz, um historiador ucraniano dissidente. "Desta vez, porém, eles não afundaram no desconhecido."[393] Seria essa, afinal, a grande diferença entre os prisioneiros de Stalin e os de Brejnev e Andropov: o mundo sabia de sua existência, importava-se com eles e, acima de tudo, podia influir em seu destino. No entanto, o regime soviético não estava se tornando mais liberal, e as conseqüências do julgamento de Brodsky não demoraram a aparecer.

Assim como 1937 foi um ano especial de perseguição à intelligentsia da era stalinista, 1966 foi um ano especial para a geração do Degelo. Em 1966, já era claro que os neo-stalinistas haviam triunfado. A reputação de Stalin como líder falho mas ainda assim admirável tinha sido oficialmente restaurada. Joseph Brodsky estava em um campo de trabalho. Soljenitsin era um escritor banido. Khrutchev fora deposto e substituído por Leonid Brejnev, que se manifestou abertamente no sentido de reconstruir a reputação de Stalin.[394] Em um ano, Yuri Andropov, que tinha acabado de ser nomeado presidente da KGB, faria um discurso pelo qüinquagésimo aniversário da fundação da Cheka. Ele exaltaria a polícia secreta, entre outras coisas, por sua "luta implacável contra os inimigos do Estado".[395]

Em fevereiro de 1966, Andrei Sinyavsky e Yuli Daniel também foram a julgamento. Ambos eram escritores conhecidos, com trabalhos publicados no exterior, e ambos foram declarados culpados, nos termos do Artigo 70, por agitação e propaganda anti-soviética. Sinyavsky foi condenado a sete anos de trabalho forçado; Daniel foi condenado a cinco.[396] Essa foi a primeira vez em que alguém foi condenado não por vadiagem, mas pelo conteúdo de seu trabalho literário. Um mês depois, sob sigilo significativamente maior, mais de duas dezenas de intelectuais ucranianos foram a julgamento em Kiev. Um deles foi acusado, entre outras coisas, de possuir uma cópia de poema do século XIX do poeta Taras Shevchenko, que dá nome a ruas em Moscou e Kiev. Como o poema havia sido impresso sem o nome do autor, os "especialistas" soviéticos classificaram-no de poema anti-soviético de autor desconhecido.[397]

Seguindo um padrão que logo se tornaria comum, esses julgamentos geravam outros, pois, sentindo-se insultados, outros intelectuais começaram a usar o jargão legal e a constituição soviética para criticar o sistema jurídico e a polícia do país. O caso de Sinyavsky e Daniel, por exemplo, causou profunda impressão em outro jovem moscovita, Aleksandr Ginzburg, que já atuava nos círculos culturais "não oficiais". Ele compilou uma transcrição do julgamento Sinyavsky-Daniel, o "Livro Branco" e distribuiu-a em Moscou. Logo depois, Gizburg foi preso com três supostos colaboradores.[398]

Mais ou menos na mesma época, os julgamentos de Kiev impressionaram um jovem advogado ucraniano, Vyacheslav Chornovil. Ele compilou um dossiê do sistema judicial da Ucrânia, apontou suas principais contradições e demonstrou a ilegalidade e o absurdo das prisões realizadas no país.[399] Em pouco tempo ele foi preso.[400] Dessa maneira, um movimento intelectual e cultural iniciado por escritores e poetas transformou-se num movimento pelos direitos humanos.

Para colocar o movimento soviético pelos direitos humanos em contexto, é importante observar que os dissidentes da União Soviética jamais começaram como uma organização de massas, como os colegas poloneses, e não podem receber todo o crédito pela derrocada do regime soviético: a corrida armamentista, a guerra contra o Afeganistão e o desastre econômico produzido pelo planejamento central tiveram papel equivalente. Eles tampouco conseguiram organizar mais que um punhado de manifestações públicas. Uma das mais famosas - realizada em 25 de agosto de 1968 em protesto contra a invasão soviética da Tchecoslováquia - contou com apenas sete pessoas. Ao meio-dia, os sete se reuniram em frente à Catedral de São Basílio, na Praça Vermelha, desfraldaram bandeiras tchecas e estenderam faixas com slogans como "Vida longa à Tchecoslováquia independente", "Não se meta, Tchecoslováquia, pela sua liberdade e pela nossa". Em alguns minutos um apito soou e agentes da KGB à paisana investiram contra os manifestantes, a quem pareciam estar esperando, aos gritos de "São todos judeus!" e "Batam nos anti-soviéticos!". Rasgaram as faixas, espancaram os manifestantes e levaram todos para a cadeia, exceto um - ela estava com o filho de três anos.[401]

Por menores que fossem, porém, esses esforços causavam um grande problema para os líderes soviéticos, em especial devido ao compromisso renovado de disseminar a revolução e da conseqüente - e obsessiva - preocupação com a imagem internacional da União Soviética. No tempo de Stalin, a repressão em massa podia ser ocultada até durante a visita de um vice-presidente americano. Nas décadas de 1960 e 1970, a notícia de uma única prisão dava a volta ao mundo da noite para o dia.

Em parte isso aconteceu graças à melhoria da comunicação de massa, à Voz da América, à Rádio Liberdade e à televisão. Em parte, graças ao fato de os cidadãos soviéticos terem descoberto novos meios de transmitir as notícias. Pois 1966 também trouxe outro marco: o nascimento do termo "samizdat. Acrônimo que lembrava deliberadamente "Gosizdat, ou "Editora Estatal", "samizdat significa "auto-editora" e se refere figurativamente à imprensa clandestina. O conceito não era novo. Na Rússia, a samizdat era tão antiga quanto a escrita. Nos anos 1820, Pushkin distribuiu confidencialmente manuscritos de seus poemas mais politizados. Mesmo nos anos de Stalin, histórias e poemas circulavam entre amigos.

Mas depois de 1966, a samizdat virou passatempo nacional. O Degelo havia dado a muitos soviéticos o gosto por uma literatura mais livre, e no início a samizdat foi um fenômeno literário.[402] Rapidamente, porém, ela passou a ter um caráter mais político. Um relatório da KGB que circulou entre os integrantes do Comitê Central em janeiro de 1971 analisava as mudanças ocorridas nos cinco anos anteriores, observando que havia descoberto

mais de quatrocentos estudos e artigos sobre economia, política e filosofia que criticavam por vários ângulos a experiência histórica da construção socialista da União Soviética, reviam as políticas interna e externa do Partido Comunista e propunham vários programas oposicionistas.[403]

O relatório concluía que a KGB teria de trabalhar na "neutralização e na denúncia das tendências anti-soviéticas apresentadas na samizdat". Mas era tarde demais para colocar o gênio de volta na garrafa, e a samizdat continuou a se expandir sob várias formas: poemas datilografados passados de amigo em amigo e redatilografados sempre que possível; boletins manuscritos; transcrições das transmissões da Voz da América; e, muito depois, livros e periódicos produzidos profissionalmente em composições tipográficas clandestinas, com freqüência localizadas na Polônia comunista. Poesias e canções-poemas compostas pelos bardos russos - Aleksandr Galich, Bulat Okudzhava, Vladimir Vysotsky - também se espalharam com rapidez por meio de uma nova tecnologia, o gravador de fita cassete.

Ao longos das décadas de 1960, 1970 e 1980, um dos temas importantes da samizdat foi a história do stalinismo - inclusive a história do Gulag. As redes da samizdat continuaram a imprimir e distribuir cópias dos trabalhos de Soljenitsin, que a essa altura já tinham sido banido do país. As histórias e poemas de Varlam Shalamov também começaram a circular clandestinamente, assim como as memórias de Evgeniya Ginzburg. Os dois autores começaram a atrair grandes grupos de admiradores. Ginzburg tornou-se o centro de um círculo de sobreviventes do Gulag e de figurinhas literárias de Moscou.

O outro tema importante da samizdat era a perseguição aos dissidentes. De fato, foi graças à samizdat - em particular à sua distribuição no exterior - que os defensores dos direitos humanos ganharam, nos anos 1970, um fórum internacional muito mais amplo. Em especial, os dissidentes aprenderam a utilizar a samizdat não apenas para ressaltar as incoerências entre o sistema legal da URSS e os métodos da KGB, mas também a apontar, com freqüência e estridência, a lacuna entre os tratados de direitos humanos assinados pelo país e sua prática. Os textos preferidos eram a Declaração dos Direitos Humanos da ONU e o Tratado de Helsinki. A primeira foi assinada pela URSS em 1948 e continha, entre outras coisas, uma cláusula conhecida como Artigo 19:

Todos têm o direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito inclui a liberdade de sustentar opiniões sem interferências e de receber e transmitir informações e idéias através de qualquer meio, independentemente de fronteiras.[404]

O último foi o resultado final de um processo de negociações que envolveu toda a Europa e resolveu várias questões políticas deixadas em aberto desde o final da Segunda Guerra Mundial. Embora poucos tenham notado na época de sua assinatura, em 1976, o Tratado de Helsinki continha alguns acordos sobre direitos humanos (parte da chamada "Cesta Três" de negociações). Entre outras coisas, o tratado reconhecia a "liberdade de pensamento, consciência e crença":

Os Estados participantes reconhecem o significado universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais [...] respeitarão constantemente esses direitos e essas liberdades em suas relações mútuas e se empenharão, juntos e isoladamente - inclusive em cooperação com as Nações Unidas -, em promover seu respeito universal e efetivo.

Tanto dentro como fora da URSS, a maior parte das informações sobre os esforços dos dissidentes para promover os termos desses tratados veio do jornal interno da samizdat soviética: Crônica dos acontecimentos atuais. Esse boletim, dedicado ao registro neutro de notícias não publicadas por outros meios - violações dos direitos humanos, prisões, julgamentos, manifestações, novas publicações samizdat -, foi fundado por um pequeno grupo de conhecidos em Moscou, inclusive Sinyavsky, Daniel, Ginzburg e dois dissidentes que se tornariam famosos mais tarde, Pavel Litvinov e Vladimir Bukovsky. A evolução do Crônica vale por si só um livro do tamanho deste. Na década de 1970, a polícia secreta conduziu uma verdadeira guerra contra o Crônica, organizando buscas coordenadas na casa de todos os suspeitos de manter relações com o jornal: numa cena memorável, um editor jogou um maço de papéis num caldeirão de sopa enquanto a KGB revistava o apartamento. Mas o Crônica sobreviveu à prisão de seus editores e conseguiu chegar ao Ocidente. Ao final, a Anistia Internacional publicaria traduções regulares.[405]

O Crônica também desempenhou um papel especial na história dos campos. Rapidamente, ele se tornou a principal fonte de informações sobre a vida nos campos soviéticos pós-stalinistas. Ele tinha uma sessão regular, "Por dentro das prisões e dos campos" (e, mais tarde, "Por dentro das solitárias"), que trazia notícias e entrevistas coro prisioneiros. Esses relatos surpreendentemente precisos dos acontecimentos nos campos - a doença de vários dissidentes, as mudanças de regime, os protestos organizados - enlouqueceram as autoridades: eles não conseguiam entender como as informações vazavam. Anos depois, um dos editores explicou:

Algumas [informações] eram trazidas quando um companheiro era solto. Alguém faria um contato em algum lugar após a libertação. Ou então eles subornavam os guardas, que permitiam que eles passassem informações orais e por escrito quando recebiam a visita da família. Os parentes paravam em Moscou e passavam as notícias adiante. Era possível subornar os guardas da Mordóvia, por exemplo. Esses [os campos políticos da Mordóvia] eram campos novos, organizados em 1972, e os guardas eram todos novos. De vez em quando eles passavam bilhetes, quando se solidarizavam com a situação. Houve uma greve de fome em massa ali em 1974, e quando viram aquilo, os guardas foram compreensivos.

Também se podia corromper os guardas. Eles não ganhavam muito. Não tinham muito. Vinham de lugares provincianos. Bastava, por exemplo, pegar alguma coisa em Moscou - um isqueiro - e subornar um guarda. Ou então ele dava um endereço. O suborno - mercadorias ou dinheiro - era dado em troca de ele passar informações [...][406]

Havia também métodos de escamoteamento. Um ex-prisioneiro descreve um deles:

Eu escrevo meu último poema em tirinhas de 4 centímetros de largura de papel de cigarro [...] Essas tirinhas são então enroladas na forma de um tubo pequeno (mais fino que o seu dedo), seladas e protegidas contra a umidade através de um método inventado por nós, e, quando uma oportunidade se apresenta, são passadas adiante.[407]

Fossem quais fossem os métodos - escamoteamento, suborno, bajulação -, as informações que o Crônica conseguiu extrair dos campos são significativas até hoje. No momento em que eu escrevia este livro, a maior parte dos arquivos pós-stalinistas do MVD e da KGB permanecia fechada aos pesquisadores. Porém, graças ao Crônica, às outras publicações da samizdat, às publicações sobre direitos humanos e às muitas, muitas memórias que descrevem os campos nas décadas de 1960, 1970 e 1980, é possível formar uma imagem consistente de como era a vida nos campos soviéticos após a morte de Stalin.

"Hoje em dia, os campos para prisioneiros políticos são tão horríveis quanto no tempo de Stalin. Algumas coisas estão melhores, outras estão piores [...]"

Assim começam as memórias de Anatoly Marchenko dos seus anos de prisão, um documento que, tão logo começou a circular em Moscou, no final dos anos 1960, chocou a intelligentsia da cidade, que acreditava que os campos de trabalho tinham sido fechados para sempre. Operário e filho de pais iletrados, Marchenko foi preso pela primeira vez por vandalismo. A segunda prisão foi por traição: ele tentou fugir da União Soviética pela fronteira com o Irã. Foi condenado a cumprir a pena política em Dubravlag, Mordóvia, um dos dois famigerados campos políticos de regime severo.

Vários elementos da prisão de Marchenko teriam soado familiares às pessoas acostumadas a ouvir as histórias dos campos de Stalin Como os que o precederam, Marchenko dirigiu-se à Mordóvia num vagão Stolypin. Como os que o precederam, recebeu um pãozinho, 50 gramas de açúcar e um aranque salgado, que deviam durar a viagem toda. Corno os que o precederam, descobriu que o acesso à água dependia do soldado que estivesse tomando conta do trem: "Se for um dos bons, trará duas ou três chaleiras, mas se for um daqueles que pouco se importa, você morre de sede".[408]

Chegando ao campo, Marchenko encontrou a mesma fome generalizada, se não inanição, que teria havido no passado. A norma diária de comida continha 2.400 calorias: 750 gramas de pão, 30 gramas de legumes em geral podres, 90 gramas de bacalhau geralmente estragado, 60 gramas de carne. Já os cães que guardavam os prisioneiros recebiam quase meio quilo de carne. Como rio passado, nem toda a ração de Marchenko terminava em seu prato, e havia poucos extras. "Nos seis anos que passei no campo e na cadeia, comi pão com manteiga duas vezes, quando tinha visitas. Também comi dois pepinos - um em 1964 e outro em 1966. Não comi tomate nem maçã uma única vez."[409]

Até certo ponto, o trabalho ainda importava, embora fosse um tipo diferente de trabalho. Marchenko exercia as funções de carregador e carpinteiro. Leonid Sitko, também em Dubravlag nessa época, fabricava móveis.[410] As prisioneiras dos campos da Mordóvia trabalhavam em fábricas, em geral nas máquinas de costura.[411] Já os prisioneiros de outro complexo de campos, perto da cidade de Perm, no sopé dos Urais, também trabalhavam com madeira. Os que ficavam confinados em solitárias, como era comum na década de 1980, costuravam luvas e uniformes.[412]

Com o tempo, Marchenko também descobriu que as condições se deterioravam lentamente. Em meados dos anos 1960, havia pelo menos três categorias de presos: os privilegiados, os comuns e os que viviam sob regime estrito. Em pouco tempo o último grupo - que incluía todos os dissidentes políticos mais "sérios" - voltou a usar uniformes de algodão preto em vez das próprias roupas. Embora pudessem receber um número ilimitado de cartas, além de material impresso (se fossem de origem soviética), podiam enviar apenas duas cartas por mês. Se estivessem sob regime rígido, não podiam receber nem comida nem cigarros. Marchenko cumpriu pena como prisioneiro comum e político, e sua descrição do mundo do crime soa familiar. Para dizer o mínimo, a cultura criminosa tinha se tornado mais abjeta e degradada desde a morte de Stalin. Na esteira da guerra dos mafiosos dos anos 1940, os criminosos de carreira se dividiram em mais facções. Zhenya Fedorov, ex-prisioneiro encarcerado por roubo em 1967, descreve vários grupos - não apenas "cachorros" e "mafiosos", mas também svoyaki, que eram aprendizes dos mafiosos, e os "chapéus vermelhos", mafiosos que seguiam a própria lei, provavelmente descendentes intelectuais dos "chapéus vermelhos" que surgiram nos campos depois da guerra. Alguns prisioneiros também se agruparam em "famílias", para se proteger e também com outras finalidades: "Quando alguém tinha de ser assassinado, 'as famílias' decidiam quem iria fazer o serviço", explicou Fedorov.[413]

A violenta cultura de estupro e dominação homossexuais - visível anteriormente nas descrições das prisões juvenis - também desempenhavam agora um papel bem mais importante na vida criminosa. Regras não escritas passaram a dividir os criminosos em dois grupos: os que faziam o papel "feminino" e os que desempenhavam o papel "masculino". "Os primeiros eram desprezados por todos, enquanto os últimos andavam por aí como heróis, gabando-se de sua virilidade e de suas 'conquistas', não apenas entre si, mas também com os guardas", escreveu Marchenko.[414] Segundo Fedorov, as autoridades cooperavam, mantendo os prisioneiros "sujos" em celas separadas. Qualquer um podia acabar lá: "se você perdesse nas cartas, podia ser abrigado a 'fazer' como mulher".[415] Nos campos de mulheres, o lesbianismo era igualmente disseminado, e às vezes igualmente violento.

Tempos depois, uma prisioneira política escreveu sobre uma detenta que se recusara a receber a visita do marido e do filho pequeno de tanto que temia a represália da amante lésbica.[416]

Os anos 1960 marcaram o início da epidemia de tuberculose nas prisões russas, um flagelo que sobrevive ainda hoje. Fedorov descreveu a situação da seguinte forma: "Se houvesse oitenta pessoas num alojamento, quinze tinham tuberculose. Ninguém tentava curá-los, só havia comprimido para dor de cabeça. Os médicos eram assim como homens da SS, nunca conversavam com a gente, nunca nos olhavam, não éramos ninguém".[417]

Para piorar as coisas, muitos mafiosos estavam então viciados em chifr, um chá extremamente forte que produzia um efeito entorpecente. Outros faziam o impossível para conseguir álcool. Os que trabalhavam do lado de fora do campo desenvolveram um método para passá-lo pelos guardas:

Um preservativo é hermeticamente preso a um tubo de plástico fino. O zek o engole, deixando uma ponta do tubo na boca. Para não engolir o tubo por acidente, ele o prende entre dois dentes: não deve existir um único zek com todos os 32 dentes. Então, com a ajuda de uma seringa, 3 litros de álcool são bombeados para dentro do preservativo - e o zek retorna ao campo. Se o preservativo ficar mal colado ao tubo ou se acontecer de ele estourar no estômago do zek, a morte é certa e dolorosa. Apesar disso, eles correm o risco: 3 litros de álcool dão 7 litros de vodca. Quando o "herói" volta à zona [...] ele é pendurado de cabeça para baixo numa viga do teto do alojamento, e a ponta do tubo plástico é segurada sobre uma travessa até cair a última gola. Então o preservativo vazio é puxado para fora [...]

A prática da automutilação também era disseminada, só que agora ela assumia formas extremas. Uma vez, na cela de uma prisão, Marchenko viu dois mafiosos engolirem as colheres. Depois, quebraram uma vidraça e começaram a engolir os cacos de vidro, antes que os carcereiros conseguissem tirá-los dali.[418] Edward Kuznetsov, condenado por ter participado da infame tentativa de seqüestrar um avião no aeroporto de Leningrado, descreveu dezenas de métodos de automutilação:

Eu vi condenados engolindo enormes quantidades de pregos e arame farpado; vi-os engolindo termômetros de mercúrio, sopeiras de peltre (depois de fragmentá-las em pedaços "comestíveis"), peças de xadrez, dominós, agulhas, vidro moído, colheres, facas e muitos outros objetos semelhantes. Vi condenados costurando a boca e os olhos com linha ou arame, pregando botões no próprio corpo; ou pregando os testículos na cama [...] Vi condenados cortando a pele dos braços e das pernas e puxando-a como se fosse uma meia; vi condenados cortando pedaços da própria carne (da barriga ou da perna), assando-os e comendo-os; vi condenados abrindo uma veia e deixando-a pingar sobre uma sopeira, para depois molhar pedaços de pão no sangue e tomar tudo como se fosse uma sopa; vi condenados cobrindo-se de papel e ateando-se fogo; vi condenados cortando os dedos, o nariz, as orelhas, o pênis [...]

Kuznetsov disse que os condenados não faziam essas coisas para protestar, que não tinham nenhum motivo específico, ou que apenas queriam "ir para o hospital, onde as enfermeiras mexiam os quadris, onde obtinham a ração hospitalar, onde não eram obrigados a trabalhar, onde conseguiam drogas, comida, cartões postais". Entre eles também havia masoquistas "em permanente estado de depressão entre um corte e outro".[419]

Indiscutivelmente, as relações entre os criminosos e os prisioneiros políticos também tinham mudado muito desde o tempo de Stalin. Às vezes os criminosos atormentavam ou espancavam os presos políticos: o dissidente ucraniano Valentyn Moroz ficou preso numa cela com criminosos que o mantinham acordado durante a noite e um dia o atacaram, cortando sua barriga com uma colher afiada.[420] Mas também havia os criminosos que respeitavam os presos políticos, no mínimo por resistirem às autoridades, como Vladimir Bukovsky escreveu: "Eles costumavam nos pedir para contar por que estávamos presos e o que queríamos [...] a única coisa em que não conseguiam acreditar é que tivéssemos feito tudo a troco de nada e não de dinheiro".[421]

Havia até criminosos que desejavam se juntar a eles. Acreditando que as prisões políticas eram mais "fáceis", alguns criminosos de carreira tentaram conseguir sentenças por crimes políticos. Escreviam denúncias de Khrutchev ou do Partido, recheadas de obscenidades, ou fabricavam "bandeiras americanas" com trapos e hasteavam-nas pelas janelas. No final dos anos 1970, era muito comum ver prisioneiros com tatuagens na testa: "Comunistas bebem o sangue das pessoas", "Escravo do Partido Comunista", "Bolcheviques, quero pão".[422]

A mudança no relacionamento entre a nova geração de presos políticos e as autoridades era ainda mais profunda. Na era pós-Stalin, os presos políticos sabiam por que estavam na prisão, esperavam estar na prisão e já tinham decidido como iam se comportar: com oposição organizada. Já em fevereiro de 1968, um grupo de detentos de Potma - inclusive Yuli Daniel - entraram em greve de fome. Exigiam o relaxamento do regime de prisão; o fim do trabalho compulsório; a remoção das restrições à correspondência; e, num eco do início dos anos 1920, o reconhecimento do status especial de prisioneiros políticos.[423]

A direção fez concessões - e depois, aos poucos, retirou-as. No entanto, a exigência dos presos políticos de serem separados dos criminosos seria atendida, ao menos porque a administração queria manter essa nova geração, suas demandas constantes e seu pendor para as greves de fome tão longe quanto possível dos criminosos comuns.

As greves eram freqüentes e disseminadas, tanto que, a partir de 1969, o Crônica contém um registro de protestos quase constantes. Nesse ano, por exemplo, os prisioneiros entraram em greve para exigir o restabelecimento de concessões feitas um ano antes; para protestar contra a proibição de visitas dos parentes; para protestar por que um dos seus foi colocado numa solitária; para protestar depois que outro foi proibido de receber um pacote da família; para protestar contra a transferência de um grupo do campo para a cadeia; e até mesmo para marcar o Dia Internacional dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro.[424] Mas 1969 não foi um ano incomum. Na década seguinte, greves de fome e de trabalho e outros tipos de protesto tornaram-se parte da paisagem na Mordóvia e em Perm.

As greves de fome, que assumiam a forma de protestos curtos, de um dia, e as contendas agoniantes com a direção chegaram a desenvolver um padrão enfadonho, como escreveu Marchenko:

No começo, ninguém presta a menor atenção. Então, depois de vários dias - às vezes dez ou doze -, transferem os grevistas para uma cela reservada para eles e começam a alimentá-los artificialmente, por meio de tubos. Se o sujeito resiste, torcem o braço dele e colocam algemas. Esse procedimento costuma ser executado com mais brutalidade nos campos do que na cadeia - depois de alimentado à força uma ou duas vezes, você fica sem dentes [...][425]

Em meados dos anos 1970, alguns dos "piores" prisioneiros políticos foram transferidos da Mordóvia e de Perm para prisões de segurança máxima - especialmente Vladimir, uma prisão de origem czarista na Rússia central -, onde se ocupavam quase exclusivamente da batalha contra as autoridades. O jogo era perigoso, e regras minto complexas foram criadas. O objetivo dos prisioneiros era afrouxar o regime e ganhar pontos, o que poderia ser relatado ao Ocidente via samizdat O objetivo da direção era domar os presos, fazê-los dar informações, colaborar e, acima de tudo, retratar-se publicamente fato que sairia na imprensa soviética e repercutiria no exterior. Embora seus métodos tivessem alguma semelhança com a tortura praticada nos interrogatórios stalinistas, em geral eles envolviam mais pressão psicológica do que dor física. Natan Sharansky, um dos mais ativos prisioneiros do final dos anos 1970 e início dos anos 1980 (hoje político em Israel), descreveu o procedimento:

Eles o convidam para uma conversa. Acha que nada depende de você? Ao contrário: eles explicam que tudo depende de você. Gosta de chá, café ou carne? Gostaria de ir comigo a um restaurante? Por que não? Vamos dar-lhe suas roupas e iremos. Se percebermos que você está no caminho da reabilitação, que está preparado para nos ajudar... como assim, não quer delatar seus amigos? Mas o que significa delatar? Você não percebe que tipo de nacionalista é esse russo (ou judeu, ou ucraniano, depende da situação) que cumpre pena com você? Não percebe como ele odeia os ucranianos (ou russos, ou judeus)?[426]

No passado, a administração podia dar ou tirar privilégios e aplicar punições, em geral uma temporada numa solitária. Ela podia regular as condições de vida do prisioneiro fazendo alterações mínimas mas críticas no dia-a-dia, transferindo-o do regime comum para o regime severo e vice-versa - sempre, é claro, seguindo os regulamentos. Como Marchenko escreveu, "As diferenças entre os regimes poderiam parecer infinitesimais para quem não os experimentara na carne, mas para os prisioneiros elas eram enormes. No regime normal há rádio; no regime severo, não; no regime normal os presos têm uma hora de exercícios por dia; no regime severo, meia hora, e aos domingos, nada".[427]

No final da década de 1970, o número de normas de comida havia diminuído para dezoito, de 1A a 9B, cada uma com uma quantidade específica de calorias (de 2.200 a 900) e alimentos. Os prisioneiros recebiam uma ou outra norma de acordo com mudanças mínimas no comportamento. A B9, a menor delas, era dada aos prisioneiros das solitárias e consistia num pedaço pequeno de pão, urna colher de kasha e uma sopa que deveria ter, mas nem sempre tinha, 200 gramas de batata e 200 gramas de repolho.[428]

Os presos também podiam ser jogados em solitárias - a "geladeira -, a punição ideal do ponto de vista das autoridades. Era totalmente legal e, tecnicamente, não podia ser descrita como tortura. Seu efeito sobre os detentos era lento e cumulativo, mas como ninguém tinha pressa de terminar uma estrada através da tundra, isso não preocupava a direção. Essas celas não se comparavam a nada do que foi inventado pela NKVD de Stalin. Um documento de 1976, publicado pelo grupo de Helsinki em Moscou, descreve em detalhes as solitárias da prisão de Vladimir, das quais havia cerca de cinqüenta. As paredes das celas eram cheias de saliências e pontas de cimento. O chão era sujo e molhado. Numa cela, a janela quebrada fora substituída por jornais; em outras, foram bloqueadas com tijolos. O único lugar que havia para se sentar era um cilindro de cimento de cerca de 25 centímetros de diâmetro, com anéis de ferro. À noite traziam um catre de madeira, mas sem lençóis nem travesseiro. O prisioneiro tinha se de acomodar sobre tábuas nuas e ferro. As celas eram tão frias que os presos tinham dificuldade para dormir, até para se deitar. Em algumas, o "sistema de ventilação" trazia o ar do esgoto.[429]

Para pessoas acostumadas a uma vida ativa, o pior de tudo era o tédio, como explicou Yuli Daniel:

Semana após semana

Se dissolvem na fumaça de cigarro

Neste local curioso

Tudo é sonho ou delírio [...]

Aqui a luz não se apaga durante a noite

Aqui a luz não chega durante o dia

Aqui o silêncio, que a tudo preside,

Tomou conta de mim.

Podemos sufocar de ócio

Ou bater a cabeça na parede,

Semana após semana

Se dissolvem na fumaça azul [...][430]

As temporadas nas solitárias podiam durar indefinidamente. Em termos técnicos, os prisioneiros só podiam ser confinados por períodos de quinze dias, mas a direção contornava a questão tirando-os da cela por um dia e jogando-os lá novamente. Certa vez, Marchenko ficou numa solitária durante 48 dias. A cada vez que o período de quinze dias vencia, os guardas o deixavam sair por alguns minutos - o suficiente para lerem um diretriz confinando-o outra vez.53 No campo Perm [431], um prisioneiro ficou no isolamento quase dois meses, e de lá foi levado ao hospital, enquanto outro foi mantido por 45 dias por se recusar a executar qualquer trabalho que não fosse a sua especialidade, metalurgia.[432]

Vários presos jogados nas solitárias haviam cometido crimes ainda menos substanciais: quando as autoridades queriam dobrar alguém de verdade, distribuíam castigos duros pelas menores infrações. De 1973 a 1974, nos campos de Perm, dois prisioneiros foram privados do direito de receber visitas da família por "ficarem na cama durante o dia". Outro foi punido porque o pacote que recebera continha uma geléia que foi a preparada com álcool. Outros prisioneiros foram punidos ou repreendidos por andar devagar demais, ou por não usarem meias.[433]

Às vezes, a pressão prolongada dava resultados. Aleksei Dobrovolsky, co-réu no julgamento de Aleksandr Ginzburg, "sucumbiu" bem cedo e, por escrito, solicitou permissão para testemunhar na rádio e contar toda a história de sua atividade dissidente "criminosa", a fim de impedir que os jovens seguissem o mesmo caminho perigoso.[434] Pyotr Yakir também sucumbiu enquanto era investigado e "confessou" que inventara o que tinha escrito.[435]

Outros morreram. Yuri Galanskov, outro co-réu no julgamento de Ginzburg, morreu em 1972. Havia desenvolvido úlceras enquanto esteve preso. Não tratadas, elas acabaram por matá-lo."[436] Marchenko também morreu, em 1986, provavelmente em decorrência das drogas que recebeu enquanto estava em greve de fome.[437] Vários outros prisioneiros faleceram - um se suicidou - durante greve de fome que durou um mês, no campo Perm 35, em 1974.[438] Em 1985, Vasil Stus, poeta ucraniano e ativista dos direitos humanos, também morreu em Perm.[439]

No entanto, os prisioneiros também opunham resistência. Em 1977, os presos políticos de Perm 35 descreveram como desafiavam a administração:

Fazíamos greve de fome com freqüência. Nas solitárias, nos vagões de traslado. Nos dias comuns, insignificantes, nos dias em que nossos camaradas morriam. Nos dias de atividade incomum na zona, nos dias 8 de março e 10 de dezembro, nos dias 1º de agosto e 8 de maio, em 5 de setembro. Fazíamos greve de fome com muita freqüência. Os diplomatas e os funcionários públicos assinavam novos acordos de direitos humanos, de liberdade de informação, de extinção da tortura... e nós fazíamos greve de fome, pois na URSS essas coisas não eram observadas.[440]

Graças a esse empenho, o Ocidente sabia cada vez mais sobre o movimento dissidente - e os protestos se tornavam mais estridentes. Como conseqüência, alguns prisioneiros passaram a receber novo tipo de tratamento. Vladimir Bukovsky foi convidado a abandonar a Grã-Bretanha, onde morava havia quinze anos, desde que tinha sido expulso, e voltar para a Rússia (em troca de um comunista chileno preso). Bukovsky foi designado "especialista em tribunais" no "julgamento" do Partido Comunista, que ocorreu depois de o Partido contestar a tentativa do presidente Yeltsin de bani-lo. Ele chegou ao edifício do Tribunal Constitucional, em Moscou, carregando um laptop e um scanner manual. Confiante de que ninguém na Rússia tinha visto aquelas máquinas antes, ele se sentou e, com toda a calma, pôs-se a copiar todos os documentos que eram apresentados como prova. Somente quando estava quase no fim as pessoas à sua volta se deram conta do que ele fazia. Alguém gritou "Ele vai publicar, lá!". A sala ficou em silêncio. Nesse momento - "como num filme", Bukovsky contou depois - ele simplesmente fechou o laptop, encaminhou-se para a saída, dirigiu-se ao aeroporto e saiu da Rússia."[441]

Graças a Bukovsky, sabemos, entre outras coisas, o que aconteceu na reunião do Politburo de 1967 realizada logo antes de sua prisão. Bukovsky ficou particularmente impressionado com o fato de muitos dos presentes sentirem que fazer acusações contra ele "causaria unia certa reação dentro e fora do país". Eles concluíram que seria um engano simplesmente deter Bukovsky, então propuseram interná-lo num hospital psiquiátrico.[442] A era dos psikhushka - hospitais psiquiátricos especiais - começara.

A utilização dos hospitais psiquiátricos para prender dissidentes tinha um precedente. Em 1836, ao retornar da Europa Ocidental para São Petersburgo, o filósofo russo Potr Chadaev escreveu um ensaio em que criticava o regime do czar Nicolau I: "Contrariamente a todas as leis da comunidade humana", ele declarou no auge do regime imperial russo, "a Rússia se move na direção da própria escravidão e da escravidão dos povos vizinhos." A resposta de Nicolau foi prender Chadaev em casa. O czar tinha certeza, ele declarou, que assim que os russos percebessem que seu compatriota "sofria de desordem mental", eles o perdoariam.[443]

Depois do Degelo, as autoridades voltaram a usar os hospitais psiquiátricos para prender os dissidentes - um política que trazia muitas vantagens para a KGB. Acima de tudo, ela ajudava a desacreditar os dissidentes, tanto no Ocidente quanto na URSS, desviava a atenção deles. Se essas pessoas não eram adversárias do governo, mas simplesmente loucas, quem poderia se opor à sua hospitalização?

Com grande entusiasmo, a comunidade psiquiátrica soviética participou da farsa. Para explicar o fenômeno da dissidência, eles se saíram com a definição de "esquizofrenia apática" ou "esquizofrenia rasteira". Segundo os cientistas, essa forma de esquizofrenia não deixava marcas no intelecto ou no físico, mas podia abranger quase todas as formas de comportamento tido como não social ou anormal. "Com muita freqüência, as pessoas com estrutura paranóide formam idéias sobre uma ‘luta pela verdade e pela justiça’", escreveram dois professores soviéticos, ambos do Instituto Serbsky:

Um traço característico das idéias superestimadas é a convicção do paciente de sua própria retidão, uma obsessão em afirmar seus "direitos" pisoteados, e o significado desses sentimentos para a personalidade do paciente. Eles tendem a utilizar os procedimentos jurídicos como plataforma para discursos e apelos.[444]

Por essa definição, todos os dissidentes podiam ser classificados como loucos. O escritor e cientista Zhores Medvedev recebeu o diagnóstico de "esquizofrenia apática" acompanhada de "delírios paranóides de reformar a sociedade". Entre os sintomas estava a "personalidade dividida", já que era escritor e cientista. O diagnóstico de Natalya Gorbanevskaya, a primeira editora do Crônica, indicava esquizofrenia apática sem "sintomas definidos", mas que resultará em "alterações anormais de humor, vontades e pensamentos". O general Pyotr Grigorenko, dissidente do Exército Vermelho, foi dado como portador de uma condição psicológica "caracterizada pela presença de idéias reformistas, em especial sobre a reorganização do aparato estatal; além disso, superestimava a própria personalidade em proporções messiânicas".[445] Em um relatório enviado ao Comitê Central, o comandante local da KGB também se queixava de ter em mãos um grupo de cidadãos com uma forma bem específica de doença mental: eles "tentam fundar novos 'partidos', organizações e conselhos, preparando e distribuindo planos para novas leis e programas".[446] Dependendo das circunstâncias de sua detenção - ou da não-detenção - os prisioneiros classificados como mentalmente doentes eram enviados a várias instituições. Alguns foram avaliados por médicos das prisões, outros por clínicos gerais. O Instituto Serbsky, cujo setor especial de diagnóstico, encabeçado nos anos 1960 e 1970 pelo doutor Danil Lunts, era o responsável pela avaliação dos infratores políticos. Via-se que o dr. Lunts, que examinou pessoalmente Sinyavsky, Bukovsky, Gorbanevskaya, Grigorenko e Viktor Nekipelov, entre muitos outros, tinha uma alta patente.[447] De acordo com Nekipelov, ele vestia um uniforme azul com duas estrelas, "a insígnia de general das tropas do MVD".[448] Alguns psiquiatras soviéticos refugiados alegariam que Lunts e outros médicos do instituto acreditavam sinceramente que os pacientes sofriam de doenças mentais. No entanto, a maioria dos presos políticos que o conheceu o descreveu como um oportunista que executava as ordens do MVD, em nada melhor que os médicos criminosos que realizaram experiências desumanas com os presos nos campos de concentração nazistas".[449]

Se recebessem o diagnóstico de doença mental, os pacientes eram condenados a passar uma temporada num hospital, às vezes alguns meses, às vezes muitos anos. Os que tinham mais sorte eram enviados a um dos vários hospitais psiquiátricos comuns do país. Eles eram sujos e superlotados, e seus funcionários costumavam ser bêbados e sádicos. Ainda assim, os bêbados e os sádicos eram civis, e os hospitais comuns eram, em geral, menos controladores que as prisões e os campos. Os pacientes podiam escrever cartas com mais liberdade e recebiam visitas de pessoas de for a da família.

Por outro lado, os que eram tidos como "especialmente perigosos" eram despachados para "hospitais psiquiátricos especiais", que existiam em pouco número. Eles eram administrados diretamente pelo MVD. Seus médicos, como Lunts, faziam parte da hierarquia do MVD. Esses hospitais pareciam prisões, eram cercados por torres de vigia, arame farpado, guardas e cães. Uma fotografia do hospital psiquiátrico especial de Oryol tirada nos anos 1970 mostra os pacientes fazendo exercícios em um pátio interno em nada diferente do pátio de exercícios de uma prisão.[450]

Tanto nos hospitais comuns quanto nos especiais o objetivo dos médicos era mais uma vez a retratação.[451] Os pacientes que concordavam em renunciar às suas convicções, que admitiam que a doença mental levara-os a criticar o sistema soviético eram declarados saudáveis e libertados. Os que não se retratavam continuavam a ser considerados doentes e passavam por um "tratamento". Como os psiquiatras soviéticos não acreditavam na psicanálise, o tratamento consistia basicamente em drogas, eletrochoques e formas variadas de reclusão. Remédios cujo uso havia sido banido no Ocidente nos anos 1930 eram administrados rotineiramente, fazendo a temperatura dos pacientes subir a mais de 40 graus centígrados, causando-lhes dor e desconforto. Os médicos da prisão também prescreviam tranqüilizantes que provocavam vários efeitos colaterais, como rigidez física, lentidão, tiques e movimentos involuntários, para não falar da apatia e do alheamento.[452]

Entre os outros tratamentos estavam as surras; a injeção de insulina, que causa um choque hipoglicêmico em quem não é diabético; e urna punição chamada "rolamento", que Bukovsky descreveu numa entrevista, em 1976: "Os pacientes eram colocados sobre grandes pedaços de lona molhada e enrolados dos pés à cabeça com tanta força que era difícil respirar; à medida que a lona secava, ela ficava cada vez mais apertada, e o paciente se sentia ainda pior".[453] Outro tratamento, que Nekipelov presenciou no Instituto Serbsky, era a "punção lombar", a introdução de uma agulha na espinha do paciente. Aqueles que passavam por uma punção lombar eram deitados de lado, imóveis, com as costas besuntadas de iodo, durante vários dias.[454]

Muitas pessoas foram atingidas. Sabe-se que em 1977, o ano em que Peter Reddaway e Sidney Block publicaram um amplo levantamento sobre o abuso psiquiátrico na União Soviética, pelo menos 365 pessoas sadias passaram por tratamento para a loucura, e com certeza houve centenas de outros casos.[455]

Ainda assim, no final o encarceramento dos dissidentes nos hospitais não teve o resultado esperado pelo regime soviético. Acima de tudo, ele não desviou a atenção do Ocidente. Para começar, os horrores do abuso psiquiátrico provavelmente inflamaram ainda mais a imaginação do Ocidente do que as histórias dos campos e das prisões. Qualquer pessoa que tenha assistido a Um estranho no ninho podia imaginar muito bem um hospital psiquiátrico soviético. Mais do que isso porém, a questão do abuso psiquiátrico exercia apelo direto sobre um grupo articulado que se interessava profissionalmente pelo assunto: os psiquiatras ocidentais. A partir de 1971, ano em que Bukovsky contrabandeou mais de 150 páginas de documentos sobre o abuso, a questão tornou-se eterno tema de discussão de entidades como a Associação Psiquiátrica Mundial, a Real Faculdade de Psiquiatria, na Grã-Bretanha, e outras associações psiquiátricas nacionais e internacionais. Os grupos mais corajosos fizeram declarações públicas. E os que não o fizeram foram criticados pela covardia, o que gerou ainda mais publicidade ruim para a URSS.[456]

O assunto acabou por galvanizar os cientistas soviéticos. Quando Zhores Medvedev foi condenado a um hospital psiquiátrico, muitos escreveram cartas de protesto à Academia de Ciência Soviética. Andrei Sakharov, físico nuclear que no final dos anos 1960 emergiu como líder moral do movimento dissidente, fez uma declaração pública de apoio a Medvedev num simpósio internacional no Instituto de Genética.

Soljenitsin, a essa altura já no Ocidente, escreveu uma carta aberta às autoridades soviéticas protestando contra a prisão de Medvedev. "Afinal", ele escreveu, "é hora de pensar com clareza: a prisão de livres-pensadores saudáveis é um assassinato espiritual."[457]

Provavelmente, a atenção internacional teve um papel na decisão das autoridades de liberar vários prisioneiros, entre eles, Medvedev, que foi então expulso do país. Porém, alguns integrantes dos altos escalões da elite soviética acharam que essa foi a resposta errada. Em 1976, Yuri Andropov então chefe da KGB, escreveu um memorando secreto em que descreveu com bastante precisão (se o tom falso e o anti-semitismo forem ignorados) as origens internacionais da "campanha anti-soviética":

Dados recentes são um testemunho do fato de que a campanha tem as feições de uma ação anti-soviética cuidadosamente planejada [...] no presente momento, os que deram início à campanha tentam atrair associações psiquiátricas internacionais e nacionais, assim como especialistas de boa reputação, para a criação de um "comitê'' pensado para monitorar a atividade dos psiquiatras em vários países, especialmente na URSS [...] Sob a influência de elementos sionistas, a Real Faculdade de Psiquiatria tem desempenhado um papel ativo na construção do sentimento anti-soviético.[458]

Andropov descreveu com cuidado o empenho da Associação Psiquiátrica Mundial em denunciar a URSS e revelou um conhecimento bastante amplo de quais seminários internacionais haviam condenado a psiquiatria soviética. Respondendo ao memorando, o Ministério da Saúde soviético propôs o lançamento de uma maciça campanha publicitária antes do próximo congresso da associação. O ministério também propôs a preparação de documentos científicos para negar as acusações e a identificação de psiquiatras ocidentais "progressistas"que os corroborassem. Por sua vez, esses "progressistas" seriam convidados a visitar a União Soviética, onde fariam visitas a hospitais especialmente escolhidos. O ministério chegou até a sugerir o nome de alguns médicos.[459]

Em outras palavras, em vez de deixar de usar a psiquiatria com finalidades políticas, Andropov se propunha a levar a história adiante. Não estava em sua natureza admitir erros na política soviética.

 

  1. A DÉCADA DE 1980: DERRUBANDO ESTÁTUAS

 

A base rachada da estátua está sendo destruída,

O aço da furadeira emite lamentos,

A mistura especial de cimento, mais dura,

Foi calculada para resistir a milênios [...]

Tudo que é feito pela mão do homem

Pode ser arruinado por ele.

Mas o mais importante é isto:

A pedra, na sua essência,

Jamais é boa ou má.

Aleksandr Tvardovsky, "A base rachada da estátua"[460]

 

Quando Yuri Andropov assumiu o cargo de Secretário-Geral do Partido Comunista Soviético, em 1982, seu "castigo" para os elementos anti-sociais da União Soviética já estava bem avançado. Ao contrário dos antecessores, Andropov sempre acreditou que os dissidentes, apesar de serem poucos, deveriam ser tratados como uma ameaça séria ao poder soviético. Gomo embaixador em Budapeste, em 1956, ele tinha visto como um movimento intelectual podia se transformar rapidamente numa revolta popular. Também acreditava que grande parte dos problemas da União Soviética - políticos, econômicos, sociais - poderia ser resolvida com uma punição maior: campos e prisões mais rigorosos, vigilância mais intensa e mais hostilidade.[461]

Esses foram os métodos defendidos por Andropov como chefe da KGB de 1979 em diante, e esses foram os métodos que ele continuou seguindo durante o curto reinado como líder da União Soviética. Graças a Andropov, a primeira metade da década de 1980 é lembrada como o período mais repressivo da história soviética pós-stalinista. Era como se a pressão no interior do sistema tivesse de chegar ao ponto de saturação para ele sucumbir.

A partir do final de 1970, a KGB de Andropov fez um número imenso de prisões: sob sua direção, ativistas insubordinados recebiam freqüentemente novas sentenças quando já estavam terminando de cumprir sentenças antigas, como aconteceu na época de Stalin. A associação a um dos grupos de monitoramento de Helsinki - organizações de dissidentes que tentavam verificar se a União Soviética obedecia ao Tratado de Helsinki - tornou-se uma maneira fácil de acabar na prisão. Vinte e três membros do grupo de Moscou foram presos entre 1977 e 1979 e sete foram expulsos do país. Yuri Orlov, líder do grupo de Helsinki em Moscou, ficou na prisão durante metade da década de 1980.[462]

Mas a prisão não era a única arma de Andropov. Como seu objetivo era, em primeiro lugar, impedir que as pessoas se juntassem aos movimentos dissidentes, a repressão foi muito mais abrangente. Até os suspeitos de simpatizar com os movimentos religiosos, de direitos humanos ou nacionalistas podiam perder tudo. Os suspeitos e seus cônjuges não eram apenas privados do emprego, mas também do status e das qualificações profissionais. Seus filhos perdiam o direito de freqüentar as universidades. As linhas telefônicas eram cortadas, o visto de permanência, cancelado; as viagens, restritas.[463]

No final dos anos 1970, a multifacetada "medida disciplinar" de Andropov tinha conseguido dividir o movimento dissidente e seus defensores estrangeiros em grupos pequenos e sólidos, que muitas vezes suspeitavam uns dos outros. Havia ativistas de direitos humanos cujo destino era rigorosamente monitorado pela Anistia Internacional. Havia dissidentes batistas, cuja causa era apoiada pela Igreja Batista internacional. Havia dissidentes nacionalistas - da Ucrânia, da Letônia, da Lituânia e da Geórgia -, que eram apoiados pelos compatriotas no degredo. Os mesquetes e os tártaros da Criméia, deportados na época de Stalin, queriam o direito de voltar ao país.

No Ocidente, talvez o grupo mais proeminente de dissidentes fosse o de refuseniks, judeus soviéticos cujo direito de emigrar para Israel fora recusado. Sob os holofotes devido à emenda Jackson-Vanik, que, apresentada ao Congresso em 1975, condicionava o comércio entre os Estados Unidos e a União Soviética à questão da emigração, os refuseniks continuaram sendo uma preocupação para Washington até o final da União Soviética. No outono de 1986, no encontro que teve com Gorbatchev em Reikjavik, o presidente Reagan apresentou pessoal-mente ao líder soviético uma lista de 1.200 judeus soviéticos que desejavam emigrar.[464]

Agora mantidos totalmente separados dos criminosos, todos esses grupos estavam bem representados nos campos e nas prisões soviéticas, onde se organizavam, como os presos políticos do passado de acordo com as causas que tinham em comum.[465] Pode-se até dizer que, nessa altura, os campos serviam como um centro de relacionamento, quase uma escola de dissidentes, onde os prisioneiros políticos podiam encontrar pessoas com idéias semelhantes às suas. Às vezes, comemoravam os feriados nacionais uns dos outros - lituanos e letões, georgianos e armênios - e discutiam com entusiasmo qual país seria o primeiro a se libertar da União Soviética.[466] Os contatos também passavam por várias gerações: bálticos e ucranianos tiveram a oportunidade de conhecer a geração anterior de nacionalistas, guerrilheiros anti-soviéticos que receberam penas de 25 anos e nunca foram libertados. Sobre os últimos, Bukovsky escreveu que como "a vida deles tinha parado quando tinham cerca de vinte anos", os campos de alguma maneira os preservaram. "Nos domingos ensolarados, eles ficavam ao sol com os acordeões e tocavam canções havia muito esquecidas em sua terra natal. Na verdade, viver nos campos era como ter entrado em um lugar além da morte."[467]

Muitas vezes, a geração mais velha tinha problemas para compreender os compatriotas mais jovens. Homens e mulheres que lutaram com armas na floresta não entendiam os dissidentes que lutavam com pedaços de papel.[468] Mas os mais velhos ainda inspiravam os jovens com seu exemplo. Esses encontros ajudavam a formar as pessoas que, no final da década, organizariam os movimentos nacionalistas que, por fim, ajudariam a destruir a União Soviética. Relembrando essa experiência, David Berdzenishvili, um ativista da Geórgia, contou-me que se sentia feliz por ter passado dois anos num campo de trabalho, nos idos de 1980, em vez de ter passado dois anos no exército soviético, na mesma época.

Se as redes de relações pessoais tinham se solidificado, o mesmo aconteceu com as ligações com o mundo exterior. Uma edição do Crônica de 1979 ilustra bem esse fato ao contar, entre outras coisas, o dia-a-dia nas celas de Perm 36:

13 de setembro: Zhukauskas encontrou um bicho branco na sopa.

26 de setembro: Ele achou um inseto preto de 1,5 centímetro na tigela. Essa descoberta foi imediatamente relatada ao capitão Nelipovich.

27 de setembro: Como castigo, a temperatura da cela 6 ficou em 12 graus centígrados. Foram distribuídos cobertores e calças acolchoadas. As salas dos guardas de plantão receberam aquecedores. De noite, a temperatura nas celas era de 11 graus.

1º de outubro: 11,5 graus.

2 de outubro: Colocaram um aquecedor de 500 watts na cela 6 (Zhukauskas, Gluzman, Marmus). De manhã e à tarde, a temperatura era de 12 graus. Pediram a Zhukauskas para assinar um documento que declarava que a sua produção era dez vezes menor. Ele se recusou [...]

10 de outubro: Balkhanov se recusou a servir como voluntário num encontro da Comissão de Educação no campo. Sob ordens de Nikomarov, ele foi levado à força.

E assim por diante.

A direção parecia incapaz de impedir que esse tipo de informação vazasse - ou de impedir que aparecesse nas estações de rádio ocidentais transmitidas na URSS. A prisão de Berdzenishvili, em 1983, foi anunciada pela BBC duas horas depois de ter ocorrido.[469] Ratushinskaya e suas companheiras no campo feminino na Mordóvia enviaram a Reagan uma mensagem de congratulação pela vitória nas eleições. E ele a recebeu em dois dias. A KGB, escreveu ela com alegria, estava "do lado deles".[470]

Essa habilidade parecia um tanto irrelevante para os estrangeiros que observavam pelo espelho o estranho mundo da União Soviética. Para todos os efeitos práticos, Andropov tinha ganhado o jogo. Uma década de hostilidades, confinamento e exílio reduziu e enfraqueceu o movimento dissidente.[471] A maioria dos dissidentes conhecidos foi silenciada: em meados dos anos 1980, Soljenitsin se exilou no exterior, e Sakharov foi para o exílio interno na cidade de Gorki. Os policiais da KGB se plantaram diante da porta de Roy Medvedev, vigiando todos os seus movimentos. Na URSS, ninguém parecia notar essa luta. Em 1983, Peter Reddaway, na época o principal acadêmico ocidental especializado na dissidência soviética, escreveu que os grupos dissidentes “tinham feito pouquíssimo progresso entre a massa de pessoas comuns no coração da Rússia".[472]

Os asseclas e os carcereiros, os médicos trapaceiros e a polícia secreta pareciam seguros em suas profissões. Mas o terreno em que pisavam era movediço. Como se soube depois, a intolerância de Andropov pelos dissidentes estava com os dias contados. Quando ele morre, em 1984, a polícia morreu com ele.

Quando Mikhail Gorbatchev foi nomeado Secretário-Geral do Partido Comunista Soviético, em março de 1985, o caráter do novo líder soviético pareceu misterioso para os estrangeiros e para seus compatriotas.

Ele parecia tão escorregadio e bajulador quanto os outros burocratas soviéticos, mas ainda assim havia sinais de algo diferente. No verão que se seguiu à sua nomeação, encontrei-me com um grupo de refuseniks de Leningrado que riu muito da ingenuidade ocidental: como podíamos acreditar que a suposta preferência de Gorbatchev por uísque - em vez de vodca - e a admiração de sua mulher por roupas ocidentais significassem que ele era mais liberal do que os antecessores?

Eles estavam errados: Gorbatchev era diferente. Na época, pouca gente sabia que ele vinha de uma família de "inimigos". Um de seus avós, camponês, tinha sido preso e enviado a um campo de trabalho forçado em 1933. O outro avô fora preso em 1938 e torturado na prisão por um investigador que lhe quebrou os dois braços. O impacto desses acontecimentos sobre o jovem Mikhail fora enorme, como ele mesmo escreveu: "Nossos vizinhos começaram a se afastar da nossa casa como se ela tivesse sido atacada pela peste. Apenas à noite alguns parentes próximos se arriscavam a passar por lá. Até os garotos da vizinhança me evitavam [...] tudo isso foi um choque muito grande para mim e permaneceu gravado na minha memória".[473]

Entretanto, as suspeitas dos refuseniks não eram totalmente infundadas, pois os primeiros meses da era Gorbatchev foram decepcionantes. Ele se lançou numa campanha contra o álcool que deixou as pessoas enfurecidas, pois destruiu as vinhas da Geórgia e da Moldávia e pode até mesmo ter provocado o desastre econômico que ocorreu anos mais tarde: algumas pessoas acreditam que o colapso nas vendas de vodca destruiu o delicado equilíbrio financeiro para sempre. Apenas em abril de 1986, depois da explosão da usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, Gorbatchev mostrou-se preparado para realizar mudanças verdadeiras. Convencido de que a União Soviética precisava ralar abertamente de seus problemas, ele apareceu com outra proposta de reforma: a glasnost, ou "abertura".

No início, a glasnost, assim como a campanha contra o álcool, era apenas uma política econômica. Aparentemente, Gorbatchev esperava que a discussão aberta das crises econômica, ecológica e social da União Soviética conduzisse a resoluções rápidas, à reestruturação – a perestroika - sobre a qual tinha começado a falar nos discursos. Num período surpreendentemente curto, no entanto, a glasnost considerava a história soviética.

Na verdade, ao descrever o que aconteceu com o debate público na União Soviética no final da década de 1980, as pessoas podem se sentir tentadas a usar metáforas de inundação: foi como se uma barragem se rompesse, ou como se um dique explodisse, ou como se o encanamento de água estourasse. Em janeiro de 1987, Gorbatchev disse a um grupo intrigado de jornalistas que as "lacunas" da história da União Soviética seriam preenchidas. Em novembro, tanta coisa tinha mudado que Gorbatchev se tornou o segundo líder do Partido na história soviética a se referir abertamente às "lacunas" num discurso:

[...] a falta de democratização apropriada da sociedade soviética foi o que propiciou o culto à personalidade e as violações da lei, a arbitrariedade e a repressão da década de 1930 - para ser claro, os crimes de abuso de poder. Milhares e milhares de membros do Partido e de pessoas comuns foram submetidos à repressão em massa. Esta é, companheiros, a verdade dolorosa.[474]

Gorbatchev foi menos eloqüente que Khrutchev, mas provavelmente teve um impacto muito maior sobre o público soviético. Afinal, o discurso de Khrutchev fora feito num encontro reservado. Gorbatchev falara em cadeia nacional de televisão.

Gorbatchev também reforçou seu discurso com um entusiasmo que Khrutchev jamais teve. Na sua trilha, novas "revelações" começaram a aparecer na imprensa da União Soviética todas as semanas. Finalmente a população soviética teve a oportunidade de ler Ossip Mandelstam e Joseph Brodsky, o Réquiem de Anna Akhmatova, Doutor Jivago, de Boris Pasternak, e até mesmo Lolita, de Vladimir Nabokov. Depois de muita luta, a Novyi Mir, agora sob nova direção editorial, começou a publicar capítulos do Arquipélago Gulag, de Soljenitsin.[475] Um dia na vida de Ivan Denisovich logo venderia milhões de exemplares, e autores cujas obras tinham circulado apenas na samizdat, se e que tinham, venderam centenas de milhares de exemplares de suas memórias do Gulag. Alguns se tornaram nomes familiares, como Evgenrya Ginzburg, Uev Razgon, Anatolii Zhigulin, Varlam Chalamov, Dmitrii Likhachev e Anna Larina.

Entre 1964 e 1987, apenas 24 pessoas foram reabilitadas. Agora, graças em parte às revelações espontâneas da imprensa, o processo recomeçava. Desta vez, aqueles que tinham sido esquecidos no passado foram incluídos: Bukharin, condenado juntamente com dezenove líderes bolcheviques nos processos de expurgo de 1938, foi o primeiro. "Os fatos foram falsificados", anunciou solenemente um porta-voz do governo.[476] A verdade então seria contada.

A nova literatura veio acompanhada de novas revelações dos arquivos soviéticos. E estas vieram por meio dos historiadores soviéticos que (segundo alegavam) tinham compreendido os fatos, como também por meio da Memorial Sociedade. A Memorial Sociedade foi fundada por um grupo de historiadores jovens, que em alguns casos passaram anos coletando os relatos orais dos sobreviventes dos campos. Entre eles estava Arseny Roginsky, fundador do jornal Pamyat (Memória), que primeiro começou a circular na samizdat e, depois, no exterior, já no início da década de 1970. O grupo de Roginsky já tinha começado a compilar dados das pessoas que passaram pela repressão. Mais tarde, a Memorial Sociedade iria também conduzir a luta para identificar os corpos queimados em sepulturas coletivas nos arredores de Moscou e de Ueningrado, e a construir monumentos e memoriais à era de Stalin. Depois de uma breve e fracassada tentativa de se transformar em movimento político, a Memorial Sociedade acabou, mas emergiu na década de 1990 como o mais importante centro de estudo da história soviética e de defesa dos direitos humanos da Federação Russa. Roginsky continuou sendo seu líder e um de seus principais historiadores. As publicações da Memorial Sociedade logo se tornaram conhecidas entre os eruditos soviéticos espalhados pelo mundo pela precisão, pela fidelidade aos fatos e pelos arquivos meticulosos e criteriosos.[477]

Embora a mudança na qualidade do debate público tenha acontecido com uma rapidez surpreendente, a situação ainda não era tão clara como parecia aos que estavam de fora. Ainda que estivesse introduzindo as mudanças que logo conduziriam ao colapso da União Soviética, apesar de a "gorbimania" ter tomado conta da Alemanha e dos Estados Unidos, Gorbatchev - assim como Khrutchev - acreditava profundamente no regime soviético. Ele nunca teve a intenção de desafiar os princípios básicos do marxismo soviético ou as conquistas de Lenin. Sua intenção sempre foi reformar e modernizar a União Soviética e não destruí-la. Talvez por causa da experiência familiar, ele acreditava que era importante contar a verdade sobre o passado. E, de início, não pareceu enxergar a ligação entre o passado e o presente.

Por essa razão, a publicação de uma grande quantidade de artigos sobre os campos e as prisões stalinistas e sobre as execuções em massa do passado não foi de imediato acompanhada pela libertação em massa dos dissidentes que continuavam presos. No final de 1986 - embora Gorbatchev estivesse se preparando para falar sobre as "lacunas", embora a Memorial Sociedade tivesse começado a excitar a opinião pública para a construção de um monumento à repressão, embora o resto do inundo começasse a falar com arrebatamento a respeito das novas lideranças da URSS -, a Anistia Internacional sabia o nome de seiscentos presos políticos que ainda estavam nos campos soviéticos e suspeitava da existência de muitos outros.[478]

Um deles era Anatoly Marchenko, que morreu durante uma greve de fome na prisão de Khristopol em dezembro daquele ano.[479] Ao chegar à prisão, sua mulher, Larisa Bogoraz, encontrou três soldados guardando o corpo do marido, que havia sido submetido a uma autópsia. Não lhe permitiram falar com ninguém na prisão - nem com médicos, nem com outros prisioneiros, nem com os administradores -, a não ser com um agente da polícia, Churbanov, que a tratou rudemente. Ele se recusou a dizer-lhe como Marchenko tinha morrido e não lhe entregou o atestado de óbito, um relatório médico nem mesmo as cartas e os diários do marido. Com um grupo de amigos e uma "escolta" de três homens da prisão, ela enterrou Marchenko no cemitério da cidade:

Estava deserto e soprava um vento forte; não havia mais ninguém além de nós e da escolta de Tolya. Eles tinham à mão tudo o que era necessário, mas entenderam que não iríamos permitir que se aproximassem da sepultura e ficaram de lado "até o final da operação", como um deles disse. Os amigos de Tolya disseram algumas palavras de despedida. Então, começamos a encher a sepultura de terra, primeiro com as mãos e depois com as pás [...]

Colocamos no túmulo uma cruz de madeira - espero que tenha sido feita pelos outros prisioneiros. Na cruz, eu escrevi com caneta esferográfica "Anatoly Marchenko 23/1/1938-8/12/1986 [...]"[480]

Embora a administração cercasse a morte de Marchenko de mistério, Bogoraz disse depois que eles não podiam esconder que "Anatoly Marchenko morreu lutando. Sua luta tinha durado 25 anos, e ele nunca hasteou a bandeira branca da rendição".[481]

Mas a morte trágica de Marchenko não foi totalmente em vão. Talvez estimulado pela onda de má publicidade deflagrada por essa morte - as declarações de Bogoraz foram divulgadas no mundo todo -, Gorbatchev finalmente decidiu, no final de 1986, conceder o perdão a todos os prisioneiros políticos do país.

Houve muitas coisas estranhas na anistia que fechou as prisões políticas da União Soviética para sempre. Nada foi mais estranho, porém, do mie a pouca atenção que ela atraiu. Afinal, esse era o fim do Gulag, o fim do sistema de campos que mobilizou milhões de pessoas. Era o triunfo dos movimentos de direitos humanos, que foram o foco de tanta atenção diplomática durante as duas décadas anteriores. Era um momento real de transformação histórica. Mesmo assim, ninguém lhe deu atenção.

Às vezes os jornalistas sediados em Moscou escreviam um ou outro artigo; com uma ou duas exceções, poucas pessoas que escreveram livros sobre a era Gorbatchev e Yeltsin mencionaram os últimos dias dos campos de concentração. Até mesmo os melhores entre os muitos escritores e jornalistas talentosos que viviam em Moscou no final dos anos 1980 estavam mais preocupados com outros acontecimentos da época: as tentativas inábeis de reforma econômica, as primeiras eleições livres, a transformação da política exterior, o fim do império soviético no Leste europeu, o fim da própria União Soviética.[482] Distraídos por essas mesmas questões, ninguém na Rússia deu atenção ao caso. Dissidentes cujos nomes foram famosos na clandestinidade voltaram - e descobriram que não eram mais famosos. Estavam velhos e fora de sintonia com os tempos. Nas palavras de um jornalista ocidental que estava na Rússia na época, eles tinham "construído sua carreira em segredo, datilografando petições em velhas máquinas de escrever, desafiando as autoridades enquanto tomavam um chá absurdamente doce, vestidos com roupões. Não estavam mais preparados para as batalhas no parlamento ou na TV e pareciam muito confusos ao ver como o país havia mudado enquanto estiveram fora".[483]

A maior parte dos ex-dissidentes que permaneceram sob o olhar do público não se preocupava mais com o destino dos campos de concentração remanescentes. Andrei Sakharov, libertado do exílio interno em dezembro de 1986, eleito para o Congresso dos Deputados do Povo em 1989, logo começou a incitar a opinião pública pela reforma das leis de propriedade.[484] Dois anos depois de sua libertação, o armênio Levon Ter-Petrossian foi eleito presidente de seu país. Uma multidão de ucranianos e bálticos saiu dos campos de Perm e da Mordóvia direto para a babel política de seus respectivos países, exigindo ruidosamente a independência.[485]

A KGB percebeu que as prisões políticas estavam sendo fechadas, é claro, mas tampouco parecia capaz de entender o que isso significava. Lendo-se os documentos oficiais disponíveis da segunda metade da década de 1980, é chocante perceber como a linguagem da polícia secreta quase não mudou. Em fevereiro de 1986, Viktor Chebrikov, então chefe da KGB, disse orgulhosamente a um Congresso do Partido que a KGB tinha realizado uma importante operação de contra-espionagem. Ele afirmou que isso fora necessário porque "o Ocidente espalha mentiras sobre a violação dos direitos humanos para disseminar aspirações anti-soviéticas entre os renegados".[486]

Mais tarde, nesse mesmo ano, Chebrikov enviou ao Comitê Central um relatório em que descrevia a luta ininterrupta de seu órgão contra as "atividades das agências de espionagem imperialistas e contra os inimigos soviéticos ligados a elas". Ele também se vangloriou de que a KGB tinha efetivamente "paralisado" as atividades de vários grupos, entre eles os comitês de monitoramento Helsinki, e que no período de 1982 a 1986 tinha forçado "mais de cem pessoas a abandonar as atividades ilegais e a retornar ao caminho da justiça". Algumas dessas pessoas - ele deu o nome de nove - tinham até feito "declarações públicas, na televisão e nos jornais, desmascarando os espiões ocidentais e aqueles que pensam como eles".

No entanto, algumas frases adiante, Chebrikov reconheceu que as coisas haviam mudado. Mas é preciso ler com muita atenção para entender como a mudança foi de fato surpreendente: "As condições atuais de democratização de todos os aspectos da sociedade e o fortalecimento da unidade do Partido e da sociedade possibilitaram que a questão da anistia fosse reconsiderada".[487]

Na verdade, ele quis dizer que os dissidentes estavam tão enfraquecidos que não podiam mais fazer nenhum mal - e que, de qualquer maneira, eles seriam observados, como disse numa reunião anterior do Politburo, "para se ter certeza de que não continuariam com as atividades hostis".[488] Numa declaração separada, ele acrescentou, quase como uma reflexão tardia, que, pelos cálculos da KGB, 96 pessoas eram desnecessariamente mantidas em hospitais psiquiátricos especiais. Sugeriu que aquelas que "não representassem perigo para a sociedade" fossem também libertadas.[489] O Comitê Central concordou e, em fevereiro de 1987, perdoou duzentos prisioneiros condenados pelo Artigo 70 ou pelo Artigo 190-1. Alguns meses depois, para comemorar o Milênio do Cristianismo Russo, mais prisioneiros foram libertados dos campos. Mais de 2 mil pessoas (com certeza, um número bem maior que 96) seriam libertadas de hospitais psiquiátricos nos dois anos seguintes.[490]

Mesmo então - fosse por estar desacostumado, fosse porque via o próprio poder diminuir com a população de prisioneiros -, a KGB parecia relutante em libertar os presos políticos. Como foram formalmente perdoados, e não anistiados, os prisioneiros políticos libertados em 1986 e 1987 foram os primeiros convidados a assinar um documento comprometendo-se a se desligar das atividades anti-soviéticas. Muitos tiveram permissão para criar as próprias desculpas, evasivas: "Devido ao agravamento de uma doença, não me engajarei mais em atividades anti-soviéticas" ou "Nunca fui anti-soviético; eu era anticomunista, e não existem leis que proíbam o anticomunismo". O dissidente Lev Timofeev escreveu: "Pedi para ser libertado. Não pretendo prejudicar o Estado soviético, não que eu tenha tido algum dia essa intenção".[491]

A outras pessoas, contudo, solicitaram uma vez mais que renunciassem às suas crenças ou ordenaram que emigrassem.[492] Um prisioneiro ucraniano foi libertado mas enviado diretamente ao degredo, onde tinha de obedecer ao toque de recolher e apresentar-se a um posto policial uma vez por semana.[493] Um dissidente da Geórgia permaneceu mais seis meses num campo apenas porque havia se recusado a assinar qualquer coisa que a KGB inventasse.[494] Outro recusou-se a pedir formalmente que fosse perdoado "pelo motivo de não ter cometido nenhum crime".[495]

A situação de Bohdan Klymchak, um técnico da Ucrânia preso por tentar sair da URSS, era sintomática dessa época. Em 1978, com medo de ser preso sob a acusação de nacionalismo ucraniano, ele cruzou a fronteira soviética com o Irã e pediu asilo político. Os iranianos o mandaram de volta. Em abril de 1990, ele ainda continuava numa prisão política em Perm. Um grupo de congressistas americanos conseguiu visitá-lo e descobriu que as condições na prisão de Perm não tinham mudado. Os prisioneiros ainda reclamavam do frio extremo e ainda eram colocados nas solitárias por crimes como a recusa a abotoar os botões superiores do uniforme.[496]

Todavia, rangendo e chiando, gemendo e se queixando, o regime repressivo capengava - como de resto, todo o sistema. Na verdade, quando todos os campos políticos de Perm foram finalmente fechados para sempre, em fevereiro de 1992, a União Soviética não mais existia. Todas as antigas repúblicas se tornaram países independentes. Algumas - Armênia, Ucrânia, Lituânia - eram dirigidas por ex-prisioneiros. Outras eram dirigidas por ex-comunistas cujas crenças tinham desmoronado na década de 1980, quando viram pela primeira vez as provas do terror do passado.[497] A KGB e o MVD, ainda que não tenham sido desmantelados, foram substituídos por outros órgãos. Os agentes da polícia secreta começaram a procurar emprego no setor privado. Os carcereiros se arrependeram e transferiram-se discretamente para os governos locais. O novo parlamento russo aprovou, em novembro de 1991, uma Declaração de Direitos e Liberdades do Indivíduo, garantindo, entre outras coisas, liberdade para viajar, liberdade de religião e liberdade de divergir do governo.[498] Infelizmente, a nova Rússia não eslava destinada a se tornar um paradigma de tolerância étnica, religiosa e política, mas essa já é uma outra história.

As mudanças aconteceram com uma velocidade estonteante e ninguém pareceu mais desnorteado por ela do que o homem que deu início à desintegração da União Soviética. Foi essa, afinal, a maior cegueira de Gorbatchev: Khrutchev sabia, Brejnev sabia, mas Gorbatchev, neto dos "inimigos" e criador da glasnost, não percebeu que uma discussão ampla e honesta sobre o passado soviético acabaria por corroer a legitimidade do governo. "Agora percebemos nosso objetivo de forma mais clara", ele disse na véspera do ano-novo, em 1989. "É um socialismo democrático e humano, uma sociedade com liberdade e justiça social."[499] Gorbatchev não foi capaz de entender, mesmo então, que o "socialismo" soviético estava prestes a desaparecer.

Ele também não enxergou, anos depois, a ligação entre as revelações da imprensa durante a glasnost e o colapso do comunismo soviético. Gorbatchev simplesmente não percebeu que, uma vez que a verdade sobre o passado stalinista fosse contada, seria impossível sustentar o mito da grandeza soviética. Ambos trouxeram muita crueldade, muito derramamento de sangue e muitas mentiras.

Mas se Gorbatchev não entendeu o próprio país, muitas outras pessoas entenderam. Vinte anos antes, o editor de Soljenitsin, Aleksandr Tvardovsky, sentia a força do passado oculto, sabia o que a memória poderia causar ao sistema soviético. Ele expressou seus sentimentos num poema:

Estão errados se pensam que a memória

Não tem grande valor

Ou que as ervas daninhas do tempo apagam

Acontecimentos ou dores do passado.

O planeta gira sem parar,

Contando os dias e os anos [...]

Não. O dever ordena que agora

Tudo que não se disse seja dito totalmente [...].[500]

 

Memória

E os assassinos? Os assassinos vivem [...]

Lev Razgon, Nepridumannoe, 1989.[501]

No começo do outono de 1989, viajei de barco, pelo mar Branco, da cidade de Arcangel às ilhas Solovetsky. Era o último cruzeiro do verão; em meados de setembro, quando as noites do Ártico começam a ficar mais longas, os navios param de fazer essa travessia. O mar se torna muito bravio e as águas ficam geladas demais para que se exponham os turistas a uma viagem noturna.

Talvez o fato de se saber que era o final da estação tenha dado urna certa excitação à viagem. Ou talvez os passageiros estivessem excitados apenas por estarem em alto-mar. Fosse qual fosse a razão, o restaurante do navio era um burburinho só: os brindes se repetiam, as piadas também, e muitos, muitos aplausos ao capitão. Os dois casais de meia-idade com quem eu partilhava a mesa pareciam dispostos a se divertir.

No início do jantar, minha presença lhes deu mais alegria. Afinal, não era todo dia que encontravam uma americana num barco em pleno mar Branco, e isso os divertia. Queriam saber por que eu falava russo, o que pensava sobre a Rússia, quais eram as diferenças em relação aos Estados Unidos. Quando lhes contei o que fazia na Rússia, a alegria deles diminuiu. Uma coisa era ter uma americana num cruzeiro para visitar as ilhas Solovetsky e conhecer a beleza do antigo mosteiro. Outra coisa muito diferente era essa americana visitar as ilhas Solovetsky para conhecer o que havia sobrado do campo de concentração.

Um dos homens reagiu com hostilidade e perguntou: "Por que os estrangeiros se preocupam apenas com as coisas feias da nossa história? Por que escrever sobre o Gulag? Por que não escreve sobre as nossas realizações? Fomos o primeiro país a enviar um homem ao espaço!". Com esse "nós", ele queria dizer "nós, soviéticos". A União Soviética já não existia havia sete anos, mas ele ainda se identificava como um cidadão soviético, e não como um cidadão russo.

A esposa dele também me atacou. "O Gulag não é mais importante. Temos outros problemas agora, como o desemprego, o crime. Por que não escreve sobre nossos problemas reais, em vez de escrever sobre coisas que aconteceram há tanto tempo?"

Enquanto essa conversa desagradável se desenrolava, o outro casal permaneceu em silêncio, e o homem não deu sua opinião sobre o passado soviético. Mas, a certa altura, sua esposa se manifestou: "Eu entendo por que você quer conhecer os campos. É interessante saber o que aconteceu. Eu gostaria de saber mais".

Nas viagens seguintes que fiz pela Rússia, deparei com essas atitudes muitas outras vezes. "Não é da sua conta" e "Esse assunto não é importante" eram reações comuns. O silêncio - ou a ausência de opinião - talvez tenha sido a reação mais freqüente. Mas algumas pessoas também entendiam por que era importante conhecer o passado e desejavam me ajudar a obter mais informações.

Na verdade, com um pouco de esforço, pode-se aprender muitas coisas sobre o passado na Rússia contemporânea. Nem todos os arquivos russos estão fechados, nem todos os historiadores russos têm outras preocupações: este livro é uma prova da abundância de informações disponíveis. A história do Gulag também se tornou parte das discussões públicas em algumas ex-repúblicas e ex-estados satélites soviéticos. Em algumas nações - geralmente, naquelas que se vêem como vítimas em vez de agentes do terror -, os memoriais e as discussões são muito proeminentes. Os lituanos converteram as antigas sedes da KGB em Vilna em um museu das vítimas do genocídio. Os letões transformaram um velho museu soviético, antigamente dedicado aos "exímios atiradores vermelhos da Letônia", num museu sobre a ocupação do país.

Em fevereiro de 2002, participei da abertura de um novo museu húngaro, localizado num prédio que foi sede do movimento fascis a entre 1940 e 1945 e também quartel-general da polícia secreta comunista húngara entre 1945 e 1956. Na primeira sala de exibição, um painel de televisores transmitia propaganda fascista. Na outra parede, outro painel de televisores transmitia propaganda comunista. O efeito era imediato e emocionante, como se pretendia, e o restante do museu seguia essa tendência. Por meio de fotografias, vídeos, áudios e pouquíssimas palavras, os organizadores do museu pretendem atingir quem é jovem demais para se lembrar dos dois regimes.

Na Belarus, ao contrário, a falta de um monumento se tornou o maior problema político: no verão de 2002, o ditador Aleksandr Lukashenka continuava anunciando publicamente sua intenção de construir uma rodovia sobre o local em que ocorreu uma execução em massa, nos arredores de Minsk, a capital, em 1937. Sua retórica inflamou a oposição e gerou uma discussão maior sobre o passado.

Um punhado de monumentos informais, semi-oficiais e privados, erguidos por diversas pessoas e organizações estão espalhados pela Rússia. As sedes da Memorial Sociedade em Moscou contêm um arquivo de memórias orais e escritas, assim como um pequeno museu que abriga, entre outras coisas, uma importante coleção de arte dos prisioneiros. O Museu Andrei Sakharov, também em Moscou, faz exposições e mostras sobre a era stalinista. Nos arredores de muitas cidades - Moscou, São Petersburgo, Tomsk, Kiev, Petrozavodsk -, as sedes locais da Memorial Sociedade e de outras instituições ergueram monumentos para marcar os locais de sepultamento em massa, os locais das execuções em massa de 1937 e 1938.

Existem também esforços maiores. O círculo de minas de carvão em torno de Vorkuta, todas elas antigos lagpunkts, é pontilhado de cruzes, estátuas e outros monumentos erguidos para as vítimas lituanas, polonesas e alemãs dos campos de Vorkuta. O museu histórico da cidade de Magadan possui diversas salas consagradas à história do Gulag, inclusive um posto de observação de um campo; no mirante da cidade, um escultor russo bem conhecido construiu um monumento para os mortos de Kolyma, com símbolos das crenças que eles praticavam. Uma sala dentro dos muros do mosteiro de Solovetsky, que agora é um museu, mostra cartas, fotografias dos prisioneiros e recortes dos arquivos; do lado de fora plantaram-se árvores em homenagem aos mortos.

No centro de Syktyvkar, a capital da República Komi, a administração e a sede local da Memorial Sociedade construíram uma pequena cape-la, em cujo interior foram listados o nome de alguns prisioneiros, deliberadamente escolhidos para ilustrar as muitas nacionalidades presentes no Gulag: lituanos, coreanos, judeus, chineses, espanhóis.

Monumentos individuais estranhos e assombrosos às vezes são encontrados em lugares inusitados. Uma cruz de ferro foi fincada numa colina árida nos arredores da cidade de Ukhta, o antigo quartel-general de Ukhtpechlag, em lembrança à execução em massa dos prisioneiros. Para vê-la, tive de seguir de carro por uma estrada cheia de lama e quase intransitável, passar por um lugar em obras e subir por um difícil trilho de estrada de ferro. Mesmo assim, estava muito distante para poder ler a sua inscrição. Mas os ativistas locais, que colocaram a cruz ali, sorriem orgulhosos.

Algumas horas ao norte de Petrozavodsk, outro monumento especial foi construído nos arredores do vilarejo de Sandormokh Nesse caso, talvez "monumento" não seja a palavra apropriada. Embora exista uma placa comemorativa, como também várias cruzes de pedra erguidas pelos poloneses, alemães e outros, Sandormokh - onde os prisioneiros das ilhas Solovetsky foram mortos em 1937, entre eles o padre Pavel Florensky - é notável pelas cruzes artesanais estranhamente comoventes e pelos monumentos pessoais. Como não existem registros indicando quem está enterrado onde, cada família escolheu ao acaso, uma pilha de ossos para homenagear. Os parentes das vítimas afixaram fotografias dos mortos em estacas de madeira, e alguns gravaram epitáfios nas laterais. Fitas, flores de plástico e outros objetos se espalham pela mata que cresceu nesse campo de morte. No dia ensolarado de agosto em que visitei o local - era o aniversário da matança e uma delegação tinha vindo de São Petersburgo -, uma senhora idosa falou sobre seus pais, ambos enterrados ali, ambos mortos quando ela tinha sete anos. Uma vida toda tinha se passado até que ela pudesse visitar seu túmulo.

Um projeto maior foi concebido nos arredores da cidade de Perm. No local do Perra 36, primeiro um lagpunkt da era stalinista, depois um dos campos políticos mais sombrios das décadas de 1970 e 1980, um grupo de historiadores construiu um museu em tamanho natural, o único localizado dentro dos alojamentos de um campo de trabalho forçado. Com recursos próprios, os historiadores reconstruíram o campo, os alojamentos, as paredes, as cercas de arame farpado etc. Para bancar o projeto, eles chegaram até a criar um pequeno comércio de madeira, usando as máquinas enferrujadas e abandonadas do campo. Mesmo sem receber muito apoio do governo local, atraíram fundos da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Ambiciosos, eles agora esperam restaurar o conjunto de 25 prédios e usar quatro deles para abrigar um grande Museu da Repressão.

E ainda assim, na Rússia, um país acostumado a memoriais de guerra grandiosos e funerais estatais grandes e solenes, esses esforços localizados e privados parecem insuficientes e imperfeitos. E provável que a grande maioria dos russos nem tenha consciência disso. E é natural: dez anos depois do colapso da União Soviética, a Rússia, país que herdou as políticas externa e diplomática da União Soviética, suas embaixadas, suas dívidas e sua cadeira nas Nações Unidas, continua a agir como se não tivesse herdado a história da União Soviética. A Rússia não tem um museu nacional dedicado à história da repressão. Nem tem um local nacional de luto, um monumento que oficialmente reconheça o sofrimento das vítimas e de suas famílias. Ao longo da década de 1980, houve concorrências para projetar esse monumento, mas elas deram em nada. A Memorial Sociedade conseguiu apenas trazer urna pedra das ilhas Solovetsky - onde o Gulag começou - e colocá-la no centro da praça Dzerzhinsky, em frente a Lubyanka.[502]

Mais espantosa que a falta de monumentos, porém, é a falta de consciência pública. Às vezes, é como se toda a emoção e a paixão provocadas pelas abrangentes discussões de Gorbatchev simplesmente tivessem desaparecido junto com a própria União Soviética. Os debates dolorosos sobre justiça para as vítimas desapareceram também de forma abrupta. Embora muito se tenha falado sobre o assunto no final da década de 1980, o governo russo nunca investigou os torturadores ou os assassinos, nem mesmo aqueles que podiam ser identificados. No início da década de 1990, um dos homens que executaram o massacre dos oficiais da Polônia em Katyn ainda estava vivo. Antes de sua morte, a KGB entrevistou-o e pediu-lhe que explicasse - do ponto de vista técnico - como os homicídios foram cometidos. Gomo um gesto de boa vontade, uma gravação da conversa foi entregue ao adido cultural polonês em Moscou. Ninguém sugeriu nem uma única vez que o homem fosse levado a julgamento em Moscou, em Varsóvia ou em qualquer outro lugar.

E verdade, naturalmente, que os julgamentos podem não ser a melhor maneira de acertar as contas com o passado. Nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a Alemanha Ocidental levou 8.500 nazistas a julgamento, mas conseguiu menos de 7 mil condenações. Os tribunais são sabidamente corruptos e facilmente dominados por disputas pessoais e ciúmes. O Julgamento de Nuremberg foi um exemplo de "justiça do vencedor" prejudicada por uma legalidade duvidosa e por excentricidades, como presença de juizes soviéticos, que sabiam muito bem que o seu próprio lado era também responsável por homicídios em massa.

Mas existem outros métodos de se fazer justiça pública aos crimes do passado. Existem comissões da verdade, por exemplo, como a que foi realizada na África do Sul, que permitem que as vítimas contem sua história num lugar público, oficial, e tornem os crimes do passado parte de um debate público. Existem investigações oficiais, como o inquérito realizado em 2002 pelo Parlamento britânico sobre o massacre do Domingo Sangrento na Irlanda do Norte, que acontecera trinta anos antes. Existem inquéritos governamentais, comissões governamentais, pedidos de desculpa públicos... Mesmo assim, o governo russo nunca considerou nenhuma dessas alternativas. Além do "julga-mento" breve e inconclusivo do Partido Comunista, não houve nenhuma sessão pública para que a verdade fosse contada, nenhuma audiência parlamentar, nenhuma investigação oficial sobre os assassinatos sobre os massacres ou sobre os campos de trabalho da União Soviética.

Resultado: meio século depois do fim da guerra, os alemães ainda discutem a compensação das vítimas, os memoriais, as novas interpretações da história do nazismo, e até mesmo se a nova geração de alemães deveria assumir a responsabilidade pelos crimes nazistas. Meio século depois da morte de Stalin, nada semelhante aconteceu na Rússia, porque o passado não é mais uma parte viva do discurso público.

O processo de reabilitação continuou calmamente durante os anos 1990. No final de 2001, cerca de 4,5 milhões de prisioneiros políticos tinham sido reabilitados na Rússia, e a comissão de reabilitação nacional reconheceu que ainda havia mais de meio milhão de casos para ser examinados. Naturalmente, aqueles que jamais foram condenados - centenas de milhares, talvez milhões - serão dispensados do processo.[503] A comissão, composta por sobreviventes dos campos e também por burocratas, é séria e bem-intencionada, mas ninguém acredita de fato que os políticos que a criaram tenham sido motivados pelo impulso de buscar "a verdade e a reconciliação", nas palavras da historiadora britânica Catherine Merridale. Sem dúvida, o objetivo era encerrar a discussão sobre o passado, apaziguar as vítimas, oferecendo-lhes alguns rublos e passagem gratuita nos ônibus, e evitar uma investigação mais profunda das causas do stalinismo o de seu legado.

Existem algumas justificativas boas, ou pelo menos perdoáveis, para o silêncio público. A maioria dos russos passou todo o tempo lidando com a transformação completa da economia e da sociedade. A era stalinista pertence ao passado distante, e muita coisa aconteceu desde então. A Rússia pós-comunista não é a Alemanha do pós-guerra, em que as lembranças das piores atrocidades ainda estavam frescas na mente das pessoas. No início do século XXI, os acontecimentos da metade do século XX soam como história antiga para grande parte da população.

Mais objetivamente, muitos russos também acham que já discutiram o passado e que o resultado disso foi pífio. Quando perguntamos a uma pessoa idosa porque o Gulag é tão pouco mencionado atualmente, ela sempre evita falar sobre o caso: "Em 1990, esse era nosso único assunto, agora não precisamos mais falar sobre isso". Para complicar ainda mais as coisas, muita gente confunde o Gulag e a repressão stalinista com os "reformadores democráticos" que promoveram os primeiros debates sobre o passado soviético. Gomo essa geração de líderes políticos é vista agora como fracassada - seu governo é lembrado pela corrupção e pelo caos -, toda conversa sobre o Gulag é contaminada por associação.

A questão de lembrar ou comemorar a repressão política também é confusa - como observei na introdução deste livro - pela presença de tantas vítimas de tantas outras tragédias soviéticas. Segundo Catherine Merridale: "Para complicar mais as coisas, um número muito grande de pessoas sofreu muitas vezes; elas podem facilmente se descrever como veteranos de guerra, vítimas da repressão, filhos da repressão e até mesmo como sobreviventes da fome".[504] Existem muitos monumentos em homenagem aos mortos na guerra, alguns russos parecem pensar: isso não é suficiente?

Mas existem outras razões, menos perdoáveis, para o silêncio profundo. Muitos russos viveram o colapso da União Soviética como um golpe duro em seu orgulho pessoal. Talvez o antigo sistema fosse ruim, pensam agora, mas pelo menos era forte. E como hoje não somos mais poderosos, não queremos ouvir que ele era ruim. É muito doloroso, é como falar mal dos mortos.

Outras pessoas têm medo do que podem descobrir se pesquisarem o passado atentamente. Em 1998, a jornalista russo-americana Masha Gessen descreveu como era descobrir que uma de suas avós, uma simpática senhora judia, fora censora, que alterava os relatórios dos correspondentes estrangeiros baseados em Moscou. Ela também descobriu que a outra avó, também uma bondosa senhora judia, havia certa vez se candidatado a um emprego na polícia secreta. As duas fizeram essas escolhas por desespero. Agora, escreveu Masha, ela sabe porque sua geração se absteve de condenar a geração de seus avós tão duramente: "Nós não os comprometemos, nós não os colocamos à prova, nós não os julgamos [...] com perguntas desse gênero, todos correm o risco de trair alguém que ama".[505]

Aleksandr Yakolev, dirigente da comissão russa de reabilitação, abordou esse problema de uma forma mais direta. Ele me disse: "A sociedade é indiferente aos crimes do passado porque muitos participaram deles".[506] O sistema soviético comprometeu milhões e milhões de cidadãos em muitas formas de colaboração. Embora muitas participações tenham sido voluntárias, pessoas decentes também foram forçadas a fazer coisas horríveis. Elas, seus filhos e seus netos nem sempre querem se lembrar disso agora.

No entanto, a explicação mais importante para a falta de discussão não diz respeito ao medo da geração mais jovem ou ao complexo de inferioridade e ao sentimento de culpa de seus pais. A questão mais importante é o poder e o prestígio daqueles que hoje governam não apenas a Rússia, mas também a maioria dos ex-Estados soviéticos e dos Estados-satélites. Em dezembro de 2001, no décimo aniversário da dissolução da União Soviética, treze das quinze ex-repúblicas soviéticas eram administradas por velhos comunistas, como também era o caso de muitos antigos estados-satélites, inclusive a Polônia, país que forneceu centenas de milhares de prisioneiros para os campos de trabalho forçado e para o degredo na União Soviética. Mesmo nos países não administrados por descendentes ideológicos diretos do Partido Comunista, ex-comunistas, seus discípulos e simpatizantes continuavam a freqüentar as elites intelectuais e empresariais e a mídia. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, era um antigo agente da KGB que orgulhosamente se identificava como "chekista". Antes, quando era primeiro-ministro, Putin fez questão de visitar a sede da KGB na Lubyanka no aniversário da criação da Cheka e dedicou uma placa à memória de Yuri Andropov.[507]

A predominância de ex-comunistas e as discussões insuficientes sobre o passado no mundo pós-comunista não é uma coincidência. Os ex-comunistas têm interesse em esconder o passado, pois ele os mácula, os prejudica, fere suas afirmações de estarem realizando "reformas", mesmo quando nada têm a ver com os crimes do passado. Na Hungria, o antigo Partido Comunista, cujo nome mudou para Partido Socialista, lutou muito contra a abertura do museu para as vítimas do terror. Em 2001, na Polônia, quando o ex-Partido Comunista, agora chamado Partido Social-Democrata, foi eleito, imediatamente cortou a verba do Instituto Polonês da Memória Nacional, criado pelos antecessores de centro-direita. Muitas, muitas desculpas foram dadas para o fato de a Rússia não ter construído um monumento nacional para seus milhões de vítimas, mas Aleksandr Yakovlev me deu a explicação mais concisa. Ele disse: "O monumento será construído quando nós, da geração mais velha, tivermos morrido".

Ou seja, o fato de não reconhecer, não lamentar, não discutir o passado comunista pesa como uma pedra sobre muitas nações da Europa pós-comunista. Boatos sobre o conteúdo dos velhos "arquivos secretos" continuam atrapalhando os políticos atuais e já desestabilizaram pelo menos um primeiro-ministro polonês e um húngaro. Acordos feitos no passado entre os partidos comunistas ainda possuem ramificações no presente. Em muitos lugares, o aparato da polícia secreta - a estrutura, o equipamento, os escritórios - não mudou. A descoberta casual de novos cemitérios clandestinos gerou muita controvérsia e raiva.[508]

É sobre a Rússia que esse passado pesa de forma mais opressiva. O país herdou os arreios do poder soviético - e também seu poderio militar, seus objetivos imperialistas. Como resultado, as conseqüências políticas da ausência de memória na Rússia têm sido muito mais prejudiciais do que em outros países ex-comunistas. Em nome da pátria soviética, Stalin deportou a nação tchechena para os desertos do Casaquistão, onde metade deles morreu e o restante estava fadado a desaparecer, juntamente com sua língua e sua cultura. Cinqüenta anos depois, repetindo o gesto, a Federação Russa destruiu Grosni, a capital da Tchechênia, e assassinou dezenas de milhares de civis no decorrer de duas guerras. Se o povo e a elite russa se lembrassem - se lembrassem visceralmente, emocionadamente - do que Stalin fez aos tchechenos, não teriam invadido a Tchechênia na década de 1990, não apenas uma, mas duas vezes. É como se a Alemanha do pós-guerra invadisse o oeste da Polônia. Na Rússia, poucos viam as coisas dessa forma - uma prova de como conhecem mal a própria história.

Também houve conseqüências na formação da sociedade civil e no desenvolvimento dos preceitos legais. Falando de maneira mais objetiva, se os patifes do antigo regime continuarem impunes, o bem jamais triunfará sobre o mal. A polícia não precisa prender todos os criminosos o tempo todo para que a maioria das pessoas se submeta à ordem pública, mas precisa prender um bom número deles. Nada encoraja mais os fora-da-lei do que ver os vilões escaparem impunemente, preservarem as suas vantagens e rirem das pessoas. A polícia secreta manteve os apartamentos, as dachas e os salários. Suas vítimas permaneceram pobres e marginais. Para a maioria do povo russo, a impressão que ficou é a de que quanto mais uma pessoa colaborava no passado, melhor ela se saía. Por analogia, quanto mais a pessoa trapaceia e mente no presente, melhor ela se dá.

No fundo, parte da ideologia do Gulag também sobrevive nas atitudes e na visão da nova elite russa. Certa vez, eu estava na casa de alguns amigos em Moscou e presenciei uma conversa que costuma ocorrer a altas horas da noite, na mesa da cozinha. Num determinado ponto, já bastante tarde, dois dos participantes - empresários de sucesso - começaram a discutir como o povo russo era estúpido e ingênuo! E como os dois eram mais inteligentes que o povo! O conceito stalinista de classificar a humanidade em categorias, entre a elite todo-poderosa e os "inimigos" imprestáveis, sobrevive no desrespeito arrogante da nova elite russa pelos outros cidadãos. A menos que essa elite reconheça o valor e a importância de todos os russos e respeite seus direitos civis e humanos, o país está fadado a se tornar o que hoje é a região norte do Zaire, uma terra povoada por camponeses empobrecidos e políticos milionários que mantêm seus ativos nos cofres da Suíça e seus jatinhos particulares na pista de pouso, com o motor ligado.

A falta de interesse pelo passado privou os russos de heróis e de vítimas. Os nomes daqueles que se opunham secretamente a Stalin -estudantes como Susanna Pechora, Viktor Bulgakov e Anatolli Zhigulin; os líderes das rebeliões no Gulag; os dissidentes, de Sakharov a Bukovsky e a Orlov - deveria ser tão conhecido na Rússia como são conhecidos na Alemanha os nomes dos que participaram de uma conspiração para matar Hitler. A literatura inacreditavelmente rica dos sobreviventes russos - histórias de pessoas cuja humanidade triunfou sobre as tenebrosas condições dos campos de concentração soviéticos - deveria ser mais lida, mais conhecida, citada com mais freqüência. Se os estudantes conhecessem mais esses heróis e sua história, teriam algo de que se orgulhar no passado da Rússia além dos triunfos militares e imperiais.

A falta de memória também traz conseqüências mais práticas e mundanas. Pode-se dizer, por exemplo, que o fato de a Rússia não ter investigado apropriadamente o passado também explica sua insensibilidade diante de certo tipo de censura e da presença contínua e maciça da polícia secreta, agora chamada de Federalnaya Sluzhba Bezopasnosti, ou FSB. Em geral, os russos não se preocupam com o fato de a FSB abrir a correspondência, grampear os telefones ou entrar nas casas sem uma ordem judicial. Também não estão muito interessados, por exemplo, no longo processo a que a FSB submeteu Aleksandr Nikitin, um ecologista que escreveu sobre os prejuízos que a Frota do Norte estava causando ao mar Báltico.[509]

A insensibilidade em relação ao passado também ajuda a explicar a ausência de reforma judicial e carcerária. Em 1998, fiz uma visita à prisão da cidade de Arcangel. Outrora uma das capitais do Gulag, Arcangel está no caminho de Solovetsky, Kotlas, Kargopollag e de outros complexos de campos do norte. A prisão da cidade, que foi construída antes de Stalin, parecia não ter mudado em nada desde então. Cheguei lá na companhia de Galina Dudina, uma verdadeira raridade pós-soviética, defensora dos direitos dos prisioneiros. Quando entramos no edifício de pedra, acompanhadas por um carcereiro calado, parecia que tínhamos voltado ao passado.

Os corredores eram estreitos e escuros, com paredes úmidas e pegajosas. Quando o guarda abriu a porta de uma cela masculina, vi de relance os corpos nus, cobertos de tatuagens, esticados nos beliches. Ao perceber que os homens não estavam vestidos, o guarda fechou a porta, dando-lhes tempo de se arrumarem. Quando o guarda voltou a abri-la, entrei no cômodo onde estavam cerca de vinte homens em fila, nem um pouco satisfeitos por terem sido interrompidos. Deram respostas monossilábicas e guturais às perguntas feitas por Galina e, na maioria das vezes, fitavam o piso de cimento da cela. Estavam jogando baralho; o guarda nos tirou rapidamente dali.

Entramos numa cela feminina. No canto, havia um banheiro. Exceto por isso, o cenário parecia ter saído direto das páginas de um texto biográfico da década de 1930. A roupa íntima estava pendurada numa corda no alto da cela; o ar era abafado e denso, quente e pesado com o cheiro de transpiração, comida estragada, umidade e dejetos humanos. As mulheres, também seminuas, sentadas nos beliches em volta da cela, despejaram insultos sobre o guarda, queixaram-se e fizeram exigências aos gritos. Tive a sensação de ter entrado na cela em que Olga Adarnova-Sliozberg esteve em 1938. Vou repetir a descrição que ela fez:

As paredes abobadadas pingavam. De ambos os lados, deixando apenas uma passagem estreita, havia pranchas baixas que serviam de camas e estavam apinhadas de corpos. Por cima, em varais, secavam andrajos diversos. O ar se espessava com a fumaça nojenta de fumo forte e barato e se enchia com o alarido de bate-bocas, gritos e soluços.[510]

Ao lado, a cela juvenil tinha poucas prisioneiras, com expressão ainda mais triste. Galina passou um lenço para uma garota de quinze anos que soluçava, acusada de ter roubado, em rublos, o equivalente a 10 dólares. "Continue estudando álgebra; logo você estará fora daqui", Galina disse à garota. Pelo menos era isso que ela esperava. Galina encontrou muita gente que estava presa havia meses sem julgamento, e aquela garota estava na prisão havia apenas uma semana.

Depois, conversamos com o chefe da prisão, que deu de ombros quando lhe perguntamos sobre a menina, sobre o prisioneiro que estava no corredor da morte havia anos mesmo afirmando ser inocente sobre o ar fétido da prisão e sobre a falta de saneamento. Tudo dependia de dinheiro, ele respondeu. Não havia dinheiro suficiente. Mal dava para pagar os guardas. A conta de luz estava atrasada, o que explicava os corredores escuros. Não havia dinheiro para consertos, nem para promotores, ou juizes, ou julgamentos. Os prisioneiros tinham de esperar a sua vez, ele disse, até que o dinheiro começasse a chegar.

Ele não me convenceu. Dinheiro é um problema, mas não é tudo. Se as prisões da Rússia pareciam o cenário das memórias de Adamova-Sliozberg, se os tribunais e as investigações criminais eram um blefe, isso se devia em parte ao fato de o legado soviético não pesar sobre os ombros daqueles que administravam o sistema judiciário e criminal da Rússia. O passado não assombrava a polícia secreta, nem os juizes, nem os políticos, nem a elite empresarial da Rússia.

Mas poucas pessoas na Rússia contemporânea viam o passado como uma responsabilidade, uma obrigação. O passado era um pesadelo a ser esquecido ou um boato a ser ignorado. Como uma caixa de Pandora fechada, ele permanece à espera das próximas gerações.

O fato de os ocidentais não compreenderem a magnitude do que aconteceu na União Soviética e na Europa central não tem, naturalmente, as mesmas implicações na nossa vida. O fato de tolerarmos a "negação do Gulag" em nossas universidades não destruirá o tecido moral de nossa sociedade. Afinal, a Guerra Fria acabou e não sobrou nenhuma força intelectual ou política importante nos partidos comunistas do Ocidente.

De qualquer forma, se não nos esforçarmos para nos lembrar, também seremos atingidos pelas conseqüências. Por um lado, nossa compreensão do que está acontecendo agora na antiga União Soviética acabará deturpada pela má interpretação da história. Por outro, se soubéssemos de fato o que Stalin fez contra tchechenos e se acreditássemos que foi um crime bárbaro, não apenas Vladimir Putin seria incapaz de repetir a mesma atrocidade agora, nós também seríamos incapazes de ficar observando com tranqüilidade. Tampouco o colapso da União Soviética inspirou as forças ocidentais a se mobilizarem como no final da Segunda Guerra Mundial. Quando a Alemanha nazista finalmente sucumbiu, o resto do Ocidente criou a Otan e a Comunidade Européia - em parte para impedir a Alemanha de desgarrar-se outra vez da "normalidade" civilizada. Só depois do 11 de setembro de 2001 as nações do Ocidente começaram a repensar seriamente suas políticas de segurança pós-Guerra Fria, e, mesmo assim, existiam motivações mais fortes do que a necessidade de trazer a Rússia de volta à civilização ocidental.

Mas, no final, as conseqüências na política externa não são as mais importantes. Pois, se esquecermos o Gulag, mais cedo ou mais tarde descobriremos que é difícil entender também a nossa própria história. Afinal, por que travamos a Guerra Fria? Será que foi porque os enlouquecidos políticos de direita, mancomunados com o complexo industrial-militar e com a CIA, inventaram toda essa história e forçaram duas gerações de americanos e de europeus ocidentais a concordar com ela? Ou alguma coisa mais importante aconteceu? A confusão já é muito grande. Em 2002, um artigo da revista conservadora britânica Spectator opinou que a Guerra Fria foi "um dos mais desnecessários conflitos de todos os tempos".[511] O escritor americano Gore Vidal também descreveu as batalhas da Guerra Fria como "quarenta anos de uma guerra estúpida que gerou um débito de 5 trilhões de dólares".[512] Já estamos esquecendo o que nos mobilizou, o que nos inspirou, o que manteve a civilização ocidental unida por tanto tempo: estamos esquecendo contra o que lutávamos. Se não nos esforçarmos para lembrar a história da outra metade do continente europeu, o Ocidente acabará por não entender o próprio passado, por não saber como o nosso mundo se transformou no que é.

E não apenas o nosso passado; pois, se continuarmos esquecendo metade da história da Europa, nosso conhecimento sobre a humanidade será distorcido. Todas as tragédias foram únicas: o Gulag, o Holocausto, o massacre americano, o massacre de Nanquim, a Revolução Cultural, a revolução do Camboja, as guerras da Bósnia, entre outras. Todos esses acontecimentos tiveram uma origem histórica, filosófica e cultural diferente, todos surgiram de circunstâncias locais particulares que nunca se repetirão. Apenas a nossa habilidade de degradar, e destruir, e desumanizar nossos semelhantes se repetiu - e ainda se repetirá - por muitas vezes: a transformação do nosso próximo em "inimigo", a redução dos nossos oponentes a vermes ou pragas venenosas, a reinvenção das nossas vítimas em seres perversos, dignos apenas de prisão, expulsão ou morte.

Quanto mais formos capazes de entender como as diferentes sociedades transformaram seu próximo e seu semelhante em objetos quanto mais conhecermos as circunstâncias específicas que orientaram cada episódio de tortura e execução em massa, mais entenderemos o lado sombrio de nossa natureza humana. Este livro não foi escrito para que "a história não se repita", como diz um velho clichê. Este livro foi escrito porque é quase certo que a história se repetirá. As filosofias totalitaristas tiveram, e continuarão a ter, um grande apelo sobre milhões de pessoas. A destruição do "inimigo impessoal", como Hannah Arendt disse certa vez, continua sendo um objetivo fundamental de muitas ditaduras. Precisamos saber por quê - e todas as histórias, todas as memórias, todos os documentos da história do Gulag são uma parte do quebra-cabeça, uma parte da explicação. Sem eles, vamos acordar um dia e perceber que não sabemos quem somos.

Apêndice

Quantos?

Embora a União Soviética dispusesse de milhares de campos de concentração e embora milhões de pessoas tenham passado por eles, durante décadas, ninguém, a não ser meia dúzia de burocratas, soube qual era o número de vítimas. Estimar esse número era um exercício de pura adivinhação enquanto a URSS ainda existia; hoje em dia, o cálculo pode ser feito por suposição.

Durante o período de pura adivinhação, o debate ocidental em torno da estatística da repressão - da mesma forma que o debate ocidental sobre a história soviética em geral - foi deturpado, dos anos de 1950 em diante, pelos políticos da Guerra Fria. Sem arquivos, os historiadores contavam alternadamente com as memórias dos prisioneiros, as declarações dos dissidentes, os números do censo oficial, as estatísticas econômicas e até mesmo com detalhes menos importantes que de alguma forma chegavam ao exterior, como o número de jornais distribuídos aos prisioneiros em 1931.[513] Os que não gostavam da União Soviética tendiam a escolher as estimativas mais altas. Os que não gostavam da atuação dos americanos ou dos ocidentais na Guerra Fria escolhiam as estimativas mais baixas. Os números variavam muito. No livro The great terror [O grande terror], de 1968, na época um relato original e inovador dos expurgos soviéticos, o historiador Robert Conquest estimou que o Ministério do Interior da antiga URSS - a NKDV - prendeu 7 milhões de pessoas em 1937 e 1938.[514] Em Origins of the purges [Origens do expurgo], uma narrativa "revisionista" de 1985, o historiador J. Arch Getty falava apenas em "milhares" de prisões nesses mesmos dois anos.[515]

No entanto, a abertura dos arquivos soviéticos não satisfez a nenhuma das tendências. A princípio, os primeiros números liberados sobre os prisioneiros do Gulag situavam-se exatamente entre as estimativas mais altas e as mais baixas. De acordo com documentos da NKDV amplamente divulgados, foram estes os números de prisioneiros dos campos de trabalho forçado e das colônias do Gulag de 1930 a 1953, contados em 1º de janeiro de cada ano:

 

1930.........179.000

 

1942     .......1.777.043

1931.........212.000

 

1943     .......1.484.182

1932.........268.700

 

1944     .......1.179.819

1933.........334.300

 

1945     .......1.460.677

1934.........510.307

 

1946     .......1.703.095

1935.........965.742

 

1947     .......1.721.543

1936     .......1.296.494

 

1948     .......2.199.535

1937     .......1.196.369

 

1949     .......2.356.685

1938     .......1.881.570

 

1950     .......2.561.351

1939     .......1.672.438

 

1951     .......2.525.146

1940     .......1.659.992

 

1952     .......2.504.514

1941     .......1.929.729

 

 

1953.......2.468.5244[516]

Esses números realmente refletem algumas circunstâncias que, por meio de fontes diversas, sabemos serem verdadeiras. A quantidade de detentos começa a aumentar no final dos anos de 1930, à medida que a repressão aumentava. Cai um pouco durante a guerra, em razão do grande número de anistiados. Sobe em 1948, quando Stalin volta a endurecer. Além disso, a maioria dos estudiosos que trabalhou nos arquivos concorda agora que esses números se baseiam em compilações genuínas de dados fornecidos pelos campos à NKVD. Eles são compatíveis com dados oriundos de outros órgãos governamentais; condizem, por exemplo, com as informações utilizadas pelo Comissariado do Povo de Finanças.[517] Mesmo assim, não refletem necessariamente toda a verdade.

Para começar, a contagem anual é enganosa, pois mascara a alta rotatividade no sistema de campos. Em 1943, por exemplo, registrou-se que 2.421 milhões de prisioneiros passaram pelo Gulag, embora os totais no começo e no final daquele ano mostrem um declínio de 1,5 para 1,2 milhão. Esse número inclui as transferências dentro do sistema, mas mesmo assim indica um nível enorme de movimentação de prisioneiros que não se reflete no número total.[518] Seguindo essa mesma linha, quase 1 milhão de prisioneiros deixou os campos durante a guerra para se juntar ao Exército Vermelho, um fato que quase não se reflete nos dados gerais, uma vez que durante a guerra também chegaram muitos prisioneiros. Outro exemplo: em 1947, 1.490.959 presos chegaram aos campos e 1.012.967 os deixaram, uma rotatividade enorme que também não é registrada na tabela.[519]

Os prisioneiros deixavam os campos porque morriam, porque fugiam, porque tinham sentenças curtas, porque tinham sido liberados para o Exército Vermelho ou porque passavam a ocupar cargos administrativos. E, como já disse, freqüentemente os velhos, os doentes e as mulheres grávidas eram anistiados - mas a isso se seguiam, invariavelmente, novas ondas de prisão. Essa grande e constante movimentação de prisioneiros significava que os números eram na verdade maiores do que pareciam ser no início: por volta de 1940, 8 milhões de prisioneiros já tinham passado pelos campos.[520] A única contagem completa que eu vi, feita a partir dos dados disponíveis de entrada e de saída e da combinação de várias fontes, estima que 18 milhões de cidadãos soviéticos passaram pelos campos e pelas colônias entre 1929 e 1953. Esses números também condizem com outros fornecidos pelos oficiais da segurança russa durante a década de 1990. De acordo com uma fonte, o próprio Khrutchev dizia que 17 milhões de pessoas haviam passado pelos campos de trabalho forçado entre 1937 e 1953.[521]

Contudo, esses números também são enganosos. Como os leitores já sabem, nem todas as pessoas condenadas ao trabalho forçado na União Soviética cumpriam a sentença num campo de concentração dirigido pelo Gulag. Por isso, os dados acima excluem as muitas centenas de milhares de pessoas que foram condenadas ao "trabalho forçado sem prisão" por infrações no local de trabalho. Além disso, existiam pelo menos três outras categorias de presos destinados ao trabalho forçado: os prisioneiros de guerra, os habitantes dos campos de triagem no pós-guerra e, acima de todos, os "degredados especiais": os kulaks deportados durante a coletivização, os poloneses, os bálticos e outros deportados depois de 1939, e os caucasianos, os tártaros, os alemães do Volga e outras pessoas deportadas durante a guerra.

Os primeiros dois grupos são relativamente fáceis de computar: a partir de várias fontes confiáveis, sabemos que o número de prisioneiros de guerra excedia 4 milhões.[522] Também sabemos que entre 27 de dezembro de 1941 e 1º de outubro de 1944 a NKVD investigou 421.199 detidos nos campos de filtragem, e que em 10 de maio de 1945 mais de 160 mil detidos ainda viviam neles, realizando trabalhos forçados. Em janeiro de 1946, a NKVD aboliu os campos e repatriou mais de 280 mil pessoas para a URSS para uma investigação mais detalhada.[523] Um total de cerca de 700 mil, portanto, parece uma boa suposição.

Os degredados especiais são, de certa forma, difíceis de computar, porque havia muitos grupos enviados a muitos lugares em muitas épocas por muitas razões. Na década de 1920, vários antigos adversários dos bolcheviques - mencheviques, social-revolucionários e outros - foram degredados por decreto administrativo, o que significava que, tecnicamente, não faziam parte do Gulag, mas com certeza tinham de ser punidos. No início da década de 1930, 2,1 milhões de kulaks foram degredados, se bem que um número desconhecido, certamente centenas de milhares, foi enviado não para o Casaquistão ou para a Sibéria, mas para outras regiões de sua província natal ou para terras áridas nos confins das fazendas coletivas: uma vez que muitos devem ter fugido, é difícil saber se foram incluídos na contagem ou não. Muito mais clara é a situação dos grupos nacionais degredados durante a guerra e depois dela para as "aldeias de degredo". Igualmente clara, mas também mais fácil de ser esquecida, é a situação de grupos estranhos corno o de 17 mil "ex-pessoas" expulsas de Leningrado depois do assassinato de Kirov. Havia também os alemães soviéticos que não foram fisicamente deportados, mas cujas aldeias na Sibéria e na Ásia central foram transformadas em "colônias especiais" - o Gulag foi até eles -, além dos bebês nascidos no degredo, que lambem contam como degredados.

Em conseqüência, aqueles que tentaram confrontar os muitos dados publicados sobre cada um desses diferentes grupos chegaram a números diferentes. No Ne po svoei vole, publicado pela Memorial Sociedade em 2001, o historiador Pavel Polyan reuniu os números dos degredados especiais e chegou a 6.015 milhões.[524] Por outro lado, num levantamento em publicações arquivadas, Otto Pohl chegou a mais de 7 milhões de degredados especiais entre 1930 e 1948.[525] Eis a sua contagem de pessoas em "colônias especiais" depois da guerra:

Outubro de 1945........................2.230.500

Outubro de 1946........................2.463.940

Outubro de 1948........................2.104.571

1º de janeiro de 1949..................2.300.223

1º de janeiro de 1953..................2.753.356[526]

Todavia, partindo do princípio de que a contagem menor satisfaria os mais exigentes, decidi ficar com os números de Polyan: 6 milhões de exilados. Somando todos os resultados, o total de pessoas que realizaram trabalhos forçados na URSS chega a 28,7 milhões.

Sei que esse número não deixará todo mundo satisfeito. Alguns dirão que nem todas as pessoas presas ou deportadas contam como "vítimas", uma vez que muitos eram criminosos ou tinham cometido crimes de guerra. E embora seja verdade que milhões desses prisioneiros cumprissem sentenças por crimes comuns, não acredito que a maioria fosse "criminosa" no sentido normal da palavra. Uma mulher que pegou um pouco do que havia sobrado de uma colheita não é uma criminosa, nem um homem que chegou três vezes atrasado ao trabalho, como foi o caso do general russo Alexander Lebed, condenado ao campo exatamente por essa razão. Da mesma forma, um prisioneiro de guerra deliberadamente mantido num campo de trabalho forçado muitos anos depois da guerra também não é um prisioneiro legítimo. No final das contas, o número de criminosos de carreira verdadeiros em qualquer campo era minúsculo - por isso prefiro não mexer nesses números.

Outras pessoas ficarão insatisfeitas com esses números por razões diversas. Enquanto escrevia este livro, muitas vezes me fizeram a mesma pergunta: dos 28,7 milhões de prisioneiros, quantos morreram?

Essa resposta também é complicada. Até hoje não apareceu nenhuma estatística satisfatória para o Gulag ou para o sistema de degredo.[527] Nos próximos anos poderão surgir números mais confiáveis: pelo menos, um ex-oficial do MVD assumiu pessoalmente a tarefa de realizar um levantamento metódico nos arquivos, campo por campo e ano por ano, para tentar compilar números autênticos. Talvez por motivos diferentes, a Memorial Sociedade, que já produziu o primeiro guia confiável sobre os números dos campos, também se incumbiu da tarefa de calcular as vítimas da repressão.

Até que essas compilações apareçam, no entanto, temos de contar com o que temos: o índice de mortalidade no Gulag ano a ano, baseado nos arquivos do Departamento de Registro de Prisioneiros. Esses números parecem excluir as mortes nas prisões e as mortes que ocorreram durante o traslado. Eles foram compilados a partir dos registros totais da NKVD, e não a partir dos registros de cada campo, e não incluem os degredados especiais. Relutantemente, eu os registro aqui:

 

1930.......... 7.980 (4,2%)

 

1935.......31.636(2,75%)

1931.......... 7.283(2,9%)

 

1936.......24.993(2,11%)

1932.......13.197(4,81%)

 

1937......31.056(2,42%)

1933.......67.297(15,3%)

 

1938......108.654(5,35%)

1934....... 25.187 (4,28%)

 

1939..........44.750(3,1%)

 

1940........41.275(2,72%)

 

1947........66.830 (3,59%)

1941........115.484(6,1%)

 

1948........50.659(2,28%)

1942......352.560 (24,9%)

 

1949........29.350(1,21%)

1943......267.826 (22,4%)

 

1950........24.511(0,95%)

1944........114.481 (9,2%)

 

1951........22.466 (0,92%)

1945........81.917(5,95%)

 

1952........20.466(0,92%)

1946..........30.715(2,2%)

 

1953........9.628 (0,67%)[528]

 

Como a estatística oficial dos prisioneiros, esses números mostram alguns padrões que podem ser reconhecidos em outros dados. O crescimento abrupto de 1933, por exemplo, com certeza reflete o impacto da fome que também matou de 6 a 7 milhões de cidadãos soviéticos "livres". O aumento pequeno em 1938 reflete a execução em massa que ocorreu em alguns campos naquele ano. O aumento no índice de mortalidade durante a guerra - quase um quarto dos prisioneiros em 1942 - também corresponde às recordações e às memórias de pessoas que viveram nos campos nesse ano e reflete a grande escassez de alimento que assolou a URSS.

Se - e quando - esses números forem aprimorados, ainda será difícil responder à pergunta "Quantos morreram?". Na verdade, o número de mortes compilado pela direção do Gulag jamais poderá ser considerado totalmente confiável. A cultura de inspeção e censura dos campos significava, entre outras coisas, que seus comandantes tinham o direito de mentir sobre a quantidade de prisioneiros mortos: tanto os arquivos como as memórias indicam que, em muitos campos, era comum a prática de libertar os prisioneiros que estavam prestes a morrer, diminuindo, desse modo, o índice de mortalidade.[529] Embora os degredados se mudassem com menos freqüência e não fossem libertados já perto da morte, a natureza do sistema de degredo - os prisioneiros viviam em aldeias remotas, distantes das autoridades regionais - também não permite que se confie em seu índice de mortes.

No entanto, a pergunta deve ser feita com um pouco mais de cuidado. "Quantos morreram?" é, na verdade, uma pergunta imprecisa no caso da União Soviética, e quem a fizer deve ter em mente o que real-mente deseja saber. Por exemplo, quer saber simplesmente quantas pessoas morreram nos campos do Gulag e nas aldeias de degredo no período stalinista, de 1929 a 1953? Nesse caso, existe um número baseado nos arquivos, embora até mesmo os historiadores que o compilaram ressaltem que ele é incompleto e não cobre todas as categorias de prisioneiros em todos os anos. Mais uma vez, vou citá-lo com relutância: 2.749.163.[530]

Mesmo que fosse completo, esse número ainda não refletiria todas as vítimas do sistema judiciário stalinista. Como disse na introdução, na maioria das vezes a polícia secreta soviética não utilizou os campos para matar as pessoas. Quando queria matar, ela realizava execuções em massa nas florestas; certamente, essas também são vítimas da justiça soviética, e são muitas. Usando os arquivos, um pesquisador menciona o total de 786.098 execuções políticas entre 1934 e 1935.[531] A maioria dos historiadores considera esse número mais ou menos razoável, mas a pressa e o caos que acompanharam as execuções em massa também podem significar que jamais saberemos. Mesmo assim, esse número - que, do meu ponto de vista, é preciso demais para ser confiável - ainda não inclui os que morreram nos trens a caminho dos campos; os que morreram durante os interrogatórios; as pessoas cuja execução não foi considerada tecnicamente "política", mas que foram de qualquer forma executadas sob pretextos artificiais; os mais de 20 mil oficiais poloneses que morreram no massacre de Katyn; e, acima de tudo, as pessoas que morreram poucos dias depois de terem sido libertadas. Se o número que queremos é esse, então ele é muito maior, embora as estimativas possam variar bastante.

Mas nem sempre esses números proporcionam uma resposta para o que as pessoas querem realmente saber. Muitas vezes, quando me perguntam "Quantos morreram?", o que querem saber é quantas pessoas morreram desnecessariamente em conseqüência da Revolução Bolchevique. Ou seja, quantos morreram vítimas do Terror Vermelho e da Guerra Civil, da fome gerada pela política brutal de coletivização, das deportações em massa, das execuções em massa, dos campos da década de 1920, dos campos de 1960 a 1980 - e também dos campos e das execuções em massa do reinado de Stalin. Nesse caso, os números não são apenas muito maiores, mas são de fato uma questão de pura conjectura. Os autores do Livro negro do comunismo falam em 20 milhões de mortes. Outros citam cerca de 10 ou 12 milhões.[532]

Um simples número redondo de vítimas mortas seria extremamente satisfatório, em especial por que nos permitiria comparar Stalin com Hitler ou Mao. Entretanto, mesmo que chegássemos a esse número, acredito que ele também não poderia contar toda a história de sofrimento. Nenhum dado oficial, por exemplo, pode retratar a mortalidade das viúvas, dos filhos e dos pais idosos que ficaram para trás, uma vez que a morte deles não foi computada. Durante a guerra, os idosos morriam de fome sem os cartões de racionamento; se o filho condenado não estivesse extraindo carvão em Vorkuta, eles poderiam ter continuado vivos. As crianças sucumbiam às epidemias de tifo e sarampo nos orfanatos gelados e mal equipados; se as mães não estivessem costurando uniformes em Kengir, elas também poderiam ter sobrevivido.

E nenhum número é capaz de retratar o impacto cumulativo da repressão stalinista na vida e na saúde de todas as famílias. Um homem foi julgado e morto como "inimigo do povo"; a mulher foi levada para um campo de concentração como "membro de uma família inimiga"-os filhos cresceram em orfanatos e se uniram a gangues de criminosos a mãe morreu de desgosto e mágoa; os primos, as tias e os tios romperam relações com a família para que não fossem tidos como "corrompidos". Famílias separadas, amizades desfeitas; o medo pesava muito sobre as pessoas, mesmo quando elas não morriam.

No final, estatística alguma poderá jamais descrever completamente o que aconteceu. Nem os documentos arquivados, nos quais este livro tanto se baseou. Todos os que escreveram sobre o Gulag sabem que isso é verdade - razão pela qual escolhi um desses autores para dar a palavra final sobre "estatística", "arquivos" e "processo".

Em 1990, o escritor Lev Razgon obteve autorização para ver o próprio processo, uma série de documentos que descreviam sua prisão e a prisão de sua primeira mulher, Oksana, como também a de diversos membros da família. Depois de lê-lo, escreveu um pequeno ensaio. Ele faz uma reflexão sobre o conteúdo desse processo; sobre a falta de provas; sobre a natureza absurda das acusações; sobre a tragédia que se abateu sobre a mãe de sua mulher; sobre os motivos estúpidos do seu sogro, o chekista Gleb Boky; sobre a estranha falta de arrependimento das pessoas que os destruíram. Mas o que mais me impressionou em sua experiência de pesquisar os arquivos foi a ambivalência que demonstrou ao terminar a leitura:

Já fazia muito tempo que eu tinha parado de virar as páginas do processo e elas estavam do meu lado havia mais de uma ou duas horas, esfriando com os pensamentos. Meu guarda [o arquivista da KGB] começa a pigarrear sugestivamente e a olhar para o relógio. é hora de ir. Entrego o processo, e ele é negligentemente jogado de novo num saco plástico. Desço as escadas, passo pelos corredores vazios, pelas sentinelas que nem mesmo pedem para ver meus documentos, e chego à praça Lubyanka.

São apenas cinco horas da tarde, mas já está escurecendo, e uma chuva fina e silenciosa cai ininterruptamente. Fico na calçada sem saber o que fazer. Como é horrível não acreditar em Deus e não poder ir a uma igrejinha e ficar lá, acolhido pelo calor das velas, olhando para Cristo na cruz; como é horrível não poder falar e fazer as coisas que tornam a vida do crente mais suportável [...]

Tirei o chapéu e gotas de chuva ou lágrimas rolaram pelo meu rosto. Tenho 82 anos e aqui estou, vivendo tudo outra vez [...] Ouço a voz de Oksana e a de sua mãe [...] Lembro-me delas, de cada uma. E se eu continuei vivo, essa é minha obrigação [...][533]

 

 

 

[1] Sitko, poema sem título, do Tyazhest sveta, p. 11.

[2] Stajner, p.101.

[3] Razgon, p. 210.

[4] E. Ginzberg, Within the Whirlwind, pp. 26-42.

[5] Warwick, memórias inéditas.

[6] GARF, 9414/1/68; Imetsilupomnit, p.166.

[7] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 28.

[8] Gogua, memórias inéditas.

[9] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.

[10] Adamova-Sliozberg, p. 63.

[11] GARF, 9401/1a/107.

[12] Herling-Grudzinski, p.197.

[13] Kokurin e Morukov, "Gulag: struktura i kadry", Svobodnaya Mysl, nº 7; Kokurin e Petrov, Gulag, p. 441.

[14] Bacon, p. 149.

[15] Ibid., p. 148.

[16] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 94.

[17] GARF, 7523/4/37, 39, e 38.

[18] L. Ginzburg, p.14; Overy, pp. 104-8.

[19] GARF, 9401/2/95 94, e 168.

[20] Overy, p. 77.

[21] Brodsky, p. 285.

[22] Isto me foi contado nas ilhas por pelo menos três pessoas, inclusive o diretor do Museu Solovetsky.

[23] Makurov, p.195.

[24] Gurjanow, Kokurin, e Popifiski, pp. 8-10. Drogi Smierci, publicado pelo Instituto Karta, consiste de uma coleção de documentos dos arquivos soviéticos, junto principalmente com memórias inéditas do Karta's Archiwum Wschodnie ("Eastern Archive"), referentes ao destino dos prisioneiros na Polônia oriental durante os primeiros dias da guerra.

[25] Bacon, p. 91; Gurjanow, Kokurin, e Popinski, pp. 10-26.

[26] Gurjanow, Kokurin, e Popinski, pp. 10-26.

[27] GARF, 9414/1/68.

[28] Gurjanow, Kokurin, e Popinski, p. 40.

[29] Ibid., pp. 90-91.

[30] Sabbo,pp. 1128-32.

[31] Bacon, pp. 88-89.

[32] M. Shteinberg, "Etap vo vremya voiny", in PamyatKolymy, 1978, p.167.

[33] Gurjanow, Kokurin, e Popinski, p. 90.

[34] GARF, 9414/1/68.

[35] M. Shteinberg, "Étap vo vremya voiny", in Pamyat Kolymy,,1978, pp. 167-71.

[36] GARF, 9414/1/68.

[37] Bacon, p. 91.

[38] Em Taylor-Terlecka, pp. 56-57. Traduzido com a ajuda de Piotr Paszkowski.

[39] Razgon, p.138.

[40] Ibid.

[41] Glowacki, p. 273.

[42] Sabbo, p. 754.

[43] Sword, p.13.

[44] Gurjanow, pp. 4-9.

[45] Martin, "Stalinist Forced Relocation Policies", pp. 305-39.

[46] Lieven, The Baltic Revolution, p. 82.

[47] Glowacki, p. 331.

[48] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 123; Glowacki, p. 331.

[49] GARF, 5446/57/65.

[50] RGVA, 40/1/71/323.

[51] Ptasnik.

[52] Sabbo, pp. 800-9.

[53] Gross e Grudzinska-Gross, p. 77.

[54] Ibid., p. 68.

[55] Ibid., p.146.

[56] Ibid., pp. 80-81.

[57] Ibid., p. XVI.

[58] Conquest, The Soviet Deportation of Nationalities, pp. 49-50.

[59] Martin, "Stalinist Forced Relocation Policies".

[60] Conquest, The Soviet Deportation of Nationalities, pp. 3-5.

[61] Lieven, The Baltic Revolution, pp. 318-19.

[62] Naimark, Fires ofllatred, p. 95.

[63] Pohl, "The Deportation and Fate of the Crimean Tartars"; Naimark, ibid., pp. 99-107.

[64] Naimark, ibid., pp. 98-101.

[65] Martin, "Stalinist Forced Relocation Policies".

[66] Pohl, "The Deportation and Fate of the Crimean Tartars", pp. 11-17.

[67] Lieven, Chechnya, p. 319; Naimark, Fires of Hatred, p. 97.

[68] Lieven, ibid., p. 320.

[69] Pohl, "The Deportation and Fate of the Crimean Tartars", pp. 17-19; Lieven, ibid., pp. 319-21.

[70] Lieven, ibid., pp. 318-30; Naimark, Fires of Hatred, pp. 83-107.

[71] Zagorulko (uma grande coleção de documentos procedentes de vários arquivos, publicada sob os auspícios do Serviço de Arquivo Federal, GARF, TsKhIDK, e Universidade de Volgograd, com financiamento da Fundação Soros).

[72] Overy, p. 52.

[73] Sword, p. 5.

[74] Pikoya,Katyn, p. 36.

[75] Ver Czapski, o qual descreve os esforços do governo polonês para encontrar os funcionários.

[76] Sword, pp. 2-5.

[77] Beevor, pp. 409-10.

[78] Ibid., p. 411.

[79] Zagorulko, pp. 31 e 333.

[80] Ibid., pp. 25-33.

[81] S. I. Kuznetsov, pp. 618-19.

[82] Os dados são de Overy, p. 297, e procedem de um documento soviético de 1956. Outro documento soviético de 1949, republicado em Zagorulko, pp. 331-33, contém números similares (2.079.000 alemães, 1.220.000 não-alemães, 590 mil japoneses, e 570 mil mortos).

[83] Gustav Menczer, chefe da Sociedade Húngara de Sobreviventes do Gulag, conversação com a autora, fevereiro de 2002.

[84] Bien, memórias inéditas.

[85] Knight, "The Truth aboutWallenberg".

[86] Erzej Paczkowski, "Pole, the Enemy Nation", em Courtois, pp. 372-75.

[87] "Kuzina Gitlera", Nóvaya Izvestiya, 3 de abril, 1998, p. 7.

[88] Noble.

[89] Zagorulko, p. 131.

[90] Ibid., p. 333. Houve cerca de 20 mil POWs (prisioneiros de guerra) no Gulag.

[91] Ibid., pp. 1042 e 604-9.

[92] Ibid., pp. 667-68.

[93] Ibid., p. 38.

[94] Naimark, Tke Russians in Germany, p. 43.

[95] Zagorulko, pp. 40 e 54-58.

[96] Vostochnaya Europa, p. 270.

[97] Ibid., pp. 370 e 419-22.

[98] GARF, 9401/2/497.

[99] Zagorulko, pp. 40 e 54-58. A maior parte dos POWs foi libertada no início dos anos 1950, embora 20 mil continuassem na URSS por ocasião da morte de Stalin.

[100] Sitko, Tyazhestsveta, p. 10.

[101] Bethell, p.17.

[102] Ibid.

[103] Ibid., pp. 103-65.

[104] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 43.

[105] Pohl, The Stalinist Penal System, p. 51.

[106] Pohl, ibid., pp. 50-52.

[107] GARF, 7523/4/164.

[108] GARF, 9401/1a/135.

[109] GARF, 9414/1/76.

[110] GARF, 9401/1a/135; 9401/1/76; e 9401/1a/136.

[111] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 43.

[112] Kruglov, pp. 66, 256, e 265.

[113] Vilensky, entrevista com a autora.

[114] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 43.

[115] GARF, 9414/1/76.

[116] Descrito em Joffe, pp. 199-200.

[117] Klein, Ulybkinevoli, pp. 396-403.

[118] HavaVolovich, "My Past", em Vilensky, Till My Tale Is Told, p. 259.

[119] Wallace, p.137.

[120] Ibid., p. 117.

[121] GARF, 9401/2/65; Sgovio, p. 251; Wallace, pp. 33-41.

[122] Wallace, pp. 33-41; e Sgovio, p. 251.

[123] Vera Ustieva, "Podarok dlya vitse-prezidenta", em Vilensky, Osventsim pp. 98-106.

[124] Wallace, pp. 127-28.

[125] Sgovio, p. 245.

[126] Wallace, pp. 33-41.

[127] Sgovio, p. 252.

[128] Wallace, p. 205.

[129] Em Taylor-Terlecka, p.144. Traduzido com a ajuda de Piotr Paszkowski.

[130] GARF, 9414/1/68; Zemskov, "Sudba Kulatskoi ssylki", pp. 129-42; Martin, "Stalinist Forced Relocation Policies".

[131] GARF, 9401/1/743.

[132] Bacon, p. 112.

[133] O número de prisoneiros em campos florestais caiu de 338.500 em 1941 para 122.960 em 1944. Okhotin e Raginskii, p.112.

[134] Sgovio, p. 242.

[135] Gorbatov, pp. 150-51.

[136] Comissão sobre o Judiciário (Testemunho de Avraham Shifrin).

[137] Gorbatov, pp. 169, 174-75, e 194.

[138] GARF, 7523/64/687 e 8-15.

[139] Ver, por exemplo, Overy, pp. 79-80.

[140] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 30.

[141] GARF, 9414/1/1146.

[142] Mindlin, p. 61.

[143] GARF, 9414/4/145.

[144] Bacon, pp. 135-37,140-41, e 144.

[145] GARF, 9414/1/68.

[146] Sword, pp. 30-36.

[147] Ibid., p. 48.

[148] Herling, p. 190.

[149] Karta, Antlers Army Collection, V/AC/127.

[150] Karta, Coleção Kazimierz Zamorski, Pasta 1, Arquivo 15885 e Pasta 1, Arquivo 15882.

[151] Herling, p. 228.

[152] Waydenfeld, pp. 195-334.

[153] Zarod, p. 234.

[154] Janusz Wedów, "Powitanie Wodza", em Taylor-Terlecka, p.145.

[155] Czapski, p. 243.

[156] Sword, pp. 60-87.

[157] Slave Labor in Rússia, p. 31.

[158] Djilas,p. 114,

[159] Kotek e Rigoulot, p. 527.

[160] Ibid., pp. 549 e 542.

[161] Ibid., pp. 539-43 e 548-56.

[162] Ibid., pp. 543-44.

[163] Ibid., pp. 544-48; também Erzej Paczkowski, "Pole, the Enemy Nation", em Courtois, pp. 363-93.

[164] Kotek e Rigoulot, pp. 565-72.

[165] Todorov, Voices from the Gulag, p. 124.

[166] Ibid., pp. 123-28.

[167] Kotek e Rigoulot, p. 559.

[168] Naimark, TheRussians in Germany, pp. 376-97.

[169] Todorov, Voices from the Gulag, pp. 39-40.

[170] Saunders, pp. 1-11; Kotek e Rigoulot, pp. 619-48.

[171] Ogawa e Yoon, p.15.

[172] Ibid., p. 3.

[173] Alia Startseva e Valerya Korchagina, "Pyongyang Pays Rússia with Free Labor". Moscow Times, 6 de agosto, 2001, p.1.

[174] De Sred drugikh imen, p. 64.

[175] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 279.

[176] Ver Elena Zubkova, Rússia After the War.

[177] Service, A History of Tventieth-Century Russia, p. 299.

[178] GARF, 9401/1/743 e 9401/2/104.

[179] Kokurin e Petrov, Gulag, p. 540.

[180] Ivanova,Labor Camp Socialism, pp. 95-96.

[181] Service, A History of Twentieth-Century Russia,p. 299; Ivanova,"Poslevoennye repressii".

[182] Erew e Gordievsky, p. 341.

[183] Ivanova, "Poslevoennye repressii", p. 256.

[184] Ivanova, Labor Camp Socialism, pp. 48-53.

[185] Operation WRINGER, HQ USAF Record Group 341, Caixa 1044, Air intelligence Report 59B-B-5865-B. Registros desta operação de decodificação são conservados no Arquivo Nacional, Washington, D.C. Sou grata ao major Tim Falkowski por chamar minha atenção para esta história. A U.S. Air Force considera esta história plausível, mas ainda não a confirmou como certa.

[186] Nikolai Morozov contou-me este episódio. O Memorial Komi entrevistou os habitantes de Sedvozh, buscando evidência oral, mas encontrou apenas um homem que ouviu toda a história. Segundo ele, Lyuba Vinogradova encontrou referência aos escoceses na RGVA, mas faltava o próprio documento. A RGVA não se mostrou disposta a fornecer maiores informações.

[187] Bacon, p. 24.

[188] Nicolas Werth, "Apogee and Crisis in the Gulag System", em Courtois, pp. 235-39.

[189] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 55-56.

[190] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 283.

[191] Ibid., pp. 290-91.

[192] Ibid.; p. 291.

[193] Adamova-Sliozberg, p. 71.

[194] Razgon, p. 220.

[195] Ivanova, Labor Camp Socialism, pp. 55-56.

[196] Ibid., p. 56.

[197] Kokurin e Morukov, "Gulag: struktura i kadiy", (parte 14), Svobodnaya Mysl, nº 11, novembro de 2000.

[198] Kuts, p.195.

[199] Bulgakov, entrevista com a autora.

[200] Kuts, p. 165.

[201] Pechora, entrevista com a autora.

[202] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 61.

[203] Kokurin e Petrov, Gulag, pp. 555-57; Kokurin, "Vosstanie v Steplage".

[204] Kokurin, "Vosstanie v Steplage"; Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 55.

[205] Abramkin e Chesnokova, p. 10.

[206] GARF, 9401/1a/270.

[207] E. Ginzburg, Within che Whirlwind, p.103.

[208] Abramkin e Chesnokova, pp. 10-11.

[209] Zhigulin, pp. 135-37.

[210] Buca, pp. 59-61.

[211] Georgii Feldgun, memórias inéditas.

[212] Sitko, entrevista com a autora.

[213] Zhigulin, pp. 135-37.

[214] GARF, 9401/1/4240.

[215] Ver, por exemplo, Ilya Golts, "Vorkuta", emMinuvshee, vol. 7, 1992, pp. 317-55.

[216] Craven e Khlevnyuk.

[217] Ivanova, "Poslevoennye repressii".

[218] Kokurin e Morukov.

[219] Craveni e Khlevnyuk, p. 186.

[220] Ivanova, Labor Camp Socialism, p.125.

[221] Ivanova, "Poslevoennye repressii", p. 272.

[222] Cravem e Khlevnyuk, p.183.

[223] Craven.

[224] Nicolas Werth, "Apogee and Crisis in the Gulag System", em Courtois, pp. 239-40.

[225] Craveni e Khlevnyuk, p.183.

[226] Ivanova, Labor Camp Socialism, p.125.

[227] Ver, por exemplo, Klein, Ulybki nevoli, p. 61.

[228] Berdinskikh, p. 56.

[229] Craveni e Khlevnyuk, p. 185.

[230] Ibid., p. 186.

[231] Knight, Beria, pp. 160-69.

[232] Naumov e Rubinstein, pp. 61-62.

[233] Ibid., p. 62.

[234] Adamova-Sliozberg, p. 79.

[235] Filshtinskii, p. 114.

[236] Citado em Conquest, Stalin, p. 312.

[237] Alekserovich, p. 57.

[238] Ulyanovskaya, p. 280.

[239] Ereevna, entrevista com a autora.

[240] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 357.

[241] Negretov, entrevista com a autora.

[242] Stajner, p. 358.

[243] Berdinskikh, p. 204.

[244] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 360.

[245] Alekserovich, p. 57.

[246] Adamova-Sliozberg, p. 80.

[247] Roeder, p. 195.

[248] Vasileevna, entrevista com a autora.

[249] Khrushchev, vol. I, pp. 322-23.

[250] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 357.

[251] Knight, Beria, p. 185.

[252] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 124.

[253] Naumov e Sigachev, pp. 19-21 (APRF, 3152/100).

[254] Knight, Beria, p. 185.

[255] Ibid.

[256] Naumov e Sigachev, pp. 28-29 (GARE, 9401/1/1299).

[257] Knight, Beria, pp. 188-44.

[258] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 124.

[259] Para análises dos motives de Beria, vide Khlevnyuk, "L. P. Beriya"; Pikhoya, Sovetskii Soyuz, p, xxx; Knight, Beria, pp. 176-200.

[260] Knight, ibid., pp. 194-224.

[261] Dolgun, p. 261.

[262] Alexerovich, p. 57.

[263] Zorin, entrevista com a autora.

[264] Filshtinskii, entrevista com a autora.

[265] Armonas, pp. 153-60.

[266] Pechora, entrevista com a autora.

[267] Trus, entrevista com a autora.

[268] 33. Usakova, entrevista com a autora. 34. Zorin, entrevista com a autora. 35. Khachatryan, entrevista com a autora.

[269] GARF, documento, ordem de 3 de setembro de 1955, da coleção da autora.

[270] Bulgakov, entrevista com a autora; Ilya Golts, "Vorkuta". mMinuvshee, vol. 7,1992, p. 334.

[271] Anna Barkova, "In the Prison Camp Barracks" [Nos Alojamentos dos Campos de Prisioneiros], citado em Vilensky, Dodnes lyagoteet, p.341.

[272] Vide, por exemplo, E. Ginzburg, Within the Whirlwind, pp. 359-63; Dolgun, pp. 261-62; Hoover, Coleção Adam Galinski.

[273] Panin, p. 306.

[274] Ilya Golts, "Vorkuta", em Minuvshee, vol. 7, 1992, p. 334.

[275] Para uma descrição das atitudes da resistência ucraniana em relação a informantes ver Burds.

[276] Panin,-pp. 308-10.

[277] Sitko, Gdemoiveter?, pp. 181-90.

[278] Craven, p. 323,

[279] Kosyk, p. 56.

[280] GARF, 9413/1/159.

[281] N. A. Morozov, Osobye lagerya MVD SSSR, pp. 23-24.

[282] N. A. Morozov, ibid., pp. 24-25; Noble, p.143.

[283] Noble, p.143

[284] GARF, 9413/1/160.

[285] GARF, 9413/1/160; N. A. Morozov, Osobye lagerya MVD SSSR, p. 27.

[286] Noble, p. 144.

[287] GARF, 9413/1/160.

[288] Buca. Buca estava mesmo presente: aspectos de sua narrativa correspondem aos relatos oficiais. O que poho em dúvida é seu papel como liderança.

[289] Kosyk, pp. 61 e 56-65.

[290] Vilensky,. entrevista com a autora.

[291] Bulgakov, entrevista com a autora.

[292] Kuts, p.198.

[293] GARF, 9413/1/160.

[294] Ibid.

[295] Hoover, Coleção Adam Galinski.

[296] Buca, pp. 271 e 272.

[297] Noble, p.162.

[298] Berdinskikh, pp. 239-40.

[299] "Materialy soveshchaniya rukovodyashchikh rabotnikov ITL i kolonii MVD SSSR, 27 Sent-1 Okt 1954", na coleção do Memorial.

[300] Morozov e Rogachev.

[301] GARF, 9401/1/4240.

[302] GARF, 9413/1/160 e 159.

[303] Este relato da revolta de Kengir foi construído pela comparação e síntese de várias fontes. Uma coleção de documentos arquivados relativos a este levante foi compilada e anotada por Alekser Kokurin ("Vosstanie v Steplage"). A historiadora italiana Marta Craven escreveu o relato mais confiável do levante até agora, usando estes e outros documentos, bem como entrevistas com os participantes (Craven, "Krizis Gulags". p. 324). Um relato mais irregular do levante também foi constituído usando fontes da oposição ucraniana, em Volodymyr Kosyk, Concentration Camps in the USSR. Também utilizei vários relatos escritos do levante, notadamente os de Lyubov Bershadskaya's Rastoptannje zhizni, pp. 86-97, e N. L. Kekushev's Zveriada, pp. 130-43, bem como dos documentos e memórias publicados no periódico Volga (2-3), 1994, pp. 307-70. Entrevistei Irena Arginskaya, que também esteve em Steplag durante o levante. O relato de Soljenitsin, também realizado a partir de entrevistas com os participantes, aparece em The GulagArchipelago, vol. III, pp. 285-331 . Se não especificamente anotado, todas as descrições de eventos basearam-se nessas fontes. Adotei a cronologia usada por Craven.

[304] Esta é uma observação de Marta Craven.

[305] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. III, p. 209.

[306] Volga (2-3), 1994, p. 309.

[307] Bershadskaya, p. 87.

[308] Ibid., pp. 95-97.

[309] Erei Voznesensky, "Children of the Cult", reproduzido em Cohen, p.184.

[310] Craveni e Khlevnyuk, p.187.

[311] Negretov, entrevista com a autora.

[312] "Materialy soveshchaniya rukovodyashcbikh rabotnikov ITL i kolonii MVD SSSR, 27 Sent-1 Okt.1954", na coleção da Sociedade Memorial. Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 66; Okhotin e Roginskii, pp. 58-59; Kovalchuk-Koval, p. 299; Filshtinskii, entrevista com a autora.

[313] Smirnova, entrevista com a autora.

[314] GARF, 9401/2/450.

[315] GARF, 9401/2/450.

[316] Khrushchev, p. 559.

[317] Ibid., pp. 559-618.

[318] Ibid., p. 351

[319] K. Smith,pp. 131-74.

[320] GARF, 9401/2/479.

[321] GARF, 9401/2/479; Craven, p. 337; Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 67.

[322] Ivanova, ibid., pp. 67-68; Craven e Khlevnyuk, p.189.

[323] Ivanova, ibid.; Craven e Khlevnyuk, pp. 188-89.

[324] Ereev-Khomiakov, pp. 3-4.

[325] Kusurgashev, p. 70.

[326] Vera Korneeva, citada em Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. III, p. 454.

[327] Zorin, entrevista com a autora.

[328] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 211.

[329] Korol, p.189.

[330] GARF, 9489/2/20.

[331] Éfron, Miroedikha, pp. 127-28.

[332] Usakova, entrevista com a autora.

[333] S. S. Torbin, Vospominaniya, Memorial Archive, 2/2/91; Korol, p.190.

[334] GARF, 9414/3/40.

[335] Ilya Golts, "Vorkuta", em Mínuvshee, vol. 7, 1992, pp. 352-55.

[336] Sgovio, p. 283.

[337] A. Morozov, pp. 381-82.

[338] Hoover, Conjunto 89,18/38.

[339] Bulgakov, entrevista com a autora.

[340] Antonov-Ovseenko, The Time of Stalin, p. 336.

[341] K. Smith, p.133.

[342] Cohen, p. 36.

[343] K. Smith, p.135; Hochschild, pp. 222-23.

[344] K. Smith, p.138.

[345] Adamova-Sliozberg, pp. 84-86.

[346] Rotfort, p. 92.

[347] Herling, p. 236.

[348] Ereevna, entrevista com a autora.

[349] Soljenitsin, Cancer Ward, p. 202.

[350] Cohen, p. 115.

[351] Antonov-Ovseenko, The Time of Stalin, pp. 332-36.

[352] Cohen, p. 26.

[353] Antonov-Ovseenko, The Time of Stalin, pp. 332-36.

[354] Cohen, p.135.

[355] Razgon, p. 50.

[356] Yurii Dombrovskii, p. 77. Traduzido com a ajuda de Galya Vinogradova.

[357] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. III, p. 455.

[358] Korolev, entrevista com a autora.

[359] Pechora, entrevista com a autora.

[360] Aksyonov, p. 382.

[361] Citado em Adler, p. 141.

[362] Vilensky, Deti Gulags, p. 460.

[363] Adler, p.145.

[364] Olga Adamova-Sliozberg, "My Journey", em Vilensky, Till My Tale Is Told, p. 70.

[365] Adler, p. xx.

[366] Merridale, p. 418.

[367] Cohen, p. 38.

[368] Rothberg, pp. 12-40.

[369] O mais completo relato da vida de Soljenitsin é o da biografia escrita por Michael Scammell, Soljenitsin. Exceto quando houver anotação em contrário, todas as informações biográficas a seu respeito dali procedem.

[370] Scammell, Soljenitsin, p. 415.

[371] Ibid., pp. 423-24.

[372] Ibid., pp. 448-49.

[373] Ibid., p. 485.

[374] Sitko, Gde moi veter?, p. 318.

[375] Rothberg, p. 62.

[376] Dyakov, pp. 60-67.

[377] Reproduzido em Cohen, p.183.

[378] Sobolev, p. 68.

[379] Prisoners of Conscience in the USSR, pp. 48-53.

[380] Comissão sobre o Judiciário (Testemunho de Avraham Shifter).

[381] GARF, 9410/2/497

[382] Comissão sobre o Judiciário (Testemunho de Avraham Shifter).

[383] R. Medvedev, p. ix.

[384] Sobranie dokumentov samizdata, AS 143. (Esta é uma coleção de documentos samizdat reunidos por RFE-RL a partir de 1965. Os documentos não foram "publicados" mas, pelo contrário, fotocopiados, encadernados, numerados e colocados em umas poucas bibliotecas.)

[385] Prisoners of Conscience in the USSR, pp. 18-23.

[386] Sobranie dokumentov samizdata, AS 127.

[387] Prisoners of Conscience in the USSR, pp. 18-23.

[388] Reddaway, Uncensored Russia, p. 11.

[389] Joseph Rrodsky, pp. 26-27.

[390] Rothberg, pp. 127-33.

[391] Hoover, Coleção Josef Brodsky, Transcrito do Julgamento de Brodsky.

[392] Ibid.

[393] Browne, p. 3.

[394] Cohen, p. 42; Reddaway, Uncensored Russia, p.19.

[395] Hopkins, pp. 1-14.

[396] Prisoners of Conscience in the USSR, p. 21.

[397] Browne, p. 9.

[398] Litvinov, The Trial of the Four, pp. 5-11.

[399] Browne, p.13.

[400] Trinta anos depois, Chornovil, então uma figura proeminente no movimento pela independência ucraniana, tornou-se o primeiro embaixador no Canadá da Ucrânia independente. Antes que ele partisse, eu o entrevistei em Lvov, em 1990.

[401] Reddaway, Uncensored Russia, pp. 95-111.

[402] Ibid., p.19.

[403] Info-Runs, #0044 (ver Arquivos em Bibliografia). Foi aqui que Vladimir Bukovsky colocou os documentos que obteve enquanto realizava pesquisa para o julgamento do Partido Comunista, descrito posteriormente neste livro. Os documentos mais tarde se tornaram assunto de seu livro de 1996, Moskovskii protsess, publicado em francês e em russo. Alguns estão também arquivados em Hoover, Conjunto 89.

[404] Reddaway, Uncensored Russia, p. 24.

[405] Ibid., pp. 1-47; também Chronicle of Current Events.

[406] Hopkins, p. 122.

[407] Ratushinskaya, p. 67.

[408] Marchenko, My Testimony, p.17.

[409] Ibid., pp. 220-27.

[410] Sitko, entrevista com a autora.

[411] Ratushinskaya, pp. 60-62.

[412] Víktor Shmirov, conversa com a autora, 31 de março de 1998.

[413] Fedorov, entrevista com a autora.

[414] Marchenko, My Testimony, p. 349.

[415] Fedorov, entrevista com a autora.

[416] Ratushinskaya, pp. 174-75.

[417] Fedorov, entrevista com a autora.

[418] Marchenko, My Testimony, p. 68.

[419] E. Kuznetsov, p.169.

[420] Chronicle of Current Events, nº. 32, July 17,1974.

[421] Bukovsky, To Builda Castle, p. 45.

[422] Marchenko, MyTestimony, pp. 90-91; E. Kuznetsov, pp. 165-66.

[423] Chronicle of Current Events, nu 6, fevereiro 1969, citado em Reddaway, Uncensored Russia, p. 207.

[424] Chronicle of Current Events, ibid., citado em Reddaway, ibid., pp. 20-216.

[425] Marchenko, My Testimony, p. 69.

[426] Sharansky, p. 236.

[427] Marchenko, My Testimony, p. 115; Tokes, p. 84.

[428] Sharansky, p. 235; Ratushinskaya, pp. 165-78.

[429] Sobranie dokumentov samizdata, AS 2598.

[430] Daniel, p. 35.

[431] Marchenko, My Testimony, pp. 65-69.

[432] Sobranie dokumentov samizdata, AS 2598.

[433] Chronicle of Current Events, nº 32, julho 1974.

[434] Litvinov, The Trial of the Four, p. 17.

[435] Reddaway e Bloch, p. 305; Yakir.

[436] Chronicle of Current Events, nº 28, dezembro 1972.

[437] Comissão Européia de Segurança e Cooperação (Testemunho de Alexandr Shatravka e dr. Anatoly Koryagin).

[438] Chronicle of Current Events, nº 33, dezembro 1974.

[439] Viktor Shmirov, entrevista com a autora, 31 de março, 1998.

[440] Sobranie dokumentov samizdata, AS 3115.

[441] Bukovsky forneceu um relato de sua experiência em uma entrevista coletiva em Varsóvia em 1998. O texto está no site Info-Russ (ver Arquivos na Bibliografia).

[442] Bukovsky, Moskovskiiprotsess, pp. 144-61.

[443] Reddaway e Bloch, pp. 48-49; Seton-Watson, pp. 257-58.

[444] Bukovksy, To Build a Castle, p. 357.

[445] Reddaway e Bloch, pp. 176, 140, e 107.

[446] Info-Russ, #0202.

[447] Reddaway e Bloch, p. 226.

[448] Nekipelov, p. 132.

[449] Reddaway e Bloch, pp. 220-21; Nekipelov, p. 132.

[450] Prisoners of Conscience in the USSR, p. 190; fotografia da p. 194.

[451] Reddaway e Bloch, p. 214.

[452] Prisoners of Conscience in the USSR, pp. 197-98.

[453] "Three Voices of Dissent", Survey, nº 77 (outono de 1970).

[454] Nekipelov, p. 115.

[455] Reddaway e Bloch, p. 348.

[456] Ibid., pp. 79-96.

[457] Ibid., pp. 178-80.

[458] Info-Russ, #0204.

[459] Ibid.

[460] Reeditado em Reavey, pp. 8-9.

[461] Beichman e Bernstam, pp. 145-89.

[462] Prisoners of Conscience in the USSR, pp. 20 e 119; Alekseeva.

[463] Beichman e Bernstam, p. 182.

[464] Reagan, pp. 675-79.

[465] Berdzenishvili, entrevista com a autora.

[466] Ibid.

[467] Bukovsky, To Build a Castle, p. 408.

[468] Ibid.

[469] Berdzenishvili, entrevista com a autora.

[470] Ratushinskaya, p. 236.

[471] Walker, p. 142.

[472] Reddaway, "Dissent in the Soviet Union".

[473] Gorbachev, p. 24.

[474] Remnick, p. 50.

[475] Ibid., pp. 264-68.

[476] K. Smith, pp. 131-74; Remnick, p. 68.

[477] Remnick, pp. 101-19; K. Smith, pp. 131-74.

[478] USSR: Híiman Rights in a Time of Change.

[479] "Lata Dissidentow", Karta, n.º 16, 1995.

[480] "On the Death of Prisoner of Conscience Anatoly Marchenko", Press Release da Anistia Internacional, maio de 1987 (ML).

[481] Ibid.

[482] O fechamento dos campos não aparece, por exemplo, em The Waking Giant, de Walker; Autopsy on an Empire, de Matlock; The Gorbachev Factor, de Brown; nem em Why Gorbachev Happened, de Kaiser. Lenins Tomb, de Remnick é uma exceção importante, que inclui um capítulo sobre os últimos prisioneiros do Perm-35.

[483] Paul Hofheinz, correspondente em Moscou, entrevista com a autora, 13, fevereiro, 2002.

[484] Matlock, p. 275.

[485] Remnick, p. 270.

[486] Walker, p. 147.

[487] Info-Russ, #0128.

[488] Ibid., #1404.

[489] Ibid., #0130.

[490] USSR: Human Rights in a Time of Change.

[491] The Recent Release of Prisoners in the USSR, Press Release da Anistia Internacional, abril de 1987 (ML).

[492] Ibid.

[493] Serviço Semanal da Anistia Internacional, 8 de abril, 1987 (ML).

[494] Berdzenishvili, entrevista com a autora.

[495] Boletim da Anistia Internacional, junho, 1988, vol. XVIII, n" 6 (ML).

[496] "Four Long-Term Prisoners Still Awaiting a Review", Press Release da Anistia Internacional, abril, 1990; também Boletim da Anistia Internacional, outubro, 1990, vol. XX, n" 10 (ML); Klymchak foi solto no final do ano.

[497] Matlock, p. 287.

[498] "Russian Federation: Overview of Recent Legal Changes", Press Release da Anistia Internacional, setembro,1993 (ML).

[499] Matlock, p. 295

[500] Citado em Cohen, p. 186.

[501] Razgon, TrueStories, p. 27.

[502] K. Smith, pp. 153-59.

[503] AleksandrYakovlev, membro da Comissão Presidencial para a Reabilitação das Vítimas de Repressão Política da Rússia, entrevista com a autora, 25 de fevereiro, 2002.

[504] Merridale, pp. 407-8.

[505] Gessen.

[506] Aleksandr Yakovlev, entrevista com a autora, 25 de fevereiro, 2002.

[507] Descrevi este incidente em "Secret Agent Man", The Weekly Standard, 10 de abril, 2000.

[508] Cerca de 130 esqueletos foram descobertos numa cela de um monastério da Ucrânia ocidental em julho de 2002, por exemplo. Moscow Times, 18 de julho, 2002.

[509] Applebaum, "Secret Agent Man", The Weekly Standard, 10 de abril, 2000.

[510] Olga Adamova-Sliozberg, "My Journey", in Vilensky, Till My Tale Is To/d, p. 16.

[511] Andrew Alexander, "The Soviet ThreatWas Bogus", The Spectator, 20 de abril, 2002. 12.Vidal.

[512] Vidal.

[513] Bacon, pp. 8-9.

[514] Conquest, The Great Terror, p. 485.

[515] Getty, p. 8.

[516] Zemskov, "Arkhipelag Gulag", pp. 6-7; Getty, Ritterspoon, e Zemskov, Apêndice A e B, pp. 1048-49.

[517] Getty, Ritterspoon, e Zemskov, p. 1047.

[518] Bacon, p. I 12.

[519] Pohl, The Stalinist Penal System, p. 17.

[520] Pohl, ibid., p. 15; Zemskov, "Gulag", p. 17.

[521] A melhor síntese até hoje do debate sobre as revelações estatísticas do pós-1991 pode ser encontrada em Bacon, pp. 6-41 e 101-22: os 18 milhões de sua estimativa se baseiam em taxas de rotatividade e em estatísticas disponíveis. Para registro, Dugin afirma que 11,8 milhões de pessoas foram presas entre 1930 e 1953, mas acho difícil conciliar este número com os 8 milhões que se sabe terem sido presos por volta de 1940, em especial diante do grande número de pessoas presas e soltas durante a Segunda Guerra Mundial (Dugin, "Stalinizm, Legendy i Fakty").

[522] Overy, p. 297; Zagorulko, pp. 331-33.

[523] Pohl, The Stalinist Penal System, pp. 50-52; Zemskov, "Gulag", pp. 4-6.

[524] Polyan, p. 239.

[525] Pohl, The Stalinist Penal System, p. 5.

[526] Pohl, ibid., p. 133.

[527] Embora alguns tenham sido publicados. Ver Getty, Ritterspoon, e Zemskov, pp. 1048-49.

[528] GARF, 9414/1/OURZ. Estas estimativas foram compiladas por Aleksandr Kokurin.

[529] Berdinskikh, p. 28.

[530] Pohl, The Stalinist Penal System, p. 131.

[531] Getty, Ritterspoon, e Zemskov, p. 1024.

[532] Courtois, p. 4.

[533] Razgon, pp. 290-91.

 

                                                                               Anne Applebaum 

 

 

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