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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HÁ SEMPRE UM AMANHÃ - P.2 / Pearl S. Buck
HÁ SEMPRE UM AMANHÃ - P.2 / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                  

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

HÁ SEMPRE UM AMANHÃ

Segunda Parte

 

Talvez, pensou para consigo, depois, fosse por já me sentir magoada que achei Mrs. Bradley fria, quando entrou na loja, passado um bocado. Mas que importava que Mrs. Bradley se mostrasse fria ou não? Que importava que Mrs. Bradley se limitasse a inclinar a cabeça na sua direcção, sem um sorriso, sequer? Talvez alguém lhe tivesse dito, passado tanto tempo, que Martin e ela tinham. Mrs. Bradley detestava sempre qualquer rapariga de quem o filho gostasse, o que era motivo de risos e chacotas. Mas depois chegou Netta e essa não se mostrou fria. Pelo contrário, pareceu excessívamente cordial e penalizada. Netta acenou-lhe e, a seguir, aproximou-se e segredou-lhe:

-Quero que saibas que estarei sempre do teu lado!

- Que queres dizer, Netta? - perguntou-lhe, em voz alta, pois o instinto mandava-a sempre responder em voz muito alta aos segredinhos da outra.

Mas Netta voltou-se, toda sorrisos, para Mrs. Bradley, que estava a ouvir.

-Oh, Mrs. Bradley, acho que o Martin tocou maravilhosamente, no domingo! É tão generoso da sua parte continuar a tocar nesta velha aldeola, quando todos nós sabemos que ele podia. Ainda ontem à noite disse ao Ned. - Afastou-se com Mrs. Bradley, a rir lisonjeiramente. - E o Ned disse. - Olhou para Ned, que continuava no seu canto, e acenou-lhe. - Lá está ele, a chamar-me.

- Ora vejamos. - dizia Mr. Winters, que argumentava, pacientemente, com as mulheres, acerca dos vestidos. - Não gosta mais do azul, minha senhora? Parece-me que o azul a favorece mais do que o cor-de-rosa. além de ser um bocadinho maior.

Abanou a cabeça, ao voltar para junto de Joan, e passou a mão pelo cabelo grisalho, despenteado e em pé, por cima da testa estreita e sulcada de veias.

- Levou o cor-de-rosa - lamentou-se. - Quando uma mulher é gorda, escolhe sempre cor-de-rosa! Há vinte anos que as vejo fazer o mesmo. Vamos lá a ver nós, agora.

Era tão bondoso!

Depois de Joan ter comprado o que queria, Mr. Winters voltou ao armazém, com o cómico trote apressado de quando tinha a casa cheia de fregueses, e regressou com o colar de contas azuis.

-Quero que o leves. Fica-te bem.

- Oh, não! - protestou, surpreendida. - Não podia. Mas, para sua maior surpresa, Mr. Winters tornou-se incoerente. Joan seguiu-lhe a direcção do olhar, fixo do outro lado da loja, e viu Mrs. Winters, de costas para eles.

- Leva-o - insistiu, e acrescentou, sem pés nem cabeça:Digo-te que a culpa não é do velhote. Digam o que disserem, lembra-te disso. Todos nós envelhecemos, parece-me.

Afastou-se dela, deixando-a com o colar de contas azuis na mão. Joan pegou no embrulho e regressou a casa. Passava-se então, qualquer coisa com o pai...

Entrou em casa de mansinho, com todos os sentidos aguçados. Enquanto se atormentara com o seu desassossego e a sua solidão, o pai precisara dela. Quando aprenderia a não pensar só em si? Passara um Verão inteiro a divertir-se, sem perceber que a mãe estava doente e não dizia nada; agora, no silêncio daquela casa vazia, o pai sofria, também; sem falar.

Tirou o chapéu e foi direita ao gabinete do pai, onde entrou sem bater. Aos sábados de manhã costumava escrever o sermão para o dia seguinte. Escrevia todos os sermões numa letra grande e certa, que começava a tornar-se um pouco trémula. Nas prateleiras da estante tinha rimas e rimas de manuscritos, cuidadosamente datados. Nunca repetia um sermão; parecer-lhe-ia desonesto.

Mas daquela vez não estava a escrever. Encontrava-se sentado na sua velha poltrona, puxada para junto da lareira, onde ardia um pequeno lume, de toros bem empilhados: O pai estava o mais chegado possível para o lume, sobre o qual estendia as mãos pálidas. Virou, devagar, a cabeça, ao ouvi-la entrar, e olhou-a como se não a reconhecesse. Joan lembrou-se, de súbito, que era frequente, agora, olhá-la assim. Reparou, também, na sua extrema palidez. Fora sempre pálido, de pele branca e cabelo arruivado-claro a embranquecer imperceptìvelmente, mas agora dir-se-ia uma figura de neve. Teve vontade de correr para ele, de o abraçar,

de lhe dizer que não estava só, pois tinha-a a ela; jovem e forte.

Mas sabia que, se o fizesse, o assustaria.

- Veja o que vou mandar à Rose, pai - disse-lhe, a esforçar-se por dar à voz uma intonação casual. - Não o devia interromper, mas pensei que talvez quisesse mandar, também, qualquer

       coisa. Seria agradável, para eles.

O pai estremeceu e humedeceu os lábios lívidos.

- Sim, claro - murmurou. - Dei-lhes um exemplar revisto do Antigo e Novo Testamento.

Levantou-se, com a ajuda das mãos apoiadas nos braços da

poltrona.

- Sim... - repetiu, atarantado, parou e levou a mão à cabeça. - Que ia eu fazer? Ah, sim, sim!... - Abriu uma gaveta onde guardava uma pequena quantidade de papel de escrever e tirou um caderno e um lápis novos; passado um instante, tirou

outro lápis. - Isto deve ser-lhes útil. - Segurou-os um momento, ciosamente, pois sempre dera a impressão de considerar o papel e os lápis novas coisas preciosas. - Quando era rapaz - disse, de súbito, éramos muito pobres e eu tinha uma grande dificuldade em arranjar material para escrever. Costumava servir-me do papel pardo em que embrulhavam os alimentos... mas a carne crua estragava-o sempre.

- São coisas fáceis de enviar - murmurou Joan.

Não lhe custava nada imaginar o rapazinho sério, desejoso de possuir papel e lápis. O pai estendeu-lhe a sua dádiva, sem poder disfarçar totalmente a sua relutância, e Joan, para estar com ele uns momentos mais, fez e endereçou o embrulho ali mesmo, no gabinete.

-Imagine, pai, a distância que isto vai percorrer, por terra e mar! - exclamou, com forçada despreocupação.

O pai, que se sentara outra vez e reunia os restos meio-queimados da lenha, não lhe respondeu.

-Está pronto. O pai quer, com certeza, continuar com o seu sermão. - Como ele permanecesse calado, tocou-lhe num ombro e perguntou-lhe: - Não quer, pai?

Olhou-a nervosamente e respondeu, por fim:

- Sim, com certeza. Com certeza.

Havia qualquer coisa que não estava bem, sem dúvida. Joan sentiu-o, na igreja, onde reinava um ambiente de desassossego. O coro estava meio vazio. Ùltimamente faziam parte do coro um homem e uma mulher ainda novos, recém-vindos para a aldeia, mas naquele domingo não ocupavam os seus lugares. Ouviam-se murmúrios, gente a mexer-se, e por fim Mrs. Parsons, com um ar assustado, cantou o mesmo solo que cantara no domingo anterior.

Joan percorreu a igreja com o olhar. Conhecia-os a todos tão bem que ao notar a ausência de Mr. Parker, de Mr. e Mrs. Weeks, dos Jameses e dos Newtons, foi como se visse, de súbito buracos num tecido forte e familiar. Faltava tanta gente! Mas Netta estava presente, assim como Mr. e Mrs. Bilings, robustos e corados, e os seus três filhos. Mr. Billings olhava agressivamente em frente e Mrs. Billings cabeceava um pouco, a seu lado, a lutar contra o sono, como de costume. Era reconfortante vê-la assim, tão igual ao que sempre fora, como se não fosse possível haver algo errado em tudo aquilo. Tinha as mãos gorduchas e encarniçadas entrelaçadas no colo. Assim que as minhas mãos param, adormeço!, costumava dizer, a rir. Mr. Billings faz uma grande troça de mim, por causa disso, mas que hei-de fazer?

Bart Poundõr estava sentado nos bancos da retaguarda. Joan viu-o e olhou para outro lado. Oh, mas o Dr. Crabbe também lá estava! Porquê, se nunca ia á igreja?

O pai levantou-se, alto e branco, e não pareceu reparar nos bancos vazios. Fechou os olhos e no seu rosto apareceu a antiga e inconsciente expressão de êxtase reverente.

- Oremos. Ó Deus, nosso roçhedo em época de tempestade.

-A sua voz grave pairou na igreja alta e sombria.

Abriu os olhos, começou a pregar e Joan sentiu-se um pouco mais tranquila. Afinal, sempre escrevera o sermão, na véspera, depois de ela o deixar... Ouviu-se um ligeiro ruído, na igreja. Martin Bradley virou a pauta de música, no órgão, e Netta tirou um livro de hinos, da prateleira, e começou a ler, ostensivamente. joan sentiu o sangue subir-lhe à cara, numa onda de fúria. Teve vontade de gritar a Martin e de arrancar o livro das mãos de Netta. Mas não fez uma coisa nem outra. Manteve-se muito direita, de olhos fixos na cara do pai, a ouvir atentamente. Ele leu o sermão com cuidado, do princípio ao fim, sem levantar os olhos uma única vez e sem erguer nem baixar a voz. Joan não ouviu uma só palavra.

Agora que via, surpreendia-se da sua cegueira anterior. Mas conhecera-os a todos tão bem, aos seus vizinhos, àquelas pessoas que tinham sido uma espécie de continuação da sua familia, uma parede exterior de segurança! Crescera confiante na sua amizade. Claro que todos tinham as suas maniazinhas. Quantas vezes, em sua casa, se haviam rido, ao pequeno almoço, quando a mãe pedia ao pai: Não fales demasiado acerca de missões no estrangeiro. Lembra-te dos Kinneys! Ou: Mrs. Winters não gostou de te ouvir citar S. Paulo, acerca das mulheres, no último domingo. um versículo irritante, Paul!

as isso eram pecadilhos sem importância, caprichos de pessoas amadas e conhecidas. Como era possível que, de súbito essas pessoas se tornassem hostis? Como era possível que as paredes caíssem e a segurança desaparecesse quando não se tinha nada?

Joan escutava, dia após dia, à porta do gabinete, e ouvia os passos do pai, a andar de um lado para o outro, suavemente, quase silenciosamente. As vezes paravam e ela ouvia um murmurar profundo e um suspiro que era quase um gemido.

Mas quando o pai saía do gabinete era o mesmo de sempre muito direito, muito composto. Entrava e saía, cumpria os seus deveres, e Joan nunca perguntava nada a Hannah, embora a criada estivesse sempre ao corrente do que se mexericava na aldeia. Hannah irritava-se, na cozinha, porque preparava sobremesas que geralmente davam muito trabalho e porque o reverendo continuava a lutar com firmeza contra a tentação. Até o seu pudim de chocolate recusava, apesar de o adorar!

A certa altura, enquanto andava pelo jardim, a pensar, Joan decidiu ir perguntar a Ned Parsons o que se passava. Ned amara-a - sim, porque ele amara-a ou quase, sem dúvida? - e dir-lhe-ia a verdade. Não lhe daria tempo para se esquivar, perguntar-lhe-ia de chofre, sem preâmbulos: Que se passa com o meu pai?

Pôs o chapéu e foi ao armazém. Era quase meio dia e, àquela hora, as mulheres estavam em casa, a tratar do almoço. Ned estava ao balcão do fundo, a conferir peças de riscado, com o lápis atrás da orelha, sem casaco e com o colete escuro desabotoado.

- Olá, Joan! - cumprimentou, quase sem parar, ele que noutros tempos correria ao seu encontro, onde quer que a visse.

A loja estava vazia. Até Mr. Winters saíra para almoçar.

- Em que te posso servir? - inquiriu Ned, o caixeiro.

Joan recordou a sua cara, a cantar canções românticas por cima da guitarra.

- Ainda tocas guitarra? - perguntou-lhe, inesperadamente. Olhou-a, por cima de uma peça de algodão florido, arregalou os olhos e riu-se, embaraçado.

- Ainda. - Tossicou, engoliu em seco e levou a mão à orelha, à procura do lápis. - Tenho muito que te agradecer, Joan. Creio que não imaginavas o que fazias quando disseste à Netta que passeasse comigo, daquela vez. Nós. enfim, eu vi pela primeira vez a excelente rapariga que ela é, apesar de a conhecer desde miúda. Ela era um bocadinho mais velha. nada de importância, agora, evidentemente, mas quando somos miúdos. Riu-se, com o seu riso alto e pateta.

-Ainda bem, agrada-me muito.

Olhou-o de frente, mas ele mexia, atabalhoadamente, nas peças de riscado.

- Sim. bem. - Olhou-a furtivamente, corou e continuou a mexer no riscado. - Esperámos sempre grandes coisas de ti. Joan. Sempre te considerei boa de mais para nós. Com a tua instrução, a tua queda para compor música.

- Ned Parsons - interrompeu-o, sem rodeios -, díz-me o que se passa com o meu pai.

O rapaz levantou a cabeça, assustado com a pergunta brusca e inesperada.

- Bem. eu.

- Sem preâmbulos! A verdade toda - ordenou-lhe.

- Enfim, passar-se, não se passa nada. apenas alguns tipos julgam que ele está muito velho. - Joan fitava-o, atenta a cada palavra sua. - Outros dizem que presta mais atenção aos negros de South End, que é preciso ser preto ou pagão para merecer o seu interesse. - Começou a mudar peças de tecido de úm lado para outro.

- E então? - pergunttou, com desprezo.

- Bem, tu sabes como as pessoas são, numa terra pequena. Querem um tipo novo, actualizado e tudo o mais. Têm falado num de Lawtonville.

-Compreendo. Obrigada, Ned.

Voltou-lhe as costas e ele acrescentou:

-Claro que há também um bom grupo que não deseja que ele se vá embora. Eu sou um deles. E a Netta também, Joan!

- Obrigada. Ned - repetiu.

Agora sabia o que era. Sentia-se desolada, abandonada como uma criança. As pessoas crescidas, aquelas em quem confiara, tinham-lhe virado as costas, abandonavam-na. Deixavam-na sòzinha, a ela e ao velho.

As pessoas estavam cansadas deles. Tinham-se cansado de ver sempre a mesma cara no púlpito, a dizer as mesmas coisas, eternamente as mesmas coisas. Queriam algo mais animado e mais divertido. Joan passou-as em revista, uma por uma. Quais seriam a favor do pai? Quais seriam contra ele? Mas quando se começou a lembrar da expressão que lhes vira da últíma vez e da maneira como tinham falado, não conseguiu formar uma opinião segura acerca de nenhuma delas - nem sequer de Miss Kinney-, que se deixaria inflúenciar pela última pessoa que ouvisse. Havía o Dr. Crabbe, Mr. Pegler e Mrs. Mark, mas esses não iam à igreja. O Dr. Crabbe pretextava que havia sempre alguém com uma

dor de barriga, à hora de ir à igreja, Mr. Pegler nunca lá punha os pés e Mrs. Mark tinha a desculpa das pernas. Não, Joan não podia ter a certeza acerca de ninguém.

Entrou em casa e foi para o quarto, a pensar que já não encontrava abrigo nele nem segurança na casa toda. Toda a segurança que julgara existir à sua volta desaparecera, desaparecera incompreensivelmente e para sempre. Aquela casa que fora um lar para todos eles pertencia aos seus inimigos, pertencia à Igreja. Jamais poderia ser um lar verdadeiro uma casa que era dada e tirada ao sabor dos caprichos de uma turba. Tinham construído um lar sob tecto alheio, estranho.

Parou junto da janela, de olhos fixos no jardim que o Inverno tornava triste. Todas aquelas flores que a mãe plantara em terreno alheio, os lírios, os fetos que tinham ido buscar aos bosques e aos rios. A mãe andara pelos bosques, na Primavera, com um sacho e um cesto, a colher sanguinárias, musgos. Antes de partirem - pensou Joan, numa cólera selvagem -, arrancaria e deitaria tudo fora! Cortaria as roseiras pela raíz e desenterraria os bolbos dos lírios! Quem podia deixar de envelhecer? Estavam todos a envelhecer, eram todos velhos! A igreja era composta só de velhos. No entanto, alguém expulsava Mr. Parker de casa, por ser velho, ou alguém roubava o pão a Mrs. Kinney; por ter mais de oitenta anos? De súbito, teve medo. Que faziam as pessoas quando lhes tiravam o tecto que as cobria, deixavam de lhes pagar ordenado e se viam sem pão? Que faria ela, com aquele velho? Não tinha ninguém.

Mas eles, os inimigos, ajudaram-na a ser orgulhosa. Aos domingos, podia fingir que não sabia nada, receber friamente a sua amizade sem significado. Sentava-se no banco onde outrora se tinham sentado todos a escutar um padre altivo, e ouvia ferozmente um velho tartamudear.

Sim, porque era impossível não ver que ele já não passava de um velho. Subia penosamente os degraus do púlpito e, quando descia, agarrava-se ao corrimão. Só por um momento, no primeiro instante em que enfrentava a sua minguada congregação, levantava a cabeça e endireitava os ombros. Depois esquecia-se disso e começava a ler o manuscrito em voz alta, a ler palavras estranhas e sonhadoras, escutadas com perplexidade ou com desdém pelos poucos que ainda o ouviam.

-Sonhei que vi o céu afastar-se e aparecer uma bela terra através da qual corria, sereno, um rio. O nome do rio era Paz e nas suas margens havia espaço para todos, jovens e velhos, e todos viviam juntos e em segurança. Os sonhos têm significado, não são devaneios sem sentido. Os sonhos.

Tenho de o levar daqui para fora, pensou joan, apaixonadamente, com vontade de correr ao púlpito, fugir com ele para longe e protegê-lo.

Mas ele não queria que o protegessem. Em casa, quando estavam sós os dois, tinha de fingir que tudo corria bem. Regressou de uma reunião do seu conselho paroquial abatido e estupefacto, a falar sòzinho, e Joan, que o esperava junto da janela da casa de jantar, chorou ao vê-lo arrastar-se pela relva queimada pela geada, a mover os lábios e a fazer gestos furiosos e fúteis, que lembravam socos patéticos, sem força.

Mas quando, angustiada de ternura, correu para a porta, ele afastou-a, um pouco ofegante, e perguntou-lhe:

- O jantar. está pronto? Sinto-me. um nadinha fraco.

Oh, que sucedeu?!

- Nada, nada. - respondeu-lhe, com desacostumada irritação. - Estou apenas um pouco cansado. Apetecia-me jantar depressa, logo depois de me lavar.

Subiu vagarosamente a escada e, de baixo, Joan ouviu-o gemer de mansinho, no último degrau:

- Oh, Deus!

Mas depois seguiu e não a chamou. Joan compreendeu que devia permitir-lhe que continuasse a ser o que sempre fora. Tinha de continuar a ser padre, pois de contrário morreria. No entanto, um pouco mais tarde, quando estavam sentados à mesa num silêncio absoluto, perguntou-lhe de novo:

- Pai, não me quer dizer? Não quer discutir o assunto comigo? E ele respondeu-lhe:

-As mulheres não compreendem estas coisas. Não me podes ajudar em nada. Confio em Deus.

Joan sorriu-lhe, compadecida, e deixou-o em paz. A noite, insone na sua cama, ouviu-o rezar, longa e monotonamente. Continuava a confiar em Deus.

Se deixasse de confiar em Deus não lhe restaria mais nada. As pessoas tinham-no abandonado, uma por uma. Mary deixara-o. Costumava dormir naquela cama, e se ele acordava de noite, possuído por estranha e dolorosa solidão, olhava para o lado e via a sua cabeça morena ou estendia a mão e tocava no seu corpo quente e vivo. Agora uma noite inteira não chegava para que o seu fraco calor aquecesse um pouco os lençóis gelados. A noite, pareciam troçar todos dele. Os membros da sua família espiritual! A noite, chegava a perguntar a si mesmo se seria verdade o que eles diziam. Talvez estivesse, de facto, a envelhecer. Mas se era velho de mais para pregar, que faria, então? Havia o pequeno seguro, feito há tantos anos, no Fundo de Assistência aos Sacerdotes. Mary obrigara-o a fazê-lo, quando Joan nascera, e embora ele considerasse tal procedimento uma falta de confiança em Deus nunca lhe permitira que desistisse. Poderia levantar a importância acumulada dali a dois anos. Seria toda sua, então. Acordado, às escuras, planeou alugar uma casinha em South End e pregar aos que precisavam de ser salvos. E o povo simples ouviu-o de bom grado. " Pois assim perseguiram os santos antes de ti. " Começou a murmurar estas palavras fortes e resolutas e, pouco depois, sentiu-se mais animado e experimentou a antiga e arrogante determinação de obrigar o seu povo a fazer a vontade de Deus. Não, não recuaria! O Senhor o nomeara, só o Senhor o poderia demitir. Não falaria a ninguém. Confiava em Deus.

De madrugada, mergulhou num sono desassossegado.

Mas se ele não lhe dizia ainda, Joan tinha de saber, por outras vias, como poderia protegê-lo e ajudá-lo. Visitou Mr. Weeks, que era o tesoureiro da igreja. Lembrava-se dos tempos em que o pai de Netta era um homem pobre, um serralheiro que se mudara para a aldeia, vindo de qualquer outro lado, e abrira uma pequena mercearia. Pouco tempo depois, estava inexplicàvelmente próspero: tanto que tivera dinheiro para comprar a fábrica de camisas de South End, embora ela continuasse fechada. Em sua casa nunca lhe tinham comprado nada, porque a mãe dizia que estavam habituados à loja de Mr. Winters. Não gostava de Peter Weeks porque ele tinha o costume de perguntar descaradamente os preços a que Winters vendia, torcia a boca antipática e declarava: Vendo-lhe tudo quanto desejar dois cêntimos mais barato do que ele. Mas a mãe respondia-lhe, friamente: Não, obrigada. Quando Mr. Weeks entrara para a igreja e Hannah sugerira que seria bom comprar-lhe alguma coisa, uma vez por outra, a mãe redarguira-lhe, altivamente: Nós não procedemos desse modo.

Joan entrou na mercearia de cabeça levantada e coração pequenino dentro do peito.

O pai de Netta acorreu, pressuroso, com um Viva, viva!. mas ela não correspondeu à sua falsa jovialidade.

- Vim perguntar-lhe uma coisa, Mr. Weeks - disse-lhe, sem rodeios. - Quando tem o meu pai de partir?

- Bem, bem. - tartamudeou, surpreendido, e a sua cara enrugada, angulosa e sem cor arvorou o orriso convencional do lojista. - Tu e a Netta são velhas amigas, desejo fazer tudo quanto puder.

- Não é necessário - redarguiu-lhe, em tom firme. - Tomarei conta do meu pai.

- A verdade é que O velho é teimoso - resmungou Mr. Weeks, a mascar tabaco. - Não quer apresentar a demissão.

- Compreendo.

- É disso que estamos à espera. Tècnicamente, não u podemos mandar embora antes de se demitir. Desejamos que um novo ministro o substitúa, o mais depressa possível, mas, como tesoureiro, sei que não podemos pagar a dois. As finanças estão em mau estado, embora eu esteja a endireitar as coisas.

- Compreendo - repetiu Joan. - Quer dizer. quanto mais depressa partirmos. melhor.

-Seria conveniente ele apresentar a sua demissão, Joan. Não quero ser duro com o teu pai. tu e a Netta. É vrdade, já sabes que ela vai casar com Ned Parsons? Levou tempo a arrumar-se, mas no fim teve sorte. Alegra-me dizer que o Ned sai ao pai, e não à mãe, é trabalhador. Estou a pensar em abrir a fábrica e, se o fizer, porei o Ned à testa dela. Isto se ele casar com a Netta, claro.

-Diga à Netta que me alegra muito a notícia, sim? Adeus. Esqueceu imediatamente Ned e Netta.

Sentada à mesa do jantar, depois de Hannah ir para a cozinha, Joan disse:

- Pai, façamos orgulhosamente o que tem de ser feito. Iremos para a cidade, eu arranjarei um emprego e o Francis também poderá ajudar. Recomeçaremos.

O pai comera depressa e com grande apetite. Ùltimamente, talvez por causa das preocupações que o atormentavam, comia mais. Sentia-se desfalecer, com muita frequência, e precisava de ter força. Naquela noite o cozido estava melhor do que de costume, e o pudim também. Mas Joan tinha de vir com aquela conversa... Olhou para a filha, levou a mão à boca e ela compreendeu que estava agoniado. Correu para ele, mas o pai afastou-a com o braço, levantou-se e saiu da sala. Como passasse muito tempo e não a chamasse, foi procurá-lo. Já estava no quarto. Biateu. mas ele respondeu-lhe, em voz fraca, que não podia abrir-lhe a porta porque se estava a despir. Sentou-se num banco, à porta, e esperou. Por fim, como continuasse sem a chamar, abriu de mansinho. Estava deitado de costas, com as mãos unidas no peito, os olhos fechados e a ressonar um pouco. Metera-se na cama sem a chamar e adormecera. Joan fechou a porta e foi para o seu quarto. O pai não a queria.

Não conseguiu dormir. Não conseguia dormir no meio de tanta incerteza, de tão grande solidão. A Rose estava longe e o Francis só escrevera uma vez. Mas Joan recordou o modo como o irmão saltara da cama e fora a correr chamar o Dr. Crabbe. naquele dia. Levantou-se e sentou-se à escrivaninha, a escrever a Francis.

Temos de nos ir embora, terminou. Parece-me melhor irmos para Nova Iorque, onde procurarei emprego. Seja como for, temos de sair desta casa. Pensou um bocado e acrescentou: Não posso contar com mais ninguém além de ti, e ele também é teu pai.

Fechou e selou a carta, voltou para a cama e, por fim, adormeceu.

Acordou com a sensação de ter acabado de ouvir um estranho som. Ouvira-o enquanto dormia profundamente, mas acordara logo, graças ao hábito adquirido durante a doença da mãe. Ficou imóvel e tensa, à escuta. Que seria? Reinava um grande silêncio na casa e a noite estava calma. De súbito, ouviu de novo o que a acordara: uma espécie de tosse sufocada, um ronco e uma voz estrangulada. Saltou da cama e correu para a porta de comunicação com o quarto do pai. Mas ele fechara-a à chave. Em qualquer altura, sem ela o saber, fechara-a para poder estar só e à vontade.

- Vou já, pai! - gritou-lhe, através da porta, mas não obteve resposta.

Iria pela porta do corredor. Correu pelo corredór fora, ao mesmo tempo que gritava para o sótão, a chamar Hannah. A outra porta não estava fechada, graças a Deus! O quarto encontrava-se às escuras, não havia luar e pela janela aberta só entrava escuri dão. Assustada com a estranha respiração do pai, tacteou à procura da luz, enquanto Hannah descia a escada, às apalpadelas, e resmungava contra a escuridão.

-Vai chamar o Dr. Crabbe, Hannah! Aconteceu qualquer coisa ao meu pai.

- Ele comeu de mais - resmungou a criada, no escuro. Coibiu-se sempre, mas esta noite esqueceu-se e comeu. Eu bem o vi, no pudim.

Chegou à porta no momento em que Joan encontrava o interruptor. A luz incidiu na cama e no pai e viram-no as duas, no mesmo instante. Estava hirto, de braços abertos numa posição de agonia, com a boca torcida, imobilizada ao lado por músculos invisíveis. Tinha os olhos semicerrados, baços, e a cara, geralmente branca, manchada de roxo.

- Oh, minha alma! - exclamou Hannah. - É uma congestão! - Voltou-se e saiu apressadamente.

O corpo não se mexia. Joan teve medo, ao vê-lo tão estranho tão disforme. Levantou-lhe uma das mãos, para a colocar mais perto do corpo, numa posição mais natural, mas o braço estava hirto e não o conseguiu mover. Com a ponta do lençol, limpou, repugnada, o fio de saliva que escorria do canto da boca do pai.

- Pai! Pai! - gritou, mas ele não a ouvia nem via, absorto apenas na penosa respiração que arrancava do peito.

De súbito, a respiração parou. Num momento, Joan ouviu-a, profunda, espessa e áspera, a arranhar, como qualquer coisa arrastada por uma estrada de pedra solta; no seguinte, parou. Enquanto ela o olhava e chamava, a respiração parou. Esperou, aterrorizada, que recomeçasse, mas as manchas arroxeadas desapareceram da cara do pai, a sua boca torcida readquiriu a habitual expressão grave e as convulsões abandonaram os seus ombros. O corpo pareceu descansar, ficar frouxo, minguar. Não respirava. Joan correu pela escada abaixo, a chamar:

- Hannah! Hannah!

A porta da frente abriu-se e o Dr. Krabbe apareceu, com o sobretudo por cima do pijama às riscas e o pouco cabelo despenteado.

- Morreu; o pai morreu! - gritou-lhe Joan, como se fosse uma garotinha. - Oh, Dr. Crabbe! Oh, que hei-de fazer?! - Desatou, de súbito, a chorar, muitoalto.

O médico correu pela escada acima e ela e Hannah seguiram-no, numa procissão frenética. Joan não conseguia conter os soluços. Cada vez que respirava, saía um soluço, que parecia deixá-la sem forças. Encontraram-no tal como o deixara. O Dr. Crabbe levantou-lhe um braço, que ficou flácido na sua mão, e depois largou-o, docemente. Hannah começou a fungar.

-Foi um ataque, não foi, Dr. Crabbe? Ele comia sempre pouco, passava fome, mas ontem á noite serviu-setrês vezes do meu pudim de figos secos e do molho. Surpreendeu-me, depois de tudo o mais que já comera...

O Dr. Crabbe não lhe respondeu nem disse a Joan que deixasse de soluçar. Olhou para a altiva cabeça morta, como se não as ouvisse. Era um rosto nobre e altivo, aquele, mesmo na morte.

- O velho filho de Deus. - murmurou, a sorrir. - No último domingo fez-lhes frente, na reunião paroquial, e disse-lhes que fora Deus, e não os homens, quem o chamara, e que preferia morrer a abandonar o seu posto. Teve sorte. nem todos podem morrer quando a vida acaba. - Curvou-se e, docemente, fechou os olhos do morto e cruzou-lhe as mãos no peito.

Mas Joan continuou a soluçar. Não conseguia conter os soluços.

Foram todos muito amáveis, evidentemente, e mandaram muitas flores: A casa encheu-se de ramos e coroas, acompanhadas de cartões a falar do maravilhoso serviço prestado, de tantos anos. Agora que, de certo modo, ele se demitira, estavam todos ansiosos por elogiar, por reconhecer.

- Não tive intenção nenhuma de o magoar. Era uma questão de trabalho, as coisas pareciam correr mal. Se me passasse pela cabeça.

Joan ouvia-o distraída, a odiá-lo. Precisava de se dominar constantemente, para não recomeçar naquele soluçar idiota. Choraria quando estivesse sòzinha, assim que estivesse sozinha, e não diante dele, não diante dele.

- Não tem importância, Mr. Weeks.

O Dr. Crabbe telegrafou, em seu nome, a Francis.

- Precisas de ter alguém contigo - disse-lhe, com autoridade.

- Só te resta ele.

- Talvez ele não possa vir. É novo no emprego. Não sei. Desejava desesperadamente que o irmão viesse, queria sentir a seu lado alguém que fosse seu. Mas Francis não apareceu nem sequer respondeu ao telegrama. Não o deixaram vir, pensou quando chegou a hora do funeral sem ele ter chegado.

Foi com Hannah à igreja. Mrs. Winters chegara primeiro, para se certificar de que estava tudo em ordem.

- Espera um bocadinho, querida - murmurou-lhe. - Espera que todos se sentem.

Era muito boa, mas nem mesmo ela resistira à tentação de dizer, quando o vira no caixão:

- Se não fosse aquela teimosia de South End. Sim, agora eram todos muito bons e muito amáveis, agora que era tarde de mais. Joan sentou-se sòzinha, no seu banco, e o pregador de Lawtonvile subiu ao púlpito. Subiu apressadamente, mas depois lembrou-se e abrandou o passo. Mas era difícil andar devagar, naquele dia, a impaciência jorrava dele, dos seus olhos, da sua voz, da rapidez nervosa das suas mãos. Agradaria ao público? - perguntava a sua ansiedade. Do outro lado do morto esse público a quem queria agradar olhava-o atentamente, intensamente. Agradar-lhe-ia? Cheio de fervor, começou a elogiar o defunto, sem peias, sem se esquecer de arredondar as frases e de empregar as metáforas que planeara. Tinha á sua frente, no púlpito, uma folha de papel com algumas notas e, de vez em quando, abria mais os olhos, para as consultar. Tinha de causar boa impressão. Era imprescindível, para a Minnie, que.

- Possamos nós viver assim, Senhor - orou com fluência, a olhar sorrateiramente para os apontamentos -; possamos, quando o fim chegar.

Depois de tudo acabado, Netta quis acompanhar Joan a casa e Mrs. Winters disse-lhe:

-Não fiques para lá sòzinha, vem para nossa casa. E todos os outros se prontificaram: Se precisares de alguma coisa, diz. " Joan sorriu-lhes e agradeceu-lhes, sabendo que não precisaria de nada.

Estaria sòzinha, onde quer que estivesse. Não tinha importância. Desejava ir-se embora, afastar-se deles, pois sentia-os aliviados, por detrás de toda aquela aparente amabilidade. Na sua presença mostravam-se decentes e graves, mas quando chegassem a casa entreolhar-se-iam e murmurariam: No fim de contas, assim foi melhor para todos.

Por isso regressou a casa sózinha. Não queria recomeçar a soluçar. Começava a estar farta de tanto soluço.

O Dr. Crabbe visitou-a e atormentou-a com a sua insistente amabilidade.

-Que vais fazer, Joan? Tens de fazer qualquer coisa, filha!

-Com certeza, Dr. Crabbe. Pensei ir para Nova Iorque e reunir-me ao Frank. Ele tem emprego e eu também hei-de arranjar qualquer coisa.

- Hum. - resmungou o médico, descontente. - Parece-me aconselhável tomares uma boa dose de óleo de rícino. Provàvelmente o teu estômago deixou de trabalhar, com tudo isto, o que é natural. Estás amarela. Tens algum dinheiro?

- Oh, sim, Dr. Crabbe! - exclamou, muito depressa. Não aceitaria dinheiro. Herdara todo o orgulho da mãe. Lá porque o meu marido é sacerdote, os meus filhos não têm de usar as roupas velhas dos outros. Nunca aceites nada, joan!

Além disso, tinha outra vez alguns dólares na caixa de sândalo, e encontrara um dólar na velha bolsa do pai. Na semana seguinte ele devia receber o seu ordenado, mas agora, claro...

- Tenho o suficiente, Dr. Crabbe - afirmou, a sorrir. Sério!

- Quanto? - insistiu ele.

- Oh, muito! De resto, o Francis ganha.

- Hum. - resmungou, de novo, e foi-se embora, contrafeito. Não tinham deixado de ser amáveis, de lhe repetir: Não te apresses. Joan, tens tempo. Mas no terceiro dia o novo ministro e a mulher foram ver o presbitério.

- Não desejamos apressá-la, Miss Richards.

Estava muito contente com a sua nova paróquia, que lhe renderia mais cerca de duzentos dólares por ano. Com duzentos dólares.

A sua jovem esposa, de cabelos ruivos, chamou-o, autoritária:

-George! Temos de lhes pedir que substituam o papel das paredes da casa de jantar e que arranjem os soalhos...

Joan seguiu-os, a mostrar-lhes a casa.

- Sim, aí é a copa. Essa porta dá para a escada da cave. Abre do outro lado.

Revelava a desconhecidos todos os cantos da casa, que sempre conhecera tão instintivamente como o seu próprio corpo.

208

- Não me parece que goste dela. - resmungou Hannah, quando saíram. Deve ser daquelas que poupam na manteiga e contam os ovos. - Bateu com as panelas, na cozinha. - Disse que não sabia se precisaria de criada, embora esta casa fosse maior do que a sua. E deve ser, pois não me parece pessoa habituada a muito...

Diziam-lhe todos que não se apressasse, mas ela tinha pressa, uma pressa furiosa. Reuniria as poucas coisas do pai e mandaria as roupas para a missão. Pedira ao novo sacerdote, quando lhe mostrara o quarto: Importa-se de levar para a missão algumas roupas do meu pai? Ele gostaria de.

O homem franzira os lábios grossos e respondera: Não tenho a certeza quando lá irei. ainda não decidi se continuarei esse trabalho. Os paròquianos... Joan apressara-se a interromper: Não tem importância. Levá-las-ei eu própria.

Ir-se-ia embora assim que tivesse tudo pronto. Sentia-se contente por serem tão poucas as coisas que teria de levar, por ter de deixar quase tudo, visto pertencer à paróquia. Nem os pratos em que tinham comido pão, leite, bolos que a mãe fizera, carne, vegetais e altos empadões - Vai a correr buscar a forma alta dos bolos, querida!Hannah, onde está o prato onde pomos a fruta?, nem os pratos eram deles. Nada fora, reamente, deles. Levaria a arca de tampa abaulada, as roupas, os livros, a roupa de casa e as pratas da mãe. Talvez fosse melhor não levar, já, essas coisas, acondicioná- las apenas e deixá-las guardadas em qualquer lado. Depois procuraria o Francis. Era estranho que o irmão não tivesse, sequer, escrito!

Quase uma semana depois da morte do pai, chegou, finalmente, uma carta do Francis. Saíra do gabinete, onde estivera a reunir os livros do pai, e encontrara a carta no vestíbulo.

-A letra parece do Frank, mas o carimbo não é de Nova Iorque. Não percebo donde é - disse-lhe Hannah.

Joan apressou-se a abrir a carta. Não, não vinha de Nova Iorque. Vinha de uma terra do Michigão, mas era do Frank.

Querida Joan: Perdi o emprego e estou aqui com dois rapazes, à procura de trabalho. Dizem que há muito que fazer na General Motors e eu tenho esperança de arranjar qualquer coisa. Como estou um pouco em baixo, manda-me o que puderes.

Nem sequer sabia, não recebera o telegrama! Rasgou a carta em bocadinhos e deixou-os, num montinho; em cima da mesa.

Que fazer? A casa estendia-se á sua volta, vazia, inexorável, à espera que ela partisse para iniciar uma nova vida. Para Joan, tudo acabara, metia-lhe medo. Correu para o jardim. O Dia de Acção de Graças estava perto, embora só se lembrasse ao ver transportar para a porta da igreja um molho de talos de milho, que costumavam servir de fundo às abóboras e aos frutos. Ouviu-se um grito, quando a carroça se aproximou, e os cavalos pararam defronte de Joan, a deitar vapor pelas ventas. Um vulto alentado saltou da boleia e foi ao seu encontro. Era Bart. Desprendia-se dele um cheiro limpo a talos secos e a terra. De súbito, Joan recomeçou a soluçar, sacudida por aqueles soluços que pareciam arrancar-lhe as entranhas.

- Oh, Bart! - soluçou. - Oh, Bart, Bart!

Ele aproximou-se, sorridente e seguro de si, enlaçou-a e levou-a para dentro da casa deserta. Ali, na sala vazia, sentiu, finalmente, os seus lábios nos dela. Por momentos, ficou paralisada. O contacto dos lábios dele era viscoso e duro, na sua boca. e o coração de Joan pareceu encolher-se, num estranho desalento. Mas continuou agarrada a Bart, a soluçar. Ele era forte como um rochedo, os seus braços rodeavam-na como as paredes de uma casa.

Aquele anel que tinha no dedo era novo e incómodo. Nunca usara nenhum anel, porque os anéis a incomodavam. Lembrava-se de que alguém lhe dera um, quando era pequena, e desejara usá-lo por achar muito bonito o aro de prata com um bocado de vidro encarnado, mas não pudera.

Passados momentos começara a incomodá-la e acabara por tirá-lo. Mas este. agóra, não o devia tirar. tinha de aprender a usá-lo. Era uma grossa aliança de ouro, antiquada e pesada, que ela própria metera no dedo. Bart escolhera entre os anéis expostos no balcão da pequena ourivesaria de Clarktown, até encontrar um igual ao da mãe. Tem de durar muito tempo", dissera. Depois de o empregado o ajustar para caber no dedo de Joan, Bart experimentara em todos os dedos, para ver se lhe servia, mas só entrara no dedo pequeno, e mesmo nesse ficara encalhado na articulação deformada.

Não tinham precisado de esperar, pois não havia ninguém a considerar. Porque teria consideração com quem a não tivera consigo? Abandonaria a antiga vida, abandoná-la-ia para sempre. O que fizesse ou não fizesse não era da conta de ninguém. e ela não queria dizer que ia casar com Bart Pounder. Não queria ver-lhes a expressão surpreendida nem ouvi-los perguntar: Bart Pounder?, Calou o próprio coração, brutalmente: Sim, Bart Pounder! Quem mais existe?

À noite, depois da hora de encerramento, foi à loja de Mr. Winters. Estava sòzinho, a procurar nas prateleiras qualquer coisa que lhe tinham pedido de dia e não encontrara. Era a sua ocupação habitual de todas as noites. Se puder esperar até amanhã, arranjar-lhe-ei isso, dizia, uma dúzia de vezes por dia, e escrevia em bocadinhos de papel: Mrs. Parsons: safa-tinta; Mrs. Bradley: um carrinho de linhas pretas MR. Billings: um cutelo". Quando entrou, ouviu-o murmurar. Onde demónio o meti?

-Mr. Winters, quer fazer o favor de lhes dizer que deixo imediatamente o presbitério?

Voltou-se para ela, bondoso, a protestar.

-Não consintas que te apressem, Joan, tens tempo.

-Já fiz os meus planos.

- Vais-te embora ?

-Sim. vou-me embora.

Na manhã seguinte, Mrs. Winters apareceu, azafamada.

- Mr. Winters disse-me, Joan, e eu vim logo. Que vais fazer?

-Vou-me embora, Mrs. Winters.

- Sim, mas.

-Não sou nenhuma criança, sou uma mulher e tenho os meus planos. Depois escrevo-lhe.

Mrs. Winters não pôde fazer nada. Na realidade, ninguém podia fazer nada. Era melhor calar-se, tratar da sua vida. Não esqueceria que só a morte salvara o pai das mãos daquela gente.

Quando se despediu de Hannah, abraçou-a um momento. A criada deu-lhe uma palmadinha nas costas, comovida, e perguntou-lhe:

-Miss Joan, escreveu aquela carta para, no caso de eu não me entender com a mulher do novo padre, poder arranjar emprego numa daquelas casas de Piney Cove, onde as pessoas vão passar o Verão?

- Escrevi, Hannah. - Joan largou-a, imediatamente, e tirou da mala a carta que escrevera: Esto serve para apresentar Hannah Jackson, que foi nossa criada de todo o serviço durante mais de vinte anos. Considerámo-la sempre honesta, asseada.

-É triste uma pessoa ter de procurar novo emprego com esta idade - lamentou-se a mulher. - Não tenho ninguém.

- triste, sim - concordou Joan. - triste em qualquer idade.

Claro que não houve cetim branco nem nada do que sonhara. De vestido de cetim branco formaria um estranho contraste com Bart, a rebentar no fato azul. Por isso decidiu-se pelo velho vestido de lã cor de laranja, pelo casaco castanho e pelo chapelinho de feltro da mesma cor. Apresentou-se com Bart no registo civil do condado e repetiu as palavras do amanuense, um homem baixo e avinagrado, de cara enrugada e boca grande. Era um dia frio, de Novembro, o nariz fino e curvo do homem estava húmido e vermelho e ele limpava-o de vez em quando, com a mão.

- Podem assinar aqui - disse, a apontar com o indicador de unha roída.

Joan assinou, com firmeza: Joan Pounder". Obrigou a mão a desenhar com nitidez as letras do apelido que usava pela primeira vez. Depois viu Bart agarrar desajeitadamente na caneta, como se fosse uma ferramenta de lavoura, e escrever o seu nome, com uma caligrafia infantil e angulosa. Demorou-se um instante a olhar as duas assinaturas, e por fim pediu:

-Leva-me para casa, Bart.

- Claro! - respondeu-lhe, alegremente.

Subiram para o carro puxado por dois cavalos. Joan estava silenciosa, consciente da sua coxa e do seu joelho comprimidos contra a perna grossa dele.

- Toca a andar! - gritou Bart aos cavalos, fez estalar as rédeas e os animais partiram num trote rápido, com as garupas castanhas a brilhar ao sol de Inverno. - Um destes dias, compro um carro. Mas, primeiro, tenho de trabalhar um bocado. Além disso, com um automóvel não se pode lavrar. Numa quinta são sempre precisos cavalos, com carro ou sem carro.

Voltou-se e sorriu-lhe, com uma expressão que joan começava a conhecer-lhe: narinas um pouco dilatadas e lábios entreabertos e frouxos.

- Não creio, no entanto, que num automóvel nos pudéssemos sentar tão juntinhos, minha pequena.

Tinha dentes pequenos e amarelados, que pareciam moles. e

gengivas demasiado grandes e pálidas. Joan apressou-se a olhar para outro lado.

Saíam da região que ela conhecia e entravam noutra, montanhosa e agreste, de vales cobertos de florestas. Dividiam os campos muros feitos de pedras empilhadas umas sobre as outras. Por toda a parte, os últimos tons outonais davam lugar ao pardo e ao cínzento. Só os carvalhos continuavam a ostentar o seu tom vermelho-baço, mas mais umas noites de geada roubar-lho-iam. Então seria Inverno. Ainda bem que tinha o Bart, pensou Joan, a olhar, sem ver, a paisagem moribunda. Se não o tivesse, estaria absolutamente só, com o Inverno à porta. Em tão pouco tempo perdera todos.

A seguir a uma curva da estreita estrada de terra, viu erguer-se uma grande casa de madeira, com janelas verdes, um rectângulo branco contra o castanho da terra. Rodeavam-na alguns grandes bordos, mas os seus ramos nus não a ocultavam.

- Lá está a casa - disse Bart, a apontar com o chicote. A família espera-nos. Não te importes com a minha mãe.

Nunca se referira à sua casa, a não ser para dizer, sucintamente: Vivo com a família. Herdarei a propriedade se ficar com eles, por isso lá estou.

Pararam, a porta abriu-se e Joan viu-os: o pai, a mãe e o irmão de Bart. Saíram um por um, a mãe no fim, e ficaram á sua espera. O seu coração voou para eles. Esforçou os olhos, para os ver bem, à luz crepuscular. Pai, mãe, irmão... Gostou da casa, de um branco e verde tão limpos, e dos bordos. Debaixo dos ramos nus, as folhas acumulavam-se e formavam um tapete ouro-cinza.

Queria gostar de tudo. Aquela ia ser a sua casa, o seu lar, e ainda bem que viveriam todos juntos. Não desejava viver sozinha com o Bart. Recordou vagamente algumas palavras das Escrituras:

E aos solitários instalou-os no seio de famílias...

Saltou do carro e correu, por cima da erva seca, queimada pela geada, e das sussurrantes folhas caídas, para os três vultos que a esperavam. Correu primeiro para a mulher, de mãos estendidas, abraçou o seu corpo rígido e aspirou um leve cheiro a sabão, quando a beijou.

- Sou Joan - apresentou-se.

Desejava muito que gostassem dela, havia de conseguir que

a estimassem.

- Bem. - murmurou a mãe de Bart, e Joan sentiu debaixo dos lábios a carne fria, gorda e passiva da sua cara.

- Este é o meu velho - apresentou Bart -, e este é Sam, o meu irmão mais novo:

Joan estendeu a mão e sentiu-a sucessivamente apertada por duas grandes mãos rijas, com a diferença de que a do velho era fria e a do rapáz quente e húmida, na palma, e apertou a sua mais demoradamente. O velho não falou e Sam murmurou apenas: Encantado. Tinha olhos castanhos, pequenos e gulosos, como os de Bart, e sobrancelhas ruivas, eriçadas.

Olhavam-na todos, em silêncio, e ela olhava-os também. Por

fim teve de dizer qualquer coisa, para que o silêncio pesado a não esmagasse.

-É uma bonita casa.

- Não quer entrar? - convidou a mãe de Bart.

- Sim, acho melhor entrarmos - disse o rapaz.     

Entraram silenciosamente, e ela seguiu-os até um vestibulozinho quadrado, do qual subia uma escada íngreme. Houve uma hesitação, que Joan não compreendeu, e a mulher disse:   

-Bem, desta vez pode servir-se da escada principal.  

Mas os dois homens seguiram para a cozinha, pelo vestibulo, e Bart disse:

-Acho que também me lavo na cozinha.       

- Suba, para lhe mostrar o quarto - disse a mãe.

Subiu a escada cuidadosamente, sem tocar no corrimão, e Joan seguiu-a, de mala na mão. A escada desembocou bruscamente num corredor estreito, cercado por portas fechadas.       

- É aqui - disse a mulher, e abriu uma porta e entrou à frente de Joan. - Espero que esteja tudo a contento.

- Oh, sim! - exclamou Joan, a olhar á sua volta.

Havia uma cómoda de bordo, um lavatório com um jarro e uma bacia, uma cadeira de balanço e uma cama de casal. Bocados de uma velha carpete às flores, muito bem embainhados, cobriam o chão imaculadamente limpo.

-Temos uma casa de banho ao fundo do corredor, mas os homens não se servem dela - explicou a mãe de Bart. – Levam a tina para o barracão, quando precisam de se lavar; não suporto o cheiro a estábulos dentro de casa. Mas você pode usar a casa de banho comigo, creio.

Joan não a ouvia. Havia só uma cama de casal, uma cama onde dormiria naquela noite, com Bart, naquela noite que já começara. Evitara pensar nisso, mas agora a noite chegara.

- Comeremos assim que descer - prosseguiu a mulher. – Vou só dar uma mexidela às batatas. - Saiu e fechou a porta. mas Joan não ouviu os seus passos na escada.

Sentou-se, no quarto mergulhado em penumbra. Tinha a sensação de que correra durante muito tempo e agora o movimento parara para sempre. Rodeava-a um silêncio profundo. Pela janela, viu os montes intermináveis, as árvores escuras, o claro serpentear dos muros de pedra empilhada e os campos nus e desertos. Não se avistava nenhuma outra casa. Correu, meio assustada, para a janela, mas as suas suspeitas confirmaram-se: não havia mais casa nenhuma. Defronte da janela erguia-se um grande barracão cinzento. Joan viu o vulto do pai de Bart, à luz da lanterna de azeite que transportava. Não lhe distinguia a cabeça, mas via claramente as pernas informes e a mancha da mão, a segurar a lanterna. O velho fechou as portas do barracão e dirigiu-se para casa, projectando no solo seco uma sombra torcida e monstruosa. Joan continuou imóvel, na escuridão fria, com medo de viver. Por momentos, invejou apaixonadamente a mãe, em segurança na sua sepultura, sem ter já de enfrentar o cair da noite e o alvorecer do dia. Tinha medo da noite e do dia.

De súbito, sentiu a aliança no dedo. Esquecera-a momentâneamente, na excitação da chegada, mas agora sentia-a. estranha e dura na sua carne. Voltou-se, resoluta, pegou nos fósforos que estavam ao lado do candeeiro, na consola da chaminé, e acendeu a luz. O vidro brilhou. de limpo, mas a torcida era nova e mascarrou-o um pouco. Joan baixou imediatamente a chama, mas a mascarra ficou.

Não se importou. A luz aliviava-a. Tirou o chapéu e depois deitou água no lavatório. para lavar as mãos. O barulho do jarro ao tocar na bacia, pareceu abrir uma fenda no silêncio, no mesmo silêncio que pairava nos montes e nas florestas. Deu consigo a andar com cuidado, para não fazer barulho. Abriu a porta e desceu a escada forrada de passadeira, para o vestibulo escuro e estreito. Nenhuma voz a guiou, nada, excepto uma réstea de luz, que saía debaixo de uma porta. ao fundo. Abriu a porta e encontrou-os a todos sentados à mesa, à sua espera. Não falaram quando entrou. Sentou-se na cadeira vaga, ao lado de Bart, e tentou sorrir.

Ninguém falava, mas Sam observava-a, a coberto das bastas sobrancelhas. A mãe de Bart levantou-se, foi à cozinha e voltou com um prato de batatas cozidas. fumegantes.

- Vamos comer - disse.

Joan sabia o que era silêncio. Conhecera o silêncio de uma voz não mais ouvida, depois da morte da mãe, silêncio que se tornara maior com a partida de Rose e, depois, de Francis: Conhecera também o silêncio em que vivera com o pai e em que ele morrera, e o silêncio em que Bart a encontrara e ao qual a arrebatara, o silêncio de si mesma, da sua desolação.

Mas nenhum desses silêncios se comparava àquele. Sentaram-se todos à mesa e, de súbito, no silêncio total, no silêncio dos campos.

das florestas. das árvores e do céu nocturno, a voz do pai de Bart ergueu-se e disse. sucintamente:

- Digamos as graças. Deus, torna-nos sinceramente gratos pelo        que vamos receber. Ámen.

Mas a oração não quebrou o silêncio. Estavam apertados na mesa, no meio da salinha atravancada. Ao lado dela sentava-se o pai de Bart, de cotovelos estendidos, e, no silêncio, Joan ouvia-o respirar enquanto comia e se servia de batatas, pão, carne fria e  leite desnatado, com o qual afogava a comida, em grandes goladas. Defronte sentava-se Sam, a comer e a olhá-la intensamente, do outro lado estava Bart e, a seguir, a mãe. Joan não olhava para as suas caras, não levantava os olhos do prato. Mas não podia deixar de ver o círculo de mãos, das suas mãos grandes, grossas.   

feias e animalescas. deformadas pelo trabalho. Pensou que nunca mais lhes desejaria tocar, mas apressou-se a afastar semelhante pensamento. Não devia pensar assim. Aquela gente era boa, honesta e trabalhadora, as suas caras decentes e honradas. Pertencia-lhes, agora, era aquele o lar que lhe daria comida e abrigo até ao fim da sua vida - o lar que ela escolhera: Tentou pensar com coerência. A mãe, se estivesse ali, falaria alegremente. esforçar-se-ia por conquistar a amizade daquela gente, e ela devia tentar fazer o mesmo. Talvez estivessem, como ela, acanhados, constrangidos com a sua presença.

- Nunca vivi numa quinta - disse, no tom mais animado possível. - Mas sei que gostarei, pois adoro o campo.

Ninguém lhe respondeu. O pai de Bart estendeu a mão para o pão e perguntou à mulher:

-Tens mais alguma coisa para se comer?

- Maçãs cozidas. Ou posso abrir uma lata de framboesas. O homem pensou, um momento, antes de decidir:

- Maçãs.

A mulher levantou-se e foi buscar um prato fundo, que passou de mão em mão, em silêncio.

Depois da refeição, ficaram sentados na salinha atravancada. . Joan quis ajudar a levantar a mesa e procurou o alguidar da louça.

- Eu lavo a louça - ofereceu-se.

Mas a mãe de Bart deitou água no alguidar, pôs um avental e respondeu-lhe:

- Pode limpá-la.

Por isso Joan limpou a louça, enquanto Bart ficava na sala, com os outros. Agora que estavam sòzinhos, conversavam um pouco. Ouvia-lhes as vozes simples, inexpressivas.

-Acabaste hoje aquele milharal, Sam?

-Quase. Fica pronto amanhã.

-Tencionas fazer folga amanhã, Bart?

-Não, suponho que não.

- É preciso escolher as maçãs. O Shaler vem buscá-las depois de amanhã.

- Está bem.

Na cozinha, Joan procurava desesperadamente encontrar qualquer coisa para dizer. Que gostaria a mãe de Bart que dissesse? - uma bonita cozinha. Gosto de cozinhas grandes. Só depois de passar o esfregão engordurado pela borda do alguidar é que a mãe de Bart respondeu:

Dão muito trabalho, quando se tem de fazer tudo sozinha.

-A expressão preocupada e melancólica do seu rosto não se modificou.

- Agora ajudá-la-ei - prometeu Joan, ansiosamente. - Quero ajudar o mais que puder.

Abriu o armário da louça e começou a arrumar os pratos que acabara de limpar.

- Ora deixe ver. Os pratos aqui. e estas colheres.

-Não são aí. Guardo as colheres boas na gaveta. Essas são da cozinha. É melhor deixar-me arrumar isso como deve ser.

Afastou Joan para o lado e começou a escolher e a arrumar pratos e talheres.

- Assim.

- Amanhã já saberei - prometeu Joan, com humildade. Entrou na outra sala e os três homens calaram-se imediatamente. Estavam sentados perto da mesa, já posta para a refeição seguinte e coberta com um pano acinzentado. Joan sentou-se numa das cadeiras de espaldar direito, a perguntar a si mesma que haveria para lá das portas fechadas. Aquela grande casa devia ter muitas divisões, embora todos procedessem como se houvesse apenas aquela sala onde comiam, a cozinha e os quartos de dormir, no andar de cima. Sentou-se, com medo de ir para o quarto, embora se sentisse tão cansada que nem tinha coragem para tentar conversar de novo. No dia seguinte, de manhã, quando a noite terminasse. Oh, ainda havia a noite!

De súbito, o velho bocejou, com a boca muito aberta.

- São horas de dormir - resmungou.

Levantou-se. abriu o armário que ficava ao lado da chaminé e tirou uma bíblia e os óculos.

- Mãe! - chamou.

A mãe de Bart entrou, a desatar as fitas do avental, e sentou-se com ele nos joelhos e as mãos uma por cima da outra. O marido abriu a Bíblia e procurou, devagar, um sinal, a passar o dedo calejado de página para página.

- Décimo terceiro capitulo de Isaías - anunciou, e começou a ler devagar. a hesitar nas palavras compridas. -Amaldiçoados os filhos rebeldes. disse o Senhor. "

O capítulo era grande. mas ele leu-o até ao fim. Estavam todos sentados, imóveis como estátuas, mas estariam a ouvir? Joan olhou-os, sucessivamente, e não chegou a nenhuma conclusão.

A mãe tinha uma expressão absolutamente vazia na cara que o hábito da fadiga tornara flácida. Não era possível que ouvisse.

Bart olhava para as grandes mãos e tinha as pálpebras pesadas a quererem fechar-se, quase a dormir. Os olhos de Sam estavam fixos nos tornozelos de Joan, que se apressou a metê-los debaixo da cadeira.

- Rezemos - disse o pai de Bart, e fechou o livro, enquanto os outros se ajoelhavam.

Forçada, agora, a encadear as frases umas nas outras, a voz

do velho transformou-se num murmúrio. Repetiu passagens das Escrituras, fez pedidos meio formulados, aceitou a má sorte com uma estranha e opressiva paciência:

-Sabemos que tudo quanto acontece é da vontade de Deus.

Semeamos, mas podemos não colher. É o homem que semeia, mas a colheita depende de Deus. Ajuda-nos, Senhor, a aceitar o que nos acontecer e a trabalhar no que nos vier parar às mãos. Ámen.

Levantaram-se, de novo silenciosos. A mãe de Bart atou outra vez o avental à cintura e voltou para a cozinha, enquanto o pai guardava o livro e os óculos e suspirava profundamente. Depois foi também para a cozinha, com passos pesados, e Joan ouviu uma bacia bater na pia forrada de zinco e água a correr. A seguir o velho ensaboou a cara e ouviu-se a navalha raspar-lhe na barba curta.

Correu de novo água e por fim o velho atravessou a sala e subiu uma pequena escada que Joan não vira antes.

- Bem - disse Sam, levantando-se -, creio que me vou deitar.

Passou a grande mão pela grenha ruiva e Joan viu-o olhar para ela e para Bart, com uma expressão ávida. Havia malícia e cobiça nos seus olhos pequenos. A rapariga virou a cabeça, constrangida, e Sam foi à cozinha. A mãe ainda lá estava. a limpar o fogão, a arrumar panelas e a encher a cafeteira.

-Sam, tens de me arranjar lenha, logo de manhã.

-Está bem. Onde estão as maçãs?

-Não deixes os caroços debaixo da cama. para eu apanhar, como esta manhã.

O rapaz não respondeu. Voltou à sala, onde Joan e Burt ainda se encontravam. e sorriu-lhes:

- Bons sonhos, aos dois! - troçou, e subiu a mesma escada que o pai subira.

Joan não respondeu. Um por um, impunham-lhe a noite.

A mãe esperava que se fossem deitar, sentada na cadeira de verga

da cozinha, ao lado do fogão.

Bart levantou-se e disse:      

- A mãe é sempre a última a subir. É melhor irmos.     

- Sim, Bart - murmurou.

Voltou-se para subir a escada que antes usara, mas ele chamou-a, brusco:

-Por aqui. Usamos sempre a escada das traseiras.

- Está bem, Bart - respondeu, e subiu atrás dele a escada ingreme e escura.

Amanhecia. Quando Joan abriu os olhos, o tecto baixo parecia muito próximo, como um céu turvo. O pequeno quarto estava cheio de luz pálida e serena. Joan apoiou-se num cotovelo e olhou para fora, pela janela.

Bart perguntara-lhe, numa brusquidão de embaraço: De que lado queres dormir? E ela respondera, muito depressa: Do lado de fora, perto da janela, por favor. Ele, que se arranjara primeiro do que ela, virara-se pesadamente para a parede. Joan não despegara os olhos da janela, enquanto se despia. Era uma janela que dava para um mundo diferente do daquele quarto, virada para os montes.

Lá estavam, agora, outra vez os montes, escuros, sob o céu que começava a ganhar cor. Joan olhou-os com uma tristeza calma, melancólica. Sentia-se, naquela manhã, como se deviam sentir as pessoas idosas, os muito velhos a quem tudo fora tirado ou que sabiam que mais nada seria deles. A ela nada mais pertenceria, excepto o que pertencia aos velhos: um telhado para se abrigar da chuva, um lume para se aquecer, comida, sono e, dentro do coração, o vácuo, o vazio da certeza de que nada mais teria. Era uma figura oca, sózinha no meio de uma grande planície deserta e silenciosa. Não havia ninguém perto, nenhum ouvido para a escutar, nenhuma voz que ela pudesse ouvir. Atrás dela, Bart ressonava, no último sono. Não devia olhar para ele, não devia imaginar como ele era. Tinha na sua frente a janela através da qual podia ver os montes.

Levantou-se com cuidado e vestiu-se. Depois ajoelhou junto da janela e admirou a mudança de tonalidades da luz. Não queria pensar, não queria recordar nada. Mas lembrou-se, de súbito, de uma coisa. Uma vez, quando era pequena, ouvira aquele discutir intrigante no quarto ao lado do seu -mas estariam, de facto, a discutir?- e levantara-se, perturbada e a tremer, para escutar à porta, a fim de saber o que se passava. Ouvira a mãe perguntar, numa voz fraca e trémula, quase num murmúrio: É só isto, Paul? Não há mais nada do que isto?, E o pai respondera-lhe, num tom mais áspero do que estava acostumada á ouvir-lhe: Não sei o que queres dizer, Mary.

Mas Joan sabia o que a mãe quisera dizer. Naquela manhã. sabia.

- Já estás levantada - perguntou-lhe, de súbito. Bart, sonolento.

-Estou, sim, Bart.

- Tenho um sono dos demónios, esta manhã - disse o marido, a bocejar ruidosamente. - Creio que fico mais um bocado.

-Está bem, Bart.

Que podia deitar num tão grande vazio, para o encher? Não havia nada suficientemente profundo para o encher bem, tudo quanto fazia era tão pequeno que flutuava apenas à superfície do insondável vácuo. Joan viu o céu clarear e, lentamente, os montes tornarem-se azuis, o Sol aparecer, vermelho, atrás dos seus cumes, subir, e a luz jorrar sobre a terra. Era de novo dia. O seu corpo desvairado não representava nada na imensidão do dia e da noite. Aquela casca de paredes e tecto era tudo quanto tinha para se abrigar das luas e dos sóis, dos ventos furiosos e dos milhões de estrelas, e da indiferença das pessoas que passavam. Afastou-se da janela e começou a desfazer a mala e a guardar as suas coisas nas gavetas.

De dia, aprendeu a trabalhar como nunca trabalhara. Não desperdiçava tempo a falar: as palavras ecoavam, de modo estranho naquele vácuo. Aprendeu a ser tão silenciosa como os outros, tão avara como eles de palavras desnecessárias.

-A que horas te levantas; Bart, para lavrar o campo de cevada?

- Às quatro e meia.

Não valia a pena dizer mais nada. Quatro e meia queria dizer pequeno almoço às cinco. E antes do pequeno almoço haveria preces e leitura da Bíblia. Joan escutava em silêncio, madrugada atrás de madrugada, a olhar pela janela fosca, enquanto o pai de Bart lia a Bíblia, versículo atrás de versículo, a acompanhar as linhas com a ponta do dedo grosso e gretado. Temia já a chegada do pino do Inverno. pois então a janela estaria escura e não a deixaria ver os montes clarear, ao nascer do dia. Mas o pino do Inverno chegou e a janela transformau-se num espelho no qual via cinco pessoas sentadas à volta de uma mesa coberta, de cabeças pacientemente inclinadas. Via-se a si própria, entre elas, e apressava-se a virar a cabeça.

Enquanto punha na mesa o leite desnatado frio, o pão frio e o naco de manteiga esbranquiçada e leitosa, olhava para a janela à espera da alvorada. Às vezes parecia que nunca chegaria. Outras, comiam o que havia para comer -não se comiam ovos porque se podiam vender e o café era um luxo, uma bebida forte para viciar a carne- e Joan começava a lavar a louça antes de a luz romper as trevas e se derramar sobre os montes como música.

Música! Esquecera-se de que a música existia. Descobrira atrás de uma das portas fechadas um velho piano vertical. Uma vez tocara-lhe, docemente. mas as notas tinham soado tão desafinadas que o fechara. De quando em quando, o pai de Bart ia à cozinha, onde a mulher e Joan passajavam e remendavam a roupa que os homens queriam vestir depois do banho semanal, e dizia, carrancudo, a apontar o livro de hinos vermelho que tinha aberto na mão: Vê se consegues apanhar esta música. Competia-lhe escoler os hinos porque era, havia trinta anos, superintendente da escola dominical. A mulher levantava-se, a suspirar, pegava no livro e ia sentar-se ao piano. O velho seguia-a, em palmilhas de meias, a resmungar: Desde que resolveram comprar estes novos livros de hinos, nunca mais me entendi.

Joan ouvia as notas desafinadas na outra sala, tocadas só com um dedo, e ficava à espera do silêncio ou de um grito: Nunca ouvi uma música de dança tão pagã! Se lhe agradava, porém, não gritava. O silêncio era a sua forma de agradecer tudo e o seu único louvor.

Uma vez, Joan tentou ser alegre, pois o seu feitio não lhe permitia que não sentisse um pouco de afecto por aqueles com quem lidàva. Por isso, num domingo de manhã, disse à mãe de Bart:

-Fica bonita com esse casaco castanho.

A mulher ficoú com um ar tão assustado e constrangido que Joan sorriu e tentou de novo ser alegre:

-Nunca ninguém lhe tinha dito que é bonita, nem mesmo ele? - e inclinou a cabeça na direcção do pai.

O velho fitou-a, de lábios cerrados numa expressão de espanto e perplexidade pela sua garotice.

- Detesto conversas corteses - declarou. - Não é honesto.

Espero que a minha mulher se apresente bem, e quando isso não sucede digo-lho.

Nesse dia tinham ido à igreja, como todos os domingos. Iam sempre, com a mesma obstinação, tanto debaixo de neve, chuva e vento como debaixo de sol. O pai de Bart chicoteava os cavalos, preocupado por ter de o fazer, porque era domingo e aqueles eram os seus animais. Uma vez, ao ler a Bíblia numa madrugada, muito fria, chegou aos Mandamentos... . Nem tu, nem o teu gado... mas de súbito parou, tirou os óculos e olhou para o grupo que o escutava.

-Gostava que isto continuasse e dissesse como se deve descansar os animais ao domingo, quando se tem de ir à igreja.

Fitou-os, um após outro, com o rosto iluminado pela luz do candeeiro. Joan viu, naquele momento, irromper nos seus olhos acinzentados, muito afundados nas órbitas, uma perplexidade de muitos anos. Todas as manhãs de domingo devia acordar com aquela preocupação.

Sam, com os olhos pequenos a brilhar sob a trúnfa ruiva, apalhaçada, comentou:

-É pena que não mencione um automóvel!

O pai fulminou-o com o olhar e gritou:

-Tu e a tua mania de brincar com tudo!

- Uma graça não faz mal a ninguém, parece-me - redarguiu-lhe o rapaz, um nadinha rebelde. - Nesta casa, até parece que uma graça é um pecado!

- Cala-te! - berrou o velho.

- Abram, Abram! - admoestou-o a mulher. - A gritares dessa maneira e com a palavra do Senhor aberta nos joelhos!

O pai recomeçou a ler, vergado ainda ao peso da mesma preocupação. Atormentava-se constantemente por não conseguir arranjar maneira de obedecer, à letra, ao que lia.

Mas nenhuma destas coisas enchia o vazio que Joan tinha dentro de si. Agora sabia o lugár de todos os pratos e colheres, os quartos que deviam ser varridos e esfregados e o segredo oculto atrás de cada porta. Sabia, também, que ninguém se sentava na sala, a não ser quando recebiam a visita de algum parente.

-Esta é Joan, a mulher do meu filho. Esta é a tia do Bart, Emma.

-Ouvi dizer que o Bart casou, mas não fui convidada para o casamento.

Os olhos pretos da tia Emma, enterrados na cara gordíssima e inexpressiva como a parte de baixo de uma torta de frutas, fitaram, joan.

-Grande raparigaça, hem? Quase tão alta como o Bart! Ela cozinha bem, Minna?

- Quem cozinha sou eu - respondeu a mãe de Bart, empertigada, e acrescentou, contra vontade: - No entanto, faz jeito aí por casa.

-Quem era a família dela?

A sua família? Alguma vez tivera algum seu e a quem ela pertencesse, uma família sua?

Bart, chamado do estábulo para ver a tia Emma, respondeu, lacónico:

-O pai dela era o velho pregador de Middlehope.

- Ouvi falar dele - declarou a tia Emma: - Diziam que estava um bocado desaparafusado...

- O meu pai? - perguntou Joan; sufocada.

-Claro que não era nada que não se devesse à idade e a tudo o mais... - emendou a tia Emma, apaziguadora, e Joan compreendeu que a mulher não pretendia ser desagradável.

Tinham, então, falado do seu pai!

Havia a sala, a sala escura onde não entravam, nem mesmo no dia de Natal. Oh, mas que era o dia de Natal naquela casa de silêncio?! Na véspera de Natal, armaram uma árvore, na catequese, em Chipping Corners. Naquele ano o Natal calhou num domingo e os cavalos tiveram de os levar, como noutro domingo qualquer. A festa não teve, porém, animação nenhuma. O pinheiro era torto e estava pobremente enfeitado com fitas prateadas com        pradas numa loja de bugigangas baratas. Mas havia uma estrela de papel branco, orlada de fita prateada, e o velho contou a história da estrela. As crianças aproximaram-se para ouvir – garotos das quintas, maltratados e de aspecto assustadiço, que trabalhavam desde manhã cedo até altas horas, garotos presumidos, filhos

dos pequenos comerciantes da aldeia. Aqui e ali, via-se o rosto angélico de uma criança que jamais pertenceria a qualquer das categorias. Ao olhar para uma destas, uma garotinha de cabelos castanhos, que observava as poucas velas da árvore e sonhava que eram centenas, Joan viu-se a si própria. Observou a pequenita a sorrir, e encontrou nos seus olhos um reflexo solitário do Natal.

Aproximou-se dela e disse-lhe: Feliz Natal! Mas a garota não

conhecia a frase e não lhe compreendeu o significado. Apontou com um dedito para a árvore e disse: Aquela ali está a cáir.

Aproximou-se mais, enquanto Joan endireitava a vela, e continuou a olhar, sózinha e extasiada.

Voltaram à quinta, onde os esperava um almoço melhorado:

carne de porco assada, maçãs assadas e um pudim de pão e passas. Joan arranjara algumas prendas para oferecer, não por eles, mas pelo Natal. Comprara lã para tricotar um par de sapatos de casa para o velho, fio de seda para uma gravata de croché verde para o Sam é outra castanha para o Bart, e um lencinho com uma rendinha á volta, para a mãe.

Embrulhou os presentes em papel brilhante e pô-los em cima da mesa, onde o papel vermelho fez um efeito bonito e alegre no branco da toalha. Mas ninguém falou nem pareceu ver os embrulhinhos, e ela por fim não se conteve que não perguntasse:

-Então, não vêm que são as prendas?

Um por um, pegaram nos embrulhos e abriram-nos, desajeitadamente, timidamente, quase contra vontade. Todos excepto o pai, que não abriu o seu.

- Não sei como lhe agradecer - murmurou a mãe. Sam sorriu, com intimidade, e disse:

-Verde é a cor favorita da minha pequena. Se fosse azul, devolvia-lha.

- Era, então, isto que andavas a fazer todas as noites, quando já devias estar na cama! - exclamou Bart.

O pai, como o seu embrulho era grande e estorvava, em cima da mesa, pô-lo no chão, debaixo da cadeira. Depois de comer, pegou-lhe e levou-o para o quarto, mas quando voltou trazia os sapatos calçados.

- Servem-lhe? - perguntou-lhe Joan, interessada.

-Estão um bocadinho pequenos, mas posso usá-los. Sem dizer palavra, Joan foi para o quarto frio, fechou a porta, sentou-se ao pé da janela e olhou para os montes cinzentos. Fazia um ano que se tinham reunido na igreja rescendente a pinheiro, onde a mãe jazia, morta, sob a estrela de Natal. Parecia ter passado muito tempo. A mãe estava fechada no seio da terra, no seio de tudo quanto acabara para sempre.

Não conseguia esquecer aquela garotinha cujos olhos sonhadores transformavam em centenas as poucas velas da pobre árvore de Natal, naquela manhã, na igrejinha nua.

Afinal, não podia reprimir o coração, como julgara. Sempre que se descuidava ou esquecia, ei-lo que vinha ao de cima, como uma bolha impelida por suave brisa. E Joan esquecia-se muitas vezes. Fê-la esquecer a alegria da neve, por exemplo. Voltou a sentir o antigo ímpeto de prazer infantil que a neve lhe causava, o prazer de ver tudo diferente, coberto de fofa e extensa brancura. Calçou as botas, enfiou o velho casaco encarnado de cabedal e andou por entre as árvores, num êxtase. O Universo mirrava, tornava-se pequeno e quente à sua volta e, por instantes, deixava de se sentir sozinha. A neve fundia-se e, debaixo, havia plantinhas verdes a cobrir-se de folhas e de rebentos tenros. A tarde, terminado o trabalho, esperavam-na, ocultos, os botõezinhos rosados dos medronheiros e os brancopérola das sanguinárias. Ajudava-a a suportar a solidão da casa o pensamento de quanto a esperava na intimidade da terra, pela qual vagueava sozinha, sem se sentir só. Encontrava prazer em pequenas coisas, florinhas, pedrinhas curiosas e pequenos vales estreitos, que descobria e que baptizava mentalmente: O meu valezinho onde encontrei os eritrónios; o meu charco... , Mas evitava a tremenda e lívida imensidão da terra e do céu, ao nascer do dia e ao crepúsculo, e à noite corria as cortinas porque o céu era enorme e cintilava, coalhado de estrelas frias.

Assim passou outro ano e outro Natal, e Joan reuniu dentro de si tudo quanto a podia ajudar a encher o vazio.

Ainda lhe restava, também, algo muito seu para encher esse vácuo. Rose e Francis estavam vivos, algures no mundo, e pertenciam-lhe. No princípio do ano, Rose escreveu-lhe, do outro lado do mar, a dizer que em breve teria um filho. Quando a carta chegou, Joan levou a mão aos lábios, para os conservar fechados. Queria ter a sua parte naquela ventura, queria que o bebé da Rose também fosse seu. Rose devia vir, agora, dessas terras distantes. Podia vir para ali, aquela era a sua casa e a irmã podia vir ter, ali o seu filho.

Começou logo a fazer planos. Era uma casa boa para ter um filho, uma casa sossegada e limpa. E havia os montes, também. O bebé devia nascer na Primavera e ela poderia deitá-lo num cestinho, debaixo das árvores. Os seus braços curvavam-se, já, a sentir neles o bebé da irmã. Joan riu-se, alto. A Rose com um bebé! Tinha de o dizer a alguém. Foi a correr ter com Bart, que estava no campo a levantar um muro de pedra.

- A Rose vai ter um bebé! - gritou-lhe. a agitar as folhas de papel fino da carta. - Devo escrever-lhe, a dizer-lhe que venha...

Bart continuou a levantar o muro. Tinha de completar aquele lado e o outro antes do pôr do Sol.

- Sabes como a mãe é. - lembrou.

- Queres dizer que ela. . não quererá a Rose?. O marido assentou uma pedra, em silêncio, antes de lhe responder, pesadamente:

-Nunca teve paciência para miúdos.

Havia mulheres que iam ajudar, no campo, mas a sua nem parecia pensar nisso. Bem, ninguém poderia dizer que não era bom para ela.

-Nunca pudemos trazer os outros rapazes cá para casa, depois das aulas - prosseguiu. - Ela considerava-os sempre como mais trabalho, tinha medo que desarrumassem e sujassem a casa.

Havia na sua voz qualquer coisa que levou Joan a vê-lo, de súbito, como um rapazinho sobrecarregado de trabalho e sem nenhuma oportunidade de brincar. Olhou-o, comovida, pela primeira vez, pela criança que via.

-A tua mãe nunca convidava outras crianças, para uma festa ou qualquer coisa do género?

- Nunca tivemos festa nenhuma - respondeu, devagar, enquanto partia uma pedra. - Ela não queria maçadas e o velho tinha medo de que aprendêssemos alguma coisa pecaminosa.

-Nunca ninguém os convidava? - perguntou-lhe, muito admirada.

Quando era pequena, uma festa era a coisa mais natural do mundo. Inesperadamente, muitas vezes sem motivo nenhum, a mãe exclamava, alegre: Vamos fazer uma festa! De um momento para o outro, a casa enchia-se de crianças barulhentas, com os vestidos de domingo, e improvisava-se uma orquestra com pentes a servir de gaitas e latas a fingir de tambores.

- Quem nunca convida não é convidado - disse Bart. Na cozinha, Joan anunciou à mulher pálida, eternamente sen tada ao lado do fogão:

-A minha irmã Rose vai ter um bebé. Estou tão contente!

- As crianças só dão trabalhos - respondeu-lhe a outra, a suspirar. - Desarrumam a casa toda.

- Não se sentiu contente quando os seus filhos nasceram? perguntou-lhe Joan, furiosa, ao recordar o rapazinho que Bart devia ter sido.

- Os meus filhos são bons, foram sempre bons. Mas, mesmo assim, deram trabalho. Cheguei a um ponto que até desisti de fazer tortas para eles. No fim de ter uma trabalheira, via-os devorar tudo em poucos minutos, como se bebessem leite. Desisti de as fazer quando eles andavam pelos dez anos. Três homens comem uma torta inteira num abrir e fechar de olhos e parece que se trabalhou para nada. Não era preciso.

Suspirou de novo, no meio da cozinha.

- Mas a minha irmã vem para cá. - começou, de novo, Joan; não desistiria com tanta facilidade.

De súbito, pensou numa chave que abriria a Rose a porta daquela casa. Uma vez por mês, no meio da semana, a mãe de Bart vestia o seu segundo melhor vestido preto e um dos rapazes ou o marido atrelava os cavalos e levava-a à igreja, a uma reunião missionária. Joan nunca queria ir, dizia sempre: Terei o jantar pronto, quando chegar. Fora apenas uma ou duas vezes e ficara sentada, calada, durante toda a reunião. Era como todas as outras a que assistira. As mulheres sentavam-se a coser, a ouvir falar de fomes, inundações e adorações de ídolos, mas de olhos voltados para si mesmas e para os seus, para a casa onde estariam de novo, à hora do jantar. Havia a colecta, ouviam-se tilintar pequenas moedas de prata e de cobre, e mais nada. No entanto, não faltavam, pois era um dever.

-Disse-lhe que a Rose e o marido são missionários?-Disse, sim. Pareceu-me sempre estranho, até, que não se interessasse pelas reuniões, sendo eles missionários. Bem, vou tra tar das batatas. As horas das refeições chegam mais depressa do que tudo o mais.

Levantou-se, a suspirar, do seu lugar ao lado do fogão. Não, ali não havia espaço para o filho de Rose nascer. Joan escreveu à irmã: Se alguma vez tiver uma casa minha... Sim,

porque, no fim de contas, não possuía nenhuma casa sua. Rose teria de ter o seu filho num país estrangeiro.

Começou a colocar uma imagem de Bart no vazio que tinha dentro de si. Precisava de uma imagem nesse vácuo e, por isso, foi-a compondo com o pouco material ao seu alcance. Ele é meu marido, pensava. Pegou em fragmentos de Bart e, com a ajuda da sua imaginação, reuniu-os numa imagem. Aproveitou a sua altura, a largura dos seus ombros, o seu pescoço forte e o tamanho dos seus membros. Mas não aproveitou as suas mãos, as suas mãos abrutalhadas, enormes, duras e tão grossas que pareciam incapazes de se endireitar e de lhe segurar realmente a mão, quando por acaso a tomava entre as suas. Aproveitou o seu queixo quadrado, o seu cabelo ruivo, escuro, de caracóis curtos; mas não quis os seus lábios lívidos e rígidos nem os seus olhos encarniçados, enterrados nas órbitas. Aproveitou, até, o seu silêncio e transformou-o em força. O sopro com que insuflou vida nessa imagem foi aquele momento no campo, quando o vira como um desajeitado rapazinho provinciano, ávido da alegria das festas e das brincadeiras, mas condenado a trabalhar, a levantar-se cedo para mungir vacas, partir lenha e levar comida e água áos animais, quando os outros rapazes da sua idade jogavam á bola, patinavam, escorregavam em trenós e davam ou eram convidados para festas.

Nunca houvera alegria naquela casa, não havia espaço para isso. A sala de visitas estava atravancada com um antigo jogo de cadeiras de crina, mesa polida e carpete às rosas, ainda limpa e em bom estado ao fim de cinquenta anos; a sala de estar estava atravancada com o desafinado piano, o armário rom conchas, flores de cabelo, caixinhas e bocados de vidro. Pobre Bart! Pobre rapazinho condenado a trabalhar!

Começou a ser amável com Bart, a falar mais com ele. Haveria, no seu silêncio, alguma coisa que estivesse viva, embora parecesse adormecida? Talvez encontrasse nele pensamento e imaginação. se não amor, ao menos pensamento e imaginação. Seria bom encontrar essas duas coisas enterradas sob as camadas do seu imenso silêncio, do silêncio que não quebrava de dia, pois não era quebrar nenhum silêncio dizer: Onde puseste as minhas calças velhas?, Ou: Estão remendadas e penduradas no segundo prego, atrás da porta. " Do silêncio que não quebrava de noite, que não quebraria mesmo que ela gritasse, em voz alta, o que tantas vezes gritava mudamente. num choro interior desesperado e sem lágrimas: É só isto, Bart? Não há mais nada? Pois ele possuía-a noite após noite, apressadamente e no mesmo silêncio em que comia, bebia e adormecia.

Mas às vezes, durante o dia, quando estava longe dele, Joan recordava o rapazinho ávido que vira no campo. Talvez Bart pudesse renascer desse rapazinho, transformar-se num homem diferente daquele que o pai e a mãe tinham feito.

- Bart, não gostavas que te lesse, de vez em quando?

- O quê ?

-Os meus livros. Trouxe-os naquela arca de tampa abaulada.

Lembras-te? Arrumei-os numa prateleira, no sótão. A tua mãe disse que, aí, não a estorvariam tanto.

- Claro - respondeu com tanta afabilidade que a imagem formada por Joan palpitou de vida.

A noite, no quarto, abriu o livro que escolhera. De tarde, terminado o trabalho da casa, fora ao sótão, sentara-se e tirara, um por um, os livros da prateleira. Estavam ali os que tivera na universidade. Numa página de um deles, encontrou a assinatura de Mary Robey e as palavras: Quando vires isto, lembrar-te-ás de mim. Lembrou-se, de facto. Fora outra vida. uma vida que terminara quando se formara. Era estranho como a vida podia terminar bruscamente e recomeçar de novo, absolutamente diferente, como se a pessoa fosse outra! Mas aqueles livros. alguns dos quais tinham pertencido à mãe. eram como um elo frágil, a ligar esse passado àquela hora. Talvez conseguissem, também, ligá-la a Bart em qualquer espécie de vida comum. Escolheu com cuidado e decidiu começar pela História de uma Quinta Africana. Achara-o perturbador, quando o lera a primeira vez e se vira na criança da quinta. Depois, Miss Kinney dera vida à África e Joan compreendera tudo.

Começou a ler para Bart, que se estiraçara na pele de carneiro estendida diante da lareira apagada. Começou a ler em voz calma e certa, ansiosamente. Talvez aquilo fosse o início de uma espécie de camaradagem, de companheirismo... Talvez ela não tivesse tentado o suficiente... Leu, um bocado, e depois invadiu-a, de novo a mesma sensação de perturbada realidade que experimentara na primeira leitura. Por fim, a tensão foi excessiva e Joan parou, trémula, de olhár suplicante. Riu timidamente, de olhos húmidos.

- Bart, esta criança é tão parecida comigo que...

Mas ele dormia profundamente, de boca aberta. Devia dormir, até, havia já muito tempo.

Embora arrumasse os livros e decidisse lê-los sozinha, subir quando lhe apetecesse a escada do sótão e entregar-se à leitura, continuou a ser amável com Bart, que não passava de um rapaz.

Agora sabia não haver nele mais do que qualquer podia ver, que ele nunca seria mais do que um rapaz. Uma vez, ao ler num dos seus livros uma história acerca de um homem e de uma mulher, deu consigo a chorar. Foi como despertar de um sono e encontrar-se a chorar. Não era um choro superficial, só de lágrimas, era um pranto que vinha de uma mágoa funda, nas raizes do seu ser.

Ela era, agora, uma mulher. Não restava nada de Joan, a rapariga.  

Sabía porque chorava, mas disse com toda a firmeza ao seu coração choroso: Sê justo. Casei com ele para ter um lar e segurança, e tenho essas duas coisas.

O livro fê-la recordar o modo como beijara Martin Bradley.

Não amava Martin, não o queria, mas não esquecia aqueles beijos, os únicos que dera a um homem. Não beijava Bart. Não podia. Quando ele insistia para que o fizesse, tocava-lhe nos lábios, de fugida, e mantinha os seus imóveis e passivos, sob os dele.

Devo sempre ser justa com o Bart, dizia para consigo, dia após dia.

As vezes, quando se deixava possuir passivamente, à noite censurava-se: Fiz-lhe mal, prejudiquei-o. Numa das quintas destes montes encontraria, com certeza, uma mulher que o amasse à sua maneira. Lembrava-se do camponês e da rapariga que se tinham ido casar ao presbitério, e pensava, cheia de remorsos, que o homem era como Bart. Privei-os a ambos daquilo a que tinham direito, para ter um tecto a cobrir-me. Devo recompensá-lo.    

Por isso era muito bondosa com Bart e não lhe recusava nada nem de dia nem de noite. Acorria assim que ele a chamava, do barracão ou do pátio: Esta manhã leva-me um balde de água limpa, Jo. Estarei no campo do lado oeste. E ela respondia paciente: Sim, Bart. Vem ver aqueles dois porcos velhos a lutar, Jo. de rebentar a rir!, E ela ia, parava ao lado dele, na pocilga, e olhava, revoltada e nauseada pelos grunhidos dos animais furiosos. A noite, ele dizia-lhe, grosseiramente: Não adormeças ainda, minha pequena. E, como sempre, ela respondia-lhe:

Está bem, Bart.

Ao principio, odiara o silêncio da casa, que a oprimira intoleràvelmente, mas agora esse mesmo silêncio era uma capa sob a qual se podia esconder. Sentia-se grata pelo hábito de silêncio daquela família. Como ninguém falava e ninguém se revelava, ela também não precisava de falar nem de se revelar a nenhum deles.

Silêncio era protecção. E, dia e noite, continuava a ser amável com Bart.

No meio da sua firme e determinada amabilidade para com Bart, concebeu o seu filho. Calou-se, sufocada de alegria, até ter a certeza. Depois, quando não lhe restaram dúvidas, deixou de se sentir só. Nunca mais estaria só. Tinha a companhia absoluta do seu filho.

Por isso já não precisava da imagem de Bart, podia aceitá-lo como ele era. Agora, em vez da imagem. havia a realidade do

seu filho, uma realidade que levava consigo para toda a parte, uma vida secreta que crescia firmemente dentro de si. Em breve, como o botão de uma flor a abrir diàriamente caminho para a luz, também o seu filho veria a luz e ela veria o seu filho. Mas já o considerava seu, tão seu como se o tivesse, carne e sangue, nas mãos. Não se sentia impaciente, pois tinha-o. Bastava-lhe que estivesse vivo, que crescesse e se mexesse. Levava-o consigo a todos os escaninhos do seu ser, o filho não estava só no seu corpo, estava também no seu coração e no seu espírito. Era para èle que vivia, e até mesmo quando lia punha o que lia, conscientemente.

na sua formação. Este pensamento é encantador, dizia para consigo. Dou-lho, fundo-o nele. Mas precisava, também, de arranjar um lugar para ele naquela casa. Encontrou no sótão uma velha cadeira de braços, arranjou-a, tornou-a fofa com uma velha manta, e passou a sentar-se nela, junto da janelinha de empena virada para oeste, a sonhar e a transmitir os seus sonhos ao sangue palpitante, áquele sangue que alimentava e modelava o seu filho.

Deu balanço a tudo quanto compunha a sua vida, para ver o que queria para o filho. Aquela casa seria a sua casa aquela terra e aqueles montes seriam, durante anos, a sua terra e o seu mundo. Avaliou tudo minuciosamente, cada parte de per si, para escolher o que desejava para ele. Ali viveriam os dois juntos, ela e ele, tomando o que queriam, fazendo o que não tinham. Aceitaria as grandes árvores protectoras, os montes ondulantes, os vales cheios de florestas, as velhas rochas de formato curioso, o regato na orla do milharal, o pântano onde cresciam orquídeas e íris bravas, todos os seus pequenos bens particulares. Aceitaria o está bulo com o seu grande palheiro, o gado a mugir e a dar leite.

Iria ela própria ao estábulo, a partir de agora, buscar, intacto e completo, o leite para o filho. Quando o pai de Bart dissesse, vendemos a nata, responder-lhe-ia: O meu bebé beberá leite com nata. É muito mais importante para ele beber leite completo do que vender a nata à gente da cidade. Iria, também, buscar os ovos que eles guardavam tão ciosamente como pedras preciosas. O filho devia comer ovos todos os dias. Começaria já a comê-los para ele, agora que o seu corpo era a fonte onde se alimentava. Por isso, tinha de lhes dizer que o esperava. Guardou o seu segredo o mais que pôde, para poder viver com o filho e o filho com ela. em silêncio. Mas, por amor dele, disse o que tinha a dizer.

- Bart - anunciou uma noite, no quarto, quando o marido despiu as calças de trabalho e ela as apanhou do chão e as pendurou no prego, atrás da porta -, vou ter um filho.

- Vamos?

Olhou-o, surpreendida com aquele vamos. Não lhe passara pela cabeça que o filho pudesse ser de mais alguém além de si própria.

A cara quadrada e por barbear de Bart abriu-se num grande sorriso.

-Já andava a perguntar a mim mesmo quando isso aconteceria.

-Quero que me arranjes todos os dias um litro de leite completo, com a nata - disse-lhe Joan, sem hesitar. - E quero, também, dois ovos para o pequeno almoço. O bebé precisa deles.

Bart coçou a cabeça e olhou-a.

- Não sei se poderá ser... O meu pai anda um bocado em baixo, desde que a geada estragou as árvores de fruto...

-Tem de ser, Bart.

- Com certeza - concordou, amável. - Se tu o dizes, falarei ao pai.

No dia seguinte, na cozinha, a mãe de Bart disse-lhe:

-Nunca me apapariquei, criei os rapazes com leite desnatado. Gente como nós não precisa de natas. Vendem-se bem e nós

temos falta de dinheiro.

Joan não respondeu. Agora também sabia recorrer ao silêncio obstinado. Continuou a amassar o pão, imperturbável. Outra coisa que aprendera fora a fazer bom pão, grandes cacetes cor de neve, de crosta acastanhada. Um dia, o filho entraria naquela cozinha, a correr, e dir-lhe-ia: Mãe, tenho fome. E ela responderia, Sim, meu filho, e cortar-lhe-ia uma grande fatia de pão feito por si que barraria muito bem de manteiga, diante dos olhos deles. Há mais, meu filho, se quiseres, acrescentaria, em voz bem clara, para todos ouvirem. Por ele, seria implacável; não lhe faltaria nada.

Por ele, começou a entrar abertamente na despensa e a despejar no seu leite desnatado natas que já estavam engarrafadas, para vender. Por ele, ia à capoeira e tirava dos ninhos os ovos que queria. Observavam-na num silêncio carregado de espanto e de cólera, de tal modo que Bart tinha medo do pai e tentava aplacá-lo com trabalho extra. Que o faça, pensava Joan, triunfante, que o faça pelo meu filho!

Só Sam se atreveu a comentar em voz alta. com inveja e hostilidade:

-Que sorte a sua estar assim, hem?

-Cala-te, Sam! - ordenou-lhe a mãe, escandalizada, mas escandalizada porque não achava decente saber-se que Joan ia ter um filho; essa era uma das coisas acerca das quais não se falava.

-Sorte porquê, Sam? - perguntou Joan, calmamente, Quero que o meu filho seja forte.

O rapaz não soube que responder a tamanha franqueza. Corou e recolheu-se ao silêncio habitual. Estavam escandalizados com a indecência de Joan, mas ela já não tinha medo do seu silêncio.

Aprendera a viver com ele. Servia-se do que queria e não tinha medo.

Um dia, chegou uma carta para si. Só costumava receber cartas de Rose, pois Francis não escrevia, perdera-se no mundo e Joan não sabia onde ele estava. Esperava, apenas, que um dia voltasse. Rasgou precipitadamente o sobrescrito, ao reparar que o selo não era estrangeiro. Mas não fora Francis quem escrevera a carta. O papel tinha impressas as palavras: DEPARTAMENTO DE SEGURO DOS SACERDOTES.

Leu muito depressa, primeiro a carta e depois o cheque preso com um alfinete a um canto. O pai, dizia a carta, tinha, havia muitos anos, um pequeno seguro. Como só recentemente haviam tido conhecimento da sua morte, só agora mandavam o dinheiro. Mais de dois anos antes, o pai escrevera-lhes a informar que a mulher morrera e que desejava que a filha mais velha beneficiasse do seguro, se ele falecesse. O cheque era de quinhentos dólares.

Joan sentou-se no velho tronco caído junto da caixa do correio. Se tivesse recebido aquela carta antes de casar com Bart. Mas não recebera. Ou se a tivesse recebido antes de o seu filho começar a viver dentro de si... Mas não recebera.

Agora estava presa àquela casa, devia continuar nela para que fosse um lar para o filho, para ele nascer no seio de uma família. Não podia comprar a sua liberdade com dinheiro. Misturara com o seu sangue o sangue daquela gente e nunca mais se poderia libertar. Continuou sentada, a olhar os campos inundados pela luz matinal. Do outro lado do vale, no monte, viu Bart a lavrar, pequeno na imensidão da terra, e ouviu a sua voz gritar aos cavalos, muito fraca e abafada pela distância. Não podia comprar a sua liberdade. Bart fazia parte dela. Mas não lhe falaria no dinheiro. Pelo menos isso seria seu, só seu. Depositá-lo-ia em seu nome no banco de qualquer cidadezinha aonde eles não fossem. Saberia que lá o tinha, se precisasse, seria uma força secreta.

Começou a sentir ciúmes de Bart. A medida que os dias passavam e o filho se movia e crescia dentro dela, desejava que fosse só seu. A participação de Bart na sua concepção fora tão pequena, tão inconsciente, tão acidental! Além disso, como podia Bart ser um pai se não passava de um rapaz? Agora, por exemplo, desejava apaixonadamente um automóvel, como os rapazes costumam desejar qualquer coisa.

-Jo, tenho de arranjar um carro! Tenho setenta dólares em dinheiro, além da minha parte nos porcos e nos frangos. Está-me a parecer que vou comprar um carro.

A ideia excitava-o e desejava que ela concordasse.

-Não achas que devíamos ter um carro? Quem não tem carro, hoje em dia. anda devagar. Todos os tipos da minha idade guiam os seus automóveis. Além disso, é ridículo ir à igreja ou à vila naquela velha carripana, atrelada aos cavalos de lavoura. Se o meu pai não fosse tão bota-de-elástico. . Sei que ele tem dinheiro no banco.

- Joan sorriu, triunfante. Como podia aquele rapaz ser pai do seu filho? Sorriu-lhe, com tolerância.

- Com certeza, Bart. Porque não?

- Podia comprar um carro usado! - exclamou, entusiasmado.

-De que cor gostas mais? Encarnado ou azul? Talvez um verde bonito. Gosto de verde.

Continuou a fazer planos, enquanto Joan pensava: Deixá-lo ter o carro. Significará mais para ele do que o filho, que poderá ser só meu.

Quando, no domingo seguinte, Bart chegou a casa num velho automóvel, Joan foi admirá-lo. O proprietário elogiou-o, em voz alta:

- Nunca vi ninguém aprender a guiar tão depressa como ele! Expliquei-lhe umas coisas e percebeu logo.

Bart quis exibir-se:

- Chegue-se para lá e deixe-me experimentar - disse ao proprietário, e sentou-se ao volante. - Ora vejamos. O carro andou, devagar, e no rosto de Bart surgiu uma expressão de êxtase.

Joan sorriu, satisfeita. O filho era só dela. Agora era mais fácil ser agradável e amável. Passou a ser ambas as coisas com todos eles.

Mas fazia-lhe falta alguém com quem falar. Se a mãe fosse viva, correria para ela e dir-lhe-ia: Mãe, vou ter um filho!

Via os olhos escuros da mãe iluminarem-se, como se uma luz interior se tivesse acendido, como duas janelas a brilhar na noite. Oh, meu amor! Sentia osbraços ternos à sua volta, num abraço cheio de felicidade. Joan sentia, também, a falta de Rose e de Francis. Havia tanto tempo. Como fora possível terem-se separado assim? Desejava tanto vê-los! Como para mitigar a sua saudade, chegou

uma carta de Rose: o seu filho nascera, um rapazinho tão frágil que não tinham ousado esperar que vivesse. Mas vivia. Nascera num quente dia de Abril, numa cidade chinesa, era louro e parecido com o Rob. Rose não tinha leite para o amamentar. Os seus seios redondos eram inúteis, de bicos demasiado pequenos. O bebé não os conseguia agarrar, com a boquínha, ou era demasiado fraco para o tentar. Por isso tinham contratado uma ama de leite chinesa, uma camponesa que tivera uma filha e que, por dinheiro, daria o leite da sua menina ao menino de Rose. Temos a impressão de que só as nossas preces o têm conservado vivo, eserevia Rose. Ao ler a carta, Joan desejou ter nos braços a frágil criaturinha. Olhou, orgulhosa, para os seus próprios seios, túrgidos e fortes. Se os nossos filhos nascessem ao mesmo tempo e estivéssemos juntas, creio que poderia alimentar os dois. Devo ter muito leite, mais do que o necessário.

- Acho que a posso ajudar, quando a sua hora chegar - disse a mãe de Bart. - Se alguma eoisa não parecer bem, Mrs.      

Potter, de Clarktown, é parteira.   

- Já fiz planos a esse respeito - respondeu-lhe Joan. - Chamarei o Dr. Crabbe.

-Não me parece necessário um verdadeiro médico - objectou a sogra, em tom de censura, enquanto descascava as batatas.

- Não se trata de nenhuma doença...

- Ele conhece-me - redarguiu joan, imperturbável:       Passava a ferro um chambrezinho branco, simples, que acabara de fazer. Era o sexto.

- No sótão há umas roupinhas do Sam, quando era pequeno - dissera-lhe a mãe de Bart, dias antes.

-Não, não é preciso.

Não consentiria que a roupa velha do Sam cobrisse a carne tenra do seu filho. A ideia repugnava-lhe. Não tolerava o contacto de Sam, nem mesmo acidentalmente, ao passar. Abriu a arca de tampa abaulada e procurou entre as roupinhas de bebé, os chambres, as botinhas e os casacos encarnados que o Francis usara. Eram velhos e tinham muito uso, mas ainda estavam bonitos.

A mãe fizera-os de bom pano, bordados e com rendas estreitinhas.

Um dia, em fins de Outubro, atrelou um cavalo ao carro e foi a Middlehope, consultar o Dr. Crabbe. Escolheu uma segunda-feira, porque era um dia em que as pessoas estariam atarefadas e assim talvez não encontrasse ninguém.

-Levo-te no automóvel, se esperares que acabe o trabalho - ofereceu-se Bart, com orgulho.

Mas Joan não confiaria o filho à sua idiota maneira de conduzir. Por isso respondeu-lhe, calmamente:

-Obrigada, Bart; prefiro ir mais cedo.

Partiu, satisfeita sob o sol fraco de Outubro. Habituara-se, ùltimamente, a escolher coisas para a vida do filho. Escolho estas cores, pensava, feliz. O vermelho daquela trepadeira, o branco e amarelo do tronco daquela bétula, aquele esquilo brincalhão... , Juntos, veriam todas aquelas coisas e, em breve, dali a um ou dois anos, poderiam falar delas. Então teria sempre alguém com quem falar. Queria observar e ver tudo quanto pudesse, para enriquecer a sua vida. Aqueles montes não o aprisionariam, aquelas florestas não lhe pareceriam negras nem assustadoras, jamais se sentiria solitário naquele silêncio. Ela estaria sempre presente.

Entrou na rua soalheira e sossegada, passou pelo cemitério pela igreja e pelo presbitério. Nos degraus da casa, estavam sentadas duas crianças, um menino e uma menina, a comer fatias de pão. Olharam-na, quando passou, e uma voz ríspida, de mulher, perguntou:

-Mollie, onde está o Donn?

       - Estamos aqui - respondeu a pequenita.

- Toma bem conta dele - recomendou a mulher.

No jardim, um homem ainda novo, em cabelo e um bocadinho calvo, juntava, com um ancinho, as folhas caídas. Era o novo padre. A segunda-feira era o seu dia de descanso, como fora o do pai. Mas o pai nunca ancinhara as folhas do jardim, passava      o dia todo no gabinete, a ler livros que não tinha tempo de ler nos outros dias, ou ia visitar alguns paroquianos. Mas aquele homem era agora o sacerdote, aquela a sua casa e aqueles os seus filhos. Dir-se-ia que as duas crianças eram os fantasmas dela própria e de Francis, tão pouco tempo passara desde que se tinham sentado, também, naqueles degraus, a comer pão com açúcar. Pareceu-lhe, até, ouvir a voz da mãe:

-Onde está o Francis, Joan?

-Estamos aqui, mãe!

-Está bem, querida.       

Tinha de encontrar o Francis! Desviou o pensamento do que ali ia fazer para pensar no irmão, preocupada e com a consciência a acusá-la. Não o devia ter deixado ausentar-se por tanto tempo... Mas ele não escrevia e ela não sabia como encontrá- lo.

Tinha de escrever muitas cartas, de as expedir como setas, na esperança de que uma delas o encontrasse e lho devolvesse. .

Aguardou um momento, no consultório do Dr. Crabbe, que não tardou a aparecer. O cabelo formava-lhe uma auréola branca e anelada á roda da cabeça calva, tinha os olhos baços e inflamados e as mãos tremiam- lhe.        

-Valha-me Deus, Joan Richards, és tu! Porque demônio não... Em que diabo de buraco te meteste? Tenho andado por todas estas redondezas, a visitar doentes, e nunca te pus a vista em cima!    

Joan sentiu os lábios a tremer. Apetecia-lhe chorar, apetecia-lhe chorar muito e contar tudo ao Dr. Crabbe, ser outra vez   pequena, sentir, por instantes o calor de uma ternura familiar.

Mas dominou-se. Não valia de nada tentar voltar atrás.

Riu-se e agarrou-lhe nas mãos trémulas.

-Vou ter um bebé, Dr. Crabbe, e quero que me ajude.

-Quem diría, quem diria! A tua mãe procurou-me exactamente com essas palavras. Mas senta-te, filha, quero fazer-te algumas perguntas.       

Joan entregou o corpo às suas mãos, grata e confiante. Ele observou-a, a fungar e a resmungar, como outrora.

- Tens um corpo maravilhoso, Joan. São como um pero! Tudo perfeito! Meu Deus, gosto de ver um bom corpo! Lavoú as mãos, satisfeito, sempre a tagarelar.

- A velha Mrs. Kinney ainda não morreu, Joan. O ano passado teve uma pneumonia e eu tive de a curar, diabos a levem! Ela estava convencida de que desta é que iria. Sabes que tem medo de tudo, até de andar de automóvel. Mas curou-se. Juro-te, no entanto, que hei-de viver para a enterrar! A Netta e o Ned casaram, sabias? Estão à espera de um bebé, para o mês que vem, mas com ela o caso é diferente. Tem uma constituição fraca. Não sei o que irá acontecer. Estou preocupado, palavra.

Não lhe fez mais perguntas. Só à porta. antes de se despedir, ergueu as sobrancelhas brancas, fitou-a e indagou, vivamente:

-És feliz, Joan?

Joan sorriu-lhe.

-Porque não? Vou ter o meu filho.

No caminho para casa, começou a cantarolar. Havia meses que não cantava. Agora, se dispusesse de um bocadinho de tempo, talvez conseguisse compor, de novo, música. O isolamento opressivo do seu coração terminara. Era singular, mas sentia uma canção nos lábios, à espera de ser feita. Num momento surgia-lhe uma frase, a seguir outra. Quando chegou a casa foi direita ao sótão, procurou um bocado de papel e anotou o que compusera mentalmente.

Mas embora esperasse, não conseguia encontrar um fim. A canção pairava no seu espírito, incompleta. e Joan deixou-a ficar assim. Era uma canção dedicada a um filho ainda por nascer:

O fim surgiria a seu tempo.

Enquanto esperava pelo filho, a trasbordar de ternura, escreveu a Rose uma carta mais cheia de calor e meiguice do que quantas lhe escrevera já. Fala-me do Davidezinho. Sinto que também é meu... Tentava imaginar o bebé frágil e louro, alimetado por uma mulher de pele escura. e pensava como seria a sua sobrinha e a paisagem chinesa onde nascera. Se Rose lhe dissesse mais coisas... Não conseguia, por mais que se esforçasse, imaginar como era a vida da irmã. Quando o tentava, via apenas a imagem estática de uma igreja, a brilhar entre formas escuras e vagas de templos, e um rio de gente amarela a sair destes e a entrar naquela. Mas isso não podia ser vida. O trabalho ia bem, dizia Rose. David tivera umas febres - malária, supunham -, mas já estava melhor. Deus abençoava-os e, naquele ano, receberiam mais cinquenta membros, aproximadamente. Rob desbravava novo território. O povo era hostil e a sua vida corria perigo, entre eles, mas não tinham medo. Entregavam-se com firmeza ao trabalho de Deus, a pregar o Evangelho a ouvidos contrariados, deixando a colheita ao cuidado do Senhor. Esperava que Joan tivesse o seu filho com mais facilidade do que ela. David interferia muito com as suas aulas de catequese, mas em breve estaria mais crescidinho e voltaria tudo à normalidade.

Quem me dera tê-lo comigo!, pensou Joan, enquanto dobrava a carta. Podia cuidar dele sem dificuldade. Creio que aborrece a Rose... Não consigo imaginá-la com um bebé nos braços, a dar-lhe banho e a vesti-lo.    

Francis continuava a não responder às suas cartas. Joan pensava nele enquanto esperava o seu filho, preocupava-se por sua causa. Agora parecia-lhe vê-lo sempre como quando era pequeno, de camisola encarnada, olhos muito pretos, faces coradas e redondas e cabelo preto, um bocadinho encaracolado nas pontas... Joan, se vais brincar para casa dos Winters, leva o Frankie contigo...        

Sim, mãe. Anda, Frankie.

Se, às vezes, se impacientava com os seus passos curtos e a

sua indolência, bastava-lhe olhar para a sua cara e para o seu corpo gordinho para se enternecer. Nenhuma das suas amigas tinha um irmãozinho tão bonito! -Nem queria pensar no que sentiria se tivesse um anãozito engelhado e de olhos deslavados, como o Jackie da Netta! Sentia-se sempre cheia de orgulho, quando passeava na rua com o Frank. Não raro encontravam um desconhecido que exclamava: Que bonito rapazinho! E ela respondia, orgulhosamente: É o meu irmãozinho!

Mas, agora, ele nunca lhe escrevia.     

Numa manhã gelada de segunda-feira, quando lavava a roupa debaixo do ulmeiro, no pátio, levantou, de súbito, a cabeça e viu-o a descer a estrada, direito a casa, de maleta na mão. Custava-lhe a crer que fosse ele, mas aquela era a sua maneira de andar.

E era próprio dele, também, aparecer assim, de repente, sem avisar.

Joan endireitou-se e correu, tanto quanto o seu estado permitia, ao seu encontro, para o abraçar.

       - Oh, Frank! - exclamou, a rir, mas com vontade de chorar. -Tenho pensado tanto em ti! Porque não respondeste às minhas cartas? Escrevi tantas!

Oh, que bom era ter os braços à roda de alguém, cheia de amor e ternura!

E como o irmão crescera! Estava mais alto do que ela e mais simpático do que nunca. Mas tão magro! Os seus olhos percorreram-no num instante. Trazia o mesmo fato azul com que partira, coçado e ruço nos punhos e nos cotovelos e sem bainhas, nas calças. Mas a cara era a dele, embora tivesse perdido a rosada cor da mocidade e se houvesse tornado ossuda e encovada nas faces e nas têmporas. Parecia muito cansado.

- Só recebi duas cartas - respondeu-lhe. - Demorei um bocado a vir, a chegar aqui.

- É a tua casa - declarou Joan, apressadamente. – Onde quer que eu esteja, será sempre a tua casa.

Frank não lhe respondeu. Seguiu ao lado dela, para casa. Joan levou-o para a sala de jantar, a única que estava quente naquele dia frio, de Outono. Depois ficou sem saber onde o instalar.

- Espera - pediu-lhe. - Vou perguntar à mãe do Bart.

Na cozinha, disse à sogra:

- O meu irmão chegou. - E, após uma pausa: - Pode... Em que quarto o instalo?

A mulher levantou a cabeça do fogão, surpreendida.

- Quanto tempo se demorará? - perguntou, passados momentos; nunca ninguém tinha ido a sua casa para ficar.

- Não sei. Ainda não tive oportunidade de conversar com ele.

A mãe de Bart levantou a tampa do fogão e empurrou um toro nodoso, de lenha. Como a tampa não se ajustasse, bateu-lhe.

- Pode dormir com o Sam ou naquela cama velha, do sótão.

Dormia lá um empregado nosso, quando os tempos eram bons; mas há muito que não dorme lá ninguém. Desde que não seja Verão; fica-se lá bem. Há mantas naquela arca velha, no sótão.  

Joan voltou à casa de jantar e agarrou na mão de Francis.        

Estava tão dura e calejada que a olhou, surpreendida: Reparou, então, que estava encardida, com um encardido tão entranhado que parecia que nunca mais sairia.

-Que andaste a fazer?

As mãos de Francis tinham sido esguias, de articulações flexíveis, mas agora a pele estava cheia de cicatrizes e as unhas estavam partidas e negras.

-Trabalhei em oficinas de automóveis e, nos últimos seis meses, numa mina de carvão, na Virgínia Ocidental.

- Numa mina! - exclamou, espantada. - Pensei que quisesses voar!  

- E quero. Mas perdi o emprego... Nestes tempos malditos não se consegue segurar um emprego. Segui para o Sul, com o meu companheiro; constara-nos que havia trabalho nas minas. - Soltou uma gargalhada amarga. - És capaz de me ver numa mina, Joan, a mim, que quero voar? - Sentou-se e meteu as mãos encardidas, outrora esbeltas, no cabelo preto demasiado comprido.

- Vem para cima - disse-lhe a irmã. - Vamos para o meu quarto. Quero saber tudo.       

Seguiu-a pela escada principal, sem compreender por que motivo ela hesitava, perceptivelmente, e depois dissera, com firmeza: -Sim, vamos por aqui.       

- Gostava de tomar banho, Joan - disse-lhe, já no quarto. - Há dias e dias que venho a pedir boleias.   

Joan hesitou de novo. Havia a casa de banho, mas... O filho que trazia dentro de si deu-lhe forças, naquele dia, por amor de Francis. Um dia, o filho seria um homem, como o irmão, e não se lavaria numa celha de madeira, no barracão.

-Eu mostro-te onde é a casa de banho.       

Enquanto ele se lavava, desceu de novo a escada. Por momentos, foi suficientemente tola para ter medo daquela mulher gorda e sílenciosa, que parecia não sair, nunca, da cozinha. Escutou, para saber se Francis fazia barulho. Dantes, fazia sempre muito barulho, quando tomava banho, abria as torneiras todas, deixava cair a saboneteira, cirandava de lado para lado, descalço. Mas agora não se ouvia. Por momentos, foi tão tola que chegou a pensar em não dizer nada à mãe de Bart. Podia arrumar tudo outra vez. Mas depois endireitou a cabeça. Não teria medo de nada, não teria medo, ela que ia arranjar lugar para o filho viver naquela casa.

A porta da cozinha, informou, muito calma:

- O Francis está a servir-se da casa de banho. Vem de muito longe e está cansadíssimo.

Sustentou, sem hesitar, o impacto dos olhos da mãe de Bart, olhos deslavados, de um castanho sem profundidade nenhuma. Eram da cor da água rasa, suja de folhas apodrecidas, a correr sobre pedras. Fitou-os fírmemente, a desafiá-los. As vezes era bom ser alta e forte. Os olhos da mulher desviaram-se dos dela e baixaram-se.

- Não há muita água quente. Se ele gastar demasiada, não chegará para a louça. Quanto tempo disse que ele ficava?

- Não sei.

Pôs um prato para o irmão ao lado do seu, para o almoço, e subiu de novo a escada. Francis estava vestido e sentado no quarto. Agora que estava limpo, parecia muito pálido.

- Estás tão magro, Frank! - exclamou, preocupada. O irmão sorriu-lhe. Dantes, quando sorria, os seus olhos cintilavam, mas agora continuaram sombrios.

- Não tenho enchido a barriga com regularidade. Não me encho com pouco. Quando não era eu que pagava, não dava

por isso.

Olhou à sua volta, inquieto.

- Que espécie de casa é esta ? Não vi o teu... ainda não vi

o Bart. Não consigo imaginar-te casada! - Os seus olhos percorreram o corpo da irmã, delicadamente, e desviaram-se.

-Vou ter um bebé, em breve, Francis.

- Sim... Espero que sejas feliz.

       Joan não lhe respondeu. . Agora que Frank ali estava, tinha outra vez perto de si alguém muito seu. Apetecia-lhe conversar com ele, fazer-lhe confidências como nunca fizera. Mas ele conservava os olhos afastados dos seus e a sua reserva coagiu-a.

- Sinto-me feliz por ir ter um filho - murmurou.

Esperou que dissesse qualquer coisa, mas Frank continuou calado e ela compreendeu que não podiam falar de si mesma.

- Fala-me de ti - pediu. - Conta-me tudo. Tenho pensado tanto em ti! Porque perdeste o emprego?

-Nunca seria nada, se lá continuasse. Só me encarregavam de lubrificar peças e fazer limpezas, enquanto todos os rapazes com estudos subiam, mesmo que tivessem entrado depois de mim.

Não há justiça nenhuma neste sistema, Joan. Está podre. Aprendi muito, desde que saí de casa. Outrora pensava que, se trabalhasse bem e com afinco, acabaria por subir, mas acabei por pôr de parte essas ideias, como pus de parte todas as tretas que o pai pregava.

Ele falava, falava, mas não sabia nada de nada, desconhecia a realidade. - Um meio sorriso amargo distendia-lhe os lábios.

- Ele acreditava no que dizia - apressou-se Joan a afirmar.

-Oh, com certeza! Por isso as suas palavras eram tão perniciosas. Ele era bom, era verdadeiro, mas isso não chega, não serve de nada nesta terra, da maneira como as coisas estão. Não há oportunidade nenhuma para um tipo que não tenha influência, dinheiro ou qualquer coisa. Lembras-te do cartão que me arranjaste? Não me ajudou. O Bair não queria saber do Bradley para nada. Nem olhou para o cartão. Só o acaso quis que, naquele momento, precisassem de um homem.

Era Verão e havia muito que fazer.

Examinou as mãos, cuidadosamente, como se nunca as tivesse visto, e prosseguiu:

-Depois, quando o trabalho diminuiu, correram comigo e não pude fazer nada. Tinha esperança de vir a pertencer ao pessoal de terra, efectivo... Foi mais ou menos nessa altura que me escreveste a falar no pai, mas não quis ir a Middlehope.

-Sim, foi melhor não ires.      

Olhou-a, surpreendido, e Joan explicou:

-Não poderías ajudar, estava tudo acabado.

-Foi o que pensei. Fui com um tipo para o Michigão e empreguei-me numa fábrica. Não aguentei. Tinha de alimentàr as caldeiras todo o dia, a pele estalou-me toda, estava meio torrado.

Às vezes olhava para as mãos e quase esperava ver a carne despegar-se dos ossos e cair. Arranjei complicações, travei amizade com uns rapazes que foram presos por tentar organizar uma greve.

Joan, não havia naquela fábrica nenhum trabalho que permitisse a um homem sobreviver, excepto o de guarda-portão. O guarda podia estar cá fora, ao sol e ao ar, mas nós passávamos dez horas do dia a fazer a mesma coisa: a alimentar a fornalha, a rebitar, a bater na mesma peça de cada carro, à medida que nos passava pela frente. Quem trabalhava naquela linha de montagem não podia parar um minuto, para respirar ou endireitar as costas; a peça seguinte passava e tínhamos de fazer o que nos competia.

O outro homem que trabalhava comigo nas caldeiras chamava-se Jim Dobie, era da Virgínia Ocidental e o pai trabalhara nas minas de carvão. Tinha jurado que nunca mais lá voltaria, mas voltou e eu fui com ele. Disse que nas minas estava, pelo menos, fresco.

Fresco e escuro. Depois de fixar durante tanto tempo aquele fogo; ao ponto de pensar que os meus olhos rebentariam, pareceu-me que seria agradável trabalhar num sítio fresco e escuro... Mas não pude suportar a mina. Todos os dias tinha de descer mais e mais, para as entranhas negras da terra...

Torcia as mãos encardidas e Joan notou que tremia. Francis limpou o suor que lhe humedecia os lábios e contìnuou a torcer as mãos.

- Olhava para o céu, antes de descer... e depois tinha de descer. Tinha de me sujeitar a estar num buraco às escuras, com montanhas de terra e de rocha a oprimir-me. Nunca suportei estar fechado em lado nenhum, nem mesmo quando era pequeno. Uma manhã, pouco depois de ter recebido a tua última carta, olhei, como de costume, para o céu. Nunca vira uma manhã tão clara, havia sol por toda a parte.

Olhei, e vi um avião a voar, muito alto, no meio de toda essa luz... Larguei as minhas coisas e despedi-me. Creio que não compreendes, mas despedi-me. Nunca mais descerei, disse para comigo. Nunca mais descerei, nem que morra de fome, nem que nunca voe! Nunca mais descerei.

- Compreendo - afirmou Joan. - Compreendo melhor do que podes imaginar.

- Não vejo... - começou Frank, mas a porta abriu-se e Bart entrou e estendeu-lhe cordialmente a mão.        

-Disseram-me lá em baixo que estava aqui.

Na cara quadrada e por barbear estampava-se o seu sorriso

bonacheirão e inexpressivo. Joan viu-o, dolorosamente, no olhar      espantado de Francis. Viu as feições grosseiras de Bart, ouviu o seu riso boçal e viu o seu cérebro simples. Viu-lhe as narinas dilatadas, os olhos pequenos, afundados e vazios, a sua enorme força inútil, tão inútil como a de um animal, a não ser quando unida a qualquer ferramenta primitiva.

Os seus olhos fitaram os do irmão numa súplica corajosa.

- Como vês, compreendo.     

Tinha vivido ali, naquela encosta, quase sem ter consciência de que para lá da orla dos montes estáticos o mundo girava à sua volta, tão enorme e desconhecido como o céu nocturno contra o qual ela corria as cortinas, com medo de se perder. Francis fora apanhado pelo seu movimento, capturado pelo turbilhão, arremessado implacàvelmente de um lado para o outro e, por fim, atirado, também, para aquele lugar estático. Joan escutava-o, hora após hora. O irmão não conversava com ela; estava demasiado ferido para o conseguir. Em fragmentos, em pedaços arrancados a si mesmo, em palavras arremessadas à toa, mostrava-lhe, deixava-a ver. Passeavam pelo pomar e pelos bosques, sentavam-se junto do regato, no vale, sob as folhas que caíam. Em casa, conservava-se    calado, num silêncio absoluto e precavido; mas sozinho com ela, ao ar livre, falava sem descanso, parando apenas para respirar fundo ou para limpar a testa, quando o suor a perlava.

As vezes, de súbito, explodia:

-Oh, não vale a pena estar para aqui a falar nisto tudo!

Não restava, nele, nada do rapaz voluntarioso que saltava pela escada do velho e soalheiro presbitério, que irrompia pela    casa de jantar a gritar que queria comer, que assobiava ruidosamente a toda a hora, que planeava constantes divertimentos, que discutia constantemente para só fazer o que queria. Agora andava devagar, em passos comedidos e com a cabeça um pouco baixa, como se tivesse caminhado durante muito tempo sob um tecto demasiado báixo. Joan uniu os fragmentos das suas conversas e fez uma ideia do que se passava para lá daquele recanto estático do mundo. No silêncio do bosque, onde o regato corria tão suavemente pelas pedras lisas que mal se ouvia, escutava os desabafos do irmão.

-Todas as portas se nos fecham, agora, não se consegue arranjar emprégo. Não nos querem, ninguém se importa que estiquemos de fome.

E, após uma pausa:

-Quase morri de fome em Nova Iorque. Havia comida por toda a parte, restaurantes, lojas, mercearias, charcutarias, carroças cheias de comida, pessoas sentadas a comer em todo o lado... E eu tão cheio de fome que enlouqueci e me aproximei de um táxi que estava parado, à espera que a luz mudasse. Transportava uma mulher, uma velha. Se fosse uma rapariga, ter-me-ia calado, mas como era uma velha disse-lhe: Deixa-me ir consigo a um restaurante, comer? Desfaleço de fome.

       -Frank! Porque não voltaste para casa?

- Para quê? Não me ajudaria. Não posso passar a vida inteira

a voltar para casa. Ela quis dar-me dinheiro... Aqui tem um dólar.

- Oh, Frank!

-Não aceitei, não era isso que queria. Empresto-lho, disse-me, e eu respondi-lhe: Não lho poderei pagar.

- E depois? - perguntou Joan, muito baixo.

-Depois a luz mudou e o táxi partiu.

Uma folha soltou-se, caiu devagar, a flutuar na brisa, e parou docemente na água. A sua sombra reflectiu-se, ampliáda pela água cristalina, numa rocha do fundo.

- E depois? - insistiu Joan.

-Encontrei outro tipo que também estava desempregado e ele levou-me a uma casa que conhecia. O proprietário deu-nos umas coisas que tinham sobrado, torta de limão e outros pratos que se estragariam se os guardasse.

Joan ficou calada, de olhos fixos na sombra da folha, tão nítida no fundo do regato. Um esquilo saltou, numa árvore, e ela viu, também, a sua reflexão, invertida.

- Se tivesses voltado para casa.

Mas Francis endireitou-se, impaciente, e atirou uma pedra para a água. A superfície quebrou-se, numa sucessão de ondazinhas, e a folha balouçou, como um pequeno barco.

-Não compreendes que não valeria de nada? Há centenas de tipos como eu, a tentar agarrar-se a qualquer coisa, esfomeados. Voltar para casa não os ajuda. Tem de haver um lugar para eles! Com mil raios, quando penso nas tretas que o pai dizia, naquela história da salvação das almas! Nem uma só das coisas que ele disse me foi de qualquer utilidade!

- Ele acreditava sinceramente. - começou, perturbada.

- Pois acreditava, e então? - Ao ouvi-lo falar daquela maneira, quase sem descerrar os lábios, Joan viu um rapaz faminto, a vaguear pelas ruas da cidade, de chapéu puxado para os olhos e corpo dorido de fome. - Hoje em dia, é necessário fazer mais qualquer coisa do que falar. Tem de se fazer seja o que for, e depressa, muito depressa! São muitos os que pensam assim e eu estou com eles! Estou com os famintos e com aqueles que não conseguem arranjar emprego.

Gritava, a sua voz multiplicava-se em ecos no bosque silencioso. Levantara-se, e Joan, sentada, inclinava a cabeça para trás, para o olhar.

-Oh, Frank, pareces tal qual o pai!

Fitou-a, estupefacto, e murmurou:

-Oh, meu Deus!

Deixou-se cair no tronco, ao lado dela, e começou a remexer nas pedrinhas do chão.

- Queria dizer.

- Eu sei o que querias dizer - declarou, amargurado. - É terrível não nos podermos livrar dos nossos antepassados! Mergulhou num silêncio pesado e Joan sentiu-se perplexa.

-Vem para casa, jantar.

Pelo menos podia dar-lhe comida e um tecto sob o qual dormir. Francis levantou-se, para a acompanhar, e pararam um momento a olhar para a água. A superfície estava de novo serena, a folha deslizava, sem destino, e a pedra que ele atirara jazia entre as outras pedras do fundo.

Mas aquele não era o lar de Francis, embora ela tentasse, com todas as suas forças, arranjar um lugar para ele. Abrigava-o entre as paredes daquela casa, estendia cobertores na cama do sótão, para a tornar fofa, e punha-lhe lençóis, para que ele se sentisse mais confortável - embora Sam dormisse sem eles e Bart só soubesse o que isso era depois de casar. Mas Francis tinha direito aos lençóis da mãe, que ela trouxera. Arrastou caixotes e malas, para lhe formar uma espécie de quarto, junto das prateleiras dos livros, e à mesa atulhava-o de comida, passava-lhe a manteiga, o pão, a carne, ousadament, - debaixo dos olhos de todos.

- Vou fazer uma torta - disse, um dia, à mãe de Bart: antes não se importara, mas agora queria fazer.

- Leva banha. - lembrou a mulher, sovina. Joan, descaradamente, desculpou-se com o marido:

-O Bart diz que gosta de torta.

E como a velha cedesse, passou a usar e a abusar do estratagema. Fiz um pudim de passas, Bart. Hoje fiz bolinhos, Bart...

São os bolinhos de gengibre que a mãe fazia, Francis. Bart comia, encantado, e comentava: És uma grande cozinheira, Jo! Porque demónio andavas a fazer caixinha, hem?

Joan sorria, de olhos postos no irmão. A sua magreza transformava-se, dia a dia, em força e elasticidade. Quando estavam sozinhos, incitava-o:

-Come, Frank. Quero que recuperes as forças.

-Sim, comerei. Tenho de recomeçar. Ficarei até estar em condições de recomeçar.

Era tão bonito que Joan não conseguia desviar os olhos dele. As suas mãos tinham-se libertado da negrura das minas, agora estavam limpas e duras. Esforçava-se por ajudar no que podia, rachava lenha e enchia o caixote da cozinha e da casa de jantar, ajudava a irmã a torcer a roupa e a estendê-la e levava água para o barracão. Joan dar-lhe-ia qualquer coisa quando ele se fosse embora, comprar-lhe-ia um fato novo. Havia de convencê-lo a aceitar. Para andar por ali, emprestou-lhe um par de calças de ganga de Bart. Quero limpar e passar a ferro o teu fato. Escovou e passou o fato com cuidado e prazer. Não dava trabalho limpar, coser e passar a ferro a roupa de uma pessoa querida. Era estranho como os fátos compartilhavam os corpos que cobriam!

Mas tudo isso não chegava para transformar aquela casa num lar para Francis. As vezes encontravam-se sòzinhos, no sótão, ele a falar e ela a ouvir. Francis falava agora com mais facilidade, já não se exprimia em frases bruscas e desesperadas. As suas feridas começavam a sarar lentamente. Mas à medida que sarava tornava-se inquieto, desassossegado. Era como um animal imobilizado por uma ferida, à espera de se curar para se libertar. Mas falavam sempre e só dele, e Joan queria que fosse assim. Afastava, dia a dia, a pergunta que via pendente dos lábios do irmão, cada vez mais na iminência de ser proferida: Como foi possível que fizesses isto, Joan? Para a afastar, falava febrilmente dele. Que tencionas fazer agora, querido Frank? Quando te sentires refeito e capaz de recomeçar. No sótão, a sós com ele, empregava os nomes que a mãe prodigalizara a todos eles, tão generosamente: querido Frank, meu coração, Meu Frank querido. Nomes para os quais ela ainda não tinha outra utilidade, que não podia chamar a ninguém enquanto o seu filho não nascesse:

Para afastar a temida pergunta, falava constantemente dele próprio, pois assim Frank esquecia-a. Continuo a querer voar, repetia o irmão, vezes sem conta. Tenho de voar, sei que sou capaz. Se tivesse uma oportunidade, seria capaz. Sinto, em mim, a capacidade para o fazer. Se alguma vez me sentasse aos comandos, não precisariam de me dizer senão uma vez.

Gostava do sótão. Ia para lá sempre que não podia fazer nada, quando a irmã tratava da casa, fora da hora das refeições. Era lá que ela o encontrava, junto da janela de empena, de olhos fitos no céu, nos montes e nos campos.

- Aqui, chego a imaginar que estou a voar - dizia. - A copa daquele ulmeiro ali oculta o chão. Vês, Joan? A frente vêem-se logo os montes e tem-se a ilusão de que se está muito alto.

Sim, Joan sabia que o irmão tinha de partir. Eles expulsavam-no com o seu silêncio, com o seu silêncio obstinado e desaprovador.

- Deixe o meu irmão descascar o milho, hoje - disse Joan ao pai de Bart, para o aplacar.

- Há trinta e cinco anos que o descasco eu - foi a resposta rude.

- O Francis pode-lhe ir buscar o leite - disse à mãe de Bart.

-Eu e ele recolheremos os ovos.

-As galinhas assustam-se com desconhecidos.

Por pouca sorte, Francis tropeçou nos degraus escuros, da despensa, e entornou o leite.

- É melhor ir sentar-se em qualquer lado - disse a velha, azeda, e ao ver Joan pegar apressadamente num pano e num balde, gritou-lhe:

- Não se dobre! Magoa-se e depois também tenho de tratar de si.

Não, aquilo não era um lar. Tanto que não era que o irmão nunca se lhe confiava inteiramente. Falavam muito, mas nunca aludiam ao motivo por que ele partira, naquele dia, nunca perguntavam porque o incitara ela a partir e porque partira ele com tanta ansiedade. Uma parte de Francis ainda se escondia de Joan.

Uma manhã, depois do pequeno almoço, ainda não tinham decorrido três semanas desde que Francis chegara, Sam chamou Joan; com um aceno. Ela seguiu-o, ao vestíbulo, e ele fechou a porta.

- Daqui a cerca de meia hora vai ter comigo - segredou-lhe. - Estarei no estábulo, a limpar o esterco. Tenho uma coisa para lhe dizer.

- Porque não me diz agora, Sam? – perguntou-lhe, surpreendida.

Assim perto da sua, a cara vermelha e gorda do rapaz tinha um singular aspecto de velhice. Sam ainda não fizera vinte e cinco anos, mas já lhe faltava um dos dentes da frente.

- Ainda me agradecerá por não lhe dizer aqui-respondeu. -É acerca do seu irmão.

Olhou-o, assustada.

-Está bem, Sam.

Na cozinha, enquanto lavava a louça, procurou pretextos para sair.

- Apetece-me fazer um pouco de molho de maçã - disse à mãe de Bart. - Vou lá fora apanhar umas espigas de milho, para espertar o lume.

-Disse ao Sam que as trouxesse, ontem à noite.

-Ele esqueceu-se. Eu digo-lhe.

No estábulo, entre o esterco fumegante, ouviu Sam falar-lhe em voz baixa e rouca, apoiado na pá e a percorrê-la atrevidamente com os olhinhos gulosos, que se detinham, sobretudo, no ventre disforme.

-Ontem à noite ouvi uma coisa, Jo. Não importa onde foi, o que importa é que a ouvi da boca de uma rapariga de cor, que anda à procura do seu irmão. Diz que ele tem uma dívida para com ela e que a vai cobrar. Não é totalmente preta, deve ser umas três quartas partes branca. Chama-se Fanny. Soube que ele voltou.

- Soube como?

Sabia que ele a fitava, mas fingia não dar por isso. Compreendia sem dificuldade o que se passava no interior daquele cérebro fraco. Sam voltou-se e começou a limpar, afectadamente, as arestas de uma baia.

-Ora, as mulheres como ela têm maneiras de saber as coisas. Descobrem tudo quanto lhes interessa.

Joan não falou. Continuou parada, a ver a pá procurar a imundície e levantá-la. O cheiro agoava. Acre, penetrante, quente. Mas ele enterrava os pés na porcaria e respirava naturalmente. Joan saiu, depressa, sufocada, ávida de ar puro.

Mas sentiu-se grata pelo aviso. Se não fosse assim, como saberia, sem hesitar, o que devia fazer, na tarde seguinte? Estava uma tarde calma e serena e ela acabava de descer do sótão. Fora procurar o irmão, mas encontrara-o estendido na cama, com as mãos debaixo da cabeça, a dormir. Estava imóvel, a respirar tão de mansinho que mal se ouvia, e na sua cara pairava uma expressão de profundo repouso. Joan fechara de novo a porta, devagar. Deixá-lo descansar, coisa que raro parecia fazer. Não podia haver repouso na imobilidade tensa em que sempre andava. Trocara tão depressa os modos descuidados e impetuosos da mocidade por aquela imobilidade tensa e coagida, que dir-se-ia ter o corpo preso por ocultas cadeias, debaixo da roupa. Deixá-lo descansar.

Joan saiu de casa. Ainda não era tarde, mas o sol não tardaria a desaparecer. Virou para oeste e seguiu pela estrada abaixo, para andar um pouco, na direcção do sol. Os homens ordenhavam, no estábulo, e a voz de Bart, a gritar a uma vaca, chegou-lhe aos ouvidos:

- Deixa-te estar aí, Bessy! Tem cuidado, minha...

       Continuou a andar na mesma direcção.

Foi então que viu a rapariga vir ao seu encontro. Andava como se dançasse, em passadas ágeis, e trazia um garotinho consigo. Pegava-lhe ao colo, mas ao ver Joan pô-lo no chão e conduziu-o para ela.

Joan parou, à espera, a observar ambos. Era Fanny, sem dúvida. Lembrava-se de ter visto aquela cara bonita, algre e despreocupada. Sim, vira-a quando estivera na missão com o pai, a última vez. Aquela rapariga estivera lá, também. Nessa altura usava um vestido encarnado, às flores, tão fino que se lhe via a pele brilhante e dourada, à transparência. A rapariga olhou-a e Joan comparou a sua cara a uma petúnia escura. Lábios cheios, vermelhos, grandes olhos profundos, de íris negra e esclerótica muito branca - olhos e boca apaixonados -, faces redondas e escuras e cabelo preto, encaracolado e forte, debaixo de um chapelinho de feltro vermelho-vivo.

-É irmã do Frank Richards? Parece-se muito com ele. A voz da rapariga era densa e doce, lembrava mel.

- Sou. - Era inútil mentir. - Sou irmã dele. Que lhe quer?

-Ouvi dizer que ele estava aqui.

Joan fitou os olhos pretos... Oh, mas porque se havia de lembrar, naquele momento, de Miss Kinney, de pé na sala das reuniões missionárias, a falar de grandes olhos pretos a espreitar da selva?!

       - Ele já se foi embora - mentiu. - Voltou para o seu emprego.

-Importa-se de me dizer onde ele está?

-Muito longe, lá para o oeste.

- Volta breve?

- Não. Talvez nunca volte. Não disse nada a esse respeito. O garotinho começou a chorar docemente e a rapariga deu-lhe uma bofetada na cara.

- Cala-te!

O petiz voltou-se, ocultou o rosto na saia da jovem e ficou a soluçar em silêncio. Estava pouco agasalhado e Joan viu-o tremer.

- Tem frio -- murmurou, compadecida.

-Não teria tanto se andasse mais, em vez de me aborrecer para o trazer ao colo - replicou a outra, em tom petulante.

Mas joan ajoelhou-se, incapaz de suportar aquele soluçar silencioso. Uma criança pequena não devia saber chorar em silêncio.

Quantas vezes devia ter tido medo, antes de aprender a chorar assim?

Desabotoou o casaco e disse à rapariga:

- Tenho uma camisola por baixo. Deixe-me embrulhá-lo.

Ajoelhada, despiu o casaco, vestiu-o ao garoto e enrolou as mangas, para lhe libertar as mãos. Inconscientemente, falava-lhe com ternura, enquanto agasalhava o seu corpo gelado.

- Pronto, meu menino, assim mesmo. Agora esta manga e abotoa-se, para ficar quentinho. Olha, vou pôr o teu cinto por cima, para ficar mais aconchegadinho... Assim.     

O garoto olhou-a, atraído pela sua voz, e Joan viu, então, o seu rosto, muito perto. O coração pareceu querer saltar-lhe do peito. Francis fora uma criança bonita, mas aquele rapazinho era o mais belo que jamais vira. Aquela carinha era a carinha de uma criança de sonho. fitou-a, a tremer, atraída e repelida. Francis, a mãe, o pai, ela própria, estavam todos ali, na cara encantadora        daquela criança da selva - mas a todos eles juntava-se o negrume, a paixão, a força da selva. - filho do seu irmão - disse-lhe a rapariga, na sua voz profunda e quente. - Foi ele que o pôs em mim. Encontrava-se    comigo no bosque, junto do lago, pôs est filho em mim e depois partiu e deixou-mo. Não posso ficar com ele. Se um homem me faz um filho, tem de ficar com ele ou de pagar o seu sustento; uma coisa ou outra. Se não for assim, não posso ganhar a minha vida. Além disso, quero arrumar-me, há um tipo de cor que casa comigo se eu resolver a situação do pequeno. filho du seu irmão, posso-o provar.

- Não me diga nada! - murmurou Joan. - Acredito. Não quero saber pormenores. Deixe-me pensar.

Levantou-se e ficou a olhar o pequeno. que a olhou também em silêncio, confortado pelo casaco e a esforçar-se por dominar a tremura dos lábios. Atrás das incríveis pestanas, os seus olhos enormes fitavam-na. Não compreendia, com certeza não podia compreender. Era muito pequeno. No entanto, dir-se-ia que sabia qual era a sua situação. Joan amou-o, de súbito, e sentiu que não o podia abandonar, que o devia reter. A mãe, o pai, Francis todos eles estavam misturados naquele corpinho minúsculo. O seu sangue era o dela.

- Se esperar uns dias - disse, ofegante, sem deixar de o olhar -, não mais de uma semana... Digamos, de hoje a oito dias, trar-lhe-ei algum dinheiro. Tenho de o ir levantar ao banco. Não disponho de muito, mas pode ter a certeza de que a ajudarei.

Entretanto. pensarei numa solução. Agora vá-se embora. Estarei aqui dentro de uma semana, a esta hora, com o dinheiro. Confia em mim, não confía? O meu pai ia pregar a South End.

- Bem sei; costumava ir ouvi-lo. - A rapariga soltou uma gargalhada vibrante, gutural. - Meu Deus, às vezes, ao ouvi-lo, pensava no ataque que ele teria se soubesse que era avô!

- Os nossos pais morreram - murmurou Joan.

-Sim, eu sei. A capela está fechada, dizem que no próximo Verão abrirá, transformada em salão de baile... Um tipo chamado Jack Week, tenciona abrir lá uma cervejaría, assim que a estrada príncipal estiver acabada. E um tipo amarelento, um fraca figura, mas quem entra com o dinheiro é o pai. Também vão reabrir a fábrica. O Estado está a abrir uma grande estrada nova, através de South End, e toda a gente diz que us negócios vão melhorar, que vamos todos ganhar dinheiro.

A rapariga falava com entusiasmo e a sua boca vermelha lembrava uma papoila na cara reluzente e morena. Recuperara a boa disposição.

-Creio que tenho de ir andando. O meu rapaz está á minha espera, lá em baixo. Tem automóvel. Bem, minha senhora, obrigado por me querer ajudar. Chamo Frankie ao pequeno, como o pai. Dou sempre os nomes dos pais aos miúdos. Aos das duas raparigas tive de dar um jeito, uma é Willa e a outra... Frankie, despe o casaco da senhora!

- Não, deixe-o levá-lo - pediu-lhe Joan. - E cuide dele. Virou-se e pôs-se a caminho de casa.

-Oh, claro! Sou sempre boa para eles. Ninguém pode dizer o contrário.

Joan olhou uma vez para trás, ràpidamente. O pequenito saltitava, atrás da mãe, pelo caminho acidentado. Joan viu o seu casaco a aconchegá-lo, uma mancha escarlate e quente na penumbra do crepúsculo.

Oh, que fizera o Francis?!

Em casa cheirava a madeira queimada, no fogão da cozinha, a mesa estava posta e os homens lavavam-se, na pia.

- Onde está a Jo? - ouviu Bart perguntar.

- Lá em cima, creio - respondeu-lhe a mãe. - Esta noite não me ajudou nada.

Joan entrou em bicos de pés e foi direita ao sótão. Francis ainda dormia. Não, não dormia. Estava acordado e acendera a vela.

- És tu? - perguntou, ao ouvi-la.

- Sou.

Joan aproximou-se e sentou-se na cama. Não podia perder tempo. Dali a minutos, Bart gritaria, a chamá-la.

- Francis. - começou, hesitante. - Francis, esta tarde veio aqui procurar-te uma rapariga de South End. Encontrei-a na estrada.

Sentiu o corpo do irmão retesar-se.

- Veio aqui, procurar-me?

- Sim. mas eu já sabia.

- Sabias?

- Sim.

Falavam ambos em voz muito baixa. Francis sentou-se.

-Se sabias, porque não me disseste?

- Não fui capaz... Tu não me contaste nada.

- Queria ir-me embora... Diabos a levem, costumava dizer que me encontraria, fosse eu para onde fosse. Era por isso que não me atrevia a regressar. Pensei que estaria em segurança, aqui, mas... Como terá ela sabido? Não saí, não vi ninguém. .

- Ouviu dizer, não sei como: Frank não perguntava pelo filho.

-Agora tenho de me ir embora.

       -Porque tens medo dela, Frank?

- Não tenho medo dela... não passa de uma prostituta. Não podes compreender.

- Então de que tens medo, Frank? Podia ajudar-te... Pensarei numa maneira de te ajudar.

- Não me podes ajudar... não sabes. - Começou a puxar os fios da velha manta que pusera por cima dos joelhos. -Tu...

Não é dela que tenho medo, é de mim... Não podes compreender.

Estou... estou corrompido, percebes? Tenho medo de... de querer voltar para ela. Não sou... não sou decente. Quero-a, quero uma mulher daquelas... Não compreendes, eu próprio não sei o que se passa comigo. Enojo-me. Desejo-a e depois tenho nojo. Sinto-me enojado quando me lembro dela, ou de outras mulheres como ela... mas desejo-a. Pertence à única espécie que sou capaz... que sou capaz de querer. Nunca compreenderás o que quero dizer, ninguém pode compreender. Não me consigo libertar, quero, mas não consigo.

Mas não falou no filho. Não sabia, nunca devia saber. Eu numa mina de carvão, Joan, eu que desejo voar!

- Jo! - chamou Bart, de baixo. - São horas de comer!

- Hás-de libertar-te, meu pobre Frank. Hás-de libertar-te! prometeu.

Poderia fazê-lo, disse a si mesma, apaixonadamente. Havia de arranjar maneira de fazer o que devia ser feito.

-       Deixou-os a todos de boca aberta, Bart, estupefacto, exclamou:

- Mas tu não conheces nada na cidade! Perder-te-ás... e eu agora não posso ir contigo. Esta semana temos o abate... Não sei se o Sam poderá ir...

-Não quero ninguém. O Frank sabe o caminho e eu saberei regressar.

Impôs a sua vontade, implacàvelmente.

- Está quase no fim do tempo, pode chegar a hora no caminho - lembrou-lhe a mãe de Bart.

Nova Iorque ficava a cem milhas de distância! A velha sabia tudo acerca dessa cidade e por nada deste mundo lá iria. Nunca fora, tão pouco. Acontecia lá cada coisa! Bastava ler os jornais. Toda a gente dizia:. .

- Não me acontecerá nada - afirmou Joan. - Ainda faltam mais de três semanas.

- Não se pode ter a certeza - teimou a mulher, preocupada.

- o que o Dr. Crabbe diz - respondeu Joan, sem se perturbar.

-Como pode ele saber? Ninguém pode saber exactamente quando uma mulher ocupa. Joan calou-se. Continuou a levantar a mesa. a sacudir as migalhas e a fazer planos. Iria com Frank. Desta vez procuraria ela própria Roger Bair e falar-lhe-ia do irmão. Podia fazê-lo.

-Não é decente uma mulher no seu estado andar entre homens desconhecidos - sentenciou a mãe de Bart, a observá-la do fogão.

-Quer dizer que é vergonha uma mulher ter um filho?

-Não, - respondeu a outra, embaraçada, sem levantar a cabeça do tampo de zinco da pia, que limpava. - Não é vergonha. depois do nascimento. Mas antes, uma mulher decente não se mostra.

-Eu mostro-me. Não me importo, sou orgulhosa. Agora sentia que triunfava daquela casa, do silêncio e da obstinação daquela gente.

- Vai a Nova Iorque? - perguntou o pai de Bart, no outro dia ao almoço, a olhá-la de sobrancelhas arqueadas.

- Vou, sim. O velho resmungou e atafulhou a boca de pão.

- Traga-me uma recordação, mana - pediu Sam, a sorrir; acabara de comer e limpava as unhas sujas com os dentes do garfo.

Joan viu Francis olhá-la e a seguir baixou os olhos para o prato e comeu obstinadamente, em silêncio. Mas depois da refeição ficou junto dela, preocupado.

- Não vás - pediu-lhe. - Não te importes comigo, hei de arranjar qualquer coisa. Há muitos nas minhas circunstâncias. De qualquer modo, vou-me embora...

- Vamos amanhã - respondeu-Lhe, alegremente. – Sempre desejei ver Nova Iorque.

Mas não guardou nenhuma recordação de Nova Iorque. Conservou-se muito junto do irmão, enquanto se apeava do comboio.

Viajava de metropolitano e de comboio aéreo e percorria as ruas cheias de gente. Francis parecia conhecer tudo muito bem. Pois deslocava-se de um lado para o outro com inteiro à vontade. Joan olhava as caras que passavam, mas mal as distinguia. Dir-se-ia que giravam todas à sua volta e de Francis e que só eles pareciam ter um destino.

Ou estariam. também, perdidos? Uma vez: no metropolitano, metidos pela terra dentro. o irmão pegou-lhe na mão e disse-lhe:

- Não te percas.

- Não te largarei -- prometeu, e agarrou-lhe a mão com força.

       Por fim meteram-se num autocarro e Francis anunciou:

- Agora estamos quase a chegar. - Sentou-se ao lado dela e

acrescentou: - Não há esperança, Joan, é uma tolice... Ele não se lembrará de mim, e a ti não te conhece. - O seu rosto estava lívido, à luz matinal.

- Tens a certeza de que o encontramos a esta hora? - redarguiu-lhe, sem querer saber do seu pessimismo.

Faria tudo quanto fosse preciso. não tinha medo daquelas casas nem daquela gente.

- Tenho - respondeu-lhe o irmão, com indiferença. - Consultei o mapa de voo. Ele chega á hora do costume. Quando lá trabalhei, estava sempre presente, para o ver aterrar e descolar.

-       Só se morrer é que não aparece. É doido pelo aparelho.

- Nesse caso. falar-lhe-ei - afirmou, tranquilamente.

Trouxe dinheiro suficiente para comprar um bilhete e voar no seu avião, se for preciso! Hei-de falar-lhe.

O aeródromo era tão grande como a quinta toda, mas plano. Joan nunca vira uma superfície tão vasta e tão plana. Também nunca vira um avião, a não ser no ar, um pássaro entre pássaros. a voar no céu. Quando, sòzinha numa encosta, via passar um avião, não conseguia acreditar que no seu interior levava seres humanos. Só a firmeza do voo parecia guiada e humana. As aves batem as asas e descrevem círculos, mergulham e voam a pique ou esvoaçam, docemente, a formar círculos sonhadores: mas um avião segue a direito, rumo ao seu destino.

Atravessaram o aeródromo.

- Aqui está o avião dele - informou Francis.

Joan esqueceu-se de olhar para o irmão, não ouviu, sequer, a ansiedade da sua voz: tinha os olhos fixos no grande avião. éra enorme, muito maior do que imaginara. Ao olhá-lo, esqueceu-se de tudo o mais, de si própria e da sua vida. Maravilhava-se perante aquele aparelho de reluzente metal prateado, que parecia tocar fastidiosamente no solo, desdenhá- lo, de asas eternamente abertas, prontas a voar.

Mas, no meio do seu êxtase. ouviu alguém falar-lhe: Que está a ver?

Joan levantou a cabeça e viu um homem ainda mais alto do que ela. Era estranho ter de levantar a cabeça para olhar alguém. ela que era sempre mais alta do que todos. O homem vestia camisa e calçes de caqui e tinha na cabeça um boné com viseira. As suas faces eram magras e encovadas e os olhos azuis.

- Estou a ver o avião - respondeu-lhe. - Nunca na minha    

vida vi nada tão bonito... . é concentração... A sua forma é a própria forma do voo, é movimento traduzido em imagem.

Virou a cabeça e olhou de novo para o aparelho, sonhadoramente, em êxtase. Ainda bem que vi isto antes de o meu bebé nascer - pensou pensciu. Aind bem yue isto entraxá. também, na sua  formação.

A voz do homem arrancou-a. de novo, ao seu devaneio:    

É passageira? Vai partir?      

- Oh, não! - apressou-se a responder. - Não posso, tenho de voltar para casa. Vim com o meu irmão, que quer voar. - Olhou à procura de Francis e viu-o a pouca distância, a torcer o chapéu nas mãos. - Ele está ali! Talvez o senhor nos saiba dizer onde poderemos encontrar Roger Bair. É o piloto.

Francis aproximou-se e ouviu as suas palavras.

- Mas, Joan.

- Sou Roger Bair! - exclamou o homem, a sorrir. - Joan riu-se, contente.

Ao olhá-lo, agora, viu nitidamente a testa ampla e o nariz aquílino, os sulcos profundos que iam da boca ao queixo e a pele bronzeada. Era impossível avaliar a sua idade, pela cara.

tanto mais que o boné lhe escondia o cabelo. Mas os seus olhos eram azuis, de um claro azul-imperial, tão azuis que lhe parecia ver através deles.

Um rapaz de fato-macaco aproximou-se, a correr.

- Está pronto, Mr. Bair.

- Muito bem, também eu. - Olhou de novo para Joan e perguntou-lhe: - Que estava a dizer acerca do seu irmão. - Sempre quis voar! - exclamou Francis, entusiàsticamente.

- Creio que me lembro da sua cara. - observ ou o homem a olhá-lo.

-Trabalhei aqui, uns tempos.

-Pessoal de terra?

-Não cheguei tão longe. Fui apenas uma espécie de extra.

Depois reduziram o pessoal. Creio que foi a seguir a um acidente, quando retiraram alguns aparelhos.

Roger Bair olhava de um para o outro. Suplicavam-lhe ambos.

- Ouça, não sou nenhum potentado - disse, apressado, ao rapaz. -Não sei que poderei fazer quanto a emprego, mas... Sente o mesmo que ela, acerca deste aparelho? - Inclinou a cabeça na direcção de Joan.

- Oh, sim! - Francis humedeceu os lábios secos e fitou aquele deus que o podia libertar.

- Muito bem. Apareça daqui a dois dias, a esta hora, e verei que posso fazer. Agora tenho de ir. - Olhou para Joan e o seu rosto franziu-se no sorriso mais bondoso que ela jamais vira.

-Um dia voará comigo!

-Sim?-Sorriu-lhe também; era tão impossívél não corresponder ao seu sorriso como não o acreditar.

Retiradas as cunhas, a porta fechou-se e o grande monstro ergueu-se no ar, ruidosamente, com a elegância pesada de uma águia. Joan, naquele momento alheia a quanto a cercava, viu-o subir cada vez mais alto e desaparecer, por fim, nas névoas distantes da manhã. Partira. Sem uma palavra, seguiu Francis quandue a levou ao comboio.

Agora ficarás bem - disse ao irmão.

-Sim, ficarei bem.

Regressava, outra vez sòzinha. Mas levava consigo aquelas palavras, como um penhor, como uma flor deixada nas suas mãos: Um dia voará comigo!; Tudo era possível, enquanto a vida durasse. O seu coração saiu-lhe do peito, jubiloso, e voou entre as nuvens, a segui-lo alegremente. Creio que voarei, pensou. Fixou os cantos da boca num sorriso, pois sabia que, se se descuidasse, riria à gargalhada, de pura exaltação e prazer. O mundo estava cheio de beleza! O seu rosto resplandecia, os seus olhos cintilavam. mas não disse nada. Deixou o puro prazer que sentia derramar-se por campos e vilas. Pensou nele com a mais pura das alegrias, a recordá-lo, a fixá-lo na memória, a gravar no seu espíritu o movimento do seu corpo, os traços do seu rosto e a cor dos seus olhos. Para dar vida a essa imagem tinha a recordação do seu sorriso.

A casa estava escura e abafada. Regressar àquela casa, às

suas janelas fechadas, às suas salas vazias, à salinha de jantar atravancada. à cozinha onde os homens se lavavam, onde preparavam a comida e onde passavam cada vez mais tempo, junto do fogão, agora que o Inverno estava à porta, regressar àquilo era enterrar-se na terra. Jamais esqueceria, por muito que vivesse, aquele campo vasto e plano, a vista do sol nascente e o avião prateado e reluzente, a subir... E RHoger Bair era parte de tudo isso.        

era a personificação daquela manhã. assim como Bart era apersonificação daqueles campos acidentados, daquela vida terra a terra, cheia de nada, feita apenas de trabalho para arrancar alimentos ao solo, para os arranjar, lavar, cozinhar e comer.

Ali, naquele ermo. passavam os dias a arranjar e a comer os alimentos. Deitavam-se cedo, exaustos, e dormiam como animais, espapaçadamente, pesadamente. Depois levantavam-se ao nascer do dia, para arrancarem de novo à terra mais alimentos. Davam graças a Deus por isso! Era uma vida de toupeiras. a enterrarem-se na terra agressiva. Nunca levantavam os olhos da terra para o céu, e se tomavam conta das estações era para saberem quando haviam de colher os alimentos que tinham semeado. Se nevava, não encontravam beleza nenhuma no fenómeno e as suas únicas reacções eram de cólera, se nevava durante muito tempo, ou de preocupação, se nevava pouco, pois o trigo ressentia-se. A Primavera não se media pela sanguinária, nos bosques, ou pelo arbusto, debaixo das folhas castanhas, à roda das raízes de um velho carvalho e, sim, pela geada nas árvores de fruto; o Verão era uma praga, com escaravelhos nas batatas e nos feijões e trovoadas perigosas para o milho, e o Outono era triste, se a colheita era fraca.

Estavam agrilhoados à terra, de corpo e espírito, e as suas almas nunca se elevavam acima dela. Quando rezava, o velho puxava Deus para baixo, para a terra, em vez de se elevar até Ele.

As vezes, Joan ouvia um roncar distante e, mesmo que o vento soprasse, cortante. do norte. saía de casa e ulhava para as nuvens, a procurar localizar, ao longe, o objecto que o seu coração adivinhara. Umas vezes descobria-o, a brilhar como uma estrela cadente que caísse em pleno dia; outras perdia-se nas nuvens e ouvia-o. apenas, passar. Mas imaginava sempre que era o avião ao lado do qual estivera, para o qual, ele, subira.

Podia imaginá-lo e transformá-lo numa luz na sua escuridão, imaginar que ele o pilotava e era um companheiro na sua solidão.

Para desculpar os seus devaneios, argumentava consigo mesma que se pensasse em Roger Bair, talvez o bebé nascesse um bocadinho parecido com ele. Não podia haver mal nenhum em sonhar, sobretudo se não passava tudo de sonhos e se as suas mãos continuavam a cumprir o seu dever, dia após dia.

Com a aproximação do Inverno, começou a passar cada vez mais tempo no sótão, entre as copas das árvores. Sentava-se lá muitas vezes, enquanto anoitecia ràpidamente, a olhar pela janela e a ouvir os ramos gelados estalar, agitados pelo vento. Voaria o avião naquele momento, entre aquelas nuvens geladas?

Francis escrevera-lhe a dizer que conseguira o emprego. RogerBair fora muito amável e ensinar-lhe-ia, um dia, a voar. Por enquanto, estava a aprender tudo quanto dizia respeito aos aviões.

Quando chegava ao aeródromo, de manhãzinha, Roger ensinava-lhe coisas. Por isso chegava sempre cedo e ainda lá estava quando o aviador regressava... Francis estava, agora, em segurança, pensava Joan, sentada no silêncio do sótão. Podia deixar de se preocupar com ele. Cá em baixo, na terra, dentro daquela casa, enterrada entre aqueles montes, podia recordar o céu e o aparelho a erguer-se, maravilhosamente, para ele.        

Quando o sótão escurecia, o que acontecia muito cedo.    

naquela época do ano, encolhia-se. à procura de calor, nas mantas sobre as quais Francís dormira. Não mexera na cama, depois dele partir, e refugiara-se nela, pois agora não podia dormir com Bart. Sentia-se impaciente com ele, de uma impaciência que não era apenas física, que se abatera sobre ela como uma doença na       primeira noite do seu regresso. Tinha medo daquele crescente desassossego. À noite, afastava-se de Bart, com medo de lhe tocar.        

mesmo sem querer, grata pela largura da cama. Mas custava-lhe a dormir, receosa de que, na inconsciência do sono, Bart atirasse    um dos seus grandes braços para cima dela. Por fim, uma noite, subiu, às escuras, para a cama do sótão e mergulhou, acto contínuo, num sono profundo. Foi aí que ele a encontrou, estupefacto e zangado. Joan acordou e viu-o à porta, com a roupa interior de lã que vestia tanto de dia como de noite.

- Porque vieste para aqui? - perguntou-lhe, ressentido, a observá-la à luz do candeeiro que empunhava. - Que diabo tens tu, ùltimamente?

- Sinto-me desassossegada. Falta tão pouco tempo para o bebé nascer...

A sua consciência protestou. A verdade é que se sentiria impaciente mesmo sem o bebé; aquela impaciência era diferente.

Depois encheu-se de coragem. Arranjaria uma vida para si, não teria medo de Bart.

- Dormirei aqui as vezes que me apetecer, Bart - acrescentou muito calma, mas com o coração a bater desabaladamente.

-Farei o que me parecer melhor para o bebé. Tenho de pensar nele.

Olhou-a, admirado. A luz do candeeiro salientava-lhe o queixo quadrado, teimoso, os beiços grandes e secos e a base achatada do nariz. A testa e os olhos pequenos desapareciam na sombra.

- Tenho os meus direitos - resmungou. - Tens de respeitar os meus direitos.

- Ficarei aqui. - tinha de Lhe falar com toda a clareza e simplicidade. pois de contrário não compreenderia nada. – Ficarei aqui enquanto me parecer que é conveniente para o bebé.

Virou-se e fechou os olhos. O seu coração batia muito depressa, precisava de o sossegar. Aquela náusea, aquela horrível repulsa, não devia entrar na formação do seu bebé. Devia pensar noutras coisas, em coisas maravilhosas e encantadoras... Pensariâ no céu e nas estrelas prateadas que o cruzavam. Continuou deitada até o ouvir descer a escada e bater com a porta. Depois levantou-se e foi olhar o céu. Mas não havia estrelas. A escuridão era profunda.

No dia marcado, dirigiu-se â curva da estrada onde prometera

encontrar-se com Fanny. Estava um dia agreste. com neve a cair de frígidas nuvens cinzentas. Levava algum dinheiro consigo. Por enquanto, dar-lhe-ia algum dinheiro, todas as semanas, mas depois teria de pensar numa solução qualquer. Apertava-o na mão, ciosamente; não podia ser mais precioso para Fanny do que era para ela própria. Diria à rapariga que dispunha de muito pouco e que esperava, também; um filho. Mas Fanny- não apareceu. Esperou, a olhar de vez em quando para os montes soturnos, sem se atrever a partir cedo de mais. Começou a andar de um lado para o outro, mas por fim teve frio, tanto frio que lhe pareceu que o menino,

dentro dela, se sentía, também enregelado. Teve medo, por ele, e decidiu voltar na semana seguinte, nu mesmo dia. Perscrutou ainda uma vez a paisagem que começava a ficar toda branca, com o vento a fustigar-lhe o casaco e o cabelo. Mas não se lobrigava vivalma. A estrada perdia-se, deserta, na distância. Regressou a casa.

Antes de a semana terminar, na véspera de Natal, o seu filho nasceu. Naquele ano, não fizera quaisquer preparativos para o Natal. Era inútil. A mãe morrera havia três anos, mas joan afastou a recordação do pensamento. No ano seguinte, já haveria uma razão para celebrar o Natal, um pequenito a quem daria presentes e para o qual cortaria e enfeitaria um pinheiro. O parto começou ao cair da noite.     

Teve o filho com tanta facilidade que foi como se recebesse um presente maravilhoso. Preparara-se para sentir dores, qualquer        género de dores. Lembrava-se de fragmentos de conversas murmuradas, ouvidas ao longo dos seus anos de infância e juventude.

A mãe entrar em casa de manhãzinha cedo, pálida mas alegre, para presidir à mesa do pequenoalmoço. Sim, querida, estou um pouco fatigada. Passei a maior parte da noite em casa dos Watsons.

Têm uma encantadora menina. Depois apareciam vizinhas, enquanto ela limpava o pó do vestíbulo, e Joan ouvia a mãe dizer, em voz baixa: O Dr. Crabbe mandou-me chamar... Não, as coisas não correram muito bem, mas ela resistiu. Até parece milagre o bebé ter-se salvado. O quê? Sim, sofreu agonias! Se ao       menos o bebé estiver em condições... Sabe o que quero dizer.

Nunca podemos ter a certeza...

Uma vez, Hannah declarara, afectadamente: Nunca casei, mas tive compensações. Pelo menos, não sofri algumas das agonias resultantes do casamento.    

Joan estivera preparada para as agonias, embora o Dr. Crabbe lhe tivesse dito: Parece que foste feita para este trabalho, Joan    ; As tuas medidas são perfeitas. É raro ver-se uma mulher assim, hoje em dia. São todas umas magricelas, alimentadas a ananás e a espinafres e semelhantes a vagens amarelas!       

Sim, o bebé nascera como um presente. Na tarde da véspera do Natal, Joan estava no sótão, a admirar, pela janela, o céu a que o pôr do sol dava uma tonalidade viva, cor de laranja. Teve o pressentimento de uma dor e compreendeu, imediatamente, do que se tratava. Deitou-se na cama, esperou, e o ritmo de dor começou, quase no mesmo instante. Desceu e chamou Bart.        

- Vai buscar o Dr. Crabbe - pediu-lhe, e depois disse, tranquilamente, à mãe dele: - Chegou a minha hora. Estarei no sótão, na minha cama.

- Não vai dar à luz no sótão! - protestou a mãe de Bart. As pessoas falarão... A mulher do meu filho deitada no sótão, como uma criada!

- Quem saberá? - redarguiu, imperturbável, já da escada.

       Queria que o seu filho nascesse ali, entre as copas das árvores, muito acima da terra. Fora ali que se preparara para o receber, era lá que tínha as suas roupinhas, no tabuleiro da arca, e as poucas coisas que o Dr. Crabbe lhe mandara preparar.

       - O médico falará - gritou a mãe de Bart, atrás dela. – Será uma vergonha para nós! Além disso, mais passos eu terei de dar se tiver de subir e descer para cuidar de si. O trabalho já é de mais...

- O Bart dormirá melhor - replicou Joan, e não ouviu resposta nenhuma.

Quando chegou ao sótão, preparou-se. Preparou tudo à medida do ritmo das dores, cada vez mais seguidas. Quando a intensidade da dor lhe enchia de suor a testa, o lábio superior e as palmas das mãos, deitava-se na cama e olhava, a direito para as traves do tecto, a preparar-se para nova crise. O Dr. Crabbe não tardaria a chegar. Cinco horas, talvez, visto ser o primeiro parto, dissera-lhe ele. Já tinham passado três, de um momento para o outro chegaria. As vezes, parecia-lhe ouvir o barulho do velho carro do Bart. Quisesse Deus que guiasse com cuidado! Tinha um orgulho tão absurdo de saber guiar, que desdenhava todas as cautelas.

Queres ver como ultrapasso aquele tipo?, vangloriava-se, amiúde, como um garoto.

Mas não devía pensar em Bart. Aquilo era uma coisa que estava a fazer sózinha. Estava a dar á luz o seu filho, o seu primeiro filhu, u primeiro de muitos. Os filhos encheriam a sua

vida, todos os seus meninos... Agora a sua vida começava, de facto. Esperara tanto tempo por esse começo! A dor cresceu no seu corpo, profunda. imensa, a reunir todas as fibras do seu ser num único foco de dor. Porrque diriam as pessoas que a dor era sombria e triste? Se deixassem a dor libertar-se - assim... assim... se a deixassem possuir o corpo, devorá-lo, subir com ele e pairar nas alturas, a dor era clara, uma forma orlada de beleza, pungente e viva, a subir, a voar, a transformar-se na mais pura sensação - um corpo alado, a subir e a pairar no espaço. Por cima dela estava o céu, negro, profundo, suave, de uma negrura contra a qual a dor podia brilhar, que podia penetrar. abrir e rasgar...

Teve a sensação de que qualquer coisa se partia dentro dela,

de que todo o seu ser jorrava, num ímpeto, de si mesma. Seria natural que aquele dissolver-se, aquele jorrar, a assustasse, mas Joan não teve medo. O seu corpo, por instinto, soube que estava bem. Depois, quase no mesmo instante, o bebé nasceu. Soltou um grande grito involuntário, que se fundiu com o primeiro vagido do filho, ouviu passos e a voz do Dr. Crabbe, gritar na escada.  

Logo a seguir, a cabeça grisalha do médico apareceu á porta.

- Meu Deus, Joan! 

O velho doutor praguejava, apressava-se, tropeçava, mas Joan sorria, ofegante, e repetia, sem cessar:

- Dr. Crabbe. Dr. Crabbe.

Ele praguejava e apressava-se, mas ela tinha tudo pronto.

- Tinhas de ser apressada, não tinhas? - perguntou-lhe, por fim, a sorrir. - Diabos levem estas mulheres de armas! Será um lindo mundo para os da minha profissão se suas excelências resolverem ter os seus bebés sòzinhas! Hoje em dia, é quase o único trabalho que me resta, pois pouca gente adoece. A velha Mrs. Kinney continua a resistir. É um grande bebé, Joan, um rapaz!

Passou todo o dia de Natal deitada na cama, sob as vigas do tecto, num sossego profundo, com o filho a seu lado. Nunca mais voltaria a sentir-se Só, nunca mais. O seu corpo dividira-se noutra vida que também era sua. Nunca se sentira tão satisfeita.        

O seu corpo estava saciado, o seu cérebro em paz e o seu coração dormitava. O útero cumprira inteiramente a sua missão e Joan     e o filho dormiam. Acordou duas vezes, uma delas quando ouviu os passos pesados de Bart.

-Malditas escadas! Aqui tens a comida. Jo.

- Obrigada.

Tinha fome e comeu enquanto ele esperava, sentado numa cadeira. Bart olhou para o filho, uma vez, e observou, a sorrir:

-É quase do tamanho de um bezerro!

Joan não respondeu. Bart não tinha nada a ver com o seu filho.

       - Parece que vamos ter neve...

       - Sim? - Olhou para a janela e verificou que, de facto, o

céu estava suave, profunda e regularmente cinzento.

Bart agarrou no prato e na colher e desceu pesadamente a escada. Mal o barulho dos seus passos deixou de se ouvir, Joan adormeceu de novo. Quando acordou, o Dr. Crabbe olhava-a atentamente.

- Dorme, rapariga - murmurou. - Faz-te bem. Dorme muito:

Está tudo óptimo, não sou preciso para nada e por isso vou-me embora.

Afinal, sempre nevara. Agradou-lhe. A Fanny não viria, a nevar, e ela estava em segurança. Ela e o filho estavam em segurança debaixo daquele tecto. A neve cobria-os, aquecia-os, abrigava-os. Aconchegou melhor os cobertores e tacteou o corpo do filho, quente, robusto, adormecido. Voltou a adormecer.

Com certeza não havia bebé melhor do que o seu. Passava horas, calado, no bercinho tosco que encontrara ao fundo do sótão. Joan lavara uma velha almofada. transformara-a em colchão, cortara dois lençóis de linho, da mãe. em lençóis mais pequenos e fizera uma almofadinha, à roda da qual pregara uma rendinha fina, que tirara da combinação de casamento da mãe.

Encontrara a combinação na arca, amarelada e quase sem uso, mas muito bonita. A mãe fora filha única e levara um belo enxoval, apesar de o pai ser pobre, um simples professor de latim numa universidadezinha sulista. Quase nunca falara dos pais, porque ambos tinham morrido num curto espaço de tempo uns anos antes de Joan nascer. Depois disso, não houvera lar paterno a visitar, aonde levar a sua menina e mostrá-la. Desejava tanto poder mostrar-te à minha mãe, Joan!, costumava dizer a mãe. - Eras um bebé encàntador e ela adorava bebés. Custou-me tanto que já não te visse.

Sim, custava muito. Ao olhar para o seú próprio filho, o coração de Joan gritava, também: Quem me dera poder mostrar-lho! Oxalá ela o possa ver. Talvez o veja.

Mas mesmo que ela o visse de algum distante céu dos mortos, não bastava. Joan queria gritar à mãe: Repare nos seus pèzinhos e nas suas mãozinhas! Veja como é sossegadinho. Creio que terá o cabelo encaracolado. Já viu cabelo mais dourado do que o seu?

E queria ouvir a voz da mãe, entusiástica, sincera, a concordar e a louvar: É o bebê mais encantador do mundo, querida! Sempre tive a certeza de que terias bebés encantadores.

Mas era em silêncio que se sentava junto do berço, sózinha, a agarrár na mãozinha gorducha e passiva do filho. Era tão bom!- Deixava-a agarrar-lhe na mão e apertá-lo a si sem protestar, mesmo que o apertasse com muita força. Nunca chorava. Comia, dormia e nunca chorava quando ela o deitava. Ficava quietinho no berço, de olhos no tecto, a respirar docemente. Era tão sossegado! Até a mãe de Bart teve de reconhecer, contrafeita:

- É muito bom. Mas não percebo que seja preciso lavar-lhe as fraldas todas as vezes que as molha. A lata do sabão está outra vez quase vazia, e fazer sabão dá trabalho.

Joan refez-se depressa e desceu do sótão. Estava tudo exactamente como dantes e, contudo, agora que o seu filho nascera,       notava tudo diferente. Aquela era a sua casa, agora tinha lá raízes.      

Parece-me que é tempo de voltares para a tua cama - pedie-lhe Bart, uma noite, já deitado, quando ela arrumava as

suas camisas azuis, acabadas de passar a ferro.

Joan sèntiu-se sufocar.

-O bebé incomodar-te-ia, Bárt.

- Como, se não faz barulho nenhum? - Observava-a, com aquela expressão desagradável nos lábios e nas narinas.       

Joan apressou-se um pouco, mas depois lembrou-se: não tinha médo. Arrumou as botas grossas de Bart e pendurou-lhe a roupá do trabalho, sem responder.

- Posso abrir um bocadinho a janela? - perguntou-lhe.

- Não - resmungou, da cama. - Está frio como o pecado; lá fora.

-Então, boas noites.

Apagou o candeeiro e fugiu-lhe, às escuras. Subiu a escada do sótão e preparou-se para se deitar. O bebé dormia, no berço:

Joan abriu a janela e sentiu no rosto o ar limpo e gelado.

Conservá-lo-ei onde possa abrir as janelas, pensou. Viverá aqui em cima, comigo.

Estendida na cama, às escuras, com o ar frio a entrar pela janela, sentia no sangue uma energia que lhe afastava o sono.

Recuperara todas as suas forças. O bebé tinha três mantas e o Dr. Crabbe dissera que não voltaria, pois não precisavam dele.

Aliás nunca precisaste de mím, diabos te levem!, resmungara, afectuosamente. Tens saúde que chega para curar qualquer doença. Sim, sentia-se forte. Forte para resistir a tudo e a todos.

A ideia de Fanny voltou a preocupá-la. Fanny apareceria, um dia para o outro, agora que a neve começava a fundir. Tinha de lhe mandar recado. O garotinho mulato também lhe pertencia.

Precisava de fazer qualquer coisa por ele, de pensar numa solução. Agora havia de a encontrar, agora que se sentia tão forte. Tinha ideias com mais facilidade, quando estava, assim, forte.

No dia seguinte, descobriu a maneira de mandar avisar Fanny ao encontrar Sam na escadinha das traseiras. Teve de esperar por ele, visto a escada ser demasiado estreita para passarem a par. Enquanto esperava, achou a ideia. Na cara grosseira e sorridente de Sam havia uma expressão que ela odiava e veria, pois ele não era capaz de olhar para nenhuma mulher sem aquela expressão. Mas agora nem isso a incomodava.

- Faz-me um favor, Sam?

- Claro! - pôs a grande manápula, pesadamente, no ombro de Joan e deu-lhe umas palmadinhas, mas ela não recuou:

-Costuma ver a Fanny, umas vezes por outras?

Largou-lhe o ombro e o seu sorriso tornou-se mais aberto.

- Está a tentar descobrir qualquer coisa...

- Não, não! Só quero que lhe diga uma coisa, da minha parte:

que estou pronta a fazer o que lhe prometi.

-Que foi que prometeu? 

-Agora é você que está a tentar saber qualquer coisa.       

- Pois sou - admitiu, e voltou a pôr-lhe a mão no ombro. Apanhei-a.

- Tanto como eu a si - redarguiu, com suave cinismo. - Podia dizer ao seu pai, compreende? 

A mão pareceu adquirir o peso de toneladas e o sorriso apagou-se-lhe do rosto.      

- Não faria isso! - exclamou, baixinho.  

- Claro que não! - riu-se, nauseada consigo própria. - Claro que não direi uma palavra. Dá-lhe o meu recado, não dá, Sam?

- Com certeza. Dou-lho... talvez lho dê esta noite.      

Joan subiu a escada, tirou o bebé do berço e apertou-o      contra o peito, a embalá-lo, tonta de náusea. Não podia esquecer aquele rostinho escuro e angélico. Tudo quanto fazia era por ele, por eles todos.     

Olhou para o filho. Era tão louro, tinha uns olhos tão azuis, como os do avô materno! Chamar-lhe-ei Paul, como o meu pai, pensou. Até então, hesitara, sem saber que nome lhe dar, e uma vez perguntara, de súbito, a Bart:     

-Gostas do nome Roger?      

- Para quê? - perguntara-lhe, estúpidamente.      

- Para o bebé.        

- Não sei... Tivemos um cavalo alazão chamado Roger.     

O pai vendeu-o porque não era capaz de formar parelha, empinava-se e dava coices, quando o juntavam a outro cavalo.

Não, pensou, a olhar para a testa ampla e pálida e para     os grandes olhos azuis do filho, não, Roger não lhe fica bem.

Roger é outra pessoa... , Chamar-lhe-ia Paul.     

- Chamamos Paul ao bebé? - sugeriu, alegremente, enquanto

jantavam.

Olharam-na, em silêncio. Sempre que falava, olhavam-na estupefactos, incapazes de compreender o que dizia, pois não falava das coisas em que pensavam - os campos acabados de semear, um cavalo que precisava de ser ferrado, a ninhada de porcos...

- Paul está bem, não está? - observou Sam, pouco depois. O pai deve gostar.

- É curto e fácil - acrescentou Bart.

- Não o poderão modificar, quando for para a escola - disse

a mãe de Bart.

O velho esperou, com a boca cheia de pão, engoliu com dificuldade e empurrou com um golo de leite aguado. - um bom nome dos Evangelhos - disse, por fim.

- Então será Paul - disse Joan, a sorrir.

De qualquer modo, seria Paul...

Sonhara muitas vezes, no silêncio daquela casa, com vozes de criança, a cantar e a tagarelar, com os seus gritos e os seus risos. A casa encher-se-ia de sons maravilhosos quando nascesse uma criança! Até o choro vigoroso de um bebé seria agradável.

Mas Paul era tão sossegado! Nunca chorava, a não ser que lhe doesse qualquer coisa. Joan aguardava, ansiosa, o som de risos, de gritos e birrinhas. Lembrava-se de que Frank, em bebé, estava sempre a palrar, a rir ou a chorar. Mas Paul, não. Joan desafiava-o com cantigas, palavras ternas e sorrisos, mas ele olhava-a em silêncio, com úm ar muito grave na carinha e os seus grandes olhos azuis a fugirem da cara da mãe. Apertava-o nos braços, sacudia-o no colo, de brincadeira, e ele suportava tudo, pacientemente. O máximo que lhe deu foi quando, um dia, ao passar-lhe um dedo pelas bochechas, pelo queixo e pelos lábios, o viu sorrir, um instante, como se ela tivesse tocado nalgum nervo ou músculo. Joan deu um grito de alegria, mas o sorriso já desaparecera. Nem sequer tivera a certeza de que fora um sorriso.

Lembrara a suave ondulação da água, quando se passa um dedo pela sua superfície.

O David ri e sorri? Produz sons?, perguntou a Rose, quando lhe escreveu, e ela respondeu-lhe; surpreendida: Esqueces que o David tem quase um ano. Começa, já, a querer falar. É muito frágil e tem sido muito doente. Mandou uma fotografia de um bebé muito sério, ao colo de uma chinesa alegre e morena. Joan observou o retrato com atenção. O rosto era delicado, o corpinho minúsculo estava muito direito, os olhos tinham uma expressão intensa e trágica e a bóca franzia-se, rebelde. O seu coração fugiu para o sobrinho. Se o tivesse comigo, torná-lo-ia forte, pensou.

Precisa de ser bem alimentado e devia sair daquele clima. Tirou Paul do berço. Era bonito, orgulhava-se do seu tamanho e da sua saúde. Estava gordo, tinha covinhas nas mãos e nas coxas robustas, as faces rosadas e os lábios vermelhos e macios. Mas era tão preguiçoso!  

- Preguiçoso, preguiçoso! - chamava-lhe, a rir e afundava o rosto nas pregas perfumadas do seu pescoço. - Senta-te mandrião!      

Já é altura de te começares a sentar!  

Mas mal lhe tirava das costas a mão com que o amparava, o filho caía contra ela, suavemente, sem esforço, e apoiava-se ao seu corpo.        

- Nem sequer tentas! - ralhava-lhe, mas depois, enternecida de tanto o amar, apertava-o a si.      

As crianças não eram todas iguais, não podiam ser... E ele era tão querido, sabia tão bem pegar-lhe! Era um bebé encantador que se deixava abraçar e acariciar de bom grado.

O David é muito independente, escrevia Rose. É difícil conservá-lo na cama, quando está doente. Custa muito a dominar.       

Joan beijava o cabelo muito louro de Paul. Estava imóvel no seu colo, com a face gorda e rosada comprimida contra o seu

seio. Não chorava, nem mesmo quando queria mamar. Dir-se-ia ignorar que o seio materno estava ali, debaixo da sua cara; os seus lábios nunca o procuravam. Lembrava um boneco bonito e gorducho.       

As crianças não podem ser todas iguais, pensava Joan, com firmeza.      

Quando o Inverno acabou e a Primavera voltou, mais uma vez, começou a endireitar um pouco a cabeça e a estender, de quando em quando, a mão para os brinquedos que èla lhe fazia - um cão encarnado, um coelho verde... Talvez visse melhor os   brinquèdos se fossem brilhantes. Assim, estendia as mãozinhas para eles, mas pouco depois deixava-os cair e não sentia a sua falta, não dava por isso. Joan apanhava-os, brincava com eles, para lhe despertar a atenção, metia-lhos nas mãos...       

Num dia ventoso, de Abril, levou-o para fora de casa. Acima do barulho do vento ouviu o roncar de um avião, levantou a cabeça e viu o aparelho passar através das nuvens brancas e cintilar nos espaços azuis, entre elas.

- Olha, olha! - gritou a Paul e, segurando-lhe no queixo, obrigou-o a olhar para cima.

Se, por acaso, Roger Bair fosse naquele avião, tão alto, e olhasse para baixo, veria uma mulher com uma criança ao colo, a apontar-lhe o aparelho? Mas os olhos de Paul não se fixavam no avião, que passava tão alto e tão depressa.

- Olha, meu filho, olha, querido! Vê! - exclamou.

Mas os olhos de Paul desviaram-se e ela seguiu-os. Para que estaria a olhar? Olhava, mas dir-se-ia que sem intenção de ver, que nenhum objecto atraía os seus olhos. O seu olhar era tão silencioso como a sua voz.

No entanto, o silêncio não era o mesmo de antes da sua vinda. Não era um silêncio vazio, o solitário silêncio da casa.

Ele estava ali, a crescer, a comer e a dormir. Estava ali para o

trazer nos seus braços. Na Primavera levava-o para o bosque e deitava-o numa fofa cama de folhas, ao sol, enquanto ela procurava sanguinárias e víoletas; levava-o, também, pará o pomar e via, seráfico, sob as árvores floridas, com as faces também rosadas, como os botões, o cabelo cor de ouro e os olhos azuis.

Levava-o para toda a parte, queria-o sempre consigo. Quando estava acordado, amparava-o com almofadas perto de si, enquanto trabalhava; quando dormia, ia constantemente certificar-se de que respirava.

Mais nada era real. Bart andava irritado com ela, últimamente.

- Ainda o estou a amamentar, Bart - respondia, a todas as suas tentativas. - Não quero, pelo menos enquanto não o desmamar.

Bart observava-a constantemente, sob as sobrancelhas hirsutas, e tentava agarrá-la, desajeitado, quando ela calhava passar perto. Mas Joan tornava o corpo tenso e frio, contra o dele e ele largava-a.

Uma vez; a velha disse-lhe, de faces coradas e manchas vermelhas nas pregas do pescoço:

-Se tiver cuidado, não precisa de fazer esperar o Bart até acabar de amamentar o pequeno.

Joan passava a ferro as roupinhas do filho e, ao ouvi-la, baixou ràpidamente os olhos para o trabalho. Bart queixara-se dela.  

- Posso dizer-lhe o que deve fazer - A voz ouviu-se de novo

vinda do lado do fogão, hesitante e rouca de embaraço. – Posso dizer-lhe oque a minha própria mãe me disse, no dia em que casei com o Abram: Um homem pode sempre cuspir fora do penico...      

Joan continuou a passar a ferro. Agora devia passar, devagarinho, o folho... agora a orla de rendinha... Dobrou o chambre      e, por momentos, levantou os olhos para a janela e olhou para os bordos. O Verão tornara-os verdes; cheios de folhas já totalmente fortes. Uma leve brisa agitava-as e deixava ver os troncos, negros e lisos. Joan conhecia a forma dos troncos de todas as árvores.  

Nas manhãs de Inverno levantara-se para os ver, nus, recortados no céu cinzento, ou nobres sob a brancura da neve, semelhantes a estátuas numa tempestade. Não respondeu à velha. Estava tão agoniada que não ousava abrir a boca. O melhor seria pensar em coisas bonitas: nos fetos que cresciam, nos lírios que desabrochavam debaixo das árvores... Mas o que via no interior do seu cérebro era o rosto de um homem, a cara de Roger Bair. Naquele momento, teve a certeza de que nunca mais poderia voltar para Bart. Pegou nas roupinhas engomadas, subiu a escada e foi arrumá-las na arca, no sótão. O cheiro a lavado e a quente do ferro chegava-lhe às narinas, deliciosamente.     

Aproximou-se do berço e olhou para o filho, que estava acordado e a olhou, também.

- Paul - murmurou. - Paul! - Toda a sua solidão vibrava na angústia com que pronunciava o seu nome. - Fala comigo, Pául! Fala com a tua mãe!  

Já tinha quase oito meses. Joan ajoelhou-se, passou-lhe os braços pelas costas e amparou-lhe a cabeça com uma das mãos. Riu, a custo, e acenou com a cabeça, a fim de atrair os olhos do fílho, sempre erradios, para o seu rosto. E os grandes olhos azuis fitaram-na, finalmente. Por um momento, mergulháram completamente nos seus. Mas por um momento apenas; depois perderam-se de novo. Mas esse instante bastou para que Joan os sondasse, para que penetrasse bem neles, até ao fundo. Estavam vazios, não havia nada atrás deles. O filho não lhe respondia porque não a conhecia. Continuou com ele ao colo, rígida, e a seguir deitou-o, docemente. Passava-se qualquer coisa com o Paul.

Quando o deitou, foi como se lhe fugisse para sempre.

Joan aproximou-se da janela, com o estranho pensamento de que um rapazinho saíra, em bicos de pés, fechara á porta e a deixara, de novo, só.

De madrugada, começou a pensar que talvez o verdadeiro

Paul nunca chegasse a nascer. Estáva sentádá na cama com o filho ao colo, a pegar no corpo que dera à luz. Passara assim a noite toda. Não tinha coragem para o deitar no berço, precisava de sentir nos braços, pelo menos, o seu corpinho quente. Era como tê-lo morto no seu colo. Tenho nos braços o meu filho morto.

Paul está morto.

De manhãzinha cedo, ouviu os passos de Bart, na escada.

Tropeçou no último degrau e praguejou.

-Ouve lá. onde puseste as camisas azuis que vesti o Verão

passado? Hoje tenho de ceifar e devo ficar tisnado... – Reparou no rosto de Joan, debruçado sobre o filho, e perguntou: - O miúdo está doente?

Acercou-se e segurou na mãozinha gorda e branca, que se perdeu na palma encardida e gretada da sua grande manápúla.

- Bart, passa-se qualquer coisa anormal com este meninorespondeu-lhe, devagar, esforçando-se por falar com simplicidade:

Mas Bart sorriu, incrédulo.

-Parece-me bem. Não tem febre, tem a mão fresca como um pepino.

- Não me conhece, não se senta sòzinho...

-É muito pequeno.

- Não é, não. A Rose diz que o David se sentou muito antes.

- As crianças não são todas iguais. Preocupas-te de mais, Joan. Lembro-me de que o Sam foi assim a modo que lento,

mas depois passou. Dá-lhe tempo. Olá, miúdo... - tocou com o

dedo grosso no queixo de Paul e fez-lhe cócegas; um vago sorriso brincou nos làbiozinhos. - Não se passa nada contigo, pois não? Jo, vai-me procurar as camisas, depressa. O pai está farto de berrar, danado para começar a ceifa.      

-Está bem, Bart.     

Naquele momento soube-lhe bem mexer-se, ter qualquer coisa que fazer, saber que a noite terminara. Deitou o filho na cama.   

Depois das sombras da noite, sabia bem sentir os degraus debaixo dos pés, abrir gavetas, sentir tecido grosso nas mãos, tecido áspero, de uso corrente.        

Deu as camisas a Bart, desceu o resto da escada e atarefou- se na cozinha. O sol começava a espreitar, no horizonte, e a sua luz espalhava-se como água cintilante. Defronte do estábulo, Sam atrelava os cavalos, fazia-os recuar, para os tirantes. As cabeças grandes dos animais erguiam-se acima dele e relinchavam, a protestar. As vacas saíam, num cortejo solene, e seguíam pela estrada, a caminho dos pastos agora cobertos de boa erva tenra. Mais adiante, apareceu o pai de Bart, de ombros curvados sob o peso de um balde cheio de leite em cada mão. Joan pegou numa chávena, foi ter com ele e mergulhou-a no leite fresco. O velho olhou-a, contrariado, e seguiu o seu caminho, para a despensa. Joan ficou parada, ao sol, a beber o leite. Dentro de si esperava a escuridão da noite, que voltaria; mas naquele momento, apenas naquéle momento, era manhã. As árvores, os montes e o céu eram verdadeiros, existiam. Parou no meio deles, à luz da manhã. A noite estava atrás dela e à sua frente, mas ali, naquele momento, era manhã. Olhou para o céu, à procura. Adquirira o hábito de perscrutar o céu. Mas estava deserto, muito alto, sereno e azul.

Quando começou o Bart a falar -perguntou à velha, ha, já Paul tinha mais de um ano.  

Passara todos os momentos disponíveis daqueles muitos meses a observar o filho, a medi-lo, a examinar as suas faculdades.

Ouvia-a quando o chamava? Ouvia, pois virava lentamente a cabeça. Via? Via, pois os seus olhos seguiam o cão de flanela encarnada, quando ela o movia muito devagar. Estendia a mão, para pegar no brinquedo? Estendia e pegava- lhe, mas deixava-o cair. Esquecia-se de que o tinha na mão.

A mãe de Bart mexeu o molho de maçãs doces: Usava-as para adoçar, a fim de poupar açúcar. Há muito açúcar natural nos alimentos, dizia. As pessoas deviam perder o hábito de comer açúcar. É viciar a carne.

Sam e Bart compravam, em segredo, rebuçados e doces ordinários, como garotos, e comiam-nos com a mesma avidez com que alguns homens bebem álcool, famintos de doçura. As algibeiras de Bart estavam sempre pegajosas, quando lhe lavava os fatos.

- O Bart? - perguntou a velha, vagamente. - Não sei bem, foi um bocado tardio. Creio que não falou, realmente, antes dos cinco anos. Lembro-me de aparecer por aí uma vizinha coscuvilheira, quando ele tinha três anos, e dizer que era estranho ele ainda não falar. Mas eu sempre disse que ele falaria quando chegasse a sua altura, e assim foi. - Mexeu e provou o molho. A Emma teve uma rapariga que nunca falou. Deu uma queda, disseram. Nunca regulou bem e no fim tiveram de a internar.

A Emma não sabia o que fazer com ela, quando cresceu. Portava-se de modo esquisito, defronte das pessoas.

Numa manhã de Primavera, esperou por Fanny debaixo do carvalho, depois da curva da estrada, e quando ela chegou pegou na mão de Frankie e pediu-lhe:

-Olha para mim, Frankie.

O garoto obedeceu imediatamente e os seus olhos mergulharam nos dela, inteligentes e com conhecimento.

-Quando começou ele a falar, Fanny?

- Quem, ele? O pequeno? Começou a falar assim que começou a andar, creio. Ainda não tinha um ano.

- E muito calado.

- Fala quando lhe apetece - replicou a rapariga indiferente. - E não imagina como canta! Canta, Frankie.

O garoto libertou-se da mão de Joan, cruzou as mãos atrás das costas, abriu muito a boca - tanto que Joan lhe viu a língua rosada e os dentes brancos e pequenos - e começou a cantar.

A sua voz vibrou, clara; cheia e nada infantil: Canto com uma espada na mão, Senhor... Cantava com fervor, a oscilar de lado para lado, e Joan ouviu-o em silêncio, até ao fim. Na árvore, por cima deles, um pássaro começou a trinar, loucamente.

- Tome - disse Joan a Fanny, e entregou-lhe o dólar que lhe dava todas as semanas.

- Obrigada - agradeceu a rapariga. - Anda, Frankie, vamos. Mas Joan não esperou que partissem, voltou-lhes as costas e começou a descer apressadamente a estrada. Que espécie de Deus era aquele de quem o pai falava com tanta fé, um Deus que tinha contados os cabelos de todas as cabeças e vigiava até um pardalito, com medo de que caísse? Uma criança negra e sem nome, criada sem amor, nascera dotada, mas o seu filho, o filho que tanto desejara, nada recebera.

Tinha um corpo, um corpo querido. Conservaria bonito e saudável o corpo escorreito que ela própria fizera: Foi a Clarktown e comprou, estouvadamente, linho macio e alegre, amarelo e azul, e percal às florinhas, com o qual lhe fez bonitos fatinhos. O rosto rosado do filho resplandecia, por cima do tecido colorido. Tinha um corpo tão perfeito! Ombros quadrados, coxas roliças, joelhos e pés com covinhas... Agora andava sempre com   ele ao colo, quer estivesse a dormir, quer acordado. A noite deitava-o a seu lado, na cama; de dia escarranchava-o na anca e segurava-o enquanto andava e trabalhava. Precisava de sentir o seu corpo. Era dela, era o que tinha.        

Numa manhã de Agosto vestiu-o a primor e levou-o a Middlehope, ao Dr. Crabbe. Passou pela rua sem a ver. Subira o toldo do carro, para proteger o filho do sol - o filho e ela. Assim, não veria ninguém. Chegaria ao meio-dia; hora em que o Dr. Crabbe estaria em casa, assim como toda a gente, a almoçar. Pelo caminho, planeou o que diria. Falaria com muita calma, em tom muito prático: Dr. Crabbe, estou preocupada com o Paul. Parece-me atrasado. Quero que o veja, quero saber a verdade. Sim, precisava de saber a verdade, tinha de a forçar pelo coração dentro, de a conhecer inteira e crua. Mas teria muita calma e esperaria que o doutor descobrisse a verdade e lha dissesse. Esperara todos aqueles meses, a reunir forças e serenidade. Entrou no escritório e sentou-se, à espera. A governanta Nellie Byers, espreitou à porta.

-Olá, Joan! O doutor está a almoçar. Oh, que lindo menino traz consigo! É seu, não é?

- Sim. Eu espero, Nellie.

Esperaria de bom grado, para tentar desfazer aquele nó que se lhe formara na garganta. Mas não teve tempo; o Dr. Crabbe apareceu imediatamente. Limpou os lábios ao guardanapo e atirou-o para o chão.

- Ora viva, Joan! - Oh, a sua abençoada voz afectuosa, a sua voz quente e boa! - Chegaste mesmo a tempo, pois tencionava ir ver Mrs. Mark. Não é urgente, pobre mulher. Vou só ver que outra porção do seu corpo morreu. Tento aparecer-lhe de vez em quando, embora ela não queira que o faça. Então, Joan, que temos?

Joan olhava-o, a soluçár ruidosamente. Os soluços saíam-lhe do peito, desgarradores e secos, e não os conseguia reprimir. Estendeu o filho ao médico, que lhe pegou, e disse, sacudida

pelos soluços:

- Há qualquer coisa que não está bem. Ele não me conhece. Entregou-lhe o seu fardo e sentiu-se aliviada. Parou de soluçar. Pela primeira vez em todas aquelas extenuantes noites de insónia, em todos aqueles dias assustadores, sentiu-se aliviada do seu fardo, o longo silêncio em que mergulhara rompeu-se. Agora não podia parar de falar:

- Está sempre tão quieto, tão horrivelmente quieto! Nem lhe sei explicar, Dr. Crabbe. Foi aquele terrível silêncio da casa que o envenenou. Nunca ninguém diz nada, consideram errado falar. . Até parece que o embruxaram.

Enquanto ela falava, falava, o doutor observava o bebé, tocava-lhe aqui e ali, mexia-lhe nos ombros. Por fim despiu-o e pegou-lhe.

- Bonito corpo - disse, de súbito, interrompendo Joan. -      Tem o teu excelente corpo.    

Joan arquejava de terror, sentia os lábios secos, mas agarrou a dor com ambas as mãos e perguntou:

-Dr. Crabbe, e o espírito? Onde está o espírito dele?  

A dor de esperar que o filho nascesse não fora nada comparada com a dor daquela espera. Toda a vida e todo o mundo pararam, se dissolveram, deixaram de existir. Em todo o mundo não existia mais nada nem mais ninguém senão aquela sala pequena, aquele velho, aquela criança e ela própria. Mas o Dr. Crabbe levou muito tempo a responder-lhe. Por fim começou a vesti-lo, devagar e cuidadosamente, com perícia, e só depois olhou para Joan, com o rosto transformado num labirinto de rugas, e lhe disse:     

- O seu espírito nunca nasceu, Joan, minha querida fílha.  

Regressou a casa, a conduzir o carro devagar; pela estrada sombria. A certa altura ouviu alguém chamá-la, excitadamente, e viu, através do nevoeiro do seu terror, Netta Weelçs, a empurrar um carrinho de bebé.        

-Joan! Joan! Espera! Há séculos que não te via.

Teve de parar, um momento.        

- Não, Netta, não desço. Obrigada... Tenho de ir para casa...

Sim, é o meu bebé.

Paul dormia no seu colo, com a cabeça apoiada no seu braço, tão sossegado que Joan podia manejar as rédeas e segurá-lo, ao mesmo tempo. Naquele momento sentiu-se grata por ele estar a dormir. Era bonito, enquanto dormia. Todas as crianças o eram.

- Mas ele é lindo, Joan! - elogiou Netta. - Parece-se contigo; não parece? E tão grande e forte! Tens sorte... Aposto que não custa a aturar. O meu Petie é um terror, sempre a mexer em tudo.     

Puxou para trás a capota do carro e revelou um rapazinho louro, magro e vivo. Estava sentado muito direito, a palrar e a dar cabo de um patinho de brincar.

- Oh, meu Deus! - gritou Netta. - O avô deu-lho mesmo agora, na loja. tão traquinas! - Tirou-lhe o pato, mas o garoto desatou a berrar e ela voltou a dar-lho e piscou o olho a Joan. E vivo que se farta! Mas o teu bebé é uma beleza. - um bom menino - redarguiu Joan, serenamente. Paul mexeu-se um pouco e ela apressou-se a pegar nas rédeas.

Tinha de partir antes que ele acordasse, antes que abrisse os seus encantadores olhos vazios. Não podia tolerar a ideia do que Netta diria, dos seus mexericos. A Joan Richards. foi sempre muito importante, mas só queria que vissem o seu filho. -Aparece e faz-me uma visita, Joan - convidou Netta, quando ela partiu.

- Pois sim.

Mas sabia que nunca a visitaria. Tinha aquela dor consigo, aquela dor que a acompanharia sempre, que a isolaria de toda a gente. Tinha de a agarrar, de lutar com ela, de a suportar sozinha. Regressou devagar, a aconchegar Paul a si. Mas à sua volta, ao lado de ambos, como uma terceira presença, estava a dor, a dor à espera dela.

Deitou-o na cama, no sótão, tirou-lhe o chapéu e o casaco e limpou-lhe a cara e as mãozinhas com um pano húmido e macio. Depois sentou-se a seu lado e alimentou-o. Eram coisas que podia fazer por ele e que a confortavam. Paul tinha fome, apesar de não ter chorado. Joan observou-lhe o rosto. Quando dormia ou quando comia, assim, era como qualquer outra criança. O Dr. Crabbe estava velho, talvez se tivesse enganado. Joan passou em revista a manhã. Esquecera-se de dizer ao médico que Bart não falara antes dos cinco anos e agora era normal. Bart era normal, não era?

O Dr. Crabbe era muito impetuoso, tirava conclusões muito depressa... Ainda lhe restavam cerca de trezentos dólares. Podia levar o filho a um médico da cidade e ver o que ele dizia. Iria a Nova Iorque, procuraria na lista telefónica o nome de um médico de crianças e pedir-lhe-ia que examinasse Paul. Sim faria isso. O facto de planear fazer qualquer coisa tornou-a mais feliz. Não diria nada a ninguém encquanto não fizesse o que pensava. Até lá, podia deter a dor que a esperava. Era como afastar de si, com as mãos, uma substância sólida.

- Estás a fazer muito barulho por nada - declarou Bart.       

Na cozinha, enquanto ele se lavava depois da ordenha, Joan

informara-o:   

-O Dr. Crabbe disse que o Paul não é normal, Bart.    

- Não me fio em médicos - declarou a mãe de Bart. - Já      estou arrependida de lhe ter dito que o Bart só falou aos cinco anos. Mas se lho disse foi para a sossegar, pois no fim de contas ele agora é normal.

Não respondeu. Era sempre mais fácil não responder. Iria no

dia seguinte. Talvez quando soubesse pudesse voltar a dormir, quando tivesse a certeza de que o filho era, de facto, normal.

Era quinta-feira, Fanny viria no dia seguinte... Pediria ao Sam que lhe dissesse para vir só no sábado, naquela semana. Atenta, arranjou oportunidade para lhe falar antes de ele chegar à porta da cozinha, com os baldes do leite. Mas quando lhe pediu, Sam abanou a cabeça, secamente.        

Agora já não a vejo. Casou.  

Primeiro assustou-se, mas depois disse para consigo que não

tinha importância. Só podia tratar de uma coisa de cada vez.

O medo do que Fanny seria capaz de fazer, se se sentisse decepcionada, teria de esperar até conseguir afastar aquela dor que a acompanhava. Voltou ao sótão e meteu numa mala alguma roupa de Paul.

Encontrou fàcilmente um médico. Estava uma mulher na cabina telefónica, à espera da sua vez, e quando a viu segurar o filho com uma das mãos e consultar a lista com a outra, perguntou-lhe, amável:

- Posso ajudála?    

- Queria saber o nome do melhor médico de crianças de Nova Iorque. - A cabeça de Paul escorregava do seu ombro e

Joan apressou-se a ampará-la.

- Vá à Edmonds Clinic - aconselhou a múlher.

Usava um vestido encarnado, berrante, e tinha o cabelo amarelo espetado à roda da cara redonda e gorda, mas os pequenos olhos azuis eram bondosos e havia doçura nos lábios vermelhos, grossos.

-Se disser que não tem dinheiro, não lhe custará nada. Bastará escrever que não tem quem a ajude. É pesado, não é? Que tem ele? - Virava devagar as páginas da lista e percorria os nomes com a unha bicuda e pintada do indicador. - Aqui está, vê? Meta-se no autocarro aqui à esquina... Que disse que ele tinha?

- Não anda nem fala. - Lá estava a dor, muito perto, a apunhalá-la, mas Joan empurrou-a outra vez para trás.

- Não?

A mulher ia a dizer qualquer coisa mais, mas a porta da cabina abriu-se e um homem fez menção de entrar.

- Eh; agora sou eu! - gritou-lhe a mulher, irritada.

- Então entre - resmungou o indivíduo.

       Era um homem de meia-idade e de aspecto fatigado, que começou a mordiscar o cabo do chapéu-de-chuva, enquanto esperava.

A porta da cabina bateu e a mulher, fechada no interior, começou a gritar ao telefone, muito corada.

Joan fixou a morada que ela lhe indicara e não teve dificuldade em a encontrar. As pessoas foram muito amáveis com ela, no caminho. Era maravilhoso que fossem amáveis com ela, muito mais do que Bart e a sua familia. Sabia bem ouvir alguém cortês, sentir o auxílio de mão delicada. No autocarro, um homem de cabelo branco deu-lhe o lugar, sorriu-lhe e levou a mão ao chapéu, e quando ela saiu houve alguém que lhe agarrou no braço, para a ajudar a descer.

- É pesado de mais para si - murmurou uma agradável voz de tenor, mas quandu Joan se voltou, para agradecer, não soube a quem pertencia; era apenas uma voz na multidão.

Sentiu-se confortada. Havia gente boa, gente desconhecida,

mas boa.

Passou os olhos pelas ruas de Nova Iorque, enquanto o auto carro a levava ao seu destino, e verificou que, no entanto, aquela gente apressada não parecia amável. Uma vez, quando o autocarro     parou defronte de um armazém, viu algumas pessoas que, ao contrário das demais, não tinham pressa. Tratava-se de uma mulher        e dois homens, modestamente vestidos, e andavam de um lado para o outro, com cartazes que diziam: DESPEDIDOS DE BRISKANDHRAM POR EXIGIR CONDIÇÕES HUMANAS. Mas ninguém os olhava ou lhes prestava atenção. O autocarro partiu de novo e, pouco depois, Joan chegou ao hospital. Entrou por uma porta onde se lia clinica, e sentou-se num dos bancos, ao longo do comprido átrio.     

Os bancos contornavam as paredes e estavam cheios de mulheres  com crianças doentes - crianças que choravam, gemiam e dormitavam, numa inacção triste. A seu lado, uma mulher nova, de rosto pálido e magro e olhos baços de fadiga; pegava numa garotinha de enorme cabeça disforme. Olhou, invejosamente, para Paul,      que dormia tão tranquilamente como costumava dormir no seu braço.     

- Custa a crer que um bebé tão encantador possa estar doente.        

- Custa, não custa? - perguntou Joan, grata.       

Era verdade; entre aquelas crianças doentes Paul parecia saudável e bonito. Joan não pôde deixar de se sentir um pouco orgulhosa dele. Pelo menos a dormir, era lindo. A pequenita da outra  mulher começou a choramingar, rabugenta.     

- Cansa-se tanto, pobrezinha - murmurou a mãe, tentando aliviar o peso da enorme cabeça. - O doutor está atrasado. Vêm sempre atrasados... Quem me dera recuperar todas as horas que tenho perdido à espera de médicos.   

- Não podem fazer nada? - perguntou Joan, compadecida.        

Sob a testa monstruosa, abaulada; o rosto da pequenita espreitava, mirradinho, chupado, marcado por longo, longo sofrimento.       

- Não perco a esperança - respondeu-lhe a mãe, fervorosamente, e beijou a testa disforme. - Precisamos de ter esperança.   

Tinham todas a mesma esperança, pensou Joan, a olhar para as outras mulheres. Olhavam avidamente para os filhos umas das outras e nas suas caras surgia uma expressão de alívio quando viam algum pior do que os seus. Os seus olhos desviavam-se depressa de Paul, que parecia tão saudável, e demoravam-se, esperançados, em crianças aleijadas ou disformes.

Quando o médico entrou, todos os rostos se voltaram para ele, todos os olhos o seguiram, a perscrutar àvidamente a sua cara. Era um homem robusto, de meia-idade, de barba quadrada, curta, e olhos cinzentos muito claros. Falava alto e em tom firme a um homem mais novo, que o acompanhava.

- Digo-lhe, Froetor, que o diagnóstico é evidente em noventa por cento desses casos. O não desenvolvimento congénito do cérebro é consistentemente diferente do caso do cérebro lesionado à nascença e talvez mentalmente normal. Nunca confundo os dois... Olhe para estes, aqui.

Os seus olhos percorreram, frios, rápidos e analisadores, as crianças que se encontravam ao longo das paredes. Estava mesmo defronte de Joan, que captava o seu perfume forte e másculo, lhe via a parte inferior do queixo, o triângulo do nariz e os olhos cor de ágata, que olhavam para baixo. Mas não a viam; viam apanas Paul, que acordara e jazia, tranquilo, nos seus braços. - meu filho - disse, corajosamente.

- Não precisa de esperar, minha boa mulher, a não ser que o deseje. Não tenho mais nada para lhe dizer. Leve-o para casa, e quando se tornar muito diicil cuidar dele procure uma boa instituição.

Afastou-se, sempre a falar. Joan voltou-se, angustiada, para o médico mais novo, mas ele nem a viu. Escutava, atenta e respeitosamente, a voz fria, inteligente e sabedora. Joan levantou-se, para enfiar o chapelinho na cabeça de Paul.

Queria ir para casa, para o sótão. Podia continuar a afastar a dor, até lá. Não pensaria nas palavras que ouvira, não as analisaria. Quando chegasse a casa, debaixo do tecto baixo e escuro, tirá-las-ia da memória, compreendê-las-ia e deixaria a dor apoderar-se, enfim, de si; submergi-la. Á sua volta, as mulheres esperavam pacientemente, sem lhe prestar atenção. - A porta do gabinete do médico abriu- se e olharam todas para lá. Uma enfermeira saiu branca e imaculada, e chamou:

-O primeiro doente, por favor!

Ninguém viu Joan sair.

Bart foi esperá-la á estação, no automóvel. Joan sentou-se,

calada, a seu lado. O carro percorria velozmente a estrada acidentada e Joan sabia que Bart guiava assim para se exibir, a seus olhos. Queria que ela dissesse que conduzia muito bem.

A agulha do conta-quilómetros subia, subia, e ela sentia-o à espera dos seus elogios. Como não os ouvisse, começou a guiar cada vez  mais depressa, perversamente, para a obrigar a dizer qualquer coisa. Como não tinha imaginação, nunca pressentia o perigo. Era capaz de andar pelo telhado do estábulo, a rir, só para a ver remecer e virar a cara para o lado. Mas agora Joan mantinha-se   imperturbável, pois não se importaria se morressem todos. Passado um bocado, Bart afrouxou, amuado.     

-Que disse o doutor acerca do miúdo?

Joan agarrou a lâmina de dor com ambas as mãos e respondeu-lhe:

-Disse que o Paul nunca será normal.  

Olhou para os campos. O milho estava a embandeirar, sob o

calor do pino do Verão. O verde da floresta tornara-se mais       bonito. Se Bart fosse um homem, se fosse realmente o que o seu corpo indicava, ela podia entregar-lhe o filho e descansar a cabeça no seu ombro. Assim, a sua dor teria fundo, não seria insondável, interminável, um túnel negro pelo qual ela caminharia sozinha toda a vida, sem uma luz que a orientasse para a saída.     

-Não devemos acreditar em tudo quanto os médicos da cidade dizem, Jo. Ele não pode ser mais saudável do que é.

-No corpo não tem nada.       

- Verás como acaba por ficar bom - afirmou Bart, convictamente.      

Joan não lhe respondeu. A estrada estava cheia de poeira e      o Sol, no ocaso, tingia o céu de cor de laranja.   

Bart pigarreou e disse:

-Está a fazer falta chuva, embora o tempo esteja bom para o milho.  

- Sim.

A casa surgiu à vista. Os homens estavam á porta da cozinha

e a velha fritava batatas, no fogão.      

- O jantar está pronto - anunciou, sem voltar a cabeça.

- Venho já para baixo - disse joan. - Não esperem.

Levou Paul para o sótão, lavou-o, amamentou-o e deitou-o no berço. Estava cansado e adormeceu logo. Joan pegou no candeeiro que tinha em cima do caixote que lhe servia. de mesa e observou-o. Aqueles seriam, agora, os seus momentos de sonho, aqueles instantes em que, à noite, o filho dormia profundamente. Podia sonhar que ele era como as outras crianças, que passara o dia a brincar, a gritar, a tagarelar, a chorar e a tornar realidade os seus planos de rapazinho activo; agora, ao fim do dia, estava fatigado.

A medida que o seu corpo crescesse podia pensar que andava na escola, jogava basebol e andava a cavalo, e, mais tarde, já homenzinho, quando o visse adormecido podia sonhar que estudava na universidade. A sua imaginação percorreu, numa angústia, os anos que viriám. Agora já não podia afastar a dor, ela estava ali, inteira.

Andaria consigo dia e noite, enquanto vivesse, iria aonde ela fosse acompanhá-la-ia a dormir ou acordada, embora lhe parecesse, agora, que nunca mais seria capaz de dormir.

Abriu a gaveta para guardar o chapéu de Paul, e viu a canção que começara a escrever na véspera de ele nascer.

Estavam ali as frases de abertura, o começo alegre e triunfante, não conseguira encontrar o fim. Agora sabia qual era. Rasgou papel aos bocadinhos, foi á janela e deixou-os voar, na escuridão que se adensava. Depois apagou o candeeiro e tacteou, o caminho da escada.

A comida enrolava-se-lhe na boca e Joan bebia golinhos de água, para a empurrar. Precisava de comer, claro. Agora tinha de viver enquanto Paul vivesse, e ao corpo de Paul estava reservada uma longa vida.

-Que disse o médico?

Arrancou-se ao abismo da sua dor solitária e olhou para a mãe de Bart. A pergunta parecia ter vindo de muito longe.

- Disse que o Paul nunca será como as outras crianças.

Vezes sem conta, ao longo de toda a sua vida, teria de estar preparada para dar aquela resposta. Aonde quer que fosse, haveria quem lhe perguntasse: Que tem o seu bebé? Passado algum tempo, a pergunta seria: Que tem o seu rapazinho? E, mais tarde:

Que tem esse jovem? E ela teria de estar sempre preparada para responder: Nunca será como as outras crianças... Nunca será como os outros jovens... Sem hesitar, sem se deixar abater.

- Passa-me o pão - pediu Bart. - Eu não acredito.

Sam passou-lhe o pão.

- Não nos devemos fiar nos médicos - afirmou, com convicção. - Uma vez, um disse-me que tinha um panaricio, mas afinal era apenas um furúnculo.     

- Já estou arrependida de lhe ter falado na pequena da tia Emma - disse a mãe de Bart, aborrecida. - Agora é capaz de se pôr a pensar coisas... Os casos são muito diferentes. A filha da Emma adoeceu depois da queda, mas o Paul é diferente. É tal qual o Bart, que também era um bebé muito saudável. Sempre disse que ele falaria quando chegasse a sua altura, e assim foi. Ao Paul acontecerá o mesmo.    

- Vai buscar máis leite - interrompeu o pai de Bart. – Tenho de me despachar cedo, esta noite, pois há uma reunião na igreja.  

Fala um missionário de África. O padre quer muita gente a assistir e, como sou superintendente, falou-me a esse respeito. Sam, veste o teu fato novo e vem, também. E tu, Minna. O missionário traz filmes.

- Não preparei nada... - respondeu-lhe a mulher, penalizada. -Devias ter-me dito mais cedo, para eu planear o trabalho de depois do jantar.

- Eu trato de tudo - prontificou-se Joan.       

- Mas não quererá ir, também, Joan? - A mãe de Bart hesitou, antes de aceitar o oferecimento. - Seria interessante, visto a sua irmã ser missionária e tudo o mais. Eu fico com o Paul.

- Estou muito cansada - desculpou-se Joán.

- Nesse caso... - acedeu a velha, satisfeita, mau grado seu.

- Qlaro que não vou só por querer ver os filmes... Acho que me devo interessar pelo trabalho da Igreja nas terras pagãs.

- Com certeza. - Joan voltou-se para Bart e perguntou-lhe:

-Porque não vais também? Gostarias dos filmes.

- Sim, acho que também vou.       

A casa fícou deserta, só com ela e Paul. O silêncio era total, não se ouviam murmúrios de respiração nem passos. Joan lavou a loiça, limpou as migalhas da mesa, pô-la para o pequeno almoço e tapou-a como de costume. Depois tomou banho, escovou o cabelo e vestiu uma camisa de dormir. Era -pensou - como se se fosse deitar para morrer às suas próprias mãos. Mas não, podia morrer porque Paul estava- vivo. As escuras, aproximou-se do berço e escutou. Respirava normalmente. Pegou-lhe na mão. Estava morna e inerte. Fizera tudo quanto era possível. Deitou-se na cama e deixou a agonia apoderar-se, finalmente, dela, sem nada a deter.

Mas como era possível viver dia e noite angustiada, enquanto passava um ano, e depois outro e outro? Dormia um pouco e

acordava de manhã entorpecida, como se acordasse no meio de denso fumo ou debaixo de algo pesado: Antes de acordar por completo, de arrancar o espírito ao sono, sabia que havia qualquer coisa que não estava bem, que o terror a aguardava. E o terror apoderava-se dela todas as manhãs, pungente e revigorado. Se esquecia por um momento - e, às vezes, era capaz de esquecer por um momento, ante a beleza do sol a romper por entre as folhas das árvores, do canteiro de flores, resplandecente sob o sol do meio- dia, os lírios orvalhados, ao crepúsculo, névoa a subir as encostas, ao luar. -, se esquecia por um momento, logo a seguir o terror voltava, imperioso, a impor os seus direitos. Era melhor nunca o esquecer do que ser constantemente recordada da sua existência. Oh, que belos estão hoje os montes sob as sombras móveis das nuvens! Sim, mas o Paul nunca será como as outras crianças.

E nunca o desespero era tão intenso, tão pungente, como quando era ele próprio a fazê-la esquecer. O encanto da sua nuca onde o cabelo louro começava a encaracolar-se. o seu corpo roliço, na banheira. Joan conseguira rir apaixonadamente terna, adorar a sua beleza e esquecer, num momento de adoração. Mas depois a eterna angústia voltava.

Sentia um grande desejo de ver outras crianças. Crivou Rose de perguntas, acerca de David, mas a irmã escreveu-lhe, contrariáda, a dizer que esperava outro filho. Agora tenho tão pouco tempo para trabalhar... , queixava-se.

-Não compreendo de que está ela a falar! – exclamou Joan, em voz alta, doida de inveja.     

Pensou visitar Netta, para ver o filho dela, mas afastou tal ideia. Ao encontrar-se com Fanny, debaixo do carvalho, para lá da curva da estrada, suplicou-lhe: 

-Traga o Frank consigo, da próxima vez. Desejo vê-lo, de novo. Há tanto tempo que não o traz!   

- Está bem. - Fanny engordara, nos últimos dois anos, e parecia uma grande papoula escura, no amarrotado vestido escarlate.

Na semana seguinte, na ânsia de admirar o rapazinho, Joan mal prestou atenção ao que ela dizia. Havia qualquer complicação. Fanny discutira com o marido. Gostava de complicações e de discutir.  

- Cresceste tão depressa, meu querido! - disse Joan ao rapazinho, ajoelhada na estrada poeirenta, diante dele. - Vais para a escola?     

O garoto olhava-a, encantado, com os grandes olhos negros    

muito ternos.  

- Se a Fanny me deixar... - murmurou.

- Não lhe chamas mãezinha ?      

-Ela não gosta.

Fanny riu-se, radiante.

-Não deixo nenhum deles chamar-me mãe. Assim causa   

melhor impressão. Se o levo a qualquer lado, digo que é meu

irmão.

O petiz olhou-a gravemente, ao ouvi-la rir, e depois voltou-se de novo para Joan e fitou-a, curiosamente, com profunda inteligência. Era aquela expressão que o olhar de Paul devia ter, aquela expressão compreensiva e consciente. Francis tivera-a, apesar de toda a sua indocilidade e teimosia, e a mãe, ao vê-la, apertava-o a si e falava-lhe baixinho. Era estranho ver Francis olhá-la, agora, através daqueles olhos da selva!

- Que tenciona fazer desta criança, Fanny? - perguntou, inquieta.

A rapariga encolheu os ombros, despreocupada.

- Estará bem enquanto eu não decidir ir-me embora. Isto é, enquanto aquele homem se portar como deve ser. - Franziu a testa, com certa melancolia. e confessou: - Poucos homens têm sido a meu gosto como o Frank. As vezes. quando começo a pensar nele, perco o gosto por eles todos. Ele nunca mais regressará?

Não o incomodaria, mostrar-lhe-ia apenas o rapaz e cumprimentá-lo-ia.

- Não - respondeu Joan, sem hesitar. - Ele não volta mais. Disse que não voltava.

A rapariga soltou um suspiro fundo e trémulo.

-Bem. tenho de ir andando. Mais uma vez obrigada pelo dólar; é uma ajuda. Trato o Frankie melhor do que qualquer dos meus filhos.

Mas Joan não tinha coragem para deixar partir o pequeno: Percorreu-lhe com as mãos o corpinho todo e achou-o firme duro e escorreito, pegou-lhe na mão e ela fechou-se, com força na sua. Era tão diferente do Paul, pesado e lento! A própria maneira como lhe agarrou a mão era diferente do agarrar frouxo e incerto do filho. Joan apertou-lha um instante e observou-a.

Podia imaginar a pele fresca e lisa, branca, mas, por baixo, com sangue escuro.

- O seu pequenito está bem? - perguntou Fanny, enquanto estava a ver-se a um espelhinho e espalhava carmim nos lábios.

Joan hesitou, mas depois respondeu, com firmeza:

-Não, não está bem. Há algo anormal, nele. Fanny baixou o espelho, compadecida, e exclamou: - Oh; que pena! Os meus filhos são todos saudáveis. conheço úma rapariga que tem ùma menina muito fraquinha. Levou-a à igreja, o pregador pôs-lhe a mão na cabeça e ela está melhor. pelo menos é o que a mãe diz. Vamos, Frankie. O pai deve estar furioso, por esperar tanto tempo por nós!

Teve de o deixar partir. Levantou-se e viu-o afastar-se a caminhar, todo desempenado, pela estrada poeirenta. Quando deixou de os ver, sentou-se na berma da estrada, desolada. O Verão passava, o milho amadurecia e nada crescia, agora. Outrora, Verão após Verão, sentia tudo crescer, transformar-se em botão, flor e fruto. Agora estava tudo parado, nada crescia na terra toda, nas florestas e nos campos. Não havia crescimento; havia apenas amadurecimento e morte lenta, mas certa. Aproximava-se outro Outono.

Joan levantou-se e foi para casa, para junto de Paul.

Vinha-lhe constantemente à memória o que Fanny lhe dissera. Havia uma mulher que levara à igreja a filha fraquinha e a criança melhorara. Em South End, as pessoas eram muito ignorantes e supersticiosas.

Rose continuava a escrever-lhe longas cartas, que Joan mandava a Mrs. Winters, depois de as ler, para serem lidas nas reuniões missionárias. A irmã falava de mulheres pagãs, que iam aos templos se os filhos adoeciam...  

Na sua cegueira e ignorância, escrevia Rose, dirigem-se aos seus deuses e prometem-lhes mantos ou sapatos novos se as crianças se curarem. É difícil persuadi-las a desistir dessas práticas idiotas e perversas.       

Naquela primeira manhã de domingo, após o seu regresso da

universidade, não lhe parecera necessário pensar em Deus, pois então tomara tudo por certo. Deus cuidaria dela. Tinham-lhe dito tantas vezes que Deus era bom Ali, naquela casa, ouvia o pai de Bart ler, de manhã e á noite, a Palavra de Deus. Não precisara de prestar atenção, pois Deus era bom.  

Mas agora era inútil tentar convencer-se de que Paul melhorava, pois não melhorava. Brincava com ele todos os dias, cantava-lhe, vezes sem conta, com uma paciência desesperada e triste, as alegres canções infantis que a sua mãe cantara a todos eles:      

Palminhas, olaré, palminhas... , Lembrava-se de que Francis, ao ouvi-las, batia palmas, extasiado, mas Paul... Paul, Paul, estás a ouvir? Palminhas, olaré, palminhas... Segurava-lhe as mãos e batia uma na outra, dia após dia, sempre à espera de as ver levantar-se, por sua própria iniciativa. Palminhas, olaré, palminhas... Mas, dia após dia, acabava por lhas largar e se entregar a qualquer outra tarefa. Era preciso muito tempo para ensinar crianças pequenas. A mãe costumava queixar-se: Parece-me que tenho de lhes dizer constantemente a mesma coisa, filhos. Todos os dias, Joan repetia e tornava a repetir a mesma coisa ao filho.

Então, um dia, quando ele tinha quase cinco anos, largou-lhe as mãos. Foi à arca e tirou uma caixinha onde guardava os brinquedos que fizera para os seus natais. Todos os anos fizera planos para dar felicidade ao filho. Para o ano, armarei uma árvore.

Já deve reparar, com certeza, nas velas e rir-se dos brinquedos. - Desta vez não esperarei pelo Natal. Acendeu o candeeiro e colocou-o onde ele o pudesse ver, abriu a caixa e tirou uma roca que comprara, com campainhas no cabo, e chocalhou-a perto dele.

Depois pegou-lhe na mãozinha, fechou-a docemente no cabo e moveu-a devagarinho, de um lado para o outro. Mas quando retirou a sua mão, a roca caiu. Pegou no candeeiro, a soluçar, e levantou-o acima do filho. Paul não reconheceu a luz. Os seus olhos vagos viram-na e desviaram-se, sem expressão.

- Não vale a pena continuar a enganar-me - disse em voz alta, impetuosamente.

Pôs o candeeiro em cima da mesa, meteu os brinquedos na caixa, levou-a para a arca e fechou-a. Nunca haveria Natal naquela casa, sabia-o agora. Teve, de novo, um dos seus antigos ataques de soluços.

-Oh, meu Deus! - soluçou, - Ajudai-me, meu Deus, ajudai-me!

Procurou na arca a Bíblia da mãe, lembrando-se de que arrumara ali, com a Rose. Havia anos que não lia a Bíblia, a si própria. Quando era pequena, aos domingos à tarde cada um tinha de ler um capítulo. Depois, já mais crescida, fizera o

mesmo de vez em quando, de sua livre vontade, por gostar das palavras vigorosas e expressivas. De súbito, porém, pusera a Bíblia de parte e passara a ler poemas dos Brownings, a Princesa, de Tennyson e todas as histórias de amor a que conseguia deitár a mão.

Uma vez rezara com toda a sua alma pela vida da mãe, e a mãe morrera. Mas a verdade é que a mãe já não era nova e chega a todos a vez de morrer. Paul era uma criança, faltavam-lhe ainda muitos, muitos anos para morrer. Joan caiu de joelhos ao lado da cama, de mãos juntas, olhos fechados e todo o seu ser entregue à oração. Sentiu uma força estranha subir-lhe pelas pernas, pelo corpo todo, elevá-la ao céu frio e estrelado, numa intensa  chama de desejo, e suplicou:

-Oh, meu Deus, curai o Paul!

Daria tempo a Deus... Passava os dias e as noites numa espera ansiosa, angustiada. Mas havia trabalho a fazer naquela   casa, sempre tanto trabalho! Era preciso varrer, encerar, limpar...    

Joan entregava-se furiosamente às tarefas que lhe estavam destinadas. As terças-feiras abria a sala escura e nunca usada, limpava    os móveis e os quadros, todas as superfícies curvas e entalhadas.

Agora conhecia-as a todas, sem amar nenhuma. Nada daquilo tinha significado para ela. Nunca vira ninguém sentar-se nas cadeiras, as portas de madeira das janelas só se abriam às terças-feiras...   

As quartas-feiras limpava a copa, em cujas prateleiras havia três serviços de jantar completos.   

- Serão para si quando eu morrer -- dizia, com frequência, a mãe de Bart.

- Porque não os usa? - perguntava-lhe, irritada. – Preferia que os usasse agora.     

- Usar todos os dias o serviço bom do casamento da minha mãe? - gritava, horrorizada, a velha. - Ela nunca o fez e eu tão-pouco. Além disso, era uma trabalheira lavar essa louçaria e eu nunca me perdoaria se se partisse alguma coisa.

Comiam em pratos de dez cêntimos... Joan limpava, numa fúria, os pratos antiquados e vazios. Se alguma vez fossem seus, usá-los-ia todos os dias, em cada refeição, e depois bateria com eles no alguidar da louça, sem dó nem piedade! 

Ao ouvir os pratos bater uns nos outros, a voz da velha      disse, aflita, da cozinha:

-Se partimos as nossas poucas coisas boas, não sabemos aonde ir buscar mais.

Não lhe respondeu e continuou a mudar os pratos e a limpar-lhes as arestas. Só coisas e coisas, aquela casa estava cheia de coisas silenciosas e sem vida, coisas de que era preciso cuidar.

Gostaria de sair dali para fora, de meter pela estrada abaixo, sem destino, e nunca mais voltar.

Tenho de ser paciente, pensava, aterrada. Como posso esperar que Deus faça alguma coisa por mim se sou tão rebelde e indisciplinada?

Mas custava muito ser paciente durante tanto tempo. Joan

       esperava, dia após dia, sempre a fervilhar de preces, sempre a erguer mentalmente súplicas angustiadas, desesperadas, importunas.

Espicaçava Deus com as suas preces, sem fé. Nada, o Paul não muda nada... Mas voltava a tentar, a espicaçar: Não há outra esperança... Ajudai-me, meu Deus!

       Trasbordava energia. Encerava a escada principal, que nunca subia, que acabara por considerar sacrílego subir, à força de morar naquela casa. A desaprovação da mãe de Bart tornava a rebelião inútil. A pergunta indignada de Joan Porque havemos de subir aquela íngreme escada das traseiras?-, respondera, magoada:

       Haveria mais que limpar! A intensidade da esperança constantemente prorrogada tornava-a azeda. Enfurecia-se muitas vezes com a mãe de Bart, com a sua grande estupidez e teimosia. Oh, Deus, quando, quando melhorará o Paul?!

- Sim - respondia, abespinhada, à velha. - Sim, limpei o corrimão... Sim, desviei a mesinha de nogueira, de tampo de mármore, e limpei atrás do espelho!

- Francamente! - exclamava a outra, admirada. - Perguntei apenas porque, se não tivesse limpo, iria limpar eu, e se tivesse ia acender o lume para fazer o jantar.

Passava a vida a observar o filho, a tentar despertá-lo. Um dia, levou-o à sala; abriu o velho piano desafinado e, com Paul sentado ao colo, pegou-lhe nas mãos e tocou docemente nas teclas.

Chovera durante todo aquele longo e escuro dia. Estivera no sótão a passear e a brincar com o garoto, mas por fim o tecto baixo fizera-a sentir-se oprimida, asfixiada. A chuva batia na janela com fúria, e não deixava ver pràticamente nada. Desassossegada e impaciente como uma criança, pegara em Paul, descera ousadamente a escada principal - No fim de contas, quem a limpa sou eu! e fora sentar-se ao piano.        

- Palminhas, olaré, palminhas... - cantarolava, enquanto batia docemente com as mãos do filho nas teclas.

A porta abriu-se, bruscamente, Joan voltou-se, com a cabeça

de Paul a cair-lhe para o peito, e viu a mãe de Bart, a sua grande cara estúpida violentamente congestionada.       

-Não tolero isso, Joan! De maneira nenhuma. Já suportei de mais. Nunca consenti que os meus filhos tocassem nesse piano, e também não consinto que o Paul o faça! 

Atravessou pesadamente a sala, a limpar as mãos ao avental, e fechou o piano, com força. Joan levantou-se. Agora sabia que odiava aquéla mulher, que os odiava a todos. Era inútil continuar a iludir-se a si mesma. Fitou os olhinhos amarelados, cega de ódio, a apertar o filho com tanta força que ele começou a chorar.

Virou-se e saiu da sala a correr.

Não passava um segundo sem que tivesse consciência de que estava a levantar obstáculos a Deus. Como podia Deus ajudá-la se era tão má e estava tão cheia de ódio? Quando chegou ao sótão, começou a soluçar.

- Aquele velho piano inútil... E Paul é filho do seu próprio filho! Não a quero odiar...    

Deitou Paul no berço e atirou-se para cima da cama, a soluçar. Ùltimamente chorava tanto! Qualquer ninharia a fazia chorar.

Quando se acalmou, continuou deitada, às escuras, a pensar.

Tinha de recomeçar, havia coisas que tinha de fazer e que não fizera. Era fácil para as mães pagãs, que prometiam aos deuses um manto ou uns sapatos... Levantou-se, acendeu o candeeiro e foi buscar a Bíblia da mãe. Abriu-a numa folha muito sublinhada e leu uma parte que lhe chamou a atenção: Aquele que procura

Deus deve primeiro acreditar que Ele é... ,  

Joan não acreditava o suficiente...       

- Acredito! Acredito! - murmurou, apaixonadamente.

Acredito!, gritava no seu coração todos os dias, a toda a hora, enquanto varria, lavava e remendava. Acredito!, repetia, abraçada ao filho. Desistiu de cantar para ele ouvir. Em vez disso, murmurava aos seus ouvidos, numa litania veemente: Acredito, acredito em Deus!

Tornou-se meticulosa, passou a ler a Biblia e a rezar a uma certa hora, todos os dias, como o pai fizera. Quando era rapariga - lembrou-se, horrorizada -, ria-se das pessoas que faziam tais coisas. Um dos motivos de chacota da aldeia era o facto de Mrs Parson rezar sempre antes de começar a escrever as suas histórias, todos os dias. Quero que Deus abençoe tudo quanto escrevo, costumava dizer. Se tiver a bênção do Senhor em tudo quanto escrever, um dia um editor aceitará o meu trabalho. Tinham-se rido dela, com a crueldade descuidada da mocidade. As orações eram para a igreja ou para serem murmuradas antes de adormecer.

       Era o mesmo que escovar o cabelo cem vezes, ou conservar as gavetas da cómoda arrumadas. Todas as pessoas decentes faziam essas coisas. Rezar era um hábito decente, mas não resultava bem nenhum dele, a não ser a sensação de decência que provocava. Mas talvez estivessem enganados, talvez houvesse mais alguma coisa, uma força com a qual não contara...

Reza, Rose, escrevia, desesperada. Reza pelo Paul.

- Deus - gritava aos montes e ao céu, a caminhar pelos bosques, reverdecidos pela Primavera, pela inflexível Primavera que chegava todos os anos, sempre igual! - Deus, ajuda o meu filhinho, o meu Paul!

       Na sua ânsia de persuadir Deus, segredava á mãe morta, como uma criança:

-Se estás perto de Deus, fala-lhe do Paul!

E pensava: Se houver alguma maneira, ela descobri-la-á e tentará! Mas Paul continuava a não a conhecer. Comia, dormia e tornava-se cada vez mais pesado, e ela tratava-o como sempre tratara. Nada indicava que os seus gritos e as suas súplicas fossem ouvidos.

- Bart - disse, um dia -, quero ir á nossa antiga igreja.

Peço-te que fiques com o Paul, em casa, num domingo.

Talvez na igreja familiar recapturasse a sensação infantil que recordava. a sensação de Deus estar perto e a amar. Em pequenos, estavam convencidos de que Deus os amava.

- Não precisas de fazer nada - recomendou a Bart. – Basta que fiques em casa. Não lhe toques, a não ser que ele chore. Era ciosa do corpo imaculado de Paul, não queria que as grandes mãos encardidas de Bart lhe tocassem.

- Está bem, eu fico - prometeu Bart.

Prometeu de tão bom grado e tão prontamente, que o olhou, surpreendida. Raramente lhe falava, agora, e ela a ele só falava raramente.

Joan chamava a si todas as forças, pronta para recusar:

Se lhe falasse, Bart era capaz de se tentar e fazer perguntas.

Joan aprendera a afastar-se dele, sempre que passava, á andar de um lado para o outro, fria e distante, sem nunca lhe tocar. Até parece que estou sujo, ou coisa parecida!, bramara ele, uma vez, e ela virara a cara e não respondera. Era a verdade, a sua carne era como porcaria para ela.

Por fim, Bart deixou de tentar. Ia e vinha do campo, comia brutalmente e, á noite, adormecia mal engolia o jantar. Joan deixou de o sentir tenso, compreendeu que lhe agradava agora, guardar silêncio para com ela, como ela guardava para com os outros. Viviam todos num círculo de silêncio. Sam arranjara uma namorada, a filha de um lavrador, que vivia a nove ou dez quilómetros de distância. Todas as noites, depois da ordenha, lavava-se e jantava, num constrangimento solene. Abandonara os ditos grosseiros e a maneira atrevida como olhava Joan. Ia casar.

Assentara, ou em breve assentaria. A mãe, porém, preocupava-se um pouco:

- Dizem que a Annie Beard é uma excelente rapariga, mas umas mãos largas com a manteiga e o açúcar. Uma vez comi

uma fatia de bolo feito por ela, na ceia da igreja, e até me agoniei. Por mim, só gosto de pão-de-ló. Mas isso é viciar a carne.        

Suspirava. Não era decente entrar em mais pormenores. Os filhos eram homens e deviam comportar-se como homens. Visto Bart não se ter queixado mais, supunha que tudo se arranjara, entre ele e Joan. No fim de contas, o quarto do filho

Ficava mesmo ao fundo da escada do sótão e ela explicara á rapariga como...

- Vai-te embora descansada - disse Bart a Joan, alegremente,

num domingo de manhã. - O Paul fica bem com o seu pai, não é verdade miúdo? - Sorriu, para o berço.

Joan pôs o chapéu de palha branca dos seus tempos de solteira. Havia tanto tempo que não o usava que já todos se deviam ter esquecido dele. O seu vestido de linho branco também era velho, mas a sua simplicidade permitir-lhe-ia passar despercebida.

       Estava mais magra e o vestido ficava-lhe um pouco largo. nas ancas.

Há quanto tempo não se vía assim vestida? Tinha a cara mais seca, com os contornos dos ossos bem vincados, e a boca não era tão cheia como outrora, mas continuava vermelha.

Apressou-se a deixar Bart. Sabia que ainda era bonita e, por isso, não queria que ele reparasse nela.

       - Irei a pé, a partir de Corners - disse-lhe. - Até aí, posso ir no carro com eles. Depois é um instantinho.

Mas Bart nem a via: Estiraçara-se em cima da cama dela e olhava para o tecto.

Chegou à igreja um bocadinho atrasada. Estavam todos a cantar Quando se sentou num banco da retaguarda. Inclinou a cabeça e começou, de súbito, a tremer. Estava muito cansada. Só agora o avaliava, ao sentar-se naquele ambiente familiar. Os velhos continuavam a cantar, docemente:

Não devemos subir as encostas celestiais

Para trazer Nosso Senhor Jesus Cristo para baixo...

As notas da órgão soavam delicadamente, abafadas, e o sol entrava pelas janelas, acariciava as teclas e ficava a pairar no ar parado. Em todo o corpo de Joan, pequenos nervos começaram a perder a tensão e a tremer. Apetecia-lhe chorar outra vez, apetecia-lhe chorar por si, patéticamente e em alto pranto: Passei um mau bocado, passei um mau bocado, sozinha.

O hino terminou num amenn suave e as pessoas sentaram-se.

Estavam todas de costas voltadas para ela, mas Joan reconhecia-as.

Aquele era o chapéu de Verão de Miss Kinney, de palha de Livorno castanha com um círculo vermelho, de cerejas. Ali estavam Mr. e Mrs. Billings. Ele estava mais gordo do que nunca e Mrs. Billings já começava a cabecear, Deus a abençoasse! Mas os filhos não os acompanhavam. Viu as costas de Martin Bradley, sentado ao órgão, magro e impecável como sempre e de cabelo quase todo branco. Passava os dedos pelas teclas silenciosas, como sempre, durante a leitura das Escrituras. O velho Mr. Parker morrera.

Lera a notícia no jornal, um dia. Morrera precisamente quando ia reformar-se e viver das suas economias, como tanto receara. Economizara durante anos e anos, para conseguir uma renda, sempre a privar-se de tudo para poder ser independente na velhice, e agora era outra pessoa que tirava proveito dos seus esforços, outra pessoa que não o estimava, pois Mr. Parker nunca casara.

Nunca tive dinheiro suficiente que me autorizasse a pedir a uma senhora que compartilhasse a minha pobre fortuna, costumava dizer. Uma vez dissera-o num jantar da igreja, ainda Mrs. Mark não estava paralítica: Interroguei o Senhor acerca de uma esposa, mas não obtive resposta. Receio ter perguntado mal. Mrs. Mark, que cortava o enorme bolo coberto de glace branca, replicara: O mal foi nunca ter perguntado a uma rapariga, irmão Parker! Toda a gente rira a bom rir, e Mr. Parker sorrira dolorosamente     e afastara-se. Mrs. Mark tinha fama de ser pouco delicada, como senhora.

Joan recordava, a sorrir, esquecida por momentos do motivo que ali a levara. Tinha tanto que recordar, ali! A mãe, Francis, Rose, ela própria... O que lhe doía mais era recordar-se a si própria. Era como recordar outra pessoa, uma jovem e ardente rapariga. A porta da sacristia abriu-se e Joan levantou a cabeça, a recordar o pai. Mas em vez dele apareceu um homem novo, calvo, de fato escuro, que começou a falar em voz firme e prática:

- O trecho de hoje baseia-se em...        

Leu apressadamente, com toda a simplicidade, sem imprimir qualquer poesia ao que lia, e no fim sentou-se, brusco. No coro, uma mulher levantou-se e cantou, numa voz fina e clara, de soprano. Era a mulher do reverendo. Joan reconheceu-lhe a voz. Só há uma casa de banho no presbitério? Que espécie de fogão têm na cozinha?

Baixou a cabeça, à espera de que o hino acabasse. Quando a congregação cantasse, podia voltar a recordar. O suave murmúrio das vozes envelhecidas, o órgão em surdina. Ao recordar, talvez recordasse, também, Deus. O pai tinha um tal poder para invocar Deus, ali, na igreja! Oh, desejava tanto sentir verdadeiramente Deus!

Seguiu-se um pequeno sermão prático e a leitura de algumas informações.

-Haverá a habitual reunião na sacristia, após o serviço, e as preces de quarta-feira serão interrompidas enquanto eu estiver ausente, de férias, no mês de Julho.

Um jovem desconhecido passou a bandeja para a recolha de donativos e Joan abanou a cabeça. Esquecera-se de levar dinheiro.

De súbito, quando se levantaram para cantar o último hino não os pôde encarar. Não suportaria as perguntas que lhe fariam. Que é feito de ti, Joan?, Nunca te vemos. É agradável ver-te de novo na tua velha igreja, Joan!, Estava à sua mercê, porque á tinham conhecido todos muito bem. Não se podia esconder. Voltou-se e saiu apressadamente da igreja. Atrás de si, pela rua abaixo, foi o som suave dos seus velhos cânticos pacíficos, que tornavam irreal o sol do meio-dia.

- O Paul esteve bem? - perguntou a Bart. quando chegou.

-Claro que esteve.

A sua voz soava espessa e estranha. como se tivesse estado a beber. Mas não podia ter bebido naquela casa. Se um desconhecido pedia ao pai de Bart um fósforo que fosse, ele não lho emprestava se sabia que era para acender um cachimbo ou um cigarro. vício da carne, dizia. E beber, nem que fosse cidra, era pecado.

Joan olhou, atentamente o marido, mas ele não a olhou. Passou a mão pelo cabelo desalinhado, a endireitá-lo.

- Estiveste a dormir - censurou Joan.

- Estive - resmungou.

-Adormeceste quando devias tomar conta do Paul!

-Não lhe aconteceu nada, pois não?

Sentiu-se sufocar de náusea. Não podia olhar, sequer, para ele, tanto asco lhe causava. Calou-se. Afinal não importava que ele tivesse adormecido, pois Paul estava bem.

Importunava Rose para rezar por ela, e ao mesmo tempo não deixava de enviar preces a Deus. Rezava tanto que quase se convencia de que as suas orações romperiam as paredes que a cercavam e chegariam aos ouvidos d'Aquele a quem se dírigiam. Mas à noite era difícil acreditar. A noite, sózinha no sótão com Paul.

com a arca encostada á porta, duvidava muitas vezes.

Devo lembrar-me que duvido apenas porque é de noite e está tudo tão silencioso, porque não tenho ninguém a meu lado.

Devo lembrar-me que acredito em Deus e que a manhã chegará depressa.

Pensava humildemente em Rose; que era tão boa, tão segura

de si. As preces de Rose haviam de ser ouvidas por Deus. A noite, confortava-a pensar que muito longe, do outro lado do mar, Rose também rezava por ela. E de manhã, quando o sol rompia por entre as copas das árvores, parecia-lhe que as preces da irmã deviám ser ouvidas.

Havia muito tempo que não tinha notícias de Rose. Numa manhã do fim do Verão, foi à caixa do correio, na estrada. Quando viu o distribuidor no seu velho Ford, correu ao seu encontro. O homem raramente parava mais do que uma vez por semana, para entregar o Sunday School Times ou uma circular acerca de lavoura.

- Bons dias, Mr. Moore! - cumprimentou, alegremente.        

Aquele era um dos poucos momentos em que esquecia. A manhã estava clara, sobre os montes, e a terra estuava de sol e calor.    

O ar estava parado e quente, fértil, e Joan sentia os seus passos seguros na erva viçosa. Era impossível não ter esperança, numa manhã assim. Paul era tão saudável; tão plácido, tão bom!

Mr. Moore sorriu-lhe, a mostrar as gengivas desdentadas e disse-lhe:

- Uma carta do estrangeiro para si. - Gostava de lhe entregar uma carta do estrangeiro. - Até os seus olhos brilham! exclamou, como sempre.

- Óptimo! - exclamou, contente. - Eu sabia que acontecera uma coisa boa. uma daquelas manhãs...

- O dia não está mau, não - admitiu Mr. Moore.

Estava tanto calor que despira o casaco e estava apenas de colete castanho e camisa cinzenta, de cambraia. Sentiu-se um pouco embaraçado, quando ela estendeu a mão para a carta e desculpou-se:

- Se soubesse que a encontrava, não teria despido o casaco!

Joan aceitou a carta e sorriu-lhe, com simpatia. Era uma carta

de Rose, com o endereço muito bem dactilografado. Rob nunca escrevia. Tinha muito que fazer, explicava. Rose, e mal tinha tempo para escrever aos pais. Rob andava sempre a desbravar novos territórios. Ùltimamente avançava para noroeste, entre os povos maometanos, pelos desertos, a caminho dos altos planaltos estéreis e agrestes do Tibete, onde os homens eram magros, escuros e violentos e se pareciam com índios.

-Vou andando, pois a senhora deve estar ansiosa por ler a sua carta - disse Mr. Moore, e partiu, numa nuvem de poeira.

Joan meteu a carta no vestido e foi para o sótão. A manhã ia a meio e podia interromper um momento o trabalho, embora dali a pouco tivesse de voltar para a cozinha, a fim de descascar batatas. Paul dormia num cesto da roupa, debaixo de uma macieira.

Joan sentia-se sempre mais descansada e feliz quando ele dormia. A dormir, era apenas um rapazinho como outro qualquer. O sótão começava a parecer um quarto seu, pois Joan tinha um instinto especial para tornar bonito qualquer aposento. Fizera cortinas verdes, com folhos, para a janela e uma cobertura para o caixote, no Inverno anterior a mãe de Bart ensinara-a a fazer um tapete redondo, de trapos. Os trapos eram restos de desbotadas calças de trabalho, muito velhas, mas ela tingira-as de verde e castanho.

Sentou-se numa cadeira de braços que encontrara no sótão e forrara do tecido verde das cortinas, e abriu a carta.

Era sempre úm grande prazer ler e reler as cartas de Rose, devagar, e extrair delas todas as imagens possíveis. Lentamente, com a ajuda das concisas descrições da irmã, conseguira formar uma imagem da casa quadrada da missão, com criados escuros a ir e vir, um jardim cheio de fetos, lírios envasados e plantas de crescimento ràpido. Mas infelizmente há cobras e centopeias, lamentara-se Rose. Temos de vigiar constantemente o David. Ao David via-o Joan claramente, era um rapazinho pequeno, muito magro e intrépido. David passava a vida a fugir, andavam sempre a procurá-lo e a encontrá-lo junto do rio, entre os homens dos      juncos, ou no mercado. As vezes davam logo pela sua falta e encontravam-no depressa, mas outras ouviam bater ao portão e quando atendiam encontravam um homem, um camponês de pernas nuas ou um cule, com o garoto firmemente pela mão.

Foge, despeitado, por tudo e por nada, queixava-se Rose, preocupada. Não há nada que consiga prender no interior da

missão.  

Joan lera todas as cartas atentamente, absorta, desejosa de     ,

ver David, a sorrir ao sobrinho de mil milhas de distância...

Rasgou o sobrescrito chinês... Não era verdade, aquelas poucas palavras dactilografadas não podiam ser verdade! Uma carta, uma simples e vulgar carta, não podia conter semelhante mensagem! As linhas confundiram-se, misturaram-se, e Joan começou de novo pelo princípio, devagar, cuidadosamente, palavra por palavra.  

Estava assinada por John Stuart, o médico da missão. Rose falara-lhe um pouco de Stuart. um trabalhador fiel, um homem de     poucas palavras. Poucas palavras! Era incomensurável o que dizia naquele punhado de palavras que escrevera: E, inesperadamente, entraram bandidos na cidade e arrombaram os portões do recinto da missão. Mr. e Mrs. Winters foram mortos quase imediatamente, segundo soubemos, depois, pelos que tinham assistido, entre a multidão. As crianças foram salvas pela sua ama fiel.

A menina tinha apenas onze dias. Salvámo-nos... , As linhas estavam outra vez confusas, misturadas.    

Rose, deves ficar aqqui, na cama, com os meninos e a       ama. Eu vou ter com eles. Falar-lhes-ei com serenidade e dir-lhes-ei que estamos aqui apenas para ajudar o povo, para lhes dar o verdadeiro conhecimento de Deus. Não tens medo, pois não?

- Não, Rob. - Deitada na cama, no meio do quarto, Rose olhava-o e parecia, de novo, uma rapariguinha, sorridente e de olhos brilhantes. - Sinto como se toda a minha vida tivesse conduzido a esta hora.

       - Deus, em Quem temos sempre acreditado... - disse Rob em tom firme, com a mão no puxador da porta.  

Rob abriu rapidamente a porta e saiu. O garotinho soltou-se      da mão da ama chinesa e correu à janela. De súbito, gritou muito alto:

- Mãe, eles batem...

       A porta escancarou-se e os homens entraram, em tropel, no quarto. Ele estava perdido, a sua mãe estava perdida... Parecia que os desconhecidos iam entrar pela porta dentro e matá-los. A sua morte deve ter sido muito rápida. Alguns amigos sepultaram-nos à noite, no jardim, em segredo... Levo as crianças para aí...

Joan sentou-se com a carta no colo, a tentar tomar conhecimento, saber que eles estavam mortos. Confiara em que Rose rezaria por ela, e a irmã jazia na sua campa, havia semanas. Admirava-se de não ter sabido, de não ter pressentido que a sua esperança, a voar pelo espaço, chocara com um obstáculo e caíra desanimada. Não houvera sinal nenhum, não sentira Rose morrer.

Não soubera, mas Rose deixara de existir.

Agora, num dia qualquer, aquele homem que escrevera a carta viria trazer-lhe os dois filhos de Rose, através dos mares. Seriam dela, teria de arranjar lugar também para eles, debaixo daquele tecto. O sótão estendeu-se á sua frente, até às telhas. Se pudesse arrumar duas caminhas no lado sul, a coberto do vento... Moveu-se em silêncio, durante o resto daquele dia maravilhoso e sereno. Ainda não era capaz de dizer a ninguém. Sofria mudamente, tonta de pesar, e as lágrimas subiam-lhe constantemente aos olhos. A todo o instante via Rose em qualquer momento.

A irmã fora sempre muito grave, mesmo quando era pequenina, fora sempre decidida, soubera sempre o que queria fazer, o que seria a sua- vida. Mas não pudera fazer nada contra a morte, que era tão irracional, tão ilógica como o idiotismo.

A morte só se podia aceitar.

Viveu o resto do dia e o dia seguinte com a morte dentro de si, em segredo. Não significaria nada para aquela gente o facto de Rose ter morrido. Nunca a tinham visto. Nunca a tinham visto        receber nos ombros nus e brancos, como uma chuva de flores     estivais, o vestido que a mãe lhe fizera, nunca a tinham visto a andar pela casa, com o seu ar sereno e luminoso...

-Esta agitação do Governo acerca da lavoura não vai dar bom resultado... - observou o pai de Bart, preocupado. - As coisas vão de mal a pior, todos os dias. No tempo do meu pai...

Rose jazia a dez mil milhas de distância, num pequeno monte

sobranceiro a uma planície tibetana, num jardim encostado à

muralha da cidade.

-... e este Outono as maçãs não atingirão preço superior a uns dois dólares por barrica - dizia o velho. - Cozinha a maior

quantidade que puderes, Minna. Comeremos maçãs.

E John Stuart vinha trazer-lhe duas crianças, mais duas crianças pequenas...

- Não sei como eu e a Annie poderemos viver do pouco que recebo - resmungou Sam; tinha medo do pai e o seu rosto estava mais vermelho do que nunca. - Ela é boa dona de casa, mas...

- Que remédio tem senão ser - redarguiu o pai, e depois molhou uma côdea no café e chupou- a.     

As crianças podiam comer maçãs, pão e leite. Arranjaria sustento para elas. Podia empregar-se... Mas dos quinhentos dólares restavam-lhe menos de duzentos. O que faltava fora para o pequeno Frank, semana a semana.   

- Pois sim, mas por muito boa que seja não poderá governar aquilo que não tiver! - gritou Sam, fora de si.        

- Não me parece que seja minha obrigação sustentar as mulheres e os filhos dos meus filhos.

De súbito, Joan falou por eles todos:   

- Todos nós trabalhamos - afirmou claramente, sem medo.

- Muitas mulheres em casa - resmungou o velho, com a boca cheia de côdeas ensopadas.

- E nem todas as crianças podem ser tão boas como o Paul

- lembrou a velha. - Esse, pelo menos, não incomoda muito.

- Tem razão, mãe - concordou Bart, deixando de mastigar.

-O Paul não dá trabalho nenhum.

Não, pensou Joan, tristemente, o Paul despedaça apenas o coração da sua mãe. E David, que andava sempre a fugir, vinha a caminho, através dos mares. Quereria fugir também daquela casa, as paredes não o deteriam. Restavam-lhe menos de duzentos dólares e eram três crianças... quatro, com o Frankie.

Na igreja, no domingo, sentou-se no seu banco, a pensar e a planear. Paul ainda não fora curado, mas vinham mais duas crianças e ela não podia rezar. A igreja já não estava cheia de recordações, Joan já não podia pensar no passado, nem sequer na mãe e no pai. Tinha de fazer planos para o futuro. O padre começou a falar:

       - Hoje rezaremos por um membro da nossa igreja que está mergulhado em grande dor. Deus entendeu chamar á Sua presença, como mártires, Robert Winters, filho de Mr. e Mrs. Winters, missionário na China, e a sua esposa. Há oito anos que o jovem par partiu desta igreja e hoje jazem os dois nas suas sepulturas. Rezemos pelos nossos amigos, pelos pais enlutados e pelos filhos órfãos...

Não mencionou o seu nome entre as pessoas enlutadas; não

a conhecia.

A sua voz untuosa prosseguiu, enquanto a assistência baixava a cabeça. Joan sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos e levantou-se bruscamente, no meio das preces. Era preciso fazer alguma coisa. Sentia-se traída.

       Enquanto rezara... Desceu ràpidamente a rua, a caminho de casa dos Winters. A uma das janelas da casa vizinha da dos Winters, viu a cabeça encanecida e mirrada de Mrs. Kinney, que lembrou um esqueleto, a tremer, à janela. Mas não falou nem esboçou qualquer cumprimento. A velha Mrs. Kinney recurdava, continuava a viver, teimosa e inùtilmente. Subiu a escada a correr e tocou à campainha. Atendeu-a Mr. Winters. Não tinham     ido à igreja, mas o seu velho amigo estava de casaco vestido, pois era mais decente assim, num desgosto tão grande como o seu. Um desgosto grande e sincero. Pareceu sufocado, quando a viu, e observou, em voz mais alta do que era costume:

-Há quanto tempo não te via, Joan! Entra. Mattie está deitada, transtornadíssima. Até parece que censura o Rob e a Rose pelo que sucedeu.

Conduziu-a à sala muito limpa e disse-lhe:

- Vou chamá-la. - A porta, paroú, olhou para trás, com uma expressão de imensa melancolia no rosto comprido e pálido, e acrescentou, inesperadamente: - Arrependi-me sempre de não termos mandado aquele perfume! 

A voz morreu-lhe num soluço incontido, e afastou-se, a arrastar os chinelos.        

Joan sentou-se, à espera. Uma vez, naquela sala, Rob dera uma festa de aniversário. O bolo, lembrava-se, estava na mesa quadrada do centro, e ele dera a primeira fatia a Rose, que comera apenas um bocadinho e embrulhara o resto no lenço, para levar para casa. Era em pequenas coisas como essa que eram diferentes.     

Joan comera logo o bolo todo, como sempre, mas Rose dissera:      

Sabia que havia gelados e outras coisas que não podia levar para casa e, por isso, guardei o bolo e dois rebuçados. Mas Joan , era incapaz de tanta previsão. Lembrava-se de que o seu vestido era amarelo e o de Rose cor-de-rosa.       

Mrs. Winters entrou, de súbito. Parecia mais velha e estava mais magra, muito mais magra. Tinha a pele frouxa, como se a carne se tivesse dissolvido, debaixo dela. Apesar de estar calor, trazia uma velha capa preta pelos ombros.  

- Oh, Joan!...  

Joan levantou-se e abraçou-a. Por momentos, Mrs. Winters apoiou-se a ela, mas logo a seguir afastou-se e sentou-se, a limpar os olhos com o lenço.         - Se me tivessem ouvido... - Os seus lábios grossos, azulados, tremeram um pouco. - Mas nunca me ouviram. Agora aconteceu isto... as duas crianças... Eu não estou nada bem e o negócio tem fraquejado, nestes dois últimos anos... Se o Rob me tivesse ouvido e ficado em casa! O que são vermelhos, Joan? Não consigo compreender.

- Nunca compreenderemos - afirmou Joan. - Ficarei com as crianças.

       Mrs. Winters olhou-a, duvidosa.

-Mas como estás tu, de dinheiro?

Joan sorriu. Naquela mesma sala comera, um dia, todo o bolo do seu prato, de uma vez, sem pensar no amanhã.

       -Estou bem - respondeu, corajosamente. - Moro numa quinta, tenho um filho pequeno, como sabe... A casa é grande, tem muito espaço...

- Eu não me sinto nada bem... - repetiu Mrs. Winters, enquanto percorria com o olhar a sala arrumada. - O Rob foi sempre um bom rapazinho, não partia nada... Oh, as pessoas não têm o direito de ir para o fim do mundo e deixarem os filhos para os outros criarem! Mas, claro, farei o meu dever em relação aos filhos do meu filho.

Mr. Winters estava sentado, de cabeça baixa, e não dizia nada.

- Mas eu quero-os, também são filhos da Rose! - exclamava Joan. - Procurá-la-ei de vez em quando, para me aconselhar ou ajudar...

Mrs. Winters abanou a cabeça, tristemente.

- Farei tudo quanto puder - murmurou. - Desejo sempre fazer tudo quanto posso, e faço.

- Pois com certeza que faz - confirmou Joan, docemente; Mrs. Winters parecia velha, cansada e confusa, muito mais confusa do que no dia em que Rob e Rose se tinham casado.

- Adeus - despediu-se Joan. - Não se preocupe, cá me arranjarei.

Saiu, muito depressa. Desceu a rua e meteu pela estrada com o coração firme, desgostoso e exultante. Ficaria com as crianças. Andava confiadamente, com o corpo robusto e grande a trasbordar impetuosidade e generosidade. Não sabia como se arranjaria, mas arranjar-se-ia, desse por onde desse. Tinha de escrever ao Francis, a dizer-lhe. O irmão nunca lhe escrevia, mas ela continuava a escrever-lhe, porque sabia que a mãe gostaria que o fizesse.

De súbito, viu que estava defronte da casinha de pedra de Mrs. Mark e estacou. Podia entrar, visto ser cedo. Havia muito tempo que não visitava nem sabia nada da pobre inválida. Não quisera que Mrs. Mark a sondasse, com o seu feitio implacável, não quisera ouvir a sua voz descontente, a perguntar-lhe: Porque demónio casaste com tanta pressa? Um labrego...

Mas naquele momento isso não importava, nem ela tinha importância, nem o que ela fizera. Abriu a porta, chamou, e entrou ao ouvir uma voz fraca responder-lhe. Mrs. Mark desaparecia sob uma grossa manta de algodão. O seu rosto voltou-se para Joan com a expressão angustiada e triste de um macaco velho e atormentado pelo sofrimento.

-Ainda bem que vieste, Joan Richards! Há tanto tempo que esperava que alguém chegasse. Desde ontem ao meio-dia que estou      morta da cintura para baixo. Nunca mais me levantarei da cama.

-Oh, Mrs. Mark!

A velha esperou, a gemer um pouco, enquanto Joan lhe aquecia sopa que encontrara numa panela. Depois bebeu-a devagar e a sua boca enrugada adquiriu uma expressão mais humana.        

- Lava-me - ordenou. - Da cintura para baixo tanto faz que seja com água fria como com água quente, mas da cintura para       cima quero que seja quente. Desejo sentir o mais que puder, enquanto puder.       

Depois de a limpar e alimentar, Joan disse, preocupada:   

-Tenho de arranjar alguém para ficar consigo.     

- Não quero ninguém - afirmou a velha, sem hesitar. Deixa um pouco de pão e de leite aqui perto, onde eu chegue, e o bacio lavado, e volta daqui a um dia ou dois. Detesto que me papariquem. Isto agora não dura mais do que uma semana ou duas, no máximo. Mais dois ou três centímetros e apanhar-me-á o coração.

- E talvez esteja sòzinha - exclamou Joan, ainda mais preocupada.  

-Todos nós estamos sòzinhos.     

-Ainda bem que passei por aqui, agora.       

Mrs. Mark olhou-a, desconfiada, e redarguiu-lhe:

-Não te ponhas a imaginar que rezei e tu apareceste. Eu não rezo. Resigno-me, que não tenho outro remédio, e penso que

isto tanto me podia ter acontecido a mim como a qualquer outra pessoa. É o acaso... assim como foi o acaso que te trouxe. Não teria sido de outro modo, fizesse eu o que fizesse.

- Se não fosse o Paul, não a deixaria - murmurou Joan.

- Vai-te embora, pequena. - Os seus olhos pequenos, vivos e escuros lembravam mais do que nunca os de um macaco, com a sua eterna expressão trágica. - Vai-te embora. - Fechou os olhos e esperou que lhe obedecesse.

-Vou, mas amanhã volto.

Mrs. Mark não respondeu e Joan saiu.

Demorara-se mais do que imaginara em casa da inválida.

       Quando chegou a Corners, o sol ultrapassara o zénite e começava a descer. Do carro que ficara de a levar, nem sinal. Joan observou a camada alta de poeira na estrada e viu os sulcos estreitos das suas rodas, em duplicado, à ida e à vinda. Não se enganava, pois viam-se as marcas da roda direita da retaguarda, que estava larga, no eixo, e deslizava úm pouco para o lado. Não tinham esperado.

-       Não havia qualquer sinal de patas impacientes de cavalos a perturbar a poeira.

Paul devia estar com fome e com certeza ninguém lhe dera de comer. Nunca ninguém o fazia, excepto ela. Não era fácil nem agradável alimentá-lo, exigia uma grande dose de paciência. Tinha de esmagar os alimentos até os transformar numa papa mole e de lhos meter repetidamente na boca, pois deixava escorregar tudo pelos cantos. Deixá-lo-iam com fome até ela chegar. Dir-se-ia que nunca lhes passara pela cabeça que Paul pertencia tanto á família como Bart ou Sam. Não devia ser azeda. Era fácil não sentir azedume por pequenas coisas quando tudo corria bem, mas agora o desgosto tornava a sua alma imensa.

Estugou o passo, até quase correr, tirou o chapéu e deixou o sol bater-lhe na cabeça e na cara. Os seus pensamentos caminhavam a par com os seus passos. Tinha de arranjar maneira de voltar a casa de Mrs. Mark, no dia seguinte. Deixara pão, leite chá junto dela. assim como duas marmitas de sopa, e enchera uma pequena lamparina a álcool. Se arranjasse alguém que lá pudesse ir todos os dias... Talvez a Fanny fosse, se lhe desse mais um dólar todas as semanas... Tinha de pensar numa maneira de arranjar mais dinheiro. Se escrevesse ao irmão, talvez ele lhe pudesse mandar algum.

Ou talvez ela conseguisse ganhar alguma coisa. Em tempos julgara-se capaz de escrever canções. Mas que cantaria agora? Não tinha nenhuma canção para cantar. Não se encontrava inspiração na vida que ela levava, nos dias que vivia. Nem sequer era capaz  de cantar para o filho. Vivia no mais profundo dos silêncios, agora        que sabia que nunca mais rezaria. Continuou a andar depressa, sob o quente céu azul.

Não rezava havia dois dias, desde que recebera a carta. Não valia a péna. Parara tudo, nela, tinham-se silenciado todas as vozes. Até a sua. O céu era uma imensidão vazia e azul, uma imensidão infinita. Parou um momento, a ouvir o absoluto silêncio do céu.

Mas enganava-se, o silêncio não era absoluto. Ouvia-se um ruído, que se aproximava, firme e certo... Devia ser o avião. Levantou, ràpidamente, a cabeça. Muito alto, o aparelho prateado passou, saiu do céu e entrou outra vez no céu. O sol banhava-a de calor, e ela abandonava-se-lhe, de cara virada para cima. O céu não estáva vazio, o céu era um mar onde aquele barco navegava...

Sorriu, esquecida. Podia fazér daquilo uma canção, se tentasse. Depois lembrou-se de que Rose morrera e estugou de novo o passo.   

Quando chegou à curva da estrada, junto do grande ulmeiro, ouviu barulho. Estava tão habituada ao silêncio pesado que envolvia a casa que lhe custou a crer que o barulho proviesse de lá.   

Uma voz de homem gritava, grosseiramente, aos berrors, e Joan ouviu o estrondo de móveis a cair. Uma voz de mulher gritou, uma voz estranha, que não conhecia. Começou a correr. Era verdade, o barulho vinha da casa silenciosa. Acontecera alguma coisa    ao Paul! Correu ainda mais depressa, com a boca seca, e o seu corpo deixou, sùbitamente, de transpirar. O carro que não esperara por ela ainda estava parado, na estrada. Os cavalos escavavam o chão e sacudiam a cabeça, para enxotar as moscas, e relincharam, quando a viram. Correu desesperada, por cima da erva, e ouviu a voz do velho, a voz irritada de Bart, a voz suplicante da velha - Então, homem... a estranha voz de mulher, a choramingar, e a voz complacente de Sam, a tentar acalmar os ânimos: Deixe lá, pai... O mal já está feito, não está?

-      Joan entrou a correr, pela porta lateral da casa de jantar, e estacou, de súbito, ofegante.

Bart e o pai lutavam, enquanto a velha e Sam os agarravam e puxavam. Sam puxava o irmão e a velha puxava o marido. Bart estava de pé, enorme, abrutalhado, a defender-se dos socos desajeitados do pai. Ao ouvi-la chegar, pararam, envergonhados na sua presença.

- Senta-te! - berrou o pai de Bart, e ele levantou a cadeira caída e sentou-se, cabisbaixo.

O velho sentou-se também, arquejante, e sacudiu o pó do fato. A velha deixou-se cair numa cadeira e apoiou o cotovelo na mesa. Não tinham comido. A mesa ainda estava tapada e cheirava a comida a cozinhar.

Então Joan viu a rapariga, uma moça boçal e idiota, filha de um rendeiro do monte seguinte. Conhecia-a. Eram descuidados; deixavam as vacas secar e, às vezes, a rapariga ia comprar leite ao estábulo onde Bart estava a mungir. Pintara a cara, mas as lágrimas estragavam tudo e o efeito era lastimoso. Tinha os braços nus e as mãos grossas e encarnadas, como as de Bart. Não olhava para Joan; nenhum deles a olhava. Mas o barulho terminara.

- O Paul está bem? - perguntou, inquieta.

- Não pensa em mais nada senão nesse miúdo idiota! - gritou-lhe a mãe de Bart, com a cara cheia de manchas vermelhas, Arruinou a vida do meu filho!

A rapariga recomeçou a chorar, estùpidamente.

- Não compreendo o que quer dizer - dísse Joan.

A rapariga olhava para as grandes mãos vermelhas, abandonadas no vestido de algodão cor-de-rosa. Já vira muitas raparigas assim. Iam à loja de Mr. Winters, aos sábados de manhã, comprar vestidos de cinquenta e nove cêntimos, cor-de-rosa e azuis.

- Eu explico-lhe! - gritou, de súbito, o pai de Bart, virando a cadeira para ela. - Chegámos a casa, da igreja, e encontramos o Bart deitado no feno com esta rapariga! Você e a sua mania de se julgar fina de mais para nós, fina de mais para cumprir os seus deveres de esposa, levaram o Bart a fazer o que fez. Há anos que ele não tem mulher!

Joan olhou para Bart e viu o seu grande corpo inerte e pesado, os cabelos desgrenhados, a cara pastosa e vermelha e as mãos enormes, pendentes entre os joelhos. Bart e aquela rapariga...    

O estômago contraiu-se-lhe, numa ânsia de vómito. Oh, aquele horrível corpo pesadão!        

A rapariga continuava a chorar e limpou o nariz á bainha da combinação branca.

-O Bart está apaixonado por essa rapariga?

- Não quero conversas dessas na minha casa! - berrou o velho, a ofegar como se ainda estivesse a lutar. -Se tivesse cumprido o seu dever de mulher... - A voz tremeu-lhe e passou a manga do casaco pela testa. - Que coisa horrível para acontecer  nesta casa de um homem temente a Deus e frequentador da igreja! - murmurou, arquejante.

- O Bart é bom rapaz - afirmou a velha. - O Bart é, realmente, bom rapaz. Eduquei os meus filhos para serem bons rapazes.

Bart apertou as mãos uma na outra e deixou-as cair.

de novo, entre os joelhos. Sam inclinou a sua cadeira para trás.               

Assim, no seu fato de ver a Deus, parecia aprumado e complacente, ao lado do irmão, que estava descalço e de calças e camisa de trabalho. Joan lembrou-se que, de manhã, quando saíra, o deixara com o fato azul, dos domingos.      

De pé à entrada da porta, amparada à ombreira, olhou-os, devagar. Esperavam por ela, estavam todos à espera de ver o que faria. Mas nem ela própria sabia o que fazer. Olhou-os, e impressionou-a o desgosto que sentiam. Aquele velho e aquela velha sofriam, sofriam sincera e profundamente e não compreendiam porquê. Não compreendiam nada. na realidade não compreendiam mais do que Paul. A verdade é que ninguém compreendia porque lhe acontecia certas coisas. Pela primeira vez, sentiu-se capaz de lhes tocar nas mãos, sem repugnância, e dizer: Tenhamos paciência uns com os outros, pois nenhum de nós sabe porquê...

E tinham razão, afinal, fora injusta com o Bart, prejudicara-os

a todos. Entrara naquela casa de gente simples, de gente boa...

Sim, porque Bart não era mau; era apenas estúpido: Ah, Paul ajudava-a a compreendê-los a todos! Paul que nascera como nascera e não tinha culpa!

- Sim, tem razão - murmurou. - Procedi muito mal.

Olharam-na, estupefactos, pois não esperavam que se mostrasse branda. Não o era, por natureza. Mas Paul ensinara-a a ser branda e paciente, a ser infinitamente compreensiva.

Bart gaguejou:

- Eu não...

- Não te censuro - apressou-se a interrompê-lo. - Não me digas nada, Bart. Tu... Talvez esta rapariga te tivesse feito feliz. Eu prejudiquei-te.

A rapariga deixou de chorar e prestou atenção, de olhos postos nos sapatos sujos de poeira de Joan. Tinha a boca gretada, inchada e esticada e os olhos pequenos ocultos atrás das pálpebras tumefactas. Parecia a rapariga que fora casar ao presbitério, havia muito tempo.

- Não permitirei um divórcio nesta casa! - gritou o velho.

- Isso ainda seria pior. O que Deus juntou...

- Bart e eu não estamos juntos. Nunca o estaremos, nem mesmo que vivamos toda a nossa vida ao lado um do outro.

A sua voz tranquila espantava-os; não compreendiam. Joan olhou de um rosto perplexo para outro. Só compreendiam palavras como carne, bebida. trabalho.

- Avalio como lhes deve ter sido difícil suportar-me. - Hesitou mas depois prosseguiu, esforçando-se por falar com simplicidade, como se falasse a crianças: - Vejo tudo claramente, agora.

A única coisa que posso fazer por todos, é ir-me emborâ. viverão de novo como viviam antes de eu vir e, passado algum tempo, esquecerão, até, que alguma vez cá estive.

Sem esperar que respondessem, atravessou a sala e subiu, a

correr, a escada do sótão. Tinha de se ir embora imedíatamente, não podia esperar que Bart fosse atrás dela, cabisbaixo, humilde, a pedir-lhe que ficasse. Não devia esperar que a convencessem a ficar, para que não se soubesse. Paul choramingava, com fome, mas ela não lhe ligou importância. Passaria pela despensa, á saída, e levaria algum leite, para ele. Começou a guardar as suas coisas com uma rapidez desesperada.

Mas para onde iria? Não havia em lado nenhum uma porta que pudesse abrir, que fosse sua. De súbito, lembrou-se de Mrs. Mark. Podia ficar com ela, cuidar dela. Dali a uma semana ou duas arranjaria outra coisa, iria para outro lado. Entrouxou a roupa, pois assim seria mais fácil de transportar do que numa mala, abriu a arca e tirou da caixa de sândalo todo o seu dinheiro.

Era um conforto, pertencia-lhe. Meteu na arca tudo quanto não podia levar agora e fechou-a à chave. Mandá-la-ia buscar. Agora impunha-se que partisse, antes que dessem por isso. Não acreditariam que se fosse embora tão depressa, não imaginariam que fosse a pé, com o filho ao colo. Mas o seu corpo forte e vigoroso permitia-lhe fazê-lo, ia ajudá-la.

Pôs um chapéu na cabeça do filho, pegou-lhe, enfiou um braço na asa da trouxa, desceu devagarinho a escada principal e saiu. Contornou o alpendre, entrou na despensa, encheu um copo de leite e deu-o a beber a Paul. Apurou o ouvido. O pai de Bart continuava a falar, sem descanso. Apertou Paul a si e deixou-o beber.

Ninguém a seguiu. Ninguém a chamou. A sua volta só havia o silêncio da tarde outonal. O céu era uma abóbada vazia, de pura luz azul, e o sol brilhava, no ar dourado. Percorrera aquela estrada havia apenas uma hora, sem sonhar, sequer, fazer o que fazia naquele momento. Mas aquele era o fim inevitável a que a sua vida a levara. Inconscientemente, percorrera sozinha uma longa vereda, que terminara num portão que transpusera e fechara para sempre, sem saber o que a esperava para lá dele.       

Seguiu firmemente para leste. Paul dormia de novo, saciado. Ao pôr do sol estaria à porta de Mrs. Mark... ou, pelo menos, ao anoitecer.

O Sol trilharia o seu caminho à roda do mundo, para lhe dar outro dia. Nem choro nem prece poderiam suspender ou apressar a medida do dia e da noite. Joan sabia-o, agora, e aceitava tudo quanto fora a sua vida. Aceitava o que lhe acontecera. E tinha força para aceitar o que o futuro trouxesse.

Continuou o seu caminho. livre e só, a transportar o seu fardo.

Agarrou o fecho, muito devagar. A casinha estava às escuras, era uma pequena sombra sólida na escuridão menos densa que a cercava.

- Quem é?

- Sou eu, a Joan... Voltei.      

-Voltaste porquê, a esta hora da noite?

Ouviu Mrs. Mark tactear, à procura de fósforos, e pouco depois a luz brilhou. A cara da paralítica voltou-se para ela, transformada num labirinto de rugas.        

-Meu Deus, Joan, que trazes aí?  

Joan estava de pé, com Paul ao colo e a trouxa no braço.

- Saí da minha... da casa dos Pounders. Não. posso voltar.

Se me deixar passar só esta noite consigo...       

- Ai minha alma, minha alma! - murmurou Mrs. Mark. - Não há paz.   

- É uma criança sossegada - afirmou Joan, apressadamente.

- Não me referia a ele. Chega cá... Há lençóis na gaveta da cômoda e mantas naquela mala velha. Não sei onde poderás dormir...

-Dormirei na outra sala, naquele sofá. Cá me arranjarei.     

Estava desesperadamente cansada. Paul era tão pesado, sempre inerte nos seus braços!  

Deitou-o aos pés da cama e Mrs. Mark olhou-o.  

-É muito grande para trazer ao colo. Que lhe aconteceu?

Adormeceu ?

Era melhor falar já, dizer tudo, tudo, definitiva e claramente.

       - Nunca será como os outros... Nasceu anormal.

- Ai minha alma, minha alma! - gemeu Mrs. Mark.         Dá-mo cá.

Joan levantou Paul e deitou-o nas pernas mortas da doente.

Mrs. Mark pegou-lhe e fitou com os seus olhos pequenos e impenetráveis, enquanto repetia:

- Ai minha alma, ninha alma... - O seu rosto era uma máscara de piedade.

Joan sentou-se na beira da cama e, de súbito, os soluços começaram a subir-lhe no peito, no antigo soluçar seco e desgarrado.

Mas conteve-os, sufocou-os na garganta. Não valia a pena chorar.

Cerrou os dentes e murmurou:

- Não, não me lamente. Conseguirei arranjar-me, se não me lamentar.

-Não te estou a lamentar. Para quê? Vai arranjar a tua cama, anda. É tarde. Deve haver pão e leite na cozinha. Ouvi o homem deixá-los, esta noite.

Mrs. Mark deitou-se e Joan pegou no filho e despiu-o para o deitar. Fez uma cama na sala, no sofá, e deitou-o lá. Depois voltou ao quarto e pegou na mão esquelética de Mrs. Mark.

-Quer que lhe diga porque saí daquela casa? Acho que lhe devia dizer, depois de me ter apresentado aqui assim.

- Por mim, não tem importância - respondeu-lhe a outra -Desisti há muito tempo de querer saber o porquê das coisas.

O que sucede. sucede. Creio que te vieste embora porque tinhas de vir.

-Sim, tive de vir.

- É por esse motivo que quase todos procedemos como procedemos. Agora vai, quero dormir.

Apagou a vela e Joan saiu, às apalpadelas, do quarto às escuras.

Havia claridade, quando acordou, de manhã. A casinha de pedra estava cheia de uma paz quente e acolhedora. Levantou-se, lavou e vestiu o filho de lavado e deu-lhe de comér. Depois de se vestir, também, abriu a porta devagarinho. Mas Mrs. Mark não dormia. Escovara o cabelo, endireitara os lençóis, vestira um casaco e estava deitada, de olhos fixos na porta.

- Não sabia ao certo se não sonhara - disse, em voz alta.

-Ùltimamente, sonho muito. Às vezes até julgo ouvir o meu marido, cá em casa, e a minha pequenita, que morreu quando tinha seis anos.

- Eu não sou nenhum sonho - redarguiu Joan, a sorrir.

Não, aquela manhã era real. O sol entrava a jorros pelas janelas e Joan sentia-se forte, preparada para tudo quanto lhe pudesse acontecer.

- Agora vou preparar o seu pequeno almoço. Trago-lhe água     ; quente para se lavar e, depois, o tabuleiro. Mas não lhe pergunto o que quer. É surpresa.        

Endireitou a cama e a mesa. Mrs. Mark mandara fazer gavetas debaixo da cama, para guardar as coisas de que precisava   - roupas, o pente e a escova, etc. , de modo a chegar-lhes com facilidade.

-Não me deixas escolher, hem? - murmurou, com uma expressão amigável nos olhos pequenos.     

- Não - confirmou Joan, alegremente. - Está sempre a dar ordens aos outros, toda autoritária, mas agora engana-se!

Foi buscar a água e virou as costas, enquanto Mrs. Mark se

afadigava, a lavar-se. Joan ouvia-á arquejar, a lavar as pernas paralíticas, e por fim não teve coragem e pexguntou-lhe: 

-Porque não me deixa ajudá-la? Tratei durante tanto tempo da minha mãe!

- Acho que ainda posso cuidar das minhas duas pernas respondeu-lhe, agastada, Mrs. Mark.

-Nesse caso, vou preparar-lhe o tabuleiro.  

Na pequena cozinha, deitou lenha no fogão e tentou compenetrar-se de que era uma mulher que deixara o marido na véspera. Seria assim que se sentiam as mulheres que faziam o que ela fizera? Não sabia, mas sabia que se sentia como alguém que deixara de tropeçar numa floresta escura e cheia de sombras e se via, de subito, num prado, à luz da manhã. Até o sol era diferente. Levantara-se tantas vezes nas sombras frias daquela casa, no seu silêncio acabrunhante! Bart estava sempre presente, a subjugar-lhe o espírito. Conhecia-o pelo que ele era e todos os dias decidia ser como devia ser, mas ele, porque nunca mudava, subjugava-lhe o espírito. Nunca conseguia ser livremente feliz quando Bart estava perto. Se era feliz, por momentos, ele estava presentt como o conhecimento da anormalidade de Paul. Era um peso morto.

Mas Paul continuava a ser o seu menino. Não lhe pedia nada, a não ser que o alimentasse e cuidasse. O seu coração encheu-se de ternura pelo filho, que não lhe exigia nada, e Joan não resistiu à tentação de largar a tampa do fogão e ir buscá-lo. Amparou-o com mantas, a um canto da cozinha, e riu-se e conversou com ele. Naquela manhã conseguia não estar triste. Apesar de tudo, ele era o seu rapazinho. A lenha crepitou, no fogão, e o fundo da cafeteira começou a chiar. A cozinha estava cheia de fumo.

Se morasse aqui, poria cortinas amarelas. Gostava daquela casa pequena e modestamente mobilada. Talvez Mrs. Mark a deixasse ficar. Podia arranjar uma horta, comprar uma vaca e ganhar algum dinheiro. Liberto, o seu espírito andava pela casa como um raio de luz. Sentia-se capaz de tudo. Havia de arranjar uma maneira de resolver os seus problemas. Escreveria ao Francis. Não. Parou, imóvel, com a faca apoiada no pão, e pensou em Roger Bair. Apesar de terem passado já tantos anos, não havia de escrever a Roger Bair e perguntar-lhe como podia ganhar algum dinheiro uma mulher com filhos pequenos? Começou a estrelar ovos, mas deteve-se, de novo, de colher no ar.

Não dissera nada a Mrs. Mark acerca de Rose. acerca dos filhos de Rose. Precipitava-se, como sempre, seguia para a frente sem pensar comó conseguiria fazer o que o coração lhe pedia, e que queria feito. Estava sempre a ver as coisas feitas. Pôs os ovos no prato, com o bacon, foi num pulo ao jardim abandonado e apanhou um raminho de folhas escarlates, de madressilva, que embrulhou no guardanapo branco. Deitado o café, estava pronto.

- Aqui tem! - exclamou, deliciada, e pô-lo à frente de Mrs. Mark.

A velha paralítica olhou-a. Estava muito arranjada, com uma camisa de dormir lavada, de decote alto. e a sua cara enrugada lembrava um triângulo de velho marfim estalado, com os olhinhos pretos, muito vivos, a espreitar. Humedeceu os lábios azulados, ao ver o tabuleiro.

- Oh, eu não como dois ovos! - exclamou. - Dir-se-ia que era capaz de percorrer dez quilómetros! Não estou para alimentar pernas como as minhas, que nem sequer se chegam, sòzinhas, para o outro lado da cama.   

Mas começou a comer.

- Está bom? - perguntou-lhe Joan, a sorrir.

- A torrada está um bocadinho loura de mais... – Bebeu um golinho de café. -Não te vais embora?

-Não. Não vou, se me deixar ficar.

- O café está um bocadinho forte - murmurou Mrs. Mark a sorvê-lo. - Faz-me chorar os olhos. Não estou habituada. - De facto, no fundo dos seus olhos havia lágrimas.      

- Vou buscar água quente para o tornar mais fraco - disse Joan, docemente.        

Não era possível, na paz daquela casa, esconder fosse o que fosse de Mrs. Mark. Por isso, Joan falou-lhe de Rose.

-Rose, a minha irmãzinha, morreu.

-Oh, não! - exclamou Mrs. Mark. - Aquela criaturinha! Atormentou-me de tanto querer ser boa comigo, a querer ler-me coisas quando eu queria dormir. Ai, minha alma, minha alma! Porque morreria ela, uma rapariguinha tão jovem e bem intencionada, enquanto eu vivo assim?

- Morreu muito longe, numa cidade chinesa, perto do Tibete. Tomarei conta dos seus dois filhos. É tudo quanto posso fazer por ela.

-Tu? Isso é abusar de ti! Mrs. Winters tem uma grande casa e o marido tem a loja, ao passo que tu não tens nada.

-Quero os filhos da Rose.

-Como vais cuidar deles?

-Arranjarei uma maneira qualquer.

Mrs. Mark observou-a em silêncio, através dos olhos pequenos, sem pestanas, semelhantes aos de uma ave. Por fim, resmúngou:

- Bem, já tens idade suficiente para fazeres o que te apetece.

Creio que ninguém levará a melhor com uma calmeirona como tu. Até eu tenho medo de ti! Não queria aqueles dois ovos, mas tive medo de não os comer na tua frente.

Riu-se, num cacarejo seco, e Joan riu-se também, ruidosamente, ficou surpreendida. Não se ria assim, com tanta despreocupação, desde que a mãe morrera. Sentiu-se envergonhada, por ter rido daquela maneira, tanto mais que tinham estado a falar de Rose. Mas a verdade é que sentia dentro de si uma felicidade estranha, misturada ao seu desgosto. Paul estava encostado aos seus joelhos, agarrado às suas pernas, e Joan lembrou-se dele, ao vê-lo levantar um pouco a cabeça.

- Creio que está a tentar andar sozinho - disse.

As duas mulheres observaram-no e o riso desapareceu das suas bocas e dos seus corações.

- Creio que nem sequer me conhece - murmurou Joan, tristemente. - Paul... Paul!

Mrs. Mark continuava a olhar firmemente para o garoto, a observá-lo.

-Não tem importância - afirmou. -- Tu conhece-lo, não conheces? Obtiveste o seu valor ao dá-lo á luz, alimentá-lo e cuidar dele. Tenho pensado muito nisso, em relação á minha filha morta. Dei-a à luz e tratei-a. Foi uma vida, apesar de ter morrido.

A vida do Paul também é uma vida, uma espécie de vida.

- A mãe do Bart queria que o internasse em qualquer lado.

- Pouco a pouco, toda a amargura de Joan a abandonava, traduzida em palavras.

-Mesmo que o internes, nunca o podrás esquecer. É isso que as pessoas não compreendem. Internar o seu corpo, para ti, não servirá de nada. Não podes arrancar o teu filho do coração. Além disso, não queres perder tudo o que lhe sabe porque não o tiveste completo. Ele existe à sua maneira, é o Paul. Não o avalies pelas outras pessoas, aceita-o como ele é. Se alguma vez falar, as poucas palavras que disser significarão para ti mais do que tudo.

Joan escutava-a, a beber-lhe as palavras. Nunca ninguém lhe

falara assim acerca de Paul, e reconfortava falar, finalmente, dele.

As mães desejam falar dos filhos, mas ela fugira sempre de o

fazer com as poucas pessoas que conhecia. As vézes ouvia mulheres conversar, nas lojas, e as suas palavras torturavam-na: O Johnnie já anda, levanta-se agarrado seja ao que for. A minha Mary Ellen entra para a escola este Outono. A Polly é a primeira da sua classe, este período... Afastava-se de todas as mães de crianças pequenas. Mas naquele dia passou a manhã inteira a falar com Mrs. Mark acerca dele, enquanto lhe brincava com os deditos e com o cabelo encaracolado e, de vez em quando, chorava.

- Chora à vontade, pequena - aconselhou Mrs. Mark, calmamente. - Eu também costumava chorar. Passado algum tempo, perde-se a necessidade. Não se aguenta muito.  

Enternecida, Joan mostrou a Mrs. Mark a encantadora perfeição do corpo do filho, a forma da sua cabeça, o porte dos ombros, a doçura do fugaz sorriso.        

- Mas, no fim de contas, isso não faz diferença nenhuma - concluiu, muito triste.      

-Que tolice! Faz diferença para ti, não faz? É uma criança escorreita e bonita, e deves sentir-te grata por isso. Tens mais prazer a cuidar dele assim do que terias se fosse feio. Na gaveta mais pequena, debaixo da cama, está uma caixinha preta, com dinheiro, fechada á chave. Aqui tens a chave. - Puxou uma fita que trazia ao peito. - Quero que compres uma cama. Podias ficar com esta, em breve, pois isto agora não dura muito, mas eu não quero pensar que há alguém à espera de dormir na cama em que eu morrer.

- Oh, não! - protestou Joan. - Não quero que me d nada.

- Não te estou a dar nada - replicou a doente, irritada. Estou apenas a arranjar as coisas de maneira que possas ficar a cuidar de mim enquanto eu acabo de morrer. Não me interrompas! Não rezei a Deus para vires; não me humilharia a rezar depois do que me aconteceu. A coisa mais delicada que posso fazer; agora, acerca de Deus é dizer que não existe. Mas sinto-me satisfeita por saber que não morrerei sozinha.

- Hão-de vir os filhos da Rose...

- Deixa-os vir, se Mrs. Winters não os quiser – respondeu Mrs. Mark, e fechou os olhos. - Há um quarto acabado e pronto no sótão: Tencionava arranjar lá o quarto da minha filha, mas o meu marido morreu nesse Inverno e ela ficou comigo. Essa Winters... Bem, é cristã, não é? Vai-te embora, Joan. Estou cansada.

Abriu os olhos, quando Joan saía em bicos de pés, e recomendou:

- Se esse Bart pounder aparecer por aí, não lhe prestes atenção. Fogo e barro não ligam, nada no mundo os conseguirá misturar. Agora vai-te embora, por favor. Estou extenuada.

Em casa de Bart, á qual nunca pertencera, fora tudo um fardo, um peso. Ser livre parecera-lhe coisa impossível, escrever a Roger Bair teria sido uma tarefa superior às suas forças. Vivia

submersa e subjugada. Agora, graças simplesmente àquela pequena casa, onde era livre, à protecção daquela velha moribunda e á desesperada simplicidade de um desgosto sem disfarces, nada parecia mais fácil do que pensar: Porque não hei-de escrever a Roger Bair? Enquanto Mrs. Mark dormia e depois de ter arrumado tudo, levou Paul para um canto soalheiro, atrás da casa, sentou-o num ninho de folhas secas e estendeu-se a seu lado, a planear a carta que escreveria. Teria de ser muito breve. Poderia falar directamente com ele, se alguma vez se encontrassem. Começaria assim: Meu caro Roger Bair...

Sonhou, deitada ao sol. Era tão fácil pensar nele, ali! Quando pensava nele na outra casa era sem esperança, como uma toupeira a pensar num pássaro ou um pássaro a pensar numa toupeira.

Quando o recordava, a recordação fugia-lhe, como uma seta romba que caía antes do álvo. Mas agora, naquela solidão livre, naquela solidão alegre, via-o claramente. Qlaro que ele era a pessoa que a podia ajudar. Adivinhava-o pronto a ajudá-la, com entusiasmo. Tinham-se conhecido um ao outro naquele dia, sem precisarem de esperar pela convivência. Escrever-lhe-ia e ele responder-lhe-ia.     

Tudo naquele dia respirava certeza. Com a cara voltada para o sol e os olhos fechados, Joan via interiormente com maior clareza e recordava-o mais fàcilmente. Dali a um bocadinho levantar-se-ia e escreveria a carta... Por enquanto, sabia-lhe bem adiar esse prazer e fazer planos. Seria agradável pegar na caneta e escrever as palavras: Meu caro Roger Bair... E depois acrescentaria: Ajudou muito o Francis e agora eu também preciso de ajuda. Lembrei-me de si. Também podia escrever... Deteve-se a pensar, num devaneio e, sem dar por isso, mergulhou num sono repousante e cheio de sonhos.

Refrescara; quando acordou, e o sol morria. Soprava vento, da floresta. Entre as folhas, Paul gemia, a tentar levantar- se. Não havia dúvida, agora tentava levantar-se sózinho, de vez em quando.

Joan levantou-se, sacudiu as folhas do vestido e do cabelo, pegou no filho e correu para casa com ele.     

- Como dormi! - disse a Mrs. Mark, da outra sala, enquanto tratava do filho; mas não obteve resposta.     

Aproximou-se da porta e perguntou, alegremente:      

- Ainda dorme?      

Continuou sem obter resposta. Procurou apressadamente os fósforos e acendeu a vela. O quarto parecia singulármente vazio.      

Quando a luz brilhou, viu Mrs. Mark estendida na cama, com as mãos cruzadas no peito. Estava morta.

Deitou Paul nas mantas, de modo que não caísse, fechou ambos à chave e foi a correr chamar o Dr. Crabbe, enquanto a noite descia ràpidamente. O médico, que jantava pão e leite, levantou-se de um pulo, ao vê-la. Mas quando ela lhe disse ao que ia, sentou-se de novo.

-Primeiro acabarei de jantar - declarou. - Aprendi, há muito tempo, que é estúpido correr quando o doente já está morto.

Corre para socorrer um moribundo, mas se já é tarde de máis

acaba o teu jantar. Isto, minha filha, é lógica de médico. - Mastigou a última dentada e disse, sinceramente: - Coitada! Há meses que esperava que ela partisse assim, de repente. Tentei em vão convencê-la a arranjar alguém para lhe fazer companhia, mas respondeu-me sempre que raramente fizera a sua vontade, em vida; mas que ia morrer como queria. Porque lá estavas, Joan?

Joan hesitou. O Dr. Crabbe assistira ao seu nascimento, começara a sua vida nua, nas suas mãos.

- Deixei o meu marido - respondeu.

- Deixaste o teu marido! Tu e a tua educação! - Largou a colher e gritou: - Nellie! - A governanta espreitou, à porta.      Vou sair. Mrs. Mark morreu, finalmente.

Ainda tem pudim de arroz para comer - lembrou Nellie agressiva.

Mas não como! - gritou-lhe, enquanto enfiava um casaco castanho muito puído.

Nellie desapareceu, a respingar, e o doutor disse a Joan:

- Vamos. - Dirigiu-se à frente dela para o velho e barulhento automóvel e ligou o motor. - Deixaste o Bart Pounder, hem? - gritou.

Joan acenou com a cabeça, o ruído do motor abrandou e a carripana saltou pela estrada abaixo como um coelho.

       Nunca te disse que também fui casado...

- Não! - exclamou Joan, incrédula.

- Ela fugiu-me - explicou, brusco. - Fugiu com um tipo meu amigo, um tipo que conheci na universidade. Ele fora visitar-nos, era decente e até tinhamos pensado em ser sócios... Não a pude censurar. Ele tinha a pele macia e eu sempre fui cabeludo e sarrento.

-Ela não o deixou por causa disso.

- Como queres que saiba porque foi? Quando fugiu estávamos casados havia menos de um ano. Creio que há mulheres que fogem e mulheres que aguentam. A tua mãe aguentou.

- Eu não pude - afirmou Joan.

-Pois não. Mas algumas aguentam. No fim, não importa.

Lucille - é assim que se chama - foi feliz. De vez em quando escreve-me, quer que eu case outra vez... Mas com quem? Não há mais ninguém. Sai por esse lado, Joan. Claro que não

posso fazer nada, se Mrs. Mark morreu...

Mas entrou e lavou cuidadosamente o corpo de Mrs. Mark, enquanto Joan esperava, fora do quarto. Por fim, chamou-a e estendeu-lhe um bocado de papel.

-Tinha isto debaixo da almofada. Creio que o escreveu hoje.

Eram quatro linhas garatujadas no papel:

Joan Richards, Pounder pelo casamento, herdará a minha casa e tudo que ela contém. Na caixa do dinheiro estão cento e trinta e sete dólares. Escrevo isto no pleno uso das minhas faculdades mentais. - ABBY MARK.

- Ela tinha alguém de família? - perguntou Joan, baixinho a olhar para Mrs. Mark, hirta e imóvel na sua cama.        

- Nunca me constou - respondeu-lhe o Dr. Crabbe, a lavar as mãos.

- Não é legal...

-Pois não, mas se aparecer alguém e o disser, manda-o ter comigo e eu ponho-lhe o Martin Bradley à perna. O Martin deve-me favores. Há anos que o livro de apuros e nunca precisei que me fizesse nada em troca. - Limpou as mãos, olhou para Mrs. Mark e perguntou: - Tens medo de ficar com ela até amanhã?

Joan olhou para o corpo limpo e composto da sua velha amiga e respondeu:

- Não me consigo imaginar a ter medo dela.        

- Não... Há anos que estava como morta. Bem, vou comer o meu pudim de arroz. - Pegou na velha maleta de cabedal e saiu.

Joan não teve, assim, tempo para escrever a carta a Roger Bair. Mas quando acordou, de noite, foi doce pensar que a escreveria. Era uma coisa que a esperava, como um mimo a uma criança, um prazer que experimentaria. Mesmo que ele não lhe respondesse, ela teria escrito a carta e assinado o seu nome - Joan Richards. Ele não precisava de conhecer a sua vida. Para ele, seria apenas ela própria, Joan Richards.

Mrs. Mark jazia, morta, atrás da porta fechada, mas Joan não tinha medo. Se pudesse, gostaria de agradecer a Mrs. Mark. Obrigada por me ter dado uma casa, um lar. Deu-me segurança.

Custar-lhe-ia muito se não houvesse nenhuma maneira de agradecer a Mrs. Mark, de lhe mostrar a sua gratidão. Mas Mrs. Mark seria a última pessoa a aceitar agradecimentos. Imaginava-a a abrir os olhos mortos pequeninos, e a dizer-lhe: Vai-te embora, não me maces. Não vês que estou morta? Fora característico de Mrs. Mark dar-lhe tudo quanto tinha e morrer antes que lhe agradecesse.

Joan adormeceu, de novo.

De manhã, quando Mr. Blum chegou com os seus dois empregados; já tinha tudo pronto. Apanhara um raminho de ásteres bravos, vermelhos-claros, colocara-os junto da cama e abrira as janelas ao sol e ao vento. Não havia cheiro nenhum no quarto.

Quando abrira a porta, esperara encontrar o conhecido cheiro da morte, mas Mrs. Mark não morrera de repente, com saúde e vida.

O seu corpo estava mao e seco, quase só ossos. O seu aspecto era exactamente o mesmo que tivera em vida.

Mr. Blum calçou as luvas e os seus homens colocaram uma caixa comprida ao lado da cama.

       - O Dr. Crabbe deu-me instruções completas - disse o cangalheiro, untuoso. - E a única pessoa a acompanhá-la, madame?

- Ela não tinha ninguém.

-Muito interessante. Lembro-me muito bem da sua mãe, que considerei bonita na morte. Não me recordo do nome do cavalheiro com quem casou, Miss Richards.

Joan não respondeu e ele esqueceu-a.

- Cuidado agora, rapazes. Os pés primeiro. . Pronto, af está, confortávél como um bebé.

       Fechou o caixão e levou Mrs. Mark.

Era impossível sentir tristeza, o que a envergonhava. Nem sequer se sentiu triste à beira da sepultura, no cemitério. A volta da cova estreita encontravam-se alguns velhos: Mr. Pegler, Mrs Billings, Miss Kinney, o Dr. Crabbe e Mrs. Parsons. Escutavam a voz apressada e abstracta do novo sacerdote. Conhecendo Mrs. Márk apenas como uma velha rude, que fingia estar a dormir quando a ia visitar, e por isso apressou-se a enterrá-la.

Estavam reunidos à volta do reverendo, ao sol, velhos, enrugados e modestos. Só o Dr. Crabbe parecia robusto, forte e áspero como uma árvore de tronco grosso, cuja copa fora cortada cedo, deixando uma ferida havia muito cicatrizada. O seu cabelo branco, encaracolado, esvoaçava ao vento. Miss Kinney estava um pouco afastada dos outros e lembrava uma alma penada. Falava sozinha, a mexer os lábios, e sorria. Ao ver Joan olhá-la, acenou-lhe alegremente, do outro lado da campa, e depois corou, ao lembrar-se onde estava. A sua cara lembrava mais do que nunca uma pobre flor murcha no cimo de uma haste comprida.     

Acabou tudo muito depressa. Mrs. Parsons cantou, numa voz

que subiu, fraca e triste, no ar outonal. Por todos os santos que dos seus trabalhos repousam... Joan utou, de olhos postos no  ponto onde jaziam o pai e a mãe. Mrs. Mark teria detestado       semelhante hino. Não me chamem santa, por piedade!, resmungaria; se pudesse.   

Sim, acabou tudo muito depressa. O reverendo apertou ràpidamente a mão às pessoas presentes e foi-se embora. Os velhos       demoraram-se ainda um bocado, a falar com Joan. É raro ver-te, hoje em dia...  

Nenhum deles conhecera bem Mrs. Mark.

- Não era uma mulher que fosse fácil conhecer - disse Mrs. Parsons, bondosamente-, mas tenho a certeza de que era muito boa.

- Não lhe fazia um par de sapatos há... - disse Mr. Pegler, a fazer contas de cabeça. - Ora deixem ver... Há doze anos! E os últimos foram sapatos de trazer por casa. Lembro-me de que, quando os mandou fazer, me disse que sentia as pernas trôpegas.

Bem, temos todos de partir, de uma maneira ou de outra, e depressa se acaba tudo para nós. Já tivemos tudo quanto existe; depois não há mais nada.

Aqueles velhos ficaram calados, de olhos postos na nova campa, perturbados e assustados. Ninguém contradisse Mr. Pegler, o que era raro. De um momento para o outro, qualquer deles...

Miss Kinney olhava fixamente para o caixão, perplexa, como se ainda não o tivesse visto. O coveiro começou a cobri-lo de terra.

- Estamos todos a envelhecer, não estamos? - perguntou Miss Kinney, e fitou-os, um após outro, assustada.

- Venha - disse-lhe o Dr. Crabbe, e pegou-lhe no braço magro. - Eu levo-a a casa. A sua mãe deve precisar de si.

-Sim, claro, tenho de ir. Não posso deixar a mãe sozinha muito tempo.

Afastou-se, a saltitar ao lado do médico, uma cabeça mais alta do que ele, uma espiga a murchar ao lado do seu corpo robusto.

Mr. e Mrs. Billings, ao lado um do outro, esperavam Joan.

um pouco afastados. Esses não tinham medo.

- Tudo tem de morrer - dizia Mr. Billings, respeitosamente - a repetir uma frase que costumava usar no talho.

Havia anos que não vendia carne nenhuma a Mrs. Mark, mas ela fazia parte da aldeia e, por isso, fora ao funeral.

- Joan, querida, como tem passado? - perguntou Mrs. Bilings.

Já se tinham ido todos embora, excepto eles, e Joan desejava contar tudo àquele velho e simples casal. Tinham um ar tão sincero e verdadeiro, sob a luz do sol, havia tanta firmeza nos seus rostos avermelhados. .

- Deixei o meu marido - disse, simplesmente, e fitaram-na. - Não podia continuar.

Mr. Billings acenou com a cabeça e declarou, devagar;

-Conheço os Pounders. É gente honesta, mas muito metida consigo. De vez em quando compro-lhes uma ou duas vitelas.

Mrs. Billings deu-lhe uma palmadinha na mão e suspirou:

- Bem, querida...

- Moro na vivenda de Mrs. Mark - apressou-se a informar Joan. - Ela deixou-ma. Ficarei com os filhos da Rose.

- Coitadinha da Rose, tão bonita - lamentou Mrs. Billlings.

-Custa a compreender tudo quanto aconteceu, tantos desgostos nestes últimos dez anos. No entanto, ainda parece que foi ontem que a sua mãe morreu.

- É verdade - murmurou joan.

Ficaram calados, um momento, mas ela sentiu-os perto de si, sem condenação, a aceitá-la como ela era.

- Bem - disse Mr. Billings, a pigarrear -, com todos esses miúdos, acho melhor mandar-lhe um bocado de carne, para lhes fazer sopa, de vez em quando.

Sorriu-lhe alegremente, e Joan sorriu-lhe também, mas com os olhos cheios de lágrimas.

-São as duas melhores pessoas do mundo!

Mr. Billings riu-se e afirmou:

-Somos muito vulgares.

O coveiro batia com a pá na terra, a ajeitá-la. Terminara tudo e os três abandonaram, finalmente, o cemitério.

Mas Joan continuava a não ser capaz de sentir tristeza. Ao acordar na manhã seguinte, na casinha que era agora sua, foi

como se começasse. realmente, a viver, pela primeira vez. Mrs. Mark dera-lhe um lugar onde podia viver e afastara-se tranquilamente, sem deixar nada de si própria.       

Joan arrumou as três divisões da casa e guardou as roupas de Mrs. Mark, que eram muito poucas. A inválida vivera ali sem grandes coisas, pois não desejava a casa atravancada. No guarda-vestidos estavam pendurados dois vestidos pretos, sem graça e já desbotados, pois havia anos que não os usava. Tudo junto, mal encheu um cesto de alqueire, que Joan levou para o sótão.     

Era a primeira vez que ia ao sótão. Havia, de facto, um quarto acabado, de tábuas por pintar, sujo apenas de pó e nunca habitado. Seria o quarto de David, decidiu. Aquela casa era, agora, sua! Todas as divisões eram suas, para distribuir e arrumar como entendesse. Não sentia estranheza em nenhuma delas. Fora-lhe dada e ela aceitara-a. A outra casa, para onde tão estùpidamente correra na esperança de encontrar abrigo e protecção, nunca poderia ter sido sua. Fora, desde o princípio, deformada por um género de vida que lhe era estranho. Mesmo que todos eles morressem e lha deixassem, não seria sua e não a amaria. Mas esta casa acolheu-a imediatamente, com ternura e intimidade.

Tinha a impressão de já ali viver havia muito tempo. Gostava das paredes grossas, das inúmeras janelinhas, dos tons castanhos e dourados da pedra. Havia uma velha lareira. Alguém tirara as pedras do campo, da sua própria terra, e fizera a casa e a lareira, para se aquecer e ao seu amor. Joan tinha a certeza absoluta de que a casa fora construída com amor, planeada por namorados, e que Mrs. Mark a conservara apenas para lha entregar. Viveria ali com todos os seus meninos, todos reunidos debaixo daquele tecto.

Em tudo quanto fazia penetrava, quente como uma corrente meridional a atravessar o mar, o pensamento da carta que escreveria a Roger Bair. Seria como trazê-lo, a ele também, para debaixo daquele tecto. Hora a hora, adiava o momento em que a escreveria. O seu coração precisava do sonho. Limpou e arrumou a casa e fez a cama de lavado. depois de arejar o colchão ao sol e ao vento; e apanhou flores bravas, no prado. Depois de tornar a casa inteiramente sua, sentou-se, ao fim de um dia de doce solidão em que não vira outro rosto além do de Paul, decidida a escrever, finalmente, a sua carta. Como podia estar triste?

Meu caro Roger Bair... Parou e, de súbito, teve consciência do significado do seu nome. Amava-o. Amara-o durante todos

aqueles anos. Sempre que o nome dele aparecia numa das cartas de Francis, via-o acima de todas as oútras palavras escritas na página. Mas só agora estava livre para saber que o amava. A sombra daquela casa silenciosa, o seu amor vivera sufocado, vivo, mas ignorado. Agora, naquela solidão livre, apresentava-se-lhe claramente, nobremente, em toda a plenitude. Crescera durante todo aquele tempo. Joan olhava o nome que escrevera, pois ao escrevê-lo fora como se abrisse a porta e Roger tivesse entrado.

Estivera sempre consigo, desde aquela manhã em que o vira no aeródromo. Largou a caneta e deixou-se ficar tranquilamente sentada na sua casinha, com as gelosias corridas, sòzinha à luz do candeeiro. Podia amá-lo inteira e livremente, assim sòzinha, podia amá-lo e viver do seu amor por ele, sem pedir nada. Era um amor que lhe dava vida, que a enchia de energia. Pegou de novo na caneta e começou a escrever muito depressa, sem hesitar:

Preciso da sua ajuda e não tenho receio de lha pedir...

Depois de lhe pedir o que queria pedir, assinou a carta, fechou-a e preparou-se para se deitar. Paul já dormia. Em camisa, parou a olhá-lo, antes de apagar a luz, como sempre fazia. Dormia tranquilamente, com a carinha infantil muito serena e os lábios rosados entreabertos. Estava a ficar alto e mais forte, e tentava levantar-se, quando o punha no chão. Joan observara-o, adivinhara o fraco cérebro a esforçar-se vagamente por obedecer ao corpo belo e forte, e o seu coração estalara por ele, todas as vezes. Era tudo quanto tinha, e chorara muitas vezes por o saber. Mas agora, ao olhá-lo, teve consciência de que ele já não era tudo, de que, finalmente, tinha mais qualquer coisa. Até chorar já não podia. ser o mesmo, agora.

Os dias passavam e com eles firmava-se o conhecimento daquela ténue teia prateada existente entre ela e Roger Bair.

Recebeu a carta dele muito depressa, imediatamente, como se não tivesse havido nenhuma hesitação da sua parte. Reconheceu a sua caligrafia, que nunca vira: letras pequenas, quadradas, livres umas das outras, independentes na sua forma. Era uma carta fria, escrita por quem parecia recear os sentimentos e estava pronto a ajudá-la. de longe. Falara com Francis, escrevia-lhe para saber o que ela seria capaz de fazer. O irmão lembrara-se de que costumava compor música e trabalhara, em tempos, com Martin Bradley, nesse campo. Roger considerava Bradley um indivíduo invulgarmente dotado, nesse capítulo; chamara-o ao seu escritório e pedira-lhe sugestões. Bradley dissera-lhe que se podia escrever música para casas editoras - fazer orquestrações, arranjos harmónicos de melodias compostas por outros, enfim, coisas a que ela se podia dedicar em casa. Bradley indicara-lhe o nome de uma firma, ele consultara-a e iam enviar a Joan algumas coisas para ela experimentar.

Joan leu a carta, comprida e muito cheia, mas a falar apenas do que fizera para a ajudar. Só na última linha o assunto era diferente: O seu irmão é um bom aviador.

Mas, naquele momento, Francis não interessava a Joan. Francis não estava entre eles. Quem estava entre eles, e quem ela tinha de afastar definitivamente, era Martin Bradley. Apressou-se a escrever: Não quero aceitar nada de Martin Bradley, absolutamente nada. Não lhe fale no meu nome. Só aceitarei de si.

Escrevia-lhe livremente, sem se preocupar com o que ele poderia pensar. Devia conhecê-la desde o princípio, saber como ela era. já que era livre, seria livre, seria ela própria e mais nada.

A carta dele não tardou, mais uma vez: Sou eu que faço isto por si: Não falei no seu nome a ninguém.

Assim as suas cartas começaram a ir e vir, numa espécie de urdidura e trama a unir os seus dias. No fundo de tudo quanto Joan fazia havia aquela tecitura entre ela e Roger Bair, uma espécie de tecido grosso e brilhante a sublinhar toda a sua vida.

Ela via-o, cor de prata, como as malhas de aço de uma armadura. Estendia-se debaixo dela e ao seu redor, para a proteger e lhe dar forças.

No dia 4 de Outubro, John Stuart chegaria com os filhos de Rose. Joan fazia cortinas amarelas. Sentira-se desassossegada sem elas, sempre a vê-las, inevitáveis, contra o estuque enegrecido do fumo da cozinha. Por fim, sentindo a consciência tão culpada como se roubasse uma gaveta, pegara em dois dólares e fora à loja de Mr. Winters.

-Quero o tecido amarelo mais berrante que tiver!

Mr. Winters estava ao balcão, de lápis atrás da orelha. Emagrecera muito, estava curvado e parecia sempre entorpecido.

Esquecia cada vez com mais frequência onde guardava as coisas.

- Ora deixa ver... - murmurou, a passar o dedo por uma pilha de peças de riscado colorido.

- Estou a vê-lo! - exclamou Joan, e o dedo de Mr. Winters parou e puxou uma peça de tecido dourado.

Viu-o medir àvidamente o cobiçado tecido que não tinha direito de comprar, agora que Fanny batia todos os sábados à

porta, a lamentar-se: O Frankie cresceu tanto, Miss Joan...

precisa de roupa nova. Fanny aceitara, plàcidamente, a mudança do ponto de encontro: Sim, há muitas senhoras que não podem suportar os maridos. A mim própria me acontece isso, às vezes!

É terrível viver constantemente com o Lem! Creio, até, que deve ser terrível viver constantemente com o mesmo homem... não tínha direito nenhum de comprar o tecido amarelo, para enfeitar uma parede escura...

- As crianças chegam no dia 4 de Outubro - disse, de súbito, Mr. Winters, enquanto cortava o tecido. - Comboio das sete horas.        

- Tenho estado ansiosa por saber! - exclamou Joan. - Desejo

tanto tê-los!    

- Se a Mattie não estivesse doente - disse Mr. Winters, melancólico, por cima do pano berrante-, os filhos do Rob ficariam com o pai e a mãe dele. Sempre desejei mais filhos, mas ela não queria... Depois de a nossa filha morrer, disse que        não tinha coragem para sofrer tudo de novo.

-Tenho tudo pronto para os receber. Poderão vê-los quando quiserem. Estou a morar em casa de Mrs. Mark...

Mr. Winters dobrava o tecido, e Joan percebeu que ele não sabia que vivia sòzinha. Também não lho disse. Teria tempo, quando chegasse o momento. Até já lhe parecia ouvir Mrs. Winters gritar: Mas estás a cometer um pecado, Joan! Primeiro queria os seus meninos em segurança, debaixo do seu tecto.

Ao ver a cara magra e cor de cinza de Mr. Winters, teve pena dele. Passaria o resto da vida ao lado da velha esposa, na casinha quadrada da aldeia, sozinhos. Levar-lhes-ia os pequenos muitas vezes. Era tão rica, com todos os seus meninos!

-Hei-de trazer-lhos muitas vezes, para os verem.        

Mas ele não sorriu. Abanou a cabeça, a suspirar.       

-Não devia ser assim, não! Não o merecemos, somos gente temente a Deus...

- Pois não - concordou Joan. - De qualquer modo, há as crianças.

- Pus todo o meu coração e todas as minhas esperanças no Rob, a partir do dia em que nasceu...

Joan afagou-lhe a mão enrugada, antes de sair, e sentiu a pele dura, seca e fria.

Cortou e coseu o tecido e pendurou-o, como manchas de luz amarela. Até Paul se voltava, para olhar! Agora já conseguia andar um bocadinho sózinho, se o punha em pé. Levantava um momento a cabeça, a olhar para as cortinas amarelas, mas depois os seus olhos perdiam-se, para voltarem passados instantes a fixar-se nelas. Afinal, fizera bem em comprá-las.

Recebeu uma carta de john Stuart, a anunciar a chegada.

Na manhã seguinte, quando estava a passar a ferro a roupa de Paul, viu por entre as cortinas, Bart descer o carreiro, a caminho da porta. O seu coração parou. Encontrara-a. Mas ela sabia que a encontraria. Por momentos, sentiu-se assustada. Ele parecia enorme e forte na sua roupa de trabalho, do lado de fora da porta.

Bateu, levantou o fecho e ficou especado, no patamar. Joan olhou-o, calma e direita, a conter o coração assustado.

- Então, Bart? - perguntou, agradável e corajosamente, sem largar o ferro quente; um ferro quente era uma boa coisa para

ter na mão, se precisasse.

- Soube há uma semana que estavas aqui - disse, cabisbaixo enquanto ela continuava a passar, meticulosa.

-Não escondi que estava aqui.

- Estão aqui duas cartas que chegaram para ti - disse Bart, a remexer nas algibeiras.

-Põe-nas aí, no peitoril da janela.

O seu coração serenava, como uma ave selvagem a recuperar a esperança. Não precisava de ter medo dele. Bart não sabia que dizer, que fazer. Era mais forte do que ele.

- Não voltas? - perguntou, a vê-la passar a roupa.

Joan começou a dobrar o bibe, mas o ferro estava à mão, quente.

- Não, Bart, nunca mais volto.

- Nunca te fizemos mal, fomos bons para ti...

- Não me queixo, Bart.

Ficou calado um momento, enquanto o seu cérebro lento procurava as palavras.

- A mãe não é assim por mal, é o seu feitio – murmurou por fim.

- Bem sei. - Desenrolou outra peça de roupa e começou a passá-la.

- Não quero saber para nada daquela... daquela rapariga.

-Nem eu, Bart, não me fales dela.

- Se voltasses - insistiu,         pesadamente - esquecê-la-ia depressa. Os homens não fazem estas coisas com intenção. Ela andava muito pelo estábulo...

-Eu não quero saber, Bart.

-Não te importas?          

- Não.             

Bart reflectiu, encostado à ombreira. Joan continuava a engomar, desejosa de que se fosse embora. Que sombra era aquela que uma pessoa podia lançar sobre outra, só por estar presente?

Mas ela já não tinha medo. Podia largar o ferro, pois não precisaria dele.        

- Nunca gostaste de mim, Jo... mas eu nunca deixarei de gostar de ti... de te amar.              

- Fiz mal em casar contigo, Bart, compreendo. Terias sido realmente feliz com outra qualquer, talvez com ela. Tentarei remediar o mal que te causei.

-Preferia que voltasses. Gostava da nossa vida, antes de nascer o miúdo. Então parecias feliz.

Não lhe respondeu. Estava a arrumar as coisas, a endireitar      a cozinha. Pegou numas cenouras e começou a lavá-las, a fim de as cozer para o jantàr do filho. Admirou, a sua cor viva, depois de bem lavadas. Era belo como surgia cor de toda a parte, até da lama da terra. A cenoura era uma forma colorida entre os seus dedos, uma forma feita misteriosamente. Bart nunca mais se ia embora e ela não o podia esquecer. Estava ansiosa por o ver desaparecer, para que a porta ficasse livre e deixasse entrar o céu. Fixou o pensamento na cenoura, que começou a cortar.

- Não voltas, com certeza, Jo? - insistiu, desanimado.

Agora Joan sabia, sem sombra de dúvidas, que se tivesse de se deitar outra vez ao lado daquele grande corpanzil se mataria.

Para além da dor e da mágoa, do que estava certo e do que estava errado, havia qualquer coisa mais. O seu corpo não podia voltar a ser subjugado quando a sua alma e o seu coração se revoltavam. Mataria o seu corpo e libertar-se-ia. Começou a tremer.

- Não, Bart, não volto.

- A mãe e o pai não se conformarão nunca, não se conformarão com os ditos e as conversas...

-Não posso fazer nada para lho evitar, Bart.

- Tens a certeza?

-Tanta, que te peço que me tragas a arca com as minhas coisas.

Bart cuspiu na poeira, ao lado da porta, e passou a enorme mão pela boca. Joan compreendia que estava muito preocupado

e teve pena dele. Sofría, à sua maneira. Mas não mencionara

uma única vez o nome de Paul. Começou a falar de novo, amuado, a bater com o bico do sapato no degrau da porta.

- Procedes com muita arrogância. toda senhora do teu nariz, mas a mãe diz que tu é que tens a culpa de o miúdo ser assim.

O teu velho era doido, toda a gente o sabia...

- Vai para casa, Bart - ordenou, com firmeza. - Não ta quero aqui. Sou mais feliz quando não te vejo.

Olhou-a, perplexo. Mas Joan tremia toda e sentia a cabeça andar à roda.

- Se não te vais imediatamente embora, pego no Paul e vou para qualquer lado onde nunca nos possas encontrar, nem que seja no fundo de um rio!

       -Mas eu não te estou a fazer mal!

- Vai-te embora, vai-te embora! - gritou, tensa, a empurrá-lo com os olhos e com a vontade.

Bart olhou-a e desceu vagarosamente o carreiro. Só quando o portão bateu, só quando o ar purificou de novo o sítio onde ele estivera, Joan deixou de tremer. ia esquecer, pensar

       em formas e cores maravilhosas, saídas da terra... Nunca mais queria recordar Bart e aqueles horríveis anos, tudo quanto ele dissera.

Passado um bocado, quando o seu corpo readquiriu a firmeza e a serenidade, abriu as cartas. Uma era de John Stuart, a dizer-lhe quando chegava. Minha senhora, começava, formalmente:

David estava bem, mas o bebé, Mary, estivera doente. A alimentação artificial não chegava. Fizera tudo quanto pudera, mas chorava constantemente. No entanto, quando comia ficava doente.

Era difícil compreender os desígnios de Deus.

A outra carta era de Francis, apenas algumas linhas garatujadas à pressa. A sua caligrafia continuava irregular e nervosa, exactamente como quando andava na escola.

Sinto muito o que sucedeu a Rose e ao Rob, mas, não sei porquê, mal me lembro da Rose. Ela foi a única de nós que fez o que queria, mas mataram-na por isso. É assim a vida. Começarei a voar regularmente assim que houver uma vaga.

Joan leu as cartas de ponta a ponta e rasgou-as. Bart tocara-lhes, tirara-as da algibeira. Levantou-se e lavou as mãos. Depois subiu ao sótão e começou a fazer planos. Tinha de arranjar uma cama para o David, assim como uma mesa e uma cadeira.     

Mas agora podia gastar algum dinheiro. Na véspera recebera as músicas mandadas pelos editores e não achara o trabalho muito difícil. Compraria uma cama para o David e um berço para Mary, que colocaria ao lado da sua cama.        

O futuro sorria-lhe, outra vez. Bart descia a estrada, a afastar-se dela, e a sua figura tornava-se mais pequena a cada coisa que planeava. Planeava a sua vida, moldava-a à volta das crianças.

As pessoas tinham de pegar na vida e moldá-la, de a ir buscar aqui e ali - cortinas amarelas, cenouras, uma cama para um rapazinho, leite para um bebé doente, folhas de música para encher, um filho inacabado, uma casa... A tudo isso iria buscar a sua vida. E, debaixo de tudo, havería a teia forte, o arrimo do amor não confessado. Que importava que não fosse confessado ou que não fosse retribuído? Da sua infância distante chegou à sua memória uma frase que o pai lera, no púlpito: E debaixo de nós estão os braços eternos... Fixara a frase porque, então, adorava ouvi-lo despreocupadamente, na descuidada plenitude da sua infância. Mas agora que toda a infância mais não era do que uma recordação, aceitou as bonitas palavras como uma taça vazia e encheu-as a trasbordar com um significado seu; com o seu próprio significado secreto.

No melancólico anoitecer daquele dia de Outubro, Joan e Mr. e Mrs. Winters esperavam pelo comboio. Teimara em aprender a deixar o filho sòzinho, de vez em quando. Não era muito longe, a casa ficava logo a seguir à aldeia, e se o deixasse numa manta, no chão, e fechasse a porta à chave, nada lhe aconteceria.

Mas, mesmo assim, o seu coração ficava a guardá-lo e sentia-se roída de impaciência.

Estavam calados e tristes, os três. Se me tivessem dado ouvidos... , dizia, de vez em quando; Mrs. Winters, mas o marido não dizia nada e Joan pensava em Rose e não podia falar. Rose partira tão segura da vontade de Deus! Mas morrera. O comboio apitou ao longe e parou um instante na estação.

Era um grande comboio que raramente parava em terras pequenas, a não ser quando alguém o solicitava, o que era raro. Mas naquele momento parou, para desembarcar, vindo de muito longe, um homem novo, alto, curvado e grisalho, que pegava num bebé.

A seu lado, agarrado ao seu casaco, vinha um rapazinho magro, de fato de fazenda castanha, que olhava em silêncio para tudo quanto via. Pararam longe do grupo que os esperava, com as poucas malas velhas à sua volta. Joan foi a primeira a vê-los e correu para eles.

-Oh, dèixe ver essa jóia!

Recebeu nos braços aquele fragmento de Rose, aquele bebé

que a irmã lhe dera. Reconfortava-a indizivelmente tê-la, enfim, nos braços.

- Chegaste à tua terra, meu amorzinho - murmurou. David, meu amor, chegaste. Oh, como parecem todos fatigados!

- Até aos ossos! - exclamou o homem, que lhe entregara o bebé, mas não largava a mão de David.

- Ora cá estão, ora cá estão... - murmurava Mr. Winters.

- A minha mãe e o meu pai morreram - disse David. – Por isso não puderam vir connosco. - A sua voz pareceu sair, brúsca e clara, da escuridão.

A noite, Joan sentou-se, a ouvir John Stuart. Levara as crianças para casa, déra-lhes banho e alimentara-os. Fora o seu sacramento, a lavagem da carne dos seus filhos, a dádiva do pão e do leite. Lavara e confortara o bebé, que chorava desconsoladamente, e tratara-lhe da irritação das pernas e dos braços. Aquecera o leite cremoso e dera-lho, enquanto o rostinho cansado e triste mergulhava num sono reparador. David observava-a, atentamente. -O meu tio John não sabe calar a Mary, quando ela chora.

-Os tios não costumam saber essas coisas muito bem.      

Olhava-o, à espera, pronta para o adorar. Mas não o devia apressar, o seu espírito estava cheio de imagens que ela desconhecia. Devia esperar que ele próprio se revelasse.     

-Vamos morar aqui?

- Sim, David.

-Não há muralha.   

-Absolutamente nenhuma. Poderás correr até onde quiseres,

desde que, à noite, voltes para mim.

O garoto suspirou, profunda e livremente.   

- Quero ir para a cama.

- A tua cama está pronta. uma cama nova, feita especialmente para ti.

-Eu sei tomar banho sòzinho. A minha ama já não me lavava havia muito tempo.

-Farás tudo sòzinho.

O rapazinho levantou a cabeça do prato de sopas de leite e disse:   

-Sei que o leite sai das vacas. O meu pai explicou-me, uma vez. Mas nunca vi.

-Este saiu hoje, fresquinho, para ti, para a Mary e para o Paul.

Deitou-se, limpo e saciado, entre os lençóis perfumados pelo sol.

-Preferia não adormecer sem dizer as minhas orações com o meu tio John.

Joan sentiu-se contente por ter dito a John Stuart: Era melhor ir connosco, na primeira noite.

- O David está à sua espera - disse-lhe.

Subiram juntos, mas, afinal, David não conseguira esperar. Estava a dormir, deitado de lado, com a mãozinha magra debaixo da cara.

-Não o acordarei para rezar, esta noite.

- Também acho - concordou Joan. - O sono far-lhe-á melhor.

No andar de baixo, sentou-se com John junto da lareira e acendeu-a. John Stuart parecia exausto e não tentou ajudá-la.

Quando os toros pegaram, percorreu com o olhar a pequena sala e depois fitou-a.

-Não imagina o que isto significa. A tranquilidade, o silêncio da casa... Estou sempre à escuta...

       - De quê?

-Dos gritos do povo. Gritos estranhos e separados, que ninguém cala. Uma criança a chorar de uma maneira que me diz que tem dores, pessoas a discutir, a ladainha dos padres, a turba furiosa... O mar a lamber os costados do navio acordou-me tantas vezes, de noite! Era um som semelhante ao produzido pelos bandidos, quando arrombaram as portas da cidade. Vi-os apunhalar o Rob. Ele gritou qualquer coisa, mas não ouvi, com tanto barulho. De qualquer modo, não o poderia ajudar. Estava amarrado a um bambu e levavam-me...

Joan olhava-o e tentava ver o que ele contava. John Stuart faláva em voz serena e distante, de olhos fixos no lume.

- Como conseguiu escapar?

-Tinha um amigo entre eles, um homem que estivera no meu hospital. Foi ele que me amarrou, sem apertar, e me segredou que não resistisse. Obedeci-lhe. Queimaram o meu hospital, tenho de recomeçar do princípio. Não ficou nada, despedaçaram tudo.

Joan lembrou-se, de súbito, da camisa de dormir cor de pêssego que dera a Rose. Fora uma coisa preciosa para si, uma coisa delicada... Nunca tivera outra tão bonita. Ninguém mais lhe dera tais coisas e ela não se pudera dar ao luxo de as comprar. Mas a turba rasgara-a e deitara-a fora. Perdera-se, afinal.

- Não me diga que vai voltar?

John Stuart estendia as mãos para o lume e Joan viu-lhe os pulsos, com cicatrizes ainda avermelhadas, das cordas que o tinham amarrado.

-Vou, sim. O povo precisa de um hospital; não há nenhum num raio de mil milhas. - Sorriu, tristemente, e acrescentou:

       -Talvez seja por isso que volto, por parecer que sou, lá, importante. Aquí seria um entre centenas, um médico de província, talvez. Lá, serei especialista, cirurgião, tudo. Salvar vidas turnou-se uma mania minha. Não sei para quê, mas...       

- Veja o que eles fizeram! - murmurou Joan.        

- É curioso - disse, devagar, Stuart -, mas o tipo que me salvou falava quase como um cristão. Pode parecer-lhe impossível, mas fez-me pensar no Rob. Era tão novo e tão ansioso por fazer bem, por servir o povo! O singular é que pensavam que tinham razão para matar. O que me salvou tinha tudo bem estudado, não era nada doido. A sua maneira, até era bom. Estava convencido de que cumpria o seu dever, falava a esse respeito no hospital. Foipor intermédio dele que encontrei, depois, os garotos. A ama levara-os para a sua casa, na aldeia. Não lhes tinham feito mal, ficaram lá vários dias até os conseguir trazer. A mulher vestiu-os como os garotos da aldeia. Não creio que o David compreenda bem o que se passou. Ela tapou-lhes a cara quando... quando agarraram a mãe, e levou-o logo dali.     

Joan não foi capaz de falar.

- Sim, devo voltar - murmurou o homem, a suspirar.

Mas, de momento, estavam em segurança naquela casinha sossegada, no meio do mundo louco e barulhento. Joan não lhe disse mais nada. Quando ele se levantou, para sair, perguntou-lhe serenamente, ao apertar-lhe a mão:

-Volta cá, um dia? Isto é mais do que uma visita de passagem?

Ele levou a mão à testa, num gesto que Joan recordava do pai; e respondeu-lhe:

- Não sei... Nunca sei. - Largou-lhe a mão e acrescentou: Espere, tenho uma coisa para lhe dar. - Levou a mão à algibeira e tirou um livrinho com capa de cartão preto. - Encontraram

isto. Era o diário da sua irmã.

Saiu e Joan não o voltou a ver.

Mas, no fim de contas, pensou, sentada sózinha à lareira,

a segurar o diário, a própria Rose teria escolhido morrer mártir.

A morte devia ter-lhe surgido grande, resplandecente e rápida.

Sim, Rose morrera puramente por amor de Cristo, como por certo desejara, morrera com um erguer de asas angelicais. Joan abriu o livrinho. Fora a mão dé Rose que o escrevera, aquela era a história da sua vida naquele país estranho e longínquo. Começou a ler àvidamente, ternamente, meio-envergonhada. Por certo haveria ali coisas que Rose não destinara aos olhos de ninguém, coisas íntimas, secretas, que jamais diria.

Mas, página a página, era sempre a mesma coisa: Hoje devemos agradecer a Deus... , Devemos suportar as dificuldades como corajosos soldados de Cristo... , Na realidade, não havia ali nada, absolutamente nada acerca de Rose.

Joan envergonhava-se de se sentir tão feliz, mas a verdade é que não podia fugir à felicidade. Era a felicidade física de alguém que, após longa doença que o impedira de comer e dormir e o privara da faculdade de andar e mover-se, sente o sono invadi-lo de novo, reconhece o gosto da fruta, da carne e do pão e sente que as pernas são novamente suas, para andar por onde quiser. Joan passava os dias na pura alegria de cozinhar, costurar e cuidar daqueles três seres que lhe pertenciam. Ficou apavorada quando, ao ver David correr num prado, ao vento, pensou: Foi melhor Rose ter morrido. Mas o sobrinho era um êxtase, um sonho a voar ao vento e no meio das folhas caídas. Corria por toda a parte, incapaz de andar. Na incessante curiosidade maravilhada de tudo quanto havia para ver, David corria por toda a parte. Joan deixava-o andar em liberdade, consciente de que ele nascera para ser livre e, portanto, devia ser livre. Esperava-o, à noite, para lhe prodigalizar sustento e repouso. Sentava-se a seu lado, enquanto ele comia, a observar a sua cara magra modificar-se e mexer, a seguir o curso dos seus pensamentos.

       - Vi no bosque um animal com um rabo muito esticado...

-Era um esquilo.

-Segurava uma noz como um macaco, mas nestes bosques não há macacos. Eu já vi macacos.

-Aqui só os há no jardim zoológico.

- Nunca vi um jardim zoológico, mas verei. Verei tudo. Vou para a escola?

-Irás para a escola da aldeia, onde a tua mãe, o teu tio Francis e eu andámos, quando éramos pequenos.

-Quero conhecer os rapazes daqui. Espero que não sejam cobardes. Lá, na terra donde vim, eram. Chamavam-me nomes, na rua, por eu ser estrangeiro, e quando eu ia atrás deles fugiam e escondiam-se. - Franziu a testa, a recordar. - Um dia, quando for crescido, chefiarei um exército contra eles. Combatê-los-ei com um exército e armas: Odeio cobardes. Costumava encher as algibeiras de pedras e persegui-los, mas não os encontrava. Havia tantas ruazinhas às curvas e tantos pátios! E eles fugiam para os pátios das mulheres e escondiam-se. Escondiam-se entre as mulheres! - Olhou-a, para que compartilhasse o seu desprezo. O seu espírito estava cheio de recordações que Joan desconhecia. Devia esperar que se dissipassem, substituf-las por outras.

- Aqui encontrarás rapazes valentes... pelo menos alguns.

David continuou a comer, pensativo.

-O meu pai não queria que eu lutasse, dizia que era mal feito. Quando for crescido, não quero ser padre, para poder lutar.

- Só é mal feito lutar deslealmente - redarguiu Joan.

- Oh, com certeza! Com deslealdade não se deve lutar - concordou, e levantou-se da mesa, depois de ter comido muito bem. Lembra-se de, no primeiro dia, quando vim, não saber como saía o leite das vacas? - perguntou, a rir. - Julgava que escorria! Riu de novo e acrescentou, um bocadinho vaidoso: - É preciso puxá-lo para fora! A verdade é que pouco sei acerca da América...

Um homem devia saber tudo acerca do seu próprio país, não

acha?     

- Acho - concordou, a sorrir e a adorá-lo.

Apetecia-lhe abraçar o seu corpo ansioso, mas não se atrevia. Era capaz de o tornar tenso como uma lâmina, mesmo contra ela, se não quisesse que lhe tocassem. Devia deixá-lo em paz. Tinha de se limitar a pôr-lhe comer na mesa e livros na mesa-de-cabeceira - precisava de comprar livros -, a abrir-lhe a porta para os campos e para o céu. David corria pela escada acima, para se deitar. Começava a aprender a assobiar e Joan ouvia o seu assobio fraco e hesitante, no quarto. Naquele momento, tentava assobiar: Oh, mas tu não vês. Dali a bocadinho gritaria e, então, ela poderia ir ter com ele. Enquanto ele não chamasse, não.

Mas às vezes, quando a chamava, Joan via a sua expressão pensativa, de quem recordava. No entanto, nem uma vez aludira ainda ao que recordava. Joan via-o amiúde com essa expressão, ao hesitar momentâneamente, antes de dar uma dentada num bolo, ou à noite, antes de se deitar. Uma vez, quando o vento uivou violentamente toda a noite, chamou-a e Joan encontrou-o acordado e tenso.

- Só lhe quero perguntar uma coisa - disse, em tom cuidadosamente casual. - Na América não costuma juntar-se um grande grupo para matar pessoas, pois não?

Joan pegou na mão de David, que estava fria e húmida, e perguntou-lhe:

-Queres ir deitar-te comigo?

- Quero - respondeu-lhe, baixinho.

Na sua cama, abraçou-o docemente e sentiu o seu corpo aquecer e abandonar-se.

-Aqui estás em segurança.

À volta dele, à volta de todos eles, ergueria com firmeza e solidez os muros da sua casa. Não havia outros que merecessem confiança.

No entanto, embora o abraçasse enquanto dormia, Joan sabia que, de manhã, teria de o deixar, de novo, livre. De manhã teria de fingir que ele não tivera medo e que aquela noite não existira.

Mas ao bebé, Mary, podia ter nos braços até se sentir apaziguada. Mary deixara de chorar e começava a crescer. Sentia-se bem nos braços de Joan e observava-a com os seus olhos escuros, alegres e inteligentes.

A minha cara será a primeira que conhecerá, pensava Joan, a tremer de alegria, de olhos mergulhados nos seus olhos pretos.

Agora conhecia o mistério da carne, doce ao contacto e sensitiva e inteligente. O espírito corria pelas veias e pelos músculos e dava-lhes vida. As mãos daquele bebé tinham agilidade, procuravam e exploravam, eram tenazes no agarrar. Pegar-lhe, era pegar numa vida palpitante e ávida. Em poucos días transformou-se num serzinho caprichoso e alegre, sempre a mexer, a estender as mãos, a querer. Aprendeu a rir depressa e a chorar se lhe recusavam qualquer coisa.

Depois de observar aqueles dois seres cheios de vida, Joan voltava-se, em silêncio, para Paul. Aprendera a viver em David quando ele queria e em Mary quando lhe apetecia. Paul também devia ter a sua hora. Mas a ele cuidava-o em silêncio. Agora já era capaz de se levantar e de dar uns passos desajeitados, através de um espaço curto. Mas duvidava que a conhecesse.        

- Joan! Joan! - gritava a voz de David, pela casa, inúmeras vezes ao dia.

Mary ria alto, ao vê-la aproximar-se, mas a Paul nada nem ninguém fazia sorrir, o seu corpo pesado esforçava-se obtusamente para se mexer. Quando, agora, lhe pegava, fazia-o em silêncio, embora não deixasse de o alimentar e de o tratar cuidadosamente. Paul era seu para sempre, e contudo nunca seria inteiramente seu. Antepassados estranhos e rudes haviam entrado na sua formação e não o tinham deixado ser completo. Joan tentara misturar o que para sempre ficaria separado. A própria carne do filho não era toda sua. Agora já não lhe beijava as mãos e os pés, como outrora, pois as mãos e os pés do filho começavam a parecer-se com os de Bart. Afastava firmemente tais pensamentos e apertava-o contra o peito, com o coração em pranto- És o meu filho! - mas a verdade é que ele não era todo seu. Joan sabia, agora, que só o amor podia gerar um filho que pertencesse inteiramente a quem o concebia.

u... Não tenho filhos, escreveu-lhe Roger Bair, quando Joan lhe falou da sua casa cheia de crianças. A minha mulher não é forte e não tivemos filhos.

Joan leu as suas palavras e largou a carta, muito depressa. Nunca lhe dissera que era casado e devia ter-lho dito. Sentiu-se momentâneamente desolada, ao saber que ele não era livre. Nunca lhe passara pela cabeça que não fosse livre, livre pelo simples facto de existir. Era sempre livre que o recordava, a voar no céu, como o vira naquela manhã. Parecia que tudo lhe fora tirado, que tinha de fazer a sua vida de fragmentos. Mas o bom-senso da mãe gritou, dentro dela: E tu, alguma vez lhe disseste que eras casada? Não dissera, mas ele vira-a grávida. Escreveu-lhe sinceramente, sem subterfúgios: Quero que saiba que deixei o meu marido. Contou-lhe tudo e, depois, sentiu-se de novo em paz.

A dor passara. Ele era ele, estava vivo enquanto ela vivia também. Isso bastava. Nesse dia, no ponto onde o prado das traseiras da casa descia para um regato, Joan encontrou gencianas muito azuis. Nunca as encontrara tão tarde.

O pai de Rob aparecia constantemente em sua casa desassossegado, anelante pelos netos, mas constrangido porque eles lhe recordavam Rob e lhe causavam sofrimento. Não entrava na apaixonada vida escolar e de brincadeiras de David, nem na vida de crescimento diário de Mary. Esta virava a carinha do sorriso doloroso do avô e ria a Joan, porque Joan se ria com naturalidade e frequência. Inteligente, já sabia que fazia sempre Joan sorrir.

- Esta sua neta vai ser uma marota amiga de arreliar – disse Joan a Mr. Winters.

-Sim? Se a Mattie estivesse bem de saúde, levaria as crianças para passarem o dia connosco.

- Lamento que Mrs. Winters esteja doente - murmurou Joan mas sem deixar de observar disfarçadamente Mary.

A pequenita olhava, admirada, para as suas próprias mãos e movia-as, para úm lado e para outro. De súbito, palpou-as, cuidadosamente e com um ar crítico, e Joan riu-se. Não queria perder um momento do desenvolvimento de Mary. Nada importava, na realidade, senão aquele átumo de gente, a investigar o universo das suas próprias mãozinhas.

O pai de Rob murmurou, hesitante:

- Ela anda preocupada, diz que não devias tomar conta das crianças...

-Mas eu tomo conta delas.

Esqueceu Mary e as suas mãos e olhou vivamente para o pai de Rob. Chegara o momento que sempre soubera que chegaria.

Esperou que as palavras se formassem na língua de Mr. Winters.

- Ela... ela pensa que não devias... Teve conhecimento da tua situação.

-Foi o senhor que lhe disse?

-Não. Ouviu falar, na aldeia. Mexericos. Um dia chegou a casa, da reunião missionária, e perguntou-me. Disse-lhe que já sabia e censurou-me por não lhe ter contado.

Joan levantou-se.  

- Vou falar com ela! - Depois hesitou e sentou-se de novo.

-Não, não irei. O senhor é que deve decidir. Olhe para mim, Mr. Winters! Acha-me capaz de cuidar das crianças?

Por agora, pedia, mas se ele se opusesse, lutaria pelo que considerava seu. As palavras estrangulavam-se-lhe na garganta, nauseavam-na. Sacudiu o cabelo para trás e disse, em voz alta:

- Pode fazer o que quiser, mas os pequenos são meus! Posso trabalhar para os sustentar, não se preocupe pela questão do dinheiro. Eles serão felizes, aqui. Olhe para o David!

David chegava da escola, de cabelos revoltos e faces ligeiramente coradas e já um bocadinho arredondadas.   

- Estou cheio de fome! - gritou.     

- Tens pão e doce de maçã na cozinha - respondeu-lhe Joan.

-Quero cumprir o meu dever para com os filhos do meu filho, Joan - afirmou docemente o pai de Rob. - Gosto deles, sobretudo á medida que vejo o David crescer...

Joan olhou, a pensar muito depressa. Tinha de achar qualquer coisa para o forçar...

-Se a Mattie considerasse seu dever, podíamos arranjar uma mulher respeitável, para ajudar... - Mr. Winter falava, falava, de olhos postos no candeeiro aceso.   

-Não compreende, Mr. Winters! Eles são meus!

Calou-se, desanimada, perante a sua estupidez. Oh, a estupidez daquela gente boa e teimosa! O seu corpo ardia-lhe, de cólera.

Levantou-se e sentou-se de novo. David voltava, a segurar uma grande fatia de pão e com a boca cheia. Gozou um prazer infinito, ao vê-lo. Preparara a comida, com cuidado, certa de que aquele momento chegaria. Depois recorreu a um estratagema.

Agarrou-lhe nos ombros e apertou a si o corpo nervoso do sobrinho. Mas ele não se abandonou, estava impaciente por sair outra vez.

-David, queres ir viver com a tua avó?

Ficaram a olhar um para o outro e o garoto, consternado, deixou de mastigar.

- Não vou! - afirmou, e Joan sentiu o seu corpo tornar-se rígido. - Não posso ir. Teria de andar muito para ir para a escola, para o ano. Vou tentar entrar para a equipa júnior de basebol.

- Nunca jogaste basebol - lembrou-lhe o pai de Rob, docemente.

- Atirei muitas pedras! - respondeu-lhe David, apaixonado.

-Nem imagina a quantidade de pedras que atirei à gente de Cito! E atirava bem!

       Joan teve vontade de rir, mas não o fez. Limitou-se a largá-lo e a dizer-lhe, com ternura:

-Não irás, descansa. Vai brincar.

- Não iria, de qualquer maneira - afirmou-lhes, muito sério. -Não iria porque esta é a minha casa.

- Não sei aonde foi o David buscar o génio que tem. O Rob era tão calmo - murmurou Mr. Winters.

- A Rose era teimosa como uma burra - disse Joan, triunfante. - É melhor deixá-lo comigo.

Entreolharam-se. Joan não desviou o seu olhar, como se o desafiásse. Que cara bondosa a de Mr. Winters! Que bondade de olhos azuis, sérios, inocentes e obstinados na sua bondade; Ela não era boa e não se importava com isso. Agora teria o que queria, tinha de fazer uma vida para si.

- Eles causar-lhes-iam muitos embaraços, a si e a Mrs. Winters, que tem tanto que fazer na igreja e na aldeia. Lembro-me como ela costumava...

- Diabos te levem! - praguejou ele, de súbito, e Joan riu-se.

Oh, era tão bom rir! Mr. Winters levantou-se, com um brilho de malícia no olhar.

- Não direi que és uma boa mulher. Abandonaste o teu marido, não vais à igreja e pràticamente raptaste os filhos do meu filho.

- Venha sempre que quiser -, - rogou-lhe joan. - Amanhã vestirei os pequenos e levá-los-ei a Mrs. Winters, para ela os ver. isto, claro, se o David não tiver de jogar basebol!

Já à porta, Mr. Winters voltou-se e disse-lhe:

Não tenhas medo da Mattie. Amansá-la-ei.

- Eu não tenho medo de ninguém - afirmou, tranquila.

O Outono avançou, frio, e chegaram as primeiras geadas. No

campo junto do prado, o milho dos seus vizinhos estava amontoádo e as abóboras esperavam, nuas e douradas.

Joan vivia dia após dia, do princípio ao fim de cada dia, abandonada. Nunca se levantava da cama, de manhã, a planear: Hoje       devo fazer isto e aquilo... E, à noite, nunca dizia: Amanhã...

Vivia cada hora que passava, como qualquer ave ou animal.

Cada hora trazia a sua necessidade, e ela satisfazia-a. Não tinha      a pressa ansiosa da esposa e mãe, não vivia confinada a nenhum círculo, a nenhuma rotina. Ninguém batia à sua porta a convidá-la a ir à igreja ou a qualquer reunião de mulheres. Como não percorria o caminho trilhado por todos, deixavam-na em paz, receosos do que não compreendiam. Também ninguém a censurava, ou, se censurava ela não ouvia nem se importava.

Tratava do que tinha a tratar na aldeia, tão decentemente como qualquer esposa, e eles intrigavam-se com essa decência e deixavam-na em paz. Só nunca entrava na igreja. Não era capaz.

Onde Deus existira, agora só existia silêncio. O seu espírito exigira tréguas com Deus.      

Um dia bateram à porta e, quando abriu, Joan viu o padre novo. Convidou-o a entrar, como convidava qualquer que lhe batesse à porta, e esperou que ele dissesse ao que ia.

O reverendo começou, em tom animado e alegre:

- Pertence à minha paróquia, Mrs. Pounder, e eu não tenho visto a sua cara na congregação.

Joan fitou-o, sem medo e com altivez, e ele recomeçou:

- Deus está sempre disposto a perdoar-nos, se O procuramos...

- A perdoar? - repetiu, claramente. - Que tem Deus a perdoar-me?

-Deus gaguejou, com o suor a molhar-lhe o lábio superior.

- Se existisse Deus - interrompeu-o Joan -, eu não Lhe poderia perdoar, a Ele.

O padre olhou-a, abismado, e apressou-se a sair. Ao vê-lo afastar-se, Joan pensou, divertida: Falei tal qual como Mrs. Mark teria falado.

Uma geração antes, não poderia viver assim, tão livremente, mas os tempos mudaram, as pessoas eram mais livres. O jornal da aldeia relatava estranhas coisas passadas nas grandes cidades, falava de homens e mulheres que viviam de qualquer modo, de embriaguez e negligência. Os automóveis começavam a ser construídos em linhas compridas e aerodinâmicas, eram velozes, abertos ao vento, e passavam pela aldeia cheios de rapazes e raparigas.

a andar tão depressa que não se via a cara dos passageiros. Eram manchas vagas de vermelho, verde, amarelo e azul, e os seus cabelos agitavam-se ao vento, livres.

Uma manhã, a velha Mrs. Kinney desceu do passeio. Sarah Kinney voltara atrás, para ir buscar um xale, e como se demorara a mãe irritara-se e gritara-lhe, esganiçadamente: Vou-me embora. Sarah!

Desceu o passeio, para castigar a filha, e um automóvel passou vertiginosamente à sua esquerda, derrubou-a e seguiu o seu caminho. Era um carro encarnado, comprido, e as caras jovens dos seus ocupantes olhavam em frente, apenas. Não parou. Miss Kinney, que saía a correr de casa, não viu mais nada. Gritou e correu para a mãe, que jazia na estrada, a morrer. Mas ainda teve tempo para dizer à filha, impaciente: Esqueces-te sempre de qualquer coisa!

- Confesso que sinto a falta dela - disse o Dr. Crabbe a Joan, no funeral. - Sinto-me roubado, palavra! Creio que ainda a conseguia ir aguentando mais dez anos.

Por detrás da mão enluvada de preto, Miss Kinney segredou, excitada:

- Volto para Hampu assim que refrescar a língua na memória!

Mas os dias passavam, uns atrás dos outros, e ela não ia.

Começarei a estudar imediatamente, dizia, alegre, mas depois esquecia-se e brincava no jardim, entre as folhas que caíam. Faziam-na rir, ao cair-lhe na cara e no cabelo branco. Sacudia a cabeça, para as soltar, e ria...    

Por tudo isso Joan ia e vinha, sem lhe custar. De resto, fora criança ali, em Middlehope. Os velhos estavam cada vez mais   velhos e continuavam a vê-la como uma criança. A Joan acabará por assentar, diziam, como se vissem uma garota traquinas. Mas ela era uma mulher, uma mulher que construía a sua vida do que encontrava à sua volta.

Quando entrava na loja para comprar alimentos, roupas ou sapatos, os caixeiros cumprimentavam-na com tanta delicadeza como a qualquer outra. Era verdade, no entanto, que Ned Parsons se mostrava um pouco circunspecto, embora sem deixar de ser amável.

-Em que te posso ser útil?

Nunca mencionava o seu nome. . Joan, pareceria muito íntimo agora que já era pai de dois filhos, e Netta nunca esquecia por completo que ele amara, ou quase, Joan Richards. A noite, na cama, censurava as mulheres que deixavam os maridos.

- Não há nada que o justifique! - afirmava. - Eu consideraria meu dever resignar-me, fazer o que pudesse. - E insinuava.

contra Joan: - Sei coisas acerca dela que nunca disse, nem sequer a ti. Acerca dela e de Martin Bradley.

- Pensava que o Martin se interessara, em tempos, por ti...

- Por mim? - gritava, furiosa, ás escuras. - Não, obrigada!

Não casaria com o Martin Bradley nem que ele fosse o único homem do mundo! Não lhe tocaria por nada nem consentiria que me tocasse. Arrepia-me, arrepiou-me sempre. Confesso que nunca compreendi a Joan Richards...

Mas Netta falava contra todas as mulheres, até contra a irmã do marido:

-A Emily tem um bom emprego na cidade, trabalha num jornal, não tem ninguém a seu cargo... , Podia mandar qualquer coisa ao Petie, mas nem sequer escreveu quando a Louise nasceu.

As pessoas são tão egoítas!

Ned uuvia-a. Netta falava de mais, não lhe podia responder a tudo. Deixara de responder havia anos. A sua mãe fora uma mulher tão calada. sempre a sorrir, a sonhar e a escrever as suas histórias! Tinham chegado a julgá-la pateta... Ned sentia-se satisfeito por nunca se ter mostrado tão impaciente com ela como a irmã. Enily dissera, à mãe: Não compreendo como pode esperar que algum editor aceite as baboseiras que escreve!

Mas Emily estava sempre do lado do pai. Irritava-se quando chegavam a casa, da escola, o almoço não estava pronto, o pai mexia desajeitadamente no fogão e a mãe dizia, do sótão: Vou já para baixo. Mas a maior parte das vezes não vinha e Emily irritava-se. Por isso saíra de casa assim que conseguira arranjar emprego.

Dir-se-ia que a irritava ainda mais o facto de ela própria desejar escrever histórias e só a fazê-lo se sentisse feliz, embora troçasse dessa inclinação.

Mas a mãe parecia não compreender, nunca, que a filha se zangava. Mostrava-se sempre calma, sorridente, e pensava constantemente: Creio que desta vez acertei... Sabia bem ter uma mulher calma e calada, em casa.

Queria ver riscado azul-claro - respondia Joan, alegremente, à sua pergunta.

- Ora vejamos... A Netta fez uns vestidos disto para a Louise...

- Oh, nunca viste os olhos da minha Mary! - A voz de Joan lembrava riso. - Aquele, aquele ali, da cor do céu!

       Estava exactamente como dantes, um pouco mais pesada, talvez. Mas era alta... Netta emagrecia cada vez mais e vangloriava-se: A joan Richards... Oh, esqueço-me sempre de que ela é casada! O cabelo da Joan Pounder está a ficar completamente grisalho. Eu não tenho um cabelo branco. Saio à minha mãe, que até aos sessenta anos também os tinha assim.

A cara lisa e rosada de Joan, sob o cabelo que começava cedo a encanecer... Ned embrulhou o tecido azul e disse-lhe, brusco:

-Aqui tens. Mais alguma coisa?

- Não, Ned, obrigada!

A sua voz lembrava música e Joan saiu da loja como se dançasse.

O Ned está a ficar careca, pensou Joan, com o embrulho debaixo do braço. Tem um ar dispéptico... A Netta será boa cozinheira? Recordou, com certa ternura, a cara jovem e encovada de Ned, a olhá-la amorosamente, enquanto tucava a sua guitarra. Parecia ter sido há muito tempo. Ned sentir-se-ia envergonhado, se soubesse que o recordáva assim. Mas ele fora assim e essa recordação era querida a Joan. Tudo quanto na vida lhe pertencera lhe era, agora, querido. Fizera tantos planos para o futuro, sonhara tanto! Quisera tudo. Agóra só queria tirar do mundo aquilo que lhe pertencia. Vivera sempre em Middlehope. Ouvia falar de greves e revoltas, noutras cidades, de marchas da fome, de homens presos por terem manifestado com excessiva liberdade o seu descontentamento. Se, em determinado momento, a vida tivesse seguido um rumo ligeiramente diferente, ela própria poderia ser, agora, um desses revoltados, desses famintos. Mas não acontecera assim.

Ao aproximar-se de casa, viu alguém sentado nos degraus de pedra do pequeno alpendre. Deixara David em casa, a tomar conta de Mary e de Paul, mas aquele não era David. Mais perto, reconheceu Frankie. Estava sossegadamente sentado, à sua espera, de mãos nas algibeiras. O ar do Inverno cortava. Joan correu para ele.

- O!, Frankie!

Não o via havia meses. Fanny aparecia irregularmente, dizia que estivera a trabalhar e levara o rapaz consigo. Havia quase um mês que não ia buscar o dinheiro do costume.

-Porque não entraste, Frankie?

-O seu menino disse-me que entrasse, mas eu achei que devia esperar aqui.

Crescera muito. Era muito mais alto e mais forte do que David, tinha pele acastanhada e olhos escuros, com umas pestanas compridas e lindas. Mas os lábios eram os do pai, pura e friamente fixos no suave oval do rosto. O seu corpo não era magro e anguloso como o de David, tinha membros roliços, com uma leve camada de carne. Joan observou-o, depressa, e disse:

-Julgava que tinha dado á Fanny dinheiro para te comprar roupa nova.

O que o rapaz trazia não lhe servía, as mãos saíam-lhe, desprotegidas, das mangas curtas e as calças apertavam-lhe as pernas.

-Há muito, muito tempo que não a vejo, minha senhora.

Foi-se embora e deixou-nos.

-Foi-se embora para onde?

- Disse que ia para Nova Iorque, arranjar trabalho. A fábrica fechou outra vez, há nova greve e não aceitarão gente de cor.

O Lem ainda ficou uma semana e um dia ou dois, mas depois foi ver se arranjava trabalho na fábrica de calças de Newville, onde constava que precisavam de gente.

-E tu, onde tens estado, todo este tempo?

- A espera... à espera de que ela voltasse. Ela disse-me que esperasse. Mas já se acabou tudo quanto havia de comer, em casa.

Joan olhava-o e ele retribuía-lhe o olhar, confiante e calmo, à espera. Saberia o que ela lhe era?

-As outras crianças?

- A Willa arranjou emprego para dançar, onde era a capeW.

Tem só quinze anos, mas parece ter mais. A Roberta, que é a mais velha, arranjou um tipo que a sustenta.

Continuava a olhá-la pacientemente, com a sua encantadora expressão melancólica.

- Não sei que fazer de ti... - murmurou, preocupada.

- Não, não esperava que soubesse... A Fanny está, também a dizer sempre o mesmo.

Baixou a cabeça e remexeu com o pé na erva seca. Foi então que Joan viu que estava descalço.

- Não trazes sapatos!

- Pois não. - A sua voz era aquiescente, humilde. - A Fanny disse que me compraria uns antes de nevar, mas não voltou. Olhou-a, como que a desculpar-se, e rnurmurou: - Daqui a um ano ou dois estarei bem, quando for suficientemente crescido para arranjar trabalho, a cantar, em qualquer lado. Só agora é que não tenho para onde ir.

Não se queixava. Aceitava com tanta naturalidade o facto de não ter casa e de ninguém o querer, que o coração de Joan sangrou. Em todo ele, como uma auréola, havia algo de Francis. Feição por feição, nenhuma era igual. O cabelo castanho de Francis era, nele, mais preto e ondulado, os seus olhos eram mais escuros e mais transparentes, a sua cabeça mais redonda e a sua cara mais cheia. Mas existia uma semelhança de expressão, de porte, no modo como estava, agora, a apoiar todo o peso na perna direita, de mãos nas algibeiras. Havia, até, uma semelhança com ela própria. Joan captou-a fugazmente, como se se visse, um momento, num espelho distante.

- Entra - disse-lhe, serenamente.

A antiga necessidade de fazer tudo quanto pudesse pelos que eram seus apoderou-se, de novo, dela. No mundo perturbado havia alguns seres, poucos, que eram seus. Recolheu Frankie em sua casa e fechou a porta, para não deixar entrar o frio.

David estava deitado no chão, a ler furiosamente, de rosto contraído como se fosse lutar e as mãos enfiadas no cabelo. Mary estava sentada ao lado dele, entretida com uma boneca. Num canto, numa espécie de cerca que improvisara para ele, estava Paul, encostado. Tinha seis anos e ainda não dizia uma palavra.

- Este é Frankie - disse, aos três, calma e resoluta. Foi para a cozinha e começou a preparar, ràpidamente, o jantar para todos.

Havia muito tempo - semanas - que não tinha notícias de Roger Bair. Semanas era muito tempo. Ele pedira-lhe que lhe mandasse um retrato e ela não tinha nenhum para lhe mandar. Não tirava o retrato desde que saíra da universidade. Em vez de satisfazer o seu pedido, escreveu-lhe a dizer como era e o que fazia. Consegue ver-me? Trinta e três anos, cabelo já um pouco grisalho e nunca cortado, um metro e setenta e três de altura, peso correspondente, olhos azuis- esverdeados, talvez um pouco severos. Olhe, não sei escrever acerca de mim própria!

Pedira a David:

-David, escreve num papel como eu sou. Uma pessoa quer um retrato meu e eu não tenho nenhum.

O rapazinho estendeu-se diante da lareira, com um lápis e um livro de apontamentos, olhou-a, muito sério, e escreveu durante quase uma hora, a morder a língua e a riscar, de quando em quando, uma palavra. Quando acabou, dobrou tudo muito bem e entregou-lhe.

- Posso ler? - perguntou-lhe Joan.

- Não me importo - respondeu, muito corado, e saiu de casa a correr.

Mas Joan não leu e disse a Roger que não lera: Pedi ao meu

David que fizesse um retrato escrito de mim.

Depois disso, não tivera notícias dele e não o podia esquecer.

A falta de carta atormentava-a, todo o dia, e, à noite, lembrava-se, com uma sensação de vazio, que não via a sua letra há muito tempo. Mas esperava. Esperava, e se demorasse muito mais tempo perguntaria a Francis o que se passava. No entanto, lia todos os dias o jornal, cuidadosamente, pois estava um bocadinho assustada. Entre os cabeçalhos que falavam da queda a pique dos valores da bolsa e de corridas aos bancos, procurava só uma secção: ACIDENTES DE AVIAÇÃO. Mas não vinha nada. Por fim, quase lhe bastou que não viesse nada.

Em casa, a sua vida dividia-se entre as quatro crianças. David era o eixo à volta do qual todos giravam, era o único a quem estava sempre a acontecer qualquer coisa. Cada partícula do seu ser era uma aventura. Joan chegava a andar todo o dia em sobressalto porque, à tarde, a equipa da escola de David jogaria com a de Clarkville. Apesar de pequeno, ele fazia questão de chegar aonde chegavam os grandes. Quando regressava a casa a gritar, eufórico, Vencemos, vencemos!, o coração de Joan suspirava, aliviado.

-Oh, David, estou tão contente!

Demo-lhes dez a zero! - gabava-se. - Dez a zero, Joan!

Era uma criança tão excitável, capaz de mergulhar em tais abismos de agonia e de sofrer dores tão pungentes, capaz de tais êxtases de alegria, que a casa toda vibrava com ele. Joan sentia-se parte dele. Durante algum tempo, mostrou-se um pouco constrangido com ela, até que lhe perguntou:

-Leu o que escrevi a seu respeito?

- Não - respondeu-lhe, a abanar a cabeça. - Mandei o papel dobrado, tal qual mo entregaste.

Sentiu-se aliviado e o constrangimento abandonou-o, como um fato que o incomodasse, por não ser dele. Não era tímido por natureza.

Passados momentos, Joan compreendera que ele Lhe queria dizer qualquer coisa e ajudou-o serenamente, para que falasse.

-És um grande conforto para mim, David. Não sei o que faria sem ti.

Lembrada dos poucos e preciosos elogios que recebera da mãe, prodigalizava os seus a todos eles. Até a Paul. aMuito bem, Paul. Agora vem a andar até aqui. Bonito menino, bonito menino. O filho dava uns passinhos, a cambalear, agarrado à sua mão, com a cara vazia voltada para ela, à espera dos seus louvores.

A ternura da voz de Joan soltou a língua de David:

-Queria di zer-lhe que só escrevi coisas boas a seu respeito.

-Virou-lhe as costas, mas Joan viu que as suas orelhas perfeitas unidas ao crânio, estavam escarlates.

- Obrigada, David - agradeceu, gravemente, tendo o cuidado

de não se mostrar comovida.

O garoto virou a folha de um livro que estava a ler e acrescentou, em voz baixa:

-Disse que desejava que fosse a minha verdadeira mãe.

Teve vontade de correr para ele e de o abraçar, de o acarinhar e adorar, mas conhecia-o. Por isso continuou a costurar e respondeu-lhe, apenas:

-És como se fosses meu filho.

Levantou a cabeça e olharam-se, profunda e gravemente.

- Creio que vou até lá fora um bocado - disse David.

- Há bolinhos quentes na lata - lembrou-lhe Joan.

Fora, então, aquele retrato que ele fizera dela e que ela mandara a Roger Bair! Tornou-se mais fácil esperar as notícias que demoravam tanto.

Andara preocupada, sem saber o que David pensava de Frankie, e via-o observá-lo em silêncio, a avaliá-lo.

- Porque é ele tão castanho, se não é chinês? – perguntou um dia, David, diante de todos.

- O Frank é americano - respondeu-lhe joan. - Há muitos americanos escuros. A mãe do Frankie era escura e o pai branco, é por isso que ele é castanho, tem o cabelo encaracolado e uma voz tão encantadora.

- Canta - ordenou David.

        Frankie abriu a boca e começou a cantar. A canção era abominável, mas a sua voz emocionou-a, mais uma vez. Jorrava ricamente da sua boca, nobre no seu volume, a dignificar a música ordinária. Escutaram todos. Até Paul, cujos olhos vagos procuraram a fonte da melodia. Mary estendeu os bracinhos, a pedir que lhe pegassem e a aproximassem daquela maravilha.

-Que mais sabes?

-Sei muitas coisas - disse Frankie, e começou a cantar outra vez. - A paz perfeita de Deus é como um rio...

Joan lembrou-se do pai.

-Quem te ensinou isso?

-Ouvi-a cantar, em South End. Alguns velhos cantam-na e a Fanny também, uma vez por outra, quando se sente bem disposta.

Joan também encontrara uma espécie de paz. E David amava Frankie. Canta qualquer coisa alegre!, pedia-lhe, às vezes, e Frankie, com os grandes olhos súbitamente maliciosos, cantava, brejeiro: E o lavrador disse ao gorgulho... David ouvia-o, a rir.

Adorava Frankie porque o fazia rir. Mas Frankie, sem o saber,

moldava-se ao gosto de cada um deles. Fazia David rir, fazia as vontades à imperiosa Mary, levantava Paul e incitava-o a andar...

Isso mesmo, meu valente!. elogiava-o. Joan não compreendia

bem o que ele era para ela, mas sabia que, se envelhecesse e enfraquecesse, David poderia andar a vaguear para além dos mares, Mary viveria a sua própria vida, à sua própria maneira, e Paul seria como nascera; mas Frankie voltaria, para ver se ela tinha alimentos e abrigo. Havia fidelidade, nele. Sentia-a, profunda e firme, no seu olhar calmo e encantador.

David e Frankie cresciam juntos, dormiam no mesmo quarto e frequentavam a mesma escola, mas Frankie andava muito atrasado. Uma tarde, David chegou a casa a sangrar, com o ar de quem acabava de brigar.

- Oh, David! - exclamou Joan, horrorizada, e foi a correr buscar água e ligaduras.

- Alguns rapazes ríram-se do Frankie - explicou o rapaz furioso. - Chamaram-lhe estúpido e preto e eu dei-lhes. Ele é apenas escuro, não é, Joan?

Joan olhou para Frankie e viu a sua expressão, o seu ar de quem acabava de se compreender, de se identificar.

-Deixa-me lavar-te, David. Volta-te e deixa ver como estás. O garoto voltou-se, tão furioso que nem percebeu que ela não lhe respondera.

Quando David subiu a escada para mudar a camisola suja de sangue, Frankie disse:

- Eu sei que sou negro, minha senhora.

Joan voltou-se para ele, impulsivament. Naquele momento, viu-o como se fosse Francis, esculpido em bronze. Inclinou- se e beijou-o na testa, comovida.

- És um dos meus filhos - disse-lhe.

Frankie enterneceu-se, tremeu, sequioso, mas não ousou aproximar-se de mais. Limitou-se a pegar-lhe na mão e a apertá-la contra a cara, que Joan achou quente e macia. Agora sentia aquela carne e achava-a tão doce e tão sã como qualquer outra carne que não lhe era estranha.

-Vai ter con o David enquanto eu arranjo pão com doce para os dois, sim?

Mas no fundo de tudo aquilo havia imobilidade, silêncio. Aquelas crianças eram quase o suficiente. Paul era desgosto quase suficiente. Vivia entre os outros, cego, trôpego, a murmurar indistintamente para as mãos, a devorar glutonamente a comida... O seu rosto plácido, de bebé, modificava-se, o vazio do seu cérebro começava a marcá-lo mais inexorável e ràpidamente do que a inteligência e a sabedoria teriam feito. Sim, Paul era quase desgosto suficiente. Quase, apenas: Joan começava a compreender que devia haver um desgosto mais profundo do que Paul, assim como devia haver uma alegria mais profunda do que o crescimento de David e de Mary, mais doce do que a voz de Frankie. Não chegavam, todos eles, para lhe dar a medida certa do seu sofrimento e da sua alegria. Havia qualquer coisa que deixara de se entretecer no fundo de si mesma, como se Roger tivesse deixado de viver. O silêncio era pior do que a morte: Nunca mais pudera suportar o silêncio. desde que abandonara a casa de Bart. Estar viva e viver em silêncio era mais significativo do que a morte. E agora os dias sucediam-se, intermináveis, e ela estava silenciosa. Começou a ter a sensação de que vivia numa ilha distante, longe de tudo quanto se podia ver e ouvir. Acima dela, no ar, à volta dela, nos mares, pessoas iam e vinhám, moviam-se e lutavam. Mas ela não ouvia nada. Fanny não voltava, Francis não escrevia, e até na aldeia havia silêncio. Os dias sucediam-se e ninguém se aproximava dela. Só Mrs. Winters a visitara duas vezes, para ver as crianças.

-Quero que conheçam a sua avó - dissera, mas de ambas as vezes olhara, estupefacta, para Paul. - Meu Deus, Joan, não podes ter aqui uma criança assim!

Joan pegara-lhe, limpara-lhe a boca descaída e endireitara-lhe a roupa. Suportava corajosamente a dor, consciente de que ela se repetiria, vezes e vezes. Agora era o David que perguntava, admirado, Porque não anda o Paul?, ora era Mary que lhe tirava os brinquedos, pois já compreendera que Paul não se sabia defender.

SóFrankie nunca parecia surpreendido. Há muitas crianças atrasadas como o Paul, em South End... Estava sempre atento a ele, a defendê-lo, tirava docemente os brinquedos a Mary e devolvia-lhos.

-Parece-me que não lhes faz mal nenhum habituarem-se a ver   crianças como o Paul - respondeu Joan, calmamente, a Mrs. Winters. - Fazem parte da vida.

-Se eu tivesse saúde, não precisarias disto. Mr. Winters foi sempre tão fraco e, agora, é mais forte do que eu. - Levantou um braço e perguntou: - Lembras-te como eu tinha os braços brancos e gordos, Joan?

Joan olhava tristemente a carne amarelada e velha e esquecia o que Mrs. Winters dissera de Paul.

-Já consultou o Dr. Crabbe?

- Por nada deste mundo o consultaria! Não tenho confiança nele, nunca tive. Foi sempre contrário à gemada que obrigo Mr. Winters a comer, diz que não lhe faz bem nenhum, se não a come de vontade. É unna ideia contrária à religião. pois todos temos de fazer coisas de que não gostamos. E a vida.

Joan sorriu. Mrs. Winters estava velha e era inútil contradizer os velhos, cuja voz emudeceria em breve. Mas ela sabia que a vida só começava, na realidade, quando se fazia o que se queria fazer. Ela queria ver Roger Bair, falar-lhe. Escrever já não chegava.

- Bem, vou andando. O David parece-me enfezadito, muito magro. Ontem vi-o, na rua.

-Nunca será gordo. Arde por dentro. Olhe a Mary!

Olharam ambas a Mary, que mordia um boneco de borracha, e quando as viu olhá-la sorriu, com umas covinhas encantadoras nas faces, e começou a palrar. Mrs. Winters capitulou.

-Sim, está gordinha. Tens sabido tratar dela, Joan. Mas a minha Ellen também era assim, saudável, e numa semana morreu. Pneumonia. Não podemos prender o coração a nada, neste mundo - afirmou, e desviou o olhar da pequenita.

Joan não lhe respondeu, mas dentro de si gritou: Pois eu prenderei o meu coração! Para que serve viver se não prendermos o nosso coração? Viver apenas para evitar a dor não é viver.

Esperava sempre que Mrs. Winters a censurasse por ter deixado o marido. Mas em vez disso, Mrs. Winters disse-Lhe:

-Já não vou à igreja, Joan. Não posso suportar a mulher do reverendo, uma mulher fria e autoritária, sempre a dar sentenças em tudo, sobretudo acerca da sociedade missionária. Cheguei a dizer-lhe: Não tive um filho missionário e não morreu, com a minha nora, mártires em terra de pagãos? Estas crianças não seriam órfãs se me tivessem dado ouvidos. Bem, Joan, aconselho-te a dar ao David óleo de fígado de bacalhau. E, no teu lugar. não quero magoar-te, Joan, mas, no teu lugar, internava aquela criança. Não é justo.

Depois de Mrs. Winters sair, Joan abraçou demoradamente o filho. Não se podia levar o desgosto para longe e esquecê-lo. O desgosto vivia enquanto o coração vivesse.

David irrompeu pela casa dentro, a gritar:

- Olá, Joan! - e foi à cozinha.

Frank não tardaria, também. De facto, o garoto entrou logo a seguir e sorriu-lhe, em silêncio. Seria, de facto, tão parecido com o pai como ela pensava? As vezes assustava-se, ao pensar que alguém da aldeia o visse e notasse a sua semelhança com Francis Richards. Mas quem se lembraria, agora, de Francis? Já ninguém pensava em Francis, ninguém, excepto ela.

Se foi Roger quem a avisou primeiro ou se foi ela que viu, primeiro, a notícia da morte de Francis, pareceu ter pouca importância. A notícia era apenas um pequeno parágrafo: um avião perdera-se de modo curioso, tripulado por um homem que, parecia, pretendera perdê-lo, um indivíduo chamado Francis Richards.

Joan ficou parada, com o jornal na mão, a olhar para o nome.

Francis Richards não era um nome muito vulgar, mas mesmo

assim era-o o suficiente para que não perdesse a cabeça. Devia telegrafar... Mas a campainha da porta tocou, nesse momento, e ao mesmo tempo bateram com tanta força que Joan largou o jornal e correu à porta. Roger telegrafara-lhe primeiro, evidentemente. . Mas não, era ele próprio! Reconheceu-o logo, não esquecera um único traço do seu rosto, do seu corpo.

- Chego a tempo? - perguntou, apressado, e ela fitou-o, surpreendida. - Quero dizer, já leu o jornal da manhã?

Era, então, Francis!

-Já, já li.

Roger entrou, como se a casa fosse sua, e sentou-se defronte dela. Viera comunicar-lhe a morte de Francis. Dali a momentos, muito em breve, teria importância o facto de Francis ter morrido.

Mas agora não, ainda não.

- É verdade?

Roger tirara o chapéu e agora despia o sobretudo. Joan nunca o vira vestido normalmente, naquele fato de fazenda áspera, acas   tanhada.

- Vim dizer-lhe... Quem me dera ter estado presente! O seu irmão era um indivíduo tão estranho! Em terra nunca parecia ele próprio, tornava-se antipático. Mas no ar era absolutamente diferente. - Falava com nervosismo e limpava a testa a um lenço de linho, também acastanhado. - No ar, algo mudava, nele. Vi o milagre acontecer diversas vezes, sempre que voámos juntos.

Roger falava-lhe de Francis e ela devia ouvi-lo. Não era justo que olhasse, agora, para os seus olhos, para a sua boca e para as suas mãos...

-Corria tudo muito bem, mas ninguém gostava dele. Creio que nunca ninguém teve provas da sua participação, de facto,

nas complicações que tivemos acerca dos ordenados, mas ele era daqueles indivíduos que qualquer consideraria um descontente. Espero não estar a magoá-la!

Olhou-a bondosamente e Joan abanou a cabeça.

- Eu gostava dele - prosseguiu Roger Bair. - Gostava dele porque sabia como era quando voava.

Roger falava-lhe, mas de longe, como se nunca se tivessem escrito, como se as suas cartas não se tivessem cruzado cem vezes.

- Não esteja triste - suplicou-lhe, a sua cara aproximou-se muito da dela e Joan viu-lhe as rugas em redor dos olhos, a pele fina, bronzeada, e os dentes fortes e certos. - Nunca ninguém saberá exactamente o que sucedeu. Não estava ninguém perto dele. quero dizer, o seu irmão não tinha nenhum amigo íntimo. Os homens viram-no chegar ao aeródromo ao lado de uma mulher, que lhe dizia qualquer coisa.

-Mas, querido, não te disse que não consigo arranjar emprego? Leva-me contigo, para onde moras. Como te encontrei? Tenho as minhas maneiras. Não, eu digo-te a verdade. Perguntei a um camponês.

-Larga-me! Tira a mão do meu braço!

Mas ela não o largava, ela estava ali, ainda bonita. Como era possível que mulheres daquelas se conservassem bonitas tanto tempo? Senhor, se ao menos ela fosse gorda, feia, velha! Mas era bonita. Sentia o seu seio contra o braço. Nenhuma mulher branca tinha seios tão maravilhosos. Afastara o casaco para que ele a pudesse ver melhor. Queria continuar a odiá-la. Mas não, em vez disso voltava a desejá-la, e quando a desejava pensava na mãe e não a podia possuir, não se podia fartar; Se ao menos uma vez conseguisse fartar-se, talvez se libertasse para sempre.

Costumava sentar-se na igreja ao lado da mãe. Era capaz de estar calado muito tempo, a sentir o seu calor e o seu perfume, a ouvir o órgão e a voz cheia e intensa do pai.

- Vai-te embora! - gritou-lhe, e começou a andar o mais depressa que podia.

Mas ela dizia qualquer coisa, agarrada a ele, sem o largar.

Desprendia-se do seu corpo um cheiro quente, íntimo. Começou a correr. Mas ela dizia qualquer coisa.

- E o teu filho, Frank? Há o Frankie.

Parou.

- Quem?

- Miss Joan não te disse? Fizeste-me um filho, Frank. Já é quase do meu tamanho.

- Joan?

- Tem-me ajudado a criá-lo, este tempo todo.

- Mentes!

- Volta comigo e olha para ele! E a tua cara escrita e escarrada, Frank! A tua irmã sabe, toda a gente sabe, se o vir bem...

Agora podia repeli-la, agora tinha de a repelir. Correu pelo campo dentro, onde o avião esperava, o pequeno avião onde aprendera a voar. Estava alguém a entrar, alguém que andava, agora, a aprender.

- Tem de ser! - gritou, saltou para a cadeira e agarrou os comandos.

Lá estava o motor a roncar. Agora deixara o solo. Subia. Subia mais e mais, para o céu!

Roger agarrava-lhe as duas mãos.

-O avião caiu como um pássaro que levasse um tiro, às voltas sobre si mesmo. Ninguém saberá o que sucedeu. Francis morreu queimado.

A sala estava silenciosa. Os dois rapazes tinham ido para a escola e Mary e Paul dormiam. Joan teve vergonha das suas mãos, ásperas de trabalhar na horta. Francis morrera queimado porque Fanny o encontrara. Tentara desesperadamente conservá-los afastados. Se Fanny voltasse, dír-lhe-ia: Nunca mais a quero ver. Tomei conta do pequeno, mas nunca mais a quero ver nem oúvir.

Não sofra assim, calada. Fale comigo, desabafe. Acariciava-lhe as mãos, tinha de as tirar.

- As minhas mãos estão tão. tão grosseiras - murmurou, vagamente.

- E porquê, porque estão assim? - perguntou, a olhá-las ternamente.

-Sou eu que cultivo a maior parte dos vegetais que consumimos. As crianças comem muito.

-Não ganha o suficiente com a música?

- Oh, sim! - apressou-se. a afirmar. - Trabalho nela diversas horas por dia, vale a pena. Mas tudo ajuda. Além disso. gosto de cultivar a horta. O chão é bom.

Roger continuava a olhar para as suas mãos, mas de súbito largou-as, como se tivesse pensado em qualquer coisa, e começou a procurar o cachimbo na algibeira.

- O seu irmão ajudava-a de alguma maneira? - perguntou, no mesmo tom que empregara antes de lhe pegar nas mãos. Quero dizer, financeiramente?

- Não. O Francis nunca me ajudou em nada. Não podia.

Roger acendeu o cachimbo e começou a fumar, enquanto olhava à sua volta.

- É aqui que mora. Tenho pensado muitas vezes como seria á casa onde viveria, com todas as suas crianças.

- É aqui que moro.

Devia olhá-lo cuidadosamente, reparar bem em todas as suas feições, nas suas mãos, no seu cabelo e na sua cabeça, na forma da sua boca e na cor dos seus olhos. Era ele. Afastou Francis do pensamento. Francis devia esperar, agora que estava morto. Devia esperar que ela vivesse aquele momento. Em breve Roger partiria.

Já se levantava, já vestia o sobretudo e pegava no chapéu.

-Tenho de ir. Promete que não sofrerá muito? Joan abanou a cabeça, sem sorrir, e respondeu-lhe:

-Estou muito habituada aos desgostos, mas nem por isso deixarei de sofrer. Lembro-me dele criança.

- Tenho de voltar - disse, bruscamente, Roger. Tinha uma voz muito serena e bondosa, a voz de quem era habitualmente amável.

- Volta? - perguntou Joan, a sorrir.

- Sim. Tenho de voltar, para ver. como passa. Está aqui muito só.

Joan abanou a cabeça, sem poder falar, e ele partiu.

As suas cartas recomeçaram, agora sem subterfúgios. Estou habituado a ver mulheres desamparadas, dependentes dos homens, e você vive sòzinha, nessa encosta, e não tem medo.

Não vê que não estou sòzinha? Tenho tudo. Roger começou a escrever-lhe acerca da mulher, serenamente, sem se desculpar por ter falado tão pouco dela. E uma criatura fraca -você faz duas dela!-, uma mulher frágil que parece uma criança, enquanto não lhe vemos a cara. Foi sempre como viver com uma criança pequena.

Joan largou a carta. Queria lembrar-se de Francis, recordar que tinha um desgosto novo. Tinham mandado as roupas dele para ali, para aquela casa onde nunca entrara, mas que era a sua porque ela lá estava, porque era ela a única a saber se ele vivia ou morrera. Escolheu as suas poucas roupas e os seus livros. Enconntrou dois volumes pequenos que falavam de revolução, um acerca de Marx -lembrava-se de ouvir falar do seu nome na universidade, havia muito tempo- e outro acerca da revolução russa. Sim, os jornais falavam agora muito da Rússia. Era tudo tão confuso! Nada era claro, excepto os dias da sua vida, que começavam todas as manhãs e terminavam quando a noite chegava. Encontrou entre os livros uma fotografia da mãe, mas mais nada, nenhuma carta, nada que sugerisse como ele vivera. As suas roupas eram baratas e velhas, excepto as de voo, que comprara de boa qualidade e pelas quais pagara bom dinheiro.

Era estranho como a dor se despia de angústia, quando a mocidade passava! A pungência da dor desaparecera, o desgosto era agora apenas uma moinha profunda e irritante. Ou seria porque, em virtude de ter sofrido tanto por causa de Paul, esgotara a sua capacidade de sofrimento e agora já nada a apunhalava? A morte já não lhe parecia uma imensidade de dor, desde que começara a considerá-la um meio de libertar Paul. Não havia outra cura para o filho. Por causa dele, a morte deixara de ser um punhal. Quando alguém morria, libertava- se. Francis libertara-se, estava, finalmente, livre de Fanny, livre de si próprio. Não, a morte já não a feria.

Compreende que nunca poderia deixar minha mulher? escrevia Roger. É uma criatura tão indefesa, tão desamparada! Mas você é muito forte, capaz de suportar a vida como ela é.

Guardou a carta e começou a chorar. Chorou alto, no meio da manhã radiosa de Primavera, pois agora, sim, estava mortalmente ferida. Como era forte, tinha de suportar tudo, como era forte, tinha de desistir, de novo, do que queria. Escreveu-lhe desesperadamente, cega pela sua dor insuportável, e ele respondeu-lhe A ela não a posso fazer sofrer. Deve a gazela sofrer porque é a gazela, porque não nasceu leão?

Na sua angústia, regressou ao silêncio. Trémula, alimentava as crianças sem saber o que fazia e andava, cega, pela casa.

- Já não se ri, Joan! - exclamava David, admirado. - Desejava que se risse outra vez.

Silenciosamente, Frankie observava-a, com os seus grandes olhos melancólicos.

E deve o leão sofrer porque é leão?, perguntou, irada, a Roger. Sofre mais, porque é mais forte, também, para sofrer. Não escrevamos mais, compreendo que não é livre.

Acabaria tudo. Fechou a carta e apressou-se a metê-la na caixa do correio. Queria acabar com tudo de uma vez, estava magoada até à medula do seu ser. Ele conseguia feri-la como a morte não a feria, como nem sequer Paul a feria. Depois de expedir a carta, regressou a casa. Contentar-se-ia com o que tinha; estendê-lo-ia até ser suficiente.

Sorriu, resolutamente. Paul caminhava de cadeira para cadeira, agarrado, a girar à volta da mesa, arquejante do esforço. Mary já andava, ligeira e viva. Estavam todos em casa, na sua casa. David, de testa franzida, às voltas com a aritmética, e Frankie, na cozinha, a preparar-lhe sossegadamente o jantar. A sua maneira delicada, conservava-se afastado dos outros, conhecia-se e não era nunca exactamente como eles, prestava-lhes pequenos serviços sem que lhos pedissem e evitava sentar-se com eles.

- Senta-te, Frankie - dizia-lhe, todos os dias.

- Sim, senhora, sento-me já. - Adiava sempre que podia. De súbito, Paul viu-a. Pela primeira vez na sua vida, viu, realmente. Levantou a cabeça, ao ouvi-la chegar, deu três passos cambaleantes ao seu encontro, agarrou-a pelos joelhos e olhou-a. Nas névoas cerradas do seu cérebro qualquer coisa se fixou, por instantes. e Paul falou:  

- Mãe...   

Foi a sua primeira palavra. Joan estremeceu, incrédula e louca de alegria, e fitou o rosto erguido do filho. Mas ele conhecia-a, Paul conhecia a sua mãe! Caiu de joelhos, abraçou-o e começou a rir e a soluçar.

-Filhos, David, Frankie, ouviram o Pául? Chamou-me!

Paul puxava as contas azuis que ela trazia ao pescoço, o colar que Mr. Winters lhe dera, havia tanto tempo, e que pusera naquela manhã, porque ficava bem com o seu vestido azul.

Correram todos para ela, David aos gritos, Mary contagiada pela alegria do barulho, Frankie a sorrir.

       - Diz outra vez, Paul! - gritou David.

- Diz, meu amor - suplicou Joan. - Mais uma vez... Mãe...

mãe... Diz, Paul! - Desejava ardentemente ouvir outra vez a palavra, repetir o momento.

Mas Paul escorregara para o chão e brincava com o colar, como se não a ouvisse. O momento passara.

- Mas ele falou uma vez! - disse Joan, apaixonadamente, levantando-se. - Ouvi a sua voz uma vez, mesmo que ele nunca mais fale.

Paul murmurava ininteligivelmente, a brincar com as contas, e Joan virou-lhe as costas.

-David, precisas de ajuda na aritmética? Sim, Frankie, torra o pão. Comeremos torradas e beberemos leite, ao jantar, todos.

Paul falara-lhe, realmente. Na sua grande desolação -Terminei o que existia entre Roger e mim -, brilhava uma luzinha.

Paul falara-lhe.

- Pensou que a deixaria fugir-me assim? - Roger estava ali, Joan abrira a porta, de manhã; e encontrara-o. - A sua carta chegou ontem à noite. Ela e eu estávamos sós e eu vi-a como sempre soube que ela era, como sempre a considerei no meu coração, mas sem querer que os meus olhos vissem. Você obrigou-me a vê-la.

Apertou-lhe os ombros, com as mãos. Mary parara, ao fundo da sala, surpreendida. Joan viu os olhos da pequenita, espantados com a invasão da casa por aquele desconhecido.

- Roger, não é assim tão fácil.

-Não, não é assim tão fácil. É tão difícil que tem de me ajudar a saber o que devo fazer. Ela está aqui. Trouxe-a.

- Roger! - exclamou, consternada. - Que lhe disse?

-Nada, a não ser que era irmã de um dos meus melhores pilotos, que morrera, e vinha saber como iam as coisas. Venha - ordenou, brusco.

Joan seguiu-o pelo caminho estreito, até à cancela. Na estrada, estava um automóvel pequeno e baixo e, sentada nele, a mulher de Roger.

- Millicent, esta é a irmã de Francis Richards. Eu disse-te. Joan estendeu a mão e sentiu um contacto frio e leve.

- Como está? - perguntou uma voz clara e bonita.

- Não quer entrar? - convidou, a olhar o rosto que Roger amara muito, em tempos.

Estive muito apaixonado por ela, confessara-lhe. Era muito novo. Sim, era, de facto, uma criatura desamparada. A cara bonita, que começava a envelhecer, olhou para Roger, numa interrogação, sem saber que fazer.

- Sim, apeia-te e entra - disse-lhe, e abriu a porta, para a ajudar.

Millicent Bair subiu o carreiro empoleirada nos saltos altos dos sapatos elegantes, agarrada ao braço do marido. Joan caminhava atrás deles, sozinha. Nunca na sua vida se agarrara a ninguém como aquela mulher fazia, nunca.

Sentaram-se os três, em casa. Instintivamente, Joan ofereceu à frágil criatura a cadeira mais confortável.

- Não quer sentar-se? - perguntou, hospitaleira.

Aquela era a sua casa e aqueles os seus hóspedes. Casualmente, a figura esguia, de vestido azul demasiado juvenil, sentou-se na cadeira forrada de cretone, na cadeira de Joan. Esta sentou-se numa cadeira de espaldar direito e, sentiu-se enorme e desalinhada ao lado daquela minúscula perfeição. Roger amara aquela porcelana, a profunda paixão de Roger fora dedicada àquela mulher infantil... Joan olhou-o e viu-o à espera, melancólico.

A mulher olhava-o, com leve ansiedade.

- Não creio que te sintas bem, Roger... Desde ontem que o acho transtornado... - Fitava-o, com os seus bonitos olhos azuis, de boneca de louça. - Não quis que ele viesse, esta manhã, mas teimou... - Riu-se, com um coquetismo cediço. - Tenho de o apaparicar um pouco. Nunca tive filhos, Mrs... Mrs...

Joan não disse como se chamava. Não importava.

- Faz bem em cuidar dele - disse, muito grave.

Claro que Roger não podia nunca deixar aquela criaturinha, aquela mulherzinha indefesa. Os fortes é que deviam sofrer.

- Tenho os meus quatro pequenos - disse, de súbito, em voz alta.

- Deve ser um grande conforto - murmurou a voz fria.

Mas Roger continuava calado, envolto no sobretudo castanho

e de chapéu na mão. Era verdade, estava com mau aspecto. Tinha círculos profundos, debaixo dos olhos, e a pele macilenta. Meu amor!, gritou-lhe Joan, no seu coração. Como se a tivesse ouvido, Roger levantou a cabeça e fitaram-se.

- Vamo-nos embora, Millicent - disse Roger, de súbito, deu-lhe o braço e conduziu-a para a porta.

Voltou a cabeça, quando já se dirigiam para o automóvel, e declarou:

- Quero ver essas quatro crianças, qualquer dia. Voltarei para as ver. Cuidado, Millicent; o teu vestido prendeu-se na porta.

Soltou-lhe a saia, cuidadosamente, e ajudou-a a entrar no automóvel.

- Adeus - murmurou Joan, e voltou para casa e fechou a porta.

Sentou-se numa cadeira e esperou pelo ruido do motor, a arrancar. Mas não o ouviu.

A porta abriu-se e ele voltou, fechou-a e ajoelhou-se a seus pés, com a cabeça no seu colo. Mas não, não lhe tocaria na cabeça, nos ombros. Tornou-se rígida, a fugir-lhe, enquanto no pensamento se repetia sempre a mesma ideia: Nunca ninguém teve cuidado comigo. Desejava ser fraca e pequena, para que alguém me chamasse rapariguinha. Que tola era, gritou, furiosa, dentro do peito. Que tola, ao imaginar que alguém poderia chamar rapariguinha a uma criatura enorme, como ela!

- Compreendo - disse, em voz alta. - Claro que compreendo que não possa deixar uma criaturinha como ela.

Começava a compreender, lenta e pacientemente. Para Roger, deixar Millicent seria o mesmo que ela abandonar Paul. Compreendia. Porquê, então, toda aquela amargura que crescia dentro de si, que lhe amargava na língua, como fel?

- Que pena - disse, secamente -, que pena as mulheres não nascerem todas pequenas, bonitas e fracas! As mulheres não precisavam de mais nada senão de mãozinhas e caras bonitas, de corpos delicados e esguios.

-Não percebo o que quer dizer.

Roger levantou a cabeça e olhou-a, mas Joan riu-se, sempre a fugir-lhe.

-Quero que volte para ela, que continue a cuidar dela! Mas ele olhava-a como qualquer das suas crianças a poderia olhar se ela se tornasse, de súbito, ríspida, ela que nunca o fora. Estava assustado porque o repelia.

- Voltei para lhe dizer que não suportaria nunca mais a ver, agora! Longe de si, não existe vida para mim.

O seu corpo alto estava absurdamente dobrado aos seus pés. Joan reparou que tinha o cabelo grisalho nas têmporas, como o seu. Amava-o, podia trazê-lo para aquela casa como trouxera as crianças. Um dia talvez ele viesse, se não o repelisse agora, um dia talvez viesse, passo a passo, a seguir o seu próprio caminho.

- Preciso de si! - gritou-lhe Roger, e Joan deixou de resistir. Agarrou-lhe na cabeça e apertou-a contra o peito. Não havia mal nenhum em apertar assim a sua cabeça contra o peito, não havia mal nenhum em sentir aquele alívio profundo.

-Oh, como tenho precisado de si, da sua força! Tenho-me sentido tão cansado! - murmurou, em voz entrecortada.

- Eu sei, eu compreendo... Cale-se, eu sei...

Roger suspirou, como uma criança a abandonar-se ao sono.

Fechara os olhos, os vincos tinham desaparecido, por momentos, do seu rosto. Repousava nela, apoiava-se na sua força.        

- Roger! - chamou Millicent, do carro.

Levantou-se de um pulo, ao ouvir aquela voz, e os vincos voltaram a marcar-lhe a cara, à volta da boca e dos olhos.

- Tenho de ir...

- Vá, sim.

-Então, Roger, não vens?

Roger afastou aquela voz mimada; Joan viu-o afastá-la do meio deles e pegar-lhe nas mãos.

- Isto não é o fim, Joan. É o princípio. Não sei qual será o fim, mas hei-de encontrá-lo e voltarei.

Continuava a agarrar-lhe nas mãos. Joan acenou com a cabeça, a sorrir, e ele largou-lhas, devagar, e depositou-lhas no colo.

Partira, agora só restava a Joan aquele momento em que sentira a sua cabeça contra o peito. Ainda a sentia, ainda sentia no seio os contornos da sua cara, como um estigma de amor. Ele precisava dela. Isso bastava para que o amor começasse; fosse qual fosse o fim.

Oúviu Paul choramingar, acordado, levantou-se e foi para junto dele. Os rapazes também não tardariam a chegar da escola.

Já ouvia o Frankie, a cantar, na estrada: Canto com uma espada na mão, Senhor...

Espreitou à porta, ao passar. O carro partira e os dois rapazes caminhavam pela estrada, de mãos dadas, ao compasso da    voz de Frankie, que tirara os sapatos e as meias e caminhava descalço. O sol da Primavera banhava-os de luz. Joan parou, um instante, e começou a cantar com eles, em voz clara e fresca:

Canto com uma espada na mão, Senhor...

No fim de contas, não precisava de se apressar. Era apenas meio dia.

 

                                                                                Pearl S. Buck  

 

                      

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