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HADJI MURAT / Leão Tolstói
HADJI MURAT / Leão Tolstói

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Aconteceu no fim do ano de 1851.
Numa tarde fria de Novembro, Hadji-Murat entrou no aúl 1 Mahket, o dos tchetchenos belicosos, sobre o qual se levantava o fumo aromático de kiziak 2 queimado.
Há uns instantes silenciou-se o canto tenso do muezim e no montanhoso ar puro impregnado do odor de fumo do kiziak ouviam-se nitidamente, no meio do mugido das vacas e do balido das ovelhas, que recolhiam às sáklias 3 coladas entre si como favos, as vozes guturais dos homens a discutirem e as vozes femininas e infantis vindas de baixo, dos lados da fonte.
Este Hadji-Murat, famoso pelas suas façanhas, era o naíb 4 de Sha-mil e nunca se metia a caminho senão com o seu estandarte e acompanhado por algumas dúzias de murides 5 cavalgando à sua volta. Agora, porém, coberto de bachlik 6 e burka 7, da qual se assomava a espingarda, ia acompanhado apenas por um murid, tentando dar o menos possível nas vistas e perscmtando cautelosamente, com os seus rápidos olhos negros, as caras da gente local que encontrava pelo caminho.
Chegado ao centro do aúl, Hadji-Murat não meteu pela rua que desembocava na praça mas virou à esquerda, para uma viela estreitinha. Ao acercar-se da segunda sáklia, cavada na parede do monte, parou, lançando olhares à sua volta. Sob o alpendre não havia ninguém, mas no telhado, por trás da chaminé recentemente rebocada de barro, estava deitado um homem coberto com um tulup 8. Hadji-Murat tocou com o cabo do azorrague, ao de leve, no homem deitado e estalou a língua. Debaixo do tulup soergueu-se um velho, de barrete de noite e um bechmet 9 coçado e roto. Os olhos do velho, privados de pestanas, estavam vermelhos e húmidos, e pestanejava para os despegar. Hadji-Murat pronunciou o habitual «Salam aleikum» e descobriu a cara.

 


 


- Aleikum salam - disse o velho ao reconhecer Hadji-Murat e, sorrindo com a boca desdentada, endireitou-se nas pernas magras e enfiou os pés nos tamancos de saltos de madeira que pusera junto à chaminé. Já calçado, enfiou devagar as mãos no encarquilhado tulup sem forro e começou a descer do telhado, de frente para a escada. Enquanto se vestia e descia, o velho não parava de baloiçar a cabeça no pescoço fino, enrugado e bronzeado, e de mascar com a boca desdentada. Chegado ao chão, pegou, hospitaleiro, na rédea e no estribo direito do cavalo de Hadji-Murat. Porém, o murid hábil e forte apeou-se de um salto e, afastando o velho, substituiu-o.

Hadji-Murat apeou-se também e, coxeando ligeiramente, entrou no alpendre. Da porta saiu rapidamente ao seu encontro um rapazito dos seus quinze anos que, surpreendido, espetou nos recém-chegados os olhos brilhantes, negros como a groselha madura.

- Corre à mesquita, chama o teu pai - mandou o velho e, ultrapassando Hadji-Murat, abriu-lhe a porta leve que rangeu. Quando Hadji-Murat estava a entrar, uma mulher de meia-idade, fina e magra, de calças azuis e bechmet encarnado por cima da camisa amarela, surgiu de uma porta interior carregando uma braçada de almofadas.

- A tua visita traz-nos felicidade - disse ela. E, dobrando-se, começou a encostar as almofadas à parede da frente para o convidado se sentar.

- Que os teus filhos estejam salvos - respondeu Hadji-Murat, tirando a burka, a espingarda e o sabre, e entregando-os ao velho.

O velho pendurou com cuidado a espingarda e o sabre num prego ao lado das armas do dono de casa, no meio de dois alguidares grandes que brilhavam na parede rebocada, lisa e impecavelmente caiada.

Hadji-Murat ajeitou atrás das costas a pistola, dirigiu-se para as almofadas dispostas pela mulher e, fechando a tcherkeska10 no peito, alapou-se nelas. O velho sentou-se sobre os calcanhares descalços em frente do convidado, fechou os olhos e levantou as mãos de palmas para cima. Hadji-Murat fez a mesma coisa. A seguir, ambos leram a oração e passaram as mãos pelas caras, juntando-as nas pontas das barbas.

- He habar? (o que há de novo?) — perguntou Hadji-Murat ao velho.

- Habar iok (nada de novo) — respondeu o velho, fitando os seus olhos vermelhos e mortiços no peito, e não na cara de Hadji-Murat. -Vivo no colmeal, só hoje vim visitar o meu filho. O filho é que sabe.

Hadji-Murat percebeu que o velho não lhe queria dizer o que sabia e o que ele, Hadji-Murat, queria saber, de maneira que acenou levemente com a cabeça e não voltou a fazer perguntas.

- Nada do que há de novo é bom — voltou a falar o velho. - De novo há somente que as lebres discutem como é que podem expulsar as águias. Mas as águias fazem-nas em frangalhos, umas atrás das outras. Na semana passada, os cães russos queimaram o feno dos Mit-chítski. Que seja rasgada a cara deles — rouquejou o velho com raiva.

Entrou o murid de Hadji-Murat e, avançando no passo suave dos seus pés grandes e fortes pelo chão de terra batida, tirou a sua burka, a espingarda e o sabre, tal como fizera Hadji-Murat, e pendurou-os nos mesmos pregos onde estavam as armas deste.

- Quem é? - perguntou o velho, apontando para o homem.

- É o meu murid. O nome dele é Eldar - disse Hadji-Murat.

- Está bem - disse o velho. E indicou a Eldar um lugar no tapete de feltro, ao lado de Hadji-Murat.

Eldar sentou-se com as pernas cruzadas e, silenciosamente, fixou os seus belos olhos de cheiro no velho que, entretanto, se tomara lo-quaz. O velho contava que, na semana anterior, uns valentões tinham apanhado dois soldados russos: mataram um deles e mandaram o outro para Vedeno, para Shamil. Hadji-Murat ouvia distraidamente, lançando olhares para a porta e atento aos sons de fora. Sob o alpendre da sáklia ouviram-se passos, a porta rangeu e entrou o dono da casa.

O dono da sáklia, de nome Sado, era um homem dos seus quarenta anos, com uma barbicha curta, narigudo e com uns olhos que, embora menos brilhantes, eram tão negros como os do filho, o rapaz de quinze anos que fora buscá-lo e que agora, entrando com ele, se sentou ao pé da porta. À entrada, o dono da casa tirou os tamancos de madeira, puxou o gorro velho e coçado para a nuca - pelo cabelo negro que lhe cobria a cabeça, havia muito que não tinha sido rapada -e logo a seguir sentou-se de cócoras em frente de Hadji-Murat.

Tal como fizera o velho, fechou os olhos, levantou as mãos de palmas para cima, disse a oração, passou as mãos pela cara e só depois disso começou a falar. Disse que tinha chegado ordem de Shamil para deter Hadji-Murat, vivo ou morto, que os mensageiros de Shamil se haviam ido embora apenas no dia anterior e que o povo tinha medo de desobedecer a Shamil; por isso era preciso ter cuidado.

- Em minha casa - disse Sado -, enquanto estiver vivo, ninguém fará mal ao meu kunak11. Mas no campo? É preciso pensar.

Hadji-Murat ouvia com atenção e acenava com a cabeça, aprovando. Quando Sado acabou de falar, disse:

- Está bem. Agora há-de mandar aos russos um homem com a carta. O meu murid vai lá, precisa apenas de um guia.

- Mando com ele o meu irmão Bata - disse Sado. - Chama o Bata - dirigiu-se ao filho.

O rapazinho, como que disparado por uma mola, pôs-se de pé nas pernas ágeis e, baloiçando os braços, saiu rapidamente da sáklia. Passados dez minutos voltou com um tchetcheno bronzeado até à negru-ra, nervudo, de pernas curtas, vestido com uma tcherkeska amarela, toda desfeita, com as mangas em farrapos e as nogovitsas12 pretas descaídas. Hadji-Murat cumprimentou-o e, logo a seguir, sem mais palavras, perguntou-lhe:

- Podes levar o meu murid aos russos?

- Posso - respondeu Bata rápida e animadamente. - Posso tudo. Nenhum tchetcheno sabe passar como eu. Ou então vai dizer que sim, prometer tudo, mas não faz nada. Mas eu posso.

- Está bem - disse Hadji-Murat. - Recebes três pelo serviço -acrescentou, mostrando três dedos.

Bata acenou com a cabeça em sinal de que compreendera, mas declarou que para ele não era o dinheiro que tinha importância, mas a honra de servir Hadji-Murat. Toda a gente dos montes sabe como Hadji-Murat batia os porcos russos...

- Está bem - disse Hadji-Murat. — A corda é boa quando é comprida, a fala quando é curta.

- Fico calado - disse Bata.

- Onde o Argun faz uma curva, em frente da escarpa, há uma clareira na floresta, com duas medas. Conheces?

- Conheço.

- Os meus três cavaleiros estão lá à minha espera.

- Sim - disse Bata, acenando com a cabeça.

- Perguntas por Khan-Magoma. Khan-Magoma sabe o que deve fazer e dizer. Leva-o ao chefe russo, o príncipe Vorontsov. És capaz?

- Sou.

- Leva-lo e traze-lo de volta. És capaz?

- Sou.

- Depois de o levares, voltas à floresta. Vou estar lá.

- Faço tudo - disse Bata, levantou-se, apertou as mãos contra o peito e saiu.

- É preciso ainda mandar um homem a Guekhi - disse Hadji-Murat ao dono da casa quando Bata saiu. - Em Guekhi é preciso... - começou ele, pegando num dos gazires da sua tcherkeska, mas baixou de imediato a mão e calou-se, ao ver duas mulheres a entrarem na sáklia.

Uma delas era a mulher de Sado, aquela magra de meia-idade que trouxera as almofadas. Outra era uma rapariga novinha, de calças vermelhas e bechmet verde, e com um colar de vários fios de moedas de prata a cobrir-lhe todo o peito. Na ponta da sua trança negra pouco comprida mas grossa e rija, descendo-lhe sobre as costas magras, pendia um rublo de prata; os olhos negros como a groselha, iguais aos do pai e do irmão, brilhavam com alegria no seu rosto jovem que tentava manter-se sisudo. Não olhava para os convidados, mas via-se que sentia a presença deles.

A mulher de Sado trouxe uma mesinha baixa e redonda em que havia chá, pilguiches, crepes com manteiga, queijo e tchurek13 - pão de massa estendida - e também o mel. A rapariga trouxe um alguidar, um kumgan14 e uma toalha.

Sado e Hadji-Murat mantiveram-se ambos calados enquanto as mulheres, movendo-se silenciosamente com os seus tchuviakes vermelhos, sem solas, punham perante os convidados o que haviam trazido. Quanto a Eldar, permanecia imóvel como uma estátua, com os olhos fixos nas suas pernas cruzadas, durante todo o tempo em que as mulheres estavam dentro da sáklia. Apenas quando saíram e os passos suaves delas já não se ouviam por trás da porta, Eldar suspirou com alívio. Hadji-Murat tirou um dos gazires da tcherkeska, e dele a bala que o tapava, e debaixo desta um bilhete enrolado.

- Entregar ao meu filho - disse, mostrando o bilhete.

- E a resposta a quem? - perguntou Sado.

- A ti, e tu a mim.

- De acordo - disse Sado e meteu o bilhete no gazir da sua tcher-keska. Depois pegou no kumgan e aproximou o alguidar de Hadji-Murat. Este arregaçou as mangas do bechmet e expôs os seus braços musculados, brancos acima dos pulsos, ao jorro de água fria e transparente que Sado verteu do kumgan. Ao limpar as mãos com uma toalha limpa de tecido cru, Hadji-Murat mudou de posição, aproximando-se da comida. Eldar fez a mesma coisa. Enquanto os convidados estavam a comer, Sado ficou sentado em frente deles e, por várias vezes, agradeceu-lhes a visita. O rapazinho ao pé da porta, sem desviar os seus olhos negros e brilhantes de Hadji-Murat, sorria, como que a confirmar com o sorriso as palavras do seu pai.

Apesar de Hadji-Murat estar sem comer há mais de um dia, serviu-se apenas de um pouco de pão e de queijo e, pegando numa pequena faca que trazia à cinta por baixo do punhal, barou o pão de mel com ela.

- O nosso mel é bom. Este ano é melhor do que nunca: há muito e é bom - disse o velho, visivelmente contente por Hadji-Murat comer o seu mel.

- Obrigado — disse Hadji-Murat e afastou-se da comida. Eldar ainda não saciara a fome, mas fez o mesmo que o seu murchid -afastou-se da mesa; depois chegou a Hadji-Murat o alguidar e o kum-gan.

Sado sabia que, recebendo em sua casa Hadji-Murat, arriscava a vida porque, depois da zanga de Shamil com Hadji-Murat, fora anunciado a todos os habitantes da Tchetchniá que não podiam receber Hadji-Murat, sob a ameaça de morte. Sabia que os habitantes do aúl podiam, a qualquer momento, descobrir a presença de Hadji-Murat em casa dele e exigir a sua entrega. Este perigo, porém, não só não intimidava mas, pelo contrário, dava alegria a Sado. Sado considerava seu dever proteger o convidado kunak, nem que lhe custasse a vida, e estava contente e orgulhoso consigo próprio porque procedia como devia proceder.

- Enquanto estiveres em minha casa e eu trouxer a minha cabeça presa aos ombros, ninguém te faz mal - repetiu a Hadji-Murat.

Hadji-Murat olhou Sado nos olhos brilhantes, com atenção, e, ao compreender que era verdade, disse num tom solene:

- Oxalá tenhas felicidade e vida.

Sado, em silêncio, levou uma mão ao peito em sinal de agradecimento pelas boas palavras.

* * *

Depois de fechar as portadas da sáklia e acender a lareira, Sado, num estado de muito boa disposição e excitação, saiu da sala dos ku-nakes e entrou na parte da casa onde vivia a famflia. As mulheres ainda não se tinham deitado e conversavam sobre os perigosos visitantes que ficavam a pernoitar em sua casa.


2

Nessa mesma noite, na fortaleza de vanguarda Vozdvijênskaia, a quinze verstás do aúl em que Hadji-Murat pernoitava, três soldados e um oficial inferior saíram pelo portão de Tchakhguirin. Os soldados estavam de casacos de pele curtos, com os capotes enrolados sobre os ombros, e de botas altas, acima do joelho, como naquela altura se calçavam os soldados no Cáucaso. De espingardas ao ombro, os soldados meteram primeiro pelo caminho e, andados uns quinhentos passos, desviaram-se dele e, restolhando com as botas pelas folhas secas, avançaram mais vinte passos para a direita e pararam ao lado de um plátano quebrado, cujo tronco negro se distinguia na escuridão. Era neste lugar que tomavam posição os postos de guarda avançados.

As estrelas claras que, enquanto os soldados rompiam pela floresta, pareciam correr por sobre as copas das árvores, agora estavam paradas, lançando um brilho forte por entre os ramos desnudos.

- Pelo menos está seco - disse o oficial inferior Panov, tirando do ombro a espingarda comprida, com baioneta, que tiniu quando a encostou ao tronco do plátano. Os três soldados fizeram o mesmo.

- Perdi-o, pronto - resmungou Panov zangado -, ou esqueci-me dele, ou então caiu-me pelo caminho.

- Do que andas à procura? - perguntou um dos soldados num tom animado.

- Do cachimbo... sei lá onde foi que o perdi, c ’os diabos!

- Mas não perdeste o tubo? - perguntou a voz animada.

- Não, está aqui.

- Não queres fumar do chão?

- Eh, dá muito trabalho.

- Não, é num instante.

Era proibido fumar no posto secreto, mas aquele posto quase não era secreto, era mais uma guarda avançada que servia para impedir que os montanheses levassem para lá um canhão, às escondidas, e disparassem contra a fortaleza (como já tinham feito antes); portanto, Panov não achava necessário privar-se da cachimbada e aceitou a proposta do soldado. Este tirou do bolso um canivete e pôs-se a escavar na terra. Fez um buraquinho, alisou-o, ajustou o tubo ao buraco, depois encheu-o de tabaco, pisou-o com os dedos, e pronto, estava montado o cachimbo. O fósforo acendeu-se, alumiando por um momento a cara de maçãs salientes do soldado deitado de bruços. O tubinho assobiou e Panov sentiu o cheiro agradável do tabaco forte.

- Já está? - disse, pondo-se de pé.

- Está, olha.

- Bom rapaz, Avdéev, esperto. Então...

Avdéev afastou-se, expelindo fumo pela boca e virando-se de lado para abrir espaço a Panov.

Panov deitou-se de barriga e, depois de limpar o tubo com a manga, começou a lançar baforadas.

Fumando, os soldados encetaram uma conversa.

- Ouvi dizer que o comandante da companhia voltou a meter a mão na caixa, pois perdeu no jogo - disse um dos soldados preguiçosamente.

- Ele restitui o dinheiro - disse Panov.

- Com certeza, é um bom oficial - apoiou-o Avdéev.

- Bom, bom... - continuou sombriamente o soldado que começara a conversa -, mas no meu entender a companhia tem de falar com ele: levantaste dinheiro, então diz lá quanto e quando é que o devolves.

- A companhia é que vai decidir - disse Panov, interrompendo as fumaças.

- É claro, a palavra da companhia acima de tudo - confirmou Avdéev.

- É preciso comprar aveia e arranjar botas para a Primavera, é tudo dinheiro, mas se ele o tirou ... - insistia o descontente.

- Já te disse que a companhia é que vai decidir - repetiu Panov. - Não é a primeira vez: já tem tirado e depois devolve.

Naqueles tempos, no Cáucaso, cada companhia tratava sozinha da sua intendência, através dos seus eleitos. Recebia do erário seis rublos e cinquenta copeques por pessoa e cuidava do fornecimento dos seus víveres: plantava o repolho, segava o feno, tinha os seus próprios carros, orgulhava-se dos seus cavalos bem alimentados. Ora, o dinheiro ia para uma caixa, sendo a chave guardada pelo comandante da companhia; este recorria então a empréstimos, o que sucedia muito, levantando dinheiro da referida caixa. Foi o que aconteceu dessa vez, e era disso que falavam os homens. Nikítin, o soldado sombrio, queria exigir contas ao comandante, mas Panov e Avdéev achavam isso desnecessário.

Depois de Panov, fumou também Nikítin, que se sentou em cima do capote, encostado à árvore. Os soldados calaram-se. Ouvia-se apenas o bulir do vento nas copas altas das árvores, por cima das cabeças. De repente, no meio desse ininterrupto e baixinho farfalhar, ouviu-se o uivo, o ganido, o choro, o riso dos chacais.

- Irra, como cantam esses malditos - disse Avdéev.

- Estão a rir-se de ti, da tua cara torta - pronunciou a voz fina, com sotaque ucraniano, do terceiro soldado.

Tudo voltou a silenciar-se, apenas o vento mexia nos ramos das árvores, ora abrindo, ora tapando as estrelas.

— Diz lá - perguntou de repente o animado Avdéev a Panov -, acontece-te alguma vez ficares aborrecido?

— Que aborrecimento pode haver? — respondeu Panov a contragosto.

— Comigo, às vezes o enfado é tanto que nem sei o que sou capaz de fazer comigo.

— Não me digas! — disse Panov.

— Daquela vez, lembras-te? Derreti o dinheiro todo na bebedeira, só por causa desta chatice. Tomou conta de mim, e pensei: vou em-borrachar-me até cair.

— Às vezes ainda se fica pior com os copos.

— Mas também, o que se pode fazer?

— E é porquê, esse teu aborrecimento?

— Porquê? Porque tenho saudades de casa!

— E como era a tua vida, a tua famflia é rica?

— Ricos não, mas vivíamos bem. Nada mal, até.

E Avdéev pôs-se a contar o que já tinha contado muitas vezes a Panov.

— Alistei-me por minha própria vontade, na vez do meu irmão. Ele já tinha cinco filhos, e eu não, . tinha acabado de me casar. E a minha mãe pediu-me tanto. Pensei: não me importo! Mais tarde talvez me agradeçam o bem que lhes fiz. Fui falar com o meu senhor. O nosso senhor é bom, disse: «Fazes bem, rapaz, vai!» E vim, em vez do meu irmão.

— Fizeste bem — disse Panov.

— Mas agora é um tédio, acredita. E aborreço-me sobretudo porque vim na vez do meu irmão. Penso: ele agora está a viver como um rei, e eu aqui a sofrer. Quanto mais penso, pior me sinto. É uma tentação, acho eu.

Avdéev ficou um pouco calado.

— Vamos fumar? — perguntou.

— Vamos, prepara lá isso!

Não tiveram tempo para fumar. Mal Avdéev se levantou para preparar o cachimbo, no meio do sopro do vento ouviram-se passos no caminho. Panov pegou na espingarda e empurrou Nikítin com o pé. Este levantou-se logo e apanhou o capote. Também Bondarenko, o terceiro homem, se levantou.

- Que sonho eu tive, meus amigos...

Chut!, fez Avdéev a Bondarenko, e os soldados imobilizaram-se, à escuta. Os passos, suaves, de gente sem botas, estavam a aproximar-se. Os estalidos dos ramos secos e das folhas ouviam-se cada vez mais. A seguir, começaram a soar palavras daquela língua esquisita e gutural em que falam os tchetchenos. Depois, os soldados não só ouviam, mas também já viam duas sombras que passavam no meio das árvores. Uma era mais alta, outra mais baixa. Quando as sombras chegaram ao perto dos soldados, Panov, com a espingarda em riste, saiu-lhes ao caminho juntamente com os camaradas.

- Quem vem lá? - gritou.

- Tchetcheno pacífico - respondeu o homem mais baixo. Era o Bata. - Espingarda iok15, espada iok - disse ele, apontando para si próprio. - Precisar o príncipe.

O mais alto estava parado e silencioso junto do seu companheiro. Também não estava armado.

- Emissário. Leva-se ao comandante do regimento - explicou Panov aos seus camaradas.

- Precisar muito o príncipe Vorontsov, grande coisa precisar -disse Bata.

- Está bem, de acordo, levamo-los - disse Panov. - Bem, leva-os tu e mais o Bondarenko - dirigiu-se a Avdéev. - Depois de os entregares ao oficial de serviço, volta aqui. E vê se tens cuidado, leva-os à tua frente. Olha que esses testas rapadas são espertalhões.

- Então, e isto serve para quê? - disse Avdéev, fazendo um movimento de arremetida com a espingarda e a baioneta. - Espeto-lha, e adeus.

- Se o matares, que proveito se tira dele? - replicou Bondarenko. - Pronto, toca a andar!

Quando os passos dos dois soldados e dos emissários se silenciaram, Panov e Nikítin voltaram para o seu posto.

- Que diabo os faz andar por aqui de noite? - disse Nikítin.

- Portanto, é porque têm necessidade - respondeu Panov. - Está mais frio - acrescentou e, desenrolando o capote, vestiu-o e sentou-se junto à árvore.

Duas horas depois, Avdéev e Bondarenko voltaram.

- Então, entregaram-nos? - perguntou-lhes Panov.

- Já está. Em casa do comandante ainda não dormem. Levámo-los directamente para lá. Ouve, amigo, esses rapazes de testa rapada são muito boa gente — continuou Avdéev. — É verdade! Falei muito com eles.

— Já se sabe, para ti é só tagarelar, não queres outra coisa - disse Nikítin com desgosto.

— Mas juro, são tal qual os russos. Um é casado. «Maruchka bar?16», pergunto-lhe eu. «Bar», diz ele. «Barantchuk bar?17», pergunto-lhe. «Bar.» «Muitos?» «Dois», diz ele. Falámos muito bem. São bons rapazes.

— Isso é o que tu pensas — disse Nikítin. — Mas se ele te apanha sozinho, estripa-te, podes crer.

— Acho que vai amanhecer, falta pouco — disse Panov.

— É, as estrelinhas já começaram a apagar-se — disse Avdéev, sentando-se.

E os soldados voltaram a calar-se.


3

Havia muito que as janelas das casernas e das barracas dos soldados estavam escuras, mas numa das melhores casas da fortaleza todas as janelas ainda luziam. Esta casa era ocupada pelo comandante do Regimento de Kurá, ajudante-de-campo da corte, príncipe Se-mion Mikháilovitch Vorontsov, que era filho do comandante-em-chefe. Vorontsov vivia com a sua mulher Mária Vassílievna, uma famosa beldade de Petersburgo, e faziam uma vida nessa pequena fortaleza do Cáucaso como nunca alguém tivera naquele lugar. Vorontsov, porém, e sobretudo a sua mulher achavam que a sua vida ali não era apenas modesta mas também cheia de privações; ora, os habitantes locais espantavam-se com o luxo extraordinário em que vivia o príncipe.

Agora, à meia-noite, numa grande sala de estar, em que um tapete cobria todo o chão e os pesados reposteiros estavam corridos, os donos da casa e os convidados abancavam à mesa de jogo, iluminada por quatro velas. Um dos jogadores era o próprio coronel Vorontsov, de cara comprida e cabelo loiro, com os monogramas e as agulhetas de ajudante-de-campo da corte na farda; o seu parceiro era um licenciado da Universidade de Petersburgo, jovem de cabelo desgrenhado e ar sombrio, contratado havia pouco tempo pela princesa como pre-ceptor do pequeno rapazinho, filho do seu primeiro casamento. Os seus adversários eram dois oficiais: o comandante de companhia Pol-torátski, de cara larga e corada, que antes servia na guarda imperial, e o ajudante-de-campo do regimento, sentado com as costas muito direitas e uma expressão fria no seu rosto bonito. A princesa Mária Vas-sflievna, mulher alta e bela, de olhos grandes e sobrancelhas negras, estava sentada ao lado de Poltorátski, tocando as pernas dele com a sua crinolina e espreitando para as suas cartas. Nas palavras, nos olhares e no sorriso da princesa, em todos os movimentos do seu corpo, no perfume a que cheirava, havia qualquer coisa que levava Poltorátski ao esquecimento de tudo além da sensação da sua proximidade, por isso cometia erros atrás de erros, irritando cada vez mais o seu parceiro.

- Não, assim é impossível! Voltou a perder o ás! - disse, enra-bescendo, o ajudante-de-campo, quando Poltorátski jogou um ás.

Poltorátski, como se acabasse de acordar, olhava para o ajudante, sem perceber, com os seus bondosos olhos negros e afastados.

- Perdoe-lhe! - disse Mária Vassílievna, sorrindo. - Vê? Não lhe disse? - dirigiu-se a Poltorátski.

- Mas disse outra coisa - respondeu este também sorridente.

- Foi outra coisa? - disse ela e voltou a sorrir. E este sorriso emocionou e alegrou Poltorátski de tal modo que ficou rubro e se pôs a baralhar as cartas.

- Não eras tu a baralhar - observou severamente o ajudante-de--campo e, com a mão branca em que se destacava um anel, começou a dar cartas com o ar de quem apenas desejava ver-se livre delas.

O criado grave do príncipe entrou na sala e anunciou que o oficial de serviço procurava o príncipe.

- Peço desculpa, meus senhores - disse Vorontsov com um sotaque inglês. - Marie, senta-te, joga por mim.

- Estão de acordo? - perguntou a princesa, levantando-se rápida e levemente, alta, com o vestido de seda a roçagar e com um sorriso radiante de mulher feliz.

- Estou sempre de acordo com tudo - disse o ajudante, muito contente porque iria enfrentar uma jogadora, a princesa, que pura e simplesmente não sabia jogar. Quanto a Poltorátski, apenas abriu os braços, sorrindo.

O príncipe voltou à sala quando o róber estava a acabar. Entrou muito contente e excitado.

- Vou propor-lhes uma coisa.

— O quê?

— Bebamos champanhe.

— Quanto a isso, estou sempre de acordo — disse Poltorátski.

— Está bem, com muito prazer — disse o ajudante.

— Vassíli, sirva-o — mandou o príncipe.

— Porque te chamaram? — perguntou-lhe Mária Vassílievna.

— Era o oficial de serviço e mais um homem.

— Quem? Porquê? — apressou-se a perguntar Mária Vassílievna.

— Não posso dizer — respondeu Vorontsov, encolhendo os ombros.

— Não podes — repetiu Mária Vassflievna. — Bem, veremos.

O champanhe foi trazido. Os convidados beberam e, terminado o jogo, ajustaram contas e começaram a despedir-se.

— Qual foi a companhia designada para ir amanhã à floresta, a sua? — perguntou o príncipe a Poltorátski.

— Sim, a minha. Porquê?

— Então vemo-nos amanhã — disse o príncipe com um ligeiro sorriso.

— Muito bem — respondeu Poltorátski, quase sem perceber o que lhe estava a dizer Vorontsov e preocupado apenas com a mão grande e branca de Mária Vassílievna que ia apertar.

Mária Vassílievna, como sempre, não só apertou com força mas ainda sacudiu a mão de Poltorátski. E, ao lembrar-lhe mais uma vez o seu erro de ter jogado ouros, dirigiu-lhe, como pareceu a Poltorátski, um sorriso encantador, carinhoso e significativo.

* * *

Poltorátski regressava a casa naquele estado de ânimo exaltado que apenas compreendem as pessoas que, tal como ele, viveram e foram educadas na sociedade aristocrática, depois viram-se obrigadas a muitos meses de restrições da vida militar e, de repente, voltaram a encontrar uma senhora pertencente ao seu ambiente social, ainda por cima uma dama como a princesa Vorontsov.

Chegado à casa que partilhava com um camarada, Poltorátski empurrou a porta, mas estava trancada. Bateu. Não abriam. Irtou-se e pôs-se às pancadas na porta fechada com o pé e a espada. Do outro lado ouviram-se passos e Vavilo, servo de Poltorátski, desprendeu o ferrolho.

— Fechaste a porta porquê? Imbecil!

— Mas, Aleksei Vladimirovitch, como é que se pode...

— Outra vez bêbedo. Já te mostro como é que se pode...

Poltorátski fez menção de bater em Vavilo, mas conteve-se.

— Vai pró diabo. Acende a vela.

— Sim, senhor.

Vavilo estava razoavelmente bebido, era um facto, porque tinha ido à festa de anos do quarteleiro. Quando voltava para casa, pensava na sua vida e comparava-a com a do quarteleiro Ivan Makéitch. Este obtinha rendimentos, estava casado e tinha a esperança de passar à desmobilização definitiva dali a um ano. Ora ele, Vavilo, fora posto ao serviço doméstico dos senhores ainda em criança e agora já passava dos quarenta mas não se casara e acompanhava o seu senhor desordenado na sua vida de campanhas militares. O senhor não era mau, raramente chegava a vias de facto... mas que vida era aquela? «Prometeu-me a carta de alforria quando voltasse do Cáucaso, mas onde é que eu vou com essa alforria? Que vida de cão!» — pensava Vavilo. E estava com tanto sono que, para dormir descansado e sem medo de alguém entrar e roubar alguma coisa, trancou a porta e adormeceu.

Poltorátski entrou no quarto onde dormia ele e o seu camarada Tí-khonov.

— Então, perdeste? — perguntou-lhe o Tíkhonov, acabando de acordar.

— Não, ganhei dezassete rablos e ainda bebemos uma garrafinha de Cliquot.

— E olhaste para Mária Vassílievna?

— E olhei para Mária Vassílievna.

— Daqui a pouco temos de nos levantar — disse Tíkhonov. — Às seis pomo-nos em marcha.

— Vavilo! — gritou Poltorátski. — Vê lá se me acordas às cinco.

— Como é que o vou acordar, se o senhor me bate logo?

— Não ouviste o que te disse? Acorda-me.

— Sim, senhor.

Vavilo saiu, levando consigo as botas e a farda do senhor; Poltorátski deitou-se e, sorrindo, acendeu um cigarro e apagou a vela. Estava a ver na escuridão o rosto sorridente de Mária Vassílievna.

Em casa dos Vorontsov, também demoraram a adormecer. Quando os convidados saíram, Mária Vassílievna aproximou-se do marido e disse com rigor:

— Eh bien, vous allez me dire ce que c’est?

— Mais, ma chère...

— Pas de «ma chère»! C’est un émissaire, n’est-ce pas?

— Quand même je ne puis pas vous le dire.

— Vous ne pouvez pas? Alors e’est moi qui vais vous le dire.

— Vous?l8

— Hadji-Murat, não é? - disse a princesa que tinha ouvido falar sobre as conversações com Hadji-Murat havia já vários dias, supondo assim que o próprio Hadji-Murat viera ter com o seu marido.

Vorontsov não podia negá-lo, mas desiludiu a mulher dizendo que não viera Hadji-Murat em pessoa mas sim um emissário deste para lhe comunicar que Hadji-Murat ia encontrar-se com ele no sítio onde se planeava cortar as árvores.

No meio da vida monótona na fortaleza, os jovens Vorontsov, tanto o marido como a mulher, estavam entusiasmados com esse acontecimento. Passava das duas da madrugada quando, depois de falarem do grande contentamento que a notícia ia sem dúvida dar ao pai do príncipe, os esposos deitaram-se.


4

Depois das três noites sem sono que passara fugindo dos murides de Shamil, Hadji-Murat adormeceu logo que Sado, tendo-lhe dado as boas-noites, saiu da sáklia. Dormia vestido, apoiando a cabeça no cotovelo afundado nas almofadas vermelhas de penugem que o dono da casa lhe pusera. Perto dele, junto à parede, dormia Eldar, deitado de costas, com os membros fortes e jovens muito abertos e com o peito proeminente, com os gazires pretos da tcherkeska branca, mais altea-do do que a cabeça rapada de fresco, azulada, reclinada para trás e caída da almofada. O seu lábio superior, alongado de forma infantil, com uma penugem a cobri-lo ligeiramente, apertava-se e descontraía-se, como que a bebericar. Dormia como Hadji-Murat: sem se despir, com uma pistola à cintura e um punhal. Na lareira da sáklia, as brasas estavam a extinguir-se, na abertura do fogão uma candeia lançava a sua luz fraca.

A meio da noite a porta rangeu e Hadji-Murat levantou-se de imediato, levando a mão à pistola. No quarto entrou Sado, pisando suavemente o chão de terra batida.

- O que é? - perguntou Hadji-Murat numa voz tão enérgica como se não tivesse acabado de acordar.

- É preciso pensar - disse Sado, sentando-se de cócoras em frente de Hadji-Murat. - Uma mulher viu-te do telhado quando chegaste, ela contou ao marido e agora todo o aúl já sabe. Uma vizinha veio dizer à minha mulher que os velhos se reuniram junto à mesquita e te querem prender.

- Tenho de partir - disse Hadji-Murat.

- Os cavalos estão prontos - disse Sado. E saiu rapidamente.

- Eldar - sussurrou Hadji-Murat. E o jovem, ao ouvir o seu nome e, sobretudo, a voz do seu murchid, ficou assente, de um salto, nos pés fortes, ajustando o gorro na cabeça. Hadji-Murat prendeu as armas e vestiu a burka. Eldar fez a mesma coisa e os dois, silenciosos, saíram e pararam debaixo do alpendre. O rapazinho de olhos negros chegou-lhes os cavalos. Ao ouvir o som dos cascos pela terra batida da rua, uma cabeça assomou à porta da sáklia vizinha, e um homem, batendo com os sapatos de madeira, correu, subindo o monte, até à mesquita.

Não havia luar, mas as estrelas brilhavam muito no céu negro, e no negrume distinguiam-se os contornos dos telhados, sobretudo o edifício da mesquita com o seu minarete, na parte alta do aúl. Da mesquita chegava o rumor das vozes.

Hadji-Murat pegou rapidamente na espingarda, meteu o pé no estribo estreito e, lançando sem barulho o corpo, ficou sentado na almofada alta da sela.

- Que Deus vos pague! — disse, dirigindo-se ao dono da casa e procurando, num movimento automático do pé direito, o outro estribo; depois tocou ao de leve com o azorrague no rapazinho que segurava o cavalo, para que se afastasse. O rapaz arredou-se, e a montada, como se soubesse de cor o que tinha de fazer, arrancou em passo enérgico, saindo da viela para o caminho principal. Eldar cavalgava atrás de Hadji-Murat; Sado, de peliça, baloiçando rapidamente os braços, seguia-os a pé, quase a correr, passando de um lado para o outro da rua estreita. À saída, no outro lado do caminho, surgiu uma sombra em movimento, depois outra.

- Alto! Quem é? Pára! - gritou uma voz. E vários homens barraram o caminho.

Em vez de parar, Hadji-Murat sacou a pistola do cinto e, acelerando o passo, dirigiu o cavalo contra a barreira humana. Os homens abriram o caminho e Hadji-Murat, sem olhar para trás, meteu o cavalo pelo caminho abaixo num passo largo e célere. Eldar seguia-o a trote acelerado. Nas costas deles estalaram dois tiros e assobiaram duas balas que não apanharam um nem outro. Hadji-Murat mantinha o mesmo passo. Depois de percorrer cerca de trezentos passos, fez parar o cavalo ligeiramente ofegante e ficou à escuta. À frente, em baixo, ma-rulhava uma corrente rápida. Atrás, ouviam-se os galos a cantar no aúl. No meio destes sons também já soava, na retaguarda de Hadji--Murat, o bater dos cascos e o rumor das vozes que se aproximavam. Hadji-Murat tangeu o cavalo e foi andando no mesmo passo regular.

A gente atrás dele ia a galope e não tardou a apanhar Hadji-Murat. Eram cerca de vinte cavaleiros, moradores do aúl, que resolveram detê-lo ou, pelo menos, para se justificarem perante Shamil, fingir que o queriam deter. Quando se aproximaram ao ponto de se distinguirem na escuridão, Hadji-Murat parou, largou a brida e, abrindo a bainha da espingarda com um movimento maquinal da mão esquerda, tirou a arma com a mão direita. Eldar fez a mesma coisa.

- O que querem? - gritou Hadji-Murat. - Querem prender-me? Então, força! - E levantou a espingarda. Os homens do aúl pararam.

Hadji-Murat, com a espingarda na mão, começou a descer para a comba. Os cavaleiros, sem se aproximarem, foram no seu encalço. Quando Hadji-Murat atravessou a comba, os homens atrás dele gritaram-lhe que parasse para ouvir o que lhe queriam dizer. Em resposta, Hadji-Murat disparou a espingarda e lançou o cavalo a galope. Quando parou, já não se ouvia a perseguição; também já não lhe chegavam aos ouvidos os cantos dos galos, apenas o murmúrio mais claro da água na floresta e, de vez em quando, o choro do bufo. A muralha negra da floresta já estava muito perto. Era naquela floresta que os mu-rides estavam à sua espera. Na orla do arvoredo, Hadji-Murat parou, encheu os pulmões de ar e assobiou; depois ficou à escuta, em silêncio. Um minuto depois chegou da floresta, em resposta, um assobio idêntico. Hadji-Murat saiu do caminho e entrou na mata. Cem passos adiante, através dos troncos das árvores, enxergou uma fogueira, vultos humanos à volta do fogo e, meio alumiado pelo lume, um cavalo selado e com as patas presas com a peia.

Um dos homens sentados à fogueira levantou-se rapidamente e aproximou-se de Hadji-Murat, pegando na brida e no estribo do seu cavalo. Era um homem irmanado com Hadji-Murat, um ávaro19 de nome Khanefi, que cuidava dos seus bens.

— Apagar o fogo! - mandou Hadji-Murat, apeando-se.

Os homens começaram a desfazer a fogueira e a pisar os ramos em brasa.

— O Bata passou por aqui? — perguntou-lhes Hadji-Murat, acercando-se da burka estendida no chão.

— Passou, e há muito que se foi embora, ele e mais o Khan-Ma-goma.

— Por que caminho eles foram?

— Por este — respondeu Khanefi, apontando para o lado contrário àquele pelo qual chegara Hadji-Murat.

— Está bem — disse Hadji-Murat. E pegando na espingarda, voltou a carregá-la. — É preciso muito cuidado, fui perseguido — dirigiu-se ao homem que estava a apagar a fogueira.

Este era um tchetcheno, chamado Gamzalo. Gamzalo aproximou-se da burka, apanhou de cima dela uma espingarda dentro do estojo e, silenciosamente, foi postar-se na margem da clareira, no lugar por onde acabara de chegar Hadji-Murat. Eldar apeou-se, pegou no cavalo de Hadji-Murat e, levantando muito as cabeças de ambos os cavalos, atou-os às árvores; depois, tal como Gamzalo, pôs-se noutra margem da clareira, com a espingarda a tiracolo. A fogueira foi apagada, e a floresta já não parecia tão negra, e as estrelas, embora fracas, brilhavam no céu.

Olhando para as estrelas, para as Plêiades que se tinham levantado até ao meio do céu, Hadji-Murat calculou que havia muito que passara da meia-noite e que chegara a hora da oração noctuma. Pediu a Khanefi um kumgan, coisa que sempre se levava nos alforges, vestiu a burka e foi até à água.

Quando se descalçou e fez a ablução, Hadji-Murat pôs os pés descalços sobre a burka, depois sentou-se sobre as barrigas das pernas e, tapando primeiro os ouvidos e fechando os olhos, pronunciou as orações habituais, virado para levante.

Acabadas as orações, voltou para o seu lugar, onde estavam postos os alforges, sentou-se em cima da burka e, de mãos nos joelhos e cabeça baixa, pôs-se a reflectir.

Hadji-Murat sempre acreditou na sua sorte. Quando empreendia alguma coisa, tinha desde o início a certeza do êxito — e conseguia tudo. Sempre assim foi, com excepção de alguns casos raros, durante toda a sua impetuosa vida guerreira. Tinha pois a esperança de que, desta vez, seria a mesma coisa. Imaginava que, à frente da tropa que lhe ia dar Vorontsov, atacava Shamil, o fazia prisioneiro e se vingava dele, e que o czar russo o recompensava, e ele, então, passava de novo a governar não só a Avária mas toda a Tchetchniá, que se lhe sub-meteria. Com estes pensamentos, adormeceu sem dar por isso.

Sonhou que ele, com os seus bravos guerreiros, cantando e gritando «Vai contra vós Hadji-Murat!», corre contra Shamil e o apanha com todas as suas mulheres, e ouve as mulheres chorando e soluçando. Acordou. A canção «La illakha» e os gritos «Vai contra vós Hadji-Murat!» e o choro das mulheres de Shamil - tudo isso era o uivo, o choro e o riso dos chacais que o acordaram. Hadji-Murat levantou a cabeça, olhou através dos troncos das árvores para o céu que já clareava no oriente e perguntou por Khan-Magoma a um murid que se sentava um pouco afastado dele. Ao saber que este ainda não voltara, Hadji-Murat baixou a cabeça e, logo a seguir, voltou a adormecer.

Despertou-o a voz animada de Khan-Magoma que, juntamente com Bata, voltara da sua missão. Khan-Magoma sentou-se sem demora ao pé de Hadji-Murat e começou a contar-lhe como os soldados os receberam e os levaram ao próprio príncipe, e como falara com o próprio príncipe, e como o príncipe ficara contente e prometera encontrar-se com eles de manhã no lugar onde os rassos iam cortar as árvores - por trás de Mitchik, na clareira de Shalin. Bata interrompia de vez em quando o seu companheiro, introduzindo os seus pormenores.

Hadji-Murat quis saber em pormenor com que exactas palavras Vo-rontsov respondera à proposta de um encontro entre Hadji-Murat e os russos. Tanto Khan-Magoma, como Bata afirmaram que o príncipe prometera receber Hadji-Murat como um convidado e fazer com que se sentisse bem. Hadji-Murat indagou-os também sobre o caminho e, quando Khan-Magoma lhe garantiu que conhecia bem o caminho e o ia levar lá directamente, Hadji-Murat tirou o dinheiro e deu a Bata os três rublos prometidos; e mandou que os homens lhe tirassem dos al-forges as armas com entalhe de ouro e o gorro com o turbante, e que os murides se limpassem para aparecerem perante os russos com aspecto decente. Enquanto limpavam as armas, as selas e os arreios, as estrelas apagaram-se, o ar clareou e começou a soprar o vento do amanhecer.


5

De manhã cedo, ainda na escuridão, duas companhias sob o comando de Poltorátski, munidas de machados, avançaram até dez vers-tás do portão de Tchakhguirin e, depois de distribuírem as linhas avançadas de atiradores, iniciaram o corte das árvores logo que amanheceu. Cerca das oito da manhã, o nevoeiro misturado com o fumo aromático dos ramos húmidos que crepitavam e silvavam nas fogueiras começou a subir, e os soldados, que antes disso apenas se ouviam mas não se viam uns aos outros a uma distância de cinco passos, já podiam ver as fogueiras e o caminho florestal coberto de árvores cortadas; o sol ora despontava no nevoeiro como uma mancha clara, ora se ocultava. Na clareira, sentados nos tambores e afastados do caminho, estavam Poltorátski, com o seu oficial subalterno Tíkhonov, dois oficiais da terceira companhia e o barão Frese, ex-oficial da guarda de cavalaria, despromovido por causa de um duelo, e que tinha sido colega de Poltorátski na Escola de Pajens. À volta dos tambores estavam espalhados os papéis com que tinham sido embrulhados os petiscos, pontas de cigarros e garrafas vazias. Os oficiais, que já tinham emborcado vodca e petiscado, estavam a beber Porter. O tambor abria a oitava garrafa. Poltorátski, apesar de ter dormido pouco, encontrava-se no estado especial de elevação das forças de ânimo e de bondosa e despreocupada alegria em que costumava sentir-se no meio dos seus soldados e camaradas nas situações de um possível perigo.

Os oficiais comentavam animadamente a última notícia - a morte do general Sleptsov. Ninguém via nessa morte o importantíssimo momento em que acontece o fim da vida humana e o regresso à fonte donde ela manou; viam apenas a bravura de um oficial destemido que se atirara de sabre em punho contra os montanheses, acutilan-do-os arrojadamente.

Embora todos, sobretudo os oficiais que tinham participado em combates, soubessem e pudessem saber que naquela guerra caucasia-na, como de resto em todo o lado, nunca se cruzavam armas corpo a corpo da maneira que sempre se pressupõe e se descreve (e mesmo que acontecesse um combate corpo a corpo com sabres e baionetas, os acutilados eram sempre só os que fugiam), esse combate corpo a corpo fictício era reconhecido como verdadeiro pelos oficiais, o que lhes dava o tranquilo orgulho e a alegria com que eles - alguns com galhardia, outros, pelo contrário, numas atitudes muito modestas -estavam sentados sobre os tambores, fumavam, bebiam e tagarelavam, sem se preocuparem com a morte que, do mesmo modo que a Sleptsov, podia atingir cada um deles a qualquer momento. E de fac-to, no meio da conversa, como que para confirmar as suas expectativas, à esquerda do caminho ouviu-se o animador e bonito som de um tiro de espingarda, estalando brusco, e uma bala, assobiando alegremente, voou algures no ar enevoado e bateu contra uma árvore. Em resposta, várias espingardas dos soldados dispararam estrondosa e pe-sadamente.

— Ena! — gritou Poltorátski com uma voz animada. — É na linha dos atiradores. Bem, amigo Kóstia — disse a Frese —, estás com sorte. Vai ter com a tua companhia. Vamos já travar um combate maravilhoso! E depois, um relatório para te promover.

O barão despromovido pôs-se em pé de um salto e, num passo es-tugado, dirigiu-se para a área de fumo, onde estava a sua companhia. Trouxeram a Poltorátski o seu cavalinho cabardino, de cor marron, ele montou-o e, depois de pôr a companhia em formação, levou-a até à linha avançada, na direcção dos tiros. Os atiradores estavam na orla da floresta, em frente do declive do barranco nu. O vento soprava para a floresta e não só o declive do barranco mas também o seu outro lado eram claramente visíveis.

Quando Poltorátski se aproximou da linha, o sol surgiu de entre o nevoeiro e vários homens a cavalo ficaram à vista na outra margem do barranco, ao lado de outra mata, a cerca de cem braças de distância. Eram os tchetchenos que tinham perseguido Hadji-Murat e queriam ver se ele se ia encontrar com os russos. Um deles disparou contra a linha. Vários soldados ripostaram. Os tchetchenos recuaram e o tiroteio parou. Porém, quando Poltorátski e a companhia dele chegaram, ele mandou abrir o fogo e, mal foi dada a ordem, estoi-raram por toda a linha os tiros alegres e excitantes, acompanhados por fuminhos que se dispersavam no ar de forma pitoresca. Os soldados, contentes com o divertimento, carregavam as armas rapidamente e davam tiro após tiro. Os tchetchenos, sentindo o entusiasmo do desafio, começaram a saltar para a frente e, cada um por sua vez, alvejaram os russos. Um dos tiros feriu um soldado. Era aquele mesmo Avdéev que passara a noite no posto avançado. Quando os seus camaradas se aproximaram dele, Avdéev estava deitado de bruços, apertando com ambas as mãos a ferida no ventre e baloiçando o corpo.

- Começo a carregar a espingarda quando oiço: uma bala — estava a dizer o soldado que fazia par com Avdéev. - Olho: ele largou a arma.

Avdéev pertencia à companhia de Poltorátski. Ao ver que um grupo de soldados se tinha juntado, Poltorátski aproximou-se deles.

- O que foi, meu amigo, apanhaste um balázio? - perguntou. -Onde?

Avdéev não respondeu.

- Vossa senhoria, começo a caregar - disse o mesmo soldado -, quando oiço: uma bala; olho: ele largou a arma.

- Tst-tst-tst - estalou a língua Poltorátski. - Avdéev, dói-te?

- Não dói, mas não me deixa andar. Um bocadinho de vodca, por favor, vossa senhoria.

A vodca, ou seja, o álcool que os soldados bebiam no Cáucaso, foi arranjada e Panov, carregando severamente o sobrolho, chegou à boca de Avdéev a tampa do frasco. Avdéev começou a beber, mas logo a seguir afastou a tampa com a mão.

- Não consigo - disse -, bebe tu.

Panov emborcou o álcool. Avdéev repetiu a tentativa de se levantar, mas voltou a sentar-se. Estenderam no chão um capote e deitaram nele Avdéev.

- Vossa senhoria, o coronel vem aí - disse o vagomestre.

- Está bem, faz o que é preciso aqui - disse Poltorátski e, brandindo o azorrague, foi a grande trote ao encontro de Vorontsov.

Vorontsov vinha montado no seu cavalo raivo, um inglês puro-san-gue, acompanhado pelo ajudante-de-campo do regimento, por um cossaco e um intérprete tchetcheno.

- O que se passa? - perguntou a Poltorátski.

- Apareceram uns tchetchenos, atacaram a linha - respondeu-lhe Poltorátski.

- Pois, pois, foi o senhor que os instigou.

- Não fui eu, príncipe - sorriu Poltorátski -, eles é que começaram.

- Disseram-me que um soldado foi ferido.

- Foi, é pena. É um bom soldado.

- É grave?

- Parece que é, na barriga.

- Sabe onde vou agora?

- Não sei.

— Nem adivinha?

— Não.

— Hadji-Murat chegou e vem ao nosso encontro.

— Não me diga!

— Ontem veio ter comigo um homem dele — disse Vorontsov, contendo a custo um sorriso de contentamento. — Já deve estar à minha espera na clareira de Chalin; então coloque os atiradores daqui até à clareira e junte-se a mim.

— Sim, meu coronel — disse Poltorátski, levando a mão ao gorro, e foi ter com a sua companhia. Levou a linha para o lado direito, dando ordem ao vagomestre para que fizesse o mesmo do lado esquerdo. O ferido, entretanto, estava a ser levado por quatro soldados para a fortaleza.

Poltorátski ia já reunir-se a Vorontsov quando, na sua retaguarda, se aproximavam uns cavaleiros. Poltorátski parou, à espera.

À frente de todos, montado num cavalo de crina branca, vinha um homem de ar imponente, de tcherkeska branca, turbante por cima do gorro e armas guarnecidas de ouro. Era Hadji-Murat. Chegou ao pé de Poltorátski e pronunciou qualquer coisa em tártaro. Poltorátski levantou o sobrolho e abriu os braços em sinal de não compreender, e sorriu. Hadji-Murat devolveu-lhe o sorriso, um sorriso que impressionou Poltorátski pela sua bonomia infantil. Não esperava que o terrível montanhês fosse assim. Esperava ver uma pessoa sombria, seca, alheia, mas à sua frente estava um homem muito simples, com um sorriso tão bondoso que não parecia um estranho mas sim um amigo de longa data. Nele, apenas uma coisa era invulgar: os seus olhos muito afastados que fitavam os olhos dos outros com uma atenção calma e penetrante.

A comitiva de Hadji-Murat consistia em quatro homens. Um era aquele Khan-Magoma que, de noite, fora falar com Vorontsov. Era um homem de olhos negros e brilhantes, e de cara redonda e corada, irradiando a alegria de viver. Havia mais um, atarracado, peludo, com sobrancelhas unidas. Era o ávaro Khanefi, que geria todos os bens de Hadji-Murat. Trazia consigo um cavalo de reserva, com alforges muito cheios no dorso. Mas dois homens destacavam-se sobremaneira na comitiva: um jovem, com uma barbi-cha ruça muito recente, cintura fina como a de uma mulher e ombros largos, um bonitão de olhos de carneiro — era Eldar; e o outro, zarolho, sem sobrancelhas nem pestanas, com uma barbi-

cha ruiva aparada e uma cicatriz no nariz e na face — o tchetche-no Gamzalo.

Vorontsov surgiu no caminho e Poltorátski indicou-o a Hadji-Mu-rat, que foi ao seu encontro; quando se aproximou dele, levou a mão direita ao peito e, dizendo qualquer coisa em tártaro, parou. O intérprete tchetcheno traduziu:

- Entrego-me, diz ele, ao czar russo, quero servi-lo, diz ele. Há muito que o quero, diz ele, mas Shamil não deixava.

Depois de o intérprete ter falado, Vorontsov estendeu a Hadji-Mu-rat a mão de luva de camurça. Hadji-Murat olhou para aquela mão, hesitou um segundo, mas depois apertou-a com força e disse mais alguma coisa, olhando ora para o intérprete, ora para Vorontsov.

- Diz que não queria encontrar-se com ninguém a não ser contigo, porque és filho do sardar20. Tem muito respeito por ti.

Vorontsov acenou com a cabeça em sinal do agradecimento. Hadji-Murat voltou a falar, apontando para a sua comitiva.

- Diz que estes homens, os murides dele, vão servir os russos tal como ele.

Vorontsov virou-se para eles e acenou-lhes também.

O alegre Khan-Magoma, de olhos negros sem pálpebras, acenando também com a cabeça, disse a Vorontsov uma coisa provavelmente engraçada, porque o ávaro peludo arreganhou os dentes brancos num sorriso largo. Quanto ao ruivo Gamzalo, apenas lançou a Vorontsov o brilho momentâneo do seu único olho vermelho e voltou a fixar o olhar nas orelhas do seu cavalo.

Quando Vorontsov e Hadji-Murat, acompanhados pela comitiva, se dirigiam para a fortaleza, um grupo de soldados tirados da linha não deixou de fazer os seus comentários:

- A quanta gente ele tirou a vida, maldito seja! Mas agora não sabem o que lhe hão-de fazer para lhe agradar! - disse um soldado.

- É verdade. Foi o melhor comandante do Shamil. Agora, com certeza...

- Mas é um valentão, nada a dizer.

- E o ruivo, o ruivo... o olhar dele é como o de uma fera.

- Um cão raivoso, com certeza.

Sim, o ruivo atraía a atenção de todos.

No lugar onde estavam a cortar as árvores, os soldados que trabalhavam mais perto do caminho acorriam para os verem passar. O oficial ralhou com eles, mas Vorontsov conteve-o.

- Deixa que olhem bem para o seu velho conhecido. Sabes quem é? - perguntou Vorontsov com o seu sotaque inglês ao soldado mais próximo.

- Não sei, Vossa Alteza.

- É Hadji-Murat... não ouviste falar?

- Com certeza, ouvi, Vossa Alteza, batemo-lo muitas vezes.

- Mas também já levaram muita coça dele.

- Exactamente, Vossa Alteza - respondeu o soldado, muito contente por lhe ter calhado falar com o chefe.

Hadji-Murat percebia que estavam a falar dele e um sorriso alegre luzia nos seus olhos. Vorontsov, muito bem-humorado, voltou à fortaleza.


6

Vorontsov não cabia em si de contente por ter sido ele, precisamente ele, quem havia feito sair da toca e recebido o principal e o mais poderoso, depois de Shamil, inimigo da Rússia. Havia só uma coisa desagradável: o comandante das tropas em Vozdvijênskaia era o general Meller-Zakomélski e as formalidades exigiam que tudo isso fosse feito com a autorização dele. Ora, Vorontsov fez tudo sozinho, sem o informar. Portanto, podiam surgir complicações. Esta ideia estragava um pouco a alegria de Vorontsov.

Quando chegaram, Vorontsov entregou os murides aos cuidados do ajudante-de-campo e convidou Hadji-Murat para sua casa.

A princesa Mária Vassílievna, ataviada e sorridente, com o seu filho de seis anos, bonito, com o cabelo encaracolado, recebeu Hadji-Murat na sala de estar; Hadji-Murat, com as mãos apertadas contra o peito, declarou com bastante solenidade, através do intérprete, que se considerava o kunak do príncipe porque estava a ser recebido em sua casa e que para ele toda a famflia do kunak passava a ser sagrada como o próprio kunak. Todo o aspecto e maneiras de Hadji-Murat agradaram a Mária Vassílievna. E Hadji-Murat conquistou ainda mais simpatia por parte da princesa porque corou muito quando ela lhe estendeu a sua mão grande e branca. A princesa pediu-lhe que se sentasse, perguntou-lhe se tomava café e mandou servi-lo. Hadji-Murat, contudo, recusou o café quando lho serviram. Compreendia um pouco a língua russa, mas não sabia falar e, quando não compreendia, sorria; Mária Vassílievna gostou do seu sorriso tal como Poltorátski já havia gostado. Quanto ao rapazinho de cabelo encaracolado e olhar atento, a quem a mãe chamava Bulka, estava sempre ao pé dela, sem desviar os olhos de Hadji-Murat, de quem ouvira falar como um guerreiro extraordinário.

Deixando Hadji-Murat com a mulher, Vorontsov foi ao escritório e deu ordens para que se comunicasse aos chefes a visita de Hadji-Murat. Depois de ter escrito um relatório para Gróznaia, para o general Kozlóvski, comandante do flanco esquerdo, e uma carta para o seu pai, Vorontsov voltou rapidamente a casa, com medo de ter causado qualquer desgosto à mulher ao impor-lhe a companhia daquele homem estranho e terrível que, porém, devia ser tratado de maneira a não se sentir ofendido, mas, ao mesmo tempo, sem ser exagerada-mente acarinhado. Afinal, o seu medo era infundado. Encontrou Hadji-Murat acomodado na poltrona, com o seu enteado Bulka sentado no joelho, ouvindo com atenção, por intermédio do intérprete, o que lhe dizia uma sorridente Mária Vassílievna. Ora, Mária Vassílievna estava a dizer-lhe que, se ele oferecesse a um qualquer kunak aquela coisa que esse kunak lhe gabasse, não tardaria a andar como Adão...

Hadji-Murat, vendo o príncipe a entrar, tirou do joelho Bulka, surpreendido e ofendido com isso, e levantou-se, mudando de imediato a expressão da cara de jocosa para rigorosa e séria. Voltou a sentar-se apenas quando Vorontsov se sentou. Continuando a conversa, respondeu a Mária Vassílievna que aquela obrigação era para eles uma lei: é preciso oferecer ao kunak tudo aquilo que agradar ao kunak.

— Tua filho kunak — disse em russo, acariciando o cabelo encaracolado de Bulka que voltara a sentar-se ao seu colo.

— É encantador, este teu bandido — disse Mária Vassílievna ao marido.

Bulka admirou o punhal de Hadji-Murat e este ofereceu-lho.

Bulka mostrou o punhal ao padrasto.

— C’est un objet de prix — disse Mária Vassílievna.

— Il faudra trouver Voccasion de lui faire cadeau21 — disse Vorontsov.

Hadji-Murat estava sentado com olhos baixos e, afagando a cabeça encaracolada do petiz, repetia:

- Djiguit22, djiguit.

- É um excelente punhal, mesmo excelente - disse Vorontsov, tirando da bainha, até ao meio, o aguçado punhal damasquino com um sulco ao longo da lâmina. - Obrigado.

- Pergunta-lhe em que posso ser-lhe útil - disse Vorontsov ao intérprete.

O intérprete traduziu e Hadji-Murat respondeu de imediato que não precisava de nada, apenas pedia que o levassem a um qualquer lugar onde pudesse rezar. Vorontsov chamou o criado grave e mandou-o cumprir o desejo de Hadji-Murat.

Logo que Hadji-Murat ficou sozinho na sala que lhe fora destacada, a sua cara mudou: a expressão de prazer - ora carinhoso, ora solene - desapareceu e transpareceu-lhe no rosto um ar preocupado.

Foi recebido por Vorontsov muito melhor do que tinha esperado. Porém, quanto mais bem era recebido, menos confiava em Vorontsov e nos seus oficiais. Tinha receio de tudo: que o prendessem, que o agrilhoassem e o mandassem para a Sibéria, ou, então, que pura e simplesmente o matassem; por isso estava alerta.

Perguntou a Eldar, que viera ter com ele, onde tinham sido colocados os murides e se não lhes haviam tirado as armas, e onde estavam os cavalos.

Eldar informou-o: os cavalos estavam na cavalariça do príncipe, os homens tinham sido instalados num barracão, conservavam as armas e o intérprete estava a servir-lhes comida e chá.

Hadji-Murat, cheio de dúvidas, abanou a cabeça e, depois de se despir, pôs-se a rezar. Ao acabar a prece, mandou que lhe trouxessem um punhal de prata, vestiu-se, prendeu a arma à cintura e sentou-se com as pernas cruzadas no sofá, esperando o que viria a seguir.

Já passava das quatro quando foi convidado para o almoço com o príncipe.

Ao almoço, Hadji-Murat não comeu nada além do plov23 que tirou para o seu prato do mesmo sítio donde se servira Mária Vassílievna.

- Tem medo de que o envenenemos - disse Mária Vassflievna ao marido. - Serviu-se do mesmo sítio que eu. — E, a seguir, dirigiu-se a Hadji-Murat, perguntando-lhe com a ajuda do intérprete a que horas voltaria a rezar. Hadji-Murat levantou cinco dedos e apontou para o Sol.

Portanto, não faltava muito.

Vorontsov tirou o relógio Breguet e premiu a mola — o relógio tocou as quatro e um quarto. Hadji-Murat, pelos vistos, ficou surpreendido com aquele som e pediu a Vorontsov que o repetisse e o deixasse ver o relógio.

— Voilà Voccasionl Donnez-lui la montre24 — disse Mária Vassí-lievna ao marido.

Vorontsov, de imediato, ofereceu o relógio a Hadji-Murat. Hadji--Murat levou a mão ao peito e aceitou o relógio. Várias vezes premiu a mola, ouvindo e baloiçando a cabeça com aprovação.

Depois do almoço, anunciaram ao príncipe a chegada do ajudan-te-de-campo de Meller-Zakomélski.

O ajudante comunicou ao príncipe que o general, quando soube do aparecimento de Hadji-Murat, ficou muito descontente por não ter sido informado e exigia que Hadji-Murat fosse levado imediatamente à presença dele. Vorontsov disse que a ordem do general ia ser cumprida e, ao transmitir a Hadji-Murat, pelo intérprete, a exigência do general, pediu-lhe que fosse com ele para o apresentar a Meller.

Mária Vassílievna, ao saber por que motivo viera o ajudante, percebeu que entre o seu marido e o general poderia acontecer um conflito e, apesar de todas as tentativas de o príncipe a dissuadir, quis ir com o marido e Hadji-Murat a casa do general.

— Vous feriez beaucoup mieux de rester; c’est mon affaire, mais pas le vôtre.

— Vous ne pouvez pas m’empêcher d’aller voir madame la géné-rale.25

— Podia fazê-lo noutra altura.

— Mas quero ir agora.

Nada a fazer. Vorontsov cedeu, e lá foram os três.

Quando entraram, Meller, com uma cortesia sombria, acompanhou Mária Vassílievna até ao quarto da sua mulher e deu ordem ao aju-dante-de-campo para levar Hadji-Murat para a sala de espera e não o deixar ir ao lado nenhum até às próximas ordens.

— Entre — disse a Vorontsov, abrindo a porta do seu gabinete e deixando o príncipe passar à frente dele.

No gabinete, parou em frente do príncipe e, sem o convidar a sentar-se, disse:

— Aqui, sou eu o comandante do exército, por isso todas as conversações com o inimigo têm de ser feitas por mim. Por que razão o senhor não me informou sobre o encontro com Hadji-Murat?

- Foi falar comigo um mensageiro e informou-me do desejo de Hadji-Murat em se entregar a mim — respondeu Vorontsov, pálido de emoção, à espera de uma qualquer grosseria por parte do general irado e, ao mesmo tempo, contagiado pela ira deste.

- Estou a perguntar-lhe: por que não me informou?

- Queria fazê-lo, barão, mas...

- Para si não sou barão mas Vossa Excelência.

Foi então que a cólera do barão, contida durante tanto tempo, acabou por rebentar. Exprimiu tudo o que havia muito se vinha acumulando na sua alma.

- Não ando a servir o meu imperador durante vinte e sete anos para que pessoas que entraram no serviço ontem aproveitem as suas relações de parentesco e, debaixo do meu nariz, mandem no que está fora das suas competências.

- Vossa Excelência! Por favor, não diga coisas injustas - interrompeu-o Vorontsov.

- Estou a dizer a verdade e não aceito que... - proferiu o general com uma irritação ainda maior.

Nesse momento entrou Mária Vassílievna, roçagando as saias e, atrás dela, uma senhora modesta, de pequena estatura — a mulher de Meller-Zakomélski.

- Deixe-se disso, barão, não foi intenção do Simon causar-lhe desgosto - disse Mária Vassílievna.

- Princesa, não estou a falar de...

- Oiça, é melhor esquecermo-nos disso. Como quem diz: uma má discussão é melhor do que uma boa discórdia26. Ah, o que estou a dizer!.. - E a princesa riu-se.

E o general zangado submeteu-se ao sorriso encantador da bela mulher. Sob o seu bigode esboçou um sorriso.

- Reconheço que não tive razão - disse Vorontsov -, mas...

- Também eu exagerei - disse Meller e estendeu a mão ao príncipe.

A paz foi restabelecida e foi decidido deixarem Hadji-Murat, provisoriamente, com Meller e, depois, mandarem-no ao comandante do flanco esquerdo.

Hadji-Murat estava na sala vizinha e, embora não compreendesse do que eles falavam, percebeu o mais necessário para ele: que estavam a discutir por causa dele e que o seu rompimento com Shamil era de suma importância para os russos e que, por isso, caso não fosse deportado nem morto, estava em condições de lhes exigir muita coisa. Além disso, compreendeu que Meller-Zakomélski, embora fosse o chefe, não tinha a mesma importância que Vorontsov, seu subordinado, e que para ele tinha mais importância a pessoa de Vorontsov do que a de Meller. Por isso mesmo, quando Meller-Zak:omélski convidou Hadji-Murat para falar e começou a fazer-lhe perguntas, este manteve um ar orgulhoso e solene, dizendo que saíra dos montes para servir o Czar Branco e que ia prestar contas ao sardar do czar, ou seja, ao comandante-em-chefe de Tiflis, príncipe Vorontsov.


7

O ferido Avdéev foi levado para o hospital instalado numa casa bastante pequena, com um telhado de ripas, junto ao portão da fortaleza; puseram-no numa enfermaria comum, numa das camas vagas. Na enfermaria já havia quatro pacientes: um doente de tifo, a agitar-se na cama com febre; outro, um homem pálido*, com olheiras, sofrendo de terçãs, a bocejar a cada instante enquanto esperava pelo paroxismo da febre; e ainda dois soldados feridos durante a última incursão, três semanas atrás — um atingido na palma da mão (este andava) e outro no ombro (estava sentado na cama). Todos, menos o tifoso, rodearam o novo ferido e puseram-se a fazer perguntas aos soldados que o trouxeram.

— Às vezes disparam tanto que parece uma chuva de ervilhas, mas não acontece nada; desta vez, deram cinco tiros, não mais, e olha para isto — estava a contar um dos soldados.

— Cada qual tem a sua sina.

— Oh! — gritou alto Avdéev, suportando a dor a grande custo, quando começaram a pô-lo na cama. Mas depois de estar deitado carregou o sobrolho e não se queixou mais, apenas mexia os pés sem parar. Apertava a ferida com as mãos e olhava em frente com os olhos imóveis.

Chegou o doutor e mandou virar o ferido, para ver se a bala saíra por trás.

— E isto o que é? — perguntou o doutor, apontando para as grandes cicatrizes brancas, cruzadas, nas costas e no traseiro.

— São coisas antigas, vossa senhoria — respondeu Avdéev, gemendo.

Eram marcas de um castigo pelo dinheiro derretido na bebedeira.

Voltaram a virá-lo de barriga para cima e o médico demorou muito a esgaravatar-lhe o abdómen com a sonda, até que encontrou a bala; mas não conseguiu extraí-la. Depois de lhe fazer urna ligadura e de a colar com um penso rápido, o doutor saiu. Enquanto o doutor lhe mexia na ferida e punha a ligadura, Avdéev manteve-se imóvel com os dentes e os olhos cerrados. Mas quando o médico se foi embora, abriu os olhos e passou o olhar à sua volta com espanto. Aparentemente, os olhos de Avdéev fitavam os doentes e o auxiliar médico, mas era corno se não os visse, corno se fixasse qualquer outra coisa que o surpreendia muito.

Chegaram de visita os camaradas de Avdéev - Panov e Serióguin. Avdéev continuava a olhar da mesma maneira surpreendida. Durante muito tempo, não reconheceu os camaradas, embora olhasse directa-rnente para eles.

— Não queres mandar dizer alguma coisa à tua famflia? - disse Panov.

Avdéev não respondeu, embora tivesse os olhos postos na cara de Panov.

— Estou a perguntar se não gostarias de mandar dizer alguma coisa à tua famflia? — insistiu Panov, tocando-lhe na mão fria e de ossos largos.

Avdéev pareceu voltar a si.

— Ah, és tu, Antónitch, vieste!

— Pois, vim. Não queres mandar dizer alguma coisa aos teus? Se-rióguin vai escrever.

— Serióguin — pronunciou Avdéev, transferindo com dificuldade os olhos para Serióguin —, vais escrever?... Então, escreve: o vosso filho Pettrukha entregou a alma a Deus... Tinha inveja do irmão. Falei-te disso, foi hoje. Mas agora estou contente. Muitos anos de vida para ele. Que Deus o ajude, estou contente. Escreve isso mesmo.

Depois de o dizer, ficou muito tempo calado, com os olhos fixos em Panov.

— Encontraste o cachimbo? — perguntou de repente.

Panov abanou a cabeça e não respondeu.

— O cachimbo, o cachimbo... encontraste-o? — repetiu Avdéev.

— Estava no saco.

— Estás a ver? Agora dai-me urna vela, vou morrer já — disse Avdéev.

Neste momento apareceu Poltorátski, de visita ao seu soldado.

— Então, amigo, dói-te? — disse ele.

Avdéev fechou os olhos e abanou negativamente a cabeça. A sua cara de maçãs salientes estava pálida e rigorosa. Não respondeu, apenas repetiu, dirigindo-se a Panov:

— Dá-me uma vela, vou morrer.

Puseram-lhe nas mãos uma vela, mas os se dedos não se dobravam, então enfiaram-lha entre os dedos e seguraram-na. Poltorátski saiu entretanto e, cinco minutos depois, o auxiliar médico apertou o ouvido ao coração de Avdéev e disse: faleceu.

No relatório mandado para Tiflis, a morte de Avdéev foi descrita da seguinte forma: «No dia 23 de Novembro, duas companhias do Regimento de Kurá saíram da fortaleza com a tarefa de cortar a floresta.»

«A meio do dia, um grupo considerável de montanheses atacou subitamente os lenhadores. A linha avançada começou a recuar, e a segunda companhia foi ao ataque de baioneta calada e pôs em fuga os montanheses. No combate, houve, entre os soldados, dois feridos ligeiros e um morto. As baixas dos montanheses foram de cerca de cem homens, entre feridos e mortos.»


8

No mesmo dia em que Petrukha Avdéev estava a morrer no hospital da fortaleza Vozdvijênskaia, o seu velho pai, a mulher do irmão na vez do qual ele se alistara no exército e a filha do seu irmão mais velho, rapariga casadoira, debulhavam a aveia na eira fria das malhadas. Na véspera tinha nevado muito e a manhã abriu com um frio de rachar. Quando o galo cantou pela terceira vez já o velho estáva acordado e, ao ver a luz da lua bater na janela gelada, desceu do catre do fogão, calçou as botas, vestiu a peliça, enfiou na cabeça o gorro e foi para a eira. Depois de ter trabalhado cerca de duas horas, o velho voltou à isbá e acordou o filho e as mulheres. Quando as mulheres e as raparigas chegaram à eira, o malhadouro já tinha sido limpo da neve funda, a pá de madeira estava espetada na neve branca e friável, junto à vassoura com o seu feixe de varas para cima, e as gavelas de aveia estavam estendidas no chão, em duas filas, espiga com espiga, como uma corda comprida em cima do malhadouro limpo. Pegaram nos malhos e começaram a trabalhar, num ritmo regular de três batidas. O velho dava golpes fortes com o malho pesado, quebrando a palha, a rapariga batia por cima, a nora virava.

A lua desapareceu, começava a amanhecer; já estavam a acabar quando Akim, o filho mais velho, de peliça curta e gorro, se aproximou dos trabalhadores.

- Porque andas tu a mandriar? - gritou-lhe o pai, interrompendo o trabalho e apoiando-se no malho.

- É preciso tratar dos cavalos.

- Tratar dos cavalos - arremedou o pai. - A velha pode tratar deles. Pega no malho. Ganhaste gordura a mais. Seu bêbedo.

- Pagaste-me a bebida ou quê? - resmungou o filho.

- O quê? - perguntou o velho, carregando com ameaça o sobrolho e deixando passar um golpe.

O filho pegou silenciosamente no malho e a malhada, agora a quatro, recomeçou: trap, ta-pa-tap, trap, ta-pa-tap... Trap - fazia a quarta pancada do malho pesado do velho.

- Olha para a tua nuca, é mesmo como a de um senhor. Eu é que tenho as calças a cair - disse o velho, perdendo a sua vez de bater e, apenas para não perder o ritmo, virando no ar o mangual.

Acabaram, e as mulheres começaram a afastar a palha com os ancinhos.

- O Petrukha foi tão parvo que se alistou por ti. A ti, lá na tropa, metiam-te na linha, e ele, cá em casa, valia cinco iguais a ti.

- Deixe lá isso, paizinho - disse a nora, atirando para o lado os atilhos partidos.

- Pois é, dou de comer a seis bocas, mas não vejo ninguém a trabalhar. O Petrukha trabucava por dois, lembro-me bem, não era como...

Pela vereda que levava do quintal à eira vinha a velha, com as alpargatas novas, por cima das grevas de lã bem apertadas, a rangerem por cima da neve batida. Os mujiques estavam a juntar o cereal, as mulheres a varrê-lo.

- Veio cá a casa o regedor. Toda a gente vai levar os tijolos para o senhor - disse a velha. - Pus o dejejum na mesa. Vindes ou quê?

- Está bem. Atrelas o Ruço e podes ir - disse o velho a Akim. - Mas vê lá, que não seja como da última vez, não quero responder pelas tuas asneiras. Se fosse o Petrukha...

- Quando Petrukha estava em casa, o pai ralhava com ele - refilou Akim -, agora, em vez dele, é a mim que mói o juízo.

— Porque mereces — disse a mãe, também zangada. — Não te compares com o Petrukha.

— Bem, chega! — disse o filho.

— Chega uma ova. Derreteste a farinha na bebedeira e dizes «chega».

— Águas passadas não movem moinhos — disse a nora, e toda a gente largou os malhos e foi para casa.

As discórdias entre o pai e o filho começaram havia muito, quase a partir do alistamento de Petrukha. Já naquela altura, o velho sentiu que dera ouro por palha. É claro que pela lei, no entender do velho, o homem sem filhos devia ir para a tropa em vez de quem tinha uma família. Akim tinha quatro filhos, Petrukha não tinha nenhum, mas era tão bom trabalhador como o pai: hábil, esperto, forte, resistente e, sobretudo, laborioso. Trabalhava sem parar. E quando passava por pessoas a trabalhar, tal como o seu pai, oferecia sempre a sua ajuda: fazia duas filas com a gadanha, ou caregava uma carroça, ou cortava uma árvore, ou cortava a lenha. O velho tinha pena dele, mas não havia nada a fazer. O recrutamento era o mesmo que a morte. O soldado era como uma mão cortada, e não valia a pena recordá-lo, avivando a dor. Raramente, e apenas para alfinetar o filho mais velho, o pai lembrava-se de Petrukha. Quanto à mãe, falava muito do seu filho mais novo e, havia muito, mais de um ano, pedia ao velho que mandasse algum dinheirinho a Petrukha. Mas o velho esquivava-se à resposta.

A casa dos Avdéev era rica e o velho tinha algum dinheiro amealhado, mas nunca ousaria mexer nas poupanças. Agora, a velha, ouvindo-o a recordar o filho mais novo, resolveu que iria pedir-lhe mais uma vez que, vendida a aveia, mandasse ao filho pelo menos um rublo. Foi o que fez. Quando os jovens foram trabalhar para o senhor e ela ficou a sós com o marido, conseguiu convencê-lo a mandar um rublo para Petrukha. Portanto, quando a aveia foi ventilada e doze alqueires foram colocados sobre as serapilheiras em três trenós, e as serapilheiras foram cuidadosamente presas com pinos de madeira, a velha deu ao marido uma carta que o salmista escrevera por ela e o velho prometeu que, na cidade, mandava a carta juntamente com um rublo.

O velho, de peliça e cafetã novos, com grevas limpas de lã branca nos pés, pegou na carta, guardou-a na carteira e, depois de rezar a Deus, sentou-se no trenó da frente e partiu para a cidade. No trenó de trás ia o seu neto. Na cidade, o velho pediu a um guarda-portão que lhe lesse a carta e ouviu-a com atenção e aprovação.

Na carta da mãe de Petrukha era dada, em primeiro lugar, a bênção, em segundo eram mandados os cumprimentos de toda a gente e, finalmente, era dada a notícia de que Aksínia (a mulher de Petrukha) não quisera viver com eles e tinha ido trabalhar como criada. Que se ouvia falar que ela «vivia bem e honestamente». Mencionava-se o rublo e acrescentava-se o que a velha entristecida, com lágrimas nos olhos, mandara escrever palavra por palavra:

«E ainda, meu filhinho querido, meu pombinho Petrúchenka, desfiz-me em lágrimas, com tantas saudades tuas. Meu sol, meu filho, por que me abandonaste?..» Neste lugar a velha gemeu, chorou e disse:

- Que fique assim.

E ficou assim, mas o destino não quis que Petrukha recebesse nem a notícia de que a sua mulher se fora embora de casa, nem o rublo, nem as derradeiras palavras da mãe. A carta e o dinheiro voltaram para trás juntamente com a notícia de que Petrukha fora morto na guerra, «defendendo o czar, a Pátria e a fé cristã». Assim a redigiu o escrivão do regimento.

A velha, quando recebeu a notícia, chorou, enquanto teve tempo para isso, depois voltou ao trabalho. Logo no domingo seguinte foi à igreja, mandou rezar uma missa de requiem, inscreveu o Petrukha na lista de amenta pelos defuntos e distribuiu bocadinhos de pão sagrado à boa gente em memória do Piotr, servo de Deus.

A viúva Aksínia também chorou um pouco quando soube da morte do caro marido, com quem tinha vivido apenas um ano. Lamentou o marido e toda a sua vida estragada e, carpindo, recordou o cabelo ruço de Piotr e o seu amor e a sua vida amarga com o órfao Vanka, e censurava Piotr por ter tido pena do seu irmão mas não dela, pois não tivera piedade da desgraçada, deixada a passar a vida em casas alheias.

Porém, no fundo da alma, Aksínia estava contente com a morte de Piotr. O fiel de armazém com quem ela vivia voltara a engravidá-la e por isso, agora, já ninguém podia censurá-la, além de que poderia finalmente casar-se com ela, tal como lhe prometera quando a andava a seduzir.


9

Mikhail Semiónovitch Vorontsov, criado na Inglaterra, era filho do embaixador russo, sendo que, no seio dos altos funcionários russos, um homem de educação europeia era raro naqueles tempos; era ambicioso, meigo e carinhoso para com os subordinados e um cortesão esmerado com os superiores. Não compreendia a vida sem o poder e sem a obediência. Tinha todas as patentes e condecorações mais altas, e era considerado um chefe militar habilidoso, vencedor de Napoleão em Krásnoe. Em 1851 passava dos setenta anos, mas estava ainda fresco, mantendo toda a energia física e, sobretudo, toda a habilidade do intelecto fino e afável necessário para conservar o seu poder e consolidar, e também aumentar, a sua popularidade. Possuía uma grande fortuna - sua própria e da sua mulher, condessa Branítskaia - e um enorme vencimento como governador-geral, e gastava a maior parte dos seus recursos na construção de um palácio e de um parque na costa sul da Crimeia.

Na noite de 4 de Dezembro de 1851, uma troica da posta chegou ao seu palácio em Tiflis. Um oficial fatigado, negro de pó, trazendo a notícia de que Hadji-Murat entrara em comunicação com os russos, passou, desentorpecendo as pernas, ao lado das sentinelas e subiu a escada larga do palácio do governador. Eram seis da tarde, e Vorontsov ia almoçar quando lhe anunciaram a chegada do correio. O príncipe recebeu o correio sem demora, por isso atrasou-se alguns minutos para o almoço. Quando entrou na sala de estar, os convidados, cerca de trinta pessoas - umas sentadas ao lado da princesa Elisave-ta Ksavérievna, outras reunidas em grupos junto às janelas - levantaram-se e viraram-se para o príncipe. Vorontsov envergava a sua habitual sobrecasaca militar preta, sem dragonas, apenas com pequenas platinas, e com a ordem da cruz branca ao pescoço. A sua cara de raposa, rapada, esboçava um sorriso afável e observava os convivas com os olhos semicerrados.

Entrou na sala num passo suave e rápido, pediu desculpa às senhoras pelo atraso, cumprimentou os homens e aproximou-se da princesa georgiana Manana Orbeliáni, uma beldade alta e corpulenta de quarenta e cinco anos, com traços de rosto mediterrâneos, e ofereceu-lhe o braço para a levar à mesa. A princesa Elisaveta Ksavérievna ofereceu o braço a um general de cabelo arruivado e pêlos do bigode como cerdas, que estava em Tiflis de visita. O príncipe georgiano deu o braço à condessa Choiseul, amiga da princesa. O doutor Andreévski, o ajudante-de-campo e os outros, com senhoras ou sem elas, seguiram os três pares. Os lacaios de cafetãs, meias e sapatos afastavam as cadeiras e, depois, chegavam-nas aos convidados para se sentarem, o mordomo servia com solenidade a sopa fumegante da terrina de prata.

Vorontsov sentou-se no meio da mesa comprida. Em frente dele sentou-se a princesa, sua mulher, e o general. À sua direita ficou o seu par, a bela Orbeliáni, e à sua esquerda a jovem princesa georgiana, es-belta, morena, de faces coradas, com jóias brilhantes e um sorriso permanente na cara.

- Excellentes, chère amie — respondeu Vorontsov à pergunta da mulher sobre as notícias que lhe trouxera o correio. — Simon a eu de la chance27.

E pôs-se a contar alto, para que todos os comensais pudessem ouvir, a notícia impressionante - aliás, era o único para quem não era propriamente uma novidade, uma vez que as conversações se tinham realizado desde há muito -, a notícia de que Hadji-Murat, o famoso e o mais destemido braço-direito de Shamil, se entregara aos russos e, de um dia para outro, ia ser trazido a Tiflis.

Todos os convidados, inclusivamente os jovens, ajudantes-de-cam-po e funcionários, sentados nos extremos da mesa e que até então estavam a rir-se discretamente, calaram-se e puseram-se a ouvir.

- O general alguma vez viu esse Hadji-Murat? - perguntou a princesa ao seu vizinho, o general ruivo com bigode cerdoso, quando o príncipe acabou de falar.

- Por mais de uma vez, princesa.

E o general contou como, em 1843, depois da tomada de Guergue-bil pelos montanheses, Hadji-Murat esbarrara com o destacamento do general Pássek e como, à vista deles, por pouco não matara o coronel Zolotúkhin.

Vorontsov estava a ouvir o general com um sorriso afável, pelos vistos agradado por o general desatar finalmente a língua. De repente, porém, a cara de Vorontsov adquiriu uma expressão distraída e desalentada.

O entusiasmado general passou a relatar o seu segundo encontro com Hadji-Murat.

- Foi ele mesmo - dizia o general -, Vossa Alteza tem de se lembrar disso, quem fez uma emboscada (na altura do «socorro» durante a «expedição das galetas»28).

— Onde foi isso? — perguntou Vorontsov, estreitando os olhos.

Acontecia que o corajoso general chamava de «socorro» àquele

episódio da infeliz campanha de Dargo, em que todo o destacamento comandado por Vorontsov teria sido exterminado se não fosse socorrido pelas tropas de reforço. Era do conhecimento geral o facto de que toda a campanha de Dargo sob o comando de Vorontsov, em que os russos perderam muitos soldados, mortos e feridos, e vários canhões, foi um acontecimento vergonhoso e, por isso, se alguém chegava a mencioná-lo na presença de Vorontsov, fazia-o apenas no sentido que este lhe dera no relatório apresentado ao czar, ou seja, que tinha sido uma brilhante façanha das tropas russas. Ora, a palavra «socorro» apontava directamente para o erro que custara a vida a tantas pessoas e não para uma façanha brilhante. Todos os presentes o perceberam; alguns fingiam não se dar conta do real significado das palavras do general, outros receavam o que iria seguir-se; havia quem, sorrindo, trocasse olhares. O general ruivo com o bigode de cerdas era o único a não reparar em nada; entusiasmado com a história que contava, respondeu com calma:

— Durante o socorro, Vossa Alteza.

E, dada corda ao seu tema preferido, o general contou em pormenor como «esse Hadji-Murat cortara o destacamento ao meio com tanta destreza que, se não chegasse o socorro (parecia repetir a palavra «socorro» com especial afeição), teria sido o fim de nós todos porque... »

O general não teve tempo de contar tudo porque Manana Orbeliá-ni, ao compreender de que se tratava, interrompeu o general, pondo-se a perguntar-lhe se estava alojado com conforto em Tiflis. O general, surpreendido, olhou para todos e, muito especialmente, para o seu ajudante-de-campo que, sentado no extremo da mesa, lhe dirigia um olhar persistente e significativo — e de repente compreendeu. Sem responder à princesa, carregou o sobrolho, calou-se e apressou-se a comer, sem mastigar, uma iguaria delicada de aspecto e até de sabor incompreensíveis para ele.

Todos se sentiram embaraçados, mas o príncipe georgiano, muito estúpido, mas um bajulador palaciano ' incrivelmente esmerado e hábil, sentado defronte da princesa Vorontsov, remediou a situação. Como se não tivesse reparado em nada, começou a contar em voz alta como Hadji-Murat raptara a viúva do Cão Akhmet de Mekhtuli:

- Entrou na povoação de noite, levou o que precisava e fugiu com todos os seus homens.

- Mas porque quis levar precisamente essa mulher? - perguntou a princesa.

- Porque era inimigo do marido. Perseguiu o Cão mas não chegou a apanhá-lo porque este morreu; portanto, vingou-se na viúva.

A princesa traduziu-o para francês à condessa Choiseul, sua amiga, sentada do lado do príncipe georgiano.

- Quelle horreur! - disse a condessa, fechando os olhos e abanando a cabeça.

- Oh, não - disse Vorontsov com sorriso -, disseram-me que ele tratara a prisioneira com respeito cavaleiresco e que depois a pôs em liberdade .

- Sim, recebendo um resgate.

- Obviamente, e mesmo assim procedeu com nobreza.

Estas palavras do príncipe deram o tom para mais histórias sobre Hadji-Murat. Os palacianos perceberam que quanta mais importância atribuíssem a Hadji-Murat, tanto mais agradavam a Vorontsov.

- Esse homem é de uma coragem espantosa! Uma pessoa notável!

- Pois é, em 1849, irrompeu em pleno dia em Temir-Cão-Chura e assaltou várias lojas.

Um arménio sentado no extremo da mesa, e que naquela altura estava em Temir-Cão-Chura, contou os pormenores dessa proeza de Hadji-Murat. Em geral, durante todo o almoço apenas se contaram histórias sobre Hadji-Murat. Toda a gente se mostrava pressurosa em elogiar a sua coragem, a sua esperteza e a sua magnanimidade. Alguém contou que, numa ocasião, ele mandara matar vinte e seis prisioneiros; porém, para isso também foi arranjada habitual objecção:

- Nada a fazer! À la guerre comme à la guerre29.

- É um grande homem.

- Se nascesse na Europa, talvez desse um novo Napoleão - proferiu o estúpido príncipe georgiano que possuía o dom da bajulação.

Sabia que uma menção qualquer a Napoleão era agradável para o príncipe Vorontsov com a sua cruz branca ao pescoço, outorgada pela vitória precisamente sobre Bonaparte.

- Napoleão talvez não, mas um bravo general da cavalaria com certeza - disse Vorontsov.

- Se não Napoleão, então Murat.

- O nome dele, aliás, é Hadji-Murat.

— Hadji-Murat entrou em comunicação, será o fim de Shamil — disse alguém.

— Eles estão a sentir que agora (este agora significava na gover-nação de Vorontsov) não poderão resistir — disse outro.

. — Tout cela est grâce à vous30 — disse Manana Orbeliáni.

O príncipe Vorontsov tentava moderar as ondas de bajulação que já começavam a inundá-lo. Mesmo assim, gostava e, acabado o almoço, ia numa óptima disposição de ânimo quando levou a sua dama à sala de estar.

Na sala, quando estavam a servir café, o príncipe mostrou-se muito carinhoso com toda a gente e foi falar com o general do bigode cer-doso, tentando dar-lhe a entender que não reparara no lapso dele.

Depois de conceder atenção a todos os convidados, o príncipe sentou-se a jogar as cartas. Jogava exclusivamente o antigo jogo l’hom-bre. Jogavam com Vorontsov o príncipe georgiano, o general arménio que aprendera a jogar l’hombre com o criado grave de Vorontsov e, finalmente, o doutor Andreévski, famoso pela sua influência.

Depois de ter posto a seu lado uma tabaqueira de ouro com retrato de Alexandre I, Vorontsov dedilhou velozmente o baralho acetinado e ia já dispor as cartas na mesa quando entrou o criado grave, o italiano Giovanni, com uma carta na bandeja de prata.

— Mais um correio, Vossa Alteza.

Vorontsov largou as cartas, pediu desculpa, abriu o sobrescrito e começou a ler.

A carta era do seu filho. Descrevia o aparecimento de Hadji-Murat e a desavença com Meller-Zakomélski.

A princesa aproximou-se do marido e perguntou-lhe o que contava o filho .

— Escreve sobre mesma coisa. Il a eu quelques désagréments avec le commandant de la place. Simon a eu tort. But all is well what ends welí31 — disse ele, entregando a carta à mulher e, dirigindo-se aos parceiros que esperavam respeitosamente, pediu para pegarem nas cartas.

Quando as cartas foram dadas, Vorontsov abriu a tabaqueira com o retrato em miniatura de Alexandre I e fez o que costumava fazer quando estava muito bem-humorado: tirou com a mão senil e branca uma pitada de tabaco francês, levou-a ao nariz e inalou.


10

Quando, no dia seguinte, Hadji-Murat compareceu ao encontro com o governador-geral Vorontsov, a sala de espera estava apinhada de gente. Encontravam-se ali o general, aquele do bigode cerdoso, de uniforme completo e condecorações, que fora despedir-se; um comandante regimental, que estava sob a ameaça de um processo judicial, acusado de infracções no aprovisionamento do regimento; um ricaço arménio, protegido do doutor Andreévski, que era concessionário do comércio de vodca e, nesse momento, tentava conseguir a renovação do contrato; a viúva enlutada de um oficial morto em combate, que pretendia pedir uma pensão, ou o mantimento para os filhos da parte do erário público; um príncipe georgiano arruinado, de magnífico trajo tradicional, solicitando para si uma abolida propriedade da igreja; um chefe da polícia com um embrulho grande que continha o projecto de um novo método para conquistar o Cáucaso; e um Cão que apenas ali se encontrava para depois poder contar em casa que visitara o príncipe.

Todos esperavam a sua vez e, um a um, eram introduzidos no gabinete do príncipe pelo ajudante-de-campo, um jovem loiro e bonito.

Quando Hadji-Murat entrou, em passo enérgico e coxeando ligeiramente, na sala de espera todos os olhos se viraram para ele, e ouviu o seu nome pronunciado em sussurro em todos os cantos.

Hadji-Murat envergava uma tcherkeska branca e comprida por cima de um bechmet castanho com gola adornada por um fino galão prateado. Calçava as nogovitsas pretas e os tchuviakes da mesma cor que lhe apertavam os pés como luvas; na cabeça levava um gorro com turbante, aquele mesmo turbante por causa do qual, denunciado pelo Cão Akhmet, fora preso pelo general Klugenau, o que condicionara a sua passagem para o lado de Shamil. Hadji-Murat andava em passadas rápidas pelo parqué da sala de recepção, baloiçando toda a sua figura fina de uma perna, mais curta, para a outra. Os seus olhos muito afastados olhavam calmamente em frente e pareciam não ver ninguém à sua volta.

O ajudante-de-campo bonitão cumprimentou Hadji-Murat e convidou-o a sentar-se, enquanto anunciava a sua chegada ao príncipe, mas Hadji-Murat recusou-se a sentar-se e, com uma mão metida por trás do punhal e uma perna afastada, continuou de pé, observando com desprezo todos os presentes.

O intérprete, príncipe Tarkhánov, aproximou-se de Hadji-Murat e falou com ele. Hadji-Murat respondia a contragosto e de forma en-trecortada. Do gabinete saiu um príncipe kumique, que tinha ido queixar-se do chefe da polícia, e a seguir o ajudante-de-campo chamou Hadji-Murat, acompanhou-o até à porta e fê-lo entrar no gabinete.

Vorontsov recebeu Hadji-Murat de pé, ao lado da mesa. A cara velha e branca do comandante-em-chefe não estava sorridente como na véspera, mas rigorosa e solene.

Ao entrar na sala espaçosa com uma mesa enorme e janelas grandes com gelosias verdes, Hadji-Murat apertou as mãos bastante pequenas e bronzeadas contra aquele lugar do peito onde se cruzavam as bandas da tcherkeska e disse vagarosa, nítida e respeitosamente na língua kumique que dominava muito bem:

- Entrego-me à alta protecção do grande czar e do senhor. Prometo servir lealmente, até à última gota de sangue, o Czar Branco e espero ser útil na guerra contra Shamil, inimigo meu e vosso.

Ao ouvir o intérprete, Vorontsov olhou para Hadji-Murat e Hadji-Murat olhou Vorontsov na cara.

Os olhares cruzados destes dois homens diziam um ao outro muita coisa inexprimível em palavras e muito diferente do que dissera o intérprete. Sem palavras, exprimiam frontalmente toda a verdade: os olhos de Vorontsov diziam que não acreditava em nenhuma palavra de Hadji-Murat, que sabia que este, inimigo de tudo o que era russo, ia ficar assim para sempre e que agora se submetia apenas porque a isso tinha sido obrigado. Hadji-Murat compreendia-o, mas continuava a afirmar a sua lealdade. Quanto aos olhos de Hadji-Murat, diziam que o velho deveria pensar na morte, e não na guerra, mas que, apesar de velho, era astuto e se tornava necessário ter cuidado com ele. E Vorontsov também o entendia, e mesmo assim continuava a dizer a Hadji-Murat tudo o que achava necessário para o êxito da guerra.

- Diz-lhe - dirigiu-se Vorontsov ao intérprete (tratava os jovens oficiais por tu) - que o nosso soberano é tão misericordioso quanto poderoso e que, a meu pedido, vai provavelmente perdoar-lhe e admiti-lo ao seu serviço. Traduziste? - perguntou, olhando para Hadji-Murat. - Diz-lhe que, até eu receber a decisão benevolente do meu soberano, me encarego de lhe oferecer a minha hospitalidade e lhe garantir aqui uma estada agradável.

Hadji-Murat voltou a levar a mão ao peito e começou a falar com entusiasmo.

Disse, como o intérprete traduziu, que já antes, em 1839, quando governava a Avária, servia lealmente os russos e nunca os teria traído se o Cão Akhmet, seu inimigo, não quisesse acabar com ele e não o caluniasse perante o general Klugenau.

- Eu sei, eu sei - disse Vorontsov (embora, mesmo que o soubesse, havia muito que se esquecera de tudo isso). - Sei - disse ele, sentando-se e indicando a Hadji-Murat o sofá junto à parede. Hadji-Murat, porém, não se sentou, encolheu os seus robustos ombros em sinal de que não se atrevia a sentar-se na presença de senhor tão importante.

- O Cão Akhmet e Shamil são ambos meus inimigos - continuou, dirigindo-se ao intérprete. - Diz ao príncipe: o Cão Akhmet morreu e não me pude vingar dele, mas Shamil está ainda vivo, e não morro sem que me pague o que fez.

- Pois, pois — disse calmamente Vorontsov. - Mas como é que pensa vingar-se de Shamil? - disse ao intérprete. — A propósito, diz-lhe que se pode sentar.

Hadji-Murat voltou a recusar-se e respondeu à pergunta traduzida afirmando que tinha sido precisamente a sua intenção de aniquilar Shamil que o levara a encontrar-se com os russos.

- Está bem, está bem — disse Vorontsov. - Mas o que é que, concretamente, ele quer fazer? Senta-te, senta-te.

Hadji-Murat sentou-se e disse que, se o mandassem para a linha de Lezguistão e lhe dessem tropas, garantia que sublevava todo o Da-guestão e que, nesse caso, Shamil não poderia resistir.

- Muito bem. É possível - disse Vorontsov. - Vou pensar nisso.

O intérprete traduziu. Hadji-Murat ficou pensativo.

- Diz ao sardar - acrescentou - que a minha família está nas mãos do meu inimigo e que, enquanto a minha família estiver nos montes, tenho as mãos atadas e não posso fazer nada. Ele mataria a minha mulher, a minha mãe, os meus filhos, se eu avançasse abertamente contra ele. Que o príncipe liberte a minha família, que a troque por uns prisioneiros e, então, ou morro ou extermino Shamil.

- Está bem, está bem - disse Vorontsov. - Vamos pensar nisso. Agora, que vá falar com o chefe do estado-maior e que lhe exponha em pormenor a sua situação, as suas intenções e os seus desejos.

Assim acabou o primeiro encontro de Hadji-Murat com o príncipe Vorontsov.

No mesmo dia, à noite, no teatro arranjado no novo estilo oriental, exibiam uma ópera italiana. Vorontsov estava no seu camarote; na plateia apareceu a notável figura de Hadji-Murat, manco, com o turbante na cabeça. Entrou acompanhado por Loris-Mélikov, ajudan-te-de-campo de Vorontsov, posto à sua disposição, e sentou-se na primeira fila. Depois de assistir ao primeiro acto com uma dignidade oriental, muçulmana, não só sem qualquer expressão de espanto, mas com um ar de absoluta indiferença, Hadji-Murat levantou-se e, olhando com calma para os espectadores, saiu, atraindo a atenção de toda a assistência.

O dia seguinte era uma segunda-feira, o dia de os Vorontsov receberem os convidados em sua casa. Numa grande sala fortemente iluminada, soava uma música escondida vinda do jardim de Inverno. As mulheres, jovens e menos jovens, com vestidos que lhes destapavam os pescoços, os braços e quase os peitos, valsavam abraçadas pelos homens de fardas vistosas. Junto ao bufete, os lacaios de casacas vermelhas, meias e sapatos serviam champanhe e ofereciam confeitos às senhoras. A mulher do «sardar», que, apesar da sua idade avançada, estava também seminua, deambulava no meio dos convidados com um sorriso amável e, por intermédio do intérprete, disse algumas palavras carinhosas a Hadji-Murat que, tal como no teatro, observava os convidados com indiferença. Depois da anfitriã, outras senhoras aproximavam-se de Hadji-Murat e, todas elas, sem se envergonharem, paravam diante dele, sorriam e perguntavam-lhe a mesma coisa: se gostava do que estava a ver. O próprio Vorontsov, com dragonas e agulhetas douradas, a cruz branca e uma fita, foi ter com ele e perguntou-lhe a mesma coisa, certamente convencido, como todos os outros, de que Hadji-Murat não podia não gostar do que estava a ver. E Hadji-Murat respondeu a Vorontsov a mesma coisa que tinha respondido aos outros: que entre os seus isso não existia - sem especificar se era bom ou mau o facto de entre eles não existir nada daquilo.

Hadji-Murat também no baile tentou falar com Vorontsov sobre o seu problema, o do resgate da família, mas Vorontsov fez de conta que não o ouviu e afastou-se dele. Ora, Loris-Mélikov disse depois a Hadji-Murat que o lugar não era apropriado para se falar de assuntos sérios.

Quando o relógio da sala bateu as onze horas e Hadji-Murat verificou as horas no seu Breguet, prenda de Mária Vassílievna, perguntou a Loris-Mélikov se já podia ir-se embora. Loris-Mélikov respondeu que podia, mas que seria melhor se ficasse. Apesar disso, Hadji-Murat não ficou, partindo, no faetonte posto à sua disposição, para o apartamento em que fora alojado.


11

No quinto dia da estada de Hadji-Murat em Tiflis, Loris-Mélikov foi a casa dele por ordem do comandante-em-chefe.

— A minha cabeça e as minhas mãos estão felizes por servirem o sardar — disse Hadji-Murat com a sua habitual expressão diplomática, inclinando a cabeça e apertando a mão contra o peito. — Manda — disse, olhando Loris-Mélikov nos olhos, com carinho.

Loris-Mélikov sentou-se na poltrona junto à mesa. Hadji-Murat acomodou-se em frente dele, num sofá baixo, apoiou as mãos nos joelhos, inclinou a cabeça e começou a ouvir com atenção. Loris-Mélikov, que falava tártaro fluentemente, disse que o príncipe, embora conhecesse o passado de Hadji-Murat, desejava conhecê-lo contado por ele próprio.

— Conta-me a tua história — sugeriu Loris-Mélikov — e eu vou escrevendo, depois traduzo-a para o russo e o príncipe manda-a a Sua Majestade.

Hadji-Murat, durante algum tempo, guardou silêncio (não só nunca interrompia o seu interlocutor como ainda esperava, para o caso de este dizer mais alguma coisa), depois levantou a cabeça, colocou o gorro na nuca e esboçou um sorriso especial, infantil, o sorriso com que encantara Mária Vassílievna.

— Posso contar — disse, aparentemente lisonjeado com a ideia de que a sua história seria lida pelo próprio czar.

— Conta-me (em tártaro, o «você» não existe) tudo desde o início, sem pressas — disse Loris-Mélikov, tirando do bolso um bloco de notas .

— Posso contar, só que há muita, muita coisa para contar. Muita coisa aconteceu — disse Hadji-Murat.

— Se não acabares num dia, contas o resto noutro dia — respondeu Loris-Mélikov.

— Conto desde o princípio?

— Sim, desde o início: onde nasceste, onde viveste.

Hadji-Murat baixou a cabeça e ficou muito tempo nesta posição;

depois pegou num pauzinho que estava no chão ao lado do sofá, tirou de trás do punhal, com o cabo de marfim engastado de ouro, uma faca damasquina, bem afiada, e começou a cortar o pauzinho, ao mesmo tempo que contava.

— Escreve: nasci em Tselmes, aúl pequeno, do tamanho da cabeça de um burro, como se diz entre nós, lá nos montes. Perto de nós, a dois tiros, ficava Khunzakh, onde viviam os Cãos. E a nossa família tinha relações próximas com eles. A minha mãe amamentou o Cão mais velho, Abununtsal, por isso fiquei chegado aos Cãos. Eram três: o Cão Abununtsal, irmão de leite do meu irmão Osman, o Cão Um-ma, de quem me tomei irmão, e o Cão Bulatch, o mais novo, a quem Shamil viria a atirar do precipício. Mas isso foi mais tarde. Eu tinha quinze anos quando os murides começaram a andar pelos aúles. Batiam nas pedras com sabres de madeira e gritavam: «Muçulmanos ha-zavat32!» Todos os tchetchenos passaram para o lado dos murides e os ávaros começaram a juntar-se aos tchetchenos. Naquela altura, eu vivia no palácio. Era como um irmão para os Cãos. Fazia o que me apetecia, fiquei rico. Tinha cavalos, tinha dinheiro. Vivia a meu bel-prazer, não me preocupava com nada. E vivi assim até que o Kazi-Mulá foi morto e Gamzat ocupou o seu lugar. Gamzat mandou os seus mensageiros para disserem aos Cãos que, se não aderissem ao hazavat, ele arrasava Khunzakh. Era preciso pensar bem. Os Cãos tinham medo dos russos, tinham medo de aderir ao hazavat, e a mãe deles mandou-me, com o Cão Umma, seu segundo filho, a Tiflis, para pedirmos ao principal chefe russo que nos protegesse de Gamzat.

O chefe principal era o barão Rosen. Recusou-se a receber o Cão Umma e a mim. Mandou dizer-nos que dava ajuda, mas não fez nada. Apenas os seus oficiais começaram a visitar-nos e a jogar as cartas com o Cão Umma. Embebedavam-no e levavam-no para casas indecentes, e ele perdeu às cartas tudo o que tinha. De corpo, era forte como o touro e corajoso como o leão, mas de alma era fraco como a água. Teria perdido no jogo os últimos cavalos e as armas, se eu não o levasse de lá. Depois de Tiflis, as minhas ideias mudaram, comecei a convencer os jovens Cãos e a mãe deles a aderirem ao hazavat.

— Mas porque mudaste de ideias? — perguntou-lhe Loris-Méli-kov. — Não gostaste dos russos?

Hadji-Murat demorou a responder.

— Não, não gostei — disse resolutamente e fechou os olhos. — Ainda aconteceu mais uma coisa que fez com que eu decidisse aderir ao hazavat.

— Que coisa?

— Junto a Tselmes, eu e o Cão esbarrámos com três murides, dois deles fugiram e matei o terceiro à pistola. Quando fui ao pé dele para lhe tirar armas, estava ainda vivo. Olhou para mim. Disse: «Mataste-me. Estou contente. Mas és muçulmano, és jovem e forte, adere ao hazavat. É a vontade de Deus.»

- Então, aderiste?

- Não aderi, mas comecei a pensar - respondeu Hadji-Murat. E continuou a sua história:

- Quando Gamzat chegou às portas de Khunzakh, mandámos-lhe os nossos anciãos para lhe dizerem que estávamos de acordo, que íamos aderir ao hazavat, só que nos devia mandar um sábio para explicar como é que se cumpria o hazavat. Gamzat, então, deu ordem para raparem os bigodes aos velhos, para lhes furarem as narinas, para lhes pendurarem rodelas nos narizes e os mandarem para trás. Os anciãos disseram que Gamzat estava pronto a enviar um xeque que nos ensinaria o hazavat, mas sob a condição de que a mãe dos Cãos lhe mandasse o seu filho mais novo como amanat33. A mãe acreditou e deixou que o seu filho Cão Bulatch fosse ter com Gamzat. Este recebeu bem o Cão Bulatch e enviou-nos um mensageiro a convidar para sua casa também os irmãos mais velhos, dizendo que queria servir os Cãos como o seu pai tinha servido o pai deles. A mãe dos Cãos era uma mulher fraca, estúpida e atrevida, como todas as mulheres que vivem de acordo com a sua vontade. Teve medo de mandar ambos os filhos e mandou só o Cão Umma. Fui com ele. Faltava-nos uma vers-tá de caminho quando os murides vieram ao nosso encontro, cantando, dançando e galopando à nossa volta. Quando chegámos, Gamzat saiu da tenda, aproximou-se do estribo do Cão Umma e recebeu-o com honras de Cão. Disse: «Não fiz nenhum mal à vossa casa nem quero fazê-lo. Peço apenas que não me mateis e não me impeçais de converter as pessoas ao hazavat. E vou servir-vos com todo o meu exército, como o meu pai servia o vosso. Deixai-me viver em vossa casa. Vou ajudar-vos com os meus conselhos, e fazei o que desejardes.» O Cão Umma era inepto na fala. Não sabia o que dizer e calava-se. Então eu disse que, se fosse assim, que Gamzat fosse para Khunzakh; o Cão e a sua mãe iriam recebê-lo com todas as honras. Porém, não me deixaram dizer tudo porque dei de caras, pela primeira vez, com o Shamil. Estava ali, ao lado do imã.

«Não é a ti que perguntam, mas ao Cão» - disse-me ele.

Calei-me e Gamzat levou o Cão Umma para a tenda. Depois, Gam-zat chamou-me e deu-me ordem para ir com os seus emissários a Khunzakh. Fui. Os emissários começaram a convencer a mãe para que deixasse também o Cão mais velho ir encontrar-se com Gamzat. Desconfiei que havia ali traição e disse à mãe dos Cãos que não mandasse o filho. Mas uma mulher tem tanto juízo quanto um ovo tem cabelo. Ela acreditou e disse ao filho que fosse. Abununtsal não quis. Então, ela disse: «Acho que tens medo.» Tal como a abelha, ela sabia em que lugar a sua picada doía mais. Abununtsal esquentou-se, não falou mais com ela e mandou selar o cavalo. Fui com ele. Gamzat recebeu-nos ainda melhor do que ao Cão Umma. Ele próprio foi ao nosso encontro à distância de dois tiros do acampamento. Atrás dele, iam os homens a cavalo com estandartes, cantando «La-illakha il alla», disparando e galopando à nossa volta. Quando chegámos ao acampamento, Gamzat levou o Cão para a tenda, enquanto eu ficava com os cavalos. Eu encontrava-me no sopé do monte, quando na tenda de Gamzat começaram os tiros. Fui a correr até à tenda. O Cão Umma estava de bruços num charco de sangue, Abununtsal estava a lutar com os murides. Metade da sua cara estava cortada com as carnes penduradas. Segurava-a com uma mão e, com outra, acutilava com o punhal todos que se aproximavam dele. Na minha presença, matou o irmão de Gamzat e já ia atacar o outro, mas os murides dispararam e ele caiu.

Hadji-Murat calou-se, a sua cara bronzeada enrubesceu, os olhos raiaram-se-lhe de sangue.

- O medo dominou-me e fugi.

- Como? — disse Loris-Mélikov. — Pensava que nunca tinhas medo de nada.

- Depois disso nunca mais tive medo. Nunca mais me esqueci dessa vergonha e, quando a recordava, não tinha medo de nada.


12

— Agora chega. São horas da oração — disse Hadji-Murat. E tirou do bolso interior da tcherkeska o Breguet de Vorontsov, premiu com cuidado a corda e pôs-se a ouvir, com a cabeça inclinada para o lado e contendo um sorriso infantil. O relógio tocou doze vezes e deu também o quarto.

— Kunak Vorontsov pechkech — disse, sorrindo.

— Sim, é um bom homem, muito bom — disse Loris-Mélikov. — E o relógio também é bom. Então vai lá, vai rezar, eu espero.

- Iakchi, está bem — disse Hadji-Murat e foi para o seu quarto.

Ao ficar sozinho, Loris-Mélikov anotou o mais importante do que

Hadji-Murat lhe contara, depois acendeu um cigarro e começou a andar para frente e para trás pela sala. Quando se acercou da porta oposta à do quarto, ouviu as vozes animadas dos homens que falavam rapidamente em tártaro. Percebeu que eram os murides de Hadji-Murat, abriu a porta e entrou.

No quarto, pairava aquele cheiro especial, azedo, a couro, típico dos montanheses. Perto da janela, Gamzalo, ruivo e zarolho, de bech-met roto e sebento, estava sentado no chão sobre a burka e trançava uma cabeçada. Dizia qualquer coisa, excitadamente, com a sua voz rouca, mas calou-se logo que Loris-Mélikov entrou e, sem lhe prestar mais atenção, continuou o seu trabalho. Em frente deste estava o alegre Khan-Magoma que, arreganhando os seus dentes brancos e com os olhos negros sem pestanas brilhando intensamente, repetia sempre a mesma coisa. O bonitão Eldar, com as mangas arregaçadas nos braços fortes, estava a esfregar as ventrilhas da sela pendurada no prego. Khanefi, o principal servidor e responsável pelos bens de Hadji-Murat, não se encontrava no quarto. Estava na cozinha, a preparar o almoço.

- O que estavam a discutir? - perguntou Loris-Mélikov a Khan-Magoma, depois de o cumprimentar.

- Ele não pára de elogiar Shamil - respondeu Khan-Magoma, estendendo a mão a Loris. - Diz que Shamil é um grande homem. Ele é sábio, ele é santo, ele é djiguit.

- Mas como é, ele largou-o e continua a elogiá-lo?

- Pois, largou-o, mas gaba-o - disse Khan-Magoma, mostrando os dentes e com os olhos a brilharem.

- Então, achas que ele é santo? - perguntou Loris-Mélikov.

- Se não fosse santo, o povo não lhe obedecia - disse Gamzalo rapidamente.

- O santo não era Shamil, mas Mansur - disse Khan-Magoma. - Era um verdadeiro santo. Quando ele era o imã, todo o povo era outro. Andava pelos aúles e o povo saía ao seu encontro, beijava as abas da sua tcherkeska e confessava-lhe os pecados, e jurava que não iria fazer o mal. Os velhos dizem: naquele tempo, todas as pessoas viviam como santos, não fumavam, não bebiam, não se esqueciam da oração, perdoavam as ofensas uns aos outros, até perdoavam o sangue. Naquele tempo, se alguém encontrava dinheiro ou coisas perdidas, atava o achado a uma vara e punha-a no caminho. Então, também Deus dava ao povo boa sorte em tudo, não era como agora.

- Agora também não se fuma nem se bebe nos montes - retor-quiu Gamzalo.

- O teu Shamil é lamaroi - disse Khan-Magoma, piscando o olho a Loris-Mélikov.

«Lamaroi» era um nome pejorativo para os montanheses.

- Lamaroi é montanhês. É nos montes que vivem as águias - respondeu Gamzalo.

- Boa! Arrasaste-me! - disse Khan-Magoma, mostrando os dentes, muito contente com a resposta hábil do seu adversário.

Ao ver uma cigarreira de prata na mão de Loris-Mélikov, pediu um cigarro. E, quando este observou: como podia ser, se eram proibidos de fumar? - Khan-Magoma piscou o olho e apontou com a cabeça para o quarto de Hadji-Murat. - Pode ser - disse -, enquanto ninguém vê. E pôs-se a fumar, sem inspirar o fumo e juntando desajeita-damente os seus lábios vermelhos quando soprava o fumo.

- Fazes mal - disse severamente Gamzalo e saiu. Khan-Magoma piscou o olho, apontando também para ele e, fumando, começou a perguntar a Loris-Mélikov onde era melhor comprar um bechmet de seda e um gorro branco.

- Então, tens muito dinheiro?

- Tenho, dá para isso - respondeu Khan-Magoma, com mais uma piscadela.

- Pergunta-lhe onde arranjou dinheiro - disse Eldar, virando para Loris a sua cabeça bonita e sorrindo.

- Ganhei-o ao jogo - respondeu Khan-Magoma de imediato.

E contou como, no dia anterior, passeando por Tiflis, viu um grupo de pessoas, impedidos russos e alguns arménios que estavam ajo-gar à cara ou coroa. A parada era grande: três moedas de ouro e muita prata. Khan-Magoma compreendeu num instante em que consistia o jogo e, fazendo tilintar os cobres no bolso, juntou-se aos jogadores e disse que apostava tudo.

- Tudo? Tinhas assim tanto? - perguntou-lhe Loris-Mélikov.

- Tinha só doze copeques - respondeu Khan-Magoína, esboçando um sorriso .

- Mas se perdesses?

- Olha.

E Khan-Magoma apontou para a sua pistola.

- Pagavas com a pistola?

- Pagar para quê? Fugia e, se alguém tentasse parar-me, matava-o. E pronto.

- Então, ganhaste?

- Aia34. Apanhei tudo e fui-me embora.

Loris-Mélikov compreendia bem estes dois, Khan-Magoma e El-dar!. Khan-Magoma era um brincalhão, um estróina que não sabia para onde canalizar a sua energia de vida a transbordar, sempre alegre, leviano, brincando com a sua vida e com a alheia, e que por causa desse jogo com a vida se juntara agora aos russos e que da mesma maneira seria capaz de passar, a qualquer momento, para o lado de Shamil. Eldar também era bastante compreensível: era um homem plenamente fiel ao seu murchid, calmo, forte e firme. Apenas o ruivo Gamzalo era incompreensível. Loris-Mélikov via que este homem não só era fiel a Shamil, mas ainda sentia repugnância, desprezo, nojo e ódio insuperáveis por todos os russos; por isso, Loris-Mélikov não percebia o que obrigara este homem a juntar-se aos russos. Passava-lhe pela cabeça uma ideia, partilhada aliás por alguns superiores: que a decisão de Hadji-Murat se entregar aos russos e as suas histórias sobre a hostilidade entre ele e Shamil eram uma artimanha, que tencionava apenas espiar os pontos fracos dos russos para, fugindo depois para os montes, lançar as suas forças contra esses pontos fracos. E Gamzalo, com todo o seu ser, confirmava esta suposição. «Aqueles dois e o próprio Hadji-Murat - pensava Loris-Mélikov -sabem esconder os seus propósitos, mas este trai-se a si próprio com o seu ódio aberto.»

Loris-Mélikov tentou falar com ele. Perguntou se se aborrecia ali. Mas Gamzalo, sem interromper o seu trabalho e olhando de esguelha com o seu único olho, rosnou:

- Não, não me aborreço.

E respondeu da mesma maneira a todas as outras perguntas.

Enquanto Loris-Mélikov estava nesse quarto, entrou o quarto mu-rid de Hadji-Murat, o ávaro Khanefi, com a cara e pescoço peludos e o peito proeminente e como que coberto de pêlo. Era um servente robusto, que não raciocinava e estava sempre absorvido pelo seu trabalho, submisso de maneira incondicional ao seu senhor.

Quando ele entrou,-pois viera buscar arroz, Loris-Mélikov fê-lo parar e perguntou-lhe donde ele era e há quanto tempo servia Hadji--Murat.

— Cinco anos — respondeu Khanefi. — Sou do mesmo aúl dele. O meu pai matou-lhe o tio e eles queriam fazer-me o mesmo — disse ele, olhando tranquilamente, por baixo dos sobrolhos pegados, para a cara de Loris-Mélikov. — Então, pedi que me admitisse como irmão.

— O que quer dizer «admitir como irmão»?

— Durante dois meses não rapei a cabeça, não cortei as unhas e fui à casa deles. Eles deixaram-me entrar no quarto de Patimat, a mãe dele. Patimat deu-me o peito, e tomei-me irmão dele.

No quarto contíguo ouviu-se a voz de Hadji-Murat. Eldar percebeu de imediato a ordem do seu senhor e, limpando as mãos, foi à sala de estar numa passada larga.

— Está a chamá-lo — disse, ao voltar. E, depois de dar mais um cigarro ao alegre Khan-Magoma, Loris-Mélikov dirigiu-se para a sala de estar.


13

Quando Loris-Mélikov entrou, Hadji-Murat recebeu-o com uma cara alegre.

— Então, continuamos? — disse, sentando-se no sofá.

— Sim, é claro — respondeu Loris-Mélikov. — A propósito, falei com os teus nukeres35. Um dos rapazes é divertido — acrescentou.

— Sim, Khan-Magoma é um homem de trato fácil — disse Hadji--Murat.

— Mas gostei mais do jovem bonito.

— Pois, do Eldar. É jovem mas firme como o aço.

Calaram-se.

— Então, continuo?

— Sim, sim.

— Falei de como foram mortos os Cãos. Mataram-nos, e Gamzat entrou em Khunzakh e instalou-se no palácio dos Cãos. Restava ainda a mãe deles. Gamzat chamou-a à sua presença. Ela começou a acusá-lo. Gamzat piscou o olho ao seu murid Asselder e este deu-lhe um golpe por trás e matou-a.

— Mas por que a mataram? — perguntou Loris-Mélikov.

— Nada a fazer: quem passa por cima da cerca com as patas dianteiras tem de passar também com as traseiras. Tinham de acabar com toda a família. Foi o que fizeram. Shamil matou o mais novo, atirou--o para o precipício. Toda a Avária se submeteu a Gamzat, só eu e o meu irmão não queríamos obedecer. Queríamos o sangue dele, vingando os Cãos. Fingimos submissão, mas o que tínhamos na cabeça era derramar o seu sangue. Pedimos conselho ao nosso avô e resolvemos esperar até que ele saísse do palácio, e então faríamos uma emboscada para o matar. Alguém nos espiou, denunciou-nos a Gamzat, e este chamou o meu avô e disse-lhe: «Vê lá, se for verdade que os teus netos conspiram contra mim, serás pendurado na mesma forca que eles. Estou a fazer o que Deus me manda e ninguém pode impedir-me. Vai e lembra-te do que te disse.» O meu avô foi para casa e contou-nos isso. Então, decidimos não esperar e cumprir o nosso plano no primeiro dia da festa na mesquita. Os nossos companheiros recusaram-se, ficámos só eu e o meu irmão. Pegámosem duas pistolas cada um, vestimos burkas e fomos à mesquita. Gamzat entrou com trinta murides. Todos eles tinham nas mãos os sabres desembai-nhados. Ao lado de Gamzat ia Asselder, o seu murid preferido, aquele mesmo que decapitou a mãe dos Cãos. Ao ver-nos, gritou que tirássemos as burkas e aproximou-se de mim. Eu tinha o punhal na mão, matei-o, depois atirei-me a Gamzat, mas o meu irmão Osman já lhe tinha dado um tiro. Gamzat estava ainda vivo e lançou-se a Osman, levantando o punhal, só que eu atingi-o na cabeça e acabei com ele. Os murides eram trinta e nós apenas dois. Ao meu irmão Osman mataram-no, mas eu consegui rechaçá-los e fugir pela janela. Quando correu a notícia de que Gamzat fora morto, todo o povo se suble-vou, os murides fugiram e quem não fugiu foi exterminado.

Hadji-Murat parou e recuperou, com dificuldade, o fôlego.

— Estava tudo bem — continuou ele —, mas passou a estar mal. Shamil ocupou o lugar de Gamzat. Mandou-me os seus emissários para me dizerem que eu devia juntar-me a ele e fazer a guerra contra os russos; e, se me recusasse, ameaçou que assolava Khunzakh e me matava. Respondi que não ia ter com ele nem o deixava entrar na minha terra.

— Mas porque não te juntaste a ele? — perguntou-lhe Loris--Mélikov.

Hadji-Murat carregou o sobrolho e demorou a responder:

— Não podia. Shamil estava coberto com o sangue do meu irmão Osman e do Cão Abununtsal. Não me juntei a ele. O general Rosen deu-me uma patente de oficial e mandou-me ser comandante na Avária. Estava tudo bem, mas Rosen nomeou governante da Avária Mirzá Magomet, Cão de Kazikumik:, primeiro, e depois o Cão Akhmet. Este ganhou-me ódio. Pediu que lhe dessem Saltanet, irmã dos Cãos, para ser mulher do seu filho, mas não lha deram, e pensou que a culpa era minha. Ganhou-me ódio e mandou os seus nukeres à minha procura para me matarem, mas não me apanharam. Então, caluniou-me perante o general Klugenau, dizendo que eu proibia os ávaros de fornecerem lenha aos soldados russos. Disse-lhe ainda que eu pusera o turbante na cabeça, este aqui - disse Hadji-Murat, apontando para o que trazia na cabeça - e que isso significava que me passara para o lado de Shamil. O general não acreditou e disse que não me tocassem. Mas, quando o general partiu para Tiflis, o Cão Akhmet fez o que queria: com uma companhia de soldados, prendeu-me, acorrentou-me e atou-me ao canhão. Mantiveram-me assim durante seis dias. Ao sétimo dia, levaram-me a Temir-Khan-Chura. Quarenta soldados com espingardas carregadas escoltavam-me. Tinha as mãos atadas e foi dada ordem de me matarem se tentasse fugir. Eu sabia-o. Quando passávamos ao lado de Moksokh, a vereda era estreita e à direita havia uma escarpa de cinquenta braças. Contornei um soldado, pus-me à beira da escarpa. O soldado tentou fazer-me parar, mas saltei para o precipício e arrastei comigo o soldado. Ele morreu na queda, mas eu sobrevivi. Parti tudo - costelas, cabeça, braços, pernas. Tentei rastejar, mas não consegui. Tive vertigens, adormeci. Acordei todo encharcado de sangue. Um pastor viu-me, chamou gente, levaram-me para o aúl. As minhas costelas e a cabeça sararam, a perna também sarou, mas ficou mais curta.

E Hadji-Murat esticou a perna torta.

- Anda, já não é mau - disse. - O povo soube disso, as pessoas começaram a visitar-me. Convalesci, mudei-me para Tselmes. Os ávaros pediram-me que voltasse a governá-los - disse Hadji-Murat com um orgulho calmo e seguro. - Aceitei.

Hadji-Murat levantou-se rapidamente e tirou do alforge uma pasta e, dela, duas cartas amarelecidas; entregou-as a Loris-Mélikov. As cartas eram de Klugenau. Loris-Mélikov leu-as. A primeira carta dizia:

«Alferes Hadji-Murat: Serviste na minha tropa e eu estava contente contigo, considerando-te bom homem. Há pouco tempo, o major-general Cão Akhrnet informou-me que eras traidor, que puseste na cabeça o turbante, que estavas em contacto com Shamil, que ensinaste o povo a não obedecer às autoridades russas. Mandei que te prendessem e te levassem à minha presença, mas fugiste; não sei se foi pior ou melhor, porque não sei se tens culpa ou não. Agora ouve. Se a tua consciência estiver limpa perante o grande czar, se não tiveres qualquer culpa, vem ter comigo. Não temas ninguém, sou teu protector. O Cão não te vai fazer mal, é meu subordinado. Por isso, não tens nada que temer.»

A seguir, Klugenau escrevia que tinha cumprido sempre a sua palavra e era um homem justo, tentando ainda persuadir Hadji-Murat a comparecer.

Quando Loris-Mélikov acabou de ler a primeira carta, Hadji-Murat tirou a outra, mas, antes de a entregar a Loris-Mélikov, contou como havia respondido àquela primeira carta.

- Escrevi-lhe que, de facto, usava o turbante, mas que não era para Shamil e sim para a salvação da minha alma; que não queria nem podia passar para o lado de Shamil, porque por ordem deste foram mortos o meu pai, o meu irmão e os meus parentes, mas que também não podia voltar para os russos porque fui desonrado por eles. Em Khunzakh, quando eu estava atado, um canalha urinou-me em cima. E não podia ir ter com os russos enquanto esse homem fosse vivo. Mas que, sobretudo, tinha medo do mentiroso Cão Akhmet. Então, o general mandou-me esta carta aqui - disse Hadji-Murat, estendendo a Loris-Mélikov o outro papel amarelado.

«Respondeste à minha carta, obrigado — leu Loris-Mélikov. — Escreves que não tens medo de voltar, mas que a injúria que te fez um guiaúr36 não to permite; mas asseguro-te que a lei russa é justa e vais ver com os teus próprios olhos a punição daquele que se atreveu a insultar-te. Já mandei que o investigassem. Ouve, Hadji-Murat. Tenho direito de estar descontente contigo, porque não acreditas em mim nem na minha honra, mas perdoo-te porque conheço o carácter desconfiado de todos os montanheses. Se a tua consciência estiver limpa, se usavas o turbante apenas para a salvação da tua alma, então tens razão e podes olhar-me sem medo nos olhos e nos olhos do governo russo; quanto ao homem que te desonrou, vai ser castigado, acredita nisso, os teus bens ser-te-ão devolvidos, e verás e saberás o que significa a lei russa. Ainda por cima, os russos vêem tudo de outro ponto de vista: na opinião deles, não te cobriste de opróbrio porque um canalha qualquer te injuriou. Eu próprio dei licença ao povo de Guimrin para que os homens usassem os turbantes e olho para as suas acções com compreensão; portanto, repito, não tens nada a temer. Acompanha o homem que te envio e vem; é-me fiel e não é escravo dos teus inimigos, mas é amigo do homem a quem o governo russo concede favores especiais.»

A seguir, Klugenau voltava a tentar convencer Hadji-Murat a ir ter com ele.

- Não acreditei nele - disse Hadji-Murat quando Loris-Mélikov acabou de ler a carta - e não fui ter com Klugenau. Para mim, o principal era vingar-me do Cão Akhmet, o que não podia fazer através dos russos. Nesse mesmo tempo, o Cão Akhmet cercou Tselmes e quis capturar-me ou matar-me. Eu tinha poucos homens e não estava capaz de lhe fazer frente. E foi então que chegou a minha casa um emissário com uma carta de Shamil. Este prometia-me ajuda contra o Cão Akhmet e que me ajudava a matá-lo, e dava-me toda aAvária para governar. Pensei muito no assunto e acabei por me passar para o lado de Shamil. Desde então, lutei contra os russos sem parar.

A seguir, Hadji-Murat centrou a narrativa em todas as suas campanhas militares. Eram muitas e Loris-Mélikov conhecia uma parte delas. Todas as suas campanhas e incursões, sempre coroadas de êxito, eram impressionantes pela extraordinária rapidez das deslocações e pela ousadia dos ataques.

- Nunca existiu qualquer amizade entre mim e Shamil - acabou a sua história Hadji-Murat -, mas ele tinha medo de mim e precisava de mim. Mas aconteceu que me perguntaram quem devia ser o imã depois de Shamil. Eu disse que seria imã aquele que tivesse o sabre afiado. Transmitiram-no a Shamil e ele quis livrar-se de mim. Mandou-me a Tabassaran. Fui lá, arrebatei mil cheiros e trezentos cavalos. Mas Shamil disse que eu não fizera o que devia fazer, tirou-me o cargo de naíb e ordenou que lhe mandasse todo o dinheiro. Enviei-lhe mil moedas de ouro. Mandou então os seus murides e apossou-se de todos os meus bens. Exigia que eu me apresentasse diante dele; eu sabia que Shamil queria matar-me e não fui. Destacou então homens seus para me prenderem. Rechacei-os e pus-me em comunicação com Vorontsov. Só que não consegui levar comigo a minha família. A minha mãe, a minha mulher e o meu filho estão nas mãos dele. Diz ao sardar: enquanto a minha família estiver lá, não posso fazer nada.

— Sim, digo — respondeu Loria-Mélikov.

— Intercede por mim, faz um esforço. O que é meu é teu, só que fala por mim junto ao príncipe. Tenho as mãos atadas e a ponta da corda está nas mãos de Shamil.

Foi com estas palavras que Hadji-Murat acabou de contar a Loris--Mélikov a sua história.


14

No dia 20 de Dezembro, Vorontsov escreveu uma carta a Tchemi-chov, ministro da Guerra. A carta era em francês.

«Caro príncipe: Não lhe mandei notícias com o último correio porque desejava primeiro decidir o que iríamos fazer com Hadji-Murat e porque, durante dois ou três dias, me senti um pouco adoentado. Na minha última carta, informei-o sobre a chegada de Hadji-Murat: foi no dia 8; no dia seguinte, fiz conhecimento com ele e durante oito ou nove dias ia falando com ele e pensando no que este homem poderia fazer por nós ulteriormente, e sobretudo no que devíamos fazer com ele agora, porque está muito preocupado com a vida da sua família e diz, com todos os sinais de uma plena sinceridade, que enquanto a sua família permanecer nas mãos de Shamil está paralisado e incapaz de nos servir e de nos provar a sua gratidão pela recepção carinhosa e o perdão que lhe foram concedidos. A incerteza em que permanece relativamente aos seus entes queridos provoca-lhe um estado febril e as pessoas que destaquei para estarem junto dele afirmam que Hadji-Murat não dorme de noite, não come quase nada, reza constantemente e apenas pede autorização para passear a cavalo, acompanhado por alguns cossacos — a única distracção e moção possíveis e necessárias para ele, por causa de um hábito de muitos anos. Todos os dias ele vem ter comigo para saber se tenho algumas notícias sobre a sua família e pede-me que mande juntar todos os prisioneiros que temos nas nossas linhas para os propormos a Shamil em troca, aos quais tenciona acrescentar algum dinheiro. Há pessoas que lho vão dar com este propósito. Não deixa de repetir: «Salve a minha família e dê-me, depois, possibilidade de vos servir (o melhor, na sua opinião, seria na linha lezguina) e, se durante um mês não vos prestar um grande serviço, castigai-me como quiserdes.»

«Respondi-lhe que tudo isso me parecia muito justo e que haveria aqui muitas pessoas que não acreditavam nele enquanto a sua família continuasse nos montes e não aqui, connosco, como garantia; que eu ia fazer todo o possível para juntar os prisioneiros nas nossas fronteiras e que, como não tinha o direito, pelos nossos estatutos, de lhe dar dinheiro para o resgate, em complemento daquele que ele ia arranjar, encontraria talvez outra maneira de o ajudar. Depois disso, exprimi-lhe abertamente a minha opinião: que Shamil jamais lhe entregará a famí1ia e que talvez o vá declarar até abertamente; que vai prometer-lhe o perdão completo e os antigos cargos e vai ameaçar que, se Had-ji-Murat não voltar, lhe mata a mãe, a mulher e os seis filhos. Perguntei-lhe se me podia dizer sinceramente o que faria se recebesse de Shamil uma declaração desse teor. Hadji-Murat levantou os olhos e as mãos ao céu e disse-me que tudo estava nas mãos de Deus, mas que ele nunca se entregaria ao seu inimigo porque tinha toda a certeza de que Shamil não lhe ia perdoar e não o iria deixar vivo por muito mais tempo. Quanto ao extemínio da sua família, não acha que Shamil actue de maneira tão leviana: em primeiro lugar, para não o transformar num inimigo ainda mais arrojado e perigoso; em segundo, porque há no Daguestão bastantes pessoas muito influentes que o vão dissuadir de dar esse passo. Por fim, repetiu várias vezes que, fosse qual fosse a vontade de Deus em relação ao futuro, ele, Hadji-Murat, estava agora dominado apenas pela ideia de resgatar a família; que me implorava, em nome de Deus, que o ajudasse e lhe desse autorização de voltar aos arredores da Tchetchniá onde ele, por intermédio e com a permissão dos nossos chefes, pudesse estabelecer contactos com a sua família, ter constantemente notícias sobre a situação dela e sobre as possibilidades de a libertar; que muitas pessoas e até naíbes daquela parte do país inimigo eram pessoas que, umas mais e outras menos, lhe eram afectas; que, no meio de toda aquela população, já submissa aos russos ou neutra, seria fácil para ele, com a nossa ajuda, arranjar contactos muito úteis para alcançar o objectivo que não lhe dava sossego nem de dia nem de noite e que, se o conseguisse, ficaria tranquilo e com a possibilidade de agir a nosso favor e ganhar a nossa confiança. Está a pedir que o mandemos de novo para Gróznaia, com uma escolta de vinte ou trinta cossacos corajosos que lhe sirvam de protecção dos inimigos e sejam, para nós, uma garantia de que as suas intenções são verdadeiras.»

«Como deve compreender, meu caro príncipe, tudo isso me pôs perante um problema difícil de resolver porque, seja qual for a minha decisão, fico a carregar com uma responsabilidade muito grande. Dar-lhe toda a confiança seria muito imprudente; por outro lado, se quisermos privá-lo da possibilidade de fuga, teremos de o manter fechado, o que, no meu entender, seria injusto e uma má política. Esta medida, cuja notícia se propagaria rapidamente por todo o Daguestão, seria muito prejudicial para nós, acabando com a vontade das pessoas (que não são poucas) de lutarem de maneira mais ou menos aberta contra Shamil, pessoas que têm um grande interesse pela situação em que está aqui connosco o mais corajoso e activo ajudante do imã, que se viu obrigado a entregar-se a nós. Se tratarmos Hadji-Murat como um prisioneiro, todo o efeito, favorável para nós, da sua traição a Shamil vai desaparecer.»

«Creio, pois, que não poderia ter procedido de outro modo, sentindo, contudo, que seria possível acusar-me de ter cometido um grande erro se Hadji-Murat se lembrasse de fugir outra vez. No serviço e em casos tão embrulhados, é difícil, se não impossível, seguirmos só um caminho directo, sem arriscarmos errar e sem carregarmos com a responsabilidade; mas quando o caminho nos parece directo temos de o seguir - e seja o que Deus quiser.»

«Peço-lhe, meu caro príncipe, que apresente tudo isto à consideração de Sua Majestade, e fico feliz se o nosso augustíssimo imperador se dignar a aprovar o meu procedimento. Tudo o que lhe escrevo acima escrevi-o também aos generais Zavadóvski e Kozlóvski, com o propósito de uma comunicação directa de Kozlóvski com Hadji-Murat, avisado por mim de que, sem o consentimento do general Kozlóvski, não poderá agir nem sair para lado nenhum. Anunciei-lhe que, para nós, seria ainda melhor se ele saísse sob a nossa escolta, de outro modo Shamil será capaz de divulgar que estamos a manter Hadji--Murat prisioneiro; mas, ao mesmo tempo, fi-lo prometer que nunca iria a Vozdvijênskoe, porque o meu filho, o primeiro a quem Hadji--Murat se entregou e a quem considera o seu kunak (amigo), não é chefe desse local, e poderiam acontecer certos mal-entendidos. Aliás, Vozdvijênskoe encontra-se perto de mais de uma povoação inimiga, com numerosos habitantes, enquanto Gróznaia é cómoda em todos os sentidos para os contactos que ele deseja ter com os seus homens de confiança.»

«Além de vinte cossacos eleitos que, a pedido do próprio Hadji--Murat, não se vão afastar dele um passo que seja, mandei com ele o capitão de cavalaria Loris-Mélikov, oficial digno, excelente e muito inteligente, que fala a língua tártara e conhece bem Hadji-Murat; este, ao que parece, também tem plena confiança nele. Aliás, durante os dez dias que Hadji-Murat passou aqui em Tiflis, viveu na mesma casa do tenente-coronel príncipe Tarkhánov, chefe do distrito de Chu-cha, que está aqui em serviço. É um senhor realmente digno de respeito e voto-lhe inteira confiança. Ele também ganhou a confiança de Hadji-Murat e foi graças precisamente a ele, que fala tártaro perfeita-mente, que pudemos discutir os mais delicados e secretos assuntos.»

«Aconselhei-me com Tarkhánov relativamente a Hadji-Murat e ele concordou em tudo comigo: ou se fazia como fiz, ou se fechava Hadji-Murat na prisão, guardando-o com todas as possíveis medidas rigorosas - porque, tratando-o mal, é difícil guardá-lo -, ou então levá-lo para longe deste país. Porém, estas duas últimas medidas não só teriam destruído todas as nossas vantagens decorrentes do conflito entre Hadji-Murat e Shamil, mas teriam travado, ainda por cima, todo o crescimento do descontentamento e da possibilidade de uma su-blevação por parte dos montanheses contra o poder de Shamil. O príncipe Tarkhánov disse-me que ele próprio tinha a certeza da sinceridade de Hadji-Murat e que este não duvidava de que Shamil nunca lhe perdoaria e o mandaria executar, apesar do perdão prometido. A única coisa que parecia preocupante a Tarkhánov, durante o seu convívio com Hadji-Murat, era o apego deste à sua religião, não escondendo que Shamil poderia influenciá-lo por esse lado. Porém, como digo acima, Shamil nunca conseguirá convencer Hadji-Murat de que não o vai matar de imediato, ou então algum tempo depois do seu regresso.»

«É tudo, meu caro príncipe, o que tinha a comunicar-lhe relativamente a este episódio dos acontecimentos locais.»


15

Este relatório foi mandado de Tiflis no dia 24 de Dezembro. Na véspera do ano novo, o de 1852, o correio oficial, depois de ter rebentado uma dúzia de cavalos e de espancar até fazer sangue uma dúzia de cocheiros, entregou-o ao príncipe Tchemichov, ministro da Guerra, e no dia 1 de Janeiro de 1852 Tchemichov levou este relatório, juntamente com outros, ao imperador Nicolau 1.

Tchemichov não gostava de Vorontsov por causa do respeito geral de que este gozava e por causa da sua enorme fortuna, e porque Vo-rontsov era um verdadeiro senhor, enquanto Tchemichov, fosse como fosse, era um parvenu, mas sobretudo porque o imperador tinha uma simpatia especial por Vorontsov; por isso, Tchemichov aproveitava qualquer ocasião para, na medida das suas possibilidades, prejudicar o príncipe Vorontsov. No relatório anterior sobre a situação no Cáu-caso, Tchemichov conseguiu provocar algum descontentamento de Nicolau para com Vorontsov porque, por descuido dos chefes, fora exterminado, quase por completo, um pequeno destacamento russo. Agora, Tchemichov tencionava apresentar a uma luz desvantajosa a ordem que Vorontsov tinha dado relativamente a Hadji-Murat. Queria convencer o imperador de que Vorontsov, desde sempre protector e até indulgente em relação aos aborígenes, em prejuízo dos russos, procedera imprudentemente ao deixar Hadji-Murat no Cáucaso; que era muito provável que Hadji-Murat se houvesse juntado aos russos apenas para espiar os nossos meios de defesa e que seria melhor mandá-lo para a Rússia central e aproveitá-lo apenas quando a sua família fosse libertada e levada para fora dos montes, e houvesse então certeza da sua lealdade.

Porém, este plano de Tchemichov falhou e apenas porque, na manhã de 1 de Janeiro, Nicolau estava muito mal-humorado e não aceitaria, por mero espírito de contradição, qualquer proposta, fosse qual fosse e de quem proviesse; estava ainda menos inclinado a aceitar uma proposta de Tchemichov, a quem apenas suportava, considerando-o por enquanto um homem insubstituível, mas um grande canalha, porque estava a par dos esforços que este fizera, durante o processo dos dezembristas, para destruir Zakhar Tchemichov e apoderar-se da sua fortuna. Portanto, graças ao mau-humor de Nicolau, Hadji-Murat ficou no Cáucaso e o seu destino não mudou como poderia mudar se Tchernichov tivesse feito o seu relatório noutra altura.

Eram nove e meia de manhã, quando, na neblina do frio de vinte graus negativos, o cocheiro gordo e barbudo de Tchemichov, com um chapéu de veludo cerúleo e pontas agudas, sentado na boleia de um pequeno trenó, igual àquele em que passeava Nicolau, parou em frente da porta menor do Palácio de Inverno e acenou amigavelmente ao seu amigalhaço, o cocheiro do príncipe Dolgorúki, que, já há muito, ao apear o seu senhor, estava à espera junto às portas, com a rédea metida debaixo do seu gordo traseiro de algodão e esfregando as mãos geladas.

Tchemichov estava de capote com uma gola felpuda de pele de castor prateada e com um tricórnio de penugem de galo, posto na cabeça de modo formal. Ao abrir o avental de pele de urso, retirou do trenó, com cuidado, os seus pés frios, sem galochas — orgulhava-se do facto de não usar galochas —, tomou um ar animado, com as esporas a tilintarem, e passou pelo tapete até à porta que o porteiro lhe abriu respeitosamente. No vestíbulo, ao lançar o capote para as mãos de um velho lacaio que acudira, Tchernichov foi ao espelho e, com cuidado, tirou o chapéu da peruca frisada. Mirando-se, ondulou as pa-tilhas e o topete com um gesto habitual das mãos senis, ajeitou a cruz, as agulhetas e as grandes dragonas com monogramas e, no passo débil das velhas pernas que o traíam, começou a subir pelo tapete da escada em declive suave.

Depois de passar ao lado dos lacaios de uniforme de gala, que lhe faziam vénias servis, Tchernichov entrou na sala de espera. O oficial de dia, ajudante-de-campo da corte recém-nomeado, exibindo farda, dragonas e agulhetas novas, com uma cara de faces coradas, ainda fresca, de bigodinho negro e patilhas penteadas na direcção dos olhos, imitando as de Nicolau, recebeu Tchernichov com reverência. O príncipe Vassíli Dolgorúki, adjunto de Tchernichov, com uma expressão entediada na cara lorpa, adornada com as mesmas suíças e patilhas, e o mesmo bigode que usava Nicolau, levantou-se ao encontro de Tchernichov e cumprimentou-o.

— L’empereur? — dirigiu-se Tchernichov ao ajudante-de-campo, apontando com os olhos, interrogativamente, para a porta do gabinete .

— Sa Majesté vient de rentrer37 - disse o oficial, aparentemente com prazer em ouvir o som da sua voz. E em passo suave, tão fluente que, se tivesse em cima da cabeça um copo cheio de água, não a te-ria derramado, aproximou-se da porta que se abria inaudivelmente e, manifestando com todo o seu ser uma veneração do lugar em que estava a entrar, desapareceu por trás dessa porta.

Dolgorúki, entretanto, abriu a sua pasta, verificando os documentos que trouxera.

Quanto a Tchernichov, passeava-se com ar carancudo, desentor-pecendo as pernas e recapitulando tudo o que devia relatar ao imperador. Estava em frente da porta do gabinete quando esta voltou a abrir-se e saiu dela o ajudante-de-campo com um ar ainda mais radiante e respeitoso do que antes, convidando o ministro e o seu adjunto, com um gesto, a acederem à presença do imperador.

O Palácio de Inverno havia muito que fora recuperado depois do incêndio, mas Nicolau vivia ainda no andar de cima. O gabinete em que recebia os ministros e os altos funcionários era uma sala de tecto muito alto e quatro janelas grandes. Na parede principal havia um grande retrato de Alexandre I; nos espaços entre as janelas, duas escrivaninhas; ao longo das paredes, várias cadeiras. O centro da sala era ocupado por uma enorme mesa e, junto à mesa, estava o cadeirão de Nicolau e as cadeiras para os recebidos.

Nicolau, de sobrecasaca preta, com pequenas platinas em vez de dragonas, estava sentado, com as costas enormes deitadas para trás e o ventre crescido fortemente apertado pelo cinto, e fixava os olhos imóveis e sem vida nos senhores que entravam. A sua cara comprida e branca, com uma fronte enorme e fugidia que se destacava por causa das têmporas alisadas, ligadas artisticamente ao chinó que lhe cobria a calvície, mostrava-se mais fria e imóvel do que nunca. Os seus olhos, sempre baços, estavam ainda mais baços do que habitualmente, os lábios apertados debaixo do bigode arqueado para cima e as bochechas gordas, apoiadas numa gola alta, rapadas de fresco e ladeadas pelos chouricinhos regulares das suíças, e o queixo apertado contra a gola - tudo isto dava à sua cara uma expressão de descontentamento, quase de ira. A causa deste estado de espírito era o cansaço. Ora, a causa do cansaço era a seguinte: na noite anterior tinha ido a um baile de máscaras e, enquanto passeava no meio do público que se apertava a ele e abria com timidez o caminho à sua enorme e arrogante figura, levando na cabeça, como de costume, o capacete de cavaleiro da guarda encimado pela ave, voltou a encontrar aquela máscara que, no baile anterior, fugira dele, tendo-lhe prometido um encontro no baile de máscaras seguinte. No baile da véspera ela foi ter com ele, e ele já não a deixou fugir. Levou-a para um camarote, que estava sempre preparado para o mesmo fim, onde podia ficar a sós com a sua dama. Ao chegar em silêncio à porta do camarote, Nicolau olhou para trás, procurando com os olhos o camaroteiro, mas não o viu. Nicolau caregou o sobrolho e empurrou, ele próprio, a porta do camarote, deixando passar primeiro a sua dama.

— II y a quelqu’un38 - disse a máscara, parando.

De facto, o camarote estava ocupado. No canapé de veludo estavam sentados, muito juntinhos, um oficial dos ulanos e uma mulher novinha, bonitinha, de caracóis loiros, vestida de dominó e com a máscara tirada. A loira, ao ver a figura erecta e irada de Nicolau, apressou-se a esconder o rosto por trás da máscara. Quanto ao ulano, ficou petrificado de terror e, sem se levantar do canapé, olhava para Nicolau com os olhos pasmados.

Por mais habituado que Nicolau estivesse a causar terror às pessoas, um tal terror agradava-lhe sempre e gostava, de vez em quando, de impressionar as pessoas aterrorizadas com um contraste, dirigindo-lhes algumas palavras carinhosas. Foi o que fez nesse momento.

- Bem, meu amigo, és mais novo do que eu - disse ao oficial hir-to de pavor. - Podias ceder-me o lugar.

O oficial levantou-se de um salto e, ora pálido, ora vermelho, saiu em silêncio atrás da máscara; Nicolau ficou a sós com a sua dama.

Era uma bela rapariga, dos seus vinte anos, filha de uma precepto-ra sueca. Contou a Nicolau que se apaixonara por ele ainda na infância, pelos retratos, que o divinizava e decidira conseguir a sua atenção custasse o que custasse. Conseguira-o e, como lhe disse, não precisava de mais nada. A rapariga foi levada ao lugar habitual destinado aos encontros de Nicolau com as mulheres, e este passou com ela mais de uma hora.

Quando, naquela noite, Nicolau voltou para o seu quarto, se deitou na cama estreita e dura de que se orgulhava e se cobriu com a capa que considerava - dizendo-o em voz alta - tão famosa como o chapéu de Napoleão, demorou muito a adormecer. Ora recordava a expressão assustada e fascinada da rapariga, ora os ombros possantes e cheios de Nelídova, a sua amante permanente, e tentava comparar as duas mulheres. Não lhe passava pela cabeça que a depravação de um homem casado era uma coisa feia e ficaria espantado se alguém o reprovasse por isso. Contudo, apesar da convicção de ter procedido bem, sentia um ressaibo qualquer, desagradável, e para abafar a sensação começou a pensar numa coisa que o tranquilizava sempre: que grande homem ele era.

Apesar de ter adormecido tarde, levantou-se como de costume, pouco depois das sete, e, feita a sua toilette habitual — esfregar o corpo grande e cevado com gelo —, rezou, dizendo as orações que dizia sempre, desde a infância: «Ave, Maria», «Credo» e «Padre nosso», sem atribuir às palavras pronunciadas qualquer significado, vestiu o capote, pôs o boné na cabeça e saiu pela porta menor para a marginal.

Na marginal deparou com um aluno da Escola de Direito, de uniforme e chapéu, com uma estatura tão grande como a sua. Ao ver o uniforme da escola que detestava pelo seu livre-pensamento, Nicolau caregou o sobrolho; porém, a grande estatura, uma perfeita posição de sentido e a continência do estudante, com o cotovelo acentuada-mente afastado, atenuaram o seu desgosto.

— Nome? — perguntou.

— Polossátov, Vossa Majestade.

— Bom rapaz!

O estudante continuava a fazer a continência. Nicolau parou.

- Queres servir no exército?

- Não, Vossa Majestade!

- Imbecil! - E Nicolau virou-lhe as costas e seguiu, pronunciando em voz alta as palavras que lhe passavam espontaneamente pela cabeça. «Koperwein, Koperwein» - repetiu várias vezes o nome da rapariga mascarada. «Está mal, está mal.» Não pensava no que dizia, mas abafava assim o seu sentimento, concentrando a atenção nas palavras pronunciadas. «Pois é, o que seria a Rússia sem mim? - disse para si próprio, ao sentir que o desgosto voltava a dominá-lo. -Sim, o que seria sem mim não só a Rússia, mas toda a Europa?» Lembrou-se do seu cunhado, rei da Prússia, homem fraco e estúpido, e abanou a cabeça.

Quando voltou, viu, à porta do palácio, o coche de Elena Pávlovna que, acompanhada pelo lacaio vermelho, estava a chegar à entrada Saltikóvski. Elena Pávlovna era, para ele, uma personificação daquelas pessoas fúteis que se davam a liberdade de raciocinar não só sobre as ciências e a poesia, mas também sobre a governação, imaginando que podiam governar-se a si próprias melhor do que ele, Nicolau, estava a governá-las. Sabia que, por mais que esmagasse essas pessoas, elas reapareciam sempre. E recordou o seu irmão Mi-khail, falecido há pouco. Inundou-o um sentimento de tristeza e desgosto. Carregou o sobrolho e, sombrio, voltou a sussurrar palavras que lhe ocorriam espontaneamente. Deixou de sussurrar apenas quando entrou no palácio. Foi para o seu quarto, alisou perante o espelho as suíças, o cabelo nas têmporas e o chinó no cocuruto, torceu o bigode e passou directamente para o gabinete onde recebia os relatórios.

O primeiro a quem recebeu foi Tchernichov. Este compreendeu de imediato, pela cara e sobretudo pelos olhos de Nicolau, que o imperador estava mal-humorado e, como sabia da sua aventura da véspera, percebeu porquê. Depois de o cumprimentar com frieza e de o convidar a sentar-se, Nicolau pousou nele os seus olhos sem vida.

O primeiro assunto do relatório de Tchernichov era o caso do furto por parte dos funcionários da intendência; a seguir, o problema da deslocação das tropas na fronteira prussiana; depois, as nomeações de algumas pessoas omitidas na primeira lista, as condecorações por ocasião das festas da passagem do ano; depois, era o relatório de Vo-rontsov sobre Hadji-Murat e, finalmente, um caso desagradável de um estudante da Academia de Medicina que atentara contra a vida de um professor.

Nicolau, em silêncio, com os lábios apertados, afagava com as mãos grandes e brancas, com um único anel de ouro no dedo anelar, as folhas de papel e ouvia o relatório sobre o furto, sem desviar os olhos da fronte e do topete de Tchemichov.

Nicolau estava convencido de que toda a gente roubava. Sabia que era preciso castigar os funcionários da intendência e decidiu metê-los a todos na tropa como soldados, mas sabia também que isso não iria impedir que os substitutos nos cargos dos despedidos fizessem a mesma coisa. A característica principal dos funcionários públicos era roubarem, enquanto a obrigação dele era castigá-los, e, por mais farto de o fazer que estivesse, continuava a cumprir escrupulosamente essa obrigação.

- Pelos vistos, cá na Rússia há apenas um homem honesto - disse ele.

Tchemichov percebeu logo que esse único homem honesto era o próprio Nicolau e sorriu com aprovação.

- É assim com certeza, Majestade - disse.

- Deixa aqui, eu lavro o despacho - disse Nicolau, pegando no papel e pondo-o no lado esquerdo da mesa.

Depois disso, Tchemichov começou a informar sobre as condecorações e a deslocação das tropas. Nicolau leu a lista, riscou vários nomes e depois ordenou, de forma breve e definitiva, a deslocação de duas divisões até à fronteira da Prússia.

Nicolau nunca perdoou ao rei da Prússia a Constituição de 1848 e, por isso, apesar de exprimir ao cunhado os mais amigáveis sentimentos nas suas conversas e cartas, considerava necessário, para o que desse e viesse, ter tropas na fronteira prussiana. Essas tropas podiam, eventualmente, servir para o caso de uma sublevação do povo na Prússia - Nicolau via por todo o lado intenções de sublevação - , avançando então em defesa do trono do cunhado, tal como tinha acontecido quando deslocara o exército em defesa da Áustria contra os húngaros. Precisava ainda dessas tropas para carregar de mais peso e significado aos conselhos que dava ao rei da Prússia.

«Pois é, o que seria a Rússia se não fosse eu?» - voltou a pensar.

— Mais? — disse ele.

— Um correio do Cáucaso — disse Tchemichov. E começou a relatar o que Vorontsov escrevera sobre a entrega de Hadji-Murat.

— Pois - disse Nicolau. - É um bom começo.

— Pelos vistos, o plano concebido por Vossa Majestade começa a dar frutos — disse Tchernichov.

Este elogio dos seus talentos estratégicos era especialmente agradável para Nicolau que, embora orgulhoso destes seus talentos, no fundo da alma percebia que não os tinha. De maneira que queria ouvir os louvores em mais pormenor.

— Em que sentido estás a falar? — perguntou.

— No sentido que deveriam ter seguido há muito o plano de Vossa Majestade: avançar sempre, embora devagar, cortando as florestas e liquidando as reservas de víveres. Se assim tivesse acontecido, há muito que o Cáucaso estaria subjugado. O aparecimento de Hadji-Murat, no meu entender, está relacionado apenas com isso. Ele compreendeu que já não tinham possibilidade de resistir.

— Certo — disse Nicolau.

Apesar de o plano de avançar lentamente para dentro do território inimigo mediante o corte das florestas e a destmição dos víveres pertencer a Ermólov e a Veliamínov e ser absolutamente oposto à intenção de Nicolau, que pretendia apoderar-se de um golpe da residência de Shamil, arasando esse ninho dos bandidos, desígnio esse em cumprimento do qual foi empreendida, em 1845, a expedição de Dargo que custou a vida a muitas pessoas; apesar disso tudo, portanto, Nicolau atribuía a si mesmo o plano de um avanço lento, do corte sistemático das florestas e da destruição dos víveres. Aparentemente, para se acreditar que este último plano era da sua autoria, era necessário esconder o facto de que tinha sido precisamente ele quem insistira, em 1845, numa campanha diametralmente oposta. Mas não o escondia e tinha tanto orgulho no seu plano de 1845 como no do avanço lento, apesar de os dois programas entrarem em evidente contradição um com o outro. A adulação permanente, óbvia, contrária a qualquer evidência, por parte das pessoas que o rodeavam, levou-o a um ponto em que deixava de reparar nas suas contradições, de ajustar os seus actos e as suas palavras à realidade, à lógica e ao mero bom senso; estava plenamente convencido de que todas as suas ordens, por mais absurdas, injustas e incongruentes que fossem, se tomavam sensatas, justas e congruentes apenas porque era ele quem as emitia.

Foi deste tipo, também, a sua decisão relativamente ao caso do estudante da Academia de Medicina, sobre o qual Tchemichov o informou depois do relatório do Cáucaso.

O caso consistia em que um jovem, reprovado duas vezes num exame, o fazia pela terceira vez e, quando o examinador voltou a reprová-lo, o estudante, doentiamente nervoso, vendo nisso uma injustiça, pegou no canivete de cima da mesa e, num ataque frenético, atirou-se ao professor e provocou-lhe alguns ferimentos insignificantes.

- O nome dele? - perguntou Nicolau.

- Brezowski.

- Polaco?

- De origem polaca e católico - respondeu Tchemichov.

Nicolau carregou o sobrolho.

Tinha causado muitas desgraças aos polacos. Para as justificar, precisava de ter certeza de que todos os polacos eram uns canalhas. E Nicolau considerava-os canalhas e odiava-os, e o seu ódio era à medida do mal que lhes fizera.

- Espera - disse ele e, fechando os olhos, baixou a cabeça.

Tchemichov sabia, tendo-o ouvido por mais de uma vez da boca do

próprio Nicolau, que, para resolver um problema importante, lhe bastava apenas concentrar-se por alguns instantes e então, por intuição, a decisão mais certeira formava-se por si - como se alguma voz interior lhe sugerisse o que era preciso fazer. Agora, Nicolau estava a pensar na maneira de satisfazer o mais plenamente possível o sentimento de raiva para com os polacos que a história desse estudante avivara nele, e a voz interior sugeriu-lhe a decisão.

Pegou no relatório e escreveu na margem, na sua letra graúda:

«Merece a pena de morte. Graças a Deus, não há pena de morte na Rússia. E não sou eu quem vai introduzi-la. Levá-lo 12 vezes através de mil homens. Nicolau.» Assinou com a sua rubrica enorme, antina-tural .

Nicolau sabia que doze mil vergastadas eram não só uma morte certa e torturante, mas também uma crueldade inútil, porque bastavam cinco mil pauladas para matar o mais forte dos homens; porém, agradava-lhe ser implacavelmente cruel e pensar, ao mesmo tempo, que na Rússia não havia pena de morte.

Ao escrever a sua decisão sobre o estudante, entregou-a a Tchemi-chov.

- Lê - disse.

Tchernichov leu e, em sinal do respeito pela sabedoria da decisão, inclinou a cabeça.

— E levar todos os estudantes à praça para assistirem ao castigo — acrescentou Nicolau.

«Faz-lhes bem. Vou exterminar esse espírito revolucionário, erradicá-lo» — pensou.

— Sim, Majestade — disse Tchernichov e, depois de uma pausa, ajeitou o topete e voltou ao relatório do Cáucaso.

— O que deseja que escreva a Mikhail Semiónovitch?

— Seguir firmemente o meu sistema de destruição das habitações e dos víveres na Tchetchniá, e incomodá-los com incursões — disse Nicolau.

— O que manda em relação a Hadji-Murat?

— Mas Vorontsov já escreveu que queria utilizá-lo no Cáucaso.

— Não será ariscado? — disse Tchernichov, evitando os olhos de Nicolau. — Receio que Mikhail Semiónovitch seja demasiado confiante.

— E tu o que pensas? — perguntou rispidamente Nicolau, reparando no desejo de Tchernichov de apresentar a uma luz negativa a decisão de Vorontsov.

— Pensava que seria mais seguro trazê-lo para a Rússia.

— Pensavas — disse Nicolau com ironia. — Mas eu não penso assim e estou de acordo com Vorontsov. Escreve-lhe isso mesmo.

— Sim, Majestade — disse Tchernichov, levantou-se e começou a despedir-se.

Despediu-se também Dolgorúki que, durante todo o relatório, pronunciara apenas algumas palavras sobre a deslocação das tropas, respondendo às perguntas de Nicolau.

Depois de Tchernichov, foi recebido Bíbikov, governador-geral da Região do Ocidente, que viera despedir-se antes da partida.

Ao aprovar as medidas tomadas por Bíbikov contra os camponeses que se amotinavam, recusando a conversão ao cristianismo ortodoxo, Nicolau deu ordem de julgar todos os desobedientes em tribunal militar. Isto significava que seriam submetidos às vergastadas dos soldados. Além disso, mandou meter na tropa como soldado o redactor de um jornal que publicara a notícia sobre vários milhares de camponeses que perderam o seu estatuto de homens livres e passaram a ser servos da gleba da coroa.

— Faço-o porque acho necessário — disse Nicolau. — E não admito que alguém o discuta.

Bíbikov compreendia toda a cmeldade da ordem dada sobre os uniatas e toda a injustiça de transformação dos únicos camponeses livres, naquele tempo, em servos da gleba da famflia real. Mas não se podia objectar. Discordar de uma decisão de Nicolau significava, para ele, perder a posição brilhante que demorara quarenta anos a conquistar e de que estava agora a usufruir. Por isso inclinou a sua cabeça de cabelo escuro, a encanecer, em sinal de obediência e prontidão em cumprir a cruel, louca e desonesta vontade imperial.

Depois de despachar Bíbikov, Nicolau, com a consciência do dever cumprido, espreguiçou-se, olhou para o relógio e foi vestir-se para a saída. Depois de pôr a farda com as dragonas, as condecorações e a fita, entrou na sala de recepção, onde mais de cem homens fardados e mulheres de vestidos de gala decotados, colocados nos lugares previamente determinados, esperavam a tremer pelo seu aparecimento .

Com um olhar sem vida, com o peito inflado, fortemente cingido, e a barriga a arredondar-se por cima e debaixo do cinto, fez a sua entrada na sala cheia das pessoas que o esperavam e, sentindo que todos os olhos estavam postos nele com um servilismo aterrorizado, tomou um ar ainda mais solene. Cruzando os olhos com pessoas familiares, recordando quem era quem, ele parava e dizia algumas palavras ora em russo, ora em francês e, espetando neles o seu olhar frio e morti-ço, ouvia o que lhe diziam.

Recebidas as felicitações, Nicolau foi à igreja.

Deus, através dos seus servidores, cumprimentava e louvava Nico-lau da mesma forma que os leigos, e ele recebia esses louvores e felicitações como coisa que lhe era devida, embora lhe fosse, havia muito, enfadonha. Tudo isso devia ser assim, porque a prosperidade e a felicidade de todo o mundo dependiam dele e, embora fatigado com isso, ele não recusava ao mundo a sua colaboração. Quando, no fim do ofício, um magnífico e bem penteado diácono pronunciou «muitos anos da vida» e os coralistas repetiram estas palavras com vozes excelentes, Nicolau olhou para trás e viu, junto à janela, a sua Nelí-dova dos ombros sumptuosos e decidiu a seu favor a comparação com a rapariga da noite anterior.

Depois do ofício foi aos aposentos da imperatriz e passou alguns minutos no seio da família, em brincadeiras com a mulher e os filhos. Depois, através do Ermitage, passou pelo gabinete de Volkônski, ministro da corte, e encarregou-o, a propósito, de retirar do seu orçamento particular uma pensão anual para atribuir à mãe da rapariga da noite anterior. Dali saiu para o seu passeio habitual.

Nesse dia, o almoço era na Sala de Pompeios; além dos filhos mais novos, Nikolai e Mikhail, foram convidados o barão von Lieven, o conde Rjevússki, Dolgorúki, o embaixador da Prússia e o ajudante--de-campo do rei da Prússia.

Enquanto esperavam pela entrada do imperador e da imperatriz, o embaixador prussiano e o barão von Lieven encetaram uma conversa interessante sobre as últimas notícias alarmantes recebidas da Poló-nia.

— La Pologne et le Caucase, ce sont les deux cautères de la Rus-sie — disse Lieven. — Il nousfaut 100 000 hommes à peu près dans chacun de ces deux pays.

O embaixador exprimiu uma surpresa fingida.

— Vous dites, la Pologne? — disse ele.

— Oh, oui, c’etait un coup de maftre de Maetternich de nous en avoir laissé l’embarras...39

Neste momento da conversa entrou a imperatriz, com a sua cabeça tremente e um sorriso imóvel, e, atrás dela, Nicolau.

À mesa, Nicolau contou que Hadji-Murat se entregara e que a guerra do Cáucaso ia acabar rapidamente em consequência das suas ordens: vexar os montanheses mediante o corte das florestas e o desenvolvimento do sistema de fortificações.

O embaixador, trocando olhares de relance com o ajudante-de--campo pmssiano, com quem ainda nessa manhã tinha falado sobre a infeliz fraqueza de Nicolau de se considerar um grande estratego, louvou muito este plano que, mais uma vez, comprovava os grandes talentos estratégicos do imperador.

Depois do almoço, Nicolau foi ver um bailado, em que centenas de mulheres marcharam vestidas de maillot. Uma delas agradou-lhe e, chamando o coreógrafo, Nicolau exprimiu-lhe a sua gratidão e mandou oferecer-lhe um anel de diamànte.

No dia seguinte, quando Tchemichov foi de novo a despacho, Nicolau confirmou a sua ordem dada a Vorontsov para, tendo agora nas mãos Hadji-Murat, intensificar as acções de constrangimento da Tchetchniá e apertá-la entre as linhas fronteiriças.

Tchernichov escreveu tudo isso a Vorontsov e um outro correio, es-falfando os cavalos e esmurrando os cocheiros, galopou até Tiflis.


16

Em cumprimento dessa ordem do imperador Nicolau, foi empreendida sem demora, em Janeiro de 1852, urna incursão na Tchetchniá.

O destacamento da incursão era composto por quatro batalhões de infantaria, duas centúrias de cossacos e oito peças de artilharia. A coluna marchava pelo caminho. De ambos os lados da coluna, em linhas ininterruptas, descendo e subindo os barrancos, andavam os caçadores de botas altas, casacos de pele curtos e gorros, com as espingardas ao ombro e os cartuchos nas bandoleiras. Corno sempre quando se movimentava pelo território inimigo, o destacamento mantinha todo o silêncio possível. Apenas de vez em quando os canhões trinco-lejavam nos solavancos, ou um cavalo de artilharia bufava ou relinchava, não compreendendo a ordem de guardar silêncio, ou um chefe irritado ralhava, em voz rouca e moderada, com os seus subordinados porque a fila se tinha esticado de mais, ou andava demasiado perto ou demasiado longe da coluna. Só urna vez o silêncio foi quebrado quando urna cabra, de barriga e traseiro brancos e costas cinzentas, e um bode igual a ela e com os cornos pequenos, se empinaram e saltaram de urna pequena mata espinhosa entre a coluna e a fila de caçadores. Os animais, belos e assustadiços, aos grandes saltos, dobrando as patas dianteiras, foram contra a coluna e ficaram tão perto que alguns soldados, gritando e rindo, correram atrás deles, tentando matá-los à baioneta; as cabras, porém, viraram-se para trás, furaram a fila e, perseguidas por alguns cães da companhia e da artilharia, fugiram para os montes, céleres corno aves.

Ainda era Inverno, mas o sol já subia mais alto, e ao meio-dia, quando o destacamento, que saíra de manhã cedo, tinha andado cerca de dez verstás, fazia calor e os raios do sol eram tão ofuscantes que os olhos doíam com o brilho de aço das baionetas e com as chispas que se acendiam de repente, corno pequenos sóis, no cobre dos canhões.

Para trás ficou um pequeno rio, de corrente rápida e pura; à frente eram os campos lavrados e os prados com barrancos pouco fundos; ainda mais adiante, os misteriosos montes negros cobertos de floresta; por trás dos montes negros, as rochas salientes e, no horizonte alto, montanhas com cumes de neve, eternamente fascinantes, eternamente mutáveis, com um brilho de diamante.

À frente da quinta companhia ia o oficial Butler, bonito, alto, de so-brecasaca preta, gorro e o sabre ao ombro, recém-transferido da guarda imperial; estava cheio de energia e de alegria de viver, mas também de um sentimento de perigo mortal, do desejo de actividade e da consciência de pertencer a um todo enorme, dirigido por uma única vontade. Nesse dia, Butler participava numa campanha pela segunda vez e dava-lhe prazer pensar que, de um momento para outro, iam começar a disparar contra eles e que ele não apenas não dobrava a cabeça sob uma bala de canhão e não prestava atenção ao assobio das balas, mas, como já lhe tinha acontecido, ia levantar a cabeça mais alto, olhando com um sorriso os camaradas e os soldados, e falando de um qualquer assunto alheio àquilo numa voz impassível.

O destacamento desviou-se do caminho bom e meteu pelo outro, pouco transitado, que atravessava um restolhal de milho, e já se aproximava da floresta quando - não se via de que lado - uma bala de canhão voou com um sinistro assobio e bateu no meio do comboio ao lado do caminho, no campo de milho, revolvendo a terra.

- Começou - disse Butler, com um sorriso alegre, para um camarada que ia a seu lado.

Realmente, a seguir à bala apareceu de trás da floresta um grupo de tchetchenos a cavalo, com estandartes. No centro do grupo, destacava-se um grande estandarte verde e o velho vagomestre da companhia, muito presbita, comunicou ao míope Butler que era, provavelmente, o próprio Shamil. O grupo saiu do monte, apareceu na margem do barranco mais próximo à direita e começou a descer. Um pequeno general, de sobrecasaca quente, preta, e um gorro com uma grande borla branca, montando um esquipador, foi ter com Butler e mandou-lhe que fosse para a direita, ao encontro da cavalaria que estava a descer o barranco. Butler apressou-se a levar a sua companhia na direcção indicada, mas não tivera ainda tempo de chegar ao baranco quando ouviu nas suas costas dois tiros de canhão, um atrás do outro. Olhou para trás: duas nuvens de fumo azulado levantaram-se sobre dois canhões e estenderam-se ao longo do baranco. Os tchetchenos que, pelos vistos, não tinham esperado a canhonada, começaram a recuar. A companhia de Butler abriu o fogo contra os montanheses e todo o vale se cobriu de fumo da pólvora. Apenas se via como, em cima, os montanheses estavam a recuar rapidamente, disparando contra os cossacos que iam na sua perseguição. O destacamento foi atrás dos montanheses, e no declive do segundo baranco viram um aúl.

Butler e a sua companhia, seguindo os cossacos, correram para o interior do aúl. Não havia um único morador. Foi dada a ordem aos soldados para que queimassem os cereais, o feno e as próprias sáklias. Por todo o aúl se estendia o fumo acre e no meio do fumo formigavam os soldados, tirando das sáklias o que encontravam, mas sobretudo apanhavam e matavam a tiro as galinhas que os montanheses não haviam levado. Os oficiais sentaram-se mais longe do fumo, tomaram o pequeno-almoço e beberam. O vagomestre trouxe-lhes alguns favos de mel sobre uma tábua. Os tchetchenos não se ouviam. Depois do meio-dia, foi dada a ordem de recuar. A companhia formou uma coluna atrás do aúl e Butler ficou na retaguarda. Mal partiram, apareceram os tchetchenos e, seguindo o destacamento, iam disparando .

Quando o destacamento saiu para campo aberto, os montanheses deixaram de o perseguir. Na companhia de Butler não havia um único ferido, pelo que regressava muito bem-disposto e animado.

Quando o destacamento, depois de passar a vau o mesmo rio que tinha atravessado de manhã, se estendeu pelos campos de milho e pelos prados, os cantores de cada companhia saíram para frente e começaram a cantar.

Não havia vento, o ar era fresco, puro e tão transparente que as montanhas nevadas, à distância de centenas de verstás, pareciam muito próximas, e quando os cantores se calavam ouvia-se o bater regular dos pés e o trincolejar metálico dos canhões, como música do fundo em que nascia e acabava uma canção. A canção executada pela quinta companhia de Butler era da autoria de um junker em glória do regimento e era cantada como música de dança, tendo como refrão: «Não há ninguém, ninguém como os nossos bravos caçadores!»

Butler cavalgava ao lado do major Petrov, seu chefe imediato, com quem também morava na mesma casa, e sentia-se muito contente por ter tomado a decisão de abandonar a guarda imperial e se oferecer para o Cáucaso. A causa principal da sua transferência da guarda foi ter perdido todo o seu dinheiro às cartas em Petersburgo, ficando sem um tostão no bolso. Tinha medo de não ser capaz de se abster do jogo, se ficasse na guarda imperial, e de já não ter dinheiro para perder. Agora tudo isso acabara. Começou uma nova vida, muito boa, galharda. Foram esquecidas as dívidas impagáveis e a falência. Então, o Cáucaso, a guerra, os soldados, os oficiais, o major Petrov, bêbedo, bo-nacheirão e destemido - tudo isso lhe parecia tão maravilhoso que, às vezes, quase não acreditava que não estivesse em Petersburgo, nas salas infestadas de fumo de tabaco, duplicando paradas e jogando à banca, odiando o banqueiro e sentindo urna pesada dor de cabeça, mas que estivesse aqui, nesta terra divina, no meio do bravo exército caucasiano.

«Não há ninguém, ninguém corno os nossos bravos caçadores!» -cantavam os seus soldados. O seu cavalo andava num passo animado, ao ritmo dos sons da lnúsica. O Tresorka, cão cinzento e felpudo pertencente à companhia, enroscando o rabo, corria à frente dos soldados com um ar preocupado, corno se fosse um chefe. A alma de Bu-tler transbordava de energia, de liberdade e de alegria. Para ele, a guerra consistia apenas em que ele se submetia ao perigo, à possibilidade da morte e, com isso, merecia ser condecorado e respeitado pelos seus camaradas actuais e pelos seus amigos da Rússia. O outro lado da guerra - a morte, os ferimentos dos soldados, dos oficiais, dos montanheses — nem sequer lhe aflorava à imaginação, por mais estranho que parecesse. Inconscientemente, para manter o seu conceito poético da guerra, nunca olhava para os mortos e feridos. Também assim fez nesse dia. Havia três mortos e doze feridos. Butler passou ao lado do cadáver deitado de costas e, pelo canto do olho, reparou na estranha posição da mão pálida corno a cera e na mancha vermelho--escura na cabeça, e não se deteve para ver melhor. Imaginava os montanheses apenas como djiguites de quem era preciso defender-se.

— É assim mesmo, meu amigo — disse o major num intervalo entre canções. — Não é corno em Petersburgo: olhar à direita, olhar à esquerda! Aqui, fizemos o nosso trabalho, então podemos ir para casa. Machka vai servir-nos o bolo, urna boa sopa de repolho. Bela vida, não é? Rapazes, agora a «Raiou o dia» — e mandou entoar a sua canção preferida.

O major vivia maritalmente com a filha do auxiliar médico, tratada de início por Machka, depois por Mária Drnítrievna. Era urna mulher bonita, loira, cheia de sardas, de trinta anos, sem filhos. Fosse qual fosse o seu passado, agora era uma fiel amiga do major, cuidando dele corno urna ama-seca, coisa de que o major, muitas vezes bê-bedo corno um cacho, bem precisava.

Quando chegaram à fortaleza, tudo se passou tal corno o major tinha previsto. Mária Drnítrievna serviu — a ele, a Butler e a mais dois oficiais convidados — um almoço bom e farto, e o major comeu e bebeu tanto que, já incapaz de falar, se levantou da mesa e foi dormir.

Butler, também cansado mas contente, e tendo abusado um pouco do tchikhir40, retirou-se para o seu quarto e, mal se despiu, adormeceu como uma pedra, sem sonhos nem interrupções, com uma mão metida debaixo da sua bonita cabeça encaracolada.


17

O aúl assolado pela incursão foi o mesmo em que Hadji-Murat passara a noite antes de se juntar aos russos.

Sado, anfitrião de Hadji-Murat, fugiu com a família para os montes quando os russos estavam a aproximar-se do aúl. Quando voltou, deparou com a sáklia destmída - o telhado ruído, as portas e os pilares queimados, o interior devastado. O seu filho, aquele rapazinho bonito de olhos brilhantes que tinha olhado com admiração para Hadji-Murat, regressou morto, num cavalo coberto com a burka, e foi levado para a mesquita. Uma baioneta atravessara-lhe as costas. A mulher bem-parecida que servira Hadji-Murat durante a sua visita, agora com a camisa rasgada no peito, abrindo os seios velhos e caídos, com o cabelo solto, estava parada ao lado do filho, arranhava a cara até sangrar e uivava sem parar. Sado pegou na picareta e no pau e, com outros familiares, foi cavar o túmulo para o filho. O velho avô, sentado de costas contra a parede da sáklia destruída, aparava um pauzinho e olhava fixamente em frente. Acabara de voltar do seu colmeal. Ali, duas medas de feno foram queimadas; foram partidos e queimados os damasqueiros e as ginjeiras plantados e cuidados pelo velho, mas o pior era as colmeias com as abelhas queimadas. O uivar das mulheres ouvia-se em todas as casas e na praça, para onde foram trazidos mais dois corpos. As crianças pequenas choravam juntamente com as mães. O gado faminto, que não tinha nada para comer, mugia. As crianças crescidas não brincavam, olhando assustadas para os adultos.

A fonte estava suja de fezes, pelos vistos propositadamente, pelo que não se podia tirar água dela. O mesmo haviam feito na mesquita, e o moádi e os mutalimes41 já estavam a limpá-la. Os velhos reuniram-se na praça e, sentados de cócoras, falavam da situação. Do ódio pelos russos ninguém falava. O sentimento que todos os tchetchenos experimentavam, desde as crianças aos velhos, era mais forte do que o ódio. Não era ódio, era a recusa de reconhecer os cães russos como seres humanos e a abominação, o nojo e a perplexidade perante a cmeldade absurda dessas criaturas eram tão grandes que o desejo de os exterminar, tal como o de exterminar as ratazanas, as aranhas venenosas e os lobos, era um sentimento tão natural como o instinto de conservação. Os habitantes do aúl estavam perante a escolha: ficar no mesmo lugar e reconstruir, com terríveis esforços, tudo o que tinha sido criado com um enorme trabalho e fora destruído com muita facilidade e sem qualquer sentido e esperar a qualquer momento uma repetição da mesma coisa, ou então, contrariando a lei religiosa, o sentimento de abominação e o desprezo pelos russos, submeterem-se ao poder deles.

Os velhos rezaram e resolveram por unanimidade mandar mensageiros a Shamil, pedindo-lhe ajuda, e logo a seguir o povo começou a reconstruir o que tinha sido destruído.


18

No terceiro dia após a incursão, numa manhã já adiantada, Butler saiu pela porta das traseiras, com a ideia de dar uma volta e respirar o ar puro antes do chá que costumava tomar na companhia de Petrov. O sol já se levantara por trás das montanhas e os olhos doíam à vista das casas de barro brancas do lado direito da rua banhada pelos seus raios; porém, como sempre, era alegre e tranquilizante olhar para a esquerda, onde os montes negros cobertos de floresta se erguiam e se espraiavam para longe, e onde, para lá do desfiladeiro, se via uma serra opaca de montes nevados que, pelo seu hábito, tentavam disfarçar-se de nuvens.

Butler olhava para os montes, enchia os pulmões de ar e rejubilava porque vivia, precisamente ele, e vivia neste mundo maravilhoso. Agradava-lhe também, de certo modo, ter-se comportado muito bem na incursão da véspera, durante a ofensiva e, sobretudo, na retirada, quando as coisas ficaram bastante quentes; estava igualmente satisfeito ao recordar como, no dia anterior depois do regresso a casa, essa Machka, enfim, Mária Dmítrievna, amante de Petrov, lhes servia o almoço, muito simples e querida com todos, mas sobretudo com ele, ao que lhe parecia. Mária Dmítrievna, com a sua trança grossa, os seus ombros largos, o seu peito alto e o seu sorriso radiante no rosto sardento e bondoso, atraía Butler involuntariamente. Mas achava que isso seria feio em relação ao seu camarada bom e ingénuo, por isso mantinha com Mária Dmítrievna o mais simples e respeitoso trato, pelo que estava contente consigo próprio. Nesse momento, reflectia nisso.

As suas reflexões foram interrompidas por um célere bater de muitos cascos pelo caminho à frente dele, como se de uma cavalgada de várias montadas se tratasse. Levantou a cabeça e viu ao fundo da rua um grupo de cavaleiros que se aproximavam a passo. À cabeça de duas dezenas de cossacos vinham dois homens: um, de tcherkeska branca e gorro alto com turbante; outro, um oficial russo, moreno, com nariz adunco, de tcherkeska azul e grande abundância de prata no trajo e nas armas. O cavaleiro de turbante montava um belo cavalo palomino de cabeça pequena e olhos bonitos; o oficial montava um cavalo de Karabakh, alto e aperaltado. Butler, aficionado pelos cavalos, logo à primeira vista deu um grande valor à força enérgica do primeiro cavalo e parou para perguntar quem eram aqueles homens. O oficial dirigiu-se a Butler.

— É casa chefe militar? — perguntou, revelando com a fala incor-recta e o sotaque a sua origem não mssa, e apontou com o azorrague para a casa de Ivan Matvéevitch.

— É — disse Butler. — Mas quem é este? — perguntou, acercando-se do oficial e indicando-lhe com os olhos o homem de turbante.

— É Hadji-Murat. Veio, viver convidado chefe militar — disse o oficial .

Butler estava a par de Hadji-Murat e de que se juntara aos russos, mas nunca esperava vê-lo ali, naquela pequena fortaleza.

Hadji-Murat olhava para ele amigavelmente.

— Bom-dia, kochkildi — saudou-o Butler, acrescentando o cumprimento em tártaro que aprendera.

— Saubul — respondeu Hadji-Murat, acenando com a cabeça. Aproximou-se de Butler e estendeu-lhe a mão, com o azorrague pendurado em dois dedos.

— Chefe? — perguntou.

— Não, o chefe está ali, vou chamá-lo — disse Butler, dirigindo-se ao oficial. Subiu a escada e empurrou a porta.

Mas a porta principal, como lhe chamava Mária Dmítrievna, estava fechada. Butler bateu, mas não recebeu resposta e foi até a porta traseira. Chamou o seu impedido, mas este não respondeu, e Butler, depois de ter procurado inutilmente ambos os impedidos, foi à cozinha. Mária Dmítrievna, com lenço na cabeça, a cara corada e mangas arregaçadas nos braços cheios e brancos, estava a cortar a massa estendida, branca como as suas mãos, em pequenos bocados para os pastéis.

- Onde se meteram os impedidos? - perguntou-lhe Butler.

- Foram embebedar-se - respondeu Mária Dmítrievna. - Para que os quer?

- Para abrir a porta; aqui, à entrada, está uma chusma de monta-nheses. Hadji-Murat chegou.

- Inventa cada coisa - disse Mária Dmítrievna, sorrindo..

- Não estou a brincar. É verdade. Estão à entrada.

- Não me diga!

- Para que ia mentir? Vá e veja, ele está à porta.

- Ena - disse Mária Dmítrievna, baixando as mangas e apalpando os ganchos na sua trança basta. - Então, vou acordar Ivan Mat-véevitch - disse.

- Não, vou eu. Eh, Bondarenko, vai abrir a porta - disse Butler.

- Está bem, pronto - disse Mária Dmítrievna. E voltou ao seu trabalho.

Ao ser informado de que chegara Hadji-Murat, Ivan Matvéevitch, que já tinha ouvido que Hadji-Murat estava em Gróznaia, não se espantou minimamente; soergueu-se na cama, enrolou um cigarro, acendeu-o e começou a vestir-se, pigarreando com barulho e resmungando contra os chefes que lhe mandavam aquele diabo. Já vestido, exigiu ao impedido que lhe desse o «medicamento». E o impedido, sabendo que o «medicamento» era a vodca, serviu-lhe um copo.

- Não há nada pior do que a mistura - resmungou Ivan Matvée-vitch, emborcando a vodca e acompanhando-a com pão de centeio. -Ontem bebemos tchikhir, agora dói-me a cabeça. Bem, estou pronto - concluiu e foi para a sala de estar, onde Butler já introduzira Hadji-Murat e o oficial que viera com ele.

O oficial transmitiu a Ivan Matvéevitch a ordem do comandante do flanco esquerdo para receber Hadji-Murat, deixando-o em comunicação com os montanheses através de mensageiros; mas nunca lhe autorizar a saída da fortaleza a não ser escoltado pelos cossacos.

Ivan Matvéevitch leu o papel, olhou com atenção para Hadji-Murat e voltou a estudar o papel. Depois de passar várias vezes o olhar do papel para o visitante e vice-versa, fixou-o finalmente em Hadji--Murat e disse:

- Iakchi, bek iakchi42. Que fique aqui. Diz-lhe que tenho ordens para não o deixar sair. E as ordens são sagradas. Hospedamo-lo ... como achas, Butler? Hospedamo-lo no escritório?

Butler não teve tempo de responder porque Mária Dmítrievna, que viera da cozinha e estava parada à porta, disse a Ivan Matvéevitch:

- Para quê no escritório? Aloje-o aqui. Damos-fae a sala dos ku-nakes mais a despensa. Pelo menos, estará sempre à vista - disse ela e, ao cruzar os olhos com Hadji-Murat, virou-se dele apressadamente.

- Acho que Mária Dmítrievna tem razão - apoiou-a Butler.

- Vai, vai daqui, as mulheres não são para aqui chamadas - disse Ivan Matvéevitch, carregando o sobrolho.

Durante toda essa conversa, Hadji-Murat manteve-se sentado, com a mão metida por trás do cabo do punhal, com um ligeiro sorriso desdenhoso. Disse que lhe era indiferente onde ia viver. Precisava apenas - e tinha para isso a autorização do sardar - de manter a comunicação com os montanheses, pelo que desejava que os deixassem visitá-lo. Ivan Matvéevitch disse que sim e pediu a Butler que ficasse a falar . com os convidados, enquanto lhes iam preparar uma refeição e os quartos, e enquanto ele próprio ia ao escritório para redigir os papéis necessários e dar as respectivas ordens.

A atitude de Hadji-Murat para com os seus novos conhecidos definiu-se de imediato e com muita clareza. Por Ivan Matvéevitch sentiu desde o princípio repugnância e desprezo, e viria tratá-lo sempre altivamente. Mária Dmítrievna, que cozinhava para ele e lhe servia as refeições, agradou-lhe muito. Gostou da sua simplicidade e da sua beleza peculiar de mulher proveniente de etnia estranha; além disso, a simpatia que Mária Dmítrievna sentia por ele transmitia-se-lhe inconscientemente. Hadji-Murat evitava olhar e falar com ela, mas os seus olhos, sem querer, seguiam-lhe todos os movimentos.

No que respeita a Butler e Hadji-Murat, os dois homens ficaram amigos desde o primeiro encontro e o montanhês falava-lhe com muito ânimo e durante muito tempo, fazendo-lhe perguntas sobre a vida dele e contando-lhe a sua própria, pondo-o também ao corrente das notícias sobre a situação da sua família, trazidas pelos mensageiros, e chegando a pedir-lhe conselhos.

As notícias que lhe traziam os mensageiros não eram boas. Durante os primeiros quatro dias que Hadji-Murat passou na fortaleza, apareceram duas vezes e em ambas as notícias eram péssimas.


19

A família de Hadji-Murat, pouco tempo depois de ele se ter juntado aos russos, foi levada para o aúl Vedeno e mantida lá sob vigilância, à espera da decisão de Shamil. As mulheres - a velha Patimat e duas esposas de Hadji-Murat - e cinco filhos pequenos viviam, bem guardados, na sáklia de lbraguim Rachid, comandante da centúria; Iussuf, o filho mais velho de Hadji-Murat, de dezoito anos, foi metido no calabouço, ou seja, num buraco fundo, de mais de uma braça, juntamente com quatro criminosos, todos à espera do seu destino.

A decisão não aparecia porque Shamil andava por fora, numa campanha contra os russos.

No dia 6 de Janeiro de 1852, Shamil estava de volta a casa em Vedeno, depois de uma batalha contra os russos, em que, na opinião dos russos, fora derrotado e posto em fuga, mas, na opinião de Shamil e de todos os seus murides, conseguira a vitória e expulsara os russos. Nessa batalha acontecera uma coisa rara: ele próprio deu um tiro de espingarda e, tirando o sabre da bainha, quis mandar o seu cavalo contra os russos, mas os seus murides detiveram-no. Dois deles foram mortos logo a seguir, ao lado de Shamil.

Era meio-dia quando Shamil chegou ao seu local de residência, rodeado pelos murides que galopavam à sua volta, davam fogo de espingarda e pistola e cantavam sem parar «La-illakha il alla».

Todo o povo do grande aúl de Vedeno estava na rua e nos telhados, recebendo o seu chefe e, em sinal da festa, disparando também as espingardas e as pistolas. Shamil montava um cavalo árabe branco que, sentindo-se perto de casa, se excitava. O jaez do cavalo era muito simples, sem adornos de ouro e prata: uma correia de cabeçada vermelha, trabalhada com esmero, com um sulco no meio, os estribos metálicos em forma de copos e um xairel vermelho debaixo da sela. O imã vestia uma peliça forrada de pano castanho, com o pêlo preto junto ao pescoço e nas mangas, apertada na cintura fina e comprida pelo cinto preto onde repousava o punhal. Levava na cabeça um gorro alto de copa plana e borla preta, envolvida num turbante branco, com uma ponta caída para o pescoço. Nos pés calçava tchuviakes verdes e nas barrigas das pernas tinha nogovitsas pretas orladas de um cordão simples.

Em geral, o imã não levava nada brilhante, nem de ouro, nem de prata, e a sua figura alta, direita e forte, trajada sem adornos, rodeada pelos murides com trajos e armas enfeitados de ouro e prata, produzia aquela impressão majestosa que ele procurava e sabia produzir no povo. A sua cara pálida, orlada de uma barba ruiva, aparada, com os olhos pequenos, sempre piscos, parecia de pedra, absolutamente imóvel. Quando estava a atravessar o aúl, sentia um milhar de olhos cravados nele, mas ele próprio não olhava para ninguém. As mulheres de Hadji-Murat, juntamente com todos os habitantes da sáklia, também saíram para a galeria, para verem a entrada do imã. Apenas a velha Patimat, mãe de Hadji-Murat, não saiu, deixando-se ficar sentada no chão da sáklia, com o cabelo encanecido e desgrenhado, envolvendo com os braços compridos os joelhos magros, piscando os olhos negros como breu enquanto olhava para o fogo a extinguir-se na lareira. Tal como o filho, sempre odiara Shamil, mas agora o ódio era ainda maior, por isso não o queria ver.

Também o filho de Hadji-Murat não viu a entrada solene de Sha-mil. Apenas ouviu, do seu buraco escuro e fétido, os tiros e o canto, e sofreu como sofrem apenas as pessoas jovens e cheias de vida que são privadas da liberdade . Metido no buraco fétido e vendo sempre os mesmos desgraçados, sujos e extenuados, ali enfiados com ele, homens enraivecidos, que na sua maioria se odiavam uns aos outros, invejava agora loucamente aqueles que, deliciando-se com o ar, a luz e a liberdade, galopavam nos seus bravos cavalos à volta do seu chefe, davam tiros e cantavam em coro: «La-illakha il alia».

Depois de atravessar o aúl, Shamil entrou num grande quintal, contíguo ao pátio onde se encontrava o seu serralho. Dois lezguines armados receberam Shamil à porta do quintal , que estava cheio de gente vinda dos lugares mais distantes para apresentar os seus problemas ou para fazer pedidos; também ali se encontravam os que, por ordem de Shamil, iriam ser julgados. Quando Shamil fez a sua entrada, toda a gente no quintal se levantou e saudou respeitosamente o imã, levando as mãos ao peito. Alguns ajoelharam-se e ficaram assim enquanto Shamil atravessava o quintal desde porta da rua até à porta interior. Embora Shamil reconhecesse, no meio da multidão, bastantes pessoas que detestava e muitos solicitantes enfadonhos que lhe iam pedir ajuda, passou por eles com a mesma cara imutavelmente pétrea e, ao entrar no pátio, apeou-se junto à galeria da sua casa, ao lado do portão esquerdo. Depois da tensão da campanha, nem tanto física quanto moral - porque Shamil, apesar da proclamação de vitória, sabia que era um malogro, que muitos aúles tchetchenos tinham sido queimados e arasados, que os tchetchenos, povo incerto e leviano, estavam hesitantes, e que alguns deles, mais próximos dos russos, já estavam prontos a passar para o lado deles -, Shamil, perante uma situação tão grave, deveria tomar medidas; mas nesse momento não lhe apetecia pensar em nada. Só queria uma coisa: o descanso e o encanto do carinho matrimonial da sua mais amada mulher, Arninet, a dos olhos negros e dos pés céleres.

Porém, não só lhe era impossível pensar em ver Arninet que estava tão perto, atrás da cerca que, no pátio, separava a parte masculina dos aposentos das mulheres (Shamil tinha certeza de que, naquele mesmo momento em que se apeava, Aminet e as outras mulheres o espreitavam pelas frinchas da cerca), não só era impossível, portanto, ir ter com ela como sequer estender-se simplesmente nos colchões e descansar. Era necessário, antes de mais, cumprir o namázi43 do meio-dia e, francamente, não se sentia com disposição para isso; contudo, não cumprir a oração era impensável na sua situação de líder religioso do povo, além de que, também para ele próprio, o namázi era tão necessário como o alimento de cada dia. Então, fez uma ablução e rezou. Quando acabou, chamou as pessoas que estavam à espera.

O primeiro a entrar foi o seu sogro e mestre, um ancião alto, enca-necido, bem-apessoado, com uma barba branca de neve e umas faces vermelhas, de nome Djemal-Edin; disse uma oração e começou por indagar Shamil sobre os pormenores da campanha, passando depois a contar o que tinha acontecido nos montes durante a sua ausência.

No meio de todo o género de acontecimentos — vinganças de sangue, roubos de gado, acusações de não cumprimento das regras do ta-riqat: não fumar, não beber vinho —, Djemal-Edin informou-o de que Hadji-Murat mandara os seus homens para tentar resgatar a família e levá-la para junto dos russos, mas que isso fora descoberto e a fami-lia estava agora em Vedeno, bem vigiada, à espera da decisão do imã. Na sala dos kunakes, a contígua, estavam reunidos os velhos para discutirem todos esses assuntos e Djemal-Edin aconselhou Shamil no sentido de despachar tudo com eles nesse mesmo dia, uma vez que o esperavam havia já três dias.

Depois do almoço que lhe trouxe Zaidet, morena, de nariz afiado e cara desagradável - também sua esposa, não amada mas a mais velha —, Shami foi para a sala dos kunakes.

Seis homens do seu conselho, anciãos de barbas brancas, cinzentas e ruivas, com turbantes e sem turbantes, com gorros altos e bechme-

tes e tcherkeskas novos, cingidos por cintos com punhais, levantaram-se e foram ao seu encontro. Shamil era uma cabeça mais alta do que qualquer um deles. Todos os velhos, tal como ele próprio, ergueram as mãos com palmas para cima e, com os olhos fechados, disseram uma oração, depois passaram as mãos pelas caras, descendo-as pelas barbas e juntando-as no fim. Depois todos se sentaram, com Shamil no centro, sobre a almofada mais alta, e começou a discussão de todos os assuntos.

Deliberavam-se as sentenças sobre os casos das pessoas acusadas de crimes com base da chária: dois homens foram condenados, por roubo, ao corte de uma mão; um homem, por assassínio, à decapitação; três homens foram indultados. Passaram seguidamente ao problema principal: medidas contra a passagem dos tchetchenos para o lado dos russos. Para impedir essas passagens, Djemal-Edin redigiu a seguinte proclamação:

«Desejo-vos a paz eterna com Deus todo-poderoso. Oiço dizer que os russos vos aliciam e vos chamam à sua obediência. Não acrediteis neles e não vos subjugueis, mas resisti. Se não fordes recompensados por isso nesta vida, tereis uma recompensa na outra vida. Lembrai-vos do que aconteceu antes, quando nos estavam a tirar as armas. Se Deus não vos desse juízo naquele ano de 1840, seríeis agora soldados e andaríeis com baionetas em vez de punhais, e as vossas mulheres andariam sem calças e seriam profanadas. Julgai o futuro pelo passado. É melhor morrer na inimizade com os russos do que viver com os infiéis. Resisti e eu irei ter convosco, levando nas mãos o Corão e o sabre, e conduzir-vos-ei na guerra contra os russos. Mas agora ordeno com rigor que não vos subjugueis aos russos, não só em intenção mas nem sequer em pensamento.»

Shamil aprovou esta proclamação, assinou-a e decidiu divulgá-la.

Depois destes assuntos, foi discutido o caso de Hadji-Murat. Era muito importante para Shamil. Embora não quisesse aceitá-lo, sabia que, se tivesse ao seu lado Hadji-Murat com a sua destreza, coragem e ousadia, não teria acontecido o que acabara de acontecer na Tchetchniá. Seria bom fazer as pazes com ele e voltar a aproveitar os seus serviços; mas, se isso fosse impossível, não se podia admitir que ele ajudasse os russos. Por isso, em qualquer caso, era necessário atraí-lo e, quando aparecesse, matá-lo. Havia duas maneiras de o fazer: ou mandar a Tiflis um homem que o matasse lá, ou obrigá-lo a vir e acabar com ele aqui. A única coisa de que poderia servir-se para isso era a família de Hadji-Murat, em primeiro lugar o seu filho, de quem ele gostava muito - Shamil sabia-o muito bem. Portanto, era preciso agir utilizando o filho.

Depois de o conselho ter discutido o assunto, Shamil fechou os olhos e calou-se.

Os conselheiros sabiam o que isso significava: estava a ouvir a voz do profeta a indicar-lhe o que devia ser feito. Passados cinco minutos de silêncio solene, Shamil abriu os olhos, depois apertou-os ainda mais e disse:

- Trazei-me cá o filho de Hadji-Murat.

- Já está ali - respondeu Djemal-Edin.

Efectivamente, o filho de Hadji-Murat, magro, pálido, esfarrapado e malcheiroso, mas ainda belo de corpo e de cara, com os olhos negros como breu, iguais aos olhos da sua avó Patimat, já estava à porta do quintal, esperando que o chamassem.

Iussuf não partilhava dos sentimentos que o seu pai alimentava por Shamil. Não sabia tudo o que acontecera no passado, ou talvez soubesse mas, como não o tinha vivido, não compreendia por que razão o seu pai era tão persistente na hostilidade para com Shamil. O rapaz, que desejava apenas continuar a ter aquela vida fácil e festiva que, enquanto filho de naíb, levara em Khunzakh, achava aquela hostilidade absolutamente inútil. Em oposição ao pai, admirava muito Shamil e alimentava por ele um sentimento de veneração fascinada, um sentimento que era muito divulgado nos montes. Assim, entrou na sala dos kunakes com um sentimento de devoção apaixonada ao imã e, ao parar à porta, recebeu o olhar penetrante de Shamil. Demorou um pouco parado, depois aproximou-se de Shamil e beijou a sua mão grande, branca, com dedos compridos.

- És filho de Hadji-Murat?

- Sou, imã.

- Sabes o que ele fez?

- Sei, imã, e lamento-o.

- Sabes escrever?

- Preparava-me para ser moádi.

- Então, escreve ao teu pai que, se ele voltar para mim antes do Bairam44, perdoo-lhe e tudo vai continuar como antes. Se não, se ele ficar com os russos, então - Shamil carregou o sobrolho severamente -, mando a tua avó e a tua mãe como escravas para os aúles, e a ti corto-te a cabeça.

Nenhum músculo tremeu na cara de Iussuf. Inclinou a cabeça em sinal de que compreendia as palavras de Shamil.

— Escreve assim mesmo e entrega a carta ao meu emissário.

Shamil calou-se e olhou demoradamente para Iussuf.

— Escreve que tenho pena de ti e não te mato, mas vazo-te os olhos, como faço a todos os traidores. Vai.

Na presença de Shamil, Iussuf parecia calmo, mas quando o levaram da sala dos kunakes, atirou-se ao homem que o escoltava e, arrancando-lhe o punhal da bainha, tentou matar-se, mas foi manietado e levado outra vez para o buraco.

* * *

Nessa noite, quando acabou a oração nocturna e escureceu, Shamil vestiu a peliça branca, franqueou a cerca para a parte do pátio onde viviam as suas mulheres e foi ao quarto de Aminet. Aminet não estava lá, mas nos aposentos das mulheres mais velhas. Então, Shamil, tentando passar despercebido, pôs-se por trás da porta e esperou. Só que Aminet estava zangada com Shamil porque este oferecera um tecido de seda a Zaidet e não a ela. Aminet viu-o entrar no seu quarto, procurando-a, e não foi para lá propositadamente. Ficou muito tempo parada junto à porta do quarto de Zaidet e, rindo baixinho, olhava para a figura branca que ora entrava, ora saía do seu quarto. Depois de ter esperado inutilmente, Shamil voltou para o quarto dele já na hora da oração da meia-noite.


20

Hadji-Murat já vivia em casa de Ivan Matvéevitch, na fortaleza, havia uma semana. Apesar de Mária Dmitrievna se arrenegar muito com o felpudo Khanefi (Hadji-Murat trouxera consigo apenas dois homens, Khanefi e Eldar) e de uma vez o ter expulsado aos empurrões da cozinha porque Khanefi por pouco não a matara com a faca, ela, ao que parecia, alimentava por Hadji-Murat um sentimento de grande respeito e simpatia. Já não lhe servia os almoços, tendo entregado este serviço a Eldar, mas aproveitava qualquer ocasião para o ver e lhe agradar. Também manifestava o mais vivo interesse pelas conversações sobre a fa-mflia de Hadji-Murat, sabia quantas mulheres e quantos filhos ele tinha e as suas idades. De cada vez que chegava um mensageiro, fazia perguntas a quem podia sobre os resultados das negociações.

Quanto a Butler, durante essa semana tomou-se um verdadeiro amigo de Hadji-Murat. Umas vezes era Hadji-Murat quem ia ao seu quarto para falar, outras vezes era Butler quem o visitava. Tanto conversavam com ajuda do intérprete como o faziam pelos seus próprios meios, recorrendo aos gestos e, sobretudo, aos sorrisos. Hadji-Murat, pelos vistos, afeiçoara-se a Butler, o que se via pela atitude de Eldar para com este. Quando Butler entrava no quarto de Hadji-Murat, El-dar recebia-o mostrando alegremente os seus dentes brilhantes, apressava-se a pôr-lhe almofadas para se sentar e, quando Butler trazia o sabre, tirava-lho e arrumava-lho.

Butler também convivia bem com o felpudo Khanefi, Emanado com Hadji-Murat. Khanefi conhecia muitas canções dos montanheses e cantava-as bem. Hadji-Murat, para agradar a Butler, chamava Kha-nefi e mandava-o cantar, escolhendo as canções que achava boas. Khanefi era contratenor e cantava com uma clareza e uma expressividade invulgares. Uma das canções, a preferida de Hadji-Murat, impressionou Butler pela sua melodia solene e triste. Butler pediu que o intérprete lhe traduzisse o conteúdo e apontou-a.

A canção era sobre a vingança de sangue - ou seja, aquilo que existia entre Khanefi e Hadji-Murat.

A canção era assim:

«A terra na minha campa fica seca, e esqueces-me, ó minha mãe. As ervas cobrem o cemitério e abafam a tua angústia, ó meu velho pai. As lágrimas secam nos olhos da minha irmã e a amargura abandona o seu coração.

«Mas não me esqueces tu, meu irmão mais velho, enquanto não vingares a minha morte. Também tu, meu segundo irmão, não me esqueces, até que te deites ao meu lado.

«És quente, ó bala, e levas a morte, mas não foste tu a minha escrava mais fiel? Terra negra, vais cobrir-me o corpo, mas não era o meu cavalo que te pisava? És fria, ó morte, mas não fui eu o teu senhor? A terra toma o meu corpo, o céu recebe a minha alma.»

Hadji-Murat ouvia sempre esta canção com os olhos fechados e, quando ela terminava numa nota arastada, a esmorecer, dizia em russo:

- Bom canção, sábio canção.

A poesia da vida montanhesa, tão peculiar e cheia de energia, começou a envolver ainda mais Butler desde que Hadji-Murat e os seus murides chegaram e se tomaram amigos dele. Arranjou para si um bechmet, uma tcherkeska e umas nogovitsas. Sentia-se também um montanhês e parecia-lhe que tinha a mesma vida que eles.

No dia da partida de Hadji-Murat, Ivan Matvéevitch convidou vários oficiais para uma pequena festa de despedida. Os oficiais estavam sentados à mesa onde Mária Dmítrievna servia chá, ou a outra mesa, com vodca, tchikhir e petiscos, quando Hadji-Murat, vestido para a viagem, entrou na sala, coxeando, num passo rápido e suave.

Todos se levantaram e, um a um, lhe apertaram a mão. Ivan Matvéevitch convidou-o para se sentar no divã, mas Hadji-Murat agradeceu e sentou-se numa cadeira junto à janela. O silêncio que se instalou no momento da sua entrada parecia não o embaraçar minimamente. Passou um olhar atento por todas as caras e parou-o, com indiferença, na mesa com o samovar e os petiscos. O oficial Petrokóvski, homem desembaraçado, que estava a ver Hadji-Murat pela primeira vez, perguntou-lhe através do intérprete se gostara de Tiflis.

- Aia - respondeu Hadji-Murat.

- Diz que sim - traduziu o intérprete.

- Então, de que gostou?

Hadji-Murat respondeu.

- Gostou sobretudo do teatro.

- E gostou do baile em casa do comandante-em-chefe?

Hadji-Murat carregou o sobrolho.

- Cada povo tem os seus costumes. Entre nós, as mulheres não se vestem assim - disse, lançando um olhar a Mária Dnútrievna.

- E do que não gostou?

- Temos um provérbio - disse Hadji-Murat ao intérprete -: um cão serviu carne a um burro, e o burro serviu feno ao cão, e ambos ficaram com fome. - Sorriu. - Para cada povo, o melhor é o seu costume próprio.

A conversa não foi mais longe. Os oficiais começaram a tomar chá, a comer. Hadji-Murat pegou no copo de chá que lhe serviram e pô-lo à sua frente.

- Então? Natas? Pão? - disse Mária Dnútrievna, servindo-lhos ..

Hadji-Murat inclinou a cabeça.

- Bem, adeus! - disse-lhe Butler, tocando-lhe o joelho. - Quando nos voltamos a encontrar?

— Adeus, adeus — respondeu Hadji-Murat em russo e sorriu. — Kunak bulu45. Tua é firme kunak. Tempo toca a andar — disse ele, sacudindo a cabeça naquela direcção que deveria tomar.

À entrada da sala apareceu Eldar, com qualquer coisa grande e branca sobre o ombro e um sabre na mão. Hadji-Murat chamou-o com um gesto e Eldar aproximou-se dele no seu passo largo, estendendo-lhe a burka branca e o sabre. Hadji-Murat levantou-se, pegou na burka e, lançando-a sobre o braço, estendeu-a a Mária Dmítrievna, dizendo qualquer coisa ao intérprete. O intérprete traduziu:

— Gabaste-lhe a burka, fica com ela.

— Para quê? — disse Mária Dmítrievna, corando.

— Tem de ser. Adat46 assim — disse Hadji-Murat.

— Então, obrigada — disse Mária Dmítrievna, pegando na burka. — Que Deus o ajude a salvar o filho. — Ulan47 iakchi — acrescentou. — Que ele salve a família é o meu desejo, diga-lhe.

Hadji-Murat olhou para Mária Dmítrievna e acenou a cabeça em sinal de aprovação. Depois tomou das mãos de Eldar o sabre e estendeu-o a Ivan Matvéevitch. Este pegou no sabre e disse ao intérprete:

— Diz-lhe que leve o meu cavalo castrado pardo, não tenho mais nada para lhe oferecer.

Hadji-Murat abanou a mão à frente da sua cara, querendo dizer de que não precisava de nada e que não o levava, depois apontou para os montes e para o seu coração, e dirigiu-se para a saída. Toda a gente o seguiu. Os oficiais que ficaram na sala desembainharam o sabre oferecido e, depois de examinarem a lâmina, chegaram à conclusão de que era uma verdadeira gurda48.

Butler saiu juntamente com Hadji-Murat. Nesse momento aconteceu uma coisa inesperada que podia custar a vida a Hadji-Murat se não fossem a sua esperteza, firmeza e habilidade.

Os moradores do aúl kumique Tach-Kitchu, que tinham grande respeito por Hadji-Murat e iam muitas vezes à fortaleza apenas para verem o famoso naíb, três dias antes da sua partida mandaram-lhe os seus mensageiros, convidando-o para a sua mesquita na sexta-feira. Porém, os príncipes kumíques que viviam em Tach-Kitchu odiavam Hadji-Murat e tinham em relação a ele uma vingança de sangue por cumprir; assim, quando souberam desse convite, anunciaram ao povo que não iam deixá-lo entrar na mesquita. O povo revoltou-se, houve briga entre o povo e os apoiantes dos príncipes. As autoridades russas reprimiram a revolta dos montanheses e mandaram a Hadji-Murat um mensageiro com o recado de que não deveria ir à mesquita. Hadji--Murat não foi, e todos pensavam que tudo ficava resolvido.

Contudo, precisamente no momento da partida de Hadji-Murat, quando ele saiu da casa e os cavalos estavam à porta, apareceu o Cão Arslan, príncipe kumique, que Butler e Ivan Matvéevitch conheciam bem.

Ao ver Hadji-Murat, sacou da pistola e apontou-lha. Mas não teve tempo de disparar porque Hadji-Murat, apesar da sua perna coxa, precipitou-se, rápido como um gato, para o Cão Arslan. Este deu um tiro mas falhou. Hadji-Murat acercou-se dele, agarrou-lhe com uma mão a brida do cavalo, tirou com a outra o punhal e gritou qualquer coisa em tártaro.

Butler e Eldar chegaram ao mesmo tempo ao pé dos inimigos e manietaram-nos. Ao ouvir o tiro, Ivan Matvéevitch também saiu da casa.

— Irra, Arslan, porque fizeste esta porcaria em minha casa? - disse quando soube o que acontecera. - Está mal, meu amigo. Campo aberto, liberdade a dobrar, mas por que te lembraste de armar uma carnificina em minha casa?

O Cão Arslan, homenzinho pequeno de bigode negro, pálido e todo a tremer, apeou-se do cavalo, olhou com raiva para Hadji-Murat e foi para dentro com Ivan Matvéevitch. Hadji-Murat voltou para junto dos cavalos, a resfolegar e a sorrir.

— Por que queria ele matá-lo? — perguntou Butler ao intérprete.

— Ele diz que é uma lei - traduziu o intérprete as palavras de Hadji-Murat. - Arslan tem de se vingar dele pelo sangue. Por isso quis matá-lo.

— E se o apanhar pelo caminho? - perguntou Butler.

Hadji-Murat sorriu.

— Se matar, é vontade de Alá. Bom, adeus — disse outra vez em russo e, agarrando-se à crina do cavalo, passou os olhos por toda a gente que se estava a despedir dele e dirigiu um carinhoso olhar a Má-ria Dmítrievna.

— Adeus, mãezinha — disse-lhe. — Obrigado.

— Que Deus o ajude, que o ajude a salvar a família — repetiu Má-ria Dmítrievna.

Hadji-Murat não percebeu as palavras, mas captou a preocupação que a mulher tinha por ele e acenou-lhe com a cabeça.

— Vê lá, não esqueças o teu kunak — disse Butler.

— Diz-lhe que sou um fiel amigo dele. Nunca o esquecerei — respondeu Hadji-Murat através do intérprete. E, apesar da sua perna torta, mal tocou no estribo já o seu corpo se catapultava, rápida e facilmente, para cima da sela alta; com gestos mecanizados pelo hábito, apalpou a pistola, ajustou o sabre e, naquele jeito orgulhoso, único e especial, com que um montanhês monta o cavalo, foi afastando-se da casa de Ivan Matvéevitch. Khanefi e Eldar também montaram nos cavalos e, despedindo-se amigavelmente dos donos da casa e dos oficiais, seguiram a trote o seu murchid.

Como sempre acontece, começaram a fazer comentários sobre o homem que acabara de partir.

— Que valente, hã!

— Atirou-se ao Cão Arslan como um lobo, até a cara se lhe mudou.

— Vai aldrabar-nos, de certeza que é um grande malandro — disse Petrokóvski.

— Oxalá que haja entre os russos mais malandros como este — intrometeu-se, de repente, a desagradada Mária Dmítrievna. — Viveu cá connosco uma semana e não nos fez mal nenhum, só bem. Educado, inteligente, justo.

— Como é que ficou a saber tudo isso?

— Soube, e pronto.

— Ficaste pelo beicinho, foi? — disse Ivan Matvéevitch à entrada. — Foi, com certeza.

— Foi, e depois? O que é que isso lhe interessa? Só que não está bem criticarem uma pessoa boa. É tártaro, mas é bom.

— É verdade, Mária Dmítrievna — disse Butler. — Defendeu-o, e fez bem.


21

A vida dos habitantes das fortalezas avançadas da linha tchetchena decorria como dantes. Houve mais alarmes e, de cada vez, sairam das fortalezas as companhias de soldados, os cossacos e os milicianos, que bem galoparam mas não conseguiram apanhar os montanheses: fugiam sempre e, numa ocasião, em Vozdvijênskaia, chegaram a roubar do bebedouro oito cavalos dos cossacos e a matar um homem. Desde a última incursão, quando foi arrasado o aúl, não houve outras. Uma expedição importante à Grande Tchetchniá só era esperada depois e em consequência da nomeação do novo comandante do flanco esquerdo, o príncipe Bariátinski.

O príncipe Bariátinski, amigo do príncipe herdeiro e antigo comandante do Regimento da Kabárdia, sendo agora comandante de todo o flanco esquerdo, ao chegar a Gróznaia formou de imediato um destacamento para continuar a cumprir as ordens do imperador, sobre as quais Tchemichov escrevera a Vorontsov. O destacamento de Vozdvijênskaia saiu na direcção do Regimento de Kura, para ocupar uma posição. Aí, as tropas estavam a cortar a floresta. O jovem Vorontsov vivia numa magnífica tenda de feltro e Mária Vassílievna, sua mulher, visitava muitas vezes o acampamento e ficava lá a dormir. As relações dela com o príncipe Bariátinski não eram segredo para ninguém e os simples oficiais e soldados, falando dela, injuriavam-na grosseiramente porque, graças à sua presença no acampamento, mandavam-nos de noite para os postos de vigilância avançados. Os montanheses costumavam trazer os canhões e disparar contra o acampamento. Na maioria das vezes, as suas balas não acertavam, por isso no dia-a-dia não eram tomadas quaisquer medidas; porém, para que os montanheses não pudessem avançar com os canhões e assustar Mária Vassílievna, mandavam-se os soldados para os postos de vigilância. Ora, ir lá todas as noites para sossego da senhora era insultuoso e abominável, pelo que os soldados e os oficiais não pertencentes à alta sociedade carregavam Mária Vassílievna de pragas obscenas.

Butler, que estava de licença, também foi de visita a este acampamento com a intenção de se encontrar com os seus colegas da Escola Militar, os camaradas do Regimento de Kura, os ajudantes-de-campo e as ordenanças dos chefes. Desde o início, foi tudo muito divertido. Alojou-se na tenda de Poltorátski e encontrou muitos conhecidos que o receberam com grande prazer. Foi ver também Vorontsov, que conhecia um pouco porque, em tempos, tinham servido no mesmo regimento. Vorontsov recebeu-o com muito carinho, apresentou-o ao príncipe Bariátinski e convidou-o para o almoço de despedida que fazia em honra do general Kozlóvski, ex-comandante do flanco esquerdo, substituído por Bariátinski.

O almoço era magnífico. Foram trazidas e montadas lado a lado seis tendas. A todo o comprimento das tendas foi armada uma mesa com baixelas e garrafas. Tudo aquilo lembrava a vida da guarda imperial em Petersburgo. À.s duas horas sentaram-se à mesa. A meio estavam: de um lado Kozlóvski, do outro Bariátinski; à direita de Koz-lóvski o príncipe, à esquerda a princesa Vorontsov. Ao longo de toda a mesa, de ambos os lados, sentavam-se os oficiais dos regimentos de Kabárdia e de Kura. Butler ficou ao lado de Poltorátski e ambos tagarelavam alegremente e bebiam com os seus vizinhos oficiais. Quando chegou a vez do assado, e os impedidos começaram a servir champanhe, Poltorátski disse a Butler com um medo e uma pena sinceros:

- O nosso «pronto» vai-se lixar bem.

- Porquê?

- Porque tem de fazer um discurso, mas ele, nesse particular, é uma miséria.

- É verdade, não é a mesma coisa que tomar de assalto uma barricada. Ainda por cima, está aqui uma senhora e esses senhores da corte. Francamente, mete pena olhar para ele - diziam os oficiais.

Chegou o momento solene. Bariátinski levantou-se e, com o copo na mão, dirigiu-se a Kozlóvski com um breve discurso. Quando acabou, Kozlóvski levantou-se e começou numa voz bastante firme:

- Cumprindo a vontade de Sua Majestade, senhores oficiais, vou--me embora, despeço-me de vós - disse ele. - Mas considerem-me, pronto, como se continuasse convosco... Conhecem, meus senhores, pronto, uma verdade: o soldado solitário não faz guerra. Pronto, devo-vos tudo com que fui condecorado, pronto, no serviço, tudo com que Sua Majestade o imperador me honrou, pronto, generosamente, toda a minha situação e o meu, pronto, bom nome, tudo, tudo definitivamente, pronto... - aqui, a voz tremeu-lhe - devo só a vós, meus queridos amigos! - E a sua cara enrugada enrugou-se ainda mais. Soluçou e as lágrimas banharam-lhe os olhos. - Exprimo-vos do fundo do, pronto, coração a minha gratidão cordial e sincera...

Kozlóvski não conseguiu falar mais e começou a abraçar os oficiais que iam ao pé dele. A princesa tapou o rosto com o lenço. O príncipe Semion Mikháilovitch entortava a boca e pestanejava. Muitos oficiais também se comoveram até às lágrimas. Butler, que quase não conhecia Kozlóvski, também não conteve as lágrimas. Adorava tudo aquilo. Depois começaram os brindes: a Bariátinski, a Vorontsov, aos oficiais, aos soldados - e os convidados saíram da mesa embriagados tanto pelo vinho emborcado como pelo entusiasmo militar, para o qual tinham grande inclinação.

O tempo estava divino, calmo, com muito sol, com um ar fresco e vivificante. Por todo o lado crepitavam as fogueiras, ouviam-se canções. Parecia que toda a gente estava a festejar. Butler, numa disposição feliz e enternecida, foi à tenda de Poltorátski. Estavam lá reunidos alguns oficiais que prepararam a mesa do jogo e o ajudante-de--campo abriu a banca de cem rublos. Por duas vezes Butler saiu da tenda, apertando com a mão o seu porta-moedas dentro do bolso das calças, mas finalmente não aguentou e, apesar da palavra de honra dada a si próprio e aos seus irmãos, juntou-se ao jogo.

Menos de uma hora depois, Butler, vermelho como uma papoila, suado, sujo de giz, estava sentado, com os cotovelos espetados na mesa, a escrever debaixo das cartas dobradas os números das suas paradas. Perdera tanto que já tinha medo de contar. Mesmo sem contar, sabia que, se entregasse todo o seu vencimento, que podia pedir adiantado, mais o preço do seu cavalo, não ia pagar tudo o que apontara aquele ajudante-de-campo que ele não conhecia. Teria jogado mais, mas o ajudante, com uma cara severa, pôs na mesa as cartas, com as suas mãos brancas e limpas, e começou a contar a coluna de números de Butler, escritos a giz. Butler, envergonhado, pediu desculpa por não poder pagar nesse momento tudo o que perdera, disse que ia mandar dinheiro de casa e, quando o disse, viu que todos ficaram com pena dele e que todos, inclusive Poltorátski, evitavam o seu olhar. Era a sua última noite no acampamento. Bastava-lhe, em vez de jogar, ir a casa de Vorontsov, para onde fora convidado, e tudo seria óptimo - pensava. Mas agora não era óptimo, era horrível.

Butler despediu-se dos camaradas e dos conhecidos e foi para casa. Mal chegou, deitou-se imediatamente e dormiu dezoito horas seguidas, como se dorme normalmente depois de um jogo em que se perde. Mária Dmítrievna, quando ele lhe pediu cinquenta copeques emprestados, para dar uma gorjeta ao cossaco que o acompanhara, e também pelo ar triste e pelas respostas curtas que lhe dava, percebeu o que tinha acontecido e ralhou com Ivan Matvéevitch, acusando-o de o ter deixado ir.

No dia seguinte, portanto, já passava das onze quando Butler acordou e, ao lembrar-se da sua situação, desejou mergulhar de novo no esquecimento donde acabara de sair, mas não podia ser. Tinha de tomar medidas para pagar quatrocentos e setenta rublos que ficara a dever a um estranho. Uma dessas medidas consistia em escrever uma carta ao irmão, confessando o seu pecado e suplicando que, pela última vez, lhe mandasse quinhentos rublos por conta do moinho que era ainda propriedade comum de ambos. Depois escreveu a uma parente sovina, pedindo-lhe os mesmos quinhentos rublos a quaisquer juros que ela exigisse. A seguir foi falar com Ivan Matvéevitch, porque sabia que este, ou antes, Mária Dmítrievna, tinha dinheiro e pediu-lhe quinhentos rublos de empréstimo.

- Por mim emprestava-tos ... - disse Ivan Matvéevitch -, e já, mas a Machka não os larga. Estas mulheres são agarradas, não sei... Mas precisas, precisas mesmo de te desenvencilhar, c’os diabos. Olha, talvez aquele diabo, o vivandeiro, ele terá?

Mas nem valia a pena pedir ao vivandeiro. Portanto, a salvação de Butler podia chegar apenas do irmão ou da parente somítica.


22

Como Hadji-Murat não tivesse conseguido o seu objectivo na Tchetchniá, voltou a Tiflis e, todos os dias, ia falar com Vorontsov; quando este o recebia, implorava-lhe que juntasse os prisioneiros montanheses e os trocasse pela sua família; repetia que, sem isso, estava atado de pés e mãos e não podia fazer o que desejava, ou seja, servir os mssos e aniquilar Shamil. Vorontsov prometia vagamente fazer o possível, mas adiava sempre, dizendo que resolveria o problema quando chegasse a Tiflis o general Argutínski, com quem iria falar. Então, Hadji-Murat começou a pedir a Vorontsov para o deixar partir e viver algum tempo em Nukha, uma pequena cidade transcau-casiana, onde, supunha ele, lhe seria mais fácil levar a cabo as conversações com Shamil e com os homens deste sobre a sua família. Além disso, em Nukha, cidade maometana, havia uma mesquita onde lhe seria mais cómodo dizer as preces prescritas pela lei da sua religião. Vorontsov escreveu sobre isso para Petersburgo, mas, entretanto, deu a sua autorização a Hadji-Murat para ir a Nukha.

No entender de Vorontsov e das autoridades de Petersburgo, tal como da maioria dos russos que conheciam a história de Hadji-Murat, o caso dele representava uma de duas coisas: ou uma feliz reviravolta na guerra caucasiana, ou simplesmente um episódio interessante; ora, para Hadji-Murat, sobretudo nos últimos tempos, aquilo era uma terrível viragem na sua vida. Fugira dos montes, em parte para salvar a sua vida, em parte pelo ódio que nutria por Shamil; e, por mais difícil que essa fuga se apresentasse, conseguira o seu objectivo e, a princípio, até estava satisfeito com o seu êxito e pensava já no plano para atacar Shamil. Porém, ficou claro que a fuga da sua família, que julgara fácil de organizar, era no entanto um problema complicado. Shamil levara-lhe a família e, mantendo-a prisioneira, prometia distribuir as mulheres pelos aúles e matar, ou cegar, o seu filho. Agora, Hadji-Murat partia para Nukha com o propósito de tentar, com ajuda dos seus sequazes no Daguestão, mediante uma artimanha ou à força, arrancar a sua família das garras de Shamil. O último mensageiro que o visitou em Nukha comunicou-lhe que os ávaros que lhe eram abnegados haviam planeado resgatar-lhe a família e levá-la para junto dos russos, mas que havia pouca gente disposta a participar nisso e com coragem para o fazer em Vedeno, lugar do cativeiro da família; apenas seria possível executar o plano se a família fosse levada para outro sítio — então sim, prometiam levar a cabo o resgate pelo caminho. Hadji-Murat mandou que dissessem aos seus amigos que pagaria três mil rublos pela salvação dos seus familiares.

Em Nukha, alojaram Hadji-Murat numa pequena casa, de cinco salas, perto da mesquita e do palácio do Cão. Na mesma casa viviam os oficiais russos, o intérprete e os seus nukeres. A vida de Hadji-Murat decorria entre a espera e a recepção dos mensageiros dos montes; dava ainda passeios a cavalo — que lhe tinham' autorizado — pelos arredores de Nukha.

Quando, no dia 8 de Abril, Hadji-Murat regressou do seu passeio, soube que viera um funcionário de Tiflis. Apesar do seu grande desejo de saber o que lhe trouxera o funcionário, antes de se dirigir à sala onde o esperavam o chefe da polícia e o tal funcionário, Hadji-Murat entrou no seu quarto e rezou a oração do meio-dia. Quando acabou de rezar, entrou no recinto que servia de sala de estar e de sala de espera. Um senhor gorducho, o conselheiro de Estado Kiríllov, o tal funcionário vindo de Tiflis, transmitiu a Hadji-Murat o desejo de Vo-rontsov o ver em Tiflis antes do dia doze, para um encontro com o senhor Argutínski .

— Iakchi — disse Hadji-Murat com irritação.

Não gostou do funcionário Kiríllov.

— Trouxeste o dinheiro?

— Trouxe — respondeu Kiríllov.

— De duas semanas — disse Hadji-Murat e mostrou dez dedos e mais quatro. — Dá cá.

— Um momento — disse o funcionário, tirando a carteira do seu saco de viagem. — Para que quer ele o dinheiro? — perguntou ao polícia em russo, pensando que Hadji-Murat não o compreendia. Mas Hadji-Murat percebeu e olhou, abespinhado, para Kiríllov. Enquanto tirava o dinheiro, Kiríllov, tentando meter conversa com Hadji-Murat para ter alguma coisa que contar ao príncipe Vorontsov, perguntou-lhe, através do intérprete, se não se aborrecia naquele lugar. Hadji-Murat olhou de soslaio, com desprezo, para o homenzinho gorducho vestido à paisana, sem armas, e não respondeu nada. O intérprete repetiu a pergunta.

— Diz-lhe que não quero falar com ele. Que dê o dinheiro.

E sentou-se à mesa para contar o dinheiro.

Kiríllov tirou as moedas de ouro e colocou na mesa sete pilhas de dez moedas cada (Hadji-Murat recebia cinco por dia); depois, aproximou-as de Hadji-Murat. Este guardou as moedas dentro da manga da tcherkeska, levantou-se e, de supetão, deu uma palmada na careca do conselheiro de Estado e dirigiu-se para a saída da sala. O conselheiro de Estado deu um salto e mandou o intérprete dizer a Hadji--Murat que não se atrevesse a fazer uma coisa daquelas a um funcionário com a patente de coronel. O chefe da polícia concordou. Mas Hadji-Murat acenou com a cabeça em sinal de que já sabia e saiu da sala.

— Nada a fazer com ele — disse o chefe da polícia. — Se for preciso espeta uma punhalada e desanda. São difíceis, estes diabos. Já começou a enraivecer-se, vê-se.

Quando caiu a noite, chegaram dos montes dois mensageiros com as caras tapadas até aos olhos com bachlikes. O chefe da polícia levou-os aos aposentos de Hadji-Murat. Um deles era um montanhês musculado e moreno, do Daguestão; o outro, um velho magro. As notícias não eram nada felizes. Os amigos de Hadji-Murat que se tinham encarregado de resgatar a sua família agora recusavam-se abertamente a fazê-lo, com medo de Shamil que ameaçava com as mais terríveis punições todos os que ajudassem Hadji-Murat. Ao ouvir o relatório dos mensageiros, Hadji-Murat apoiou as mãos nas pernas cruzadas, baixou a cabeça e ficou muito tempo calado. Hadji-Murat estava a pensar, a tomar uma decisão definitiva. Sabia que era a última vez que tomava uma decisão. Levantou a cabeça, tirou duas moedas de ouro, entregou-as aos mensageiros e disse:

— Ide.

— Qual será a resposta?

— A resposta será aquela que Deus mandar. Ide.

Os mensageiros levantaram-se e foram embora; Hadji-Murat continuou sentado no tapete, apoiando os cotovelos nos joelhos. Ficou assim muito tempo, a pensar.

«O que faço? Confio em Shamil e volto lá? Essa raposa vai enganar-me. Mesmo que não enganasse, nunca poderia submeter-me a esse ruivo mentiroso. Não posso, porque ele, agora que já vivi com os russos, não me dará crédito» — pensava Hadji-Murat.

E lembrou-se de uma lenda daguestanesa sobre um falcão que foi apanhado, viveu com os homens e depois voltou aos montes, para os seus. Voltou, mas com peias, e nas peias pendiam guizos. E os falcões não o aceitaram. «Vai — disseram-lhe — para onde te puseram os guizos de prata. Nós não temos guizos, mas também não temos peias.» O falcão não quis abandonar a pátria e ficou. Mas os outros falcões não o quiseram e mataram-no às bicadas.

«É assim que também me vão matar» — pensava Hadji-Murat.

«Ficar aqui? Conquistar o Cáucaso para o czar russo, ganhar glória, títulos, riquezas?»

«É possível» — pensou, recordando os seus encontros com Vo-rontsov e as palavras lisonjeiras do velho príncipe.

«Mas tenho de tomar uma decisão agora mesmo, senão ele dá cabo da minha família.»

Hadji-Murat passou toda a noite acordado, a pensar.


23

A meio da noite, a sua decisão foi formada. Resolveu fugir para os montes e, com os ávaros que lhe eram leais, iromper em Vedeno e, aí, morrer ou libertar a família. Se depois levava a família para junto dos russos ou se a transferia rapidamente para Khunzakh e entrava na luta contra Shamil — nisso Hadji-Murat não pensava. Sabia apenas que, agora, precisava de fugir dos russos para os montes. E começou a pôr de pé um plano de execução imediato. Tirou de baixo da almofada o seu bechmet preto forrado de algodão e foi ao quarto dos seus nukeres. Alojavam-se do outro lado do átrio. Mai entrou no átrio com a porta aberta, abrangeu-o a frescura orvalhada da noite de luar e estalou-lhe nos ouvidos o canto chilreado e matraqueado de vários rouxinóis do jardim contíguo à casa.

Hadji-Murat atravessou o átrio, abriu a porta do quarto dos nuke-res. Neste quarto não havia luz, apenas a lua em quarto crescente vertia a sua luz pela janela. A mesa e duas cadeiras estavam afastadas de encontro às paredes e todos os quatro nukeres se deitavam no chão, em cima dos tapetes e das burkas. Khanefi dormia no quintal, com os cavalos. Gamzalo, ao ouvir a porta a ranger, levantou-se, viu Hadji--Murat, voltou a deitar-se. Mas Eldar, que dormia ao lado dele, pôs-se em pé de um salto e começou a vestir o bechmet, à espera das ordens. Kurban e Khan-Magoma não acordaram. Hadji-Murat colocou o seu bechmet em cima da mesa, e qualquer coisa dura bateu contra a tampa. Eram as moedas de ouro guardadas dentro do forro.

- Guarda também estas - disse Hadji-Murat, entregando a Eldar o ouro recebido nesse dia.

Eldar pegou nas moedas e, sem demora, foi até um lugar alumia-do, tirou uma faca que tinha por trás do punhal, no cinto, e começou a descoser o forro do bechmet. Gamzalo soergueu-se e sentou-se com as pernas cruzadas.

- E tu, Gamzalo, manda aos rapazes verificar as espingardas e as pistolas, que preparem os cartuchos. Amanhã vamos para longe -disse Hadji-Murat.

- Temos pólvora, temos balas. Já vai estar tudo pronto - disse Gamzalo e rugiu mais qualquer coisa incompreensível. Gamzalo percebera a finalidade com que Hadji-Murat mandara carregar as espingardas. Desde o início, e cada vez mais, Gamzalo desejava uma única coisa: matar, esfaquear os cães russos, tantos quantos fosse possível, e fugir para os montes. Agora via que Hadji-Murat desejava a mesma coisa e estava contente.

Quando Hadji-Murat saiu, Gamzalo acordou os seus companheiros e todos os quatro passaram a noite a examinar as espingardas, as pistolas, a pólvora, as pedemeiras, mudando as estragadas, pondo pólvora fresca nos fuzis, tapando com balas envoltas em trapos impregnados de óleo os khozires cheios de pólvora, afiando os sabres e os punhais, untando as lââminas com gordura. .

Antes do amanhecer, Hadji-Murat saiu de novo para o átrio, indo buscar água para as abluções. O canto em que se desfaziam os rouxinóis recebendo a aurora era ainda mais alto e nítido. No quarto dos nukeres soava o assobio regular do aço do punhal amolado na pedra. Hadji-Murat tirou água da selha e já se aproximava da sua porta quando ouviu, no quarto dos murides, além do som da amolação, a voz fina de Khanefi a cantar uma canção que Hadji-Murat conhecia bem. Parou e escutou.

A canção contava a história do djiguit Gamzat que, com os seus homens, roubou aos russos uma manada de cavalos brancos e como o príncipe russo o apanhou atrás do Terek e o cercou com o seu exército grande como uma floresta. Cantava-se depois que Gamzat degolou os cavalos e se meteu por trás do montão ensanguentado de cavalos mortos, e combateu os russos enquanto havia balas nas espingardas, punhais nos cintos e sangue nas veias. Mas, antes de morrer, Gamzat viu umas aves no céu e gritou-lhes: «Aves aladas, voai até às nossas casas e dizei às nossas irmãs, mães e raparigas brancas que morremos pelo hazavat. Dizei-lhes que os nossos corpos não vão jazer nos túmulos, mas os lobos insaciáveis vão rasgar e trincar os nossos ossos, e os corvos negros vão vazar os nossos olhos.»

A estas palavras, com que terminava a canção e que eram cantadas numa melodia tristonha, juntou-se a voz enérgica do alegre Khan--Magoma que ainda gritou no fim: «La-illakha il alla» - e soltou um guincho estridente. Depois, tudo se silenciou, e ficou de novo a ouvir-se apenas o chilreio dos rouxinóis do jardim e, por trás da porta, a chiadeira, mesclada de vez em quando com assobios, do aço a deslizar rapidamente pela pedra.

Hadji-Murat ficou tão pensativo que não reparou que inclinava o jarro, derramando a água. Abanou a cabeça, censurando-se, e entrou no seu quarto. Depois de cumprir o namázi matinal, Hadji-Murat examinou as suas armas e sentou-se na cama. Não havia mais nada que fazer. Para sair era preciso pedir licença ao chefe da polícia. Mas ainda era noite, e o polícia estava a dormir.

A canção de Khanefi lembrava-lhe outra, composta pela sua mãe. Esta canção falava do que aconteceu na realidade - quando Hadji-Murat nasceu - e tal como a mãe lho contou.

A canção era assim:

«O teu punhal damasquino rasgou o meu peito branco, mas apertei ao peito o meu sol, o meu menino, banhei-o com o meu sangue quente e a ferida sarou sem ervas nem raízes curativas. Não tive medo da morte e o rapaz djiguit não terá medo dela.»

As palavras desta canção eram dirigidas ao pai de Hadji-Murat e o seu sentido era o seguinte: quando Hadji-Murat nasceu, a mãe dos Cãos também teve mais um filho, o Cão Umma, e mandou que a mãe de Hadji-Murat, que amamentara já o filho mais velho do Cão, Abu-nuntsal, fosse a ama de leite do Cão recém-nascido. Mas Patimat não quis abandonar o seu bebé e recusou-se. O pai de Hadji-Murat zangou-se e mandou-a ir. E, quando ela voltou a recusar-se, deu-lhe uma punhalada e matava-a se não lha tivessem arancado das mãos. Assim, Patimat não abandonou o filho e amamentou-o, e fez uma canção sobre isso.

Hadji-Murat recordou a sua mãe quando ela, deitando-o ao seu lado no telhado, debaixo da peliça, lhe cantava esta toada e ele lhe pedia que lhe mostrasse o lugar onde ficara a cicatriz. Imaginava ao vivo a sua mãe - mas não como a deixara havia pouco, enrugada, encanecida e com os dentes ralos, mas sim como era em jovem, bonita e tão forte que, quando ele já tinha cinco anos e estava pesado, ela ainda o levava no cesto às costas, através dos montes, para casa do avô.

Recordou também o avô, com a cara cheia de rugas e a barba cinzenta, que era cinzelador, moldava a prata com as suas mãos nodosas e obrigava o neto a dizer orações. Recordou uma fonte no sopé do monte, onde ia buscar água com a mãe, agarrando-se-lhe às calças. Recordou um cão escanzelado que lhe lambia a cara e, sobretudo, o cheiro e o sabor do fumo e do leite coalhado, quando ia com a mãe ao barracão onde ela ordenhava a vaca e cozia o leite a fogo lento. Recordou como a mãe, pela primeira vez, lhe rapara a cabeça e como vira, espantado, a sua cabecinha redonda e azulada, reflectida no alguidar de cobre brilhante.

Então, ao rever-se em criança, lembrou-se do seu querido filho lus-suf, a quem ele próprio rapara a cabeça pela primeira vez. Agora o Iussuf já era um djiguit jovem e bonito. Recordou o filho como o vira pela última vez. Foi no dia em que saiu de Tselmes. O rapaz chegou-lhe o cavalo e pediu licença para o acompanhar um troço do caminho. Estava vestido e armado, e segurava o seu cavalo pela rédea. A cara de Iussuf, jovem e bonita e de lindas cores, e toda a sua figura alta e fina (era mais alto do que o pai), respirava coragem, juventude e alegria de viver. Os ombros largos, apesar da juventude, a pélvis ampla de moço e o corpo fino e comprido, os braços fortes e longos, a força, a flexibilidade e a destreza de todos os seus movimentos sempre alegravam o pai, e era com prazer que, de todas as vezes, o observava.

- Fica, é melhor. Agora és o único homem da casa. Protege a tua mãe e a tua avó - disse Hadji-Murat.

E não se esquecia da expressão de galhardia e orgulho com que Iussuf corou de prazer, dizendo que, enquanto fosse vivo, ninguém faria mal à sua mãe e à sua avó. Mesmo assim, montou a cavalo e acompanhou o pai até ao riacho. Depois voltou para casa e desde então Hadji-Murat nunca mais viu a mulher nem a mãe, nem o filho.

Era aquele o seu filho que Shamil queria cegar! Quanto à mulher, nem queria pensar no que lhe fariam.

Estes pensamentos emocionaram-no de tal maneira que não conseguia continuar sentado. Saltou do lugar e, coxeando, foi rapidamente até à porta, abriu-a e chamou Eldar. O sol ainda não tinha nascido, mas já havia muita luz. Os rouxinóis não se calavam.

- Vai dizer ao chefe da polícia que desejo ir passear e selai os cavalos - disse ele.


24

A única consolação de Butler, naquele tempo, era a poesia guerreira a que ele se entregava não só no serviço, mas também na sua vida pessoal. Vestido com o trajo circassiano, galopava armado em djiguit e por duas vezes foi com Bogdanóvitch fazer emboscadas, embora não chegassem a apanhar nem a matar ninguém. Esta bravura e a amizade com Bogdanóvitch, famoso valentão, pareciam a Butler uma coisa agradável e importante. Pagou a sua dívida, tendo pedido dinheiro emprestado a um judeu, com juros enormes, ou seja, apenas adiou a solução do problema. Evitava pensar na sua situação e, além da poesia guerreira, recorria ainda ao vinho para esquecer os problemas. Bebia cada vez mais e, a cada dia que passava, ficava ainda mais fragilizado no sentido moral. Em relação a Mária Dmítrievna, já não era como José, o Belo, mas pelo contrário - começou a namoriscá-la com grosseria e, para seu espanto, encontrou uma resistência resoluta e forte, e sentiu vergonha.

No fim de Abril chegou à fortaleza um destacamento destinado por Bariátinski a uma nova ofensiva através de toda a Tchetchniá, considerada intransitável. Integravam-no duas companhias do Regimento da Kabárdia, que foram recebidas como convidadas pelas companhias aquarteladas na fortaleza, de acordo com uma tradição já consolidada no Cáucaso. Os soldados dispersaram-se pelas casernas e foram regalados não só com um jantar (papas, carne de vaca), mas também com vodca. Os oficiais alojaram-se em casas dos oficiais locais. E, como era costume, os anfitriões serviram um jantar aos recém-chegados.

O jantar acabou com uma bebedeira acompanhada pelas cantigas dos soldados e Ivan Matvéevitch, muito bêbedo, já não vermelho mas cinzento-pálido, estava escarranchado na cadeira e, com o sabre na mão, acutilava inimigos imaginários, e ora praguejava, ora ria às gargalhadas, ora abraçava os camaradas, ora dançava ao som da sua canção preferida: «Shamil começou a amotinar-se em anos já passados, trai-rai-ratatai, em anos já passados». Butler, também presente, tentou ver nisso uma poesia guerreira, mas no fundo da alma tinha pena de Ivan Matvéevitch e não tinha qualquer possibilidade de o fazer parar. Então, Butler, sentindo a embriaguez a pesar-lhe na cabeça, saiu sorrateiramente e foi para casa.

A lua cheia lançava a sua luz sobre as casinhas brancas e as pedras do caminho. O ar era tão claro que cada pedrinha, palha ou estrume no caminho se distinguiam nitidamente. Ao aproximar-se de casa, Butler viu Mária Dmitrievna, com a cabeça e os ombros cobertos pelo lenço. Depois de Mária Dmitrievna o ter escorraçado, Butler tinha vergonha e evitava encontrar-se com ela. Agora, porém, à luz da lua e sob o efeito do vinho bebido, Butler ficou contente com este encontro e quis, mais uma vez, procurar o seu carinho.

— Onde vai? — perguntou-lhe.

— Vou ver como está o meu velho — respondeu amigavelmente. Rejeitava os galanteios de Butler com toda a sinceridade e firmeza, mas não lhe agradava ver que ele, nos últimos dias, a tinha evitado.

— Para quê? Ele vem sozinho, não se perde.

— E se não vier?

— Se não vier, trazem-no.

— Ora aí está, e isso não está bem — disse Mária Dmitrievna. — Então não vou, o que acha?

— Não vá. Vamos para casa.

Mária Dmitrievna deu meia volta e encaminhou-se para casa ao lado de Butler. A lua brilhava tanto que, à volta da sombra movente da sua cabeça, Butler via uma auréola a luzir. Olhava para a sua sombra aureolada e tinha vontade de dizer a Mária Dmítrievna que continuava a gostar dela, mas não sabia como começar. Ela esperava o que Butler lhe ia dizer. Assim, calados, já estavam muito perto de casa quando de trás da esquina surgiram uns cavaleiros. Era um oficial e mais a escolta.

— Quem será que Deus nos manda? — disse Mária Dmitrievna e afastou-se.

A lua iluminava o recém-chegado por trás e Mária Dmítrievna só o reconheceu quando ele estava a dois passos. Era o oficial Kámenev que, dantes, servira no mesmo destacamento que Ivan Matvéevitch e que, por isso, ela conhecia.

- Piotr Nikoláevitch! - exclamou.

- Sou - disse Kámenev. - Ah, é o Butler! Viva:. Ainda não dorme? Leva a Mária Dmítrievna a passear? Cuidado, olhe que o Ivan Matvéevitch diz-lhe ... Onde é que ele está?

- Está ali, não ouve? - respondeu Mária Dmítrievna, apontando para o lado donde chegavam os sons do tulumbaz49 e das cantigas. -Estão na pândega.

- Os vossos?

- Não, vieram de Hassav-lurt, banqueteiam-se à grande.

- Fazem bem. Chego mesmo a tempo. Tenho de o ver, mas é só um mínuto.

- Alguma coisa de especial? - perguntou Butler.

- É, sim, há uma coisinha.

- Boa ou má?

- Depende! Para nós é boa, mas há para quem seja má - disse Kámenev e riu-se.

Entretanto, cavaleiros e peões chegaram à casa de Ivan Matvéevitch.

- Tchikhiriov! - gritou Kámenev a um cossaco. - Vem cá.

O cossaco do Don avançou e aproximou-se dele. O homem enver-gava o uniforme habitual dos cossacos do Don, mais botas, capote e os alforges por trás da sela.

- Vá, tira aquela coisa - mandou-lhe Kámenev, apeando-se.

O cossaco também se apeou e retirou do alforge um saco com qualquer coisa. Kámenev pegou no saco e meteu a mão dentro dele.

- Então, quer que lhe mostre a notícia? Não se assusta? - dirigiu-se a Mária Dmítrievna.

- Não me assusto, porquê? - disse ela.

- Aqui está - disse Kámenev, tirando uma cabeça humana e expondo-a à luz da lua. - Conhecem?

Era uma cabeça rapada, com grandes saliências por cima dos olhos, barbicha negra e bigode aparados, com um olho aberto e outro semicerrado, o crânio rapado, o nariz coberto de sangue negro coagulado. O pos-coço estava envolto por uma toalha ensanguentada. Aposar de todas as feridas, os lábios azulados mantinham uma expressão infantil, bondosa.

Mária Dmítrievna olhou e, sem dizer nada, virou-se e entrou a passo rápido em casa.

Butler não conseguia desviar os olhos da cabeça terrível. Pertencia àquele mesmo Hadji-Murat com quem, havia pouco, ele passava as tardes, conversando amigavelmente.

- Mas como ...? Quem o matou? Onde? - perguntou.

- Queria fugir, mas apanhámo-lo - disse Kámenev. Entregou a cabeça ao cossaco e entrou na casa juntamente com Butler.

- E morreu com galhardia - disse Kámenev.

- Mas como aconteceu?

- Espere, quando Ivan Matvéevitch vier, conto tudo em pormenor. Foi para isso que me mandaram. Ando por todas as fortalezas e por todos os aúles, a mostrá-la.

Mandaram buscar Ivan Matvéevitch que, bêbedo e acompanhado por dois oficiais também bastante tocados, chegou a casa e desatou a abraçar Kámenev.

- Vim para lhe mostrar uma coisa - disse Kámenev. - Trouxe a cabeça de Hadji-Murat.

- Não me digas! Mataram-no?

- Foi, quis fugir.

- Era o que eu dizia, que ele ia aldrabar-nos. Bem, onde está a cabeça? Mostra lá.

Chamaram o cossaco e este trouxe o saco com a cabeça. Tiraram--na, e Ivan Matvéevitch observou-a demoradamente com os olhos bê-bedos.

- Seja como for, foi um bravo rapaz - disse por fim. - Deixa-me beijá-lo.

- É verdade, foi um valentão - disse um dos oficiais.

Quando toda a gente acabou de observar a cabeça, devolveram-na

ao cossaco.

O cossaco meteu a cabeça no saco e pô-lo no chão com cuidado, tentando não bater com ele.

- Ouve lá, Kámenev, quando a mostras, fazes comentários ou quê? - disse um dos oficiais.

- Não, deixa-me beijá-lo, ofereceu-me o sabre - gritava Ivan Matvéevitch.

Butler saiu da porta. Mária Dmítrievna estava sentada no segundo degrau da escada. Olhou para Butler e, logo a seguir, virou-lhe as costas, furiosa.

— O que tem, Mária Dmítrievna? — perguntou-lhe Butler.

— São uns carniceiros, vocês todos, odeio-vos, são uns autênticos carniceiros - disse ela, levantando-se.

— Podia acontecer a qualquer um — disse Butler, sem saber o que dizer. — É a guerra.

— A guerra! — exclamou Mária Dmítrievna. — E que guerra! Carniceiros, e está tudo dito. É preciso dar sepultura ao corpo morto, mas eles ainda fazem troça. Carniceiros, francamente — repetiu, desceu a escada e foi para casa pela porta traseira.

Butler voltou à sala de estar e pediu Kámenev para contar com mais pormenores o que tinha acontecido.

Kámenev contou.

Aconteceu como se relata adiante.


25

Hadji-Murat tinha autorização para passear a cavalo perto da cidade e, obrigatoriamente, com uma escolta de cossacos. Em Nukha havia ao todo meia centena de cossacos, dos quais uma dezena estava ao serviço dos chefes; os outros, de acordo com as ordens, eram destacados para a escolta em grupos de dez, um grupo de cada vez, dia sim, dia não. Ora, se no primeiro dia ainda mandaram um grupo de dez cossacos, a seguir decidiram que as escoltas seriam de cinco homens, mas pedindo a Hadji-Murat que não levasse consigo todos os seus nukeres. No dia 25, porém, Hadji-Murat saiu com todos os seus cinco nukeres. Quando Hadji-Murat estava a montar a cavalo, o chefe militar viu que todos os cinco iam acompanhá-lo e fez-lhe o reparo de que não lhe era permitido levá-los a todos, mas Hadji-Murat fingiu que não o ouviu e tangeu o cavalo. O chefe militar não quis insistir. Entre os cossacos havia um oficial inferior, de nome Nazárov, cavaleiro da Cruz de São Jorge, com o cabelo ruço cortado à tigela, jovem e saudável, com uma cara de belas cores. Era o filho mais velho de uma pobre família pertencente à velha igreja ortodoxa, crescera sem pai e sustentava a sua velha mãe, três irmãs e dois irmãos.

— Vê lá, Nazárov, não os deixes ir longe! — gritou o chefe.

— Sim, vossa senhoria — respondeu Nazárov e, levantando-se no . estribo e ajeitando a espingarda que levava a tiracolo, arancou a trote no seu bom cavalo, grande e ruivo, com focinho arqueado. Atrás dele, seguiam quatro cossacos: Ferapóntov, esgrouviado e magro, grande ladrão e espertalhão — aquele mesmo que vendera pólvora a Gamzalo; Ignátov, mujique de certa idade, que já cumprira o prazo obrigatório do serviço, mas era robusto e gabava-se da sua força; Míchkin, novinho e fraquinho, objecto de gozo para todos; e finalmente Petrakov, jovem, loiro, filho único da sua mãe, sempre carinhoso e animado.

A manhã era de nevoeiro, mas à hora do pequeno-almoço o tempo melhorou, e o sol brilhava na folhagem recém-desabrochada, nas ervas jovens e virgens, na seara nova e na superfície encrespada do rio rápido à esquerda do caminho. Hadji-Murat cavalgava a passo; os cossacos e os nukeres seguiam-no sem se atrasarem. Saíram para o caminho por trás da fortaleza. Encontravam de vez em quando mulheres com os cestos à cabeça, soldados em carros e carroças atreladas a bois. Ao fazer cerca de dois verstás, Hadji-Murat esporeou o seu cavalo branco; o esquipador acelerou de tal modo que os nukeres tiveram de mandar os seus cavalos a trote largo. Os cossacos também.

— Eh, que bom cavalo ele tem — disse Ferapóntov. — Se não fosse pacífico, dava-lhe um tíro e o cavalo seria meu.

— Pois é, amigo, por este cavalinho davam trezentos mblos em Tiflis.

— Ultrapasso-o com o meu — disse Nazárov.

— Querias! — disse Ferapóntov.

Hadji-Murat continuava a acelerar.

— Eh, kunak, não faças isso! Abranda! — gritou Nazárov, apanhando Hadji-Murat.

Hadji-Murat vírou a cabeça e, sem responder, continuou a cavalgar à mesma velocidade.

— Acho que estão a tramar alguma — disse Ignátov. — Olha como correm.

Fizeram assim uma verstá na direcção dos montes.

— Já te disse, é proibido! — voltou a gritar Nazárov.

Hadji-Murat não respondia nem se virava, mas continuava a acelerar e passou ao galope.

— Mentíra, não foges! — gritou Nazárov, ressentido.

Chicoteou o seu cavalo ruivo e, soerguendo-se nos estribos e lançando o corpo para a frente, mandou-o a toda a brida atrás de Hadji--Murat.

O céu era tão claro, o ar tão fresco e as forças da vida brincavam na alma de Nazárov com tanta alegria quando ele, fundido numa só criatura com o seu belo e forte cavalo, corria pelo caminho liso atrás de Hadji-Murat, que nem lhe passava pela cabeça a possibilidade de acontecer alguma coisa má, triste ou terrível. Agradava-lhe que, a cada passo, estivesse a aproximar-se cada vez mais de Hadji-Murat. Este percebeu, pelo bater dos cascos do cavalo grande, que o cossaco ia apanhá-lo dentro de alguns momentos; então levou a mão direita à pistola e, com a esquerda, começou a refrear um pouco o seu cavalo esquentado e excitado com o bater dos cascos por trás dele.

- Estás proibido, ouviste? - gritou Nazárov, quase ao lado de Hadji-Murat e estendendo a mão para agarrar a brida do seu cavalo. Porém, não teve tempo de o fazer porque estoirou um tiro.

- O que fizeste? - gritou Nazárov, agarrando-se com a mão ao peito. - Agarrai-os, rapazes - disse, cambaleou e tombou sobre o arção da sela.

Mas os montanheses pegaram nas armas antes dos cossacos, começaram a disparar e a acutilá-los com os sabres. Nazárov pendia sobre o pescoço do cavalo assustado que corria com ele à volta dos seus camaradas. O cavalo de lgnátov caiu, prendendo-lhe uma perna. Dois montanheses, sem se apearem, assestavam-lhe golpes de sabre nas mãos e na cabeça. Petrakov acorreu em socorro do camarada, mas foi atingido por dois tiros, nas costas e de lado, e tombou como um saco no chão .

Míchkin virou o cavalo para trás e galopou na direcção da fortaleza. Khanefi e Khan-Magoma atiraram-se atrás dele, mas já estava longe e os montanheses não o apanharam.

Vendo que não podiam apanhar o cossaco, Khanefi e Khan-Magoma voltaram para junto dos seus. Gamzalo matou lgnátov à punhalada e degolou Nazárov, fazendo-o cair do cavalo. Khan-Magoma tirou aos mortos os sacos com os cartuchos. Khanefi quis levar o cavalo de Nazárov, mas Hadji-Murat gritou-lhe para não o fazer e arrancou pelo caminho adiante. Os seus murides seguiram-no, enxotando o cavalo de Petrakov que não os largava. Já estavam a três verstás de distância de Nukha, no meio dos campos de arroz, quando soou um tiro na torre, sinal de alarme.

Petrakov jazia de costas com a barriga aberta, a sua cara jovem estava virada para o céu, e, soluçando como um peixe, agonizava.

***

— Deus nosso Senhor, o que foram fazer! — exclamou o comandante da fortaleza deitando as mãos à cabeça, quando soube da fuga de Hadji-Murat. - Mataram-me! Deixaram-no fugir, facínoras! -gritava, ouvindo o relatório de Míchkin.

O alerta foi dado por todo o lado e foram mandados em perseguição dos fugitivos não só todos os cossacos dessa localidade, mas também todos os milicianos que se conseguiram mobilizar nos aúles pacíficos. Anunciaram que aquele que trouxesse Hadji-Murat, vivo ou morto, recebia um prémio de mil rublos. E, duas horas depois de ele e os seus homens terem fugido dos cossacos, mais de duzentos cavaleiros, comandados pelo chefe da polícia, galopavam em busca dos fugitivos.

Depois de andar várias verstás pelo caminho grande, Hadji-Murat refreou o seu cavalo branco, ofegante e cinzento de suor, e parou. À direita do caminho viam-se as sáklias e o minarete do aúl Belardjik, à esquerda estendiam-se os campos e, no seu extremo, corria o rio. Apesar de o caminho para os montes ser à direita, Hadji-Murat virou na direcção contrária para despistar os perseguidores, contando que eles fossem em sua perseguição precisamente pelo lado direito. Ele, entretanto, atravessaria o rio Alazan, sairia para o caminho onde ninguém estaria à espera dele, chegaria à floresta e ali, atravessando de novo o rio no meio da floresta, alcançaria os montes. Tomou esta decisão e virou para a esquerda. Mas era impossível, afinal, chegar ao rio. O campo de arroz que tinha de atravessar estava alagado, como sempre na Primavera, transformado num pântano em que os cavalos se atolavam pelos boletos. Hadji-Murat e os seus nukeres metiam pela direita, pela esquerda, com a esperança de encontrarem uma passagem mais seca, mas o campo a que foram parar estava alagado e encharcado de água por todo o lado. Os cavalos tiravam as patas da lama viscosa com um «flop» da rolha sacada e, ao fim de alguns passos, tinham de parar, resfolegando.

Tanto tempo andaram naquela azáfama que começou a escurecer, mas estavam ainda longe do rio. À esquerda havia uma ilhota coberta de arbustos com uma folhagem nova e Hadji-Murat resolveu entrar nessa mata para dar descanso aos cavalos esfalfados e ficar lá até a noite cair.

Depois de entrarem para o meio dos arbustos, Hadji-Murat e os seus nukeres apearam-se e, prendendo os cavalos com peias, deixaram-nos pastar e comeram pão e queijo que tinham levado. A lua nova escondeu-se por trás dos montes e a noite ficou escura. Em Nu-kha havia muitos rouxinóis. Naqueles arbustos também havia dois. Enquanto Hadji-Murat e os seus homens faziam barulho, entrando nos arbustos, os rouxinóis calaram-se. Mas quando os homens se silenciaram, os pássaros voltaram a chilrear, respondendo uns aos outros. Hadji-Murat, atento aos sons da noite, ouvia-os involuntariamente.

E o canto dos rouxinóis lembrou-lhe aquela canção sobre Gamzat que ouvira na noite em que fora buscar água. A qualquer momento podia cair na situação de Gamzat. Pensou que ia ser precisamente assim e ficou sério. Estendeu a burka e fez o namázi. Mal acabou, ouviu que se aproximava gente dos arbustos. Eram os sons de muitas patas de cavalos a chapinharem na lama. O Khan-Magoma de olhos penetrantes saiu para um lado da mata e enxergou no escuro as sombras negras de cavaleiros e peões que vinham na direcção dos arbustos. Khanefi viu a mesma multidão do outro lado. Era Kargánov, comandante das tropas do distrito, com os seus milicianos.

«Então, vamos combater como Gamzat» — pensou Hadji-Murat.

Depois de ter sido dado o sinal de alarme, Kargánov, com uma centena de cossacos e milicianos, precipitara-se em perseguição de Hadji-Murat, mas não havia encontrado sequer as pegadas dele. Kargánov já se preparava para regressar a casa, desesperado, quando ao fim da tarde encontrou pelo caminho um velho tártaro. Tinha-lhe perguntado se vira seis homens a cavalo. O velho respondeu que sim. Tinha visto seis cavaleiros a darem voltas pelo campo de aroz e a entrarem na mata onde costumava ir apanhar chamiço. Levando consigo o velho, Kargánov virara para trás e, quando viu os cavalos com peias e percebeu que Hadji-Murat estava ali, cercou os arbustos e esperou pelo amanhecer para apanhar Hadji-Murat vivo ou morto.

Quando percebeu que estava cercado, Hadji-Murat encontrou no meio dos arbustos um velho rego, bem fundo, e decidiu meter-se lá e resistir até lhe acabarem os cartuchos e as forças. Disse-o aos seus companheiros e mandou fazer um abatis à volta do rego. De imediato, os nukeres começaram a cortar ramos, a cavar a terra com os punhais, a construir um aterro. Hadji-Murat trabalhava com eles.

Mal começou a amanhecer, o comandante da centúria dos milicianos aproximou-se da mata e gritou:

— Eh, Nadji-Murat! Entrega-te! Somos muitos e vós sois poucos!

Em resposta, estoirou uma espingarda no aterro, levantou-se um fuminho e a bala acertou no cavalo do miliciano, que saltou para o lado e caiu. A seguir, estralejaram as espingardas dos milicianos que estavam na orla dos arbustos e as balas, zunindo e assobiando, arrancavam as folhas e os ramos do abatis, mas não atingiam os homens escondidos no aterro. Apenas o cavalo de Gamzalo, afastado dos outros, foi baleado, ferido na cabeça. Não caiu, mas rompeu a peia e precipitou-se, partindo os arbustos, até junto dos outros cavalos e juntou-se a eles, regando de sangue as ervas jovens. Hadji-Murat e os seus homens disparavam apenas quando algum miliciano saía para frente e era raro falharem um tiro. Três dos milicianos foram feridos e os outros não só não se atreviam a atacar Hadji-Murat e os seus nu-keres, como ainda se afastavam deles cada vez mais e davam tiros de longe, ao deus-dará.

Assim continuou por mais de uma hora. O sol já subira até à altura de meia árvore, e Hadji-Murat começava a pensar que podiam montar nos cavalos e, combatendo, tentar alcançar o rio, quando se ouviram os gritos de mais um destacamento acabado de chegar. Era o Agá Gadji de Mekhtuli com os seus homens, cerca de duzentos. O Agá Gadji era, em tempos, kunak de Hadji-Murat e vivia nos montes ao lado dele, mas depois passou para o lado dos russos. Com ele, chegou também o Cão Akhmet, filho do inimigo de Hadji-Murat. O Agá Gadji, primeiro, fez o mesmo que Kargánov: gritou a Hadji-Murat que se entregasse, mas este, tal como da primeira vez, respondeu com um tiro.

- Ao sabre, rapazes! - gritou Agá Gadji. Arrancou o sabre da bainha e ouviram-se as centenas de vozes estridentes dos homens que se atiraram para dentro dos arbustos.

Os milicianos entraram na mata, mas vários tiros trovejaram de trás do abatis. Três homens caíram, os atacantes pararam na orla dos arbustos e também abriram fogo. Disparavam e, ao mesmo tempo, aproximavam-se pouco a pouco do aterro, correndo de um arbusto para outro. Alguns conseguiam-no, outros caíam sob as balas de Hadji-Murat e dos seus homens. Hadji-Murat não falhava um tiro; Gam-zalo também raramente não acertava e sempre que via um inimigo atingido guinchava de alegria. Kurban, sentado de um lado do rego, cantava «La-illakha il alla» e dava os tiros sem pressa, mas quase não acertava. Quanto a Eldar, tremia-lhe o corpo todo de impaciência, ansiando por se atirar aos inimigos com o punhal, e disparava rápida e descuidadamente, olhando a cada instante para Hadji-Murat e assomando a cabeça do abatis. O peludo Khanefi, de mangas arregaçadas, também aqui fazia o papel de criado. Carregava as espingardas que lhe atiravam Hadji-Murat e Kurban, enfiando aplicadamente, com uma vareta de ferro, as balas envoltas em trapinhos oleosos e pondo a pólvora seca nos fuzis. Ora, Khan-Magoma não ficara, como os outros, dentro do aterro, mas não parava de correr dali até aos cavalos, pondo-os num sítio mais protegido e, sempre guinchando, disparava a espingarda com o braço solto, sem apoio. Foi o primeiro a ser ferido. A bala atingiu-o no pescoço e ele sentou-se, cuspindo sangue e praguejando. Depois foi ferido Hadji-Murat. A bala atravessou-lhe um ombro. Hadji-Murat arrancou um bocado de algodão do bechmet, tapou a ferida e continuou a disparar.

- Ao sabre, está bem? - repetiu Eldar pela terceira vez.

Assomou-se do aterro, pronto a atacar os inimigos, mas no mesmo instante foi baleado, cambaleou e caiu de costas, sobre a perna de Hadji-Murat. Este olhou para ele. Os belos olhos de Eldar fitavam-no atenta e seriamente. A boca, com o lábio superior saliente como o de uma criança, contorcia-se sem se abrir. Hadji-Murat libertou a perna e continuou a apontar. Khanefi inclinou-se sobre Eldar morto e pôs-se a tirar rapidamente os cartuchos da sua tcherkeska. Kurban, entretanto, não deixava de cantar, carregando a espingarda e apontando sem pressa.

Os inimigos, passando de um arbusto para outro, aproximavam-se cada vez mais, com ululos e guinchos. Outra bala atingiu Hadji-Murat no lado esquerdo. Deitou-se no rego e, arrancando mais uma vez um pouco de algodão do bechmet, tapou a ferida. Esta ferida era mortal, Hadji-Murat sentia que chegara o seu fim. As recordações e as imagens alternavam-se na sua imaginação com uma incrível velocidade, umas atrás das outras. Ora via à sua frente o grandalhão do Cão Abununtsal a segurar com uma mão a bochecha cortada e a atirar-se ao inimigo com o punhal na outra mão; ora via o velho, fraco e exan-gue Vorontsov, com a sua manhosa cara branca, e ouvia a sua voz suave; ora via o seu filho Iussuf, ou a sua mulher Sofiat, ou a cara pálida com a barba ruiva e os olhos piscos do seu inimigo Shamil.

E todas estas recordações corriam na sua imaginação sem lhe despertarem qualquer sentimento: nem pena, nem raiva, nem qualquer desejo. Tudo isso lhe parecia muito insignificante em comparação com o que estava a começar, com o que já começara para ele. No entanto, o seu corpo forte continuava a agir. Juntou as últimas forças, levantou-se do aterro, disparou a pistola contra um homem que se acercava dele e atingiu-o. Depois saiu por completo do buraco e lançou-se em frente, com o punhal na mão, coxeando pesadamente, ao encontro dos inimigos. Soaram vários tiros, ele cambaleou e caiu. Vários milicianos precipitaram-se, com guinchos rejubilantes, para o corpo caído. Porém, o que lhes parecia um corpo morto de repente mexeu-se. Primeiro levantou a cabeça rapada ensanguentada, sem gorro, depois soergueu o tronco e, agarrando-se a uma árvore, pôs-se completamente de pé. Parecia tão pavoroso que os atacantes pararam. Ele, porém, estremeceu de repente, afastou-se da árvore e, como um cardo cortado, caiu sobre a cara e não se mexeu mais.

Não se mexia, mas ainda sentia. Quando Agá Gadji, o primeiro a acorrer, lhe bateu com um grande punhal na cabeça, pareceu a Hadji--Murat que lhe estavam a dar marteladas no crânio, e não percebia quem o estava a fazer nem porquê. Foi a sua derradeira consciência da ligação com o seu corpo. Não sentia mais nada e os inimigos espezinhavam e cortavam um objecto que já não tinha nada a ver com ele. Agá Gadji pisou-lhe as costas, decepou-lhe a cabeça com dois golpes e, com cuidado, para não sujar os tchuviakes com o sangue, rolou-a para o lado a pontapé. Inundando as ervas, o sangue vermelho jorrou das artérias do pescoço e o sangue negro da cabeça.

Kargánov, Agá Gadji, o Cão Akhmet e todos os milicianos, como caçadores ao pé de um animal abatido, juntaram-se sobre os corpos de Hadji-Murat e dos seus homens (Khanefi, Kurban e Gamzalo foram amarrados) e, parados no meio dos arbustos envoltos no fumo da pólvora, conversavam alegremente, rejubilando com a vitória.

Os rouxinóis que se haviam calado durante o tiroteio voltaram a chilrear, primeiro um mais próximo, depois outros, no extremo dos arbustos.


Foi esta a morte que me lembrou um cardo esmagado no meio da lavra.

 

 

                                                                  Leâo Tolstoi

 

 

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