Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
HEAVEN
Parte II
A MINHA ESCOLHA
O tom partira.
Eu não tinha ninguém que gostasse de mim. Quem mais voltaria a chamar-me Heavenly?
O tom levara consigo todas as gargalhadas, toda a excitação, a vivacidade, a coragem, o encorajamento e o bom humor que oferecera a um lar triste e difícil. O lado cómico do meu carácter desapareceu com aquele camião cujas placas de matrícula estavam tão enlameadas que nem consegui lê-las. E esforcei-me tanto. Já pensara que ficaria sozinha depois da partida da "Nossa" Jane e do Keith. Agora estava verdadeiramente sozinha, e era a mim que o pai odiava.
Tentei consolar-me, acreditando que também era a única que fazia qualquer coisa de útil na cabana, como cozinhar, fazer a limpeza, e tratar do avô... com certeza que o pai não quereria deixar o avô ali sozinho...
Eu desejava que o pai se fosse embora, que batesse com a porta, que saltasse para dentro do camião e fosse para Winnerrow, ou para onde quer que fosse que o mantivesse afastado de Shirleys Place.
Mas ele não foi.
Punha-se junto da única porta da nossa cabana como se fosse um cão de guarda, para me manter presa até me vender também.
Não falava, sentava-se solene e calado, e quando a noite caía chegava a cadeira mais para junto do fogão, punha os pés enormes ao alto, semicerrava os olhos e ali ficava, com um ar infeliz.
Até ao fim da semana em que o tom se foi embora com Buck Henry, tentei arranjar forças para fugir sozinha se tivesse oportunidade para isso, ou seja, quando fosse obrigada a ir à casinha de fora.
Sem o tom, o Keith e a "Nossa" Jane, eu não tinha ânimo, nem paciência, nem vontade de fugir para lado nenhum para escapar àquele que seria o meu destino certo. Se ao menos eu pudesse mandar um recado a Miss Deale!...
Ela já teria voltado? Todas as noites rezava para que Miss Deale ou o Logan viessem em meu auxílio.
Nenhum deles veio.
Eu era aquela que o pai odiava, e seria aquela que ele venderia à gente mais desprezível. Para mim não haveria gente rica. Nem sequer uma pessoa como Buck Henry. Era muito provável que ele me vendesse àquela mulher que dirigia o Shirleys Place.
Quanto mais eu pensava no meu destino, mais furiosa ficava. Ele não podia fazer-me uma coisa dessas! Eu não era um animal estúpido que se vendesse e se esquecesse. Era um ser humano com uma alma eterna, com o direito inalienável à vida, à liberdade, e à busca da felicidade. Miss Deale afirmara tantas vezes que isso estava gravado no meu cérebro. Depois, para mim própria, era obrigada a sorrir com amargura, pois naquela aula dela morava um espírito que chegava até mim, que me dizia para ter esperança, que ela viria em meu auxílio. Era quase como se eu ouvisse Miss Deale a gritar-me palavras de encorajamento, como se a voz dela se aproximasse cada vez mais das montanhas.
"Depressa, Miss Deale", apeteceu-me gritar através das montanhas. "Estou muito aflita, Miss Deale! Agora todo o meu orgulho desapareceu, foi vencido! Aceitarei o que quer que seja de si sem ter vergonha! Venha, venha depressa salvar-me, porque agora já não falta muito tempo!"
Rezei, depois levantei-me, dirigi-me ao armário da cozinha e espreitei lá para dentro. A vida continuava, apesar de tudo, e alguém tinha de preparar as refeições.
Havia esperança nos olhos vermelhos e lacrimejantes do avô quando ele voltou da casinha de fora onde fora fazer as suas necessidades, com mais uns ramos de árvores. Sentou-se com todo o cuidado na sua cadeira de balouço. Não pegou na faca e concentrou-se em mim. "Não me deixes", diziam os seus olhos suplicantes. "Fica", pediu em silêncio, mesmo quando se aproximou mais de mim e me disse em voz baixa:
- Eu estou bem, filha. Eu sei no que estás a pensar. A tua mãe fugiu. Portanto, quando tiveres oportunidade, foge, enquanto o Luke está a dormir.
Eu adorei-o por ele ter dito aquilo. Tinha-lhe tanto amor que lhe perdoei por se ter calado quando os outros foram vendidos, apesar de saber que teria de amar alguém senão morreria.
- Não me odeia se eu o deixar aqui sozinho? Vai compreender?
- Não, eu não vou compreender. Só quero que tenhas o que desejas. No meu íntimo, sei que o teu pai está a fazer o que ele julga que é melhor. No teu íntimo, pensas que ele está a fazer o pior.
Parecia que o pai dormira o seu último sono num local desconhecido e distante. Ele não dormia, nem sequer fechava os olhos. Nunca tirava os olhos frios e escuros de mim. Não é que correspondesse aos meus olhares de desafio; contemplava apenas uma parte de mim, com olhos de carneiro mal morto, o meu cabelo, as minhas mãos, os meus pés, o meu busto, tudo menos a minha cara.
Passou-se uma semana e o pai continuava ali.
Então, um dia, o Logan apareceu à nossa porta, como se fosse um príncipe para me salvar!
Eu fui abrir a porta, julgando que era o pai que voltava da. casinha de fora.
- Olá! - disse o Logan com um sorriso aberto, corando logo a seguir. - Tenho pensado muito em ti ultimamente, sem saber porque é que tu, o tom e os outros não têm ido à escola, agora que o tempo já não está tão mau. Porque é que vocês se afastaram todos? O que te aconteceu?
Ele não vira a Fanny. Porquê?
Eu puxei-o para a porta quando em tempos o expulsara, ou pensara em mil e uma razões para ele não entrar.
- O pai foi cortar madeira e o avô está na casinha de fora, portanto não tenho muito tempo - segredei, com frenesim. - O pai vem espreitar-me de vez em quando. Logan, estou em apuros, em grandes apuros! O pai anda a vender-nos, um por um. Primeiro foram a "Nossa" Jane e o Keith. A seguir, a Fanny, depois, o tom... E qualquer dia serei eu.
- com quem é que estás a falar, rapariga? - berrou o pai da porta.
Eu encolhi-me enquanto o Logan se voltava para o brutamontes do meu pai.
- Chamo-me Logan Stonewall, senhor - respondeu o Logan delicadamente mas com firmeza. - O meu pai é Grant Stonewall, dono do drugstore Stonewall, e eu e a Heaven somos bons amigos desde que nós viemos viver para Winnerrow. Tenho andado preocupado porque a Heaven, o tom, a Fanny, o Keith e a "Nossa" Jane nunca mais foram à escola, por isso eu vim ver o que lhes aconteceu.
- Que eles vão ou não à escola não é da tua conta - disparou o pai. - Agora, desanda daqui. Não precisamos cá de gente metediça para ver o que fazemos ou não fazemos. O Logan voltou-se outra vez para mim.
- Acho que vou para casa antes de o Sol se pôr. Por favor, toma cuidado contigo. A propósito, a minha professora disse que Miss Deale voltará na próxima semana.
Deitou ao pai um olhar demorado e significativo, que me fez estremecer. Ele acreditava em mim!
- Dize a essa professora para se afastar e se meter na vida dela - rugiu o pai, aproximando-se do Logan com um ar ameaçador. - Agora, que já disseste o que tinhas a dizer, põe-te a andar.
Tranquilamente, o Logan percorreu a cabana com o olhar, apercebendo-se de toda a pobreza que era fácil observar. Eu sabia que ele tentava ocultar a compaixão e o choque, mas reparei nisso, apesar de tudo. Os olhos azul-escuros do Logan cruzaram-se com os meus e transmitiram-me uma mensagem silenciosa que eu não soube como interpretar.
- Espero voltar a ver-te daqui a uns dias, Heaven. vou dizer a Miss Deale que não estás doente. Agora dize-me onde estão o tom, a Fanny, a "Nossa" Jane e o Keith.
- Foram visitar uns parentes - respondeu o pai, abrindo a porta de rompante, afastando-se para o lado e fazendo sinal ao Logan para sair a bem.
O Logan fulminou o pai com o olhar.
- Tome bem conta da Heaven, Mister Casteel.
- Rua! - exclamou o pai com um ar de desdém, fechando a porta atrás dele.
- O que é que aquele rapaz cá veio fazer? - perguntou o pai quando eu me voltei para o fogão e o avô apareceu a cambalear, vindo do outro quarto. - Arranjaste maneira de lhe mandar um recado, não é verdade?
- Ele veio porque se preocupa, e porque Miss Deale se preocupa, e porque toda a gente se vai preocupar quando souber o que você fez, Luke Casteel!
- Obrigado por me avisares - disse ele com um sorriso escarninho. - Estou assustado, verdadeiramente assustado.
Depois desta troca de palavras, ficou ainda pior, ainda mais vigilante.
Eu continuava a ter esperança e a rezar para que o Logan fosse ter com a Fanny e ela lhe contasse o que estava a acontecer, e o Logan fizesse qualquer coisa antes que fosse tarde de mais. No entanto, ao mesmo tempo, desconfiava que o pai tivesse avisado o reverendo para este vigiar a Fanny até ele se ver livre de mim.
Eu lera artigos nos jornais acerca de crianças adoptadas que eram vendidas por dez mil dólares, e o pai fora estúpido em não pedir essa quantia. Mas cinco vezes quinhentos dólares equivalia a ter mais dinheiro do que ele tivera em toda a sua vida; uma fortuna para qualquer brutamontes dos Willies que não pensava em termos superiores a um milhar.
- Pai, como pode ir à igreja todos os domingos e ter feito o que fez? - perguntei eu, dez dias depois da partida do tom.
- Cala-te! - disse ele, cujos olhos eram duros como os seixos do rio.
- NÃO ME APETECE CALAR-ME! - ripostei. - Quero que os meus irmãos e as minhas irmãs voltem. O pai não é obrigado a tomar conta de nós. Eu e o tom descobrimos uma maneira de nos sustentarmos.
- Cala-te!
"Oh, detesto-te", berrou uma voz desvairada, dentro de mim, apesar de o instinto me aconselhar a calar-me para não ser severamente castigada.
- Há outras pessoas que vendem os filhos - disse ele de repente, apanhando-me distraída, para poder falar comigo, como se tentasse explicar-se, quando eu julgava que ele nunca faria tal coisa. - Não sou o primeiro e não serei o último. Ninguém fala nisso, mas está sempre a acontecer. As pessoas pobres como nós têm mais filhos do que os ricos que podem sustentá-los, e nós que não podemos sustentá-los, a maioria de nós não sabe como há-de deixar de tê-los... Quando não há nada melhor para fazer numa noite fria de Inverno, vai-se para a cama e goza-se o mais que se pode com a nossa mulher... Nós fazemos as nossas próprias minas de ouro, os nossos filhos, os nossos lindos meninos. Porque não havemos de tirar partido do equilíbrio das leis da Natureza?
Aquilo era mais do que ele me dissera durante toda a minha vida. E, naquela altura, ele estava bom, estava corado e tinha uma cor saudável, já não estava magro. Estava forte, com umas grandes bochechas... Maldita cara que era tão bonita! Se ele morresse, eu teria pena dele? Não, disse eu a mim própria inúmeras vezes, nem daí a um milhão de anos.
Uma noite, ouvi-o a falar com o avô, a discorrer sobre toda a espécie de coisas melancólicas da sua vida que se desperdiçava, sobre os filhos que o retinham, que o impediam de atingir o objectivo que ele traçara.
- Quando eu tiver o dinheiro todo, pai, ainda não será tarde de mais. vou fazer o que sempre quis, e que não teria feito senão por ela... E...
Naquela noite deixei de chorar. As lágrimas não serviam de nada.
Deixei de pedir a Deus que me mandasse de novo os meus irmãos e as minhas irmãs. Deixei de pensar que o Logan conseguiria salvar-me. Deixei de apostar em Miss Deale, e no destino que lhe matara a mãe, e nos advogados que a retinham em Baltimore. Tinha de planear a minha própria fuga.
No domingo estava um dia de sol. O pai mandou-me vestir a minha melhor roupa, se é que eu tinha alguma. O meu coração deu um salto, e julguei que ele encontrara um comprador. O seu olhar duro fez troça de mim.
- É domingo, rapariga, é altura de ir à igreja - disse ele, como se não se tivessem passado já vários domingos sem os Casteel aparecerem na igreja.
Ao ouvir a palavra "igreja", o avô animou-se logo. com as articulações empenadas e muitos gemidos, conseguiu vestir o seu único fato mais ou menos decente, e pouco depois estávamos prontos para ir para a igreja de Winnerrow.
O sino da igreja repicou com um som límpido e forte, transmitindo-me uma certa dose de falsa serenidade, a sensação de que Deus estava no seu céu e de que tudo corria bem no mundo; desde que existisse a igreja, o sino continuasse a repicar, e as pessoas continuassem a vir, a cantar e a acreditar.
O pai estacionou o camião longe da igreja (os outros já tinham ocupado os lugares de estacionamento mais próximos), e fomos o resto do caminho a pé, com ele a agarrar-me no braço como se fosse uma torquês.
As pessoas que já estavam na igreja quando nós entrámos cantavam:
A fazer os molhos A fazer os molhos Rejubilaremos A fazer os molhos...
Cantar, cantar, cantar. Tornar o meu dia mais claro, menos frio, menos proibitivo. Fechei os olhos e vi a carinha doce da "Nossa" Jane. Mantive-os fechados e ouvi a voz forte de soprano de Miss Deale. Continuei de olhos fechados e senti a minha mão fechada na mão do tom, senti o Keith agarrado à minha saia, e depois veio aquela voz alta, de comando. Abri os olhos e olhei para ele, perguntando a mim própria como é que ele podia comprar uma criança e depois dizer que ela era sua.
- Senhoras e senhores, peço-lhes que se levantem e voltem para a página cento e quarenta e sete do vosso livro de cânticos, e depois cantemos todos em conjunto o nosso hino preferido - instruiu o reverendo Wise.
E nós vamos com Ele,
E nós vamos com Ele,
E Ele diz-nos que lhe pertencemos
E a voz que ouvimos cantar
Ao ouvido
Nunca ninguém ouviu...
Cantar fez-me sentir mais leve, mais feliz, até que avistei a Fanny, sentada na primeira fila, ao lado de Rosalynn Wise. A Fanny nem se voltou para ver se algum membro da "antiga" família estava sentado num banco de trás. Talvez ela esperasse que nós lá não estivéssemos.
Sustive a respiração quando ela voltou a cabeça para o lado. Oh, como estava bonita com aquele casaco de pele branca, com um chapéu a condizer, e um regalo para enfiar as mãos; apesar de estar na igreja um calor abafante, a Fanny não tirava as mãos do regalo e certificava-se de que toda a gente atrás dela o vira pelo menos uma vez. Levantava-se de vez em quando e desculpava-se por uma razão ou por outra; depois, virava à direita e dirigia-se para uma pequena sala escondida, onde fazia qualquer coisa que demorava uns minutos, e voltava devagar, muito devagar para o seu banco, onde, empertigada, ocupava o lugar ao lado da sua nova "mãe".
É claro que isso permitia a toda a gente ver bem a roupa nova que ela usava. Incluindo umas botas brancas debruadas de pele.
Quando acabou o serviço religioso, Fanny levantou-se e foi com o reverendo Wise e a mulher cumprimentar toda a congregação, que se considerava despojada se não apertasse a mão ao reverendo ou à mulher, antes de se retirar para suportar seis dias inteiros de vida sólida e pecaminosa, e depois ser de novo perdoada. Parecia que quanto mais eles pecavam durante a semana, mais Deus lá em cima os amava por eles lhe darem tanta coisa para perdoar.
Se Deus amava assim tanto os pecadores, devia sentir-se verdadeiramente arrepiado por ter o Luke Casteel na sua igreja. Se eu tivesse sorte, ele colaria os pés do pai ao chão e nunca mais o deixaria sair.
A pouco e pouco seguimos o rasto de toda a gente. Ninguém falou connosco, embora algumas pessoas das montanhas nos tivessem acenado. O vento gélido assobiava cada vez que alguém saía pela porta larga. Só eu não queria tocar na mão do porta-voz de Deus na Terra, no atraente e bem-falante reverendo Wise, nem na da mulher... Nem na da filha recém-adoptada.
Lá estava a Fanny, como se fosse uma linda princesa, com a sua pele cara e de vestido de veludo verde-claro, que mostrava sempre que esticava uma perna ou outra, arrastando os pés como uma bailarina idiota, só para se exibir. Por breves momentos, esqueci a minha miséria, a minha situação e gozei o sucesso da Fanny.
Porém, imagine-se, quando a família da Fanny apareceu, esta deu meia volta, segredou qualquer coisa ao ouvido de Rosalynn Wise e desapareceu no meio da multidão.
O pai deslizou para a direita e encaminhou-se logo para a porta sem parar sequer nem olhar para o reverendo Wise ou para a mulher. Levou-me pelo braço, segurando-o com dedos que pareciam de aço. Ninguém olhou para os Casteel, nem sequer para o seu rasto.
O avô, com a sua cabeça grisalha, quase calva, curvada e subserviente, seguiu obedientemente o pai, até que eu me libertei dele e fui colocar-me de propósito na fila, ao mesmo tempo que fixava o mais penetrante dos olhares em Rosalynn Wise.
- Pode fazer o favor de dizer à Fanny, quando a vir, que eu perguntei por ela?
- Assim farei. - Respondeu-me com uma voz fria e imperturbável, como se desejasse que eu tivesse seguido o exemplo do pai e a tivesse ignorado tal como ele. - E dize ao teu pai que não venha a esta igreja e que nós gostaríamos muito que nenhum Casteel voltasse ao serviço religioso.
Chocada, fitei a mulher cujo marido acabara de pregar um sermão sobre o amor que o Senhor dedicava aos pecadores e o bom acolhimento que lhes dava em Sua casa.
- Tem uma Casteel a viver em sua casa, não tem?
- Se te referes à nossa filha, o apelido dela foi legalmente alterado para Wise. Agora ela chama-se Louisa Wise.
- Louisa é o segundo nome da Fanny! - exclamei. - Não pode mudar-lhe os nomes enquanto o pai dela for vivo.
Alguém atrás de mim me deu um safanão. De repente, fui obrigada por muitas mãos a sair para a escadaria de madeira. Alarmada e furiosa, voltei-me para trás e chamei-lhes hipócritas. Foi então que avistei o Logan Stonewall, mesmo à minha frente. Por ele, eu teria defrontado o próprio reverendo Wise e gritado toda a verdade àquela gente... Mas o Logan olhava fixamente para mim, como se me trespassasse. Não disse nada. Nem sequer sorriu.
Era como se não quisesse ver-me! E eu, que julgava que nada mais me poderia atingir depois de perder a Sarah, a avó, a "Nossa" Jane, o Keith e o tom, senti o meu coração mergulhar num poço fundo e escuro. De desespero.
O que se passara entre a ida dele a minha casa e aquele momento?
"Logan, Logan", apeteceu-me gritar, mas o orgulho impediu-me de o fazer e eu não disse uma palavra. Limitei-me a levantar o queixo e passei pela família Stonewall, cujos três membros se afastaram.
O pai agarrou-me outra vez no braço e arrastou-me.
Nessa noite, deitada no chão ao lado do Velho Fumegante, que arrotava sem parar, ouvi o estalido das velhas tábuas de pinho quando o pai desceu da cama de latão e percorreu o espaço exíguo da outra divisão. Tão silencioso como um dos seus antepassados índios, aproximou-se do sítio onde eu estava deitada, muito quieta. com os olhos semicerrados, vi-lhe os pés descalços e as pernas nuas. Fingindo que estava a dormir, deitei-me de lado, virei-lhe as costas e enrosquei-me mais na velha manta cheia de nódoas.
Ele ajoelhara-se perto do fogão só para me tocar no cabelo? Senti qualquer coisa a mexer ao de leve na minha cabeça. Ele nunca me tocara até então. Fiquei gelada, e quase deixei de respirar. O meu coração começou a bater desordenadamente; os meus olhos não conseguiram manter-se fechados e abriram-se muito. Porque é que ele estaria a tocar-me?
- Macio - ouvi-o dizer em voz baixa. - Como o dela... Sedoso, como o dela...
Depois, a mão dele pousou-me no ombro que, não sei como, estava destapado; aquela mão que sempre me maltratara com crueldade, deslizou ternamente para o meu braço e depois para cima, detendo-se no sítio em que o ombro se juntava ao pescoço. Durante muito, muito tempo, senti-me assustada, sustendo a respiração e esperando, esperando que sucedesse uma coisa terrível.
- Luke... O que estás a fazer? - perguntou o avô com uma voz esquisita.
O pai retirou a mão.
O pai não me batera! Não me magoara! Continuei a pensar enquanto estava ali deitada na ternura daquela mão pousada no meu ombro e no meu braço. Por que razão é que ele me tocara com tanto afecto depois de todos estes anos? Porquê?
A voz débil do avô acordou-me quase ao nascer do Sol. Ele estava junto do fogão, a aquecer água, proporcionando-me mais uns momentos de sono. Eu dormira até mais tarde, talvez por causa do sobressalto que tivera de madrugada.
- Eu vi-te, Luke. Eu não consentirei. Nunca! Deixa essa criança em paz. A cidade está cheia de mulheres que te queiram assim que estiveres bom, mas neste momento não precisas de nenhuma mulher nem de nenhuma rapariga.
- Ela é minha! - rugiu o pai. - E eu agora já estou bom! - Estava corado, quando eu me atrevi a espreitar.
- Nasceu da minha semente... E eu farei com ela o que bem me apetecer. Ela já é crescida, já é crescida. Ora, a mãe era pouco mais velha quando eu casei com ela.
A voz do avô transformou-se numa brisa ténue vinda do Norte.
- Lembro-me de uma noite em que o mundo ficou às escuras para ti, e ainda ficarás mais escuro se tocares naquela rapariga. Tira-a daqui, para longe das tentações. Tal como a outra, esta também não é para ti.
Na segunda-feira à noite, o pai desapareceu enquanto eu dormia. Voltou quase ao amanhecer. Quando acordei, sentia-me estonteada, com um peso no peito, deprimida, mas tive de me levantar para fazer o mesmo de sempre: abrir a porta de ferro do fogão, atirar mais lenha lá para dentro e pôr a água a aquecer. O pai observava-me atentamente e parecia avaliar a minha disposição ou adivinhar o que eu poderia fazer. Quando voltei a olhar, pareceu-me pensativo, como se tentasse ganhar coragem, até que disse, com uma voz tensa e uma pronúncia melhor do que era costume:
- Tu, minha coisinha querida, vais ter de fazer uma escolha. Uma escolha que muitos de nós não têm feito. - Aproximou-se tanto de mim que eu fui obrigada a olhar para ele, caso contrário ficaria encurralada num canto. - Lá em baixo no vale há dois casais sem filhos que te têm visto de vez em quando, e parece que ambos te admiram. Portanto, eu sondei-os e disse-lhes que tu precisavas de outros pais. Ambos os casais ficaram desejosos de te ter. Daqui a pouco, estarão aí. Eu poderia vender-te àquele que oferecesse mais, mas não o farei.
Os meus olhos cruzaram-se com os dele numa atitude de desafio, mas não consegui encontrar nada para dizer que o impedisse de fazer o que ele queria fazer.
- Desta vez, autorizo-te a escolher os pais que tu quiseres.
Uma certa indiferença abateu-se sobre mim como uma capa. As palavras do avô não paravam de fazer eco na minha mente: "Tira-a daqui..." Nem mesmo o avô me queria. Como a Fanny gritara um dia, qualquer pessoa, qualquer lugar seriam melhores do que estes.
Qualquer casa!
Quaisquer pais!
O avô queria que eu partisse. Lá estava ele a esculpir uma figura, enquanto milhares de netos seus poderiam ser vendidos, mas ele continuava sentado a esculpir.
Recordações do Logan Stonewall afluíram como traças condenadas a arder na vela do meu desespero. Ele nem sequer correspondera ao meu olhar. Nem sequer virara a cabeça para olhar para mim, como eu esperava que ele fizesse. E mesmo que a presença dos pais o tivesse envergonhado ou confundido, poderia ter feito um sinal secreto, mas não fizera nenhum. Porquê? Ele subira a montanha até lá acima. O que vira no interior da cabana tê-lo-ia chocado ao ponto de modificar os sentimentos que nutria por mim?
"Não me interessa", disse eu com os meus botões, vezes sem conta. E porque havia de me interessar? Ele não acreditaria em mim quando eu lhe contasse a verdade.
Pela primeira vez, acreditei verdadeiramente que talvez fosse preferível viver com a gente decente da cidade. E quando eu estivesse em segurança, longe disto, arranjaria maneira de ir procurar aqueles que amava.
- É melhor vestires-te - disse o pai, depois de eu limpar a mesa e arrumar as esteiras. - Eles estão a chegar.
Sustive a respiração, tentando olhá-lo nos olhos, mas não consegui. "É melhor assim", disse a mim própria, "é melhor assim." Contrariada, procurei nos caixotes o melhor que tinha para vestir. Antes, varri o chão da cabana, e o pai não tirou os olhos de mim uma só vez.
Fiz a cama, como se fosse um dia vulgar. O pai não tirava os olhos de tudo o que eu fazia. Obrigava-me a ter consciência da minha situação. Enervava-me. Fazia-me sentir desajeitada e lenta quando em geral eu me sentia graciosa e ágil. Despertou-me tantas emoções que fiquei confusa, a par do ódio vital que nutria por ele.
Dois automóveis reluzentes chegaram ao nosso quintal imundo e pararam um atrás do outro. Um automóvel branco e outro preto. O preto era grande e tinha um aspecto mais luxuoso, e o branco era mais pequeno, mais elegante e tinha bancos vermelhos.
Eu trazia o único vestido que a Fanny não levara, uma peça de roupa desajeitada que em tempos fora azul e agora era cinzenta, após vários anos de lavagens. Por baixo, trazia um dos dois pares de cuecas que tinha. Precisava de um soutien, mas não tinha nenhum. Penteei-me à pressa; depois lembrei-me da mala. Tinha de levar aquela mala comigo!
Pouco depois, retirei a mala adorada que guardava os tesouros da minha mãe e embrulhei-a em vários xailes feitos pela avó.
O pai franziu o sobrolho quando me viu com a mala que fora dela. Apesar disso, não disse uma palavra para me impedir de levar os pertences da minha mãe. Eu teria morrido para os salvar da destruição. Talvez ele o tivesse adivinhado.
Por duas vezes me pareceu que o pai afastava o olhar da minha boca. Estaria a reparar como eu me parecia com ela, com o seu anjo morto? Intimamente, estremeci. Os lábios da minha própria mãe, a boneca reproduzida... uma boneca vestida de noiva... uma boneca que parecia não ser mais velha do que eu nessa altura.
Embrenhada nos meus pensamentos, nem ouvi baterem à porta. Nem vi os dois casais que entraram e ficaram no meio da nossa maior divisão. O Velho Fumegante tossia e cuspia fumo. O pai apertou-lhes a mão, a sorrir, comportando-se como um anfitrião genial. Eu olhei à minha volta, tentando ver se me esquecera de alguma coisa.
Depois veio o silêncio. O silêncio longo e terrível, no momento em que quatro pares de olhos se voltaram para mim, o produto que estava à venda. Olhos que me varreram da cabeça aos pés, que me tiraram as medidas, que me examinaram a cara, as mãos, o corpo, enquanto eu era apanhada numa teia de escuridão tão intensa que mal os via a todos.
Agora eu sabia como é que o tom se devia ter sentido. tom... Sentia-o a meu lado, a dar-me forças, a segredar-me palavras de encorajamento. "Vai correr tudo bem,
Heavenly... Não acabou por se resolver tudo?"
O pai falou alto, com uma voz cortante, obrigando-me a fixar a vista num casal mais velho que estava ligeiramente à frente de um outro mais novo, que recuou consideravelmente para o casal de meia-idade poder ser o primeiro a examinar a mercadoria. Eu recuei para um canto, não muito longe do sítio onde o avô estava sentado a esculpir.
"Olhe para mim, avô, veja o que seu filho de bom coração está a fazer! Está a roubar-lhe a única pessoa que ainda lhe tem amor! Diga qualquer coisa para o impedir, Toby Casteel... Diga, diga, diga!"
Ele não dizia nada, só esculpia.
O homem e a mulher de cabelos grisalhos que estavam diante de mim eram altos e muito distintos. Ambos traziam casacos cinzentos com roupa azul por baixo, como se viessem de um mundo desconhecido, envoltos numa aura de instrução e de inteligência. Não miraram o que estava à sua volta - a pobreza chocante e o aspecto lamentável do avô a esculpir e a fingir que não estava ali ninguém - como o homem e a mulher mais novos fizeram.
O seu porte era arrogante, magnífico, e os seus olhos eram ternos quando me fitaram, encostada à parede, com o pânico estampado na cara e no coração. Aquilo que os meus olhos devem ter revelado despertaram um lampejo de compaixão nos olhos azuis do homem, mas a mulher recusou-se a revelar fosse o que fosse. Podia até estar a pensar no tempo. Suspirei outra vez, engolindo o nó que tinha na garganta, ou pelo menos tentei, sentindo-me apanhada numa armadilha. Desejava que o tempo passasse depressa, e que fosse dois anos mais tarde. Mas, naquele momento, o meu coração batia loucamente, assustado, engaiolado nas minhas costelas, fazendo-me sentir os joelhos fracos e o estômago nauseado. Queria que o avô levantasse a cabeça, me olhasse nos olhos e fizesse qualquer coisa para acabar com aquilo, mas eu nunca conseguira obrigá-lo a fazer nada quando o pai estava presente.
"Eles não gostam de mim, eles não gostam de mim", pensava eu do casal mais velho, que se recusava a dirigir-me um sorriso de encorajamento que me levaria a escolhê-los imediatamente. com o tipo de esperança desesperada que fora a de Fanny, deitei um olhar fugidio ao casal mais novo.
O homem era alto e bem-parecido, com o cabelo castanho-escuro, liso, e olhos castanho-claros. A seu lado estava a mulher, quase da altura dele. Um metro e oitenta, ou muito perto disso, era o que ela devia medir, mesmo sem aqueles saltos altos. Tinha um volume enorme de cabelos ruivos, mais escuros e mais abundantes do que os da Sarah. A Sarah nunca fora a um instituto de beleza, e era evidente que os cabelos daquela mulher não conseguiam sobreviver sem esses cuidados. O penteado tinha um volume de tal modo exagerado que parecia uma massa sólida. Os olhos possuíam um tom pálido e estranho, e eram tão claros que pareciam incolores, só com umas grandes pupilas a nadarem num mar sem cor. A pele dela era daquele tom branco de porcelana que em geral acompanha os cabelos ruivos, sem manchas e quase perfeita. Uma cara bonita? Sim. Muito bonita.
Ela tinha o ar da gente das montanhas... Havia qualquer coisa ali...
Ao contrário do casal mais velho que usava aquela roupa cinzenta, pesada e de bom corte, ela trazia um fato rosa-forte, tão apertado que parecia uma pintura. Movia-se com afectação, mirando tudo, inclinando-se mesmo para espreitar para dentro do fogão, que abriu. Porque faria aquilo? Endireitou-se e sorriu para toda a gente e para ninguém em particular, voltando-se para observar descaradamente a velha cama de latão que eu acabara de fazer, os cestos pendurados do tecto e as tentativas miseráveis para tornar a cabana confortável e acolhedora. No seu rosto havia uma miríade de expressões, que mudavam rapidamente, como se todas elas lutassem para sobreviver a novas impressões que eliminavam anteriores suspiros, choques e estremecimentos... E outras surpresas não pronunciadas. com dois dedos de unhas compridas e pintadas, pegou no trapo de que eu me servira para limpar a mesa, segurou-o com todo o cuidado durante dois segundos e depois deixou-o cair ao chão como se tivesse tocado numa coisa peçonhenta. Os lábios rosa-claros imobilizaram-se no sorriso que tentava manter.
E durante todo aquele tempo, o marido jovem e bem-parecido manteve os olhos pregados em mim. Sorriu como que para me dar confiança, e aquele sorriso iluminou-lhe o olhar. Por qualquer motivo, senti-me melhor. Ele, pelo menos, aprovava o que via.
- Bem, isso é contigo, rapariga, isso é contigo - disse o pai, afastando as pernas e plantando bem os pés enormes, de mãos nas ancas.
Eu olhava para um casal e para o outro. Como é que eu havia de saber só pelas aparências? O que deveria eu procurar neles? A mulher ruiva de fato cor-de-rosa sorria com um ar sedutor, o que a tornava ainda mais bonita. Admirei-lhe as longas unhas pintadas, os brincos do tamanho de moedas de cinquenta cêntimos; admirei-lhe os lábios, a roupa, o cabelo. A mulher mais velha, de cabelo grisalho, olhou para mim sem pestanejar e não sorriu. Os brincos dela eram umas pérolas minúsculas e insignificantes.
Julguei detectar uma certa hostilidade no seu olhar que me fez recuar e olhar para o marido... E ele também não olhou para mim. Como é que eu podia chegar a uma
conclusão se não havia contacto visual? O espírito lia-se através dos olhos e estes eram enganadores se não enfrentavam directamente os nossos.
Mais uma vez me voltei para o casal mais novo, que vestia à moda e que não usava os fatos caros e de bom corte do casal mais velho, o tipo de fatos que se usariam sempre. Fatos enfadonhos e deselegantes, como diria a Fanny. Naquele momento, eu não sabia estabelecer a comparação entre a verdadeira riqueza e a vulgaridade do novo-riquismo.
E tudo aquilo só contribuía para que eu me sentisse ainda menos humana na minha roupa disforme, que descaíra no ombro porque o decote estava demasiado largo, e com a bainha descosida, que eu queria sempre coser mas para a qual nunca tinha tempo. Mesmo ali, senti uma madeixa a fazer-me cócegas na testa e afastei-a com um gesto maquinal, o que chamou a atenção de toda a gente para as minhas mãos vermelhas e gretadas, de unhas curtas e partidas. Tentei esconder as mãos, que tinham levado a vida a lavar roupa e louça. Quem me quereria naquele estado?
Nenhum dos casais.
A Fanny fora escolhida com rapidez, com sofreguidão. A Fanny não estragara as mãos e os seus cabelos compridos e lisos eram suficientemente pesados para ficarem no seu lugar. Eu era demasiado vulgar, feia e patética. Quem é que me queria? Se nem o Logan suportara voltar a encarar comigo? Como é que eu me atrevera a pensar que talvez um dia ele me amasse?
- Bem, rapariga - disse o pai outra vez, franzindo o sobrolho e mostrando a sua desaprovação por eu estar a demorar-me tanto tempo. - Eu já disse que tu é que tens de escolher, e se não escolhes depressa, escolho eu por ti.
Perturbada, sentindo uma espécie de apelo e sem perceber do que se tratava, tentei adivinhar o que estava por trás da atitude fria e distante do casal mais velho, que estava de olhos postos em mim mas que aparentemente não me queria ver. Isso obrigava-me a considerá-los pessoas enfadonhas, sérias, talvez frias, enquanto que a mulher ruiva e de olhos incolores continuava a sorrir, a sorrir... E a Sarah também era ruiva e tão simpática... Pelo menos até à altura em que os bebés começaram a morrer.
Sim, o casal mais novo seria excitante e menos severo. E foi assim que eu tomei a minha decisão apressada.
- Eles - disse eu, apontando para a cabeça ruiva e para o marido atraente.
A mulher parecia ligeiramente mais velha, mas estava bem assim, ela ainda era nova, e quanto mais eu olhava para ela mais bonita a achava.
Aqueles olhos sem cor que lembravam o mar, com peixes negros e redondos a nadarem, ganharam um brilho cintilante... De felicidade? Ela correu para mim, abraçou-me e encostou-me a cara ao seu regaço voluptuoso.
- Nunca hás-de arrepender-te, nunca - disse ela, meio a rir, olhando para o pai com um ar triunfante, e depois para o marido. - Serei para ti a melhor mãe do mundo, a melhor que há...
Depois, como se lhe tivessem tocado com carvões em brasa, deixou cair os braços e afastou-se de mim, olhando para baixo para ver se eu lhe sujara o fato cor-de-rosa, antes de o sacudir vigorosamente.
Vista mais de perto, não era tão bonita. Os contornos escuros dos olhos estavam demasiado próximos e as orelhas eram pequenas e muito juntas à cabeça, como se não existissem. E todavia, se não a observássemos em pormenor, parecia uma mulher encantadora.
Para dizer a verdade, eu nunca vira uma mulher cuja feminilidade fosse tão exagerada, cuja sensualidade fosse tão irradiante, com o seio pesado, as nádegas cheias e a cintura fina que devia ter dificuldade em suportar tudo aquilo. A blusa estava-lhe de tal modo apertada que parecia fina de mais nas zonas de maior pressão. As cuecas realçavam-lhe o grande V das virilhas, o que levou o pai a observá-la com um sorriso esquisito, não de admiração mas de desprezo.
Porque é que ele sorria daquela maneira? Como podia ele sentir desprezo por uma mulher que não conhecia? Ou conhecia? É claro que já a vira antes para combinar as coisas:
Mais uma vez, muito alarmada, olhei para o casal mais velho, mas era tarde de mais. Já tinham dado meia volta e encaminhavam-se para a porta. Senti-me desfalecer.
- Obrigado, Mister Casteel - disse o homem mais velho ao sair, ajudando a mulher a transpor a soleira da porta.
Como que aliviados, dirigiram-se para o automóvel preto. O pai foi a correr atrás deles, deixou a porta aberta, disse algumas palavras em voz baixa e em seguida eles partiram.
Assim que o pai apareceu à porta, fez-me o mais trocista dos sorrisos.
Eu escolhera mal? Borboletas em pânico passaram de novo ao ataque, assolando o meu cérebro de dúvidas e atingindo-me o coração com uma indecisão que chegava tarde de mais.
- Chamo-me Calhoun Dennison - disse o marido bem-parecido, avançando e pegando-me na mão tremente com firmeza. - E esta é a minha mulher, Kitty Dennison. Muito obrigada por nos escolheres, Heaven.
A voz dele era fraca, pouco mais forte do que um sussurro. Nunca ouvira um homem com uma voz tão fraca. Seria uma voz educada? Tinha de ser, porque todas as pessoas cujas vozes não eram educadas rugiam, gritavam, berravam e vociferavam.
- Oh, Cal, ela não é mesmo um amor, mesmo um amor? - perguntou a Kitty Dennison com uma voz ligeiramente estridente. - Não vai ser engraçado vesti-la e pô-la bonita?
Eu respirava com dificuldade. A meu lado, o avô chorava em silêncio.
"Avô, avô, já devia ter dito qualquer coisa. Porque esperou tanto tempo para mostrar que se preocupa?"
- Não foi tão fácil, Cal? - perguntou a Kitty rindo-se, abraçando-o e beijando-o e obrigando o pai a voltar-se, como que revoltado com a exibição dela. - Julguei que ela os queria a eles, com aquele belo carro e com casacos pesados e caros, mas foi tão fácil, tão fácil.
Fiquei de novo em pânico.
- Querida - disse a Kitty Dennison, quando acabou de brincar com o marido -, vai a correr vestir o casaco, mas não vale a pena levares os teus vestidos. vou comprar-te tudo novo, novinho em folha. Não quero levar bichos nojentos para a minha casa limpa... - Deu outra olhadela à cabana, dessa vez mostrando claramente a sua repugnância. - Estou morta por te pôr daqui para fora.
Como se tivesse chumbo nas pernas, tirei o meu velho casaco do prego que havia no quarto, vesti-o e, desafiando a desaprovação dela, peguei na mala que embrulhara nos xales velhos da avó. Não ia deixar as coisas da minha mãe a apodrecer ali, sobretudo aquela maravilhosa boneca vestida de noiva.
- Lembra-te do que eu te disse - exclamou a Kitty Dennison. - Só tu é que vens, não tragas mais nada.
Saí daquilo a que nós chamávamos o quarto e apareci, com o meu casaco velho e coçado e com o meu embrulho pouco apresentável, e olhei a Kitty Dennison com ar de desafio. Os seus olhos desmaiados brilharam de uma forma estranha.
- Eu não te disse para não trazeres nada? - guinchou a Kitty Dennison, visivelmente irritada. - Não podes levar essa porcaria para minha casa, não podes.
- Não posso sair daqui sem levar aquilo de que mais gosto no mundo - respondi, com determinação. - A minha avó é que fez estes xailes, que estão limpos. Lavei-os há pouco tempo.
- Nesse caso, terás de lavá-los outra vez - disse a Kitty, um pouco mais calma mas ainda com um ar irritado.
Eu parei ao lado do avô e inclinei-me para lhe beijar a cabeça calva.
- Tome cuidado, avô. Não caia e não parta nenhum osso. Hei-de escrever muitas vezes, e alguém poderá sempre... - Aqui hesitei porque não queria que desconhecidos percebessem que o avô não sabia ler nem escrever. - Bem, eu escrevo.
- Foste uma boa menina, a melhor. Não podias ter sido melhor. - O avô desatou a soluçar, limpando as lágrimas à fralda da camisa. - Vai e sê feliz, estás a ouvir?
- Sim, estou a ouvir, e por favor tome cuidado consigo.
- Sê boazinha, estás a ouvir?
- Serei boa - jurei eu, afastando as lágrimas. -, Adeus, avô.
- Adeus... - disse o avô.
Depois, pegou num novo pau e começou a afiá-lo.
Quando é que ele olhara verdadeiramente para mim, se é que alguma vez olhara? Eu estava quase a chorar e não queria que o pai me visse a chorar. Olhei-o bem de frente, e, para variar, os seus olhos escuros defrontaram os meus num combate silencioso. "Detesto-o, pai. Não me vou despedir de si. Vou-me embora e não me importo." Ninguém precisa de mim aqui. Nunca ninguém precisou de mim excepto o tom, o Keith e a "Nossa" Jane... Nem a Fanny, nem a avó, nem verdadeiramente e com certeza o avô, que tem as suas esculturas.
- Agora, não chores, rapariga - disse a Kitty, com uma voz forte. - Já me viste, sem saberes. Eu vi-te na igreja quando fui visitar os meus pais que vivem em Winnerrow. Lá estavas tu sentada com aquela gente toda, parecias um anjo, parecias mesmo um anjo.
O pai levantou a cabeça de repente. Os seus olhos duros e escuros encontraram-se com os da Kitty. Não disse uma palavra, uma só palavra, e deixou-me de novo na incerteza. Havia qualquer coisa por dizer entre eles, qualquer
coisa que insinuava que eles se conheciam sem ser por acaso. Aterrou-me que ela fosse o tipo de mulher atrás de quem o pai andava, diferente da minha verdadeira mãe.
- Tinha mesmo inveja daquele cabelo ruivo da tua mãe disparou ela, como se o pai não lhe interessasse nada, o que me deixou ainda mais desconfiada. - Como tu tinhas as pernas altas como um gafanhoto, eu observava a tua mãe que ia e vinha da igreja com a prole toda. E tinha mesmo inveja dela. Desejava tanto que os filhos dela fossem meus, eram todos tão bonitos.
A sua voz alta e estridente tornou-se triste e fria.
- Eu não posso ter filhos.
Os seus olhos estranhos encheram-se de amargura e fixaram-se no pai, de uma forma dura e acusatória. Oh, oh, oh... Ela conhecia-o mesmo!
- Há quem diga que é a minha sorte, eu não ter filhos... lilás agora tenho uma... E ela é um ANJO, um verdadeiro anjo; apesar de não ter o cabelo louro-platinado, tem uma cara e uns olhos azuis de anjo... Não é verdade, Cal?
- É - concordou o Cal. - Ela é a imagem da inocência, se é isso que queres dizer.
Eu não sabia de que é que eles estavam a falar. Receava a luta de reconhecimento sem palavras travada entre o pai e a Kitty. Eu nunca vira esta mulher e ela não era do género daquelas em quem não se reparava com facilidade. Olhei de novo para o marido, que observava a cabana. Mostrou-se compadecido quando viu o avô sentado como um farrapo na sua cadeira de balouço. No que estava ele a pensar, se é que estava a pensar nalguma coisa? A avó e o avô alguma vez tinham pensado? O espírito fechava-se com a idade? Os velhos ensurdeciam só para não ouvirem o que os podia fazer infelizes?
- O meu primeiro nome é Kitty. Não é um diminutivo. Eu não queria ser Katherine, ou Katie, ou Kate, ou Kit. E, querida, a ele podes tratá-lo por Cal, como eu. Quando viveres connosco, vais gostar dos grandes televisores a cores que nós comprámos. São dez.
Mais uma vez ela fulminou o pai com o olhar, como que para lhe mostrar como era rico o homem que ela caçara. O pai pareceu-me indiferente.
Dez televisores. Fitei-a, incrédula. Dez? Para quê ter dez televisores se um era suficiente?
Kitty soltou uma gargalhada estridente. Nem sequer ouvira a pergunta que eu fizera em silêncio.
- Se soubesses até ficavas atordoada. Aqui o Cal tem o seu estabelecimento próprio de reparação e venda de televisores, e alguns patetas põem de lado os aparelhos velhos por coisas de nada ou quase nada. Portanto, ele trá-los para casa, arranja-os, deixa-os como novos e vende-os como se fossem novos às pessoas pobres que não dão pela diferença. Eu tenho um homem esperto, bonito e inteligente, o melhor homem que alguém pode ter. Dá um bom lucro, também, não é verdade, Cal?
O Cal mostrou-se embaraçado. A Kitty riu-se outra vez.
- Agora despacha-te e faze as tuas despedidas, Heaven - disse a Kitty, assumindo um ar autoritário e olhando com desdém para o conteúdo da cabana, como que para se certificar de que o pai via a fraca conta em que ela tinha a sua casa e a sua habilidade para fazer dinheiro. - Dize adeus ao teu pai, e vamo-nos embora. Tenho de chegar a casa o mais depressa possível.
Eu limitei-me a ficar ali, sem olhar para o pai, sem querer olhar para o pai.
Foi a Kitty que comandou a nossa partida. Foi a Kitty que se dirigiu ao pai, não eu.
- Eu tenho a minha casa que é um brinquinho, com tudo no seu lugar. E tudo tem o seu lugar, acredite. Não é como este seu barracão.
O pai encostou-se à parede, tirou um cigarro e acendeu-o. A Kitty voltou-se para mim.
- Não consigo suportar a porcaria e a confusão. E o teu pai disse que tu sabias cozinhar. Peço a Deus que ele não nos tenha mentido.
- Eu sei cozinhar - respondi, a medo. - Mas nunca fiz nada complicado.
Havia medo na minha voz quando percebi que esta mulher podia estar à espera de refeições elaboradas, porque verdadeiramente o que eu sabia fazer bem eram biscoitos fofos e um molho saboroso de banha.
O pai tinha um ar estranho, meio triste, meio satisfeito, quando olhou para mim, para a Kitty e para o Cal Dennison.
- Tu fizeste a escolha certa - disse ele solenemente, e depois voltou-se para ocultar um soluço ou uma gargalhada.
O facto de poder ser uma gargalhada deixou-me aterrada como nunca. Desatei a soluçar, e as lágrimas caíam-me em fio. Deslizei para junto do pai, sem dizer nada. Ele também não me dirigiu a palavra.
À porta, voltei-me e olhei para trás. Tinha um gosto amargo e doce na garganta; custava-me deixar aquela casa arruinada onde eu dera os primeiros passos, tal como o tom e a Fanny, e custava-me muito mais pensar no Keith e na "Nossa" Jane.
- Oh, Deus, faze com que eu seja feliz - disse em voz baixa antes de me voltar e de me encaminhar para os degraus.
Senti na cabeça o calor do Sol daquele Inverno tardio quando me dirigi para o belo automóvel de assentos vermelhos. O pai apareceu no alpendre, de novo com os cães, como se os tivesse alugado e recuperado para eles se lhe meterem entre as pernas. Havia gatos e gatinhos empoleirados no telhado, nos algerozes, a espreitar debaixo do alpendre, e os porcos fossavam e grunhiam. As galinhas andavam à solta e um galo perseguia uma galinha com a intenção óbvia de acasalar. Olhei para aquilo, admirada.
De onde teriam vindo? Estariam mesmo ali? Ou estaria a vê-los apenas na minha imaginação? Esfreguei os olhos que estavam molhados das lágrimas. Há muito tempo que eu não via os cães, os gatos, os porcos e as galinhas. O pai trouxera-os para ali no camião porque tencionava ficar e cuidar do avô?
O céu estava cheio daquelas nuvens alongadas que lentamente se transformam em nuvens inchadas que pintam quadros de felicidade e de realização pessoal.
O Cal e a Kitty Dennison entraram no automóvel, sentaram-se no banco da frente e disseram-me que poderia ficar com o de trás só para mim. Hirta, ansiosa, voltei-me
para olhar para trás e contemplar aquilo que eu conhecia tão bem e que em tempos acreditara que queria esquecer o mais depressa possível.
Dize adeus à pobreza e aos estômagos barulhentos que nunca estavam verdadeiramente satisfeitos.
Dize adeus à casinha de fora velha e fedorenta, ao fogão barulhento, às esteiras gastas e rotas que serviam de cama no chão.
Dize adeus a todas as tristezas, assim como à beleza dos montes: as amoras silvestres, as folhas flamejantes do Outono, os ribeiros e os cursos de água doce onde as trutas saltavam e as pescarias com o tom e o Logan.
Dize adeus às recordações do Keith e da "Nossa" Jane, do tom e da Fanny.
Dize adeus aos risos e às lágrimas. Vais para um sítio melhor, mais rico, mais feliz.
Não há razão para chorar. Porque chorava eu?
No alpendre, o pai não chorava, olhava apenas para o ar, com uma expressão vazia.
O Cal deu a volta à chave e ligou o motor, e lá partimos. O carro deu um solavanco, a Kitty estremeceu e caiu para trás no assento.
- Guia devagar, meu parvo! - gritou. - Bem sei que foi horrível, e que este cheiro não nos largará durante várias semanas, mas ganhámos uma filha, e foi para isso que viemos.
Senti um calafrio na espinha.
Estava certo. Certo.
Eu partia para uma vida melhor, para um sítio melhor, repetia eu.
No entanto, só pensava naquilo que o pai fizera. Vendera os filhos a quinhentos dólares cada um. Eu não vira os documentos assinados desta última transacção, nem ouvira falar no preço. A alma do pai havia de apodrecer no inferno. Nem por um momento eu duvidava disso.
Do que ouvi à Kitty e ao marido, eles iam para Winnerrow, onde eu sempre gostara de viver, numa linda casa pintada, não muito longe do drugstore Stonewall. Aí terminaria o liceu e iria para a faculdade. E veria a Fanny muitas vezes, e veria o avô quando ele fosse à igreja.
Mas o que era aquilo?
Porque é que o Cal virava à direita e passava por Winnerrow sem parar? Engoli outro daqueles nós que me queimavam a garganta.
- O pai não disse que os senhores eram do vale? - perguntei em voz baixa, assustada.
- Claro, filha - respondeu a Kitty, torcendo-se no banco da frente e sorrindo-me. - Eu nasci e fui criada em Winnerrow, nessa cidade piolhosa - prosseguiu ela, falando mais à moda do campo, num dialecto arrastado. - Não pude esperar. Um dia, com treze anos, fugi com um motorista de camião, amarrámo-nos e depois eu descobri que ele já era casado, mas não há muito tempo. Fiquei enojada, fiquei a odiar os homens, a maioria dos homens; depois conheci o meu querido Cal. Apaixonei-me por ele à primeira vista. Estamos casados há cinco anos e não teríamos vindo cá parar se a nossa casa não estivesse a ser arranjada por dentro e por fora. O cheiro das tintas faz-me vomitar. Fico tão enjoada com os maus cheiros, com as loções das permanentes e coisas do género!
Todas as paredes vão ficar brancas. Tudo forrado a papel de parede branco. Vai ficar tão bonito, com um ar tão limpo. O Cal diz que vai ficar com um ar esterilizado, como um hospital, mas não vai ser assim, vais ver. vou enfeitá-la com as minhas coisas todas. Não vai ficar bonita quando as minhas belas coisas fizerem um contraste de cores, não vai ficar bonita, Cal?
- Claro.
- Claro o quê?
- Claro que vai ficar bonita.
Ela deu-lhe uma palmadinha na face e depois inclinou-se e beijou-o.
- Agora que estamos longe do teu velho - cantarolou a Kitty, com o queixo ponteagudo apoiado nos braços cruzados - quero ser mais sincera. Eu conheci a tua mãe, a tua verdadeira mãe. Não era aquela mulher, a Sarah. A tua verdadeira mãe era cá uma estampa! Não era só bonita, era bela... E eu detestava-a.
- Oh! Porque é que a detestava? - perguntei eu a custo, sentindo-me doente, irreal.
- Achava que ela tinha um verdadeiro ascendente sobre o Luke Casteel. Achava que o Luke Casteel devia ser meu quando eu era pequena e não conhecia ninguém melhor. Mas que idiota que eu fui ao pensar que bastavam uma cara bonita e um corpo belo e forte. Agora, odeio-o, odeio-o!
Estas palavras deveriam ter-me feito sentir bem, mas não foi isso que aconteceu. Porque é que a Kitty queria a filha do homem que odiava?
Eu tinha razão! Ela conhecera o pai há muito tempo. O dialecto dela era tão mau como o dele e o das outras pessoas da nossa região.
- Sim - continuou a Kitty, com uma voz esquisita, doce, que lembrava um gato a ronronar. - Eu via a tua mãe verdadeira sempre que ela vinha a Winnerrow. Todos os homens giros da cidade andavam de cabeça perdida pelo anjo do Luke. Ninguém percebia como é que ela casara com um tipo como o Luke. O amor cegou-a, na minha opinião. Há mulheres que são assim.
- Cala-te, Kitty - disse o Cal. A Kitty ignorou-o.
- E eu andava de cabeça perdida pelo grandalhão, pelo bonitão do teu pai. Oh, todas as raparigas da cidade o desejavam e esperavam que ele lhes fosse às cuecas.
- Kitty, já falaste de mais.
O tom de admoestação tornou-se mais intenso na voz do Cal. A Kitty lançou-lhe um olhar impaciente, mexeu-se no banco e ligou o rádio. Procurou até encontrar música country. A música alta e ressonante encheu o carro.
Agora não podíamos conversar.
Quilómetros e quilómetros percorridos, como uma longa série de postais ilustrados que não tinha fim. Saímos dos montes e entrámos na planície.
Pouco depois, as montanhas não passavam de sombras distantes. Muitos quilómetros depois, a luz da tarde começou a desaparecer. O Sol estava a pôr-se e chegava o crepúsculo. Para onde fora o tempo? Eu teria adormecido sem dar por isso? Estávamos muito mais longe do que eu estivera alguma vez. Havia quintas grandes e pequenas, pequenas aldeias, estações de serviço e grandes troços de terreno estéril com manchas avermelhadas.
O crepúsculo veio salpicar o céu rosado de tons violeta e laranja, orlando de dourado todas essas cores celestes. Era o mesmo céu que eu via nos montes, mas a paisagem a que eu estava acostumada ficara para trás. Havia estações de serviço às dúzias, e restaurantes que serviam refeições rápidas, com anúncios de néon coloridos, a imitar o céu, ou a tentar e a falhar.
- Isto não é bonito? A maneira como as luzes se acendem no céu? - disse a Kitty, olhando pela janela. - Adoro andar de carro ao anoitecer. Ouvi dizer que é a altura mais perigosa de todas, porque as pessoas sentem-se irreais, presas aos sonhos... Sempre me fez sonhar que eu teria muitos filhos, todos bonitos.
- Kitty, por favor! - suplicou o marido.
Ela calou-se e deixou-me entregue aos meus pensamentos. Já vira muitas vezes o céu ao crepúsculo. Mas nunca vira uma cidade de noite. Esqueci o cansaço e observei tudo, sentindo-me uma verdadeira pacóvia pela primeira vez na minha vida. Isto não era Winnerrow, mas sim a maior cidade que eu já vira.
Depois apareceram as arcadas douradas, e o carro abrandou, como se um magnetismo qualquer o tivesse atraído para ali, sem dar lugar a uma discussão entre marido e mulher. Pouco depois estávamos lá dentro, sentados a uma mesa pequena.
- Queres dizer que nunca comeste no McDonalds? perguntou a Kitty, divertida e escandalizada ao mesmo tempo. - Ora, aposto que nem sequer foste ao Kentucky Fried.
- O que é isso?
- Cal, esta rapariga é ignorante. Verdadeiramente ignoran-te. E o pai disse-nos que ela era esperta.
O pai dissera uma coisa dessas? Achei graça. Mas ele diria qualquer coisa para ganhar mais quinhentos dólares.
- Comer em restaurantes destes não faz as pessoas espertas, Kitty. Só lhes tira a fome.
- Ora, aposto que nunca foste ao cinema, pois não?
- Sim, fui. Uma vez - respondi à pressa.
- Uma vez! Ouviste isto, Cal? Esta rapariga esperta foi ao cinema uma vez. Ora essa! Que mais é que te fez assim tão esperta?
Como havia eu de responder a uma pergunta feita naquele tom trocista e sarcástico?
De repente, tive saudades do avô, da cabana miserável e do seu espaço familiar. Mais uma vez, aquelas imagens tristes e indesejadas ganharam vida diante de mim. A "Nossa" Jane e o Keith a dizerem "Hev...lee". Pestanejei uma ou duas vezes, satisfeita por ter comigo a linda boneca. Quando Kitty a visse, ficaria impressionada, verdadeiramente impressionada.
- Agora... Dize o que achas do hamburger - disse a Kitty, à laia de interrogatório, despachando o dela numa questão de segundos, e pondo bâton cor-de-rosa forte nos lábios, que já tinham ganho aquela cor. Manejou o tubo com destreza apesar das unhas compridas e brilhantes do verniz, cuja cor condizia exactamente com a cor da roupa.
- Era muito bom.
- Então, porque não o comeste todo? A comida custa muito dinheiro. Quando te comprarmos comida, esperamos que comas tudo.
- Kitty, estás a falar muito alto. Deixa a rapariga em paz.
- Eu também não gosto do nome dela - disparou a Kitty, como se tivesse ficado aborrecida pelo facto do Cal ter vindo em minha defesa. - É um nome estúpido. Heaven é um sítio, não é um nome. Qual é o teu segundo nome? Também é assim tão estúpido?
- Leigh - respondi, num tom gelado. Era o nome da minha mãe.
A Kitty estremeceu.
- Raios! - praguejou, batendo com os punhos cerrados um no outro. - Detesto esse nome! - Deitou um dos seus olhares da cor do mar ao marido e enfrentou a sua expressão suave com uma ira feroz. - Esse era o nome dela, daquela cadela de Boston que levou o Luke! Raios me partam se eu quero voltar a ouvi-lo dizer em voz alta, estás a ouvir?
- Estou...
A disposição da Kitty mudou de direcção e a ira deu lugar à melancolia, quando o Cal se levantou para ir à casa de banho.
- Sempre quis ter uma menina para lhe pôr o nome de Linda. Sempre me quis chamar Linda. Há qualquer coisa de doce, de puro no nome de Linda que soa tão bem.
Voltei a estremecer, ao ver aqueles anéis enormes e reluzentes nas mãos grandes e fortes da Kitty. Seriam diamantes, rubis e esmeraldas verdadeiras? Ou imitações?
Foi um alívio voltarmos para o carro outra vez, e fazermo-nos à estrada, a caminho de uma casa distante. Um alívio, até ao momento em que a Kitty disse ao Cal que ia mudar o meu nome.
- Vou-lhe chamar Linda - disse ela com naturalidade.
- Gosto desse nome, gosto mesmo.
- Não! Heaven fica-lhe melhor - retorquiu ele, imediatamente. - Ela perdeu a casa e a família; pelo amor de Deus, não a obrigues também a perder o nome. Deixa-a em paz.
Dessa vez, houve qualquer coisa de enérgico na sua voz que silenciou o tagarelar incessante da Kitty durante uns tranquilos cinco minutos e o melhor de tudo é que o Cal desligou o rádio.
No banco traseiro, enrosquei-me e tentei manter-me acordada para ler as tabuletas da estrada. Nessa altura, reparei que o Cal seguia todas as tabuletas que indicavam Atlanta. Passagens superiores e inferiores, nós rodoviários e vias rápidas, viadutos ferroviários, pontes, cidades grandes, pequenas e médias, tudo isso atravessámos a caminho de Atlanta.
Fiquei sem fôlego ao ver os arranha-céus a escurecer ao cair da noite, a brilhar com as luzes acesas, rodeados de nuvens que lembravam finos cachecóis. Fiquei sem fôlego ao ver os polícias de pé, mesmo no meio de tudo e sem terem medo, e outros a cavalo. Os peões deambulavam pelas avenidas como se fosse meio-dia e não passasse das nove horas da noite. Se estivesse em casa, a essa hora já estaria a dormir a sono solto, no chão. Naquela altura, tive de esfregar os olhos sonolentos, que pareciam ter grãos de areia lá dentro. Talvez eu conseguisse dormir.
De repente, ouviu-se alguém a cantar em voz alta. A Kitty ligara o rádio outra vez e aconchegara-se ao Cal, e ia a fazer-lhe qualquer coisa que ele lhe suplicava que deixasse de fazer.
- Kitty, há um momento e um lugar para tudo, e este não é o momento nem o local indicado para isso. Por favor tira a mão daí.
O que estava a Kitty a fazer? Esfreguei os olhos e inclinei-me para a frente para ver o que era. Mesmo a tempo de ver o Cal a correr o fecho das calças. Oh... Aquilo não era bom? A Fanny acharia que sim. Encostei-me para trás rapidamente, com receio de que a Kitty me tivesse visto a espreitar uma coisa que, de facto não era da minha conta. Mais uma vez olhei através da janela. A grande cidade com todos os seus arranha-céus majestosos desaparecera. Agora seguíamos por ruas secundárias que não eram tão largas nem tinham tanta gente.
- Nós vivemos nos arredores - explicou o Cal bruscamente. - Numa zona chamada Candlewick. As casas são apartamentos separados e quase iguais. Há seis estilos diferentes e nós escolhemos aquele que queremos. E depois eles constróem-nas para nós. Só podemos personalizá-las através da maneira como as decoramos por dentro ou por fora. Esperamos que gostes de viver aqui, Heaven. Queremos fazer tudo por ti e dar-te o tipo de vida que daríamos a um filho nosso, se pudéssemos tê-lo. A escola que frequentarás fica perto daqui e poderás ir a pé.
A Kitty resmungou:
- Ora... Ora... o que é que isso interessa? Ela vai para a escola nem que tenha de ir de gatas. Macacos me mordam se uma criança ignorante há-de estragar a minha reputação.
Eu endireitei-me no banco, para que o sono não me impedisse de ver pela primeira vez a minha nova casa, e examinei as casas que, como o Cal dissera, eram quase iguais mas não totalmente. Eram belas casas. com certeza que cada uma tinha pelo menos uma casa de banho, talvez mais. E todos aqueles aparelhos eléctricos maravilhosos sem os quais as pessoas da cidade não conseguem viver.
Depois o automóvel parou numa estrada e a porta da garagem deslizou e subiu como que por encanto. Já lá dentro, a Kitty deu um grito para me acordar:
- Estamos em casa, menina, em casa. Casa.
Apressei-me a abrir a porta do carro, saí da garagem e examinei a casa à luz pálida da lua. Tinha dois andares. Como era agradável, aninhada entre os arbustos, sempre-verdes na sua maior parte. A casa era de tijolos vermelhos e tinha persianas brancas. Um palácio em comparação com o barracão nas montanhas que eu deixara. Uma casa bonita, cuja porta principal era branca.
- Cal, põe as coisas sujas dela na cave, onde devem estar. Desolada, vi desaparecer a linda mala da minha mãe, que era muito melhor do que qualquer mala que a Kitty pudesse ter... Embora a Kitty não soubesse o que havia debaixo daqueles xailes escuros.
- Anda - exclamou a Kitty, impaciente. - São quase onze horas. E eu estou mesmo cansada. Tens a vida inteira para olhar lá para fora, estás a ouvir?
Como ela dera um tom definitivo àquela declaração.
A VIDA EM CANDLEWICK
UM NOVO LAR
A Kitty acendeu um interruptor ao pé da porta e toda a casa se iluminou. O que vi cortou-me a respiração.
Era uma casa linda, limpa e moderna. Entusiasmou-me saber que ia viver ali. A brancura... Toda aquela limpeza, pura como a neve... E a elegância! Estremeci outra vez, ao ver a neve imaculada que nunca se derretia com a luz do Sol e que nunca seria pisada nem se transformaria em lama. No meu íntimo, sempre soubera que haveria um sítio melhor à minha espera do que a cabana, com toda a sua imundície e infelicidade.
Desde o primeiro momento que pensei naquela casa como sendo essencialmente a casa da Kitty. O ar autoritário dela, a maneira como ordenou ao Cal que levasse as minhas "coisas sujas" para a cave, indicaram-me, claramente, que aquela casa era dela, e não dele. Não havia uma única coisa que indicasse que vivia um homem no meio de toda aquela garridice feminina, não havia nada de masculino, o que me deu também a noção de que a Kitty é que mandava naquela casa.
Enquanto o Cal seguia as instruções dela, a Kitty foi acender os outros candeeiros, como se os cantos escuros lhe metessem medo. Pouco depois, percebi que fizera um juízo errado. A Kitty andava à procura de manchas na nova pintura.
- Bem, isto é com certeza melhor do que o teu barracão nas montanhas, não é, filha? com os diabos, é melhor do que qualquer coisa que haja em Winnerrow... Uma cidade de pacóvios. Tive de fugir de lá. Não sei como é que aguentei tanto tempo.
Um esgar de desagrado ensombrou-lhe a cara bonita. Pouco depois, começou a queixar-se de que os operários, que tinham ficado sozinhos, tinham feito muitas coisas "mal". Ela via a sua casa de maneira diferente da minha. Para ela, a casa não estava um primor.
- Olha só onde eles me puseram as cadeiras! E os candeeiros? Não está nada bem! Eu disse-lhes onde queria tudo, eu disse! Podes ter a certeza de que eles vão ouvir por causa disto...
Tentei ver o que ela vira, mas achei que estava tudo perfeito.
A Kitty olhou para mim, viu a minha expressão amedrontada e sorriu com uma indulgência tolerante.
- Bem, anda daí, dize-me o que pensas.
A sala dela era maior do que a nossa cabana inteira, mas o mais surpreendente era o jardim zoológico colorido que lá estava dentro. Por todo o lado, nos parapeitos das janelas, nas cantoneiras, em cima das mesas, ao longo da passadeira branca das escadas, havia animais transformados em floreiras; havia focinhos e formas de animais em molduras, candeeiros, cestos, pratos para bolos e banquetas para os pés.
Plantas naturais emergiam das traseiras de gigantescas rãs de cerâmica verde, com olhos amarelos proeminentes e línguas escarlates. Havia grandes peixes dourados com bocarras e olhos assustados azul-marinhos, que suportavam mais plantas. Havia gansos azuis, patos brancos e amarelos, galinhas vermelhas e cor-de-rosa, coelhos castanhos e amarelo-dourados, esquilos cor-de-rosa e uns porcos cor-de-rosa, gordos e com graciosas caudas encaracoladas.
- Anda daí - disse a Kitty, pegando-me na mão e puxando-me para o meio daquele jardim zoológico doméstico.
- Tens de vê-los de perto para apreciares o talento que é preciso para os fazer.
Eu fiquei sem fala.
- Vá lá, dize qualquer coisa! - exigiu ela.
- É uma maravilha! - disse eu a arfar, impressionada com toda aquela brancura, com o papel de parede que parecia feito de sulcos de árvores de seda branca, com as poltronas brancas, com os quebra-luzes brancos sobre bases brancas, reluzentes e bojudas. Não era para admirar que a Kitty tivesse ficado tão assustada com a cabana e com as suas gerações de sujidade acumulada. Aqui, havia uma lareira com uma comija de madeira branca esculpida e cuja parte inferior era de mármore branco, e mesas de bela madeira escura que, segundo vim a descobrir mais tarde, era pau-rosa, e mesas de vidro e latão. Não havia um grão de poeira em lado nenhum. Nem dedadas. Nem uma coisa fora do seu lugar.
Ela estava de pé a meu lado, como se revisse a sua esplendorosa sala de estar através dos meus olhos rústicos e ingénuos, enquanto eu receava pisar aquele tapete branco que se sujava num instante. Deitei uma olhadela aos meus sapatos velhos, feios e desajeitados, e afastei-os logo.
Os meus pés mergulhavam profundamente na penugem enquanto eu saltitava, como que em sonhos, de um objecto para outro, maravilhada. Gatos gordos, escanzelados, sorrateiros e deslizantes. Cães sentados, de pé, adormecidos; elefantes e tigres, leões e leopardos, pavões, faisões, periquitos e mochos. Um espantoso manancial de animais.
- Não são uma maravilha, as minhas criações? Fui eu que os fiz, com as minhas mãos. Cozi-os no meu forno enorme. Tenho um pequeno lá em cima. Dou aulas todos os sábados. Levo trinta dólares a cada aluno e tenho trinta que vêm com regularidade. Nenhum dos meus alunos é tão bom como eu, é claro, e isso é positivo, obriga-os a voltar, na esperança de ultrapassar a professora. Já reparaste na forma como eu os enfeito, nas grinaldas de flores? Não são uma maravilha, não são?
Ainda dominada pelo que via, só consegui fazer um aceno de cabeça em sinal de aprovação. Oh, sim, tinha de ficar impressionada pelo facto de a Kitty ser capaz de criar aquelas maravilhas, como um carrocel de cavalos a galoparem à volta de um candeeiro branco, por exemplo. Voltei a dizer, cheia de admiração:
- São tão bonitos, todos eles.
- Eu sabia que tu pensarias assim. - Orgulhosa, a Kitty pegou e exibiu aquilo que me poderia ter passado despercebido. - Ensinar dá montes de massa; não aceito cheques porque assim não pago impostos. E podia ensinar dez vezes mais gente se desistisse do meu salão de beleza, mas nem posso pensar nisso quando ganho dinheiro a tratar das celebridades que vêm à cidade e precisam do cabelo arranjado. Fazem tudo, desde descolorações a pinturas, permanentes e trabalhos de pedicura, as minhas oito empregadas. Eu reservo-me para clientes especiais, e no meu estabelecimento vendo milhares destas coisas que vês à tua volta. As clientes adoram-nas, pura e simplesmente.
A Kitty recuou, cruzou os braços fortes sobre o busto volumoso e olhou para mim, radiante.
- Achas que também serias capaz de fazer isto, não achas? - perguntou.
- Não, eu não saberia por onde começar - confessei. O Cal entrou por uma porta das traseiras e ficou a olhar para a Kitty com um certo ar de enfado, como se não admirasse as "criações" dela e não lhe agradassem as horas que ela passava a dar lições.
- Dirias que eu sou uma artista, não é verdade?
- Sim, Kitty, uma verdadeira artista... Andou na faculdade a estudar arte?
A Kitty fez um ar carrancudo.
- Há coisas que nós sabemos fazer, que nascem connosco, mais nada. Eu sou dotada para isto, não sou, querido?
- Sim, Kitty, tu és mesmo dotada para isso - disse o Cal, encaminhando-se para as escadas.
- Ouve lá! - gritou a Kitty. - Esqueces-te de que esta criança precisa de roupa nova. Não a posso deixar dormir na nossa casa pintada de fresco com esses farrapos que ela traz. Ela cheira mal, não achas? Cal, mete-te no carro e vai ao K, que fica aberto toda a noite, e traze a esta criança roupa decente, em especial camisas de noite. Mas que sejam bem grandes. Não quero que ela cresça antes de elas se gastarem.
- São quase onze horas - respondeu ele, com aquela voz fria e distante que eu já lhe ouvira no carro, e que começava a reconhecer como sendo de desaprovação.
- Já SEI! Julgas que eu não sei ver as horas? Mas nenhuma criança dorme na minha casa limpa sem tomar um banho, sem lavar a cabeça com champô, sem pôr remédio para os piolhos e, sobretudo, sem roupa nova, ouve bem!
O Cal ouviu. Deu meia volta, a resmungar entre dentes, e desapareceu. O pai nunca permitiria que uma mulher lhe dissesse o que havia de fazer e onde, e muito menos quando. Que tipo de trela é que a Kitty pusera ao pescoço do Cal para ele lhe obedecer, mesmo a resmungar?
- Agora, vem comigo, que eu vou mostrar-te tudo, tudo, e tu vais adorar, eu sei que vais adorar. - A Kitty sorriu e deu-me uma pancadinha na face. - Eu conheci o
teu pai. Acho que já percebeste isso. Eu sabia que ele não podia fazer nada por ti, pelo menos o mesmo que eu vou fazer. vou dar-te tudo o que eu gostava de ter quando tinha a tua idade. Aquilo que eu nunca tive, tu vais ter. É uma sorte teres-me escolhido a mim, e ao meu Cal... E é pouca sorte para o teu pai. Ele bem merece perder tudo... Os filhos todos. - Mais uma vez ela voltou a fazer aquele sorriso esquisito. - Agora dize-me o que gostas mais de fazer.
- Oh... Adoro ler! - respondi prontamente. - A minha professora, Miss Deale, costumava oferecer-me, a mim e ao tom, montes de livros para levarmos para casa, e quando fazíamos anos dava-nos livros só para nós, novinhos em folha.
Eu trouxe alguns comigo, os meus preferidos... E não estão sujos, Kitty, a sério que não estão. E tom e eu ensinámos o Keith e a "Nossa" Jane a gostar dos livros
e a respeitá-los como se fossem seus amigos.
- Livros...? - perguntou ela, com uma expressão de desagrado. - Queres dizer que era o que preferias ter, mais do que tudo? Deves estar doida.
E com estas palavras, rodou nos calcanhares e mostrou-se desejosa de me conduzir à sala de jantar, embora o cansaço mal me deixasse ver fosse o que fosse e as minhas impressões se tornassem muito vagas devido àquela série de mudanças todas ao mesmo tempo.
No entanto, tive de apreciar a sala de jantar, com a sua grande mesa oval, com um tampo de vidro assente num pedestal dourado formado por três golfinhos que agitavam a cauda e suportavam o vidro grosso e pesado. Eu mal me aguentava nas pernas, com o cansaço. Tentava desesperadamente dar ouvidos à Kitty e ver todos os objectos que ela me apontava.
- Em seguida, fomos ver a cozinha, de um branco imaculado. Até os mosaicos brancos do chão brilhavam.
- É vinil, do caro. Do melhor que há - explicou ela. Eu fiz um movimento de cabeça, incapaz de distinguir o melhor do pior. Cheia de sono, observei as maravilhas dos tempos modernos com que eu sempre sonhara: a máquina de lavar louça, o lava-louça duplo, os reluzentes acessórios cromados, o enorme fogão com dois fornos, os armários todos brancos, as longas bancadas, e a mesa redonda com quatro cadeiras. Por todo o lado, para quebrar a monotonia do branco, se viam mais trabalhos da Kitty.
Ela inspirara-se em formas de animais e criara várias espécies de recipientes. Cestos de louça que eram na realidade boiões para a farinha, o açúcar, o chá e o café; um porco cor-de-rosa guardava utensílios grandes de mais para meter numa gaveta; e um cavalo carmesim, sentado como se fosse uma pessoa, era um suporte para guardanapos.
- E agora o que achas? - perguntou a Kitty.
- Está tudo lindo, tão asseado, colorido e bonito - respondi em voz baixa, já rouca.
Voltámos ao átrio da frente, onde a Kitty voltou a inspeccionar a sala de estar e depois franziu o sobrolho.
- Estás a ver onde eles puseram as minhas mesas dos elefantes? Eu vi logo! Aos cantos, nos malditos cantos, onde ninguém as vê! Heaven, vamos imediatamente pôr isto em ordem.
Levámos uma hora a mudar tudo o que a Kitty queria. As grandes peças de louça tinham um peso surpreendente. Eu estava a cair de cansaço. A Kitty olhou para a minha cara, pegou-me na mão e arrastou-me para as escadas.
- Amanhã damos uma volta melhor. Vais adorar. Agora temos de te preparar para ires para a cama.
Enquanto subíamos a escada, a Kitty divagou sobre as famosas estrelas de cinema que eram suas clientes, e que insistiam que só ela é que as sabia pentear.
- Elas vêm actuar nos espectáculos e perguntam sempre por mim. Já vi coisas que tu não imaginas... Meu deus, se vi! Segredos? Tenho-os aos milhares... Não os conto a ninguém, absolutamente a ninguém. Boca fechada, a minha. - A Kitty calou-se, voltou-se para mim e olhou-me bem nos olhos.
- O que se passa contigo? Não estás a ouvir? Não estás a dar atenção?
Ela era uma imagem difusa. Sentia-me tão cansada que até poderia dormir em pé, mas fiz um esforço para mostrar mais entusiasmo pelas clientes ricas da Kitty, e também dei uma desculpa honesta, dizendo que fora um dia longo e que eu já não ouvia nem via muito bem.
- Porque é que falas dessa maneira?
Eu estremeci. Toda a vida me esforçara para não falar como ela, como toda a gente, que engolia as conjunções e só pronunciava os substantivos, os verbos e o resto, e ela a criticar-me.
- Miss Deale insistia sempre no facto de não devermos arrastar as palavras nem as contracções.
- Quem diabo é essa Miss Deale?
- A minha professora. A Kitty roncou.
- Sempre achei que a escola e os professores não serviam para nada. Ninguém fala assim à ianque. Vais fazer inimigos, ai isso vais, com esse sotaque. Aprende a falar como nós ou sofrerás as consequências.
Que consequências?
- Sim, Kitty.
Tínhamos chegado ao cimo das escadas. As paredes ondulavam diante dos meus olhos. De repente, a Kitty voltou-se para mim e agarrou-me pelos ombros.
- ACORDA! - gritou. - Acorda e ouve isto. Para ti, eu não sou a Kitty. Tens de chamar-me mãe! Nem mamã, nem mãezinha, e muito menos mã! Mãe, compreendes?
Eu estava atordoada, doía-me a cabeça. Ela era espantosamente forte.
- Sim, mãe.
- Assim é que és bonita... Agora vamos tomar esse banho.
Oh, eu nunca mais me deixaria chegar àquele estado de cansaço para não despertar a ira de uma mulher que se voltava contra mim num instante, e sem motivo aparente.
Ao fundo de um pequeno corredor, havia uma porta aberta que revelava um papel de parede branco e lustroso com desenhos dourados. A Kitty conduziu-me para lá.
- Aqui está a casa de banho principal - informou a Kitty, entrando primeiro e arrastando-me por um braço. - Aquela coisa ali é uma retrete, como lhe chama a gente fina, mas eu não sou fina... É uma pia. Levantas a tampa antes de te sentares, e puxas o autoclismo sempre que te servires dela... E não a enchas de papéis senão ela entope-se e vem tudo por fora, e ficará a teu cargo limpá-la. Aliás, esta casa é toda para tu limpares. Eu explico-te como deves tratar das minhas plantas, regá-las e adubá-las, limpá-las do pó e mantê-las brilhantes, como deves limpar o pó às minhas coisas todas e aspirar o chão, e também tratarás da roupa, mas primeiro vamos ao banho.
Ali estava eu, com o meu desejo mais ardente tornado realidade - uma casa de banho interior, com água corrente quente e fria, uma banheira, um lavatório, espelhos nas duas paredes - e eu demasiado cansada para a gozar.
- Estás a ouvir, rapariga? - A voz estridente da Kitty atravessou o meu nevoeiro de fadiga cada vez mais cerrado.
- Esta pintura, o papel de parede e o tapete, é tudo novinho em folha, como podes ver. E eu quero que se mantenha assim. Compete-te velar para que fique assim, estás a ouvir?
Sem ver nada, fiz um sinal afirmativo.
- E ficas já a saber, espero que trabalhes para pagares a despesa que fazes, e para custeares o que comes, fazendo os trabalhos que te destino. Tenho a certeza de que não sabes fazer nada em casa, e isso vai fazer-me perder muito do meu precioso tempo, mas hás-de aprender depressa se quiseres viver aqui.
Ela fez uma pausa e olhou-me bem nos olhos.
- Tu gostas disto, não gostas?
Porque é que ela continuava a perguntar, se eu mal tivera tempo de dar uma olhadela à minha volta? E a maneira como ela falava começava a pôr-me de sobreaviso, roubando-me a esperança de que este local fosse um lar, em vez de uma prisão.
- Gosto - respondi, tentando mostrar mais entusiasmo.
- É tudo lindo.
- É, não é? - A Kitty sorriu com doçura. - Há outra casa de banho no rés-do-chão. É tão bonita como esta, mas é para as visitas. Quero que ande limpa, a brilhar. Esse trabalho será teu.
Entretanto, a Kitty tirou uma série de frascos e de boiões do interior de armários com portas espelhadas que deslizavam, e pouco depois tinha uma colecção em cima da prateleira que era de mármore cor-de-rosa, a dar com a banheira oval. Preto, cor-de-rosa e dourado eram os tons da "casa de banho principal". E havia mais peixes das cores do arco-íris a nadar nas paredes pretas e douradas.
- Agora, a primeira coisa que temos de fazer é tirar toda essa sujidade da tua pele - disse a Kitty, toda profissional. - E lavar essa cabeça suja e piolhosa. Matar os piolhos que deves ter. Matar todos esses micróbios nojentos. O teu pai já teve tudo, e tu tens andado a chafurdar na porcaria dele desde o dia em que foste concebida. Em Winnerrow, correm histórias sobre o Luke Casteel que fazem encaracolar os cabelos mais do que uma permanente. Mas ele está a pagar o preço de ter andado a gozar... A pagar um preço alto.
Ela parecia satisfeita e esboçou o seu sorriso secreto e assustador.
Como é que ela sabia da doença do pai? Ia a dizer que ele agora já estava bom, mas sentia-me demasiado cansada para falar.
- Oh, desculpa, querida. Feri os teus sentimentos? Mas tens de compreender que eu não gosto do teu pai.
Aquilo confirmava a minha escolha. Quem não gostava do pai tinha de ser julgado a rigor. Suspirei e depois sorri-lhe.
- Eu fui criada em Winnerrow, e os meus pais ainda lá vivem - continuou ela. - De facto, eles não viveriam em mais lado nenhum. As pessoas ficam assim quando não vão a lado nenhum. Têm medo de viver, é o que eu digo. Têm medo que, se saírem da sua terra, ninguém saiba que elas existem numa grande cidade. Em Atlanta, onde eu trabalho, eles não seriam nada importantes. Não sabem o que hão-de fazer como eu. Não têm o meu talento. Nós não vivemos em Atlanta, como eu já disse, mas nesta zona que fica a trinta quilómetros; tanto o Cal como eu trabalhamos, temos de fazer pela vida. É o que isto é, sabes, uma luta diária fora daqui, eu e ele contra o mundo. Ele pertence-me e eu amo-o. Seria capaz de matar para o conservar.
Ela calou-se e observou-me com um ar pensativo e uns olhos duros e semicerrados.
- O meu estabelecimento fica num hotel grande e bonito que atrai toda a gente rica. Não é possível comprar uma casa aqui em Candlewick, a menos que se faça mais
do que trinta mil por ano, e comigo e o Cal a trabalhar, faremos o dobro disso dentro de alguns anos. Ora, querida, tu vais adorar, vais adorar. Vais para a escola, que fica num prédio de três andares, onde há uma piscina coberta, um auditório onde eles passam filmes e, onde, é claro, serás muito mais feliz do que naquela velha escola de segunda classe... E repara, mesmo a tempo de começares o novo semestre.
Doeu-me pensar na minha velha escola, e recordar Miss Deale. Fora ali que eu aprendera coisas acerca do resto do mundo, do mundo melhor, do mundo diferente que se preocupava com a instrução, com os livros, com a pintura, a arquitectura, a ciência... E não apenas a vida do dia-a-dia. E nem sequer conseguira despedir-me de Miss Deale. Devia ter-me mostrado mais simpática, mais reconhecida pelos seus cuidados. Devia ter atirado o orgulho para trás das costas. Tentei reprimir um soluço.
E depois havia o Logan, que não me devia ter falado porque os pais estavam na igreja, daquela última vez. Ou por outra razão qualquer. Agora, tanto a minha professora adorada como o Logan me pareciam demasiado irreais, como se fossem sonhos que eu nunca mais teria. Até a cabana se transformara numa mancha dentro da minha cabeça, e eu saíra de lá apenas há umas horas.
Naquela altura, o avô devia estar a dormir profundamente. E aqui as lojas ainda estavam abertas e ainda havia gente a fazer compras. Como o Cal, que fora comprar-me roupa bem grande. Suspirei; havia coisas que nunca mudavam. com pernas que pareciam de chumbo, esperei que a Kitty enchesse de água a linda banheira de mármore.
O vapor embaciou os espelhos todos, encheu-me os pulmões, e enublou a atmosfera de tal maneira que a Kitty parecia estar a quilómetros e quilómetros de distância. Era como se eu e ela pairássemos no reino da fantasia, por entre as nuvens, ao pé da Lua, numa noite escura e enevoada cheia de peixes dourados à nossa volta. Senti-me atordoada porque não tinha energias, a cambalear, e ouvi, como se fosse um som vindo da Lua, a Kitty a dizer-me que me despisse e deitasse tudo no cesto do lixo que ela forrara com um saco de plástico. E atirei tudo o que trazia vestido para o lixo, que seria atirado para a lixeira da cidade e queimado daí a pouco tempo.
Desajeitadamente comecei a despir-me.
- Vais ter tudo novo. vou gastar uma fortuna contigo, rapariga, portanto pensa nisso sempre que tiveres saudades daquela pocilga a que chamavas casa. AGORA DESPE-TE IMEDIATAMENTE! Tens de aprender a mexer-te quando eu te mando, e não a ficares aí especada como se não ouvisses ou não percebesses o que eu digo, compreendes?
com as mãos entorpecidas pelo medo e pela fadiga, comecei a desabotoar o meu velho vestido. Porque é que as minhas mãos não se mexiam melhor, mais depressa? Lá consegui desapertar dois botões e, entretanto, a Kitty tirou um avental de plástico de uma gaveta do armário.
- Põe-te em cima disto e deixa cair a roupa aos pés. Não deixes que nada do que trazes toque na minha alcatifa limpa ou nas minhas bancadas de mármore.
Nua, fiquei em cima do avental de plástico, com a Kitty a mirar-me de alto a baixo.
- Valha-me Deus, afinal já não és nenhuma criança, Que idade tens, afinal?
- Catorze anos - respondi.
Tinha a língua entorpecida, os pensamentos densos, e os olhos granulosos do sono, e quando tentei obedecer à Kitty, pestanejei, abri a boca e cambaleei.
- Quando é que fazes os quinze?
- No dia vinte e dois de Fevereiro.
- Já tiveste as tuas primeiras regras?
- Já. Comecei quando ia fazer treze anos.
- Bem, ninguém diria. Quando eu tinha a tua idade, já tinha mamas, e bem grandes. Os rapazes ficavam a ferver só de olhar para mim, mas nem todos temos a mesma sorte, não é verdade?
Fazendo um aceno de cabeça, desejei que a Kitty me deixasse sozinha a tomar o meu primeiro banho numa banheira a sério. Aparentemente, ela não tencionava sair dali, nem deixar-me a sós na casa de banho.
Suspirei de novo e dirigi-me para a sanita cor-de-rosa, convencida de que ela não tencionava sair.
- NÃO! Primeiro tens de forrar o assento de papel.
E até para fazer aquela necessidade tive de esperar que a Kitty espalhasse papel pelo assento, e depois se voltasse de costas. De que servia, se ela ouvia tudo, e havia espelhos por todo o lado que reflectiam tudo apesar de estarem embaciados com o vapor?
Depois, a Kitty entrou em acção. Agachou-se junto da banheira e informou-me, quando experimentou a temperatura da água:
- Tens de te meter na água quente. Tens de te esfregar com uma escova, usar sabonete de enxofre e alcatrão para lavar esse cabelo e matar essas lêndeas que deves ter.
Tentei responder e dizer-lhe que tomava banho mais vezes do que a maioria das pessoas das montanhas, e que lavava a cabeça uma vez por semana (ainda naquela manhã a lavara), mas não tive forças nem vontade de falar nem de me defender. Sentia-me agitada por todo o tipo de emoções confusas, que ainda me cansavam e me enfraqueciam mais.
Era curioso como eu me sentia doente. Os gritos silenciaram-se-me na garganta, as lágrimas gelaram-se-me nos olhos e, como a Fanny fazia tantas vezes, apeteceu-me gritar e berrar e ter uma espécie de ataque de fúria, dar pontapés e ferir alguém, só para não me ferir muito por dentro; mas não fiz nada a não ser esperar que a banheira se enchesse.
E ela encheu-se. De água a escaldar.
E todo aquele cor-de-rosa na pequena casa de banho de repente me pareceu vermelho... E no meio daquela névoa vermelha e demoníaca, vi a Kitty a tirar a blusa e as calças cor-de-rosa. Por baixo, trazia umas cuequinhas e um soutien tão pequenos que mal lhe tapavam o que deviam.
Aproximei-me com todo o cuidado, e vi a Kitty despejar qualquer coisa que estava num frasco castanho dentro da banheira. Era o cheiro do lisol.
Eu conhecia o cheiro da escola, onde ficava até tarde a ajudar Miss Deale, e as senhoras e os homens da limpeza usavam lisol nas salas. Mas não sabia que se tomava banho com lisol.
Uma toalha cor-de-rosa aparecera na minha mão sem eu saber como. Uma toalha tão grande e espessa que senti que me poderia esconder atrás dela. Não é que alguém na cabana alguma vez se tivesse preocupado muito com o pudor, mas eu tinha vergonha que a Kitty visse como eu era magra.
- Larga a toalha! Não devias mexer na minha toalha limpa. E todas essas toalhas cor-de-rosa são minhas, e só eu é que as uso, estás a ouvir?
- Sim, minha senhora.
- Sim, mãe - corrigiu ela. - Nunca me chames mais nada a não ser mãe... Repete.
Eu repeti, sem largar a toalha e assustada com a temperatura da água.
- As toalhas de veludo preto são do Cal, não são tuas, lembra-te disso. Quando as minhas cor-de-rosa ficarem debotadas, passo-tas. Agora podes usar umas velhas que eu trouxe do salão.
Eu fiz um aceno de cabeça e fixei o olhar no vapor que se elevava da banheira cheia de água.
- Está tudo pronto. - Ela dirigiu-me um sorriso confiante. - Agora, faze deslizar os pés no avental de plástico e obriga-o a mexer-se ao mesmo tempo que tu, para te ires aproximando e entrares na banheira.
- A água está muito quente.
- Claro que está quente.
- Vou-me queimar.
- Como é que achas que podes lavar-te se não for com água a escaldar para te tirar essa porcaria da pele? Como? Hem?, Agora, entra!
- Está muito quente.
- Não... está... muito... quente.
- Está, sim. Está a ferver. Não estou habituada a água quente, só a água morna.
- Eu sei... É por isso que eu tenho de te lavar com água bem quente.
A Kitty aproximou-se.
O vapor denso quase que escondia a escova cor-de-rosa de cabo comprido que ela trazia na mão direita. Bateu na palma da mão esquerda com aquela escova. A ameaça era infalível.
- Outra coisa. Quando eu te disser para fazeres uma coisa... qualquer coisa, tu fazes logo. Nós pagámos bom dinheiro para te comprar, e agora pertences-nos e tens de fazer o que nós quisermos. Eu trouxe-te porque em tempos caí na asneira de gostar tanto do teu pai que deixei que ele me destruísse. Engravidou-me, convenceu-me de que me amava, e não era verdade. Eu disse-lhe que me mataria se ele não casasse comigo... E ele riu-se e disse: "Avança", e foi-se embora. Partiu para Atlanta, onde a conheceu e casou com ela... com ELA! E eu, ficava amarrada a um bebé! Por isso, fiz um aborto, e agora não posso ter filhos. Mas consegui a filha DELA... Apesar de já não ser um bebé, ainda é filha dela. Mas não julgues que, lá porque em tempos fui boa para o teu pai, tu darás cabo da minha vida. Existem leis neste estado que te poriam de lado se descobrissem que eras tão má que o teu pai fora obrigado a vender-te.
- Mas... Mas... Eu não sou má. O pai não foi obrigado a vender-me.
- Não fiques aí a discutir comigo. ENTRA na banheira! Aproximei-me da banheira com cautela, e obedeci à Kitty, fazendo escorregar os pés descalços no avental de plástico de tal forma que este escorregava também. Fiz tudo o que pude para dar tempo a que a água arrefecesse. Primeiro, fechei os olhos e equilibrei-me numa perna enquanto estendia o pé por cima da água quente. Era como se metesse o pé no inferno. Soltei um gritinho, retirei o pé e voltei-me para a Kitty, com um olhar suplicante, no momento em que ela me arrancou a toalha das mãos e a atirou para o monte de roupa suja.
- Mãe, a água está mesmo muito quente.
- Não está muito quente. Eu tomo sempre banho em água quente, e se eu consigo suportá-la, tu também consegues.
- Kitty...
- Mãe, dize.
- Mãe, porque é que a água tem de estar assim tão quente?
Talvez a Kitty gostasse do tom submisso da minha voz, porque mudou quase como que por encanto.
- Oh, querida - cantarolou -, isto é para teu bem, a sério que é. O calor mata os micróbios todos. Eu não te obrigaria a fazer nada que te custasse.
Os seus olhos cor de mar amaciaram-se, tal como o seu tom de voz; mostrou-se terna, maternal, convencendo-me de que eu estava enganada. A Kitty era boa mulher e precisava de uma filha para lhe dar amor. E eu queria uma mãe que me desse amor.
- Estás a ver? - disse a Kitty, mergulhando o braço até ao cotovelo para experimentar a água. - Não está tão quente como tu julgas. Agora, vê, sê uma boa menina, entra e senta-te, e deixa a mãe esfregar-te para ficares limpinha como nunca estiveste na tua vida.
- Tem a certeza de que a sua água do banho está assim tão quente?
- Não estou a mentir, querida. Eu tomo sempre banho em água assim tão quente. - A Kitty empurrou-me mais para dentro. - Assim que entrares e o choque passar, sabe bem, muito bem; descontrai-te e dá-te sono. vou deitar um pouco de espuma cor-de-rosa. Vais gostar. Sais daí a cheirar a rosas, e até pareces uma rosa, também.
A Kitty teve de deitar um pouco de água fora para deitar a espuma e deixar correr mais água quente para que os cristais rosados se dissolvessem. Infelizmente, a água que já arrefecera um pouco durante o meu período de hesitação foi pelo cano abaixo.
Lá estava ele, na minha frente, um dos sonhos que eu pedira a Deus que se realizasse um dia, um banho de espuma perfumado, numa banheira cor-de-rosa, com espelhos à volta... E eu não gozava esse momento.
Eu sabia que me ia queimar.
- Vai correr bem, querida. Achas que eu te pedia para fazeres qualquer coisa que te magoasse? Achas? Eu também já fui rapariga e nunca pude ter o que vou fazer por ti. Um dia, hás-de ajoelhar-te e agradecer a Deus por eu te ter salvo das profundezas do inferno. Pensa na água quente como se fosse água benta. É o que eu faço. Pensa na água fria como se fosse gelo, toneladas de gelo partido, tu sentada no gelo a beberes colas geladas, pensa nisso. Não vai doer. Nunca me doeu e eu tenho pele de bebé.
A Kitty fez um gesto repentino. Apanhou-me desequilibrada e, num instante, em vez de experimentar outra vez a temperatura da água, deitou-me lá para dentro, de cabeça para baixo!
A água a escaldar atingiu-me como se fossem carvões incandescentes saídos do Velho Fumegante. Debati-me, de olhos fechados, fiz força nos joelhos, equilibrei-me nas mãos e tentei sair da banheira; mas a Kitty empurrou-me para baixo, agarrou-me nos ombros com as suas mãos fortes e torceu-me de tal maneira que eu fiquei sentada dentro de água. Agora já podia gritar!
De vez em quando eu gritava e esbracejava como a "Nossa" Jane faria, como a Fanny faria.
- Deixe-me sair, deixe-me sair! Zás.
A Kitty pregou-me uma bofetada!
- CALA-TE! Raios te partam! Cala-te! Não estejas a gritar quando o meu Cal entrar em casa para ele não julgar que eu sou má. Não sou, não sou. Estou a fazer o que tenho de fazer, mais nada.
Onde estava o Cal... Porque não voltava ele para me salvar?
Era terrível, tão terrível que eu não consegui gritar mais, nem mesmo quando tinha dificuldade em respirar, quando estava a engasgar-me, a chorar, a lutar para afastar a Kitty, para impedir que aquela escova brutal me arrancasse a pele, vermelha e queimada. Toda eu me sentia a arder... E por dentro também. A água cheia de lisol penetrou nas minhas partes mais íntimas. Lancei um olhar de súplica à Kitty para que tivesse piedade, mas ela continuou a esfregar para tirar os micróbios, a contaminação, a sujidade dos Casteel.
Até me parecia que estava a ouvir o reverendo Wayland Wise a pregar, a cantar-me uma ladainha enquanto eu pairava, no limiar da inconsciência. Estava em estado de choque. Tinha a boca aberta, os olhos também, e a cara da Kitty por cima de mim era uma lua descorada e má, que queria destruir-me.
O banho durou muito tempo, até que por fim a água começou a arrefecer, e a Kitty despejou-me na cabeça um champô de cor escura que estava num frasco cor de laranja. Se o meu couro cabeludo já não estivesse escaldado, talvez não me tivesse ardido tanto, mas doeu-me, doeu-me mesmo! Consegui arranjar forças para me debater e quase que empurrei a Kitty para dentro da banheira.
- ACABA com isso! - gritou a Kitty, esbofeteando-me com força. - Parece que não estás boa da cabeça! Isto não está assim tão quente! - E lá mergulhou ela os braços, aproximando a sua cara da minha. - Vês? Não está quente. Eu não estou a gritar.
Oh, oh, oh... Estava quente.
Foi a pior experiência da minha vida debater-me e virar-me, dar pontapés e lutar, e não conseguir afastar-me da Kitty, que conseguiu ensaboar-me o cabelo com aquele sabão malcheiroso e quase preto. Era a pior coisa que alguém podia fazer ao meu cabelo. Este era comprido e ralo, e esfregá-lo daquela maneira emaranhava-o tanto que não seria possível desembaraçá-lo. Tentei dizer isso à Kitty.
- Cala-te, raios te partam! Julgas que eu não sei qual é o teu tipo de cabelo e que não sei lavá-lo? Eu sou uma profissional! Uma profissional! Tenho feito isto durante toda a vida. As pessoas pagam para eu lhes lavar a cabeça e tu queixas-te. Se gritas mais, deito mais água quente aqui dentro e seguro-te, até a pele da cara te cair.
Fiz um esforço para estar quieta e deixei a Kitty fazer o que queria.
Depois do cabelo ensaboado, tive de ficar assim para matar o que quer que estava escondido nas suas profundezas, e, durante esse tempo, a Kitty pegou de novo na escova de cabo e esfregou a minha já torturada pele. A chorar, consegui ficar dentro de água, que a pouco e pouco arrefeceu mais, e agora eu já não era obrigada a sacudir-me nem a lamentar-me, se bem que nada do que eu fizesse impedisse a Kitty de concluir uma boa esfregadela e a inspecção de todas as minhas fendas que pudessem esconder feridas abertas.
- Eu não tenho feridas, mãe... Eu não tenho, nunca... A Kitty não se importou. Estava determinada a fazer o que sentia que tinha de fazer, mesmo que isso me matasse.
Um sonho infernal, foi o que foi... Vapores das fogueiras do inferno, uma cara pálida que não era bonita, agora que ela tinha o cabelo molhado, escorrido à volta daquela lua horrorosa, com uma fenda vermelha que continuava a discorrer sobre o meu comportamento acriançado.
"Oh, meu Deus, oh, meu Deus, oh, meu Deus", disse eu em voz baixa, embora não me saísse qualquer som da garganta. Senti-me como se fosse uma galinha cozida dentro da panela, que estava a ser escovada e cuja pele já vermelha e tenra ardia como fogo.
Transformei-me na "Nossa" Jane e comecei a chorar, desesperada, sem conseguir controlar-me. A água com lisol entrara-me para os olhos e fazia-os arder. Sem ver, de braços estendidos, descobri a torneira da água fria, abri-a e atirei água para a cara, para aliviar a dor nos olhos.
Curiosamente, a Kitty não objectou. Parecia determinada a concluir a inspecção da racha entre as minhas nádegas. De gatas, continuei a deitar água fria para a cara, para o peito, para os ombros e para as costas.
- Agora vamos tirar essa espuma toda - cantarolou a Kitty, ternamente, dando-me uma palmadinha no rabo como se eu fosse um bebé. - Os micróbios já desapareceram todos, todos. O bebé está limpinho, limpinho, bonito, e é obediente. Vira-te, deixa a mãe tirar a espuma.
Bem no íntimo do meu inferno, voltei-me desamparada na banheira, com os pés levantados e deitando-me de lado para que a água fria me desse um certo alívio.
- Eu vou ter muito cuidado para isto não te entrar para os olhos, mas tu tens de ajudar e estares quieta. Isto matou os teus piolhos, se é que tinhas alguns. Agora és outra pessoa, quase. É o que tu queres, não é verdade? Queres que sejamos bons para ti, não queres? Queres que eu e o Cal gostemos de ti, não queres? Não podemos gostar de ti se tu não ajudares, pois não? É teu dever estares limpa, e fazeres o que nós queremos. Não chores. Não digas ao Cal que dói, se não, isso fá-lo chorar. Ele é fraco, tem bom coração, tu sabes. Todos os homens o são. São mais parecidos com os bebés do que os meninos. Não lhe podes dizer isso, se não, ele zanga-se, mas é verdade. Têm medo das mulheres, todos têm, todos os homens deste mundo cão vivem aterrorizados com a mãe, a mulher, a filha, a irmã, a tia, a avó ou as namoradinhas. São orgulhosos, isso são. De mais. Têm medo da rejeição, como se isso não estivesse sempre a acontecer. Eles querem-nos, não nos deixam em paz, mas quando nos têm, anseiam por não nos terem, ou, pior de tudo, anseiam por não precisar de nós. Por isso andam por aí à procura, a pensar que conseguem encontrar uma mulher diferente.
"Nenhuma de nós é diferente das outras. Portanto, sê meiga para ele, deixa-o pensar que ele conseguiu comprar-te porque é grande, forte e maravilhoso, e far-me-ás um grande favor, para eu te fazer um grande favor.
A Kitty massajava cada vez mais a minha massa de cabelos emaranhados.
- Eu vi a cabana onde tu vivias. Eu sei o que tu és por baixo dessa cara doce e inocente. Tens o mesmo olhar que tinha a tua mãe. Eu odiava-a nessa altura. Faze o possível para eu não te odiar.
Quando saí da banheira e pus os pés num tapete branco que a Kitty tirou do armário da roupa, tremia de alívio por continuar viva. Toda eu picava, toda eu estava vermelha, até as órbitas dos meus olhos quando olhei para o espelho. Mas estava viva... E estava limpa. Mais limpa do que estivera durante a minha vida inteira... Nesse aspecto, a Kitty tinha razão.
- Estás a ver, estás a ver? - disse a Kitty para me acalmar, abraçando-me e beijando-me. - Já passou, já passou, e estás como nova. Pareces outra, a sério. Estás um amor. E, querida, agora vamos pôr uma loção hidratante para impedir que a tua pobre pele arda. Eu não queria assustar-te. Não sabia que a tua pele era tão sensível, mas tens de perceber que eu tinha de fazer qualquer coisa drástica para tirar toda essa sujidade acumulada durante anos. O cheiro desses penicos e dessa casinha de fora estava entranhado na tua pele, e no teu cabelo; apesar de não dares por isso, eu dava. Agora estás limpinha como um bebé recém-nascido.
A sorrir, pegou num grande frasco cor-de-rosa com um rótulo dourado e esfregou-me com a loção que era refrescante.
Consegui sorrir, reconhecida. A Kitty não era assim tão má. Era como o reverendo Wise, a gritar, tentando incutir em todas as pessoas o medo da retaliação de Deus, para elas se tornarem melhores. Deus e a água quente eram mais ou menos a mesma coisa.
- Não te sentes tão bem, melhor do que nunca? Eu não te tirei da sarjeta? Não te sentes renascida, fresca, novinha em folha? Não estás pronta para defrontar o mundo que te condenaria?
- Sim...
- Sim, o quê?
- Sim, mãe.
- Estás a ver? - disse a Kitty, secando-me o cabelo e envolvendo-o numa toalha cor-de-rosa já debotada, limpa, antes de se servir de outra para me secar o corpo quase em carne viva. - Sobreviveste. Apesar de teres a pele um pouco vermelha, ela ainda lá está. Arde-te, mas tudo o que arde, cura. Tens de sofrer para ficares limpa e decente.
A voz hipnótica da Kitty no meio do vapor embalava-me e dava-me uma sensação de segurança à medida que a dor abrandava. Depois, a Kitty começou a pentear-me o cabelo ainda húmido.
Ui!
Aquilo doía.
Tinha a cabeça cheia de espessos rolos de cabelo junto do couro cabeludo, rolos que a Kitty estava disposta a desfazer mesmo que tivesse de arrancar-me os cabelos.
- Deixe-me ser eu a fazer isso - gritei, tirando-lhe o pente das mãos. - Eu sei como hei-de fazer.
- TU sabes como hás-de fazer? Passaste anos e anos da tua vida de pé, até os pés te doerem até à cintura? Percebes de cabelos? Percebes? Percebes?
- Não - respondi em voz baixa, tentando desfazer os rolos com os dedos, antes de recorrer outra vez ao pente.
- Mas eu conheço o meu cabelo. Quando está molhado, tenho de ter cuidado para não o enrolar e torcer como a mãe fez agora.
- Estás a tentar ensinar o padre-nosso ao vigário? Naquele momento, ouviu-se uma porta a bater no andar de baixo. A voz doce do Cal fez-se ouvir:
- Querida, onde estás?
- Cá em cima, querido. A ajudar esta pobre criança a ver-se livre da sujidade. Assim que acabar de a tratar, vou cuidar de ti. - E segredou-me ao ouvido: - Agora, não te queixes. Ele não tem nada com o que se passa entre nós quando estamos sozinhas... Percebes?
Fiz um gesto afirmativo, agarrei-me ao toalhão e voltei-me de costas.
- Querida - gritou o Cal do outro lado da porta da casa de banho, que estava fechada à chave. - Trouxe roupa nova para a Heaven, incluindo duas camisas de noite. Não sabia a medida, por isso tentei acertar. Agora vou para baixo preparar o sofá-cama.
Ela não vai dormir lá em baixo - respondeu a Kitty,
com aquela voz estranha e imperturbável.
Pela voz, percebia-se que o Cal ficara escandalizado.
O que queres dizer com isso? Onde é que ela vai dormir? Aquele segundo quarto está atafulhado com a porcaria das tuas louças que deviam estar na tua oficina. Tu sabias que ela vinha. Podias ter tirado tudo de lá, mas não, não ias fazer uma coisa dessas. Querias deitar a criança no sofá... E agora não queres. O que se passa contigo, Kitty?
A Kitty sorriu-me como se tivesse os lábios colados. Em silêncio, encaminhou-se para a porta, sustentando o meu olhar assustado com a sua expressão autoritária.
- Nem uma palavra, querida, nem uma palavra, estás a ouvir? Nem uma palavra a ele...
Atirando o cabelo ruivo para trás, conseguiu mostrar-se atraente ao rodar a chave, e abriu a porta de repente.
- Ela é uma coisinha adorável, um amor. Dá-me uma dessas camisas de noite que nós já vamos ter contigo.
Zás!
Kitty fechou a porta com força e atirou-me uma camisa de noite fina, com um padrão de bom gosto.
Eu nunca vestira uma camisa de noite, mas sempre sonhara com aquele momento em que enfiava pela cabeça uma peça de roupa para dormir. Era o cúmulo do luxo ter roupa especial só para dormir, se ninguém nos via quando íamos para a cama. Mas assim que a vesti o entusiasmo passou.
A rigidez do tecido novo esfolou-me a pele inflamada. O folho de renda no pescoço e nas mangas parecia lixa.
- Lembra-te agora. Todas as tuas toalhas, esponjas e escovas de dentes serão brancas... Ou quase brancas. As minhas são cor-de-rosa. As de Cal são pretas... E nunca te esqueças disso.
A Kitty sorriu, abriu a porta, foi à minha frente no corredor e depois mostrou-me um grande quarto, muito bonito, ao lado da casa de banho.
O Cal estava lá, e ia começar a abrir o fecho das calças. À pressa, correu-o outra vez e corou quando nós entrámos. Eu inclinei a cabeça para esconder o meu embaraço.
- Francamente, Kitty! Não aprendeste a bater à porta primeiro? - disse ele, agastado. - E onde tencionas metê-la aqui? Na nossa cama?
- Sim - respondeu Kitty, sem hesitar. Eu olhei a tempo de reparar na sua expressão, que era estranha, muito estranha. - Ela dorme no meio. Eu de um lado e tu do outro. Tu bem sabes como estas raparigas dos montes são selvagens e obscenas, e eu tenho de domar esta e não permitir que ela fique sozinha quando está deitada.
- Santo Deus! - vociferou o Cal. - Endoideceste?
- Eu sou a única pessoa aqui que tem juízo. Mas que frase assustadora.
- Kitty, eu não consentirei nisso! Ela dorme lá em baixo, ou então vamos devolvê-la!
Ele estava a crescer para ela... Olá se estava!
- O que percebes tu disso? Foste criado numa grande cidade, e esta rapariga aqui não tem moral, a menos que nós lha demos. E começa esta noite, as nossas lições estão a começar. Quando eu a meter na ordem, ela pode dormir lá em baixo no sofá, mas só nessa altura.
Foi então que ele olhou para mim, embora eu tentasse esconder-me atrás da Kitty.
- Meu Deus, o que lhe fizeste tu à cara?
- Lavei-lha.
Ele abanou a cabeça, incrédulo.
- Tu arrancaste-lhe a pele! Kitty, raios te partam por isso! Devias ter vergonha. - Ele voltou o seu olhar terno para mim e estendeu os braços. - Anda, deixa-me ver se consigo arranjar algum remédio para te pôr nessa pele toda inflamada.
- Deixa-a em paz! - gritou a Kitty. - Eu fiz o que tinha a fazer, e tu sabes que eu nunca aleijo ninguém. Ela estava suja, cheirava mal; agora está limpa, e dormirá
na nossa cama até eu confiar nela ao ponto de ficar sozinha de noite.
O que julgava a Kitty que eu ia fazer?
O Cal fez um ar frio, e pareceu disposto a retroceder, como se a fúria nele desse origem ao gelo e não ao fogo. Saiu e foi para a casa de banho, batendo com a porta, e a Kitty foi a correr atrás dele e disse o que tinha a dizer. Eu suspirei, cedi à necessidade e trepei para a cama enorme. Pouco depois de me deitar, adormeci.
Acordei com o Cal a falar em voz alta. Um sentido inato do tempo indicou-me que eu dormira apenas durante alguns minutos. Deixei-me ficar de olhos fechados e ouvi-os a discutir.
- Por que diabo é que vestiste essa camisa de noite de renda preta? Esse tipo de camisa é uma maneira de me dares a entender o que tu queres? Kitty, eu não posso funcionar com uma criança na cama, e deitada no meio de nós.
- Claro, nem eu espero que o faças.
- Então por que diabo vestiste a camisa de noite de renda preta?
Eu entreabri os olhos e espreitei. A Kitty enfiada numa camisa de noite tão apertada e exígua que mal lhe tapava a nudez. O Cal estava de calções, com um grande volume nas virilhas que me obrigou a fechar os olhos à pressa.
"Por favor, meu Deus", rezei, "não permitas que eles façam aquilo na cama, aqui não, por favor, por favor."
- Esta é a minha maneira de te ensinar a teres um certo autodomínio - replicou a Kitty, empertigada, trepando para a cama e deitando-se a meu lado. - Tu não tens nenhum, bem sabes. Só queres isso de mim, e não terás nada até eu treinar esta rapariga como eu quero.
Eu escutei, espantada por ele acatar o que ela despejara. O pai nunca o teria feito. Que tipo de homem era o marido da Kitty? Um homem não era sempre o chefe da família? Senti-me um pouco enjoada por ele não dar luta nem crescer para ela.
O Cal enfiou-se na cama, do lado oposto ao meu. Eu endireitei-me quando senti a penugem do seu corpo a roçar-me no braço. Fiquei furiosa por ele não ter ido lá para baixo dormir no sofá, ultrapassado os desejos dela e feito a sua própria cama para fazer valer as suas razões; no entanto, por qualquer razão, tive pena dele.
Eu já sabia quem é que era o verdadeiro homem nesta família.
A voz baixa do Cal chegou até mim.
- Não me empurres tanto, Kitty - avisou ele. Depois deitou-se de lado e enfiou o braço debaixo da cabeça.
- Eu amo-te, querido, a sério. E quanto mais depressa esta rapariga aprender a lição, mais depressa ficaremos com esta cama só para nós.
- Jesus Cristo!
Foi a última coisa que ele disse.
Era horrível dormir entre um homem e uma mulher, e saber que ele detestava a minha presença. Agora ele nunca aprenderia a gostar de mim, e eu ficaria dependente dos seus favores. Sem isso, como é que eu conseguiria suportar a Kitty, o seu estranho comportamento e as suas alterações de humor? Talvez aquele fosse o estratagema da Kitty para ele nunca vir a gostar de mim. Mas que atitude odiosa.
"Mãe, mãe", solucei, ansiando desesperadamente pela mãe morta há tanto tempo, que estava sepultada na montanha onde os lobos uivavam à lua e o vento cantarolava nas folhas das árvores. Oh, voltar para casa, com a avó viva, com a Sarah a cortar biscoitos, com o avô a esculpir, e o tom, a Fanny, o Keith e a "Nossa" Jane a correrem nos prados.
Eu já desconfiava... O paraíso vivia em Winnerrow. À frente ficava o inferno.
Não, não era obrigatório que fosse assim. Não, se eu conseguisse que a Kitty gostasse de mim e confiasse em mim.
Não, se eu arranjasse maneira de convencer a Kitty de que não faria nada perigoso ou perverso quando dormisse sozinha lá em baixo, no sofá-cama. Abstraí-me das dores na minha pele inflamada e adormeci num sono profundo e misericordioso.
SONHOS FEBRIS
Como se eu ainda vivesse na cabana, lá no cimo dos Willies, o meu galo mental cantou.
Acordei com o corpo rígido e dorido; doía-me sempre que eu me mexia. As imagens da noite anterior e o banho quente fizeram-me pensar que eu tivera um pesadelo, mas o ardor da pele era a prova de que eu não sonhara com aquele banho escaldante.
Eram cinco horas, disse o meu relógio corporal. Pensei no tom, que àquela hora devia andar ao ar livre a cortar madeira ou a caçar; era raro eu acordar e encontrar o tom a dormir, lá nos Willies, onde eu gostaria de estar. Desorientada, tentei encontrar a pele macia da "Nossa" Jane e toquei num braço áspero e cabeludo. Acordei melhor, olhei à roda, com relutância em olhar para a Kitty ou para o marido, esparramado a dormir na cama larga. A luz difusa da manhã entrava através dos cortinados abertos.
com o corpo inteiriçado, passei cuidadosamente por cima do Cal, a pensar que era preferível correr o risco de o acordar a ele. Esgueirei-me da cama e olhei à volta, muito admirada com o que via, embora algumas coisas me aborrecessem; por exemplo, a maneira desmazelada como a Kitty deixara a sua roupa no chão. Nós não fazíamos aquilo na cabana. Nenhuma das senhoras finas dos romances atirava a roupa para o chão. E a Kitty que fizera uma algazarra por querer tudo arrumado e limpo! Depois lembrei-me de que a Kitty não tinha que se preocupar com as baratas e outros vermes que poderia encontrar na roupa espalhada no chão, e que estavam sempre no meu pensamento quando eu pendurava uma peça de roupa num prego. Mesmo assim... Não devia fazer aquilo. Peguei na roupa dela e pendurei-a no roupeiro, espantada com toda a outra roupa que vi lá dentro.
Saí do quarto sem fazer barulho, fechei a porta atrás de mim, e suspirei de alívio. Oh, eu não podia continuar a dormir entre marido e mulher... Não estava certo.
Como a casa estava silenciosa! Desci o corredor, entrei na casa de banho, e mirei-me ao espelho a todo o comprimento da parede. Oh, a minha pobre cara! Estava vermelha e inchada e, quando lhe toquei, senti-a macia numas partes e dura e irritada noutras. As pequenas manchas vermelhas ardiam como fogo. Algumas das manchas maiores ainda estavam ensanguentadas, como se eu as tivesse coçado durante a noite. Lágrimas de desespero correram-me pela face... Nunca mais voltaria a ser bonita?
O que é que a avó dizia sempre? "Aceita o que tens e tira o melhor partido disso..."
Bem, eu agora não tinha outro remédio senão aceitar. Embora me doesse o corpo ao despir a camisa de dormir, ao levantar os braços e ao mexer as pernas. Na verdade, qualquer movimento que eu fizesse me fazia doer a pele. Como conseguira eu dormir tão profundamente? A fadiga era tão grande que nem as dores me atingiam? Mas a noite não me trouxera tanto alívio como agitação, provocada pelos sonhos maus com o tom, o Keith e a "Nossa" Jane, deixando-me impressões desagradáveis que me atormentaram quando me servi pela primeira vez daquela sanita cor-de-rosa e hesitei antes de puxar o autoclismo. Em seguida, tentei freneticamente desembaraçar o cabelo.
Através das paredes finas que separavam a casa de banho do quarto ouviram-se os grunhidos e os gemidos da Kitty, como se o novo dia lhe trouxesse problemas imediatos.
- Onde diabo estão os meus chinelos? Onde diabo está a parva da miúda? O melhor é ela não gastar a água quente toda...!
A voz calma e suave do Cal consolava a Kitty como se esta fosse uma criança pequena e tivesse de ser desculpada.
- Tem paciência para ela - avisou ele. - Tu é que a quiseste, lembra-te disso. Não compreendo porque insististe para que ela dormisse na nossa cama. Uma rapariga da idade dela precisa do seu quarto, para decorar de novo, para sonhar e para manter os seus segredos.
- Não haverá segredos! - disparou a Kitty.
Ele continuou a falar como se ela não tivesse dito nada, e eu ganhei novas esperanças.
- Eu opus-me a isto desde o princípio. Mesmo assim, tenho pena dela. Sobretudo depois do que fizeste ontem à noite. E quando penso naquela cabana miserável, em todas aquelas tentativas para torná-la acolhedora, concluo que temos muita sorte em termos o que temos. Kitty, mesmo que não queiras mudar o lugar do teu torno e da outra tralha toda, podíamos pôr outra cama no nosso segundo quarto e arranjar uma cómoda bonita. Uma mesa-de-cabeceira e um candeeiro, e talvez uma secretária onde ela poderia fazer os trabalhos de casa. Anda lá, Kitty... O que dizes?
- Digo que NÃO!
- Querida, ela parece ser boa rapariga, e muito meiga.
Ele tentava convencê-la, talvez com beijos e abraços. Pelos ruídos que faziam, eu quase que adivinhava o que ele estava a fazer.
Uma bofetada! Uma mão dura a bater na carne macia!
- Achas que ela é bonita, não achas? Já reparaste nisso, hem? Mas tu não te podes meter com ela, não te esqueças! Eu tive paciência e fui tolerante, mas tu não vais andar por aí a divertir-te com uma criança que vai ser nossa filha.
Como ela gritava.
,. - Nunca mais me tornes a dar uma bofetada, Kitty disse o Cal, com uma voz fria e dura. - Aturo-te muito, mas nada de violência física. Se não podes tocar-me com amor e com ternura, não me toques.
- Querido, não doeu, pois não?
- Não é esse o caso, se doeu ou não. O caso é que eu não gosto de mulheres violentas, ou que gritem e levantem a voz. E as paredes são muito finas. Tenho a certeza de que a Heaven julga que tu a vais tratar bem, tal como uma mãe trata uma filha de quem gosta. Metê-la na cama com os pais! Ela é uma adolescente, Kitty, não é uma criança.
- Tu não percebes, pois não? - A Kitty parecia estar de muito mau humor. - Eu sei como são as raparigas dos montes; tu não sabes. Tu nem sequer sabes como elas são más... E elas não precisam de homem nenhum. E se queres que haja sossego nesta casa, deixa-me agir à minha maneira.
Nem uma palavra do Cal em minha defesa. Nem uma palavra sobre o banho a ferver e no mal que este causara... Porquê? Porque é que ele se intimidava quando a Kitty estava em casa e lhe fazia frente quando estava no automóvel?
A porta do quarto abriu-se. Ouviu-se a Kitty a chinelar no corredor, na minha direcção. Fiquei em pânico. À pressa, peguei numa das toalhas velhas e debotadas e enrolei-a à volta do meu corpo dorido.
Kitty entrou sem bater à porta, deitou-me um olhar severo; depois, sem dar uma palavra, despiu a camisa de dormir preta, atirou com os chinelos cor-de-rosa e sentou-se na sanita, nua. Eu fiz menção de sair, mas ela ordenou-me que ficasse.
- Faze qualquer coisa ao cabelo... Está com um aspecto horrível! - disse ela, imperturbável.
Baixei a cabeça, tentando não ver nem ouvir nada. Diligente, entreguei-me ao trabalho de desembaraçar o cabelo o mais depressa que pude.
Pouco depois, a Kitty estava a tomar duche, entoando canções populares em voz alta. E eu continuava a tentar desembaraçar o cabelo.
A Kitty saiu da banheira a secar o corpo com uma toalha cor-de-rosa.
- Nunca mais quero entrar aqui e ver o que vi nesta sanita, ouviste?
- Desculpe. Mas eu tinha receio de a acordar a si e ao seu marido se puxasse o autoclismo. Amanhã de manhã, sirvo-me da casa de banho lá de baixo.
- É melhor - resmungou a Kitty - Agora despacha-te e acaba com isso, e depois vai vestir um dos lindos vestidos que o Cal te comprou. Esta tarde, eu e o Cal vamos dar uma volta contigo, vamos a Atlanta, para veres o meu estabelecimento, como ele é bonito, como as minhas empregadas gostam de mim. Amanhã vamos à igreja, e na segunda-feira começas a escola, como todas as outras crianças da tua idade. Sacrifico as minhas lições de cerâmica por tua causa, não te esqueças disso. Hoje tinha muito que fazer, mas não faço, para que tu comeces bem.
Voltei a ocupar-me do meu cabelo enquanto a Kitty se maquilhava e se vestia toda de cor-de-rosa. Prendeu o cabelo ruivo e forte com um curioso objecto de arame e depois voltou-se para mim, radiante.
- O que achas?
- Está linda - respondi sinceramente. - Nunca vi uma pessoa tão linda.
Os olhos da Kitty faiscaram. O sorriso rasgado mostrou uns dentes grandes e brancos.
- Nunca dirias que eu tinha trinta e cinco anos, pois não?
- Não - respondi, sem fôlego.
A Kitty era mais velha do que a Sarah - imagine-se! - e parecia muito mais nova.
- O Cal só tem vinte cinco, e isso aborrece-me um bocado, ser dez anos mais velha do que o meu marido. Arranjei um bom homem, é verdade, um homem bom, apesar de ser mais novo... Mas não digas a ninguém a minha idade, estás a ouvir?
- Ninguém acreditaria, se eu dissesse.
- Que amorosa - disse a Kitty com uma voz diferente e mais meiga. Aproximou-se de mim, deu-me um abraço rápido e um beijo apressado na pele inflamada da cara. - Eu não queria que a tua pele ficasse assim tão vermelha e inflamada. Dói-te?
Fiz um sinal afirmativo, e a Kitty foi à procura de um creme para me untar a cara com todo o cuidado.
- Acho que às vezes exagero no que faço. Não quero que me odeies. Quero acima de tudo que me ames como amarias a tua própria mãe. Querida, desculpa... Mas tens de admitir que matámos aquela bicharada toda que tinhas agarrada a ti como se fosse musgo numa árvore podre.
Ela dissera tudo aquilo que eu secretamente pedira para ouvir e, num impulso, dei-lhe um abraço e um beijo na face, com muito cuidado para não lhe estragar aquele esplêndido trabalho de maquilhagem.
- E cheira tão bem - disse eu em voz baixa, à beira das lágrimas e muito aliviada.
- Tu e eu vamos dar-nos bem, mesmo bem - disse a Kitty, entusiasmada e com um sorriso feliz.
Em seguida, para mostrar que estava a falar a sério, tirou-me o pente da mão e começou a desembaraçar-me o cabelo. Devagar e com muita habilidade, daí a pouco transformava o meu cabelo numa cascata macia. Depois, pegou numa escova que, segundo ela disse, eu poderia começar a usar, e escovou, escovou, utilizando-a de forma misteriosa. Mergulhou-a em água, sacudiu-a, encaracolou o cabelo com os dedos... E quando voltei a olhar para o espelho, vi uma bela cabeça cheia de cabelos encaracolados e brilhantes, à volta de uma cara pálida e manchada com dois grandes olhos azuis.
- Obrigada - disse eu em voz baixa, reconhecida, adorando a Kitty por ela ser meiga, e desejosa de esquecer a tortura da noite anterior.
- Muito bem. Agora vamos para a cozinha e dar uma volta como eu te prometi. Temos de despachar-nos. Tenho tanto que fazer.
Descemos a escada. O Cal já estava na cozinha.
- Já aqueci a água para o café e hoje sou eu que faço o pequeno-almoço - disse o Cal com uma voz alegre. Estava a fritar toucinho fumado e a estrelar ovos em várias frigideiras, e portanto não podia voltar a cabeça. - bom dia, Heaven - disse ele, deitando o toucinho em cima de papel de cozinha, com todo o cuidado e cobrindo os ovos de gordura quente. - Gostas mais de torradas ou de sonhos? Eu sou um fã de sonhos, sobretudo com compota de groselha ou de laranja.
Só depois de nos sentarmos à mesa, redonda e bonita, a comer, é que ele me viu. Abriu muito os olhos, condoído ao ver a minha cara, e nem sequer reparou como o meu cabelo estava bem arranjado.
- Meu Deus, Kitty, é uma vergonha transformares uma cara linda numa cara de palhaço. O que diabo é essa coisa branca que lhe espalhaste na cara?
Ele mostrou-se contrariado, impressionado e voltou-se para pegar no jornal.
- Por favor, evita lavar-lhe a cara outra vez, Kitty. Deixa que seja ela a fazê-lo - disse ele por trás do jornal, como se estivesse tão zangado que nem quisesse olhar para a mulher.
- Ela vai ficar boa, dá-lhe tempo - respondeu a Kitty, impassível, sentando-se e pegando num suplemento do jornal que ele pusera de lado. - Vá lá, Heaven, come. Hoje temos muito que fazer. Vamos mostrar-te o que nunca viste na vida, não vamos, querido?
- Vamos - respondeu ele, encrespado -, mas seria mais agradável para a Heaven se ela não tivesse esse aspecto.
Apesar da minha cara, assim que limpei o creme, passei um dia maravilhoso a visitar Atlanta e o hotel onde a Kitty tinha o seu salão de beleza, cuja decoração era toda em cor-de-rosa, preto e dourado, e onde as senhoras ricas se sentavam debaixo de uns capacetes brancos e brilhantes, e oito lindas raparigas, todas elas louras, trabalhavam.
- Elas são bonitas, não são? - perguntou a Kitty, muito orgulhosa. - Adoro aqueles cabelos louros que são tão luminosos, tão alegres... Não são como os cabelos louro-platinados, que aquilo nem é cor nem é nada.
Estremeci, sabendo que ela estava a referir-se ao cabelo da minha mãe.
Apresentou-me a toda a gente, enquanto o Cal ficou no átrio do hotel, como se a Kitty não o quisesse ali, ao pé daquelas raparigas todas.
Depois, levaram-me outra vez às compras. Eu já levava um lindo casaco azul que o Cal escolhera e que me assentava na perfeição. Infelizmente, tudo o que a Kitty
escolheu - saias, blusas, camisolas, roupa interior - era grande de mais para mim, e detestei os sapatos brancos, pesados e feios, que ela achou que eu devia usar. Até as raparigas do vale de Winnerrow usavam sapatos melhores do que aqueles. Tentei dizer isso à Kitty, mas ela recordava-se ainda do tipo de sapatos que usara noutros tempos.
- Não digas mais nada. As crianças não levam sapatos bonitos para a escola, nem pensar!
No entanto, quando voltámos para o carro, eu tinha de dar-me por muito feliz por ter tantos fatos novos, mais do que tivera em toda a minha vida. Três pares de sapatos.
Os mais bonitos eram para calçar no dia seguinte, quando fôssemos à igreja.
Voltámos a comer num restaurante de refeições rápidas, o que desagradou ao Cal.
- Francamente, Kitty, sabes que eu detesto este género de comida gordurosa.
- Tu gostas é de atirar dinheiro pela janela fora só para fazeres figura. Cá por mim, não quero saber do que como desde que seja barato.
O Cal não respondeu, limitou-se a franzir o sobrolho e ficou muito calado, deixando a Kitty falar enquanto o automóvel- rodava e ela me explicava o que víamos.
- Aqui é a escola para onde tu virás - disse ela, enquanto o Cal abrandava junto de um grande edifício de tijolos, rodeado por vários hectares de relva e de campos de jogos. - Podes vir de autocarro, nos amarelos, nos dias de chuva, mas nos dias de sol vens a pé... Cal, querido, compraste-lhe tudo o que ela precisava para levar para a escola?
- Comprei.
- Porque estás zangado comigo?
- Não sou surdo. Não é preciso gritares.
Ela aconchegou-se a ele e eu inclinei-me para trás, tentando não ver como ela o beijava, no meio daquele trânsito todo.
- Querido, eu amo-te, a sério. Amo-te tanto que até faz doer.
Ele pigarreou.
- Onde é que a Heaven dorme esta noite?
- Connosco, querido... Não te disse já o que se passa com as raparigas dos montes?
- Sim... Já me disseste - respondeu ele com sarcasmo.
Depois não disse mais nada, nem mesmo quando nos instalámos naquela noite e eu vi o meu primeiro espectáculo de televisão a cores. Era tão excitante que fiquei sem fôlego. Como eram lindas todas aquelas bailarinas coloridas, quase sem roupa. Depois, veio o filme de terror e o Cal desapareceu.
Eu nem reparara que ele saíra.
- É o que ele faz quando está furioso - disse a Kitty, levantando-se para desligar o televisor. - Vai esconder-se na cave e finge que está a trabalhar. Agora vamos para cima. Vais tomar outro banho e lavar a cabeça, e eu não entro enquanto estiveres lá dentro. - Calou-se e ficou a pensar. - Agora tenho de ir lá abaixo ter uma conversazinha com o meu homem.
Riu-se e encaminhou-se para a cozinha, deixando-me a gozar o meu banho na banheira cor-de-rosa.
Eu detestava dormir outra vez no meio da Kitty e do Cal. Detestava a maneira como ela o aborrecia e atormentava, dando a impressão de que não o amava tanto como ele a amava. A Kitty teria ódio aos homens?
No domingo também fui a primeira a levantar-me. Descalça, desci as escadas com cuidado, corri para a cozinha, procurei a porta que dava para a cave e fui encontrá-la num pequeno corredor nas traseiras. Assim que me apanhei lá em baixo, na penumbra, vasculhei no meio daquela tralha toda que a Kitty não conservava limpa nem arrumada, até que descobri a minha mala, numa prateleira por cima de uma bancada de trabalho. Os xailes da avó estavam cuidadosamente dobrados ao lado. Empoleirei-me na bancada para puxar a mala, desejosa de saber se o Cal a abrira.
Lá dentro estava tudo exactamente como eu deixara. Tinha lá metido seis dos livros preferidos que Miss Deale me oferecera... E até um livrinho de versos para crianças que o Keith e a "Nossa" Jane adoravam que eu lhes lesse ao deitar. Vieram-me as lágrimas aos olhos ao ver aquele livro... "Conta-nos uma história, Hev... lee... Comprida, Hev... lee. Lê-a outra vez, Hev... lee."
Sentei-me na bancada, tirei um bloco de apontamentos e comecei a escrever uma carta ao Logan. À pressa, com a sensação do perigo que me rodeava, passei ao papel a minha situação desesperada, disse-lhe que precisava de saber do paradeiro do tom, do Keith e da "Nossa" Jane e pedi-lhe se podia saber onde morava Buck Henry. Indiquei-lhe os três primeiros números da chapa de matrícula de Maryland. Quando acabei a carta, peguei noutras coisas e depois fui a correr à porta da frente para ver qual era a morada. Tinha de chegar à esquina para ver como se chamava a rua. Quando voltei e me aproximei da porta que deixara aberta, senti-me estúpida, pois havia umas revistas embaladas em nome da Kitty, com a morada e o código postal. Vasculhei numa pequena secretária, à procura de um envelope e de selos.
Agora só tinha de arranjar uma oportunidade para meter no correio a minha primeira carta. Lá em baixo na cave, a minha linda boneca vestida de noiva dormia tranquilamente, à espera daquele belo dia em que ela e eu, o tom, o Keith e a "Nossa" Jane iríamos a Boston, e deixaríamos a Fanny a divertir-se em Winnerrow.
Subi as escadas em bicos de pés e meti-me na casa de banho, depois de ter enfiado a carta debaixo da passadeira do corredor. Fechei a porta e suspirei de alívio. A carta para o Logan era a auto-estrada para a minha liberdade.
- Anda ver, Cal, a nossa menina está toda vestida, pronta para ir à igreja. Para variar, vamos chegar a horas.
- Estás muito bonita esta manhã - disse o Cal, passando os olhos pelo meu vestido novo, e pela minha cara que já não estava vermelha e quase nada inchada.
- Ela ficava melhor se me deixasse cortar aquele cabelo a preceito - disse a Kitty, fitando-me com um ar crítico.
- Não, deixa o cabelo dela em paz. Detesto o cabelo demasiado bem penteado. Ela é uma espécie de flor selvagem.
A Kitty franziu o sobrolho e lançou um olhar demorado e duro ao Cal antes de entrar na cozinha e de preparar o pequeno-almoço tão depressa que eu nem podia acredita que estivesse tão saboroso. Omeletas. Eu não sabia que os ovos podiam ficar assim tão leves e macios. Sumo de laranja... Oh, rezei para que a "Nossa" Jane, o Keith e o tom estivessem também a beber sumo de laranja naquele momento.
- Gostas da minha omeleta?
- Está deliciosa, mãe. Sabe cozinhar muito bem.
- Só espero que tu também saibas - retorquiu ela, impassível.
A igreja não se parecia nada com o que eu já vira. Era uma catedral de pedra, alta, magnífica, escura lá por dentro.
- É um templo católico? - perguntei em voz baixa ao Cal, quando íamos a entrar e a Kitty falava com uma sua conhecida.
- É, mas a Kitty é baptista - respondeu ele, também em voz baixa. - A Kitty anda a tentar desesperadamente encontrar Deus e experimenta todas as religiões, pelo menos uma vez. Neste preciso momento, faz de conta que é católica. Na próxima semana, talvez sejamos judeus, ou metodistas, e uma vez até fomos a uma cerimónia religiosa em honra de Alá. Não digas nada que a faça sentir-se pateta. O simples facto de ela ir à igreja já me surpreende.
Eu adorei o interior escuro daquela catedral, com aquelas velas todas acesas, os nichos e as imagens, e o padre de hábito comprido a falar de coisas que eu não entendia, e calculei que ele falasse do amor de Deus pela humanidade, e não do seu desejo de castigá-la. Eu nunca ouvira aqueles cânticos, mas tentei acompanhá-los, enquanto a Kitty se limitava a mexer os lábios sem emitir nenhum som. O Cal fez o mesmo que eu. Antes de sairmos, a Kitty teve de ir à casa de banho das senhoras, e foi então que eu meti a carta para o Logan no correio. O Cal observou-me com um ar triste.
- Já andas a escrever para casa? - perguntou ele quando eu voltei. - Julguei que tu gostavas disto.
- E gosto. Mas tenho de saber onde estão o tom, a "Nossa" Jane e o Keith. A Fanny deve sentir-se bem na companhia do reverendo Wise, mas eu tenho de manter-me em contacto com a minha família, senão ela dispersa-se, portanto é melhor começar já. As pessoas mudam-se... Eu posso não voltar a encontrá-los se deixar passar muito tempo.
com um gesto suave, o Cal obrigou-me a olhar para ele.
- Seria assim tão horrível se esquecesses a tua antiga família e aceitasses a nova?
Os olhos marejaram-se-me de lágrimas. Afastei-as, ou pelo menos tentei fazê-lo.
- Cal, acho que tem sido formidável... E a Kitty, quero dizer, a mãe, está a tentar... Mas eu adoro o tom, a "Nossa" Jane, o Keith... E até a Fanny. Somos do mesmo sangue, sofremos muita coisa juntos e isso cria laços que a felicidade não cria.
Os olhos castanho-claros do Cal fitaram-me, compadecidos.
- Gostarias que eu te ajudasse a encontrar os teus irmãos?
- Seria capaz disso?
- Ficarei muito contente de fazer o que puder. Dá-me as informações que tiveres e eu farei o melhor possível.
- Farás o melhor possível, o quê? - perguntou a Kitty, olhando para nós, muito séria. - O que estavam vocês a cochichar, hem?
- Farei o melhor possível para que a Heaven se sinta sempre feliz na sua nova casa, mais nada - respondeu ele com naturalidade.
Ela manteve o sobrolho franzido até chegar ao carro branco, e lá fomos outra vez à procura de um sítio para comer - outro restaurante de refeições rápidas para não se desperdiçar dinheiro. O Cal queria ir ao cinema mas a Kitty não gostava de cinema.
- Não suporto ficar ali sentada às escuras com tantos desconhecidos - queixou-se ela. - E amanhã a miúda tem de se levantar cedo para ir para a escola.
O simples facto de ouvir a palavra escola fez-me sentir feliz. Uma escola numa grande cidade... Como seria?
Naquela noite, vimos outra vez televisão e, pela terceira vez, dormi na cama deles, no meio dos dois. Dessa vez, a Kitty vestiu uma camisa de noite vermelha debruada de renda preta. O Cal nem sequer olhou para ela. Enfiou-se na cama e aconchegou-se a mim. Os seus braços fortes envolveram-me com força e ele enfiou a cara no meu cabelo. Fiquei terrivelmente assustada. E admirada.
- Sai da cama! - gritou a Kitty. - Não vou permitir que uma miúda seduza o meu homem! - Cal... Tira as mãos de cima dela!
Pareceu-me ouvi-lo rir quando desci as escadas e fui abrir o sofá-cama que o Cal me mostrara. Levava lençóis, cobertores e uma almofada de penas de ganso extremamente macia. Pela primeira vez na minha vida tinha uma cama só para mim. Um quarto só para mim, a abarrotar de animais tão coloridos que era para admirar que eu conseguisse dormir.
Assim que abri os olhos, pensei naquela nova escola, onde havia centenas ou mesmo milhares de crianças, e eu que não conhecia nem uma. Embora a minha roupa fosse muito melhor do que era costume, já vira o suficiente em Atlanta para perceber que a roupa que eu tinha agora não era igual àquela que a maior parte das raparigas da minha idade usava. Eram cópias baratas de vestidos, saias, blusas e camisolas melhores. "Meu Deus, não permitas que eles se riam da minha roupa grande de mais", rezei em silêncio, enquanto tomava um banho rápido e vestia o melhor do que a Kitty escolhera para mim.
Alguma coisa se devia ter passado no quarto da Kitty naquela noite, alguma coisa que a fez acordar mais macambúzia do que era costume. Na cozinha, os seus olhos sem brilho miraram-me dos pés à cabeça.
- Até aqui, tem sido fácil para ti... Mas hoje começa a vida a sério. Espero que te levantes cedo e cozinhes sempre a partir de agora, e que não fiques na casa de banho a pentear-te durante horas a fio.
- Mas, mãe, eu não sei trabalhar com este fogão.
- Eu não te expliquei como era, ontem... Anteontem? Desde o fogão, passando pela máquina de lavar louça até ao caixote do lixo e ao frigorífico, ela mostrou-me outra vez como tudo funcionava. Depois, mais uma vez, levou-me à cave, onde havia uma máquina de lavar roupa e um secador cor-de-rosa, sozinhos num cubículo, e armários com caixas e frascos de sabão e detergentes, amaciadores, lixívia, cera, vernizes, purificadores, limpa-vidros, artigos de limpeza para casa de banho, produtos para arear latão, cobre e prata, e por aí fora. Nem percebi como lhes sobrava dinheiro para a comida.
A comida fora o objectivo principal nas nossas vidas; nunca pensáramos sequer em nenhum daqueles produtos de limpeza, nem os consideráramos necessários. Apenas o sabão, que tanto fazia as vezes de champô como servia para tomar banho ou para lavar a roupa suja na tábua. Não era para admirar que a Kitty me considerasse uma selvagem.
- E, aqui em cima - disse a Kitty, apontando para um grande espaço cheio de ferramentas -, é a oficina caseira do Cal. Gosta de passar o tempo aqui em baixo. Mas não ligues às coisas dele. Algumas podem ser perigosas. Como a serra eléctrica, por exemplo, e aquelas ferramentas de carpinteiro. Para miúdas como tu, que não estão habituadas a estas coisas, o melhor é afastarem-se. Mete isso na cabeça, ouviste?
- Sim.
- Sim, o quê?
- Sim, mãe.
- Agora vamos ao trabalho. Achas que consegues lavar a tua roupa e secá-la sem a rasgares ou queimares?
- Sim, mãe.
- É melhor que estejas a falar a sério.
De volta à cozinha, vimos que o Cal já pusera água a aquecer para o café e estava sentado a ler o jornal da manhã. Pô-lo de lado e sorriu-me quando nós entrámos. - bom dia, Heaven. Estás muito fresca e bonita para o teu primeiro dia na nova escola.
A Kitty virou-se.
- Eu não te disse que ela ficava boa depressa? - sofismou ela, sentando-se e agarrando numa parte do jornal da manhã. - Vais ver a estrela que chegou à cidade... - resmungou ela.
Eu fiquei no meio da cozinha, sem saber o que havia de fazer. A Kitty levantou a cabeça, muito séria, com um olhar frio e ríspido.
- Cozinha, rapariga.
Cozinhar. Deixei queimar as fatias finas de toucinho fumado que nunca fritara. O nosso vinha em nacos grossos e não em fatias finas envolvidas em belas embalagens.
A Kitty franziu o sobrolho quando as viu mas não fez comentários.
Deixei queimar as torradas, sem reparar que mexera no regulador da torradeira quando limpara as dedadas com a esponja que a Kitty me dera, dizendo-me que eu tinha de conservar os cromados sem manchas nem dedadas.
Os ovos do Cal ficaram passados de mais. Ele mal lhes tocou. O café foi a gota de água. Num ápice, a Kitty levantou-se, atravessou o soalho escorregadio da cozinha e pregou-me uma bofetada!
- QUALQUER PALERMA SABE TORRAR PÃO! - gritou ela. E QUALQUER IDIOTA SABE FRITAR TOUCINHO FUMADO! Eu devia ter adivinhado, devia ter adivinhado!
Arrastou-me para a mesa e obrigou-me a sentar.
- Hoje sou eu que faço, mas a partir de amanhã és tu... E se fizeres o que fizeste hoje, da próxima vez, enfio-te em água a FERVER! Cal, vai para o trabalho e toma o pequeno-almoço noutro lado. Tenho de ficar em casa mais uma hora para levar esta miúda à escola.
O Cal depositou um beijo na face cheia de rouge de Kitty. Não foi um beijo longo nem apaixonado, apenas um beijo rápido, por obrigação.
- Tem calma com a rapariga, Kitty. Exiges de mais, quando sabes que ela não está acostumada às coisas modernas. Dá-lhe tempo, que ela aprende. Vejo pelos olhos dela que é inteligente.
- Não é o que os cozinhados dela dão a entender, pois não? Ele saiu.
A sós com a Kitty, senti uma nova onda de ansiedade. Desaparecera a mulher atenciosa que me escovara o cabelo e o encaracolara com os dedos. Eu já aprendera a recear as irracionais e tempestuosas alterações de humor da Kitty, o suficiente para não me deixar enganar pelos seus arremedos de ternura. Todavia, com uma paciência surpreendente, a Kitty ensinou-me outra vez a lidar com o fogão, a máquina de lavar louça e o triturador de detritos; e ensinou-me como eu havia de empilhar os pratos, com precisão.
- Não quero sequer olhar para estes armários e ver uma coisinha fora do seu lugar, percebes?
Eu fiz um aceno de cabeça. Ela deu-me uma palmadinha na face, com força.
- Agora, corre e vai acabar de te vestir porque são horas de irmos para a escola.
O edifício de tijolos parecera-me enorme visto de fora. Lá dentro tive medo de me perder. Havia centenas de adolescentes a andarem de um lado para o outro, todos muito bem vestidos. A minha roupa não estava a condizer. Nenhuma outra rapariga calçava uns sapatos tão feios como os meus, com meias brancas. O director, Mr. Meeks, sorriu para a Kitty como se estivesse perturbado por ver uma mulher voluptuosa no seu gabinete. Os seus olhos faiscaram ao olhar para o busto dela, que estava ao nível dos olhos, e macacos me mordam se levantou a cabeça e reparou que ela também tinha uma cara bonita.
- Claro, Mistress Dennison, eu tomo conta da sua filha, claro, claro...
- Agora tenho de ir-me embora - disse a Kitty à porta que dava para o corredor. - Faze o que os professores te mandarem, e vai para casa a pé. Deixei-te uma lista do que tens de fazer quando eu não estiver. Os cartões ficaram em cima da mesa da cozinha. Espero encontrar a casa bem limpa quando voltar... Percebes?
- Sim, mãe.
A Kitty fez um sorriso rasgado ao director e depois foi pelo corredor fora a saracotear-se, e macacos me mordam se ele não foi até ao corredor para a ver sair. Pela maneira como ele a mirou, percebi que a Kitty era o tipo de mulher que preenchia as fantasias de muitos homens, exagerando todos os seus atributos femininos.
Aquele primeiro dia foi difícil. Não sei se a hostilidade era produto da minha imaginação ou se era real. Senti-me constrangida com o cabelo comprido e mal penteado, com a roupa desajeitada (melhor do que a que tivera até então, e contudo não me sentia feliz), com a minha visível consternação por não saber para onde ir ou onde era a casa de banho das raparigas. Uma rapariga bonita teve pena de mim e andou a mostrar-me a escola no intervalo das aulas.
Deram-me testes para saberem para qual das classes é que a minha educação rústica me preparara. Eu sorri ao ler as perguntas. Há muito tempo que Miss Deale dera aquilo tudo. E depois lembrei-me do tom e vieram-me as lágrimas aos olhos. Fui colocada no nono ano.
De certo modo, orientei-me na escola e consegui passar um dia que foi excepcionalmente longo e cansativo. Devagar, devagarinho, fui para casa. Não estava tanto frio aqui como nas montanhas, e a paisagem não era tão bonita. Não havia água cristalina a borbulhar por cima das rochas, nem coelhos, nem esquilos, nem linces. Era apenas um dia frio de Inverno, com um céu cinzento e desolado e havia caras desconhecidas a dizerem-me que eu era uma estranha naquela cidade.
Cheguei a Eastwood Street, entrei no número 210, servi-me da chave que a Kitty me dera, tirei o meu novo casaco azul, pendurei-o cuidadosamente no roupeiro da entrada e depois corri para a cozinha para ver a série de cartões que estavam em cima da mesa. Até me parecia que ouvia a Kitty a dizer:
- Lê isto. Lista de instruções. Lê-as e aprende os teus deveres.
- Sim.
- Sim, o quê?
- Sim, mãe.
Abanei a cabeça para aclarar as ideias e depois sentei-me a ler os cartões na cozinha sem sol, que não parecia tão alegre sem as luzes acesas. Fora avisada de que devia acender as luzes o menos possível quando estava sozinha em casa, e para não ver televisão a menos que a Kitty ou o Cal estivessem a ver também.
A lista do que eu devia e não devia fazer enchia quatro cartões.
AFAZERES
Roupa branca com roupa branca. Roupa escura com roupa escura. A minha roupa interior vai para um saco de rede - usar um programa suave. Para a minha roupa lavável, usa água fria e sabão próprio. Lava as peúgas do Cal à parte. Lava os lençóis, as fronhas das almofadas e as toalhas à parte. Lava a tua roupa em último lugar, à parte.
Os cartões caíram-me da mão. Sentei-me, aparvalhada. A Kitty não queria uma filha, queria uma escrava! E eu que me mostrara tão pronta a fazer tudo para lhe agradar se ela me amasse e fosse como uma mãe para mim. Não era justo que o destino me roubasse sempre uma mãe quando eu julgava que a tinha.
Lágrimas amargas e ardentes escorreram-me pela face ao pensar quão fútil fora o meu sonho de conquistar o amor de Kitty. Como é que eu poderia viver aqui ou noutro lado qualquer sem alguém que me amasse? Afastei as lágrimas, tentei travá-las, mas elas vieram, como um rio indomável. Seria pedir de mais eu ter alguém que precisasse de mim, que me amasse o suficiente para se preocupar comigo? Se ao menos a Kitty pudesse ser uma verdadeira mãe, eu faria de bom grado tudo o que estava na lista, e mais... Mas ela fazia exigências, dava ordens, fazia-me sentir usada, sem consideração. Nunca pedia por favor... Até a Sarah fora mais atenciosa do que ela.
Sentei-me, sem fazer nada, sentindo-me mais atraiçoada pelo momento. O pai devia saber como a Kitty era e vendera-me a ela, sem coração, sem ternura, punindo-me para sempre por aquilo que eu não podia evitar nem desfazer.
A amargura secou-me as lágrimas. Ficaria ali até poder fugir, e a Kitty arrepender-se-ia do dia em que me levara para trabalhar mais em casa num dia do que a Sarah trabalhara num mês!
Havia dez vezes mais trabalho aqui do que na cabana, apesar de todo o equipamento de limpeza. Senti-me esquisita e fraca. Olhei para os cartões que estavam em cima da mesa, esquecendo-me de ler o último, e quando tentei encontrá-lo, mais tarde, não consegui.
Pediria ao Cal, que parecia gostar de mim, o que poderia a Kitty ter escrito naquele último cartão. Porque se eu não sabia o que não devia fazer, era mais que certo que o faria, e a Kitty viria a saber.
Por instantes, deixei-me ficar sentada na cozinha, com tudo limpo e reluzente à minha volta, enquanto o meu coração ansiava pela velha cabana desconjuntada, escura e suja, pelos odores familiares e por toda a beleza do mundo exterior. Aqui não havia gatos amigáveis a roçarem-se nas minhas pernas, ou cães grandes a abanarem as caudas furiosas para mostrarem como eram maus. Apenas animais de louça de cores artificiais que aparavam utensílios de cozinha, focinhos de gatos a sorrirem da parede e patos dirigindo-se em fila para um lago invisível. Atordoada, era assim que eu me sentia ao ver tantas cores a contrastarem com o branco.
Quando olhei para o relógio, dei um salto. Para onde fora o tempo? Comecei a andar à pressa... Como havia de acabar o trabalho até a Kitty voltar para casa? Lá estavam outra vez aquelas borboletas em pânico a destruírem a minha autoconfiança. Nunca seria capaz de agradar à Kitty, nem daí a um milhão de anos. Havia qualquer coisa de obscuro e de traiçoeiro na Kitty, qualquer coisa de escorregadio
e feio, escondido por trás de todos aqueles sorrisos rasgados, à espreita naqueles olhos cor de mar.
Pensamentos da minha vida passada assolaram-me como fantasmas... O Logan, o tom, o Keith, a "Nossa" Jane... E a Fanny... "Eles tratam-te desta maneira, tratam?"
Aspirei o chão, limpei o pó, percorri cuidadosamente todas as plantas e retirei-lhes o pó, a humidade. Voltei para a cozinha para tentar começar a fazer a refeição da noite, que a Kitty dizia que se devia chamar jantar, porque o Cal insistia em que a principal refeição do dia era o jantar e não a ceia.
O Cal chegou por volta das seis horas, com um ar tão fresco que me fez pensar se ele teria feito alguma coisa durante o dia. Fez-me um sorriso rasgado:
- Porque estás a olhar para mim dessa maneira?
Como é que eu podia dizer-lhe que era nele que eu confiava instintivamente, que sem ele eu não poderia ficar ali nem mais um minuto? Não podia dizer uma coisa dessas no nosso primeiro momento a sós.
- Não sei - respondi em voz baixa, tentando sorrir.
- Acho que esperava vê-lo... Bem, sujo.
- Eu tomo sempre duche antes de vir para casa - explicou ele, com um sorrisinho estranho. - É uma das regras da Kitty: não quer um marido sujo na casa dela. Tenho sempre uma muda de roupa para vestir depois de acabar o dia de trabalho. Além disso, sou o patrão, e tenho seis empregados, mas muitas vezes gosto de meter o nariz e de fazer coisas complicadas num aparelho velho.
Senti-me tímida na presença dele, mas apontei para o manancial de livros de cozinha.
- Não sei organizar uma refeição para si e para a Kitty.
- Eu ajudo-te - respondeu-me ele logo. - Em primeiro lugar, tens de afastar os amidos. A Kitty adora esparguete, mas fá-la ganhar peso, e se ela ganhar meio quilo dirá que a culpa foi tua.
Deitámo-nos os dois ao trabalho, a preparar uma caçarola que, segundo o Cal, a Kitty havia de gostar. Ele ajudou-me a cortar os legumes para a salada e começou a conversar.
- É bom ter-te aqui, Heaven. De outro modo, eu estaria a fazer isto sozinho, como dantes. A Kitty detesta cozinhar, embora seja bastante boa na cozinha. Ela acha que eu não ganho a vida como deve ser, porque lhe devo milhares de dólares e estou empenhado até ao pescoço e ela é que puxa os cordões à bolsa. Eu era uma criança quando casei com ela. Achava-a sensata, bonita e maravilhosa; ela
parecia ajudar-me tanto.
- Como é que a conheceu? - perguntei, vendo como ele arranjava a alface e cortava tudo muito fino e sob o mesmo ângulo.
Ensinou-me a temperar a salada, e foi como se os movimentos das mãos lhe tivessem desatado a língua, quase como se ele estivesse mais a falar sozinho do que comigo, enquanto trabalhava.
- Às vezes, enganamo-nos a nós próprios e confundimos o desejo e a necessidade com o amor. Lembra-te disto, Heaven. Eu estava sozinho numa grande cidade, e ia para a Florida nas férias da Primavera. Conheci a Kitty quase por acaso, num bar, à primeira vista, aqui em Atlanta. Achei que ela era a mulher mais bela que eu já vira.
O Cal soltou uma gargalhada amarga.
-Eu era jovem e ingénuo. Viera da Nova Inglaterra, onde morava, para passar aqui o Verão, e andava em Yale. Faltavam-me dois anos para acabar o curso. Sozinho em Atlanta, sentia-me perdido. A Kitty também se sentia perdida, e descobrimos que tínhamos muita coisa em comum. Pouco depois, casámo-nos. Ela meteu-me nos negócios. Eu sempre pensara em ser professor de História, imaginas? Em vez de casar com a Kitty. Nunca mais pus os pés na universidade, desde então. Também nunca mais fui a casa. Nem sequer escrevo aos meus pais. A Kitty não quer que eu entre em contacto com eles. Tem vergonha, medo que eles possam descobrir que ela não terminou o liceu. E eu devo-lhe pelo menos vinte cinco mil dólares.
- Como é que ela fez tanto dinheiro? - perguntei, quase sem pensar no que estava a fazer.
- A Kitty insinua-se junto dos homens como óleo de castor e deixa-os emocionalmente fracos e financeiramente esgotados. Ela disse-te que se casou pela primeira vez com treze anos? Bem, ela teve três outros maridos, e todos eles a deixaram muito bem... para se livrarem de um casamento que todos devem ter achado abominável ao fim de algum tempo. Depois, diga-se em abono dela que o seu salão de beleza é o melhor de Atlanta.
- Oh! - exclamei, de cabeça baixa.
A confissão dele não correspondia ao que eu esperava. No entanto, sentia-me tão bem por ter alguém que falava comigo como se eu fosse uma pessoa adulta. Não sei se devia ter perguntado o que perguntei.
- Não ama a Kitty?
- Sim, amo-a - admitiu ele, num tom rude. - Quando penso no motivo pelo qual ela é como é, como é que posso não a amar? No entanto, há uma coisa que quero dizer-te neste momento, em que tenho oportunidade para isso. Há muitas alturas em que a Kitty pode tornar-se muito violenta. Eu sei que ela te meteu em água quente na noite em que chegaste, mas eu não disse nada porque não ficaste incapacitada. Se eu dissesse alguma coisa nessa altura, ela tratar-te-ia pior assim que voltasses a ficar a sós com ela. Tem cuidado e faze tudo como ela quer. Elogia-a, dize-lhe que parece mais nova do que eu... E obedece, obedece e sê gentil.
- Mas eu não percebo! - exclamei. - Porque é que ela me quer, excepto para eu ser escrava dela?
Ele levantou a cabeça e mostrou-se surpreendido.
- Ora, Heaven, ainda não adivinhaste? Tu representas para ela o filho que ela perdeu quando provocou o aborto do bebé do teu pai e se arruinou ao ponto de não poder ter mais filhos. Ela ama-te porque tu fazes parte dele, e odeia-te pela mesma razão. Através de ti, ela espera chegar um dia até ele.
- Ela quer magoá-lo servindo-se de mim? - perguntei.
- Mais ou menos isso. Eu sorri com amargura.
- Pobre Kitty. De todos os cinco filhos dele, eu sou a única que ele despreza. Ela devia ter levado a Fanny ou o tom. O pai adora-os.
Ele voltou-se e abraçou-me com ternura, como eu sempre desejara que o pai me abraçasse. Engoli um soluço e agarrei-me àquele homem que era quase um estranho; a minha necessidade de amor era tão grande que me agarrei a ele com sofreguidão e depois senti-me tão envergonhada e tímida que tive vontade de chorar. Ele pigarreou e libertou-me.
- Heaven, acima de tudo, nunca permitas que a Kitty saiba o que me disseste. Enquanto tiveres valor para o teu pai, terás valor para a Kitty. Percebes?
Ele preocupava-se comigo. Eu vi-o nos seus olhos e, confiante em que ele guardaria sempre as confidências para si próprio, ganhei coragem e falei-lhe da mala que estava na cave e do que tinha lá dentro. Ele escutou da mesma maneira que Miss Deale teria escutado, com compaixão e compreensão.
- Um dia hei-de voltar lá, Cal, a Boston, para conhecer a família da minha mãe. E levarei a boneca comigo, para eles saberem quem eu sou. Mas não posso lá ir enquanto não descobrir...
- Eu sei - respondeu ele com um sorrisinho e os olhos a brilhar. - Tens de levar contigo o tom, o Keith e a "Nossa" Jane. Porque é que tratas a tua irmãzinha por "Nossa" Jane?
Ele riu-se outra vez quando eu lhe contei.
- A tua irmã Fanny parece ser uma boa prenda. Achas que virei a conhecer a Fanny?
- Espero bem que sim - respondi, com um ar preocupado. - Ela está a viver com o reverendo Wise e com a mulher, e eles tratam-na por Louisa, que é o seu segundo nome.
- Ah... O bom reverendo - disse o Cal, com um ar solene e demorado, mostrando-se pensativo. - O homem mais rico e mais bem sucedido de Winnerrow.
- Não gosta dele?
- Sempre desconfiei de qualquer homem que seja assim tão bem sucedido... E tão religioso.
Era agradável estar na cozinha com o Cal, a trabalhar ao lado dele e a aprender só de ver o que ele fazia. Oito dias antes, nunca teria acreditado que poderia sentir-me tão bem ao pé de um homem que eu mal conhecia. Eu era tímida, mas estava desejosa de tê-lo como amigo, como substituto do meu pai, como confidente. Sempre que ele me sorria, eu sentia que ele seria tudo isso.
A nossa caçarola estava no forno, o programador chegou ao fim do tempo e os meus biscoitos estavam prontos, e a Kitty não veio para casa nem telefonou a explicar porque se atrasara. Reparei que o Cal olhou várias vezes para o relógio, de sobrolho franzido e com uma ruga de preocupação entre os olhos. Porque é que ele não lhe telefonava para saber o que se passara?
A Kitty não chegou senão às onze horas, e eu e o Cal estivemos na sala a ver televisão. O que restava da caçarola há muito que secara, e portanto não lhe soube tão bem a ela como a nós. Mesmo assim, ela comeu com gosto, como se o facto de a comida estar morna e seca não tivesse importância.
- Foste tu que fizeste isto tudo sozinha? - perguntou ela várias vezes.
- Fui, mãe.
- O Cal não te ajudou em nada?
- Ajudou, mãe. Disse-me para não fazer pratos à base de amido e ajudou-me a fazer a salada.
- Lavaste as mãos com lisol primeiro?
- Sim, mãe.
- Está bem. - A Kitty examinou o rosto inexpressivo do Cal. - Bem, lava a louça, rapariga; depois vamos todos para a cama a seguir ao banho.
- A partir de agora ela dorme cá em baixo - disse o Cal, com uma voz fria como o aço, quando se voltou para ela.
- Para a semana, vamos às compras e vamos comprar-lhe móveis novos e substituir aquela tralha toda que temos no nosso segundo quarto. Deixaremos o torno e o que tens fechado nos armários, mas vamos lá pôr uma cama, uma cadeira, uma secretária e uma cómoda.
Assustei-me com a maneira como ela olhou para ele e para mim.
Mesmo assim, ela concordou. Eu ia ter um quarto meu, um quarto a sério... Como a Fanny tinha em casa do reverendo Wise.
Seguiram-se dias de escola e de trabalho árduo. Eu levantava-me cedo e deitava-me tarde porque tinha de arrumar a cozinha depois do jantar da Kitty, mesmo que ela viesse para casa à meia-noite. Descobri que o Cal gostava de me ter a seu lado quando estava a ver televisão. Todas as noites, ele e eu fazíamos o jantar, e comíamos juntos se a Kitty não estava. Começava a adaptar-me ao horário cheio da escola e a fazer alguns amigos que não achavam estranha a minha maneira de falar, embora nunca dissessem o que pensavam da minha roupa grande de mais e barata e dos meus sapatos desajeitados.
Finalmente, chegou o sábado, em que eu poderia dormir até tarde, e a Kitty autorizou que eu e o Cal fôssemos comprar os móveis que me eram destinados.
E por causa dessa ida às compras que parecia alegre e prometedora é que eu me levantei cedo e andei a correr para conseguir acabar o trabalho em casa. O Cal tinha metade do dia livre e estaria em casa por volta do meio-dia, para almoçar. O que é que as pessoas da cidade almoçavam quando comiam em casa? Até então, a única vez que eu almoçara fora na escola. Pobre Miss Deale que tentara tantas vezes partilhar o conteúdo da sua lancheira com uma classe inteira de crianças subalimentadas! Eu nunca comera uma sanduíche antes de ela me obrigar. As de fiambre, alface e tomate eram as minhas preferidas, embora o tom e o Keith gostassem muito das de manteiga de amendoim e geleia e, acima de tudo, das de atum.
Até me parecia que ouvia o tom a dizer: "É por isso que ela traz seis, percebes? Como é que uma senhora tão pequena como Miss Deale comia seis sanduíches? Portanto, nós estamos a ajudá-la quando comemos, não é verdade?"
Suspirei, ao pensar com tristeza que partira sem dizer obrigada a Miss Deale, e suspirei outra vez ao pensar no Logan, que ainda não respondera à minha primeira carta.
Pensar nos tempos passados atrasou-me, e tive de ir a correr lá abaixo verificar de novo as salas de estar e de jantar antes de acabar o trabalho cá em cima. Mantinha a esperança de encontrar prateleiras de livros, ou livros arrumados nos armários, mas não encontrei nem um. Nem sequer uma Bíblia. Havia muitas revistas, histórias confessionais que a Kitty escondia em gavetas, e belas revistas de decoração que ela punha em cima da mesa pequena, muito bem empilhadas. Mas não havia um único livro.
Na pequena divisão que a Kitty convertera numa pequena fábrica de louça caseira, onde seria o meu quarto, as paredes estavam forradas de prateleiras e ao longo delas havia animais minúsculos e miniaturas humanas, todas tão pequeninas que cabiam dentro do pequeno forno. Também havia armários que ocupavam uma parede inteira, todos fechados à chave. Observei aqueles armários e perguntei a mim própria que segredos guardariam.
Desci as escadas outra vez, arrumei os pratos sujos com todo o cuidado na máquina de lavar louça, enchi os compartimentos de detergente e depois fiquei ali à espera que aquilo rebentasse ou que projectasse os pratos como se fossem balas, Contudo, aquela maldita coisa ainda trabalhava ao fim de quase uma semana de ser manuseada por uma pacóvia dos montes. Curiosamente, fiquei hilariante, como se ao carregar nos botões certos eu tivesse alcançado o controlo sobre a vida na cidade.
Esfregar o chão não era uma tarefa nova para mim, só que este tinha de ser encerado, o que exigia que eu lesse melhor as instruções que vinham no frasco. Reguei as muitas plantas verdes e descobri que algumas das plantas da Kitty eram de seda, não eram naturais. "Meu Deus que estais no céu, não permitais que ela veja que eu reguei algumas sem saber que não eram naturais."
O meio-dia chegou antes de eu acabar de fazer uma quarta parte do que estava enumerado nos cartões. Levei muito tempo a descobrir como funcionavam todas as máquinas, e a enrolar os cabos como estavam, e a pôr os acessórios, e a tirá-los, e a arrumá-los outra vez. Ora bolas, em minha casa tudo aquilo se faria com a mesma vassoura velha.
Fiquei presa no cabo do aspirador quando a porta da garagem se fechou com estrondo e o Cal apareceu no corredor das traseiras, a olhar para mim de uma forma estranha e intensa, como se tentasse perceber o que eu estava a sentir.
- Ouve lá, menina - disse ele depois do exame, com um olhar triste. - Não é preciso trabalhares como uma escrava. Ela não está cá para ver. Anda mais devagar.
- Mas eu ainda não limpei as janelas nem lavei as bugigangas, e não...
- Senta-te. Descansa. Deixa-me ir arranjar o teu almoço, e depois vamos comprar os móveis de que precisas... E que tal irmos ao cinema? Agora dize-me o que queres para o almoço.
- Qualquer coisa me serve - respondi com um sentimento de culpa. - Mas eu devia acabar o trabalho da casa...
Ele sorriu com amargura, sempre a olhar para mim daquela forma esquisita.
- Ela não chegará a casa antes das dez ou onze horas da noite, e há um filme especial que eu acho que precisas de ver. Tens de divertir-te um bocadinho, para variar. Suponho que não te tens divertido muito. A vida nas montanhas não é desagradável, Heaven. Há montanhas que proporcionam beleza, uma vida agradável, paz e até música maravilhosa...
"Ora, eu bem sabia que sim."
Não fora assim tão mau. Tínhamo-nos divertido, a correr e a rir, a nadar no rio, a jogar jogos inventados por nós, a corrermos atrás uns dos outros. Os momentos maus chegavam quando o pai vinha a casa. Ou quando a fome apertava.
Abanei a cabeça outra vez para afastar as recordações que poderiam entristecer-me. Não podia acreditar que ele quisesse levar-me ao cinema, não quando...
- Mas vocês têm dez televisores, dois e três em cada divisão.
Voltou a sorrir. Era muito mais bonito quando sorria, embora os seus sorrisos nunca durassem o suficiente para lhe darem um ar verdadeiramente feliz.
- Nem todos funcionam. São utilizados como pedestais para as obras de arte da Kitty. - O Cal esboçou um sorriso irónico ao dizer isto, como se não admirasse os esforços artísticos da mulher tanto como devia. - De qualquer modo, um televisor não é como um cinema, onde há um écran enorme, e o som é melhor, e há pessoas a sério para compartilhar o nosso prazer.
Por um momento, os meus olhos colaram-se aos dele, e depois baixaram. Porque estava ele a desafiar-me com o olhar?
- Cal, eu nunca fui ao cinema, nem sequer uma vez. Ele aproximou-se de mim e acariciou-me a face, com um olhar meigo e caloroso.
- Então está na altura de ires! Portanto, vai a correr despachar-te, que eu vou arranjar duas sanduíches. Veste aquele lindo vestido azul que eu te comprei, aquele que te fica à medida.
Foi o que eu fiz.
Vi-me a um espelho que até aí só conhecia a beleza da Kitty, e achei que estava muito bonita, agora que a minha cara sarara e que já não tinha cicatrizes. E o meu cabelo brilhava como nunca. O Cal era atencioso e bom para mim. Gostava de mim, e isso provava que havia homens capazes de gostar de mim, mesmo que o pai não gostasse. O Cal ia ajudar-me a encontrar o tom, o Keith e a "Nossa" Jane. Esperança... Eu tinha esperança... Uma esperança muito ambiciosa.
Ao fim e ao cabo, tudo havia de correr pelo melhor. Eu ia ter o meu próprio quarto, com móveis novos, cobertores novos e almofadas a sério... Oh, que dia glorioso! Quem havia de dizer que o Cal podia revelar-se um verdadeiro pai! Até me parecia ver o tom a sorrir enquanto eu descia as escadas a correr, para ir ver o primeiro filme da minha vida.
O meu próprio pai recusara-se a gostar de mim, mas isso não custava tanto, agora que eu tinha um pai novo e melhor.
QUANDO HÁ MÚSICA
As sanduíches de fiambre, alface e tomate feitas pelo Cal estavam deliciosas. E quando ele me estendeu o novo casaco azul, eu disse:
- Tenho de manter a cabeça baixa para as pessoas não perceberem que eu não sou sua filha.
Ele abanou a cabeça tristemente e não se riu.
- Não. Levanta bem a cabeça, com orgulho. Não tens nada de que te envergonhar, e eu sinto-me orgulhoso de te acompanhar ao teu primeiro filme. - As mãos dele pousaram ao de leve nos meus ombros. - Espero bem que a Kitty nunca faça nada para te estragar a cara.
Houve tanta coisa que ele não disse quando ficámos ali de pé, a pensar no que a Kitty era e no que poderia fazer. Ele suspirou fundo, pegou-me no braço e encaminhou-me para a garagem.
- Heaven, se alguma vez a Kitty for desnecessariamente dura para contigo, quero que me digas. Gosto muito dela, mas não quero que ela te faça mal, física ou emocionalmente. Sou obrigado a admitir que ela é capaz de fazer as duas coisas. Nunca tenhas receio de vir ter comigo para pedir ajuda quando precisares.
Ele fez-me sentir bem, fez-me sentir que eu tinha finalmente o pai que devia ter. Dei meia volta e sorri; ele corou e apressou-se a desviar o olhar. Porque é que o meu sorriso o deixava sempre tão embaraçado?
Até chegarmos à loja dos móveis, fui sentada ao lado dele, toda orgulhosa, a prever o prazer que iria ter num só dia, com os novos móveis e um filme. E, de repente, o Cal arredou a tristeza e ficou bem-disposto e pegou-me no cotovelo quando entrámos no estabelecimento tão cheio de mobílias de quarto diferentes que eu nem saberia escolher. O vendedor olhava para mim e para o Cal, perguntando a si próprio, segundo parecia, qual seria a nossa relação.
- É minha filha - disse o Cal com orgulho. - Ela escolhe o que quiser.
O problema é que eu gostava de tudo, e no fim foi o Cal que escolheu o que considerou mais apropriado para mim.
- Esta cama, aquela cómoda e aquela secretária - ordenou ele. - Estes móveis não são demasiado acriançados e acompanhar-te-ão ao longo dos teus vinte anos e por aí adiante.
Fiquei ligeiramente em pânico... Eu não estaria ao pé dele e da Kitty quando tivesse vinte anos. Estaria com os meus irmãos e as minhas irmãs, em Boston. Tentei dizer-lhe isso em voz baixa quando o vendedor se afastou.
- Não - disse o Cal. - Temos de fazer planos para o futuro como se soubéssemos como ele vai ser; de outro modo, destruímos o presente e tornamo-lo desprovido de significado.
Não percebi o que ele queria dizer com aquilo, a não ser que me agradava sentir que ele me queria para sempre na sua vida.
Só o facto de pensar como o meu quarto ia ficar bonito deve ter-me feito nascer estrelas nos olhos.
- Estás tão bonita! Como se alguém te tivesse acabado de ligar a uma fonte de felicidade.
- Estou a pensar na Fanny, em casa do reverendo Wise. Agora vou ter um quarto tão bonito como o dela deve ser.
Só por eu ter dito aquilo, ele comprou-me uma mesa-de-cabeceira e um candeeiro com uma grande base azul.
- Uma mesa com duas gavetas que se fecham à chave, no caso de teres segredos...
Era curioso como esta ida às compras nos aproximava, como se o facto de criarmos um quarto bonito em conjunto estabelecesse um vínculo especial entre nós.
- Que filme é que vamos ver? - perguntei, quando voltámos para o carro.
Ele voltou a olhar para mim com aquela expressão estranha nos olhos castanho-dourados, como se estivesse a troçar de si próprio.
- Se eu estivesse no teu lugar, não me importaria com isso.
- Eu, não, mas para si deve ser importante.
- Vais ver.
E não disse mais nada.
Era divertido ir para o cinema de automóvel, e ver toda aquela gente na rua. Muito melhor do que fora com a Kitty, que estragava tudo o que era divertimento com as tensões que criava. Eu nunca entrara num cinema. Tremi de entusiasmo ao ver tanta gente no mesmo sítio, todos a gastar dinheiro como se tivessem toneladas dele. E Cal comprou pipocas, colas, dois chocolates e só depois é que nos sentámos lado a lado na penumbra. Nunca pensei que estivesse assim tão escuro num cinema.
Arregalei os olhos quando o filme a cores começou com a mulher a cantar, na montanha. Música no Coração! Este era um dos filmes que o Logan queria que eu visse. Não me senti infeliz por isso, nem quando o Cal partilhou comigo a única caixa grande de pipocas salgadas e a saberem a manteiga. Estava calor e eu não conseguia comer muito. De vez em quando, metíamos a mão na caixa ao mesmo tempo. Estar ali sentada, a comer e a beber e a deliciar-me com a beleza do filme dava-me tanto prazer que era como se eu fosse uma personagem de um livro de gravuras com som, movimento, dança e canto. Oh, aquele devia ser o dia mais excitante da minha vida!
Estava encantada, com o coração a transbordar de felicidade, uma espécie de encantamento que me envolvia de tal maneira que me dava a sensação de pertencer àquele filme. As crianças eram o tom, a Fanny, o Keith e a "Nossa" Jane... E eu. Assim é que devia ter sido, e eu não me importava que o pai tocasse um apito e contratasse uma freira para tomar conta de nós. Oh, se os meus irmãos e as minhas irmãs estivessem ali connosco!
Depois do filme, o Cal levou-me a um restaurante elegante chamado Midnight Sun. Um criado puxou-me a cadeira e esperou que eu me sentasse, e o Cal esteve sempre a sorrir. Eu não sabia o que fazer quando o criado me estendeu a ementa, excepto ficar a olhar para ele com um ar desamparado. De repente, senti uma necessidade imperiosa do tom, da "Nossa" Jane, do Keith e do avô, tão grande que fiquei à beira das lágrimas... Porém, ele não reparou. O Cal viu qualquer coisa de belo estampado na minha cara, como se a minha juventude e a minha inexperiência o fizessem sentir dez vezes mais homem do que a presença da Kitty.
- Se confiares em mim, eu escolho pelos dois. Mas primeiro, dize-me do que gostas mais. Vitela, vaca, marisco, cordeiro, galinha, pato, o quê?
Voltaram as imagens de Miss Deale, ela com o seu lindo fato carmesim, a sorrir, muito orgulhosa na nossa companhia... Quando mais ninguém estava interessado em saber se nós existíamos. Lembrei-me dos seus presentes... Teriam chegado?
Estariam lá no alpendre da cabana, onde não havia ninguém para usar os vestidos? Nem para comer os alimentos?
- Heaven, o que queres de carne?
Oh, meu Deus... Como é que eu havia de saber? Franzi o sobrolho, concentrada na complicada ementa. Eu comera rosbife quando Miss Deale nos levara a um restaurante não tão requintado como este.
- Experimenta qualquer coisa que sempre tenhas desejado comer que nunca tenhas comido - sugeriu o Cal prontamente.
- Bem - cantarolei eu -, já comi peixe do rio que havia perto da cabana, já comi carne de porco, já comi muitas galinhas, e já comi rosbife uma vez, e era muito bom, mas acho que vou comer uma coisa nova... Escolha por mim.
Ele riu-se e encomendou salada e cordon bleu de vitela para dois.
- Em França, as crianças bebem vinho, mas vamos esperar uns anos até o provares.
Ele encorajou-me a escolher escargots, e só depois de eu ter acabado de comer os meus seis é que ele explicou que se tratava de caracóis com manteiga quente de alho, e o bocadinho de pão francês com que eu fazia sopinhas no molho delicioso hesitou na minha mão que, de repente, começou a tremer.
- Caracóis? - perguntei, sentindo-me agoniada, e convencida de que ele estava a brincar comigo. - Ninguém, nem mesmo a gente mais estúpida das montanhas, come coisas nojentas como caracóis.
- Heaven - disse ele com um sorriso afectuoso -, vai ser muito engraçado ensinar-te coisas sobre o mundo. Não contes nada disto à minha mulher. Ela é mesquinha em relação aos restaurantes, acha que eles são caros de mais. Sabes que desde que casei com ela, só uma vez é que não comemos em restaurantes de refeições rápidas? A Kitty não aprecia a boa cozinha e não percebe nada disso. Julga que sim. Se leva meia hora a preparar uma refeição, convence-se de que isso é boa cozinha. Não reparaste a ligeireza com que ela prepara uma refeição? É porque se recusa a fazer coisas complicadas. Cozinha requentada, é o que eu chamo ao que ela faz.
- Mas o Cal disse que a Kitty era boa cozinheira!
- Eu sei, e é, se é que gostas da ementa do pequeno-almoço... É o que ela faz melhor além de cozinha regional, que eu não aprecio.
Precisamente naquele dia, comecei a apaixonar-me pela vida e pelos costumes da cidade, que eram muito, muito diferentes dos costumes da montanha, ou mesmo da vida no vale.
Mal tínhamos entrado em casa quando a Kitty chegou da sua aula nocturna de cerâmica. Ao ver-nos ficou irritada.
- O que fizeram vocês durante todo o dia?
- Fomos comprar a mobília nova - respondeu o Cal com naturalidade.
Ela franziu o sobrolho.
- A que estabelecimento?
Ele disse-lhe qual era e seguiu-se a reprimenda:
- Quanto custou?
Quando ele lhe disse a quantia, ela levou as mãos com as longas unhas pintadas à testa, mostrando-se assustada.
- Cal, és um parvo... Só lhe devias comprar coisas baratas! Ela não sabe distinguir o bom do mau! Vais mandar isso tudo para trás, se eu não estiver em casa. Se eu estiver, serei eu a mandar tudo para trás.
Fiquei transida.
- Tu não vais mandar isso para trás, Kitty, mesmo que estejas em casa - disse ele, voltando-se para as escadas. - E fica a saber que encomendei o melhor colchão, as melhores almofadas e a melhor roupa de cama, e até uma linda colcha com um folho a dar com as cortinas.
A Kitty gritou:
TU ÉS UM PARVO CHAPADO!
- Está bem, eu sou um parvo chapado que vai pagar tudo com o seu dinheiro, e não com o teu. Boa noite, Heaven. Anda, Kitty, pareces cansada... Afinal, foi tua a ideia de irmos a Winnerrow buscar uma filha. Julgavas que ela dormia no chão?
Eu mal me pude conter quando a mobília chegou dois dias depois. O Cal estava lá para orientar as coisas. Exprimiu o desejo de mandar forrar as paredes de papel.
- Odeio o branco, mas ela nunca me pergunta que cor é que eu prefiro.
- Está bem assim, Cal. Eu adoro a mobília.
Juntos, quando os homens que vieram entregar os móveis se foram embora, fizemos a cama com os belos lençóis de flores, depois estendemos os cobertores e cobrimos tudo com a linda cobertura acolchoada.
- Gostas de azul? - perguntou ele. - Estou tão farto do cor-de-rosa forte.
- Adoro azul.
- Azul de centáurea, como os teus olhos.
O Cal ficou no meio do meu pequeno quarto, agora mais bonito do que eu teria imaginado, e pareceu-me demasiado grande e masculino para todas as coisas delicadas que escolhera. Eu andava às voltas e reparava em adereços que não sabia que ele encomendara. Um conjunto de patos de latão para amparar os livros que eu guardara no armário das vassouras juntamente com a minha roupa. Um conjunto de secretária constituído por um mata-borrão, um suporte para os lápis e canetas e um candeeiro pequeno, e vários quadros emoldurados para pendurar na parede. Vieram-me as lágrimas quando vi tudo o que ele comprara.
- Obrigada - disse eu entre soluços.
E não consegui dizer mais nada antes de perder a voz e verter todas as lágrimas que retivera ao longo dos anos e que foram cair em cima daquela cama tão bonita.
O Cal sentou-se desajeitadamente na beira da cama e esperou que eu acabasse. Pigarreou e disse:
- Tenho de voltar para o trabalho, Heaven, mas, antes de sair, tenho outra surpresa. Deixo-a aqui em cima da tua secretária, e podes desfrutá-la quando eu sair.
O som dos pés dele a afastar-se fez-me voltar, sentar-me e dizer mais uma vez:
- Obrigada por tudo.
Ouvi o carro arrancar, sentada na cama... E só então é que olhei para a secretária.
Havia uma carta em cima do tampo azul-escuro do mata-borrão... Uma única carta.
Nem me recordo como lá cheguei e quando me sentei, mas sei que o fiz e fiquei a olhar, durante muito tempo, para o nome escrito no envelope. Miss Heaven Leigh Casteel. No canto superior esquerdo liam-se o nome e a morada do Logan. Logan!
Não se esquecera de mim! Preocupava-se comigo e escrevera! Pela primeira vez na minha vida, servi-me de uma faca de papel. Que linda caligrafia que o Logan tinha! Não era tortuosa como a do tom, nem tão perfeita como a letra miúda do pai.
Querida Heaven,
Não podes imaginar como tenho estado preocupado contigo. Graças a Deus que escreveste, porque assim posso dormir descansado sabendo que estás bem.
Tenho tantas saudades tuas que até dói. Quando o céu está azul e luminoso, quase que vejo os teus olhos, mas isso só me faz sentir ainda mais a tua falta.
Para ser franco, a minha mãe tentou esconder de mim a tua carta para eu não a ler, mas um dia fui encontrá-la na secretária dela quando andava à procura de selos, e pela primeira vez na minha vida fiquei verdadeiramente
desiludido com a minha própria mãe. Discutimos e obriguei-a a admitir que escondera a tua carta de mim. Agora, ela reconhece que fez mal e pediu-me, a mim e a ti, que lhe perdoássemos.
Vejo a Fanny muitas vezes, e ela está boa, com um aspecto formidável. Dá um espectáculo terrível, e para ser franco outra vez, creio que o reverendo Wise tem mais que fazer do que imaginava.
A Fanny afirma que não foi vendida. Diz que o teu pai deu os filhos todos para evitar que eles morressem à fome. Detesto acreditar nisso, mas tu nunca me mentiste, e é em ti que acredito. Não tenho visto o teu pai... Mas tenho visto o tom. Ele veio à loja e perguntou se eu tinha a tua morada para ele te poder escrever. O teu avô está a viver num lar em Winnerrow.
Não faço ideia como hei-de ajudar-te a encontrar o Keith e a "Nossa" Jane. Continua a escrever, por favor. Ainda não conheci ninguém de quem goste tanto como da Heaven Leigh Casteel.
E até voltar a ver-te, não olharei para mais ninguém.
com o meu amor de sempre, Logan
Desatei a chorar outra vez, mas de felicidade.
Pouco depois de chegar a carta do Logan, fiz quinze anos. Preferi não chamar as atenções sobre mim e não disse uma palavra à Kitty nem ao Cal, mas o Cal soube e deu-me um presente incrível: uma máquina de escrever, novinha em folha!
- Ajudar-te-á a fazer os trabalhos da escola. - O sorriso dele era tão aberto, tão prazenteiro ao ver a minha reacção. - Aprende dactilografia na escola. Nunca é de mais saber escrever à máquina.
Aquela máquina de escrever, por muito que eu gostasse dela, não foi a coisa mais excitante do meu décimo quinto aniversário. Oh, não! Foi o cartão enorme que veio no correio, com umas flores muito bonitas e uns versos meigos, além de um lenço de seda e de uma carta do Logan.
Mesmo assim, estava ansiosa por ter notícias do tom. Ele agora tinha a minha morada; porque não escrevia?
Numa escola só de raparigas, consegui fazer duas boas amigas que me convidaram repetidas vezes para ir a sua casa.
Nenhuma percebia por que razão é que eu era sempre obrigada a recusar. Depois, para meu desconsolo, desencorajadas ou porque se sentiram rejeitadas, a pouco
e pouco começaram a afastar-se. Como é que eu podia dizer a alguém que a Kitty me impedia de ter amigos que me roubassem tempo para os trabalhos de casa que eu tinha de fazer todos os dias? Também tive de dizer que não aos rapazes que me convidavam para sair, embora não inteiramente pelas mesmas razões. Era com o Logan que eu queria sair, não com eles. Estava a guardar-me para o Logan e nem uma só vez duvidei de que ele estivesse a fazer o mesmo.
A casa que eu me esforçava por manter limpa e arrumada nunca o estava quando a Kitty aparecia e devastava dez horas de trabalho com os seus hábitos descuidados. As plantas que eu regava, a que limpava o pó e que adubava morreram de excesso de cuidados, e a Kitty gritou comigo e chamou-me estúpida.
- Qualquer idiota sabe tratar de uma planta... Qualquer idiota!
Ela foi dar com as plantas de seda manchadas de água e pregou-me uma bofetada por ser uma pacóvia das montanhas, que não tinha miolos.
- Andas a pensar em rapazes, vê-se nos teus olhos! - gritou ela, numa tarde em que apareceu em casa inesperadamente e me apanhou sem fazer nada. - Não te sentes na sala de estar quando nós não estamos em casa! Não tens nada que ver televisão quando estás sozinha! Trabalha, estás a ouvir?
Todos os dias me levantava cedo para preparar o pequeno-almoço da Kitty e do Cal. Era raro ela vir jantar antes das sete ou oito horas da noite, e nessa altura eu e o Cal já tínhamos comido. Por qualquer motivo, isso não a aborrecia. Quase com alívio, deixava-se cair em cima de uma cadeira da cozinha e ficava a olhar para o prato com um ar sorumbático até eu a servir e ela devorar aquilo em segundos, sem consideração pelo trabalho que me dera aprender a fazer os pratos favoritos dela.
Antes de eu ir para a cama, tinha de deixar a cozinha em ordem, verificar os quartos para ver se estava tudo no seu lugar e se não havia revistas nem jornais amontoados em cima das mesas ou no chão. De manhã, fazia a minha cama a correr, antes de a Kitty vir verificá-la, e depois descia para começar a preparar o pequeno-almoço. Antes de ir para a escola, lavava a roupa enquanto fazia as camas, punha a louça suja na máquina, limpava todas as dedadas, manchas e salpicos, e só quando fechava a porta da rua à chave é que me sentia livre.
Agora andava bem alimentada e tinha roupas quentes e adequadas, e no entanto havia momentos em que tinha saudades de casa e esquecia a fome, o frio terrível e as privações que me haviam marcado para sempre. Tinha muitas saudades do tom. Doía-me não saber nada da "Nossa" Jane e do Keith, do avô e até da Fanny. As cartas do Logan ajudavam-me a não sentir tanto a falta dele.
Agora que estava a chover, ia todos os dias de autocarro para a escola, e a Kitty não quis comprar-me uma gabardina nem umas botas.
- Qualquer dia vem o Verão - disse ela, como se a Primavera não existisse, e isso reavivou-me as saudades de casa.
A Primavera era uma estação de milagres nas montanhas, quando a vida melhorava, e as flores silvestres desabrochavam para revestir os montes de uma beleza que Candlewick nunca haveria de conhecer. Na escola, eu estudava com mais determinação do que outros alunos, numa roda-viva para ir para casa e atirar-me ao trabalho.
A profusão de televisores era uma tentação constante para mim. Eu estava sozinha numa casa vazia, e apesar dos avisos da Kitty para nunca ligar a televisão quando estava só, tornei-me uma adepta das telenovelas. De noite, sonhava com as personagens. Elas tinham ainda mais problemas do que os Casteel, embora não fossem financeiros, ao passo que todos os nossos se relacionavam com dinheiro... Ou pelo menos era o que parecia.
Todos os dias eu ia ver a caixa do correio, à espera das cartas do Logan que chegavam com regularidade, e sempre a antever a carta há muito esperada do tom, que não aparecia. Um dia, já frustrada por não saber nada do tom, escrevi a Miss Deale, expliquei-lhe que fora vendida e supliquei-lhe que me ajudasse a encontrar os meus irmãos e a minha irmã.
As semanas passaram-se e não veio nenhuma carta do tom. A carta que eu escrevera a Miss Deale veio devolvida, com um carimbo onde se lia "Endereço Desconhecido".
Depois, o Logan deixou de escrever! O meu primeiro pensamento foi que ele tinha outra namorada. Desolada, deixei de lhe escrever. Cada dia que passava sem eu saber do Logan me fazia pensar que ninguém gostara de mim o tempo suficiente para me fazer bem, excepto o Cal. O Cal era o meu salvador, o único amigo que eu tinha no mundo, e eu cada vez dependia mais dele. A casa silenciosa ganhava vida quando ele entrava; ligava-se a televisão e os trabalhos da casa eram esquecidos. Eu começava a sentir a falta dele por volta das seis horas quando o meu jantar estava quase pronto. Esforçava-me por alindar a mesa, por planear ementas que eu sabia que ele apreciava. Passava horas e horas a preparar os seus pratos favoritos, sem me importar se a Kitty engordava com os pratos de massa que ele preferia, e de que eu gostava, também. Quando o relógio da chaminé de sala batia as seis horas, eu ficava de ouvido à espreita, atenta ao som do carro dele no quintal. Corria a tirar-lhe o casaco quando ele chegava à porta das traseiras e adorava o cerimonial do seu cumprimento que era sempre o mesmo, todos os dias:
- Olá, Heaven. O que há de novo?
Os seus sorrisos iluminavam a minha vida; as suas piadas faziam-me rir. Comecei a dar-lhe muita importância e a esquecer todas as suas fraquezas no que dizia respeito à Kitty. Acima de tudo, ele escutava, escutava mesmo, quando eu falava com ele. Eu encarava-o como o tipo de pai que eu sempre desejara, de que sempre precisara, aquele que não só me amava como me apreciava. Ele compreendia-me, nunca me criticava, e estava sempre do meu lado, acontecesse o que acontecesse. Embora com a Kitty isso nunca ajudasse muito.
- Eu farto-me de escrever e a Fanny não responde, Cal. Escrevi-lhe cinco cartas desde que cá estou, e nem um postal de resposta. Trataria assim uma irmã sua?
- Não - respondeu ele com um sorriso triste. - Mas a minha família não me escreve e eu também não lhe escrevo. Não o faço desde que me casei com a Kitty, que não quer partilhar os meus afectos com ninguém.
- E o tom não escreve, apesar de o Logan lhe ter dado esta morada.
- Talvez o Buck Henry não lhe dê tempo para escrever cartas ou o impeça de meter no correio as que ele escreve.
- Mas com certeza que ele havia de arranjar uma maneira...
- Tem calma. Qualquer dia encontrarás uma carta do tom na caixa do correio, tenho a certeza.
Eu adorava-o por ele dizer aquilo; adorava-o por me fazer sentir bonita, por dizer que eu era boa cozinheira, por apreciar tudo o que eu fazia para manter a casa
limpa. A Kitty reparava no que eu fazia, excepto se eu fizesse alguma asneira.
Passaram-se algumas semanas, durante as quais o Cal e eu nos aproximávamos cada vez mais, como se fôssemos pai e filha. (Muitas vezes, a Kitty não chegava a casa senão às dez ou às onze horas da noite.) Eu sabia que o Cal era a melhor coisa da minha vida em Candlewick e era para ele que eu ia fazer uma coisa especial. Ele tinha um fraco por todos os tipos de pratos à base de ovos, e pela primeira vez na minha vida eu ia fazer-lhe o que tantas vezes ele pedira à Kitty para fazer: soufflé de queijo. Uma senhora divertida que aparecia na televisão andava a ensinar-me tudo acerca da boa cozinha.
O dia indicado era o sábado, antes de irmos ao cinema a Atlanta.
Esperava falhar redondamente, à semelhança da maior parte das minhas tentativas, e quando tirei o soufflé do forno, fiquei admirada ao ver que saíra bem. Louro, alto e fofo! Saíra-me bem! Se pudesse dar uma palmadinha nas minhas costas, até o teria feito. Corri para o armário da louça porque queria servi-lo nos pratos melhores, como ele merecia. Depois fui a meio da escada, inclinei-me e chamei, com a minha voz mais afectada:
- O almoço está na mesa, Mister Dennison.
- vou já para cima, Miss Casteel - respondeu ele. Sentámo-nos na sala de jantar, onde ele observou com admiração o meu alto e maravilhoso soufflé.
- Está lindo, Heaven - disse ele, provando-o. - E delicioso - acrescentou, fechando os olhos para saboreá-lo.
- A minha mãe costumava fazer soufflé de queijo só para mim, mas tu não devias ter tido tanto trabalho.
Porque parecia ele tão pouco à vontade, sentado na sua própria sala de jantar, como se nunca tivesse comido ali? Olhei à volta, muito incomodada.
- Agora vais ter muitos pratos para lavar antes de irmos para a cidade divertirmo-nos.
Oh, não foi preciso mais nada.
Ninguém se mexeu mais depressa do que eu naquela tarde. Empilhei a louça bonita na máquina; enquanto esta lavava, fui lá acima tomar banho e vestir-me. O Cal já estava pronto e à minha espera, a sorrir, e mostrou-se aliviado por a sala de jantar voltar à sua condição de peça de museu. Eu ia a sair quando me lembrei.
- Um momento, que já volto. Não quero que a Kitty chegue a casa e encontre a louça dela fora do sítio exacto.
Quando acabei de fazer aquilo, ele resolveu voltar à cave para arrumar as ferramentas e foi então que tocaram à campainha. Era tão raro termos visitas que o som da campainha me assustou e eu fui a correr à porta. O carteiro fez-me um sorriso.
- Uma carta registada para Miss Heaven Leigh Casteel disse ele alegremente.
Sim - disse eu, ansiosa, olhando para o maço de cartas que ele tinha na mão. Tantas!
Ele estendeu-me um bloco e um papel. A minha mão tremia quando garatujei a minha assinatura.
Assim que fechei a porta, deixei-me cair no chão. O sol que entrava pelos vidros resplandecentes das janelas incidiu no envelope de uma carta que eu tinha a certeza absoluta que seria do tom... Mas não era. Era uma letra desconhecida.
Querida Heaven,
Espero que não leves a mal a minha familiaridade. Tenho a certeza que me perdoarás quando souberes as boas notícias. Não sabes o meu nome e eu não posso assinar esta carta. Sou a mulher que foi com o marido a tua casa e se tornou mãe dos teus queridos irmãozinhos.
Se bem te lembras, prometi escrever-te e manter-me em contacto contigo. Recordo o teu grande afecto e preocupação com o teu irmão e a tua irmã, e sou obrigada a admirar-te e a respeitar-te por isso. Ambas as crianças estão muito bem, e adaptaram-se, creio eu, a esta família e deixaram de sentir tanto a falta da sua família das montanhas.
O teu pai não me queria dar a tua morada; no entanto, insisti, ciente de que deveria cumprir a minha promessa; a "Nossa" Jane, como costumavas chamar-lhe, restabeleceu-se de uma operação que fez para corrigir uma hérnia no diafragma. Podes consultar uma enciclopédia médica e descobrirás a razão pela qual esta criança era tão frágil. Gostarás de saber que ela está agora a ganhar peso e que tem muito apetite. É tão saudável e normal como outra qualquer criança de sete anos. Todos os dias, ela e o Keith bebem os sumos de frutas que lhes apetecem. E, de noite, deixo-lhes uma luz acesa nos quartos. Andam numa boa escola particular e eu vou levá-los e buscá-los de automóvel. Têm muitos amigos.
O Keith demonstra um grande talento artístico e a Jane adora cantar e ouvir música. Anda a aprender música, e o Keith tem o seu próprio cavalete e material para desenhar e pintar. Possui um jeito especial para desenhar animais.
Espero ter respondido a todas as perguntas e dado todas as informações que afastem as tuas preocupações. Tanto eu como o meu marido adoramos estas duas crianças como se elas fossem nossos filhos. E creio que elas também gostam de nós.
O teu pai diz que descobriu boas casas para todos os seus filhos, e eu rezo para que isso seja verdade.
Em correio separado, envio-te fotografias do teu irmão e da tua irmã.
Muitas felicidades para ti.
R.
Foi assim que ela assinou a carta, só com uma inicial, e sem endereço que me fornecesse uma pista. Senti um baque no coração quando examinei o envelope outra vez, tentando descobrir impressões digitais, números escondidos e nomes de ruas. A carta tinha o carimbo dos correios de Washington. O que significava isso? Teriam eles saído de Maryland? Oh, graças a Deus que os médicos tinham descoberto o mal da "Nossa" Jane e a tinham curado!
Durante muito tempo, fiquei ali sentada a pensar no Keith e na "Nossa" Jane, e no tipo de senhora que tivera o cuidado de escrever. Li a carta várias vezes. E ia enxugando as lágrimas. Oh, era uma maravilha saber que a "Nossa" Jane estava bem e era feliz, e que ela e o Keith tinham tudo, mas não era bom saber que eles se tinham esquecido de mim e do tom, nada bom mesmo.
- Heaven, preferes ficar sentada no chão e passar o dia a ler cartas do que ires ao cinema?
Levantei-me logo e mostrei-lhe a carta, desejosa de lhe falar do seu conteúdo, apesar de ele estar a lê-lo. Pareceu-me tão deliciado como eu. Depois, vasculhou na sua própria correspondência.
- Olha, aqui está outro envelope para Miss Heaven Leigh Casteel - disse ele com um grande sorriso, entregando-me um pesado envelope castanho.
Lá dentro estavam doze fotografias normais e três tiradas num fotógrafo profissional.
Oh, meu Deus... Retratos do Keith e da "Nossa" Jane a brincar num jardim arrelvado, atrás de uma casa enorme e maravilhosa.
- Fotografias polaróide - disse o Cal, espreitando por cima do meu ombro. - Mas que crianças lindas.
Contemplei aquelas crianças adoráveis, com roupa cara, própria para brincar, ambas sentadas num areeiro, com um toldo garrido por cima. Atrás deles, via-se uma piscina, à beira da qual se dispunham mesas e cadeiras. Lá estavam o mesmo homem e a mesma mulher de fato de banho, sorrindo afectuosamente para o Kheit e a "Nossa" Jane. No sítio onde eles estavam era Verão. Verão! Seria na Florida? Na Califórnia?
Mo Arizona? Examinei as outras fotografias que mostravam a "Nossa" Jane a rir-se enquanto o Keith lhe empurrava o balouço. Havia outras tiradas no lindo quarto dela, com as bonecas e os brinquedos todos. A "Nossa" Jane a dormir numa linda caminha, toda cheia de folhos, com um dossel cor-de-rosa por cima. E o Keith no seu quarto azul, cheio de todo o género de brinquedos e de livros de colorir. Depois, abri uma grande e requintada pasta de cartão e vi a "Nossa" Jane toda vestida a rigor, de organdi cor-de-rosa com folhos, o cabelo encaracolado, como se fosse uma figura de cinema, a sorrir para quem estava a fotografá-la; e havia outra do Keith, com um fato azul, muito engraçado, e uma gravatinha, e um terceiro retrato dos dois juntos.
- Custa bom dinheiro tirar retratos como estes - disse o Cal, por cima do meu ombro. - Repara como eles estão vestidos. Heaven, são crianças muito acarinhadas, bem tratadas e felizes. Repara no brilho dos olhos deles. As crianças infelizes não conseguem simular sorrisos assim. De certo modo, devias agradecer a Deus por o teu pai os ter vendido.
Não me apercebi de que estava a chorar tanto, senão quando o Cal me enxugou as lágrimas e me apertou contra o peito.
- Vá lá, vá lá... - cantarolou ele, embalando-me e estendendo-me o lenço para eu me assoar. - Agora podes dormir descansada sem chorares nem chamares por eles de noite. Assim que tiveres notícias do tom, todo o teu mundo revivescerá. Sabes, Heaven, há muito poucas Kittys neste mundo. Lamento que logo tenhas sido tu a sofrer às suas mãos... Mas eu estou aqui. Farei o que puder para te proteger dela.
O Cal abraçou-me com força, com tanta força que senti todo o meu corpo colado ao dele.
Fiquei alarmada. Aquilo estava certo? Devia empurrá-lo para ele perceber que não devia fazer aquilo? Mas tinha de estar certo, caso contrário, ele não o teria feito. Mesmo assim, senti-me embaraçada e empurrei-o, embora lhe sorrisse através das lágrimas e me voltasse para nos irmos embora, não sem antes esconder a carta e as fotografias. Por qualquer razão, não queria que a Kitty soubesse como os outros filhos do meu pai eram bonitos.
Aquele sábado foi ainda mais especial do que os outros.
Agora eu podia divertir-me verdadeiramente, sabendo que a "Nossa" Jane e o Keith não estavam a sofrer... E um dia havia de ter notícias do tom, também.
Eram dez e meia quando eu e o Cal voltámos de Atlanta, ambos cansados de tentarmos fazer coisas a mais: ver um filme de três horas, comer num restaurante e fazer compras. Roupa para mim, que o Cal não queria que a Kitty visse.
- Detesto esses sapatos de biqueira larga tanto como tu. Mas não a deixes ver esses novos - avisou ele antes de entrarmos na garagem. - Os ténis são bons para fazer ginástica, e os Mary Janes que ela te comprou para levares à igreja já não são para a tua idade. vou fechar estes num dos armários da minha oficina e dar-te um duplicado da chave. E, se fosse a ti, nunca mostraria a boneca à minha mulher nem nada do que pertenceu à tua mãe. Tenho vergonha de dizer que a Kitty nutre um ódio anormal por uma pobre rapariga morta, que não podia adivinhar que estava a tirar-lhe o único homem que ela verdadeiramente amou.
Aquilo doía, doía muito. Fitei-o com uns olhos grandes e tristes.
- Cal, ela ama-o. Eu sei que sim.
- Não, ela não me ama, Heaven. Ela precisa de mim de vez em quando, para exibir o seu "trofeu de caça". Um homem que andou na faculdade... O "seu homem", como ela diz muitas vezes. Mas ela não me ama. Por baixo de todas aquelas curvas femininas exageradas esconde-se uma alma pequena e fria que odeia os homens... Todos os homens. Talvez o teu pai a tenha feito assim, não sei. Mas tenho pena dela. Há anos e anos que a ajudo a ultrapassar uma infância traumática. O pai batia-lhe, a mãe batia-lhe e obrigava-a a sentar-se em água quente para matar os pecados, e amarrava-a à cama para ela não fugir com nenhum rapaz. Depois, assim que ela se libertou, fugiu com o primeiro homem que encontrou. Agora, desisti. Ando por aqui, até um dia em que não consiga mais aturar isto... Depois, vou-me embora.
- Mas o Cal disse que a amava! - exclamei. Quando amávamos uma pessoa não ficávamos junto dela? A piedade era o mesmo que o amor?
- Vamos entrar - disse ele com rispidez. - Lá está o carro da Kitty. Ela está em casa, e vamos ter de ouvir. Não digas nada. Deixa-me ser eu a falar.
Kitty andava na cozinha, de um lado para o outro.
- Bem! - gritou ela, quando entrámos pela porta das traseiras. - Onde estiveram? Porque vêm com um ar tão comprometido? O que estiveram a fazer?
- Fomos ao cinema - respondeu o Cal, passando pela Kitty e dirigindo-se para as escadas. - Jantámos no tipo de restaurante que tu detestas. Agora vamos para a cama. Sugiro que dês as boas-noites à Heaven, que deve estar tão cansada como eu, depois de limpar esta casa de cima a baixo antes do meio-dia.
- Ela não fez nada do que estava na minha lista! - disparou a Kitty. - Ela saiu contigo e deixou esta casa numa barafunda!
A Kitty tinha razão. Eu não limpara quase nada, porque nada me parecia estar nem desarrumado nem sujo, e era raro a Kitty dar-se ao trabalho de ir verificar o meu trabalho.
Tentei seguir o Cal, mas a Kitty agarrou-me por um braço. O Cal nem olhou para trás.
- Estúpida! - sibilou ela. - Puseste a minha melhor louça na máquina, não puseste? Não sabes que eu nunca uso a minha Royal Danton and Lenox a menos que haja visitas? Não é para todos os dias! Lascaste-me os pratos, dois deles! Empilhaste as minhas chávenas, partiste uma pega! E rachaste outra! Eu não te disse para nunca empilhares as minhas chávenas e para as pendurares?
- Não, nunca me disse isso. Disse-me só que não as empilhasse.
- Disse, sim! Avisei-te! Tu não sabes o que eu te disse para não fazeres!
Trás, trás, trás.
- Quantas vezes é que tenho de dizer-te? Trás, trás, trás.
- Não viste os ganchos por baixo das prateleiras, não viste?
Claro. Eu vira os ganchos e não sabia para que serviam. Ela não pendurara as chávenas nos ganchos. Tentei explicar-lhe, pedir desculpa e prometi pagar os pratos. Ela deitou-me um olhar trocista.
- Vais fazer isso, estúpida? Esses pratos custam oitenta e cinco dólares cada um... Tu tens esse dinheiro?
Fiquei escandalizada. Oitenta e cinco dólares! Como é que eu podia adivinhar que os lindos pratos que estavam na sala de jantar eram só para vista, e não para usar?
- És uma parva... É o que me vale... E vais levar o resto da vida a pagar todas essas chávenas, pires, pratos e coisas... Tu estragaste as minhas coisas... Jesus Cristo, que idiota, que escória me saíste!
A maneira como ela me agarrou no braço fez-me doer. Tentei libertar-me.
- Eu não volto a fazer isso, mãe. Juro que não volto!
- Tens muita razão, não voltas a fazer!
A Kitty deu-me um murro na cara, uma, duas, três vezes!
Cambaleei para trás, perdi o equilíbrio e senti o meu olho a começar a inchar enquanto o nariz sangrava dos murros que ela me aplicara como se fosse um jogador de boxe.
- Agora vais para cima e ficas todo o dia naquele quarto, com a porta fechada à chave. Não há igreja nem comida até vires para baixo e me convenceres de que estás mesmo arrependida por teres estragado as minhas melhores coisas, que deviam ter sido lavadas à mão.
A soluçar, subi as escadas a correr e fui para o quartinho onde estava a mobília que o Cal e eu tínhamos escolhido, com a Kitty a praguejar atrás de mim, a dizer coisas tão horríveis sobre a escumalha dos montes que senti que aquelas palavras ficariam para sempre gravadas na minha memória. No corredor, choquei com o Cal.
- O que se passa? - perguntou ele, alarmado. Depois agarrou-me e obrigou-me a parar para ele me examinar a cara. - Oh, meu Deus! Porquê? - gemeu, ao ver as minhas equimoses.
- Lasquei-lhe os melhores pratos... Parti-lhe a asa de uma chávena... Meti-lhe as facas com cabo de madeira na máquina...
Ele afastou-se a passos largos, desceu as escadas e ouvi-o lá em baixo a levantar a voz pela primeira vez.
- Kitty, lá porque foste maltratada em criança, não é razão para maltratares uma rapariga que tenta fazer o seu melhor.
- Tu não me amas - soluçou ela.
- Claro que amo.
- NÃO, NÃO AMAS! Julgas que eu sou parva? Vais deixar-me quando eu estiver velha e feia. Vais casar com outra mulher, mais nova do que eu.
- Por favor, Kitty, não vamos entrar nisso.
- Cal... Eu não queria fazer aquilo. Nunca quis magoá-la. Ou ferir-te. Eu sei que ela não é má... Mas há qualquer coisa nela... Qualquer coisa em mim que eu não entendo... Cal, estou cheia de desejos esta noite.
Oh, meu Deus, o que se passou para lá das paredes do quarto deles só serviu para me ensinar porque é que ele se deixava ficar, apesar de todos os métodos castrantes da Kitty.
Naquele quarto com a porta fechada à chave, ele foi um fantoche nas mãos dela. Ela não lhe pôs um olho negro, nem lhe deixou o nariz a sangrar. O que ela lhe fez, fê-lo sorrir de manhã, deixou-lhe os olhos brilhantes e o andar mais leve. No dia seguinte era domingo, e a Kitty perdoou-me por eu lhe ter lascado a louça, perdoou-me por ter partido a asa de uma chávena e estragado uma faca cara... Agora que tinha o Cal debaixo da pata outra vez. No entanto, quando eu e o Cal estávamos no carro, à espera que ela acabasse de verificar o que eu não fizera, ele disse sem olhar para mim:
- Prometo fazer tudo o que puder para te ajudar a encontrar o tom. E quando estiveres pronta para ir a Boston visitar os pais da tua mãe, eu próprio farei de detective, ou contratarei alguém para encontrar a família da tua mãe. Eles devem ter sido muito ricos, porque eu sei que uma boneca Tatterton feita a partir de um retrato custa milhares de dólares. Heaven, tens de mostrar-me essa boneca um dia... No dia em que confiares totalmente em mim.
Para provar até que ponto eu confiava nele, enquanto a Kitty dormia a sesta lá em cima, naquela mesma tarde, o Cal e eu fomos à cave. Primeiro, tive de tirar uma pilha de roupa da Kitty, e enquanto a máquina de lavar roupa girava, abri a minha preciosa mala de sonhos e retirei a boneca com muita ternura.
- Volte-se de costas - ordenei -, para eu lhe endireitar o vestido e pôr o cabelo em ordem... E depois pode olhar e dizer-me o que pensa.
Ele ficou espantado ao ver a boneca de cabelo louro-platinado. Durante muito tempo não conseguiu falar.
- És tu, mas com o cabelo louro - disse ele. - Como a tua mãe deve ter sido bela! Mas tu também és encantadora...
À pressa, embrulhei outra vez a boneca e escondi-a. Por qualquer razão senti-me profundamente perturbada. Depois de ter visto a boneca, porque é que o Cal olhou para mim como se nunca me tivesse visto?
Havia tanta coisa que eu não sabia. Tanta coisa que não me deixava dormir de noite, no quartinho onde muito do espaço continuava ocupado pelas coisas todas que a Kitty se recusava a tirar de lá. Mais uma vez, a Kitty e o Cal discutiam por minha causa.
- Não me digas que não! - disse o Cal, em voz baixa mas tensa. - Ontem à noite, disseste que me desejavas todos os dias, todas as noites. Agora repudias-me. Eu sou teu marido.
- Não posso. Ela está no quarto ao lado. Onde tu a querias.
- Foste TU que a meteste na nossa cama! Mas por mim ela ainda estaria aqui no meio de nós!
- Eu fui lá... As paredes não são suficientemente grossas. Tenho a certeza de que ela está a ouvir.
- É por isso que temos de nos ver livres da tua tralha toda. Depois podemos encostar a cama dela à outra parede, muito mais longe. Tu tens um grande forno na tua sala de aula. E o resto do lixo podia ir também.
- Não é lixo! Deixa de chamar lixo às minhas coisas!
- Está bem. Não são lixo.
- A única altura em que consigo que tu reajas é quando a defendes...
- Ora, Kitty, eu não sabia que querias que eu reagisse.
- Estás a troçar de mim. Estás sempre a troçar de mim e a dizer isso quando sabes o que eu quero dizer...
- Não! Quem me dera saber o que tu queres. Quem me dera saber quem tu és, que pensamentos existem debaixo desse cabelo ruivo...
- Não é ruivo! É castanho-avermelhado! Ticiano... disparou ela, furiosa.
- Está bem, chama-lhe o que te apetecer. Mas o que eu sei é isto: se voltas a bater na Heaven, e eu chego a casa e vejo que ela tem o nariz a sangrar, a cara ferida ou um olho negro, abandono-te.
- Cal! Não digas essas coisas! Eu amo-te, a sério! Não me faças chorar... Não posso viver sem ti. Eu não lhe bato, prometo que não. Não quero...
- Então, porque o fazes?
- Não sei. Ela é bonita, é nova... E eu estou a ficar velha. Qualquer dia farei trinta e seis anos, e vou a caminho dos quarenta. Cal, a vida não presta depois dos quarenta.
- Claro que presta. - A voz dele parecia mais suave, mais compreensiva. - Tu és uma linda mulher, Kitty, e estás a melhorar de ano para ano. Não pareces ter mais de trinta anos.
Ela gritou:
- Eu quero aparentar vinte.
- Boa noite, Kitty - disse ele, enfastiado, - Eu também não voltarei a ter vinte anos, mas não me queixo disso. O que sentias senão insegurança quando tinhas vinte anos? Tu sabes quem és agora; isso não é um alívio?
Não, aparentemente o facto de saber quem era constituía um horror para a Kitty.
Todavia, para festejar o traumático trigésimo sexto aniversário da Kitty, naquele Verão, o Cal reservou quartos num belo hotel, próximo de uma praia, e em Agosto, no mês do Leão, estávamos os três sentados debaixo de
um chapéu-de-sol. A Kitty era a sensação da praia, com o seu reduzido biquini cor-de-rosa. Recusou-se a deixar a sombra do chapéu-de-sol com riscas vermelhas.
- A minha pele é delicada, queima-se com facilidade... Mas vão vocês, Heaven e Cal. Não se ralem comigo. Eu fico aqui sentada, a sofrer, enquanto vocês os dois se divertem.
- Porque não me disseste que não querias vir para a praia?
- Tu não me perguntaste.
- Mas eu julguei que tu gostavas de nadar e de tomar banhos de sol.
- É isso que tu sabes de mim: nada.
Ninguém se divertia quando a Kitty não se divertia.
Foram umas férias frustrantes, quando podiam ter sido bem divertidas se a Kitty partilhasse a água connosco, mas ela transformou as férias de aniversário numa tortura.
No dia em que regressámos de férias, a Kitty sentou-se à mesa da cozinha com a sua grande caixa de manicura e começou a dar-me a primeira lição. Senti-me envergonhada com as minhas unhas curtas e partidas enquanto admirava as dela, compridas e muito bem tratadas, com as cutículas todas removidas, e sem uma falha, nem uma! Arrebitei as orelhas quando ela iniciou a sua prelecção sobre a maneira de ter umas unhas tão bonitas como as dela.
- Tens de deixar de roer as tuas e aprenderes a ser uma mulher. Isso não acontece naturalmente às raparigas dos montes, todos os modos graciosos que uma mulher deve ter. É preciso tempo e experiência para se ser uma mulher, é preciso ter paciência para os homens.
O ar condicionado fazia um zumbido leve e hipnótico, enquanto ela falava.
- Eles são todos iguais, sabes? Mesmo os de falinhas mansas. Como o Cal. Todos querem uma coisa, e como tu és uma rapariga dos montes, sabes qual é. Estão todos mortos por irem para a cama contigo, e depois de o fazerem, se tu ficares grávida, eles não querem o teu bebé. Dizem que não é deles, mesmo que seja. Mesmo que te peguem uma doença, não se importam. Agora, segue o meu conselho e não dês ouvidos a nenhum rapaz com falinhas mansas... Ou a nenhum homem, incluindo o meu.
A Kitty acabou de pintar as minhas unhas de cor-de-rosa.
- Aí está. Elas estão melhores, agora que já não esfregas o chão e usas detergente. Os nós dos dedos já não estão vermelhos. Já estás boa da cara... E estás sentida, não estás?
- Não.
- Não, quê?
- Não, mãe.
- Gostas de mim, não gostas?
- Sim, mãe.
- Não me tirarias nada que fosse meu, pois não?
- Não, mãe.
A Kitty levantou-se para sair.
- Tenho mais um dia de pé à minha frente. A trabalhar que nem uma escrava para embelezar os outros.
Suspirou fundo e olhou para os saltos dos sapatos com quinze centímetros. Tinha uns pés muito pequenos para a sua altura; tal como a cintura, também eles parecia pertencerem a uma pessoa pequena e frágil.
- Mãe, porque não usa saltos baixos para trabalhar? É uma pena andar a sofrer com saltos altos como esses.
A Kitty olhou para os meus pés com um ar desdenhoso. Eu tentei enfiá-los debaixo da saia rodada, que chegava ao chão quando eu estava sentada.
- Os sapatos que usamos denunciam a nossa origem... E eu sou feita de aço. Suporto a dor, o sofrimento.. E tu, não.
A sua maneira de pensar era própria de uma louca. Prometi a mim própria que nunca mais falaria nos sapatos demasiado pequenos que lhe encaracolavam os dedos dos pés e os impediam de se endireitarem. Mesmo que lhe doesse... Porque havia eu de me importar?
Os dias de Verão eram preenchidos com trabalho e cozinhados, e os sábados, com mimos. Daí a pouco chegaram os primeiros sinais de Outono, e os estabelecimentos encheram-se de objectos ligados à escola: camisolas, saias, casacos e botas. Eu estava em Candlewick há oito meses, e embora o Logan tivesse recomeçado a escrever, não tinha notícias do tom. Era doloroso começar a pensar que era preferível desistir de ter notícias dele... E depois lá apareceu a carta na caixa do correio! Só uma carta.
"Oh, Thomas Luke, é tão bom ver a tua letra, tão bom, por favor faze com que eu só encontre boas notícias lá dentro."
com a carta dele na mão, era quase como se o tom estivesse a meu lado. Corri a sentar-me, e com todo o cuidado abri a carta de maneira a não rasgar o remetente. Ele escrevia com o sabor dos montes, mas havia mais qualquer coisa de novo... Qualquer coisa que me apanhou de surpresa e que, embora contrariada, invejei.
Querida Heavenly,
Bolas, espero que recebas esta carta. Tenho-me fartado de escrever e tu nunca respondes! Vejo o Logan de vez em quando e ele resmunga por eu não te escrever. Eu escrevo, mas não sei o que acontece às minhas cartas, por isso continuarei a tentar. Heavenly, em primeiro lugar quero que saibas que eu estou bem. Mister Henry não é cruel nem mesquinho como tu decerto julgas, mas pode levar-nos a dar o nosso melhor.
Vivo na casa da quinta dele, que tem doze quartos. Um deles é meu. É um belo quarto, asseado e bonito, embora simples. Ele tem duas filhas, uma chamada Laurie, com treze anos, e outra chamada Thalia, com dezasseis. Ambas são bonitas e tão simpáticas que não sei qual delas prefiro. A Laurie é mais divertida; a Thalia é séria e pensa mais em tudo. Já lhes falei de ti, e elas dizem que estão mortas por te conhecer um dia, dentro de pouco tempo.
O Logan falou-me da operação da "Nossa" Jane, e disse-me que ela está a passar bem, e que o Keith se sente feliz e que está bem. Sabes que foi um peso que me tiraram de cima. O problema é que, segundo o Logan, tu falas pouco de ti. Por favor, escreve e conta-me tudo o que se passou desde que estivemos juntos pela última vez. Tenho tantas saudades tuas. Sonho contigo. Tenho saudades dos montes, dos bosques, das coisas engraçadas que costumávamos fazer. Tenho saudades das nossas conversas sobre os nossos sonhos, tenho saudades de tantas coisas! Não tenho saudades é da fome, do frio e da miséria. Tenho montes de roupa quente, comida com fartura e sobretudo leite para beber (imagina!) e queijo e mais queijo.
Escrever-te-ia uma carta com duzentas páginas se não tivesse muitos trabalhos para acabar antes de ir para a cama. Mas não te preocupes, por favor. Eu estou bem e qualquer dia havemos de nos encontrar. Adoro-te.
Teu irmão, tom
Deixei-me ficar sentada a pensar no tom, muito depois de ter acabado de ler a carta. Em seguida, escondi-a junto das do Logan. Teria a Kitty desviado as cartas do tom? Isso não era possível, porque eu estava em casa
todos os dias enquanto ela trabalhava e era eu que trazia o correio todos os dias. Olhei à volta para o meu quarto atafulhado, sabendo que a Kitty estivera ali e mudara as coisas. Aquele quarto não era verdadeiramente meu, enquanto a Kitty conservasse as coisas dela fechadas à chave naqueles armários, e era óbvio que ela andara a vasculhar todos os meus pertences. O seu grande torno estava arrumado a um canto, e havia prateleiras por todo o lado cheias de bugigangas, e onde os meus livros ficariam muito bem. A Kitty não se servia das prateleiras para pôr livros. Sentei-me à minha pequena secretária e comecei a responder à carta do tom. Todas as mentiras que eu pregara ao Logan também convenceriam o tom de que a Kitty era uma mãe angelical, a melhor que havia... Mas não era obrigada a mentir a respeito do Cal, que era o melhor pai que havia.
Ele é verdadeiramente maravilhoso, tom. Sempre que olho para ele, penso que o pai devia ser assim. É tão bom saber que finalmente tenho um pai a sério de quem posso gostar e que gosta de mim. Portanto, não te preocupes comigo. E não te esqueças de que um dia serás presidente... E não empregado numa fábrica de lacticínios.
Agora já tivera notícias do tom, e sabia que a "Nossa" Jane e o Keith eram felizes, e o Logan escrevera a dizer que a Fanny estava a viver os melhores anos da sua vida... Que motivos tinha para me preocupar? Nenhum. Nenhum mesmo...
PALPITAÇÕES
A alvorada na cidade encontrava-me acordada por volta das seis, a mesma hora a que eu me levantava dantes para começar o meu dia. Lá em baixo, na segunda casa de banho, tomava um duche rápido, vestia roupa lavada e começava a preparar o pequeno-almoço. Estava desejosa de regressar à escola e de renovar as minhas amizades tão desprezadas. Sem a Kitty saber, tinha um fato novo que me assentava na perfeição. O Cal dera bom dinheiro por ele e eu usava-o com muito orgulho. Vi que os rapazes me observavam com um interesse dez vezes maior, agora que a minha figura não se ocultava atrás de roupa larga. Pela primeira vez na minha vida, comecei a sentir um pouco aquele poder que as mulheres detinham sobre o sexo oposto, só pelo facto de serem mulheres, e bonitas.
Na aula, perdia-me a ouvir o professor falar de gente monumental que deixara a sua marca na história. Os historiadores omitiam os erros das personagens só para inspirarem os alunos como eu a esforçarem-se sempre mais? Eu deixaria a minha marca? E o tom? Porque é que eu me sentia sempre tão tentada a pôr-me à prova? Miss Deale sempre conferira à gente do passado uma aparência humana e falível, e isso dera-me esperança, e ao tom também.
Fiz novas amigas que não compreenderam, tal como as anteriores, por que razão é que eu não as convidava para minha casa.
- Como é que ela é, essa mãe? Livra, é muito bem fornecida. E o teu pai? Uau! Mas que homem!
- Ele não é uma maravilha? - perguntei eu, cheia de orgulho.
Era curiosa a maneira como elas olhavam para mim. Os professores tratavam-me com uma consideração especial, como se a Kitty lhes tivesse dito que eu era uma rapariga dos montes, com pouca vivacidade e que não tinha muitos miolos. Estudei como uma louca para provar que ela estava errada e pouco depois conquistei o respeito dos professores. Era especialmente boa em dactilografia. Passava horas e horas a dactilografar cartas, quando a Kitty não estava em casa. Quando ela estava, o clique-claque da máquina de escrever fazia-lhe dores de cabeça. Tudo fazia dores de cabeça à Kitty.
O Cal velava para que eu tivesse dúzias de belos vestidos, saias e blusas, calças, calções e fatos de banho, tudo roupa que ele e eu escolhíamos quando íamos às compras a Atlanta e que ele mantinha fechada à chave num dos seus armários da cave que a Kitty julgava guardarem apenas perigosas ferramentas. A Kitty tinha quase tanto medo do equipamento electrónico do Cal como de insectos. Num pequeno armário que havia no corredor, destinado aos aparelhos de limpeza, os meus vestidos feios e largos estavam pendurados juntamente com o aspirador, as esfregonas, as vassouras, os baldes e outras coisas. Havia um armário no meu quarto mas estava fechado à chave.
Apesar de eu ter essas roupas, era obrigada a recusar os convites que me faziam porque tinha de voltar à pressa, para acabar de limpar aquela casa branca que exigia cuidados infindáveis. O trabalho da casa estava a despojar-me da minha mocidade. Eu odiava as plantas de interior que precisavam de tantos cuidados; odiava as mesas dos elefantes com as suas jóias falsas e estúpidas, que tinham de ser lavadas e areadas com todo o cuidado. Se ao menos houvesse um tampo que não estivesse cheio de coisas eu poderia passar com o pano de pó, mas tinha de levantar, arredar, inclinar e ter cuidado para não riscar a madeira; depois ia a correr dobrar a roupa interior da Kitty, pendurar-lhe os vestidos, as blusas, guardar as toalhas no armário da roupa de casa e certificar-me de que só as pontas dobradas é que ficavam para a frente. A Kitty tinha mil regras para manter a casa transformada em peça de museu. E só as "raparigas" dela é que vinham admirá-la.
As tardes de sábado compensavam-me de todos os exageros que a Kitty considerava serem minha obrigação. As bofetadas fortes e brutais que eram aplicadas com prontidão sempre que eu cometia um erro sem importância, as palavras cruéis destinadas a destruir a minha autoconfiança, eram mais do que pagas pelos filmes, pelas refeições deliciosas nos restaurantes, pelas idas aos parques de diversões quando os dias não estavam chuvosos nem frios. No parque, o Cal e eu atirávamos amendoins aos elefantes e milho partido aos patos selvagens, aos cisnes e aos gansos que vinham
a correr do lago do jardim zoológico. Eu sempre tivera jeito para lidar com os animais, e o Cal ficava encantado com a minha habilidade para "falar" com as galinhas,
os patos, os gansos e mesmo os elefantes.
- Qual é o teu segredo? - insistiu ele quando uma zebra de aspecto selvagem veio fossar na palma da minha mão, à procura de guloseimas. - Eles não vêm a correr ao meu encontro como fazem contigo.
- Não sei - respondi com um sorrisinho maroto, pois o tom costumava perguntar a mesma coisa. - Eu gosto deles, e talvez eles tenham uma forma misteriosa de o adivinharem.
Depois falei-lhe do tempo em que eu roubava, quando os cães de um certo agricultor se tinham deixado encantar pelas minhas habilidades.
O Outono chegou, acompanhado de ventos frios, que fizeram voar as folhas das árvores, e de pensamentos melancólicos acerca dos montes e do avô. Uma carta do Logan indicava-me a morada do local onde o pai o internara e isso bastava-me para escrever ao avô. Ele não sabia ler, mas alguém lhe havia de ler a minha carta. Perguntei a mim própria se a Fanny o teria visitado alguma vez e se o pai ia agora a Winnerrow visitar os dois. Fazia tantas perguntas a mim própria que às vezes andava às voltas como se estivesse num labirinto, como se a minha melhor parte ainda estivesse nos Willies.
Plantei túlipas, narcisos, íris e crocos, tudo com a ajuda do Cal, enquanto a Kitty, sentada à sombra, dirigia as operações.
- Faze isso como deve ser. Não espatifes os bolbos holandeses que me custaram seiscentos dólares. Não te atrevas, paço via.
- Kitty, se voltas a chamar-lhe isso, atiro-te para cima todos estes vermes que tirámos da terra - ameaçou o Cal.
No mesmo instante, ela levantou-se e foi a correr para casa, o que fez com que eu e o Cal desatássemos a rir quando olhámos um para outro. Ele tocou-me na face com a mão enluvada.
- Porque é que não tens medo dos vermes, das baratas e das aranhas? Também falas a linguagem deles?
- Não. Odeio todos esses bichos tanto como a Kitty mas eles não me metem medo.
- Prometes que me telefonas para o emprego se as coisas correrem mal por aqui? Não permitas que ela te faça mais nada... Prometes?
Eu fiz um sinal afirmativo, e por instantes ele agarrou-se a mim e eu ouvi-lhe o bater forte do coração. Depois, levantei a cabeça e vi a Kitty à janela, a olhar para nós. Afastei-me e tentei fingir que ele estava apenas a aliviar-me a mão ferida...
- Ela está a olhar para nós, Cal.
- Não me importo.
- Mas importo-me eu. Posso telefonar-lhe, mas o Cal demora a chegar a casa e, nessa altura, ela já me tirou a pele.
Ele ficou a olhar para mim durante muito tempo, como se nunca tivesse acreditado que ela seria capaz de me fazer uma coisa dessas e agora acreditasse. Ainda tinha um ar chocado quando largámos os utensílios de jardinagem e fomos para casa, onde encontrámos a Kitty adormecida numa cadeira.
Depois vinham as noites. Finalmente, eu não tinha de evitar ouvir as conversas, porque o Cal deixara de fazer quaisquer tentativas para discutir com a Kitty, e deixara de beijá-la com paixão, só lhe dava uns beijos fugidios na cara, como se já não a desejasse. E eu sentia a sua raiva interior e a sua frustração a aumentarem. Juntamente com as minhas.
No Dia de Acção de Graças, assei o meu primeiro peru de compra para que a Kitty pudesse convidar as "raparigas" todas a gabar-se do cozinhado dela.
- Não custa nada - disse ela quando as raparigas lhe elogiaram os atributos domésticos e culinários. - E eu tenho tão pouco tempo, também. A Heaven dá-me uma ajuda - admitiu generosamente quando eu estava à mesa, à espera. - Mas vocês sabem como são as raparigas novas... São preguiçosas e não se interessam por nada a não ser por rapazes.
O Natal chegou com presentes parcimoniosos da Kitty e prendas secretas e caras do Cal. Ele e a Kitty foram a muitas festas e deixaram-me em casa a ver televisão. Só nessa altura é que eu soube que a Kitty tinha um problema de alcoolismo. Uma só bebida desencadeava nela uma tal reacção em cadeia que ela tinha de continuar a beber, e muitas vezes o Cal entrava em casa com ela ao colo, despia-a e metia-a na cama, por vezes com a minha ajuda.
Era estranho despir uma mulher indefesa com a ajuda do marido, uma intimidade que me fazia sentir embaraçada. Mesmo assim, um laço indizível mas forte unia-me ao Cal. O olhar dele cruzava-se com o meu... E o meu com o dele. Ele gostava de mim, eu sabia que ele gostava de mim... E à noite quando eu me aconchegava na cama, sabia que a sua presença protectora guardava o meu sono.
Um belo sábado, nos finais de Fevereiro, eu e ele festejámos o meu décimo sexto aniversário. Há quase um ano e dois meses que eu vivia com ele e com a Kitty. Eu sabia que o Cal não era exactamente como um pai, ou um tio, e que era diferente de todos os homens que eu conhecera. Era uma pessoa que, tal como eu, precisava de um amigo e de família de quem gostasse e que se acomodava à mulher que estivesse mais à mão, mais disponível. Nunca ralhava comigo nem me criticava e nunca me falava com maus modos como a Kitty costumava fazer.
Éramos amigos, o Cal e eu. Eu sabia que gostava dele. Ele .dava-me o que eu nunca tivera, era um homem que gostava de mim, que precisava de mim, que me compreendia, e eu teria dado a vida por ele de boa vontade.
Comprou-me meias de nylon e sapatos de salto alto, de presente, e quando a Kitty não estava em casa, eu calçava-os para me habituar. Era como se aprendesse outra vez a andar e com outras pernas, mais compridas. com as meias de nylon e os sapatos de salto alto, tinha consciência das minhas pernas, sabia que elas eram bonitas, e inconscientemente empinava-as para que toda a gente as admirasse. Isso fazia rir o Cal. É claro que eu tinha de esconder os sapatos e as meias de nylon assim como a minha outra roupa nova lá em baixo na cave, aonde a Kitty nunca ia sozinha.
A Primavera chegou depressa a Atlanta. Graças aos nossos esforços, meus e do Cal, tínhamos o jardim mais bonito de Candlewick. Um jardim que a Kitty nunca gozava porque havia abelhas a pairar sobre as flores e formigas no chão e vermes que se balouçavam em finas teias de aranha e se lhe metiam no cabelo. Uma vez, a Kitty ia partindo o pescoço ao enxotar um que lhe pousou no ombro, e não parava de gritar.
A Kitty tinha medo dos sítios escuros onde pudessem esconder-se aranhas ou baratas. As formigas, no chão, punham-na em pânico; as formigas, na cozinha, quase lhe provocavam ataques cardíacos. Uma mosca no braço fazia-a gritar e, se havia um mosquito no quarto, ela não dormia, nem nos deixava dormir, queixando-se do zumbido que fazia aquela "maldita
coisa"!
A Kitty tinha medo do escuro. Tinha medo dos vermes, da sujidade, do pó, dos micróbios, das doenças, de milhares de coisas em que eu nunca pensara.
Quando a Kitty se tornava demasiado insuportável com as suas exigências, eu fugia para o meu quarto, estendia-me e pegava num dos livros que trouxera da biblioteca da escola... E perdia-me no universo de A Paixão de Jane Eyre ou de O Monte dos Vendavais. Li e reli esses dois livros antes de ir à biblioteca à procura de uma biografia das irmãs Brontè.
A pouco e pouco, ia desalojando o cortejo de miniaturas de louça da Kitty com a minha preciosa colecção de livros. Trouxera a boneca da cave, e todos os dias a tirava da última gaveta da cómoda e admirava a sua linda cara, decidida a ir um dia ao encontro dos pais da minha mãe.
De vez em quando vestia um dos vestidos da minha mãe, mas eles eram velhos e frágeis, e resolvi que era preferível deixá-los estendidos, o mais direitos possível, e guardá-los para o dia em que fosse a Boston.
O tom escrevia longas cartas e o Logan escrevia de vez em quando, sem me dar grandes novidades. Eu continuava a escrever à Fanny, apesar de ela não me responder. O meu mundo era tão apertado, tão restrito, que comecei a sentir-me afastada de toda a gente... De toda a gente, excepto do Cal.
No entanto, a minha vida tornara-se mais fácil em certos aspectos. O trabalho da casa, que em tempos me aterrorizara com as suas complicações, já não era tão assustador. Poderia muito bem ter nascido com um misturador numa mão e um aspirador na outra. A electricidade fazia agora parte da minha vida, e, sinceramente, parecia-me que sempre fora assim. Todos os dias o Cal se me afigurava como o meu salvador, o meu amigo, o meu companheiro e o meu confidente. Era o meu tutor, o meu pai, quem me acompanhava ao cinema e aos restaurantes. Como é que eu o podia deixar só se ele me dissera uma vez:
- Heaven, se arranjares companhia para ir ao cinema, com quem é que eu irei? A Kitty detesta cinema, e eu gosto, e ela detesta o tipo de restaurantes que me agradam. Por favor, não me abandones em favor de miúdos que não te apreciam tanto como eu... Deixa-me ser eu a levar-te ao cinema. Tu não precisas deles, pois não?
Que complexos de culpa me criava essa pergunta, como se eu estivesse a traí-lo pelo simples facto de pensar num namorado. Muitas vezes, tentava pensar que o Logan me era tão fiel como eu a ele... E no entanto não podia impedir-me de me interrogar se seria assim. Pouco tempo depois, deixei de olhar para os rapazes, achando que era preferível não os encorajar para não perder talvez o único amigo de confiança que tinha.
Para agradar ao Cal, fazia o que ele queria, ia onde ele queria, vestia o que ele queria e penteava-me para lhe agradar. E o meu ressentimento em relação à Kitty continuava a aumentar. Era por causa dela que ele se voltava para mim. Ele era maravilhoso, mas fazia-me sentir esquisita, culpada, sobretudo quando me deitava aqueles olhares estranhos e escaldantes, como se gostasse muito de mim, talvez de mais.
As minhas companheiras de escola começaram a olhar para mim de uma forma estranha. Elas sabiam que o Cal me levava a sair?
- Arranjaste um namorado com quem vais sair? - perguntou-me Florence, a minha melhor amiga. - Fala-me dele... Tu deixa-lo fazer tudo?
- Não! - protestei eu. - Além disso, não há namorado nenhum.
- Há, sim. Tu coraste! Eu corara?
Ia para casa limpar o pó e aspirar o chão, regar as centenas de plantas, fazer inúmeras tarefas e não deixava de pensar no motivo porque corara. Passava-se qualquer coisa de excitante no meu corpo, era como se ele despertasse, provocando-me sensações inesperadas nas virilhas, nos momentos mais inesperados. Um dia vi-me ao espelho na casa de banho, só de cuecas e de soutien, e esse simples facto excitou-me sexualmente. Assustei-me e achei que era imoral eu excitar-me apenas por me ter visto quase nua. Nunca teria o busto enorme de que a Kitty tanto se orgulhava, mas o que eu tinh pareceu-me mais do que suficiente. A minha cintura adelgaçara-se e estav reduzida a uns sessenta e seis centímetros, embora me parecesse que eu nunca haveria de ultrapassar um metro e cinquenta e cinco de altura. Era quanto bastava, diss para mim própria. Não era preciso mais. Não queria ser uma mulher gigante como a Kitty.
Alguns meses antes do seu terrível trigésimo sétimo aniversário, Kitty começou a olhar para os calendários, e parecia tão perturbada com o princípio da meia-idade que caiu num estado de depressão profunda. Quando ela estava deprimida, o Cal e eu tínhamos de reflectir os seus sentimentos, caso contrário ela acusava-nos de indiferença e desinteresse. Ele ficava desnorteado de frustração por estar sempre a desejá-la, quando ela o provocava e importunava e depois gritava:
- NÃO, NÃO, NÃO! Noutra altura... Amanhã à noite.
- Porque não me dizes nunca, já que é isso que queres? - gritava ele.
Afastava-se e ia para a cave trabalhar com a serra eléctrica, fazer mal a qualquer coisa para não lhe fazer mal a ela.
Eu fui atrás da Kitty para a casa de banho, na esperança de falar com ela de mulher para mulher, mas ela via-se ao espelho, com um ar preocupado.
- Detesto estar a envelhecer - gemeu ela, mirando-se mais de perto num espelho manual, enquanto as luzes da ribalta que a rodeavam lhe mostravam todas as pequenas rugas que ela achava muito visíveis.
- Não vejo pés-de-galinha nenhuns, mãe - disse eu, honestamente.
Apreciava-a muito mais naquelas alturas em que ela se assemelhava mais ou menos a um ser humano normal.
Se às vezes me enganava e a tratava por Kitty, ela não exigia que eu corrigisse. Mesmo assim, eu era cuidadosa e desconfiada, e perguntava a mim própria por que razão é que ela não me exigia respeito, como dantes.
- Tenho de vir para casa cedo - murmurou ela, olhando para o espelho com mais atenção. - Não está certo o que eu estou a fazer ao Cal. - Abriu muito a boca, à procura de dentes amarelos ou cariados e vasculhou a cabeça, à procura de cabelos brancos. - Tenho de passar mais tempo em casa enquanto tenho bom aspecto. O bom aspecto não dura sempre como eu costumava pensar. Quando eu tinha a tua idade, julgava que nunca envelheceria. Não me importava com as rugas; agora só penso nelas, só ando à procura delas.
- Está a exagerar - disse eu, com pena dela. Também me sentia irritada, como sempre que estava num sítio fechado a sós com ela.
- Acho que parece ter menos dez anos do que tem.
- MAS ISSO NÃO ME FAZ PARECER MAIS NOVA DO QUE O CAL, POIS NÃO? - gritou ela, com amargura. - À minha vista, ele é uma criança.
Era verdade. O Cal tinha um ar muito mais jovem do que a Kitty.
Nesse mesmo dia, mais tarde, quando estávamos a comer na cozinha, a Kitty voltou a lamentar-se da sua idade.
- Quando eu era nova, era a rapariga mais bonita da cidade. Era, não era, Cal?
- Eras - respondeu ele, enterrando o garfo na tarte de maçã com um grande entusiasmo (eu levara meses a estudar livros de cozinha para lhe fazer a sua sobremesa preferida).
- Eras de facto a rapariga mais bonita da cidade.
Como é que ele sabia? Ele não a conhecia nessa altura.
- Esta manhã descobri um cabelo branco na sobrancelha - gemeu a Kitty. - Já não me sinto bem na minha pele.
- Tu estás óptima, Kitty, óptima - disse ele, sem olhar para ela.
Era terrível ela encarar a meia-idade daquela maneira, ainda antes de lá chegar. Para dizer a verdade, quando a Kitty se vestia a preceito, bem maquilhada, era uma mulher magnífica. Se ao menos fosse tão bonita de maneira de ser como era de aspecto!
- Há dois anos e dois meses que eu vivia com a Kitty e o Cal quando ela me comunicou o seguinte:
- Em Junho deste ano, assim que acabares a escola, voltaremos a Winnerrow.
Fiquei entusiasmada ao pensar que ia voltar a ver o avô e a Fanny. E a perspectiva de conhecer os estranhos e cruéis pais da Kitty intrigava-me. Ela odiava-os. Ela era o resultado do que eles lhe tinham feito (segundo o que o Cal dizia), e no entanto ia regressar a casa deles.
Em Abril, um dia a Kitty foi às compras e trouxe-me prendas - três vestidos de Verão, à moda, vestidos caros comprados numa loja de modelos exclusivos, e dessa vez deixou-me escolher sapatos verdadeiramente bonitos, uns cor-de-rosa, uns azuis e uns brancos, a condizerem com os vestidos.
- Não quero que a minha família julgue que eu não te trato bem. Comprei-os cedo porque os melhores são logo apanhados. As lojas estão cheias de roupa de Verão no Inverno e de roupa de Inverno no Verão; temos de despachar-nos... Se não, ficamos sem nada.
Por qualquer motivo, as palavras dela destruíram o entusiasmo provocado pelos vestidos novos, pelo facto de estes terem sido comprados só para provar qualquer coisa aos pais que ela dizia odiar.
Dias depois, a Kitty levou-me ao salão de beleza pela segunda vez, e apresentou-me às suas novas "raparigas" como sua filha. Parecia estar muito orgulhosa de mim. O salão estava maior, mais requintado, com lustres de
cristal e luzes escondidas que punham tudo a brilhar. Havia várias senhoras da Europa enfiadas em pequenos cubículos a fazerem tratamentos faciais. Servindo-se de lupas, os especialistas conseguiam descobrir as mais pequenas manchas na pele das clientes.
A Kitty sentou-se numa cadeira estofada de couro cor-de-rosa que subia e descia, inclinou-a para trás e fê-la girar, e pela primeira vez na minha vida lavaram-me a cabeça com champô profissional, cortaram-me o cabelo e arranjaram-mo. Fiquei ali sentada com um avental de plástico ao pescoço, a olhar para o espelho enorme, aterrada, até que a Kitty veio inspeccionar-me, disse que eu estava horrível, pegou na tesoura e cortou-me ainda mais o cabelo. Eu estava tensa e pronta a saltar da cadeira se ela me aparasse de mais o cabelo. As suas oito "raparigas" rodearam-nos para admirarem os dotes artísticos da Kitty. Mas ela não o estropiou. Aparou-o com cuidado, camada por camada e, quando acabou, recuou e sorriu para todas as "raparigas".
- Não vos tinha dito que a minha filha é uma beleza? Não melhorei o que a natureza lhe deu? Tu, Barbsie, tu viste-a quando ela cá chegou... Não está melhor? Não dizes que ela tem sido bem alimentada, bem tratada? Ela é minha filha, e as mães como eu não deviam gabar-se do que lhes pertence, mas eu não posso deixar de o fazer quando ela está tão bonita... E é minha, toda minha.
- Kitty - disse a mais velha das raparigas, uma mulher com cerca de quarenta anos. - Eu não sabia que você tinha uma filha.
- Eu não queria que qualquer de vocês me desrespeitasse por eu me ter casado tão nova - respondeu a Kitty com a sinceridade própria de quem falava verdade. - Ela não é filha do Cal, mas é parecida com ele, não é?
Não, eu não era parecida com ele. Fiquei ofendida e acrescentei outro bloco à minha torre de ressentimentos que estava destinada a desmoronar-se um dia.
A avaliar pela expressão de todas as raparigas, elas não acreditaram, mas a Kitty continuou a insistir que eu era filha dela, apesar de já lhes ter dito o contrário. Mais tarde, assim que tive oportunidade, falei nisso ao Cal. Ele franziu o sobrolho e mostrou-se desgostoso.
- Ela está a resvalar, Heaven. A viver uma vida de fantasia.
A fingir que tu és o filho que ela destruiu. Essa criança seria pouco mais velha do que tu se ela não tivesse provocado o aborto. Tem cuidado e não faças
nada para a contrariar... Pois Deus sabe como ela é imprevisível.
Como uma bomba de relógio com um grande rastilho...
À espera que eu acendesse o fósforo.
No entanto, a Kitty melhorou a minha aparência e eu senti-me reconhecida como uma criança, como sempre que ela fazia a mínima coisa por mim. Guardava todos os seus pequenos actos como se fossem um tesouro precioso que me competia conservar para sempre. Por cada gentileza, eu deixava cair um bloco de hostilidade e, no entanto, logo a seguir, uma palavra dela podia altear ainda mais a minha torre.
Acordei com aquilo que julguei ser uma ideia brilhante. Faria qualquer coisa maravilhosa à Kitty - talvez apenas para ocultar o ressentimento que eu sentia crescer de dia para dia. Agora que ela já não era detestável, eu temia-a ainda mais. Havia qualquer coisa naqueles olhos descorados, mais do que estranhos.
O Cal telefonou cedo, na manhã em que tencionávamos surpreender a Kitty com uma festa de Primavera.
- Isso não é trabalho a mais? Não podemos esconder a surpresa por mais tempo - acrescentou ele, um pouco exasperado. - Ela não gosta de surpresas. Tenho de lhe dizer. Se ela chega a casa com os cabelos em pé ou com o verniz das unhas lascado, nunca me perdoará, nem a ti. Ela vai querer que tudo esteja perfeito, vai querer vestir o melhor vestido, ter o cabelo arranjado, e ter a casa impecável, e talvez então se sinta satisfeita e queira exibir-se.
Preparámos a lista dos convidados, incluindo todas as empregadas da Kitty e os maridos, e os alunos das lições de cerâmica (de ambos os sexos) e as mulheres. O Cal até me deu cem dólares para eu comprar uma prenda para a Kitty, a meu gosto. Eu escolhi uma mala de mão rosa-forte que custou sessenta e cinco dólares. com o dinheiro que sobrou, comprei decorações para casa, próprias para os dias de festa... Andei a desperdiçar dinheiro, como a Kitty diria mais tarde, mas pelo menos ousei afrontar a sua ira.
O Cal telefonou-me na tarde do dia da festa. Lembrámo-nos que poderia ser uma festa para comemorar o final do curso dos seus alunos.
- Olha, Heaven, não te incomodes a fazer um bolo. Eu trago um da pastelaria, para não teres tanto trabalho.
Oh, não - disse eu logo. - Os bolos da pastelaria
não são tão saborosos como os que são feitos em casa, e o Cal bem sabe como ela está sempre a falar dos bolos feitos pela mãe, e como é difícil fazer bem um bolo. Ela faz troça dos meus cozinhados, e se eu fizer um bolo, isso provará qualquer coisa, não acha? Além disso, eu já fiz um. Nem vai acreditar quando vir as lindas rosas e as folhinhas verdes com que o enfeitei em cima e dos lados. Se me é permitido dizer, nunca vi um bolo tão bonito... E além disso também é o primeiro que eu vejo e que posso comer.
Suspirei porque nunca tivera uma festa minha, com convidados; nenhum de nós tivera, lá nos Willies. Até os nossos aniversários eram festejados a olhar para as montras das lojas de Winnerrow, para bolos talvez feitos de cartão.
- Só espero que ele esteja tão bom como está bonito.
Ele riu-se, garantiu-me que devia estar delicioso e desligámos.
A festa devia começar às oito horas. O Cal comeria na cidade, assim como a Kitty, que viria depois a correr para casa para a sua festa "surpresa".
No meu quarto, peguei na boneca que era da minha mãe e sentei-me em cima da cama para ela me ver enquanto eu me arranjava e enfiava pela cabeça um maravilhoso vestido de georgette azul. Para mim, a boneca representava a minha mãe e, através daqueles olhos de vidro, a alma da minha mãe fitava-me com admiração, amor e compreensão. Dei comigo a falar com a boneca enquanto escovava o cabelo e fazia um novo penteado que me dava um ar mais adulto. Tal como os sapatos novos e as meias, o vestido fora um presente do Cal pelos meus dezassete anos.
Por volta das seis horas, eu estava pronta para a festa. Senti-me tola por estar pronta tão cedo, como se fosse uma criança que não podia esperar para se vestir. Mais uma vez fui verificar a casa toda. com serpentinas de cores alegres enfeitara o lustre da sala de jantar, e o Cal pendurara os balões assim que a Kítty saíra de casa, de manhã. A casa tinha um ar tão festivo; mas eu já estava cansada de não fazer nada a não ser esperar pela chegada dos convidados. Do meu quarto, espreitei pela janela. Escurecera excepcionalmente depressa e algumas nuvens que anunciavam tempestade acumulavam-se por cima de nós, apressando o anoitecer. Pouco depois, caía uma chuva miúda. Os dias de chuva faziam-me sempre sono. Deitei-me na cama, com todo o cuidado, estendendo a saia para não se amachucar, e depois aninhei a boneca nos meus braços e mergulhei facilmente num sonho embalador com a minha mãe.
Ela e eu corríamos pelos montes, ela com os cabelos pálidos e brilhantes e eu com os meus longos cabelos pretos... Depois, era eu que tinha a cor dos cabelos dela e ela tinha a dos meus, e eu não sabia quem era. Rimo-nos em silêncio, como sempre acontece nos sonhos... E parámos no tempo... Parámos, parámos...
Acordei estremunhada. A primeira coisa que vi foram os olhos amarelos e salientes de outra rã verde que fazia de floreira. O que me acordara? Rolei os olhos nas órbitas sem voltar a cabeça. Seria aquele peixe dourado? Aquela mesa do elefante que não era tão perfeita como as de lá de baixo? Todo o lixo vinha para o meu quarto, todas aquelas peças de louça que eram feias e não se vendiam. Porque é que tudo o que era vidro me observava?
Uma sucessão de trovões ribombou por cima da minha cabeça. Logo a seguir, um relâmpago atravessou o quarto, em ziguezague. Agarrei-me mais à boneca.
De repente, o céu abriu-se. Não era uma daquelas agradáveis chuvas de Verão. Sentei-me e espreitei pela janela. As ruas lá em baixo estavam inundadas, as casas em frente estavam desfocadas e pareciam distantes, como se estivéssemos num outro mundo. Encolhi-me na cama, esquecendo-me do belo vestido de georgette. com a minha "mãe" nos braços, adormeci outra vez.
A chuva tamborilava com força e abafava todos os outros ruídos. Os trovões ribombavam como as bolas de bowling do gigante da fábula, que Rip Van Winkle ouvia, todas a rolarem ao mesmo tempo, colidindo com estrépito e provocando choques eléctricos que iluminavam a escuridão a todo o momento. Como o realizador de um filme mágico, eu adaptava todos os ruídos da natureza às cenas dos meus sonhos...
Na indefinição do sonho, mais belo do que a realidade, o Logan e eu dançávamos numa floresta verde e sombria. Ele era mais velho, e eu também... Havia qualquer coisa que crescia entre nós, um frémito electrizante que fazia o meu coração bater mais depressa, mais alto...
Da escuridão saiu um vulto, não vestido de branco como os fantasmas, mas de cor-de-rosa forte. Era a Kitty!
Sentei-me e esfreguei os olhos.
- Bem... - disse a Kitty com uma voz pachorrenta e terrivelmente imperturbável, no intervalo dos trovões.
- Ora vejam só o que a pacóvia está a fazer agora. Toda vestida e deitada na cama.
O que estava eu a fazer de tão terrível que a Kitty parecia a ira de Deus personificada, que comparecia ao fim do Mundo?
- Estás a ouvir-me, idiota?
Dessa vez estremeci, como se tivesse levado uma bofetada. Como é que ela podia tratar-me assim quando eu me matara a trabalhar durante todo o dia para lhe fazer uma festa? Era de mais! Eu estava farta! Estava cansada de ouvir tantos nomes feios, enjoada, cansada e farta. Desta vez não me ia acobardar nem mostrar-me fraca. Não! Eu não era nenhuma pacóvia!
A minha revolta alastrou como uma fogueira gigantesca... Talvez porque ela me deitou um olhar tão duro... Isso fez-me lembrar todas as vezes em que me esbofeteara sem motivo.
- Sim, estou a ouvir, minha fala-barato.
- O QUE É QUE TU DISSESTE?
- Disse QUE A ouvi, FALA-BARATO!
- O QUÊ?
Ela gritava ainda mais, a provocar-me.
- Kitty FALA-BARATO! Kitty FALA-BARATO! Kitty, que todas as noites diz NÃO ao marido e eu sou obrigada a ouvir. O que se passa consigo, Kitty? Perdeu o apetite sexual agora que está a envelhecer?
Ela não me ouviu. Distraiu-se com o que eu tinha nas mãos.
- Que diabo é que tens aí? Apanhei-te, não apanhei? Aí deitada a teu lado, como se eu não te tivesse dito um milhão de vezes para não fazeres essas coisas nojentas!
Ela tirou-me a boneca das mãos, apressou-se a acender as luzes todas do meu quarto e observou a boneca. Eu dei um salto para salvar a minha boneca.
- É ela! ELA! - gritou a Kitty, atirando a minha herança insubstituível ao chão. - É o anjo maldito do Luke!
Eu corri a apanhar a boneca, e ia tropeçando porque me esqueci que estava de sandálias de salto alto. Oh, graças a Deus que ela não se partira, só o véu de noiva é que caíra.
- DÁ-ME isso! - ordenou a Kitty, avançando na minha direcção para me tirar a boneca. Distraiu-se com o meu vestido, olhou-me de alto a baixo e viu as meias de nylon e as sandálias prateadas. - Onde é que arranjaste esse vestido, e esses sapatos?
- Enfeito bolos e vendo-os aos vizinhos, a vinte dólares cada um - menti, num acesso de fúria por ela ter atirado a minha boneca à parede e tentado destruir o meu bem mais precioso.
- Não me mintas nem digas disparates desses! E dá-me essa boneca.
- NÃO! Não lhe darei esta boneca.
Ela deitou-me um olhar furibundo, abalada por eu lhe ter respondido.
- Não me podes dizer que não, pacóvia, e espero não ter de o repetir - declarou, com voz dura.
- Eu já disse que não, Kitty, e estou a falar a sério. Não volta a vexar-me. Eu agora não tenho medo de si. Estou mais velha, maior e mais forte... E mais dura. Não estou enfraquecida por uma alimentação deficiente, portanto tenho isso a agradecer-lhe, mas nunca se atreva a pegar nessa boneca outra vez.
- E o que farias tu se eu o fizesse? - perguntou ela em voz baixa, perigosa.
Acrueldade do seu olhar espantou-me de tal maneira que nem consegui falar. Ela não mudara. Durante todo este tempo em que aparentemente eu vivera em paz, ela forjara uma espécie de ódio interior. Agora ele saía cá para fora, projectado através dos seus olhos descorados e agressivos.
- O que se passa, pacóvia, não me ouves?
- Sim, estou a ouvi-la.
- O que disseste?
- Eu disse que SIM, Kitty, que ouvi.
- O QUÊ? - disse ela mais alto, num tom mais exigente.
Agressiva, não mais disposta a mostrar-me humilde e indefesa, empinei a cabeça, orgulhosa e respondi:
- Você não é minha mãe, Kitty Setterton Dennison! Eu não sou obrigada a chamar-lhe mãe. Kitty chega perfeitamente. Fiz o possível para gostar de si e esquecer todas as coisas horríveis que me fez, mas não tentarei mais. Você não consegue ser humana e simpática por muito tempo, pois não? E eu fui estúpida ao ponto de organizar uma festa, só para lhe agradar, e dar-lhe oportunidade de usar toda essa louça e esses cristais... Mas a tempestade começou, e lá está você, porque você não sabe comportar-se como uma mãe. Agora chegou o momento de ser feia e má, outra vez. Vejo nos seus olhos pálidos esse brilho, na escuridão deste quarto. Não admira que Deus não lhe tenha dado filhos, Kitty Dennison. Deus é que sabia.
O clarão de um relâmpago iluminou o olhar de Kitty, pálido como um cadáver, enquanto as luzes acendiam e apagavam.
- Eu vim a casa arranjar-me para a festa... - disse ela, ofegante. - E o que encontro é uma pacóvia dos montes, mentirosa, traiçoeira e nojenta que não aprecia nada do que eu fiz.
- Eu aprecio todas as coisas boas que você fez, e é essa a razão de ser desta festa, mas você afasta os meus bons sentimentos quando me agride. Tenta destruir o que me pertence, enquanto que eu faço tudo o que posso para proteger o que lhe pertence. Você já me fez mal que chegue, Kitty Dennison! E eu não fiz nada para merecer esse castigo. Toda a gente dorme de lado, de barriga para baixo... E ninguém acha que isso é pecado senão você. Quem lhe disse quais são as posições certas e erradas para dormir? Deus?
- NÃO ME FALES ASSIM QUANDO ESTÁS EM MINHA CASA!
gritou a Kitty, lívida de fúria. - Eu vi-te. A infringir as minhas regras. Tu sabes que não deves dormir de lado agarrada a nada... E fizeste-o. TU FIZESTE-O!
- E o que tem de mal eu dormir de lado? Diga-me! Estou morta por saber! Isso deve estar ligado a qualquer coisa da sua infância, e veja o que lhe fez!
O meu tom era tão duro como o dela, agressivo também.
- Atrevida, hem? - disparou ela. - Julgas que és melhor do que eu só porque tens boas notas na escola. Gasto o meu dinheiro a vestir-te, e para quê? O que tencionas fazer? Não tens talento para nada. Mal sabes cozinhar. Não percebes nada de limpezas nem sabes conservar as coisas... Mas julgas que és melhor do que eu, porque eu não fui além do quinto ano. O Cal contou-te tudo a meu respeito, hem?
- O Cal não me disse nada, e se você não acabou o liceu tenho a certeza de que foi porque não conseguiu esperar para dormir com um homem qualquer, e fugiu com o primeiro que lhe propôs casamento... Tal como fazem todas as pacóvias dos montes. Mesmo que você tenha sido criada em Winnerrow, não é melhor do que nenhuma das pacóvias dos montes.
A culpa era de Kitty, não era minha, que o Cal começasse a olhar para mim de uma forma que me perturbava, esquecendo-se de que era o meu pai, o meu herói. A culpa era da Kitty. Enfurecia-me sobremaneira que ela me roubasse o único homem que me dera aquilo de que eu mais precisava - um verdadeiro pai. No entanto, foi ela a primeira a conseguir falar.
ELE CONTOU-TE! Eu SEI QUE ELE TE CONTOU, NÃO FOI?
gritou ela, com uma voz estridente. - Tu falaste de mim ao meu marido, contaste-lhe mentiras e fizeste com que ele já não me ame como dantes!
-Nós não falámos de si. Isso é demasiado enfadonho. Nós tentamos fazer de conta que você não existe, mais nada.
Depois atirei mais combustível, convencida de que já ateara o fogo e, portanto, que podia também saltar por cima de toda a madeira podre que andara a guardar desde o dia em que chegara. Nem uma só palavra dura que ela me dissera fora esquecida ou perdoada, nem uma só bofetada, nem um só nariz a sangrar ou um olho negro... Tudo fora armazenado para explodir naquele momento.
- Kitty, nunca mais lhe chamarei mãe, porque você nunca foi e nunca será minha mãe. Você é a Kitty, a cabeleireira. A Kitty, a professora de cerâmica falsa.
Dei meia volta no salto de uma das sandálias prateadas e apontei para a fila de armários. E ri-me, ri-me mesmo, como se aquela cena me agradasse, mas não me agradava, obrigava-meapenas a uma falsa bravata.
- Dentro daqueles armários fechados à chave você tem moldes profissionais, Kitty, milhares de moldes profissionais comprados. As caixas ainda têm as etiquetas com que vieram. Você não cria nenhum desses animais! Você compra os moldes, deita-lhe barro lá para dentro, exibe-os e rotula-os como se fossem seus, e isso é uma fraude.
Você podia ser processada.
A Kitty começou a ficar invulgarmente silenciosa.
Eu devia ter percebido que devia calar-me, mas tinha anos de raiva contida fechados dentro de mim, e vomitei-a, como se a Kitty fosse uma combinação do pai e de tudo o resto que conseguira estragar-me a vida.
- Foi o Cal que te disse isso - disse a Kitty, impassível.
- O Cal... traiu-me.
- Não.
Abri uma gaveta da minha secretária e tirei uma pequena chave de latão.
- Um dia encontrei isto quando fazia a limpeza aqui, e não pude deixar de abrir os armários que você tem sempre fechados à chave.
A Kitty sorriu. O sorriso dela não podia ser mais doce.
- O que percebes tu de arte, pacóvia? Eu é que fiz os moldes. Eu vendo os moldes aos bons clientes... como eu. Mantenho-os fechados para que os intrometidos como tu não me roubem as ideias.
Eu não lhe dei importância.
O céu que caísse, a chuva que fizesse transbordar o oceano, que afundasse Candlewick e o arrastasse para o fundo do mar, para ficar a dormir para sempre na perdida Atlântida... Que me importava? Eu podia partir, agora que o tempo aquecera. Podia fazer a viagem à boleia. Eu era teimosa. De uma maneira ou de outra, havia de chegar a Winnerrow, e quando lá chegasse, havia de arrancar a Fanny ao reverendo Wise, encontrar o tom, salvar o Keith e a "Nossa" Jane... Porque tinha pensado numa maneira de todos nós sobrevivermos.
Para provar a minha força, a minha determinação, voltei-lhe as costas e meti a minha boneca debaixo da cama, e depois, de propósito, deitei-me na cama e enrosquei-me de lado, pegando numa almofada que apertei contra mim. Lembrei-me nessa altura - uma coisa em que eu nunca tinha pensado - que era esse o mal que a Kitty julgava que eu fazia. Às vezes, as raparigas da escola falavam nisso, como se satisfaziam a si próprias, e eu caí na asneira de passar uma perna por cima da almofada e comecei a esfregar-me nela.
Umas mãos fortes agarraram-me pelas axilas e eu fui arrancada da cama. Gritei e tentei libertar-me da Kitty, tentei torcer-me para que as minhas mãos pudessem atingir a cara da Kitty ou provocar qualquer outro estrago que a obrigasse a largar-me. Era como se eu fosse um gatinho a debater-me nas garras de um tigre poderoso. Fui levada e arrastada pelas escadas abaixo, para a sala de jantar que eu enfeitara... Ela pegou-me e estendeu-me em cima do tampo de vidro da mesa.
- Você está a pôr dedadas no seu tampo - disse eu com sarcasmo, mostrando uma coragem estúpida perante o pior inimigo que eu jamais teria. - Nunca mais puxo o lustro aos seus tampos de vidro. Nunca mais cozinho para si. Nunca mais limpo a sua estúpida casa que tem demasiados animais espalhafatosos cá dentro.
- CALA-TE!
- NÃO ME APETECE CALAR-ME! vou dizer-lhe de uma vez para sempre. ODEIO-A, KITTY DENNISON! E poderia ter gostado de si se você me desse uma pequena hipótese. Odeio-a por tudo o que me tem feito! Você não dá hipóteses a ninguém, nem mesmo ao seu marido. Assim que você tem alguém que goste de si, faz uma maldade para que essa pessoa se volte contra si e veja o que você é: UMA DOIDA!
- Cala-te! - A calma com que ela o disse, desta vez.
Não saias dessa mesa. Senta-te aqui. Fica aqui até eu voltar.
A Kitty desapareceu.
Eu podia fugir naquele momento. Fugir pela porta, dizer adeus a esta casa de Candlewick. E podia pedir uma boleia na auto-estrada. Mas os jornais da manhã traziam umas fotografias horríveis na primeira página. Duas raparigas tinham sido encontradas violadas e mortas na berma da estrada.
Engolindo em seco, sentei-me, gelada, traída pela indecisão e lamentando, tarde de mais, tudo o que dissera. Mesmo assim... Não ia ser cobarde e fugir. Ia deixar-me ficar ali sentada e mostrar-lhe que não tinha medo de nada que ela fizesse... E que podia ela fazer de pior?
A Kitty voltou, e não trazia nem um chicote, nem uma bengala, nem um frasco de lisol para me atirar à cara. Trazia apenas uma longa e esguia caixa de fósforos próprios para acender a lareira.
- Amanhã vou a casa, vou a Winnerrow fazer uma visita - disse a Kitty no seu tom mais temível e monocórdico.
- Assim podes ir visitar a Fanny e o teu avô. E eu posso ir visitar a minha irmã, Maisie, e o meu irmão, Danny. vou voltar às minhas raízes, renovar os meus votos de nunca ser como eles. vou mostrar-te. Não quero que estejas feia. Fizeste-te mais bonita do que eu julgava. Os pacóvios dos montes vão tentar andar atrás de ti. Portanto, eu vou salvar-te dos teus iguais de uma forma imperceptível. Mas a partir de hoje aprenderás a não me desobedecer. Nunca mais. E se quiseres saber onde está a tua irmãzinha "Nossa" Jane e o que aconteceu àquele rapazinho chamado Keith, farás o que eu digo. Eu sei onde eles estão, quem é que os tem.
- Você sabe onde eles estão, sabe mesmo? - perguntei, entusiasmada, esquecendo-me de tudo o que dissera para enfurecer a Kitty.
- O céu sabe onde está o Sol? Uma árvore sabe onde há-de lançar as suas raízes? Claro que sei. Não há segredos para mim em Winnerrow, para mim que sou um dos deles... E eles julgam que eu sou um dos deles.
- Kitty, onde estão eles? Diga-me, por favor. Tenho de encontrá-los antes que a "Nossa" Jane e o Keith se esqueçam de mim. Diga-me! Por favor! Eu sei que procedi mal há pouco, mas você também procedeu mal. Por favor, Kitty.
- Por favor, o quê? Oh, meu Deus!
Eu não queria dizer aquilo. Agitei-me no tampo escorregadio da mesa, agarrando-me com tanta força ao vidro que, se este não fosse biselado, ter-me-ia retalhado os dedos.
- Você não é minha mãe.
- Dize.
- A minha verdadeira mãe está morta e a Sarah foi minha madrasta durante anos e anos...
- Dize.
- Desculpe... mãe.
- E que mais?
- Diz-me o que sabe sobre o Keith e a "Nossa" Jane?
- Dize.
- Peço desculpa de ter dito tantas coisas feias... mãe.
- Pedir desculpa não chega.
- O que posso eu dizer mais?
- Não há nada que possas dizer. Agora, não. Eu vi-te. Eu ouvi o que me disseste. Chamaste-me falsa. Chamaste-me pacóvia dos montes. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde havias de te voltar contra mim, que assim que eu virasse as costas tu havias de fazer uma tolice. Tinhas de te deitar de lado, a espojares-te e a satisfazeres-te, não tinhas? Depois despejaste o saco em cima de mim... E eu agora tenho de fazer o que puder para te livrar do mal.
- E depois diz-me onde estão o Keith e a "Nossa" Jane?
- Quando eu acabar. Quando estiveres salva. Depois... Talvez.
- Mãe... Porque está a acender um fósforo? As luzes já voltaram. Não precisamos de velas senão quando escurecer.
- Vai buscar a boneca.
- Porquê? - perguntei, desesperada.
- Não perguntes porquê, faze o que te digo.
- Diz-me o que sabe do Keith e da "Nossa" Jane?
- Digo-te tudo. Tudo o que sei. Ela já acendera um dos fósforos.
- Vai buscar a boneca antes que eu queime os dedos. Eu fui a correr, chorando quando me ajoelhei e tirei de baixo da cama a boneca que representava a minha mãe morta, a minha jovem mãe, cujo rosto eu herdara.
- Desculpe, mãe - disse eu a chorar, cobrindo-lhe a cara de beijos e desatando a correr outra vez. A dois degraus do fim, tropecei e caí. Levantei-me, a coxear, e fui o mais depressa que pude para o pé da Kitty. A dor no tornozelo era insuportável e só me apetecia gritar.
A Kitty estava ao pé da lareira da sala.
- Põe-na ali - ordenou ela friamente, apontando para os suportes da grelha de ferro.
O Cal dera-se ao trabalho de empilhar toros de madeira só para vista, porque a Kitty não gostava do fumo da madeira que sujava e "empestava" a sua casa imaculada.
- Por favor não a queime, Ki... mãe.
- É tarde de mais para desfazeres o mal que fizeste.
- Por favor, mãe. Desculpe. Não faça mal à boneca. Eu não tenho nenhuma fotografia da minha mãe. Nunca a vi. Só tenho isto.
- Mentirosa!
- Mãe... Ela não podia impedir o meu pai de fazer o que ele fez. Ela está morta... Você ainda está viva. Você acabou por ganhar. Casou com o Cal e ele é dez vezes melhor do que o meu pai é, ou poderia ser.
- Põe ali essa porcaria! - ordenou ela.
Eu recuei, o que a fez avançar um passo, com um ar ameaçador.
- Se quiseres saber onde estão o Keith e a "Nossa" Jane... Dá-me essa maldita boneca de livre vontade. Não me obrigues a arrancar-ta das mãos... Se não, nunca mais saberás dos teus irmãos.
De minha livre vontade.
Pelo Keith.
Pela "Nossa" Jane.
Entreguei-lhe a boneca.
Vi a Kitty atirar a minha adorada boneca vestida de noiva para a lareira. com as lágrimas a correrem-me pela face, ajoelhei-me, inclinei a cabeça e rezei em silêncio... Como se fosse a minha própria mãe que jazesse na pira funerária.
Horrorizada, vi o belo vestido de renda com pérolas e contas de cristal consumir-se no mesmo instante, e os cabelos louro-platinados a incendiarem-se; a linda pele que parecia verdadeira derreteu-se; duas pequenas labaredas consumiram as longas pestanas, escuras e encaracoladas.
- Agora ouve, pacóvia - disse a Kitty, quando aquilo terminou e a minha insubstituível boneca estava reduzida a cinzas. - Não vás dizer ao Cal o que eu fiz. Sorri, mostra-te satisfeita quando os meus convidados chegarem. ACABA com esse choro! Era apenas uma boneca! Apenas uma boneca!
Porém, aquele monte de cinzas na lareira representava a minha mãe, o meu direito ao futuro que devia ter sido dela. Como é que eu podia provar quem era? Como? Como?
Sem conseguir refrear-me, aproximei-me das cinzas quentes e retirei uma conta de cristal que rolou cá para fora. Brilhou na palma da minha mão como se fosse uma lágrima. A lágrima da minha mãe.
- Oh, detesto-a, Kitty, por ter feito isto! - solucei. - Não era preciso! Detesto-a tanto que desejava que fosse VOCÊ que estivesse a arder!
Ela bateu-me! com força, com brutalidade, uma vez, e outra, e outra, até eu cair no chão, e mesmo assim continuou a esbofetear-me e a dar-me murros no estômago... E eu perdi os sentidos.
Felizmente perdi os sentidos.
MEU SALVADOR, MEU PAI
Pouco depois de a festa ter acabado e de os amigos da Kitty se terem ido todos embora, o Cal foi dar comigo caída no chão do quarto onde eu dormia; já não conseguia pensar nele como o meu quarto. O Cal ficou à porta, a silhueta recortada pela luz do corredor. Eu sentia-me demasiado dorida e indisposta para me mexer. O meu lindo vestido novo estava rasgado e sujo. E apesar de ele estar ali, deixei-me ficar enrolada no chão, a chorar. Pareceu-me que sempre chorara por aquilo que tivera em tempos e que perdera. O meu orgulho, os meus irmãos e irmãs, a minha mãe... E a sua boneca.
- O que se passa? - perguntou o Cal, entrando no quarto e ajoelhando-se ao pé de mim. - Onde tens estado? O que há?
Eu continuei a chorar.
- Heaven, minha querida, tens de me dizer! Tentei esgueirar-me da festa mais cedo, mas a Kitty agarrou-se ao meu braço como se fosse uma carraça. Ela só dizia que tu não te sentias bem, que estavas com espasmos. Porque estás no chão? Onde estiveste durante a festa?
Ele inclinou-se para mim com todo o cuidado e contemplou afectuosamente o meu braço inchado e o meu rosto descorado, antes de reparar no vestido rasgado e nas meias cheias de malhas. O seu olhar enraivecido assustou-me.
- Oh, meu Deus - exclamou ele, cerrando os punhos.
- Eu devia ter desconfiado! Ela voltou a magoar-te e eu não vim em teu auxílio! Por isso é que ela se mostrou tão possessiva para comigo esta noite! Conta-me o que aconteceu pediu ele outra vez, embalando-me nos seus braços.
- Vá-se embora - solucei. - Deixe-me sozinha. Isto passa. Não estou ferida...
Procurei as palavras adequadas para acalmar a sua ansiedade e a minha desolação, que desta vez eu própria provocara.
Talvez eu fosse escumalha, e merecesse mesmo tudo o que a Kitty fizera. A culpa fora minha. O pai não podia gostar de mim. Se um pai não gostava de um filho,
quem é que havia de gostar? Ninguém podia gostar de mim. Estava perdida, completamente só... E nunca ninguém poderia gostar de mim, nunca.
- Não, não me vou embora.
Ele tocou-me no cabelo ao de leve, aflorando com os lábios a minha cara ferida e inchada. Talvez ele julgasse que ela estava assim só de eu chorar, e não por ter levado uma sova. As luzes não estavam acesas e ele não me via bem. Acharia ele que os seus pequenos beijos me aliviariam as dores? A verdade é que aliviavam, um pouco.
- Dói assim tanto? - perguntou ele, com uma voz compadecida. Parecia tão triste, tão carinhoso.
Tocou-me no olho inchado com as pontas dos dedos, que eram tão macias.
- Estás tão bonita assim deitada nos meus braços, com o luar a bater-te na cara. Pareces uma criança e uma mulher ao mesmo tempo, mais velha, mas tão jovem apesar de tudo, tão vulnerável, tão intacta!
- Cal... Ainda a ama?
- Quem?
- A Kitty? Ele ficou embaraçado.
- A Kitty? Não quero falar da Kitty. Quero falar de ti. De mim.
- Onde está a Kitty?
- As amigas da Kitty chegaram à conclusão de que ela precisava mesmo de um presente especial - disse ele com uma voz trocista e sarcástica, fazendo uma pausa e esboçando um sorriso irónico. - Foram todas ver um espectáculo de strip-tease masculino, e eu fiquei aqui contigo.
- Como se eu fosse um bebé.
Olhei para ele, lavada em lágrimas. O sorriso dele tornou-se mais tenso, mais cínico.
- Preferia estar aqui onde estou,, ao pé de ti, do que noutro sítio qualquer. Esta noite, com aquela gente toda, a comer e a beber, e a rir-se de anedotas parvas, apercebi-me de uma coisa pela primeira vez. - A voz dele tornou-se mais grave. - Tu entraste na minha vida e, para falar com franqueza, eu não te desejava. Não desejava assumir o papel de pai, mesmo que a Kitty sentisse que tinha de ser mãe. Mas agora, tenho tanto medo que a Kitty te agrida de qualquer maneira horrível. Tentei ficar aqui. E no entanto não te vali. Conta-me o que ela te fez hoje.
Eu podia contar-lhe. Eu podia fazer com que ele a odiasse. Mas estava assustada, não só por causa da Kitty mas também por causa dele, um homem feito que, naquele momento, parecia totalmente enlevado por uma rapariga de dezassete anos. Deixei-me ficar nos seus braços, inerte, completamente exausta, a ouvir o coração dele a bater.
- Heaven, ela esbofeteou-te, não é verdade? Ela viu que trazias um vestido novo e caro e tentou rasgar-to, não foi? perguntou ele com a voz embargada pela emoção.
Embrenhada como estava nos meus pensamentos, nem reparei que ele me pegara na mão e a levara ao peito. Por baixo da camisa, senti-lhe o bater do coração, firme e forte, como se eu fizesse já parte dele. Quis falar com ele e dizer-lhe que eu era como se fosse sua filha e que ele não devia olhar para mim como estava a olhar. Nunca ninguém me olhara com amor... O amor de que eu precisava há tanto tempo. Porque é que isso me fazia ter medo dele?
Ele consolou-me e assustou-me, fez-me sentir bem e criou-me complexos de culpa. Eu devia-lhe tanto, talvez de mais, e não sabia o que havia de fazer. A expressão dele era divertida, como se eu tivesse acendido um interruptor qualquer, sem saber, talvez por me ter entregue ao seu abraço com tal submissão. Para meu grande espanto, os seus lábios percorreram-me o pescoço, desfrutando o sabor e o toque da minha pele. Estremeci outra vez e quis dizer-lhe que parasse, mas tive medo que ele não gostasse de mim. Se eu o afastasse, não teria ninguém para me proteger da Kitty, ou que se preocupasse com o que me acontecia... E foi por isso que não lhe disse para parar.
Eu viajara das lágrimas para um território desconhecido, onde caíra numa armadilha, sem saber o que havia de fazer, ou de sentir... Não era mal nenhum, aquela ternura doce que ele exprimia quando roçou a sua boca pela minha, tocando-me ao de leve como se receasse assustar-me com uma carícia demasiado ousada... E depois, olhei para a cara dele.
Estava a chorar!
- Quem me dera que tu não fosses apenas uma linda criança. Quem me dera que fosses mais velha.
Aquelas lágrimas a brilhar nos seus olhos encheram-me de pena dele. Ele estava tão encurralado como eu, em dívida para com a Kitty até à raiz dos cabelos; não podia pura e simplesmente pôr de lado todo o esforço e os anos de aprendizagem de electrónica. Eu não podia afastá-lo nem pregar-lhe uma bofetada quando ele me dera a única ternura que eu recebera de um homem e me salvara de uma vida
que podia ter sido muito pior, ali, em Candlewick. Mesmo assim, murmurei:
- Nãaaao!
Porém, ele não parou de me beijar nem de me acariciar onde lhe apeteceu. Toda eu tremia, como se Deus, lá em cima, estivesse a olhar cá para baixo e a condenar-me ao fogo eterno, tal como o reverendo Wise afirmara, e a Kitty me lembrava todos os dias. Fiquei admirada por ele querer aninhar a cara nos meus seios enquanto as lágrimas lhe caíam como se fossem gotas de chuva e ele soluçava nos meus braços.
O que fizera ou dissera eu para que ele pensasse no que estava a pensar? A culpa e a vergonha apoderaram-se de mim. Seria eu má desde nascença, como a Kitty estava sempre a dizer? Porque é que eu provocara esta situação?
Apeteceu-me gritar e contar-lhe o que a Kitty fizera, que queimara a boneca da minha mãe... Mas talvez ele pensasse que se tratava de um desgosto trivial e estúpido, ver uma boneca queimada. E o que eram umas bofetadas comparadas com aquilo por que eu já passara?
"Acudam-me, acudam-me!", apeteceu-me gritar.
Não me façam perder o que resta do meu orgulho, por favor! O meu corpo traiu-me. Sabia-me bem o que ele estava a fazer. Sabia-me bem ser abraçada, embalada, afagada e acariciada. Uma coisa boa que ele me fazia sentir, no momento seguinte tornava-se má, perversa. Durante toda a minha vida eu ansiara por umas mãos que me tocassem com ternura, com amor. Durante toda a minha vida eu ansiara por um pai que gostasse de mim.
- Amo-te - sussurrou ele, voltando a beijar-me os lábios, e eu não lhe perguntei qual a extensão do seu amor, nem sequer como filha. Não queria saber. Não naquele momento, quando pela primeira vez na minha vida eu sentia que tinha valor, que era digna de ser amada e desejada por um homem como ele... Mesmo que no meu íntimo estivesse assustada.
- Como és doce e macia - murmurou ele, beijando-me os seios nus.
Fechei os olhos e tentei não pensar no que lhe permitia fazer. Agora, ele nunca mais me deixaria sozinha com a Kitty. Agora, ele arranjaria maneira de me salvaguardar, e de obrigar a Kitty a dizer-lhe onde estavam o Keith e a "Nossa" Jane.
Felizmente que as carícias nas minhas coxas, no abdome e nas nádegas por baixo do vestido roto pareceram satisfazê-lo. Talvez porque eu comecei a conversar, a fazer-lhe lembrar quem eu era. Numa torrente de palavras, despejei tudo, acerca da boneca queimada, da maneira como a Kitty me obrigara, dizendo que sabia onde estavam o Keith e a "Nossa" Jane.
- Acha que ela sabe mesmo onde eles estão? - perguntei.
- Eu não sei o que é que ela sabe - respondeu ele, lacónico e amargo, voltando à realidade. - Não sei se ela sabe mais alguma coisa que não seja ser cruel.
O Cal reparou nos meus olhos esbugalhados, assustados.
- Desculpa. Eu não devia estar a fazer isto. Desculpa-me por me ter esquecido de quem és, Heaven.
Eu fiz um sinal afirmativo, com o coração a palpitar, e vi-o tirar da algibeira da camisa uma caixinha embrulhada em papel prateado e atada com uma fita de cetim azul. Pôs-ma na mão.
- Tenho um presente para te felicitar por seres tão boa estudante e me deixares tão orgulhoso de ti, Heaven Leigh Casteel.
Abriu a caixa, levantou a tampa do pequeno escrínio de veludo negro que estava lá dentro e eu vi um belo relógio de ouro. O seu olhar procurou o meu, com um ar suplicante.
- Sei que sonhas com o dia em que fugirás desta casa, da Kitty e de mim. Por isso é que te ofereço um relógio com calendário, para contares os dias, as horas, os minutos e os segundos que faltam para encontrares os teus irmãos. E juro que farei tudo o que puder para descobrir o que a Kitty sabe. Por favor não fujas de mim.
Pelo seu olhar via-se que falava verdade. Também o seu amor por mim estava lá. Eu olhei, olhei, até que por fim fui obrigada a aceitar. Estendi o braço e deixei que ele me pusesse o relógio no pulso.
- Naturalmente, não podes deixar que a Kitty veja este relógio - disse ele, com amargura.
Inclinou-se para me beijar na testa com ternura e envolveu-me a cara com as mãos, antes de dizer:
- Perdoa-me por ter ultrapassado os limites. Às vezes, preciso tanto de alguém, e tu és tão meiga, tão jovem e tão compreensiva, e tão sedenta de afecto como eu.
Ele não reparou que eu deslocara o tornozelo, e eu fiquei desolada ao ver que não conseguia andar quando ele saiu do quarto e fechou a porta. Não consegui dormir. O Cal estava tão próximo, perigosamente próximo, e nós estávamos sozinhos em casa. Ele estava no outro quarto, a poucos metros de distância. Do outro lado da parede, eu quase sentia a necessidade que ele tinha de mim, e o meu medo terrível de que essa necessidade ultrapassasse o seu sentido de decência obrigou-me a levantar, a vestir um robe por cima da camisa de noite e a descer as escadas a custo. Fui para a sala de estar, estendi-me no sofá branco e fiquei à espera que a Kitty voltasse para casa.
Durante toda a noite a chuva caiu com força, precipitando-se nas vidraças e tamborilando no telhado, os trovões ribombaram e relampejou ao longe, o que me manteve agitada. Todavia, eu tinha um objectivo em mente. Queria confrontar-me com a Kitty e então se veria quem é que ganhava. De uma maneira ou de outra, eu tinha de obrigá-la a dizer-me onde estavam o Keith e a "Nossa" Jane. Conservava na mão uma pequena conta de cristal e um pedaço de renda esfarrapada que encontrara na lareira. No entanto, enquanto estava ali sentada no sofá, na sua casa imaculada, com todos aqueles animais multicores à minha volta, senti-me ultrapassada, derrotada. Adormeci e não ouvi os passos arrastados da Kitty quando esta chegou a casa, perdida de bêbeda.
Acordei com ela a falar alto, no quarto.
- Diverti-me imenso! - berrou ela. - Foi a minha melhor festa! A partir de agora, hei-de fazer isto todos os anos... E tu não podes impedir-me!
- Podes fazer o que te apetecer - respondeu o Cal, enquanto eu me aproximava das escadas. - Nunca mais quero saber do que tu fazes, ou do que tu dizes.
- Então vais deixar-me... Vais, vais?
- vou, Kitty. vou deixar-te - respondeu ele, para minha surpresa e alegria.
- Não podes, bem sabes. Estás colado a mim. Assim que te fores embora, ficas sem nada. Eu fico com a loja, e todos estes anos em que estiveste casado comigo irão pelo cano abaixo, e tu ficas outra vez sem um tostão... A menos que voltes para casa e vás dizer à mamã e ao papá que és um palerma.
- Tens uma maneira doce e convincente de falar, Kitty.
- Eu amo-te. Não é isso que conta? - disse a Kitty, cuja voz me pareceu de súbito vulnerável.
Olhei para cima e perguntei a mim própria o que estaria a acontecer. Estaria ele a despir-se, cheio de desejo, só porque ela se preparava para lhe dar autorização?
Na manhã seguinte, quando ouvi o Cal na casa de banho lá de baixo, levantei-me e comecei a arranjar o pequeno-almoço. O Cal estava a assobiar no duche. Estaria mais feliz?
A Kitty desceu, aparentemente outra, sorrindo para mim como se não tivesse queimado aquilo de que eu mais gostava e não me tivesse esmurrado a cara.
- Querida, porque é que ficaste lá em cima durante a festa que me ofereceste, hem? Porquê? Senti a tua falta, a sério. Queria mostrar-te às minhas amigas todas. As raparigas estavam todas mortas por te ver, e tu foste tímida e não apareceste nem as deixaste conhecer a minha linda filha que cada vez está mais bonita. Realmente, querida, tens de habituar-te a ter espasmos todos os meses, e esquecê-los... Se não, nunca terás prazer em ser mulher.
- Diga-me onde estão o Keith e a "Nossa" Jane! - gritei eu. - Prometeu que me dizia!
- Ora, querida, o que estás tu a dizer? Como é que eu havia de saber?
Ela sorriu, juro, sorriu como se se tivesse esquecido completamente de tudo o que fizera. Estaria a fingir? Oh, tinha de estar! Ela não era maluca a esse ponto! Depois veio o pensamento mais terrível... Talvez ela estivesse mesmo doida!
O Cal entrou e lançou à Kitty um olhar enojado, embora não dissesse nada. Nas costas dela, o seu olhar cruzou-se com o meu e lançou-me um aviso silencioso. Não faças nada, não digas nada. Deixa a Kitty entregue ao seu jogo de faz-de-conta, que nós temos o nosso. Senti um nó no estômago. Baixei o olhar e concentrei-me nos ovos que fritavam na frigideira.
Estávamos em Maio, e o bulício próprio da preparação para os exames andava no ar. Eu estudava horas a fio para ter boas notas. No final do mês, surgiu uma estranha nortada que rechaçou o calor da Primavera e, de repente, o tempo arrefeceu de mais para aquela época do ano. As caldeiras, que tinham sido desligadas em Março, ligaram-se outra vez. As camisolas conservadas em bolas de naftalina saíram dos roupeiros juntamente com as saias de lã. Na sexta-feira de Maio mais fria que eu já conhecera, fiquei na escola até mais tarde para uma reunião com Mr. Taylor, o meu professor de biologia. Ele pediu-me se eu levava a Chuckles, o hamster da nossa aula, para casa no fim-de-semana.
O meu dilema revelou-se no ar preocupado que fiz quando estava ao pé da enorme gaiola de arame do hamster, desejosa de gritar a verdade acerca do ódio diabólico que a Kitty nutria por todos os animais vivos, quando noutras circunstâncias eu teria ficado deliciada por cuidar do hamster fêmea, grávida, que era a mascote das aulas de biologia.
- Oh, não - apressei-me a responder quando ele insistiu. - Já lhe disse, Mister Taylor, a minha mãe não quer animais em casa. Eles sujam, cheiram mal e ela anda sempre à procura de cheiros que não reconhece.
- Oh, vá lá, Heaven, estás a exagerar - disse Mr. Taylor. - Eu sei que estás. A tua mãe é uma mulher encantadora e graciosa, a avaliar pela maneira como a vejo sorrir para ti.
Sim, como eram doces e meigos os sorrisos da Kitty Dennison! Como os homens podiam ser estúpidos, realmente! Até os homens que gostavam de livros, como Mr. Taylor.
O tom de voz do meu professor tornou-se mais convincente enquanto a nortada bravia fustigava o edifício da escola, causando-me arrepios, mesmo com o aquecimento ligado.
- As autoridades da cidade ordenam-nos que desliguemos o aquecimento durante os fins-de-semana - insistia ele -, e já todos os outros alunos se foram embora. Queres que a pobre futura mãe fique numa sala gelada para virmos dar com ela morta na segunda-feira? Anda lá, filha, partilha a responsabilidade de acarinhar um animal de estimação... Isso é que é amor, sabes, responsabilidade e preocupação.
- Mas a minha mãe odeia animais - respondi eu, com pouca convicção, pois gostava mesmo de ficar com a Chuckles durante o fim-de-semana inteiro.
Ele deve ter-se apercebido da minha ansiedade, porque continuou a tagarelar, deitando-me um olhar calculista:
- Aqui faz muito frio. Mesmo que a Chuckles tenha água e comida, está muito frio para uma futura mãe engaiolada...
- Mas... Mas...
- Não há mas. É a tua obrigação. Esta semana vou sair com a minha família. Se não, a Chuckles ficava em minha casa. Podia deixá-la em casa sozinha, com bastante comida na gaiola e o tacho cheio de água... Mas ela pode dar à luz a qualquer momento. E eu quero que lá estejas com a câmara de filmar que eu te ensinei a usar para mostrar a toda a turma o milagre do nascimento, no caso de isso acontecer enquanto ela estiver contigo.
E foi assim que eu me deixei convencer contra vontade, e que a Chuckles, às manchas castanhas e brancas, se instalou na casa branca e cor-de-rosa da Kitty, no meio de todos aqueles animais reluzentes, na cave, um sítio onde a Kitty nunca ia, agora que tinha uma escrava para lhe lavar e secar a roupa.
Todavia, a Kitty não era minimamente previsível. As suas oscilações de humor eram surpreendentes, dramáticas e, acima de tudo, perigosas. No meio de uma grande azáfama, procurei arranjar um sítio claro e limpo, afastado das correntes de ar, para a enorme gaiola. Pareceu-me bem que ficasse por baixo de uma janela alta onde batia o sol. Encontrei um velho écran, cuja laca preta estava a descascar, e montei-o. Agora a Chuckles estaria protegida não só das correntes de ar como também dos olhos cruéis da Kitty, se esta se atrevesse a entrar na cave. Não havia razão nenhuma para ela ir ao sítio onde eu instalara a Chuckles, junto de uma parede afastada. Mas estava ligeiramente preocupada com a segurança da Chuckles.
- Agora, acalma-te, Chuckles - disse eu, avisando o animalzinho, que se sentou nos quadris e começou a mordiscar na fatia de maçã que eu lhe dera. - Tenta não te servires muito da tua roda. No teu estado, não deves exagerar.
Amaldita roda chiava e guinchava, e mesmo depois de eu tirar a roda e a olear, fez um certo barulho quando a fiz girar na minha mão. A Chuckles corria como louca pela gaiola fora, à espera da sua roda. Assim que eu voltei a pô-la dentro da gaiola, a Chuckles saltou logo para cima dela e começou a girar... E a roda continuou a chiar, mas não muito.
Lá em cima, no corredor das traseiras, encostei o ouvido à porta fechada que dava para a cave. Estava tudo em silêncio. Abri a porta e pus-me à escuta. Mesmo assim, não ouvi nada. Ainda bem. Desci as escadas, cinco, seis, sete degraus, e parei para escutar. Só se ouvia um ruído fraco... Mas estava bem. A Kitty nunca ia à cave sozinha, e nada poderia fazer se o Cal estivesse na oficina. Eu lavara a roupa toda, portanto o que tinha ela para verificar?
Peguei em duas cadeiras velhas e pus uma de cada lado do écran, não fosse este tombar e cair por cima da gaiola. Experimentei-o, achei que tinha estabilidade e mais uma vez recomendei à Chuckles que se portasse bem. "... E por favor não tenhas os teus bebés antes de eu montar e preparar a câmara..."
A Chuckles continuou a girar na sua roda.
Foi outra daquelas noites estranhas em que a Kitty não ficou a trabalhar até muito tarde como era costume. Havia um toque de perturbação nos seus olhos sem cor.
- Estou com outra dor de cabeça - queixou-se ela com uma voz lamurienta. - vou para a cama cedo - anunciou depois de jantar. - Não quero ouvir a máquina de lavar louça a trabalhar, ouviste? Faz vibrar a casa. vou tomar uns comprimidos e dormir, dormir, dormir. Óptimo!
O sábado começou como qualquer outro. A Kitty levantou-se, macambúzia, cansada, a esfregar os olhos inchados e vermelhos e a queixar-se de que se sentia drogada.
- Não sei se consigo ir dar as minhas lições - resmungou ela quando estava a tomar o pequeno-almoço, enquanto eu me afadigava a fritar as salsichas no ponto, juntando-lhes um pouco de água para não as deixar secar. - Estou sempre cansada. A vida já não presta. Não consigo perceber isto.
- Tira uma folga - sugeriu o Cal, abrindo o jornal da manhã e começando a ler os títulos. - Volta para a cama e dorme até te levantares e não te sentires cansada.
- Mas eu devia ir dar as lições. Tenho os alunos à espera...
- Kitty, tu tens é de ir ao médico.
- Bem sabes que odeio médicos!
- Sim, eu sei, mas se estás sempre com dores de cabeça isso indica que há algum problema, ou então precisas de óculos.
- Bem sabes que eu não usarei óculos para não ficar com ar de velha!
- Podias usar lentes de contacto - ripostou ele, como que enfastiado. Olhou para mim e disse: - Hoje trabalho o dia inteiro, pelo menos até às seis horas. Contratei dois homens que precisam de ser treinados.
O Cal estava a querer dizer-me que não esperasse que a noite fosse muito divertida.
A Kitty esfregou os olhos mais uma vez, olhando para o prato que eu lhe pusera à frente como se não reconhecesse a sua refeição favorita da manhã, constituída por salsichas, ovos estrelados e papas de aveia.
- Não me apetece nada...
Levantou-se, deu meia volta e disse que ia para a cama dormir até acordar sem dores de cabeça.
- E tu podes telefonar a apresentar as minhas desculpas. Passei toda a manhã a limpar e a esfregar, e não ouvi nem
vi a Kitty. À tarde, limpei o pó, aspirei o chão lá em baixo e fui a correr ver quais eram as necessidades da Chuckles que, como era óbvio, não queria que eu me fosse embora, para ela não ficar sozinha. com os seus modos travessos e enternecedores, sentava-se e suplicava, e insistia sempre que eu me preparava para sair. Oh, se não fosse a Kitty eu traria a Chuckles para casa todas as noites, e deixava-a ficar no meu quarto.
- Está bem, querida - disse eu, coçando-lhe a cabeça fofa e macia, o que a fez soltar pequenos grunhidos de contentamento. - Brinca até te apetecer. O demónio cá de casa enfrascou-se com Valium e isso deixa-te em segurança.
O Cal não me levou ao cinema naquele sábado; estivemos os dois a ver televisão, mas nenhum de nós falou muito.
Domingo.
Acordei cedo, com a Kitty a cantar alto.
- Sinto-me bem - gritou ela ao Cal quando eu me levantei e desci as escadas a correr para me enfiar na casa de banho lá de baixo. - Apetece-me ir à igreja. HEAVEN!
berrou ela quando me sentiu passar pela porta do quarto, que estava aberta. - Desanda para a cozinha e faz o pequeno-almoço. Vamos à igreja. Todos. vou agradecer ao Senhor por ele me ter tirado as dores de cabeça...
Ora, lá estava ela igual a si própria.
Sentia-me cansada e sobrecarregada, e tentei fazer tudo antes de a Kitty vir para baixo. A Kitty desceu. Meti-me na casa de banho para tomar um duche rápido antes de começar o pequeno-almoço. Não, era melhor pôr a água a aquecer para o café e tomar duche entretanto. Depois do duche, iria ver a Chuckles enquanto o toucinho fumado fritava lentamente.
Contudo, alguém pusera já a água na chaleira, e estava a ferver. Fui para a casa de banho, convencida de que o Cal viera cá abaixo, desejoso de tomar as suas duas chávenas de café da manhã.
Pendurei o roupão e a camisa de noite num gancho atrás da porta e voltei-me para entrar na banheira.
Foi então que vi a Chuckles!
A Chuckles... Na banheira... Toda cheia de sangue! Uma longa tira de intestino saía-lhe pela boca; os bebés minúsculos saíam-lhe pela outra extremidade! Ajoelhei-me, a soluçar, e vomitei o conteúdo de um estômago quase vazio na banheira, onde se misturou com o sangue e os outros resíduos nojentos.
A porta abriu-se atrás de mim.
- Outra vez a fazeres porcarias, não é verdade? - perguntou uma voz rude da porta. - A gritares, como se estivesses a ver uma coisa que não esperavas. Agora, despacha-te, toma banho. Não permitirei que nenhuma pacóvia dos montes entre suja na minha igreja, sem tomar banho.
com os olhos esbugalhados de horror, de ódio, olhei para a Kitty.
- Você matou a Chuckles!
- Perdeste o juízo? Eu não matei Chuckles nenhuma. Nem sei do que estás a falar.
- OLHE PARA A BANHEIRA! gritei.
- Não vejo nada - respondeu a Kitty, olhando precisamente para o pobre animal morto e para as vísceras ensanguentadas. - Põe a válvula e enche a banheira, que eu fico a ver. Não levo gente porca para a minha igreja!
- CAL! - gritei, o mais alto possível. - SOCORRO!
- O Cal está no duche - respondeu a Kitty com um ar prazenteiro. - A fazer o que pode para se limpar dos pecados dele. Agora faze o mesmo, limpa-te dos teus.
- Você é doida, mesmo doida! - gritei. Tranquilamente, a Kitty começou a encher a banheira. Eu dei um salto e agarrei numa toalha para esconder a minha nudez. E ao fazê-lo, desviei o olhar da Kitty por instantes. Foi o suficiente. Como um bastão de basebol, a Kitty levantou o braço e empurrou-me para a banheira. Eu tropecei, perdi o equilíbrio, e a Kitty voltou a atacar, mas dessa vez eu consegui esquivar-me e, a gritar, dirigi-me para as escadas, a chamar pelo Cal, o mais alto que podia.
- VEM PARA AQUI E TOMA BANHO! gritou a Kitty.
Eu bati à porta da casa de banho de cima, a gritar para o Cal me ouvir, mas ele estava lá dentro com a água a correr, a cantar muito alto, e não me ouviu. Eu esperava a todo o momento que a Kitty subisse as escadas e me obrigasse a sentar-me naquela banheira cheia de porcaria e de morte. com um misto de atrevimento e de embaraço, rodei o puxador da porta. O Cal fechara-a à chave! Oh, raios, raios!
Deixei-me cair no chão e esperei que ele saísse. No momento em que ele fechou a torneira, eu levantei-me e gritei outra vez.
A medo, ele abriu a porta, ainda com o corpo a pingar e uma toalha à cintura.
- O que se passa? - perguntou, muito preocupado, puxando-me para si e enterrando a cara húmida nos meus cabelos, enquanto eu me agarrava a ele, desesperada. – Porque estás tão assustada?
Eu despejei tudo: que a Chuckles ficara na cave, que a Kitty usara qualquer coisa para lhe amarrar a barriga e a apertar, com o objectivo de tirar a vida a um animalzinho inofensivo e indefeso.
Ele ficou muito sério, soltou-me, pegou no roupão e, comigo a reboque, encaminhou-se para a casa de banho lá de baixo. Eu fiquei à porta à espera, incapaz de ver outra vez a pobre Chuckles. A Kitty desaparecera.
- Não há nada na banheira, Heaven - disse ele, vindo ao meu encontro. - A banheira está impecável...
Foi a minha vez de olhar. Era verdade. O hamster morto e as crias tinham desaparecido. A banheira estava a brilhar. Sem mais nada por cima a não ser uma toalha, fui à cave, atrás do Cal. Lá estava a gaiola vazia com a porta toda aberta.
- O que estão vocês os dois a fazer aí em baixo? - perguntou a Kitty, de cima. - Heaven, vai tomar banho e despacha-te. Não quero chegar atrasada à igreja.
- O que fez à Chuckles? - gritei eu quando ia no corredor.
- Referes-te àquela ratazana que eu matei? Deitei-a fora. Querias guardá-la? Cal - disse ela, voltando-se para ele, doce como o mel -, ela está furiosa porque eu
matei uma ratazana nojenta dentro da banheira. E bem sabes que eu não suporto ratazanas dentro da minha casa.
Os olhos frios como gelo da Kitty fixaram-se em mim, à laia de aviso.
- Vai lá, Heaven. Eu vou falar com a Kitty - disse o Cal. Eu não queria ir. Queria ficar a lutar por aquilo, obrigar o Cal a encarar a Kitty tal como ela era, uma psicopata que tinha de ser internada. Mas sentia-me demasiado fraca e doente para fazer outra coisa que não fosse obedecer. Tomei duche, lavei a cabeça, e até fiz o pequeno-almoço, enquanto a Kitty protestava sem parar, cada vez com mais veemência, dizendo que nunca vira nenhum hamster, que nem sabia como é que eles eram, que nunca iria sozinha à cave, que não sabia de nada.
Os seus olhos sem cor voltaram-se para mim.
- Odeio-te por tentares virar o meu homem contra mim! vou ter com as autoridades escolares e conto-lhe o que fizeste àquele pobre animal... E que tentas deitar as culpas para cima de mim. Foste tu, não foste? Eu nunca faria uma coisa tão baixa... Foste tu, só para me acusares! Podes ficar aqui até acabares a escola. Depois, rua! Podes ir para o diabo que eu não me importo.
- A Chuckles estava grávida, Kitty! Talvez isso fosse demasiado para si!
- Cal, estás a ouvir esta rapariga a mentir? Eu nunca vi um hamster... E tu?
O Cal acreditaria que eu seria capaz de fazer uma coisa horrível como aquela? Não, não, os seus olhos diziam-me que não. Deixa passar o tempo, por favor, por favor.
Porque não fora ele espreitar ao contentor do lixo? Porque não acusara directamente a Kitty? Porquê, Cal, porquê?
O pesadelo continuou na igreja.
Amazing grace... How sweet the sound...
Toda a gente cantava com um ar reverencial. Como eu me sentia distante, ao lado da Kitty, com o meu melhor vestido. Tínhamos um aspecto impecável, tão respeitável, cristão e temente a Deus! E eu não deixava de pensar num pobre ratinho morto. Quem havia de acreditar se eu contasse uma coisa destas?
A Kitty deixou cair o seu óbolo na bandeja que passou por nós; o Cal fez o mesmo. Eu olhei para a bandeja e depois para a cara oca do diácono que a levava. Recusei-me a deitar uma moeda.
- Deita - segredou a Kitty, dando-me uma cotovelada com força. - Os meus amigos hão-de pensar que tu és uma pagã, uma pessoa que não agradece as bênçãos que lhe são concedidas.
Levantei-me e saí da igreja, ouvindo atrás de mim toda a espécie de murmúrios. A loucura da Kitty estava a influenciar tudo, e obrigava-me a observar as pessoas e a pensar como é que elas seriam lá por dentro.
Desci a rua e comecei a andar mais depressa, deixando a Kitty e o Cal ainda na igreja. Ainda não tinha percorrido dois quarteirões quando o automóvel do Cal parou junto de mim, com a Kitty inclinada na janela, a gritar:
- Anda daí, rapariga, não sejas parva. Não podes ir para lado nenhum só com dois dólares... E esses pertencem ao Senhor. Entra. Já me sinto melhor. Tenho o espírito límpido como um sino, embora durante a noite e esta manhã ele me tenha pregado uma partida.
Ela estava a tentar dizer que não sabia o que fizera quando matara a Chuckles.
Entrei no automóvel, com relutância. Para onde iria eu com dois dólares na carteira?
Até chegarmos a casa fui a pensar no que havia de fazer.
Ela sentira que tinha de matar a Chuckles. Só as pessoas doidas é que faziam coisas sádicas como aquelas. E como é que eu iria encontrar uma desculpa razoável para a morte da Chuckles quando visse Mr. Taylor?
- Não lhe podes contar o que se passou - disse o Cal quando tivemos oportunidade de ficar sozinhos, enquanto a Kitty estava a dormir para se ver livre de um novo ataque de dores de cabeça. - Tens de dar a entender que a Chuckles morreu de parto...
- Mas está a proteger a Kitty! - exclamei, furiosa.
- Eu acredito em ti, mas também quero que termines o liceu. Consegues fazer isso se formos agora ter com as autoridades e tentarmos que ela seja acusada? Ela dar-nos-á luta. Teremos de provar que ela está doida, e tu sabes tão bem como eu que a Kitty só mostra o seu lado pior a ti e a mim. As "raparigas" dela acham-na maravilhosa, generosa e cheia de espírito de sacrifício. O padre adora-a. Temos de convencê-la a consultar um psiquiatra, para seu bem. E, Heaven, podemos jogar o nosso próprio jogo até essa altura, e entretanto eu estou a pôr alguns dólares de lado para tu teres algum dinheiro e fugires deste inferno.
Eu entrei e depois disse com uma voz calma:
- Eu cuidarei de mim, à minha maneira, quando chegar a altura.
Ele ficou a olhar para trás, como se fosse um rapazinho perdido, antes de fechar a outra porta, sem fazer barulho.
BÉNÇÃO SALVADORA
A nossa vida em Candlewick sofreu uma viragem inesperada depois da morte da Chuckles. Mr. Taylor aceitou com ingenuidade a minha desculpa segundo a qual a Chuckles morrera ao dar à luz. Passou-se um dia, e na gaiola que eu trouxera havia já outro hamster fêmea, também grávida (e pouco diferente daquela que a Kitty matara), também chamada Chuckles. Era doloroso ver que uma vida a mais ou a menos não fazia diferença.
"Não me vou afeiçoar a esta", disse eu com os meus botões. "Não vou cuidar de nada nem afeiçoar-me a nada enquanto a Kitty existir na minha vida."
Depois deste incidente, como se o assassínio a tivesse envergonhado, a Kitty resvalou para um silêncio profundo e prolongado. Ficava horas e horas sentada no quarto a olhar para o ar, a pentear-se e a escovar o cabelo, penteando-o até ele ficar espetado como uma escova de arame; depois, amaciava-o outra vez e repetia todo o processo, de tal maneira que era para admirar que ainda lhe restasse algum.
Parecia ter sofrido uma drástica alteração de personalidade. Barulhenta e agressiva como era dantes, tornara-se sorumbática e demasiado silenciosa, o que me fazia lembrar um pouco a Sarah. Pouco depois, deixou de se pentear e de arranjar as unhas e a cara. Já não se importava com a sua aparência. Vi-a deitar fora a sua melhor roupa interior, incluindo dezenas de soutiens caros. Chorava e depois mergulhava num poço escuro de reflexão. Disse a mim própria que ela merecia aquilo por que estava a passar.
Durante uma semana, a Kitty arranjou desculpas para não ir trabalhar, e ficou na cama, a olhar para o nada. Quanto mais a Kitty se afastava, mais o Cal perdia o
seu carácter abstracto, esquecia a sua melancolia e ganhava um ar novo e confiante. Pela primeira vez, parecia controlar a sua vida enquanto que a Kitty desistia de controlar a dela.
Era estranho, tão estranho, que eu não podia deixar de me interrogar sobre o que estava a passar-se. Podia ser um sentimento de culpa, vergonha e humilhação o que levava a Kitty a não conseguir encarar um novo dia? Oh, meu Deus, deixa que ela mude para melhor... Para melhor, Senhor, para melhor.
Terminaram as aulas e chegou o calor do Verão.
As temperaturas ultrapassavam os trinta graus centígrados e a Kitty continuava a comportar-se como se fosse uma morta-viva. Na última segunda-feira de Junho, fui ver por que razão é que a Kitty não se levantara nem estava pronta para reinar sobre o salão de beleza que era o seu domínio. Fiquei a olhar para ela, deitada na cama, recusando-se a olhar na minha direcção ou a reagir ao nome. Jazia ali como se estivesse paralisada. O Cal devia ter julgado que ela ainda estava a dormir quando se levantara. Veio da cozinha quando eu o chamei para lhe dizer que a Kitty estava muito doente. Ele chamou uma ambulância e ela foi levada de urgência para o hospital.
No hospital, foi submetida a todos os exames conhecidos da ciência médica. Aquela primeira noite em casa, sozinha com o Cal, foi muito desagradável. Eu desconfiava que o Cal me desejava e que queria ser meu amante. Percebia pela maneira como ele olhava para mim, sentia-o nos silêncios longos e desconfortáveis que de repente se abatiam sobre nós. O nosso relacionamento fácil desaparecera e deixara-me vazia e perdida. Eu mantinha-o à distância estabelecendo uma rotina diária que nos desgastava e insistindo para que passássemos todos os momentos que podíamos com a Kitty, no seu quarto particular do hospital. Todos os dias eu lá ia e fazia o que podia, mas a Kitty não melhorava, à parte ter começado a pronunciar algumas palavras.
- Casa... Quero ir para casa - dizia ela em voz baixa.
Ainda não, diziam os médicos.
Agora a casa era minha para eu fazer o que me apetecesse. Podia deitar fora as centenas de plantas domésticas incómodas, que me davam tanto trabalho, podia guardar algumas peças de louça berrante no sótão, mas não fiz nada disso. Continuei a fazer exactamente aquilo que a Kitty me ensinara: cozinhar, lavar, limpar o pó e aspirar, apesar disso me deixar esgotada. Sabia que estava a redimir-me dos meus actos pecaminosos com o Cal através do trabalho árduo. Censurei-me por ter feito com que ele me desejasse de uma maneira que não estava certa. Eu estava suja, como a Kitty sempre dissera. A sujidade estava a sair dos Casteel, da escória dos montes. E depois, ao contrário, eu pensava: NÃO! Eu era filha da minha mãe, natural de Boston... Mas... Mas... E depois perdia a batalha.
Eu é que tinha a culpa.
Eu é que provocava isto. Tal como a Fanny não conseguia deixar de ser quem era, eu também não conseguia.
É claro que sabia há muito tempo da paixão latente que o Cal nutria por mim, uma rapariga dez anos mais nova do que ele, atirada para os braços dele pela Kitty, através de mil e uma maneiras. Eu não entendia a Kitty, talvez nunca viesse a entendê-la, mas desde aquele dia horrível em que ela me queimara a boneca, a necessidade e o desejo dele tinham-se tornado dez vezes mais intensos. Ele não via outras mulheres, não tinha propriamente mulher e era com certeza um homem normal, que precisava de descontrair-se de qualquer maneira. Se eu continuasse a rejeitá-lo, ele afastar-se-ia de mim e deixar-me-ia só? Eu estimava-o e temia-o ao mesmo tempo, queria agradar-lhe e queria rejeitá-lo.
Agora ele podia levar-me mais vezes a sair à noite, com a Kitty no hospital, Kitty, a cobaia à qual era possível fazer todos os exames médicos com que um batalhão de clínicos poderia sonhar e na qual estes não descobriam nada. E ela não dizia nada que lhes fornecesse uma pista para o seu misterioso sofrimento.
Num pequeno gabinete do hospital, a equipa médica da Kitty trocou impressões comigo e com o Cal, à procura de pistas, e nenhum de nós soube o que havia de dizer.
A caminho de casa, o Cal não disse uma palavra. Nem eu. Sentia a dor e a frustração dele, a solidão... Mas por minha causa. Ambos tínhamos passados diferentes e esforçávamo-nos por viver com as cicatrizes deixadas pela Kitty. Na garagem, ele mandou-me sair e eu subi as escadas a correr e enfiei-me no meu quarto, onde me sentia em segurança. Despi-me, vesti uma linda camisa de noite e apeteceu-me fechar a porta à chave. Não havia fechaduras em casa da Kitty, excepto nas casas de banho. Inquieta, deitei-me na cama, com medo de que ele subisse, falasse comigo, me obrigasse... E eu ficaria a odiá-lo. A odiá-lo tanto como odiava o pai.
Ele não fez nada disso.
Ouvi a aparelhagem estereofónica lá em baixo, a tocar o tipo de música dele, não o da Kitty. Música espanhola... Estaria ele a dançar sozinho? Deixei-me invadir pela compaixão e por um complexo de culpa, também. Levantei-me, peguei num roupão e espreitei as escadas, deixando um romance inacabado em cima da mesa-de-cabeceira. Era a música que me obrigava irresistivelmente a descer as escadas, dizia eu com os meus botões.
Na realidade, o facto de ter casado com a primeira mulher que o seduziu não levara o pobre Cal a lado nenhum. E amar-me era outro erro. Eu sabia. Tinha pena dele, amava-o e desconfiava dele. Sentia-me estrangulada pelas minhas próprias necessidades, culpas e medos.
Ele não estava a dançar sozinho, embora a música continuasse a tocar. Estava de pé, a olhar para o tapete oriental, sem o ver, diria eu, a avaliar pelo brilho dos seus olhos. Entrei e pus-me a seu lado. Ele não se voltou nem deu sinais de perceber que eu estava ali; continuou a olhar, como se examinasse todos os amanhãs da sua vida com a Kitty como sua mulher, inútil para ele, um fardo do qual ele teria de cuidar. E ele tinha apenas vinte sete anos.
- Que canção é essa que está a ouvir? - perguntei-lhe em voz baixa, assustada, forçando-me a tocar-lhe no braço e a consolá-lo.
Em vez de me responder, começou a cantar baixinho; e, nem que eu viva cem anos, nunca me esquecerei da doçura daquela canção e da maneira como ele recitava o poema que versava sobre um desconhecido no paraíso.
Pegou-me na mão, fitou-me com uns olhos luminosos e profundos como eu nunca lhe vira, e cuja luz parecia vir da Lua e das estrelas, e de mais algum lado, e em espírito eu vi o Logan, o homem espiritual perfeito que me amaria para sempre, tal como eu queria e precisava de ser amada.
Creio que a música me alterou assim como a sua voz e o seu olhar doce, porque, sem me dar conta disso, agarrei-me ao pescoço dele. Não foi de propósito que lhe pousei a mão na nuca, encaracolando-lhe o cabelo com os dedos e acariciando-lhe a cabeça com a outra, puxando-a para junto dos meus lábios que aguardavam avidamente o seu beijo. Não, aconteceu, pura e simplesmente. A culpa não foi minha, nem dele. Foi do luar cativo dos olhos dele, da música no ar, da doçura dos nossos lábios ao encontrarem-se, foi de tudo isso.
A mão dele envolveu-me a cabeça, afagou-a, deslizou ao longo das minhas costas, tacteando-as para satisfazer a sua necessidade, e depois pousou na minha anca, hesitando antes de ele a passar para as minhas nádegas, ao de leve, aflorando-me os seios, descobrindo-me de novo, tentando despertar-me no momento em que os lábios dele se encontraram com os meus. Afastei-o.
- Pare! - Dei-lhe uma bofetada. Gritei: - NÃO, NÃO! Desatei a correr pelas escadas acima, fechei a porta do meu quarto com força, desejosa de que tivesse fechadura, desejosa de ser mais parecida com a Fanny, em que tudo era mais natural, e desprezando-me por pensar sequer nisso. Porque eu amava-o naquele momento.
Amava-o tão profundamente, tanto, que era doloroso pensar na minha mão a acariciar o seu rosto adorado. Os rapazes de Winnerrow chamar-me-iam provocadora, ou muito pior do que isso. Apeteceu-me gritar ao Cal que me desculpasse. Quis ir ter com ele ao quarto mas recuei ao recordar todas as palavras que a Kitty me dirigira para que eu me sentisse sórdida, suja, imoral.
Mais uma vez, qualquer força poderosa me empurrou para o cimo das escadas. Olhei lá para baixo. Ele ainda lá estava, como se fosse uma estátua colada ao chão da sala de estar, com a mesma música a tocar. Precipitei-me pelas escadas abaixo, transportada por qualquer noção romântica de sacrifício para lhe agradar. Ele não se voltou nem disse nada quando me pus a seu lado. Dei-lhe a mão, receosa, e apertei-lhe os dedos. Ele não reagiu. Eu disse em voz baixa:
- Desculpe ter-lhe dado uma bofetada.
- Não faz mal. Eu mereci-a.
- Parece estar tão triste, Cal.
- Sou um idiota, e estou aqui a pensar na minha vida e nas asneiras todas que fiz... E a pior delas foi ter-me permitido pensar que tu me amavas. Mas tu não me amas. Tu só queres um pai. Eu podia odiar o Luke tanto como tu por te ter perdido quanto tu precisavas dele; então talvez tu não precisasses tanto de um pai.
Abracei-o outra vez. Inclinei a cabeça para trás, fechei os olhos e esperei que ele me beijasse... Mas dessa vez não iria fugir. Estava errado e eu sabia, mas devia-lhe tanto, mais do que poderia recompensá-lo. Não ia provocá-lo e depois dizer que não, como a Kitty fizera durante anos. Eu amava-o. Precisava dele.
Nem mesmo quando ele me pegou ao colo e me levou para o seu quarto, me deitou em cima da cama e começou a fazer todas aquelas coisas aterradoras e impróprias, nem mesmo nessa altura eu percebi o que desencadeara, e dessa vez já era demasiado tarde para o impedir. O rosto dele estava cheio de felicidade, os olhos dele brilhavam, os seus movimentos faziam chiar as molas da cama, e eu saltava, os meus seios gingavam com a força pura e animalesca do amor. Então era assim. Aqueles impulsos, aquela dor quente, escaldante, que ia e vinha... E se o meu espírito consciente estava chocado e não sabia como reagir, o meu físico inconsciente tinha um conhecimento inato, movendo-se sob os impulsos dele, como se noutras vidas eu tivesse feito aquilo dez mil vezes com outros homens que eu amasse. E quando acabou, e ele se deitou de lado, enroscado em mim, eu senti-me atordoada com o que lhe permitira fazer, a ele e a mim. As lágrimas escorreram-me pela cara abaixo e foram molhar a almofada. A Kitty queimara o que de melhor havia em mim no momento em que queimara a boneca.
Deixara apenas o lado negro do anjo que fora para os montes e que lá morrera.
Ele acordou-me de noite, dando-me pequenos beijos na face, nos seios nus, e fez a pergunta. Era como se eu ouvisse a Kitty a gritar "NÃO, NÃO, NÃO!", como devia ter gritado tantas vezes sempre que ele lhe pedia o mesmo. Eu fiz um aceno de cabeça e cheguei-me a ele e de novo fomos um só. Quando acabámos, senti-me de novo atordoada e enojada com os meus actos, com a minha reacção excessivamente entusiástica. Escumalha dos montes! Era como se eu ouvisse a Kitty a gritar. Os Casteel que não prestam para nada, ouvia eu Winnerrow inteira a gritar.
"Era mesmo isso que nós esperávamos de uma Casteel, de uma porca que não presta para nada."
Os dias e as noites passavam depressa e eu não conseguia parar o que começara. O Cal torneava todas as minhas objecções, dizendo que era um disparate eu sentir-me culpada ou envergonhada quando a Kitty estava a ter o que merecia, e eu não fazia nada pior do que muitas raparigas da minha idade. Ele amava-me, amava-me mesmo, e não era nenhum franganote que estivesse a servir-se de mim. Nada do que ele disse afastou a vergonha ou a consciência de que o que eu estava a fazer com ele era impróprio, totalmente impróprio.
Ele passou duas semanas sozinho comigo que aparentemente o deixaram muito feliz, enquanto eu fingi ter-me libertado da vergonha e da culpa. Depois, um dia de manhã, saiu cedo de carro para trazer a Kitty para casa. Eu tinha a casa a brilhar e cheia de flores. Ela deitou-se na cama, contemplando com um olhar vazio tudo o que eu fizera para alindar a casa, e não deu sinais de saber onde estava. Dissera que queria vir para casa... Talvez só para bater no chão com uma bengala e exigir a nossa atenção. Oh, como eu aprendi a detestar o som daquela bengala a bater no chão que ficava por cima da sala de estar!
Uma vez por semana, as empregadas do salão de beleza iam lá a casa lavar-lhe os cabelos ruivos e penteá-los, e arranjar-lhe as mãos e os pés. Eu estava desconfiada de que a Kitty era a inválida com melhor aspecto que havia na cidade. Às vezes, comovia-me o seu desamparo, ali deitada com as suas lindas camisas de noite cor-de-rosa, o cabelo comprido e espesso, e muito aprumada. As "raparigas" mostravam-se muito dedicadas à Kitty, e vinham muitas vezes sentar-se, conversar e rir-se enquanto eu lhes servia os mimos que fizera na melhor louça da Kitty, e depois andava a correr para manter a casa limpa, ser uma boa companheira para o Cal, governar a casa e pagar as contas, servindo-me do livro de cheques dela.
- Ela não gostaria que fosse eu a fazer isto - disse, com um ar preocupado, a mascar na extremidade de uma esferográfica. - Devia ser você a fazê-lo, Cal.
- Eu não tenho tempo, Heaven.
Ele pegou no monte de contas que estava em cima de uma pequena secretária que fora da Kitty e arrumou-as num arquivador.
- Olha, está um lindo dia de Verão e há quase um mês que estamos aqui a tratar da Kitty. Precisamos de pensar a sério no que havemos de fazer com ela. Pagar àquelas enfermeiras que vêm a casa ajudar custa uma fortuna. E quando tu voltares para a escola, eu precisarei de outra enfermeira... De cuidados permanentes. Já tiveste notícias da mãe dela?
- Eu escrevi-lhe a dizer que a Kitty estava muito doente. Mas ela ainda não respondeu.
- Está bem... Quando ela responder, eu telefono-lhe e falo com ela. Ela deve muito à Kitty. E talvez antes de começarem as aulas possamos arranjar uma solução permanente. - O Cal apontou para a Kitty e acrescentou: - Pelo menos parece que ela gosta de ver televisão.
Eu nunca o vira tão infeliz.
Seria aquela a retribuição... A Kitty merecia ter o que tinha? Ela pedira, e Deus, nos seus misteriosos desígnios, levara a melhor, afinal. E a minha fadiga obrigava-me a dizer que sim, que voltar a Winnerrow e entregar a Kitty à mãe seria uma boa ideia, e dar-me-ia a oportunidade de ver a Fanny, de verificar como estava o avô... E de procurar o tom, já para não falar do Logan. Não conseguia
pensar para além disso. E agora, como é que eu podia sequer olhar para o Logan?
Por fim, chegou uma carta de Reva Setterton, a mãe da Kitty.
- Detesto voltar lá - disse o Cal depois de ler a breve carta que não revelava qualquer preocupação séria com a filha doente. - Posso afirmar pela maneira como eles me olham que julgam que eu casei com ela por dinheiro, mas se nós não ficarmos em casa deles julgarão que tu e eu mantemos o tipo de relação que existe na realidade.
Ele não olhou para mim quando disse isto; no entanto, havia um toque de melancolia e de ansiedade na sua voz que me fez sentir culpada outra vez. Engoli em seco, estremeci e tentei não pensar no que ele quisera dizer.
- Além disso, precisas de descansar. Tens demasiado trabalho com ela, mesmo quando a enfermeira cá está. Se continuarmos assim, ficarei arruinado só de pagar às enfermeiras. E não posso permitir que largues a escola para tratares dela. O pior é que nada é estranho no comportamento da Kitty a não ser o seu desejo de ficar em casa a ver televisão.
- Regresse à vida e ame-o antes que seja tarde de mais disse eu à Kitty naquele dia, tentando fazê-la compreender que ela estava a perder o marido. Ela atirara-o para mim com a sua frieza, a sua crueldade, a sua incapacidade de dádiva.
Mais tarde, quando ele chegou a casa, eu disse, em voz baixa, assustada, sem querer abandoná-lo, agora que ele não tinha ninguém:
- A Kitty não quereria ficar aqui de dia e de noite se não se passasse qualquer coisa terrível.
- Mas eu levei-a aos melhores médicos que há na região. Eles fizeram-lhe todos os exames possíveis e não encontraram nada.
- Lembra-se quando aqueles médicos lhe deram o seu diagnóstico? Eles admitiram que às vezes o corpo é um mistério tanto para eles como para nós. Apesar de os neurologistas dizerem que ela parece estar de perfeita saúde, eles não sabem o que se passa dentro do cérebro dela, pois não?
- Heaven, tomar conta dela equivale a arruinarmos as nossas vidas. Eu não te tenho na medida em que preciso de ti. A princípio julguei que fosses uma bênção disfarçada.
O Cal soltou uma gargalhada curta e seca. - Temos de levar a Kitty para Winnerrow.
Desamparada, olhei para ele, sem saber o que havia de dizer.
A Kitty estava na cama, com uma camisa de noite rosa-forte por baixo de um casaquinho de dormir enfeitado com pequenos folhos pregueados. O seu cabelo ruivo estava cada vez mais comprido e tinha um aspecto muito saudável.
A sua massa muscular não parecia tão flácida como dantes, e o olhar nunca fora tão duro nem apático como no momento em que entrámos juntos e ela se voltou para nós.
- Onde estiveram? - perguntou ela, com uma voz débil, mostrando-se pouco interessada.
Antes de qualquer de nós responder, ela adormeceu e eu fiquei cheia de pena ao ver uma mulher tão forte e saudável a dormir tranquilamente para o resto da sua vida.
Também me sentia entusiasmada e aliviada, com um raro sentido de antecipação, como se Winnerrow não me tivesse dado senão desgostos.
- Cal... Há momentos em que penso que ela está a melhorar - disse eu depois de sairmos do quarto dela.
O Cal franziu o sobrolho.
- O que te leva a pensar assim?
- Não sei. Não é nada que ela faça ou não faça. Só que, quando eu estou no quarto dela a limpar as coisas que ela tem em cima da cómoda, sinto que ela me observa. Um dia, levantei a cabeça e podia jurar que havia uma certa emoção no seu olhar, e não aquela expressão vazia que é habitual nela.
Ele ficou alarmado.
- Mais uma razão para nos despacharmos, Heaven. O meu amor por ti obrigou-me a reconhecer que nunca a amei. Sentia-me só, mais nada, e tentei preencher o vazio da minha vida. Preciso de ti; amo-te tanto que estou quase a rebentar. Não te afastes nem me faças sentir que eu estou a forçar-te.
Os seus lábios nos meus tentaram transmitir-me a mesma paixão que ele sentia; as suas mãos fizeram o possível por me conduzir ao êxtase que ele atingia com tanta facilidade... Porque não me abandonava a sensação de que eu estava a afogar-me? Cada vez mais para baixo, sempre que fazíamos amor.
Ele possuiu-me com o seu corpo, com o seu desejo, com as suas necessidades, tão intensamente, que começou a assustar-me como a Kitty me assustara em tempos. Não que me tivesse magoado fisicamente... Mas mentalmente e moralmente eu sentia que não havia remédio para mim. Mesmo assim, amava-o, e sentia a mesma fome insaciável e dolorosa de ser acarinhada.
O facto de voltar à minha terra ia salvar-me, salvar o Cal e salvar a Kitty. Era essa a minha convicção.
Havia de encontrar o tom, ver o avô, visitar a Fanny, descobrir o Keith e a "Nossa" Jane. Deixei-me inebriar por essa litania que repetia sem parar. Fiz de Winnerrow uma espécie de refúgio e acreditei que ele encerrava todas as soluções.
REGRESSO A WINNERROW
18 A FAMÍLIA DE WINNERROW
O Cal e eu fizemos uma cama para a Kitty no banco de trás, metemos as malas no porta-bagagens, e partimos num belo dia soalheiro de meados de Agosto, poucos dias antes do trigésimo sétimo aniversário dela. A Kitty estava incapacitada há dois meses e, a avaliar pelo seu ar parado, tudo indicava que iria ficar assim.
Na véspera, as "raparigas" tinham-lhe lavado e arranjado o cabelo, as mãos e os pés, e naquela manhã eu dera-lhe um banho com a esponja, vestira-lhe um lindo soutien cor-de-rosa e a seguir, o seu fato cor-de-rosa de Verão, novinho. Penteara-a o melhor que pudera e dera-me ao trabalho de a maquilhar para ela ficar bonita. Mas, pela primeira vez durante uma viagem, a Kitty não disse uma palavra. Era como se estivesse morta, como a boneca que ela tão cruelmente queimara.
Tudo o que pudéssemos dizer acerca desse regresso à Virgínia Ocidental ficou por dizer quando o Cal e eu nos sentámos no banco da frente, com espaço suficiente entre nós para pormos a Kitty, se ela pudesse sentar-se. Assim que a Kitty e o Cal se instalassem em casa da família dela, ele viria ter comigo para satisfazer as suas necessidades. Eu pedia a Deus para que os Setterton nunca soubessem o que havia entre nós. Isso afligia-me tanto que me sentia doente. O Cal pensaria na mesma coisa? Lamentaria agora as suas declarações de amor a uma pacóvia dos montes?
Aquele era o nosso momento da verdade, ou iria ser, dentro de pouco tempo. O olhar dele concentrou-se na estrada e o meu na paisagem que passava. Daí a umas semanas começariam as aulas e antes disso teríamos de resolver o que faríamos com a Kitty.
Eu não podia deixar de comparar esta viagem de Verão com a que fizéramos no Inverno, há mais de dois anos. Tudo o que então me impressionara tornara-se agora um lugar-comum. Os arcos dourados do McDonalds já não despertavam o meu respeito nem a minha admiração, e os hamburguers já não me sabiam tão bem desde que eu frequentava os melhores restaurantes de Atlanta. O que me faria agora o Cal? Conseguiria desistir do seu amor e da sua necessidade,
tal como a Kitty desistira tão facilmente do que fora? Suspirei e obriguei-me a pensar no futuro, quando estivesse sozinha. Já me inscrevera nos exames finais e
candidatara-me a seis universidades diferentes. O Cal dissera que iria comigo para a faculdade e que acabaria o seu curso enquanto eu me iniciava no ensino superior.
Só quando íamos a meio caminho é que percebi qual a razão por que Miss Deale viera para a nossa região montanhosa, dar o melhor do seu talento àqueles que mais precisavam. Nós éramos os esquecidos, os desafortunados das regiões das minas de carvão. Há muito tempo, eu dissera ao tom, por brincadeira, que seria outra Miss Deale; agora, olhando à minha volta, sabia que desejava acima de tudo ser uma professora inspiradora como ela. Agora que eu tinha dezassete anos, o Logan devia estar na faculdade, viria a casa nas férias de Verão, mas pouco depois partiria. Leria ele a culpa e a vergonha no meu rosto? Detectaria ele qualquer coisa que lhe desse a entender que eu já não era virgem? A avó sempre afirmara que sabia quando uma rapariga era "impura". Eu não podia contar ao Logan o que se passara com o Cal, nem a ninguém, nem mesmo ao tom. Senti o peso do fardo da minha vergonha.
Os quilómetros sucediam-se uns aos outros. Quando chegámos à zona montanhosa, começámos a subir e a andar às curvas. As bombas de gasolina começaram a rarear. Os motéis grandes e espraiados deram lugar a pequenas cabanas enfiadas em bosques densos e sombrios. Pequenas construções de segunda qualidade e sem as paredes pintadas anunciavam no entanto outra povoação campestre, afastada da estrada de terra batida. Não havia auto-estrada para nos levar aos Willies. Como este nome me parecia agora assustador!
Eu contemplava o campo da mesma maneira que a minha verdadeira mãe o devia ter contemplado há dezassete anos atrás. Ela teria apenas trinta e um anos se fosse viva. Oh, que pena ter morrido tão nova! Não, ela não era obrigada a morrer. A ignorância, a estupidez dos montes é que a matara.
Como é que a minha mãe tivera coragem para casar com o Luke Casteel? Que loucura é que a afastara de um local civilizado como Boston, para ir acabar aqui, onde a educação e a cultura eram escarnecidas e a opinião geral era "quer cá saber... A vida é curta... Agarra-te ao que podes e pira-te"? Levar a vida a correr, para tentar escapar à pobreza, à fealdade, à brutalidade, e nunca ter êxito.
Virei-me para trás e olhei para a Kitty. Pareceu-me que estava a dormir.
Mais à frente, a estrada bifurcava-se. O Cal virou à direita, o que nos afastou do caminho de terra batida que nos levava à nossa pequena e miserável cabana lá no alto. Como tudo me parecia agora familiar, como se eu nunca tivesse saído dali. Voltei atrás no tempo, cheia de recordações, sentindo os aromas familiares da madressilva, dos morangos silvestres e das amoras maduras nas silvas.
Quase que ouvia os banjos a tocar, o violino do avô, via a avó a balouçar-se, o tom a correr, ouvia a "Nossa" Jane a choramingar, enquanto o Keith andava por perto, sempre afectuoso e atento. Dessa ignorância própria das montanhas, de toda essa estupidez, emergiam mesmo assim as dádivas de Deus, as crianças, não arruinadas pelos seus genes, como alguns poderiam pensar, mas abençoadas de muitas maneiras.
A minha impaciência crescia a par do meu entusiasmo.
Em seguida, surgiram os campos verdes e desafogados nos arredores de Winnerrow; belas quintas com searas que dentro de pouco tempo seriam ceifadas. Depois das quintas, vieram as casas mais pobres do vale, as que não eram muito melhores do que as dos pacóvios dos montes. Mais acima, ficavam as barracas dos mineiros que, juntamente com as cabanas dos traficantes de bebidas alcoólicas, salpicavam os montes.
A parte mais funda do vale estava reservada ao rio afluente, para onde os mais ricos aluviões eram arrastados pelas chuvas fortes da Primavera, e ia acabar nos jardins das famílias de Winnerrow, criando um solo fértil para aqueles que dele menos precisavam, produzindo flores e jardins em excesso, para que as grandes famílias de Winnerrow pudessem cultivar as melhores túlipas, narcisos, íris e rosas, e todas as outras flores que enchiam de orgulho as suas belas casas victorianas. Todos os vencedores desta zona viviam em Main Street e todos os perdedores viviam nos montes. Em Main Street, há muito tempo, os proprietários das minas de carvão tinham construído as suas casas sumptuosas, assim como os proprietários das minas de ouro, que há muito tinham deixado de produzir. Agora essas casas pertenciam aos proprietários das fábricas de algodão ou aos seus capatazes.
O Cal desceu Main Street com todo o cuidado, passou pelas casas de cores pastel dos mais ricos, em cujas traseiras ficavam as casas mais modestas da classe média, dos que trabalhavam nas minas e detinham algum lugar de chefia ou de direcção. Winnerrow também fora abençoada, ou amaldiçoada, com as máquinas que fabricavam os tecidos para a roupa de cama e de mesa, belas colchas nodosas, carpetes e tapetes. As fábricas de algodão com todas as suas fibras invisíveis que andavam no ar e que iam alojar-se nos pulmões de muitos operários, de tal maneira que eles cuspiam os pulmões mais cedo ou mais tarde, à força de tanto tossirem (tal como os trabalhadores das minas de carvão, e nunca ninguém processara os proprietários das fábricas... Ou os das minas. Era inevitável. Tinha de se ganhar a vida. Era mesmo assim. "Aproveita as oportunidades."
Tudo isto estava no meu espírito quando contemplei as belas casas que tinham norteado a minha admiração de criança, e, de certo modo, era obrigada a admitir que ainda assim era. Lembrava-me da voz da Sarah a dizer que olhasse para os alpendres todos. Que contasse os andares pelas janelas, o primeiro, o segundo e o terceiro. Que visse as cúpulas todas; algumas das casas tinham duas, três, quatro. Casas lindas como fotografias de postais ilustrados.
Voltei-me outra vez para ver como estava a Kitty. Nesse momento tinha os olhos abertos.
- Kitty, sente-se bem? Precisa de alguma coisa? Os seus olhos sem cor voltaram-se para mim.
- Quero ir para casa.
- Estamos quase a chegar, Kitty... Quase a chegar.
- Quero ir para casa - repetiu ela, como se fosse um papagaio a pronunciar a única frase que conhecia.
Inquieta, afastei-me. Porque continuava eu a ter medo dela?
O Cal abrandou e depois parou numa alameda que fazia uma curva e dava acesso a uma bela casa pintada de amarelo-claro e com uma faixa branca toda à volta. Era uma construção grandiosa, com três andares cor de gengibre, construída provavelmente no final do século, com alpendres no rés-do-chão e no primeiro andar, e uma pequena varanda no segundo, que devia ser o sótão. Os alpendres estendiam-se ao longo de toda a casa, dos quatro lados, explicou o Cal, que parou o carro lentamente, saiu e abriu a porta de trás para tirar a Kitty do banco traseiro e levá-la ao colo para o alpendre alto onde a família estava à espera, imóvel.
Porque é que a família dela não veio a correr dar as boas-vindas à Kitty, que regressava a casa? Porque é que eles ficaram ali de pé, em molho, a olharem para o Cal com a Kitty nos braços? A Kitty dissera-me que eles tinham rejubilado quando ela fugira e se casara com treze anos. Eu lembrava-me que ela dissera mais do que uma vez:
- Nunca gostaram de mim, nenhum deles.
E a avaliar pela falta de entusiasmo que demonstravam, mais uma vez não estavam satisfeitos por voltar a vê-la, sobretudo quando ela se encontrava doente e desamparada... Contudo, eu não podia censurá-los, pois não? Se ela era capaz de fazer o que me fizera... O que lhes fizera a eles? Eles eram muito generosos em recebê-la de volta, mais do que generosos.
Hesitante, fiquei ali sentada, com relutância em abandonar o isolamento e a segurança fria do carro.
O Cal subiu os cinco degraus largos do alpendre com a Kitty ao colo e parou ao cimo, no meio da balaustrada branca. A família olhava para a Kitty, e eu finalmente lembrei-me que o Cal devia precisar de ajuda e que eu devia ser a única pessoa que lha daria.
Era como a história que a avó costumava contar. Quando ela e o avô estavam à espera que o pai trouxesse para casa a noiva a que ele chamava o seu anjo, e eles não queriam que ela viesse... Pelo menos a princípio. "Oh mãe, como isso deve ter sido doloroso para si! E como devia ser doloroso para a Kitty!"
Fui a correr ajudá-lo e reparei na maneira como eles desviaram o olhar para mim. Não eram olhos amigáveis, nem hostis; olhavam os quatro como se o Cal trouxesse nos braços uma desconhecida indesejável. Era nítido que não a queriam, mas que tinham aceitado recebê-la e fazer o seu melhor... "Até que tudo esteja acabado, de uma maneira ou de outra..."
A mulher enorme e com um aspecto esplêndido que fazia lembrar a Kitty tinha de ser a mãe, Reva Setterton, que envergava um vestido de seda verde-clara, com uma fila de botões dourados, enormes, até à bainha. Os sapatos também eram verdes e, é claro, estupidamente, aquilo impressionou-me.
- Onde posso pô-la? - perguntou o Cal, cedendo ao peso da Kitty, enquanto esta olhava para a mãe com uma expressão vazia.
- O antigo quarto dela está pronto para a receber respondeu a mulher, que mordeu os lábios finos num arremedo de sorriso.
Em seguida, estendeu a mão forte e vermelha e apertou a minha com um gesto rápido, frouxo e indiferente. Os cabelos ruivos tinham alguns grisalhos à mistura, como se uma haste de hortelã-pimenta se tivesse derretido e lhe tivesse formado uma bolha gorda na cabeça. O homem baixo e corpulento que estava a seu lado tinha uma
faixa de cabelo grisalho em forma de ferradura à volta da cabeça calva e rosada. O Cal apresentou-mo como sendo Porter Setterton.
- É o pai da Kitty, Heaven. - E acrescentou: - vou levá-la já para o quarto dela. Foi uma longa viagem. A Kitty deve sentir-se desconfortável porque veio enrolada no banco de trás. Espero ter enviado o dinheiro suficiente para os senhores alugarem tudo aquilo de que ela precisa.
- Nós sabemos tratar do que nos pertence - respondeu a mãe de Kitty, deitando à filha um duro olhar de desprezo. - Ela não parece estar doente... Está com bom aspecto.
- Falaremos dela mais tarde - informou o Cal, encaminhando-se para casa, enquanto eu era mirada de alto a baixo pela irmã da Kitty, Maisie, uma imitação pálida e insípida daquilo que a Kitty devia ter sido com dezassete anos. O jovem de rosto bolachudo e cabelo cor de areia, chamado Danny, não conseguia tirar os olhos de mim. Pelos meus cálculos, devia ter uns vinte anos.
- Deves ter-nos visto muitas vezes - disse a Maisie, entrando e tentando mostrar-se simpática. - Nós vimos-te muitas vezes com a tua família. Toda a gente olhava sempre para os paço... Quero dizer, para os Casteel.
Eu olhei para a Maisie e para o Danny, tentando recordar-me deles, mas não consegui situá-los em lado nenhum. Quem é que eu vira na igreja a não ser o reverendo, a mulher, as mais lindas raparigas e os rapazes mais bem-parecidos? Miss Deale... E mais ninguém. Os mais bem vestidos também me despertavam a atenção porque eu cobiçava a sua roupa. Agora eu tinha roupa muito melhor do que a que alguma vez vira na única igreja de Winnerrow.
Até então, o Danny não dissera uma palavra.
- Tenho de ir ajudar a Kitty - disse eu, olhando para o carro. - Temos as nossas coisas no porta-bagagens do carro... E vamos precisar delas para tratar da Kitty.
- Eu levo-as para cima - ofereceu-se o Danny, mexendo-se finalmente quando eu me voltei para ir atrás da Reva Setterton que entrou em casa, seguida de perto pela Maisie, enquanto Mr. Setterton acompanhava o Danny até ao carro do Cal.
- com certeza que deves ter um nome qualquer - disse a Maisie, subindo as escadas atrás de mim. - Heaven Leigh. É bonito, lá isso é. Mãe, porque lhe deu para me pôr um nome estúpido como o de Maisie? Não tinha imaginação?
- Cala a boca e dá graças a Deus por eu não te ter chamado "Estúpida".
Desconcertada, a Maisie corou e baixou a cabeça. Afinal, talvez as histórias acerca da infância de pesadelo da Kitty, que o Cal ouvira contar há muito tempo, fossem verdadeiras.
Pelo que vi da casa, pareceu-me espaçosa, cuidada e muito bonita. Conduziram-me a um quarto onde a Kitty já estava estendida numa cama de hospital, com a sua modesta camisa de noite cor-de-rosa. O Cal puxou o lençol para cima, sorriu e disse à mãe da Kitty:
- Reva, aprecio o seu oferecimento para receber a Kitty e fazer o que puder por ela. Tenho estado a pagar a enfermeiras permanentes. Mas se conseguir arranjar-se com uma enfermeira para as noites, mando-lhe um cheque todas as semanas para pagar os seus serviços e as despesas médicas da Kitty.
- Nós não somos pobres - declarou a Reva. - E eu já disse que sabemos tomar conta do que nos pertence. - A mulher olhou à volta para o belo quarto. - Podes tratar-me por Reva, rapariga - disse-me ela. - Este era o quarto da Kitty... Não é assim tão mau, pois não? A Kitty sempre deu a entender que nós a obrigávamos a viver numa pocilga. Numa prisão, como ela costumava dizer. Não pôde esperar para crescer, e fugiu com um homem qualquer... com o primeiro que a levou... E agora olha para ela. É o resultado de quem peca e de quem nunca faz o que deve...
O que podia eu dizer?
Um quarto de hora depois, acabei de refrescar a Kitty com um banho de imersão e vesti-lhe uma linda camisa de noite cor-de-rosa, lavada. Ela olhou para mim com um ar sonolento, um pouco espantada no meio do seu torpor, e depois adormeceu. Mas que alívio era ver aqueles olhos estranhos a fecharem-se.
Fomos sentar-nos lá em baixo, numa sala de estar agradável, enquanto o Cal explicava a estranha doença da Kitty, que nenhum médico conseguia diagnosticar. A Reva Setterton fez um esgar de visível desprezo.
- A Kitty nasceu a queixar-se de tudo. Nunca havia nada que lhe agradasse. Nunca gostou de mim, nem do pai, nem de ninguém... Excepto se fossem homens, e bonitos. Talvez desta vez eu possa fazer qualquer coisa naquilo em que falhei no passado... Agora que ela não pode reagir nem fazer-me a vida num inferno.
- Certo, certo - declarou a Maisie, agarrando-se a mim como uma carraça. - Quando a Kitty vem para ficar só há sarilhos. Não gosta de nada do que fazemos ou dizemos. Detesta Winnerrow. Detesta-nos a todos, mas continua a vir...
E a Maisie continuou a tagarelar. Foi atrás de mim para o quarto, ficou a olhar para mim enquanto eu desfazia as malas e ficou sem fala ao ver o manancial de bela roupa interior e de vestidos bonitos que enchiam o meu roupeiro, agora que a Kitty estava demasiado doente para se importar com o dinheiro que o Cal gastava comigo.
- Aposto que é terrivelmente difícil viver com ela - insistiu a Maisie, estendendo-se em cima da colcha amarela e fitando-me com uns olhos verdes interrogadores. Faltava-lhe qualquer coisa que a Kitty costumava ter: a vitalidade e a dureza. - A Kitty nunca foi propriamente uma irmã. Ela saiu de casa e casou-se quando eu era ainda muito pequena, e não me lembro de nada. Nunca gostou da comida da mamã. Agora vai ser obrigada a comer, quer goste quer não. - A Maisie fez um sorriso malicioso como um gato satisfeito. - Nunca gosta de nada do que nós fazemos ou dizemos. É esquisita, a nossa Kitty. Mas tenho pena que ela esteja estendida numa cama, sem se poder mexer. O que é que ela tem?
Era uma boa pergunta, uma muito boa pergunta, que os médicos tinham feito inúmeras vezes.
Quando a Maisie saiu, deixei-me cair numa poltrona forrada de tecido amarelo e continuei a pensar no assunto. Como é que tudo começara? Depois da morte da Chuckles. Recuei no tempo, fechei os olhos e concentrei-me, tentando encontrar uma pista. Talvez tivesse começado no dia em que a Kitty chegou a casa furiosa porque metade das clientes dela tinha chegado atrasada em relação às marcações.
- Raios partam aquelas mulheres nojentas! - berrara ela. - Como se estivessem convencidas de que são melhores do que eu e de que podem deixar-me ali à espera como se eu não tivesse nada que fazer. Tenho fome, tenho um apetite devorador... E continuo a perder peso! Quero comer, comer, comer!
- Eu vou já fazer o que puder! - respondera eu, correndo do lava-louça para o fogão.
- vou lá acima tomar um banho... Quando voltar quero tudo pronto.
Clique-claque, faziam os saltos altos enquanto ela subia a escada.
Quase que a via lá em cima, a despir a bata cor-de-rosa e a deixá-la cair no chão, a despir a roupa interior e a deixá-la cair também. Roupa que eu teria de apanhar, lavar e tratar. Ouvi a água a correr na banheira. Ouvi a Kitty a cantar em voz alta, a mesma canção que ela cantava sempre que estava a tomar banho.
Down in tvalley... valley só low... owww, owwww... Late in tevenin... hear ttrain blow... owww... owww...
Vezes sem conta até a canção me engolir o cérebro, me triturar os nervos. Só aqueles dois versos, repetidos até me apetecer enfiar algodão nos ouvidos.
Depois foi o grito.
Aquele grito enorme e horrível.
Eu subira as escadas a voar, à espera de encontrar a Kitty com a cabeça partida por ter escorregado na banheira... Mas o que encontrei foi a Kitty nua, de pé em frente do espelho, a mirar, de olhos esbugalhados e sem cor, o seio direito.
- Cancro, tenho cancro da mama.
- Mãe, tem de ir ao médico. Isso pode ser apenas um quisto benigno ou um tumor benigno.
- O que raio significa "benigno"? - gritou ela. - Eles vão cortar-mo, cortar-mo com um daqueles bisturis, vão mutilar-me... E depois não haverá nenhum homem que me queira! Ficarei aleijada, uma metade de mulher, e nunca tive um filho! Nunca hei-de saber o que é tomar conta do meu próprio filho!... Eles disseram-me que eu não tenho nenhum cancro. Mas eu sei que tenho! Eu sei que tenho!
- Já foi a um médico... mãe?
- Sim, raios te partam, SIM! O que sabem eles? Quando uma pessoa está a morrer, então é que eles sabem!
Fora uma cena horrível, o modo como a Kitty continuara a gritar, até que eu tive de ir telefonar ao Cal e pedir-lhe que viesse para casa imediatamente, e depois voltara para cima e fora encontrar a Kitty deitada na cama, de olhos fixos no tecto, a olhar sem ver nada.
Raios me partam se eu conseguia lembrar-me.
Depois da nossa primeira refeição na casa dos Setterton, que foi muito boa, ajudei a Re vá e a Maisie a lavar a louça; depois fomos as três ter com Mr. Setterton que estava no alpendre. Num ápice, consegui recordar aquele dia ao Cal, enquanto a Reva Setterton barafustava lá em cima, obrigando a Kitty a comer.
- Mas comeu - disse ela quando voltou, sentando-se, muito direita, numa cadeira de balouço de vime. - Em minha casa, ninguém morre à fome.
- Reva, há uns meses atrás, a Kitty disse que descobrira um inchaço no seio. E disse que foi ao médico e que ele lhe garantira que aquilo não era maligno... Mas como podemos saber se ela foi mesmo ao médico? No entanto, quando ela esteve no hospital, há duas semanas, examinaram-na com todo o cuidado e não lhe encontraram nada de estranho.
Por qualquer motivo, a mãe da Kitty levantou-se e saiu do alpendre.
- Só isso? - perguntou a Maisie, com os olhos verdes muito abertos. - Mas que parva por ter começado a gritar antes de saber... Mas depois, não há dúvida de que as dela são bem grandes, não são? com umas daquelas, não a censuro por não querer saber.
- Mas os médicos examinaram-na toda, Maisie - disse o Cal, sentando-se junto de mim.
- Isso para a Kitty não interessa - respondeu a Maisie com uma complacência espantosa. - Na nossa família, o cancro da mama é vulgar. A história é longa. A mamã já tirou os dois. Usa uns postiços. Por isso é que ela se foi embora. Não suporta ouvir ninguém a falar desse assunto. Ninguém diria, não é verdade? A mãe da nossa mãe já tirou um. A mãe do papá tirou um e depois morreu antes de lhe tirarem o outro. A Kitty sempre viveu apavorada com a ideia de poder perder aquilo de que se orgulha tanto. - Pensativa, a Maisie contemplou os seus pequenos seios. - Eu não tenho grande coisa, comparada com ela, mas tenho a certeza de que detestaria perder um... Tenho a certeza.
Poderia ser isso, explicado de uma maneira tão simples? Uma coisa em que nem os médicos nem eu ou o Cal tínhamos pensado.
O segredo dela a germinar. A razão pela qual a Kitty se retirara para um mundo solitário, onde o cancro não existia.
Passaram-se duas horas e isso bastou para eu sentir que havia qualquer coisa diferente no Cal, agora que ele estava em casa dos pais da Kitty; qualquer coisa que nos afastava. Eu não percebia o que era, mas sentia-me aliviada e agradecida, por sentir que ele já não precisava tanto de mim. Talvez fosse o facto de ter pena da Kitty que o abrandou e o levou a sentar-se na beira da cama dela e a tentar pegar-lhe na mão. Eu estava à porta e vi-o a tentar consolar a Kitty, antes de dar meia volta e me afastar dali.
O que se passara entre mim e o Cal seria o meu segredo mais vergonhoso e terrível.
Quando cheguei lá abaixo, ao alpendre, e pensei no que iria fazer a seguir, lembrei-me do tom. Seria naquele dia que eu iria vê-lo? E à Fanny, também?
E o Logan... "Quando é que voltarei a ver-te? Reconhecer-me-ás agora, ficarás feliz por eu ter voltado... Ou voltar-me-ás as costas como fizeste da última vez, quando os teus pais estavam ao teu lado?" Ele nunca dissera uma palavra para explicar o seu acto, como se estivesse convencido de que eu não dera por isso.
Naquela primeira noite, eu e a Maisie dormimos juntas no quarto dela, e o Cal dormiu numa cama desmontável no quarto da Kitty. Na manhã seguinte, levantei-me muito cedo e vesti-me enquanto os outros ainda estavam na cama. Ia a descer quando o Cal me chamou:
- Heaven, onde é que vais?
- Visitar a Fanny - respondi em voz baixa, receando voltar-me e olhar para ele, pois sentia-me muito mais envergonhada em Winnerrow do que em Candlewick.
- Deixa-me ir contigo, por favor.
- Cal - implorei -, se não se importa, gostaria de fazer isto sozinha. A minha relação com a Fanny sempre foi difícil. Consigo lá, ela poderá não falar verdade. E eu preciso de saber a verdade e não uma pilha de mentiras.
Ele mostrou-se abespinhado.
- Como estás apressada, Heaven, no momento em que pisas território familiar. Vais fugir de mim? Servir-te de uma desculpa qualquer para fugires de mim? Não precisas de nenhuma desculpa; eu não sou teu proprietário. Podes ir, que eu ficarei aqui a tomar conta da Kitty e a fazer planos para que os pais cuidem dela... Mas sentirei a tua falta enquanto não voltares.
Era doloroso ouvir a sua voz destroçada; mesmo assim, sentia-me bem por sair de casa e deixar tudo para trás. Cada passo que eu dava para me afastar da casa dos Setterton fazia-me sentir mais jovem, mais feliz.
Ia visitar a Fanny.
Arranjei maneira de passar pelo drugstore Stonewall. O meu pulso acelerou-se quando me aproximei daquele estabelecimento que me era familiar. Ia mesmo a passar, e sinceramente não estava à espera de ver o Logan só porque ia a pensar nele e a perguntar a mim própria em que tipo de pessoa se teria tornado. Olhei lá para dentro através da montra larga, com o coração na boca, e não o vi. Suspirei e depois apercebi-me do interesse de um par de olhos azul-escuros pertencentes a um jovem atraente que vinha a sair de um carro de desporto azul-escuro. Fiquei gelada, olhei para trás e vi o Logan Grant Stonewall.
Oh!
Ele parecia estar mergulhado no mesmo sonho que o meu. Ficámos ambos a olhar um para o outro, incrédulos.
- Heaven Leigh Casteel... És tu ou estou a sonhar?
- Sou eu. És tu, Logan?
O rosto dele iluminou-se de repente e ele correu para mim, pegando-me nas mãos e apertando-as com força, ao mesmo tempo que me olhava nos olhos e sustinha a respiração.
- Tu cresceste... Cresceste mesmo e fizeste-te tão bonita. - Corou, gaguejou e depois sorriu. - Não sei porque estou admirado; sempre soube que te havias de fazer mais bonita.
Eu era tímida e senti-me como se fosse uma aranha apanhada na sua própria teia. Queria cair-lhe nos braços, de tal modo ele me convidava a fazê-lo.
- Obrigada por responderes a todas as minhas cartas... Ou à maior parte delas.
Ele mostrou-se desapontado por eu não fazer a jogada seguinte.
- Quando recebi o teu bilhete a dizer que vinhas trazer a Kitty Dennison, escrevi ao tom.
- Também eu - disse em voz baixa, sem deixar de observar como ele estava bonito, alto e forte. Senti-me envergonhada e enojada por não ter afastado o Cal, para esperar por este amor límpido, puro e luminoso, que teria sido tão acertado. Baixei os olhos, aterrada, não fosse ele perceber alguma coisa que eu não queria que ele percebesse. Tremia com a culpa que sentia e depois recuei um ou dois passos para não o contaminar com os meus pecados.
- Claro que será uma maravilha voltar a ver o tom - respondi, a medo, tentando libertar as minhas mãos das suas, enquanto ele avançava para mas agarrar com mais força.
- E não é uma maravilha voltares a ver-me? - com doçura, puxou-me mais para ele, soltou-me as mãos e passou-me os braços pela cintura. - Olha para mim, Heaven. Não baixes a cabeça. Porque te comportas como se já não me amasses? Tenho esperado tanto por este dia, a pensar no que haveria de dizer, e no que tu dirias, e como nós agiríamos... E agora tu não olhas para mim. Durante o tempo em que estiveste fora, não pensei em mais ninguém. Às vezes, vou à tua cabana e ando a passear naqueles quartos abandonados, a pensar em ti e na vida dura que tiveste, e na coragem que demonstraste, sem te queixares nem teres pena de ti própria. Heaven, tu és como uma bela rosa brava, mais doce e mais bonita do que qualquer outra. Por favor, abraça-me. Beija-me, dize que ainda me amas!
Ele dissera tudo aquilo com que eu sonhara, e eu senti -me de novo invadida pela culpa... Se ele soubesse a verdade... Mas não pude resistir ao seu olhar suplicante, ou ao apelo da minha natureza romântica que disse: "Sim, Logan!" Abracei-me a ele e senti que me levantavam no ar e andavam comigo à roda. Baixei a cabeça até os meus lábios ficarem ao nível dos dele e beijei-o com tanta paixão que creio que o deixei sem fôlego, embora ele me tivesse retribuído o beijo ainda com mais fervor. Os olhos dele brilhavam quando nos separámos e ele estava a arfar.
- Oh, Heaven, eu sabia que seria assim... - murmurou ele, sem fôlego.
Naquele momento em que os nossos corpos jovens se desejavam um ao outro, ficámos sem fala. Ele puxou-me para si e percebi como estava excitado. Lembrei-me do Cal. Não era aquilo que eu queria! Tentei afastar-me, encolhendo-me ao mesmo tempo que me afastava dele, a tremer, e dominada por um terror enorme, não só do Logan como de todos os homens. "Não me toques dessa maneira!", apeteceu-me gritar. "Beija-me, abraça-me, e nada mais!"
É claro que ele não percebeu a razão de ser da minha resistência. Apercebi-me disso através dos seus olhos espantados e muito abertos, mas ele largou-me.
- Desculpa, Heaven - disse ele em voz baixa, num tom humilde. - Creio que te esqueceste de que já não nos víamos há dois anos e oito meses... Mas nas tuas cartas era como se nunca tivéssemos sido estranhos um para o outro...
Tentei comportar-me normalmente, sem me sentir aterrorizada.
- Foi óptimo voltar a ver-te, Logan, mas estou com uma certa pressa...
- Queres dizer que te vais embora? E que só passamos estes minutos juntos? Heaven, não me ouviste dizer que te amo?
- Eu tenho de ir, a sério.
- Eu vou também para onde tu fores.
"NÃO. Deixa-me em paz, Logan! Tu agora não me queres!"
- Desculpa, Logan. vou ver a Fanny e depois o avô... E creio que é preferível ir ver a Fanny sozinha. Talvez amanhã...?
- Talvez, não. Uma data definida. Amanhã de manhã, digamos às oito horas, para podermos passar o dia juntos. Tu contavas muita coisa nas tuas cartas, mas não o suficiente. Heaven...
Eu dei uma volta e tentei sorrir.
- Vejo-te amanhã cedo. Passo o dia contigo, se é isso que queres.
- Se é isso que eu quero? Claro que é isso que eu quero! Heaven, Não olhes assim para mim! Como se eu te assustasse! O que é que se passa? Não me digas que não se passa nada! Tu mudaste! Tu não me amas e não tens coragem para mo dizer!
- Isso não é verdade - respondi, a soluçar.
- Então o que é? - perguntou ele, com um ar mais natural. - Se não conversarmos sobre isso, o que quer que haja erguerá uma barreira que mais cedo ou mais tarde não conseguiremos transpor.
- Adeus, Logan - disse eu, desatando a correr.
- Onde? - gritou ele, desesperado. - Aqui ou na casa dos Setterton?
- Venho ter aqui. Depois das sete - disse eu, soltando uma gargalhada nervosa. - Tenho de me levantar cedo para ajudar a tratar da Kitty.
Se eu voltasse para ele ainda inocente, ainda uma rapariga a quem ele pudesse ensinar... E no entanto, mesmo assim, aquilo soube-me bem, mesmo bem, afastar-me sabendo que o seu olhar me seguia com uma admiração tão forte que eu quase sentia que ele me alcançava e me tocava. A sua dedicação enlevava-me. Depois, ouvi-o dizer, a correr atrás de mim:
- Ficas aborrecida se eu for contigo até ao presbitério e depois desaparecer? Não posso esperar até amanhã para saber a verdade. Heaven... Naquele dia, na tua cabana, disseste-me que o teu pai vendera o Keith, a "Nossa" Jane, a Fanny e o tom... E tu foste vendida?
- Fui - respondi secamente, concentrando todo o ódio na minha voz, não fosse ele continuar a duvidar. - Vendida como um animal, por quinhentos dólares! Fui levada para trabalhar como uma escrava por uma mulher doida que odeia o pai tanto como eu!
- Porque estás a gritar comigo! Não fui eu que te vendi! Lamento muito que tenhas sofrido... Mas macacos me mordam se tens aspecto disso! Estás com um aspecto formidável, com roupa cara e bonita, pareces uma debutante, e vens dizer-me que foste vendida e tratada como uma escrava. Se todas as escravas parecessem rainhas de beleza, talvez todas as raparigas devessem ser vendidas como escravas.
- Mas que observação tão insensível, Logan Stonewall! disparei eu, sentindo-me tão má como a Kitty nos seus piores momentos. - E eu a julgar que tu eras meigo e compreensivo! Só porque tu não vês as minhas cicatrizes, isso não significa que eu não as tenha!
Agora eu estava a chorar, e as palavras irrompiam. E ele fora tão carinhoso minutos atrás. Sem conseguir dizer mais nada, e zangada comigo própria por me ter descontrolado e desatado a chorar como se fosse uma criança, voltei-lhe as costas para me ir embora.
- Heaven... Não te vás embora. Desculpa. Perdoa-me por ter sido insensível. Dá-me outra oportunidade. Falaremos nisso, como costumávamos fazer.
Para bem dele, eu devia fugir e nunca mais voltar a vê-lo, e todavia não conseguia ver partir um rapaz que eu amara desde a primeira vez que o vira. E, esquecidas as diferenças naquele momento, caminhámos lado a lado até chegarmos à bela casa do reverendo Wayland Wise.
Ele deu-me a mão quando eu olhei para o presbitério.
Uma casa de um branco imaculado, uma casa religiosa, uma casa grandiosa rodeada por dois acres de belos jardins floridos e relvados bem tratados. Ao pé desta, a casa da Kitty em Candlewich parecia uma barraca. Suspirei. Suspirei outra vez pela Fanny, que era agora uma jovem senhora de dezasseis anos e quatro meses, e o tom, tal como eu, tinha dezassete, o Keith ia fazer doze daí a pouco tempo e a "Nossa" Jane, onze. Oh, vê-los outra vez, saber que eram saudáveis e felizes!
Mas primeiro a Fanny.
Agora que eu estava ali, só podia contemplar a casa mais majestosa de Winnerrow. Ao longo do alpendre alinhavam-se colunas coríntias. Os degraus eram feitos de tijolos vermelhos intrincadamente dispostos. Gerânios e petúnias vermelhas cresciam em grandes floreiras de terracota. No alpendre viam-se umas cadeiras opulentas de vime branco com uns grandes e belos pavões nas costas.
Os pássaros chilreavam em velhas árvores de grande porte; numa gaiola de vime branco que estava pendurada no tecto, um canário amarelo entoava a sua alegre canção. Fiquei admirada ao ouvi-lo cantar de um sítio tão alto; alguém o pusera ali, deduzi, para estar a salvo dos gatos e das correntes de ar. Durante toda a vida, a Fanny quisera ter um canário numa gaiola branca; agora tinha um.
Todavia, à parte o canto dos pássaros, não se ouviam outros barulhos.
Como era silenciosa aquela grande casa, cujos habitantes não davam sinal de vida!
Como é que uma casa tão linda podia ser tão ameaçadora?
O REENCONTRO DOS CASTEEL
Toquei várias vezes à campainha. Enquanto esperava o que me pareceu ser uma eternidade, aumentava a minha impaciência. De vez em quando, olhava para ver se o Logan já se fora embora como eu esperava, mas ele continuava lá. Estava encostado a uma árvore, e sorriu quando olhei para ele.
Ouviram-se passos leves dentro de casa. Endireitei-me e escutei melhor. Passos lentos, furtivos... Depois a pesada porta de madeira de carvalho abriu-se um bocadinho.
Uns olhos cor de abrunho espreitaram-me, desconfiados, hostis. Só a Fanny é que tinha uns olhos negros como aqueles, só a Fanny... E o pai.
- Vai-te embora - disse a voz, que era inegavelmente a de Fanny.
- Sou eu, a Heaven - exclamei, entusiasmada. - Vim ver-te, saber como estás. Não me podes mandar embora.
- Vai-te embora - segredou a Fanny com mais insistência. - Eu faço o que me apetece. E não quero ver-te! Já não te conheço! Já não te conheço! Já não preciso de ti! Agora sou a Louisa Wise. Consegui tudo o que queria. Não quero que andes por aqui a rondar e que estragues tudo.
Ela ainda me conseguia atingir com as suas palavras e os seus métodos mesquinhos e egoístas. Eu sempre acreditara que, sob aquela capa de hostilidade e de ciúme, a Fanny gostava de mim. A vida ferira-a de maneiras diferentes.
- Fanny, eu sou tua irmã - supliquei em voz baixa, envergonhada pelo facto de o Logan poder ouvir as "boas-vindas" dela. - Preciso de falar contigo, de te ver, e de te perguntar se sabes alguma coisa do Keith e da "Nossa" Jane.
- Não sei nada - segredou a Fanny, abrindo um pouco mais a porta. - Não quero saber de nada. Vai-te embora e deixa-me em paz.
Vi que a minha jovem irmã se tornara uma linda rapariga com longos cabelos pretos e um corpo suficientemente bem feito para arrasar o coração de um homem. Eu sempre pensara que a Fanny havia de arrasar muitos corações sem sentir quaisquer remorsos. No entanto, ofendia-me que ela se recusasse a deixar-me entrar em casa e não demonstrasse qualquer interesse por mim ou pelo sítio onde eu tinha estado.
- Tens visto o tom?
- Não quero ver o tom.
Eu estremeci, de novo ferida.
- Eu fartei-me de te escrever, Fanny Casteel! Não recebeste as minhas cartas? - perguntei, mantendo a porta aberta à força para ela não ma fechar na cara. - Raios te partam, Fanny! Que tipo de pessoa é que tu és, afinal? Quando outra pessoa é amável e cuidadosa ao ponto de nos escrever uma carta, o mínimo que podemos fazer é responder-lhe... A menos que não lhe liguemos nenhuma importância.
- Acho que acertaste em cheio. Foi a resposta da Fanny.
- Ora espera aí, Fanny! Não podes fechar-me a porta na cara! Não vou permitir que o faças!
- Tu nunca me escreveste, nem uma vez só! - exclamou ela, olhando para trás por cima do ombro, alarmada. Baixou o tom de voz e disse: - Tenho de me ir embora, Heaven. Tinha um ar aflito e assustado. - Eles estão lá em cima a dormir. O reverendo e a mulher detestam que lhes lembrem quem eu sou. Preveniram-me que nunca falasse contigo, ou com qualquer outro Casteel. Nunca mais soube do pai desde que vim para cá. - Fanny limpou uma lágrima que lhe saiu do canto do olho e lhe deslizou pela face como uma gota de orvalho. - Eu costumava pensar que o pai gostava mais de mim; parece que não é assim. - Surgiu outra lágrima que ela não enxugou. - Fico contente por ver que estás com bom aspecto.
A Fanny mirou-me antes de os seus lábios vermelhos e cheios se estreitarem um pouco.
- Agora tenho de me ir embora. Não quero que eles acordem e ralhem comigo por eu estar a falar contigo. Sai daqui, Heaven Leigh... Não quero saber nada de ti; quem me dera não te ter conhecido; não consigo lembrar-me de nada de bom acerca daqueles velhos tempos em que éramos crianças e vivíamos nos montes. Só me lembro da fome, dos pés frios e que nos faltava tudo.
Apressei-me a enfiar o pé na porta, não fosse a Fanny fechá-la com mais força do que as minhas mãos poderiam suportar.
- Espera aí, Fanny Louisa Casteel! Há mais de dois anos que penso em ti de dia e de noite... Não podes mandar-me embora! Quero saber como tens estado, se te têm tratado bem. Eu preocupo-me contigo, Fanny, mesmo que tu não te preocupes comigo. Recordo os bons tempos em que vivíamos nos montes e tento esquecer todos os maus. Lembro-me de que costumávamos aninhar-nos uns nos outros para nos mantermos quentes, e gosto de ti, apesar de teres sido sempre insuportável.
- Sai daqui - disse a Fanny, a soluçar, chorando abertamente. - Não posso fazer nada por ti, não posso.
Deu-me um pontapé brutal para desviar o meu pé e fechou a porta com estrondo. Rodou a chave na fechadura e eu fiquei sozinha no alpendre.
Quase cega pelas lágrimas, desci os degraus do alpendre a cambalear, e lá estava o Logan, para me abraçar e confortar.-
- Raios a partam por te falar assim. Raios a partam! Eu afastei-me, tão desgostosa com a indiferença da Fanny
que só me apetecia gritar. De que servia dar tanto amor a pessoas que se voltavam contra nós no momento em que já não precisavam de nós?
Que me importava se eu tivesse perdido a Fanny? Afinal ela nunca fora uma irmã amiga... Porque sofria eu tanto com isso?
- Vai-te embora, Logan! - gritei, agitando os punhos cerrados quando ele tentou abraçar-me outra vez. - Não preciso de ti... Não preciso de ninguém!
Voltei-lhe as costas, mas ele agarrou-me pelo braço e obrigou-me a dar meia volta, e os seus braços fortes puxaram-me de novo para ele.
- Heaven! O que se passa? Que fiz eu? - gritou ele.
- Deixa-me - supliquei, sem forças.
- Ora vamos lá ver - suplicou ele, aflito. - Estás a despejar a tua fúria em cima de mim quando foi a Fanny que te ofendeu. Ela sempre foi uma irmã detestável... Não foi? No fundo, eu já sabia que ela iria fazer o que fez! Lamento que estejas tão desgostosa, mas porque tens de virar-te contra mim? Eu quis ficar para estar aqui quando precisasses de mim. Quando precisasses de mim, Heaven, Não te enfureças comigo! Eu não fiz outra coisa que não fosse admirar-te, respeitar-te e amar-te. Nunca pude acreditar que o teu pai venderia os filhos. Agora acho que acredito. Desculpa-me por não ter acreditado inteiramente até agora. Eu
afastei-me.
- Quer dizer que durante este tempo todo não falaste em mim à Fanny?
- Tentei muitas vezes falar com ela a teu respeito... Mas sabes como é a Fanny. Ela apodera-se de tudo e dá-lhe a volta, até se forçar a acreditar que é por ela
que eu me interesso, e não por ti. A Fanny não se importa senão consigo própria. - O Logan corou e olhou para os pés. - Achei que era preferível deixar a Fanny em
paz.
- Ela continua a insistir em força, não? - perguntei com amargura, a pensar que Fanny devia ter utilizado com ele a sua habitual agressividade... E perguntei a mim própria se ele não teria caído, como todos os outros.
- Sim - respondeu ele, levantando a cabeça. - É preciso uma grande resistência para nos afastarmos da Fanny... E a melhor maneira é ficarmos a quilómetros de distância.
- Da tentação?
- Pára! Faço o que posso para afastar da minha vida raparigas como a Fanny. Desde que partiste, continuo à espera que uma rapariga chamada Heaven venha a gostar verdadeiramente de mim, um dia. Alguém doce e inocente; alguém que saiba preocupar-se e dar. Alguém que eu possa respeitar. Como posso eu respeitar uma pessoa como a Fanny?
Oh, Deus, ajudai-me! Como poderia ele respeitar-me... Agora?
Afastámo-nos da casa do reverendo Wise e nem sequer olhámos para trás. Era óbvio que a Fanny se adaptara bem à sua nova vida.
- Logan, agora a Fanny tem vergonha da sua antiga família - disse eu com a voz embargada pelas lágrimas. - Eu julguei que ela ficaria contente por me ver. Houve alturas em que ela e eu não fazíamos mais nada senão discutir, mas somos do mesmo sangue e eu gosto dela à mesma.
Ele tentou de novo abraçar-me e beijar-me. Eu afastei-o e voltei a cara para o lado.
- Sabes por acaso onde está o meu avô? - perguntei eu, baixinho.
- Claro que sei. De vez em quando vou visitá-lo para lhe poder falar de ti, e muitas vezes ajudo-o a vender os animais esculpidos por ele. Ele está bem, sabes, e é um verdadeiro artista com aquela sua faca. E está à tua espera. Os olhos dele iluminaram-se quando eu lhe disse que estavas a chegar. Disse-me que ia tomar um banho, lavar a cabeça e vestir roupa lavada.
Senti de novo um nó na garganta... O avô ia tomar banho sem ser obrigado a isso? Lavar a cabeça e mudar de roupa por sua própria iniciativa?
- Tens visto ou ouvido falar de Miss Deale?
- Ela já cá não está - respondeu ele, mantendo a minha mão bem apertada na sua. - Partiu antes de ti, lembras-te? Nunca mais ninguém soube dela desde então. De vez em quando vou à nossa antiga escola, só em nome dos velhos tempos, sento-me num balouço e recordo como tudo se passava. Como já disse, até tenho ido à tua cabana e passeado lá dentro...
- Oh, porque fizeste uma coisa dessas? - gritei, muito envergonhada.
- Fui lá para compreender, e creio que compreendi. Pensar que alguém tão inteligente e bonita como tu podia viver numa cabana como aquela, e o tom também, enche-me de medo e de respeito. Não sei se poderia sair de um sítio assim com toda a tua coragem e todo o teu esforço, e quando vejo o tom...
- Viste o tom? Quando? - perguntei, ansiosa.
- Claro, e em breve irás vê-lo também.
Logan sorriu tristemente ao ver a minha expressão.
- Não chores. Ele está óptimo e um rapagão, Heaven.
Vais ver.
Estávamos a chegar a Martins Road, que era uma das zonas mais inferiores e pobres de Winnerrow, doze quarteirões depois da casa maior de todas onde vivia a Fanny.
- Mistress Sally Trench tem um lar, e é ela que trata do teu avô. Ouvi dizer que o teu pai todos os meses manda dinheiro para pagar a estada dele.
- Não quero saber do que o meu pai faz...
No entanto, admirou-me saber que ele era capaz de ser assim tão cuidadoso... Ao ponto de enviar dinheiro para sustentar um velho no qual ele mal reparava.
- É claro que queres saber do teu pai, mas não vais admiti-lo. Talvez ele seguisse o caminho errado, mas tu estás viva e de boa saúde. A Fanny parece-me feliz e o tom também.
E quando encontrares o Keith e a "Nossa" Jane, decerto ficarás admirada ao ver como eles estão bem. Heaven, tens de aprender a esperar o melhor, não o pior; só assim darás a ti própria uma oportunidade de seres feliz.
Senti um peso no coração e a alma ferida quando olhei para ele. Em tempos acreditara naquele tipo de filosofia... Agora, não. Esforçara-me por pensar daquela maneira com a Kitty e o Cal, e fizera o possível para agradar a ambos, e o destino pregara-me a partida, talvez a todos nós. Como é que eu podia recuperar a inocência que perdera? Como é que eu podia obrigar o relógio a andar para trás e dizer que não ao Cal?
- Heaven, nunca hei-de amar ninguém tanto como te amo a ti! Sei que somos ambos jovens e inexperientes e que o mundo está cheio de outras pessoas que poderão vir a atrair-nos mais tarde, mas neste preciso momento tens o meu coração nas tuas mãos, e não podes atirá-lo ao chão, pisá-lo e esmagá-lo. Não me faças isso.
Eu não consegui falar, atordoada por toda a culpa que sentia, por toda a vergonha de não ser a rapariga que ele julgava que eu era.
- Por favor, olha para mim. Preciso que me ames, e agora não me deixas tocar-te, abraçar-te. Heaven, nós já não somos crianças. Já temos idade suficiente para sentirmos emoções adultas... E partilharmos prazeres adultos.
Outro homem que se queria servir de mim!
- A minha família dá-me preocupações que me cheguem. Pergunto a mim própria como é que eu consegui crescer - disse eu, a custo.
- Na minha opinião, o facto de cresceres, e de ganhares formas, foi um trabalho extraordinário.
O seu sorriso tímido e perturbado desvaneceu-se. O Logan ficou muito sério, e por instantes julguei ver naqueles olhos azuis tormentosos toda a devoção e amor que um oceano podia comportar. Para mim, para mim! Uma eternidade de amor, de carinho e de fidelidade. Um baque profundo no peito fez-me sentir por momentos que havia esperança onde nunca poderia havê-la.
- E que se passa? - perguntou ele quando eu comecei a andar mais depressa. - Disse algum disparate? Outra vez? Lembras-te do dia em que nos comprometemos um com o outro?
Eu lembrava-me tão bem como ele daquele dia maravilhoso em que estávamos estendidos à beira do rio a fazermos as nossas promessas infantis de amor eterno. Agora, eu sabia que nada durava para sempre.
Nessa altura, fora fácil assumir compromissos na convicção de que nem ele nem eu mudaríamos nunca. Agora tudo mudara. Eu já não era digna dele, se é que alguma vez o fora. Era curioso que o facto de eu ser a escória dos montes não era tão humilhante como ser o que eu era desde que permitira ao Cal que me tocasse. Apenas mais uma vadia que se deixava usar por um homem.
- Aposto que nunca tiveste mais nenhuma namorada a não ser eu...
A minha voz estava repassada de amargura em que ele não deu mostras de reparar.
- Apenas namoricos, namoricos casuais.
Chegámos a Martins Road. E ali à esquina havia uma casa monstruosa, pintada de um verde doentio, como a espuma do mar, como os olhos da Kitty.
O quintal à roda da casa era largo e tratado na perfeição. Era duro imaginar o avô fechado numa casa tão grande como aquela. Todas as velhas cadeiras de balouço que havia no alpendre estavam vazias. Porque não estava o avô naquele alpendre enorme, a esculpir?
- Se quiseres, eu espero aqui fora enquanto tu vais visitá-lo- disse o Logan, com um ar pensativo.
Observei todas aquelas janelas altas e esguias e imaginei as escadas que devia haver lá dentro. O avô devia estar agora tão fraco e coxo como a avó.
O lar ficava numa rua ladeada de árvores. Todas as casas tinham um ar muito bem tratado. Todas tinham um relvado à frente e os jornais da manhã nos degraus do alpendre, ou à porta. Os maridos, com os trajes desleixados da manhã, passeavam os cães pela trela.
Houvera muitas noites em que eu visitara Winnerrow em sonhos, quando todas as ruas estavam às escuras, vazias, e os cães não ladravam, os pássaros não cantavam e não se ouvia um único som. Sonhos terríveis em que eu caminhava sozinha, sempre sozinha, à procura da "Nossa" Jane, do Keith e do tom. Nunca do avô, como se o meu subconsciente acreditasse que ele estaria sempre naquela cabana dos montes, a sobreviver de qualquer maneira, só porque eu queria. O Logan falou outra vez:
- Ouvi dizer que o teu avô ajuda a fazer a limpeza para pagar o quarto e a alimentação, quando o teu pai se esquece ou se atrasa no pagamento à Sally Trench.
O sol, que ainda mal surgira no horizonte, já escaldava, queimando o vale. Não soprava uma brisa fresca como nos Willies. E pensar que durante toda a minha vida eu acreditara que o vale representava o paraíso!
Vamos - disse o Logan, pegando-me no cotovelo e guiando-me para o outro lado da rua, na direcção do muro de tijolos. - Eu espero aqui no alpendre. Leva o tempo que quiseres. Tenho o dia inteiro, a vida inteira, para passar contigo.
Uma mulher de meia-idade, gorda e com um ar desmazelado, reagiu ao meu bater tímido, olhou para mim com muito interesse, e depois escancarou a porta e deixou-me entrar.
- Disseram-me que o meu avô, Mister Toby Casteel, está aqui com a senhora.
- Claro que está aqui, querida... Mas que linda que tu és. És mesmo bonita. Adoro essa cor de cabelo, essa boca tão linda... Boa para beijar, diria eu.
A mulher suspirou, espreitou por uma janela próxima e franziu o sobrolho ao ver a sua imagem reflectida, antes de se voltar para mim.
- Querido velhote, tenho um fraquinho por ele. Recebi-o quando ninguém mais queria recebê-lo. Pu-lo num belo quarto, e dei-lhe a comer refeições que ele nunca tinha comido. Aposto, aposto. Sou uma parva. Tem de ser. Não posso ter este tipo de negócio se não arriscar. As pessoas são traiçoeiras, mesmo traiçoeiras. Os novos vêm pôr aqui os pais, dizem que pagam e não pagam. Vão-se embora, nunca mais aparecem, e os pais ou as mães velhos ficam aqui sentados para o resto da vida, à espera das visitas que nunca chegam, e das cartas que ninguém escreve. É uma vergonha, uma autêntica vergonha o que os filhos fazem aos pais quando eles envelhecem e já não lhes servem para nada.
- Eu sei que o meu pai manda dinheiro todos os meses.
- Oh, ele manda, ele manda! É um belo homem, o teu pai, uma verdadeira estampa. Lembro-me dele quando era miúdo, e todas as raparigas andavam doidas por ele. Não posso dizer que as acuse... Mas ele fez-se muito diferente daquilo que a maioria das pessoas pensava dele, sem dúvida.
O que queria ela dizer com aquilo? O pai era um patife refinado e toda a gente em Winnerrow tinha de saber.
A mulher sorriu, mostrando uns dentes postiços tão brancos que pareciam feitos de giz.
- É um belo sítio, não é? Tu és a Heaven Casteel, não és? Vi a tua mãe uma ou duas vezes, uma verdadeira beldade, de facto muito refinada para este ambiente horroroso, e creio que Deus deve ter sido da mesma opinião. Tu tens o mesmo ar meigo dela, e não há muitas assim. - A mulher fitou-me com uns olhos pequenos mas amigáveis e franziu o sobrolho. - Vai-te embora daqui, querida. Tu não foste feita para viver com gente como nós.
Ela teria ficado a tagarelar o dia todo se eu não tivesse pedido para ver o meu avô.
- Não tenho muito tempo. Gostaria de ver o meu avô agora.
A mulher conduziu-me através do átrio lúgubre da casa. Reparei nos quartos antigos com lâmpadas penduradas do tecto, e nos retratos amarelecidos em molduras suspensas do tecto por pesados cordões de seda entrelaçados, antes de começar a subir umas escadas íngremes. Aquela casa enorme parecia-me terrivelmente velha, agora que eu estava lá dentro. Toda a glória da pintura recente e das remodelações se concentrava apenas no exterior. Lá dentro, não havia nada que fosse fresco nem asseado, excepto o cheiro do lisol.
Lisol...
"Toma banho, escória.
Usa lisol com fartura, estúpida.
Tens de te livrar desse sebo dos Casteel."
Estremeci.
Passámos por um quarto no segundo andar que parecia uma folha rasgada do catálogo Sears dos anos trinta.
- Podes ficar ao pé dele durante cinco minutos - comunicou-me a mulher, num tom mais profissional. - Temos dezasseis pessoas a quem dar de comer três vezes por dia e o teu avô tem de fazer o trabalho que lhe compete.
O avô nunca fizera o que lhe competia nos trabalhos de casa!
Como a personalidade de algumas pessoas mudava de repente! Subimos mais três lanços de escadas íngremes, em caracol. As nádegas da mulher debaixo daquele vestido fino de algodão pareciam dois animais selvagens a lutarem um com o outro. Tive de desviar o olhar. Oh, como é que o avô conseguia subir estas escadas, nem que fosse uma vez? Como é que ele saía? Quanto mais subíamos, mais velha parecia a casa. Ali em cima ninguém se importava que a pintura tivesse falhas, que as baratas cobrissem o chão. As aranhas construíam as teias em cantos escuros e cobriam-nos das cadeiras até às mesas, das lâmpadas até às bases dos candeeiros. Mas que susto isto seria para a Kitty!...
No último andar, seguimos por um corredor estreito com muitas portas fechadas até chegarmos à porta do fundo, e quando esta se abriu revelou um quartinho pequeno e miserável, com uma velha cama desconjuntada, uma cómoda pequena... E lá estava o avô sentado numa velha cadeira de balouço a ranger. Envelhecera tanto que mal o reconheci. Partiu-se-me o coração ao ver a outra cadeira de balouço... Ambas tinham vindo da nossa cabana miserável nos Willies, e o avô conversava como se a avó estivesse sentada na outra cadeira.
- Andas a trabalhar de mais na tua lã - murmurou ele.
- Tens de ir arranjar-te porque a Heaven está a chegar...
Lá em cima estava um calor incrível.
À volta não havia uma bela paisagem, nem cães, gatos, porcos ou galinhas para fazerem companhia ao meu avô. Ali não havia nada excepto algumas peças de mobiliário velho e estafado. O avô estava tão só que pusera a imaginação a funcionar e sentara a sua Annie naquela cadeira de balouço vazia.
Fiquei à porta a ouvir a senhoria a afastar-se com os seus passos pesados, e uma compaixão imensa apoderou-se de mim.
- Avô... Sou eu, a Heaven Leigh.
Os seus olhos azuis sem brilho voltaram-se na minha direcção, não tanto pelo interesse como pelo espanto por ouvirem uma voz diferente e verem uma cara diferente. Atingira ele um determinado patamar de infelicidade em que já nada verdadeiramente lhe interessava?
- Avô, sou eu, a Heaven - disse eu em voz baixa, a chorar, desolada por vê-lo naquele estado. - Era assim que me tratava... Não se lembra? Eu mudei assim tanto?
A pouco e pouco, veio o reconhecimento. O avô tentou sorrir, mostrar-se satisfeito, os seus olhos descorados iluminaram-se e abriram-se mais. Caí-lhe nos braços que se foram abrindo devagarinho para me receber... E no momento exacto. Enquanto ele chorava em silêncio, eu abracei-o e enxuguei as lágrimas com o lenço.
- Ora, ora, não chores. Nós não estamos a sofrer, a Annie e eu. Nunca foi tão bom como agora, hem, Annie? disse o avô para me consolar, com voz rouca, enquanto me acariciava o cabelo em desalinho.
Oh, meu Deus!... Ele olhava para a cadeira de balouço vazia e via a avó! Até deu uma palmadinha no sítio onde estaria a mão dela, se estivesse ali sentada. Depois, quase com alívio, inclinou-se para as folhas de jornais velhos estendidas no chão, a seus pés, e começou a descascar um ramo de árvore com a sua faca afiada. Era tão bom ver aquelas mãos ocupadas.
- A senhora daqui paga-nos, a mim e à Annie, para trabalharmos, para ajudar na cozinha e fazer estes bichos disse o avô em voz baixa. - Detesto vê-los partir. Nunca julguei que os deixaria partir, mas isso corresponde
a coisas bonitas para a Annie. Ela já não ouve tão bem hoje em dia. Vou-lhe comprar um aparelho para ouvir melhor. Mas eu ouço bem, mesmo bem. Ainda não preciso de usar óculos... És tu, Heaven, és mesmo tu? Estás com bom aspecto, como a tua mãe quando cá chegou. Annie... Donde é que veio o anjo do Luke? Ultimamente não me lembro de nada.
- O avô está com bom aspecto - consegui eu dizer, quando me ajoelhei a seu lado e pousei a face na sua mão velha e nodosa que imobilizou por instantes. - Eles aqui são bons para si?
- Isto não é assim tão mau - respondeu ele vagamente, com um ar perdido e confuso, percorrendo o aposento com o olhar. - E eu estou muito contente por te ver tão boa e bonita; bonita como a tua verdadeira mãe. E cá estás tu, a Heaven, a filha do anjo do Luke. Agrada-me ver essa cara como seria a da tua mãe se fosse viva.
O avô calou-se e olhou para mim, inquieto, antes de continuar:
- Eu sei que não gostas do teu pai, sei que nem sequer queres ouvir falar dele, mas ele continua a ser o teu pai, e não podes fazer nada em contrário. O meu Luke foi-se embora e arranjou um trabalho arriscado e perigoso, segundo oiço dizer, mas não sei o que é, a não ser que ele está a ganhar rios de dinheiro. O Luke internou-nos aqui, a mim e à Annie, com o dinheiro dele, para não nos deixar morrer à fome.
Como ele parecia estar agradecido por coisa nenhuma! Aquele quartinho horrível! E depois tive vergonha porque ele estava melhor aqui do que sozinho na cabana.
- Avô, onde está o pai?
Ele olhou para mim com um ar apático e depois baixou os olhos.
- É como se a morta se levantasse do túmulo - murmurou ele. - Como se Deus tivesse cometido um erro noutros tempos e tentasse agora remediá-lo. Deus a ajude.
Aquilo que ele disse produziu em mim uma sensação estranha. Ele não sabia que pronunciara em voz alta aquelas palavras assustadoras. Mesmo assim, aquilo soou-me a uma condenação. E, pior ainda, ele continuou a falar daquela maneira esquisita, como se estivesse a conversar com a sua Annie.
- Já olhaste para ela, Annie? Já olhaste para ela?
- Avô, não fale em voz baixa! Diga-me onde está o pai! Diga-me onde posso encontrar o Keith, a "Nossa" Jane! O avô vê o pai... Ele deve ter-lhe dito onde eles estão.
Um olhar vago. Ninguém respondeu àquela pergunta. Não valia a pena.
Ele já dissera tudo o que tinha a dizer na devida altura, e eu levantei-me para sair.
- Até breve, avô - disse eu, da porta. - Tenha cuidado. Está a ouvir?
Depois fui ter com o Logan ao alpendre.
Estava alguém ao pé dele. Um jovem alto, de cabelo ruivo, que se voltou ao ouvir o barulho dos meus saltos. Concentrei-me... E depois senti-me desfalecer.
Oh, meu Deus!
Era o tom!
O meu irmão tom, a sorrir-me, como era costume... Só que, em dois anos e oito meses, ele crescera tanto que parecia mesmo o pai!
O tom avançou para mim, com um sorriso aberto e de braços estendidos.
- Não posso acreditar no que os meus olhos vêem! Corri para ele e fui apanhada no seu abraço forte, e abraçámo-nos,
beijamo-nos, rimos e chorámos, tentando falar os dois ao mesmo tempo.
Pouco depois, descíamos Main Street, os três de braço dado, comigo no meio. Parámos num banco de jardim que havia mesmo em frente da igreja, e é claro que o presbitéri ficava do outro lado da igreja. A Fanny podia olhar cá para fora e ver-nos, mesmo que fosse cobarde ao ponto de não se ir juntar à família.
- Olha, tom, conta-me tudo aquilo que não me disseste nas cartas.
O tom olhou para o Logan e mostrou-se um pouco embaraçado. O Logan levantou-se imediatamente e desculpou-se dizendo que tinha de ir a correr para casa.
- Desculpa, Logan, mas só tenho dez minutos para ver a minha irmã e muita coisa para contar, mas dentro de uma semana ver-te-ei de novo - disse o tom, desculpando-se.
- Vejo-te amanhã na igreja - disse-me o Logan, olhando para mim com um ar significativo.
O Logan afastou-se e eu regalei-me a olhar para o tom. Os seus olhos verdes faiscantes procuraram os meus.
- Macacos me mordam se tu não és um regalo para a vista.
- Tu é que és, dize antes isso.
- Eu já devia saber. Lá vem a mestra-escola!
- Não estás mais magro do que eras, mas estás muito mais alto e tão bonito! tom, nunca pensei que te parecesses com o pai depois de crescido.
O que sentiu ele na minha voz que o fez sorrir?
- Não gostas do aspecto que tenho agora?
- Gosto do teu aspecto, claro que gosto. Estás bonito... Mas tiveste de crescer tanto para te pareceres com o pai? disse eu, quase a gritar.
Agora, ferira os sentimentos dele quando não era isso que eu queria.
- Desculpa, tom - disse eu, sufocada, pousando a minha mão na sua mão enorme. - É que me apanhaste desprevenida.
Ele tinha uma expressão estranha.
- Há muitas mulheres que acham que o pai é o mais bonito dos homens.
franzi o sobrolho e desviei o olhar.
- Não quero falar nele, por favor. Tens sabido do Keith
e da "Nossa" Jane?
Ele voltou a cabeça para o lado e eu vi-o de perfil. Mais uma vez me surpreendeu que fosse tão parecido com o pai.
- Tenho. Ouvi dizer que estão bem, e que a "Nossa" Jane está viva e de boa saúde. Se o pai não tivesse feito o que fez, sem dúvida que ela teria morrido.
- Estás a arranjar desculpas para ele?
Ele voltou-se para mim e sorriu.
- Estás exactamente na mesma. Não te agarres demasiado ao ódio, Heavenly... Afasta-te dele antes que ele te devore e te faça pior do que o pai é. Pensa naqueles que te amam, como eu. Não estragues todo o bem que possa vir no futuro só porque tiveste um pai cruel. As pessoas mudam. Ele está a tomar conta do avô, não está? Nunca julgaste que ele o faria, pois não? E o Buck Henry não é tão mau como parecia naquela primeira vez em que o vimos; como podes ver, não estou mal alimentado, não estou doente, o trabalho não me mata. E acabarei o liceu ao mesmo tempo que tu.
- O teu cabelo já não é da cor do fogo...
- Lamento, mas estou satisfeito. Dize-me se os meus olhos ainda têm um brilho demoníaco.
- Sim, ainda têm.
- Afinal, não mudei muito, pois não?
Ele tinha uma cara límpida e honesta, olhos claros e brilhantes, sem segredos, enquanto que eu tinha de baixar a cabeça e esconder os meus olhos, receosa de que ele descobrisse o meu terrível segredo. Se ele soubesse,
deixaria de me respeitar como sempre fizera. Pensar que eu não era melhor do que a Fanny, talvez ainda pior...
- Porque estás a desviar o olhar, Heavenly? Desatei a soluçar e tentei olhar para ele outra vez. Se ao menos eu lhe pudesse contar tudo naquele momento, para ele perceber que eu fora tão apanhada numa armadilha pelas minhas circunstâncias de vida em Candlewick, tal como a Fanny o fora pelos seus genes dos montes! Comecei a tremer tanto que o tom me puxou para ele e eu deitei a cabeça no seu ombro.
- Por favor, não chores de felicidade por me veres, senão fazes-me chorar também. Não choro desde o dia em que o Buck Henry me comprou ao pai. Mas não há dúvida de que chorei muito naquela noite, sem saber o que te aconteceria depois de ele me levar. Heavenly, estás bem, não estás? Não aconteceu nada de mal, pois não?
- Claro que estou bem. Não estou com bom aspecto? Ele examinou a minha cara enquanto eu tentava sorrir e ocultar toda a culpa e vergonha que sentia. O que ele viu pareceu satisfazê-lo porque sorriu também.
- Livra, Heavenly, é uma maravilha estar aqui ao pé de ti. Agora conta-me tudo o que aconteceu desde o dia em que eu parti... E depressa, porque daqui a pouco tenho de me ir embora.
A aflição do tom fez-me olhar à volta... O Buck Henry teria vindo com ele?
- Tu primeiro, tom. Conta-me tudo o que não me contaste nas tuas cartas!
- Não tenho tempo - disse ele, levantando-se e puxando-me, no momento em que avistei um vulto corpulento que me era familiar a descer a rua. - É ele à minha procura. Só um abraço e tenho de ir. Ele veio à cidade comprar medicamentos para duas vacas doentes. Da próxima vez, tens de falar mais da tua vida em Candlewick. As tuas cartas dizem tão pouco. Falas de mais nos filmes, nos restaurantes e na roupa. Bolas, até parece que nos saiu a sorte grande no dia em que o pai nos vendeu.
Havia sombras nas profundezas dos seus olhos cor de esmeralda, sombras escuras de que me apercebi de repente, lançando dúvidas no meu espírito acerca da felicidade dele; mas antes que eu pudesse fazer a pergunta, ele afastou-se, gritando:
- vou ter com Mister Henry, mas procura-me no próximo sábado, que eu trago a Laurie e a Thalia comigo... E almoçaremos ou jantaremos juntos... Talvez as duas coisas,
se tivermos sorte!
Fiquei ali a olhar para ele, tão triste por vê-lo afastar-se; ele era a única pessoa que poderia compreender, se eu pudesse contar-lhe. Chorei ao vê-lo aproximar-se daquele homem em quem eu não acreditava que o tom gostasse. Mesmo assim, estava com boa aparência. Parecia feliz, grande e forte. As sombras nos seus olhos eram apenas o reflexo das minhas, tal como ele próprio fora sempre o meu reflexo.
No sábado ia vê-lo outra vez. Mal conseguia esperar por esse dia!
O AMOR DE UM HOMEM
O Cal estava à minha espera quando regressei por fim a casa dos Setterton.
- Heaven! - exclamou ele assim que me viu na escada. - Onde diabo estiveste? Estava muito preocupado contigo.
Ele era o homem que me amava, que me dera tanta felicidade como ternura e carinho, que me dera tanta vergonha como amor; e juntando tudo, o resultado é que eu me sentia encurralada. Ao ceder ao seu abraço rápido e ao seu beijo apressado, senti-me envolvida no nevoeiro espesso do desespero. Eu amava-o pelo que ele me fizera para me salvar da crueldade da Kitty, e todavia desejava desesperadamente que ele continuasse apenas a ser o meu pai e que não se tivesse tornado meu amante.
- Porque me olhas assim, Heaven? Só consegues amar-me em Candlewick e não em Winnerrow?
Eu não queria amá-lo da mesma maneira que ele! Não podia permitir que as necessidades dele voltassem a dominar-me. Respondi em voz baixa:
- Hoje vi o tom, e a Fanny, e o avô.
- E estás a chorar? Julguei que te sentias feliz.
- Nada é exactamente como nós julgamos que vai ser, não é verdade? O tom está da altura do pai e só tem dezasseis anos.
- E como está o avô?
- Tão velho e diminuído, e a fingir que a avó ainda é viva, sentada ao lado dele, na cadeira de balouço. - Quase que me ri. - Só a Fanny é que era previsível. Não mudou nada em termos de personalidade, mas está uma beldade.
- Tenho a certeza de que ela não seria capaz de fazer nada pela irmã - disse ele em voz baixa, íntima, tocando-me no seio ao de leve.
Naquele momento, Maisie abriu a porta e ficou de olhos esbugalhados. Ela vira! Oh, meu Deus!
- A Kitty está a chamar-te - disse a Maisie, com uma voz melíflua. - É melhor ires a correr ver o que ela quer. A mãe não consegue fazer nada dela.
No domingo de manhã, levantámo-nos todos cedo para ir à igreja. A Kitty tinha de esperar por segunda-feira para ser vista pelos médicos.
- Vamos todos à igreja - disse a Reva Setterton quando me viu no corredor. - Despacha-te e vai tomar o pequeno-almoço para ires também. Eu já tratei da minha filha cedo e não fará mal deixá-la sozinha por umas horas.
O Cal estava à porta do quarto, a olhar para mim com um ar inquietante. Ele teria percebido que era preferível que ele e eu nunca mais ficássemos a sós? com certeza que ele sabia que o Logan era o homem certo para mim, e me deixaria partir sem fazer mais exigências. Lancei-lhe um olhar suplicante, pedindo-lhe que retomássemos a nossa relação acertada... Porém, ele franziu o sobrolho e deu meia volta, com um ar ofendido.
- Eu fico com a Kitty; vocês podem ir todos - disse eu.
- Não gosto de deixá-la sozinha.
No mesmo instante, o Cal voltou-se e encaminhou-se para a porta, atrás da família da Kitty. Olhou para trás e deitou-me um olhar demorado e apreciador antes de os seus lábios se abrirem num sorrisinho tortuoso.
- Trata bem da tua mãe, Heaven.
Que sarcasmo era aquele que eu sentira na voz do Cal?
Ali estava eu, enfiada naquela casa, enquanto o Logan estava à minha espera na igreja. Como eu fora estúpida e cega ao pensar que a Reva Setterton ficaria bem em casa com a filha, e com que indiferença ela sugerira que a Kitty ficasse sozinha!
Lentamente, subi as escadas para ir ver a Kitty.
Estava deitada na cama larga, com o rosto tão limpo que até brilhava. Não só estava vermelho e arranhado, como o meu depois daquele banho em água a escaldar, como lhe haviam feito um risco ao meio no cabelo ruivo e espesso e o tinham penteado em duas longas tranças que lhe chegavam quase ao peito. A mãe vestira-lhe uma camisa de noite simples, de algodão branco, como as das senhoras de idade, abotoada até ao pescoço, o tipo de camisa de noite que a Kitty desprezava, modesta e barata. Nunca vira a Kitty tão feia.
A mãe dela dava largas à sua vingança, como a Kitty dera à dela quando me metera em água a ferver... E, no entanto, eu sentia uma raiva crescente. Eu detestava a Reva Setterton por estar a fazer aquilo a uma mulher indefesa! Que crueldade, agora que a Kitty não podia defender-se! Como uma mãe protectora, fui buscar o que precisava para desfazer o que a Reva fizera. Fui buscar a camisa de noite mais bonita da Kitty, despi-lhe a feia e besuntei-lhe a pele arranhada com uma loção calmante; em seguida, enfiei-lhe o penteador de renda pela cabeça e comecei a desfazer-lhe o penteado. Depois de a pentear o melhor que pude, cobri-lhe a pele irritada da cara com creme hidratante e comecei a maquilhá-la.
Enquanto me esforçava por reparar o mal, ia falando:
- Mãe, começo a perceber o que isto deve ter sido para si. Mas não se preocupe. - Pus-lhe uma boa loção hidratante no corpo e creme na cara. - Sei que a sua cara não vai ficar tão bem como quando é arranjada por si, mas vou tentar. Amanhã, vamos levá-la ao hospital, e os médicos vão examinar-lhe melhor o peito. Não é necessariamente verdade que tenha herdado tumores, mãe. Espero que me tenha dito a verdade, e que tenha ido ao médico, como me disse que foi... Foi mesmo?
Ela não respondeu, embora me parecesse que estava a escutar-me, e surgiu-lhe uma lágrima ao canto do olho esquerdo. Eu continuei a falar. Servi-me do blusher, do lápis para os olhos, do bâton e do rimel; e quando acabei, ela parecia a mesma outra vez.
- Sabes uma coisa, Kitty Dennison? Ainda és uma linda mulher, e é uma vergonha que estejas aí deitada sem quereres saber de nada. Tudo o que tinhas a fazer era chegares-te ao pé do Cal e dizeres-lhe que o amas, que precisas dele, e deixares de dizer que não, tantas vezes, e ele seria o melhor marido do mundo. O pai não foi feito para ser marido de ninguém. Devias saber isso. É um patife nato! A melhor coisa que te podia acontecer foi ele ter desaparecido e ter surgido o Cal. Tu odeias a minha mãe, quando devias ter pena dela... Olha o que ele lhe fez.
A Kitty começou a chorar. Lágrimas silenciosas deslizaram-lhe pela face e estragaram-lhe a maquilhagem que eu acabara de aplicar.
Na segunda-feira, de manhã cedo, uma ambulância levou a Kitty para o hospital. Eu ia ao lado dela e o Cal ia comigo, enquanto a mãe e o pai ficavam em casa. A Maisie e o Danny tinham ido a uma corrida nas montanhas.
Durante cinco horas, eu e o Cal estivemos sentados nas duras e desconfortáveis cadeiras do hospital, à espera do veredicto sobre a Kitty. Às vezes eu segurava-lhe na mão, e outras vezes ele segurava na minha. Estava abatido, inquieto e fumava sem parar. Enquanto a Kitty tomara conta da casa, ele nunca fumara; agora não conseguia largar os cigarros. Por fim, um médico chamou-nos a um gabinete, nós sentámo-nos lado a lado e ele tentou dizer-nos sem emoção:
- Não sei como isto não foi descoberto mais cedo. Por vezes, um tumor é muito difícil de encontrar quando uma mulher tem uns seios tão grandes como a sua, Mister Dennison. Fizemos-lhe uma mamografia ao seio esquerdo, porque por qualquer razão as mulheres parece sofrerem mais daquele lado do que do outro, e depois ao seio direito. Ela tem um tumor, profundamente implantado debaixo do mamilo, no sítio mais crítico, porque é difícil de descobrir. Tem cerca de cinco centímetros. É muito grande para um tumor deste género ..Temos a certeza absoluta de que a sua mulher já sabia da existência deste tumor há algum tempo. Quando tentámos fazer a mamografia, de repente ela saiu da sua letargia e ofereceu resistência. Desatou aos gritos e disse: "Deixem-me morrer!"
O Cal e eu ficámos espantados.
- Ela agora já fala? - perguntou ele.
- Mister Dennison, a sua mulher sempre pôde falar. Optou por não o fazer. Ela sabia que tinha um tumor. Disse-nos que preferia morrer a que lhe tirassem o seio. Quando as mulheres têm este sentimento tão forte em relação à perda de um seio, nós não insistimos; sugerimos alternativas. Ela recusou-se a fazer quimioterapia, porque lhe provocaria a queda do cabelo. Quer que tentemos as radiações... E se isso falhar, ela ficará pronta para se "encontrar com o Criador". - O médico fez uma pausa e houve qualquer tremura no seu olhar que eu não soube interpretar. - com toda a franqueza, tenho de dizer-lhes que o tumor ultrapassou o tamanho que seria possível tratar com radiações... Mas como essa é a única coisa que ela fará para se ajudar a si própria, não temos alternativa senão fazermos o nosso melhor... A menos que consiga convencê-la do contrário.
O Cal levantou-se e pareceu-me que tremia.
- Nunca na minha vida convenci a minha mulher de coisa nenhuma. Tenho a certeza de que não o conseguirei agora, mas vou tentar.
E fez o seu melhor. Eu estava presente quando ele se sentou na beira da cama dela e suplicou:
- Por favor, Kitty, deixa que te operem. Eu quero que tu vivas.
Ela fechou-se outra vez em si própria. Só quando olhava para mim é que os seus olhos verdes descorados estremeciam, de ódio ou de outra coisa qualquer que eu desconhecia.
- Agora vai para casa - ordenou-me o Cal, instalando-se na única cadeira que havia no quarto dela. - Mesmo que leve um mês, hei-de convencê-la.
Eram três horas da tarde de segunda-feira e os saltos dos meus sapatos tilintavam no pavimento. Levava uns brincos azuis que o Cal me oferecera há uma semana. Ele oferecia-me tanta coisa, tudo o que ele julgava que eu podia desejar. Até me oferecera o guarda-jóias da Kitty, mas eu não conseguia usar nada que lhe pertencesse. A doçura daquela tarde maravilhosa fazia-me sentir mais jovem e fresca do que me sentira desde aquele primeiro dia em que a Kitty me tratara como se eu fosse a escumalha dos montes. O que quer que acontecesse à Kitty seria da sua responsabilidade, de certo modo, porque ela poderia ter salvo aquele seio se tivesse actuado mais cedo e ficaria apenas com uma pequena cicatriz na qual nenhum homem teria reparado.
À medida que andava, rezava para que o Cal convencesse a Kitty a submeter-se àquela operação. Rezei também para que ela visse o homem bom que ele era e que, quand isso acontecesse, ele se libertasse de mim. Era a Kitty que ele amava, que sempre amara, e ela tratara-o tão mal, como se não conseguisse amar outro homem depois do mal que o pai lhe fizera.
O pai! O círculo ia sempre fechar-se no pai!
Ouvi passos atrás de mim. Não olhei para trás.
- Ouve! - gritou uma voz conhecida. - Ontem fiquei à tua espera.
Porque estuguei o passo quando sempre esperara que ele viesse à minha procura?
- Heaven, não corras. Não consegues correr o suficiente e muito menos escapar-me.
Eu olhei para trás e vi o Logan aproximar-se. Ele tornara-se naquilo que eu sempre sonhara que ele seria. E agora era tarde de mais para reclamá-lo como meu. Tarde de mais.
- Vai-te embora! - ripostei. - Tu agora não me queres!
- Espera aí - resmungou ele, apanhando-me e agarrando-me por um braço e obrigando-me a caminhar ao lado dele. - Porque reages assim? O que fiz eu? Num dia gostas de mim e no dia seguinte repeles-me?... O que se passa?
O coração doía-me tanto que me senti desfalecer. Sim, eu amava-o, sempre o amara; sempre o amaria; e no entanto tinha de dizer o que disse:
- Logan, desculpa mas não me esqueço da maneira como me ignoraste naquele último domingo antes de o pai me vender aos Dennison. Eu queria a tua ajuda e tu olhaste para mim como se não visses, e eras a única pessoa que eu tinha depois de Miss Deale partir. Tu eras o meu cavaleiro branco, o meu salvador, e não fizeste nada, absolutamente nada! Como queres que eu confie em ti depois disso?
Ele corou e fez um ar desolado.
- Como podes ser tão parva, Heaven? Julgas que estás neste mundo sozinha com os teus problemas, e que mais ninguém os tem? Tu bem sabes que eu andava com problemas na vista nesse ano. O que julgas que eu andava a fazer enquanto tu estavas a morrer de fome no cimo da montanha? Lá em baixo no vale, eu estava à beira da cegueira, e tive de ser levado de avião para um hospital especializado para fazer uma operação aos olhos! Foi onde eu estive. Longe daqui, enfiado num hospital, com a cabeça ligada e os olhos fechados e cobertos de ligaduras até sararem. Depois fui obrigado a usar óculos escuros e a ter cuidado até as retinas se fixarem novamente. Naquele dia em que julgaste que eu te vi na igreja, eu estava apenas a tentar ver, e só via imagens enevoadas... E estava à tua procura! Era por isso que eu estava lá!
- E agora vês bem? - perguntei, com um nó na garganta.
Ele sorriu, depois olhou-me bem nos olhos até a minha visão se enevoar.
- Vejo-te com vinte olhos de cada lado. Estou perdoado pelo que fiz nesse domingo?
- Estás - respondi em voz baixa.
Engoli todas as lágrimas que queriam irromper de novo, mordi o lábio, baixei a cabeça e encostei a testa ao peito dele. Em silêncio, pedi a Deus que ele me perdoasse quando ou se alguma vez eu lhe contasse tudo. Agora eu era inútil para ele, visto que não era o que ele julgava... Era impura, já não era virgem. No entanto, conseguiria forçar-me a dizer-lhe, mas não naquele sítio.
Com determinação, comecei a encaminhá-lo para a área florestada de Winnerrow.
- Onde vamos? - perguntou ele, com os dedos entrelaçados nos meus. - Ver a tua cabana?
Mão na mão, dirigimo-nos para o caminho coberto de vegetação que ia dar ao cemitério. Eu olhava para ele de vez em quando; os nossos olhares cruzaram-se várias vezes, obrigando-me a desviar a cara. Ele amava-me. Eu tinha a certeza. Porque não fora eu mais forte, não oferecera mais resistência? Solucei, tropecei e ele correu a amparar-me. Acabei nos braços dele.
- Amo-te, Heaven - sussurrou ele com voz rouca. Senti o seu bafo quente e doce na minha face antes de ele me beijar. - Passei esta noite acordado a pensar como és maravilhosa, fiel e dedicada à tua família. És o tipo de mulher em que um homem pode confiar; o tipo de mulher que se pode deixar só sabendo que ela permanecerá fiel.
Atordoada com a desolação que sentia, tentei não deixar entrar muito o sol nas sombras do meu coração, enquanto o Logan falava sem parar, contando-me coisas dos pais, das tias, dos tios e dos primos, até chegarmos à margem do rio onde tínhamos passado tanto tempo juntos há anos. Ali o tempo parara. O Logan e eu poderíamos ser os mesmos adolescentes apaixonados pela primeira vez. Sentámo-nos, talvez no mesmo sítio, os nossos ombros tocaram-se e a minha coxa roçou na dele. Contemplámos a água que ondulava sobre as pedras. E só então é que eu comecei a contar a história mais difícil da minha vida. Eu sabia que ele me odiaria quando eu terminasse.
- A minha avó costumava dizer que a minha verdadeira mãe vinha para aquela nascente - disse eu, apontando para a água que jorrava de uma fenda na rocha. - E que enchia o nosso velho balde de madeira de carvalho com a água da nascente porque julgava que a água do poço não era boa para beber, ou para fazer sopa, ou para os corantes que a avó usava para tingir as meias velhas com que ela andava a fazer uma manta para pôr debaixo de um berço e para afastar as correntes de ar. Ela estava a arranjar a cabana o melhor que podia para quando eu nascesse...
Ele estendeu-se na relva a meu lado, a brincar com os meus cabelos compridos. Era romântico estar ali sentada com o Logan, como se fôssemos ambos muito novos e nunca ninguém tivesse amado antes de nós. Eu via-nos em espírito, jovens e frescos, sem rugas e felizes, na primeira florescência das nossas vidas... Mas eu já tinha sido aflorada por outras abelhas... Ele brincava com as minhas mãos, primeiro com uma, depois com a outra, beijando-me a ponta dos dedos e as palmas, antes de mas fechar para eu guardar os beijos que ele me oferecera.
- Por todos os dias em que te desejei tanto, e tu não estavas.
Ele puxou-me para baixo de tal maneira que fiquei com a parte superior do corpo deitada no seu peito, e os meus cabelos pareciam um xaile escuro que escondia as nossas caras quando nos beijávamos. Depois encostei a cara ao seu peito, abraçada a ele. Se ao menos eu fosse o que ele julgava que eu era, poderia saborear aquele momento. Sentia-me uma moribunda no último piquenique da sua vida; o sol em toda a sua glória não podia afastar a chuva da minha consciência.
Fechei os olhos, desejando que ele continuasse a falar para sempre e não me desse oportunidade de destruir o seu sonho... E o meu.
- Casaremos quando as rosas ainda estiverem em flor, no ano em que eu me licenciar. Antes de começar a nevar, Heaven.
Eu abanei a cabeça, quase apanhada na sua fantasia. Fechei os olhos e acertei o ritmo da minha respiração pelo dele. Ele acariciou-me as costas, os braços... E depois, a medo, o seio. Dei um salto e gritei, ao mesmo tempo que me afastava e sentava. A minha voz tremia ao dizer:
- Vamo-nos embora. Tens de saber mais, se quiseres compreender quem sou e o que sou.
- Eu já sei quem és e o que és. Heaven, porque tens os olhos tão abertos e um ar tão assustado? Eu não te faria mal, eu amo-te.
Ele deixaria de me amar assim que soubesse a verdade. O Cal é que sabia o que eu passara e o Cal percebia. Eu era uma Casteel, nascera impura, e o Cal não se importava, ao contrário dos Stonewall, que eram pela perfeição. De vez em quando, o Logan afastara-se da Fanny porque ela era selvagem e tinha demasiadas liberdades consigo própria.
Os olhos brilhantes do Logan enevoaram-se de preocupação, como se adivinhassem que eu tinha um segredo que não o faria feliz. Eu senti-me tão pequena, tão desgraçada, tão só!
- Tenho um desejo estranho - disse eu com uma vozinha trémula. - Se não te importas, Logan, gostaria de ir visitar outra vez a sepultura da minha mãe. Quando ela morreu, deixou-me uma boneca feita a partir de um retrato que eu não consegui salvar de um incêndio, e de que precisava para provar quem sou quando voltar a Boston para conhecer a família dela!
- Tencionas lá ir? - inquiriu ele, com uma voz soturna e apreensiva. - Porquê? Quando casarmos, a minha família será a tua família!
- Tenho de lá ir um dia. É qualquer coisa que eu sinto que tenho de fazer, não só por mim como também pela minha mãe. Ela fugiu dos pais e eles nunca mais souberam dela. Eles não podem ser assim tão velhos e devem estar preocupados com ela há muitos anos. Às vezes, é preferível sabermos a verdade do que continuarmos a interrogar-nos, a especular...
Ele afastou-se de mim naquele momento, embora acertasse os passos com os meus enquanto subíamos.
Daí a pouco, as folhas transformar-se-iam numa poção mágica de cores vivas e o Outono brilharia fugazmente nas montanhas. Lá em baixo no vale, onde o vento não soprava, o pai e a mãe Stonewall guardariam rancor a esta Casteel que não era digna do seu único filho. Peguei-lhe na mão, e amei-o como só os muito jovens podem amar. No mesmo instante, ele sorriu e aproximou-se mais.
- Tenho de dizer um milhão de vezes que te amo para acreditares em mim? Tenho de me ajoelhar para te pedir em casamento? Não podes contar-me nada que me faça deixar de te amar e de te respeitar!
Oh, sim, havia uma coisa que eu podia contar-lhe e que modificaria tudo. Apertei-lhe a mão com mais força e conduzi-o, sempre a subir, contornando os pinheiros altos, os carvalhos grossos e as nogueiras, até que todas as árvores deram lugar às sempre-vivas... E depois lá estávamos nós no cemitério. Agora só havia lugar para mais algumas pessoas. Lá em baixo, havia cemitérios melhores, mais novos, onde não era tão difícil levar as máquinas para tirar as ervas e os homens para abrir as covas.
Ninguém tirara as ervas do sítio onde jazia sepultada a minha jovem mãe, sozinha. Apenas uma sepultura estreita que começava a afundar-se, com uma pedra tumular barata em forma de cruz.
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Larguei a mão quente do Logan e ajoelhei-me. Baixei a cabeça e, na minha prece, prometi-lhe que um dia, um belo dia, havia de me encontrar com ela no paraíso.
No caminho, colhera uma rosa vermelha do jardim do reverendo Wayland Wise, e pu-la numa jarra de vidro barata que enterrara aos pés da sepultura dela há alguns anos. Não havia água ali perto para manter a rosa viva e fresca. Uma rosa vermelha condenada a murchar e a escurecer. Tal como a minha mãe murchara e morrera antes de eu ter oportunidade de a conhecer.
O vento assobiava e fustigava os longos ramos das sempre-vivas quando me ajoelhei ali e tentei arranjar força de vontade para dizer o que tinha a dizer.
- Agora vamo-nos embora - disse o Logan, inquieto, olhando para o sol do fim do dia que iniciava uma rápida descida por trás do cume das montanhas.
O que estaria ele a pressentir?
O mesmo que eu?
Todos os pequenos sons crepusculares emergiam ecoando através do vale, cantando com o vento que varria as gargantas sinuosas e profundas e as folhas de Verão e sussurrando com as ervas altas que não eram cortadas há anos.
- Parece que vai chover... Eu não conseguia dizer-lhe.
- Heaven, o que estamos aqui a fazer? Viemos a este sítio só para tu te ajoelhares e chorares e esqueceres os prazeres próprios de estarmos vivos e apaixonados?
- Tu não estás a escutar, Logan. Nem a olhar ou a perceber. Esta é a sepultura da minha verdadeira mãe, que morreu quando eu nasci e que morreu com a tenra idade de catorze anos.
- Já me tinhas contado isso - respondeu ele com brandura, ajoelhando-se a meu lado e passando-me o braço pelo ombro. - Ainda custa assim tanto? Tu não a conheceste.
- Sim, eu conheço-a. Há momentos em que acordo e sinto o mesmo que ela deve ter sentido. Ela e eu somos uma só. Eu adoro os montes, e detesto-os. Eles dão tanto e roubarn tanto! Este é um local solitário e belo. Deus abençoou a terra e amaldiçoou as pessoas, e é por isso que acabamos por sentir-nos pequenos e insignificantes. Eu quero partir e quero ficar.
- Nesse caso, eu vou decidir por ti. Vamos regressar ao vale e, dentro de dois anos, casaremos.
- Tu não és obrigado a casar comigo, bem sabes.
- Eu amo-te. Sempre te amei. Nunca houve mais ninguém a não ser tu. Esse motivo não é suficiente?
As lágrimas deslizavam-me agora pela face e caíam como gotas de chuva na rosa vermelha. Olhei para as nuvens de tempestade que se aproximavam rapidamente, estremeci e comecei a falar. Ele puxou-me para si.
- Heaven, por favor não digas nada que estrague o que eu sinto por ti. Se o que tencionas dizer é doloroso, não o digas, por favor não o digas!
E eu continuei a falar e disse-o, tal como planeara dizê-lo ali, onde a minha mãe pudesse ouvir.
- Eu não sou quem tu julgas que eu sou...
- Tu és tudo o que eu quero que sejas - respondeu ele à pressa.
- Amo-te, Logan - murmurei, de cabeça baixa. - Acho que te amei desde o dia em que te conheci, e no entanto deixei que outro...
- Eu não quero ouvir falar nisso! - ripostou ele, furioso.
Como ele se levantou, eu levantei-me também, e olhámos um para o outro. O vento fustigou-me os cabelos que lhe afloraram os lábios.
- Tu sabes, não sabes?
- O que a Maisie tem andado por aí a espalhar? Não, não acredito numa coisa tão feia! Não posso acreditar em mexericos! Tu és minha e eu amo-te... Não tentes convencer-me que existe um motivo que me impeça de te amar!
- Mas há! - gritei, desesperada. - Candlewick não foi o local feliz que eu quis que tu julgasses que era quando te escrevi aquelas cartas. Menti em relação a tanta coisa... E o Cal era...
O Logan desatou a correr.
Desatou a correr pelo carreiro que o levava de volta a Winnerrow, gritando:
- Não! Não! Eu não quero ouvir mais nada! Eu não quero ouvir, portanto não me contes... Não me contes! Nunca me contes!
Tentei apanhá-lo, mas ele tinha as pernas mais compridas, e os meus saltos enterravam-se na terra lamacenta e atrasavam-me. Continuei a subir pelo carreiro para ir visitar outra vez a cabana, que me espantou pelo seu ar de desolação.
Lá estava a zona debotada da parede onde costumava estar pendurado o cartaz do tigre que era do pai e, por baixo, o sítio onde estivera o berço que era meu e do tom, quando éramos pequenos. Olhei para o fogão de ferro coberto de ferrugem, que os fungos verdes não tinham invadido, e os olhos marejaram-se-me de lágrimas ao ver as antigas cadeiras de madeira, talhadas há muito por algum Casteel já morto. Os degraus estavam soltos e alguns já não existiam, e todas as pequenas coisas que tínhamos feito para embelezar aquele sítio tinham desaparecido. O Logan vira tudo isto! Então chorei, durante muito tempo e com amargura, por tudo o que nunca tivera, e por tudo o que ainda poderia perder. No silêncio da cabana, o vento começou a uivar e a chiar, e a chuva caiu. Só então é que me levantei do chão para fazer, debaixo de chuva, o caminho de regresso a Winnerrow, onde eu não pertencia.
O Cal estava no alpendre da casa dos Setterton, a andar de um lado para o outro.
- Onde tens estado que vens toda molhada, rota e suja?
- O Logan e eu fomos visitar a sepultura da minha mãe... - respondi em voz baixa e rouca, quando me sentei, exausta, no degrau de cima, sem me preocupar com a chuva que continuava a cair.
- Logo vi que estavas com ele.
O Cal sentou-se a meu lado, tão indiferente à chuva como eu; apoiou a cabeça nas mãos.
- Passei o dia todo com a Kitty e estou estafado. Ela não come. Estão a pôr-lhe tubos intravenosos no braço e começam as radiações amanhã. Ela não foi ao médico como te disse que fora. Aquele quisto está a crescer há dois ou três anos. Heaven, a Kitty preferia morrer a perder aquilo que para ela representa a sua feminilidade.
- O que posso eu fazer para ajudar? - perguntei em voz baixa.
- Fica comigo. Não me deixes. Sou um homem fraco, Heaven, já te disse. Quando te vi a caminhar ao lado do Logan Stonewall, senti-me esquisito. Eu devia saber que aquele jovem viria reclamar o que lhe pertencia, e eu sou um parvo apanhado na minha própria armadilha.
O Cal tentou sentar-se a meu lado. Eu levantei-me de um salto, em pânico. Ele não me amava, não me amava como o Logan. Ele só precisava de mim para substituir a Kitty.
- Heaven! - gritou ele. - Também foges de mim? Por favor, preciso de ti neste momento!
- Você não me ama! - gritei. - Você ama a Kitty. Sempre a amou! Mesmo quando ela foi cruel para mim, você arranjou desculpas para ela!
Ele voltou-se, exausto, com os ombros descaídos, e encaminhou-se para a porta principal da casa dos Setterton.
- Tens razão nalgumas coisas, Heaven. Não sei o que quero. Quero que a Kitty viva, que morra e que me deixe em paz. Quero-te e sei que isso está errado. Eu nunca, nunca devia ter deixado que ela me falasse em levar-te para nossa casa!
Pum!
Estavam sempre a fechar-me as portas na cara.
SEM UM MILAGRE
Passou-se uma semana. Todos os dias eu ia ver a Kitty ao hospital. Não via o Logan desde o dia em que ele fugira de mim e me deixara à chuva, e sabia que dentro de pouco mais de uma semana ele voltaria para a faculdade. Passava muitas vezes pelo drugstore Stonewall, na esperança de o ver, mesmo quando tentava convencer-me que seria preferível ele afastar-se de uma pessoa como eu. E para mim seria preferível afastar-me de alguém que nunca me perdoaria por eu não ser perfeita. Demasiado imperfeita, demasiado parecida com a Fanny, era o que o Logan devia pensar. Se o Cal reparava que eu me sentia destroçada por nunca mais ter visto o Logan, pelo menos não dizia nada.
As horas passadas no hospital, à cabeceira da Kitty, faziam com que todos os dias parecessem excepcionalmente longos. O Cal sentava-se de um lado e eu do outro. Passava a maior parte do tempo de mão dada com ela, enquanto eu conservava as mãos no regaço. Enquanto estava ali sentada, a sentir o seu sofrimento quase como se fosse o meu, pensava nas complicações da vida. Num dado momento, teria rejubilado ao ver a Kitty indefesa e incapaz de distribuir bofetadas e palavras insultuosas que destruíam o meu amor-próprio. Agora, estava cheia de pena dela, desejosa de fazer quase tudo para lhe aliviar as dores, se bem que houvesse pouca coisa que eu pudesse fazer para lhe dar conforto. Mesmo assim, tentava, pensando que estava a redimir-me e esquecendo-me, ao mesmo tempo, que lutava para me sentir de novo digna e limpa daquilo que a Kitty me fizera e que desencadeara o meu ódio.
As enfermeiras davam-lhe os medicamentos, mas eu é que lhe dava banho. Ela dava a entender que preferia que fosse eu a fazer todos os mimos que as enfermeiras não tinham tempo para fazer, como esfregar-lhe o corpo todo com loção, ou escovar-lhe o cabelo e penteá-la como ela queria. Muitas vezes, quando eu me aborrecia e depois abrandava, pensava que podia ter gostado dela verdadeiramente se ela me tivesse dado alguma oportunidade. Maquilhava-a duas vezes por dia, punha-lhe o seu perfume favorito, pintava-lhe as unhas, e ela passava o tempo a olhar para mim com aqueles estranhos olhos descorados.
- Quando eu morrer, tens de te casar com o Cal - segredou-me ela uma vez.
Levantei a cabeça, espantada, e comecei a fazer perguntas, mas ela fechou os olhos outra vez e, quando o fazia, não falava, mesmo que estivesse acordada. "Oh, meu Deus, faze com que ela se cure, por favor!" Eu rezava vezes sem conta. Gostava do Cal e precisava dele como pai. Não podia gostar dele da maneira que ele queria.
Outras vezes, enquanto eu satisfazia certas necessidades dela, falava sem parar, como se conversasse mais comigo própria do que com ela; falava da família dela e da sua preocupação deles com o seu bem-estar (embora eles não tivessem nenhuma), tentava animá-la e dar-lhe esperança e coragem para lutar contra aquilo que controlava agora a sua vida. Muitas vezes, os olhos dela ficavam marejados de lágrimas. Outras vezes, aqueles olhos sombrios fitavam-me sem expressão. Eu sentia que qualquer coisa estava a mudar na Kitty, mas não sabia dizer se seria para melhor ou para pior.
- Não olhe para mim dessa maneira, mãe - disse eu, com uma espécie de ressentimento nervoso.
Eu tinha receio que a Maisie a tivesse visitado e contado histórias acerca da pequena demonstração de afecto que presenciara entre mim e o Cal. "Mas a culpa não foi minha, Kitty, palavra", apeteceu-me dizer quando lhe vesti a linda camisa de noite nova e lhe compus os braços para ela não parecer tão sem vida.
Assim que acabei de arranjar a Kitty, a mãe dela entrou e começou a ralhar com um ar de desaprovação e de ameaça, com os braços largos e fortes cruzados como escudos sobre o falso busto volumoso.
- Ela ficava melhor sem essas pinturas todas em cima resmungou ela, deitando-me outro olhar furioso. - Ela fez-te passar maus bocados, não fez? E isso transformou-te naquilo que ela é. Pegou-te todos os seus defeitos, não pegou? E eu bati-lhe muitas vezes para tirar o mal dela. Nunca consegui, nunca consegui. Já está entranhado nela, está a envenená-la, a matá-la... E, no fim, Deus é que ganha sempre, não é verdade?
- Se quer dizer que todos nós temos de morrer, sim, Mistress Setterton, é verdade. Mas uma boa cristã como a senhora devia acreditar na vida depois da morte...
- Estás a fazer troça de mim, rapariga? Estás? Vi-lhe nos olhos aquela mesma crueldade da Kitty. A minha indignação aumentou.
- A Kitty gosta de estar bonita, Mistress Setterton.
- Bonita? - perguntou ela, olhando para a filha como se esta fosse um aborto. - Ela só tem camisas de noite cor-de-rosa?
- Ela gosta de cor-de-rosa.
- Isso só prova que ela não tem gosto. As pessoas ruivas como ela não se vestem de cor-de-rosa. Passei a vida inteira a dizer-lhe isso e ela continua a vestir-se assim.
- Toda a gente deve usar a cor de que gosta. Ela gosta assim - insisti eu.
- Não é preciso ela ficar com ar de palhaço, pois não?
- Não, eu maquilhei-a para ela se parecer com uma estrela de cinema.
- com uma prostituta, talvez! - declarou a Reva Setterton, impassível, antes de voltar os olhos duros como pedra para mim. - Agora já sei o que tu és. A Maisie disse-me. Aquele homem, eu sabia que ele não prestava, caso contrário, não o quereria. Ela não presta, nunca prestou, mesmo quando era bebé... E tu também não prestas! Não te quero em minha casa. Não ponhas lá mais os pés, escumalha dos montes! Vai para o motel de Brown Street, onde vão parar todas as da tua laia. Já disse àquele homem que levasse as tuas coisas todas e as dele lá de casa.
Espantada e furiosa, abri muito os olhos e só depois corei de vergonha e de culpa. Ela reparou e fez um sorriso cruel.
- Nunca mais te quero ver, nunca mais... Esconde-te quando me vires aparecer!
A tremer, abri muito as mãos e disse:
- Tenho de continuar a visitar a Kitty. Ela agora precisa de mim.
- Ouve bem, escumalha! Nunca mais vás a minha casa! E saiu do quarto a vociferar, sem ter dirigido a Kitty uma palavra de compreensão, encorajamento ou compaixão. Teria vindo apenas para me dizer o que pensava de mim?
A Kitty ficou a olhar para a porta, com um ar irritado e infeliz.
As lágrimas corriam-me pela cara abaixo quando me voltei outra vez para a Kitty e lhe arranjei o casaquinho de dormir antes de lhe desembaraçar o cabelo.
- Está linda, Kitty. Não acredite no que acabou de ouvir. A sua mãe é uma mulher muito estranha. A Maisie mostrou-me os álbuns de fotografias da família, e você
é muito parecida com a sua mãe quando ela era da sua idade... Só que você é mais bonita, e não há dúvida que ela sempre teve inveja de si.
(Porque me mostrava eu tão carinhosa, porquê? Quando ela fora tão cruel? Talvez porque a Reva Setterton devia ter feito à Kitty muitas das coisas que esta me fizera.)
- Agora vai-te embora - disse a Kitty, a custo, quando eu acabei de arranjá-la.
- Mãe!
- Eu não sou tua mãe! - Uma dor terrível atravessou-lhe o olhar. A agonia da frustração era um espectáculo horrível e eu tive de baixar a cabeça e esconder a minha compaixão.
- Sempre quis ser mãe, mais do que outra coisa qualquer. Tu tinhas razão quando me disseste o que disseste. Eu não fui feita para ser mãe. Nunca fui. Nem fui feita
para viver.
- Kitty!
- Deixa-me! - gritou ela, sem forças. - Tenho o direito de morrer em paz... E quando chegar o momento, saberei o que hei-de fazer.
- Não, você não tem o direito de morrer! Não, quando tem um marido que a ama! Você tem de viver! Você tem o Cal e ele precisa de si. Basta querer que o seu corpo combata a doença. Kitty, por favor, faça isso pelo Cal. Por favor! Ele ama-a. Sempre a amou.
- Sai daqui! - gritou ela, com um pouco mais de energia. - Vai para o pé dele! Toma conta dele quando eu desaparecer! Falta pouco tempo! Ele agora é teu! É a prenda que eu te dou! Só o quis para mim porque ele tinha qualquer coisa que me fazia lembrar o Luke... Ele era como o Luke seria se tivesse sido criado por uma boa família da cidade. - A Kitty soluçou baixinho, deixando escapar um som roufenho que me despedaçou o coração. - Quando o vi pela primeira vez, depois de ele vir sentar-se à minha mesa, semicerrei os olhos e fingi que ele era o Luke. Enquanto estive casada com ele, só deixava que ele me possuísse quando eu jogava ao "faz de conta"... E fingia que ele era o Luke.
Oh, Kitty, que disparate! Que disparate!
- Mas o Cal é um homem maravilhoso! E o pai não presta!
Os olhos descorados lançaram chispas.
- Passei a vida inteira a ouvir isso a meu respeito, e eu não sou má, não sou! Não sou!
Eu não pude aguentar mais aquilo. Saí e fui apanhar um pouco da atmosfera fresca de Setembro.
Que espécie de partida é que o amor pregava ao senso comum? Porquê um homem, quando havia milhares por onde escolher? E todavia, ali estava eu, na esperança de encontrar o Logan. Quase desesperada para o encontrar e obrigá-lo a dizer que me compreendia e me perdoava. Mas quando passei pelo drugstore Stonewall, o Logan não estava à vista. Caía uma chuva miúda e eu pus-me debaixo de um ulmeiro enorme e olhei para as janelas do apartamento do outro lado da rua, por cima do estabelecimento. Ele estaria lá em cima a olhar para mim? Depois avistei a mãe numa das janelas, antes de ela puxar o cordão e fechar os cortinados, por minha causa. Percebi que ela gostaria de me afastar para sempre da vida do filho. E tinha razão, tinha razão, tinha razão...
Fui a pé até Brown Street, onde ficava o único motel que havia na cidade. Os dois quartos que o Cal alugara estavam vazios. Depois de me refrescar e de vestir roupa seca, saí outra vez e, debaixo de chuva, fui ao hospital onde encontrei o Cal, sentado num sofá da sala de espera, muito abatido, a olhar para uma revista que tinha na mão, com um ar melancólico. Levantou a cabeça quando eu entrei.
- Alguma coisa de novo? - perguntei.
- Não - respondeu ele num tom brusco. - Onde tens estado?
- Esperava ver o Logan.
- E viste-o? - perguntou ele secamente.
- Não...
Ele estendeu o braço e pegou-me na mão com firmeza.
- O que faremos e como viveremos com uma situação destas? Isto pode durar seis meses, um ano, mais. Heaven, eu julguei que os pais dela eram uma solução. Mas não são. Estão a retirar o apoio financeiro. És tu e eu, ou então mais ninguém, até que ela se restabeleça, ou morra...
- Nesse caso, serei eu e você - respondi, sentando-me e pegando-lhe na mão. - Eu posso ir trabalhar.
Ele não disse nada. Continuámos ali sentados, de mãos dadas, com ele a olhar para a parede.
Durante duas semanas vivemos naquele motel. Eu não vi o Logan. Tinha a certeza de que ele já voltara para a faculdade, sem sequer me dizer adeus. As aulas começaram, e isso indicou-me muito claramente que eu poderia nunca mais entrar numa sala de aulas, e que a faculdade não passava de uma nuvem de sonhos que se dissipara no crepúsculo. E o emprego que eu julgara fácil de arranjar quando já conseguia dactilografar noventa palavras por minuto não se concretizou.
Chegaram os primeiros sinais do Inverno e, embora eu tivesse visto o tom duas vezes, as visitas dele eram curtas para falarmos de tudo o que tínhamos a falar. O Buck Henry estava sempre à espera dele, furioso quando me via, e obrigava o tom a apressar-se, a apressar-se. Eu ia todos os dias visitar o avô, na esperança de que o pai lá estivesse, mas nunca estava. Tentei várias vezes ver a Fanny, mas ela nem sequer vinha à porta. Uma criada negra reagia às minhas exigências.
- Miss Louisa não fala com desconhecidos - dizia ela sempre, recusando-se a admitir que eu era sua irmã, e não uma desconhecida.
Eu detestava o motel, a maneira como as pessoas olhavam para o Cal e para mim, embora ele tivesse o seu quarto e eu o meu, e não tivéssemos feito amor desde que voltáramos para Winnerrow. Quando íamos à igreja, íamos a outra cidade e rezávamos lá, pois sabíamos que desta vez o reverendo Wise não nos deixaria entrar na sua.
Um dia, de manhã, acordei com frio. A nortada forte arrancava as folhas das árvores e fazia voar as cortinas, quando me levantei e comecei a vestir-me. Tencionava ir dar um passeio antes do pequeno-almoço.
Estava um dia enevoado e chuvoso, e os montes estavam cobertos de nevoeiro; olhei lá para cima, para a nossa cabana; por entre a névoa, avistei neve nos picos das montanhas. Estava a nevar lá em cima e a chover cá em baixo... Onde eu desejara estar tantas vezes.
Ouvi passos atrás de mim, o que me obrigou a andar mais depressa. Esperava que fosse o Cal, mas era o tom! Instantaneamente senti-me mais animada.
- Graças a Deus que voltaste! No sábado, fartei-me de esperar e de rezar para que viesses. tom, sentes-te bem?
Ele riu-se e voltou-se para me abraçar, pensando que toda a minha preocupação com o seu bem-estar era tola e desnecessária.
- Desta vez posso ficar uma hora. Pensei em tomarmos o pequeno-almoço juntos. Talvez a Fanny venha connosco e possamos reviver os velhos tempos, quase.
- Eu tentei visitar a Fanny, e ela recusa-se a falar comigo. É uma criada negra que vem à porta, portanto eu nunca a vejo sequer, e ela não anda na rua.
- Temos de tentar - disse o tom, franzindo o sobrolho. - Não gosto dos cochichos que ouço. Já ninguém a vê, o que não acontecia antes de tu chegares. Houve uma altura em que a Fanny andava por todo o lado a exibir os vestidos novos e a gabar-se de tudo o que os Wise lhe dão. Agora nunca vai à igreja aos domingos, nem comparece aos acontecimentos sociais... Nem a Rosalynn Wise.
- Desconfio que é para me evitar - disse eu com uma certa amargura. - E Mistress Wise fica em casa para ter a certeza de que a Fanny fica no quarto. Assim que eu
me for embora, a Fanny sairá do esconderijo.
No restaurante que servia os motoristas dos camiões, tomámos um pequeno-almoço substancial, rindo-nos ao recordarmos todas as nossas refeições miseráveis quando vivíamos nos Willies.
- Já decidiste qual das irmãs é que queres? - perguntei, quando ele insistiu em pagar a conta.
- Não. - O tom esboçou um sorrisinho tímido. - Gosto das duas. No entanto, o Buck Henry diz que se eu casar com a Thalia, manda-me para a faculdade e deixa a quinta à Thalia. Se eu escolher a Laurie, terei de trabalhar para viver... E por isso resolvi não me casar com nenhuma, e partir assim que acabar o liceu e me estabelecer.
Até então, o seu tom fora ligeiro; de repente, o tom fez-se muito sério e perguntou com uma voz grave:
- E que tal se me levasses quando fosses para Boston?
Eu peguei-lhe na mão e ri-me ao pensar que ele pronunciara exactamente as palavras que eu esperava ouvir. As pessoas de Boston não teriam tantos preconceitos como as dali; aperceber-se-iam do nosso verdadeiro valor. Lá eu poderia arranjar um emprego com facilidade, e depois mandaria dinheiro ao Cal para pagar os cuidados médicos da Kitty. Ele pusera à venda a casa de Candlewick, mas mesmo que a vendesse, esse dinheiro não chegaria se ela não se restabelecesse dentro de pouco tempo, ou...
- Não fiques assim, Heaven. Tudo se há-de arranjar, vais ver.
De braço dado, encaminhámo-nos para o lar onde o avô estava internado.
- Ele não está cá - respondeu a Sally Trench quando reagiu às pancadas fortes do tom. - O vosso pai veio cá e levou-o.
- O pai esteve cá! - exclamou o tom, incrivelmente feliz. - Para onde é que ele levou o avô?
A Sally Trench não sabia.
- Saiu há cerca de meia hora - respondeu ela, antes de bater com a porta.
- Talvez o pai ainda esteja na cidade, Heavenly! - gritou o tom, entusiasmado. - Se nos despacharmos, talvez o encontremos!
- Eu não quero nem vê-lo! - exclamei, furiosa.
- Bem, quero eu! Ele é a única pessoa que nos pode dizer onde estão o Keith e a "Nossa" Jane.
Desatámos ambos a correr. Winnerrow era uma cidade onde era fácil procurar alguém, pois tinha uma única rua principal com doze ruas laterais. À medida que corríamos, íamos espreitando nas montras e perguntando a quem passava. O sexto homem a quem perguntámos, vira o pai.
- Acho que ele ia para o hospital. Por que razão iria ele ao hospital?
- Vai tu sozinho - disse eu, com indiferença, quando o tom insistiu.
O tom levantou as mãos grandes e calejadas, com um gesto de desamparo. Tinha um ar infeliz.
- Heavenly, tenho de ser sincero. Tenho andado a mentir-te. Naquelas cartas, e nas fotografias que te mandei, aquelas raparigas eram apenas minhas colegas de escola, a Thalia e a Laurie. O Buck Henry não teve mais filhos senão os que estão enterrados no cemitério. Aquela bela casa pertence aos pais da Laurie, e fica a nove quilómetros da estrada. Talvez a casa do Buck Henry tenha sido bonita em tempos, mas agora está em mau estado e precisa de obras. Ele é motorista e obriga-me a trabalhar doze a catorze horas por dia.
- Queres dizer que mentiste? Todas aquelas cartas que recebi quando eu vivia em Candlewick... Eram tudo mentiras?
- Tudo mentiras. Mentiras inventadas para que te sentisses bem a meu respeito - respondeu o tom com a súplica no olhar. - Eu sabia o que tu estarias a pensar e não queria que te preocupasses, mas agora sou obrigado a dizer que detesto aquela quinta! Detesto o Buck Henry de tal maneira que, às vezes, sinto que se não fugir seria capaz de o matar... Por favor, compreende porque é que eu fujo dele para encontrar o pai. Tenho de fazer isto.
Para ajudar o tom a alcançar o que ele queria, para ver outra vez o Keith e a "Nossa" Jane, eu faria tudo, até enfrentar o homem que eu mais odiava no mundo.
- Despacha-te! - disse o tom. Corremos para o hospital.
- Talvez o Cal esteja ao pé da Kitty desta vez - disse eu, sem fôlego, quando entrámos no hospital e olhámos à roda.
- Sim, ele esteve cá... - disse uma enfermeira quando o tom perguntou pelo Luke Casteel.
- Mas onde está ele agora?
- Ora, não sei... Já há uma hora que ele perguntou qual era o número do quarto de Mistress Dennison.
O pai viera visitar a Kitty... Ou a mim?
Pegando-me na mão com mais força, o tom arrastou-me.
Todas as enfermeiras e serventes já me conheciam, e cumprimentaram-me pelo nome assim que eu entrei. Conduzi o tom para um elevador que nos levaria ao quarto da Kitty. Senti-me esquisita, quase atordoada, e receosa do que diria e faria quando visse o pai. No entanto, quando entrei no quarto da Kitty e a vi, pálida e fraca, e o Cal, ajoelhado ao pé da cama a chorar, custei a adaptar-me à desilusão de não ver o pai, e só depois fiquei espantada ao reparar no ar feliz da Kitty, a sorrir para mim e para o tom. Porquê?
- O teu pai veio ver-me - segredou ela com uma voz débil que eu mal consegui ouvir. - Perguntou por ti, Heaven; disse que tinha esperanças de te ver. Disse que lamentava o que fez no passado e que esperava que tu lhe perdoasses. Sabes? Nunca julguei que ouviria outra vez a voz do Luke Casteel... Cal, como é que ele estava?
- Humilde - respondeu o Cal com voz rouca.
- Sim, é isso. Ele mostrou-se humilde, arrependido. Os olhos dela brilhavam, como se tivesse presenciado um milagre. E há dias que não falava. - Ele olhou para mim, Heaven, e nunca o tinha feito. Quando eu o amava, e seria capaz de morrer por ele, ele nunca me via... Servia-se de mim como se eu fosse uma coisa e ia-se embora. Mas ele mudou, ele... E foi-se embora e deixou este bilhete para ti.
A felicidade dela era febril, frenética, como se ela tivesse pressa, muita pressa. Pela primeira vez, percebi que ela estava a morrer, a morrer diante dos nossos olhos, talvez estivesse assim há meses, antes de virmos para Winnerrow, e de o Cal e eu nos termos habituado de mais às suas oscilações de humor para as reconhecermos como manifestações de depressão, de frustrações... E de ansiedades aterradoras e secretas em relação ao quisto. A sua mão esguia parecia descarnada, com unhas compridas, como as de uma bruxa, quando ela me estendeu o envelope com o meu nome escrito por fora. O sorriso dela, pela primeira vez, era caloroso, meigo.
- Já te agradeci por tudo o que tens feito por mim, Heaven? Finalmente, tenho uma filha... E isso é importante, não é? Que o Luke tenha vindo ver-me? Tu é que lhe disseste para vir, não foi? Deves ter sido, porque quando ele entrou olhou à volta, como se estivesse à espera de te ver. Vá lá, Heaven, vá lá, lê o que ele diz nessa carta.
- Este é o tom, o meu irmão - disse eu finalmente.
- Muito prazer em conhecer-te, tom - disse o Cal, levantando-se e apertando-lhe a mão.
- Oh, és como o Luke quando ele tinha a tua idade! exclamou a Kitty, deliciada, com um brilho estranho nos olhos descorados. - Só te faltam os cabelos e os olhos negros... E serias igual ao teu pai... Serias, serias!
Ela era comovente, aquele diabo de mulher de cabelo ruivo, com aquelas grandes unhas pintadas de cor-de-rosa que me tinham arranhado tantas vezes. No meu espírito, surgiram imagens de como ela era; como se ouvisse os insultos que ela me dirigira, sem respeito pelos meus sentimentos; e agora fazia-me chorar quando eu devia estar satisfeita por Deus estar a dar-lhe precisamente o que ela merecia. Mas eu chorava. Sentei-me na cadeira que o Cal me estendeu, com as lágrimas a escorrerem-me para cima da blusa, abri a carta do pai e comecei a lê-la em silêncio.
- Filha, lê em voz alta - segredou a Kitty.
Olhei de novo para ela, sentindo uma indiferença qualquer; depois comecei a ler:
Querida filha,
Às vezes um homem faz aquilo que é necessário e, ao longo da vida, descobre que poderia ter resolvido os seus problemas de outra maneira melhor. Peço-te que me perdoes por coisas que agora não se podem alterar.
A "Nossa" Jane e o Keith estão felizes e de boa saúde. Gostam dos seus novos pais e a Fanny gosta dos dela.
Eu casei outra vez, e a minha mulher insiste para que eu tente reunir a minha família outra vez. Agora tenho uma bela casa e ganho bom dinheiro. Tenho muito pouca esperança de reaver o Keith e a "Nossa" Jane, ou a Fanny, mas espero que tu e o tom venham viver connosco. O teu avô também lá estará.
Talvez agora eu possa ser o tipo de pai por quem possas sentir amor em vez de ódio.
Teu pai
Havia um endereço e um número de telefone por baixo do nome dele, mas eu mal conseguia ler. Nunca me tratara por filha e nunca se referira a mim como pai... Porquê agora? Amachuquei o bilhete e atirei-o para o cesto dos papéis que havia junto da cama da Kitty.
O ódio prevalecia sobre todas as minhas outras emoções. Como podia eu confiar num homem que vendera os filhos? Como podia eu ter a certeza de que o tom e eu ficaríamos bem, uma vez sob os seus cuidados? O que faria ele para ganhar tanto dinheiro? Ou casara com ele? Como podia eu acreditar em qualquer coisa que ele dissesse? Como podia ele saber que o Keith e a "Nossa" Jane eram verdadeiramente felizes onde estavam? Ou a Fanny? Como podia eu saber senão quando fosse eu própria a descobrir?
O tom foi a correr tirar a carta amarrotada do cesto dos papéis, alisou-a com todo o cuidado e leu-a em silêncio. Cada linha que lia lhe dava um ar mais animado.
- Porque fizeste uma coisa destas? - perguntou a Kitty, com um olhar doce. - Era uma carta bonita, isso era, não era, Cal? Heaven, pega nela e guarda-a, porque há-de chegar o dia em que precisarás de voltar a vê-lo...
Depois, soçobrou e desatou a chorar.
- tom, vamo-nos embora. Voltei-me para sair.
- Espera - segredou a Kitty. - Tenho mais uma coisa para ti. - Ela sorriu debilmente e tirou um pequeno envelope de baixo da almofada. - Tive uma boa conversa com o teu pai... E ele deu-me isto a guardar para ti, para te dar quando chegasse a altura. É a minha forma de tentar limpar-me pelo que fiz...
Mexeu-se na cama, olhou para o Cal e depois acrescentou:
- Creio que é chegado o momento.
Eu tremia quando peguei no pequeno envelope. O que podia o pai dizer ali para se redimir de tudo o que fizera? Talvez a "Nossa" Jane e o Keith estivessem bem... Mas como podia eu ter a certeza, quando aquele lavrador horrível obrigava o tom a trabalhar como um escravo, tal como a Kitty me obrigara? Depois levantei a cabeça e vi o tom com os olhos fixos em mim, como se eu tivesse a sua vida nas mãos... E talvez assim fosse. Oh, que mal fazia eu em ler mais umas mentiras?
Vi de novo a letra miúda dele. Fiquei de olhos esbugalhados e o coração começou a bater-me mais depressa.
O pai viera ao hospital na esperança de me encontrar.
O teu avô disse-me que estás decidida a ir a Boston à procura dos pais da tua mãe. No caso de ser essa a tua opção - ires para lá em vez de vires viver comigo e com a minha mulher - junto um bilhete de avião para ti, e já telefonei aos teus avós, em Boston, a dizer-lhes que talvez lá vás. Aqui está a morada e o número do telefone deles. Escreve-me a dizer como as coisas correm.
Os meus músculos retesaram-se com o choque que senti. Porque faria ele isto? Para se ver livre de mim pela segunda vez? Havia duas moradas no fim da carta, uma das quais escrita à pressa, a lápis. Olhei para os nomes: Mr. e Mrs. James L. Rawlings.
Levantei a cabeça.
- Heaven - disse o Cal com ternura -, foi a Kitty que convenceu o teu pai a acrescentar o nome do casal que comprou a "Nossa" Jane e o Keith nesse bilhete que tens na mão. Agora sabes onde eles estão, e um dia podes ir vê-los.
Eu nem conseguia falar e mal conseguia pensar. O tom lia o bilhete por cima do meu ombro.
- Heavenly, estás a ver, estás a ver? Ele não é tão mau como tu julgas! Agora podemos ir visitar a "Nossa" Jane e o Keith. Mas eu lembro-me do contrato que o advogado obrigou o pai a assinar... Nunca mais podemos recuperá-los...
Ele calou-se de repente e olhou para a minha cara. Senti-me esquisita, com os joelhos trémulos, como se todas as minhas emoções se esvaíssem para o chão. Eu queria tanto encontrar a "Nossa" Jane e o Keith, e agora parecia que poderia fazê-lo. Mas o bilhete de avião que tinha na minha mão parecia uma forma de chantagem para me obrigar a afastar-me das suas vidas. Ainda a tremer, enfiei o pequeno envelope e o seu conteúdo na algibeira, e disse adeus à Kitty antes de sair para o corredor, deixando o tom ainda a falar com o Cal.
O Cal que ficasse. Não me importava.
Já no corredor, chamei o tom com impaciência, cansada de esperar por ele, que continuava a falar com o Cal em voz baixa.
- Não vou ficar à espera eternamente.
Dei meia volta e fui-me embora. O tom veio a correr atrás de mim. Já lá fora, encaminhei-me para o motel, a pensar que partiria para Boston naquele mesmo dia...
- Vais comigo a Boston, tom?
O tom acertou as suas longas passadas pelas minhas. Ia de cabeça baixa para se proteger do vento e da chuva.
- Heavenly, temos de falar.
- Podemos falar a caminho do motel. vou fazer a mala. A Kitty está feliz... Viste a cara dela? O Cal nem sequer olhou para mim. Não estás encantado por ires comigo?
- Tudo mudou! O pai está diferente! Não percebes pelas cartas dele? Ele foi ver aquela mulher, e ela percebeu que ele está mudado... Porque não reconheces isso? Heavenly, eu quero ir contigo, bem sabes que quero, e Mister Dennison disse que me pagaria a passagem, se for essa a minha vontade... Mas primeiro tenho de ver o pai. Tenho a certeza de que ele foi a casa dos Setterton à tua procura, e talvez tenha ido visitar o Buck Henry, e desconfie que eu estou contigo. Podemos apanhá-lo, se nos despacharmos.
:- NÃO! - respondi, furiosa, sentindo-me corar. - Vai, se achas que deves ir, mas eu nunca mais quero vê-lo! Ele não pode escrever dois bilhetinhos e limpar-se do que fez!
- Então promete que ficas até teres notícias minhas! Prometi, ainda atordoada por tudo o que se passara e que lançara a confusão no meu ódio.
- tom... Vais comigo para Boston? Anda comigo, e juntos, depois de nos instalarmos, iremos visitar o Keith e a "Nossa" Jane.
Ele afastava-se de mim! Ao virar da esquina, acenou-me e sorriu.
- Heavenly, tem calma. Não te atrevas a ir para lado nenhum antes de teres notícias minhas!
Eu vi o tom afastar-se com uma certa alegria no andar, como se acreditasse que iria encontrar o pai, e que com ele teria uma vida melhor do que com o Buck Henry.
No quarto do motel, deitei-me e entreguei-me a um estranho ataque de choro, que me deixou fraca e completamente esgotada. Antes de adormecer, resolvi nunca mais chorar. Acordei com o telefone a tocar e, quando atendi, ouvi o tom do outro lado da linha, a dizer que encontrara o pai e que ambos vinham ao meu encontro.
- Heavenly, ele estava no drugstore Stonewall à nossa procura. Está mudado. Nem vais acreditar quando o vires! Está arrependido de todas as maldades que fez e que disse... Portanto, estarás aí quando nós chegarmos. Prometes?
Desliguei sem prometer.
O tom traíra-me!
Voltei a sair do motel e fui sentar-me no parque, sozinha. Só quando escureceu e quando senti que o tom já devia ter desistido, é que voltei para o motel. Atirei-me para cima da cama.
O tom não ia comigo para Boston... Preferia ficar com o pai, depois de todas as promessas que tínhamos feito um ao outro!
E o Logan fora para a faculdade sem fazer um esforço para me voltar a ver. O que me restava senão os pais da minha mãe em Boston? Até o Cal me parecia indiferente, agora que estava tão preocupado com a Kitty. Eu precisava de alguém. Talvez fosse essa a maneira de o destino me encaminhar para Boston, para os meus avós.
Estava a fazer a mala quando o Cal entrou e me disse o que sabia acerca do encontro do tom com o pai, e que o pai levara o tom ao motel para me virem buscar, só que eu não estava.
- Eles andaram à tua procura por toda a cidade, Heaven. O tom julgou que tu já tinhas apanhado o avião para Boston e pareceu-me tão magoado. De qualquer modo, ele e o teu pai desistiram da busca. Onde estiveste?
- Escondida no parque - admiti.
O Cal não percebeu; apesar disso, abraçou-me e embalou-me como se eu tivesse seis anos em vez de dezasseis.
- Se eles telefonarem à minha procura, diga-lhes que não me viu - implorei.
- Está bem - acedeu ele, com um olhar perturbado e tentando encarar comigo. - Mas acho que devias voltar a ver o tom e a falar com o teu pai. Heaven, talvez ele tenha mudado. Talvez ele esteja arrependido. Talvez não tenhas de ir para Boston e gostes de viver com o teu pai e com a sua nova mulher.
Voltei-lhe as costas. O pai não mudara.
O Cal deixou-me sozinha e eu continuei a fazer a mala e a pensar na tremenda confusão em que me metera ao escolher a Kitty Dennison e o marido. Já tinha a mala quase
feita quando o Cal abriu a porta e olhou para mim, com os olhos semicerrados.
- Insistes em ir para Boston?
- Insisto.
- E eu?
- O que se passa consigo?
Ele corou e teve a decência de baixar a cabeça.
- Os médicos examinaram a Kitty há pouco. Sei que isto parece inacreditável mas ela está melhor! Verdadeiramente melhor. A contagem de glóbulos brancos está quase normal. O número de plaquetas está a subir. O tumor diminuiu um pouco de volume, e se isso continuar a acontecer eles acham que ela tem hipóteses de continuar a viver. Heaven, essa visita do teu pai deu-lhe vontade de continuar. Agora afirma que sempre gostou muito de mim, e que não se apercebeu disso senão quando esteve às portas da morte... O que posso eu fazer? Não posso voltar as costas à minha mulher quando ela precisa tanto de mim, pois não? Portanto, talvez seja preferível que vás para Boston, com as minhas preces e o meu amor... E um dia havemos de nos encontrar outra vez, e talvez possas perdoar-me por eu ter tirado partido de uma rapariga jovem, meiga e bonita.
Espantada, abri muito os olhos e gritei, aos soluços, com um ar acusador:
- Você nunca me amou! Você serviu-se de mim!
- Eu amo-te! Sempre te amarei! Espero que me ames sempre um pouco para onde quer que vás. Tu estavas presente quando eu precisei de alguém. Vai e esquece a Kitty e o que foi feito, e não te intrometas na vida do tom no momento em que tudo lhe começa a correr bem. A Fanny sente-se feliz onde está. Deixa o Keith e a "Nossa" Jane onde estão. A família da tua mãe poderá levantar objecções se tu levares alguém contigo. E esquece-me. Eu fiz a minha cama quando casei com a Kitty. Não precisa de ser a tua cama também. Agora vai enquanto eu tenho forças para fazer o que devo. Vai antes que ela saia do hospital de boa saúde, volte ao que era e vá procurar-te para te destruir por levares o que ela acha que é só dela. A Kitty nunca se modificará verdadeiramente. Ela esteve às portas da morte, com medo do que havia do outro lado... Mas assim que se restabelecer, irá procurar-te. Portanto, para teu próprio bem... Vai agora, hoje.
Eu não sabia o que havia de dizer, ou fazer. Só consegui chorar enquanto ele andava de um lado para o outro.
- Heaven, quando o teu pai estava no quarto com a Kitty, foi ela que lhe pediu para ele lhe dizer onde estavam a "Nossa" Jane e o Keith. Foi o presente que ela te deu para se redimir de tudo o que fez.
Eu não compreendia e, no entanto, o meu coração doía-me tanto que me apeteceu fugir do meu próprio corpo.
- Como posso eu acreditar nalguma coisa que a Kitty diga, ou o pai?
- O teu pai sentiu que ias fugir dele e adivinhou que nunca mais o verias, por isso deu ao tom mais fotografias da "Nossa" Jane e do Keith para ele tas dar. Eu vi-as,
Heaven. Eles cresceram desde as últimas fotografias que recebeste. Têm uns pais que os adoram e vivem numa bela casa, e frequentam as melhores escolas do país. Se tencionas lá ir, lembra-te que vais avivar recordações tristes que eles podem querer esquecer... Pensa nisso antes de penetrares nas suas novas vidas. Dá-lhes tempo para crescerem um pouco mais, Heaven, e dá tempo a ti própria para abrandares.
Ele disse muitas coisas que eu me recusei a ouvir.
O Cal estendeu-me dinheiro que o pai lhe entregara para me dar. Olhei para as notas que tinha na mão. Um maço de notas de vinte dólares, que totalizava quinhentos dólares, o preço que a Kitty e o Cal tinham pago por mim. Os meus olhos espantados e tristes procuraram os do Cal. Ele desviou o olhar.
Era tudo o que eu precisava para me decidir. Partiria! E nunca mais voltaria! Nunca mais veria o Logan! Para mim, Winnerrow e os Willies tinham acabado, e todos aqueles que diziam amar-me.
O primeiro voo para Atlanta, de onde poderia apanhar um avião para Boston, era no dia seguinte, às nove horas. O Cal levou-me de automóvel ao aeroporto e ajudou-me a carregar as malas. Parecia nervoso, ansioso por se ir embora, antes de me dar um beijo de despedida; depois, deitou-me um olhar rápido e duro que foi até aos sapatos e voltou para cima outra vez, devagar, devagar.
- O teu avião parte dentro de vinte minutos. Gostaria de ficar aqui contigo... Mas tenho de voltar para junto da Kitty.
- Sim, claro - respondi secamente. Não ia despedir-me, não ia... Mas despedi-me. - Adeus... Adeus...
Não ia chorar nem ficar destroçada por vê-lo afastar-se sem olhar para trás, mas fiquei, embora o tivesse visto abrandar o passo e hesitar antes de encolher os ombros, endireitar-se e depois afastar-se ainda mais depressa. Voltava para a Kitty e para o mais que o futuro lhe reservava.
Vinte minutos de espera. Como havia de passar o tempo? Não tinha ninguém, agora que o Logan fugira de mim, que o tom preferira o pai a mim; e que a Fanny há muito que decidira que não precisava de mim... Fui assolada por grandes e terríveis ondas de novas dúvidas. Como é que eu sabia se a família da minha mãe me queria? Mas eu tinha quinhentos dólares, e mesmo que as coisas não corressem bem em Boston, arranjaria maneira de sobreviver.
- Heaven! Heaven! - gritou uma voz minha conhecida. Voltei-me e olhei para a rapariga encantadora que vinha a correr na minha direcção. Seria a Fanny? A Fanny a correr devagar e de uma forma desajeitada?
- Heaven! - disse ela, sem fôlego, abraçando-me.
- O tom veio ter comigo e disse-me que ias partir, e eu não te posso deixar partir convencida de que eu não quero saber de ti, porque eu quero, eu quero! Tinha tanto medo de chegar atrasada e de não te apanhar! Desculpa ter sido má para ti mas eles não querem que eu fale contigo! - A Fanny afastou-se e, com um sorriso muito rasgado e feliz, abriu o pesado casaco de peles para mostrar a barriga protuberante. Depois, segredou-me ao ouvido: - É o bebé do reverendo. Vai ser tão bom, eu sei que vai. A mulher dele finge que o bebé é dela e dá-me dez mil dólares por ele. E eu vou para Nova Iorque!
Nada mais me poderia surpreender. A única coisa que consegui fazer foi olhar para ela.
- Vais vender o teu próprio filho, por dez mil dólares?
- Tu nunca farias uma coisa dessas, pois não? - perguntou ela. - Não me faças arrepender por eu ter dito que sim quando o tom chegou e disse que eu tinha que vir despedir-me de ti. - Os seus olhos escuros encheram-se de lágrimas.
- Fiz o que achei que tinha de fazer, tal como tu.
Ela recuou, e só então é que eu vi o tom, que me fazia o mais doce, o mais adorável dos sorrisos. Avançou e abraçou-me.
- O Cal Dennison telefonou-me e disse-me que partias hoje para Boston, Heavenly... E pediu-me que não trouxesse o pai.
Afastando-me, gritei:
- Tu não vens comigo, pois não?
Ele estendeu os braços e disse, com um gesto de súplica:
- OLHA PARA MIM! O que achas que os teus avós sentirão quando virem que levaste contigo o teu meio-irmão? Eles não me querem! Eu sou um pacóvio dos montes! Como o pai! Não o disseste muitas vezes desde que voltaste para cá? Eu não sou fino nem requintado como tu, com cultura e maneiras. Heavenly, estou a pensar no teu bem-estar quando digo que tenho de ficar com o pai, ainda que preferisse ir contigo.
- Estás a mentir! Tu preferes ficar com o pai!
- Heavenly, ouve, por favor! Tu não podes ir ter com a família da tua mãe com os teus parentes rústicos atrás de ti! Eu quero que a tua vida siga o rumo certo, o que não acontecerá se eu for contigo!
O tom abanou a cabeça, com os cabelos ruivos a esvoaçar.
- Se vieres a precisar de mim, depois de estares instalada, escreve e eu irei ter contigo, juro. Mas por agora, começa de novo.
- Ele tem razão - insistiu a Fanny, aproximando-se mais e olhando à volta com nervosismo, tão ansiosa como o Cal. - O tom é que me obrigou a vir, e eu estou satisfeita. Gosto muito de ti, Heaven. Não queria fechar-te a porta na cara... Mas fui obrigada a isso. Mistress Wise vai levar-me para longe para o meu bebé nascer onde ninguém souber quem nós somos; e quando tudo acabar, ela voltará para Winnerrow com o bebé dela, e dirá a toda a gente que ele é dela, e que eu era apenas uma Casteel que não prestava para nada e que fugi com um patife qualquer.
- E tu não te importas?
- Não. Não me posso dar a esse luxo. - A Fanny sorriu e recuou. - tom, tenho de voltar antes que eles dêem pela minha falta. Tu prometeste...
A Fanny, que sempre dissera que queria muito ter um filho, ia vender o dela, tal como o pai vendera os seus. Voltei-me de novo para o tom.
- com que então, vais ficar com o pai e com a nova mulher dele! Porque não me falas dela... É uma das raparigas do Shirleys Place?
Ele corou e ficou pouco à vontade.
- Não, ela não é nada desse tipo. Agora tenho de ir levar a Fanny a casa. Boa sorte, Heavenly. Escreve...
E dizendo estas palavras, deu-me um beijo na face, agarrou na Fanny por um braço e afastou-se.
- Adeus, adeus! - gritei eu outra vez, acenando freneticamente à Fanny, que se voltou e sorriu por entre as lágrimas. Oh, como eu odiava despedidas! Voltaria a ver a Fanny ou o tom?
E porque é que o tom se voltava para trás e me sorria daquela maneira tão estranha e triste? Fiquei a olhar até os ver desaparecer, depois voltei-me e sentei-me outra vez, a pensar que ainda tinha de esperar dez minutos pelo meu voo.
O aeroporto era pequeno e tinha um lindo jardinzinho exterior onde eu poderia ver os aviões a aterrar. Passeei de um lado para o outro, à luz ténue daquele dia de Outono, com o vento a fustigar-me o cabelo e a despenteá-lo. Era quase como se eu tivesse regressado aos Willies.
Os olhos encheram-se-me de lágrimas.
Depois, chegou a hora de ir para o meu avião, cujos passageiros já estavam a embarcar. Pela primeira vez na minha vida, ia entrar num pequeno avião. Subi a rampa, sentei-me e apertei o cinto, como se já tivesse feito isso muitas vezes. Em Atlanta, mudei-me para outro avião, maior, que aterraria em Boston.
Ia começar uma nova vida num novo local. com um passado desconhecido.
Era estranho que a Kitty se sentisse tão feliz só pelo facto de o meu pai a ter ido ver uma vez, lhe ter levado rosas e lhe ter pedido desculpa. O Cal comprara-lhe
rosas centenas de vezes, pedira-lhe desculpa um milhão de vezes e isso não lhe trouxera paz nem felicidade... Ou vontade de viver. Quem havia de acreditar que o pai fosse capaz de inspirar um amor tão duradouro?
Mas eu já fizera essa pergunta a mim própria e não encontrara resposta. Porquê fazer a pergunta outra vez?
Fechei os olhos e resolvi deixar de pensar no passado e abrir o caminho para o futuro. A Kitty e o Cal voltariam para Candlewick assim que ela saísse do hospital, e viveriam na sua casa cor-de-rosa e branca, e alguém havia de regar todas aquelas plantas. Tirei da algibeira um lenço para enxugar os olhos e me assoar. Para me distrair, abri a página do jornal de Winnerrow que trouxera do aeroporto antes de partir e passei os olhos por ele.
Tinha apenas quatro páginas. Na quarta, vi uma antiga fotografia da Kitty Setterton Dennison, tirada quando ela devia ter uns dezassete anos. Como fora bonita, com uma cara tão fresca, ávida e meiga. Era um obituário!
Kitty Setterton Dennison, de 37 anos de idade, faleceu hoje no Winnerrow Memorial Hospital. Deixa viúvo CaIhoun R. Dennison. Era filha de Mr. e de Mrs. Porter Setterton, e irmã de Maisie Setterton e de Daniel Setterton. O funeral sairá da residência da família Setterton em Main Street, na próxima quarta-feira, às 14 horas.
Levei um certo tempo a recompor-me.
A Kitty morrera. Morrera na véspera de eu partir de Winnerrow. O Cal fora levar-me ao aeroporto, já devia saber e não me dissera!
Porquê?
Ele fugira... Porquê?
Depois adivinhei.
Escondi a cara entre as mãos e desatei a soluçar outra vez, não tanto pela Kitty como pelo homem que finalmente conquistara a liberdade, perdida aos vinte anos.
A liberdade, finalmente, pareceu-me ouvi-lo gritar. Ser o que lhe apetecesse, fazer o que lhe apetecesse, como lhe apetecesse... E não quisera que eu o despojasse
do que ele tinha.
Que mundo louco era este afinal, em que os homens podiam servir-se do amor e deitá-lo fora em seguida? O Cal queria continuar sozinho o seu caminho.
Senti-me amargurada.
Talvez fosse assim que eu devia ser, mais parecida com um homem, pegar e largar sem me importar muito. Nunca teria um marido; apenas amantes para ofender e largar, como o pai fizera. A soluçar, dobrei o jornal e meti-o no bolso do banco da frente.
Depois, mais uma vez, tirei uma fotografia do envelope grande, aquele que o tom me entregara antes de afastar a Fanny e a que eu não dera importância na altura.
- Pega nisto - dissera ele em voz baixa, como se não quisesse que a Fanny soubesse.
Lá estavam eles, a "Nossa" Jane e o Keith, mais velhos, mais fortes e mais felizes. Fartei-me de olhar para a "Nossa" Jane, para o seu rosto doce e bonito, e depois
lembrei-me com quem ela era parecida. com a Annie Brandywine Casteel! Era como se a avó tivesse renascido através da "Nossa" Jane, da mesma maneira que detectei traços do avô no rosto jovem e belo do Keith. Oh, eles mereciam o melhor, o melhor de tudo, e, por agora, eu não faria nada para reavivar neles recordações infelizes.
Sequei as lágrimas. Sabia que um dia a Fanny atingiria os seus objectivos, fosse o que fosse que tivesse de fazer para os atingir.
E eu? Sabia que todos os acontecimentos da vida de uma pessoa mudam qualquer faceta dessa vida... O que era eu naquele momento? Ao pensar nisso, endireitei as costas. A partir desse dia, teria a coragem de avançar, sem medo nem vergonha, nem timidez, nem sobressalto, nem permitiria que se servissem de mim. Se a Kitty não me dera mais nada, dera-me a verdadeira consciência da minha força; para o bem e para o mal, na saúde e na doença, eu havia de sobreviver.
Mais tarde ou mais cedo se saberia quem havia de vencer.
E quanto ao pai, ele havia de voltar a ver-me. Ainda tinha uma grande dívida a saldar e havia de pagá-la antes de eu partir deste mundo, que fora tão pouco misericordioso para comigo.
E agora... Boston. A casa da minha mãe. Onde eu me modificaria, como que por encanto, e me transformaria em tudo aquilo que a minha mãe fora... E não só.
V. C. Andrews
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