Horácio Nunes
DRAMA ORIGINAL EM TRÊS ATOS
PERSONAGENS: HELENA (18 anos) JORGE (23 anos) PAULO (20 anos) FERNANDO (25 anos) COMENDADOR (50 anos)
Do 2º ao 3º ato há um intervalo de 10 anos.
ATO I Gabinete. Duas portas ao fundo, duas à esquerda e uma à direita baixa. À direita alta, uma janela. À esquerda alta, uma secretária, junto da qual está Paulo sentado em atitude meditativa. Sobre a secretária, livros, papéis, etc. Ao fundo, entre as duas portas, uma mesa com relógio e vasos. Cadeiras. É noite.
CENA I Helena e Paulo. HELENA (junto da janela, olhando para fora) Que noite linda! PAULO (indo à janela) Mas triste... triste como a derradeira lágrima de um moribundo... Não vê?... A lua, que derrama a sua pálida claridade sobre as águas tranquilas do lago adormecido, parece chorar os júbilos perfumados de uma alegria já morta... O poeta sublima do sentimento disse: “...tudo passa... a sorte deste mundo é mal segura; vem depois dos prazeres — a desgraça, vem depois das desgraças...” HELENA (interrompendo-o e descendo) Mas que desgraças nos ameaçam?... Somos tão felizes!... PAULO Felizes!... Quem sabe se esta felicidade de hoje não a fará derramar bastantes lágrimas, não a fará sofrer bastante?... HELENA Por quê? O que fiz eu a Deus, para merecer esse castigo?... Amálo?... Fazer deste amor uma religião?... Amar não é crime, e, sobretudo, amar como eu amo: com todas as forças de minha alma, com todas as esperanças cor de rosa do primeiro amor... PAULO Helena!... (Outro tom) E se eu partir amanhã? HELENA (recuando) Partir!... Como?... Por quê?... PAULO Porque a necessidade é a mais poderosa inimiga das afeições e do amor... Sou pobre, bem o sabe, Helena. Seu pai trata-me mal, e já deu-me a entender que... HELENA (ansiosa) Que... PAULO Que pretendia despedir-me de sua casa, porque eu sou um miserável... Oh! nem pode compreender a humilhação que sofri! Senti o sangue queimar-me o rosto e o coração ficar gelado como um túmulo... Pobre!... e é porque sou pobre! Mas o que tem isso, se tenho um coração generoso, se tenho a minha honra intacta? Se nada mais ambiciono do que o seu amor para poder viver? Oh! hoje fui maltratado... amanhã serei repelido como um cão!... Vou partir... não sei para onde... Que importa? HELENA Oh! cale-se! cale-se! Por que parte?... Porque me abandona, quando eu mais necessidade tenho do seu amor?... PAULO (tomando-lhe as mãos) Ânimo, Helena! Para que lágrimas, se lágrimas não bastam para afastar de nós a fatalidade? HELENA (chorando) E eu, Paulo?... e eu?... PAULO A senhora fica. Chorará no primeiro dia, terá saudades no segundo, no terceiro lembrar-se-á vagamente do desgraçado que partiu, no quarto... HELENA Oh! por piedade! PAULO E não é sempre assim?... De que servem lágrimas de saudade, se não são eternas?... de que serve uma saudade que não dura mais do que uma hora na vida?... HELENA Basta! basta! PAULO (conduz Helena à janela) Vê estas flores? Quando o sol amanhã se levantar ardente, elas penderão esmorecidas nas hastes débeis, e o vento desfolhará as suas pétalas perfumadas no pó abrasador da estrada. Quem chorará o destino das desgraçadas?... Ninguém! Apenas a sua formosa jardineira, olhando para os canteiros despidos de galas e de perfumes, dirá distraidamente: — ”Estavam aqui. Ontem ainda brilhavam com todos os seus encantos. O vento levou-as... Que importa?... Outras desabrocharão mais belas e mais perfumadas!” HELENA O que quer dizer, Paulo?... PAULO Vê este céu sereno e límpido que brilha sobre as nossas cabeças aos reflexos pálidos da lua?... Amanhã a tempestade envolvê-lo-á nas mil dobras do seu opaco manto de nuvens, matando-lhe o brilho e os resplendores divinos... Quem lamentará essa desgraça!... Ninguém? Apenas dirão, com o sorriso da indiferença nos lábios: — “Ontem brilhava. A procela empanou-lhe o brilho... Que importa?... Amanhã deslumbrará!” HELENA O que quer dizer, Paulo?... PAULO Sente a brisa perfumada que passa embalsamando com seus agrestes perfumes o seu cabelo negro? Amanhã ele se transformará em furacão, despedaçará, fremente de raiva, as rosas do prado e as árvores da floresta... Quem terá saudades da brisa que passou!... Ninguém? Apenas alguém dirá: — Ontem era doce. Amanhã será divina!” HELENA Paulo, o que quer dizer?... PAULO Quero dizer que tudo neste mundo tem um fim: que com o tempo desaparecem as saudades, a desgraça foge, a felicidade surge radiante de seduções e de encantos... e a lembrança daquele que partiu se esvaece para sempre do coração daquela que ficou... HELENA Paulo! PAULO Oh! é bem mais doloroso o sofrimento do que parte! Sentirmos a aproximação de uma hora que desejávamos nunca soasse; ouvirmos um soluço que não se pode por mais tempo reprimir; ouvirmos, aqui, uma frase cortada por um suspiro, ali, um gemido acompanhado de um estertor; vermos a tristeza e a mágoa espalhadas nos semblantes de todos que nos são caros... é um martírio insuportável. Soa, enfim, a hora fatal. Todos rodeiam o infeliz que parte, talvez para nunca mais voltar... As lágrimas rebentam em torrentes, os gritos de agonia sucedem-se os saudosos abraços repetem-se, e o quadro desolador é fechado pelas duas tristes palavras, as mais das vezes desmentidas: — “Boa viagem” — (Fernando aparece) HELENA Oh! basta! PAULO O que parte vai só. É maior ainda o martírio. Não se ter um seio amigo onde se deposite os queixumes das amarguras que nos vão efervescentes na alma... olhar-se em roda e ver-se isolado... Oh! quanto é mais terrível este sofrimento, do que as saudades dos que ficam! Estes consolam-se mutuamente, animam-se, amparam-se. Mas aquele é só!... Só! Que ânsias dolorosas, que tremendas agonias não nos revela esta palavra — só!... E a noite eterna do martírio sem tréguas, é a treva imensa do sofrimento sem um raio doce da aurora, é o inferno sem céu, da culpa sem arrependimento, é a descrença gelada, é a morte da parte mais sublime da criatura... a morte da alma!... CENA II Os mesmos e Fernando. FERNANDO Bravo! HELENA (voltando-se) Ah! PAULO (idem, irônico) O Sr. Fernando da Cunha é muito generoso! FERNANDO (descendo) O Sr. Paulo não sei de que está impagável hoje! há cinco minutos que, parado àquela porta, ouço-o discorrer, com toda a proficiência e sentimento, sobre as coisas do coração. Fiquei nervoso, creia. Por mais de uma vez enxuguei algumas lágrimas que, mal grado os esforços que empreguei para sufocar, subiram-me do coração aos olhos... PAULO O senhor escarnece... FERNANDO Nunca falei tão seriamente. Se as deixasse correr, devia ainda conservar no rosto os seus vestígios... Mas esquecia-me de... (Indo à Helena) Minha senhora, tenho a satisfação e a honra de anunciar-lhe que hoje venho... HELENA O quê?... FERNANDO Solicitar a concessão desta formosa mão. PAULO (avançando) A sua mão! (Retrai-se) FERNANDO De que se admira?... Por ventura aqui a senhora não está no caso de merecer o meu amor?... (À Helena) E eu amo-a, minha senhora, creia... (Durante esta fala e as seguintes, Paulo mostra-se agitado e aflito) Não sei como se apoderou de minha alma este amor; mas amo-a, não com o amor que vive de esperanças cor de rosa e alimenta-se de ilusões, de brisas e de perfumes... mas com o amor que não admite refolhos, com o amor real, isto é, com o amor que só encontra a vida e o alimento na realidade descarnada e nua, embora prosaica... HELENA Senhor! FERNANDO Nunca me apaixonei ao ponto de passar noites em claro, formando castelos tão inocentes como o coração de José, de bíblica memória, ou chorando a ausência da mulher amada... As paixões — uma choupana e o teu amor — são soberanamente ridículas e servem unicamente para os romances piegas... Não sei amar assim. Isso é bom aqui para o Sr. Paulo, caixeiro, ou guarda-livros, que tem a alma a nadar em poesia, zéfiros que ciciam, em perfumes inebriantes, em ondas que beijam as brancas areias, em melancólicos luares... mas que tem, ao mesmo tempo, as algibeiras cheias de teias de aranha assim como a cabeça... O meu amor é bem diverso. Nada de sonhos, nada de esperanças, nada de ilusões. Quero amar uma mulher que possa indenizar-me do sacrifício do meu amor ou do meu coração, abandonando-se aos meus carinhos, aos meus caprichos e à satisfação dos meus desejos... PAULO O senhor é... FERNANDO Um homem que não sabe se viveu ontem; que sabe que vive hoje, porque goza, e que nada espera de novo no dia de amanhã; um homem cujo coração está gasto ou intato para as grandes emoções; um homem que vive, porque o gozo há de extinguir-se quando se extinguir o mundo. Que me importa o passado?... que me importa o futuro?... Não tenho saudades do passado, nem me dá cuidados o futuro: aquele, morreu; não lhe vou chorar sobre a sepultura... este, hei de amoldá-lo aos meus desejos... (Outro tom) O Sr. comendador está, minha senhora?... HELENA Saiu. FERNANDO Bem. Voltarei depois. Sou esperado em casa da baronesa da Silva, que particularmente me distingue com os seus favores, e não posso demorar-me. (Estendendo a mão a Helena) Minha senhora... Como é bela! HELENA (recuando) O senhor é um... miserável! FERNANDO Um miserável riquíssimo, minha senhora! Até mais ver... (A Paulo) Continue a sonhar acordado, meu amigo: é muito patético!... CENA III Helena e Paulo. PAULO Este homem precisa ser punido!... É um insolente! HELENA Não, meu amigo... A sua punição é o seu próprio aviltamento. Coragem e resignação. Adeus. (Paulo beija-lhe a mão e acompanha-a até à porta) CENA IV PAULO (sentando-se à secretária, depois de um momento de reflexão) A miséria!... sempre a miséria!... E não poder erguer-me, e não poder rojar dos pulsos arrochados esta cadeia fatal, que me oprime, que me acabrunha, que me rouba todas as esperanças da vida!... Sou moço e forte... Sinto o fogo da mocidade correr-me em lavar ardentes nas veias intumescidas... sinto borbulhar-me no cérebro as ideias grandiosas do gênio... e não posso erguer-me... e não posso lutar... e sou vencido como um covarde!... Oh! a mísera!... sempre a miséria! (Pausa) Amei... em um momento que possuir a mulher dos meus extremos... mas quando estendia os braços para chamá-la a mim... quando o triunfo sorria-me... a miséria repele-me, e de envolta com uma gargalhada satânica atira-me à face estas palavras malditas: — ”Que fazes, insensato!... Olha para o passado... olha para o futuro!... O teu passado foi a miséria; o teu futuro será a miséria!” — E eu curvei a fronte febricitante... senti o sangue gelar se me nas veias, o meu coração ficar gelado... porque em toda parte, velando ou sonhando, sempre a vejo me estendendo a mão descarnada e fria... ouço sempre a sua gargalhada do diabólico sarcasmo!... (Pausa) Vamos! cumpra-se o destino... (Fica um momento pensativo, com o rosto apoiado à mão. Depois toma um papel de sobre a secretária e lê) Pobre nasci... Na aurora da existência, nos anos da alegria e dos folguedos, quando o peito, a cantar, não tem segredos, todo gozo só goza a pura essência, quando o prazer respira alma inocência, e os dias se deslizam calmos, ledos, como a brisa nos verdes arvoredos, na brilhante estação da florescência, quando os brincos pueris convidam rindo, quando tudo é prazer, tudo é beleza, e o gozo imorredouro, eterno, infindo, criança, eu já pensava na pobreza, nas mágoas do porvir, na dor, sentindo molhar-me a face o pranto da tristeza...
CENA V Paulo e Helena.
HELENA (da porta) Meu pai... PAULO (deixando o papel sobre a secretária e levantando-se) Ainda não veio, minha senhora HELENA Supus encontrá-lo aqui. Ouvi o senhor falar... PAULO Eu falava?... Ah! sim... estava trabalhando... HELENA (descendo) Mas o que tem?... Por que está tão agitado?... Já não lhe pedi que tivesse coragem?... PAULO Nada, minha senhora... não tenho nada... HELENA Mas o senhor sofre; bem vejo... PAULO Se sofro!... Só os felizes não sofrem, minha senhora... E eu sou um desgraçado... um desgraçado sem nome... HELENA Que diz? PAULO Digo que sofro... que o meu coração está cansado... Todos me repelem... todos fogem de mim... todos me desprezam... Por quê?...
HELENA Todos?... PAULO Todos... Seu pai massacra-me... Não há um momento só em que me não lance em rosto o amargo pão que me atira. Seu irmão acabrunha-me com escárnios... Insulta-me, supondo-me talvez um covarde!... HELENA E eu?... PAULO É o anjo bom desta casa. Bastantes vezes tenho-a ouvido defenderme; bastantes vezes tenho ouvido eu pai e seu irmão repreenderemna por minha causa... Oh! se soubesse como o meu coração lhe agradece os seus sacrifícios!... HELENA Não faço sacrifícios, Paulo. PAULO Sacrifica-se, sim, minha senhora. E por quem?... Por um homem que seria apontado ao dedo como um louco se lhe dissesse: — "Obrigado!” HELENA Paulo! PAULO Aborreço-a?... O que quer?... Fica tão aliviado o coração quando desabafamos as nossas dores!... E eu sofro tanto... HELENA Mas por que está tão aflito?... PAULO
Porque esse homem que daqui saiu há pouco, ferio-me no coração... Oh! quando ele disse que vinha hoje pedir a sua mão... senti o sangue subir-me ao rosto... uma nuvem de sangue obscurecer-me a vista... HELENA (chorando) Meu Deus! PAULO Chora?... Chore, Helena, chore, que eu bem mereço as suas lágrimas... Mas não... não chore!... Para que lágrimas, quando o destino é implacável, quando o sofrimento é eterno?... Não chore... Massacrem-me... acabrunhem-me... matem-me... Que importa? O mendigo, a quem se atira um pedaço de pão amargo e duro, não merece lágrimas, é indigno delas... porque não tem com que pagálas... Folgue a opulência... proclame aos quatro ventos a sua infinita grandeza... atire à face do mundo a luva do desafio para a luta do ouro com a honra... Está no seu elemento... Bem se lembra ela dos que gemem, dos que choram a miséria, dos que morrem à míngua de afetos e de pão!... Estruge a tempestade... enquanto a pobreza humilde prosterna-se nas frias pedras da rua, pedindo a misericórdia... nas salas deslumbrantes da opulência maldita retinem as gargalhadas da ebriedade, trocam-se palavras de amor impuro... zomba-se do poder divino!... HELENA Paulo! Paulo!... Enlouqueceu? PAULO (frio) A pobreza não enlouquece, minha senhora... Se a pobreza enlouquecesse, perderia a consciência do sofrimento... Oh! quem me dera a loucura... o indiferentismo para o mundo... o termo dos desejos e dos martírios!... Quem me dera a loucura!... HELENA Silêncio, Sr!... Não vê que me mata...
PAULO (tomando-lhe as mãos) Perdão!... Eu desvario... Não me fica odiando... não? HELENA (vendo os versos sobre a secretária) O que é que estava escrevendo!... (Toma o papel) Versos... PAULO Por quem é minha senhora... dê-me esse papel... HELENA Por quê? PAULO Porque a senhora não os deve ler... Foi um momento, e cri que tinha uma alma para amar e um coração para sentir... mas foi um momento só... Esqueci-me que o pobre não tem alma nem coração... que não pode amar... Quem o amará?... quem amará um homem que não teve passado, que não tem futuro?... Adormeci chorando e sonhei... há sonhos tão doces, Helena!... HELENA Sonhou?... PAULO Sonhei... não com a opulência, não com as efêmeras grandezas da terra... mas com o amor de uma mulher, que vale todas as glórias possíveis... Eu era pobre... bem pobre... Os ricos, quando por mim passavam e que eu estendia a mão, pedindo uma esmola, voltavam o rosto e diziam: — Trabalha!” — Os pobres, como eu, quando não me davam um pedaço de pão, porque não o tinham, murmuravam, com as lágrimas nos olhos: —Perdoa, irmão! Coragem!” — Uma noite, — fria noite de inverno! — estendi os lassos membros sobre as geladas pedras de uma calçada, para dormir. Adormeci. De repente, uma música, harmoniosa como um coro de anjos, feriu-me os ouvidos... Ajoelhada a meu lado estava uma mulher... mas uma mulher ideal... uma mulher como na terra jamais encontrarei outra...
HELENA Ah! PAULO Ergue-te, — disse-me ela. — Morrias abandonado como um cão, todos escarneciam de ti, porque faltava-lhes o coração para sentir. Vem... só meu, meu só, porque eu te amo!...” HELENA Ah! PAULO Despertei... procurei, ansioso, a mulher dos meus amores... Fora tudo um sonho... mas a sua imagem ficou-me gravada na memória e no coração... Mas... dê-me esses versos minha senhora. Seu pai não tarde... Dê-me esse papel... HELENA Não, Paulo... não dou. Quero conservá-lo como uma lembrança sua... PAULO Helena! HELENA Aí vem meu pai. Adeus... (Sai) CENA VI PAULO E ela ama-me também... ama-me!... Mas que fatal amor este, meu Deus!... (Senta-se à secretária) Pobre mártir!... Quantas lágrimas amargas não terás de derramar!... quanto não terás de sofrer!... (Descansa a fronte na mão)
CENA VII Paulo e o Comendador.
COMENDADOR Então, o que é isto?... (Paulo levanta-se) Deixo-o encarregado de um trabalho importante, e venho encontrá-lo a dormir como... como um bruto!... PAULO Senhor comendador... COMENDADOR A ociosidade é a mãe de todos os vícios. Se continuar assim, ponhoo na rua. PAULO Perdão, Sr. comendador. Vossa senhoria não me deixou encarregado de trabalho algum... Quanto a despedir-me de sua casa, não pense que me faria afronta. Já estou cansado de suportá-lo!... COMENDADOR Insolente! PAULO Não sou insolente, Sr. comendador: sou um homem honrado que repele os insultos que lhe lançam em rosto... Não pense que me verá mais curvar a fronte às suas insolências e... COMENDADOR O que és tu, miserável?... PAULO Sou um homem, e um homem honrado, Sr. comendador. A pobreza não exclui o sentimento do brio e do amor próprio. Sou pobre. Se sair hoje de sua casa, amanhã talvez não tenha um pão para matar a fome. Vossa senhoria é rico e opulento... mas a minha pobreza não se curvará mais à sua opulência. Tenho sofrido muito. Há dez anos — dez longos anos — que sofro as suas grosserias sem dizer uma palavra... que suporto os escárnios insolentes de seu ilho, sem estrangulá-lo... Supuseram, talvez, os senhores que eu era um covarde... que sofreria tudo, porque temeria a sua grandeza!... Mas como se enganaram!... Eu não era um covarde... Não reagi nunca, por causa de sua filha... COMENDADOR De minha filha! Fala de minha filha! PAULO Sim: de sua filha... porque muitas vezes a vi chorar, quando o senhor acabrunhava-me, lançando-me em rosto o pão que me dava... porque muitas vezes ouvi-a interceder por mim, quando o senhor ameaçava-me... Sua filha é um anjo, Sr. comendador. COMENDADOR Miserável! Quem és tu para falar em minha filha?... PAULO (perdendo a calma) Nem mais uma palavra, Sr. comendador! COMENDADOR Ingrato! que te esqueces que te levantei do pó e que te mato a fome há dez anos! PAULO (pausada e friamente, depois de um momento de pausa em que mede o comendador com pronunciado desprezo) O homem que lança em rosto à pobreza os benefícios que lhe faz, perde o direito à gratidão. Nada lhe devo, Sr. comendador. De sobejo tenho pago os seus benefícios com a minha submissão, com o meu silêncio, quando o senhor e seu filho me acabrunham sem piedade, quando me matam de dor e de vergonha. Cansei... A rua da amargura foi longa, enorme o peso da minha cruz. Depois de dez anos de martírios e de vergonhas, cheguei ao meu calvário. Lancei dos ombros a cruz... O mártir morreu... Um homem, ferido na sua honra e no seu pundonor; nasceu das cinzas frias do mártir para vingar o morto!... COMENDADOR O senhor é indigno da minha proteção. Vou sair. Quando voltar, não quero encontrá-lo aqui, ou caro pagará. (Sai) CENA VIII PAULO Oh! este viver é um inferno!... Mas sair... sair desta casa... E ela... e Helena... como posso eu abandoná-la?... como posso esquecê-la?... Deixá-la é morrer... é perder tudo, porque é perdê-la... Vou trabalhar, resignado, a sofrer novos insultos... até que Deus se compadeça de mim!... (Senta-se a secretária, abre um livro e toma a pena. Virando à pena) Oh! não posso! não posso!... (Esconde a fronte nas mãos) CENA IX Paulo e Fernando. FERNANDO Uma palavra, meu amigo... PAULO (erguendo-se) Ainda o senhor!... FERNANDO Venho prestar-lhe um serviço, e o senhor recebe-me como se fora eu que lho viesse pedir. O procedimento não é bonito, meu caro mancebo... PAULO (dando-lhe as costas) Agradeço os seus serviços.
FERNANDO Olhe que trata-se de Helena... PAULO (voltando-se) De Helena!... oh! fale! fale! FERNANDO O senhor ama-a realmente? PAULO Oh! se a amo!... FERNANDO E por que não casa com ela? PAULO Porque... Oh! não me pergunte por quê... Porque ela está muito alto; porque eu não devo aspirar à sua posse... porque ela não pode ser minha... Ela vive em um mundo de luz e de ouro; os seus olhos estão acostumado à luz deslumbradora das salas da opulência... não podem penetrar a obscuridade do meu mundo de trevas... Ela é muito rica para amar-me; eu sou muito pobre para merecer o seu amor... FERNANDO Ela ama-o... PAULO Porque é um anjo... porque se compadeceu da minha desgraça... porque o seu coração é bom... FERNANDO E para que se apaixonou por ela... porque não empregou o seu amor em uma mulher que pudesse recompensá-lo?... PAULO Porque o meu coração queria amar... porque Helena subjugou-o... porque eu não tive forças para fugir... FERNANDO E o que pretende fazer agora?... PAULO Sofrer!... calar-me... FERNANDO É um covarde! PAULO Um covarde! FERNANDO É um covarde, sim. Esqueça essa mulher... (Ruído) O mel não é... PAULO Oh! cale-se! Nem mais uma palavra, ou esmagá-lo-ei! Por ventura pedi-lhe eu conselhos?... por ventura supõe que aceitarei os seus conselhos? FERNANDO Não quer seguir os meus conselhos?... Pois bem: juro-lhe que Helena será minha!... Ah! ah! ah! (Sai) CENA X PAULO (avançando para Fernando, que vai a sair) Miserável!... (Retrai-se, levando as mãos ao peito) Meu pobre coração!...
ATO II
A mesma vista do 1º Ato.
CENA I
HELENA (junto da janela, medita. Tem na mão o papel dos versos do 1º ato) Que destino o meu!... Eu, que devia ter tantas esperanças... um futuro tão belo... ser condenada a viver assim... a viver para chorar!... Meu pai! E é meu pai o meu algoz!... Pobre Paulo!... (Pausa. Limpa os olhos e lê) Pobre nasci... Na aurora da existência, nos anos da alegria e dos folguedos, quando o peito, a cantar, não tem segredos, todo gozo só goza a pura essência, quando o prazer respira alma inocência, e os dias se deslizam calmos, ledos, como a brisa nos verdes arvoredos, na brilhante estação da florescência, quando os brincos pueris convidam rindo, quando tudo é prazer, tudo é beleza, e o gozo imorredouro, eterno, infindo, criança, eu já pensava na pobreza, nas mágoas do porvir, na dor, sentindo molhar-me a face o pranto da tristeza... CENA II Helena e Jorge. JORGE Helena... HELENA Ah! meu irmão... JORGE Que papel é esse? HELENA São versos... JORGE Versos?... de quem? HELENA De ninguém. JORGE Sobre isso falaremos depois. HELENA Então... JORGE Desejo, em primeiro lugar, que me explique o seu procedimento de certo tempo a esta parte. HELENA O meu procedimento? Não o compreendo. JORGE Toda a mulher quer subir. A pobre deseja um homem rico para ampará-la; a rica um homem opulento para mais elevá-la ainda. A senhora, não. A senhora desce... degrada-se até... HELENA Jorge! JORGE Olhe para meu pai, olhe para mim, e veja se podemos admitir nunca no grêmio da nossa família... HELENA Quem? JORGE Um miserável, que veio um dia bater à nossa porta, coberto de andrajos, pedindo uma esmola, e que meu pai recebeu por caridade... um desgraçado que foi aqui sempre tratado como um filho... HELENA (à parte, com profundo sentimento) Como um filho!... E pouco falta para lhe cuspirem no rosto! JORGE Um mendigo, que hoje esquece-se dos benefícios que de meu pai tem recebido, para olhar para a filha do seu benfeitor... E a senhora desce tanto... perdeu tanto o sentimento do brio... HELENA (altiva) Meu irmão! Respeite-me... Veja que sou uma mulher e que não estou resolvida a suportar as suas insolências! JORGE Silêncio! Desceu tanto, que já nem respeita os cabelos brancos de nosso pai... não lhe respeita uma vida de cinquenta anos de honra. Antes de lançar-se ao abismo do aviltamento, por que não renegou o nosso nome?... Devia tê-lo feito, porque, só assim, não nos degradaria tanto! HELENA Silêncio! — digo eu. — Esse homem de quem fala é digno no meu amor e hei de amá-lo sempre. A sua pobreza não é motivo para o massacrarem. Quanto aos benefícios de que falou há pouco, Paulo nada deve a meu pai. De sobejo tem pago o pão amargo que lhe atiram, com o suor do seu trabalho. Dez anos de trabalho compensam dez anos de hospedagem, meu irmão. JORGE Basta! Dê-me esse papel. HELENA Para que o quer? JORGE Que lhe importa? Dê-me. HELENA Não dou. JORGE Dê-me, se não quer que empregue a violência... HELENA A violência! Oh! seria um tratamento digno do senhor!... Empreguea! Não a temo! JORGE Helena! HELENA Supõe talvez que eu sou Paulo, que suporta os seus insultos, sem levantar a cabeça?... Está enganado, senhor, e ainda mais enganado, se pensa que Paulo responde-lhe sempre com o silêncio porque o teme... Oh! não! Desgraçado do senhor se Paulo quisesse vingar-se. Mas descanse... Não se vingará, porque é muito nobre para descer até à vingança... JORGE É de mais! dê-me esse papel, ou arranco-lho à força! HELENA Não dou! JORGE (segurando-lhe o braço) Agora chame o seu D. João para defendê-la! HELENA (subjugada) Jorge! JORGE Vamos! Dê-me esse papel! Quero saber até que ponto chegou a sua degradação! CENA III Jorge, Helena e Paulo. PAULO (afastando-o) Para traz! para traz! JORGE (encarando-o e erguendo a mão para dar-lhe uma bofetada) Ah! finalmente! PAULO (segurando-lhe a mão) Senhor! JORGE (com desprezo) Fique descansado. Não mancharei a minha mão no seu rosto. Quando quiser castigá-lo, chamarei os meus criados. HELENA Meu irmão... cale-se... por piedade!... Que mal lhe fez ele, para tratálo assim? PAULO (friamente) Não interceda por mim, minha senhora. São inúteis as suas lágrimas e as suas súplicas para quem tão mal se serve da sua superioridade. (Altivo) senhor Jorge de Menezes, o caixeiro submisso morreu.
Cansei de suportá-lo e de suportar as grosseiras insolências de seu pai. Previno-o que estou resolvido a repelir de ora em diante as afrontas que me irrogarem. Se pensa que a minha pobreza obrigame a guardar silêncio quando sou insultado, está enganado. Não me atemoriza o seu ouro; não me intimida a sua opulência. Quando a nossa consciência está tranquila, não temos de que nos arrecear. Se sou pobre é porque sou honrado... JORGE Quer dizer que... PAULO Quero dizer que tenho visto muita opulência adquirida à custa das lágrimas da viuvez, a custa das lágrimas e dos sofrimentos da orfandade... quero dizer que tenho visto muita riqueza servir somente para o mal, para a desgraça... JORGE Silêncio! PAULO Hoje insulta-me porque sou pobre, porque não tenho um punhado de ouro para comprá-lo... Mas amanhãs, se a fortuna me ajudasse, se eu enriquecesse também; estou certo que seria o senhor o primeiro a ir bater à minha porta, a estender-me a sua mão... JORGE E o senhor... PAULO Oh! então eu seria mais generoso do que o senhor e seu pai. Recebêlo-ia como um amigo, como um irmão. Esqueceria as injúrias passadas, para só lembrar-me que tinha diante de mim um homem que se acolhia à minha proteção... HELENA Meu Deus!
JORGE (contendo a custo a raiva que o domina) Saia imediatamente! PAULO Não é preciso ordenar-me que eu saia. Eu sei que de hoje em diante as portas desta casa se fecharão para mim. Pouco me importa sair daqui, se não fora sua irmã. Só a ela devo gratidão, porque só ela tem-se mostrado compadecida da minha desgraça, só ela me tem dado forças para sofrer resignado e ter esperanças de um melhor futuro. Quanto ao senhor e seu pai, só tenho a dizer-lhes que um dia se arrependerão do mal que me têm feito... JORGE Senhor! PAULO Quando a desgraça bater à sua porta, quando se virem, como eu, reduzidos à extrema pobreza, lembrem-se de mim, que fui sempre pelos senhores tão duramente tratado, e vão procurar-me. Não temam que eu os repila, como os senhores me tem repelido; não! Hei de recebê-los com os braços abertos e o coração transbordando da felicidade de poder ampará-los na desgraça... JORGE É de mais! HELENA (suplicante) Jorge! PAULO Ainda não é tudo. A sorte é vária. Se hoje são os senhores ricos e opulentos, podem amanhã empobrecer, podem amanhã ver-se obrigados a trabalhar ou a pedir uma esmola para viver. Quando passarem nas suas carruagens salpicando de lama a face pálida dos desvalidos da sorte, não voltem o rosto à súplica humilde do pobre, que lhes estende a mão trêmula pedindo uma esmola para matar a fome que o devora... JORGE Onde quer ir ter? PAULO Não escarneçam nunca dos andrajos que cobrem as carnes roxas de frio de mísera indigência... não escarneçam, porque sob esses andrajos, talvez, quem sabe?... palpite um coração grandioso, agonize um gênio que, por falta de proteção, ignorado morre... JORGE (com desprezo) Talvez queira dizer que é um gênio, não?... Com franqueza... PAULO Na ininterrompida sucessão dos anos, no correr tempestuoso ou calmo da existência, bem vezes varia a sorte. O potentado de homem, mendiga hoje o óbolo da caridade pública, para não morrer à míngua... o rei de hoje, anda amanhã foragido, procurando escapar à punição que o persegue... Oh! não julguem, senhores potentados, que em alicerces de bronze assentam as colunas de ouro da sua felicidade. O vendo de adversidade sopra quando menos se espera, Sr. Jorge de Menezes, e some sob as areias da morte as efêmeras grandezas da terra... O que é o orgulho, Sr. Jorge de Menezes?... Palavra fatal e vã, arma de dois gumes, que depois de ferir o humilde, fere mais fundo ainda o orgulhoso... JORGE Basta! Já disse! HELENA Jorge! PAULO Em que se escuda o orgulho? No ouro?... Desaparece. Na posição? Cabe-se. Sr. Jorge de Menezes, do mesmo limo de que foram feitos o humilde e o fraco, foram feitos o orgulhoso e o forte... JORGE (com desprezo) Acabou?... Se quer acabar de aborrecer-me, repita o que disse. HELENA (baixo a Paulo) Cale-se!... PAULO Não é necessário repetir, porque bem gravadas na memória lhe ficarão as minhas palavras. Talvez que bem cedo o senhor as repita chorando... JORGE Devia ser bonito!... O senhor é profeta do mau agouro? PAULO Não prognostiquei desgraças; lembrei-lhe apenas a inconstância da sorte. Dei-lhe um conselho. Aceite-o, se quiser, e seja feliz. JORGE (rindo) Palavra de honra! Estou quase chorando!... PAULO Ainda é cedo. Não faltará tempo para chorar e arrepender-se... JORGE (altivo) Saia! PAULO Eu saio, Sr. Jorge de Menezes. Mas espero que em breve nos havemos de ver! (Saída falsa) HELENA (aflitíssima, em soluços) Paulo!... Paulo!... (Caindo numa cadeira) Meu irmão!...
PAULO (voltando-se do fundo) Helena... Helena... adeus!... (Sai) CENA IV Jorge e Helena. JORGE Levante-se! HELENA (erguendo-se) O que mais quer? JORGE Se de hora em diante eu vir correr de seus olhos uma só lágrima por aquele homem, ver-me-ei obrigado a chamá-la de novo ao cumprimento do dever. (Sai) CENA V HELENA Meu Deus!... para que nasci eu?... Oh! isto é um martírio horrível!... Paulo!... Para onde iria ele?... Quem sabe?... Talvez que o desespero... Oh! meu Deus! meu Deus!... CENA VI Helena e Fernando. FERNANDO (da porta) É um anjo! HELENA (com dignidade) Saia!
FERNANDO (descendo) Pois tem ânimo de ordenar-me que saia?... Quem é tão bela deve ter um coração de anjo. A sua formosura nada mais é então do que uma máscara que serve para ocultar uma alma de gelo... HELENA Senhor! FERNANDO Por que me repele, quando eu tanto a amo?... Não sabe que o homem que ama, como eu amo, não encontra obstáculos ao seu amor, e quando é desprezado, faz-se amar à força?... HELENA Deixe-me sair, senhor! FERNANDO Sairá, mas depois de ouvir-me. Há muito tempo já que espero este momento para declarar-lhe que dentro em pouco a senhora será minha, e que é preciso não continuar a repelir-me. HELENA Mas se eu o desprezo! FERNANDO Por causa do ex-caixeiro de seu pai, não é verdade?... Não lhe impeço que o ame; ame-o, mas com a condição de ser menos esquiva para comigo. HELENA (admirada e como não tendo compreendido) O que quer dizer? FERNANDO Não compreendeu?... Eu me explico mais claramente. Quero dizer que não sou como certos homens que ameaçam céus e terra quando as noivas olham para outros, que não eles... Eu gosto de viver tranquilamente e não desejo incomodar-me por coisa alguma. Seu pai, há bem poucos momentos, concedeu-me a sua mão... HELENA Mas... FERNANDO Não se aflija. Depois de casados, havemos de nos dar perfeitamente. Eu continuarei a minha vida acidentada de gozos e prazeres. A senhora fará o que quiser, o que lhe vier à fantasia fazer. Eu sairei para divertir-me com os amigos e as amantes. A senhora ficará em casa para receber os amigos e os amantes, se quiser tê-los. HELENA (à parte) Infame! FERNANDO Quando quiser sair, sairá, sem dizer-me para onde vai, nem o que vai fazer, porque, fique descansada, não lhe perguntarei nunca. O que eu quero é uma mulher formosa, e nada mais. Não acha que devo ser um excelente marido, isto é, um marido que fecha os olhos a tudo, e trata os amantes da mulher da mesma maneira porque trata as suas próprias amantes? HELENA (indignada) Deixe-me sair, senhor! FERNANDO Mais uma palavra. A senhora ama verdadeiramente, segundo parece, o ex-caixeiro de seu pai. Porque não o toma para amante, se já não o tomou?... São conhecidos antigos e poderão viver como dois pombinhos apaixonados, no ninho da minha casa. Creia que isso em nada me incomodará. Paulo terá um lugar à minha mesa, um lugar em minha casa, e um lugar no seu coração — que é o melhor logar. Nunca se separarão... andarão sempre juntinhos como dois bons amigos... como Orestes e Pilades...
HELENA Basta, senhor! Nunca pensei que lábios de homem proferissem tantas infâmias! Vou prevenir meu pai de tudo quanto acaba de dizer-me, e depois veremos... FERNANDO Advirto-a de que se eu souber que a senhora lhe disse uma única palavra, Paulo terá de haver-se comigo... HELENA Como? FERNANDO Matá-lo-ei! HELENA (recuando e encarando-o, assustada) O senhor o matará?... FERNANDO Matá-lo-ei! Juro! HELENA Oh! só falta isto... só falta matá-lo para consumar a sua miserável obra!... (Indo a ele) O senhor é... FERNANDO (tomando-a nos braços) Silêncio! HELENA Meu pai! meu pai!... FERNANDO (deixando-a) Passou a tempestade! O Titã da inocência baqueou sem forças! HELENA (rápida e altivamente) Saia, senhor!... Se eu o desprezava, odeio-o agora! É inútil perseguirme, porque o senhor é indigno do meu amor!
FERNANDO E Paulo?... HELENA Oh! o senhor não o matará... É muito covarde para... FERNANDO Ah! ah! ah! Nem sabe como fica divina nesse desespero!... Parece uma leoa a que mataram os filhos!... HELENA Pois bem, senhor: a leoa vinga-se, e eu me vingarei!... (Sai rapidamente. Fernando acompanha-a com a vista até que ela desaparece) CENA VII FERNANDO Vinga-se... vinga-se... Como se vingará uma mulher bonita?... Chorando? — Que me importa lágrimas?... Ameaçando? — Oh! não temo ameaças!... — São inúteis os teus esforços, minha formosa esquiva! Jurei que havias de ser minha, e hás de ser... Tenho necessidade, não de ti, mas do ouro de teu pai. Nada tenho, e preciso viver à farta, à larga... As minhas amantes — encantadores monstros insaciáveis, abismos sem fundo — já me chama miserável porque não as encho de mimos e teteias, como outrora... Oh! minhas sedutoras sultanas, desde que o vigário da freguesia me entregue a chave da opulência de Helena, vós tornareis a ser opulentas também!... Oh! meu adorado pano verde, hei de cobrir-te ainda com o ouro cintilante do estúpido comendador Menezes! Viverei com Helena, enquanto Helena puder fornecer-me os meios de sustentar as minhas paixões... Acabados eles... adeus, Helena!... Quando a mina não oferece mais ouro, despreza-se a mina!... Tenho vivido de expedientes até agora... Ainda ontem escapei de ser descoberto em um roubo pelos meus companheiros de jogo... Mas esses sustos vão desaparecer de uma vez para sempre, e então...
CENA VIII Fernando e Jorge.
JORGE Pensei que Helena estivesse aqui... FERNANDO Retirou-se incomodada para o seu quarto. JORGE Doente? FERNANDO Sim; moléstia passageira, do coração, que o tempo cura... JORGE Como?... Sabes?... FERNANDO Ora, meu amigo... para que tenho eu olhos e ouvidos? JORGE E o que pretendes fazer?... FERNANDO Tua irmã é uma criança, Jorge. Sonha ainda. Quando acordar, terá tudo esquecido. Depois de casados, iremos viajar. Sabes que as viagens são o melhor medicamento para a moléstia de que sofre tua irmã. Irei à França, a Portugal, à Inglaterra, à Espanha, à China até, se for preciso, para que tua irmã esqueça o passado. JORGE Talvez não seja necessário semelhante sacrifício. FERNANDO Por quê? JORGE Meu pai já mandou chamar o miserável que enlouqueceu minha irmã... FERNANDO Para quê? JORGE Para propor-lhe o seguinte: — dar-lhe três contos de réis com a condição de ele deixar para sempre o Rio de Janeiro. FERNANDO E se ele recusar? JORGE Aceitará. Se não aceitar, não nos faltam meios para nos livrarmos dele... Quando somos agredidos por um cão, matamo-lo. Ficas? FERNANDO Fico. Preciso falar com teu pai. JORGE Até já. (Sai) CENA IX FERNANDO Muito bem. Chega o momento de dar o último combate. O que dirá o comendador?... Esperemos... CENA X Fernando e o Comendador.
COMENDADOR Oh! meu amigo, julguei que tivesses saído com meu filho... FERNANDO Senhor comendador, preciso falar-lhe. Pode conceder-me um momento de atenção? COMENDADOR Fale meu amigo. FERNANDO Tenho dois pedidos a fazer-lhe, e espero ser atendido em ambos. Quanto ao primeiro, trata-se de... COMENDADOR De minha filha. FERNANDO Sabe? COMENDADOR A mocidade sempre supõe iludir a velhice, mas sai sempre iludida. FERNANDO Pois bem, Sr. Comendador: amo sua filha, e só do senhor depende a realização do meu maior, do meu único desejo... COMENDADOR Já esperava por isto, mancebo. Mas se eu recusar? FERNANDO Como? Por quê?... COMENDADOR O que fará? FERNANDO Nada, mas sinto que serei muito infeliz... COMENDADOR Quer saber a minha resposta? FERNANDO Sim; uma resposta decisiva, franca. COMENDADOR Pois bem: abro-lhe os braços e considero-o meu filho. FERNANDO (apertando-lhe a mão) Obrigado, Sr. Comendador! De novo encontrei o pai, que há tantos anos perdi... (À parte) E que não sei que cor tinha! COMENDADOR Minha filha não tarde. Consultemo-la. Vamos ao segundo pedido. FERNANDO O senhor comendador não ignora que o seu ex-caixeiro... COMENDADOR Não ignoro. Isso fica por minha conta. FERNANDO Pela segunda vez, obrigado. Tirou-me um peso enorme de sobre o coração. Agora posso ficar tranquilo, porque vou ser o mais feliz dos homens. Oh! não pode calcular como o meu coração palpita! COMENDADOR Calculo, calculo, porque por aí já passei... CENA XI Os Mesmo e Helena. HELENA (vai entrar, mas para ao ver Fernando)
Meu pai... COMENDADOR Aproxime-se. O meu amigo Fernando da Cunha acaba de solicitarme um favor, que não posso recusar-lhe... HELENA Fale, meu pai... (À parte) Meu Deus! COMENDADOR Fernando solicita sua mão. HELENA (altiva) A minha mão!... Nunca!... COMENDADOR Helena! HELENA Nunca, meu pai!... O senhor Fernando da Cunha é muito infame para merecê-la!... FERNANDO Ah! COMENDADOR Helena! HELENA Meu pai, quer saber o que não há muitos momentos me disse este homem?... FERNANDO (baixo) A vida do Paulo está em minhas mãos... HELENA Senhor!... meu pai!... Oh! isto é um inferno!... Não!... Nunca serei sua!... Nunca!... FERNANDO Minha senhora... COMENDADOR Há de ser. Já comprometi a minha palavra, e hei de cumpri-la. HELENA (caindo de joelhos e ocultando o rosto nas mãos) Ah! meu pai!...
ATO III Uma mansarda toda esboroada. O comendador, cadavérico e exausto de forças, está deitado em uma enxerga. Ao pé da enxerga, um banco sobre o qual se vê uma carteira aberta e vazia, uma vela, já em meio, presa à boca de uma garrafa, e um canivete-punhal. Helena, pálida, desfeita e com os vestidos rotos, está sentada no chão, com o rosto oculto nas mãos. É noite. A tempestade ruge fora. Vento forte, relâmpagos e trovoada ao longe, que vem, pouco e pouco, se aproximando. O Comendador dorme, mas o sono é agitado. À luz de um relâmpago, Helena, assustada, dá um grito abafado e ergue-se. CENA I Comendador e Helena. HELENA (erguendo-se assustada) Ah! COMENDADOR (como que sobressaltado) Filha!... HELENA (indo a ele) Meu pai!... (Chora)
COMENDADOR Sossega, filha... Mais cedo ou mais tarde... agora ou logo... que importa?... Tinha de ser assim... HELENA Não pensemos nisso agora, meu pai... COMENDADOR Pensemos, filha... pensemos... Não me pesa morrer... porque já nada espero do mundo... Só me pesa deixar a vida com o remorso de ter sido o causador da tua desgraça... HELENA Não, meu pai... O senhor sonhou a felicidade para mim naquela união... Enganou-se... Quem não se engana?... COMENDADOR E sonhei... sonhei, filha... Mas Deus não quis que o meu sonho se realizasse... Oh! aquele homem!... aquele homem!... E não haverá castigo para aquele homem!... Maldito!... HELENA Oh! meu pai! COMENDADOR Depois de tamanha opulência... esta miséria tamanha. Uma mansarda toda esboroada e quase a desabar... um pedaço de vela quase a acabar-se... uma carteira vazia... HELENA Meu Deus! COMENDADOR Oh! custa muito, meu Deus!... custa muito!... E Deus não punirá a quem nos lançou neste abismo de fome e de horror, sem que um sentimento de piedade lhe comovesse o coração!... Piedade... não por mim, mas por ela, meu Deus!... por minha filha, tão boa... tão meiga... HELENA Perdoa-lhe, pai! COMENDADOR Perdoar, filha!... perdoar!... perdoar o crime, é cometer um crime ainda maior... Não! não perdoo! HELENA Mas Deus perdoou, meu pai! COMENDADOR (agitado) Água, Helena... dá-me água... Sinto a cabeça arder-me... Estou tão fraco... HELENA Vou buscar, meu pai... Mas descanse. Procure dormir... (Sai) CENA II COMENDADOR Foi um crime!... Jamais coração de homem concebeu igual sentimento... Jamais o céu amaldiçoará mais ignóbil criatura... E o coração não lhe estremeceu no peito, e o remorso não lhe mordeu o coração... Com o sorriso nos lábios e os olhos enxutos, contemplou, tranquilo e calmo, a apoteose infernal da sua obra maldita... De opulento, que eu era, reduziu-me à mísera... de tão feliz que era minha filha, tornou-a desgraçada... Depois — quando fundiu nos lupanares e nas bancas de jogo a minha última moeda... abandonounos... fugiu... não sei para onde... deixando-nos assim... a mim — quase a expirar... a Helena — quase sem pai!...
CENA III
Comendador e Helena.
HELENA (com uma caneca de folha) Aqui está a água, meu pai. COMENDADOR (bebe. Forte trovão. Estremece e entrega a caneca à Helena. Assustado) Tenho medo... HELENA (recuando) Ah! por acaso... COMENDADOR Não deliro, não, filha... Tenho medo... não da tempestade que fora ruge, porque Deus é bom... mas dele... dele... do miserável que nos roubou... Oh! se soubesses a ideia que tive agora... HELENA O que foi, meu pai? COMENDADOR Pensei que ele tinha descoberto o nosso paradeiro... que veio... e que... HELENA Oh! fale! fale! COMENDADOR E que terminou a sua obra maldita... assassinando-me... HELENA Meu pai! COMENDADOR Sossega, minha filha... Foi uma ideia de louco... Sinto-me tão fraco... A fome traz tantos fantasmas!...
HELENA Durma, meu pai... Bem precisa de descanso. Hoje o tempo não permitiu que passasse gente na estrada, a quem eu pedisse esmola; mas amanhã, com o favor de Deus, seremos mais felizes... COMENDADOR (amargamente) Felizes! felizes! HELENA Quando tomar algum alimento e recobrar as perdidas forças, há de ficar melhor... há de ficar bom... COMENDADOR Hei de ficar melhor, filha, hei de... mas na outra vida... nesta não... que a felicidade passou já para mim... HELENA Deus é grande, meu pai... Mas durma, durma, que o sono far-lhe-á bem. COMENDADOR Mas se eu não posso, filha! HELENA Pode; faça um esforço, que pode... (Batem) Ah! COMENDADOR Quem bate?... HELENA Talvez Jorge, meu pai. COMENDADOR Abre; mas antes, pergunta... HELENA Nada receie. Quem mais pode ser senão Jorge?
COMENDADOR Pergunta... Quem sabe?... Tenho medo... tenho medo... Estou tão fraco... Helena... minha pobre filha... (Adormece) HELENA Meu pobre pai! (Abre a porta) CENA IV Os mesmos e Jorge. JORGE (pobremente vestido) Minha irmã... HELENA Jorge, nada arranjaste? JORGE (mostrando um pão que tira do bolso) Um pão! HELENA (tomando-o) Um pão! É para nosso pai... JORGE Espera... Deixa-o descansar. Não o acordes agora. HELENA Mas ele tem fome! JORGE (amargamente) Tem fome! Pobre pai!... (Com raiva) Oh! e não hei de matar aquele maldito! HELENA Jorge!
JORGE Sabes?... O miserável anda foragido... Quando não teve mais ouro, roubou... A justiça procura-o... (Tomando o canivete que está sobre o banco) Ah! se eu o encontro... desgraçado dele. Mato-o sem piedade! HELENA Meu irmão! JORGE (atirando a arma sobre o banco e aproximando-se do pai) Meu pobre pai! HELENA Acordo-o? JORGE Não; vou sair. HELENA Outra vez, Jorge? JORGE É preciso. São apenas nove horas. Ainda posso encontrar alguém que me dê uma esmola para matar a fome de nosso pai amanhã. HELENA Como somos desgraçados, Jorge! JORGE Desgraçados... Dizes bem, Helena!... Hoje percorri a cidade em todas as direções, procurando quem me desse trabalho, e não houve um só homem que me atendesse... HELENA Por quê? JORGE Por quê?... A fatalidade, Helena... a fatalidade! (Pausa) Fecha a porta. Mais tarde voltarei. HELENA Não tomaste alimento algum ainda? JORGE Não... HELENA Por que não levas a metade deste pão? JORGE (com sorriso amargo) Não tenho fome... HELENA Como dizes isso, Jorge!... JORGE Adeus, Helena!... (Sai) HELENA Por que não ficas?... JORGE Não. Preciso sair. (Sai) CENA V Comendador e Helena. HELENA Pobre irmão!... Tão felizes que éramos... e tão desgraçados que somos!... Este pão!... oh! quando meu pai acordar, como deve ficar contente!... (Rumor fora) Meu Deus!...
(Fernando impele a porta que Jorge deixara encostada e entra)
CENA VI Os mesmos e Fernando.
FERNANDO (pálido e em desordem) Silêncio! HELENA (correndo ao pai) Meu pai! meu pai! FERNANDO (reconhecendo-a) Esta mulher!... Helena!... HELENA (reconhecendo-o, horrorizada) Fernando!... FERNANDO Eu... sim... mas silêncio! Sou perseguido... HELENA Saia, senhor!... Por piedade!... Se meu pai o vir aqui... FERNANDO Basta! Quero ocultar-me... Oculte-me... Eles não tardam... O roubo... HELENA O roubo?... FERNANDO Sim, o roubo... Roubei, e sou perseguido... HELENA Oh! saia! FERNANDO Por piedade, salve-me!
HELENA Salvá-lo!... O senhor já se esqueceu do passado?... FERNANDO Oh! mas isto é um inferno!... HELENA Senhor! FERNANDO Pela última vez, salve-me, ou... COMENDADOR (sonhando) Helena... perdoa-me, minha pobre filha. Eu fui o único causador da tua desgraça... Mas Deus há de castigar o infame... FERNANDO Que diz ele?... COMENDADOR (sonhando) Fernando... o miserável que... FERNANDO (com os punhos cerrados) Oh! basta! Silêncio, velho!... ou esmago-te sem piedade!... HELENA O senhor ameaça um moribundo... É um covarde! FERNANDO (segurando-lhe um braço) Mulher! HELENA Deixe-me, senhor!... Peço socorro!... FERNANDO Ninguém a ouvirá... Vamos... Oculte-me, ou mato-a!
HELENA (correndo à porta) Socorro!... socorro! FERNANDO (tomando-lhe a passagem) É inútil... Não quer salvar-me, não é assim?... HELENA Salvá-lo?... Nunca... FERNANDO (subjugando-a) Pois então... CENA VII Os mesmos e Jorge. JORGE (aparece à porta, vê o quadro, atira-se para Fernando e obriga-o a voltar-se) Fernando da Cunha! FERNANDO (recuando) Ah! JORGE Finalmente nos encontramos, senhor! Nem sabe com que ânsia esperava este momento. FERNANDO O que pretende? JORGE O que pretendo?... E ainda me pergunta o que pretendo?... Quero vingar-me! FERNANDO Vingar-se!...
JORGE Veja esta miséria que nos roda... olhe para aquele velho que ali agoniza, quase sem forças para respirar... olhe para esta mulher... Esta mulher... Conhece-a... É minha irmã... é Helena... Repare na palidez que lhe cobre as faces... repare nos andrajos que a cobrem... E esta mulher já foi uma beleza... já trajou como uma rainha... Quem foi o causador de todas as nossas desgraças? HELENA Jorge!... FERNANDO Senhor!... JORGE Quero vingar-me!... É preciso que o senhor morra!... FERNANDO Eu!... morrer! (Vê o canivete-punhal sobre o banco e avança para tomá-lo) Veremos! JORGE (repelindo-o e tomando a arma) Morrer, sim!... mas morrer como um cão!...
(Fernando arroja-se sobre Jorge, que, fora de si, fere-o. Paulo entra a tempo de ver o ato de ferimento) CENA VIII Os mesmos e Paulo. PAULO (a Jorge) O que fez?... HELENA Meu Deus!
FERNANDO (caindo) Ah! JORGE Era um cão: matei-o! HELENA Paulo!... COMENDADOR (despertando em sobressalto) Que sonho!... que sonho!... Lutas... mortes... sangue... (Vendo os circunstantes) Jorge... Helena... meus filhos... Paulo!... Também ele!... Um homem!... um homem morto!... JORGE É uma víbora esmagada, meu pai!... Mordeu-nos a primeira vez, e fugiu... tentou morder-nos a segunda, matei-a! COMENDADOR Fernando... PAULO Segui os seus passos e vi-o entrar aqui, Sr. Jorge. Peço perdão... Sr. comendador, prepare-se, que vamos partir quanto antes... COMENDADOR Partir?... Para onde?... PAULO Para sua casa... É impossível, fraco e enfermo, como está, continuar a viver aqui. COMENDADOR Para minha casa?... PAULO Sim: para sua casa. Leia. (Dá um papel)
COMENDADOR (depois de ler) Perdão!... É um castigo, mas um castigo nobre, digno de uma grande alma... Eu expeli-o injustamente de minha casa, e o senhor faz-me doação dessa mesma casa de onde foi expelido... Oh! é muito!... JORGE O que diz, meu pai? HELENA (ao mesmo tempo) O que diz, meu pai? COMENDADOR (dando-lhes o papel) Leiam, meus filhos, e aprendam. PAULO A sorte ajudou-me, Sr. comendador. Trabalhei durante dez anos... sofri privações sem contar, curti angústias sem termo, mas Deus protegeu-me e enriqueci...
Horácio Nunes
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