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Uma batalha de amor mais árdua do que a guerra!
Danielle de Aville foi obrigada, por decreto do rei, a casar-se com Adrien MacLachlan, o guerreiro escocês responsável pela queda de seu castelo. De uma hora para outra estava presa a um casamento que nenhum dos dois desejava. Mas ao ser levada para a Escócia e arrebatada pelos braços fortes de Adrien, em pouco tempo Danielle viu-se entregue a uma paixão alucinada pelo marido que jurara desprezar...
Adrien não podia se permitir confiar naquela beldade de olhos verdes em cujas veias corria o sangue dos soberanos franceses. A lealdade de Danielle, dividida entre as duas nações, só inflamava ainda mais os conflitos entre ambos, porém Adrien não conseguia controlar o desejo intenso que sua esposa lhe despertava, nem fazê-la ceder à sua vontade, enquanto lutava como nunca para conquistar o coração daquela mulher, na mais difícil de todas as batalhas...
O Ano de Nosso Senhor de 1357
Parado na soleira da porta, Adrien MacLachlan examinou o interior enfumaçado da taverna, sua figura alta barrando a entrada durante alguns segundos.
Ele era um cavaleiro, um dos mais famosos dentre todos os guerreiros do rei Edward III. Todavia, naquela noite, não usava armadura.
Fora avisado do encontro e vestira-se a exemplo dos frequentadores assíduos do estabelecimento de má reputação. Como os ladrões e assassinos, trajava túnica de linho, calça, botas e uma capa escura com capuz, que escondia tanto suas feições como as armas que escolhera levar: a magnífica espada Toledo e a faca afiada, presa à panturrilha, o manejo de ambas ensinado por seus parentes escoceses. Há muito aprendera a lição amarga de que qualquer luta costuma ser inesperada, breve e fatal.
Após rápida inspeção, satisfez-se. Ela ainda não havia chegado. Marchando para um canto do salão, sentou-se com as costas voltadas para a parede e os olhos fixos na porta da frente.
Depois de pedir um caneco de cerveja a uma serva de seios fartos, observou a clientela, questionável em todos os aspectos. O lugar realmente fazia jus à fama: um covil de matadores, assaltantes e canalhas. Na mesa ao lado, um marinheiro de dentes podres e seu comparsa cochichavam, fitando-o de soslaio.
Sem dúvida o avaliavam, discutindo se valeria a pena tentar roubá-lo. Naturalmente fora sozinho àquele local perigoso porque quisera. Muitos dos ilustres e bravos cavaleiros o teriam acompanhado, se os houvesse chamado. Porém, tratava-se de um assunto pessoal, um assunto que preferira não levar ao conhecimento do rei. A vida dela talvez dependesse disso.
Rezava para que seus informantes estivessem certos e que ela aparecesse na taverna. Porque senão...
Um misto de medo e fúria fazia seu sangue ferver nas veias. Como ela pudera ser tola a ponto de correr tais riscos? Acaso se considerava assim tão forte, tão poderosa, ou apenas tão nobre que seria capaz de conter os instintos básicos de homens desonestos? Ah, como ansiava pôr as mãos naquela mulher...
De muitas maneiras.
O dever exigia sua presença ali. A pequena megera merecia um bom castigo. Mas, por Deus, ela era sua responsabilidade e um prêmio por demais valioso para malfeitores de qualquer espécie. Bem no fundo do coração, temia por ela, sabia que morreria por ela. Morreria por dentro, se algo lhe acontecesse.
Uma figura encapuzada entrou na taverna. Embora o salão estivesse cheio de figuras encapuzadas, jamais teria dificuldade para reconhecê-la. Afinal, praticamente vira-a desabrochar, transformar-se nessa criatura bela, de movimentos fluidos e graciosos.
De novo a raiva o dominou. Lutando para controlar o sentimento intenso, esforçou-se para pensar objetivamente. Impossível. Ainda que ela fosse a mais pobre das camponesas, despertaria o desejo avassalador dos mais ricos e nobres guerreiros do reino. Cílios negros como a noite emolduravam olhos cor de esmeralda. Traços perfeitos. Alta, esguia, dona de curvas sedutoras.
E ela fora à taverna encontrar-se com um homem. Um francês. Um inimigo!
Do lado oposto do salão, um vulto levantou-se. Apesar da capa sobre os ombros, o infame tinha o rosto descoberto. Conde Langlois, cavaleiro a serviço do rei da França. Vira-o algumas vezes, à distância, no campo de batalha.
O conde aproximou-se da mulher e a conduziu escada acima, para um dos quartos.
Cerrando os dentes, Adrien sufocou a fúria. Ela deveria ter aprendido. Deveria ter aprendido a lição que lhe ensinara!
Determinado a acalmar-se antes de agir, inspirou fundo e contou até dez.
Então, seguiu o casal.
Danielle d'Aville nunca se sentira tão apavorada em toda sua vida. Desde muito cedo, porém, acostumara-se a não deixar transparecer as verdadeiras emoções, convicta de que uma expressão altiva e distante funciona como uma espécie de escudo, mantendo os indesejáveis afastados.
Entretanto, não experimentava apenas medo naquela noite. Sua alma estava cruelmente dividida. Anos atrás, fizera um juramento a uma moribunda e essa promessa a obrigava agora a enviar um aviso ao rei Jean. Seria a última vez que tentaria ajudar Jean.
Mas, embora não fosse revelar nenhum grande segredo, seu coração sangrava por estar traindo o rei Edward. E, principalmente, por estar traindo um outro homem...
Oh, Deus, como iria se perdoar?
Para piorar sua aflição, algo no conde Langlois, considerado o guerreiro mais bonito e cobiçado da corte francesa, a estava deixando inquieta. Ele sempre fora cortês e respeitador antes, porém, naquela noite... parecia um predador. Talvez houvesse se arriscado demais, combinando o encontro num lugar de péssima reputação.
O conde a guiou pelo corredor longo e pouco iluminado até um quarto onde o fogo já ardia na lareira. Sobre a pequena mesa de canto, havia uma garrafa de vinho, pão e queijo. A cama rústica dominava o ambiente, os lençóis arrumados, como se à espera de amantes.
Inquieta, ouviu o cavaleiro fechar a porta. De cabeça erguida e ombros eretos, virou-se para fitá-lo. Langlois era um homem bonito, os olhos escuros como os cabelos e a barba bem aparada. Entretanto, sua aparência a fazia pensar num abutre... ou num lobo!
- Não havia necessidade alguma de nos falarmos num quarto - disse ela, glacial. - Marquei este encontro para que você possa transmitir uma mensagem ao rei da França. Sua recompensa será ampla.
- Ah, milady, como pode soar tão fria quando arrisquei minha vida vindo até aqui, resgatá-la?
- Como assim, monsieur!
Vendo-o passar o ferrolho na porta e caminhar na sua direção, ela estremeceu de pavor. Oh, Deus, o que fizera?
Como o mais galante dos cavalheiros, o conde tomou as mãos delicadas entre as suas.
- Dizem que os planos do rei Edward para você não a agradaram. Também dizem que há uma verdadeira guerra entre você e aquele escocês selvagem que o rei inglês escolheu para desposá-la.
Do lado de fora, encostado à porta, Adrien MacLachlan acompanhava a conversa, fervendo de raiva.
- Escrevi-lhe porque... - começou Danielle, tentando, sem sucesso, libertar as mãos e afastar-se.
Langlois, contudo, a interrompeu, continuando a segurá-la pelos pulsos.
- Ah, milady, se não existiu a consumação do casamento, você é livre. Nosso bom rei Jean poderá levar a questão ao papa e obter a anulação desse desastroso matrimônio.
Adrien inspirou fundo, irado. Então não houvera consumação do matrimônio? Pois sim. Consumaria seu ódio esganando o canalha. Devagar, empurrou a porta para testá-la. Trancada. Porém nada o deteria. Aguardaria a hora de agir.
Enquanto isso, Danielle se repreendia mentalmente por haver sido tão idiota, tão ingênua, a ponto de imaginar que Langlois tivesse, em algum momento, se preocupado com os interesses do rei Jean. O conde pensava apenas em si mesmo, em possuí-la e a Aville. Portanto, precisava conduzir a situação com cautela, medir bem as palavras.
- Talvez existam outros assuntos para discutirmos numa data posterior. Porém, a questão que me trouxe até aqui deve ser resolvida primeiro. Talvez fosse melhor você me escoltar até a presença do rei Jean, para eu lhe transmitir minha mensagem pessoalmente.
Os olhos escuros a examinaram de alto a baixo, de uma maneira desagradável.
- Monsieur, não é minha intenção ofendê-lo. Sem dúvida você é um nobre valoroso. Todavia, há coisas muito mais importantes em jogo do que eu, ou Aville.
No corredor, Adrien cerrou os dentes com tanta força que as mandíbulas doeram.
- Mas analise a situação, milady. O rei Jean ficaria satisfeito se fôssemos procurá-lo já havendo consumado nosso amor. Nós nos casaríamos logo e você ficaria livre daquele bárbaro. Você me levou a acreditar que minha recompensa seria grande se eu a ajudasse. Pois exijo essa recompensa. Agora. Vamos, minha lindeza! Como não há nada entre você e aquele selvagem grosseiro...
- Tenho uma mensagem para o rei Jean, monsieur! Pense na raiva que...
- Pense no prazer do rei se você pertencesse a um nobre francês, não a um arrogante bastardo escocês!
Enojada e furiosa consigo mesma, Danielle fitou Langlois sem disfarçar o desdém. Sim, atraíra-o para o encontro com a promessa de uma recompensa. Recompensa financeira, naturalmente. Em nenhum instante sugerira que o queria para marido, ou amante!
Oh, precisava agir depressa, porque se o infame a tocasse, morreria. Algo em seu interior pereceria. Seu coração, sua alma seriam lançados nas trevas.
Com um gesto brusco, desvencilhou-se das mãos que a prendiam.
- Não! - declarou categórica, com a autoridade aprendida durante os anos de convivência com o rei e a rainha da Inglaterra.
Impaciente, Danielle caminhou na direção da porta e, por um segundo, sua vontade pareceu prevalecer.
Entretanto, antes de avançar mais um passo, Langlois a agarrou pelos ombros, imobilizando-a.
- Eu pretendia ser gentil. Pretendia seduzi-la, milady, e selar nosso pacto de comum acordo. Todavia, apesar de ter sido sempre um vassalo leal, sou um dos nobres de menor importância na corte francesa e necessito, com urgência, das terras e do dinheiro que você pode me prover. Ah, milady, também tenho fome de sua deliciosa beleza! Juro que nos apresentaremos ao rei na condição de amantes, em busca apenas da bênção real para legalizar nossa união.
- Nunca! Nem quando o inferno congelar! - ela gritou, chutando-o no ponto mais sensível.
Embora urrasse de dor, Langlois não a deixou escapar. Puxando-a pelos cabelos, atirou-a no chão, imprensando-a com o próprio corpo para impedi-la de fugir.
- Milady, planejei fazer isso na cama, mas se você gosta do chão...
Desesperada, Danielle o esbofeteou. O conde retribuiu o golpe. Longe de se intimidar, ela o atacou com unhas e dentes, perguntando-se se fora imaginação sua ou se escutara algo semelhante a uma explosão. Langlois era um cavaleiro treinado para combate com armas pesadas e reconhecia faltar-lhe força física para enfrentá-lo durante um longo período. Mas lutaria até o fim.
- Com os diabos, mulher, fique quieta! Se me deixar tocá-la, não vou machucá-la... - O conde calou-se de súbito, o olhar fixo numa figura musculosa.
Então Danielle deu-se conta de que o barulho não fora produto de sua imaginação. Um homem arrombara a porta e agora os observava do alto de sua elevada estatura. O rosto másculo já não estava escondido pelo capuz e os olhos castanhos tinham a frieza da espada cuja ponta pressionava a garganta do francês.
Adrien!, Danielle pensou, entre grata pela derrocada de Langlois e apavorada com o desdobramento da situação. Oh, Deus... Fora apanhada. Só quisera avisar o rei Jean, nada mais.
Podia muito bem ser enforcada. Julgara Adrien distante dali, envolvido em mais uma de suas batalhas intermináveis. Quantas e quantas noites passara acordada, ansiando vê-lo, ansiando abraçá-lo. E agora...
Pusera tudo a perder.
Entretanto, apesar da fúria evidente, a voz de Adrien soou calma, controlada.
- Toque-a, meu caro, apenas mais uma vez, e deceparei essa protuberância que o faz agir como tolo antes de cortar fora sua cabeça!
Devagar, Langlois levantou-se, ainda com a ponta da espada inimiga pousada em seu pescoço.
- Agora você, Danielle - Adrien ordenou, sem tirar os olhos do adversário.
Vermelha de humilhação, ela obedeceu, indagando num murmúrio:
- Durante... durante quanto tempo você esteve aí fora?
- Tempo suficiente.
- E permitiu a esse patife me tocar?
- Você me parecia estar se saindo muito bem sozinha. Na verdade, eu não estava muito convencido de que desejava ser salva, pois foi sua a iniciativa de marcar esse encontro.
- Sim! - gritou Langlois. - De fato, eu vim até aqui para resgatá-la. A propósito, milady, não há mais motivos para ter medo. Quem é esse idiota? Saiba, senhor, que a taverna está cheia de homens fiéis ao rei francês, homens que acabariam com qualquer canalha inglês em poucos segundos.
- Pois chame-os - Adrien devolveu irônico, com um brilho mortal no olhar.
Danielle, contudo, estremeceu ao escutar o som de passos se aproximando. Um sujeito gordo metido num avental, obviamente o dono da taverna, entrou no quarto correndo, seguido de dois comparsas enormes, armados com facas.
- Precisa de ajuda, milorde? - o gordo perguntou a Langlois.
- Parece óbvio, não? - rugiu o francês asperamente, ainda sob a ponta da espada.
- Não quero problemas com vocês. Um número suficiente de mortos já me faz pesar a consciência. Prefiro não aumentar a cota de cadáveres - Adrien os informou, impassível. - Não pretendo matar o conde, somente levar a dama comigo.
- Ela me procurou para fugir do inglês - Langlois afirmou. - Você não a tirará de mim. Planejo desposá-la.
- Bem, sir, lamento desapontá-lo, mas isto não será possível porque a dama tem marido.
- Não é um casamento legítimo.
- É legítimo em todos os aspectos. - Adrien fitou Danielle com tal intensidade, que ela sentiu-se arder. - Eu adoraria prová-lo, se a dama reluta em admitir a verdade. Poderíamos chamar uma parteira.
- Mas... - o francês começou.
- Ah, sei que a dama usou de todas as artimanhas para iludi-lo, meu caro conde. É fácil cair prisioneiro de seus encantos. A menos que a conheçamos, claro. Como é meu caso. Você foi enganado, sir, e é exatamente por isto que ainda respira neste instante. - Adrien esboçou um sorriso, o olhar frio pousado em Danielle. - Ela é atraente, não? Porém, como já disse, conheço-a bem e você, sir, a partir de agora, considere-se avisado. Tenha cuidado com esses modos sedutores e essa beleza! Vou deixá-lo vivo hoje... Contudo, se voltarmos a nos encontrar, eu o matarei!
Langlois ofegou, finalmente dando-se conta da identidade de seu oponente.
- MacLachlan!
- Em pessoa. Ah, sim, aquele escocês selvagem, aquele bárbaro grosseiro, sou eu, conde.
Por um segundo Langlois ficou imóvel, o rosto muito pálido. A reputação de Adrien, sua reconhecida habilidade tanto em torneios como nos campos de batalha, costumava bastar para infundir medo. Entretanto, após breve consideração, julgou-o em desvantagem numérica.
- Peguem-no! - ordenou aos dois rufiões.
Empunhando a espada, o primeiro lançou-se sobre MacLachlan com uma ferocidade animalesca. Sem esforço, o cavaleiro defendeu-se, atingindo o oponente e lançando-o ensanguentado no chão com um único golpe.
- Pegue-o, idiota! - rugiu Langlois, dirigindo-se ao outro.
Todavia, vendo o companheiro se esvair em sangue, o bandido mudou de idéia e sumiu do quarto.
- Adeus, caro conde. - Novamente Adrien pressionou a garganta do francês com a ponta da espada. - Eu deveria matá-lo, porém não derramarei mais sangue do que o necessário. Afinal, foi ela quem o convocou.
Danielle sufocou um grito quando Adrien, segurando-a pelo pulso, arrastou-a para o corredor escuro. Ao se aproximarem da escada, um punhado de homens já os aguardavam, armados até os dentes.
- Dê-me uma arma - ela pediu.
- Não enquanto me restar um sopro de vida, milady! Você me apunhalaria pelas costas!
- Nunca o ataquei!
- Lamento discordar, senhora.
- São muitos para você enfrentá-los só! Nós dois acabaremos mortos, a não ser que seus companheiros o estejam esperando lá embaixo.
- Vim sozinho.
- Sozinho! - Danielle exasperou-se.
A confusão reinava na taverna, cada um dos presentes parecendo ansioso para entrar na briga.
- Preferi não ter testemunhas quando tentasse evitar que uma mulher teimosa acabasse traindo o rei da Inglaterra. E o marido também. Vamos, fique atrás de mim. E se pensar em me trair outra vez, juro, diante de Deus, que viverei o bastante para fazê-la se arrepender.
Vermelha de humilhação, ela obedeceu. De fato, não tencionara oferecer nenhuma resistência. Adrien estava muito mais furioso do que imaginara, muito mais colérico do que jamais o vira. Contudo, o que mais a aterrorizava era compreender que mesmo naquele momento, quando ambos corriam risco de morte, seu marido ainda a considerava capaz de traí-lo.
Inúmeros homens os cercaram, as espadas desembainhadas. E embora fossem ladrões e assassinos, nenhum deles possuía o treinamento rigoroso, aperfeiçoado durante anos, para combate corpo-a-corpo. Um golpe certeiro de Adrien lançou o primeiro adversário escada abaixo. Antes mesmo que Danielle tivesse tempo de gritar, para avisá-lo do outro que o atacaria por trás, este caía, jorrando sangue.
Com sua força e perícia formidáveis, o escocês abriu caminho até a porta da taverna, não havendo ninguém capaz de detê-lo.
Viera sem armadura e sem companheiros, porém trouxera Mateus, o mais veloz de seus quatro cavalos de guerra. Num movimento rápido, jogou Danielle sobre o garanhão e montou, saindo em disparada.
Apesar de um bando de rufiões ensaiar persegui-los, seus cavalos não eram páreo para Mateus e logo a distância que os separava se tornou insuperável.
Em pouco tempo estavam fora de perigo. Todavia, Adrien continuava a correr desenfreadamente, ainda impelido pela fúria, só diminuindo o ritmo ao chegarem às margens do rio. Sem vacilar, conduziu o cavalo para a água.
- Está gelada! - Danielle protestou.
- Você poderia ter causado a morte de nós dois e está com medo de um pouco de água gelada?
- Não estou com medo de nada.
- Pois aconselho-a a ter medo de mim esta noite.
- Só tenho medo de você provocar nosso afogamento.
- Anime-se, milady! Talvez a água esfrie minha raiva.
O choque provocado pela baixa temperatura da água foi brutal.
- Oh, você pode ir direto para o inferno! - ela exclamou, esforçando-se para controlar os tremores do corpo. Tremores causados, principalmente, pelo calor irradiado do peito forte no qual se apoiava.
Ao alcançarem a margem oposta, Adrien retomou o ritmo alucinante até vislumbrarem as muralhas de pedra de sua fortaleza, Aville.
Os portões se abriram e fecharam-se às costas de ambos a um comando invisível. No pátio interno, imerso na escuridão, um cavalariço segurou as rédeas de Mateus enquanto Adrien desmontava.
Danielle bem que tentou evitar, porém as mãos firmes do marido a enlaçaram pela cintura e a colocaram no chão. No instante seguinte, descobriu-se arrastada para o interior do castelo deserto. Onde estariam Rem... Daylin... Monteine?
- Subamos, milady!
Em silêncio, porque sabia não lhe restar alternativa, ela se deixou conduzir até seus aposentos.
Adrien bateu a porta e pôs-se a andar de um lado para o outro. Nervosa, Danielle desviou o olhar. Tinha plena consciência do que fizera. Traíra o rei da Inglaterra. E pior: traíra o marido.
- Nenhum servo estará disponível para atendê-la, milady. Quando descobri sua traição tola, percebi que não poderia trazê-la de volta incógnita. Chega desses joguinhos que você faz comigo! Você e seus protestos de inocência! Sua atitude foi um ato de traição. Dei a noite de folga aos criados. Não espere que os outros a ajudem.
- Não estou esperando ajuda de ninguém - ela mentiu.
- Não, milady?
Recusando-se a responder, Danielle acercou-se da lareira, tremendo incontrolavelmente, as roupas ensopadas enregelando-a até os ossos.
De repente, Adrien parou e fitou-a, notando a extensão de seu desconforto.
- Tire essas roupas molhadas! - gritou -, ou não vai parar de tremer nunca.
- Tremo se eu quiser - Danielle devolveu teimosa, lutando para não cair em prantos.
- Não, milady. Você vai tremer se eu quiser. E quero que trema de medo!
Vendo-o avançar, ela deu um passo atrás. Oh, não, fora uma idiota! Poderia explicar tudo, mas ele jamais acreditaria.
- Como... quiser, milorde.
Com passadas duras, Adrien caminhou até a cama e aguardou-a despir-se.
Então atirou-lhe uma manta, para que se cobrisse.
- Pelos céus, mulher, Edward não merece tanto ódio de sua parte!
Erguendo a cabeça, Danielle procurou conservar a calma.
- Eu não desejo nenhum mal a Edward. Não o odeio. Apenas quis avisar o rei Jean...
- O rei Jean tem plena consciência de que haverá uma batalha, e o que auxilia o rei francês prejudica o inglês! Ao ajudar Jean, milady, você causa grande dano a Edward!
Ela sentiu o coração se apertar, porque nutria por Edward sentimentos semelhantes aos que dedicava a Adrien. Frequentemente o odiara, ficara enfurecida, decidira-se a desafiá-lo e derrotá-lo.
E entretanto...
Amava-o.
- Meu Deus - Adrien continuou, a voz baixa carregada de rancor. - Você sabe que cabeças rolaram e pescoços foram quebrados por muito menos do que você tentou esta noite? Eu deveria espancá-la, pequena tola!
A culpa a corroía, porém Danielle preferiu escondê-la.
- Você é um lacaio de Edward. Tudo o que possui veio através dele.
- Inclusive você?
- Inclusive minhas terra e títulos - ela murmurou.
- Quisera não ter recebido nada. E sim, milady! Sou Lácio de Edward, sou seu guerreio. E aviso-a, jamais se esqueça disso outra vez, ou de que é minha esposa!
- Bem, sir, você foi atrás de mim e prontamente frustrou meus esforços. Sei que me julgará e sentenciará conforme lhe aprouver. Afinal, condenou-me quando eu era inocente. Pelo menos desta vez sou culpada de desejar conservar o rei Jean vivo! Todavia, considerando seu péssimo humor, tenho plena consciência de que não há nada que eu possa dizer-lhe esta noite. Não posso me desculpar pelo que pretendi fazer. Nunca lhe menti sobre o objeto de minha lealdade, ou sobre minhas emoções. - Não, não era verdade. Mentira sim. Nunca o deixara saber sobre como se manter leal à velha promessa estava se tornando mais e mais difícil, sobre como passara a amá-lo com a mesma intensidade com que tentava resistir-lhe.
Com certeza não podia confessar-lhe seus sentimentos agora. Precisava ter cautela. Desafiara-o antes e pagar o preço. Porém, jamais o vira assim, tão cheio de ira.
Inspirando fundo, deu um passo à frente, ansiosa pra fugir do quarto. Se ao menos conseguisse escapar da fúria do marido...
Contudo, não conseguiu sequer chegar à porta.
- Oh, não, milady! Você não vai sair daqui esta noite - ele falou, o corpo musculoso bloqueando a passagem.
Agarrando-se a um resto de dignidade, Danielle enfrentou o olhar arrogante, rezando pra não perder a coragem.
- Eu deveria esfolá-la viva!
- Eu tinha que...
- Ah, sim, ao diabo com seu sangue inglês. Acima de tudo você preza seu juramento francês. Bem, talvez isto explique por que você não se importou em prejudicar o rei na casa do qual foi criada.
- Então entregue-me a Edward! - ela gritou, alarmada com a profundidade do próprio desespero. - Vamos acabar com isso...
- Acabar? Mas nós mal começamos.
- Com certeza sua presença é necessária em algum outro lugar, milorde. Você é o defensor, o guerreiro preferido do rei. Será que não tem inimigos a desafiar esta noite? Nenhum dragão a matar?
Adrien sorriu, os olhos castanho-dourados brilhando perigosamente.
- Existe somente um dragão esta noite, querida. Eu. A propósito, o que você escreveu àquele patético Langlois? Que nosso casamento é uma farsa, que jamais foi consumado?
Corando até a raiz dos cabelos, ela desviou o olhar.
- Apenas disse que precisava de ajuda.
- Estava disposta a deitar-se com o canalha para chegar ao rei francês?
O rubor de Danielle transformou-se em palidez mortal.
- Você estava lá! - ela retrucou, indignada. - Sabe que eu nunca me sujeitaria aos avanços de Langlois.
- Ah, sim, meu amor, sei que você não cederia... a troco de nada.
- Como se atreve...
- Foi você quem se atreveu a cometer essa loucura, traindo o rei e negando o que existe entre nós.
No começo, estivera determinada a repudiá-lo. Talvez porque já antecipasse o que aconteceria quando ele a tocasse pela primeira vez.
- Você o seduziu com promessas de desposá-lo - Adrien continuou, implacável. - E você, milady, ainda vem me falar da fidelidade a um juramento, quando já se esqueceu de seu juramento feito a mim! Pois lembro-me de cada uma de suas palavras, embora você possa tê-las esquecido.
Vendo-o caminhar na sua direção, Danielle encostou-se na parede, acuada.
- Ah, milady, sabe o que mais me assombra, o que mais me desespera?
- O quê? - ela indagou num murmúrio, trêmula de ansiedade.
- Você ter dito que nosso casamento não foi consumado. Recordo-me de cada detalhe de nossa primeira noite juntos.
Tensa, Danielle se retraiu. Também na noite de núpcias Adrien a acusara de traição.
- Você ameaçou provar àquela gentalha da taverna que nosso casamento é real. Logo você, que se considera um cavalheiro, que preza o cavalheirismo.
- Raramente exalto o cavalheirismo. E apenas informei aos tolos que uma parteira poderia ser chamada para provar que você não é mais nenhuma donzela inocente.
- Então você teria me exposto a...
- Eu não a teria exposto a nada perante aqueles idiotas, milady, mesmo para mostrar ao apaixonado francês que você é minha esposa em todos os sentidos. Minha esposa. Todavia, existe uma coisa que pretendo fazer.
Engolindo em seco, ela indagou:
- E o que é, sir?
- Refrescar sua memória, milady. Se eu não estivesse falhando em meus deveres maritais, você não teria se esquecido de algo tão importante como a consumação de nosso casamento.
- Oh, você não está falhando em nada! - Danielle retrucou, agitada. - E minha memória está ótima. Não me esqueci de nada.
Alarmada, ela prendeu a respiração quando o marido puxou a manta que a cobria e atirou-a longe. Reconhecia o brilho dos olhos penetrantes, os olhos que possuíam a capacidade de fazer seu sangue ferver nas veias. Ah, como o desejara, como o quisera perto de si nas longas noites solitárias! Entretanto...
Adrien jamais esqueceria o que ela havia feito pouco antes, jamais a perdoaria. E não conseguia nem imaginar como seria dali em diante. Ele não a tinha escolhido para esposa. Fora-lhe imposta. Enquanto os segundos se arrastavam, o passado pareceu tomar forma. Lembrava-se dos anos de dor, de angústia, da peste negra, do muito que ambos haviam perdido.
- Não... - ela falou num sussurro, tentando, em vão, escapar da presença máscula que a mantinha imprensada contra a parede.
- Você se lembrará de quem é.
- E a quem pertenço? - Danielle rebateu, num protesto.
- Sim, milady, com certeza.
A boca sensual esmagou a sua e ela fechou os olhos durante alguns segundos, esquecendo-se de tudo e entregando-se às sensações.
Oh, mas Adrien não a perdoaria desta vez. Fora longe demais.
- Por favor... - pediu baixinho, quando o beijo foi interrompido para que pudessem respirar.
- Ah, lady, quer implorar por misericórdia?
O tom irônico a fez abrir os olhos, cheia de raiva.
- Nem quando...
- O inferno congelar? - ele completou, sabendo de sua preferência por essa expressão.
- Você é o maior canalha que jamais conheci, e nunca irei lhe implorar nada!
Tomando-a no colo, Adrien a carregou para a cama.
- Hoje, milady, você vai me satisfazer! Quero tudo aquilo de que me lembro, quero a fome de tantas noites insones aplacada. Sim, satisfaça-me. Exijo-o!
Danielle tentou resistir, mas quando a língua imperiosa invadiu sua boca e as mãos fortes se apossaram de seus seios, soube estar perdida. Com gestos rápidos, urgentes, Adrien despiu-se. Trêmula, Danielle contemplou o tórax musculoso e bronzeado, a simples visão da beleza viril inundando-a com um calor abrasador.
Não, não iria tocá-lo. Não cederia, não arderia nas chamas da paixão...
Resoluções que caíram no vácuo quando o marido segurou sua mão e levou-a a tocá-lo.
Adrien estremeceu de prazer. Inclinando-se, ele a reverenciou com beijos e carícias, até deixá-la enlouquecida de desejo e à beira do clímax.
Então, penetrou-a.
- Para que você não se esqueça de mim - ele murmurou, fitando-a como se quisesse possuí-la também com o olhar.
Não, não poderia esquecê-lo nunca. Nunca!
Como esquecer essas sensações alucinantes? Esse fogo que a consumia? Não poderia nunca esquecer esse homem, capaz de despertar em seu corpo, e em sua alma, as emoções mais avassaladoras.
Naquela noite, ele fora procurá-la.
Entretanto, seu destino continuava em suspenso. Ao raiar do dia, Adrien teria de partir para a batalha e ela permaneceria rotulada de traidora.
Estavam em guerra. Sempre havia sido assim, desde o primeiro momento. Sim, conhecia-o desde sempre. E talvez o amasse desde sempre. Apesar de serem inimigos desde sempre.
Porque a guerra começara antes de se conhecerem, antes mesmo que ela tivesse nascido. O destino de ambos fora traçado, obedecendo ao coração, não à razão.
Parte I
Capítulo I
Castelo de Aville, Outono, 1336
- Sei como cruzar as muralhas - Adrien MacLachlan falou.
Ninguém lhe deu ouvidos. Edward estava possesso de ódio. Jogando a pesada capa para trás, o enorme Plantagenet tornou a gritar, no auge da fúria:
- Por Deus, é inadmissível! Eu, Edward, o rei guerreiro, não posso atravessar as muralhas defendidas por uma mulher!
No acampamento, os cavaleiros mais ilustres da Inglaterra mantiveram-se silenciosos ante a ira real, igualmente frustrados. Estavam todos enlameados, exaustos, ensanguentados e com frio. No início, parecera-lhes simples tarefa tomar Aville, uma pequena fortaleza situada dentro dos limites do próprio ducado de Edward. Uma fortaleza guardada por Lenore, filha do falecido conde Jon d'Aville, primo em segundo grau do rei Valois.
De acordo com os boatos, o rei francês se refugiara atrás daquelas muralhas, por isso o empenho de Edward em transpô-las, apesar do inegável talento da condessa na utilização de métodos variados de defesa, como óleo fervente, chuva de pedras e saraivada de flechas incandescentes.
- Será que nenhum de vocês é capaz de me aconselhar? - o rei os interpelou, áspero.
- Sir, sei como cruzar as muralhas - repetiu Adrien, parado na entrada da tenda.
Enfim Edward resolveu dar atenção ao seu tutelado. Virando-se devagar, encarou-o.
Com apenas dez anos, o jovem escocês era muito alto para a idade. Possuía ombros largos e impressionante força física, além de uma sede inesgotável de conhecimento. O menino passava cada uma de suas horas livres debruçado sobre os livros, estudando. Também demonstrava coragem, ou não teria se intrometido naquela reunião de adultos, oferecendo sugestões.
- Ah, o garoto escocês quer nos aconselhar agora - irritou-se Brian de Perth, mal-humorado devido a uma feia queimadura no braço. - Suma daqui, fedelho!
- Espere! - ordenou o rei, o olhar frio colocando Brian no devido lugar. - Sabemos que os escoceses já nos ensinaram mais de uma lição. Entre, menino. Ouvirei suas sugestões táticas desta vez.
Adrien MacLachlan caminhou até o centro do círculo, perto do fogo, tendo o cuidado de manter a cabeça erguida e os ombros eretos, tentando passar uma impressão de força e sabedoria que iam além de seus anos. Seu pai o educara bem.
Um homem empobrecido, mesmo de sangue nobre, deve ser forte. Se você sobreviver a esses tempos difíceis, meu rapaz, vou transformá-lo num grande guerreiro. E o mais importante, homens sem fortuna, ainda que vencidos como nós, devem se superar e assim, tornarem-se vitoriosos. Nunca aceite a derrota, meu filho. Não quando teme um oponente mais forte. Não se recebeu o primeiro golpe. Nunca se renda, porque a única rendição possível é a própria morte. Lute arduamente, menino, lute com sua inteligência e habilidade física. Nunca tenha medo de aprender. Então, lute pela honra, lute para abrir caminho neste mundo duro de cavalheirismo e morte. Lute tenazmente, meu filho, e você conquistará até os reis!
Não muito tempo atrás, Carlin, líder do clã MacLachlan, lhe havia dito essas palavras. Filho de um conde escocês, parente do falecido Robert Bruce, Carlin estava sofrendo a derrota imposta aos aliados de David II, filho do grande Bruce, por Edward da Inglaterra, que apoiava um outro pretendente, outro Baliol, ao trono da Escócia. Por causa dessa turbulência, sempre parecera a Adrien que nascera lutando. Os embates constantes com os ingleses tinham destruído a agricultura e dizimado os rebanhos. Baliol subira ao trono, porém os MacLachlan continuavam guerreando por David II.
Mas certo dia, ao fim de uma batalha, Adrien vira o pai cercado por um grupo de cavaleiros pesadamente armados, dentre eles o poderoso inimigo, Edward III. Convencido de que o rei inglês pretendia matar seu pai, Adrien concluíra que nada mais importava. Nem mesmo a própria vida.
Sacudindo um pequeno punhal no ar, saíra correndo pelo campo. Gritando de ódio, jogara-se sobre Edward, quase o atirando no chão. E já estava com o punhal encostado na garganta do rei, quando o pai o puxara para trás.
- Não, rapaz, não - Carlin o repreendera.
- Enforquem o menino! - alguém gritara. - Alteza, o pirralho estava a ponto de cortar sua garganta.
Mas o rei desmontara e tirara o elmo, os olhos muito azuis revelando absoluta tranquilidade.
- Enforcá-lo? Este filho de um valente guerreiro, de um homem que veio a mim disposto a fazer um acordo? Creio que não. O rapazinho mostrou mais coragem, e habilidade, do que muitos de vocês, meus melhores cavaleiros.
Vários homens gargalharam.
- Lorde MacLachlan - continuara o rei -, nosso encontro revelou-se proveitoso para ambas as partes e sua honra será sempre preservada. Se for sua vontade, este seu valoroso filho passará a residir em minha corte e será educado na companhia de meu filho mais velho. Irei mantê-lo em segurança e, em troca, você não mais atacará minhas fronteiras do norte.
- Sim, Edward - MacLachlan concordara.
- Não, pai, não vou deixá-lo - Adrien reagira, sendo imediatamente contido por um gesto paterno.
Mais tarde, nas ruínas da fortaleza da família, o garoto fora informado da verdade.
- Meu filho, nós lutamos contra Edward longa e duramente, mas trata-se de um inimigo a quem respeito. Ele não entende que os escoceses jamais aceitarão um Baliol no trono, porém, um dia, garanto-lhe que David Bruce estará de volta. Contudo, nossas terras estão arrasadas, haverá seca e fome. Preciso de você na corte do rei. Preciso saber o que se passa entre os ingleses. Preciso que eles arquem com o custo de treiná-lo e armá-lo. Rezo para que você vá agora e dedique ao rei da Inglaterra toda a lealdade e obediência que sempre dedicou a mim. Eu te amo, filho, e não poderia ter mais orgulho de você do que tenho.
Tão logo haviam se distanciado o suficiente da fortaleza dos MacLachlan, Edward convocou Adrien à sua presença, a expressão grave traindo a seriedade do momento.
- Seu pai foi um dos mais valentes guerreiros que conheci, menino. Você deve sempre se orgulhar dele, porque tanto ingleses quanto escoceses respeitam sua memória.
- Sua... memória?
- MacLachlan promoveu a paz entre nós e o enviou a mim porque sabia estar à morte e queria protegê-lo da ganância de vários dos membros de seu clã, pois existem muitos que não hesitariam em matá-lo para se apossar de sua propriedade. Rapaz, sua mãe era lady Margaret de Meadenlay, cujo irmão pereceu numa batalha e o filho deste sucumbiu à febre na semana passada. Portanto, você herdou terras inglesas ao sul, tornando-se conde de Meadenlay e lorde de Reggar. Por desejo de seu pai, passei a ser seu guardião e você deverá permanecer em meu serviço.
Assim, ali estava ele agora, na companhia de Edward e seus cavaleiros, enfrentando Lenore d'Aville, dona de tão extraordinária beleza que parecia enfeitiçar os inimigos, arrastando-os para a morte.
- Fale, escocês! - ordenou o rei.
- Devemos cavar um túnel - disse Adrien.
- Um túnel? - debochou sir George.
- Você prefere continuar sacrificando os homens, expondo-os aos constantes banhos de óleo fervente da condessa? Seria muito mais fácil cavar um túnel sob as muralhas. Um dos nossos se infiltraria no castelo e abriria os portões, dando-nos chance de um combate corpo-a-corpo.
- Tolice! - rugiu William de Chelsey, experiente cavaleiro. - Usaremos o aríete até derrubar a ponte levadiça.
- Pense outra vez! - Adrien insistiu. - Ouça-me! O custo seria alto. Mais homens morreriam sob os banhos de óleo fervente e as saraivadas de flechas.
Robert de Oxford, o cavaleiro mais velho e mais antigo a serviço do rei, saiu em defesa do menino.
- Ele tem estudado a arquitetura de castelos, sir.
Por um instante Edward ficou em silêncio, fitando o garoto. Então decidiu-se.
- Vamos analisar melhor seu plano. Mostre-me, através de um desenho, o que você tem em mente.
Com o apoio de Robert, Adrien rapidamente fez um esboço de Aville e das muralhas que o rodeavam, explicando que tal estratégia funcionara muito bem anos atrás, para os conquistadores gregos e romanos.
- Sir, sugiro que o menino, com todo o seu conhecimento adquirido em livros, seja escolhido para entrar no castelo e provocar sua rendição - sugeriu William de Chelsey.
- Ele tem apenas dez anos! - discordou Edward, enfático.
- Mas estou ansioso para ir! - Adrien exclamou excitado, apesar da leve apreensão.
Sim, estava com medo. Porém o medo só se tornava algo negativo quando derrotava a coragem. Mais do que tudo, queria ser o guerreiro que seu pai sonhara e provar seu valor ao rei da Inglaterra e a si mesmo.
Por fim, determinou-se que ele iria e sua estratégia foi posta em prática.
Mineiros cavaram o túnel na calada da noite, protegidos pela escuridão e pela chuva fina. Naturalmente, se descobertos, morreriam afogados, porque a primeira providência do inimigo seria inundar a abertura.
Todavia, a sorte lhes sorriu. Adrien conseguiu se infiltrar por trás das muralhas sem ser detectado. Do outro lado, cortou as cordas que prendiam os portões, dando acesso às tropas inglesas.
Determinado a conquistar um lugar de destaque no mundo, lutou brava e desesperadamente, embora o medo lhe fizesse constante companhia.
Ao término daquela longa noite, quando os cavaleiros ingleses comemoraram o sucesso, ergueram-lhe um brinde como o principal artífice da vitória.
No salão de Aville, Edward III, rei da Inglaterra, observava o crepitar das chamas. Por Deus, sentia-se exausto! Nunca esperara uma luta tão árdua apenas para descobrir que o rei da França não se encontrava ali.
Parado diante da enorme lareira, sorveu o resto do excelente vinho, a tensão abandonando-o lentamente. Então, a voz de Robert de Oxford soou às suas costas.
- Trouxe a condessa, sir. - Sem mais uma palavra, o cavaleiro retirou-se.
A condessa!, o rei pensou enraivecido. Apesar de suas muitas qualidades, Edward III possuía o sangue quente dos Plantagenet, a natureza passional induzindo-o a rompantes de fúria. Quando encolerizado, tornava-se uma figura assustadora, sua alta estatura contribuindo para fazê-lo parecer invencível.
Desde muito cedo, aprendera ser necessário tomar o poder nas mãos fortes e capazes. Seu avô havia sido o grande rei Edward I, o "Martelo dos Escoceses". Seu pai, o desafortunado Edward II, governante fraco e cercado de aliados astuciosos, perdera a Escócia para Robert Bruce. Edward II tivera o próprio país invadido pela esposa e pelo amante desta. Capturado, fora obrigado a abdicar em favor do filho e acabara cruelmente assassinado.
Coroado rei da Inglaterra aos quinze anos, Edward tinha plena consciência de sua posição, de seu passado e dos pecados dos pais. Seu pai havia sido medíocre e sua mãe costumava ser chamada de a "Megera da França". O amante da mãe, Roger Mortimer, conde de March, a dominava completamente e planejava tomar o trono da Inglaterra para si. Porém, nobres e camponeses uniram-se contra Mortimer, que apareceu enforcado em condições suspeitas quando Edward completou dezoito anos.
Naquele instante, o jovem soube que deveria ser um rei forte.
Seu primeiro filho, Edward de Woodstock, nascera naquele mesmo ano e ele jurara construir uma monarquia poderosa, restaurar o respeito pela família real e reinar com autoridade e compaixão. Felizmente fora abençoado com uma boa rainha, Philippa de Hainault, cuja falta de beleza revelara-se amplamente recompensada pela simpatia, inteligência e fertilidade. O povo inglês logo passara a amá-la.
Entretanto, nem suas melhores intenções, nem o afeto que dedicava à esposa, poderiam impedi-lo de sentir os efeitos do sangue dos Plantagenet que corria em suas veias, um sangue que o fazia vibrar de tensão e energia.
Fazia quase três séculos que a Inglaterra fora conquistada, e os reis da Inglaterra, havia muitos anos, também eram chamados de reis da França. Edward possuía uma razão adicional para se considerar assim, visto sua mãe, Isabella, ser filha de Felipe, o Belo. Após a morte de Felipe, três irmãos de Isabella haviam subido ao trono, todos três morrendo sem deixar herdeiros. Contrariando o procedimento habitual, Philip de Valois, primo dos três monarcas mortos, herdou a coroa, em vez de Edward, o descendente mais direto de Felipe, o Belo.
Edward reconhecia não ter homens nem armas suficientes para reivindicar o trono francês, porém Philip estava agora atrás do ducado de Acquitaine, talvez a mais importante possessão inglesa em solo francês. Philip também o ameaçara dizendo que não haveria nenhuma solução para o problema de Acquitaine até que Edward garantisse aos escoceses seus direitos. Pois o inferno congelaria antes que ela permitisse aos franceses lhe ensinar como agir em relação aos escoceses.
Assim, partira para Aville com a intenção de guerrear com o primo francês e acabara travando uma batalha com uma mulher.
Virando-se para a condessa, Edward esperou ouvir um pedido de misericórdia, esperou escutar uma lamúria qualquer. Mas ela permaneceu impassível, vitoriosa mesmo na derrota. Os cabelos negros como a noite emolduravam um rosto belíssimo e os olhos verdes brilhavam como esmeraldas.
A pele aveludada convidava ao toque, assim como os seios arfantes sob o vestido de seda.
De repente, um desejo avassalador sacudiu o corpo do rei.
Furioso consigo mesmo por desejar aquela que tivera a ousadia de desafiá-lo, deu um passo à frente. Por Deus, tinha o direito de executá-la, se assim desejasse.
- Feiticeira! - acusou, esbofeteando-a.
A força do golpe a fez cair de joelhos e, por um momento, Edward experimentou uma ponta de remorso. Entretanto, a condessa levantou-se, altiva.
- Você não é rei em Aville! O grande Edward, o grande guerreiro! Arrasando plantações, matando rebanhos! Pode tomar o que quiser à força, mas ninguém se renderá a você, ninguém aqui irá lhe implorar misericórdia.
Com essas palavras, Lenore atirou-se sobre o inimigo, as unhas afiadas a milímetros do rosto viril. Apesar de não alcançar seu objetivo, o ímpeto do ataque fez com que os dois se desequilibrassem e caíssem no chão. Ainda sem se dar por vencida, ela tirou uma faca do bolso e tentou atingi-lo. O gesto desvairado selou seu destino.
Com extrema facilidade, Edward segurou-a pelo pulso e obrigou-a a soltar a faca. Então, rasgou o corpete do vestido de seda, expondo os seios alvos e empinados.
Lenore gritou, os olhos verdes faiscando de ódio. Mas embora lutasse, sabia-se subjugada.
Quanto a Edward, este já trilhava um caminho sem volta. Em seu papel de vencedor, simplesmente a possuiu sem se importar se lhe roubava a inocência. Entretanto, no meio do ato, menos enfurecido, tratou-a com gentileza, cativado pela perfeição daquele corpo sinuoso, pelo perfume suave da pele acetinada.
Quando tudo terminou, vendo a condessa encolhida num canto, sufocada pelas lágrimas que teimava em não derramar, o rei sentiu-se envergonhado. Este sentimento, porém, tornou a enfurecê-lo.
- Implore por misericórdia agora! - ordenou -, e permitirei que você conserve a vida, embora sua inocência esteja perdida.
Deixando escapar um soluço, Lenore murmurou:
- Ninguém aqui se renderá, ou implorará misericórdia.
Como seria possível? Mal a conhecia e descobria-se fascinado, extasiado, como se prisioneiro de um encantamento...
A imagem de Philippa, outra vez grávida, veio-lhe à mente. Sua rainha lhe assegurara muitos herdeiros, um lar amoroso e apoio político incondicional, acompanhando-o, inclusive, aos campos de batalha.
Todavia, sua esposa não estava ali no momento. E sempre fora um homem capaz de obter o que desejava.
- Talvez - ele falou baixinho -, você vá implorar misericórdia... na hora certa.
Tomando-a no colo, levou-a para o quarto. Durante toda a noite, amou-a, num misto de delicadeza e paixão.
Mas, Lenore nunca se rendeu, nem implorou por misericórdia.
Ao amanhecer, Edward partiu, confiando o castelo a Robert de Oxford.
Philip VI da França mandou avisar que encontraria Edward no campo de batalha. Ansioso para lutar, Edward aguardou, pronto para o enfrentamento.
Logo, porém, veio a notícia de que Philip mudara de idéia e voltara apressadamente para Paris. Orientado por seus conselheiros, o rei da Inglaterra decidira retornar a Hainault e lá passar o inverno.
Mas antes, desfrutaria da nova propriedade conquistada.
Durante os dias passados em Aville, saboreou a juventude e a beleza da condessa, a luxúria inicial transformado-se, aos poucos, em sentimentos mais profundos.
Em sua última noite no castelo, colocou-a a par de suas intenções.
- Lenore d'Aville, é meu desejo que você seja levada para a Inglaterra. Então entraremos em negociação com o rei da França, para estabelecermos os termos de sua libertação.
- Este é meu castelo, você não pode usurpá-lo! Não pode me levar para a Inglaterra contra minha vontade! - ela gritou, exaltada.
- Está me implorando misericórdia?
- Adiantaria alguma coisa?
- Milady irá para a Inglaterra e ficará na grande torre de Londres.
Ela não disse nada quando Edward a tomou no colo e depositou-a na cama. Depois de se amarem, os dois permaneceram abraçados, o silêncio quebrado apenas pelo crepitar das chamas.
- Deixe-me ficar aqui - Lenore suplicou.
- Não posso.
Às primeiras luzes da manhã, observando-a dormir, Edward não teve dúvidas de que fora enfeitiçado. Aquela mulher tocara seu corpo e sua alma como nenhuma outra. Contudo, suas responsabilidades como rei estavam acima dos sentimentos pessoais.
Edward regressou à Inglaterra logo após a rainha Philippa lhe dar mais um filho, um menino, a quem chamaram de John. Enquanto celebrava a boa nova, Edward recebeu a visita de um agitado Robert de Oxford, o cavaleiro encarregado de escoltar Lenore até Londres.
Depois de parabenizar o rei pelo nascimento de outro herdeiro, Robert foi direto ao assunto.
- Embora eu seja o único a saber do estado da condessa d'Aville, receio não ser possível manter segredo por muito mais tempo. Creio que a rainha Philippa não aceitaria bem a notícia de que um bastardo real está a caminho. E também preocupo-me com a condessa. Confesso que passei a lhe dedicar alguma afeição.
Durante longos minutos, Edward fitou o amigo, sentindo-se absurdamente feliz por Lenore estar esperando um filho seu, apesar das circunstâncias. Seu sangue ainda fervia nas veias, só de pensar nela. Aquela criança seria um elo definitivo entre os dois.
- Tomarei as providências para que a condessa d'Aville se case já, com um homem que a mereça.
- Que seja alguém gentil e discreto, eu lhe peço.
O rei sorriu.
- Estou agora me preparando para uma nova batalha com meu prezado primo Philip, uma batalha naval. Precisarei de você, velho amigo. Contudo, antes acertaremos esse assunto urgente. Lenore se casará esta semana por procuração.
- Mas com quem...
- Com o homem mais gentil e discreto que conheço. Você, meu velho amigo. O conde de Gariston morreu recentemente, sem deixar herdeiros. Portanto, concedo-lhe as terras e os títulos que pertenciam a ele. O Castelo Gariston é um dos mais belos e antigos do país.
- Sir, agradeço-lhe a oferta. Porém sou velho demais para uma noiva tão jovem.
- É comum homens mais velhos casarem-se com mulheres bem mais novas.
Todavia Edward estava satisfeito com a idade algo avançada de Robert. Na verdade, abominava imaginar Lenore deitando-se com qualquer outro homem que não fosse ele próprio. Um cavaleiro idoso seria, portanto, a melhor escolha para sua paz de espírito.
Três dias depois, a condessa d'Aville estava casada por procuração, sem seu conhecimento ou consentimento.
Confinada na torre, soubera apenas ter desposado um barão inglês. Procurando manter a calma, aguardara o retorno de Robert de Oxford.
- Por Deus, o que ele fez comigo agora? - ela indagou, vendo-o chegar silencioso e parecendo desconfortável.
- Ele a casou comigo.
Percebendo os olhos verdes se encherem de lágrimas, Robert ajoelhou-se, contrito.
- Querida senhora, lamento profundamente que esteja amarrada a um velho guerreiro como eu. Amo-a e ficarei feliz em agir ou como marido, ou como seu pai, respeitando sua vontade.
Num gesto afetuoso, Lenore deslizou os dedos pelos cabelos grisalhos do cavaleiro.
- Estou chorando pela terra que não voltarei a ver jamais, pelas pessoas que eu amava, pelas paredes centenárias do castelo que foi meu lar durante tanto tempo. Porém, creia-me, dentre todos os nobres do reino, Edward não poderia ter escolhido um marido que me agradasse mais.
Emocionado, Robert levantou-se e fitou-a demoradamente.
- Vou tirá-la deste lugar o quanto antes. A partir de agora, sou o pai dessa criança. Juro que a amarei e protegerei. Depois de deixá-la em segurança, retornarei para junto do rei, pois ele está outra vez se preparando para a batalha.
- Ele passará a vida inteira se preparando para batalhas.
- Você não deve odiá-lo tanto. Irei me esforçar para compensar o mal que Edward lhe causou.
- Eu não o odeio - ela sussurrou.
Pela primeira vez, Robert se deu conta de como Lenore e o rei eram parecidos. Ambos capazes de lutar até o fim por seus direitos, e amando-se a seu próprio modo e contra a própria vontade.
- Farei tudo a meu alcance para...
- Querido Robert, não. Eu é que farei tudo a meu alcance para fazê-lo feliz. Há apenas uma coisa que desejo, e isto você não pode me dar.
- O que é?
- Eu gostaria de voltar para casa. Para Aville. Não odeio o rei... Apenas queria que nós três - Lenore pousou a mão sobre o ventre - tivéssemos chance de ser uma família.
- Ah, milady, estou a serviço do rei. Todavia, se essa campanha for bem-sucedida, talvez ele me permita levá-la para casa.
- Talvez - ela concordou, sorrindo ternamente.
Edward se preparou para enfrentar a frota francesa. Quando os navios inimigos começaram a se movimentar, ele decidiu que a hora do ataque chegara.
Embora a batalha fosse travada no mar, utilizaram-se todos os tipos imagináveis de armas: flechas, espadas e até pedras, atiradas de uma embarcação a outra.
Robert de Oxford lutou bravamente durante as longas horas do primeiro dia.
Naquela noite, enquanto as tropas do rei inglês celebravam a primeira investida de sucesso, um mensageiro vindo de Londres brindou Oxford com grandes notícias. O conde tornara-se pai de uma menina linda e saudável. A condessa Lenore implorava ao marido para ter cuidado e voltar para casa o quanto antes, pois ambas o aguardavam ansiosas.
Uma felicidade indescritível inundara o honrado cavaleiro. Passara tantos anos só, e agora, na velhice, possuía uma família.
Porém, na tarde seguinte, quando uma espetacular vitória acabava de ser conquistada por Edward, um navio francês em rota de fuga desferiu uma saraivada de flechas sobre a fragata inglesa.
Uma flecha alojou-se no peito de Robert de Oxford. Seus homens, ainda seguindo as ordens do comandante machucado, revidaram a agressão sofrida e, após intensa perseguição, abordaram e dominaram a embarcação inimiga. Somente então Robert permitiu ao médico examiná-lo.
Todavia não eram necessárias as palavras do cirurgião para confirmar o que já sabia.
Tratava-se de um ferimento mortal.
- Chamem o rei - ele ordenou, sentindo a dormência dos membros que prenunciava a morte.
- Um padre, chamem um padre! - gritou o imediato. - E pelo amor de Deus, alguém vá buscar o rei!
A beira das lágrimas, os guerreiros se juntaram ao redor de Oxford. Um tributo ao cavaleiro que sempre fora corajoso e leal.
Tão logo o padre terminava de administrar a extrema-unção, Edward surgiu, ansioso.
- Pelos céus, não poderei continuar sem você, velho amigo!
- Conceda-me isto, em meu leito de morte - suplicou Robert, agarrando o braço do rei com um resto de força. - Permita que Lenore leve o bebê para Aville. Diante de Deus, eu lhe imploro! Proteja o bebê. Torne-se o padrinho da menina e mande-a para casa com a mãe.
- Robert, poupe suas energias...
- Edward, dê-me sua palavra de honra.
- Sim, homem, dou-lhe minha palavra de honra que atenderei seu pedido. Agora resista às sombras da morte, como sempre resistiu aos seus inimigos. Por Deus, lute, meu bom amigo! Lute agora!
Os olhos de Oxford fecharam-se. O valente guerreiro jazia em paz, havendo perdido a derradeira batalha.
- Sir, devemos mandar o corpo para a esposa de lorde Oxford em Londres?
Espantado, o rei virou-se. Era Adrien quem o interrogava. Adrien, que frequentemente lutara ao lado de Robert, fascinado pela paciência, sabedoria e lealdade do velho nobre. E Adrien o lembrava de suas obrigações.
- Sim - respondeu o rei, imerso em profunda tristeza.
- Devemos providenciar uma comitiva para acompanhar lady Lenore até Aville?
Outra vez Edward fitou o menino. Alto para seus onze anos, parecia possuir uma maturidade e uma determinação que excediam sua pouca idade.
- Sim. Contudo, primeiro atenderei às necessidades da filha de Robert. A condessa virá ao meu encontro para o batismo da menina. Então... então Lenore poderá regressar a Aville. Contando com o auxílio de meus conselheiros, ela cuidará bem do castelo para mim.
A criança foi batizada dali a poucos meses numa cerimônia pomposa, digna de uma afilhada do rei.
Naquela noite, Edward chamou Lenore aos seus aposentos.
Temerosa, ela manteve certa distância entre os dois.
- Milorde, sei que jurou a meu marido mandar-me de volta para casa. Com certeza é sua intenção honrar a promessa.
Edward suspirou fundo e passou as mãos pelos cabelos claros.
- Sim, lady, vou cumprir minha promessa.
- Então...
- Chamei-a aqui porque eu tinha que vê-la. Tinha que ouvir sua voz.
Vendo-o se aproximar, Lenore estremeceu, os joelhos vergando-se. Embora tentasse, não conseguia se manter indiferente ao rei da Inglaterra.
- Aproveitarei a oportunidade para lhe dar os parabéns pelo nascimento de seu novo filho.
Silêncio.
- Vai ou não me deixar partir, milorde?
- Sob certas condições.
- Que condições?
- Se alguma coisa lhe acontecer algum dia, a criança deverá ser confiada aos meus cuidados.
- Por quê? - Lenore indagou, após longa pausa.
- A menina é minha por direito.
- Ela é sua, mas não por direito.
- Talvez não acredite, porém, à minha maneira, amei a mãe dessa criança.
- Serei impedida de partir se eu não lhe prometer isso? - ela perguntou baixinho, os olhos verdes marejados.
- Você partirá amanhã, se o tempo permitir.
- Pois dou-lhe minha palavra de honra que lhe confiarei minha filha, caso algo me aconteça.
- Quando amanhecer, vou libertá-la, Lenore. Todavia, é possível que nunca mais tornemos a nos encontrar - Edward falou, a voz tensa, vibrante de paixão.
- Então que seja.
No momento seguinte, estavam nos braços um do outro, beijando-se com desespero.
- Ah, milady, se ao menos você não me odiasse tanto...
- Ah, se ao menos eu conseguisse odiá-lo mais...
Na manhã seguinte, fiel à sua promessa, o rei libertou-a.
Pisando em solo inglês pela última vez antes de embarcar no navio que a conduziria de volta ao lar, Lenore jurou a si mesma que jamais regressaria àquela terra. Isto significava jamais rever Edward.
Entretanto, algo lhe dizia que sua filha, um dia, retornaria à Inglaterra. Assim como o rei fizera, pretendia cumprir a palavra empenhada.
- Milady, posso ajudá-la? - Adrien, o rapazinho escocês que tanto chorara a morte de Robert, postara-se a seu lado, solícito. - Seu navio está pronto para zarpar.
- Você me faria o favor de segurar o bebê enquanto subimos a bordo?
- Sim, claro.
A criança começou a chorar.
- Sua filha tem um temperamento forte, não, milady? - indagou o menino, devolvendo a criança assim que alcançaram o convés.
- Receio que sim.
- Ela não se parecesse nada com o pai.
Pelo contrário, Lenore pensou. A garotinha se mostrava cada dia mais parecida com o pai biológico.
- O tempo dirá.
- Você amava muito o pai dessa criança, não é, milady?
- Sem dúvida. - E Lenore não mentia. Amara Robert e, a despeito de si mesma, amara o rei. Este era um dos motivos pelos quais estava tão aflita para partir.
Antes que Adrien descesse do navio, ela o beijou no rosto, com sincera afeição. Apesar da estratégia do menino haver contribuído para a queda de Aville, não o culpava de nada. Edward teria vencido de qualquer maneira, e um cerco prolongado apenas resultaria em mais mortes.
- Vá com Deus, milady.
- Que Deus o proteja, lorde MacLachlan! Até qualquer dia.
Estremecendo, Lenore foi inundada pela certeza de que jamais reveria o jovem e belo escocês. Todavia, o instinto lhe dizia que seus destinos haviam se entrelaçado desde a queda de Aville.
O vento soprou forte.
Como sempre, o tempo traria todas as respostas.
Danielle adorava a mãe. Desde criança vira-a hospedar, com igual satisfação, franceses e ingleses. Também percebera como notícias sobre quaisquer rusgas entre os dois povos a aborreciam. Felizmente, com o passar dos anos, Aville jamais estivera envolvida naquelas disputas.
Dentre os muitos cavaleiros que visitavam Aville, de ambas as nacionalidades, vários tinham pedido Lenore em casamento. Um deles, Roger, conde de LacLupin, agradava Danielle de maneira especial.
- Por que você não se casa com Roger? - ela perguntou certa noite, deitando-se na cama da mãe.
- Ele ainda não pediu minha mão, querida.
- E se ele pedir?
Lenore permaneceu em silêncio durante longos minutos.
- Não sei.
- Por que não?
- Não creio que eu queira me casar de novo. Por muitas razões. Seria difícil fazê-la entender.
Dr. Coutin, o médico formado na respeitada universidade de Bolonha e seu tutor, dissera-lhe que a considerava uma das crianças mais inteligentes que já conhecera. Podia entender sim.
- Você deve obedecer ao rei da França, não é?
- Minha querida, em primeiro lugar devo obediência ao rei da Inglaterra. Na verdade, este castelo lhe pertence. O rei Edward é responsável pelo futuro de cada um de nós, além de ser seu padrinho. Seu pai o serviu até a morte.
- O rei da Inglaterra pode obrigá-la a fazer algo que você não queira? Mas, mãe, basta lhe dizer não! - O mundo de Danielle girava ao redor de Lenore, que administrava Aville com pulso firme e com justiça.
- Doçura, confie em mim. Os reis têm o poder de fazer as pessoas agir de acordo com sua vontade.
- Você não deve deixar que o rei a obrigue a fazer o que não a agrada.
- Ah... nunca se render... - murmurou Lenore, a voz soando estranha. - Nunca implorar misericórdia.
- Nunca se render - concordou a menina. - Nunca implorar misericórdia.
- Ah, Dani, às vezes perdemos batalhas sem nos render e às vezes nos é concedida misericórdia sem que a pecamos. Nossa sagacidade é tudo o que possuímos para enfrentar os homens. Porém nem sempre isto basta.
- Como é?
- Não me dê ouvidos, querida. Estou apenas divagando. - A condessa riu sem alegria.
- Meu pai a forçou a fazer coisas que você não queria?
- Robert de Oxford foi um dos cavaleiros mais nobres, corajosos e gentis a viver neste mundo. Ele teria enfrentado qualquer perigo por você, real ou imaginário.
- Você amava muito meu pai, não é?
Lenore hesitou vários segundos.
- Sim - falou num murmúrio rouco. - Apaixonei-me por... seu pai. Agora chega de perguntas. Hora de dormir, mocinha, já é tarde. Peça a Monteine para colocá-la na cama.
Monteine, a filha mais nova de um cavaleiro morto em batalha contra os ingleses, contara a Danielle que as tropas de Edward haviam arrasado as cidades da França e por isso o infame merecia ser odiado.
Na visão da menina, o rei da Inglaterra também estava impedindo sua mãe de se casar com Roger. Mais um motivo para detestá-lo. E não fora o rei Edward o responsável pelo período que Lenore passara aprisionada em Londres? Aquele monstro não perdoara sua mãe por resistir ao cerco e decidira puni-la. Robert de Oxford, porém, conseguira libertá-la. Seu pai fora o único inglês bom e, com certeza, o mais valente dos cavaleiros. Ao morrer, deixara-lhe propriedades e títulos na Inglaterra. Assim, como sua mãe era a condessa de Aville, ela também era condessa em algum lugar distante.
Em honra à memória do pai, Danielle procurara conter o temperamento forte, além de se aplicar nos estudos com admirável entusiasmo. Afinal, sempre escutara dizer que Robert de Oxford primava pela calma e pela vasta cultura. A menina aprendera latim, espanhol, francês e inglês simultaneamente. Dr. Coutin lhe ensinara os princípios da medicina e explicara os poderes curativos das ervas.
Danielle também cavalgava com rara perícia, havendo ganhado, aos dez anos, um cavalo de excepcional qualidade. Presente do rei Philip da França, primo distante de Lenore.
Nunca se esqueceria daquela visita.
Monteine a tinha ajudado a se vestir para a ocasião especial. Ao entrar na sala, o rei francês exclamara:
- Ah, prima, sua filha acabará superando-a em beleza.
- Com certeza, milorde. Merci.
Philip aproximou-se da menina e tomou as mãos delicadas entre as suas.
- Se algum dia você precisar de mim, lembre-se de que basta me chamar.
Danielle apenas balançou a cabeça, tímida diante da atenção que aquele homem importante lhe dispensava.
- Eu lhe trouxe um presente. Uma égua. Ela está lá fora. Vá vê-la agora. Seu nome é Star. Sei que vocês se darão muito bem.
Num impulso, a garotinha o abraçara, antes de correr para o estábulo. E só saíra de lá horas depois, quando Monteine fora buscá-la. Insistindo que precisava agradecer a Philip outra vez pelo presente, Danielle retornara ao salão. Porém, notando que a mãe e o rei pareciam engajados numa discussão tensa, manteve-se afastada.
- Ele não respeita os tratados e se prepara para me atacar novamente. Aposto que vai se auto-proclamar rei da França - Philip argumentou, agitado. - Logo estaremos em guerra, mas ele nunca tomará Paris. Juro que o mandarei de volta para dentro de suas próprias fronteiras! Se ao menos você concordasse em se casar com Roger, ou permitisse que sua filha viesse a se casar com um nobre francês! Uma aliança dessas me favoreceria num confronto com meu maldito primo Plantagenet.
- Tentei lutar contra Edward uma vez. Na ocasião, fiz com que você ganhasse tempo!
- Sou o rei da França! - Philip gritou. - Seu parente. Posso obrigá-la, ou a sua filha, a se casar com quem eu quiser!
- Você pode querer o que quiser, mas se não abaixar a voz, a guerra começará aqui e agora. Homens leais a Edward residem em Aville. Você perderia, se tentasse deflagrar uma batalha neste momento.
- Não tenha tanta certeza! - o rei retrucou, colérico. - Meu exército está pronto para enfrentar o maldito bastardo.
- Por favor - pediu Lenore -, você está me colocando numa situação difícil. Preciso pensar com calma.
- Tenho de partir, porém voltarei a Aville antes que o infame me ataque. Lenore, sua filha já deveria estar noiva. Por que você hesita em...
- Ainda não encontrei o homem certo. Um homem que satisfaça a mim, a Deus e a dois reis brigões.
- Um de nós não tardará a tomar esse assunto nas próprias mãos.
- Por favor, eu lhe imploro...
- Partirei esta noite - reafirmou Philip. - Reconheço que estou em débito, que você me ajudou a ganhar tempo anos atrás. Todavia, não se esqueça. Sou o rei da França e farei prevalecer minha vontade.
Quando Philip saiu do salão deparou-se com Danielle, que acompanhara a conversa atrás da porta.
- Obrigada pelo cavalo - disse a menina.
- Cuide bem de Star. Por Deus, você é mesmo bela! - Então, dando-lhe as costas, o rei se afastou.
Sabendo ser tarde e não querendo que a mãe a descobrisse ainda de pé, Danielle correu para o quarto e aguardou Lenore ir lhe dar boa-noite. Todavia, a condessa não apareceu. Nas últimas semanas, os moradores da região vinham sendo atormentados por uma febre que já ceifara a vida de quatro pessoas.
Sons de passos apressados e vozerio acordaram Danielle no início da madrugada.
Não encontrando Monteine no quarto contíguo, ela escapuliu para o corredor. Inquieta, notou uma movimentação incomum de servos, que entravam e saíam dos aposentos de Lenore.
Antes que alguém pudesse impedi-la, a garotinha correu para junto da mãe, cuja palidez mortal era assustadora.
- Danielle, saia daí - ordenou padre Giles, amigo e confessor da condessa de Aville.
- Mamãe! - Danielle gritou aflita, ignorando as palavras preocupadas do padre.
- Minha querida - sussurrou Lenore, mal conseguindo abrir os olhos.
- Não há nada mais a ser feito - dr. Coutin falou gentilmente, respondendo à pergunta silenciosa da criança.
- Lenore está morrendo - explicou o padre Giles, com o coração apertado diante da tristeza infantil.
Morrendo? Sua mãe? Não, não, impossível!
- Mamãe!
Danielle deitou-se ao lado de Lenore que, reunindo um resto de forças, esforçava-se para pronunciar algumas palavras.
- O rei... você deve honrar o rei... protegê-lo... ele cuidará de você. Danielle, está me ouvindo?
- Sim, mamãe! Sim, mas...
- Honre-o. Mantenha-o a salvo.
- Mãe, juro que farei qualquer coisa que você me pedir. Mas, por favor, pare de falar e descanse. Você não pode morrer.
Porém Lenore já não a ouvia. Alguma coisa mudara. O fogo que a fizera arder até então parecia ter se extinguido de repente.
- Você precisa sair daqui agora, Danielle - disse o padre Giles, delicadamente. - Monteine, leve sua jovem ama embora. Afaste-a deste lugar pestilento.
- Não, não vou deixar minha mãe - a menina soluçou.
- Criança, a condessa já nos deixou.
Desesperada, Danielle agarrou-se ao corpo inerte da mãe, sendo praticamente arrastada para fora do quarto por Monteine e Jeanette, enquanto o padre Giles orientava os servos sobre o início dos preparativos para o funeral.
Certa de que não conseguiria suportar tanta dor, a garotinha chorou até adormecer de pura exaustão.
Na manhã seguinte, ela acordou com febre.
A peste chegara a Aville. Pobres, ricos, camponeses, nobres, muitos ficaram doentes e muitos morreram em questão de horas.
Durante quase uma semana, Danielle permaneceu inconsciente, só recuperando a razão no sexto dia, quando a febre começou a ceder. Então a bela Lenore d'Aville já havia sido enterrada, numa cerimônia bonita e comovente.
Padre Giles, logo após o enterro da condessa, também adoecera e falecera.
Perder a mãe foi um golpe duro para Danielle, que não se conformava com a própria sobrevivência. Por que Deus não lhe permitira reunir-se aos pais?
Lady Jeanette procurava confortá-la, insistindo que era pecado desejar a morte e que todos deviam aprender a aceitar a vontade de Deus com força da fé.
Todavia, apesar das palavras encorajadoras da madrinha, Danielle passou as três semanas seguintes numa apatia preocupante, pouco se interessando sobre os rumores de uma guerra próxima. Até que um acontecimento inesperado rompeu a rotina de Aville.
Certa manhã, Monteine entrou em seu quarto aos prantos.
- Condessa, você irá ao encontro do rei.
- Como é? - Danielle indagou perplexa, lembrando-se da promessa feita à mãe, de honrar o rei.
- Parece que toda a papelada está em ordem. Sua mãe deixou a documentação necessária preparada para que, em caso da própria morte, o rei se tornasse seu guardião legal.
- Por que precisamos partir? Philip pode cuidar de mim aqui...
- Não será Philip o seu tutor! Sua mãe a colocou sob os cuidados de seu padrinho, o rei da Inglaterra. Dani, você sabe muito bem que Robert de Oxford, seu pai, foi um nobre barão respeitado e admirado pelo rei. - Monteine fez uma pausa para respirar. - Oh, céus, e pensar que minha vida chegaria a esse ponto! Lady Jeanette e eu também fomos intimadas a partir para a Inglaterra. Logo agora, quando Edward prepara um novo ataque contra a França.
As notícias fizeram Danielle sair do estado de letargia ao qual se entregara.
- Pois desobedeceremos essa ordem ultrajante. Não ficaremos com ele. Nós...
- Oh, querida, você não pode desobedecer-lhe. Edward é poderoso, conta com muitos aliados. E, como seu guardião, tem direito legal de decidir seu futuro. Seria um erro enfurecê-lo. Você deve honrá-lo.
- Nunca vou honrá-lo!
- Edward tem homens fiéis em Aville. Se nos ouvirem, estaremos correndo perigo.
- Nunca me renderei. E estou convencida de que podemos escapar.
- Para fazer o quê? - Monteine indagou, desanimada. - Morrer de fome nas ruas? Você não entende. Edward está se preparando para atacar Philip outra vez. Essas terras serão arrasadas novamente.
- Então devíamos correr para junto de Philip.
- Creia-me, milady, Philip não pode ajudá-la agora. Ele; não tem influência ou poder em Aville. E está ocupado, preparando-se para guerrear com o rei Edward.
Em silêncio, Danielle observou Monteine começar a arrumar a bagagem. Apesar da vontade de chorar, não conseguiu derramar uma única lágrima. Chorara tanto a morte da mãe que sentia-se seca, vazia.
Jamais iria honrar Edward, pois prometera à mãe moribunda honrar outro rei.
Algum dia, de alguma maneira, cumpriria a promessa. Podia estar sendo forçada a partir para a Inglaterra agora, mas fizera um juramento à mãe. Um juramento sagrado. Assim, seu coração pertenceria sempre à família Valois, mesmo que um monstro estrangeiro, com ilusões de grandeza, a estivesse sequestrando.
Edward não voltara a ver a filha ilegítima desde o dia em que concedera liberdade a Lenore. Tampouco estivera com a condessa d'Aville desde então.
Entretanto, a morte de Lenore o abalara muito mais do que se permitia, ou ousava, demonstrar. Parte de si morrera com a bela condessa. Mesmo sendo Philippa uma rainha maravilhosa, nunca conseguira esquecer a mulher que o enfeitiçara e por quem continuara apaixonado até o fim.
Quase se esquecera de que mandara buscar Danielle. Sons de passos no corredor o fizeram erguer os olhos do mapa que estivera estudando.
De súbito, tudo o mais perdera a importância.
Certa vez, pensara que aquela criança seria sempre uma lembrança viva do rei da Inglaterra para atormentar a obstinada condessa d'Aville. Mas seria ele quem passaria o resto de seus dias sem poder esquecer Lenore.
Olhos verdes o examinavam, altivos e furiosos. A beleza clássica, os cabelos negros como a noite, o porte elegante... A imagem perfeita da mãe.
- Aproxime-se - ele ordenou.
Danielle não se mexeu, uma expressão desafiadora no rosto.
- Venha cá, menina.
- Já estou aqui, milorde - ela respondeu sem se alterar.
- Chegue mais perto.
A garota não moveu um músculo.
Levantando-se, o rei se dirigiu a lady Jeanette e Monteine.
- Senhoras, vocês foram encarregadas de educar essa pequena herdeira e parece-me terem falhado na missão. Vou trocá-las por...
- Não! - Danielle gritou, correndo para perto do rei e fazendo uma reverência. - Sir, aceite meus cumprimentos. - Apesar das palavras gentis, a voz soou destituída de humildade. - Você não deve culpar minhas damas de companhia. Fui educada corretamente. Porém ninguém, nem mesmo o rei da Inglaterra, pode mandar no coração dos outros.
Incrédulo, Edward fitou-a demoradamente. Então a garota tinha vontade e opiniões próprias. Além de compaixão, orgulho e coragem.
Todavia nenhum filho seu, legítimo ou ilegítimo, o desafiaria por muito tempo.
- Você, jovem dama - ele falou, firme - está agora sob minha tutela. E aprenderá a obedecer às minhas ordens, reconhecendo-me como seu guardião e rei. Sei que compreende minhas palavras muito bem.
- Sim, compreendo-as muito bem.
Por Deus, aquela menina era igualzinha a Lenore!
- Farei você me honrar, criança.
Como Danielle nada dissesse, Monteine interveio, aflita:
- Você deve implorar a misericórdia do rei, para todas nós.
Sorrindo, altiva, a garota retrucou:
- Se ele é mesmo um grande rei, será misericordioso. Quanto a mim, não imploro misericórdia a ninguém, milady.
Edward esforçou-se para conter a raiva.
- A partir deste momento, você fixará residência em minha corte, mocinha. Se criar muitas dificuldades, será castigada.
Trêmula de raiva, Danielle preparava-se para responder quando Philippa entrou na sala, imediatamente notando a tensão reinante.
- Ah, a filha de Robert, afinal! - exclamou a rainha, um sorriso cativante iluminando o rosto simpático. Com sua bondade maternal, ela ousou o que Edward não se atrevera e abraçou a garotinha com verdadeiro entusiasmo. - Oh, você é linda! Sua mãe deve ter sido realmente bela! Por favor, não se preocupe com mais nada. Você estará sempre na nossa companhia, até se tornar adulta e se casar.
Philippa retirou-se levando Danielle consigo, lady Jeanette e Monteine seguindo-as a uma distância discreta.
Sozinho, Edward pôs-se a andar de um lado para o outro, consumido pela irritação. Não estava acostumado a perder nenhuma batalha.
- Pequena feiticeira - murmurou, colérico -, você vai aprender a me respeitar, vai aprender a se curvar à minha vontade!
Entretanto o instinto lhe dizia que talvez acontecesse o contrário. Receava que essa sua filha acabasse obrigando-o a implorar misericórdia. Não, não se submeteria a tal humilhação. Com o tempo, sem dúvida, surgiria outro homem para domá-la, poupando-o desse trabalho. De fato...
Bem, tinha agora nas mãos mais um casamento de natureza política a resolver.
Precisaria de um cavaleiro de coragem inquestionável e caráter forte. Um homem com nervos e músculos de aço. Um homem a quem poderia confiar vastas terras, tanto na Inglaterra quanto na França.
Sim, devia analisar a situação como rei, não somente como pai. Danielle era rica, dona de propriedades em Gariston e senhora do Castelo de Aville.
Embora ela tivesse apenas dez anos, crianças costumavam ficar noivas ao nascer, para garantir alianças entre as famílias. Danielle deveria ter um marido à altura de sua posição. Restava-lhe encontrar alguém que a merecesse.
Alguém com uma vontade férrea.
Alguém que desconhecesse o significado da palavra "rendição".
Capítulo II
Crécy, 25 de agosto de 1346
- O príncipe foi derrubado! Por Deus, Edward, príncipe de Gales, foi derrubado!
Adrien estivera lutando a poucos metros de seu amigo e senhor, Edward, filho mais velho de Edward III. Ao ouvir o grito de alerta, correu na direção daquele a quem considerava quase um irmão.
A batalha que travavam agora custara a acontecer.
Os ingleses haviam cruzado o canal sem grandes dificuldades. Contudo, ao pisarem em terra firme, tinham levado seis dias para se reagrupar e iniciar a marcha em direção a Paris, através da península Cherbourg. Então o Exército fora dividido em três grupos. Edward, príncipe de Gales, recebera o comando da vanguarda, o rei passara a liderar a linha central, e a retaguarda fora entregue nas mãos do experiente conde de Northampton.
A marcha até o local do embate contra Philip provara-se terrível. E a batalha revelara-se feroz.
O Exército inglês contava com aproximadamente doze mil guerreiros. Já Philip comandava um contingente de sessenta mil homens. Entretanto a diferença não pareceu tirar o ânimo dos ingleses, as estratégias de ataque adotadas e a disciplina rígida contribuindo para ajudá-los a compensar a desvantagem numérica.
Adrien lutou árdua e selvagemente, usando toda a habilidade e domínio das armas aprendidos durante os longos anos de treinamento. Sua armadura pesada e o elmo com visor dificultavam um pouco alguns movimentos, porém o fogo que ardia em suas veias o levava a enfrentar o inimigo com agilidade e destemor.
Durante a interminável luta, ele rezou, pedindo a Deus que não lhe faltassem forças, pois os oponentes se revezavam com uma velocidade espantosa, não lhe permitindo um segundo de descanso.
Foi então que escutou o grito de alerta.
Vendo o príncipe em perigo, um grupo de guerreiros inimigos avançou, a sede de matança estampada no olhar.
Sem um único instante de hesitação, Adrien postou-se diante do jovem herdeiro caído como um escudo humano. Assim começou o inferno. Movido por uma energia descomunal, ele derrotou oponente após oponente, o corpo parecendo agir por vontade própria, a mente havendo alcançado um estado quase de êxtase. Já não sentia cansaço. Lutaria até o fim dos tempos, se preciso fosse. Nada, nem ninguém, atingiria o príncipe de Gales.
De súbito, doze cavaleiros franceses, fortemente armados, pararam à sua frente, prontos para desferir um ataque conjunto. Antes de partir para o massacre, eles gritaram os últimos avisos.
- Renda-se, homem!
- Largue sua espada!
- Renda-se com honra agora e o pouparemos!
- Continue lutando e o retalharemos e alto a baixo!
- Renda-se, por Deus ou por Satanás!
As palavras do pai vieram-lhe à cabeça. Nunca se renda!
A morte seria sua única rendição.
Sorrindo sob o elmo, Adrien ergueu a espada num gesto desafiador e encarou o inimigo. Não tinha dúvidas de que o bando pretendia trucidá-lo, quer lutasse, quer não.
- Senhores, não me rendo nunca!
Com um grito de guerra, ele se lançou na direção dos adversários, surpreendendo-os com o ímpeto de seu ataque.
A morte, porém, ainda não lhe estava destinada, pois descobriu-se subitamente podendo contar com o auxílio inesperado de vinte cavaleiros ingleses, comandados pelo próprio rei Edward. Os doze franceses fugiram em disparada, seguidos por alguns ingleses.
A batalha daquele dia chegara ao fim.
O rei desmontou e aproximou-se de Adrien, reparando no amontoado de cadáveres.
- Escocês, você se saiu bem. Extraordinariamente bem. Ajoelhe-se - Edward ordenou, desembainhando a espada.
- Sir...
O príncipe herdeiro, ao lado do pai, explicou ao amigo:
- Adrien, meu pai deseja sagrá-lo cavaleiro aqui e agora!
Atordoado, Adrien caiu de joelhos, a emoção quase o impedindo de escutar as palavras do rei, quase o impedindo de sentir a ponta da espada tocar seu ombro.
Fora sagrado cavaleiro devido à sua ação no campo de batalha.
A profecia de seu pai se concretizara. Tornara-se cavaleiro por merecimento, provando seu valor em combate. Como gostaria que Carlin, lorde MacLachlan, tivesse vivido para ver esse dia!
Que eu não o desaponte jamais, pai, ele rezou em silêncio, determinado a honrar eternamente a memória daquele homem orgulhoso e sábio.
Aplausos e gritos entusiasmados saudaram Adrien, porém Edward os lembrou de que a guerra não terminara. Os franceses voltariam a atacar no dia seguinte.
De fato, nova batalha foi travada ao amanhecer. Mas ao cair da tarde, Philip conheceu o gosto da derrota em Crécy. Mais de quatro mil cavaleiros e nobres franceses jaziam mortos.
Cavaleiros e nobres.
Ninguém se deu ao trabalho de contar os corpos dos plebeus.
Houve muitas celebrações em honra à grande vitória. No dia seguinte, após a missa fúnebre, rezada pelos mortos, Edward começou a se preparar para partir, disposto a tomar Calais.
Entretanto, antes de o Exército se pôr em marcha, convocou Adrien à sua presença.
O cavaleiro não estranhou o chamado, visto terem sido muitas suas conversas particulares com o rei ao longo dos anos.
Recordava-se de uma delas, quando David II retomara o trono da Escócia. O rei, que apoiara Baliol, lhe dera a notícia sem deixar transparecer qualquer vestígio de emoção.
- Você tem se provado um investimento valioso, meu jovem lorde. É tão alto quanto os Plantagenet e possui tremenda habilidade física. Participou de uma infinidade de torneios e ganhou incontáveis prêmios.
- Sir, sabe que preciso vencer esses torneios. A manutenção de minha armadura e de minha propriedade na Escócia exige uma soma considerável.
- Sem dúvida. De fato, torneios são bons para os jovens. Continue vencendo-os. Chamei-o aqui porque sei não ter o direito de impedi-lo de se unir a David. Entretanto, eu preferiria que você permanecesse em meu serviço. Logo as recompensas surgirão.
Adrien, que se tornara grande amigo do rei, fingiu considerar a questão por um instante.
- Permanecerei a seu lado se você me fizer duas promessas.
- Está exigindo promessas de um rei? - Edward rugiu.
- Sim, senhor.
- E quais são?
- Primeiro, sir, que o senhor nunca me peça para lutar contra os escoceses.
- Sim, rapaz. Eu jamais lhe pediria tal coisa.
- A segunda, que não arrase minha propriedade, caso volte a travar uma batalha naquela região.
Divertido, o rei concordou.
Agora Adrien se perguntava o que Edward poderia desejar.
- Ah, meu amigo! Estou muito, muito impressionado. Seu velho e sábio pai jurou que, ao levá-lo comigo, eu teria nas mãos um futuro guerreiro de qualidades admiráveis. Pois MacLachlan estaria orgulhoso do filho hoje, assim como eu estou. Gostaria de tornar a dizer-lhe que sua participação nas batalhas tem sido estupenda. Sinto-me profundamente feliz por você ter decidido continuar me servindo, em vez de se aliar a David II.
- Obrigado, sir. Mas o príncipe herdeiro também se sobressaiu, comandando-nos com bravura e perícia.
- De fato, e orgulho-me de meu filho. No momento, estamos discutindo seu desempenho na batalha.
- Você já me mostrou seu reconhecimento, sagrando-me cavaleiro.
- Ah, rapaz, foi uma cena gloriosa. Inimigos cercando-o, exigindo sua rendição, e você os desafiando. Que foi que você lhes disse?
- O que eu lhes disse, sir? - Adrien indagou, intrigado com o comportamento e o bom humor do rei.
- Sim, rapaz, o que você gritou ao inimigo?
Adrien demorou alguns segundos para se lembrar do que gritara no meio da batalha. Gritara as palavras que o pai lhe ensinara.
- Apenas recusei-me a me render. Uma atitude tola, talvez. Porém eu não iria implorar misericórdia àqueles malditos, não quando vínhamos lutando tão longa e duramente.
Edward recostou-se no espaldar da cadeira, sorrindo de uma orelha à outra.
- Fale-as para mim - ordenou.
- Sir, eu...
- Repita-as, rapaz. Aquelas palavras, hoje, são como música para meus ouvidos. Vamos, eu insisto.
- Recusei-me a me render, ou implorar misericórdia.
- Ah! Nunca implorar misericórdia! - o rei exclamou, satisfeito.
- Milorde, admito que no ardor da batalha eu...
- Não se preocupe, não se preocupe. Você pode ir agora, rapaz.
Ainda intrigado, Adrien caminhou até a porta. Edward, contudo, voltou a chamá-lo.
- Sim, milorde?
- Fique atento, meu rapaz. Fique atento. - O rei tornou a sorrir misteriosamente, como se saboreasse um segredo. - Seu futuro, a partir de hoje, está assegurado, e todas as recompensas imagináveis estarão ao alcance de suas mãos. Bastará você estendê-las.
Entretanto, Adrien experimentou uma certa inquietude. Que será que Edward tinha em mente?
Mas o escocês não pôde se deter muito sobre o assunto, porque ao deixar o rei encontrou-se com o príncipe herdeiro.
- Então qual é o grande prêmio que meu pai vai lhe dar depois do seu desempenho assombroso na última batalha? Até os velhos cavaleiros comentam suas virtudes, meu amigo. Diga-me, o que meu pai vai lhe dar? Fosse eu rei, criaria até um condado para presenteá-lo. Afinal, você salvou minha vida.
- Apenas fiz o que era preciso e o rei me sagrou cavaleiro. Esta é minha recompensa.
- Ora, vamos!
Dando de ombros, Adrien admitiu a verdade.
- Seu pai estava um pouco estranho. Ele não me deu nada. Só parecia... estranho. E animado. No fim da conversa, garantiu-me que meu futuro está assegurado.
- Ah, sim, o futuro! Meu pai deve estar lhe reservando algo excepcionalmente bom. Porém, cuidemos do presente. Somos jovens, somos grandes guerreiros. Guerreiros vitoriosos. E aos vitoriosos, meu amigo, os louros!
- O que você está planejando?
- Muitas garrafas do melhor vinho francês estão à nossa espera. Além de belas mulheres francesas.
- Mulheres francesas?
- Daquelas de fina estirpe, acostumadas a entreter cavaleiros.
- Ah, sim, prostitutas.
- As mais lindas e inteligentes mulheres disponíveis. Lady Joanna nunca descobrirá - Edward brincou.
Surpreso, Adrien ficou em silêncio durante alguns segundos. Não imaginara que o príncipe soubesse de seu relacionamento com Joanna, filha do conde Warwick. O que Edward parecia não entender era que não se tratava de nenhuma paixão avassaladora, mas de uma profunda amizade. Se ponderasse sobre suas emoções, diria que amava Joanna. Os dois tinham os mesmos gostos, os mesmos interesses. Às vezes falavam sobre casamento, porque a amizade que os unia seria, com certeza, uma base sólida para uma união bem-sucedida. Porém, até então, não a pedira em casamento, e a realização dos sonhos futuros continuava vaga, indeterminada.
- Ainda não estou noivo - Adrien lembrou. - E Joanna é uma dama, diferentemente, presumo eu, de suas lindas mulheres francesas. Guie-me, príncipe, até onde a diversão nos aguarda!
Edward riu, entusiasmado.
- A recompensa de meu pai virá mais tarde. A minha, lhe darei agora.
O príncipe e os amigos reuniram-se numa casa no meio da floresta. Lá, distraíram-se com música, dança, comida e excelente bebida. Uma das mulheres, de rosto angelical e corpo espetacular, possuía voz maviosa e tocava alaúde com rara habilidade. Após entretê-los com várias canções, de letras indecorosas, ela e Adrien caminharam até o bosque. Naquela noite, o escocês permitiu-se agir como um jovem guerreiro vitorioso, deixando-se arder no fogo breve do simples desejo carnal.
Todavia, ao despedir-se da prostituta, Adrien descobriu-se sem vontade de passar a madrugada com os companheiros, divertindo-se até a completa exaustão física. Continuava inquieto, preocupado com a conversa que tivera com o rei.
Pensativo, montou Mateus, um de seus quatro cavalos de guerra. Os outros três animais também possuíam nomes tirados da Bíblia: Marcos, Lucas e João.
Sem cessar, a mesma pergunta o atormentava enquanto cavalgava imerso na escuridão: o que o rei estaria planejando?
Estar sob a guarda do rei da Inglaterra não significou para Danielle colocar imediatamente os pés em solo inglês.
Mês após mês, Edward continuou a perseguir o objetivo de tomar a inexpugnável cidade de Calais.
Danielle passava a maior parte do tempo na companhia da rainha que, apesar da gestação avançada, parecia não reparar nas dificuldades cotidianas, quando via-se obrigada a conviver com o exército do marido.
O cerco à cidade francesa começara em setembro, logo depois da batalha de Crécy. Prevendo um longo estado de sítio, que se arrastaria durante o inverno, Edward erguera várias construções de madeira do lado de fora de Calais para abrigar seus homens. Ali, a vida obedecia a uma certa rotina. Mercadores, ferreiros, tanoeiros dedicavam-se aos seus ofícios, assim como os barbeiros e cirurgiões. Os cavaleiros distraíam-se cavalgando pelos arredores ou desafiando os inimigos para torneios amistosos. De acordo com o código da nobreza, os franceses podiam deixar a cidade sitiada para participar das justas, ao fim das quais retornavam ao confinamento.
Na posição de dama de companhia da rainha, Danielle assistia aos embates. Frequentemente os rapazes franceses venciam e ninguém estranhava vendo-a aplaudi-los entusiasmada.
Durante uma dessas competições a menina, pela primeira vez, pôs os olhos em Adrien MacLachlan. A partir daquele dia, não teve mais sossego.
Sons de trombetas anunciaram o início da disputa. Embora não houvesse nevado, estava frio, mas o sol cálido, no céu muito azul, criava uma atmosfera agradável. Sentada à direita de Philippa, Danielle vibrava, cheia de expectativa. Jean d'Elletente, considerado um dos melhores cavaleiros de todo o mundo, um francês genuíno, preparava-se para enfrentar um jovem cavaleiro inglês, de quem Danielle não sabia o nome.
Logo saberia o nome do adversário... e nunca mais o esqueceria.
Sir Jean d'Elletente foi apresentado com toda pompa e circunstância, suas vitórias e conquistas enumeradas para o grande público. O cavaleiro marchou para o centro da arena, montado num enorme cavalo branco, a armadura prateada reluzindo sob o sol. Imponente, ele manteve a lança erguida ao parar diante do rei.
- Uma prenda para o cavaleiro francês! - gritou sir Terrell Henley, mestre do torneio.
Ninguém se mexeu. Afinal, o público era esmagadoramente inglês. Todavia, se nenhuma dama se manifestasse, a própria rainha o faria, pois as severas regras de cortesia deveriam ser observadas em qualquer circunstância.
Danielle, contudo, levantou-se, segurando nas mãos um lenço de seda.
Um coro de vivas e uma salva de palmas saudou o comportamento polido da protegida de Edward. Entretanto a menina nada escutava, concentrada apenas em amarrar o lenço na ponta da lança do francês que, galante, piscou um olho e sorriu-lhe.
O outro combatente foi então anunciado.
- Sir Adrien MacLachlan, lorde Reggar, conde de Meadenlay!
Soaram as trombetas e o jovem cavaleiro marchou para o centro da arena.
Sua armadura sem adornos contrastava com a do francês, excessivamente enfeitada. O elmo simples deixava à mostra apenas os olhos, cujo brilho incomum impressionou Danielle. Ele lhe pareceu muito alto, talvez até mais alto que o próprio rei da Inglaterra, famoso pela estatura elevada, típica dos Plantagenet.
Não, ela decidiu. Aquele homem escolhera montar um cavalo enorme para dar a impressão de ser alto.
- Uma prenda para o cavaleiro inglês! - gritou Henley.
A rainha levantou-se e amarrou seu lenço de seda na lança de Adrien, que inclinou-se em sinal de agradecimento.
- Que Deus o acompanhe, jovem MacLachlan - disse Philippa.
- Deus está comigo, milady.
Tolo metido, Danielle decretou mentalmente. Os combatentes foram chamados a ocupar suas posições em lados opostos. As trombetas tornaram a soar.
Assim, começou a justa. A terra tremeu sob os cascos dos cavalos de guerra. Com as lanças em riste, as pontas devidamente encapadas, os contendores iniciaram a corrida com o objetivo de atingir o oponente e derrubá-lo no chão.
Na primeira tentativa, ambos permaneceram firmes em suas montadas, embora as lanças acabassem partidas.
Depois de os respectivos escudeiros providenciarem lanças novas, os cavaleiros tornaram a se defrontar, numa velocidade quase suicida.
Um homem caiu.
Juntamente com toda a audiência, Danielle ficou de pé, a respiração suspensa.
O poderoso francês fora derrubado.
Derrubado, mas não derrotado. Recebendo a espada de seu escudeiro, d'Elletente partiu para cima de Adrien. Este apeou, apanhou a própria espada e enfrentou o inimigo.
O inglês podia ser alto, Danielle concedeu. Porém apostava na experiência e no porte pesado do francês. Contudo, para sua crescente irritação, o inglês não teve nenhuma dificuldade em aparar cada um dos golpes do adversário e, em questão de segundos, tinha-o sob a ponta da espada.
O público explodiu numa gritaria ensurdecedora, os aplausos se tornando frenéticos quando MacLachlan fez uma reverência ao oponente caído antes de estender a mão para ajudá-lo a se levantar. Tão cavalheiro quanto o outro, d'Elletente aceitou a ajuda e, depois de cumprimentá-lo com uma profunda reverência, afastou-se.
MacLachlan embainhou a espada, tirou o elmo e caminhou na direção do camarote real.
Então Danielle descobriu a cor dos olhos do inimigo. Não eram castanhos, nem verdes, mas sim... dourados. Os cabelos loiros emolduravam um rosto bonito e másculo, um rosto que a impressionou profundamente.
- Atuação fantástica, milorde MacLachlan! - exclamou Edward, animado. - Fantástica! Qual prêmio você deseja receber de seu rei?
O jovem cavaleiro hesitou somente um instante.
- Sir, informaram-me que David da Escócia reuniu um exército, conforme ordenado por Philip da França, e atacou seus barões ao norte da Inglaterra.
- É verdade. David lutou contra meus barões em Neville's Cross, perto de Durham, e é agora meu prisioneiro. Se você vai me pedir para libertá-lo... - o rei começou, enraivecido.
- Não, milorde. Eu não lhe pediria o impossível. Apenas peço-lhe para ser misericordioso enquanto o mantiver na prisão. Lembre-se de que David é marido de sua irmã e amado pelos escoceses.
- Solicitação concedida. Você não pede nada para si mesmo?
Adrien sorriu.
- No devido tempo, milorde.
- Ah, então você sempre será vitorioso?
- Sir, é este meu plano.
A audiência gargalhou.
- Suponho, meu jovem lorde, que o devido momento chegará!
- Meus agradecimentos, Vossa Alteza. - MacLachlan inclinou-se e retirou-se da arena sob nova onda de aplausos.
Desapontada com a derrota do charmoso e talentoso francês, Danielle permaneceu muito quieta, pouco prestando atenção à conversa das damas, que exaltavam as qualidades físicas e intelectuais do belo e ousado MacLachlan.
- Ele defendeu o príncipe com uma bravura descomunal em Crécy! - alguém falou.
- Tão jovem! - suspirou uma dama, com ar sonhador.
- Acredite-me, ele tem sido brilhante desde muito, muito novo - interveio a rainha. - Edward me contou que foi Adrien que, ainda menino, elaborou o método que provocaria a queda do Castelo de Aville.
O Castelo de Aville...
Seu castelo!
Sim, conhecia bem a história. O rei Philip precisara escapar e Lenore defendera Aville, levando Edward a crer que Philip continuava escondido atrás das muralhas. Todavia, apesar dos valentes esforços de sua mãe, Aville caíra, sua condessa transformada em prisioneira.
E agora ali estava ela, sob a guarda do rei inglês. De fato, considerava-se uma prisioneira, como sua mãe o fora.
Tudo por culpa de MacLachlan! Grande cavaleiro... Pois sim! E ele pretendia continuar colecionando vitórias. Que atrevimento! Todo homem tinha de pagar o preço de suas ações.
Naquela noite, Danielle sonhou que o derrotava no campo de batalha. Pena não poder desafiá-lo. Ele era um cavaleiro e ela ainda não completara onze anos de idade.
Durante um jantar, não muitos dias depois do torneio, Danielle reparou num pimenteiro sobre a mesa. Reconhecia não possuir força, poder, ou posição para desafiar MacLachlan. Mas sempre pensara que as batalhas deviam ser lutadas com as armas disponíveis.
Pimenta era uma especiaria valiosa e apreciada. Entretanto, em quantidade exagerada, causava desconforto. MacLachlan ria de algo que a rainha acabara de dizer. Para alguém que causara tanto estrago, ele parecia se divertir muito. Talvez um pouco de pimenta o fizesse parar de rir.
Escapulindo do lugar onde estava sentada, Danielle fingiu desejar falar com a rainha. Enquanto se inclinava junto ao ouvido de Philippa, despejou uma porção generosa de pimenta no cálice de vinho do jovem inglês. Então acomodou-se perto do filho mais novo do rei, John. Os dois tinham praticamente a mesma idade e não podia negar que o considerava um amigo. Seu bom humor e a disposição de ajudá-la sempre acabavam tornando-o encantador.
- Você está zangada, Danielle? - ele perguntou, curioso.
- Zangada?
- Estive observando-a na semana passada durante a justa, quando minha mãe conversava sobre o cerco de Aville. Você ficou tão pálida, a ponto de desmaiar. Aville foi tomado antes do seu nascimento. Não deixe que o que aconteceu naquela época a perturbe.
- Não estou zangada - ela desconversou, levando um pedaço de carne à boca.
Então o som de alguém engasgando a fez erguer os olhos do prato.
Vermelho como um pimentão, MacLachlan tossia sem parar.
- Meu Deus, Adrien! O que foi? - indagou o rei.
Alguns segundos se passaram antes que o cavaleiro conseguisse falar.
- Nada, sir. Acho que só um cálice de vinho... temperado. Nada mais.
Depressa, Danielle abaixou o olhar e recomeçou a comer. Quando, enfim, ousou levantar a cabeça, notou que o rosto de MacLachlan havia recuperado a coloração normal. Mas o cavaleiro parecia estudá-la atentamente.
Sob o peso daquele olhar, estremeceu, sentindo-se esquisita por dentro. Estava com medo.
Ele queria que as pessoas o temessem, concluiu. O bravo guerreiro, o homem que tomava castelos franceses e derrotava cavaleiros franceses despertava medo e rancor.
Ele não tinha motivos para desconfiar de que a protegida do rei desejava lhe causar mal.
O cerco a Calais continuou por uma eternidade, ou pelo menos assim parecia a Adrien. Firme na sua estratégia, Edward estava determinado a subjugar a cidade pela fome.
Por fim, Calais caiu. O povo, faminto, rendera-se. Edward mandou alguns de seus homens negociar os termos da rendição. Os emissários do rei voltaram com um pedido do governador para que Calais fosse poupada. Adrien estava presente quando o principal negociador, Walter Manny, contou ao rei que os cidadãos estavam dispostos a lhe entregar tudo, se lhes fosse permitido partir sem retaliações.
- Não há a menor chance disso acontecer! - Edward esbravejou.
De todos os lugares, nenhum o havia enfurecido tanto quanto Calais. Perdera muitos homens para os piratas da cidade e aquele fora um cerco muito, muito longo.
- Sir - Adrien interveio. - Peço-lhe desculpas por opinar, mas pense bem! Você é um rei nobre. Não deveria, um dia, olhar para trás, para essa grande batalha e ter a impressão de que ocorreu um assassinato em massa.
- Assassinato? - retrucou Edward, estreitando os olhos.
Walter Manny pressionou o rei.
- E se milorde nos mandasse defender uma fortaleza? Quão mais felizes iríamos lhe obedecer, sabendo que demonstrou misericórdia para com outros, porque, se falhássemos, também o inimigo poderia nos conceder misericórdia.
A conversa se arrastou durante intermináveis minutos. Impaciente, Edward tomou uma decisão.
- Que seja! Os seis homens mais importantes da cidade deverão vir à minha presença. Com a cabeça descoberta e descalços, cordas ao redor do pescoço e as chaves do castelo e da cidade nas mãos. O resto do povo terá minha clemência. Porém esses seis homens ficarão à minha mercê!
A mensagem foi levada de volta a Calais. Com o coração apertado, Adrien ouviu os lamentos de dor eclodirem por trás das muralhas.
Não tardou muito para que os seis cidadãos mais importantes e influentes de Calais se postassem diante do rei inglês.
MacLachlan abriu caminho no meio da pequena multidão que se juntara para assistir à cena, rezando para que houvesse uma maneira de Edward mostrar-se misericordioso. Os pobres homens, sujos e esfarrapados, já se assemelhavam a cadáveres, tamanha a magreza.
Falando em nome dos companheiros, um deles afirmou estarem colocando suas vidas nas mãos do rei para que o povo de Calais, tão sofrido, fosse poupado. Humildemente, imploravam clemência também para si.
Algumas damas choraram ao escutar o discurso eloquente.
Mas o coração de Edward não se comoveu.
- Já demonstrei clemência! - Edward rugiu. - Por Deus, declaro que não voltarei atrás na decisão tomada.
Adrien, Walter Manny, Ralph Basset e vários cavaleiros renomados deram um passo à frente.
- Meu rei - começou Adrien, sendo imediatamente interrompido.
- Lorde MacLachlan, eu seria capaz de atender a muitos de seus pedidos, mas neste caso aviso-o para não insistir. Isto serve para você também, Walter. Esses seis são meus. Mandem chamar o carrasco! Suas cabeças serão cortadas imediatamente.
De repente a rainha, outra vez em avançado estado de gravidez, ajoelhou-se diante do marido, num gesto de profunda humildade.
A multidão deixou escapar um murmúrio de admiração e respeito.
Com o rosto banhado em lágrimas, Philippa nunca parecera tão linda aos olhos de Adrien.
- Meu lorde, meu marido! Tenho seguido-o em muitas campanhas, tenho viajado nas condições mais duras, expondo-me, e a nossos filhos, a toda sorte de perigos. Nunca lhe pedi nada. Pois peço agora. Suplico-lhe, pelo sangue de Jesus Cristo, que entregue esses homens a mim, e à misericórdia.
- Por Deus, milady, eu gostaria que você estivesse em casa agora, em qualquer lugar, exceto aqui. Eu não lhe negaria...
O rei calou-se de súbito. Surpreso, Adrien notou que Edward tinha o olhar fixo em duas crianças. Em seu próprio filho, John, e na filha de Robert de Oxford.
Aquela menina era a imagem da mãe. Alta para a idade, lindíssima com seus cabelos negros e olhos muito verdes. A lembrança de Lenore sempre lhe causava uma certa melancolia. Sim, haviam-na derrotado, porém a condessa os tinha conquistado.
Estranho Edward estar olhando para a filha de Lenore num momento como aquele.
- Milady - prosseguiu o rei -, reconheço que lhe devo muito e que você nunca me pediu nada. Nenhuma outra pessoa poderia ter me feito mudar de idéia neste caso. Contudo não posso recusar-me a atender seu pedido, por mais que minha fúria seja justificada.
Exaltada, a pequena multidão ovacionou a rainha.
- Levantem-se, levantem-se - Philippa urgiu os prisioneiros, trêmulos demais para se mexerem.
- Adrien, por favor, ajude-me...
MacLachlan não havia percebido que continuava parado, como se petrificado, ainda olhando para o local onde a filha de Robert estivera até segundos atrás.
Saindo da espécie de transe em que caíra, amparou a rainha, cujas mãos os prisioneiros beijavam sem cessar, aclamando-a sua benfeitora.
Docemente Philippa os assegurou de que seriam vestidos e alimentados antes de serem soltos.
A multidão se dispersou. Adrien descobriu-se então sozinho, defronte ao alojamento do rei.
Um movimento suave à sua direita chamou-lhe a atenção.
- Milady? - MacLachlan fez uma reverência, quase que de brincadeira.
A menina nada respondeu. Simplesmente deu-lhe as costas e afastou-se, como se fosse a dama mais poderosa e importante do mundo.
Rindo, ele caminhou até as muralhas de Calais. Aquele fora um dia bom. O rei, enfim, mostrara-se clemente e Calais havia se rendido. Ele era jovem e tinha o mundo aos seus pés.
Naquela noite, Adrien esqueceu-se por completo da menina de cabelos negros e olhos verdes como esmeraldas. Ele ainda não sabia que logo viria um tempo em que seria impossível esquecê-la.
Capítulo III
Ao regressar à Inglaterra, Danielle descobriu ter seus próprios aposentos na residência do rei. Lady Jeanette e Monteine continuaram servindo-a, e o dr. Coutin, convocado por Edward, retomara a posição de seu tutor. Alegrava-a desfrutar da companhia de sua gente. Mas, embora determinada a conservar-se fiel ao rei da França, começou a fazer amizades na corte de Edward. Várias damas de companhia da rainha a tratavam com carinho maternal, e John, percebendo a saudade que sentia de casa, procurava distraí-la de todos os modos, convidando-a, inclusive, para participar de suas aulas de equitação e de esgrima.
Uma estranha trégua se instalara entre o monarca inglês e o francês.
Os dias tornaram-se semanas, as semanas, meses. Anos se passaram. Danielle tinha quase catorze anos quando a morte, numa forma diferente daquela provocada pela guerra, surgiu para ameaçar os mais fortes guerreiros ingleses. A Peste Negra. A epidemia começara no continente e agora se alastrava em direção à Inglaterra. Não existia um só homem vivo que não a temesse.
Para realeza e nobreza, a única defesa contra a doença era refugiar-se no campo. Talvez por isto o rei decidisse estar na hora de Danielle conhecer as terras e a Fortaleza Gariston, sua herança paterna.
Apesar de considerar Aville seu verdadeiro lar e acreditar que um dia voltaria a viver entre os muros do amado castelo, a jovem dama gostou da idéia de visitar as propriedades de Robert de Oxford, cuja memória reverenciava. Danielle também tinha plena consciência de que a rainha Philippa, como a esmagadora maioria das damas, se casara com a sua idade. Assim, ansiava por escapar da corte, onde havia sempre um cavalheiro interessado em desposá-la. Até então, Edward rejeitara todas essas propostas de casamento. Chegaria o momento em que o rei resolveria o assunto. Melhor conservar-se bem longe. Longe dos olhos, longe do coração.
Para sua surpresa e desagrado, lorde MacLachlan fora designado para escoltá-la. Irritara-se com a escolha devido a uma descoberta em Winchester. Certo dia, ao descer a escadaria, escutara uma conversa entre MacLachlan e lady Joanna. Os dois estavam num canto do corredor, rindo e cochichando com evidente intimidade. Como uma mulher tão linda, doce e maravilhosa feito lady Joanna se deixara seduzir por um homem do tipo de MacLachlan?, perguntara-se.
- Não vou demorar muito. Gariston fica apenas a um dia de viagem daqui. Ah, querida, você pode imaginar tamanha amolação? Sou considerado o melhor nos torneios, já provei minha coragem em inúmeros combates e acabo tendo que servir de ama-seca para uma condessa arrogante!
- Adrien, ela não é mais criança. É uma jovem inteligente e belíssima.
- Sim, a imagem da mãe, com olhos de feiticeira. Age como uma rainha, é temperamental e cansativa.
- A pobrezinha vive numa corte estrangeira, querido. Perdeu os pais.
- Milady, isto acontece com frequência.
- Desculpe-me, eu havia me esquecido de seu passado. Quanto à condessa d'Aville...
- Minha pequena feiticeira?
- Eu a considero encantadora.
- Porque você é a criatura mais bondosa de toda a cristandade.
- Você deve ser gentil com a moça.
- Vou acompanhá-la até Gariston e voltarei para cá o mais breve possível. Então levaremos nossa petição ao rei.
De onde estava, Danielle viu lady Joanna acariciar o rosto de MacLachlan, num gesto cheio de ternura.
- Meu querido guerreiro escocês... Sim, eu adoraria me casar com você, mas...
- Mas?
- Você já percebeu, meu nobre lorde, que não me ama de verdade?
As palavras da jovem o inquietaram. Talvez porque expressassem uma verdade que preferiria não admitir.
- Eu a amo há muito tempo.
- Existe uma diferença entre amar e desejar amar.
- Nós sabemos que muitos homens e mulheres se casam quase sem se conhecerem. Pense em todas as vantagens que já temos.
- De fato. E sou grata por sermos amigos. Eu só queria...
- Nós nos casaremos e seremos felizes juntos - Adrien decretou.
Joanna riu baixinho.
- Ah, querido, nós nos casaremos, sim. E ninguém, nem mesmo o rei, poderá nos impedir.
Imaginando que os dois iriam se beijar, Danielle afastou-se depressa, não querendo testemunhar nenhuma cena íntima.
Entretanto, ao ouvir suspiros e gemidos, virou-se, temendo que Joanna pudesse estar sofrendo. Não, lady Joanna não estava sofrendo. Ela se agarrava a MacLachlan e o beijava como se quisesse devorá-lo.
Oh, aquele homem não prestava! Por pura sorte, derrotara o cavaleiro francês no torneio e agora parecia ter enfeitiçado Joanna.
Também incomodava Danielle a possibilidade de ser obrigada a se casar. Sabia ser um prêmio cobiçado devido aos seus bens e propriedades. Vendo o casal se acariciar, ela sentiu-se temerosa. Joanna desejava estar com MacLachlan. Mas como seria o casamento quando a mulher desprezava o marido?
Por quanto tempo o rei continuaria recusando seus pretendentes?
Como podia Joanna amar MacLachlan? Ele não a merecia. Tudo o que possuía era fruto de seu ato traiçoeiro contra Aville. E agora ele fora escolhido para escoltá-la a Gariston. Como o rei podia ser tão cruel? Como não compreendia quão amargamente MacLachlan ferira sua família?
Perdida em seus pensamentos, ela se assustou ao avistar MacLachlan rumar sozinho para um dos aposentos destinados por Edward apenas àqueles a quem dedicava verdadeira amizade. Dali a instantes, o escudeiro de MacLachlan surgia com as botas do cavaleiro nas mãos, sem dúvida pretendendo limpá-las.
Notando que o rapaz e ela haviam tomado o mesmo rumo, Danielle fingiu estar em busca de um chá na cozinha. Enquanto aguardava uma das criadas preparar a infusão, olhou pela janela e reparou que o escudeiro se sentara num banco do jardim para polir as botas. Com a tarefa rapidamente concluída, o rapaz se levantou, encostou as botas na parede e afastou-se para resolver alguma coisa. Curiosa, Danielle se debruçou na janela, derrubando um pote de mel.
O conteúdo do pote caiu inteirinho dentro de uma das botas. O susto inicial logo se transformou em satisfação. Não fizera de propósito, porém MacLachlan iria receber o que merecia. Deus estava do seu lado.
Na manhã seguinte, apesar de acordar muito cedo, Adrien não se levantou imediatamente. A tarefa que o aguardava só lhe infundia desânimo.
Quando teria oportunidade de falar com o rei a respeito de Joanna?, perguntou-se, os olhos fixos no teto.
Uma audiência particular com Edward seria difícil agora, devido à missão tola de que fora incumbido. Além do mais, o rei também partiria para o campo naquele mesmo dia.
Adrien nunca testemunhara os efeitos da peste, contudo escutara o bastante para temê-la. Não importava a posição social, ou o tamanho da fortuna. Quem contraía a peste não demorava muito para morrer, padecendo de dores terríveis. Uns poucos, apenas, sobreviviam.
Não, não temia a morte. Enfrentara-a centenas de vezes. Mas a sensação de vulnerabilidade, de impotência ante o ataque de um inimigo invisível, o perturbava.
Também o angustiava deixar Joanna, embora ela houvesse lhe prometido viajar para a casa do pai, perto da fronteira com a Escócia, e de lá, quem sabe, ir até Gariston, visitar sua jovem amiga, a condessa.
A idéia de poder desfrutar da companhia de Joanna o entusiasmava. Lamentava não tê-la pedido em casamento antes. Desde que voltara para a Inglaterra, após a queda de Calais, o relacionamento dos dois se aprofundara. Quando, certa noite, Joanna escapulira para seus aposentos pela primeira vez, tentara se comportar com nobreza e resistir à tentação. Porém o fogo, o ardor da juventude, pusera abaixo seus bons propósitos. Fazer amor com Joanna era agradável, como tudo o que dizia respeito a ela. Às vezes lhe passava pela cabeça que talvez estivesse faltando algo, um pouco mais de paixão... Entretanto logo calava as dúvidas. Joanna, com suas inúmeras qualidades, seria ótima esposa e excelente mãe para seus filhos.
O fato de não querer escoltar Danielle não mudava a situação. Edward enfatizara a importância daquela tarefa, argumentando tratar-se de uma jornada especial, pois seria a primeira vez que a condessa visitaria suas vastas propriedades inglesas. Aparentemente, o rei desejava fazê-la aceitar que o pai fora um cavaleiro inglês, honrado e respeitado, cuja herança valiosa deveria ser administrada com responsabilidade.
Adrien estava convencido de que Edward irritava-se com os modos por demais franceses da garota. Mas tendo crescido em Aville e convivido com muitos de seus parentes Valois, como Danielle poderia ser diferente? Na verdade a atitude do rei em relação à menina lhe parecia estranha. Ora ele a fitava enlevado, falando de sua extraordinária beleza com orgulho, ora dizia, furioso, que precisava mantê-la em rédeas curtas devido ao seu temperamento forte e obstinado, traços que reconhecia muito bem.
Sim, aquela pequena dama era um perigo. Não sabia por que o considerava um inimigo, mas suspeitava de que fora ela quem pusera pimenta no seu vinho, no jantar em Calais. Na presença de Philippa, a menina se comportava como um anjo, sempre tímida e recatada.
Porém vira-a diversas vezes enfrentando John em lutas com espada e nenhuma situação parecia intimidá-la. De súbito ocorreu-lhe que talvez a jovem condessa soubesse de sua participação na queda de Aville. Mas isto acontecera antes de seu nascimento! Bem, gostando dele ou não, a menina teria de aguentá-lo e tratá-lo cordialmente.
Inspirando fundo, Adrien levantou-se. Depois de tomar banho, começou a se vestir devagar, ainda inconformado com a tarefa que Edward lhe impusera. Todavia, lembrando-se de quanto admirara Robert de Oxford e Lenore, decidiu cumprir a missão em honra aos dois.
Pensativo, sentou-se na cama para calçar as botas. Ao enfiar o pé esquerdo, sentiu algo pegajoso.
- Que diabos...
Furioso, tirou o pé. A meia estava coberta de mel!
- Quem...
E precisava perguntar? A pequena feiticeira francesa, com seus cabelos negros, olhos de esmeralda e beleza traiçoeira!
Pisando duro, MacLachlan saiu do quarto e avançou pelo corredor deserto. Então, avistou uma das acompanhantes da jovem condessa, Monteine. Pegando-a pelo braço, obrigou-a a fitá-lo.
- Milorde! - a serva gritou, surpresa.
- Onde está a pequena feiticeira?
- Milorde, não sei a quem o senhor...
- Onde está Danielle d'Aville?
- Preparando-se para a viagem, naturalmente.
- Onde?
Alarmada, Monteine apontou para o fim do corredor.
- Penúltima porta à esquerda, sir. Mas milorde...
Indiferente a qualquer apelo, ele avançou na direção indicada. Como a porta estivesse entreaberta, entrou e fechou-a com estrondo.
A menina estava sozinha no quarto, dobrando algumas peças de roupa. Embora houvesse se assustado com o barulho súbito, nada demonstrou. Limitou-se a fitá-lo, arqueando uma sobrancelha em sinal de desdém.
Pela primeira vez Adrien reparou como, aos catorze anos, ela se transformara em mulher. As feições clássicas, delicadas, lhe conferiam um ar de distinta maturidade.
- Milorde? - a menina falou, num tom distante e condescendente.
Adrien sorriu.
- Milady... Você está sob a guarda do rei. Pobre órfãzinha francesa, obrigada a adaptar-se aos costumes ingleses. Conheci seu pai. Ele não iria querer que a filha se transformasse numa criatura mimada e insuportável. Se pretende continuar me pregando peças, condessa, é melhor ter cuidado, ou acabará pagando caro.
Danielle não moveu um músculo, nem mostrou-se temerosa. Na verdade, teve a audácia de parecer ultrajada. Mantendo a voz baixa, avisou-o:
- Não se atreva a me tocar, milorde. O rei é meu guardião.
- Você não nega...
- Sir, por favor retire-se de meus aposentos.
- Retirar-me? Retirar-me! Ah, milady...
MacLachlan não sabia bem o que pretendia ao dar um passo à frente. Talvez esganá-la? De repente, alguém o chamou.
- Adrien?
Virando-se, deparou-se com o rei.
- Algum problema? - perguntou Edward.
Notando a presença de Monteine, MacLachlan logo deduziu que a criada ficara aos gritos no corredor, porque um dos cavaleiros do rei estava prestes a causar mal a sua jovem ama.
- Receio que sim, sir. Ao acordar esta manhã descobri em minhas botas algo além de meus pés. Estranhamente, creio que a jovem e doce condessa seja a responsável!
- Milady, você é mesmo responsável, como crê sir Adrien?
- Se ele é, de fato, um cavaleiro tão destemido, por que se incomodaria com algo dentro das botas? Quanto a mim, sir, por que eu me interessaria por calçados imundos?
- Vossa Alteza, parece que milady necessita urgentemente de disciplina. Você e a rainha a adulam, todavia, como a partir de hoje sou eu o encarregado de protegê-la, não tolerarei tal comportamento.
- Ela ainda está sob minha responsabilidade - falou o rei, suspirando -, portanto, fora de seu alcance. Venha comigo, rapaz. Precisamos conversar.
Edward saiu do quarto, e Adrien deveria tê-lo acompanhado imediatamente. Entretanto, aproximou-se da menina e, com alguma satisfação, viu-a empalidecer.
- Milady, acredite-me. Tente mais alguma coisa e o rei não estará por perto para defendê-la.
- E o que você fará? - Danielle gritou, descontrolada. - Vai provocar a queda de Aville outra vez? Mas Aville já foi conquistada. Vai usar seus truques para vencer cavaleiros superiores em força e habilidade? Que vida perfeita você construiu para si, milorde, sobre a ruína de outros... Talvez as coisas não devam ser sempre tão perfeitas. Você não merece tudo o que conseguiu através da queda de Aville! Você, com certeza, não merece lady Joanna!
- O quê?
- O rei o está esperando - Danielle o lembrou friamente.
- O que você disse?
Aflita, Monteine segurou a jovem condessa pelos ombros, como se tentando lhe incutir um pouco de bom senso.
- Eu disse que você não merece Joanna. Ela é gentil, bondosa, doce. E você é como o maldito leão estampado em seu escudo. Rugindo, destroçando, dilacerando.
Novamente Adrien descobriu-se dando um passo à frente.
- E você, milady, não tardará a experimentar o peso dessas garras. Com ou sem o consentimento do rei.
Como temia não resistir ao impulso de lhe dar umas palmadas, Adrien retirou-se. Edward o aguardava, sozinho, no corredor.
- Ela viveu tempo demais entre os franceses - disse o rei, resignado. - Eu deveria ter exigido que Lenore a mandasse passar temporadas na Inglaterra. Porém estive sempre envolvido em tantas batalhas... Talvez você pudesse ser um pouco mais gentil com Danielle.
- Mais gentil? - MacLachlan repetiu, incrédulo. - Seria um convite para que a megera me cortasse a garganta.
- Ora, não é assim tão terrível.
- A condessa precisa de disciplina, sir.
- Você era bem mais novo do que ela quando provocou a queda de Aville. Foram muitas as ocasiões em que meus homens, e também os defensores do castelo, insistiram que você precisava de disciplina.
- Os professores que você escolheu para mim, sir, me incutiram a disciplina necessária.
- Na presente situação, não posso deixá-lo corrigir o comportamento de Danielle, porque ela continua sob minha responsabilidade. Contudo... é uma situação que desejo mudar.
- Como disse, sir?
- Ah, meu rapaz... - Edward pousou a mão no ombro de MacLachlan. - Você e a jovem condessa são muito parecidos. Por mais que eu queira domá-la às vezes, impressiona-me seu ardor, sua vitalidade. E lealdade. Você não deve se esquecer de que ela passou muito mais tempo do outro lado do Canal do que aqui. Lembra-se de como foi difícil para você deixar sua família na Escócia? Servir um outro rei?
- Continuo leal a David da Escócia, embora ele seja seu prisioneiro e eu esteja ao seu serviço, sir.
- Tenho sido justo com David.
- Eu sei. Por isso permaneço seu servo, Edward.
- Sim, meu servo. É essa questão que discutiremos.
- Sim? - Adrien sentia-se cada vez mais apreensivo com o rumo da conversa.
- Quero lhe dar terras dignas de meu melhor cavaleiro. E uma bela esposa.
O coração de MacLachlan disparou.
- Há alguns meses eu pretendia lhe falar sobre meu casamento, milorde. Eu...
- Venho pensando no assunto há algum tempo - o rei o interrompeu. - Quero que você fique noivo de lady Danielle d'Aville. Se ainda não se sente pronto para se casar, poderá esperar, desde que ambos fiquem legalmente noivos. Não apenas a Fortaleza Gariston é magnífica, como as terras que a cercam são produtivas e os rebanhos fartos.
Casar-se com aquela feiticeira que ansiava cortar sua garganta? Impossível!
- Edward! Eu pretendia pedir a mão de lady Joanna!
- Ah, Joanna. Gentil, linda, adorável. Mas não para você, meu rapaz! Ela é suave demais... Você precisa de algum fogo.
- Então sua intenção é me conceder a mão de... uma jovem megera?
- Com certeza você não é cego. Danielle é nova, porém belíssima. Sim, é voluntariosa, o que fará seu sangue ferver nas veias, rapaz. É muito jovem, mas Philippa se casou comigo aos doze anos. Se for seu desejo, vocês podem adiar o casamento por muitos anos. Mas o noivado lhe dará o poder de regente sobre Danielle e sobre suas terras. A propósito, o duque de Glenwood, o filho pequeno e a esposa morreram recentemente, vitimados pela peste. Darei a você o título e as propriedades do falecido duque como presente de noivado.
Adrien ficou rígido. A maioria dos homens se ajoelharia aos pés do rei e agradeceria a grande honra. Muitos nobres haviam pedido a mão de Danielle e Edward os rejeitara. Agora o rei lhe oferecia riqueza e poder como nunca sonhara. O título, as terras! Que herança inacreditável passaria aos netos de Carlin MacLachlan.
Mas prometera casar-se com outra.
- Sei que jamais me voltará a ser oferecida tamanha honraria, Vossa Alteza. Entretanto, devo recusá-la. Amo Joanna.
- Tolice, filho. Ela é apenas uma amiga querida. Uma conselheira, uma mentora, mas não a mulher ideal para você. Aliás, creio que um detalhe está lhe escapando.
- Sir?
- Eu sou o rei. Recuso-me a lhe dar permissão para se casar com Joanna.
- Sir - Adrien protestou. - Eu o tenho servido bem...
- Por isto mesmo encerraremos essa conversa agora. Pense em minha oferta durante a viagem ao Castelo de Gariston. Quanto tornarmos a nos encontrar, retomaremos o assunto. Apresse-se em partir. Mais mortes foram relatadas. A peste está se espalhando rapidamente.
O rei deu-lhe as costas e afastou-se.
Ao diabo que me casarei com aquela megera, Adrien pensou, resoluto. Amava Joanna. Sim, a seu modo, amava-a. Considerava-a sua melhor amiga. Linda, gentil, delicada. Joanna tinha todas as qualidades desejáveis numa esposa.
A filha de Lenore era nova demais para se casar, embora já tivesse consciência do efeito que causava no sexo oposto. Bastava ver como os rapazes da corte a seguiam à espera de um olhar, de um sorriso. E Danielle os tratava com a típica arrogância de quem se julga superior.
Caso viessem a se casar, ela passaria a vida desprezando-o.
Enquanto Joanna o amava.
O dia estava lindo, quando finalmente partiram. Adrien, contudo, antecipava uma jornada enfadonha. Acostumado a longas marchas por territórios inimigos, sabia que aquela seria uma viagem diferente. A seu lado cavalgava Daylin, seu escudeiro de quinze anos, ansioso para provar o próprio valor. Dez de seus guerreiros e mais dez soldados, designados para servir a jovem condessa, compunham a comitiva, além de lady Jeanette, Monteine, dr. Coutin e uma meia dúzia de servos. Embora o trajeto até Gariston pudesse ser vencido num único dia, Adrien acreditava que só seria possível percorrê-lo em dois, devido à excessiva bagagem distribuída em carretas e carroças.
Por sorte, as velhas estradas romanas estavam em boas condições, o que lhes permitia avançar não muito lentamente.
MacLachlan liderava o cortejo e tão imerso estava em seus pensamentos, que demorou a se dar conta de que Danielle disparara na frente. Irritado, alcançou-a em poucos segundos.
- Milady, a escolta tem por objetivo mantê-la fora de perigo.
- Não há perigo no campo - ela afirmou, sem diminuir a velocidade.
- Ladrões e assassinos podem ser encontrados em qualquer lugar.
- Ainda não vi nenhum, exceto aqueles que receberam ordens de me acompanhar.
Ah, só uma vez! Como gostaria de lhe dar umas palmadas pelo menos uma única vez!
- Volte para o meio do cortejo, milady. E se está pensando em causar algum problema, lembre-se de que não poderá se esconder atrás do rei. Faça o que estou mandando.
- Não seja ridículo. Eu nunca me esconderia atrás do rei da Inglaterra.
- Foi bom Edward ter surgido em seu quarto quando surgiu, milady, ou você teria sentido a força da minha ira.
- Você não teria ousado me tocar, milorde.
- E por que não?
- Sou uma condessa.
- E eu um conde.
- Estou sob a tutela do rei.
- Ah, então você ainda está tentando se esconder atrás dele!
- Nunca me escondo atrás de ninguém.
- Se é tão corajosa, então diga-me a verdade. Você pôs mel nas minhas botas?
Danielle considerou a questão, antes de respondê-la.
- Sim, de certa forma. Na verdade, foi um acidente.
- O mel acidentalmente acabou dentro das minhas botas?
- Sim.
- A pimenta também acabou dentro do meu vinho acidentalmente?
O comentário a pegou de surpresa.
- A pimenta foi há muito tempo. E não foi acidente. Tampouco faço segredo de que o considero um inimigo. Você deveria ter o bom senso de manter-se longe de mim.
- Por quê? Simplesmente me defenderei pondo pimenta no seu leite e mel na sua cama. Ah, e darei umas palmadas em seu nobre derrière se você me causar mais dificuldades.
- Oh, você terá mais dificuldades.
- Por quê?
- Porque só estou nesta situação por culpa sua! - ela exclamou, furiosa.
- Como é?
- Aville é uma grande fortaleza. Minha mãe poderia tê-la defendido até a chegada de reforços, se não fosse você.
- Você não era nascida na época, milady.
- Não, mas sei que você causou a queda de Aville e ganhou a confiança do rei em troca da destruição da minha casa.
- Sua casa nunca foi destruída, você o sabe muito bem. Edward não ordenou nenhuma retaliação contra sua mãe, ou contra a cidade.
- O rei a transformou em prisioneira e levou-a à força para a Inglaterra.
- Então ela se casou com seu pai e obteve permissão para voltar a Aville e governá-lo, depois da morte de Robert.
Embora reconhecesse a consistência do argumento, Danielle agarrou-se teimosamente à sua idéia.
- Nada disso teria acontecido se você não houvesse feito a fortaleza cair.
- Por Deus, chega! - ele retrucou exasperado. - Você presenciou o cerco a Calais. É mais misericordioso tomar uma fortaleza rapidamente. Se o estado de sítio houvesse se arrastado em Aville, mais pessoas teriam morrido de fome. E, minha querida menina, é hora de encarar a verdade. Seu lar é aqui! Você nasceu em Londres. Seu pai era um cavaleiro amado e respeitado pelo rei inglês.
- E minha mãe era prima do rei francês.
- Prima distante.
- Pertenço à casa de Valois. E Aville deveria ter permanecido sob a proteção do rei francês. Você, sozinho, foi o responsável pela queda da fortaleza.
- Sozinho? O rei e muitos bravos guerreiros ficariam ofendidos se a ouvissem. Eu não passava de um menino.
- Você construiu uma vida vitoriosa através da derrota imposta a minha mãe e meu povo. Você obrigou-a a se tornar prisioneira do rei. Ele a torturou e depois a arrastou para a Inglaterra.
- Bom Deus, dê-me paciência! Lenore nunca foi torturada e não creio que, algum dia, tenha lhe dito um absurdo desses. Talvez você devesse se lembrar de que foi Robert quem, no leito de morte, pediu ao rei para ser seu padrinho.
- Sir, nada me fará mudar de idéia a respeito desse assunto. Minha mãe morreu fazendo-me prometer honrar o rei. A propósito, prefiro não cavalgar a seu lado.
- Se você se unir ao cortejo e me permitir liderar, não cavalgaremos juntos. E por favor, não se esqueça de que sou eu quem está cumprindo uma missão desagradável.
Impaciente, Danielle resmungou algo sobre o que ele deveria fazer consigo mesmo. Um tanto chocado com a linguagem indigna de uma jovem condessa, Adrien supôs que a menina só poderia ter aprendido tais palavras na companhia dos príncipes e de seus guerreiros.
Danielle começou a se afastar, porém MacLachlan segurou as rédeas do cavalo.
- Pense nisto: se não fosse por mim, talvez você nem sequer existiria. Você é uma mistura de sangue francês e inglês, quer o deseje ou não. Se Aville não tivesse caído, você não teria nascido. Agora volte para o cortejo, condessa!
- É o que estou tentando fazer.
Ele soltou as rédeas. Saindo em disparada, Danielle reassumiu seu lugar junto do dr. Coutin.
Adrien ergueu os olhos para o alto, espantando-se ao constatar que o céu continuava límpido e o sol brilhando. Sentia-se péssimo, o corpo inteiro rígido. Se ao menos Joanna estivesse a seu lado...
Ao cair da tarde, o grupo chegou a Hendon, onde deveriam pernoitar. Sir Richard Aisling correu para recebê-los no pátio da mansão, uma expressão preocupada no rosto enrugado.
- Há algum doente entre vocês? - indagou sem preâmbulos, fazendo o sinal da cruz. - Com a graça de Deus, até agora temos escapado da Peste Negra e embora eu jamais me negasse a atender um pedido do rei, acolhendo a pequena órfã, preocupo-me com... Mas ela é uma linda dama, não é? - murmurou Aisling, quase perdendo a fala ao avistar a condessa.
Irritado, Adrien desmontou e ajudou Danielle a apear, apesar da resistência da jovem em receber qualquer tipo de auxílio.
-Não, nenhum de nós está doente - MacLachlan garantiu, seco. - Estou ansioso para abrigar milady num lugar seguro, conforme as ordens do rei.
- Oh, claro. Entrem, entrem - concordou Aisling, forçando um sorriso. - A condessa e suas damas de companhia dormirão na casa. Seus homens podem se abrigar nos estábulos e lá tomarem as refeições. Darby, um dos cavalariços, lhes mostrará o caminho. Milorde MacLachlan, condessa Danielle, por favor, sigam-me.
O interior da mansão revelou-se agradável e aconchegante. O fogo ardia na lareira e o jantar já os aguardava à mesa. Observando Danielle, Adrien compreendeu por que muitos homens a consideravam um verdadeiro prêmio. Ela comia delicadamente, as mãos de dedos longos e elegantes se movendo com graça. Os olhos verdes faiscavam à luz das chamas, oferecendo um contraste arrebatador com os cabelos negros e a pele alva. Ao término da refeição, sir Richard estava absolutamente encantado com sua convidada, convencido de que o rei Philip não era bem um inimigo, apenas um pobre-coitado mal-interpretado.
- Acho que está na hora de milady se retirar, sir - disse Adrien, levantando-se. - Quero partir amanhã cedo e prefiro não vê-la dormindo na sela, ou ter de carregá-la.
Danielle, naturalmente, levantou-se num átimo.
- Não tema, lorde MacLachlan. Você não terá de me carregar para lugar nenhum. Sir Richard, agradeço-lhe a hospitalidade e desejo-lhe uma boa noite.
Ela se afastou com a altivez de uma rainha. Sozinho com o anfitrião, Adrien desculpou-se.
- Também preciso dormir um pouco. Estou impaciente para chegar a Gariston e mais impaciente ainda para retornar a Londres, onde a segurança de uma amiga me preocupa nesta época difícil.
- É pavoroso o que está acontecendo - Aisling se lamentou, benzendo-se. - O número de mortos aumenta a cada dia. A população da Inglaterra poderá ser dizimada, se a peste continuar se alastrando tão implacavelmente.
Adrien deveria ter dormido bem. O jantar fora ótimo e caíra na cama exausto. Entretanto passara a noite virando-se de um lado para o outro e acordara com a sensação de não ter pregado os olhos.
Depois de lavar-se, vestiu-se e chamou Daylin, instruindo-o a se certificar de que Danielle já se encontrava pronta para partir.
- A condessa está no pátio, milorde. E os homens o esperam para iniciar a viagem.
- Ótimo. Agradeceremos a hospitalidade a sir Richard e partiremos em seguida.
Dali a poucos minutos MacLachlan chegava ao pátio. Danielle, montada em sua bela égua, parecia serena e de bom humor.
- Pronta, milady? - ele indagou, educadamente.
- Sim, milorde.
Liderando o cortejo, Adrien deu início à jornada. Logo alcançavam campos verdejantes, que se estendiam além do horizonte.
Praguejando baixinho, Adrien viu Danielle atiçar a égua numa correria desabalada, fascinada pela beleza da paisagem. Por mais que se esforçasse, não conseguia fazê-la entender que perigos existiam. Irritado, lançou-se ao encalço da teimosa. E já estava quase alcançando-a quando notou algo errado. A sela estava frouxa. Tão frouxa que não tardaria a se soltar. Em segundos, seria atirado no chão e pisoteado pelo próprio cavalo. Numa reação instintiva, agarrou-se ao pescoço de Mateus. Bem na hora, pois a sela cedeu e foi destroçada pelos cascos poderosos do imenso cavalo de guerra.
- Milorde! - gritou Daylin aflito, aproximando-se rápido.
- Estou bem! Mande os outros me esperarem aqui. Vou atrás da condessa!
Instigado por uma fúria sem precedentes, Adrien cavalgou como o vento. Ao alcançar Danielle, a jovem se preparava para entrar num bosque denso, perto da velha estrada romana. Louco de raiva, segurou a égua pelas rédeas, imobilizando-a de supetão.
- O que está acontecendo? - a condessa indagou, alarmada.
- Você ainda pergunta? - MacLachlan gritou. - Pimenta é uma coisa, milady. Causa apenas tosse. Mel dentro da bota é somente um contratempo inconveniente. Mas desta vez, minha pequena feiticeira, você esteve a ponto de me matar!
- Não sei do que você está falando.
- Ah, sabe sim.
- Estou lhe dizendo que não...
- Minha sela! - ele vociferou, desmontando e arrancando-a de cima da égua.
- Eu não toquei na sua sela - Danielle falou por entre os dentes, tentando, em vão, desvencilhar-se das mãos que a prendiam feito tenazes.
- Daylin sabe como arrear um cavalo, milady. E como você prontamente admite apreciar brincadeiras de mau gosto, a conclusão é óbvia.
- Admito apenas quando sou culpada!
- E nega quando está a ponto de, finalmente, pagar o preço.
- Tire as mãos de mim!
- Não desta vez, milady.
- Solte-me neste instante, ou farei com que o rei...
- Mesmo que o rei fosse me enforcar na árvore mais alta, eu não desistiria do que planejo fazer agora.
Fervendo de ódio, Adrien sentou-se num tronco, colocou Danielle de bruços sobre os joelhos e cumpriu a ameaça feita tantas vezes. Surdo aos apelos da condessa, que esperneava sem parar, deu-lhe um tapa nas nádegas. E quando os dentes brancos e pequeninos se enterraram na sua coxa, deu-lhe outro tapa, ainda mais forte. Danielle gritou e parou de mordê-lo. Então Adrien tomou consciência das curvas femininas e tentadoras, do perfume sutil exalado pelos cabelos negros. Tenso, levantou-se e a pôs no chão.
- Nem mais uma brincadeira de mau gosto! Nem mais um ataque contra mim, você entende?
Trêmula de raiva, os olhos verdes marejados de lágrimas, Danielle nunca lhe parecera tão bela. Pela primeira vez Adrien se deu conta de que a condessa já estava em idade de se casar e precisou se concentrar na idéia de que sempre preferira mulheres mais maduras.
- Canalha! Eu não fiz nada!
- Seu "nada" quase me matou!
Todavia, a jovem continuou mostrando-se ofendida, afrontada pela acusação.
- Você está enganado! Não sou culpada! Oh, sir, vai se arrepender deste dia. Não o estou ameaçando em vão. Contarei ao rei o insulto de que fui vítima.
- Pode contar a Edward o que desejar, milady. Diga-lhe que nasceram chifres e rabo em mim. O rei me permitirá fazer o que eu quiser, milady. De fato, Edward sugeriu que você se tornasse responsabilidade minha.
Perplexa, Danielle arregalou os olhos, subitamente muito pálida.
- Você está mentindo. Sei que está mentindo. O rei é meu guardião. Você não tem o direito, você não merece...
- Ah, sim! Outra vez a história sobre o que mereço ou não. Hum... Eu não merecia Joanna, porque ela é tão delicada e doce! Bem, condessa, parece que o rei concorda com você.
- Ótimo. Assim Joanna se casará com algum cavaleiro bom e gentil.
- E eu desposarei uma pequena megera, uma criatura selvagem.
- Conforme você merece!
- Palavras suas. E você, milady, também terá o que merece. Um leão rugindo, destroçando, dilacerando!
- O que está dizendo? Não compreendo...
- Ah, mas estou tentando fazê-la entender. Preste atenção. O rei insiste que eu me case com você, milady.
- Não! - ela gritou afastando-se, a voz estrangulada.
- Sim - devolveu MacLachlan, destilando ironia. - O rei acha que uma cerimônia imediata seria melhor. Entretanto, sou contra desposar alguém da sua idade e Edward o sabe. Assim, sugeriu que ficássemos noivos agora, para que eu pudesse me tornar seu guardião legal e o responsável pela administração de seus bens. Eu passaria a ser seu único senhor, milady.
- Você?!
- Naturalmente. O leão que ruge, destroça e dilacera. O canalha que sou.
Adrien saboreou aquele momento de completa satisfação, ciente de que suas palavras a feriam muito mais do que um tapa.
- Uma proposta tentadora, a de Edward - prosseguiu, sentindo prazer em atormentá-la. - Muito tentadora. Um cavaleiro sempre necessita de uma boa fonte de renda, além de terras produtivas, como Gariston. Todavia... recusei a generosa oferta do rei. Vou me casar com lady Joanna.
De repente, soou um ruído seco às suas costas. Curioso para descobrir a origem do som, virou-se.
A jovem condessa estava caída sobre a relva macia. A simples menção do hipotético casamento conseguira o impossível: silenciá-la.
Danielle d'Aville havia desmaiado.
Fitando-a, MacLachlan foi obrigado a admitir que a condessa estava se tornando uma mulher belíssima e perigosa. Então, experimentou uma ponta de culpa. Apesar de todas as bravatas, ela era jovem e tinha medo. Precisava ser mais paciente.
Ou talvez não. Danielle merecera. Gentil, Adrien tomou-a nos braços.
- Danielle?
Aos poucos, ela voltou a si. Os olhos arregalados revelavam inocência, vulnerabilidade.
- Nunca me casarei com o senhor.
- Ótimo. Porque eu também nunca me casarei com você.
- Mas você disse...
- Eu disse o que o rei havia sugerido. Nunca lhe falei ter concordado.
- Então...
- Amo Joanna e vou desposá-la.
- Oh. - Ela engoliu em seco, desconcertada. - Por favor, ponha-me no chão agora. Estou bem.
Adrien obedeceu, tendo o cuidado de continuar amparando-a até se certificar de que não sofreria outra vertigem.
- Não toquei na sua sela - Danielle falou baixinho, caminhando na direção do resto do grupo.
Durante vários minutos Adrien permaneceu imóvel, pensativo. A jovem dama sempre estivera pronta para admitir suas brincadeiras de mau gosto, porém desta vez...
Desta vez, quando a castigara, ela negara veementemente. Não, não se sentiria culpado.
A comitiva retomou a jornada. Como Adrien preferia cavalgar sozinho, enviou Daylin à frente, para verificar se a estrada continuava livre.
Logo o escudeiro voltava, galopando como se o demônio o perseguisse.
- Milorde! - o rapazinho gritou, aflito. - Milorde, precisamos recuar, sair da estrada! Os monges estão vindo nesta direção, conduzindo uma carroça cheia de corpos para serem enterrados.
- Tirem as carroças da estrada e levem-nas para o bosque! - Adrien comandou, seus guerreiros prontamente seguindo a ordem.
Em instantes os frades surgiram, conduzindo o veículo macabro. Cadáveres empilhados ofereciam uma visão sinistra. Camponeses e nobres abraçados na morte como nunca em vida.
Então Adrien percebeu que Danielle desmontara e acompanhava a procissão com um olhar angustiado. Cheio de piedade, puxou-a para junto de si, querendo protegê-la, poupá-la de tanto sofrimento.
Surpreendentemente, ela não o repeliu. Mas tampouco desviou o olhar da cena apavorante.
- Não olhe - Adrien a aconselhou, sentindo-a tremer.
Por um segundo Danielle havia se esquecido de que ele era o inimigo e encontrado conforto entre os braços musculosos.
- Já fui exposta à praga antes. Vi minha mãe morrer.
Depois que o cortejo fúnebre passou, um silêncio pesado caiu sobre o grupo. De súbito, todos começaram a falar ao mesmo tempo.
- Não devemos respirar! - gritou um dos soldados, descontrolado.
- Você é estúpido? - interveio outro. - É impossível não respirar, homem.
- Temos de seguir em frente depressa, milorde! - Daylin suplicou.
- O escudeiro tem razão, sir - concordou dr. Coutin. - Não há armadura que possa nos proteger da Peste Negra. Afastarmo-nos dos locais infectados é nossa única defesa. Sei que parece crueldade, mas assim que entrarmos no castelo fecharemos os portões e não concederemos acesso a mais ninguém.
- Para Gariston! - comandou MacLachlan.
A comitiva avançou rapidamente, no mais completo silêncio. Como o rei mandara um mensageiro dias antes, a condessa e sua escolta já eram esperadas.
Edward lhe assegurara que os bens de Danielle na Inglaterra impressionavam pelo volume e valor. Adrien constatava agora não ter havido exagero no comentário. As terras vastas e produtivas perdiam-se de vista, rebanhos gordos pastavam indolentes pelos montes e a fortaleza parecia em excelente estado de conservação. Gariston seria um prêmio cobiçado por qualquer nobre.
- A herança que seu pai inglês lhe deixou é mesmo substanciosa, milady - ele observou, notando-a a seu lado.
- Sem dúvida. Sei que sou uma mulher rica. Ainda bem que você é tão apaixonado por lady Joanna! - a jovem o provocou, disparando num galope frenético.
Praguejando, MacLachlan cavalgou atrás. Mas só conseguiu alcançá-la quando Danielle já cruzava a ponte levadiça. Chegando ao pátio interno do castelo, Adrien desmontou e tirou-a da sela, sem se importar se sua assistência era desejada ou não.
- Milorde, milady, bem-vindos! - saudou-os sir Thackery Milton, administrador de Gariston havia anos. Adrien o conhecia e respeitava. Leal, sagaz, inteligente, o homem perfeito para gerir uma propriedade tão opulenta. - Bem-vinda, bem-vinda - repetiu Thackery. - Uma jornada longa, não, milady?
- Nem tanto - Danielle respondeu de bom humor. - O rei, sim, demorou a me mandar para cá.
- Então entre e venha explorar sua casa. Venha conhecer este lugar maravilhoso. Milorde MacLachlan, se seu escudeiro se encarregar de instalar seus homens, meu criado Jacob levará as damas da comitiva até os aposentos que lhes foram destinados. E eu lhe mostrarei, e à condessa, o Castelo de Gariston.
Após instruir Daylin sobre as acomodações dos cavaleiros e soldados, Adrien seguiu Danielle e sir Thackery. O salão principal ocupava toda a área térrea da torre oeste. Amplo, elegantemente decorado, aconchegante. Tapeçarias e uma vasta coleção de armas cobriam as paredes imensas. Diante da lareira, havia uma mesa de madeira entalhada, sobre um espesso tapete de pele. Sorrindo, sir Thackery serviu um cálice de vinho a Adrien.
- Um belo salão - MacLachlan elogiou, sincero.
- De fato. Venha conhecer os aposentos destinados ao senhor do castelo. Ah, desculpe-me - falou o velho nobre, virando-se para Danielle. - Agora são os aposentos da castelã.
O administrador os guiou pela escadaria imponente até o pavimento superior. Com um floreio, abriu a única porta daquele corredor, revelando o interior de um quarto imenso.
O fogo ardia na lareira, criando uma atmosfera acolhedora. Vários tapetes de pele cobriam o chão de pedra. A cama enorme, repleta de travesseiros e almofadas, convidava ao repouso. Num canto, sob a janela, duas poltronas ladeavam uma pequena mesa. Uma outra porta conduzia ao cômodo contíguo, um banheiro.
- Não é mesmo um aposento agradável, milorde? - indagou sir Thackery.
- Sem dúvida - concordou MacLachlan. - E muito luxuoso.
- Vamos para o pavimento superior, onde fica o quarto de hóspedes. Sei que o achará bastante confortável.
Antes de se retirar, Adrien parou para estudar a cornija da lareira, delicadamente entalhada.
- Desculpe-me, milorde, mas este é meu quarto - disse Danielle. - Sir Thackery o aguarda para levá-lo ao seu.
Sem pressa, MacLachlan virou-se para fitá-la. Era óbvio que a jovem herdeira estava ansiosa para despachá-lo, encantada com toda a riqueza que a cercava.
- Condessa, com grande prazer deixo-a saborear sua solidão.
Ele ainda não havia dado dois passos, quando ouviu-a falar:
- Eu não mexi na sua sela.
Adrien voltou-se, uma das sobrancelhas arqueada.
- Eu não fiz nada - ela repetiu resoluta, os olhos verdes brilhando intensamente. - Asseguro-lhe que não sou culpada e você me deve um pedido de desculpas.
Por um momento Adrien hesitou, o tom veemente perturbando-o.
Mas o bom senso aconselhava-o a não se deixar persuadir com facilidade.
- Ainda não recebi um pedido de desculpas seu, pelo que fez com o vinho e minhas botas.
- Nunca encostei a mão em você.
- Sir Thackery me aguarda - ele falou, retirando-se.
O quarto de hóspedes era quase tão grande e confortável quanto os aposentos principais. Naquela noite, Adrien dormiu profunda e longamente. Pela manhã, dedicou-se a conhecer melhor o castelo. As damas de companhia e o tutor de Danielle estavam instalados na torre sul, enquanto a torre norte tornara-se domínio dos cavaleiros e soldados.
Também passou algumas horas na companhia de sir Thackery, analisando a contabilidade de Gariston. Conforme imaginara, a situação não poderia ser mais próspera.
Satisfeito, Adrien cumprimentou o velho cavaleiro pelo excelente trabalho, afirmando que o rei reconhecia e valorizava seus esforços na administração de tão importante propriedade.
- Fico feliz que a filha de meu bom senhor Robert finalmente esteja aqui. Ele era um grande homem e alegra-me servir sua herdeira. - Para o dia seguinte, sir Thackery sugeriu uma caçada, pois com tantos hóspedes no castelo seria necessário aumentar as provisões. - Há abundância de caça em nossas florestas nesta época do ano. Veados, javalis e aves de todos os tipos. Creio que milorde apreciará a diversão.
Adrien aceitou o convite e depois de se despedir do administrador resolveu caminhar pelo pátio externo, onde acontecia uma feira. Fileiras de artesãos exibiam suas mercadorias, a variedade e qualidade dos artigos impressionando-o. Chamou-lhe especial atenção o trabalho de um ourives que finalizava a confecção de um delicado bracelete.
- É uma bela peça, milorde - falou o artífice, exibindo a jóia quase pronta. - Digna de uma verdadeira princesa.
- Sem dúvida. Quando pretende terminá-la?
- Para quando o senhor a quer?
MacLachlan riu.
- O quanto antes. Planejo partir em breve para buscar minha dama. Estou ansioso para colocá-la a salvo, longe dessa praga cruel que assola o país.
- O bracelete ficará pronto esta noite - prometeu o ourives.
Sem barganhar, Adrien pagou pela jóia, sabendo que em Londres ou Winchester o preço seria muito mais alto. Joanna com certeza apreciaria o presente. Também estava convencido de que ela adoraria passar uma temporada em Gariston. Na manhã seguinte participaria da caçada sugerida por sir Thackery e tomaria a estrada no outro dia, ao amanhecer.
Sentindo-se mais aliviado depois da decisão tomada, Adrien continuou o passeio. E não se surpreendeu quando, ao chegar ao pátio interno, descobriu Danielle rodeada de escudeiros e cavaleiros. De alguma maneira a jovem condessa conseguira participar da sessão de treinamento. Montada em sua égua, ria enquanto tentava manter ereta a pesada lança.
- Você é extraordinária, milady, mas o peso da lança a fará perder o equilíbrio em instantes. Entregue-a a mim. - Daylin apanhou a lança e ajudou-a a desmontar.
Ainda mantendo certa distância, MacLachlan acompanhou a cena, reparando no modo gentil com que Danielle tratava todos que a cercavam.
Embora notasse sua presença, a condessa ignorou-o e caminhou para a torre oeste sem se dignar sequer a cumprimentá-lo.
Por Deus, mas ela sabia irritá-lo!
Assobiando despreocupado, seguiu-a.
- O que foi, milorde? - Danielle indagou num tom áspero, virando-se para ele. - Pensa que é tolice minha alimentar esperanças de conquistar a lealdade das tropas de Gariston?
- Pelo contrário. Você me parece estar se saindo muito bem. A dama perfeita.
- Ah. Um elogio. E esse seu jeito de se desculpar?
- Não, milady. Você mereceu exatamente o que recebeu de mim. E sempre terá o que merecer.
- É mesmo? Bem, talvez seja conveniente você me dizer, milorde, quando pretende partir?
- Na verdade, condessa, partirei depois de amanhã bem cedo. - Atento à expressão satisfeita da jovem, Adrien prosseguiu: - Não sou capaz de deixar meus assuntos pessoais nas mãos de terceiros. Vou buscar Joanna. Eu gostaria que ela residisse em Gariston durante uma temporada, até o rei me dispensar de minhas obrigações para com você. Por favor, milady, permita-me trazer Joanna para cá.
- Eu adoro Joanna. Ela sempre será bem-vinda em minha casa.
Os dois continuaram tratando-se com civilidade durante o jantar com sir Thackery, lady Jeanette e Monteine. Depois de mostrar-se entusiasmada com a caçada do dia seguinte, a condessa retirou-se ao fim da refeição, dizendo-se cansada.
Adrien e sir Thackery ainda permaneceram no salão, entretidos com um jogo de xadrez.
Tarde da noite, quando se dirigia aos seus aposentos, MacLachlan viu Monteine saindo do quarto de Danielle.
- Milorde? - a aia o chamou.
- Sim?
- Eu... - Houve uma longa pausa. - Por favor, não fique bravo com a condessa. Ela é jovem, delicada e sofreu muito com a perda da mãe. A pobrezinha cresceu na França, vendo a destruição causada pelos ingleses. Suplico-lhe, milady não tem noção do que fala...
- Ela tem perfeita noção do que me diz e é tão delicada quanto os javalis que vamos caçar amanhã. Também sabe o que esperar de mim se me afrontar. Agora, se me der licença, estou muito cansado.
- Milorde - Monteine tornou a chamá-lo, nervosa.
- Sim?
- Eu queria... que não ficasse tão zangado. Se houvesse uma maneira de acalmá-lo...
- A condessa e eu teremos de aprender a conviver. Boa noite, Monteine.
Adrien afastou-se, convencido de que a aia quisera lhe dizer mais alguma coisa.
O dia seguinte amanheceu límpido e ensolarado. Danielle, acompanhada de suas damas de companhia, reuniu-se a MacLachlan, sir Thackery, Daylin e mais dois jovens guardas do castelo.
Porém, bastou chegar ao campo aberto para a condessa sair em disparada, deixando a pequena comitiva para trás. Em segundos, desaparecia no meio das árvores. De repente, um grito agudo cortou o ar. Agoniado, com o coração batendo furiosamente, Adrien cavalgou atrás dela.
Descobriu-a caída no chão, ao lado da égua. Em questão de segundos MacLachlan a cercava de cuidados, temendo ter havido alguma fratura.
- Star atirou você no chão? - ele perguntou ansioso, reparando que a égua também não se levantara.
Trêmula, Danielle balançou a cabeça, as feições alteradas.
- Adrien... olhe. Oh, Deus, Adrien, ali!
O cavaleiro olhou na direção indicada. Um cadáver jazia dependurado num galho de árvore, em avançado estado de decomposição. Pelas marcas das pústulas, concluía-se que o pobre-coitado, atormentado pelas agonias da peste, enforcara-se com o próprio cinto. A visão horrível assustara Star, que empinara e perdera o equilíbrio.
- Ele está morto há muito tempo - Adrien falou baixinho, ajudando-a a se levantar. - Você está ferida?
- Não.
- Tem certeza? - MacLachlan segurou-a pelo queixo, obrigando-a a desviar o olhar do cadáver.
- Sim.
Sir Thackery aproximou-se ofegante, benzendo-se ao avistar o corpo do infeliz.
- Vamos tirá-lo daí, senhora. Ah, milady, graças a Deus está bem! Todavia a égua terá de ser sacrificada.
- O quê? Não, oh, não! - Desesperada, a jovem ajoelhou-se ao lado de Star.
Inspirando fundo, Adrien acercou-se de Danielle e apontou o galho pontiagudo, cravado na perna direita da égua.
- Ah, lady - lamentou-se Daylin. - Star não poderá andar nunca mais. Terá mesmo que ser sacrificada.
Cega pelas lágrimas, a condessa agarrou-se ao pescoço de MacLachlan.
- Por favor, Adrien, não há nada que se possa fazer?
- Ouça, milady...
- Não, você não pode deixar que a matem! Por favor, por favor, ajude-me, Adrien... Não deixe que a matem!
Ela amava a égua e, MacLachlan percebeu, Danielle também estava procurando sufocar as lembranças despertadas pela visão do cadáver. Ainda menina, enfrentara a morte da mãe, vitimada pela peste. Lutar pela vida de Star simbolizava lutar contra o horror de um inimigo invisível e devastador.
- Posso tentar fazer uma espécie de rede para manter Star imobilizada, e existe um unguento à base de raízes eficaz para apressar a cicatrização da ferida. Você terá de trocar os curativos várias vezes ao dia, dia após dia e, mesmo assim, talvez a égua não se recupere.
- Mas podemos ao menos tentar - Danielle murmurou, trêmula. - Por favor!
- Não fique aí parado olhando para mim, Daylin! - MacLachlan falou, depois de alguns segundos de silêncio. - Temos um trabalho à nossa espera. Precisamos de uma maca.
- Para um cavalo, milorde? - o escudeiro perguntou, incrédulo.
- Sim, para um cavalo! - Virando-se para a condessa, Adrien a instruiu: - Não a quero perto do enforcado. Mantenha-se afastada até o corpo ser tirado da árvore e coberto.
- Sobrevivi à peste quando criança - ela argumentou, o olhar de MacLachlan calando-a.
Martin Nesmith, um dos soldados de Gariston que também fora infectado na infância e sobrevivera, encarregou-se de baixar o cadáver.
Apenas no fim da tarde o grupo retornou ao castelo. Com o tecido de algumas velhas tendas providenciadas por sir Thackery, Adrien improvisou uma rede para Star. Então ensinou Danielle a preparar o unguento, aconselhando-a a seguir suas instruções ao pé da letra.
- É necessário aplicar o unguento três vezes ao dia, milady. Basta esquecer uma única vez, para o ferimento infeccionar.
Pálida, e muito atenta, ela parecia absorver cada uma de suas palavras.
Quando a noite caiu, MacLachlan, embora exausto, ainda estava decidido a partir na manhã seguinte. Antes de subir para seus aposentos, pediu a sir Thackery que mandasse um dos servos lhe levar água quente para o banho.
- Entristece-me o que aconteceu hoje - deplorou o velho cavaleiro. - A pobre menina já viu tanta morte, e receio que ainda verá mais. Rezo para que, pelo menos, a égua seja poupada.
- A égua tem alguma chance. Nunca vi Danielle tão... aflita.
- Ah, ela ama aquele animal. Star foi presente do rei da França.
A informação incomodou MacLachlan. Felizmente na manhã seguinte iria ao encontro de Joanna e em breve não seria mais responsável por Danielle.
- Partirei para Winchester ao amanhecer, sir Thackery, por motivos particulares. Retornarei o quanto antes.
- Tomarei conta da jovem condessa durante sua ausência, milorde.
- Obrigado. E, sir Thackery, por favor mande preparar um dos quartos de hóspede para receber lady Joanna. Ela virá comigo.
- Lady Joanna? - Havia surpresa na voz do administrador.
- Algum problema?
- Não. Claro que não, milorde. Apenas...
- O quê?
Sir Thackery pigarreou, desconfortável.
- Bem, antes de sua chegada a Gariston, eu já havia recebido uma carta do rei. Nela, fui informado de que...
- De que...?
- Segundo a carta, você e a condessa deveriam ficar noivos antes de sua partida.
Durante vários segundos Adrien permaneceu em silêncio.
- Mesmo os reis podem se enganar de vez em quando - afirmou, seco.
- A mim caberia lhe mostrar as maravilhas de Gariston, sir. Se eu falhei...
- Você não falhou em nada! - soou uma voz feminina. Parada na porta, muito ereta, estava Danielle. - Sir Thackery, não pressione lorde MacLachlan, pois ele tem outros planos para a própria vida. Não é verdade?
- A ordem do rei - insistiu sir Thackery, mais desconfortável do que nunca.
- Tento obedecer o rei em todas as coisas - Adrien interveio calmamente -, porém, conforme a condessa mencionou, tenho outros planos. Desejo aos dois uma boa noite.
Em seu quarto, MacLachlan encontrou a banheira diante do fogo, cheia até a borda. Despiu-se, entrou na água quente e fechou os olhos.
Um instante depois tornou a abri-los. Não estava sozinho. Danielle o seguira.
- O que é? - indagou de má vontade, puxando uma toalha para dentro da água a fim de cobrir-se.
A última coisa de que precisava era Danielle assistindo a seu banho. E infelizmente seu corpo começava a reagir àquela fantástica beleza feminina.
- Vim lhe agradecer - ela falou baixinho.
- Como é?
- Por meu cavalo.
- Nós já vimos muita tristeza. Se a égua sobreviver, ficarei feliz. Só não posso prometer nada.
- Mas Star tem uma chance.
- Sim.
- Sou-lhe grata, sir. Considero-me em débito.
A jovem demonstrava ter honra e isso o agradava muito.
- Se você se sente em débito para comigo, então obedeça-me de vez em quando. Cuide bem de Star.
- Você partirá amanhã para buscar Joanna?
- Sim.
- Vá com Deus, Adrien. Estou ansiosa para rever Joanna.
- Ela gosta muito de você.
Sorrindo um tanto desajeitada, Danielle caminhou até a porta.
- Boa noite, sir. E obrigada mais uma vez.
- Boa noite, Danielle.
Sozinho, ele sorriu. Começava a gostar da pequena feiticeira.
Talvez pudesse existir paz entre os dois.
Entretanto, naquela noite, MacLachlan foi acometido de terrível pesadelo. No meio da batalha, descalça e com os cabelos negros esvoaçando ao vento, vagava Danielle.
Ele acordou ensopado de suor e não foi mais capaz de voltar a dormir. Que será que havia provocado um sonho tão violento? Então algo lhe ocorreu. Estava preocupado porque a égua que ela tanto amava fora presente de um francês. Do rei francês.
Capítulo IV
Honesta consigo mesma, Danielle não tardou a admitir o quanto a vida em Gariston era agradável. Sir Thackery a tratava com verdadeira afeição paternal e procurava satisfazer todos os seus desejos. Monteine e lady Jeanette estavam encantadas com a fortaleza, assim como o dr. Coutin, que sempre classificara qualquer lugar fora da França como "selvagem". E se no início a principal preocupação do médico fora atender à condessa, ele não demorara a considerar todos os moradores do castelo como responsabilidade sua.
Dois dias após a partida de Adrien, ao entrar no estábulo para trocar o curativo de Star, Danielle encontrou Monteine, maravilhada com a impressionante recuperação da égua.
- Milorde MacLachlan é fantástico. Você deveria fazer as pazes com ele.
A jovem dama deu de ombros. Adrien salvara Star e sentia-se grata, e isso era tudo.
- Ele é um homem poderoso - Monteine continuou, entusiasmada. - Além de justo. Não irá machucá-la nunca, se você não o ofender. É um cavaleiro forte, corajoso, um dos favoritos do rei.
- Mas você mesma me disse que todos os ingleses são inimigos.
Monteine retorceu as mãos, inquieta.
- Sim, mas...
- Você não sabe nem da metade do que sir MacLachlan fez - Danielle murmurou, lembrando-se da angústia e humilhação experimentadas ao ser castigada como uma criança. - Sou-lhe agradecida por salvar Star, contudo receio continuar considerando-o um inimigo. - Na verdade, reconhecia as qualidades de MacLachlan, achava-o, às vezes, até honrado e... atraente. Entretanto, não podia perdoá-lo porque não podia se esquecer da morte da mãe. Lenore a fizera prometer apoiar Philip. - Devo sempre resistir-lhe.
- Escute-me, querida, por favor - a aia implorou. - Você costumava prestar atenção às coisas que eu lhe ensinava.
- Monteine...
- Toda a corte está falando no casamento de vocês dois.
- Não haverá nenhum casamento.
- Menina, não seria a pior coisa do mundo. Ele é jovem, vibrante e lindo.
- Não haverá nenhum casamento! - Danielle repetiu, firme. - Adrien mesmo me garantiu isso.
- Então ambos são tolos!
- Um dia voltarei para Aville e, se quiser, me casarei com um nobre francês.
- O rei inglês é seu guardião! - Monteine exclamou, exasperada. - E os reis impõem sua vontade. Você precisa ter cuidado e ser mais gentil com lorde MacLachlan.
- Preciso ter cuidado? Pois ele me culpou do próprio descuido naquele episódio da maldita sela!
- Não foi simples descuido o que quase o levou à morte.
- Estou lhe dizendo que não fiz nada! - Danielle estava à beira de perder a calma.
- Sei que você não fez nada, mas eu sim. Eu afrouxei a sela - confessou Monteine, as faces em fogo. - Estava ansiosa para machucar um cavaleiro inglês, qualquer cavaleiro inglês.
Pasma, a condessa fitou-a. Então Adrien tivera motivos para estar enfurecido. Alguém tentara feri-lo e ele, naturalmente, a culpara.
- Monteine...
- Conte-lhe a verdade, milady. E perdoe-me, por favor. Eu não queria que você acabasse levando a culpa. Não sei onde eu estava com a cabeça...
- Você tinha seus motivos para desejar causar mal a um inglês. Foram eles quem destruíram sua família, que a deixaram sem nada. O que não consigo entender é... por que seus sentimentos mudaram? Por que essa confissão agora?
- Ele não é o inimigo que devemos ferir. Ao começarmos nossa jornada, passei a observá-lo atentamente. Lorde MacLachlan é poderoso e tudo o que obteve foi através de sua força e sabedoria. É um verdadeiro cavalheiro.
Cavalheiro?, Danielle pensou irritada. Se fosse, não lhe teria dado aquelas palmadas. Jamais contaria a quem quer que fosse o que houvera. Fora humilhante demais. Antes que pudesse dizer a Monteine que o julgava um grosseirão, Daylin entrou no estábulo, procurando-a.
- Senhora, lady Joanna acabou de chegar com uma pequena comitiva.
- Mas sir MacLachlan partiu para buscá-la...
- Creio que lady Joanna veio pela velha estrada romana, enquanto milorde cortou caminho por dentro da floresta. Os dois se desencontraram. Lady Joanna está ansiosa para vê-la, senhora.
Danielle correu para o salão principal, onde encontrou Joanna e sir Thackery sentados junto à lareira. As duas mulheres se abraçaram carinhosamente.
- Você está bem, milady? - Danielle indagou preocupada, achando a outra muito quente.
- Apenas uma dor de garganta. E cansaço. A rainha tem tantos filhos que ajudá-la a arrumar a bagagem para viajar é sempre uma tarefa desgastante. Todavia, aqui estou. Oh, Danielle, por favor, seja sincera! Minha presença é indesejável?
- Pelo contrário! É um prazer enorme recebê-la em Gariston!
Sir Thackery pigarreou.
- Vou deixá-las a sós para conversarem sobre as novidades da corte e voltar ao meu trabalho, senhoras. - Com uma reverência, o velho administrador retirou-se.
- Que criatura doce e gentil - comentou Joanna, observando-o se afastar.
- Apesar do pouco tempo de convivência, gosto muito dele - Danielle confessou. - Ah, como estou feliz com a sua chegada!
- Tentei com todas as minhas forças não deixá-la sozinha com aquele meu cavaleiro mal-humorado - brincou Joanna, ficando subitamente séria. - O rei quer que você e Adrien se casem. Eu não a magoaria por nada, acredite-me. Você não se importa mesmo que Adrien e eu nos casemos?
- Oh, Deus, não! Serei a primeira a cumprimentá-los depois da cerimônia. Seu amado guerreiro é uma verdadeira pedra no meu sapato.
- Ah, Dani, ele não é assim tão mau.
- Você o ama. Portanto, é cega. E, claro, ele a ama.
Silêncio.
- Entenda, lorde MacLachlan provocou a queda de Aville e é difícil para mim não guardar ressentimentos. Antes você ser esposa daquele dragão do que eu!
- Dragão? De jeito nenhum. Ah, querida, se você conseguisse entender o que sinto quando ele olha para mim, quando me toca... Oh, desculpe-me, estou divagando. Eu só queria tê-lo perto de mim agora. Estou com saudade. Bem, mudando de assunto, os ares de Gariston lhe fizeram bem. Você me parece feliz.
- Gosto daqui. É quase tão bonito quanto...
- Aville?
- Aville é meu lar.
- Gariston também é seu lar.
- Sim, a casa de meu pai. Ouvi tantas histórias maravilhosas sobre ele! Este castelo é caloroso e acolhedor, como sempre me disseram que meu pai era. Tenho certeza de que você também amará Gariston.
- Oh, sem dúvida. Só lamento Adrien e eu termos nos desencontrado. E que ele esteja fora, expondo-se ao perigo por nada. Ah, Dani, todo mundo está fugindo das cidades! A morte ataca em todo lugar.
- Eu sei - murmurou Danielle, lembrando-se dos frades com a carroça de cadáveres e do pobre camponês enforcado. - Mas não temos nenhum doente em Gariston.
- Querida, você poderia me mostrar meu quarto? Os últimos dias foram muito agitados e sinto-me exausta. Se me der licença, eu gostaria de dormir um pouco até o jantar.
- Claro! - A jovem dama chamou uma das criadas. - Os aposentos da outra torre estão preparados?
- Sim, milady. Vou acompanhar lady Joanna até...
- Não, Amy. Eu mesma acompanharei milady.
As duas amigas não haviam chegado à escadaria quando Joanna fraquejou.
- Oh, estou mais cansada do que imaginei. Não consigo nem ficar de pé.
Danielle amparou-a enquanto mandava Amy correr em busca de um dos lacaios.
- Simms, por favor, carregue-a direto para meus aposentos e depois vá atrás do dr. Coutin - a condessa o instruiu. - Também traga-me água, por favor.
Vendo Joanna inerte na cama, muito pálida e ardendo em febre, Danielle sentiu o coração se apertar.
Ao retornar com um jarro de água, Simms parou à porta do quarto, vacilante.
- Eu a toquei - o empregado sussurrou, apavorado.
- Sim. Dê-me a água, por favor.
Mas o lacaio não se mexeu, obrigando-a a ir ao seu encontro e apanhar o jarro.
Não podia culpá-lo. Compreendia a razão do pavor.
Até então, haviam se julgado seguros. Agora a praga se infiltrara entre as paredes do castelo.
Dali a instantes o dr. Coutin examinava a paciente.
- Peste Negra? - Danielle perguntou, já antecipando a resposta.
- Sim, milady. Farei o que estiver ao meu alcance, embora não haja muita coisa a fazer. - O médico hesitou, certo do efeito que as outras notícias provocariam. - Não foi lady Joanna quem trouxe a peste para cá. O cozinheiro, seu antigo criado de Aville, adoeceu antes. O infeliz morreu há meia hora, milady.
- Oh, Deus! - Danielle se benzeu, atordoada.
- O pânico se instalou em Gariston, porque a peste ataca rápida e impiedosamente. Muitos já estão doentes, milady, e preciso atendê-los. Peço-lhe que cuide de lady Joanna.
- Sim, não a deixarei um minuto sequer! Ficarei com ela dia e noite.
Todavia, apesar dos esforços de Danielle, as condições de Joanna se deterioraram depressa. E enquanto velava pela amiga, escutava, horrorizada, as histórias sobre o que acontecia no castelo. Um cavalariço desmaiara no pátio e dali a uma hora estava morto. Artesãos, ferreiros, lavradores, as vítimas da peste se sucediam numa velocidade aterrorizante.
Ao anoitecer, contavam-se três mortos.
Dr. Coutin avisou-a de que esses primeiros dias seriam os piores.
- Às vezes a morte é instantânea. Às vezes ocorre de dois a cinco dias após a manifestação dos sintomas iniciais. Peçamos a Deus que a maioria das pessoas tenha fé e força de vontade para superar essa provação.
Na manhã seguinte, sir Thackery e Monteine caíram doentes.
O castelo parecia haver enlouquecido. Ao entrar na cozinha em busca de auxílio, Danielle deparou-se com uma cena chocante. Criadas e cavalariços dançavam seminus, entregues aos instintos como animais.
Vendo-a, Swen, um dos jovens cavalariços, não se mostrou nem um pouco envergonhado.
- A morte está a caminho, milady. Tome o que quiser da vida agora, porque a morte está chegando.
- A morte poupará alguns! - ela devolveu, irada. - Já vi a peste antes e muitos sobreviverão. Preciso de ajuda para cuidar daqueles que adoeceram.
Molly, ajudante de cozinha, riu histérica, sem se dar ao trabalho de cobrir os seios inteiramente expostos.
- Muitos morrerão, alguns sobreviverão, milady. As pústulas! - ela lamentou-se, chorosa. - Veja, as pústulas já estão aparecendo em mim! Oh, Deus, oh, Deus!
- Dr. Coutin irá lancetá-las se você parar de agir feito uma doida. - As palavras do médico vieram-lhe à mente. Os que possuíam fé e força de vontade tinham maiores chances de sobreviver.
Sir Thackery estava doente e o dr. Coutin assoberbado de trabalho. Sendo ela a condessa, cabia-lhe fazer com que aquela gente recuperasse a razão.
A manhã ainda estava no meio e a cozinha recendia a cerveja. Guerreiros, soldados e empregados igualmente procuravam o esquecimento na bebida.
Swen agarrara Molly outra vez e a serva recomeçara a rir, no auge da histeria. Contendo lágrimas de raiva e frustração, Danielle aproximou-se da enorme mesa de madeira, coberta de vegetais ressecados e carne estragada. Se MacLachlan estivesse ali, nenhum deles teria ousado se comportar daquela maneira.
Notando uma colher de ferro num canto, apanhou-a num impulso e acertou a cabeça de Swen. O cavalariço caiu no chão com estardalhaço.
O barulho súbito provocou um inesperado silêncio.
- Vocês podem agir como tolos e perder toda a esperança. Mas não permitirei que meus amigos morram! Molly, vá se deitar. Swen, se você não quer mesmo largá-la, coloque-a na cama e banhe-lhe a testa com água fria. Os outros, comecem a limpar essa sujeira. Quem estiver doente, que a Virgem Maria os proteja. Os não infectados precisam ajudar os enfermos. Agora, mexam-se!
Ao voltar à cozinha, dali a meia hora, Danielle constatou que alguns dos servos haviam decidido obedecer-lhe.
- O dr. Coutin virá examiná-los em breve.
- Médicos não podem nos salvar da Peste Negra - Swen falou, apático.
- Então um padre virá apressar a viagem de vocês para o céu ou o inferno! Por Deus! Não tem ninguém aqui capaz de ao menos lutar para viver?
Furiosa, retirou-se.
Com a ajuda de lady Jeanette e uns poucos servos, a jovem condessa e o dr. Coutin se desdobraram no atendimento aos doentes. A cada morte uma pequena cruz, feita de cinzas, era desenhada numa parede externa, um aviso aos passantes.
Na quinta noite, as cruzes chegavam a cinquenta. Porém, miraculosamente, alguns doentes começaram a se recuperar.
Joanna continuava ardendo em febre e respirando com dificuldade, mas ainda lutando pela vida. Danielle mantinha-se firme à cabeceira da amiga, cercando-a de cuidados, rezando para que resistisse.
No sexto dia, Danielle mal conseguia se mexer, tão grande a exaustão. Ajoelhada perto da cama, de mãos dadas com Joanna, acabou cochilando.
Ao abrir os olhos, descobriu não estar mais só com a enferma.
Adrien MacLachlan voltara.
Ele parecia incrivelmente alto e forte parado na soleira da porta. Como uma torre inexpugnável, exalando poder, vitalidade e saúde por todos os poros.
Ainda de mãos dadas com Joanna, Danielle levou alguns segundos para compreender o porquê da agonia estampada nos olhos castanhos.
Joanna desistira de lutar. A febre a abandonara, assim como o calor da vida.
A condessa, contudo, não teve chance de reagir, porque MacLachlan lançou-se aos pés da dama morta e a tomou nos braços, desesperado.
Atordoada, Danielle levantou-se, sentindo-se prisioneira de um pesadelo onde morte e vida se confundiam. Além de sua tristeza pela perda de Joanna, o sofrimento de Adrien era tão brutal que ansiava fugir ali, escapar da cena terrível. Entretanto, não conseguia se mover, permanecia anestesiada, como se houvesse criado raízes. Os segundos se arrastaram, transformaram-se em minutos, e MacLachlan continuava abraçado à amada. Finalmente lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Danielle, arrancando-a de sua paralisia. Quando escapulia do quarto, dedos longos a seguraram pelo pulso.
- Você esteve com ela todo esse tempo? - A voz rouca e angustiada rompeu o pesado silêncio.
- Com ela, e alguns dos outros.
- Sem nenhuma ajuda?
- São tantos os doentes... e tão pouca gente para ajudar. Eu gostava de Joanna. Tentei salvá-la a qualquer custo. Juro que...
Danielle surpreendeu-se quando o cavaleiro levantou-se e, tomando-a no colo, sentou-se numa poltrona, aconchegando-a junto ao peito largo, confortando-a e buscando conforto.
- Pobre menina, você é mesmo excepcional. Os servos fugindo ou morrendo, e você fazendo tudo sozinha.
Mas não queria a simpatia dele. Esforçara-se tanto para não demonstrar nenhuma fraqueza até agora.
- Dr. Coutin nunca me desertou. Nem lady Jeanette.
Apesar da resolução inicial, Danielle acabou vencida pelo pranto. Jamais quisera chorar na frente de MacLachlan. Jamais. Todavia era bom ser abraçada e sentir que tiravam o pesado fardo de seus ombros.
- As coisas estão um pouco mais calmas. Ouvi dizer que você bateu num cavalariço.
- Eu não bati nele. Apenas lhe dei uma boa pancada na cabeça.
O esboço de um sorriso iluminou as feições másculas.
- Ainda há muito a ser feito aqui, milady, e não permitirei que os servos passem os dias deitados, à espera da morte. Ninguém tem o direito de sobrecarregá-la.
Determinado a tomar uma atitude, Adrien saiu do quarto e dirigiu-se ao salão principal, onde a criadagem se reunira. Vários jaziam deitados no chão, outros se distraíam jogando dados.
Swen foi o primeiro alvo da fúria de MacLachlan. Agarrando o cavalariço pela gola da túnica, colocou-o de pé.
- A tragédia ataca e você fica aí deitado, como se fosse um cão!
- A morte veio nos buscar, milorde. Que mais importa?
Num gesto rápido, MacLachlan desembainhou a espada e encostou-a na garganta do servo. Quem estava deitado apressou-se a se levantar.
- Que mais importa? Você está com uma aparência saudável, rapaz. Assuma suas obrigações e ajude a cuidar dos doentes, ou eu mesmo o mandarei para sua cova neste exato minuto.
- Sim, milorde, sim! - Swen concordou, apavorado.
Adrien olhou ao redor, não lhe escapando o número expressivo de cadáveres.
- Por Deus, homens, vocês ficam aí, misturados aos seus mortos! Tragam macas para transportá-los. Agora! - gritou, colérico. - Cavem um buraco fora das muralhas para enterrarmos os pobres-coitados. Todo morto deve ser levado daqui, pois continuam sendo transmissores da doença. Vamos, mexam-se! Você - ele apontou para um pedreiro -, comece a trabalhar numa tumba para... para lady Joanna. Ela descansará na cripta da capela.
- Sim, milorde.
- Cem chicotadas para o próximo homem que se recusar a ajudar um companheiro doente! Fujam de suas responsabilidades e farei com que se encontrem com Deus, ou o demônio, antes do anoitecer.
Não sobrou uma única pessoa no salão.
Do alto da escada, Danielle, acompanhada de lady Jeanette, observara a cena, impressionada com a rapidez com que MacLachlan pusera ordem no caos. Dali a instantes Adrien se reunia às duas.
- Sir Thackery? - ele perguntou a Jeanette.
- Ainda resistindo, milorde.
- Monteine?
- Também continua lutando.
- Então deixem-me sozinho com minha Joanna. - Adrien entrou nos aposentos de Danielle e fechou a porta, isolando-se, e à mulher a quem amara, do resto do mundo.
- Deus cuidará dos outros agora. Você precisa dormir - disse Jeanette, preocupada com o abatimento da condessa.
- Não tenho onde...
- Os aposentos de lorde MacLachlan servirão no momento. Durma, e talvez, quando acordar...
Cedendo à pressão, Danielle deixou-se conduzir até o pavimento superior. Atendendo aos apelos insistentes, tomou um cálice de vinho e, vencida pela exaustão, adormeceu.
Acordou no meio da noite, a lembrança de todo o horror, de toda a tragédia, apagando os últimos vestígios de sono. Tensa, sentou-se na cama. Numa poltrona, diante da lareira, MacLachlan bebia vinho e contemplava o fogo.
Sentindo-se uma intrusa, Danielle queria escapar dali, porém, ao se levantar, os olhos penetrantes a fitaram fixamente.
- Você deveria ter ido embora. Não deveria ter permanecido em Gariston.
- Eu tinha que ficar.
- Eu a mandei embora.
- Sem nenhuma necessidade. Sobrevivi à peste quando minha mãe morreu. Não creio que possa adoecer outra vez.
- Graças a Deus - ele murmurou com ar distante. - E pensar que eu pretendia desafiar o rei!
- Ela o amava muito.
- Eu deveria ter estado ao lado de Joanna.
- Você estava tentando ficar ao lado dela.
- Venha cá.
Danielle balançou a cabeça, insegura. Nunca MacLachlan se mostrara tão vulnerável. Cortava-lhe o coração vê-lo se culpar da morte de Joanna.
Impaciente, o cavaleiro aproximou-se e tocou-a de leve no rosto.
- Você não é a jovem megera que eu havia imaginado, milady.
- Tal cumprimento saído de seus lábios pode me fazer desmaiar - Danielle retrucou, tentando, em vão, dar à voz um tom de brincadeira. - E já suportei tantas dificuldades...
- Você realizou muita coisa sozinha - ele falou, sério. - Obrigado pelo que fez por Joanna.
- Não é preciso me agradecer. Eu gostava dela também.
- Então obrigado por reafirmar o amor de Joanna por mim. Que ironia, ouvir isso de você!
- Como assim? - Nervosa, a condessa se afastou, repentinamente consciente da presença máscula e sensual.
MacLachlan deu de ombros e caminhou até a lareira, os movimentos um pouco incertos.
- Eu teria regressado antes se um mensageiro de Edward não houvesse me alcançado. Mesmo quando a epidemia se alastra, o rei continua manipulando todos nós. Fui informado de que Edward proíbe terminantemente meu casamento com Joanna. É estranho, mas o rei parece obcecado por você. Não admite deixá-la sozinha. Às vezes chego a pensar que Edward se sentia enfeitiçado por sua mãe. É fácil entender por quê.
- O rei, enfeitiçado?
- Sim. Lenore era muito bela. Nunca vi uma mulher mais linda. Exceto... - Adrien calou-se e desviou o olhar. - De qualquer maneira, avisaram-me que você seria obrigada a se casar dentro de um mês com lorde Andreson, um velho nobre dinamarquês, se nós... se você e eu... não ficássemos noivos, conforme o desejo de Edward.
- Lorde Andreson! - Danielle exclamou, horrorizada. - Ele tem mais de sessenta anos, é magro feito um graveto e sofre de gota. Além de morar a maior parte do ano na Dinamarca, ouvi dizer tratar-se de um homem violento, rude.
- Dinamarca é um lindo país, apesar do clima úmido e frio. Estive lá para participar de torneios.
- Que diferença faria eu me casar com um cavaleiro dinamarquês ou inglês? - A diferença era enorme, mas Danielle sentia necessidade de enfatizar seu ponto de vista. - Afinal, sou francesa.
- Milady, creio que a diferença é óbvia.
- Oh? Porque você é mais novo? Porque seria um marido e um pai mais suportável?
- Andreson não tem filhos, mas está ansioso para ser pai. Para desposá-la, ele está disposto a dar ao rei terras e títulos que pertencem à Dinamarca desde as invasões dos vikings. Porém Andreson pretende continuar morando na Dinamarca para mantê-la longe de admiradores. Afinal, sua juventude e beleza são tentadoras. Assim, dificilmente você tornaria a ver seu precioso Castelo de Aville. Quanto a mim, bem... pelo menos eu não babo.
Danielle o ignorou.
- Mas sou uma condessa. Aville é meu por direito.
Adrien continuou, como se não a tivesse escutado.
- Admito que numa certa época eu teria considerado seu casamento com Andreson uma idéia divertida, pois me livraria de você. Afinal, a Dinamarca fica muito, muito longe.
- O rei não pode me obrigar a me casar e viver na Dinamarca - ela insistiu, furiosa. Mas estava com medo. A palavra de Edward costumava ser lei. - Nós devemos lutar contra esses planos terríveis. Tenho família do outro lado do Canal. Posso escapar da Inglaterra e pedir ajuda aos meus primos franceses.
- É exatamente por isso que Edward a deseja sob constante vigilância. Joanna partiu, então nada mais importa. Exceto que você cuidou dela até o fim e considero-me em débito da sua bondade.
- Cuidei dela porque a considerava minha amiga. Você não me deve nada.
Assombrada, Danielle viu MacLachlan levantar-se, cambalear e, então, desabar no chão.
O vinho!, pensou. O tolo se embriagara. Imerso na sua tristeza, na sua dor, bebera até perder os sentidos.
- Adrien? - chamou, cutucando-o com a ponta do pé. Nada.
Ajoelhando-se, tocou-o de leve no braço. A pele ardia. Não, ele não estava bêbado, mas doente.
Certa de que sozinha não conseguiria colocá-lo na cama, correu para o corredor atrás de ajuda.
Chegando ao salão principal, estancou, pasma. O lugar estava impecável. Ninguém dormindo no chão, nas mesas ou cadeiras. Tudo fora varrido e limpo. Sentado diante da lareira, Daylin polia um escudo.
- Daylin, por favor, preciso de você!
Mesmo juntos, os dois tiveram dificuldade para pôr o enfermo na cama. Segundos depois, MacLachlan achava-se parcialmente despido. Danielle pediu ao escudeiro para providenciar água fria e então buscar o dr. Coutin.
Ao banhar o tórax musculoso e os braços fortes, Danielle surpreendeu-se trêmula, ofegante, dominada por uma sensação desconhecida, impossível de descrever.
Quando dr. Coutin chegou, deixou-o examinar o paciente e reuniu-se a Daylin que, apreensivo, postara-se perto da janela. Numa breve conversa, o rapaz a colocou a par das últimas notícias. Sir Thackery e Monteine encontravam-se em franca recuperação. Molly também sobrevivera, embora muitos houvessem morrido.
E segundo mensageiros chegados de Winchester naquela manhã, a epidemia começara a abrandar.
- Milady - explicou dr. Coutin -, fiz o que pude, agora só nos resta aguardar. A febre deve ser combatida, como sabemos.
- Eu cuidarei dele - Daylin se ofereceu imediatamente.
- Não - Danielle retrucou, decidida. - Já fiz isso tantas vezes. Eu mesma cuidarei de Adrien.
- Então vou ajudá-la.
Estava claro para Danielle que o escudeiro adorava MacLachlan e não admitia a possibilidade de deixá-lo morrer. O que a condessa não entendia era o próprio empenho em salvar-lhe a vida. De onde saíra aquele ardor, aquela emoção esquisita?
Embora houvesse sempre alguém disposto a auxiliá-la nos cuidados com o cavaleiro, Danielle descobriu-se não querendo dividir a tarefa com quem quer que fosse. Desejava tratá-lo sozinha. Estranhamente, também passou a rezar para que Adrien se salvasse, apesar de saber que continuariam inimigos.
Dois dias se passaram sem que MacLachlan apresentasse uma melhora significativa.
- Vá embora daqui! - ele murmurara certa vez, recuperando a consciência por breves instantes. - Você ainda corre perigo.
- Não corro perigo nenhum. Já lhe disse que sobrevivi à peste.
- Estou lhe dando uma ordem.
- E o que você fará comigo agora, milorde? - Danielle o provocara. - Colocar-me sobre seus joelhos e me dar umas palmadas?
- Se eu sobreviver, é o que farei.
Ameaças vãs. Mal terminara de pronunciar a última palavra, MacLachlan tornara a perder a consciência.
No quinto dia, ele delirava. Conversava com alguém chamado Carlin, jurando nunca se render e sempre honrar o nome da família. "Se eu cair, me levantarei. Não vou decepcioná-lo, sir, nem nas batalhas, nem nas justas. Eu prometo." Alguns minutos de silêncio e um grito desesperado: "Joanna, perdoe-me. Perdoe-me!"
Vendo-o se debater incontrolavelmente, castigado pela febre alta, Danielle cobriu-o com o próprio corpo, tentando transmitir-lhe calor e conter os violentos espasmos.
- Não ouse morrer, seu maldito! Não ouse fazer isso comigo! - desafiou-o, à beira das lágrimas. - Ah, o bravo lorde MacLachlan, o menino responsável pela queda de um castelo francês! Basta a doença o atacar e ele se rende!
De súbito, mãos fortes a seguraram pelos ombros, imobilizando-a. Adrien abriu os olhos e pôs-se a falar numa língua ininteligível, que ela supôs ser celta.
Então o cavaleiro soltou-a, fechou os olhos novamente e adormeceu.
Trêmula, a jovem condessa levantou-se. Um ruído suave a fez virar a cabeça. Daylin, pálido como seu senhor, a observava, parado na soleira da porta.
- O que ele disse? Você conseguiu entender?
- "Nunca implorar misericórdia. Nunca me render, nem mesmo à morte."
Durante toda aquela noite, MacLachlan não moveu um único músculo e Danielle pensou tê-lo perdido. Assim, quando se deparou com os olhos castanhos fitando-a fixamente, deixou escapar um soluço de alívio. Oh, Deus, a febre cedera! Adrien continuava enfraquecido e esgotado, mas sobreviveria.
- Você... - ele sussurrou, esforçando-se para erguer a cabeça do travesseiro. - Eu a mandei embora.
- Milorde! - Daylin exclamou, feliz. - Você venceu a peste, sir. Eu sabia que conseguiria.
- Vou providenciar alguma coisa para alimentá-lo - anunciou Danielle, antes de sair do quarto.
Ao retornar, depois de pedir à cozinheira para preparar uma sopa, encontrou a porta trancada. Diante da explicação do escudeiro, de que Adrien estava tomando banho, resolveu descansar um pouco.
Seus aposentos haviam sido limpos, arejados, os lençóis e colchas trocados. O cheiro da morte se dissipara, mas não a dor. Exausta, física e emocionalmente, Danielle deitou-se e adormeceu. Ao acordar, havia uma bandeja sobre a mesa, e a banheira, diante da lareira acesa, estava cheia até a borda.
Após banhar-se, vestiu-se e comeu a leve refeição composta de pão, manteiga, queijo e frutas. Ao terminar, já não continha a impaciência. Precisava voltar para junto de seu paciente.
Recostado na cabeceira da cama, Adrien estava nu da cintura para cima. Apesar de ainda muito pálido, não possuía mais aquele ar de fragilidade, a energia e vitalidade que o caracterizavam havendo retornado.
Daylin apressou-se a deixá-los sozinhos.
- Eu lhe disse para ir embora - MacLachlan tornou a falar, a voz baixa e rouca.
- Escolhi ficar. Afinal, sou a castelã.
- Obediência parece não estar entre as suas virtudes.
- Não creio que obediência seja uma virtude, milorde, e sim uma exigência dos homens às mulheres.
O esboço de um sorriso iluminou o rosto cansado.
- No momento, não tenho forças para travar um embate verbal com você, milady. Mas sendo virtude ou exigência, creio que discutiremos a questão da obediência em breve.
O rumo da conversa começou a afligir Danielle. Havia algo diferente no ar.
Adrien sobrevivera, Joanna, não. Talvez isto explicasse a espécie de torpor em que ele caíra. Como se nada mais importasse.
- Por quê? - indagou, apreensiva.
Uma batida à porta impediu-a de obter a resposta que buscava. Daylin entrou acompanhado pelo jovem sacerdote de Gariston, padre Joseph, e um homem que Danielle nunca vira antes.
- Sir George! - cumprimentou-o Adrien, sem disfarçar a apreensão. - O que, em nome de Deus, está fazendo aqui? Gariston foi assolado pela peste. Por que se expor ao perigo do contágio?
O recém-chegado, um cavaleiro alto, grisalho e distinto, sorriu, despreocupado.
- Como você, também já fui contaminado e sobrevivi. Portanto, não tenho o que temer.
- Qual a razão da sua visita? - insistiu Adrien.
- Atendo a um pedido do rei. Edward está bastante ansioso em relação à situação. Soube da morte de lady Joanna e lhe envia seus pêsames.
- Diga-lhe que agradeço a manifestação de pesar.
- Muitos morreram. Vilas inteiras foram dizimadas. - Sir George fez uma pausa. - Entretanto o rei pediu-me para lembrar-lhe que mesmo imerso na dor, cabe-lhe liderar o país. Decisões têm que ser tomadas.
- Sir George, explique-me logo o que, exatamente, Edward quer de mim.
- Pelos céus, estou tentando agir com diplomacia e você...
- Nós dois sabemos que Edward deseja algo de mim. O que é?
Por um momento o visitante hesitou.
- A questão da condessa precisa ser resolvida.
Boquiaberta, Danielle fitava ora um, ora outro, sem nada entender.
- Lorde MacLachlan mal escapou das garras da peste! - ela argumentou agitada, dirigindo-se ao estranho. - E você vem aqui para...
- Ah, milady, tamanha preocupação com o estado de saúde de Adrien é louvável.
- Ela não está preocupada e sim horrorizada. - Exausto, MacLachlan encostou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos.
Vendo-o tão abatido, Danielle experimentou um misto de sensações indefiníveis. Passara noites à cabeceira de sua cama, rezando para que se recuperasse, fazendo o possível para ajudá-lo a vencer a peste. Entretanto Adrien parecia indiferente a tudo, agora. Depois de enterrar Joanna, o futuro parecia não importar-lhe.
MacLachlan sentou-se na cama com alguma dificuldade, ainda enfraquecido após a longa provação.
- Você lutou para salvar a vida de Joanna e a minha também. Sempre lhe serei grato. Mas cuidado com o que estou lhe oferecendo. Juro que não permitirei que sua ida para Aville crie um cisma entre o povo do castelo e o rei da Inglaterra. Cumpra sua parte no trato, honre sua palavra empenhada e farei o mesmo. Juro por Deus e pela alma de lady Joanna.
- Quando poderei partir?
- Assim que eu organizar uma escolta para acompanhá-la.
Danielle não mais ofereceu resistência. Quando sir George retornou com lady Jeanette e o sacerdote iniciou a leitura do rito, ela não pronunciou uma única palavra de protesto.
Por fim, depois dos documentos assinados e selados, a jovem condessa se refugiou em seus aposentos. O anel, embora largo, parecia apertar seu dedo. Talvez porque todos os seus sonhos tivessem sido destruídos.
De qualquer maneira, isso não importava.
Curvara-se à vontade do rei, obedecera a ordem de Adrien. Vendera a própria alma.
Mas vencera.
Ganhara Aville.
Nas semanas seguintes, Danielle se esforçou para evitar o noivo. Desnecessariamente.
MacLachlan dava a impressão de não desejar a companhia de ninguém. Recuperado da doença, passava horas a fio no pátio, exercitando-se com seus cavalos, espadas, lanças e armadura. Já a recuperação de sir Thackery fora muito mais lenta. Danielle levou algum tempo até perceber que Adrien só estivera esperando o velho administrador ter condições de reassumir suas obrigações em Gariston para partir.
Através de Daylin, ela soubera que MacLachlan ansiava voltar para a Escócia, para as terras de seus ancestrais. Podia entendê-lo.
Certa noite, o cavaleiro mandou chamá-la ao salão principal.
- Está na hora de partir para Aville, milady. Você começará a jornada amanhã.
- Amanhã?
- Sim. E há coisas que precisa saber. O rei da França morreu.
- Philip? - Danielle engoliu em seco, abalada.
- O filho de Philip, Jean, assumiu o trono. Você deverá visitá-lo e prestar-lhe homenagem. Mas tenha sempre em mente que Aville deverá continuar sendo uma propriedade do rei da Inglaterra.
- Sim, milorde.
Oh, céus, como ansiava rever seu lar! O lugar onde Lenore vivera. Onde prometera honrar e proteger um outro rei...
Philip estava morto.
Todavia Jean passara a reinar. Portanto, sua promessa de honrar e proteger a casa de Valois permanecia inalterada.
Pensamentos traiçoeiros, porque Adrien estava cumprindo a promessa feita.
- Obedecerei suas determinações, milorde.
- Quanto a mim, passarei algum tempo na Escócia. Lady Jeanette parece ter se apegado a sir Thackery e deseja residir em Gariston. Dr. Coutin também prefere continuar aqui. Monteine a acompanhará, além de alguns homens de minha confiança, que escolhi para a aconselhar e proteger. Será uma jornada segura, creio eu. Nada, nem ninguém, conseguiria impedi-la de chegar a Aville, não é, milady?
- Sem dúvida. Boa noite e adeus, sir.
Mas antes que Danielle se afastasse, dedos fortes a seguraram pelo pulso.
- Não me traia - Adrien murmurou, fitando-a fixamente. - Seja fiel à sua palavra e honre as promessas feitas a mim, assim como honrarei aquelas que lhe fiz. Destrua minha confiança, milady, e pagará caro. Está entendendo?
Danielle assentiu, incapaz de enfrentar o olhar penetrante. Mal podia esperar para fugir de MacLachlan. Entretanto...
Entretanto experimentava uma sensação estranha quando ele a tocava, seu coração disparava, o ar lhe faltava nos pulmões... Tinha de escapar daquela presença máscula e atraente.
- Que Deus o acompanhe - falou baixinho, dando-lhe as costas e correndo escada acima.
MacLachlan já havia partido quando, na manhã seguinte, Danielle despediu-se de sir Thackery e lady Jeanette. Doía-lhe partir, porém, sem a presença de Adrien, o castelo ficara estranhamente vazio.
E apesar de procurar se entusiasmar com o regresso à França, surpreendia-se por ser tão difícil deixar a Inglaterra. Sempre acreditara que tudo o que queria era voltar para casa. Agora, sentia-se abandonando o próprio lar.
Aville. Transformaria a fortaleza, outra vez, em seu verdadeiro lar.
Parte II
Capítulo V
Sentado no alto de uma rocha, perto da velha mansão da família, Adrien tinha os olhos fixos no horizonte e os pensamentos longe.
Logo depois da morte de Joanna, impulsionado por profunda inquietude, lançara-se numa jornada sem rumo. Cruzara toda a Europa, participara de todos os torneios e, durante meses, lutara com tamanha determinação e tamanho descaso pelo perigo, que ninguém fora capaz de derrotá-lo.
Mas sir George conseguira localizá-lo em Flandres, durante um banquete. O pobre cavaleiro estivera perseguindo-o havia tempo, incumbido de lhe entregar uma mensagem do rei. Edward ordenava-lhe que se mantivesse vivo, com todos os membros intactos, para melhor servir à Coroa. Adrien, então, decidira haver chegado a hora de partir para a Escócia.
Fora uma estranha experiência retornar ao lar. Não existia lugar no mundo que amasse tanto quanto aquela terra às vezes inóspita, porém de uma beleza arrebatadora. Saíra dali menino, e regressara um homem. Movido por um fervor quase religioso, dedicara-se a ampliar e restaurar a Mansão MacLachlan, buscando no trabalho pesado o esquecimento dos horrores da praga, a morte de Joanna e o noivado com Danielle.
Durante um longo período, afogara-se na dor causada pela morte de Joanna. Todavia, acabara compreendendo que parte dessa dor era culpa. Planejara desposá-la e sempre adiara o momento de concretizar a idéia. Sentira-se feliz por tê-la como amante, mas não se animara a assumir um compromisso definitivo. Gostara muito dela, porém não a amara ardentemente.
Com o tempo, Adrien se perdoara, como Joanna o teria perdoado. Ela sempre parecera compreender melhor a verdadeira natureza dos sentimentos que ele lhe dedicara.
Por meses a fio, pranteara a perda de Joanna em abstinência. Então, quando a ferida começara a cicatrizar, tivera muitas amantes. Mas a inquietude permanecera. Certa noite, no chalé de uma jovem viúva, descobrira-se se indagando a razão de seu constante desassossego. De repente, a imagem de Danielle viera-lhe à mente.
Não, não era a primeira vez que pensava na condessa de Aville nos últimos anos. Acatara a ordem do rei por dois motivos. Primeiro porque, não podendo desposar Joanna, não se importara mais com quem viesse a se casar. Segundo, porque gostava de Danielle. No princípio, não soubera decifrar as emoções que o dominavam, aquele misto de irritação e admiração. Durante os horrores da peste, Danielle se revelara, agindo com sabedoria e compaixão. Jamais se esqueceria dos cuidados que recebera, do empenho com que ela lutara para conservá-lo vivo. E retribuíra concordando com o noivado. Se não ficassem noivos, Edward jamais a permitiria realizar o grande sonho de voltar para Aville.
Na cama da amante, Adrien subitamente ansiara por rever a condessa.
Apesar de experiente, de conhecer todos os truques, a jovem viúva não satisfizera a fome de seu corpo, nem os anseios de sua alma. Continuara se sentindo vazio, inquieto, desapontado.
Alguma coisa estava faltando. Alguma coisa que chegara a vislumbrar, que quase tocara...
Era nisso que MacLachlan pensava, sentado no alto da rocha. A peste que matara Joanna ocorrera cinco anos atrás. Fazia cinco anos que vivia na Escócia. Tornara-se chefe de seu clã, aproximara-se do rei escocês e contribuíra para que a paz e a prosperidade abençoassem sua amada terra natal. Todavia, não podia ignorar o fato de que continuava a serviço de Edward. Fora sagrado cavaleiro pelo próprio rei e coberto de honrarias. Devido a seu noivado com Danielle, recebera fortuna e títulos. Como duque de Glenwood, transformara-se num dos homens mais ricos da Inglaterra e Escócia.
De repente, como num passe de mágica, sir George surgiu à sua frente, ainda firme e ereto sobre a sela.
Sorrindo, Adrien desceu da rocha para saudá-lo.
- Será que os ingleses estão novamente em guerra com os escoceses? - brincou. - O que o trás ao Norte?
- Ah, rapaz, você se escondeu no meio dessas montanhas e acabou se esquecendo do resto do mundo.
- Este é o mundo de que eu gosto! Mas vamos até minha casa. Tomaremos cerveja enquanto você me fala do mundo lá fora.
Depois de uma refeição farta, servida no salão sobriamente decorado, os dois se sentaram diante da lareira, cada qual com um caneco de cerveja nas mãos.
- É uma bela propriedade a sua, Adrien. E você me parece mais jovem e forte do que nunca. Esses escoceses selvagens, com seus treinamentos duros, o têm mantido em boa forma.
- Não se esqueça de que sou um desses selvagens, como você os chama.
Sir George riu com gosto, ficando sério de repente.
- Edward precisa de seus serviços. Ele invadiu a Normandia e está prestes a entrar em guerra com o rei francês.
- Quando é que não estamos ma iminência de uma guerra?
- Edward deseja o Castelo de Aville seguro.
- Aville está seguro. Por acaso aconteceu algo?
- Você tem homens de confiança lá, não?
- Sim. Daylin, Richard Huntington, Giles Reeves e outros, durante todos esses anos, tenho recebido relatórios detalhados sobre a situação de Aville e jamais houve menção a qualquer tipo de problema.
- De fato. Nestes últimos cinco anos Aville tem sido um centro de música, poesia e arte. Cavaleiros ingleses e franceses disputam a honra de ser convidados pela condessa pra passar algum tempo no castelo, inclusive membros de Valois.
- E que perigo a menina pode estar correndo?
- Menina? - Sir George riu com prazer, no auge do assombro. - Lady Danielle é mulher feita agora, já passada da idade de se casar. Os homens de toda a Europa falam de sua excepcional beleza. Na verdade, cavaleiros e nobres franceses não saem de sua porta em busca de atenção.
Adrien surpreendeu-se com a onde raiva que o inundou.
- O que está dizendo? - indagou ríspido. - Que ela conspira com os franceses?
- Não existe conspiração. A condessa apenas hospeda os parentes franceses, como você a autorizou a fazer. Todavia, considerando que Edward e o rei Jean estão a um passo de um conflito sério, a situação torna-se mais perigosa. É hora de você regressar ao nosso mundo, rapaz.
- Partiremos ao amanhecer - Adrien decidiu, perturbado com a intensidade de sua inquietude. Ansiava estar em Aville o quanto antes.
- Ótimo. O príncipe de Gales se prepara para sufocar a rebelião em Bordeaux e ficará feliz ao saber que poderá contar com você novamente. Bem, ainda gostaria de abordar outro assunto... - Sir George calou-se, hesitante.
- Sim?
- Ouvi certos rumores...
- Por favor, continue.
- Comentam que um jovem nobre da casa de Valois tem visitado Aville com frequência. Alguns acreditam que este cavaleiro esteja tentando encontrar uma maneira de anular o noivado de Danielle para desposá-la o quanto antes.
Uma fúria súbita fez o sangue de MacLachlan ferver nas veias. Fora um tolo, um cego idiota! Talvez houvesse agido de maneira justa cinco anos atrás, concedendo a liberdade a Danielle. Porém, passar tanto tempo distante fora simples estupidez. Edward confiara nele e retribuíra essa confiança permitindo à condessa ser cortejada por um francês. Tal situação representava um perigo para o rei.
- O noivado não será anulado! - Adrien explodiu, pondo-se a andar de um lado para o outro. Entretanto, bem no íntimo, compreendia o que estava acontecendo. Que mais poderia ter esperado de Danielle? Ela sempre dissera ser francesa e nunca o perdoara por haver provocado a queda de Aville. Portanto, fazia sentido que se acreditasse apaixonada por um nobre da casa de Valois.
Todavia, concedera-lhe a liberdade e o direito de morar em Aville com uma condição: jamais traí-lo, ou ao rei da Inglaterra.
Maldição! Mataria qualquer homem que chegasse a pensar em tocá-la!
- Se está tão decidido a se casar, talvez devêssemos mandar um mensageiro a frente para...
- Não, sir, melhor não. Não sou do tipo de home que aprecia comemorações. Também prefiro que a condessa, e seu primo distante, não sejam avisados de que estou a caminho. Meu noivado com Danielle foi longo demais. Uma cerimônia simples de casamento na noite de minha chegada bastará. E como planejo partir amanhã cedo, sir George, desejo-lhe uma boa noite.
Deixando o velho amigo sozinho no salão, Adrien trancou-se em seus aposentos e abriu a janela imensa, o ar frio da noite de nada servindo para aliviar seu furor. Ah, ele a tinha avisado para não traí-lo... Por Deus, ele a tinha avisado!
Chegara a hora de tomar o que lhe pertencia.
Era uma linda tarde de outono, quente e ensolarada. Sentada preguiçosamente num banco perto do lago, Danielle divertia-se com as tentativas de Simon de Valois, conde Montjoie, de tocar o alaúde e cantar uma canção de amor.
Gostava desses momentos de relativa privacidade no jardim, mesmo sabendo-se vigiada pelos soldados ingleses, residentes no castelo. Embora desfrutasse de plena liberdade, todos os seus movimentos costumavam ser observados e, na verdade, isso não a incomodava. Afinal, nunca tomara nenhuma atitude indigna, ou desonrosa.
O que realmente a incomodava era o que andava acontecendo a seu redor.
A trégua entre ingleses e franceses parecia estar chegando ao fim. Logo os homens em sua própria fortaleza tomariam partidos diferentes.
E ela ficaria no meio, dividida.
Não no meio, Danielle pensou angustiada. Fizera um juramento sagrado à mãe moribunda.
Os anos passados em Aville haviam sido maravilhosos. Amadurecera, aprendera a administrar o castelo como sua mãe o administrara e acreditava ser eficiente no exercício de suas funções. A vida ali dentro obedecia a uma rotina maravilhosamente familiar. Às segundas-feiras dedicava-se ao exame da contabilidade, às terças assistia ao treinamento dos soldados, às quartas supervisionava a confecção de sabonetes, velas e outros artigos necessários. Às quintas resolvia quaisquer reclamações de sua gente. Às sextas recebia os viajantes, encorajando a permanência de sacerdotes, peregrinos, músicos, dançarinos, atores e artesãos. Aos sábados estudava os relatórios sobre os mantimentos armazenados na fortaleza e no condado. Aos domingos participava da missa na capela e proporcionava aos empregados o dia de descanso. Nos feriados havia feiras e distrações.
Durante os primeiros meses em Aville, Danielle estivera sempre apreensiva, temerosa de que de Adrien aparecesse a qualquer momento para tomar o controle da fortaleza. Porém, à medida que o tempo fora passando, compreendera, com o coração pesado, que ele a tinha esquecido. No início, não tomara nenhuma atitude sem consultar os três guardiões que MacLachlan encarregara de vigiá-la e protegê-la durante sua ausência. Daylin tornara-se um amigo fiel, Richard Huntington revelara-se uma companhia agradável e divertida e Giles Reeves, um escocês severo, estivera sempre disposto a ouvi-la e a agir com imparcialidade. Sendo a castelã de Aville, Danielle deixara claro não se curvar a ordens, mas aceitava conselhos de bom grado.
Também, como descendente da casa de Valois, insistira, desde o princípio, em fazer do castelo um lugar onde todos se sentissem bem-vindos. Assim, conquistara a reputação de "protetora das artes". Numa de suas visitas o rei Jean fizera-se acompanhar por Simon, conde Montjoie, um cavaleiro alto, bonito e atlético. Primo distante de Danielle, os dois logo desenvolveram laços de amizade.
Determinada a impedir que Aville tornasse a cair em caso de cerco, Danielle procurara aprimorar suas defesas, inclusive mandando construir uma segunda muralha ao redor da fortaleza.
Com muito trabalho e planejamento, conseguira que as colheitas fossem sempre abundantes, ano após ano. E parte dos grãos permanecia armazenada, para ser usada somente em casos extremos quando, porventura, a fome ameaçasse a região.
Às vezes perguntava-se o que Adrien pensaria de suas iniciativas. Legalmente, ele permanecia seu guardião. Com certeza Edward esperara que estivessem casados agora. Afinal, mulheres da sua idade costumavam já ter vários filhos. Porém Adrien, depois de perder Joanna, parecera não desejar mais uma esposa. Ou talvez ele não a quisesse para esposa, considerando os boatos que varriam a Europa sobre suas inúmeras conquistas amorosas.
Nos últimos cinco anos, MacLachlan não a visitara uma única vez, sem dúvida um sinal de completo desinteresse.
Infelizmente, não fora capaz de esquecê-lo. A reputação do escocês se espalhara pelo mundo. Nos torneios, não havia quem o vencesse. E nenhuma mulher parecia resistir-lhe.
- Milady, acho que não está sequer me ouvindo - reclamou Simon. - Estive cantando os versos mais indecorosos e você nem chegou a corar.
- Versos indecorosos? Que vergonha, Simon!
- Pena que eu só possa lhe oferecer meus versos. Queria lhe oferecer o meu amor.
Danielle sabia que esse momento chegaria e tinha apenas a si a quem culpar. Apreciava a companhia do cavaleiro, mas não o amava. E Simon queria um relacionamento mais íntimo com a mesma intensidade com que ambicionava Aville. Muitas vezes alegrara-se com aquele noivado, que a impedira de se comprometer com qualquer homem. Por outro lado, jamais experimentara o gosto do verdadeiro amor, o fogo da verdadeira paixão.
- Danielle - continuou Simon, abaixando a voz -, o conde Armagnac e eu insuflamos uma revolta contra os ingleses em Languedoc e em Gascon.
- Oh, não!
- Ora, nós sabemos que sua lealdade pertence ao rei Jean.
- Edward é poderoso, vocês não devem incitar rebeliões.
- Estou lhe confiando minha vida, ao revelar meus segredos.
- Simon...
- Ouça-me. Eu te amei desde o primeiro momento em que a vi. Seu noivado é uma farsa. O rei Jean pode obter auxílio da Igreja para que esse compromisso ridículo seja declarado inválido e nulo.
- Isso é perigoso.
- Apenas diga que não vai me trair.
- Você sabe que eu nunca o trairia - ela prometeu depressa, ouvindo o som de passos.
Alguém se aproximava.
- Por favor, preciso lhe falar a sós.
- É perigoso. Você está se arriscando muito.
- Pois juro que arriscarei minha vida aqui e agora se você não concordar em, pelo menos, conversar comigo em particular. Por favor, eu lhe imploro! Vamos planejar uma caçada para amanhã. Cavalgaremos um pouco à frente e teremos alguns minutos de privacidade.
- Escute, é melhor não... - Todavia Giles Reeves escolheu aquele exato instante para interrompê-los.
- Ah, milady, aqui está você!
- Algum problema, Giles?
- Sim, condessa. O contador está incerto sobre o valor de um determinado pagamento e necessita ouvir sua opinião.
- Claro. - Danielle levantou-se imediatamente, seguida por Simon.
- Então até amanhã, milady. Estou ansioso para a nossa caçada.
- Caçada? - indagou Giles, cheio de suspeitas.
- Segundo Simon, a caça está abundante nas proximidades do rio - Danielle apressou-se a explicar.
- É verdade, milady. Porém nós sabemos que o maldito conde de Armagnac tem atacado o território de Gascon. Os moradores daquela região estão aterrorizados. E um grupo de caçadores é uma presa fácil.
- Ah, Giles, quem ousaria nos causar problemas? Nenhum inglês nos atacaria, tampouco um francês, pois pertenço à casa de Valois. - Voltando-se para o primo, despediu-se com um sorriso. - Adeus, Simon. Até amanhã.
- Aquele nobre acabará nos causando problemas - Giles falou, tão logo os dois ficaram sozinhos.
- Simon é um cavaleiro honrado, acredite-me.
- Você tem passado tempo demais longe de casa, milady.
Danielle ia contradizê-lo, mas calou-se. A vida podia ser estranha. Às vezes ansiava voltar para Gariston, ansiava rever sir Thackery. Sentia saudade das longas conversas defronte à lareira.
- Talvez eu sinta falta da Inglaterra. Contudo, a vida aqui é boa, não?
- Milady, receio que não compreenda o que anda acontecendo ao seu redor - Giles falou muito sério. - O conde Armagnac lidera uma rebelião e embora o rei Jean não o apóie abertamente, todos sabem que Armagnac apenas cumpre ordens do rei francês. Não há honra em homens que queimam casas e violentam mulheres.
- Vou caçar na companhia dos cavaleiros mais bem treinados do país. Aville é forte e capaz de enfrentar Armagnac, se ele se atrever a erguer a mão contra mim. Prometo-lhe que não me acontecerá nada.
Depois de dar um beijo no rosto de Giles, Danielle se afastou. Comovia-a a preocupação sincera do velho amigo. Mas não, ninguém ousaria atacá-la. Precisava ter chance de conversar com Simon, de entender o que ele pretendia fazer e tentar mantê-lo longe do perigo, pois não gostaria de vê-lo ferido.
Entretanto, uma certa inquietude passara a dominá-la. Como se, de repente, o mundo estivesse mudando.
Tentando se convencer do contrário, Danielle correu para o castelo.
Na verdade não existia problema nenhum com a contabilidade. Giles, achando que ela já havia passado tempo demais na companhia do jovem francês, simplesmente arranjara uma desculpa para separá-los.
Danielle refugiou-se no quarto que pertencera à mãe. Desde a morte de Lenore, quase nada mudara ali. A mesma cama de dossel, as mesmas tapeçarias, as mesmas poltronas junto da lareira. Um ambiente acolhedor, repleto de lembranças.
De repente, uma batida suave à porta. Monteine entrou, parecendo bastante agitada.
- Giles contou-me que você pretende cavalgar amanhã, milady.
- Sou excelente amazona.
- Estou muito preocupada. Os responsáveis por esses ataques em Gascon são nobres liderados pelo conde. Mulheres têm sido cruelmente violentadas e homens trucidados.
- Com certeza são só rumores. Não posso acreditar que cavaleiros se comportariam de forma tão brutal. E ninguém nos atacaria aqui. Aville está preparado para suportar agressões maciças.
- Essa é a questão, milady. A fortaleza é inexpugnável. Por isso você deveria permanecer dentro de suas muralhas.
- Vou cavalgar com cavaleiros experientes.
- E com Simon - Montaine falou, sem disfarçar a contrariedade.
- Magoa-me sua falta de confiança em mim.
- Você tem administrado o castelo com delicadeza e sensatez. Seus pais ficariam orgulhosos.
- Obrigada.
- Entretanto você não é capaz de entender...
- Entender o quê?
- Que é um prêmio cobiçado.
- Ouça, eu não...
- Por favor, escute-me. Ambas sabemos como é o mundo. Ainda que você fosse uma velha de oitenta anos, não lhe faltariam pretendentes por causa de suas magníficas propriedades.
- Sou noiva, lembra-se?
Monteine suspirou fundo.
- Eu me lembro. Mas e você? Homens ambiciosos são capazes de encontrar meios para romper um noivado. Você precisa ter cuidado.
- Apenas vou caçar com um bom amigo. Estarei segura ao lado de Simon.
- Tenho maus pressentimentos - Monteine a avisou, antes de sair do quarto.
Embora o fogo ardesse na lareira, Danielle sentiu um arrepio súbito percorrê-la de alto a baixo. Inquieta, cobriu-se com um xale, mas os tremores persistiram.
Porque Giles insistira na possibilidade de virem a enfrentar algum perigo, Danielle saiu de Aville com uma comitiva de dez homens.
Logo cavalgava à frente, seguida de perto por Simon.
- Que dia maravilhoso, não? - comentou animada, sorvendo o ar puro com prazer.
- Precisamos conversar - retrucou o francês, sério.
- Você bem sabe o quanto prezo nossa amizade, milorde, porém...
- Ouça-me, por favor. Jean é um bom rei e muito amado nestas redondezas. Edward é um patife traiçoeiro, eternamente tentando estender seus domínios por toda a França.
- Edward possui terras na França por direito próprio - Danielle afirmou, surpreendendo-se por tomar a defesa do rei inglês.
- Jean vai expulsar Edward. Ah, milady, não caia em desgraça junto com o inglês! O rei Jean é seu parente e lhe dedica sincera afeição. Rompa os laços que a prendem ao inimigo. Tenha sempre em mente que ninguém a ama mais profundamente do que eu.
Danielle fechou os olhos por um segundo. Simon se expressava com tamanho fervor, era sempre tão cortês, tão ansioso para agradá-la.
Tinha medo, mas não por si. Temia a guerra que se aproximava, temia pelos muitos que acabariam morrendo.
- Conheço o rei Edward. Você não deve subestimá-lo. Seu poder e determinação são incontestáveis.
- E você deve entender que parte do poder de Edward nesta região vem através de você, porque Aville lhe pertence e essa gente a adora! Aville seguirá o rei que você apoiar.
- Simon...
- Compreenda, não quero nada de você. Sou um homem rico, tenho títulos. Eu a amaria por toda a minha vida.
- Eu lhe quero bem. Admiro-o, aprecio sua companhia, considero-o um bom amigo. Mas preciso pensar...
- Pense com o coração! E lembre-se de que eu nunca a magoaria. Todavia, o tempo urge e...
- Danielle!
Ela virou-se ao escutar a voz de Daylin. O escudeiro cavalgava numa velocidade quase suicida, sua aflição evidente, mesmo de longe.
- Cavaleiros armados estão vindo na nossa direção, senhora. Volte para Aville já!
- Cavaleiros? Onde? - Danielle perguntou, olhando para onde Daylin apontava.
Uma dúzia de homens, trajando armaduras de guerra, avançava rapidamente sem nenhum estandarte que os identificasse.
- Danielle, eu lhe imploro! - o escudeiro tornou a gritar. - Você tem que ficar em segurança!
- Cavalgarei a seu lado, milady, e a protegerei até minha última gota de sangue! - ofereceu-se Simon. - Venha comigo para o castelo. Agora.
Mas Danielle hesitava. Como abandonar os membros de sua comitiva à mercê de bandidos fortemente armados?
- Vá! - gritou Simon, dando um tapa no flanco de Star.
A égua saiu em disparada, porém Danielle teve tempo de notar um outro grupo de cavaleiros, aproximando-se do lado oposto.
Quando os bandos de estranhos se atracaram, o barulho foi ensurdecedor. Ansiosa, ela puxou as rédeas e ergueu-se na sela, tentando avistar Simon. Com o coração apertado, viu-o engajado num combate.
Então Danielle se deu conta de que dois cavaleiros vinham em seu encalço. Não, não seria pega por canalhas, quando homens justos lutavam para salvar-lhe a vida. Cavalgando velozmente, embrenhou-se na floresta. Se conseguisse permanecer imóvel no meio da folhagem espessa, existia uma pequena chance de não a enxergarem. Infelizmente Star espirrou, o som agudo soando alto e revelando sua exata posição.
Desesperada, desmontou e pôs-se a correr. Sem fôlego, parou por um instante, os ouvidos atentos ao menor ruído.
Para sua completa surpresa, constatou que os dois cavaleiros não a estavam caçando juntos. Um deles a estava defendendo e dando-lhe tempo de se afastar do perigo.
Sabendo que não poderia continuar correndo para sempre, reuniu um resto de forças e seguiu em frente, até chegar a uma pequena clareira, onde um casebre em ruínas lhe pareceu a única salvação.
Sem alternativa, entrou e escondeu-se atrás dos restos de uma cama. Fechando os olhos, rezou para que a escuridão a engolisse.
De repente, ouviu o som de passos. Alguém a seguira. Quanto tempo levaria até ser descoberta?
Quando saía para caçar, Danielle costumava levar consigo uma pequena faca. Não se tratava de uma arma capaz de protegê-la do ataque de um cavaleiro, mas pelo menos não se renderia sem lutar.
No auge da aflição, avistou um machado enferrujado sob a cama. Brandindo-o no ar, levantou-se.
De dentro das sombras, surgiu uma figura alta e musculosa. Ágil, o desconhecido, com um golpe rápido de espada, arrancou-lhe o machado das mãos e lançou-o longe. Por um segundo, Danielle ficou rígida, imóvel. Então, recuperando-se do choque, saiu correndo do casebre em direção à mata, o cavaleiro logo atrás.
Dedos fortes a seguraram pela túnica, fazendo-a perder o equilíbrio e cair no chão de braços. Porém, quando o estranho se inclinou para ela, virou-se subitamente e tentou atingi-lo na garganta com a faca.
Esforço inútil. Uma das mãos enluvadas agarrou-a pelo pulso e obrigou-a a soltar a arma.
Pela primeira vez, Danielle encarou seu perseguidor. Ele vestia cota de malha e túnica, enfeitada com um brasão.
Um leão sobre três leopardos.
O elmo escondia todo o rosto, exceto os olhos. Olhos castanho-dourados, como tão bem se lembrava. Olhos poderosos, ardentes, passionais e, naquele momento, furiosos.
O cavaleiro soltou-a e tirou o elmo, revelando o rosto que jamais conseguira esquecer, o rosto que a assombrara por anos a fio.
- MacLachlan! - gritou, estremecendo incontrolavelmente, num misto de prazer e ansiedade.
- Sim, milady. Diga-me, você soube quem eu era antes ou depois de tentar cortar minha garganta?
Humilhada com o insulto, Danielle ergueu a mão, como se fosse esbofeteá-lo.
- Como se atreve? Você poderia ter me chamado pelo nome, ou ter se identificado. - Seu coração batia tão loucamente que mal conseguia respirar.
- Mas eu chamei seu nome, milady.
- Se você me chamou, não escutei nada - ela confessou sincera. - Estava com tanto medo... Como poderia imaginar que o veria aqui? Os rebeldes estavam nos atacando e...
- Meus homens e eu os surpreendemos pela retaguarda, milady.
Sentindo os olhos penetrantes a examinarem de cima a baixo, Danielle tornou a estremecer, inundada por um calor estranho, perturbador. Ele a fitava como se jamais a tivesse visto antes.
MacKachlan pouco mudara fisicamente desde que o vira pela última vez. Ela, sim. Talvez isso explicasse o interesse do escocês em analisá-la detalhadamente.
- Tinha alguém mais na floresta além de você, milorde.
- Sim, um cavaleiro a estava perseguindo. Convenci-o a mudar de idéia.
- Daylin, Simon, os outros...
- Um homem quebrou um braço, alguns sofreram ferimentos leves. Porém, não perdemos ninguém. Cinco do rebeldes foram mortos, o resto fugiu ao nos avistar.
- Então você chegou no momento oportuno, sir. - Aliviada, Danielle suspirou fundo. Graças a Deus ninguém dos seus morrera.
- Não, milady, cheguei agora por causo do perigo que paira sobre as possessões inglesas. Perigo que você deveria ter enxergado também.
- Não pense que pode aparecer de uma hora para outra me criticando e dando ordens. Você ignorou Aville todos esses anos e eu tenho me saído excepcionalmente bem.
- Até hoje.
- Não falhei em nada.
- É você quem está no chão, deitada de costas.
- Talvez então você deveria me permitir me levantar?
MacLachlan levantou-se e estendeu a mão para ajudá-la.
- Ainda não consegui entender o que se passa, milorde. Depois de todos esse tempo, você aparece justamente hoje. Como poderia ter adivinhado que eu necessitava de assistência neste exato momento?
- Simples obra do acaso. Na verdade, vim assumir o comando da situação, milady.
- O comando de quê?
- De Aville e de você.
- Mas o rei com certeza percebe que...
- Foi o rei quem me enviou.
Enfurecida e ofendida, Danielle retrucou num impulso:
- Talvez um outro rei possa mandá-lo embora. - Palavras tolas e impensadas. Imediatamente desejou poder voltar atrás, apagar o que dissera. - Desculpe-me, não tive intenção de falar assim.
- Talvez não. Todavia, talvez esteja na hora de você ser muito cuidadosa, milady. E talvez eu tenha cometido um erro, dando-lhe permissão para morar em Aville.
- Não fiz nada errado. Talvez você não seja bem-vindo aqui.
- Ah, mas talvez você pense diferentemente depois desta noite.
- O que vai acontecer esta noite? - ela indagou, cautelosa.
Porém MacLachlan não a escutou, já caminhando em direção ao cavalo.
- O que vai acontecer esta noite? - Danielle insistiu.
Sem se virar para fitá-la, ele falou muito calmo:
- Nosso casamento.
- O quê?
- Milady, estamos noivos há uma eternidade. Com certeza você não esqueceu. Havia um bom motivo para nosso noivado: proteger os interesses da Inglaterra. Sem dúvida dei-lhe tempo suficiente para amadurecer, física e emocionalmente. Tempo demais, aliás. Não é possível que você espere arrastar este noivado por anos a fio.
Pálida, trêmula, Danielle não conseguia articular um único som. O choque a deixara paralisada.
- Milady, a hora chegou. Nosso casamento será esta noite.
- Um casamento... Esta noite? Para contentar o rei!?
- E a mim também, imagino - MacLachlan devolveu, com uma pitada de humor.
Perplexa, Danielle se deu conta de que o cavaleiro não parecia se opor à idéia de uma união verdadeira. Sabia não significar nada para MacLachlan. Ele apenas queria tornar-se o senhor da situação.
Passara anos desfrutando de sua independência, do prazer de controlar Aville. Agora, tudo mudaria...
- Um casamento esta noite? Só se o inferno congelar! - desafiou-o.
De repente mãos fortes a seguravam pela cintura e a jogaram sobre o enorme cavalo de guerra.
- Quer o inferno congele ou não, milady, haverá um casamento esta noite. Juro-o.
- Não me ameace, sir.
- Não se trata de uma ameaça, mas de uma promessa. E, condessa, asseguro-lhe que costumo cumprir minhas promessas.
Capítulo VI
Adrien chegara na companhia de doze homens, seis cavaleiros e seus escudeiros. Todos vestindo armaduras e montados em cavalos de guerra, Danielle notou.
Todos guerreiros experientes, prontos para enfrentar qualquer batalha.
Após o confronto com o bando de rebeldes, a maioria do grupo retornara imediatamente a Aville. Danielle e MacLachlan foram os últimos a entrar na fortaleza.
No pátio interno, Adrien desmontou depressa e colocou-a no chão. Então virou-se para abraçar Daylin, que não escondia o entusiasmo pelo regresso de seu senhor. Logo sir Giles, dr. Coutin, lady Jeanette, Monteine e inúmeros soldados de Aville cercavam o escocês, ansiosos para parabenizá-lo pela brilhante atuação contra os revoltosos.
- Daylin, Giles, dr. Coutin, preciso lhes falar no salão principal - disse Adrien, não lhe passando despercebida a intensidade com que Simon, afastado do grupo uns poucos metros, fitava Danielle. - Milady, talvez possa cuidar para que meus homens e seus cavalos sejam acomodados e alimentados. Percorremos uma longa distância.
Depois de orientar sir Ragnor sobre onde instalar os recém-chegados, a condessa marchou para o salão. Porém, antes de entrar, alguém, saindo das sombras, a segurou pelo braço e puxou-a para uma alcova.
- O que está acontecendo? - indagou Simon, o rosto pálido e tenso. - Como MacLachlan chegou aqui hoje?
- Ainda não sei - ela murmurou, ciente de que o noivo encontrava-se a poucos metros dali. - Provavelmente veio se reunir ao príncipe Edward, devido aos problemas nesta região.
- Meu amor, precisamos conversar.
- Agora não. - A chegada repentina de Adrien a abalara tanto quanto a descoberta de que Simon estava associado aos rebeldes responsáveis pelos enormes estragos causados aos domínios do rei inglês.
- Quando, então? - o francês a pressionou.
- Mais tarde.
- Esta noite! - Sem esperar resposta, Simon escapou por uma porta lateral.
Inquieta, Danielle entrou no salão, sentindo, imediatamente, os olhos de MacLachlan sobre si. Olhos que não a deixaram um instante sequer enquanto ele dava as últimas ordens aos seus homens.
- Cavalheiros, creio que vocês devem começar a tratar dos assuntos que acabamos de discutir.
- Claro, milorde - concordou Giles, levantando-se.
Daylin e dr. Coutin o imitaram.
- Passou-se um longo tempo desde que nos vimos pela última vez, milady - disse Adrien, assim que ficaram a sós.
- Sem dúvida. Um longo tempo.
- E você continua determinada a me hostilizar?
Vendo-o caminhar na sua direção, Danielle deu um passo para trás, o coração batendo desordenado.
- Franceses e ingleses parecem estar eternamente em guerra, milorde.
- Este é um território inglês.
- Um tópico que sempre esteve em discussão.
- Não, não há discussão sobre isso. Embora eu concorde que franceses e ingleses dêem a impressão de nunca cessar de guerrear. Você, milady, por exemplo, sempre esteve travando uma batalha comigo. Pimenta no meu vinho. Mel nas minhas botas. Uma sela solta que quase provocou minha morte.
- Eu não mexi na sua sela.
Era óbvio que ele ainda não acreditava na sua inocência.
- E eu estive ao seu lado quando a peste quase o vitimou.
- Jamais o esqueci. Costumo pagar...
- Sim, você paga suas dívidas.
- Foi o que fiz - murmurou Adrien, lembrando-a de lhe ter concedido anos de completa liberdade em Aville. - Mas, mal acabei de chegar e você já parece pronta para reiniciar a batalha.
- Você esteve longe por decisão própria, porque Aville nunca o interessou. Porém eu permaneci. Cuidei dessa gente, trabalhei para fortificar o castelo, esforcei-me para garantir a paz e prosperidade. Todavia, você mal acabou de chegar e já foi agindo como se tivesse passado toda sua vida aqui, gritando ordens e instruções!
Calmamente, Adrien aproximou-se da mesa e serviu-se de um cálice de vinho.
- Correto, embora você tenha cometido um pequeno engano. Cheguei, salvei-a de um bando de canalhas e então gritei ordens e instruções, milady.
- Nenhum grande mal teria me acontecido...
- Não sei qual é sua definição de "mal", mas garanto-lhe que aqueles assassinos teriam matado cada um dos seus homens para capturá-la, pois você é o prêmio no qual os rebeldes queriam pôr as mãos. Isso não a aflige?
- Aville é meu lar! - Danielle afirmou, furiosa. - Você não tem direitos aqui.
Um silêncio pesado se estendeu durante alguns segundos. Quando MacLachlan tornou a falar, sua voz soou fria como aço.
- Eu sou o senhor deste castelo, milady. Não se engane querendo pensar o contrário.
- Eu tenho o direito...
- E eu represento a autoridade do rei.
- Ah, sim! O rei lhe concedeu propriedade, riquezas, títulos... e você ainda nem se casou comigo. Você passou anos afastado, porém agora Edward ordena que se case comigo. Posso me recusar a pronunciar os votos sagrados, milorde.
- Você não o fará.
- Oh? E por que não?
- Você se casará comigo, milady, porque estamos legalmente noivos há anos, com as bênçãos da Igreja. E durante este período, você não tomou nenhuma iniciativa para romper o noivado.
- Mas...
- Você se casará comigo porque a arrastarei até o altar, se preciso for.
- Você não se atreveria.
- Sem dúvida que sim.
- Por que o rei assim ordenou?
- Porque é o que decidi fazer, milady.
- Caso contrário você perderá o ducado.
Ignorando o desprezo contido em cada uma daquelas palavras, MacLachlan sorriu, destilando ironia.
- Ah, milady, tem tanta coisa que você não é capaz de esquecer, ou perdoar. Pois eu também sei manter as lembranças vivas, como as brincadeiras de mau gosto de que fui vítima. Tente se opor a mim, senhora, e será guerra.
Outra vez um calor estranho invadiu Danielle. Seria ultraje, raiva por estar sendo desafiada? Não. Se fosse sincera consigo mesma, admitiria que aquela presença máscula a perturbava. O simples ato de observá-lo, de ouvi-lo falar, a afetava. MacLachlan a fascinava. Desejava tocar a pele bronzeada, deslizar os dedos ao longo do braço musculoso. Imaginava como seria sentir as mãos fortes acariciando seu corpo. Era isso o que o casamento significava: intimidade de corpo e alma.
Bem no fundo, ansiava por algo que Adrien não podia lhe dar. Aquilo que ele dera a Joanna e nunca mais ofereceria a mulher nenhuma. Não queria entregar o coração a um homem que não hesitaria em partir a um sinal do rei e depois retornar para lhe fazer exigências. Especialmente se esse homem fosse MacLachlan. Não queria experimentar os delírios da paixão e as dores do ciúme que se seguiriam à total entrega. Não se permitiria transformar num objeto a ser usado quando conveniente e então ignorado, como se não passasse de um prêmio que, uma vez conquistado, perdesse o importância e o valor.
- Não desejo me casar. Com ninguém.
- Que estranho. Segundos os boatos que varrem a Europa, você está interessada em Simon, conde Montjoie.
- Simon é apenas um primo distante e um bom amigo. Asseguro-lhe, não tenho a menor vontade de me casar.
- Bem, milady, receio que você, proprietária de Aville e Gariston, um prêmio valioso disputado por duas nações, não possa se dar ao luxo de permanecer solteira.
- Se você e o rei me deixarem em paz...
- Trata-se de uma questão política. E sim, você tem razão. Fui agraciado com o título de duque e recebi uma vasta propriedade em Glenwood em razão de nosso eventual casamento. Sou filho de um nobre escocês, orgulhoso e sem fortuna, que me ensinou a lutar pelo que é meu e a não desistir do que me pertence.
- Eu não sou sua.
- Você tem sido minha nestes últimos cinco anos.
- Quando ficamos noivos, você afirmou só haver concordado com a idéia por se sentir em débito comigo. E concedeu-me a liberdade. Se agora está pensando em renegar...
Vendo-o rir, Danielle calou-se, furiosa.
- Ah, milady, agora entendo por que você nunca tentou romper o noivado antes. Estava convencida de que eu, abalado com a morte de Joanna, permitiria que essa situação se prolongasse indefinidamente.
- Você não estabeleceu nenhum limite de tempo.
- Ofereci-lhe anos de liberdade. Porém agora sua liberdade está incomodando aqueles súditos leais a Edward, devido aos constantes rumores de seu iminente casamento com um nobre francês.
Danielle corou, mas de raiva. Gostava de Simon como amigo e jamais pensara em aceitá-lo para marido.
- Creia-me, sir, você não gostaria de se casar comigo porque eu não poderia honrar os votos matrimoniais.
- Você não sabe do que somos capazes, quando necessário.
- A beira da morte, minha mãe me implorou para amar e honrar o rei. Dei-lhe minha promessa.
- Philip está morto e foi sua mãe quem escolheu Edward para ser seu padrinho. Lenore confiou sua vida e seu futuro ao rei inglês. E Edward a confiou a mim.
- Provavelmente minha mãe não teve alternativa. De qualquer forma, sir, fiz uma promessa à minha mãe. Não desejo causar nenhum mal a Edward e, juro, nunca tomei nenhuma atitude capaz de prejudicá-lo. Entretanto, jamais desprezarei a família de minha mãe. Não lutarei contra a casa de Valois. E se você pensa que é capaz de me fazer mudar de idéia, engana-se.
MacLachlan suspirou, exasperado.
- O rei Edward e Philip eram primos de primeiro grau. O rei inglês ainda mantém relações familiares com o filho de Philip.
- Então Edward deveria respeitar a posição do rei Jean.
- E você deveria se lembrar de que essas terras não foram conquistadas por Edward, e sim recebidas como herança. Aville pertence, por direito, aos reis da Inglaterra há dois séculos. Você também não deveria se esquecer de que fez um outro juramento. A mim. Sua palavra não vale nada? Você deseja apenas cumprir uma promessa e ignorar a outra?
- Não estou tentando quebrar nenhuma promessa.
- Então nos casaremos esta noite.
- Não estou pronta para me casar.
- Pois apronte-se.
- O impossível aconteceu, você ficou ainda mais arrogante! - ela o acusou, fervendo de raiva.
- Apenas mais determinado.
Sentindo as lágrimas virem-lhe aos olhos, Danielle deu-lhe as costas e quis se afastar, mas mãos fortes a seguram pelos ombros e a voz profunda soou quase terna aos seus ouvidos.
- Milady, sinto muito tê-la tomado de surpresa. Todavia, ambos sabíamos que esse dia chegaria, que eu não ficaria longe para sempre. Não vim até aqui com a intenção de magoá-la.
- Então adie o casamento! - Agitada, ela virou-se para fitá-lo. - Dê-me tempo.
- Não posso adiar nosso casamento - MacLachlan falou após um longo silêncio.
Tensa, Danielle deu um passo atrás, a proximidade do corpo másculo quase a sufocando.
- Está bem. Concordarei com a cerimônia, sir. Se você me der tempo... depois.
- Depois?
Ah, ele estava se divertindo com a situação, Danielle pensou, furiosa. Obrigando-a a colocar em palavras aquilo que já adivinhara.
- Eu nunca... - A condessa abaixou o olhar, mortificada. - Intimidade é algo que desconheço. Você... entende?
- Sim, claro.
Novamente ela teve vontade de lhe dar um chute. MacLachlan, com seu sorriso irônico, continuava achando a conversa muito engraçada.
- Combinado, milady. A cerimônia de casamento acontecerá esta noite e eu lhe darei tempo. Não vou lhe prometer até quando adiarei a consumação dos nossos votos, porque não sei.
Danielle nada retrucou. Obtivera uma concessão e qualquer tempo extra lhe parecia precioso.
Sentado diante da lareira, nos aposentos que lhe haviam sido designados, Adrien sorveu um pouco do vinho e estendeu as longas pernas, procurando relaxar. Cavalgara duramente e, por pouco, não fracassara na sua missão. Perder Avilte teria sido um desastre estratégico e político.
E perder Danielle...
Ela se tornara uma mulher belíssima, dona de um corpo escultural e de uma sensualidade tão inocente quanto devastadora. Conhecera muitas mulheres bonitas, porém nenhuma se comparava a Danielle.
MacLachlan fechou os olhos por um instante, os pensamentos voltando-se para Joanna. A primeira vez de ambos havia sido doce, terna. Ela se entregara com tamanho abandono que jurara sequer sentir dor. Apesar de ter aprendido a aceitar a morte de Joanna, continuava atormentado pela culpa. Deveria tê-la pedido em casamento após aquela primeira vez. Mas faltara-lhe paixão, determinação.
Com Danielle não repetiria o erro.
Chegava e ser assustadora a intensidade do desejo que sentia pela condessa de Aville.
Ironia do destino. Passara a vida atraído por mulheres igualmente dispostas a levá-lo para a cama. Sua futura esposa, todavia, parecia não considerá-lo nem um pouco atraente. Talvez por causa de Simon...
Uma batida à porta arrancou-o dos devaneios. Daylin, Giles e Richard Huntington tinham uma expressão grave.
- Encontrei o home que você feriu na floresta - informou-o Richard. - Trouxe-o para cá.
- Discretamente?
- Sim. Nós o alojamos no porão sob a torre oeste. - Quão sérios são seus ferimentos? Ele viverá?
- Dr. Coutin o está atendendo neste momento. Prometemos-lhe os melhores cuidados e asilo político na Inglaterra em troca de informações, conforme você nos orientou a fazer.
- Eu estava certo nas minhas suposições?
- Sim, milorde - concordou Daylin. - Segundo o rebelde, o conde Montjoie, não deveria ser ferido durante o ataque. E assim que a condessa de Aville fosse sequestrada, Simon passaria a dar as ordens. Quanto à escolta de Danielle, ninguém seria poupado.
- Ah, sir, eu tinha maus pressentimentos desde o início - Giles lamentou-se, balançando a cabeça. - Mas nunca imaginei que o jovem francês pudesse estar envolvido num complô contra a condessa.
- Prendemos o infame agora? - indagou Daylin.
- Não. Com certeza o conde presume que os rebeldes ou fugiram, ou foram mortos. Sem saber de nossas suspeitas, é possível que tente raptar Daniella outra vez. Ficaremos de olhos bem abertos até descobrirmos se o rei Jean o está apoiando. Que Simon permaneça como hóspede em Aville e assista à cerimônia esta noite. Desejamos o maior número de testemunhas possível.
- Sir, é bom estar novamente sob suas ordens - exclamou Daylin, entusiasmado.
- É bom vê-lo com a saúde física e mental restauradas - completou o velho Giles. - Precisávamos de sua presença aqui, para nos liderar. Tem sido duro estarmos cercados de inimigos, sempre medindo e pesando nossas palavras, vigiando a condessa o tempo todo.
MacLachlan sorriu.
- Agradeço-lhes o empenho e a lealdade em face às dificuldades. Agora vão descansar. vocês não têm nada a fazer esta noite, exceto desfrutar do banquete e participar das comemorações.
- Não deveríamos vigiar a condessa e Simon? - Daylin quis saber, ansioso.
- Não, não esta noite, rapaz. Eu os estarei vigiando. Sim, eu os estarei vigiando.
- No meio da tarde, após tomar banho e vestir-se, Adrien decidira falar com o prisioneiro pessoalmente. Conforme supusera, Simon estivera envolvido no planejamento da ação. Se Danielle desconhecera as intenções do conde, ainda não o sabia. Verdade que ela fugira e se escondera no casebre como se o diabo estivesse em seu encalço. E também lutara desesperadamente no bosque. A menos que soubesse quem era ele, o homem que sempre considerara seu inimigo.
Teria a condessa chegado a esse ponto? Passara tantos anos longe que às vezes sentia-se lidando com uma completa estranha.
A cerimônia de casamento aconteceria ao pôr-do-sol, na capela, oficiada pelo padre Josef. Embora tivesse prometido tempo à noiva, ficaria muito mais feliz quando a união de ambos fosse legalizada.
Firme no propósito, MacLachlan atravessou o salão, onde os servos desdobravam-se nos preparativos para a grande celebração. Antes de rumar para os aposentos de Danielle, parou em seu quarto, atrás do presente enviado por Joan, esposa do príncipe Edward. Infelizmente a camisola de seda branca seria inútil naquela noite.
- Danielle... - Adrien a chamou, abrindo a porta sem bater.
A visão inesperada o fez prender o fôlego. Deitada na banheira, os longos cabelos molhados, os olhos verdes cintilando sob os cílios úmidos, Danielle era a imagem da perfeição feminina.
- Nunca acreditei que os escoceses fossem tão corteses quanto os franceses. Mas sempre acreditei que todos os cavaleiros, independente da nacionalidade, batessem à porta antes de entrar nos aposentos alheios.
- Como senhor do castelo, estes aposentos são meus, milady. Estou apenas deixando-a usá-los. Por enquanto.
Na verdade, Adrien desejava ter batido à porta. Vislumbrá-la nua sob a água, notar os contornos sinuosos do corpo voluptuoso o estava excitando perigosamente.
E prometera-lhe tempo.
- O que está fazendo aqui, milorde? - ela o interpelou, trêmula.
Satisfeito ao constatar que a noiva não se mostrava indiferente à sua presença, MacLachlan aproximou-se da cama.
- Trouxe-lhe um presente de lady Joan, princesa de Gales. - Ele depositou a camisola sobre a cama e também um pequeno frasco de vidro, cheio até a tampa. - Além de um "presente" meu.
- O que é?
- Sangue de galinha.
- Como? - a condessa indagou, sem entender.
- Para ser despejado sobre o lençol antes do amanhecer.
Vermelha da cabeça aos pés, Danielle desviou o olhar.
- Obrigada. Agora, milorde, se me der licença. A água está ficando fria.
Embora pretendesse sair, uma força irresistível o atraiu para perto da banheira. Ajoelhando-se, Adrien a tocou de leve no braço, o simples roçar de seus dedos arrepiando-a.
- Prometi lhe dar tempo. Porém nunca prometi ficar fora dos aposentos conjugais, ou fingir que não ganhei uma esposa junto com Aville.
- Aville continua sendo meu.
- Você sairá ganhando mais na barganha do que eu, milady. Casando-me com você, me tornarei conde de Aville, mas você será duquesa.
- Edward só lhe concedeu o título de duque porque eu concordei com nosso noivado.
- Condessa, nada do que obtive foi através de você, mas sim por merecimento. Temo ter sido mais fácil lidar com os exércitos inimigos do que aguentar sua arrogância.
Danielle engoliu em seco e fechou os olhos por um breve instante.
- Sir, não sou uma pedra, uma parede, um castelo, ou uma fortaleza! Você virou meu mundo de pernas para o ar em questão de horas e agora vem me provocar. Além de só enxergar meus defeitos, considera-me um mero apêndice de Aville. Para completar, milorde, parece-me que enquanto esteve lamentando a perda de Joanna, você se deitou com metade das mulheres da Inglaterra, da Escócia e do Continente. Perdoe-me se eu, que não fiz nada além de escutar poetas e músicos, mostro-me um tanto reticente quanto à sua presença em meu quarto.
Naquele momento MacLachlan teria aberto mão de todos os títulos e propriedades apenas para possuí-la. Entretanto, apesar de notá-la nervosa e trêmula, sabia que Danielle continuava combativa. Iria deixá-la sozinha, mas não como se obedecesse a uma ordem.
- Metade das mulheres da Inglaterra, Escócia e do Continente? - perguntou sorrindo e levantando-se. - Certamente não! Certamente não passou de... um terço!
Já perto da porta, Adrien desviou-se do sabonete que a condessa lhe atirara.
- Apresse-se, milady. A cerimônia começará dentro de uma hora. Espero-a no salão para nos dirigirmos juntos à capela.
Praguejando, Danielle atirou um sapato. Adrien abaixou-se, não sem antes reparar nos seios expostos pelo movimento súbito do braço. Seios firmes, fartos, os mamilos rosados e eretos.
Fechando a porta atrás de si, ele anteviu uma longa e agonizante noite pela frente. Manteria a palavra empenhada, mas sofreria as torturas do inferno.
Inquieto, refugiou-se no salão.
Algum tempo depois Danielle surgia, trajando um elegante vestido azul-claro. O corpete, bordado com pérolas pequeninas, evidenciava o colo alvo. Sobre os cabelos negros, um véu também azul, preso por uma tiara de ouro.
Sem lhe lançar um único olhar, a condessa acercou-se da mesa e serviu-se de um cálice de vinho. Depois de tomá-lo rapidamente, serviu-se de outro, também sorvido até a última gota em poucos segundos. Segurando-a pelo pulso, MacLachlan a impediu de encher o terceiro.
- Quão bêbada você acha necessário estar antes de professar os votos matrimoniais, milady?
- Muito - ela retrucou, tentando, em vão, soltar-se.
- Receio não poder deixá-la desmaiar no meio da cerimônia.
- Passei a vida inteira bebendo o vinho de Aville. Não há quantidade suficiente para me fazer desmaiar.
- Melhor não nos arriscarmos.
-A maioria das noivas exige alguma pompa em cerimônias desse tipo. Um vestido novo, jóias, flores.
- A maioria das noivas pretende dormir com seus maridos.
- Quem será meu padrinho de casamento? - Temerosa quanto ao rumo da conversa, a condessa achou melhor mudar de assunto.
- Dr. Coutin, representando Edward III.
Chegando ao pátio, o povo de Aville os aguardava. Carpinteiros, agricultores, pedreiros, donzelas, soldados e suas damas. Gritos entusiasmados e flores foram atirados no ar.
Todas as flores que Danielle poderia ter desejado.
O casal caminhou para a capela, onde padre Josef, dr. Coutin, lady Jeanette, Monteine e outros os aguardavam. Notando a presença de Simon, Adrien sentiu uma ponta de ciúme. Se fosse traído...
O sacerdote conduziu a cerimônia com irritante lentidão. Dr. Coutin disse algumas palavras em nome do rei. MacLachlan pronunciou seus votos rapidamente. Danielle, embora não vacilasse, parecia nervosa, quase reticente.
Mas nada disso importava. A condessa o aceitou para marido sem ser coagida e diante de um número considerável de testemunhas. Após os ritos finais, padre Josef lhe deu permissão para beijar a noiva.
Ciente da presença de Simon, Adrien decidiu deixar claro reconhecer, e apreciar, os atributos da esposa.
Enlaçando Danielle pela cintura, puxou-a para junto de si e esmagou os lábios carnudos com os seus. Ela tentou protestar, se afastar, porém a resistência inicial serviu apenas para atiçar seus sentidos. Logo sugava a língua perfumada com uma avidez que beirava a loucura.
Quando enfim a soltou, Danielle, ofegante, vermelha, mal se sustentava de pé, o corpo inteiro trêmulo.
Desejava tornar a beijá-la, todavia os convidados, ansiosos para parabenizá-los, os cercaram.
A pequena multidão acabou afastando-os. Entretanto Adrien viu quando Simon beijou Danielle no rosto, demoradamente, e lhe sussurrou algumas palavras no ouvido.
O que estariam planejando, perguntou-se furioso, caminhando na direção dos dois.
Mais do que depressa, Simon se esgueirou para o pátio lotado. Tomando a esposa pelo braço, MacLachlan a conduziu ao salão, onde o banquete seria servido.
Sentada a seu lado, pálida e rígida, Danielle não tocou na comida, nem provou o vinho. As horas foram se arrastando e a condessa, indiferente à música e aos risos, não pôde suportar mais a agonia.
- Milorde, minha cabeça está a ponto de explodir. Preciso ir para a cama... dormir.
Aparentemente, Danielle pouca experiência tinha em festas de casamento, pois bastou se levantar para todas as damas presentes a imitarem e seguirem escada acima.
Os cavaleiros se encarregaram de acompanhar MacLachlan até seus aposentos, onde o despiram e o meteram num robe, antes de levá-lo ao encontro da noiva.
Nos aposentos principais, cercada por suas damas, Danielle vestia a camisola que lady Joan lhe mandara de presente.
A visão do corpo escultural sob o tecido fino atingiu Adrien com a força de um raio. Tão logo as mulheres se retiraram, ele fechou a porta e tomou-a nos braços.
- Cumpri minha parte do trato - ela murmurou, aflita. - Por favor, você tem que manter a sua. Vá embora.
Por um instante ele não foi capaz de se mexer, o fogo que ardia em suas veias consumindo-o.
- Por favor, vá! Você prometeu!
- Se é assim, boa noite, esposa.
Certificando-se de que não havia ninguém no corredor, MacLachlan voltou para seus aposentos sem saber como enfrentaria aquela noite interminável.
Se Danielle não fosse tão ingênua, se não estivesse tão assustada!
Praguejando, serviu-se de um cálice de vinho e sentou-se diante da lareira.
Por fim caiu numa espécie de estupor, provocado pela bebida.
Horas depois, ruídos abafados no corredor acabaram por acordá-lo. Levantando-se, encostou o ouvido à porta. Os sussurros terminaram quando a porta do quarto de Danielle foi fechada.
- Danielle! Depressa!
Com o coração apertado de medo, ela sentou-se na cama ao reconhecer a voz de Simon.
Após a cerimônia, o francês mostrara-se tão desesperado que tivera pena. Movida pela compaixão, acabara explicando que o casamento não seria consumado tão cedo.
Oh, Deus, não deveria nunca, nunca, ter dito aquilo, porque Simon viera procurá-la no pior momento possível!
Ansiosa para despachá-lo o quanto antes, entreabriu a porta do quarto, rezando para que Adrien não acordasse. Antes de poder impedi-lo, Simon entrou.
- Por favor, saia daqui imediatamente.
- Dani, não permitiremos que isso aconteça. Se seu casamento ainda não foi consumado, existe uma chance de conseguirmos a anulação. Partiremos agora - o cavaleiro determinou, ignorando os apelos insistentes para que se retirasse. - Vou levá-la até o rei Jean. Ele saberá qual atitude tomar. Nós recuperaremos Aville, nós...
- Chega, pelo amor de Deus, chega! Sempre honrei a família de minha mãe, mas Aville pertence a Edward! Você não entende? As pessoas daqui são leais a ele. Além de tudo, precisam dessa aliança.
- Oh, céus, mas eu te amo, Dani!
De súbito, ela sentiu lábios vorazes se apossarem dos seus, enquanto mãos impetuosas tentavam acariciá-las nos seios. Enojada, empurrou-o. Porém seu gesto serviu apenas para aumentar o ardor do francês, que a apertou com mais força.
Naquele instante, a porta do quarto foi escancarada.
Simon virou-se, já empunhando a espada.
A voz de MacLachlan, fria como aço, rompeu o pesado silêncio.
- Se você tocar na minha esposa outra vez, conde, cortarei sua cabeça tola fora - ele falou muito calmo, a espada em posição de ataque.
- A dama era destinada a mim! - Simon gritou, lançando-se sobre o escocês.
A luta foi breve. Com dois golpes apenas, Adrien desarmou o oponente e atirou-o no chão, vencido. Então, agarrando-o pelo colarinho, arrastou-o para o corredor.
- Adrien, por favor, escute-me - implorou Danielle, tentando explicar que nada acontecera.
- Lidarei com você depois de terminar com seu amante, senhora.
- Espere...
Mas o marido a empurrou para dentro do quarto e fechou a porta, isolando-a do mundo.
Fora uma louca, ela concluiu desesperada, os olhos fixos no fogo que ardia na lareira. O que faria agora? Precisava de tempo para pensar, para superar o medo crescente.
Não! Não! O que precisava era que a porta daquele quarto permanecesse fechada para sempre, isolando-a do resto do mundo.
Oh, não passava de uma covarde! E quanto a Simon? Tinha que ajudá-lo.
A porta foi aberta e fechada com força. MacLachlan, do alto de sua elevada estatura, dava a impressão de dominar o ambiente,
- O que você fez? - ela indagou, esforçando-se para conter os tremores que a sacudiam. - O que você vai... fazer?
- Eu deveria matá-la! - A voz de Adrien soou baixa e controlada, destituída de emoção. - Passar meus dedos ao redor de seu pescoço e esganá-la. No mínimo, eu deveria espancá-la até ouvi-la suplicar misericórdia.
- Não tenho medo de você! - Danielle mentiu, o coração a ponto de sair pela boca. - Não permitirei que me ameace e exijo respostas. O que fez com Simon? Se o feriu...
Com duas passadas rápidas MacLachlan se aproximou. Segurando-a pelos ombros, obrigou-a a fitá-lo, o silêncio súbito aterrorizando-a. Nunca o vira tão furioso, nem quando ele a acusara de afrouxar a sela e quase provocar uma queda fatal.
- Solte-me, seu maldito inglês arrogante!
- Escocês - Adrien a corrigiu, tomando-a no colo e jogando-a na cama. - Pobre menina, ingênua e inocente. Dê-me tempo. Tempo para se entregar ao seu amante, isso sim.
- Você está enganado! Você não entende!
- Entendo muito bem. Vi as mãos do canalha em seus seios, os lábios sórdidos sobre os seus. Deus, eu poderia matá-la! - ele gritou, colérico. - Não há nada errado com o fato do maldito estar devorando-a? É essa sua opinião?
- Você não deve machucá-lo. Oh, você não compreende...
- Não. Você não compreende. - Sem qualquer delicadeza, Adrien deitou-se sobre a esposa e deslizou a mão sob a camisola fina, explorando, acariciando.
- Espere! - Danielle murmurou, chocada com a intimidade do toque.
Porém, o mais apavorante era a reação traiçoeira do próprio corpo.
- Esperar? Esperar até aquele canalha tornar a seduzi-la?
De repente o membro rígido a penetrou numa única investida, a dor lancinante deixando-a rígida.
Mas se Adrien fora impetuoso na penetração, a surpresa o imobilizou. Não a supusera virgem, após presenciar a cena com o francês.
Depois de fitá-la demoradamente, beijou-a na boca, nos olhos, no pescoço, arrastando-a num turbilhão de sensações deliciosas. A dor esquecida, Danielle se abandonou às carícias, deixando-se consumir pelo fogo abrasador. Louca de desejo, puxou-o para mais perto. Então sentiu-o estremecer e um líquido quente inundá-la. Parte de si queria afastá-lo, ver-se livre daquela invasão. Entretanto, outra parte ansiava pelos beijos embriagadores, pelo toque íntimo e sensual. Como lidar com tantas emoções conflitantes?
- Olhe para mim, milady.
- Você está me matando! - ela o acusou, incapaz de entender a complexidade dos próprios sentimentos.
- Você não morrerá. - MacLachlan sorriu. - Todavia eu poderia tê-la matado se houvesse entrado neste quarto segundos mais tarde.
- Você persiste no erro, maldito escocês. - Por pouco, Danielle não cedeu às lágrimas. - Você precisa entender que Simon e eu não éramos "amantes".
- Mas o que poderia ter acontecido se eu não aparecesse naquele exato momento? Compreenda, é difícil sentir-se culpado por tirar a virgindade da esposa violentamente, se ela está suplicando pela vida de outro homem. Graças a Deus vocês não chegaram a consumar o ato. Pelo menos agora não estou mais inclinado a estrangulá-la.
- Ou espancar-me?
- Segundo a lei francesa, o marido possui o direito de espancar a esposa. Ah, milady, se eu tivesse aparecido alguns minutos depois...
- Você teria me encontrado sozinha! - ela o interrompeu, furiosa. - Considerando as circunstâncias, eu jamais permitiria que as coisas fossem além.
- Por "circunstâncias" você está se referindo à minha chegada a Aville?
- Estou dizendo que em nenhuma circunstância eu pretendia trair o compromisso do nosso noivado. Coisa que, aliás, você fez com frequência.
Novamente MacLachlan sorriu.
- Sou dez anos mais velho que você, milady. E receio não ter vocação para viver como monge.
- Talvez eu também não tenha vocação para viver como freira.
O sorriso desapareceu do rosto viril.
- Dê graças a Deus por ter vivido como tal até agora, senhora.
Mais uma vez Danielle se esforçou para reprimir as lágrimas.
- Você prometeu me dar tempo. Você... não tinha o direito!
Por fim MacLachlan levantou-se e caminhou até a lareira, o corpo nu coberto pelo robe escuro.
- Eu tinha todo o direito, senhora.
- Mas você havia me prometido...
- Tempo. Contudo a promessa perdeu o sentido quando descobri que seu aman... que seu amigo era culpado de traição. E eu a avisei, anos atrás, que não a pouparia, se você não honrasse sua palavra.
- Mas...
- Pequena tola! Não lhe pareceu estranho seu amigo insistir na idéia de uma caçada no mesmo dia em que os bandidos a atacaram?
Perplexa, Danielle sentou-se na cama e cruzou os braços sobre o peito. O tecido fino da camisola a fazia se sentir tão exposta como se estivesse nua em pelo.
- Você está errado! Simon não me atrairia para uma emboscada.
- Simon a enganou.
- Como pode ter tanta certeza?
- Porque mandei Daylin e um soldado seu, Ragnor, de volta à floresta em busca do canalha com quem lutei. O infeliz estava à beira da morte. Em troca de receber os cuidados do dr. Coutin e de asilo na Inglaterra, ele se prontificou a nos contar o que queríamos saber.
- Se você obteve uma confissão através da tortura...
- Senhora, creia-me, jamais torturei pessoa alguma.
- Exceto eu. O que você fez com Simon? - O silêncio do marido aterrorizou-a. Temendo que o francês houvesse sido sumariamente executado, pulou da cama e, fora de si, bateu no peito de Adrien com os punhos cerrados. - Maldição...
Segurando-a pelos pulsos, MacLachlan imobilizou-a.
Bastou o corpo másculo roçar o seu, para Danielle sentir-se em fogo, um estremecimento súbito percorrendo-a de alto a baixo.
- Simon está vivo - Adrien a informou, ríspido.
- Porém você pretendia matá-lo.
- Executá-lo ainda é uma possibilidade.
- Porque ele é meu amigo.
- Porque ele pretendia sequestrá-la, possuí-la e então reivindicar Aville em nome do rei Jean. Ah, talvez aos seus olhos não pareça algo tão horrível assim.
- Pare com isso! Você não pode julgá-lo sem provas.
- Provas? Você me toma por algum idiota?
- Talvez Simon me amasse de verdade. Não se apresse a condená-lo tão apressadamente sem...
- Maldição, mulher! Se você possuísse um mínimo de bom senso, perceberia que é melhor não mencionar o nome do canalha dentro deste quarto pelo resto da noite!
- Mas você precisa me dizer se...
- É suficiente você saber que não o matei. Por Deus, pare de falar no assunto ou acabarei voltando atrás.
Danielle calou-se, receosa de que a ameaça fosse concretizada. Adrien a surpreendera sendo beijada por outro homem na noite de núpcias. Quem iria condená-lo por tomar uma atitude drástica?
Após vários minutos, como MacLachlan continuasse segurando-a pelos pulsos, armou-se de coragem para enfrentá-lo.
- Você venceu seu... adversário e vingou-se de mim - falou, amparando-se num resto de dignidade. - Por favor, peço-lhe, solte-me agora.
- Vinguei-me? Toda noiva passa uma noite como esta.
- Não, sir! Você sabe que me deve um pedido de desculpas.
- Nunca, milady. Não pedirei desculpas por fazer amor com minha própria esposa!
Ela abaixou o olhar, muito pálida.
- Você não... fez amor comigo. Você estava furioso.
- Por isto sinto muito. Todavia, o que está feito, está feito. E talvez tenha sido melhor assim, porque suas exigências não estavam me agradando.
- Tampouco as suas exigências, e as do rei, estavam me agradando.
- Felizmente os planos do rei coincidiam com os meus. - Tomando-a no colo, ele a carregou de volta à cama.
- Por favor, não. O que houve foi doloroso.
- Não será assim desta vez. Você não vai mais sentir dor. E desta vez, Danielle, eu lhe farei amor, serei gentil, terno e apaixonado. Perfeito. - Num gesto rápido, ele a livrou da camisola. - Fique quietinha agora.
- Não posso.
- Ah, querida, então você está se rendendo, implorando misericórdia?
Conforme esperara as palavras mágicas tiveram o efeito que imaginara.
- Nunca me renderei!
Sorrindo, MacLachlan se apossou dos lábios carnudos. Determinada a resistir-lhe, Danielle quis se afastar. Mas quando as mãos fortes acariciaram seus seios e massagearam os mamilos, ela sentiu um calor sutil espalhava-se por toda sua pele. Logo a boca sensual tomava o lugar das mãos. E quando um de seus mamilos foi sugado com força, sufocou um grito de prazer. Oh, céus, precisava lutar contra aquilo tudo, afastá-lo, romper o encantamento do qual estava caindo prisioneira...
- Não! - murmurou ofegante, esforçando-se para empurrá-lo.
Porém Adrien agora a beijava no umbigo, no ventre e... no ponto mais íntimo da sua feminilidade. A língua imperiosa a tocava, explorava...
Enlouquecida, sacudida por tremores incontroláveis, consumida por sensações que lhe arrebatavam o corpo e a alma, Danielle, no auge do clímax, agarrou-o pelos cabelos, certa de que morreria de prazer.
Então ele a penetrou devagar. E a fome que a condessa pensara estar saciada tornou a crescer. Sem que pudesse evitar o impulso, ergueu os quadris para acomodá-lo ainda melhor, para absorvê-lo por inteiro dentro de si.
A magia recomeçou. Adrien intensificou o ritmo das investidas lentamente até vê-la vibrar em seus braços. Lânguida, trêmula, ela pressionou o rosto contra o peito musculoso, embaraçada com o próprio comportamento. O prazer fora quase insuportável e não sabia como lidar com a descoberta do erotismo nos braços do homem que, durante anos, considerara um inimigo.
- Danielle? - MacLachlan a abraçou gentilmente. - Foi doloroso?
- Não - ela admitiu, seca.
- Ah, bem. Então foi espetacular?
- Não! - Nunca admitiria a verdade. Seria embaraçoso, vergonhoso demais.
Ele riu, deixando claro não acreditar na resposta.
- Se é assim, receio ter falhado com você. Mas não se preocupe. Continuarei tentando até conseguir fazer tudo... perfeito.
Alarmada, Danielle o encarou.
- Você não falhou comigo, de jeito nenhum. Você foi... estupendo!
- Você é muito gentil comigo, senhora. - Outra vez o mesmo sorriso divertido. - Portanto, creio que não se importará de consumarmos nosso casamento mais uma vez esta noite.
Danielle gemeu baixinho, assustada com a facilidade com que cedera ao fascínio de MacLachlan, dominada pelo seu poder de sedução, de persuasão. Jamais se imaginara capaz de sentir essa... essa paixão, esse desejo avassalador.
- Se ao menos você me deixasse um pouco em paz! Já lhe disse, não posso me mexer, não posso sentir, não posso... Não posso fazer essa coisa de novo.
MacLachlan ficou muito sério e a acariciou de leve no rosto.
- Pois digo-lhe, milady, que você pode e o fará. Ainda estou querendo ser perfeito.
- Você foi perfeito o bastante.
- Que grande elogio. Pena faltar com a verdade.
- Adrien, juro que...
- Basta, milady. Você é minha esposa. Portanto pode, e fará, amor comigo outra vez. Quando esta noite terminar, jamais poderá se esquecer de que estamos legalmente casados diante de Deus e dos homens. Seremos marido e mulher em todos os sentidos. Não aceitarei protestos.
Às primeiras horas do dia, Danielle adormeceu. No fim, Adrien, como sempre, tivera tudo à sua maneira.
E a condessa nunca, nunca se esqueceria de que era casada, ou da extraordinária noite de núpcias nos braços de lorde MacLachlan.
Capítulo VII
Ao acordar, Danielle teve a impressão de estar saindo de um pesado torpor. O quarto parecia envolto em névoas e uma sensação de irrealidade a dominava.
Tentou levantar-se e o corpo inteiro protestou, dolorido. Então as lembranças da noite anterior a atingiram, apagando quaisquer vestígios de sono. Ignorando o desconforto, pulou da cama. Após banhar-se, vestiu-se depressa, perguntando-se que horas seriam e onde estaria Adrien. E o que teria acontecido ao pobre Simon?
Antes de sair do quarto, lançou um último olhar para a cama. Nos lençóis amarfanhados a prova irrefutável da consumação do casamento. O sangue de galinha não fora necessário.
- Milady! - saudou-a Rem, solícito, vendo-a entrar no salão principal. - Recebemos ordens para não perturbá-la. O duque só voltará ao anoitecer. Mas milady deve estar faminta. Posso lhe servir algo?
- Não, obrigada, não estou com fome. Você saberia me dizer aonde foi lorde MacLachlan?
- Ao campo, supervisionar o treinamento dos arqueiros.
Depois de se despedir do velho criado, Danielle correu para o estábulo e, sem esperar pelo cavalariço para arrear Star, montou a égua em pelo. Tinha pressa.
Em poucos minutos cavalgava pelo campo, até o local onde os arqueiros costumavam treinar.
Embora instruísse um dos rapazes, Adrien avistou-a imediatamente. Com uma expressão impenetrável no rosto, abandonou a tarefa e aproximou-se da mulher.
- Não é adequado você montar em pelo - falou, segurando-a pela cintura e colocando-a no chão.
- Costumo cavalgar assim com frequência.
- Não mais a partir de agora, senhora.
A simples presença do marido a afetava tanto, que Danielle começou a desejar não ter ido até ali. Perturbada, afastou-se alguns passos.
- Você não entrará na minha vida depois de tão longa ausência se achando no direito de me dar ordens a respeito de tudo.
- Não, Thibald! - gritou Daylin, chamando a atenção de um jovem soldado de Aville. - É como explicou o duque, rapaz. Concentração!
Sem pensar no que estava fazendo, apenas determinada a distanciar-se do marido, Danielle caminhou para a linha dos arqueiros.
- Danielle, volte aqui! Você pode se machucar!
Ignorando-o, a condessa parou perto de Thibald e tomou-lhe o arco das mãos.
- Sim, concentração é a chave. Numa batalha, você não deve prestar atenção à confusão que o cerca, mas somente no alvo. - Rezando para manter a mão firme, Danielle ergueu o arco e atirou a flecha.
Para seu enorme prazer, cravou a flecha com enorme precisão. Valera a pena ter sido treinada pelos instrutores dos filhos do rei. Os soldados a aplaudiram, entusiasmados. Adrien, contudo, não parecia surpreso. De fato, esperara vê-la acertar o alvo com absoluta perfeição.
- Uma disputa! - sugeriu alguém. - Uma disputa entre milorde e milady!
Embora não muito animado, Adrien cedeu à pressão.
- Damas primeiro - falou, dando um passo atrás.
Confiante, Danielle atirou a flecha e novamente acertou quase na mosca. Sorrindo vitoriosa sob os aplausos do grupo, virou-se para MacLachlan, desafiadora.
- Que feito extraordinário para uma esposa! Imagine só, se você tivesse nascido uma pobre camponesa, seu marido correria o risco de, ao voltar para casa após um dia de trabalho árduo, encontrar não o jantar pronto, mas você pronta para acertá-lo com uma flechada.
- Todavia, sir, não nasci pobre e sim destinada a reger um castelo. E o faço bem. Aliás, mesmo em aptidões como essa, minha perícia se equipara à sua.
Muito calmo, Adrien atirou a flecha. Uma onda de aplausos quando esta aterrissou ao lado da de Danielle.
- Ah, milady, nascida uma condessa rica, porém destinada, por obra do destino, não a reger um castelo, mas a servir o lorde nascido para dominá-la.
Danielle atirou a flecha. Para seu assombro, colocou-a entre as duas já plantadas no alvo. Fora uma proeza indiscutível. Uma demorada salva de palmas brindou-a.
- Impossível me superar agora, sir. A propósito, não existe um único lorde neste mundo capaz de me controlar.
- É o que ainda vamos descobrir, não, meu amor? E, aliás, nada é impossível, milady.
Com absoluta segurança, Adrien posicionou o arco, mirou o alvo e atirou a flecha. O impossível aconteceu.
Sua flecha partira a da esposa em duas. Aplausos ensurdecedores saudaram a façanha.
Pasma, Danielle limitou-se a fitar o marido enquanto os soldados se afastavam para estudar o alvo, atônitos com o que haviam acabado de testemunhar.
- E então, milady?
- Então, sir, se estivéssemos numa batalha e você fosse meu alvo, não teria tido oportunidade de me atacar, porque eu já teria acertado seu coração.
- Eu não estava me referindo à disputa, senhora. Estava perguntando o que você veio fazer aqui. Sentiu saudade de mim? Ausentei-me tempo demais de nossa cama conjugal?
- A eternidade não seria tempo demais, milorde.
- Oh, milady, não creio que seria cavalheiresco chamá-la de mentirosa.
- E o que as suas atitudes em relação a mim têm de cavalheirescas?
- Se é assim, você é uma mentirosa, senhora.
- Adrien, pelo amor de Deus, exijo saber o que você fez com Simon.
- Simon... Ah, o jovem nobre culpado de traição contra o rei Edward, aquele que descobri acariciando minha noiva seminua ontem à noite, certo?
- Simon não é inglês, portanto não pode ser acusado de traição contra o rei da Inglaterra.
- Então seu amigo não tentou se apossar de uma propriedade do rei?
- Diga-me agora o que você fez com ele.
O sorriso desapareceu dos lábios de MacLachlan.
- Talvez, milady, você devesse parar com essas exigências. Ainda não me esqueci de como os surpreendi juntos. Você deveria estar mais preocupada em suplicar meu perdão e minha misericórdia, porque asseguro-lhe que o jovem Simon se apressou a fazê-lo.
Danielle ficou ainda mais pálida.
- O que... o que você fez com ele?
- Nada, milady. Absolutamente nada. Não precisei sequer ameaçá-lo para que o idiota entendesse a necessidade urgente de implorar pela própria vida e pelo meu perdão.
Decidido, Adrien aproximou-se de Star e deu-lhe um tapa no flanco, despachando-a para o castelo.
Indignada, Danielle o interpelou.
- Por que isso? Serei obrigada a andar de volta para casa? Trata-se de algum castigo bizarro?
- Castigo? Não, milady. Apenas senti sua falta durante as horas em que estivemos separados e resolvi que você cavalgará comigo.
- Não deboche de mim, sir. Você não sentiu minha falta, pois estava entretido com seus jogos de guerra. Só não quer que eu monte em pelo...
Sem se dar ao trabalho de responder, MacLachlan a colocou sobre Mateus e montou também. Os últimos raios de sol se dissipavam no horizonte, criando uma atmosfera de pura magia. Ao longe, Aville parecia banhado em ouro.
- Então será sempre assim entre nós, milady? - ele indagou, numa voz surpreendentemente suave. - Sempre uma disputa? Neste caso tenha cuidado, porque não perco nunca, seja uma batalha, seja um jogo.
- Mas eu quase o venci. Você também deveria ter cuidado, sir, porque não cedo nunca, seja numa batalha, seja num jogo.
- Quer você admita a derrota ou não, senhora, eu saí vitorioso.
- Você está se referindo à disputa com arco e flecha, ou a Aville? A possibilidade de um acordo é sempre inexistente?
- Acordo com você, meu amor? - Adrien riu com prazer - Duvido. Você gosta de uma discussão, qualquer discussão porque está sempre determinada a vencer.
Ao se dar conta de que apoiara a cabeça no peito largo ela se afastou, irritada consigo mesma. MacLachlan a puxou de volta.
- Por favor, sir, chega de jogos.
- Certo. Nada de jogos. Respondendo às suas indagações, Simon é um homem rico. Mandei-o, com uma escolta, para o príncipe Edward, que decidirá o valor do resgate.
- Mas...
- Seu amigo permanece inteiro. Nada lhe foi arrancado, nem cabeça, nem coração, nem membros.
- E quanto...
- Basta de Simon.
Danielle permaneceu em silêncio durante o resto do trajeto. Mal entraram no pátio interno do castelo, desmontou e correu para o salão.
Minutos depois Adrien surgia, seguido por seus homens. Ao ver lady Jeanette e Monteine conversando e rindo muito à vontade na companhia dos ingleses, ela sentiu-se quase insultada. Suas maiores amigas e aliadas davam a impressão de aceitar MacLachlan como o legítimo senhor de Aville.
Irritada, Danielle sentou-se à mesa. Porém, apesar de não haver comido nada o dia inteiro, não tinha fome. A presença de Adrien a sufocava. Assim que a refeição terminou, escapou para seus aposentos.
O quarto fora limpo e arrumado, os lençóis da cama trocados. Nervosa, pôs-se a andar de um lado para o outro, a atenção fixa na porta. Todavia Adrien não apareceu.
Por fim o cansaço venceu-a. Vestindo a camisola mais grossa que possuía, de mangas compridas e decote alto, deitou-se. Em segundos, dormia profundamente.
Acordou de repente, o rosto másculo bem próximo do seu.
- Não me resista - ele a avisou. - Não desejo lhe causar dor, contudo saiba que farei valer meus direitos de marido.
- Talvez, milorde, eu lhe cause dor - Danielle murmurou, dominada por uma estranha vontade de chorar.
Com os nervos à flor da pele, não conseguia entender os sentimentos contraditórios que a atormentavam.
- Não se oponha a mim.
- Não posso deixar de ser o que sou.
- Então cesse de me odiar.
- Não o odeio - ela admitiu, angustiada.
- Ah, com essas doces palavras de encorajamento eu quase poderia ficar para sempre prisioneiro de seu terno encanto.
- Pare de zombar de mim.
MacLachlan ficou muito sério, a voz desprovida de qualquer ironia, ou aspereza.
- Sem disputas, sem jogos esta noite, milady!
Ela tampouco desejava discutir, ou resistir-lhe. Quando os lábios sensuais tocaram os seus, retribuiu o beijo com igual ardor. Não queria pensar, nem argumentar, nem brigar. Queria apenas viver aquele momento como se não existisse amanhã.
Nos dias que se seguiram, Adrien passou quase a maior parte do tempo no campo, supervisionando o treinamento de seus soldados.
Do alto das muralhas, Danielle observava-os praticar com as várias armas de guerra: espadas, lanças, machados, bestas.
Os homens viviam em constante treinamento. Numa sociedade feudal, cabia-lhes servir seu senhor, enquanto este devia lhes garantir proteção.
Após o incidente envolvendo Simon e a disputa com o arco e flecha, Danielle decidira manter-se tão afastada de MacLachlan quanto possível, apesar da crescente inquietude e das muitas perguntas ainda sem respostas.
Ele também parecia preferir conservar-se distante durante as horas do dia, saindo para o campo ao amanhecer e só retornando ao cair da noite. Então sempre surgia algo após o jantar que lhe exigia a atenção, obrigando-o a se ausentar.
Várias vezes Danielle tentara esperá-lo acordada e arrancar as explicações que buscava. Em vão. Se estava acordada, Adrien logo a calava com beijos embriagadores, fazendo-a se esquecer de todo o resto. Se dormia, carícias suaves a despertavam para horas de tórrida paixão sensual.
Mas naquela noite, antes de sucumbir à vontade do marido, resolveu questioná-lo sobre suas reais intenções quanto a Aville.
- Qual o objetivo dessa conversa agora? Estava na hora de nos casarmos, de eu requerer meus direitos sobre o castelo.
- Não havia necessidade de você reivindicar Aville. Jamais causei problemas a Edward.
- Você passou anos hospedando e entretendo os inimigos dele.
- Ambos sabemos que os inimigos do rei inglês são membros da minha família.
- Então estava na hora de eu reclamar meus direitos sobre você.
- Aville continua me pertencendo, meus parentes continuam sendo bem-vindos aqui.
- Você pretende entretê-los como fez com Simon? - Os olhos castanhos brilhavam enfurecidos.
A menção do nome do francês soou-lhe como uma provocação. Afinal Adrien fizera o que bem entendera durante os longos anos de ausência.
- Muitas mulheres na minha posição poderiam ter esquecido os votos feitos quando menina. Se você analisar a situação do meu ponto de vista, perceberá que eu não devia nada ao homem que me abandonou durante anos a fio.
- Mas estou aqui agora.
- Se Simon estivesse livre, ele nos visitaria.
- Deixe aquele infame fora disso.
- Foi você quem o mencionou, milorde.
MacLachlan levantou-se da cama e caminhou até a lareira.
De repente, Danielle sentiu-se terrivelmente só. Sabia que se o marido nunca mais a tocasse, morreria por dentro. Desejava-o com todas as suas forças. Porém se Adrien lhe dedicasse metade do afeto que dedicara a Joanna, não a deixaria ao alvorecer de cada dia e a procuraria apenas na calada da noite. Ele partilharia seus pensamentos, dividiria seu mundo, seus sonhos e preocupações.
- É tarde, milady. Vá dormir.
- Dormir? Você acha que pode me dar ordens o tempo todo? Acha que pode entrar aqui e reivindicar tudo? Bem, sir, não sou um objeto para ser reclamado. Eu...
Com duas passadas rápidas MacLachlan aproximou-se da cama e tomou-a nos braços.
- Certo, milady, faça como quiser. Não durma. Mas se não está cansada, talvez...
- Estou exausta! - ela gritou.
Adrien riu sem soltá-la.
- Durma, então. Estou cansado de discutir.
- Estranho, pois é você quem procura briga constantemente.
- Eu?É você, meu amor, que está sempre atrás de motivos para uma discussão.
- Sou sincera, enquanto você...
- Milady, prefiro continuar essa conversa numa outra hora.
Danielle não respondeu. Simplesmente deixou-se abraçar sentindo-se segura, protegida. Impressionava-a essa capacidade de MacLachlan, de fazê-la se esquecer de todo o resto ao tocá-la.
Todavia, mais uma vez, ele nada lhe dissera...
No dia seguinte, enquanto os soldados praticavam com suas espadas no pátio interno do castelo, Danielle encontrou um milhão de desculpas para passar pelas imediações, sempre a uma distância segura, sempre observando Adrien disfarçadamente. Então, ao cruzar o mesmo caminho pela sexta vez, agora para devolver um livro de orações à capela, o marido surgiu à sua frente de súbito, a ponta da bela espada de Toledo tocando-a de leve sob o queixo.
- Que jogo novo é este, milorde? - interpelou-o, furiosa.
Sorrindo, MacLachlan dirigiu-se aos seus homens, que acompanhavam a cena.
- Meus bons camaradas, estou convencido de que apenas por cortesia e em deferência a mim, milady manteve-se calada até agora. Mas ela já passou tantas vezes por aqui que, sem dúvida, descobriu falhas na maneira como conduzo nosso treinamento. - Com absoluta precisão, ele usou a ponta da lâmina para desfazer o laço do corpete da esposa.
- Certamente, senhores! - exclamou Danielle, no auge da indignação. - O duque de Glenwood cometeu um triste equívoco ensinando-os a ameaçar uma dama desarmada.
- Bravo, milady! - alguém gritou no meio das risadas.
- Milorde é um patife! - disse Daylin, brincalhão. - Dê-lhe uma lição, senhora.
O escudeiro atirou sua espada para Danielle, que a apanhou no ar com graça e elegância. Por sorte a espada de Daylin era bem mais leve que a de Adrien, ou não conseguiria manejá-la com um mínimo de destreza.
Vendo o brilho dos olhos do marido, ela soube ter sido atraída para aquela disputa. Adrien planejara tudo. Todavia, não importava. Estava pronta. Aprendera cada lição ensinada pelos instrutores dos príncipes enquanto vivera sob a tutela de Edward. Considerava-se excelente espadachim.
- Não se deixem intimidar pela força bruta - explicou aos soldados, esquivando-se dos golpes de Adrien com impressionante agilidade.
Então, num movimento rápido, arranhou-o na face esquerda, com a ponta da espada.
- Muito bem! - os espectadores a aplaudiram, entusiasmados.
Graciosamente, Danielle inclinou a cabeça, agradecendo.
- Lembrem-se, a velocidade pode derrotar o mais forte dos homens.
- Sim, porém a força física pode derrotar a mais rápida das mulheres. - Sem o menor esforço, ele manejou a pesada espada de Toledo e desarmou-a.
MacLachlan brincara com ela o tempo todo, Danielle concluiu, resignada. Entretanto, não se saíra mal. Enfrentara-o com galhardia.
- Eu poderia ter derrotado a maioria dos homens - falou baixinho.
- Não pertenço à maioria, querida.
- Tem um pouco de sangue no seu rosto.
- Apenas porque eu o permiti.
- E só um pouco porque não quis machucá-lo seriamente.
Do alto de sua elevada estatura, Adrien sorriu, condescendente, e Danielle achou prudente pôr um ponto final na cena. Despedindo-se dos soldados, refugiou-se na capela.
Na manhã seguinte um barulho de explosão a acordou. Pulando da cama, cobriu-se com um lençol e aproximou-se da janela. O pátio estava cheio, a pequena multidão reunida ao redor de MacLachlan, que segurava nas mãos um objeto estranho, do qual saía um filete de fumaça. Avistando-a na janela, o marido a chamou.
- Desça! Não, não, espere-me que subirei até aí.
Segundos depois Adrien entrava no quarto. A arma, feita de madeira e metal, ainda fumegava.
- É uma pistola - explicou, sorrindo. - Confeccionada por um de seus ferreiros.
- Timothy? - Embora canhões e enormes bolas de metal fossem corriqueiros, jamais vira algo tão pequeno como essa arma. Curiosa, inclinou-se para enxergar melhor. - Ele é muito inventivo. Vem desenvolvendo canhões para serem colocados nos parapeitos perto da ponte levadiça.
- Timothy também tem trabalhado com pólvora.
- Quatro medidas de salitre, uma de carbono e outra de enxofre - Danielle recitou.
- Hum... eu deveria imaginar que você seria versada na arte de armamentos. Creio que, um dia, esse tipo de arma desafiará nossas armaduras e escudos. Não haverá cota de malha, nem habilidade física, capaz de resistir a tal força. Entretanto, por hora, qualquer arma que requeira pólvora continua volátil e perigosa.
- Você estava pensando em usar essas coisas nas batalhas?
- Ah, então você está interessada em meus planos?-MacLachlan colocou a pistola sobre a mesa, a atenção concentrada na esposa.
- Que comentário estranho para um homem que sempre conseguiu se esquivar de responder todas as minhas perguntas.
- Não me esquivo. Apenas não estou pronto para discutir o assunto.
- Se você me mostrou a pistola, é natural que eu o questione a respeito.
- É uma arma volátil e perigosa, assim como você, meu amor.
- O que isso significa?
- Chegue um pouco mais perto e eu lhe mostrarei.
Apertando o lençol contra o corpo, Danielle não se moveu, o coração começando a bater descompassado.
- É cedo - afirmou, indignada. - Tem muita... claridade.
- A claridade é algo que me agrada. Venha, querida. Seu senhor a chama, esposa. Apresse-se, pois há partes em meu corpo que requisitam sua proximidade.
- Caro senhor - ela devolveu, notando o brilho divertido dos olhos do marido -, você sabe o que deveria fazer com essas partes.
Em instantes Danielle se encontrava na cama inteiramente nua, prisioneira dos braços fortes. E, apesar das tórridas noites de paixão, toda aquela claridade a intimidava. Sentia-se mais exposta do que nunca. Embaraçada, fechou os olhos.
- Querida, por acaso já lhe ocorreu que o que a perturba não é fazer amor e sim ser obrigada a admitir o quanto gosta?
- Oh! - Ultrajada, ela tentou empurrá-lo.
Aliás, estar nua enquanto o marido permanecia completamente vestido a enfurecia ainda mais.
- Volátil e perigosa - ele a provocou, segurando-a pelos pulsos.
- Muito!
- Ah, que venha o perigo! Estou disposto a pagar o preço pela sua beleza e ardor.
Quando Adrien a beijou na boca, Danielle se abandonou à carícia. Sim, o marido tinha razão. Não o considerava um monstro, não o detestava. Sua incontrolável reação ao toque dele é que a perturbava.
Assim naquela manhã, quando se deixaram ficar abraçados após a completa saciedade, Danielle se deu conta de que seus sentimentos por Adrien estavam se tornando mais intensos, mais profundos. Não se tratava de mera atração física. Adorava sentir o calor, o cheiro dele. Adorava deitar a cabeça no peito largo e ouvir as batidas de um coração que julgava indecifrável. Se no passado convencera-se de que o odiava, agora não tinha dúvidas de que o desejava ardentemente.
Mas Adrien só a desposara porque Edward o exigira. Não deveria apegar-se a um homem que partiria outra vez, a qualquer momento, sem olhar para trás. Afinal, seus títulos e riquezas tinham lhe sido concedidos pelo rei e cabia-lhe agir como súdito leal.
- Ah, milady, o que eu não daria para saber o que se passa nessa sua cabecinha calculista agora - disse MacLachlan, fitando-a curioso.
Ela tentou se afastar, porém o braço musculoso a enlaçou pela cintura e impediu-a de mover-se.
- O que você daria? - Danielle devolveu, irritada ao escutá-lo rir baixinho. - Uma fortuna em ouro? Seu ducado? Um de seus cavalos de guerra, talvez?
- Um de meus cavalos? Mateus, Marcos, Lucas e João? Nunca, milady. Eles me servem muito bem.
- São mais importantes que sua esposa, que não é tão bem treinada e se recusa a se deixar montar.
- Pelo contrário, querida. Não há ninguém que eu goste mais de montar do que em você.
Corando da cabeça aos pés, Danielle quis se levantar. Adrien novamente distorcera suas palavras, dando-lhes uma conotação à qual não pretendera. Como não conseguia se soltar, mordeu-o na mão. Em troca, recebeu um sonoro tapa nas nádegas.
Furiosa, empurrou-o para o lado, seu ultraje só fazendo aumentar ao escutá-lo rir.
E antes que pudesse se erguer, descobriu-se esmagada sob o corpo viril, a boca ávida beijando-a no pescoço, nos seios, ao redor do umbigo, enquanto os dedos longos a acariciavam no vértice do sexo. O toque se tornou tão deliciosamente íntimo, que Danielle se contorceu e gritou alto, louca de desejo. E quando pensava não ser mais capaz de suportar tanto prazer, o membro rígido a empalou e arrastou-a ao orgasmo mais intenso, mais demorado que jamais experimentara.
Quando o marido libertou-a do abraço erótico, lamentou a separação. E não pela primeira vez, constatou quão facilmente fora seduzida. Precisava encarar a verdade irrefutável: queria-o tanto quanto o ar que respirava. Nervosa, sentou-se na beirada da cama.
- O que, em nome dos céus, eu fiz agora? - Adrien indagou, verdadeiramente confuso.
- Além de ser um tirano?
- Tirano?!
- Será que você não pode me permitir um pouco de em paz? Sinta-se à vontade para se vangloriar, sir. Você venceu outra vez. Você nunca perde, seja uma batalha, seja um jogo.
Durante vários segundo, Adrien não disse nada. Então levantou-se, vestiu-se e caminhou até a porta. Antes de sair, virou-se para fitá-la, uma expressão indefinível no olhar.
- Ah, milady, mas você está enganada. Tenho sido vencido tantas vezes nas nossas disputas que chego a me sentir indefeso!
A surpresa foi tamanha, que Danielle não soube o que responder. Em silêncio, observou-o sair e fechar a porta.
Naquela tarde Danielle, do alto da muralha que cercava o castelo, acompanhava o treinamento dos homens no campo, sob a supervisão de Adrien.
Inquieta, notou um pequeno grupo de cavaleiros armados surgir na estrada, um deles carregando o estandarte com o brasão do príncipe de Gales. Após breve troca de palavras, o líder do grupo entregou um documento selado a MacLachlan.
Então Danielle soube do que se tratava. Seu marido fora convocado pelo príncipe. Agora compreendia a razão dos treinamentos rigorosos aos quais Adrien submetera os homens diariamente. Ele estivera esperando o chamado desde que tomara posse do castelo e planejava levar os soldados de Aville consigo, colocando-os a serviço do príncipe inglês.
Ultrajada, correu para o salão e avisou a Rem que não desceria para o jantar, pois sentia-se muito doente.
Nada a faria tomar uma refeição na companhia dos representantes de Edward. Não tinha condições de manter uma conversa amistosa com o marido na frente de estranhos naquela noite e não se importava de que sua ausência fosse interpretada como uma desfeita aos visitantes.
Assim, quando Monteine foi vê-la, pediu-lhe que informasse Adrien de que padecia de uma terrível dor de cabeça.
A noite caiu. Sentada numa cadeira defronte à lareira, Danielle remoia os pensamentos. Ah, como odiava o marido por querer arrastar seu povo para a guerra, para morrer pela Inglaterra. Adrien não tinha esse direito. Primeiro ele conquistara a confiança dos soldados de Aville e agora planejava lançá-los numa batalha contra a casa de Valois.
Tão absorta estava em sua raiva, que não o escutou entrar. Vendo-o de repente à sua frente, levantou-se, assustada.
- Você não me parece doente... meu amor. - Os olhos frios a mediram de alto a baixo.
- Oh, engano seu. Estou doente sim. Doente por causa de escoceses traiçoeiros.
- Nunca cometi nenhum ato de traição. Jurei lealdade a Edward III da Inglaterra, estou a serviço do príncipe de Gales.
- E você não se importa de estraçalhar a França enquanto a serviço do príncipe.
- Não a França. Lutamos apenas contra os rebeldes.
- Durante todo o tempo você sabia que voltaria a Aville, tomaria o que quisesse e partiria. Você tem forçado meus homens a servi-lo, obrigando-os a se esquecerem de que são leais à França.
- Sou o conde, o senhor de Aville, e eles devem ser leais a mim.
- Trata-se de meu povo.
- E você é minha esposa, milady. Portanto, leal a mim também.
- Você não tem nenhum direito de...
- A campanha não será longa.
- Peço a Deus que dure para sempre!
- Pois você deveria rezar para que eu saia ileso do confronto, senhora. Porque embora o príncipe lhe dedique um amor fraternal, ele não confia em você. Caso fique viúva, as consequências poderiam ser terríveis.
- Consequências terríveis? Por Deus, não serei mais um peão nesse jogo de poder. Assumirei meu destino nas minhas próprias mãos e, talvez, sir, seja você quem deva rezar, porque está enganado. Aville me pertence e poderei não estar aqui quando você regressar.
Imediatamente Danielle se arrependeu das palavras impensadas. Fulminando-a com o olhar, o marido a tomou no colo e jogou-a na cama.
- Ah, esposa, você acabou de selar seu destino.
Banhada em lágrimas, ela decidiu resistir-lhe. Não se deixaria seduzir naquela noite. Lutaria com todas as suas forças!
Porém MacLachlan não tinha a menor intenção de tocá-la. Dando-lhe as costas, ele saiu do quarto e trancou a porta por fora.
- Adrien! Adrien! Por favor... - ela o chamou em pânico, esmurrando a porta desesperadamente.
Ninguém respondeu.
Ninguém viria salvá-la. Durante anos regera Aville com sabedoria e sensatez. Então MacLachlan chegara. Assumira a posição de lorde. E agora aqueles que a tinham amado o obedeciam e honravam.
Furiosa, chutou a porta. Em vão. Seria mantida trancafiada durante dias, semanas, meses? Ou mandada para a Inglaterra, amarrada e amordaçada?
Angustiada, sentou-se no chão, diante da lareira. Por fim, exausta de tanto chorar, acabou adormecendo.
Horas depois, ao entrar no quarto, Adrien foi dominado por uma emoção estranha ao ver a esposa adormecida sobre o tapete espesso, os cabelos negros contrastando intensamente com a pele alva, o rosto belo ainda marcado pelas lágrimas. Oh, Deus, nunca se imaginara capaz de experimentar sentimentos tão profundos e contraditórios! Danielle despertava um misto de paixão e raiva, de ternura e desejo. Amara Joanna, todavia jamais sentira essa febre, essa angústia e, maldição, esse medo! Ficara horas no salão, sozinho, apenas se perguntando o que fazer? Que atitude tomar?
Ajoelhando-se ao lado da mulher, Adrien contemplou o corpo exposto sob a camisola branca. Tudo nela o comovia de uma maneira inexplicável. Desejava-a com cada fibra de seu ser. O destino a tornara legalmente sua esposa. A traição de um francês o levara a transformá-la em amante. Ao enterrar Joanna, acreditara ter enterrado também as próprias emoções. Mas Danielle lhe mostrara o quanto se enganara a respeito de i mesmo. Entretanto, apesar de já tê-la possuído fisicamente, não conseguia tocá-la na alma. Sua esposa continuava considerando-o um inimigo.
De súbito, como se sentindo sua presença, ela acordou.
- Adrien!
A voz rouca e a expressão suave deixavam claro que ela o estivera aguardando. Sim, Danielle talvez nunca implorasse misericórdia, porém, naquela noite, pretendia seduzi-lo para fazê-lo se esquecer da raiva. Precisava mostrar-lhe que tinha o poder de tomar qualquer atitude, inclusive a de mandá-la como prisioneira para a Inglaterra.
Não podia se deixar seduzir, decidiu, erguendo uma barreira ao redor do coração.
- Venha! - falou, seco.
- O que você está fazendo?
Sem se dar ao trabalho de responder, MacLachlan cobriu-a com uma manta. Então, segurando-a pela mão, ajudou-a a se levantar e puxou-a para o corredor.
- Isso é insano!
Ainda ignorando-a, conduziu-a para a capela escura e deserta.
- Sir, diante de Deus... - Danielle protestou, quando o marido insistiu em arrastá-la para a cripta.
- Sim, milady, diante de Deus!
- Adrien! - ela gritou desesperada, desvencilhando-se e correndo para a escada como se fantasmas a perseguissem.
Para sua surpresa, MacLachlan percebeu ter descoberto o ponto fraco da esposa. Ela tinha medo da cripta, dos corpos enterrados em suas mortalhas. Não pretendera aterrorizá-la assim, mas talvez fosse melhor vê-la temerosa de algo.
- Você está com medo!
- Não.
- Mentirosa!
- Por que estamos aqui?
- Por que você está com medo?
- Não estou!
- Por quê, maldição?
- Vim aqui depois que minha mãe morreu. As portas foram fechadas por acidente. Permaneci trancada no escuro, sozinha, durante horas.
- Ah, sim... - Pensativo, ele deu alguns passos.
- Não me deixe, não me tranque aqui! - Danielle pediu, apavorada, o rosto belíssimo de uma palidez mortal.
Jamais tivera intenção de abandoná-la. Entretanto, não ousava mostrar-lhe compaixão. Enlaçando-a pela cintura, arrastou-a para a tumba de Lenore, que ocupava o centro da cripta.
- Não vou deixá-la aqui! Que tipo de monstro você acha que sou? Seu gosto por promessas é que me inspirou a tomar essa atitude. Aqui jaz Lenore. Você me fará um juramento. Prometa, perante o túmulo de sua mãe, que não fugirá de Aville enquanto eu estiver fora, prometa que esperará por mim, seu marido. Prometa que não abrigará meus inimigos, que conservará Aville em nome de Edward da Inglaterra.
- Adrien... - ela murmurou, ensaiando um débil protesto.
- Jure!
- Oh, está bem! Eu prometo! - Soluçando, Danielle escondeu o rosto no peito largo, o cheiro de morte e decomposição tornando-se insuportáveis.
Comovido diante de tanta fragilidade, MacLachlan tomou-a no colo e levou-a de volta para os aposentos de ambos, todo o trajeto percorrido no mais absoluto silêncio.
Depois de colocá-la numa poltrona diante da lareira, serviu-a de um cálice de vinho.
- Beba! - ordenou, ajoelhando-se junto da esposa e massageando-lhe os pés gelados para ativar a circulação.
- Como você sabia? - Danielle indagou num murmúrio. - Como poderia ter sabido?
- Sabido o quê? Que você tinha medo da cripta?
- Sim. - Trêmula, ela abaixou o olhar.
- Eu não fazia idéia. Se soubesse, não a teria levado até lá.
Arfante, Danielle encarou-o, os olhos verdes revelando insegurança e ansiedade.
- Você me deu sua palavra - ele a lembrou. - Fez uma promessa.
- Sim, dei-lhe minha palavra, embora não fosse necessário. Só o ameacei porque estava zangada. Mas para onde eu teria ido? Que rebelião poderia ter insuflado antes de seu retorno? O que será diferente em Aville depois de sua partida?
- Não há como negar que você me ameaçou. Além do mais, existe a questão de Simon. E você poderia se refugiar junto do rei francês.
- Amo Aville. Não fiz parte do complô de Simon, quer você acredite, ou não.
- Mas você ameaçou ir embora daqui.
- Em todos esses anos, jamais lhe menti. Ambos sabemos que ainda dedico alguma lealdade aos reis da França, membros da casa de Valois. Todavia, prometi a você não partir e manter Aville como propriedade sua. Nunca pretendi ameaçá-lo. A verdade é que estou cansada dessas disputas constantes, inclusive entre você e eu. Estou cansada de tantas mortes nos campos de batalhas, de testemunhar o sofrimento de tantos feridos e aleijados. Estou farta dessa guerra interminável. E agora você vai partir também...
Segurando-a pelos ombros, MacLachlan obrigou-a a fitá-lo
- Será possível que você teme por mim, milady?
- Talvez eu receie o que poderá acontecer comigo se você for derrotado. Acabarei novamente à mercê dos reis. Só Deus sabe o que Edward decidirá fazer, que planos traçará para mim...
- Nunca sou derrotado, nem em batalhas, nem em jogos.
- Porém, ao me mostrar aquela arma, você mesmo disse que ninguém é invencível.
- Eu estava me referindo ao futuro uso da pólvora, que tornará nossas armaduras e escudos obsoletos. Mas isto pertence ao futuro. Por enquanto, as batalhas são lutadas com espadas. - Atraindo-a para si, Adrien a abraçou com força. - E mais uma vez, condessa, você obteve sua liberdade. Mais uma vez, a fortaleza é sua novamente, apenas sua.
- Mas é você o senhor de Aville.
Calando-a com um beijo, Adrien a fez deitar-se no tapete. Logo os dois sucumbiam ao desejo, entregando-se a uma paixão que desconhecia limites. Em êxtase, ele a ouviu murmurar seu nome, os dedos delicados acariciando-o no rosto, no pescoço, nas costas, os lábios carnudos dando a impressão de que queriam devorá-lo.
Em perfeita sintonia, alcançaram o clímax, a violência do orgasmo abalando-os até a alma. Saciados, enfim, adormeceram nos braços um do outro, esquecidos do mundo e de si mesmos.
Quando Danielle acordou, o fogo havia se extinguido. Trêmula de frio, notou que fora coberta com uma manta. O quarto parecia tão frio, tão vazio. Então ela soube por que se sentia solitária. Adrien partira.
Capítulo VIII
Em Aville, os dias se sucederam com relativa tranquilidade. Obedecendo ao ciclo da vida, camponeses continuavam trabalhando nos campos e cuidando dos rebanhos, enquanto pedreiros reparavam paredes. Mulheres davam a luz a seus filhos, os velhos adoeciam e morriam, o sol nascia pela manhã e se punha à noite.
Todavia, cada vez que um viajante, um peregrino, um poeta, um clérigo, aparecia em Aville, Danielle ficava apavorada com as notícias. A situação parecia estar piorando. Os ingleses arregimentavam um grande exército e o rei Jean planejava expulsá-los do solo francês.
Porém, embora preocupada com a guerra que se avizinhava, Danielle, acima de tudo e a contragosto, sentia saudade do marido.
Todos os dias, rezava por um milagre, para que os reis da França e da Inglaterra alcançassem um entendimento.
E, todos os dias, rezava para que seu marido voltasse em segurança.
Odiava-se por sentir falta de MacLachlan. Passava longas noites insones ansiando pelo calor do corpo viril, pelo toque das mãos fortes, pelas carícias dos lábios sensuais.
Várias semanas tinham transcorrido desde a partida de Adrien quando certa tarde, enquanto ouvia as explicações de um pedreiro sobre as obras no parapeito, Daylin apareceu para avisá-la de que um grupo, exibindo o estandarte do conde de Langlois, um dos nobres favoritos do rei Jean, aproximava-se. Inquieta, ela se dirigiu ao pátio interno, acompanhada de sir Giles.
- Devemos recebê-los? - Daylin interrogou-a.
- Que outra opção nos resta? Obviamente trata-se de uma missão diplomática, pois são apenas cinco cavaleiros. Afinal, Jean é o rei da França.
- Milady - o escudeiro a lembrou com delicadeza -, estamos numa situação complicada. Neste momento, Edward luta contra os rebeldes e clama para si o título rei da França.
- Os Plantagenet têm se auto-intitulado reis da França há décadas. Acreditam que isso lhes dá o direito de fazer o que bem entenderem aqui.
- Sem dúvida o rei Edward tem algum direito.
Nervosa, Danielle suprimiu uma onda de náuseas. Oh, céus, como detestava essa situação. Edward não possuía o direito de reinar sobre a França porque nascera do outro lado do Canal. Por que ele não se contentava com a Inglaterra? E por que os reis franceses estavam sempre loucos para provocar os reis ingleses, afirmando que a França era um país muito maior e mais importante que a minúscula e atrasada ilha chamada Inglaterra? Às vezes desejava que Deus mandasse um raio acertar os dois monarcas, para pôr um fim àquela interminável disputa.
- Não posso me recusar a receber um emissário do rei Jean. Você o sabe tão bem quanto eu.
Os portões foram abertos. Através de Simon, Danielle já havia ouvido falar de Langlois, porém jamais o vira antes. Alto, olhos e cabelos escuros, um bigode perfeitamente aparado.
- Milady! - ele a saudou, desmontando. - Confesso ter escutado elogios à sua extraordinária beleza, todavia nenhum deles lhe fez justiça. É meu grande prazer estar aqui, como enviado do rei da França. O rei Jean lhe mandou um corte de seda persa de presente. E uma espada de Toledo para seu marido.
- Quanta gentileza. Espero que meu primo distante, Jean da França, esteja bem.
- Muito bem, senhora.
- Sir, como é de seu conhecimento, meu marido encontra-se ausente no momento, a serviço do rei Edward. Porém ele lhe daria as boas-vindas se estivesse aqui. Você jantará conosco?
- Com prazer.
Ao entrarem, Daylin murmurou próximo ao ouvido da condessa:
- Ele veio para causar problemas.
Apesar de escutá-lo, Langlois não pareceu ofendido.
- Não, ele não veio causar problemas - o conde sussurrou, fazendo Daylin enrubescer. - Vim em paz para lembrar à condessa...
- E quanto a lorde MacLachlan? - Giles o interpelou, áspero.
Langlois sorriu.
- Certamente para lembrar a milorde e milady que Aville sempre manteve laços de amizade com a França e apesar de estarmos divididos em ducados e condados, a França é nossa pátria.
No salão, enquanto o vinho era servido, Langlois mostrou o corte de seda e a bela espada de Toledo enviadas por Jean. Sentada numa cadeira defronte da lareira, Danielle apreciava os presentes à distância.
- Você não deve aceitá-lo - sir Giles a aconselhou, por entre os dentes.
- Então devo recusar um presente do rei?
- Um suborno! Não se esqueça de Edward clama para si a coroa da França.
- Não posso recusar os presentes. Além do mais, quem se deixaria subornar com um corte de seda e uma espada?
Levantando-se, Danielle aceitou a magnífica espada que um soldado francês lhe oferecia.
- Meu primo, o rei Jean, é generoso. Agradeço-lhe por haver pensado em nós. Contudo, conde Langlois, devo lembrá-lo de que meu marido é um escocês que...
- Que se uniu ao príncipe Edward quando tantos escoceses, há séculos, se aliam aos franceses. Mas MacLachlan é o campeão do rei Edward, por isso o casamento com você foi arranjado.
- Milorde, é verdade que, por séculos, escoceses e franceses têm se aliado contra os ingleses. Todavia meu marido possui terras tanto na Inglaterra quanto na Escócia e, portanto, compreende as dificuldades dos escoceses.
- Edward aspira o trono francês.
- Não entendo o que se passa na cabeça dos reis, sir. Rezo para que Edward e meu primo Jean cheguem a uma solução pacífica, pois ambos são primos também.
Durante um longo instante Langlois fitou sir Giles e Daylin, que ladeavam Danielle. Então o conde sorriu, cheio de ousadia.
- Garanto-lhes, senhores, que não vim aqui causar problemas. Apenas ofereço a amizade do rei Jean. Posso dizer ao verdadeiro rei da França, seu primo Jean, que você, milady, continua prezando os laços de sangue que os ligam?
- Diga-lhe que lhe dedico a mesma afeição que dediquei ao seu pai e rezo para que tenha boa saúde. Diga-lhe que lorde MacLachlan e eu regemos Aville juntos e desejamos a paz e prosperidade para todo o povo da França.
- Se lorde MacLachlan se aliou ao príncipe inglês, ele corre perigo.
- Rezo todos os dias para que meu marido esteja em segurança, sir.
Langlois pareceu satisfeito e Danielle não compreendeu o por quê. Afinal, deixara claro estar unida ao marido e não jurara lealdade a nenhum dos dois reis. Até mesmo Giles não se ofendera com suas palavras.
Durante toda a refeição, o nobre francês se comportou de maneira agradável e simpática. Todavia, quando o jantar chegava ao fim, inclinou-se para a condessa e falou baixinho:
- Se, algum dia, você precisar de meus serviços, procure-me na taverna Twisted Tree. Twisted Tree, não se esqueça. Não poderei voltar a Aville. Mas saiba que eu seria capaz de correr qualquer risco se a vida do rei Jean estivesse em perigo.
Apesar da hora avançada, Langlois e seus homens partiram ainda naquela noite. Na companhia de sir Giles e Daylin, Danielle observou o grupo se afastar.
- Ainda bem que eles já se foram - comentou sir Giles, aliviado.
- Ah, sir, precisamos aprender a conviver, pois essa situação nunca irá mudar. - Danielle suspirou, cansada.
- Langlois veio aqui por algum motivo - disse Daylin, pensativo.
- Para descobrir se Danielle seria capaz de trair o marido e o rei Edward, caso o rei francês lhe pedisse. Porém milady o pôs em seu devido lugar. - Sir Giles olhou para a condessa com evidente satisfação.
- Quisera que tudo isso acabasse. Mas é verdade. Langlois veio sondar para que lado os ventos sopram em Aville.
- Talvez não devêssemos tê-los recebido. Afinal, o conde Armagnac, com o aparente apoio do rei Jean, anda atacando pilhando e assassinando o povo dessa terra.
- Não posso acreditar que o rei Jean encorajaria a destruição e a matança de inocentes! - Danielle protestou. - Tudo não passa de meras suposições. Ainda não tivemos notícias de Adrien e... - Ela calou-se ao notar o rubor súbito de Daylin - Você recebeu notícias de Adrien! - afirmou, mal conseguindo controlar a irritação e a mágoa.
- Um mensageiro chegou do front alguns dias atrás, com poucas novidades - sir Giles se apressou a explicar.
- Tão poucas que ninguém me informou?
- Você não teria ficado muito feliz, milady.
- Como eu não ficaria feliz, Adrien mandou que não me contassem a verdade? Pois agora exijo saber de tudo. Contem-me a verdade.
Desconfortável, Daylin desviou o olhar.
- A menos que haja um entendimento em breve, provavelmente acontecerá uma terrível batalha. Tanto o rei Edward quanto o rei Jean estão reunindo um poderoso exército.
- Quaisquer que sejam as notícias trazidas pelos mensageiros, quero ser colocada a par.
O silêncio do escudeiro deixou claro que Adrien dera ordens para que não lhe contassem nada.
Sozinha no quarto, Danielle pôs-se a andar de um lado para o outro, desassossegada demais para dormir. Mesmo após o juramento na cripta, Adrien parecia ainda acreditá-la incapaz de honrar a palavra empenhada.
Algum dia haveria paz entre a Inglaterra e a França? Ou entre ela e o marido?
Malditos fossem os dois reis!
Queria poder odiar Adrien. Seria mais fácil viver odiando-o do que desejando-o.
Uma semana depois, enquanto examinava a contabilidade no salão principal, Monteine levou às sua presença um sacerdote recém-chegado, ansioso para lhe falar.
Tão logo ficaram a sós, o jovem clérigo se apresentou como padre Paul de Valois.
- Sou um primo distante de nosso bom rei Jean, milady. E estou profundamente preocupado com o que acontece em nosso país.
- A guerra está prestes a começar.
- A ganância dos ingleses não tem fim.
- Padre, a mãe do rei Edward era francesa. Portanto, ele possui sangue francês e também tem direito ao trono. Na verdade, os dois reis são parentes próximos.
- Lenore de Aville conheceu a derrota nas mãos de Edward. Embora tenha aceitado se casar com um inglês, sua mãe permaneceu fiel à casa de Valois durante toda a vida. Por Deus, milady, você é filha dela! Poderia desonrá-la agindo de maneira diferente?
- Você espera que eu traia o homem com quem estou legalmente casada aos olhos de Deus?
O sacerdote suspirou fundo.
- Nunca, milady. Mas você não trairia seu marido se, sabendo quando a batalha planejada pelos ingleses ocorrerá, avisasse ao rei Jean. Não podemos controlar as grandes forças dos exércitos. Os homens sempre entrarão em confronto e um líder sempre sairá vitorioso, enquanto o outro experimentará o gosto da derrota. Todavia, se o rei Jean puder ser ao menos avisado com antecedência, é possível que, talvez, preserve a própria vida, a liberdade e a França.
- O que, exatamente, você quer de mim?
- Um alerta, caso a vida do rei Jean estiver em perigo. Estou certo de que você saberá como fazer contato quando necessário.
- Não detenho muitas informações, padre. Afinal, estou em Aville, longe do centro do conflito.
- Sem dúvida seu marido a avisará se uma batalha importante estivera para acontecer.
Com todas as suas forças, Danielle desejou não se achar em tal situação. Contudo, prometera à mãe honrar o rei da França. Protegê-lo.
- Se o rei Jean estiver correndo sério risco, se eu souber que os ingleses planejam matá-lo, naturalmente farei o possível para alertá-lo. Porém só o farei uma única vez.
- Uma única vez bastará. - O padre levantou-se. - É seu dever proteger o verdadeiro rei da França, milady. Creia-me, um dia você se sentará com sua mãe, ao lado dos santos.
Danielle levantou-se também, rezando para que não se sentasse ao lado dos santos tão cedo. Caso fosse descoberta, seu marido, ou Edward, não hesitariam em cortar-lhe a cabeça pelo crime de traição.
Depois de se saciar com uma lauta refeição, regada a vinho, padre Paul se despediu e partiu, recusando o convite da condessa para pernoitar no castelo.
Assim que o sacerdote cruzou os portões de Aville, Monteine comentou, seca:
- É um homem muito bonito para ser padre, milady.
- Minha querida, o sacerdócio é uma vocação.
- Não creio que ele seja realmente padre.
- Oh, Monteine, que tolice!
- Ele a olhava de um modo... estranho, milady. Havia desejo naquele olhar.
- Sacerdotes são celibatários. Você estava imaginando coisas.
Monteine não teve sossego durante a noite. Algo no padre Paul a incomodara terrivelmente.
No princípio, estivera disposta a qualquer coisa para prejudicar os ingleses. Mas com o passar dos anos, à medida que os conhecera melhor, aprendera a reconhecer, e admirar, suas qualidades. Adrien MacLachlan, por exemplo, sempre agira com justiça, fosse em relação aos inimigos, ou à Danielle. Entretanto, o escocês não perdoaria uma traição.
Angustiada, saiu do quarto e desceu a escadaria. Um dos homens de Adrien sempre montava guarda no salão durante toda a noite.
Naquela noite, a vigília coubera a Daylin.
- O que foi, Monteine? Alguma coisa errada? - De repente o escudeiro sorriu. - Que estranho, em todos estes anos em que nos conhecemos, nunca a vi assim. Descalça, seus lindos cabelos soltos...
Corando da cabeça aos pés, ela baixou o olhar. Com muita dificuldade, conseguiu elaborar uma frase.
- O padre era tão estranho! Oh, estou preocupada... Um sacerdote veio hoje à tarde...
- Sacerdotes, monges, peregrinos viajam com frequência.
- Eu sei. Porém esse padre insistiu numa audiência particular com Danielle e depois da conversa ela me pareceu muito agitada. Ele se apresentou como pertencente à família Valois e acho que queria alguma coisa de Danielle. Estou tão aflita...
- São tempos perigosos esses...
- O que você fará?
- Ainda não sei. Primeiro falarei com sir Giles. Não se preocupe mais, Monteine. Adrien não está muito longe daqui e ele sempre disse que voltaria para casa, se surgisse algum problema.
Enquanto o fogo consumia as casas dos camponeses, os homens de Armagnac pilhavam, matavam e estupravam as mulheres. Contudo Adrien e seus comandados chegaram a tempo de evitar um verdadeiro massacre.
Os inimigos, ao avistarem-nos, fugiram em disparada, um deles carregando na sela uma jovem que gritava e esperneava, no auge do desespero.
Sem hesitar, Adrien lançou-se ao encalço do sequestrador. Vendo-o se aproximar, o francês atirou a moça para fora da sela e seguiu adiante, embrenhando-se na floresta.
Temendo que a aldeã estivesse ferida devido à violência da queda, Adrien desistiu de perseguir o bandido. Desmontado, ajudou-a a se levantar.
- Obrigada, obrigada, milorde - ela murmurou, fitando-o com adoração.
- Você não está machucada?
- Não. Oh, sir, você salvou minha vida.
- Talvez apenas sua virtude.
- Minha virtude lhe pertence agora, sir.
- Não desejo tal pagamento. Venha, deixe-me levá-la para sua casa.
Ao entrar na aldeia, com a camponesa na garupa, MacLachlan foi saudado como herói.
- Terese é tudo o que tenho, sir - exclamou a mãe da jovem. - Farei qualquer coisa por milorde. Basta pedir.
- Vocês são leais a Edward. Portanto, é meu dever protegê-los.
Surpreso, Adrien notou que sir George cavalgava na sua direção com Michael, um dos rapazes que treinara em Avilte.
Percebendo que a túnica do soldado estava manchada de sangue, sobressaltou-se. Teria o vil rei Jean conseguido tomar Avilte?
Apreensivo, caminhou na direção dos dois.
- Alguma coisa errada? - indagou sem preâmbulos. - Onde você foi ferido tão gravemente?
- Não é grave, sir, embora eu esteja sangrando muito.
Depois de pedir à mãe de Terese que providenciasse bandagens para um curativo, Adrien fez Michael sentar-se sob a sombra de uma árvore. Então retomou a conversa, tendo o cuidado de dispensar os demais.
- Aville?
- Está tudo bem em Aville, milorde. Tenho apenas uma história estranha para contar.
- Estou ansioso para ouvi-la.
- Primeiro, milorde, conde Langlois chegou com um pequeno grupo, trazendo presentes.
- Para Danielle?
- Seda para ela, uma espada para você. Sir Giles pediu-me para tranquilizá-lo. A condessa foi cortês com o conde Langlois, mas distante. Também deixou claro que você e ela governam Aville juntos.
Adrien experimentou um prazer enorme ante a simples revelação de que a esposa lembrara-se do juramento feito.
- Então?
- Então apareceu o sacerdote.
- Sacerdote?
- Ele se apresentou como padre Paul de Valois. A condessa concordou em atendê-lo em particular. Ele não se demorou muito, porém Monteine ficou preocupada com a visita e procurou Daylin, que me mandou seguir o tal padre. Localizei-o num chalé no meio da floresta, reunido com outros homens. Pelo que pude escutar, cada qual deveria viajar para uma parte diferente do país e observar o movimento das tropas inglesas, pois o rei Jean está decidido a descobrir os planos do rei Edward. Acabei sendo atacado. Consegui fugir, apesar de ferido.
A informação atingiu Adrien como uma punhalada. Danielle jurara conservar Aville em seu nome, entretanto fora capaz de manter uma conversa privada com um espião do rei Jean.
Como pudera ser tão tolo a ponto de se apaixonar pela esposa?
A batalha se aproximava. Não poderia deixá-la em Aville.
- Você conseguiria achar esse chalé outra vez? - perguntou a Michael.
- Sim, milorde.
- Tão logo estiver em condições, partiremos.
- Podemos partir agora, sir.
- Descanse o resto do dia. Partiremos ao anoitecer.
- Vamos atrás do padre?
- Sim. E de minha esposa.
Três noites depois, Danielle acordou com um estrondo.
Aterrorizada, sentou-se na cama. O que acontecera? Quem teria escancarado a porta de seu quarto com tal fúria? Num gesto instintivo, agarrou a espada que passara a manter ao lado da cama.
Então, reconheceu a figura na penumbra.
- Adrien? - indagou num sussurro.
- Oh, sim. Sou eu.
O tom áspero da voz a deixou rígida. Nervosa, apertou o cabo da espada junto ao peito.
O marido entrou e bateu a porta com força.
Capítulo IX
- Então agora você me recebe empunhando uma arma? - MacLachlan perguntou, o rosto cansado destituído de qualquer expressão.
Com duas passadas largas ele parou diante da cama, a túnica manchada de sangue e lama brilhando sob a luz do fogo.
- Depende. Pode me dizer por que entrou aqui como um carrasco?
- Talvez porque deva ser executada.
O coração de Danielle começou a bater descompassado. Não, o marido não estaria falando sério.
- Se é assim, ficarei com a espada, milorde.
- Coloque-a de lado, meu amor, antes que eu a espanque.
- Ah, devo abrir mão de minhas últimas defesas para que você possa me atacar livremente.
Quando Adrien desembainhou sua espada, Danielle encolheu-se, num misto de pavor, fúria e confusão. O que, em nome de Deus, causara isso tudo? Qual a razão desse comportamento insano?
- Arrume sua bagagem - ele falou simplesmente.
- Arrumar a bagagem? Você chega aqui como um anjo vingador, dando ordens e me ameaçando...
- Farei mais do que ameaçar dentro de instantes. Arrume suas coisas, e depressa. Algumas roupas bastarão, pois não quero viajar sobrecarregado.
- Aonde iremos? - Danielle indagou, à beira das lágrimas - O que fiz para você me tratar de forma tão insensível?
- O que você fez?
- Sim, foi o que perguntei! Por acaso você ficou surdo?
A voz de Adrien soou baixa e controlada, apesar da fúria que o sacudia.
- É isso que você pensa, meu amor? Que me transformei num idiota?
- Por Deus, não sei do que você está falando!
- Ah, bem, então refrescarei sua memória, lembrando-a dos acontecimentos recentes desde minha partida. Primeiro recordemos a chegada de um emissário do rei Jean.
- Eu deveria ter me recusado a recebê-lo? Ele trouxe um presente para você também.
- Uma espada para você usar contra mim. Porém tal visita não me preocupou. Seu conde de Langlois veio apenas analisar as defesas de Aville. Todavia, quanto ao sacerdote...
- Agora não devo mais admitir sacerdotes no castelo?
- Não, milady. Não quando o padre não passa de um rebelde disfarçado, de um lobo em pele de cordeiro.
Danielle sentiu o ar lhe fugir dos pulmões.
- Mas eu não...
- De fato, tratava-se de um sujeito admirável. Precisei mantê-lo sob a ponta de minha espada para arrancar a verdade. Por fim o francês acabou confessando que você jurou auxiliar o rei Jean.
Angustiada, Danielle balançou a cabeça, o coração apertado. Não fora exatamente assim que acontecera!
- Eu não sabia estar lidando com um impostor. Apenas disse que faria o possível para que a vida do rei Jean fosse nada, nada mais! Paul de Valois lutava pelo rei da França, assim como você luta por Edward. O homem está morto?
- A vida dele importa tanto assim?
- Claro. Pois segundo suas próprias palavras, era um sujeito admirável.
- Bonito e destemido - MacLachlan acrescentou, sem ironia.
- Você o matou?
- Arrume as malas.
- Não vou mover um dedo até você me responder.
- Você fará o que eu disser. Estamos de partida.
- Não, não vou a lugar nenhum. Ficarei em Aville.
- Milady, a escolha é sua: vista-se e arrume a bagagem, ou a levarei embora nua e sem nada. Como seu sacerdote fazia parte de uma conspiração rebelde para se infiltrar em Aville, você não é mais confiável no comando do castelo.
- Sou inocente!
Dando-lhe as costas, MacLachlan caminhou para a porta.
- Você não tem o direito de fazer isso! - Danielle gritou, indignada. - Sempre fui honesta. Você sabe tudo sobre minha vida. Sim, eu faria o que estivesse ao meu alcance para evitar que o rei Jean fosse morto. Mas foi só o que eu disse. Não posso ser acusada de participar de um complô, ou de traição. Seria injusto!
- Não importa. Você não pode permanecer aqui, sendo uma tentação irresistível para a casa de Valois.
- Para onde você pensa que está me levando?
- As tropas do príncipe Edward estão alojadas no Castelo de Renoncourt. Por enquanto você ficará lá, comigo.
- Não irei a lugar nenhum! Você me julgou injustamente!
- Você partirá, milady.
- Para estar ao seu lado e vê-lo agir como um tolo violentou Jamais!
- Minha querida esposa, você ficará comigo.
- Se me tocar, juro que gritarei tão alto que todos ouvirão meus gritos em Renoncourt.
- Ótimo. Serei invejado por todos, milady, por fazê-la gritar de prazer. Ande, arrume suas coisas. Não tardaremos a partir.
- Não irei a lugar algum.
- Irá sim.
Dando a discussão por encerrada, MacLachlan saiu do quarto e bateu a porta.
Nervosa, Danielle sentou-se na beirada da cama, os pensamentos num turbilhão.
Como Adrien soubera do sacerdote? Teria ele matado o pobre-coitado? Monteine estivera certa ao dizer que o visitante não parecia um padre de verdade.
Muitos sacerdotes, monges e freiras costumavam passar por Aville, em suas peregrinações. Por que padre Paul despertara suspeitas? E quem teria soado o alarme?
Inquieta, levantou-se e pôs-se a andar. O tempo urgia, mas permaneceria irredutível na sua decisão. Não deixaria Aville. Era inocente de todas as acusações.
- Danielle? - Monteine chamou baixinho, entrando no quarto. - Você ainda não arrumou a bagagem? Lorde MacLachlan está quase pronto para partir, segundo o que Daylin me falou. Creio que milorde quer tê-la perto de si, pois ficará muito tempo ausente.
- Foi isso o que ele disse?
- Sim.
- E é o que você acredita?
- Bem... - Monteine desviou o olhar, embaraçada. - Falando sinceramente, sir Giles, Daylin e eu escutamos vocês... discutindo.
Cruzando os braços sobre o peito, Danielle tornou a sentar-se.
- Não irei a lugar algum - repetiu, teimosa.
- Lorde MacLachlan a obrigará a acompanhá-lo.
- Que o tente.
- Vou arrumar suas coisas, milady. Ao menos você terá o que vestir quando chegar a Renoncourt. Ouça, Danielle, estamos vivendo tempos perigosos. Procure ser razoável e entender a situação. Aville é um grande prêmio e você também. Vi como aquele homem a olhava, cheio de cobiça. Ele pretendia voltar, trazendo outros que também fingiriam ser sacerdotes. Uma vez instalados dentro do castelo, aprenderiam como abrir os vários portões e...
- Como você sabe disso tudo?
- Ouvi... os homens conversando. - Agitada, Monteine guardou algumas roupas e artigos de uso pessoal numa sacola de couro.
- E você acha que eu seria tão tola a ponto de não perceber uma conspiração?
- Não, claro que não. Você acabaria percebendo em algum momento. Porém, desde o primeiro instante, achei que aquele Paul de Valois não era padre!
- Era? Então Adrien o matou! - Danielle murmurou, amarga.
- Não, milorde não o matou. Os conspiradores se reuniam num chalé no meio da floresta. Alguns foram mortos no confronto com os nossos, mas Michael me garantiu que vários se renderam. Esses foram poupados e levados como prisioneiros para a Inglaterra. Vamos, Danielle, vista-se. Você está descalça e usando apenas essa camisola fina. Receio que lorde MacLachlan não cederá.
- Não vou... - Danielle calou-se quando o marido empurrou a porta entreaberta e entrou.
Sem que conseguisse evitar, a visão da figura alta e máscula roubou-lhe o fôlego. Recém-saído do banho, barbeado, os cabelos ainda úmidos, ele exsudava sensualidade por todos os poros. Ah, como odiava-se por não conseguir desprezá-lo, por continuar desejando-o.
- Monteine, as coisas da condessa já estão prontas? - Adrien indagou, os olhos impenetráveis fixos na esposa.
- Sim, milorde.
Daylin surgiu de repente, apanhou a pequena bagagem e saiu, seguido de Monteine.
- Saiba que não irei acompanhá-lo de livre e espontânea vontade, sir.
- Então, milady, pode começar a gritar agora.
Sem o menor esforço, MacLachlan apanhou-a e jogou-a sobre o ombro, como se lidasse com um saco de batatas. Numa velocidade absurda, desceu a escadaria e chegou ao pátio onde sir George e oito cavaleiros os aguardavam, já montados. Engolindo as lágrimas, Danielle tentou puxar a camisola para baixo ao ser lançada sobre o cavalo do marido.
- Milady - disse sir George cortesmente, aproximando-se. - Você deve estar com frio. Permita-me oferecer-lhe minha capa para...
- Ah, sir, um gesto galante, mas desnecessário - rebateu MacLachlan, montando atrás da esposa. - Minha mulher escolheu cavalgar assim. Daylin, abra os portões!
A cavalgada foi longa, dura e fria, Adrien determinado a vencer os oitenta quilômetros que os separavam do acampamento do príncipe Edward antes do anoitecer.
Logo após a partida, Danielle arrependeu-se de sua teimosia. Apesar dos braços fortes a estarem circundando e de ter as costas apoiadas no peito largo, sentia-se congelar. Adrien devia estar realmente possesso de ódio para expô-la a tamanho desconforto.
Ao pararem, enfim, junto a um riacho para que os cavalos bebessem e descansassem, ela não protestou quando o marido a tirou da sela e carregou-a até uma pedra. Também em silêncio, deixou-se calçar com um par de sapatos que ele extraiu da sacola de couro e aceitou a capa colocada ao redor de seus ombros.
Após oferecer-lhe esses pequenos confortos, Adrien afastou-se ainda sem lhe dirigir uma única palavra.
Dali a instantes, sir George lhe trouxe um pouco de pão, peixe defumado, queijo e água. Embora não tivesse apetite, Danielle comeu um pouco, sabendo que precisava alimentar-se.
- Nem Monteine veio conosco, sir?
- Receio que não, milady.
- Sir Giles e Daylin também ficaram para trás?
- Eles conhecem Aville muito bem.
- E lealmente defenderão minha propriedade para lorde MacLachlan.
- Milady...
- Desculpe-me, sir. Você não tem nada a ver com isso.
Levantando-se, ela caminhou até o riacho. Minutos depois Adrien estava ao seu lado.
- Você poderia ter me permitido trazer Star. Seu cavalo ficará exausto de carregar nós dois.
- Eu não a teria permitido trazer Star em hipótese nenhuma.
- Por que a égua foi um presente do rei Philip da França? Ele está morto. É o filho de Philip quem desafia Edward.
- Eu não a deixaria trazê-la porque sei o quanto Star é importante para você e não gostaria de que a égua acabasse usada por outros, caso faltassem cavalos. Agora vamos.
Como Danielle não se movesse, Adrien tomou-a no colo e colocou-a sobre a sela, controlando a raiva a custo.
Porém, mal haviam avançado alguns metros, uma onda de náusea a envolveu. Antes mesmo de dizer algo, o marido, percebendo seu desconforto, puxou as rédeas e ajudou-a a desmontar. Danielle correu para o riacho, ansiosa para molhar o rosto com a água fria. Adrien seguiu-a, evidentemente preocupado.
- Estou bem - ela afirmou, ainda muito pálida. - Deve ter sido algo que comi, talvez o peixe.
- Podemos descansar um pouco.
- Não. Estou bem agora, acredite-me.
Num gesto suave, ele a acariciou na face com as pontas dos dedos. Danielle sentiu os joelhos vergarem-se com o simples toque. Ah, como gostaria de não amá-lo.
Antes do anoitecer, o grupo chegou ao castelo de Renoncourt, a magnífica fortaleza escolhida para abrigar as forças inglesas. O entrarem no pátio interno, Danielle surpreendeu-se quando o próprio príncipe Edward surgiu para recebê-los. Como o pai, o rei Edward, o príncipe era alto, louro e dono de um temperamento explosivo, mas encantador.
- Aconteceu algum problema no percurso de volta, Adrien? - o príncipe indagou.
- Não, milorde, absolutamente nenhum.
Antes que MacLachlan desmontasse, Edward enlaçou Danielle pela cintura e colocou-a no chão.
- Bem-vinda, irmãzinha - ele a saudou, beijando-o no rosto e abraçando-a. - Meu Deus, passou-se muito tempo desde que a vi pela última vez. Vamos entrar, um cálice de vinho e uma refeição quente a ajudarão a superar o cansaço da longa jornada.
- Receio não estar vestida adequadamente para uma ocasião formal, sir.
- Seremos apenas nós três, milady.
Chegando ao salão, onde uma pequena mesa defronte da lareira já estava posta, Edward ofereceu-lhe um cálice de vinho.
- Permita-me tirar sua capa, senhora.
- Não! - Danielle protestou, tarde demais.
Esforçando-se para conservar a dignidade, alisou a camisola amassada e ergueu a cabeça.
Sem mostrar o menor sinal de espanto, o príncipe virou-se para Adrien, como se à espera de explicações.
- Partimos um tanto subitamente - limitou-se a dizer MacLachlan.
- Ele me arrancou da cama, milorde, ansioso para voltar ao seu serviço. Meu marido é um bárbaro - completou, num tom agradável.
- E minha esposa uma feiticeira, sir. Uma sereia, digna, e merecedora, de um bárbaro.
- Ah, um casamento feito nos céus. - Edward riu e então dirigiu-se a Danielle. - Você não estava desejosa de me ver, milady?
- Certamente é um prazer revê-lo. - E falava a verdade.
Quando fora morar com os Plantagenet, Edward, o filho mais velho e herdeiro do rei, já era homem feito e um grande guerreiro, que a tratara sempre com delicadeza e lhe dedicara fraternal afeição. Crescera admirando-o.
- Pois o prazer é recíproco, milady. Como imaginei, vejo que se transformou numa mulher de extraordinária beleza. Sei que você honra meu pai, pois cresceu em minha casa, como membro de minha família. Todavia, seus parentes franceses representam um perigo. Portanto, seria melhor você passar a residir aqui, no Castelo de Renoncourt, durante algum tempo, enquanto seu marido estiver na guerra. Muitos homens sentir-se-iam tentados a correr riscos pelo prazer de sua companhia Você entende, não?
- Eu gostaria, milorde, que alguém compreendesse que sou uma mulher capaz.
- Capaz até demais - observou Adrien.
- Posso defender Aville.
- Se você assim escolher - Edward afirmou, categórico. - O fato é que seus primos Valois estão tentando obter uma anulação de seu casamento junto ao papa para que você se case com um francês. Dessa forma, Aville passaria a pertencer à França. Naturalmente evitaremos que tal coisa aconteça. Meu pai planejou sua união com Adrien sabendo que ele tem a força necessária para conservar Aville e proteger sua condessa. Meu pai a acolheu como uma verdadeira filha e eu a considero uma irmã. Sei que você honra meu pai e a mim e espero que aprecie o período passado aqui.
- Obrigada, você é sempre muito gentil - Danielle murmurou, não duvidando, nem por um instante, da sinceridade do príncipe. - Peço-lhe permissão para me retirar agora - falou, cada músculo do corpo dolorido. - A jornada foi longa e cansativa.
- Claro, milady. Conversaremos depois. Noto que você entende nossa posição. A minha e a de meu pai.
- Com sua permissão, milorde, acompanharei minha esposa aos seus aposentos e voltarei em seguida.
- Faça-o, MacLachlan. Mostre a Danielle as maravilhas do castelo. Estarei esperando-o.
Adrien cobriu os ombros da esposa com a capa e conduziu-a para o corredor.
- Este será seu novo lar durante os próximos meses, meu amor. Um castelo bem fortificado, com muitas conveniências.
- E guardas? - ela perguntou, irritada.
- E masmorras! Venha... deve haver uma câmara de tortura em algum lugar.
- Você está me levando para seus aposentos. Já estou condenada.
MacLachlan não riu, a voz soando fria e distante:
- Sim, milady... Está condenada.
Capítulo X
- Minha querida, este é Luke, meu novo escudeiro - disse Adrien, entrando nos espaçosos aposentos. - Luke, minha condessa, lady Danielle.
O rapazinho fez uma profunda reverência.
- Soubemos de seu regresso, milorde - disse ele. - Um banho quente já está preparado diante da lareira e creio que tudo esteja arrumado.
- Obrigado, Luke. Mas como preciso retornar para junto do príncipe, deixarei milady sozinha. - Antes de se retirar, na companhia do escudeiro, Adrien murmurou junto ao ouvido da esposa: - Tome um banho demorado, querida, e que o vapor da água limpe bem sua garganta. Assim você poderá gritar bem alto quando eu voltar.
Minutos depois, alguém batia à porta. Uma moça loura, bonita e de seios generosos entrou, trazendo um balde de água.
- Sou Terese, milady. Vim servi-la.
- Obrigada. Porém estou muito cansada e posso me arrumar sozinha.
Sem lhe dar ouvidos, a jovem despejou a água fervente na banheira e Danielle só não foi escaldada porque conseguiu chegar para o lado no último momento.
- Oh, céus, desculpe-me, milady! Sou tão desastrada...
- Está tudo bem. Agora, se me der licença...
- Perdoe-me, senhora. Mas se me permitir, posso lavar seus cabelos.
- Obrigada, prefiro fazê-lo sozinha.
- Senhora, se eu não for capaz de servi-la bem, serei dispensada. E aquele amaldiçoado conde Armagnac queimou minha aldeia. Não terei para onde ir.
Ajoelhando-se junto da banheira, a moça pôs-se a lavar os cabelos da condessa. Inquieta, Danielle permitiu-a terminar a tarefa, porém saiu da água, enrolou-se numa toalha e sentou-se perto da lareira.
- Ouça, Terese, você deve estar cansada. Por que não vai...
- Não, milady, gosto da noite. Deixe-me pentear seus cabelos, para que sequem mais depressa.
- Você é daqui? - Danielle indagou, conformando-se com a situação a contragosto.
- De uma aldeia próxima. Uma das que foram quase totalmente destruídas. Por pouco também não morri.
- Graças a Deus você escapou.
- Graças a lorde MacLachlan também. Ele me salvou.
- É mesmo?
- Você não pode imaginar, senhora, as crueldades que estão sendo cometidas contra o povo daqui. Homens... retalhados. Até mesmo crianças pequenas são mortas.
- Ouvi dizer. Lamento, lamento muito.
- É mesmo? Pois há rumores de que você apoiou vários daqueles que se juntaram a Armagnac.
Danielle levantou-se e fitou a moça.
- Rumores mentirosos. Eu nunca desculparia tal comportamento. Pode sair agora, Terese.
A jovem abaixou o olhar, um sorriso sugestivo nos lábios.
- Estarei na saleta adjacente, milady. Por favor, chame-me se precisar. Estou a serviço de lorde MacLachlan.
Não lhe passou despercebida a atitude da serva. Terese não apenas deixara implícito não reconhecer sua autoridade, como sugeria ser amante de Adrien. E isso fora um golpe duro em seu coração.
- Então se milorde necessitar de seus serviços, irá chamá-la.
Quando a criada preparava-se para sair, Adrien entrou no quarto.
- Sir, posso lhe trazer algo? Tem alguma coisa que... - a jovem indagou, ansiosa para agradá-lo.
- É tudo, por ora, Terese. Obrigado - ele a despachou, fechando a porta em seguida.
Em silêncio, MacLachlan livrou-se da espada presa à cintura e da túnica. Vestindo apenas calça de couro e botas, caminhou pelo quarto.
Embora se esforçasse para ignorá-lo, Danielle não conseguia tirar os olhos do peito bronzeado e musculoso, o ciúme a corroendo por dentro.
- Terese está acostumada a pernoitar aqui? - perguntou, tentando manter um tom natural.
- Isso importa?
- Não - mentiu, ressentida. - Como poderia importar? Você se encarregou de colocar uma distância intransponível entre nós. Suas ações não fazem a menor diferença para mim. Você se recusa a escutar qualquer coisa que eu tenha a lhe dizer e prefere confiar numa estranha do que em mim. Naturalmente, se a companhia de Terese o agrada, basta dizer e irei para outro aposento.
- É mesmo? E você continuará me lançando acusações quando basta eu dar as costas para surgir outro homem em sua vida, milady. Meu amor, o que você faz é importante para mim. Incrivelmente importante.
- Está se referindo ao padre?
- O homem não era padre.
- Eu não sabia.
- Deveria saber.
- Você está sendo áspero e cruel - ela o acusou, apertando a toalha contra o corpo. Oh, céus, como desejava tocá-lo, deslizar as mãos pelos braços fortes, beijar a boca sensual...
- Você é uma traidora. - Adrien caminhou na direção da esposa, os olhos castanhos dando a impressão de enxergá-la pelo avesso.
- Não para a França.
- Eu fui traído! Por Deus mulher, você me traiu!
Então lábios ávidos esmagaram os de Danielle num beijo cheio e paixão e desespero. Ela quis se afastar, resistir, mas não teve forças. Agarrando-se ao marido, retribuiu a carícia com sofreguidão.
- Não sou nenhum idiota. Desejá-la não significa que confio em você! - ele murmurou furioso, tornando a beijá-la e beijá-la e beijá-la, como se não se fartasse de sorver-lhe o gosto.
Atingida em seu orgulho, Danielle o empurrou.
- Não! Você não pode ignorar o que falo, penso e sinto e depois esperar que eu o deseje! Juro que não quero nada com você!
- Ambos sabemos que isso não é verdade. Ouça, milady, tenho passado dias intermináveis em batalhas para acabar descobrindo que serei obrigado a lutar e a matar mais homens porque você os encoraja à traição. Você não me dirá o que quer, ou deixar de querer! - Segurando-a pela cintura, ele a Jogou na cama, a toalha voando longe. - Você não brincará comigo, esposa. Não quando é a causa dessa tempestade!
- Você se recusa a confiar em mim! - ela gritou, espremendo-se contra a cabeceira da cama. - Você se recusa!
- Falei com o maldito padre!
- Não encorajei ninguém a praticar atos de traição. Você não tinha nenhum direito de me arrancar de Aville. Cumpri a palavra empenhada!
- Ah... eu a tirei de seu precioso lar!
- Você me julgou injustamente. Condenou-me sem que eu tivesse culpa. Você...
- Chega, Danielle. Chega!
Mas ela não queria brigar com o marido, ou resistir-lhe. Se Adrien a tocasse...
Entretanto ele não a tocou. Dando-lhe as costas, postou-se diante da lareira, o torso nu iluminado apenas pela luz das chamas.
- Então eu errei? E você deve voltar para Aville?
- Sim.
- Devo acreditar que manteve a promessa, apesar de tudo o que ouvi provando o contrário?
- Sim.
- O rei lhe dedica uma afeição especial, embora você venha desafiando-o com frequência. Todavia Edward não a considera digna de confiança, assim como o príncipe.
- O rei crê em cada palavra que você lhe diz. Sempre foi assim e só Deus...
- Porque sempre fui honesto e leal? - MacLachlan devolveu, seco.
- Eu fui leal. Leal a Aville, ao meu lar. É onde desejo estar.
- Se ao menos...
- Se ao menos? - ela repetiu baixinho, odiando a distância que os separava.
- Se ao menos eu pudesse acreditar em você. Se ao menos você pudesse defender Aville para mim... e para o rei Edward.
Adrien acabara adormecendo, vencido pela exaustão. Miraculosamente, adormecera ao lado da esposa sem tocá-la, apesar do desejo insano.
E então...
Num primeiro momento, pensara estar imaginando coisas, ou sonhando. Dedos delicados o acariciavam nas costas, nos ombros, enquanto lábios quentes o beijavam na nuca, a pressão insistente excitando-o.
Sem mover um músculo, aguardou, tão zangado quanto faminto. Sabia ter deixado implícito que Danielle poderia regressar a Aville se pudesse ser convencido de que merecia confiança.
Ela tinha seu preço. Que o pagasse. E ela o fez.
A ponta da língua rosada deslizou por sua pele nua, numa lentidão sensual.
Poderia ignorá-la. Iria ignorá-la. Exceto que...
Exceto que as mãos sedosas agora o acariciavam no abdômen, na região logo abaixo do umbigo, perigosamente perto de seu sexo...
Rígido, latejando, virou-se. Danielle o tomou na boca. Enlouquecido de prazer, ele deixou escapar um grito rouco e enterrou os dedos nos cabelos negros. Sabendo-se a ponto de perder o controle, puxou-a pela cintura e penetrou-a numa única investida. Sim, Danielle tinha seu preço e, se as circunstâncias fossem diferentes, lhe diria que não poderia haver, jamais, outra mulher em sua vida.
Um orgasmo explosivo os abalou até o fundo da alma. Abraçados, saciados, permaneceram em silêncio durante um longo tempo, saboreando a presença mútua. Enlevado, MacLachlan pensou que nunca fora tão feliz, pois a esposa tomara a iniciativa de amá-lo e o fizera apaixonadamente.
Mas então lembrou-se de que a provocara com a insinuação de uma promessa...
- Adrien?
- Milady?
- Eu... eu não fiz nada. Juro.
- Ah...
- Por favor, leve-me de volta para Aville.
A penumbra do quarto o impedia de enxergá-la com clareza, todavia os olhos verdes brilhavam como esmeraldas dentro da semi-escuridão.
- Nunca, querida.
- Mas você disse...
- Você ficará aqui, esposa. E isso encerra o assunto.
Mordendo os lábios para conter as lágrimas, Danielle desviou o olhar.
- Seduzir-me não é o mesmo que ganhar minha confiança. Você não pode ir para casa. Entretanto, como seu marido, digo-lhe que estou absolutamente deliciado com a possibilidade de ficarmos juntos.
- Oh, você pode ir direto para o inferno!
- Eu poderia retribuir o favor.
- Não toque em mim! - Tolice ensaiar um protesto, porque ele já a estava tocando em todos os lugares, e de todas as formas possíveis. - Não toque em mim! Estou falando sério, Adrien, afaste-se... não... não... Você é um canalha e não o perdoarei por isso!
Adrien sentiu algo dentro de si ruir. Havia na voz de Danielle uma frieza que nunca ouvira antes.
- Se ao menos eu pudesse confiar em você - ele murmurou.
- Você poderia confiar em mim! Por favor! - Danielle pediu, angustiada. - Está me machucando.
Certo de que o peso de seu corpo incomodava-a, afastou-se para o lado. Imediatamente ela cobriu-se com a toalha.
- Entenda, você não pode voltar para Aville. Não agora. - Adrien tentou tocá-la no rosto, ardendo de desejo.
Estivera ausente muito tempo e a fome de possuí-la parecia não se aplacar.
- Não encoste em mim! - Danielle repetiu, veemente.
MacLachlan levantou-se, querendo não sentir esse desejo avassalador. O sol já estava nascendo. Se pudesse amá-la ao menos mais uma vez...
- Estou falando sério. Não toque em mim. Não quero você... Não posso suportar... Não posso.
- Faça-me acreditar em você.
- Nunca mais pense em encostar um dedo em mim!
Ele obrigou-se a dar de ombros, desinteressado.
- Se esta é sua vontade, milady...
Mostrando uma indiferença que estava longe de sentir e sufocando a agonia, Adrien virou-se de costas e vestiu-se.
Sabia estar sendo observado, mas agiu como se estivesse inteiramente só.
Caminhou até a porta, abriu-a e fechou-a.
Então saiu do quarto sem olhar para trás.
O príncipe Edward e suas tropas haviam partido, com certeza preparando-se para atacar o rei francês, Danielle presumiu.
Irritava-a sentir-se prisioneira, mesmo sendo o castelo de Renoncourt uma construção elegante e as terras que o cercavam maravilhosas. Era-lhe permitido cavalgar, acompanhada por dois cavalheiros mais velhos, Gervais de Leon e Henry Latimere. Em sua primeira manhã na fortaleza, analisara as circunstâncias em que se encontrava. Um dos dois cavaleiros estava sempre por perto, montando guarda do lado de fora de seus aposentos. Terese não aparecera mais e Danielle relutava em admitir que a idéia da jovem ter acompanhado as tropas do príncipe Edward a torturava. Também não havia sinal do novo escudeiro do marido. Sem dúvida o rapaz partira para cuidar dos cavalos e da armadura de Adrien.
Servas diferentes encarregavam-se de lhe trazer as refeições arrumar o quarto, preparar o banho, recolher as roupas para a lavanderia. Certo dia, escutando a conversa dos empregados, soubera que o príncipe ordenara esse rodízio para evitar que fossem criados laços de amizades e alguém acabasse ajudando-a a escapar de Renoncourt.
Os dias davam a impressão de durar uma eternidade e a monotonia a enlouquecia. Nunca se interessara por bordados. Assim, lia, cavalgava, e esperava. A comida às vezes a enjoava e um cansaço estranho a perturbava. Jamais fizera algo errado contra Edward, ou contra Adrien. Eles não tinham o direito de submetê-la a isso. Aville era seu lar.
À noite, quando tentava dormir, imagens do marido e de Terese juntos a martirizavam, impedindo-a de conciliar no sono. Não era justo, nada era justo. Quando não estava zangada, tinha medo. Medo pelo que pudesse acontecer a Adrien. Medo pelos franceses.
Numa das madrugadas insones, enquanto contemplava as estrelas da sacada de seu quarto, descobrira uma escada interna, escura, cheia de teias de aranha, que conduzia ao pátio interno, perto dos estábulos.
A partir da noite seguinte, coberta da cabeça aos pés por uma capa, passara a fazer incursões à aldeia. Então, como ninguém desse por sua falta, arriscara-se um pouco mais e transferira as visitas para o final da tarde. Até que, para sua surpresa, quando aproximava-se das muralhas do castelo após comprar um broche de prata, alguém a reconhecera.
- Condessa? - O homem magro, de uns cinquenta anos, fizera uma profunda reverência, demonstrando respeito. - Se, algum dia milady desejar ir além dos limites da aldeia, basta me pedir ajuda.
Por um instante ficara imóvel, convencida de haver encontrado um súdito leal ao rei Jean. Deveria aceitar a oferta? Deveria fugir de Renoncourt e de um marido que parecia tê-la esquecido por completo? Deveria buscar refúgio junto do rei francês, que sempre a reconhecera como legítima dona de Aville? Não, não era isso o que desejava. Por mais furiosa que estivesse com Adrien, não queria fugir. Queria que ele entendesse que jamais o tinha traído. Como uma tola apaixonada, imaginava-o aos seus pés, pedindo perdão por havê-la julgado mal, por haver duvidado de sua sinceridade.
- Permanecerei em Renoncourt como convidada do príncipe Edward, senhor. Todavia, é bom saber que possuo um amigo aqui.
- Se milady necessitar de ajuda, mande este broche para mim através de meu filho, Yves. Ele trabalha na cozinha do castelo.
- Obrigada.
- Servi-la será meu maior prazer, milady.
Dali a três noites, tornara a se aventurar pela escada abandonada. Sentia-se indisposta, inquieta, angustiada. E a ausência prolongada de Adrien só fazia aumentar a sensação de abandono. Recebera cartas de Monteine, Daylin e sir Giles e lhes escrevera também. Como gostaria de voltar para Aville.
Mas quando estava para se esgueirar para os estábulos, um grupo de três cavaleiros se aproximou. Protegida pelas sombras, escutou a conversa dos jovens soldados, entusiasmados com o plano que traçavam.
- Que maneira de pôr um fim à guerra, não? - disse um deles, desmontando. - Sequestrar o rei francês e pedir resgate. Se seu povo o quiser, terá de pagar bem.
- De fato - concordou o outro. - Porém como conseguiremos encontrá-lo no meio da batalha?
- Escutei rumores sobre uma possível vistoria que o rei Jean fará às suas tropas dentro de três noites - interveio o terceiro cavaleiro, cujo brasão da túnica o identificava como pertencente à casa de Percy. - Então ele estará protegido por uma pequena escolta. Se pudermos armar uma emboscada...
- E se o matarmos em combate, seria ainda melhor para nosso bom rei Edward, não? Viemos até aqui para checar se a condessa de Aville continua em segurança. Que tal se depois de cumprirmos nosso dever tentássemos sequestrar, ou matar, o rei francês? O príncipe nos recompensaria largamente!
- Desde que tenhamos o cuidado de não morrer no ataque - ponderou o primeiro.
Rindo, os três entregaram seus cavalos aos cuidados dos cavalariços e rumaram para o castelo.
Durante intermináveis minutos Danielle permaneceu onde estava, incapaz de se mexer, mal conseguindo respirar. Jurara, perante Deus, tentar auxiliar Jean em caso extremo. Traição, seu marido diria. Entretanto, se conseguisse avisar Jean e salvar-lhe a vida, sua participação neste drama estaria encerrada. Prometera ajudar o rei francês uma vez, apenas uma única vez. Assim a promessa feita à sua mãe e ao falso sacerdote seria cumprida. Talvez, a partir de então, poderia ser a esposa que seu marido desejava.
Seu marido. O homem que a deixara sem uma palavra de afeto.
Com a amante acompanhando-o?
Receosa de que alguém fosse procurá-la, Danielle voltou correndo para seus aposentos. Não muito tempo depois, Henry batia na porta e entrava, seguido por um dos recém-chegados.
- Viemos verificar se você precisa de alguma coisa, milady. Este é sir Ragwald.
- Foi meu marido quem o enviou, sir? - Danielle perguntou ao jovem soldado.
- Não, milady. O príncipe Edward.
- Oh, entendo.
- Se pudermos servi-la de algum modo, milady...
- Obrigada, não necessito de nada. Boa noite.
Depois de despachá-los, Danielle pôs-se a andar de um lado para o outro, consumida pela aflição. Por fim, decidiu-se.
Abrindo a porta, deparou-se com Henry, que montava guarda do lado de fora.
- Estou com fome e gostaria de comer algo. Você poderia chamar o ajudante de cozinha?
- Claro, milady.
Dali a instantes o velho cavaleiro avisava-a de que logo lhe trariam um lanche.
Enquanto aguardava a chegada de Yves, Danielle escreveu um bilhete ao conde Langlois às pressas, tendo o cuidado de não endereçá-lo, nem de assiná-lo.
Assim que o ajudante de cozinha surgiu com a bandeja, deu-lhe o broche e falou baixinho:
- Diga a seu pai que este bilhete deve ser entregue ao conde Langlois na taverna Twisted Tree. Seu pai conhece o lugar?
- Sim, milady. Fica a menos de uma hora daqui.
Danielle passou a noite em claro, remoendo as dúvidas. E se Yves fosse apanhado? Torturado? Morto? E se o pai do Menino não conseguisse entregar o bilhete ao conde? O que escrevera mesmo? Apenas o bastante para induzir Langlois a auxiliá-la? Sim, com certeza. Somente dissera estar infeliz cheia de preocupações. Não fizera nenhuma promessa.
No dia seguinte, quando Yves lhe trouxe a bandeja com o jantar, entregou-lhe também um envelope. Nervosa, abriu-o.
Na taverna Twisted Tree, amanhã, uma hora depois do pôr-do-sol. Seu obediente servo, L.
Subitamente drenada de toda energia, Danielle sentou-se e inspirou fundo, o coração aos pulos. Dali a menos de vinte e quatro horas, muita coisa estaria em jogo. Explicaria a situação a Langlois, ou então lhe pediria que a levasse à presença do rei Jean. Então regressaria a Renoncourt!
Na noite seguinte, o pai de Yves a aguardava do lado de fora do castelo, um cavalo já selado esperando-a.
- A taverna não fica muito longe, milady. Meu filho a acompanhará durante parte do trajeto.
Ela apenas assentiu, a boca seca demais para emitir qualquer som.
- Lorde MacLachlan! - uma voz o chamou.
Após um dia inteiro de intensa perseguição ao exército francês, Adrien conduzira seus homens até uma clareira, onde passariam a noite. Os cavalos, exaustos, necessitavam de algum descanso, assim como os soldados.
- Sim, David?
- Lorde MacLachlan - repetiu David Chesney, parecendo nervoso.
- O que foi?
- Rumores, milorde - o rapaz respondeu, olhando para os lados para se certificar de que estavam sozinhos.
- Ao voltarem do castelo Renoncourt, alguns homens estavam se gabando, dizendo que planejam capturar e matar o rei Jean.
- E?
- De acordo com o que uma das lavadeiras confidenciou ao meu irmão, existem muitos traidores no castelo e eles estão em contato com sua esposa. Embora eu não saiba se milady está envolvida, haverá um encontro para avisar ao rei Jean...
- Onde?
- Na taverna Twisted Tree, milorde. Posso levá-lo até lá.
- Não, não, meu amigo.
- Não acredito que milady trairia nosso rei, sir. Ela é vigiada dia e noite. Henry e sir Gervais são competentes, não a deixariam escapar de Renoncourt.
- Quisera acreditar nisso.
- Como poderia milady...
- Não sei. Porém, se houver um meio de escapar da fortaleza, minha esposa já o descobriu.
- Cavalgarei com você, sir.
- Não, David. Não quero ninguém comigo.
O rapaz pigarreou, desconfortável.
- Milorde, eu não a condeno. Sua esposa é bela, fiel... e francesa.
- Ela foi criada por Edward.
- Mas você precisa entender que a condessa sente-se impelida a ser leal a...
- Entendo que ela poderá ser enfocada, ou decapitada - Adrien o cortou, seco. - Alguém mais sabe...
- Somente meu irmão e a lavadeira que... dorme comigo. Meu irmão, Donald, está feliz servindo-o, milorde. E a lavadora é fiel a mim, além de discreta.
- Se Deus estiver comigo, acharei minha esposa e a afastei da França... e da tentação.
- Deus precisará estar mesmo com você, milorde, porque a taverna é um antro de bandidos.
- David, se você quer me auxiliar, certifique-se de que ninguém me siga. Se minha esposa for pega num ato de traição peço a Deus que não haja testemunhas.
- Milorde, você não deve julgá-la tão duramente.
- Não a estou julgando. No momento, não tenho outro plano a não ser salvar-lhe a vida! Por que se o príncipe Edward descobrir que minha esposa está traindo nosso rei...
Na verdade, sua calma aparente escondia uma fúria insana. Maldição! Se alguma coisa acontecesse a Danielle...
Não ousava nem pensar nisso. Tinha que se agarrar à sua raiva, pois esta seria a única maneira de salvá-la de si mesma.
Trêmula, Danielle desmontou, cobriu a cabeça com o capuz e aproximou-se da taverna convencida de haver perdido por completo a razão. Mas enquanto não se libertasse da promessa feita à mãe moribunda, não teria paz. Avisaria o rei Jean sobre os planos para sequestrá-lo e então voltaria para Renoncourt.
Rezando para que Langlois já a esperasse, entrou, decidida a resolver o assunto o quanto antes.
O ambiente sinistro por pouco não a fez desistir da empreitada e só não partiu imediatamente porque o conde levantou-se de uma mesa nos fundos e barrou-lhe o caminho.
- Milady, estive aguardando-a ansioso. Eu não deveria tê-la permitido vir até aqui, a essa hora. Todavia, encontrarmo-nos num lugar mais respeitável a exporia a um perigo ainda maior. Venha, vamos para onde possamos falar sem sermos incomodados.
Langlois apontou para a escada. No mesmo instante Danielle sentiu-se inquieta. E se fosse apanhada ali?
Não, impossível, ela tentou se tranquilizar. Adrien era o único capaz de julgá-la capaz de sair do castelo à noite e se meter num antro de ladrões para enviar um aviso ao rei francês.
E só Deus sabia por onde andaria seu marido.
Sentia-se desolada, martirizada. Jurara não tê-lo traído antes e fora sincera. Porém agora...
Agora estava honrando a primeira promessa, aquela feita à sua mãe. Todavia... se o marido a descobrisse...
Melhor não pensar nisso.
Melhor se preocupar com Langlois. O conde parecia muito diferente. Ele a guiou pelo corredor longo e pouco iluminado até um quarto onde o fogo já ardia na lareira. Sobre a pequena mesa de canto, uma garrafa de vinho, pão e queijo. A cama rústica dominava o ambiente, os lençóis arrumados, como se a espera de amantes.
Inquieta, ouviu o cavaleiro fechar a porta. De cabeça erguida e ombros eretos, virou-se para fitá-lo.
- Não havia necessidade alguma de nos falarmos num quarto. Marquei este encontro para que você possa transmitir uma mensagem ao rei da França. Sua recompensa será ampla.
- Ah, milady, como você pode soar tão fria quando arrisquei minha vida vindo até aqui para resgatá-la?
- Como assim, monsieur?
Vendo-o passar o ferrolho na porta e caminhar na sua direção, ela estremeceu de pavor. Oh, Deus, o que fizera?
Como o mais galante dos cavaleiros, o conde tomou as mãos delicadas entre as suas.
- Dizem que os planos do rei Edward não a agradaram. Dizem que há uma verdadeira guerra entre você e aquele escocês selvagem que o rei inglês escolheu para desposá-la.
- Escrevi-lhe porque... - começou Danielle, tentando, sem sucesso, libertar as mãos e afastar-se.
- Ah, milady, se não existiu a consumação do casamento, você é livre. Nosso bom rei Jean poderá levar a questão ao papa e obter a anulação desse desastroso matrimônio.
- Talvez existam outros assuntos para discutirmos numa data posterior. Porém a questão que me trouxe aqui deve ser resolvida primeiro. Talvez fosse melhor você me escoltar até a presença do rei Jean, para eu lhe transmitir minha mensagem pessoalmente.
Os olhos escuros a examinaram de alto a baixo, de uma maneira desagradável.
- Monsieur, não é minha intenção ofendê-lo. Sem dúvida você é um nobre valoroso. Todavia há coisas muito mais importantes em jogo do que eu, ou Aville.
- Mas analise a situação, milady. O rei Jean ficaria satisfeito se fôssemos procurá-lo já havendo consumado nosso amor. Nós nos casaríamos logo e você ficaria livre daquele bárbaro. Senhora, você me levou a acreditar que minha recompensa seria grande se eu a ajudasse. Pois exijo essa recompensa. Agora. Vamos, minha lindeza! Como não há nada entre você e aquele selvagem grosseiro...
- Tenho uma mensagem para o rei Jean, monsieur. Pense na raiva que...
- Pense no prazer do rei se você pertencesse a um nobre francês, não a um arrogante bastardo escocês!
Furiosa consigo mesma, Danielle fitou Langlois sem disfarçar o desdém. Sim atraíra-o para o encontro com a promessa de uma recompensa. Recompensa financeira, naturalmente. Em nenhum instante sugerira que o queria para marido, ou amante.
Oh, precisava agir depressa, porque se o infame a tocasse, morreria. Algo em seu interior pereceria. Seu coração, sua alma seriam lançados nas trevas.
Com um arranco, desvencilhou-se das mãos que a prendiam.
- Não - declarou categórica, com a autoridade aprendi durante os anos de convivência com o rei e a rainha da Inglaterra.
Impaciente, Danielle caminhou na direção da porta e, por um segundo, sua vontade pareceu prevalecer.
Entretanto, antes de avançar mais um passo, Langlois a agarrou pelos ombros, imobilizando-a.
- Eu pretendia ser gentil. Pretendia seduzi-la, milady, e selar nosso pacto de comum acordo. Todavia, apesar de ter sido sempre um vassalo leal, sou um dos nobres de menor importância na corte francesa e necessito, com urgência, das terras e do dinheiro que você pode me prover. Ah, milady, também tenho fome de sua deliciosa beleza! Juro que nos apresentaremos ao rei na condição de amantes, em busca apenas da bênção real para legalizar nossa união.
Praguejando baixinho, ela o chutou no ponto mais sensível, na esperança de escapar.
Urrando de dor, Langlois a puxou pelos cabelos e atirou-a no chão, imprensando-a com o próprio corpo para impedi-la de fugir.
- Cara senhora, planejei fazer isso na cama, mas se você gosta do chão...
Capítulo XI
Impelido pela fúria, Adrien arrombou a porta do quarto e viu Danielle no chão, lutando desesperadamente para escapar de Langlois. Mais alguns segundos, o conde poderia tê-la subjugado. Por pouco, resistiu ao impulso de matá-lo. Entretanto, tratava-se de um nobre francês, não de um bandido qualquer. Assim, obrigou-se a manter uma calma gélida, embora o sangue fervesse nas veias.
Nunca se sentira desse jeito. Nunca. Amava a esposa, desejava-a e, ao mesmo tempo, queria estrangulá-la por haver se metido naquela situação.
- Toque-a, meu caro, apenas mais uma vez, e deceparei essa protuberância que o faz agir como um tolo antes de cortar fora sua cabeça!
Devagar, Langlois levantou-se, a ponta da espada inimiga pousada em sua jugular.
- Agora você, Danielle - Adrien ordenou, sem tirar os olhos do adversário.
Vermelha de humilhação, ela obedeceu, indagando num murmúrio:
- Durante... durante quanto tempo você esteve no corredor.
- Tempo suficiente.
- E permitiu que esse infame me tocasse?
- Você me parecia estar se saindo muito bem sozinha. Na verdade, eu não estava muito convencido de que você desejava ser salva, pois foi iniciativa sua marcar esse encontro.
- Sim! - gritou Langlois. - De fato, eu vim até aqui para resgatá-la. A propósito, milady, não há mais motivos para ter medo. Quem é esse idiota? Saiba, senhor, que a taverna está cheia de homens fiéis ao rei francês, homens que acabariam com qualquer canalha inglês em poucos segundos.
- Pois chame-os - Adrien devolveu, irônico, um brilho mortal no olhar.
Danielle, contudo, estremeceu ao escutar sons de passos se aproximando. Um sujeito gordo metido num avental, obviamente o dono da taverna, entrou no quarto correndo, seguido de dois comparsas enormes, armados com facas.
- Você precisa de ajuda, milorde? - o gordo perguntou a Langlois.
- Parece óbvio, não? - rugiu o francês asperamente, ainda sob a ponta da espada.
- Não quero problemas com vocês. Um número suficiente de mortos já me faz pesar a consciência. Prefiro não aumentar a cota de cadáveres - Adrien os informou, impassível. - Não pretendo matar o conde, somente levar a dama comigo.
- Ela me procurou para fugir do inglês - Langlois afirmou. - Você não a tirará de mim. Planejo desposá-la.
- Bem, sir, lamento desapontá-lo, mas isto não será possível porque a dama tem marido.
- Não é um casamento legítimo.
- É legítimo em todos os aspectos. - Adrien fitou Danielle com tal intensidade, que ela sentiu-se arder. - Eu adoraria prová-lo, se a dama reluta em admitir a verdade. Poderíamos chamar uma parteira.
- Mas... - o francês começou.
- Ah, sei que a dama usou de todas as artimanhas para iludi-lo, meu caro conde. É fácil cair prisioneiro de seus encantos. A menos que a conheçamos, claro. Como é meu caso Você foi enganado, sir, e é exatamente por isto que ainda respira neste instante. - Adrien esboçou um sorriso, o olhar frio pousado em Danielle. - Ela é atraente, não? Porém, como já disse, conheço-a bem e você, sir, a partir de agora, considere-se avisado. Tenha cuidado com esses modos sedutores e essa beleza! Vou deixá-lo vivo hoje. Contudo, se voltarmos a nos encontrar, o matarei.
Langlois ofegou, finalmente dando-se conta da identidade do oponente.
- MacLachlan!
- Em pessoa. Ah, sim, aquele escocês selvagem, aquele bárbaro grosseiro, sou eu, conde.
Por um segundo Langlois ficou imóvel, o rosto muito pálido. A reputação de Adrien, sua reconhecida habilidade tanto em torneios como nos campos de batalha, costumava bastar para infundir medo. Entretanto, após breve consideração, julgou-o em desvantagem numérica.
- Peguem-no! - ordenou aos dois rufiões.
Empunhando a espada, o primeiro bandido lançou-se sobre
MacLachlan com uma ferocidade animalesca. Sem esforço, o cavaleiro defendeu-se, atingindo o oponente e lançando-o ensanguentado no chão com um único golpe.
- Pegue-o, cretino! - rugiu Langlois, dirigindo-se ao outro.
Todavia, vendo o companheiro se esvair em sangue, o bandido mudou de idéia e sumiu do quarto.
- Adeus, caro conde. - Novamente Adrien pressionou a garganta do francês com a ponta da espada. - Eu deveria matá-lo, porém não derramarei mais sangue do que o necessário. Afinal, foi ela quem o convocou.
Danielle sufocou um grito quando Adrien, segurando-a pelo pulso, arrastou-a para o corredor escuro. Ao se aproximarem da escada, um punhado de homens já os aguardavam, armados até os dentes.
- Dê-me uma arma - ela pediu.
- Não enquanto me restar um sopro de vida, milady! Você me apunhalaria pelas costas!
- Nunca o ataquei!
- Lamento discordar, senhora.
- São muitos para você enfrentá-los só! Nós dois acabaremos mortos, a não ser que seus companheiros o estejam esperando lá embaixo!
- Vim sozinho.
- Sozinho! - Danielle exasperou-se.
A confusão reinava na taverna, cada um dos presentes mostrando-se ansioso para entrar na briga.
- Preferi não ter testemunhas quando tentasse evitar que uma mulher cabeça-dura acabasse traindo o rei da Inglaterra. E o marido também. Vamos, fique atrás de mim. E se você pensar em me trair outra vez, juro, diante de Deus, que viverei o bastante para fazê-la se arrepender.
Vermelha de humilhação, ela obedeceu. De fato, não tencionara oferecer nenhuma resistência. Adrien estava muito mais furioso do que imaginara, muito mais colérico do que jamais o vira. Contudo, o que mais a aterrorizava era compreender que mesmo naquele momento, quando ambos corriam risco de morte, seu marido ainda a considerava capaz de traí-lo.
Inúmeros homens os cercaram, as espadas desembainhadas. E embora fossem ladrões e assassinos, nenhum deles possuía o treinamento rigoroso, aperfeiçoado durante anos, para combate corpo-a-corpo. Um golpe certeiro de Adrien lançou o primeiro escada abaixo. Antes mesmo que Danielle tivesse tempo de gritar, para avisá-lo do outro que o atacaria por trás, este caía, jorrando sangue.
Com sua força e perícia formidáveis, o escocês abriu caminho até a porta da taverna, não havendo ninguém capaz de detê-lo.
Viera sem armadura e sem companheiros, porém trouxera Mateus, o mais veloz de seus quatro cavalos de guerra. Num movimento rápido, jogou Danielle sobre o garanhão e montou, saindo em disparada.
Apesar de um bando de rufiões ensaiar persegui-los, seus cavalos não eram páreo para Mateus e logo a distância que os separava se tornou insuperável.
Em pouco tempo estavam fora de perigo. Todavia, Adrien continuava a correr desenfreadamente, ainda impelido pela fúria, só diminuindo o ritmo ao chegarem às margens do rio. Sem vacilar, conduziu o cavalo para a água.
- Está gelada! - Danielle protestou.
- Você poderia ter causado a morte de nós dois e está com medo de um pouco de água gelada?
- Não estou com medo de nada.
- Pois aconselho-a a ter medo de mim esta noite.
- Só tenho medo de você provocar nosso afogamento.
- Anime-se, milady! Talvez a água esfrie minha raiva.
O choque provocado pela baixa temperatura da água foi brutal.
- Oh, você pode ir direto para o inferno! - ela exclamou, esforçando-se para controlar os tremores do corpo. Tremores causados, principalmente, pelo calor irradiado do peito forte no qual se apoiava.
Ao atingirem a margem oposta, Adrien retomou o ritmo alucinante até vislumbrarem as muralhas de pedra de sua fortaleza.
Os portões de Aville se abriram e fecharam-se às costas de ambos a um comando invisível. No pátio interno, imerso na escuridão, um cavalariço segurou as rédeas de Mateus enquanto Adrien desmontava.
Danielle bem que tentou evitar, porém as mãos firmes do marido a enlaçaram pela cintura e a colocaram no chão. No instante seguinte, descobriu-se arrastada para o interior do castelo deserto. Onde estariam Rem? Daylin? Monteine?
- Subamos, milady.
Em silêncio, porque sabia não lhe restar alternativa, ela se deixou conduzir até seus aposentos.
Adrien bateu a porta e pôs-se a andar de um lado para o outro. Nervosa, Danielle desviou o olhar. Tinha plena consciência do que fizera. Traíra o rei da Inglaterra. E pior: traíra o marido.
- Nenhum servo estará disponível para atendê-la, milady. Quando descobri sua traição tola, percebi que não poderia trazê-la de volta incógnita. Chega desses joguinhos que você faz comigo! Você e seus protestos de inocência! Sua atitude foi um ato de traição. Dei a noite de folga aos criados. Não espere que os outros a ajudem.
- Não estou esperando ajuda de ninguém - ela mentiu.
- Não, milady?
Recusando-se a responder, Danielle acercou-se da lareira, tremendo incontrolavelmente, as roupas ensopadas enregelando-a até os ossos.
De repente, Adrien estancou e fitou-a, notando a extensão de seu conforto.
- Tire essas coisas molhadas! - gritou - ou não vai parar de tremer nunca.
- Tremo se eu quiser - Danielle devolveu teimosa, lutando para não cair em prantos.
- Não, milady. Você vai tremer se eu quiser. E quero que trema de medo!
Vendo-o avançar, ela deu um passo atrás. Oh, Deus, fora uma idiota! Podia explicar tudo, mas ele jamais acreditaria.
- Como... quiser, milorde.
Com passadas duras, Adrien caminhou até a cama e aguardou-a despir-se.
Então, atirou-lhe uma manta, para que se cobrisse.
- Pelos céus, mulher, Edward não merece tanto ódio de sua parte!
Erguendo a cabeça, Danielle procurou conservar a calma.
- Eu não desejo nenhum mal a Edward. Não o odeio. Apenas quis avisar ao rei Jean...
- O rei Jean tem plena consciência de que haverá uma batalha e o que auxilia o rei francês, prejudica o inglês! Ao ajudar Jean, milady, você causa um grande dano a Edward!
Ela sentiu o coração se apertar, porque nutria por Edward sentimentos semelhantes aos que dedicava a Adrien. Frequentemente o odiara, ficara enfurecida, decidira-se a desafiá-lo e derrotá-lo.
E entretanto... Amava-o.
- Meu Deus - Adrien continuou, a voz baixa carregada de rancor. - Você sabe que cabeças rolaram e pescoços foram quebrados por muito menos do que você tentou essa noite? Eu deveria espancá-la, pequena tola!
A culpa a corroia, porém Danielle preferiu escondê-la.
- Você é um lacaio de Edward. Tudo o que possui veio através dele.
- Inclusive você?
- Inclusive minhas terras e títulos! - ela murmurou.
- Quisera não ter recebido nada. E sim, milady! Sou lacaio de Edward, sou seu guerreiro. E aviso-a agora, jamais se esqueça disso outra vez, ou de que você é minha esposa!
- Bem, sir, você atrás de mim e prontamente frustrou meus esforços. Sei que me julgará e sentenciará conforme lhe aprouver. Afinal, condenou-me quando eu era inocente. Pelo menos desta vez, sou culpada de desejar conservar o rei Jean vivo! E considerando seu péssimo humor, tenho plena consciência de que não há nada que eu possa dizer-lhe esta noite. Não posso me desculpar pelo que pretendi fazer. Nunca lhe menti sobre o objeto de minha lealdade, ou sobre minhas emoções. - Não, não era verdade. Mentira sim. Nunca o deixara saber sobre como se manter leal à velha promessa estava se tornando mais e mais difícil, sobre como passara a amá-lo com a mesma intensidade com que tentava resistir-lhe.
Com certeza não podia confessar-lhe seus sentimentos agora. Precisava ter cautela. Desafiara-o antes e pagara o preço. Porém, jamais o vira assim, tão cheio de ira. Inspirando fundo, deu um passo à frente, ansiosa para fugir do quarto. Se ao menos conseguisse escapar da fúria do marido.
Contudo, não conseguiu sequer chegar à porta.
- Oh, não, milady! Você não vai sair daqui esta noite - ele falou, o corpo musculoso bloqueando a passagem.
Agarrando-se a um resto de dignidade, Danielle enfrentou o olhar arrogante, rezando para não perder a coragem.
- Eu deveria esfolá-la viva!
- Eu tinha que...
- Ah, sim, ao diabo com seu sangue inglês. Acima de tudo, você preza seu juramento francês. Bem, talvez isto explique por que não se importou em prejudicar o rei na casa do qual foi criada.
- Então entregue-me a Edward! - ela gritou, alarmada com a profundidade do próprio desespero. - Vamos acabar com isso...
- Acabar? Mas nós mal começamos.
- Com certeza sua presença é necessária em algum outro lugar, milorde. Você é o defensor, o guerreiro preferido do rei. Será que não tem inimigos a desafiar esta noite? Nenhum dragão a matar?
Adrien sorriu, os olhos castanhos-dourados brilhando perigosamente.
- Existe somente um dragão esta noite, querida. Eu. A propósito, o que você escreveu àquele patético Langlois? Que nosso casamento é uma farsa? Que jamais foi consumado?
Corando até a raiz dos cabelos, ela desviou o olhar.
- Apenas disse que precisava de ajuda.
- Você estava disposta a deitar-se com o canalha para chegar ao rei francês?
O rubor de Danielle transformou-se em palidez mortal.
- Você estava lá! - ela retrucou, indignada. - Sabe que eu nunca me sujeitaria aos avanços de Langlois.
- Ah, sim, meu amor, sei que você não cederia... a troco de nada.
- Como você se atreve?
- Foi você quem se atreveu a cometer essa loucura, traindo o rei e negando o que existe entre nós.
No começo, estivera determinado a repudiá-lo. Talvez porque antecipasse o que aconteceria quando ele a tocasse pela primeira vez.
- Você o seduziu com promessas de desposá-lo - Adrien continuou, implacável. - E você, milady, ainda vem me falar da fidelidade a um juramento, quando já se esqueceu de seu juramento feito a mim? Pois lembro-me de cada uma de suas palavras, embora você possa tê-las esquecido.
Vendo-o caminhar na sua direção, Danielle encostou-se na parede, acuada.
- Ah, milady, você sabe o que mais me assombra, o que mais me desespera?
- O quê? - ela indagou num murmúrio, trêmula de ansiedade.
- Você ter dito que nosso casamento não foi consumado. Recordo-me de cada detalhe de nossa primeira noite juntos.
Tensa, Danielle se retraiu. Também na noite de núpcias Adrien a acusara de traição.
- Você ameaçou provar àquela gentalha da taverna que nosso casamento é real. Logo você, que se considera um cavalheiro, que preza o cavalheirismo.
- Raramente exalto o cavalheirismo. E apenas informei aos tolos que uma parteira poderia ser chamada para provar que você não é mais nenhuma donzela inocente.
- Então você teria me exposto a...
- Eu não a teria exposto a nada perante àqueles idiotas, milady, mesmo para mostrar ao apaixonado francês que você é minha esposa em todos os sentidos.
Minha esposa. Todavia, existe uma coisa que pretendo fazer. Engolindo em seco, ela indagou:
- E o que é, sir?
- Refrescar sua memória, milady. Se eu não estivesse falhando em meus deveres maritais, você não teria se esquecido de algo tão importante como a consumação de nosso casamento.
- Oh, você não está falhando em nada! - Danielle retrucou, agitada. - E minha memória está ótima. Não me esqueci de nada.
Alarmada, ela prendeu a respiração quando o marido puxou a manta que a cobria e atirou-a longe. Reconhecia o brilho dos olhos penetrantes, os olhos que possuíam a capacidade de fazer seu sangue ferver nas veias. Ah, como o desejara, como o quisera perto de si nas longas noites solitárias. Entretanto...
Adrien jamais esqueceria o que ela havia feito hoje, jamais a perdoaria. E não conseguia nem imaginar como seria dali em diante. Ele não a tinha escolhido para esposa. Fora-lhe imposto. Enquanto os segundos se arrastavam, o passado pareceu tomar forma. Lembrava-se dos anos de dor, de angústia, da peste negra, do muito que ambos haviam perdido.
- Não... - ela falou num sussurro, tentando, em vão, escapar da presença máscula que a mantinha imprensada contra a parede.
- Você se lembrará de quem é.
- E a quem pertenço? - Danielle rebateu, num protesto.
- Sim, milady, com certeza.
A boca sensual esmagou a sua e ela fechou os olhos durante alguns segundos, esquecendo-se de tudo e entregando-se às sensações.
Oh, Deus, mas Adrien não a perdoaria desta vez. Fora longe demais.
- Por favor... - pediu baixinho, quando o beijo foi interrompido para que pudessem respirar.
- Ah, lady, você quer implorar misericórdia?
O tom irônico a fez abrir os olhos, cheia de raiva.
- Nem quando...
- O inferno congelar?
- Você é o maior canalha que jamais conheci e nunca irei lhe implorar nada!
Tomando-a no colo, Adrien a carregou para a cama.
- Hoje, milady, você vai me satisfazer! Quero tudo aquilo de que me lembro, quero a fome de tantas noites insones aplacada. Sim, satisfaça-me. Exijo-o.
Danielle até tentou resistir. Porém, quando a língua imperiosa invadiu sua boca e as mãos fortes se apossaram de seus seios, soube estar perdida. Com gestos rápidos, urgentes, Adrien despiu-se. Trêmula, Danielle contemplou o tórax musculoso e bronzeado, a simples visão da beleza viril inundando-a de um calor abrasador. Não, não iria tocá-lo. Não cederia, não arderia nas chamas da paixão...
Resoluções que caíram no vácuo quando o marido segurou sua mão e a depositou sobre o membro rígido e pulsante.
Como se tivessem vida própria, seus dedos se fecharam ao redor do sexo intumescido, numa carícia suave e insistente.
Adrien estremeceu de prazer. Inclinando-se, ele a reverenciou com a língua, sugando o néctar da feminilidade com sofreguidão, até deixá-la enlouquecida de desejo e à beira do clímax.
Então, penetrou-a.
E mesmo quando sua semente a inundava, chamou-se silenciosamente de tolo. Provara que ela lhe pertencia, que podia seduzi-la e excitá-la.
Mas acabara rendendo-se outra vez. Danielle estava em seu sangue, entranhada em sua alma e o assombraria por toda a eternidade.
Ela tornaria a traí-lo. Afinal, era francesa até a medula dos ossos.
Com a batalha se avizinhando, sua esposa tornara-se um perigo. Para ambos. Pois sabia que a defenderia até o fim, ainda que as cabeças de ambos rolassem.
Embora desejasse ficar mais, Adrien levantou-se, vestiu-se e saiu do quarto sem olhar para trás.
Sozinha, Danielle sufocou um soluço.
O que poderia ter feito a não ser cumprir seu destino? Como poderia ter ignorado seus deveres, seu senso de honra? Se ao menos Adrien pudesse entender...
O que fariam agora?
Como seria dali em diante?
Desejava-o desesperadamente. Amava-o com toda sua alma. Queria-o para si.
Bem, naquela noite o tivera. E o perdera.
Se ao menos Adrien voltasse... Poderia confessar que o amava. Entretanto, ele não acreditaria em suas palavras.
Não naquela noite.
Vergada pela dor, Danielle apoiou a cabeça no travesseiro e entregou-se às lágrimas.
Parte III
Capítulo XII
Três semanas depois de Adrien deixar a esposa em Aville, os exércitos inimigos finalmente se enfrentaram na batalha há muito esperada.
Em 19 de setembro de 1356, sob o comando do príncipe Edward, os ingleses conquistaram a vitória na batalha de Poitiers. Adrien, montando Mateus, liderou a cavalaria num confronto que julgou o pior do qual já participara.
Enquanto os franceses recuavam, ordenou a seus homens que os cercassem. E foi assim que Jean, rei da França, tornou-se prisioneiro.
A Adrien coube a tarefa de escoltar o jovem rei francês à presença do príncipe Edward.
- Ah, lorde MacLachlan, se meu destino era ser derrotado, pelo menos estou sendo escoltado por um parente! Como vai minha linda prima de Aville?
- Bem, sir.
- Apesar das maquinações de Langlois - comentou o rei, passando as mãos pelos cabelos escuros. - Naturalmente, milorde, não sou nenhum tolo. Ouvi o que aconteceu na taverna. Langlois não seria tão idiota a ponto de não me avisar que a condessa tentava me enviar uma mensagem. Não é difícil perceber como essa questão poderia ter se transformado numa grande atribulação marital para você.
- Na verdade, temi pela vida de Danielle. Se o rei Edward soubesse dessa traição...
- Então ele jamais saberá.
Outra vez Adrien pensou que o rei francês merecia sua admiração. Na batalha, mostrara-se corajoso e na derrota, valente. Agora, revelava sabedoria.
No acampamento, o príncipe Edward aguardava a chegada do prisioneiro real.
- Primo! - exclamou Edward. - Que prazer!
- Para você, com certeza - emendou Jean.
- Você é um convidado importante.
- Qual será meu valor?
- Quando descobrir quem temos conosco, meu pai começará a calcular a soma. - Edward deu um tapinha amigável nas costas do outro. - Não posso convidá-lo para brindar minha grande vitória, mas convido-o a partilhar minha mesa.
Embora se reunisse a Edward nas comemorações, Adrien estava ansioso para se juntar aos seus próprios homens e inspecionar os cavalos. A vitória fora doce e completa, entretanto experimentava uma certa amargura. Como esquecer que sua esposa arriscara a vida indo à taverna Twisted Tree? Não podia acreditar que, apesar de tudo, continuava a amá-la, desafiando a lógica e a razão. Após os acontecimentos recentes, Danielle provara não merecer sua confiança. Com a derrota dos exércitos franceses e a prisão do rei Jean, o perigo ao qual ela expusera a família real inglesa já não existia. Porém, tão logo soubesse que Jean fora vencido, o mais provável era que sua esposa iniciasse um complô para libertá-lo.
Não, não seria sensato mantê-la em Aville. Iria levá-la para a Escócia, decidiu. E a deixaria lá até que sua raiva esfriasse. Quem sabe a distância não o ajudaria a livrar-se dessa obsessão por uma mulher que não perdia uma oportunidade de traí-lo. Se não conseguisse tirá-la da cabeça, bem... iria para Londres. Londres era sempre cheia de diversões.
Tarde da noite, Adrien procurou o príncipe Edward e pediu-lhe permissão para retornar a Aville, onde estava Danielle.
- Ainda preciso de você. Há muita coisa a fazer aqui. Mande alguém buscá-la e levá-la para a região do Canal. Nós a encontraremos lá.
- Se é só isso que você pode me conceder.
- Não há necessidade de se preocupar. Danielle não descobrirá um jeito de ajudar o rei Jean a escapar.
- Alegra-me que você tenha tanta certeza assim.
- É esse o seu medo, não? - Edward indagou, rindo.
- Talvez.
- Não creio que sua esposa conseguiria libertá-lo da Torre.
- Não vou levá-la para Londres e sim para a Escócia, meu lar.
- Longe, muito longe. Contudo, quero que você vá para Londres depois. Meu pai esperará...
- Retornarei a Londres quando resolver meus assuntos na Escócia.
- A condessa o acompanhará?
- Duvido.
- Talvez algum tempo naquelas terras selvagens faça bem a sua linda mulher. Mas saiba que meu pai desejará revê-la, eventualmente.
- É possível. O rei Edward sempre gostou de Danielle, embora eu nunca tenha entendido por quê.
- Talvez meu pai se sinta culpado em relação a Aville. Ou talvez queira reverenciar a memória do velho amigo, Robert de Oxford. Meu pai é um homem estranho.
- Se o rei ordenar, levarei minha esposa para Londres. Agora, prefiro levá-la para a Escócia.
- Como quiser, Adrien.
Danielle estava em casa, no lugar onde mais desejava estar, e não tinha a menor vontade de fugir. Entretanto, sir Giles, Daylin, ou qualquer outro dos cavaleiros de seu marido, a mantinham sob constante e discreta vigilância. Monteine, amiga fiel, a ajudava a suportar os longos dias em que aguardava, em vão, alguma notícia de Adrien, a espera interminável roubando-lhe a paz e o sossego.
As notícias sombrias chegaram primeiro aos ouvidos de sir Giles. Através do velho nobre, Danielle soube que o príncipe Edward derrotara os franceses e que o rei Jean fora feito prisioneiro.
- E Adrien?
- Lorde MacLachlan não sofreu nenhum ferimento, milady, hábil guerreiro que é.
Danielle tremia. Primeiro de alívio por causa do marido. Depois de tristeza pelo destino dos franceses e de seu rei. Sentindo-se subitamente enjoada, correu para seus aposentos, uma única pergunta a atormentando. O que aconteceria agora?
Dois dias depois, Daylin avisou-a de que deveria se preparar para viajar.
- Para onde vamos? - indagou, ansiosa.
- Para o Canal.
- E então?
- Não sei, milady. O rei Jean e alguns nobres franceses serão levados para a Torre de Londres, onde aguardarão o pagamento do resgate.
Um medo súbito deixou-a paralisada. Será que Adrien estava querendo o divórcio? Seria levada com os outros franceses para a Torre?
Escondendo o pavor, Danielle arrumou a bagagem e, no dia determinado, montando Star, iniciou a jornada sem um único protesto.
Em Calais, sir Timothy Field a conduziu a um amplo aposento, seu estupendo castelo normando.
- Espero que milady sinta-se confortável - disse o velho conde. - Esta tem sido a residência de minha família por várias gerações e procuramos fazer o possível para criar um ambiente aconchegante. - As paredes cheias de tapeçarias, as inúmeras estantes de livros e o fogo ardendo na enorme lareira apenas confirmavam as palavras do cavaleiro.
- Estou muito bem instalada, obrigada. Ficarei aqui muito tempo, sir?
- Isso, senhora, não sei dizer. Se me der licença, vou deixá-la sozinha para descansar.
Monteine e Daylin seguiram sir Timothy sem que Danielle esboçasse um gesto para retê-los. Estava cansada demais para argumentar. Assim, ao constatar que a porta do quarto fora trancada por fora, também não se abalou. Aceitando o fato de que era uma prisioneira, não uma convidada, banhou-se, comeu a refeição que lhe foi trazida numa bandeja e deitou-se.
No meio da noite, acordou. Trêmula de frio, sentou-se no tapete diante da lareira e estendeu as mãos para o fogo em busca de calor.
- E agora, Adrien? - indagou num murmúrio, lágrimas amargas vindo-lhe aos olhos. - O que estou fazendo aqui, bancada neste quarto em Calais? O que você planejou para mim, seu... infame? - Aparentemente o marido não lhe dava mais a menor importância. Seria levada de um lugar para o outro, como um fardo indesejado, enquanto ele seguiria em frente, como o grande campeão do rei Edward! - Você deveria arder no inferno!
- Que encantador!
Se não estivesse sentada, teria desabado no chão. Ouvir a voz máscula, fria e distante, a atingiu com a força de um raio. Virando-se, descobriu-o sentado numa cadeira de couro, escondido pela densa penumbra.
- Adrien!
- Meu amor - ele respondeu sem se alterar, fitando-a fixamente. - Você sentiu saudade de mim?
Ignorando a provocação, Danielle levantou-se.
- O que estou fazendo aqui, em Calais?
- Você é convidada de sir Timothy.
- Sou prisioneira. Minha porta está trancada.
- Com certeza isto não a surpreende.
- O rei Jean é um prisioneiro.
- Sim, e pretendemos mantê-lo nesta condição.
- Que mal posso eu fazer...
- Receio descobrir.
Lutando para conservar o controle das emoções, Danielle o encarou.
- O que acontecerá ao rei?
- Edward? Seu povo o cobrirá de honrarias devido à grande vitória.
- Estou me referindo a Jean, e você o sabe.
- Ele será trancafiado na Torre.
- É para lá que irei também?
- Não, milady. Mas você não precisa se preocupar tanto com seu rei Jean. Porque apesar do pedido de resgate, o rei Edward o tratará como convidado de honra. Portanto, duvido que venha a sofrer danos.
- E... o que acontecerá comigo?
- Você sairá da França.
- Irei para Londres? - ela perguntou, o rosto coberto de uma palidez mortal.
- Não. Para a Escócia.
Escócia. A terra natal de Adrien. Longe, muito longe de tudo e de todos. Uma terra inóspita, selvagem. Onde seria largada, abandonada.
- E quanto à propriedade de meu pai na Inglaterra?
- Cuidarei disso.
- Quando partiremos?
- Amanhã. Cedo. - MacLachlan levantou-se.
Sem que pudesse resistir, Danielle aspirou o perfume viril, emanado do corpo forte. Os cabelos longos, ainda úmidos do banho, cheiravam a pinho. Por um instante, pensou em se atirar aos pés dele e dizer que lamentava tudo o que acontecera. Confessar que nunca quisera magoá-lo, que sentia-se péssima, que não suportava ver o casamento de ambos transformado numa vítima da guerra.
Porém, permaneceu imóvel, o coração dilacerado pela dor.
- Você deveria dormir um pouco, milady. Ouvi dizer que não tem passado bem.
- Estou ótima - ela mentiu.
- Monteine contou a Daylin que você tem sofrido ataques frequentes de enjôo.
- Monteine não deveria discutir minha saúde com Daylin.
- Os dois estão preocupados com você.
- Sou-lhes grata pela preocupação, mas estou bem. - Naquele momento, não se sentia enjoada, e sim à beira das lágrimas.
Tudo dera tão errado. Adrien parecia um estranho, tamanha a frieza com que a tratava. Atormentava-a pensar que ele a deixaria na Escócia e partiria sozinho, só Deus sabia para onde...
Ainda fitando-a fixamente, MacLachlan comentou:
- Pelo menos você está aqui. Não fugiu de Aville.
- Não fugi de Aville porque não tinha nenhum desejo de escapar de lá. Aville é meu lar.
- Ah, então se você estivesse em Aville não teria ido até a taverna Twisted Tree?
Exasperada, Danielle suspirou fundo.
- Fiz uma promessa à minha mãe, de honrar o rei...
- Sim, milady, conheço essa maldita promessa. Mas você não acha que já a cumpriu anos atrás? E que poderia agora cumprir a promessa feita a mim?
- Prometi ao padre salvar a vida de Jean, se pudesse. Os cavaleiros estavam ameaçando matá-lo.
- Aquele padre não era padre.
- Ainda assim prometi, diante de Deus, salvar a vida de Jean, se isto estivesse a meu alcance. Deus é testemunha de que julguei aquele homem um verdadeiro sacerdote. Se você tivesse me deixado em minha casa, em Aville...
- Bem, milady, você irá para casa agora.
- A Escócia não é "minha" casa.
- Pois trate de transformá-la em seu lar! - ele a interrompeu áspero.
Então, sem olhar para trás, saiu do quarto e trancou aporta.
Eventualmente, Danielle acabou adormecendo. E despertou com carícias suaves e insistentes nas costas. Temendo estar sonhando, manteve os olhos fechados, saboreando o momento. Aos poucos, convenceu-se de que não sonhava. Era Adrien sim, quem a tocava sedutoramente nos seios, o sexo rígido pressionando-a nas coxas.
Em segundos, seu corpo inteiro ardia. Louca de desejo, beijou-o na boca com sofreguidão e entreabriu as pernas, num convite sutil.
Juntos, os dois alcançaram o clímax, agarrando-se um ao outro como náufragos em meio à tempestade.
- Não há nada que você queira me dizer? - ele indagou, depois de um longo tempo.
Danielle gostaria que não dissessem nada. Gostaria que aquela noite pudesse ser silenciosa e apenas se deixassem ficar abraçados, esquecidos das batalhas do dia.
- O que você queria que eu dissesse?
- Hum... quem sabe, Ah, Adrien, você me parece bem. Nem um golpe de machado na sua cabeça? Não, graças a Deus. Um pouco de caridade cristã talvez a levasse a se alegrar por eu não ter perdido a vida, sangrando sobre seu precioso solo francês.
- Os franceses não lhe pediram para vir da Inglaterra lutar ou morrer aqui.
MacLachlan inspirou o ar com força, cansado e desgastado.
- Eu sabia que você sobreviveria - ela falou baixinho. - Rezei para que você sobrevivesse.
- Por quê?
- Caridade cristã, talvez?
- Ah... e não há nada mais que você queira me dizer?
- Não - Danielle sussurrou, aconchegando-se no peito largo e adormecendo em paz.
Mal amanhecera quando a travessia do Canal foi iniciada. Embora o tempo estivesse bom, o mar ligeiramente agitado provocou em Danielle terríveis enjôos. Debruçando-se sobre a durada do navio, a pobrezinha vomitou até não ter mais nada no estômago. Solícita, Monteine limpou o rosto pálido com um pano úmido e permaneceu amparando-a, até Adrien dispensá-la e assumir seu lugar.
- Desculpe-me, não era minha intenção embaraçá-lo diante de seus homens - Danielle murmurou, as feições abatidas. - Não sei o que está havendo comigo. Tenho me sentido mal há uma eternidade. Talvez...
- Confesso que no início achei que você estivesse tentando me evitar, mas agora percebo como é realmente ingênua.
- Não sei do que está falando.
- É o que parece. Se não estivéssemos estado juntos ontem à noite, eu não teria tanta certeza assim.
- Ainda não consigo entender...
- Você não está doente, meu amor. Está esperando um bebê.
Surpresa, ela arregalou os olhos. Então irritou-se, ao vê-lo rir de seu espanto.
- Você não sabe. Não pode saber.
- Posso e sei.
- Oh, e quantos filhos você já gerou?
- Nenhum, exceto esse que você traz no ventre, milady. - Notando a expressão aliviada da esposa, MacLachlan acrescentou, apenas para provocá-la: - Pelo menos que eu tenha conhecimento.
No começo da tarde, o pequeno grupo desembarcou em Dover e iniciou a viagem por terra. Ao anoitecer, já se encontravam instalados numa hospedaria, nas proximidades de Winchester. Adrien passou grande parte da noite no salão, bebendo na companhia de Daylin, Michael e os poucos soldados que formavam a comitiva. De seu quarto no pavimento superior, Danielle escutava o vozerio, as canções, as risadas. Incapaz de dormir, permaneceu acordada até as primeiras horas da madrugada, quando Adrien, embriagado, entrou, arrancou as roupas, jogou-se na cama e tomou-a nos braços.
- Então agora você é um maldito escocês bêbado - ela o repreendeu.
- Ah, mas o seu escocês bêbado, meu amor - retrucou MacLachlan, rindo.
- Oh? E desde quando você é meu?
- Sempre que eu assim desejar.
- Não, sir. Não pode se apossar de sua esposa desse jeito, primeiro bebe até cair com seus companheiros e depois...
- Você está se comportando como uma casta traidora francesa. Mas minha casta traidora francesa, é verdade.
- Adrien... - Danielle ensaiou um protesto, logo esquecido quando o marido a beijou avidamente nos seios, no ventre e no ponto mais íntimo de seu corpo até fazê-la quase perder a razão. Já não se lembrava mais por que o repreendera.
Na manhã seguinte, contrariando a rotina, Danielle levantou-se antes do marido. Quando o taberneiro bateu na porta para acordá-los, ele abriu os olhos com dificuldade.
- Peço-lhe desculpas, minha querida. Fui muito rude ontem?
- Não mais do que o costumeiro, sir.
- Por Deus, há anos não bebo assim. - Gemendo baixinho, MacLachlan sentou-se na cama, a cabeça a ponto de estourar. - Que cheiro é esse?
- Peixe. O taberneiro trouxe peixe e pão para nosso desjejum.
- Temos mesmo que comer?
- Está delicioso. Experimente um pouco - Danielle lhe estendeu o prato, sabendo que o cheiro forte o estava enjoando.
- Chegue mais perto com isso e atiro-o em cima de você.
- E arriscar o bem-estar de seu filho escocês?
- Provavelmente você dará à luz uma filha.
- E o farei de propósito, se for para irritá-lo.
Para seu espanto, Adrien sorriu.
- Você é uma mulher má. Agora saia daqui com esse peixe.
- Sair? Minha porta não está trancada?
- Suplico-lhe, vá lá para baixo e aproveite o desjejum na companhia de Monteine.
Intrigada, Danielle hesitou.
- Você não teme que eu fuja? Ainda estamos muito perto de Dover.
- Se você fugir, irei atrás. E a encontrarei, onde quer que esteja.
Embora as palavras não soassem como uma ameaça, havia na voz de Adrien uma frieza assustadora. Ele ainda não a perdoara, e continuava indigna de confiança.
Algumas semanas depois, o grupo de viajantes chegava à Escócia. Admirada com a beleza da propriedade, Danielle percorreu cada cômodo da encantadora mansão. Os aposentos do casal, espaçosos e confortáveis, primavam pela elegância sóbria e distinta. Ao lado ficava o quarto destinado ao bebê, já mobiliado com o berço que pertencera a Adrien, segundo lhe contaram.
As pessoas a receberam com uma familiaridade tocante, fazendo-a sentir-se verdadeiramente bem-vinda.
Na primeira noite no castelo MacLachlan, agora seu lar, Danielle levantou-se de madrugada e foi até ao quarto do bebê. Ainda custava a acreditar que seria mãe, que seu corpo abrigava uma nova vida. De repente, pela primeira vez, a criança se mexeu em seu ventre. Emocionada, deixou escapar um grito.
Em instantes Adrien estava ao seu lado, o rosto cheio de preocupação.
- O que foi?
- Ele se mexeu.
A ansiedade do marido transformou-se em alegria.
- Ele? Você me disse que será uma menina.
- Ela se mexeu.
Rindo baixinho, Adrien tomou a esposa nos braços e carregou-a para a cama.
- Estou feliz por tê-la trazido para cá. Estou feliz que meu filho vá nascer aqui - murmurou, beijando-a nos lábios.
Então ele a amou com uma ternura tão comovente que Danielle chorou de emoção.
Nos dias que se seguiram, ela procurou conhecer todos que acercavam, os servos do castelo, os soldados, os aldeões. Queria se integrar o quanto antes, pois descobrira-se tão apaixonada pelo lar do marido quanto por ele próprio.
Certa tarde, Danielle encontrava-se sentada sob a copa de uma árvore, perto do lago, quando Adrien se aproximou.
- Você me parece muito bem aqui, esposa - ele a provocou. - Faces rosadas, olhos brilhantes, expressão serena.
- Obrigada.
- Sente-se capaz de sobreviver nestas minhas terras inóspitas e selvagens?
- Suas terras são selvagens e belíssimas.
- Traiçoeiras também... A propósito, partirei para Londres amanhã.
- Tão depressa? Nós chegamos há uma semana!
- Eu partirei para Londres amanhã.
- E eu serei deixada para trás?
- Sim, meu amor.
Danielle abaixou o olhar, temerosa de revelar o quanto a notícia a decepcionara. Londres. O príncipe Edward e suas tropas estariam em Londres. E aquela jovem, Terese? Sempre tão ansiosa para servir Adrien, para agradá-lo.
- Não sou confiável em Londres? - ela indagou, amarga. - O rei Edward tem tantos homens em Londres que, sem dúvida, eu não representaria nenhum perigo. Foi o rei quem decidiu me manter aqui?
- Não, milady. Fui eu quem quis assim.
Sem mais uma palavra, MacLachlan afastou-se.
Capítulo XIII
Anoitecia. E um vento forte começava a soprar. Indiferente à mudança de temperatura, Danielle continuou a nadar no lago. Não, não odiava aquele lugar. Amava-o. Amava-o mais do que qualquer outro lugar onde já residira. Amava as montanhas altas, as planícies verdejantes, a beleza cristalina do lago iluminado pelos últimos raios de sol. Gostava até do uivo dos lobos durante a madrugada. Só não suportava a idéia de Adrien deixá-la só. Não passava da esposa francesa que o traíra e ao rei. Providenciara-lhe títulos, propriedades, estava prestes a lhe dar um herdeiro. E ele partiria outra vez. Adrien nunca acreditaria nela outra vez. Não enquanto um membro da casa de Valois regesse a França.
- Danielle!
Alarmada, ela viu o marido nadar na sua direção. Em segundos, era praticamente carregada de volta para a margem.
- O que foi?
- Perdeu o juízo, milady?
- Eu só estava nadando. Por acaso não sou livre para nadar? Afinal, se não posso ir para Londres, pelo menos posso vir para o lago. Ou você se esqueceu de me dizer que também é proibido nadar?
De repente ele a puxou para si e beijou-a quase com desespero.
- Milady, a água está gelada. Você ficará doente.
Tomando-a nos braços, Adrien a levou para o castelo. No quarto, depois de livrá-la das roupas molhadas e envolvê-la numa manta de lã, despiu-se e sentou-se numa cadeira diante da lareira, colocando-a no colo.
- Você não pode correr o risco de adoecer.
- Eu não estava tentando me ferir, ou ao bebê.
Nervosa, Danielle encostou a cabeça no peito másculo, esforçando-se para não ceder ao pranto. Sentiria saudade do marido. Muita saudade.
- Aconteceu há tanto tempo, mas ainda me lembro de quando minha mãe morreu... Ela insistiu para que eu honrasse o rei. Fez-me prometer. E cumpri a promessa.
- Você fez promessas a mim.
- E não as quebrei.
- Isto, meu amor, certamente é discutível.
- Todavia existem argumentos a meu favor.
- Vocês sempre será capaz de apresentar argumentos, querida - retrucou MacLachlan, sorrindo.
- Adrien?
- Sim?
- Eu te amo - Danielle murmurou, perguntando-se como, um dia, pudera pensar que o odiava.
- É mesmo? - ele indagou baixinho. - Ou será que você deseja apenas conseguir o que quer?
Furiosa, ela fechou os olhos numa tentativa vã de conter as lágrimas. Confessara a verdade e não recebera nada, exceto mais acusações.
- Ainda que suas palavras sejam verdadeiras, não posso, e não irei, levá-la para a corte agora. Quero que meu filho nasça aqui. Não a quero viajando neste estágio da gravidez. E Deus sabe como a quero longe das tentações.
- Quero você longe das tentações também!
- O que isso significa?
- Significa que não confio nas mulheres. Você me trancou num castelo enquanto sua amante o seguia até os campos de batalha! E agora vejo-o partir para Londres.
Danielle calou-se quando o marido começou a rir. Irritada, empurrou-o para longe.
- Desculpe-me, meu amor. Então se eu tivesse uma amante você iria se importar?
- Não vou responder e você pode parar com esse jogo agora. Confessei que o amo e você me chama de mentirosa. Será que devo me jogar aos seus pés e me humilhar enquanto você ri e vai embora para se unir a...
- Me unir a quem?
- A Edward! - Danielle mentiu.
Mantendo-a firme no colo, Adrien tornou a sorrir.
- Estou realmente curioso. Com quem você acha que me envolvi?
- Solte-me, deixe-me...
- Oh, meu amor, tem muitas coisas que pretendo fazer com você esta noite, porém soltá-la não é uma delas.
- Maldição!
- E então? Com quem você me julgou envolvido?
- Não sei! Como poderia saber? A corte do rei é cheia de mulheres.
- Eu estava na guerra.
- Existem aquelas que seguem as tropas.
- Ah... você me acusa de andar com prostitutas?
- Será que não poderíamos...
- Quem, milady?
- A jovem Terese fez questão de me informar estar sempre disposta a atender qualquer um de seus desejos.
MacLachlan atirou a cabeça para trás e riu com prazer. Novamente Danielle tentou se levantar.
- Desculpe-me, sei que essa conversa não deveria estar me divertindo assim. Porém passei tanto tempo me torturando, imaginando qual seria a próxima peça que você me pregaria. - Ficando sério, ele a segurou pelo queixo, obrigando-a a fitá-lo. - Nunca dormi com Terese. Ela realmente seguiu as tropas e deixou claro estar pronta para me servir de todas as formas possíveis. E reconheço tratar-se de uma moça bonita.
- Adrien...
- Jamais traí meus votos matrimoniais. Jamais. Embora às vezes tenha me perguntado por quê.
Devagar, ele a colocou no chão, sobre o tapete, e amou-a à luz das chamas, reverenciando-a com as mãos, os lábios, a língua. Depois de saciados, foi Danielle quem tomou a iniciativa de se amarem outra vez. Queria conservá-lo dentro de si de alguma maneira, mesmo quando ele já houvesse partido.
Ao amanhecer, Adrien acordou. Danielle continuava dormindo, esgotada após as horas de intensa paixão. Dominado por forte emoção, fitou-a longamente, reconhecendo a verdade. Não queria levá-la para Londres porque tinha medo. Medo do que poderia acontecer na corte. Afinal, o rei Jean, Simon e Paul de Valois eram todos prisioneiros de Edward, à espera do pagamento de resgate. Preferia não expô-la a uma situação perigosa, de desfecho imprevisível.
Devagar, MacLachlan levantou-se e vestiu-se, os olhos fixos na esposa. Amava-a. Não lhe confessara ainda esse amor. Alguma coisa o segurava, o impedia de abrir por completo o coração. Mas o tempo passaria. Seu filho nasceria. E, com a graça de Deus, teriam mais tempo juntos, longe das batalhas do mundo.
Antes de partir beijou-a de leve nos cabelos, certo de nunca ter feito algo tão difícil na vida quanto deixá-la naquele momento.
Tão logo chegou à corte, Adrien foi enviado para o País de Gales com a missão de conter uma revolta perto da fronteira. Entretanto, apesar de sempre haver gostado dos desafios da vida militar, sentia-se inquieto. Seu filho nasceria em fins de janeiro e esperara retornar para acompanhar o acontecimento. Todavia, à medida que os meses passavam, mais ansioso ficava. Seus amigos, sem um mínimo de perspicácia, pareciam sempre desejosos de lhe contar histórias sobre crianças que nasciam antes da hora e morriam em seguida, histórias horríveis de lindas esposas mortas durante o trabalho de parto.
Com o fim do conflito no País de Gales, mais prisioneiros foram levados para a Torre de Londres e lá Adrien passou o Natal. Cada dia longe da mulher era um tormento, embora não faltassem distrações no castelo de Edward. Todas as noites, a convite do rei inglês, David Bruce, rei da Escócia, Jean, rei da França e nobres da Escócia, França e do País de Gales, participavam de animados banquetes.
Acompanhando os convidados da realeza, outros aristocratas prisioneiros também desfrutavam da hospitalidade de Edward, como Simon e Paul de Valois. Nem o rei Jean nem Paul de Valois irritavam Adrien, porém a simples presença de Simon de Valois, conde Montjoie, o tirava do sério. Talvez porque, anos atrás, Danielle se julgara apaixonada por ele.
Simon tornara-se uma figura popular na corte, sempre encantador com as damas inglesas, que desconheciam sua parceria com o conde Armagnac na pilhagem de aldeias, assassinatos e estupros. Aliás, o próprio Simon não admitia sequer conhecer Armagnac. Quando ele e Adrien se encontravam, cumprimentavam-se civilizadamente, mas Adrien sabia o quanto o outro o odiava e buscava vingança, sentimentos que eram recíprocos.
Segundo rumores, Simon estava mantendo um caso nada discreto com a jovem esposa de um velho nobre inglês, o que criava situações constrangedoras durante os eventos sociais. Nestas ocasiões, alegrava-se que Danielle estivesse longe. Não a queria perto de Simon, cujo comportamento vil inspirava as piores desconfianças.
Na segunda quinzena de fevereiro, durante um banquete, um mensageiro entrou no salão e, respeitosamente, segredou algumas palavras junto ao ouvido do rei. Adrien, sentado a certa distância, observou a expressão de Edward mudar e, por algum motivo, seu coração disparou. Notícias haviam acabado de chegar do norte. Receava que fossem más notícias.
Todavia, o mensageiro o abordou com um sorriso.
- Estou chegando do norte, sir, e...
- Danielle? - ele indagou, angustiado.
- Está passando muitíssimo bem, milorde. Assim como seu filho, batizado no último sábado com o nome de Adrien Robert.
MacLachlan só percebeu que havia se levantado quando desabou na cadeira. Aparentemente o mensageiro falara alto o suficiente para que muitos ouvissem e uma salva de palmas acompanhou o anúncio. Cavaleiros, nobres, damas, e mesmo a realeza, todos lhe ergueram um brinde.
Seu filho nascera. Nunca experimentara emoção tão grande. Tão grande quanto o medo de que algo pudesse ter acontecido a Danielle.
Mais tarde, naquela mesma noite, Adrien pediu uma audiência particular com o rei.
- Sir, os galeses tanto podem permanecer sossegados durante meses, quanto entrar em guerra a qualquer momento. Eu o tenho servido longa e arduamente, e estou ansioso para conhecer meu filho.
- Você acha, milorde, que assisti ao nascimento de todos os meus filhos? Não, rapaz, garanto-lhe que não.
- Mas...
- Mande buscar sua esposa e o menino. Estou ansioso para vê-los também.
- Sir, o rei Jean da França permanece seu prisioneiro e há os outros... - MacLachlan argumentou, indeciso.
- Por Deus! Estamos na nossa cidade, no meio do nosso povo. - Uma breve pausa. - E eu gostaria muito de ver sua esposa e a criança.
- Então é uma ordem? Devo mandar buscar Danielle?
- Estou lhe pedindo que o faça. Tratava-se da mesma e única coisa.
- Enviarei um mensageiro imediatamente.
Quando voltava para seus aposentos, Adrien escutou sussurros vindos de uma alcova no corredor. Uma das vozes pertencia a Terese, a outra a Simon de Valois, conde Montjoie. Pelo visto o rei Edward concedia a seus nobres convidados diversão de toda natureza, pois nada acontecia no castelo sem a expressa permissão do rei. Terese e Simon de Valois se mereciam, todavia algo no encontro fortuito o enervava.
Horas depois, Adrien ainda não conseguira dormir. Sentia saudade da esposa e estava louco para conhecer o filho. Entretanto, preferiria estar indo para a Escócia, em vez de sujeitar Danielle e o menino a uma cansativa jornada.
Batidas súbitas à porta o arrancaram de suas preocupações.
- Lorde MacLachlan?
Vestindo um robe, ele entreabriu a porta, surpreendendo-se ao se deparar com Terese.
- Sim?
A jovem sorriu, trêmula.
- Posso entrar?
A hesitação de Adrien deixava claro que a idéia não o agradava.
- Não posso ficar aqui parada no meio do corredor, sir.
Dentro do quarto, Terese foi diretamente ao assunto.
- O rei mandou buscar sua esposa, não é?
- Sim.
- Essas próximas noites... talvez sejam nossa última chance de...
- De? - MacLachlan deu um passo atrás.
- Não posso esquecer que você salvou minha vida. Estou pronta a servi-lo de todas as maneiras. Eu morreria para ter uma única noite sem seus braços. Sua esposa está longe. Ouvi dizer que milady é sua inimiga e que o trai sempre que possível para proteger os franceses.
- É mesmo?
- Todo mundo sabe que ela o machuca agindo assim. Eu poderia curar essa dor. Poderia lhe dar uma noite de puro prazer. Eu o amaria de corpo e alma sem lhe causar nenhuma complicação.
- Verdade?
- Sua esposa é uma megera perigosa, milorde!
Segurando-a pelo braço, Adrien levou-a para a porta.
- Você é linda, Terese, e acabou de fazer um discurso eloquente. Porém, existe um problema.
- Tudo o que quero é passar algumas horas ao seu lado. Apenas para agradá-lo. Não há problema que eu não possa solucionar.
- O problema é que amo minha bela esposa. Boa noite, Terese. E tenha cuidado com os amigos que você deixou no corredor.
Gentilmente MacLachlan a pôs para fora e fechou a porta.
Furiosa, Terese ficou parada no meio do corredor, roendo-se de ciúme da condessa. Aquela mulher possuía tudo, propriedades, títulos, beleza. E ainda era amada tanto pelos ingleses quanto pelos franceses. Simon a amara e...
Ainda bufando de raiva, Terese viu Luke, o jovem escudeiro de lorde MacLachlan, aproximar-se.
O rapaz riu ao compreender o que se passara.
- Oh, como você se atreve? - ela o interpelou, áspera.
- Você continua se jogando em cima dele. Quando perceberá que milorde é casado com um anjo, a quem ama profundamente?
- Milady é uma bruxa e, com o tempo, lorde MacLachlan irá desprezá-la.
Luke balançou a cabeça.
- Não. Milady é linda e os dois se amam. Ninguém poderá separá-los.
Terese abaixou a cabeça, inquieta. Aquele escudeiro sempre tivera o dom de perturbá-la. Luke sempre fora diferente dos outros homens que conhecera. Homens ricos e nobres, que a adulavam para obter algo em troca. Luke não a adulava, apenas a tratava com firmeza.
- Você jamais terá o duque. Você não pode ter tão grande homem.
- Não posso? - ela devolveu, desafiadora.
- Mas pode ter a mim. - Luke puxou-a e abraçou-a com força.
- Solte-me!
- Você o deseja e eu a desejo. E também posso lhe oferecer algo.
- O que é? - Terese indagou baixinho, o coração subitamente aos pulos.
Apesar de jovem, sob a tutela de um nobre como lorde MacLachlan, Luke, sem dúvida, acabaria se tornando um cavaleiro. Iria para batalhas e voltaria coberto de glórias e riquezas.
Além do mais, ele a queria.
- Posso me casar com você - disse o escudeiro, fitando-a intensamente.
Horas depois, nos pequenos aposentos do rapaz, Terese perguntava-se se deveria ou não cumprir a promessa feita a um outro homem. Afinal, já recebera um anel de ouro como pagamento.
Restava-lhe fazer sua parte.
Não... não poderia fazer o que prometera.
Entretanto, tinha medo. Muito medo.
Capítulo XIV
Danielle nunca conhecera um inverno tão rigoroso quanto aquele da Escócia. E fora no auge da estação que seu filho resolvera nascer. Sentira mais saudade de Adrien do que imaginara possível. Ele lhe escrevera sobre a campanha no País de Gales e ela respondera às cartas, pedindo-lhe que voltasse logo e informando-o dos acontecimentos recentes como, por exemplo, sua crescente suspeita de que Daylin e Monteine pretendiam se casar.
No dia em que Adrien Robert MacLachlan nasceu, Monteine e Maeve, a parteira, estavam a seu lado. O trabalho de parto durara vinte e quatro horas, nas quais alternara períodos em que fora capaz de conversar racionalmente e outros em que só faltara urrar de dor, culpando Adrien por colocá-la naquela situação terrível.
- Fui eu que causei problemas a respeito do padre - Monteine confessou. - Bem, claro que o tal Paul de Valois não era um padre de verdade.
- Do que você está falando? - Danielle, com o rosto banhado de suor, se contorcia de dor.
- Contei a Daylin sobre o sacerdote. Expliquei minhas preocupações. Daylin foi atrás de Adrien.
- Primeiro você solta a sela para eu ser castigada. Depois...
- Isso aconteceu anos atrás! - protestou Monteine, indignada. - Eu tinha medo...
- Então você se torna amiga fiel de lorde MacLachlan! Oh, eu deveria mandar enforcá-la! Ai...
- Ótimo, milady. Concentre-se agora. Empurre e o bebê nascerá!
Assim aconteceu. Danielle estava tão zangada que empurrou com força e a cabeça da criança apareceu.
- Um menino, milady! - gritou a parteira, segundos depois. - Um menino grande e perfeito!
De repente, Danielle estava chorando enquanto Monteine corria para espalhar a boa nova pelo castelo. Maeve limpou o bebê, cortou o cordão umbilical e ajudou Danielle a expelir a placenta. Entretanto ela mal se dava conta do que se passava, toda a atenção focalizada no filho. Dez dedinhos nas mãos e nos pés, um tufo de cabelos loiros como os do pai, olhos de um azul intenso. Perfeito em todos os aspectos. Seu filho. Uma bênção de Deus.
Após o parto, Danielle foi atormentada por dúvidas e medos. Amava tanto o filho e temia perdê-lo. Morte súbita de recém-nascidos não costumavam ser incomuns. Necessitava da presença, da segurança do marido. Essa apreensão só diminuiu um pouco depois do batismo da criança, Monteine e Daylin não cabendo em si de contentamento por terem sido escolhidos para padrinhos.
Então, começara a longa espera. Danielle rezava sem cessar para que Adrien retornasse em breve. Ansiava partilhar com ele as alegrias da maternidade. Sentia-se feliz na Escócia. Adorava o castelo, a rotina diária. A vida ali era agradável e movimentada, porém...
Sem Adrien, tudo se tornava insuportável. Queria-o perto de si. Preocupava-se com a longa ausência.
Num dia de abril, no início da primavera, Danielle estava deitada numa manta sobre a relva, nas proximidades do lago, com o bebê adormecido ao seu lado, quando avistou Monteine e Daylin aos beijos. O casal se separou depressa ao perceber que haviam sido notados.
-Você precisa ficar assim tão feliz na minha frente o tempo todo? - ela indagou a Monteine, sorrindo.
- Você é quem deve estar feliz, sendo mãe dessa preciosidade, milady.
- E sou. Mas é que...
- Alguém está vindo - Daylin avisou, imediatamente alerta.
Todavia, ao reparar no estandarte com o brasão do rei Edward, tornou a embainhar a espada.
- Sir George! - exclamou Danielle, levantando-se ao reconhecer a figura à frente da comitiva.
O velho cavalheiro desmontou, os olhos fixos na criança que a condessa carregava nos braços.
- Ah, que belo menino! E que cabelos! O próprio rei teria inveja dessa massa de fios dourados.
- O pai de Robin o aprovará?
- Lorde MacLachlan está em êxtase com o nascimento do filho e aliviado por sabê-la passando bem. Aliás, você está mais linda e radiante do que nunca, milady.
- Obrigada, sir. Mas diga-me, se Adrien está tão feliz de ter um filho, por que não veio para casa?
Percebendo a aflição da jovem mulher, sir George falou gentilmente:
- O rei ainda requer os serviços de seu grande campeão e não quis dispensá-lo.
- Oh! - Então Adrien mandara sir George e não lhe restaria outra coisa a fazer a não ser enfrentar os dias, as semanas, os meses aguardando, imaginando...
- Contudo, seu marido anda tão inquieto, tão ansioso, que pareceu contagiar o rei. Minha missão é escoltá-la a Londres. Isto é, se você for capaz de suportar a jornada.
- Se eu conseguir aguentar a viagem?
- Sim, milady. Afinal, o bebê é tão novo e você ainda se recupera do parto.
- Sir George, partiremos ao amanhecer, se você e seus homens forem capazes de suportar a jornada.
Raymond, conde de Langlois, chegou a Dover num navio cujo capitão, simpatizante da causa francesa, ajudou-o a entrar da Inglaterra incógnito.
Acompanhado de alguns homens pesadamente armados, Langlois viajara disfarçado de monge franciscano. Convincente em seu disfarce, fora-lhe permitido "dar a confissão" aos prisioneiros da Torre, entre eles o rei Jean. Porém, para sua decepção, o rei não se mostrara nada satisfeito ao vê-lo.
- Raymond, meu caro, isso é uma tolice. Você está arriscando a vida de todos nós. O rei Edward tem centenas de guardas vigiando a Torre e embora ele jamais aprovaria que eu fosse morto a sangue frio, sem dúvida não se importaria se tal coisa acontecesse durante uma tentativa de fuga.
- Mon Dieu! Vim disfarçado de...
- De sacerdote - Jean completou, impaciente. - Espera que eu use sua capa para escapar e o deixe aqui em meu lugar? Realmente está disposto a dar sua vida em troca da minha? Não, não, conde. Você está ansioso para obter riquezas, recompensas, glória. Quanto a mim, prefiro lutar minhas batalhas de frente. Não serei morto feito um cão, caçado pelas ruas inglesas como um fugitivo qualquer.
- Contrabandeei ouro para Simon, para que ele possa subornar os guardas da Torre.
- Então leve Simon consigo e atravesse o Canal.
Era óbvio o desapontamento de Langlois. Ele quisera para si o papel de salvador do rei, de verdadeiro herói do povo.
- Fugas bem sucedidas não são impossíveis.
- De homens comuns, sim. Não de reis. Leve Simon consigo e arrume um navio com uma tripulação confiável, que não o entregue aos ingleses.
- Já tenho tal navio, sir.
- Então volte para casa e dedique-se a levantar a soma necessária para meu resgate, como meu filho vem fazendo. Saiba que o reconhecerei como um dos meus súditos mais valorosos e leais.
Cabisbaixo, Langlois deixou a confortável cela do rei Jean e dirigiu-se à do conde Montjoie, pronto para confortar o prisioneiro.
Simon o recebeu alegremente.
- Você tem cavalos para a fuga?
- Vim com um padre de Dover. Os cavalos são razoáveis. Com o ouro que consegui fazer chegar a você...
- Sim, arranjaremos cavalos melhores. Traga o sacerdote aqui esta noite. Nós dois partiremos como religiosos que cumpriram seu dever para com Deus e seus compatriotas.
A conversa se estendeu durante mais alguns minutos. Langlois precisava apenas ter cuidado para não se deparar com alguém capaz de reconhecê-lo.
- Quem o reconheceria sem que você estivesse usando sua armadura e emblemas? - Simon perguntou, cético.
- Adrien, lorde MacLachlan - Raymond retrucou sem hesitar.
- MacLachlan! Eu daria minha vida para vê-lo morto. - Simon calou-se, uma idéia súbita ganhando forma. - Talvez eu não precise morrer para realizar meu desejo. Lorde MacLachlan partiu para Dover. Lady Danielle se encontrará com o marido lá.
- Que golpe contra o maldito e contra os ingleses, se raptássemos a condessa de Aville!
Embora sir George sempre insistisse que diminuíssem o ritmo, considerando o desgaste provocado pela longa jornada, Danielle não queria parar nem mesmo à noite, ansiosa para alcançar Londres.
Ela se emocionou quando, enfim, entraram na cidade, pois o rei Edward, a rainha Philippa e o rei Jean a estavam aguardando no pátio interno do castelo. Os dois monarcas a cumprimentaram ternamente e a rainha logo tomou a criança no colo, como verdadeira avó amorosa.
- Ele é igualzinho ao pai, não? - disse Philippa, lançando um olhar estranho para o marido. - Mas esses olhos azuis...
- Os olhos de Adrien são castanhos e os meus, verdes. Talvez os de Robin mudem.
- Hum... - murmurou a rainha, pouco convencida.
- Onde está Adrien? - Danielle perguntou, inquieta.
- Em Dover - esclareceu Edward.
- Dover! Oh, não!
- Não se aflige, pois ele está esperando-a. Houve o início de uma rebelião no castelo Cardineau, o qual permiti ao conde Germaine reger em meu nome. O infeliz acha que pode me desafiar. Nada muito sério. Adrien resolverá o problema em questão de dias.
- Deverei voltar para a França com ele?
- Não. Amanhã você irá a Dover para passar a noite com seu marido e lhe mostrar o menino. Então retornará a Londres, onde o esperará na companhia da rainha.
De uma das janelas da grande Torre de Londres, Simon avistou Danielle no pátio, com a rainha. Ao lado dela, estavam Monteine e Daylin. O pequeno grupo ria e conversava muito à vontade. Quando a rainha segurou a criança no colo, Simon foi dominado por uma fúria cega. Tinha vontade de agarrar o menino e jogá-lo contra a parede. Destruir o pequeno rato, antes que ele ficasse maior.
As notícias viajavam depressa e não tardaram a chegar aos ouvidos dos prisioneiros da Torre. Na manhã seguinte, a condessa Danielle se reuniria ao marido, no Canal.
Observando Danielle sorrir, Simon sentiu o sangue ferver de ódio. Vê-la tão feliz, com o filho de MacLachlan, o deixava quase fora de si. Teria ela o esquecido por completo? Será que Danielle ao menos tentaria lhe falar, antes de partir? Esperava que sim, pois essa era uma peça importante de seu quebra-cabeça.
Danielle realmente visitou Simon em sua cela na Torre. Durante exatos cinco minutos. E afastou-se, quando o nobre quis segurar suas mãos.
- Não me leve a mal por tentar tocá-la. Não se lembra de como eu a amava?
- Oh, conde, creio que você logo sairá daqui. Aliás, ouvi falar de seu sucesso com as donzelas da corte inglesa.
- Faço qualquer coisa para me esquecer daquela que eu tanto desejava e perdi.
- Preciso ir embora. Vim apenas me certificar de que o estão tratando bem. Estive com o rei Jean meia hora atrás e ele me pareceu feliz, jogando xadrez com o rei David da Escócia, ambos planejando alegremente a queda do rei Edward. Eu também soube que o rei Edward costuma participar desses jogos e se diverte bastante com as manobras para derrubá-lo.
- Edward se julga todo-poderoso. Assim como seu marido, milady. Porém todos temos nosso calcanhar-de-Aquiles.
- Suponho que sim. - Danielle despediu-se com um aceno e saiu da cela, o guarda trancando a porta imediatamente.
- Sem dúvida, condessa - Simon falou baixinho. - Todos nós temos nosso calcanhar-de-Aquiles.
Conde Langlois, disfarçado de sacerdote, procurou Terese.
- Você prometeu ajudar Simon de Valois, já havendo inclusive recebido um anel de ouro como pagamento. Agora cumpra sua parte no trato. Escute-me com atenção, moça. Quero que leve dois bons cavalos até o porto ao anoitecer. E aguarde nossa chegada.
A jovem pôs-se a tremer, muito pálida.
- Cavalos? Tenho que roubá-los do estábulo?
- Sim. Cavalos bons, resistentes.
- Eu pretendia ajudar, mas não posso. Não posso fazer isso. E se me apanharem? Acabarei enforcada ou...
Langlois segurou-a no pescoço com ambas as mãos e apertou devagar.
- Você fará o que eu mandar, ou ninguém precisará enforcá-la. Eu mesmo me encarregarei de abrir sua garganta de uma orelha à outra. Está me entendendo, mulher?
Apavorada, Terese apenas assentiu.
- Ótimo. Agora mexa-se.
Nervoso, Adrien andava de um lado para o outro nas docas, enquanto os navios destinados a levá-lo, e a seus homens, para a França eram carregados. Apesar do intenso movimento a seu redor, pouco percebia o que se passava. Sua esposa, finalmente, estava para chegar e ele teria de partir para a França. Maldição! Sobrar-lhes-iam poucas horas para ficarem juntos.
Sua vida fora muito mais simples quando somente a ambição o movia, não o amor. No passado, sempre acatara as ordens de Edward sem questionar. Agora desejava estar com sua família acima de tudo e colher os frutos de anos de trabalho e dedicação ao rei.
- Milorde!
Escutando-a chamá-lo, Adrien virou-se. Vestida de azul, os longos cabelos negros ao vento, um sorriso radiante nos lábios, Danielle estava mais bela do que nunca.
- Milady - ele murmurou, correndo para abraçá-la.
- Temos apenas uma noite juntos - ela se queixou baixinho.
- Sim, porém regressarei logo.
- Foi o que me garantiu o rei.
- Você está bem? - MacLachlan indagou, fitando-a fixamente.
- Sim.
- E o bebê?
- No colo de Monteine. Veja.
Em segundos, Adrien tinha o filho nos braços e a expressão de seu rosto revelava tanto encantamento, tanta felicidade, que Danielle sentiu lágrimas virem-lhe aos olhos.
- Venha, querida. Tenho um quarto à nossa espera.
Deixando Monteine e Daylin para trás, Danielle e Adrien, ainda com o pequeno Robin no colo, caminharam apressados rumo à hospedaria.
- Sem refinamento, com correntes de ar, a cama é desconfortável e a fumaça escapa da chaminé. Mas era o único lugar perto das docas e... lembrei-me de um berço para o bebê.
- Ótimo, porque Robin está dormindo.
- É verdade. - Ternamente, MacLachlan depositou o filho no berço e cobriu-o. - Ele é lindo, perfeito. Sinto-me grato, milady, e orgulhoso. Mas graças a Deus o pequeno está dormindo agora!.
Então Adrien puxou-a para si e beijou-a nos olhos, no pescoço, na boca, até quase sufocá-la Louca de paixão, Danielle retribuiu as carícias com igual ímpeto, deliciando-se com o gosto do marido, o cheiro, o calor exalado dos músculos rígidos.
- Por Deus, acho que rasguei seu vestido - Adrien murmurou, trêmulo como um adolescente apaixonado.
- Não importa. Se eu tivesse força, rasgaria suas roupas também.
Com os lábios colados, os dois se jogaram na cama.
- Não quero machucá-la. Não faz muito tempo desde o parto.
- Tempo suficiente, querido. Quero você;
- Talvez seja melhor eu não...
- Não, não, milorde... Não sei nem como lhe dizer o quanto senti sua falta, o quanto preciso de você... - Danielle deslizou os dedos até tocá-lo intimamente.
Subjulgado, vencido, Adrien a penetrou devagar, esforçando-se para não causar nenhum desconforto. A primeira vez foi rápida, desesperada. A segunda, mais lenta. A terceira, saboreada. Então Robin acordou, faminto. Fascinado, MacLachlan observou a esposa amamentá-lo. Segundos depois de terminar de mamar, o bebê, adormecido, foi devolvido ao berço e o casal, novamente na cama, entregou-se à fome impossível de ser saciada.
- Adrien....
De repente houve um estrondo. MacLachlan levantou-se no momento exato em que a porta do quarto era arrombada. Seu instinto de guerreiro o fez plantar-se à frente da esposa e do filho, protegendo-os com o próprio corpo. Somente inimigos mortais invadiriam seus aposentos assim. Onde estava sua espada? Na pressa de amar a esposa, descartara-a sem prestar atenção.
Enfurecido, encarou os inimigos: Simon de Valois e conde Langlois, acompanhados de dois espadachins.
- Senhores, tive o prazer de passar algum tempo na companhia do rei Jean e não creio que ele tenha lhes ensinado esses modos grosseiros.
- Simon - disse Langlois, irônico -, teremos que ser mais cordiais quando cortarmos o escocês ao meio.
Localizando sua espada num canto, parcialmente escondida pela capa, MacLachlan conseguiu agarrá-la. Muito calmo parou diante de Simon, perguntando-se por que não o matara anos atrás, quando tivera chance.
- Talvez eu vá morrer - falou - porém nos veremos no inferno.
Sorrindo, Simon deu-se as costas e puxou Monteine do corredor, uma faca afiada pressionada contra a garganta da pobre serva.
- Solte-a! - gritou Danielle, cobrindo-se com um lençol e levantando-se, pronta para atacar o conde.
- Venha, Danielle, venha para mim! - Simon a chamou. - Venha agora, não faça nenhuma bobagem, e soltarei Monteine. Não se preocupe com MacLachlan. Ele já não importa mais. O maldito logo saberá que você subornou o guarda para que eu pudesse escapar da Torre.
- O quê? - O assombro de Danielle não poderia ser maior.
Num impulso, Adrien segurou a esposa pelo pulso e voltou-a para si. Tinha que olhar em seus olhos. Entretanto, sentindo um movimento atrás de si, virou-se, rápido como o vento, e abriu o peito do espadachim com um só golpe. Quando preparava-se para enfrentar o outro adversário, Danielle gritou, tentando avisá-lo sobre uma nova ameaça.
Tarde demais.
Langlois, com força e determinação, aproveitando-se de que Adrien estava engajado num combate, atingiu-o na têmpora com o punho da espada. Apesar da dor excruciante, MacLachlan ainda resistiu durante alguns segundos, ainda se esforçou para vencer a escuridão que ameaçava engolfá-lo.
De repente, as coisas perderam o foco.
Adrien tropeçou e... caiu.
- Venha comigo, milady. Vamos embora agora! - Simon ordenou.
Desesperada, Danielle olhou Monteine, ainda com a faca na garganta, e Adrien caído no chão. Ansiava correr para o corpo inerte do marido. Aterrorizava-a pensar que ele estivesse morto.
- Ir com você? - ela o questionou altiva, engolindo as lágrimas. Se começasse a chorar, não pararia mais. - Solte-a, seu canalha! O que você está tentando fazer? Arrastar ingleses e franceses para um confronto sangrento outra vez? Arrasar as terras? Matar o povo de fome? Seu...
- Cale-se! - urrou Simon, enfurecido.
- Não irei com você. Solte Monteine e deixe-me em paz. Oh, Deus, meu bebê...
- Devemos trazer o bebê conosco e jogá-lo no Canal - aconselhou Langlois.
- Não! Arrancarei seus olhos se tocar no meu filho!
Todavia Danielle sabia estar lidando com homens cruéis e implacáveis. Seria impossível vencer Simon e Langlois sozinha, quando Adrien poderia estar... Não, não queria nem pensar naquela possibilidade.
- Solte Monteine. Deixe-a levar meu bebê embora daqui e irei com você - concordou afinal, ciente de não lhe restar outra alternativa para salvar a vida do filho.
- A criança é fruto da semente de um escocês e deveria morrer no Canal. Você é jovem. Poderá ter quantos bebês quiser - disse Simon.
- Se ferir meu filho, ou Monteine, gritarei tanto que o obrigarei a me matar. Deixe Monteine levar meu filho e o acompanharei.
- Seria melhor se ela saísse daqui sem resistir - interveio Langlois. - Atrairia menos atenção.
Simon empurrou Monteine para longe. A aia correu para o berço, os olhos arregalados de pavor fixos em Danielle.
- Tudo dará certo - Danielle procurou tranquilizá-la. Então virou-se para os franceses, a voz fria, cheia de desprezo. - Adrien poupou sua vida quando deveria tê-lo matado, Simon. Quanto a você, conde Langlois, meu marido deveria ter cortado sua cabeça. Não lhe faltou oportunidade.
- Depressa, enrole MacLachlan num tapete - Simon ordenou a um dos homens. - Vamos atirá-lo no Canal.
- Não! - Danielle tentou se aproximar do corpo do marido, mas Simon a agarrou, impedindo-a de mover-se. - O canalha se foi, milady. A partir de agora, terá que aprender a me agradar.
Ela o esbofeteou com tal força que seus cinco dedos ficaram estampados no rosto do nobre. Enraivecido, ele retribuiu o golpe.
Danielle perdeu a consciência.
Capítulo XV
A água fria o reavivou. A água e a sensação de que os pulmões iam estourar.
Quão fundo caíra? Recobrara os sentidos no vácuo negro em que estava prestes a se afogar.
O instinto o levou a bater os pés e começar a subida, em busca de ar.
No meio da noite, a silhueta longínqua de um navio que se afastava. Fora jogado nas águas turbulentas do Canal.
Vencendo a desorientação inicial, Adrien procurou localizar a costa. Então pôs-se a nadar, sem ter idéia da distância que o separava da terra firme.
Quando a energia começava a lhe faltar, avistou fogueiras ao longe. Eles as haviam acendido para iluminar a praia. Com redobrado vigor, imprimiu um ritmo cadenciado às braçadas, o avanço contínuo e constante durando vários minutos. Porém, aos poucos, seus braços foram se tornando pesados, vagarosos...
Sentindo-se fraquejar, fechou os olhos e rezou. Precisava viver. Para matar Simon. Para trazer Danielle para casa. Para dizer à esposa que confiava nela. Que a amava. Simon quisera fazê-lo morrer acreditando que Danielle o traíra. Pois recusara-se a morrer e recusara-se a acreditar que a mulher o tinha atraiçoado. Onde estaria seu filho?
Impulsionado pelo desespero, nadou para a praia, embora a correnteza insistisse em arrastá-lo na direção oposta.
- Adrien!
Estaria imaginando coisas? Ou teria uma sereia vindo chamá-lo das profundezas do inferno?
- MacLachlan! Maldição, homem, você não pode estar morto!
Conhecia aquela voz. Ouvira-a ecoar nos campos de batalha vezes sem conta. Edward, o Príncipe Negro, não era nenhuma sereia. Mas estava num pequeno barco que se aproximava.
- Remem! - gritava Edward. - Remem!
Minutos depois, o içavam para dentro da embarcação, nu e trêmulo de frio. Um cobertor foi-lhe imediatamente passado ao redor dos ombros e deram-lhe cerveja morna para beber.
- Beba, meu amigo, aqueça-se. Pelos céus, há quanto tempo está nessa água gélida?
- Não faço idéia, Edward. Por Deus, conte-me tudo o que sabe.
- A aia de sua esposa saiu da hospedaria aos gritos, desesperada porque Danielle fora raptada e você estava sendo lançado ao mar. Enquanto isso, aquela garota francesa, daquela aldeã que você salvou das garras de Armagnac, procurou minha mãe implorando misericórdia e contando uma história estranha sobre o conde de Langlois estar ameaçando matá-la se ela não providenciasse cavalos para a fuga de Simon de Valois. Não se preocupe, nada acontecerá à moça, que se casará em breve com seu jovem escudeiro. Quanto a mim, cheguei aqui o mais rápido possível e já encontrei seus homens acendendo fogueiras e vasculhando a praia à sua procura. Se eu não o tivesse encontrado logo, teria partido sem você. Aparentemente, o conde Langlois veio à Inglaterra para promover a fuga de Simon de Valois. Agora os dois estão retornando à França para se unir ao conde Germaine, o rebelde de Cardineau. Lá, nos confrontaremos numa batalha.
- Sinto-me orgulhoso de servi-lo, Edward - disse Adrien, sorrindo. - Você salvou minha vida e está pronto para lutar por minha esposa.
- Bem, amigo, você já salvou minha pele inúmeras vezes. Quanto a sua esposa...
- Sim?
Edward abaixou o tom de voz para que nenhum dos remadores o ouvisse.
- Meu pai exige que o conde Germaine seja retirado do castelo. A mim, cabe-me buscar Danielle, minha irmã.
- Sim, a protegida do rei.
- Você ainda não entendeu? - indagou o Príncipe Negro, com um brilho divertido no olhar. - Danielle não é simplesmente a protegida do rei. É mesmo minha irmã. - Erguendo a voz, ordenou: - Remem, homens! Precisamos chegar ao navio e zarpar para a França. Depressa!
Adrien ainda conseguiu falar com Monteine antes de içarem velas.
- Oh, milorde, juro-lhe, Danielle não teve responsabilidade nenhuma sobre o que aconteceu. O canalha bateu na pobrezinha e deixou-a inconsciente. Ele a levou...
- Está tudo bem, Monteine. Nós a encontraremos. Meu filho...
- O bebê foi entregue à melhor pessoa do mundo. - Edward o tranquilizou. - Minha mãe.
O mar agitado jogava o navio de um lado para o outro incessantemente. Numa pequena cabine, Danielle, consumida pelo desespero, já não se importava com mais nada. Adrien estava morto. Eles o tinham espancado e atirado ao mar revolto, no meio da noite. Oh, Deus, queria morrer também!
Simon entrou sem bater, ricamente vestido. Como, um dia, fora capaz de achá-lo charmoso? Tudo naquele homem lhe causava repulsa.
- Talvez seja difícil no princípio. Mas somos franceses. Você o esquecerá.
- Esquecer que você o assassinou?
- Langlois desferiu o golpe.
- E você mandou que o jogassem ao mar.
- MacLachlan era uma ameaça para a França. Ouça... - Simon sentou-se no catre, ao lado de Danielle, e estendeu a mão.
- Toque-me e vomitarei.
- Ora, vamos, você se acostumará com minha presença outra vez. Lembra-se de quão próximos éramos? Como ríamos juntos?
- Toque-me e vomitarei.
Ele a tocou e ela manteve a promessa. Praguejando furiosamente, Simon saiu e bateu a porta da cabina com força.
Ainda embrulhada no lençol da hospedaria, Danielle chegou à França, a visão da fortaleza Cardineau, com suas muralhas intransponíveis, roubando-lhe o resto de esperança. Não sabia se alguém tentaria salvá-la, se alguém se importaria com seu destino. Se, por milagre, Adrien houvesse sobrevivido e quisesse libertá-la, seria necessário sitiar o castelo.
Levada para a torre mais alta, Danielle notou que o lugar fora preparado para recebê-la. Um banho quente a aguardava, assim como um baú cheio de roupas, perfumes e uma bandeja com comida. Todavia, embora a cama enorme dominasse o ambiente, preferiu sentar-se no chão, recusando-se a olhar para Simon.
- Ou você se arruma, ou eu mesmo tomarei a iniciativa - Simon a ameaçou, dando um passo à frente.
- Afaste-se de mim e me vestirei.
- Então faça-o.
Apertando o lençol contra o corpo, Danielle levantou-se e caminhou até a banheira. De costas para o nobre, falou:
- Sinto muito se o levei a pensar que o amava anos atrás. Estou casada com Adrien MacLachlan e o amo. Se você acha que pode me forçar a...
- MacLachlan está morto.
- Não acreditarei nisto até ver o corpo.
- O maldito virou comida de peixe no Canal.
- Então nunca me considerarei viúva.
- Talvez a carcaça dele apareça numa praia qualquer da Inglaterra - Simon devolveu, áspero. - Nada mais importa agora. Sua vida com os ingleses está encerrada.
- Está acontecendo uma guerra, porém, apesar do conflito, algumas pessoas conservam a decência, a honradez. Não é o seu caso. Eu o odeio. Estou vendo-o como realmente é. Um crápula, membro do bando do conde Armagnac, que destruiu aldeias, estuprou mulheres e assassinou franceses, tentando colocar a culpa no rei Edward. Jamais partilharia minha vida com você. Jamais ficaria ao lado de um homem capaz de retribuir a misericórdia com crueldade.
- Entre na banheira, Danielle, e tire o fedor do escocês da sua pele.
Notando Simon avançar, ela testou a temperatura da água. Teria força suficiente para matá-lo? Claro que acabaria assassinada se conseguisse seu intento. Entretanto, a idéia de morrer já não a assustava. Preferia morrer a ser tocada pelo carniceiro que destruíra seu marido e seu filho.
Como a água estivesse fria, Danielle retirou a chaleira do fogo.
- Você enlouqueceu. Será que não entende? Você assassinou o homem que eu amava!
- O amor é volúvel, inconstante, minha querida.
Vendo-o estender a mão, com a óbvia intenção de arrancar o lençol que a cobria, Danielle agiu por instinto. Num impulso, atirou a água fervente da chaleira sobre o agressor, atingindo-o na virilha.
Contorcendo-se, Simon urrou de dor, pedindo socorro. Guardas entraram correndo.
Logo o nobre, ainda aos gritos, era levado para o médico e a porta trancada pelo lado de fora.
Durante vários minutos, Danielle permaneceu imóvel, as costas coladas à parede, o peito sacudido por soluços dilacerantes. Então, subitamente, parou de chorar. Recusava-se a acreditar que Adrien estivesse morto. Manteria a calma e o aguardaria vir buscá-la. Agarrando-se a este pensamento, banhou-se, vestiu-se e pôs-se a rezar.
Na manhã seguinte, Simon, andando com evidente dificuldade, entrou no quarto.
Apesar do medo, Danielle o encarou com altivez.
- Os ingleses, milady, sempre se sobressaíram na arte da tortura, porém, nós, franceses, não ficamos atrás. Imaginei muitas maneiras de causar-lhe a mesma dor que você me causou.
- Foi você o responsável pelo que ocorreu. Avisei-o para não me tocar.
- Saiba que existem muitas masmorras em Cardineau, senhora. Durante dois séculos, inimigos têm sido torturados nas entranhas deste castelo sem que seus gritos sejam ouvidos aqui em cima. Os horrores que a aguardam nas celas e túneis escuros são incontáveis. Todavia, apesar de haver considerado seriamente a idéia de chicoteá-la até deixá-la em carne viva, resolvi adiar sua punição. Afinal, seu marido está morto e você se unirá a mim em sagrado matrimônio. Não quero uma noiva cheia de cicatrizes, deformada. No momento certo, você pagará a afronta que me fez. Vou submetê-la a todas as degradações possíveis, vou obrigá-la a satisfazer todas as minhas necessidades.
Danielle virou-se para a janela estreita, temendo perder o controle. Não se tratavam de ameaças vazias. Simon seria mesmo capaz das mais aviltantes perversões.
De repente o conde de Langlois e um homem alto e grisalho, que nunca vira antes, irromperam no quarto.
- Condessa! - cumprimentou-a o estranho, examinando-a de alto a baixo. - Então você é a mulher que induz os homens a perder a razão, o prêmio disputado por muitos guerreiros. Bem, milady, eu, conde Germaine, senhor deste castelo, não lhe dou as boas-vindas. - Virando-se para Simon, o conde continuou, furioso: - Você me garantiu que MacLachlan estava morto.
- E está. Eu mesmo o joguei no mar.
- Pois os ingleses chegaram e...
- O príncipe Edward lidera as tropas - disse Langlois.
- Olhem pela janela e verão, além dos portões, um cavaleiro montando num garanhão gigantesco. É MacLachlan, não tenho dúvida.
Com o coração aos pulos, Danielle correu para a janela estreita. Montado em Mateus, estava um homem usando a armadura de Adrien.
Simon a afastou da janela com um arranco, jogando-a contra a parede.
- É apenas um truque. Um impostor vestindo a armadura de MacLachlan e montando seu cavalo.
- Não, aquele homem é mesmo MacLachlan - insistiu Germaine. - Acompanhei-o em batalhas e sei como ele controla um cavalo. Conheço seus movimentos. Vocês dois trouxeram a ruína ao meu castelo.
- Não, conde, foi você quem trouxe a ruína para si mesmo ao decidir trair seu rei inglês e se apoderar do castelo dele. MacLachlan ia liderar uma tropa contra Cardineau antes de nossa chegada. Agradeça-nos por termos trazido nossos homens e nossas armas para ajudá-lo na defesa.
Enquanto os três nobres discutiam ferozmente, Danielle sentiu as esperanças renascerem. Adrien não morrera e viera buscá-la.
- Há um mensageiro parado diante dos portões - avisou Langlois.
- Você consegue escutar o que ele está gritando?
- Sim, posso escutar muito bem - adiantou-se Germaine. - O porta-voz diz que o rei Edward me permitirá morrer como um nobre, por decapitação, se eu entregar a condessa ilesa! Maldição, temos que devolver a mulher!
Sem uma palavra, Simon aproximou-se de Germaine e lhe cravou um punhal no coração. O conde já estava morto antes de cair no chão.
- E quanto aos soldados de Germaine? - perguntou Langlois, já perto da porta.
- Todos franceses. Lutarão por nós. Responderemos ao mensageiro com uma chuva de flechas.
- O que faremos com o cadáver?
- Ficará com Danielle. Deixe-a ver como é a morte. Feliz demais com a descoberta de que o marido estava vivo,
Danielle esqueceu-se da prudência.
- Desta vez Adrien o matará, Simon. Renda-se e ele lhe mostrará misericórdia, algo que você desconhece.
- Eu sobreviverei e você será minha. Vou me deliciar com cada grito agonizante que arrancar de seus lábios.
- Não. Eu sobreviverei. Adrien sobreviverá.
Encolerizado, Simon ergueu o punho, ameaçador.
- O castelo tem que ser defendido! Gritou Langlois, puxando-o pelo braço. - Você cuida dessa megera depois.
O mensageiro retornou com a resposta às exigências do rei Edward. O inglês, conde Germaine, estava morto e Cardineau fora tomado em nome do rei Jean, da França. Quanto à condessa de Aville, ela planejava regressar ao verdadeiro lar.
Adrien sabia que duvidara da esposa por vários e terríveis segundos, quando fora atacado na hospedaria. Entretanto, não duvidava de Danielle agora. Não importavam as mentiras que Langlois e Simon contassem. Nada o faria deixar de amá-la. Acharia um jeito de matar Simon, ou morreria tentando.
- Não se angustie, meu amigo. Iniciaremos o ataque já.
- Flechas não podem penetrar pedras. Não consigo ver nenhuma brecha, ou fissuras, nas muralhas.
- Há servos, leais a meu pai, que escaparam do castelo. Ouviremos o que têm a nos dizer e traçaremos nossos planos.
- Sim. Encontraremos algum ponto fraco.
- Arqueiros! - gritou Edward.
Assim foi durante todo o dia. Atacar. Recuar. Atacar.recuar.
E embora, ao cair da tarde, houvessem perdido pouquíssimos homens, os ingleses ainda não tinham sido capazes de romper as defesas de Cardineau.
Tenso, com os músculos todos do corpo rígidos, Adrien tinha os olhos fixos nas altas muralhas. Anoitecera. Onde estaria Danielle? Seu amor pela mulher transcendia qualquer coisa que Simon pudesse fazer, porém seu medo e sua fúria aos poucos iam se tornando incontroláveis. Precisava tirá-la de lá, pô-la a salvo das patas do canalha.
- Lorde MacLachlan!
- Alguma notícia, sir George?
- Ainda não encontramos uma fenda, mas sua esposa está bem, sir.
- Graças a Deus! - exclamou Adrien, aliviado. - Como você sabe?
- Um dos ajudantes de cozinha conseguiu escapar e trouxe-nos a novidade. A propósito, milady continua... casta.
- Como é possível? A primeira atitude de Simon seria violentar minha esposa.
- Sim. Parece que ele tentou mesmo violentá-la, porém um banho de água fervente o fez adiar a investida.
- E Langlois? O maldito estava ansioso para anular meu casamento e se apossar de Danielle.
- Simon é um Valois, portanto tem primazia.
Apesar do medo e da desolação, Adrien sorriu.
- Então minha esposa escaldou o membro de Simon?
- Sim, milorde. Foi exatamente o que aconteceu.
- E o covarde não retaliou, machucando-a de alguma forma?
- Ele pretende se vingar no momento apropriado.
- Precisamos transpor aquelas paredes - MacLachlan falou, determinado.
Danielle foi obrigada a passar a noite com o corpo do conde Germaine. Durante a madrugada, gritos repentinos romperam o silêncio sepulcral de seu quarto. A certeza de que os ingleses inundavam o pátio interno do castelo com flechas e pedras, atiradas pro catapultas, a encheu de tanta alegria que não percebeu a presença de Simon, exceto quando o nobre já estava a seu lado.
- Venha, milady, vamos até ao parapeito para que o príncipe Edward e seus asseclas a vejam. Então, se você tiver um pingo de bom senso, dirá aos bastardos que está aqui de livre de espontânea vontade e que pretende se casar comigo.
- Nunca direi tal coisa.
- Ambos sabemos como gosto de manejar uma faca. Você dirá o que eu quero, ou morrerá.
Simon a arrastou pelos cabelos até o alto da muralha, o ataque inglês cessando imediatamente.
- Olhem, cavaleiros! Lady Danielle de Aville! Ela está comigo por escolha própria. Afirmo que o homem usando o brasão de MacLachlan é um impostor. Se o marido de lady Danielle ainda está vivo, aproxime-se para ouvi-la confessar ter me acompanhado a Cardineau de livre e espontânea vontade porque somos amantes e vamos nos casar. - Abaixando o tom de voz, ordenou aos seus arqueiros: - Preparem-se!
Angustiada, Danielle observou Adrien avançar.
- Fale com ele! Faça-o chegar mais perto e diga-lhe que o traiu. Diga-lhe que quer ficar comigo e que se ele partir, o pouparei.
- Adrien! Não se aproxime! - ela o avisou, desesperada.
- Vadia! - gritou Simon, pressionando-a nas costas com a ponta da faca até quase arrancar sangue.
Danielle não queria morrer. Queria viver porque Adrien estava vivo. E talvez existisse uma maneira de...
- Adrien! Abandone Cardineau! Como pôde se esquecer do que houve anos atrás? Você acha que eu poderia esquecer?
Nos olhos do marido Danielle reconheceu a certeza de que ele não a julgava capaz de traí-lo.
- Adrien MacLachlan! Não se lembra? Foi você o responsável pela queda de Aville! O único responsável. Lembra-se de como transpôs as muralhas?
- Agora! - gritou Simon, puxando Danielle para trás enquanto os arqueiros disparavam uma saraivada de flechas incandescentes.
Todavia Mateus, rápido como o vento, logo se punha fora do alcance do inimigo.
Praguejando, Simon a levou de volta para o quarto no alto da torre.
- Eu falei o que você queria! - proclamou Danielle, erguendo a cabeça e enfrentando-o sem medo.
O francês a esbofeteou violentamente.
- Reze para que MacLachlan vá embora. Sua hora está chegando, milady.
- Túneis - afirmou Adrien, convicto.
- O quê? - Andando de um lado para o outro da tenda, Edward não escondia a crescente inquietude.
- Nós cavamos um túnel para entrar em Aville. Danielle estava tentando me dizer que existe algum tipo de passagem subterrânea, e que para transpor as muralhas de Cardineau teremos de utilizá-la.
- Chamem o ajudante de cozinha! - ordenou o príncipe.
O menino sabia sobre as masmorras e sobre a rede de túneis sob o castelo.
- Muitos infelizes morreram torturados ali, meu príncipe. Ouvi falar de corpos de nobres que das masmorras foram lançados diretamente ao mar, para que desaparecessem.
- Encontrarei a entrada dos túneis pelo mar. Levarei vinte homens comigo. Depois de entrarmos no castelo, baixaremos a ponte levadiça.
- Talvez você não devesse... Está ansioso demais, envolvido demais, meu amigo.
- Continue fazendo parecer que nosso ataque é meramente frontal. Eu cuidarei do resto.
- Tome o castelo em nome de meu pai. E traga sua esposa de volta, em segurança.
Daylin, Michael e vários outros homens se uniram a Adrien na empreitada. O grupo se dividiu para explorar os penhascos e cavernas que tivessem alguma saída para o mar.
- Aqui, Adrien, aqui! - gritou Daylin, ao descobrir uma entrada.
MacLachlan estudou a fenda na rocha.
- Quando a maré sobe, essa cavidade deve ficar inundada. Teremos que nos mover o mais depressa possível.
Enquanto caminhavam por uma espécie de túnel de pedra, escuro como breu, a maré começou a subir.
A água lhes chegou à cintura... ao peito...
Nenhum homem mostrou-se temeroso de morrer afogado.
Então, de repente, dobraram uma curva acentuada e o grupo alcançou um patamar mais alto que o anterior. Na caverna úmida, havia uma dúzia de cadáveres, presos às paredes, em diferentes estágios de decomposição.
Adrien foi o primeiro a localizar um túnel com diversas ramificações.
- Espalhem-se - ordenou. - Vasculhem a área.
Algum tempo se passou antes que os homens voltassem a se reunir no ponto de partida para reportar o que haviam encontrado.
- Creio ter achado a saída certa - revelou Michael, entusiasmado.
- Como pode ter certeza?
O jovem de Aville sorriu.
- Senti cheiro de comida. Se localizarmos a cozinha...
- Sim, meu rapaz. Guie-nos.
Da janela estreita, Danielle acompanhava a batalha, o coração apertado. O príncipe Edward era tenaz, persistente como o pai. Mas Cardineau parecia merecer a reputação de fortaleza inexpugnável. E se o cerco durasse dias, semanas?
De súbito, Simon entrou no quarto, pálido e agitado.
Do pátio interno do castelo, ouviam-se gritaria e sons de combate.
Os portões haviam sido abertos, a ponte abaixada. Oh, Deus, Adrien compreendera sua mensagem!
- Devia descer e liderar seus homens na batalha, sir.
- Você não vai voltar para MacLachlan.
- Talvez você devesse sumir daqui. Fuja, depressa! Vá para bem longe de Cardineau.
- As coisas poderiam ter sido tão diferentes! Se você tivesse se casado comigo antes que o maldito voltasse...
Muito calmo, Simon avançou, fitando-a como se pretendesse fulminá-la com o olhar.
- Não! - ela gritou, percebendo que o francês desembainhara o punhal.
Na sua aflição, na sua pressa de escapar, deu um passo atrás, tropeçou nos restos mortais do conde Germaine e caiu de costas na cama.
- Minha querida... - murmurou Simon, passando as pernas ao redor da cintura de sua presa para imobilizá-la.
Devagar, ergueu o punhal, pronto para cravá-lo no coração da condessa.
Todavia, o gesto nunca foi completado. No instante seguinte, mãos fortes o agarravam pelo colarinho e o arremessavam para o lado oposto do quarto.
Adrien. As roupas molhadas e rasgadas, o rosto sujo. Mas os olhos em fogo. Ele estendeu a mão para ajudá-la a se levantar.
- Adrien - Danielle falou baixinho, começando a gritar em seguida, ao ver Simon pular para cima do marido, a faca erguida...
Num movimento fluido, MacLachlan virou-se e enterrou a espada no peito do adversário. Simon não teve tempo de emitir um único som antes de desabar. Morto.
- Venha, meu amor, deixe-me levá-la para longe deste lugar. - Adrien tomou a esposa nos braços e secou-lhe as lágrimas com beijos. - Deixe-me levá-la para casa... isto é, milady, para...
- Meu lar, lorde MacLachlan, é França, Inglaterra, Escócia... Meu lar é onde você estiver. Em seus braços, sinto-me em casa.
O príncipe Edward, jovem e romântico, além de satisfeito com a rápida conquista do castelo, permitiu que Adrien e Danielle partissem imediatamente para cuidar de seus assuntos pessoais. Adrien sugeriu Aville, porém Danielle estava ansiosa para regressar a Londres.
- Não consigo suportar ficar longe de Robin, ainda que ele esteja aos cuidados da rainha. Quero continuar a amamentar meu filho. Isso é muito importante para mim.
- Entendo. - E MacLachlan de fato a compreendia.
Agradava-o a esposa preferir amamentar Robin em vez de entregá-lo a uma ama de leite, como era o costume entre as mulheres da nobreza. Até um passado recente, Aville fora a coisa mais importante na vida de Danielle, assim como, para ele, fora importante servir o rei da Inglaterra acima de tudo. O mundo ao redor não iria mudar, mas os dois haviam mudado. Suas prioridades tinham mudado.
A travessia do Canal proporcionou-lhes algumas horas de completa solidão na cabine de um dos navios do príncipe. Danielle não cessava de fitar o marido, como se não fosse capaz de acreditar nos próprios olhos.
- O que é, meu amor?
- Sinto-me tão grata a Deus! Ainda não consigo crer que você está vivo. Eu quis morrer quando soube que o haviam atirado ao mar.
- A água fria me fez recobrar os sentidos. E temos bons amigos. Monteine soou o alarme. Logo meus homens acendiam fogueiras na praia e iniciavam a busca. Terese, aquela a quem você me acusou falsamente de haver desejado para amante, procurou a rainha, histérica porque Langlois a obrigara a roubar cavalos no estábulo para facilitar a fuga de Simon.
- Se ela ajudou a salvar sua vida, lhe serei eternamente grata.
- Terese e meu escudeiro, Luke, pretendem se casar. A jovem não tardará a formar a própria família.
- Monteine e Daylin também vão se casar - Danielle o informou, animada. - Agora continue, você não me contou como conseguiu...
- Após ouvir a história de Terese, o príncipe Edward partiu de Londres e, com meus homens, vasculhou a costa em pequenos botes, à minha procura. Fui encontrado enquanto nadava para a praia.
- Os Plantagenet estão muito envolvidos em nossas vidas, não?
Adrien pensou em explicar quão profundo era esse envolvimento, porém achou melhor esperar uma ocasião mais adequada.
- De fato, milady.
- Não entendo o que aconteceu a Simon. Ele não era esse monstro quando o conheci, anos atrás. Talvez, por ser um Valois, se julgasse acima do bem e do mal, merecedor de tudo o que desejasse. Aos poucos, transformou-se numa criatura vil, amoral. Nem todos os franceses são assim, acredite-me. Somos um povo honesto, trabalhador.
- Meu amor, esse impasse entre o rei inglês e o francês não terminará tão cedo, pois Edward pode ser tão obcecado e teimoso quanto Jean. Sua mãe foi uma das mulheres mais belas e inteligentes que conheci, assim como você. Sei que Simon não é um digno representante de seu povo e penso que os franceses possuem qualidades admiráveis.
Emocionada com as palavras do marido, Danielle sorriu.
- Eu estava com medo de que Simon a...
- Ele nunca me tocou. E eu nunca traí você.
- Nunca temi que você houvesse me traído. Só rezava para que sobrevivesse à crueldade a que fosse exposta. Nada teria afetado o sentimento que lhe dedico. Você realmente escaldou o bastardo?
- Sim.
- Depois de enfrentá-la tantas vezes, eu deveria ter imaginado que você saberia se defender. Todavia os riscos foram imensos. Simon poderia retaliar, ferindo-a gravemente num momento em que eu me achava impossibilitado de protegê-la.
- Simon estava convencido de que se casaria comigo. Uma esposa cheia de cicatrizes não lhe serviria.
- Está tudo acabado agora, querida. E não se sinta pesarosa, porque Simon sempre foi aliado de Armagnac. Ele não se importava com o próprio povo. Queria apenas a queda de Edward a qualquer preço.
- Você precisa entender que eu não teria paz se não cumprisse o juramento feito a minha mãe. Creio tê-lo cumprido, ao avisar Jean de que pretendiam matá-lo.
- Edward jamais deu ordens para que matassem o rei Jean a sangue-frio.
- Eu temia que você não viesse ao meu encontro, mesmo se não o tivessem ferido.
- Sempre irei ao seu encontro, meu amor. Meu destino é viver a seu lado.
- E pensar que o odiei durante tantos anos, pelo que aconteceu em Aville. Mas se não fosse pela queda de Aville, minha mãe não teria conhecido Robert, o meu pai.
Era o momento perfeito para revelar a verdade, contudo Adrien não foi capaz. Talvez, quando estivessem em casa, na Escócia. Ou em Gariston, sentados diante da lareira...
Então lhe contaria tudo. Não agora. Agora queria apenas saborear a felicidade de segurá-la em seus braços.
- Este capítulo de nossas vidas está encerrado. Langlois será decapitado, contudo o príncipe Edward oferecerá misericórdia aos que apenas obedeceram as ordens dos nobres. E Simon está morto.
- Não quero mais falar sobre ele. Só quero que você me abrace forte.
Os dois se amaram como nunca antes. Porque desta vez, além da paixão, partilhavam a cumplicidade de saber que o amor que sentiam era correspondido.
Chegando a Londres, procuraram imediatamente a rainha. Sozinha no quarto, Philippa acalentava o bebê para fazê-lo dormir.
- As notícias sobre sua grande vitória já o precederam, lorde MacLachlan. Meu marido e eu somos-lhe gratos.
- Eu não teria conseguido sem minha esposa. Foi Danielle quem me transmitiu as informações sobre os subterrâneos do castelo.
A rainha arqueou as sobrancelhas e pôs-se a falar com Robin, a voz cheia de ternura.
- Então seu pai acha que você herdou os cabelos loiros dele? E aquela pequena mancha em suas nádegas? Ah, claro seus pais nunca tiveram chance de olhar as nádegas do rei, portanto não saberiam que é um sinal hereditário. Por sorte sua mãe não se parece fisicamente em nada com os Plantagenet ou meu orgulho teria levado um golpe terrível.
Adrien fitou a esposa, maldizendo-se por não haver lhe contado a verdade antes. A última coisa que esperara teria sido ouvir a rainha falar do assunto com tamanha tranquilidade.
- Pobrezinha - disse Philippa, entregando o bebê a Danielle, muda devido ao assombro. - Você parece chocada! Eu acreditava que todo mundo houvesse descoberto a verdade sobre seu nascimento há muito tempo. O rei é um bom marido e me ama. Não conheci sua mãe e quando você chegou em minha casa, Lenore já estava morta. Não existia razão para odiá-la. Você cresceu como uma filha para mim. Vamos, Adrien, ajude sua esposa. Ela está boquiaberta, a ponto de desmaiar. Segure o bebê para que Danielle não o deixe cair.
Quando a rainha se retirou, MacLachlan colocou o filho adormecido no berço.
- Você sabia! - Danielle o acusou.
- O príncipe Edward me contou recentemente, quando atravessávamos o Canal. Ele a ama de verdade e estava disposto a arrasar o castelo para libertá-la, mesmo se eu já estivesse morto. Ouça, querida, sei o quanto você deve estar magoada. Sei como lutou contra Edward durante todos esses anos, como o odiou por obrigá-la a vir para Inglaterra, por forçá-la a me aceitar por marido. Você amava a lembrança do homem que julgou ser seu pai, e foi leal ao rei que acreditava ser seu. Por favor, não fique tão enfurecida por Edward ser seu pai. Ele é um grande rei, um homem sábio, corajoso e capaz de misericórdia.
- Não odeio Edward.
- Então o que a está afligindo?
Danielle começou a rir sem parar.
- Estou bem, não se preocupe. É só que... a promessa que fiz à minha mãe, de ser leal ao rei! Ela devia estar se referindo a Edward! Ela estava tentando me dizer que, após sua morte, eu deveria ser leal ao rei, ao meu pai! Ah, como lamento o que aconteceu... Passei anos acreditando nas coisas erradas, causei tantos problemas entre nós dois! E Edward é meu pai. Corta-me o coração lembrar-me que agi em favor do rei Jean.
- Valeu a pena enfrentar tudo para tê-la ao meu lado. Além do mais, essa rixa entre os reis ingleses e franceses existe há tanto tempo que é difícil saber quem está com a razão.
- Não é verdade - Danielle o contradisse, sorrindo. - Você sempre lutará por Edward. Sempre.
- Eu sempre lutarei por você.
Ela tornou a sorrir, por entre as lágrimas.
- Eu gostaria que você soubesse que agora, mais do que nunca, sinto-me grata ao destino pela queda de Aville. Porque se a história tivesse sido diferente, eu jamais o teria conhecido e Robin não existiria.
Os dois se debruçaram sobre o berço, onde a criança continuava a dormir.
- Oh, Adrien, ainda penso em como sofri já amando você e me sentindo na obrigação de ser leal ao rei Jean - Danielle continuou, abraçada ao marido. - Eu nunca quis traí-lo, ou a Edward. Apenas achava ser meu dever honrar minha herança... Ah. querido, magoei-o tanto no passado! Perdoe-me...
- Eu também a magoei. Amo você com todo meu coração. E essa sua capacidade de ser leal a uma promessa, de manter-se fiel às suas crenças, foi uma das razões que me fizeram amá-la ainda mais.
- Eu o admirava e respeitava mesmo quando tentava odiá-lo. Tinha ciúme de você. Queria-o para mim, de corpo e alma, mas não sabia como conquistá-lo.
- Oh, meu amor, você me tem agora e por toda a eternidade!
Um longo beijo e selou a promessa.
- Não falaremos mais de reis - Adrien decretou. - Nem de rainhas, cavaleiros, ou disputas entre países... Chega!
- O passado pertenceu a eles.
- O futuro será nosso. Os reis tiveram suas vontades satisfeitas. Agora satisfaremos as nossas.
Os dois se jogaram na cama, as bocas coladas. E o futuro começou naquela noite.
Shannon Drake
O melhor da literatura para todos os gostos e idades