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HERANÇA DE SANGUE / Ivan Sant’Anna
HERANÇA DE SANGUE / Ivan Sant’Anna

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O povo da cidade de Catalão sempre se caracterizou por marcante identidade própria. Vivendo próximos à divisa com Minas Gerais, e longe da capital da província (depois estado) de Goiás, na verdade os catalanos não se sentiam nem goianos nem mineiros. Essa ausência de cordão umbilical era sua marca registrada. Bastava ser de Catalão, e pronto. Gente diferente, como logo percebiam os forasteiros que visitavam o lugar.
As decisões administrativas do governo mineiro ficavam de fora da jurisdição do município e as do governo goiano eram frequentemente ignoradas. O que valia mesmo era a “Lei do Catalão”, um severo código de honra segundo o qual uma pendência só podia ser resolvida com derramamento de sangue. E assim foi através dos tempos.
Durante muitos anos, imigrantes vindos de Minas, entre os quais incontáveis fugitivos da Justiça daquele estado, atravessaram o rio Paranaíba e se estabeleceram nas terras de Catalão. Plantaram roças, criaram gado, serviram como peões nas fazendas de colonos que os precederam, ou, muito comumente, foram trabalhar como pistoleiros de aluguel.
Uma das primeiras pessoas a perceber o fascínio e as peculiaridades do lugar foi o jornalista, poeta e escritor Bernardo Guimarães. Patrono da cadeira no 5 da Academia Brasileira de Letras, Bernardo, cujo romance A escrava Isaura , lançado em 1875, se tornaria, um século mais tarde, sob a forma de telenovela, uma das peças mais vistas na televisão mundial, morou duas vezes em Catalão.
Na primeira oportunidade, entre 1852 e 1854, o escritor serviu como juiz de órfãos. Retornou em 1861, como juiz municipal, função que ocupou até o ano seguinte. Durante essa segunda temporada, Bernardo conseguiu a façanha de alçar aos jornais da Corte, no Rio de Janeiro, debates sobre as questiúnculas do lugarejo perdido no sertão. Entre os leitores assíduos de seus artigos, no jornal A Actualidade, da capital do Império, encontrava-se o próprio d. Pedro ii , que acompanhava com invulgar interesse uma briga entre Bernardo e o outro juiz (de Direito) da cidade.
Meio século mais tarde, em 1916, portanto já no período republicano, Catalão voltou a ser foco da atenção dos principais jornais do país, quando lá ocorreu uma chacina que se tornou conhecida como Massacre dos ferroviários. Anos antes, em 1897, o assassinato de um senador, cometido por inimigos políticos na rua principal da cidade, em plena luz do dia, também havia sido fartamente noticiado no Rio e em São Paulo.

 

 

Desde criança esses fatos já me interessavam. Pois, embora nascido no Rio de Janeiro, morei algum tempo em Catalão, com meus avós, no início da década de 1950.

Meu pai, Sebastião Sant’Anna, passou a maior parte da infância e da juventude naquela cidade, tendo lá chegado em 1920, com apenas cinco anos. Meus avós paternos, Hermógenes e Iaiá, vinham da então capital do estado, cidade de Goiás, antiga Vila Boa (e antes Arraial de Sant’Anna), construída durante o ciclo do ouro. Pertenciam à depauperada classe média que restara nas antigas regiões de garimpo, após o esgotamento das riquezas.

Dona Iaiá mudou-se para Catalão para ser professora pública. Passado algum tempo, seu Hermógenes foi nomeado agente dos Correios. Logo se tornaram pessoas respeitadas na cidade. Ele também tocava flauta. Com o aparecimento do cinema (mudo), meu avô passou a fazer, junto com um pianista, fundo musical para os filmes.

Além da escola pública, minha avó dava aulas no colégio das freiras. Não demorou muito para fundar seu próprio estabelecimento, o Externato Sant’Anna. Assumiu papel importante na vida cultural da cidade. Ao contrário das mulheres da época, sempre relegou a segundo plano os trabalhos domésticos, preferindo a leitura e as atividades acadêmicas. Seu Hermógenes e dona Iaiá, assim como os quatro filhos do casal, foram testemunhas de alguns fatos narrados neste livro.

Apesar de minhas ligações afetivas e de parentesco com a gente de Catalão, acho importante salientar que Herança de sangue não é uma história da família Sant’Anna. Alguns parentes meus podem surgir ao longo da narrativa. Mas serão apenas personagens incidentais.

O relato tem como pano de fundo a colonização do sertão goiano, o genocídio dos índios, a escravidão dos negros e a hegemonia do homem branco, jamais ameaçada pelos nativos, e muito menos pelos africanos, apesar da valentia de certas tribos indígenas e do heroísmo de alguns quilombolas. Mas o livro é sobretudo a história de lutas de brancos (e o conceito de branco aqui é bem elástico, por conta da enorme miscigenação ocorrida em Goiás) contra brancos, pelo poder. De uma luta incansável pelo poder.

É também uma história de faroeste. Mais especificamente, de nosso far-centro-oeste (se o leitor me permite a inventiva e o anglicismo). Fosse o Brasil a cultura universal dominante, nossa Hollywood já teria descoberto, e tornado famosa, Catalão. Pois a cidade goiana nada fica a dever a Tombstone, no Arizona (com seu famoso duelo no O. K. Corral), Dodge City, no Kansas, Laredo, no Texas, e outras que os bangue-bangues imortalizaram.

Salvianinho, Cabeleira, Salomão de Paiva, o Índio Afonso, Elyseu e Isaac da Cunha, o capitão Carlos de Andrade, os irmãos Sampaio, entre eles o temível João, todos personagens destas páginas, jamais teriam feito feio num duelo - no estilo de John Ford ou Sam Peckinpah - em meio à poeira da rua principal de Catalão, ou de suas congêneres americanas, frente a um Wyatt Earp, Jesse James, Sundance Kid ou Doc Holliday.

Este é um relato de lutas, de crimes, de ódios, de paixões, de selvagerias e crueldades, com pouco espaço para o amor. É a saga de uma cidade, e dos homens e mulheres que a povoaram, desde que, na primeira metade do século xviii , um espanhol da Catalunha aportou nas terras do Além-Paranaíba, no rastro da expedição de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera ii , bandeirante que desbravou os sertões dos índios goiás.

Ermida de São João, ao anoitecer.


1 . Domingo, 16 de agosto de 1936

Amarraram-lhe uma corda ao pescoço, ataram suas mãos e o levaram pelas ruas aos empurrões e pontapés, sem lhe permitir que falasse.

Cornélio Ramos,

Catalão - Poesias, lendas e histórias

 

Quando a bola vermelha do sol de inverno se escondeu no horizonte, na direção de Goiandira, quase deu para perceber o instante exato em que a noite chegou a Catalão. Um tapete escuro se desenrolou sobre a cidade, mais negro do que o costume, quem sabe pressagiando os trágicos acontecimentos que o destino reservara para as últimas horas daquele domingo. No alto do outeiro da Saudade, a ermida de São João, caiada de branco, brilhou mais uma última vez antes de se esgueirar no lusco-fusco.

Na maioria das casas, o ajantarado foi servido por volta das quatro e meia. Antes, boa parte dos 4 mil moradores da cidade tomou banho. À mesa, moças e senhoras exalavam um discreto e agradável perfume, graças aos sabonetes industrializados vindos de São Paulo, a grandenovidade do momento. Mas não os homens. Nem mesmo os mais ricos. Continuavam usando o velho sabão de sebo, para não correr o risco de cheirar como almofadinhas. Terminada a refeição, homens e mulheres, adultos e crianças aguardavam ansiosos a hora do cinema.

O Cine Guarani anunciava naquela noite a menina prodígio de Hollywood, Shirley Temple. E, para que os marmanjos não inventassem desculpas, antes do longa-metragem seria exibido mais um eletrizante capítulo do seriado da moda, Tom Mix, que empolgava não só a meninada como também os empedernidos valentões locais. Ali no cinema, não raro os pistoleiros sacavam de seus revólveres, em plena plateia. Atiravam contra a tela nos momentos culminantes das fitas, para terror das famílias.

Mas famílias e pistoleiros tinham planos distintos para as próximas horas, que Catalão jamais iria esquecer. Cinquenta, setenta, quem sabe cem anos depois, os fatos prestes a ocorrer naquele fim de domingo ainda seriam contados de pai para filho, cada qual se indagando como seus antepassados puderam deixar que aquilo acontecesse.

 

 

À tardinha, estranhos cavaleiros chegaram à cidade, deixando suas montarias num terreno próximo à charqueada, perto da saída para Goiandira. Seguiram a pé até uma venda, onde compraram dois engradados de cerveja. Dispersaram-se em meio aos transeuntes, mas não por muito tempo. Logo voltaram a se reunir, observando, de longe, as pessoas que entravam no cinema. Os homens misteriosos trajavam-se com apuro, como se estivessem ali para algum tipo de cerimônia. O líder do grupo, um camarada alto e forte, vestia uma capa preta.

Depois do pôr do sol, muitos moradores se sentaram em cadeiras postas nas calçadas, em frente a suas casas. Os passantes os cumprimentavam, os homens tirando respeitosamente o chapéu. Se surgia uma visita, todos entravam. Iam para a sala. Serviam-se biscoitos caseiros, cafezinho e doces. Quando os visitantes faziam menção de partir, de olho no relógio (por causa do cinema), os donos da casa insistiam para que tomassem um cálice de licor, após o qual se despediam. Assim que as visitas iam embora, as mulheres se apressavam a pegar seus xales para, junto com os maridos e filhos, correr em busca de um bom lugar na plateia do Guarani.

Às seis horas, a sirene do cinema tocou, anunciando a chegada do filme, que viera de Araguari pela jardineira. A exibição começaria às seis e meia. Como a casa de espetáculos só dispunha de um projetor, ao término de cada rolo de filme a sessão seria interrompida para que se pudesse trocá-lo pelo rolo seguinte.

 

 

Numa esquina próxima à rua principal, e perto do burburinho do povo que se dirigia ao cinema, um preso sentava-se sobre o largo parapeito da cela, por trás das grades, procurando um bom ângulo de visão para espiar o movimento. Havia muita gente na rua àquela hora, circulando a pé, a cavalo, em carroças e charretes ou num dos poucos automóveis.

Como se tratava do único prisioneiro da cadeia pública, apenas dois soldados guarneciam o prédio. O tenente, comandante do destacamento, o sargento e os outros seis praças espalhavam-se pela cidade, uns poucos policiando os locais mais movimentados, a maioria bebendo cachaça nas vendas e botequins, farreando na zona ou se divertindo em algum pagode.

Depois que a sessão de cinema teve início, o grupo de homens surgido no final da tarde cercou a cadeia. Não aparentava ser uma turba desordenada. Alguns, entre eles o camarada da capa preta, davam ordens, em voz baixa mas firme. Entre as armas, que todos portavam, se podiam ver garruchas, revólveres, carabinas, barras de ferro e uma profusão de facas e punhais.

Logo um passante informou ao tenente sobre a movimentação nas vizinhanças da delegacia. O oficial mandou chamar o sargento. Determinou-lhe que fosse para lá, com os soldados, reforçar a segurança.

Acontece que os policiais não foram bem recebidos pelos líderes do pessoal que sitiava o prédio.

- Olha, sargento - advertiu um deles, tão logo os militares chegaram -, tira os seus meninos pra lá, porque aqui vocês vão morrer todos. Hoje a gente tira o homem, hoje a gente tira ele.

Considerando a disparidade de forças, o sargento não pensou duas vezes. Deu meia-volta com seus soldados e bateu em retirada, não se esquecendo de levar também os dois que, até então, guarneciam a cadeia. Foram pedir orientação ao tenente. Ao ouvir dos subordinados um relato sobre a situação, o superior concluiu que o destacamento nada podia fazer contra tantos, tão bem armados. Como Pilatos, lavou as mãos, deixando a cadeia pública à mercê dos assaltantes.

 

 

Atento aos ruídos e à movimentação na rua, o preso não demorou a perceber que o prédio estava cercado. Sem ter para onde, nem por onde, muito menos como, escapar, escondeu-se debaixo do catre, mesmo sabendo que isso de nada lhe adiantaria.

Pouco antes das sete horas, houve uma interrupção no fornecimento de energia elétrica. Todas as luzes da cidade se apagaram. No cinema, a projeção, ainda no primeiro rolo, parou. Mas logo o encarregado pôs em ação o gerador e o seriado Tom Mix voltou a rodar.

Ao mesmo tempo, na cadeia, surgiram dezenas de lanternas. Os sitiantes não demoraram a ver, por entre as grades da cela, o prisioneiro encolhido debaixo do catre, espremendo-se contra a parede.

- Olha, o homem está aí dentro, moçada - disse um dos invasores.

A fechadura, velha e carcomida, não resistiu nem à primeira leva de golpes de barras de ferro. Os invasores puderam entrar na cela. Um deles, bem moço, tentou sacar o preso de sua toca, agarrando-o pelas calças. Foi repelido com um violento pontapé, que lhe atingiu os testículos. Recuou para o lado de fora, ganindo.

Mas logo alguém o substituiu. E mais um. E ainda um terceiro. Desalojado o preso, rapidamente suas mãos foram amarradas, por trás das costas. Ele iniciou um protesto, mas um dos atacantes ameaçou:

- Você trate de ficar calado, senão morre agora. - E, para surpresa e profundo terror do prisioneiro, mostrou-lhe que não brincava. Enfiou a mão na boca do infeliz, puxou sua língua para fora e, com um golpe certeiro de punhal, furou-a de cima para baixo.

Um grito, que se iniciou medonho, saiu abafado por uma golfada de sangue que escorreu pelos cantos da boca. A ferida ardeu intensamente. Alguém trouxe um laço, logo passado ao redor do pescoço do preso.

Um dos chefes do bando ordenou, em tom que parecia não admitir contestação:

- Não pode machucar muito não, pessoal. A gente quer ver ele sofrer.

O recado passou, de homem a homem, dentro e fora da cadeia.

O preso já chegou à rua com mais de dez facadas no corpo, todas superficiais. Ao vê-lo ensanguentado, sob o foco das lanternas, o bando, que a essa altura reunia umas cinquenta pessoas, rugiu de prazer. Embora o homem ferido gritasse muito, seus urros, que vinham do fundo da garganta, eram abafados pelo alarido da gente que, excitada, tentava aproximar-se dele.

Levaram-no em direção à parte oeste da cidade, para não terem de passar em frente ao cinema. Os chefes da malta mantinham-se ao lado do preso, evitando assim que os outros, num arroubo de entusiasmo, provocassem um ferimento mais sério, matando-o prematuramente, estragando o prazer da noite. Mas cada um que conseguia se aproximar aplicava-lhe, no mínimo, um pontapé ou soco na cara. Outros, mais sádicos, não resistiam. Espetavam-lhe as pontas das facas nos braços atados, nas pernas, na barriga, nas costas, no peito, no rosto, cuidando para que doesse bastante.

Todos queriam participar.

Logo depois da cadeia, uma venda permanecia aberta, apesar da hora. Do interior desse estabelecimento saiu uma mulher, gritando histericamente. Pôs-se diante dos linchadores, tentando impedir-lhes a passagem. A ela juntou-se o marido. Mas foram ameaçados de morte e obrigados a recuar para dentro da loja.

Livre do empecilho, o cortejo prosseguiu, agora lentamente, pois o supliciado caía a cada dúzia de passos. Os homens forçavam-no a se levantar, puxando-o pela corda, chuchando-o com as facas. Passaram em frente ao colégio das freiras. As irmãs não se manifestaram. O preso, agora muito fraco devido aos golpes e à perda de sangue, arrastava-se penosamente. Seus gritos tornaram-se mais fracos, gemidos agonientos de pavor.

Quando chegaram à rua da Grota - não propriamente uma rua, mas um local da cidade assim chamado -, os homens dobraram à direita e iniciaram a descida que ia dar no córrego Pirapitinga. A essa altura, o martírio já durava mais de meia hora. Com a língua dilacerada, o preso não conseguia falar. Era difícil mantê-lo de pé. Sangrava abundantemente de dezenas de ferimentos de faca, nenhum deles mortal. Os pistoleiros eram habilidosos com seus punhais.

O bando atravessou a ponte sobre o córrego e começou a subir em direção a uma casa, do lado direito da rua, onde morava o prefeito. Este não se fez de rogado e logo surgiu, debruçado numa das janelas. Permaneceu ali, apreciando o séquito macabro. O preso, vendo-o, ensaiou uma súplica, que saiu ininteligível, limitando-se sua boca a expelir uma bolha de ar, espumante, vermelha de sangue. Um dos homens, então, talvez querendo exibir-se para a autoridade, vazou os olhos do moço com duas punhaladas certeiras. Só assim ele conseguiu emitir mais um grito, que ricocheteou na noite como um estilhaço de dor.

Alguns linchadores aproximaram suas lanternas do rosto do ferido. Mas a visão dos olhos vazados os assustou.

- Vamos agora voltar daqui - gritou o homem da capa preta, fazendo um gesto de cumprimento ao prefeito, agradecendo-lhe pela aprovação ao justiçamento e deixando claro que só fora até lá para que a autoridade pudesse legitimar o suplício.

O preso já não conseguia caminhar, e teve de ser arrastado pela corda. O bando voltou a cruzar o Pirapitinga e subiu a ladeira que ia dar na rua da Grota. Os homens sabiam que o justiçado não duraria muito tempo. Decidiram levá-lo para a saída oeste da cidade.

O prisioneiro também sentiu a morte próxima. Cuspiu o sangue da boca, reuniu suas últimas forças e, num supremo esforço, murmurou algo que, apesar de sua língua retalhada, pôde ser compreendido pelo homem do sobretudo negro. Que, por sinal, não gostou do que ouviu.

- Acabem com esse bandido - comandou.

Um dos linchadores brandiu o punhal e aplicou no condenado o golpe de misericórdia, por entre as costelas, direto no coração.

 

 

No cinema, a plateia assistia, encantada, ao último rolo do filme de Shirley Temple, quando surgiu alguém na sala de projeção. Cochichou algo ao ouvido de um espectador. Este, assustado, chamou a mulher e os filhos. Saíram rapidamente e recolheram-se ao sobrado da família, em frente ao Jardim Municipal. As crianças da casa foram mandadas para o andar de cima.

Enquanto no térreo do sobrado os homens se armavam, preparando-se para qualquer eventualidade, no andar superior uma das meninas tomou coragem e se arrastou de gatinhas até o alpendre. Escondeu-se por trás de uma pilastra, a tempo de ver um grupo de pessoas, a cavalo, vindo em direção ao Jardim.

À frente dos cavaleiros, uma mulher jovem, gorducha e vestida de negro montava um cavalo branco e carregava no colo uma criança pequena. Ao seu lado, um homem magro, vestido de branco, sobre um cavalo negro, trazia nos ombros uma longa capa preta. Ele mantinha o rosto semioculto sob um chapéu de aba larga. O grupo passou a poucos metros do alpendre de onde a garota observava a cena.

 

 

Pouco depois, na saída do cinema, a notícia do linchamento já corria de boca em boca. E o povo logo viu que era verdade, pois um dos irmãos do homem da capa preta exibia suas mãos ensanguentadas.

- Acabei de matar mais um - proclamou, no singular, como se tivesse sido o único assassino.

Assustadas, as famílias se dirigiram rapidamente a suas casas. No caminho, ao passar pelas esquinas, vendas e botequins, iam se informando do acontecido.

As portas e janelas foram se fechando. Apagaram-se as luzes, sopraram-se as velas, abafaram-se os fogos. Mas naquela noite ninguém conseguiu dormir. Deitada na cama, acordada, a cidade de Catalão tornou-se um só silêncio, fúnebre, abissal.

Nem todos se recolheram, porém. Passado o estupor da notícia, alguns foram até o local da morte do preso. O corpo permanecia lá, em meio à terra encharcada de sangue. Levaram-no para casa.

Perto dali, o cavaleiro da capa preta se dirigia a uma das saídas da cidade. Quando se aproximou de uma ponte, ele apeou do cavalo e amarrou o animal a um toco. Desceu até o córrego, onde lavou as mãos e limpou o punhal. Não fosse o breu, teria visto uma mancha vermelha, efêmera como sempre fora a vida em Catalão, dissolver-se na água corrente e se disformar para sempre.


2 . Primórdios

Este pequeno arraial é hoje habitado por geralistas que vieram procurar as ricas terras que há neste distrito...

Raimundo José da Cunha Mattos,
referindo-se a Catalão,

Corografia histórica da província de Goiás

 

O bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, mais conhecido como Anhanguera ii , já com mais de 50 anos de idade, saiu de São Paulo em 30 de maio de 1722, liderando uma tropa, composta de brancos e muitos escravos, cujo destino era o território dos índios goiás. Bueno pretendia encontrar jazidas de ouro que conhecera quando menino numa expedição comandada por seu pai, que os selvagens haviam apelidado de Anhanguera.

Depois de cinco semanas de marcha, nas quais passaram fome e grande desconforto, e algumas léguas após terem cruzado o rio Meia-Ponte (atual Paranaíba) o Anhanguera encontrou terras férteis. Resolveu deixar ali um mulato feitor e dez escravos negros para erguer um pouso e plantar uma roça de milho. Assim, quando estivessem regressando do norte, com ouro e selvagens capturados, os expedicionários encontrariam provisões.

A partir de então, todas as expedições que iam para o novo território acampavam ali, fazendo do lugar uma estação de tropeiros que passou a ser conhecida como Pouso do Catalão. O nome se devia a um espanhol, da Catalunha, que estabelecera uma fazenda junto ao córrego Pirapitinga. No pouso os viajantes compravam mantimentos e rações para os animais.

Bartolomeu Bueno localizou as jazidas que procurava cinquenta léguas a noroeste de Catalão, dando início ao ciclo do ouro de Goiás. Espalhada a notícia, nos anos que se seguiram inúmeras expedições saíram de São Paulo para o novo Eldorado, onde surgiu o arraial de Vila Boa.

O pouso do Catalão muito se beneficiou dessa riqueza, tornando-se um próspero entreposto, onde os viajantes podiam comprar mantimentos, munição e trocar seus cavalos por outros descansados. Surgiram diversas casas de comércio e bodegas. Putas se estabeleceram no vilarejo.

 

 

Um dia as minas se esgotaram e o ciclo do ouro chegou ao fim. No povoado de Catalão, os habitantes assistiam ao êxodo. Já não havia bandeirantes, soldados, faiscadores, caçadores de escravos, padres e prostitutas chegando do Sul, das barrancas do Paranaíba, trazendo cavalos, armas, negros cativos e ambições, em busca de fortuna nas minas dos goiás.

Os homens agora surgiam do Norte. Eram bandos de esfarrapados esquálidos, quase sempre a pé, com fome, sem ouro para comprar gêneros, sem escravos nem animais para vender.

 

 

O antes movimentado pouso do Catalão virou um lugar esquecido de Deus. Desde o início, seu sustento vinha das bandeiras, tropas e comitivas que ali pernoitavam a caminho do Eldorado. Agora, eram raros os aventureiros que subiam em direção ao Norte, para captura de índios. Esses últimos renitentes não dispunham de recursos. Poucos benefícios deixavam em sua passagem.

Quase todas as habitações do pouso eram ranchos de palha e paus trançados. Contavam-se nos dedos as coberturas de telha. Nas palhoças, brancos, negros, índios e mamelucos, esquálidos, desornados e incultos, limitavam-se a esperar a passagem de tropas de burros que lhes deixassem algumas migalhas.

Ao redor das taperas, porcos focinhavam a lama ou a poeira, procurando restos de restos. Na hora mais quente da tarde, ouvia-se o cacarejo sofrido de uma galinha despenada.

Nesse cenário de desolação, homens e mulheres resignavam-se a contemplar, em preguicenta modorra, o horizonte, na direção do porto velho do Paranaíba. De lá, em tempos melhores, os bandeirantes despontaram com seus cavalos, armas e escravos.

Agora, se uma coluna de poeira ao longe revelava alguém vindo pelo caminho, a maioria das pessoas saía de suas choças, na esperança de que o estranho precisasse de um serviço ou oferecesse um negócio. Ou, quem sabe, trouxesse moedas ou um bocadinho de ouro.

Mas logo aparecia, na última curva antes da entrada do pouso, apenas um homem muito pobre, montado num cavalo magro, as costelas do animal à mostra sob o couro suarento da ilharga. Estava acompanhado da mulher, no dorso de um burro ofegante e arqueado, e de dois filhos pequenos, precariamente acomodados em cestos de palha dependurados no lombo de outro animal.

Quando os viajantes se aproximavam, percebia-se que o cavaleiro usava esporas de latão, presas por barbantes aos pés descalços. A visão de tal penúria bastava para que os aldeões voltassem ao interior de suas casas, pois, de tal tropa, nada se poderia esperar a não ser um pedido de pouso ou de comida.

Às vezes, o forasteiro, depois de examinar os arredores, interrompia a jornada e decidia ficar por ali mesmo. Juntando alguns paus e palhas, construía seu casebre num canto qualquer. Trocava o cavalo e os burros por mantimentos e por um barrilete de aguardente. Unia seu destino ao dos habitantes do pouso, tão decadentes quanto ele. À noite, entre um gole e outro de pinga, fazia as primeiras amizades. E as primeiras inimizades.

Passada a novidade, os demais, cada vez mais amumiados pela desambição e indolência, voltavam à porta de suas taperas, o rabo de olho na lombada do caminho.

 

 

A depressão durou meses, anos, durou muito tempo. Pouco aconteceu no triste ajuntamento, a não ser brigas de faca que espocavam no meio da noite. Mas agora sem o pano de fundo das risadas de putas e soldados e do tilintar de moedas de ouro, como nos tempos dos faiscadores. Só miseráveis lutando contra miseráveis.

 

 

A nova leva de imigrantes que desembarcava no Brasil, no final do século xviii e início do xix , vinda de Portugal, já não era a escória de criminosos e aventureiros dos primeiros tempos. Tratava-se agora de lavradores e pecuaristas à procura de terras férteis e de bons pastos. Boa parte dessa gente, que no início se fixou em Minas Gerais - onde as terras devolutas começavam a escassear - voltava seus olhos para o Sudeste de Goiás.

 

 

Em 1808, a família real portuguesa se transferiu de Lisboa para o Rio de Janeiro, fugindo das tropas de Napoleão. Sete anos depois, o Brasil tornou-se Reino Unido. O rei, d. João vi , coroado no Rio, só retornou a Portugal em 1821, mantendo aqui seu filho mais velho, d. Pedro, como príncipe regente.

 

 

No Além-Paranaíba, norte da divisa de Minas com Goiás, províncias separadas ali pelo grande rio, foi criada a Sesmaria do Ribeirão, abrangendo as terras ao redor da antiga fazenda do Catalão. Primeiro devagar, depois com robustez, o lugarejo voltou a crescer. A renda agora vinha de um pequeno comércio de feijão, açúcar, cachaça, farinha e couro. Para grande preocupação dos moradores locais, fugitivos da Justiça de Minas Gerais e de São Paulo fixavam residência no núcleo urbano e em seus arredores.

 

 

Em janeiro de 1822, as cortes portuguesas exigiram a volta de d. Pedro, que desobedeceu ao chamado, anunciando ao povo sua decisão de ficar no Brasil. Oito meses depois, proclamou a Independência, tornando-se o imperador d. Pedro i .

 

 

O arraial definitivo de Catalão ficava um pouco afastado do local do pouso pioneiro, num ponto onde se construiu uma capela de taipa próxima ao córrego Pirapitinga. Dedicaram-na a Nossa Senhora Mãe de Deus. Ao redor do santuário surgiram alguns fogos, que se tornaram o novo centro do lugar. Agora, aos domingos e nos dias de festa, para lá acorriam os moradores das redondezas. Logo brotaram outros pequenos comércios. E a primeira taberna.

Pelas poucas ruas - tortas e esburacadas, enlameadas nas chuvas, poeirentas na estiagem -, os homens andavam predominantemente descalços. Cobriam-se com enormes chapéus de palha. Vestiam calças e camisas grosseiras, largas, tecidas em casa com algodão das lavouras locais.

Com os novos colonos, a região experimentou outros costumes. Celebraram-se as primeiras festas. Nasceram tradições. A prosperidade, entretanto, não colaborou para diminuir a violência. O Sudeste de Goiás continuava atraindo bandidos e matadores de aluguel, fugidos de Minas Gerais.

 

 

O progresso e a história seguiam seu curso, embora as notícias demorassem a chegar a Catalão. Napoleão Bonaparte morreu no exílio de Santa Helena. Em revoluções lideradas principalmente por Bolívar e San Martin, os países do Oeste sul-americano tornavam-se independentes da Espanha. Ferrovias diminuíam distâncias. Em 1833, o Expresso do Oriente iniciou seus serviços entre Paris e Istambul.

 

 

O Sudeste de Goiás era tomado por grandes extensões de terras devolutas, cuja posse a Corte cedia aos interessados que tivessem condições financeiras de explorá-las. Foi o que aconteceu com o fazendeiro Roque Alves de Azevedo, natural de Bom Sucesso, Minas Gerais, que chegou ao arraial de Catalão no final da década de 1820.

A vila, que nunca teve dono, passou a ter um, senhor de terras, de escravos, da lei e da Justiça.


3. O exótico coronel Roque

Era muito magro, alto, tinha pernas longas e finas, como as de uma aranha.

Descrição do coronel Roque Alves de Azevedo

feita, em 1844, por Francis de la Porte,

conde de Castelnau

 

Em pouco tempo, Roque de Azevedo ampliou suas propriedades, assim como seu rebanho de gado. Sua influência se estendeu a toda a região do Além-Paranaíba, assim como ao Triângulo Mineiro, no lado sul do rio.

 

 

Em 1831, d. Pedro i abdicou em favor de seu filho, também Pedro - de apenas cinco anos de idade -, e voltou para Lisboa, onde iria reinar como Pedro iv . Iniciou-se no Brasil o período de Regência.

Por todos os lados estouravam protestos contra Portugal. Sendo o vigário de Catalão, padre Azeredo Coutinho, simpatizante dos portugueses, um grupo de cidadãos influentes do povoado, entre eles Roque Azevedo, pôs-se a ameaçá-lo, exigindo sua renúncia. Amedrontado, o padre fugiu. Para substituí-lo, as autoridades eclesiásticas enviaram um frade espanhol, Pedro Danti.

 

 

Quatro meses depois da abdicação de d. Pedro i , o padre Feijó, que assumiu como regente do Império, fundou a Guarda Nacional, para servir de “sentinela da Constituição jurada”, impedindo que o país se fracionasse pela ausência de um chefe de Estado de fato, já que o trono era ocupado por uma criança.

É o início do “coronelismo”. Em todo o Brasil, patentes foram distribuídas aos grandes proprietários e homens de projeção. Com isso, o regente pretendia obter a fidelidade das elites do interior, no que teve sucesso. Os coronéis da Guarda, muito longe do governo central, mantinham seus domínios sob jugo feudal, por meio de milícias de jagunços.

Em fevereiro de 1834, Catalão separou-se de Santa Cruz e tornou-se município, do qual fazia parte Ouvidor, Santo Antônio do Rio Verde, Goiandira, Davinópolis e Calaça.

Sem filhos, em 1838 o coronel Roque adotou um recém-nascido, que recebeu o mesmo nome do pai adotivo.

Catalão continuava testemunhando violências de todos os tipos. Conflitos, motivados por ódios familiares, por ofensas (reais ou imaginárias) e pelas razões mais fúteis, estouravam quase que diariamente. Brigas por posse de terras - que sobravam no território - eram raras. Mas se matava por causa de demarcação de divisas e pelo acesso à água.

Obedecia-se a um código de honra não escrito, segundo o qual um homem só podia ser digno de respeito se exibisse bravura frente aos inimigos e se lhes devotasse ódio implacável. Homem que fosse homem jamais poderia levar desaforo para casa, por menor que fosse, princípio seguido tanto pelos ricos quanto pelos pobres. Questões precisavam ser resolvidas à bala ou à faca.

Não bastasse tanta violência, bandos de salteadores e assassinos errantes agiam nos arredores da vila. E, se criminosos fugidos da justiça de Minas Gerais se refugiavam em Catalão, bandoleiros que cometiam crimes em Goiás atravessavam o Paranaíba e se homiziavam em Minas. Com poucas estradas, nenhuma ponte sobre o rio, sem telégrafo e com força policial reduzida, tornava-se impossível prendê-los.

Em vez de combater a impunidade, os coronéis contribuíam com ela, recrutando seus jagunços entre os bandidos da região. Ou contratando-os para serviços isolados, geralmente tocaiar e matar desafetos.

 

 

Com a antecipação da maioridade do jovem Pedro ii , em 1840, iniciou-se o Segundo Reinado.

A população de Catalão e arredores se aproximava de mil habitantes quando lá chegou um destacamento de doze praças, comandados por um oficial de milícia. Nessa mesma ocasião, o vigário, padre Camelo, se indispôs com os fiéis, que não perderam tempo em expulsá-lo, tal como haviam feito com o padre Coutinho, uma década antes.

 

 

Em 1843, Luís Filipe, rei de França, resolveu enviar uma expedição científica a América do Sul. Para chefiá-la, nomeou Francis de la Porte, conde de Castelnau, fidalgo de 31 anos. O grupo se compunha de um geólogo, um médico e botânico, um funcionário do Museu de História Natural de Paris e de vários tropeiros contratados no Brasil, além de grande quantidade de escravos.

A passagem dessa expedição por Goiás, em 1844, e os minuciosos relatos de viagem escritos por seu pessoal iriam permitir que, mais tarde, se pudessem saber os detalhes da vida de Catalão naquela época.

Depois de atravessar o rio Paranaíba e o ribeirão Ouvidor, o conde Castelnau entrou na vila à frente de sua comitiva. Levava consigo uma carta de recomendação para o coronel Roque, que fez questão de hospedar o francês e os cientistas da comitiva.

O conde surpreendeu-se com o exotismo da figura de seu anfitrião. Roque era alto, magro e tinha pernas compridas, arqueadas e finas. Usava roupas extravagantes. Camisa, paletó, colete, meias, a calça que terminava pouco acima dos tornozelos - Roque só vestia peças azuis, incluindo o enorme chapéu cônico de palha trançada.

Castelnau logo notou que o coronel governava Catalão com mão de ferro. Todos o cercavam de agrados. Em sua primeira noite, Castelnau conheceu as famílias ilustres do local, além de Roquinho, de seis anos, o filho adotivo de Roque.

Alguém explicou ao nobre o simbolismo do chapéu de Roque na política local. Em dias de eleição, o chapéu ficava sobre a mesa de votação, lembrando os eleitores de que só podiam votar nos candidatos apoiados pelo chefe.

O coronel Roque gostava de promover batuques em sua casa. Convocava, além dos amigos íntimos, as putas da zona do meretrício. Intimava os músicos locais a tocar durante a festança. Nessas noites alegres, de orgias e cachaça à vontade, todos dançavam completamente nus, com exceção do chefe. Roque fazia questão de conservar pelo menos o colete e as botas, em sinal de superioridade.

Se o fidalgo Castelnau recebeu convite para um desses rega-bofes sexo-musicais, a história não registrou. Mas é provável que tenha sido poupado do constrangimento. A comitiva francesa permaneceu dez dias em Catalão, durante os quais o coronel fez de tudo para agradar seus hóspedes.

Coronel Paranhos com a família.

 

Em 1847, mudou-se para a vila o comerciante Antônio da Silva Paranhos, acompanhado da mulher, Belisária da Costa. Vinham de Paracatu, Minas Gerais. Paranhos estabeleceu um armazém que vendia de tudo um pouco. Possuía também tropas de burros que buscavam mercadorias em São Paulo e no Rio de Janeiro. A chegada desse cidadão, nascido no Rio de Janeiro, mas registrado em Portugal, teria grande influência no destino de Catalão. Logo seu poder de influência só seria inferior ao do coronel Roque.

 

 

Cinco anos depois da chegada de Antonio Paranhos, foi nomeado juiz em Catalão o futuro escritor Bernardo Guimarães, formado na Faculdade de Direito de São Paulo. Sua transferência e, dois anos depois, a de um novo vigário agitariam a vida da cidade com noites inesquecíveis de boemias e serestas.


4. Juízes, padres e poetas

Solteiro, e não tendo chegado ao inverno da vida, ainda não se resignou a viver a vida de cenobita, nem renunciou aos prazeres do mundo. Por isso mesmo que é de temperamento melancólico, folga de envolver-se na alegria dos festins, ama os prazeres da mesa e do vinho, a dança e as mulheres, a música e toda espécie de regozijos, que soem suavizar as amarguras desta vida ingrata e árida.

Bernardo Guimarães, falando de si na terceira pessoa,

ao se defender em um processo por má conduta

 

O escritor Bernardo Joaquim da Silva Guimarães chegou à cidade para ser Juiz de Órfãos, função que consistia principalmente em decidir sobre heranças e partilhas. Não precisou muito tempo para que o povo percebesse que ele pouco se interessava pelo cargo. Quando não se ausentava em longas excursões de pesca nos rios da região, Bernardo, de índole boêmia, dedicava a maior parte de seu tempo à música, à literatura e às mulheres da zona. Bebia cachaça o tempo todo.

Bernardo Guimarães foi juiz em Catalão duas vezes.

 

Ótimo nadador, se lançava às águas do Paranaíba, estivessem elas calmas ou revoltas, só ao tomar conhecimento de um bom pagode do lado mineiro do rio.

Após dois anos na função, o escritor foi embora. Nessa mesma época, o cônego Luiz Antônio da Costa assumiu como novo vigário. Em 1857, o dr. Virgínio Henrique da Costa, que a despeito do sobrenome não tinha nenhum parentesco com o padre, tomou posse como juiz da comarca do Rio Paranaíba, da qual Catalão era parte, e resolveu fazer oposição ao coronel Roque.

Na briga entre o coronel e o juiz, a maioria do povo ficou ao lado de Roque, conhecido de todos, e não do arrogante forasteiro. O comerciante Antônio da Silva Paranhos, cujos negócios não paravam de prosperar, também se opôs ao magistrado, solidificando seus laços de amizade com o coronel.

Para demonstrar seu poder, o dr. Virgínio obteve do presidente da província, Gama Cerqueira, a demissão do delegado de Catalão, assim como do subdelegado e do escrivão, todos substituídos por gente de sua escolha.

Em suas sentenças, o dr. Virgínio favorecia os amigos e contrariava os interesses do coronel e dos demais adversários políticos. Chegou ao cúmulo de atuar, ao mesmo tempo, como advogado de defesa e juiz no julgamento de um homicídio. Evidentemente, o réu, tenente-coronel Ignacio José Bernardes, apesar de já ter três crimes de morte nas costas, foi absolvido.

Em julho de 1859, um Decreto Legislativo elevou Catalão à categoria de cidade. A área total do município somava agora quase 10 mil habitantes, entre os quais 750 escravos.

 

 

Iniciava-se a década de 1860.

Nos Estados Unidos, Abraham Lincoln tornou-se o 16o presidente. Teria de lidar com o grave problema dos estados sulistas, que queriam se separar da União.

Do outro lado do Atlântico, em Londres, Florence Nightingale fundava a primeira escola de enfermagem. Na mesma cidade, Charles Darwin publicou Sobre a origem das espécies , livro que iria revolucionar a ciência.

 

 

O número de fogos do perímetro urbano de Catalão subiu para cento e cinquenta. A elite vivia em relativo conforto, cercada de criados. O coronel Roque e o comerciante Antônio Paranhos circulavam em liteiras conduzidas por escravos.

Francisco José Roiz, o Chico Manco, montou a Botica, primeira farmácia local. O apelido do farmacêutico se devia a um tiro que lhe causara deficiência de movimentos em uma das pernas, disparado por alguém da família Silveira, de sua mulher, Mência Carlota, quando ele a raptou para se casarem.

 

 

Em maio de 1861, Bernardo Guimarães voltou à cidade, agora como juiz municipal. Alugou um casarão antigo situado numa das esquinas da rua Direita, a principal da cidade, também chamada rua de Baixo, além de outros nomes, dependendo do trecho. O imóvel encontrava-se em péssimo estado, mas o aluguel barato satisfez o juiz.

Catalão vivia um momento tenso, pois cinco presos perigosos haviam escapado da cadeia. Os próprios guardas que os vigiavam é que propiciaram a fuga, desertando junto. Logo, presos e guardas começaram a cometer crimes nas estradas próximas, aterrorizando os viajantes.

Bernardo Guimarães não se preocupou muito com a fuga. Muito menos com os crimes. Pelo contrário: libertou os demais presos da cadeia, alegando as péssimas condições da carceragem.

Logo a cidade entendeu que, do dicionário do trêfego juiz, não constavam as palavras “responsabilidade” e “decoro”. Nas rodas de boemia, Bernardo juntou-se às putas e aos vagabundos locais. As gargalhadas do bando ecoavam pela noite. A guampa de pinga corria de mão em mão.

Num desses festejos, Bernardo conheceu uma mulata, apelidada Jequitirana - feia, caolha, que mascava fumo todo o tempo -, e a levou para sua casa. Que, por sinal, não tinha um móvel sequer. Despensa sempre vazia, cozinha sem panelas. Para lá se mudou também o irmão da rapariga, malandro dos mais preguiçosos. Os três, sujos e mal alimentados, dormiam sobre jornais, sempre bêbados.

O casarão em que Bernardo Guimarães morava com sua amante, Jequitirana.

 

Como se não bastasse a sujeira ambiente, Bernardo raramente tomava banho. Usava roupas imundas, amarrotadas, e chinelões de couro. Com os cabelos desgrenhados, não se dava ao trabalho de aparar a barba.

Se o escritor vivia tão mal, o mesmo não se pode dizer do vigário Luiz Antônio. O padre, também amasiado, só que com uma moça de família, Maria Cristina Rodrigues da Cunha, morava, com ela e os quatro filhos, numa casa grande e confortável.

Bernardo Guimarães entrou na disputa entre o juiz Virgínio da Costa, de um lado, e o coronel Roque e o comerciante Antônio Paranhos, do outro. Guimarães apoiou o coronel - seu amigo desde a primeira vez em que estivera na cidade - e o comerciante. Colaborador regular do jornal Actualidade, do Rio de Janeiro, o escritor começou a publicar ali artigos contra o dr. Virgínio, elevando ao nível da Corte, que se deliciava com seus textos, a prosaica rixa de Catalão.

Antônio Paranhos incentivava esses artigos de juiz contra juiz. Sempre que queria ver um deles publicado no Rio, Paranhos arrancava Bernardo da cachaça e punha pena e papel em suas mãos. Uma hora depois saía o artigo, repleto de borrões e garranchos que a equipe de revisores do jornal teria de decifrar. O próprio comerciante se encarregava de despachar a matéria pelo correio. Só em janeiro de 1862, foram publicados no Rio cinco artigos de Bernardo Guimarães. Entre seus leitores, o imperador d. Pedro ii , que se divertia com as peripécias do juiz-escritor, do outro juiz e do coronel.

Virgínio da Costa, entretanto, não lutava sozinho contra o trio Roque/Paranhos/Bernardo. O presidente da província o apoiava. Tendo agora elegido Paranhos como seu principal inimigo na cidade, Virgínio passou a persegui-lo sem tréguas, inclusive ameaçando-o de prisão. Tanto fez que Paranhos precisou se refugiar temporariamente em Paracatu, para evitar ser jogado na infecta cadeia de Catalão.

Baseado em denúncia anônima, o juiz Virgínio enquadrou Guimarães por irregularidade de conduta. O escritor assumiu sua própria defesa, onde, entre outras preciosidades, escreveu:

 

[...] O denunciante do respondente, seja ele quem for, não contente de esmerilhar a vida pública do Juiz (Bernardo) e de lançar mão de quanta futilidade encontrou para vexá-lo com acusações infundadas ou irrisórias, ainda vai com mão profana sondar sua vida particular, esquadrinhar qualquer pequena fraqueza, inclinar talvez seu ouvido aos mexericos da maledicência, e lançar mão de difamação perante os tribunais para ver se assim consegue de todo esmagá-lo. Mísero expediente e só digno de almas ignóbeis. O respondente não se inculcará, por certo, como um modelo de sobriedade e regularidade de conduta. Solteiro, e não tendo chegado ao inverno da vida, ainda não se resignou a viver vida de cenobita, nem renunciou aos prazeres do mundo. Por isso mesmo que é de temperamento melancólico, folga de envolver-se na alegria dos festins, ama os prazeres da mesa e do vinho, a dança e as mulheres, a música e toda espécie de regozijos, que soem suavizar as amarguras desta vida ingrata e árida. Mas ninguém verá que prorrompesse com excessos escandalosos, nem que corresse após os prazeres dos festins com menoscabo consciencioso de seus deveres. Se o respondente é inclinado aos prazeres, é porque é homem, e acha-se por isso sujeito a uma das condições da humanidade, que sofre bem poucas exceções. O próprio denunciante, se não é um anacoreta, o que não é de se crer, não estará sujeito a essas fraquezas da humanidade?

 

E nessa toada seguiu a defesa.

Depois de levar seu arrazoado aos quatro cantos do país pelas páginas de Actualidade, o escritor foi absolvido em junho de 1862.

 

 

Nem só de brigas políticas vivia Bernardo Guimarães, que, ademais, as tratava como esporte. O escritor encontrou em Roquinho, filho do coronel, um companheiro de serestas e bebedeiras. Não raro, o vigário Luiz Antônio, também farrista e mulherengo, juntava-se aos dois boêmios. Os três varavam as noites de Catalão bebendo nas tabernas e armazéns, dos quais muitas vezes saíam fazendo serenatas pelas ruas sinuosas da cidade.

O padre tinha trinta anos. Bernardo, 36. Roquinho, com 23, era também poeta e pintor. Dos bons. Recebeu educação no Caraça, célebre internato de Minas Gerais, onde, entre outras coisas, leu os clássicos.

Bernardo e Roquinho não perdiam festa na roça. Quando seus santos ofícios permitiam, o padre ia também. Nesses pagodes, Bernardo entrava na roda da catira, dança popular em Goiás, na qual as mulheres marcavam o passo com palmas, enquanto os homens dançavam ao som da viola.

Em suas visitas aos distritos da paróquia, o padre Luiz Antônio se envolvia em aventuras amorosas. Em Santo Antônio do Rio Verde, por exemplo, local de pernoite das tropas que levavam boiadas de Paracatu a Barretos, morava sua preferida, Caetaninha, uma das mulheres mais bonitas da região, proprietária de uma estalagem que às vezes funcionava como cassino. Seu Caetano, pai da amante do vigário, bancava o jogo.

Caetaninha não demorou a engravidar do sacerdote. O religioso, ao saber do fato, decidiu não assumir o filho. Simplesmente parou de visitar Santo Antônio do Rio Verde. A estalajadeira não se apertou. Tratou de arranjar marido. A escolha recaiu sobre Severino, um senhor de idade que nutria grande paixão por ela e que concordou em assumir a paternidade da criança.

O menino nasceu e deram-lhe o nome de Urias. Outros três filhos vieram depois, Inhô, Bem e Chico da Caetana, todos de Severino. Sob o olhar complacente do marido, Caetaninha continuou a colecionar admiradores e namorados: coronéis, fazendeiros e comerciantes.

 

 

No início de 1863, o imperador nomeou José Vieira de Couto Magalhães para a presidência de Goiás. Magalhães era amigo e ex-colega de faculdade de Bernardo Guimarães. A caminho da cidade de Goiás para assumir o cargo, o novo presidente passou por Catalão e não se conformou em ver o escritor exilado naquele fim de mundo. Pior, arruinando a vida e a saúde, desperdiçando o talento.

Couto Magalhães armou um complô com Antônio Paranhos. Na próxima vez em que o comerciante fosse ao Rio de Janeiro, onde era sócio de uma casa comercial, deveria levar o escritor consigo e entregá-lo aos cuidados do editor Farnese, da Actualidade .

Cumprindo o que prometeu ao presidente, Paranhos rebocou Bernardo Guimarães para o Rio. Retornou em seguida a Goiás, sem avisar nada ao amigo. Este lhe escreveu logo depois, protestando contra a “traição”.

 

 

Passaram-se os anos. Bernardo Guimarães se casou com uma moça de família. Mudou-se do Rio para Ouro Preto, onde se tornou professor de retórica e de poética. Seu maior amigo, Roquinho, permaneceu em Catalão, onde morreu em 1869, com apenas 31 anos de idade, vítima de colapso cardíaco.

Não se sabe se devido à tristeza pela morte do filho, ou por causa da ascensão de outros homens, entre eles Antônio Paranhos, agora também coronel da Guarda Nacional, mas o certo é que Roque Alves de Azevedo já não exercia influência em Catalão, tendo perdido inclusive sua fortuna. Faleceu pouco depois.


5. O Índio Afonso

Afonso era um assombro de intrepidez, agilidade e valentia, e tinha mesmo por seus rasgos de astúcia e destreza adquirido a fama de feiticeiro ou de ter pacto com o diabo, de maneira que era o terror de todos aqueles sertões.

Bernardo Guimarães,

O Índio Afonso

 

Na mesma época em que Bernardo Guimarães serviu como juiz em Catalão, fez fama no município um grupo de bandoleiros formado por cerca de quinze homens aparentados entre si. Essa quadrilha aterrorizou por muito tempo o Sudeste goiano e o Triângulo Mineiro. Além de jagunços de aluguel, eles eram assaltantes de estrada, ladrões de gado e de cavalos. Descendiam de índios. Muita gente considerava o chefe do bando, um matador chamado Afonso, o homem mais valente do Além-Paranaíba.

Acobertado por coronéis da região, para os quais alugava seus serviços, o Índio Afonso se valia da proteção de seus mandatários para matar também desafetos pessoais. Contando inimigos e vítimas de encomenda, seu bando contabilizou dezenas de mortes. No intervalo entre os crimes, os homens se refugiavam nas barrancas do Paranaíba, num trecho conhecido como Porto Mão de Pau (mais tarde, Olhos d’Água), onde Afonso nasceu e foi criado. Bernardo Guimarães costumava pescar no local.

Mesmo exercendo o cargo de juiz do município, Bernardo não se vexava em passar dias e mais dias em companhia daqueles foragidos da lei. Mais do que isso, tornou-se amigo e companheiro de pesca de Afonso. Dormia no rancho do índio. Juntos, bebiam cachaça. Nas longas conversas que tiveram, o escritor basearia seu livro O Índio Afonso , sobre as peripécias do temido bandoleiro.

Afonso, na verdade um mameluco de pele acobreada, de compleição muito forte e 1,90 m de altura, sabia ser gentil. Sua maneira suave de falar não lembrava a de um facínora. Excepcional nadador, atravessava o Paranaíba mesmo em épocas de correntezas. Domava qualquer cavalo, por mais bravo que fosse. Embora tivesse predileção por armas brancas, atirava magnificamente com garrucha e espingarda.

Quando queria provisões de carne, o índio procurava uma rês no pasto de uma fazenda qualquer e a matava, diz-se que sem necessidade de arma ou qualquer instrumento. Torcia o pescoço do animal usando apenas os braços. Nessas ocasiões, o fazendeiro não reclamava, preferindo não atrair sobre si a inimizade do bandido.

 

 

Em 1872, o papel mais influente no município de Catalão já era exercido pelo coronel Antônio da Silva Paranhos. Nessa época, fundaram a Estrada de Ferro Mogiana, com a finalidade de levar o trem até Goiás e Cuiabá, passando por Casa Branca, Franca, Uberaba e Catalão.

No final da década, houve grande decepção na cidade quando a Mogiana abandonou os planos de estender seus trilhos de Casa Branca até Catalão. Mas o que marcou realmente esse ano foi um episódio ocorrido no dia 19 de junho de 1879, às sete horas da noite.

O comerciante português José Pereira de Gouvêa Guerra estava em sua casa contando dinheiro, produto da venda de vinte escravos. Eis que um bando de homens, se aproveitando da escuridão da noite, invadiu o local e o matou a tiros.

Como nada se fez para apurar o crime, o subdelegado José Maria Ayres pediu providências ao governo da província. Alegou que seu superior, delegado João de Cerqueira Netto, acobertava os criminosos. Da cidade de Goiás, o chefe de polícia oficiou ao delegado, cobrando uma atitude. Não sendo atendido, demitiu Netto.

Decidido a impor a lei em Catalão, o presidente da província enviou para lá um destacamento de vinte praças, chefiado por um alferes que recebeu instruções para esclarecer o assassinato. Em pouco tempo, o militar apurou que a própria esposa do português era a mandante do crime, mancomunada com dois sócios do marido. Como todos os suspeitos eram ligados ao coronel Paranhos, ao ser revelada a trama ninguém na cidade quis levar o caso adiante.

Em fevereiro de 1880, deveria tomar posse o Conselho Municipal, eleito no ano anterior. Só que alguns candidatos derrotados impugnaram o nome do coronel Paranhos, um dos conselheiros, invocando sua cidadania portuguesa. O processo terminou com a cassação do mandato de Paranhos, o que não impediu que seu poder permanecesse intacto. Demonstrou-o claramente ao promover a absolvição dos assassinos do comerciante Gouvêa Guerra, em aberto desafio às autoridades da província.

 

 

Se no caso da morte de Gouvêa Guerra prevaleceu a impunidade, um crime ocorrido algum tempo depois mereceu punição exemplar. Na noite de 18 para 19 de julho de 1882, uma mulher dormia em seu sítio, nas proximidades do córrego do Almoço, em companhia de uma filha pequena. Apareceu na propriedade um escravo de uma fazenda vizinha. O negro desferiu diversas facadas na dona do sítio, que morreu horas depois.

Preso e levado para Catalão, onde desfilou pelas ruas debaixo de açoites, o escravo foi enforcado.

 

 

O coronel Paranhos contornou seu impedimento, argumentando que nascera no Brasil, sendo apenas registrado em Portugal. Conseguiu se eleger Juiz de Paz em Catalão e, logo depois, em 1884, para a Assembleia Provincial.

 

 

Vivia-se uma época de grandes mudanças.

Em Menlo Park, Nova Jersey, na Costa Leste dos Estados Unidos, Thomas Edison inventava o fonógrafo, precursor dos aparelhos de som. No Sul da África, os negros se insurgiam contra o colonialismo europeu. Sob a liderança do chefe Cetewayo, guerreiros zulus atacaram os fazendeiros brancos. Mas sofreram represália terrível. Numa luta de lanças contra armas de fogo, milhares de nativos foram dizimados pelos soldados coloniais. No Extremo Oriente, o Japão emergia como potência naval.

Enquanto isso, no Brasil, uma terrível seca assolou o Nordeste durante três anos consecutivos. Flagelados da Bahia e dos estados vizinhos percorriam a caatinga seguindo um profeta, de nome Antônio Conselheiro, que anunciava o fim do mundo para 1900. A Igreja Católica se assustou com a concorrência aberta pelo movimento e proibiu seus fiéis de assistirem às pregações do homem que, para muitos, era um santo. Perseguido por forças policiais, Conselheiro e seus seguidores se retiraram para o sertão de Canudos.

Em Ouro Preto, Minas Gerais, morria, aos 59 anos, o escritor Bernardo Guimarães, autor de A escrava Isaura .

 

 

O coronel Antônio da Silva Paranhos voltou a se eleger para o Conselho Municipal de Catalão. Tornou-se também Inspetor Provincial do Ensino, Juiz de Paz e Comandante da Guarda Nacional para toda a comarca. Tendo aderido ao Partido Liberal, de Leopoldo Bulhões, fazia oposição ao governo da província, em poder do Partido Conservador.

Os conservadores dominavam a política não só em Goiás como também na Corte. E, em Catalão, eram representados por José Maria Ayres, velho opositor de Paranhos, pelo capitão do Exército Imperial, Antônio Carlos de Andrade - veterano da Guerra do Paraguai, de pouco mais de quarenta anos, natural da cidade, onde agora estabelecera uma casa de comércio - e por Elyseu da Cunha.

Tendo os Paranhos de um lado e os Ayres, os Andrade e os Cunha do outro, a cidade testemunharia nos anos seguintes uma sangrenta luta fratricida.


6. Primeiro Fogo

... hasteou uma bandeira branca, pedindo paz, e comunicou que o Senador Paranhos e as autoridades, sem garantias, retirar-se-ão da cidade...

Trecho da descrição do Primeiro Fogo,

no jornal O Goyaz

 

Na segunda metade da década de 1880, o movimento abolicionista cresceu no Brasil. Em 1886 entrou em vigor em Goiás uma lei proibindo castigos em excesso nos escravos. Um dos artigos determinava que os proprietários de negros não mais podiam enviá-los à cadeia para serem açoitados.

Nessa mesma época, em Catalão, o atrito entre os Ayres e os Paranhos, secundados pelos aliados das duas famílias, se acirrava. Os dois lados pleiteavam os serviços do Índio Afonso e de seu bando. Interessado em saber quem pagava mais, e não em compromissos de lealdade a este ou aquele coronel, Afonso se desdobrava para atender as duas facções.

A família Ayres, que liderava os Andrade e os Cunha na briga com os aristocratas Paranhos, se compunha de cinco irmãos, com suas mulheres e filhos, em sua maioria gente rude e atrasada.

O capitão Carlos Antônio de Andrade, líder do clã Andrade, morava na rua Direita, agora chamada rua do Comércio, no mesmo quarteirão de seu inimigo Antônio Paranhos, só que na calçada oposta. Ex-aliado de Paranhos, Carlos de Andrade era um homem alto, de ombros retos e largos, rosto estreito, cabelos fartos, braços compridos, barba negra e pontiaguda, olhos fundos, penetrantes, assustadores.

Embora as famílias se alternassem no comando político, uma nítida diferença cultural as separava. Mas, na braveza de macho, a elite de Catalão se nivelava. Nem janotas nem roceiros temiam cara feia ou bala. Do contrário, não conseguiriam impor respeito na comunidade.

Em meio a esse ambiente eclético e dividido, o cônego Luiz Antônio, agora com sessenta anos, continuava levando sua plácida vidinha, em companhia da mulher, Maria Cristina. Os quatro filhos do casal, Maria Luiza, Amazília Angélica, Antônio Ludovico (que o povo só conhecia como Antoninho do Vigário) e Luiz Antônio não esbarraram em preconceitos e conseguiram se casar nas mais ilustres famílias catalanas.

Enquanto isso, no distrito de Santo Antônio do Rio Verde, os também quatro filhos de Caetaninha, ex-amante do padre, cresceram e se tornaram temidos pistoleiros. Entre eles, se destacava o primogênito, Urias, filho do vigário. Tendo envelhecido e perdido a beleza, Caetaninha mudou de ramo. Deixou o ofício de hoteleira. Agora dedicava seu tempo a comandar Urias, os outros filhos e um bandido de nome Procópio, além de diversos jagunços, em assaltos a tropas de comerciantes de gado que regressavam de Barretos trazendo dinheiro, produto da venda de boiadas.

Quando, na entressafra, diminuíam as tropas e faltavam mantimentos em sua casa, Caetaninha não se afligia. Mandava recado a algum fazendeiro da região, dando conta da escassez. Um ou dois dias depois, chegava um carro de boi com sacos de grãos e um capado.

Volta e meia, entretanto, algum lavrador ou pecuarista se recusava a colaborar com os bandidos. Logo seu cadáver surgia à beira de uma estrada, caso de Jerônimo Cocó, criador dos mais estimados, que apareceu morto perto de sua casa. Só que, dessa vez, o crime gerou grande revolta.

Davi Cocó, irmão de Jerônimo, resolveu pôr fim à quadrilha de Caetaninha. Viajou até a cidade de Goiás e pediu auxílio às autoridades, que concordaram em lhe fornecer um contingente de soldados, comandados por um furriel. O próprio Cocó se juntou à tropa.

Acontece que Caetaninha, alertada por amigos da capital sobre a movimentação dos soldados, preparou seu bando para enfrentá-los. Quando a tropa chegou a Santo Antônio do Rio Verde e cercou a casa dos bandidos, intimando-os a se render, recebeu em resposta grossa fuzilaria.

Os soldados reagiram aos tiros e conseguiram matar Urias. Vendo o filho primogênito, e predileto, morto, Caetaninha, transtornada, decidiu vingar-se na pessoa do comandante da tropa, mesmo que isso custasse a vida de todo o bando. Fez cessar o fogo no interior da casa e simulou uma rendição, agitando um pano branco. Quando o furriel se aproximou da casa, um balaço certeiro o abateu.

Mesmo com a baixa no comando, a vitória da tropa era questão de tempo. Finalmente, os soldados invadiram o prédio e dizimaram o bando de Caetaninha. Chegaram a ameaçar dar cabo, a ponta de faca, de uma criança de dois anos, neta de Caetaninha, mas foram impedidos por Davi Cocó.

 

* * *

 

Nos dois últimos anos da década, mudanças importantes aconteceram no Brasil. Em 1888, houve a Abolição. E, no ano seguinte, proclamou-se a República. A família real partiu rumo ao exílio na Europa.

O fim da escravatura não provocou grande impacto econômico em Catalão. Quase não existiam escravos na cidade. Desses poucos, parte preferiu continuar servindo aos seus ex-donos, alguns por fidelidade, outros simplesmente para não passar fome. Os que optaram por se tornar homens “livres” foram morar na periferia da zona urbana. Construíram choças, próximas umas das outras, num local que o povo passou a chamar de rua dos Pretos.

 

 

Em setembro de 1890, Antônio Paranhos se elegeu senador da República. Um ano depois, Ricardo Paranhos, filho do senador, decidiu fazer uma revolução para derrubar o presidente do Estado, Constâncio Maia. Ricardo juntou um grupo armado, composto de parentes, jagunços e correligionários, e lançou seu brado de guerra.

O governo estadual enviou uma força policial, com 25 homens, para deter a revolta. Mas, por temor de enfrentar a gente de Catalão, as tropas foram perdendo a coragem à medida que avançavam. Finalmente, estacionaram em Entre Rios, futura Ipameri.

A essa altura, os catalanos, com exceção dos mais fiéis partidários dos Ayres, queriam lutar contra as forças do governo. Nem que fosse pelo prazer do tiroteio. Entusiasmado com o apelo que crescia à sua volta, Ricardo Paranhos enviou uma mensagem ao comandante da tropa: “Vem ou não vem? Se vem, eu espero. Se não vem, eu vou aí. Decida”.

Ricardo Paranhos com sua mulher, Cota.

 

Temendo uma derrota, os soldados puseram o rabo entre as pernas e regressaram à cidade de Goiás. Rechaçadas as tropas governistas, o povo de Catalão, que, grosso modo , se uniu contra o “inimigo” externo, retornou à vida normal. Ou seja, à briga Ayres versus Paranhos.

A “revolução” aumentou o prestígio de Ricardo Paranhos. Os partidários dos Ayres - principalmente o capitão Carlos Antônio de Andrade, que, tendo lutado no Paraguai, não via grandes méritos na vitória de Ricardo - se enciumaram. Provocações se sucederam de parte a parte. Um confronto armado, talvez para esclarecer de vez qual o grupo mais valente, tornou-se questão de tempo.

Veio então a oportunidade, que começou com um assunto sem importância. O capitão Andrade requereu à Intendência, agora ocupada por João de Cerqueira Netto, correligionário dos Paranhos, autorização para construir um moinho junto ao Pirapitinga. A obra iria exigir escavações. E represaria, por algum tempo, as águas do córrego.

O intendente, cargo que equivalia ao dos atuais prefeitos, indeferiu o pedido. Só que, em desobediência à autoridade, o capitão Carlos de Andrade interrompeu o fluxo do rio e construiu seu moinho. Como o intendente não reagiu, os Paranhos sentiram-se diminuídos. Ficaram esperando a oportunidade de uma desforra.

Nos primeiros dias de setembro de 1892, numa manhã em que uma bruma seca escondia o sol, o bando de Afonso chegou à cidade. Os homens se reuniram num bordel na rua das Sete Casas. O pessoal dos Paranhos espalhou que os bandidos tinham vindo cobrar, do coronel Ayres, uma dívida de 300 mil réis, por conta de um “serviço”. Como os Ayres exigiram que as autoridades enfrentassem os bandidos, esse procedimento só fez fortalecer a versão dos boateiros.

- Vocês estão vendo - explicava o povo dos Paranhos. - Eles estão querendo se livrar da dívida.

Outros, da mesma facção, argumentavam que os Ayres queriam que a polícia, sob o comando dos Paranhos, enfrentasse o pessoal do Índio e sofresse uma derrota acachapante.

De fato, o delegado de polícia, major Paulino Guimarães, com seu efetivo de nove praças muito mal armados, se assustou com a presença dos pistoleiros. E não atendeu as exigências dos Ayres. Estes, entretanto, precisavam de um feito que superasse a maldita revolução de Ricardo Paranhos. Por isso, reuniram às pressas trinta capangas para atacar e liquidar o bando reunido no puteiro.

O ataque se deu no início da tarde. Na fuzilaria, morreram três homens dos Ayres. Os bandoleiros de Afonso, embora em menor número, não tiveram baixas. Mas retiraram-se da cidade.

Frustrados, os pistoleiros dos Ayres percorreram as ruas principais, atirando a esmo. Sofreram o segundo revés daquele dia quando o major Paulino e seus praças, reforçados pelo mestre Quincas, veterano da Guerra do Paraguai, os puseram para correr. Com o moral em alta, o major se aproveitou do pretexto do tiroteio e proibiu o porte de armas dentro dos limites da cidade. Isso irritou profundamente os moradores. Em Catalão, os homens se sentiam nus sem um revólver à cintura ou uma carabina pendurada no ombro.

A frustração era tanta que, quando um cão hidrófobo surgiu na rua principal e alguém gritou “cachorro louco!”, apareceu gente de todos os lados, armas na mão, atirando. Consta que o cão levou dezenas de tiros.

Finalmente, um dos capangas do capitão Carlos de Andrade, um sujeito de maus bofes de nome Domingos Calaça, resolveu sair à rua com seu revólver. Para que a provocação ficasse bem ostensiva, Calaça passou em frente à casa do delegado.

Admoestado em voz alta pelo major Paulino, o jagunço aceitou sem reagir a descompostura. Pior, pediu desculpas. Isso não agradou nem um pouco o capitão Carlos de Andrade, que convocou Calaça à sua presença.

- Você vai passar armado lá de novo - ordenou o capitão, irritado.

Calaça não teve outro remédio senão o de cumprir a ordem do patrão. Com o revólver, voltou a passar pela casa do major.

Imediatamente, o delegado proferiu o tradicional “teje preso”. Mas não enviou o jagunço para a cadeia: manteve-o em sua própria casa, quase ao lado do sobrado do senador Paranhos. Assim que soube do fato, o capitão determinou que os capangas companheiros de Calaça fossem até a casa do major e exigissem a libertação do pistoleiro.

Os enviados não lograram êxito. Estava criado o impasse, irresolúvel em Catalão sem um confronto armado.

A essa altura, os funcionários públicos municipais e todas as autoridades da cidade se concentravam no sobrado Paranhos, na expectativa do início da luta. Os partidários dos Ayres não fizeram por menos. Armados de carabinas, correram para a casa do capitão, do outro lado da rua, em frente à antiga casa de Bernardo Guimarães. A distância entre os dois lados podia ser coberta por uma pedrada.

O que se esperava acabou acontecendo. Exatamente às dez da manhã de sexta-feira, dia 16 de dezembro de 1892, iniciou-se o Primeiro Fogo de Catalão. Nessa hora, alguns tiros foram disparados da casa do capitão Andrade, em direção ao sobrado Paranhos, onde se reuniam, além da família, o intendente Cerqueira Netto, o juiz da Comarca, o delegado Paulino e grande quantidade de jagunços.

A resposta não se fez esperar. O tiroteio durou uma hora. Na casa do capitão Carlos de Andrade, o chefão José Maria Ayres assumiu o comando, tendo como lugares-tenentes o próprio capitão e Elyseu Cunha, de trinta anos, feroz aliado de Ayres. No lado oposto, jagunços e soldados de polícia se ombreavam nas janelas do sobrado do senador.

Milagrosamente, não houve baixas em nenhum dos lados, com exceção de ferimentos leves no intendente Netto, provocado por estilhaços de uma vidraça.

Tudo fazia crer que a luta ainda iria durar muito tempo. Sobrava munição. Tanto o coronel Paranhos como o capitão Andrade, com lojas anexas às próprias casas, mantinham em estoque muitas caixas de bala.

O tiroteio foi interrompido por outra razão: Belisária Paranhos, mulher do senador, sofreu uma crise nervosa. A família pediu ao cônego Luiz Antônio, irmão de dona Belisária, que intermediasse um cessar-fogo. O bom vigário, em sua missão pacifista, atravessou a rua conduzindo uma bandeira branca.

Na verdade, a crise de dona Belisária serviu mais como pretexto para o fim do combate, pois os Paranhos estavam em desvantagem numérica. Sabendo disso, o povo dos Ayres não deixou escapar a oportunidade de humilhar os adversários. Os homens concordaram com o cessar-fogo, desde que o senador Antônio Paranhos e sua família se retirassem da cidade.

Os Paranhos aceitaram os termos da rendição. Ainda houve algumas escaramuças naquele dia, que resultaram na morte de um jagunço, bem aceita pelos dois lados, pois não ficava bem, em Catalão, tanto tiro e nenhum defunto. Poderiam até fazer chacota da cidade.

E, assim, os Paranhos, homens, mulheres e crianças, acompanhados de uma legião de amigos e correligionários, se recolheram à Fazenda do Ribeirão, de propriedade da família. De lá, só sairiam pouco antes do enfrentamento que ficaria conhecido como Segundo Fogo.


7. Segundo Fogo

Depois de Veridiano, chegaram a Catalão outros jagunços conhecidos: Elyseu da Cunha e Messias Garcia.

Luis Palacín Gomez,

História política de Catalão

 

O senador Paranhos e seu filho Ricardo haviam viajado da Fazenda do Ribeirão para Araguari, em Minas, quando souberam que o governo da República iria enviar uma unidade do Exército para restabelecer a ordem em Catalão.

Na manhã de 14 de janeiro de 1893, a tropa federal chegou para cumprir sua missão. No mesmo dia, regressaram os Paranhos, pai e filho, e setenta partidários. Mas, ao entrarem em Catalão, já não encontraram seus inimigos. Impressionados com a demonstração de força e prestígio dos adversários, Carlos Andrade e José Maria Ayres haviam se retirado para suas fazendas. Só Elyseu da Cunha fez questão de permanecer na cidade.

Muitos inimigos dos Ayres e dos Andrade, que tiveram de fugir de suas casas após o Primeiro Fogo, retornaram a Catalão. Agora o sobrado Paranhos se enchia de seguidores, prestando respeitos e bajulando o senador.

Partidários dos Ayres nas vésperas do Segundo Fogo. O jagunço Veridiano está no centro da foto, em primeiro plano. Atrás dele, à direita, o coronel Ayres, de barba branca, e o capitão Carlos de Andrade, de barba negra.

 

 

Tanto os Ayres como seus aliados não suportavam ver os Paranhos em evidência. Resolveram dar uma estocada nos inimigos. Só que, desta vez, preferiram não atuar diretamente. Optaram pelo uso de pistoleiros de aluguel vindos de fora, tipo de mão de obra que jamais escasseava no Além-Paranaíba. Escolheram como alvo o tenente-coronel Marciano Salviano da Costa, comerciante e fazendeiro. Homem muito rico, com mais de oitenta anos, Marciano, além de correligionário do senador Paranhos, mantinha com ele estreita amizade.

Já em 1894, num dia em que reinava calma absoluta na cidade, um grupo de trinta jagunços recrutados pela gente dos Ayres invadiu a loja do tenente-coronel. Os homens arrancaram Marciano de trás do balcão do estabelecimento e o arrastaram para o meio da rua. Lá o fuzilaram, com várias descargas, sem maiores explicações, à vista do povo. Não satisfeitos, os assassinos invadiram a casa da vítima e atacaram uma de suas filhas a golpes de carabina.

Para arrematar o crime, os bandidos roubaram dinheiro, garrafas de vinho e objetos da casa. Saíram então bebendo pelas ruas, em algazarra, comemorando o feito. Depois fugiram a galope, atirando para cima.

Não perderam por esperar. A família do tenente-coronel não podia deixar sem resposta uma ofensa daquelas. Indagando daqui e dali, os parentes do falecido descobriram o nome de vários dos vândalos que participaram da matança. Pelo menos quinze deles foram localizados e mortos. Seus corpos, lançados aos peixes do Paranaíba.

 

 

Nesse clima de rivalidade e violência, foram realizadas as eleições municipais de 1895, sendo os Paranhos derrotados pelos Ayres. Durante a campanha eleitoral, alguém tocaiou o capitão Carlos de Andrade na estrada de sua fazenda, mas o assassino errou o tiro.

Correligionários do capitão acusaram o major Felipe Estrela, casado com uma neta do senador Paranhos, de ser o autor do atentado. Embora um inquérito tenha sido aberto, nada se apurou. Os amigos do capitão juraram vingança.

Andrade vinha sendo incitado por diversos companheiros para agir diretamente contra Paranhos. Um filho do capitão, Carlos Andrade Júnior, enviou ao pai, para que tomasse a seu serviço antes que os Paranhos o fizessem, um jagunço de nome Veridiano, também conhecido como Atanagildo, ou Negrão, homem já famoso por seus feitos à bala e à faca em Minas e em São Paulo.

A aparência de Veridiano fazia jus à sua índole. Negro, baixo, atarracado, ombros arqueados, fisionomia carrancuda, barba e bigodes espessos, cortava o cabelo rente. Usava chapéu de abas caídas e abotoava apenas o botão superior do paletó. Desconfiado de tudo e de todos, jamais se separava de sua carabina.

Chegando a Catalão, onde Andrade imediatamente o contratou, Negrão quis logo exibir seu cartão de visitas. Caçou pretexto e envolveu-se num duelo. Só que Catalão era Catalão, lugar de gente braba e boa de tiro. Veridiano se deu mal. Não matou o adversário e, ainda por cima, saiu baleado.

Acabrunhado, o jagunço lambeu suas feridas na fazenda do capitão Andrade. Instalou-se na olaria de uns imigrantes espanhóis que trabalhavam para o chefe. Uma força policial foi até lá com a intenção de prendê-lo e houve um tiroteio, no qual saíram feridos alguns praças e morreram duas crianças espanholas. Veridiano, mais uma vez sentindo o gosto da derrota, teve de fugir para Minas.

 

 

Em 1896, a Mogiana chegou a Araguari. Catalão voltava a ser incluída nos planos da estrada de ferro. No final do ano, terminou o mandato do senador Paranhos. Em Piracanjuba, hospedado numa fazenda de parentes, Andrade recebia cada vez mais mensagens de correligionários, incentivando-o a resolver à bala as questões com o inimigo. O capitão se sensibilizou com os apelos e retornou a Catalão. Mandou chamar Veridiano, em Minas. O jagunço veio num galope só.

Logo após sua chegada, Veridiano disparou, em plena luz do dia, um tiro contra o major João Figueira, homem ligado aos Paranhos. Mais uma vez o pistoleiro não foi feliz, embora tenha errado o alvo por muito pouco.

 

 

As duas facções se preparavam para o enfrentamento. Em resposta à contratação de Veridiano pelos inimigos, os Paranhos puseram a seu soldo diversos jagunços notórios. Cada vez que um deles surgia a cavalo na cidade, os moradores, através das janelas entreabertas de suas casas, avaliavam sua periculosidade e macheza. Quem entrava a trote, mão direita na rédea, mão esquerda solta no ar, mirada fixa no horizonte, para mostrar que não temia ninguém, era perigoso. Logo se ficava sabendo o nome do homem. Já os representantes comerciais vinham de cabeça baixa, morrendo de medo, as duas mãos nas rédeas, demonstrando que não estavam preparados para sacar suas armas.

No lado dos Ayres, o capitão Carlos de Andrade, embora contasse com menos gente, dispunha de pessoal mais qualificado. Além de Veridiano, Andrade tinha a seu lado, para o que desse e viesse, o guarda-costas pessoal João Paulo e os jagunços Franklin Toró e Messias Garcia, além de Elyseu da Cunha, cuja fama de brabeza não parava de crescer. A essa força de respeito, se juntava o próprio capitão, rápido e certeiro no gatilho.

 

 

No dia 30 de novembro de 1897, uma terça-feira, o ex-senador Antônio da Silva Paranhos precisava comparecer, como jurado, a uma sessão do júri, no andar superior do prédio que servia também como Câmara Municipal e cadeia. Uma mulher seria julgada por homicídio.

Para ir de seu sobrado até o local do julgamento, bastaria ao senador sair pela porta da frente, caminhar para a esquerda e seguir em linha reta até a cadeia. Teria de passar pela casa do capitão Carlos de Andrade, que Paranhos sabia estar acompanhado de diversos jagunços.

Não querendo se expor a um confronto, o senador, na companhia de vários homens, ao invés de usar o trajeto mais curto, subiu a rua que formava o lado oeste do quadrilátero da Praça do Coreto. Dobrou à direita na rua de Cima e seguiu contornando o quarteirão aos fundos do sobrado, no sentido horário. Pôde assim chegar à rua da cadeia, uma ladeira. Desceu por ela até o local do julgamento.

A sessão do júri se prolongou até pouco antes da uma da tarde. Terminou, como de costume, com a absolvição da ré.

Quando o ex-senador voltou para casa, cinco dos jurados juntaram-se a ele, inclusive seu neto, major Alfredo -, e um compadre, Juca Cândido. O filho, Ricardo, encontrava-se fora da cidade. Desta vez, o coronel não se desviou do reduto inimigo, talvez por receio de ficar com fama de covarde junto aos companheiros. O certo é que, quando o cortejo se aproximou da casa do capitão Andrade, cujas portas e janelas estavam fechadas, o capanga Franklin Toró, de vigia do lado de fora, cumprimentou o senador em voz alta:

- Boas tardes, coronel Paranhos.

Como não podia deixar de ser, o cumprimento, vindo das hostes inimigas, causou grande estranheza ao grupo. Com toda razão, diga-se de passagem, pois se tratava de um aviso para Veridiano, que, tocaiado no interior da casa, não via a hora de justificar sua fama de matador.

De uma janela aberta de supetão, Veridiano já surgiu cuspindo fogo de sua carabina. Em reflexo condicionado, Elyseu da Cunha e Messias Garcia, próximos a ele, também escancararam as respectivas janelas e atiraram.

Os tiros dos pistoleiros tinham endereço certo: Antônio Paranhos. Atingido por três balaços, um de cada atirador, o coronel dobrou os joelhos e tombou. Mas logo fez um esforço para se erguer. Nesse momento, outros dois tiros o acertaram. Um deles secionou sua femoral. Em poucos segundos, o senador morreu, em meio a uma pasta de terra e sangue.

O neto do coronel, major Alfredo, levou um tiro na coxa direita. Outra bala perfurou o chapéu de Juca Cândido. O resto da comitiva, que não foi visado pelos atacantes, debandou em todas as direções. Novos disparos, vindos da casa de Andrade, apressaram sua carreira.

A fuzilaria durou quinze minutos. Seguiu-se profundo silêncio. Catalão parou de respirar. Mas nos tímpanos dos moradores das casas próximas ao tiroteio o zumbido das balas continuou ecoando por algum tempo. Enquanto isso, Alfredo Paranhos conseguiu coxear até a casa de sua tia, Dadinha, ao lado da farmácia Felicidade.

O cadáver do senador permaneceu ali, abandonado, até que duas de suas filhas, Dó e Benzinho, sabendo que o capitão Carlos e seus homens não ousariam atirar em mulheres, decidiram resgatá-lo. Foram até lá e arrastaram o corpo do pai até o sobrado da família. Numa segunda viagem, recolheram, em suas saias, a terra empapada do sangue do coronel, para que não fosse profanada pelos assassinos.

 

 

A verdade é que nada do que aconteceu fazia parte dos planos imediatos do capitão Carlos de Andrade. No momento dos primeiros tiros, ele e seu filho Carlito, de dezesseis anos de idade, conversavam na varanda dos fundos da casa.

Embora Andrade estivesse cercado de homens valentes e bons de mira, Paranhos contava com um efetivo muito maior. Na época do Primeiro Fogo, o capitão dispusera de quarenta jagunços. Agora, eram apenas cinco.

Olhando para a rua, por entre as frestas de uma janela, Andrade pôde ver as filhas do coronel Paranhos. Antes de se afastar, com areia ensanguentada no regaço, Benzinho e Dó lançaram olhares de ódio e vingança em direção à casa do inimigo.

Passada a perplexidade inicial, o sobrado Paranhos começou a encher-se de gente: genros, netos, correligionários, compadres, jagunços, simpatizantes, eleitores. Familiares lamentavam a ausência de Ricardo Paranhos num momento tão trágico. Ao lado do corpo ainda quente do chefe político, os homens se decidiram por um cerco ao capitão Andrade.

O pessoal dos Paranhos se moveu para prédios mais próximos ao reduto inimigo. Não demorou e os atacantes, protegendo-se por trás de muros e paredes, cerraram fogo contra a casa do capitão. A resposta veio imediata.

A fuzilaria durou a tarde toda. E entrou pela noite. Tal como no Primeiro Fogo, cinco anos antes, no Segundo Fogo não faltou munição, estocada à farta na Casa Paranhos e na Loja Andrade.

Logo se viu que os sitiados estavam em desvantagem. Além de serem em menor número, dispunham de só duas casas - a dos Andrade e a de José Ayres, o José Tabaco, esta última a meio caminho entre a do capitão e o Sobrado Paranhos.

Apesar da disparidade de forças, a baixa seguinte ocorreu na gente dos Paranhos. Foi um jovem chamado Marcílio, da família do senador morto, que aos catorze anos já participava do combate. Sem experiência em tiroteios, não soube se proteger. Durante a noite, uma bala disparada da casa de José Tabaco vazou-lhe o olho esquerdo e alojou-se em seu cérebro.

Talvez revoltada por causa da morte do senador, ou, quem sabe, por perceber que o capitão Andrade e seu grupo perderiam a luta, grande parte da população da cidade aderiu ao grupo dos Paranhos.

Quando a quarta-feira, 1o de dezembro, amanheceu, muita gente engrossava as fileiras dos sitiantes, alvejando a casa do capitão. Do interior desta, os homens respondiam aos tiros. E assim o Segundo Fogo prosseguiu sem tréguas ao longo da manhã e da tarde, embora à luz do dia os combatentes de ambos os lados se expusessem menos.

A segunda noite veio acompanhada de forte aguaceiro. No Sobrado Paranhos, o corpo do senador começava a cheirar mal. A família decidiu aproveitar-se da escuridão para enterrá-lo. Não querendo correr o risco de uma saída pela frente da casa, Benzinho e Dó, escoltadas por capangas, conseguiram esgueirar-se pelos fundos do quintal, no meio da chuva. Tiveram de pular alguns muros. Usando ruas transversais, levaram o cadáver até o cemitério, onde, sob a luz de lampiões, o sepultaram numa cova enlameada.

Quando regressou ao sobrado, o grupo soube, minutos antes, da morte do rapazinho Marcílio, após 24 horas de agonia. A sede de vingança aumentou.

Os tiros vindos da casa do capitão cessaram. Sentindo um momento propício, os Paranhos resolveram dar início ao assalto. Surpreenderam-se ao não encontrar resistência. Pudera. Arrombadas portas e janelas, não havia ninguém lá dentro. Um buraco aberto na parede dos fundos indicou por onde os sitiados fugiram.

Madrugada de quinta-feira, 2 de dezembro de 1897. O Segundo Fogo chegara ao fim. Restava agora, aos Paranhos, ir atrás dos inimigos para vingar o chefe do clã.

trajeto do senador paranhos no dia de sua morte


8. A vingança

Aos primeiros albores da manhã seguinte era cercada a casa e intimados os criminosos, que, transidos de terror, entregavam-se sem relutância, apresentando-se Carlos de Andrade cercado de mulheres que rogavam chorando que não o matassem.

Ricardo Paranhos,

Os canibais

 

O aguaceiro que caiu sobre Catalão, na noite de quarta para quinta-feira, propiciou ao capitão Carlos de Andrade e seus companheiros a oportunidade de escapar da casa sitiada. Em meio a raios e relâmpagos, o grupo conseguiu sair despercebido da cidade e andar até uma fazenda próxima, de amigos, onde obtiveram montarias.

Os fugitivos decidiram se dividir, para não chamar atenção nos locais por onde passavam. Sabiam que os Paranhos viriam em seu encalço, questão apenas de tempo. O capitão resolveu viajar para a fazenda de um parente, em Piracanjuba, a 35 léguas de distância, levando apenas o filho Carlito e o guarda-costas João Paulo. Já Elyseu da Cunha e os jagunços Veridiano, Messias Garcia e Franklin Toró preferiram refúgio nas matas do Paranaíba. Lá, se a situação piorasse, poderiam atravessar o rio e se esconder em Minas.

Felipe Estrela, chefe da expedição de
captura do capitão Andrade.

 

Enquanto isso, em Catalão, o major Felipe Estrela convocava uma patrulha para caçar os assassinos do senador, avô de sua mulher. A fim de legitimar a expedição, Estrela obteve das autoridades um mandado de captura.

O capitão Andrade e seus dois acompanhantes chegaram à fazenda, em Piracanjuba, no domingo, 5 de dezembro. A viagem transcorreu sem incidentes. Aproveitando-se de picadas secundárias, Andrade andou em zigue-zague, mudando sempre de direção.

Esse despistamento de nada lhe serviu. Dias depois, a notícia de seu paradeiro chegou a Catalão, onde Estrela reunia pistoleiros de elite para caçar o inimigo. Entre eles, Bem Gervário, Davi Cocó (que firmou reputação ao participar da matança do bando de Caetaninha do Rio Verde), Dente de Ouro, Felix Cristo e Antônio Cândido, todos exímios pistoleiros e da mais estreita confiança dos Paranhos.

O grupamento iniciou viagem para Piracanjuba na quarta-feira, dia 8. No caminho, os homens pararam na fazenda de Joaquim Estrela, pai de Felipe. Lá, um jagunço chamado Vicente Antônio da Silva, destemido, cruel e muito leal à família, se uniu à expedição.

No domingo, 12 de dezembro, os captores cruzaram o rio Piracanjuba, se aproximando da fazenda onde o capitão se acoitava. À noite, os homens cercaram a sede da propriedade. Aguardaram os primeiros clarões da segunda-feira. Nessa hora, interceptaram um vaqueiro que saía para o curral.

Estrela mandou que o moço fosse lá dentro e dissesse ao capitão Carlos que ele e seus homens deveriam se render. Qualquer resistência seria inútil. Só serviria para fazer vítimas inocentes entre as mulheres e crianças da fazenda.

No interior da casa, Andrade, depois de avaliar a situação, decidiu se entregar. Saiu de mãos para cima, em companhia do filho Carlito e do capanga João Paulo. Os três foram imediatamente presos. Dona Lúcia, mulher do capitão e mãe de Carlito, também apareceu. Implorou, sem sucesso, que a deixassem ir junto com o marido e o filho.

O major Estrela, tendo decidido partir para Catalão antes dos demais, delegou a Vicente a responsabilidade pelos prisioneiros. Recomendou expressamente ao jagunço que os presos chegassem vivos ao destino.

 

 

Sexta-feira, 17. Felipe Estrela entra em Catalão e dá a notícia da captura do assassino do senador, recebida com grande entusiasmo pelo clã dos Paranhos. Todos saboreiam a vingança próxima.

Vicente Antônio e seu grupo, trazendo os presos, só apareceram na semana seguinte. Conforme recomendação, os três homens capturados estavam vivos, embora em estado deplorável, pois Vicente se esmerou nos maus-tratos. Sempre a pé, atados pelos pescoços às selas dos cavalos, Carlos de Andrade, Carlito e João Paulo caminharam 35 léguas com as mãos amarradas às costas. Durante o percurso, sofreram humilhações as mais variadas.

Como o capitão fez a viagem sem chapéu protetor, e sendo sua pele muito clara, o nariz e a parte de seu rosto não protegida pela barba queimaram-se horrivelmente no sol forte de dezembro. As cordas esfolaram seu pescoço, seus pulsos e suas mãos longas e ossudas. Carlito e João Paulo pareciam igualmente estropiados.

Quando os prisioneiros alcançaram a porta da cadeia, onde Felipe Estrela os recebeu, houve o primeiro incidente. Ricardo Paranhos, que chegara à cidade após a morte do pai, adiantou-se da multidão que assistia ao cortejo e deu uma violenta chicotada no rosto de Andrade. Entusiasmados com o exemplo de Ricardo, parentes e correligionários do senador se apressaram em agredir os presos com chutes e bofetões.

O major Estrela não gostou.

- Se vocês são assim tão valentes - ele se interpôs entre a turba e os presos -, eu levo eles de volta para Piracanjuba. E vocês vão lá buscar.

O povo se aquietou, limitando-se agora a ofender os homens amarrados. Tendo Carlito apenas dezesseis anos, Estrela decidiu libertá-lo.

Se Carlos de Andrade e João Paulo pensavam que no interior da cadeia estariam livres dos maus-tratos, logo perceberam o engano. A cela, conhecida como enxovia, cômodo dos mais infectos, ficava no subsolo do prédio, fechada por um alçapão. Jogaram o capitão lá dentro, ainda com os pés e mãos amarrados. Não lhe deram comida nem água. Não demorou muito tempo e alguns soldados e gente dos Paranhos desceram pelo buraco. Passaram a arrancar, a alicate, a barba do preso. Agrediram-no a socos, pontapés e cusparadas.

A tortura se prolongou por várias semanas, inclusive durante o Natal e o Ano-Novo. Ao cabo desse tempo, pouca dignidade restava na figura do capitão Andrade. Seu porte, antes ereto, encurvara-se ao peso da dor e das humilhações. Os algozes o obrigaram a comer suas próprias fezes e beber sua urina. As mulheres Paranhos, inclusive as filhas do senador, não se vexavam em visitar o cárcere e seviciar o condenado. Cuspiam e batiam em seu rosto com chicotes rabo-de-tatu.

Cadeia pública, onde ficaram presos o capitão Andrade e seu capanga João Paulo.

 

 

No dia 19 de janeiro, teve início o processo contra os assassinos do senador. As primeiras testemunhas, serviçais da casa do capitão Andrade, apontaram como autores dos disparos feitos das janelas Veridiano, Elyseu da Cunha e Messias Garcia, e não o capitão.

Um homem chamado Joaquim Gabriel, que por coincidência visitava Andrade na hora dos tiros, garantiu ao juiz que o capitão e seu filho permaneceram nos fundos da casa no início do episódio. Só se deslocaram para as janelas da frente - segundo Joaquim - após a morte de Paranhos. Tal depoimento confirmava a versão dos acusados.

O juiz ignorou os testemunhos da defesa. Pronunciou Carlos Antônio de Andrade como autor principal do homicídio. Elyseu da Cunha, Veridiano, Messias e Franklin Toró, todos ainda em liberdade, foram declarados coautores, assim como o guarda-costas João Paulo. Apenas Carlito, por ser menor de idade, conseguiu ser inocentado.

Entre uma e outra audiência, o capitão continuou sendo torturado, sem que o juiz tomasse providências, embora o aspecto do oficial não escondesse os suplícios que sofria na prisão. Além disso, a cadeia ficava próxima a diversas casas. Tornou-se impossível escamotear o que se passava na enxovia - os gritos de dor agrediam a quietude da noite.

Com o passar dos dias, a população, antes indignada com o assassinato do senador, começou a se revoltar contra as torturas sofridas pelos réus, principalmente por Carlos de Andrade. Um homem branco, capitão reformado do Exército Imperial, herói da Guerra do Paraguai e oficial da Guarda não era, afinal, um borra-botas qualquer.

Nada mais natural do que vingar a morte de um parente. Chegava a ser uma obrigação da família do morto. Mas vingança era para ser feita em campo aberto, ou mesmo numa tocaia, com faca ou tiro, diretamente ou através de jagunços. Tudo isso era parte da cultura local. Não aquele justiçamento aos pouquinhos, com a complacência das autoridades, uma atitude que ultrapassava os próprios, e elásticos, limites de decência da região.

Logo surgiu um movimento para libertar o capitão Andrade. Mesmo pessoas da família Paranhos aparentadas do capitão - na cidade, a elite se casava entre si - passaram a conspirar para pôr fim à selvageria praticada na cadeia.

Josefina Paranhos, uma das filhas do senador assassinado, tinha um dos seus filhos casado com uma filha do capitão Carlos. Quem sabe pressionada pela nora, dona Josefina ofereceu ao soldado Henrique dos Santos, carcereiro da prisão, 500 mil réis para facilitar a fuga do capitão e do guarda-costas João Paulo.

Só que o soldado deu com a língua nos dentes numa roda de botequim. E assim Felipe Estrela tomou conhecimento do suborno. Procurou Henrique e ofereceu-lhe o dobro, um conto de réis, para revelar detalhes da fuga. Soube então que esta iria acontecer na noite de sexta para sábado, dias 25 e 26 de fevereiro de 1898.

Tal como foi acertado com dona Josefina, por volta de uma e meia da madrugada de sábado o carcereiro Henrique iluminou a enxovia e jogou para os prisioneiros as chaves dos cadeados das correntes. Uma vez soltos, fê-los subir até o andar térreo da delegacia, através da boca do alçapão, usando uma rede de dormir. Galgaram então mais um lance de escadas, até a sala de audiências. De lá, por uma janela, e se valendo da mesma rede, Carlos de Andrade e João Paulo desceram para a rua.

Do lado de fora, na noite enluarada, capangas de confiança do capitão Carlos se escondiam por trás do muro de um quintal que dava para a cadeia. Dali, pensavam, poderiam cobrir a fuga dos presos. Só não sabiam que jagunços de Felipe Estrela, em maior número, e auxiliados por um sargento e um soldado do destacamento, se achavam posicionados em um lote vago, do outro lado da rua, agachados atrás de umas carrapateiras. E foram os homens de Estrela que impediram a fuga dos presos, abrindo fogo contra Andrade e João Paulo, assim que a lua os iluminou junto à parede da cadeia. O capitão e seu camarada tombaram mortos.

Quando o dia clareou, os dois cadáveres podiam ser vistos bem em frente à cadeia, cercados por curiosos. Carlos de Andrade apresentava quatro perfurações de tiros. João Paulo, três.

Dona Josefina recolheu pessoalmente o corpo do capitão para enterrá-lo. Mesmo sendo filha do senador assassinado, os Paranhos proibiram o enterro no cemitério. A cova teve de ser aberta do lado de fora, junto ao muro.

 

 

Eliminado o capitão, os Paranhos voltaram-se a Elyseu da Cunha, refugiado em sua chácara em Anhanguera, às margens do Paranaíba, divisa com Minas Gerais, a apenas cinco léguas de distância de Catalão. Uma tropa de soldados partiu em seu encalço. Ao chegar lá, o chefe do grupamento, um cabo de polícia de nome Anastácio, deu início ao ataque, com ordens de trazer Elyseu da Cunha vivo ou morto.

Fazendo jus à sua reputação de valentia, Cunha, ajudado pela companheira Rita Ferro, recebeu os sitiantes a tiros. No fogo que se seguiu, os pôs para correr, de modo tão esbaforido que os fundilhos das calças dos soldados ficaram presos às cercas de arame farpado da chácara.

Convicto de que a polícia iria voltar, dessa vez com efetivo maior, e temeroso de sofrer o mesmo destino do capitão Andrade, Elyseu decidiu fugir para a região do rio Araguaia, no norte do estado. Seu filho, Isaac da Cunha, juntou-se a ele.

Os Cunha, pai e filho, só regressariam a Catalão onze anos mais tarde. Nessa oportunidade, seus inimigos de morte, os Paranhos, chorariam amargamente não tê-los liquidado naquele final do século xix , logo após o Segundo Fogo.


9. Fim da Era Paranhos

... com a revolução de 1909, Elyseu da Cunha tomou o poder na cidade...

Luís Palacín Gomez,

História política de Catalão

 

A ponta dos trilhos se aproximava de Araguari. Seriam apenas mais dez léguas até Catalão, já com o nome de Estrada de Ferro Goiás. Na expectativa da vinda do trem, a cidade vivia um surto progressista. Entre outras novidades, surgiu uma tipografia, na qual se rodava o Goyaz e Minas, primeiro jornal do município.

Nos primeiros anos do século xx , assentaram-se no Sudeste de Goiás imigrantes sírio-libaneses; tal como acontecia em todo o Brasil, o povo passou a chamá-los de turcos . Eles chegavam na condição de mascates, geralmente com as mãos abanando. Logo juntavam dinheiro e abriam lojas, charqueadas, serrarias, usinas de açúcar e beneficiadoras de arroz.

Nessa mesma época, nasceu em Jataí, no extremo oeste do estado de Goiás, um bebê do sexo masculino que recebeu o nome de Antero da Costa Carvalho.

Jardim Público no início do século XX.

 

Com a morte do capitão Carlos de Andrade e a fuga de Elyseu da Cunha, José Maria Ayres passou a liderar a inexpressiva oposição da cidade, que vivia sob o reino quase absoluto dos Paranhos. Ricardo e Alfredo, filho e neto do senador assassinado, e o major Felipe Estrela, mandavam e desmandavam.

Elyseu da Cunha, que acalentava ambições de retornar a Catalão e de tomar para si o poder político, desceu do Araguaia e voltou a residir em suas terras em Anhanguera.

 

 

Em 1904 nascia Salviano Marciano da Costa, filho único do coronel Salviano Antônio da Costa e da viúva Maria Olinda de Matos. Os pais de Salvianinho, como ele veio a se tornar conhecido, se separaram pouco depois de seu nascimento. Conduta incomum à época, o coronel Salviano deixou Maria Olinda ir embora em paz. Arranjou outra para substituí-la: dona Donária, mulher muito religiosa. Sob custódia do pai, Salvianinho passou a ser criado mais na fazenda, entre peões e jagunços, ajudando a cuidar do gado.

 

 

Tudo indicava que o reinado dos Paranhos ainda duraria muito tempo, quando em 1909 estourou uma revolução em Goiás, que depôs o presidente do Estado, Miguel Rocha Lima, em fim de mandato, para evitar a posse de seu sucessor, Hermenegildo Morais. Os revoltosos alegaram fraude nas eleições e deram posse ao candidato derrotado, Urbano de Gouvêa.

No movimento, os Paranhos apoiaram Rocha Lima. E, para grande desalento da família, Elyseu da Cunha e seu filho Isaac se incluíram entre os vitoriosos, tendo participado, numa legião comandada por Eugênio Jardim, da tomada da capital, Cidade de Goiás.

Vitoriosa a Revolução, Jardim prometeu a Elyseu que, num segundo julgamento pelo assassinato do coronel Paranhos, ele seria absolvido. Desse modo, Elyseu da Cunha - que todos sabiam ser um dos pistoleiros que alvejaram o senador - pôde, após mais de dez anos de ausência, retornar triunfalmente a Catalão, cumprindo promessa feita a si mesmo.

Mal se instalou na cidade, Elyseu, aos 47 anos, assumiu a cadeira de intendente. Começou a correr na cidade o boato de que os Cunha iriam tomar de assalto o sobrado dos Paranhos. Estes, não querendo arriscar, se retiraram para Minas. Ricardo foi morar em Araguari, onde possuía uma firma fornecedora de dormentes de estrada de ferro. Alfredo optou por residir em Bagagem, que mais tarde seria conhecida como Estrela do Sul.

A saída de Ricardo e Alfredo marcou o fim da Era Paranhos em Catalão.

Rua do Comércio.

 

Naquela primeira década do século xx , Marconi inventou o telégrafo sem fio. O cinema começou a se popularizar - em Paris exibiram o filme Viagem à Lua, de Georges Méliès, com efeitos especiais. A polícia suíça prendeu um agitador italiano de nome Benito Mussolini. No Rio de Janeiro, a população se insurgiu contra a vacina obrigatória, numa revolta que deixou trinta mortos e 110 feridos. Um jovem cientista alemão, de nome Albert Einstein, desenvolveu a teoria da relatividade. A aviação teve seu início com o voo dos irmãos Wilbur e Orville Wright, em 1903, nos Estados Unidos, e de Alberto Santos Dumont, em Paris, três anos mais tarde.

O espanhol Pablo Picasso revolucionou as artes ao pintar Les Demoiselles d’Avignon , um dos marcos do cubismo. Ao volante de um Brasier de dezesseis cavalos, o conde Lesdain tornou-se a primeira pessoa a percorrer de automóvel o trajeto entre São Paulo e Rio de Janeiro, numa viagem de 26 dias. No subúrbio da Piedade, na capital federal, o aspirante Dilermando de Assis matou, em legítima defesa, o escritor Euclides da Cunha, autor de Os Sertões e marido traído de Ana, amante do militar.

 

 

Com a estrada de ferro já alcançando Araguari, tiveram início os trabalhos de construção do trecho Araguari/Goiandira/Ipameri, com um ramal de Goiandira a Catalão, pequeno apêndice do qual os dirigentes da estrada iriam se arrepender amargamente. Mas, naquele momento, seria impossível imaginar que os turmeiros que dispunham os dormentes e pregavam os trilhos seriam os mesmos que iriam enfrentar, alguns anos mais tarde, o povo da cidade de Catalão, chefiado por Isaac da Cunha, filho de Elyseu, no sangrento episódio do Terceiro Fogo.


10. A chegada do trem

Os trilhos somente alcançaram Catalão em 1913, provocando um aumento substancial na população de imigrantes, principalmente árabes.

Antônio Miguel Jorge Chaud,

Imigrantes em Catalão

 

No dia 2 de setembro de 1909, um mês depois de sua volta a Catalão, Elyseu da Cunha, tendo assumido a intendência, se apresentou oficialmente ao delegado Marcílio Ayres, filho do coronel José Maria Ayres e velho aliado político dos Cunha. Elyseu queria se ver livre da acusação de coautoria do assassinato do senador Antônio Paranhos.

Marcaram, em tempo recorde, o julgamento para o dia 20 de outubro. Das dez testemunhas que depuseram no processo anterior, duas haviam morrido e outras duas não foram encontradas. Das seis intimadas, todas intimidadas, nenhuma compareceu. O júri concluiu que o réu simplesmente não atirara em ninguém.

 

* * *

 

A linha da estrada de ferro, já em Araguari, trazia bens dos grandes centros para os consumidores do Sudeste de Goiás. As exportações de produtos goianos também foram facilitadas. E o correio passou a demorar menos. A distância percorrida em tropas de burro e carros de boi diminuiu muito. E logo seria nenhuma, pois haviam iniciado a construção do trecho Araguari/Goiandira/Ipameri e do ramal Goiandira/Catalão.

Nos canteiros de obra da estrada, os capatazes lutavam para impor disciplina entre os peões, não raro tendo de enfrentar à bala um ou outro turmeiro mais atrevido. Em Catalão, o povo tomava conhecimento desses incidentes. Muitos habitantes pressagiavam, não sem uma ponta de excitação, um enfrentamento, tão logo essa turba se visse frente a frente com os valentões locais.

Finalmente a ferrovia entrou em Goiás, quando os trilhos foram fixados na ponte recém-concluída sobre o Paranaíba, feita para uso misto de trens, carros de boi e travessia de pedestres e animais. Mercadores, passageiros e bestas de carga já não teriam de se valer de balsas, nem as boiadas precisariam atravessar o rio a nado, como vinha ocorrendo desde os tempos dos bandeirantes.

 

 

O município de Catalão somava agora 25 mil pessoas e novas levas de imigrantes continuavam chegando. Isaac da Cunha sucedeu o pai, Elyseu, na liderança política. Mais hábil, mais culto, o filho não encontrou dificuldades para alcançar prestígio pessoal semelhante ao que os Paranhos usufruíram anos antes.

A oposição, embora pequena, continuava existindo. O partido dos Netto e dos Campos, herdeiros políticos dos Paranhos, era conhecido popularmente como “papo-roxo”. Já o dos Cunha e aliados, entre os quais os Ayres, os Victor Rodrigues, os Paiva e os Gomes Pires, levava o apelido de “papo-amarelo”. Os dois nomes foram tirados das carabinas usadas na época, de uma e de outra cor.

Estação de Catalão da Estrada de Ferro Goiás.

 

Elyseu da Cunha, agora demente, vagava pelas ruas e arredores da cidade, falando sozinho, discutindo asperamente consigo mesmo. Um dia foi encontrado morto, de morte morrida, no campo.

 

 

Em 24 de fevereiro de 1913, o trem chegou à cidade. Inauguraram a estação com festa e piquenique. Depois de longa ausência, Ricardo Paranhos, filho do senador assassinado, apareceu entre os passageiros da composição inaugural. Sendo fornecedor de dormentes para a estrada de ferro, além de orador de grande prestígio, foi convocado pela direção da ferrovia para discursar na cerimônia. Mas, mal ele desceu do trem, Isaac da Cunha aproximou-se e lhe disse ao ouvido:

- Bico calado, senão morre.

Paranhos não teve outro remédio senão desistir do discurso, cuidadosamente preparado. Pôs o rabo entre as pernas e escondeu-se na multidão em festa.

 

 

Embora dona Donária, madrasta de Salvianinho, tentasse dar-lhe instrução, inclusive religiosa, ele, tendo acabado de completar dez anos, só queria ficar na fazenda do pai. Lá, ajudava no trato do gado e recebia as primeiras lições no manejo de armas. Ficou sabendo, entre outras coisas, que um homem nascido em Catalão podia até dever dinheiro. Honra, jamais. E honra só se pagava com sangue.

Um dos empregados do coronel Salviano era um foragido chamado José Luciano, também conhecido por José Dorneles ou, mais comumente, por Cabeleira. Tendo fugido da Justiça de Minas Gerais, Cabeleira trabalhava como carreteiro da fazenda, transportando toras para a serraria do patrão. Nas horas vagas, fazia biscates de jagunço, matador de aluguel. Homem muito simples, se afeiçoou ao filho do coronel. Contava-lhe toda sorte de histórias, repletas de violência e de homens valentes. Os vivos olhos castanho-claros de Salvianinho se arregalavam de admiração.

Cabeleira celebrizou-se em Catalão por ser uma pessoa que não perdoava desaforo. Se o ofensor fosse gente de respeito, homem corajoso, ele resolvia o caso a tiros. Se era humilde, uma surra de rabo-de-tatu tala larga, que o matador nunca se esquecia de levar à cintura, bastava para desagravar a ofensa. O carreteiro, amante de bailes e pagodes, vestia-se bem. Dado a conquistas amorosas, era moreno claro, de porte alto e boa aparência.

 

* * *

 

Em 1914 foi eleito intendente o coronel Manoel Gomes de Paiva Rezende, mais conhecido como Nequinha Gomes, papo-amarelo e correligionário de Isaac da Cunha. Além de sério e trabalhador, Nequinha se mostrou um homem pacífico. O mesmo não se podia dizer de seu filho, Salomão de Paiva, de pouco mais de quarenta anos. Quando bebia, o que ocorria quase todas as noites, Salomão provocava arruaças na cidade.

A convivência, na mesma época, de Salomão de Paiva, Salvianinho, Cabeleira e do chefe político Isaac da Cunha, aos quais se juntariam os turmeiros da Estrada de Ferro Goiás, cujo ramal agora se expandia na direção de Ouvidor, tornaria inesquecíveis os próximos anos em Catalão.


11. Terceiro Fogo

A perversidade dos assaltantes e a sua sede de sangue tinham tamanha intensidade que, não obstante estarem saciados os seus instintos, estando tombados os que alvejaram, voltaram a rever a obra de destruição que produziram, com profanação atirando novamente sobre os cadáveres...

Administrador Alcides Ferreira dos Santos, da Estrada
de Ferro Goiás, em depoimento ao jornal

A Gazeta de Araguari

 

Desde 1914, a Europa se envolvia em um conflito de proporções sem precedentes, que a história registraria como a Grande Guerra, e, mais tarde - com o advento de outra ainda maior -, como Primeira Guerra Mundial. Armas até então inimagináveis - tanques, aviões de caça, submarinos, canhões de longo alcance e granadas químicas - dizimavam a juventude europeia. Só na luta de trincheiras travada nos enlameados campos franceses de Verdun, na Frente Ocidental, dois anos após o início da guerra, os mortos de ambos os lados já somavam 700 mil.

 

* * *

 

Nove mil quilômetros ao sul de Verdun, o povo de Catalão - para o qual a guerra, tão distante, parecia estar acontecendo em outro planeta - vivia, no início daquele ano, tempos dos mais auspiciosos. A expansão dos trilhos da Estrada de Ferro Goiás, em direção a Catuaba, anos depois conhecida como Ouvidor, e Três Ranchos, turbinava a economia da cidade.

Taberneiros, comerciantes dos mais diversos ramos, pequenos mascates, prostitutas, todos usufruíam das levas de turmeiros que aportavam a cada momento a fim de trabalhar na construção da ferrovia. Para desgosto das famílias mais recatadas, à noite as putas transitavam livremente pelas ruas do centro, procedimento que não ousariam adotar até poucos anos antes.

 

 

Todos os sábados, à tardinha, um trem especial, lotado de trabalhadores, chegava do acampamento da ferrovia, localizado na saída para Goiandira, num local conhecido como Boca de Onça. Centenas de homens desciam na estação de Catalão, tendo no bolso o ordenado da semana.

Alegres, na expectativa de uma noite agitada, os turmeiros corriam em bandos ruidosos pelas ruas da cidade, em direção aos bares, para levantar o espírito com talagadas de cachaça. Depois, já animados, invadiam a zona do meretrício - onde logo formavam fila na porta das melhores mulheres -, lotavam os pagodes, se acotovelavam nos poleiros dos circos de cavalinhos e de touradas, arriscavam a sorte nas casas de jogo, os estabelecimentos competindo pelos melhores nacos do dinheiro volátil dos peões.

Em meio ao tilintar das moedas de cobre e bater de copos e garrafas, os gritos de festejo dos trabalhadores levavam Catalão de volta aos tempos da corrida de ouro de Goiás. Brigas, bebedeiras e farras varavam a noite, pobremente alumiada por lampiões a querosene.

Se alguma família carecesse de sair para visitar um parente ou comparecer a um sarau, seus chefes seguiam apreensivos pelas ruas, grudados em suas mulheres e filhas, lanternas chinesas de vela envolta em papel crepom numa mão, armas de fogo ao alcance da outra, olhos e ouvidos atentos às sombras e aos ruídos.

Quando amanhecia o domingo, os peões podiam ser vistos derribados nas portas dos botecos. Mas, mal o sol esquentava, aos poucos iam acordando. Desciam até o córrego Pirapitinga, onde molhavam o rosto na água fria. Logo voltavam a beber, até o dinheiro acabar.

Na segunda-feira, antes mesmo de o sol nascer, os trabalhadores, exaustos, bolsos vazios, pegavam o trem de volta para a frente de trabalho, com exceção de alguns, detidos na cadeia por brigas ou bebedeira. É verdade que não permaneciam ali por muito tempo: para a ferrovia, aqueles pobres diabos representavam mão de obra barata e, portanto, preciosa. Durante a semana, o feitor da turma de avançamento da estrada, Alcides dos Santos, comparecia à cadeia e recolhia a taxa de carceragem, resgatando os desordeiros. Mais tarde, o dinheiro desembolsado lhes seria descontado dos salários.

 

 

Nesse ambiente de agitação, o papo-amarelo Isaac da Cunha, embora sem ocupar cargo público naquele ano, continuava como chefe político do município. Nequinha Gomes, correligionário de Isaac, permanecia na intendência. Seu filho, Salomão de Paiva, conseguia ser ainda mais arruaceiro do que os arruaceiros da estrada.

As autoridades municipais, inclusive o delegado, faziam vista grossa para os distúrbios dos peões, pelo menos enquanto despejassem tanto dinheiro no comércio da cidade. Uma vez que aceitavam as desordens dos forasteiros, obviamente não interferiam nos folguedos dos rapazes das boas famílias do lugar.

 

 

Catalão podia orgulhar-se de ter agora um telegrafista, Zoroastro Artiaga, sempre o primeiro a saber das notícias da guerra na Europa. Os padres agostinianos abriram um ginásio para rapazes. A banda municipal elevou-se a filarmônica.

Todos esses progressos e avanços culturais eram ofuscados, à noite, principalmente nos fins de semana, quando os peões vindos da Boca de Onça se uniam nos bares aos valentões, jagunços e toda sorte de desordeiros locais.

 

 

Se, por um lado, as putas se beneficiavam financeiramente da demanda por seus serviços, por outro se tornavam vítimas dos baderneiros, já que em Catalão todos consideravam normal o tratamento cruel que boa parte dos homens lhes dispensava. E tanto a Justiça quanto a polícia simplesmente ignoravam os crimes cometidos contra prostitutas.

Uma dessas mulheres, Emerenciana Neiva, mais conhecida como Sana, que, tendo enviuvado, caiu na vida para sobreviver, gozava de tratamento melhor. Era amante tanto do delegado de polícia, alferes Mendonça - um homem alto, feroz e muito feio, conhecido como Suã de Vaca -, como do mandachuva da cidade, o temido Isaac da Cunha.

Foi justamente uma tragédia envolvendo Sana que detonou o Terceiro Fogo.

 

 

Em 1o de fevereiro de 1916, uma terça-feira, dia de menor movimento, no início da noite um foguista da estrada e dois turmeiros chegaram à cidade. Dirigiram-se a uma taberna para beber. Às nove da noite, já encharcados de cachaça, foram até a casa de Sana, modesta meia-água de chão de terra batida e dois cômodos. Bateram vigorosamente à porta, tentando forçar a entrada. Do lado de dentro, percebendo que os homens estavam bêbados e poderiam machucá-la, Sana se assustou. Tentou fugir pelos fundos.

Tendo visto, à luz da lua cheia, Sana sair por uma porta que dava no quintal, ladear a casa e começar a correr pela rua, o foguista ordenou-lhe que parasse, chamando-a pelo apelido. Como ela não obedeceu, o moço não hesitou. Puxou do revólver, fez mira e disparou três tiros.

Mortalmente ferida, Emerenciana desabou no chão enlameado.

Enquanto ela agonizava, os três homens sumiram na direção da linha de ferro. Diversas pessoas correram para o local do crime. Em pouco tempo, uma pequena multidão se reunia ao redor do cadáver da puta. Acenderam-se velas. Alguém se lembrou de chamar o delegado Mendonça, que não demorou a aparecer.

Indagando daqui e dali, Suã de Vaca descobriu que os assassinos eram turmeiros da estrada, vistos rondando a casa de Sana pouco antes do crime. Um deles, conhecido foguista, moço encrenqueiro, gostava de arrotar valentia com seu revólver - entre os empregados da ferrovia, raros possuíam armas de fogo, pois os peões eram proibidos de usá-las - e vivia caçando briga nas tabernas.

Apesar do ódio que lhe ardeu no peito, e da fervura do sangue, Mendonça preferiu agir com prudência. Com seu efetivo pequeno, seria quase suicídio invadir o acampamento dos turmeiros no meio da noite para capturar o assassino. Optou por esperar o dia amanhecer.

 

* * *

 

Na manhã de quarta-feira, Suã de Vaca abordou o feitor da estrada, Alcides, que chegou à cidade diretamente da Boca de Onça. Como os dois costumavam agir de comum acordo sempre que um trabalhador da ferrovia infringia a lei, o delegado pediu ao capataz que lhe entregasse os responsáveis pelo assassinato de Emerenciana, entre eles o foguista.

- Tudo bem - respondeu o feitor. - Você passa lá na entrada do acampamento hoje à noite, depois das onze, que eu lhe entrego os homens.

Embora intrigado com a hora marcada, Suã de Vaca não questionou a oferta, para não parecer que sentia medo.

- Então estamos conversados - o policial fechou com o feitor. - Entre onze e meia-noite eu vou lá.

Antes de reunir seus homens para combinar as providências, o alferes Mendonça decidiu consultar Isaac da Cunha, que tampouco aprovou a hora e o local acertado para as prisões. Cheirava a emboscada. Mas, assim como Mendonça, Isaac não podia demonstrar medo. Fez questão de assumir o comando do efetivo policial. Resolveu levar, como reforço, um primo, Oswaldo da Cunha, e outros civis da cidade.

Às dez e meia da noite, o grupo armado seguiu a cavalo em direção à Boca de Onça, que ficava a um quilômetro da cidade, à margem do trecho Goiandira/Catalão da estrada. Quando chegaram lá, nem o feitor Alcides nem os homens que deveriam ser entregues estavam na entrada do local.

Para não perder a viagem, Isaac deteve dois turmeiros que perambulavam por ali sem saber de nada. Mas não ousou invadir o acampamento. Mesmo com a maioria dos trabalhadores desarmada, a disparidade de forças era muito grande. Na Boca de Onça viviam quinhentos peões. Já a força policial, mesmo contando os civis, não passava de 25 homens.

Antes de regressar a Catalão, Isaac fez questão de deixar marcada a sua presença. Mandou que seus homens disparassem uma salva de tiros de advertência contra as barracas mais próximas, distantes uns duzentos metros. Só que o fogo não ficou sem resposta. No acampamento, os quatro chefes de turma portavam carabinas. Clarões e estampidos mostraram à força policial que, se quisessem luta, luta haveria.

Embora, tanto de um lado como de outro, os homens estivessem bem protegidos pela escuridão, os tiros continuaram, esparsos, por um bom tempo. Finalmente Isaac decidiu retirar-se com sua força para a cidade, levando presos os dois peões incautos que zanzavam pelo local. Mandou jogá-los no alçapão da cadeia.

 

 

Se em algum momento Isaac e Mendonça acreditaram ter atemorizado o pessoal da estrada, na noite de quinta para sexta-feira perceberam seu engano. Logo após o pôr do sol, diversos turmeiros surgiram na cidade e se dirigiram a um botequim. Uma hora depois, já bêbados, arrombaram a venda de um sírio, roubando armas e grande quantidade de munição. Antes de voltar para a Boca de Onça, percorreram algumas ruas fazendo disparos para o ar.

A afronta, principalmente por ter sido obra de forasteiros, desmoralizava o povo de Catalão. Ayres, Cunha, Paranhos, Andrade, Paiva, Sampaio, Gomes Pires, papos-roxos, papos-amarelos - numa unanimidade poucas vezes vista -, ninguém contestou o direito de Isaac da Cunha de partir para a desforra em defesa da honra da cidade.

Entre os defeitos de Isaac, não se incluía a burrice. Muito menos a ingenuidade. Em vez de atacar o acampamento, cujo pessoal - agora mais bem armado, depois do assalto à loja do sírio - devia estar esperando pelo confronto, decidiu emboscar o trem de turmeiros, de madrugada, à saída leste da cidade, na direção de Catuaba. Tal como acontecia todos os dias, com exceção dos domingos, o comboio teria de passar por lá, após sair da Boca de Onça e atravessar a estação, encaminhando-se para a ponta da linha.

O ponto escolhido para a tocaia ficava depois de uma curva, local que os condutores do trem, ainda mais no lusco-fusco da madrugada, só iriam avistar quando estivessem praticamente lá.

Tudo acertado, passaram à ação. Quando o trem de serviço saiu do acampamento, Isaac e seus homens - reforçados por diversos bambas da cidade, ávidos por uma refrega - já ocupavam postos na curva. Sob a luz de lampiões a querosene, deslocaram uma pilha de dormentes da beira da estrada para o meio dos trilhos, posicionando-os verticalmente num bueiro de escoamento de águas pluviais que servia também de mata-burro. Se o trem arremetesse contra os dormentes, descarrilaria.

Pouco depois, sua silhueta escura se destacando na vermelhidão da madrugada, a locomotiva maria-fumaça veio resfolegando, expelindo uma nuvem preta e rebocando um tênder e duas gôndolas com 86 trabalhadores. Entre estes, muitas mulheres, responsáveis pela comida dos peões, e diversos pinantes, que eram as crianças que serviam como ajudantes de obra.

Faltavam alguns minutos para as cinco e meia quando o comboio passou pela estação e deixou a cidade, as rodas batendo de maneira cadenciada nas junções dos trilhos. A locomotiva percorreu uma pequena reta e se aproximou da curva, apitando de maneira desconfiada, como se a própria máquina pressentisse a emboscada.

Quando o maquinista percebeu a pilha de dormentes bloqueando os trilhos, seu reflexo condicionado levou-o a puxar, de um golpe, a alavanca dos freios, abrindo ao mesmo tempo a válvula de escape de vapor. Os dois procedimentos, contrabalançados pela inércia, fizeram com que o comboio parasse cem metros adiante, exatamente onde se escondiam os homens, soldados e civis, liderados por Isaac da Cunha, por seu primo Oswaldo e pelo delegado Suã de Vaca.

Procurando se aproveitar ao máximo do efeito surpresa, os tocaieiros deram início à pesada fuzilaria. O maquinista foi um dos primeiros a ser atingido.

Logo alguns disparos vieram do trem, em resposta ao ataque. Mas a maioria dos turmeiros, quase todos desarmados, procurou apenas fugir da linha de tiro, muitos se jogando no chão das gôndolas. Outros pularam dos vagões pelo lado oposto ao dos atacantes e correram para o meio do cerrado. Mesmo os trabalhadores já feridos voltavam a ser alvejados. Os cadáveres também recebiam novos picotes.

 

 

O Terceiro Fogo durou menos de quinze minutos. Quando as armas silenciaram, nove turmeiros, entre eles dois pinantes (um de oito e outro de dez anos), haviam morrido nas gôndolas desprotegidas. Outros nove trabalhadores estavam feridos.

Do lado dos assaltantes, apenas um soldado morreu. O autor do disparo que matou o militar foi exatamente o foguista bom de tiro, e ruim das ideias, que, dias antes, detonara o estopim do incidente ao matar a puta Emerenciana.

Sem se preocupar em socorrer os feridos, Isaac e seus homens se retiraram do teatro de batalha, voltando para Catalão. O maquinista do trem, mesmo baleado, deu marcha a ré no comboio. Na falta de melhor opção, dirigiu-se também à cidade, em busca de assistência médica.

A antiga casa do padre Luiz Antônio serviu de hospital. Dois voluntários, Eliziano Caixeta e Maria do Carmo Hummel, se condoeram dos feridos. Levaram-nos da estação para lá, onde foram atendidos pelo único médico que havia naquele dia em Catalão. Os cadáveres também foram transportados ao local.

Nenhum dos turmeiros mortos tinha parentes na cidade. Por isso não surgiu ninguém para pagar nem para cuidar dos enterros. Muito menos o intendente Nequinha Gomes se interessou pelo caso. Só ao entardecer de domingo, quando os cadáveres já exalavam um cheiro nauseabundo, correu uma lista entre os comerciantes e as vítimas foram enterradas numa vala comum do cemitério.

 

 

Ao contrário de outros tiroteios de Catalão, o Terceiro Fogo repercutiu no Rio, São Paulo e Minas Gerais, talvez por ter envolvido a estrada de ferro. O jornal O Estado de S. Paulo publicou extensa matéria a respeito, referindo-se à chacina como O massacre dos ferroviários. E cobrou providências das autoridades.

Quem sabe sensibilizado pelo interesse da imprensa, o governo de Goiás nomeou um delegado especial para apurar o incidente. A escolha, acredite-se, recaiu sobre Oswaldo de Cunha, o primo de Isaac que também participara do ataque.

 

 

A cidade pagou caro pelo Terceiro Fogo. A direção da Estrada de Ferro, alegando falta de segurança, suspendeu as obras e pôs fim ao surto de progresso. O ramal de Catalão permaneceu como apêndice, solto, bobo, sem a inicialmente projetada ligação com a Estrada de Ferro Oeste de Minas.

Na ausência dos turmeiros, bares foram fechados, circos baixaram suas lonas, mascates foram em busca de melhores praças, as putas, de outras clientelas. Houve forte depressão e muito dinheiro deixou de circular.

Embora ninguém pudesse antever naquele momento, a paralisação das obras da estrada de ferro iria durar um quarto de século. A ponta da linha só voltaria a se mover no sentido de Catuaba, já então Ouvidor, durante a Segunda Guerra Mundial.

 

 

Jamais se soube do paradeiro do foguista, estopim do massacre. Mas tudo leva a crer que escapou impune. Seu nome nem chegou a ser mencionado pelos cronistas do fato. Seu gatilho covarde e imprudente permaneceu anônimo. Pelo menos nesse aspecto, o da impunidade, o assassinato de Emerenciana Neiva, a Sana, fez jus às tradições da cidade.


12. Noite de São Pedro

Lá ficaram estendidos no chão, tio e sobrinho...

Cornélio Ramos,

Catalão - Poesias, lendas e histórias

 

Catalão se recuperava da crise econômica gerada pela interrupção dos trabalhos de expansão da Estrada de Ferro Goiás, consolidando-se agora como ponta leste da linha. Isso fez surgir armazéns atacadistas. Desses depósitos, os produtos vindos no trem eram comercializados e remetidos em carros de boi ou tropas de burro para regiões do estado não servidas pela ferrovia.

 

 

No inverno, com suas noites claras e estreladas, celebravam-se muitas festas na cidade, sendo a de São João, no dia 24 de julho, a mais importante. Ao pôr do sol, o povo subia em procissão o Outeiro da Saudade, até a capelinha, levando a imagem do santo e entoando cânticos. Cinco dias depois, vinha a festa de São Pedro.

 

* * *

 

A noite de 29 de junho de 1917, de São Pedro, uma sexta-feira enluarada e especialmente fria, ficou marcada na memória dos catalanos. Não por causa da festa, que transcorreu normalmente, mas devido a um crime que mais uma vez alterou os rumos da política da cidade.

No bar do Nhonhô, Isaac da Cunha bebia cerveja em companhia do primo Oswaldo e de outros amigos. Lá pelas tantas, chegou ao local Amadeu da Cunha, irmão do falecido Elyseu da Cunha, portanto tio de Isaac.

Algum tempo antes, Amadeu, homem dado a bebidas, trocara desaforos com Isaac. Temendo ser morto pelo sobrinho violento, mudara-se para Araguari. Mas, como não se deu bem na cidade mineira, preferiu voltar a Catalão, onde fez as pazes com Isaac. Da boca para fora apenas, é bom que se diga, pois a desavença antiga continuava martelando seu cérebro.

Pois bem, naquela noite fria de São Pedro, no bar do Nhonhô o álcool subiu à cabeça de Amadeu, munindo-o de coragem. Até que, para estupor dos presentes, ele se levantou, puxou de uma faca e enfiou-a até o cabo na barriga de Isaac. Enfiou e rasgou, com tanta violência que os intestinos do chefe político pularam para fora, em meio à profusa hemorragia. Isaac morreu minutos depois, segurando as próprias vísceras.

Após recuperar-se do susto, Oswaldo da Cunha, primo e companheiro de Isaac, e também sobrinho de Amadeu, não pensou duas vezes. Sacou de um revólver do bolso traseiro da calça e matou na hora o tio assassino.

Dessa maneira, tão ao estilo da dinastia, terminou a Era dos Cunha em Catalão. É verdade que Oswaldo continuou morando na cidade, assim como Gerson da Cunha, irmão de Isaac, homem pacífico, professor, poeta e, como ninguém é perfeito, alcoólatra.

Para sorte de Catalão, Philosteu Rodrigues da Cunha, outro irmão de Isaac, não chegou a reivindicar a liderança política. Sim, sorte. Pois Philosteu era o pior de todos os Cunha.

Certa vez, estando a beber cerveja numa taberna da rua da Alegria, apinhada de fregueses, testemunhou quando um tal de Pelópidas atirou num sírio de nome Zacharias, sem que antes houvesse qualquer desavença entre os dois. Atirou por atirar, para saber de que lado tombava, como era comum entre os pistoleiros da cidade. Não satisfeito em ver o sírio caído, Pelópidas endereçou-lhe novo balaço. Apesar dos dois tiros, Zacharias não morreu na hora. Ficou ali deitado, estrebuchando, esvaindo-se em sangue, gemendo de dor.

Philosteu quis participar do episódio. Só que, em lugar de matar Pelópidas, como seria de se esperar, achou mais divertido enfiar mais uma bala em Zacharias. O sírio ainda foi levado com vida para a casa de um patrício, onde finalmente o deixaram morrer em paz.

 

 

Em outubro daquele ano, o presidente Venceslau Brás declarou guerra à Alemanha, depois que três navios mercantes brasileiros foram afundados na costa da Europa por submarinos daquele país.

Na Rússia, bolcheviques liderados por Leon Trótski invadiram a capital, Petrogrado, tomaram o Palácio de Inverno e transferiram o poder para o Comitê Militar Revolucionário. Pouco depois, proclamaram o Estado dos Sovietes, sob a direção do Conselho de Comissários do Povo, presidido por Vladimir Lênin.

Em Catalão, Nequinha Gomes continuava intendente. Seu filho, Salomão de Paiva, agora com 43 anos, após a morte de Isaac da Cunha tornara-se o homem mais temido da cidade.


13. De matador para matador

... E foi ali que, exangue, finalmente Baianinho tombou sem vida. Uma poça de sangue lambuzava o chão batido e os contornos do pé de pilão...

Juarez Costa Barbosa,

História política de Catalão

 

Em janeiro de 1919, o novo presidente eleito do Brasil, Rodrigues Alves, antes de assumir seu segundo mandato morreu de gripe espanhola, sendo substituído por seu vice, Delfim Moreira. Com o telégrafo, a notícia chegou a Catalão no mesmo dia. Poucos meses mais tarde, elegeram o sucessor, Epitácio Pessoa.

Para os viajantes, o Rio distava agora apenas três dias de Catalão, num percurso pelas estradas de ferro Goiás, Mogiana, Ingleza e Central do Brasil. Para quem até pouco tempo antes fazia jornadas de várias semanas a cavalo, dormindo em abrigos improvisados, era um luxo viajar em composições com carros-leito e vagões-restaurante.

A colônia sírio-libanesa, formada em sua maioria por comerciantes, crescia muito no município. Os turcos (alguns muçulmanos, mas a maioria, cristãos) costumavam ser alegres. Em suas festas barulhentas, dançavam girando lenços nas mãos.

O povo não via com bons olhos os raros protestantes. Os padres espanhóis, que agora dirigiam a paróquia, desconheciam o ecumenismo. Para eles, pior do que protestantes e muçulmanos, só mesmo os espíritas e os que acreditavam nos feiticeiros que, volta e meia, surgiam em Catalão. Para desalento dos padres, a gente crédula da roça respeitava e temia os bruxos ambulantes.

Certa vez, no final da década de 1910, surgiu um desses rezadores na cidade. E logo passou a espalhar aos quatro ventos que, para provar seus poderes sobrenaturais, se o enterrassem vivo ele ressuscitaria, tal como Cristo.

O manhoso benzedeiro se valia de um truque. Fazia-se enterrar no final da tarde, em cova rasa, cuja abertura supervisionava atentamente. Pouco depois, quando lhe lançavam terra em cima, ele cuidava de criar, com os braços, um bolsão de ar que lhe permitisse respirar durante algum tempo.

Quando chegava a noite, o povo, assustado com a feitiçaria, ainda mais no escuro, ia embora para casa. Aí o rezador, macaco velho em seu ofício, escavava sua fuga. Então surgia na cidade qual alma penada. Nos dias que se seguiam à “ressurreição”, ganhava muito dinheiro dando consultas e vendendo poções milagrosas.

Só que, em Catalão, as coisas se passaram de outra maneira. Um grupo de desordeiros fez questão de pôr terra e mais terra em cima da cova. E de socá-la bem. Quando soube do ocorrido, o chefe do destacamento de polícia correu até o local do enterro. Mas já encontrou o curandeiro morto, bem morto, o corpo contorcido pela tentativa desesperada de sair da armadilha.

 

* * *

 

Diariamente, à noite, os jogos de azar corriam soltos em Catalão. Nos cassinos da cidade, a roleta girava até altas horas. Pais de família perdiam o ordenado do mês. Mas nem todos os cidadãos gostavam do jogo. Pelo menos não daquele tipo. Alguns se interessavam por esportes, mais propriamente por futebol.

Em todo o Brasil, no início do século xx o futebol veio para ficar. Rara a cidade que não constituía um time. Abriam-se campos às pressas. No Rio de Janeiro, a Seleção Brasileira conquistou o Campeonato Sul-Americano, vencendo o Uruguai na final, por 1 a 0, no recém-construído Estádio das Laranjeiras, do Fluminense, com capacidade para 18 mil pessoas. Em São Paulo, o Paulistano sagrou-se tetracampeão.

Os rapazes das famílias mais ilustres de Catalão, que acompanhavam com interesse a nova moda, também formaram um time, o Catalão Football Club, com campo demarcado em dimensões oficiais. E faziam questão de jogar impecavelmente uniformizados.

No início, as partidas eram animadas, mesmo que jogassem apenas sócios contra sócios. Mas, com o passar do tempo, sentiram que faltava um time rival, para que houvesse uma verdadeira competição. Aliás, em Catalão nada agradava muito se não houvesse pelo menos duas facções em luta. E, no futebol, principalmente no futebol, não poderia ser diferente. Dessa maneira, surgiu o Operário Football Club, estimulado, e até mesmo subsidiado, pelos futuros adversários.

Como não podia deixar de ser, antes do primeiro confronto criou-se um clima de guerra. Os rapazes do Catalão, fina flor da sociedade, entre os quais diversos arruaceiros, não iriam perder logo seu jogo de estreia. Quanto aos do Operário, em sua maioria filhos de gente pobre, humilhada a vida toda por coronéis e fazendeiros, esses viam uma oportunidade de se desforrar de anos de opressão. Mais do que uma partida de futebol, seria, a bem dizer, uma luta de classes, tão em moda naqueles tempos de Revolução Russa.

Logo se percebeu, nos primeiros treinos da equipe do Operário, que um rapaz conhecido como Tó, pessoa muito querida na cidade, desequilibraria o jogo. Tó era um centroavante nato. Driblava bem, chutava forte, corria mais rápido do que todo mundo. Alguns espiões do Catalão que foram ver os aprontos do inimigo voltaram com a notícia de que, com Tó, seria muito difícil ganhar o jogo inaugural.

Finalmente chegou o grande dia. Quando as duas equipes entraram em campo, praticamente toda a cidade se acotovelava à beira das quatro linhas, inclusive o intendente Nequinha Gomes, o juiz, o vigário e o delegado. Enquanto a torcida do Operário apostava em Tó, os torcedores do Catalão faziam fé no Durval Sampaio, filho do coronel Luiz Sampaio, que também vinha treinando otimamente.

Mal a partida começou, Tó já desmoralizava os beques do Catalão com dribles desconcertantes. Mas o time dos ricos se prevenira. Num certo momento, Tó arremeteu pelo meio, driblou diversos adversários na corrida e invadiu a grande área, disposto a entrar no gol com bola e tudo. Eis, porém, que um dos defensores do Catalão, de nome Raul Rosas, rapaz conhecido por sua truculência, partiu em direção ao centroavante, saltou e chocou-se com ele, em pleno ar, atingindo-o com um joelhaço na altura do peito.

Com várias costelas quebradas e traumatismo no esterno, Tó foi retirado de campo e levado para casa. O jogo prosseguiu sem ele, tendo o Catalão vencido facilmente, embora a história não registre o placar. Mas registrou que Tó morreu três dias depois, após terríveis padecimentos. Morreu por falta de assistência médica, após ser tratado com unguentos caseiros. Só os ricos podiam ser atendidos no hospital mais próximo, em Araguari.

Se não teve recursos, Tó teve homenagens. A cidade parou no dia do enterro. Os dois times de futebol compareceram em peso ao funeral, unidos no pesar. Uma banda acompanhou o caixão até o cemitério executando “Saudades de Tó”, música composta especialmente para a ocasião.

Durante muitos anos, “Saudades de Tó” foi tocada na cidade. Depois, os contemporâneos do craque foram morrendo, e a canção morreu com eles.

 

 

Em 1919, Salvianinho, filho do coronel Salviano Antônio da Costa, passava da adolescência à juventude. Magro, de estatura média e pele muito branca, costumava vestir calça cáqui, camisa de algodão e chapéu de feltro cinza-claro, que tirava respeitosamente ao entrar nas casas de família. Calçava botas ringideiras, das bem baratas, de um tipo que os políticos distribuíam em época de eleições.

Agia com honestidade nos negócios de gado que o pai já lhe permitia fazer. Cumpria sempre o prometido. Quieto, simpático, respeitoso com os mais velhos, paciente com as crianças, quando se dirigia a alguém falava baixo, mantinha a cabeça e os olhos voltados para o chão. Costumava levar nos bolsos orações e santinhos.

Apesar de sua religiosidade, misturada a crendices da roça, não carregava desaforos para casa. Se provocado, tornava-se violento. Quando fincava pé em alguma coisa, não admitia ser contrariado. Pelos motivos mais fúteis, sentia-se ofendido.

Com apenas quinze anos, Salvianinho iniciou sua carreira de matador. Ele morava na Fazenda Chapada, de propriedade do pai, situada entre Campo Alegre e Cristalina. A mulher de um dos peões da fazenda - um valentão de maus instintos - queixou-se ao rapaz de que o marido a espancava com frequência.

- O senhor bem que podia matar ele pra mim - ela sugeriu com candura, fazendo fé no patrãozinho.

Como não gostava de homens que batiam em mulheres, e sentindo-se obrigado a prestar o favor, Salvianinho pouco hesitou. Correu até o rancho do casal, desafiou o peão para uma briga e, com a maior frieza, o matou.

Ao ser informado do ocorrido, o coronel Salviano decidiu esconder o filho por algum tempo na Fazenda da Vargem, também sua, distante três léguas da zona urbana de Catalão. Deixou-o como administrador da propriedade, onde, entre outras pessoas, morava um peão, de nome Manoel, mais conhecido como Baianinho, homem excêntrico e manhoso, empregado antigo da família.

Embora fosse competente e trabalhador, Baianinho desaparecia de vez em quando. Depois voltava ao serviço, sem dar satisfações a ninguém, como se nada tivesse acontecido.

O coronel não se importava com as esquisitices do empregado. E Salvianinho também aprendeu a conviver com elas. Mas, certo dia, um ano depois de o jovem ter matado o peão da outra propriedade, Baianinho decidiu viajar, levando consigo a montaria predileta do pai de Salvianinho, uma mula estradeira. Pior, quis levar também os arreios tacheados de prata que o coronel Salviano usava nos desfiles da Guarda Nacional.

Salvianinho não concordou com a pretensão.

- Você pode ir - disse ao empregado. - Mas vai ter que levar outro animal. A mula e os arreios vão ficar aqui.

Baianinho fincou pé.

- Não. Eu vou na mula.

Criou-se o impasse. De acordo com o costume em Catalão, aquele que cedesse ficaria desmoralizado. Só a morte de um dos dois resolveria a questão. Salvianinho sabia disso. Baianinho, também.

O jovem patrão não perdeu tempo. Sacou de um facão e partiu pra cima do empregado. Este, mais do que depressa, saltou de lado. Correu até um carro de boi, que se encontrava próximo, e tomou de um fueiro.

Com Salvianinho dando golpes, e Baianinho os aparando com o fueiro, os dois lutaram por quinze minutos, durante os quais percorreram os cem metros que separavam a sede da fazenda de um pilão movido a água, um monjolo. Finalmente, o rapaz conseguiu encaixar um golpe certeiro. O empregado caiu morto. Logo formou-se uma poça de sangue ao lado do pilão.

O vencedor da luta, num gesto que se tornaria uma de suas marcas registradas, abaixou-se e, com o facão, cortou uma orelha da vítima. Beijou, em agradecimento pela vitória, um patuá que levava ao pescoço. E não se esqueceu de rezar pela alma do falecido.

Em Catalão, ter duas mortes nas costas aos dezesseis anos tornava uma pessoa digna de respeito. Ainda mais, como no caso de Salvianinho, quando os mortos eram homens destemidos, rijos peões de fazenda.

Os dois episódios serviram para cercar de grande prestígio o jovem. Contribuíram também para solidificar sua amizade com Cabeleira, que tanto ajudou na criação do rapaz dentro das caras tradições de valentia do lugar.

Cabeleira, que, nas horas de folga continuava aceitando encomendas particulares de pistolagem, sempre trocava um dedo de prosa com Salvianinho. Só que, agora, numa conversa de homem para homem. De matador para matador.


14. Salomão de Paiva

Foi um cidadão estranho. Às vezes revelava-se justo e bondoso, outras, violento e perverso... Mandava seus jagunços matar seus adversários, depois comparecia ao enterro e ainda mandava condolências à família do morto.

Cornélio Ramos, sobre Salomão de Paiva,

Catalão - Poesias, lendas e histórias

 

Embora Cabeleira fosse um dos mais perigosos pistoleiros do município, ele nunca protagonizava episódios de violência gratuita. Ou matava em defesa de sua honra, ou então em troca de paga.

Em certa oportunidade, um tenente de polícia chegou a Catalão para comandar o destacamento. O oficial logo ficou sabendo da fama de Cabeleira. Achou que prendê-lo seria uma boa oportunidade para firmar prestígio.

Apreciador de cachaça, quando bêbado o tenente gostava de humilhar as pessoas. Ia num botequim e mandava encher um copo de pinga. Em seguida, escolhia alguém, ao acaso, molhava o punhal na bebida e ordenava ao outro que virasse tudo de um gole, bravata comum entre os valentões locais.

Num final de tarde, o oficial bebia na venda de um sírio. Após alguns tragos, suas orelhas se avermelharam. Arrotou valentia para o vendeiro, dizendo ter vindo à cidade para prender o Cabeleira. Pediu ao comerciante uma descrição do jagunço. Perguntou-lhe onde poderia encontrá-lo.

Para azar do tenente, nesse momento entrou na venda José Dorneles, ou seja, o próprio Cabeleira, cuja aparência simples e humilde escamoteava sua brabeza. O sírio estremeceu, na expectativa do que poderia acontecer.

Visivelmente bêbado, o militar fez questão de se exibir para o matuto recém-chegado.

- Como é esse tal de Cabeleira? - perguntou. - Onde é que ele mora?

José Dorneles, o matador, só queria matar a sede com um gole de pinga. Não procurava encrenca. Muito menos com soldado de polícia fardado.

- Eu não conheço nenhum Cabeleira - respondeu, esquivando-se, mas sem demonstrar medo.

O tenente não acreditou na resposta. Além disso, irritou-se com a calma do outro. Encheu um copo de cachaça, mexeu com o punhal e ordenou:

- Bebe, agora. Senão, vai beber à força.

Embora estivesse ali justamente para tomar um gole, Cabeleira jamais o faria sob imposição. Nem se a ordem viesse do coronel Salviano. Quanto mais de um meganha bêbado.

- Escuta, moço - disse pausadamente. - Meu nome é José Dorneles. O Cabeleira sou eu mesmo. - E, mais do que depressa, jogou a cachaça no rosto do militar.

Antes de o tenente se recompor da surpresa, Cabeleira prosseguiu:

- Eu vim aqui em paz. Minha carabina ficou do lado de fora, pendurada no fueiro do carro de boi. Acho que o moço deve aproveitar que estou desarmado, pra me matar. Ou então o senhor vai ter que ir embora da cidade. Porque, na próxima vez que a gente se encontrar, um dos dois vai morrer. Esta é a única chance que eu vou dar. - Dito isso, deu as costas ao tenente e encaminhou-se para a porta da venda.

Acometido de terror paralisante, o tenente não conseguiu sacar sua arma. Isso, em Catalão, encerrava a carreira de qualquer um, especialmente a de um oficial de polícia. Dias depois, pretextando uma diligência na zona rural, ele picou a mula e caiu no mundo. Nunca mais apareceu.

Claro que o episódio fez crescer o prestígio de Cabeleira. Tanto que, dias depois, o fazendeiro João Paulinha, que teve um irmão morto numa tocaia, a troco de uma questão envolvendo divisas, contratou José Dorneles, por um conto de réis, para matar o mandante do crime. Só que o mandante era um velho conhecido de Cabeleira, possivelmente o próprio coronel Salviano. O certo é que o carreteiro correu a relatar, para o próprio alvo, a encomenda.

- Eu só aceitei o serviço - explicou - pra ele não dar pra outro, que fosse cumprir o trato.

Coronel Salviano ou não, o homem visado rebateu a oferta. Deu dois contos de réis a Cabeleira para matar João Paulinha. O jagunço cumpriu o segundo trato. Tocaiou Paulinha na estrada de Pedra Branca e o matou com um tiro de carabina nas costas.

 

 

Assim como acontecera antes com o capitão Carlos de Andrade e com Elyseu da Cunha, em Catalão temia-se Cabeleira e Salvianinho. Mas ambos se mostravam pistoleiros de reações lógicas, previsíveis. O mesmo não se podia dizer de Salomão de Paiva Rezende, filho do intendente Nequinha Gomes.

Aos 46 anos, Salomão, mineiro de Bagagem, era um homem forte e bonito, de olhos e cabelos castanho-claros. Caridoso, educado, sempre elegantemente vestido, a maior parte do tempo agia como um gentleman. Brincava com as crianças. Galanteava as moças, sem ser desrespeitoso.

Infelizmente, tinha duas personalidades. Às vezes, depois de uns goles de cachaça, juntava-se a um grupo de jagunços e desordeiros da pior espécie e promovia badernas, aterrorizando as famílias.

Quando Salomão de Paiva saía pela noite, as cadeiras eram tiradas das calçadas, as portas e janelas se fechavam.

- Lá vem ele - sussurravam as pessoas, temerosas, escondendo-se porta adentro, sabendo que ia haver frege.

Para grande decepção e profundo desgosto da gente de bem da cidade, em 1920, com o apoio de Totó Caiado, principal chefe político de Goiás, Salomão sucedeu ao pai na intendência. Fez isso através de uma eleição cercada de fraudes e arbitrariedades.

Em sua primeira atitude pública, Salomão deu a alguns crédulos a esperança de que, agora como intendente, mudaria seu comportamento arruaceiro.

O cientista Vital Brasil estava em Catalão para uma conferência sobre o soro antiofídico, descoberta sua. Um espanhol, conhecido benzedeiro, ofendeu o ilustre visitante durante a sua fala e Salomão interferiu imediatamente, expulsando da cidade o inoportuno charlatão.

- Se voltar aqui, morre - decretou, para aprovação dos presentes ao auditório e espanto do cientista.

Antes mesmo de o assunto esfriar nas conversas, Salomão de Paiva voltou ao normal. Todas as noites, acompanhado de uma chusma de jagunços, o intendente saía praticando violências, jactando-se do cargo e de sua habilidade com o revólver, praticando tiro ao alvo em pleno centro urbano.

Se, por um lado, os cidadãos mais ilustres se sentiam esmagados pelo terror que Salomão lhes impunha, o zé-povinho, que jamais teve vez em Catalão, passou a apreciar algumas ações do intendente. Sempre que um pobre precisava de dinheiro - para comprar um remédio, casar uma filha ou enterrar um parente -, recorria a Salomão. Este, não sendo homem de posses, pedia emprestado ao primeiro comerciante ou fazendeiro que visse pela frente. Repassava ao necessitado o empréstimo, que jamais lhe recusavam - uma espécie de imposto, ou de distribuição forçada de renda, pois ninguém pagava ninguém. De um lado, um beneficiário final muito pobre. Na outra ponta do negócio, quem seria louco a ponto de cobrar Salomão de Paiva?

Chegava a noite. O Robin Hood catalano despia a pele de cordeiro e punha a de lobo. Doctor Jekyll voltava a ser Mister Hyde. Salomão e seus capangas sentavam-se num bar, obrigavam os presentes a beber com eles e, ao final, a pagar a despesa. Enquanto isso, as famílias resignavam-se a aguardar o dia seguinte, para poder sair às ruas.

De vez em quando, Salomão mandava um de seus jagunços liquidar um desafeto. E, mesmo com todos sabendo quem fora o mandante do crime, o intendente fazia questão de comparecer ao enterro. Chapéu debaixo do braço, fazia uma cara compungida e apresentava pêsames à família enlutada.

Nesse cenário, o entra e sai de delegados em Catalão adquiriu proporções jamais vistas. Chegaram a nomear um que veio especialmente do Rio de Janeiro para pôr ordem na cidade. Não deu certo. Salomão de Paiva antipatizou com o carioca. Entrou em sua casa, a cavalo, desmoralizando-o.

Como se não bastasse sua própria valentia e habilidade com armas, Salomão se cercava de guarda-costas, entre eles um negro enorme, ex-soldado de polícia, chamado Caldeira.

 

* * *

 

Corria o ano de 1921.

Nos Estados Unidos, dois anarquistas italianos, o sapateiro Nicola Sacco e o peixeiro Bartolomeo Vanzetti, foram condenados à morte por um assassinato que não cometeram. Visando minar o movimento anarquista, juiz e jurados ignoraram as provas da mais que comprovada inocência de ambos.

No Rio de Janeiro, em meio a grave crise política, o Clube Militar, presidido pelo marechal Hermes da Fonseca, exigiu a renúncia do candidato favorito à Presidência da República, o mineiro Artur Bernardes.

Em Catalão, freiras espanholas chegaram para abrir o Colégio Nossa Senhora Mãe de Deus, exclusivo para moças. As madres foram bem recebidas. Deram-lhes para morar a casa onde o padre boêmio e seresteiro, vigário Luiz Antônio, companheiro de farras do escritor Bernardo Guimarães, vivera tantos anos com mulher e filhos. Na primeira noite em que dormiram em Catalão, as freiras se assustaram com um tiroteio, fogo festivo promovido pelo intendente, quem sabe para impressionar as recém-chegadas.

Além do colégio das freiras, a cidade poderia àquela altura contar com uma agência do Banco do Brasil. Mas os funcionários que viajaram a Catalão para escolher o local do estabelecimento presenciaram uma fuzilaria no momento de sua chegada. A direção do banco, notificada do incidente, decidiu instalar a agência na vizinha Ipameri.

 

 

Coronel Roque, os Paranhos, os Ayres, os Andrade, os Cunha, e agora Salomão de Paiva: em Catalão, sempre comandou a política quem se destacava pela coragem pessoal ou pela truculência de seus capangas. Terras, dinheiro, títulos e diplomas, tudo isso merecia pouca importância. O que o candidato a mandachuva precisava ter era, no mínimo, reputação de valente e de violento. Caso contrário, logo o desafiavam e o apeavam do poder.

Segundo o costume, o mando de Salomão de Paiva em Catalão estaria garantido até surgir alguém disposto a desafiá-lo. Além, é claro, de ter coragem, astúcia e competência para vencê-lo.

Embora Salomão fosse contemporâneo de Cabeleira e de Salvianinho, estes não ameaçavam sua liderança. Salvianinho, por ser muito jovem para se meter em política - assunto que de resto não o interessava -; quanto a Cabeleira, tratava-se de um carreteiro bronco e analfabeto. Nenhum dos dois jamais iria comprar briga com o intendente, desde, é claro, que o intendente não comprasse briga com eles.

Mas havia João Sampaio.

 

 

Alguns anos antes, se estabeleceu no município o coronel mineiro Luiz Sampaio, homem ambicioso e determinado, que logo prosperou como fazendeiro, comerciante e industrial. Casou-se em Catalão com Sinhá Evangelista, também de Minas. Os dois geraram numerosa prole, que agora atingia idade adulta.

Um dos rapazes, de nome João, acompanhava atentamente cada passo de Salomão de Paiva. Sabia que, se desse cabo do intendente, a família Sampaio, segundo a cartilha local, seria a dona da cidade.


15. Quarto Fogo

... No dia sete eles o mataram. Mataram o Caldeira lá em cima, e cá embaixo um tal de Taipeiro...

Trecho de depoimento de João Netto de Campos
a Nasr Fayad Chaul,

História política de Catalão

 

Salvianinho se aprimorava no manejo de armas; era o único atirador de Catalão que conseguia abater um pássaro em pleno voo. A façanha, aliada às duas mortes de seu currículo, estendeu sua fama até a margem mineira do Paranaíba.

Um dia o convidaram para um casamento na roça, lá pelas bandas de Buriti Alegre, distante vinte e sete léguas. Salvianinho, assim como outros convidados, se alojou num celeiro da própria fazenda onde haveria a festança.

O padre celebrante do casório também veio de longe. E quis receber seu dinheiro antes da cerimônia, providência que passara a tomar depois de levar alguns calotes. Acontece que os noivos não dispunham da quantia cobrada e pediram um abatimento. O sacerdote recusou-se a dar o desconto.

Paisagem urbana de Catalão nos anos 1920.

 

Uma forte discussão se iniciou entre o noivo e o padre, e se estendeu aos convidados. Salvianinho tomou partido do noivo e se sentiu ofendido por dois homens que davam razão ao religioso.

Conhecedores da fama do jovem pistoleiro, os aliados do padre sacaram suas armas e foram logo atirando. Salvianinho, tendo deixado o revólver no celeiro, mal teve tempo de pular para trás de um monte de areia. De lá, mais do que depressa jogou punhados de areia no rosto dos adversários, cegando-os por alguns instantes.

Estúpida e furiosamente os homens continuaram atirando, mesmo sem enxergar o alvo, até que as armas ficaram sem balas. Percebendo a chance, Salvianinho não se fez de rogado. Puxou da cintura o punhal e matou os dois, ainda cegos, com estocadas certeiras. E partiu para cima do padre, cuja sovinice considerava responsável pelo episódio, a fim de matá-lo também.

- Calma, Salvianinho. Por favor, calma. - A turma do deixa-disso correu em defesa do sacerdote. - É pecado matar um padre - argumentaram, assustados com a possibilidade do sacrilégio. A muito custo demoveram o pistoleiro.

Somando agora quatro mortes nas costas, Salvianinho retornou a Catalão. Mas a notícia do incidente chegou antes dele. Quando entrou na cidade, pôde perceber os olhares de respeito que as pessoas lhe dirigiam. Respeito que ele logo cuidaria de fazer crescer.

Marieta da Paixão, irmã do jovem pistoleiro, era tratada com grosseria e violência por seu marido, Gustavo. Salvianinho sabia disso, mas continha-se para não ser obrigado a eliminar o cunhado. Pois briga para ele significava matar ou morrer, sem meio-termo.

Acontece que, num acesso de fúria, Gustavo lançou um peso de chumbo na direção de Marieta. Não acertou o alvo, mas atingiu a sogra, Maria Olinda, mãe de Salvianinho, ferindo-a no rosto. Ao saber do acontecido, Salvianinho jurou vingança. Ficou apenas aguardando a melhor oportunidade.

Gustavo logo tomou conhecimento da jura. Embora não fosse covarde, também não era bobo a ponto de se expor a um duelo com Salvianinho, no qual dificilmente levaria vantagem. Passou a andar desarmado. Mal podia saber que isso não seria obstáculo para o matador.

Certa ocasião, Gustavo vinha a cavalo de sua fazenda, dirigindo-se a Catalão. Já estava nas proximidades da cidade, quando viu Salvianinho. Este não perdeu a vez. Mesmo notando que o outro levava à cintura apenas um canivete, sacou do revólver.

Se Gustavo sentiu medo, não o demonstrou. Pelo contrário. Puxou do canivete e abriu-o em gesto simbólico de defesa. Recebeu como resposta um tiro na cabeça, que o derrubou da sela. Ainda vivia, tanto que urrou de dor, quando Salvianinho, com a maior calma e frieza, desceu de sua montaria, sacou de um punhal, abaixou-se e cortou-lhe uma das orelhas. Logo depois, o ferido entrou nos estertores, debateu-se por alguns segundos e morreu.

A raiva do matador terminou ali. Ao chegar a Catalão, contou que Gustavo não tremeu diante da morte.

- Sim, isso mesmo. Tenho muito respeito por ele - explicava Salvianinho aos curiosos que indagavam sobre o acontecido, enquanto exibia com candidez a orelha do defunto.

Sendo o morto também filho de fazendeiro, o delegado fez questão de abrir um inquérito. Ao saber disso, o coronel Salviano e a filha, a recém-enviuvada Marieta, que não via motivos para chorar a morte do marido, foram até a autoridade. Prometeram entregar Salvianinho sob certas condições.

Feito o trato, Salvianinho se apresentou. Mas dormiu apenas uma noite na cadeia, por sinal a primeira e única de sua vida. De manhã, o próprio delegado lhe deu fuga. O matador se retirou para a fazenda, até o assunto esfriar.

 

 

Em 1923 a luz elétrica chegou a Catalão, em meio a festas e foguetórios. Novas indústrias surgiram e, com elas, desembarcaram operários, trazendo consigo ideias marxistas que sopravam na Europa e nos grandes centros do Brasil. No vácuo dessa onda, agitadores apareceram na cidade, conclamando os empregados das fábricas a lutar contra os patrões opressores. Mas não se deram bem: alguns foram mortos, outros desapareceram. O resto arrepiou carreira.

Mesmo com a energia, a maior parte das casas continuou a usar lampião a querosene. A luz elétrica, além de muito fraca, apagava a todo instante. Mas o intendente municipal, Salomão de Paiva, gostou da novidade. Mandou substituir por lâmpadas os lampiões da iluminação pública.

Todas as noites, ao sair na via-sacra pelos botequins, o próprio Salomão, acompanhado dos amigos de farra, atirava nos postes de luz. As famílias, em pânico, se fechavam dentro de casa. Sarada a carraspana, o intendente cuidava de mandar substituir as lâmpadas destruídas pelos tiros.

Entre a gente dita de bem, crescia a revolta contra as badernas do intendente. Não só os papos-roxos da oposição, mas até mesmo alguns papos-amarelos queriam se ver livres dele. Salomão conseguia desagradar tanto os Paranhos quanto os Ayres. Contrariadas em seus interesses, pessoas influentes das duas famílias reclamavam que o município jamais iria progredir com tal arruaceiro na intendência.

Um dos papos-amarelos dissidentes, Diógenes Dolival Sampaio, filho do fazendeiro e coronel Luiz Sampaio e irmão de João Sampaio, vinha, aos poucos, substituindo o pai na liderança da família. Se Diógenes desejava assumir a chefia política do município, João queria apenas ser considerado o homem mais valente da cidade, título que, em Catalão, valia mais do que qualquer cargo ou honraria.

 

 

Em 6 de setembro de 1924, um sábado, realizou-se o casamento de uma filha de Salomão de Paiva, tendo entre os padrinhos justamente o coronel Luiz Sampaio. No dia seguinte, a cidade, tal como acontecia todos os anos, comemorou o aniversário da Independência com um desfile.

Como não havia unidades das Forças Armadas em Catalão, e somando os soldados da polícia apenas uma dúzia de homens, a parada se compunha principalmente de escolares e de dois veteranos da Guerra do Paraguai, já na casa dos oitenta.

No palanque das autoridades, Salomão de Paiva presidia o evento usando o cabelo repartido de lado e emplastrado de gomalina. No rosto, barba bem escanhoada e bigode meticulosamente aparado. Salomão se embrulhava num terno cinza escuro de casimira inglesa. Do colarinho, alto e duro, pendia uma gravata de seda em dois tons de azul-marinho, tendo como único senão de desleixo certa folga no laço.

Diógenes Sampaio, líder político papo-amarelo.

 

Algum observador atento notaria que Salomão pelejava para manter-se ereto e de olhos abertos. Pudera. Na véspera, ele bebera mais do que o normal, na festa do casamento da filha e, depois, na habitual incursão pelos botequins.

Ao contrário de Salomão, João Sampaio, misturado ao povo que assistia ao desfile, encontrava-se sóbrio, na plenitude de seus sentidos. O coração aos pulos, ele não via a hora de dar início ao plano que concebera para liquidar o intendente.

 

* * *

 

Em Catalão, a noite de domingo costumava ser a menos movimentada da semana. Os empregados do comércio e os operários da indústria, tendo que trabalhar na segunda-feira, dormiam cedo para se recuperar dos folguedos e, principalmente, das bebedeiras do fim de semana. Por isso João Sampaio elegeu aquela data e aquele horário como os mais apropriados para perpetrar o assassinato.

João sabia que não adiantava mandar alguns jagunços liquidar, numa tocaia, o intendente. Não. Para herdar o prestígio do morto, ou melhor, do futuro morto, ele próprio, João, teria de tomar parte ativa na façanha. Esta seria apregoada pelos quatro cantos do município, e por todo o Sudeste de Goiás e Triângulo Mineiro, como sempre acontecia quando tombava um pistoleiro afamado de Catalão.

Antônio Caldeira e José Taipeiro, principais jagunços de Salomão, também precisavam ser mortos, caso contrário os capangas poderiam querer vingar o intendente. Dada a complexidade da tarefa, João selecionou oito homens para ajudá-lo. Dois iriam matar Caldeira. Outros dois, Taipeiro. Os quatro restantes - entre eles Tonico, Antônio José e Zé Gaúcho, três dos melhores pistoleiros da cidade - se uniriam a ele para, juntos, assassinarem o intendente.

A ideia de João Sampaio, matar Salomão a punhal, lhe valeria ainda mais prestígio, principalmente se ele próprio fosse o autor da estocada, detalhe que contava muito. Por essas razões é que seu coração corcoveava de excitamento durante o desfile, enquanto o cérebro repassava cada um dos procedimentos. Seus olhos iam e voltavam do palanque das autoridades, onde Salomão bocejava e batia cabeça para os escolares que marchavam garbosos em meio à poeira da rua.

O plano estipulava que Caldeira, o mais perigoso dos guarda-costas do intendente, seria morto em primeiro lugar. Quando os outros sete atacantes, João e seis jagunços, ouvissem os tiros, tratariam de matar Taipeiro e Salomão.

O resto do dia demorou a passar. Mas finalmente chegou a noite e, com ela, o momento combinado para o ataque.

Na parte alta da cidade, Caldeira nem teve tempo de se defender quando dois homens se aproximaram e lhe desfecharam vários tiros. Morreu antes de se dar conta do ocorrido.

Próximo ao Pirapitinga, Taipeiro ouviu os disparos. Reflexo condicionado de anos de atenção aos perigos do ofício, seus músculos retesaram. Maquinalmente, levou a mão ao revólver. Mas não chegou a empunhá-lo. Uma saraivada de balas, disparadas pelos dois jagunços que o seguiam de perto, o derrubou. Quando seu corpo bateu na terra, o coração, estraçalhado por um projétil, já não batia mais.

Salomão de Paiva deu muito mais trabalho, mesmo sozinho contra cinco atacantes. Saiu imediatamente da casa de Antoninho Mesquita, a quem visitava, assim que ouviu os tiros. Saiu sem medo, pois desconhecia esse sentimento. Correu até a esquina para ver se percebia alguma coisa. Quando chegou lá, João Sampaio, de tocaia com seus quatro jagunços, pulou-lhe ao pescoço, com um punhal na mão. Mas não conseguiu aplicar o golpe, pois Salomão lhe deu um soco no peito, derrubando-o.

É bem possível que Salomão viesse a dominar João Sampaio se, no momento em que derrubou o agressor, não tivesse sido atingido por um disparo feito por Tonico. Seguiram-se outros dois tiros, vindos das armas de Antônio José e Zé Gaúcho, que também acertaram o intendente. Salomão levou a mão ao peito, cambaleou, encostou-se num poste de iluminação e morreu de pé.

 

* * *

 

Na história de Catalão poucos enterros foram tão concorridos quanto o de Salomão de Paiva. A população pobre, que tanto ele ajudou, sentia-se órfã. Mas os comerciantes, os industriais, os políticos e a classe média também compareceram ao velório, talvez para ter certeza de que ele morrera mesmo e que os tempos de pesadelo haviam terminado.

Salomão de Paiva baixou à cova vestido com a farda azul, com listras laterais vermelhas, da Guarda Nacional.


16. Duelo ao pé da fogueira

... Todavia muitos se serviram da oportunidade para uma forra e, aproveitando estar o valentão agonizante, descarregaram suas armas sobre ele, até vê-lo tombar inerte sobre o seu próprio sangue.

Cornélio Ramos,

Catalão - Poesias, lendas e histórias

 

Com a morte de Salomão de Paiva, os Sampaio tornaram-se os candidatos naturais para assumir a chefia política do município. Mas, num primeiro momento, a intendência passou ao suplente de Salomão, Mário de Cerqueira Netto, papo-roxo, mais conhecido como Nhozico, adversário da família Sampaio.

Enquanto isso, para não ser preso, João Sampaio se refugiou em sua Fazenda da Mata. Embora todos soubessem de seu paradeiro, a polícia não teve coragem de ir buscá-lo.

Julgando que a violência em Catalão dessa vez havia passado dos limites, o governo estadual enviou para assumir a chefia do destacamento de polícia um tenente chamado Otacílio, oficial destemido e enérgico, responsável pelo estabelecimento da ordem em diversas cidades goianas.

Ao tomar pé no cargo, Otacílio analisou com calma a situação. Não se animou a capturar João Sampaio na fazenda. Temia uma derrota desmoralizante. Mas resolveu que, na primeira oportunidade em que o assassino de Salomão de Paiva saísse de seu abrigo, ele o prenderia.

Para satisfação do tenente, a chance não demorou a acontecer. Estava o oficial, com vários homens de seu efetivo, numa festa no distrito de Goiandira, e eis que surge João Sampaio, acompanhado de seus irmãos Durval e Delcides. Mais do que depressa, Otacílio dirigiu-se a João e comandou o protocolar:

- Teje preso!

Em vez de acatar a voz de prisão, João Sampaio tratou de correr para os fundos da casa, e o tenente não teve coragem de dar tiros em meio à festa. Durval e Delcides se interpuseram entre o oficial e o caminho de fuga do irmão, e sacaram de suas armas. Mas também não atiraram. Limitaram-se a esboçar um simulacro de resistência quando o tenente determinou aos soldados que os desarmassem, os prendessem por desacato e os amarrassem com cordas, as mãos atrás das costas.

Otacílio fez questão de levar os dois presos de trem para Catalão, sempre manietados. Ao chegar à cidade, obrigou-os a desfilar amarrados pelas ruas, entre a estação e a cadeia, para o espanto da população. Coisa rara, senão inédita, ver filhos de coronel humilhados daquela maneira.

Durante vários dias, os irmãos Sampaio foram obrigados pelo tenente Otacílio a fazer trabalhos de faxina na cadeia, além de outros serviços vexatórios, inclusive alguns do lado de fora do prédio, à vista do povo. Mas, sendo impraticável mantê-los presos por muito tempo, por crime tão banal, Otacílio teve de libertá-los.

Houve então uma espécie de acordo tácito. Os Sampaio não adotaram nenhuma atitude de represália contra o tenente. Este, por sua vez, firmada sua reputação, se absteve de ir prender João Sampaio na fazenda.

 

 

No cenário nacional, em julho de 1924 houve uma revolta de militares na cidade de São Paulo. Os rebeldes planejavam estender o movimento até o Rio de Janeiro, para depor o presidente Artur Bernardes. Depois de três semanas de combates sangrentos e pesados bombardeios na capital paulista, que resultaram em grande quantidade de mortos, os sediciosos foram derrotados pelas tropas legalistas. Abandonaram a cidade na madrugada do dia 24 de julho.

Três meses depois, o capitão Luís Carlos Prestes, do Exército, liderou uma revolta no Rio Grande do Sul, também fracassada. Ao longo de todo o segundo semestre, outros movimentos revolucionários, sempre iniciados por militares idealistas descontentes com o governo federal, surgiram em diversos estados.

Artur Bernardes conseguiu derrotar esses focos de rebelião. Mas não logrou êxito em prender ou eliminar seus integrantes que, liderados pelo capitão Prestes, deram início a uma marcha, que recebeu o nome de Coluna Prestes. Com proporções epopeicas, a Coluna percorreria inacreditáveis 36 mil quilômetros, distância quatro vezes maior do que a Grande Marcha de Mao Tsé-Tung, na China, que iria acontecer dez anos depois da brasileira.

A Coluna Prestes - que, subindo e descendo o Brasil várias vezes, cobriu um território que ia de São Borja, no sul, a Teresina, no Nordeste, do Baixo São Francisco, a leste, à fronteira Brasil/Bolívia, a oeste - esteve duas vezes nas proximidades da cidade de Catalão. Numa dessas passagens, o jovem Salvianinho, entre outros aventureiros catalanos, aderiu à marcha.

Agora com 21 anos, o temido pistoleiro seguiu com a Coluna, provavelmente em busca de novos desafios para seu gatilho, pois ninguém jamais ouviu falar que, em política, ele apoiasse esse ou aquele lado, essa ou aquela ideologia. Salvianinho foi destacado para as fileiras de Siqueira Campos, um dos sobreviventes do levante do Forte Copacabana, ocorrido três anos antes.

Sabe-se lá se, numa noite escura, em algum sertão perdido do Brasil, o lendário e heroico Siqueira Campos teve a oportunidade de trocar, à luz do lampião bruxuleante de uma barraca, um dedo de prosa com o tímido e gentil matador. Ou se os dois chegaram a participar, ombro a ombro, das trocas de tiros com os legalistas, oportunidade em que, se houve, Campos deve ter percebido a valentia e a habilidade no manejo de armas do moço de Catalão.

 

 

Aos poucos, Diógenes Sampaio vinha ocupando mais e mais espaços políticos no município. Governista fervoroso, organizou uma tropa para lutar contra a Coluna Prestes, que, momentaneamente, se arranchava na cidade de Pires do Rio, a dezessete léguas de Catalão, tendo os rebeldes mudado o nome da estação ferroviária de lá para Luiz Carlos Prestes.

Diógenes convocou ninguém menos do que José Dorneles, o Cabeleira, para integrar-se aos combatentes.

Cabeleira costumava lutar por honra ou dinheiro. Abria uma ou outra exceção quando se tratava de luta em defesa do patrão, coronel Salviano. A serviço do governo, o jagunço jamais cogitou pôr sua carabina. Mesmo assim, ao receber a convocação de Diógenes, resolveu consultar o coronel, que entendia daqueles assuntos de política. O encontro se deu na casa de Salviano, na avenida Brasil, perto da estação.

- Não. Não vai, não - o coronel mostrou-se categórico. Não via a menor graça em se ver desfalcado de seu melhor jagunço e, pior, de vê-lo lutar em campo oposto ao do filho. - Estou precisando de você na serraria - explicou, encerrando o assunto.

 

 

No dia 7 de setembro de 1925, a morte de Salomão de Paiva completava um ano, período, aliás, dos mais tranquilos. Poucos crimes de morte, quase nenhum importante. Muita gente até sentia saudades dos “bons tempos” do antigo intendente.

Não perderiam por esperar.

Os irmãos Laudelino e Argemiro Toledo eram inimigos jurados de Cabeleira. Mas os dois lados se respeitavam. Onde estivessem os Toledo, Cabeleira não punha os pés. E vice-versa. Um encontro, todos sabiam, terminaria em morte.

Naquele dia 7, uma segunda-feira, os festejos do 103o aniversário da Independência terminariam com animadíssimo pagode na casa de Pedro Messias, na Fazenda Rodrigues. Só que a tal festa era uma armadilha cuidadosamente preparada pelo dono da casa para que seus amigos, Laudelino e Argemiro, os irmãos Toledo, pudessem pôr fim à pendência com Cabeleira.

Quando o matador chegou, elegante, lenço em volta do pescoço, que nem um caubói de cinema, os Toledo participavam de uma roda de truco, próxima a uma fogueira no terreiro. Por isso, ele não os viu. O dono da casa imediatamente recebeu Cabeleira com agrados e rapapés. Fez questão de fazê-lo provar de diversas garrafas de cachaça.

- Toma dessa agora - dizia, em meio a palmadinhas bajulatórias nas costas do pistoleiro. - É de Paracatu. Aposto que você nunca bebeu uma igual. - E, com extrema habilidade, conseguiu distrair e descontrair Cabeleira, afastando-o da carabina, encostada na parede.

Conversa vai, conversa vem, Pedro Messias levou o matador para os lados da fogueira, onde agora Argemiro e Laudelino os aguardavam, atentos. Quando Cabeleira finalmente se deu conta da presença dos inimigos, era tarde. Levou dois tiros de revólver, um disparo de cada irmão. Mesmo assim, ainda conseguiu tomar a arma de Argemiro. E, ato contínuo, o matou. Levou mais um tiro, de Laudelino. Conseguiu acertá-lo também, antes de cair, já agonizante.

O fogo não parou por aí. Outros convidados se aproveitaram para atirar no jagunço, quem sabe para jactar-se, mais tarde, nas rodas da cidade, de terem sido os autores do disparo fatal contra um matador lendário como Cabeleira. Macabramente animado por essa nova salva de tiros, o corpo ainda saracoteou por alguns minutos, antes que o deixassem em paz.

 

 

Morto Cabeleira, Laudelino Toledo - que sobreviveu ao ferimento recebido no duelo - passou a temer uma represália, já que vingar um parente assassinado fazia parte do código de honra local. E Cabeleira tinha um irmão, Joaquim Dorneles, sitiante na fazenda de Américo Evangelista, onde morava num rancho de pau a pique com a família. Embora não fosse matador profissional, Joaquim, além de ser bom de tiro, possuía enorme coragem.

Os temores de Laudelino se acentuaram quando ele soube que, no enterro de Cabeleira, Joaquim Dorneles retirara do corpo do irmão o lenço picotado de balas e o envolvera ao redor do próprio pescoço, numa demonstração clara - pelo menos no entender de Toledo - de um desejo de vingança.

Nessa época, comandava o destacamento de polícia de Catalão um tenente de nome Gentil. Insuflado pela família Toledo e seus amigos, Gentil, com um grupamento de homens, seguiu no encalço de Joaquim. Querendo pegar uma beirada na fama dos Dorneles, o tenente foi logo com a intenção de matar, tarefa, aliás, mais fácil - e menos arriscada - do que a de prender.

Cercado o rancho de Joaquim, o tenente Gentil gritou-lhe voz de prisão. Espiando por uma janela da casa, o irmão de Cabeleira percebeu, pela quantidade de soldados que faziam mira em sua direção, que eles queriam matá-lo. Recusou-se a sair. Disse que preferia morrer lutando como homem a ser abatido feito um cachorro raivoso. Pediu apenas que os policiais poupassem sua mulher e seus filhos.

Autorizada pela polícia, a família de Joaquim Dorneles deixou o rancho. Iniciou-se então a fuzilaria. Apesar de ser apenas um contra muitos, Joaquim conseguiu sustentar o fogo por várias horas, graças à sua exímia pontaria, que obrigava os soldados a se manter o tempo todo protegidos.

Enfim, um dos praças, depois de dar uma longa volta pelo pasto, conseguiu rastejar até os fundos do rancho. Pôs fogo no teto de palha, que ardeu intensamente. Dorneles não suportou o calor e teve de sair em campo aberto. Com frieza, os soldados o mataram, estraçalhando sua cabeça a balaços.

Num barracão próximo à casa, havia biscoitos, bebidas e doces, pois no dia seguinte Joaquim iria casar uma filha. Puderam então os soldados comemorar a vitória no terreiro, ao lado do defunto e do rancho incendiado.

 

 

Naquele ano de 1925, em Chicago, nos Estados Unidos, Al Capone assumia o controle do crime organizado da cidade. Na União Soviética, Stálin derrubava Trótski na corrida pelo poder absoluto. Ao mesmo tempo, na Alemanha, Adolf Hitler anunciava a criação das Schutzstaffel, que o mundo iria conhecer apenas pela sigla ss .

Catalão recebia, quando recebia, essas notícias sem maior interesse. Importante mesmo eram as brigas das famílias locais, que logo se desdobrariam em mais um episódio sangrento. E ultrajante.


17. Honra e infâmia

Pra que eu vou ser fuzilado? - A resposta, tonítrua, partiu do cano da arma.

Juarez Costa Barbosa,

História política de Catalão

 

Lamartine, lavrador pacífico e humilde, moço ainda, recém-chegado de Minas, indagando daqui e dali obteve emprego na Fazenda da Mata, de João Sampaio, para capinar e tomar conta do gado. Em poucas semanas, sua simpatia conquistou patrões e camaradas.

Na fazenda, trabalhava também João Teodoro, este sim caboclo perigoso, temido por sua têmpera violenta. Desconhecia o medo. Um valente, o outro pacato e submisso, os dois se deram bem.

Nessa época, o destacamento de polícia de Catalão - subordinado ao delegado José Ayres, papo-roxo - reunia soldados da pior espécie, de nível inferior ao habitual, por mais que isso fosse difícil. A tropa se limitava a defender os interesses dos chefes políticos e coronéis. De resto, os homens se valiam da farda para promover desordens, humilhar os pobres, espancar e dar o beiço nas mulheres da zona, baixeza chamada de golpe da mão de vaca , e não pagar as contas no comércio. Bebiam de graça nos cabarés. Enfim, ralé da ralé.

Certo dia, um dos soldados entrou na venda de seu Benedito, na rua da Grota. Nas prateleiras do estabelecimento, muito modesto, havia de tudo um pouco: roupas, gêneros, bebidas.

- Eu quero uma garrafa de cachaça - disse rispidamente o militar. - Quando receber meu soldo, eu venho aqui e pago.

Sabendo que iria levar um calote, o comerciante recusou. Mas fê-lo com polidez.

- Desculpa, moço. Eu não vendo fiado pra ninguém.

Se o soldado ficou ofendido, nunca se soube. O certo é que respondeu:

- Então o senhor me espera que eu vou me apertar. - E saiu do armazém. No Sudeste de Goiás, a expressão “apertar-se” significava duas coisas: “buscar uma arma” ou “pegar dinheiro”.

Sem saber o que iria acontecer, seu Benedito não teve remédio a não ser aguardar, temeroso, a volta do soldado. Este não levou muito tempo para “se apertar”. A poucos metros dali, numa casa muito pobre, de chão batido, parede de taipa e teto de capim, vivia uma negra velha, desdentada, lavadeira, que naquele momento guardava 10 mil réis, produto de um serviço.

O soldado não se vexou em invadir a casa da mulher, aplicar-lhe alguns safanões e tomar-lhe o dinheiro. Voltou para a venda, bateu com os 10 mil réis no balcão e comprou sua garrafa de pinga.

Sucede que a lavadeira era mãe de João Teodoro, o feroz camarada da fazenda de João Sampaio. E, por coincidência, Teodoro chegou para visitá-la logo após a saída do militar. Ao vê-la em prantos, quis saber o que tinha ocorrido. Temendo uma desgraça, a velha se recusou a contar a verdade. Mas uma vizinha, testemunha da malvadeza, narrou o incidente.

João Teodoro saiu feito um louco ao encalço do soldado. Encontrou-o perto da Ponte da Grota, com a garrafa de cachaça na mão. Sem se dar ao trabalho de pedir explicações, Teodoro sacou do revólver e matou o outro ali mesmo. Consumado o assassinato, tratou de fugir. Pegou suas coisas na Fazenda da Mata e sumiu.

Assim que souberam do fato, os soldados do destacamento seguiram para a fazenda com a intenção de capturar João Teodoro. Não o encontrando, prenderam justamente o moço Lamartine. Submetido a brutal espancamento, o rapaz jurou desconhecer o paradeiro do amigo. As respostas não satisfizeram os militares, que decidiram levar o lavrador para a cidade. Conduziram-no à cadeia, onde a pancadaria prosseguiu.

- Você vai apanhar até dizer onde está o assassino - rosnavam os soldados, em meio às agressões.

João Sampaio estava viajando - caso contrário, dificilmente os soldados levariam seu empregado assim sem mais nem menos. Mas seus irmãos, Durval e Delcides, também afeiçoados a Lamartine, não se conformaram com a injustiça. Pularam na boleia de um caminhão e foram até a casa do delegado José Ayres, a fim de exigir a soltura do peão. De uma janela, Ayres via o movimento na rua quando os irmãos Sampaio chegaram.

Enquanto Durval permanecia no veículo, Delcides desceu para interpelar o delegado. Inimigos políticos que eram, em segundos a conversa se transformou em violenta discussão. Do interior da casa, a mulher e o cunhado de Ayres, Deolindo, acompanhavam tudo. Até que o sangue de Deolindo ferveu. Ele correu ao parapeito de outra janela e fuzilou Delcides com um tiro certeiro.

Ao ver o irmão ser morto, Durval apeou do caminhão, com extrema dificuldade - tinha uma perna atrofiada (“perna seca”, como se dizia em Catalão), consequência de uma poliomielite na infância. De modo resoluto, arma na mão, Durval coxeou até a casa, de onde Deolindo fugiu pelo quintal.

Não sendo capaz de correr atrás do assassino, Durval procurou o delegado Ayres. Encontrou-o num dos quartos, debaixo da cama. Arrastou-o de lá e o abateu com um tiro na cabeça.

Consumada a retaliação, Durval saiu da casa. Ergueu penosamente o corpo de Delcides e o pôs na carroceria do caminhão. Deu partida no motor e seguiu para a serraria do pai, coronel Luiz Sampaio. Arriou o cadáver aos pés do coronel. Disse apenas:

- Olha aí o seu filho.

O coronel mandou chamar João Sampaio, ainda fora da cidade. Quando João chegou, na manhã seguinte, o velho reuniu a família. Ao lado do corpo de Delcides, obrigou cada um dos filhos a jurar vingança.

Entre os papos-roxos, durante o velório e o enterro de José Ayres, também não se falou em outra coisa: vingança.

Se, dos dois lados, os homens ainda se concentravam em juras de morte, a mulher de um influente correligionário dos Ayres - tida na cidade como dama piedosa, frequentadora assídua da igreja - julgou ser a hora de dar uma demonstração de força aos Sampaio e de elevar o moral dos papos-roxos. Mesmo sem autorização do marido, ela convocou um dos soldados do destacamento, de nome João Silva, ao seu casarão, próximo à cadeia. Conversou longamente com o policial.

 

 

O peão Lamartine, prato e colher na mão, comia em sua cela imunda quando João Silva chegou lá.

O soldado não se valeu de subterfúgios.

- Pode parar de comer, porque você vai ser fuzilado.

- Mas por quê? - perguntou Lamartine, sem fazer o menor esforço para disfarçar o medo que sentia. - Eu... eu não fiz nada de errado - gemeu, em desespero.

O soldado não se sentiu obrigado a dar uma resposta. Limitou-se a matar o preso com um tiro à queima-roupa.

 

 

Os anos 1920 chegavam ao fim. Em 29 de outubro de 1929, uma terça-feira, a Bolsa de Valores de Nova York sofreu um crash de proporções até então inimagináveis, em meio ao pânico generalizado dos investidores. Nos meses que se seguiram, milhões de americanos perderam suas economias. Um terço da riqueza do país simplesmente evaporou-se. Embora ainda fosse impossível percebê-lo naquele momento, os Estados Unidos acabavam de entrar na Grande Depressão, crise econômica que duraria dez longos anos.

O município de Catalão, mesmo tendo sido beneficiado, ao longo das três primeiras décadas do século xx , pela chegada de inúmeras famílias de imigrantes progressistas, sempre teve seu crescimento atrapalhado pela violência de seu povo. Foi assim quando as obras da estrada de ferro pararam, logo após o Terceiro Fogo. Foi assim quando o Banco do Brasil cancelou o projeto de abrir uma agência na cidade.

Sendo uma região que dependia essencialmente da agricultura, da agropecuária e da agroindústria, teria agora de sofrer o efeito de uma violenta queda nos preços do café, do arroz, do gado e do charque, todos pressionados pelo colapso da Bolsa.

Tal como na época da exaustão das minas de ouro dos goiás, um século e meio antes, o antigo pouso dos bandeirantes voltou a mergulhar no túnel escuro da depressão.


18. Tempos sombrios

Ele não tinha medo. Éramos inimigos mortais e eu temia ser assassinado por ele, por isso pretendia matá-lo. Era ele ou eu, não havia meio termo.

João Sampaio, falando de Salvianinho,

em depoimento a Juarez Costa Barbosa,

História política de Catalão

 

Um cenário de grave recessão econômica, provocado pelo colapso dos preços do café, cercou as eleições presidenciais brasileiras realizadas em março de 1930, no auge da crise. Sem entender muito bem o porquê do desemprego e dos baixos salários, o povo culpava o presidente da República, Washington Luiz, pela situação.

Apesar do descontentamento popular, o candidato oficial, Júlio Prestes, bateu o oposicionista Getúlio Vargas, da Aliança Liberal. Os derrotados não se conformaram com o resultado das urnas. Alegaram fraudes eleitorais.

Veio então, em julho, o assassinato de João Pessoa, governador da Paraíba e candidato a vice na chapa de Vargas. O crime ocorreu numa confeitaria do Recife. Embora o assassino, João Dantas, tivesse agido por razões passionais, os partidários de Pessoa e de Vargas acusaram o Palácio do Catete de haver tramado o crime. E o povo aceitou a versão.

Em todo o país ocorreram manifestações populares. Que se transformaram em levantes. Um movimento armado teve início em outubro no Rio Grande do Sul. Num deslocamento avassalador, em menos de um mês os gaúchos de Vargas puderam amarrar seus cavalos no obelisco da avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, cumprindo promessa feita no início da marcha. No dia 3 de novembro, Getúlio tomou posse como chefe de um governo provisório (que iria durar quinze anos).

 

 

Em Goiás, Getúlio Vargas recebeu apenas 722 votos, contra 18.348 de Júlio Prestes. No município de Catalão, os situacionistas alcançaram uma vitória ainda mais expressiva: 1.972 votos para Prestes, dez para Getúlio. Apesar dessa insignificante presença da Aliança Liberal no Estado, alguns políticos goianos, percebendo a direção dos novos ventos, aderiram a Getúlio. A Revolução vitoriosa nomeou um deles, Pedro Ludovico, para interventor estadual.

Diógenes Sampaio, depois de hesitar algum tempo sobre que rumo tomar, acabou optando por Ludovico e Getúlio. Fez mais: constituiu uma coluna de jagunços a serviço da Revolução. Como prêmio, Ludovico o nomeou prefeito (cargo que substituiu o de intendente) da cidade.

As famílias catalanas mais tradicionais não gostaram nem um pouco da subida dos Sampaio ao poder. Pelas costas, acusavam-nos de arrivistas. Esquecendo antigas rivalidades, velhos inimigos se uniram contra Diógenes, entre eles os Paranhos, os Ayres e os Netto.

 

* * *

 

O cenário político pouco interessava a João Sampaio, irmão do novo prefeito e celebrado matador de Salomão de Paiva. Muito menos ao pistoleiro Salvianinho, agora com 26 anos, que, depois de lutar na Coluna Prestes, perambulou por vários lugares antes de voltar a Catalão.

Mesmo que não o dissessem abertamente, João Sampaio e Salvianinho disputavam o título de homem mais valente da cidade. E de gatilho mais rápido. O povo sabia que, em algum momento, haveria um confronto entre os dois.

Até que chegou a vez. Não que tivessem marcado um duelo na rua principal, como ocorria nos filmes de faroeste. Não. O encontro ocorreu acidentalmente, num fim de tarde, em um trecho poeirento de uma estrada. Um vinha de lá, o outro ia de cá, ambos a cavalo.

Ao contrário de Salvianinho, João Sampaio teve medo do confronto. Pareceu-lhe mais prudente aguardar outra oportunidade. Caso sacasse primeiro, e errasse o tiro, Salvianinho, que João sabia ter a melhor pontaria do município, o mataria facilmente. Em sua preocupação, Sampaio não percebeu que Salvianinho estava desarmado.

Quando os dois se cruzaram, cada um tocou, ligeiramente, com a ponta dos dedos, a aba do chapéu, em cumprimento ao outro. O gesto de mão foi tênue o suficiente para não parecer uma subserviência, mas não tão tênue que aparentasse uma desfeita.

Salvianinho se afastou do rival, lamentando não ter trazido seu revólver. Não se deu ao trabalho de olhar para trás. João Sampaio trotou mais alguns metros. Parou. Com um meneio de rédea, pôs seu cavalo de través na estrada. Não quis se expor a um tiro pelas costas. Tirou a arma do coldre e ponderou as chances de sucesso de um tiro à longa distância. Voltou a ter medo de errar o alvo. Desistiu. Mas fez questão de permanecer ali, até que o outro desaparecesse, ao longe, numa descida que ia dar num varjão.

E o duelo tão esperado jamais aconteceu.

 

 

Os preços do café continuavam caindo. Na tentativa de sustentá-los, o governo Vargas adquiriu centenas de milhares de sacas do produto e as incinerou para diminuir os estoques. Nas ruas de comércio da cidade de São Paulo, metade das lojas fechou as portas. Um terço dos imóveis residenciais perdeu seus inquilinos. Em contrapartida, os cortiços se entupiram de gente.

Em Catalão, muitas donas de casa, que até pouco tempo só iam à cozinha para dar ordens às empregadas, agora executavam tarefas domésticas. Outras complementavam a renda da família costurando para fora ou fazendo doces para seus filhos venderem, em tabuleiros, de porta em porta.

As lojas e os armazéns da cidade, é claro, sofriam com a recessão. Mantinham estoques reduzidos e pouco variados. Com exceção de gêneros de primeira necessidade, as pessoas quase não compravam.

Quem saísse pela rua do Comércio, mesmo num dia útil, logo notaria a ausência de movimento. Quando muito, surgia a jardineira da linha de Araguari, com meia dúzia de passageiros, em meio a uma nuvem de poeira. Depois que o pó baixava, se podia ver não mais do que uma ou duas carroças, encostadas na calçada alta, defronte a uma venda.

À noite, na Maria Bonita, ou em outras casas de putas, espalhadas pela rua das Sete Casas e arredores, entre um gole de vermute e uma guimba de cigarro filada, as mulheres se ofereciam por quaisquer 5 mil réis. E nem sempre arrumavam fregueses.

De quando em vez se instalava na cidade um parque de diversões, pertencente a ciganos. Entre as atrações, uma roda-gigante, movida por um gerador fedido e barulhento, e balanços em formas de barquinhas, acionados por cordas pelos próprios usuários. Nos equipamentos de som e alto-falantes, moças e rapazes, pagando 100 réis, podiam dedicar músicas aos namorados. Duas ou três barraquinhas de jogos, com prendas, completavam o parque.

Circos eram ainda mais raros, e mesmo assim despojados de qualquer pompa, a não ser no nome: Grande Circo Europeu; Circo Norte-Americano... Mas, de estrangeiro, só os ancestrais do leão velho e desdentado e os nomes dos artistas: Los Hermanos Fernandez , trapezistas; Natasha, a Amazona das Estepes... De dramáticos, apenas a fome da trupe e os poleiros vazios das populares, embora houvesse ingressos até a 300 réis. A despeito da penúria, sempre um rapazote ia embora com a companhia, conhecer o mundo .

Às vezes surgiam na cidade grupos de leprosos, montados em lombos de burros. Sob os olhares mistos de medo e piedade do povo, os doentes estendiam para as pessoas varas compridas, com uma sacola de pano na ponta, onde moedas eram jogadas.

Em meio à desolação e à falta de dinheiro, os catalanos mais velhos se lembravam saudosos da época da construção da estrada de ferro, quando os peões enchiam as tabernas, as vendas do comércio e as casas das putas.

 

 

Apesar da indigência, algum progresso sempre surgia na cidade. Dois ou três automóveis solavancavam pelas ruas esburacadas. Entre a classe média e rica, o cinema, ainda mudo (em Hollywood, desde 1927, já se faziam fitas faladas), era a principal diversão.

Como não podia deixar de ser, os homens e meninos preferiam os faroestes, principalmente os de Tom Mix, William Farnum e Buck Jones. As senhoras e moças, que se derreteram com Rodolfo Valentino até sua morte, em 1926, agora se emocionavam com os dramalhões de Clark Gable, Douglas Fairbanks Jr., Mary Pickford e Janet Gaynor.

Rua dos Pretos.

 

Nenhum desses avanços chegava à base da pirâmide social de Catalão, representada pelos pretos, os mais atingidos pela depressão. Sem ter ao menos arroz e feijão para pôr na panela, eles nem ousavam pensar em gastar dinheiro com diversões. E, mesmo se tivessem recursos, não poderiam, por exemplo, frequentar os salões do Clube Recreativo Catalano, recém-fundado, no qual se proibia a entrada de gente de cor. No gueto da cidade, conhecido como rua dos Pretos, quase só moravam negros. Uma das igrejas, a de Nossa Senhora do Rosário, destinava-se também a eles.

Sem recursos para alimentar toda a família, muitos pretos davam filhos para adoção. E não faltava quem quisesse “pegar para criar” esses meninos e meninas. Com os “pais adotivos”, esses pretinhos trabalhavam de sol a sol, dormiam no chão, geralmente num canto da cozinha, tomavam conta das crianças pequenas da família e faziam todo tipo de serviço doméstico, inclusive os mais pesados como puxar água dos poços e rachar lenha.

Antero, poeta, jornalista e prático de farmácia.

 

Foi essa Catalão que recebeu, por volta de 1932, Antero da Costa Carvalho, que nascera em Jataí no início do século. Ele era prático de farmácia e vinha de Campo Grande, Mato Grosso, trazido por uma síria de nome Amélia Nazar, dez anos mais velha do que ele. Amélia tinha pais e irmãos em Catalão.

Antero aprendera o ofício de farmacêutico em Campo Grande, para onde se mudara já adulto. Em dois tempos, adquiriu grande habilidade. Sabia aplicar injeções, clisteres e outras mezinhas. Receitava e manipulava remédios, copiando as fórmulas de um velho Chernoviz, dicionário popular de medicina.

Em Campo Grande, ele conheceu Amélia. Mulher de vida inconstante, ela tinha sido casada em Ipameri. Largou o marido em troca de um boiadeiro, com o qual fugiu para o Mato Grosso. Mas, lá chegando, o conquistador, moço indeciso, por sua vez a trocou por outra. Sem coragem de voltar para Catalão e enfrentar a família, Amélia aproveitou-se de sua experiência em comércio para montar um prostíbulo.

Farmacêutico e cafetina iniciaram um caso. Depois de algum tempo, decidiram morar juntos. Sendo ambos casados (Antero também já havia desfeito um matrimônio), não puderam oficializar a união. O que não se consistia em problema, nem em Goiás nem no Mato Grosso, estados onde o povo não se prendia muito a essas formalidades.

Amélia convenceu o companheiro a se mudarem para Catalão, onde o irmão dela, próspero comerciante, se relacionava bem com os fazendeiros locais. Lá, ela voltaria a ser uma mulher respeitável.

Quando chegaram ao município, Antero e Amélia foram morar na fazenda de Albino Felipe do Nascimento, homem muito rico, de 74 anos, casado em segundas núpcias com uma mulher gorducha chamada Joaquina Cândida de Jesus, de apenas 27. Antero dava consultas à gente da família e aos empregados da fazenda. Receitava remédios e fazia partos, com ótimos resultados. Lia e escrevia cartas para os meeiros analfabetos. Tornou-se conhecido e popular. Passou a atender doentes das vizinhanças, conseguindo juntar dinheiro.

Com o passar do tempo, as relações entre Antero e Albino se estreitaram. O rapaz batizou um dos filhos do fazendeiro. Tornaram-se sócios em negócios de gado, coisa mais do que natural entre compadres. Sendo Joaquina uma mulher tão jovem, algumas pessoas começaram a murmurar que poderia estar havendo algo entre ela e Antero - este não saía da casa de Albino. As suspeitas prosperaram por se tratar de um moço bonito, simpático, que falava bem e compunha poesias.

O fazendeiro Albino Felipe, aos 74 anos.

 

Alguns anos após ter chegado de Campo Grande, Antero já dava consultas na região urbana de Catalão. Como pagamento, recebia cabeças de gado, porcos, gêneros alimentícios. Sua crescente reputação incomodou um dos médicos locais, que ameaçou denunciá-lo por curandeirismo.

Antero não se sentiu intimidado. Pelo contrário, já tendo uma poupança razoável, mudou-se com Amélia da fazenda para a cidade. Comprou uma casa na rua do Meio, próxima ao ginásio das freiras, e arrendou o Cartório de Registro Civil. Antero da Costa Carvalho se dispunha a ficar rico. Quanto mais rápido, melhor.

Só que fama, em Catalão, era coisa para pistoleiros. Gente que sabia defender, à bala, sua reputação. Não para janotas que falavam macio, recitavam poesias e conseguiam ganhar dinheiro numa época de tanta miséria.

O carisma revelado por Antero, e seu prestígio com o povo humilde da cidade e dos arredores - para quem, entre outros favores, dava consultas gratuitas e distribuía remédios -, passou a incomodar a poderosa elite rural. Infelizmente, o jovem e ambicioso farmacêutico não percebeu o ciúme que crescia ao seu redor.

 

 

O Pouso do Catalão, situado entre a Colina da Saudade e o Morro das Três Cruzes, já tinha sido palco de homens arrojados, entre eles o Anhanguera, desbravador de Goiás, e o coronel Roque Alves de Azevedo. Lá, o escritor Bernardo Guimarães vivera seus melhores anos, bebendo cachaça, vadiando com as putas e participando de animadas serenatas.

No antigo chafariz do Largo da Igreja, muitas vezes o Índio Afonso lavou do punhal o sangue fresco de suas vítimas. Na rua do Comércio, o senador Afonso Paranhos foi chacinado por Elyseu da Cunha e pelo jagunço Veridiano, a serviço do capitão Carlos de Andrade. Na Saída Leste da cidade, logo na primeira curva da linha do trem, Isaac da Cunha liderou o massacre dos ferroviários.

Em longas noites, enlameadas nas chuvas ou cobertas do pó da estiagem, Salomão de Paiva fez valer o terror. Por aquelas ruas, caminhou o Cabeleira, sempre pronto para matar ou morrer. E ainda passavam João Sampaio e Salvianinho.

Mas a grande página de sangue não havia sido escrita. Começava a ser esboçada desde o instante em que o poeta Antero Carvalho pisou pela primeira vez o solo vermelho das terras do Catalão.


19. O crime da Pedra Preta

No dia 26 de maio de 1936, um dia ao que tudo consta normal, um a mais no cotidiano da cidade de Catalão, à época já merecedora da fama de violência que a percorria, deslocou-se Albino Felipe de sua fazenda rumo a Catalão para, entre outras coisas, fazer um testamento em benefício de sua segunda esposa, Joaquina Cândida de Jesus...

Nasr Fayad Chaul,

História política de Catalão

 

Antero Carvalho participava ativamente da vida social de Catalão. E continuou prosperando. Terminado o prazo de um ano, pelo qual arrendou o cartório, abriu uma farmácia. Não tendo diploma de farmacêutico, contratou um profissional para trabalhar com ele no estabelecimento.

Além de ser poeta, Antero discursava e redigia bem. Tornou-se colaborador de dois novos jornais da cidade: O Esporte e O Estudante . E ainda conseguia encontrar tempo para ajudar a população pobre, distribuindo remédios e dando consultas grátis. Isso lhe valia grande popularidade, recebida com ciúme e despeito pelos Sampaio. Temiam que Antero pudesse candidatar-se a algum cargo eletivo.

A amizade do farmacêutico com o fazendeiro Albino Felipe, seu protetor nos primeiros tempos no município, aparentemente prosseguia. Tanto é que, quando ia à cidade, Albino costumava se hospedar na casa do compadre.

 

 

O ano de 1935 se passou sem incidentes dignos de nota. Em dezembro, Anísio Gomides tomou posse como prefeito.

Cinco meses depois, mais precisamente na terça-feira 26 de maio de 1936, o velho Albino, agora com 78 anos, viajou da fazenda para Catalão. Entre outras coisas, pretendia fazer um testamento em favor de sua mulher, Joaquina.

Ao chegar à cidade, o fazendeiro dirigiu-se à casa de Antero. Queria aconselhar-se com o compadre sobre o documento. Mas não o encontrou. Antero tinha ido visitar um doente em Ouvidor.

Albino estava na casa de Antero, conversando com Amélia Nazar, quando surgiu seu filho, João Albino do Nascimento, também à procura do farmacêutico. Ao ver o pai, João disse que precisava ter uma conversa com ele. Os dois combinaram retornar juntos à fazenda, no final da tarde. Marcaram encontro na saída da cidade.

Horas depois, pai e filho iniciaram a viagem de regresso. Cavalgaram lado a lado por um bom tempo. Quando chegaram ao local conhecido como Cava do Tombador, João pediu ao pai que seguisse sozinho, pois teria de aguardar dois meninos que vinham atrás, tangendo seis bois para a fazenda.

O velho não chegou a percorrer um quarto de légua. Na Baixadinha da Pedra Preta, trecho do caminho ladeado por mata fechada, um braço empunhando um revólver 38 se ergueu em meio à vegetação. Houve dois tiros, ambos certeiros. Albino, ferido na nuca e no peito, caiu do cavalo.

Baixadinha da Pedra Preta em foto recente.

 

Ao ouvir os disparos, João Albino galopou para lá. Já encontrou o pai morto.

 

* * *

 

Na manhã de quarta-feira, dia 27, o assassinato do fazendeiro Albino Felipe monopolizou as conversas em Catalão, todos comentando as circunstâncias da tocaia. Os Sampaio lançaram suspeitas sobre João Albino, filho do morto. “Não esteve ele com o pai, até pouco antes do crime?”, “Não o abandonou na estrada, deixando-se ficar para trás?”. Diógenes e João Sampaio destilaram suas maledicências.

Logo alguém descobriu e revelou a Diógenes que o velho fora a Catalão fazer um testamento, pelo qual deixaria boa parte dos seus bens para a jovem mulher, Joaquina, em detrimento dos filhos. Só não preparou a papelada por não ter encontrado Antero. A notícia aumentou as desconfianças de Diógenes em relação ao filho do fazendeiro.

 

 

Passadas duas semanas, nomearam o tenente de polícia José Francisco Póvoa como delegado especial para apuração do crime. Por sua ordem, soldados prenderam João Albino na fazenda e o levaram à delegacia. Póvoa o acusou de mandar matar o pai. João negou veementemente qualquer participação no assassinato.

- No final da tarde do dia 26 de maio do mês passado - declarou o suspeito -, eu realmente ia da cidade para a fazenda, em companhia do meu pai. Mas, quando chegamos à Cava do Tombador, disse a ele pra ir em frente. Eu precisava esperar dois meninos que vinham trazendo seis bois cangados. Meu pai se adiantou e, pouco depois, ouvi dois tiros. Pensei que era gente praticando tiro ao alvo no pasto do João Sampaio ou na roça do Gabriel Rodrigues. Mas resolvi ir ver. Quando cheguei na Baixadinha da Pedra Preta, encontrei o meu pai já morto.

Sobre o testamento do fazendeiro, João Albino declarou:

João Albino, filho de Albino Felipe, na porta da cadeia.

 

- Nem eu nem os outros filhos do primeiro casamento do meu pai nunca nos opusemos aos negócios dele.

O tenente Póvoa não se satisfez com as declarações. Decidiu pôr o preso a prova. Mandou que os soldados o “coroassem”, método “investigativo” muito usado pela polícia de Goiás, que consistia em colocar um torniquete de arame farpado ao redor da cabeça do interrogado e ir apertando aos pouquinhos, até surgir a “verdade”.

Apesar do suplício, João Albino manteve sua versão. Póvoa então pediu instruções a Diógenes Sampaio, que mandou soltar o homem. Mesmo porque a tortura do prisioneiro já ensejava protestos na cidade.

O tenente convocou à delegacia Almiro Albino do Nascimento, de 21 anos, filho de João Albino e, portanto, neto do velho assassinado. Neste segundo interrogatório surgiu, pela primeira vez, o nome de Antero Carvalho.

- Antero ia seguidamente à fazenda - revelou o jovem - e tomava liberdades com a Joaquina. A ponto de a família desconfiar. Tanto fazia meu avô estar em casa, como ausente, ele sempre aparecia por lá. Aliás, com meu avô, Antero quase não conversava. Só queria saber dela.

A partir desse depoimento o tenente passou a investigar Antero. Descobriu, através de um agente de seguros, que o farmacêutico certa vez lhe perguntara se o velho Albino poderia fazer um seguro de vida. Ele respondeu que isso era impossível para pessoas com mais de sessenta anos.

Chamado à delegacia, o agente contou mais. Disse que Antero costumava prescrever ao fazendeiro, que sofria de prisão de ventre crônica, um purgante para cavalos. Como o corretor de seguros achava que pessoas idosas não podiam tomar purgantes - crença comum em Goiás -, muito menos de cavalos, na ocasião ele suspeitara que o farmacêutico tentava eliminar seu compadre Albino Felipe.

Tendo agora Antero como principal suspeito de ser o mandante do crime, restava descobrir o nome do autor dos disparos. O esclarecimento não tardou. Um jagunço de Diógenes Sampaio, de nome Realino de Oliveira, mais conhecido como Charuto, contou ao patrão que o assassinato fora cometido pelo caçador e pistoleiro Francisco dos Reis, o Chico Prateado, de 24 anos, mineiro de Patrocínio, homem notório por sua excepcional pontaria.

Segundo Charuto, o próprio Chico lhe revelara o fato - quando matavam alguém, os jagunços costumavam se jactar do êxito do serviço aos colegas de profissão.

João Sampaio passou as informações ao tenente Póvoa. Este, mais do que depressa, mandou prender o suspeito. Ao dar entrada na delegacia, Chico Prateado, antes mesmo de sofrer o habitual “aperto”, decidiu confessar o crime. E mais: confirmou as suspeitas do tenente, revelando ter matado o fazendeiro a mando de Antero Carvalho, em troca de dois contos de réis, que acabou não recebendo.

Antero foi preso em seguida. Surpreendentemente, não negou sua participação. Mais do que isso, municiou Póvoa com detalhes. Acusou o compadre assassinado de ser um homem desonesto, tendo prejudicado a ele, Antero, em três contos de réis, num negócio de bois feito em Goiandira. Como vingança pelo prejuízo, decidiu matar Albino.

Tanto Chico Prateado como Antero Carvalho assinaram depoimentos formais na delegacia. Após ler as declarações dos presos, o promotor público de Catalão solicitou, em 15 de julho, a prisão preventiva de ambos. Três dias depois, o pedido foi acatado pelo juiz substituto da comarca - o titular, Diocles Siqueira, alegou suspeição para não ter de se manifestar nem desagradar ninguém.

Durante a fase de inquérito que se seguiu, Chico Prateado fez declarações que comprometeram Antero ainda mais. Disse que, certa feita, o farmacêutico lhe propôs a empreitada de ir até Anápolis e lá matar um homem chamado José Quinam, ex-marido de Amélia Nazar, companheira do farmacêutico, crime que se daria em ocasião ainda a ser escolhida.

Em 28 de julho, Antero e Prateado fizeram novos depoimentos, assinados na presença do delegado especial e do promotor público. Ao final do documento, declararam não terem sofrido nenhum tipo de coação por parte da polícia.

Confissão de Antero.

 

* * *

 

Enquanto o inquérito se desenrolava, na cidade corriam outras versões para o crime. Uma delas dizia que Diógenes Sampaio, seu irmão João Sampaio e o próprio Antero Carvalho haviam sido beneficiados pela morte de Albino Felipe, num negócio escuso, e confuso, que envolvia uma letra de 42 contos de réis, assinada pelo fazendeiro, tendo Diógenes, João e Antero como beneficiários, letra essa que, agora, poderia ser cobrada do espólio de Albino.

O tenente Póvoa se baseou nesses rumores para afirmar, numa das peças do inquérito, e com o cuidado de excluir os nomes dos Sampaio em suas conclusões, que o verdadeiro motivo do crime fora a intenção, por parte de Antero, de apoderar-se dos bens da vítima. Para isso, segundo Póvoa, o farmacêutico se valeria de confissões de dívida assinadas pelo fazendeiro morto.

Já o povo de Catalão não se convencia da culpa de Antero, tanto que seus poemas continuaram a aparecer nos jornais da cidade, coisa que dificilmente ocorreria se ele tivesse caído em desgraça. No início de julho, saiu publicado o soneto “No cárcere”:

 

Das grades deste cárcere maldito

Os dias lentamente vão passando...

A saudade vem n’alma chorando,

No peito um coração que bate aflito.

 

Todos os dias, a gente que passava pela porta da cadeia podia ver o poeta sentado no parapeito de sua cela, por trás das grades, tomando sol e lendo algum livro. Nessas ocasiões ele interrompia a leitura para saudar os transeuntes.

Enquanto isso, amigos e parentes do fazendeiro morto queriam vingança. Na noite de sábado, 25 de julho, para domingo, um grupo de pessoas ligadas a Albino Felipe tentou invadir a cadeia para pegar Antero e Chico Prateado. Só que os dois não foram encontrados.

Diógenes e João Sampaio, ao tomarem conhecimento do projeto de invasão, para o qual não haviam sido consultados, sentiram-se diminuídos. Em represália, mandaram homens de confiança retirar os presos da cadeia e os levar para um lugar seguro. Mas no dia seguinte os devolveram à polícia.

De volta à prisão, e agora sabendo que corria risco de vida, Antero requereu ao juiz substituto prestar novas declarações a respeito do crime. O juiz indeferiu o pedido.

Considerando restabelecido seu prestígio, João Sampaio procurou a família de Albino Felipe. Disse que, em troca de alguns bois de carro, e de uma importância em dinheiro, ele mesmo se encarregaria de liderar uma nova invasão à cadeia.

Estranhamente, na noite de sexta-feira, dia 14 de agosto de 1936, o mesmo João se encarregou de promover a fuga de Chico Prateado. Montado numa mula, o matador de Albino Felipe, seguido por um jagunço dos Sampaio, cavalgou até as barrancas do Paranaíba, na divisa com Minas. Lá chegando, recebeu cinco notas de 100 mil réis, uma carabina, munição e ordens expressas para jamais voltar a Catalão. Chico Prateado lançou-se ao rio e desapareceu na escuridão.

 

 

Sozinho na cadeia, e temendo a qualquer momento nova tentativa de invasão, Antero Carvalho escreveu seu último poema.

 

Eu vim do pó - sou irmão do verme,

Eu vim do nada - e dele quero ser,

Quando a morte transformar-me,

O Ser do Ser...

Sou lama - sou lodo - sou poeira

E nada mais no mundo posso ser!...

Eu vim do pó - sou nojento e imundo,

Eu vim do nada e a ele hei de volver...

Não desejo mais nada deste mundo,

Só espero morrer.


20. A longa noite dos punhais

... foi chegando gente. Isso assim os colegas do velho que tinha morrido, cada um trouxe dois, três, quatro, cinco, dez, vinte capangas... já foram rodeando a cadeia.

Depoimento de Izaurico da Silva Belo,
a Nasr Fayad Chaul,

História política de Catalão

 

Quando a bola vermelha do sol de inverno se escondeu no horizonte, na direção de Goiandira, quase deu para se perceber o instante exato em que a noite chegou a Catalão. Um tapete escuro se desenrolou sobre a cidade, mais negro do que o costume, quem sabe pressagiando os trágicos acontecimentos que o destino reservara para as últimas horas daquele domingo. No alto do outeiro da Saudade, a ermida de São João, caiada de branco, brilhou uma última vez antes de esgueirar-se no lusco-fusco.

Boa parte das famílias se preparava para ir ao cinema. No amplo sobrado dos Fayad, por exemplo, Labiba, catorze anos, vivia a expectativa excitante de ver, pela primeira vez, um filme de Shirley Temple. Dois quarteirões a oeste, na casa de dona Iaiá e de seu Hermógenes, as filhas do casal, Maria Bárbara, Maria Luísa e Maria do Rosário, a última com apenas cinco anos, também aguardavam, alvoroçadas, a hora de saírem para o Cine Guarani.

Jardim público, nos anos 1930. A segunda construção do lado direito, da qual só aparece parte do telhado, é o cinema da Diva, no qual as famílias assistiam ao filme de Shirley Temple.

 

Às dezoito horas, Diva, proprietária do cinema, fez soar a sirene, anunciando a chegada do filme, de Araguari, pela jardineira. Isso significava que a sessão começaria no horário. Ao ouvir o aviso, o senhor Nars e dona Nagib, com os filhos a reboque, percorreram apressados as poucas dezenas de metros que separavam sua casa do prédio do cinema. Adquiriram os ingressos e conseguiram se acomodar juntos na plateia, que se enchia rapidamente.

No final daquela tarde, alguns cavaleiros soturnos chegaram à cidade. O grupo, liderado por João e Divânio Sampaio, compunha-se em sua maioria por fazendeiros amigos do velho Albino Felipe, assassinado três meses antes. Todos se vestiam com austeridade, como se estivessem indo para a igreja. Muitos se faziam acompanhar de seus jagunços.

Depois de deixar as montarias num terreno próximo à charqueada do Margon, os homens foram até a loja do sírio Farid, onde compraram dois engradados de cerveja. Amarraram as garrafas a uma pedra. Puseram-nas dentro da água fria de inverno do córrego Pirapitinga. Mais tarde, quando viessem pegá-las, estariam quase geladas.

Para não chamar muito a atenção do povo - João Sampaio, ainda mais acompanhado de tantos homens, era sinal de encrenca -, o grupo se dispersou. Só voltou a reunir-se uma hora mais tarde, num local próximo à cadeia. De lá puderam observar, ao longe, as famílias entrando no Cine Guarani.

 

 

Na Cadeia Pública, o poeta e farmacêutico Antero da Costa Carvalho, sentado no parapeito de sua cela, por trás das grades, podia ver o lado de fora da prisão. Acompanhava atento o fluxo das pessoas que passavam, a cinquenta passos de seu posto de observação, no sentido leste, em direção ao cinema.

Com a fuga, dois dias antes, de Chico Prateado, Antero passou a ser o único preso da cadeia. Talvez por isso, apenas dois guardas permaneciam de vigília. O tenente Póvoa e os outros seis soldados já tinham terminado seu turno.

Quando a sessão de cinema começou, o movimento nas ruas diminuiu muito. Na cadeia, Antero abandonou a janela. Por isso não percebeu, de imediato, quando um grupo de mais de cinquenta homens, uns cochichando nos ouvidos dos outros, cercou o prédio, entre eles João e Divânio Sampaio, João Albino (o filho de Albino Felipe, no início considerado o principal suspeito de ser o mandante do crime da Pedra Preta), ladeado por seu genro, Izaurico da Silva Belo, e por um homem chamado João Honorato. Todos portavam armas: carabinas, revólveres, fuzis, facas e punhais, muitos punhais.

A três quarteirões dali, alguém informou o tenente Póvoa sobre o cerco à cadeia. Em vez de se dirigir ao local, como seria de se esperar, Póvoa chamou o sargento Ferraz, que bebia num botequim próximo. Ordenou-lhe que reunisse alguns homens e corresse para lá.

Quando, dez minutos depois, o reforço chegou à delegacia, a multidão em volta do prédio havia engrossado. Ninguém se atemorizou com a presença da polícia. Ao contrário: um dos sitiantes se adiantou e disse ao sargento:

- Olha, tira os seus meninos pra lá, porque aqui vocês vão morrer todos. Hoje a gente tira o homem, hoje a gente tira ele. Hoje queremos ver o Diógenes tirar ele escondido da gente.

O sargento Ferraz deu uma olhada ao redor, avaliando a situação. Notou que entre os que se preparavam para invadir a cadeia estava ninguém menos do que João Sampaio, um dos homens mais temidos da cidade, e irmão de Diógenes Sampaio, mandachuva do município.

Se os próprios Sampaio, pensou o militar, desta vez se punham contra Antero, não haveria de ser ele, Ferraz, um simples sargento, que os iria contestar. Ainda mais com tal disparidade de forças. Optou por bater em retirada com seus homens. Antes, chamou os dois soldados que guarneciam a cadeia. Foram todos pedir instruções ao tenente Póvoa.

A partir daquele momento, Antero Carvalho ficou sozinho na prisão, à mercê dos sitiantes. Ao se dar conta de que os soldados o haviam abandonado, o farmacêutico meteu-se debaixo da cama, numa tentativa ingênua de se proteger.

 

 

Tendo ouvido o relato do sargento, o tenente Póvoa decidiu que seu efetivo nada iria fazer. Mandou que seus homens se dispersassem pela cidade, mantendo-se longe da delegacia, evitando assim a possibilidade de um confronto com os atacantes.

 

 

Como se não bastasse o clima de tensão naquele início de noite, pouco antes das sete horas ocorreu uma queda no fornecimento de energia e as luzes da cidade se apagaram. No cinema, a projeção, mal iniciada, interrompeu-se, sob vaias da plateia. Mas ligaram o gerador e o episódio do seriado de Tom Mix, que precedia o filme de Shirley Temple, voltou a rodar, fato ruidosamente comemorado pela garotada.

 

 

Para os homens que invadiam a cadeia, a interrupção da energia também não foi obstáculo, pois a maioria portava lanterna. João e Divânio Sampaio preferiram aguardar do lado de fora, enquanto os outros ocupavam o prédio. Após arrombar sem dificuldades a velha fechadura da cela, localizaram Antero, encolhido, sob a cama.

- Olha, o homem está aí dentro, moçada - gritou um velho fazendeiro, pai de Izaurico da Silva Belo.

Elpídio de Freitas, parente afastado de Albino Felipe, conseguiu encostar a mão em Antero, por baixo da cama, e o puxou pelas calças. Mas, ao sair de sua toca, o preso aplicou violento pontapé nos testículos de Elpídio, fazendo-o encolher-se em arco. Segurando com ambas as mãos a genitália atingida, recuou uns dez metros, urrando de dor.

Vieram outros para substituí-lo. Não tendo como resistir, Antero foi retirado da cela. Os invasores amarraram-lhe as mãos nas costas. Aterrorizado, ele gemeu um desesperado pedido de clemência:

- Pelo amor da Virgem Maria, não faz isso comigo.

- Você trate de ficar calado, senão morre agora - ameaçou Antônio Vigilato, filho de um amigo do fazendeiro assassinado. E, para mostrar que não brincava, enfiou uma das mãos na boca de Antero, puxou sua língua para fora e, com uma punhalada certeira, perfurou-a de cima para baixo.

O grito de dor morreu na garganta de Antero. Foi substituído por um gorgolhão de sangue, expelido pela boca. Alguém trouxe um laço de corda e passou-lhe ao redor do pescoço.

- Não pode machucar muito, não, pessoal. A gente quer ver ele sofrer. - A ordem se espalhou dentro e fora da cadeia. Recebeu a aprovação de João Sampaio.

Puxado pela corda, Antero apareceu na porta do prédio. Já levara perto de uma dúzia de facadas, todas superficiais, o que não impedia que o sangue empapasse sua roupa. Ao vê-lo, a multidão urrou de prazer, abafando os gritos do poeta.

Alguns homens se atropelavam, querendo chegar mais perto, na ânsia de participar. Iniciou-se então a via-sacra, em direção ao lado oeste da cidade, pois João Sampaio achou por bem não passar pelo cinema, nem pelo Jardim, locais onde se achava a maioria das famílias.

Quase ao lado da cadeia, em frente ao Externato Sant’Anna, de dona Iaiá, ficava a venda de Sebastião Caiado, com lampiões acesos no interior. Dona Nega, mulher de Sebastião, ao ouvir o alarido do populacho, surgiu na porta do estabelecimento.

Ao se dar conta do que acontecia, ela correu para o meio da rua. Gritando histericamente, postou-se diante do cortejo, abrindo os braços e tentando impedir seu avanço. Logo seu Caiado também saiu da loja. Veio juntar-se aos protestos da mulher. Isso só serviu para enfurecer os homens, que impediram Sebastião e Nega de se aproximarem de Antero. Apontando-lhes facas, obrigaram-nos a recuar para a venda.

Venda de Sebastião Caiado de onde ele e sua mulher, Nega, saíram para tentar impedir o linchamento.

 

João Sampaio, líder do bando, ficava o tempo todo ao lado do preso, cuidando para que não sofresse um ferimento mais sério, arruinando o festejo.

- Calma, pessoal - ele gritava. - Assim vocês matam o homem.

De vez em quando, alguém vibrava um bofetão ou aplicava um pontapé em Antero. A malta recebia o golpe com gargalhadas. Alguns, usando apenas as pontas de seus punhais, faziam pequenos furos na barriga, nas costas, no peito, na coxa e nos braços manietados do prisioneiro. Às vezes, Antero abria a boca, talvez para pedir que o poupassem, talvez para pedir que o matassem logo, pondo fim ao martírio. Um soco na cara lhe cortava a iniciativa.

Tal como Cristo em Jerusalém, o poeta caía a cada dez ou vinte metros. Mas, puxando-o pelas cordas, os homens o forçavam a se levantar. Assim, sofrendo como Jesus, ele passou defronte ao Ginásio Nossa Senhora Mãe de Deus. Nenhuma das freiras saiu lá de dentro para defendê-lo.

Antero quase não conseguia caminhar. Seus gritos de dor se transformaram em vagidos agonientos. Os olhos pareciam estar prestes a saltar fora das órbitas. Próximo à rua da Grota, João Sampaio gritou uma ordem e a chusma virou à direita. Começou a descer em direção ao Pirapitinga.

O suplício de Antero Carvalho já durava mais de meia hora. A língua, rasgada, tumefacta, parecia ter dobrado de tamanho. Pendia para fora da boca. Com muito custo, os carrascos o mantinham de pé. Dezenas de ferimentos de faca e de punhal sangravam seu corpo, deixando uma trilha vermelha na terra do caminho.

Atravessaram o Pirapitinga e passaram a subir o meio quarteirão que separava o córrego da casa do prefeito Anísio Gomides. Lá chegando, João Sampaio ergueu a mão e o cortejo parou. Ouvindo o vozerio, Gomides surgiu à janela. Talvez já soubesse de tudo, pois não deu mostras de se surpreender. Limitou-se a trocar um olhar de cumplicidade com Sampaio e a contemplar, por alguns minutos, a procissão macabra, legitimando-a com seu nihil obstat .

Antero percebeu que era a casa do prefeito (para quem prestava serviços, redigindo discursos) e que Gomides se debruçava no parapeito da janela. Arregalou ainda mais os olhos e tentou implorar clemência à autoridade. Mas de sua boca saiu apenas uma gosma vermelha, misturada de bolhas de ar, cuspe, espuma e sangue. Entretanto, segundos depois, o poeta conseguiu emitir um grito de terror, que ecoou por toda a parte oeste da cidade: um dos verdugos lhe vazara os olhos com dois golpes de punhal.

O estômago do prefeito deve ter se revoltado com a cena, pois mais do que depressa ele meneou a cabeça para João Sampaio, saudando-o em despedida, e sumiu no interior da casa. Alguns carrascos se aproximaram de Antero e iluminaram seu rosto com as lanternas. Assustaram-se com a visão dos olhos furados. João Sampaio, tendo retribuído o cumprimento do prefeito, voltou-se para os homens e gritou:

- Vamos agora voltar daqui.

Só que Antero não conseguia mais caminhar. Nem mesmo chuçado pelos punhais e estimulado por socos e pontapés. O Cristo tornou-se um Judas de Sábado de Aleluia após a malhação. Tanto que, no caminho de volta ao córrego, os homens tiveram de rebocá-lo pela corda, baixada do pescoço para debaixo dos braços para evitar um enforcamento acidental, que poria fim ao suplício de um, e à festa de outros.

Ao se aproximarem de novo do Pirapitinga, o corpo de Antero já exibia mais de cinquenta facadas, nenhuma delas mortal. Agora só os linchadores mais próximos podiam ouvir a algaravia gutural em que seus gemidos se transformaram.

O cortejo voltou a atravessar a ponte e subiu em direção à Grota. Quando chegaram lá, os linchadores viraram à direita. Encaminharam-se para a saída oeste da cidade, direção de Goiandira. A morte do condenado, mesmo que ninguém mais lhe molestasse, seria uma questão de tempo.

Ainda consciente, Antero percebia o fim próximo. A dor sumiu, transformando-se em torpor. Seus olhos cegos remetiam ao cérebro estímulos que se traduziam num clarão vermelho, vermelho como o sangue, vermelho como o fogo.

O poeta não quis morrer sem antes dizer alguma coisa para João Sampaio. Com a coragem dos que sabem que nada mais têm a perder, muito menos a ganhar, seus músculos dilacerados conseguiram trazer parte da língua para dentro da boca. Só João ouviu o que Antero falou. Não deve ter gostado nem um pouco pois ordenou à turba:

- Acabem com esse bandido!

Obediente, um dos linchadores sacou de um comprido punhal. Cravou-o no peito do condenado, por entre as costelas, varando-lhe o coração.

Antero Carvalho pôde perceber, com grande clareza, quando sua vida se foi.

 

 

No Cine Guarani, projetavam o último rolo do filme. Sentada entre o pai, Nasr Fayad, e a mãe, dona Nagib, a menina Labiba assistia aos momentos decisivos da fita de Shirley Temple. Embevecida, custou a perceber um homem se aproximando, com passos apressados, pelo corredor lateral da plateia.

José Faim Fayad, uma das poucas pessoas da família ausentes do cinema, veio dar um recado ao pai de Labiba. Teve de esperar alguns minutos para que seus olhos se acostumassem à escuridão e pudessem localizar o parente. Finalmente conseguiu vê-lo e se aproximou. Soprou algo no ouvido do senhor Nars. Este, muito assustado, levantou-se afobadamente e, em tom que não admitia contestação, disse à mulher e aos filhos:

- Levantem. Vamos embora.

Ninguém teve coragem de perguntar o motivo de tanta pressa.

Os Fayad saíram do cinema e se dirigiram ao sobrado da família. Nasr mandou que as crianças subissem para os quartos de dormir, no andar superior. Enquanto isso, no térreo, os homens se armavam, na expectativa do que poderia estar acontecendo na cidade.

Lá em cima, de seu quarto, Labiba ouvia o entra e sai de gente na casa e o som de carabinas sendo armadas e municiadas. Podia também escutar seus pais e tios discutindo em árabe, língua que ela não compreendia. Mas dava para ter noção de que algo extremamente grave ocorrera. A menina dividiu-se entre o medo e a curiosidade.

Ao ver a irmã mais velha encaminhar-se ao outro quarto, Labiba, sem fazer barulho, engatinhou até o alpendre. Escondeu-se atrás de uma pilastra, acocorou-se sobre o piso de ladrilhos e olhou para a rua. Nesse instante, ouviu um tropel de animais.

Logo, um grupo de cavaleiros contornou o Jardim e passou defronte ao sobrado. Na dianteira, uma mulher gordota, vestida de preto, montava um cavalo branco. Levava ao colo uma criança pequena. Ao seu lado, trotava um homem magro, alto, usando calça e camisas brancas e uma capa preta, que se confundia com o lombo da montaria, da mesma cor.

O chapéu do cavaleiro, de aba larga, e a luz fraca da rua impediram que Labiba lhe visse a fisionomia. Por isso ela não pôde saber que se tratava de João Sampaio, voltando do linchamento. A mulher era Joaquina, viúva de Albino Felipe, a quem Sampaio dava conta do êxito da vingança.

Um frêmito frio percorreu, de baixo para cima, a espinha de Labiba Fayad. Ela se espremeu contra a coluna. As patas dos cavalos erguiam poeira da rua. O grupo passou a poucos metros de distância do alpendre e se encaminhou para a saída da cidade.

Na porta do Cine Guarani, terminada a sessão, os espectadores, à medida que saíam, se inteiravam do acontecido. Logo puderam ter uma amostra da barbárie cometida àquela noite, quando Divânio Sampaio surgiu em frente ao cinema exibindo as mãos e roupas manchadas de sangue.

- Acabei de matar mais um - gabou-se, fazendo questão de usar o verbo no singular, arvorando-se todo o “mérito” da execução.

Assustadas, as famílias se apressavam em regressar às suas casas. No caminho, ao passar pelas portas dos botequins, iam tomando conhecimento dos detalhes do linchamento.

 

 

Naquele domingo, ninguém dormiu em Catalão. Fez-se silêncio em toda a cidade, silêncio intercalado de rezas, choros e ranger de dentes. Os participantes do martírio de Antero experimentavam incômodas sensações: pressão no peito, aperto fundo de arrependimento... Os gritos do poeta martelavam suas cabeças.

Da varanda do andar de cima a menina Labiba viu passar os líderes do linchamento, após a morte de Antero.

 

Poucas pessoas tiveram coragem de ir até o local onde Antero tombou morto. Lá, João Pinto de Melo, auxiliar do farmacêutico, velava o patrão. Mais tarde, um passante o ajudou a embrulhar o corpo em um lençol. Levaram-no para a farmácia.

 

 

As noites são geladas nessa época do ano. Um vento frio, de açoite, soprou sobre as terras do Catalão, quando o domingo, dia 16 de agosto de 1936, transformou-se na segunda-feira.

A ventania se esgueirou entre o Morro das Três Cruzes e o Outeiro da Saudade, e ganhou força. Soprou sobre o Centro da Cidade e o Jardim Municipal. Sobre os trilhos da estrada de ferro. Soprou sobre a rua da Grota, a rua do Pio, a rua das Sete Casas, a rua dos Pretos, a rua da Capoeira, soprou sobre o Marca-Tempo. E sobre as águas frias do Pirapitinga. Soprou sobre o cemitério onde, no dia seguinte, jazeria o primeiro mártir da cidade sem heróis.

trajeto do cortejo de linchamento de antero


21. Epílogo

... Tinha gente deste tipo, recordo por esta letra

Mataram Albino Felipe na Volta da Pedra Preta

Depois, culparam Antero, sem ele ter culpa nenhuma...

Moda do Antero, composta por Benedito Felipe,

parente de Albino Felipe

 

Uma imensa culpa coletiva se apoderou de Catalão na segunda-feira. Mesmo as pessoas que, na hora do linchamento, estavam no cinema, ou no interior de suas casas, sem saber da atrocidade que ocorria nas ruas, agora sentiam remorsos. Não só pela morte de Antero Carvalho, mas também, quiçá por atavismo, pelos mais de dois séculos nos quais sempre prevaleceu na cidade a lei e o culto do mais forte, do mais malvado, do mais ligeiro no gatilho ou na faca.

Ao longo da manhã, grupos silenciosos se reuniam na casa de Antero, participando do velório. Vizinhos trouxeram café, cachaça e biscoitos para servir aos visitantes. Arrumaram o caixão na sala, apoiado em cadeiras. Ao entrar, as pessoas apresentavam seus pêsames a Amélia Nazar, companheira do farmacêutico. Depois iam olhar o defunto.

Logo a casa ficou apinhada de gente. Sem contar uma multidão que, do lado de fora, se acotovelava querendo entrar. Os amigos do poeta, que tanta serventia teriam tido na véspera, agora surgiam aos borbotões.

Um murmúrio nervoso correu entre os presentes, quando notaram que do caixão pingava sangue. Depois de encharcar as costas da roupa do morto, e de passar pelas frestas das tábuas do ataúde, o sangue agora formava uma poça redonda, viscosa, repulsiva, que se espalhava pelo assoalho da sala.

Diversas normalistas do Colégio Nossa Senhora Mãe de Deus foram espiar o velório depois da saída das aulas. Amélia Nazar chamou uma delas para junto do caixão e arregaçou a ponta da manga do paletó do defunto. Mostrou as marcas das cordas nos pulsos. Um cheiro acre de morte se espalhava pelo ar. Nauseadas, algumas meninas tiveram de sair rapidamente da casa.

À tardinha, um padre encomendou o corpo e iniciou-se o cortejo fúnebre, tão concorrido quanto o de Salomão de Paiva, doze anos antes. A procissão de enterro passou pela porta da cadeia, de onde o poeta saiu para morrer, atravessou o Pirapitinga e subiu a ladeira do cemitério. Lá, sepultaram Antero da Costa Carvalho em uma cova rasa.

 

 

Nos dias que se seguiram ao funeral, diversas teorias sobre o assassinato do fazendeiro Albino Felipe começaram a correr pela cidade. Muita gente acreditava que Antero - tal como concluíra o tenente Póvoa em seu relatório - mandara mesmo matar o fazendeiro para apropriar-se de seus bens, o que faria descontando a letra de 42 contos - por sinal nunca localizada - do inventário de Albino Felipe.

Outros diziam que Chico Prateado dera cabo do fazendeiro a mando dos Sampaio. Estes, por sua vez, ainda segundo essa versão, teriam pedido a Antero que assumisse a culpa, em troca de oito contos de réis - isso não raro acontecia em Catalão, sempre que um dos maiorais do lugar, estando envolvido em algum delito, não queria ser incomodado por um processo na Justiça. De acordo com essas fontes, o linchamento só aconteceu porque Antero exigiu mais dinheiro de Diógenes e João Sampaio.

Entre os defensores do poeta, muitos garantiam que Chico Prateado, e só ele, recebera dinheiro para assumir a morte de Albino Felipe. E também para acusar Antero de ser o mandante. Diversas pessoas achavam que o depoimento prestado à polícia pelo farmacêutico, dias antes de morrer, não fazia sentido. Se ele teve desentendimentos a respeito de negócios com Albino Felipe, por que este último o procurou em Catalão, poucas horas antes de ser assassinado, para resolver um assunto de testamento?

Muitos juravam que Antero teria confessado sob tortura, e, como prova disso, alegavam que uma freira do colégio, irmã Rita de Cássia, certo dia, ao levar comida para o preso, viu nele marcas de espancamento.

Em meio a todo esse disse me disse, Catalão dividiu-se entre acusadores e defensores de Antero. Mas mesmo os que eram da opinião de que ele fora mesmo o autor intelectual do crime da Pedra Preta, agora se posicionavam contra o justiçamento sumário.

Os Sampaio cuidaram de espalhar que o farmacêutico, quatro anos antes, ao trocar a cidade de Campo Grande por Catalão, fez isso fugindo da Justiça do Mato Grosso, como se tal fato justificasse a barbárie. Mas não exibiam nenhum documento para fortalecer a tese. Garantiam, também sem apresentar provas, que Antero devia dinheiro a Albino e mandara matá-lo para se ver livre da dívida. Adeptos do poeta retrucavam dizendo que os Sampaio o haviam escolhido como bode expiatório do crime justamente porque Antero não tinha quem o defendesse, muito menos quem o vingasse, na cidade.

A não ser que os próprios Sampaio esclarecessem os mistérios do episódio, nenhum catalano, fosse contra ou a favor de Antero, encontrava uma explicação lógica para o fato de que um Sampaio, Diógenes, havia protegido o farmacêutico por ocasião da primeira tentativa de invasão da cadeia, e, dias depois, João e Divânio, irmãos de Diógenes, lideraram o massacre do preso. Muito menos sabia-se por que razão os Sampaio providenciaram a fuga de Chico Prateado, duas noites antes da morte de Antero.

Um dos detalhes da morte do poeta que mais intrigava o povo era o de que a primeira punhalada fora desfechada contra sua língua. Isso o impediu de falar a partir daquele instante.

 

 

O tempo passou e as dúvidas permaneceram. Quatro anos depois da morte de Antero, Izaurico da Silva Belo, parente de Albino Felipe e um dos linchadores, disse que um jagunço de nome Valdomiro matou o fazendeiro a mando de Diógenes Sampaio. Izaurico revelou também que Antero e Chico Prateado assumiram a autoria do crime em conluio com João Sampaio em troca de uma quantia em dinheiro, quem sabe os tais oito contos. E que ambos, João e Antero, deviam dinheiro a Albino. Portanto, lucraram com sua morte. Mas Izaurico não explicou por que, mesmo sabendo disso, ele próprio participou do justiçamento, ao lado de João Sampaio.

 

 

Até hoje o túmulo de Antero é um dos mais visitados do cemitério.

 

Tudo teria se esclarecido caso a polícia tivesse investigado o destino dos bens de Albino Felipe, para averiguar quem se beneficiou de seu assassinato. Ou se descobrissem o paradeiro do jagunço Chico Prateado, para interrogá-lo. Mas nem a delegacia policial da cidade nem as autoridades estaduais se preocuparam em apurar as circunstâncias que envolveram o linchamento. Ao contrário, um comunicado, dos mais lacônicos, assinado pelo tenente Francisco Póvoa, dias depois da morte de Antero, limitou-se a informar, como se isso não fosse de amplo domínio público, que, na noite de 16 para 17 de agosto de 1936, Antero da Costa Carvalho foi retirado da cadeia e morto por diversas pessoas, sem citar o nome de nenhuma delas.

O povo humilde defendia a inocência de Antero. E se lembrava de que, durante o tempo em que ele viveu na cidade, ajudou os necessitados, dando consultas e remédios grátis.

Não precisou muito para o poeta se transformar em mártir. As pessoas rezavam por sua alma. Construíram uma capela no local onde tombou morto. No cemitério, sobre sua cova, ergueu-se um jazigo, onde sempre se via uma vela acesa.

Todos os anos, no dia 16 de agosto, aniversário do linchamento, e no Dia de Finados, aumentava o número de visitantes nesses locais. O costume se prolongou pelas décadas seguintes. Até hoje, nessas duas datas são tantas as velas que o túmulo parece estar pegando fogo.

 

 

Como todo santo que se preze, desde a morte de seu corpo a alma do poeta mártir vem operando milagres. Não são poucas as graças concedidas aos que vão rezar em sua capela ou túmulo. Ora é a cura de uma doença, ora é um político, aparentemente sem nenhuma chance, que se elege. Às vezes é uma moça que recebe de volta o noivo amado. Quem quiser conferir, é só ir a Catalão e perguntar ao povo. Os milagres, as curas, as graças de Antero serão desfiados.

Se ele é inocente da morte de Albino Felipe? Claro que sim. Onde já se viu santos serem culpados? Quanto mais santos milagreiros. Resta então saber por que, e a mando de quem, mataram o fazendeiro. Infelizmente, isso é uma questão que jamais será esclarecida. Muito menos tem importância. Assassinatos sem motivo sempre foram a própria essência da saga de Catalão. Aliás, não fosse pelo martírio de Antero Carvalho, o antigo pouso fundado pelo Anhanguera teria de se conformar com o estigma de ter uma história só de bandidos, sem mocinhos ou heróis.

 

 

Até hoje, as famílias da cidade não aceitam ter seus nomes ligados ao linchamento. Se um turista chegar a Catalão e perguntar quem matou aquele homem, em cuja memória se ergueu uma capela e um jazigo memorial, nenhum sobrenome assumirá o crime. E o visitante será levado a concluir que foram apenas forasteiros desconhecidos que surgiram, à socapa, num domingo de agosto, e mataram o poeta enquanto o povo ia ao cinema.

No entanto, a fria lógica dos números mostra que o cinema comportava cem ou duzentos espectadores, ao passo que, no núcleo urbano de Catalão, naquela época, moravam 4 mil habitantes. Que, com exceção dos vendeiros Nega e Sebastião Caiado - os únicos que intercederam em favor de Antero -, ficaram fazendo não se sabe o quê, enquanto o farmacêutico era trucidado no meio da rua, num martírio que durou mais de uma hora.

Dizem em Catalão que alguns personagens daquela noite agourenta não sobreviveram muito tempo ao poeta. O prefeito Anísio Gomides, por exemplo, que não fez caso da última súplica de Antero, morreu logo depois em sua fazenda, despedaçado pelos cornos de um touro enfurecido - castigo de Deus, dizem.

Diocles Siqueira, o juiz que se omitiu durante o inquérito do crime da Baixadinha da Pedra Preta, também não viveu muito tempo. Morreu em um hospital de São Paulo, corroído por um câncer. Castigo, dizem.

O prestígio dos Sampaio, assim como o da própria cidade de Catalão, não resistiu ao barbarismo. Ambos, políticos e povo do lugar, caíram na desgraça do governador Pedro Ludovico, que parou inclusive de falar e de se corresponder com Diógenes Sampaio, e até mesmo de visitar o município.

Por fim, os eleitores apearam Diógenes do poder. Seguiu-se o ocaso da sanguinolenta prole do coronel Luiz Sampaio. O declínio foi tão grande que Divânio, o caçula - o mesmo que surgiu, após terem matado Antero, exibindo as mãos sujas de sangue, à saída do cinema -, acabou sendo preso quando chefiava um bando de assaltantes de banco.

Enquanto isso, a cada ano que passava, crescia a fama do milagreiro. Pequenas graças para os que tinham fé no mártir, justiça para seus carrascos, é difícil saber se esses fatos corriqueiros podem e devem ser atribuídos a Antero. Mas de uma coisa é possível ter certeza - e é isso que faz crer que o poeta era realmente um eleito de Deus: depois que derramaram seu sangue, naquela longa noite dos punhais, Catalão nunca mais foi a mesma.

Os pistoleiros, mesmo os mais célebres, perderam seu prestígio. Salvianinho mudou-se para Jataí, onde se tornou um prosaico açougueiro. Sexagenário, totalmente calvo, convertido ao espiritismo kardecista, morreu de morte morrida em meados da década de 1960. João Sampaio também não encontrou mais ambiente em Catalão. Mudou-se para Goiânia, onde, tal como Salvianinho, morreu de doença, numa cama.

 

 

Catalão tornou-se uma cidade moderna, com qualidade de vida muito superior à da maioria das capitais brasileiras. Quase não há mendigos nas ruas. Não existem favelas nem bairros miseráveis. Além de faculdades, hotéis e bons hospitais, implantou-se, na saída para Goiandira, um distrito industrial. Entre as empresas que lá se instalaram há uma fábrica de picapes, da montadora japonesa Mitsubishi, e uma indústria de máquinas agrícolas, da gigante americana John Deere. Na estrada para Ouvidor, há uma mineração de nióbio, da transnacional Anglo American.

Catalão no século XXI. Bem ao fundo, a igrejinha de São João, no alto do outeiro.

 

Talvez tenha sido esse o verdadeiro milagre de Antero. Depois de seu martírio, o pouso do Anhanguera passou a se envergonhar de sua saga de sangue. Seus fogos foram se extinguindo, até se apagarem para sempre.

 

 

                                                                  Ivan Sant’Anna

 

 

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