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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HERZOG - P.2 / Saul Bellow
HERZOG - P.2 / Saul Bellow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Recebera um dia uma advertência significativa da mãe de Daisy, Polina, ao apaixonar-se ocasionalmente pela sua amiga japonesa Sono, e Polina, a velha sufragista judia russa — mulher moderna, de cinquenta e cinco anos, residente em Zenesville, Ohio (de 1905 a 1935 o pai de Daisy fora aí motorista de uma camioneta de gasosas). Nem Polina nem Daisy sabiam realmente fosse o que fosse sobre Sono Oguki então. (Que série de romances!, pensou Herzog. Um após outro. Seriam eles a minha verdadeira carreira?) Mas... Polina surgiu, grisalha e de ancas largas, com a sua mala do tricot, pessoa elegante e determinada. Chegou com uma caixa de flocos de aveia cheia de Apfel Strudel" para Herzog — sentia ainda saudades pela perda do seu strudel; era realmente óptimo. Mas tinha consciência de que a sua necessidade dele era infantil, e de que havia questões de adultos a decidir. Polina tinha a rigidez e severidade específicas da mulher emancipada da sua geração. Outrora uma beleza, apresentava agora um aspecto muito seco, com os seus óculos de ouro octogonais e esparsos pêlos brancos de velha aos cantos da boca.

 

 

 

 

Falavam em ídixe. — Em que te irás tu tornar? — dizia Polina — , ein ausvurf... ausgelassen? — Proscrito... dissoluto?

A velha senhora era tolstoiana, puritana. Comia carne, no entanto, e era uma tirana. Era frugal, dura, limpa, respeitável e dominadora. Mas nada havia de tão acre, doce, suave e perfumado como o seu strudel feito com açúcar amarelo e maçãs verdes. Era extraordinária a sensualidade que punha nos seus cozinhados. E nunca dera a Daisy a receita. — Bem, então? — dizia Polina. — Primeiro uma mulher e depois outra, depois outra. Quando é que isto terminará? Não podes abandonar uma esposa, um filho, por essas mulheres — , prostitutas.

Nunca devia ter tido estas «explicações» com ela, pensou Moisés. Seria um ponto de honra explicar-me perante todos? Mas como poderia eu explicar? Eu próprio não compreendia, não tinha chave para o enigma.

Estremeceu. Fazia melhor ir andando. Estava a fazer-se tarde. Era esperado no centro da cidade. Mas ainda não estava pronto a sair. Pegou numa nova folha de papel e escreveu: Querida Sono.

Regressara havia muito ao Japão. Quando? Voltou os olhos para cima como se tentasse calcular a extensão de tempo, e viu as nuvens brancas rolando sobre Wall Street e o porto. Não te censuro por teres ido para o teu país. Era uma pessoa de bens. Possuía uma casa de campo também. Herzog vira as fotografias a cores — uma região campestre com coelhos, galinhas, leitões e a sua fonte particular de água quente onde tomava banho. Tinha um retrato do cego da aldeia que a ia massajar. Massajara muitas vezes Moisés, e este massajara-a a ela.

Tinhas razão a respeito de Madalena, Sono. Não devia ter-me casado com ela. Devia ter-me casado contigo.

Mas Sono nunca aprendera a falar inglês convenientemente. Durante dois anos, ela e Moisés tinham conversado em francês — petit nègre. Escreveu, Ma chère, Ma vie est devenue um cauchemar affreux. Si tu savais! Na Escola McKinley, com uma repugnante solteirona, aprendera o seu francês. O curso mais útil que tirei.

Sono vira Madalena uma única vez, mas fora o suficiente. Avisou-me, estando eu sentado na sua partida cadeira de encosto, Moso, mé e toi. Prend garde, Moso.

Tinha um coração sensível, e Herzog sabia que se lhe escrevesse sobre a tristeza da sua vida, ela certamente choraria. Lágrimas instantâneas. Tinham uma maneira peculiar de aflorar sem os habituais preliminares ocidentais. Os seus olhos negros erguiam-se da superfície das faces da mesma forma que os seios se erguiam da superfície do corpo. Não, não lhe escreveria notícias tristes de qualquer espécie, decidiu. Em vez disso, permitiu-se figurá-la como poderia estar agora (era manhã no Japão), banhando-se na fonte fumegante, com a pequena boca aberta, cantando. Tomava banho com muita frequência, e cantava ao lavar-se, de olhos levantados para o céu, lábios delicados e trémulos. As canções eram doces e estranhas, curtas, abruptas, por vezes como ruídos de gatos.

Durante o período agitado em que estava a divorciar-se de Daisy e ia visitar Sono no seu apartamento na zona ocidental, ela corria imediatamente para a pequena banheira e enchia-a de sais para banho Macy. Desabotoava a camisa de Moisés, despia-o, e depois de o ter instalado («Vamos lá, está quente») na água redemoinhante, espumosa, perfumada, deixava cair a combinação e entrava atrás dele, cantando aquela sua música vertical.

«Chin-chin

Je te lave le dos

Mon Mo-so.»

Quando rapariga nova fora viver para Paris, e fora aí apanhada pela guerra. Estava de cama com uma pneumonia quando as tropas americanas entraram na cidade e permanecia ainda doente quando foi repatriada pelo caminho-de-ferro transiberiano. Já não se interessava pelo Japão, dizia ela; o Ocidente tornara-lhe impossível a vida em Tóquio, e o seu rico pai permitia-lhe estudar desenho em Nova Iorque.

Contou a Herzog que não estava certa de acreditar em Deus, mas se ele acreditasse ela tentaria igualmente ter fé. Se, por outro lado, ele fosse comunista, estava pronta a sê-lo também. Porque — Lesjaponaises sont trèsfidèles. Elles ne sontpas comme les Américaines. Bah! — No entanto, não deixava de achar graça às mulheres americanas. Recebia com frequência as senhoras baptistas que eram suas abonadoras no Departamento de Imigração. Preparava-lhes lagostins ou peixe cru e iniciava-as na cerimónia do chá. Moisés por vezes sentava-se à espera junto à entrada do prédio de cantaria em frente quando as senhoras demoravam a sair. Sono com enorme prazer — adorava a intriga (os abismos dos mistérios femininos!) — viria à janela fazer-lhe o grande sinal, fingindo regar as plantas. Cultivava pequenas árvores gingco e cactos em boiões de iogurte.

Na Zona Ocidental, ocupava três divisões de tectos altos; nas traseiras crescia um ailanto, e uma das janelas da frente ostentava um gigantesco aparelho de ar condicionado; deveria pesar uma tonelada. Pechinchas da 14.a Rua enchiam o apartamento — um divã demasiado cheio, biombos de bronze, candeeiros, cortinados de nylon, quantidades de flores de cera, artigos de ferro forjado, de fios enrolados e vidro. Por aqui andava Sono, apressada, para trás e para diante, descalça, batendo vigorosamente os calcanhares. O seu belo corpo vestia-o desmazeladamente de négligés baratos, comprados nas barracas junto à 7.a Avenida. Cada uma das suas compras a envolvia numa batalha com outras caçadoras de pechinchas. Dominando, excitada, a sua voz suave, contava a Herzog com gritinhos agudos o que acontecera. — Chéri! J’avais déjà choisi mon tablier. Cette femme s'est foncée sur moi. Woo! Elle était noire! Moooan dieu! Et grande! Derrière immense. Immense poitrine. Et sans soutien-gorge. Tout àfait como Niagara Fall. En chair noire. — Sono insuflava as bochechas e arqueava os braços como se estivesse sufocada em gordura, espetando a barriga e exibindo as ancas. — Je disais, «No, no, leddy. I here first.» Elle avait les bras comme ça... enfies. Et que lle gorge!IIy avaitdu mondeau balcon. «No!»je disais. «No, no leddy.» — Orgulhosamente, Sono mostrava as narinas, fazia os olhos duros e ferozes. Punha a mão no quadril. Herzog na cadeira de encosto partida da Salvação Católica, dizia: — É isso, Sono. Não conseguem vencer os Samurai na 14.a Rua.

Na cama, tocara por experiência nas pálpebras de Sono, enquanto ela sorria. Aquelas pálpebras estranhas, complexas, macias, pálidas, mantinham a marca de um toque por bastante tempo. Para falar verdade, nunca fui tão feliz, escreveu. Mas faltava-me força de carácter para suportar uma tal alegria. Não chegava a ser um gracejo. Quando o peito de um homem se sente como uma gaiola de onde voaram todas as aves negras — é livre, está leve. E deseja o regresso dos seus abutres. Quer as suas lutas habituais, os seus obscuros trabalhos sem fito, a sua raiva, as suas aflições e os seus pecados. Nesta sala de luxo oriental, na sua busca séria — séria, não o esqueçamos — do prazer que abre as portas à vida, solucionando para Moisés o enigma do corpo (curando-se da fatal desordem da mundaneidade que rejeita a felicidade terrena, esta praga ocidental, esta lepra mental), parecia ter encontrado o seu objecto. Mas muitas vezes sentava-se taciturno, deprimido, na cadeira de encosto. Bem, maldita seja tal tristeza? Mas até isso ela apreciava. Fitava-me com olhos de amor, e dizia: — Ah! T'es mélancolique — c'est très beau! — Talvez a culpa e a tristeza me dessem um ar oriental. Um olhar taciturno, irado, um lábio superior longo — aquilo a que se costuma chamar o tipo chinês. Era beau para ela. E não admira que pensasse que eu podia ser comunista. O mundo devia amar os amantes; mas não os teóricos. Nunca os teóricos! Indiquem-lhes a porta. Senhores, ponham fora estes bastardos sombrios. Para longe, odiada melancolia! No escuro deserto cimério para sempre tu vivas.

As três altas divisões do apartamento de cantaria acastanhada de Sono ostentavam cortinas transparentes, baratas, que lembravam o Extremo Oriente no cinema. Havia muitos interiores. O mais recôndito era a cama, com lençóis de um verde-hortelã, ou clorofila desbotada, por fazer, com tudo em desordem. Após o banho, o corpo de Herzog ficava vermelho. Depois de o secar e empoar, ela vestia-lhe um quimono, manipulando-o como a um boneco caucasiano satisfeito, e, não obstante, ligeiramente descontente. O tecido rijo apertava-o por baixo dos braços ao sentar-se nas almofadas. Trazia-lhe chá nas suas melhores chávenas. Escutava-a. Ela contava-lhe os últimos escândalos da imprensa de Tóquio. Uma mulher mutilara o amante infiel e fora encontrada com as partes decepadas no seu cinto de seda. Um guarda-freio de locomotiva adormecera, não vendo um sinal, e matara cento e cinquenta e quatro pessoas. A concubina do pai guiava agora um Volkswagen. Parava junto ao portão da casa, pois não tinha ordem de entrar no pátio. E Herzog pensava... será isto realmente possível? Ter-me-iam trazido todas as tradições, paixões, renúncias, virtudes, jóias e obras-primas do oriente — retórica, muita retórica, mas contendo factos reais — para estes lençóis verdes em desalinho, para este colchão ondulante? Como se alguém se importasse com o que ele aí fazia. Como se de qualquer modo afectasse o mundo. Era consigo. — Tenho direito — murmurara Herzog, embora o seu rosto não se alterasse ou movesse. Muito bem. Os Judeus estiveram deslocados no mundo durante muito tempo e agora o mundo está deslocado para eles por sua vez. Sono tirava uma garrafa e vertia-lhe no chá conhaque ou Chivas Regai. Depois de ter bebido ela própria alguns tragos emitia um ruído divertido. Herzog não pôde deixar de rir. Sono trouxe então os seus rolos. Gordos mercadores faziam a corte a raparigas esguias que olhavam comicamente para longe enquanto se submetiam. Moisés e Sono sentavam-se de pernas cruzadas sobre a cama. Ela apontava coisas, piscando os olhos, exclamando e apertando o seu rosto redondo ao dele.

Havia sempre alguma coisa a fritar ou em infusão na cozinha, uma pequena divisão escura atulhada de peixe, molho de soja, aletria de algas marinhas, velhas folhas de chá. Os canos estavam frequentemente a precisar de arranjo. Queria que Herzog falasse com o porteiro negro, que se limitava a rir dela quando lhe pedia um serviço. Sono tinha dois gatos. O caixote deles nunca estava limpo. Quando Herzog vinha ainda no metropolitano, para a ver, já começava a cheirar aqueles odores do apartamento dela. A escuridão daqueles toldava-lhe o coração. Desejava violentamente Sono, e com a mesma violência não queria ir lá. Mesmo agora sentia a antiga febre, recordava os cheiros, experimentava a dificuldade. Tremia ao tocar a campainha. A corrente tinia, ela escancarava a porta larga e abraçava-se-lhe ao pescoço. Tinha o rosto elaboradamente maquilhado e cheirava a almíscar. Os gatos tentavam escapar-se. Ela apanhava-os e depois exclamava — sempre a mesma exclamação:

— Moso! Je viens de rentrer!

Estava sem fôlego. Tinha vindo a correr para o encontro e para chegar a casa uns minutos mais cedo. Porquê? Porque havia de aparecer mesmo à hora? Talvez para mostrar que tinha uma vida independente e activa; não ficava sentada à espera. A porta alta de topo curvo admitia-o. Sono voltava a fechá-la com cadeado e corrente (precauções de mulher que vive só; mas ela dizia que os intrusos tentavam entrar sem bater). Herzog, com um coração agitado, mas rosto calmo, entrava, olhava em redor com pálida dignidade para os cortinados (siena, carmesim, verdes) e para a lareira atulhada com os invólucros das suas últimas compras, a mesa de desenhador onde fazia os trabalhos de casa e onde os gatos se empoleiravam. Sorria para a ardente Sono e sentava-se na cadeira de encosto. — Mauvais temps, eh chéri? — dizia ela, e começava imediatamente a tentar animá-lo. Tirava-lhe os sapatos miseráveis, contando-lhe onde estivera. Umas senhoras encantadoras da Ciência Cristã tinham-na convidado para um concerto nos Claustros. Assistira a dois filmes no Thalia — Danielle Darrieux, Simone Signoret, Jean Gabin e Harry Bow-wow. A Sociedade Nipo-americana convidara-a para o edifício das Nações Unidas onde entregara flores ao Nizam de Haiderabad. Por intermédio de uma missão comercial japonesa estivera igualmente com Nasser, Sukarno, os Secretários do Estado e o Presidente. Esta noite tinha de ir a um night club com o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Venezuela. Moisés aprendera a não duvidar dela. Apresentava sempre uma fotografia do night club em que aparecia, bela e sorridente, com um vestido de noite curto. Tinha o autógrafo de Mendès-France numa ementa. Nunca pediria a Herzog que a levasse ao Copacabana. Era uma marca do respeito pela sua profunda gravidade. — Tesphilosophe. O mon philosophe, mon professem damour. Tes três importam Je le sais. — Considerava-o superior a reis e presidentes.

Ao pôr a chaleira ao lume para o chá de Herzog, nunca deixava de descrever os acontecimentos do dia, da cozinha, em alta voz.

Vira um pobre cão com três patas que fizera com que uma camioneta se desviasse, chocando com uma carroça. Um motorista de táxi quisera dar-lhe um papagaio, mas os gatos matá-lo-iam. Não aceitaria uma tal responsabilidade. Uma velha pedinte — vieille mendiante — convencera-a a comprar-lhe o Times. Era a única coisa que a velhota queria, esse Times da manhã. Um polícia admoestara Sono por atravessar as ruas sem prestar atenção ao trânsito. Um homem descompusera-se por trás de uma coluna do metropolitano. — Ooooh, c'était honteux... quelle chose! — Mediu com as mãos a partir do seu próprio corpo. — Um pé, Moso. Très laide.

— Çafa plu — disse Moisés sorrindo.

— Oh, não! Moso, não! Elle était vilain. — Estava contudo deliciadamente excitada. Moisés mirou-a suave, mas desconfiadamente, talvez, encostando-se com elegância para trás na cadeira de repouso partida. A febre que sentira no caminho tinha começado a abrandar. Mesmo os cheiros nunca eram realmente tão maus como previa. Os gatos tinham menos inveja dele. Aproximavam-se para que lhes fizessem festas. Habituou-se ao seu miar siamês, mais apaixonado e sequioso que o dos outros gatos americanos.

Depois ela dizia: — Et cette blouse... combien fai payé? Dis-moi.

— Pagaste... ora deixa-me ver... pagaste três dólares por ela.

— Não, não — exclamava ela — , sessenta cêntimos. Solde!

— Impossível. Mas isso vale cinco dólares. Deves ser a melhor compradora de Nova Iorque.

Satisfeita, piscava-lhe os olhos brilhantes e tirava-lhe as peúgas, friccionando-lhe os pés. Trazia-lhe chá e deitava-lhe duas doses de Chivas Regai. Para ele tinha do melhor de tudo. — Veux tu ovos mexidos chéri-koko. As tufaim? — Uma chuva fria fustigava a desolada Nova Iorque com seus verdes espigões gelados. Quando passo pela Companhia de Aviação Noroeste Oriente penso sempre em apreçar um bilhete para Tóquio. Punha molho de soja nos ovos. Herzog comia e bebia. Toda a comida era salgada. Ingeria uma grande quantidade de chá. — Tomamos banho — dizia Sono e começava a desabotoar-lhe a camisa.

— Tu veux?

Chás e banhos — o vapor da água a ferver descolava o papel da parede do estuque verde que ficava por trás. O grande móvel de rádio tocava, através de um altifalante de tecido dourado, a música de Brahms. Os gatos brincavam com cascas de camarões por baixo das cadeiras.

— Oui. Je veux bien — dizia ele.

Ia pôr a água a correr. Ouvia-a cantar enquanto espalhava os sais de lilás e o pó para o banho de espuma.

Gostaria de saber quem a estará agora a lavar.

Sono não pedia grandes sacrifícios. Não queria que eu trabalhasse para ela, que lhe mobilasse a casa, que lhe sustentasse os filhos, que tivesse refeições a horas certas, ou que abrisse contas em lojas de luxo; pedia apenas que estivesse com ela de tempos a tempos. Mas algumas pessoas estão em guerra com as melhores coisas da vida e pervertem-nas em fantasias e sonhos. O francês ídixe que falávamos era engraçado mas inocente. Não me contou verdades truncadas e mentiras sujas como tenho ouvido na minha própria língua, e as minhas simples frases declarativas não lhe podiam fazer muito mal. Outros homens abandonaram o Ocidente em busca disto. A mim foi-me dado na cidade de Nova Iorque.

O banho não deixava de ter os seus julgamentos ocasionais. Por vezes, Sono examinava o corpo de Herzog, procurando nele sinais de infidelidade. Estava profundamente convencida de que a prática do amor fazia os homens esguios. — Ah! — dizia ela. — Tuas maigri. Tufais amour? — Negava, mas ela abanava a cabeça, continuando a sorrir, embora o rosto se lhe tornasse túmido e amargo. Recusava-se a acreditá-lo. Mas acabava por lhe perdoar. De novo bem humorada, punha-o na banheira, saltando atrás dele. Cantarolando ou dando-lhe ordens por brincadeira em japonês militar. Mas a paz descera. Tomavam banho. Estendia-lhe os pés para que ele os ensaboasse. Enchia de água uma tigela de plástico e entornava-lha sobre a cabeça. Ao despejar finalmente a banheira, ligava o chuveiro para arrastar a espuma, e ficavam os dois de pé, sorrindo sob o jacto de água. — Tu serás bien propre, chérikoko.

Sim, ela mantinha-me muito limpo. Entre divertido e triste, Herzog recordava tudo isto.

Enxugavam-se com toalhas turcas da 14.a Rua. Ela vestia-lhe um quimono, beijando-lhe o peito. Ele beijava-lhe as palmas das mãos. Os olhos dela eram ternos, ousados, irradiando por vezes uma luz esplendente; sabia onde investir a sua sensualidade e como a aumentar. Sentava-o na cama, e aí lhe servia chá. Concubina. Sentavam-se de pernas cruzadas, sorvendo pequenos goles de chavenazinhas, olhando para os rolos de desenhos. A porta estava trancada, o telefone retirado do descanso. Trémulo, o rosto de Sono aproximava-se e tocava-lhe no rosto com os seus lábios cheios. Ajudavam-se mutuamente a despir as roupagens orientais. — Doucement, chéri. Oh, lentement. Oh! — Revirando os olhos de forma que lhe via apenas as córneas.

Tentou uma vez explicar-me que a terra e os planetas foram arrancados ao Sol por uma estrela ao passar. Como se um cão trotasse junto a um arbusto e libertasse mundos. E nesses mundos apareceu a vida, e nessa vida seres como nós — almas. E mesmo criaturas mais estranhas que nós afirmou ela. Gostei de ouvir isto, mas não a compreendi bem. Sei que a impedi de voltar para o Japão. Por minha causa, desobedeceu ao pai. A mãe morreu-lhe, e Sono não se referiu a tal facto durante várias semanas. E uma vez disse: — Je ne crains pas la mort. Mais tu me fais souffrir, Moso. — Não a tinha visitado durante todo um mês. Tivera novamente uma pneumonia. Ninguém viera vê-la. Estava fraca e pálida, chorava e murmurava: — Je souffre trop. — Mas não o deixara confortá-la; ouvira dizer que ele andava com Madalena Pontritter.

Notou contudo: — Elle est méchante, Moso. Je suis pas jalouse. Je ferai amour avec un autre. Tu m'as laissée. Mais elle a lesyeux très, très froids.

Escreveu, Sono, tinhas razão: Pensei que talvez gostasses de o saber. Os olhos dela são muito frios. No entanto, são olhos, e que há-de fazer deles? Não seria prático para ela odiar-se. Felizmente, Deus envia um substituto, um marido.

Ah, entre tais tomadas de consciência um homem necessita de algum conforto. Herzog, mais uma vez saiu para visitar Ramona. De pé, à porta, segurando a longa lingueta metálica do ferrolho, a sua memória procurava o título de uma certa canção. «Só mais Um Beijo»? Não. Nem «A Maldição de Um Coração Magoado». «Beija-me outra vez». Era isso. Pareceu-lhe muito engraçada e o riso tornou-o desajeitado ao colocar o complicado ferrolho que lhe protegeria os bens terrenos. Existem três mil milhões de seres humanos, cada qual com algumas posses, cada qual um microcosmos, cada qual infinitamente precioso, cada qual um tesouro particular. Há um jardim distante em que florescem objectos curiosos, e lá, numa maravilhosa penumbra verde, o coração de Moisés está suspenso como um pêssego.

Preciso tanto desta saída como de uma brecha na cabeça, pensou ao dar volta à chave. No entanto, ia, pois não ia? Punha a chave na algibeira. E agora tocava a chamar o elevador. Escutou o ruído da força motriz, o rolar dos cabos. Desceu sozinho, sussurrando «Beija-me» e tentando descobrir, como se de um fio esquivo e frágil se tratasse, a razão por que estas velhas canções lhe assomavam ao cérebro. Não a razão evidente. (Estava angustiado e ia ser beijado.) A razão recôndita (se é que valia a pena descobri-la). Estava satisfeito por sair para o ar livre, por respirar. Limpou a tira interior do chapéu de palha com o lenço — estava quente da caixa do ascensor. E quem é que usava um chapéu assim, um casaco assim? Ora, Lou Holtz, claro, o velho cómico de vaudeville. Cantarolou «Colhi um limão no jardim do amor, onde se julga que nascem pêssegos». De novo o rosto de Herzog esboçou um rápido sorriso. O velho Teatro Oriental de Chicago. Três horas de entretenimento por vinte e cinco cêntimos.

À esquina, parou para observar os trabalhos de demolição. A grande bola de metal atirada contra as paredes, passava facilmente através do tijolo, e entrava nos quartos, ficando o seu peso preguiçoso embatendo em cozinhas e salas. Tudo aquilo em que tocava vacilava e se desconjuntava, se precipitava. Erguia-se uma nuvem branca e tranquila de poeira de estuque. A tarde estava no fim, e na área mais larga da demolição ardia uma fogueira alimentada pelos escombros. Moisés escutava o ar, suavemente correndo para as chamas, sentia o calor. Os operários, empilhando madeira para a fogueira, arremessavam tábuas como dardos. Tinta e verniz fumegavam como incenso. O velho soalho ardia agradecido — o funeral de objectos exaustos. Cadafalsos orlados de portas cor-de-rosa, brancas, verdes estremeciam quando os camiões de seis rodas se punham em marcha, carregando tijolo caído. O sol, que agora tomava o rumo de Nova Jersey e do Ocidente estava envolto por uma camada deslumbrante de gases atmosféricos. Herzog notou que as pessoas estavam salpicadas de manchas vermelhas, e que ele próprio estava marcado nos braços e no peito. Atravessou a 7.a Avenida e entrou no metropolitano.

Longe da queimada, do pó, desceu as escadas a correr, apurando o ouvido para os comboios, examinando com os dedos as moedas na algibeira, procurando uma para o metropolitano. Inspirou os odores de pedra, de urina, amargamente tónicos, os cheiros de ferrugem e lubrificantes, sentiu a presença de uma corrente de urgência, velocidade, de infinito desejo, possivelmente relacionada com a sua energia interior, com a sua própria fluente energia nervosa. (Paixão? Talvez histeria? Ramona poderia aliviá-lo por meios sexuais.) Respirou fundo, inspirando demoradamente o ar bolorento e húmido, mais e mais, magoado nos dois ombros enquanto o peito se enchia, mas continuando sempre. Depois deixou o ar sair devagar, muito devagar, comprimindo-se, comprimindo-se até ao ventre. Fê-lo repetidamente e sentiu-se melhor. Introduziu a importância do bilhete na ranhura onde viu toda uma série de moedas iluminadas de dentro e aumentadas pelo vidro. Inúmeros milhões de passageiros tinham polido a madeira da cruz móvel de controle com as ancas. Daí surgia um sentimento de comunhão — fraternidade numa das suas formas mais baratas. Era autêntico, pensou Herzog ao passar. Quanto mais os indivíduos são destruídos (por processos que eu bem conheço) tanto pior é o seu desejo de uma colectividade. Pior, porque regressam às massas agitadas, tornados fervorosos pelo malogro. Não como irmãos, mas como degenerados. Experimentando a raivosa destruição do amor barato. Assim ocorre uma segunda distorção da imagem divina, já tão manchada, trémula, alvo de contendas. O autêntico problema! Ficou de pé, fitando os carris. O mais autêntico dos problemas!

A hora das aglomerações terminara. As carruagens locais, quase vazias, eram palcos de descanso e paz, onde os condutores liam os jornais. Esperando pela composição directa para o centro, Herzog deu uma volta pela plataforma, observando os cartazes mutilados — dentes enegrecidos e bigodes rabiscados, cómicos órgãos genitais que lembram foguetões, cópulas ridículas, slogans e exortações. Muçulmanos, o inimigo é Branco. Fora Goldwater, Judeus! Os Italianos comem merda. Telefona, irei ter contigo se gostar da tua voz. E, da mão de um cínico esperto, Se te baterem numa face, volta a outra face. Nojo, loucura conflituosa, as orações e gracejos da multidão. Trabalhos menores da Morte. Trans-descendència — era este o termo da moda para eles. Herzog examinou cuidadosamente todas estas inscrições, elaborando o seu juízo sobre estas manifestações públicas. Calculou que os artistas desconhecidos fossem adolescentes. Escarnecendo da autoridade. Imaturidade, uma nova categoria política. Problemas relacionados com a crescente emancipação mental de bisonhos incapazes. Antes os Beatles. Continuando na sua ocupação deste momento de lazer, Herzog observou a balança de pesar pessoas. O espelho tinha rede protectora — só um maníaco engenhoso poderia parti-lo. Os bancos estavam presos ao chão, as máquinas de vendas de guloseimas fechadas a cadeado.

Uma nota dirigida a Willie, o Actor, famoso salteador de bancos a cumprir agora prisão perpétua. Ex.mo Sr. Sutton, o estudo de fechaduras... Dispositivos mecânicos e génio ianque... Recomeçou, ultrapassado apenas por Houdini, Willie nunca pegou numa arma. Em Queens, uma vez, utilizou uma pistola-brinquedo. Mascarado de delegado da União Ocidental, entrou no banco e assaltou-o com auxílio da sua pistola fingida. A atracção era irresistível. Não pelo dinheiro, realmente, mas pelo problema de entrar, e pelo problema consequente de escapar. De ombros estreitos, rosto sumido, e bigode fino e janota, sob uns olhos azuis protuberantes, Willie, deitado, pensava em bancos. Na sua cama de prisão em Brooklyn, fumando um cigarro, usando o seu chapéu e um par de sapatos pontiagudos, tinha visões de telhados dando para outros telhados, de cabos de alta tensão, canos de esgoto, caixas-fortes. Todas as fechaduras se abriam ao tocar-lhes. O génio não deixa o mundo em sossego. Escondera as somas roubadas em Flushing Meadows, em bidões de lata. Podia ter-se reformado. Mas deu um passeio, viu um banco, uma oportunidade criadora.

Dessa vez foi apanhado e entrou para a prisão. Mas planeou uma fuga extraordinária, realizou um estudo mental elaborado e estabeleceu um plano de mestre, rastejou por canos, escavou por baixo de paredes. Quase conseguiu evadir-se. As estrelas estavam à vista. Mas a polícia esperava-o ao emergir da terra. Recambiaram-no — homem insignificante, artista escapado; um dos maiores, e não muito inferior a Houdini também. Motivo-. O poder e a perfeição de todos os sistemas humanos devem ser continuamente sujeitos à prova, superados, com risco da liberdade, da vida. Agora é um condenado a trabalhos forçados por toda a vida. Dizem que possui uma colecção dos Grandes Livros, que mantém correspondência com o bispo Sheen...

Caro Dr. Schródinger. Em O Que É a Vida? afirma que, em toda a natureza, apenas o homem hesita em causar dor. Como a destruição é o método básico pelo qual a evolução produz novos tipos, a relutância em causar dor pode exprimir um desejo humano de impedir a lei natural. O cristianismo e religiões afins, durante escassos milénios, com tremendos reversos... O comboio parara, a porta estava já a fechar-se quando Herzog se ergueu e abriu caminho. Agarrou-se ainda a uma correia. O expresso rolou pelo centro da cidade. Esvaziou-se e tornou a encher-se na Times Square, mas Herzog não se sentou. Seria custoso tornar a rasgar um caminho para a saída a partir de um lugar. Ora, onde estamos nós? Nas suas observações sobre a entropia... Como o organismo se mantém em luta contra a morte — nas suas palavras, contra o equilíbrio termodinâmico... Sendo uma organização instável da matéria, o corpo ameaça fugir-nos. Abandona-nos. É real. Ele! Não nós! Não eu! Este organismo, enquanto tem poder para manter a sua própria forma e tirar aquilo de que necessita do ambiente, atraindo uma corrente negativa de entropia, o ser de outras coisas de que se utiliza, restituindo o resíduo ao mundo, sob uma forma mais simples. Excremento. Desperdícios azotados. Amoníaco. Mas a relutância em causar dor era acompanhada pela necessidade de devorar... daí resultou uma atitude humana peculiar, que consiste em admitir e negar simultaneamente os males. Ter uma vida humana, bem como uma inumana. De facto, ter tudo, combinar todos os elementos com um imenso engenho e avidez. Morder, engolir. Lamentar, ao mesmo tempo, o próprio alimento. Ter sentimentos. Ao mesmo tempo comportar-se brutalmente. Tem sido sugerido (e porque não!) que a relutância em causar dor é na realidade uma forma extrema, uma deliciosa forma de sensualidade, que aumenta a hauria da dor pela intromissão de um pathos moral. Trabalhando assim nos dois sentidos. No entanto, há realidades morais, assegurava Herzog ao mundo enquanto se segurava à correia na carruagem que ia ganhando velocidade, com tanta certeza como as há moleculares e atómicas. Contudo, é hoje necessário admitir abertamente as piores possibilidades. De facto, não temos quanto a isso possibilidade de escolha...

Era esta a sua estação, e subiu as escadas a correr. As passagens giratórias tilintavam com as suas múltiplas barras e rodas dentadas por trás dele. Apressou-se junto à cabina onde estava sentado um homem sob uma luz cor de chá forte, e pelos dois lances de escadas ascensionais. À saída, parou para tomar fôlego. Por cima de si, o vidro fluorescente, entremeado de fios e cinzento, e a Broadway, pesada e azul no crepúsculo, quase tropical; em baixo, junto ao número oitenta, passava o Hudson, denso como mercúrio. Nos topos das torres de rádio em Nova Jersey luzes vermelhas como pequenos corações latejavam ou ardiam. Abeira da rua, na placa central, em bancos, velhos: nos rostos, nas cabeças intensas marcas de decadência: as longas pernas das mulheres e olhos obscurecidos dos homens, bocas sumidas e narinas cor de tinta. Era a hora normal de os morcegos surgirem no seu voo tacteante (Ludeyville), ou de pedaços de papel (Nova Iorque) recordarem a Herzog os morcegos. Um balão fugitivo, como um cachalote, negro e rápido, esgueirava-se em direcção à poalha alaranjada do ocidente. Atravessou a rua, fazendo um desvio para evitar uma neblina de frangos assados e salsichas. A multidão caminhava pelo largo passeio. Moisés manifestava um vivo interesse pelo público do centro, pelo seu espírito teatral, pelos seus actores — os homossexuais em travesti, pintados com grande originalidade, as mulheres de cabeleiras, as lésbicas de aparência tão máscula que era preciso deixá-las passar e vê-las por trás para determinar o seu verdadeiro sexo, pinturas de cabelo de todas as cores. Sinais em quase todas as caras dos transeuntes de um comentário ou interpretação mais profunda do destino — olhos que ostentavam afirmações metafísicas. E mesmo velhotas piedosas que calcorreavam ainda o caminho do antigo dever, comprando carne limpa. Herzog vira por diversas vezes Jorge Hoberly, seu antecessor como amigo de Ramona, seguindo-o com os olhos da entrada de uma ou outra destas casas. Era esguio, alto, mais jovem que Herzog, correctamente vestido com fatos da Ivy League da Avenida Mason, óculos escuros no rosto magro e triste. Ramona, acentuando o «nada», dizia nada sentir além de piedade por ele. As suas duas tentativas de suicídio fizeram-na possivelmente ter consciência de como ele lhe era indiferente. Herzog aprendera com Madalena que quando uma mulher acaba com um homem, acaba com ele definitivamente. Mas nesta tarde ocorreu-lhe que, dado que Ramona se interessava por modas masculinas e frequentemente tentava guiá-lo na sua escolha, Hoberly talvez envergasse roupas que ela lhe seleccionasse. Inutilmente suplicante, com os adornos da sua antiga felicidade e amor, como o rato treinado em experiências de frustração. Mesmo um telefonema da polícia e uma ida a Bellevue a meio da noite para estar ao seu lado agora aborrecem Ramona. Todo o mercado de sentimentos e sensações subiu — o choque, o escândalo encontram-se a um preço inacessível ao homem comum. É preciso fazer mais do que sofrer uma intoxicação por gás, ou cortar os pulsos. Massa? Qual quê! Grinaldas de margaridas? Nada! Deboche! Uma palavra de museu para ocasiões pré-libidinosas! Aproxima-se rapidamente o dia — prognosticava Herzog — em que apenas a prova do desespero dará direito de voto, em voz da posse de bens, do pagamento de imposto, de habilitações literárias. Será necessário estar-se perdido. Os antigos vícios são agora medidas.de saúde. Tudo se modifica. A confissão pública de todas as feridas profundas que nasce como se nada tivesse de impróprio. Um bom tema: a história do comportamento nas sociedades calvinistas. Quando todos os homens, sentindo a terrível danação, tinham de comportar-se como eleitos. Todos esses terrores históricos — cada uma das agonias do espírito — têm finalmente de nos libertar.

Herzog começou a ficar quase ansioso por ver Hoberly, por ver mais uma vez aquele rosto gasto por sofrimento, insónia, noites de comprimidos e bebida, de oração — os seus óculos escuros, o seu chapéu quase sem abas. Amor não correspondido. Hoje em dia chamado dependência histérica. Havia momentos em que Ramona falava de Hoberly com grande simpatia. Dizia que tinha estado a chorar devido a uma das suas cartas ou presentes. Continuava a mandar-lhe bolsas e perfumes, e longos extractos do seu diário. Enviara-lhe mesmo uma grande soma em dinheiro. Ela entregou-a à tia Tâmara. A velha senhora abriu uma conta na caixa económica em nome dele. Que o dinheiro, ao menos, rendesse alguma coisa. Hoberly era dedicado à velha senhora. Moisés também gostava dela.

Tocou à campainha de Ramona e, de dentro, imediatamente abriram a porta de entrada. Era atenciosa desta forma. Mais uma atenção delicada. A chegada do amante não era jamais uma rotina. Do elevador saíram pessoas — um indivíduo com uma testa alta, um olho fechado, a fumar um cigarro forte; uma mulher com dois chibuabuas, verniz das unhas a condizer com as trelas dos cães. E talvez entre os fumos redemoinhantes da rua, através de duas portas de vidro, o seu rival o observasse. Moisés subiu. No décimo quinto andar, Ramona tinha a porta entreaberta, presa na corrente. Não queria ser surpreendida por outro homem. Ao ver Moisés, desaferrolhou-se e pegou-lhe na mão, puxando-o para si. Estendeu-lhe o rosto. Herzog sentiu-o, cheio e muito quente. O perfume envolveu-o. Trazia uma blusa branca de cetim, com um corte que sugeria o envolver de um xaile e lhe descobria o peito. Tinha o rosto corado; não precisava da cor do rouge que lhe acrescentava. — Estou contente por te ver, Ramona. Estou muito contente — disse ele. — Abraçou-a, descobrindo em si um súbito desejo, uma sede de contacto. Beijou-a.

— Pois... estás contente por me veres?

— Estou! Estou!

Ela sorriu e fechou a porta, voltando a aferrolhá-la. Conduziu Herzog pela mão ao longo do vestíbulo sem carpete em que os saltos dos seus sapatos produziam um sapateado militar. Isto excitava-o. — Ora — disse ela — deixa-me

cá olhar para o Moisés no seu chiquismo. — Pararam diante do espelho dourado, com floreados. — Tens um magnífico palhinhas. E que casaco — o casaco de riscas de José.

— Aprovas?

— Claro que sim. É um casaco lindo. Pareces indiano com ele, com a tua pele morena.

— Posso juntar-me ao grupo Bhave.

— Que é isso?

— Distribuem grandes propriedades pelos pobres. Eu darei Ludeyville.

— Fazes melhor em me consultar antes de iniciares outro programa de dádivas. Vamos a uma bebida? Talvez queiras lavar-te um pouco enquanto voubuscar as bebidas.

— Barbeei-me antes de sair de casa.

— Pareces afogueado, como se tivesses estado a correr, e tens fuligem na cara.

Devia ter-se encostado a uma coluna do metropolitano. Ou talvez fosse alguma farrusca da fogueira da demolição. — Sim, estou a ver.

— Vou buscar-te uma toalha, amor — disse Ramona.

Na casa de banho, Herzog voltou a gravata para a parte de trás do pescoço para impedir que caísse no lavatório. Era uma pequena divisão luxuosa, com luz indirecta (gentileza para rostos fatigados). A torneira alongada brilhava; a água irrompeu. Cheirou o sabonete. Muguet. Sentiu a água muito fria nas unhas. Recordou o velho ritual judeu da água sobre as unhas, e a palavra do Haggadah, Rachatz! «Lavar-te-ás». Era obrigatório também a lavagem ao regressar do cemitério (Beth Olam — a Morada da Multidão). Mas para quê pensar em cemitérios, em funerais, agora? A não ser... a velha história sobre o actor de Shakespeare no bordel. Quando tirou as calças, a prostituta, da cama, assobiou. Ele declamou: — Senhora, vimos para sepultar César, não para o elogiar. — Como as anedotas de rapaz ficam presas a nós...

Abriu a boca debaixo da torneira e deixou a corrente descer-lhe também pelos olhos fechados, respirando com satisfação. Largos discos de um brilho iridescente formavam-se-lhe sob as pálpebras. Escreveu mentalmente a Spinosa. Afirmou que pensamentos não relacionados casualmente provocam dor. Considero isso realmente verdade. A livre associação, quando o intelecto permanece passivo, é uma forma de escravidão. Ou antes, qualquer forma de escravidão é então possível. Talvez lhe interesse saber que no século XX se crê que a livre associação fornece os mais profundos segredos da psique. Teve consciência de que estava a escrever aos mortos. Para actualizar as sombras dos grandes filósofos. Mas porque não havia de escrever aos mortos? Vivia tanto com eles como com os vivos — talvez mais; além disso, as suas cartas para os vivos eram cada vez mais abstractas, e, de qualquer forma, para o Inconsciente, o que era a morte? Os sonhos não a reconheciam. Acreditando que a razão pode fazer firmes progressos da desordem para a harmonia e que a conquista do caos não precisa de ser recomeçada cada dia. Como o desejo! Como desejaria que assim fosse! Como Moisés o suplicava!

Quanto às suas relações com os mortos, eram de facto, muito más. Acreditava realmente na necessidade de deixar os mortos enterrar os seus mortos. E que a vida era vida apenas quando claramente compreendida como uma contínua morte. Abriu o grande armário das drogas. Costumavam construir em grande escala, na velha Nova Iorque. Fascinado, estudou os frascos de Ramona — rejuvenescedor da pele, loção estrogénica para os tecidos profundos, desodorizante Bonnie Belle. Depois uma receita carmesim — duas vezes por dia para males do estômago. Cheirou e pensou que devia conter beladona — calmante para o estômago, midriático nos olhos. Feito de mortal sombra nocturna. Havia também pílulas para as dores menstruais. No entanto, não lhe parecia que Ramona fosse atreita a isso. Madalena costumava berrar. Tinha de a levar num táxi a St. Vincent, onde gritava por uma injecção deDemerol. Estas coisas que pareciam fórceps, achou que deviam ser para revirar as sobrancelhas. Pareciam pinças para caracóis de um restaurante francês. Cheirou a escova de banho. Especial para os cotovelos e calcanhares, pensou, para raspar as espessuras. Premiu a alavanca da retrete com o pé. Correu silenciosamente; os autoclismos dos pobres faziam sempre barulho. Aplicou um pouco de brilhantina nas pontas secas dos cabelos. Tinha a camisa húmida, de facto, mas ela usava perfume suficiente para os dois. E de resto, como estaria? Considerado globalmente, não muito mal. A decadência acaba inevitavelmente por atingir a beleza. O contínuo espaço-tempo reclama os seus elementos, levando-os pouco a pouco, e depois de novo vem o vazio. Mas antes o vácuo que o tormento e o tédio de um carácter incorrigível, fazendo sempre as mesmas acrobacias, repetindo as mesmas desgraças. Mas estes instantes de desgraça e dor podiam parecer eternos, de forma que se um homem pudesse capturar a eternidade destes momentos dolorosos e dar-lhes um conteúdo diferente, poderia conseguir uma revolução. Que tal isso?!

Envolvendo a palma da mão na toalha esticada, como um barbeiro, Herzog limpou as gotas de humidade junto à linha dos cabelos. Depois pensou em pesar-se. Serviu-se primeiro da retrete para se fazer um pouco mais leve, e tirou os sapatos sem se curvar, subindo para a balança com um suspiro de velho. Entre os pés, o ponteiro passou do risco das 170 libras. Estava a recuperar o peso que perdera na Europa. Forçou de novo os pés a entrarem nos sapatos, acalcanhando-os, e regressou à sala de Ramona — sala e quarto. Esta esperava-o com dois copos de Campari. Tinha um sabor agridoce e um perfume um pouco gasoso — da força do gás. Mas era moda geral e Herzog bebeu-o também. Ramona gelara os copos no congelador. -Salud.

— Sdruch! — respondeu ele.

— Tens a gravata a cair pelas costas.

— Tenho? — Puxou-a de novo para a frente. — Sou um esquecido. Uma vez enfiei o casaco na parte de trás das calças, ao sair da casa de banho, e fui assim dar uma aula.

Ramona parecia admirada por ele ser capaz de contar uma tal história de si próprio. — Não foi horrível?

— Não foi grande coisa. Mas deve ter sido muito libertador para os estudantes. O professor é mortal. Além disso, a humilhação não o destruiu.

Isso deve ter sido mais útil que a própria cadeira. De facto, uma das raparigas disse-me mais tarde que eu era muito humano, o que é um alívio para todos nós...

— O que é curioso é como tu respondes completamente a qualquer questão. És um homem curioso. — Cativantemente afectuosa; os seus dentes grandes e belos, os ternos olhos escuros, valorizados por traços negros sorriam para ele. — É a maneira como tentas parecer rude ou descuidado, contudo, como um miúdo de Chicago, que é ainda mais divertida.

— Porquê divertida?

— É uma representação. Exibição. Não és realmente tu. — Voltou a encher-lhe o copo e levantou-se para ir à cozinha. — Tenho de ir ver o arroz. Vou pôr-te música egípcia para te entreteres. — Um largo cinto de pelica realçava-lhe a cintura. Inclinou-se sobre o gira-discos.

— A comida cheira deliciosamente.

Mohammad al Bakkar e o seu conjunto começaram com tambores e tamboris, e depois surgiu um tinir de instrumentos de corda e as fanfarras dos instrumentos de sopro. Uma voz gutural, esganiçada, começou a cantar, «Mi Port Said...». Herzog, sozinho, observava livros e programas de teatro, revistas e retratos. Uma fotografia de Ramona quando menina numa moldura de Tiffany — com sete anos, criança sensata, inclinada sobre um banco de peluche, com a testa apoiada num dedo. Recordava a pose. Na geração passada era habitual. Pequenos Einsteins. Prodigiosa sabedoria das crianças. Orelhas furadas, um bracelete, um caracol a beijar-lhe o rosto, e aquela espécie de sensualidade precoce em miudinhas, de que muito bem se lembrava.

A música do relógio da tia Tâmara começou a ressoar. Dirigiu-se à saleta dela para lhe ver o antiquado rosto de porcelana com as suas longas linhas douradas, como bigodes de gato, e escutou-lhe as notas alegres e rápidas. Por baixo estava a chave. Para se possuir um relógio assim era necessário ter hábitos regrados — uma residência permanente. Levantando a cortina da janela desta salinha europeia com as suas cenas emolduradas de Veneza e simpáticas bugigangas de porcelana holandesa, via-se o edifício do Empire State, o Hudson, a tarde verde, argêntea, metade de Nova Iorque a iluminar-se.

Pensativo, voltou a descer a cortina. Isto... este asilo era seu se o pedisse, assim o julgava. Então porque não o pedia? Porque o asilo de hoje poderia ser o calaboiço de amanhã. A dar ouvidos a Ramona, tudo seria extremamente simples. Afirmava compreender-lhe as necessidades melhor que ele próprio, e bem podia ter razão. Ramona nunca hesitava em exprimir-se com inteira sinceridade, e havia uma atitude sem reservas em muitos dos seus discursos. Ópera. Heráldica. Afirmava que os seus sentimentos para com ele tinham profundidade e maturidade e que experimentava um enorme desejo de o ajudar. Disse a Herzog que ele era melhor do que supunha — um homem profundo, belo (não conseguiu evitar uma crispação nervosa quando a ouviu), mas triste, incapaz de optar por aquilo que o seu coração realmente desejava, um homem tentado por Deus, desejoso de graça, mas afastando-se imprudentemente da salvação, muitas vezes bem próxima. Este Herzog, este homem de múltiplas qualidades, suportara, por qualquer razão, uma fêmea frígida, a dar-se ares de intelectual, castrante, na sua cama, dera-lhe o seu nome e fizera-a instrumento de criação, e Madalena tratara-o com desprezo e crueldade como que para o punir por se rebaixar e aviltar, por se lhe entregar em amor e trair a promessa da sua alma. O que ele realmente deveria fazer, continuou, no mesmo estilo espectacular — sem vergonha da sua fluência; espantava-se com tal — , era pagar a sua dívida pelas grandes dádivas que recebera, a sua inteligência, encanto, educação, e libertar-se para procurar o sentido da vida, não pela desintegração, onde nunca o encontraria, mas humilde e no entanto orgulhosamente, continuando os estudos. Ela, Ramona, desejava acrescentar riquezas à sua vida e dar-lhe o que ele buscava em lugares errados. Isto, conseguia-o pela arte do amor, prosseguia ela — a arte do amor, que era uma das mais sublimes realizações do espírito. Era amor que ela dignificava por riquezas. O que ele tinha de aprender com ela — enquanto era tempo, enquanto fosse ainda viril, mantivesse as capacidades substancialmente intactas — era como renovar o espírito através da carne (um precioso receptáculo do espírito). Ramona — abençoada! — era tão viva nestes sermões como na aparência. Oh, que oradora tão gentil ela era! Mas onde estávamos nós?

Ah, sim, devia continuar os seus estudos procurando o sentido da vida. Ele, Herzog, descobrir o sentido da vida! Riu para as mãos em concha, cobrindo o rosto.

Mas (soluçando) sabia que provocava estes discursos com os seus ares. Porque exclamava Sono: — O monphilosopbe... mon professem d'amour!? — Porque Herzog se comportava como um filósofo que se interessava apenas pelas coisas mais elevadas — razão transcendente, como pagar o mal com o bem, e toda a sabedoria dos velhos livros. Porque pensava e se preocupava com a fé. (Sem a qual, a vida humana é simplesmente a matéria bruta da transformação tecnológica, da moda, do comércio, indústria, política, finanças, experimentação, automatismo, etc, etc. Todo o inventário das desgraças que, para nossa satisfação, terminam na morte.) Sim, assemelhava-se, comportava-se, como o filósofo de Sono.

E afinal porque estava ele aqui? Estava aqui porque também Ramona o tomava a sério. Julgava que poderia restituir ordem e normalidade à sua vida, e, se o conseguisse, seria lógico desposá-la. E seria uma união que os unia na realidade. Mesas, camas, salas, dinheiro, enxoval e automóvel, cultura e sexo entrelaçados numa trama. Tudo, finalmente, teria sentido, era o que ela pretendia significar. A felicidade era uma ideia absurda e mesmo prejudicial, a não ser que fosse realmente compreensível; mas neste caso excepcional e afortunado em que cada qual experimentara as piores espécies de morbidez e se tinha libertado por milagre, por um instinto de conservação e prazer que era francamente religioso — não havia outra forma de falar da vida dela, dizia Ramona, senão nos termos do Cristianismo de Madalena — era possível a felicidade compreensiva. Nesse caso, era um dever; recusar-se a responder às acusações feitas à felicidade (que era uma ilusão monstruosa e egoísta, um absurdo) era uma cobardia, uma rendição à malignidade, uma capitulação perante o instinto de morte. Eis um homem, Herzog, que sabia o que era erguer-se de entre os mortos. E ela, Ramona, conhecia a amargura da morte, e a sua nulidade também. Sim, também ela. Mas com ele vivera uma verdadeira Páscoa. Sabia o que era a Ressurreição. Ele podia conscientemente encarar com certo desprezo o deleite sensual, mas com ela, uma vez tiradas as roupas, sabia o que era. Nenhuma sublimação podia substituir a felicidade erótica, esse conhecimento.

Nem sequer tentado a sorrir, Moisés escutava, sério, baixando a cabeça. Muito daquilo era conversa de universidade ou livresca, uma parte era propaganda ao casamento, mas, acusados estes débitos, era genuinamente pessoal. Simpatizava com ela, respeitava-a. Era suficientemente real. Tinha algo de profundamente autêntico.

Quando, a sós, zombava do renascimento dionisíaco, era de si próprio que troçava. Herzog! Um príncipe da erótica Renascença, com os seus trajes de macho! E os pequenos? Gostariam de uma nova madrasta? E Ramona, levaria Junie a ver o Pai Natal?

— Ah, aqui estás tu — disse Ramona. — A tia Tâmara ficaria lisonjeada se te soubesse interessado pelo seu museu czarista.

— Estes interiores dos velhos tempos... — disse Herzog.

— Não é tocante?

— Enternecem.

— A velhinha gosta tanto de ti. : — Gosto dela também.

— Diz que alegras a casa.

— Que eu... — sorriu.

— Porque não? Tens uma cara meiga, que inspira confiança. Não podes ouvir isto, pois não? Porque não?

— Ponho a velhinha fora quando venho — observou, tomando um ar céptico.

— Não tens razão. Ela adora estas passeatas. Enfia um chapéu e veste-se. É uma coisa tão importante para ela ir para a estação dos caminhos-de-ferro. De qualquer forma... — O tom de Ramona modificou-se. — Precisa de se afastar de Jorge Hoberly. Transformou-se-lhe num problema agora. — Por um instante ficou abatida.

— ... Desculpa... — interrompeu Herzog. — Tem estado mal ultimamente!

— Pobre homem... tenho tanta pena dele. Mas vem, Moisés, o jantar está pronto e quero que abras o vinho.

Na sala de jantar, estendeu-lhe a garrafa — Pouilly Fuissé, bem gelado — e o saca-rolhas francês. Com mãos competentes e firmeza, de pescoço avermelhado pelo esforço, puxou a rolha. Ramona acendera as velas. A mesa encontrava-se decorada de esguios gladíolos vermelhos num recipiente alongado. No peitoril da janela os pombos agitavam-se e arrulhavam; esvoaçavam e tornavam a adormecer. — Deixa-me servir-te este arroz — disse Ramona. Pegou no prato, boa loiça da China debruada a cobalto (a progressiva expansão dos objectos de luxo em todas as camadas da sociedade a partir do século XV, notada pelo famoso Sombart, interalia). Mas Herzog tinha fome, e o jantar estava delicioso. (Tornar-se-ia austero mais tarde.) Lágrimas de origem curiosa, mista, assomaram-lhe aos olhos ao provar a remoulade de lagostins. — Extraordinariamente bom, mas que bom! — exclamou.

— Não comeste em todo o dia? — perguntou Ramona.

— Há muito que não vejo comida assim. Presunto e melão persa. Que é isto? Salada de agriões. Jesus!

Estava satisfeita. — Bem, come — disse.

Após os lagostins Arnaud com salada, ofereceu queijo e bolachas de água e sal, sorvete de rum, ameixas de Geórgia e uvas brancas temporãs. Depois brandy e café. Na sala contígua Mohammad al Bakkar continuava a cantar as suas canções, coleantes, nasais, insinuantes, ao som do tilintar de cabides metálicos, e tambores, tamboris, mandolinas e gaitas de foles.

— Que tens feito? — indagou Ramona.

— Eu? Oh, toda a espécie de coisas...

— Onde ias tu de comboio? Ias a fugir de mim?

— De ti, não. Mas suponho que realmente fugia.

— Ainda estás um pouco receoso de mim, não estás?

— Não diria tal... — Confuso. Procurando ser cuidadoso.

— Estás habituado a mulheres difíceis. A lutar. Talvez gostes que te façam sofrer.

— Todos os tesouros estão guardados por dragões. É por aí que se infere que é valioso... Não te importas que desaperte o colarinho? Parece que está a comprimir-me uma artéria.

— Mas voltaste para trás. Talvez fosse por minha causa.

Moisés sentia-se muito tentado a mentir-lhe, a dizer-lhe — Sim, Ramona, foste tu. — A veracidade estrita e literal era um jogo trivial e podia mesmo ser uma desagradável perturbação neurótica. Ramona tinha toda a simpatia de Herzog — mulher na casa dos trinta, com êxito nos negócios, independente, e no entanto preparando estas ceias para os amigos. Mas numa época como a actual, como deve a mulher realizar-se emocionalmente? Na emancipada Nova Iorque, o homem e a mulher, aparatosamente disfarçados, como dois selvagens pertencentes a tribos hostis, defrontam-se. O homem deseja enganar e depois libertar-se de compromissos; a estratégia da mulher é desarmá-lo e prendê-lo. Pois esta é Ramona, uma mulher que sabe cuidar de si própria. Pensem agora numa rapariga elevando os olhos maquilhados para o céu, orando: — Oh, meu Deus, não permitas que um homem mau entre na minha vida inexperiente. Além de que Herzog considerava que comer os lagostins de Ramona e beber-lhe o vinho, sentar-se depois na sua sala a ouvir a sensualidade desgarrada de Mohammad al Bakkar e dos seus especialistas de Port Said, pensando tais pensamentos, não era o mais recomendável. E, monsenhor Hilton, o que é o celibato sacerdotal? Uma disciplina mais terrível é andar à vontade e visitar mulheres, para ver o que o mundo moderno fez da luxúria. Que ínfima pertinência têm certas ideias antigas...

Mas pelo menos uma coisa se tornou clara. Procurar uma realização nou-trem, nas relações impessoais, era um jogo feminino. E o homem que saltita de mulher em mulher, embora tenha o coração pleno de idealismo, de desejo de amor puro, entrou em território feminino. Depois da queda de Napoleão, o jovem ambicioso canalizou as suas energias para o boudoir. E aí as mulheres tomaram o comando. Como fizera Madalena, e Wanda facilmente poderia ter feito. E Ramona? E Herzog, antigamente um jovem parvinho, tornando-se agora um velho parvinho, ao aceitar o esquema de uma vida particular (aprovada pelos que têm autoridade) transformara-se em algo como uma concubina. Sono tornara-lhe isto muito claro, com as suas maneiras orientais. Gracejara mesmo a propósito disto com ela, tentando explicar que inúteis lhe pareciam por fim essas visitas. — Je bêche, je sème, mais je ne récolte point. — Gracejava, mas não, não era uma concubina, de forma alguma. Era um homem difícil, agressivo. Quanto a Sono, procurava instruí-lo, mostrar-lhe como um homem deveria tratar uma mulher. O orgulho do pavão, a sensualidade da cabra, e a ira do leão são a glória e a sabedoria de Deus.

— Para onde quer que te dirigisses, com a tua mala, os teus instintos fundamentalmente sãos levaram-te a regressar. São mais sensatos que tu — observou Ramona.

— Talvez... — retorquiu Herzog. — Está a passar-se em mim uma mudança de perspectivas.

— Graças a Deus que ainda não destruíste os teus patrimónios.

— Não tenho sido verdadeiramente independente. Chego à conclusão de que tenho estado a trabalhar para os outros, para uma série de senhoras.

— Se conseguires dominar o teu puritanismo hebraico...

— A desenvolver a psicologia de um escravo fugido.

— A culpa é tua. Procuras mulheres dominadoras. Estou a tentar explicar-te que encontraste um género diferente em mim.

— Bem o sei — replicou ele — Tenho muita consideração por ti.

— Duvido. Acho que não compreendes. — Neste ponto mostrou um certo ressentimento. — Há aproximadamente um mês disseste-me que eu mantinha um circo sexual. Como se eu fosse uma acrobata qualquer.

— Ora, Ramona, tal nada significava.

— Implicava que eu conhecera demasiados homens.

— Demasiados? Não, Ramona, não vejo a questão desse modo. Se isso tem algum resultado, é aumentar consideravelmente o meu conceito de mim próprio por ser capaz de estar à altura de te satisfazer.

— Ora, a própria ideia de estares à altura te atraiçoa. Irrita-me ouvir-te dizer isso.

— Bem sei. Queres colocar-me num nível superior e despertar o elemento órfico que há em mim. Mas, para dizer a verdade, tenho tentado ser uma pessoa trivialmente medíocre. Tenho desempenhado as minhas funções, aguentado os embates, cumprido o meu dever, e esperado pelo velho quidpro quo. O que estava, naturalmente, era com os olhos vendados. Pensava que estabelecera um secreto pacto com a vida para esta me poupar o pior. Uma ideia perfeitamente burguesa. Fora disso, estava apenas a entreter-me um pouco com o transcendente.

— Nada há de vulgar no facto de casar com uma mulher como Madalena ou ter um amigo como Valentim Gersbach.

Sentiu um surto de indignação e tentou reprimi-lo. Ramona estava a ser atenciosa, dando-lhe oportunidade de falar para se libertar da hipocondria. Não fora para isto que viera. E de qualquer forma estava a ficar farto desta obsessão. Além disso, ela tinha os seus problemas. E o poeta dizia que a indignação era uma espécie de alegria, mas teria razão? Há tempo para falar e tempo para calar. A única faceta realmente interessante do problema era o desígnio íntimo da injúria, o facto de ser tão penetrante, tão talhada à medida. Era fascinante o ódio ser pessoal a ponto de parecer quase amor. O gume e a ferida sofrendo um pelo outro. Decerto que muito depende da vulnerabilidade do alvejado. Uns choram copiosamente, outros suportam a estocada em silêncio. Sobre os últimos poder-se-ia escrever a oculta história da humanidade. O que sentiu o paizinho quando descobriu que Voplonsky estava feito com os bandidos? Nunca o disse.

Herzog duvidava de que conseguisse guardar tudo isso para si, nessa noite. Esperava consegui-lo. Mas Ramona frequentemente o encorajava a ceder. Não só servira uma ceia, mas convidava-o também a cantar.

— Não os considero exactamente um par medíocre — disse ela.

— Por vezes vejo-nos, a nós os três, como um grupo de comediantes numa peça — disse Herzog — em que eu representava o que autenticamente sou. Dizem que Gersbach me imitava — o meu andar, as minhas expressões. É um segundo Herzog.

— De qualquer forma, convenceu Madalena de que era superior ao original — observou Ramona. Baixou os olhos. Estes moveram-se e acabaram por parar sob as pálpebras. À luz das velas, notou esta momentânea inquietação do rosto dela. Possivelmente pensava que tinha falado com falta de tacto.

— Julgo que a grande ambição de Madalena era apaixonar-se. É esta a parte mais profunda da história dela. E nisso se revela o seu grande estilo. Os seus tiques. Para ser justo com essa cadela, é linda. Adora ser o centro das atenções. Com um daqueles fatos de saia e casaco de gola de pele com que se pavoneia, com a sua tez corada e olhos azuis. E quando tem uma audiência e começa a discursar, faz uma espécie de movimento rasante com a mão, o nariz crispa-se-lhe numa oscilação que parece a de um pequeno leme e gradualmente uma das sobrancelhas vai entrando no jogo e começa a erguer-se, a erguer-se.

— Fá-la parecer adorável — disse Ramona.

— Formávamos um grupo de alto nível, todos nós. Excepto Phoebe. Essa, limitava-se às trivialidades.

— Como é ela?

— Tem feições bem desenhadas, mas um aspecto severo. Parece uma enfer-meira-chefe.

— Não se interessava por ti?

— ...O marido era um mutilado. Sabe explorar o facto, emocionalmente, com as suas choraminguices comoventes. Ela comprara-o por baixo preço devido ao defeito de fabricação. Em bom estado, nunca se poderia ter dado a tal luxo. Ele sabia-o, ela sabia-o, nós sabíamo-lo, pois estamos numa época de perspicácia. As leis da psicologia são conhecidas de todas as pessoas educadas. De qualquer forma, ele não passava de um locutor de rádio com uma única perna, mas ela tinha-o só para si. Depois Madalena e eu chegámos e iniciámos uma convivência encantadora em Ludeyville.

— Deve tê-la confundido ele começar a imitar-te.

— Sim. Mas se era eu quem devia ser enganado, o melhor era agir à minha maneira. Justiça poética. A piedade filosófica determina o estilo.

— Quando é que principiaste a dar por isso?

— Quando a Mady começou a ficar fora de Ludeyville. Algumas vezes ficava em Boston. Afirmava que necessitava de estar sozinha e de meditar. Levava a pequena... ainda um bebé. E eu pedia a Valentim para ir discutir os problemas com ela.

— E foi então que ele começou a fazer-te aqueles sermões!

Herzog tentou afastar com um sorriso o súbito e poderoso rancor em cuja fonte se tocara. Poderia não ser capaz de o controlar. — Todos faziam sermões. Cada um de nós fazia sermões. As pessoas legislam continuamente, conversando. Tenho as cartas que Madalena me escrevia de Boston. Tenho cartas de Gersbach também. Toda a espécie de documentos. Tenho mesmo um maço de cartas escritas por Madalena à mãe. Vieram pelo correio.

— Mas o que dizia Madalena?

— Tem uma veia de escritora. Escreve como Lady Hester Stanhope. Em primeiro lugar, dizia que eu me assemelhava demasiado ao pai dela. Que quando estávamos juntos numa sala eu parecia absorver e engolir todo o ar à minha volta e não deixava nenhum para ela respirar. Eu era insuportável, infantil, exigente, sardónico, e um fanfarrão psicossomata.

— Psicossomata?

— Tinha dores de barriga para a dominar, e conseguia o que pretendia fazendo-me doente. Isto, diziam-no todos três. Madalena tinha outro sermão sobre a única base do casamento. O casamento era uma relação de ternura resultante de um transbordar de sentimentos e mais tretas desse género. Chegava mesmo a ter um sermão sobre a forma de realizar o acto conjugal.

— Incrível.

— Devia estar a descrever o que aprendera com Gersbach.

— Não precisas de entrar em pormenores — interrompeu Ramona. — Estou certa de que tudo isso foi extremamente doloroso.

— Entretanto, eu devia terminar este meu estudo, e tornar-me o Lovejoy da minha geração, na opinião tola dos intelectuais, com a qual, Ramona, eu não me identificava. Quanto mais Madalena e Gersbach me faziam sermões, tanto mais eu pensava que o meu único propósito era viver uma vida calma, regrada.

Ela afirmava que esta calma era mais uma das minhas maquinações. Acusava-me de ser um «sonso» e dizia que eu procurava mantê-la na ordem com uma nova táctica.

— Que curioso! Que supunha ela que estavas a fazer?

— Pensava que me tinha casado com ela para ser «salvo», e agora queria matá-la porque ela não correspondia às minhas exigências. Dizia que me amava, mas não podia fazer o que eu reclamava, por serem coisas tão fantásticas, e ia mais uma vez para Boston para meditar no assunto e descobrir uma maneira de salvar este casamento.

— Estou a ver.

— Mais ou menos uma semana mais tarde, Gersbach veio a casa buscar algumas das coisas dela. Ela telefonara-lhe de Boston. Precisava de roupa. E dinheiro. Ele e eu demos um longo passeio pela floresta. Estava-se no começo do Outono — soalheira, poeirenta, maravilhosa... melancolia. Ajudei-o a caminhar no terreno irregular. Ele vai saltitando, com aquela perna...

— Como me contaste. Semelhante a um gondoleiro. E que disse ele?

— Disse que não sabia como seria capaz de sobreviver a estes terríveis problemas entre as duas pessoas que mais amava no mundo. Insistia nisso — as duas pessoas que significavam mais para ele que a mulher e o filho. Aquilo dilacerava-o. A sua fé nas coisas ia ser esmagada.

Ramona riu, e Herzog imitou-a.

— E depois?

— Depois? — disse Herzog. Recordou o tremor do rosto bronzeado e forte de Gersbach, que parecia a princípio brutal, um rosto de carniceiro, até se chegar a compreender a profundidade e subtileza dos seus sentimentos. — Depois voltámos a casa e Gersbach meteu numa mala as coisas dela. E aquilo por que viera principalmente — o diafragma.

— Não me digas!

— Claro que digo.

— Mas pareces aceitar...

— O que aceito é que a minha idiotice os inspirou e lhes permitiu subirem aos píncaros da perversidade.

— Perguntaste-lhe a ela o que aquilo significava?

— Perguntei. Replicou-me que perdera o direito a uma resposta. Era mais uma das minhas... mesquinhices. Perguntei-lhe se Valentim se tornara seu amante.

— E que resposta obtiveste? — A curiosidade de Ramona estava agitadamente desperta.

— Que eu não compreendia o que Gersbach me dera... aquela espécie de amor, de simpatia. Eu retorqui: — Mas tirou aquilo do armário dos remédios. — E ela replicou: — Sim, e fica de noite com June e comigo quando vem a Boston, mas é o irmão que nunca tive, eis tudo. — Hesitei em aceitar esta versão, de forma que acrescentou: — Não sejas tolo, Moisés. Bem sabes como ele é rude. Não é nada o meu tipo. A nossa intimidade é muito diferente. Olha, quando ele vai à retrete no nosso pequeno apartamento de Boston deixa lá um fedor... Conheço o cheiro da caca dele. Pensas que seria capaz de me dar a um homem cuja caca cheira assim?! — Foi esta a resposta dela.

— Que horror, Moisés! Foi isso que ela disse? Que mulher tão estranha. É uma criatura estranha, estranha.

— Bem, isto mostra o que sabemos um do outro, Ramona. Madalena não era apenas uma mulher, mas uma educação. Uma pessoa constante, esperançosa, racional, diligente, honrada, infantil como Herzog, que considera que a vida humana é um assunto como qualquer outro assunto merece que lhe dêem uma lição. E decerto qualquer indivíduo que encare a dignidade a sério, a antiquada dignidade pessoal, é forçado a receber essa lição. Talvez a dignidade fosse importada de França. Luís XV. Teatro. Comando. Autoridade. Ira. Perdão. Majesté. A ambição plebeia, burguesa, era herdá-la. Tudo isto pertence hoje aos museus.

— Mas eu pensava que a própria Madalena era sempre tão digna.

— Nem sempre. Era capaz de ir contra as suas próprias pretensões. E não te esqueças, Valentim é também uma grande personalidade. A consciência moderna tem esta grande necessidade de desmascarar as suas próprias atitudes. Isso ensina a verdade da criatura. Manda à merda todas as pretensões e ficções.

Um homem como Gersbach pode ser alegre. Inocente. Sadista. Inconstante. Instintivo. Insensível. Abraçar os amigos. Um espírito fraco. Rir de gracejos. Profundo também. Exclamar «Amo-te!» ou «Nisto creio eu». E, movido por essas «crenças», rouba-nos descaradamente. E elabora realidades que ninguém compreende. É mais fácil um rádio-astrónomo compreender o que acontece no espaço a uma distância medida por dez biliões de anos-luz do que aquilo que Gersbach está a matutar no seu espírito.

— Preocupas-te de mais com o facto — disse Ramona. — Aconselho-te a esquecê-los aos dois. Quanto tempo durou essa estupidez?

— Anos. Vários anos, de qualquer forma. Madalena e eu voltámos a viver juntos, pouco tempo após isto. E então ela e Valentim resolviam a minha vida. Eu nada sabia. Todas as decisões eram tomadas por eles — onde eu devia viver, trabalhar, a renda a pagar. Mesmo os meus problemas psicológicos eram analisados por eles. Distribuíam-me o trabalho de casa. E quando decidiram que eu tinha de me ir embora, ocuparam-se de todos os pormenores — separação de bens, pensão à mulher, mesada da criança. Estou certo de que Valentim pensava que estava a agir no meu interesse. Deve ter refreado a Madalena. Reconhece-se como um bom homem. Compreende, e, quando se compreende, sofre-se mais. Têm-se maiores responsabilidades, responsabilidades que vêm do sofrimento. Eu não podia ocupar-me da minha mulher, pobre de mim. Ocupou-se ele dela. Eu não tinha condições para educar a minha própria filha. Tem de o fazer por mim, por amizade, por piedade, por grandeza de alma. Concorda mesmo que Madalena é uma psicopata.

— Não, não me digas!

— Digo. «Pobre tonta», dizia ele. «Tenho pena dessa rapariga louca.»

— Pois também ele é misterioso. Que par tão estranho! — exclamou ela.

— Claro que é — confirmou Herzog.

— Moisés — disse Ramona — , deixemos este assunto por favor. Acho que há nele qualquer coisa de mal... De mal para nós. Vem...?

— Ainda não ouviste tudo. Tenho aqui a carta de Geraldina, a contar como maltratam a criança.

— Já sei. Já a li, Moisés, acabou-se.

— Mas... Sim, tens razão — concordou Herzog. — Pois bem, termino já. Vou ajudar-te a levantar a mesa.

— Não é preciso.

— Então lavo os pratos.

— Não, isso é que não farás. És uma visita. Tenciono deixá-los no lava-loiça para amanhã.

Pensou, prefiro aceitar como motivo não aquilo que compreendo perfeitamente, mas o que parcialmente compreendo. A explicação cem por cento clara é para mim falsa. No entanto, tenho de cuidar da June.

— Não, não, Ramona, há qualquer coisa no lavar de pratos que me acalma. De vez em quando, pelo menos — Colocou a válvula, deitou detergente, abriu a água, pendurou o casaco no fecho de um armário, arregaçou as mangas. Recusou o avental que Ramona lhe oferecia — Sou veterano. Não me salpico.

Como mesmo os dedos de Ramona eram sexuais, Herzog queria ver como é que ela se desempenhava de tarefas vulgares. Mas o pano de cozinha nas suas mãos ao enxugar copos e pratos parecia natural. Herzog perguntara por vezes a si mesmo se não seria a tia Tâmara que preparava a remoulade de camarão antes de sair. A resposta era não. Era Ramona quem cozinhava.

— Deves estar a pensar no futuro — disse Ramona. — Quais são os teus planos para o próximo ano?

— Posso arranjar um emprego qualquer.

— Onde?

— Ainda não consegui decidir se hei-de ficar perto do meu filho Marco, no Oriente, ou se hei-de voltar para Chicago para vigiar June.

— Ouve, Moisés, não há mal nenhum em sermos práticos. É um ponto de honra, ou algo do género não pensares claramente? Queres vencer pelo teu sacrifício? Não resulta, como tu já deves saber. Chicago seria um erro. Limitar-te-ias a sofrer.

— Talvez, e sofrer é outro mau hábito.

— Estás a brincar?

— De forma alguma — retorquiu ele.

— É difícil imaginar uma situação mais masoquista. Nesta altura já toda a gente de Chicago conhece a tua história. Serias alvo de atenções. Lutando, discutindo, ferindo-te. É demasiado humilhante para um homem como tu. Não te respeitas o suficiente. Queres despedaçar-te? É uma coisa assim que te ofereces para fazer em favor da pequena June?

— Não, não. Para que serve? Mas posso entregar a criança àqueles dois? Leste o que disse a Geraldina. — Sabia a carta de cor e preparava-se para a recitar.

— No entanto, não podes tirar a criança à mãe.

— É da minha raça. Tem os meus genes. É uma Herzog. Eles são tipos mentalmente diferentes.

Ficou de novo tenso. Ramona tentou afastá-lo do assunto.

— Não me disseste que o teu amigo Gersbach se tornou uma espécie de grande figura de Chicago?

— Sim, sim. Começou por um programa de rádio educativo, e agora não há nada em que não figure. Em comissões, em jornais. Faz conferências para a gente do Hadassah... lê os seus poemas. No Times. Faz parte do Standard Club. Aparece na televisão! Fantástico! Tem um carácter tão provinciano, que julgava que existia apenas uma estação de caminhos-de-ferro em Chicago. E agora é uma figura activíssima — percorre a cidade no seu Lincoln Continental, com um casaco de tweed cor de vómito ou de salmão.

— Estás a excitar-te só de pensares nisso — notou Ramona. — Ficas com os olhos febris.

— Gersbach alugou uma sala de espectáculos, não te contei?

— Não.

— Vendeu bilhetes para um recital dos seus poemas. Cinco dólares os lugares da frente, três os de trás. Ao ler um poema sobre o avô que era varredor de ruas, não se conteve e chorou. Ninguém podia sair. A sala estava fechada à chave.

Ramona não pôde deixar de rir.

— Ha-ha! — Herzog puxou a válvula, torceu o esfregão, com energia. Esfregou e passou por água o lava-loiça. Ramona trouxe-lhe uma rodela de limão para tirar o cheiro a peixe. Espremeu-a nas mãos. — Gersbach!

— No entanto — disse Ramona, séria — , devias voltar aos teus trabalhos intelectuais.

— Não sei. Sinto-me farto. Mas que mais posso eu fazer?

— Dizes isso só porque estás agitado. Pensarás diferentemente quando estiveres calmo.

— Talvez.

Dirigiu-se para o quarto. — Queres que eu ponha a tocar mais dessa música egípcia? Tem um bom efeito — Caminhou para o gira-discos. — E porque não tiras os sapatos, Moisés? Sei que gostas de ter os pés à vontade com este tempo.

— Alivia-me os pés. Acho que sou capaz de o fazer. Já estão desapertados. A lua erguera-se sobre o Hudson. Distorcida pelo vidro da janela, distorcida pelo ar do Verão, parecia inclinada pela sua própria energia branca, flutuando igualmente nas correntes do rio. Os estreitos topos dos telhados em baixo eram pálidos, longas figuras de constrição sob a lua. Ramona virou o disco, e uma mulher começou a cantar a música do conjunto de al Bakkar «Viens, viens dans mes bras — je te donne du chocolat.»

Sentada na almofada a seu lado, Ramona pegou-lhe na mão. — Mas aquilo que quiseram levar-te a acreditar — disse ela — , isso não é verdade.

Era o que estava desejoso de ouvir da boca dela. — Que queres tu dizer?

— Sei alguma coisa sobre homens. Logo que te vi tive consciência de que havia muito em ti por explorar. Eroticamente. Intacto, mesmo.

— Fui um terrível fracasso, por vezes. Um fracasso total.

— Há certos homens que deviam ser protegidos... pela lei, se necessário.

— Como os peixes e a caça?

— Francamente, não estou a brincar — disse ela. Via nítida, claramente, como ela era amável. Sentia a sua dor. Sabia que ele sofria, e por que sofria, e oferecia-lhe a consolação para a qual evidentemente viera. — Tentaram fazer-te sentir velho e acabado. Mas deixa-me explicar-te um facto. Um homem velho cheira a velho. Qualquer mulher o pode dizer. Quando um homem velho abraça uma mulher, esta pode cheirar algo de bafiento e poeirento, como roupa velha que precisa de arejar. Se a mulher deixou as coisas irem assim tão longe, e não o quer humilhar quando verifica que ele é realmente bastante velho (as pessoas disfarçam-se e é difícil adivinhar), provavelmente deixará a situação continuar. E isso é horrível! Mas, Moisés, tu és quimicamente jovem.

— Colocou-lhe os braços nus em redor do pescoço. — A tua pele tem um perfume delicioso... Que sabe a Madalena disso? Não passa de uma beleza oca.

Pensou em como tinha tirado um belo resultado da sua vida, de tal forma que — ao envelhecer, inútil, terrivelmente narcisista, sofrendo sem a conveniente dignidade — recebia amparo moral de alguém que realmente pouco tinha para ir dispensá-lo a ele. Vira-a cansada, agitada e fraca, quando as sombras lhe pousavam nos olhos, com saias mal cortadas e mãos frias, lábios frios entreabertos deixando ver os dentes, quando se deitava no sofá, mulher pequena, muito cheia, mas, no fim de contas, uma mulher cansada, baixa, cujo hálito tinha o odor a cinzas da fadiga. A história então contava-se a si própria — lutas e desapontamentos; um sistema elaborado de teorias e eloquência, na base do qual estavam os simples factos de uma necessidade, de uma necessidade de mulher. Ela pressente que eu vivo para a família. Porque pertenço a um tipo familiar, e ela pretende-me para a sua família. A sua concepção de comportamento familiar atrai-me. Roçava os lábios nos dela. Estava a afastá-lo (com uma certa agressividade) do ódio e da fanática luta corpo a corpo. De cabeça atirada para trás, respirava rapidamente, com excitação, perícia, decisão. Começou a mordiscar-lhe o lábio e ele recuou, mas apenas por surpresa. Manteve-se presa ao lábio, mordendo-o mais, e, como resultado, Herzog experimentou um aumento de excitação sexual. Desabotoava-lhe a camisa. Passava-lhe a mão pela pele. Voltando-se para a almofada, estendeu também o braço para trás para abrir a blusa pelas costas. Agarraram-se. Ele começou a afagar-lhe os cabelos. Um perfume a bâton e um cheiro a carne emanavam-lhe da boca. Mas subitamente interromperam os beijos. O telefone tocava.

— Jesus! — exclamou Ramona — Jesus! Jesus!

— Vais atender?

— Não, é Jorge Hoberly. Deve ter-te visto chegar, e quer estragar-nos a noite.

Não lhe devemos permitir...

— Não sou partidário disso — concordou Herzog.

Ela pegou no telefone e silenciou-o com uma palmada no descanso. — Ontem, voltou a fazer-me chorar.

— Queria oferecer-te um carro de desporto, da última vez que me contaste.

— Agora quer por força que eu o leve à Europa. Ou seja, quer que eu lhe mostre a Europa.

— Não sabia que ele tinha assim tanto dinheiro.

— Não tem. Teria de pedir emprestado. Custar-lhe-ia dez mil dólares, ficando nos grandes hotéis.

— Onde será que ele quer chegar?

— Que queres dizer? — Ramona achou algo de suspeito no tom de Herzog. — Nada... nada. Apenas que ele pensa que tens dinheiro para uma viagem

dessas. — O dinheiro não tem nada que ver com isto. Não há já nada entre nós.

— O que havia, para começar?

— Pensava que havia alguma coisa... — Os seus olhos cor de avelã fitaram-no de uma forma estranha; reprovavam-no; ou, antes com tristeza, perguntavam-lhe porque gostava ele de dizer tais coisas. — Queres debater a questão?

— Que está ele a fazer na rua?

— Não é minha culpa.

— Quis apanhar-te a todo o custo, e falhou, de forma que agora se sente vítima duma maldição e se quer matar. Mais valia ficar em casa, no seu sofá, bebendo um copo de cerveja, a ver o Perry Mason.

— És demasiado severo — atalhou Ramona. — Talvez penses que o estou a trocar por ti e isso deixa-te pouco à vontade. Sentes que o estás a destronar e terás de o substituir.

Herzog calou-se, reflectindo, e encostou-se na cadeira. — Talvez — admitiu ele. — Mas penso que enquanto em Nova Iorque sou o homem que está em casa, em Chicago sou o que ficou na rua.

— Mas não és de forma alguma como Jorge Hoberly — disse Ramona com aquela entoação musical que tanto gostava de ouvir. A sua voz, quando lhe saía do peito e mudava de tom na garganta... agradava muito a Herzog. Outro homem poderia não reagir àquela sensualidade intencional, mas ele reagia. — Tive pena de Jorge. Por isso as nossas relações não podiam passar de temporárias. Mas tu... tu não és o género de homem de quem uma mulher tenha pena. Não és fraco, nem nada de semelhante. Tens força...

Herzog aquiesceu. Estava mais uma vez a ouvir um sermão. E não se importava muito com o facto. Que precisava de uma reprimenda era demasiado óbvio. E quem tinha mais direito de lha aplicar que uma mulher que lhe dava hospedagem, lagostins, vinho, música, flores, simpatia, lhe dava um lugar, por assim dizer, na sua alma, e, finalmente, a posse do seu corpo? Temos de nos auxiliar mutuamente. Neste mundo irracional em que a piedade, a compaixão, um coração (mesmo que um pouco envolto em auto-interesse), são coisas raras — custosamente ganhas em muitas batalhas humanas de raras minorias, vitórias cujos resultados não deviam nunca ser aceites em primeira instância, pois poucas vezes seriam sólidas, fosse em quem fosse — as coisas raras, têm frequentemente sido desprezadas, renunciadas, repudiadas por todas as gerações de cépticos. A própria razão, a lógica, levavam-nos a ajoelhar e a dar graças por qualquer pequeno sintoma de autêntica simpatia. A música tocava. Rodeada de flores estivais e artigos de beleza, mesmo de luxo, sob o suave candeeiro verde, Ramona falava-lhe com seriedade — ele olhava-lhe afectuosamente para o rosto quente, para o seu tom de fruta madura. Além, a quente Nova Iorque; uma noite iluminada que não necessitava de lua. A carpete oriental com seus ondulantes desenhos exprimia a esperança de que as grandes perplexidades podiam ser resolvidas. Os dedos tocavam no braço suave e fresco de Ramona. Tinha a camisa aberta no peito. Sorria, aquiescendo com um leve sinal da cabeça ao escutá-la. Muito do que ela dizia era absolutamente certo.

Era uma mulher esperta e, mais ainda, encantadora. Tinha bom coração. E usava roupa interior de renda negra. Sabia-o.

— Tens grandes capacidades para viver — dizia ela. — E és um homem muito afectivo. Mas tens de tentar esquecer ressentimentos que dão cabo de ti.

— Acho que é verdade.

— Sei que pensas que eu tenho a mania das teorias. Mas eu própria sofri mais de um rude golpe: um terrível casamento, e uma série de relações indesejáveis. Olha, tu tens força para te restabeleceres e é um pecado não a utilizares. Utiliza-a agora.

— Compreendo o que queres dizer.

— Talvez seja biologia — continuou Ramona. — És uma pessoa com tantas capacidades. Sabes uma coisa, a empregada da padaria disse-me ontem que me achava tão mudada... as minhas feições, os meus olhos, afirmava ela.

— Miss Donsell, deve estar apaixonada.

— E eu tive consciência de que era por causa de ti.

— Pareces realmente mudada — confirmou Moisés. ;

— Mais bonita?

— Linda — respondeu ele.

O rubor aumentou ainda. Pegou-lhe na mão e colocou-lha dentro da blusa, fitando-o incitantemente, com os olhos húmidos. Que rapariga! Que prazer lhe dava. Todos os modos dela o satisfaziam — os seus modos franco-russo-argen-tino-judeus. — Vamos também descalçar os teus sapatos — propôs ele.

Ramona apagou todas as luzes excepto o candeeiro verde junto à cama. Murmurou: — Volto já.

— És capaz de desligar esse lamuriento egípcio? Precisava que lhe esfregassem a língua com um pano de cozinha.

Com um toque, desligou o gira-discos, e disse: — Só um minutinho — fechando suavemente a porta.

«Um minutinho», era uma maneira de dizer. Demorou-se nos seus preparativos. Ele habituara-se a esperar, vislumbrava a razão da espera, e já não ficava impaciente. O reaparecimento dela era sempre dramático e valia bem a espera. No fundo, contudo, compreendia que ela estava a tentar ensinar-lhe alguma coisa e ele estava a tentar (sendo em si tão forte o hábito de obediência ao que se ensina) aprender com ela. Mas como descrever esta lição? A descrição poderia começar pela sua agitada desordem interior, ou mesmo pelo facto de estar a tremer. E porquê? Porque deixava o mundo inteiro esmagá-lo. Por exemplo? Bem, por exemplo, o que significa ser um homem. Numa cidade. Num século. Na transição. Na massa. Transformado pela ciência. Sob uma organização. Sujeito a tremendos controles. Num estado produzido pela mecanização. Após o recente malogro de esperanças fundamentais. Numa sociedade que não era comunidade e desvalorizava a pessoa. Devido ao poder multiplicado dos números que tornavam o eu negligenciável. Que gastava milhões em despesas militares contra inimigos estrangeiros, mas não pagava a ordem interna. Que permitia selvagismo e barbárie nas suas grandes cidades. Simultaneamente, o peso de milhões de homens que descobriram as possibilidades de esforços e pensamentos congregados. Como megatoneladas de água formam organismos no fundo do oceano. Como as marés polem pedras. Como os ventos escavam rochedos. A bela super-maquinaria abrindo uma nova vida à inumerável humanidade. Pode negar-se-lhes o direito à existência? Pode-se-lhes pedir que trabalhem e passem fome enquanto nos deleitamos com deliciosos valores antiquados? Tu... tu próprio és um filho desta massa e irmão de todos os seus componentes. Ou então um ingrato, um diletante, um idiota. É assim, Herzog, pensou Herzog, que as coisas se passam. A agravar os factos, um coração magoado e os nervos num feixe. E a isto que responde Ramona? Diz-me que recupere a saúde. Mens sana in corpore sano. A tensão constitucional, seja ela de que origem for, exige uma descarga sexual. Qualquer que seja a idade, a história, a condição, os conhecimentos, a cultura, o desenvolvimento do homem, este tem uma erecção. Conceito que é moeda corrente em toda a parte. Reconhecido pelo Banco de Inglaterra. Porque haviam as suas recordações de o ferir agora? As naturezas fortes, afirmava F. Nietzsche, eram capazes de esquecer aquilo que não podiam dominar. Decerto afirmara igualmente que o sémen absorvido era o incentivo da criação. Dêmos graças a Deus quando os sifilíticos pregam a castidade.

Oh, uma mudança de coração, uma mudança de coração — uma autêntica mudança de coração!

Nesse ponto não havia maneira de nos educarmos. Ramona pretendia que ele se entregasse completamente (peccafortiter!). Porque seria tão puritano no amor? Mas confessava que, depois dos recentes desapontamentos, já ficava satisfeito com o facto de ter relações, mesmo em estilo missionário. Ela afirmava que, assim, se tornava uma raridade em Nova Iorque. Neste particular levantava à mulher os seus problemas. Homens aparentemente equilibrados tinham muitas vezes gostos muito especiais. Queria dar-lhe prazer da forma que ele desejasse. Ele afirmava que nunca poderia transformar um velho arenque num delfim. Era estranho que Ramona por vezes se comportasse como uma daquelas moças das revistas para raparigas. Mulher educada, citava-lhe Catulo e os grandes poetas do amor de todos os tempos. E os clássicos de psicologia. E, finalmente, o Corpo Místico. Assim estava no quarto contíguo, a preparar-se alegremente, a despir-se, a perfumar-se. Desejava agradar. Bastava que ele sentisse agrado e lho fizesse saber para ela se tornar mais simples. Como ela gostaria de se modificar! Como a confortaria que lhe dissessem: — Ramona, para quê tudo isto? — Mas então, teria de se casar com ela?

A ideia de casamento enervava-o, mas abordou-a. Os instintos dela eram bons, era prática, capaz e não o magoaria. Uma mulher que esbanjasse o dinheiro do marido, era opinião psiquiátrica geral, determinava-lhe uma castração. Pelo lado prático — e entusiasmava-se ao formular pensamentos práticos — não podia suportar a desordem e solidão da vida de solteiro. Apreciava camisas lavadas, lenços engomados, saltos nos sapatos, tudo o que-Madalena desprezava. A tia Tâmara queria que Ramona tivesse um marido. Deviam ainda existir na memória da velha senhora meia dúzia de palavras em ídixe — shid-dach, tachliss. Poderia ser um patriarca, como cabia a um Herzog. O homem da família, pai, transmissor de vida, intermediário entre o passado e o futuro, instrumento de misteriosa criação passada de moda. Pais obsoletos? Apenas para mulheres masculinas — sabichonas desprezíveis e deploráveis. (Como era estimulante falar com vigor!) Sabia que Ramona se interessava pela erudição, pelos seus livros e artigos de enciclopédia, pelo título de Doutor em Filosofia pela Universidade de Chicago, e desejaria ser Frau Professor Herzog. Divertido, via-os chegar a recepções no Hotel Pierre, Ramona com luvas altas, apresentando Moisés com a sua voz sonora, encantadora: — O meu marido, Professor Herzog — E ele próprio, Moisés, irradiando bem-estar, nadando em dignidade, afável para todos. Dando um jeito ao seu cabelo negro. Que belo par que fariam, ela com os seus tiques e ele com os dele! Que espectáculo de variedades! Ramona vingar-se-ia de quem lhe fez passar maus bocados. E ele? Também ele se desforraria dos seus inimigos. Yemach sh'mo! Que os seus nomes sejam apagados! Preparavam uma armadilha para os meus passos. Cavaram um fosso diante de mim. Parti-lhes os dentes na boca, meu Deus! Com o rosto e os olhos profundamente escuros absortos, tirou as calças, desapertou mais a camisa. Pensou no que diria Ramona se ele se oferecesse para entrar no negócio de flores. Porque não? Mais contacto com a vida, atendendo clientes. As privações do isolamento de estudioso haviam sido de mais para um homem com o seu temperamento. Lera algures, ultimamente, que as pessoas isoladas de Nova Iorque, fechadas nos seus quartos, chegavam a chamar em socorro a polícia: — Mandem um carro patrulha, por amor de Deus! Mandem alguém! Ponham-me numa cela com alguém! Salvem-me. Toquem-me. Venham. Qualquer pessoa... por favor venham!

Herzog não era capaz de afirmar definitivamente que não terminaria o seu estudo. O capítulo sobre «Moralismo Romântico» saíra-lhe bastante bem, mas o chamado «Rousseau, Kant, Hegel» fizera-o interromper-se, desinteressado. E se realmente se fizesse florista? Era um negócio ultrajosamente caro, mas não precisava de se preocupar com isso. Via-se de calças às riscas, sapatos de camurça. Teria de se acostumar aos cheiros de terra e das flores. Havia trinta e tal anos, quando estava a morrer de pneumonia e peritonite, a doçura das flores envenenara-lhe a respiração. Eram enviadas, provavelmente roubadas, pelo irmão Shura, que trabalhava, então, para o florista da Rua Peei. Herzog pensava que agora seria capaz de suportar as rosas. Essa coisa perniciosa, beleza perfumada, perfeição rubra. É preciso resistência para as suportar ou, pela intensidade, ferem-nos por dentro, e sangramos até à morte.

Neste momento, surgiu Ramona. Escancarou a porta e ficou de pé, permitindo que a visse na moldura iluminada dos mosaicos da casa de banho. Estava perfumada e, até às ancas, nua. Sobre estas usava umas cuequinhas de renda negra, e essa simples indumentária cobria-lhe apenas o baixo ventre. Estava de pé, com sapatos de saltos afilados, de oito centímetros de altura. Apenas isso, o perfume e o bâton. Os cabelos negros.

— Agrado-te, Moisés?

— Oh, Ramona! Claro! Como podes perguntar! Estou encantado! Olhando para baixo, ela ria baixinho — Sim. Vejo que te agrado. — Afastou

o cabelo da testa ao inclinar-se um pouco para ver o efeito da sua nudez sobre ele, como reagia perante os seus seios e ancas femininas. Muito abertos, os olhos dela eram imensamente negros. Pegou-lhe num pulso, onde as veias corriam, largas, e levou-o para a cama. Ele começou a beijá-la. Pensou, isto nunca tem sentido. É um mistério.

— Porque não tiras a camisa? Francamente não precisas dela. Riram-se ambos, ela da camisa, ele do trajo dela. Era um assombro! Não admirava que o vestuário fosse tão importante para Ramona, era o engaste daquela jóia sensual, a sua nudez. O riso, à medida que se tornava mais silencioso, interior, era mais profundo. As cuecas de renda negra podiam ser uma loucura, mas provocavam o desejado resultado. Os métodos dela podiam ser rudes, mas os cálculos eram correctos. Ria-se mas sentia-se preso. O seu espírito gracejava, mas o corpo ardia-lhe.

— Toca-me, Moisés. Posso tocar-te a ti também?

— Oh, sim, por favor.

— Não estás contente por não teres fugido de mim?

— Sim, sim.

— Que tal, isto?

— Doce. Muito doce.

— Se aprendesses a confiar nos teus instintos... O candeeiro, também? Preferes às escuras?

— Não, não te importes com o candeeiro agora, Ramona.

— Moisés, querido Moisés. Diz-me que me pertences. Diz-me!

— Pertenço-te, Ramona.

— A mim, apenas.

— Apenas.

— Graças a Deus que existe uma pessoa como tu. Beija-me os seios. Querido Moisés. Oh! Graças a Deus.

Dormiram ambos profundamente sem um movimento. Herzog foi acordado uma vez por um avião a jacto — algo rugindo poderosamente a uma terrível altitude. Não desperto por completo, saltou da cama e sentou-se pesadamente na cadeira listrada, já preparado para escrever outra carta — talvez a Jorge Hoberly. Mas quando o som do avião passou, o pensamento passou, também. Tinha os olhos cheios da noite calma, quente, sem uma brisa — a cidade, as suas luzes.

O rosto de Ramona, descontraído pela prática do amor e pelo sono, estava corado. Com uma mão pegava no debrum franzido de um cobertor de Verão, e a cabeça erguia-se-lhe nas almofadas numa pose pensativa — recordava-lhe aquela fotografia da criança meditabunda do quarto ao lado. Uma perna estava liberta de coberturas — o interior da coxa com a sua riqueza de pele suave e leve ondeado — sexualmente fragrante. O peito do pé ostentava uma curva cheia e encantadora. O nariz era igualmente encurvado. E os dedos dos pés carnudos e muito juntos, em tamanhos decrescentes. Herzog, sorrindo ao mirá-la, voltou para a cama com modos sonolentos. Afagou-lhe a farta cabeleira negra e adormeceu.

Levou Ramona à loja depois do pequeno-almoço. Trazia um vestido vermelho justo, e abraçaram-se e beijaram-se no táxi. Moisés estava agitado e ria muito, dizendo a si próprio mais que uma vez: — Que bela que ela é! E sou eu que a faço assim. — Na Avenida Lexington apearam-se e beijaram-se no passeio (desde quando é que homens de meia idade se comportavam tão apaixonadamente em lugares públicos?). O rouge de Ramona era supérfluo, o rosto dela resplandecia, ardia ao apertá-lo contra os seios, e beijá-lo; o motorista, que esperava, e Miss Schwartz, ajudante de Ramona, observavam-nos ambos.

Seria esta a maneira certa de viver?, pensou. Tivera já problemas bastantes, pagara a sua dívida ao sofrimento e ganhara o direito de ignorar o que os outros pudessem pensar? Apertou mais Ramona, sentiu-a, tímida, explosiva, de coração no corpo, corpo no vestido vermelho muito justo. Ela deu-lhe mais um beijo perfumado. No passeio, diante da montra da loja havia margaridas, lilases, pequenas rosas, caixas com rebentos de tomate e pimentão para transplantar, tudo regado de fresco. Lá estava o jarrão verde com sua goteira de latão. Gotas de água tomavam formas de borrões no cimento. Apesar dos autocarros que vidravam o ar de gases fedorentos, podia cheirar o aroma fresco do solo, e ouvia as mulheres que passavam, o rápido bater dos seus saltos no pavimento irregular. Assim, entre o divertimento do motorista e a censura mal controlada dos olhos de Miss Schwartz por trás das folhas, continuou a beijar o rosto pintado, fragrante de Ramona. Na grande trincheira aberta da Avenida Lexington, com autocarros vertendo veneno, mas as flores sobrevivendo, rosas cor de granada, pálidos lilases, a pureza do branco, a sensualidade do vermelho, e tudo isto coberto pela neblina dourada de Nova Iorque. Aqui, na rua, até onde o carácter e a disposição lhe permitiam, vislumbrava o sabor da vida que poderia ter tido se tivesse sido apenas uma criatura afectiva.

Mas mal ficou de novo sozinho no táxi barulhento, voltou a ser o ines-capável Moisés Elkanah Herzog. Oh, que coisa sou... que coisa! O motorista avançou a grande velocidade por entre as luzes de Park Avenue e Herzog meditou na sua situação: caio sobre os espinhos da vida, sangro. E depois? Caio sobre os espinhos da vida, sangro. E em seguida? Afasto-me, arranjo umas férias, mas depois caio sobre os mesmos espinhos com satisfação na dor, ou sofrimento na alegria — Deus sabe que baralhada! Que bem, que bem duradouro há em mim? Não há mais nada entre o nascimento e a morte a não ser o que me é dado descobrir nesta perversidade — apenas um equilíbrio favorável de emoções desordenadas? Não há liberdade? Apenas impulsos? E o bem que tenho no meu coração... nada significa? Será simplesmente uma brincadeira? Uma falsa esperança que faz um homem crer na ilusão do valor? E assim continua as suas lutas. Mas este bem não é uma falsidade. Sei que o não é. Juro-o.

Mais uma vez estava intensamente excitado. As mãos tremiam-lhe ao abrir a porta do apartamento. Sentiu que devia fazer alguma coisa, algo prático e útil, e devia fazê-lo imediatamente. A noite com Ramona dera-lhe uma nova força, e esta mesma força reacendia-lhe os temores, e, entre eles, o medo de enlouquecer, de que estes fortes sentimentos pudessem desorganizá-lo por completo.

Tirou os sapatos, o casaco, desapertou o colarinho, abriu as janelas do quarto da frente. Tépidas correntes de ar com um aroma levemente contaminado pelo porto levantavam-lhe as cortinas puídas e as persianas da janela. Este fluxo de ar acalmou-o ligeiramente. Não, o bem do seu coração não tinha grande valia, pois ei-lo, com quarenta e sete anos, chegando a casa depois de uma noite de ausência com um lábio magoado de dentadas e beijos, os problemas por resolver como sempre, e que mais tinha para alegar em seu favor na barra do julgamento? Tivera duas mulheres; havia dois filhos; fora outrora um erudito, e no escritório a sua velha mala estava inchada como um crocodilo escamoso com o manuscrito incompleto. Enquanto retardava, outros surgiam com as mesmas ideias. Havia dois anos, um professor de Berkeley chamado Mermelstein antecipara-se-lhe, confundindo, esmagando, aturdindo todos os especialistas, como Herzog tencionava fazer. Mermelstein era um homem inteligente, e um excelente investigador. Pelo menos devia estar livre de um drama pessoal, e ser capaz de dar ao mundo um exemplo de ordem, merecendo assim um lugar na comunidade humana. Mas ele, Herzog, cometera qualquer espécie de pecado contra o seu próprio coração, enquanto procurava uma grande síntese.

Do que este país necessita é de uma boa síntese barata. Que catálogo de erros! Observemos os seus conflitos sexuais, por exemplo. Completamente errados. Herzog, ao encaminhar-se para preparar um café, corou ao medir a água no recipiente graduado. O indivíduo histérico é aquele que permite que a sua vida seja polarizada por simples antíteses extremistas como força-fraqueza, potência-impotência, saúde-doença. Sente uma provocação, mas é incapaz de lutar contra a injustiça social, demasiado fraco, de forma que luta com mulheres, com crianças, com a sua «infelicidade». Tomemos um caso como o do pobre Jorge Hoberly — Hoberly, esse finório lamuriento! Herzog limpou o círculo dentro da chávena do café. Porque percorreria Hoberly febrilmente as lojas luxuosas de Nova Iorque em busca de presentes íntimos, de tributos para Ramona? Porque estava esmagado pelo malogro. Como um homem submete toda a sua vida a uma diligência extrema estropiando-se, matando-se mesmo no campo por si escolhido. Agora, que não pode ser político, é sexual. Talvez Hoberly sentisse que a não tinha satisfeito na cama. Mas não parecia provável também. Perturbações e mesmo um caso de ejaculação precoce não afastariam uma mulher como Ramona. Se alguma influência tivessem, essas humilhações atraí-la-iam ou intrigá-la-iam, despertariam a sua generosidade. Não, Ramona era humana. Simplesmente não desejava que essa personalidade desesperada a esmagasse com todo o seu peso. É possível que um homem como Hoberly ao sentir-se perdido pretenda garantir o malogro da existência individual. Prova que não pode resultar. Leva o amor até ao absurdo para o desacreditar para sempre. E dessa forma se prepara para servir o leviatão da organização ainda mais devotamente. Mas outra possibilidade era a de um homem pleno de necessidades irreconhecidas, imperativos, desejos de actividade, de fraternidade, desesperado com um anseio de realidade de Deus, que não pudesse esperar, e se precipitasse arrebatadamente para algo que lhe parecesse uma esperança. E Ramona parecia uma esperança; escolhera sê-lo. Herzog conhecia bem esse sistema, pois ele próprio dera por vezes esperanças às pessoas. Emitindo uma mensagem secreta: «Confie em mim.» Era provavelmente apenas uma questão de instinto, de saúde ou vitalidade. Era a própria vitalidade que arrastava um homem de mentira em mentira, ou o induzia a manter esperanças a outrem. (O destrutivismo cria as suas próprias mentiras, mas isso era outro problema.) O que me parece que faço, pensou Herzog, é arrebatar-me com o meu drama, com o ridículo, o malogro, a denúncia, a distorção, arrebatar-me voluptuosa, esteticamente até atingir um clímax sexual. E esse clímax surge como uma resolução e resposta a muitos problemas «mais elevados»! Na medida em que posso confiar em Ramona no papel de profetiza, assim é. Ela leu Marcuse, N. O. Brown, todos esses neo-freudianos. Deseja acreditar que o corpo é um facto espiritual, o instrumento da alma. Ramona é uma deliciosa mulher, e muito patética, mas estas teorizações são uma perigosa tentação. Não podem senão conduzir a erros bem intencionados.

Observou o café embatendo contra o receptáculo estalado da máquina (comparável aos pensamentos no seu crânio). Quando o líquido lhe pareceu suficientemente escuro, encheu a chávena e respirou o fumo. Decidiu escrever a Daisy dizendo-lhe que visitaria Marco no Dia dos Pais e não revelar as suas fraquezas. Bastava de simulações de doenças! Decidiu também que devia ter uma conversa com o advogado Simkin. Imediatamente.

Devia ter telefonado mais cedo a Simkin, sabendo os seus hábitos. O velho solteirão maquiavélico, corado e gordo, vivia com a mãe, uma irmã viúva e vários sobrinhos e sobrinhas no Central Park, na zona ocidental. O apartamento em si era luxuoso, mas dormia numa cama de acampamento no mais pequeno dos quartos. A sua mesinha de cabeceira era uma pilha de livros de direito e aí trabalhava pela noite fora. As paredes estavam cobertas de cima a baixo com pinturas abstracto-expressionistas, por emoldurar. Às seis, Simkin levantava-se do leito e guiava o seu Thunderbird até um pequeno restaurante na parte oriental da cidade — descobria os sítios mais típicos, chineses, gregos, birmaneses, as caves mais escuras de Nova Iorque; Herzog tinha comido várias vezes com ele. Após um pequeno-almoço de pãezinhos com cebola e Nova Scotia, Simkin gostava de se deitar no negro sofá de Naugahyde no escritório, de se cobrir com uma manta tricotada pela mãe, ouvindo Palestrina, Monteverdi, ao elaborar as suas estratégias legais e comerciais. Por volta das oito barbeava as suas faces enormes com Norelco, e pelas nove, tendo dado instruções ao pessoal, saía, para visitar galerias, assistir a leilões.

Herzog marcou o número, e encontrou Simkin. Imediatamente — era o seu ritual — Simkin começou a lamentar-se. Estava-se no mês de Junho, mês dos casamentos, dois jovens empregados estavam de folga — em lua-de-mel. Que idiotas! — Bem, Professor — disse — , há muito que não o vejo. Que pretende?

— Primeiro, Harvey, gostaria de saber se me poderia dar uns conselhos. É amigo da família de Madalena, no fim de contas.

— Digamos antes que tenho relações com eles. Por si tenho simpatia. Nenhum Pontritter precisa da minha simpatia, e menos que qualquer outro Madalena, essa cadela.

— Recomende-me outro advogado se não se quiser meter no caso.

— Os advogados são caros. Você não está a nadar em dinheiro, aceito o caso.

Não há dúvida, reflectiu Herzog, de que Harvey é curioso. Gostaria de saber quanto pudesse sobre a minha situação. Estarei a ser sensato? Ramona quer que eu consulte o advogado dela. Mas isso poderia mais uma vez comprometer-me. Depois, o advogado dela quereria proteger Ramona de mim. — Quando está livre, Harvey? — perguntou Herzog.

— Oiça... arranjei duas pinturas de um primitivo jugoslavo — Pachich. Acaba de chegar do Brasil.

— Podemos encontrar-nos para almoçar?

— Hoje não. Há pouco o Anjo da Morte encarregou-se... — Herzog reconheceu o tom peculiar de comédia judaica que Simkin adorava, as suas representações do medo, a sua cómica consternação cósmica. — A ganhar e a gastar desperdiço as minhas energias... — continuava Simkin.

— Meia hora.

— Vamos almoçar ao Maçaria Aposto que nunca ouviu falar dele... acho que não. Você é um ignorante destas coisas. — Gritou asperamente para a secretária: — Traga-me esse artigo que o conde Wilson escreveu sobre o Macario. Está a ouvir-me, Tilly?

— Está ocupado todo o dia?

— Tenho de ir ao tribunal. Aquelas prendas estão nas Bermudas com as noivas enquanto eu combato o Moloch-ha-movos sozinho. Sabe o preço de um spaghetti al burro no Macario? Adivinhe.

Tenho de o acompanhar, reflectiu Herzog. Cofiou as sobrancelhas com o polegar e o indicador. — Três e cinquenta?

— É essa a sua ideia de caro? Cinco dólares e cinquenta cêntimos!

— Meus Deus, que põem nele?

— É salpicado de poalha de ouro, não de queijo. Não, a sério, tenho de intervir num caso hoje. Eu... eu próprio. E detesto tribunais.

— Deixe-me ir buscá-lo de táxi e levá-lo ao centro. Vou imediatamente.

— Mas estou aqui à espera de um cliente. Sempre lhe digo uma coisa, se tiver alguns minutos livres mais tarde... Parece-me muito nervoso. O meu primo Wachsel está no escritório do delegado do ministério público. Vou dar-lhe uma palavra... Bem, enquanto o meu cliente não chega, porque não me diz de que se trata?

— É sobre a minha filha.

— Pretende reclamar custódia?

— Não necessariamente. Estou preocupado com ela. Não sei como está a criança.

— Além do que, gostaria de se vingar, bem imagino.

— Envio regularmente a pensão e pergunto sempre por June, e nunca recebo uma palavra. Himmelstein, o advogado de Chicago, afirmou-me que eu não tinha quaisquer probabilidades de obter a custódia. Sei que a fecham no automóvel quando os aborrece. Até que ponto irão eles?

— Acha que a Madalena é uma mãe incompetente?

— Claro que acho, mas hesito em intrometer-me entre a criança e a mãe.

— Está a viver com esse tipo, seu amigo? Recorda-se de quando o ano passado fugiu para a Polónia e fez testamento? Nomeou-o executor e tutor.

— Nomeei? Sim... recordo-me agora. Acho que assim foi.

Bem ouvia o advogado tossir e sabia que se tratava de uma tosse fingida; Simkin estava a rir. Não podia censurá-lo. O próprio Herzog se divertia um tanto à custa da sua fé sentimental nos «melhores amigos» e não podia deixar de pensar como devia ter encantado Gersbach com a sua parvoíce. Evidentemente, pensou Moisés, eu não era capaz de tratar dos meus próprios interesses, e provei, dia após dia, a minha incompetência. Que presunçoso estúpido!

— Fiquei meio surpreendido quando você o nomeou — disse Simkin.

— Porquê, sabia alguma coisa?

— Não, mas havia algo de suspeito no aspecto dele, na maneira de se vestir, na sua voz forte, no seu ídixe deturpado. E que exibicionista! Não gostava da maneira como ele o abraçava. Chegava a beijá-lo, se bem me lembro...

— É assim a sua exuberante personalidade russa.

— Oh, não estou a afirmar que ele seja realmente um carácter duvidoso — precisou Simkin. — Bem, Madalena está encantada com este esplêndido tutor? Poderia pelo menos investigar. Porque não contrata um investigador particular?

— Um detective! Sem dúvida! — A ideia entusiasma-o?

— Claro que sim! Porque não terei eu próprio pensado nisso?

— Tem o dinheiro necessário? Custa dinheiro a valer!

— Dentro de poucos meses volto a trabalhar.

— Mesmo assim, que pode você ganhar? — Simkin falava sempre dos vencimentos de Moisés com uma aura de tristeza. Pobres intelectuais, tão maltratados. Parecia admirar-se de Herzog não se ressentir disso. Mas Herzog aceitava ainda critérios da Crise.

— Posso pedir emprestado.

— A investigação particular é caríssima. Vou explicar-lhe. — Fez uma pausa. — As grandes corporações criaram uma nova aristocracia com a nova estrutura tributária. Automóveis, aviões, apartamentos luxuosos em hotéis — ajudas para representações. Também restaurantes, teatros, etc, bons colégios particulares foram tabelados de forma a ficarem fora do alcance de um homem de baixo salário. Mesmo o preço da prostituição. As despesas médicas dedutíveis enriqueceram os psiquiatras, de forma que mesmo o sofrimento é mais caro agora. Quanto aos diversos estratagemas dos seguros, podia falar-lhe disso também. Tudo é mais subtil. As grandes organizações têm a sua própria CIA. Espiões científicos que roubam segredos a outras empresas. De qualquer forma, os espiões ganham grandes ordenados nas empresas de transportes, de modo que quando vocês, indivíduos de baixos proventos se apresentam, têm de tratar com a escumalha desta seita. Muitos verdadeiros chantagistas se intitulam investigadores particulares. Ora eu sou capaz de lhe dar um bom conselho. Quere-lo?

— Sim... sim, quero. Mas... — hesitava Herzog.

— Mas qual é o meu ponto de vista? — Simkin, como Herzog desejava, levantou a questão. — Suponho que você é a única pessoa em Nova Iorque que não sabe como Madalena se virou contra mim... que patifes! E eu era um tio para ela. Vivendo em águas furtadas, entre aqueles tipos de teatro, a criança parecia um cachorro amedrontado. Tive pena de Mady. Dei-lhe bonecas, levei-a ao circo. Quando teve idade suficiente para entrar no Radcliffe, paguei-lhe o guarda-roupa. Mas, depois, quando foi convertida por aquele peralvilho de Monsenhor, tentei conversar com ela; e chamou-me hipócrita e trapaceiro. Disse que eu era um novo rico, que se servia das relações do pai dela, e não passava de um judeu ignorante. Ignorante! Ganhei a medalha de ouro de Latim da classe mais avançada dos rapazes em 1917. Muito bem. Mas depois ela maltratou uma primita minha, uma rapariga epiléptica, uma mulher doente, imatura, inocente e frágil como um rato, uma mulher que não era capaz de cuidar de si própria — não importam os terríveis pormenores.

— Que fez ela?

— Isso é outra longa história.

— De forma que você já não protege Madalena. Não ouvi ela dizer fosse o que fosse contra si.

— Talvez não se recorde. Feriu-me bastante profundamente, pode crer. Não importa. Sou um velhote ambicioso cujo único fito é ganhar dinheiro — não proclamo que sou um candidato à santidade, mas... Bem, é o delírio do mundo. Talvez você nem sempre tenha dele consciência, Professor, absorvido como está na verdade, no bem e no belo como Herr Goethe.

— Ora, Harvey. Sei que não sou realista. Não tenho força para elaborar todos os juízos que um homem tem de elaborar para ser realista. Que conselho me vai dar?

— Aí está uma coisa em que pensar enquanto o diabo do meu cliente não chega. Se você quer realmente intentar uma acção judicial...

— Himmelstein afirmou-me que um júri olharia para os meus cabelos grisalhos e daria um veredicto contra mim. Talvez devesse pintar o cabelo.

— Arranje um advogado cem por cento ariano de uma das grandes firmas. Não deixe juntar uma série de judeus a bradar no tribunal. Dê dignidade ao seu caso. Depois intime os elementos principais, Madalena, Gersbach, a Sra. Gers-bach, e chame-os à barra sob juramento. Fale-lhes das sanções do perjúrio. Se as perguntas forem bem formuladas e estou pronto a preparar o seu advogado cem por cento ariano, e a ser o espírito organizador de todo o processo, não precisará de tocar num cabelo da sua cabeça.

Com a manga, Herzog limpou o suor que lhe marejava a testa. Sentia-se, de súbito, muito quente. O calor, que lhe macerava a pele, libertava também o perfume do corpo de Ramona que absorvera. Estava misturado com os seus próprios cheiros.

— Está a seguir-me?

— Estou a ouvir, continue — respondeu Herzog.

— Terão de pôr tudo em pratos limpos, e eles próprios intervirão a seu favor. Podemos perguntar quando começaram as suas relações com Madalena, e como é que ele conseguiu que você o levasse para o Midwest... foi o que você fez, não foi?

— Arranjei-lhe o emprego. Aluguei-lhe a casa. Consegui que lhe instalassem um esgoto para o lixo. Medi as janelas para que Phoebe pudesse decidir se havia de trazer os cortinados de Massachusetts.

Simkin fez uma das suas simbólicas exclamações de assombro. — Bem, com que mulher está ele a viver?

— Realmente não chego a saber. Gostaria de eu próprio me acarear com ele — poderia conduzir o questionário em tribunal?

— Isso não é possível. Mas o advogado pode perguntar o que você entender. Podia crucificar esse coxo. E Madalena... tem ido tão longe nos seus propósitos. Nunca admitiu que você tivesse alguns direitos. Julga-se alguém do outro mundo!

— Penso muitas vezes que se ela morresse eu recuperaria a minha filha. Há momentos em que sei que seria capaz de olhar para o cadáver de Madalena sem piedade.

— Eles tentaram assassiná-lo — disse Simkin.

— De certa forma, pretendiam-no. — Herzog sentiu que as suas palavras sobre a morte de Madalena haviam excitado Simkin e o haviam deixado desejoso de ouvir mais. Quer que eu diga que me sinto capaz de os assassinar aos dois. Bem, é verdade. Fiz a experiência no meu espírito com uma pistola, uma faca, e não senti qualquer horror, qualquer culpa. Nenhuma. E antes nunca conseguira imaginar um tal crime. Assim, talvez pudesse matá-los. Mas não direi nada disto a Harvey.

Simkin continuou: — No tribunal, terá de provar que têm relações adúlteras a que a criança está exposta. A intimidade sexual, em si mesma, não conta. Um tribunal de Illinois concedeu uma custódia a uma rapariga de má vida, a mãe, porque, o que quer que ela fizesse, reservava-o para os quartos de hotel. Os tribunais não têm a ilusão de poderem parar toda a revolução sexual dos nossos tempos. Mas, se a pouca vergonha se passa em casa e a criança a ela está exposta, a atitude judicial é diferente. Perigo para o espírito

em formação.

Herzog escutava, olhando fixamente para além da janela, e tentava dominar os espasmos do estômago e as sensações de aperto, de nó do coração. O telefone parecia transmitir-lhe o baque do sangue, rítmico, difuso, e rápido, correndo-lhe dentro do crânio. Talvez fosse apenas um refluxo nervoso dos seus tímpanos. As membranas pareciam tremer.

— Compreenda — disse Simkin — a notícia apareceria em todos os jornais de Chicago.

— Nada tenho a perder, estou praticamente esquecido em Chicago. O escândalo atingiria Gersbach, não a mim. — disse Herzog.

— Porque pensa assim?

— Ele entra em tudo e dá-se com toda a gente graúda de Chicago — sacerdotes, jornalistas, professores, tipos da televisão, juízes federais, senhores do Hadassah. Jesus, não pára um momento. Organiza novas combinações na televisão. Como Paul Tillich, Malcolm X e Hedda Hopper num único programa.

— Pensei que o indivíduo fosse poeta e locutor da rádio. Estou a ver que parece um empresário da TV.

— É um poeta de comunicações para as massas.

— Você tem-no atravessado, não tem? Safa, se não é para o pôr fora de si!

— Bem, você gostaria de acordar e ver que as suas melhores tentativas não passavam de sonambulismo?

— Mas não compreendo este jogo de Gersbach.

— Já lhe conto. É um director de circo, um popularizador, elemento de ligação das elites. Descobre celebridades e apresenta-as ao público. E consegue que todos sintam que é mesmo de uma pessoa como ele que têm estado à procura. Subtileza para o subtil. Entusiasmo para o entusiasta. Para o rude, rudeza. Para o trapaceiro, hipocrisia. Atrocidade para o atroz. O que um coração desejar. Plasma emocional que pode circular em qualquer sistema.

Simkin estava perfeitamente deliciado com esta explosão, Herzog bem o sabia. Compreendia mesmo que o advogado estava a dar-lhe corda, a incitá-lo. Mas tal não o fez conter-se. — Tenho tentado encará-lo como um tipo. Será um Ivan, o Terrível? Um possível Rasputine? Ou um Cagliostro de segunda classe? Ou um político, orador, demagogo, rapsodo? Ou uma espécie de xamã siberiano? Esses são frequentemente invertidos ou andróginos...

— Quer você dizer que esses filósofos que você estudou durante tantos anos foram todos frustrados por um Valentim Gersbach? — perguntou Simkin. — Todos esses anos de Espinosa... Hegel?

— Você está a fazer pouco de mim, Simkin.

— Desculpe. Não foi uma boa piada.

— Não me importo. Isso soa-me a verdade. Como ter lições de natação na mesa da cozinha. Bem, não posso responder pelos filósofos. Talvez a filosofia do poder, Thomas Hobbes, pudesse analisá-lo. Mas quando penso em Valentim não penso em filosofia, penso nos livros que devorava quando rapaz, nas revoluções francesa e russa. E no cinema mudo, em Mme Sans-Gêne — Gloria Swanson. Ou Emil Jannings como general czarista. De qualquer forma, vejo as turbas irrompendo pelos palácios e igrejas e saqueando Versalhes, chafurdando entre sobremesas de creme e vinho entornado, vestidos de veludo carmesim, roubando coroas e mitras e cruzes...

Herzog sabia muito bem que, ao falar assim, estava de novo sob a alçada daquela força excêntrica, perigosa, sob cujo poder ultimamente caíra. Ela actuava, agora, e sentia-se curvar. Em qualquer momento podia ouvir um estalido. Tinha de parar com isto. Ouvia Simkin rir-se baixo e continuamente para si mesmo, provavelmente com uma das suas pequenas mãos descansando sobre o peito gordo, e rugazinhas de alegre sátira formando-se-lhe em torno dos olhos debruados de sobrancelhas cerradas e das orelhas peludas. — Emancipação que resulta em loucura. Ilimitada liberdade para escolher e representar uma tremenda variedade de papéis recheados de uma energia grosseira.

— Nunca vi um homem chafurdar em vinho em qualquer filme, onde é que viu isso? No Museu de Arte Moderna? Além disso, no seu espírito, você não se identifica com Versalhes ou com o Kremlin ou o velho regime, ou algo do género?

— Não, claro que não. Não passa de uma metáfora, e talvez de uma pouco expressiva. Eu só pretendia dizer que não há nada em que Gersbach se não meta, experimenta tudo. Por exemplo, se me roubou a mulher, tinha ainda por cima de sofrer a minha agonia? Fê-lo porque também isso era capaz de fazer melhor? E se é uma tal figura de amor trágico, praticamente um semideus aos seus próprios olhos, terá também de ser o maior dos pais e dos chefes de família? A mulher afirma que ele é o marido ideal. Unicamente lamentava os seus excessos. Dizia que em nenhuma noite lhe dava descanso. Era demais para ela.

— A quem se lamentava?

— Ora, à melhor amiga, a Madalena, a quem havia de ser? E a verdade é que Valentim é um homem de família, concomitantemente com tudo o mais. Só ele sabe o que eu sofri por causa da minha miúda e mandava-me notícias semanais, fielmente, com uma simpatia real. Até que eu descobri que ele me dera o desgosto por que me estava a consolar.

— Que fez você então?

— Procurei-o por toda a cidade de Chicago. Finalmente, enviei-lhe um telegrama do aeroporto, ao partir. Queria dizer-lhe que o mataria se lhe pusesse os olhos em cima. Mas a União Ocidental não aceita tais textos. De forma que telegrafei cinco palavras: Mancha o rosto tanto esterco. As primeiras letras formam a palavra morte.

— Estou certo de que ficou esmagado pelo medo.

Herzog não sorriu. — Não sei. É supersticioso. Mas, como disse, é um homem de família. Ele próprio faz arranjos em casa. Quando o filho precisa de um fato para a neve ele é que o compra. Vai ao rés-do-chão do Hillman e traz pãezinhos e arenques com picles no seu saco de compras. Além disso, é um desportista — campeão de boxe da Universidade em Oneonta, apesar da perna de pau, diz ele. Com os jogadores de cartas joga às cartas, com rabis é Martin Buber, com a Sociedade de Madrigais de Hyde Park canta madrigais.

— Bem — observou Simkin — , não passa de um psicopata interesseiro, fanfarrão e exibicionista. Um pouco cínico, possivelmente, não falando de que é um tipo de judeu fácil de reconhecer. Um desses trapaceiros barulhentos com voz de trovão. Que espécie de carro é que esse promotor e poeta guia?

— Um Lincoln Continental.

— Heh, heh.

— Mas mal acaba de atirar com a porta do seu Continental, começa a falar como Karl Marx. Ouvi-o no Auditorium com uma audiência de duas mil pessoas. Era um simpósio sobre desagregação, e deixou escapar uma fanfarronice contra a sociedade presente. É assim. Se se tem um bom emprego, uns quinze mil dólares por ano, e seguro contra a doença, reforma e, talvez, mais umas reservas, porque não se há-de ser também radical? Os literatos apropriam-se do melhor que encontram nos livros e com isso se vestem, tal como certos caranguejos se embelezam com algas. E depois lá estava a audiência, uma audiência bem instalada de comerciantes e indivíduos de profissões liberais, convencionais que sabem tratar eficientemente dos seus negócios e das suas especialidades, mas que ficam confusos em qualquer outro campo e vêm ouvir um orador exprimir-se ousadamente, com ênfase e entusiasmo, orientação e força. Com uma cabeça como uma fornalha flamejante, uma voz como uma pista de bowling e a perna de pau tamborilando no palco. Para mim ele é uma curiosidade, como um idiota com mongolismo cantando a Aída. Mas para eles...

— Meu Deus, você está excitado — notou Simkin. — Porque vem agora de repente falar de ópera? Tal como você o descreve, estou mesmo a ver que o sujeito é um actor, e sei perfeitissimamente que Madalena é uma actriz. Disso sempre tive consciência. Mas não ligue. Estes exageros são maus para si. Está a dar cabo da sua vida.

Moisés ficou silencioso, fechando os olhos por um momento. Depois disse: — Bem, talvez...

— Espere, Moisés, parece-me que o meu cliente chegou.

— Oh, está bem, não lhe tiro mais tempo. Dê-me o número do telefone do seu primo e encontrar-me-ei mais tarde consigo na cidade.

— Isto não pode esperar.

— Não, terei de tomar hoje uma decisão.

— Bem, farei o possível por arranjar algum tempo para si. Agora preciso de desligar.

— Bastam-me quinze minutos — observou Herzog. — Vou preparar todas as minhas perguntas.

Moisés, ao tomar nota do número de Wachsel, pensava que talvez o melhor que tinha a fazer fosse deixar de pedir conselhos e ajuda. Só isso podia alterar todo o quadro. Escreveu mais legivelmente o número de Wachsel na agenda. Ao longe, ouvia Simkin gritar em voz rude ao cliente. Algo sobre um urso-formigueiro...?

Desabotoou a camisa e deixou-a cair atrás de si no chão da casa de banho. Depois puxou o autoclismo. O oval imperfeito do lavatório era liso e belo à luz cinzenta. Tocou na brancura quase homogénea com as pontas dos dedos e respirou os aromas da água e o subtil cheiro a lodo que vinha dos canos de esgoto. Inesperadas erupções de beleza. É assim a vida. Inclinou a cabeça sob a torneira aberta e suspirou com o choque, e depois com prazer. Ex.mo de Jouvenel: Se a finalidade da filosofia política for, como afirma, civilizar o poder, impressionar os brutos, melhorar-lhes a educação e couraçar-lhes a energia, dirigindo-a para tarefas construtivas, gostaria de lhe confessar, já não se dirigia a Jouvenel, que o aparecimento de James Hoffa no seu programa de televisão, numa destas noites, me fez sentir a força terrível que pode ser a sinceridade colérica. Tive pena dos pobres professores do seu grupo que ele pôs na sombra. Vou contar-lhe o que diria a Hoffa. — O que o leva a pensar que o realismo tem de ser brutal? As mãos de Herzog estavam pousadas sobre as torneiras; a da esquerda fechou neste momento a água quente, a da direita aumentou a pressão da fria. Encharcava-lhe o crânio e o pescoço. Tremia com a extrema violência do pensamento e dos sentimentos.

Finalmente endireitou a cabeça, a pingar, e envolveu-a na toalha, esfregando-a e sacudindo-a no esforço para recuperar um pouco de calma. Ao fazer isto, veio-lhe ao espírito a observação de que estas idas à casa de banho para cobrar ânimo eram um dos seus hábitos. Parecia-lhe sentir que aqui era mais eficiente, mais senhor de si próprio. De facto, recordava-se que durante algumas semanas em Ludeyville pedira a Madalena que tivessem relações no chão da casa de banho. Ela obedeceu, mas bem podia ver que enquanto estava deitava no velho mosaico ficava furiosa. Muito podia daí advir. É assim que o todo-poderoso intelecto humano se emprega quando não tem uma ocupação real. Agora vislumbrava a chuva de Novembro gotejando do céu sobre a sua casa semi-pintada de Ludeyville. Os sumagres perdiam as suas folhas vermelhas de papel chinês, e nos bosques frementes os caçadores faziam batidas aos veados — pum, pum, pum — , regressando a casa com animais mortos. O fumo da pólvora erguia-se, lento, na berma do bosque. Moisés sabia que a mulher, estendida no soalho, o amaldiçoava. Procurava tornar cómica a sua sensualidade, para mostrar como tudo aquilo era absurdo, provavelmente a forma mais desprezível de luta humana, a própria essência da escravatura.

Depois, subitamente, Moisés recordou algo completamente diferente que sucedera em casa de Gersbach, justamente à saída de Barrington, aproximadamente um mês mais tarde. Gersbach estava a acender as velas de Chanukah para o filho, Efraim, deturpando a bênção hebraica, dançando em seguida com o miúdo. Efraim tinha vestido o seu modesto pijama, e Valentim, forte e decidido, inafectado pela mutilação — era esse o seu grande encanto; mal humorado por ser coxo? Nada disso! — , dançava, saltava, batendo as palmas, de cabelo flamejante, brutalmente barbeado no pescoço, andando para aqui e para além, e fitava o rapaz com uma ternura fanática, com olhos escuros e quentes. Sempre que aquele olhar transparecia, o tom arruivado do seu rosto como que se condensava todo nos olhos castanhos e fazia com que as suas faces parecessem quase porosas. Já nessa ocasião eu podia ter adivinhado, pelo olhar de Mady, por aquela sua respiração explosiva de quando ria espontaneamente.

Aquele olhar era profundo. Estranho. Um olhar como um agrafo metálico aberto. Ela ama aquele actor.

Somos simplesmente grotescos! Herzog afirmou-o impulsivamente, e no entanto com dor, com o espírito imediatamente buscando uma estabilidade formal, procurando agarrar (ao ensaboar-se, ao colocar a lâmina na máquina de barbear) ideias, do último livro do Prof. Hockins sobre se a justiça na Terra pode ou não ser geral, social, mas tem de ter a sua origem em cada coração. A monstruosidade subjectiva tem de ser vencida, tem de ser corrigida pela comunidade, pelo dever útil. E, como o senhor indica, o sofrimento particular transformado em algo que não masoquismo. Mas todos o sabemos. Sabemos, sabemos, sabemo-lo! Sofrimento criador, como julga... existir no cerne da crença cristã. Ora que pretendo eu? Herzog fez por ser mais claro. Que estou eu realmente a pensar? Provavelmente isto: haverei de pôr aqueles dois na barra do tribunal sob juramento, torturá-los, prender-lhes um archote aos pés? Porquê? Têm direito a ser um do outro; parecem mesmo pertencer um ao outro. Ora, deixá-los em paz. Mas a justiça? — Justiça! Vejamos quem deseja justiça! A maior parte da humanidade tem vivido e morrido sem ela — absolutamente sem ela. Biliões de pessoas durante milénios, suadas, logradas, escravizadas, sufocadas, feridas de morte, enterradas sem mais justiça que o gado. Mas Moisés E. Herzog, gritando a plenos pulmões de dor e raiva, tem de obter justiça. É o seu quidpro quo, em troca de quanto perdeu, o seu direito como Parte Inocente. Gosto do gatinho, o seu pêlo é tão quente; se não o magoarmos não faz mal à gente. Sento-me à lareira, dou-lhe de comer, será meu amigo, que boa eu vou ser. Agora a sua raiva era tão grande e profunda, tão assassina, sanguinária, tão positivamente arrebatada, que os seus braços e dedos começaram a sentir indominávees desejos de os estrangularem. Demasiado para a pureza infantil do seu coração. A organização social, apesar da sua inépcia e do seu mal, tem realizado muito mais benefícios do que eu, pois por vezes, pelo menos, faz justiça. Eu sou um embaraço e falo de justiça. Devo os poderes que criaram em mim uma vida humana. E onde está ela?! Onde está essa vida humana que é a minha única desculpa por sobreviver! Que tenho eu para apresentar de mim próprio? Apenas isto! Olhou o rosto no espelho manchado. Estava ensaboado de creme para barbear. Viu os seus olhos perplexos, furiosos e soltou um grito audível. Meu Deus! Que criatura é esta? Considera-se humana. Não humana em si mesma. Mas anseia por ser humana. Como um sonho perturbador, um vapor persistente. De onde vem tudo isto? E o que é?E o que poderá ser?! Não um anseio imortal. Não, completamente mortal, mas humano.

Estava a vestir a camisa e fazia planos para visitar o filho no Dia dos Pais. A camioneta de carreira para Catskill partia do término da zona ocidental às sete da manhã e dava a volta pelo Truway em menos de três horas. Recordava-se de, dois anos atrás, se acotovelar pelo campo de jogos poeirento com turbas de miúdos e pais, moças grosseiras de barracas, cabras e cricetos cansados, arbustos sem folhas, e o spaghetti servido em pratos de papel. À uma da tarde estaria perfeitamente extenuado, e o tempo antes da hora do autocarro seria difícil e triste, mas devia fazer quanto pudesse por Marco. Quanto a Daisy, poupar-lhe-ia uma viagem. Também ela tinha as suas ralações, com a mãe senil. Herzog sabia-o de muitas fontes, e afectava-o curiosamente ouvir contar que a sua ex-sogra, elegante, autocrática, tipo perfeito de sufragista e «mulher moderna», com o seupince-nez e fartos cabelos grisalhos, perdera o auto-domínio. Tinha-se convencido de que Moisés se divorciara porque Daisy era uma prostituta, tinha o cartão amarelo — Polina, nos seus delírios, tornou-se de novo russa. Cinquenta anos em Zanesville, no Ohio, desvaneciam-se quando insistia com Daisy para deixar de «andar com homens». A pobre Daisy tinha de ouvir isto todas as manhãs depois de ter mandado o miúdo para a escola, ao preparar-se para sair, ela própria, para o emprego. Uma mulher regrada, digna de confiança, responsável até à severidade. Daisy era estatística de Gallup Poli. Por causa de Marco procurava tornar a casa alegre, mas não tinha jeito para isso, e os periquitos e plantas, peixinhos vermelhos e reproduções vivas de Braque e Klee do Museu de Arte Moderna pareciam aumentar-lhe a tristeza. Da mesma forma, com a sua simplicidade ordenada, as costuras direitas das meias, o rosto empoado e sobrancelhas sublinhadas a lápis para darem uma expressão mais espiritual, Daisy nunca conseguia ocultar a sua mágoa. Depois de limpar a gaiola dos pássaros, de dar de comer a toda a bicharada, tinha ainda de enfrentar a mãe senil no vestíbulo. E Polina ordenava-lhe que deixasse aquela vida de vergonha. Depois começava: — Daisy, peço-te. — E finalmente suplicava-lhe de joelhos, baixando-se com dificuldade, mulher de ancas largas, de tranças brancas pendentes, cabeça grisalha longa e esguia — tanta delicadeza feminina que permanecia na forma daquela cabeça — e o pincenez baloiçando da fita de seda: — Não podes continuar assim, minha filha.

Daisy tentava erguê-la do chão. — Está bem, mãezinha. Vou mudar. Prometo.

— Há homens à tua espera, na rua.

— Não, não, mãezinha.

— Sim, homens. Isto é um mal social. Apanhas uma doença. Morres de uma morte horrível. Tens de parar. Moisés regressará se o fizeres.

— Está bem. Por favor, levante-se, mãezinha. Vou parar.

— Há outras formas de ganhar a vida. Por favor, Daisy, peço-te por tudo.

— Pronto, mãezinha. Venha sentar-se.

Tremente e desajeitada, com quadris doridos e joelhos fracos, a velha Polina erguia-se do chão e Daisy guiava-a para a cadeira. — Vou mandá-los todos embora. Venha, mãezinha. Vou ligar a televisão. Não quer ver o curso de cozinha? Dione Lucas ou o Clube do Pequeno Almoço? — O sol entrava pelas persianas. As imagens precipitadas, tremeluzindo no ecrã, pareciam amarelas. E a grisalha, gentil Polina, esta velha senhora de altos princípios,, essencialmente racionalista, tricotava todo o dia diante da televisão. Os vizinhos cuidavam dela. A prima Asya vinha de quando em quando do Bronx. Às quintas-feiras ficava com a mulher a dias. Mas Polina, agora já na casa dos oitenta, teve finalmente de ser internada num lar para velhas, algures em Long Island. Pois é assim que terminam os caracteres fortes!

Oh, Daisy, tenho muita pena. Lamento...

Uma tristeza após outra, pensou Herzog. As faces barbeadas ardiam-lhe e friccionou-as com hamamele, limpando os dedos às pontas da camisa. Pegou no chapéu, no casaco, na gravata e desceu a correr a escada sombria até à rua — o elevador era demasiado vagaroso. Na estação dos táxis encontrou um motorista porto-riquenho que alisava o cabelo negro e lustroso com um pente de algibeira.

Moisés apertou a gravata no assento de trás. O motorista voltou-se para ver. Estudou-o.

— Para onde, amigo?

— Para o centro.

— Sabe, tenho uma coincidência para lhe contar — Avançaram para ocidente, em direcção à Broadway. O motorista observava-o pelo espelho enquanto guiava. Herzog inclinou-se também para a frente e decifrou o nome por cima do marcador: Teodoro Valdepenas. — De manhã cedo — disse Valde-penas — vi um sujeito na Avenida Lexington vestido como o senhor, com um modelo de casaco exactamente igual. E de chapéu.

— Viu-lhe a cara?

— Não, a cara não vi. — O táxi foi roncando pela Broadway e encaminhou-se velozmente para Wall Street.

— Em que parte de Lexington?

— Por volta do número sessenta.

— Que estava o indivíduo a fazer?

— A beijar uma rapariga de vestido vermelho. Foi por isso que não lhe vi a cara. E que beijos! Era o senhor?

— Devo ter sido.

— Que coisa! — Valdepenas deu uma palmada no volante — Caramba! Entre milhões. Levei um tipo de La Guardiã, passando por Triboro e pela estrada marginal do nascente e deixei-o na esquina da 72.a Rua e Lexington. Vi-o a beijar uma rapariga e tenho-o como cliente duas horas depois.

— É como pescar o peixe que engoliu o anel do rei. — disse Herzog.

Valdepenas voltou-se levemente para mirar Herzog por cima do ombro. — Era uma rapariga realmente formidável. Uma brasa! Sua mulher?

— Não. Não sou casado. Ela não é casada.

— Ora, amigo, faz muito bem. Quando eu for para velho hei-de fazer como o senhor. Parar, porquê? E, creia-me, já não ando com franganotas. Perde-se tempo com uma rapariga com menos de vinte e cinco anos. Estou a deixar-me desse tipo. Uma mulher com mais de trinta e cinco anos está a começar a ser séria. É o género que dá melhores resultados... Para onde vai?

— Para o Tribunal Central.

— É advogado? Polícia?

— Como podia eu ser um detective com este casaco?

— Hombre, hoje em dia os detectives chegam a dar nas vistas. Isso pouco me importa! Oiça-me. O mês passado consumi-me a valer com uma franganota. Passa a vida na cama a mascar pastilhas elásticas e a ler revistas. Como se dissesse: — Faz-me qualquer coisa! — Eu disse-lhe: — Ouve, o Teddy está aqui. Para que são essas pastilhas elásticas, essas revistas? — Ela respondeu-me: — Bem, vamos ao que importa. — Repare nesta atitude! Disse-lhe: — Para o meu carro de praça, para aí é que eu vou. Merecias um murro nos dentes pela maneira como falas. — E digo-lhe mais. Não prestava para nada. Uma rapariga de dezoito anos nem sequer sabe cagar!

Herzog riu, em grande parte de admiração.

— É assim, não é? — disse Valdepenas. — O senhor não é miúdo nenhum.

— Não, não sou.

— Uma mulher com mais de quarenta aprecia realmente...    — Passavam entre a Broadway e o Houston. Um ébrio, de rosto hirsuto, maxilas fortes e arrogantes, estava com um trapo nojento à espera de limpar os pára-brisas dos carros que passavam, estendendo a mão para as gorjetas. — Olhe o que aquele lazarento está aqui a fazer — observou Valdepenas. — Besunta os vidros. Os ricaços pagam-lhe. Tremem todos. Não têm coragem para não pagar. Tenho visto estes parlapatões cuspirem nos carros. Acautelem-se, não ponham mão no meu carro. Trago aqui mesmo, amigo, uma alavanca para os pneus. Havia de pregar uma trancada na cabeça desse filho duma cadela!

Sobre a inclinação da Broadway pousava a pesada sombra do Verão. Secretárias e cadeiras giratórias em segunda mão, velhos armários verdes, estavam em exposição no passeio — de um verde-aquário, de um verde de endros de salmoira. E agora aproximava-se Nova Iorque financeira, grave e sem sol. Mesmo abaixo ficava a igreja da Trindade. Herzog recordava-se de que prometera mostrar a Marco o túmulo de Alexandre Hamilton. Descrevera-lhe o duelo com Burr, o corpo sangrento de Hamilton trazido numa manhã de Verão no fundo de um barco. Marco escutava, pálido e calmo, com o seu rosto sardento de Herzog, que pouco revelava. Marco não parecia admirar-se com a imensa e desconcertante colecção de factos na cabeça do pai. No aquário Herzog conhecia a classificação das escamas dos peixes — «a ctenóide, a placóide...». Sabia onde fora pescado o celacanto e conhecia a anatomia do estômago da lagosta. Oferecia tudo isso ao filho — temos de pôr cobro a isto, decidiu Herzog — , comportamento criminoso, de um pai demasiado emotivo, mau exemplo. Exijo de mais.

Valdepenas estava ainda a falar quando Moisés lhe pagou. Retorquia-lhe com boa disposição, mas mecanicamente. Deixara de ouvir. Libertinagem oratória, que divertia por um momento. — Não se meta com garotagem, doutor.

— Até à próxima, Valdepenas.

Voltou-se para o edifício vasto e cinzento do tribunal. O pó rodopiava na larga escadaria, a pedra estava gasta. Ao subir, Herzog encontrou um ramo de violetas, caído da mão de uma mulher. Talvez de uma noiva. Pouco perfume exalavam, mas fizeram-no recordar Massachusetts — Ludeyville. Por esta altura as peónias estavam abertas, os arbustos de siringa perfumados. Madalena pulverizava as retretes com desodorizante de lilás. Estas violetas cheiravam-lhe a lágrimas femininas. Sepultou-as numa lata para o lixo, esperando que não tivessem caído de uma mão desapontada. Passou pela porta giratória em cruzeta para o átrio, tacteando no bolso da camisa à procura da folhinha de

papel dobrada com o número do telefone de Wachsel. Era ainda demasiado cedo para telefonar. Simkin e o cliente não tinham tido tempo de chegar ao centro.

Com tempo de sobra, Herzog deambulou pelos enormes corredores escuros do andar de cima onde portas de mola amortecidas com pequenos postigos ovais davam para as salas do tribunal. Espreitou para uma destas; os grandes cadeirões de mogno pareciam descansar. Entrou, tirando respeitosamente o chapéu e baixando a cabeça ao magistrado, que não se apercebeu dele.

Largo e calvo, todo ele cara, de voz profunda, punho pousado sobre documentos — o Sr. Juiz. A sala, com tecto ornamentado, era imensa, as paredes castanho-amareladas mas sombrias. Quando um dos polícias abria a porta por trás do banco, viam-se as grades das celas da prisão. Herzog cruzou as pernas (com certo estilo: nunca perdia a elegância, nem mesmo quando se coçava), e, de olhos escuros, atento, voltava levemente o rosto ao preparar-se para ouvir, tendência herdada da mãe.

A princípio parecia que nada de especial se estava a passar. Um pequeno grupo de advogados e clientes falavam quase casualmente sobre um assunto, apresentavam pormenores. Erguendo a voz, o magistrado interrompeu.

— Espere um minuto. Está a dizer...?

— Ele diz...

— Deixe-me ouvir o próprio homem. Está a dizer...?

— Não, senhor, não.

O magistrado indagou: — Bem, que quer dizer, então? Senhor advogado,

que pode isto significar?

— A alegação do meu cliente continua a ser a mesma — não culpado.

— Eu não...

— Sinhor Juiz, ele fê-lo — interrompeu uma voz de negro, sem insistência.

— ...Arrastou este homem, embriagado, da Avenida de S. Nicolau, para uma cave em... — qual é a morada exacta? — Com intenção de roubar. — Era a voz baixa e autoritária do magistrado; notava-se-lhe um acentuado sotaque nova-iorquino.

De trás, Moisés era agora capaz de vislumbrar uma imagem completa do réu no seu banco. Era um negro de imundas calças castanhas. As pernas pareciam tremer-lhe de energia nervosa. Parecia pronto para uma corrida; baixava-se mesmo ligeiramente, dentro das suas calças enormes cor de cacau, como se se encontrasse na linha de arranque. Mas uns três metros à sua frente estavam as polidas grades da prisão. O queixoso tinha uma ligadura em torno da cabeça.

— Quanto dinheiro tinha na algibeira?

— Sessenta e oito cêntimos, Excelência — retorquiu o homem ligado.

— E ele obrigou-o a entrar na cave? O réu disse: — Não, senhor.

— Não lhe perguntei a si. Faça o favor de se calar. — O magistrado estava irritado.

O homem ferido voltou então a cabeça ligada. Herzog viu um rosto negro, seco, avelhentado, de olhos avermelhados. — Não, sinhor. Disse que daria a mim uma bebida.

— E você foi com este desconhecido para a adega em... morada? Beleguim, onde estão esses papéis? — Moisés ia tendo consciência de como o magistrado se entretinha a si e à indolente audiência com uma exibição de mau génio. Era assim, aliás, a monótona rotina. — Que sucedeu lá em baixo, na cave? — Estudou os impressos que o beleguim lhe trouxera.

— Agrediu-me.

— Sem avisar? Onde estava ele? Atrás de si?

— Não podia ver. O sangue começou a correr. Para os olhos. Não podia ver. Aquelas pernas tensas desejavam a liberdade. Estavam a postos para a luta.

— E levou-lhe os sessenta e oito cêntimos?

— Eu agarrei-me a ele e comecei a gritar. Então deu-me mais porrada. — Com que é que bateu neste homem?

— Excelência, o meu cliente nega ter-lhe batido — afirmou o advogado. — São conhecidos. Estavam a beber juntos.

O rosto negro, emoldurado em ligaduras, de lábios grossos, seco, olhos vermelhos, fitou o advogado. — Não o conheço.

— Qualquer dessas pancadas podia ter morto este indivíduo. — Assalto com intenção de roubar — ouviu Herzog. — Para começar, suponho que o queixoso se encontrava embriagado.

Ou seja — o sangue estava bastante diluído em uísque ao cair no pó de carvão. Um sangue de uísque tem de se derramar duma forma como esta. O criminoso começou a afastar-se, com a mesma tensão de lobo dentro das calças volumosas, ridículas. O chui, com almofadas de gordura policial nas faces, parecia quase amável ao conduzi-lo para as celas. Untuoso de rosto, escancarou a porta e encaminhou-o com uma pancadinha no ombro.

Um novo grupo se apresentara diante do magistrado, com um homem à paisana a atestar. — Às sete horas e trinta e oito da tarde, num urinol da casa de banho no piso inferior da Grande Estação Central... este homem (nome citado), que estava de pé na divisão adjacente, estendeu a mão, que pousou no meu órgão genital, dizendo ao mesmo tempo... — O detective, especialista de casas de banho de homens, pensou Herzog, passeando por ali, como isca. Pela velocidade e o à-vontade da declaração percebia-se que era uma rotina. — Portanto detive-o por violações... — Antes de o polícia à paisana ter terminado de enumerar as determinações, já o magistrado dizia: — Culpado... não culpado?

O réu era um estrangeiro alto e jovem; um alemão. Foi apresentado o passaporte. Usava um casaco de cabedal castanho com um cinto justo, e tinha a cabeça pequena coberta de caracóis; de tez ruiva. Averiguou-se ser um interno de um hospital de Brooklyn. Neste ponto, o magistrado surpreendeu Herzog, que o tomava pelo típico magistrado grosseiro, resmungão, ignorante e político, que gosta de impressionar o auditório preguiçoso (incluindo Herzog). Mas, com ambas as mãos puxando no pescoço as suas vestes negras, demonstrando por este gesto, pensava Herzog, que desejava que o advogado do acusado se detivesse, disse: — Fazia bem em avisar o seu cliente de que, se se reconhecer a sua culpabilidade, nunca exercerá medicina nos Estados Unidos. A massa de carne que se erguia da abertura do trajo negro do magistrado, quase sem olhos, ou com olhos de baleia, era, afinal, uma cabeça humana.

A voz cava, ignorante, uma voz humana. Não se destrói a carreira de um homem lá por que ele cedeu a um impulso naquela sombria caverna nojenta sob a Grande Estação Central, na cloaca da cidade, onde espírito algum pode estar seguro de uma estabilidade, onde polícias (talvez eles próprios dados a isso) tentam e preparam armadilhas às almas fracas. Valdepenas recordara-lhe que actualmente os detectives gostam de dar nas vistas para atrair burlões, ou conquistadores, e se podiam tornar invertidos em nome da lei, do que se haviam de lembrar! A mais profunda criatividade da imaginação policial... Ele opunha-se a este perverso desenvolvimento das técnicas da lei. Práticas sexuais, de qualquer espécie, desde que não perturbassem a paz, desde que não prejudicassem crianças menores, eram um assunto particular. Excepto com crianças. Nunca com crianças. Aí era preciso ser-se rigoroso.

Entretanto observava atentamente. O caso do interno prosseguia, e os elementos principais de uma tentativa de roubo apresentaram-se na barra. O prisioneiro era um rapaz; embora o seu rosto se apresentasse curiosamente enrugado, alguns dos seus traços eram femininos, outros razoavelmente masculinos. Trazia uma camisa verde manchada. O seu cabelo, pintado, era comprido, duro, sujo. Tinha olhos pálidos, redondos, e sorria com uma boa disposição oca — não, pior que oca. A sua voz, ao responder às perguntas era aguda, fria como gelo, do começo ao fim semeada de afectações.

— Nome.

— Que nome, Excelência?

— O seu nome próprio.

— O meu nome de rapaz ou de rapariga?

— Ah, estou a ver... — O magistrado, alertado por isto, varreu com um olhar a sala, envolvendo nele a audiência. Oiçam bem isto. Moisés inclinou-se para a frente. — Bem, o que é você, rapaz ou rapariga?

A voz fria retorquiu — Depende daquilo para que me querem. Uns querem um rapaz, outros desejam antes uma rapariga.

— Querem o quê?

— Querem um sexo, Excelência.

— Bem, qual é o seu nome de rapaz?

— Aleck, Excelência. Senão, sou Alice.

— Onde trabalha?

— Ao longo da 3.a Avenida, nos bares. limito-me a sentar-me lá.

— É assim que ganha a vida?

— Excelência, sou prostituta.

Espectadores, advogados, polícias, sorriam, e o próprio magistrado saboreava com gosto a cena; apenas uma mulher forte, de pé, com braços nus e pesados, não participava. — Não seria melhor para o seu negócio se se lavasse? — disse o magistrado. — Ah, estes actores — pensou Moisés. — Todos actores!

— A porcaria ajuda, juiz. — A gelada voz de soprano foi inesperadamente ríspida e pronta. O magistrado mostrou intensa satisfação. Juntou as mãos volumosas, perguntando — Bem, qual é a acusação?

— Tentativa de assalto com uma pistola de brincar na 14,a Rua, num estabelecimento de capelista e tecidos. Disse à caixa que lhe passasse para as mãos o dinheiro, e esta agrediu-o e desarmou-o.

— Um brinquedo! Onde está a caixa?

Era a mulher forte de braços roliços. A cabeça dela ostentava densos caracóis grisalhos. Os ombros gordos. A seriedade parecia alucinar-lhe o rosto com seu nariz de carlim.

— Sou eu, Excelência. Maria Poont.

— Maria? É uma mulher valente, Maria, e de decisões rápidas. Conte-nos como as coisas se passaram.

— Ele limitou-se a fingir que tinha uma pistola na algibeira, e passou-me um saco para eu encher com o dinheiro. — Um espírito firme e simples, notou Herzog; uma mesomorfa é a palavra própria; a alma imortal encerrada nesta cripta somática. — Sabia que era um truque.

-Que fez?

— Tenho um taco de basebol. A loja vende-os. Dei-lhe uma pancada no braço.

— Bem aplicada! Foi isto que sucedeu, Aleck?

— Sim, senhor — respondeu ele, na sua voz clara, sombria. Herzog tentou adivinhar o segredo desta alegria vigilante. Que perspectiva das coisas elaboraria este Aleck? Parecia querer dar ao mundo uma comédia em troco de uma comédia, um gracejo em troco de um gracejo. Com o seu cabelo pintado, como lã de carneiro maltratada pelo Inverno, os seus olhos redondos, ainda com vestígios de maquilhagem, as calças justas provocantes, e algo de carneiral também, mesmo nesta hilaridade vingativa, era um actor de sonhos. Com a sua fantasia maldosa desafiava uma maldosa realidade, afirmando sub-conscientemente ao magistrado: — A sua autoridade e a minha degeneração são uma e a mesma coisa. — Sim, deve ser assim, decidiu Herzog. Sandor Him-melstein declarava com raiva que toda a alma humana era uma prostituta. Decerto que o magistrado não estendera as pernas literalmente; mas devia ter feito tudo o necessário, dentro da estrutura do poder, para ser nomeado. No entanto, nada nele negava tais acusações. O seu rosto mostrava-se desiludido, sem necessidade de hipocrisia. Era Aleck quem reclamava uma sedução, mesmo um certo «crédito» espiritual. Alguém lhe devia ter dito que fellatio era o caminho para a verdade e para a honra. De forma que Aleck, magoado, pintado, tinha também uma ideia. Era mais puro, maior que um homem virtuoso, não mentia. Não era apenas Sandor que possuía tais ideias — ideias estranhas, mínimas de verdade, de honra. Realismo. Sordidez em posição transcendente.

Houve uma referência a narcóticos. Era de esperar. Precisava do dinheiro para os estupefacientes, não era?

— Era, sim, Excelência — confirmou Aleck. — Quase desisti devido ao ar de carniceira desta senhora. Calculei que podia resistir. Mas, de qualquer modo, tentei a minha sorte.

A não ser quando lhe dirigiam a palavra, Maria Poont nada dizia. A cabeça pendia-lhe para a frente.

O magistrado observou: — Aleck, se continua nisto vai parar ao cemitério... Dou-lhe quatro a cinco anos.

Na sepultura! De olhos realmente vazios, e com esta doçura tensa apodrecida nos lábios. Bem, Aleck, então? Vais pensar em ser uma pessoa séria? Mas como poderia Aleck ser sério? Que poderia esperar disso? Agora regressava à cela, e exclamava: — Adeus a todos. Adeus. — Açucarado e arrastado: — A-deeus. — Uma voz gélida. Empurraram-no para fora.

O magistrado abanou a cabeça. Estes homens efeminados, que chusma! Tirou um lenço da toga negra e enxugou o pescoço, erguendo o pescoço e expondo o rosto ao ouro de muitas luzes. Sorria. Maria Poont continuava à espera, e ele disse-lhe: — Obrigado, minha senhora. Pode sair.

Herzog descobriu que estivera sentado de pernas elegantemente cruzadas, a aba denteada do chapéu comprimida contra a coxa, o casaco as riscas ainda abotoado e retorcido pela posição de ardente interesse, que tinha estado a observar tudo o que se passara com o seu olhar de compostura inteligente, de encanto e simpatia — como a velha canção, pensou, a que diz: «Pousam moscas em mim, pousam moscas em ti, mas não pousam moscas em Jesus.» Um homem com um aspecto tão fino e humano devia estar fora da jurisdição da polícia, imune das formas mais baixas de sofrimento e castigo. Herzog apoiou o peso ao banco, forçando a mão a entrar na algibeira. Teria uma moeda para o telefone? Tinha de falar a Wachsel. Mas não conseguia chegar aos trocos (estaria a engordar?) e levantou-se. Mal se levantou, teve consciência de que algo de anormal se passava consigo. Sentia como se algo de terrível, inflamável, acre, tivesse sido vertido na sua circulação, algo que lhe agrilhoava e queimava as veias, o rosto, o coração. Sabia que estava a empalidecer, embora as pulsações lhe latejassem com força dentro da cabeça. Via que o magistrado o fitava, como se Herzog lhe devesse a delicadeza de uma inclinação de cabeça ao abandonar a sala do tribunal... Mas voltou-lhe as costas e dirigiu-se a passos rápidos para o corredor, empurrando para o lado os batentes das portas. Desapertou o colarinho, lutando com a casa inflexível da camisa nova. O suor marejava-lhe a testa. Começou a respirar mais normalmente diante da janela alta e larga. Tinha uma grade na base. Por ela passava uma corrente de ar mais fresco, e o pó circulava silenciosamente sob as tabuinhas dos estores da janela verde-negra.

Alguns dos melhores amigos de Herzog, para não falar do tio Ayre — o próprio pai, nem era bom pensar em tal — , tinham morrido por insuficiência cardíaca, e havia momentos em que Herzog pensava que bem podia ter igualmente um ataque. Mas não, era de facto muito forte e saudável, e não... Que dizia ele? Terminou a frase, no entanto: não teria essa sorte. Tinha de viver. Levar a cabo a sua missão, fosse ela qual fosse.

O ardor no peito diminuiu. Sentira como se tivesse engolido um gole de veneno. Mas agora avolumava-se-lhe a suspeita flutuante de que esse veneno vinha de dentro. Sabia que de facto assim era. O que o produzia? Deveria supor que algo outrora bom nele se estragara, se tornara mau? Ou seria originalmente mau? O seu próprio mal? Ver pessoas nas garras da lei agitava-o. A testa vermelha do estudante de Medicina, as pernas trementes do negro, achava-as horríveis. Mas desconfiava da sua própria reacção também. Havia pessoas, Simkin, por exemplo, ou Himmelstein, ou o Dr. Edvig, que julgavam que, de certo modo, Herzog era bastante simples, que os seus sentimentos humanos eram infantis. Que lhe tinha sido poupada a destruição de certos sentimentos, como a um ganso mascote é poupada a faca. Sim, um ganso mascote! Simkin parecia vê-lo como via aquela rapariga adoentada e inocente, a suposta prima epiléptica que Madalena maltratara. Jovens judeus, educados com princípios morais como as damas vitorianas o eram no piano forte e bordados, pensou Herzog, E eu vim aqui hoje para olhar para qualquer coisa diferente. É evidentemente essa a minha intenção.

De boa vontade interpretei mal o meu contrato. Nunca fui uma figura de chefe, mas apenas um empréstimo dado a mim próprio. Evidentemente continuo a crer em Deus. Embora jamais o admitindo. Mas que outro facto explica o meu comportamento e a minha vida? Assim posso bem reconhecer como são as coisas, quanto mais não seja porque de outra forma nem eu posso ser descrito. O meu comportamento implica a existência de uma barreira contra a qual tenho feito pressão, feito pressão durante toda a minha vida, com a convicção de que é necessário fazer pressão, e de que algo daí resultará. Talvez de que eu eventualmente possa passar para o outro lado.

Devo sempre ter tido tal ideia. Será fé? Ou será simplesmente infantilidade, esperando ser amado por fazer o meu dever? É, como se se procurasse a explicação psicológica, infantil e classicamente depressiva. Mas Herzog não acreditava que a explicação mais dura ou mais mesquinha, de acordo com a lei da economia do pensamento, fosse necessariamente a mais verdadeira. Impulsos indomáveis, amor, exuberância, loucura apaixonada, que tornam um homem doente. Durante quanto tempo poderei eu suportar tais palpitações? A parede da fachada deste corpo abater-se-á. Toda a minha vida palpitando contra as suas fronteiras e a força dos desejos frustrados voltando como um aguilhão de veneno. Mal, mal, mal...! O amor excitado, característico, extático, transformando-se em mal.

Sentia-se magoado. Tinha razão para isso. Sim. Quanto mais não fosse porque exigira que tantas pessoas lhe mentissem, muitas, muitas, começando, naturalmente, pela mãe. As mães mentem aos filhos por necessidade. Mas talvez a sua mãe tivesse sido igualmente impressionada pela densa melancolia, a sua própria melancolia, surpreendida em Moisés. O ar de família, os olhos, aquele brilho dos olhos. E, embora recordasse com amor o rosto triste da mãe, não podia afirmar, sinceramente, que desejasse ver aquela tristeza perpetuada. Sim, reflectia a profunda experiência de uma raça, a sua atitude perante a felicidade e perante a mortalidade. Esta sombria conjuntura humana, esta pele escura, estes endurecidos traços de submissão ao destino do ser humano, este rosto esplêndido apresentava as respostas dos finíssimos nervos da mãe à grandeza da vida, rica na dor, na morte. Sim, era bela. Mas ele esperava que as coisas mudassem. Quando tivermos conseguido melhores relações com a morte, apresentaremos uma expressão diferente, nós, seres humanos. O nosso aspecto modificar-se-á. Quando chegarmos a um acordo!

Nem sempre ela lhe mentira para lhe poupar a sensibilidade. Recordava-se que, num fim de tarde, o conduzira até à janela do quarto da frente porque lhe fizera uma pergunta a propósito da Bíblia: como fora Adão criado com o pó do chão? Teria eu seis ou sete anos. E ia provar-mo.

O seu vestido era castanho e cinzento, cor de tordo. O cabelo era farto e negro, já com fios cinzentos entremeados. Tinha algo para me mostrar à janela. A luz irradiava da neve da rua, de resto o dia era escuro. Todas as janelas tinham remates coloridos — amarelos, cor de âmbar, vermelhos — e falhas e estrias nas vidraças gélidas. Nas curvas havia os grossos postes castanhos desse tempo com muitas barras no topo, com isoladores de vidro verde, e grupos de pardais castanhos empoleirados nas traves mestras que sustinham os fios cobertos de gelo e inclinados. Sara Herzog abriu a mão e disse: — Olha bem, agora, e verás do que Adão foi feito. — Esfregou a palma da mão com um dedo, esfregou até que algo escuro surgiu na pele muito riscada, uma partícula do que sem dúvida lhe parecia francamente terra. — Estás a ver? É verdade. — Homem feito, actualmente, junto à grande janela sem cor, como uma vela estática em frente do Tribunal dos Magistrados, Herzog fez o que ela fizera. Esfregou, sorrindo. E a operação surtiu resultado; um pouco da mesma negrura começou a formar-se na palma da sua mão. Olhava agora para a negra tessitura da grade de latão. Talvez ela me oferecesse essa prova em parte por brincadeira. A finura de espírito que se pode ter apenas quando se considera a morte muito simplesmente, quando se considera o que é realmente um ser humano.

A semana da morte dela, também no Inverno. Foi em Chicago, e Herzog tinha então dezasseis anos, era quase um homem. Viviam na zona oriental da cidade. Estava a morrer. Evidentemente Moisés já não aceitava aquelas explicações. Era um livre-pensador. Darwin, Haeckel e Spencer eram para si coisas ultrapassadas. Ele e Zelig Koninski (que teria sucedido a essa juventude dourada?) desprezavam a biblioteca do bairro. Compravam toda a espécie de livros volumosos que havia no caixote dos trinta e nove cêntimos no Walgreen — O Mundo como Vontade e Representação e A Decadência do Ocidente. E o que então se passava! Herzog franzia as sobrancelhas para forçar a memória a trabalhar. O pai trabalhava à noite, e dormia de dia. Tinha-se de andar em bicos de pés pela casa. Se o acordavam, ficava furioso. Os seus aventais, que fediam a óleo de linhaça, eram pendurados atrás da porta da casa de banho. Às três da

tarde, semi-vestido, saía para tomar chá, silencioso, com o rosto transbordando uma raiva implacável. Gradualmente, foi voltando a ser empresário, trabalhando por conta própria na Rua Cherry, em frente do prostíbulo das negras, entre os comboios de mercadorias. Tinha uma secretária à americana. Rapou o bigode. E então a mãe começou a morrer. E eu ficava instalado na cozinha durante as noites ásperas de invernia, estudando A Decadência do Ocidente. A mesa redonda estava coberta por um oleado.

Era um Janeiro terrível, com as ruas cobertas por um gelo de aço. A lua poisava na neve polida dos pátios das traseiras, onde toscos alpendres velhos projectavam as suas sombras. Debaixo da cozinha ficava a casa da fornalha. O porteiro ateava o lume, tendo por avental um saco de serapilheira, com o seu rosto de negro empoado de carvão. A pá raspava no cimento e tilintava depois na boca da fornalha. Empurrava sempre a porta de metal com a pá. E finalmente arrastava para fora montões de cinza — velhos cestos de pêssegos. Sempre que podia, eu abraçava as raparigas da lavandaria, lá em baixo, no quarto das lavagens. Mas nessa altura debruçava-me sobre Spengler, debatendo-me e afogando-me nas visões oceânicas daquela sinistra barafunda. Primeiro havia a Antiguidade, pela qual todos os homens suspiram — a bela Grécia! Depois a era dos Magos e a Fáustica. Aprendi que eu, um judeu, era por nascimento um mago, e que os magos já tinham tido a sua grande época, morta para sempre. Por mais que me esforçasse não alcançaria jamais a visão do mundo cristã e fáustica, que se manteria para mim eternamente estrangeira. Disraeli julgava que conseguia compreender e guiar os Ingleses, mas enganou-se redondamente. Eu faria melhor em me resignar com o Destino. Judeu, relíquia, como os lagartos são relíquias da grande idade dos répteis, eu poderia prosperar enganando ogqy, o gado laborante de uma civilização degenerada e perdida. De qualquer forma, numa época de exaustão espiritual — todos os velhos sonhos estavam gastos de serem sonhados. Eu ficava irritado; ardia como a fornalha; lendo mais, doente de raiva.

Quando tirei os olhos da letra miúda e da sua pedantice insidiosa, de coração contaminado pela ambição, e pela bactéria da vingança, a mãe entrou na cozinha. Vendo luz por baixo da porta, atravessou toda a casa, desde o seu quarto de doente. Tivera de cortar o cabelo durante a doença, e isso tornava-lhe os olhos difíceis de reconhecer. Ou não, os cabelos curtos limitavam-se a tornar mais simples a sua mensagem: Meu filho, é isto a morte.

Preferi não ler este texto.

— Vi a luz — murmurou ela. — Que fazes a pé até tão tarde? — Mas os moribundos, para si, desistiram das horas. Limitava-se a lamentar-me, a mim, órfão dela, compreendia que eu era um homem teatral, ambicioso, um louco; pensava que eu poderia necessitar da minha vista e da minha força no dia do Juízo Final.

Alguns dias mais tarde, depois de ter já perdido a energia para falar, procurava ainda animar Moisés. Tal como quando ele sabia que estava sem fôlego por lhe arrastar o trenó em Montreal, mas não se apeava. Entrou no quarto dela quando estava a morrer, segurando os livros de estudo, e começou a dizer-lhe qualquer coisa. Mas ela ergueu as mãos e mostrou-lhe as unhas. Estavam azuis. Enquanto ele olhava, ela começou a acenar para cima e para baixo lentamente com a cabeça como que para dizer: — É verdade, Moisés, estou a morrer agora. — Sentou-se ao lado da cama. Ela começou a afagar-lhe a mão. Fazia-o o melhor que podia; os dedos tinham perdido a flexibilidade. Por baixo das unhas parecia-lhe que estavam já a transformar-se na greda azulada das sepulturas. Começara a transformar-se em terra. Não ousava fitá-los e escutava as correrias dos trenós das crianças na rua, o raspar das rodas dos bufarinheiros no gelo encrespado, o pregão rouco do vendedor de maçãs e o tilintar da sua balança de ferro. O vapor sussurrava no cano da chaminé. A cortina erguia-se.

No corredor, frente à sala de audiências, enfiou ambas as mãos nas algibeiras das calças e endireitou os ombros. Os dentes batiam-lhe. Era um rapaz livresco, inexperiente. E depois, recordou-se, foi o funeral. Como Willie chorava na capela! Era o irmão Willie, afinal, quem tinha um coração sensível. Mas... Moisés abanou a cabeça para afastar tais pensamentos. Quanto mais pensava, pior era a sua visão do passado.

Esperou pela sua vez junto à cabina do telefone. O instrumento, quando lhe pegou, estava húmido de tantas bocas e orelhas que o tinham usado. Herzog marcou o número que Simkin lhe dera. Wachsel disse que não, que não recebera qualquer recado de Simkin, mas que tinha muito prazer em que o Sr. Herzog subisse e esperasse. — Não, obrigado, volto a telefonar — respondeu Herzog. Não tinha feitio absolutamente nenhum para esperar em escritórios. Nunca tinha sido capaz de esperar fosse pelo que fosse. — Por acaso não sabe se ele se encontra algures, no edifício?

— Sim, sei que ele está aqui — retorquiu Wachsel — Bem, tenho ideia de que se trata de um caso criminal. E nesse caso deve ser... — Despejou uma lista de números de salas.

Herzog fixou alguns destes. Disse: — Vou dar uma vista de olhos e torno a falar-lhe dentro de meia hora, se não se importa.

— Não, não me importo. Estamos abertos todo o dia, em serviço! Porque não tenta o oitavo andar? É um Napoleãozinho... com aquela voz ouve-o facilmente através das paredes.

Na primeira sala em que Herzog entrou depois de ouvir esta sugestão decorria um julgamento com jurados. Era uma das poucas pessoas sentadas nas filas de madeira polida. Dentro de poucos minutos esquecera por completo Simkin.

Um jovem casal, uma mulher e o homem com quem esta vivia num hotel miserável, na parte alta da cidade, estavam a ser julgados pelo assassinato do filho dela, uma criança de três anos. Tivera o filho de outro homem, que a abandonara, afirmou o advogado ao apresentá-la. Herzog observou como todos aqueles advogados eram tão grisalhos e avelhentados, gente de outra geração e de um círculo diferente da vida — gente tolerante, bem instalada. Os arguidos podiam ser identificados pelo aspecto e vestuário. O homem usava um blusão de fecho de correr, manchado e puído, e ela, uma mulher ruiva, com um rosto largo e avermelhado, trazia um vestido caseiro estampado de tons castanhos. Estavam ambos sentados, impassíveis, indiferentes às declarações, ele com as suas suíças compridas e bigode louro, ela com as maçãs do rosto muito sardentas e olhos esguios, semicerrados.

Ela vinha de Trenton, nascera coxa. O pai era mecânico numa garagem. Tinha a quarta classe, quociente de inteligência 94. Um irmão mais velho era o preferido; ela a desprezada. Desinteressante, insociável, grosseira, usando uma bota ortopédica, tornou-se delinquente muito cedo. O cadastro fora apresentado ao tribunal, continuou o advogado, calmo, conciliador e simpático. Rapariga irritável, incontrolável desde a primeira classe. Havia affidavits de professores. Havia também atestados médicos e psiquiátricos e um relatório neurológico para o qual o advogado gostaria especialmente de chamar a atenção do tribunal. Este mostrava que havia sido feito um diagnóstico por encefalograma à sua constituinte que revelava uma lesão cerebral capaz de lhe alterar radicalmente o comportamento. Sabia-se que tivera violentos acessos de raiva epileptóides; a sua tolerância a emoções que afectassem o lobo direito era muito reduzida. Como era uma pobre criatura aleijada, fora frequentemente importunada, mais tarde alvo de abusos sexuais da parte de rapazes adolescentes. De facto, o ficheiro referente a ela nos tribunais de menores era muito volumoso. A mãe odiava-a, recusara-se a assistir ao julgamento e teria afirmado:

— Não é minha filha. Lavamos daí as nossas mãos. — A ré ficara grávida aos dezanove anos de um homem casado que viveu com ela vários meses, e depois voltou para a mulher e família. Recusou-se a que lhe adoptassem a criança, viveu algum tempo com ela em Trenton, mudou-se em seguida para Flushing, onde cozinhava e tratava de casa de uma família. Num dos seus fins-de-semana encontrou o outro réu, na altura empregado como porteiro num restaurante na Avenida Colombo, e decidiu viver com ele no Hotel Montcalme na 103.a Rua — Herzog passara muitas vezes pelo local. Da rua, podia-se-lhe adivinhar a miséria; o terrível fedor evolava-se pelas janelas abertas — roupas da cama, desperdícios, desinfectante, veneno para as baratas. Tinha a boca seca, ali sentado para a frente, tenso, a escutar.

O delegado de saúde tinha-se apresentado. Vira a criança morta? Sim. Tinha alguma declaração a fazer? Tinha. Referiu-se à data e circunstâncias do exame.

Homem vigoroso, calvo, solene, de lábios carnudos e circunspectos, segurava as notas com ambas as mãos como um cantor — era a testemunha experiente, profissional. A criança, afirmou, era de constituição normal, mas parecia ter sofrido de má nutrição. Apresentava alguns sinais de raquitismo, os dentes estavam já bastante cariados, mas isto era por vezes sintoma de que a mãe tivera uma toxemia durante a gravidez. Havia marcas inabituais visíveis no corpo da criança? Sim, ao que parecia o rapazinho tinha sido sovado. Uma vez, ou repetidamente? Na sua opinião, sovado repetidamente. O couro cabeludo estava rasgado. Havia equimoses muito consideráveis nas costas e nas pernas. As canelas estavam descoradas. Onde eram as equimoses mais intensas? No ventre e especialmente na região genital, onde parecia que tinham batido na criança com algo capaz de perfurar a pele, possivelmente com uma fivela metálica ou com um salto de sapato de senhora. — Que lesões internas observou? — prosseguiu o promotor de justiça. Havia duas costelas partidas, sendo uma delas uma fractura antiga. A mais recente lesionara o pulmão. O fígado do rapaz fora dilacerado. A hemorragia causada por este facto podia ter sido a causa imediata da morte. Havia também uma lesão cerebral. — Em sua opinião, portanto, a criança teve uma morte violenta? — É essa a minha opinião. A lesão do fígado

teria sido suficiente.

Tudo isto parecia a Moisés suscitar muito pouca emoção. Todos — os advogados, os jurados, a mãe, o insensível amigo desta, o juiz — se comportavam com muita calma, com extraordinário domínio e moderação de palavras. Uma tal calma — inversamente proporcional ao assassínio?, pensava ele. Juiz, jurados, advogados e réus, todos pareciam francamente isentos de emoção. E ele próprio? Estava sentado com o seu novo casaco de madrasto e segurava o rijo chapéu de palhinha. Agarrava-o com força e sentia-se angustiado. A orla dentada do chapéu imprimia-lhe marcas nos dedos.

Uma testemunha prestou juramento, um homem de aspecto sólido, com os seus trinta e cinco anos, de elegante fato de Verão azul-acinzentado, com o corte da Avenida Madison. Tinha um rosto redondo, cheio, bochechudo, mas com a cabeça pequena das orelhas para cima e achatada mais ainda pelo seu corte de cabelo de carniceiro. Os seus gestos eram afinados, ao puxar as pernas das calças quando se sentou, ao endireitar os punhos da camisa, inclinando-se para a frente para responder às perguntas com uma correcção comedida, séria, masculina. Tinha olhos escuros. Podiam-se-lhe vislumbrar rugas no couro cabeludo quando franzia a testa, pesando as respostas. Identificou-se como caixeiro viajante com um negócio de estufas, redes e vidros duplos para janelas. Herzog sabia ao que se referia — aqueles caixilhos de alumínio com três calhas. Lera os anúncios. A testemunha vivia em Flushing. Conhecia a ré? Mandaram-na levantar-se, e fê-lo, figura baixa e manca, de cabelo ruivo frisado, olhos em amêndoa encovados, pele sardenta, lábios grossos e pardos. Sim, conhecia-a, vivera na casa dele havia oito meses, não propriamente empregada dele, não, era uma prima afastada da sua mulher e dera-lhe um quarto — construíra um pequeno apartamento no sótão; sala de banho própria, ar condicionado. Pediam-lhe em troca que desse uma ajuda na lida da casa, naturalmente, mas também saía e deixava por vezes o miúdo durante vários dias. Sabia que ela maltratava a criança? A criança nunca estava limpa. Nunca se tinha vontade de lhe pegar ao colo. Tinha uma ferida aberta e a mulher dele pôs-lhe por fim uma pomada, visto que a mãe não o fazia. A criança era calma, nada exigente, afeiçoada à mãe, um miudinho assustado e tinha mau cheiro. A testemunha não podia descrever mais atitudes da mãe? Bem, uma vez, na estrada, quando iam de automóvel visitar a avó e pararam em Howard Johnson's. Todos mandaram vir qualquer coisa. Ela encomendou um prego e quando este chegou começou a comê-lo e nada deu à criança. Então ele próprio (indignado) deu ao miúdo um pouco da sua carne e do seu molho.

Não consigo compreender!, pensou Herzog, quando este bom homem, com as maxilas movendo-se silenciosamente, deixou a barra das testemunhas. Não consigo... mas é esta a dificuldade das pessoas que gastam a vida em estudos humanos e portanto pensam que, uma vez que a crueldade foi descrita em livros, terminou. Claro que ele bem sabia — compreendia que os seres humanos não haviam de viver de forma a serem compreendidos pelos Herzogs. Porque haviam de o fazer?

Mas não teve tempo para pensar nisso. A testemunha seguinte acabara já de jurar, um empregado do Montcalme; um solteirão, com os seus cinquenta anos; lábios pendentes, grandes rugas, feições estragadas, cabelo que parecia pintado, voz cava e melancólica, dando um ritmo descendente a todas as frases. As frases desciam, desciam, de tom até que as últimas palavras se perdiam num sussurrar de sílabas. Antigo alcoólico, considerou Herzog, avaliando pelo aspecto da pele, e havia também um amaneiramento homossexual na sua maneira de falar. Disse que não tinha nunca deixado de vigiar este «casal desgraçado». Tinham alugado um quarto com serventias. A mulher recebia dinheiro da Assistência. O homem não tinha ocupação. De vez em quando aparecia a polícia a perguntar por ele. E o miúdo, podia contar alguma coisa a respeito dele? O principal era a criança chorar muito. Os inquilinos queixavam-se, e, quando investigou, descobriu que a criança era fechada num cubículo. Por disciplina, foi o que lhe disse a ré. Mas para o fim, o rapaz chorava menos. No dia da sua morte, no entanto, houve muito barulho. Sentiu algo cair, e gritos no terceiro andar. Tanto a mãe como o rapaz berravam. Estava alguém a mexer no elevador, de forma que correu escada acima. Bateu à porta, mas ela gritava demasiado alto para poder ouvir. De modo que abriu e entrou. Deveria contar ao tribunal o que viu? Viu a mulher com a criança nos braços. Pensou que estivesse a abraçá-la, mas, para sua estupefacção ela arremessou-o com ambos os braços. Foi lançado violentamente contra a parede. Era isto que provocava o barulho que ouvira em baixo. Estava mais alguém presente? Sim, o outro réu estava deitado na cama, a fumar. E a criança gritava? Não, nessa altura jazia silenciosa no chão. O empregado falou então? Disse que ficara aterrorizado com o aspecto da mulher, com o seu rosto tumefacto. Punha-se vermelha, escarlate, e gritava a plenos pulmões, e batia o pé, o de salto ortopédico, notara ele, e tivera medo que ela lhe vazasse os olhos com as unhas. Foi então chamar a polícia. Passado pouco tempo o homem desceu. Explicou que o filho dela era uma criança difícil. Não conseguia ensiná-lo a ir à casa de banho. Enfurecia-se com a maneira como ele se sujava. E aquele choro toda a noite! Estavam assim a falar quando chegou o carro da polícia. E encontraram a criança morta? Sim, estava morta quando chegaram.

— Interrogatório? — propôs o juiz. O advogado de defesa aquiesceu com um movimento de longos dedos brancos, e o juiz disse: — Pode fazer o favor de descer. Basta.

Quando a testemunha se ergueu, Herzog ergueu-se também. Tinha de sair, de ir andando. De novo duvidou se não iria sucumbir ao mal-estar. Ou seria o terror pela sorte da criança que dele se apoderara? De qualquer forma, sentia-se sufocado, como se as válvulas do coração não fechassem e o sangue lhe voltasse para os pulmões. Caminhou pesada e rapidamente. Ao virar-se na coxia, viu apenas a cabeça esguia e grisalha do juiz, cujos lábios se moviam silenciosamente enquanto lia um dos seus documentos.

Ao alcançar o corredor, disse para consigo próprio — Meu Deus! — e, ao tentar falar, descobriu um fluido acre na boca que teve de engolir. Depois, ao transpor a porta, tropeçou numa mulher com uma bengala. De sobrancelhas negras, cabelos muito negros apesar da sua meia idade, apontou para baixo com a bengala, em vez de falar. Viu que usava um gesso com salto de metal no pé e que as unhas estavam pintadas. Então, engolindo o sabor detestável, murmurou: — Perdão. — Tinha uma dor de cabeça doentia, repulsiva, penetrante e desagradável. Sentia como se se tivesse aproximado demasiado de uma fogueira e queimado os pulmões. Ela não pronunciava palavra, mas não parecia disposta a deixá-lo continuar o seu caminho. Os olhos, proeminentes, severos, mantinham-no especado, identificando-o perfeita, completa, profundamente, como um tonto. De novo — silenciosamente — Seu tonto! De casaco às riscas vermelhas, chapéu debaixo do braço, cabelo revolto, olhos inchados, esperava que ela se afastasse. Quando finalmente ela avançou, descendo, com a bengala, o gesso, o salto metálico, o corredor manchado, ele concentrou-se. Com todas as suas forças — de espírito e coração — tentou obter qualquer coisa para a criança assassinada. Mas o quê? Como? Insistiu comovidamente, mas «todas as suas forças» nada conseguiam para o rapazinho enterrado. Herzog não experimentava mais que os seus sentimentos humanos, nos quais não encontrava utilidade. De que servia sentir desejos de chorar? Ou de rezar? Juntou as mãos. E que sentiu? Sentiu-se a si próprio — as suas próprias mãos trementes e olhos que ardiam. E o que havia na América moderna, pós... pós-cristã a que se pudesse rezar? Justiça — justiça e piedade? E rezar pelo desaparecimento dos aspectos monstruosos da vida, do pesadelo que ela é? Abriu a boca para aliviar a pressão que sentia. Sentia-se oprimido, oprimido, oprimido.

A criança gritava, agarrava-se, mas com ambos os braços a rapariga atirava-a contra a parede. Nas pernas tinha pêlos ruivos. E o amante também, com a sua queixada longa, suíças de criminoso, observando da cama. Deitando-se para copular. E levantando-se para matar. Uns matam, e depois choram. Outros, nem isso.

Nova Iorque já o não podia prender. Tinha de ir a Chicago ver a filha, acarear Madalena e Gersbach. Não chegara a esta decisão; ela surgira simplesmente. Foi para casa e trocou a roupa nova com que se tinha andado a distrair por um velho fato de linho azul com riscas brancas. Felizmente, não tinha desfeito a mala no regresso de Vineyard. Deu uma rápida vista de olhos pela bagagem e deixou o apartamento. Tipicamente, tencionava agir sem saber muito bem o que fazer, reconhecendo mesmo que não conseguia dominar os seus impulsos. Esperava que no avião, na atmosfera mais clara, compreendesse por que voava.

O super-jacto levava-o para Chicago em noventa minutos, pela rota do ocidente, acompanhando a rotação do planeta e concedendo-lhe um alongamento da tarde e da claridade. Por baixo, as nuvens brancas formavam rolos de espuma. E o Sol como um pequeno ponto que nos inoculou contra todo o espaço desintegrador. Olhou para o vazio azul e para o brilho cortante dos motores sobre as asas. Quando o avião passava por poços de ar, prendia o lábio entre os dentes. Não que temesse voar, mas lembrou-se de que, se o aparelho se despedaçasse ou simplesmente explodisse (como acontecera sobre Mary-land recentemente, onde se viram figuras humanas projectarem-se e tombarem como ervilhas da vagem), Gersbach tornar-se-ia tutor de June. A não ser que Simkin rasgasse o testamento. Caro Simkin, bravo Simkin, rasgue esse testamento. Haveria também duas apólices de seguro, uma delas paga pelo pai Herzog para o filho Moshe. Mas como essa criança, o pequeno Herzog, se transformou — enrugado, perplexo, angustiado. Estou a dizer a mim próprio a verdade. Chamo o céu para testemunha. A hospedeira ofereceu-lhe uma bebida, que recusou com um aceno da cabeça. Sentia-se incapaz de olhar para o rosto bonito, saudável da rapariga.

Enquanto o avião aterrava, Herzog atrasou o relógio. Com passos rápidos passou a porta 38, enveredando pelo longo corredor até ao escritório de aluguer de automóveis. Para se identificar possuía um cartão do American Express, a carta de condução de Massachusetts, as credenciais universitárias. Ele próprio teria desconfiado de moradas tão díspares para já não falar do fato de linho manchado, amarrotado, usado pelo portador, Moisés Elkanah Herzog; mas a empregada que o atendeu, uma mulherzinha de falas doces, peito abundante, cabelos encaracolados e nariz carnudo (mesmo na sua actual situação Herzog se enterneceu a ponto de sorrir levemente), limitou-se a perguntar se desejava um carro descapotável ou fechado. Escolheu um fechado, azul-cerceta e partiu, procurando descobrir o seu caminho sob o brilho esverdeado dos candeeiros e da luz poeirenta do sol, por entre sinais não familiares. Seguiu pela ondulante folha de trevo que conduzia à auto-estrada e juntou-se ao tráfego veloz — nesta zona, 100 km à hora. Não conhecia estas partes novas de Chicago. Tosco, sujo, terno Chicago, acotovelando-se no velho fundo de lago; este oeste alaranjado, sombrio, e a rouquidão de fábricas e comboios, salpicando de gases e fuligem o Verão recém-nascido. O tráfego da cidade era compacto, não no sentido de Herzog, que se mantinha na faixa direita, procurando nomes de ruas familiares. Depois da Rua Howard chegou à cidade propriamente dita, onde já sabia o caminho a seguir. Deixando a auto-estrada em Montrose, voltou para oriente e dirigiu-se para a casa do falecido pai, um pequeno edifício de dois andares, um dos de uma fileira construída segundo um único projecto — o telhado pontiagudo, o encaixe da escada de cimento do lado direito, as floreiras a toda a largura das janelas da sala da frente, o relvado que consistia num montículo de relva farta entre o passeio e a parede; ao longo da curva, olmos e aquelas míseras florestas de algodoeiros de tronco escurecido, empoeirado, enrugado com folhas que se tornavam muito duras a meio do Verão. Havia também certas flores, típicas de Chicago, simplórias e cerosas como pontas de lápis de desenho, vermelhas e carmesins, que pertenciam àquela classe de objectos naturais com a aparência de falsos. Estas pobres plantas comoviam Herzog por serem tão sem graça, tão córneas. Recordava-se da devoção do pai ao jardim, quando o velho Herzog se tornou proprietário no fim da vida — como regava à tardinha as plantas com a mangueira e como parecia encantado, de lábios calmamente satisfeitos e aspirando, com seu nariz rectilíneo, pleno de satisfação, o aroma do solo. À direita e à esquerda, quando Herzog saiu do carro alugado, os torniquetes de rega rodavam e dançavam, aspergindo em torno gotas brilhantes, espalhando véus iridescentes. E fora nesta casa que o pai Herzog morrera uns anos atrás, numa noite de Verão, sentando-se repentinamente na cama, dizendo «Ich shtarb!» E depois morreu, e aquele seu sangue tão cheio de vida transformou-se em terra, até às partes mais recônditas do seu corpo. E depois o corpo, também — Santo Deus! — se desfaz; e desprende-se dos ossos, e mesmo os ossos finalmente se corroem e pulverizam naquela acanhada morada última. E assim humanizado, este planeta na sua galáxia de estrelas e mundos vai do vazio para o vazio, infinitesimal, doloroso, devido ao seu significado desconexo. Desconexo? Herzog, com um encolher de ombros bem seu e bem judaico, murmurou, «Nu, maile...» Seja o que tiver de ser.

De qualquer forma, aqui estava a velha casa do pai, onde vivia a viúva, a muito antiga madrasta de Herzog, completamente isolada neste pequeno museu dos Herzogs. A vivenda pertencia à família. Ninguém a queria agora. Shura era multimilionário, e mostrava-o bem. Willie prosperara no negócio de construção civil do pai — possuía uma armada daqueles camiões com enormes corpos cilíndricos que misturam cimento no caminho para o local de trabalho onde este é canalizado, aspirado por bombas (Moisés não sabia exactamente), para os arranha-céus em construção. Helena, se o marido dela não se podia incluir na classe de Willie, pelo menos vivia bem. Já só raramente falava em dinheiro. E ele próprio? Tinha uns seiscentos dólares no banco. No entanto, para o que pretendia possuía o necessário. Não vivia na pobreza; o desemprego, os casebres, os pervertidos, ladrões, vítimas dos tribunais, o horror do Hotel Montecalme e dos seus quartos alugados, cheirando a decadência e ao sangue de percevejos mortos — isso não lhe dizia respeito. Podia ainda tomar o super-jacto para Chicago quando lhe apetecesse, podia alugar um Falcon azul-cerceta, conduzi-lo até à velha casa. Assim tomava consciência, com notável clareza, da sua posição na escala das prerrogativas — da prosperidade, da insolência, da falta de verdade, se quiserem. E não apenas da sua posição, mas de que quando os amantes discutiam tinham um Lincoln Continental onde fechar uma criança chorosa.

De rosto pálido, boca num esgar, subiu as escadas na sombra do crepúsculo próximo e premiu o botão. Tinha a meio um crescente de lua que se iluminava de noite. A campainha retinia lá dentro, naqueles tubos cromados por cima da porta, com um som metálico de xilofone, que tocava «Merriby We Roll Mong» completo, exceptuando as duas últimas notas. Teve de esperar muito. A velhota, Taube, fora sempre lenta, mesmo aos cinquenta anos, meticulosa, decidida, absolutamente diferente dos destros Herzogs — todos eles tinham herdado a prontidão absurda e a elegância do pai, algo da segurança daquela marcha de homem sozinho com que o velho Herzog desfilara pelo mundo. Moisés gostava bastante de Taube, observou para si próprio; talvez ter tido outros sentimentos para com ela tivesse sido demasiado chocante. O olhar pouco firme dos olhos dela, redondos e proeminentes, era possivelmente devido à sua resolução de ser lenta, a um programa de vida de adiamento e êstase. Arrastadamente realizava qualquer objectivo que se tivesse proposto. Comia, ou bebericava lentamente. Não trazia a chávena até aos lábios, mas movia os lábios em direcção a ela. E falava muito lentamente, para fazer realçar a sua sensatez. Cozinhava com dedos que não seguravam as coisas com firmeza mas era uma excelente cozinheira. Ganhava às cartas, hesitante, mas ganhava. Perguntava duas ou três vezes a mesma coisa, e repetia a resposta para si mesma. Com a mesma lentidão entrançava o cabelo, lavava os dentes proeminentes, ou cortava em pedacinhos figos, tâmaras e folhas de sene, boas para uma digestão. O lábio tornou-se-lhe pendente com a idade e o pescoço perdeu gradualmente a flexibilidade junto aos ombros, de forma que tinha de inclinar um pouco a cabeça para a frente. Oh, era agora muito velha, com os seus oitenta anos e estava longe de estar bem. Sofria de artrite; um olho tinha uma catarata. Mas, ao invés de Polina, possuía um espírito lúcido. Sem dúvida os problemas com o pai Herzog, mais tempestuoso, impulsivo e recalcitrante à medida que os anos avançavam, fortaleceram-lhe o cérebro.

A moradia era escura, e qualquer outra pessoa que não Moisés, ter-se-ia ido embora, julgando que ninguém estaria em casa. Ele, no entanto, esperou, sabendo que ela acabaria por abrir. Na juventude, vira-a demorar cinco minutos a abrir uma garrafa de água gasosa — uma hora para espalhar a farinha amassada sobre a mesa quando fazia massas. O seu strudel parecia um trabalho de ourives, enfeitado com jóias de frutas de conserva vermelhas e verdes. Finalmente, ouviu-a junto à porta. Correntes de cadeias de latão surgiram na estreita abertura. Viu os olhos escuros da velha Taube, mais sombrios agora, e mais saídos. A porta de vidro de Inverno continuava a separá-la de Moisés. Sabia que estaria igualmente fechada à chave. Os velhotes tinham sido cautelosos e desconfiados em relação à sua casa. Além disso, Moisés sabia que havia uma luz por trás de si; poderia não ser reconhecido. E não era o mesmo Moisés, de qualquer modo. Mas, embora o estudasse como a um desconhecido ela já o identificara. O intelecto não era lento, por mais que o resto fosse.

— Quem é?

— Sou o Moisés...

— Não o conheço. Estou sozinha. Moisés?

— Tia Taube... Moisés Herzog. Moshe. — Ah...Moshe.

Dedos lentos e perros soltaram a corrente. A porta foi fechada para não forçar os elos, e depois aberta e — Santo Deus! — com que rosto deparou, tão marcado pela dor e pela idade, com sulcos que lhe desciam até à boca! Quando entrou ela ergueu as mãos débeis para o abraçar — Moshe... Vem, que acendo uma luz. Fecha a porta, Moshe.

Ele descobriu o interruptor e acendeu uma lâmpada muito fraca do vestíbulo de entrada. Espalhava uma cor rosada; o vidro antiquado do candeeiro recordou-lhe o ner tamid, a luz de vigília da sinagoga. Fechou a porta em frente da fragrância orvalhada dos relvados, ao entrar. A casa estava fechada, com um cheiro levemente ácido a verniz de móveis. O brilho de que bem se recordava persistia no vestíbulo envolto em meia luz — papeleiras e mesas, com tampos embutidos, o sofá de brocado com a sua capa de plástico brilhante, a carpete oriental, os cortinados perfeitos e rígidos nas janelas e, lateralmente, rígidos estores. Uma luz apagou-se atrás de si. Descobriu no móvel do gira-discos uma fotografia sorridente de Marco quando miudinho, de joelhos à mostra, sentado num banco, rosto fresco e cabelo encantador, escuro, penteado para a frente. E, a seguir, ele próprio numa fotografia tirada ao licenciar-se, elegante mas um pouco sisudo. O seu rosto, mais jovem, exprimia as exigências de uma presunção ingénua. Um homem na idade era então, mas na idade apenas, e aos olhos do pai, obstinadamente não-europeu, ou seja, inocente por escolha deliberada. Moisés recusava-se a conhecer o mal. Mas não podia recusar-se a experimentá-lo. E, portanto, outros teriam de ser designados para lho fazerem, e para serem depois acusados (por ele) de maldade. Entre os restantes figurava um retrato do pai Herzog na sua última encarnação — cidadão americano — , elegante, cuidadosamente barbeado, sem nada da sua agitada arrogância masculina, da sua antiga impetuosidade ou apaixonado protesto. No entanto, ver o rosto do pai Herzog na sua própria casa comovia Moisés. A Tia Taube vinha andando, com passos vagarosos. Não tinha nenhuma fotografia de si própria. Moisés sabia que fora uma belíssima rapariga, apesar dos seus lábios de Habsburgo; e mesmo aos cinquenta anos, quando a conheceu como viúva Ka-plitzky, tinha sobrancelhas fartas, elegantes e bem desenhadas e uma grossa trança de um castanho de animal; uma figura gentil embora um pouco frouxa, mantida firme pelo corselete. Não gostava que lhe lembrassem a beleza ou o

antigo vigor.

— Deixa-me olhar para ti — disse ela, pondo-se-lhe na frente. Tinha os olhos entumecidos, mas ainda suficientemente perspicazes. Fitou-a e procurou evitar que o horror lhe transparecesse no rosto. Adivinhou que se teria demorado a pôr as placas. Tinha-as novas, toscamente feitas — não arqueadas, mas com fieiras direitas de dentes. Como uma marmota, pensou. Os dedos, tinha-os desfigurados, com uma pele lassa que lhe subia pelas unhas. Mas aquelas pontas dos dedos estavam pintadas. E que mudanças veria ela nele? — Ach, Mosche, mudaste.

Herzog limitou-se a aquiescer com a cabeça. — Eterno está?

— Bem vês. Uma morta-viva. — Vive sozinha?

— Tinha uma mulher. Bella Ockinoff, da peixaria. Conheceste-a. Mas não era limpa.

— Venha, Tante, sente-se.

— Oh, Moshe — lamentou-se ela — , não posso estar sentada, não posso estar deitada. Estava bem melhor ao pé do pai. O pai está melhor do que eu.

— Está assim tão mal? — Herzog devia ter revelado mais emoção do que desejava, porque descobriu então os olhos dela examinando-o com muita minúcia, como se não acreditasse que sentisse assim por ela e procurasse detectar a verdadeira fonte desta sensibilidade. Ou seria a catarata que lhe dava aquela expressão? Guiou-a até uma cadeira, dando-lhe o braço e sentou-se no sofá coberto de plástico. Por baixo da tapeçaria de Pierrot. Clair de Lune. Luar veneziano. Toda essa banalidade que o oprimia nos dias de estudante. Não exercia agora qualquer poder especial sobre si. Era outro homem e tinha propósitos diferentes. A velha, bem o via, tentava descobrir a razão que ali o trouxera. Pressentia que estava profundamente agitado, que lhe faltava a habitual imprecisão, o orgulhoso ar de abstracção que M. E. Herzog, Doutor em Filosofia, ostentava noutros tempos. Esses dias passaram para nunca mais.

— Tens muito trabalho, Moshe?

— Sim.

— Ganhas regularmente a vida?

— Oh, sim.

A velha senhora baixou a cabeça por um momento. Observou-lhe o crânio, o fino cabelo grisalho. Ralo. O organismo dera tudo o que tinha a dar.

Compreendia perfeitamente que ela lhe estava a comunicar o seu direito de viver nesta propriedade dos Herzogs, embora mesmo pelo facto de permanecer viva o estivesse a privar do resto da herança.

— Está bem, não tenho ressentimentos para consigo, Tante Taube — disse ele.

— O quê?

— Continue a sua vida e não se preocupe com a casa.

— Não estás bem vestido, Moshe. Que problema há, estás a passar uma fase

difícil?

— Não. Vesti um fato velho para trazer no avião.

— Tens que fazer em Chicago?

— Sim, Tante.

— As crianças estão bem? O Marco?

— Está no acampamento.

— A Daisy ainda não se casou?

— Não.

— Tens de lhe pagar uma pensão?

— Não muito.

— Não fui uma madrasta má? Diz-me a verdade.

— Foi uma boa madrasta. Foi muito boa.

— Esforcei-me por ser o melhor possível — afirmou ela, e nesta docilidade ele vislumbrou as suas antigas manhas — o papel elaborado e vigoroso que representava com o pai Herzog como paciente viúva Kaplitzky, outrora mulher de Kaplitzky, o importante comerciante por grosso, sem filhos, seu único amor, usando um medalhão com pequenos rubis e viajando nas carruagens Pullman — a Rosa de Portland, a Século XX — ou no Berengaria, primeira classe. Como segunda Sra. Herzog não teve uma vida fácil. Tinha boas razões para lamentar Kaplitzky. «Gottseliger Kaplitzky», era como sempre lhe chamava. E uma vez contou a Herzog: — Gottseliger Kaplitzky não quis que eu tivesse filhos. O médico pensava que não seria bom para o meu coração. E sempre que... Kaplitzky-alehoshalom tratava de tudo. Eu nem sequer olhava.

Recordando isto, escapou a Herzog um sorriso. Ramona gostaria do «eu nem sequer olhava». Ela olhava sempre, aproximava-se, segurava uma madeixa que tombava, de faces coradas, muito divertida com a timidez dele. Como na noite anterior, ao deitar-se, abrindo os braços para ele. E então o sangue começou a pulsar-lhe na cabeça. Recordou a razão por que ali se encontrava.

Estava sentado perto do próprio local em que o pai Herzog, no ano anterior à morte, o ameaçara de o matar a tiro. A causa da sua raiva era dinheiro. Herzog estava sem vintém e pediu ao pai para lhe conceder um empréstimo. O velho interrogou-o minuciosamente, sobre o emprego, as despesas, o filho. Não tinha paciência para Moisés. Por essa altura eu estava a viver em Filadélfia, sozinho, a decidir-me por uma escolha (não era escolha!) entre Sono e Madalena. Talvez ele tivesse mesmo ouvido dizer que eu me iria converter ao catolicismo. Alguém levantou tal boato; pode ter sido Daisy. Eu estava em Chicago porque o pai me mandara chamar. Queria informar-me das alterações do testamento. Dia e noite, pensava em como devia dividir os seus bens, e pensava-o de acordo com cada um de nós, com o que merecíamos, com a forma como os utilizaríamos. De vez em quando, telefonava-me e dizia-me que eu tinha de me apresentar imediatamente. Passava a noite sentado no comboio. E levava-me para um canto para me confidenciar: — Quero que oiças, de uma vez para sempre. O teu irmão Willie é um homem honesto. Quando eu morrer, fará o que combinámos — Estou certo de que sim, paizinho.

Mas perdia a paciência em cada uma destas ocasiões, e quando quis disparar sobre mim foi porque já não podia suportar a minha presença, aquele meu ar, ar de presunção ou de orgulhosa preocupação. O ar da elite. Não o acuso, pensou Moisés enquanto Taube lenta e minuciosamente lhe descrevia os padecimentos. O paizinho não podia suportar tal expressão no rosto do filho mais novo. Envelheci. Gastei-me em projectos estúpidos, libertando o meu espírito. Irritou-se dolorosamente por causa de mim. E o pai não era como certos velhos que abrandam ao aproximar-se da morte. Não, o seu desespero era vivo e contínuo. E de novo Herzog foi aguilhoado por pena do pai.

Escutou por uns momentos o relatório de Taube acerca do seu tratamento à base de cortisona. Os olhos grandes, luminosos, mansos, os olhos que haviam domesticado o pai Herzog, não fitavam agora Moisés. Fixavam um ponto para além dele e deixavam-lhe liberdade para recordar aqueles últimos dias do pai Herzog. Fomos juntos a pé até Montrose comprar cigarros. Estava-se em Junho, quente como este, o tempo magnífico. O paizinho dizia coisas sem muito sentido.

Afirmava que se devia ter divorciado da viúva Kaplitzky dez anos atrás, que esperara gozar os últimos anos de vida — o seu ídixe tornava-se mais intrincado e excêntrico nestas conversas — mas trouxera o seu ferro para uma forja fria. A Kalte Kuzhnya, Moshe. Keinfire. O divórcio era impossível porque lhe devia demasiado dinheiro.

— Mas tem dinheiro, não tem? — perguntou Herzog, brusco. O pai estacou, mirando-o no rosto. Herzog estava assombrado ao ver em plena luz estival quanta decomposição ocorrera já. Mas os elementos restantes, de incrível vitalidade, mantinham o antigo ascendente sobre Moisés — o nariz rectilíneo, o sulco entre os olhos, os tons castanhos e verdes daqueles olhos. — Preciso do meu dinheiro. Quem proverá às minhas necessidades... tu? Posso ainda fazer esperar o Anjo da Morte muito tempo. — Então dobrou um pouco os joelhos — Moisés decifrou esse antigo sinal; tinha a perspicácia de uma vida inteira na interpretação dos gestos do pai: aqueles joelhos dobrados significavam que algo profundamente subtil iria ser revelado — Não sei quando serei parido — murmurou o pai Herzog. Usava o velho termo ídixe designativo do parto da mulher — Kimpet. Moisés não sabia que dizer, e a voz da sua resposta não foi muito além de um murmúrio. — Não se atormente, paizinho — O horror deste segundo nascimento, para as mãos da Morte, tornou-lhe os olhos brilhantes e os lábios apertaram-se-lhe silenciosamente. Depois o pai Herzog disse — Tenho de me sentar, Moshe. O sol está demasiado forte para mim. — De súbito, ficou muito corado, e Moisés amparou-o, ajudou-o a sentar num banco de um relvado. O aspecto do velho era agora o de um orgulho masculino ferido. — Até eu sinto hoje o calor — disse Moisés. Colocou-se entre o pai e o sol. — Talvez vá no próximo mês para S. José, para os banhos — dizia Taube. — Para o Whitcomb.

— Não vai sozinha?

— Ethel e Mordecai querem ir.

— Oh...? — aquiesceu, para manter a conversa. — Como está Mordecai?

— Como há-de estar com aquela idade? — Moisés prestou-lhe atenção até ela ir embalada nas palavras e depois voltou para o pai. Tinham almoçado na varanda das traseiras nesse dia, e foi aí que começou a discussão. Tinha parecido a Moisés que estava ali talvez como o filho pródigo, admitindo o pior e pedindo a piedade do pai, e o pai Herzog no entanto nada via senão uma estúpida súplica no rosto do filho, incompreensível. — Idiota! — fora o que gritara o velho. — Camelo! — Depois viu o mal-humorado pedido sob o olhar de paciência de Moisés. — Sai! Não te deixo nada! Tudo para Willie e Helena! Tu...? Que morras na miséria. — Moisés ergueu-se e o pai Herzog gritou-lhe — Vai. E não apareças no meu funeral.

— Está bem. Pode ser que não apareça.

Demasiado tarde, a Tante Taube tinha-o aconselhado a ficar calado, erguendo o sobrolho — tinha ainda sobrancelhas nessa altura. O pai Herzog levantou-se com passos incertos da mesa, de rosto desfigurado, e correu a buscar a pistola.

— Vai, vai! Volta mais tarde. Mando-te chamar — sussurrara Taube a Moisés, e ele, confundido, relutante, afogueado, pungentemente magoado por a sua desgraça não ser reconhecida na casa do pai (o seu monstruoso egoísmo com as suas específicas exigências) — levantou-se relutante da mesa.

— Depressa, depressa! — Taube tentou fazê-lo chegar até à porta principal, mas o velho Herzog alcançou-os com a pistola.

Vociferou — Hei-de matar-te! — e Herzog ficou perplexo, não tanto pela ameaça, em que não acreditava, mas por o pai ter readquirido a força. Na sua raiva recuperou-a por uns instantes, embora lhe pudesse ter custado a vida. O pescoço tenso, os dentes cerrados, a cor pavorosa, mesmo o estilo militarista russo com que ergueu a pistola — mais valia isto, pensou Herzog, que o seu desfalecimento num passeio até à tabacaria. O pai Herzog não era homem para dele se ter pena.

— Vai, vai — dizia a Tante Taube. Moisés chorava então.

— Talvez morras antes — gritava o pai Herzog.

— Paizinho!

Ouvindo parcialmente a lenta descrição da Tante Taube da próxima aposentação do primo Mordecai, Herzog sinistramente recordou o tom daquele grito.

— Paizinho! Paizinho! — Patego! O velho, com a sua atitude semi-demente procurara agir com a virilidade que ele deveria ter tido. Vir a sua casa com aquele sorriso dengoso cristianizado do filho que muito sofreu. Bem podia ter sido um convertido global, como Mady. Devia ter puxado o gatilho. Aqueles ares eram para si um tormento. Merecia que o poupassem, na velhice.

E depois, lá estava Moisés, com olhos inchados de chorar, na rua, à espera de um táxi, enquanto o pai Herzog andava apressadamente de um lado para o outro em frente destas janelas, fitando-o com extremo desespero — sim, conseguira provocar-lho. Andando ali, apressadamente, para trás e para diante, com os seus modos apressados, apoiando todo o peso sobre um calcanhar. A pistola arremessada para o chão. Quem sabe se Moisés lhe não teria abreviado a vida com o desgosto que lhe dera. Talvez o estímulo da ira a prolongasse. Não podia morrer e deixar ainda este Moisés incompletamente adulto.

Reconciliaram-se no ano seguinte. E depois repetiu-se a cena. E depois... morte.

— Queres que te faça uma chávena de chá? — perguntou a Tante Taube.

— Sim, por favor, gostaria se não lhe desse muita maçada. E gostaria também de ver a secretária do pai por dentro.

— A secretária do pai? Está fechada. Queres vê-la por dentro? É tudo vosso, filhos. Podiam esperar que eu morresse para a levar.

— Não, não! — exclamou ele — Não preciso da secretária, mas passei por aqui, vindo do aeroporto, e pensei em ver como estava. E agora, que aqui estou, gostaria de dar uma vista de olhos pela secretária. Sei que não se importa.

— Queres alguma coisa, Moshe? Levaste o mealheiro de prata da tua mãe, da última vez que cá estiveste.

Dera-o a Madalena.

— A corrente do relógio do paizinho ainda lá está, tia Tante?

— Julgo que Willie a levou.

Franziu a testa, concentrando-se. — E os rublos? — perguntou. — Gostaria deles para o Marco.

— Rublos?

— O meu avô Isaac comprou rublos do tempo dos czares durante o tempo da Revolução, e têm estado sempre na secretária.

— Na secretária? Estou certa de que nunca os vi.

— Gostaria de procurar, enquanto arranja o chá, Tante Taube. Dê-me a chave.

— A chave...? — Ao interrogá-lo anteriormente falara mais depressa, mas agora voltava à típica lentidão, interpondo-lhe um enorme desejo de adiamento.

— Onde é que a guarda?

— Onde? Onde é que a pus? Estará no armário do pai? Ou noutro sítio? Deixa-me lembrar. É assim que agora estou, a memória fraca...

— Sei onde está — replicou ele, levantando-se subitamente.

— Sabes onde está? Então onde está?

— Na caixa de música, onde sempre costumava guardá-la.

— Na caixa...? O pai tirou-a de lá. Fechava à chave os meus cheques da assistência social quando chegavam. Dizia que todo o dinheiro que ele teria...

Moisés sabia que adivinhara bem. — Não se incomode, hei-de encontrá-la — disse. — Se pusesse a chaleira ao lume... Estou cheio de sede. Tem estado um dia quente, longo.

Ajudou-a a levantar-se, pegando-lhe no braço flácido. Estava a conseguir os seus intentos — uma pobre vitória cheia de perigosas consequências. Avançando sozinho, entrou no quarto. A cama do pai tinha sido retirada. A dela permanecia sozinha com a sua feia colcha — de um material que lhe parecia a cobertura da língua. Respirou o cheiro antigo, o ar escuro, pesado, e abriu o tampo da caixa de música. Nesta casa, bastava-lhe consultar a memória para encontrar o que desejava. O mecanismo trinou as suas notas enquanto o cilindro lá dentro rodava, com os pequenos dentes repetindo as notas do Figaro. Moisés era capaz de reconstituir a letra:

 

             «Nel momento

             Della mia cerimonia

             Io rideva di me

             Senza saperlo.»

 

Os dedos, reconheceram a chave.

A velha Taube na penumbra fora do quarto indagou: — Encontraste-a?

Respondeu: — Está aqui — , falando com uma voz baixa, suave, para não tornar a situação mais desagradável. A casa era dela, afinal. Era rude invadi-la. Não estava envergonhado disso, reconhecia apenas com perfeita objectividade que não estava bem. Mas tinha de ser.

— Quer que eu ponha a chaleira ao lume?

— Não, ainda posso fazer uma chávena de chá.

Ouviu-lhe os passos lentos no corredor. Ia para a cozinha. Herzog dirigiu-se

rapidamente para a pequena sala de estar. Os reposteiros estavam corridos. Acendeu o candeeiro ao lado da secretária. Ao procurar o interruptor rasgou a velha seda do abat-jour, levantando uma fina poeira. O nome desta cor era rosa-velho — estava certo. Abriu a escrivaninha de cerejeira, pousou o largo tampo sobre os puxadores. Depois voltou atrás e fechou a porta, assegurando-se primeiro de que Taube chegara à cozinha. Nas gavetas reconheceu todos os objectos — couro, papel, ouro. Apressado e sob tensão, com as veias da cabeça salientes bem como os tendões das mãos, tacteou, e encontrou aquilo que procurava — a pistola do pai Herzog. Uma velha pistola com o cano niquelado. O paizinho comprara-a para a ter na Rua Cherry, junto ao caminho-de-ferro. Moisés abriu a pistola. Continha duas balas. Aqui estava, portanto. Fechou-a com um rápido estalido e guardou-a no bolso. Aí fazia um volume demasiado grande. Tirou a carteira, substituindo-a pelo revólver. A carteira, abotoou-a no bolso de trás das calças.

Começou então à procura dos rublos. Encontrou-os numa pequena divisão, juntamente com velhos passaportes, fitas seladas a lacre, que parecia expectoração de sangue seco. La bourgeoise Sarah Herzog avec ses enfants, Alexandre huit ans, Hélène neufans e Guillaume trois ans, assinado pelo conde Adlerberg Gouverneur de St. Petersbourg. Os rublos, havia-os em grande quantidade — os seus brinquedos quarenta anos atrás. Pedro, o Grande, com uma rica armadura, e uma esplêndida Catarina imperial. A luz do candeeiro revelava as figuras a água. Ao recordar-se de como ele e Willie costumavam brincar aos casinos para ganharem este dinheiro, Herzog soltou uma das suas curtas risadas, depois, com estas grandes notas na algibeira, fez um ninho para a sua pistola. Achava que ficaria menos visível assim.

— Encontraste o que querias? — perguntou-lhe Taube da cozinha.

— Sim. — Colocou a chave sobre a mesa de metal esmaltado.

Sabia que não era próprio pensar que ela tinha uma expressão carneiral. Este hábito figurativo do seu espírito prejudicava-lhe o raciocínio, e bem podia um dia dar maus resultados. Talvez esse dia estivesse próximo; talvez esta noite tivesse de entregar a alma. A pistola pesava-lhe no peito. Mas os lábios salientes, os grandes olhos e a boca enrugada eram carneirais, e avisavam-no de que estava a correr demasiados riscos de destruição. Taube, uma sobrevivente veterana, por cautela, tinha combatido a sepultura com uma morte de imobilização, de abstinência, com a sua lentidão. Tudo havia decaído menos a sua sensatez e a sua incrível paciência; e em Moisés ela revia o pai Herzog, nervoso e precipitado, impulsivo, sofredor. Os olhos crispavam-se-lhe ao inclinar-se para ela na cozinha. A velha senhora murmurou: — Tens muitos problemas? Não compliques a vida, Moshe.

— Não há problemas nenhuns, Tante. Tenho um assunto a tratar... Estou a pensar que, afinal, não posso esperar pelo chá.

— Fui buscar a chávena do paizinho para ti. Moisés bebeu água da torneira pela chávena do pai. — Adeus, Tante Taube, muita saúde. — Beijou-lhe a testa.

— Lembras-te de que te ajudei? — disse ela. — Não deves esquecer-te. Tem cuidado, Moshe.

Saiu pela porta das traseiras; a partida assim era mais simples. A madressilva trepava pela goteira, como no tempo do pai, e perfumada ao entardecer — quase demasiado luxuriante. Poderia algum coração petrificar-se por completo?

Desembraiou junto à luz vermelha, procurando decidir qual seria o caminho mais rápido para a Avenida Harper. A nova auto-estrada de Ryan era muito rápida, mas conduzi-lo-ia para o trânsito compacto do bairro negro da 51.a Rua da zona ocidental, onde as pessoas passeavam, ou passavam turisticamente de automóvel. Havia a Avenida Garfield, muito melhor; no entanto, não estava certo de conseguir desbravar o seu caminho pelo Parque Washington depois do anoitecer. Decidiu seguir o Éden até à Rua do Congresso e o Congresso até à Circunvalação. Sim, era a via mais rápida. O que faria ao chegar à Avenida Harper, ainda não decidira. Madalena ameaçara-o de prisão, mesmo que mais não fizesse que mostrar-se perto da casa. A polícia tinha o seu retrato, mas isso era puro palavreado, palavreado e paranóia, a imperiosidade de poderes imaginários que outrora o impressionavam. Mas havia agora algo de real entre ele e Madalena, uma criança, uma realidade — June. Feita da cobardia, da doença, da fraude, por um pai desajeitado numa cadela ardilosa, algo de puro! Essa sua filhinha! Gritou para si mesmo, enquanto subia velozmente a rampa da auto-estrada, que ninguém lhe faria mal. Acelerou, continuando na sua faixa entre o restante tráfego. O fio da vida estava tensamente esticado dentro de si. Estremecia loucamente. Não temia tanto que se quebrasse como que deixasse de fazer o que devia. O pequeno Falcon corria. Pensava na terrível velocidade até que um enorme camião com reboque lhe passou pela direita, momento em que teve consciência de que não era altura para se arriscar a uma multa — não, com a pistola na algibeira — e levantou o pé do pedal. Olhando para a direita e para a esquerda, reconheceu que a nova auto-estrada tinha sido traçada cortando velhas ruas, ruas que conhecia. Viu os grandes reservatórios do gás, coroados de luzes, de uma nova perspectiva, e as traseiras de uma igreja polaca com um Cristo vestido de brocados, exposto numa janela iluminada como uma vitrina. A longa curva para o oriente passava por sobre as gares dos comboios de mercadorias, ardentes de poeira do crepúsculo, com os carris estendendo-se para o ocidente; em seguida, o túnel sob o edifício gigantesco dos correios; em seguida as tabernas da Rua do Estado. Da última elevação da Rua do Congresso as distorções do crepúsculo faziam o lago erguer-se como uma macia parede cortada por fitas ametistas, azuis-escuras, de prata irregular, e por uma cor de ardósia no horizonte, com barcos balouçando junto ao quebra-mar, e helicópteros e pequenos aeroplanos cujas luzes tremeluziam por cima. O aroma familiar da água fresca, suave e no entanto áspero, chegou até si ao apressar-se em direcção ao sul. Não parecia ilógico que reclamasse para si o privilégio da loucura, da violência, tendo tido de arrostar com tanta coisa — grosserias e mexericos, longas viagens de comboio, dor, mesmo exílio em Ludeyville. Essa propriedade esteve destinada a ser seu manicómio. Finalmente, o seu mausoléu. Mas haviam feito mais alguma coisa a Herzog — imprevisível. Nem toda a gente tem a oportunidade de matar com a consciência tranquila. Tinham aberto o caminho para um assassinato justificável. Mereciam morrer. Tinha direito de os matar. Saberiam mesmo porque morriam; não era necessária uma explicação. Quando surgisse diante deles teriam de se submeter. Gersbach limitar-se-ia a deixar pender a cabeça, vertendo lágrimas por si próprio. Como Nero: — Qualis artifexpereo. Madalena gritaria e insultá-lo-ia. De raiva, o elemento mais poderoso da sua vida, de longe mais forte que qualquer outra força ou motivo. Em pensamento, era a assassina dele, e portanto isso dava-lhe liberdade, podia disparar ou estrangulá-la sem remorsos. Sentiu nos braços e nos dedos, e até ao mais fundo do seu coração o doce esforço de estrangular — horrível e doce, um arrebatamento orgástico de infligir a morte. Suava abundantemente, tinha a camisa molhada e fria debaixo dos braços. Veio-lhe à boca um sabor a cobre, um veneno metabólico, um gosto inespecífico mas mortal.

Ao chegar à Avenida Harper estacionou o carro à esquina, e enveredou pela ruela que passava por trás da casa. Cascalho espalhado sobre o betão; vidros partidos e saibro arenoso faziam-lhe ressoar os passos. Avançou cuidadosamente. As cancelas negras eram já antigas. Terra do jardim estava espalhada sob as persianas e os arbustos e videiras trepavam-lhes até ao topo.

Mais uma vez viu a madressilva florida. Mesmo rosas vagas, de um vermelho-escuro no crepúsculo. Teve de cobrir o rosto ao passar pela garagem por causa das hastes de roseira brava que desciam do telhado inclinado por sobre a vereda. Ao esgueirar-se para o pátio, permaneceu quieto até conseguir vislumbrar o caminho. Não podia tropeçar num brinquedo ou num instrumento. Um fluido assomara-lhe aos olhos — muito claro, apenas um pouco deformador. Limpou-o com as pontas dos dedos e enxugou-o também com a lapela do casaco. As estrelas haviam surgido, pontos cor de violeta emoldurados por formas de telhados, folhas, fios metálicos. O pátio era agora visível. Distinguia a corda da roupa — cuecas de Madalena e camisinhas e vestidos da filha, pequeninas meias. À luz da janela da cozinha vislumbrou uma caixa de areia na relva, uma nova caixa de areia vermelha com rebordos largos onde se sentar. Aproximando-se, olhou para dentro da cozinha. Madalena estava lá! Susteve a respiração ao fitá-la. Trazia umas calças compridas e uma blusa apertada por um largo cinto vermelho de cabedal e metal que lhe oferecera. O cabelo macio caía-lhe, solto, enquanto ia da mesa para o lava-loiça, lavando os pratos depois do jantar, esfregando as travessas com os seus modos de abrupta eficiência. Estudou-lhe o perfil direito enquanto estava de pé junto ao lava-loiça, pondo a água à temperatura desejada. Podia-lhe ver a cor das faces, e quase o azul dos olhos. Ao observar, alimentou a raiva, para a manter firme, até ao máximo. Não era provável ouvi-lo no pátio porque as estufas não tinham sido tiradas — não, pelo menos, as que colocara no Outono anterior nas traseiras da casa. Encaminhou-se para a ruela. Felizmente os vizinhos não estavam em casa, e não tinha de se preocupar com as suas luzes. Já vira Madalena. Era a filha que queria ver agora. A casa de jantar estava desocupada — o vazio que se segue ao jantar, garrafas de Coca-Cola, guardanapos de papel. Depois ficava a janela da casa de banho, mais alta que as restantes. Recordava-se contudo, de que utilizara um bloco de cimento para subir a ela, ao tentar tirar a rede até descobrir que não tinha um vidro duplo para a substituir. A rede permanecia portanto aí. E o bloco? Estava exactamente onde o deixara, entre os lírios, à esquerda da vereda. Arrastou-o para o local, sendo o ruído abafado pelo som da água na banheira, e empoleirou-se nele, apoiando-se lateralmente ao edifício. Tentava encobrir o som da respiração, abrindo a boca. Na água jorrante onde brinquedos flutuavam, o corpinho da filha resplandecia. A sua filha! Madalena deixara-lhe crescer o cabelo negro, e agora estava preso ao alto para o banho, com um elástico. Enterneceu-se por ela, e tapou a boca com a mão para abafar qualquer som que a emoção o levasse a produzir. Ergueu a cabeça para falar a alguém que não podia ver. Por sobre o correr da água ouvia-a dizer qualquer coisa mas não conseguia compreender as palavras. O rosto dela era o de Herzog, os grandes olhos escuros, os seus olhos, o nariz, o do pai dele, da tia Zipporah, o nariz do irmão Willie, e a boca, a sua boca. Mesmo a ponta de melancolia naquela beleza — era a da sua mãe. Era Sarah Herzog, pensativa, voltando ligeiramente o rosto ao enfrentar a vida à sua volta. Comovido, observou-a, respirando de boca aberta, rosto semi-encoberto pela mão. Besouros passavam por ele. Os seus corpos pesados embatiam na rede mas não lhe chamavam a atenção.

Então uma mão surgiu e fechou a água — uma mão de homem. Era Gersbach. Ia dar banho à filha de Herzog! Gersbach! Lobrigava-lhe agora a cintura. Entrou no campo visual, andando com a sua perna de pau junto à antiquada banheira bojuda, curvando-se, endireitando-se, curvando-se — o seu coxear veneziano, e depois, com muita dificuldade, começou a ajoelhar-se, e Herzog viu-lhe o peito, a cabeça, ao preparar-se. Colado à parede, de queixo sobre o ombro, Herzog viu Gersbach arregaçar as mangas da camisa desportiva, puxar para trás o farto cabelo flamejante, pegar no sabão, e ouviu-o dizer, não sem simpatia: — Vamos a acabar com essas macaquices — pois Junie estava a soltar risinhos, a remexer-se, a salpicar, a agitar a água, a mostrar os dentinhos, a enrugar o nariz, a arreliá-lo. — Agora está quieta — disse Gersbach. Esfregou-lhe as orelhas com a luva de banho enquanto ela gritava, lavou-lhe a cara, o nariz, limpou-lhe a boca. Falava com autoridade, mas era carinhosamente, com sorrisos rezingões e, por vezes, rindo que a lavava — ensaboava-a, molhava-a, deitando água para os barquitos para lhe enxaguar as costas enquanto ela soltava gritinhos agudos e se remexia. O indivíduo lavava-a com ternura. O seu aspecto era, talvez, falso. Mas não tinha expressões autênticas, pensou Herzog. O seu rosto era todo peso, carne sexual. Olhando para baixo pelo decote da camisa aberta, Herzog observou a carne pesada e suave, coberta de pêlos do peito de Gersbach. Tinha o queixo largo, como um machado de pedra, uma arma brutal. E havia ainda os seus olhos sentimentais, o penacho farto de cabelos, e aquela voz calorosa com a sua fraudulência e grosseria específicas. Não faltava nenhum dos traços odiados. Mas como lidava com June, salpicando-a por brincadeira, com simpatia! Deixava-a usar a touca florida para duche da mãe, com as pétalas de borracha entreabrindo-se na cabeça da criança. Depois Gersbach ordenou-lhe que se levantasse e ela inclinou-se ligeiramente para que pudesse lavar-lhe o pequenino sexo. O pai olhava fixamente tudo isto. Sentiu uma angústia cruciante, mas a operação foi rápida. A miúda tornou a sentar-se. Gersbach passou-a por nova água, ergueu-se a custo e abriu a toalha de banho. Com movimentos uniformes e cuidadosos, enxugou-a, e depois, com uma grande borla, empoou-a. A criança saltitava de contentamento. — Chega de tolices — disse Gersbach. — Põe agora o pijama.

Saiu a correr. Herzog via ainda leves nuvens de pó, que flutuavam por sobre a cabeça inclinada de Gersbach. O cabelo ruivo movia-se-lhe para cima e para baixo. Estava a esfregar a banheira. Moisés podia tê-lo morto naquele momento. A mão esquerda tocou a pistola, guardada entre o maço dos rublos. Podia ter atirado sobre Gersbach enquanto este metodicamente polvilhava o rectângulo de esponja amarela com o detergente. Havia duas balas no revólver... Mas ficariam lá. Herzog reconhecia-o muito claramente. Nas pontas dos pés desceu do seu poleiro e tornou a atravessar o pátio silenciosamente. Vislumbrou de novo a filha na cozinha, olhando para Mady, pedindo qualquer coisa, e cortou cautelosamente pela cancela para a rua. Disparar a pistola não passara de um pensamento.

A alma humana é anfíbia e experimentei-lhe as virtualidades. Anfíbia! Vive em tantos elementos que nunca os chegarei a conhecer a todos; e presumo que naquelas estrelas remotas se está a organizar matéria que há-de criar seres ainda mais estranhos. E julgo que, por June se parecer com os Herzogs, estará mais próxima de mim do que deles. Mas como poderá ela estar próxima de mim se em nada participo na sua vida? Aqueles dois grotescos actores do amor têm tudo. E eu estou em crer que, se a criança não tiver uma vida que se assemelhe à minha, se não for educada nos esquemas do «coração» dos Her-zogs, etc, não se realizará como ser humano. Isto é pura irracionalidade, e, no entanto, uma parte do meu espírito admite-o como evidente. Mas, de facto, que pode ela aprender com eles? Com Gersbach, que parece tão adocicado, repulsivo, venenoso, que não é um indivíduo mas um fragmento, um pedaço arrancado à multidão. Matá-lo a tiro! — que pensamento absurdo. Mal Herzog viu a pessoa real a dar um banho real, a realidade do facto, a ternura desse palhaço para com uma criancinha, a sua premeditada vingança transformou-se em teatro, em algo de caricato. Não desejava fazer uma figura completamente ridícula. Só o ódio a si próprio poderia levá-lo a aniquilar-se por sentir o coração «despedaçado». Como podia ser despedaçado por aquele par de insignificantes? Vagarosamente percorrendo a ruela, congratulou-se pela sua sorte. Retomou o fôlego; como era bom respirar! Valia bem a viagem.

Que coisa! observou para si mesmo no Falcon, num bloco, à luz do automóvel. Os demógrafos consideram que pelo menos metade de todos os seres humanos jamais nascidos vivem agora, neste século. Que momento para a alma humana! Características extraídas do conjunto genético reconstituíram, de acordo com uma probabilidade estatística, o que tem existido de melhor e pior na vida humana. Está tudo à nossa volta. Buda e Laotsé devem vaguear algures na Terra. E Tibério e Nero. Todo o horrível, todo o sublime, e coisas ainda nunca imaginadas. E tu, visionário ocasional, mamífero alegre e trágico. Tueos teus filhos e os filhos dos filhos... Em tempos antigos o génio do homem exprimia-se amplamente em metáforas. Mas agora em factos... Francis Bacon, instrumentos. Depois com inexprimível satisfação acrescentou, A tia Zipporah disse aopaizinho que ele não seria jamais capaz de disparar sobre quem quer que fosse, de se entender com carroceiros, carniceiros, contrabandistas, rufias, «razboiniks». «Um cavalheirozinhopolido.» Seria capaz de agredir alguém na cabeça? Seria capaz de matara tiro? Moisés podia jurar confiadamente que o pai Herzog não tinha nunca — nunca na vida — puxado o gatilho dà pistola. Apenas ameaçado. Como me ameaçou. Taube defendeu-me então. «Salvou»-me. Querida Tia Taube! Uma forja fria! Pobre pai Herzog!

Mas o dia ainda não findara. Tinha de ter uma conversa com Phoebe Gersbach. Era essencial. E decidiu não lhe telefonar para não lhe dar oportunidade de se preparar, ou mesmo para se recusar a vê-lo. Dirigiu-se directamente para a Avenida Woodlawn, um canto desolado do Hyde Park, mas característico, o seu Chicago: maciço, tosco, amorfo, cheirando a lama e decadência, a excrementos de cão; fachadas fuliginosas, lajes de um nada estrutural, sacadas triplas absurdamente ornamentadas com grandes urnas de cimento para flores mas que apenas continham pontas de cigarro a apodrecer e outras porcarias imundas; marquises sob alpendres de telha, pátios desleixados, cinzentas escadas de traseiras, betão remendado e fendido de onde brotava erva; graves gradeamentos alinhados que guardavam plantas daninhas. E entre estes apartamentos espaçosos, confortáveis, simpáticos, onde viviam pessoas liberais, benevolentes (eram os arredores da Universidade), Herzog sentia-se realmente à vontade. Era possivelmente tão típico do Midwest e desorganizado como estas ruas. (Não é tanto o determinismo, pensou, como a falta de elementos determinantes — a ausência de uma capacidade formativa.) Mas tudo era típico e nada faltava, nem mesmo o som dos patins rolando desastradamente pelo pavimento sob as folhas do Verão. Duas miúdas feiotas, sob a transparência verde dos candeeiros da rua, patinando de saias curtas, e com fitas nos cabelos. Uma vertigem nervosa percorreu-o agora que chegara à cancela de Gersbach, mas dominou-a, percorreu a ruela do jardim e tocou à campainha. Phoebe atendeu rapidamente. Perguntou — Quem é? — e vendo Herzog através do postigo permaneceu silenciosa. Estaria assustada?

— É um velho amigo — respondeu Herzog. Passou um momento; Phoebe, apesar da firmeza da boca, hesitava, com os olhos muito pestanudos sob as madeixas. — Não me deixa entrar? — indagou Herzog. O seu tom não permitia uma recusa. — Não lhe tirarei muito tempo — disse, ao entrar. — Mas temos de discutir uns assuntos.

— Entre para a cozinha, se faz favor.

— Com certeza... — Não queria ser surpreendida a falar-lhe à porta principal ou ouvida pelo pequeno Ephraim que estava no quarto. Na cozinha fechou a porta e convidou Herzog a sentar-se. A cadeira onde os olhos dela se fixaram) ficava junto ao frigorífico. Aí não seria visto da janela da cozinha. Com um pálido sorriso sentou-se. Pela extrema compostura do rosto esguio calculou como o coração dela deveria palpitar, pulsando talvez ainda mais violentamente que o dele. Pessoa ordenada, capaz de um notável auto-domínio, impecável — a enfermeira-chefe — tentava manter um ar de seriedade. Trazia o colar de âmbar que lhe trouxera da Polónia. Herzog abotoou o casaco para ter a certeza de que o cano da pistola não transparecia. A visão de uma arma infligir-lhe-ia um mortal terror.

— Como vai, Phoebe?

— Estamos todos bem.

— Bem instalada? Gosta de Chicago? O Ephraim continua na Escola Lab?

— Sim.

— E o Templo? Sei que o Vai organizou um programa com o Rabbi Itzkowitz — como é que lhe chamou? «Judaísmo de Hasidic, Martin Buber, Eu e Vós». Ainda o Buber! Anda muito metido com esses rabis. Talvez queira ir roubar mulheres casadas com um rabi. Vai trilhando o seu caminho com o «Eu e Vós» e «Eu e Tu» — «Tu e Eu, menina!» Mas suponho que você acabaria por pôr um ponto final. Não admitiria todas as coisas.

Phoebe não deu resposta e permaneceu de pé.

— Talvez você julgue que me irei embora mais depressa se não se sentar. Vá, Phoebe, sente-se. Prometo-lhe que não vim para fazer cenas. Tenho apenas uma intenção, ao vir aqui, além do desejo de ver uma velha amiga...

— Não somos realmente velhos amigos.

— Não pelos anos do calendário. Mas éramos tão íntimos em Ludeyville. É verdade. Temos de pensar na duração — na duração bergsoniana. Conhecemo-nos na duração. Certas pessoas são sentenciadas a estabelecerem certas relações. Talvez todas as relações sejam ou uma alegria ou uma sentença.

— Você é que lavrou a sua sentença, se é assim que pensa. Nós tínhamos uma vida calma até que você e a Madalena apareceram em Ludeyville e me constrangeram a aceitá-los. — Phoebe, com o rosto esguio mas quente, pálpebras paradas, sentara-se na berma da cadeira que Herzog puxara para ela.

— Bem. Diga o que pensa, Phoebe, é isso que eu quero. Sente-se mais para trás. Não tenha medo. Não estou interessado em complicações. Temos de tratar dum problema que nos é comum.

Phoebe negou-o. Abanou a cabeça, com um ar intransigente, com demasiado vigor. — Sou uma mulher simples. Valentim é do Norte do Estado de Nova Iorque.

— Não passa de um rústico. Sim. Nada sabe dos vícios fantásticos da grande cidade. Nem sequer sabia marcar um número de telefone. Tive de lhe ensinar todos os passos da degeneração, eu — Moisés E. Herzog.

Rígida e hesitante, virou o corpo com os seus modos bruscos. Depois tomou uma decisão e voltou-se de novo para ele com a mesma brusquidão. Era uma mulher bonita, mas rígida, muito rígida, ossuda, sem confiança em si própria. — Você nunca o compreendeu. Ele sofria por si. Adorava-o. Procurou fazer-se intelectual porque pretendia ajudá-lo — via o erro terrível que você cometera ao abandonar a sua respeitável posição universitária, e como fora irreflectido ao enterrar-se no campo com Madalena. Pensava que ela estava a aniquilá-lo e tentou conduzi-lo ao bom caminho. Lia todos aqueles livros para que você tivesse com quem falar naquele matagal, Moisés. Porque você necessitava de ajuda, de elogios, de lisonjas, de auxílio, de afeição. Nunca o satisfazia. Você esgotou-o. O esforço para o apoiar quase deu cabo dele.

— Sim...? Que mais? Continue — disse Herzog.

— Continua a não satisfazer. Que quer você agora dele? Que vem aqui fazer? Mais barulho? Está ainda interessado em mais barulho?

Herzog já não sorria. — Algumas das coisas que você disse são verdades, Phoebe. É certo que eu me sentia perdido em Ludeyville. Mas você deixa-me perplexo quando me diz que tinham uma vida perfeitamente calma lá em cima, em Barrington. Até que Mady e eu aparecemos com os livros e a teatralidade, a vida intelectual, espalhando ideias transcendentes e revolvendo séculos e séculos de história. Você assustou-se connosco porque nós — especialmente Mady — lhe demos confiança. Enquanto não passava de um simplório locutor de rádio, podia fanfarronar sobre a sua categoria, mas você fazia dele o que queria. Porque era um fanfarrão e um excêntrico, um caprichoso, mas seu. Então, fez-se mais ousado. Arranjou uma esfera de acção para o seu exibicionismo. É verdade que sou um idiota. Você tinha mesmo razão para não gostar de mim, quanto mais não fosse porque eu me recusava a ver o que estava a acontecer e assim a prejudicava. Mas porque é que você nada disse? Observou o desenrolar dos acontecimentos. Passaram-se anos, e você nada dizia. Eu não teria sido tão indiferente se visse que lhe estava a acontecer o mesmo a si.

Phoebe hesitou em falar deste assunto e empalideceu ainda mais. Murmurou, finalmente: — Não tenho culpa de que você se recuse a compreender o sistema que rege a vida dos outros. As suas ideias impedem-no. Talvez uma pessoa fraca como eu não tenha possibilidades de escolha. Não havia nada que eu pudesse fazer por si. Especialmente o ano passado. Consultava um psiquiatra que me aconselhou a manter-me afastada da questão. Manter-me afastada de si, principalmente, e dos seus problemas. Disse-me que eu não tinha força suficiente, e você sabe que é verdade — não tenho força suficiente.

Herzog considerou o facto — Phoebe era fraca, era essa realmente a verdade. Decidiu chegar onde pretendia — Porque não se divorcia de Valentim? — perguntou.

— Não vejo razão para tal. — A voz dela imediatamente recobrou forças.

— Abandonou-a, não abandonou?

— Val? Não sei porque afirma isso. Não estou abandonada.

— Onde está ele agora... esta noite? Neste momento?

— Na cidade. A trabalhar.

— Ora, vamos lá, não queira enganar-me, Phoebe. Ele vive com a Madalena.

É capaz de o negar?

— Claro que sim. Não consigo imaginar onde foi você desencantar essa ideia fantástica.

Moisés apoiou-se com um braço no frigorífico ao mudar de posição na cadeira para tirar um lenço — um pedaço de toalha da cozinha do seu apartamento de Nova Iorque. Enxugou o rosto.

— Se você pedisse o divórcio — explicou — , como tem todo o direito de fazer, podia processar Madalena por adultério. Eu entraria com dinheiro. Pagaria todas as custas. Quero Junie. Não está a ver? Juntos poderíamos desmascará-los. Você tem deixado a Madalena fazer de si o que quer. Como se fosse um pau mandado.

— Lá está o Diabo a falar outra vez pela sua boca, Moisés.

Pau mandado, fora um erro; estava a torná-la mais obstinada. Mas, de qualquer forma, ela não deixaria de seguir o caminho que ela própria traçara. Nunca partilharia um plano seu.

— Você não quer que eu obtenha a tutela de June?

— Isso é-me indiferente.

— Você está também em guerra com Madalena, suponho — continuou. — Lutam por um homem. Uma luta felina... uma luta do sexo feminino. Mas ela vencê-la-á porque é uma psicopata. Sei que você tem forças de reserva. Mas ela é uma doida, e as doidas vencem. Além disso, Valentim não quer que você o prenda.

— Francamente não compreendo o que está a dizer.

— Ele deixará de ter valor para Madalena assim que você abandonar o campo. Depois da vitória, tem necessariamente de o pôr de parte.

— Valentim volta para casa todas as noites. Nunca fica fora até tarde. Deve chegar em breve. Mesmo quando eu me atraso um pouco em qualquer sítio, fica inquieto e preocupado. Telefona para toda a parte.

— Talvez seja apenas esperança — retorquiu Moisés. — Esperança disfarçada de interesse. Não sabe o que é? Se você morrer num desastre ele chora, faz as malas e vai definitivamente viver com a Madalena.

— Lá está o Diabo a falar outra vez pela sua boca. O meu filho não vai perder o pai dele. Você ainda deseja a Madalena, não deseja?!

— Eu? Nunca! Toda aquela trapalhada histérica terminou. Não, estou satisfeito por me ter visto livre dela. Já nem sequer a odeio muito. E que goze tudo o que me roubou. Durante todos aqueles anos deve ter estado a juntar dinheiro meu. Adeus e boa sorte. Dou-lhe a minha bênção. Desejo-lhe uma vida activa, útil, agradável, dramática. Que inclua amor. As melhores pessoas se apaixonam, e ela é uma das melhores, por isso ama este indivíduo. Amam, ambos. No entanto, ela não tem qualidades suficientes para educar a miúda...

Fosse ele um javali e aquelas madeixas dela uma vedação protectora — os olhos castanhos de Phoebe não estariam mais vigilantes. E, no entanto, Moisés tinha pena dela. Ameaçavam-na — Gersbach; Madalena através de Gersbach. Mas a própria Phoebe tencionava ganhar esta contenda. Devia parecer-lhe inconcebível que se escolhessem fins tão modestos, tão diminutos — mesa, mercado, lavandaria, filho — e que mesmo assim se perdesse a luta. A vida não podia ser de tal forma injusta. Poderia? Outra hipótese: a ausência de sexo era a sua força; impunha a autoridade do super ego. Outra ainda: reconhecia a profundidade criadora da degeneração moderna, todos os vícios exuberantes de patifes emancipados, e assim aceitava a sua situação de mulher burguesa, pobre, neurótica, seca, infeliz, atolada no lodo. Para ela, Gersbach não era um homem qualquer e, graças à riqueza do seu carácter, à sua energia espiritual e erótica, ou sabe Deus a que outra metafísica malcheirosa, necessitava de, pelo menos, duas mulheres. Talvez estas duas mulheres cedessem uma à outra esse pedaço de carne empenachada de cor-de-laranja por necessidades muito diversas. Para uma cópula a três pernas. Para a paz doméstica.

— Phoebe — prosseguiu ele — admitindo que você é fraca... mas é assim tão fraca? Desculpe... acho graça. Você sente-se obrigada a negar tudo, e manter as aparências. Não pode admitir mesmo nada?

— De que lhe serviria? — perguntou ela bruscamente. — E, além disso, que tenciona você fazer de mim?

— Eu? Ajudaria... — principiou. Mas interrompeu-se. Era verdade que não tinha muito para oferecer. Na realidade não tinha utilidade para ela. Com Gersbach poderia ainda ser uma esposa. Ele vinha para casa. Ela cozinhava, passava a ferro, fazia compras, assinava cheques. Sem ele não podia existir, cozinhar, fazer camas. Cairia no histerismo. Que faria então?

— Porque vem ter comigo se quer a tutela da sua filha? Faça qualquer coisa por si ou esqueça isso. Deixe-me agora sozinha, Moisés.

Também isto era perfeitamente justo. Silencioso, mirou-a fixamente. A antiga e natural tendência do seu espírito, que actuava ultimamente sem inibições, descobriu um significado para pequenas marcas exangues do rosto dela. Como se a morte a tivesse experimentado com os dentes e a achasse pouco madura.

— Bem, obrigado por esta conversa, Phoebe. Vou-me embora. — Ergueu-se. Uma simpatia mais suave, poucas vezes observável, transparecia na expressão de Herzog. Um tanto desajeitadamente pegou na mão de Phoebe, e esta não foi suficientemente rápida a ponto de lhe evitar os lábios. Aproximou-se e beijou-a na cabeça. — Tem razão. Foi uma visita desnecessária. — Ela libertou os dedos.

— Adeus, Moisés. — Falava sem o olhar. Não receberia dela mais que o que lhe podia dar. — Você foi achincalhado. É verdade. Mas tudo passou. Devia afastar-se. Pura e simplesmente afastar-se, agora.

A porta fechou-se.

Migalhas de decência — eis tudo o que nós, pobres, podemos guardar para os outros. Não admira que a vida «pessoal» seja uma humilhação, e um indivíduo, algo de desprezível. O processo histórico, ao pôr-nos roupas às costas, sapatos nos pés, carne na boca, faz infinitamente mais por nós, pelo método da indiferença, que qualquer pessoa por sua intenção, escreveu Herzog no Falcon alugado. E dado que estas vantagens são resultados de um planeamento e de um trabalho anónimos, põe-se o problema de o que poderá a bondade conseguir (quando os bons são amadores). Especialmente se, no interesse da saúde, a nossa benevolência e amor necessitam de exercício, sendo a criatura emocional, impulsiva, expressiva, um animal relacionador. Uma criatura de profundas peculiaridades, uma teia de sentimentos intrincados e de ideias que se aproximam actualmente de um nível de organização e automatismo em que pode libertar-se da dependência humana. As pessoas estão já a praticar a sua futura condição. O meu tipo emotivo é arcaico. Pertence às fases agrícolas ou pastorais...

Herzog não sabia determinar o significado de tais generalidades. Estava apenas imensamente excitado — torrencialmente — e pretendia antes de mais restaurar o equilíbrio, entregando-se ao seu hábito de reflexão. O sangue irrompera-lhe até à psique, e, por agora, estava livre ou louco. Mas então teve consciência de que não necessitava de realizar um complexo trabalho intelectual abstracto — trabalho a que sempre se entregara como se representasse uma luta pela sobrevivência. Não pensar não é necessariamente fatal. Acreditara realmente que morreria se não pensasse? Ora temer tal coisa — é de facto loucura.

Foi passar a noite com Lucas Asphalter, telefonando-lhe de uma cabina no passeio para se fazer convidado. — Não vou transtornar-te a vida, pois não? Tens aí alguém contigo? Não? Quero que me faças um favor especial. Não posso falar à Madalena a pedir-lhe para ver a criança. Desliga-me mal me reconhece a voz. És capaz de falar e combinar as coisas de forma a eu ficar com June amanhã?

— Ora, com certeza — disse Asphalter. — Vou já fazer isso e terás a resposta quando cá chegares. Apareceste aqui por um capricho? Sem nada planeares?

— Obrigado, Lucas. Por favor, telefona agora.

Deixou a cabina reflectindo que realmente devia descansar nessa noite, tentar dormir. Simultaneamente, hesitava um pouco em deitar-se e fechar os olhos; amanhã talvez não conseguisse recuperar este seu estado de consciência simples, livre, ardente. Portanto conduziu devagar, parando em Walgreen's, onde comprou uma garrafa de Cutty Sark para Lucas e brinquedos para June — um periscópio para crianças através do qual podia olhar para além do sofá, para lá das esquinas, uma bola de praia que se enchia soprando. Encontrou ainda tempo para enviar um telegrama a Ramona do posto da Western Union na esquina de Blackstone e da 53 .a Rua. Ocupado Chicago dois dias — era o texto. — Muitas saudades. Estava certo de que ela se sentiria bem disposta enquanto ele estava longe e não desanimada no «abandono» como sucederia consigo — aquele tumulto pueril, aquele terror infantil da morte que torcera e deformara a vida dando-lhe estas formas curiosas. Tendo descoberto que todos devem ser indulgentes para com os desajeitados homens-crianças, corações puros envoltos em inocência, e de boa vontade, aceitando a quota necessária de consequentes mentiras, ele acomodara-se com os seus bens emotivos — verdade, amizade, interesse pelas crianças (a habitual adoração dos americanos pelas crianças), e o amor fácil. Isto sabemo-lo agora. Mas isto — mesmo isto — não é tudo também. Limita-se a aproximar-se do início da verdadeira consciência. A premissa necessária é de que o homem é, de qualquer forma, mais que as suas «características», que todas as emoções, anelos, gostos e construções a que gosta de chamar «A Minha Vida». Temos fundamentos para esperar que uma vida seja algo mais que uma nuvem de partículas, mera factualidade. Analise-se o compreensível, e concluir-se-á que apenas o incompreensível nos esclarece. Isto não era para ele de forma alguma neste momento uma «ideia geral». Era muito mais substancial que qualquer outra coisa que visse neste posto de telégrafo intensamente iluminado. Tudo lhe parecia excepcionalmente claro. O que o tornaria assim claro? Algo que estava no extremo limite. Seria esse algo a Morte? Mas a Morte não era o incompreensível aceite pelo seu coração. Não, longe disso.

Deteve-se para observar o belo ponteiro prosseguindo a sua rota no mostrador do relógio, o mobiliário amarelo de outra época — não admirava que as grandes empresas obtivessem tais lucros; preços elevados, equipamento antigo, ausência de competição, agora que o Telégrafo Postal fora aniquilado. Decerto obtinham mais ganhos com estas secretárias amarelas que o pai Herzog com o mesmo género de mobiliário na Rua Cherry. Ficava em frente da casa de prostituição. Quando a patroa não lhes pagava, as moças atiravam as camas de prostitutas pelas janelas do segundo andar. As mulheres gritavam maldições negras ao serem empurradas para o carro. O pai Herzog, homem de negócios, observando estes párias do vício e da brutalidade, polícias e bárbaras mulheres obesas, andava por entre tais mesas — equipamento modelo em segunda mão adquirido em leilões. Assim se alicerçaram os fundamentos da minha fortuna ancestral.

Em frente da casa de Asphalter, fechou o automóvel à chave por aquela noite, deixando os presentes para Junie na mala. Estava certo de que ela adoraria o periscópio. Havia muito que ver naquela casa na Avenida Harper. Que a criança descobrisse a vida. Quanto mais simplesmente melhor, talvez.

Asphalter viera ter com ele à escada.

— Tenho estado à tua espera.

— Há algum problema? — indagou Herzog.

— Não, não, não te preocupes. Vou buscar June amanhã ao meio-dia. Frequenta uma escola infantil, metade do dia.

— Óptimo — disse Herzog. — Não há complicações?

— Com a Madalena? Absolutamente nenhumas. Não quer ver-te. De resto, podes vir visitar a tua pequena sempre que desejares.

— Não quer que eu venha com uma ordem do tribunal. Legalmente, está numa posição dúbia, com aquele coxo lá em casa. Bem, deixa-me olhar para ti. — Entraram no apartamento onde a luz era melhor. — Deixaste crescer um pouco a barba, Lucas.

Nervosa e timidamente, Asphalter cofiou o queixo, olhando para longe. Disse — Estou a deixá-la espigar.

— Uma compensação para a súbita e indesejada calvície? — perguntou Herzog.

— Para combater uma depressão — respondeu Asphalter. — Pensei que uma mudança de aspecto me poderia fazer bem... Desculpa esta almofada...

Asphalter vivera sempre neste sujo desmazelo de estudante. Herzog olhou em redor. — Se tornar a receber alguma herança inesperada compro-te umas estantes, Lucas. Já é tempo de rifares estes madeirames. Esta literatura científica é pesada. Mas olha, puseste lençóis lavados no sofá do escritório para mim. É muito amável da tua parte, Lucas.

— És um velho amigo.

— Obrigado — disse Herzog. Com surpresa sentiu dificuldade em falar. Uma súbita onda de emoção, vinda não sabia de onde, sufocou-lhe a garganta. Os olhos marejaram-se-lhe. Sentimentalismo barato, anunciou a si próprio. Ei-lo. Esta advertência ao seu temperamento, o chamar as coisas pelo nome exacto, restituiu-lhe o domínio. A auto-correcção reanimou-o-. — Lucas, recebeste a minha carta?

— Carta? Mandaste-me uma? Eu mandei-te uma carta.

— Nunca a vi. De que tratava?

— De um emprego. Recordas-te de Elias Tuberman?

— O sociólogo que se casou com aquela professora de Ginástica?

— Não brinques. É o principal organizador da Enciclopédia de Stone, e vai gastar um milhão em revisores. Estou encarregado da biologia. Ele anda à procura de ti para a história.

— De mim?

— Disse-me que releu o teu livro sobre Romantismo e Cristianismo. Não o teve em grande conta na década de cinquenta quando saiu, mas devia ter estado cego. É um monumento, afirma ele.

Herzog tomou um ar grave. Começou a formular diversas respostas mas abandonou-as todas. — Não sei se continuo a ser um erudito. Quando deixei Daisy manifestamente abandonei isso também.

— E a Madalena usurpou-te essa actividade.

— Sim. Dividiram-me entre eles. Valentim assenhoreou-se dos meus modos elegantes e Mady vai ser professora. Não vai apresentar-se às orais?

— Muito em breve.

Recordando-se agora da morte do macaco de Asphalter Herzog disse — Que te passou pela cabeça, Lucas? O teu bicharoco não te pegou a tuberculose, pois não?

— Não, não. Tenho feito o teste da tuberculina periodicamente. Não.

— Deves ter perdido a cabeça, ao aplicares a respiração de boca a boca a Rocco. Levaste a excentricidade longe de mais.

— Também se referiram a isso?

— Claro. Como haveria eu de saber? Como chegou a notícia aos jornais? — Um dos patifórios da Fisiologia ganha uns dólares espiando puta o Americano.

— Não sabias que o macaco estava tuberculoso?

— Sabia que estava doente, mas não fazia ideia. E é evidente que não esperava que a morte dele me afectasse tanto. — Herzog não estava preparado para a solenidade da expressão de Asphalter. A barba recente era raiada de várias cores mas os olhos eram ainda mais negros que os cabelos que perdera. — Realmente desvairou-me. Convencera-me de que aquela camaradagem com Rocco não passava de uma brincadeira. Não tinha ideia do que ele significava para mim. Mas a verdade é que tive consciência de que nenhuma morte no mundo me poderia comover tanto. Tive de perguntar a mim próprio se a morte do meu irmão me perturbaria metade do que esta me perturbou. Penso que não. Todos nós temos o nosso toque de loucura, suponho. Mas...

— Não repares se eu sorrir — desculpou-se Herzog. — Não posso evitá-lo.

— Que outra coisa podes tu fazer?

— Um homem pode fazer pior que amar o seu macaco — disse Herzog — Le coeurases raisons. Conheces Gersbach. Era um grande amigo meu. E Madalena ama-o. De que hás-de tu ter vergonha? É uma daquelas dolorosas comédias sentimentais. Nunca leste a história de Collier sobre o homem que se casou com um chimpanzé? A Mulher Macaca. Uma história esplêndida.

— Tenho andado terrivelmente deprimido — confessou Asphalter. — Vou melhor agora; mas durante cerca de dois meses não trabalhei; e senti-me grato por não ter mulher ou filhos perante quem teria de esconder o meu choro lancinante.

— Tudo por causa daquele macaco?

— Deixei de ir ao laboratório. Receitei a mim próprio tranquilizantes, mas a coisa não podia continuar. Tive finalmente de enfrentar corajosamente a situação crítica.

— E foste ao Dr. Edvig? — Herzog ria.

— Edvig? Não, não. Outro psiquiatra. Acalmava-me. Mas apenas duas horas por semana. No resto do tempo, tremia. Neste estado de espírito, requisitei alguns livros na biblioteca... Já leste o livro daquela húngara, Tina Zokóly, sobre o que se deve fazer nestas crises?

— Não. Que diz ela?

— Prescreve certos exercícios.

Moisés estava interessado. — Em que consistem?

— O principal é encarar a nossa própria morte.

— Como se faz isso?

Asphalter procurava manter um tom normal, coloquial descritivo. Evidentemente, era um assunto sobre o qual lhe era muito difícil falar. Mas, não obstante, irresistível.

— Imaginamos já termos morrido — começou Asphalter.

— O pior já sucedeu... É assim? — Herzog voltou a cabeça como que para ouvir melhor, para escutar mais atentamente. As mãos entrelaçavam-se-lhe no regaço, os ombros haviam-se-lhe inclinado de fadiga, os pés entortado para dentro. O quarto bafiento atulhado de livros com um candeeiro pregado a uma das armações de madeira e o restolhar de folhas na rua estival davam a Herzog uma certa paz. Coisas verdadeiras em forma grotesca, pensava. Sabia o que era. Tinha pena de Asphalter.

— Foi desferido o golpe. A agonia passou — prosseguiu Asphalter. — Está-se morto e tem de se estar deitado como morto. Como é o caixão? Seda almofadada.

— Ah?! Então constrói-se tudo isso. Deve ser bastante difícil. Estou a ver...

— Moisés suspirou.

— É preciso prática. Tem de se sentir e não sentir. De se estar presente e simultaneamente ausente. E, uma a uma, as pessoas que tiveram um lugar na nossa vida aparecem e olham. Pai. Mãe. Quem quer que se tenha amado ou

odiado.

— E depois? — Herzog, cem por cento absorto, fitava-o ainda mais obliquamente.

— E depois perguntamos a nós próprios «Que tens agora a dizer-lhes? Que sentes em relação a eles?» Agora não há nada a dizer senão o que realmente pensámos. E não se lhes diz porque estamos mortos, embora apenas para nós próprios. Realidade, não ilusões. Verdade, não mentiras. Terminou.

— Encarar a morte. Isso é Heidegger. Que resulta daí?

— Quando olho para fora, de dentro do meu caixão, a princípio posso concentrar-me na minha morte e nas minhas relações com os vivos, mas depois surgem outras coisas... sempre.

— Estás a começar a fartar-te?

— Não, não. Dia após dia, observo as mesmas coisas — Lucas ria nervosa, dolorosamente. — Já nos conhecíamos quando o meu pai possuía uma pensão manhosa na Rua de West Madison.

— Sim, costumava ver-te na escola.

— Na altura da Crise, nós próprios tivemos de nos mudar para o velho hotel. O meu pai arranjou um apartamento no andar de cima. O Teatro de Hay-market ficava poucas portas à frente, lembras-te?

— A casa das revistas ordinárias? Ah, sim, Lucas. Eu costumava faltar à escola para assistir aos ensaios e rebuliço.

— Bem, aquilo de que me recordo em primeiro lugar é do fogo que se declarou nesse edifício. Estávamos refugiados nas águas-furtadas. O meu irmão e eu embrulhámos os miúdos mais novos em mantas e postámo-nos junto à janela. Depois os bombeiros vieram e salvaram-nos. Eu pegava na minha irmãzita. Os bombeiros trouxeram-nos para baixo, um a um. A última foi a minha tia Rae. Pesava quase cem quilos. O vestido esvoaçava-lhe enquanto o bombeiro a levava. Tinha a cara muito vermelha devido ao peso e ao esforço. Uma cara irlandesa. E eu estava de pé em baixo e via o rabo dela aproximar-se lentamente — aquele tremendo traseiro, e as bochechas enormes, tão pálidas e desamparadas.

— E é isso que tu vês quando brincas aos mortos? Uma tia obesa salva da morte.

— Não te rias — disse Asphalter, exibindo ele próprio um pálido sorriso — É uma das coisas que vejo. Outra são as coristas ali do lado. Entre as sessões, não tinham nada que fazer. Estava a correr o filme Tom Mix. Aborreciam-se nos camarins. Assim, saíam para a rua e jogavam o basebol. Gostavam imenso disso.

Eram todas raparigas altas, exuberantes, bem sustentadas a aveia, precisavam de fazer exercício. Eu sentava-me no parapeito a vê-las jogar. — Andavam vestidas com trajos de revista?

— Todas empoadas e pintadas. Com o cabelo armado. E os peitos erguiam-se-lhes ao lançarem a bola, batendo com o taco e correndo. Jogavam soft-ball. Moisés, juro-te... — Asphalter apertou com as mãos o rosto barbudo, e a voz tremulou-lhe. Os seus olhos negros fluidos estavam assombrados, sorrindo dolorosamente. Depois recuou a cadeira, para longe da luz. Estaria possivelmente prestes a chorar. Espero que o não faça, pensou Herzog. Compadecia-se dele.

— Não te impressiones tanto, Lucas. Escuta-me agora. Talvez te possa dizer alguma coisa sobre isso. Pelo menos posso dizer-te como o encaro. Um homem pode afirmar «De ora em diante vou dizer a verdade». Mas a verdade ouve-o e foge e esconde-se ainda antes de a frase estar concluída. Há algo de cómico na condição humana, e a inteligência civilizada troça das suas próprias ideias. Esta Tina Zokóly não pode, também, deixar de estar a mistificar.

— Não acho.

— Então é o velho memento mori, a caveira do frade sobre a mesa, actualizado. E de que serve tal? Tudo isso se relaciona com aqueles existencialistas alemães que nos ensinam como o temor é tão bom para nós, como nos salva da distracção, nos dá a liberdade e nos torna autênticos. Deus já não existe. Mas a Morte existe. É esta a cantilena deles. E vivemos num mundo hedonista no qual a felicidade se afere por um modelo mecânico. Tudo o que há a fazer é voar para alcançar a felicidade. E assim estes outros teóricos introduzem a tensão da culpa e o temor como correctivos. Mas a vida humana é muito mais subtil que qualquer dos seus modelos, mesmo estes engenhosos modelos alemães. Precisaremos de estudar teorias do temor e da angústia? Esta Tina Zokóly é uma mulher absurda. Diz-te que te exercites na morte, e a tua inteligência responde-lhe com humor. Mas estás a levar as coisas longe de mais.

Isto é, em si mesmo, tão ridículo que roça a angústia. Progressivamente mais amargo. Macacos e rabos e coristas a jogarem.

— Esperava que pudéssemos falar sobre este assunto — disse Asphalter.

— Não te enganes demasiado, Lucas, e não teças esses enredos fantásticos contra os teus sentimentos. Sei que tens uma boa alma e sofres realmente. E acreditas no mundo. E o mundo diz-te que busques a verdade em combinações grotescas. Aconselho-te também a afastar-te de consolações se prezas a tua honra intelectual. Segundo esta teoria, a verdade é castigo, e deves aceitá-lo como homem. Afirma que a verdade te atormentará a alma porque a tua tendência como pobre criatura humana é mentir e viver de mentiras. De forma que, se tens algo para revelar na tua alma, nunca o descobrirás com esta gente. Temos de nos imaginar num caixão e de realizar estes exercícios com a morte? Mal o pensamento começa a aprofundar-se chega à morte, em primeiro lugar. Os filósofos modernos gostariam de reinstituir o ultrapassado temor da morte. A nova atitude que considera que uma ninharia não merece a angústia de ninguém ameaça o cerne da civilização. Mas não é uma questão de temor, nem de qualquer desses termos... No entanto, que podem os pensadores e humanistas fazer senão esforçarem-se por encontrar palavras adequadas? Olha para mim, por exemplo. Tenho estado a escrever desordenadamente cartas para todos os lados. Mais palavras. Procuro a realidade com a linguagem. Talvez gostasse de transformar tudo em linguagem, para forçar Madalena e Gersbach a terem uma Consciência. Eis uma palavra para ti. Devo estar a tentar explorar as tensões sem as quais os seres humanos deixam de poder ser chamados humanos. Se não sofrem, afastam-se de mim. E enchi o mundo de cartas para impedir que se escapem. Desejo para eles uma forma humana, e assim construo mentalmente todo um ambiente e apanho-os nele. Entrego-me cem por cento a estas construções. Mas são construções.

— Sim, mas tu lidas com seres humanos. Que tenho eu? Rocco?

— Não nos desviemos do que importa. Acredito realmente que é a fraternidade que torna o homem humano. Se devo a Deus uma vida humana, então começa aí para mim o mistério. «O homem vive não apenas por si, mas no rosto do seu irmão... Todos contemplarão o Pai Eterno e o amor e a alegria abundarão.» Quando os pregadores do terror nos afirmam que os outros apenas nos distraem da liberdade metafísica devemos afastar-nos deles. O problema real e essencial é o uso que façamos dos outros e o que os outros façam de nós. Sem este uso, nunca tememos a morte, cultivamo-la. E a consciência, quando não compreende claramente porque deve viver, porque deve morrer, não pode deixar de se ludibriar e ridicularizar. Como tu fazes, com a ajuda de Rocco e Tina Zokóly, como eu faço escrevendo cartas impertinentes... Sinto-me tonto. Onde está aquela garrafa de Cutty Sark? Preciso de tomar um gole.

— Precisas de ir dormir. Estás mesmo a cair.

— Não me sinto nada mal — replicou Herzog.

— Eu, de qualquer forma, ainda tenho que fazer. Vai dormir. Não acabei de classificar todos os meus exames.

— Estou a ver que me vou deitar — confessou Moisés. — A cama parece boa.

— Deixo-te dormir até tarde. Tens muito tempo — disse Asphalter. — Boa noite, Moisés. — Apertaram as mãos.

Finalmente abraçou a filha, e ela apertou-lhe as faces nas mãozinhas e beijou-o. Sequioso de a sentir, de respirar o seu perfume infantil, de lhe contemplar o rosto, os olhos negros, de lhe tocar nos cabelos, na pele sob o vestido, apertou-lhe os ossitos, gaguejando — Junie, meu amor, tenho sentido a tua falta. — Esta alegria era dolorosa. E ela com toda a inocência e infantilidade e com o instinto puro, ou amoroso, das meninas, beijava-o nos lábios, ao pai preocupado, derreado, portador de bacilos.

Asphalter estava presente, sorrindo mas sentindo-se pouco à vontade, com o crânio calvo a suar, a recente barba mesclada exalando calor. Estavam na longa escada cinzenta do Museu da Ciência no Parque Jackson. Grupos de crianças vindas de camionetas entravam, rebanhos negros e brancos, pastoreados por professores e pais. As portas de vidro emolduradas de bronze relampejavam no seu vaivém, para dentro e para fora, e todos estes corpinhos, cheirando a leite e chichi, abençoadas cabecitas de todas as cores e formas, promessa do mundo que está para vir, aos olhos do benevolente Herzog, o seu bem e mal futuros, entravam e saíam correndo.

— Minha querida June. O paizinho tem sentido a tua falta. -Papá!

— Sabes, Lucas — disse Herzog, arrebatadamente, com o rosto simultaneamente feliz e alterado. — Sandor Himmelstein afirmou-me que esta miúda me esqueceria. Estava a pensar na sua raça de Himmelsteins... porquinhos-da-índia, cricetos.

— Os Herzogs são feitos de barro mais fino? — Asphalter deu à observação uma forma interrogativa. Mas estava a ser simpático, dizia-o por bem. — Posso encontrar-vos aqui mesmo às quatro da tarde — propôs.

— Só três horas e meia? Para onde tem ela de ir? Bem, está bem, não discuto. Não quero conflitos. Amanhã também é dia.

Uma das suas unidades de extensão mental intumescendo e passando, num longo aparte (amargurava-o a ideia de ter de abandonar a filha. Para se tornar outra burra sensual? Ou uma beleza melancólica como Sara Herzog, destinada a dar à luz filhos para quem era desconhecida a sua alma e o Deus da sua alma? Ou encontraria a humanidade um novo caminho, tornando o seu tipo — como gostaria que assim fosse! — obsoleto? Em Nova Iorque, depois de uma conferência que pronunciara, um jovem funcionário que dele se aproximou rapidamente dissera-lhe: — Professor, a Arte é para os Judeus! — Encarando essa figura esguia, loura e violenta, Herzog limitara-se a baixar a cabeça e a comentar «Costumava ser a usura»), deixando-o, mais uma vez, com a consciência aguilhoada. É assim o novo realismo, pensou. — Lucas! Obrigado. Obrigado. Estarei aqui às quatro. Mas não passes o dia a cismar.

Moisés levou a filha ao museu para ver as galinhas a chocarem. — O Marco mandou-te um postal, filhinha?

— Sim, do acampamento.

— Sabes quem é o Marco?

— O meu irmão grande.

Afinal Madalena não procurava alheá-la dos Herzogs, por muito doida que estivesse.

— Desceste à mina de carvão, aqui no museu?

— Meteu-me medo.

— Queres ver os pintainhos? -Já vi.

— Não queres tornar a vê-los?

— Ah, sim. Gosto deles. O Tio Val levou-me lá na semana passada.

— Eu conheço o Tio Val?

— Oh, papá! Brincalhão. — Abraçou-se-lhe ao pescoço, soltando guinchinhos.

— Quem é ele?

— É o meu padrasto, Papá. Bem o sabe.

— É isso que a mamã te conta?

— É o meu padrasto.

— Foi ele que te fechou à chave no carro?

— Sim.

— E tu o que fizeste?

— Fiquei a chorar. Mas pouco tempo.

— E gostas do Tio Val?

— Ah, sim, ele é engraçado. Faz caretas. Sabe fazer boas caretas? — Algumas — respondeu. — Tenho demasiada dignidade para fazer boas caretas.

— Conta histórias melhor.

— Espero que sim, meu amor.

— Sobre o rapaz das estrelas.

Recordava-se pois das suas melhores invenções. Herzog aquiesceu com uma inclinação da cabeça, admirado, orgulhoso dela, grato. — O rapaz cheio de sardas?

— Eram como o céu.

— Cada sarda era como uma estrela, e tinha-as todas. A Ursa Maior, Ursa Menor, Orion, os Gémeos, Cassiopeia, a Via Láctea. A cara dele tinha todas as estrelas, na posição verdadeira.

— Só uma estrela que ninguém conhecia.

— Levaram-no a todos os astrónomos. — Vi astrónomos na televisão.

— E os astrónomos disseram: «Ora, ora, uma interessante coincidência. Uma sardazinha.»

— Mais. Mais.

— Por fim foi ver Hiram Shpitalnik, que era um homem muito, muito, muito velho, muito pequenino, com uma barba comprida até aos pés. Vivia numa caixa de chapéus. E ele disse: «Tens de ser examinado pelo meu avô.»

— Que vivia numa casca de noz.

— Exactamente. E tinha como amigos as abelhas. A abelha buliçosa não tem tempo para tristezas. O avô Shpitalnik saiu da casa com um telescópio, e olhou para a cara de Rupert.

— O velho Shpitalnik pediu às abelhas que o erguessem no ar, e olhou dizendo que era uma estrela real, uma nova descoberta. Tinha andado à procura daquela estrela... Bem, aqui estão os pintos. — Sustinha a criança empoleirada na vedação, à sua esquerda, de forma que não pudesse encostar-se à pistola, envolta nos rublos do bisavô. Estes continuavam no bolso superior direito.

— São amarelos — observou ela.

— Aqui há sempre luz e calor. Vês aquele ovo a baloiçar? O pinto está a procurar sair. Dentro em pouco o bico romperá a casca. Olha.

— Papá, já não fazes a barba em nossa casa, porquê?

Teve neste momento de fortalecer a sua resistência à angústia. Uma espécie de dureza necessária lhe era exigida. Se não, era como o selvagem descrevia o piano: «Luta-se com ele e chora.» E essa arte judaica das lágrimas tinha de ser suprimida. Com palavras bem medidas, respondeu: — Tenho a minha máquina de barbear noutro sítio. Que diz a Madalena?

— Diz que o pai já não quer viver connosco.

Escondeu da criança a sua raiva. — Disse isso? Bem, eu quero sempre estar contigo. Mas não posso.

— Porquê?

— Porque sou um homem, e os homens têm de trabalhar e andar pelo mundo.

— O Tio Val trabalha. Escreve poesias e lê-as à mamã.

O rosto sóbrio de Herzog iluminou-se. — Óptimo. Ela tinha de ouvir essas literatices. Má arte e vício de mãos dadas. Gosto de saber isso.

— Parece desvairado quando recita.

— E chora?

— Ah, sim.

— Sentimentalismo e brutalidade — nunca um sem o outro, como fósseis e petróleo. Esta notícia é impagável. É um prazer ouvi-la.

June inclinara a cabeça, e levara os pulsos aos olhos.

— Que foi, querida?

— A mamã disse que eu não devia falar do Tio Val.

— Porquê?

— Disse que ficaria muito zangado.

— Mas não estou. Dá-me imensa vontade de rir. Combinado. Não falaremos dele. Prometo. Nem uma palavra.

Pai experiente, esperou prudentemente que chegassem ao Falcon para anunciar: — Tenho presentes para ti na mala!

— Oh, papá... o que é que trouxe?

Frente ao desajeitado, cinzento, escancarado Museu da Ciência parecia tão fresca, tão nova (com os seus dentes de leite, sardas esparsas e grandes olhos expectantes, com o seu pescoço frágil). E pensou que haveria de herdar este mundo de grandes instrumentos, princípios de física e ciência aplicada. Tinha cabeça para isso. Estava já inebriado de orgulho, vendo nela uma segunda Madame Curie. Adorou o periscópio. Espiaram-se mutuamente de um e de outro lado do carro, escondendo-se atrás de troncos de árvores e nas arcadas das instalações sanitárias. Transposta a ponte da Estrada de Circunvalação, deram um passeio a pé junto ao lago. Deixou-a tirar os sapatos e chapinhar, enxugando-lhe depois os pés às fraldas da camisa, tirando-lhe cuidadosamente a areia de entre os dedos. Comprou-lhe uma embalagem de Biscoitos Jack, que ela foi mordiscando na relva. Os dentes-de-leão floriam e pareciam seda a esvoaçar; a relva apresentava-se primaveril, nem húmida como em Maio, nem seca e dura como em Agosto, quando o sol a havia de ressequir. A segadora mecânica avançava em círculos, barbeando as encostas, erguendo uma nuvem de aparas. Iluminada de sol, a água era de um azul maravilhoso, fresco, pesado e diurno; o céu pousava num suave horizonte ardente, claro, excepto na direcção de Gary, onde as chaminés escuras e estreitas das fundições de ferro sopravam torrentes de fumo cor de ferrugem e enxofre. Por esta altura os relvados de Ludeyville, que não eram cortados havia dois anos, deviam ser verdadeiros matagais, e os caçadores da região e os namorados provavelmente por lá se embrenhariam, arrombando janelas, acendendo as lareiras.

— Quero ir ao aquário, papá — pediu June. — A mamã disse que o pai me levava lá.

— Ah, disse? Bem, anda então.

O Falcon aquecera ao sol. Abriu as janelas para o refrescar. Tinha actualmente uma extraordinária quantidade de chaves e precisava de as distribuir segundo uma ordem nas algibeiras. Eram as suas chaves da casa de Nova Iorque, a chave que Ramona lhe dera, a chave da sala dos professores da Universidade, e a chave do apartamento de Asphalter, bem como diversas chaves de Ludeyville. — Tens de te sentar no banco de trás, meu amor. Vá, entra e puxa para baixo o vestido porque o plástico está muito quente. — O ar de ocidente era mais seco que o de oriente. Os afinados sentidos de Herzog detectavam a diferença. Nestes dias de quase-delírio e pensamento amplamente desordenado, correntes mais profundas de sentimentos haviam-lhe aguçado as percepções, ou haviam-no feito instilar algo de próprio no meio ambiente. Como se o pintasse com a humidade e a cor da sua boca, do sangue, do fígado, dos intestinos, dos órgãos genitais. Desta forma confusa, portanto, tinha ele consciência de Chicago, terra familiar havia mais de trinta anos. E com os elementos daquele, por meio desta arte específica dos seus próprios órgãos, criava a sua versão ambiental. Onde as espessas paredes e o empedrado irregular dos bairros pobres dos negros exalavam o seu mau cheiro. Mais para ocidente, as fábricas, o Braço Sul, de águas paradas, denso de imundices e cintilando com uma crosta de limos dourados; as cercas para gado, desertas; os altos matadouros vermelhos em solitária ruína; e depois a estagnação levemente sussurrante das vivendas e parques anémicos; os vastos centros comerciais; e os cemitérios a seguir a estes — Waldheim, com as suas sepulturas para Herzogs passados e presentes; as Matas Nacionais, para passeios a cavalo, piqueniques croatas, veredas de amantes, terríveis assassínios; aeroportos; pedreiras e, finalmente, campos de milho. E com isto, infinitas formas de actividade — Realidade. Moisés tinha de ver a realidade. Talvez ela lhe tivesse sido um tanto poupada pára que a pudesse vislumbrar melhor, não adormecer no seu apertado abraço. O conhecimento era a sua tarefa; uma consciência mais aberta, eis a sua directriz, o seu objectivo. Vigilância. Se tirava tempo para levar a filha a ver os peixes, arranjaria uma forma de compensar o fundo da vigilância. Este dia lembrava curiosamente — reuniu coragem para o aceitar — lembrava o dia do funeral do pai Herzog. Também então se estava no tempo das flores — rosas, magnólias. Moisés, na noite anterior, chorara, dormira; o ar apresentava-se desagradavelmente perfumado; tivera sonhos luxuriantes, dolorosos, cruéis e ricos, interrompidos pelo êxtase raro da ejaculação nocturna — como a morte acena com a liberdade aos instintos escravizados: os miseráveis filhos de Adão cujos espíritos e corpos têm de responder a estranhos sinais. Muita da minha vida tem sido despendida no esforço para viver segundo ideias mais coerentes. Sei mesmo quais.

— Papá, tem de voltar aqui. É aqui que o Tio Val volta sempre.

— Está bem. — Observou pelo espelho que o lapso a afligia. Tornara a referir-se a Gersbach. — Olha, minha gatucha — disse ele. — Se me contares seja o que for do Tio Val, não direi a ninguém. Nunca te farei perguntas acerca dele. Portanto não te preocupes. Tudo isso são parvoíces.

Não era mais velho que June quando a mãe Herzog lhe ensinara a nada deixar escapar sobre o alambique de Verdum. Recordava-se bem da maquineta. Aqueles tubos eram lindos. E a mistela com o seu cheiro intenso. Se não estava equivocado, o pai Herzog esvaziava sacos de aveia seca na cuba. De qualquer forma, os segredos não eram grande problema.

— Não há mal nenhum em guardar alguns segredos — notou.

— Sei muitos. — Estava precisamente atrás dele, no banco traseiro, a afagar-lhe a cabeça. — O Tio Val é muito simpático.

— Claro que é.

— Mas não gosto dele. Não cheira bem.

— Ha, ha! Bem, vamos arranjar-lhe um frasco de perfume e despejar-lho em cima.

Pegou-lhe na mão ao subirem a escada do aquário, sentindo-se o pai em cuja força e capacidade crítica ela podia confiar. O pátio central do edifício, branqueado pela luz do céu, estava muito quente. O lago agitado, as plantas luxuriantes e o ar suave com toques tropicais forçavam Moisés a dominar-se, a assumir a sua energia.

— Que queres tu ver em primeiro lugar?

— As tartarugas gigantes.

Subiram e desceram pelas veredas sombrias, douradas e verdes.

— Este peixinho rápido chama-se humuhumu-elee-elee, e vem do Havai. Este bicho que desliza com movimentos incertos é a raia-lixa e tem dentes e veneno na cauda. E estas são lampreias, da classe dos ciclóstomos, que colam as ventosas da boca a outros peixes e os sugam até os matarem. Mais adiante podes ver o peixe arco-íris. Não há tartarugas neste corredor, mas olha para aqueles bichos tão grandes ao fundo. Tubarões?

— Vi os delfins em Brookfield — disse June. — Usam bonés de marinheiros, tocam uma sineta. Sabem dançar, de pé sobre o rabo, e jogam basquetebol.

Herzog pegou nela ao colo. Estas saídas com as crianças, talvez por serem imbuídas de tanta emoção, eram sempre exaustivas. Muitas vezes, no fim de um dia passado com Marco, Moisés tinha de colocar uma compressa sobre os olhos e de se deitar. Parecia ser seu destino o de pai visitante, uma aparição efémera surgindo e desaparecendo da vida das crianças. Mas esta sensibilidade específica a encontros e despedidas tinha de ser dominada. Esta angústia tremente — tentou lembrar-se do termo com que Freud a caracterizava: regresso parcial de um traumatismo reprimido, fundamentalmente relacionado com o instinto da morte? — não devia ser transmitida às crianças, esse perpétuo e trémulo desfalecimento de morte. Esta mesma emoção, como Herzog disso tivera consciência quando estudante, era considerada como cerne das cidades, tanto celestes como terrestres, sendo a humanidade incapaz de se separar daqueles que ama neste mundo ou no outro. Mas para Moisés E. Herzog, ao segurar a filha nos braços, olhando através do verde aquoso para os peixes parasitas das lampreias e para os polidos tubarões com os seus ventres franjados de dentes, esta emoção era pura e simplesmente uma tirania. Pela primeira vez, encarou sob uma nova perspectiva a forma como Alexandre V. Herzog organizara o funeral do pai Herzog. Nenhuma solenidade na capela. Os amigos de Shura, imponentes e bronzeados do golfe, banqueiros e directores de empresas formavam um muro majestoso de carne tão pesada nos ombros, mãos e faces como parcos eram os cabelos nas suas cabeças. Depois foi o cortejo. A Câmara enviara uma escolta de motociclistas em atenção à importância cívica de Shura Herzog. Os polícias abriam caminho com buzinas estridentes, fazendo estacar automóveis e camionetas para que o carro fúnebre pudesse avançar velozmente por luzes de proibição. Nunca ninguém chegou a Waldheim tão depressa. Moisés disse a Shura. — Em vida, o pai tinha os polícias atrás. Agora... — Helena, Willie, os quatro filhos dentro da limusina riram baixinho da observação. Depois, quando o caixão foi descido e Moisés e os outros choravam, Shura observou-lhe. — Não te comportes como um emigrante qualquer. — Eu comprometia-o perante os amigos do golfe, os directores de empresas. Talvez eu não estivesse inteiramente dentro da razão. Era ele o bom americano. Eu guardo ainda algo da poluição europeia, estou contaminado pelo Velho Mundo com sentimentos como Amor. — Emoção Filial. Velhos sonhos estúpidos.

— Aqui está a tartaruga! — gritou June. O bicharoco erguia-se das profundezas do tanque com a cobertura córnea, a preguiçosa cabeça em bico, os olhos transparecendo eternidades de indiferença, as barbatanas movendo-se lentamente, empurrando o vidro, as grandes escamas de um amarelo rosado ou, nas costas, ornadas de belas linhas, discos negros encurvados arremedando da tensão superficial da água. Arrastava consigo uma lanugem de um verde parasítico.

Para as compararem voltaram às tartarugas do rio Mississipi do lago central; tinham os lados listrados de vermelho; dormitavam nas suas tocas e deslocavam-se batendo a água em companhia de lobos-marinhos, sobre um fundo sombreado por fetos, salpicado de moeditas.

Por agora bastava para a criança, e para o pai também. — Vamos embora comprar uma sanduíche para ti. É hora do lanche — observou.

Não foram suficientemente cuidadosos ao saírem do parque de estacionamento, pensou mais tarde Herzog. Era um condutor circunspecto. Mas, ao entrar com o seu Falcon na grande torrente do tráfego, deveria talvez ter tomado em consideração a longa curva do norte onde os automóveis ganhavam velocidade. Uma furgoneta Volkswagen seguia-lhe no encalço. Premiu o travão, na intenção de abrandar e deixar o outro condutor passar. Mas os travões eram novos e muito afinados. O Falcon estacou de repente e a furgoneta embateu-lhe na retaguarda e projectou-o contra um poste. June soltou um grito e agarrou-se-lhe aos ombros enquanto ele era projectado contra o volante. A criança! pensou; mas não estava ferida, apenas assustada. Ficou deitado sobre o volante, sentindo-se fraco, radicalmente fraco; os olhos obscureceram-se-lhe; sentia-se cada vez mais nauseado e entorpecido. Ouvia os gritos de June mas não conseguia voltar-se para ela. Observou para si mesmo que estava a desfalecer, e desmaiou.

Estenderam-no na relva. Sentiu uma locomotiva muito próxima — a Central de Illinois. E em seguida pareceu-lhe afastar-se, ressoando nos baldios para além da estrada. A sua visão era a princípio afectada por grandes manchas, que agora se reduziam a pontos iridescentes. As calças tinham-lhe subido. Sentiu um arrepio nas pernas.

— Onde está June? Onde está a minha filha? — Ergueu-se e viu-a entre dois polícias negros, fitando-o. Estavam na posse da carteira, dos rublos do tempo dos czares, e da pistola, evidentemente. Lá estava ela. Tornou a fechar os olhos. Sentiu a náusea regressar ao pensar no que se metera. — Está boa?

— Está óptima.

— Vem cá, Junie. — Inclinou-se para a frente quando ela se acolheu nos seus braços. Ao senti-la, ao beijar-lhe o rosto assustado, aguilhoou-o uma dor aguda nas costelas. — O pai esteve deitado um bocadinho. Não é nada. — Mas ela vira-o deitado na relva. Logo a seguir ao novo edifício depois do Museu. Estirado sem dar acordo de si, com aspecto de morto, provavelmente, enquanto os polícias lhe vasculhavam as algibeiras. Sentia o rosto exangue, cavado, rígido, com a acuidade sensorial intensamente reduzida, e isto atemorizava-o. Pelos formigueiros que sentia nas raízes dos cabelos, achava que estes deviam estar subitamente a embranquecer. A polícia dava-lhe uns minutos para se recompor. A luz azul do carro de patrulha faiscava, rodopiando. O condutor da furgoneta fixava-o, zangado. Um pouco mais longe, andavam os quíscalos, alimentando-se, com o habitual círculo de pintas movendo-se flexivelmente para trás e para diante nos seus pescoços negros. Por cima do ombro vislumbrava o Museu Field. Quem me dera ser uma múmia naquele subterrâneo!, pensou.

Os polícias tinham-no detido. Os seus olhares silenciosos informavam-no disso. Como estava a pegar em June, esperavam; não seriam talvez muito rudes a princípio. Procurando já ganhar tempo, fingia-se mais entontecido do que na realidade se sentia. Os polícias eram por vezes refinadamente agressivos, já os vira em acção. Mas fora antigamente. Talvez os tempos tivessem mudado. Havia um novo comissário. Estivera sentado ao lado de Orlando Wilson na Conferência sobre os Narcóticos no ano anterior. Tinham dado um aperto de mãos. Claro que não valia a pena referir-se a isso; de qualquer forma, nada hostilizaria mais estes dois enormes polícias negros que alusões a influências. Para eles era a presa do dia, e com os seus rublos, a pistola, não podia esperar que o deixassem ir-se embora simplesmente. E lá estava o Falcon azul-cerceta amachucado contra o poste de electricidade. O tráfego rodando velozmente, a estrada com os seus automóveis reluzentes.

— É Moisés? — indagou o mais velho dos negros. Lá estava ela — aquela nota de diabólica familiaridade que se ouve apenas uma vez perdida a imunidade.

— Sim, sou Moisés.

— Esta é sua filha?

— Sim... é a minha miúda.

— Fazia melhor em levar o lenço à cabeça. Fez um corte, Moisés.

— Fiz? — Isto explicava o formigar por baixo do cabelo. Incapaz de localizar o lenço — o pedaço de toalha — desapertou a gravata de seda e dobrou-a, comprimindo-lhe o lado mais largo contra o crânio. — Não tenho outra coisa — observou. A criança escondera a cabeça no seu ombro. — Senta-te ao lado do pai, meu amor. Senta-te na erva juntinho a mim. A cabeça do pai está-lhe a doer um bocadinho. — Obedeceu. A docilidade dela, os seus sentimentos para com ele, o que lhe parecia ser a sensatez e ternura da criança, a sua compaixão, emocionavam-no, apertavam-lhe o coração. Colocou-lhe uma mão protectora, larga, impaciente nas costas. Sentando-se para a frente, segurava a gravata contra o crânio.

— Tem licença para esta pistola, Moisés? — O polícia franziu os lábios grossos enquanto esperava por uma resposta, cofiando de baixo para cima, com uma unha, os curtos pêlos do bigode. O outro polícia falava com o condutor da furgoneta Volkswagen, que estava profundamente irritado. De rosto anguloso, nariz anguloso e vermelho, fitava Moisés, vociferando. — Vai tirar a carta àquele tipo, não vai? — Moisés pensou. Estou mal por causa da pistola e este indivíduo quer descarregar sobre mim. Aconselhado pela indignação, Herzog calou os seus sentimentos.

— Perguntei-lhe uma vez, e torno a perguntar-lhe, Moisés, se tem licença?

— Não senhor, não tenho.

— Duas balas aqui. Arma carregada, Moisés.

— Senhor guarda, era a pistola do meu pai. Morreu, e eu trazia-a para Massachusets. — As respostas eram as mais breves e conformadas que conseguia formular. Sabia que teria de repetir esta história, diversas vezes.

— Que dinheiro é este?

— Não vale nada, senhor guarda. É como o dinheiro da Confederação Russa. Desactualizado. Outra recordação.

Não falho de simpatia, o rosto do polícia exprimia também um fatigado cepticismo. Tinha as pálpebras espessas, e na boca silenciosa e grossa transparecia uma espécie de sorriso. Os lábios de Sono tinham tido um aspecto um pouco semelhante a este ao interrogarem-no sobre as outras mulheres na sua vida. Bem — a variedade de singularidades, álibis, invenções, fantasias em que a polícia se imiscuía todos os dias... Herzog fazendo os seus cálculos o mais inteligentemente que conseguia, embora sob o peso da responsabilidade e do temor, julgava que talvez não fosse muito fácil para este polícia classificá-lo. Havia rótulos que se lhe quadravam, naturalmente, mas um polícia rotineiro não estaria familiarizado com eles. Possivelmente agora mesmo havia um tom de orgulho nesta reflexão, tão obstinada é a loucura humana: «Senhor, que os anjos glorifiquem o vosso nome. O homem é uma louca coisa, uma louca coisa. A loucura e o pecado entram em todo este jogo...». A cabeça de Herzog doía-lhe e não conseguia recordar mais versos. Retirou a gravata do crânio.

Não devia permitir que se colasse; podia arrastar consigo o coágulo. June pousara a cabeça no colo dele. Protegeu-lhe os olhos do sol.

— Temos de anotar este acidente. — O cobre das calças brilhantes refulgia junto a Herzog. Das ancas gordas, protuberantes pendia-lhe, bastante baixa, a sua própria pistola. A coronha castanha de metal listrado e a cartucheira tinham um aspecto bem diferente do velho revólver tosco da rua Cherry do pai Herzog. — Não vejo aqui os documentos deste Falcon.

O pequeno carro estava amolgado à frente e atrás, com a capota fendida como uma concha aberta de mexilhão. O motor propriamente dito não podia ter sido muito danificado; nenhum líquido escorria. — É alugado. Fui buscá-lo a O'Hare. Os papéis estão no porta-luvas — informou Herzog.

— Temos de pôr a limpo estes factos. — O polícia abriu uma pequena pasta desdobrável e começou a rabiscar o papel grosso de um impresso com o seu lápis amarelo. — Vem deste parque de estacionamento... a que velocidade?

— Vinha a passo de caracol. Dez, quinze quilómetros à hora... acabava de desembocar.

— Não viu este sujeito aproximar-se?

— Não. Estava escondido pela curva, suponho. Não sei. Mas embateu-me no pára-choques mal entrei na minha faixa. — Inclinou-se, procurando mudar de posição para aliviar a dor que sentia de um lado. Conseguira já espiritualmente alhear-se dele. Afagou o rosto de June. — O principal foi ela não se magoar — observou.

— Tirei-a pela janela da retaguarda. A porta ficou encravada. Examinei-a. Está óptima. — O negro dos bigodes franziu o sobrolho, como se quisesse dar a entender que não devia a Herzog — homem com um revólver carregado — qualquer explicação. Pois seria a posse deste tosco pistolão com duas balas, não o acidente, a maior acusação que contra ele seria dirigida.

— Teria dado um tiro nos miolos se alguma coisa lhe acontecesse.

O polícia acocorado, a avaliar pelo seu silêncio, nada tinha a ver com o que Moisés poderia ter feito. Falar sobre qualquer uso do revólver, mesmo contra si próprio, não era muito conveniente. Mas encontrava-se ainda um tanto aturdido e estonteado, abatido, segundo verificava, depois do seu estranho voo em espiral dos últimos dias; e o choque, para não dizer o desespero, desta súbita queda! A cabeça andava-lhe ainda às voltas. Decidiu que devia pôr cobro a toda esta insensatez, ou a situação agravar-se-ia ainda mais. Ao correr para Chicago para proteger a filha, pouco faltara para a matar. Ao vir para apagar a influência de Gersbach, e para a beneficiar com a sua própria presença — homem e pai, etc. — limitara-se a provocar um acidente de viação. E depois a criança vira arrastarem-no desfalecido, de cabeça golpeada, com o revólver e os rublos a escorregarem da algibeira. Não, a fraqueza ou a doença que lhe haviam servido de argumento de defesa durante toda a vida (alternando com a arrogância), o seu método de preservar o equilíbrio — o giroscópio de Herzog — , tinham cessado de ter utilidade. Parecia que isso chegara ao fim.

O motorista da furgoneta Volkswagen, de blusão verde, fazia o relato do acidente. Moisés procurou decifrar as letras bordadas a linha amarela na algibeira. Seria da companhia do gás? Nada o especificava. Estava a deitar todas as culpas para cima dele, naturalmente. Era muito inventivo — imaginativo. A história adensava-se cada vez mais. Oh, a grandeza da auto-justificação, pensou Herzog. Que génio a fez florescer nestes mortais, mesmo nos de nariz mais vermelho. As ondas no crânio do indivíduo tomavam uma direcção diferente da dos sulcos da testa. Assim se podia descobrir qual a antiga linha do cabelo. Restavam-lhe escassos cabelos ralos.

— Apareceu de repente diante de mim. Nenhum sinal, nada. Porque não lhe faz o teste dos bêbedos? É um guiar de bêbedo.

— Vamos lá, Harold — disse o negro mais velho. — Qual era a sua velocidade?

— Valha-me Deus! Ia muito abaixo da máxima. — Muitos destes motoristas de companhias gostam de arranjar sarilhos aos carros particulares — interveio Herzog.

— Primeiro apareceu à minha frente, depois carregou a fundo no travão. — Você amachucou-o a valer. Quer dizer que ia mesmo atrás dele.

— É verdade. Parece-me... — O polícia mais velho apontou duas, três, cinco vezes com a ponta de borracha do seu lápis antes de pronunciar qualquer outra palavra; levava-os a concentrar a atenção sobre a estrada (aí Herzog julgava ver o tropel dos porcos de Gadarena, multicores e reluzentes antes de alcançarem o seu penhasco). — Parece-me, que você acelerava com força. Ele não podia passar para a outra faixa, de forma que pensou em travar e dar-lhe uma oportunidade para ultrapassar. Carregou de mais no travão e você enganchou-se nele. Vejo pelas observações da sua carta que já cometeu duas infracções.

— É verdade, e por isso fui mais que cuidadoso.

— Parece-me que, se não estivesse mesmo atrás, não teria ido logo para cima dele. Quis virar e apanhou-o pela direita. Tenho de lhe passar uma con-trafé, Harold.

Depois, a Moisés: disse. — A si, tenho de o levar. Vai ser incriminado por um pequeno delito.

— Este velho revólver?

— Carregado...

— Ora, não significa coisa alguma. Não tenho cadastro... nunca fui incriminado.

Esperaram que se pusesse de pé. Com o seu nariz afilado, o motorista da furgoneta Volkswagen fitou-o de sobrancelhas carregadas e, sob este olhar vermelho e irado, Herzog levantou-se e pegou na filha, que deixou tombar o chapeuzinho quando ele a ergueu. O cabelo caía-lhe à vontade rente ao rosto, bastante comprido. Não podia tornar a curvar-se para procurar o travessão de tartaruga. A porta do carro da polícia, estacionado numa encosta, escancarou-se para ele. Sentia agora o que era estar-se preso. Ninguém fora roubado, ninguém morrera. No entanto sentia a sombra pesada e fatal pairando sobre si. «Quadra-se mesmo contigo», disse para si próprio. Não podia fugir à auto-acusação. Quanto a esta grande pistola niquelada, o que quer que na véspera tivesse tencionado fazer com ela, devia tê-la deixado hoje no saco de viagem debaixo do sofá de Asphalter. Ao pôr o casaco de manhã e sentir o peso incómodo no peito, nesse preciso momento, podia ter deixado de ser quixo-tesco. Pois não era um Quixote, ou seria? Um Quixote imitava grandes modelos. Que modelos imitava ele? Um Quixote era um cristão, e Moisés E. Herzog não era cristão. Esta era a América pós-quixotesca, pós-copernicana, onde um espírito livremente localizado no espaço podia descobrir relações perfeitamente insuspeitadas por um homem do século XVII estigmatizado pelo seu pequeno universo. Nisso consistia a sua vantagem de pertencer ao século XX. Mas — caminhavam pela erva em direcção à luz azul rodopiante — em nove décimos da sua vida era exactamente o que outros haviam sido antes de si. Pegara no revólver (com uma intenção tão intensa quanto difusa) porque era o filho de seu pai. Estava quase certo de que Jonah Herzog, receoso da polícia, dos agentes do fisco, ou de rufias, não podia manter-se afastado destes inimigos. Perseguia os seus próprios terrores e desafiava-os a aniquilarem-no. (Medo: poderia admiti-lo? Choque: sobreviver-lhe-ia?) Os antigos Herzogs com os seus salmos, xailes e barbas não teriam jamais tocado num revólver. A violência era para os goy. Mas tinham passado, desaparecido, homens arcaicos. Jonah, por um dólar, comprara uma pistola, e Moisés, nesta manhã pensara. «Ora, diabos... porque não?», e, abotoando o casaco, descera para o automóvel.

— Que vamos fazer a este Falcon? — perguntou ao polícia. Deteve-se. Mas empurraram-no, dizendo: — Não se preocupe. Nós nos encarregaremos dele. Avistou o reboque que se aproximava com a sua grua e gancho. Também este tinha uma luz giratória azul sobre a cabina.

— Escutem — observou. — Tenho de levar esta criança a casa.

— Há-de ir para casa. Não corre qualquer perigo.

— Mas estão à espera que a entregue às quatro. — Tem quase duas horas.

— Mas isto não demorará mais de uma hora? Ficar-lhes-ia muito grato se me deixassem tratar primeiro dela.

— Avance, Moisés... — Rudemente amável, o polícia mais velho da patrulha incitou-o a andar.

— Ela não almoçou.

— Você está em pior estado que ela.

— Vamos lá, então.

Encolheu os ombros e amarfanhou a gravata manchada, largando-a na berma da estrada. O golpe não era grave; deixara de sangrar. Ajudou June a entrar e, uma vez sentado no calor ardente do banco plástico da retaguarda, pegou-lhe ao colo. Será esta, por acaso, a realidade que tens procurado, Herzog, com a tua seriedade de Herzog? Nivelado com os outros homens — a vida normal? Não podes, sozinho, determinar que realidade é real? Qualquer filósofo te pode dizer que se baseia, como todo o juízo racional, num consenso objectivo. Mas esta forma particular de o fazer foi perversa. Não deixou no entanto de ser humana. Queimas a casa para assar o porco. Foi assim que a humanidade sempre assou porcos.

Explicou a June. — Vamos dar um passeio, meu amor. — Ela aquiesceu e permaneceu silenciosa. Tinha o rosto sem lágrimas, nublado, o que era muito pior. Magoava-o. Despedaçava-lhe o coração. Como se Madalena e Gersbach não bastassem, ele tinha surgido de imprevisto com o seu amor e nervosismo impacientes, abraços, beijos, periscópios, emoções ansiosas. A filha tivera de lhe ver a cabeça sangrenta. Os olhos ardiam-lhe e fechou-os com o polegar e indicador. As portas bateram. O motor produziu um brusco ronco, arrancou suavemente, e o magnífico ar seco estival começou a entrar, à mistura com gases de combustão, o que lhe agravou a náusea como uma corrente de ar forçada. Quando o carro deixou a berma do lago, abriu os olhos para a fealdade amarela da 22.a Rua. Reconheceu o panorama familiar do flagelo do Verão. Chicago! Aspirou o intenso cheiro quente dos produtos químicos e tintas da fábrica de Donnely.

Vira os polícias revistarem-lhe as algibeiras. Com aquela idade observara tudo nitidamente. E tudo se dividia entre belo e terrível. Estava para sempre maculado de coisas que sangravam ou fediam. Perguntava a si mesmo se ela se recordaria tão vivamente como ele se recordava da matança da criação, como se recordava do áspero grasnido das galinhas ao serem arrastadas das capoeiras de ripas, dos excrementos e da serradura, do calor e cheiro da bicharada, das aves encrespadas quando lhes cortavam os pescoços que sangravam até à morte, de cabeça para baixo em alguidares de zinco, mexendo, mexendo, raspando, raspando com as patas, no recipiente metálico. Sim, era na Rua Roy, junto à lavandaria chinesa onde esvoaçavam os dísticos escarlates com símbolos negros. E era perto da vereda esconsa — o coração de Herzog começou a palpitar; sentiu-se como que febril — onde fora assaltado por um homem numa suja noite de Verão. O homem tapou-lhe a boca com a mão, por detrás. Sussurrou-lhe qualquer coisa enquanto descia as calças. Tinha os dentes podres e o rosto hirsuto. E entre as coxas do rapaz aquela horrível coisa vermelha sem pele passava para trás e para diante, para trás e para diante, até que soltou um jacto de baba. Os cães nos pátios das traseiras saltavam contra as cancelas, ladravam e rosnavam, espumando saliva — os cães com os seus latidos estridentes, enquanto Moisés tinha o pescoço comprimido pelo cavado do braço do homem. Sabia que podia ser morto. O homem podia estrangulá-lo. Como o sabia?! Adivinhava. Portanto ficou ali quieto. Em seguida o homem abotoou o seu casaco de militar e dirigiu-lhe a palavra. — Vou dar-te uma moeda. Mas tenho de trocar este dólar. — Mostrou-lhe a nota e disse-lhe para esperar no sítio onde estava. Moisés viu-o afastar-se pela terra lamacenta da vereda, vergado e descarnado no seu casaco comprido, marchando rapidamente, com maus pés; maus pés, maldosos pés, recordava-se Moisés; quase a correr. Os cães deixaram de ladrar, e ficou à espera, com medo de esboçar um movimento. Finalmente foi buscar as calças molhadas que enfiou, encaminhando-se para casa. Deixou-se ficar sentado algum tempo na varanda e apareceu ao jantar como se nada tivesse acontecido. Nada! Lavou as mãos no lava-louça com Willie e sentou-se à mesa. Comeu a sopa.

E mais tarde quando esteve no hospital e era visitado pela boa senhora cristã, a dos sapatos abotinados e do alfinete no chapéu que parecia um trólei, da voz suave e olhar severo, esta pedia-lhe que lesse o Novo Testamento, e ele abriu e leu: «Deixai vir a mim os pequeninos.» Depois ela voltara para outra página que dizia: «Dá e receberás. Uma boa medida... será dada pelos homens ao teu coração.»

Bem, há um famoso conselho, um grande conselho apesar de alemão, o de esquecer aquilo que se não pode suportar. Os fortes podem esquecer, alhear-se da história. Muito bem! Mesmo que seja auto-lisonja falar de força — estes filósofos estetas assumem uma postura, mas o poder destrói as posturas. No entanto, é verdade que não é possível transpor pesadelo após pesadelo, Nietzsche estava perfeitamente certo quanto a isso. Os de espírito fraco têm de endurecer. Não será este mundo mais que um estéril monte de carvão? Não, não, mas o que por vezes se assemelha a um sistema de prevenção, uma negação do que todo o ser humano sabe. Amo os meus filhos, mas faço parte do mundo e causo-lhes pesadelos. Tive esta criança da minha inimiga. E amo-a. Não é misterioso este facto de amar a filha da minha inimiga? Mas um homem não necessita de felicidade para úpróprio. Não, pode coexistir com todos os tormentos — com recordações, com os seus próprios males familiares, com o desespero. E é esta a história não escrita do homem, a sua realização desapercebida, negativa, a sua capacidade de agir sem prazer para si próprio desde que exista algo de grande a que o seu ego, todos os egos se possam entregar. Não precisa de um sentido enquanto este entusiasmo tiver um objectivo. Porque então é auto-evidente; é sentido.

Mas tudo isto tem de terminar. Por isto entendia coisas como o presente passeio no carro da polícia. A sua ideia filial (praticamente chinesa) de trazer um revólver feio e inútil. Odiar, estar numa posição capaz de tomar uma atitude perante tal facto. Ódio é auto-respeito. Se se deseja andar de cabeça erguida entre as pessoas...

Passavam pela Rua do Estado do Sul; aqui costumavam os distribuidores de filmes expor os seus vistosos cartazes: Tom Mix precipitando-se de um penhasco; agora é simplesmente uma tranquila rua vazia onde se vendem objectos de vidro para bares. Mas qual é a filosofia desta geração? Não «Deus morreu», esse estádio foi há muito ultrapassado. Talvez se devesse afirmar que «A Morte é Deus». Esta geração pensa — e é este o seu grande pensamento — que nada de fiel, vulnerável, frágil pode ser duradouro ou ter um poder real. A morte está à espera destas coisas como um chão de cimento espera uma lâmpada que tomba. A frágil membrana de vidro rebenta perdendo o seu diminuto vácuo. É assim. Eis como ensinamos metafísica uns aos outros.

«Pensam que a história é a história de corações que se amam? Loucos! Atentem nestes milhões de mortos. São porventura capazes de os lamentar, de se condoerem da sua sorte? Não são! São mortos demasiados. Reduzimo-los a cinzas, enterrámo-los com tractores. A história é a história da crueldade, não do amor, como julgam os bem intencionados. Experimentámos todas as capacidades humanas para ver qual delas é forte e admirável e demonstrámos que nenhuma o é. Temos de admitir apenas o aspecto prático. Se o antigo Deus existe é forçosamente um assassino. Mas o único Deus autêntico é a Morte. Assim é — sem ilusões cobardes.» Herzog ouvia isto como se estivesse a ser pronunciado lentamente dentro da sua cabeça. Tinha a mão molhada e largou o braço de June. Talvez o que o fizera desmaiar não tivesse sido o acidente mas a previsão destes pensamentos. A náusea não passava de apreensão, excitação, do insuportável pathos destas ideias.

O carro parou. Como se tivesse vindo para a esquadra num barco baloi-çante, por sobre a água, cambaleou ao sair para o passeio. Proudhon afirma «Deus é o mal». Mas, uma vez que tenhamos procurado no seio da revolução universal La foi nouvelle, que acontece? A vitória da morte, não da racionalidade, não da crença racional. A nossa própria imaginação assassina revela-se como o poder fundamental, a nossa imaginação humana que começa por acusar Deus de assassínio. Na base desta situação calamitosa reside a sensação que o ser humano experimenta de uma injustiça, e assim não nos resta nada a fazer. É mais fácil pura e simplesmente não existir do que acusar Deus. Muito mais simples. Mais eficaz. Mas deixemo-nos disto!

Entregaram-lhe a filha e escoltaram-nos até ao elevador que parecia suficientemente amplo para um esquadrão. Dois homens que tinham sido apanhados — mais dois presos — subiram com ele. Estava na esquina da 11.a Rua e da Rua do Estado. Recordava-se. Ambiente horrível. Homens armados entravam, saíam. Conforme lhe ordenaram, seguiu o polícia negro de mãos enormes e ancas largas pelo corredor. Outros caminhavam atrás de si. Necessitavam de um advogado e pensou, naturalmente, em Sandor Himmelstein. Riu ao pensar no que diria Sandor. O próprio Sandor usava métodos policiais, uma arguta psicologia, a mesma que na Lubianka, a mesma que em todo o mundo. Primeiro acentuava a brutalidade, depois, uma vez alcançados os resultados desejados, abrandava, podia já optar por uma atitude mais simpática. As suas palavras eram memoráveis. Gritava que abandonaria o caso e deixaria que homens de leis de fama duvidosa se encarregassem de Moisés, que o fechassem a sete chaves, lhe tapassem a boca, lhe virassem as tripas, lhe acrescentassem um metro ao nariz, e lhe cobrassem dinheiro por respirar. Sim, sim, eram palavras inesquecíveis, as palavras de um professor de Realidade. Eram-no de facto. — Teria então prazer em pensar na sua morte. Entraria para o caixão como se fosse um novo carro de desporto. — E continuava. — Hei-de deixar a minha mulher uma viúva rica, e ainda com boa idade para se divertir. — Repetia isto com muita frequência. Agora, Herzog achava-lhe graça. Corado, taciturno, com a camisa manchada de sangue, pensava nisso, sorrindo ironicamente. Não devia desprezar o velho Sandor por ser tão rude. É esta a sua versão pessoal, brutal, da perspectiva popular, da maneira de viver americana. E qual tem sido a minha maneira de viver?» Gosto do gatinho, o seu pêlo é tão quente; se não o magoarmos não faz mal à gente», que representa o lado infantil do mesmo credo, de que são cruelmente despertados, tornando-se então mal-humorados realistas. Abre os olhos, pateta! Ou a versão da Tante Taube de um inocente realismo: «O Gottseliger Kaplitzky ocupava-se de tudo. Eu nem sequer olhava.» Mas a Tante Taube era arguta, não só delicada. Entre o olvido e o olvido, as coisas que faremos e as coisas que diremos... Mas por esta altura ele e June tinham sido levados para um aposento grande mais fechado, e um outro polícia negro, um sargento, preenchia-lhe a ficha. Era já avançado nos anos, homogeneamente enrugado. Com rugas salientes, não com sulcos. A tez podia-se-lhe definir por um amarelo-escuro, um negro dourado. Conferenciou com o polícia captor, observou em seguida a pistola, tirou as duas balas, sussurrou mais perguntas ao colega das calças reluzentes que se inclinava para sussurrar secretamente.

— Vamos a isto — disse então para Moisés. Pôs os seus óculos à Ben Fran-klin, duas lentes coloniais, com finos aros de ouro. Pegou na caneta.

— Nome?

— Herzog... Moisés.

— Inicial do meio.

— E. Elkanah.

— Morada.

— Não vivo em Chicago.

O sargento, relativamente paciente, repetiu — Morada?

— Ludeyville, Massachusetts, e Nova Iorque. Bem, está bem, Ludeyville, Massachusetts. Não tem número da rua.

— É sua filha?

— Sim, senhor. A minha filhinha June.

— Onde vive ela?

— Aqui na cidade, com a mãe, na Avenida Harper.

— É divorciado?

— Sim, senhor. Vim ver a criança.

— Estou a ver. Não a quer pôr no chão?

— Não, senhor guarda... sargento — corrigiu-se, sorrindo amavelmente. — Estou a preencher a sua ficha, Moisés. Não estava embriagado, ou estava?

Bebeu hoje alguma coisa?

— Bebi ontem à noite antes de me deitar. Hoje, nada. Quer que me submeta ao teste do álcool?

— Não é necessário. Não há qualquer acusação da polícia de trânsito.

Estamos a ocupar-nos de si por causa desta pistola. Herzog puxou para baixo o vestido da filha.

— Não passa de uma lembrança. Tal como o dinheiro.

— Que espécie de massa é esta?

— É russa, da primeira grande guerra mundial.

— Esvazie as algibeiras, Moisés. Passe-me o que tiver para eu examinar. Sem protestar, poisou sobre a mesa o dinheiro, as agendas, canetas, o pedaço de lenço, o pente de algibeira, e as chaves.

— Parece-me que tem aí uma baralhada de chaves, Moisés.

— É verdade, senhor, mas posso identificá-las todas.

— Está bem. Não há lei nenhuma contra chaves, a não ser que se seja um ladrão.

— A única chave de Chicago é a que tem a marca vermelha. É a chave do apartamento do meu amigo Asphalter. Devia encontrar-se comigo às quatro horas, à porta do Museu Rosenwald. Tenho de lhe entregar a pequena.

— Bem, ainda não são quatro horas, e por enquanto não pode sair.

— Gostaria de lhe telefonar a avisá-lo. Senão, ficará à espera.

— Bem, Moisés, porque não leva a miúda directamente a casa da mãe?

— Compreende... estamos de relações cortadas. Tivemos muitas questões.

— Parece-me que o senhor é capaz de ter medo dela.

Herzog experimentou um breve ressentimento. A observação fora calculada para agir como provocação. Mas nesta altura não podia dar-se ao luxo de se irritar. — Não, senhor, não é propriamente assim.

— Então talvez ela tenha medo de si.

— Foi o que combinámos, por intermédio de um amigo. Não vejo essa mulher desde o Outono passado.

— Perfeitamente, vamos chamar o seu amigo e a mãe da miúda, também. Herzog exclamou: — Oh, não a chame!

— Não? — O sargento dirigiu-lhe um sorriso singular, e recostou-se por um momento na cadeira como se já lhe tivesse arrancado aquilo que desejava. — Claro que a vamos mandar vir aqui para vermos o que tem a dizer. Se ela tiver qualquer queixa contra si, então, será pior que um simples porte ilegal de arma de fogo. A acusação será, nesse caso, mais grave.

— Não há qualquer queixa, sargento. Pode registar isso sem a obrigar a fazer esta caminhada. Sou eu quem sustenta esta criança e nunca falto com um cheque. Eis tudo o que a Sra. Herzog lhe poderá contar.

— A quem teria comprado este revólver?

Lá reaparecia ela de novo, a insolência natural dos polícias. Estava a ser espicaçado. Mas manteve a calma.

— Não o comprei. Pertencia ao meu pai. Isso e os rublos russos.

— Não passa de um sentimental?

— Exactamente. Sou um sentimental, raios me partam. Pode chamar-me assim.

— Também é sentimental em relação a isto? — Bateu levemente em cada bala, de per si, uma, duas... — Vamos fazer os telefonemas. Jim, escreva os nomes e números.

Falava com o chui que prendera Herzog. Tinha permanecido ali, de pé, bochechudo, cofiando os pêlos do bigode com a unha, contraindo os lábios.

— Pode servir-se da minha agenda, essa vermelha. Empreste-ma, por favor. O nome do meu amigo é Asphalter.

— E o outro nome é Herzog — disse o sargento. — Na Avenida Harper, não é?

Moisés aquiesceu. Observava os grossos dedos voltando as páginas à agenda de calfe parisiense com os seus rabiscos e borrões. — Limita-se a contrariar-me se avisar a mãe da criança — interferiu ele, fazendo uma derradeira tentativa para persuadir o sargento. — Porque não lhe bastaria que viesse aqui o meu amigo Asphalter? — Vamos lá, Jim.

O negro marcou os sítios a lápis vermelho, e saiu. Moisés esforçou-se energicamente por manter uma aparência natural — sem provocações, sem súplicas especiais, sem fosse o que fosse que aparentasse a menor tonalidade pessoal. Recordava-se de que outrora acreditara no poder de um olhar directo que apagasse diferenças de posição, de acaso, na possibilidade de um ser humano abrir silenciosamente o seu coração a outrem. O reconhecimento da essência pela essência. Sorriu interiormente disto. Belos sonhos, esses! Se tentasse olhá-lo nos olhos, o sargento atirar-lhe-ia com o livro. Madalena, portanto, vinha. Bem, que viesse. Talvez fosse o que afinal desejava, uma oportunidade para a enfrentar. De nariz rectilíneo e pálido, fixava, absorto, o chão. June mudou de posição nos seus braços, intensificando-lhe a dor nas costelas. — O paizinho pede-te desculpa, meu amor — disse. — Para a próxima vez vamos ver os delfins. Naturalmente os tubarões deram-nos azar.

— Pode sentar-se, se quiser — observou o sargento. — Parece um pouco fraco das pernas, Moisés.

— Gostaria de telefonar ao meu irmão para que mandasse o advogado dele. A não ser que não necessite de advogado. Se tenho de entregar uma caução...

— Terá de a entregar, mas não posso ainda precisar o valor. Está aqui uma série de caucionados. — Esboçou um gesto com as costas da mão ou com uma sacudidela do pulso, e Moisés voltou-se, deparando com indivíduos de todas as espécies alinhados atrás de si ao longo das paredes. De facto, havia dois homens, notou então, que andavam de um lado para o outro ali perto, fiadores, a avaliar pelo aspecto repugnante. Reconheceu neutralmente que o estavam a considerar como um risco. Tinham-lhe já visto o bilhete de avião, as chaves, canetas, rublos, e a carteira. Se fosse o seu próprio carro, o danificado na estrada, ter-lhe-ia servido para uma pequena fiança. Mas um carro alugado? Mas um homem de outro estado, de sujo fato de linho, sem gravata? Não parecia merecer umas escassas centenas de dólares. Se não for mais que isso, reflectiu, talvez me consiga arranjar sem maçar o Will, ou o Shura. Há indivíduos que causam sempre uma boa impressão. Nunca tive essa habilidade. Devido aos meus sentimentos. Um coração ardente, uma indesejável lotaria. Se me pedissem que fizesse um juízo prático acerca de mim, esse juízo não seria diferente.

Vinha-lhe agora à memória como costumava ser desterrado para o campo da esquerda quando se escolhiam equipas no areal, ou quando a bola vinha e a deixava escapar por estar a meditar em qualquer coisa todos gritavam: «Eh! Aselha. Dedos de manteiga. Que articulações safadas! Estás a olhar para as borboletas? Judeu espinhas de peixe. Espinhas de peixe! Embora silencioso, participava na irrisão.

Apertava as mãos junto ao coração da filha, que batia rápida e levemente.

— Então, Moisés, porque trazia uma pistola carregada? Para matar alguém?

— Claro que não. E, por favor, sargento, não gosto que a miúda oiça tais coisas.

— Foi o senhor quem a trouxe, não eu. Talvez desejasse apenas assustar alguém. Está zangado com alguém?

— Não, sargento, ia apenas fazer dela um pisa-papéis. Esqueci-me de tirar as balas, e isso porque não percebo grande coisa de pistolas, de forma que não me ocorreu. Permite-me que faça um telefonema?

— Calma. Não posso permitir. Sente-se, enquanto trato de outra questão. Sente-se e espere que chegue a mãe da criança.

— Não é possível arranjar uma garrafa de leite para ela?

— Dê aqui a Jim o dinheiro. Ele vai buscá-la.

— Com uma palhinha, sim June? Vais gostar de beber por uma palhinha. — Ela aquiesceu, com um sinal de cabeça, e Herzog pediu. — Se faz favor, traga também uma palhinha, se não se importa.

-Papá?

— Sim, June.

— Não me falou do mais-mais.

Por uns instantes não se recordou. Ah! — exclamou — , queres dizer o clube de Nova Iorque em que as pessoas são o mais de todas as coisas.

— Essa história.

Estava sentada entre os seus joelhos na cadeira. Procurou arranjar-lhe mais espaço. — É uma associação a que certas pessoas pertencem. São o máximo de cada tipo. Há lá o careca mais cabeludo, e o cabeludo mais careca.

— A senhora magra mais gorda.

— E a mulher gorda mais magra. O anão mais alto e o gigante mais pequeno. Aparecem lá todos. O mais fraco dos homens fortes e o mais forte dos homens fracos. O mais estúpido dos sábios e o palerma mais espertalhão. E não faltam lá acrobatas aleijados e feias beldades.

— E que fazem eles, papá?

— Na noite de sábado dão um jantar e um baile. Fazem um concurso.

— Para se distinguirem.

— Sim, meu amor. E quem for capaz de distinguir o mais cabeludo dos carecas do mais careca dos cabeludos, ganha um prémio.

Abençoada, apreciava os disparates do pai, e este tinha de a distrair. Apoiara a cabeça no seu ombro, sonolenta, mostrando os dentinhos.

A sala estava quente e fechada. Herzog, sentado a um canto, prestava atenção ao caso dos dois homens que tinham subido no elevador com ele. Dois homens à paisana prestavam declarações — a Polícia de Costumes, em breve compreendeu. Tinham trazido também uma mulher. Não tinha ainda dado por ela. Uma prostituta? Sim, evidente, não obstante o seu respeitável ar burguês. Apesar dos seus problemas, Herzog deu por si a escutar atento. O homem à paisana dizia: — Havia zaragata no quarto desta mulher.

— Bebe o leite, querida June — disse Herzog. — Está frio? Bebe-o com jeitinho, meu amor.

— Ouviu-os do corredor? — indagou o sargento. — Qual era o assunto?

— Este indivíduo estava a barafustar por causa de um par de brincos.

— Que brincos? Os que ela traz? Onde os arranjou?

— Comprei-os. A ele. Foi simplesmente um negócio.

— A prestações, que não pagou.

— Estava a pagá-las.

— Procurava reaver o seu dinheiro. Estou a ver — disse o sargento. — Ao que parece — contou o homem à paisana, explicando com um rosto pesado e parado — ele trouxe consigo este indivíduo e, depois dela fazer o seu trabalho, procurou ficar com os dez dólares para si porque ela lhe devia os brincos. Ela não queria entregar o dinheiro.

— Sargento! — lamentava-se o segundo homem. — Não tenho nada que ver com isto! Não sou da cidade.

Da cidade de Nínive, com aquelas ondeadas sobrancelhas trigueiras. Moisés observava com interesse, sussurrando ocasionalmente para a criança para lhe distrair a atenção. A mulher tinha um aspecto singularmente familiar, apesar da acentuada maquilhagem, do sombreado cor de esmeralda dos olhos, do cabelo pintado, do orgulho que lhe espessava o nariz. Gostava muito de lhe fazer uma pergunta. Não frequentara a Escola Secundária de McKinley? Não cantara no Orfeão? Também eu! Não se recorda? Herzog? Herzog que pronunciou o discurso da aula... que falou de Emerson?

— Papá, o leite não vem.

— Porque mordeste na palha. Vamos endireitá-la. — Temos de nos ir embora, sargento — disse o vendedor de jóias. — Temos pessoas à nossa espera.

As esposas! pensou Herzog. As esposas estavam à espera. — Vocês os dois são parentes? O vendedor de jóias informou: — É meu cunhado, está aqui de visita; vem de Louisville.

As mulheres, uma delas uma irmã, estavam à espera. E também ele, Herzog, estava à espera, perturbado pela expectativa. Poderia esta ser realmente a Carlota do Orfeão que cantava o solo de contralto «Uma vez mais com alegria» (de Wagner)? Não era impossível. Como estava agora! Mas porque havia alguém de pretender fazer mal a uma rapariga destas? Porquê? Sabia bem porquê. Que grossas veias nas pernas, e que seios, comprimidos. Pareciam ter sido lavados sem depois os passarem a ferro. E aquele olhar de uns olhos que sugeriam ligeiramente os dos arenques, e aboca carnuda. Mas sabia porquê. Porque tinha hábitos desonestos, eis a razão. Erudição de licenciosidade.

Neste momento, chegou Madalena. Entrou exclamando: — Onde está a minha filha...! — Então viu June ao colo de Herzog e atravessou rapidamente a sala. — Vem cá, minha pequenina! — Pegou na garrafa do leite que puxou para o lado e acolheu a miúda nos braços. Herzog sentiu o sangue latejar-lhe nos tímpanos, e uma intensa pressão na nuca. Era necessário que Madalena o visse, mas o olhar dela não revelava qualquer íntimo reconhecimento. Friamente afastou-se dele, com a testa crispada. — A criança está bem? — perguntou.

O sargento aproximou-se dos polícias de costumes para a deixar passar. — Está óptima. Se tivesse nem que fosse uma beliscadura tê-la-íamos levado ao Michael Reese. — Madalena examinou os braços de June, as pernas, apalpou-a com mãos nervosas. O sargento acenou para Moisés, que se aproximou. Ele e Mady encararam-se, um de cada lado da secretária.

Trazia um vestido de linho azul e o cabelo caía-lhe, solto, atrás. O termo que definiria a sua atitude era dominadora. Os saltos dos sapatos haviam martelado um som de comando claramente audível no sussurrar da sala. Herzog fitou longamente o seu perfil de olhos azuis, rectilíneo, bizantino, os lábios pequenos, o queixo que comprimia a carne por baixo. Estava intensament corada, sinal de que se encontrava vigilantemente consciente. Julgou descobrir um certo espessamento no rosto dela — uma rudeza incipiente. Esperava que assim fosse. Era bem feito que algo da grosseria de Gersbach a contaminasse, i Porque não? Observou que estava sem dúvida mais larga atrás. Imaginou que a causa disso seria ele agarrá-la e apertá-la. Coisas de quem se deixa escravizar por uma mulher — mas não era esta a designação adequada... atitudes amorosas.

— É este o pai da miúda, minha senhora?

Madalena continuava a recusar-lhe um olhar de reconhecimento. — Sim — confirmou — , divorciei-me dele. Há pouco.

— Vive em Massachusetts?

— Não sei onde vive. Nada tenho que ver com isso.

Herzog estava maravilhado. Não podia deixar de admirar a perfeição do seu controle. Nunca hesitava. Quando tirou o leite a Junie soube exactamente onde deitar a embalagem, embora não estivesse na sala havia mais de um minuto. Por esta altura teria já decerto feito um inventário de todos os objectos poisados na secretária, incluindo os rublos e a pistola, naturalmente. Nunca a vira, mas podia identificar as chaves de Ludeyville pelo fecho magnético da argola, e compreenderia que a pistola lhe pertencia. Conhecia-lhe tão bem os gestos, o ar de patrícia, o tique do nariz, a louca e clara altivez dos olhos. Enquanto o sargento a interrogava, Moisés, no seu estilo confuso mas ardente, pensava se ela exalaria ainda aqueles aromas de secreções femininas — a falta de limpeza que a caracterizava. Aquele seu perfume pessoal doce e acre, e os seus olhos de um azul de chama, o seu olhar perscrutador e a boca pequena sempre pronta para a mordacidade nunca mais voltariam a exercer sobre ele o mesmo poder. Contudo, provocava-lhe dores de cabeça o simples facto de a ver. As pulsações no crânio latejavam-lhe rápidas e regulares, como os dentes de uma máquina matraqueando na sua película de óleo escuro.

Observava-a com muita nitidez — a macieza do peito, descoberto pelo decote quadrado do vestido, a macieza das pernas, de um castanho de indiana. O rosto, especialmente a testa, era demasiado macio, demasiado glabro para o gosto dele. Todo o peso da sua severidade aí se concentrava. Tinha aquilo a que os franceses chamam lefront bombé; por outros termos, uma testa pedomórfica. Fundamentalmente incognoscíveis, os processos que por trás dela decorriam. Vês, Moisés? Não nos conhecemos um ao outro. Mesmo esse Gersbach, Chamemos-lhe o que quisermos, charlatão, psicopata, com os seus olhos falsos e ardentes e as suas faces grosseiras, com pregas. Era incognoscível. E eu próprio, igualmente. Mas uma acção cruel e desumana contra um homem é uma asserção de malfeitores perfeitamente cognoscível. Suprimiram, ergo reivindicavam um conhecimento total de Herzog. Conheciam-me! E eu associo-me a Espinosa (espero que não se importem), afirmando que exigir o que é impossível a um ser humano, exercer um poder onde ele não pode ser exercido, é tirania. Desculpai-me, portanto, meu senhor e minha senhora, mas rejeito as vossas definições de mim. Ah, esta Madalena é uma pessoa estranha, tão orgulhosa e insuportável — tão bela, mas deformada pela raiva — um espírito que é uma amálgama de puro diamante e vidro de Wool-worth. E Gersbach que me lisonjeava. Por essa simbiose. Simbiose e porcaria. E ela, doce como rebuçados baratos e tão reminiscente de veneno como ácidos doces químicos. Mas eu não elaboro um julgamento final. Isso está bem para eles, não para mim. Vim para fazer mal, admito. Mas quem primeiro verteu sangue fui eu, e portanto encontro-me fora dessa história. Não contem comigo. A não ser no que respeita a June. Mas, quanto ao resto, saio da cena o mais cedo que puder. Adeus a todos.

— Fê-la passar maus bocados? — Herzog. que estivera subconscientemente a escutar, ouviu o sargento formular esta pergunta.

Dirigiu-se sobriamente a Madalena — Olha, por favor. Não entremos em problemas desnecessários.

Ela ignorou-o. — Aborreceu-me, sim.

— Fez algumas ameaças?

Herzog esperou, contraído, por uma resposta. Ela não esqueceria a pensão — a renda. Era prudente, uma mulher soberbamente arguta, muito prudente. Mas não era de desprezar a violência do seu ódio, e esse ódio tinha ressaibos de loucura.

— Não, directamente a mim, não. Não o vejo desde Outubro último. — A quem, então? — O sargento incitava-a.

Madalena, evidentemente, faria o impossível para lhe enfraquecer a posição. Tinha consciência de que as suas relações com Gersbach poderiam interferir na decisão sobre a custódia e portanto aproveitaria ao máximo a sua fraqueza actual, a idiotia. — O psiquiatra dele — afirmou — achou aconselhável avisar-me.

— Achou aconselhável! De quê? — exclamou impetuosamente Herzog.

Ela continuava no entanto a dirigir-se apenas ao sargento. — Disse que estava preocupado. O nome dele é Dr. Edvig, no caso de desejar falar-lhe. Sentiu a necessidade de me avisar...

— O Edvig é um pateta... é um doido — observou Herzog.

Madalena estava muito corada, a garganta enrubescia-lhe, como um rosado..., um quarto róseo, e essa curiosa tonalidade subia-lhe aos olhos. Sabia o que este momento significava para ela — felicidade! Ah, sim, disse para si mesmo, o judeu aselha deixou escapar outra bola no campo da esquerda. A outra equipa está a ganhar aos pontos. Ela estava a fazer um brilhante uso do terror.

— Reconhece esta pistola? — O sargento segurava-a na palma da mão amarela, voltando-a com dedos delicados como se se tratasse de um peixe — uma perca.

O fulgor do seu olhar ao pousar no revólver era mais profundo que qualquer expressão sexual que jamais lhe tivesse vislumbrado no rosto. — É dele, não é? — indagou. — As balas também? — Reconheceu o duro e claro olhar de alegria dos seus olhos. Tinha os lábios apertados.

— Trazia-a com ele. Conhecia-lha?

— Não, mas não me surpreende.

Moisés fitava agora June. O rosto dela estava de novo nublado; parecia franzir as sobrancelhas.

— Alguma vez apresentou aqui uma queixa contra Moisés?

— Não — disse Mady — Realmente nunca apresentei — Respirou fundo. Estava prestes a fazer alguma revelação

— Sargento — disse Herzog. — Bem lhe disse que não havia qualquer queixa. Pergunte-lhe se alguma vez faltei com um cheque da pensão.

Madalena contou: — Entreguei uma fotografia dele na esquadra de Hyde Park.

Avisou-a de que estava a ir longe de mais. — Madalena! — exclamou.

— Cale-se, Moisés — vociferou o sargento. — Para quê, minha senhora?

— Não se desse o caso de ele rondar a casa. Para os alertar.

Herzog abanou a cabeça, em parte para si mesmo. Fizera hoje um tipo de erro que pertencia a um período anterior. Não era já característico de hoje. Mas tinha de pagar por uma posição anterior. Quando é que andarás sincronizado contigo mesmo?! perguntou a si próprio. Quando virá esse dia?!

— Alguma vez rondou?

— Nunca foi visto, mas bem sei que o fez. É ciumento e desordeiro. Tem um feitio terrível.

— No entanto, nunca apresentou uma queixa?

— Não. Mas espero encontrar-me protegida de qualquer espécie de violência.

A voz ergueu-se-lhe bruscamente, e enquanto falava, Herzog viu o sargento mirá-la de novo, como se começasse a descobrir-lhe as altivas peculiaridades. Pegou nos óculos à Ben Franklin com as lentes redondas — Não vai haver qualquer violência, minha senhora.

Sim, pensou Moisés, está a principiar a ver como ela é. — Nunca tencionei utilizar essa pistola senão como pisa-papéis — asseverou ele.

Madalena dirigiu-se então a Herzog pela primeira vez; apontando com um dedo estendido as duas balas e fitando-o nos olhos exclamou: — Uma delas era para mim, não era?!

— Achas? Não sei onde foste buscar essas ideias! E para quem era a outra?

— Estava perfeitamente calmo ao dizer isto num tom equilibrado. Fazia todo o possível por revelar a Madalena escondida, a Madalena que conhecia. Ao fitá-lo, empalideceu e o nariz começou a mover-se-lhe muito ligeiramente. Parecia compreender que tinha de controlar o tique e a violência do seu olhar. Mas por uma evidente gradação o rosto tornou-se-lhe muito branco, os olhos mais pequenos, empedernidos. Ele julgava poder interpretá-los. Exprimiam um desejo total de que ele morresse. Infinitamente mais que o vulgar ódio. Era um voto para a sua não-existência, pensou. Perguntou a si próprio se o sargento seria capaz de vislumbrar isto. — Bem, para quem pensas que era o segundo tiro imaginário?

Ela não lhe dirigiu mais palavra, continuou apenas a mirá-lo da mesma forma.

— Basta por agora, minha senhora. Pode sair com a menina.

— Adeus, June — disse Moisés. — Vais agora para casa. O paizinho em breve te verá. Dá cá um beijo, agora, na cara. — Sentiu os lábios da criança. Debruçando-se sobre o ombro da mãe, June esticou-se e tocou-lhe. — Que Deus te abençoe.

— Enquanto Madalena se afastava acrescentou: — Hei-de voltar a ver-te.

— Vou agora acabar a sua ficha, Moisés.

— Tenho de depositar uma fiança? De quanto?

— Trezentos. Americanos, não desta coisa.

— Gostava que me permitisse fazer um telefonema.

Enquanto o sargento silenciosamente lhe mandava usar uma das suas próprias moedas, Moisés teve ainda tempo para notar o enérgico rosto do polícia. Devia ter sangue índio — Cherokee, talvez, ou Osage; um ou dois antepassados irlandeses. A sua lívida pele dourada com sulcos descendentes, o nariz austero e os lábios proeminentes exprimindo impassibilidade, e os muitos caracóis grisalhos separados, infinitesimais na cabeça como expressão de dignidade. Os dedos grosseiros apontavam a cabina telefónica.

Herzog estava cansado, arrasado, ao marcar o número do irmão, mas de forma alguma deprimido. Não sabia porquê, julgava ter procedido bem. Estava a ser consequente, sim; mais uma tolice; e Will teria de lhe pagar a caução. Contudo, não estava oprimido; antes pelo contrário, sentia-se livre. Talvez estivesse demasiado cansado para estar melancólico. Teria possivelmente sido, afinal, o desgaste metabólico da fadiga (apreciava estas explicações fisiológicas; esta tirara-a do ensaio de Freud sobre Dor e Melancolia) que o tornava temporariamente despreocupado, alegre mesmo. -Está?

- O Will Herzog está? Reconheceram a voz um do outro.

— Moisés! — exclamou Will.

Herzog não conseguia dominar os sentimentos despertados ao ouvir Will. Irromperam subitamente ao ouvir a velha entoação, o velho nome. Amava Will, Helena, Shura, embora os milhões dele o tivessem distanciado. Na reclusão da cabina metálica o suor perlou-lhe instantaneamente o pescoço.

— Onde tens estado, Moisés? A velhota falou-me a noite passada. Não consegui dormir depois disso. Onde estás?

— Elya — disse Herzog, usando o nome familiar do irmão — , não te aflijas. Não fiz nada de grave, mas estou na esquina da 11.a Rua com a Rua do Estado.

— No departamento central da polícia?

— Tive apenas um pequeno acidente de viação. Não ficou ninguém ferido. Mas caucionaram-me em trezentos dólares e não tenho aqui dinheiro.

— Por amor de Deus, Moisés. Ninguém te vê desde o último Verão. Temos andado muito preocupados. Vou imediatamente para aí.

Esperou na cela com dois outros homens. Um estava embriagado e dormia em ceroulas, imundas. O outro era um rapaz negro, ainda imberbe. Trazia um fato caro de uma cor fulva e sapatos de crocodilo castanhos. Herzog cumprimentou, mas o rapaz preferiu não responder. Estava ensimesmado na sua desgraça, e olhava para longe. Moisés teve pena dele. Encostou-se às grades esperando. Ao lado errado das grades — sentiu com a face. E lá estavam a bacia, a nua tarimba de metal, e as moscas no tecto. Esta, compreendeu Herzog, não era a esfera dos seus pecados. Limitava-se a atravessá-la. Lá fora, nas ruas, na sociedade americana, eis o seu lugar. Sentou-se calmamente na tarimba. Claro, pensou, que deixaria imediatamente Chicago, e regressaria apenas quando fosse capaz de fazer bem a June, um bem autêntico. Acabaram-se as colisões, os desmaios, os encontros tempestuosos, as confrontações. O rumor de desordem vindo das celas e corredores, o mau cheiro da prisão, o abatimento dos rostos, a mão que dava volta à chave sem mais esperança que a mão deste letárgico homem adormecido com as suas ceroulas manchadas de urina — o homem que tem olhos, narinas, ouvidos, que oiça, que cheire, que veja. O homem que tem intelecto, coração, que medite.

Sentando-se o mais confortavelmente que lhe permitia a dor nas costelas, Herzog chegou mesmo a rabiscar algumas memoranda para si próprio. Não eram muito coerentes nem mesmo lógicas, mas afloraram-lhe ao espírito muito naturalmente. Era assim que trabalhava Moisés E. Herzog, e escrevia sobre o joelho com alegre entusiasmo: Maquinaria tosca, inadequada, da paz civil. Paleotécnica, como se devia chamar-lhe. Se um crime comum original está na origem da ordem social, como crêem Freud, Róheim, etc, o bando de irmãos que ataca e assassina o pai original, ganhando a liberdade por um assassínio, unido por um crime sanguíneo, então há uma razão para que a cadeia tenha este aspecto sombrio e arcaico. Ah, sim, a energia selvagem do bando de irmãos, soldados, violadores, etc. Mas tudo isso não passa de uma metáfora. Não consigo francamente sentir que possa atribuir o meu erro a uma espessa nuvem inconsciente. Essa primitiva fascinação pelo sangue.

O sonho do coração do homem, por mais que possamos desconfiar e ressentirmo-nos dele, é de que a vida do homem se realize globalmente em moldes significativos. De qualquer forma incompreensível. Antes da morte. Se realize não irracional mas incompreensivelmente. Privados destes rudes carcereiros policiais, teríamos uma última oportunidade de descobrir a justiça. A verdade.

Caro Edvig, escrevinhou rapidamente. Recompensou-me bem pelo meu dispêndio de dinheiro, ao explicar-me que as neuroses se podiam classificar segundo o grau de incapacidade para tolerar situações ambíguas. Acabo de ler um veredicto nos olhos de Madalena, «Para os cobardes, a não-existência!» A perturbação dela é a super-clareza. Permita-me que modestamente o informe que tolero agora muito melhor ambiguidades. Julgo poder afirmar, contudo, que me foi poupada a principal ambiguidade que aflige os intelectuais e é esta: a que considera que os indivíduos civilizados odeiam e se ressentem da civilização que lhes torna a vida possível. O que amam é uma situação humana imaginária inventada pelo seu próprio génio e que crêem ser a única realidade autêntica e humana. Que singular! Mas o sector mais bem tratado, mais favorecido e inteligente de qualquer sociedade é frequentemente o mais ingrato. A ingratidão, no entanto, é a sua função social. Eis aí uma ambiguidade para si!... Querida Ramona, devo-te muito. Reconheço-o inteiramente. Embora talvez não regresse já a Nova Iorque, tenciono dar-te notícias. Meu Deus! Piedade! Meu Deus! Rachaim olenu... melekh maimis... Soberano da Morte e da Vida...!

O irmão observou, ao saírem do Governo Civil: — Não pareces muito abalado.

-Não,Will.

Por cima do passeio e das sombras tépidas da noite, o céu exibia os longos rastos dourados dos jactos e as luzes confusas de tabernas, mesmo ao norte da 12.a Rua haviam já principiado a tremular, um pálido aglomerado no qual a rua parecia terminar.

— Como te sentes?

— Sinto-me esplêndido — replicou Herzog. — Que aspecto tenho?

O irmão observou discretamente. — Podias repousar um pouco. Não queres ser visto pelo meu médico?

— Não me parece necessário. Este pequeno golpe na cabeça deixou de sangrar quase imediatamente.

— Mas não deixas de apertar um dos lados. Não sejas tonto, Moisés.

Will era um homem pouco exuberante, encorpado, altivo, calmo, mais pequeno que o irmão mas com cabelo mais farto, mais escuro. Numa família de pessoas ardentemente expressivas como o pai Herzog e a tia Zipporah, Will adquirira um modo de ser mais calmo, cumpridor, reticente.

— Como vai a família, Will... os miúdos?

— Óptimos... Que tens feito, Moisés?

— Não te fies nas aparências. Há menos razão para preocupações do que se pode supor à primeira vista. Estou realmente muito bem. Lembras-te de quando nos perdemos no lago Wandawega? Chafurdando no lodo e cortando os pés naqueles caniços? Isso foi realmente perigoso. Mas isto não vale nada.

— Que fazias tu com aquela pistola?

— Bem sabes que não sou mais capaz de disparar contra quem quer que seja que o pai. Tu levaste-lhe a corrente do relógio, não levaste? Eu lembrei-me daqueles velhos rublos que tinha na gaveta e tirei também o revólver. Não o devia ter feito. Pelo menos, devia tê-lo descarregado. Não passou de um impulso estúpido. Esqueçamo-lo.

— Está bem — disse Will. — Não pretendo embaraçar-te. Não é aí que quero chegar.

— Sei onde é — retorquiu Herzog. — Estás preocupado. — Teve de baixar a voz para a controlar. — Também eu gosto de ti, Will.

— Sim, sei-o bem.

— Mas o meu comportamento não tem sido muito sensato. Do teu ponto de vista... Bem... de qualquer ponto de vista razoável. Levei a Madalena ao teu escritório para que a visses antes de me casar com ela. Sabia que não a aprovavas. Eu próprio não a aprovava. E ela não me aprovava a mim.

— Porque te casaste com ela?

— Deus une as coisas mais díspares. Sabe-se lá porquê! Não podia importar-se menos com o meu bem-estar, ou o meu eu, essa valiosa coisa. Não se pode dizer mais do que «Há um fio vermelho entrançado com um verde, ou azul, e não sei porquê.» E depois enterrei todo o meu dinheiro na casa de Ludeyville. Foi pura e simplesmente uma loucura.

— Talvez não — notou Will. — É uma propriedade, afinal. Já tentaste vendê-la? — Will tinha uma grande confiança nas propriedades.

— A quem? Como?

— Entende-te com uma agência. Sou capaz de ir dar-lhe uma vista de olhos.

— Agradecia-te — disse Herzog. — Não creio que qualquer comprador com o juízo todo lhe pegue.

— Mas deixa-me falar ao Dr. Ramsberg para que te observe. Depois vem jantar connosco. Seria um prazer para toda a família.

— Quando é que poderias ir a Ludeyville?

— Tenho de ir a Boston na próxima semana. Depois Muriel e eu tencionamos ir para o Cape.

— Vai pelo caminho de Ludeyville. Fica perto de Turnpike. Era um enorme favor. Tenho mesmo de vender aquela casa.

— Vem jantar connosco e falaremos acerca disso. ;

— Will... não. Não estou em condições. Basta olhares para mim. Estou nojento, afligiria toda a gente. Como um carneiro desgarrado e piolhoso. — Riu. — Não, fica para outra vez para quando me sentir um pouco mais normal. Parece que acabo de chegar a esta terra. Um refugiado. Tal como quando chegámos do Canadá à velha estação de Baltimore e Ohio. No Central do Michigan. Meu Deus, estávamos sebentos de fuligem.

William não compartilhava da paixão do irmão pela reminiscência. Era engenheiro e tecnólogo, empreiteiro e construtor; como pessoa equilibrada, sensata, doía-lhe ver Moisés naquele estado. O seu rosto vincado estava quente, pouco à vontade; tirou um lenço da algibeira interior do fato de bom corte e comprimiu-o contra a testa, as faces, sob os grandes olhos de Herzog. — Desculpa, Elya — disse Moisés, mais calmo.

— Bem...

— Deixa-me endireitar-me um pouco. Sei que andas inquieto por minha causa. Mas é como te disse. Tenho pena de te causar aborrecimentos. De facto estou óptimo.

— Estás? — Will fitou-o tristemente.

— Sim, aqui tenho uma terrível desvantagem contra mim — sujo, disparatado, acabado de sair da prisão. É francamente ridículo. Tudo tomará outro aspecto no Leste, na próxima semana. Encontrar-nos-emos em Boston, se quiseres. Quando eu estiver mais em ordem. Agora não podes senão tratar-me como a um pobre tipo... a uma criança. E não está certo.

— Não estou a julgar-te. Não tens de vir para casa comigo, se te sentes pouco à vontade. Embora sejamos da tua família... Mas está aqui o meu carro, do outro lado da rua. — Apontou o Cadillac azul-escuro. — Vem só ao médico para que eu possa assegurar-me de que não te lesionaste no acidente. Depois poderás fazer o que achares melhor.

— Óptimo. Está bem. Estou certo de que não tenho seja o que for.

Não ficou inteiramente surpreendido, contudo, ao saber que tinha uma costela partida — Não há qualquer perfuração do pulmão. — Umas seis semanas em gesso. E precisa de dois ou três pontos na cabeça. É tudo. Nada de levantar pesos, de esforços, de rachar lenha, ou de outros exercícios violentos. O Will contou-me que é proprietário rural. Tem uma quinta nos Berkshires? Uma propriedade?

O médico, de cabelo grisalho puxado para trás e olhinhos vivos, mirava-o com uma ironia divertida que transparecia nos lábios finos.

— Está em mau estado. A milhas de uma sinagoga — disse Herzog.

— Ah! o seu irmão gosta de fantasiar — comentou o Dr. Ramsberg. Will esboçou um leve sorriso. De pé, com os braços cruzados, apoiava-se sobre um calcanhar, um pouco como o pai Herzog, e tinha algo da elegância do pai sem as suas excentricidades. Não tinha tempo para isso, pensou Herzog, estando à testa de uma grande empresa. Não tem por ela grande interesse. Outras coisas o absorvem É um bom homem, um esplêndido homem. Mas há uma estranha divisão de funções que eu pressinto, na qual sou um especialista de... de auto-conhecimento espiritual; ou emocionalismo; ou de ideias; ou de absurdos. Talvez sem mais utilidade ou pertinência que a de manter vivos sentimentos primordiais de uma certa espécie. Ele mistura argamassa para aplicar em todos estes novos arranha-céus da cidade. Tem de ser diplomata, e de negociar, de manobrar e de despedir pessoal e de calcular perspectivas de impostos. Para tudo isto o pai era incapaz, mas sonhava que nascera para tal. Will é um homem calmo, cumpridor do dever e rotineiro, tem o seu dinheiro, a sua posição, influência e está desejoso de se ver livre do seu lado particular ou «pessoal». Vê-me chamejar incoerente nos desertos deste mundo e sem dúvida lamenta-me pelo meu temperamento. Na velha ordem das coisas como o vacilante, ingénuo, o simplório Moisés, coração sem astúcia, necessitado de protecção, fenómeno mórbido, vestígio moderno de um outro mundo — nessa velha ordem das coisas eu necessitaria de protecção. E essa ser-me-ia gratamente oferecida por ele — pela pessoa que «conhece o mundo tal como é». Enquanto um homem como tu tem revelado o arbitrário afastamento da orgulhosa subjectividade dos progressos colectivos e históricos da humanidade. E isto é certo em a relação rapazes e raparigas emotivos de classe inferior que adoptam uma atitude estética, a atitude própria de uma sensibilidade apurada. Procurando conseguir apoio para a sua versão de existência sob o peso esmagador da massa. O que Marx descrevia como «peso material». Transformando isto, «a minha vida pessoal» num circo, num combate de gladiadores. Ou formas menos selvagens de diversão. Troçar da «vergonha», da efémera obscuridade, e mostrar porque se merece a dor. As modernas luzes brancas da pequena sala andavam à roda, girando. Herzog sentia-se a si próprio rodopiando com elas, enquanto o médico lhe apertava o peito com as ligaduras cheirando a drogas. Ora, para nos vermos livres de todas essas falsidades...

— Julgo que faria bem ao meu irmão um certo repouso — disse Will. — Qual a sua opinião, doutor?

— Parece realmente ter passado um mau bocado.

— Vou uma semana para Ludeyville — replicou Moisés.

— O que eu quero dizer é repouso completo... repouso na cama.

— Sim, sei que pareço excitado. Mas não é nada de grave.

— No entanto — acrescentou o irmão de Herzog — , preocupas-me.

Um bruto afectivo — um homem afectivo, subtil e estragado. Quem o sabe utilizar? Anseia por que se utilizem dele. Onde é necessário? Ensinem-lhe o caminho para se sacrificar pela verdade, pela ordem, pela paz. Oh, essa misteriosa criatura, esse Herzog!, incomodamente ligado, a quem o irmão ajudava a vestir a camisa amarfanhada.

Chegou à casa de campo na tarde seguinte, após ter tomado um avião para Albany, daí a camioneta para Pittsfield, e depois um taxi — para Ludeyville. Asphalter dera-lhe Tuinal na noite anterior. Dormira um sono profundo e sentia-se perfeitamente bem, apesar do tórax ligado. A moradia ficava a duas milhas da aldeia, nos montes, um tempo maravilhoso, cintilante, de Verão, nos Berkshires, ar leve, rápidos ribeiros, densos bosques, verdura nova. Quanto a pássaros, os campos de Herzog pareciam ter-se tornado um santuário. As carriças tinham feito ninhos nos capitéis ornamentais do alpendre. O olmo gigante não estava completamente morto, e os papa-figos continuavam a viver lá. Herzog mandou o motorista parar na rua musgosa, ensaibrada. Não tinha a certeza de se poderem aproximar da casa. Mas não havia árvores caídas a bloquear a vereda e, embora muito do cascalho tivesse sido arrastado por degelos e tempestades, o táxi poderia ter passado facilmente. Moisés, no entanto, não se importou com a breve subida. Tinha o peito fortemente comprimido pela armadura de gesso e as pernas ligeiras. Comprara alguns víveres em Ludeyville. Se os caçadores e vagabundos as não tivessem comido, haveria um fornecimento de géneros enlatados na cave. Dois anos atrás, arranjara uma reserva de tomates, ervilhas e framboesas de conserva, e antes de partir para Chicago escondera o vinho e o uísque. A electricidade fora por certo cortada, mas talvez conseguisse pôr a trabalhar a bomba manual. Havia sempre a água da cisterna a que recorrer. Podia cozinhar na lareira; havia ganchos e trempes velhos — e eis (o coração estremeceu-lhe) a casa erguendo-se entre ervas bravias, vinhedos, árvores e flores. A loucura de Herzog! Monumento à sua idiotice sincera e bem intencionada, aos males desconhecidos do seu carácter, símbolo da sua luta de judeu em busca de uma sólida posição na América branca, anglo-saxónica e protestante («A terra era nossa antes de sermos da terra», como aquele velho sentencioso declarara na tomada de posse presidencial). Também eu tenho participado na escalada social, pensou, com arrogância de sobejo, opondo-se aos Wasps(7) que, devido ao Governo ter entregue muito deste continente aos caminhos-de-ferro, deixaram de ter uma vida a seu bel-prazer por volta de 1880, fizeram viagens pela Europa, e começaram a queixar-se dos irlandeses, italianos e judeus. Que luta travei — canhoto mas feroz. Mas basta — aqui estou. Hineni! Que dia maravilhosamente belo, o de hoje. Parou no pátio invadido pelas ervas, fechou os olhos ao Sol, frente aos clarões carmesins e aspirou o perfume das corolas das catalpas, do solo, da madressilva, das cebolas bravias, e das ervas. Veados ou amantes tinham-se deitado na relva junto do ulmeiro, pois estava pisada. Deu uma volta à casa para ver se estaria muito estragada. Não havia janelas partidas. Todas as persianas, presas por dentro, permaneciam intactas. Apenas alguns dos letreiros que colocara a avisar de que a propriedade estava entregue à vigilância policial tinham sido deitados abaixo. O jardim era um denso aglomerado de caniços espinhosos, rosas e framboesas entrelaçadas. Parecia irremediável — nem valia a pena lastimar-se. Nunca mais teria força para se entregar àquelas tarefas, para martelar, pintar, rebocar, fazer encaixes, podar, regar. Viera cá apenas para ver como as coisas estavam.

A casa apresentava-se tão bolorenta como era de esperar. Abriu algumas janelas e persianas da cozinha. Os restos de folhas e agulhas de pinheiros, teias, casulos, e cadáveres de insectos, varreu-os. O que se tornava imediatamente necessário era lume. Trouxera fósforos. Uma das vantagens da idade madura é a de nos tornarmos mais experientes nestas coisas — previdentes. Claro que tinha uma bicicleta — podia ir nela à aldeia comprar aquilo de que se esquecera. Tivera mesmo a ideia de apoiar a bicicleta sobre o selim, para poupar os pneus. Não tinham muito ar, mas ainda desceriam até à estação de serviço da Esso. Carregou umas achas de pinho, entusiasmado, e começou a atear primeiro uma pequena fogueira, para se assegurar de que a tiragem estava em ordem. Pássaros ou esquilos podiam ter feito ninhos nos canos da chaminé. Mas lembrou-se então de que subira ao telhado para colocar uma rede sobre as chaminés — no seu delírio de realização de tarefas eficientes. Chegou-lhe mais madeira. A velha casca soltou-se, pondo a descoberto o trabalho dos insectos — larvas, formigas, aranhas de longas patas fugiram. Os ramos negros, secos, começaram a arder com chamas amarelas. Juntou mais achas, segurou-as com trempes, e continuou a inspecção à casa.

Ninguém tocara na comida de conserva. Havia extravagâncias compradas por Madalena (sempre o melhor de tudo); sopa de tartaruga S. S. Pierce, pudim indiano, trufas, azeitonas, e mais víveres de pior aspecto comprados pelo próprio Moisés nos saldos das cantinas do exército — ervilhas, pão enlatado, e similares. Fez-lhes o inventário com uma espécie de curiosidade sonhadora acerca do seu antigo projecto de auto-suficiência solitária — a máquina de lavar e secar, o esquentador para a água quente, formas de um branco puro e cintilante em que gastara os dólares do falecido pai, dólares de um verde feio, laboriosamente juntos, fastidiosamente contados, divididos na agonia pelos herdeiros. Bem, bem, pensou Herzog, não me devia ter mandado para a escola para aprender a história dos passados imperadores. «O meu nome é Ozimandias, rei dos reis: Olhai os meus trabalhos, vós Poderosos, e desesperai!» Mas a auto-suficiência e a solidão, a nobreza, tudo isso era tão tentador, e parecera tão inocente, era uma descrição que tão bem se adequava a Herzog. É só mais tarde que se descobre quanto vício existe nestes paraísos escondidos. Consciência desempregada, escreveu na despensa. Cresci numa época de grande crise de desemprego, e nunca acreditei que pudesse vir a haver trabalho para mim. Finalmente, surgiram empregos mas, não sei como, a minha consciência manteve-se desempregada. E, no fim de contas, continuou, junto à lareira, o intelecto humano é uma das grandes forças do universo. Não pode, sem prejuízo, permanecer desaproveitado. É quase impossível concluir que o tédio de tantas organizações humanas (a vida familiar burguesa, por exemplo) tem como finalidade histórica a libertação do intelecto das novas gerações, conduzindo-os para a ciência. Mas uma terrível solidão na vida mais não é que o plâncton de que se alimenta o leviatão... Urge reconsiderar. A alma necessita de entusiasmo. Simultaneamente, a virtude aborrece a humanidade. Tornar a ler Confúcio. Com densa população, o mundo tem de se preparar para se tornar chinês.

A actual solidão de Herzog não parecia contar, pois era tão conscientemente alegre. Espreitou pela fresta para a casa de banho onde costumava refugiar-se com o seu volume de dez cêntimos de Dryden ou de Pope, lendo «Sou o cão de Sua Alteza em Kew» ou «Os grandes espíritos da loucura estão por certo próximos». Além, na mesma posição dos anos anteriores, estava a rosa que costumava animá-lo — tão perfeita, tão vermelha (tão quase «genital» para a sua imaginação) como sempre. Uma das boas coisas a que recorrer. Ficou muito tempo a fitá-la por entre a confluência de madeira e alvenaria. Os mesmos gafanhotos amigos da humanidade (ortópteros gigantes) continuavam a viver neste recanto de alvenaria e contraplacado. O acender de um fósforo revelou-os. Entre os canos.

Era curioso, o giro que fazia pela sua propriedade. No escritório, viu as ruínas das suas investigações de erudito espalhadas pela secretária e pelas prateleiras. As janelas estavam tão desbotadas como se tivessem sido manchadas pelo iodo, e as madressilvas, lá fora, quase tinham deitado abaixo as persianas. No sofá, encontrou a prova de que a residência havia sido visitada por namorados. Demasiado cegos pela paixão para procurarem os quartos na escuridão. Mas ficariam com a espinha cruzada servindo-se das antiguidades de Madalena. Não sabia por que razão, agradava a Herzog que tivesse sido esta sala a escolhida pela mocidade da aldeia — ali, entre resmas de notas eruditas. Descobriu cabelos de raparigas nos braços do sofá, e tentou imaginar corpos, rostos, aromas. Graças a Ramona, não tinha necessidade de estar muito invejoso, mas uma certa inveja dos jovens não deixava de ser natural. No chão encontrava-se uma das suas grandes fichas com uma nota em que escrevera Para prestar justiça a Condorcet... Não teve ânimo para ler mais e voltou a cabeça para a mesa. Actualmente, de qualquer forma, Condorcet teria de encontrar outro defensor. Na casa de jantar estavam as travessas preciosas que Tennie pretendia, porcelana chinesa debruada a carmesim, muito elegantes. Não precisaria delas. Os livros, cobertos de musselina, permaneciam intactos. Levantou o tecido e relanceou-os sem interesse especial. Ao visitar a pequena casa de banho, entreteve-se a admirar os sumptuosos adereços que Madalena comprara no Sloane's, saboneteiras prateadas em forma de concha de vieira e toalheiros brilhantes, demasiado pesados para o estuque, mesmo depois de presos a tacos de madeira. Estavam agora a cair. Ao chuveiro, para conveniência de Gersbach — os Gersbachs não tinham chuveiro em Barrington — fora atenciosamente acrescentado um corrimão. — Já que o vais instalar, arranjemo-lo de maneira que Valentim o possa utilizar — dissera Mady. Ah, está bem — e Moisés encolheu os ombros. Um estranho cheiro na retrete chamou-lhe em seguida a atenção e, erguendo o tampo de madeira, descobriu as pequenas caveiras bicudas e outros restos de pássaros que aí tinham feito ninho depois de a água ter secado, e tinham ficado sepultados pela queda do tampo. Olhou para dentro tristemente, um tanto contristado pelo acidente. Devia haver uma janela partida no sótão, inferiu a partir daqui, e outros pássaros com ninhos dentro de casa. De facto, encontrou mochos no quarto, empoleirados nas sanefas vermelhas que tinham riscado de excrementos. Deu-lhes oportunidade para escaparem, e, uma vez longe, procurou um ninho. Encontrou os pequenos mochos no grande candeeiro sobre a cama onde ele e Madalena tinham experimentado tanta infelicidade e ódio. (Algum prazer também.) No colchão haviam caído muitos detritos do ninho — palhas, fios de lã, penugem, pedaços de carne (caudas de rato) e alguns excrementos. Não desejando perturbar estes bicharocos de cara achatada, Herzog arrastou o colchão da sua cama de casal para o quarto de June. Abriu mais janelas, e o sol e ar campestre entraram de roldão. Estava surpreendido por sentir tal contentamento... contentamento? Para que iludir-se, isto era alegria! Sentiu, talvez pela primeira vez, o que era estar livre de Madalena. Alegria! A sua servidão estava terminada, o coração liberto do seu peso sinistro e da sua crosta. A ausência dela, e não mais que essa mesma ausência, traduziu-se francamente numa suavidade e leveza de espírito. Para ela, na confluência da 11.a Rua com a Rua do Estado, a felicidade fora vê-lo em embaraços, e para ele, em Ludeyville, era uma deliciosa alegria tê-la longe da sua carne, como algo que lhe tivesse golpeado os ombros, as virilhas, lhe tivesse deixado os braços e o pescoço estropiados e doloridos. Meu caro sábio e imbecil Edvig. Talvez a remissão da dor constitua mais de uma pequena parcela da felicidade humana. Nos seus níveis primordiais e mais estúpidos, onde de quando em quando uma válvula fechada se volta a abrir... Essas luzes estranhas, os olhos castanhos de Herzog, tão frequentemente encobertos pela película ou pela quitina protectora da melancolia, produto indirecto do seu cérebro laborioso, brilhavam de novo.

Exigiu-lhe certo esforço voltar o colchão no soalho do antigo quarto de June. Teve de arredar alguns brinquedos desprezados e mobílias de bonecas, um grande tigre empalhado de olhos azuis, a cadeira de bacio, um fato vermelho para a neve, perfeitamente novo. Reconheceu também o bikini da avó, calções e cordas, e, entre outros objectos singulares, uma luva de banho em que Phoebe bordara as iniciais dele, presente de aniversário, possível insinuação de que não teria as orelhas lavadas. Sorrindo, afastou-a com o pé. Um escaravelho escapou-se de baixo dele. Herzog, deitado sob a janela aberta com o sol na cara, repousou no colchão. Sobre ele, as grandes árvores, os espruces do pátio da frente, exibiam as suas belas formas recortadas e exalavam um perfume de agulhas aquecidas e resina.

Foi aqui, até o sol se despedir do quarto, que começou muito seriamente, na plenitude tranquila do seu coração, a considerar a hipótese de outra série de cartas.

Querida Ramona: Apenas «Querida»? Moisés, abre-te um pouco. Ramona, meu amor. Que mulher esplêndida que és! Neste ponto, fez uma pausa para reconsiderar se deveria dizer-lhe que estava em Ludeyville. Com o seu Mercedes, podia vir de Nova Iorque em três horas, e era provável que o fizesse. Abençoadas pernas curtas mas perfeitas, seios firmes, de um belo tom, dentes vivos, recurvados e sobrancelhas e madeixas de cigana. La devoradora de hom-bres.

Decidiu, contudo, datar a carta de Chicago e pedir a Lucas para a enviar. O que agora desejava era paz — paz e clareza. Espero não te ter indisposto com a minha partida. Mas sei que não és uma dessas mulheres convencionais que levam um mês a aplacar por se ter faltado a um encontro. Tinha de ver a minha filha e o meu filho. Ele está no Acampamento deAyumah, próximo de Catskill. Este Verão está a tornar-se muito movimentado. Várias revelações interessantes. Hesitei em fazer muitas asserções por enquanto, mas pelo menos não tenho deixado de fazer asserções, ou de as sentir. A luz da verdade nunca está longe, e não há ser humano demasiado negligenciável ou corrupto para a alcançar. Não vejo razão para não o dizer. Mas aceitar a ineficácia, o desterro em relação à vida pessoal, a confusão... Porque não experimentas isso, Herzog, com os mochos do quarto do lado, aqueles pequenos mochos sem penas, sarapintados de azul? Dado que o derradeiro problema, e o primeiro, o problema da morte, nos oferece as interessantes alternativas de nos desintegrarmos pela nossa própria vontade como prova da nossa «liberdade», ou de reconhecermos que devemos uma vida humana a este encantamento desperto da existência, esquecendo o vazio. (Afinal, não temos conhecimento positivo desse vazio.)

Deveria eu dizer tudo isto a Ramona? Algumas mulheres pensam que a seriedade é uma forma de galantear. Há-de desejar um filho. Desejar tê-lo de um homem que lhe fala assim-. Trabalho. Trabalho. Trabalho autêntico e útil... Fez uma pausa. Mas Ramona trabalhava com vontade. Segundo o ponto de vista dela. E gosta do seu trabalho. Sorriu afectuosamente no colchão banhado de sol.

Querido Marco, voltei à velha casa para dar uma vista de olhos e para descansar um pouco. Apesar de tudo, a propriedade não está nada mal. Talvez gostasses de passar algum tempo aqui comigo, só nós os dois — a arranjá-la por alto — depois de vires do acampamento. Falaremos nisso no Dia dos Pais. Espero ansiosamente por esse dia. A tua irmãzinha, que vi ontem em Chicago, está muito esperta e bonita como sempre. Recebeu o teu postal.

Recordas-te das conversas que tivemos sobre a expedição de Scott ao Antárctico, e de como o pobre Scott foi batido na sua corrida para o Pólo por Amundsen? Parecias interessado. É uma história que sempre me apaixona. Houve um homem do grupo de Scott que saiu e se perdeu para dar aos outros oportunidade de sobreviverem. E estava doente, com os pés feridos, não podia manter-se por mais tempo de pé. Recordas-te também de como, por acaso, descobriram um montículo de sangue gelado, o sangue de um dos garranos sacrificados, e de como ficaram satisfeitos por poderem derretê-lo e bebê-lo? O sucesso deAmundsenfoi devido à sua utilização de cães em vez de garranos. Os mais fracos eram abatidos e comidos pelos mais fortes. De outra forma, a expedição teria falhado. Tenho muitas vezes pensado numa coisa-, esfaimados como estavam, os cães farejavam a carne dos companheiros e recuavam. Tinha de lhes ser arrancada a pele para a conseguirem comer.

Talvez tu e eu no Natal pudéssemos fazer uma viagem até ao Canadá para sentires o que é o autêntico frio. Eu sou canadiano, como sabes. Podíamos visitar Ste. Agathe, nos Laurentians. Espera-me no dia 16, de manhãzinha cedo.

Caro Lucas — Agradecia-te que pusesses no correio as cartas que juntamente te envio. Espero a notícia de que a tua depressão tenha passado. Julgo que as tuas visões da tia a ser salva pelo bombeiro e das raparigas a divertirem-se são sinais de uma capacidade de recuperação psicológica. Quanto a mim... Quanto a ti, pensou Herzog, não lhe contarás como te sentes agora, todo este entusiasmo! Não o faria mais feliz. Guarda para ti a tua exaltação. De qualquer forma, ele pode pensar que tu pura e simplesmente enlouqueceste.

Posso não estar bom de cabeça, mas tudo me parece claro.

Meu caro Professor Mermelstein. Desejo felicitá-lo pelo seu esplêndido livro. Nalguns assuntos antecipou-se-me e isso enfureceu-me — odiei-o durante um dia inteiro por ter tornado muito do meu trabalho supérfluo (Wallace e Darwin?). No entanto, sei bem quanto labor e paciência foram gastos num tal trabalho — quantas pesquisas, estudos, sínteses, e concedo-lhe a minha máxima admiração. Quando pensar em publicar uma edição revista — ou possivelmente um outro livro — teria grande prazer em falar consigo sobre alguns desses problemas. Há capítulos do meu projectado livro a que não mais me dedicarei. Poderá utilizar livremente esse material.

Na minha obra anterior (a que teve a amabilidade de se referir) dediquei um capítulo ao Paraíso e Inferno no Romantismo apocalíptico. Posso não o ter feito a seu contento, mas não o devia ter descurado completamente. Deveria passar os olhos pela monografia daquele bruto gordo e hábil que é Egbert Shapiro, «De Lutero a Lenine, Uma História da Psicologia Revolucionária». As faces gordas tornam-no extremamente parecido com Gibbon. É uma obra valiosa. Fiquei muito bem impressionado com a secção intitulada «Milenarismo e Paranóia». Não se devia ignorar que os modernos sistemas de organização do poder apresentam uma semelhança com esta psicose. Foi escrito um livro terrível e disparatado sobre isto por um homem chamado Bonowitch. Perfeitamente desumano, e cheio de vis hipóteses paranóicas como a de que as multidões são fundamentalmente canibalistas, de que as pessoas de pé aterrorizam, no íntimo, as sentadas, de que dentes sorridentes são as armas da fome, de que o tirano anseia por ver (possivelmente por comer?) cadáveres à sua volta. Parece bem verdade que a consecução de cadáveres tem sido a mais dramática das realizações dos ditadores modernos e dos seus seguidores (Hitler, Estaline, etc). Só para ver — Herzog aventou isto, à experiência — se Mermelstein não teria resquícios de antigo estalinismo. Mas este Shapiro tem algo de excêntrico, e menciono-o como um caso extremo. Como todos nós gostamos de casos extremos e de apocalipses, incêndios, afogamentos, estrangulamentos, e coisas que tais. Quanto maior é o nosso espírito, mais fundamentalmente ético, mais seguramente burguês, maior a excitação radical exigida. Uma autenticidade ou exactidão moderadas parecem não atrair ninguém. Precisamente aquilo de que agora necessitávamos! («Quando um cão se está a afogar, ofereçam-lhe um copo de água», costumava o pai dizer amargamente.) De qualquer forma, se tivesse lido aquele meu capítulo sobre apocalipse e Romantismo, poderia ter tido uma perspectiva mais directa daquele russo que tanto admira — Isvolsky? O homem que vê as almas das mónadas como legiões de condenados às penas eternas, simplesmente desintegrados e pulverizados, como uma tempestade de pó no Inferno; e previne que Lúcifer se deve encarregar da humanidade colectivizada, falha de um carácter espiritual e de verdadeira personalidade. Não nego que isto tenha certo sentido, aqui e além, embora me preocupe o facto de tais ideias, devido aparcela de verdade sugestiva que encerram nos poderem conduzir às antigas e sufocantes igrejas e sinagogas. Aborreceram-me um pouco certas apropriações e referências que considerei superficiais, ou seja a utilização de crenças sérias de outros escritores como simples metáforas. Por exemplo, apreciei a secção intitulada «Interpretações do Sofrimento», bem como a intitulada «Para Uma Teoria do Tédio». Constitui uma notável investigação. Mas, em contrapartida, considerei frívolo o seu tratamento de Kierkegaard. Tomo a liberdade de afirmar que Kier-kegaard entendia que a verdade perdera em nós a sua força e que uma terrível dor e sofrimento no-la teriam de reensinar, que as eternas punições do Inferno terão de readquirir a sua específica realidade antes que a humanidade seja de novo séria. Não aceito isto. Ponhamos de parte o facto de tais convicções nas bocas de pessoas que vivem em segurança e conforto e gostam de se entreter com crises, alienação, apocalipse e desespero, me irritam. Temos de tirar da cabeça a ideia de que estamos numa época condenada, de que estamos à espera do fim, e coisas que tais, perfeitos disparates de revistas da moda. A situação éjá suficientemente sombria sem estas brincadeiras lúgubres. Pessoas que mutuamente se atemorizam — triste exercício moral. Mas, para chegarmos à questão principal, o apoio e louvor do sofrimento conduz-nos a um caminho errado e aqueles de entre nós que se mantêm leais à civilização não devem aliar-se-lhe. É necessário desenvolver a capacidade de utilizar a dor, de arrependimento, de iluminação, é necessário ter uma oportunidade e mesmo tempo. Para os religiosos, o amor ao sofrimento é uma forma de gratidão para com a experiência ou uma oportunidade de experimentar o mal e de o transformar em bem. Crêem que o ciclo espiritual pode e será completado numa existência humana e que, de qualquer forma, poderão tirar partido do sofrimento, quanto mais não seja nos últimos momentos da vida, quando a misericórdia de Deus os recompensar com uma visão da verdade, e morrerão transfigurados.

Mas isto é um exercício especial. Mais vulgarmente, o sofrimento aniquila as pessoas, esmaga-as e deforma alguma as ilumina. Vê-se como os seres humanos são macabramente destruídos pela dor, quando se lhes adiciona o tormento de perderem em primeiro lugar a humanidade, de forma que a morte se torna uma derrota total, e escreve o senhor sobre «formas modernas de Orfismo» e sobre «gente que não tem medo de sofrer», acrescentando-lhe outras expressões presumidas. Porque não dizer antes que pessoas de grande imaginação, profundamente sonhadoras, capazes de elaborar ficções maravilhosas e auto-suficientes, recorrem por vezes ao sofrimento para o anteporem à beatitude, tal como as pessoas se beliscam para se sentirem acordadas? Reconheço que o meu sofrimento, se dele me é permitido falar, tem sido muitas vezes assim, uma forma mais ampla de vida, uma luta pela autêntica vigília e um antídoto contra a ilusão, e portanto não lhe posso atribuir um crédito moral. Desejo abrir o meu coração, sem mais me exercitar na dor. E para tal não é necessária uma doutrina ou uma teologia do sofrimento. Gostamos demasiado de apocalipses, de éticas de crise e de extremismos floreados com a sua linguagem vibrante. Perdoe-me, mas não. Já tive a minha dose de monstruosidade. Atingimos uma época na história da humanidade em que podemos perguntar acerca de certas pessoas, «Que coisa é esta?» Para mim isso acabou — não, não! Sou simplesmente um ser humano, mais ou menos. Estou mesmo pronto a entregar-lhe parte, maior ou menor, de mim. Pode decidir sobre mim. Tem gosto por metáforas. O seu trabalho, sob outras perspectivas admirável, está prejudicado por elas. Estou certo de que arranjará para mim uma esplêndida metáfora. Mas não se esqueça de dizer que eu nunca exponho a teoria do sofrimento para quem quer que seja, nem invoco o Inferno para que ele nos torne sérios e verdadeiros. Penso mesmo que a percepção que o homem tem da dor se tornou demasiado refinada. Mas isso é outro assunto que exige uma longa discussão.

Muito bem, Mermelstein. Siga o seu caminho e não cometa mais pecados. E Herzog, talvez um pouco acanhado após esta sua diatribe, ergueu-se do colchão (o sol estava a afastar-se) e tornou a descer. Comeu várias fatias de pão e ervilhas estufadas — uma sanduíche de ervilhas, e depois levou para o ar livre a rede e duas cadeiras de repouso.

Assim principiou a sua última semana epistolar. Vagueou pelos seus vinte acres de vertente e bosque, compondo as cartas, nenhuma das quais enviou. Não se sentia capaz de pedalar até ao correio e responder na aldeia a perguntas sobre a Sra. Herzog e a pequena June. Conforme bem sabia, os factos grotescos de todo esse escândalo dos Herzogs tinham sido escutados na estação telefónica local e haviam-se tornado o prato forte da imaginação de Ludeyville. Nunca se refreara ao telefone; estivera demasiado excitado. E Madalena era demasiado aristocrata para se importar com o facto de os campónios escutarem. De qualquer forma, fora ela a repudiá-lo. Não provocava o próprio descrédito.

Querida Madalena. — És terrível, isso és! Que Deus te perdoe! Que criatura. Para pôr batom, depois do jantar num restaurante, olhava para o reflexo do rosto na lâmina de uma faca. Recordou-o com prazer. E tu, Gersbach, bem-vindo sejas para a companhia da Madalena. Goza dela — encanta-te com ela. Não me alcançarás através dela, no entanto. Sei que me procuraste na carne dela. Mas eu já lá não estou.

Excelentíssimos Senhores-. O tamanho e número de ratos na cidade do Panamá, quando por aí passei, deixou-me francamente perplexo. Vi um deles a tomar banhos de sol junto a uma piscina. Outro observava-me do lambrim de um restaurante enquanto eu comia salada de frutas. Também num fio eléctrico que subia até uma palmeira, vi toda uma «troupe» de ratos andarem para trás e para diante, na colheita. Correram mais de vinte vezes pelo fio sem uma única colisão. O que sugiro é que usem produtos químicos para a limitação da natalidade nas ratas. Os venenos não darão resultado (por razões malthusianas; se se reduz um pouco uma população esta cresce ainda mais vigorosamente). Mas vários anos de contracepção podem eliminar os vossos problemas dos ratos.

Caro Herr Nietzsche — Excelentíssimo senhor. Poderei fazer-lhe uma pergunta cá de baixo? Refere-se ao poder do espírito Dionisíaco de suportar a visão do Terrível, do Problemático, de se permitir a luxúria da Destruição, de testemunhar a Decomposição, a Hediondez, o Mal. Tudo isto o espírito Dionisíaco o pode fazer porque aufere da capacidade de restabelecimento da própria Natureza. Algumas destas expressões, permita-me que lho diga, têm uma aura muito germânica. Uma frase como a «luxúria da Destruição» é francamente wagneriana, e eu bem sei por que razão veio a desprezar toda essa idiotice e bombástico doentios de Wagner. Actualmente, já assistimos a destruições suficientes para pôr amplamente à prova o poder do espírito Dionisíaco, e onde estão os heróis que disso se refizeram? Estou só com a Natureza (ela própria) nos Berkshires, e é esta a minha oportunidade de compreender. Estou deitado numa rede, com o queixo sobre o peito, de dedos entrelaçados, com o espírito atolado em pensamentos, agitado, sim, mas também alegre, e sei que valoriza a alegria — a autêntica alegria, não o aparente optimismo dos epicuristas, nem aflutuabilidade estratégica dos desesperados. Sei igualmente que considera que a dor profunda enobrece, a dor que arde lentamente, como madeira verde, e nisso concordo consigo, em parte. Mas para essa educação superior é necessária a sobrevivência. É preciso resistir à dor. Herzog! Tens de pôr cobro a esta tendência para polémica e conflito com os grandes homens. Não, na verdade, Herr Nietzsche, tenho por si grande admiração. Simpatia. Deseja capacitar-nos para vivermos com o vácuo. Não nos iludindo com as boas intenções, a confiança, com considerações humanas, vulgares e medianas, mas indagando como nunca se indagou, incansavelmente, com férrea determinação, no mal, através do mal, para além do mal, não aceitando qualquer abjecto conforto. As perguntas mais absolutas, mais pertinazes. Rejeitando a humanidade tal como ela é, essa multidão vulgar, prática, salteadora, fedorenta, obscurecida, estúpida, não apenas a multidão dos trabalhadores, mas essa multidão «educada», ainda pior, com os seus livros e concertos e conferências, o seu liberalismo e os seus «amores» e «paixões» românticos e teatrais — tudo isso merece morrer, e morrerá. Está bem. No entanto, os seus extremistas têm de sobreviver. Sem sobrevivência, não há Amor Fati.

Os seus imoralistas também comem carne. Andam de autocarro. Mas são os viajantes que pior se dão com os autocarros. A humanidade vive principalmente de ideias pervertidas. Pervertidas, as suas ideias não são melhores que as do Cristianismo que condena. Qualquer filósofo que deseja manter-se em contacto com a humanidade deveria previamente perverter o seu próprio sistema para ver como será encarado algumas décadas após a adopção. Envio-lhe os melhores cumprimentos deste jardim de luz temporal onde pulula a relva, e desejo-lhe felicidades, onde quer que se encontre. Seu, sob o véu de May a, M. E. H.

Caro Dr. Morgenfruh. Morto há algum tempo. Sou Herzog, Moisés E. Apresenta-te. Jogámos ao bilhar em Madison, no Wisconsin. Conta-lhe mais. Até que Willie Hoppe apareceu para fazer uma demonstração e nos envergonhou. O grande artista do bilhar conseguia a absoluta obediência daquelas três bolas; como se lhes sussurrasse, batia-lhes com o taco do bilhar, deixando-as afastar-se para de novo se beijarem. E o velho Morgenfruh com a cabeça calva, o nariz fino, gracioso, aquilino, e o seu encanto estrangeiro, aplaudia, exclamando com quanta energia tinha «Bravo». Morgenfruh tocava piano e, ao fazê-lo chorava. A Helena tocava melhor piano, mas era menos brilhante. Franzia a testa para a música como que para mostrar que era perigosa, mas que a conseguia dominar. Morgenfruh, contudo, gemia sentado diante do teclado, com o seu casaco de peles. Em seguida, ia trauteando e finalmente chorava — sucumbia à comoção. Era um esplêndido velhote, apenas parcialmente fraudulento, e que mais se pode pedir de alguém? Caro Dr. Morgenfruh, Uma recente informação proveniente do Despenhadeiro de Olduvai na África Oriental apresenta razões para se supor que o homem não descende de um pacífico símio arbóreo, mas de uma espécie carnívora, terrestre, um animal que caçava em bandos e esmagava os crânios da presa com uma moca ou um ossofemoral. Não agrada, Morgenfruh, aos optimistas, à perspectiva risonha e esperançosa da natureza humana. O trabalho de Sir Solly Zuckerman sobre os macacos do Jardim Zoológico de Londres, a que o senhor frequentemente se referia, foi ultrapassado. Os macacos no seu habitat próprio têm menos solicitações sexuais que os de cativeiro. O cativeiro, o aborrecimento, devem provocar a sensualidade. Pode também acontecer que o instinto territorial seja mais forte que o sexual. Que a luz o acompanhe, Morgenfruh. Escrever-lhe-ei de tempos a tempos.

Apesar das horas que permaneceu ao ar livre, achava-se ainda pálido. Talvez porque o espelho da porta da casa de banho, ao qual se contemplou de manhã, reflectia a massa verde das árvores. Não, não tinha bom aspecto. A excitação devia exaurir-lhe a força, pensou. E depois, havia aquele persistente cheiro medicinal das ligaduras do peito que lhe faziam recordar que não se encontrava perfeitamente bem. A partir do segundo ou terceiro dia, deixou de dormir no segundo piso. Não queria espantar os mochos e deixar a ninhada morrer no velho candeeiro com a tripla corrente de latão. Já bastavam aqueles pequeninos esqueletos na retrete. Mudou-se para baixo, levando consigo alguns objectos úteis: um velho impermeável e um chapéu para a chuva, as botas feitas por encomenda no Gokey, em St. Paul — maravilhosas botas, flexíveis, elegantes, à prova de cobras; esquecera-se de que as possuía. No quarto de arrumação fez outras interessantes descobertas, fotografias dos «dias felizes», caixas de roupas, cartas de Madalena, maços de cheques sem cobertura, participações de casamento requintadamente impressas, e um livro de receitas pertencente a Phoebe Gersbach. As fotografias eram todas dele. Madalena deixara-as, levando consigo as outras. Interessante, a atitude dela. Entre os vestidos abandonados estava o dispendioso enxoval de futura mãe. Os cheques referiam-se a grandes somas, muitas das quais eram pagas a pronto. Teria estado secretamente a poupar dinheiro? Era hipótese a admitir. As participações fizeram-no rir; o Sr. e a Sra. Pontritter davam a sua filha em casamento ao Dr. Moisés E. Herzog.

Num dos cubículos encontrou uma dúzia de livros russos sob um teso trapo de limpar pincéis. Chestov, Rozanov — gostava bastante de Rozanov, que era, felizmente, em inglês. Leu umas escassas páginas de Solitária. Depois observou os seus despojos de pintor — velhos pincéis, filtros, baldes com tintas evaporadas, em crosta. Havia várias latas de esmalte, e Herzog pensou: Que tal se eu pintasse o pequeno piano? Podia enviá-lo para Chicago, para Junie.

A miúda tem realmente grande sensibilidade musical. Quanto a Madalena, terá de o aceitar, essa cadela, se for entregue com porte pago. Não pode devolvê-lo. O esmalte verde pareceu-lhe perfeitamente adequado, e não perdeu tempo; procurou os pincéis mais bem conservados e deitou-se ao trabalho, entusiasticamente, nasala. CaroRozanov. Pintou, absorto, o tampo do piano; o verde era claro, belo, como maçãs no Verão. O senhor profere uma esplêndida verdade, desconhecida dos profetas, a de que a vida particular está acima de tudo. Mais universal que a religião. A verdade está acima do sol. A alma é paixão. «Eu sou o fogo que consome.» É uma alegria ser-se sufocado pelo pensamento. Um bom homem suporta ouvir outrem falar de si. Não se pode confiar nas pessoas que se aborrecem com tal conversa. Deus doirou-me todo. Gosto dessa expressão, Deus doirou-me todo. Muito patético este homem, embora por vezes extremamente rude, e eivado de violentos preconceitos. O esmalte cobria bem, mas provavelmente seria necessária uma segunda demão, e talvez não tivesse tinta para tanto. Pousou o pincel para dar tempo ao tampo do piano para secar, pensando em como despacharia daqui o instrumento. Não podia esperar que um dos camiões gigantes interestaduais subisse a este monte. Teria de pedir ao Tuttle da aldeia que trouxesse a camioneta. O custo cifrar-se-ia em algo como cem dólares, mas devia fazer tudo o que pudesse pela criança, e não tinha sérios problemas de dinheiro. Will oferecera-lhe quanto precisava para todo o Verão. Um curioso resultado do desenvolvimento da consciência histórica é que as pessoas julgam que a explicação é uma necessidade da sobrevivência. Têm de explicar a sua condição. Esea vida inexplicada não merece ser vivida, a vida explicada é insuportável também. «Sintetizar ou perecer!» Será esta a nova lei? Mas quando se observam os estranhos conceitos, alucinações, projecções, provenientes do espírito humano, começa-se de novo a crer na Providência. Para sobreviver a estas idiotices... De qualquer forma, o intelectual tem sido um Separatista. E que espécie de síntese há-de elaborar um Separatista? Felizmente para mim, não tive possibilidades para me afastar muito da nossa vida comezinha. Estou satisfeito por isso. Tenciono compartilhar o que tenho, na medida do possível, com outros seres humanos, e não destruir dessa forma os anos que me restam. Herzog sentia um anseio profundo e vertiginoso de começar.

Teve de tirar água da cisterna. A bomba estava demasiado ferrugenta; enchera-a, dera à manivela, mas mais não conseguira que cansar-se. A cisterna estava cheia. Levantou a tampa de ferro por meio de uma alavanca e desceu um balde. Produziu um belo som, ao cair, e não era possível arranjar água mais agradável onde quer que fosse, mas tinha de ser fervida. Havia sempre um ou dois esquilos, um rato, mortos no fundo, embora parecesse bastante pura ao içá-la, água pura, verde.

Foi sentar-se sob as árvores. As suas árvores. Estava divertido por estar a repousar nesta sua propriedade americana, a gozar de vinte mil dólares de solidão e intimidade campesinas.. Não se sentia proprietário. Quanto aos vinte mil dólares, a quinta não valia mais de três ou quatro. Ninguém queria estas casas antiquadas nas vertentes dos Berkshires, fora da zona elegante onde havia festivais de música e dança moderna, caçadas a cavalo e outros pretensiosismos. Nem sequer se podia fazer esqui nestas faldas. Ninguém aqui vinha. Os vizinhos eram apenas velhos simpáticos e tontos, Jukes e Kallikaks, que se balançavam nos alpendres à espera da morte, vendo televisão, o século XIX extinguindo-se lentamente nesta cova recôndita e verde. Bem, era sua, esta terra; eram seus estes vidoeiros, catalpas, castanheiros. Seus desfeitos sonhos de paz. O património dos filhos — um canto perdido em Massachusetts para Marco, o pequeno piano para June, pintado de um belo verde pelo solícito pai, também isso, coisas atamancadas como as que sempre provavelmente arranjaria. Em Verões anteriores, ao aparar a relva, apoiava-se por vezes na segadora, sufocado pelo calor, e meditava. E se eu morresse de regente, com um ataque cardíaco? Onde me porão? Talvez fosse melhor escolher o local. Debaixo do espruce? Fica demasiado perto da casa. Reflectiu agora que Madalena o teria mandado cremar. E estas explicações são insuportáveis, mas têm de ser feitas. No século XVII terminou a apaixonada procura de uma verdade absoluta com que a humanidade pudesse transformar o mundo.

Algo de prático se realizou com o pensamento. O mental tornou-se também o real. O alívio da perseguição de absolutos tornou a vida agradável. Apenas um pequeno grupo de intelectuais e profissionais fanáticos continuavam a procurar estes absolutos. Mas as nossas revoluções, incluindo o terror nuclear, conferem-nos novamente a dimensão metafísica. Todas as actividades práticas atingiram esta culminação-, tudo pode desaparecer agora, civilização, história, significado, natureza. Tudo! Ora para relembrar o problema de Kierkegaard...

Ao Dr. Waldemar Zozo: Foi o senhor o psiquiatra da Marinha que me examinou em Norfolk, Virgínia, por volta de 1942, e que me afirmou que eu era invulgarmente imaturo. Sabia-o, mas uma confirmação profissional angustiou-me profundamente. Na angústia eu não era imaturo. Baseava-me em séculos de experiência. Levei tudo isso muito a sério, nessa ocasião. De qualquer forma, fui subsequentemente licenciado por asma, não por infantilidade. Apaixonei-me pelo Atlântico. Oh, o grande mar reticulado, com seu fundo de montanhas! Mas o nevoeiro marítimo paralisou-me a voz, e para um oficial de comunicações, era o fim. Contudo, no seu cubículo, enquanto estava sentado, nu, pálido, escutando os marinheiros em exercícios ao pé, ouvindo o que me dizia acerca do meu carácter, sentindo o calor sulino, era inadequado apertaras mãos. Deixei-as pousadas nas coxas.

Por ódio, a princípio, mas mais tarde porque objectivamente me interessei, segui a sua carreira pelos jornais. O seu artigo «Inquietude Existencial do Inconsciente» seduziu-me recentemente. Era realmente um trabalho de garra. Espero que não se importe que me exprima nestes termos. Sinto-me de facto num estado de espírito invulgarmente descontraído. «Em veredas virgens», como magnificamente dizia Walt Whitman. «Escapado à vida que se exibe...» Ah, é uma praga, a vida que se exibe, uma verdadeira praga! Estamos numa época em que todos os ridículos filhos de Adão desejam evidenciar-se perante os outros, com todos os seus ditos espirituosos, esgares e tiques, toda a glória da fealdade auto-adorada, afirmando aos restantes — num transbordar de narcisismo que os próprios interpretam como benevolência — «Aqui estou para dar testemunho. Vim para lhes servir de exemplo». Pobres espectros tontos!... Escapados, de qualquer forma, como diz Whitman, à vida que se exibe e «ouvindo línguas aromáticas»... Mas há mais um facto interessante. Reconheci-o na Primavera passada no Museu de Arte Primitiva, na 54.a Rua. Como me doíam os pés! Tive de pedir a Ramona para me sentar. Disse à senhora que me acompanhava. «Aquele não será o Dr. Waldemar Zozo?» Deu-se o caso de ela também o conhecer, e pôs-me a par de várias coisas: o senhor estava muito rico, era coleccionador de antiguidades africanas, a sua filha era cantora de canções populares, e muito mais. Tive agudamente consciência de quanto o odiava. E pensara que lhe havia perdoado. Não é interessante? Ao vê-lo, com a sua camisa branca de colarinho engomado e fato de cerimónia, o seu bigode eduardiano, os lábios húmidos, o cabelo negro repuxado sobre a calva, a pança proeminente, as nádegas de macaco (quimicamente velho!) reconheci com alegria que o abominava. Essa sensação irrompeu, viva, do meu coração, após vinte e dois anos!

O seu espírito deu um dos habituais e curiosos saltos. Abriu a agenda suja numa página limpa e, à sombra irregular de uma cerejeira brava, infestada de lagartas, começou a anotar elementos para um poema. Ia tentar fazer uma Ilíada de Insectos para Junie. A miúda não sabia ler, mas talvez Madalena permitisse que Lucas Asphalter a levasse para o Parque Jackson e lhe fosse lendo os fascículos, à medida que os fosse recebendo. Luke sabia muito de ciências naturais. Far-lhe-ia bem, a ele igualmente. Moisés, pálido, embrenhado nesta ideia absurda mas sentida, fitava o chão com seus olhos castanhos, de pé, com os ombros curvados, com o livrinho de apontamentos atrás das costas enquanto meditava. Podia fazer dos Troianos formigas. Os Gregos podiam ser mosquitos aquáticos. Lucas podia mostrar-lhos ao longo da berma da lagoa, onde esses estúpidos cariátides se instalavam. Os mosquitos aquáticos, portanto, com longos cabelos de veludo perlados de oxigénio cintilante. Helena, uma bela vespa. O velho Príamo, uma cigarra, sugando seiva das raízes, e rebocando os túneis com o seu ventre em forma de pá. E Aquiles, um escaravelho macho com espigões aguçados e terrível força, mas condenado a uma vida breve, embora semideus. E à beira-mar falava para a mãe:

Assim falou Aquiles E Tétis ouviu-o entre os limos Sentada ao lado do velho pai Em glorioso assento.

Mas este projecto foi rapidamente abandonado. Não era uma boa ideia, realmente não o era. Por uma simples razão, não era suficientemente estável, nunca seria capaz de concentrar nisso por muito tempo o pensamento. O seu estado de espírito era demasiado estranho, esta mistura de clarividência e melancolia, espritde lescalier, nobres inspirações, poesia e absurdo, ideias, hiperestesia — vagueando assim, ouvindo dentro de si uma música enérgica mas indefinida, vendo coisas, auras violetas em redor dos objectos mais nítidos. O seu espírito era como aquela cisterna, água doce e pura selada sob a tampa de ferro, mas não seguramente potável. Não, ocuparia melhor o seu tempo a pintar o piano para a miúda. Vai! que a garra feroz da imaginação empunhe o pincel verde. Vai! Mas a primeira demão não secara ainda e deambulou pelo bosque, comendo um pedaço de pão da embalagem que trazia na algibeira. Pressentia que o irmão podia chegar de um momento para o outro. Will ficara apreensivo com o seu aspecto. Era evidente. E eu fazia melhor em acautelar-me, pensou Herzog, pois assim as pessoas acabam por ficar postas de lado e parecem mesmo pretendê-lo. Tenho querido que se ocupem de mim. Esperei devotamente que Emmerich me considerasse doente. Mas não tenho intenção de fazer isso — sou responsável, responsável perante a razão! Isto não passa de uma excitação temporária. Responsável perante as crianças. Caminhou lentamente pelo bosque, por entre as muitas folhas, vivas e tombadas, verdes e acobreadas, avançando por entre cepos apodrecidos, musgo, discos de fungos; descobriu uma vereda de caçador bem como uma pista de veado. Sentiu-se bastante bem, aqui, e mais calmo. O silêncio confortava-o, e o tempo magnífico, a sensação de que era facilmente contido em tudo à sua volta. Dentro do vazio de Deus, como anotou, e surdo à multiplicidade final dos factos, bem como, cego às últimas distâncias. Afastado dois biliões de anos-luz. «Supernovae».

Diário esplendor, pisado aqui Dentro do vazio de Deus.

Dirigidas a Deus, rabiscou várias linhas.

Como o meu espírito tem lutado em busca de um sentido coerente! Não consegui bons resultados. Mas desejei realizara Tua incognoscível vontade, aceitando-a, a ela e a Ti, sem símbolos. Tudo o que existe de mais profundamente significativo. Especialmente quando liberto de mim.

Voltando a considerações práticas, devia ser muito cauteloso com Will e falar-lhe apenas nos termos mais concretos sobre assuntos concretos, como esta propriedade, e assumir um aspecto quanto possível vulgar. Se apresentares um olhar judicioso, admoestou-se, meter-te-ás em complicações, e sem tardar. Já ninguém suporta tais olhares, nem sequer o teu irmão. Portanto, atenção à cara! Há certas expressões que ferem as pessoas, e especialmente a expressão de sabedoria, que te pode conduzir directamente ao manicómio. Merecê-lo-ás! Deitou-se junto às locustas. Floriam com uma flor leve, minúscula, mas deliciosa — tinha pena de ter perdido esse espectáculo. Reconhecia que, com os braços atrás das costas e as pernas estendidas à toa, estava deitado como estivera menos de uma semana antes no seu pequeno sofá ensebado de Nova Iorque. Mas seria apenas havia uma semana — cinco dias? Incrível! Como se sentia diferente! Confiante, mesmo feliz na sua excitação, estável. O cálice amargo não tardaria em lhe chegar de novo aos lábios. Esta quietude e bem-estar não passavam de uma momentânea diferença neste estranho revestimento, nesta seda variável que medeia entre a vida e o vácuo. A vida que me deu foi curiosa, gostaria de dizer à mãe, e talvez a morte que eu tenho de herdar venha a revelar-se ainda mais profundamente curiosa. Tenho por vezes desejado que ela se apresse, ansiado por que venha brevemente. Mas permaneço ainda no mesmo lado da eternidade. Não faz mal, pois restam-me ainda algumas coisas por fazer. E espero que sem alarido. Alguns dos meus propósitos mais antigos parecem ter sub-repticiamente desaparecido. Mas tenho outros. A vida nesta terra não pode ser apenas um quadro. E terríveis forças dentro de mim, incluindo a força da admiração e do elogio, possibilidades, incluindo possibilidades de amar, muito prejudiciais, que quase fizeram de mim um idiota por me faltar a capacidade de as controlar. Talvez suceda que eu não seja tão terrível e desesperadamente louco como todos, como a mãe, como eu suspeitávamos. Entretanto, despreza certos tormentos persistentes. Renuncia à hiperactividade do teu rosto hiperactivo. Para que os apagues, em lugar do fulgor do sol. Desejo enviar-lhe a si, e aos outros, o mais afectuoso desejo que tenho no meu coração. É esta a única forma de que disponho para alcançar — alcançar o incompreensível. Posso apenas rezar por isso. Portanto... Paz!

Nos dois dias seguintes — ou seriam três? — Herzog mais não fez que endereçar estas missivas, e escrever canções, salmos, e afirmações, vazando em palavras o que muitas vezes pensava mas que, por exigências de forma, ou algo do género, sempre reprimia. De vez em quando, dava por si a pintar de novo o pequeno piano, ou a comer pão e ervilhas na cozinha, ou a dormir na rede, e ficava sempre ligeiramente surpreendido ao descobrir como estivera ocupado. Olhou uma manhã para o calendário, e tentou adivinhar a data, contando em silêncio, ou antes tacteando a lembrança de noites e dias. A barba informou-o melhor que o cérebro. Os pêlos pareciam ter quatro dias de comprimento, e achou melhor apresentar-se escanhoado quando Will aparecesse.

Fez uma fogueira e aqueceu uma panela de água, ensaboando as faces com o sabão castanho de lavar roupa. Barbeado, estava extremamente pálido. A cara adelgaçara-se-lhe muito também. Acabara de pousar a máquina de barbear quando ouviu o ruído uniforme de um motor ao fundo da estrada. Correu ao jardim a encontrar o irmão.

Will vinha sozinho no Cadillac. O grande automóvel subiu lentamente a colina, arranhando o fundo nas pedras e dobrando o longo matagal de ervas bravias e caniços. Will era óptimo volante. Podia ser baixo, mas nada havia de tímido nele e, quanto ao belo acabamento italiano do Cadillac, não era homem para se afligir por umas arranhadelas. Em terreno plano, sob o ulmeiro, o carro estacionou.

Dois dentes chineses de vapor subiam da retaguarda, e William saiu, com o rosto enrugado ao sol. Observou a casa, enquanto Moisés se aproximava impaciente. Que sentiria Will?, pensou Moisés. Devia estar horrorizado. Que outra coisa poderia estar?

— Will! Como estás? — Abraçou o irmão.

— Como estás tu, Moisés? Sentes-te bem? — Will bem podia fingir-se impávido. Nunca conseguia esconder do irmão as autênticas emoções.

— Acabei de me barbear. Fico sempre descorado depois de me barbear, mas sinto-me bem. A sério, que sim.

— Perdeste peso. Uns cinco quilos, desde que deixaste Chicago. É demasiado — disse Will. — Como vai a tua costela?

— Não me incomoda absolutamente nada.

— E a cabeça?

— Óptima. Tenho estado a descansar. Onde está a Muriel? Pensei que também viria.

— Seguiu de avião. Encontro-me com ela em Boston.

Will aprendera a comportar-se com sobriedade. Como Herzog que era, tinha muito que dominar. Moisés recordava-se de uma época em que também Willie fora exuberante, ardente, explosivo, pródigo em irrupções de raiva, capaz de arremessar objectos ao chão. Um momento — o que fora que atirara para o chão? Uma escova! Fora isso! A larga escova russa dos sapatos. Will lançara-a tão violentamente que o cabo de folha se desprendera, e por baixo apareceram os pespontos, velho fio encerado, talvez mesmo fibra. Mas fora havia muito tempo. Haveria bem trinta e cinco anos. E que era feito dela, da ira de Willie Herzog, meu querido irmão? Desvanecera-se num certo equilíbrio e humor calmo, em parte boa educação, em parte (possivelmente) submissão. As explosões haviam-se transformado em implosões, e onde dantes havia luz penetrara a escuridão, pouco a pouco. Não importava. O facto de ver Will avivava o amor de Moisés por ele. Will tinha um ar cansado, enrugado; havia muito que rodava pela estrada, precisava de comer e de descansar. Empreendera esta longa viagem porque estava preocupado com ele, Moisés. E como fora discreto, não trazendo Muriel!

— Que tal a viagem, Will? Estás com fome? Queres que abra uma lata de atum?

— Tu é que pareces não ter comido. Eu tomei qualquer coisa na estrada.

— Bem, vem sentar-te um instante. — Conduziu-o para as cadeiras de repouso. — Isto aqui era lindo quando eu tratava do jardim.

— Pois então é esta a casa? Não, não me quero sentar, obrigado. Prefiro dar uma volta. Vamos vê-la.

— Sim, é esta a famosa casa, a casa da felicidade — disse Moisés, mas acrescentou: — Na realidade, fui feliz aqui. Não devemos ser ingratos.

— Parece bem construída.

— Do ponto de vista de um construtor, é terrível. Imagina o que custaria hoje em dia. Os alicerces podiam aguentar com o Empire State Building. E vou mostrar-te as vigas mestras de castanheiro talhadas à mão. Antigos encaixes e machos. Sem metal algum.

— Deve ser difícil de aquecer.

— Nem por isso. Escalão eléctrico baixo.

— Quem me dera ser eu a vender-te a corrente. Faria fortuna... Mas concordo que é um local magnífico. Estas árvores são lindas. Quantos acres tens?

— Quarenta. Mas rodeados por quintas abandonadas. Não há um vizinho nas duas milhas mais próximas.

— Oh... Isso é bom?

— Quero dizer que é muito solitária.

— Que imposto pagas?

— Uns cento e oitenta e seis. Nunca mais de cento e noventa.

— E a hipoteca?

— Tenho apenas uma, pequena. Pagamentos e juros perfazem duzentos e cinquenta por ano.

— Muito bem — observou Will aprovadoramente. — Mas diz-me, quanto dinheiro enterraste nesta propriedade, Moisés?

— Nunca fiz as contas. Presumo que uns vinte mil. Mais de metade em melhoramentos.

Will baixou a cabeça. De braços cruzados, erguia o olhar para a estrutura, com o rosto parcialmente virado — também ele possuía esta peculiaridade hereditária. Apenas os seus olhos eram calma e firmemente perspicazes, não sonhadores. Moisés, contudo, vislumbrava sem a menor dificuldade o que Will pensava.

Exprimiu-o para si mesmo em ídixe. In drerd aufn deck. A fronteira do nada. No fim do mundo.

— Em si, é uma bela propriedade. Sob essa perspectiva pode ser um bom investimento. Claro que a localização é um pouco excêntrica. Ludeyville não vem no mapa.

— Não, não vem no mapa Esso — aquiesceu Moisés. — Evidentemente, o estado de Massachusetts sabe onde fica.

Ambos os irmãos esboçaram um sorriso, sem se fitarem.

— Deixa-me ver o interior — pediu Will.

Moisés guiou-o numa visita de inspecção à casa, começando pela cozinha. — Precisa de arejar.

— Está um pouco bafienta. Mas agradável. O estuque está em óptimo estado.

— É preciso um gato para fiscalizar os ratos do campo. Passam aqui o Inverno. Acho-lhes graça, mas roem tudo. Mesmo encadernações de livros. Parece que adoram grude. E cera. Parafina. Velas. Todas essas coisas.

Will usava para com ele de grande delicadeza. Não o obrigava rudemente a encarar os problemas fundamentais, como teria feito Shura. Havia em Will um certo delicado pudor. Helena também o tinha. Shura teria exclamado — Que palerma que foste, enterrares tanta massa neste velho barracão! — Bem, eram os modos de Shura. Moisés amava-os a todos, no entanto.

— E o fornecimento de água? — indagou Will.

— Assegurado pela nascente. Temos igualmente dois velhos poços. Um deles ficou inutilizado pelo querosene. Houve alguém que deixou verter-se um depósito inteiro de querosene e escorreu para lá. Mas não faz diferença. As reservas de água são excelentes. A fossa está bem construída. Podiam acomodar-se vinte pessoas. Não seriam necessárias laranjeiras.

— Que queres dizer com isso?

— Quero dizer que em Versalhes Luís XVI plantou laranjeiras porque os excrementos da corte empestavam o ar.

— Que bom ser culto — observou Will.

— Ser pedante, queres tu dizer — retorquiu Herzog. Falava com muita cautela, esforçando-se especialmente por dar uma impressão de completa normalidade. Que Will o estava a estudar — Will que se tornara o mais discreto e perspicaz dos Herzogs — era bem evidente. Moisés achava que suportaria razoavelmente este exame. As faces macilentas, acabadas de barbear traíam-no, bem como toda a casa (os esqueletos na retrete, os mochos no candeeiro, o piano semi-pintado, os restos de refeições, a atmosfera a que faltava uma mulher); a sua «inspirada» visita a Chicago fora má também. Muito má. Devia ser igualmente perceptível que se encontrava num terrível estado psicológico, com olhos dilatados pela excitação, o próprio ritmo do pulso talvez detectável nas grandes íris. Porque terei eu de ser um impulsivo... Mas sou-o. Sou-o, e burros velhos não aprendem línguas. Sou assim e assim continuarei a ser. E para quê combater-me? O meu equilíbrio vem da instabilidade. Não da organização ou da coragem, como nos outros. É doloroso, mas assim é. Nestas coordenadas eu também — mesmo eu! — aprendo certas coisas. Talvez seja a única maneira de o conseguir. Tenho de tocar o instrumento que possuo.

— Estou a ver que tens estado a pintar este piano.

— Para June — explicou Herzog. — Um presente. Uma surpresa.

— O quê? — Will soltou uma gargalhada. — Tencionas mandá-lo daqui? O frete fica-te em duzentos dólares. E terá de ser montado, afinado. É um piano excepcional?

— A Madalena comprou-o num leilão por vinte e cinco dólares.

— Acredita em mim, Moisés, podes comprar um bom piano antigo num saldo, em Chicago. Instrumentos como estes, há-os aos pontapés.

— Sim...? Mas acontece que gosto desta cor. — Este verde-maçã, papagaio, a cor específica de Ludeyville. Os olhos de Moisés fixavam-se com uma certa persistência inspirada no seu trabalho. Pressentia que se abeirava da impulsividade sem peias, e alguma singularidade poderia escapar-lhe. Não podia permitir que tal acontecesse. Em circunstância alguma deveria pronunciar uma simples palavra que pudesse ser interpretada como irracional. A situação era já suficientemente negra. Afastou os olhos do piano para a clara sombra do jardim, e procurou tornar-se tão claro como ela. Submeteu-se à opinião fraterna. — Óptimo. Na próxima viagem, arranjo-lhe um piano.

— O que aqui tens é uma excelente casa de Verão — disse Will. — Um pouco solitária, mas agradável. Se conseguires pô-la em condições.

— Isto pode ficar lindo. Sabes, podíamos fazer disto uma estância de Verão dos Herzogs. Para a família. Cada um entraria com algum dinheiro. Cortavam-se os silvados. Construía-se uma piscina.

— Ah, sim. Helena detesta viajar. E Shura é lá homem para vir para aqui, onde não há corridas de cavalos, e partidas de cartas, ou outros magnates, e raparigas!

— Há corridas de trote na Feira de Barrington... Não, concordo contigo em que não é grande ideia. Bem, poder-se-ia transformar numa casa de saúde. Ou transportá-la para outro local.

— Não vale a tal ponto. Tenho visto destruir solares para novas urbanizações ou para modernas auto-estradas. Este não merece ser reconstruído. Não consegues alugá-lo?

Herzog sorriu silenciosamente, fitando Will com um bom humor penetrante.

— Bem, Moisés, a única sugestão que resta, é a de o pores à venda. Não te darão o que gastaste.

— Eu podia trabalhar e enriquecer. Arranjar uma boa maquia, para manter esta casa.

— Sim — disse Will. — Podias. — Dirigia-se carinhosamente ao irmão.

— Estranha situação, aquela em que me meti, Will, não é verdade? — exclamou Moisés. — Para mim. Para nós, os Herzogs, quero eu dizer. Parece estranho acabar-se por chegar a este ponto. Neste belo retiro verde... Estás preocupado comigo, bem vejo.

Will, emocionado mas dominando-se, um dos rostos humanos mais profundamente familiares e mais amados, olhou-o duma forma que não oferecia equívocos — Claro que estou preocupado. A Helena também.

— Bem, não devem afligir-se comigo. Encontro-me numa fase estranha, mas não estou mal. Abrir-te-ia o coração, Will, se encontrasse a chave dele. Não há razão para se impressionarem comigo. Santo Deus, Will, estou prestes a chorar! Como me aconteceu isto! Mas não chorarei. Isto é apenas amor. Ou algo que me vence como o amor. É provavelmente amor. Não consigo refreá-lo. Mas não quero que fiques a imaginar coisas erradas.

— Moisés... porque haveria eu de fazer tal? — Will falava em voz baixa. — Também em mim há profundos sentimentos por ti. Sinto-me como tu. Lá pelo facto de ser negociante, não quer dizer que eu não compreenda o que queres dizer. Não venho para te fazer mal, bem sabes. Vá, Moisés, toma uma cadeira. Vê onde pões os pés.

Moisés sentou-se no velho sofá, de onde, ao mais pequeno toque, se desprendia poeira.

— Gostava de te ver menos agitado. Precisas de comer qualquer coisa e de dormir. Possivelmente de alguns cuidados médicos. Uns dias no hospital, sem preocupações.

— Will, estou excitado, e não doente. Não quero que me tratem como se estivesse doente da cabeça. Fico-te agradecido por teres vindo.

Estava silenciosa e obstinadamente sentado, insistindo, dominando o seu desejo, violento e sufocado, de chorar. Saía-lhe apenas um fio de voz.

— Pensa nisso com tempo... — aconselhou Will.

— Eu... — Herzog recobrou a voz e disse: — Quero ser franco a respeito de uma coisa. Não me dirijo a ti por fraqueza, ou por não saber qual o caminho a seguir. Não me importo de descansar num hospital por uns dias. Se tu e a Helena decidiram que é isso que devo fazer, não vejo objecção. Lençóis lavados, um banho e comida quente. Dormir. Tudo isso é agradável. Mas apenas por uns dias. Tenho de ir visitar Marco ao acampamento no dia dezasseis. É o Dia dos Pais e ele está à minha espera.

— Perfeito — comentou Will. — É absolutamente justo.

— Há pouco, em Nova Iorque, sentia-me tentado pela ideia de ir para um hospital.

— Não estavas senão a ser sensato — observou o irmão. — Do que precisas é de descanso vigiado. Também já tenho pensado nisso para mim. De tempos a tempos, todos nós nos pomos assim. Ora — mirou o relógio — pedi ao meu médico que telefonasse para um hospital regional. Em Pittsfield.

Mal Will acabou de falar, Moisés sentou-se para a frente no sofá. Não conseguia encontrar palavras. Limitou-se a fazer um sinal negativo com a cabeça. Perante isto, o rosto de Will alterou-se também. Parecia pensar que pronunciara demasiado abruptamente a palavra hospital, que devia ter sido mais gradual, mais circunspecto.

— Não — murmurou Moisés, abanando ainda a cabeça. — Não. Definitivamente.

Will permanecia silencioso, ainda com o ar contristado de quem cometeu um erro de táctica. Moisés facilmente podia imaginar o que Will dissera a Helena depois de o ter afiançado, e que preocupada conversa teriam tido acerca dele. («Que havemos de fazer? Pobre Moisés... quem sabe se tudo isto não o enlouqueceu. Consultemos, pelo menos, uma opinião profissional.») A especialidade de Helena eram as opiniões profissionais. A veneração com que dizia «opinião profissional» tinha sempre divertido Moisés. Assim, foram ter com o internista de Will para lhe perguntarem se seria capaz de, discretamente, arranjar qualquer coisa na zona dos Berkshires. — Mas pensei que já tínhamos chegado a um acordo — aventou Will.

— Não, Will. Nada de hospitais. Sei que tu e a Helena estão a fazer o que só um irmão e uma irmã fariam. E sinto-me tentado a aceitar. Para um homem como eu, é uma ideia sedutora. «Repouso vigiado.»

— E porque não? Se te tivesse encontrado melhor talvez nem me referisse à hipótese — continuou Will. — Mas olha para ti.

— Bem sei — replicou Moisés. — Mas quando começo a ser um pouco racional queres entregar-me a um psiquiatra. Era num psiquiatra que tu e a Helena pensavam, não era?

Will permaneceu silencioso, aconselhando-se consigo próprio. Depois suspirou e disse: — Que mal haveria nisso?

— Terá sido mais estranho eu ter tido estas mulheres, estes filhos, enterrar-me numa terra destas do que o pai ter sido contrabandista de bebidas alcoólicas? Nunca considerámos que estivesse louco. — Moisés começou a sorrir. — ...Lembras-te, Will... tinha aqueles falsos rótulos: White Horse, Johnnie Walker, Haig andHaig, e nós sentávamo-nos à mesa com a lata da cola, e ele apresentava-nos aqueles rótulos perguntando: — Bem, meninos, que vamos fazer hoje? — , e nós começávamos a gritar e a guinchar White Horse, Teacher's. E o fogão a carvão estava aceso. Caíam fagulhas como dentes vermelhos na cinza. Tinha aquelas lindas garrafas verde-escuras. Já não fazem vidro assim, com aquelas formas. O que eu preferia era White Horse.

Will sorriu.

— Ir para o hospital seria bom — disse Herzog. — Mas seria a pior atitude a tomar. Resolvi pôr cobro a esta maldição. Estou agora a pensar, a meditar nas coisas. Vejo perfeitamente aquilo que devo evitar. Depois, de repente, encontro-me na cama com essa mesma coisa, amando-a. Como com a Madalena. Ela parece ter-me preenchido uma certa necessidade.

— Como encaras tu isso, Moisés? — Will sentou-se junto dele, no sofá.

— Uma necessidade muito especial. Não sei o quê. Trouxe uma ideologia para a minha vida. Algo relacionado com uma catástrofe. Afinal, estamos numa época ideológica. Talvez ela não devesse fazer um pai das pessoas de quem gostasse.

Will sorriu da forma como Moisés se exprimia. — Mas que tencionas tu fazer agora aqui?

— Posso bem continuar por cá. Não estou longe do acampamento de Marco. Sim, é isso. Se Daisy me deixar, trá-lo-ei para cá no próximo mês. O que vou fazer, se me deres uma boleia a mim e à bicicleta até Ludeyville, é requerer que liguem a luz e o telefone. Pedirei ao Tuttle para aparar a relva. Talvez a Sra. Tuttle me faça uma limpeza. É isso que vou fazer. — Ergueu-se. — Mando ligar de novo a água e compro comida nutritiva. Vem, Will, dá-me uma boleia até à casa do Tuttle.

— Quem é o Tuttle?

— É quem tudo mexe. É a alma de Ludeyville. Um tipo alto. Parece tímido, à primeira vista, mas isso faz parte da sua esperteza. É o demónio destes bosques. É capaz de me pôr aqui as luzes acesas numa hora. Sabe tudo. Exagera no preço, mas muito, muito timidamente.

Tuttle estava de pé junto das altas e estreitas bombas antiquadas de gasolina quando Will se aproximou. Delgado, enrugado, com os pêlos dos braços musculosos brancos como farinha, de tão tisnados, usava um boné de algodão e entre os dentes postiços (para o ajudar a vencer o vício de fumar, como uma vez explicara a Herzog) segurava um palito plástico. — Sabia que estava por cá, Sr. Herzog — disse ele. — Bem-vindo seja.

— Como sabia?

— Vi o fumo da sua chaminé, em primeiro lugar.

— Sim? E em segundo lugar?

— Ora, uma senhora tem estado a tentar falar consigo pelo telefone.

— Quem? — indagou Will.

— De Barrington. Deixou o número.

— Só o número? — disse Herzog. — E o nome?

— Miss Harmona, ou Armona.

— Ramona — exclamou Herzog. — Está em Barrington?

— Esperavas alguém? — Will voltou-se para ele no banco.

— Ninguém senão tu.

Will insistiu em saber mais. — Quem é ela?

Um pouco contra vontade, e com um olhar evasivo, Moisés respondeu: — Uma senhora... uma mulher. — Depois, pondo de parte as reticências (porque havia, no fim de contas, de ficar nervoso por isto?) acrescentou — Uma mulher, uma florista, uma amiga de Nova Iorque. — Vais retribuir a chamada?

— Pois claro. — Observou o rosto branco da Sra. Tuttle a escutar na loja sombria. — Estou a pensar — disse para Tuttle — ...quero abrir a casa. Preciso de electricidade. Talvez a Sra. Tuttle me pudesse ajudar a limpá-la.

— Oh, acho que sim.

A Sra. Tuttle usava sapatos de ténis, e sob o vestido transparecia a ponta da camisa de noite. Tinha as unhas envernizadas manchadas de tabaco. Aumentara muito de peso na ausência de Herzog, e notou o desfiguramento do seu belo rosto, o peso do cabelo escuro descuidado, e a estranha expressão distante dos olhos cinzentos, como se a gordura do corpo tivesse sobre si um efeito de ópio. Sabia que ela seguira as conversas dele com Madalena na estação telefónica. Provavelmente, ouvira todas as coisas vergonhosas e terríveis que haviam sido pronunciadas, o palavreado bombástico e os soluços. Agora ia convidá-la para trabalhar, para varrer o soalho, para lhe fazer a cama. Ela pegou num cigarro de filtro como um homem, fitou-o por entre o fumo com os extáticos olhos cinzentos e disse: — Sim, está bem. É o meu dia de folga do hotel. Estou empregada como criada de quarto no novo hotel à beira da estrada.

— Moisés! — exclamou Ramona, ao telefone. — Recebeste o meu recado. Que óptimo estares aí, na tua casa. Toda a gente em Barrington diz que se se quer alguma coisa em Ludeyville, nos temos de dirigir ao Tuttle.

— Olá, Ramona. O meu telegrama de Chicago não veio?

— Sim, Moisés. Foste muito simpático. Mas pensei que não ficarias lá muito tempo, e tive o pressentimento de que irias para a tua casa de campo. De qualquer forma, precisava de visitar uns velhos amigos em Barrington, de forma que me meti no automóvel e vim.

— A sério? — disse Herzog. — Que dia da semana é hoje?

Ramona riu-se. — És mesmo tu! Não admira que as mulheres percam a cabeça contigo. É sábado. Estou com a Myra e o Eduardo Misseli.

— Ah, o violinista. Conheço-o só de vista, do supermercado.

— É um homem encantador. Sabes que ele está a estudar a arte de fazer violinos? Estive na loja dele toda a manhã. E pensei que gostaria de dar uma vista de olhos pela propriedade do Herzog.

— Está comigo o meu irmão... Will.

— Ah, esplêndido — observou Ramona, com a sua voz aguda. — Está a passar uma estadia contigo?

— Não, está de passagem.

— Gostaria de o conhecer. Os Misselis dão hoje uma pequena recepção em minha honra. Depois do jantar.

Will ficara de pé junto da cabina, a escutar. Sérios, preocupados, os seus olhos escuros suplicavam discretamente a Moisés que não cometesse mais erros. Não posso prometer, pensou Herzog. Posso apenas afirmar-lhe que não tenciono, neste momento, entregar-me a Ramona ou a qualquer mulher. O olhar de Will tinha algo de familiar, uma luz estranha tão clara como uma palavra.

— Não, obrigado — agradeceu Herzog. — Nada de festas. Não tenho disposição para isso. Mas olha, Ramona...

— Posso aparecer? — indagou Ramona. — É uma parvoíce estarmos assim ao telefone. Em oito minutos posso estar aí.

— Bem, talvez — balbuciou Herzog. — Estou-me a lembrar de que tenho de qualquer forma de descer até Barrington, para fazer compras e para que me tornem a ligar o telefone.

— Oh, tencionas permanecer algum tempo em Ludeyville?

— Sim. Marco virá para o pé de mim. Um momento, Ramona — Herzog tapou o bocal do instrumento e disse a Will: — Podes levar-me até Barrington? — Will aquiesceu, evidentemente.

Ramona estava à espera, sorridente, uns minutos mais tarde. De pé ao lado do Mercedes, de calções e sandálias. Trazia uma blusa mexicana com botões de moedas. O cabelo brilhava-lhe e parecia corada. A ansiedade do momento ameaçava-lhe o auto-domínio. — Ramona — disse Moisés — , este é o Will.

— Ah, Sr. Herzog, é para mim um prazer conhecer o irmão de Moisés. Will, se bem que desconfiado dela, foi cortês. Tinha modos sóbrios, polidamente sociáveis. Herzog ficou-lhe grato pelo decoro encantador da sua gentileza para com Ramona. O olhar de Will era complacente. Parecia óbvio que considerava Ramona notavelmente atraente. Devia estar à espera de um estafermo, pensou Herzog.

— Olha, Moisés — disse Ramona — , cortaste-te a fazer a barba. E bastante. Tens o queixo todo arranhado.

— Ah... — Apalpou-se com um vago interesse.

— Parece-se imenso com o seu irmão, Sr. Herzog. A mesma bela cabeça e esses olhos cor de avelã. Não fica por cá?

— Estou a caminho de Boston.

— Eu tinha pura e simplesmente de sair de Nova Iorque. Os Berkshires não são maravilhosos? Que verde!

Bandida do amor, costumavam os jornais sensacionalistas escrever por cima de cabeças assim escuras. Nos anos vinte. De facto, Ramona assemelhava-se a essas figuras do mundo do sexo e do exibicionismo. Mas havia nela também algo de profundamente comovente. Debatia-se, lutava. Precisava de uma extraordinária coragem para manter este equilíbrio. Neste mundo, ser uma mulher que tratava de tudo sozinha! E esta sua coragem era instável. Por vezes tremia. Fingia procurar qualquer coisa na carteira porque as faces lhe tremiam. O perfume dos seus ombros chegava-lhe às narinas. E, como quase sempre sucedia, ouviu a resposta profunda, cósmica, idioticamente masculina — cuac. O grasnar genesíaco e sensual nas entranhas. Cuac, Cuac.

— Não vens portanto à festa? — disse Ramona. — E quando é que vou espreitar a tua casa?

— Bem, mandei fazer-lhe uma pequena limpeza — informou Herzog.

— Então não podemos... Porque não vamos jantar juntos? — alvitrou ela. — E o Sr. Herzog também. O Moisés pode dizer-lhe como é boa a minha remoulade de lagostins.

— É óptima. Nunca comi melhor. Mas o Will tem de seguir viagem e tu estás de férias, Ramona, não consentimos que vás cozinhar para os três. Porque não vens jantar comigo?

— Oh — disse Ramona, com um novo afluxo de alegria. — Queres receber-me?

— Bem, porque não? Vou arranjar duas postas de peixe-espada.

Will fitou-o com o seu indeciso sorriso.

— Esplêndido. Eu levo uma garrafa de vinho — ofereceu Ramona.

— Nem por sombras. Aparece às seis. Comemos às sete e poderás chegar muito a horas à tua festa.

Musicalmente (seria um efeito propositado? Moisés não era capaz de distinguir), Ramona disse para Will: — Então adeus, Sr. Herzog. Espero que nos tornemos a encontrar. — Ao voltar-se para entrar no Mercedes, pousou momentaneamente a mão no ombro de Moisés. — Confio em que seja um bom jantar...

Queria que Will tomasse consciência da intimidade que os unia, e Moisés não viu razão para lho recusar. Encostou o rosto ao dela.

— Despedimo-nos nós também aqui? — inquiriu Moisés quando ela partiu. — Posso tomar um táxi para casa. Não quero atrasar-te.

— Não, não, levo-te a Ludeyville.

— Vou entrar aqui para comprar o peixe-espada. Limão, também. Manteiga.

Café.

Estavam na última subida antes de Ludeyville quando Will indagou:

— Deixo-te em boas mãos, Moisés?

— Se não há perigo em te ires embora, é isso que queres dizer? Acho que podes partir, sem receio. A Ramona não é assim tão má.

— Má? Que é que tu dizes? É belíssima. Mas isso também Madalena o era.

— Não vou ficar nas mãos de ninguém.

Com um plácido e brando olhar de ironia, triste e meigo, Will disse: — Ámen. E a ideologia desta? Não tem nenhuma?

— Está bem aqui, diante do Tuttle. Levam-me na camioneta, com bicicleta e tudo. Sim, acho que ela também tem a sua. Acerca do sexo. É bastante fanática nisso. Mas não me afecta.

— Vou sair para me certificar da direcção — disse Will.

Tuttle, ao passarem devagar junto dele, informou Moisés. — Penso que dentro de minutos já terá electricidade em casa.

— Obrigado... Olha, Will, toma um bocadinho desta arbor vitae para mascar. Tem um sabor muito agradável.

— Não decidas nada agora. Não podes dar-te ao luxo de mais um erro.

— Convidei-a para jantar. Apenas. Ela volta para a festa dos Misselis... não vou com ela. Amanhã é domingo. Ela tem o seu negócio em Nova Iorque, e não pode ficar. Não vou fugir com ela nem ela comigo, como calculas.

— Exerces uma estranha influência nas pessoas — comentou Will. — Bem, adeus Moisés. Talvez a Muriel e eu venhamos a dar cá uma saltada no regresso.

— Encontrar-me-ão por casar.

— Se isso não te afectasse assim, não faria diferença. Podias casar-te com mais cinco mulheres. Mas com o ardor com que fazes tudo... e a tua habilidade para fazer escolhas fatais...

— Will, podes partir descansado. Digo-te... prometo. Nada do género sucederá. Não há sequer oportunidade. Adeus, e obrigado. Quanto à casa...

— Pensarei nisso. Precisas de dinheiro?

— Não.

— Tens a certeza? Estás a dizer a verdade? Lembra-te de que estás a falar com o teu irmão.

— Sei com quem estou a falar. — Agarrou Will pelos ombros e beijou-o no rosto. — Adeus, Will. Vira na primeira à direita ao saíres da vila. Verás o sinal de portagem.

Quando Will partiu, Moisés esperou pela Sra. Tuttle no banco junto à arbor vitae, contemplando pela primeira vez calmamente a aldeia. Por toda aparte, na Terra, o modelo da criação natural parece ser o oceano. As montanhas, decerto a ele se assemelham, acetinadas, ondulantes, com aquela altiva cor azul. E mesmo estes retalhos de relvados. O que impede estas casas vermelhas de tijolo de ruírem nestas vagas é o íntimo bafio. Chega até mim através das redes das janelas o seu cheiro bocejante. O aroma das almas é para as paredes uma escora. Se assim não fosse, o enrugado dos montes fá-las-ia esboroar.

— Tem aqui um esplêndido casarão antigo, Sr. Herzog — disse a Sra. Tuttle ao subirem o outeiro no velho carro. — Deve ter empatado bom dinheiro para o arranjar. É uma vergonha desprezá-lo.

— Temos de dar uma limpeza na cozinha para eu poder cozinhar. Vou ver se lhe descubro as vassouras, os baldes, etc.

Andava às apalpadelas na copa obscura quando as luzes se acenderam. O Tuttle é um homem miraculoso, pensou. Fiz-lhe o pedido por volta das duas. Devem ser quatro e meia, cinco.

A Sra. Tuttle, de cigarro na boca, envolveu a cabeça num lenço estampado. Sob a bainha do vestido o nylon cor de pêssego da camisa de noite quase arrastava pelo chão. Na despensa de pedra Herzog encontrou o contador da água. Imediatamente ouviu a água subir, vertendo-se no depósito vazio. Enfiou a ficha do fogão na tomada. Ligou o frigorífico; levaria algum tempo até arrefecer. Então ocorreu-lhe a ideia de arrefecer o vinho na nascente. Em seguida pegou na gadanha para desbravar o pátio, para que Ramona pudesse ver melhor a casa. Mas depois de ter cortado umas mãos-cheias, as costelas começaram a doer-lhe. Não se sentia suficientemente bem para este género de trabalho. Esticou-se ao comprido na cadeira de repouso, voltado para o sul. Mal o sol começou a perder intensidade os tordos surgiram e, enquanto entoavam a sua música docemente violenta que atemorizava os intrusos,.os melros começavam a reunir-se em bandos à espera da noite, e precisamente ao pôr do Sol partiam destas árvores em ondas, onda após onda, percorrendo três ou quatro milhas numa revoada até aos ninhos, à beira de água.

A perspectiva da visita de Ramona perturbava-o ligeiramente, era certo. Mas comeriam. Ela ajudá-lo-ia a lavar a loiça, e depois acompanhá-la-ia ao carro.

Nada mais farei que suscite as singularidades da vida. Já tal acontece sobejamente sem a minha colaboração.

Num dos lados, os montes perderam o sol e ganharam um azul mais intenso; no outro, permaneciam ainda brancos e verdes. Os pássaros chilreavam muito alto.

De qualquer forma, será lícito supor ter numerosas possibilidades de escolha? Olho para mim e vejo: peito, coxas, pés — uma cabeça. Esta estranha organização, sei que morrerá. E por dentro — algo, algo, felicidade... «Comoveis-me». Quanto a isso não se me oferecem possibilidades de escolha. Algo que produz o entusiasmo, um sentimento sagrado, como as laranjas produzem a cor de laranja, a relva o verde, os pássaros calor. Alguns corações são capazes de mais amor e outros de menos, provavelmente. Terá isto qualquer significado? Há quem afirme que este produto dos corações é o conhecimento. «e sens mon coeur et je connais les hommes.» Mas o espírito desligava-se-lhe igualmente agora do francês. Eu, decerto, não diria tal. O meu rosto é demasiado cego, o meu espírito demasiado limitado, os meus instintos demasiado tacanhos. Mas este ardor, nada significará? Será uma alegria idiota que faz este animal, o mais singular de todos os animais, exclamar qualquer coisa? E considera ele esta reacção como um sinal, uma prova da eternidade? E guarda-a no seu peito? Mas não tenho argumentos a apresentar acerca disto. «Comoveis-me». «Mas que desejas tu, Herzog?» Precisamente isto — nem uma única coisa. Estou bastante satisfeito por existir, por ser como me desejam, por quanto tempo quanto eu possa preencher.

Pensou depois em acender velas para o jantar, visto que Ramona gostava. Talvez houvesse uma ou duas velas na caixa dos fusíveis. Mas era tempo de tirar as garrafas da fonte. Os rótulos tinham-se desprendido, mas o vidro estava bem gelado. Deleitou-se ao verificar o intenso frio da água.

De regresso do bosque, colheu algumas flores para a mesa. Perguntou a si próprio se haveria um saca-rolhas na gaveta. Tê-lo-ia Madalena levado para Chicago? Bem, talvez Ramona tivesse um no Mercedes. Pensamento insensato.

Podia usar-se uma unha, se necessário. Ou podia-se partir o gargalo da garrafa, como nos antigos filmes. Entretanto, foi enchendo o chapéu com o que colhia da roseira próxima, a que trepava pela goteira. Os espinhos estavam ainda demasiado verdes para magoarem muito. Junto à cisterna havia lírios amarelos. Apanhou também alguns, mas murcharam imediatamente. E, regressado ao jardim mais obscurecido, procurou peónias; talvez algumas tivessem sobrevivido. Mas então teve o pressentimento de que poderia estar a cometer um erro, e deteve-se, escutando o varrer da Sra. Tuttle, o ritmo das cerdas. Apanhar flores? Estava a ser atencioso, a ser amável. Como o interpretariam? (Esboçou um sorriso.) No entanto, bastava-lhe uma decisão para as flores não virem a ser utilizadas; não, não podiam comprometê-lo. Assim, não as deitou fora. Voltou de novo o rosto escuro para a casa. Contornou-a e entrou pela frente, pensando que mais provas de saúde mental poderia exibir além da recusa de ser internado no hospital. Talvez parasse de escrever cartas. Sim, era disso que tinha consciência, de facto. A revelação de que chegara o fim dessas cartas. O que quer que se lhe havia atravessado na vida nestes últimos meses, o feitiço, parecia realmente estar a passar, a desaparecer. Pousou o chapéu, com as rosas e os lírios, sobre o piano semi-pintado, e dirigiu-se para o escritório, levando as garrafas de vinho na mão como um par de maças indianas. Pisando notas e papéis, deitou-se no sofá Recamier. Ao estender-se, respirou fundo e ficou depois deitado, contemplando a malha da rede da persiana rasgada pelas trepadeiras, e escutando o contínuo raspar da vassoura da Sra. Tuttle. Gostaria de lhe dizer que salpicasse o chão. Estava a levantar demasiada poeira. Dentro de minutos, dir-lhe-ia: «Dê uma molhadela, Sra. Tuttle. Há água no lava-loiça.» Mas não por enquanto. Neste momento não tinha recados para ninguém. Nada. Nem uma palavra.

 

Notas

  1. Goysche — não judia, em ídixe.
  2. Mass — abreviatura de Massachusetts.
  3. Achas, além do significado literal, designa também em inglês as lésbicas.
  4. Young Men's Christian Association (Associação Cristã da Juventude).
  5. Pronúncia defeituosa de Berlitz.
  6. Apfel Strudel — bolo típico austríaco feito com maçãs.
  7. White Anglo-saxon Protestants (Protestantes anglo-saxões brancos). Ambivalentemente wasps significa também «vespas».

 

 

 

                                                                                Saul Bellow  

 

                      

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