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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HIPPIE / Paulo Coelho
HIPPIE / Paulo Coelho

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

As histórias aqui relatadas fazem parte da minha experiência pessoal. Alterei ordem, nomes e detalhes de pessoas, tive que condensar algumas cenas, mas tudo que ocorreu é verdadeiro. Usei a narrativa na terceira pessoa porque isso me permitiu dar aos personagens sua própria voz na descrição de suas vidas.

 

 

 

 

Em setembro de 1970, dois locais disputavam o privilégio de ser considerados o centro do mundo: Piccadilly Circus, em Londres, e o Dam, em Amsterdam. Mas nem todo mundo sabia disso. Se perguntassem à maior parte das pessoas, elas teriam respondido: “a Casa Branca, nos Estados Unidos, e o Krêmlin, na União Soviética”. Porque essas pessoas se informavam por jornais, televisão, rádio, meios de comunicação já completamente ultrapassados e que jamais voltariam a ter a relevância que tiveram quando foram inventados.

 

Em setembro de 1970, as passagens de avião eram caríssimas, o que permitia apenas a uma elite viajar. Bem, não era exatamente assim para uma multidão imensa de jovens, da qual os antigos meios de comunicação se concentravam apenas no aspecto externo: tinham cabelos longos, usavam roupas coloridas, não tomavam banho (o que era uma mentira, mas os jovens não liam jornais, e os adultos acreditavam em qualquer notícia capaz de insultar aqueles que consideravam uma “ameaça para a sociedade e os bons costumes”), punham em risco uma geração inteira de moços e moças estudiosos procurando vencer na vida com seus péssimos exemplos de libertinagem e “amor livre”, como se dizia com desprezo. Pois bem, essa multidão cada vez mais numerosa de jovens tinha um sistema de divulgar notícias que ninguém, absolutamente ninguém, conseguia detectar.

 

O “Correio Invisível” estava pouco ligando para divulgar e comentar o novo modelo da Volkswagen ou os novos tipos de sabão em pó que acabavam de ser lançados no mundo inteiro. Suas notícias resumiam-se a qual seria a próxima grande trilha a ser percorrida por aqueles jovens insolentes, sujos, praticantes de “amor livre”, trajando roupas que nenhuma pessoa de bom gosto seria capaz de vestir. As meninas com seus cabelos em trança cobertos de flores e suas saias longas, blusas coloridas sem sutiã, colares de todo tipo de cores e contas; os rapazes com cabelos e barba sem cortar havia meses, com jeans desbotados e rasgados de tanto uso, porque jeans eram caros em toda parte do mundo — exceto nos Estados Unidos, onde tinham deixado o gueto dos trabalhadores de fábrica e agora eram vistos nos gigantescos concertos em San Francisco e arredores.

 

O “Correio Invisível” existia porque as pessoas estavam sempre nesses concertos, trocando ideias sobre onde deveriam se encontrar, como podiam descobrir o mundo sem entrar em um ônibus de turismo onde um guia ia descrevendo as paisagens enquanto as pessoas mais jovens se entediavam e os velhos dormiam. E assim, através do boca a boca, todos sabiam onde seria o próximo concerto ou a próxima grande trilha a ser percorrida. E não existiam limites financeiros para ninguém, porque o autor preferido de todos nessa comunidade não era nem Platão nem Aristóteles, nem os quadrinhos de alguns desenhistas que haviam ganhado o status de celebridade. O grande livro, que praticamente ninguém viajava para o velho continente sem, chamava-se Europa a cinco dólares por dia, de Arthur Frommer. Com ele todos podiam saber onde se hospedar, o que ver, onde comer e quais eram os pontos de encontro e os lugares em que se podia assistir a música ao vivo sem gastar praticamente nada.

 

O único erro de Frommer foi ter, na época, limitado seu guia à Europa. Não existiam outros lugares interessantes? As pessoas não estavam mais dispostas a ir para a Índia do que para Paris? Frommer corrigiria tal falha alguns anos depois, mas enquanto isso o “Correio Invisível” se encarregou de promover uma rota na América do Sul, em direção à ex-cidade perdida de Machu Picchu, alertando a todos que não comentassem muito com quem não conhecia a cultura hippie, ou em breve o lugar seria invadido por bárbaros com suas máquinas fotográficas e as extensas explicações (rapidamente esquecidas) de como um bando de índios havia criado uma cidade tão bem escondida que só poderia ser descoberta do alto — algo que eles julgavam incapaz de acontecer, porque homens não voam.

 

Sejamos justos: existia um segundo e imenso best-seller, não tão popular como o livro de Frommer, mas que era consumido por gente que já tinha vivido sua fase socialista, marxista, anarquista — todas terminando em uma profunda desilusão com o sistema inventado por aqueles que diziam que era “inevitável a tomada do poder pelos trabalhadores no mundo inteiro”. Ou que “a religião é o ópio do povo”, provando que quem dissera frase tão estúpida não entendia de povo e muito menos de ópio. Porque entre as crenças dos jovens malvestidos, de roupas diferentes, estavam Deus, deuses, deusas, anjos e coisas do tipo. O único problema era que tal livro, chamado O despertar dos mágicos, de autoria do francês Louis Pauwels e do soviético Jacques Bergier — matemático, ex-espião, pesquisador incansável de ocultismo — dizia exatamente o contrário dos manuais políticos: o mundo está composto de coisas interessantíssimas, existem alquimistas, magos, cátaros, templários, e outras palavras que faziam com que nunca fosse um grande sucesso de livraria, porque um exemplar era lido por — no mínimo — dez pessoas, dado seu custo exorbitante. Enfim, Machu Picchu estava no livro, e todos queriam ir até lá, no Peru, e ali estavam jovens do mundo inteiro (bem, do mundo inteiro é um pouco de exagero, porque os que viviam na União Soviética não tinham assim tanta facilidade para sair dos seus países).

 

Mas, enfim, voltando ao assunto: jovens de todos os lugares do mundo, que conseguiam pelo menos um bem inestimável chamado “passaporte”, encontravam-se nas chamadas “trilhas hippies”. Ninguém sabia exatamente o que a palavra “hippie” queria dizer, e isso não tinha a menor importância. Talvez seu significado fosse “uma grande tribo sem líder” ou “marginais que não assaltam”, ou todas as descrições já feitas logo na abertura deste capítulo.

 

Os passaportes, essas pequenas cadernetas fornecidas pelo governo, colocados em uma bolsa presa na cintura junto com o dinheiro (se pouco ou muito era irrelevante) tinham duas finalidades. A primeira, como todos sabemos, era poder atravessar fronteiras — desde que os guardas não se deixassem levar pelas notícias que liam e não resolvessem mandar a pessoa de volta porque não estavam acostumados com aquelas roupas e aqueles cabelos e aquelas flores e aqueles colares e aquelas miçangas e aqueles sorrisos de quem parecia estar em um constante estado de êxtase — normalmente, ainda que de forma injusta, atribuídos às drogas demoníacas que, dizia a imprensa, os jovens consumiam em quantidades cada vez maiores.

 

A segunda função do passaporte era livrar seu portador de situações extremas — quando o dinheiro acabava por completo e ele não tinha a quem recorrer. O tal “Correio Invisível” sempre fornecia a informação necessária dos locais onde ele poderia ser vendido. O preço variava de acordo com o país: um passaporte da Suécia, onde todos eram louros, altos e de olhos claros, valia muito pouco — já que só poderia ser revendido a louros, altos, de olhos claros, e esses geralmente não estavam na lista dos mais requisitados. Mas um passaporte do Brasil valia uma fortuna no mercado negro — por ser um país que, além de louros, altos e de olhos claros, também tem negros altos e baixos de olhos escuros, orientais de olhos rasgados, mulatos, índios, árabes, judeus, enfim, um imenso caldo de cultura que terminava resultando em um dos mais cobiçados documentos do planeta.

 

Uma vez vendido o passaporte, o portador original ia até o consulado do seu país e, fingindo terror e depressão, dizia que tinha sido assaltado e que roubaram tudo — estava sem dinheiro e sem passaporte. Os consulados de países mais ricos ofereciam passaporte e passagem gratuita de volta ao local de origem, o que era imediatamente rejeitado, sob a alegação de que “alguém está me devendo uma boa quantia, preciso antes receber o que é meu”. Os países pobres, normalmente submetidos a severos sistemas de governo, nas mãos de militares, faziam um verdadeiro interrogatório para ver se o requerente não estava na lista de “terroristas” procurados por subversão. Uma vez que constatavam que a moça (ou o rapaz) tinha ficha limpa, eram obrigados, contra a vontade, a fornecer o documento. Nem sequer ofereciam passagem de volta, porque não havia interesse em ter aquelas aberrações influenciando uma geração que estava sendo educada respeitando Deus, a família e a propriedade.

 

Voltando às trilhas: depois de Machu Picchu foi a vez de Tiahuanaco, na Bolívia. Em seguida, Lhasa, no Tibete, onde era muito difícil de entrar porque havia, segundo o “Correio Invisível”, uma guerra entre os monges e os soldados chineses. Claro que era difícil imaginar essa guerra, mas todo mundo acreditava e não iria arriscar uma longuíssima viagem apenas para terminar prisioneiro dos monges ou dos soldados. Por fim os grandes filósofos da época, que haviam se separado justamente em abril daquele ano — pouco tempo antes anunciaram que a grande sabedoria do planeta estava na Índia. Foi o bastante para que jovens do mundo inteiro se dirigissem ao país em busca de sabedoria, conhecimento, gurus, votos de pobreza, iluminação, encontro com o My Sweet Lord.

 

O “Correio Invisível”, porém, avisou que o grande guru dos Beatles, Maharishi Mahesh Yogi, havia tentado seduzir e ter relações sexuais com Mia Farrow, uma atriz que no decorrer dos anos tivera sempre experiências amorosas infelizes e fora para a Índia a convite dos Beatles, possivelmente para curar-se dos traumas relacionados à sexualidade, que pareciam persegui-la como um carma ruim.

 

Mas tudo indica que o carma de Mia Farrow iria também viajar para o mesmo lugar, junto com John, Paul, George e Ringo. Segundo ela, estava meditando na caverna do grande guru quando ele a agarrou e tentou forçá-la a ter relações sexuais. A essa altura, Ringo já tinha voltado para a Inglaterra porque sua mulher detestava comida indiana, e Paul também resolveu abandonar o retiro, convencido de que aquilo não o estava levando a lugar nenhum.

 

Apenas George e John permaneciam no templo de Maharishi quando Mia os procurou, em lágrimas, e contou o que tinha acontecido. Imediatamente os dois arrumaram suas malas e, quando o Iluminado veio perguntar o que estava acontecendo, a resposta de Lennon foi contundente:

 

“Você não é iluminado pra c***? Então sabe muito bem.”

 

Ora, em setembro de 1970 as mulheres dominavam o mundo — melhor dizendo, as jovens hippies dominavam o mundo. Os homens andavam de lá para cá sabendo que o que as seduzia não era a moda — elas eram muito melhores que eles no assunto —, de modo que resolveram aceitar de uma vez por todas que eram dependentes, viviam com o ar de abandono e o pedido implícito de “proteja-me, estou sozinho e não consigo encontrar ninguém, acho que o mundo me esqueceu e o amor me abandonou para sempre”. Elas escolhiam seus machos e nunca pensavam em casar, apenas em passar um tempo agradável e divertido com um sexo intenso e criativo. E, tanto em coisas importantes como superficiais e irrelevantes, a voz definitiva era mesmo delas. Portanto, quando o “Correio Invisível” espalhou a notícia do assédio sexual de Mia Farrow e da frase de Lennon, imediatamente decidiram mudar de rota.

 

Outra trilha hippie foi criada: de Amsterdam (Holanda) até Kathmandu (Nepal), em um ônibus cuja passagem custava aproximadamente cem dólares e atravessava países que deviam ser muito interessantes: Turquia, Líbano, Irã, Iraque, Afeganistão, Paquistão e parte da Índia (bem longe do templo de Maharishi, diga-se de passagem). A viagem demorava três semanas e percorria um número absurdo de quilômetros.

 

 

Karla estava sentada no Dam, se perguntando quando o sujeito que deveria acompanhá-la nessa mágica aventura (segundo ela, claro) ia chegar. Abandonara seu emprego em Rotterdam, que estava a apenas uma hora de trem, mas como precisava economizar cada centavo viera de carona, e a viagem demorara quase um dia. Descobrira a jornada de ônibus para o Nepal em uma das dezenas de jornais alternativos feitos com muito suor, amor e trabalho por gente que achava ter algo a dizer para o mundo, e em seguida vendidos por uma quantia insignificante.

 

Depois de uma semana esperando, começou a ficar nervosa. Tinha abordado uma dezena de rapazes do mundo inteiro, interessados apenas em ficar ali, naquela praça sem o menor atrativo além de um monumento em forma de falo, o que pelo menos deveria estimular a virilidade e a coragem. Mas não; nenhum deles estava disposto a ir para lugares tão desconhecidos.

 

Não se tratava de distância: a maioria era dos Estados Unidos, da América Latina, da Austrália e de outros países que exigiam dinheiro para as passagens caríssimas de avião e muitos postos de fronteira onde poderiam ser barrados e ter que voltar para seus locais de origem sem conhecer uma das duas capitais do mundo. Chegavam ali, sentavam-se na praça sem graça, fumavam marijuana, alegravam-se porque podiam fazer isso sob a vista de policiais e começavam a ser literalmente sequestrados por seitas e cultos que abundavam na cidade. Esqueciam pelo menos por algum tempo o que viviam escutando: meu filho, você tem que ir para a universidade, cortar esse cabelo, não envergonhe seus pais porque os outros (os outros?) vão dizer que lhe demos uma péssima educação, isso que você escuta NÃO é música, já é hora de arranjar um trabalho, ou veja o exemplo do seu irmão (ou irmã), que mesmo mais jovem já tem dinheiro suficiente para sustentar seus prazeres e não precisa pedir nada para nós.

 

Longe da eterna ladainha da família, eram agora pessoas livres, e a Europa era um lugar seguro (desde que não se aventurassem a atravessar a famosa Cortina de Ferro, “invadindo” um país comunista), e eles estavam contentes, porque em viagem se aprende tudo que será necessário para o resto da vida, desde que não precisem explicar isso aos pais.

 

“Meu pai, eu sei que você quer que eu tenha um diploma, mas isso eu posso ter a qualquer momento da vida, o que preciso agora é experiência”.

 

Não havia pai que entendesse essa lógica, e só restava mesmo juntar algum dinheiro, vender alguma coisa e sair de casa quando a família estivesse dormindo.

 

Tudo bem, Karla estava cercada de pessoas livres e determinadas a viver coisas que a maioria não teria coragem de experimentar. Mas por que não ir de ônibus para Kathmandu? Porque não é Europa, respondiam. É completamente desconhecida para nós. Se acontecer alguma coisa, sempre podemos ir até o consulado e pedir para sermos repatriados (Karla não conhecia um só caso em que isso tivesse ocorrido, mas essa era a lenda, e a lenda vira verdade quando é muito repetida).

 

No quinto dia esperando aquele que designaria como seu “acompanhante”, começou a ficar desesperada — estava gastando dinheiro em um dormitório, quando podia facilmente dormir no Magic Bus (esse era o nome oficial do ônibus de cem dólares e milhares de quilômetros). Resolveu entrar no consultório de uma vidente onde passava sempre antes de ir para o Dam. O local, como sempre, estava vazio — em setembro de 1970 todo mundo tinha poderes paranormais ou os estavam desenvolvendo. Mas Karla era uma mulher prática e, embora também meditasse todos os dias e estivesse convencida que havia começado a desenvolver sua terceira visão — um ponto invisível que fica entre os olhos —, até o momento só tinha encontrado rapazes errados, mesmo que sua intuição garantisse que eram certos.

 

Portanto, resolveu apelar para a vidente, sobretudo porque aquela espera sem fim (já havia passado quase uma semana, uma eternidade!) a estava levando a considerar seguir adiante com uma companhia feminina, o que podia ser suicídio, sobretudo porque atravessariam muitos países onde duas mulheres sozinhas seriam no mínimo malvistas e, na pior das hipóteses, segundo sua avó, terminariam sendo vendidas como “escravas brancas” (o termo, para ela, era erótico, mas não queria experimentar na própria carne).

 

A vidente, que se chamava Layla e era um pouco mais velha que Karla, toda vestida de branco e com um sorriso beatífico de quem vive em contato com o Ser Superior, a recebeu com uma reverência (devia estar pensando “enfim vou ganhar dinheiro para pagar o aluguel do dia”), pediu que sentasse, ao que ela obedeceu, e a mulher a elogiou porque tinha justamente escolhido o ponto de poder da sala. Karla fingiu para si mesma que realmente estava conseguindo abrir sua terceira visão, mas seu subconsciente a avisou que Layla devia dizer isso a todos — ou melhor, aos poucos que entravam ali.

 

Enfim, isso não vinha ao caso. Um incenso foi aceso (“veio do Nepal”, comentou a vidente, mas Karla sabia que tinha sido fabricado ali perto — incensos eram uma das grandes indústrias hippies, junto com colares, camisas batik e patches com o símbolo hippie ou flores, ou a frase “Flower Power” para colocar na roupa). Layla pegou um baralho e começou a embaralhar, pediu que Karla cortasse ao meio, colocou três cartas e começou a interpretá-las da maneira mais tradicional possível. Karla a interrompeu.

 

“Não foi para isso que vim até aqui. Quero saber apenas se vou encontrar companhia para ir ao mesmo lugar de onde você disse...” — enfatizou bastante o de onde você disse, porque não queria um carma ruim. Se tivesse dito apenas quero ir para o mesmo lugar, talvez terminasse em um dos subúrbios de Amsterdam, onde ficava a fábrica de incensos — “... de onde você disse que o incenso veio.”

 

Layla sorriu, embora a vibração tenha mudado por completo — seu interior fervia de raiva por ter sido interrompida em um momento tão solene.

 

“Sim, claro que vai.” Faz parte do dever das videntes e cartomantes sempre dizerem aquilo que os clientes querem ouvir.

 

“E quando?”

 

“Antes que o dia de amanhã termine.”

 

As duas ficaram surpresas.

 

Karla pela primeira vez sentiu que a outra estava falando a verdade, porque o tom era positivo, enfático, como se a voz viesse de outra dimensão. Layla, por seu lado, ficou assustada — nem sempre as coisas aconteciam assim, e quando aconteciam ela ficava com medo de ser punida por entrar sem muita cerimônia naquele mundo que parecia falso e verdadeiro, embora se justificasse todas as noites em suas orações, dizendo que tudo o que estava fazendo na terra era ajudar os outros proporcionando mais positividade ao que queriam acreditar.

 

Karla levantou imediatamente do “ponto de poder”, pagou meia consulta e saiu antes que o sujeito que estava esperando chegasse. “Antes que o dia de amanhã termine” era vago, podia ser o dia de hoje. Mas, de qualquer maneira, sabia que agora estava esperando alguém.

 

Voltou para seu lugar no Dam, abriu o livro que estava lendo e que poucos conheciam — o que dava ao seu autor o status de “cult” — O senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien, que fala de lugares míticos como o que ela pretendia visitar. Fingiu que não escutava os rapazes que volta e meia vinham perturbá-la com uma pergunta idiota, um pretexto frágil para puxar uma conversa ainda mais frágil.

 

 

Paulo e o argentino já tinham conversado tudo o que era possível conversar e agora olhavam aqueles terrenos planos, sem na verdade estarem ali — junto com eles viajavam lembranças, nomes, curiosidade e sobretudo um imenso medo do que poderia acontecer na fronteira da Holanda, provavelmente a uns vinte minutos de distância.

 

Paulo começou a tentar colocar seu longo cabelo dentro da jaqueta.

 

“E você acha que vai enganar os guardas com isso?”, perguntou o argentino. “Eles estão acostumados com tudo, absolutamente tudo.”

 

Paulo desistiu da ideia. Perguntou se o argentino não estava preocupado.

 

“Claro que estou. Principalmente porque já tenho dois carimbos de entrada na Holanda. Então eles desconfiam que estou vindo com muita frequência. E isso só pode significar uma coisa.”

 

Tráfico. Mas, pelo que Paulo sabia, a droga ali era livre.

 

“Claro que não. Os opiáceos sofrem repressão pesada. Idem para cocaína. Claro que LSD não tem como controlar, porque basta molhar uma página de livro ou um pedaço de tecido na mistura, e depois recortar e vender os pedacinhos. Mas tudo que é detectável pode levar à prisão.”

 

Paulo achou melhor parar aquela conversa por ali, porque tinha uma imensa curiosidade em perguntar se o argentino estava levando alguma coisa, mas o simples fato de saber já o tornava cúmplice de um crime. Tinha sido preso uma vez, embora fosse completamente inocente — em um país que tinha um decalque em todas as portas de aeroportos: “Brasil: ame-o ou deixe-o”.

 

Como sempre acontece com pensamentos que tentamos afastar da cabeça por carregarem uma negatividade imensa — o que atrai ainda mais energias diabólicas —, o simples fato de ter lembrado do ocorrido em 1968 não apenas fez seu coração disparar, mas reviver em detalhes aquela noite em um restaurante em Ponta Grossa, no Paraná — um estado brasileiro conhecido por fornecer passaportes de pessoas louras e de olhos claros.

 

 

Estava voltando de sua primeira longa viagem na trilha hippie da moda. Junto com a namorada — onze anos mais velha, nascida e crescida no regime comunista da Iugoslávia, filha de uma família nobre que tinha perdido tudo, mas lhe dado uma educação que lhe permitia falar quatro línguas, fugida para o Brasil, casada com um milionário em comunhão de bens, e separada quando descobriu que ele já a considerava “velha” em seus 33 anos e agora andava com uma menina de dezenove, cliente de um excelente advogado que conseguiu uma indenização suficiente para não precisar trabalhar um dia sequer o resto de sua vida —, os dois haviam partido para Machu Picchu em um transporte conhecido como Trem da Morte, uma composição ferroviária bastante diferente daquela em que estava agora.

 

“Por que o chamam de Trem da Morte?”, perguntou a namorada ao homem encarregado de verificar os bilhetes. “Não estamos passando por muitos precipícios.”

 

Paulo não tinha o menor interesse na resposta, mas ela veio assim mesmo.

 

“Antigamente, a composição era usada para transportar leprosos, doentes e corpos das vítimas de uma grave epidemia de febre amarela que se abateu sobre a região de Santa Cruz.”

 

“Imagino que tenham feito um excelente trabalho de sanitização dos vagões.”

 

“Desde então, exceto por um ou outro mineiro que resolve acertar as contas, ninguém mais ficou doente.”

 

Os mineiros a que ele se referia não eram os nascidos em Minas Gerais, no Brasil, mas os que trabalhavam dia e noite nas minas de estanho da Bolívia. Bem, estavam em um mundo civilizado, esperava que ninguém resolvesse acertar contas naquele dia. Para a tranquilidade dos dois, a maioria dos passageiros era do sexo feminino, com seus chapéus-coco e roupas coloridas.

 

Chegaram a La Paz, a capital do país, cuja altitude é de 3610 metros, mas, como tinham subido de trem, não sentiram muito os efeitos do ar rarefeito. Mesmo assim, ao descerem na estação, viram um jovem com as roupas que identificavam a tribo a que ele pertencia, sentado no chão e meio desorientado. Perguntaram o que acontecia (“não consigo respirar direito”). Um homem que passava sugeriu que mascassem folhas de coca, o costume tribal que ajudava os habitantes a enfrentar a altitude, vendidas livremente nos mercados de rua. O rapaz já se sentia melhor e pediu que o deixassem sozinho — estava indo para Machu Picchu naquele dia mesmo.

 

A recepcionista do hotel que escolheram chamou sua namorada para o lado, disse algumas palavras e em seguida fez o registro. Subiram para o quarto e dormiram na hora, não sem antes Paulo perguntar o que ela havia falado:

 

“Nada de sexo nos dois primeiros dias.”

 

Era fácil entender. Não havia a menor disposição para nada.

 

Ficaram dois dias sem sexo na capital da Bolívia, sem nenhum efeito colateral de falta de oxigênio, o chamado soroche. Tanto ele como a namorada atribuíram aos efeitos terapêuticos da folha de coca, que na verdade não tinha absolutamente nada a ver com isso; o soroche ocorre em pessoas que saem do nível do mar e sobem de repente para grandes altitudes — ou seja, de avião — sem dar tempo ao organismo de acostumar-se. E os dois haviam passado sete longos dias subindo no Trem da Morte. Muito melhor para adaptar-se ao local e muito mais seguro do que o transporte aéreo — pois Paulo viu no aeroporto de Santa Cruz de la Sierra um monumento aos “heroicos pilotos da companhia, que sacrificaram suas vidas no cumprimento do dever”.

 

Em La Paz encontraram os primeiros hippies — que, como uma tribo global consciente da responsabilidade e solidariedade que necessitavam ter uns com os outros, usavam sempre o famoso símbolo da runa viking invertida. No caso da Bolívia, um país onde todos portavam ponchos, jaquetas, camisas e paletós coloridos, era praticamente impossível saber quem era quem sem a ajuda da runa costurada nos casacos ou calças.

 

Esses primeiros hippies eram dois alemães e uma canadense. A namorada, que falava alemão, logo foi convidada para dar um passeio pela cidade, enquanto ele e a canadense olhavam um para o outro sem saber exatamente o que dizer. Quando, meia hora depois, os três voltaram do passeio, decidiram que deviam partir logo em vez de ficar gastando dinheiro ali: seguiriam para o lago de água doce mais alto do mundo, cruzariam de navio suas águas, desembarcariam na outra extremidade, já em território peruano, e seguiriam direto para Machu Picchu.

 

 

Tudo teria corrido de acordo com os planos se, ao chegarem à margem do Titicaca (o tal lago mais alto do mundo), não tivessem dado de frente com um monumento antiquíssimo, conhecido como Porta do Sol. Reunidos em torno dela estavam mais hippies, de mãos dadas, em um ritual que eles não queriam interromper e ao mesmo tempo gostariam de participar.

 

Uma moça os viu, os chamou silenciosamente com um aceno de cabeça, e os quatro puderam sentar-se junto com os outros.

 

Não era preciso explicar a razão por estarem ali; a porta falava por si mesma. Havia uma rachadura bem no centro do travessão superior, possivelmente causada por um raio, mas o resto era um verdadeiro esplendor de baixos-relevos, contando histórias de um tempo já esquecido, mas ainda presentes, querendo ser lembradas e descobertas de novo. Fora esculpida em uma única pedra, e no travessão superior estavam os anjos, os senhores, os símbolos perdidos de uma cultura que, segundo os locais, marcam a maneira de recuperar o mundo caso seja destruído pela avidez humana. Paulo, que através da abertura da porta podia ver o lago Titicaca à distância, começou a chorar, como se estivesse em contato com seus construtores — gente que abandonou o lugar às pressas, antes mesmo de terminar o trabalho, temendo alguma coisa ou alguém que apareceu, pedindo que parassem. A moça que os havia chamado para a roda sorriu, também com lágrimas nos olhos. O resto estava de olhos fechados, conversando com os antigos, procurando saber o que os tinha levado até ali, respeitando o mistério.

 

Quem quer aprender magia deve começar olhando à sua volta. Tudo o que Deus quis dizer ao ser humano colocou bem na sua frente, a chamada Tradição do Sol.

 

A Tradição do Sol é democrática — não foi feita para os estudiosos ou puros, mas para as pessoas comuns. O poder está em todas as pequenas coisas que fazem parte do caminho de um homem; o mundo é uma sala de aula, o Amor Supremo sabe que você está vivo e vai lhe ensinar.

 

E todos estavam em silêncio, prestando atenção a algo que não conseguiam entender direito, mas que sabiam que era verdade. Uma das moças cantou uma música em uma língua que Paulo não conseguia entender. Um rapaz — talvez o mais velho de todos — levantou, abriu os braços e fez uma invocação:

 

 

Que o Sublime Senhor nos dê

 

Um arco-íris para cada tempestade

 

Um sorriso para cada lágrima

 

Uma bênção para cada dificuldade

 

Um amigo para cada momento de solidão

 

Uma resposta para cada prece

 

 

E exatamente nesse momento ouviu-se o apito de um barco, que na verdade era um navio construído na Inglaterra, desmontado e transportado até uma cidade no Chile, carregado em peças por mulas até os 3800 metros de altura onde se encontra o lago.

 

Todos embarcaram em direção à antiga cidade perdida dos incas.

 

Passaram ali dias inesquecíveis — porque raramente alguém conseguia chegar ao lugar, apenas aqueles que eram as crianças de Deus, os livres de espírito e dispostos a enfrentar sem medo o desconhecido.

 

Dormiram nas casas abandonadas e sem teto olhando as estrelas, fizeram amor, comeram o que haviam trazido de alimento, banharam-se todos os dias completamente nus no rio que corria embaixo da montanha, conversaram sobre a possibilidade de os deuses de fato terem sido astronautas e chegado à Terra naquela região. Todos tinham lido o mesmo livro do suíço que costumava interpretar os desenhos incas como se tentassem mostrar os viajantes das estrelas, assim como tinham lido Lobsang Rampa, o monge do Tibete que falava da abertura da terceira visão — até que um inglês contou a todos reunidos na praça central de Machu Picchu que o tal monge chamava-se Cyril Henry Hoskins e era um encanador do interior da Inglaterra cuja identidade tinha sido recentemente descoberta e cuja autenticidade já havia sido desmentida pelo dalai-lama.

 

O grupo inteiro ficou bastante desapontado, sobretudo porque, como Paulo, estava convencido de que existia mesmo uma glândula entre os dois olhos, chamada pineal, cuja verdadeira utilidade ainda não tinha sido descoberta pelos cientistas. Portanto, a terceira visão existia — embora não da forma como Lobsang Cyril Rampa Hoskins havia descrito.

 

Na terceira manhã, a namorada resolveu voltar para casa e também resolveu — sem deixar nenhuma margem a dúvidas — que Paulo devia acompanhá-la. Sem se despedirem ou olharem para trás, partiram antes que o sol nascesse e passaram dois dias descendo a face leste da cordilheira em um ônibus repleto de gente, animais domésticos, comida, artesanato. Paulo aproveitou para comprar uma bolsa colorida, que podia dobrar e colocar dentro de sua mochila. Também decidiu que jamais tornaria a fazer viagens de ônibus que durassem mais que um dia.

 

De Lima pegaram carona para Santiago do Chile — o mundo era seguro, os carros paravam, embora sentissem certo medo do casal, pela maneira como estavam vestidos. Ali, depois de uma noite bem dormida, pediram a alguém para desenhar um mapa mostrando como cruzar a cordilheira de volta através de um túnel que unia o país com a Argentina. Seguiram em direção ao Brasil — de novo de carona, porque a namorada dizia que o dinheiro que ainda guardava podia ser necessário para alguma emergência médica — ela sempre prudente, sempre mais velha, sempre com sua educação comunista prática que nunca a deixava relaxar por completo.

 

Já no Brasil, no estado onde a maioria que tira passaportes é loura e de olhos azuis, resolveram parar mais uma vez, por sugestão da namorada.

 

“Vamos conhecer Vila Velha. Dizem que é um lugar fantástico.”

 

Não viram o pesadelo.

 

Não pressentiram o inferno.

 

Não se prepararam para o que os estava esperando.

 

Tinham passado por vários lugares fantásticos, únicos, com alguma coisa já dizendo que terminariam sendo destruídos no futuro por hordas de turistas que só pensavam em comprar e comparar as delícias de sua própria casa. Mas a maneira como a namorada falou não deixava margem a dúvidas, não havia ponto de interrogação no final da frase, era apenas uma forma de comunicá-lo.

 

Vamos conhecer Vila Velha, claro. Um lugar fantástico. Um sítio geológico com impressionantes esculturas naturais, esculpidas pelo vento — que a prefeitura da cidade mais próxima tentava a todo custo promover, gastando uma fortuna. Todos sabiam que Vila Velha existia, porém alguns mais desavisados iam parar numa praia em um estado próximo ao Rio de Janeiro, e outros achavam muito interessante, mas muito trabalhoso ir até o lugar onde estava situada.

 

 

Paulo e a namorada eram os únicos visitantes do local e ficaram impressionados como a natureza consegue criar cálices, tartarugas, camelos — melhor dizendo, como somos capazes de dar nomes a tudo, mesmo que o tal camelo na verdade parecesse uma romã para a namorada e uma laranja para ele. Enfim, ao contrário do que viram em Tiahuanaco, as tais esculturas em arenito estavam abertas a todo tipo de interpretação.

 

Dali pegaram outra carona até a cidade mais próxima. A namorada, sabendo que faltava pouco tempo para chegar em casa, decidiu — realmente ela era quem decidia tudo — que naquela noite iriam, pela primeira vez em muitas semanas, dormir em um bom hotel e comer carne no jantar! Carne, uma das tradições daquela região do Brasil, algo que não provavam desde que saíram de La Paz — o preço sempre parecia exorbitante.

 

Foram registrados em um hotel de verdade, tomaram banho, fizeram amor e desceram para a portaria, com a intenção de perguntar sobre algum bom restaurante onde podiam comer a quantidade que quisessem, em um sistema conhecido como rodízio.

 

Enquanto aguardavam que o porteiro aparecesse, dois homens se aproximaram e pediram, sem nenhuma educação, que os acompanhasse ao lado de fora do hotel. Ambos tinham as mãos no bolso, como se estivessem segurando uma arma, e queriam deixar isso bem claro.

 

“Fiquem calmos”, disse a namorada, convencida que estavam sendo assaltados. “Tenho lá em cima um anel de brilhantes.”

 

Mas já estavam sendo segurados pelo braço e empurrados para fora — separados imediatamente um do outro. Na rua deserta estavam dois carros sem marca nenhuma, e mais outros dois homens — um deles apontando a arma para o casal.

 

“Não se movam, não façam nenhum movimento suspeito. Vamos revistá-los.”

 

E começaram, de maneira bruta, a tocar os corpos dos dois. A namorada ainda tentou dizer alguma coisa, enquanto ele entrava em uma espécie de transe, de pavor absoluto. Só o que conseguia fazer era olhar para o lado para ver se alguém que testemunhava a cena terminaria por chamar a polícia.

 

“Cala a boca, sua puta”, disse um deles. Arrancaram as bolsas que levavam na cintura com passaporte e dinheiro, e cada um foi colocado no banco de trás de um dos carros estacionados. Paulo não teve sequer tempo de ver o que acontecia com a namorada — e tampouco ela sabia o que estava acontecendo com ele.

 

Ali estava um outro homem.

 

“Coloque isso”, disse, estendendo para ele um capuz. “E deite no chão do carro.”

 

Paulo fez exatamente como ordenado. Seu cérebro já não reagia mais. O carro arrancou em alta velocidade. Ele gostaria de ter dito que sua família tinha dinheiro, que pagaria qualquer resgate, mas as palavras não saíam da sua boca.

 

 

A velocidade do trem começou a diminuir, o que talvez significasse que estivessem chegando à fronteira da Holanda.

 

“Está tudo bem com você, cara?”, perguntou o argentino.

 

Paulo fez um sinal afirmativo com a cabeça, procurando algum assunto para conversarem e assim exorcizar aqueles pensamentos. Já fazia mais de um ano que estivera em Vila Velha, e na maioria das vezes conseguia controlar os demônios da cabeça, mas sempre que a palavra POLÍCIA entrava em sua linha de visão, mesmo que fosse um simples guarda aduaneiro, o pânico voltava. Só que dessa vez o pânico estava sendo acompanhado por uma história inteira, que já contara para alguns amigos, mas sempre se mantendo à distância, como observador de si mesmo. Entretanto, dessa vez — e pela primeira vez — estava contando a história para si mesmo.

 

“Se eles nos barrarem na fronteira, não tem problema. Vamos para a Bélgica e entramos por outro lugar”, continuou o argentino.

 

Já não queria muita conversa com o sujeito — a paranoia tinha voltado. E se realmente ele estivesse traficando drogas pesadas? E se concluíssem que era seu cúmplice e resolvessem jogá-lo na prisão — até que pudesse provar sua inocência?

 

O trem parou. Ainda não era a aduana, mas uma pequena estação no meio de lugar nenhum, onde entraram duas pessoas e saíram cinco. O argentino, vendo que Paulo não estava muito disposto a conversar, resolveu deixá-lo com os seus pensamentos, mas estava preocupado — seu rosto havia mudado por completo. Perguntou só mais uma vez:

 

“Então, está mesmo tudo bem com você, não é verdade?”

 

“Estou fazendo um exorcismo.”

 

Ele entendeu e não disse nada mais.

 

Paulo sabia que ali, na Europa, aquelas coisas não aconteciam. Ou melhor, já tinham acontecido no passado — e ele sempre se perguntava como as pessoas, caminhando para as câmaras de gás nos campos de concentração, ou alinhadas diante de uma vala comum depois de ver a linha da frente ter sido executada pelo pelotão de fuzilamento, não esboçavam nenhuma reação, não tentavam fugir, não atacavam os executores.

 

É simples: o pânico é tão grande que elas já não estão mais ali. O cérebro bloqueia tudo, não há nem terror nem medo, apenas uma estranha submissão ao que está acontecendo. As emoções desaparecem para dar lugar a uma espécie de limbo, onde tudo ocorre em uma zona até hoje não explicada pelos cientistas. Os médicos colocam um rótulo, “esquizofrenia temporária causada por estresse”, e jamais se preocupam em examinar exatamente as consequências do flat affect, como chamam.

 

E, talvez para expurgar por completo os fantasmas do passado, reviveu a história até o final.

 

 

O homem no banco de trás parecia mais humano do que os outros que os abordaram no hotel.

 

“Não se preocupe, não vamos matar você. Deite-se no chão do carro.”

 

Paulo não estava preocupado com nada — sua cabeça já não funcionava. Parecia que tinha entrado em uma realidade paralela, seu cérebro se recusava a aceitar o que estava acontecendo. A única coisa que disse foi perguntar:

 

“Posso segurar na sua perna?”

 

Claro, respondeu o homem. Paulo o agarrou com força, talvez mais força do que imaginava, talvez o estivesse machucando, mas o outro não reagiu, deixou que continuasse — sabia o que Paulo estava sentindo, e não devia estar nem um pouco contente de ter um rapaz jovem, cheio de vida, passando por aquela experiência. Mas obedecia a ordens.

 

O carro rodou por um tempo indeterminado e, quanto mais rodava, mais Paulo se convencia que estava sendo levado para a execução. Já conseguia entender um pouco o que estava acontecendo — havia sido capturado por paramilitares e estava oficialmente desaparecido. Mas o que interessava isso agora?

 

O carro parou. Ele foi retirado com brutalidade e empurrado pelo que parecia ser uma espécie de corredor. De repente seu pé bateu em algo no chão, uma espécie de trave.

 

“Por favor, mais devagar”, pediu.

 

Foi quando levou o primeiro soco na cabeça.

 

“Cala a boca, terrorista!”

 

Caiu no chão. Mandaram que levantasse e tirasse a roupa por completo, tomando muito cuidado para que o capuz não saísse. Ele fez o que ordenavam. Imediatamente começou a apanhar e, como não sabia de onde estavam vindo os golpes, o corpo não podia se preparar, e os músculos não conseguiam se contrair, de modo que a dor era mais intensa do que jamais havia experimentado em qualquer uma das brigas em que se metera durante a juventude. Caiu de novo, e os socos foram substituídos por chutes. O espancamento durou uns dez ou quinze minutos, até que uma voz ordenou que parassem.

 

Estava consciente, mas não sabia se havia quebrado algo, porque não conseguia se mexer de tanta dor. Mesmo assim, a voz que ordenara o final da primeira tortura pediu para que ele ficasse de novo de pé. E começou a fazer uma série de perguntas sobre guerrilha, sobre comparsas, sobre o que fora fazer na Bolívia, se estava em contato com os companheiros de Che Guevara, onde estavam escondidas as armas, ameaçando arrancar seu olho assim que tivessem certeza do seu envolvimento. Outra voz, a do chamado “bom policial”, disse o contrário. Que era melhor que confessasse o assalto que tinham feito em um banco da região — assim tudo estaria esclarecido, Paulo seria colocado na prisão por seus crimes, mas não apanharia mais.

 

Foi nesse momento, enquanto levantava com muita dificuldade, que ele começou a deixar o estado letárgico em que se encontrava e voltou a ter algo que sempre julgou parte das qualidades do ser humano: o instinto de sobrevivência. Ele precisava sair daquela situação. Precisava dizer que era inocente.

 

Pediram que ele contasse tudo que fizera na semana anterior. Paulo narrou em detalhes, embora consciente de que eles jamais tinham ouvido falar de Machu Picchu.

 

“Não perca tempo tentando nos enganar”, disse o “mau policial”. “Nós achamos o mapa no seu quarto de hotel. Você e a loura foram vistos no lugar do assalto.”

 

Mapa?

 

Pela fresta do capuz o homem mostrou o desenho que alguém no Chile tinha feito, indicando onde se encontrava o túnel que atravessa a cordilheira dos Andes.

 

“Os comunistas acham que vão ganhar as próximas eleições. Que Allende irá usar o ouro de Moscou para corromper toda a América Latina. Mas está muito enganado. Qual é sua posição na aliança que eles estão formando? E quais são seus contatos no Brasil?”

 

Paulo implorava, jurava que nada daquilo era verdade, que era apenas uma pessoa procurando viajar e conhecer o mundo — ao mesmo tempo em que perguntava o que estavam fazendo com sua namorada.

 

“A que foi enviada de um país comunista, da Iugoslávia, para acabar com a democracia no Brasil? Ela está tendo o tratamento que merece”, foi a resposta do “mau policial”.

 

O terror ameaçou voltar, mas ele precisava de autocontrole. Precisava saber como sair daquele pesadelo. Precisava acordar.

 

Alguém colocou uma caixa com fios e uma manivela entre seus pés. Outro comentou que chamavam aquilo de “telefone” — bastava prender os jacarés metálicos no corpo e girar a manivela e Paulo levaria um choque que “não havia macho que resistisse”.

 

E de repente, vendo aquela máquina, lhe ocorreu a única saída que tinha. Deixou a submissão de lado e levantou a voz:

 

“Vocês acham que eu tenho medo de choque? Vocês acham que tenho medo de dor? Pois não se preocupem — eu vou torturar a mim mesmo. Já estive internado em um manicômio não uma, não duas, mas três vezes; já levei muito choque elétrico, então posso fazer esse trabalho para vocês. Vocês devem saber disso, imagino que saibam tudo da minha vida.”

 

E, dito isso, começou a unhar seu corpo e arrancar sangue, pele, enquanto gritava que eles sabiam tudo, que podiam matá-lo que não estava nem ligando, acreditava em reencarnação e viria buscá-los. A eles e suas famílias, assim que chegasse ao outro mundo.

 

Alguém veio e segurou suas mãos. Todos pareciam assustados com o que ele estava fazendo, embora ninguém tenha dito nada.

 

“Pare com isso, Paulo”, disse o “bom policial”. “Pode me explicar o mapa?”

 

Paulo falava com voz de quem estava tendo um surto de loucura. Explicou aos gritos o que ocorrera em Santiago — precisavam de orientação para chegar até o túnel que unia Chile e Argentina.

 

“E minha namorada, onde está minha namorada?”

 

Gritava cada vez mais alto, na esperança de que ela pudesse escutar. O “bom policial” tentava acalmá-lo — pelo visto, no início dos anos de chumbo, a repressão ainda não tinha se brutalizado o suficiente.

 

Pediu que parasse de tremer, que se fosse inocente não havia motivo de preocupações, mas que antes precisavam apurar tudo que ele havia dito — portanto teria que permanecer ali ainda algum tempo. Não disse quanto, mas ofereceu um cigarro. Paulo notou que as pessoas saíam da sala, já não estavam tão interessadas nele.

 

“Você espera que eu saia e vai ouvir a porta bater. Então pode tirar o capuz. Cada vez que alguém vier aqui e bater na porta, torne a colocá-lo. Assim que tivermos todas as informações necessárias, você será liberado.”

 

“E minha namorada?”, ele repetia, aos gritos.

 

Não merecia isso. Por pior filho que tivesse sido, por mais dores de cabeça que tivesse dado aos pais, ele não merecia isso. Era inocente — mas, se naquele momento tivesse uma arma na mão, seria capaz de atirar em todos ali. Não existe sensação mais horrorosa que ser punido por algo que nunca fez.

 

“Não se preocupe. Não somos monstros estupradores. Estamos apenas querendo acabar com aqueles que tentam acabar com o país.”

 

O homem saiu, bateu a porta, e Paulo tirou o capuz. Estava em uma sala à prova de som, daí o batente que tropeçara quando entrou. Havia um grande vidro opaco do lado direito — que devia servir para monitorar quem era preso ali. Havia dois ou três buracos de bala na parede, e um deles parecia ter um cabelo saindo. Mas era preciso fingir que não estava interessado em nada disso. Olhou para seu corpo, para as cicatrizes com o sangue que ele mesmo havia derramado, apalpou cada parte e viu que não tinham quebrado nada — eram mestres em não deixar marcas permanentes, e talvez sua reação os tenha assustado justamente por isso.

 

Imaginou que o próximo passo seria entrar em contato com o Rio de Janeiro e confirmar a história das internações, dos choques elétricos, dos passos dele e da namorada — cujo passaporte estrangeiro talvez a protegesse ou a condenasse, porque vinha de um país comunista.

 

Se estivesse mentindo, seria torturado sem parar por muitos dias. Se estivesse falando a verdade, talvez chegassem à conclusão de que era mesmo um hippie drogado, filho de família rica, e o deixassem sair.

 

Ele não estava mentindo, e torcia para que descobrissem logo.

 

 

Não sabia quanto tempo passou ali — não havia janelas, a luz ficava o tempo inteiro acesa, e o único rosto que pôde ver foi o do fotógrafo do centro de tortura. Quartel? Delegacia? Mandou que tirasse o capuz, colocou a câmera diante do seu rosto, de modo que não mostrasse que estava nu, pediu que ficasse de perfil, tirou outra foto, e saiu sem trocar nenhuma palavra com ele.

 

Mesmo as batidas na porta não obedeciam a uma regra que lhe permitisse determinar uma rotina — às vezes o café da manhã era seguido pelo almoço apenas com um pequeno intervalo, e o jantar demorava muitíssimo. Quando precisava ir ao banheiro, batia na porta já com o capuz colocado até que, provavelmente através do vidro fosco, eles deduzissem o que queria. Às vezes tentava conversar com o sujeito que o levava até o toalete, mas não havia resposta. Apenas silêncio.

 

Dormia a maior parte do tempo. Certo dia (ou noite?) começou a tentar usar a experiência para meditar ou concentrar-se em algo superior — lembrou que San Juan de La Cruz falava da noite escura da alma, lembrou que monges ficam anos em cavernas no deserto ou nas montanhas do Himalaia —, podia seguir esse exemplo, usar aquilo que estava acontecendo para tentar se transformar em uma pessoa melhor. Deduzia que o porteiro do hotel — ele e a namorada deviam ser os únicos hóspedes — tinha denunciado o casal; em certas horas queria voltar lá e matá-lo assim que fosse solto e, em outras, achava que a melhor maneira de servir a Deus seria perdoá-lo do fundo do coração, porque não sabia o que estava fazendo.

 

Mas o perdão é uma arte muito difícil, e ele estava procurando um contato com o universo em todas as viagens que havia feito, mas isso não incluía, pelo menos nesse momento da vida, aturar aqueles que sempre riam dos cabelos longos, perguntavam no meio da rua há quanto tempo não tomava banho, diziam que roupas coloridas demonstravam que ele não estava convencido de sua sexualidade, quantos homens já tivera na sua cama, diziam para parar de vagabundagem, largar a droga e ir em busca de um trabalho decente, colaborar para que o país saísse da crise.

 

O ódio da injustiça, o desejo da vingança e a ausência de perdão não permitiam que se concentrasse o suficiente, e logo a meditação era interrompida por pensamentos sórdidos — e justificados, na sua opinião. Teriam avisado sua família?

 

Seus pais não sabiam quando ele pretendia voltar, portanto não deviam estranhar a ausência prolongada. Os dois culpavam sempre o fato de ele ter uma namorada onze anos mais velha, que tentava usá-lo para seus desejos inconfessáveis, para quebrar a rotina de socialite frustrada, estrangeira no país errado, de manipuladora de rapazes que precisavam de uma mãe postiça, e não de uma companheira — como todos os seus amigos, como todos os seus inimigos, como todo o resto do mundo que seguia adiante sem causar problemas a ninguém, sem obrigar a família a dar explicações, sem ser olhada como aqueles que não conseguiram educar direito seus filhos. A irmã de Paulo estava fazendo faculdade de engenharia química e destacando-se como uma das mais brilhantes alunas, mas ela não era motivo de orgulho, seus pais estavam muito mais preocupados em colocá-lo no mundo deles.

 

Enfim, depois de um tempo, cuja duração era impossível estimar, Paulo começou a achar que merecia exatamente o que estava acontecendo. Alguns de seus amigos tinham entrado para a luta armada e sabiam o que os esperava, e ele tinha pagado apenas as consequências — aquilo devia ser um castigo dos céus, não dos homens. Pelas muitas tristezas que causou, merecia estar nu, no chão de uma cela, olhando para dentro de si e não encontrando nenhuma força, nenhum consolo espiritual, nenhuma voz que lhe falasse como havia acontecido na Porta do Sol.

 

E a única coisa que fazia era dormir. Sempre pensando que ia despertar de um pesadelo e sempre acordando no mesmo lugar, e no mesmo chão. Sempre achando que o pior já havia passado, e sempre despertando suado, com medo, cada vez que escutava a batida na porta — talvez não tivessem encontrado nada do que ele contara, e a tortura voltaria com mais violência.

 

 

Alguém bateu na porta — Paulo tinha acabado de jantar, mas já sabia que eles poderiam lhe servir o café da manhã e assim o desorientar ainda mais. Colocou o capuz, escutou a porta sendo aberta e alguém jogando coisas no chão.

 

“Vista-se. Cuidado para não mover o capuz.”

 

Era a voz do “bom policial”, ou do “bom torturador”, como preferia chamá-lo em seus pensamentos. Continuou ali enquanto Paulo se vestia e calçava os sapatos. Quando terminou, o homem o pegou pelo braço, pediu que tivesse cuidado com o travessão inferior da porta (por onde já havia passado muitas vezes quando ia ao banheiro, mas talvez o outro sentisse necessidade de dizer alguma coisa gentil) e o lembrou que as únicas cicatrizes que tinha haviam sido causadas por si mesmo.

 

Caminhamos uns três minutos, e outra voz falou: “A Variant aguarda no pátio”.

 

Variante? Mais tarde percebeu que era uma marca de carro, mas naquele momento imaginou que fosse um código secreto, algo como “o pelotão de fuzilamento já está pronto”.

 

Foi conduzido até o veículo e por debaixo do capuz lhe deram um papel e uma caneta. Nem pensava em ler, ia assinar o que quisessem, uma confissão que pelo menos acabasse com aquele isolamento enlouquecedor. Mas o “bom torturador” explicou que era a lista dos seus pertences, encontrados no hotel. As mochilas estavam no porta-malas.

 

As mochilas! Aquilo foi falado no plural. Mas ele estava tão entorpecido que não notou.

 

Fez o que lhe mandaram. A porta do outro lado se abriu. Pela fresta do capuz Paulo notou a roupa — era ela! Pediram a mesma coisa, que assinasse um documento, mas ela recusou-se, precisava ler o que estava ali. O tom de sua voz demonstrava que em nenhum momento havia entrado em pânico, estava em pleno controle de suas emoções, e o sujeito — obedientemente — aceitou que ela lesse. Quando terminou, enfim colocou sua assinatura e logo sua mão tocou a de Paulo.

 

“Não podem ter contato físico”, disse o “bom torturador.”

 

Ela o ignorou, e Paulo, por um momento, pensou que os dois seriam levados de novo para dentro e castigados por não obedecer às ordens. Tentou puxar a mão, mas ela a agarrou com mais força e não deixou.

 

O “bom torturador” simplesmente fechou a porta e mandou que o carro seguisse adiante. Paulo perguntou se ela estava bem, e a resposta foi um discurso contra tudo o que tinha acontecido. Alguém deu uma risada no banco da frente, e ele pediu que a namorada se calasse POR FAVOR, os dois podiam conversar depois ou algum outro dia, ou no lugar para onde estavam sendo levados — talvez uma prisão de verdade.

 

“Ninguém assina documento dizendo que nossas coisas foram devolvidas se não tiver a intenção de nos soltar”, ela respondeu. O sujeito no banco da frente de novo riu — na verdade foram duas risadas. O motorista não estava sozinho.

 

“Sempre me disseram que as mulheres são mais corajosas e mais inteligentes que os homens”, um deles comentou. “Temos notado isso aqui com os prisioneiros.”

 

Dessa vez quem pediu para que seu companheiro se calasse foi o carona. O carro rodou por um tempo indeterminado, parou, e o sujeito do lado do motorista pediu que ambos tirassem o capuz.

 

Era um dos homens que havia pegado o casal no hotel, um descendente de orientais — dessa vez sorridente. Saltou junto com os dois, foi até o porta-malas, tirou as mochilas e entregou a eles, em vez de jogá-las no chão.

 

“Podem ir. Dobrem à esquerda no próximo cruzamento, caminhem uns vinte minutos e chegarão à rodoviária.”

 

Voltou para o carro e arrancou sem pressa, como se estivesse pouco ligando para tudo o que tinha acontecido — essa era a nova realidade do país, eles estavam no comando e ninguém teria jamais com quem reclamar.

 

Paulo olhou para a namorada, que retribuiu o olhar. Os dois se abraçaram, se beijaram longamente e logo seguiram para a rodoviária. Era perigoso ficar no mesmo local, ele achava. Ela parecia não ter mudado nada, como se aqueles dias — semanas, meses, anos? — fossem apenas a interrupção de uma viagem dos sonhos, e as lembranças positivas prevalecessem e não pudessem ser ofuscadas pelo que aconteceu. Ele acelerava o passo, evitando dizer que a culpa era dela, que não deveriam ter vindo para ver esculturas feitas pelo vento, que se tivessem seguido adiante nada daquilo teria ocorrido — embora a culpa não fosse da namorada, nem de Paulo, nem de ninguém que conhecessem.

 

Como ele estava sendo ridículo e fraco. De repente sentiu uma imensa dor de cabeça, tão grande que praticamente não lhe permitia mais andar, fugir em direção à sua cidade, ou voltar para a Porta do Sol e perguntar aos antigos e esquecidos habitantes do lugar o que tinha acontecido. Apoiou-se em um muro e deixou a mochila escorregar para o chão.

 

“Sabe o que está havendo?”, a namorada perguntou — e ela mesma respondeu: “Sei a resposta porque já passei por isso durante bombardeios em meu país. Durante todo esse tempo sua atividade cerebral diminuiu, o sangue não irrigou da maneira que sempre irriga os vasos do corpo inteiro. Vai passar em duas ou três horas, mas compraremos umas aspirinas na rodoviária.”

 

Ela pegou sua mochila, o amparou, o forçou a andar — primeiro lentamente, logo em seguida mais rápido.

 

Ah, mulher, que mulher. Pena que, quando sugeriu que fossem juntos para os dois centros do mundo — Piccadilly Circus e Dam —, ela disse que estava cansada de viajar e, para ser bem honesta, já não o amava mais. Cada um deveria seguir seu próprio caminho.

 

 

O trem parou, e a temida placa podia ser vista do lado de fora, escrita em várias línguas: ADUANA.

 

Alguns guardas entraram e começaram a percorrer os vagões. Paulo estava mais tranquilo, o exorcismo havia acabado, mas uma frase da Bíblia, mais precisamente do Livro de Jó, não saía de sua cabeça: “O que eu mais temia me aconteceu”.

 

Precisava se controlar — qualquer pessoa é capaz de farejar o medo.

 

Tudo bem. Se, como diz o argentino, tudo que pode acontecer de ruim é ser barrado, não há problema. Ainda havia outras fronteiras que poderia cruzar. E, caso não conseguisse, sempre restava o outro centro do mundo — Piccadilly Circus.

 

Sentia uma calma imensa depois de ter revivido o terror que acontecera havia um ano e meio. Como se tudo precisasse ser mesmo encarado sem medo, apenas como um fato da vida — nós não escolhemos o que acontece conosco, mas podemos escolher a maneira de reagir a isso.

 

E dava-se conta de que até aquele momento o câncer da injustiça, do desespero e da impotência vinha começando a criar metástase pelo seu corpo astral, mas agora estava livre.

 

Começava de novo.

 

Os guardas entraram na cabine onde Paulo estava com o argentino e outras quatro pessoas completamente desconhecidas. Conforme o esperado por ele, os guardas mandaram os dois descerem. Fazia um pouco de frio do lado de fora, embora a noite ainda não tivesse caído por completo.

 

Mas a natureza tem um ciclo que se repete na alma do ser humano: a planta produz a flor para que as abelhas venham e possam criar o fruto. O fruto produz sementes, que de novo se transformam em plantas, que outra vez fazem as flores desabrocharem, que chamam as abelhas, que fertilizam a planta e fazem com que produza frutos e assim até o final da eternidade. Bem-vindo, outono, o momento de deixar ir embora o velho, os terrores do passado, e permitir que o novo surja.

 

Uns dez rapazes e moças foram encaminhados para dentro da estação da aduana. Ninguém dizia nada, e Paulo fez questão de ficar o mais longe possível do argentino — que notou isso e não procurou impor sua presença ou suas conversas. Talvez naquele momento entendesse que estava sendo julgado, que o rapaz do Brasil devia ter algumas suspeitas, mas tinha visto seu rosto ser coberto por uma sombra escura e agora estava de novo brilhando — talvez “brilhando” fosse um exagero, mas pelo menos a intensa tristeza de minutos antes havia desaparecido.

 

As pessoas eram chamadas individualmente para uma sala — e ninguém sabia o que tinham conversado lá dentro porque saíam por outra porta. Paulo foi o terceiro a ser convocado.

 

Sentado atrás de uma mesa estava um guarda uniformizado, que pediu seu passaporte e folheou um grande classificador, cheio de nomes.

 

“Um dos meus sonhos é conhecer...”, tentou ele, mas foi logo advertido a não interromper o trabalho do guarda.

 

Seu coração começou a bater mais rápido, e Paulo lutava contra si mesmo, para acreditar que o outono havia chegado, as folhas mortas começavam a cair, um novo homem surgia daquilo que até então tinha sido um frangalho de emoções.

 

Vibrações negativas atraíam mais vibrações negativas, de modo que tentou acalmar-se, sobretudo depois de notar que o guarda tinha um brinco na orelha, algo impensável em qualquer país que tivesse conhecido. Procurou distrair-se com a sala cheia de documentos, uma foto da rainha e um cartaz mostrando um moinho de vento. O sujeito logo largou a lista e nem sequer perguntou o que ia fazer na Holanda — queria saber apenas se tinha dinheiro para a passagem de volta para sua terra.

 

Paulo confirmou — já tinha aprendido que essa era a principal condição para viajar por qualquer país estrangeiro, e comprara o caríssimo bilhete para Roma, seu lugar original de chegada, mesmo que a data de retorno estivesse marcada para dali a um ano. Levou a mão para a bolsa que ficava escondida na cintura, pronto para comprovar o que dissera, mas o guarda disse que não era necessário, queria saber quanto dinheiro tinha.

 

“Em torno de 1600 dólares. Um pouco mais, talvez, mas não sei quanto gastei no trem.”

 

Desembarcara na Europa com 1700 dólares, ganhos como professor de pré-vestibular da Escola de Teatro que frequentava. A passagem mais barata era para Roma, onde chegara e soubera pelo “Correio Invisível” que os hippies ali costumavam se reunir na praça de Espanha. Descobrira um lugar para dormir em um parque, vivia de sanduíches e sorvete, e poderia ter ficado em Roma — onde encontrara uma espanhola da Galícia com quem imediatamente fez amizade, para logo em seguida se transformarem em namorados. Comprara finalmente o grande best-seller de sua geração, que com toda a certeza iria fazer toda diferença em sua vida: Europa a cinco dólares por dia. Nos dias em que passara na praça de Espanha, notou que não apenas os hippies, mas também gente convencional, conhecida como “quadrados”, usava o tal livro, que listava os hotéis e restaurantes mais baratos, além de pontos turísticos importantes em cada cidade.

 

Não estaria perdido assim que chegasse em Amsterdam. Resolveu seguir em direção ao seu primeiro destino (o segundo era Piccadilly Circus, não cansava de lembrar) quando a espanhola disse que ia para Atenas, na Grécia.

 

De novo fez menção de mostrar o dinheiro, mas teve seu passaporte carimbado e devolvido. O guarda perguntou se estava trazendo alguma fruta ou vegetal — ele tinha consigo duas maçãs, e o guarda lhe pediu que jogasse em um cesto de lixo no lado de fora da estação assim que saísse.

 

“E como faço agora para chegar em Amsterdam?”

 

Foi informado de que deveria tomar um trem local, que passava a cada meia hora por ali — sua passagem comprada em Roma valia até o destino final.

 

O guarda indicou uma porta diferente da que havia entrado, e Paulo logo se viu de novo no ar puro, esperando o próximo trem, surpreso e contente porque tinham acreditado em sua palavra sobre o bilhete e a quantidade de dinheiro.

 

Realmente, estava entrando em outro mundo.

 

 

Karla não havia perdido a tarde inteira sentada no Dam, sobretudo porque começara a chover e a vidente havia garantido que a pessoa que esperava chegaria no dia seguinte. Resolvera ir ao cinema assistir a 2001: Uma odisseia no espaço, que todos diziam ser uma obra-prima, embora não tivesse muito interesse em filmes de ficção científica.

 

Mas era realmente uma obra-prima, ajudara a matar o tempo de espera, e o final mostrava aquilo que julgava saber — e não se tratava de julgar ou não julgar, era uma realidade absoluta e incontestável: o tempo é circular e volta sempre ao mesmo ponto. Nascemos de uma semente, crescemos, envelhecemos, morremos, voltamos para a terra e viramos de novo a semente que, cedo ou tarde, tornará a reencarnar-se em outra pessoa. Embora de família luterana, tinha flertado um certo tempo com o catolicismo e em um dos momentos da missa que passara a frequentar recitava todas as profissões de fé. Ali estava a linha de que mais gostava: “Creio [...] na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém”.

 

Ressurreição da carne — tentara conversar uma vez com um padre a respeito daquela passagem, perguntando sobre reencarnação, mas o sacerdote disse que não se tratava disso. Perguntou do que se tratava. A resposta — completamente idiota — foi que ela ainda não tinha maturidade para entender. Nesse momento começou aos poucos a se afastar do catolicismo, porque notou que o padre tampouco sabia do que aquela frase tratava.

 

“Amém”, repetia agora enquanto voltava para o hotel. Mantinha seus ouvidos atentos para qualquer coisa, se Deus resolvesse conversar com ela. Depois de afastar-se da Igreja, resolveu procurar no hinduísmo, no taoísmo, no budismo, nos cultos africanos, nos diversos tipos de ioga, algum tipo de resposta sobre o significado da vida. Um poeta dissera havia muitos séculos: “Sua luz preenche todo o Universo/ A lâmpada do amor queima e salva o Conhecimento.”

 

Como o amor era uma coisa complicada em sua vida, tão complicada que sempre evitara pensar a respeito, terminou concluindo que o Conhecimento estava dentro dela mesma — que era aliás o que pregavam os fundadores dessas religiões. E agora tudo que via a lembrava da Divindade, procurava que cada gesto seu fosse uma maneira de agradecer pelo fato de estar viva.

 

Bastava isso. O pior dos assassinatos é aquele que termina matando nossa alegria de viver.

 

Passou em um coffee shop — lugar onde se vendia diversos tipos de marijuana e haxixe —, mas a única coisa que fez foi tomar um café e conversar um pouco com uma menina, também holandesa, que parecia deslocada e também tomava café. Wilma era seu nome. Resolveram que iriam ao Paradiso, mas logo mudaram de ideia, talvez porque aquilo já não fosse mais novidade para ninguém, assim como não eram as drogas vendidas ali. Boas para turistas, mas entediantes para quem sempre teve aquilo ao alcance da mão.

 

Um dia — um dia em um futuro longínquo — os governos iriam concluir que a melhor maneira de acabar com o que chamavam de “problema” era liberar tudo. Grande parte da mística do haxixe estava no fato de ser proibido, e por isso cobiçado.

 

“Mas isso não interessa a ninguém”, comentou Wilma quando Karla lhe disse o que estava pensando. “Ganham bilhões de dólares com a repressão. Se julgam superiores. Salvadores da sociedade e da família. Excelente plataforma política — acabar com as drogas. Que outra ideia teriam para colocar no lugar? Sim, acabar com a pobreza, só que ninguém mais acreditava nisso.”

 

Pararam de conversar e ficaram olhando suas xícaras. Karla pensava no filme, em O senhor dos anéis e em sua vida. Nunca tinha experimentado realmente nada de interessante. Nasceu em uma família puritana, estudou em um colégio luterano, conhecia a Bíblia de cor, perdera a virgindade ainda adolescente com um holandês que também era virgem, viajara algum tempo pela Europa, arranjara um emprego quando completou vinte anos (estava agora com 23), os dias pareciam longos e repetitivos, tornou-se católica apenas para contrariar a família, resolveu sair de casa e morar sozinha, teve uma série de namorados que entravam e saíam de sua vida e do seu corpo em uma frequência que variava entre dois dias e dois meses, achou que a culpa de tudo aquilo era de Rotterdam e seus guindastes, suas ruas cinzentas e seu porto, que trazia histórias muito mais interessantes do que as que estava acostumada a escutar dos amigos.

 

Dava-se melhor com estrangeiros. A única vez que sua rotina de liberdade absoluta fora quebrada foi quando decidiu se apaixonar perdidamente por um francês dez anos mais velho e convenceu a si mesma de que conseguiria fazer com que aquele amor arrebatador fosse mútuo — embora soubesse muito bem que o francês estava apenas interessado em sexo, domínio em que ela era ótima e procurava aperfeiçoar-se cada vez mais. Uma semana depois largou o francês em Paris, chegando à conclusão de que não conseguia verdadeiramente descobrir a função do amor em sua vida — e isso era uma doença, porque todas as pessoas que conhecia terminavam, cedo ou tarde, comentando a importância de casar, ter filhos, cozinhar, ter uma companhia para assistir televisão, ir ao teatro, viajar pelo mundo, trazer pequenas surpresas quando voltasse para casa, engravidar, cuidar dos filhos, fingir que não via as pequenas traições do marido ou da mulher, dizer que os filhos eram a única razão de sua vida, preocupar-se com o que iam jantar, o que seriam no futuro, como estavam indo no colégio, no trabalho, na vida.

 

Assim prolongavam por mais alguns anos sua sensação de utilidade nesta terra, até que cedo ou tarde todos partiam — a casa ficava vazia e a única coisa que realmente importava era o almoço aos domingos, a família reunida, sempre fingindo que estava tudo bem, sempre fingindo que não havia ciúme ou competição entre todos, enquanto iam lançando facas invisíveis no ar, porque eu ganho mais que você, minha mulher é formada em arquitetura, acabamos de comprar uma casa que vocês não vão acreditar, coisas do tipo.

 

Dois anos antes deduzira que não havia mais sentido em continuar vivendo a liberdade absoluta. Começou a pensar na morte, flertou com a entrada em um convento, chegou mesmo a ir até o lugar onde viviam as carmelitas descalças, sem absolutamente nenhum contato com o mundo. Disse que fora batizada, descobrira Cristo e queria ser sua noiva para o resto da vida. A madre superiora pediu que refletisse por um mês antes de tomar a decisão — e durante esse mês teve tempo de se imaginar em uma cela, sendo obrigada a rezar de manhã até a noite, repetir as mesmas palavras até que perdessem seu significado, e descobriu-se incapaz de levar uma vida em que a rotina seria capaz de levá-la à loucura. A madre superiora estava certa — nunca mais voltou lá; por pior que fosse a rotina da liberdade absoluta, sempre poderia descobrir coisas mais interessantes para fazer.

 

Um marinheiro de Bombaim, além de ser um excelente amante — coisa que raramente conseguia encontrar —, fez com que descobrisse o misticismo oriental, e nesse momento foi quando começou a considerar que o destino final de sua existência era ir para muito longe, morar em uma caverna nos Himalaias, acreditar que os deuses viriam conversar com ela cedo ou tarde, afastar-se de tudo aquilo que a cercava agora e que parecia chato, chatíssimo.

 

Sem entrar em muitos detalhes, perguntou a Wilma o que achava de Amsterdam.

 

“Chato. Chatíssimo.”

 

Isso mesmo. Não apenas Amsterdam, mas a Holanda inteira, onde todos já nasciam protegidos pelo governo, sem jamais se assustar com uma velhice desamparada porque existiam asilos e pensões vitalícias, seguro médico gratuito ou por um preço ínfimo, e os reis mais recentes eram na verdade rainhas — a rainha-mãe Guilhermina, a rainha atual Juliana e a futura herdeira do trono, Beatriz. Enquanto nos Estados Unidos as mulheres estavam queimando os sutiãs e pedindo igualdade, Karla — que não usava sutiãs, embora seus seios não fossem exatamente pequenos — vivia em um lugar onde essa igualdade já tinha sido conquistada havia muito, sem barulho, sem exibicionismo, mas seguindo a lógica ancestral de que o poder é das mulheres — são elas que governam seus maridos e filhos, seus presidentes e reis, que por sua vez procuram dar a todos a impressão de que são excelentes generais, chefes de Estado, donos de empresa.

 

Homens. Acham que mandam no mundo e não conseguem dar um passo sem perguntar durante a noite o que acha sua companheira, amante, namorada, mãe.

 

Precisava dar um passo radical, descobrir um país interior ou exterior que nunca tivesse sido explorado antes e sair daquele tédio que parecia drenar suas forças a cada dia.

 

Esperava que a cartomante estivesse certa. Se a pessoa que prometera não chegasse no dia seguinte, ia para o Nepal assim mesmo, sozinha, correndo o risco de ser transformada em uma “escrava branca” e terminar vendida para um gordo sultão de um país onde os haréns estavam na ordem do dia — embora duvidasse que alguém tivesse coragem de fazer isso com uma holandesa que sabia se defender melhor que um homem de olhos ameaçadores, com um sabre afiado nas mãos.

 

Despediu-se de Wilma, marcaram de encontrar-se no Paradiso no dia seguinte, e dirigiu-se ao dormitório onde passava seus monótonos dias em Amsterdam, a cidade dos sonhos de tanta gente que cruzava o mundo para chegar até ali. Caminhou pelas ruas pequenas, sem calçadas, os ouvidos sempre atentos para ver se escutava algum sinal — não sabia o que esperar, mas os sinais são assim, surpreendentes e disfarçados como coisas rotineiras. A chuva fina no rosto trouxe-lhe de volta à realidade — mas não à realidade a sua volta, e sim ao fato de estar viva, caminhando em total segurança por becos escuros, cruzando o caminho de traficantes vindos do Suriname que operavam nas sombras — esses, sim, eram um verdadeiro perigo para seus consumidores, porque ofereciam as drogas do Diabo, cocaína e heroína.

 

Passou por uma praça — parecia que, ao contrário de Rotterdam, aquela cidade tinha uma praça em cada esquina. A chuva aumentou de intensidade, e ela agradeceu o fato de poder sorrir apesar de tudo aquilo que havia pensado no coffee shop.

 

Caminhava rezando em silêncio, sem palavras luteranas ou católicas, agradecida pela vida de que horas antes estava reclamando, adorando céus e terra, árvores e animais, cuja simples visão fazia com que as contradições de sua alma se resolvessem e uma profunda paz envolvesse tudo — não aquela paz da ausência de desafios, mas a que a preparava para uma aventura que estava decidida a ter, independentemente de encontrar companhia, sabendo que os anjos a acompanhavam e cantavam músicas que não podia escutar, mas que faziam vibrar e limpar seu cérebro de pensamentos impuros, entrar em contato com sua própria alma e dizer para ela “eu te amo”, embora não tivesse ainda conhecido o Amor.

 

Não me sinto culpada pelo que estava pensando antes, talvez tenha sido o filme, talvez o livro, mas, mesmo que tenha sido apenas eu e minha incapacidade de ver a beleza que existe dentro de mim, peço que me desculpe, eu te amo, e agradeço por me acompanhares, tu que me abençoas com tua companhia e me livra da tentação dos prazeres e do medo da dor.

 

Para variar, começou a sentir-se culpada de ser quem era, morando em um país com a maior concentração de museus do mundo, atravessando naquele momento uma das 1281 pontes da cidade, olhando as casas com apenas três janelas na horizontal — mais que isso era considerado ostentação e tentativa de humilhar o vizinho —, orgulhosa pelas leis que governavam seu povo, pelos navegadores que foram no passado, embora as pessoas só se lembrassem de espanhóis e portugueses.

 

Fizeram apenas um mau negócio na vida: vender a ilha de Manhattan aos americanos. Mas nem todo mundo é perfeito.

 

O vigia da noite abriu a porta do dormitório, ela entrou procurando fazer o mínimo de barulho, fechou os olhos e, antes de adormecer, pensou na única coisa que seu país não tinha.

 

Montanhas.

 

Sim, ela iria para as montanhas, longe daquelas planícies imensas conquistadas a partir do mar por homens que sabiam o que queriam e que conseguiram domar uma natureza que se recusava a ser subjugada.

 

Resolveu acordar mais cedo do que de costume — já estava vestida e pronta para sair às onze da manhã, quando seu horário normal era uma da tarde. Aquele, segundo a cartomante, era o dia em que iria encontrar quem estava esperando, e a vidente não podia estar errada, porque as duas haviam entrado em um transe misterioso, além do controle de ambas, como ocorre com a maioria dos transes, por sinal. Layla dissera algo que não tinha saído de sua boca, mas de uma alma maior, que estava ocupando todo o ambiente do seu “consultório”.

 

Ainda não havia muita gente no Dam — o movimento maior começava depois do meio-dia. Mas ela notou — finalmente! — um rosto novo. Cabelos iguais aos de todo mundo ali, jaqueta sem muitos patches (o mais proeminente era uma bandeira com a inscrição na parte superior: “Brasil”), uma bolsa a tiracolo de tricô colorido, feita na América do Sul, e que na época era moda entre os jovens que percorriam o mundo — assim como os ponchos e os gorros que cobriam orelhas. Fumava um cigarro — normal, porque ela passou perto de onde ele estava sentado e não sentiu nenhum cheiro especial além de tabaco.

 

Estava ocupadíssimo em não fazer nada, olhando o prédio do outro lado da praça e os hippies em volta. Devia estar querendo puxar conversa com alguém, mas seus olhos denunciavam timidez — excesso de timidez, melhor dizendo.

 

Sentou-se a uma distância segura, de modo a vigiá-lo e não deixar que partisse sem antes tentar sugerir a viagem ao Nepal. Se já tinha passado pelo Brasil e pela América do Sul, como indicava a bolsa, por que não estaria interessado em ir mais longe? Devia ter perto de sua idade, pouca experiência, e não seria difícil convencê-lo. Não importava que fosse feio ou bonito, gordo ou magro, alto ou baixo. A única coisa que a interessava mesmo era ter companhia para sua aventura particular.

 

 

Paulo também havia notado a bela hippie que passara perto de onde estava sentado e, se não fosse por sua timidez paralisante, talvez tivesse ousado sorrir para ela. Porém não teve coragem — ela parecia distante, talvez esperando alguém ou querendo apenas contemplar a manhã sem sol, mas tampouco sem ameaça de chuva.

 

Voltou a concentrar-se no prédio a sua frente, uma verdadeira maravilha arquitetônica, que o Europa a cinco dólares por dia descrevia como um palácio real, construído em cima de 13 659 estacas (ainda segundo o guia, a cidade inteira era construída sobre estacas, embora ninguém percebesse isso). Não havia guardas na porta, e os turistas entravam e saíam — multidões deles, filas imensas, o tipo de lugar que jamais visitaria enquanto estivesse ali.

 

Sempre sabemos quando alguém está nos olhando. Paulo sabia que a bela hippie agora estava sentada fora de seu campo de visão, com os olhos fixos nele. Virou a cabeça e ela estava efetivamente lá, mas começou a ler assim que os dois pares de olhos se cruzaram.

 

O que fazer? Durante quase meia hora ficou pensando que devia levantar e ir sentar ao seu lado — era o que se esperava em Amsterdam, onde pessoas encontram outras sem necessidade de desculpas e explicações, apenas pela vontade de conversar e trocar experiências. No final dessa meia hora, depois de repetir mil vezes que não tinha absolutamente nada a perder, que não seria a primeira nem a última vez que seria rejeitado, levantou e foi em sua direção. Ela não tirava os olhos do livro.

 

Karla viu que ele se aproximava — coisa rara em um lugar onde todos respeitam os espaços individuais. Ele sentou a seu lado e disse a coisa mais absurda que alguém pode dizer:

 

“Desculpe.”

 

Ela apenas o olhou, aguardando o resto da frase — que não veio. Cinco minutos de constrangimento se passaram até que resolveu tomar a inciativa.

 

“Desculpe o quê, exatamente?”

 

“Nada.”

 

Mas, para sua alegria e felicidade, não disse as imbecilidades de sempre como “espero não estar atrapalhando”, ou “que prédio é esse aí na frente?”, ou “como você é bonita” (estrangeiros adoravam essa frase), ou “qual a sua nacionalidade”, “onde comprou estas roupas”, coisas do gênero.

 

Ela resolveu ajudar um pouco, já que estava muito mais interessada do que o rapaz podia imaginar.

 

“Por que o escudo de ‘Brasil’ na manga?”

 

“Para o caso de cruzar com brasileiros — é o país de onde venho. Não conheço ninguém na cidade, e assim podem me ajudar a encontrar gente interessante.”

 

Então o rapaz, que parecia inteligente e tinha olhos negros que brilhavam com uma energia intensa e um cansaço ainda maior, tinha atravessado o Atlântico para encontrar brasileiros no exterior?

 

Aquilo parecia o cúmulo do absurdo, mas resolveu lhe dar algum crédito. Podia tocar imediatamente no assunto do Nepal e continuar a conversa ou descartá-la para sempre, mudar de lugar no Dam, dizer que tinha um encontro ou apenas sair dali sem dar nenhuma satisfação.

 

Mas resolveu não se mover, e o fato de continuar sentada com Paulo — esse era seu nome — enquanto escolhia suas opções terminaria mudando por completo sua vida.

 

Porque assim são os casos de amor — embora a última coisa que pensasse naquele momento era nessa palavra secreta e nos perigos que acarreta. Os dois estavam juntos, a vidente estava certa, o mundo interior e exterior estavam se encontrando rapidamente. Ele podia estar sentindo a mesma coisa, mas era tímido demais, ao que parecia — ou talvez estivesse apenas interessado em fumar com alguém um cigarro de haxixe ou, o que era muito pior, visse nela uma futura companheira para irem até o Vondelpark fazer amor e depois se despedirem como se nada de muito importante tivesse acontecido além de um orgasmo.

 

Como definir o que alguém é ou não é em apenas alguns minutos? Claro, sabemos quando a pessoa nos causa repulsa, e nos afastamos, mas ali não era absolutamente o caso. Ele era magro demais, e seus cabelos pareciam bem cuidados. Devia ter tomado banho naquela manhã, ainda era possível sentir o cheiro de sabão em seu corpo.

 

No momento em que sentou a seu lado e disse a absurda palavra “desculpe”, Karla sentiu um grande bem-estar, como se já não estivesse sozinha. Estava com ele, e ele com ela, e os dois sabiam disso — mesmo que nada mais tivesse sido dito e ambos desconhecessem o que estava ocorrendo. Os sentimentos escondidos não tinham sido revelados e tampouco permaneciam ocultos, estavam apenas esperando a hora de se manifestar. Aquele era o instante em que muitas relações que podiam terminar em grandes amores se perdiam — ou porque quando as almas se encontram na face da terra já sabem para onde estão caminhando juntas e isso as apavora, ou porque estamos tão condicionados que sequer damos tempo às almas para se conhecerem, vamos em busca de algo “melhor” e perdemos a chance de nossas vidas.

 

Karla estava deixando sua alma se manifestar. Às vezes somos enganados por suas palavras, porque as almas não são exatamente muito fiéis e terminam aceitando situações que na verdade não correspondem a nada, tentam agradar ao cérebro e ignoram aquilo em que Karla mergulhava cada vez mais: o Conhecimento. O seu Eu visível, que você acredita ser, nada mais é do que um lugar limitado, estranho ao verdadeiro Eu. Por isso as pessoas têm muita dificuldade em escutar o que a alma está dizendo, tentam controlá-la para que siga exatamente o que já vinham planejando — os desejos, as esperanças, o futuro, a vontade de dizer aos amigos “finalmente encontrei o amor de minha vida”, o pavor de terminar sozinho em um asilo de velhos.

 

Ela não conseguia mais se enganar. Não sabia o que estava sentindo e procurou deixar as coisas assim mesmo, sem maiores justificativas e explicações. Tinha consciência de que deveria enfim levantar o véu que cobria seu coração, mas não sabia como e não iria descobrir agora, assim tão rápido. O ideal seria mantê-lo a uma distância segura até ver exatamente como os dois iriam se comportar nas horas seguintes, ou dias, ou anos — não, não pensava em anos, porque seu destino era uma caverna em Kathmandu, sozinha, em contato com o universo.

 

 

A alma de Paulo ainda não se revelara, e ele não tinha como saber se aquela menina iria desaparecer de uma hora para a outra. Não sabia mais o que falar, ela também ficou muda, e os dois haviam aceitado o silêncio e olhavam fixos para a frente, sem na verdade notar nada — os holandeses caminhavam para as lanchonetes e restaurantes, os bondes passavam lotados, mas ambos tinham os olhares perdidos, as emoções em outra dimensão.

 

“Você quer almoçar?”

 

Entendendo aquilo como um convite, Paulo ficou surpreso e contente. Não podia entender como uma moça tão bonita o estava chamando para almoçar — suas primeiras horas em Amsterdam tinham começado muito bem.

 

Não tinha planejado nada do tipo, e quando as coisas acontecem sem planejamento ou expectativas terminam sendo mais agradáveis e mais proveitosas — falar com uma estranha sem pensar em nenhuma conexão romântica permitia que tudo fluísse mais naturalmente.

 

Ela estava sozinha? Por quanto tempo poderia lhe dar atenção? O que precisava fazer para mantê-la ao seu lado?

 

Nada. A sequência de perguntas idiotas desapareceu no espaço e, mesmo tendo comido havia pouco, iria almoçar com ela. Só esperava que não escolhesse um restaurante muito caro, seu dinheiro precisava durar um ano, até a data do bilhete de volta.

 

 

Peregrino, você está distraído; acalme-se.

 

Porque não são todos os que são chamados que serão os escolhidos

 

Não é qualquer pessoa que dorme com um sorriso nos lábios

 

Que verá o que você está vendo.

 

 

Claro que precisamos dividir. Mesmo que sejam informações que todos já conhecem, é importante não se deixar levar pelo pensamento egoísta de chegar sozinho ao fim da jornada. Quem faz isso descobre um paraíso vazio, sem nenhum interesse especial, e em breve estará morrendo de tédio.

 

Não podemos pegar as luzes que iluminam o caminho e carregar conosco.

 

Se agirmos assim, vamos encher nossas mochilas com lanternas. Nesse caso, mesmo com toda a luz que carregamos, não vamos contar com uma boa companhia. De que adianta?

 

Mas era difícil se acalmar — precisava anotar tudo que estava vendo ao seu redor. Uma revolução sem armas, uma estrada sem controles de passaporte e curvas perigosas. Um mundo que de repente tinha ficado jovem, independentemente da idade das pessoas e de suas crenças religiosas e políticas. O sol havia aparecido, como para dizer que enfim o Renascimento estava voltando, mudando hábitos e costumes de todo mundo — e um belo dia, em um futuro muito próximo, as pessoas já não dependeriam mais da opinião dos outros, e sim de sua própria maneira de ver a vida.

 

Gente vestida de amarelo dançando e cantando na rua, roupas de todas as cores, uma moça distribuindo rosas para quem passava, todo mundo sorrindo — sim, o amanhã seria melhor, apesar do que acontecia na América Latina e em outros países. O amanhã seria melhor simplesmente porque não havia escolha, não se podia voltar ao passado e de novo deixar que o moralismo, a hipocrisia e a mentira ocupassem dias e noites de quem caminhava por essa terra. Lembrava-se de seu exorcismo no trem e dos milhares de críticas que vivia escutando de todos, conhecidos e desconhecidos. Lembrava-se do sofrimento dos seus pais e queria telefonar naquele momento para casa e dizer:

 

Não se preocupem, estou contente, e em breve vocês terminarão por entender que não nasci para entrar para a faculdade, conseguir um diploma e arranjar um emprego. Nasci para ser livre e posso sobreviver disso, sempre terei o que fazer, sempre descobrirei uma maneira de ganhar dinheiro, sempre poderei me casar um dia e formar uma família, mas o momento agora é outro — é hora de buscar, estar apenas no presente, aqui e agora, com alegria das crianças, a quem Jesus destinou o reino dos céus. Se for preciso trabalhar como lavrador, eu farei isso sem o menor problema, porque me permitirá estar em contato com a terra, o sol e a chuva. Se for preciso algum dia me trancar em um escritório, eu também farei isso sem o menor problema, porque terei ao meu lado outras pessoas, acabaremos por formar um grupo, o grupo irá descobrir como é bom sentar-se em torno de uma mesa e conversar, rezar, rir e lavar-se todas as tardes do trabalho repetitivo. Se for preciso ficar sozinho, eu ficarei, se me apaixonar e resolver casar, eu me casarei, pois tenho certeza de que minha mulher, aquela que será o amor de minha vida, aceitará minha alegria como a maior bênção que um homem pode dar para uma mulher.

 

A moça ao seu lado parou, comprou flores e, em vez de carregá-las para algum lugar, fez dois arranjos, colocando em seus cabelos e nos cabelos dela. E aquilo, longe de parecer ridículo, era uma maneira de celebrar as pequenas vitórias da vida, como os gregos exaltavam havia milênios os seus vencedores e heróis — em vez de ouro, coroas de louros. Que podiam terminar murchando e desaparecendo, mas que não eram pesadas e não exigiam constante vigilância como as coroas de reis e rainhas. Muita gente que passava tinha esse tipo de arranjo nos cabelos, o que tornava tudo mais belo.

 

As pessoas tocavam flautas de madeira, violino, violão, cítaras — havia uma trilha sonora confusa, mas que se harmonizava naturalmente com aquela rua sem calçada, como a maior parte das vias da cidade: cheia de bicicletas, o tempo rodando mais devagar e mais rápido. Paulo tinha medo de que o mais rápido terminasse prevalecendo e o sonho acabasse logo.

 

Porque não estava em uma rua, estava em um sonho em que os personagens eram de carne e osso, falavam em diversas línguas estrangeiras, olhavam para a mulher ao lado dele e sorriam diante de sua beleza, ela retribuía o gesto, e ele sentia uma ponta de ciúme que logo era substituído por orgulho de que o houvesse escolhido para acompanhá-la.

 

Uma ou outra pessoa oferecia incensos, pulseiras, casacos coloridos possivelmente feitos no Peru ou na Bolívia, e ele tinha vontade de comprar tudo porque retribuíam os sorrisos e não se sentiam ofendidos e nem insistiam, como os vendedores de loja fazem. Se comprasse, isso talvez significasse para eles mais uma noite, mais um dia no paraíso — embora soubesse que todos, absolutamente todos, saberiam como sobreviver neste mundo. Paulo precisava guardar tudo que era possível, também tentar descobrir um jeito de viver naquela cidade até quando o seu bilhete de avião começasse a pesar na bolsa com elástico em torno da cintura e embaixo da calça, dizendo que já era hora, que precisava sair do sonho e voltar para a realidade.

 

Uma realidade que inclusive aparecia de tempos em tempos naquelas ruas e parques, em mesinhas com painéis atrás mostrando as atrocidades cometidas no Vietnã — foto do general executando um vietcongue a sangue-frio. Tudo que pediam era que assinassem um manifesto, e todos colaboravam.

 

Nesse momento percebia que ainda faltava muito para que o Renascimento tomasse conta do mundo, mas estava começando, sim, estava começando, e que cada um daqueles jovens — dos muitos jovens naquela rua — não esqueceriam o que estavam vivendo e quando voltassem aos seus países se tornariam evangelistas da paz e do amor. Porque isso era possível, um mundo finalmente livre da opressão, do ódio, dos maridos que espancam mulheres, dos torturadores que penduram as pessoas de cabeça para baixo e as matam lentamente com...

 

... Não que tivesse perdido seu senso de justiça — ainda se escandalizava com a injustiça no mundo inteiro —, mas pelo menos por um tempo precisava descansar e recuperar suas energias. Gastara parte de sua juventude morrendo de medo, agora era o momento de ter coragem diante da vida e do caminho desconhecido que percorria.

 

Entraram em uma das dezenas de lojas que vendiam cachimbos, xales coloridos, imagens orientais, patches. Paulo comprou o que estava buscando: uma série de apliques de metal em forma de estrela que colocaria em sua jaqueta quando voltasse para o dormitório.

 

Em um dos muitos parques da cidade, três moças estavam sem blusa e sem sutiã, os olhos fechados em postura de ioga, voltadas para um sol que talvez em breve se escondesse, e custaria duas estações até que a primavera voltasse. Reparou com mais cuidado que havia na praça gente de mais idade, indo ou voltando para o serviço, pessoas que sequer se davam ao trabalho de olhar as moças — porque a nudez não era castigada ou reprimida, cada um é dono do seu corpo e faz o que achar melhor.

 

E as camisetas, as camisetas eram as mensagens que caminhavam, algumas com foto dos ídolos — Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin —, mas a maioria pregando o Renascimento:

 

 

Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida.

 

Um simples sonho é mais poderoso que mil realidades.

 

Todo sonho precisa de um sonhador.

 

 

Uma em particular lhe chamou a atenção:

 

 

O sonho é algo espontâneo e portanto perigoso para aqueles que não têm coragem de sonhar.

 

 

Isso. Era isso o que o sistema não tolerava, mas o sonho terminaria vencendo, e antes de os americanos serem derrotados no Vietnã.

 

Ele acreditava. Tinha escolhido sua loucura e agora pretendia vivê-la intensamente, ficar ali até que escutasse seu chamado para fazer algo que ajudasse a mudar o mundo. Seu sonho era ser escritor, mas ainda era cedo para isso, e ele tinha dúvidas de que livros tivessem esse poder, mas faria o seu melhor para mostrar o que os outros ainda não estavam vendo.

 

Uma coisa era certa: não tinha volta, existia agora apenas o caminho da luz.

 

Encontrou um casal brasileiro, Tiago e Tabita, que notaram a bandeira e se identificaram.

 

“Somos Meninos de Deus”, disseram, e o convidaram para visitar o lugar onde viviam.

 

Todos eram Meninos de Deus, não é verdade?

 

Sim, mas eles participavam de um culto cujo fundador tivera uma revelação. Que tal conhecer um pouco melhor?

 

Paulo garantiu que sim — quando Karla o deixasse antes do final do dia, já tinha novos amigos.

 

* * *

 

Mas, assim que se afastaram, Karla pegou no patch da sua jaqueta e o arrancou.

 

“Você já comprou o que estava procurando — as estrelas são muito mais bonitas do que as bandeiras. Se quiser, posso ajudar a colocá-las em forma de cruz egípcia ou de símbolo hippie.”

 

“Não precisava ter feito isso. Bastava pedir e me deixar decidir se queria continuar ou não com o patch na manga. Amo e odeio meu país, mas isso é problema meu. Acabei de conhecer você; se por acaso acha que pode me guiar e me controlar porque pensa que sou dependente da única pessoa que verdadeiramente encontrei aqui, nos separamos agora. Não deve ser difícil encontrar um restaurante barato.”

 

Sua voz tinha endurecido e, surpresa, Karla considerou essa reação positiva. Não era um boboca que fazia o que os outros mandavam, mesmo que estivesse em uma cidade estranha. Já devia ter passado por muitas coisas nessa vida.

 

Ela devolveu o patch.

 

“Guarde em outro lugar. É falta de educação conversar em língua que não entendo e uma falta de imaginação ter vindo tão longe para entrar em contato com gente que pode encontrar na sua terra. Se você voltar a falar português, vou falar holandês, e acho que o diálogo ficará impossível.”

 

O restaurante não era simplesmente barato: era GRÁTIS, essa palavra mágica que geralmente faz tudo parecer muito saboroso.

 

“Quem sustenta isso? O governo holandês?”

 

“O governo holandês não deixa que nenhum de seus cidadãos passe fome, mas neste caso o dinheiro vem de George Harrison, que adotou nossa religião.”

 

Karla olhava a conversa com um misto de falso interesse e visível tédio. A caminhada em silêncio havia confirmado o que dissera a vidente no dia anterior: aquele rapaz era a companhia perfeita para a viagem até o Nepal — não falava muito, não procurava impor suas opiniões, mas sabia exatamente como lutar pelos seus direitos, como no caso do patch com a bandeira. Precisava apenas saber o momento certo de abordar o assunto.

 

Foram até o bufê, serviram-se de várias delícias vegetarianas enquanto escutavam uma das pessoas vestidas de laranja explicar quem eram para os recém-chegados. Deviam ser muitos, e converter alguém naquele momento era facílimo, já que os ocidentais adoravam tudo que vinha das terras exóticas do Oriente.

 

“Vocês devem ter cruzado com algumas pessoas de nosso grupo enquanto caminhavam para cá”, disse o que parecia mais velho, com uma barba branca e um ar beatífico de quem nunca havia pecado na vida. “O nome original de nossa religião é muito complicado, então podem nos chamar de Hare Krishna mesmo — porque assim somos conhecidos há séculos, já que acreditamos que repetir Hare Krishna/ Hare Rama termina por esvaziar nossa mente, deixando espaço para que a energia penetre. Acreditamos que tudo é uma coisa só, temos uma alma coletiva, e cada gota de luz nesta alma termina por contagiar os pontos escuros em volta. É só isso. Quem desejar pode pegar o livro Bhagavad Gita na saída e preencher uma ficha pedindo formalmente a filiação. Nada vos faltará — porque assim prometeu o Senhor Iluminado antes da grande batalha, quando um dos guerreiros se sentiu culpado de participar de uma guerra civil. O Senhor Iluminado respondeu que ninguém mata e ninguém morre — cabia a ele apenas cumprir seu dever e fazer o que tinha sido ordenado.”

 

Ele pegou um dos exemplares do livro em questão: Paulo olhava com interesse para o guru, e Karla olhava com interesse para Paulo — embora duvidando que já não tivesse escutado isso antes.

 

“Ó filho de Kunti, ou você será morto no campo de batalha e levado para os planetas no céu, ou você vencerá seus inimigos e conquistará o que sonha. Portanto, em vez de se perguntar qual o propósito desta guerra, levante e lute.”

 

O guru fechou o livro.

 

“Isso temos que fazer. Em vez de perder tempo dizendo ‘isso é bom’, ou ‘isso é mau’, precisamos cumprir nosso destino. Foi o destino que os trouxe hoje aqui. Quem desejar, pode sair conosco para dançar e cantar na rua logo depois de terminarmos de comer.”

 

Os olhos de Paulo brilharam, e para Karla não foi necessário que ele dissesse nada. Estava tudo entendido.

 

“Você não está pensando em ir com eles, está?”

 

“Claro. Nunca cantei e dancei na rua desse jeito.”

 

“Sabia que eles só permitem sexo depois do casamento, e mesmo assim apenas para procriar, não para ter prazer? Você acredita que um grupo que se diz tão iluminado é capaz de rejeitar, negar, condenar algo tão belo?”

 

“Não estou pensando em sexo, mas em dança e música. Faz tempo que não escuto música e que não canto, e isso é um buraco negro na minha vida.”

 

“Eu posso levá-lo hoje à noite para cantar e dançar.”

 

Por que aquela menina parecia tão interessada nele? Ela podia arranjar o homem que quisesse, na hora que achasse melhor. Começou a se lembrar do argentino — talvez precisasse de alguém para ajudá-la em um trabalho que ele não estava nem um pouco disposto a fazer. Resolveu testar as águas:

 

“Você conhece a Casa do Sol Nascente?”

 

Sua pergunta podia ser interpretada de três maneiras: a primeira, se ela conhecia a música (“The House of the Rising Sun”, The Animals). A segunda, se sabia o que a música queria dizer. E a terceira, finalmente, se gostaria de ir até lá.

 

“Deixa de bobagem.”

 

Esse rapaz, que no início tinha julgado tão inteligente, charmoso, calado, fácil de ser controlado, parecia ter entendido tudo errado. E, por incrível que pareça, ela precisava mais dele do que o contrário.

 

“Está bem. Você vai com eles e eu sigo à distância. Nos encontramos no final.”

 

Teve vontade de acrescentar “já passei de minha fase Hare Krishna”, mas controlou-se para não assustar a presa.

 

 

Que alegria estar ali pulando, saltando, cantando com todo o pulmão, seguindo aquelas pessoas que se vestiam de laranja, tocavam sininhos e pareciam em paz com a vida. Outras cinco tinham resolvido seguir junto com o grupo, e à medida que caminhavam pelas ruas, mais gente ia se juntando. Volta e meia virava a cabeça para ver se a holandesa continuava seguindo-o. Ele não queria perdê-la, os dois se aproximaram por algum mistério, mistério que precisava ser preservado — jamais entendido, mas mantido. Sim, ali estava ela, a uma distância segura, evitando ser identificada com os monges ou aprendizes de monges e, cada vez que seus olhos se cruzavam, um sorria para o outro.

 

O laço estava sendo criado e se fortalecia.

 

Lembrou-se de um conto da infância, “O flautista de Hamelin”, em que o personagem principal, para se vingar de uma cidade que prometeu pagá-lo e não o fez, resolveu encantar as crianças e levá-las para longe com o poder de sua música. Isso estava ocorrendo agora — Paulo virara uma criança e dançava no meio da rua, tudo muito diferente dos anos que passara mergulhado em livros de magia, fazendo rituais complicados e achando que estava se aproximando dos verdadeiros avatares. Talvez sim, talvez não, mas dançar e cantar também ajudava a atingir o mesmo estado de espírito.

 

De tanto repetir o mantra e saltar, começou a entrar em um estado em que o pensamento, a lógica e as ruas da cidade já não tinham tanta importância — a cabeça estava completamente vazia, e ele voltava à realidade apenas de tempos em tempos, para conferir se Karla o acompanhava. Sim, ela estava ali, e seria muito bom se estivesse em sua vida por bastante tempo, mesmo que a conhecesse apenas havia três horas.

 

Tinha certeza de que o mesmo havia acontecido com ela — ou poderia simplesmente tê-lo largado no restaurante.

 

Entendia melhor as palavras de Krishna ao guerreiro Arjuna, antes da batalha. Não era exatamente o que estava escrito no livro, mas em sua alma:

 

 

Lute porque é preciso lutar, porque você está diante de um combate.

 

Lute porque você está em harmonia com o universo, com os planetas, os sóis que explodem e as estrelas que encolhem e se apagam para sempre.

 

Lute para cumprir seu destino, sem pensar em ganhos ou lucros, em perdas ou estratégias, em vitórias ou derrotas.

 

Não busque gratificar a si mesmo, mas ao Amor Maior que nada oferece além de um contato breve com o Cosmos e para isso pede um ato de devoção total — sem questionamentos, sem perguntas, amar pelo ato de amar e nada mais.

 

Um amor que não deve a ninguém, que não é obrigado a nada, que se alegra simplesmente pelo fato de existir e poder se manifestar.”

 

* * *

 

O cortejo chegou ao Dam e começou a dar a volta na praça. Paulo resolveu parar por ali, deixar que a moça que o tinha encontrado voltasse para o seu lado — ela parecia diferente, mais relaxada, mais à vontade com sua presença. O sol já não esquentava como antes, dificilmente tornaria a ver meninas com os seios de fora, mas, como tudo que imaginava parecia ocorrer o contrário, os dois notaram luzes fortes do lado esquerdo de onde estavam sentados. E pela absoluta e total falta do que fazer, resolveram ir ver o que estava acontecendo.

 

Os refletores iluminavam uma modelo completamente nua, segurando uma tulipa que cobria apenas o sexo. O fundo era o obelisco no centro do Dam. Karla perguntou a um dos assistentes o que era aquilo.

 

“Um pôster encomendado pelo departamento de turismo.”

 

“É essa a Holanda que estão vendendo aos estrangeiros? As pessoas ficam nuas aqui, na cidade?”

 

O assistente afastou-se sem responder. Nesse momento, a sessão foi interrompida e Karla se dirigiu a outro assistente, enquanto a maquiadora entrava em cena para retocar o seio direito da modelo. Repetiu a mesma pergunta. O sujeito, ligeiramente estressado, pediu que não o interrompesse, mas Karla sabia o que queria.

 

“Você parece tenso. Está preocupado com o quê?”

 

“A luz. A luz está caindo rápido, e em breve o Dam estará às escuras”, respondeu o assistente, querendo livrar-se daquela criatura.

 

“Você não é daqui, não é verdade? Estamos no início do outono, e o sol ainda vai brilhar até as sete horas da noite. Além do mais, eu tenho o poder de parar o sol.”

 

O sujeito olhou com surpresa para ela. Tinha conseguido o que queria: chamar a atenção.

 

“Por que estão fazendo um pôster com uma mulher nua segurando uma tulipa na frente do sexo? É essa a Holanda que desejam vender ao mundo?”

 

A resposta veio em uma voz irritada, mas contida:

 

“Que Holanda? Quem disse que você está na Holanda, um país onde as casas têm janelas baixas dando para a rua, com cortinas rendadas para que todo mundo possa ver o que está se passando lá dentro, que ninguém está pecando, que a vida de cada família é um livro aberto? Isso é a Holanda, minha filha: um país dominado pelo calvinismo, onde todos são pecadores até prova em contrário, o pecado mora no coração, na mente, no corpo, nas emoções. E onde apenas a graça de Deus pode salvar alguns, mas não todos, apenas os escolhidos. Você é daqui, ainda não entendeu isso?”

 

Acendeu um cigarro e continuou vendo que a moça, antes tão arrogante, agora parecia intimidada.

 

“Isto aqui não é Holanda, minha jovem, é Amsterdam, com prostitutas nas janelas e drogas nas ruas — cercada por um cordão sanitário invisível. Ai daqueles que ousem levar essas ideias para longe do distrito onde está a cidade. Não apenas serão mal recebidos, mas não conseguirão sequer um quarto de hotel se não tiverem vestidos com roupas apropriadas. Você sabe disso, não sabe? Então por favor se afaste e nos deixe trabalhar.”

 

Quem se afastou foi o homem, deixando Karla com um ar de quem tinha acabado de levar um soco. Paulo tentou consolá-la, mas ela murmurou para si mesma.

 

“É isso mesmo. Ele tem razão, é assim mesmo”.

 

Como era assim mesmo? O guarda na fronteira usava brinco!

 

“Existe um muro invisível em torno da cidade”, ela respondeu. “Vocês querem ser loucos? Então vamos achar um lugar onde todo mundo possa fazer quase tudo o que quer, mas não ultrapassem esse limite, porque serão presos por tráfico de drogas, mesmo que estejam apenas consumindo, ou por atentado ao pudor, porque precisam usar sutiã, manter o recato e a moral, ou este país jamais irá para a frente.”

 

Paulo estava um pouco surpreso. Ela começou a afastar-se:

 

“Nos encontramos aqui às nove da noite — eu prometi que ia levá-lo para escutar a VERDADEIRA música e dançar.”

 

“Mas não precisa...”

 

“Claro que precisa. Não falte, porque nunca um homem me deixou plantada e fugiu.”

 

Karla tinha suas dúvidas — arrependia-se de não ter participado daquela dança e canto na rua, teria se aproximado mais dele. Mas, enfim, esses são os riscos que qualquer casal precisa correr.

 

Casal?

 

“Vivo acreditando em tudo que as pessoas me dizem e acabo sempre me decepcionando”, ela costumava ouvir. “Isso não acontece com você?”

 

Claro que acontecia, mas com 23 anos sabia defender-se melhor. E a única opção — além de confiar nas pessoas — era se transformar em alguém que vivia sempre na defensiva, incapaz de amar, tomar decisões, sempre transferindo para os outros a culpa de tudo de errado. Qual a graça de viver assim?

 

Todo mundo que confia em si mesmo confia nos outros. Porque sabe que, quando for traído — e será traído, isso é da vida — é capaz de revidar. Parte da graça da vida está justamente nisso: correr riscos.

 

 

A tal boate a que Karla o havia convidado, com o sugestivo nome de Paradiso, era na verdade uma... igreja. Uma igreja do século XIX, originalmente construída para abrigar um grupo religioso local, que já em meados dos anos 1950 notara que não era mais capaz de atrair muita gente, apesar de ser uma espécie de reforma da Reforma luterana. Em 1965, por causa dos custos de manutenção, os últimos fiéis resolveram abandonar o edifício, dois anos depois ocupado pelos hippies que acharam ali, na nave principal, o lugar perfeito para discussões, palestras, concertos e atividades políticas.

 

A polícia os expulsou pouco depois, mas o lugar continuou vazio, e os hippies voltaram em peso e em grande número — a solução seria usar a violência ou deixar que as coisas continuassem assim. Um encontro entre representantes dos cabeludos devassos e a municipalidade impecavelmente vestida permitiu que pudessem instalar um palco no lugar onde ficava o antigo altar, desde que pagassem impostos sobre cada ingresso vendido e tivessem muito cuidado com os vitrais na parte posterior.

 

Os impostos, claro, nunca foram pagos — os organizadores alegavam sempre que as atividades culturais eram deficitárias, e ninguém pareceu se importar com isso ou considerar outra expulsão. Por outro lado, os vitrais eram mantidos limpos, qualquer pequena fissura era logo restaurada com chumbo e vidro colorido, e assim demonstravam a glória e a beleza do Rei dos Reis. Quando perguntavam por que tinham tanto cuidado, os encarregados diziam:

 

“Porque são bonitos. E deram trabalho para ser concebidos, desenhados, colocados no lugar — estamos aqui para mostrar nossa arte, e respeitamos a arte de quem nos precedeu.”

 

Quando entraram, as pessoas dançavam ao som de um dos clássicos da época. O teto altíssimo fazia com que a acústica não fosse das melhores, mas que importância tinha isso? Por acaso Paulo havia pensado em acústica quando cantava Hare Krishna nas ruas? O mais importante era ver que todos sorriam, se divertiam, fumavam, trocavam olhares que podiam ser de sedução ou apenas de admiração. A essa altura, ninguém precisava mais pagar entrada ou impostos — a prefeitura havia se encarregado de não apenas evitar que transgredissem a lei, como em cuidar da propriedade, agora subsidiada.

 

Pelo visto, além da mulher nua com a tulipa no sexo, havia um grande interesse em transformar Amsterdam na capital de algum tipo de cultura — os hippies ressuscitaram a cidade, e a ocupação hoteleira, segundo Karla, tinha aumentado; todos queriam ver aquela tribo sem líder e sobre a qual se dizia — falsamente, claro — que as meninas estavam sempre dispostas a fazer amor com o primeiro que aparecesse.

 

“Holandeses são inteligentes.”

 

“Claro. Já conquistamos o mundo inteiro, inclusive o Brasil.”

 

Subiram para um dos balcões que circundavam a nave principal. Um milagre de acústica não existente permitia que ali pudessem conversar um pouco, sem a interferência do som altíssimo lá embaixo. Mas nem Paulo nem Karla queriam conversar — debruçaram-se sobre a amurada de madeira e ficaram olhando as pessoas que dançavam. Ela sugeriu que descessem e fizessem o mesmo, mas Paulo disse que a única música que realmente sabia dançar era Hare Krishna/ Hare Rama. Os dois riram, acenderam um cigarro, que dividiram, e logo em seguida Karla fez um sinal para alguém — através da fumaça ele pôde ver que era outra menina.

 

“Wilma”, disse ela, se apresentando.

 

“Estamos embarcando para o Nepal”, comentou Karla. Paulo riu da piada.

 

Wilma assustou-se com o comentário, mas nada fez para demonstrar suas emoções. Karla pediu licença para conversar com a amiga em holandês, e Paulo continuou olhando para as pessoas que dançavam lá embaixo.

 

Nepal? Então a menina que acabara de encontrar e parecia gostar da companhia dele iria partir em breve? E usara um “estamos”, como se tivesse companhia para tal aventura. Para um lugar tão distante, com uma passagem que devia custar uma fortuna?

 

Estava adorando Amsterdam, mas sabia a razão: não estava sozinho. Não era obrigado a puxar conversa com ninguém, logo no primeiro momento encontrara uma companhia e gostaria de navegar com ela por todos os lugares ali. Dizer que estava começando a se apaixonar era um exagero, mas Karla tinha um temperamento que ele adorava — sabia exatamente onde queria chegar.

 

Mas chegar ao Nepal? Com outra menina, que mesmo que não quisesse terminaria sendo obrigado a vigiar e proteger — porque assim lhe fora ensinado por seus pais? Isso estava além das suas possibilidades financeiras. Sabia que precisava partir cedo ou tarde daquele lugar encantado e seu próximo destino — se assim permitisse a aduana local — seria Piccadilly Circus, e as pessoas que também ali chegavam de todo mundo.

 

Karla continuava a conversa com a amiga, e ele fingia que estava interessado nas músicas: Simon & Garfunkel, Beatles, James Taylor, Santana, Carly Simon, Joe Cocker, B. B. King, Creedence Clearwater Revival — uma lista imensa que crescia a cada mês, a cada dia, a cada hora. Sempre haveria o casal brasileiro que encontrara aquela tarde, e que podia servir de porta para outras pessoas, mas deixar que partisse assim quem mal tinha chegado a sua vida?

 

Escutou os acordes familiares dos Animals e lembrou que havia pedido a Karla que o levasse a uma casa do sol nascente. O final da música era assustador, ele sabia do que se tratava a letra, mas mesmo assim o perigo atrai e fascina.

 

 

Oh mother tell your children

 

Not to do what I have done

 

Spend your lives in sin and misery

 

In the House of the Rising Sun

 

 

[Ó mãe, diga aos seus filhos

 

Para não fazer o que eu fiz

 

Gastar minha vida em sofrimento e pecado

 

Na Casa do Sol Nascente]

 

 

A inspiração tinha vindo de repente, precisava explicar a Wilma.

 

“Que bom que você se controlou. Poderia ter estragado tudo.”

 

“Nepal?”

 

“Sim. Porque um dia eu vou ser velha, gorda, com um marido ciumento, filhos que não me deixam cuidar de mim mesma, um trabalho de escritório para repetir todos os dias as mesmas coisas e terminarei me acostumando com isso, com a rotina, com o conforto, com o lugar onde vivo. Sempre posso voltar para Rotterdam. Sempre posso desfrutar das maravilhas do seguro-desemprego ou do seguro social que nossos políticos dão. Sempre posso terminar presidente da Shell ou da Philips ou da United Fruit, porque sou holandesa e eles só confiam em pessoas de sua terra. Mas ir ao Nepal tem que ser agora ou nunca — já estou ficando velha.”

 

“Aos 23 anos?”

 

“Os anos passam mais rápido do que você pensa, Wilma, e aconselho você a fazer o mesmo. Arrisque agora, quando ainda tem saúde e coragem. Nós duas concordamos que Amsterdam é um lugar chatíssimo, mas achamos isso porque nos acostumamos. Hoje, quando vi o brasileiro e como seus olhos brilhavam, descobri que a chata era eu. Não enxergava mais a beleza da liberdade, porque estava acostumada com isso.”

 

Olhou para o lado e viu Paulo de olhos fechados, escutando “Stand by Me”. Continuou:

 

“Então eu preciso redescobrir a beleza — apenas isso. Saber que, embora eu vá retornar um dia, ainda há muitas coisas que não vi e não experimentei. Onde irá meu coração, se não conheço ainda os muitos caminhos? Qual será o meu próximo destino, se ainda não saí daqui como devia? Que colinas terminarei escalando, se não vejo corda nenhuma para me segurar? Vim de Rotterdam para Amsterdam com esse propósito, tentei convidar vários homens para seguir em direção aos caminhos inexistentes, aos barcos que nunca chegam ao porto, ao céu sem limites, mas todos se negaram — todos tiveram medo de mim ou do destino desconhecido. Até que esta tarde encontrei o brasileiro; independentemente do que eu achava, ele seguiu os Hare Krishna pela rua, cantando e dançando. Tive vontade de fazer a mesma coisa, mas minha preocupação de me mostrar uma mulher forte me impediu. Agora não vou mais duvidar.”

 

Wilma continuava sem entender muito bem por que o Nepal, e como ele a havia ajudado.

 

“Quando você chegou e comentei sobre o Nepal, pressenti que era a coisa mais certa a fazer. Porque na mesma hora notei que ele não demonstrou apenas espanto, mas medo. A deusa deve ter me inspirado a dizer isso. Não estou tão ansiosa como de manhã, como a semana inteira — quando cheguei a duvidar que não ia ser capaz de cumprir esse sonho.”

 

“Você tem esse sonho há muito tempo?”

 

“Não. Começou com um recorte de um anúncio em um jornal alternativo. A partir daí não me sai da cabeça.”

 

Wilma ia perguntar se ela tinha fumado muito haxixe durante o dia, mas Paulo acabara de se aproximar.

 

“Vamos dançar?”, perguntou ele.

 

Ela o pegou pela mão e desceram juntos para a nave central da igreja. Wilma ficou sem saber para onde ia, mas isso não devia ser um problema por muito tempo; assim que a vissem sozinha, alguém iria aproximar-se e puxar conversa — todos falavam com todo mundo.

 

 

Quando saíram para a chuva fina e o silêncio, seus ouvidos zumbiam por causa da música. Precisavam gritar um com o outro.

 

“Você vai estar por aqui amanhã?”

 

“Vou estar no mesmo lugar em que você me encontrou pela primeira vez. Depois preciso ir para o lugar onde vendem as passagens de ônibus para o Nepal.”

 

Nepal de novo? Passagem de ônibus?

 

“Você pode vir junto, se quiser”, disse como se estivesse fazendo um grande favor para ele. “Mas gostaria de levá-lo para um passeio fora de Amsterdam; já viu algum moinho de vento?”

 

Ela riu da própria pergunta — era assim que o resto do mundo imaginava seu país: tamancos, moinhos de vento, vacas, vitrines com prostitutas.

 

“Nos encontraremos no lugar de sempre”, respondeu Paulo, entre ansioso e contente porque ela — aquele modelo de beleza, com os cabelos cheios de flores, uma saia longa, um colete bordado com espelhos, o cabelo bem penteado, o perfume de patchuli, aquela maravilha toda — gostaria de encontrar com ele de novo. “Estarei aqui por volta de uma da tarde. Preciso dormir um pouco. Mas nós não íamos a uma das casas do sol nascente?”

 

“Eu disse que lhe mostraria uma. Não disse que iria com você.”

 

Caminharam menos de duzentos metros até um beco onde havia uma porta sem letreiro algum e nenhum som de música.

 

“Ali tem uma. Gostaria de lhe dar duas sugestões.” Havia pensado na palavra “conselho”, mas seria a escolha mais errada do mundo.

 

“Não saia de lá com nada — a polícia que não estamos vendo deve estar em uma dessas janelas, vigiando quem visita o local. E geralmente revista os que saem. E quem sair com alguma coisa vai direto para a cadeia.”

 

Paulo assentiu com a cabeça e perguntou qual era a segunda sugestão.

 

“Não experimente.”

 

Tendo dito isso, deu-lhe um beijo nos lábios — um casto beijo que prometia muito, mas não entregava nada —, virou-se e dirigiu-se para o seu dormitório. Paulo ficou ali sozinho, se perguntando se deveria ou não entrar. Talvez fosse melhor voltar para seu dormitório e começar a colocar na jaqueta os apliques de metal em forma de estrela que tinha comprado naquela tarde.

 

Entretanto, a curiosidade foi mais forte, e ele dirigiu-se até a porta.

 

 

O corredor era estreito, baixo e mal iluminado. No final, um homem com cabeça raspada e alguma experiência na polícia de algum país o olhou de alto a baixo — a famosa “leitura corporal”, na qual é possível fazer uma estimativa das intenções, o grau de nervosismo, a situação financeira e a profissão da pessoa. Perguntou se ele tinha dinheiro para gastar. Sim, mas não ia fazer como na aduana, tentar mostrar a quantia. O homem ficou na dúvida por um segundo, mas deixou que passasse — não devia ser um turista, turistas não tinham interesse naquilo.

 

Algumas pessoas estavam deitadas em colchões espalhados pelo chão, outras encostadas nas paredes pintadas de vermelho. Por que ele estava ali? Para satisfazer uma curiosidade mórbida?

 

Ninguém conversava ou ouvia música. Mesmo sua curiosidade mórbida estava limitada ao que via, e era o mesmo brilho — ou a falta de brilho — nos olhos de todos. Tentou falar com um rapaz de sua idade, a pele emaciada e algumas marcas no rosto e no corpo sem camisa, como se tivesse sido mordido por algum inseto e coçado o local até ficar inflamado e vermelho.

 

Outro homem entrou — parecia dez anos mais velho que a maioria dos jovens lá fora, mas ainda tinha uma idade que devia regular com a sua. Era — pelo menos no momento — o único sóbrio. Em pouco tempo já estaria em outro universo, e Paulo se aproximou para ver se conseguia alguma coisa, nem que fosse uma simples frase para um livro que pretendia escrever no futuro — seu sonho era ser escritor, tinha pagado um preço muito alto para isso: internações em hospitais psiquiátricos, a prisão e a tortura, a proibição da mãe da namorada de adolescência de que a filha se aproximasse dele, o desprezo dos colegas de escola quando viram que passara a se vestir de maneira diferente.

 

E, como vingança, a inveja de todos quando arranjou sua primeira namorada — bonita e rica — e começou a viajar o mundo.

 

Mas por que pensava em si mesmo em um ambiente de tanta decadência? Porque precisava conversar com alguém ali. Sentou-se ao lado do jovem/velho que havia entrado. Viu que ele tirava uma colher com o cabo entortado e uma seringa que parecia já ter sido usada muitas vezes.

 

“Gostaria de...”

 

O jovem/velho levantou para sentar em outro canto, mas Paulo tirou o equivalente a três ou quatro dólares do bolso e colocou-os junto da colher no chão. Foi encarado com surpresa.

 

“Você é policial?”

 

“Não, não sou polícia, nem sequer sou holandês. Gostaria apenas de...

 

“Você é jornalista?”

 

“Não. Sou escritor. É por isso que estou aqui”

 

“Que livros escreveu?”

 

“Nenhum. Primeiro preciso pesquisar.”

 

O outro olhou para o dinheiro no chão e de novo para Paulo, duvidando que uma pessoa tão jovem estivesse escrevendo alguma coisa — a não ser que fosse para os jornais que faziam parte do “Correio Invisível”. Levou as mãos ao dinheiro, mas Paulo o interrompeu.

 

“Cinco minutos de conversa, apenas. Não mais que cinco minutos.”

 

O jovem/velho concordou — ninguém jamais havia pagado um centavo pelo seu tempo desde que largara o emprego de executivo promissor em um grande banco multinacional, desde que experimentara pela primeira vez “o beijo da agulha”.

 

O beijo da agulha?

 

“Isso. Nos picamos algumas vezes antes de injetar a heroína, porque aquilo que chamam de dor para nós é o prólogo de um encontro com algo que vocês jamais conseguirão entender.”

 

Estavam sussurrando para não chamar a atenção dos outros, mas Paulo sabia que, mesmo que naquele momento jogassem uma bomba atômica no local, nenhuma das pessoas ali se daria ao trabalho de fugir.

 

“Não pode mencionar meu nome.”

 

O outro havia começado a falar, e os cinco minutos passariam rápido. Podia sentir a presença do demônio naquela casa.

 

“E aí? Qual é a sensação?”

 

“E aí que não dá para descrever — só experimentando. Ou acreditando na descrição de Lou Reed e do Velvet Underground.”

 

 

Cause it makes me feel like I’m a man

 

When I put a spike into my vein

 

And I tell you things aren’t quite the same

 

When I’m rushing on my run

 

And I feel just like Jesus’ son

 

 

Paulo já havia escutado Lou Reed. Não bastava.

 

“Tente descrever, por favor. Os cinco minutos estão passando.”

 

O sujeito respirou fundo. Tinha um olho em Paulo e o outro na seringa. Precisava responder logo e livrar-se do impertinente “escritor” antes que fosse expulso da casa, levando o dinheiro junto.

 

“Imagino que você tenha experiência com drogas. E sei o que haxixe e marijuana provocam: paz e euforia, confiança em si mesmo, vontade de comer e de fazer amor. Para mim nada disso é importante, são coisas de uma vida que nos ensinaram a viver. Você fuma haxixe e pensa: ‘o mundo é belo, estou finalmente prestando atenção nas coisas’, mas, dependendo da dose, acaba por entrar em viagens que levam ao inferno. Você toma LSD e pensa: ‘caramba, como não tinha notado isso antes, que a terra respira e as cores mudam a cada instante?’. É isso que você quer saber?”

 

Era isso que ele queria saber. Mas aguardou que o jovem/velho continuasse.

 

“Com heroína é completamente diferente: você está no controle de tudo — do seu corpo, de sua mente, de sua arte. E uma imensa, uma indescritível felicidade toma o universo inteiro. Jesus na Terra. Krishna nas suas veias. Buda sorrindo para você do céu. Nenhuma alucinação, tudo isso é realidade, pura realidade. Você acredita?”

 

Não. Mas não disse nada, apenas acenou com a cabeça.

 

“No dia seguinte não existe ressaca, apenas o sentimento de que você foi até o paraíso e voltou para essa droga de mundo. Então vai trabalhar e se dá conta que tudo aquilo é uma mentira, as pessoas tentando justificar suas vidas, parecendo importantes, criando dificuldades a cada minuto porque isso lhes dá uma sensação de autoridade, de poder. Você não aguenta mais toda essa hipocrisia e resolve voltar para o paraíso, mas o paraíso é caro, a porta é estreita. Quem entra descobre que a vida é bela, que o sol pode efetivamente ser dividido em raios, já não é mais aquela bola redonda, monótona, que não dá para sequer olhar. No dia seguinte, você volta do trabalho em um trem cheio de gente com o olhar vazio, mais do que parece o olhar das pessoas aqui. Todos pensando em chegar em casa, preparar o jantar, ligar a televisão, esquecer a realidade — homem, realidade é esse pó branco, não a televisão!”

 

À medida que o jovem/velho falava, Paulo ia se sentindo tentado a experimentar pelo menos uma vez, uma única vez. E o sujeito sabia disso.

 

“Com haxixe eu sei que existe um mundo ao qual não pertenço. O mesmo ocorre com LSD. Mas heroína, homem, a heroína sou eu. Faz valer a pena viver a vida, independentemente do que os que estão de fora irão dizer. Só tem um problema...”

 

Ainda bem que tinha um problema. Paulo precisava saber do problema logo, porque estava a poucos centímetros da ponta da agulha e de sua primeira experiência.

 

“O problema é que o organismo vai aumentando a tolerância. Eu comecei gastando cinco dólares por dia, hoje preciso de vinte dólares para chegar ao paraíso. Já vendi tudo que tinha — meu próximo passo é mendigar, e depois de mendigar serei obrigado a roubar, porque o demônio não gosta que as pessoas conheçam o paraíso. Já sei tudo o que vai acontecer, porque aconteceu com todos que aqui estão hoje. Mas não me importo.”

 

Que curioso. Cada um tinha uma ideia diferente de que lado da porta estava o paraíso.

 

“Penso que já se passaram cinco minutos.”

 

“Sim, você explicou direito, e agradeço.”

 

“Quando escrever a respeito, não seja como os outros que vivem condenando aquilo que não entendem. Seja honesto. Preencha os vazios com sua imaginação.”

 

Ambos deram a conversa por encerrada, mas Paulo não se moveu. O jovem/velho não se incomodou — colocou o dinheiro no bolso pensando que, se ele pagou, tem o direito de ver.

 

Colocou um pó branco na colher de cabo torcido e acendeu um isqueiro embaixo. Pouco a pouco, o pó começou a ferver e transformar-se em líquido. Ele pediu que Paulo o ajudasse a colocar o garrote, de modo que sua veia ficasse mais proeminente.

 

“Uns já não têm mais espaço, injetam-se no pé, no dorso da mão, mas eu — graças a Deus — ainda tenho uma longa caminhada pela frente.”

 

Encheu a seringa com o líquido na colher e, exatamente como dissera no início, enfiou a agulha várias vezes, antecipando o momento de abrir a tal porta. Por fim injetou, e seus olhos deixaram de ser ansiosos e se transformaram em beatíficos, para cinco ou dez minutos depois perderem a luz e se fixarem em um ponto qualquer no espaço onde, segundo ele, Buda, Krishna e Jesus deviam estar flutuando.

 

Paulo levantou e, saltando por cima das pessoas largadas nos colchões sujos, fazendo o menor barulho possível, dirigiu-se para a saída, mas o guarda-costas de cabeça raspada não o deixou passar.

 

“Você entrou há pouco tempo. Já está saindo?”

 

“Sim, não tenho dinheiro para isso.”

 

“Mentira. Alguém viu que deu algumas notas para o Ted (que devia ser o nome do jovem/velho com quem tinha conversado). Veio aqui tentar arranjar fregueses?”

 

“De maneira nenhuma. Só falei com uma pessoa, e mais tarde você poderá perguntar o que conversamos.”

 

Tentou de novo passar, mas o corpo do gigante o impedia. Sentiu medo, embora soubesse que nada poderia acontecer de ruim; Karla dissera que lá fora, nas janelas, os policiais vigiavam o local.

 

“Um amigo meu gostaria de conversar com você”, disse o gigante, apontando uma porta no final do salão e deixando claro em seu tom de voz que ele precisava obedecer. Talvez a história dos policiais tivesse sido invenção de Karla para protegê-lo.

 

Vendo que não tinha muita escolha, dirigiu-se até a porta indicada. Antes mesmo que chegasse, ela foi aberta por um homem discretamente vestido, com cabelo e costeletas ao estilo de Elvis Presley. Gentilmente pediu que entrasse e lhe ofereceu uma cadeira.

 

O escritório nada tinha a ver com o que estava acostumado no cinema: mulheres sensuais, champanhe, homens de óculos escuros com algum tipo de arma de alto calibre. Pelo contrário, era discreto — pintado de branco, algumas reproduções baratas na parede e nada em cima da mesa, exceto um telefone. Exatamente atrás da escrivaninha — um móvel antigo, mas em excelente estado de conservação — estava uma foto imensa.

 

“A torre de Belém”, disse Paulo, sem se dar conta que acabara de falar em sua língua natal.

 

“Exatamente”, respondeu o homem, também em português. “Dali saímos para conquistar o mundo. Gostaria de tomar alguma coisa?”

 

Nada. O coração ainda não tinha voltado ao normal.

 

“Bem, imagino que seja uma pessoa ocupada”, continuou o homem, usando uma frase totalmente fora do contexto, mas que indicava gentileza. “Vimos que você entrou, saiu, conversou apenas com um dos nossos clientes e não parece um policial disfarçado, mas uma pessoa que, com muito esforço, conseguiu chegar nesta cidade e desfrutar de tudo que ela oferece.”

 

Paulo não disse nada.

 

“Tampouco se interessou pelo material excelente que oferecemos aqui. Se incomodaria de mostrar seu passaporte?”

 

Claro que se incomodaria, mas ia recusar? Colocou a mão na bolsa presa com elástico na cinta, retirou-o e estendeu ao sujeito à sua frente. Arrependeu-se logo em seguida — e se ele retivesse o documento?

 

Mas o sujeito apenas olhou as páginas, sorriu e o devolveu.

 

“Ah, poucos países — ótimo. Peru, Bolívia, Chile, Argentina e Itália. Além de Holanda, é claro. Imagino que deve ter passado sem problemas pela fronteira.”

 

Sem nenhum problema.

 

“Para onde está indo agora?”

 

“Inglaterra.”

 

Foi a única coisa que lhe ocorrera, embora não tivesse a menor intenção de dar àquele homem seu itinerário completo.

 

“Gostaria de lhe fazer uma oferta. Necessito mover certa mercadoria — que você deve imaginar qual é — até Dusseldorf, na Alemanha. São apenas dois quilos, que podem facilmente ser colocados debaixo de sua camisa. Compraremos um suéter maior, é claro; todo mundo usa suéter e casaco no inverno. Por sinal, essa sua jaqueta não vai aguentar a temperatura por muito tempo — o outono está chegando.”

 

Paulo apenas ficou aguardando a proposta.

 

“Pagaremos cinco mil dólares — metade em Amsterdam e a outra parte quando entregar o material ao nosso fornecedor na Alemanha. Precisa atravessar apenas uma fronteira, nada mais. E, com toda certeza, isso fará sua viagem à Inglaterra muitíssimo mais confortável. A aduana ali costuma ser muito rígida, normalmente pede para ver quanto dinheiro o ‘turista’ está carregando.”

 

Não era possível que tivesse ouvido direito aquela proposta. Era tentadora demais, era um dinheiro que lhe permitiria ficar dois anos viajando.

 

“Precisamos apenas que nos dê a resposta o mais breve possível. O ideal seria amanhã. Por favor, ligue às quatro da tarde para esse telefone público.”

 

Paulo pegou o cartão que lhe era estendido, com um número impresso, talvez porque estavam em um momento de distribuir muita mercadoria, talvez por medo de terem a caligrafia analisada.

 

“Peço que me desculpe, mas preciso continuar trabalhando. Muito obrigado por ter vindo até meu modesto escritório. Tudo que faço é permitir que as pessoas sejam felizes.”

 

E, dito isso, levantou, abriu a porta, e Paulo saiu de novo para a sala com as pessoas encostadas na parede ou deitadas em colchões sujos no chão. Passou pelo segurança, que dessa vez deu-lhe apenas um sorriso cúmplice.

 

E saiu para a chuva fina que caía, pedindo a Deus que o ajudasse, que o iluminasse, que não o deixasse sozinho naquele momento.

 

Estava em um lugar da cidade que não conhecia, não sabia como chegar até o centro, não tinha mapa, não tinha nada. Claro que um táxi seria sempre a solução de emergência, mas ele precisava caminhar por aquela garoa fina, que logo se transformou em chuva de verdade e mesmo assim parecia não lavar nada — nem o ar a sua volta, nem a mente que não cessava de pensar nos 5 mil dólares.

 

Perguntava às pessoas onde ficava o Dam, e elas continuavam seu caminho — mais um hippie louco que veio para cá e não sabe encontrar sua gente. Finalmente uma alma caridosa, um homem que estava em uma banca de revistas já arrumando os jornais do dia seguinte, vendeu-lhe um mapa e mostrou-lhe a direção a seguir.

 

Chegou ao dormitório, o porteiro da noite acendeu a luz especial para ver se ele estava com o carimbo do dia — os hóspedes sempre eram carimbados antes de sair com uma espécie de tinta invisível. Não, ele estava com carimbo do dia anterior, vivera 24 horas que pareciam não acabar nunca. Precisou pagar mais uma diária, mas, por favor, não carimbe agora porque vou tomar banho, preciso me lavar, estou sujo em todos os sentidos.

 

O porteiro assentiu e pediu que voltasse em meia hora no máximo, porque seu turno acabava. Ele entrou no banheiro misto, as pessoas falando alto, mas voltou para o dormitório, pegou o papel com o telefone que tinha carregado durante todo o percurso, voltou de novo para o banheiro já despido, com o papel na mão. E a primeira coisa que fez foi picá-lo em pedaços, molhá-lo para que jamais conseguisse juntar tudo de volta e atirou-o no chão. Alguém reclamou — aquilo não era lugar para jogar coisas, que ele fosse a uma lixeira colocada embaixo de uma das pias. Outros pararam para olhar o mal-educado que não sabia cuidar do lugar onde estavam, mas ele nem retribuiu o olhar, nem explicou nada — apenas obedeceu, como havia muito tempo não obedecia a ninguém.

 

E depois que fez isso voltou a entrar no chuveiro e sentiu que sim, agora estava livre. Claro, sempre podia voltar ao lugar de onde viera e conseguir outro, mas sabia que seria barrado, tivera sua chance e não a aproveitara.

 

O que o deixava muitíssimo contente.

 

Deitou na cama — os demônios tinham ido embora, estava certo disso. Os demônios que esperavam que ele tivesse aceito a oferta e assim conseguisse mais súditos para seu reino. Achava ridículo pensar daquela maneira, afinal de contas a droga já era demonizada o bastante, mas nesse caso as pessoas tinham razão. Era mesmo ridículo, logo ele que sempre defendera a droga como uma espécie de ampliação de consciência agora estava ali esperando que a polícia holandesa deixasse de tolerar qualquer casa do sol nascente, prendesse todos e os enviassem para bem longe das pessoas que apenas desejavam paz e amor para o mundo.

 

Conversou com Deus, ou um anjo, porque não conseguia dormir. Foi até o armário onde estavam guardadas suas coisas, tirou a chave do pescoço, pegou um caderno onde costumava anotar alguns pensamentos e algumas experiências. Mas não pretendia relatar ali tudo que Ted havia dito — dificilmente escreveria sobre aquilo no futuro. Registrou apenas as palavras que, imaginava ele, Deus lhe havia ditado:

 

 

Não existe diferença entre o mar e as ondas

 

Quando a onda cresce, ela é feita de água

 

E quando quebra na areia, também é feita da mesma água.

 

Diga-me Senhor: por que ambas as coisas são iguais? Onde está o mistério e o limite?

 

O Senhor responde: todas as coisas e pessoas são iguais; esse é o mistério e o limite.

 

 

Quando Karla chegou, o brasileiro já estava lá — olheiras profundas, como se tivesse passado a noite em claro, ou como... Ela preferiu não pensar na segunda possibilidade, porque isso significaria alguém em quem não poderia confiar nunca mais, e já tinha se acostumado com sua presença e com seu cheiro.

 

“Então, vamos ver um dos símbolos da Holanda, um moinho de vento?”

 

Ele levantou sem vontade e começou a segui-la. Pegaram um ônibus e começaram a se afastar de Amsterdam. Karla lhe disse que era preciso comprar a passagem — havia uma máquina dentro do veículo para isso —, mas ele preferiu ignorar o aviso; tinha dormido mal, estava cansado de tudo, precisava recuperar as forças. Pouco a pouco foi recobrando as energias.

 

A paisagem era uma só: planícies imensas, cortadas por diques e pontes levadiças, onde passavam chatas carregando alguma coisa para algum lugar. Não via moinho de vento em nenhuma direção, mas era dia, o sol de novo estava brilhando, o que fez Karla comentar que aquilo era uma coisa rara — chovia sempre na Holanda.

 

“Escrevi alguma coisa ontem”, disse Paulo, tirando o caderno do bolso e lendo em voz alta. Ela não disse que tinha gostado nem detestado.

 

“Onde está o mar?”

 

“O mar estava aqui. Existe um velho provérbio: Deus fez o mundo e os holandeses fizeram a Holanda. Agora está longe — não podemos ver o moinho de vento e o mar no mesmo dia.”

 

“Não, não quero ver o mar. Nem sequer o moinho de vento — uma coisa que, imagino, deve encantar turistas. Não estou em uma viagem desse tipo, como você deve saber.”

 

“E por que não comentou na hora? Estou farta de fazer este mesmo percurso para mostrar aos meus amigos estrangeiros uma coisa que sequer serve mais para o seu propósito original. Podíamos ter ficado na cidade.”

 

... E ido diretamente ao lugar onde vendem os bilhetes de ônibus, pensou. Mas omitiu essa parte, o bote precisava ser dado na hora certa.

 

“Não comentei na hora porque...”

 

... Sem nenhum controle, a história saiu.

 

Karla apenas escutava, aliviada e apreensiva ao mesmo tempo. A reação dele não estava sendo extremada demais? Paulo seria do tipo que mudava da euforia para a depressão e vice-versa?

 

Quando terminou de contar tudo, sentiu-se melhor. A moça o tinha ouvido em silêncio e sem julgar. Não achava, pelo visto, que ele tinha jogado 5 mil dólares na lixeira do banheiro. Não o considerava fraco — e só esse pensamento o fez se sentir mais forte.

 

Chegaram finalmente ao moinho de vento, onde um grupo de turistas escutava as explicações: “o mais velho encontra-se em — nome impronunciável —, o mais alto está em — nome impronunciável —, serviam para moer milho, grãos de café, de cacau, produziam óleo, ajudaram os nossos navegadores a transformar grandes pranchas de madeira em navios e, com isso, chegamos longe, o império se expandiu...”.

 

Paulo escutou o ruído do ônibus dando a partida, pegou Karla pela mão e pediu que voltassem logo para a cidade, no mesmo veículo em que haviam chegado. Em dois dias nem ele nem os turistas conseguiriam lembrar para que servia um moinho de vento. Não estava viajando para aprender esse tipo de coisa.

 

No caminho de volta, em uma das paradas, entrou uma mulher, colocou a braçadeira escrito “Fiscal” e começou a pedir o bilhete de todo mundo. Quando chegou a vez de Paulo, Karla olhou para o outro lado.

 

“Não tenho”, respondeu. “Achei que fosse de graça.”

 

A fiscal já devia ter escutado esse tipo de desculpa um milhão de vezes, porque em sua resposta quase ensaiada disse que a Holanda era muito generosa, sem dúvida nenhuma, mas só pessoas com quociente intelectual muito baixo podiam achar que também fornecia transporte de graça.

 

“Você já viu isso em algum lugar do mundo?”

 

Claro que não, mas tampouco tinha visto... sentiu um chute discreto de Karla e resolveu não argumentar mais. Pagou vinte vezes o valor do bilhete, além de ser obrigado a sofrer com os olhares dos outros passageiros — todos calvinistas, honestos, respeitadores da ordem e nenhum com jeito de frequentador do Dam e suas adjacências.

 

Quando desceram do ônibus, Paulo sentia-se desconfortável — estaria tentando impor sua presença àquela menina sempre tão gentil, embora determinada a toda vez conseguir o que queria? Não era o momento de dizer adeus e deixar que ela seguisse sua vida? Mal se conheciam e tinham já passado mais de 24 horas juntos, agarrados um ao outro, como se isso fosse normal.

 

Karla deve ter lido seu pensamento, porque o convidou a ir com ela até a agência onde compraria sua passagem para o Nepal.

 

De ônibus!

 

Isso estava além de qualquer coisa louca que ele podia imaginar.

 

A tal agência na verdade era um escritório mínimo, com uma única pessoa trabalhando — apresentou-se como Lars Alguma Coisa, um desses nomes impossíveis de ser memorizados.

 

Karla perguntou quando saía o próximo Magic Bus (era assim que o chamavam).

 

“Amanhã. Só temos dois lugares sobrando e com certeza serão preenchidos. Se não forem, alguém na estrada vai nos parar e pedir para seguir conosco.”

 

Bem, pelo menos ela não teria tempo de tomar todas as providências...

 

“E não é perigoso para uma mulher ir sozinha?”

 

“Duvido que fique sozinha por mais de 24 horas. Muito antes de chegar a Kathmandu já terá namorado todos os passageiros do sexo masculino. Você e as outras mulheres que viajam sozinhas.”

 

O curioso era que Karla JAMAIS havia pensado nessa possibilidade. Perdera um tempo imenso procurando companhia, um bando de rapazes covardes que só estavam dispostos a explorar aquilo que já conheciam — para eles até mesmo a América Latina devia ser uma ameaça. Gostavam de sentir-se livres desde que estivessem a uma distância segura da saia da mãe. Percebeu que Paulo tentava esconder sua agitação, e aquilo a deixou contente.

 

“Quero comprar uma passagem de ida. Depois penso na volta.”

 

“Até Kathmandu?”

 

Porque o tal Magic Bus fazia várias paradas para recolher ou deixar passageiros — Munique, Atenas, Istambul, Belgrado, Teerã ou Bagdá (dependendo de que rota estivesse aberta).

 

“Até Kathmandu.”

 

“Não tem curiosidade de conhecer a Índia?”

 

Paulo viu que Karla e Lars estavam flertando. E daí? Não era sua namorada, não era nada além de uma recém-conhecida, gentil, mas distante.

 

“Qual o preço até Kathmandu?”

 

“Setenta dólares americanos.”

 

SETENTA DÓLARES para ir até o outro lado do mundo? Que tipo de ônibus era esse? Não estava acreditando naquela conversa.

 

Karla tirou o dinheiro da cintura e entregou ao “agente de viagens”. O tal Lars preencheu um recibo daqueles de restaurante, sem maiores identificações além do nome da pessoa, do número de passaporte e o destino final. Em seguida encheu parte da folha com carimbos que não queriam dizer absolutamente nada, mas davam um ar respeitável ao bilhete. Entregou-o a Karla junto com um mapa do percurso.

 

“O dinheiro não é devolvido em caso de fronteiras fechadas, acidentes naturais, conflitos armados no caminho, coisas do gênero.”

 

Entendia perfeitamente.

 

“Quando sai o próximo Magic Bus?”, perguntou Paulo, abandonando seu mutismo e seu mau humor.

 

“Depende. Não somos uma linha regular de transporte, como deve imaginar.”

 

O tom de Lars era ligeiramente hostil — estava tratando-o como um idiota

 

“Sei disso, mas você não respondeu minha pergunta.”

 

“Em princípio, se tudo estiver certo com o Magic Bus de Cortez, ele deve chegar aqui em duas semanas, descansar e seguir de novo viagem antes do final do mês. Mas não posso garantir — Cortez, como outros motoristas nossos...”

 

A maneira como disse “nossos” parecia estar se referindo a uma grande companhia, coisa que negara um pouco antes.

 

“... enjoam de fazer sempre o mesmo percurso, são donos dos seus próprios veículos, e Cortez pode escolher ir para Marrakesh, por exemplo. Ou para Cabul. Ele vive me dizendo isso.”

 

Karla se despediu, não sem antes jogar um olhar matador para o sueco à sua frente.

 

“Se eu não estivesse tão ocupado, iria me oferecer como motorista”, disse Lars, respondendo ao cumprimento sem palavras de Karla. “Assim poderíamos nos conhecer melhor.”

 

Para ele, a companhia masculina da moça não existia.

 

“Haverá oportunidade. Quando eu voltar, poderemos tomar um café juntos e ver como as coisas evoluem.”

 

Foi nesse momento que Lars, saindo de seu tom arrogante e de dono do mundo, disse algo que ninguém esperava.

 

“Quem vai até lá termina não voltando — pelo menos nos próximos dois ou três anos. É isso que dizem os motoristas.”

 

Sequestros? Assaltos?

 

“Nada disso. O apelido de Kathmandu é ‘Xangri-lá’, o vale do paraíso. Desde que você se habitue com a altitude, vai encontrar ali tudo que precisa da vida. E dificilmente terá vontade de voltar a viver de novo em uma cidade.”

 

Junto com o bilhete, entregou também outro mapa com as paradas marcadas.

 

“Amanhã às onze horas. Todo mundo aqui. Quem não chegar a essa hora, não embarca.”

 

“Mas não é muito cedo?”

 

“Você terá tempo de sobra para dormir no ônibus.”

 

 

Karla, que era uma pessoa teimosa e convencida, havia decidido no dia anterior, no encontro no Dam e nas caminhadas subsequentes, que Paulo precisava ir com ela. Gostava de sua companhia, embora tivessem passado apenas pouco mais de 24 horas juntos. E tinha o conforto de saber que jamais se apaixonaria por ele, porque já estava sentindo alguma coisa esquisita pelo brasileiro e isso precisava passar logo — para ela, nada melhor que conviver com uma pessoa para que seus encantos se dissipem em menos de uma semana.

 

Porque, se continuasse assim, deixando em Amsterdam o homem que julgava ideal, sua viagem seria completamente estragada pela lembrança constante dele. E, se continuasse fazendo crescer em sua mente a imagem do homem ideal, voltaria no meio do caminho, terminariam casando — o que não estava absolutamente em seus planos nessa encarnação — ou ele iria partir para uma terra distante, exótica, cheia de índios e com cobras nas ruas das grandes cidades (embora considerasse que essa segunda parte talvez fosse uma lenda, como as muitas que contavam a respeito do país dele).

 

Portanto, para ela, Paulo era apenas a pessoa certa na hora certa. Não tinha a menor intenção de transformar sua viagem até o Nepal em um pesadelo — ficar recusando propostas dos outros. Estava indo porque realmente era a coisa que lhe parecia mais louca, mais além dos seus limites — ela que havia sido criada quase sem limite nenhum.

 

Jamais seguiria os Hare Krishna pelas ruas, jamais se deixaria levar pelos muitos gurus indianos que conhecera e que tudo que sabiam ensinar era “esvaziar a mente”. Como se uma mente vazia, completamente vazia, aproximasse alguém de Deus. Depois de suas primeiras — e frustradas — experiências nesse sentido, agora restava esse contato direto com a Divindade, que ela temia e adorava ao mesmo tempo. Tudo que lhe interessava era a solidão e a beleza, o contato direto com Deus e, sobretudo uma boa distância de um mundo que conhecera muito bem e já não lhe interessava mais.

 

Não era muito jovem para agir assim, ter esse tipo de pensamento? Sempre podia mudar de ideia no futuro, mas, como conversara com Wilma no coffee shop, o paraíso — tal como concebido pelos ocidentais — era irrelevante, repetitivo e chato.

 

Paulo e Karla sentaram-se do lado de fora de um café que servia apenas café e biscoitos — nada de todos os produtos que conseguiam encontrar nos coffee shops. Os dois mantinham os rostos virados para o sol, mais um dia de sol depois da chuva do dia anterior, cientes de que aquilo era uma bênção que desaparecia de uma hora para outra. Não haviam trocado uma só palavra desde que saíram da “agência de viagens”, o pequeno escritório que também havia deixado Karla surpresa — esperava encontrar alguma coisa mais profissional.

 

“E então...”

 

“... e então pode ser este o último dia que estamos passando juntos. Você vai para o leste e eu vou para o oeste...”

 

“Piccadilly Circus, onde vai encontrar uma cópia do que viu aqui, tendo como única diferença o centro da praça. Com toda certeza, a estátua de Mercúrio é muito mais bonita do que o símbolo fálico do Dam.”

 

Karla não sabia, mas, desde a conversa na “agência”, ele vinha sentindo uma imensa vontade de acompanhá-la. Melhor dizendo, de conhecer lugares para onde se vai apenas uma vez na vida — tudo isso por apenas setenta dólares. Recusava-se a aceitar a ideia de que estava se apaixonando pela menina ao seu lado, simplesmente porque não era uma ideia verdadeira, era apenas uma possibilidade, jamais se apaixonaria por quem não tinha vontade de retribuir seu amor.

 

Começou a estudar o mapa: cruzariam os Alpes, atravessariam pelo menos dois países comunistas, chegariam ao primeiro lugar muçulmano que viria a conhecer em sua vida — e sobre o qual lera tanto a respeito dos dervixes que giravam e dançavam e recebiam os espíritos a ponto de ter ido assistir um espetáculo de um grupo que estava visitando o Brasil e se apresentara no teatro mais chique da cidade. Todas as coisas que por muito tempo foram apenas informações em livros agora poderiam se tornar realidade.

 

Por setenta dólares. Acompanhado de gente com o mesmo espírito de aventura.

 

Sim, Piccadilly Circus era apenas uma praça circular com gente com roupas coloridas sentadas em volta, onde os policiais não usavam armas, as cervejarias fechavam às onze da noite, e de onde saíam alguns passeios até monumentos históricos e coisas do tipo.

 

Mais alguns minutos e já tinha mudado de ideia — uma aventura é muito mais interessante que uma praça. Os antigos diziam que as mudanças são permanentes e constantes — porque a vida passa rápido. Se as coisas não mudassem, não haveria universo.

 

Podia mudar de ideia tão rápido assim?

 

Muitas são as emoções que movem o coração humano quando ele resolve dedicar-se ao caminho espiritual. Pode ser um motivo nobre — como fé, amor ao próximo ou caridade. Ou pode ser apenas um capricho, o medo da solidão, a curiosidade ou a vontade de sermos amados.

 

Nada disso importa. O verdadeiro caminho espiritual é mais forte do que as razões que nos levaram a ele. Aos poucos, vai se impondo, com amor, disciplina e dignidade. Chega um momento em que olhamos para trás, lembramo-nos do início de nossa jornada e então rimos de nós mesmos. Fomos capazes de crescer, embora nossos pés percorressem a estrada por motivos que julgávamos importantes, mas que eram muito fúteis. Fomos capazes de mudar de rota no momento em que isso se fez muito importante.

 

O amor de Deus é mais forte que as razões que nos levaram até Ele. Paulo acreditava nisso com toda a força de sua alma. O poder de Deus está conosco a cada momento, e é preciso coragem para deixar que se manifeste na mente, nos sentidos, na respiração — é preciso coragem para mudar de ideia quando nos damos conta de que somos apenas meros instrumentos de Sua vontade, e é a Sua vontade que devemos seguir.

 

“Imagino que você esteja querendo que eu diga ‘sim’, porque desde ontem, no Paradiso, armou uma armadilha.”

 

“Você está louco.”

 

“Sempre.”

 

Sim, ela queria muito que ele a acompanhasse, mas, como toda mulher que conhece a maneira como os homens pensam, não podia dizer nada. Se dissesse, ele iria sentir-se dominador ou, o que era pior, dominado. E Paulo agora tinha percebido o jogo todo — chamara aquilo de “armadilha”.

 

“Responda o que perguntei: você quer que eu vá?”

 

“Para mim é completamente indiferente.”

 

Por favor, vá — pensou consigo mesma. Não porque você seja um homem particularmente interessante — na verdade o sueco da “agência” era muito mais assertivo e determinado. Mas porque com você eu me sinto melhor. E fiquei muito orgulhosa de você, quando resolveu seguir meu conselho e terminou salvando uma quantidade imensa de almas com sua decisão de não levar heroína para a Alemanha.

 

“Indiferente? Quer dizer que tanto faz?”

 

“Isso.”

 

“E, nesse caso, se eu me levantar daqui neste minuto, voltar para a ‘agência’ de viagem e comprar o bilhete que está faltando, isso não vai deixar você mais feliz ou mais infeliz?”

 

Ela olhou para ele e sorriu. Esperava que seu sorriso dissesse tudo, que estava muito contente que Paulo fosse seu companheiro de viagem, mas não conseguia nem podia expressar isso em palavras.

 

“Você paga os cafés”, ele disse, levantando-se. “Já gastei hoje uma fortuna com a multa.”

 

Paulo tinha lido o sorriso dela, que precisava disfarçar sua alegria. Por isso disse a primeira coisa que lhe ocorreu:

 

“Aqui as mulheres sempre dividem a conta. Não fomos criadas como objetos sexuais. E você foi multado porque não me escutou. Tudo bem, não quero que me escute, e hoje pago a conta.”

 

Que mulher chata, pensou Paulo, sempre tem uma opinião formada sobre tudo — quando na verdade adorava a maneira como ela afirmava sua independência a cada segundo.

 

Enquanto caminhavam de volta para a agência, perguntou se ela realmente acreditava que podiam chegar ao Nepal, um lugar tão distante, pagando uma passagem tão barata.

 

“Há alguns meses eu tinha minhas dúvidas, mesmo depois que vi o recorte anunciando os ônibus para a Índia, Nepal, Afeganistão — sempre em torno de setenta a cem dólares. Até que li no Ark, um jornal alternativo, o relato de alguém que foi e voltou, e senti uma imensa vontade de fazer a mesma coisa.”

 

Evitou dizer que estava pensando apenas em ir e voltar só dali a muitos anos. Paulo podia não gostar da ideia de retornar sozinho os milhares de quilômetros que os separava do destino da viagem.

 

Mas teria que se adaptar — viver é se adaptar.

 

 

O famoso Magic Bus nada tinha de mágico e em nada correspondia aos cartazes que vira na agência — carroceria colorida, cheia de desenhos e frases. Era apenas um ônibus que em determinada altura devia ter servido para transporte escolar, com assentos não reclináveis e um estrado na parte de cima, onde estavam amarrados galões de gasolina e pneus extras.

 

O motorista reuniu o grupo — talvez umas vinte pessoas, todas parecendo saídas do mesmo filme, embora as idades pudessem variar entre menores de dezoito anos fugindo de casa (havia duas meninas nessa condição, e nenhum documento foi exigido) até um senhor que mantinha os olhos fixos no horizonte, com jeito de já ter atingido a tão esperada iluminação e agora decidira fazer um passeio, um longo passeio.

 

Eram dois motoristas: um que falava com sotaque inglês e o outro com todo jeito de indiano.

 

“Embora eu deteste regras, nós vamos ter que obedecer a algumas delas. A primeira: ninguém pode carregar drogas depois de passar a fronteira. Em alguns países isso significa prisão, mas em outros, como na África, pode significar morte por decapitação. Espero que tenham entendido bem o recado que acabo de dar.”

 

O motorista parou para ver se tinham entendido. As pessoas pareciam ter despertado de vez.

 

“Embaixo, no lugar do bagageiro, estou levando galões de água e rações do exército. Cada ração contém: carne em purê, bolachas, barra de cereais com fruta, uma barra de chocolate com nozes ou caramelo, suco de laranja em pó, açúcar, sal. Preparem-se para comida fria em boa parte da viagem depois que cruzarmos a Turquia.”

 

“Os vistos são fornecidos nas fronteiras: vistos de trânsito. São pagos, mas nada de exageradamente caro. Dependendo do país, como a Bulgária — que está sob o regime comunista — ninguém pode saltar do ônibus. Façam suas necessidades fisiológicas antes, porque não vou parar.”

 

O motorista consultou o relógio.

 

“Hora de partir. Levem suas mochilas para dentro, com vocês — e espero que tenham trazido sacos de dormir. Paramos de noite, às vezes em postos de gasolina que conheço, mas na maior parte das vezes no campo, perto da estrada. Em alguns lugares onde nem uma nem outra opção é possível — como em Istambul, na Turquia —, conhecemos hotéis baratos.”

 

“Não podemos colocar as mochilas no teto do ônibus e assim ter mais espaço para as pernas?”

 

“Claro que sim. Mas não fique surpreso se não estiver mais lá quando pararmos para tomar café. Lá dentro, no fundo do ônibus, temos espaço para bagagem. Uma única bagagem, como foi informado na parte de trás do folheto que trazia o mapa da viagem. E água potável não está incluída no preço da passagem, então espero que todos tenham trazido suas garrafas. Poderão sempre enchê-las nos postos de gasolina.”

 

“E se acontecer alguma coisa?”

 

“Como assim?”

 

“Algum de nós ficar doente, por exemplo.”

 

“Tenho um kit de primeiros socorros. Mas como o próprio nome indica, são PRIMEIROS socorros. O suficiente para chegar até uma cidade e deixar o doente por lá. Portanto, tomem cuidado, muito cuidado com o corpo, assim como imaginam que fazem com a alma. Acredito que todos tenham tomado vacina contra febre amarela e varíola.”

 

Paulo tinha tomado a primeira — nenhum brasileiro podia deixar seu país sem tomá-la, porque os estrangeiros talvez os julgassem infectados por todo tipo de doença. Mas não tinha tomado a vacina de varíola, já que em seu país acreditava-se que uma das doenças infantis — sarampo — já imunizava o corpo.

 

Seja como for, o motorista não pediu certificado a ninguém. As pessoas foram entrando e escolhendo os lugares. Mais de uma colocou a mochila no banco ao lado, mas a bagagem logo era confiscada pelo motorista e jogada na parte de trás.

 

“Outras pessoas vão embarcar no caminho, egoístas.”

 

As meninas que pareciam menores de idade, possivelmente com passaportes falsos, sentaram juntas. Paulo sentou-se com Karla, e a primeira coisa que fizeram foi organizar um sistema de rodízio para ver quem iria na janela. Karla sugeriu que trocassem de lugar a cada três horas e que durante a noite, para poderem dormir direito, ela ficasse na janela. Paulo entendeu que era uma proposta imoral e injusta, porque ela teria lugar onde apoiar a cabeça. Ficou combinado que a cada noite um deles ficaria na janela.

 

Foi dado o arranque, e o ônibus escolar, transformado em algo romântico apenas no nome, Magic Bus, começou a viagem de milhares de quilômetros que os levaria para o outro lado do mundo.

 

“Enquanto o motorista falava, eu não tive a sensação de que estava partindo em direção a nenhuma aventura, mas ao serviço militar que somos obrigados a fazer no Brasil”, disse à sua companheira, lembrando-se da promessa que fizera quando descera os Andes de ônibus e das muitas vezes que tinha sido descumprida.

 

O comentário irritou Karla, mas ela não podia brigar nem mudar de lugar com apenas cinco minutos de viagem. Tirou o livro de sua bolsa de mão e começou a ler.

 

“Então, está contente de estar indo para o lugar onde queria? Por sinal, o sujeito da ‘agência’ nos enganou — ainda há assentos vazios.”

 

“Ele não nos enganou — você ouviu o motorista dizer que outras pessoas vão embarcar no caminho. E não estou indo para o lugar onde queria — estou voltando.”

 

Paulo não entendeu a resposta, e ela não explicou, então resolveu deixá-la em paz e passou a concentrar-se na imensa planície ao seu redor, cortada por canais em todos os lados.

 

Por que Deus fez o mundo e os holandeses fizeram a Holanda? Não havia tanta terra no planeta esperando para ser habitada?

 

Duas horas depois todos já tinham feito amizade uns com os outros — ou pelo menos haviam se apresentado, já que um grupo de australianos, embora simpáticos e sorridentes, não estava muito interessado em conversa. Karla tampouco; fingia que estava lendo aquele livro do qual já havia se esquecido o nome, mas devia estar pensando apenas no destino, na chegada aos Himalaias, sendo que ainda havia milhares de quilômetros até lá. Paulo sabia por experiência própria como isso era capaz de causar ansiedade, mas não disse nada; desde que não descontasse seu mau humor nele, estava tudo bem. Caso contrário, mudaria de lugar.

 

No banco de trás estavam dois franceses, um pai com uma filha que parecia neurótica mas excitada; ao lado, um casal de irlandeses — o rapaz se apresentou logo e aproveitou para dizer já havia feito a viagem uma vez e agora levava a namorada porque, segundo ele, Kathmandu, “se conseguirmos chegar até lá, é claro”, era um lugar onde deveria se permanecer por pelo menos dois anos — ele tinha voltado antes por causa do seu emprego, mas agora largara tudo, vendera sua coleção de miniaturas de carros, conseguira um bom dinheiro com isso (coleção de carros em miniatura davam dinheiro?), devolvera o apartamento, intimara a namorada a acompanhá-lo e tinha um sorriso de um lado ao outro do rosto.

 

Karla escutou a parte do “lugar onde se deveria permanecer por pelo menos dois anos” e, interrompendo a fingida leitura do livro, perguntou o motivo.

 

Rayan, como se chamava o irlandês, explicou que no Nepal sentira que havia saído do tempo, entrado em uma realidade paralela, onde tudo era possível. Mirthe, a namorada de Rayan, não era simpática nem antipática, mas com certeza não estava muito convencida de que o Nepal era o lugar onde deveria morar pelos anos seguintes.

 

Mas pelo visto seu amor era mais forte.

 

“O que você quer dizer com realidade paralela?”

 

“Aquele estado de espírito que possui seu corpo e sua alma quando você sente que está feliz, o coração pleno de amor. De repente, tudo que faz parte do seu cotidiano passa a ter um sentido diferente, as cores ficam mais brilhantes, o que antes te incomodava — como o frio, a chuva, a solidão, o estudo, o trabalho —, tudo parece novo. Porque, em pelo menos uma fração de segundo, você entrou na alma do universo e deliciou-se com o néctar dos deuses.”

 

O irlandês parecia contente em ter que explicar em palavras algo que só se conseguia viver quando era experimentado. Mirthe aparentava não estar gostando muito da conversa com a holandesa bonita — estava entrando em uma realidade paralela oposta, aquela que faz com que tudo, de uma hora para a outra, parecesse feio e opressor.

 

“Existe o outro lado também, quando pequenos detalhes de nosso cotidiano se transformam em grandes problemas inexistentes”, continuou Rayan, como se estivesse adivinhando o estado de espírito de sua namorada. “Não existe apenas uma, mas muitas realidades paralelas. Estamos em um ônibus porque assim escolhemos, temos milhares de quilômetros pela frente e podemos escolher como viajar: em busca de um sonho que antes parecia impossível ou achando os bancos desconfortáveis e as pessoas chatas. Tudo que imaginarmos agora irá se manifestar pelo resto da viagem.”

 

Mirthe fingiu que não entendeu a indireta.

 

“Quando estive no Nepal pela primeira vez, parecia que tinha um contrato com a Irlanda, e esse acordo não havia sido quebrado. Uma voz vivia me dizendo: ‘Viva isso agora, aproveite cada segundo porque vai voltar à sua terra, não se esqueça de tirar fotografias para mostrar aos seus amigos como você foi destemido e corajoso, e viveu coisas que eles gostariam de viver, mas não têm coragem’.

 

“Até que, um dia, fui visitar uma caverna nos Himalaias junto com outras pessoas. Para nossa surpresa, em um lugar onde praticamente não nasce nada, havia uma pequena flor, do tamanho de metade de um dedo. Nós achamos aquilo um milagre, um sinal, e para demonstrar respeito resolvemos nos dar as mãos e cantar um mantra. Em poucos segundos a caverna parecia vibrar, o frio não incomodava mais, as montanhas que estavam longe se aproximaram. E por que isso aconteceu? Porque as pessoas que antes haviam vivido ali deixaram uma vibração de amor quase palpável, que era capaz de influenciar qualquer pessoa ou coisa que entrasse naquele lugar. Como aquela semente da flor que o vento havia trazido, como se a vontade — a imensa vontade que todos nós tínhamos de que o mundo lá fora fosse algo melhor — estivesse ganhando forma e influenciando tudo.”

 

Mirthe já devia ter ouvido essa história muitas vezes, mas Paulo e Karla seguiam fascinados com as palavras de Rayan.

 

“Não sei quanto tempo durou aquilo, mas, quando voltamos para o mosteiro onde estávamos hospedados e contamos o que nos havia ocorrido, um dos monges disse que ali tinha vivido por décadas alguém a quem se referiam como santo. Disseram também que o mundo agora mudava, e todas as paixões, absolutamente todas, seriam mais intensas. O ódio seria mais forte e mais destrutivo, e o amor mostraria com mais brilho a sua face.”

 

O motorista interrompeu a conversa dizendo que, em teoria, deviam agora seguir para Luxemburgo e passar a noite, mas imaginava que ninguém ali tinha o principado como meta, portanto continuaria a viagem e dormiriam ao relento, perto de uma cidade alemã, Dortmund.

 

“Vou parar daqui a pouco para que possam comer alguma coisa e telefonarei para o escritório, avisando que os próximos passageiros se preparem para embarcar antes da hora. Se ninguém vai até Luxemburgo, economizamos preciosos quilômetros.”

 

Foi aplaudido. Mirthe e Rayan iam voltar para seus lugares quando Karla os interrompeu.

 

“Mas você não poderia pular para uma realidade paralela apenas meditando e entregando seu coração à Divindade?”

 

“Faço isso todos os dias. Mas também penso todos os dias na caverna. Nos Himalaias. Nos monges. Acho que já cumpri meu tempo no que chamam de civilização ocidental. Estou em busca de uma vida nova. Além do mais, agora que o mundo está efetivamente mudando, tanto as emoções positivas como as negativas irão surgir com muita força, e eu, nós, aliás, não estamos dispostos a encarar o lado mau da vida.”

 

“Não há necessidade”, disse Mirthe, pela primeira vez entrando na conversa e demonstrando, na prática, que em poucos minutos conseguira superar o veneno do ciúme.

 

Paulo, de certa maneira, sabia de tudo aquilo. Já experimentara coisas semelhantes — na maior parte das vezes em que pudera escolher entre a vingança e o amor, tinha escolhido o amor. Nem sempre fora a opção certa, às vezes consideravam covardia, às vezes ele mesmo se sentia mais motivado pelo medo do que pela sincera vontade de melhorar o mundo. Era um ser humano com todas as suas fragilidades, não entendia tudo o que ocorria em sua vida, mas queria muito acreditar que estava em busca da luz.

 

Pela primeira vez desde que entrara naquele ônibus entendeu que já estava escrito, que precisava fazer aquela viagem, conhecer aquelas pessoas, fazer uma coisa que costumava pregar, mas nem sempre tinha coragem de fazer: entregar-se ao universo.

 

Aos poucos as pessoas terminaram por formar seus grupos, em alguns casos por causa da língua, em outros porque havia algum interesse não verbal em jogo — como sexo, por exemplo. Exceto pelas duas meninas — com certeza menores de idade, que procuravam estar alheias a tudo e a todos justamente por se julgarem o centro das atenções, o que não eram —, os cincos primeiros dias passaram rápido, porque todos se descobriam entre si e trocavam experiências. A monotonia não embarcara, e a rotina era quebrada com paradas apenas em postos de gasolina para reabastecimento do ônibus e das garrafas de água, para um ou outro sanduíche e refrigerante, para as idas ao banheiro. O resto eram conversas, conversas e mais conversas.

 

E todos dormiam sob as estrelas, na maior parte das vezes sentindo muito frio, mas contentes por poderem olhar o céu sabendo que conseguiam conversar com o silêncio, dormir na companhia de anjos quase visíveis, deixar de existir por alguns momentos — mesmo que fosse por frações de segundo apenas — para sentir a eternidade e o infinito ao redor.

 

Paulo e Karla juntaram-se com Rayan e Mirthe — melhor dizendo, Mirthe juntou-se a contragosto, porque já tinha escutado aquela história sobre realidades paralelas muitas vezes na vida. Sua presença ali resumia-se, portanto, a exercer uma constante vigilância sobre seu homem para não ser obrigada a voltar no meio do caminho porque não conseguira algo muito simples: continuar a ser uma mulher interessante, mesmo depois de quase dois anos juntos.

 

Paulo também havia notado o interesse do irlandês, que na primeira oportunidade perguntou sobre o relacionamento dos dois, e recebeu a resposta direta de Karla:

 

“Nenhum.”

 

“Bons amigos?”

 

“Nem isso. Apenas companheiros de viagem.”

 

E não era verdade? Resolveu aceitar as coisas como eram e deixar de lado um romantismo fora de propósito. Eram como dois marinheiros navegando em direção a algum país; embora ocupassem a mesma cabine, um dormia no beliche de baixo e o outro no de cima.

 

Quanto mais Rayan se interessava por Karla, mais Mirthe ficava insegura, furiosa — sem demonstrar nada, claro, porque isso significaria um sinal inaceitável de submissão — e começou a se aproximar de Paulo, sentando-se ao seu lado enquanto conversavam e, vez por outra, colocando a cabeça no seu ombro enquanto Rayan contava tudo que havia aprendido depois de ter voltado de Kathmandu.

 

 

“Que maravilha!”

 

Depois de seis dias de viagem a animação começou a dar lugar ao tédio, e a rotina esgueirou-se e preencheu o ambiente. Agora que ninguém tinha mais novidade para contar, achavam que não haviam feito quase nada além de comer, dormir ao relento, tentar encontrar uma posição melhor na poltrona, abrir e fechar as janelas por causa da fumaça dos cigarros, se entediar com as próprias histórias e com as conversas dos outros — que nunca perdiam uma oportunidade para jogar uma pequena farpa aqui e ali, como de resto fazem sempre os seres humanos quando estão em rebanho, mesmo que seja pequeno e cheio de boas intenções como aquele.

 

Até que surgiram as montanhas. E o vale. E o rio que corria pelo despenhadeiro. Alguém perguntou onde estavam, e o indiano disse que acabavam de entrar na Áustria.

 

“Daqui a pouco vamos descer e parar perto do rio que corre aí no centro, para que todos possam tomar banho. Nada melhor que água gelada para convencer as pessoas de que têm sangue correndo nas veias e pensamentos que podem ser jogados fora.”

 

Todos se animaram com a ideia da nudez completa, a liberdade absoluta, o contato sem intermediários com a natureza.

 

O motorista entrou por uma estrada pedregosa, o ônibus balançava de um lado para o outro, e muitas das pessoas ali gritaram com medo que capotassem, mas o condutor apenas ria. Chegaram finalmente à beira de um riacho — ou melhor, um braço do rio que saía do leito, fazendo uma pequena curva onde as águas eram mais calmas e logo voltavam para a correnteza.

 

“Meia hora. Aproveitem para lavar o que estão usando.”

 

Todos correram para as mochilas — era parte de qualquer bagagem hippie uma pequena toalha de mão, escova de dentes e pedaços de sabão, já que terminavam sempre acampando em vez de ficarem em hotéis.

 

“Engraçado essa história de achar que não tomamos banho. Possivelmente somos mais limpos que a maioria dos burgueses que nos acusam.”

 

Acusam? E quem ligava para isso? O simples fato de admitir críticas já dava poder a quem criticava. A pessoa que fez tal comentário recebeu uma série de olhares furiosos — nunca davam a menor atenção ao que os outros diziam, o que era uma meia verdade, porque gostavam de chamar a atenção com suas roupas e suas flores, e aquela sensualidade expressa e provocante a cada passo, e os decotes em que se insinuavam os seios sem sutiãs, coisas do tipo. E saias longas, porque era mais sensual e mais elegante — haviam decidido os estilistas coletivos, cujos nomes ninguém sabia. A sensualidade, por sinal, não era uma maneira de atrair homens, mas de ter orgulho de seu próprio corpo e fazer com que todos notassem isso.

 

Quem não tinha toalha terminou pegando camisetas sobressalentes, camisas, suéteres, roupas de baixo — enfim, qualquer peça que permitisse secar a água do corpo. Logo em seguida desceram, e à medida que caminhavam para a margem iam tirando completamente a roupa — exceto, claro pelas duas meninas, que também tiraram a roupa de cima, mas conservaram suas calcinhas e sutiãs.

 

Havia um vento encanado relativamente forte, e o motorista disse que o lugar era alto e seco, e que a umidade e a corrente de ar ajudariam a fazer com que tudo secasse mais rápido.

 

“Por isso escolhi parar aqui.”

 

Ninguém que passava na estrada lá em cima podia ver o que estava acontecendo. As montanhas impediam que o sol se mostrasse, mas a beleza era tanta — rochas dos dois lados, pinheiros agarrados a elas, pedras polidas por séculos de atrito — que a primeira coisa que fizeram foi atirarem-se sem pensar na água fria — de um só golpe, gritando, jogando água uns nos outros, um momento de comunhão entre os vários grupos que se haviam formado, como que dizendo “por isso vivemos em peregrinação, porque pertencemos a um mundo que detesta estar parado”.

 

Se ficarmos em silêncio por uma hora, vamos começar a escutar Deus, pensou Paulo. Mas, se gritarmos de alegria, Deus também nos escuta e virá até aqui nos abençoar.

 

O motorista e seu assistente, que já deviam ter visto uma infinidade de vezes os corpos nus de jovens que não tinham o menor pudor em mostrar-se, deixaram o grupo tomando banho e foram ver se estava tudo perfeito com a pressão dos pneus e o nível de óleo.

 

Era a primeira vez que Paulo via Karla nua, e teve que controlar-se para não ficar com ciúmes. Tinha seios nem grandes nem pequenos, lembrava a modelo que vira na sessão de fotografias no Dam — melhor dizendo, era muito, muitíssimo mais bela.

 

Mas a verdadeira rainha era mesmo Mirthe, com longas pernas, proporções perfeitas, uma deusa que caiu em um vale qualquer no meio dos Alpes na Áustria. Ela sorriu quando notou que Paulo a estava observando, e ele sorriu de volta, sabendo que tudo aquilo não passava de um jogo para provocar o ciúme de Rayan e fazer com que se afastasse da tentação holandesa. Como todos sabemos, um jogo com segundas intenções pode se transformar em uma realidade — e por um momento Paulo sonhou com aquilo e decidiu que dali em diante iria investir mais na mulher que — por vontade própria — cada vez se aproximava mais dele.

 

Os viajantes lavaram as roupas. O casal de meninas chatas fingiu que não via um grupo de mais de vinte pessoas nuas ao lado, e de repente pareciam ter encontrado algum assunto interessantíssimo para conversar. Paulo lavou e torceu a camisa e a cueca, pensou em lavar a calça e colocar a sobressalente que sempre carregava consigo, mas achou melhor deixar isso para o próximo banho coletivo — jeans serviam para tudo, mas não secavam rápido.

 

Notou o que parecia ser uma pequena capela no alto de uma das montanhas e os riscos na vegetação provocados por rios provisórios que deviam correr ali na primavera, quando as neves derretiam. No momento eram traços de areia que vinham do alto.

 

O resto era o caos absoluto, o caos das pedras negras misturadas com outras pedras, sem nenhuma ordem, sem nenhuma estética — o que as fazia particularmente belas. Não estavam tentando nada, nem sequer se organizar ou se acomodar de modo a resistir melhor aos constantes ataques da natureza. Podiam estar ali havia milhões de anos, ou apenas duas semanas. Sinais na estrada pediam para os motoristas terem cuidado com deslizamentos, o que significava que as montanhas ainda estavam em construção, eram vivas, as pedras se buscavam umas às outras como os serem humanos fazem.

 

E o caos era belo, era a fonte da vida, era como ele imaginava o universo lá fora — e também dentro de si mesmo. Era a beleza que não era fruto de comparações, de preces ou de desejos — apenas uma maneira de viver sua longa vida sob a forma de pedras, de pinheiros ameaçando despencar das montanhas, mas que deviam estar ali havia muitos anos porque sabiam que eram bem-vindos, agradáveis aos olhos das pedras, e ambos adoravam a companhia uns dos outros.

 

“Lá em cima tem uma igreja ou uma ermida”, alguém comentou.

 

Sim, todos já haviam visto, mas achavam que tinha sido uma descoberta apenas sua e agora sabiam que não, e se perguntavam silenciosamente se alguém morava ali ou tinha sido abandonada fazia muitos anos, por que pintaram de branco um lugar onde as rochas eram negras, como haviam conseguido chegar lá para construir — mas enfim, ali estava a ermida, a única coisa diferente do caos primal à volta.

 

E ali ficaram, olhando os pinheiros e as rochas, procurando saber onde estava o cume daquelas montanhas dos dois lados, se vestindo com roupas limpas e entendendo, mais uma vez, que o banho é capaz de curar muitas das dores que insistem em permanecer estagnadas na cabeça.

 

Até que a buzina tocou; era hora de retomar viagem — algo que a beleza do lugar os fizera esquecer.

 

 

Pelo visto Karla era obsessiva com certos assuntos.

 

“Mas como foi que você aprendeu isso das realidades paralelas? Porque uma coisa é ter uma epifania, uma revelação em uma caverna, mas voltar de novo esses milhares de quilômetros é bem outra. Não se pode ter uma experiência espiritual apenas em um lugar — Deus está em todos os cantos.”

 

“Sim, Deus está em todos os cantos. Eu sempre o tenho perto quando caminho pelos campos de Dooradoyle — o lugar onde minha família vive há vários séculos — ou quando vou até Limerick olhar o mar.”

 

Estavam sentados em um restaurante de beira de estrada, perto da fronteira com a Iugoslávia — onde havia nascido e crescido um grande amor de sua vida. Até o momento ninguém — nem mesmo Paulo — tivera problema com vistos. Entretanto, por ser um país comunista, agora estava inquieto, embora o motorista dissesse para ninguém se preocupar — a Iugoslávia, ao contrário da Bulgária, estava fora da Cortina de Ferro. Mirthe estava ao lado de Paulo, Karla ao lado de Rayan, e todos mantinham um ar de “está tudo bem”, mesmo sabendo que talvez alguma mudança de casais estivesse a caminho. Mirthe já dissera que não pretendia ficar muito tempo no Nepal. Karla afirmara que talvez estivesse indo ali para nunca mais voltar.

 

Rayan continuou:

 

“Quando morava em Dooradoyle, uma cidade que vocês um dia deveriam conhecer, embora chova muito, achei que estava destinado a passar o resto de meus dias ali, como meus pais, que nem mesmo foram a Dublin para ver a capital do seu país, ou como meus avós, que viviam no campo, nunca viram o mar e achavam Limerick uma cidade ‘grande demais’. Durante anos fiz aquilo que pediam — escola, trabalhar em um minimercado, escola, jogar rúgbi porque a cidade tinha um time local que se esforçava, mas jamais conseguira se classificar para a grande liga nacional, ir à igreja católica porque fazia parte da cultura e da identidade de meu país, ao contrário dos que vivem na Irlanda do Norte.

 

“Estava acostumado com isso, saía nos finais de semana para ver o mar, mesmo sendo ainda menor de idade tomava uma cerveja porque conhecia o dono do pub e ia me condicionando a aceitar meu destino. Afinal, o que há de errado em levar uma vida calma e tranquila, olhando aquelas casas construídas talvez pelo mesmo arquiteto, saindo de vez em quando com uma moça, indo para os estábulos fora do vilarejo e descobrindo o sexo — sem graça ou não, era sexo, eram orgasmos, embora eu tivesse medo de penetrá-la e acabar punido pelos meus pais ou por Deus.

 

“Em livros de aventura todos seguem seus sonhos, vão a lugares incríveis, passam por alguns momentos difíceis, mas terminam voltando vitoriosos e contam suas histórias de batalha nos mercados, nos teatros, nos filmes — enfim, em todos os lugares em que exista alguém para escutá-las. Lemos esses livros e pensamos: meu destino vai ser assim, terminarei conquistando o mundo, ficarei rico, voltarei para minha terra como um herói e todos terão inveja de mim, respeito pelo que fiz. As mulheres vão sorrir quando eu passar, os homens vão tirar o chapéu e me pedir que conte pela milésima vez o que ocorreu nessa ou naquela situação, como fui capaz de aproveitar a única oportunidade que tive na minha vida para transformá-la em milhões e milhões de dólares. Mas essas coisas só acontecem em livros de aventuras.”

 

O indiano (ou árabe), que alternava a direção com o motorista principal, veio sentar-se com eles. Rayan continuou sua história.

 

“Fui servir no Exército, como a maior parte dos garotos de minha cidade. Quantos anos você tem?”

 

“Vinte e três. Mas não servi, recebi dispensa porque meu pai conseguiu uma coisa que chamamos de ‘terceira categoria’, ou seja, reservista de reservista, e eu pude gastar esse tempo viajando. Imagino que há duzentos anos o Brasil não entra em uma guerra.”

 

“Eu servi”, disse o indiano. “Desde que conseguimos nossa independência, meu país não sai de uma guerra — não declarada — com seu vizinho. Tudo culpa dos ingleses.”

 

“Tudo sempre culpa dos ingleses”, concordou Rayan. “Eles ainda ocupam a parte norte do meu país e, no ano passado, justamente quando eu havia voltado de um paraíso chamado Nepal, os problemas se agravaram. Agora a Irlanda está em pé de guerra, depois que houve confrontos entre católicos e protestantes. Estão enviando tropas para lá.”

 

“Continue o que você estava contando”, interrompeu Karla. “Como terminou indo parar no Nepal?

 

“Más influências”, disse Mirthe, rindo. Rayan também riu.

 

“Tem toda razão. Minha geração foi crescendo, e meus amigos de escola começaram a imigrar para a América, onde a comunidade é imensa e todo mundo tem um tio, um amigo, uma família.”

 

“Não vai me dizer que isso também é culpa dos ingleses.”

 

“Isso também é culpa dos ingleses”, foi a vez de Mirthe entrar na conversa. “Tentaram matar nosso povo de fome duas vezes. Na segunda vez, no século XIX, colocaram um tipo de peste na batata — nosso principal sustento —, e a população começou a definhar. A estimativa é que um oitavo da população morreu de fome — FOME! — e dois milhões de pessoas tiveram que emigrar para ter o que comer. Graças a Deus, de novo, a América nos recebeu de braços abertos.”

 

Aquela menina, que parecia uma diva vinda de outro planeta, começou a discorrer sobre as duas epidemias de fome — algo que Paulo nunca tinha ouvido falar. Milhares de mortos, ninguém para apoiar o povo, lutas de independência e coisas do tipo.

 

“Me formei em história”, disse ela. Karla tentou fazer com que voltassem para o que interessava — Nepal e realidade paralela, mas enquanto não terminou por ensinar a todos o quanto a Irlanda tinha sofrido, quantas centenas de milhares de pessoas tinham morrido de fome, como seus grandes líderes revolucionários foram fuzilados em duas tentativas de sublevação, como finalmente um americano (sim, um americano!) conseguiu um tratado de paz para uma guerra que não terminava nunca, ela não parou.

 

“Mas isso nunca mais — NUNCA MAIS — vai voltar a acontecer. Nossa resistência está muito melhor. Temos o IRA e vamos levar nossa guerra para a terra deles, com bombas, assassinatos, tudo o que for possível. Cedo ou tarde, assim que conseguirem uma boa desculpa, eles terão que tirar suas botas imundas de nossa ilha.” E, dirigindo-se ao indiano: “Como fizeram na sua terra”.

 

O indiano — chamado Rahul — ia começar a contar o que acontecera por lá, mas dessa vez Karla falou em tom mais forte e mais decidido:

 

“Não podemos deixar que Rayan termine sua história?”

 

“Mirthe tem razão: foram as ‘más influências’ que me fizeram ir ao Nepal pela primeira vez. Quando servia no Exército, costumava ir a um pub em Limerick, perto do quartel. Ali tinha de tudo: jogo de dardos, de sinuca, quedas de braço, cada um tentando mostrar ao outro o quanto era macho e como estava pronto para qualquer desafio. Um dos frequentadores era um oriental que quase não falava, apenas bebia dois ou três copos de nosso monumento nacional — a cerveja negra Guinness — e saía antes que o dono do bar tocasse o sino anunciando que já se aproximavam das onze da noite e era hora de fechar.”

 

“Culpa dos ingleses.”

 

Efetivamente a tradição de fechar às onze da noite tinha sido determinada pela Grã-Bretanha antes da guerra, de modo a impedir que pilotos embriagados atacassem a Alemanha, ou soldados indisciplinados terminassem acordando atrasados e desmoralizando o exército.

 

“Um belo dia, já cansado de ouvir as mesmas histórias de como todos estavam se preparando para ir para a América assim que possível, eu pedi permissão e me sentei à mesa do oriental. Ficamos assim talvez uma meia hora — imaginava que ele não falasse inglês e não queria constrangê-lo. Mas, antes de ir embora naquele dia, ele disse uma coisa que ficou na minha cabeça: ‘Você está aqui, mas sua alma está em outro lugar — na minha terra. Vá ao encontro de sua alma’.

 

“Eu concordei, levantei o copo em sinal de saudação, mas não entrei em maiores detalhes — minha educação rígida no catolicismo me impedia de imaginar qualquer coisa que não fosse corpo e alma unidos esperando o encontro com Cristo depois da morte. Os orientais têm essa mania, pensei.”

 

“Temos mesmo”, comentou o indiano.

 

Rayan se deu conta que o havia ofendido e resolveu autoflagelar-se.

 

“E nós temos uma pior ainda, que é achar que o corpo de Cristo está em um pão. Não fique chateado comigo.”

 

O indiano fez um gesto com a mão, do tipo “isso não tem a menor importância”, e Rayan pôde finalmente terminar uma parte de sua história — apenas uma parte, porque em breve todos seriam interrompidos pela energia do mal.

 

“Enfim, eu já estava disposto a voltar à minha aldeia, cuidar dos negócios — melhor dizendo, da leiteria do meu pai — enquanto o resto de meus amigos terminaria atravessando o Atlântico e vendo a estátua da Liberdade que os recebia, mas o comentário do oriental não me saiu da cabeça aquela noite. Porque na verdade, por mais que eu tentasse dizer que estava tudo bem, ia me casar com uma moça algum dia, teríamos filhos, ficaríamos longe desse ambiente cheio de fumaça e impropérios onde vivia, não conhecia sequer outras cidades além de Limerick e Dooradoyle. Jamais tivera a curiosidade de parar no caminho e pelo menos passear nas aldeias — vilarejos, melhor dizendo — que ficavam entre as duas.

 

“Achava que era suficiente, mais seguro e mais barato viajar em livros ou filmes — ninguém neste planeta podia contemplar campos tão lindos como os que me cercavam. Mesmo assim, voltei no dia seguinte ao pub, sentei à mesa do oriental e, mesmo sabendo que certas perguntas implicam um risco imenso de serem respondidas, perguntei o que ele queria dizer. Onde ficava sua terra?”

 

No Nepal.

 

“Qualquer estudante de segundo grau sabe que existe um lugar chamado Nepal, mas já aprendeu e esqueceu o nome da capital, e a única recordação que tem é que é muito longe. Pode ser na América do Sul, na Austrália, na África, na Ásia, mas com toda certeza não ficava na Europa, ou já teria conhecido alguém dali, visto um filme, ou lido um livro.

 

“Perguntei o que queria dizer com seu comentário no dia anterior. Ele quis saber qual foi o comentário — não se lembrava direito. Eu repeti, ele ficou fitando seu copo de Guinness sem dizer nada por longos momentos, e finalmente quebrou o silêncio: ‘Se eu disse isso, talvez você deva ir mesmo ao Nepal’. ‘E como se chega lá?’ ‘Da mesma maneira que eu cheguei aqui: de ônibus.’

 

“E foi embora. No dia seguinte, quando quis me sentar a sua mesa para saber melhor a tal história da alma me esperando longe, ele disse que preferia ficar sozinho, como aliás fazia todas as noites.

 

“Ora, se era um lugar que eu podia chegar de ônibus e se arranjasse uma companhia para ir até lá, quem sabe um dia terminaria visitando o tal país.

 

“Foi quando conheci Mirthe, em Limerick, sentada no mesmo lugar onde eu ficava para contemplar o mar. Achei que ela não teria nenhum interesse em um rapaz do interior, cujo destino não era o Trinity College em Dublin — onde ela estava terminando seus estudos —, mas o O’Connell Dairy Milk, em Dooradoyle. Nossa conexão foi imediata, e em uma das conversas comentei sobre o estranho sujeito do Nepal e o que ele havia me dito. Em breve eu estaria voltando para casa definitivamente e tudo aquilo — Mirthe, o pub, os amigos da caserna, tudo — seria apenas uma etapa em minha vida. Mas Mirthe me surpreendeu com seu carinho, sua inteligência e — por que não dizer? — sua beleza. Se ela achava que eu merecia sua companhia, isso me daria segurança e mais confiança em mim no futuro.

 

“Em um longo fim de semana, na semana antes do final do serviço militar, ela me levou a Dublin. Conheci o lugar onde havia morado o autor de Drácula e seu Trinity College, uma coisa maior do que eu podia sonhar. Em um dos pubs perto da universidade, ficamos bebendo até o dono tocar o sino, enquanto eu olhava nas paredes as fotos de autores que tinham feito a história de nossa terra — James Joyce, Oscar Wilde, Jonathan Swift, Yeats, Samuel Beckett, Bernard Shaw. No final de nossa conversa, ela me estendeu um papel dizendo como chegar em Kathmandu — havia um ônibus que saía a cada quinze dias da estação de metrô de Totteridge and Whetstone.

 

“Achei que já havia se cansado de mim, queria me ver longe, muito longe, e peguei o papel sem a menor intenção de ir até Londres.”

 

Escutaram um grupo de motos chegando e acelerando ao máximo com a marcha colocada em ponto morto. De onde estavam sentados, não dava para ver quantas eram, mas o som pareceu agressivo e fora de lugar. O encarregado do restaurante comentou que estavam fechando logo, mas ninguém nas outras mesas tinha se mexido.

 

Rayan fingiu que não escutou e continuou sua história.

 

“Mirthe me surpreendeu com seu comentário: ‘Descontando o tempo de viagem, que não vou comentar agora para que não fique desanimado, quero que você volte de lá exatamente depois de duas semanas. Eu estarei te esperando — mas, se você não chegar na data que penso que deve chegar, nunca mais irá me ver.’”

 

Mirthe riu. Não tinham sido exatamente essas as suas palavras — era mais próximo do “vai achar sua alma, porque eu já achei a minha”. E o que não dissera naquele dia, e nem diria agora, era “minha alma é você. Estarei rezando todas as noites para que regresse em segurança, nos encontremos e nunca mais você sairá do meu lado, porque você me merece e eu te mereço.”

 

“Ela estaria me esperando? Eu, o futuro dono da O’Connell Dairy Milk? Que interesse ela teria em um rapaz com tão pouca cultura e tão pouca experiência? Por que era tão importante que eu seguisse o conselho de um sujeito estranho que encontrei em um pub?

 

“Mas Mirthe sabia o que estava fazendo. Porque, no momento em que pisei naquele ônibus, depois de ter lido tudo que encontrara sobre o Nepal e depois de ter mentido a meus pais dizendo que o Exército estendera meu tempo de serviço por mau comportamento e estava me enviando a uma de suas bases mais remotas, na cadeia dos Himalaias, eu voltei outra pessoa. Parti como um caipira, voltei como um homem. Mirthe foi me esperar, dormimos em sua casa e desde então nunca mais nos separamos.”

 

“Esse é o problema”, disse ela, e todos ali na mesa sabiam que estava sendo sincera. “Claro que eu não queria um idiota ao meu lado, mas tampouco estava esperando alguém me dizer ‘agora é sua vez de voltar lá comigo’.”

 

Ela riu.

 

“E, o que é pior, que eu aceitasse isso!”

 

Paulo já estava constrangido por estar sentado ao lado de Mirthe, com as pernas se tocando e, vez por outra, o carinho que ela fazia em sua mão. O olhar de Karla não era mais o mesmo — aquele não era o homem que estava buscando.

 

“E agora, falamos das realidades paralelas?”

 

Mas o restaurante havia sido ocupado por cinco pessoas vestidas de negro, as cabeças raspadas, correntes na cintura, tatuagens de coisas como espadas e estrelas ninjas, que haviam se dirigido até a mesa e cercado o grupo sem dizer nada.

 

“Aqui está a conta de vocês”, disse o encarregado do restaurante.

 

“Mas nós ainda não terminamos de comer”, rebateu Rayan. “E nem pedimos a conta.”

 

“Eu pedi.”

 

Era um do grupo que havia entrado. O indiano fez menção de levantar-se, mas alguém o empurrou de volta para a cadeira.

 

“Antes de sair, Adolf quer garantias de que não voltarão aqui. Detestamos vagabundos. Nosso povo é lei e ordem. Ordem e lei. Estrangeiros não são bem-vindos. Voltem para sua terra com suas drogas e sua libertinagem.”

 

Estrangeiros? Drogas? Libertinagem?

 

“Sairemos daqui quando tivermos terminado de comer.”

 

Paulo ficou irritado com o comentário de Karla — para que provocar mais? Sabiam que estavam cercados por gente que realmente odiava tudo que eles representavam. As correntes penduradas nas calças, as luvas de motociclista de onde saíam apliques de metal muito diferentes daqueles que havia comprado em Amsterdam. Espinhos destinados a intimidar, a ferir, a machucar gravemente quando viesse um soco de uma daquelas mãos.

 

Rayan se virou para o que parecia ser o chefe — mais velho, rugas no rosto, que assistia a tudo em silêncio.

 

“Somos de tribos diferentes, mas somos de tribos que combatem a mesma coisa. Vamos terminar e sair. Não somos inimigos.”

 

O chefe, pelo visto, tinha dificuldade de fala, pois colocou um amplificador no pescoço antes de responder.

 

“Não somos de tribo nenhuma”, disse na voz metálica do instrumento. “Saiam agora.”

 

Houve um momento que parecia não terminar nunca, em que as mulheres olhavam os desconhecidos nos olhos, os homens pesavam suas possibilidades e os recém-chegados esperavam em silêncio, exceto por um que se virou para o dono do restaurante e falou aos gritos:

 

“Desinfetem estas cadeiras depois que eles forem embora. Devem ter trazido peste, doenças venéreas, sei lá mais o quê.”

 

O resto das poucas pessoas presentes parecia não prestar a menor atenção ao que estava acontecendo. Talvez uma delas tivesse chamado o grupo, alguém que tomava como agressão pessoal o simples fato de existirem pessoas livres no mundo.

 

“Saiam daqui, seus covardes”, disse outro do grupo recém-chegado, com uma caveira bordada na jaqueta de couro preto. “Sigam reto e em menos de um quilômetro encontrarão um país comunista onde com certeza serão bem-vindos. Não venham aqui influenciar negativamente nossas irmãs e nossas famílias. Temos valores cristãos, um governo que não admite desordem, e respeitamos os outros. Coloquem o rabo entre as pernas e saiam.”

 

Rayan estava vermelho. O indiano parecia indiferente, talvez porque já tivesse visto a cena antes, talvez porque segundo Krishna ninguém deve fugir à luta quando está no campo de batalha. Karla encarava os homens de cabeça raspada, sobretudo aquele a quem havia respondido, dizendo que não acabara de comer. Devia estar louca por sangue, agora que descobrira que a viagem de ônibus era mais entediante que imaginara.

 

Foi Mirthe quem pegou sua bolsa, tirou a parte que lhe cabia na conta e colocou sem pressa na mesa. Em seguida caminhou para a porta. Um dos homens lhe barrou a passagem, houve de novo a confrontação que ninguém queria ver chegar a uma briga, mas ela o empurrou — sem delicadeza e sem medo — e continuou seu caminho.

 

Os outros se levantaram, pagaram sua parte da conta e saíram — o que, em teoria, significava que eram realmente covardes, capazes de encarar uma longa viagem até o Nepal, mas prontos para fugir quando a primeira ameaça concreta aparecesse. O único que parecia disposto a enfrentar todos era Rayan, mas o indiano — Rahul — pegou-o pelo braço e o levou com ele, enquanto um dos cabeças raspadas brincava de expor e recolher a lâmina do seu canivete.

 

Os franceses, pai e filha, também se levantaram, pagaram a conta e saíram junto com os outros.

 

“O senhor pode ficar”, disse o chefe, com sua voz metálica do amplificador colado no pescoço.

 

“Não posso. Eu estou com eles, e é uma vergonha que isso aconteça aqui, em um país livre, com paisagens magníficas. A última impressão que vamos carregar da Áustria continua a ser o rio em um desfiladeiro, os Alpes, a beleza de Viena, o magnífico conjunto da abadia de Melk. O bando de malfeitores...”

 

A filha puxou o pai, que não parou de falar.

 

“... que não representa o país será esquecido bem depressa. Viemos da França para nos encontrar com isso.”

 

Um dos sujeitos veio por trás e deu um soco nas costas do homem. O motorista inglês se colocou entre os dois com olhos que pareciam de aço — fitava o chefe sem dizer nada, e nem era preciso, porque sua presença naquele momento parecia deixar todos com medo. A filha começou a gritar. Os que já estavam na porta fizeram menção de retornar, mas o indiano os impediu. Era uma batalha perdida.

 

Foi até lá, agarrou pai e filha pelos braços e empurrou todos para fora. Dirigiram-se ao ônibus. O motorista foi o último a sair, sempre de frente para o chefe da gangue, sem demonstrar medo.

 

“Vamos sair, voltar alguns quilômetros e dormir em uma cidadezinha aqui perto.”

 

“E fugir deles? Para isso viajamos tanto, para fugir logo na primeira briga?”

 

O homem de mais idade havia falado. As meninas pareciam assustadas.

 

“Isso. Vamos fugir”, disse o motorista, enquanto dirigia. “Já fugi de várias coisas nas poucas vezes que fiz essa viagem. E não vejo nenhuma humilhação nisso. Pior se amanhecêssemos com os pneus cortados, incapazes de prosseguir viagem porque só tenho dois estepes.”

 

 

Chegaram à cidadezinha. Estacionaram em uma rua que parecia tranquila. Todos estavam tensos e assustados com o episódio do restaurante; mas agora eram um grupo, capaz de resistir a qualquer agressão. Mesmo assim, resolveram dormir dentro do ônibus.

 

Tentaram, com muito custo, conciliar o sono, mas duas horas depois luzes potentes começaram a iluminar o interior do veículo.

 

POLIZEI.

 

Um dos policiais abriu a porta e disse alguma coisa. Karla falava alemão, explicou que estavam pedindo para todos descerem sem levar nada, apenas com a roupa do corpo. A essa altura o ar estava gelado, mas os policiais — homens e mulheres — não permitiram que pegassem nada. As pessoas tremiam de frio e de medo, e ninguém parecia se incomodar.

 

Os policiais entraram no veículo, abriram bolsas, mochilas, tiraram tudo de dentro e jogaram no chão. Descobriram um cachimbo de água, normalmente usado para haxixe.

 

O objeto foi confiscado.

 

Pediram todos os documentos, leram atentamente com as lanternas, viram o carimbo de entrada, estudaram cada página para ver se eram falsificações — iluminavam a foto do passaporte e a foto do rosto da pessoa. Quando chegaram às meninas “maiores de idade”, um deles foi até o carro e falou pelo rádio com algum lugar. Aguardou um pouco, acenou positivamente com a cabeça e voltou para as duas.

 

Karla traduzia.

 

“Temos que levá-las ao encarregado de menores da cidade, e seus pais em breve estarão aqui. Em breve, aliás, é talvez dentro de dois dias ou uma semana, dependendo de encontrar ou não bilhetes de avião e ônibus — ou carro alugado.”

 

As meninas pareciam em estado de choque. Uma delas começou a chorar, mas a policial continuou com seu tom monótono:

 

“Não sei onde queriam chegar e não me interessa. Mas daqui não passam. Me admira que tenham cruzado tantas fronteiras sem que ninguém tenha se dado conta de que haviam fugido de casa.”

 

Virou-se para o motorista.

 

“Seu ônibus podia ser confiscado por estar estacionado em lugar proibido. Não faço isso porque quero que partam o mais breve possível, para o mais longe possível. Você não notou logo que eram menores de idade?”

 

“Eu notei que os passaportes diziam outra coisa, diferente do que a senhora está afirmando agora.”

 

A policial ia continuar a conversa, explicando que tinham falsificado os documentos, que era VISÍVEL a idade das duas, que fugiram de casa porque uma delas afirmava que no Nepal havia um haxixe muito melhor que na Escócia — pelo menos era isso que estava escrito no dossiê que haviam lido na delegacia. Que os pais estavam desesperados. Mas resolveu deixar a conversa para lá, as únicas pessoas a quem precisava dar explicações eram seus superiores.

 

Recolheram os passaportes e pediram que os acompanhasse. Elas ensaiaram uma reclamação, mas a policial encarregada não deu ouvidos — nenhuma das duas falava alemão, e os guardas, apesar de provavelmente saberem inglês, se recusavam a falar outra língua.

 

A mulher policial entrou com as duas no ônibus e pediu que recolhessem o que era delas no meio da bagunça, o que demorou certo tempo, enquanto as pessoas congelavam lá fora. Por fim, as duas saíram e foram levadas a um dos carros de polícia.

 

“Movam-se”, foi o comentário do tenente que acompanhava o grupo.

 

“E, já que não encontraram nada, por que motivo devemos nos mover?”, questionou o motorista. “Podemos achar um lugar onde seja possível estacionar sem medo de ver o veículo confiscado?”

 

“Existe um campo nas cercanias, antes de entrarem na cidade; podem dormir ali. E sair assim que o sol nascer; não queremos ser perturbados com a visão de gente como vocês.”

 

As pessoas iam pegando seus documentos e entrando no ônibus. O motorista e o indiano, seu substituto, não se moviam.

 

“E qual foi nosso crime? Por que não podemos passar a noite aqui?”

 

“Não sou obrigado a responder à sua pergunta. Mas se preferir que leve todos à delegacia, onde precisaremos entrar em contato com os países de vocês enquanto aguardam em uma cela sem calefação, não teremos nenhum problema em fazer isso. O senhor pode ser acusado de rapto de menores.”

 

Um dos carros partiu com as meninas, e ninguém naquele ônibus jamais ficou sabendo o que elas faziam ali.

 

O tenente olhava para o motorista, o motorista olhava para o tenente, o indiano olhava para os dois. Finalmente o motorista cedeu, entrou no ônibus e deu de novo a partida.

 

O tenente se despediu com um olhar irônico. Essa gente não merecia sequer estar livre, andando de um lado para o outro do mundo, espalhando o germe da rebelião. Já bastava o que tinha acontecido em maio de 1968 na França — aquilo tinha que ser contido a qualquer custo.

 

Sim, maio de 1968 nada tinha a ver com hippies e seus semelhantes, mas as pessoas podiam confundir as coisas e logo quererem derrubar tudo em todos os cantos.

 

Ele gostaria de estar junto com eles? De maneira nenhuma. Tinha uma família, casa, filhos, comida, amigos na força policial. Já não bastava estarem tão próximos de uma fronteira comunista — alguém certa vez escrevera em um jornal que os soviéticos agora haviam mudado de tática e usavam as pessoas para corromper costumes e voltá-las contra o próprio governo. Achava aquilo uma loucura sem o menor sentido, mas preferia não arriscar.

 

 

Todos comentaram o absurdo que tinham acabado de viver, menos Paulo, que parecia ter perdido a fala e mudado de cor. Karla perguntou se estava bem — não podia admitir estar viajando com um companheiro que sentia medo da primeira autoridade que aparecia —, e ele disse que estava muito bem, apenas havia bebido um pouco demais e estava enjoado. Quando o ônibus parou no lugar indicado pelo guarda, foi o primeiro a saltar para vomitar ao lado da estrada, discretamente, sem que ninguém visse porque só ele mesmo conhecia suas dores, seu passado em Ponta Grossa, o terror que sempre o acometia a cada vez que atravessava uma fronteira. E, pior, o terror de saber que seu destino, seu corpo, sua alma, estariam sempre atrelados à palavra POLÍCIA. Jamais iria sentir-se seguro — era inocente quando tinha sido trancafiado e torturado, continuava sem ter cometido nenhum crime além de, talvez, o uso esporádico de drogas, que aliás jamais carregava consigo, mesmo em Amsterdam, onde isso não teria absolutamente nenhuma consequência.

 

Enfim, a tortura e a prisão tinham sido deixadas para trás na realidade física, mas continuavam presentes na realidade paralela, em uma das muitas vidas que vivia ao mesmo tempo.

 

Sentou-se longe de todo mundo e queria apenas silêncio e solidão, mas Rahul, o indiano, aproximou-se com o que parecia ser uma espécie de chá branco e frio. Paulo bebeu — tinha gosto de iogurte vencido.

 

“Daqui a pouco vai estar sentindo-se melhor. Apenas não deite nem tente dormir agora. E não fique preocupado em dar explicações — alguns organismos são mais sensíveis que os outros.”

 

Ficaram quietos. A substância começou a fazer efeito em quinze minutos. Paulo levantou para ir juntar-se ao grupo, que já tinha acendido uma fogueira e dançava ao som do rádio do ônibus. Dançavam para exorcizar os demônios, dançavam para mostrar que, querendo ou não, eram mais fortes.

 

“Fique mais um pouco”, insistiu o indiano. “Talvez devêssemos rezar juntos.”

 

“Foi uma intoxicação alimentar”, explicou Paulo.

 

Mas, pelo olhar do indiano, viu que não estava acreditando nisso de forma nenhuma. Tornou a sentar. O indiano se colocou à sua frente.

 

“Digamos que você é um guerreiro na frente de batalha e de repente o Senhor Iluminado vem assistir ao combate. Digamos que seu nome é Arjuna, e ele pede que não se acovarde, siga adiante e cumpra seu destino, porque ninguém pode matar ou morrer, o tempo é eterno. Acontece que você, que é humano, já passou por uma situação semelhante em uma das voltas desse tempo circular e vê a situação se repetir — mesmo que seja diferente, as emoções são as mesmas. Como é mesmo seu nome?”

 

“Paulo.”

 

“Então, Paulo, você não é Arjuna, o general todo-poderoso que temia ferir seus inimigos porque se achava um homem bom, e Krishna não gostou do que ouviu, porque Arjuna estava dando a si mesmo um poder que não tinha. Você é Paulo, de um país distante, que tem momentos de bravura e momentos de covardia, como qualquer um de nós. Nos momentos de covardia, você é possuído pelo medo.

 

“E o medo, ao contrário do que muitos dizem, tem suas raízes no passado. Alguns gurus do meu país afirmam: ‘Quando você caminha adiante, terá pavor do que vai encontrar’. Mas como vou ter pavor do que vou encontrar, se ainda não experimentei a dor, a separação, a tortura interior ou exterior?

 

“Você se lembra do seu primeiro amor? Entrou por uma porta aberta cheia de luz e você permitiu que ele ocupasse tudo, iluminasse sua vida, encantasse seus sonhos, até que, como acontece sempre com o primeiro amor, um dia foi embora. Você devia ter sete ou oito anos, ela era uma menina bonita da sua idade, arranjou um namorado mais velho e ali ficou você, sofrendo, dizendo que nunca mais em sua vida iria amar de novo — porque amar é perder.

 

“Mas você amou de novo — é impossível conceber uma vida sem esse sentimento. E continuou a amar e a perder, até que encontrou alguém...”

 

Paulo pensou que no dia seguinte estariam entrando no país de origem de uma das muitas pessoas para quem tinha aberto seu coração, se apaixonado e — de novo — perdido aquela que lhe ensinara tantas coisas importantes, inclusive a fingir coragem nos momentos de desespero. Realmente era a roda da fortuna girando no espaço circular, levando coisas boas e devolvendo dores, levando dores e trazendo coisas boas.

 

Karla olhava os dois conversando e vigiava Mirthe com o canto dos olhos, para que ela não se aproximasse. Aquilo estava durando muito tempo. Por que ele não voltava e dançava um pouco em torno da fogueira, abandonando de vez aquela vibração maléfica que tinha se instalado no restaurante e continuado na pequena cidade onde estacionaram o ônibus?

 

Mas resolveu continuar dançando mais um pouco, enquanto as fagulhas da madeira enchiam de luz o céu sem estrelas.

 

As músicas eram controladas pelo motorista, que também se recuperava daquela noite — embora não fosse a primeira vez que passava por isso. Quanto mais alto e quanto mais dançante fosse, melhor. Cogitou que aparecessem de novo os policiais pedindo para que saíssem dali, mas resolveu relaxar — não ia ficar aterrorizado só porque um bando de pessoas que se julgam donas da autoridade e, consequentemente, do mundo, havia tentado estragar um dia de sua vida. Está bem, fora um único dia, mas um único dia era o bem mais precioso de que dispunha na face da terra. Um único dia — que sua mãe implorara no leito de morte. Um único dia valia mais que todos os reinos do planeta.

 

 

Michael — esse era o nome do motorista — tinha feito algo impensável três anos antes; depois de se formar em medicina, ganhara um Volkswagen usado de seus pais e, em vez de utilizá-lo para desfilar diante das meninas ou mostrar aos amigos em Edimburgo, partira uma semana depois para uma viagem até a África do Sul. Havia economizado o suficiente para passar dois ou três anos viajando — trabalhando em clínicas particulares como interno remunerado. Seu sonho era conhecer o mundo, porque já conhecia bem o corpo humano e sabia o quão frágil ele era.

 

Depois de um incontável número de dias — atravessando as antigas colônias francesas e inglesas, procurando atender os doentes e consolar os aflitos, familiarizou-se com a ideia da morte sempre perto e prometeu a si mesmo que nunca, em momento nenhum, deixaria os pobres sofrerem e os abandonados ficarem sem conforto. Descobriu que a bondade tinha algum efeito redentor e protetor — jamais, nem por um instante, encontrara dificuldades ou passara fome. O Volkswagen, que não tinha sido construído para isso e já tinha doze anos de uso, sofreu apenas um pneu furado quando cruzava um daqueles países em constante guerra. Mas o bem que Michael fazia, sem que ele soubesse, começara a precedê-lo e, em cada aldeia, era recebido como o homem que salvava vidas.

 

Por um desses acasos, encontrou um posto da Cruz Vermelha em uma linda aldeia perto de um lago no Congo. Também ali sua fama havia chegado — lhe forneceram vacinas para febre amarela, curativos, um ou outro material cirúrgico, e pediram terminantemente que não se envolvesse em nenhum conflito, apenas cuidasse dos feridos de ambos os lados. “Esse é nosso objetivo”, explicou um jovem da Cruz Vermelha. “Não interferir, apenas curar.”

 

A viagem que Michael planejara fazer em dois meses terminou se estendendo por quase um ano. A cada quilômetro rodado — quase nunca sozinho, geralmente transportando mulheres que já não conseguiam andar depois de tantos dias na estrada procurando fugir da violência e das guerras tribais que se espalhavam por todas as regiões —, passava por um sem-número de controles e sentia que alguma coisa o estava ajudando. Depois que pediam seu passaporte, logo o deixavam passar, talvez por ter curado um irmão, um filho, um amigo de alguém.

 

Aquilo o impressionara muito. Fizera um voto a Deus — pedia que conseguisse viver cada dia como servidor, um dia, um ÚNICO DIA, à imagem de Cristo, pelo qual tinha imensa devoção. Pensava em se tornar padre assim que chegasse no final do continente africano.

 

Quando chegou à Cidade do Cabo, resolveu descansar antes de procurar uma ordem religiosa e oferecer-se como probacionista. Seu grande ídolo era santo Inácio de Loyola, que tinha feito a mesma coisa, viajado parte do mundo e fundado a ordem dos jesuítas quando foi estudar em Paris.

 

Achou um hotel simples e barato e decidiu tirar uma semana de repouso, para que toda aquela adrenalina saísse de seu corpo e a paz pudesse novamente entrar. Procurava não pensar em nada do que vira — voltar atrás não adianta nada, serve apenas para colocar grilhões imaginários nos seus pés e tirar por completo algum vestígio de esperança na humanidade.

 

Olhava para a frente, pensava em como iria vender o Volkswagen, contemplava de manhã à noite a vista para o mar diante de sua janela. Via como as cores do sol e da água mudavam, dependendo da hora, e lá embaixo, passeando pela orla, os brancos com seus chapéus de exploradores, seus cachimbos, suas mulheres vestidas como se estivessem na corte em Londres. Nenhum negro, apenas brancos lá embaixo, na calçada que margeava a orla marítima. Isso o entristecia mais do que podia imaginar, a segregação racial era oficial no país, mas no momento — pelo menos por ora — não podia fazer nada, apenas rezar.

 

E rezava de manhã à noite pedindo inspiração, preparando-se para fazer pela décima vez os exercícios espirituais de santo Inácio. Queria estar pronto para quando o momento chegasse.

 

Na manhã do terceiro dia, enquanto tomava café, dois homens com ternos claros se aproximaram de sua mesa.

 

“Então, você é a pessoa que tem honrado o nome do Império Britânico.”

 

O Império Britânico nem existia mais, tinha sido substituído pelo Commonwealth, mas ele ficou surpreso com as palavras do homem.

 

“Tenho honrado um único dia de cada vez”, foi sua resposta, sabendo que eles não entenderiam.

 

E, na verdade, não entenderam mesmo, porque a conversa seguiu na direção mais perigosa que ele podia imaginar.

 

“Você é bem-aceito e respeitado por onde passa. Estamos precisando de gente assim para trabalhar conosco no governo britânico.”

 

Se o sujeito não tivesse acrescentado aquilo, “governo britânico”, ele poderia até imaginar que estava sendo convidado para uma das minas, das plantações, das fábricas de processamento de minerais, na condição de capataz ou mesmo de médico. Mas “governo britânico” significava outra coisa. Michael era um homem bom, porém nada tinha de ingênuo.

 

“Obrigado, não quero. Tenho outros planos.”

 

“Como?”

 

“Virar padre. Servir a Deus.”

 

“E você não acha que estaria servindo a Deus se servisse o seu país?”

 

Michael entendeu que não podia mais permanecer no local onde custara tanto para chegar. Deveria voltar para a Escócia no primeiro voo disponível — tinha dinheiro para isso.

 

Levantou-se sem dar chance para que o sujeito continuasse a conversa. Sabia para o que estava sendo amavelmente “convocado”: espionagem.

 

Tinha boas relações com os exércitos tribais, conhecera muita gente, e a última —a última coisa mesmo que pretendia fazer era trair a confiança de quem acreditava nele.

 

Pegou suas coisas, falou com o gerente que gostaria que vendesse seu carro, deu o endereço de um amigo para onde o dinheiro deveria ser remetido, foi para o aeroporto e, onze horas depois, desembarcava em Londres. No cartel de anúncios, enquanto esperava o trem que o levaria até o centro, viu um escondido entre ofertas de empregos para arrumadeiras, companheiras de quarto, garçonetes, moças interessadas em trabalhar em cabarés. “Precisamos de motoristas para a Ásia.” Antes mesmo de dirigir-se ao centro, tirou o anúncio dali e foi direto para o endereço indicado, um pequeno escritório com uma placa na porta: Budget Bus.

 

“A vaga foi preenchida”, respondeu o rapaz com cabelos longos, abrindo a janela para que um pouco do cheiro de haxixe pudesse sair. “Mas ouvi dizer que em Amsterdam estão procurando gente qualificada. Você tem experiência?”

 

“Muita.”

 

“Então vá até lá. Diga que foi o Ted que mandou você. Eles me conhecem.”

 

Estendeu um folheto onde estava escrito um nome mais espirituoso que Budget Bus: Magic Bus. “Conheça os países onde jamais imaginou colocar os pés. Preço: setenta dólares por pessoa — apenas a viagem incluída. O resto traga com você — menos drogas, porque terminará com pescoço cortado antes de chegar à Síria.”

 

Havia uma foto de um ônibus colorido com várias pessoas na frente, fazendo o sinal de paz e amor, tão comum a Churchill e aos hippies. Foi para Amsterdam e o aceitaram imediatamente — pelo visto a demanda era maior que a oferta.

 

Essa era sua terceira viagem, e não se cansava de atravessar os desfiladeiros da Ásia. Mudou a música, colocando um cassete que ele mesmo havia selecionado a trilha sonora. A primeira era Dalida, uma egípcia que vivia na França e era sucesso na Europa inteira. As pessoas se animaram ainda mais — o pesadelo tinha passado.

 

Rahul percebeu que o brasileiro estava quase totalmente recuperado.

 

“Notei que você enfrentou aquele bando de malfeitores vestidos de negro sem demonstrar grande preocupação. Estava preparado para a briga, mas isso terminaria sendo um problema para nós — somos os peregrinos, e não os donos da terra. Dependemos da hospitalidade alheia.”

 

Paulo acenou positivamente com a cabeça.

 

“Entretanto, quando a polícia apareceu, você ficou paralisado. Está fugindo de algum problema? Matou alguém?”

 

“Nunca, mas, se tivesse podido fazer isso há alguns anos, sem dúvida teria feito. O problema é que nunca vi o rosto de minhas possíveis vítimas.”

 

Em pinceladas rápidas, para evitar que o indiano achasse que estava mentindo, contou o que ocorrera em Ponta Grossa. O indiano não manifestou especial interesse.

 

“Ah, então você tem um medo mais comum do que pensa: polícia. Todo mundo tem medo da polícia, mesmo as pessoas que passaram a vida respeitando a lei.”

 

O comentário tranquilizou Paulo. Viu que Karla se aproximava.

 

“Por que não estão com os outros? Agora que as meninas resolveram ir embora, decidiram ocupar o lugar delas?”

 

“Estamos nos preparando para rezar. Só isso.”

 

“E eu posso participar dessa oração?”

 

“Sua dança já é uma maneira de louvar a Deus. Volte lá e continue.”

 

Mas Karla, a segunda moça mais bonita do ônibus, não se deu por vencida. Queria rezar como os brasileiros. Quanto aos indianos, já vira várias vezes em Amsterdam, com suas posturas estranhas, a pintura entre os olhos e a disposição de manter o olhar no infinito.

 

Paulo sugeriu que todos dessem as mãos e, quando estava se preparando para dizer o primeiro verso da prece, Rahul o interrompeu:

 

“Vamos deixar a oração com palavras para outra hora. O melhor a fazer hoje é rezar com o corpo — dançando.”

 

Dirigiu-se até a fogueira e foi seguido pelos dois — porque todos ali viam na dança e na música uma maneira de libertar-se do corpo. De dizer a si mesmos: “Estamos esta noite aqui juntos e alegres, apesar das forças do mal haverem tentado nos separar. Estamos aqui juntos e continuaremos juntos pela estrada que está diante de nós, apesar das forças das trevas desejarem nos impedir de seguir adiante.

 

“Estamos aqui juntos e um dia, cedo ou tarde, teremos que dizer adeus. Mesmo sem conhecer um ao outro direito, mesmo sem termos trocado palavras que podiam ter sido trocadas, estamos aqui juntos por uma dessas razões misteriosas. Esta é a primeira vez que o grupo dança em torno de uma fogueira, como faziam os antigos quando estavam mais próximos de um universo e viam nas estrelas da noite, nas nuvens e nas tempestades, no fogo e no vento um movimento e uma harmonia, e por isso dançavam — para celebrar a vida.

 

“A dança transforma tudo, exige tudo, e não julga ninguém. Quem é livre dança, mesmo que esteja em uma cela ou em uma cadeira de rodas, porque dançar não é apenas repetir certos movimentos, é conversar com Alguém maior e mais poderoso que tudo e todos, é usar uma linguagem que está além do egoísmo e do medo.”

 

E, naquela noite, em setembro de 1970, depois de terem sido expulsos de um bar e humilhados pela polícia, aquelas pessoas dançavam e agradeciam a Deus por uma vida tão interessante, tão cheia de coisas novas, tão desafiadora.

 

 

Atravessaram sem grandes problemas todas as repúblicas que constituíam um país chamado Iugoslávia (onde embarcaram mais dois rapazes, um pintor e um músico). Quando cruzaram Belgrado, a capital da Iugoslávia, Paulo se lembrou com carinho — mas sem saudade — de sua antiga namorada, com quem havia viajado pela primeira vez fora do país, que havia lhe ensinado a dirigir, a falar inglês, a fazer amor. Deixou-se levar pela imaginação e imaginou-a, junto com sua irmã, a correr por aquelas ruas e a abrigar-se dos bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial.

 

“Assim que soavam as sirenes, nós íamos para o porão. Minha mãe colocava as duas deitadas no seu colo, pedia que abríssemos a boca e nos cobria com seu próprio corpo.”

 

“Por que abrir a boca?”

 

“Para evitar que o ruído ensurdecedor das explosões terminasse por destruir nossos tímpanos e nos deixar surdas pelo resto da vida.”

 

 

 

Na Bulgária, eram seguidos sempre por um carro com quatro tipos sinistros a bordo — por entendimento mútuo entre as autoridades e o motorista. A viagem, depois da explosão de alegria coletiva em uma cidade na fronteira da Áustria, começou a tornar-se monótona. Estava prevista uma parada de uma semana em Istambul, mas ainda faltava muito para chegar até lá — em termos exatos, 190 quilômetros, o que não era absolutamente nada após terem rodado mais de 3 mil.

 

Duas horas depois, viu os minaretes de duas grandes mesquitas.

 

Istambul! Estavam chegando!

 

Tinha planejado detalhadamente como iria usar o seu tempo ali. Assistira a um espetáculo dos dervixes com saias rodadas, que giravam em torno de si mesmos. Ficara fascinado com aquilo, decidira que iria aprender aquela dança até compreender que não era apenas uma dança, mas uma maneira de entrar em contato com Deus. Seus seguidores chamavam-se sufis, e tudo que lera a respeito lhe deixara mais excitado ainda. Tinha planos de algum dia ir até a Turquia para treinar com os dervixes ou com os sufis, mas imaginava que isso iria acontecer em um distante futuro.

 

Entretanto estava ali! As torres se aproximando, a estrada com cada vez mais carros, o engarrafamento, mais paciência, mais espera— porém, antes que o dia seguinte nascesse, estaria entre eles.

 

“Coloquem aí uma hora para chegar”, disse o motorista. “Vamos passar uma semana aqui, não porque isso seja uma viagem de turismo, como já devem ter imaginado, mas antes de sair de Amsterdam...”

 

Amsterdam! Aquilo parecia ter ocorrido séculos atrás!

 

“... fomos avisados de que, no início do mês, uma tentativa de assassinato do rei da Jordânia transformou em campo minado uma zona pela qual devemos passar. Tentei acompanhar o que está ocorrendo, pelo visto a situação está mais calma, mas ainda em Amsterdam decidimos que não arriscaríamos.

 

“Seguiremos adiante com o nosso plano — também porque tanto eu como Rahul estamos cansados de monotonia e precisamos comer, beber, nos divertir. A cidade é barata, melhor dizendo, BARATÍSSIMA, os turcos são incríveis, e o país, apesar de tudo que verão nas ruas, não é muçulmano, mas laico. Entretanto, sugiro às nossas belezas que evitem roupas mais ousadas e que nossos adorados rapazes não provoquem nenhuma briga só porque alguém fez algum tipo de piada com os cabelos grandes.”

 

O recado estava dado.

 

“Outra coisa: quando estávamos ainda em Belgrado e eu telefonei para dizer que tudo estava bem, soube que alguém nos procurou querendo fazer uma entrevista sobre o que significava ser hippie. A agência disse que era importante, porque assim poderia fazer propaganda dos seus serviços — e eu não tive presença de espírito para afirmar o contrário.

 

“O tal jornalista sabia onde iríamos parar para abastecer o carro e o estômago, e me esperava ali. Me encheu de perguntas, e eu não soube responder nenhuma delas — tudo que disse foi que vocês tinham a alma e o corpo livres como o vento. O jornalista em questão, de uma grande agência de notícias francesa, quis saber se podia enviar alguém de sua sucursal em Istambul para conversar diretamente com um de vocês, eu disse que não sabia, mas, como ficaremos todos no mesmo hotel — o mais barato que conseguimos, com quartos divididos para quatro pessoas em cada...”

 

“Eu pago extra, mas não vou dividir o quarto. Ficaremos, minha filha e eu, em uma habitação para dois.”

 

“O mesmo comigo”, disse Rayan. “Quarto para dois.”

 

Paulo olhou interrogativamente para Karla, que enfim se pronunciou.

 

“Quarto para dois aqui também.”

 

A segunda musa do ônibus gostava de mostrar que tinha o brasileiro magrela debaixo de seu jugo. O dinheiro que gastaram até então tinha sido muito inferior ao que haviam imaginado — sobretudo porque viviam de sanduíches e dormiam no ônibus na maior parte do tempo. Dias atrás, Paulo contava sua fortuna — 821 dólares, depois de infinitas semanas de viagem. O tédio dos últimos dias fizera com que Karla tivesse amansado um pouco e agora já havia mais contato corporal entre eles — um dormia no ombro do outro e vez por outra se davam as mãos. Era uma sensação extremamente confortável e carinhosa, embora jamais tenham cogitado beijos ou maiores intimidades.

 

“Então, deve aparecer algum jornalista. Se vocês não estiverem com vontade, não são obrigados a dizer nada. Estou apenas comentando o que me foi dito.”

 

O trânsito andou mais um pouco.

 

“Esqueci uma coisa importantíssima”, disse o motorista, depois que Rahul cochichara com ele. “É facílimo encontrar drogas na rua — de haxixe a heroína. Assim como é facílimo encontrar em Amsterdam, Paris, Madri ou Stuttgart, por exemplo. Só que, se forem pegos, ninguém — absolutamente ninguém — irá conseguir tirá-los da cadeia em tempo hábil para seguir viagem. Portanto, o aviso foi dado, e espero que tenha sido bem, MUITO BEM entendido.”

 

O aviso tinha sido dado, mas Michael duvidava que seria seguido, sobretudo porque já estavam havia quase três semanas sem provarem nada. Nessas três semanas em que estavam juntos, embora vigiasse cuidadosamente cada um de seus passageiros sem que notassem, ninguém demonstrou qualquer interesse naquilo que consumiam todos os dias em Amsterdam e outras cidades europeias.

 

O que, mais uma vez, despertava sua dúvida: por que todo mundo tinha essa mania de dizer que droga vicia? Ele, como médico, alguém que na África experimentou várias plantas com efeitos alucinógenos para ver se podia ou não utilizar em seus pacientes, sabia que apenas as derivadas do ópio causavam dependência.

 

Ah, sim, e a cocaína, que raramente surgia na Europa, já que os Estados Unidos consumiam quase tudo que era produzido nos Andes.

 

Mesmo assim, os governos gastavam fortunas em publicidade antidroga, enquanto o cigarro e o álcool eram vendidos em qualquer bar de esquina. Talvez fosse isso: senadores, verbas de publicidade, coisas do tipo.

 

Sabia que a holandesa que acabara de pedir um quarto junto com o brasileiro tinha molhado uma das páginas do seu livro em uma solução de LSD — comentara com os outros, todo mundo sabia de tudo no ônibus, um “Correio Invisível” funcionava ali. Quando chegasse a hora, iria recortar um pedacinho, mastigar, comer e ter as alucinações que lhe correspondiam.

 

Porém isso não era problema. O ácido lisérgico, descoberto na Suíça por Albert Hofmann e propagado pelo resto do mundo por um professor de Harvard, Timothy Leary, já era proibido, mas continuava indetectável.

 

 

Paulo acordou com o braço de Karla em seu peito — ela ainda dormia profundamente — e ficou pensando como sair daquela posição sem despertá-la.

 

Haviam chegado relativamente cedo ao hotel, o grupo inteiro jantara no mesmo restaurante — o motorista tinha razão, a Turquia era baratíssima — e quando subiram para os quartos ele descobriu que o seu tinha uma cama de casal. Sem que nenhum dos dois comentasse nada, tomaram banho, lavaram as roupas, penduraram no banheiro para secar e caíram — exaustos — na cama. Pelo visto, a intenção de ambos era dormir pela primeira vez em muitos dias em um lugar decente, mas os dois corpos nus, em contato um com o outro, tinham planos diferentes. Antes que se dessem conta, estavam se beijando.

 

Paulo conseguiu uma ereção com muita dificuldade, e Karla não ajudou; apenas mostrou que, se ele quisesse, estava disposta. Era a primeira vez que a intimidade ia além dos beijos e das mãos dadas; só porque estava com uma linda mulher ao seu lado, seria obrigado a fazer com que ela tivesse prazer? Ela se sentiria menos bela e menos desejada se não o fizesse?

 

E Karla pensava: deixa que sofra um pouco, que pense que eu ficarei chateada caso ele decida me rejeitar e resolva dormir. Se eu vir que as coisas não avançam como imagino, farei o que for necessário, mas vamos aguardar.

 

Finalmente a ereção veio, a penetração também, e um orgasmo masculino mais rápido do que ambos imaginavam, por mais que ele tentasse se controlar. Afinal de contas, estava havia muito tempo sem ter uma mulher ao seu lado.

 

Karla, que não tivera orgasmo nenhum, e ele sabia, bateu carinhosamente em sua cabeça, como uma mãe faz com o filho, virou-se para o lado e se deu conta naquele momento que também estava exausta. Dormiu sem pensar nas coisas que normalmente a ajudavam a pegar no sono. O mesmo aconteceu com ele.

 

Agora estava desperto, lembrava-se da noite anterior e decidira sair antes que tivesse que comentar alguma coisa a respeito. Com todo cuidado afastou o braço, colocou a calça extra que trazia na mochila, calçou os sapatos, vestiu a jaqueta e, quando se preparava para abrir a porta, ouviu:

 

“Onde você está indo? Não vai nem me dar bom-dia?”

 

“Bom dia.” Istambul deve ser um lugar interessante e tenho certeza de que você vai gostar.

 

“Por que não me acordou?”

 

Porque considero o sono uma maneira de comunicar-se com Deus através dos sonhos. Foi isso que aprendi quando comecei a estudar ocultismo.

 

“Porque você podia estar sonhando algo lindo ou talvez porque devia estar cansada. Não sei.”

 

Palavras. Mais palavras. Só serviam para começar a complicar as coisas.

 

“Você lembra de ontem à noite?”

 

Fizemos amor. Sem planejar muito, apenas porque estávamos nus na mesma cama.

 

“Lembro. E quero pedir desculpas. Sei que não foi o que você estava esperando.”

 

“Eu não estava esperando nada. Está indo encontrar-se com Rayan?”

 

Na verdade, ele sabia que a pergunta era: “Está indo encontrar-se com Rayan e MIRTHE?”.

 

“Não.”

 

“E sabe onde está indo?”

 

“Sei o que quero encontrar. Mas não sei onde fica — preciso me informar na portaria, espero que eles saibam.”

 

Esperava que ela terminasse a sessão de perguntas ali, que não o obrigasse a responder o que buscava: um lugar onde possa encontrar gente que conhece os dervixes dançantes. Mas ela perguntou.

 

“Estou indo para uma cerimônia religiosa. Algo que tem a ver com dança.”

 

“Vai passar seu primeiro dia em uma cidade tão diferente, em um país tão especial, fazendo aquilo que já fez em Amsterdam? Não bastou os Hare Krishna? Não bastou a noite em volta da fogueira?”

 

Não bastou. E, em uma mistura de irritação e vontade de provocar, contou sobre os dervixes dançantes turcos que vira no Brasil. Os homens com um pequeno chapéu vermelho na cabeça, saias imaculadamente brancas, vão pouco a pouco girando em torno de si mesmos — como se fosse a Terra ou qualquer planeta. Aquele movimento, depois de certo tempo, termina empurrando o dervixe para uma espécie de transe. Eles fazem parte de uma ordem especial, às vezes reconhecida e às vezes abominada pelo islã, de onde veio a principal inspiração. Os dervixes seguem uma ordem chamada sufismo, fundada por um poeta do século XIII, nascido na Pérsia e morto na Turquia.

 

O sufismo reconhece apenas uma verdade: nada pode ser dividido, o visível e o invisível caminham juntos, as pessoas são apenas ilusões em carne e osso. Por isso não se interessara tanto pela conversa sobre realidades paralelas. Somos tudo e todos ao mesmo tempo — tempo que, por sinal, tampouco existe. Esquecemos isso porque somos bombardeados diariamente com informações em jornais, rádio, televisão. Se aceitamos a Unidade, não precisamos de mais nada. Vamos conhecer o significado da vida por um breve momento, mas esse breve momento nos dará força para chegar até aquilo que chamam de morte e que, na verdade, é uma passagem para o tal tempo circular.

 

“Entendido?”

 

“Perfeitamente. Eu, por meu lado, vou para o principal bazar da cidade — imagino que Istambul tenha um bazar —, onde pessoas que trabalham dia e noite procuram mostrar aos poucos turistas que chegam aqui a expressão mais pura de seu coração: a arte. Evidente que não pretendo comprar nada — e não é uma questão de economia, mas do fato de que não tenho espaço livre nenhum na minha mochila —, mas farei um esforço, um grande esforço para ver se as pessoas me entendem, entendem minha admiração e meu respeito pelo que estão fazendo. Porque para mim, apesar de toda a descrição filosófica que acaba de me dar, a linguagem única se chama Beleza.”

 

Ela foi até a janela, e ele viu sua silhueta nua, desenhada contra o sol lá fora. Por mais irritante que tentasse ser, tinha por ela um profundo respeito. Saiu pensando se não seria melhor mesmo ir a um bazar — dificilmente conseguiria entrar no mundo fechado do sufismo, apesar de já ter lido muito a respeito.

 

E Karla pensava na janela: por que não a convidou para ir com ele? Afinal, teriam mais seis dias ali, o bazar não iria fechar suas portas, e conhecer uma tradição dessas deveria ser algo inesquecível.

 

Tinham caminhado — mais uma vez — em direções opostas, por mais que ambos estivessem tentando encontrar um ao outro.

 

 

Karla encontrou a maioria das pessoas lá embaixo, e todas a convidaram para algum passeio especial — visitar a Mesquita Azul, a Hagia Sophia, o museu arqueológico. O que não faltava na cidade eram pontos turísticos únicos como, por exemplo, uma cisterna gigantesca, com doze filas de colunas (total de 336, uma das pessoas comentou) que servia no passado para guardar o estoque de água destinado aos imperadores bizantinos. Mas ela disse que já tinha outros planos, ninguém perguntou nada — assim como ninguém questionara nada a respeito da noite anterior, dormindo no mesmo quarto do brasileiro. Tomaram café da manhã juntos e cada grupo saiu para seu destino.

 

O destino de Karla, em teoria, não estava em nenhum guia turístico. Desceu até a beira do estreito de Bósforo e ficou contemplando a ponte vermelha que separava a Europa da Ásia. Uma ponte! Ligando dois continentes tão distintos e tão distantes um do outro! Fumou dois, três cigarros, abaixou um pouco as alças da blusa discreta que estava usando, tomou um pouco de sol até ser abordada por dois ou três homens, que vieram puxar conversa — e logo foi obrigada a levantar de novo as mangas e mudar de lugar.

 

Desde que a viagem se tornara monótona para todos, Karla passou a enfrentar a si mesma e sua pergunta preferida: Por que quero ir até o Nepal? Nunca fui de acreditar muito nessas coisas, minha educação luterana é mais forte que incensos, mantras, posturas para sentar, contemplação, livros sagrados e seitas esotéricas. Não queria ir ao Nepal para descobrir respostas para isso — ela já as tinha e estava farta de sempre precisar demonstrar sua fortaleza, sua coragem, sua agressividade constante, sua competitividade incontrolável. Tudo que fizera durante a vida fora superar os outros, e jamais fora capaz de superar a si mesma. Acostumara-se a ser quem era, embora fosse muito jovem para isso.

 

Queria que tudo mudasse, e era incapaz de mudar a si mesma.

 

Gostaria de dizer ao brasileiro muito mais do que havia falado, fazer com que ele acreditasse que estava se tornando cada vez mais uma pessoa importante em sua vida. Teve um prazer mórbido ao saber que Paulo saíra sentindo-se culpado pela péssima relação sexual que tiveram na noite anterior e não fez absolutamente nada para demonstrar o contrário, dizer “meu amor (meu amor!), não se preocupe, a primeira vez é sempre assim, iremos nos descobrindo pouco a pouco”.

 

Mas as circunstâncias não permitiam que se aproximasse mais nem dele, nem de ninguém. Fosse porque não tinha muita paciência com as pessoas, fosse porque os outros também não colaboravam muito, não tentavam aceitá-la como ela era — a primeira coisa que faziam era afastar-se, incapazes de um pouco de esforço para quebrar a parede de gelo atrás da qual se escondia.

 

* * *

 

Ainda podia amar — sem esperar recompensas, mudanças, agradecimentos.

 

E muitas vezes tinha amado em sua vida. Quando isso acontecia, a energia do amor transformava o universo à sua volta. Quando essa energia aparece, sempre consegue realizar o seu trabalho — mas com ela era diferente, não suportava amar por muito tempo.

 

Queria ser um vaso onde o grande Amor viesse e depositasse suas flores e seus frutos. E onde a água viva os conservasse como se tivessem sido recém-colhidos, prontos para serem entregues a quem tivesse coragem — isso, a palavra era CORAGEM — de pegá-los. Mas nunca ninguém chegava — melhor dizendo, as pessoas chegavam e iam logo embora com medo, porque não era um vaso, era uma tempestade com raios, ventos e trovões, uma força da natureza que não podia jamais ser domada, apenas dirigida para mover moinhos, iluminar cidades, espalhar espanto.

 

Queria que pudessem ver a beleza, mas viam apenas o furacão e não tentavam jamais abrigar-se dele. Preferiam fugir para um lugar seguro.

 

Voltou a pensar em sua família — embora religiosos praticantes, nunca tentaram impor nada. Uma vez ou outra, quando criança, tinha levado algumas palmadas, o que era normal e nada traumatizante — acontecera com todos que viviam em sua cidade.

 

Era ótima nos estudos, era magnífica nos esportes, era a mais linda das suas colegas de classe (e sabia disso), jamais tivera problema em arranjar namorado, e mesmo assim a coisa de que mais gostava era estar sozinha.

 

Estar sozinha. Seu grande prazer, e também a origem do sonho de ir para o Nepal, era achar uma caverna e ficar ali SOZINHA até que seus dentes caíssem, que seu cabelo ficasse branco, que os aldeões locais parassem de levar comida e que seu último pôr do sol fosse olhando a neve, nada mais.

 

Sozinha.

 

As amigas de colégio a invejavam por sua facilidade em comunicar-se com os rapazes, os amigos de universidade a admiravam pela sua independência e por saber exatamente o que queria, o pessoal em seu trabalho ficava sempre abismado e surpreso com sua criatividade — enfim, era uma mulher perfeita, a rainha da montanha, a leoa das selvas, a salvadora das almas errantes. Recebia propostas de casamento desde os dezoito anos, de todo tipo de pessoas — mas sobretudo de homens ricos, que acrescentavam à proposta uma série de benefícios colaterais, como presenteá-la com joias (dois anéis de brilhante — dos vários que tinha — foram suficientes para que ela pagasse a viagem ao Nepal e ainda tivesse dinheiro para viver muito tempo).

 

Sempre que recebia um presente caro, alertava que não iria devolvê-lo em caso de separação. Os homens riam, porque foram acostumados a vida inteira a ser desafiados por outros homens, mais fortes, e não levavam a sério suas palavras. Terminavam caindo no abismo que ela havia cavado à sua volta, e então se davam conta de que na verdade nunca estiveram realmente perto daquela moça fascinante, mas em uma ponte frágil, feita de barbantes, que não suportava o peso das coisas repetitivas e comuns. Vinha a separação, em uma semana ou um mês, e ela nem precisava dizer nada — eles sequer tinham coragem de pedir alguma coisa de volta.

 

Até que um deles, no terceiro dia de relacionamento, enquanto tomavam café da manhã na cama em um hotel caríssimo em Paris, para onde tinham ido por causa do lançamento de um livro (ninguém recusa uma viagem a Paris, era um dos seus lemas), disse algo que ela jamais iria esquecer:

 

“Você tem depressão.”

 

Ela riu. Mal se conheciam, tinham ido a um excelente restaurante, bebido o melhor vinho e a melhor champanhe, e o sujeito estava dizendo isso?

 

“Não ria. Você tem depressão. Ou ansiedade. Ou as duas coisas. Mas o fato é que, com a idade, irá para um caminho sem volta, é melhor começar a aceitar isso agora.”

 

Sentiu vontade de dizer o quanto era privilegiada na vida, tinha uma família excelente, um trabalho que gostava de fazer, a admiração dos outros, mas outras palavras saíram de sua boca:

 

“Por que está dizendo isso?”

 

Seu ar era de desprezo pelo comentário. O homem, cujo nome fez questão de esquecer naquela mesma tarde, disse que não queria falar do assunto — ele era um psiquiatra profissional e não estava ali naquela condição.

 

Mas ela insistiu. E talvez ele na verdade estivesse querendo falar, porque a essa altura, segundo a impressão de Karla, devia estar sonhando em passar o resto da vida com ela.

 

“Por que diz que tenho depressão, se estamos juntos há tão pouco tempo?”

 

“Porque esse pouco tempo na verdade foram 48 horas juntos. E eu pude observá-la durante a noite de autógrafos, na terça, e ontem no jantar. Você por acaso já amou alguém?”

 

“Muita gente.”

 

O que era uma mentira.

 

“E o que é amar?”

 

A pergunta a assustou tanto que resolveu tentar respondê-la usando o máximo de sua criatividade. Disse sem pressa e agora já sem medo:

 

“É permitir tudo. Não ficar pensando em nascer do sol ou florestas encantadas, não lutar contra a corrente, é deixar-se possuir pela alegria. Isso, para mim, é amar.”

 

“Continue.”

 

“É se manter livre, de modo que a pessoa ao nosso lado jamais se sinta escravizada por isso. É uma coisa tranquila, serena, eu diria que é até mesmo solitária. Amar por amar, não por alguma outra razão — como casamento, filhos, dinheiro, coisas do tipo.”

 

“Belas palavras. Mas, enquanto estivermos juntos, sugiro que pense no que eu disse. Não vamos estragar nossa estada nesta cidade única — eu fazendo você questionar a si mesma, e você me fazendo trabalhar.”

 

Tudo bem, tem razão. Mas por que disse que tenho depressão ou ansiedade? Por que se interessou tão pouco pelas coisas que tenho a dizer?

 

“E por que teria depressão?”

 

“Porque ainda não conseguiu amar de verdade seria uma das respostas. Mas a essa altura essa resposta já não serve — pois conheço muita gente deprimida que me procura justamente por causa de, digamos, um excesso de amor, de entrega. Na verdade, acho — e estou falando algo que não devia falar — que você tem depressão por alguma razão física. Pela falta de determinada substância em seu organismo. Pode ser serotonina, dopamina, mas no seu caso seguramente não é noradrenalina.”

 

Então depressão era algo químico?

 

“Claro que não. Existe uma infinidade de fatores, mas será que podemos nos vestir e sair para passear às margens do Sena?”

 

“Podemos. Mas antes complete seu raciocínio: que fatores?”

 

“Você disse que o amor pode ser vivido na solidão; sem dúvida nenhuma, mas apenas por gente que resolveu dedicar sua vida a Deus ou ao próximo. Santos. Visionários. Revolucionários. Neste caso estou falando de um amor mais humano, que se revela apenas quando estamos perto da pessoa amada. Que provoca imenso sofrimento no caso de ser incapaz de expressar isso, ou ser notada pelo objeto de seu desejo. Eu tenho certeza de que você tem depressão porque nunca está REALMENTE presente; seus olhos vão de um lugar para o outro, não existe luz, mas tédio. Na noite de autógrafos vi que fazia um esforço sobre-humano para se relacionar e conversar com as pessoas — todos deviam parecer chatos, inferiores, repetitivos.”

 

Levantou da cama.

 

“Para mim basta. Vou tomar um banho, ou você quer ir antes de mim?”

 

“Vá você. Eu vou arrumando minha mala. Não tenha pressa, preciso ficar um pouco sozinha depois de tudo que escutei. Na verdade, preciso de meia hora sozinha.”

 

Ele deu um riso irônico, do tipo “eu não disse?”. Mas levantou e entrou no banheiro. Em cinco minutos Karla já tinha a mala arrumada, a roupa posta. Abriu e fechou a porta sem fazer nenhum ruído. Passou pela portaria, cumprimentou a todos que a olhavam com certo ar de surpresa, mas a bela suíte não estava em seu nome, de modo que ninguém perguntou nada — normalmente ela deveria dar alguma explicação por estar saindo com bagagem e sem pagar.

 

Foi até o concierge e perguntou quando saía o próximo voo para a Holanda. Que cidade? Qualquer uma, eu sou de lá e conheço o lugar. Saía às duas e quinze da tarde, pela KLM. “Quer que compremos o bilhete e coloquemos na conta do quarto?”

 

Hesitou, pensou que talvez devesse vingar-se daquele homem que lera sua alma sem sua permissão e que, além do mais, podia estar errado em tudo que dissera.

 

Mas terminou dizendo: “Não, muito obrigada, eu tenho dinheiro comigo”. Karla nunca viajava para lugar nenhum do planeta dependendo apenas dos homens que volta e meia escolhia para que lhe fizessem companhia.

 

Olhou de novo a ponte vermelha, lembrou-se de tudo que lera sobre depressão — e tudo que não lera, porque começou a ficar apavorada — e decidiu que, a partir do momento que atravessasse aquela ponte, seria outra mulher. Iria deixar-se apaixonar pela pessoa errada, um sujeito que vivia no outro lado do mundo, iria sentir saudades ou fazer tudo para acompanhá-lo, ou ficar meditando e lembrando seu rosto na caverna que escolheria para morar no Nepal, mas não podia mais continuar com aquela vida — a vida de quem tem tudo e não aproveita nada, absolutamente nada.

 

 

Paulo estava diante de uma porta sem nenhuma placa ou indicação, em uma rua estreita, com várias casas que pareciam abandonadas. Depois de muito esforço e de muitas perguntas, conseguira descobrir um centro de sufismo, embora não tivesse certeza de que iria encontrar ali nenhum dervixe dançante. Para atingir esse feito, fora até o bazar — onde esperava encontrar Karla e não a encontrou; começou a fazer mímicas da dança sagrada e dizer “dervixe”. Muita gente ria, outros passavam pensando que estava louco — precisavam manter distância porque seus braços abertos terminariam por atingi-los.

 

Não se desesperou; em várias tendas havia aquele tipo de chapéu que vira no espetáculo — uma espécie de gorro vermelho e cônico, geralmente associado aos turcos. Comprou um, colocou na cabeça, e continuou indo de ala em ala, perguntando com mímica — e agora com chapéu — onde poderia encontrar algum lugar onde as pessoas faziam isso. Dessa vez as pessoas nem riam nem se desviavam, apenas o olhavam com rosto sério e falavam em turco. Mas Paulo não se deu por vencido.

 

Finalmente encontrou um senhor de cabelos brancos que parecia entender o que estava dizendo. Ele repetia a palavra “dervixe” e já estava começando a ficar cansado. Tinha ainda outros seis dias ali, poderia aproveitar o momento para conhecer o bazar, mas o senhor que se aproximara dizia:

 

“Darwesh.”

 

Sim, devia ser aquilo mesmo, estava pronunciando errado. Como para confirmar, o sujeito imitou os movimentos dos dervixes dançantes. A expressão do sujeito mudou de surpresa para censura.

 

“You muslim?”

 

Paulo balançou a cabeça em sinal negativo.

 

“No”, disse o homem. “Only Islam.”

 

Paulo colocou-se na sua frente.

 

“Poet! Rumi! Darwesh! Sufi!”

 

O nome de Rumi, fundador da ordem, e a palavra poet devem ter amolecido o coração daquele senhor porque, embora fingindo irritação e má vontade, pegou Paulo pelo braço, arrastou-o para fora do bazar e levou-o para o lugar onde se encontrava agora, diante daquela casa quase em ruínas, sem saber exatamente o que fazer além de bater na porta.

 

Bateu várias vezes, mas ninguém abriu. Colocou a mão na maçaneta, a porta estava destrancada. Entraria? Poderia ser acusado de invasão? Não era verdade que prédios abandonados tinham cachorros selvagens cuidando para que não fossem ocupados por mendigos?

 

Abriu uma fresta. Ficou esperando o ladrar de cães, mas escutou uma voz, uma única voz à distância, falando em inglês algo que não conseguia escutar direito, e notou imediatamente um sinal de que estava no lugar certo: o cheiro de incenso.

 

Fez um grande esforço para saber o que aquela voz masculina estava dizendo. Não era possível, o único jeito seria entrar — e o máximo que podia acontecer era ser expulso. O que tinha a perder? Estava prestes a, inesperadamente, realizar um de seus sonhos, entrar em contato com os dervixes dançantes.

 

Precisava arriscar. Entrou, fechou a porta atrás de si e, quando seus olhos se acostumaram com a relativa escuridão do lugar, viu que estava em algum velho galpão completamente vazio, todo pintado de verde, o chão de madeira gasta pelo tempo. Janelas com alguns vidros quebrados deixavam filtrar alguma luz e permitiam distinguir, em um canto daquele espaço que parecia muito maior visto por dentro do que por fora, um senhor sentado em uma cadeira de plástico, que parou de falar consigo mesmo assim que notou o visitante inesperado.

 

Disse algumas palavras em turco, mas Paulo abanou a cabeça. Não falava a língua. O homem também balançou a cabeça, demonstrando o quanto estava incomodado com a presença de alguém que havia interrompido alguma coisa importante.

 

“O que quer?”, perguntou com um sotaque francês.

 

O que Paulo podia responder? A verdade. Os dervixes dançantes.

 

O homem riu.

 

“Perfeito. Veio até aqui como eu, que um dia saí de Tarbes — uma cidadezinha no meio de lugar nenhum na França, com uma única mesquita — em busca do conhecimento e da sabedoria. É isso que você quer, não é verdade? Faça como eu fiz quando encontrei um deles. Fique mil e um dias estudando um poeta, decorando o que ele escreveu, respondendo qualquer pergunta de qualquer pessoa com a sabedoria de seus poemas, e então poderá começar o treino. Porque sua voz já se confundirá com a do Iluminado e seus versos escritos há oitocentos anos.”

 

“Rumi?”

 

O homem fez uma reverência ao ouvir o nome. Paulo sentou no chão.

 

“E como posso aprender? Já li muito de suas poesias, mas não entendo como ele as colocava em prática.”

 

“O homem em busca da espiritualidade pouco sabe, porque está lendo a respeito e tentando encher seu intelecto com aquilo que julga sábio. Venda seus livros e compre loucura e deslumbramento — então você estará um pouco mais perto. Livros trazem opiniões e estudo, análises e comparações, enquanto a sagrada chama da loucura nos leva à verdade.”

 

“Não estou carregado de livros. Vim como uma pessoa em busca da experiência — neste caso da experiência da dança.”

 

“Isso é busca de conhecimento, não é dança. A razão é a sombra de Allah. Que poder tem a sombra diante do sol? Absolutamente nenhum. Saia da sombra, vá até o sol e aceite que seus raios o inspiram mais que palavras sábias.”

 

O homem apontou para um lugar onde entrava um raio de sol, distante uns dez metros de sua cadeira. Paulo foi até o lugar indicado.

 

“Faça uma reverência ao sol. Permita que ele inunde sua alma — porque o conhecimento é uma ilusão, o êxtase é a realidade. O conhecimento nos enche de culpa, o êxtase nos faz comungar com Aquele que é o Universo antes de existir e depois de ter sido destruído. O conhecimento é tentar lavar-se com areia, quando existe um poço de água cristalina ao lado.”

 

Naquele exato momento os alto-falantes colocados nas torres da mesquita começaram a recitar algo, o som encheu a cidade, e Paulo sabia que era o momento de prece. Estava com o rosto virado para o sol, o raio praticamente visível por causa das partículas de poeira, e sabia, pelo ruído que veio de trás, que o homem velho de sotaque francês devia ter se ajoelhado, voltado seu rosto para onde se encontrava Meca e começado suas preces. Começou a esvaziar sua cabeça, não era tão difícil assim, não naquele lugar despido de qualquer ornamento — não havia nem mesmo as palavras do Corão escritas em caligrafia que pareciam pinturas. Estava no total vazio, longe de sua terra, de seus amigos, das coisas que aprendeu, das coisas que queria aprender, do bem ou do mal, estava ali. Apenas ali, e agora.

 

Fez uma reverência, tornou a levantar a cabeça e manter os olhos abertos e viu que o sol conversava com ele — não tentando ensinar nada, apenas permitindo que sua luz inundasse tudo ao seu redor.

 

 

Meu amado, minha luz, que sua alma continue em adoração perpétua. Em algum momento você vai deixar esse lugar onde está agora e voltará aos seus, porque não é chegado ainda o tempo de renunciar a tudo. Mas o Dom Supremo, chamado Amor, fará com que seja instrumento de Minhas palavras — as palavras que eu não disse, mas que você entende.

 

O silêncio ensina se você deixar-se mergulhar no Grande Silêncio. O silêncio pode ser traduzido em palavras, porque esse será seu destino, mas quando isso acontecer, não tente absolutamente explicar nada, e faça com que as pessoas respeitem o Mistério.

 

Você quer ser um peregrino no caminho da Luz? Aprenda a caminhar no deserto. Converse com o coração, porque as palavras são apenas acidentais — e, embora você precise delas para comunicar-se com os outros, não se deixe trair por significados e explicações. As pessoas escutam apenas aquilo que querem, jamais tente convencer ninguém, siga apenas o seu destino sem medo — ou até mesmo com medo, mas siga o seu destino.

 

Quer alcançar o céu e chegar até mim? Aprenda a voar com duas asas — disciplina e misericórdia.

 

Os templos, as igrejas e as mesquitas estão cheios de pessoas com medo do que está do lado de fora — e terminam sendo doutrinadas por palavras mortas. Mas meu templo é o mundo, não saia de meu templo. Permaneça nele mesmo que seja difícil — mesmo que seja motivo de riso dos outros.

 

Converse e não tente convencer ninguém. Jamais aceite ter discípulos ou pessoas que creem em suas palavras, porque quando isso acontecer, elas deixaram de crer no que seus corações estão dizendo, e que na verdade é o único que precisam escutar.

 

Caminhem juntos, bebam e se alegrem com a vida, mas mantenham distância para que um não precise amparar o outro — a queda faz parte do caminho, e todos precisam aprender a se levantar sozinhos.

 

 

Os minaretes já estavam em silêncio. Paulo não sabia por quanto tempo estivera conversando com o sol — o raio iluminava um lugar distante de onde estava sentado. Voltou-se para trás, e o homem vindo de um país distante, apenas para descobrir o que poderia ser descoberto nas montanhas de sua terra, já tinha saído. Ele estava sozinho ali.

 

Era hora de ir embora, porque pouco a pouco estava se deixando possuir pela sagrada chama da Loucura. Não ia precisar explicar a ninguém onde esteve e esperava que seus olhos continuassem os mesmos — porque sentia que brilhavam, e isso podia chamar a atenção dos outros.

 

Acendeu um dos incensos ao lado da cadeira e saiu. Fechou a porta, mas sabia que, para aqueles que tentam ultrapassar umbrais, as portas estão sempre abertas. Basta girar a maçaneta.

 

 

A mulher da agência de notícias francesa estava visivelmente contrariada pelo que lhe haviam encomendado: uma entrevista com hippies — hippies! — em plena Turquia, viajando de ônibus para a Ásia como os muitos imigrantes que vinham na direção contrária em busca das riquezas e oportunidades na Europa. Não tinha nenhum preconceito nem com uns nem com os outros, mas, agora que conflitos no Oriente Médio haviam começado — o telex não parava de vomitar notícias, havia rumores de batalhões na Iugoslávia matando uns aos outros, a Grécia estava em pé de guerra com os turcos, os curdos estavam querendo autonomia, o presidente não sabia exatamente o que fazer, Istambul havia se tornado um ninho de espiões onde conviviam agentes da KGB e da CIA, o rei da Jordânia havia esmagado uma rebelião e os palestinos prometiam vingança —, o que exatamente ela estava fazendo naquele hotel de terceira categoria?

 

Cumprindo ordens. Tinha recebido o telefonema do motorista do tal Magic Bus, um inglês experiente e simpático que a esperava no saguão do hotel, e que tampouco entendia o interesse da imprensa estrangeira no assunto, mas que resolvera colaborar da melhor maneira possível.

 

Não havia nenhum hippie no lobby, exceto um sujeito que se parecia com Raspútin e um homem de aproximadamente cinquenta anos, sem muita pinta de hippie. Ao lado de uma moça jovem.

 

“Ele é quem vai responder as perguntas”, disse o motorista. “Fala a sua língua.”

 

A vantagem era que falavam francês, o que tornaria a entrevista mais fácil e mais rápida. Começou localizando-o no tempo e espaço (nome: Jacques/ Idade: 47 anos/ Natural de: Amiens, França/ Profissão: ex-diretor da empresa francesa líder em cosmética/ Estado civil: divorciado).

 

“Como deve ter sido informado, estou aqui preparando uma reportagem, a pedido agência France Presse, sobre essa cultura que, pelo que li, nasceu nos Estados Unidos...”

 

Controlou-se para não dizer “dos filhinhos de papai ricos que já não têm mais nada para fazer”.

 

“... e espalhou-se como vento por todo o planeta.”

 

Jacques assentiu com a cabeça, enquanto de novo a jornalista pensava em acrescentar “na verdade, nas zonas onde vivem as maiores fortunas do planeta”.

 

“O que quer saber exatamente?”, perguntou Jacques, arrependido de ter aceitado dar a entrevista, porque o resto da turma estava lá fora conhecendo a cidade e se divertindo.

 

“Enfim, sabemos que é um movimento sem preconceitos, baseado em drogas, música, grandes concertos ao ar livre onde tudo é permitido, viagens, absoluto e total desprezo por todos os que estão lutando no momento por um ideal, por uma sociedade mais livre e mais justa...”

 

“... Como por exemplo...”

 

“... Como os que tentam libertar os povos oprimidos, denunciar a injustiça, participar da necessária luta de classes, em que as pessoas dão seu sangue e suas vidas para que o único futuro da humanidade, o socialismo, deixe de ser uma utopia e possa ser logo uma realidade.”

 

Jacques assentia com a cabeça — era inútil aceitar provocações daquele tipo, tudo que faria era perder seu precioso primeiro dia em Istambul.

 

“E que tem uma visão muito mais livre, eu diria mais libertina, do sexo, onde homens de meia-idade não se incomodam de serem vistos ao lado de meninas que têm idade para ser suas filhas...”

 

Jacques ia deixar passar também essa, mas não conseguiu porque foi interrompido.

 

“A menina que tem idade para ser sua filha — imagino que está se referindo a mim — é, na verdade, sua filha. Não fomos apresentados, mas meu nome é Marie, vinte anos, nascida em Lisieux, estudante de ciências políticas, admiradora de Camus e Simone de Beauvoir. Gostos musicais: Dave Brubeck, Grateful Dead e Ravi Shankar. No momento escrevendo uma tese sobre como o paraíso socialista pelo qual as pessoas estão dando suas vidas, também chamado de União Soviética, se tornou tão opressor como as ditaduras impostas ao Terceiro Mundo pelos países capitalistas, como Estados Unidos, Inglaterra, Bélgica, França. Algo mais que possa acrescentar?”

 

A jornalista agradeceu o comentário, engoliu em seco, cogitou por segundos se aquilo podia ser mentira, deduziu que não era, procurou esconder o espanto e concluiu que ali, possivelmente, estava o tom de sua matéria: a história de um homem, ex-diretor de uma grande firma francesa, que em algum momento de crise existencial resolve largar tudo, pegar a filha e sair pelo mundo — sem levar em consideração os riscos que isso podia acarretar para a menina — ou moça, melhor dizendo. Ou precocemente envelhecida, pela maneira de falar. Estava agora em desvantagem e precisava recuperar a iniciativa.

 

“Já experimentou drogas?”

 

“Óbvio: marijuana, chá de cogumelos alucinógenos, algumas drogas químicas que me fizeram mal, LSD. Jamais toquei em heroína ou cocaína ou ópio.”

 

A jornalista olhava de lado para o pai, que escutava tudo de forma impassível.

 

“E é partidária da ideia de que o sexo deve ser livre?”

 

“Desde que inventaram a pílula anticoncepcional, não vejo por que o sexo não deva ser livre.”

 

“E pratica isso?”

 

“Não é da sua conta.”

 

O pai, vendo que a conversa caminhava para um confronto, resolveu mudar de assunto.

 

“Não estamos aqui para falar de hippies? Você definiu muito bem nossa filosofia. O que mais quer saber?”

 

Nossa filosofia? Um homem com quase cinquenta anos estava dizendo “nossa filosofia”?

 

“Quero saber por que estão indo para o Nepal de ônibus. Pelo que entendo, e pelo que vejo em pequenos detalhes da roupa de vocês dois, teriam dinheiro suficiente para ir de avião.”

 

“Porque para mim o que mais importa é a viagem. É conhecer gente que nunca teria oportunidade de encontrar na primeira classe da Air France, que já frequentei muitas vezes — e onde ninguém conversa com ninguém, mesmo que estejam sentados lado a lado por doze horas.”

 

“Mas existem...”

 

“Sim, existem ônibus mais confortáveis que essa adaptação de ônibus escolar, com péssima suspensão e bancos não reclináveis — imagino que seja isso que queira dizer. Ocorre que na minha encarnação prévia, ou seja, no meu trabalho como diretor de marketing, já conheci todo tipo de pessoa que precisava conhecer. E, para dizer a verdade, uma era cópia da outra — as mesmas rivalidades, os mesmos interesses, a mesma busca de ostentação, uma vida completamente diferente daquela de minha infância, quando trabalhava ajudando meu pai em um campo perto de Amiens.”

 

A jornalista começou a folhear suas notas, agora já claramente em desvantagem. Era difícil provocar aqueles dois.

 

“O que está buscando?”

 

“Aquilo que tinha anotado sobre os hippies.”

 

“Mas você resumiu muito bem: sexo, música, drogas, rock e viagem.”

 

O francês estava conseguindo irritá-la mais do que imaginava.

 

“Você pensa que é só isso. Mas tem muito mais.”

 

“Tem muito mais? Então nos ensine, porque, quando vim para essa viagem, convidado pela minha filha, que era capaz de ver o quanto eu estava infeliz, não tive tempo de saber exatamente os detalhes.”

 

A jornalista disse que estava tudo bem, que já tinha as respostas que queria — e pensava consigo mesma: posso inventar qualquer coisa dessa entrevista, ninguém vai nunca saber —, mas Jacques insistiu. Perguntou se desejava um café ou chá (“café, estou farta desse adocicado chá de menta”), café turco ou normal (“café turco, estou na Turquia, é realmente ridículo coar o líquido, o pó deve vir junto”).

 

“Acho que eu e minha filha merecemos aprender um pouco. Não sabemos, por exemplo, de onde vem a palavra hippie.” Ele estava sendo ostensivamente irônico, mas ela fingiu que não havia notado e resolveu seguir adiante. Estava louca para tomar um café.

 

“Ninguém sabe. Mas, se quisermos ser bem franceses e tentar definir tudo, a ideia de sexo, vegetarianismo, amor livre e vida em comum tem sua origem na Pérsia, em um culto fundado por um sujeito chamado Mazdak. Não sobrou muito material sobre ele. Entretanto, como nós estamos sendo obrigados a escrever cada vez mais a respeito desse movimento, alguns jornalistas descobriram uma origem diferente: entre os filósofos gregos chamados cínicos.”

 

“Cínicos?”

 

“Cínicos. Nada a ver com o sentido que damos hoje à palavra. Diógenes foi seu propagador mais conhecido. Segundo ele, as pessoas deviam deixar de lado o que a sociedade impunha — todos nós fomos educados para ter mais do que precisamos — e voltar aos valores primitivos, ou seja, viver em contato com as leis da natureza, depender de pouco, ficar contente com cada novo dia e rejeitar por completo aquilo para o qual todos eram educados — poder, ganância, avareza, coisas do tipo. O único propósito da vida era libertar-se do que não necessitavam e encontrar alegria em cada minuto, em cada respiração. Diógenes, por sinal, vivia em um barril, conta a lenda.”

 

O motorista aproximou-se. O hippie com cara de Raspútin devia falar francês, porque se sentou no chão para escutar. O café chegou. Isso animou a jornalista a continuar sua aula. De repente a hostilidade geral havia desaparecido, e ela era o centro das atenções.

 

“A ideia se propagou durante o cristianismo, quando os monges iam procurar no deserto a paz para o contato com Deus. E continuou até os dias de hoje, através de filósofos conhecidos, como o americano Thoreau ou o libertador da Índia — Gandhi. Simplifique, diziam todos. Simplifique e será mais feliz.”

 

“Mas como isso de repente virou uma espécie de moda, de maneira de vestir, de ser cínico no sentido atual da palavra — não acreditar nem em direita nem em esquerda, por exemplo?”

 

“Isso eu já não sei. Dizem que foram os grandes concertos de rock, como Woodstock. Dizem que foram certos músicos, como Jerry Garcia e o Grateful Dead, ou Frank Zappa e The Mothers of Invention, que começaram a fazer shows gratuitos em San Francisco. Por isso estou aqui perguntando a vocês.”

 

Ela olhou para o relógio e levantou-se.

 

“Desculpe, preciso ir. Tenho mais duas entrevistas para hoje.”

 

Juntou seus papéis, ajeitou a roupa.

 

“Eu a acompanho até a porta”, disse Jacques. A hostilidade havia desaparecido por completo — ela era uma profissional procurando fazer bem o seu trabalho, e não uma inimiga que tinha entrado ali para falar mal dos entrevistados.

 

“Não precisa. Tampouco precisa sentir-se culpado pelo que sua filha disse.”

 

“Te acompanho assim mesmo.”

 

Saíram juntos. Jacques perguntou onde ficava o bazar de temperos — não tinha o menor interesse em ver coisas que não iria comprar, mas adoraria desfrutar o aroma de plantas e ervas que talvez nunca mais tornaria a sentir.

 

A jornalista apontou o caminho e seguiu, a passos apressados, na direção oposta.

 

 

Enquanto caminhava para o bazar de especiarias, Jacques — que trabalhara durante tantos anos vendendo coisas de que as pessoas não precisavam, sendo obrigado a desenvolver campanhas a cada seis meses alertando os consumidores sobre o “novo produto” que estavam lançando — pensava consigo mesmo que Istambul deveria ter um departamento de turismo mais eficiente: estava absolutamente fascinado pelas ruelas, pelas pequenas lojas pelas quais ia cruzando, pelos cafés que pareciam ter parado no tempo — a decoração, a roupa das pessoas, os bigodes. Por que a grande maioria dos turcos deixava crescer bigodes?

 

Descobriu por acaso a razão quando parou em um bar que já devia ter visto dias melhores, com decoração inteira em art nouveau, do tipo que se encontra apenas nos lugares mais escondidos e sofisticados de Paris. Resolveu tomar seu segundo café turco naquele dia — pó e água, sem filtrar, trazido em uma espécie de caneca de cobre com uma haste lateral em vez de alça, algo que até então só tinha visto ali. Esperava que até o final do dia os efeitos estimulantes já tivessem sumido de seu organismo e pudesse dormir em paz por mais uma noite. Não havia muito movimento — na verdade, apenas um cliente além dele —, e o dono, notando que era estrangeiro, começou a puxar conversa.

 

Perguntou sobre a França, a Inglaterra, a Espanha, contou a história do seu Café de La Paix, quis saber o que estava achando de Istambul (“acabei de chegar, mas me parece que devia ser mais conhecida”), das grandes mesquitas e do grande bazar (“ainda não visitei nada, cheguei ontem”), e começou a falar do excelente café que preparava, até que Jacques o interrompeu:

 

“Notei uma coisa interessante, e posso estar enganado. Mas, pelo menos nesta zona da cidade, todo mundo usa bigode — inclusive o senhor. É alguma tradição? Se não quiser, não precisa responder à pergunta.”

 

O dono do bar parecia encantado em respondê-la.

 

“Fico satisfeitíssimo que notou — creio que é a primeira vez que um estrangeiro entra aqui e me pergunta isso. E olha que, por causa do meu excelente café, os poucos turistas que visitam a cidade vêm aqui com frequência, recomendados pelos grandes hotéis.”

 

Sem pedir permissão, sentou-se à mesa e pediu a seu ajudante — um rapaz mal saído da puberdade, com o rosto imberbe, que lhe trouxesse um chá de menta.

 

Café e chá de menta. Essas eram as únicas coisas que as pessoas pareciam beber naquela terra.

 

“Está ligado à religião?”

 

“Eu?”

 

“Não, o bigode.”

 

“De maneira nenhuma! Está ligado ao fato de sermos homens. A termos honra e dignidade — aprendi isso com meu pai, dono de um muito bem cuidado bigode, que sempre me dizia ‘um dia você terá um assim’. Ele me explicou que, na geração do meu bisavô, quando os malditos ingleses e — perdão — franceses começaram a nos empurrar para o mar, as pessoas precisavam definir que rumo deviam tomar dali por diante. E, como havia um ninho de espiões em cada batalhão, decidiram que o bigode seria um código. Dependendo do formato, significava que a pessoa era a favor ou contra as reformas que os malditos ingleses — e, desculpe de novo, franceses — queriam impor. Não era bem um código secreto, claro, mas uma declaração de princípios.

 

“Fazemos isso desde o final do glorioso Império Otomano, quando as pessoas precisavam definir um novo rumo para nosso país. Os que eram a favor da reforma usavam um bigode com a forma de M. Os que eram contra deixavam que as bordas laterais descessem, formando uma espécie de U ao contrário.”

 

E os que não eram a favor nem contra?

 

“Esses raspavam o rosto inteiro. Mas era uma vergonha para a família ter alguém assim — como se fosse uma mulher.”

 

“E vale até hoje?”

 

“O pai de todos os turcos — Kemal Atatürk, militar que conseguiu finalmente acabar com a era dos ladrões colocados no trono pelas potências europeias, às vezes usava bigode e às vezes não usava. Com isso, confundiu todo mundo. Mas as tradições, uma vez instaladas, são difíceis de ser esquecidas. Além do mais, voltando ao início de nossa conversa, que mal faz uma pessoa demonstrar seu símbolo de masculinidade? Os animais fazem a mesma coisa, usando peles ou penas.”

 

Atatürk. O militar corajoso que tinha lutado na Primeira Guerra, impedido uma invasão, abolido o sultanato, acabado com o Império Otomano, separado a religião islâmica do Estado (o que muitos julgavam impossível) e, o que era mais importante para os malditos ingleses e franceses, se recusara a assinar uma paz humilhante com os Aliados — como a Alemanha fez, lançando sem querer as sementes do nazismo. Já vira várias fotos do maior ícone da Turquia moderna — quando a empresa em que trabalhava pensava em conquistar de novo aquele império, usando sedução e malícia — e nunca reparara que às vezes ele aparecia sem bigode; notara apenas que nas fotos com bigode ele não usava nem M e nem U, mas a forma tradicional ocidental, em que os pelos terminam no final dos lábios.

 

Meu Deus do céu, como tinha aprendido sobre bigodes e suas mensagens secretas! Perguntou quanto devia pelo café, mas o dono do bar se recusou: cobraria da próxima vez.

 

“Muitos xeques árabes vêm aqui para implantes de bigode”, concluiu. “Somos os melhores do mundo nisso.”

 

Jacques ainda conversou alguma coisa com o dono, que logo pediu desculpas porque os clientes para o almoço estavam começando a chegar. Decidiu pagar a conta para o rapaz imberbe e saiu, agradecendo em silêncio à sua filha por tê-lo literalmente empurrado pela porta de saída do emprego, com uma ótima indenização. E se ele voltasse de “férias” e contasse aos amigos de trabalho sobre os bigodes e os turcos? Todos achariam muito curioso, exótico, mas nada além disso.

 

Continuou andando em direção ao bazar de especiarias e pensando consigo mesmo: por que nunca, mas nunca forcei meus pais a deixar um pouco os campos de Amiens a ir viajar? No início, a desculpa era que precisavam de dinheiro para que seu único filho recebesse uma educação adequada. Quando ele se formou em algo que seus pais sequer entendiam — marketing —, eles alegaram que talvez nas próximas férias, ou nas depois dessas, ou talvez ainda nas seguintes, embora qualquer camponês saiba que a natureza não para nunca e o trabalho do campo alterna momentos de excesso de suor — semear, podar, colher — com momentos de profundo tédio, esperando que a natureza cumpra seu ciclo.

 

Na verdade, eles jamais tinham a intenção de sair da região que conheciam bem, como se o resto do mundo fosse um lugar ameaçador, onde terminariam perdidos em ruas desconhecidas, cidades completamente estranhas, cheias de gente esnobe que logo distinguiam o sotaque do interior. Não, o mundo inteiro era igual, a cada um fora destinado um lugar no mundo e precisavam respeitar isso.

 

Jacques se desesperava na sua infância e adolescência, mas não havia nada a fazer exceto seguir a vida como tinha planejado: arranjar um bom emprego (arranjou), encontrar uma mulher e casar-se (tinha 24 anos quando isso aconteceu), crescer em sua carreira, conhecer o mundo (conheceu e terminou exausto de viver em aeroportos, hotéis e restaurantes, enquanto a mulher esperava pacientemente em casa, procurando dar um sentido à sua vida além de cuidar da filha), em algum momento ser promovido a diretor, aposentar-se, voltar para o campo e terminar seus dias no lugar onde nasceu.

 

Olhando assim, tantos anos depois, achava que poderia ter cortado todas as fases intermediárias — mas sua alma e sua imensa curiosidade o empurravam para a frente, para as horas sem fim de um trabalho que amava no começo e passou a odiar justamente quando estava sendo promovido.

 

Podia esperar um pouco e sair na hora certa. Estava subindo rápido na hierarquia da firma, seu salário havia triplicado, e a filha — cujo crescimento tinha acompanhado em etapas entre uma viagem e outra — tinha entrado para ciências políticas. A mulher terminou por divorciar-se porque julgava sua vida inútil, e agora vivia sozinha em casa porque Marie arranjara um namorado e mudara-se para a casa dele.

 

A maior parte de suas ideias de marketing (palavra e profissão agora na moda) era aceita, embora algumas fossem questionadas por estagiários que queriam chamar a atenção, mas ele estava acostumado com isso e cortava logo as asas de quem queria “mostrar serviço”. Os bônus de final de ano, baseados nos lucros da companhia, aumentavam cada vez mais. Agora que estava solteiro de novo, começou a frequentar mais festas e arranjou namoradas interessantes e interesseiras — a sua marca de cosméticos era uma referência para tudo e todos, as namoradas sempre insinuavam que gostariam de aparecer nos cartazes de promoção de certos produtos, e ele não dizia nem sim, nem não. O tempo passava, os amores interesseiros partiam, os amores sinceros desejavam que casasse de novo com elas, mas já tinha tudo muito bem planejado para seu futuro: mais dez anos de trabalho e sairia em pleno vigor da meia-idade, cheio de dinheiro e de possibilidades. Tornaria a viajar pelo mundo, dessa vez para a Ásia, que conhecia muito pouco. Tentaria aprender coisas que sua filha, a essa altura também sua melhor amiga, gostaria de lhe mostrar. Imaginaram-se indo para o Ganges e para os Himalaias, para os Andes e para Ushuaia, perto do polo Sul — quando se aposentasse, claro. E quando ela se formasse, evidente.

 

Até que dois acontecimentos sacudiram sua vida.

 

 

O primeiro ocorreu em 3 de maio de 1968. Estava esperando sua filha em seu escritório, para irem no mesmo metrô para casa, quando viu que já havia passado mais de uma hora e ela não chegava. Resolveu deixar um bilhete na recepção do prédio onde trabalhava, perto de Saint-Sulpice (a firma tinha vários imóveis e nem todos os departamentos ocupavam sua luxuosa sede) e saiu, disposto a caminhar sozinho até o metrô.

 

De repente, viu que Paris estava ardendo, sem nenhum aviso. Uma fumaça negra cobria o ar, sirenes vinham de todas as partes, e a primeira coisa que pensou foi nos russos — bombardearam sua cidade!

 

Mas logo foi empurrado para a parede por um grupo de jovens que corria pela rua, com o rosto coberto por panos molhados, aos gritos de “acabou a ditadura!” e outros de que não se lembra mais. Atrás, policiais fortemente armados atiravam granadas de gás lacrimogêneo. Alguns dos jovens haviam tropeçado e caído, e esses começavam a ser espancados de imediato.

 

Começou a sentir os olhos arderem por causa do gás, não entendia o que estava acontecendo — o que era aquilo? Precisava perguntar a alguém, mas sobretudo no momento precisava encontrar sua filha — onde ela podia estar? Tentou caminhar em direção à Sorbonne, mas as ruas estavam intransitáveis, em batalhas campais entre as forças “da ordem” e o que parecia ser um bando de anarquistas saídos de um filme de terror. Pneus queimavam, pedras eram atiradas em direção aos policiais, os coquetéis molotov voavam em todas as direções, os meios de transporte haviam parado de funcionar. Mais gás lacrimogêneo, mais gritos, mais sirenes, mais pedras sendo arrancadas do calçamento, mais jovens sendo espancados — onde está minha filha?

 

Onde está minha filha?

 

Seria um erro — para não dizer suicídio — caminhar em direção ao confronto. O melhor era andar em direção a sua casa, aguardar o telefonema de Marie e esperar que tudo aquilo passasse, porque devia passar ainda aquela noite.

 

Nunca participara de manifestações estudantis, seus propósitos na vida eram outros, mas nenhuma das que vira continuara por mais do que algumas horas. Restava aguardar o telefonema da filha — era tudo que pedia a Deus naquele momento. Viviam em um país cheio de privilégios, onde os jovens tinham tudo que desejavam, os adultos sabiam que se trabalhassem duro chegariam à aposentadoria sem maiores problemas, continuariam a beber o melhor vinho do mundo a se alimentar da melhor cozinha do mundo e a caminhar sem sobressaltos ou assaltos pela cidade mais bonita do mundo.

 

O telefonema da filha veio em torno das duas da manhã — ele mantinha a televisão ligada, os dois canais estatais estavam transmitindo e analisando, analisando e transmitindo, o que acontecia em Paris.

 

“Não se preocupe, papai. Estou bem. E devo ceder o telefone logo para outra pessoa aqui ao meu lado, então depois explico.”

 

Tentou perguntar alguma coisa, mas ela já tinha desligado o telefone.

 

Passou a noite em claro. As manifestações estavam durando muito mais que imaginava. As cabeças falantes na TV estavam tão surpresas quanto ele, porque tudo aquilo tinha explodido de uma hora para a outra, sem muito aviso. Mas tentavam demonstrar calma, explicar os confrontos entre policiais e estudantes usando as pomposas palavras dos sociólogos, políticos, analistas, alguns policiais, uns poucos estudantes e coisas do gênero.

 

A adrenalina saiu do seu sangue, e ele caiu exausto no sofá. Quando abriu os olhos já era dia, hora de ir para o trabalho, mas alguém na televisão — que passara a noite inteira ligada — alertava que ninguém saísse de casa, os “anarquistas” estavam ocupando faculdades, estações de metrô, fechando ruas, impedindo que os carros circulassem livremente. Violando o direito fundamental de todos os cidadãos, segundo alguém.

 

Telefonou para o trabalho, ninguém atendia. Telefonou para a sede, e uma pessoa que tinha passado lá a noite porque morava no subúrbio e não tinha como ir para casa informou que era inútil tentar locomover-se naquele dia — pouquíssimas pessoas, só as que viviam nas imediações da sede, haviam conseguido chegar.

 

“De hoje não passa”, disse a pessoa anônima com a qual estava falando. Pediu para falar com seu chefe, mas ele, como muitos outros, não tinha saído para trabalhar.

 

A agitação e os confrontos não arrefeceram como esperado — pelo contrário, a situação piorou quando viram o tratamento que a polícia estava dispensando aos estudantes.

 

A Sorbonne, símbolo da cultura francesa, acabara de ser ocupada, e seus professores aderiram às manifestações ou foram expulsos do local. Criaram-se vários comitês com várias propostas que logo seriam implementadas ou descartadas, dizia a TV, a essa altura já mostrando mais simpatia pelos estudantes.

 

As lojas no seu bairro estavam fechadas, exceto uma, gerenciada por um indiano — e havia uma fila de gente na porta esperando ser atendida. Ele colocou-se pacientemente na fila, escutando os comentários de quem estava ali: “por que o governo não faz nada?”; “por que pagamos impostos tão altos para que a polícia seja incapaz de agir em um momento desses?”; “isso é culpa do Partido Comunista”; “isso é culpa da educação que demos aos nossos filhos, que agora se julgam no direito de se voltar contra tudo o que ensinamos”.

 

Coisas do tipo. A única coisa que ninguém era capaz de explicar era por que tudo aquilo estava acontecendo. “Não sabemos ainda.”

 

O primeiro dia passou.

 

E passou o segundo.

 

E a primeira semana terminou.

 

E tudo só piorava.

 

Seu apartamento ficava em uma pequena colina em Montmartre, a três estações de metrô do seu trabalho e, da janela, podia escutar as sirenes, ver a fumaça dos pneus queimados, olhar sem parar a rua esperando que sua filha chegasse. Três dias depois ela apareceu, tomou um banho rápido, pegou algumas de suas roupas para usar — já que as dela estavam em seu apartamento —, comeu qualquer coisa que pudesse e saiu de novo, sempre dizendo “depois eu explico”.

 

E aquilo que ele pensava que era uma coisa passageira, uma fúria contida, terminou por se expandir pela França inteira; os empregados sequestravam seus patrões, e uma greve geral foi decretada. A maioria das fábricas foi ocupada pelos trabalhadores — assim como, uma semana antes, ocorrera com as universidades.

 

A França parou. E o problema deixou de ser os estudantes — que pareciam ter mudado de foco e agora agitavam bandeiras como “amor livre”, ou “abaixo o capitalismo”, ou “pela abertura das fronteiras a todos”, ou “burgueses, vocês não estão entendendo nada”.

 

O problema agora era a greve geral.

 

A TV era seu único meio de informação. Foi ali que viu, para sua surpresa e vergonha, que depois de vinte dias de inferno o presidente da França, general Charles de Gaulle, aquele que resistira aos nazistas, aquele que acabara com a guerra colonial na Argélia, aquele que todos admiravam, finalmente aparecera para dizer aos seus conterrâneos que ia organizar um referendo propondo “uma renovação cultural, social e econômica”. Caso perdesse o referendo, renunciaria.

 

Aquilo que ele propunha não queria dizer nada para os operários, que estavam pouquíssimo interessados em amor livre, país sem fronteiras, coisas do tipo. Pensavam apenas em uma coisa: aumento significativo de salário. O primeiro-ministro Georges Pompidou se encontrou com os representantes sindicais, os trotskistas, os anarquistas, os socialistas, e só nesse momento a crise começa a recuar — porque, quando todos foram colocados frente a frente, cada um tinha uma reivindicação diferente. A divisão é o governo.

 

Jacques resolveu participar de uma passeata pró De Gaulle. A França inteira assistiu estarrecida ao que aconteceu. A passeata, em praticamente todas as cidades, termina reunindo uma quantidade imensa de pessoas, e os que deram início àquilo que Jacques nunca deixou de chamar de “anarquia” começam a recuar. Os novos contratos de trabalho foram assinados. Os estudantes, que nada mais tinham a reivindicar, começaram a voltar pouco a pouco para as aulas — com aquela sensação de uma vitória que não significa absolutamente nada.

 

No final de maio (ou início de junho, não conseguia precisar direito), sua filha finalmente voltou para casa e disse que conseguiram tudo o que queriam. Ele não perguntou o que queriam, e ela não explicou, mas parecia cansada, decepcionada, frustrada. Os restaurantes já estavam abrindo, foram jantar à luz de vela, evitando tocar no assunto — Jacques jamais diria que foi a uma passeata A FAVOR do governo —, e o único comentário que levou a sério, muito sério, foi quando ela disse:

 

“Cansei daqui. Vou viajar e morar longe.”

 

No fim desistiu da ideia, porque antes precisava “terminar seus estudos”, e ele entendeu que aqueles que torciam por uma França próspera e competitiva tinham vencido. Revolucionários de verdade não estão nem um pouco preocupados em formar-se e ter um diploma.

 

Desde então lera milhares de páginas de explicações e justificativas dadas por filósofos, políticos, editores, jornalistas etc. Citavam o fechamento de uma universidade em Nanterre logo no início do mês, mas aquilo não podia justificar toda a fúria que assistira nas poucas vezes em que se aventurou fora de casa.

 

E nunca viu uma única, uma só linha que pudesse leva-lo a dizer: “Ah, foi isso que provocou tudo”.

 

O segundo — e definitivo — momento de transformação foi um jantar em um dos mais luxuosos restaurantes de Paris, onde levava clientes especiais — potenciais compradores para seus países e suas cidades. Maio de 1968 já era algo ultrapassado na França, embora tenha espalhado seu fogo por outros lugares do mundo. Ninguém queria pensar nisso e, se algum cliente estrangeiro ousasse perguntar a respeito, ele delicadamente mudaria de assunto, argumentando que “os jornais sempre exageram as coisas”.

 

E a conversa morria ali.

 

Era íntimo do dono do restaurante, que o chamava pelo nome de batismo, e isso impressionava suas companhias — parte do plano, por sinal. Entrava, os garçons o dirigiam à “sua mesa” (que toda hora mudava de acordo com a lotação, mas os convidados não sabiam disso), imediatamente uma taça de champanhe era servida a cada um, os menus entregues, os pedidos feitos, o vinho caro (“o de sempre, não é verdade?”, perguntava o garçom, e Jacques assentia com a cabeça), e as conversas eram as mesmas (com os recém-chegados desejando saber se deviam ir ao Lido, Crazy Horse ou ao Moulin Rouge, incrível como Paris estava reduzida a ISSO no exterior). Não se falava de trabalho em um jantar de negócios, a não ser no final, quando um excelente charuto cubano era oferecido a todos na mesa, os últimos detalhes sendo acertados por gente que se achava importantíssima, quando na verdade o departamento de vendas já tinha todas aquelas coisas previstas e só precisava das assinaturas, o que ocorria sempre.

 

Depois que todos fizeram seus pedidos, o garçom virou-se para ele: “O de sempre?”.

 

O de sempre: ostras de entrada. Explicava que precisavam ser servidas vivas; como seus convidados eram, em sua maioria, estrangeiros, ficavam horrorizados. Seu plano era pedir caracóis em seguida — os famosos escargots. Terminaria com um prato de coxas de rã.

 

Ninguém ousava acompanhá-lo, e era isso que ele queria. Era parte do marketing.

 

Todas as entradas foram servidas ao mesmo tempo. As ostras chegaram, e os outros ficaram aguardando o que aconteceria depois. Ele espremeu um pouco de limão sobre a primeira, que se moveu, para surpresa e espanto dos convidados. Colocou-a na boca e deixou que deslizasse para seu estômago, saboreando a água salgada que sempre ficava na concha.

 

E, dois segundos depois, já não conseguia respirar mais. Tentou manter a pose, mas era impossível — caiu no chão e entendeu que ia morrer naquele momento, olhando um teto e seus candelabros de cristal autêntico, possivelmente trazidos da Tchecoslováquia.

 

Sua visão começou a mudar de cor, agora via apenas preto e vermelho. Tentou sentar-se — já havia comido dezenas, centenas, milhares de ostras em sua vida —, mas o corpo não respondia aos movimentos. Tentava puxar o ar, que não entrava de maneira nenhuma.

 

Houve um momento rápido de ansiedade, e Jacques morreu.

 

De repente, estava flutuando no teto do restaurante, as pessoas à sua volta, outras tentando abrir espaço, e um garçom marroquino correndo em direção à cozinha. A visão não era exatamente nítida e clara, era mais como se houvesse uma película transparente ou uma espécie de água correndo entre ele e a cena lá embaixo. Não havia mais medo nem nada — uma imensa paz inundava tudo, e o tempo, porque ainda havia tempo, acelerava. As pessoas lá embaixo pareciam mover-se em câmera lenta, melhor dizendo, em fotogramas de filme. O marroquino voltava da cozinha, e as imagens sumiram — sobrou apenas o vazio completo, branco, e a paz, quase palpável. Ao contrário do que muitos dizem em ocasiões como essa, não viu nenhum túnel negro; sentia que havia uma energia de amor à sua volta, uma coisa que havia muito tempo não experimentava. Era um bebê no ventre de sua mãe, só isso — não queria sair dali nunca mais.

 

De repente sentiu que uma mão o agarrava e o puxava para baixo. Não queria ir, estava finalmente gozando daquilo pelo que sempre lutara e esperara por toda a sua vida — tranquilidade, amor, música, amor, tranquilidade. Mas a mão o puxou com uma imensa violência, e ele não conseguia lutar contra isso.

 

A primeira coisa que viu quando abriu os olhos foi o rosto do dono do restaurante, entre preocupado e contente. Seu coração estava disparado, sentia náuseas, vontade de vomitar, mas controlou-se. Suava frio, e um dos garçons trouxe uma toalha de mesa para cobri-lo.

 

“Onde foi que arranjou essa cor cinza com esse belo batom azul?”, perguntou o dono.

 

Seus companheiros de mesa, sentados ao redor dele no chão, pareciam também aliviados e aterrorizados. Ele tentou levantar, mas o dono o impediu.

 

“Descanse. Não foi a primeira vez que isso aconteceu aqui e não será a última, imagino. Por causa disso não apenas a gente, mas a maior parte dos restaurantes, é obrigada a ter um kit de primeiros socorros, com esparadrapos, desinfetantes, um desfibrilador no caso de ataque cardíaco e a providencial injeção de adrenalina que acabamos de usar. Tem algum telefone de parente? Estamos chamando a ambulância, mas você está completamente fora de perigo. Eles vão pedir a mesma coisa — um telefone, mas se você não tiver imagino que algum dos seus companheiros possa acompanhá-lo.”

 

“A ostra?”, foram suas primeiras palavras.

 

“Claro que não — nossos produtos são de primeira qualidade. Mas não sabemos o que elas comem — e, pelo visto, essa nossa amiga, em vez de criar uma pérola com sua doença, resolveu tentar matá-lo.”

 

Foi o quê?

 

Nesse momento, a ambulância já havia chegado, tentaram colocá-lo em uma maca, mas ele disse que estava bem, precisava acreditar nisso, levantou com um pouco de esforço, porém os paramédicos o deitaram de novo, dessa vez na maca. Resolveu não discutir nem dizer nada. Perguntaram se tinha o telefone de algum familiar. Ele deu o da filha, e isso era um bom sinal, porque conseguia pensar com clareza.

 

Os médicos tomaram a pressão, mandaram que seguisse determinada luz com seus olhos, que colocasse o dedo da mão direita na ponta do nariz, tudo sendo obedecido, e ele louco para sair dali. Não precisava de hospital nenhum, mesmo que pagasse uma fortuna de impostos para que o serviço de saúde fosse excelente e gratuito.

 

“Vamos deixá-lo em observação esta noite”, disseram, enquanto caminhavam para a ambulância na porta, em torno da qual já haviam se juntado vários populares, sempre contentes de ver alguém que pode estar pior que eles. A morbidez do ser humano não tem limites.

 

Já seguindo em direção ao hospital, sem as sirenes ligadas (bom sinal), perguntou se tinha sido a ostra. O paramédico ao seu lado confirmou o que o dono dissera. Não. Se fosse a ostra, teria demorado mais tempo, ou até mesmo horas.

 

E o que foi?

 

“Alergia.”

 

Pediu para que explicassem melhor — o dono do restaurante dissera que devia ser algo que a ostra havia comido e, de novo, confirmaram. Ninguém sabia como e quando aquilo costumava ocorrer — mas sabiam como tratar. O nome técnico é “choque anafilático”. Sem querer assustá-lo, um dos paramédicos contou que as alergias aparecem sem dar o menor aviso. “Por exemplo, você pode comer romãs desde criança, mas um dia ela consegue matá-lo em poucos minutos, porque seu corpo desenvolveu alguma coisa que não conseguimos explicar. Por exemplo, uma pessoa passa anos cuidando do seu jardim, as ervas são as mesmas, o pólen não mudou de qualidade, até que um dia começa a tossir, sente uma dor de garganta, depois no pescoço, acha que ficou resfriado e deve entrar em casa, mas já não consegue andar mais. Não era uma dor de garganta, mas um estreitamento da traqueia. Troppo tardi. E isso acontece com coisas com as quais passamos em contato toda nossa vida.

 

“Insetos talvez possam ser mais perigosos, mas mesmo assim não vamos passar a vida inteira com medo de abelhas, não é verdade?

 

“Mas não se assuste. Alergias não são graves e não escolhem idade. O que é grave é o choque anafilático, como você teve — o resto é nariz escorrendo, placas vermelhas na pele, coceira, coisas do tipo.”

 

Chegaram ao hospital, e sua filha estava na recepção. Já sabia também que o pai sofrera um choque alérgico, que pode ser fatal se não socorrido a tempo, mas esses casos são raríssimos. Foram para um quarto particular — Marie já tinha fornecido ao hospital o número do seguro e não era necessário colocá-lo em uma enfermaria coletiva.

 

Mudou a roupa — na pressa Marie tinha esquecido de trazer um pijama, de modo que vestiu o fornecido pelo próprio hospital. Um médico entrou, tomou o pulso — tinha voltado ao normal; a pressão continuava um pouco alta, mas atribuiu isso ao estresse que vivera nos últimos vinte minutos. Pediu que a moça não demorasse muito, amanhã ele já estaria em casa.

 

Marie puxou uma cadeira para perto da cama, segurou suas mãos e, de repente, Jacques começou a chorar. No início eram apenas lágrimas correndo em silêncio, que logo se transformaram em soluços, que aumentaram de intensidade, e ele sabia que precisava daquilo, de modo que não tentou controlar nada. O pranto fluía, e sua filha apenas dava palmadas carinhosas em suas mãos, entre aliviada e assustada, porque era a primeira vez que via o pai chorando.

 

Não sabia quanto tempo demorou aquilo. Aos poucos foi se acalmando, como se tirasse um peso do ombro, do peito, da cabeça, da vida. Marie achou que já era hora de deixá-lo dormir e fez menção de retirar a mão, mas ele a manteve.

 

“Não vá embora. Preciso contar uma coisa.”

 

Ela deitou a cabeça no colo do pai, como fazia quando era criança, para escutar histórias. Ele acariciou seus cabelos.

 

“Você sabe que está bem e amanhã pode ir ao trabalho, não sabe?”

 

Sim. Ele sabia. E no dia seguinte iria ao trabalho — não para o edifício onde tinha seu escritório, mas para a sede. O atual diretor crescera na companhia junto com ele e mandara um recado dizendo que gostaria de vê-lo.

 

“Quero lhe contar uma coisa: eu morri por alguns segundos, ou minutos, ou uma eternidade — não tenho noção do tempo porque as coisas passavam muito devagar. E de repente me vi envolto por uma energia de amor que nunca tinha experimentado antes. Era como se eu estivesse na presença...”

 

Sua voz começou a tremer, como ocorre com alguém que está segurando o choro. Mas ele continuou:

 

“... como se eu estivesse na presença da Divindade. Coisa que, você sabe muito bem, jamais acreditei em minha vida. Escolhi para você uma escola católica porque era perto de nossa casa, e o ensino, excelente. Era obrigado a participar de cerimônias religiosas, o que me matava de tédio, enchia sua mãe de orgulho, seus colegas e pais de colegas me viam como um deles. Mas na verdade era apenas um sacrifício que eu fazia por você.”

 

Continuou acariciando a cabeça da filha — nunca lhe ocorrera perguntar se ela acreditava ou não em Deus, porque não era o momento. Pelo visto ela já não seguia o catolicismo estrito que lhe havia sido ensinado, estava sempre com roupas exóticas, amigos de cabelos longos, escutando músicas muito diferentes de Dalida ou Edith Piaf.

 

“Eu sempre tive tudo bem planejado, sabia executar esses planos e, de acordo com meu calendário, em breve estaria aposentado e com dinheiro para fazer o que gosto. Mas tudo isso mudou naqueles minutos ou segundos ou anos em que Deus estava segurando minha mão. Entendi assim que voltei para o restaurante, para o chão, para o rosto do preocupado do dono que fingia calma, que jamais voltaria a viver o que estava vivendo.”

 

“Mas você gosta de seu trabalho.”

 

“Gostava tanto que era o melhor no que fazia. E agora quero me despedir desse trabalho amanhã, cheio de boas lembranças. E quero te pedir um favor.”

 

“Qualquer coisa. Você sempre foi um pai que me ensinou mais pelo exemplo que por coisas que dizia.”

 

“Pois é isso que quero pedir. Eu lhe eduquei durante anos e agora quero que você me eduque. Que possamos viajar juntos pelo mundo, olhar coisas que nunca vi, prestar mais atenção à noite e à manhã. Peça demissão do seu emprego e venha comigo. Peça que seu namorado seja tolerante, espere pacientemente sua volta, e venha comigo.

 

“Porque preciso deixar que minha alma e meu corpo mergulhem em rios que desconheço, beber coisas que nunca bebi, olhar montanhas que vejo apenas na televisão, deixar que o mesmo amor que experimentei esta noite torne a se manifestar, mesmo que seja um minuto por ano. Eu quero que me guie para o seu mundo. Jamais serei um fardo, e quando achar que devo me afastar basta pedir e farei isso. E quando achar que já posso voltar, voltarei e daremos mais um passo juntos. Quero que você me guie, repito.”

 

A filha não se mexia. Seu pai não havia voltado apenas para o mundo dos vivos, mas encontrara uma porta ou janela aberta para o seu próprio mundo — que ela jamais ousara dividir com ele.

 

Os dois tinham sede do Infinito. E matar essa sede era simples — bastava deixar que o infinito se manifestasse. E para isso não precisavam de nenhum lugar especial além do próprio coração e da fé que existe, uma força sem forma que permeia tudo e carrega em si o que os alquimistas chamam de Anima Mundi.

 

Jacques chegou à frente do bazar, onde entravam mais mulheres que homens, mais crianças que adultos, menos bigodes e mais senhoras de cabeças cobertas. Onde estava parado podia sentir um perfume intenso — uma mistura de perfumes que se transformavam em um só e subia até os céus e voltava de novo para a terra, trazendo junto com a chuva a bênção e o arco-íris.

 

 

A voz de Karla parecia mais doce quando se encontraram no quarto do hotel para vestirem as roupas lavadas no dia anterior e saírem para jantar.

 

“Onde você passou o dia?”

 

Ela nunca tinha perguntado isso — em seu entender, era algo que sua mãe indagaria a seu pai, ou os adultos casados aos seus parceiros. Ele não estava com vontade de responder, e ela não insistiu.

 

“Imagino que tenha ido ao bazar para me procurar.” E começou a rir.

 

“Caminhei em sua direção, mas logo mudei de ideia e voltei para o lugar onde estava antes.”

 

“Tenho uma sugestão e você não pode recusar: vamos jantar na Ásia.”

 

Não era preciso muito esforço para entender o que propunha: atravessar a ponte que une os dois continentes. Mas o Magic Bus faria isso em breve, por que acelerar as coisas?

 

“Porque um dia eu posso contar algo que as pessoas jamais acreditarão. Tomei um café na Europa e vinte minutos depois entrava em um restaurante na Ásia, disposta a comer tudo de bom que existe ali.”

 

Era uma boa ideia. Ele poderia dizer o mesmo aos seus amigos. Ninguém tampouco iria acreditar, achariam que a droga afetara seu cérebro, mas que importância tinha isso? Realmente havia uma droga que começava a fazer lentamente efeito, isso tinha ocorrido naquela tarde, com o mesmo homem que encontrara quando entrou no Centro Cultural vazio e com as paredes pintadas de verde.

 

Karla havia comprado algum tipo de maquiagem no bazar, porque saiu do banheiro com pintura em torno do olho, rímel nas sobrancelhas, algo que jamais tinha visto. Sorria o tempo todo, algo que ele tampouco tinha reparado antes. Paulo pensou em fazer a barba — tinha um cavanhaque eterno, que escondia seu queixo proeminente, mas em geral fazia a barba sempre que podia, e a ausência desse ato trazia memórias horrorosas, como os dias passados na prisão. Mas não lhe passara na cabeça comprar um daqueles barbeadores descartáveis — jogara fora o último do pacote anterior antes mesmo de cruzarem a Iugoslávia. Vestiu um suéter comprado na Bolívia, o casaco de jeans com os apliques de estrela e desceram juntos.

 

Não havia ninguém do ônibus no saguão do hotel, exceto o motorista, entretido na leitura de um jornal. Perguntou como podia cruzar a ponte até a Ásia. O motorista sorriu:

 

“Já sei. Eu fiz a mesma coisa quando vim a primeira vez por aqui.”

 

Deu-lhes as informações necessárias para pegar um ônibus (nem sonhem em atravessar a pé) e lamentou ter esquecido o nome do excelente restaurante em que almoçara um dia, do outro lado do Bósforo.

 

“Como estão as coisas no mundo?”, perguntou Karla, apontando o jornal. O motorista também parecia estar surpreso com a maquiagem e o sorriso. Algo havia mudado.

 

“Já calmas há uma semana. Para os palestinos que — segundo diz o jornal — são a maioria no país e estavam preparando um golpe de Estado, isso será conhecido para sempre como Setembro Negro. É assim que estão chamando. Mas, fora isso, o tráfego flui normalmente — embora eu tenha ligado de novo para o escritório e eles tenham sugerido que aguarde instruções aqui mesmo.”

 

“Ótimo, ninguém está com pressa. Istambul é um mundo a ser descoberto.”

 

“Vocês precisam conhecer a Anatólia.”

 

“Tudo a seu tempo.”

 

Enquanto caminhavam em direção à parada de ônibus, notou que Karla segurava sua mão como se fossem o que não eram — namorados. Falaram um pouco de generalidades, acharam ótimo que era noite de lua cheia, não ventava nem chovia, o tempo ideal para aquele jantar.

 

“Eu pago a conta hoje”, disse ela. “Estou com uma vontade louca de beber.”

 

O ônibus entrou na ponte, cruzaram o Bósforo em silêncio respeitoso — como se fosse uma experiência religiosa. Saltaram no primeiro ponto, caminharam pela borda da Ásia, onde havia cinco ou seis restaurantes com toalhas de plástico na mesa. Sentaram no primeiro. Olharam para a paisagem à sua frente, a cidade onde os monumentos não eram iluminados como na Europa, mas onde a lua se encarregava de jogar a luz mais bela de todas.

 

O garçom se aproximou e perguntou o que queriam. Ambos disseram que ele escolhesse o que havia de melhor de comida típica. O garçom não estava acostumado com isso.

 

“Mas eu preciso saber o que querem. Aqui normalmente todo mundo sabe o que quer.”

 

“Queremos o melhor. Isso não é resposta suficiente?”

 

Sem dúvida era. E o garçom, em vez reclamar de novo, aceitou que o casal de estrangeiros estava confiando nele. O que lhe dava uma imensa responsabilidade, mas ao mesmo tempo uma imensa alegria também. “E o que desejam beber?”

 

“O melhor vinho da região. Nada que seja europeu, estamos na Ásia.”

 

Estavam jantando na Ásia, juntos, pela primeira vez na vida! “Infelizmente não servimos bebidas alcoólicas aqui. Regras estritas da religião.”

 

“Mas a Turquia é um país laico, não é mesmo?”

 

“Sim, mas o dono daqui é religioso.” Se quisessem, podiam mudar de local, duas quadras atrás encontrariam o que desejavam. Mas duas quadras atrás tomariam vinho e perderiam aquela magnífica paisagem de Istambul iluminada pela luz da lua. Karla perguntou a si mesma se conseguiria dizer tudo o que pensava sem beber nada. Paulo não hesitou — seria um jantar sem vinho.

 

O garçom trouxe uma vela vermelha dentro de uma lanterna de metal, acendeu-a no centro da mesa e, enquanto tudo isso ocorria, nenhum dos dois dizia nada — bebiam a beleza e se embriagavam com ela.

 

“Ficamos de falar de nossos dias. Você me disse que caminhou em direção ao bazar para me encontrar e logo mudou de ideia. Ainda bem, porque eu não estava no bazar. Iremos juntos amanhã.”

 

Ela se comportava de uma maneira bem diferente, estranhamente suave — o que não era sua característica. Teria encontrado alguém e precisava dividir sua experiência?

 

“Comece você. Saiu do lugar onde disse que iria em busca de uma cerimônia religiosa. Conseguiu?”

 

“Não exatamente o que estava buscando, mas consegui.”

 

 

“Eu sabia que iria voltar”, disse o homem sem nome, quando viu o rapaz com roupas coloridas entrar de novo. “Imagino que teve uma experiência forte porque este lugar está impregnado da energia dos dervixes que dançam. Embora, faço questão de frisar, todos os lugares da Terra têm a presença de Deus em suas menores coisas — nos insetos, no grão de areia, tudo.”

 

“Quero aprender sufismo. Preciso de um mestre.”

 

“Então busque a Verdade. Procure estar ao lado dela o tempo todo, mesmo que machuque, fique muda por muito tempo ou não diga o que você quer ouvir. Isso é sufismo. O resto são cerimônias sagradas que nada mais fazem que aumentar esse estado de êxtase, e para participar delas você deveria converter-se ao islã, o que sinceramente não aconselho — porque não é necessário participar de uma religião apenas por causa dos rituais.”

 

“Mas preciso de alguém para me guiar no caminho da verdade.”

 

“O sufismo não é isso. Milhares de livros já foram escritos sobre o caminho da verdade e nenhum deles explica exatamente o que é. Em nome da Verdade, a raça humana cometeu seus piores crimes. Homens e mulheres foram queimados, a cultura de civilizações inteiras foi destruída, os que cometiam os pecados da carne eram mantidos à distância, os que procuravam um caminho diferente eram marginalizados. Um deles, em nome da ‘verdade’, terminou crucificado. Mas, antes de morrer deixou a grande definição da Verdade. Não é o que nos dá certezas. Não é o que nos dá profundidade. Não é o que nos faz melhor que os outros. Não é o que nos mantém na prisão dos preconceitos. “A verdade é o que nos faz livres. ‘Conheceis a Verdade e a Verdade vos libertará’, disse Jesus.”

 

Deu uma pausa.

 

“O sufismo nada mais é que atualizar a si mesmo, reprogramar sua mente, entender que as palavras são limitadas para descrever o absoluto, o infinito.”

 

 

A comida chegou. Karla sabia exatamente o que Paulo estava dizendo, e tudo o que iria comentar quando chegasse sua vez seria baseado nas palavras dele.

 

“Comemos em silêncio?”, perguntou ela. De novo Paulo estranhou seu comportamento — normalmente ela teria dito a frase com um ponto de exclamação no final.

 

Sim, comeram em silêncio. Olhando o céu, a lua cheia, as águas do Bósforo iluminadas por seus raios, os rostos iluminados pela chama da vela, o coração que explode quando dois estranhos se encontram e de repente vão juntos para outra dimensão. Quanto mais nos permitimos receber do mundo, mais iremos receber — seja amor, seja ódio.

 

Mas naquele momento não era nem uma coisa nem outra. Não procurava nenhuma revelação, não respeitava nenhuma tradição, se esquecera do que diziam os textos sagrados, a lógica, a filosofia, tudo.

 

Estava no vazio, e o vazio, por sua contradição, preenchia tudo.

 

Não perguntaram o que haviam servido — sabiam apenas que eram pequenas porções em muitos pratos. Não tinham coragem de beber a água do lugar, de modo que pediram refrigerantes — mais seguro, ainda que muitíssimo menos interessante.

 

Paulo ousou fazer a pergunta que o matava de curiosidade e que podia estragar a noite, mas já não aguentava mais controlar-se:

 

“Você está completamente diferente. Como se tivesse encontrado alguém e estivesse apaixonada. Não precisa responder, se não quiser.”

 

“Encontrei alguém e estou apaixonada, embora ele ainda não saiba.”

 

“E essa foi sua experiência de hoje? É isso que deseja me contar?”

 

“Sim. Quando acabar sua história. Ou já acabou?”

 

“Não. Mas não preciso contar até o final, porque ainda não tem final.”

 

“Gostaria de ouvir o resto.”

 

Ela não havia demonstrado raiva com a pergunta, e ele procurou concentrar-se na comida — nenhum homem gosta de saber dessas coisas, sobretudo quando está em companhia de uma mulher. Sempre deseja que ela esteja ali por completo, concentrada no momento, no jantar à luz de vela, na lua que iluminava as águas e a cidade.

 

Começou a provar um pouco de cada prato — massas recheadas de carne que pareciam raviólis, arroz enrolado em pequenos charutos feitos de folha de parreira, iogurte, pães ázimos recém-saídos do forno, feijões, espetos de carne, espécies de pizzas feitas em forma de barco recheadas de azeitonas e especiarias. Aquele jantar iria demorar uma eternidade. Mas, para surpresa dos dois, a comida logo sumiu da mesa — era deliciosa demais para ficar ali, esfriando e perdendo o sabor.

 

O garçom voltou, recolheu os pratos de plástico e perguntou se podia trazer o prato principal.

 

“De jeito nenhum! Estamos mais que satisfeitos!”

 

“Mas está sendo preparado, não podemos parar agora.”

 

“Pagaremos o prato principal, mas POR FAVOR não traga mais nada ou não conseguiremos sair daqui andando.”

 

O garçom riu. Os dois riram. Soprava um vento diferente, trazendo coisas diferentes, enchendo tudo à volta de sabores e cores diferentes.

 

Nada tinha a ver com a comida, com a lua, com o Bósforo, com a ponte — mas com o dia que ambos haviam vivido.

 

“Pode terminar?”, disse Karla, acendendo dois cigarros e entregando-lhe um. “Estou louca para contar meu dia e meu encontro comigo mesma.”

 

Pelo visto, entrara em contato com sua alma gêmea. Na verdade, Paulo já não estava interessado na história, mas tinha pedido para ouvir, e agora iria até o final.

 

 

Sua mente voltou para a sala verde com parte das vigas do teto descascando e os vidros quebrados nas janelas que um dia deviam ter sido verdadeiras obras de arte. O sol já havia descido, a sala estava na penumbra, era hora de voltar para o hotel, mas Paulo insistiu com o homem sem nome:

 

“Mas o senhor deve ter tido um mestre.”

 

“Tive três — nenhum deles ligado ao islã ou conhecedores dos poemas de Rumi. Enquanto eu aprendia, meu coração perguntava ao Senhor: estou no caminho correto? Ele respondia: está. Eu insistia: e quem é o Senhor? Ele respondia: você.”

 

“Quem foram seus três mestres?”

 

Ele sorriu, acendeu o narguilé azul ao seu lado, deu umas baforadas, estendeu para Paulo, que fez a mesma coisa, e sentou no chão.

 

“O primeiro foi um ladrão. Certa vez eu estava perdido no deserto e só consegui chegar em casa muito tarde da noite. Havia deixado minha chave com o vizinho, mas não tinha coragem de acordá-lo àquela hora. Finalmente encontrei um homem, pedi ajuda, e ele abriu a fechadura num piscar de olhos.

 

“Fiquei muito impressionado e implorei que me ensinasse a fazer aquilo. Ele me disse que vivia de roubar as outras pessoas, mas eu estava tão agradecido que o convidei para dormir em minha casa.

 

“Ele ficou comigo por um mês. Toda noite saía e comentava: ‘Estou indo trabalhar; continue sua meditação e reze bastante’. Quando voltava, eu perguntava sempre se tinha conseguido alguma coisa. Ele invariavelmente me respondia: ‘Não consegui nada esta noite. Mas, se Deus quiser, amanhã tentarei de novo’.

 

“Era um homem contente e nunca o vi ficar desesperado com a falta de resultados. Durante grande parte da minha vida, quando meditava e meditava sem que nada acontecesse, sem conseguir meu contato com Deus, eu me lembrava das palavras do ladrão — ‘Não consegui nada esta noite, mas, se Deus quiser, amanhã tentarei de novo’. Isso me deu forças para seguir adiante.”

 

“E quem foi a segunda pessoa?”

 

“Foi um cachorro. Eu estava indo em direção ao rio para beber um pouco de água quando o cachorro apareceu. Ele também estava com sede. Mas, quando chegou perto da água, viu outro cachorro ali — que não era mais que sua própria imagem refletida.

 

“Ficou com medo, se afastou, latiu, fez de tudo para afastar o outro cachorro. Nada aconteceu, é claro. Finalmente, porque sua sede era imensa, resolveu enfrentar a situação e atirou-se dentro do rio; nesse momento a imagem sumiu.”

 

O homem sem nome fez uma pausa e continuou:

 

“Finalmente, meu terceiro mestre foi uma criança. Ela caminhava em direção à mesquita perto do vilarejo onde eu vivia, com uma vela acesa na mão. Eu perguntei: ‘Você mesmo acendeu esta vela?’. O garoto disse que sim. Como fico preocupado com crianças brincando com chamas, insisti: ‘Menino, houve um momento em que esta vela esteve apagada. Você poderia me dizer de onde veio o fogo que a ilumina?’.

 

“O garoto riu, apagou a vela e me perguntou de volta: ‘E o senhor, pode me dizer para onde foi o fogo que estava aqui?’.

 

“Nesse momento eu entendi o quão estúpido sempre tinha sido. Quem acende a chama da sabedoria? Para onde ela vai? Compreendi que, igual àquela vela, o homem carrega por certos momentos no seu coração o fogo sagrado, mas nunca sabe onde foi aceso. A partir daí, comecei a prestar mais atenção a tudo que me cercava — nuvens, árvores, rios e florestas, homens e mulheres. E tudo me ensinava o que precisava saber no momento, e as lições sumiam quando não precisava mais delas. Tive milhares de mestres a minha vida inteira.

 

“Passei a confiar que a chama sempre estaria brilhando quando dela precisasse; fui um discípulo da vida e ainda continuo sendo. Consegui aprender com as coisas mais simples e mais inesperadas, como as histórias que os pais contam para os seus filhos.

 

“Por isso que a quase totalidade da sabedoria sufi não está em textos sagrados, mas em histórias, orações, danças e contemplação.”

 

Escutou-se de novo os alto-falantes das mesquitas, com os muezins chamando os fiéis para a prece final do dia. O homem sem nome ajoelhou-se com o corpo virado em direção à Meca e fez sua prece. Quando terminou, Paulo perguntou se podia voltar de novo no dia seguinte.

 

“Claro”, respondeu ele. “Mas não vai aprender nada mais do que seu coração quiser ensinar. Porque tudo que tenho para você são histórias e um lugar que pode aproveitar sempre que estiver em busca de silêncio — e quando não tivermos as danças religiosas.”

 

 

Paulo virou-se para Karla:

 

“Agora é sua vez.”

 

Sim, ela sabia. Pagou a conta e caminharam até a beira do estreito. Podia-se escutar os carros e as buzinas na ponte, mas eram incapazes de estragar a lua, a água, a vista de Istambul.

 

“Hoje eu sentei do outro lado e fiquei horas olhando a água correr. Lembrei-me de como tinha vivido até hoje, dos homens que conheci e do meu comportamento, que parecia não mudar nunca. Já estava cansada de mim mesma.

 

“E me perguntei: por que sou assim? Será que sou a única, ou existem outras pessoas incapazes de amar? Conheci muitos homens na minha vida que estavam dispostos a tudo por mim e não me apaixonei por ninguém. Às vezes pensava que finalmente encontrara meu príncipe encantado, mas esse sentimento não durava muito — e logo já não conseguia mais aguentar a companhia daquela pessoa, por mais carinhosa, atenciosa, amorosa que fosse. Não dava maiores explicações, apenas dizia a verdade — eles tentavam tudo para me reconquistar, mas era inútil. O simples toque no meu braço, tentando justificar alguma coisa, me dava repulsa.

 

“Estive com gente que ameaçou se suicidar — graças a Deus apenas ameaçou. Jamais senti ciúmes. Em determinado momento de minha vida, quando ultrapassei a barreira dos vinte anos, pensei que estava doente. Nunca fui fiel — arranjava amantes diferentes, mesmo quando estava com alguém disposto a fazer tudo por mim. Conheci um psiquiatra ou psicanalista, não sei exatamente, e fomos para Paris. Foi a primeira vez que alguém notou isso e logo veio com as frases feitas — eu precisava de ajuda médica, meu organismo tinha falta de alguma coisa que é produzida pelas glândulas. Em vez de procurar ajuda médica, o que fiz foi voltar para Amsterdam.

 

“Como deve ter percebido e imaginado, consigo seduzir homens com facilidade. Mas logo perco o interesse. Por isso minha ideia de ir até o Nepal: eu pensava em não voltar nunca, envelhecer descobrindo meu amor por Deus — que, confesso, até o momento é apenas algo que imagino ter, mas que não estou completamente convencida.

 

“O fato é que não encontrava resposta para essa pergunta, não queria ir a médicos, queria simplesmente desaparecer do mundo e dedicar minha vida à contemplação. Mais nada.

 

“Porque uma vida sem amor não vale a pena. O que é uma vida sem amor? É a árvore que não dá frutos. É dormir sem sonhar. Às vezes é até mesmo ser incapaz de dormir. É viver um dia após o outro esperando que o sol entre em um quarto completamente fechado, pintado de preto, onde você sabe que existe uma chave, mas não deseja abrir a porta e sair dali.”

 

Sua voz começava a tremer, como se estivesse a ponto de chorar. Paulo aproximou-se dela e tentou abraçá-la, mas Karla o afastou.

 

“Ainda não terminei. Sempre fui mestre em manipular todos, e isso me fez confiar tanto em mim, em minha superioridade, que dizia inconscientemente para mim mesma: só me entregarei por completo no dia em que aparecer alguém capaz de me domar. E até hoje nunca apareceu.”

 

Virou-se para ele com olhos em que as possíveis lágrimas tinham sido substituídas por faíscas.

 

“Por que você está aqui, neste lugar de sonhos? Porque EU QUIS. Porque precisava de uma companhia e achei que você seria o ideal, mesmo depois de ver todas as suas falhas — dançar atrás dos Hare Krishna fingindo que é um homem livre, ir até a casa do sol nascente para demonstrar coragem, quando na verdade é uma burrice. Aceitar visitar um moinho — UM MOINHO! — como se estivesse visitando as planícies de Marte.”

 

“Você insistiu.”

 

Karla não havia insistido, apenas sugerido, mas pelo visto suas sugestões eram normalmente entendidas como ordens. Continuou, sem dar maiores explicações:

 

“E foi naquele dia, quando voltávamos do moinho e nos dirigíamos para o MEU objetivo, para comprar a passagem para ir até o Nepal, que eu percebi que estava apaixonada. Nenhuma razão especial, nada que fosse diferente do dia anterior, de algo que tivesse dito, de um gesto, absolutamente nada. Eu estava apaixonada. E sabia que, como nas vezes anteriores, não iria durar muito — você é o homem completamente errado para mim.

 

“Mas fiquei aguardando que o sentimento passasse, e não passou. Quando começamos a conversar mais com Rayan e Mirthe, senti ciúmes. Já senti inveja, raiva, insegurança, mas ciúmes? Não fazia parte do meu universo. Achei que vocês deviam prestar mais atenção em mim, que sou tão independente e tão bonita, tão inteligente e tão decidida. Deduzi que não eram exatamente ciúmes de outra mulher, mas do fato de eu não estar sendo naquele momento o centro das atenções.”

 

Karla segurou sua mão.

 

“E hoje de manhã, quando olhava o rio e me lembrava da noite em que dançamos juntos em torno da fogueira, descobri que não era paixão, não era nada disso, era amor. Mesmo depois do momento de intimidade que tivemos ontem à noite, em que você se mostrou um péssimo amante, eu continuei te amando. Quando sentei na beira do estreito, continuei te amando. Eu sei que te amo e sei que você me ama. E que podemos passar o resto de nossas vidas juntos, seja na estrada, seja no Nepal, seja no Rio, seja no meio de uma ilha deserta, eu te amo e preciso de você.

 

“Não me pergunte por que estou dizendo isso — jamais disse a ninguém, e você sabe que estou falando a verdade. Eu te amo e não estou procurando explicações para os meus sentimentos.”

 

Ela virou o rosto, esperando que Paulo a beijasse. Ele a beijou de maneira estranha e disse que talvez fosse bom voltarem para a Europa, para o hotel — fora um dia de muitas coisas, emoções fortes e deslumbramentos.

 

Karla sentiu medo.

 

Paulo sentiu ainda mais medo, porque na verdade estava vivendo uma bela aventura com ela — houve momentos de paixão, momentos em que queria que ela estivesse sempre ao seu lado, mas tudo isso já tinha passado.

 

Não, ele não a amava.

 

 

As pessoas se reuniam no café da manhã para trocar experiências e sugestões. Karla normalmente estava sozinha — quando lhe perguntavam por Paulo, dizia que ele queria aproveitar cada segundo para entender melhor os chamados “dervixes dançantes” e, portanto, ia todas as manhãs encontrar alguém que o estava ensinando.

 

“Os monumentos, as mesquitas, as cisternas, as maravilhas de Istambul podem esperar”, ele me disse. “Porque sempre estarão ali. Mas o que estou aprendendo pode desaparecer de uma hora para a outra.”

 

As pessoas entendiam perfeitamente. Afinal de contas, não havia — pelo que soubessem — nenhuma relação mais íntima entre os dois, apesar de terem alugado o mesmo quarto.

 

Na noite em que voltaram da Ásia, logo depois do jantar, haviam feito um amor maravilhoso que a deixara suada, contente e disposta a tudo por aquele homem. Ocorre que ele falava cada vez menos.

 

Ela não ousava perguntar o óbvio “você me ama?”, simplesmente porque tinha certeza disso. Queria agora deixar um pouco de lado seu egoísmo e permitir que ele fosse até o local onde encontrava-se com o tal sujeito francês e aprendia sufismo, porque era uma oportunidade única. O rapaz parecido com Raspútin convidou-a para visitarem o museu Topkapi, ela recusou. Rayan e Mirthe a chamaram para irem juntos ao bazar — tinham estado tão entretidos com tudo que haviam se esquecido do principal: como as pessoas viviam? O que elas comiam? O que elas compravam? Ela aceitou, e marcaram para o dia seguinte.

 

O motorista disse que era naquele dia ou nunca — os conflitos na Jordânia estavam sob controle, e deveriam partir no dia seguinte. Pediu que Karla avisasse Paulo, como se ela fosse sua namorada, sua amante, sua mulher.

 

A resposta foi: “claro que sim”, quando em outras épocas teria dito algo do tipo que Caim dissera sobre Abel: “Sou eu por acaso guarda do meu irmão?”.

 

As pessoas, ouvindo o motorista, demonstraram um profundo mal-estar. Mas como? A ideia não era ficar uma semana inteira em Istambul? Estavam apenas no terceiro dia, sendo que na verdade o primeiro não tinha contado — haviam chegado cansados demais.

 

“Não. A ideia era — e continua sendo — ir para o Nepal. Paramos aqui porque não tínhamos outra possibilidade. E temos que ir embora rápido porque os tumultos podem recomeçar, segundo os jornais e segundo a companhia em que trabalho. Além do mais, existe gente em Kathmandu que está esperando para a viagem de volta.”

 

A palavra do motorista era definitiva. Quem não estivesse pronto para partir no dia seguinte, às onze da manhã, teria que esperar o ônibus seguinte — quinze dias depois.

 

Karla decidiu ir ao bazar com Rayan e Mirthe. Jacques e Marie juntaram-se ao grupo. As pessoas notaram algo diferente, mais leve, mais luminoso, porém ninguém ousou dizer nada. A tal menina, sempre dona de si mesma e de suas decisões, devia estar apaixonada pelo brasileiro magro e com cavanhaque.

 

E ela pensava: sim, os outros devem estar notando, porque estou me sentindo diferente. Não sabem a razão, mas estão notando.

 

Que coisa boa era poder amar. Entendia agora porque aquilo era tão importante para tanta gente — melhor dizendo, para todo mundo. Lembrava, com certa dor no coração, quanto devia ter espalhado de sofrimento — mas não podia fazer nada, o amor é assim mesmo.

 

É aquilo que nos faz entender nossa missão na terra e nosso propósito na vida. Quem age pensando assim será seguido por uma sombra de bondade e proteção, encontrará calma nos momentos difíceis, dará tudo que tem sem exigir nada em troca, apenas a presença do amante ao lado, o recipiente da luz, a taça da fertilidade, o brilho que ilumina o caminho.

 

Assim deveria ser — e o mundo seria sempre mais generoso com os que amam; o mal se transformaria em bem, a mentira em verdade, a violência em paz.

 

O amor derruba o opressor com sua delicadeza, mata a sede de quem busca a água viva do carinho, mantém as portas abertas para que a luz e a chuva bendita possam entrar.

 

E faz com que o tempo passe devagar ou rápido, mas nunca como passava antes — no mesmo ritmo, monótono, insuportavelmente monótono.

 

Ela estava mudando aos poucos porque verdadeiras mudanças levam tempo. Mas estava mudando.

 

Antes de saírem, Marie aproximou-se:

 

“Você estava dizendo para os irlandeses que trouxe LSD, é verdade?”

 

Era verdade. Impossível de detectar, porque ela havia mergulhado uma das páginas de O senhor dos anéis em uma solução de ácido lisérgico. Deixara secar no vento da Holanda, e agora era apenas uma passagem em um dos capítulos do livro de Tolkien.

 

“Gostaria muito, mas muito, de experimentar hoje. Estou fascinada pela cidade, preciso vê-la com olhos diferentes. Acontece isso?”

 

Sim, acontecia. Mas para quem nunca tomou pode ser o céu ou o inferno.

 

“Meu plano é simples. Vamos até o bazar, eu me ‘perco’ ali e faço isso longe de todo mundo, sem incomodar ninguém.”

 

Ela não tinha ideia do que estava falando. Fazer uma primeira viagem de ácido sozinha, sem incomodar ninguém?

 

Em um primeiro momento, Karla arrependeu-se profundamente de confessar que tinha trazido uma “página” de ácido. Poderia ter dito que ela havia escutado mal, poderia ter dito que estava se referindo aos personagens do livro, mas não havia mencionado livro nenhum. Poderia ter dito que não queria criar esse carma de introduzir alguém a qualquer tipo de droga, mas logo ela? Sobretudo em um momento em que sua vida mudara para sempre, porque, uma vez que você ama alguém, começa a amar todo mundo?

 

E olhava para aquela menina, pouco mais jovem que ela, com a curiosidade de verdadeira guerreira, amazona, pronta para enfrentar o desconhecido, o arriscado, o diferente — semelhante ao que ela estava enfrentando. Assustava, mas era bom, como era bom e aterrador ao mesmo tempo se descobrir viva, saber que no final existe algo chamado morte e, mesmo assim, ser capaz de experimentar cada minuto sem pensar nisso.

 

“Vamos até meu quarto. Mas antes quero que me prometa uma coisa.”

 

“Qualquer coisa.”

 

“Que em momento nenhum você vai se afastar de mim. Existem vários tipos de LSD, e esse é o mais potente — a experiência pode ser maravilhosa ou péssima.”

 

Marie riu. A holandesa não tinha ideia de quem ela era, e das coisas que já havia experimentado na vida.

 

“Prometa-me”, insistiu.

 

“Prometo.”

 

As pessoas já estavam se preparando para sair, e a desculpa “problemas de mulheres” foi perfeita para o momento. Em dez minutos estariam de volta.

 

Karla abriu a porta e ficou orgulhosa de mostrar seu quarto; Marie estava vendo as roupas estendidas para secar, a janela aberta para que o ar se renovasse e uma cama, apenas uma cama com dois travesseiros, desarrumada como se por ali tivesse passado um furacão — o que efetivamente havia ocorrido, carregando muita coisa para fora e trazendo outras para dentro.

 

Foi até sua mochila, pegou o livro, abriu-o na página 155 e, com uma pequena tesoura que sempre carregava consigo, recortou o equivalente a meio centímetro quadrado de papel.

 

Em seguida entregou para Marie e pediu que mastigasse.

 

“Só isso?”

 

“Na verdade, eu pensei em dar apenas a metade da dose. Mas achei que talvez não fizesse efeito nenhum; estou dando a porção normal que costumava tomar.”

 

Não era verdade. Estava dando metade da dose e, dependendo do comportamento e da tolerância de Marie, iria fazer com que tivesse a verdadeira experiência — só que mais tarde.

 

“Lembre-se do que estou dizendo: que costumava tomar, porque faz mais de um ano que não coloco LSD na boca e não sei se voltarei a fazê-lo. Existem outras maneiras mais eficazes de conseguir o mesmo efeito, embora eu não tenha muita paciência para testá-las.”

 

“Como, por exemplo?” Marie colocara o papel na boca; agora era tarde demais para mudar de ideia.

 

“Meditação. Ioga. Paixão avassaladora. Coisas do tipo. Qualquer coisa que nos leve a pensar no mundo como se o estivéssemos vendo pela primeira vez.”

 

“Quanto tempo demora para fazer efeito?”

 

“Não sei. Depende da pessoa.”

 

Tornou a fechar o livro, colocou-o de novo na mochila, desceram e caminharam todos juntos até o grande bazar.

 

 

Mirthe pegara um folheto na recepção do hotel sobre o bazar criado em 1455 por um sultão que conseguira recuperar Constantinopla das mãos do papa. Em uma época em que o Império Otomano dominava o mundo, o bazar era o lugar onde as pessoas traziam suas mercadorias, e foi se agigantando de tal forma que as estruturas do teto tiveram que ser ampliadas muitas vezes.

 

Mesmo lendo aquilo, não estavam nem de longe preparados para o que encontraram — milhares de pessoas caminhando por corredores repletos, fontes, restaurantes, lugares de oração, cafés, tapetes — enfim, tudo, absolutamente tudo que poderia ser encontrado na melhor loja de departamentos da França: joias de ouro finamente trabalhadas, roupas de todos os feitios e cores, sapatos, tapetes de todo tipo, artesãos fazendo seu trabalho, indiferentes às pessoas que passavam.

 

Um dos vendedores quis saber se eles estavam interessados em antiguidades — já estava escrito na testa de cada um que eram turistas, pela simples maneira como olhavam em volta.

 

“Quantas lojas existem aqui?”, perguntou Jacques ao vendedor.

 

“Três mil. Duas mesquitas. Várias fontes, uma enormidade de lugares onde vão provar o melhor da cozinha turca. Mas tenho alguns ícones religiosos que não vão encontrar em lugar nenhum.”

 

Jacques agradeceu, disse que voltaria em breve — o vendedor sabia que era mentira e ainda tentou insistir um pouco, mas viu que era inútil e desejou a todos um bom dia.

 

“Sabiam que Mark Twain esteve aqui?”, perguntou Mirthe, a essa altura coberta de suor e ligeiramente assustada com o que estava vendo. E se houvesse um incêndio, por onde iriam sair? E onde ficava a porta, a minúscula porta por onde entraram? E como manter o grupo coeso se cada um queria parar em um lugar diferente?”

 

“E o que disse Mark Twain?”

 

“Disse que era impossível descrever o que vira, mas que tinha sido uma experiência muito mais forte e mais importante que a cidade. Falou das cores, da imensa variedade de tons, de tapetes, de pessoas conversando, do aparente caos em que tudo parecia seguir uma ordem que ele não conseguia explicar. ‘Se eu quiser comprar sapatos’, escreveu, ‘não preciso ficar andando por lojas na rua, comparando preços e modelos, mas simplesmente achar a ala onde estão os fabricantes de sapatos, enfileirados um atrás do outro, sem que haja a menor concorrência ou irritação de ninguém; tudo depende de quem sabe vender melhor.’”

 

Não quis comentar que o bazar já passara por quatro incêndios e um terremoto — não sabia quantos haviam morrido porque o folheto do hotel dizia apenas isso e evitava falar de contagem de corpos.

 

Karla notou que os olhos de Marie estavam fixados no teto, nas vigas e abóbadas curvadas, e que ela começara a sorrir como se não pudesse dizer mais nada além de “que maravilha, que maravilha”.

 

Andavam na velocidade de um quilômetro por hora. Onde parava um, paravam todos. Karla agora precisava de privacidade.

 

“Se continuarmos assim, não vamos chegar nem à esquina da próxima ala. Por que não nos separamos e voltamos a nos encontrar no hotel? Infelizmente — eu repito, infelizmente — amanhã estaremos partindo daqui e temos que aproveitar o máximo.”

 

A ideia foi recebida com entusiasmo, e Jacques se aproximou da filha para levá-la com ele, mas foi impedido por Karla.

 

“Eu não posso ficar aqui sozinha. Deixa que nós duas vamos descobrir juntas este mundo extraterrestre.”

 

Jacques viu que a filha sequer o olhava, dizia apenas “que maravilha!”, fitando o teto. Será que quando entraram alguém teria oferecido haxixe e ela havia aceitado? Mas já era adulta o suficiente para cuidar de si mesma — deixou-a com Karla, aquela menina sempre à frente do seu tempo e sempre querendo demonstrar como era mais esperta e mais culta que todos os outros, embora nesses dois dias em Istambul tivesse suavizado um pouco — um pouco apenas — o seu comportamento.

 

Seguiu adiante e se perdeu na multidão. Karla segurou Marie pelo braço.

 

“Vamos sair daqui imediatamente.”

 

“Mas tudo é lindo. Olhe as cores: que maravilha!”

 

Karla não estava perguntando, estava dando uma ordem, e começou a arrastá-la docilmente para a saída.

 

A saída?

 

Onde ficava a saída? “Que maravilha!” Estava cada vez mais embevecida pelo que via, e completamente passiva, enquanto Karla perguntava a várias pessoas e recebia diversas respostas diferentes a respeito da saída mais próxima. Começou a ficar nervosa, aquilo em si era uma viagem tão poderosa como a do LSD e, se somassem as duas coisas, não saberia onde Marie poderia chegar.

 

Seu comportamento mais agressivo, mais dominador, voltou a incorporar-se; ela andava ora para um lado, ora para o outro, mas não conseguia descobrir a porta por onde haviam entrado. Não tinha importância voltar pelo mesmo caminho, mas cada segundo agora era precioso — o ar estava pesado, as pessoas suavam, ninguém prestava atenção em nada, exceto no que estava comprando, vendendo ou barganhando.

 

Finalmente lhe ocorreu uma ideia. Em vez de ficar procurando, devia caminhar em linha reta, em uma só direção, porque cedo ou tarde terminaria encontrando a parede que separava o maior templo de consumo que conhecera do mundo exterior. Traçou uma linha reta pedindo a Deus (Deus?) que fosse a mais curta. Enquanto seguiam na direção escolhida, foi interrompida uma infinidade de vezes por gente que queria vender produtos, mas as empurrava sem a menor cerimônia e sem levar em consideração que podia ser empurrada de volta.

 

No caminho encontrou um rapaz jovem, o bigode começando a crescer, que devia estar entrando — pois parecia procurar algo. Resolveu jogar todo o seu charme, sua sedução, sua capacidade de convencimento, e pediu-lhe que a acompanhasse até a saída porque sua irmã estava tendo uma crise de delírio.

 

O rapaz olhou a irmã e viu que ela realmente não estava ali, mas em um lugar distante. Quis conversar um pouco, dizer que um tio dele que trabalhava ali poderia ajudar, mas Karla implorou que não, que já conhecia os sintomas, tudo que precisava agora era um pouco de ar puro, nada mais.

 

Meio a contragosto, sabendo que iria perder de vista para sempre duas moças tão interessantes, ele as acompanhou até uma das saídas — que ficava a menos de vinte metros de onde estavam.

 

No momento em que pisou do lado de fora do bazar, Marie decidiu abandonar solenemente seus sonhos de uma revolução. Jamais voltaria a dizer que era comunista, lutando para libertar os trabalhadores oprimidos pelos patrões.

 

Sim, havia adotado o modo hippie de se vestir porque de vez em quando era bom estar na moda. Sim, entendera que seu pai ficara um tanto preocupado com isso e passara a pesquisar febrilmente sobre o que aquilo significava. Sim, estavam indo para o Nepal, mas não para meditar em cavernas ou frequentar templos; seu objetivo era entrar em contato com os maoistas que preparavam uma grande insurgência contra o que julgavam uma monarquia ultrapassada e tirânica, governada por um rei indiferente ao sofrimento do seu povo.

 

Tinha conseguido o contato na universidade com um maoista autoexilado, que viajara para a França com o objetivo de chamar a atenção para as poucas dezenas de guerrilheiros sendo massacrados ali.

 

Agora isso tudo já não tinha mais importância. Caminhava com a holandesa por uma rua absolutamente comum, sem nenhum atrativo — e tudo parecia ter um significado maior, que ia além das paredes descascadas e das pessoas que passavam de cabeça baixa, sem olhar muito.

 

“Estão notando alguma coisa?”

 

“Não estão notando nada, além do sorriso luminoso em seu rosto. Não é uma droga que foi inventada para chamar a atenção.”

 

Marie, entretanto, estava notando algo: sua companheira estava nervosa. Não precisava lhe dizer nada e nem sequer podia atribuir ao tom de sua voz, mas à “vibração” que emanava dela. Sempre detestara a palavra “vibração”, não acreditava nessas coisas — mas agora via que era verdade.

 

“Por que saímos daquele templo em que estávamos?”

 

Karla a olhou de maneira estranha.

 

“Sei que não estávamos em templo nenhum, estou apenas usando uma imagem. Sei meu nome, seu nome, a cidade por onde caminhamos, nosso destino final — Istambul, só que tudo parece diferente, como se...”

 

Procurou as palavras por alguns segundos.

 

“... como se eu tivesse passado por uma porta e deixado todo o mundo conhecido para trás, incluindo as ansiedades, as depressões, as dúvidas. A vida parece mais simples e ao mesmo tempo mais rica, mais alegre. Estou livre.”

 

Karla começou a relaxar um pouco.

 

“E estou vendo cores que nunca vi, o céu parece estar vivo, as nuvens estão desenhando coisas que não consigo compreender AINDA, mas tenho certeza de que estão desenhando mensagens para mim, para me guiar daqui por diante. Estou em paz comigo e não observo o mundo do lado de fora: eu sou o mundo. Tenho comigo a sabedoria de todos que já viveram antes de mim e deixaram algo marcado nos meus genes. Eu sou meus sonhos.”

 

Passaram diante de um café, igual às centenas de cafés que existiam naquela área. Marie continuava murmurando “que maravilha!”, e Karla pediu que parasse, porque agora, sim, iriam entrar em um lugar relativamente proibido — frequentado apenas por homens.

 

“Sabem que somos turistas e espero que não façam nada, nem nos expulsem. Mas, por favor, comporte-se.”

 

E foi exatamente o que aconteceu. Entraram, escolheram uma mesa no canto, todos olharam surpresos, demoraram algum tempo para se dar conta que as duas não conheciam os costumes da terra, e voltaram a suas conversas. Karla pediu chá de menta com muito açúcar — a lenda dizia que o açúcar ajudava a diminuir a alucinação.

 

Mas Marie estava completamente alucinada. Comentava de auras luminosas em torno das pessoas, dizia que era capaz de manipular o tempo e fazia alguns minutos conseguira conversar com a alma de um cristão morto em batalha ali, naquele mesmo lugar onde estava o café. O cristão estava em paz absoluta, no paraíso, e ficara contente de poder entrar de novo em contato com alguém na terra. Ia pedir que desse um recado à sua mãe, mas quando entendeu que séculos haviam se passado desde que morrera — informação dada por Marie —, desistiu e agradeceu, desaparecendo imediatamente depois.

 

Bebeu o chá como se fosse a primeira vez na vida que fazia isso. Queria demonstrar por gestos e suspiros como estava delicioso, mas de novo Karla pediu que se controlasse, e outra vez ela sentiu a “vibração” que envolvia sua companheira, cuja aura agora mostrava vários buracos luminosos. Seria aquilo um sinal negativo? Não. Parecia que os buracos eram antigas feridas que estavam cicatrizando rapidamente. Tentou tranquilizá-la — podia fazer isso, puxar uma conversa qualquer e continuar em pleno transe.

 

“Você está apaixonada pelo brasileiro?”

 

Karla não respondeu. Um dos buracos luminosos pareceu diminuir um pouco, e ela mudou de assunto.

 

“Quem inventou isso? E por que não é distribuído gratuitamente a todos que buscam uma união com o invisível, tão necessária para mudar nossa percepção do mundo?”

 

Karla comentou que o LSD tinha sido descoberto por acaso, no lugar mais inesperado do mundo: na Suíça.

 

“Na Suíça? Cujos únicos produtos conhecidos são bancos, relógios, vacas e chocolates?”

 

“E laboratórios”, completou Karla. Originalmente descoberto para curar determinada doença que não se lembrava agora. Até que o seu sintetizador — ou inventor, digamos assim — resolveu, anos depois, provar um pouco do produto que estava já rendendo milhões a companhias farmacêuticas em todo o mundo. Ingeriu uma quantidade minúscula e ia para casa em sua bicicleta — estavam em plena guerra e, mesmo na neutra Suíça de chocolates, relógios e vacas, havia racionamento de gasolina — quando notou que estava vendo tudo diferente.

 

O estado de ânimo de Marie estava mudando. Karla precisava manter a conversa.

 

“Pois bem, esse suíço — e você vai me perguntar como sei de toda essa história, mas na verdade saiu recentemente um grande artigo em uma revista que costumo ler na biblioteca —, esse cientista notou que já não conseguia montar em sua bicicleta... Pediu que um de seus assistentes o acompanhasse até sua casa, depois achou que talvez fosse melhor não ir para casa, mas para um hospital, pois devia estar tendo um infarto. Mas de repente, segundo suas próprias palavras — ou algo parecido, porque não me lembro exatamente: Comecei a ver cores que nunca tinha visto, formas que jamais tinha notado e que se mantinham mesmo depois que eu fechasse os olhos. Era como se estivesse diante de um grande caleidoscópio, que se abria e se fechava em círculos e espirais, explodindo em fontes coloridas, fluindo como se fossem rios de alegria.

 

“Você está prestando atenção?”

 

“Mais ou menos. Não sei se estou conseguindo acompanhar a conversa, tem muita informação: Suíça, bicicleta, guerra, caleidoscópio — você não poderia simplificar mais?”

 

Bandeira vermelha. Karla pediu mais chá.

 

“Faça um esforço. Olhe para mim e escute o que estou contando. Concentre-se. Essa sensação de mal-estar vai passar logo. Preciso confessar uma coisa: dei apenas a metade da dose que costumava tomar quando usava LSD.”

 

Aquilo pareceu aliviar Marie. O garçom trouxe o chá que Karla pediu. Obrigou sua companheira a tomá-lo, pagou a conta, saíram de novo para o ar frio.

 

“E o suíço?”

 

Era bom que ela lembrava onde haviam parado. Perguntava a si mesma se seria capaz de comprar algum potente calmante caso a situação ficasse mais grave — que os portões do inferno substituíssem os portais do céu.

 

“A droga que você tomou foi vendida aberta e livremente em farmácia nos Estados Unidos durante mais de quinze anos, e você sabe como lá eles são rigorosos com isso. Chegou a ser capa da revista Time por seus benefícios em tratamentos psiquiátricos e alcoolismo. E terminou sendo proibida, porque dava resultados inesperados de vez em quando.”

 

“Como o quê?”

 

“Depois conversamos sobre isso. Agora, procure afastar da sua frente a porta do inferno e abra a porta do céu. Aproveite. Não tenha medo, estou ao seu lado e sei do que estou falando. O estado em que está deve durar mais duas horas, no máximo.”

 

“Vou fechar a porta do inferno, vou abrir a porta do céu”, disse Marie. “Mas sei que, embora eu possa controlar o medo, você não pode controlar o seu. Estou vendo sua aura. Estou lendo seu pensamento.”

 

“Tem razão. Mas então deve também estar lendo que não corre o menor risco de morrer por causa disso, a não ser que resolva agora subir no alto de um edifício e ver se, finalmente, consegue ser capaz de voar.”

 

“Entendo. Além do mais, acho que o efeito começou a diminuir.”

 

E, sabendo que não podia morrer por isso e que a moça ao seu lado jamais a levaria ao alto de um edifício, seu coração deixou de bater forte, e ela resolveu desfrutar daquelas duas horas que faltavam.

 

E todos os seus sentidos — tato, visão, audição, olfato, paladar — se transformaram em um só, como se pudesse experimentar tudo ao mesmo tempo. As luzes lá fora estavam começando a perder a intensidade, mas mesmo assim as pessoas continuavam mostrando suas auras. Ela sabia quem estava sofrendo, quem estava feliz, quem iria morrer em breve.

 

Tudo era novidade. Não apenas porque estava em Istambul, mas porque estava com uma Marie que não conhecia, muito mais intensa e mais antiga do que aquela com que havia se acostumado a conviver durante todos aqueles anos.

 

As nuvens no céu estavam cada vez mais carregadas, anunciando um possível temporal, e suas formas iam perdendo pouco a pouco o significado antes tão claro. Mas ela sabia que as nuvens têm um código próprio para falar com os humanos e, se olhasse bastante os céus nos próximos dias, iria terminar aprendendo o que queriam dizer.

 

Pensava se devia contar ou não ao pai por que tinha escolhido ir para o Nepal, mas seria uma bobagem não seguir adiante agora que haviam chegado tão longe. Descobririam coisas que mais tarde, com as limitações da idade de ambos, ficariam mais difíceis.

 

Como se conhecia tão pouco? Algumas de suas experiências desagradáveis da infância voltaram, e já não pareciam tão desagradáveis, apenas experiências. E ela havia valorizado aquilo por tanto tempo — por quê?

 

Enfim, não precisava responder, sentia que essas coisas estavam se resolvendo por si próprias. Vez por outra, quando olhava para o que julgava ser espíritos ao seu redor, a porta do inferno passava diante dela, mas estava resolvida a não tornar a abri-la.

 

Desfrutava naquele momento de um mundo sem perguntas e sem respostas. Sem dúvidas e sem certezas — desfrutava do mundo sendo parte indivisível dele. Desfrutava de um mundo sem tempo, onde passado e futuro eram apenas o momento presente, nada mais. Seu espírito às vezes mostrava-se muito velho, outras vezes parecia uma criança, aproveitando as novidades, olhando os dedos da mão e notando que são separados e que se mexem, vendo a moça ao seu lado e contente por saber que ela estava mais calma, sua luz havia voltado, estava apaixonada mesmo — a pergunta que fizera antes não tinha absolutamente nenhum sentido, sempre sabemos quando estamos apaixonados.

 

Quando chegaram à porta do hotel, depois de quase duas horas andando, ela sabia que a holandesa havia decidido por vagar pela cidade aguardando que o efeito passasse antes que encontrasse os outros, Marie escutou o primeiro trovão. E sabia que era Deus conversando com ela, dizendo que agora voltasse ao mundo, tinham ainda muito trabalho juntos. Deveria ajudar mais seu pai, que sonhava em ser escritor, mas nunca colocara uma só palavra no papel que não fosse parte de uma apresentação, um estudo, um artigo.

 

Precisava ajudar seu pai como ele a tinha ajudado — esse fora seu pedido, ele ainda deveria viver muito, um belo dia ela iria se casar, algo que jamais havia cogitado, que considerava o último passo de sua vida sem restrições e sem limites.

 

Algum dia ela iria se casar e seu pai precisava estar feliz com a própria vida, fazendo aquilo que gostaria. Amava muito sua mãe e não a culpava pelo divórcio, mas queria sinceramente que seu pai encontrasse alguém para dividir os passos que todos damos nesta sagrada terra.

 

Entendia agora por que haviam proibido aquela droga; o mundo não funcionaria com ela. As pessoas entrariam em contato apenas consigo mesmas, como se fossem bilhões de monges meditando ao mesmo tempo em suas cavernas interiores, indiferentes à agonia e à glória dos outros. Os carros parariam de funcionar. Os aviões não decolariam mais. Não haveria semeadura e colheita — apenas deslumbramento e êxtase. E em pouco tempo a humanidade seria varrida da terra por aquilo que em princípio seria um vento purificador, mas no final se tornaria um vento de aniquilação coletiva.

 

Estava no mundo, pertencia a ele, devia cumprir a ordem que Deus lhe havia dado com sua voz de trovão — trabalhar, ajudar seu pai, lutar contra o que achava errado, envolver-se nas batalhas diárias como todos os outros.

 

Essa era sua missão. E a levaria até o final. Tinha sido sua primeira e última viagem de LSD, e estava contente que houvesse terminado.

 

 

Naquela noite, o grupo de sempre se reuniu, e decidiram comemorar o último dia em Istambul em um restaurante que vendesse bebidas alcóolicas, onde pudessem comer, se embriagar juntos e dividir de novo as experiências do dia. Rahul e Michael, os motoristas, foram convidados. Disseram que era contra o protocolo da companhia, mas cederam logo, sem ser necessária muita insistência.

 

“Não vão pedir para que fiquemos mais um dia, não posso fazer isso ou perderei meu emprego.”

 

Não iriam pedir nada. Ainda havia muita Turquia pela frente, sobretudo a Anatólia, que todos diziam ser um lugar magnífico. Na verdade, estavam sentindo saudades da paisagem sempre em transformação.

 

Paulo já havia voltado de seu lugar misterioso, estava vestido, sabia que no dia seguinte iriam partir. Pediu desculpas e explicou que gostaria de jantar a sós com Karla.

 

Todos entenderam e celebraram de maneira discreta aquela “amizade”.

 

 

 

Duas mulheres tinham seus olhos brilhando. Marie e Karla. Ninguém perguntou por que, e nenhuma delas deu maiores explicações.

 

 

“E como foi seu dia?”

 

Também haviam escolhido um lugar onde se podia beber, e os dois já tinham terminado o primeiro copo de vinho.

 

Paulo sugeriu que, antes de responder, pedissem a comida. Karla concordou. Agora que tinha finalmente se tornado uma verdadeira mulher, capaz de amar com todas as suas forças e sem nenhuma necessidade de usar algum tipo de droga para isso, o vinho era apenas uma celebração.

 

Já sabia o que a esperava. Já sabia qual seria a conversa. Sabia desde que fizeram aquele amor maravilhoso na véspera; na hora teve vontade de chorar, mas aceitou seu destino como se tudo já estivesse escrito. Tudo o que sempre quis na vida foi um coração em fogo, e o homem que estava naquele momento dentro dela lhe havia dado isso. E na véspera, quando ela finalmente confessara seu amor, os olhos dele não brilharam como imaginava que ia acontecer.

 

Não era ingênua, porém tinha conseguido o que mais queria na vida — não estava perdida no deserto, mas corria como as águas do Bósforo em direção a um gigantesco oceano onde todos os rios se encontram, e jamais esqueceria Istambul, o brasileiro magrelo e suas conversas que nem sempre conseguia acompanhar. Ele havia conseguido um milagre, mas não precisava saber disso — ou talvez a culpa o fizesse mudar de ideia.

 

Pediram mais uma garrafa de vinho. E só então ele começou a falar.

 

“O homem sem nome estava no Centro Cultural quando cheguei. Cumprimentei-o, mas ele não retornou o cumprimento, seus olhos estavam fixos em algum lugar, em uma espécie de transe. Ajoelhei-me no chão, procurei esvaziar a cabeça e meditar, entrar em contato com as almas que ali dançaram, cantaram e celebraram a vida. Sabia que em algum momento ele sairia desse estado e esperei — na verdade, não ‘esperei’ no sentido literal do termo, mas me entreguei ao momento presente, sem esperar absolutamente nada.

 

“Os alto-falantes chamaram a cidade para a prece, o homem saiu do seu estado de transe e realizou um dos cinco rituais do dia. Foi só então que notou que eu estava ali. Perguntou por que eu havia voltado.

 

“Expliquei que passara a noite pensando em nosso encontro e que gostaria de entregar-me de corpo e alma ao sufismo. Tive muita vontade de contar que, pela primeira vez na vida, eu havia feito amor — porque quando estávamos na cama, quando estava dentro de você, foi como se estivesse realmente saindo de mim. Não havia experimentado isso antes. Mas achei o tema inoportuno e não disse nada.

 

“‘Leia os poetas’, foi a resposta do homem sem nome. ‘Basta isso.’

 

“Para mim não bastava isso, precisava de disciplina, rigor, um lugar para servir a Deus de modo que pudesse estar mais perto do mundo. Antes de ir até ali pela primeira vez, estava fascinado pelos dervixes que dançavam e entravam numa espécie de transe. Agora eu precisava que minha alma dançasse comigo.

 

“Devia aguardar mil e um dias para que isso acontecesse? Perfeito, aguardaria. Até aquele momento já havia vivido o bastante — talvez o dobro do que meus colegas de colégio viveram. Podia dedicar três anos de minha vida a, eventualmente, tentar entrar no transe perfeito dos dervixes dançantes.

 

“‘Meu amigo, um sufi é uma pessoa que está no momento presente. Dizer “amanhã” não faz parte de nosso vocabulário.’

 

“Sim, isso eu sabia. Minha maior dúvida era se estava obrigado a converter-me ao islã para avançar no aprendizado.

 

“‘Não. Você precisa fazer apenas uma única promessa: render-se ao caminho de Deus. Ver sua face cada vez que beber um copo de água. Escutar Sua voz cada vez que passar por um mendigo na rua. É o que todas as religiões pregam e é a única promessa que deve fazer — nenhuma outra.’

 

“‘Ainda não tenho disciplina suficiente para isso, mas com sua ajuda poderei chegar onde o céu encontra a terra — no coração do homem.’

 

“O velho sem nome disse que nisso podia me ajudar, se eu deixasse para trás minha vida inteira e obedecesse a tudo que ele me dissesse. Aprender a pedir esmolas quando o dinheiro acabasse, a jejuar quando fosse o momento, a servir os leprosos, a lavar as feridas dos doentes. A passar dias sem fazer absolutamente nada, apenas olhando um ponto fixo e repetindo sem cessar o mesmo mantra, a mesma frase, a mesma palavra.

 

“‘Venda sua sabedoria e compre um espaço na sua alma que será preenchido pelo absoluto. Porque a sabedoria dos homens e mulheres é loucura diante de Deus.’

 

“Nesse momento duvidei se seria capaz disso — talvez ele estivesse me testando com a obediência absoluta. Mas não vi nenhuma hesitação em sua voz, sabia que estava falando sério. Sabia também que, embora meu corpo tivesse entrado naquela sala verde e caindo aos pedaços, com seus vitrais quebrados e naquele dia particularmente sem luz, já que uma tempestade se aproximava, minha alma ficara do lado de fora, esperando para ver aonde ia dar aquilo tudo. Aguardando o dia em que, por uma simples coincidência, eu entrasse ali e visse outras pessoas girando em torno de si mesmas, mas tudo seria um balé bem estruturado e nada mais. Não era isso que estava buscando.

 

“E sabia que, se não aceitasse as condições que ele estava me impondo naquele momento, da próxima vez aquela porta estaria fechada para mim — mesmo que eu pudesse continuar entrando e saindo, como ocorrera pela primeira vez.

 

“O homem estava lendo minha alma, vendo minhas contradições e dúvidas e em momento nenhum se mostrava mais flexível — era tudo ou nada. Disse que precisava voltar para sua meditação especial, e eu pedi que me respondesse pelo menos a mais três perguntas.

 

“‘Você me aceita como discípulo?’

 

“‘Eu aceito seu coração como discípulo, porque não posso recusar — caso contrário minha vida não terá nenhuma utilidade. Eu tenho duas maneiras de demonstrar meu amor a Deus: a primeira é adorá-Lo dia e noite, na solidão desta sala, mas isso não teria a menor utilidade para mim ou para Ele. A segunda é cantar, dançar e mostrar Seu rosto a todos através de minha alegria.’

 

“‘Você me aceita como discípulo?’, perguntei uma segunda vez.

 

“‘Um pássaro não pode voar com apenas uma asa. Um mestre sufi não é nada se não puder transmitir sua experiência a alguém.’

 

“‘Você me aceita como discípulo?’, perguntei pela terceira e última vez.

 

“‘Se amanhã você cruzar esta porta como fez nesses dois dias, eu o aceito como discípulo. Mas tenho quase certeza de que irá se arrepender.’”

 

Karla encheu de novo os dois copos e brindou com Paulo.

 

“Minha viagem terminou aqui”, ele repetiu, talvez duvidando que ela havia compreendido o que acabara de dizer. “Não tenho nada para fazer no Nepal.”

 

E preparou-se para o choro, a fúria, o desespero, as chantagens emocionais, tudo que agora seria dito pela mulher que dissera “eu te amo” na noite anterior.

 

Mas ela apenas sorria.

 

 

 

“Nunca julguei que fosse capaz de amar alguém como te amo”, respondeu Karla, depois que os dois esvaziaram os copos e ela tornou a enchê-los. “Meu coração estava fechado, e isso nada tem a ver com psicólogos, ausência de substâncias químicas, coisas do tipo. É algo que jamais conseguirei explicar, mas de repente, não sei precisar exatamente o momento, meu coração se abriu. E vou te amar pelo resto da vida. Quando estiver no Nepal, estarei te amando. Quando voltar para Amsterdam, estarei te amando. Quando finalmente me apaixonar por outra pessoa, continuarei te amando, mesmo que seja de maneira diferente do que sinto hoje.

 

“Deus — que não sei se existe, mas que espero que esteja aqui ao nosso lado, escutando minhas palavras —, peço que nunca mais permita que eu fique satisfeita apenas com minha própria companhia. Que eu não tema precisar de alguém e que não tenha medo de sofrer porque não existe pior sofrimento que a sala cinza e escura onde a dor não pode entrar.

 

“E que esse amor de que tantos falavam, tantos compartilhavam, tantos sofriam, que esse amor me conduza àquela que era desconhecida e agora está se revelando. Que, como um poeta disse certa vez, que me leve até a terra onde não existe nem sol, nem lua, nem estrelas, nem terra, nem o gosto do vinho na minha boca, apenas o Outro, aquele que encontrarei porque você abriu o caminho.

 

“E que eu possa caminhar sem necessidade de usar os pés, ver sem precisar olhar, voar sem pedir que cresçam asas em mim.”

 

 

 

Paulo estava surpreso e contente ao mesmo tempo. Ambos ali estavam entrando em um lugar desconhecido, com seus terrores e com suas maravilhas. Ali, em Istambul — um lugar onde poderiam ter visitado tantos pontos que lhes haviam sugerido, mas escolheram visitar as próprias almas, e não havia nada melhor e mais reconfortante que isso.

 

Levantou, deu a volta na mesa e beijou-a, sabendo que aquilo era contra os costumes locais, que os fregueses podiam ficar ofendidos — mesmo assim beijou-a com amor e sem luxúria, com vontade e sem culpa, porque sabia que era o último beijo que davam.

 

 

 

Não queria destruir a magia do momento, mas precisava perguntar assim mesmo.

 

“Você esperava isso? Estava preparada para isso?”

 

Karla não respondeu, apenas sorriu, e ele ficaria para sempre sem saber a resposta — e isso era o verdadeiro amor, uma pergunta sem resposta.

 

 

Fez questão de levá-la até a porta do ônibus. Já havia avisado ao motorista que ficaria ali, aprendendo o que precisava aprender. Por um breve momento sentiu vontade de repetir a famosa frase de Casablanca, “sempre haverá Paris”. Mas sabia que era uma bobagem, e precisava apressar-se para voltar à sala verde e ao mestre sem nome.

 

As pessoas no ônibus fingiam que não estavam vendo nada. Ninguém se despediu dele, porque ninguém — além do motorista — sabia que ali era o ponto final de sua viagem.

 

Karla o abraçou sem dizer nada, mas podia sentir seu amor como algo quase físico, uma luz surgindo com cada vez mais intensidade, como se o sol da manhã estivesse se levantando e iluminando primeiro as montanhas, depois as cidades, depois as planícies, depois o mar.

 

A porta se fechou, e o ônibus partiu. Ainda pôde escutar mais de uma voz lá dentro dizendo: “Ei, o brasileiro ainda não embarcou!”. Mas o ônibus já estava longe.

 

Um dia voltaria a encontrar Karla para saber como foi o resto da viagem.

 

 

Epílogo

 

Em fevereiro de 2005, quando já era um autor conhecido no mundo inteiro, Paulo foi dar uma grande conferência em Amsterdam. Na manhã daquele dia, um dos principais programas de TV da Holanda o entrevistara no antigo dormitório — agora transformado em um hotel para não fumantes, com preços altos e um pequeno, mas bem cotado, restaurante de luxo.

 

Nunca mais tivera notícias de Karla. O guia Europa a cinco dólares por dia havia se transformado em Europa a trinta dólares por dia. O Paradiso estava fechado (reabriria alguns anos mais tarde, ainda servindo de lugar para concertos), o Dam estava deserto, era apenas uma praça com aquele misterioso obelisco no meio, de que nunca soubera — e gostaria de continuar sem saber — qual o objetivo.

 

Sentiu a tentação de caminhar pelas ruas onde andaram para ir até o restaurante em que se comia de graça, mas estava sempre acompanhado por alguém — a pessoa que organizara a conferência. Achou por bem voltar logo para seu hotel e se preparar para o que iria dizer naquela noite.

 

Tinha a leve esperança de que Karla, sabendo que estava na cidade, fosse até lá para reencontrá-lo. Imaginou que não havia ficado muito tempo no Nepal, da mesma maneira que ele abandonara a ideia de tornar-se um sufi, embora tenha resistido quase um ano e aprendido coisas que o acompanhariam pelo resto da vida.

 

Durante a conferência, contou parte da história de que trata este livro. Em determinado momento, não conseguiu se controlar e perguntou:

 

“Karla, você está aqui?”

 

Ninguém levantou a mão. Podia ser que estivesse, podia ser que nem sequer tenha escutado falar de sua presença na cidade ou podia ser que estivesse, mas preferisse não voltar ao passado.

 

Melhor assim.

 

 

Genebra, 3 de fevereiro 2018

 

 

Todos os personagens do livro são reais, mas — com exceção de dois — tiveram seus nomes trocados pela total impossibilidade de localizá-los (eu conhecia apenas o primeiro nome deles).

 

Aproveitei o episódio da prisão em Ponta Grossa (em 1968) e acrescentei detalhes das outras duas a que fui submetido durante a ditadura militar (em maio de 1974, quando eu compunha letras de música).

 

Agradeço ao meu editor, Matinas Suzuki Jr., à minha agente e amiga, Monica Antunes, e à minha mulher, a artista plástica Christina Oiticica (que desenhou o mapa da rota completa do Magic Bus). Quando escrevo um livro, fico trancado sem praticamente conversar com ninguém, e não gosto de falar do que estou fazendo. Christina finge que não sabe, e eu finjo que acredito que ela não sabe mesmo.

 

“Ó Maria, concebida sem pecado, rogai por nós, que recorremos a Vós.” Amém.

 

 

                                                                  Paulo Coelho

 

 

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