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HISTÓRIA ESSENCIAL DA FILOSOFIA 1/Paulo Ghiraldell
HISTÓRIA ESSENCIAL DA FILOSOFIA 1/Paulo Ghiraldell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Em meados do terceiro século, um homem bem educado, porém sem grande formação filosófica, decidiu elaborar um compêndio sobre os filósofos. Seu nome chegou até os dias atuais, na adaptação para o português, como Diógenes Laércio, e o seu compêndio, como Vida de eminentes filósofos. Nada mais se sabe a seu respeito, mas seu livro contou muito do que hoje se diz de feitos pessoais dos filósofos da antiguidade, e mesmo dos de seu próprio tempo. Em acordo com outras fontes, ele situou o início da filosofia com Tales de Mileto (600 a.C.)1.
Tales é um bom começo para a filosofia, principalmente entre os estudantes atuais. É raro o jovem, saído do ensino médio, que sabe o que cursar na faculdade. Quando tem alguma noção, ainda assim, pouco ou nada conhece da grade curricular, do curso escolhido e, menos ainda, sobre o que obterá com a educação fornecida no ensino superior. Alguns acham que seria bom fazer filosofia. Não sabendo bem o que irão enfrentar ao final do curso, perguntam se há mercado de trabalho para filósofos. Nesse caso, o próprio começo da filosofia já diz tudo que é necessário para torná-los ouvintes de um filósofo, ao menos por alguns momentos.
Diógenes Laércio conta que Tales fez uma previsão a respeito de que iria ocorrer uma boa temporada para as oliveiras, então, arrendou todos os moinhos da região e, quando veio a colheita, só ele tinha moinhos, e fez fortuna. Todavia, adverte Laércio: Tales não fez isso pelo dinheiro, mas exclusivamente para mostrar aos outros que não era tão difícil consegui-lo.
Pode-se contar isso aos jovens estudantes. Mas, às vezes, o filósofo não resiste e acaba também contando que Tales, muito provavelmente, já era rico. Segundo especulações, não teve gastos com filhos, no máximo adotou um sobrinho. Quando questionado sobre a razão de não ter filhos, dizia que assim agira pois "amava as crianças". A essa altura, os alunos começam a olhar o filósofo-professor, decepcionados.

 


 


Bem, se esse caminho não é bom para um início de curso, pode-se mudar a rota. Láercio pode ser utilizado, então, para falar de Pitágoras que, afinal, ficou com a responsabilidade de ter sido pioneiro no uso da palavra "filósofo". Daí nasceu a palavra "filosofia" (f???s?f?a), proveniente da composição dos termos gregos philo e sophia. Philo vem de philia, que é amor fraterno, e sophia vem de sophos, que é sábio. Assim, pela etimologia, diz-se que a filosofia é antes o "amor pelo saber" do que uma "sabedoria". Nessa acepção, o filósofo persegue a condição de sábio, mas, talvez ele nunca possa vir a ser um, uma vez que o saber estaria reservado à condição divina.

Todavia, Pitágoras disse mais que isso. Além das descobertas matemáticas - principalmente a do teorema que leva seu nome -, ele foi um homem misterioso, fundador de uma seita com regras bizarras. Uma delas era a da proibição de comer feijões; não pense que por algum motivo misterioso, apenas o da flatulência. Diógenes Laércio chama a autoridade de Aristóteles para confirmar a postura pitagórica. De fato, Aristóteles considerava a alma como algo material, um "sopro" mais ou menos quente - o pneuma -, e se a interpretação é por essa via, a ideia seria de que soltar gases é uma perda da condição vital ou coisa parecida. A reação dos estudantes a isso, às vezes, mostra que talvez fosse melhor também não começar por Pitágoras.

Diógenes Laércio teve clara consciência de que muito do que contou eram anedotas - ele diz isso explicitamente. Todavia, abandonando ou não Laércio, quando se entra na parte chamada de "séria" da filosofia, não raro, nada muda aos ouvidos dos iniciantes. Eles imaginam que o curso nunca irá de fato começar quando se diz que o principal da filosofia de Tales é a frase "tudo é água". Depois dessa informação, sobrando alguém ainda para continuar em tal curso, resta dizer somente isto: as aulas irão melhorar logo, tenham paciência. Mas, na aula seguinte, o temor aumenta, todo cuidado é pouco. O risco de perder os últimos na sala para a fila de transferência, em favor de outros cursos, não é pequeno. Qual a ideia salvadora? Talvez recorrer a Aristóteles, e ver se ele minimiza o estrago inicial. Aristóteles parece poder ajudar, porque seu vocabulário é mais ou menos próximo ao dos dicionários atuais. Então, conta-se o que Aristóteles disse de Tales: ao afirmar que "tudo é água", Tales estava querendo encontrar uma "causa" para todas as coisas. "Tudo é água" seria a maneira de dizer que, na base do mundo, a substância primeira é a água, a causadora de todo o resto do mundo. Isso salva a situação do curso por um tempo, mas logo as coisas voltam a ficar complicadas, pois há de se contar que a maneira de Aristóteles falar precisa ser elaborada de uma forma melhor. Felizmente, a essa altura, já se passaram algumas aulas, os ouvidos dos alunos parecem estar mais familiarizados com a conversa da filosofia. Ou, talvez, apenas tenha passado a data de trancamento de matrícula e transferência. Seja como for, quando se chega a esse ponto com alguns alunos ainda na sala, houve uma vitória. É aquela fase em que se sonha poder dizer "o pior já passou".


Aristóteles (384-322 a.C.) entendia que para dizer que se conhece alguma coisa, há de se dar as suas causas. Fora disso, pode-se expor uma longa narrativa a respeito do objeto escolhido, mas, de modo algum, o exposto é conhecimento. Assim, assumindo que o conhecimento é o "saber das causas", e admitindo que os filósofos que o antecederam possuíam algum conhecimento, Aristóteles assimilou o que disseram a uma narrativa sobre causas.

Ora, os primeiros filósofos procuraram princípios, não propriamente causas. Tales assumiu a água como arkhé (a???). Aristóteles desconsiderou esse detalhe. Ele tomou a palavra arkhé (princípio) como querendo significar mais ou menos a palavra aitía (a?t?a-causa) e, desse modo, assumiu que todos os filósofos que fizeram investigações na busca de um princípio primeiro, podiam ser vistos como pesquisadores daquilo que ele, ao final, entendeu como tendo fornecido a solução completa. Essa troca de palavras não foi um erro de Aristóteles, mas, enfim, ocorreu porque foi direcionada segundo sua própria pesquisa no assunto. Pois ele, afinal, elaborou uma célebre "teoria das quatro causas". Os filósofos que o antecederam, não possuindo todas as causas, forneceram, cada um, apenas um único princípio; teriam ficado aquém do serviço completo. Assim, Aristóteles se viu como o cume das investigações que haviam iniciado com Tales. Aliás, diga-se de passagem, uma maneira de pensar que fez escola na história da filosofia.

Arkhé quer dizer "o que vai à frente", portanto, o que é o princípio. Todo cuidado aqui é pouco: princípio, neste caso, não é exatamente origem, o sentido de guia lhe é mais apro priado. Trata-se do que vai adiante para dar rumo e governo. Arkhé pode ser causa, também, mas não só. E, antes de tudo, quer dizer regra, o que rege as coisas. Ao tomar a frase de Tales, "tudo é água", sob essa orientação, entende-se que não é o caso de só dizer que a água é causa de tudo. Melhor dizer que tudo se manifesta regido pela água, ou seja, o modo como a água atua no mundo, alterando sua forma, mudando de estado, é o modo como o cosmos funciona, uma vez que "tudo é água". Trata-se de ver, então, como é que o mundo se mostra como Kosmos (??sµ??), o todo organizado e, exatamente por isso, belo, admirável, o oposto do Kaos (????).

Aristóteles não ficou só em Tales. Para tratar do assunto das causas - o seu tema -, ele organizou os feitos dos primeiros filósofos, compondo uma espécie de primeira história da filosofia. Ele denominou os primeiros filósofos de physiologoi, os pensadores interessados na physis (f?s??), uma palavra que, de um modo grosseiro, pode-se substituir por natureza, mas cujo sentido é o de princípio de geração, ou seja, aquilo que se faz por si mesmo, que se reproduz por si mesmo. Tales, Anaximandro e Anaxímenes, todos os três da cidade de Mileto, na Jônia, que hoje é uma região da Turquia, preencheram os quadros dessa escola filosófica.

Anaximandro (580 a.C.), discípulo de Tales, discordou de seu mestre a respeito da água como regente do cosmos. Acreditou que o princípio primeiro e geral teria de ser alguma coisa menos determinada que a água. Ora, menos determinado seria, então, o indeterminado. Em grego, a palavra "indeterminado" ou o que é sem fronteiras, ilimitado, é apeíron (??a??µa?d???) - e foi isso que Anaximandro afirmou que deveria ser dito com arkhé. Anaxímenes (550 a.C.), por sua vez, retomou a ideia de Tales e a considerou a partir da crítica de Anaximandro. Escolheu um elemento determinado e, no entanto, mais maleável - o ar.

A história desses primeiros filósofos, consagrados pelo nome de "pré-socráticos", conduz o estudante a uma viagem por várias das enseadas banhadas pelo Mediterrâneo. O mapa da (Figura 1.1) fornece o roteiro.

Ao norte de Mileto, ainda na Jônia, nota-se a cidade de Clazômena. Ali viveu Anaxágoras (c. 460 a.C.), que pode ter sido um discípulo de Anaxímenes. Ele foi o proponente das homeomerias como arkhé, ou seja, "partículas infinitamente divisíveis", compostas de todas as coisas do universo. O Nous (????), palavra que se pode traduzir por "inteligência" ou "espírito", não faria parte desses elementos e, enfim, seria algo ilimitado que os organizaria, dando a feição própria do cosmos como um todo organizado. Xenófanes de Colofon (540 a.C.) se preocupou com uma crítica aos deuses, tomando-os apenas como expressão de antropomorfismo. Há uma boa polêmica sobre seus escritos, dado que poderia ter insinuado alguma predileção pelo monoteísmo. Todavia, é muito difícil algum estudioso levar a sério a hipótese de um grego monoteísta. Pitágoras (540 a.C.), por sua vez, nasceu na Ilha de Samos e se deslocou para Crotona, nas terras da Itália. Desenvolveu o conceito de que o princípio primeiro é o número, ou melhor, algo como a unidade.

Figura 1.1.: Pré-socráticos e filósofos clássicos, entre os séculos VI e IV a.C. Mileto, na Jônia, local de Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Éfeso, na Jônia, local de Heráclito. Clazômena, na Jônia, local de Anaxágoras, que depois se deslocou para Atenas, tendo sido protegido por Péricles, general e governante da cidade. Eleia, nas terras da Itália, local de Parménides e Zenão. Pitágoras nasceu em Samos e se deslocou para Croton. Empédocles nasceu em Agrigento, na Ilha que hoje é a Sicília. Xenófanes nasceus em Colofon. Sócrates e Platão nasceram em Atenas. Aristóteles nasceu em Estagira, e se deslocou para Atenas.

Heráclito de Éfeso (500 a.C.) criou uma das mais interessantes teorias cosmológicas entre os pré-socráticos. Ele não só escolheu um elemento da physis para ser seu arkhé, mas também chamou a atenção para um aspecto peculiar, para a racionalidade do cosmos. Nessa linha, introduziu uma noção que ficou consagrada na história da filosofia, a da distinção entre a realidade aparente e a realidade efetiva (ou simplesmente, aparência e realidade). Assim, não se deveria confiar na realidade apa rente, e a realidade efetiva - a que poderia ser responsável por enunciados e afirmações verdadeiras - seria revelada somente pela razão (?????-logos). Dever-se-ia desconfiar dos saberes comuns e dos sentidos, e confiar no logos.

Compondo sua cosmologia, Heráclito apontou para três elementos, logos, fogo e conflito (ou luta), associando estes, ainda, a um elemento conclusivo: a justiça. Nesta explicação cosmológica, o logos aparece como a voz inteligente e dirigente de todo o cosmos, responsável por reger a mudança. Haveria um fluxo contínuo de alteração no mundo, daí a frase célebre, em geral colocada na versão de um de seus discípulos, Crátilo: "não podemos nunca nos banhar duas vezes no mesmo rio". Por isso Heráclito foi chamado de o "filósofo do devir".

Ele escolheu o fogo como o seu arkhé. Expressou a ideia da mudança contínua dizendo que "todas as coisas são trocadas pelo fogo, e o fogo por todas as coisas, como as mercadorias são trocadas por ouro, e ouro por mercadorias". Assim, pode-se imaginar que ele pensava no fogo como um elemento de câmbio fácil, quase como uma moeda - então a comparação com o ouro - que pode servir de intermediário entre um estado (físico) e outro.

Não é errado tomar o fogo heraclitiano como algo semelhante ao que, na física atual, é o calor ou a energia. O calor é o que é alterado nas transformações, embora não de modo aleatório: na concepção heraclitiana há um logos, isto é, um metrom para tal, um padrão de medida na mudança. As transformações são regidas por um padrão quantitativo, daí a ideia de logos como uma inteligência regente do cosmos. A noção de luta, nesse caso, pode ser entendida como o que ocorre nas transformações, pois há a perda de fogo (calor) ou o ganho dele e isso não se faz sem conflito. Esse sistema heraclitiano de perdas e ganhos é uma "guerra" eterna. Todavia, sendo um sistema dado por uma medida padrão, permite que se fale aí de "justiça". Trata-se, então, de uma justiça cósmica, que se instaura porque nada no cosmos ganha sem perder e nada perde sem ganhar, e tal balanceamento tem um padrão, o metrom.


Geograficamente oposta aos Jônios, floresceu a escola eleática. Parmênides foi seu principal pensador. Como Heráclito, ele também insistiu na separação entre aparência e realidade efetiva e, nessa tarefa, chamou a atenção para o logos, mas, sua noção de logos não era a mesma de Heráclito.

Os verbos narrar, contar e calcular são, em nossa língua, os que indicam as atividades pelas quais também a palavra logos se responsabiliza. Saindo do grego e indo para o latim, logos é ratio - a razão. Entre as atividades da razão, na acepção atual, pode-se indicar as regras básicas da lógica e, de certo modo, da linguagem. Na verdade, Parmênides foi o filósofo que, maravilhado, se deu conta dessas "regras". Escrevendo em versos e, ao mesmo tempo, compondo uma argumentação, conta uma revelação recebida das deusas, de que há somente dois caminhos para os homens, o "caminho da verdade" e o "caminho da opinião".

O caminho da verdade, por sua vez, se subdivide. Nele, a primeira via é a do "o que é". Trata-se aí de falar e pensar o ser. Seguindo por "o que é", o ser - tudo que é perfeitamente pensável -, avança pelo caminho da verdade. A segunda via é a do "o que não é". Ora, o que "não é" não pode ser pensado e do "que não é" não há conversação. O que se estaria pensando ao se pensar "o que não é"? Do que se estaria falando ao falar "do que não é"? Trata-se de uma via impraticável para o pensamento e para a linguagem e, portanto, uma estrada proibida. E o caminho da opinião? Trata-se do caminho que, não raro, os mortais seguem e, então, falam "o que é e não é". Este não é um caminho impraticável, pois é possível falar de modo contra ditório - a opinião -, mas, deve-se notar que este é o caminho do erro.

Não há evidências de que Parmênides ou Heráclito tenham escrito em reação um ao outro. No entanto, a história da filosofia acabou por consagrar uma via expositiva que, às vezes, dá essa impressão, uma vez que os coloca em contraste. Heráclito indicou o devir, a mudança, como aquilo que estaria de acordo com o logos, de modo que a captação de que algo é imutável seria a aparência, não a realidade. Parmênides, de maneira oposta, colocou a impossibilidade do devir como o que estaria em consonância com o logos, sendo a mudança o campo das aparências, não o do real. Em ambos casos, o logos apresenta a perspectiva divina, a realidade, e com a aparência fica o campo de entendimento dos mortais. Os mortais erram. O saber, que é divino, não é o da aparência, é o do real - o que se diz como o verdadeiro.

O que Parmênides disse teve um profundo impacto no mundo antigo. De certo modo, ele colocou um impeditivo forte para a elaboração de cosmologias capazes de, no seu melhor, expressar a realidade. Como poderia ser proposta alguma cosmologia, que é uma formulação dependente, exatamente, de um elemento do mundo que, enfim, realiza as mudanças ou as rege, se a mudança, o devir, é o impensado? "O que é" é; então, não pode vir a ser, pois já é. O "que não é" não é; não pode vir a ser, pois, caso pudesse, seria falado e pensado, e então estaria na condição de "o que é". O devir, ou seja, a mudança, não é pensável, não é dizível. Caso se insista em falar dela ou pensá-la, eis que se está no "caminho da opinião", no âmbito dos erros comuns dos mortais, que se fixam na aparência, não no real e, assim, não conseguem o conhecimento.

Por obra desse tipo de objeção, nasce da filosofia eleática o que os filósofos posteriores, em especial os modernos e contemporâneos, apontaram como sendo um pensamento diferente, algo que estaria além da cosmologia. Parmênides foi visto, como um filósofo que teria rompido com o pensamento cosmológico. Ele teria inaugurado outra forma de filosofar, aquela típica da ontologia e da metafísica - pois ao falar de "o que é", estaria falando do ser, do que há e, enfim, do mundo - uma perfeita ontologia, uma vez que estaria fornecendo a lógica como uma estrutura subjacente à realidade, e não um elemento físico ou similar, como nas cosmologias.

Nem a palavra ontologia nem a palavra metafísica existiam no vocabulário de Parmênides. Todavia, pensando a partir do significado moderno dessas palavras, os filósofos posteriores e, em especial os contemporâneos, comentaram o poema parmenidiano à luz de questionamentos a respeito de seu compromisso antes com a metafísica do que com a cosmologia.2


Com a proibição de Parmênides ao devir e, portanto, ao que seriam as cosmologias tradicionais, não deveria o rumo da filosofia pré-socrática ter mudado radicalmente? Os filósofos não deveriam ter parado com as construções cosmológicas?

As construções cosmológicas tinham grande força - bem mais do que hoje, ao menos. Tentava-se com as cosmologias realizar algo que, de certo modo, já estava presente no pensamento grego há muito, ou seja, explicar o mundo. Inicialmente, os mitos deram vazão a esse desejo.

Para além da sua função socializadora, sempre bem captada, hoje em dia por antropólogos e sociólogos, os mitos têm certa função explicativa. A estrutura básica dessa explicação ou proto-explicação é a de promover um relato a respeito de algo no mundo, mostrando sua origem. Não há, nesse tipo de relato, a ideia cosmológica de encontrar um princípio para o mundo enquanto uma totalidade, o que há é a ideia de se mostrar uma origem para cada elemento do mundo que, porventura, ganhe destaque ou atenção. Não se fala de um princípio como regente, mas, sim, da origem por meio de paternidade ou maternidade, por mecanismos que podem se assemelhar ao parto humano, ou às formas de transformações mágicas que, inclusive, envolvem a participação dos deuses e entidades similares no âmbito do mundo dos mortais. Trata-se, neste caso, não de cosmologia, mas de cosmogonia (??sµ?????a)3.

Diga-se de passagem, é correto não aproximar demais cosmologia e cosmogonia. Pode ser que os gregos, como os orientais, tenham olhado para o mundo e, de uma hora para outra, enxergado todo ele como uma tenda, uma casa. Vivendo em um lugar pouco hostil, assimilaram, o que denominaram de mundo, ao lar. Ora, em relação a uma casa, a curiosidade que se pode ter não é a da pergunta "para que ela veio ao mundo?", isso já se sabe. A curiosidade, se existe, é sobre sua estrutura, do que é feita a casa e como que está organizada. A cosmologia é uma narrativa segundo essa ótica, enquanto que a cosmogonia tende a ser inspirada por quem vê o mundo ainda como lugar pouco cômodo e, para saber o que se pode fazer nele de modo a não torná-lo ainda mais hostil, é interessante explicar suas origens. Em que pese essa diferença, é necessário ver, aqui, que ambas são tentativas de alguma explicação.

O conhecido mito de Narciso fornece um bom exemplo para o caso (Figura 1.2).

Zeus, o rei dos deuses, era casado com sua irmã Hera. Habitualmente, chamava a ninfa Eco para conversar com Hera, lá no Olimpo, a morada dos deuses. Eco era uma moça muito falante e, enquanto dava entretenimento para Hera, Zeus, que era um namorador inveterado, descia do Olimpo para sair com mulheres mortais. Um dia, é claro, Hera descobriu tudo e, ficando furiosa, mas não podendo castigar Zeus, acabou por castigar Eco. A bela ninfa recebeu a punição de não falar mais espontaneamente, somente repetir o que ouvia de outros. Muito triste, Eco se refugiou nos bosques e fontes. Narciso, filho do deus Cefiso (um rio) e da ninfa Liríope, era um rapaz belíssimo. Mas sua mãe era muito preocupada com ele, pois, quando de seu nascimento, recebeu um recado profético: ele não poderia ver a própria imagem. Narciso era um rapaz completamente incapaz de se apaixonar - ele não tinha, de fato, muito interesse por mulheres. Moças e ninfas belíssimas o desejavam, mas ele não lhes dava atenção. A ninfa Eco, quando o viu em uma caçada, se apaixonou perdidamente. Todas as vezes que ele vinha caçar na floresta, ela o seguia sem se deixar ver. Um dia ele percebeu sua presença e conseguiu abordá-la, e então perguntou o que ela queria. Eco pretendia declarar seu amor, mas não conseguiu dizer nada espontaneamente, apenas repetiu as palavras de Narciso. Narciso a repeliu de maneira grosseira. Desesperada de amor, Eco começou a definhar e, enfim, sumiu inteiramente, restando nos bosques e fontes apenas sua voz. As ninfas, amigas de Eco, quiseram se vingar e chamaram a deusa Nêmesis, que sabia a respeito da profecia sobre Narciso. Certo dia, durante uma caçada, Nêmesis cuidou para que Narciso se perdesse. Cansado e com sede, ele se debruçou na fonte de Tépias e, vendo sua imagem refletida na água, não conseguiu mais parar de admirar tamanha perfeição. Indiferente a tudo, Narciso não mais tirou seus olhos dali e, enfim, acabou morrendo de inanição. No local de sua morte brotou a flor chamada narciso.

Figura 1.2.: Eco e Narciso, de John William Waterhouse - 1849/1917.

Não é errado acreditar que esse mito queria contar as origens do eco e da flor narciso (como também não é errado vê-lo como sendo uma história de amor, em que o amor não pode ocorrer com dois seres que não trocam experiências). Pode-se pensar nessa narrativa como forma de resposta à pergunta: "o que é o eco?"; ou à pergunta: "como surgiu a flor narciso?". Afinal, a palavra "mito" vem do grego mythos (µ????), que deriva do verbo mytheyo e do verbo mytheo - o primeiro significa narrar, contar, e o segundo, conversar, designar. Na sua base etimológica e cultural, a palavra "mito" indica uma narrativa na qual o ouvinte acredita (dando fé à fonte do mito, o narrador) e à qual confere, assim, o caráter de verdade. O mito pode, portanto, ser uma explicação - eis o papel das cosmogonias, que são narrativas a respeito da origem e organização do mundo, baseadas no papel das forças geradoras divinas, isto é, pai e mãe divinos (que em geral são elementos inanimados da natureza que ganham aspectos antropomórficos).

Logos, originalmente, significa "dizer", "contar" (em seu duplo sentido de narrar e de calcular), "explicar", "argumentar". A diferença - e os filósofos contribuíram muito para que essa diferença se fixasse - entre logos e mythos é que esta última palavra nomeava uma narrativa que solicitava do ouvinte uma fé no narrador, enquanto que a explicação racional (a filosofia), como se sabe, quer se mostrar verdadeira por si mesma, pela sua coesão interna, pela força do logos. Assim, o elemento que a filosofia colocou contra o mito foi o "direito à autonomia" do ouvinte. Ao som do logos, o ouvinte estaria caminhando pelo seu próprio intelecto, permitindo-se a abandonar o testemunho e, principalmente, a autoridade do rapsodo.

Os cosmólogos pré-socráticos trouxeram, então, uma forma de explicação bastante convincente. E ao se depararem com a proibição eleática às cosmologias que vinham desenvolvendo, não cederam. Como poderiam ceder? A cosmologia tinha sua força exatamente porque, em novas bases, supria uma curiosidade humana muito antiga, a de dizer como que as coisas surgiram e de que maneira elas se transformaram. Exatamente isso, o movimento e a transformação, era o que havia sido tomado como o opinativo, o equívoco pelo pensamento eleático. A reação a isto, portanto, comandou boa parte do pensamento antigo posterior.


A partir de Parmênides e outros de sua região, como Melissus (450 a.C.) e Zenão de Eleia (450 a.C.), o pensamento filosófico ganhou contornos mais próximos daquilo que veio a se desenvolver na época clássica, a de Sócrates, Platão e Aristóteles. O que se fez nesse contexto, na reação a Parmênides, trouxe para a filosofia um assunto que se tornou tradicional e, de alguma maneira, um de seus temas mais importantes, o da questão sobre as distinções entre o real e o aparente - o tema par excellence da metafísica.

Para os eleáticos, o movimento era mera aparência, engano dos sentidos. Melissus desenvolveu a tese, já encontrada em Parmênides, de que "o que é", o ser, é uno, homogêneo, indivisível e ilimitado. Zenão acrescentou seus paradoxos para mostrar a impossibilidade do movimento. O raciocínio básico de Zenão pode ser expresso por meio de um de seus paradoxos, o da flecha que é lançada ao alvo, mas que nunca o atinge.

Segundo Zenão, como podemos sempre dividir a distância entre o arqueiro e o alvo em sucessivos pedaços, até o infinito, sempre faltará um pedaço para a flecha percorrer, de modo que ela nunca alcançará, de fato, o alvo. Trata-se de um pedaço cada vez menor, mas, como se admite, em tese, a divisão infinita da distância, não há como não dizer que sempre se pode encontrar, ainda, um trecho que está entre a ponta da flecha e o alvo. Pelo raciocínio, então, não há o movimento - e isto é o real. O que se vê pelos olhos do rosto, não do espírito, ou seja, pelos sentidos e não pelo intelecto, é o movimento ocorrendo e a flecha chegando ao alvo - a ilusão. Por que se haveria de abrir mão do raciocínio, da razão, em favor dos sentidos, se aquilo que é dado pelo logos é forte, contando o caráter de necessidade que traz? Qual a razão de confiar nos sentidos se, muitas vezes, eles são enganadores?

Empédocles (460 a.C.) e Anaxágoras (460 a.C.) tentaram responder aos eleáticos. Eles não se conformaram em ter de negar o movimento. Acharam errado o que Melissus falou do ser. Eles não compartilharam a ideia de que se o mundo é completamente preenchido, homogeneamente, então o movimento não poderia ocorrer - como aparece no pensamento de Zenão e Melissus, nas conclusões que tiraram de Parmênides. Todavia, mais comentados que Anaxágoras e Empedocles, posteriormente, na busca de um confronto com o pensamento eleático, foram as teses da escola dos atomistas, em especial os da região de Abdera (ver Figura 1.1), Leucipo (440 a.C.) e Demócrito (440 a.C.).

Os atomistas enfrentaram o problema eleático, o da proibição do movimento, adotando a ideia de um universo composto pelo vazio e por átomos. Seguindo novamente Aristóteles, e tratando os atomistas pela visão dos que estavam trabalhando com o pano de fundo dos eleáticos, o vazio, então, corresponderia à ideia do "que não é", enquanto os átomos 4 obedeceriam rigorosamente as características de "o que é", o ser parmenidiano. Os átomos, tomados como unidades indivisíveis e homogêneas, se deslocariam no vazio. O deslocamento estaria garantido exatamente pela existência do vazio. Não seria o vazio, "o que não é", que iria se transformar no "que é", mas os átomos, exatamente "o que é", se deslocando no espaço, forneceriam as configurações dos vários elementos do mundo.

É claro que uma solução desse tipo não resolveu os problemas postos pelos eleáticos. Além disso, com esse sistema, emergiram outros problemas, tão difíceis de solução quanto os anteriores. De passagem, pode-se perceber um deles, bastante importante para um campo específico da filosofia posterior, a área da ética: o determinismo. Tudo é formado por átomos e vazio, de modo que, também os humanos são assim. Ora, mas os átomos se movem no vazio segundo sua própria regra, e não segundo o sabor das vontades e desejos dos homens. Nesse caso, como que é explicado algo que parece ser uma característica humana, a de mudarem o curso dos eventos, de criarem coisas novas a partir de inversões do que até então se fazia? O sistema democratiano não eliminaria a liberdade humana?

Essas e outras questões foram retomadas por Platão e Aristóteles. Depois, elas reapareceram e tiveram adeptos ligados a certa herança dos "pré-socráticos", nas escolas filosóficas do chamado período helenista da filosofia, após Aristóteles. Todavia, boa parte dessas questões foi deixada de lado com a emergência de Sócrates. Este homem fantástico entendeu que "o filosofar" era outra coisa, diferente do que até o momento se fazia. Em jargão atual, pode-se dizer que, para Sócrates, "filosofar" nada tinha com investigações cosmológicas, nem mesmo com investigações epistemológicas ou metafísicas, fixando uma nova cor ao mundo grego antigo.

 

 

No final do século XIX, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) escreveu que um filósofo casado era algo ridículo, pois os grandes pensadores, segundo ele, nunca haviam se casado. Embora Nietzsche quisesse levar adiante essa sua tese, o exemplo de Sócrates o contrariava. O "pai da filosofia" havia sido casado e, segundo algumas fontes (novamente, Diógenes Laércio), por até mesmo duas vezes no mesmo período. Assim, Nietzsche concluiu que, na verdade, este caso não o contrariava, uma vez que Xantipa, esposa de Sócrates, colaborou com a filosofia, tendo ficado famosa por ter um gênio terrível, transformando o lar em um lugar insuportável, o que fez Sócrates voltar rapidamente às ruas e aos ginásios de esportes, onde ele realmente podia exercer a filosofia - a conversação com seus concidadãos. Dessa maneira, sua fisolofia sempre esteve dependente do "fator Xantipa"!

Realmente, Xantipa parece não ter escapado de avaliações negativas unânimes quanto ao seu gênio. No entanto, há de se ponderar, Sócrates também não devia ser uma pessoa fácil, já que não era de trocar de roupa e nem usar sandálias, ganhava pouco, vivia com os amigos e, como se sabe, irritava uma boa parte dos transeuntes com sua forma de filosofia que, ao final, acabava em impasses. Não à toa, ele próprio se considerou "a mosca de Atenas" - um inseto daqueles com os quais se perde a calma. Se já não bastasse isso, Sócrates era um apaixonado por Atenas. Então, mesmo já maduro, se inscreveu como voluntário em campanhas militares o que representou mais tempo ainda fora de casa. Contudo, quanto a esta última parte, não deve ter sido algo que Xantipa teve de amargar - a aposentadoria de soldado deixada por ele deve tê-la sustentado após ficar viúva.

Da outra possível esposa de Sócrates, sabe-se apenas o nome: Myrtho. Teria sido uma primeira esposa? Uma amante? Ou o filósofo desposou duas mulheres ao mesmo tempo, em uma época em que isso foi possível em Atenas? As informações são escassas. O que se pode afirmar, sem sobreavisos, é que ele era filho de um escultor e de uma parteira, e que, apesar de pobre, era ateniense, ou seja, mesmo não sendo da elite, deve ter tido boa educação. A partir dessas informações, tudo que se sabe é resultado de uma árdua obra de checagem de fontes, e nisso o folclore pode ter tido mais sorte que a verdade.

Sócrates tinha fama de que podia beber muito sem sofrer ressaca e, diferente de outros, não dormia após consumir vários copos de vinho. Também lhe era atribuída a capacidade de andar muito, de ter uma resistência inaudita ao frio e de conseguir permanecer muito tempo sem comer e beber. Além disso, há várias informações de amigos sobre seu hábito de se desligar do mundo, como se estivesse em transe. Também ganhou reputação de bom dançarino, de possuir grande capacidade retórica e, enfim, de terrível sedutor. Neste caso, diz-se, sua sedução ser em favor da filosofia. Tanto que seu amigo Xenofonte, que escreveu sobre ele, conta de sua bizarra determinação em fazer Theodota, uma prostituta, dirigir-se antes para a prática da filosofia do que para os prazeres, o que até então ela parecia preferir. Quando a prostituta convidou Sócrates para ir à sua casa, dizendo que, iria encantá-lo, ele retrucou, disse que duvidava, e a encantaria primeiro. Nem bem falou isso e ela já estava interessada, acreditando que Sócrates tinha amigos - como ele mesmo havia contado - por causa de sua capacidade de encantá-los. Ela, então, disse que o acompanharia, se fosse bem recebida. A resposta de Sócrates, para a simplória, foi taxativa: "tenha certeza que ninguém eu amo mais do que você". Mais um exemplo de seu famoso perfil: a ironia.

Às vezes, tem-se a ideia de que o melhor modo de começar a falar de filosofia é através de Sócrates. Os estudantes - nem todos - adoram repetir a frase, que ele nunca pronunciou: "só sei que nada sei", tendendo a utilizá-la, comicamente, quando questionados sobre alguma coisa. A reação do bom professor a uma resposta desse tipo é consentir com a cabeça, concordando com o aluno.


O filósofo romano Cícero (106-43 a.C.) trouxe aos seus concidadãos a imagem de Sócrates gerada a partir, principalmente, de Aristóteles. Insistindo na ideia de que Sócrates fez uma ruptura na filosofia, Aristóteles foi quem mais contribuiu para uma história da filosofia na qual Sócrates seria um marco não só cronológico, mas temático, e Cícero, nesta linha, escreveu que Sócrates havia sido o primeiro a fazer a filosofia descer dos céus à terra. Dessa forma, Cícero queria dizer que as formulações cosmológicas não eram importantes para Sócrates.

Todavia, essa formulação pode, às vezes, atrapalhar, pois, de modo algum os temas da ética foram introduzidos por Sócrates. Quase todos os filósofos antes dele trataram de temas desse tipo, ou seja, os pré-socráticos não foram única e exclusivamente physiologoi, para se utilizar a denominação de Aristóteles. A novidade de Sócrates foi centralizar sua atenção no tema da ética, e de uma maneira bastante peculiar: por meio, antes da conversação que da preleção, antes do inquérito que pelo ensino.

Os temas da conversação propostos por Sócrates não eram estranhos aos seus concidadãos de Atenas, mesmo os não cultos. Justiça, coragem, temperança, devoção religiosa, amizade, amor, sexo, dever cívico, retórica, morte, alma, ensino e vários outros estiveram presentes em seus diálogos. Às vezes, um desses temas ocupava o centro de uma conversa, em outras oportunidades os diálogos tinham um rumo, mas temas paralelos também tinham importância.

Não há qualquer registro de algum escrito de Sócrates, e não porque eles tenham se perdido, mas porque ele não escreveu coisa alguma, ao menos não sobre filosofia. As fontes principais a seu respeito são os escritos de Xenofonte (427-355 a.C.), militar e historiador, tendo sido seu discípulo, também de Aristófanes (447-385 a.C.), dramaturgo responsável por várias comédias de relativo sucesso em sua época, e, enfim, de Platão, que por sua vez, se fez discípulo de Sócrates. Outra fonte considerável é Aristóteles, que, embora não tivesse conhecido Sócrates; ao compará-lo com Platão e outros, mostrou que havia travado diálogos importantes com os que conviveram com a Mosca de Atenas. Outros filósofos que, inclusive, deram origem às escolas proeminentes no período pós-aristotélico, reivindicaram para si a herança de Sócrates. Algumas dessas escolas tiveram fundadores que escreveram sobre Sócrates com autoridade considerável, todavia, a tendência dos filósofos posteriores a tais escolas foi a de conferir a Platão a autoridade maior para falar sobre ele.

Platão foi o preferido pelo seu conhecimento filosófico, sua genialidade, sua forma de escrita cativante e, também porque sua obra se preservou completamente, diferente da de outros filósofos. Além disso, Sócrates apareceu em boa parte de sua obra, no início, como personagem principal e, depois, como secundário, o que deu margem, então, para que os estudiosos viessem a ponderar sobre um "Sócrates histórico", como Platão o viu, e um Sócrates que seria apenas personagem de Platão.

Sócrates não deixou nada escrito por uma razão especial: ele entendia que o escrito jamais poderia ser utilizado para o seu filosofar. Da maneira especial que o desenvolveu, tudo ficava dependente do diálogo vivo, das mudanças de rota criadas a partir dos movimentos do interlocutor. Foi isso que ele deixou claro, no registro platônico do Fedro, dizendo que quando se pergun ta algo a um livro, mesmo que a pergunta se altere, o livro volta com a mesma resposta. De fato, foi exatamente por essa razão que Sócrates não deu atenção para a escrita. Essa postura, aliás, foi utilizada por outros filósofos pós-aristotélicos.

O modo como Platão falou a respeito de Sócrates marcou a história da filosofia, pois ele não começou pelo início, mas sim pelo fim. Seu texto, mais próximo de um relato histórico, que é A defesa de Sócrates, mostra seu mestre já perto dos setenta anos, diante dos quinhentos jurados que, enfim, o condenaram à morte. Nesse texto, Platão coloca Sócrates explicando o que o levou a filosofar.

Sócrates apresentou-se ao tribunal por causa de três acusações feitas por três atenienses. As acusações foram analisadas pelo próprio Sócrates, no início de sua defesa. Segundo seus acusadores, ele deveria ser punido por corromper a juventude, por não acreditar nos deuses em que a cidade acreditava e, por fim, por acreditar em novos deuses. Para defender-se dessas acusações, optou por uma dupla via de ação. Usou da coerência lógica, do "método da refutação", o elenkhós, que era uma de suas características. Também utilizou um procedimento genealógico, ou seja, a história do modo como veio a filosofar. O primeiro procedimento corresponderia, hoje, a algo mais próximo ao trabalho da "filosofia analítica", e o segundo, ao que é mais comum no campo da "filosofia continental".


Em A defesa de Sócrates, Platão apresenta Sócrates, em determinado momento, expondo a história de como se tornou filósofo e o porquê de sua ação ter sido aquela determinada, e não outra, durante quase toda sua vida. Dessa maneira, ele chegou ao episódio da viagem de Querofonte (470/450 - 405/399 a.C.).

A vida ocidental atual seria outra se Querofonte não tivesse existido ou não tivesse sido quem ele foi. Democrata, militar e impetuoso, foi amigo de infância de Sócrates e seu companheiro em jornadas de guerra. Viajando de Atenas a Delfos para consultar o Oráculo do Templo de Apolo, levou em mente uma pergunta especial sobre o filósofo. Ele queria saber do deus, pela boca da pitonisa, se havia alguém mais sábio do que Sócrates em Atenas.

O santuário onde ficava o Templo de Apolo e, nele, o Oráculo de Delfos, abrigou, na época medieval, um pequeno vilarejo chamado Kastri. A cidadezinha ficou ali até 1893, quando começaram as escavações da Escola Francesa de Arqueologia no local. O vilarejo foi transferido para as proximidades, rebatizado como Delfos. Com as escavações, os conhecimentos sobre o santuário e, portanto, vários outros aspectos da vida grega, foram bastante ampliados.

Delfos é uma cidade bem pequena, de 1.500 habitantes que fica há pouco mais de 140 km de Atenas. Há uma rodovia moderna que passa por Tebas e liga Atenas a Delfos, da qual, pode-se avistar o sítio arqueológico onde o Templo de Apolo esteve erguido, no sopé do Monte Parnasus (como observa-se nas Figuras 2.1, 2.2 e 2.3).

Figura 2.1.: Portão de entrada do Santurário de Delfos (2009).

A história do santuário está envolta pela própria mitologia que ele sustentou. Uma das versões mitológicas conta que Apolo derrotou o deus cobra-dragão Píton, que ali reinava e guardava o culto de sua mãe, Gea (a Terra), casada com o próprio irmão Cronos (o tempo) e progenitora da primeira geração de deuses olímpicos. Tendo derrotado um deus, Apolo foi condenado ao desterro, sendo banido do Olimpo por nove anos. Depois desse tempo, voltou em forma de delfim (daí o nome Delfi ou Delfoi) e se apossou do local, criando um templo para o culto de sua personalidade e de suas façanhas. Em homenagem ao deus derrotado, deu o nome de Templo de Píton e as sacerdotisas, então, foram chamadas de pítias (pitonisas). Apolo teria buscado, ainda em forma de delfim, os primeiros sacerdotes do templo, escolhendoos entre marinheiros perdidos. Neste ponto, o mito cruza com a história e com a ciência e volta ao que, talvez, seja mesmo mito. As pitonisas de Delfos, as mulheres que falavam as mensagens do deus, eram virgens reclusas, preparadas por outras mulheres mais velhas. Pesquisas recentes afirmam que tais mulheres viviam pouco, pois o transe pelo qual passavam para dar respostas aos que vinham ao templo devia-se a odores inalados; tais odores nada mais seriam que gases de rochas vulcânicas do local, que eram, de fato, substâncias tóxicas.

O culto a Apolo teve início por volta do século VIII a.C., e Sócrates viveu no século V a.C. A força e o prestígio do Oráculo, ao menos até Sócrates, ainda não eram desprezíveis, porém, no século seguinte à sua morte o local foi perdendo seu caráter sagrado. Com o englobamento da Grécia, ao Império Romano veio de fato à decadência, e o local foi oficialmente fechado pelo imperador cristão Teodósio, em 390 d.C. Dessa maneira, o local funcionou como sagrado durante mais ou menos mil anos. Isso quer dizer que durante todo esse tempo as sacerdotisas do local fizeram o mesmo ritual? Não se sabe. Mas, pode-se imaginar que, quando Querofonte visitou o Oráculo, muito provavelmente a pitonisa o recebeu segundo uma praxe: sentada em um pequeno tripé fixado sobre a cavidade das rochas que exalavam os gases, então tomados como fumaças que saíam do cadáver do deus cobra-dragão Píton, que teria ficado enterrado ali, após derrotado por Apolo. Querofonte trouxe daquele local a diretriz que mudou a história da filosofia e, de certo modo, a vida de Sócrates, é claro.

Figura 2.2.: Templo de Atenas, no Santuário de Delfos (2009).

Figura 2.3.: Maquete que mostra como era o Santuário de Delfos na época de Sócrates.

A resposta da pitonisa à pergunta de Querofonte foi um "não" - não haveria ninguém mais sábio que Sócrates entre os atenienses. Mas como foi essa resposta? Verbal? Por escrito? E até que ponto o Oráculo dizia algo que poderia ser levado a sério? Todas essas questões são controversas. Os oráculos possuíam duas formas de resposta, com preços diferentes. Uma resposta detalhada e escrita era mais dispendiosa e, também implicava a oferta de sacrifícios de carneiros e cabritos. Já uma resposta curta e barata era obtida com o "método dos dois feijões"; tirava-se, aleatoriamente, um feijão que significava o "sim" ou outro que representava o "não". Como a resposta dada a Querofonte, uma pessoa sem grandes posses, foi um simples "não", é de se conjecturar que tenha sido pelo segundo método que o destino de Sócrates, e de alguma maneira, o da cultura no Ocidente fora traçado. Mas o valor de uma resposta dada pela pitonisa não mudava muito por causa do método. Em ambos os casos, não era uma resposta direta ou uma profecia, mas sim um tipo de enigma, quase como uma charada que tinha de ser interpretada. A forma de interpretação variava segundo a formação intelectual e moral de cada destinatário. Se o intérprete fosse alguém inteligente, inclusive com alguma experiência filosófica, a interpretação era muito mais complexa. Por isso mesmo, a questão das opções de Sócrates, ainda hoje, está centrada exatamente a respeito do que ele fez quando soube da resposta trazida por Querofonte.


Ao tomar conhecimento da mensagem que Querofonte trouxe de Delfos, Sócrates se dispôs a descobrir qual seria o real significado contido na resposta do Oráculo, uma vez que ele não se considerava sábio. Assumindo que o deus jamais mentiria - uma postura relativamente nova entre os gregos -, Sócrates passou a imaginar um meio de entender a mensagem. Decidiu investigar seus concidadãos e, se viesse a encontrar um mais sábio que ele, poderia formular uma primeira contestação ao deus e, então, mudar de rumo em sua tentativa de interpretação, ou seja, Sócrates tentou usar a refutação (elenkhos).

Colocou sua vida na tarefa de investigar os outros e, assim, também saber de si mesmo; a isto chamou de "filosofar". Percebeu que os homens de Atenas podiam parecer mais sábios do que ele somente à primeira vista, pois não respondiam corretamente, nem davam definições suficientemente abrangentes para as perguntas que fazia, sendo todas no âmbito moral: o que é a devoção? O que é a virtude? O que é a coragem? E assim por diante. Ainda que ele também não as respondesse, tinha claro para si que não possuía a resposta correta, enquanto seus interlocutores pareciam não perceber suas próprias incapacidades. Ele se viu, então, ao menos inicialmente, confirmando a resposta do Oráculo de Delfos.

Aos poucos, reparou - como ele conta aos jurados, durante sua defesa - que o propósito do deus do Templo, em Delfos, não era propriamente o de colocá-lo ciente de sua condição. O deus o havia escolhido apenas para que toda a cidade percebesse que o saber humano não vale o que os seus usuários imaginam. Tratava-se, então, de um recado para toda a Atenas: vejam que aquele que é o mais sábio entre vocês todos tem uma sabedoria sem o grande valor que é o da sabedoria verdadeira. Essa, então, seria a sabedoria de quem teria respostas para as perguntas abrangentes, como: o que é a virtude? Viriam em forma de definições válidas para todos os casos, um saber que, não raro, os filósofos (Platão à frente) assumiram como o saber divino. Aliás, ressalta-se que a ideia de uma divisão entre o saber dos homens e o das divindades, percorreu toda a filosofia pré-socrática. Ouvir o logos, para Heráclito, era ouvir a divindade. Parmênides, por sua vez, colocou o conteúdo do seu poema como sendo uma revelação divina.

Assim, em algum momento de sua vida em Atenas, Sócrates assumiu que sua tarefa já não era só investigativa, mas a de quem estaria como um assistente do "deus do Templo", a fim de mostrar a cada transeunte da cidade que não havia razão para excesso de orgulho. O "conhece-te a ti mesmo", gravado na pedra, no Templo de Apolo, não era só um recado para cada ateniense, ou um lema assumido por Sócrates. Do modo como interpretou o recado do Oráculo, ele próprio seria o instrumento para que Atenas toda levasse a sério o "conhece-te a ti mesmo", com o intuito de se tornar menos arrogante.

Sendo assim, a respeito da resposta da pitonisa, concluiu que ele havia sido escolhido para uma missão: possibilitar o exame da vida do cidadão ateniense. De fato, diante dos jurados, Sócrates afirmou que acreditava que "uma vida não examinada não valeria a pena ter sido vivida"; mas também confessou que achava difícil que alguém acreditasse nisso.


A assunção de uma resposta, vinda de Delfos, como o indicador de uma missão, deveria soar como o cumprimento de um dever religioso e, no caso de Atenas, um dever cívico. Então, a acusação de não acreditar em deuses e, principalmente, de não acreditar nos deuses venerados pela cidade, deveria ter caído por terra. Mas, pelo resultado do julgamento, é de se imaginar que a plateia de jurados entendeu o feito de Sócrates como heterodoxo demais. É provável que uma boa parte dos jurados visse o dever religioso como o que teria de ser cumprido por meio dos tradicionais rituais de oferendas aos deuses - e não mais que isso. Mas, teria algum outro ateniense recebido uma missão de um deus, assim, de modo tão direto?

Sócrates não optou por preparar sua fala diante dos jurados. Ele decidiu não usar da esperada retórica persuasiva, comum naquelas situações. Sua opção foi a de "falar a verdade" - conforme afirma o início do texto platônico, A defesa de Sócrates. Então, para piorar a situação, quanto à desconfiança de sua relação pouco conveniente com os deuses, o filósofo também mencionou que recebia "sinais divinos". Contou que, desde criança, escutava "vozes", e que havia assumido, por sua conta e risco, que se tratavam de sinais da divindade. Não eram sinais positivos que pudessem ser tomados como "visões", mas eram, sim, premonições negativas, que freavam sua ação, a célebre atividade do daimonion.1

Durante a fala em sua defesa, nos momentos em que mencionou seu contato com o que assumia ser o divino, os jurados demonstraram um pouco de alvoroço. Enquanto respondia sobre o Oráculo de Delfos e explicava a respeito de ouvir vozes - aquelas que ele assumia como sinais divinos -, teve de pedir silêncio à plateia. As reações podem ter sido, é claro, dos jurados que entenderam que o que ele dizia era uma grande presunção. Ou, talvez, tenham assim se manifestado por entender que aquilo era uma confissão de culpa. Como alguém poderia ter afirmado, publicamente, que possuía contato com um daimonion, um gênio? Ora, e se fosse verdade, quem seria essa divindade? E não era exatamente por isso que ele estava sendo acusado: de ser um "produtor de novos deuses"?

Dessa forma, teria sido, realmente, pelas acusações apresentadas que Sócrates foi condenado? Ou havia outras acusações, não proferidas, que pesaram mais? Afinal, ainda que Atenas ficasse incomodada com Sócrates, ele tinha a seu favor o fato de ter sido herói de guerra, tendo participado de duas campanhas militares importantes e, embora fosse pobre, era filho de pessoas respeitadas. O motivo político, já que ele havia tido alguns seguidores que traíram Atenas, como o caso do jovem general Alcebíades - a quem salvou na guerra -, pode ter pesado contra ele? Justamente ele, que nunca participou da política (exatamente por impedimento da voz que dizia ouvir, o daimonion), teria angariado ódio político? O que foi o julgamento de Sócrates? Um processo efetivo, no qual as acusações foram levadas em conta? Ou um processo falso, de simples vingança daqueles que ele, possivelmente, humilhou, ao mostrar, no seu filosofar, que eles não podiam ser tão orgulhosos quanto eram, pois não eram os sábios que se diziam ser? Aliás, essa última possibilidade, ele próprio, considerou válida, logo no início de sua defesa.

Sócrates foi acusado de introduzir novos deuses em Atenas e de corromper a juventude. Seu julgamento ocorreu em 399 a.C. Ele fez sua defesa diante de um júri de quinhentos atenienses, dividiu os jurados, mas não o suficiente para não ser condenado. Uma vez na prisão, poderia fugir por meio de diversas maneiras, o que de fato foi proposto por alguns de seus discípulos. Todavia, permaneceu preso e cumpriu sua pena, que era a de tomar veneno voluntariamente, e foi assim que faleceu. Como citado anteriormente, um dos principais textos sobre o assunto é A defesa de Sócrates, escrito por Platão, que dá voz ao próprio Sócrates diante do tribunal. Já o texto que o apresenta na prisão, à espera da morte, é o Crito. Nele, Sócrates mostra sua obediência às leis de Atenas, considerando que o julgamento havia sido um erro, mas que isso não o autorizava a afrontar as leis. Ir contra tal regimento, para ele, seria negar a validade de leis que o acolheram e protegeram durante toda sua vida.

Em um primeiro momento, hoje, pode-se ficar admirado com o julgamento. Primeiro: como entender a acusação? Os atenienses viviam em uma democracia e eram esclarecidos, então, qual a razão de uma acusação desse tipo contra um filósofo? Segundo: como compreender seu comportamento, após ter sido julgado? Por que ele não fugiu, já que teve a oportunidade? A filosofia de Sócrates e sua relação com a religião, portanto, dão algumas pistas para se responder a essas questões.

A religião, na região das colônias gregas, não dependia de sacerdotes que estavam nas cidades, em igrejas, atrelados ao poder político (como em um estado teocrático) ou como um poder que, mesmo longe do governo, poderia mandar punir os não fiéis, os não devotos, os ímpios. Os sacerdotes, ou melhor, os oráculos, raramente eram comandados por homens. Os sacerdotes não eram, na maioria, homens, mas, sim, mulheres que estavam em santuários que funcionavam como oráculos. Não saíam dos santuários, nem davam ordens; apenas produziam "adivinhas", quando eram consultadas. Assim, zelar pela devoção ou religiosidade dos gregos, em cada cidade, dependia dos próprios cidadãos, como em Atenas. Ora, se não havia uma casta nas cidades beneficiada diretamente pela religião, qual a razão de tanto zelo com a religiosidade e a devoção aos deuses?

A devoção tinha uma razão ética. A Grécia era uma nação, mas não um país ou um Estado. As cidades eram independentes, viviam como "cidades-estados" e, na falta de uma unidade política maior, os gregos tinham de ter um cuidado especial para manter o funcionamento de sua sociedade. Fora desta realidade, o que havia, segundo eles, era a barbárie. A garantia do ethos e, enfim, da própria identidade, o que os fazia poder existir como "os gregos", que se diferenciavam dos "outros", que eram chamados de "estrangeiros" ou "bárbaros", nada era senão o uso da mesma língua e o culto aos mesmos deuses. Por isso, introduzir novos deuses em Atenas e divulgar isso entre os jovens era um crime, um ato que, no limite, poderia descaracterizar a cidade grega.

Os gregos não tinham uma religião baseada em textos sagrados. Não havia algo como a Bíblia ou o Alcorão, e a devoção não era cobrada ou desobedecida diante de uma ortodoxia. O que havia era uma espécie de ortopraxia. Ou seja, havia uma prática relativamente estabelecida de rituais que, embora cumpridos (os Jogos Olímpicos eram um deles) não eram catalogados e definidos quanto ao que se devia ou não fazer neles. O que era ou não um ritual apropriado não podia ser determinado com exatidão. Sendo assim, o tribunal que julgou Sócrates não teve apenas de julgá-lo por impiedade; por atos que o apresentavam como não devoto; mas também tiveram de definir, ali mesmo, ao decidirem que Sócrates era culpado, o que era e o que não era a impiedade. Por isso, quando se lê Platão, com o olhar atual, sente-se que a acusação foi vaga, porém, com certo sentido.

A democracia de hoje julga muita coisa pelo voto, mas o faz, em geral, por meio de um apoio: leis escritas, definidas e catalogadas. Não era o que ocorria em Atenas. Até mesmo o que era ou não era lei estava em questão a cada assembleia. Daí a importância da retórica. Por isso, quando Sócrates viu-se condenado pelos jurados, ele não tomou tal condenação como obra apenas dos jurados, mas também das leis de Atenas, que até então o tinham favorecido. Pois as leis, enfim, eram feitas ali na Ágora.

É claro que é possível imaginar, também, que as acusações sobre Sócrates deveram-se ao que seria uma vinculação sua ao modo de vida oligárquico, e não ao democrático. De fato, Sócrates havia sido amigo de homens, como Alcebíades, que traíram Atenas, e também teve discípulos que, em determinados momentos, serviram aos oligarcas que dominaram a cidade na época dos "Tiranos", após a vitória de Esparta sobre Atenas na Guerra do Peloponeso. O próprio Platão era um oligarca, e seus parentes estiveram entre os "Tiranos". Então, os que ficaram do lado da democracia, ainda que alguns assim o fizessem exclusivamente por oportunismo - como o caso de seu principal acusador, Meletus -, teriam levado adiante as acusações apenas por vingança contra Sócrates.

Não é difícil ler Platão e tomar as acusações contra Sócrates como bem possíveis de terem sido motivadas pelo que ele aponta em sua "defesa", o fato de ter colocado vários interlocutores sob fogo de seu filosofar direto que, enfim, mostrava "por refutação" que o interlocutor não sabia o que dizia saber. Além disso, é necessário pesar o quanto sua maneira de relacionamento com os deuses poderia soar esquisita aos atenienses. Sócrates via-se como o mais devoto dos atenienses, uma vez que sua forma de filosofar era, para ele, uma obediência ao "deus do Templo" (de Apolo). É muito provável que os jurados, acostumados a serem devotos dos deuses, cumprindo rituais tradicionais, tenham entendido muito pouco como Sócrates havia articulado religião e filosofia para, por tal articulação, considerar-se um devoto do "deus do Templo", que era o modo como ele se referia ao deus do Templo de Apolo.


Sócrates dedicou sua vida na tarefa de investigar outros e, assim, exercer o "conhece-te a ti mesmo". A esta atividade ele chamou de "filosofar". Assumindo que o cidadão ateniense deveria ter a vida examinada - "uma vida não examinada não valeria a pena ter sido vivida" - seguiu adiante desenvolvendo um procedimento peculiar para a investigação.

A conversação de Sócrates variava, mas, de um modo geral, pode-se falar de um procedimento padrão, o qual pode ser colocado conforme disposto a seguir.

Sócrates está em diálogo e então resolve:

•refutar um enunciado p proferido pelo seu interlocutor. Escolhe bem o que é p, de modo que o interlocutor saiba que é realmente de p que ele discorda, e é contra p que ele vai agir na conversação;

•em seguida, ele enuncia q e r, duas outras frases que expressam crenças claras, que ele não se preocupa em fundamentar, apenas em enunciar como sendo o que acredita e o que considera um saber, e pede a concordância do interlocutor para tais enunciados. Em geral, o interlocutor concorda com q e r;

•então, Sócrates passa a mostrar que acreditar em q e r implica acreditar em não-p;

•assim, Sócrates diz, ao mostrar que não-p é verdadeiro, que então p é falso.

Esse método de Sócrates nada tem a ver com aquele que, erroneamente, às vezes, os manuais de história da filosofia enxergaram como o de "parir ideias".

Em Teeteto, Platão coloca Sócrates dizendo que ele fazia algo parecido com o trabalho de sua mãe; ela ajudava as mulheres a parir crianças, ele ajudava os intelectos de outros a parir ideias. Em Menon, Sócrates aparece fazendo um jovem e ignorante escravo deduzir um teorema matemático. Do nada, o escravo acaba fazendo nascer a ideia, e Sócrates ali é o parteiro. Mas, tanto no Teeteto quanto no Menon, Sócrates está bem distante do "Sócrates histórico" de Platão, sendo já o Sócrates personagem, aquele que fala o que é a doutrina platônica. Em outras palavras, é o elenkhós 2 seu método, não a maiêutica, procedimentos diferentes e distantes, que não se relacionam.

 

 

Há estudantes que toleram as aulas de filosofia, ao menos no início. Quando se entra em desespero, achando que mesmo os estudantes que assistiram as aulas, podem não conseguir fazer a prova, uma boa sugestão é recorrer aos mistérios da Grécia antiga, que podem ser um atrativo. As figuras lendárias são um bom recurso nessa situação, e a referência aos chamados "sete sábios", por exemplo, não é de se desprezar.

Os "sete sábios da Grécia" encontram-se na intersecção entre lenda e história, e uma das listas dos nomes de tais sábios pode ser a seguinte: Tales, Periandro, Pítaco, Bias, Cleóbulo, Quílon e Sólon. Diógenes Laércio cita versões das lendas sobre esses homens e explica como eles foram agrupados sob a rubrica de "os sete sábios". Uma dessas narrativas diz que, em um certo dia, pescadores de Mileto encontraram uma trípode de ouro. Perguntaram o que fazer com o achado ao Oráculo de Delfos, que os aconselhou a entregá-la ao mais sábio dos homens. Eles deram a trípode a Tales, que declinou da honra afirmando que havia outros homens mais sábios do que ele. A trípode passou, então, por seis homens da lista, e todos tiveram a mesma atitude. Sólon, o sétimo a recebê-la, ofereceu a trípode a Apolo, dizendo que o deus era o mais sábio entre os humanos.

Pode-se ver que Sólon era antes de tudo esperto, depois, sábio. Aliás, ao traçar sua árvore genealógica, ele se fez descendente dos deuses e é dessa linhagem que veio Platão, todavia, com humildade maior.

Um dia antes de Sócrates conhecer Platão (428-348 a.C.), ele sonhou que um cisne havia pousado em seus joelhos e, na tradição grega, o cisne era o "pássaro de Apolo". Além disso, Platão nasceu no dia em que se comemorava o aniversário de Apoio e, quando criança, abelhas pousaram em sua boca, o que era um sinal de ligação com o divino. O sobrinho de Platão, Speusipo (407 a.C. - 339 a.C.), que após sua morte o substituiu na direção da Academia, não deixou por menos, dizia que o tio não era filho de Aristarco, e sim do próprio Apoio. Extremamente inteligente, de origem nobre, rico, forte e de voz suave, Platão tinha tudo para ser visto, ao menos por certa tradição interpretativa, como semidivino.

A despeito da grande importância que se dava ao casamento e à constituição da família, em Atenas, principalmente entre os nobres, Platão nunca se casou. Um semideus homossexual, sem qualquer desvio, já que a pederastia era quase uma instituição na Grécia. Aliás, instituição antiquíssima, pois o próprio ancestral de Platão, Sólon, como legislador que foi, procurou dar a essa prática suas primeiras regras oficiais, protegendo o prazer e seu caráter pedagógico dos perigos de sua redução à prostituição.

Quanto às suas relações amorosas, Platão pode ter diferido de outros de seu tempo, não só pelo fato de não se casar, mas também pela forma de relacionar-se com outro homem. A pederastia se dava entre um homem mais velho e um bem jovem, sem que isso afetasse o casamento heterossexual do mais velho. Tal relação tendia a terminar quando o rapaz atingia a idade adulta, entretanto, Platão já era maduro quando se ligou a Dion que, por sua vez, também não era mais menino. Uma ligação como esta pode até explicar as viagens de Platão, as quais o levaram a se envolver com Dionísio, o governante da Sicília, auxiliando-o políticamente. Isto se fez, de certo modo, por conta da sua relação com Dion. Todavia, todas as vezes que esteve na Sicília, as coisas foram de mal a pior para ele, e talvez não tenha sido morto, antes por sorte, do que pela intervenção de amigos ou protetores de filósofos, como o que se diz na história da filosofia.

Entre as fontes históricas a respeito da vida de Platão, há treze cartas autobiográficas, mas, somente na Carta Sete parece ter informações confiáveis e, talvez, autênticas. Da sua leitura, pode-se depreender que Platão precisou não só de decepções em relação à política ateniense, mas também de frustrações no exterior, para finalmente se afastar de vez desse campo, fixandose, então, como o filósofo fundador da Academia (387 a.C.).


Platão enveredou por filosofias diversas, levando Pitágoras a sério e, mais ainda, Heráclito, portanto, não foi um discípulo comum de Sócrates. Aos vinte e sete anos, encontrou-o. Essa convivência durou intensos oito anos que redefiniram sua vida, ao menos por três vezes, e isto, já após a morte de Sócrates que, por si só, foi uma reviravolta no seu itinerário, pois logo após que começou a escrever.

Ao percorrer sua obra, nota-se três conjuntos de trabalho, oriundos, talvez, de três inflexões causadas pelo modo como Sócrates 1 em quase todos os seus escritos, que está presente e, não raro, como personagem principal. De um modo geral, a cronologia dos acontecimentos narrados em cada título é quase que o inverso da cronologia de publicação ou redação.

Os primeiros trabalhos de Platão mostram diálogos nos quais Sócrates é um filósofo consagrado. Seu método é o elenkhós, suas questões são do tipo "o que é X?" e, enfim, sua preocupação doutrinária nada tem ver com fundamentos metafísicos ou epistemológicos. Nesta fase, os diálogos terminam em aporias 2, ou seja, nem os interlocutores nem Sócrates chegam às definições investigadas que motivaram a conversa, o que seriam as respostas às perguntas do tipo "o que é X?". Os diálogos da segunda fase de Platão mostram Sócrates tendo interesses metafísicos e epistemológicos e, nestes, há visível oscilação metodológica.

Entre os estudiosos atuais, considera-se este Sócrates como porta voz de uma filosofia que já pertenceria às elaborações próprias de Platão. Já as obras finais, nem sempre mostram Sócrates e, quando aparece, é como um personagem sem muita importância. Todavia, neste caso, depara-se com um Sócrates jovem, incapaz de dar um encaminhamento para questões filosóficas importantes que, geralmente, vieram do âmbito da parte intermediária da obra de Platão, ou seja, impasses do próprio Platão em relação à sua filosofia.

Pode-se supor, com certo cuidado, que o que Platão escreveu, inicialmente, diz respeito ao "Sócrates histórico", ou a algo próximo disso. Ou ainda, trata-se de uma versão, talvez já com uma dose de ficção, do que Platão havia entendido como sendo a filosofia de Sócrates. Em um segundo momento, aparentemente motivado pelos sucessivos impasses do procedimento socrático, Platão manteve Sócrates como personagem, com vários traços de personalidade e pensamento manifestados nos primeiros escritos, e também como um perseguidor de alternativas teóricas capazes de dar respostas positivas às perguntas do tipo "o que é X?". Aliás, mais que isso, Platão quis dar respostas positivas e seguras. O que engendrou nessa fase corresponde à chamada Teoria das Formas, uma doutrina metafísica e epistemológica, a qual, em geral, considera-se como sendo "o platonismo". O terceiro momento é aquele no qual surgem as críticas, normalmente bem conhecidas na história da filosofia, por terem sido formuladas por Aristóteles em suas próprias obras. Todavia, essa fase mostra que Platão, antecipadamente, ou então ouvindo o jovem Aristóteles, teria feito questão de mostrar diálogos com impasses e problemas, deixando-os como herança para a Academia.

A questão que emerge de um sobrevoo da obra platônica, é por que, em determinado momento, Platão ficou incomodado com os impasses gerados pelo procedimento socrático. Entretanto o próprio Sócrates, pela boca de Platão ou de Xenofonte, ou por informações de Aristóteles, não se mostrou insatisfeito.

É claro que o procedimento de Sócrates era o oposto daquele exclusivamente retórico. Ele foi um adversário dos sofistas, os quais, segundo Platão, estavam voltados antes para a persuasão a qualquer preço do que para a verdade. Sócrates reconhecia muito bem a diferença entre a retórica persuasiva e a investigação para a verdade. Em sua defesa, esperava-se dele um procedimento retórico, no entanto, ele avisou os jurados, logo no início, que nunca esteve em um tribunal e que não sabia falar do modo esperado ali, ou seja, ele não iria fazer o discurso próprio de um réu que, educado, teria produzido uma peça retórica à moda dos sofistas. Ao contrário, ele afirmou que iria "dizer a verdade". Assim, o que foi tal afirmação senão a admissão clara de que ele entendia que o procedimento retórico implicava em não dizer a verdade? Tendo claro para si esta distinção, a cada final de diálogo, os da primeira fase dos escritos platônicos, quando enfrentava um sofista, Sócrates o colocava na parede, mostrava suas inconsistências, mas, ele próprio, não se sentia incomodado em terminar o diálogo sem oferecer uma resposta positiva.

No entanto, em determinado momento da obra platônica, Sócrates surge procurando outros métodos, fazendo novas coisas e, enfim, dizendo teorias que o tornam diferente do Sócrates inicial. Pode-se concluir, então, que não foi Sócrates que mudou de ideia, mas, sim, Platão, pois Sócrates entendeu o filosofar como diálogo contínuo. A ideia de que "uma vida examinada não vale a pena ser vivida" era mais importante que os resultados da investigação, considerando que os resultados deveriam ser as respostas positivas ao "o que é X?". Todavia, uma parte dos resultados, pode-se pensar, eram alcançados já pela situação negativa. Sua missão não era, única e exclusivamente, encontrar respostas para as perguntas éticas, mas lidar com a hybris (ou ubris, em grego, ??ñéò), a arrogância, a falta de comedimento de um povo naturalmente orgulhoso, como o povo de Atenas.

Isso não quer dizer que as perguntas de Sócrates, todas no âmbito ético, não fossem levadas a sério por ele próprio, e que tivessem valor somente negativo. Para entender isso, é crucial lembrar o quanto, na história da filosofia, se falou do "intelectualismo socrático". Segundo essa doutrina, o expert em determinada habilidade assim o é porque tem o conhecimento requerido. O expert em virtude é o que tem conhecimento das virtudes. Dessa forma, Sócrates nunca cogitou que alguém pudesse ser corajoso sem saber o que é a coragem, do mesmo modo que alguém não poderia ser capitão de uma embarcação sem saber navegar. Suas perguntas, portanto, eram muito importan tes, deviam ser respondidas, uma vez que se desejava encontrar experts em virtudes. Mas, não conseguir respostas para elas, não era uma derrota da filosofia, pois, embora cada diálogo terminasse em uma aporia, ainda assim a missão continuava a se desenvolver, afinal, saber-se ignorante quanto às questões postas e, então, tomar consciência de quão tolo seria se portar de modo arrogante, também era um ganho em virtude. Além disso, pode-se conjeturar que Sócrates não teria razão para não considerar que, no dia seguinte, havia chances de continuar a conversação mantendo o fluxo da investigação, do filosofar.

Considerando Platão um autêntico nobre e, portanto, eternamente interessado na administração da cidade, não é errado pensar que ele, angariando ou não, decepções com a vida política, não deixou jamais de refletir sobre ela. Platão começa o que se pode considerar como "o platonismo", antes pela filosofia política do que por qualquer outra coisa. Seu interesse filosófico é o de ter respostas positivas, verdadeiras, asseguradas; enfim: conhecimento. Todavia, este interesse estava a serviço da política: se há uma elite governante, cujos membros podem chegar ao que é verdadeiro e bem justificado, não há razão de disputas entre eles. Se assim ocorre, não há motivo para que querelas menores se sobreponham ao trabalho de comando da cidade que, enfim, se impõe pelo que é o conhecimento e o discernimento a respeito de tudo que é necessário para o bom governo, principalmente a justiça. Então, se no interior das elites não há grandes divergências, eis aí a condição para que a cidade caminhe harmoniosamente. Um sucesso epistemológico, ou seja, uma forma de mostrar que o conhecimento é possível, e que um grupo de homens pode alcançá-lo, deveria trazer um sucesso político e a não-formação de partidos no interior da elite, pois todos alcançariam o conhecimento e aplicariam justiça à cidade. Tal política proporcionaria o funcionamento correto da sociedade.

Assim, a motivação para uma investigação a respeito do conhecimento e, então, a construção de uma epistemologia, teve, em sua base, o que deveria estar na essência de Platão: a política.


A cidade em situação de bom governo é a cidade justa, e a justiça era o objetivo de Platão ao começar por sua própria filosofia. Falando sobre esse assunto, Platão sentiu-se obrigado a mostrar que, ao menos ele, não estava em uma situação como a do final de cada diálogo socrático, ou seja, ainda sem o conhecimento procurado. Tinha de saber o que era justiça, como ocorria na cidade e, então, mostrá-la para seus interlocutores e leitores.

No livro A República 3, Platão delineou, entre outras coisas, como poderia funcionar uma cidade justa, apontando para situações de cidades em más condições. A cidade justa tratava-se, então, de uma cidade dividida por estamentos - governantes, soldados e artesãos - e governada por um rei-filósofo, escolhido entre os membros de um conselho de anciãos, todos eles sábios. A divisão social apresentada corresponde, no plano individual, à psicologia platônica. Ou seja, cada classe tem indivíduos nos quais prepondera uma das características da alma, respectivamente: razão, coragem e apetite. Uma situação assim, onde a sociedade e o indivíduo se espelham, de modo que cada qual cumpre o que é de sua vocação, e todos, participam de uma divisão social do trabalho que não cria nenhuma situação inadequada, tem de funcionar como um relógio.

Para Platão, a divisão social harmônica, a inexistência de propriedade privada e a doação dos filhos ao governo seriam as medidas necessárias, práticas, para o funcionamento da cidade em regime de paz e justiça. Caso Platão parasse nesta definição, teria feito algo semelhante ao que fizeram os utópicos clássicos, medievais e renascentistas, mas, em uma sociedade como a grega, bastante exigente quanto à racionalidade de uma proposta política, era necessário ir além.

A pergunta que Platão deve ter feito a si, é a de como o seu leitor poderia concordar com a cidade ideal, então proposta em A República. Haveria objeções, é claro. Por exemplo: quem asseguraria que os governantes realmente sustentariam intelectual e moralmente toda aquela organização e, portanto, a justiça, uma vez que só a condição de sábios, não seria uma garantia? Como qualquer outro lugar democrático, ontem e hoje, Atenas nunca foi condescendente com os que foram titulados como sábios. Aliás, pode-se imaginar que Platão tivesse em mente a própria situação de Sólon, que foi reformador político respeitadíssimo e, no entanto, em determinado momento, caiu sob acusações de não ter proposto boas coisas para Atenas, sendo julgado por isso. E também, um conselho de sábios não poderia se deparar com divergências em seu interior? A partir daí, não se formariam partidos nas elites governantes e, em seguida, disputas que mobilizassem o povo? Não poderia vir daí a guerra civil e, então, a injustiça?

A partir dessas questões, Platão entendeu que tinha de mostrar, no próprio texto de A República, que os governantes seriam capazes de captar a realidade e, então, ter conhecimento, mantendo-se como guardiões da justiça e fazendo-a vingar. Teriam, também, que enxergar a realidade e esta, sendo única (como haveria duas realidades?), daria margem para o acordo. Por fim, haveria a comunhão das crenças verdadeiras, então bem justificadas: o conhecimento 4.

Seguindo Sócrates, Platão jamais quis educar alguém filosoficamente por meio de livros, muito menos com A República. O livro foi escrito para pessoas cultas, claro, mas não com o objetivo de formar grandes pensadores, e sim para mostrar ao não-filósofo como o filósofo pode e deve ser o governante da cidade justa.

A base da doutrina platônica, em A República, é a ideia socrática de que os homens sempre agem na direção do bem, ao que lhes é o mais proveitoso, e só não atuam dessa forma por ignorância. Uma vez tendo conhecimento, os homens agirão corretamente; posição esta defendida por Sócrates. Platão, por sua vez, via a necessidade de informar o não-filósofo a respeito do que o filósofo faz e sabe. Era necessário ir além da explicação de como uma cidade justa poderia ser organizada. O correto era mostrar por que a cidade justa funcionaria, e quais as garantias que se possuía para apostar em tal proposta.

Governantes efetivamente sábios fazem o bem - este era o postulado. Ora, o problema, então, era o de mostrar que esses governantes poderiam ser sábios. O texto deveria fornecer ao não-filósofo uma visão geral do que é o real e teria de mostrar, também, que o real é alcançável, que a dualidade posta por Parmênides e Heráclito entre realidade e aparência podia ser superada pelo filósofo (platônico). O texto tinha de dar ao leitor comum a informação de que os governantes, uma vez sendo sábios, estariam de posse da verdade, ou seja, não fariam a injustiça pensando ser a justiça, nem viriam a divergir sobre o que é a justiça.

Isto demandava a exposição dos projetos metafísicos e epistemológicos que Platão tinha em mente. Era necessário dar ao leitor uma visão geral da proposta metafísica, mostrar como o real é distinto do aparente, mas de uma nova forma, livre dos impasses presentes entre os "pré-socráticos". Do mesmo modo, quanto à epistemologia, era necessário conscientizar o leitor sobre a existência de um caminho para o real, aberto ao filósofo que, enfim, percorrendo esta estrada, alcança o conhecimento. Na situação concreta, isso demandaria, conjuntamente, mais uma tarefa: um projeto pedagógico. O leitor teria de ver o caminho da produção de filósofos como a educação dos que viriam a ocupar, legitimamente, o conselho de sábios.

Como se pode notar, o projeto platônico de uma cidade justa inicia-se como uma tarefa da filosofia no âmbito da ética e da política, mas, logo requisita uma série de outros elementos e, então, acaba por gerar necessidades em várias áreas da filosofia: metafísica, epistemologia, e pedagogia. Ora, essas áreas, na época de Platão, não estavam delimitadas e nem mesmo possuíam um nome, como é o caso hoje. Em A República, cria essas áreas e molda-as de tal maneira que elas se instituem mais ou menos segundo sua marca para todo o resto da história da filosofia, recebendo seus nomes específicos bem posteriormente. Nesse sentido, Platão praticamente inventou a Filosofia.


Em A República, Platão apresenta a cidade justa sob o governo necessário de um rei-filósofo que, junto aos sábios - todos filósofos - alcançam o conhecimento. Mas, o que é o conhecimento? Aqui, há de se ter atenção redobrada, pois, para Platão, conhecimento é algo bem delimitado, que não pode ser confundido com a crença. O conhecimento é definido pelo seu objeto, que difere do objeto da crença. O primeiro é definido por Platão como eidos 5. Já a crença tem como objeto a doxa, a opinião.

A tradução de eidos (?????) (plural: eide) por "forma" é uma boa solução. Assim, apreende-se o duplo sentido de eidos, ou seja, forma enquanto espécie e forma enquanto modelo. Por exemplo, no primeiro sentido: "este creme é uma forma de manteiga". E no segundo: "este texto é uma forma de carta". Em ambos os sentidos, eidos preserva sua significação originária de "o que é visto", visto exatamente por ser o que é real- "o que é", na linguagem dos filósofos eleáticos.

As formas são o que Platão entende como o que deveria responder às perguntas sócraticas do tipo "o que é X?" Uma pergunta como, por exemplo, "o que é a coragem?" deve ter como resposta a definição de coragem. Mas, para que a resposta seja uma autêntica definição, isto é, conhecimento e não mera opinião, ela deve expressar a forma da coragem. A partir daí, recolhe-se cada ato bravio e, diante da coragem, vê-se o quanto o ato bravio é da forma da coragem ou não e, assim, fica-se sabendo se aquele ato bravio é ou não um ato corajoso.

Diferentemente de Sócrates, Platão não se prendeu ao vocabulário ético-moral. Ele estava interessado em toda a realidade. Assim, pensou em formas não só para termos como justiça, devoção ou virtude, mas, também, para propriedades tais como grande, metade, duplo, beleza, etc. Assim, a frase "o dedo indicador é grande" está correta quando o dedo indicador é colocado diante do dedo mínimo, mas não se mantém correta quando o dedo indicador é posto diante do dedo médio. Ou seja, é fácil utilizar a propriedade chamada "grande", mas, ao se perguntar "o que é grande?", não há razão para mostrar o dedo indicador, pois ele é grande e é pequeno (não-grande) em diferentes contextos. Grande, diante de um parceiro e pequeno, diante de outro. Isto é, não é correto mostrar um elemento sensível como resposta à pergunta "o que é grande?", pois, se é mostrado o elemento sensível, este não fixa uma única resposta, mas oscila. A resposta correta deve mostrar o que não oscila, tem de ser a definição da propriedade "grande" e, para tal, é necessário sair do sensível, deve-se ter a visão da "forma grande" e, com isso, pode-se dizer o que é (o) grande. Quem fica na esfera do que é sensível, somente no dedo que recebeu a propriedade de "grande" em um determinado momento, não tem conhecimento, mas sim, crença. Trata-se de uma crença verdadeira: o dedo mostrado é grande (ao menos, quando comparado a um de seus parceiros). Mas o dedo não mantém essa mesma propriedade, pois ele não é grande (em comparação a outro parceiro), então, a crença não se sustenta como verdadeira. Nesse caso, ainda não há o conhecimento, não se tem aí o que se pode dizer como o "conhecimento do grande".

Em outro exemplo tem-se a frase: "é justo devolver o que se empresta". Então, quem diria que esta frase não é uma boa maneira de dizer "o que é justiça?". Em um primeiro momento, é uma boa maneira, pois pode-se dizer que "é justo devolver o que se empresta". No entanto, também aqui a frase mostra uma crença verdadeira, uma opinião, mas não conhecimento. Não há, neste caso, uma definição do que é justo, isto é, algo fixo como sendo a justiça. Pois, afinal, nem sempre é justo devolver o que se empresta como, por exemplo, ao devolver uma faca emprestada, quando o seu proprietário está completamente insano para que, então, ao apanhar a faca cometa uma violência com alguém que está perto. Desse modo, "é justo devolver o que se empresta" é uma frase válida para falar de justiça em uma situação, mas não em outra. Para ter conhecimento do que é (o) justo, deve-se ter a forma da justiça, que não oscila. Novamente, deve-se sair do campo do sensível e escapar da mera opinião.

Assim, em ambos os casos, os das propriedades "grande" e "justiça", Platão mostra que o particular não é um bom objeto para o conhecimento. Não se pode dizer "eu sei que X" para as frases: "o dedo indicador é grande" ou "é justo devolver o que se empresta". Sobre tais frases, cabe apenas dizer "eu acredito que X", então, de um modo particular, o que se tem são crenças e opiniões; não conhecimento.

O particular ganha uma propriedade, todavia, nada garante que esta irá segurá-la. O dedo (que é algo particular), e que recebe a propriedade de "grande", mostra-se não-grande (na comparação com outro), e a regra da devolução (também uma regra particular) que recebe a propriedade de "justa", revela-se não-justa (em outro momento ou lugar). Essa alternância impede que se possa ir pela trilha parmenídica, no que se refere aos particulares. Os particulares não conseguem satisfazer o critério parmenídico de ir pelo caminho do que é. Dessa maneira, Platão vê com naturalidade a necessidade da existência das formas, alheias aos particulares que porventura qualifiquem. Talvez, por isso mesmo, nem chegue a argumentar a favor de sua existência e opera com elas como entidades reais. Para que possa dizer que há o conhecimento, uma boa saída, para Platão, é admitir a existência do que é o grande em si, a "forma do grande" (o grande ou a grandeza), e o que é o justo em si, a "forma do justo" (o justo ou a justiça), independentemente da mutabilidade dos particulares.

Pode-se reparar, agora, que tudo isso que Platão fez terminou por gerar uma proposta para solucionar a disputa entre Heráclito e Parmênides. O que está em fluxo contínuo de mudanças são as coisas particulares, que povoam o mundo perceptível pelos sentidos. Portanto, Heráclito estava correto em dizer que tudo que existe está no fluxo do devir. As formas, por sua vez, não são particulares, elas não estão em mudança; são modelos, paradigmas para os particulares.

O mundo das formas é perceptível pelo intelecto. Parmênides estava correto ao dizer que o real é o que não muda. O mundo do devir, o sensível, é objeto de crenças e gera as opiniões. O mundo das formas, o inteligível, é objeto do conhecimento e gera os princípios.


Até aqui, o que se tem é metafísica e epistemologia, ambas motivadas por ética e política. Falta falar, é claro, da pedagogia. Ainda em A República, Platão indica o que é a educação da população da cidade justa, em especial a educação diferenciada, filosófica, dos que seguirão para o conselho dos sábios. Para falar do que é a pedagogia filosófica, Platão usa de uma alegoria. O processo de geração de um filósofo é assumido, por ele, segundo uma historieta, a da "alegoria da Caverna".

Esta alegoria conta que há prisioneiros em uma caverna e que estes nunca puderam sair dali, ou seja, eles não conhecem o mundo exterior. Além disso, estão acorrentados, de modo que só podem olhar para uma direção: o fundo da caverna. Atrás deles há um muro e atrás deste o fogo. O fogo ilumina peças de bonecos que estão sobre o muro, de modo que a sombra desses bonecos projeta-se no fundo da caverna. Tudo que os prisioneiros enxergam então, como moventes na caverna são tais sombras. Portanto, tomam as sombras como sendo os seres reais, existentes, sem nenhuma dúvida a respeito disso. Quando um deles escapa da caverna, contempla o Sol que, inicialmente, em vez de fazê-lo enxergar mais, quase o cega. Quando ele passa a enxergar o mundo fora da caverna e os contornos do mundo exterior, ele atribui a esse mundo um grau de realidade muito maior do que as sombras projetadas no fundo da caverna. Para ele, então, as sombras são ilusões, não são seres verdadeiros que se movem e, sim, vultos de bonecos sobre o muro.

Platão deixa claro que se o liberto voltasse e, então, dissesse aos que ficaram acorrentados o que de fato era a realidade e o que era a ilusão, eles não só não acreditariam na novidade, como ficariam enraivecidos de serem acusados de não enxergar a realidade, e puniriam o liberto. O que está em jogo são as distinções entre o mundo inteligível, que no limite é banhado pelo Sol, que faz o papel do bem, e o mundo sensível e ilusório, que é o mundo representado, na alegoria, pelas sombras. Todos os homens estão, é claro, no mundo sensível. Andam, comem, dormem - assim vivem no mundo que é continuamente mutável, do fluxo de alternâncias, que Heráclito viu como sendo o mundo real. Ora, é um mundo existente, porém imperfeito. O mundo imutável, o que se pode chamar de real, não é uma realidade perfeita; no entanto, neste mesmo mundo, com os pés no chão, pode-se captar o que está na realidade não sensível, no mundo real daquilo que não muda: o lugar das formas. Todas as formas estão ali, reais, e o ambiente é alimentado e mantido por uma das formas, a forma do bem - o bem - que, na alegoria da Caverna, é o Sol.

A pedagogia filosófica é, portanto, aquela que impulsiona o jovem aos universais, tomando-se como real, sabendo, então, que o sensível, ainda que existente, é ilusório. Portanto, essa pedagogia platônica, voltada para a criação de filósofos e, enfim, não aplicada à educação popular, baseava-se muito no estudo da matemática. Após a matemática, o melhor exercício era o da dialética, não muito diferente do tipo de argumentação socrática, ou seja, algo capaz de encontrar princípios - o que é o mais abstrato. Nesse ponto, é iminente conseguir as definições, portanto, a visão das formas.

Neste caso, o ponto máximo é a visão do próprio bem - que se iguala, assim, à verdade e ao belo. Deve-se entender o bem, então, como o que faz todas as formas se manterem (como o Sol mantém tudo na Terra). Pois o bem é a excelência máxima. Qualquer forma, para ser forma, ou seja, para ser o que há de perfeito, deve estar em consonância com sua excelência máxima. Se não é assim, a forma não é perfeita e, então, não é forma. Novamente, para se entender Platão, é necessário não enveredar por divisões rígidas modernas, que separa "fato" e "valor", pois isso pode gerar a ideia de que o bem diz respeito somente a determinados elementos que, modernamente, são as propriedades éticas, e não outras. Não, o bem, sendo a excelência, é o que dá a condição de paradigma, de perfeição, de máxima realidade para cada uma das formas no mundo das formas, o mundo perceptível somente pelo intelecto.

 

 

O filósofo americano William James (1842-1910) escreveu que a filosofia é uma espécie de expressão do temperamento de um filosófo. Então, segundo ele, a história da filosofia, em certa medida, é um confronto de temperamentos. Caso se deseje contestar essa ideia de James, a pior opção é usar como exemplo a relação entre Platão e Aristóteles.

O confronto entre Aristóteles e Platão foi filosoficamente muito significativo, fazendo eco, não só na Antiguidade, mas por toda a Idade Média. Um confronto objetivo, com certeza, todavia, seria errôneo não admitir o quanto esteve em jogo, no embate dessas duas grandes figuras intelectuais, dois temperamentos muito bem distintos, determinantes para o que fizeram filosoficamente.

Aristóteles veio de Estagira para Atenas antes dos seus vinte anos. Entrou para a Academia de Platão e só saiu dela com a morte do mestre. Tendo chegado bem jovem às mãos de Platão e, enfim, convivido com ele de modo estreito, sem ter passado por outros lugares e mestres, poderia ter sido um filósofo menos rebelde. Entretanto, Aristóteles era inteligente demais e, assim, não conseguiu ser um discípulo no sentido menor do termo: um reprodutor da filosofia do mestre. Além disso, a Academia não era um ambiente doutrinário, e sim um lugar de livre discussão. Tão livre que Platão admitia mulheres ali dentro, mesmo poucas e, possivelmente, vestidas de homens. No entanto, liberdade e ambiente propício para a divergência não podem, neste caso, desmentir a afirmação de James. As propostas de Platão e Aristóteles, ao menos no que se configurou, depois, como sendo o platonismo e o aristotelismo, ficaram devendo, sim, a aspectos marcantes de suas personalidades e temperamentos.

Filho e neto de médicos, macedônio e não-ateniense, Aristóteles manteve-se interessado a vida toda pela diversidade dos objetos do mundo empírico. Como o pai e o avô fizeram, atendendo caso a caso na corte de Felipe de Macedônia, Aristóteles nunca deixou aquilo que é o visto, o palpável e o individualizável em segundo plano. Nada mais distante de Platão do que essas características, responsáveis pelo tirocínio aristotélico. Este, do ponto de vista das ciências, sempre preferiu a matemática, a biologia ou a geologia, como o caso de Aristóteles. Além disso, Platão jamais foi um estudioso, um scholar, mas sim, antes de tudo, um escritor inspirado. Aristóteles foi scholar- talvez o primeiro de toda a Antiguidade, o que mais se aproximou do que hoje é a figura do professor universitário, ensinando, fazendo pesquisas e escrevendo os resultados. Tinha, inclusive, a preocupação de escrever dois tipos de trabalhos, os mais eruditos para os seus estudantes e iniciados, e os mais populares para serem lidos em público.

Que se saiba, não há nenhum registro confiável que envolva Platão em relações amorosas com mulheres e diferente de outros escritores, em seus escritos, jamais subalternizou a mulher. Já Aristóteles, contrariamente, era mais conservador do que Platão quanto à concepção das tarefas da mulher e, além disso, diferente do mestre, tinha preferência amorosa por elas. Nas suas relações pessoais, parece que foi muito amoroso com sua esposa, chamada Pithia, com a qual se casou quando lecionou em Assos, uma cidade dentro das posses do tirano Hermias. Como ela faleceu primeiro, ele logo avisou seus amigos e parceiros de trabalho que, quando morresse, deveria ser sepultado junto dela.

Todavia, as informações sobre suas ligações amorosas são um pouco conturbadas. Os historiadores nunca conseguiram decidir se o correto era que Aristóteles havia desposado uma filha do tirano Hermias, de quem era amigo, ou uma sobrinha ou, até mesmo, uma concubina. O filósofo Bertrand Russell (1872-1970) acreditou ter resolvido ao menos parte desse enigma, por meio, entretanto, de uma sabedoria excessivamente britânica. Russel concluiu que a moça não podia ser uma concubina, pois Hermias era eunuco; o que não diz nada do caso, mas muito de Russell, pois teve várias amantes e foi um galanteador inveterado, embora, nunca tivesse deixado de ser, antes de tudo, um professor de lógica.

Os alunos gostam desse assunto, e os mais imaginativos sempre entregam algumas gravuras sobre como Hermias poderia desmentir Russell, mas raramente há chances de considerar tais trabalhos em uma avaliação séria.


Aristóteles criticou Platão a partir de uma contraposição entre este e Sócrates. É útil recordar a doutrina dos dois grandes pensadores que, com o próprio Aristóteles, formam a tríade clássica da filosofia grega, e a partir dessa crítica, é fácil compreender a filosofia aristotélica.

As perguntas de Sócrates deveriam ter como resposta definições. "O que é o justo?" daria como resposta a forma do justo ou a justiça - o justo em si. "O que é o grande?" daria como resposta a forma do grande ou a grandeza - o grande em si. "O que é o belo?" forneceria como resposta a forma do belo ou a beleza - a beleza em si. Foi isto que Platão ensinou, não tomando tais formas como palavras. Ele conferiu às formas um caráter ontológico - cada uma é um eidos, algo imutável e perfeito - o real. Os particulares, ou seja, tudo que existe no mundo, são cópias imperfeitas das formas. São imperfeitos na medida em que são mutáveis. Cada um dos elementos particulares "participa" das formas e, nesta "participação", se constitui. Assim, cada pessoa com determinada beleza participa, em algum grau, da forma do belo, ou seja, da beleza em si.

Segundo Aristóteles, Sócrates nunca "separou" as formas como fez Platão. Ou seja, Platão fez referência às definições que Sócrates queria, e as tomou com sendo as formas, e então assumiu-as quase como que particulares. Cada particular precisa de uma forma, para que ele seja a cópia. Ora, se a forma é "separada", isto é, individualizada, ela passa também a requisitar outra forma, da qual viria participar para se constituir. Se assim é, diz Aristóteles, há a necessidade de se falar em uma forma da forma, e assim por diante, ou seja, o raciocínio tende ao infinito e, então, deixa de ser uma explicação. Eis a conclusão de Aristóteles: a teoria da participação de objetos nas formas, para que se tornem cópias, dessa maneira, não é uma boa explicação.

Por enquanto, nada de novo. O próprio Platão, como foi dito no capítulo anterior, sabia desses problemas de sua teoria, a novidade, portanto o verdadeiramente aristotélico, no caso, se deu a partir daí.

Aristóteles inverteu as definições, retomando o problema platônico a partir de outro ponto de vista. Em parte, ele fez uma alteração semântica significativa, talvez exatamente por sua familiaridade com a biologia e a geologia, que mudou o rumo da pesquisa. Paulatinamente, ele trouxe a noção platônica de eidos (a forma) para as proximidades de algo como "espécie". Em vez de dizer que cada coisa particular tem algum grau de realidade na medida em que participa do que é o mais real - a forma - ele afirma que esta, a própria noção de forma, já assumida como espécie, é obtida por abstração. Os homens, por uma atividade mental, retiram das coisas particulares o que é comum e, com o comum, criam os universais, aos quais Platão chamou de formas.

As divergências entre Platão e Aristóteles, nesse caso, foram mostradas pelo quadro do renascentista Rafael di Sanzio (14831520), a "Escola de Atenas" (Figura 4.1). Neste quadro, Platão aparece apontando para o alto, como se fizesse referência à capacidade das formas de se colocarem acima dos objetos empíricos e sensíveis - os particulares. Assim, estes, se vão existir, dependem da sua "participação" no real, ou ainda, do quanto podem ser cópias das formas. Aristóteles, por sua vez, aparece com a mão espraiada em direção ao solo, uma referência aos particulares em sua diversidade, como o que povoa o mundo empírico. Neste campo está a realidade, todo o material para que as faculdades humanas, operando sobre essa diversidade, criem as categorias que abarcam essa diversidade como universais.

Figura 4.1.: Escola de Atenas.

A crítica de Aristóteles ganhou a história da filosofia como sendo a do "argumento do terceiro homem". Essa sua obra de crítica direta a Platão perdeu-se, e a explicação central de seu raciocínio é de responsabilidade da paráfrase de Alexandre de Afrodísias, que escreveu quatro séculos depois de Aristóteles. Uma maneira de colocar o argumento é a seguinte:

•A e B são homens, então há uma Forma, o Homem, em que ambos participam e por meio da qual eles são homens;

•A, B e o Homem são homens, então há mais uma Forma, o Homem-2, em que todos os três participam e por meio da qual eles são homens;

•A, B, Homem e Homem-2 são homens, então há mais uma Forma, o Homem-3, em que todos os quatro participam e por meio da qual eles são homens, e assim por diante.

Para entender o que faz de A e B homens, é necessário entender um número infinito de Formas. Então, como não é possível seguir o percurso, há aí uma situação ininteligível.


Assumindo que sua crítica invalidava definitivamente a doutrina de seu mestre, Aristóteles não tentou completá-la, mas buscou elaborar um novo ponto de partida. Acreditou, então, que o melhor seria escapar do que teria empurrado Platão para um caminho perigoso. O ponto nevrálgico, na sua avaliação, era antes a pergunta socrática típica do que a resposta encetada por Platão. A pergunta do tipo "o que é X?" deveria ser trocada pela pergunta "por que X é como é?"

Diante de uma mesa, por exemplo, a pergunta deve ser "por que a mesa é como é?" A resposta a este tipo de pergunta não será uma definição de mesa e, sim, algum tipo de sentença contendo causas. Sendo o conhecimento, para Aristóteles, o conhecimento das causas, este tipo de pergunta resultaria em algo que, sem dúvida, deveria ser chamado de conhecimento. Especificamente, no caso do exemplo, pode-se dar uma resposta em quatro partes. Por que a mesa é como é? Ora, ela é do modo que é porque é feita de madeira, é uma mesa, foi fabricada por um marceneiro e, enfim, foi produzida para que se pudesse sentar ao seu redor e comer. Nos termos de Aristóteles, tal resposta aponta para quatro causas:

•diz-se que a mesa é de madeira, e isso é dar a sua "causa material";

•diz-se que é uma mesa, e isso é dar sua forma, a forma de um objeto chamado mesa, tem-se aí a "causa formal";

•diz-se que foi feita pelo marceneiro, e ao fazer tal indicação, tem-se a "causa eficiente";

•por fim, considerando que a mesa foi feita para as refeições, dá-se sua finalidade, sua "causa final".

Aristóteles viu todos os filósofos que o antecederam segundo a ótica de sua própria investigação. Assim, apontou Platão (e o endossou nisso) como tendo sido o crítico dos phisiologoi. Estes, por sua vez, teriam ficado presos somente à causa material, porém, segundo Aristóteles, Platão, com toda aquela grandiosa teoria, não teria captado senão a causa formal. Aristóteles, então, manteve as duas causas, a "material" e a "formal", e acrescentou mais duas: a causa eficiente e a causa final. Aliás, tendeu a ver todo o universo em termos finalísticos, no estilo do pensamento da biologia moderna.

A teoria das causas deu a Aristóteles uma parte do que queria quanto à tarefa de explicar o mundo. Mas ela não dava conta, sozinha, do movimento, da mutabilidade e da transformação. Eis, então, novamente, o problema dos pré-socráticos, canonizado na disputa modelada por Heráclito e Parmênides.

Para lidar com isso, ele engendrou as noções de substância, forma e matéria. Assim, em sua teoria, toda mudança requer três elementos: "o que permanece" e, além disso, dois contrários, não-permanentes, a "privação" e a "forma". Como exemplo, pode-se imaginar um homem que não sabe desenhar e que, após um tempo, aprende a desenhar. O que ocorreu entre uma situação e outra? O que permanece é o homem, a condição de não-desenhista (privação) perece, e a forma (qualidade de desenhista) emerge e se estabelece. Aristóteles aplicou esse esquema a todos os elementos em mudanças.

A capacidade de se manter através da mudança torna um elemento individual uma substância primária - ousia (?????). Sobre ela se aplicam os contrários que, por sua vez, não são substâncias, e podem ser as categorias, como quantidade, qualidade e assim por diante. A palavra ousia foi empregada por outros filósofos, antes de Aristóteles, para indicar algo que, em sua teoria, passou a receber o pleno status filosófico enquanto substância ou essência, a realidade básica.

Uma substância primária, ousia, é o que subjaz (hupokeimnon), aquilo que permanece e que recebe propriedades, características e atribuições. As outras coisas são o que é dito da substância ou que está na substância. O que é dito de uma substância são antes os universais do que os particulares. Eles existem em vários lugares, enquanto que os particulares estão em um único lugar. Assim, há a realidade dos universais; admitida por Aristóteles. Todavia, os universais, neste caso, não são reduzíveis a particulares, palavras ou conceitos. Tanto quanto Platão, Aristóteles não nega tal realidade, o que ele nega e, então, difere de Platão, é que os universais possam existir independentemente dos particulares em relação aos quais eles são atributos ou referências.

Através dessa teoria, Aristóteles fez valer a popular doutrina das propriedades intrínsecas e essenciais e das propriedades extrínsecas ou acidentais. Por exemplo: considere um cachorro, este cachorro aqui e nenhum outro - o que é essencial nele é sua propriedade de ser um cachorro, sendo o fato de ser um cachorro marrom, algo acidental. Assim, se há a mudança do cachorro que, ao ficar mais velho, adquire pelos desbotados, ele se torna um cachorro amarelado; em termos filosóficos: a alteração é devida ao que é o acidental, sem que isso altere sua condição de cachorro, que é o essencial.

Aristóteles diz que não há emergência de substância nova. Contudo, a objeção a essa doutrina pode ser a seguinte: a mudança foi radical, na verdade o cachorro-marrom pereceu e surgiu um novo cachorro amarelado. Ora, neste caso, Aristóteles poderia dizer que não se trata de uma mudança, mas de um perecimento. No caso do perecimento, então, não haveria razão para se esperar qualquer preservação. Mas, ainda há espaço para a objeção: por que definir a substância como o que permanece somente em casos de não-perecimento? Qual a razão do perecimento - a morte - ser alguma coisa tão nítida a ponto de não ser considerado apenas um ponto de mudança.

Essas objeções já estavam postas antes de Aristóteles, uma vez que vários pré-socráticos lidaram com situações semelhantes. Os atomistas, por exemplo, defenderam a ideia do perecimento não ser outra coisa senão mais uma mudança. No entanto, Aristóteles não estava nem um pouco disposto a dar à matéria, fosse ela átomos ou qualquer outra coisa, o poder de ser uma substância incorruptível. Então, ele se viu obrigado a pensar em uma resposta melhor.

O que Aristóteles deveria explicar aos atomistas era por que um cachorro, um cavalo ou um homem são considerados substâncias, mas um cachorro amarelado, um cavalo-manco, um cachorro magro ou um homem pálido não poderiam ser substâncias. Qual a razão do recorte ser "cachorro" e não "cachorro amarelado" e assim por diante?

Aristóteles não queria sair de uma via que respeitasse "o que é visto". Ele achava bem plausível que algo viesse a se manter enquanto há transformação, mas não achava nem um pouco plausível afirmar que algo deveria permanecer após cair fora da existência. Para ele, é claro que alguma matéria iria ter certa permanência após a morte do cachorro, todavia, do que se estaria falando caso se desse à matéria a condição de permanência? O objeto de atributos é o cachorro, a este é dada a condição de substância. Uma vez tendo perecido, uma substância realmente tem de ser considerada como fora do campo da existência. Neste caso, Aristóteles paga a dívida para com Platão contra os atomistas, pois concede a continuidade à forma, não à matéria.

A forma na doutrina aristotélica é diferente da forma na doutrina platônica; todavia, ainda assim, no caso da permanência, o voto de Aristóteles o deixa mais próximo de Platão do que dos cosmólogos pré-socráticos que, em geral, apontam a matéria como sendo o mais próprio da natureza, o elemento de continuidade nas mudanças, inclusive no caso do perecimento das coisas do mundo. Aristóteles viu a natureza de cada coisa na sua forma. Ele compreendeu a forma, e não a matéria, como a natureza de cada coisa e como o elemento capaz de trazer a identidade a elas. A forma entrou para o quadro de suas quatro causas exatamente segundo este aspecto. Um artista faz uma estátua de mármore, o mármore é a matéria, e a estátua ganha sua identidade não por ser "estátua de mármore", e sim por ser a "estátua de Péricles" - é a forma de Péricles, que cai sob a matéria pelas mãos do artista, ou seja, que fornece a identidade à estátua. Por meio de analogias como esta, Aristóteles apostou na forma, enquanto uma de suas causas, como o que teria de ser considerado como o que permanece.

É interessante notar que, nesse caso, há o peso do raciocínio finalista e teleológico, típico do biólogo, na concepção de Aristóteles. Ao dizer que a forma é a natureza do objeto, imediatamente ele a articula, nesta resposta, a outra causa, a causa final. É permitido admitir várias cadeiras feitas de todos os tipos, mas quando é necessário apontar para o que não muda (para o que é a natureza da cadeira), a causa formal deve se articular com a causa final, sendo que esta é que dá a resposta esperada: a cadeira é para sentar. Sendo assim, verifica-se a importância do designer em ligação com a finalidade, o que dá a natureza da cadeira, sendo aquilo que é mais articulado à forma e à finalidade.

Tudo que se disse até aqui, neste item, nada mais é que a metafísica e a epistemologia de Aristóteles. A palavra "metafísica" surgiu após sua morte, por conta de suas obras. No arranjo delas, o que se conhece hoje como o texto da metafísica, foi assim denominado por vir logo depois do volume chamado "física", mais precisamente, Meta-física: o que está além da física. Desse modo, talvez o título dado pelos que organizaram tais volumes não tenha sido fruto de outra coisa que não a necessidade de disposição bibliotecária. De qualquer modo, se assim foi, ocorreu aí uma coincidência feliz, pois, no volume em questão, Aristóteles escreveu sobre assuntos realmente metafísicos, ou seja, coisas para além das narrativas sobre o mundo natural, para além da physis.

Principalmente nessa obra, que veio a ser denominada de Metafísica, Aristóteles mostrou-se herdeiro e crítico de Platão. Ele havia aceitado de Platão, ainda que ao seu modo, a conti nuação do trabalho de delimitação do conhecimento. Seu mestre havia se dedicado à distinção entre crença e conhecimento e Aristóteles, por sua vez, tomou o conhecimento como um saber das causas.

 

 

                                                   Paulo Ghiraldelli Junior         

 

 

 

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