Biblio VT
Histórias Afluentes podem, em parte, definir-se pelas primeiras linhas de uma das suas belíssimas narrativas - A Vendedeira de Pinos:
"Olho lá para o fundo do tempo (que faz de todos esses anos?...) E penso como foi bom o que vivi, como será bom o que me fica para morrer ou para viver... Nesta hora em que o passado se prolonga em mim, neste momento exacto em que não sei o que sou nem o que quero, sinto-me envolvido por vozes e aleluias, por caricias vivas ou por promessas que ficaram nos olhos ou no esboçar dos gestos que as mãos só imaginaram."
Histórias Afluentes são, com efeito, quase sempre, aflorações líricas ou compadecidas de tempos que inexoravelmente se vão distanciando, espécie de excertos recuperados de memórias. É a vendedeira de figos, mocinha descalça, que certo dia semeou num jovem de catorze anos um deslumbramento de sonho que não mais se apagaria; ou o pequeno vagabundo que chora o castigo infligido a Teu Nome, o canito seu companheiro, que, num rasgo de destemor, se erguera a proporções verdadeiramente humanas; ou a criança que pelo Natal recebeu uma prenda extraordinária que lhe trazia o apelo do mar e da aventura. E, lado a lado com estas recordações poéticas que preenchem parte das vivências de um escritor, os entremezes satíricos como o do burlesco pantomineiro que era O Pai dos Mortos...
Mas neste livro surge também uma novidade que importa acentuar: os temas africanos, fruto da amarga experiência a que Alves Redol se referiu na pequena entrevista concedida para servir de resumo biográfico e que se publicou no romance Uma fenda na Muralha. Dizia ele: "Eu tinha dezasseis anos. E foi então que parti para Angola, num barco onde ia uma leva de degredados. Desembarquei com cinquenta escudos e uma garrafa de vinho do Porto Fiz curso de desempregado durante seis meses, fui assalariado da Fazenda, vendi pneus, ocupei-me de publicidade, leccionei estenografia numa escola nocturna e acabei com a malária. Regressei, aos dezanove anos, na mesma terceira classe onde partira à Ida. Já não era. porém, o mesmo: fui com esperança, voltei com uma anemia."
É desta experiência que Alves Redol extrai alguns dos notáveis contos de Histórias Afluentes, todos eles contados num estilo límpido, depurado e coloquial, que revela a maturidade de um grande escritor.
O Castigo
A TRÁS de uma carroça, um rapazeco descalço corria e chorava, e às vezes entretinha-se na lengalenga das próprias queixas, como se o embalassem os lamentos de alguém que lhe pedisse auxílio.
Do alto do assento da campana desengonçada, onde ia sentado com a companheira, o pai voltava-se para varar o rapaz com os olhos e chicoteava-o com a afronta das mesmas palavras:
- Vadio! Grande malandro! Seu grande malandro!...
Dizia isto com o rosto endurecido, sorrindo para a mulher quando se virava para diante, enquanto fazia estalar o chicote sobre o dorso de camelo da mula, obrigando-a ainda a estugar o passo chouto, sempre que o garoto se aproximava mais da carroça onde transportavam toda a riqueza de que dispunham - a tenda para se abrigarem, o caixote das roupas e a caixa das lentes para mostrar postais nas feiras,
11
negócio de trampa, pois agora não deixavam apresentar vistas com mulheres nuas, mesmo que os cabelos compridos lhes tapassem as partes vergonhosas do corpo. Já trôpego, quase exausto, o rapazola esmoncava-se na lamúria; e as lágrimas caíam-lhe em bagas sobre a cara afogueada pela carreira. Preso ao eixo da carroça por dois arames bem enrolados, um cachorro branco, de malhas amarelas e de perna curta e caneja, esfalfava-se na mesma corrida, de língua pendente, embora quisesse voltar-se para animar o amigo, cujo choro lhe dava também vontade de uivar. Mas já sabia demasiado o que a queixa lhe custava - duas ou três arrochadas no lombo, dadas com o cabo do chicote, e assim tinha de se resignar.
Iam ambos de castigo naquela viagem, sem saberem ainda quando a carroça pararia para acamparem à sombra dalgum olivedo ou pinheiral.
- Grande malandro! Seu grande malandro !...
O pai insistia e o rapazola choramingava sem pedir clemência - lá isso não. Que mal fizera para um castigo daqueles?
12
Pior do que a injustiça era o vexame dos outros rapazes se largarem em surriada quando o viam naquela corrida, embora ele então, contivesse as lágrimas para não o saberem molestado com o castigo. O que o pai estava a fazer não era bonito, não.
Tinham acampado no Campo da Feira, em Vila Franca, e a mãe estivera a acabar os moinhos que ele deveria vender à tarde pelas ruas; por seu lado o pai desandara até à margem do Tejo para cortar uma piteira onde espetariam as canas dos moinhos, que ele voltaria para o lado do vento, de maneira a abrigá-los a girar. Sentado à revessa da carroça empinada, Tóino catara o cachorro das pulgas que o tornavam inquieto, pondo-se depois a puxar-lhe as orelhas para o levar a morder-lhe nos dedos e a rosnar-lhe, porque o cão, como a mãe dizia, devia medir-se com um homem e impor-lhe respeito. E Tóino queria que o seu amigo, quando chegasse ao tamanho dum cão de verdade, não se temesse aos canzarrões das quintas nem aos porretes dos guardas.
Teu Nome, assim lhe chamara a mãe; o Pai pusera-se de acordo e só o Tóino resmungara
13
que isso era uma brincadeira, quando um cão deve ter nome para se respeitar. Leão, sim, ou Bruxo, ou assim qualquer coisa importante... Depois habituara-se com o tempo, que havia de fazer!... O Teu Nome pusera-se um cachorro de três assobios. Se agarrava num dos dedos do amigo, aí se punha ele a dar à cabeça, como se lho quisesse arrancar; se o Tóino pegava numa pedra ou num pau e se, depois de lhe cuspir em cima, o atirava para longe, era um regalo ver o bicho largar numa carreira cega e trazer às mãos do dono, bem abocanhado, o que ele jogara à distância. Atiçava-se aos gatos, ladrava à própria sombra e uivava à Lua quando acampavam, o que deixou de fazer quando o dono mais velho pegou no chicote e lhe deu com o cabo, explicando ao filho que o uivo dos cães chama a morte.
Naquela manhã, para ali estavam entretidos um com o outro, embora o Tóino desse mais atenção ao trabalho dos moinhos, pois era ele quem os vendia e por isso vigiava a mãe nos acabamentos, uma tonta com as cores, misturava tudo.
- Eh mulher!... Lá está vossemecê a
14
embirrar... Já disse um ror de vezes que moinhos encarnados levam estrela branca e vossemecê não há meio de aprender. Então qual é a cor do Benfica?... Raio de coisa! Depois julgam que eu sou parvo... A mãe divertia-se a ouvir-lhe as conversas de homem já feito, mas gostava de fazer moinhos vermelhos com a estrela amarela ou azul, e verdes ou amarelos com roseta lilás ou cor-de-rosa.
- Se eu disser ao pai ele dá-lhe poucas no cartucho e depois vossemecê chora para aí que ninguém a cala - insistira o rapaz ao ver que a mãe não prestava atenção.
- com quem tás tu a falar, eh rapaz?
- Consigo... Tá aqui mais alguém? Fingindo que deitava a mão a uma folha
de papel azul, ela agarrou-o por uma perna e atirou-lhe um tabefe, mais de enxota-moscas que de pancada. O Tóino, porém, é que não achou graça; e aí foi ele ao encontro do pai, logo seguido pelo cachorro a saltar-lhe às pernas.
- Anda cá, Tóino! - chamava a mãe com maus pressentimentos. - Olha o comboio, filho!
- Um grandessíssimo raio que a partisse
15
- respondia o rapazola entre dentes, mais para repetir o que tantas vezes ouvira do que por ofensa verdadeira.
Espreitou a linha do caminho de ferro para um lado e para o outro, lembrou-se da última vez que ali estivera com dois varinos, entretidos a colocarem pregos em cima dos carris; "era uma coisa bacana!" As carruagens passavam num baralhuço de ferros, com redemoinhos de vento e papéis, capazes de puxarem uma pessoa para baixo das rodas, e depois era correr à procura, por entre as chulipas, até aparecerem as navalhas feitas dos pregos, quase da grossura duma folha de papel. E luzidias que era uma lindeza, como se fossem de prata ou coisa parecida; e cortadoras que nem navalhas barbeiras, só lhes faltava o cabo para serem mesmo iguais às da loja. Certificou-se mais um vez se as vias estavam livres, galgando-as em meia dúzia de pulos, embora hesitasse por causa do cachorro que se deixara entreter pelos desafios de um pescador grandalhão, encostado à cancela da banda da vila.
- Deixe lá o cão, seu homem! - desafiou o Tóino.
16
- É teu?
- Não vê que ele vem comigo?
O animal arremetia, arreganhando os dentes, pois o pescador não cessava de o açular com o pé descalço.
- Deixe lá o cão, seu homem ! Pode vir
Um comboio...
-Queres vendê-lo ?
- O cão não se vende...
- Então dá-mo.
- Nem que me desse o peso dele em oiro fino...
- Ena, rapaz! Querem ver que o animal é de caça...
O pescador baixou-se para agarrar o Teu Nome, mas este ladrou-lhe com mais fúria, escapando-se depois para o lado do companheiro que continuava a chamá-lo com a ponta dos dedos e o assobio repenicado do costume. O homem disse ainda qualquer coisa, a que o Tóino não deu troco. Enfiou para a margem do rio, pôs-se a gritar pelo pai, não julgasse o gajo que estavam sozinhos, e foi à babugem da água mansa, açulando, por sua vez, os cães que guardavam os saveiros atolados na lama.
17
De vela alaranjada, uma fragata fazia um bordo, parecendo vir encalhar a seus pés; mas quando ele gritou ao arrais, acenando-lhe o boné, o barco deu uma guinada, sacudiu o pendão de lona e lá partiu direito à outra margem, como se o vento lhe pegasse com jeito. "Coisa bacana!", pensou o rapaz, deslumbrado. Sentia-se cansado de andar na carroça por essas estradas fora... Sempre o mesmo, às sacudidelas, catrapuz-catrapuz, chegava uma pessoa toda moída que nem salada a qualquer sítio onde montasse a barraca para dormir. Um barco daqueles devia ainda ser melhor do que viajar na girafa dos carroceis, sempre de roda, só de roda, até uma pessoa ficar tonta. Apeteceu-lhe, então, uma viagem pelo rio, a qualquer sítio, sabia lá até onde: até Lisboa, para baixo é que é Lisboa. Devia ser bom debruçar-se na borda e cortar a água de mão aberta.
O canito viu-o atento e pôs-se a seu lado, de orelhas arrebitadas. Tóino esquecera-se de que viera ao encontro do pai para lhe falar dos moinhos e ajudá-lo a escolher a piteira; só quando a mancha alaranjada desapareceu ao longe é que caiu em si.
18
Orientou-se para o lado de Alhandra e gritou com as mãos em búzio:
- Eh meu pai! Eh homem!...
Dispusera-se a seguir por ali adiante, sempre junto ao rio para não se enganar, quando da banda da vila rebentou um alarido confuso, sabia lá o que era, mas coisa boa não podia ser. Parou para adivinhar o que se passava, abriu-se-lhe a curiosidade por todo o corpo, e uma gritaria que lhe recordava outras que já ouvira, ah isso era mesmo catita!, começou a definir-se, a avançar para ele, agarrou-o com um formigueiro danado, mesmo a meio dos calcanhares, e lá deitou a correr por onde viera, chamando o cachorro. Numa carreira de vento leve pôs-se outra vez perto da linha do caminho de ferro. Entusiasmou-se: era mesmo o que pensara. A algazarra crescia, já se destacavam alguns gritos, o muro e a cancela estavam cheios de homens e rapazes que assobiavam, batiam palmas e desafiavam um toiro; com certeza que era um toiro. Desta vez, e finalmente, ia ver um mais de perto; não tinha ali ,a mãe para o segurar com receios
19
e ameaças. "Coisa bacana!" pensou, maravilhado.
Correndo mais, e a bater palmas também, fez o resto do caminho em menos de um fósforo. O Teu Nome parecia entender que a festa ia começar para ambos e pôs-se a ladrar de alegria, ultrapassava o dono e voltava-se à espera, mais adiante, como a provocá-lo para a brincadeira. Empurra daqui, fura dacolá, o Tóino conseguiu espreitar para dentro do largo: lá estava a matula toda. "Ena, carago!" E meteu os dedos à boca para assobiar com quanta gana podia. O toiro é que não se descobrira ainda, mas devia aproximar-se, com certeza que vinha aí, pois a maltosa fugia e gritava. Todos gritavam agora, tanto os que estavam empoleirados como os que corriam e saltavam, em busca de refúgio. E de repente, amarelo, muito amarelo, o boi apareceu, virando a cabeça para um lado e para o outro, como a querer certificar-se ida gente com quem teria de se medir. Tinha os cornos gravitos, em feitio de lira, e talvez aquele jeito lhe desse para não marrar. Parecia espavorido com a gentalha, assustado, a modos de procurar um
20
sítio para se escapulir até à pastagem donde viera para o matadouro.
A matula, porém, não o largava, disposta a fazer aranzel e a improvisar toda, mesmo com um boi da Beira. De camisa fora das calças, um pimpão saltara
à frente do bicho com um saco de linhagem nas mãos.
- Eh boi real! Eh malesso!...
Começara por lhe lançar o desafio, de longe, mas ia-se chegando, confiado, um passo e outro passo, pondo as pernas um pouco canejas e erguendo a cabeça num impulso, de cada vez que gritava, a compor afigura com a imaginação, como se o largo fosse a arena onde estava sozinho a defrontar um toiro bem arrobado e de hastes poderosas. A malandragem conhecia-lhe a tineta e gozava-o, a incitá-lo: - Eh toureiro !... Pareces o Zé Júlio, pá!
Ele tentava fixar a atenção do boi, irritado com as provocações da matula. O bicho encarava-o, finalmente, sacudia a cabeça ; mas um varino surgiu do outro lado, em correria maluca, aproximou-se aos ziguezagues e bateu na anca do animal, disparando em seguida para dentro duma
21
escada, como se o contacto lhe tivesse queimado a mão atrevida. O boi virou os cornos em lira e mugiu uma queixa dolorosa.
Tóino sentia um grande formigueiro por todo o corpo e assim uma vontade danada de urinar, talvez de medo, não percebia bem o que era aquilo. Esquecera-se do cachorro e dos moinhos, da família e do acampamento debaixo das árvores. Conseguira chegar junto das grades e estava de pé, ali, como os valentaços, que também já não o deixariam recuar, mesmo que ele
quisesse.
- Eh toiro bonito! Eh toiro real!... Paciente, o animal revolvia-se em dois palmos de terreno, só para não se ver desfeiteado, mas não se dispunha a investir. O pior é que a maltesia ganhara confiança e se pusera a chamar-lhe nomes indecentes para um boi qualquer, quanto mais para um bicho que ainda tinha sangue de toiro nas veias excitadas. Fedelhos atiravam-lhe punhados de terra ao focinho, desafiavam-no de braço erguido e punho cerrado, rindo-se dele; fugiam, se movia a cabeça, mas voltavam depois mais afoitos, glorificados
22
Pela gentama que lhes aplaudia os odos e a desenvoltura toureira.
Dentro do corpanzil amarelo do boi pacífico pôs-se o sangue a ferver. A baba amargava-lhe, era um fel. Nunca se vira rodeado daquela maneira, nem mesmo quando um dia fora obrigado a lutar com outro boi que o corneara na manada. Percebera já que a resignação não colhia por ali e decidiu-se a fazer qualquer coisa. E quando um valdevinos mais expedito se preparava para lhe agarrar o rabo, o boi gravito correu para ele, pega não pega, e meteu-lhe a cabeça pelas bandas do assento, volteando-o que nem uma folha de papel.
A malta exultou com o feito. Havia tourada.
Raivoso, apoucado nos seus brios, o bicho avançou para o vulto que esperneava no chão, preparando-se para lhe dar mais umas forquilhadas. Foi nesse momento que surgiu um cachorro de perna curta e caneja, a ladrar com fúria, mesmo às orelhas do boi amarelo, sem lhe temer as arremetidas, e furtando-se, aos saltos, em busca do rabo do bicho que lhe parecia uma cobra
23
esquisita, como nunca vira outra em toda a sua vida de vagabundo.
- Ai que é o meu rico cão! - gritou o Tóino, aflito.
O boi sacudira-se, transtornado com aquele desafio desprezível, e já se afastara do homem para perseguir o canito que recuava à sua frente, ladriscando sempre, sem lhe perder a cara. Espantado, o gigante amarelo pusera-se a defender a cauda daquele novo inimigo mais atrevido, embora insignificante de tamanho. Pôs-se a andar de roda e entonteceu; quis afugentá-lo com os chifres e nunca o agarrou, antes o açulara mais, a ladrar, a ladrar, o maldito, num arreganho de dentes. O boi movia a cabeça, de olhos esbugalhados e mansos, sem entender o que o outro queria; mas o cachorro vira indecisão no olhar do gigante amarelo e não deixava de avançar sobre ele, destemido, de dentuça afiada e atrevida, enquanto a matulagem lhe aplaudia a bravura, incitando-o com assobios e algazarra. Às escarvadelas, o boi recuava já acobardado; e agitava a armação em lira, o que mais desesperava o canito assomadiço e brincão.
24
A angústia de Tóino transformara-se na maior alegria da sua vida. Toda a gente falava agora do seu rico cão. E só nessa altura se lembrou do acampamento, com pena de os pais não assistirem àquela prova de braveza do Teu Nome, que havia de se chamar Toureiro, pois então, desse lá por onde desse. A mãe não iria fora disso quando lhe contasse tudo o que se estava a passar.
Talvez por se sentir diminuído com as arremetidas do cachorrito canejo, o boi amarelo quis achar uma saída para aquilo e desatou a correr para as bandas donde viera. E lá abalou, perseguido, sem dar conta das sacas e casacos que lhe atiravam para o fixarem. O canito, porém, não deixava de lhe acometer a cauda, por certo convencido de que aquela cobra pendurada não seria capaz de se lhe virar, como outra que lhe aparecera, certo dia, numa serra. Realmente o boi não hesitava na carreira, assobiado e vaiado pela matulagem, atrás da qual lá ia também o Tóino, mais para poder relatar aos pais as aventuras do seu cachorro, valente entre os valentes - qualquer pessoa o poderia dizer agora.
25
Capazes de armarem toirada com um gato ou um comboio, se qualquer deles tivesse cornos, a brincadeira chegou à gente da Borda-d'Água para umas tantas horas. E deu conversa para mais algumas.
Já tarde, aí por alturas do toque da fábrica de moagem, é que o pai deu com o Toino numa taberna do cais. Contava ele, a quem o quisesse ouvir, muitas e imaginadas façanhas do seu Toureiro, sim senhor, aquele cão que viam ali de língua de fora e perna curta.
- Eh rapaz! - gritou-lhe aquela voz que logo conhecera, abrindo-lhe num sorriso a cara sardenta e magrizela.
E logo saltou do banco corrido onde se sentara com o canito aos pés, desejoso de descrever ao pai, na sua fala gaguejada, as maravilhas do companheiro, que defrontara um toiro e o pusera a fugir, como o Diabo, ou coisa parecida, que é coisa a que toda a gente tem respeito. O pior é que nem tempo lhe deu para abrir a boca. Agarrou-o ali mesmo, e em peso, pelas orelhas de abano, sacudindo-o bem, para o mandar à sua frente com um pontapé repuxado no fundo das calças. E só lhe chamava malandro,
26
grande malandro, enquanto o Touro se escapava, à frente deles, acobardado, a olhar de banda para o dono mais
velho.
Ralada, a mãe não o tratou melhor.
A sopa naquela noite foi de "canja" e ela é que lha serviu com as costas da mão.
Tóino, porém, não chorou. A consciência não o acusava de merecer castigo um homem é um homem e um gato é um bicho.
O que lhe doía ainda agora pela estrada adiante, não era porem-no fora da carripana, obrigando-o a seguir a pé com a ameaça de o abandonarem se não acompanhasse o andamento da mula. "Marimbava-se para eles", pensava na sua. "Que se lixassem os dois!" Agora amarrarem o seu cão, um cão daqueles, debaixo do eixo da carroça, forçando-o a correr com a pata a manquejar, é que não era coisa que se fizesse. Nem a uma pessoa.
Por isso é que carpia agora, capaz de se atirar para o chão numa birra. E já prometera a si mesmo não comer uma migalha de pão em todo o dia, para que os pais percebessem que não se tratava como um
27
cobarde ou um cão fraldiqueiro, um animal que metera medo a um toiro, e que toiro! Um toiro com dois cornos, salvo seja, tão grandes como os ramos da árvore onde de noite se tinham abrigado.
28
O Mar entre as Mãos
FOI preciso uma grande ferida no joelho para que lhe dessem o mar. Valeu a
pena.
As coisas boas da vida sabem melhor
quando se conseguem com sacrifício.
Uma pessoa torna-se importante de um dia para o outro se tem uma grande ferida num joelho, uma ferida que precisa de ligadura, e então todos percebem que um homem pequeno está doente, e de casa até ao hospital as pessoas mais crescidas perguntam como foi aquilo arranjado, fazem cara de dó, coitadinho ! coitadinho!, e um rapaz acaba por ficar contente de ter dado uma queda.
Valeu a pena e foi simples. Tão simples que, a não ser o momento da corrida, tudo lhe parecia sem importância.
Os jogos têm a sua época marcada. Ninguém se lembra de atirar o pião no tempo da choca, de jogar à bilharda na altura do botão ou de aparecer com belindres
31
quando se desenha um aeroplano a carvão e se vai ao pé-coxinho, sem perder, com a malha empurrada pelo bico da bota. Há tempo marcado para estas coisas do mesmo modo que as nêsperas não aparecem na altura das pêras ou das melancias.
Era assim uma espécie de lei, não se sabia bem como nem porquê, mas os rapazes aceitavam-na sem contrariedade, fossem eles da Rua dos Varinos, da Bica do Chinelo, do Adro ou do Mártir Santo, os quatro reinos em que a vila se dividia no tempo do Artur. Às vezes aliavam-se uns contra os outros, depois os pactos quebravam-se e havia troca de amigos e de inimigos, faziam-se tréguas também, ou viviam à parte, sem lutas, como se estivessem a tratar dos feridos e a estudar novas maneiras de se baterem. Mas quanto à época dos jogos entendiam-se os quatro reinos. Brincadeiras de todo o ano só a bola e a colecção de bonecos de desporto, recortados de jornais e revistas para serem colados em folhas de papel manteiga.
Nos dias de Inverno, era um gosto sentarem-se num portal, muito chegados uns aos outros, e desfolharem um álbum daqueles,
32
tão quente para a imaginação, que nos jogos do Adro ou Detrás do Cerrado todos se sentiam capazes de imitar as fases das gravuras.
Foi a partir dessa altura que o Artur começou a pôr as pernas canejas, bom sinal de jogador de fama. Mas isso não vem agora para o caso.
A competição estabelecera-se por causa dos melhores álbuns, embora todos se soubessem impossibilitados de competir com o Mário, vezeiro em ir à gaveta da loja da mãe para derreter o dinheiro em quantas revistas aparecessem em Lisboa. Era o Heliodoro, aprendiz de serralheiro numa casa de balanças, quem lhe fazia as compras nas tabacarias da cidade. "Assim também eu...", diziam os outros rapazes, entre a resignação e o despeito.
Uma tarde, aí por meados de Dezembro, o Mário apareceu nas Avenidas Novas, cenário escolhido para as lutas das quadrilhas do Duncan e dos bandidos, feitas a sério, com antagonistas amarrados, socos de ferver e gritos agressivos de "mãos no ar", à força de pistolões de madeira ou de punhais aguçados. Esperava-se que o pessoal
33
abandonasse as obras para começarem as batalhas. O tempo corria monótono e lento, à espera, à espera, senão quando o Mário rapa da fotografia de um grupo de futebol inglês e se põe de mão levantada a gritar para a malta:
- Quem chegar primeiro ao fundo da rua ganha este boneco...
- Mostra, mostra.
- É do melhor grupo inglês. É do Arsenal...
A rapaziada andou-lhe à volta a farejar a fotografia e resolveu-se a aceitar a corrida. Escolhido por todos como juiz de chegada, lá foi descendo a rua o "Roda Presa", como a malta chamava ao Edmundo, um rapazola de doze anos que coxeava. A expectativa não cabia dentro deles. Alguns faziam pequenas corridas para se treinarem, outros tiravam os lenços e metiam-nos na boca por causa do fôlego, os mais espertos escolhiam os lugares das pontas para não serem atrapalhados na saída.
O "Roda Presa" chegou lá abaixo e fez sinal. Podia-se partir. com uma das pernas lançadas para a frente e na qual apoiavam o braço do mesmo lado, bibes já apertados
34
na cintura para não dificultar o galope, olhava com ansiedade para o Mário que se pusera em cima da soleira de uma porta e
de lá mostrava o prémio da contenda. Um... um e meio... dois... dois e
meio.. •
Partiram logo uns tantos e foi preciso
recomeçar com um aviso aos apressados de que ficariam fora da corrida se saíssem outra vez a destempo. Confiante nas suas pernas magras e nervosas, o Artur pusera-se a uma das pontas, junto do Sardinheira, seu rival em todas as disputas. Sabia que precisava daquele junto de si, se o passasse o boneco estava-lhe no bolso, e por isso não o deixava de olho.
-... Dois... Dois e meio... Dois e três quartos... Três!
No primeiro momento só se viam braços e pernas confundidos, numa revoada de bibes, cada um dava o que mais podia, até que o Artur e o Sardinheira começaram a destacar-se pouco a pouco, e logo depois já se percebia que era entre eles que o prémio se resolveria. Alguns pararam logo e puseram-se a incitá-los, outros continuavam ainda na esperança de que ambos se
35
cansassem ou tivessem uma dor. Magrizelas os dois, corpos arremessados para a distância, iam lado a lado, a arfar, de peitos para a frente e braços em jeito de roda para acompanhar o andamento vivo das pernas ligeiras.
O Artur mordeu o beiço, agarrou em todas as forças que ainda guardava lá dentro e jogou-as com alma. Quis o Sardinheira acompanhá-lo, baixou mais a cabeça, cerrou os punhos, mas o outro estava em veia e ia passar-se. Já a malta gritava "Artur! Anda, Artur!", quando o Sardinheira se lembrou de meter um pé à frente do outro e ele aí vai, parecia que voava, foi no ar não sei quanto tempo, e depois estendeu-se de rojo à porta de um prédio em construção.
Correu a malta para ver o desastre. Parou o Sardinheira, já repeso da sua manha, enquanto o Artur se agarrava ao joelho em sangue, revolvendo-se em cima do cascalho miúdo que para ali ficava das descargas da pedra. Sem uma palavra, o Artur encarou o outro e acenou-lhe a cabeça, sinal de que tinham de fazer contas daquilo. O Mário veio disparado e entregou-lhe o
36
boneco, ajudando-o a erguer-se. Confortado com a justiça que lhe faziam, o ferido tirou o lenço da algibeira, dobrou-o bem e amarrou o joelho. O Sardinheira escapuliu-se, percebendo que mal acabasse o interesse pelo ferimento do outro, alguns se voltariam para ele. - Está a doer-te?
- Um bocado...
- Não terias partido o osso?
- O osso?
- Sim, o osso do joelho.
- Sei lá.
Então, com o grupo todo atrás dele, o Artur foi a manquejar até casa. Mas quando chegou à porta já ia só. Que havia de fazer? Ir à farmácia?... E quem pagava o tratamento ?
Resignado, sem uma queixa, subiu a escada, abriu a porta e sentou-se a um canto da cozinha, muito calado, de cabeça entre as mãos. A Tia Maria Vitória reparou naquele sossego e pôs-se desconfiada:
- Que tens tu?
- Nada.
- Não vais brincar?
- Não, senhor.
37
Está algum burro para morrer cedo...
Foi espreitar a panela da sopa e depois chegou-se a farejar. O rapaz sentiu-se observado. Levou a mão ao joelho para tapar o lenço, mas alarmou-se com a mão molhada. Estava molhada de sangue. Então deu-lhe uma tontura quando se lembrou do que o Mário lhe dissera: "Não terias partido o osso?"
E de repente começou a chorar num alarido.
Tia Maria Vitória levantou os óculos do nariz bicudo e vermelho, apalpou-o, sacudiu-o e ele explicou:
- Caí e dei cabo do joelho. Se calhar parti o osso...
A tia atirou-lhe um tabefe e depois começou também a gritar. Vieram os vizinhos, chegou à frente o marido da Rosa Chorona, o Artur mostrou o joelho, e aquele pô-lo às cavalitas, levando-o a correr para o hospital.
Fez-lhe doer. Tudo lhe fez doer. O álcool, a tintura, a compressa e a ligadura a apertar-lhe o jogo do joelho. Perguntaram-lhe o norne e a idade, os nomes do pai e da mãe, onde moravam, e isso doeu-lhe
38
mais ainda, porque adivinhou o interrogatório quando os dois chegassem da fábrica, e o resto, o resto...
Quis andar e custou-lhe. O vizinho voltou a pô-lo aos ombros com as duas pernas a caírem-lhe sobre o peito. Era uma viga o vizinho Pedro. bom, que bom, era na verdade ir ali tão alto. O pior era o resto...
Todo o caminho lhe foram fazendo perguntas, mostravam cara de dó e diziam coitadinho! coitadinho!, e o Artur sentiu-se importante - nunca se tinham interessado assim por ele.
A Tia Maria Vitória meteu-o na cama e quis saber como aquilo se passara. Ele não acusou o Sardinheira. Eram coisas lá entre os dois. A primeira vez que o visse, logo que estivesse bom, o malandro do Sardinheira havia de aprender com a cara quantas dores lhe tinha feito! Nem lhe dizia nada, jogava-lhe logo a fazer, um murro, dois murros...
- O teu pai derrete-te, lembrava-lhe a Tia Nova - era assim que lhe chamavam, apesar de ser velha.
- A Tia Nova podia dizer que estou com febre...
39
- Mas tu não tens febre.
- Como é que se faz a febre?
- A febre não se faz, aparece.
- E como aparece?
- com calor.
- Então deixe-me ir para o pé do fogareiro.
- Mas o fogareiro não faz febre.
- Mas faz calor.
- Pois faz. Mas calor não é febre.
- Mas a tia disse que era...
- É outro calor.
- Como o das máquinas do comboio ?
- Sim, mais ou menos. O que é é um calor de dentro.
- De dentro de quê?
- De dentro do corpo.
- Do corpo da gente?
- Sim. De que corpo havia de ser?
A Tia Maria Vitória deve ter pensado numa ideia qualquer, uma ideia boa, com certeza, porque se sentou na cama e lhe fez uma festa no cabelo. E falou-lhe baixinho:
- Faz de conta que estás a dormir quando eles chegarem. Finge que dormes. E eu conto-lhes e digo que tu estás a dormir.
40
Eles não te vêm bater, se tu estiveres a dormir...
- E eles o que dizem?
- Sei lá. A tua mãe fica aflita, vem
Ver-te e ralha depois.
- Mas o meu pai não ralha e é pior.
- Pois é.
E se a tia disser que eu ia comprar
pão...
-A gente comprou o pão de manhã.
- Pois é. Mas a tia pode dizer que me empurrou...
- Empurrei-te como?
- Empurrou-me com a mão, como havia de ser?
- Ninguém acredita. Ainda é pior. Não sabes como o teu pai é quando percebe que o querem enganar?
- Mas a gente não o engana. Eu estou ferido. E uma ferida que não é brincadeira nenhuma. Se a Tia Nova visse... Apanha-me o joelho todo. O enfermeiro pôs-se a dar à cabeça e disse que eu podia ter partido a rótula.
- A rótula?
- Pois, a rótula. É este osso do joelho.
- Nunca lhe ouvi chamar esse nome.
41
- Mas é um nome engraçado, tia. Rótula... Nem parece uma coisa de osso.
- Quem foi que te empurrou?
- Ninguém!... Quem havia de me empurrar? Nem eu deixava que me empurrassem... Ou acha que sim?!...
Ouviram a tosse do pai na escada, uma tosse rija e seca. Ele dizia que era do cimento da fábrica; podia ser do cimento, do tabaco ou doutra coisa qualquer. Há tanta coisa capaz de provocar a tosse!
A Tia Nova nem teve tempo para dizer mais nada; só lhe tapou a cabeça com a roupa e o Artur percebeu que ficava combinado a desculpa de ele agora estar a dormir. Depois se veria...
Mas o pai começou a gritar lá dentro, a Tia Nova respondeu-lhe da mesma maneira, ouviu claramente o choro da mãe, e acabou por se esquecer de ressonar como pensara fazer antes daquele alvoroço. Também não era coisa para tanto com um raio! Tapou de novo a cabeça quando rangeu a porta do quarto, percebeu que estavam a olhar para ele, e logo sentiu que lhe tocavam o corpo por cima do cobertor. As mãos eram da mãe. Conhecia-as. Mas o pai devia
42
estar perto, talvez mais perto do que julgava.
- Dói-te muito? Artur! Dói-te muito o axe?
Respirou fundo e mexeu-se, devia estar a tremer. "Se tremo estou lixado", pensava.
- Puxa-lhe lá a roupa - disse o pai.
Ficou só com a camisola, moveu-se de mansinho, como se estivesse bem ferrado no sono, e viu os dois debruçados sobre o joelho ferido. Via-lhes o vulto por entre as frinchas das pálpebras quase cerradas. A mãe agarrou-lhe no pulso, a mão do pai tocou-lhe no pé e voltaram a tapá-lo. Um deles fechou melhor a janela de pau por causa da luz. Depois saíram.
Artur respirou fundo. A Tia Nova apareceu-lhes no corredor e ambos disseram que ele não tinha febre.
- Mas isso sabia eu. Ou sou alguma parva?
A Tia Maria Vitória, a Tia Nova, não era parva, não senhor. Sabia muito mais coisas do que podia julgar-se, quando a
43
viam de lenço embiocado e xale preto pelas costas magras e dobradas, por causa dos ombros metidos para dentro. Tinha sempre as maçãs do rosto muito coradas. Era engraçada com aquela cor na cara seca e cheia de rugas bonitas. Bonitas porque o queixo lhe ficava saliente e todas eram muito certinhas, como se lhas fizessem com a mesma lâmina, ora de um lado ora do outro.
Era ela agora que o levava todas as manhãs ao hospital, não às cavalitas como o vizinho Pedro, mas escarranchado na ilharga. A Tia Nova cansava-se muito. O que não deixava era de parar ao pé das pessoas que perguntavam pelo doente e diziam sempre o mesmo coitadinho! coitadinho! Embora não acreditasse no que o Artur contara ao pai, tinham até discutido por causa disso, a verdade é que tomava a explicação do rapaz: - Ele, coitadinho, estava com outros e veio um carneiro por trás, atirou-lhe uma marrada às curvas das pernas e ele espalhou-se no chão. Podia partir a rótula.
Todos queriam saber de quem era o carneiro.
44
- Ele diz que não sabe, com a dor, coitadinho, nem viu mais nada.
-Não seria o do Leandro? Esse é um carneiro que nem um toiro...
Eles gostam de brincar com o carneiro... -.
Mas não, não era esse - dizia o Artur Esse conheço eu muito bem.
A Tia Nova deixava as pessoas afastarem-se e lá vinha com a mesma:
- A mim não m'enganas tu, não, meu melro de bico amarelo ! Um carneiro... Na! Vai dizer essa ao pelourinho que não tem olhos, nem boca, nem ouvidos.
- Juro pela luz dos meus olhos!
- Não faças juras dessas que podes ficar cego, rapaz!
- Deixe lá cegar. Isto é que é uma mulher teimosa!...
Não havia ida ao hospital que não desse a mesma conversa. Amuavam, depois faziam as pazes e lá chegavam a casa. As escadas é que o Artur subia amparado ao corrimão e ao pé-coxinho. O resto dos dias passavam-no ali na cozinha. O Artur lia ou fazia contas na pedra, a Tia Nova cuidava da comida ou passajava roupa. A mãe é
45
que gostava de passar a ferro. Era uma esquisita. E a Tia Nova sofria com isso. O rapaz sabia-o bem, porque ela já desabafara algumas vezes consigo.
- Ó tia quando é o Natal? - perguntou o Artur, sabendo bem a quantas andava.
- Deixa lá ver...
- A tia está a fingir que não se lembra.
- E tu?!...
- Eu também. Estou a brincar. Faltam dois dias... Sabe o que é que o pai-natal me põe na bota?
- Não. Nunca ninguém sabe disso.
- Ora, não sabe! Dá-me sempre o mesmo... Peúgas ou uma camisola. É sempre
o mesmo.
- É o que te faz mais falta.
- Isso não é tenha paciência, isso não. Fazia-me mais jeito uns calções... ou uma bola!
- O teu pai-natal não ganha para te dar bolas...
- Mas então se já sabem que eu não acredito que é o pai-natal que traz as coisas, porque é que não acabam com isso?
- É uma graça...
46
A Tia Maria Vitória começou a rir muito. Era engraçada quando ria assim: o queixo ficava-lhe muito perto da boca e punha-se ainda mais corada.
- Pode ser que este ano te dê outra coisa. Como estás doente...
- Só se me der alguma ligadura prà perna. Disso não preciso.
Falavam naquilo mais para passar o tempo do que por outra coisa. As horas, às vezes, custam a passar e todos os pretextos são bons para as pôr um nadinha mais curtas. Foi também por isso que na véspera do Natal o Artur quis ouvir a Tia Nova e a mãe, garantindo-lhes que não poria a bota na chaminé. Estiveram para ali entretidos a pegarem os três.
- Olha que te arrependes, Artur! Olha que este ano...
- Este ano são peúgas.
- E pode ser mais qualquer coisa...
- Que coisa, então ?
- Uma coisa!
- E não posso saber o que é?
- O pai-natal é que sabe.
Não foram as palavras embuçadas de mistério que o levaram a pôr a bota ao
47
canto da chaminé, mas talvez certo sorriso luzidio nos olhos pequeninos e bons da Tia Nova, cujo sentido ele conhecia melhor do que a lengalenga da tabuada. Ou nem isso... com a força do hábito acabaria por fazer o mesmo, quanto mais não fosse para gozar também a alegria e a curiosidade dos mais crescidos. As pessoas grandes têm coisas a que uma criança se deve resignar para as ver contentes.
Adormeceu sem dificuldade e acordou à hora do costume. Queria lá saber das prendas !... Ouviu a Tia Vitória abalar para o padeiro, percebeu que o pai já saíra para o quintal a tratar dos pombos, mas deixou-se ficar no quente. Como era feriado na fábrica, ouvira falar nisso ao jantar, a mãe entretinha-se na cozinha a tratar do café - bem distinguia o traquinar da loiça, o bater dos chinelos e o cantarolar daquela música que a vila inteira aprendera na festa de S. João, quando veio um jazz de Lisboa tocar para o baile. Também ele a sabia de ponta a ponta, melhor do que a mãe, que trocava as palavras da letra e baralhava tudo, embora não houvesse voz mais bonita na vizinhança.
48
Estranhando o seu silêncio, a mãe surgiu à porta do quarto. Apanhado de surpresa, ainda quis esconder a cabeça debaixo do lençol, mas percebeu depressa que a facécia não resultava.
- Anda lá meu bonecreiro que não comes filhos com açúcar e canela. Estão bem boas...
E logo a mãe lhe destapou a cara, já pronta para o riso e para os beijos.
- Não queres ver as prendas ? Achava que não valia a pena sair do
quente por coisa tão pouca.
- Se a mãe as trouxesse... Estou coxo, não posso andar...
- Ora! Deixa-te lá de pieguices. Pareces uma menina...
Ela sabia bem onde o filho se doía e foi abrir o postigo que dava para a Travessa da Abegoaria, fingindo não lhe ligar importância. Artur magoou-se com a indiferença da mãe, mas levantou-se de pronto, embrulhado no cobertor. Estava frio, lá isso estava! Também, era quase sempre assim...
Foi nessa altura que a Tia Nova apareceu com o saco do pão.
49
- Nem tu sonhas o que o pai-natal te trouxe - disse a velha, com mistério.
A mãe puxara-o para os braços, mas o rapaz preocupava-se em arrenegar a tia.
- Não sou bruxo, não posso adivinhar...
- Nem que estivesses aí um ano - retorquiu a Tia Maria Vitória metendo-se no jogo.
- E vossemecê sabe ?...
- Eu sei...
- Quem lhe disse?... Diga lá quem lhe disse?...
- Tenho um dedo que adivinha tudo e espetava o mindinho. - Mas tens de lá ir dentro à cozinha.
Artur agarrou-se aos ombros das duas e parecia que o levavam num trono.
A cozinha estava escura. Ele olhou da porta para a chaminé e não percebeu o que tinham metido no cano da bota descosida. Tiveram de o levar até lá; entregaram-lhe os dois embrulhos e apalpou-os. Um deles era duro, muito duro, talvez uma pedra. Se calhar estavam a gozar com ele. Não lhes achava graça nenhuma. O outro era mole, devia ser qualquer coisa de vestir, mas não
50
eram peúgas. Abriu esse primeiro. Também não era uma camisola. Era branca, mas não era uma camisola. Desembrulhou melhor, viu outra coisa de cor, uma coisa encarnada, e não percebeu bem.
Largaram-no numa cadeira e o pai apareceu com um pombo torquês na palma da mão.
- É para levares ao exame do primeiro grau - disse a mãe a sorrir.
- Ah!... é uma camisa... e uma gravata...
- Uma gravata à Benfica - lembraram-lhe.
- Ah, pois é, uma gravata à Benfica.
Riu-se para o pai e saltou-lhe ao pescoço; depois estendeu um braço para a mãe e puxou-a também para si.
- Desta vez enganei-me. Julgava que era sempre o mesmo.
- E o outro? - perguntou a Tia Nova. A Tia Nova não descansava agora à sua
volta. Artur fingia que lhe não percebia os movimentos; gostava de a ver assim, mais vermelha e um poucochito amuada.
- Não t'interessa?
- O quê, tia?
51
- A outra prenda...
- Se calhar é alguma brincadeira do pai-natal.
- Agora brincadeira. Ele não tem tempo para brincadeiras...
- Sei lá!
- Ora fecha os olhos.
Artur obedeceu-lhe, mas tentou ver. A Tia Maria Vitória pusera-se, porém, por detrás da cadeira e segurava-lhe a cabeça com uma das mãos para ele se não poder voltar.
- Diga lá o que é - pedia o rapaz, sem grande interesse.
- Vais adivinhar...
Sentiu sobre a orelha uma coisa muito fria, uma coisa lisa e fria, com um som...
- O que é?
- Não ouves ?
Sim, ouvia. Era um som pesado lá ao longe e que depois vinha, vinha e subia, e que depois se tornava mais brandinho, para logo voltar a vir de longe. Parecia música mas não era bem música. E talvez fosse. bom, não seria bem música.
Foi agarrar com a mão, sentiu o mesmo
52
frio, a mesma coisa lisa e assim quase redonda.
- O que é tia?
- Não podes abrir os olhos. Adivinha.
-O meu dedo não adivinha... Que barulho é este?
- É o mar...
- O mar?!...
Só então abriu os olhos, mas não entendia nada. Era assim uma espécie de concha mais fechada, mas lisa e branca, e também rosada com riscos escuros por fora. Riscos muito certos, tudo com muito brilho e aquele barulho lá do fundo...
- Ó tia! Mas que barulho é este?
- É o mar... É a voz do mar...
- Mas onde está ele?
- O mar fica longe mas a voz meteu-se aí dentro. Isto é um búzio.
- E onde nascem os búzios?
- No mar.
- Então é por isso que se ouve...
- Pois é. As ondas fazem um barulho assim quando se ouvem ao longe. E a gente está longe. Não ouves a voz que lá vem?
- Oiço.
- E depois quebra-se assim como as
53
ondas na areia. Fazem um leque branco na areia.
- Então isto é o mar? O mar é o oceano.
- Ah isso nunca lhe ouvi chamar...
- No mapa chamam-lhe oceano. Parece que há... Eu já ouvi aos da quarta. É o Atlântico, o Índico...
- Não achas que mar é mais bonito? Artur hesitou. Queria dar importância
ao que aprendia na escola, mas não havia dúvida que a Tia Nova tinha razão.
- Pois é, mar é muito mais bonito.
De repente, cerrou os olhos e juntou as duas mãos sobre o búzio, apertando-o contra o ouvido.
- Agora deve ser um navio que lá vem... É mesmo, é, é um navio...
A tia meneou a cabeça a duvidar e aproximou a orelha, desviando o lenço.
- Não ouve?
Não, a tia não ouvia. Mas o importante para ele era ter o mar apertado entre as duas mãos. Lá vinha uma onda... e outra.
- Já viu o mar, Tia Nova?
- Uma vez, só uma vez.
- E de que tamanho é?
54
-Seilá... É grande...
- Maior do que um comboio?
-Ora quantas vezes... -Aí mil vezes?!
- Sei lá o que são mil vezes. A gente
olha e nunca mais lhe vê o fim.. - Então é assim como o céu...
- Mais ou menos... Sim, mais ou menos. Mas é ao contrário...
Artur fez uma careta sem perceber, e arrastou-se sozinho até à porta do quintal. Sentou-se na soleira e dali ficou a olhar para o céu, estranhamente azul naquele dia de Inverno.
- O navio que vai agora no mar tem três canos... O capitão leva um binóculo e está a olhar para mim... Tem oito estrelas no boné...
-Como sabes? - perguntou a velha, sentando-se ao seu lado.
- Vi numa fita...
E encostou o búzio à orelha da Tia Maria Vitória que se pôs a acenar com a cabeça e a sorrir, quando se lembrou da única vez que vira o mar, tinha aí dezanove anos, lá para as bandas de Cascais ou coisa parecida, e um marinheiro a segurara num
55
braço no momento em que ela se desequilibrara com a força duma onda. Ainda hoje sabia exactamente onde o marinheiro lhe agarrara. A mão dele ficara sempre na sua pele.
- O capitão tem olhos azuis - disse para o rapaz. - É muito ruço e tem olhos azuis... Está descalço, com as ceroulas arregaçadas e tem olhos azuis...
Artur voltou-se para os pais e fez uma careta, levando um dedo à cabeça, como a dizer que a Tia Nova perdera o tino.
- Nunca vi um azul tão azul... O meu marido que Deus tem, também tinha os olhos azuis, mas não eram... não eram iguais aos dele. Nunca vi, não há, com certeza, outros olhos assim...
56
HISTÓRIAS com RAPARIGAS
Porque não Hei-de Acreditar na Felicidade?
- ESTÁ um pouco larga, mas escapa disse o patrão, avançando do fundo da barraca para junto de mim e do velho que ficava com a gerência do negócio.
Mexi os braços dentro das mangas da casaca, não percebia porquê mas doíam-me, e um deles entregou-me depois o chapéu alto que enfiei na cabeça e me caiu quase até às orelhas.
O velho achou graça, contorceu-se a rir, continuando depois aos cacarejes como uma galinha quando acaba de pôr ovo, enquanto o patrão se afastava um pouco a mirar-me com os olhos semicerrados. Devia querer apreciar a vista que eu fazia. Foi nessa altura que eu dei uma gargalhada por causa do velho. De repente vi-o transformar-se numa galinha coco, bater as asas e largar bolas de trapo pelo rabo descaído e magro.
61
- De que estás a rir? - perguntou o patrão irritado, como se eu lhe estragasse o que estava a imaginar.
O velho, num salto, arrancou-me o chapéu da cabeça e começou a meter papéis por dentro da carneira.
- Não, não pode ser assim... - disse o patrão. - Nada de coisas cómicas. Este gajo - o gajo era eu - deve parecer um homem da alta sociedade, um dandy... Andas sempre de cabeça levantada, nunca sorris, nunca desvias os olhos. Sabes o que quer dizer imperturbável?
- Sei... -O que é?
- É isso que o senhor disse. (Pensei numa comparação.) Como se tivesse engolido uma vassoura...
- Exactamente. Já vejo que és esperto. Como se tivesses engolido uma vassoura. Assim virá muito mais gente à barraca. Devemos dar oportunidade às pessoas vulgares de poderem agredir um tipo pinoca. Perceberam?
- Chama-se a isso ter olho - largou o velho, aproximando-se de mim para voltar a colocar-me o chapéu alto.
62
Como era baixote, teve de me entregar o chapéu, e logo se pôs a contar mais uma história da sua vida de actor. Conheci-o há pouco mais de uma hora e já lhe ouvi não sei quantas referências ao passado. Quer dizer na sua que está ali por engano. Se calhar estamos todos aqui por engano.
- E agora?!... Distinto, ha? Em teatro nunca nos atrapalhamos. Uma vez, no antigo S. Luís, se vocês vissem... Fazemos de um bocado de papelão um alfange e de uma cortina velha um manto de rainha. E todos acreditam. Como ia contando... Representei com os maiores nomes da época de ouro do Teatro. Grandes tempos !... A Ângela era engraçadíssima. Uma noite encontrou-me entre bastidores e disse-me assim...
O velho falava sempre, e em mim crescia outra vez o desejo de abalar, esquecido das razões que me haviam empurrado para aceitar o lugar naquela barraca da feira. Sou tímido, nunca poderia dar um actor como o velho diz que foi.
- Assim que eu entrava em cena, ninguém ficava macambúzio. Tive grandes noites ! E no drama?!... Você não gosta de
63
dramas? Hoje são poucos os que fazem os dois géneros. Vi o Brazão... Grande artista !
O patrão começou a mostrar-se irritado com a cantilena do velho, mas parecia, ao mesmo tempo, incapaz de lhe dizer uma violência, daquelas que eu via saltarem-lhe dos olhos fatigados. Também eu estava cansado de o ouvir. E até de os ver... Agora não tinha outro remédio senão ficar até o fim, mascarado de noivo. Só faltava que a Felicidade aparecesse de véu de grinalda com botões e flor de laranjeira, poderíamos tirar o retrato com o velho e o patrão, antes que me mascarrassem a cara.
- Quando é que me mascarram? perguntei em voz baixa para o actor.
Ele arregalou os olhos papudos e mexeu os maxilares, movendo todo o rosto cheio de rugas e pequeninas pregas, num trejeito cómico, certamente repetido durante muitos anos. Mas não me ri, não sei bem porquê, talvez com vontade de embirrar com ele; não por ele, é claro - que tinha eu contra o velho? A ideia de apanhar com bolas na cabeça é que começava a transtornar-me.
64
- Posso já pintá-lo?
-Não, é melhor deixá-lo com a cara branca - respondeu o patrão, aproximando-se. - Passa a ser a barraca do snob em lugar da barraca do preto. É uma novidade. As novidades é que interessam...
Eu precisava de lhe dizer qualquer coisa, ele estava a alterar a nossa combinação, mas sentia-me ainda incapaz de discutir. O pior é se perdia a oportunidade e depois se se tornava tarde para lhe lembrar o nosso contrato.
- A barraca do snob é muito mais atraente. Tu precisas de exagerar - continuou ele dirigindo-se-me. - Sempre de cabeça bem levantada, nunca voltas a cara, haja o que houver. Assim...
Pôs-se a caminhar à minha frente, empertigado, dando aos braços muito devagar e de peito saliente.
- Deve arranjar-se-lhe uma flor para a botoeira da casaca - propôs o velho, radiante. - De vez em quando, para sair da monotonia, ele pode tirar a flor e cheirá-la... Que lhe parece? - perguntou para o patrão.
Mas o outro prosseguia no passeio à minha
65
frente, como se quisesse mostrar-me bem todos os movimentos que eu precisava de fazer quando a barraca abrisse. Então o actor sentiu-se diminuído com o silêncio do patrão e perguntou-me: - Que te parece? Sim, que te parece a minha ideia da flor?
Encolhi o ombro direito, como quem lhe dizia "quero lá saber disso, não me chateies", e ele voltou a repetir a proposta ao outro, andando ao seu lado, um pouco manso e ansioso.
- Agora tu - disse-me o senhor Borges, o patrão (só agora me lembrei do seu nome).
- vou arranjar uma flor? - insistiu o velho.
- Pode, sim, é bem achado - respondeu o senhor Borges.
Eu já começara a passear, deformando o que lhe vira fazer, talvez por ser mais alto; a altura dá aos homens certas manias de grandeza, acho eu, disso só sei o que sinto quando estou ao pé de gente mais baixa. Lembrei-me da comparação que me viera à ideia, do pau de vassoura engolido, e atirei com os braços bem para trás, assim
66
como a cabeça, e então as pernas moviam-se rijas com os bicos dos sapatos sempre jogados para a frente. E o senhor Borges fazia caretas de quem não estava a gostar, enquanto eu pensava, "é isso mesmo que eu quero, lá parvo não sou, não".
- Mexe os braços, homem, assim nada feito, parece que tens braços de pau.
- Então não é como se tivesse engolido um pau de vassoura? - perguntei irritado sem mexer o olhar.
- Os braços podem engolir um pau de vassoura? Podem?...
Respondi-lhe com a cabeça.
- Então se não podem, para que estás tu a andar assim? Pareces um pato estúpido. E tu tens de parecer um snob, percebes ?
- E o preto?
- Agora deixas de ser preto. Snob é melhor. Ora diz lá: tu não gostavas de poder atirar com bolas de trapo à cabeça de certos gajos que vês por aí?
Voltei a responder-lhe com a cabeça.
- Pois então, se gostavas, deves perceber também que deixas de ser preto para
67
ser um snob. As novidades é que interessam...
- Mas eu tenho de ser preto.
- Não, não pode ser, tem paciência. Quem manda aqui sou eu.
Foi só nessa altura que parei de passear. Sentei-me num caixote e disse-lhe: - Não combinámos assim, o senhor é que tem de ter paciência. Eu não faltei ao combinado.
- Mas porque não queres tu ser snob? Não lhe podia explicar o meu receio;
não tinha que lhe dar satisfações das minhas coisas íntimas. Eu ia ganhar vinte escudos por noite, e mais uma percentagem, para apanhar com bolas no chapéu, e talvez na cara, mas isso não queria dizer que tivesse de lhe contar certas coisas da minha vida. Um homem como eu deve ter ao menos o direito de guardar algumas coisas mais suas. As tais coisas íntimas.
- Tu o que estás é a fazer chantagem.
- A fazer o quê ?!...
- Chantagem! - gritou-me aos ouvidos. - Não passas de um chantagista.
- Chame-me o senhor Borges o que quiser - respondi com toda a calma -,
68
mas o que o senhor me disse é que eu vinha para fazer o papel de preto. E eu disse, sim senhor, quanto me dá? e o senhor combinou vinte escudos por noite e percentagem no negócio. Eu não estou a faltar. Quero ser preto, foi o que combinámos. Não estou a pedir nada a mais. A minha palavra não volta atrás.
Percebi que o patrão se zangava, primeiro como um homem qualquer, olhando-me cheio de raiva com as mãos a tremerem-lhe, julguei-o até capaz de se atirar a mim, à punhada; mas logo a seguir como um fedelho, a bater o pé e aos gritos, parecia um menino mimalho a quem tivessem tirado um brinquedo.
- Um negócio não é uma brincadeira, entendes? - disse-me depois. - Posso chamar a polícia para te obrigar...
- Eu não me nego a fazer o que tratámos, senhor Borges. O senhor tem de perceber...
- Uma gaita! Uma grande gaita! Então eu pago o aluguer do terrado, gasto o dinheiro na barraca, meto pessoal, alugo o microfone e os discos, e tu dizes agora que não fazes o que eu mando? Porquê?!...
69
- Só quero o que tratámos. Sou um homem de palavra.
Ele pôs-se aos saltos à minha volta, como se eu o tivesse picado.
- Estás a chamar-me aldrabão?
- Não senhor, não estou.
Acabou por sair, furioso. Pensei: lá vai ele chamar a polícia. Não me agrada muito que a polícia se meta nisto. Já estive preso duas vezes e podem julgar que aceitei este trabalho para roubar alguma carteira mais à vontade. Coisa que não me passa pela cabeça. Eu prometi à minha mãe nunca mais ter contas com a justiça. E só por isso aceitei este lugar de preto que leva boladas no chapéu e na cabeça. As bolas são rijas, já as experimentei, e não deve ser nada agradável apanhar com elas em cheio. Mas eu quero regenerar-me, foi o que me disse o juiz, o senhor doutor juiz: "precisas de te regenerar".
Quando eu estava nisto, apareceu o patrão com o velho.
- Então, meu filho! - disse o velho, pondo-me a mão no ombro. -Queres desgraçar a gente todos? Tem paciência!... Ainda não te disse, mas eu sofro de angina
70
de peito, e posso morrer se me aflijo. É a doença dos actores. Não me queiras matar...
- Mas eu não quero matar ninguém.
Eu não ameacei ninguém... Sou seu amigo e amigo do patrão.
O velho voltou-se para o senhor Borges e sorriu-lhe, abrindo os braços, como a dizer-lhe "vês? já o amansei!".
- Ele não quer fazer o papel de snob insistiu o senhor Borges.
- É verdade?! - perguntou-me o velho.
- Sim, é verdade - respondi. - Quero que me mascarrem com pó de sapato.
- E porquê?!
- Foi o que combinei...
- Queres ganhar mais cinco escudos por noite? - perguntou-me o patrão.
-Não, não é isso. Mas eu não posso ficar com a minha cara, percebe agora?
- Não queres que te conheçam disse o velho. - Não tens lata...
Então, chamei-o à parte e contei-lhe: Namoro uma rapariga e ela pode vir à feira. Está a ver?... Chama-se Felicidade... E ela não gostará, com certeza, de me ver aqui.
71
Eu disse-lhe que era caixeiro de praça. Não posso aparecer numa barraca...
O actor acenou a cabeça, meteu-me na banda da casaca a flor que trazia na mão e foi explicar tudo ao senhor Borges. Levantei-me do caixote onde estava sentado e dirigi-me para o fundo da barraca; ali havia um pano pintado com palmeiras e um navio. O grande azar foi o falhanço da minha "cacholada" para a América, pensei eu.
Os dois aproximaram-se de mim. Vi que o patrão mudara, parecia outro.
- A gente tem boca para falar! A falar é que os homens se entendem... Devias ter logo dito.
- Eu transformo-te a cara, meu rapaz- acrescentou o velho. - Meto-te um bigode, dou-te uns traços a preceito e nem a tua mãe será capaz de te reconhecer.
- Preferia que me mascarrassem a cara - disse ainda, já sem grande convicção.
O velho sorriu com desdém.
- Os actores do meu tempo sabiam caracterizar-se. Não é como hoje... Deixa isso à minha conta. Senta-te aí...
72
O velho parecia entusiasmado. Foi buscar uma caixa que tinha a um canto da barraca, abriu-a e começou a arregaçar as mangas.
- Aqui tens a caixinha mágica. com isto eu faço todas as caras que quiseres. Todas!... Um bêbedo, um tuberculoso, um maluco, um chinês... É só pedir por boca. com este lápis ponho-te a cara que quiseres. A rapariga não te descobre, garanto-te. Dou-te primeiro um tom geral...
Começou a passar-me as mãos pequeninas e secas pela cara. Fechei os olhos.
- Quando fiz "A Cabana do Pai Tomás"... É uma peça quase só de pretos. Já andava pelas feiras... É uma peça forte, um drama de fazer chorar as pedras. É claro que não é tão forte como o Hamlet... Conheces o Hamlet?!... Quem é que hoje conhece o Hamlet!... Vocês agora só sabem o nome dos jogadores da bola. Anda tudo atrás da bola... Só uma das falas do Hamlet vale... sei lá o quê.
Senti uma comichão no nariz e abri os olhos.
- vou pôr-te um bigode. Fica descansado.
73
Mudando de voz, o velho continuou:
- "Vamos, mostra-me do que és capaz. Podes tu chorar? podes combater? podes jejuar? podes cortar-te aos pedaços a ti mesmo? podes tu beber vinagre? comer um crocodilo? Eu farei tudo isso."
- Posso levar com bolas na cabeça rematei eu com raiva mansa.
O velho desatou a rir aos cacarejes.
- É boa, sim senhor. Marca lá duas. Nem o Shakespeare se lembrava de meter uma dessas naquela fala. É bem achada, sim senhor. "Podes tu beber vinagre? comer um crocodilo?!..." Não, nada disso. Posso apanhar com bolas na cabeça... É o que se chama uma situação nova.
com um lápis vermelho deu-me uns traços no nariz e depois com os dedos espalhou-os bem, afastando-se um pouco, de vez em quando, para apreciar melhor o seu trabalho. Parecia satisfeito com aquela oportunidade.
- É pena não haver aqui um espelho. Tenho a certeza de que nunca calculaste passear com uma cara destas. És um autêntico homem de sociedade.
- De sociedade ?
74
Sim, de sociedade. Um dandy...
- Ah! Um gajo importante...
Quando os alto-falantes desataram a despejar música, de mistura com as vozes dos locutores a experimentarem os microfones, é que percebi a minha situação. Até ali tudo me parecia ainda uma espécie de brincadeira, em que entrava de parceria com o actor velho e o senhor Borges. Mas eu estava ali para ganhar vinte escudos cada noite, mostrando-me a toda a gente que viesse à feira e quisesse parar naquela barraca para me atirar com bolas de trapo. O meu corpo não se dava muito com o trabalho, gosto pouco de alancar e de fazer força, mas agora ia servir de gozo a quanto real filho da mãe tivesse peneiras em experimentar a pontaria. Faltava-rne a lata, como o velho dissera. "Há-de saber-me a pouco dar uma volta pelas tabernas do Poço do Borratém, levar dinheiro na algibeira e pedir um ovo cozido com um copo de três, sem que aqueles gajos me tratem por pendura, mas a barracada que vou dar nesta noite é que não me sabe nada bem pensava eu. - Se a Felicidade vem à feira e me conhece, estou desgraçado. Disse-lhe
75
que ia fazer a praça da Outra Banda e não podia aparecer, e ela ficou triste e queixou-se que eu agora já não gostava dela como dantes; então vou eu e digo-lhe assim: deixa lá, filha, que é para o nosso futuro. Dei-lhe uma palmada na anca e abalei."
O patrão voltou acompanhado por uma "boneca" aí de dezasseis anos, morena do sol da praia, um bocadinho caneja, daquelas que a gente chama entre parêntesis. Cumprimentou o actor, empinando-se toda, e o velho armou em vivaço, pegando-lhe na mão e fazendo-a dar uma volta para lhe apreciar bem o esqueleto, como disse depois a rir. Mas a rapariga não gostou da graça e respondeu " que não vinha para dar de comer aos cães"; o velho fez uma careta e explicou-me em voz baixa "que aquela gaja já não lhe via mais os dentes". Eu desatei a rir e o velho gostou da minha risota, sem saber que eu lhe achara graça por ter reparado que ele não tinha na boca mais do que dois dentes grandes e amarelos. O senhor Borges chamou a Isilda para um canto da barraca, pôs-se a mexer-lhe nos cabelos e entregou-lhe uma bata de cetim
76
azul. Ela puxou dum espelho para ver como estava, compondo os cabelos compridos e dando um toque nos lábios com o lápis cor de amora pisada. Pedi-lhe para me emprestar o espelho e ela tratou-me por tu. Foi malcriada, perguntando-me: "És tu que vais apanhar com as bolas no focinho?" Embatuquei, mas disse-lhe que ia apanhar com as bolas noutro sítio, e ela chamou-me estúpido. Não sei porquê, lembrei-me outra vez da Felicidade e senti-me desgraçado.
Percebi que suava, levantei a mão para limpar a testa e depois pensei que estava pintado e que não podia mexer na cara. Vi-me ao espelho com o bigode, as ventas mais abertas com dois traços pretos, rugas castanhas nos cantos dos olhos e na testa, e uma cor avermelhada na cara e na ponta do nariz. Ninguém seria capaz de me conhecer, mas estava armado em palhaço, não havia dúvida. Arrependi-me de não ter refilado mais, obrigando-os a pintarem-me de preto, como tínhamos combinado.
O patrão foi experimentar o alto-falante com o actor, chamou-me depois para medir a altura da rede por detrás da qual eu devia passear, baixou-a um pouco mais
77
e desapareceu com a Isilda. O velho disse "esta já lhe está no papo", e depois lembrou-me que eu devia puxar de vez em quando pela flor e cheirá-la. "Dessa estavam eles livres" - pensei eu, e pus-me a enrolar um cigarro que dei ao velho para molhar com a língua. Ele pediu-me para lhe fazer outro e começou a falar para o lado:
- Tu acreditas na felicidade?
- Acredito, ela nunca me mentiu respondi-lhe por basófia.
-Nunca te mentiu? Já falaste com ela?...
- Falo-lhe às quintas e aos domingos.
- O quê?!
- É o que lhe estou a dizer: falo-lhe às quintas e aos domingos.
O velho encarou comigo e perguntou-me: - Estás a gozar comigo ou és maluco?
- Nem um coisa nem outra.
- Mas já viste, porventura, a felicidade? - disse o velho, irritado.
Eu joguei-lhe logo à bruta: - Então namoro com ela e nunca a vi?
Acabámos os dois a rir, quando percebemos
78
que ele falava numa felicidade e eu noutra. Até me doía a barriga, pois voltei a lembrar-me do velho a pôr bolas de trapo enquanto cacarejava.
Depois daquilo passar acendemos os cigarros e ele voltou à mesma:
- Tu acreditas na felicidade?
- Essa é boa! Porque não hei-de acreditar na Felicidade? Nunca a apanhei a mentir...
- Não é nessa, na outra... Acreditas na outra?
- Sei lá!... Nunca lhe falei... nunca a vi... Se ela gostasse de mim, punha-me aqui? A mim e ao senhor?...
Vi que o velho ficava triste.
- As voltas que o mundo dá... Já te disse que fui actor.
- Já.
- E agora aqui estou nesta barraca. Estás a ver isto?!...
- Pois é. E eu também.
- Porque aceitaste o lugar?
- E o senhor?
- Não falemos nisso.
Lá fora aumentavam os ruídos da feira e já se ouviam os passos e as conversas das
79
pessoas que entravam. Tinham aberto os portões. com essa ideia senti um grande arrepio e vontade de verter águas. Fui para um canto da barraca, o velho recomendou-me que tivesse cuidado, não fosse o patrão aparecer com a Isilda. Irritei-me e respondi-lhe: - Quer que faça na mão e beba?
Ele riu-se da minha resposta, ofereceu-se para espreitar, e depois contou-me que no teatro era assim também - até lhe chamavam deitar o medo fora. Acabei e deu-me logo vontade de recomeçar. Nas barracas do lado ouvi algumas vozes a convidarem os fregueses : - Olhe, simpático... Venha experimentar a sua pontaria, cavalheiro ! Tem mesmo cara de quem acerta. Eu ajudo-o, acerta com certeza.
Já devia faltar pouco para começar a função na nossa barraca. O velho veio compor-me o chapéu alto e a flor; depois entregou-me um charuto e afastou-se para junto do microfone. Senti ganas de fugir. Ainda afastei um dos panos da barraca; vi toda a feira iluminada. Foi como se a luz me queimasse. Assim pintado e de casaca com chapéu alto todos dariam comigo.
80
A polícia agarrava-me depressa e lá vinham as duas prisões à baila. O cadastro fala como gente: uma prisão por furto e outra por tentativa de emigração clandestina. só arranjavam, tenho a certeza, uma explicação para a minha fuga: queria roubar o fato e o chapéu para os empenhar. E ninguém acreditaria que um homem da minha laia pudesse ter vergonha de andar feito palhaço a apanhar com bolas no focinho, como disse a Isilda, e eu não gostei.
- "Meta-me esse malandro no calaboiço!" - diria o chefe, por mais que eu o tratasse por senhor chefe.
Também era uma solução. Se não fosse a Felicidade, seria uma solução. Mas qual Felicidade? A que eu namoro ou a que dá dinheiro?... Esta noite e as outras vinha ganhar vinte escudos, mas esse dinheiro não é o da felicidade, esse não pode ser um dinheiro ganho assim.
E se voltasse para a cadeia?... Lá cama e comida certa não me faltariam... Mas o resto? E todo o resto?!... O resto talvez seja o mais importante. "Os beijos da Felicidade e tudo o mais que ela me dá", pensava eu nessa altura. E a liberdade de jogar
81
uma bilharada ou de meter umas moedas numa máquina americana e pôr tudo aquilo num badanal, a acender e a apagar luzinhas, na fèzada de rapar umas boas coroas e ir gastá-las a ver cinema.
- Vamos lá a isto, já estamos atrasados ! - gritou o patrão, entrando com a "boneca" de bata azul.
Fez-nos um sinal e eu e o velho aproximámo-nos ; mas ele falou primeiro para a Isilda.
- Duas bolas, cinco tostões. Quem derrubar o chapéu uma cigarrilha, quem tirar o charuto da boca do snob um maço de cigarros. Não te esqueças que deves ter bom modo para toda a gente. Só te peço que não deixes os "pipis" tomarem conta do balcão sem fazerem despesa. É uma praga danada essa malta! Nada de confianças...
Disse as últimas palavras já a olhar para mim.
- É pena que tenhas de pôr esse bigode. Não te fica nada bem. Mas paciência!... Anda cá.
Fomos os três para junto do pano com as palmeiras e o navio pintados. "Se tenho
82
ido para a América!..." Era obrigado a ficar toda a noite junto daquela recordação, a recordação do maior falhanço da minha vida.
- Tu andas neste espaço, sempre em passadas iguais, e nunca deves desviar a cara, mesmo que as bolas te acertem em cheio. Não me arranjes discussões com os fregueses nem sarilhos com a polícia. Percebeste?
Fiz um aceno de cabeça, sem o fitar.
- O senhor mete um disco com música bem mexida e poderemos começar. Eu serei o primeiro freguês. Façam de conta que não me conhecem...
O velho escutava-o com a mão no ouvido esquerdo e sorria, adivinhando a manobra do senhor Borges. Mas isso não lhe bastou e esclareceu:
- com a prática que eu tenho em atirar as bolas, acertarei quase sempre. É o chamariz. vou ser a negaça para os gulosos.
Pedi licença com uma vénia e fui para o fundo da barraca despejar o medo outra vez. Levantei o pano e não vi nenhum polícia.
83
"E se fugisse naquela altura?!" - foi só o que pensei.
- Vamos começar!
Senti aquela ordem agarrar-me pelas bandas da casaca, arrastando-me para junto da rede onde levaria boladas de quem quisesse ganhar tabaco. O patrão já se escondera atrás do pano; o velho pusera-se a passar os discos, à procura de qualquer música mais ao seu gosto. Eu fiquei dentro da barraca escancarada na companhia da Isilda, que puxou mais uma vez pelo espelho; encostada depois ao balcão vi-lhe a curva da perna magra.
O alto-falante começou a grunhir um samba, todo misturado com uma música espanhola doutra barraca da vizinhança. Ambas as músicas se confundiam nos meus ouvidos, como na minha cabeça se misturavam as duas felicidades, a cadeia, a polícia, as bolas de trapo e os vinte escudos. Passeava no fundo da barraca, lá estava a rede a dar-me pelo pescoço, um pouco por cálculo. Deixaram-me o chapéu apertado, tanto papel lhe meteram entre a carneira, e irritei-me com o velho. Deviam ser um pouco mais de nove e meia e iria fazer o
84
mesmo caminho até às três da manhã. Bonito serviço! E a Felicidade?
- Venham ao divertimento mais barato e mais rendoso de toda a feira! Vossa Excelência com cinquenta centavos, apenas com cinco tostões...
Desconheci a voz do microfone. Era o vozeirão dum gigante e o velho não passava dum homem saquinho e pequeno, talvez gasto ipor contar tantas histórias da sua vida de actor. A Isilda sorria para quem passava, até dizia adeus a alguns, mostrava as bolas e batia com elas no balcão.
- Duas bolas, cinco tostões. Ora digam que isto não é uma maravilha! Por cinco tostões poderão levar dois maços de cigarros ou duas cigarrilhas, a questão é acertar, e é fácil acertar, meus senhores! Porque não experimenta Vossa Excelência a sua pontaria?... O senhor, exactamente o senhor, tem cara de boa pontaria. E cara de fumador. Terá dois proveitos no mesmo saco, quer dizer na mesma bola. Desporto e prazer só nesta barraca. E terá outro prazer ainda maior: o de bater num autêntico snob. Esta é a barraca do snob!
Quando o velho pôs outro disco, um
85
tango, parece-me que era um tango, rebentou uma voz do outro lado do balcão: Dê cá quatro bolas, ó menina!
Conheci a voz do patrão. E pensei logo: "Vai começar a fita das boladas; este gajo treinou-se e principio já a comer."
Consegui atirar uma relanceadela com o olhar e dei logo com ele, de camisa aberta, a mexer nas mãos da rapariga. Depois, antes que eu me apercebesse do seu movimento de braço, estalou mesmo à minha frente, e em cima do navio pintado, a primeira bola. Parecia uma bomba! Senti o coração dar-me um salto no peito e logo a seguir uma pancada no chapéu.
- Ganhou um charuto! - gritou a Isilda.
- Um charuto ?!
- Não, não, uma cigarrilha. Se tirar o charuto ao snob poderá ganhar um maço de cigarros.
E o velho pegou na deixa e voltou a roncar ao microfone:
- Sim, por vinte e cinco centavos cada bola, poderá fumar um maço de cigarros. Se todo o país soubesse desta pechincha, viria toda a gente à barraca do preto... à
86
barraca do snob. Podem vir também os marcianos em discos voadores e os cãezinhos dos foguetões. Todos à barraca do snob, meus senhores! As senhoras que fumam também podem vir! Isto é um maná! Um autêntico maná!...
Juntara-se mais gente; estavam todos divertidos e só eu, humilhado, atrás da rede, a servir de paródia para aquela malta. O senhor Borges tinha boa pontaria, lá a verdade, diga-se, ainda não me dera com nenhuma bola na cara, mas o pior eram os outros que começavam a entusiasmar-se com os maços de cigarros e as cigarrilhas que a Isilda lhe entregava e que daí a pouco haviam de começar também a pedir bolas para me atirarem.
- Dê uma no focinho desse gajo! gritou um engraçado qualquer.
O patrão voltou a arrancar-me o charuto da boca e até palmas lhe deram. O negócio ia render, rendeu bem; naquela altura eu mal me lembrava da percentagem que ele me prometera, sem saber ainda que bicho era aquele grande malandro. Mas isso agora não interessa.
A verdadeira batalha começou daí a
87
bocadinho. Chegou-se ao balcão um rapazola que despiu o casaco, depois de pedir oito bolas, lá veio a primeira que bateu na rede e mais outra que me passou por cima do chapéu. À primeira fechei os olhos de susto; não pude deixar de me rir quando a vi no chão, a rolar aos meus pés, enquanto a rede balouçava. Mas já não era só esse que atirava. Eram três ou quatro e não podia adivinhar quando me iriam acertar em cheio. Via-as caírem de todos os lados, crescerem que nem bolas de futebol, ou maiores ainda, e zunirem-me aos ouvidos, passarem-me rentes ao nariz e embaterem no navio e nas palmeiras, que pareciam ainda mais triste do que eu. Depois ouvi umas gargalhadas de mulher. Seria já a Felicidade? Mas qual delas?!...
Foi nesse mesmo instante que um safardana qualquer me deu em cheio com a bola na cara; parecia uma bala, uma bola de fogo, fiquei com o osso dorido e só por um triz não perdi a cabeça e não atirei com as bolas que estavam aos meus pés para aquela maltosa apinhada no balcão. "E os vinte escudos?" pensei. "E a polícia?..."
O velho devia estar a descansar, porque
88
a música tocava um rock, a rapariga ria-se de certeza com os fregueses, fora a ordem que o patrão lhe dera, e ele devia fazer contas ao sucesso da barraca do snob que dava tabaco. Só eu não podia descansar, nem sorrir, ao menos, nem deitar boas contas à vida. Continuava a recear que a Felicidade aparecesse e desse comigo ali. Sim, a Felicidade que namorava, pois a outra não podia vir ali ter comigo. Ainda se pudesse tirar o charuto da boca!... Era nisso que eu pensava em certa altura. Percebia naquela hora que nunca mais poderia fumar com prazer, sem que esta passagem da minha vida me viesse à memória. Estava ali a vender um dos maiores prazeres que tinha. Às vezes, sem almoçar, com o bicho da fome a roer-me o estômago, lá tirava uma "beata" e aí me punha a chupá-la, quanto mais pequena mais gostosa. Na altura em que pensava nisto, virei a cabeça para o balcão e dei de caras com um gajo muito gordo. "Até um gordo!" disse cá para mim. "Até um gordo vai agarrar em bolas para me atirar!" Resolvi aquilo no mesmo instante. Foi um gajo assim que deu comigo a bordo e me levou
89
ao comandante, e só por isso não estou na América. Esse gajo é que teve culpa de tudo o que se passou depois na minha vida - do roubo que fiz, das lágrimas da minha mãe e de tudo o que estará para vir ainda. Só a felicidade, aquela em que o velho falou, é que nunca se chegará a mim. Tenho disso a certeza. A Felicidade que consigo agarrar é a criada. Mas agora que se lixasse a criada, que se lixassem todos!
O gordo, aquele gajo gordo, é que eu queria que não me acertasse. Nem que para tanto tivesse de perder os vinte escudos e a percentagem. Ainda por cima estava acompanhado por uma rapariga mais nova. Ele ria-se, começava a despir o casaco e beliscava os braços da companheira, como se fosse comê-la ali mesmo.
- Isto não é uma barraca, é o Brasil ! - dizia o velho. - Vossa Excelência pode acertar facilmente...
"Todos poderão acertar menos os gordos. Lá os gordos, não! Desses havia eu de me encarregar." Era um gozo pensar naquilo.
Ele já comprara mais quatro bolas depois de me ter atirado outras quatro e
90
falhado todas. Todas. Felizmente que os outros fregueses pararam para apreciar a pontaria do gordo. Estávamos só os dois, frente a frente, sem mais ninguém a jogar-me com bolas. Eu continuava no meu passeio, cheio de manhas e de furtadelas: de vez em quando dava uns passos desencontrados e a bola passava-me sempre ao lado ou ia perder-se na rede. Agora era eu que tinha o direito de me rir do gordo. Chegava o momento da minha vingança e eu ia aproveitá-la, houvesse o que houvesse. Primeiro foi a Isilda que veio até junto de mim buscar as bolas, dizendo-me em voz baixa para deixar acertar.
- Vai à tua vida, rapariguinha!
- Foi o patrão que mandou.
- Ele que se lixe. Percebes? Ele que se lixe!
Mas não me distraía, não, aquele gajo não havia de me bater nem uma só vez. O negócio poderia rebentar à vontade; era da maneira que nunca mais andaria feito palhaço atrás duma rede.
Depois ouvi a voz do patrão a dizer-me o mesmo que a Isilda, mas a esse nem respondi. Todos poderiam acertar, menos o
91
gordo. Aquilo havia de ser a barraca do gordo que não acerta! Venham todos! venham meus senhores! aqui está a barraca do gordo que sua e se chateia, mas não consegue acertar uma só bola!
Ele queria presumir ao pé da rapariga que o acompanhava e isso ainda me pôs mais atento. Pensei que ele havia de tê-la, exactamente como era, um andarilho, só distinguido pelo dinheiro que teria de lhe pagar. "À minha custa não armas tu em rapaz, não!" foi o que disse para mim. Desaparecera toda a gente da minha vida, achava eu. O próprio mundo não existia, a não ser o gordo de bola na mão e eu com um chapéu alto e um charuto na boca.
Ele suava cada vez mais. Tive a certeza de que se pudesse vir oferecer-me todo o dinheiro que trazia na carteira, o faria de boa vontade, só para não mostrar aquela figura de urso. Lá estava a barraca do snob transformada na barraca do gordo suado e que ainda não acertara só uma vez, apesar de ter comprado mais de trinta bolas. Gemia o gordo, tomava balanço, arquejava cansado e queria sorrir para toda a gente, e toda a gente já o gozava. A companheira
92
compadecera-se do seu esforço e pusera-se a puxar-lhe pelo braço.
- Vamos embora!
- Nem que me mate - dizia ele. Não sei o que foi isto... Enervei-me...
Tive vontade de lhe gritar lá do fundo:
- Enervaste-te o quê, pá! Não vês uma!... Vai-te embora daí!...
Um rapazola pegara numa bola, ficara por momentos a calcular a medida dos meus passos, e lá a atirou um poucochinho larga, mas eu percebera-lhe o movimento e adiantara-me para apanhar com a bola em cheio. Medira mal e fiquei atordoado com a pancada, doía-me a cara, mas já estava alerta com o gordo.
- Não há nesta feira, e em qualquer feira do mundo, espectáculo mais rendoso.
E toda a gente desatou a rir das palavras do velho, porque toda a gente se lembrou do suor do gordo andarilho. Todos estavam a divertir-se com a paródia, menos o patrão que continuava a falar-me por detrás do pano pintado. Mas realmente feliz só eu! Aquilo valia os vinte escudos e muito mais ainda - valia a desforra de uma "cacholada" inglória para a América.
93
A América!... E o navio pintado entre as palmeiras continuava a deitar fumo.
E de repente, as piores coisas sucedem quase sempre de repente, senti uns olhos em cima de mim, eram os dela. Amarinhou um calor danado pelo meu corpo e fiquei parado, sem saber se devia esconder-me no fundo da barraca ou continuar o meu passeio, fingindo que não era eu que estava ali.
Porque veio a Felicidade à feira?!...
- Anda lá, ó pinoca! - gritou-me o gordo. - Anda lá senão atiro assim mesmo.
O gordo pusera-se a esbracejar e eu já não me importava. Nunca esperei que as coisas se passassem daquela maneira. Palavrinha !... A Felicidade ia acompanhada com aquele mesmo gajo da outra vez, quando ela me disse que era o namorado da colega. Mas a colega estava longe deles e eu vi, vi com estes dois olhos que a terra há-de comer, a Felicidade fazer-lhe uma festa na cara. E rirem-se de mim e do gordo.
A Isilda pôs-se a sacudir-me pelos braços, perguntando-me se estava doente, se queria alguma coisa, se precisava de água.
94
E eu respondi-lhe: - Não, não preciso de nada. Vai à tua vida...
Mas o velho aproximou-se também e eu sentei-me num caixote.
- Tiveste alguma tontura?
- Tive.
Deixei descair o queixo sobre a camisa engomada e disse ainda: - Vi agora a Felicidade...
- Viste?!...
- Vi.
- Como é a felicidade para ver se a agarro?
- Vai acompanhada... não vale a pena. O velho atravessou a barraca a correr
e procurou o senhor Borges atrás do pano pintado.
- O snob está maluco.
Foi o que lhe ouvi dizer. Daí a pouco vinham dois polícias para me levarem. Acabei por achar graça.
Sempre quero ver o que me diz a Felicidade quando amanhã lhe perguntar quem era aquele tipo...
95
O Cheiro do Branco
- PATRÃO...
Ouvira o preto chamá-lo, baixinho, como a querer certificar-se se ele dormia. Pensou que o criado gostaria de ir para o alpendre do quintal conversar um bocado com os outros serviçais, rir-se dele, talvez, e dos companheiros de república, pondo-lhes alcunhas secretas, ou falando de qualquer outra coisa em que matassem o tempo, enquanto não chegasse a hora de ir à taberna do Ferreira encher os três ternos com o jantar para os cinco brancos. Não, não precisava do preto, nem de ninguém, ninguém lhe poderia dar ali o que desejava; só era pena que a solidão tornasse cada vez mais presente tudo o que seria bom esquecer agora e sempre, terrível solidão tão cheia de lembranças e de interrogações onde as respostas podiam ser escolhidas, e por isso mesmo mais dolorosas, porque a realidade a todas negava a carne
99
viva do acontecido; sabia que o seu querer era inútil, estava amarrado por um contrato de cinco anos, julgara que tudo passaria depressa, como as palavras enganam com os seus alçapões ou miragens (nada feito, meu amigo, agora é aguentar e cara alegre) aguentar é uma coisa, cara alegre é outra bem diferente, mesmo que um homem goste de esquecer só há o recurso da bebida e a essa há que pagá-la e bem paga, ninguém abre negócio em África para atordoar as irreflexões dos que se iludem. Sentiu a presença do preto - que queria aquele gajo? - e deu uma volta na cama, atirando com o braço por cima da cabeça, de maneira a fingir-se adormecido. Os quatro companheiros tinham saído, era domingo, deviam estar no futebol, lá para o campo do Ferrovia, e ele não quisera acompanhá-los, agora era bem feito, ao menos gastaria algumas horas a preocupar-se com o resultado do jogo, talvez discutisse com alguém, e depois sempre ficava um motivo para prolongar a conversa. Não fora porque estava deprimido ou para não gastar dinheiro? Aceitara o contrato e pusera-se a fazer contas, fizera-as
100
antes de assinar, e chegara à conclusão de que arranjaria uma reforma nos cinco anos, mas para isso deveria evitar todas as despesas inúteis; mas o que era realmente inútil para um homem inutilizado pela distância, por esses milhentos fios da distância, que nunca se quebram, ou que ele, pelos menos, não conseguia quebrar, mais fortes até em cada dia que passava, como se as serpentinas atiradas do barco para o cais fossem esses milhentos fios que tinham vindo com ele até ali, invisíveis e tão reais e tão tensos e tão envolventes que o paralisavam.
- Patrão! - insistiu o negro.
- Que queres, pá? - perguntou quase num grito, sacudindo o corpo num impulso, como se pretendesse libertar-se de toda a presença humana. - Será que já não posso descansar um bocado?!
Inquieto, contrafeito, o criado recuou no limiar da porta, a procurar sumir-se, entre o espanto e o receio, na divisória onde lavava a loiça e os patrões tomavam banho de chuveiro. O branco não andava bom de cabeça, não, andava agora sempre zangado, ele percebera isso e queria
101
ajudá-lo, aquele branco era bom, branco fino, nunca lhe chamara cão e negro, e ele era preto não era negro, negro é palavra de más recordações que quer dizer muita coisa que seria melhor esquecer agora; na cidade é melhor esquecer...
- Eh pá!... Não ouves ? Zé!...
Sentara-se na cama. Irritado ao primeiro impulso, com fúrias de pegar num sapato e atirá-lo ao criado, mal o visse reaparecer (lá estou eu a cair na mesma pecha dos outros, afinal somos todos iguais, quando a ira chega é que se percebe bem o que um homem guarda no fundo de si); logo depois sentira-se mais calmo, assim de repente mais brando, como se as palavras arrastassem consigo o fel da solidão que procurara, embora as tivesse dito ainda com rancor, talvez num desespero de culpar alguém da sua vinda para ali (vai para seis meses que cheguei, faltam quatro anos e meio para regressar, e depois? mudarei, entretanto, tudo mudará também na minha terra, que vou fazer com o dinheiro ganho?, se uma biliosa não me puser quietinho para sempre, o quinino rebenta comigo, vou ficar verde como esses
102
gajos que vejo para aí, atirei com um limão verde, à tua porta parou...).
É capaz de parecer absurdo, mas realmente ocorreu-me o pedaço dessa cantiga que ouvi muitas vezes à minha avó. Foi assim como uma voz cínica que se risse dentro de mim e das minhas pobres ambições. Comecei a temer o futuro em certa tarde, lembro-me como se hoje fosse, em que saí do escritório de Além da Ponte, eram, portanto, mais de sete horas, aí pelo mês de Junho ainda era dia, e uma luz repousada caía sobre a cidade; sim, sou de Tomar, nasci em Tomar, na freguesia de S. João Baptista; vocês talvez não percebam perfeitamente a que vem aqui o nome da minha terra, mas só quem não nasceu ali à beira do Nabão, naquela curva do Nabão onde a roda do açude geme de dia e de noite, e a água cai em espuma, numa curva de espuma; a gente debruça-se na ponte do Mouchão, exactamente, onde agora fizeram um jardim, ficou bonito mas foi pena, agora os rapazes já não podem brincar como eu fiz com os meus companheiros de infância, ali brincámos às guerras, ali
103
aprendi a nadar; foi debaixo de um choupo que lá deve estar ainda que fumei o meu primeiro cigarro, andei à rasca do estômago, com vómitos, por mais de duas horas, mas fumei o cigarro todo.
- E o preto? O preto voltou a aparecer?...
bom, já lá vamos, mas deixem-me contar-lhes o resto, não demoro muito. Só quem não nasceu ali mesmo à beira do Nabão é que não compreende as saudades, as terríveis saudades que tornaram desgraçados, realmente tristes, aqueles cinco anos que passei em Luanda. Vinha eu do escritório, estava uma tarde cheia de calma, parecia que a luz era rasgada por mim, foi exactamente a sensação que senti, e pus-me a assobiar baixinho, de mãos nas algibeiras, assim num descanso total, fora do acerto do balancete de Abril; nunca mais agarrava a diferença de sete centavos que tinha no crédito, já somara o contas-correntes por duas vezes, conferira os lançamentos todos, bom, mas isso não vem agora para o caso; atravessei a ponte, retardando os passos a ver os homens que enchiam um barco de areia, algumas vezes
104
os ajudei, gostava de os ver de calças arregaçadas acima dos joelhos, a deslizarem o barco com a vara fincada no ombro, e aí vou eu direito à Várzea Pequena, a rasgar a luz, a rasgar a água com os olhos em busca de peixes, e no primeiro banco do jardim, logo no primeiro banco, ali ao pé do canteiro onde fizeram uma cruz de Cristo com flores, eu acho que as flores não deviam ser ensinadas a desenhar, é uma mania, uma vez até me zanguei com o Belmiro por causa disso; bom, mas isso agora não vem para o caso, logo no primeiro banco estava sentado com duas muletas ao pé, quem havia de ser?... o Requintas, o velho Requintas que fora músico na Nabantina, que é a banda do Pau Teso, e era marceneiro de ofício, foi o ofício de que sempre gostei, por causa dos feitios da madeira, as horas que passei sentado perto dele, a minha mãe até se ria de me ver tão quieto, "ó vizinho Requintas, está aí o meu Afonso?", claro que o Afonso estava quieto e sentado, só a brincar com uma das mãos na serradura, ali ao pé do vizinho marceneiro a maravilhar-se com aqueles milagres que saíam dos seus dedos
105
deformados e rijos. Tinha um grande polegar, batia com ele na ponta do banco e parecia um martelo, eu sorria-lhe e ele tirava a ponta do cigarro de trás da orelha, abocava-o com os lábios salientes e punha-se a acendê-lo com o isqueiro de pederneira. Sim, sabia que estivera doente, ele mudara a oficina para a entrada da Rua Pedro Dias, a rua das raparigas, isso é outra história, a primeira vez que entrei numa casa dessas tinha quinze anos, e deixara de o ver, fizera o curso comercial, andava agora sempre de gravata e quase me esquecera das horas mais bonitas da minha infância, tirando aquelas em que ia nadar para o Nabão, quando o vizinho Requintas aplainava e serrava, e media e grudava, e olhava a madeira trabalhada com um olho fechado, sempre muito sério, e só assobiava muito baixinho, agora percebo porque gosto de assobiar em surdina as partes mais bonitas das peças de concerto que a Nabantina tocava, em certas noites de Verão, no jardim da Várzea Pequena, naquele mesmo jardim onde o encontrei sentado nessa tarde de Junho. Vi-o com duas muletas, então perguntei-lhe se
106
estava melhor, ele respondeu-me que as melhoras só no cemitério e quanto mais depressa melhor, e vou eu digo-lhe, não diga uma coisa dessas, vizinho, e o Requintas baixou os olhos, falou, sei lá o que ele disse! coisas amargas, mas só me lembro de se queixar que agora tinha de viver às sopas dos amigos, depois os amigos cansam-se, claro que tudo cansa, e um homem come todos os dias...
- E o preto?!...
O Zé, o criado, quando ouviu o patrão chamar por ele, ficou indeciso, talvez assustado, branco não é bom, não, quando se zanga não é bom, mas lembrou-se também que o patrão Afonso nunca lhe dera uma má palavra, que até lhe oferecera duas camisas velhas sem fazer desconto no dinheiro do mês, ele nem queria acreditar, "quanto paga, patrão? quanto paga?", e aquele branco dissera "não é nada, é mata-bicho que eu dar a você". Ainda ficara desconfiado com a fartura, patrão não brinca, não, Zé não ser preto matumbo, não ser preto selvagem, e o branco rira-se da sua atrapalhação quando ele quisera devolver
107
as camisas com medo do preço no fim do mês. Nunca mais pudera esquecer esse dia, não só pelo dinheiro, mas pelo bem que lhe soubera vestir a roupa dada pelo patrão dele, duas camisas brancas de colarinho largo e aberto, uma de rede, via-se-lhe a pele por baixo, nesse domingo ele foi o preto mais calcinhas que passeou nos musseques e na Ingombota, calça branca, um pouco curta, e um sarrafo a servir de bengala, e a camisa bonita dada mesmo pelo patrão dele, não, aquele branco não era branco qualquer, era branco fino.
Foi por isso que o Zé espreitou à porta, talvez com uma ponta de receio, e viu o patrão sentado na cama.
- Queres sair?
Negara com a cabeça e o branco dissera uma graça que ele gostava de lhe ouvir:
- No meu terra quem dá à cabeça e não falar é burro. Você quer ser burro?...
Zé ria, nunca vira um burro, achava piada ao nome, não saber o que é burro, patrão.
Então o branco explicara outra vez, e ele ficava sem entender muito bem, só sabia que era um bicho, assim maior que
108
uma hiena e mais pequeno do que um cavalo, de orelhas grandes, bicho esperto que só fazia o que queria, sem falar, só mexia a cabeça, e Zé ria-se, mostrando os dentes brancos na boca rasgada; lembrava-se que preto não percebe a pressa que o branco tem, branco ter sempre pressa, e porquê?! o espessoa morrer, trabaio nunca acabar, o espessoa acaba, trabaio não, então pra que vai o home cansar e morrer mais depressa? Era a pensar nisto que o criado ria só com o rosto, evitando que as gargalhadas lhe tomassem a garganta, não fosse o branco zangar-se, como parecia capaz, há bocado, quando lhe gritara. Mais do que o sentido das palavras, ele conhecia a voz que as dizia, o que contava para ele era o tom da voz.
- Queres sair? - perguntou o branco novamente. Sentia-se mais calmo, o rosto do criado e a sua presença abrandavam-lhe as preocupações.
- Não, patrão...
Hesitava no que queria dizer, tudo lhe parecera fácil antes de se aproximar da cama, e agora, de repente, doía-lhe a sua ideia, havia nela qualquer coisa de embaraçoso,
109
talvez inconscientes recordações do avô que lhe contara histórias terríveis de negros e brancos durante a pacificação dos Dembos, embora junto daquele patrão ele nunca experimentasse a mesma sensação de frio e receio que o perturbava quando tinha de falar aos outros.
Ficaram a olhar-se os dois à espera. Lá do fundo do quintal chegou-lhes a algazarra dos outros criados.
Então o branco disse:
- Você quer pedir alguma coisa?
A melancolia que ressumava daquelas palavras cortou a branda amargura que o rapaz sentira antes.
- Não, patrão...
Sorriu e fechou os olhos doces, desfazendo com dois dedos um dos novelos da carapinha. E quase num arremesso:
- Patrão quer rapariga? Eu arranja...
- Rapariga boa?
- Sim, patrão... rapariga boa... rapariga de meu terra...
- Você disse ao patrão Santos que não conhecia rapariga.
- E não conhece, patrão. Para eles eu
no
110
não conhece... Mas patrão ser branco bom, ser amigo de Zé, e Zé poder arranjar...
- Patrão Santos pode saber...
- Não, não saber... Ninguém dizer a ele... Eu não dizer, patrão não dizer...
Era uma ideia: gastar o tempo, ter a impressão de que se gasta o tempo, ainda que seja por uns minutos, nuns breves instantes de prazer dorido, embora depois tudo recomece ainda mais evidente.
- Os outros brancos vão chegar daqui abocado...
- Inda demorar, patrão. Eu trazer rapariga depressa...
O tempo é uma noção diferente para cada homem. Os lugares também mudam o tempo. Enquanto a negra não veio, o que fiz eu? Fui até à janela da Calçada de Santo António, olhei a cidade para as bandas do hospital, isso com certeza, era uma coisa que se metia pelos olhos dentro, fumei uns tantos cigarros e moí passos pela casa toda, talvez pensasse em tomar outro banho de
111
chuveiro por causa do calor, lembrei-me da Isilda... Ah! certamente que a vi pequenina e meiga a debruçar-se na janela para me beijar, naquele recanto de certa rua que leva ao Convento de Cristo e onde eu ia em Luanda sempre que estava só, entregue às saudades do rapaz que fui. E ainda sou, na imaginação, por mais estranho que pareça, sendo ainda, e também, e irremediavelmente, um outro homem já gasto, que foi a África para ganhar reforma, o dinheiro de uma reforma, e só trouxe a doença que a justificaria, se alguém tivesse a ver com o alarme provocado pelas queixas do meu vizinho Requintas, quando o encontrei no banco do jardim.
O passado é uma máquina complicada feita de peças sem conta, algumas muito simples, outras que nunca suspeitamos existirem, engrenadas umas nas outras, e às vezes, na aparência, independentes entre si. Talvez pensasse nisto também, enquanto a negra não chegou, tímida, um nadinha dengosa, com um pano azul sobre a cabeça, um azul que ainda mais acentuou a recordação da Isilda, de certo vestido
112
que ela levou uma noite ao baile... Já lá vão... sei lá! Dez, doze anos? Este tempo não conta... É uma peça viva e caduca da máquina do passado. Nessa tarde, porém, aquele pano azul foi um estímulo para que eu sentisse pela primeira vez, e pela última também, um impulso mais ardente, autêntico, por uma negra de Luanda. Só por isso, julgo-o agora, eu fiz aquela cena infeliz que trouxe os vizinhos à escada, alarmados com os meus gritos. A rapariga entrara de mansinho, eu fechara os olhos para não a ver, para inventar outra mulher, acariciara-a como nunca conseguira até ali, prolonguei o que sempre desejava rápido, e depois apeteceu-me conversar, no fim apeteceu-me falar com ela, e só agora percebo que fui estúpido. O cheiro do seu corpo enchia-me os sentidos, talvez naquele momento nem ainda fosse desagradável, mas pensei que também ela deveria achar qualquer diferença no cheiro do meu corpo. com certeza que sim.
• A que te cheira o meu corpo? Não percebe, patrão.
113
Então voltou-se para ela, e bateu as sílabas, deixando-as cair entre ambos:
- Sabes o que branco diz de cheiro de preto ?
A rapariga acenou a cabeça. A lembrança de Isilda queria regressar depois de haver arrefecido no prazer atordoado.
- E o que é ?!...
- Que preta cheira a catinga...
Ele pensara que os seus dedos não deveriam subir para além dos ombros da negra, mas o corpo voltara a esquecer-se de premeditações, havia uma força interior que o movia, que o aproximava outra vez da rapariga, um fluido inconsciente, brando e também doloroso, um sangue de abrolhos finos que lhe magoavam as veias, e as escaldavam.
- E o branco a que cheira? Sim, a que cheiro eu?!
A rapariga ergueu o olhar, um olhar triste; ficou assim por instantes e depois encolheu-se. Os dedos dele não a perturbavam, encolheu-se por qualquer razão que só ela conhecia e deve ter contado no musseque, à noite, à gente da sua raça.
- Não sabes?... A que cheiro eu?!...
114
Insistia pelo prazer de desvendar um pequeno mistério. Aproximou o peito do rosto dela e a negra afastou a cabeça, voltando a face para o lado da parede, e ele sentia a sua carne estremecer debaixo da pressão dos dedos, como a mensagem doutra ansiedade que buscava a sua. Era uma maneira de passar o tempo, uma curiosidade, um pretexto para conversar até que pudessem encontrar-se outra vez. A rapariga disse qualquer coisa e depois pareceu assustada.
- Não ouvi... Diz lá. Não tenhas medo... A que cheiram os brancos?... - e sorria para a aquietar.
Foi então que ela murmurou:
- A mortos...
De princípio não percebi, não quis perceber, e repeti a palavra, perguntei-lhe se era aquilo que ela dissera, e acenou a cabeça, e eu pus-me a gritar que saísse, que desaparecesse depressa. Saltei da cama e fui abrir-lhe a porta; aí estava outra vez sozinho com a minha cólera, desgraçado, talvez percebendo já que nunca mais poderia deitar-me junto de uma negra, sem me
115
lembrar daquela palavra terrível que anunciava a minha morte ou a minha permanência num mundo estranho e absurdo em que os mortos se amavam, enchendo-se de perfume para cheirarem a flores.
Os vizinhos vieram à escada e só depois percebi que estava nu; esse facto alarmou-me, tive medo de me ver assim, e corri para o quarto a embrulhar-me no cobertor que estava enrolado aos pés da cama, onde o corpo da negra se desenhava ainda sobre o lençol rasgado. Não sei porquê, ainda hoje não sou capaz de explicar aquela reacção, mas senti desejos de fugir para a rua. Mais dominado depois, fui buscar a garrafa de Porto quinado e pus-me a bebê-la aos goles, não sei se para me esquecer de tudo, se para ter a certeza de que continuava realmente vivo.
Mas quando é que um homem está vivo?!...
116
O "Pai dos Mortos"
AGORA tratam-no sempre por senhor. E isso é importante para ele. Deformaram-lhe o nome, mas tratam-no por senhor. Senhor Jerónio, senhor Jiromo ou senhor Jirolmo, três formas de saudar e agradecer a Jerónimo Proença, só Proença, uma vez que o pai o deixou incógnito, arranjando-lhe esse desgosto por uns anos. com o tempo, porém, Jerónimo Proença emprestou ao pai o apelido que mais lhe conveio. Embora soubesse pela mãe, ajuntadeira de ofício e de amásios, que o progenitor pintava móveis numa oficina da Graça e o enjeitara para não acrescentar mais sarilhos com a mulher legítima, o Proença agarrou num Sá e pôs-lhe o título de visconde, inventando para a Maria Gaivota, como a conheciam no beco, um bonito folhetim de plebeia e fidalgo com amores contrariados, raptos pela noite, uma saloia que o amamentara e um
119
cão fiel a quem devia a vida. A história do cão nunca aparecia muito clara no meio de tanta aventura e desdita, mas dava-lhe um certo mistério e um conceito já gasto: a de que às vezes é melhor vermo-nos com bichos do que com pessoas.
Vida de cão desprezado passou o Jerónimo Proença, antes de ter senhoria e Sá. Muita pancada e alguma fome. E embora dócil como o rafeiro da história dos amores de sua mãe com o Sá visconde, nunca o quiseram por muito tempo no mesmo trabalho. Diziam-no preguiçoso. Não é verdade. Jerónimo sabia por intuição que precisava de durar largos anos (pressentia um futuro agradável à sua frente) e que se desse o corpo à galé, como os outros lho pediam, acabaria depressa. Depressa e mal.
Nunca deitou muito corpo, nem a fortaleza lhe medrou, a não ser a tola imponente que parecia posta por engano sobre esqueleto de fedelho. Daí o tratarem-no em criança por Cabeça de Porco, motejo que lhe fez morder muita raiva com lágrimas, mas que mais tarde o encheu de orgulho quando um farmacêutico monárquico lhe
120
confidenciou que nunca vira cabeça tão semelhante à do João Franco, ministro de Sua Majestade, El-Rei D. Carlos I.
Agora engordou um pouco no ventre, mas continua pálido, com a palidez secreta e funda dos que nasceram na ponta de várias gerações famintas, o que lhe deixou um preconceito: mesmo que haja ingerido outra manja mais gostosa ou senhoril, Jerónimo fala sempre de refeições com bacalhau e batatas ou bife com dois ovos. Nada menos do que dois ovos.
E se alguém defende a preferência por peixe, sorri-lhe o olho azul, lépido e muito azul, sentenciando que nunca encontrou carapau ou pescada a puxar por um carro. Ainda hoje o argumento se lhe afigura decisivo, mesmo se lhe recordam que bacalhau é peixe.
"Peixe é como quem diz", deduz com empáfia. "Peixe doutros mares onde só vivem baleias e animais de carne gorda. O bacalhau anda no mar mas não é peixe."
Ele lá sabe, pensam as pessoas, talvez por lhe conhecerem o fôlego de teimoso e as girândolas de palavras quando se empenha
121
em explicar, por exemplo, que os pombos-correios têm na cauda uma espécie de bússola para os orientar no rumo dos voos, ou que foi D. Dinis o "inventor" do pinhal de Leiria, já com olho no caminho marítimo para a índia - grande rei, sim senhor, se tivéssemos arranjado mais dois assim quem mandava no mundo todo era a gente e não os americanos; olha, pois não, estás a ver ó viroscas!
Homem de sete ofícios, até se fixar como restaurador de móveis antigos, aprendeu muita sabedoria nas várias andanças da vida. Foi picador de caldeiras de navios, onde o corpo pequeno e franzino se encheu de pó de ferrugem; moço de um cego que batia as praias da Cruz Quebrada e Algés a tocar violino e a cantar a "Ramona", enquanto ele fazia a volta da pedincha ("uma esmola, por caridade, para um artista que cegou com as vistas queimadas num fogo"); servente de pasteleiro, o que lhe emprestou ao temperamento um certo adocicado de farófia e horror e repulsa por tudo o que meta açúcar; aprendiz de funileiro; moço de recados em casa de meninas e mandarete num estabelecimento
122
de comidas e vinhos recedidos directamente do lavrador, o que o Jerónimo aprendeu a traduzir por Poço do Bispo, água da Companhia e pós de perlimpimpim.
De mesteres tão vários, soube o nosso Proença arrecadar bom cabedal de exemplos. E como nada lhe caía em cesto roto, ficou apetrechado para singrar nos labirintos de prazenteios, gozos e falcatruas, meio cigano, meio conselheiro, e com tal lustro no jeito de conversar que amigos e conhecidos o distinguiam pelo seu falar à pelica. Sim, nem um doutor de leis conseguia embrulhar-se como ele no aparato das palavras caras. Por despeito, nada mais do que por despeito, entravam com ele de semana por mor dessa tineta: - Ó Proença, isso são palavras de domingo! Tem paciência... troca lá essa coisa em miúdos...
Retorquia-lhes com o olhar frio e desdenhoso, encolhia os ombros num jeito muito seu de engolir ofensas por falta de coragem em jogá-las a punho e enfrascava-se em vinho até à hora de regressar a casa, onde tirava a desforra na mulher, uma babada por ele, capaz de dar a língua para servir de passadeira ao seu rico homem.
123
Era mourinha de trabalho, a Erigida; matava-se a fazer dias em casa alheia só para que o Proença viesse para a rua no seu andor de vaidades, embora lhe doesse que ele nunca a levasse aos sítios que frequentava. Pródiga na labuta da vida, secou-se-lhe a madre dos filhos por via de operação de barriga aberta que fez um ano depois de casada. Revia-se então no seu homem como em espelho de todos os afectos. E quando lhe contaram que ele se metera a galo doutra capoeira, ali para um beco da Calçada dos Cavaleiros, saindo de braço dado com uma sabaniqueira, capaz de ser filha de ambos, a Erigida não aguentou o puxão rijo daquela desfeita e esbandalhou-se com o coração rebentado, como ainda hoje se pode ouvir às vizinhas que lhe acudiram na hora da morte.
Vem desse tempo o luto carregado do Proença. Nunca mais lhe viram uma graça de cor nas gravatas ou nos fatos. Camisa branca, vamos lá, mas o resto tudo negro, bem negrinho, embora as vizinhas jurassem que o malandrim achara no nojo pela defunta uma maneira de ter mulheres sem compromissos de mantê-las. Uma coisa, porém,
124
podiam todas testemunhar - na cama da Erigida nunca, até hoje, se deitou outra fêmea; ou não seja o Sá um modelo de respeito pelos mortos.
Hoje, da Graça a Alfama e a S. Tomé, chamam-lhe o "Pai dos Mortos". E não há exagero na devoção do cognome, tamanha é a piedade de que o Jerónimo se reveste quando o chamam para dar sepultura condigna até a simples desconhecidos. No Céu lhe hão-de pagar, suplicam viúvas e órfãos quando a primeira tarefa do Proença e Sá chega ao fim. (Mas vamos por partes, não apareça o carro antes dos bois.)
A missão começou há talvez dois anos no dia exacto em que um amigo morreu de desastre no trabalho. Deram-lhe a notícia de chofre e logo com acrescentos de miséria negra - não havia vinte cinco tostões em casa do Inácio que tinha de ir para a vala comum, é assim que a sociedade paga a um homem que passa a vida a trabalhar quase do berço, pobre Inácio! Um cara laroca, o Inácio, ninguém se esquecia daquela noite em que a pinga lhe deu para amarinhar a uma árvore e ali se abrir em mios e remios, tão tristes e garganteados,
125
que a gataria do sítio lhe veio em socorro julgando-o alguma gata perdida de amor. (Quem contou isso no dia do enterro foi o Pilinhas: teve de vir o polícia de giro, tamanha foi a miada e a gritaria do bêbedo quando um gato maltês lhe saltou para o pescoço e o filou com as unhas.)
Amigo do seu amigo, o Sá correu a casa a vestir o número um, deu as voltas necessárias no hospital e na morgue por causa da autópsia, regateou com o cangalheiro o preço do serviço e fez logo a encomenda do enterro, embora a viúva não tivesse guardados mais de vinte escudos e a família não se chegasse para lhe dar ajuda naquela hora de prantos. E ali mesmo, na taberna onde o Inácio se enfrascava, iniciou o peditório pelo galego da tasca, pondo-lhe o nome e a espórtula à cabeça da folha de trinta e cinco linhas com o pg. ao lado contas são contas, gosto de tudo muito certo e nunca deixei rabos de palha por onde passei: quero que a viúva conheça os verdadeiros amigos do marido.
Fresco de imaginação, resolveu não trabalhar no dia seguinte e começou pela meia manhã a bater portas.
126
"Muito bom dia a Vossa Excelência, minha Senhora. Desculpe a maçada involuntária, talvez não seja a hora mais propícia (ria-se sempre para dentro quando empregava a palavra), mas venho em missão de piedade: peço alguma coisinha prà ajuda do enterro dum pobre operário que morreu a trabalhar... (Lembrara-se de fado antigo com um verso naquele jeito e achara bonito e convincente falar nisso.) Pai de família com dois filhos..."
Cobrara uns dinheiritos reles: uma moeda de prata, dúzia e meia de dez tostões, e o resto em coroas, miúça, verdadeira miuçalha, que nem chegava para as solas quanto mais para a ladainha. Jerónimo invocava os seus tempos de moço de cego, relacionava o preço das coisas e concluía pela avareza da gente de agora, incapaz de se comover com desgraças alheias. Compreendia que era mais fácil convencer um pobre ou um rico do que sensibilizar o burguês de meia-tigela, mesquinho e temeroso pelo futuro, aferrolhando as migalhas que lhe deitavam para ter ao domingo a ilusão de que em dia breve galgaria para a escala de cima. Para além disso, porém,
127
desconfiava de qualquer outra razão misteriosa com que não atinara.
"Deveria ser mais humilde?" interrogava-se nos intervalos da pedincha. "Não iria pinoca demais para falar do seu amigo operário que morrera a trabalhar?... Que chave lhe faltaria para comover as pessoas?..."
Deu-lhe a resposta um velho saltarilho e abelhudo que viera em auxílio duma mulheraça bonita, um pancadão, toda fofa no altar do robe esgargalado e corn a qual o Proença e Sá se engalfinhara numa luta bravia de olhares libertinos. Quis o velho ouvir-lhe a conversa e logo saltou a meio do palavrório:-Então o seguro? O seguro não paga?!... - Engasgou-se o Proença com a objecção, grunhiu umas sílabas engroladas para não ficar calado, mas o velho apertou e o Sá largou-se a surrar os do seguro:
- Uns malandros... uns verdadeiros malandros... Não pagam um tostão à viúva.
- Então, reclame, faça barulho... Ou o senhor tem medo de fazer barulho?... Os
128
senhores agora têm medo de tudo... Corja de cobardes !
A senhora do robe quis acalmar os ânimos, o Sá empertigou-se e esteve prestes a surrar o velho, este bateu-lhe com a porta na cara depois de insistir no cobarde e no capilé que o povo tinha nas veias em vez de sangue. Quando saiu a porta da rua, ouviu chamarem-no de cima; à janela do terceiro lá se pendurava a dama, acenando-lhe um embrulhinho que lhe atirou com ademanes de cantora de ópera. Proença cumprimentou-a de chapéu na mão, dobrou-se para apanhar a encomenda e percebeu pelo tacto que ganhara dez escudos. E dali mesmo resolveu procurar o almoço, não só para aconchegar o bichito ruim que lhe mordia o estômago, mas ainda para meditar na experiência de toda a manhã. Doíam-lhe as pernas e os braços, tanto das emoções como das escadarias, sentia uma zunida nos ouvidos e um formigueiro esquisito na ponta dos dedos. O Inácio já não lhe pagaria o trabalho, concluiu entre amuado e raivoso.
Serviu-se de bacalhau com batatas, uma boa posta do meio e muitas batatas, pagou
129
do dinheiro do morto e viu que lhe sobejavam pouco mais de cinquenta escudos. "Uma trampa de dinheiro!" pensou às primeiras. Mas depois percebeu que tirara mais do que num dia de trabalho...
O pior era o sarilho com o cangalheiro. O homem explicara-lhe tudo com minúcia: caixão simples, de pinho, de bom pinho, forrado a pano branco por dentro e por fora, cento e sessenta escudos; de flanela preta guarnecida a trena dourada ou prateada duzentos e cinquenta, nem menos um tostão; caixão de pinho, forrado por fora com flanela de relevo, uma bonita obra, desde trezentos a trezentos e cinquenta ; para a câmara-ardente, com paramentos, velas e agência, cento e vinte macacos, e acompanhado a padre mais noventa escudos, incluindo sacristão e orações.
Firmara-se nos duzentos e cinquenta, sem mais nada, a família que rezasse pela alma do morto, mas a coisa mostrava-se feia. Se calhar teria de dar o fora e o cangalheiro que resolvesse com a viúva o que a consciência lhe mandasse. Quando pensou na viúva sentiu uma sacudidela no
130
peito. Desenxovalhada e vivinha, devia ser mulher que nem de lençol gostava. Imaginou-se no lugar do Inácio, salvo seja, no lugar de homem vivo, e o corpo aqueceu-se-lhe de carícias.
Brioso, encheram-se-lhe as asas da vaidade e lembrou-se que dispunha de quase dois dias por causa da autópsia. Percebeu que devia afinar a lengalenga da pedincha - nada de operários que morressem em desastres no trabalho, nem alusões a homens honrados ou coisa parecida. E logo na primeira porta o resultado pulou:
- Fiz uma promessa pela alma da minha defunta: andar de porta em porta, a pedir como um pobre, até arranjar dinheiro para levar dez criancinhas na primeira peregrinação...
Deram-lhe vinte escudos e seja pela alma dos que estão no Céu, irmãozinho!
Quando chegou a hora do jantar mandou vir um bife com dois ovos, comeu morangos, bebeu uma boa bagaceira com o café, já lhe cantando no bolso o dinheiro para o caixão e para um dia de trabalho seu, pago a cem escudos e de comer, sem descontos para o Desemprego e para a
131
Caixa da Providência Divina, como ele lhe chamava.
Caro não se podia dizer, não senhor, tudo correu pelo melhor, ainda com uma surpresa para a viúva, pois apareceu uma coroa de martírios com fita de seda onde ela chorava de eterna saudade pelo eterno descanso do falecido. Só fora pena que o nome do Inácio não estivesse escrito nas fitas, disseram-lhe; um nadinha despeitado, o Jerónimo viu-se obrigado a explicar que cada letra custava um tanto e ele já não aguentava com a despesa. Sentindo-se ingrata para amigo tão desvelado, a viúva pediu-lhe para lhe aparecer na noite seguinte. E aí trataram do luto para ela e para os dois meninos, que se foram deitar cedo, com um responso do Sá, enquanto este bebia três cervejas, muito fresquinhas, mandadas vir da taberna do largo.
O Proença recorda essa noite dos seus tempos de amador, com certo desdém. O enterro do Inácio acabou por lhe dar prejuízo, pois prendeu-se à viúva e aguentou-lhe a despesa durante quatro meses, exactamente quando os dois meninos começaram a tratá-lo de padrinho. A cerveja
132
subira-lhe à cabeça, a mulher pusera-se a contar que o marido a deixava muitos dias sem amor, e amor para a direita e amor para a esquerda, o Proença deitou-lhe o gadanho e acabaram ambos, de madrugada, a dizer mal do falecido. Falta de hábito.
Hoje usa uma técnica perfeita para os seus peditórios. Dispõe de meia dúzia de frases acabadinhas e certas para várias emergências, dá-se algumas vezes à fantasia de imaginar outras novas ao sabor do momento e das pessoas a quem fala. Conhece à distância as viúvas de funcionários, de oficiais e de comerciantes, adivinha as devotas, cheiram-lhe as devassas, nunca deitou um anúncio a pedir casamento, mas já se prometeu para marido mais de vinte vezes. Deixou-se de restaurar móveis antigos, conhece meio mundo, e procuram-no com frequência para tratar de enterros. É perito.
Desconfiam que ele se amanha nas contas, mas vale a pena, concordam todos. Por isso lhe chamam o pai dos mortos. Os cangalheiros procuram-no para que seja freguês e um deles já lhe prometeu comissão.
133
Ferido na sua dignidade, o Jerónirno fez queixa na esquadra; o outro teve de pagar cem escudos para os pobres da Mitra.
Num café onde passa as tardes tratam-no por doutor. Tem mesmo cabeça de doutor, comentam. Comprou uma pasta preta por mor do título, tira dela velhos alfarrábios que arrematou na Feira da Ladra e escreve horas a fio. Da Graça a Alfama e a S. Tomé mandam-lhe ali os emissários. Faz logo um pequeno inquérito para ver se o caso lhe interessa, mostra-se indiferente, muitas vezes nega-se, mas sabe que se moverão empenhes para que ele trate de conduzir o morto para a terra da verdade.
O luxo do funeral depende sempre da idade da viúva. Um pobre funileiro, desfeito pela tísica, levou carro puxado a duas parelhas, só porque a mulher era ruiva ruiva, sardenta e olhos cor de mel, três coisas com que o Jerónimo sonhava desde pequeno e que nunca conseguira achar em fêmea ao seu alcance.
Nem dessa vez, porém, a alcançou.
Helena Bonita, de carrapito rúbio e melaço
134
no olhar preverso, sabia mais do que o Jerónimo lhe ensinara. Tinha vinte anos, mas já chegara ao funileiro em sétima mão. Aprendera dos homens, e com eles, belas coisas e coisas terríveis. Não passava sem eles, mas desprezava-os.
Aceitou o luto e os rodeios do Proença, deu-lhe troco a apaparicos de conversa e de mãos, mudou-se para Campo de Ourique onde aquele lhe prometeu galas de princesa, e de tais manhas se serviu que conseguiu segurar-lhe os ímpetos de quarentão folgado. Capaz de desvairar um santo de pau carunchoso, insinuava:
- Quero-te como se acabássemos de vir da igreja...
Jerónimo rebentava aguado com a pressa de viver o seu velho sonho.
- Pois sim, Helena Bonita!... Sempre tão seguro de si, comprou-lhe
mobília de quarto, quis vê-la de meia camisa violeta, vestiu-lhe a mãe e os irmãos ranhosos, e na noite prometida, trémulo, receando até o transtorno dos nervos bravios, amarinhou ao terceiro andar, esquerdo.
Helena acolheu-o com um beijo de cortesa
135
barata, enfiou-o no quarto e pediu-lhe para que apagasse a luz - estava cheia de vergonha, não se demorava um quarto de hora, era o seu segundo homem... (Proença pensou nesse momento que já fora por diversas vezes o segundo homem; lembrando-se bem, todas lhe diziam sempre que ele era o segundo homem.)
O tempo passou, Jerónimo continuava nervoso e pareceu-lhe que o quarto de hora se alongava. Acendeu um fósforo para não faltar ao que Helena lhe pedira; viu que já decorrera uma hora, ou talvez mais... Começou por sorrir, julgando que a ingenuidade da rapariga a interditava de procurá-lo, depois assustou-se quando pensou que ela poderia ter adoecido de repente, e acabou por se levantar, abrir a porta e chamá-la de mansinho, numa babinha de voz...
Chegou em pêlo ao corredor, repetiu-lhe o nome e daí por instantes ouvia gritar por socorro. Assustado, meteu-se no quarto, espreitou à janela e voltou a enfiar-se na cama.
Duas punhadas rijas na porta do quarto de Helena sobressaltaram-no. E logo outras duas - abra que é a polícia!
136
Voltou a espreitar à janela, mediu bem o terceiro andar e acabou por dizer com voz melíflua que era só um momento. Vestiu-se o mais depressa que soube; quando se achou defronte do guarda e este lhe perguntou o que estava ali a fazer, Jerónimo Proença e Sá quis explicar, arregalou os olhos azuis e só disse: -A Helena...
- A menina Helena saiu com o marido- respondeu a velha que gritara. - Foram ao cinema...
- Como é que o senhor se meteu aí dentro?!...
- O momento não é propício... - disse, atordoado, sem sorrir dessa vez.
E desceu as escadas, com o polícia a segurá-lo pelo ombro.
A conversa foi penosa. Acabou por confessar que entrara ali por engano. Preferiu oito dias de cadeia a explicar que a mobília era dele, posso exibir o recibo, senhor chefe, aqui tem: uma mobília em contraplacado composta por cama de casal, duas mesinhas de cabeceira, dois bancos estofados, psyché e guarda-vestidos em estilo americano.
137
Emigram as Andorinhas
AMARAM-SE deslumbrados, como se os
fios da vida se tecessem das suas palavras, dos voos das mãos inquietas, da ansiedade ou da bonança dos seus olhares caldeados na mesma cor do mundo. Parecia até que o mundo fora inventado por eles no momento preciso em que se encontraram, fugindo cada qual ao limbo onde se traíam nos braços de outrem. A hora da revelação do mistério surgiu exacta, inadiável e pura.
Tocavam-se à distância.
A distância entre eles enchia-se de lutas de amor. E tão permanentes, que preferíamos vê-los juntos para não nos sentirmos molestados, quase agredidos, pelo fogo selvagem duma tempestade ansiosa.
Acabaram ambos por se queimar nesse lume acossado por um vento estranho que trazia pressa de ver cinzas.
Percebi-o ontem.
Quem os não conhecesse, porém, iria
143
convencer-se de que pensavam na casa para nela aconchegarem ainda melhor a exaltação dos primeiros tempos.
Ela falava-lhe da cor das paredes; andara toda a tarde a descobrir catálogos de tintas, talvez pudessem juntar ao vermelhão um ocre que daria o tom desejado. Já haviam escolhido um sofá amarelo-limão, dois maples verde-escuro, muito escuro, que ficariam bem com a mesa de vidro e ferro, e a estante de madeira clara, muito clara, para que os livros encadernados gostassem da moldura.
Ela queria muita luz por toda a parte, luz coada e luz viva; ele franzia o rosto e acrescentava, melancólico, que preferia a penumbra, uma claridade doce que o não repelisse.
- Gostava de não me sentir num aquário...
Exactamente. São agora dois peixes! num aquário.
No seu jeito doce, ela insistiu com brandura, embora numa contracção rápida das sobrancelhas desenhadas; ele respondeu que sim, que fizesse como melhor lhe parecesse, e a sua voz rompeu a aparência
144
calma das coisas como se brandisse um chicote de arame farpado.
Ausentes um do outro, sem se olharem, calaram-se durante muito tempo. Fugiam um do outro nem eu sei para onde. Querem ambos que um deles abale. E, entretanto, antes que chegue a hora das recriminações sem véus, tentam prolongar a miragem quebrada do amor exaltado que viveram sofregamente, mudando os móveis e as cores que os envolvem, quando na realidade já tingiram tudo duma cor baça, dolorosa e decisiva, que a cinza morta deixou dentro deles.
Não descubro de quem é a culpa, nem isso importa.
Nas paredes escreveram ambos a palavra solidão, tudo agora é solidão por mais amigos que inventem para não estarem calados. Talvez porque nenhum deles sinta coragem para ouvir o que têm para se dizer.
Agora só a aventura, mesmo absurda, os poderá salvar do charco onde pousaram à espera, embora neles a marca do tédio não se apague tão cedo. Ou nunca mais...
Ela anunciou que vai fazer uma festa a
145
pretexto das modificações na casa. Ele sorriu com um desdém amável e pediu-lhe que contasse com uma garrafa de uísque para o acompanhar...
Diz aquilo em palavras outonais, secas e amargas. Ergue-se depois e o ar parece estilhaçar-se quando ele atravessa a sala e vai olhar um quadro em que o pintaram há dois anos. O quadro já é mais velho do que o seu amor.
- Agora, se me pintassem, deveriam pôr aqui uma árvore seca...
- Ultrajavas a árvore...
Ele (') volta-se e fica à espera que ela prossiga. Ela (2) pega num cigarro e acende-o, rasgando lume na lixa da carteira, como se deitasse fogo ao silêncio que se demora entre ambos.
(') Licenciado em geologia vende máquinas agrícolas. Iniciou o curso por paixão de saber os mistérios do chão que pisava; transferiu-a agora para a posse de um Ferrari de grande cilindrada. Só espera que o sogro venda a cortiça.
(2) Dois anos de histórico-filosóficas, um ano de direito, primeiro casamento aos vinte, segundo casamento aos vinte e dois, pensa que não volta a casar, mas julga que sabe dos homens o suficiente para gozar a vida. Só espera que o pai venda a cortiça.
146
A Vendedeira de Figos
OLHO lá para o fundo do tempo (que fiz eu de todos esses anos?...) e penso como foi bom o que vivi, como será bom o que ainda me fica para morrer ou para viver... Nesta hora em que o passado se prolonga em mim, neste momento exacto em que não sei o que sou nem o que quero, sinto-me envolvido por vozes e aleluias, por carícias vivas ou por promessas que ficaram nos olhos ou no esboçar dos gestos que as mãos só imaginaram.
E muito ao longe, e tão esplendorosa como nesse dia, no único em que te vi, abre-se o meu deslumbramento de rapaz de catorze anos. Nunca aprendi o teu nome, mal te toquei na pele, e és ainda hoje uma das mulheres mais verdadeiras da minha vida. Uma das poucas que morrerão à minha cabeceira...
Estávamos todos no terraço da escola. Não consigo recordar o que aconteceu nesse dia para que às dez horas pudéssemos
149
debruçar-nos na balaustrada da clausura. Não podíamos ir para o recreio do campo de jogos e o nosso entretém ficava-se no interrogar da rua manchada pelo ensombro das árvores alinhadas no passeio fronteiro.
Uns adivinhavam marcas de automóveis, mal os viam surgir à curva da Junqueira no lado de Belém, e assim jogavam a cigarros de onça; outros sonhavam na liberdade que não nos deixavam gozar, imaginando cinemas, raparigas na Baixa e passeios misteriosos que qualquer de nós ainda não conhecera; batiam-se outros em lutas braçais pelo cinturão de oiro do Constant Lê Marin, champion de VEurope et du Monde, como anunciava o França do Coliseu; alguns, ainda, ensaiavam passos de dança, imaginando raparigas concretas que levavam nos braços, entre o ritmo do charleston & do tango...
Eu procurava descobrir o Tejo para além do areal, na ânsia de reinventar o cais da minha terra que é o lugar do mundo onde nasço todos os dias.
Foi nessa abstracção que a tua voz moça e galharda apregoou os figos que trazias
150
no cesto para vender. E logo toda a malta da camarata dos maiores se debruçou ainda mais na balaustrada de pedra, indo buscar-te lá abaixo, à rua, com os olhos perturbados de amor jovem para te erguerem num balance, onde tu, rapariga descalça, ficaste a vogar nas longas noites da camarata e em romances que nunca pudéramos viver... Ou que nunca mais vivemos com esse encantamento que a tua voz entoada abriu na clausura do internato.
Os mais atrevidos perguntaram-te a como vendias os figos; respondeste a sorrir, vaidosa, por certo, de te veres admirada com tanto fervor por rapazes de escola. Tiraste um fruto da cesta, abriste-o com a graciosidade que só tu podias ter, rapariga descalça, e trincaste-o com apetite guloso, não sei de quê!, porque os teus olhos riram de prazer e de promessa.
Nenhum podia comprar-te os figos, por falta de dinheiro, nem era possível ir lá abaixo buscá-los, rompendo o rigor da vigilância dos contínuos.
Foi talvez por isso que a tua intuição feminina quis inventar um jogo para os
151
cavaleiros do bibe azul - o jogo dos frutos e do amor.
- Vocês não compram nada, já sei gritaste da rua com a mão em concha na tua boca bonita.
- Troco um figo por um beijo - arriscou um qualquer.
Fingiste não ouvir a proposta, ou não chegou lá abaixo porque todos a agarrámos antes de chegar a ti, e voltaste a gritar:
- Mas eu quero dar figos a um de vocês... Deixem-me escolher... A esse, sim, a esse...
E apontaste com o dedo para o cacho, de cabeças ansiosas que se juntaram mesmo por cima do sítio donde nos desafiavas.
- Eu ?!... - perguntou alguém.
- Não, o outro...
E foste rectificando até chegares a mim, que não dissera ainda uma só palavra, nem fora capaz de arrancar um gesto à exaltação do meu deslumbramento - talvez por isso, e por nada mais, fizeste a escolha. Mas que importa...
Fiquei aturdido e maravilhado. Não o teria ficado tanto se sobre a minha cabeça
152
hovessem estrelas ou se o meu Tejo rompesse até ali para me levar consigo. Abri os braços, hesitei um instante, e sei que me pus a correr, voando pelas escadas de pedra, tonto e feliz, sem cuidar do que me interditavam. Entrei na sala de música, abri a janela e saltei num rompão para junto das grades que me separavam de ti, minha dadora de figos e de promessas.
- bom dia! - sussurrei com medo de que a minha voz quebrasse o sonho.
- bom dia!... Gostas de figos?...
- Gosto...
Estendeste um punhado na tua mão, que eu segurei, trémulo, incapaz de te contar o que sentia e o bem que me fazias, meu amor. Só nos mirámos bem nos olhos, não sei se sorrimos, sim, sorrimos, devias esperar de mim outras palavras e as palavras estavam todas escondidas no mistério do meu sangue.
Recuando, voltei a saltar a janela, tu ergueste a mão e eu respondi-te com a minha num aceno tímido. E abalei de novo, mas tão devagar, tão cheio de ti, que quando o contínuo me agarrou, não pude, não quis, não me interessou tentar a fuga.
10
153
Fiquei oito dias sem recreio.
E ainda bem. Porque no silêncio da pena que cumpri, sonhei contigo horas plenas de um lindo romance que ainda hoje me canta no sangue, apesar do tempo deste degredo...
Onde andarás tu, agora, meu amor de tantos anos?!
154
Páginas de Testamento
Escrito às três da manhã, numa noite de má consciência, com um antraz de vaidade a queixar-se da incompreensão dos outros.
155
156
VIVEM nos meus livros, em cada um dos meus livros, como carne e sonho do que fui, as mulheres que deixaram um rasto na minha vida. E tal qual as amei, sem a mancha do que nos separou, sem o tempo que nos consumiu o melhor que queríamos colher dos frutos do nosso sangue. Ali ficarão até eu morrer, belas e plenas, em toda a plenitude e beleza de que as vesti, fecundadas e puras, só minhas agora, ainda que nunca me tivessem concedido o casulo do seu autêntico amor.
Tantas, algumas, não sei mesmo se todas, surgiram apenas na pura ficção do que eu precisava para idealizar o que a vida não me queria oferecer. Inventei-as quase, criei-as eu próprio dessa matéria tão instável que é o humano. Instável e sempre tão rico de sugestões, que fiz delas mulheres diferentes do que eram, talvez em busca daquela, da única, que nunca concretizei. E ainda bem. Sinal de cobardia, mas repito: ainda bem.
157
Porque essa seria, por certo, a única que não andaria nas páginas dos remorsos da minha obra.
Como sabe a maravilhoso passar por elas sem que me vejam, e possuí-las sem mentira, limpas de pecado, reconstruindo em mim os afagos, as emoções, a quase demência, de poder amá-las com a devoção de quem perpetua o efémero, neste vazio sem ecos que é o dia a dia da noite apodrecida onde me encarcerei.
Todas continuam vivas dentro de mim, mas a nenhuma, a nenhuma, eu vejo agora por inteiro. Não importam os nomes... Que sei eu dos seus nomes ?!...
De ti só me lembra a castidade apunhalada, num drama longo de miragens, de sedes e de vilezas;
de ti o toque orvalhado dos lábios musicais, sempre em flor num rosto esgotado;
de ti o sabor a vendaval das carícias tão repartidas, e tão minhas ;
de outra a exaltação adiada para não queimar nela a essência do meu sonho maior;
daquela a brisa das mãos doentes que eu beijava para sarar;
158
de ti o fogo permanente de um auto de fé, dorido e doce, ameno e desvairado;
de ti a boca grossa, e feia, e maravilhosa, onde me deixei morrer sem luto;
daqueloutra o grande amor perdido à esquina de uma rua e que levei inteiro para a única companheira da minha vida, misto de tirania e devoção, meu remorso vivo, onde ressuscitei e agora me desconheço;
e algumas outras ainda que se refizeram no meu amor, ou nas minhas palavras, ou somente na minha imaginação...
De cada uma, e de todas, esta saudade caduca e viril que transfigurei na estranha obsessão pela nova mulher que a inteligência recusa, os olhos não entendem e as mãos gritam, mas que muitas noites me acaricia a cabeça para pô-la a sangrar depois, quando acordo e não a encontro. Sabendo que não devo encontrá-la, que não é possível encontrá-la, a não ser nas páginas dalgum livro que hei-de escrever, inventando-a por inteiro, sem que lhe possa dizer uma só vez de viva voz:
- bom dia, meu amor!
Os dias agora já não nascem - esgotam-se na ficção da luz.
159
E o amor só o encontro, bêbedo de ilusões, a vaguear nalgumas páginas de romances que deixaram de me pertencer...
A esses deixo a vida, a angústia, o amanhã sonhado, os amigos e os inimigos, as frustrações, o remorso, a honestidade, a solidão acompanhada, a ânsia das estrelas e a realidade dos vermes, o punhal que me feriu e as mulheres que amei.
Levem-me à cova as que vivas forem. Levem-me à cova com flores que deixarão nos campos onde nasceram. Para mim bastará uma só rosa vermelha...
O escritor morreu ontem com doença de pasmo que é doença de tolos.
No pequeno harém da sua cisma as mulheres morreram com ele. E por isso nenhuma compareceu para levá-lo à sepultura.
Apesar de magro, nem uma só se dispôs a carregá-lo para a cova, talvez porque em todas deixasse a lembrança pindérica de um pobre tonto a exibir o seu número de engolidor de espadas num circo de aldeia.
A hora do funeral, diga-se a verdade, também não foi das mais apropriadas - às quatro da tarde trabalha-se ou vive-se na escuridão de um cinema a "fita" que cada qual anda a realizar.
Aparece agora muito bicho-homem com furúnculos na imaginação. Deve ser andaço...
160
O Rapaz não Gostava das Mãos
TALHADO em angústia mansa, o rapaz entrou na taberna, pediu uma garrafa cheia de vinho e regressou à porta, levantando o olhar fosco para além das casas, como se tivesse deixado atrás de si qualquer coisa de fundamental ou viesse acossado por um bicho fero. Parecia temeroso ou atormentado. Agarrava-se nas mãos a dor que não cabia dentro de si.
Altarrão e enxuto, vergava um pouco pelos rins, onde a camisa fraldiqueira e suja lhe saltava das calças derreadas. Tinha cara de menino assustado.
- Ah vida! - disse para a rua quase num grito.
Devia julgar-se sozinho com a vida para lhe atirar aquela acusação irada. Quando reparou que também nós andávamos na mesma liça, quis perceber para quem falava, olhou à volta e atirou para o monte a sua pergunta:
- Pra que quer um homem a vida?...
163
Depois encolheu os ombros com resignação e desdém, indo sentar-se à ponta do banco encostado à parede. Pegou na garrafa, mirou-a à luz que vinha da porta e voltou a pousá-la no marmorite do balcão.
Abanava as mãos longas. Pensava que se as não tivesse não estaria ali tão longe. Pudera vir ao mundo lázaro das duas e andaria agora perto da sua terra, batendo feiras na ganhuça de mendigo.
Era por isso que remirava as mãos com desprezo.
Atirou com o chapéu salgadiço de suor para a nuca, arrancou o lenço do pescoço e limpou a testa. Fez aquilo para não ficar quieto.
Quando pegou de novo na garrafa teve uma cortesia:
- São servidos?...
Uma escala de vozes respondeu-lhe obrigado!
Então o rapaz limpou a boca com a manga da camisa e começou a beber. Todos voltámos a cabeça para vê-lo beber. Ele percebeu-o, sentiu que reparavam nele, coisa que não lhe acontecia há muito tempo. Cheio de brio, mamou a garrafa até
164
ao fim. Voltou a limpar a boca, estendeu a garrafa ao taberneiro e mandou-a encher.
Já agora preparo a cama... Dorme-se
melhor em cima de vinho do que numa esteira...
Largou o chasco e não sorriu. A verdade é que também não lhe achámos graça.
- Ontem o gajo do automóvel pôs-me umas suíças, o filho da mãe. Só hoje vi. Cheguei à noite a Bucelas com uns camaradas... Viemos todos prà vindima do patrão Soisa, o Tóino de Soisa. E o filho da mãe do chofer andou c'a gente às voltas e vai ao fim pede cinquenta malréis. Por meia légua cinquenta malréis. Se calhar ao Soisa leva dez... Povo a roubar povo, não há coisa mais feia nem coisa mais certa...
Num repente calou-se assustado. Fez agulha à conversa:
- A gente bebe vinho, mas não bebe juízo... O filho da mãe do chofer há-de gastar o dinheiro que roubou à nossa desgraça com remédios de botica... Não lhe quero outro mal... O meu mal é outro...
Meteu a garrafa à boca sem a gala de se limpar. Levou-a de um trago até meio.
- Andar quase dois dias de camineta,
165
a butes e de comboio para arranjar serviço... E viva! Na minha terra um homem quer matar o corpo e não encontra.
Não percebo porquê, encarou comigo. Vi que os olhos baços de tristeza se iluminavam de raiva.
- Terra pobre há-de dizer o senhor... Qual nada, qual quê! Há lá lavradores com terras que nem condados. Metem-lhe dentro três ou quatro ceifeiras-atadeiras e aquilo é um bafo. A gente, os homens, acarretamos lenha como as mulheres. Vão jornas a dezoito malréis. E é para quem quer... Quem não quer é madraço. Pra quem não quer há lazeira ou cadeia...
Voltou a assustar-se.
- Trabalho de mulheres prà gente repetiu duas vezes com escárnio. - Pois que fiquem lá as mulheres; talvez elas um dia sejam tantas que acabem por capá-los. Se a minha mãe tivesse capado o meu pai não tinha eu vindo ao mundo...
Não gostou da ideia e pô-la mais ao jeito:
- Mais valia que a minha mãe me tivesse desfeito a cabeça numa parede quando me viu nascer...
166
Na modorra do pranto seco, suspirou: Ah vida!...
- Vossemecês não gostam da gente... A gente vem de tão longe tirar o trabalho aos que cá moram. Está certo!...
O vinho começara a trocar-lhe as voltas. Enrolavam-se-lhe as palavras e as ideias.
- Está certo, não! Porque não há coisa mais desgraçada do que andar longe da nossa terra a padecer... Os padecimentos na nossa terra doem menos; saram mais depressa. Na minha terra não havia nenhum chofer que me levasse cinquenta malréis por meia légua. É o mesmo que roubar um cego...
Voltou a abanar as mãos.
- Vossemecê gosta das suas mãos?!... Diga lá, homem!
- As mãos nunca me fizeram mal...
- E bem?!...
- Faziam-me falta...
- Pois a mim, não. Se não tivesse mãos, nunca abalava da minha terra. Deixavame morrer de fome, mas não abalava. Nunca abalava da minha terra... Pedia esmola. Os lavradores sempre me davam alguma
167
coisa. Não me mandavam apanhar lenha... Vossemecê já viu um homem a apanhar lenha?... É pior que ser mulher magana em terra de soldados.
E cuspiu no chão da taberna com raiva de provocar um terramoto.
168
HISTÓRIAS DE NATAL
A Viagem à Suíça
VIVÍAMOS cinco na mesma casa. Dormiam os cinco no mesmo quarto, à maneira de camarata ou de enfermaria. Ao lado ficava uma divisão pequena com um chuveiro e que também servia de copa. No quarto de entrada, ao cimo da escada, tinham armado uma espécie de casa de jantar e de clube. Uma mesa grande ao centro, comprada por todos, oito cadeiras, às vezes sempre aparecia um amigo ou outro para jogar ao sete-e-meio, e uma mesita oval com uma jarra sem flores, um tinteiro para duas tintas, que nunca servia, e três quadros nas paredes caiadas.
Faziam assim uma espécie de família. Em África o que é preciso é não arranjar a "neura", uma doença danada pior do que as biliosas. Acompanhavam-se uns aos outros, sempre um deles havia de estar contente para animar os amigos, e depois gastavam menos do que se andassem por hotéis ou pensões. Mandavam vir comida
173
para três duma taberna que ficava perto da Calçada dos Enforcados, e o preto, o "Capacho", levava três ternos, para o Rebelo, o taberneiro, não fazer a mão curta nas refeições que mandava.
Fora o Barros quem tivera a ideia. Uma boa ideia, sim senhor. Num domingo. Como era costume depois do almoço, e antes de andarem uma hora de automóvel, no carro de praça do Tapia, estavam os cinco na Bijou, a discutir cerveja com o copo dos dados. Era um dia danado de calor, parecia que o chão deitava labaredas. A luz queimava os olhos, os corpos alquebravam-se e as palmeiras da "Salvador Correia" nem buliam, tristes e de copas derribadas para as bandas do mar.
Também eles estavam como as palmeiras. Sim, também eles tinham o espírito virado para os caminhos que partiam da baía, por esse mundo além...
- Quatro ases à primeira! Serve ? disse um deles, não interessa lembrar quem.
- Estás hoje com a leiteira toda - sublinhou outro.
O Barros pusera-se de braços cruzados
174
à espera que lhe passassem o copo dos dados, e vagueava o olhar parado pelas vitrinas da pastelaria. Não era guloso, mas gostava de ver os bolos e os chocolates. O feitio dos bolos e as embalagens dos chocolates. Foi nessa altura que reparou num frasco de caramelos suíços. E como estava calor, um calor danado de queimar pedras, lembrou-se de montanhas e de frescura. Respirou fundo, atirou um sopro ruidoso para o ar, e disse para os outros quatro: Era formidável se estivéssemos agora na Suíça.
- Na Suíça?
- Sim, na Suíça. Deve lá estar fresco. O Sousa começou a rir e respondeu
com uma graça: - A suíça fica ao pé do bigode e quem tem bigode é o Freitas.
- É o país que eu mais gostava de visitar.
Os outros três riram-se também, e talvez nenhum deles pudesse dizer se ria com a piada do Sousa ou com a ideia do Barros.
Este jogou os dados de qualquer maneira, deu-se por satisfeito com dois ases, e acabou por largar a sugestão: - A gente podia fazer uma viagem à Suíça.
175
- Ora! À Suíça...
- Porquê à Suíça?!
- bom... É um país bonito. Deve ser bonito... Gostava de viver numa daquelas aldeias que ficam nos vales. E a neve lá em cima nas montanhas.
-Nunca vi neve - disse o Pereira.
- Eu já vi uma vez; parecem pétalas brancas, assim de malmequer ou de rosa esclareceu o Silvério a esfregar as mãos, metidas entre as coxas.
- Estás hoje poeta - chalaceou o Sousa.
- Não, palavra d'honra, é o que parece : pétalas, pétalas miúdas a caírem sobre a gente.
Ficaram calados por instantes. O copo dos dados na mão do Freitas sacudiu-se ainda, mas parecia já fazê-lo por hábito. Depois aquietou-se também.
- Mas como?
- Como o quê?!...
- Como é que poderíamos ir até lá?
- bom...
Quase todas as frases do Barros começavam com aquele bom, dito numa voz branda, que se revelava depois como uma
176
espécie de catapulta para outras palavras atiradas às rajadas. Naquele momento, porém seria talvez uma interrogação feita a si próprio ou uma pausa necessária para arrumar as hipóteses que se chocavam na sua imaginação exaltada.
Os outros não tiravam agora os olhos dele. Bebiam a cerveja em pequenos goles, esmagando-a na língua, como se pudessem torná-la mais líquida.
- Então ?!... - perguntou o Freitas, enervado com o silêncio.
Todos lhe significaram, na expressão, que deveria calar-se.
O Barros matutava, sentia que a sugestão era possível, já a tinha toda pronta, mas receava entrar em detalhes. Sabia que uma falha do seu projecto poderia estragar tudo. O Pereira iria agarrar-se a essa ponta como um lobo, esfanicando tudo, naquele feitio desmancha-prazeres que bem lhe conhecia. Olhou-o e viu-lhe um sorriso nos olhos azuis, manchados à volta por laivos amarelos.
- Talvez pudéssemos ir a pé...
- Deixa-te de graças - interveio o Silvério.
O Barros encolheu os ombros e disse em voz alta:
- Se quisermos... bom, se quisermos, poderemos ir os cinco...
Esboçou um círculo com os dedos.
- Nós, os cinco... Se o Pereira quiser... Não deve ser difícil arranjarmos a licença ao mesmo tempo.
- A licença é o menos - hostilizou aquele. - O dinheiro... o dinheiro é que conta. Sem dinheiro não há cerveja quanto mais Suíça.
- É uma questão de a gente querer... Eu estou decidido. Nunca pensei nisso, mas agora tenho a certeza que vou...
- Se não vier...
- bom... Se vier uma biliosa que me rape, irei fazer uma viagem ainda mais comprida, é claro. Mas não metendo as biliosas nisto. Eu digo, se tudo correr sem doenças.
- E como é?! - insistiu o Pereira, tasquinhando o canto de uma unha.
- Poupando.
- E tu és capaz de poupar algum dinheiro ?
- Se quiser...
178
E, voltando-se para os outros, o Barros expôs o que pensava.
- Arranjamos uma casa para todos, assim uma espécie de república de estudantes... Como os estudantes fazem em Coimbra. Conseguiremos poupar mais de quinhentos angolares por mês.
- Como?!...
- Como estou a dizer - respondeu o Barros, irritado. - Uma casa aluga-se por trezentos angolares. Cada um compra a sua cama.
- A casa sai aí por sessenta angolares - corroborou o Sousa.
- Sessenta, é isso mesmo. É pouco disse o Silvério.
O Barros pedira uma folha de papel ao criado e pusera-se a fazer contas. Os outros desataram o saco da fantasia, quando verificaram que poderiam ter casa por sessenta angolares. O Freitas já falava em darem um salto a Paris, pois então. Ficava em caminho, com certeza que ficava em caminho. Não tinha ali um mapa, mas Paris ficava, por força, no caminho para a Suíça. Lembrara-se do Moulin Rouge, de muitas pernas altas e bonitas com meias pretas,
179
a emergirem de folhos brancos, assim como flores com dois pés. Era por isso que a Albina, a amante, calçava meias pretas de seda quando lhe aparecia depois dos últimos fregueses abalarem. O Sousa entendia que era melhor darem um salto à Holanda por causa dos moinhos e dos canais, porque mulheres - com um raio! -, mulheres havia-as por toda a parte, até ali, caramba! Mas ele gostava de olhos azuis. O Silvério decidia-se pela Itália, por causa de Veneza: - Deve ser giro a gente dizer que quer ir para o Rossio, sim, o Rossio lá de Veneza, e meter-se num barco, e ir... com uma rapariga ainda deve ser melhor.
O Pereira continuava a sorrir, enquanto o Barros alinhava palavras e números, sempre a esfregar as mãos, como se a emoção da hipótese lhe fizesse frio. Ao fim de algum tempo, já o Freitas discutia com o Silvério por causa de Paris e de Veneza, já o criado se chegara alertado com o alarido, julgando tratar-se de futebol, levantou-se ó Barros de papel em punho e esvaziou o resto da cerveja numa viradela.
- Era o que eu dizia... Exactamente
180
o que eu pensava. Em três anos poderemos ir lá. Três ou quatro anos...
- Mas como?! - interveio o Pereira, com o mesmo ar de provocação.
O Barros ergueu o braço e sentou-se outra vez.
- Muito simples. Os números falam como gente... Para a casa sessenta angolares; para o preto quinze angolares...
- Quinze angolares ?
- Sim, a dividir por cinco. Um preto chega para o serviço.
- Claro que chega! - rematou o Silvério.
- Continua-pediu o Freitas, cofiando o bigode arruçado.
Deixando ficar um curto silêncio entre eles, o Barros prosseguiu: - Para a comida duzentos e cinquenta angolares e para a lavadeira...
- Uma lavadeira pra todos? Isso é que... Eu não deixo a minha - disse o Sousa. - Tenho pena, mas não deixo.
- Ela lava-o bem - chocarreou um deles.
- Lá isso é comigo. Não mudo de lavadeira
181
e a rainha não a quero para mais ninguém. Tenham paciência!
- Arranja-se uma lavadeira para os quatro...
- Para os quatro ainda não sei - esclareceu o Barros. - Aqui o Pereira ainda não disse se quer.
- Claro que quero... Se puder ser, com certeza que quero. Do facto de não ter começado para aqui aos pulos e a fazer projectos, não se deduz que não queira ir... Para mim vai ser difícil, claro. Bebo um bocado, também jogo...
- Deixas de jogar e de beber.
- É mais fácil dizê-lo. Tenho os meus vícios... E ainda bem que tenho vícios, claro, sou um homem!
- Isso é contigo - rematou o Barros. - Eu acho que é possível juntar aí oito contos por ano. Chega perfeitamente.
- Oito contos?
- Sim, à volta de oito contos. Deixaremos de andar todos os domingos de automóvel e só nisso são quase três contos em cinquenta e duas semanas. Se não quisermos ainda cortar noutras despesas. Valerá a pena irmos ao cinema tantas vezes?...
182
- com fitas daquelas...
- Eu não deixo o cinema - lamentou o Silvério, que andava em derriço de olhares com a filha do empresário.
Os outros puseram-se a rir.
- Isto tem alguma graça? - interrogou o outro, irritado. - Vocês riem-se de tudo...
Mas já o Barros prosseguia:
- Vivendo na mesma casa viremos menos vezes ao café, é quase certo. Entretemo-nos a conversar...
- Ou a fazer malha - chalaceou o Sousa, atirando uma cotovelada ao Freitas,
- Como quiserem... Agora é resolver. Tu que dizes?
O Pereira acenou a cabeça.
- Pronto, está resolvido! - concluiu o Freitas. - Vamos procurar casa.
Arranjaram a casa onde agora viviam os cinco.
Uma casa com duas janelas para a Calçada
183
de Santo António e outra nas traseiras, na divisão de entrada, onde comiam e se entretinham à noite. Uma janela fabulosa, deve dizer-se, donde se via o mar e que só por si valia a renda. Era o Sousa que lhe chamava a janela dos sonhos, porque nunca olhava para as barrocas feias e sujas que deitavam sobre o campo de futebol dos Coqueiros. Os seus olhos estendiam-se mais para além, partindo da serpente doirada das areias da ilha, e embarcavam ali perto nos barcos que chegavam com recordações do Puto. Ou mesmo sem barcos. O mar era grande e sobre as suas ondas podiam embarcar-se todas as fantasias. Ele nunca se lembrava que no mar de Luanda havia tubarões.
- Eu só tenho medo dos tubarões que andam por terra - disse-lhe o Silvério, sentado ali perto, chupando desajeitado num cachimbo enorme que usava por pose. Quando entrava naquilo, os amigos larachavam, achando que era o cachimbo o fumador do Silvério, tão franzino e cartaxinho o viam. Mas ele sabia-se parecido com certo actor de cinema, o rosto era tal qual, e o resto não lhe importava, pois era
184
óbvio que nunca tiraria retratos de corpo
inteiro.
Sempre disposto a planger saudades de Lisboa, o Sousa passava longas horas àquela janela, à janela dos sonhos. Os outros, para o afinarem, começaram a chamar-lhe Fado, e ele meneava a cabeça, a sorrir, num sorriso miúdo de quem não quer gastar a boca. Não respondia. Mas também nunca disse que gostava da alcunha.
A viagem de férias continuava a uni-los cada vez mais, embora o Freitas fosse sempre o menos empolgado. Ninguém tinha coragem de lhe dizer para deixar a amante, a Albina, uma prostituta branca que tinha casa perto da Mutamba com uma cabo-verdiana. Ele percebia que os outros gostariam de lhe falar nisso, sentia-se o seu nervosismo, e uma noite, ao jantar, sugeriu que viria dela o dinheiro necessário para as suas despesas de licença na Suíça. Todos se calaram, convencidos de que o Freitas presumia. Era o seu maior defeito. Percebiam-lhe os ciúmes, duma vez chegara a pedir-lhes para nunca a procurarem, e isso significava para os amigos que o dinheiro
185
entre os dois levava caminho inverso ao que o Freitas propalava.
- São coisas lá com ele - foram as palavras do Barros, mal o outro saiu. - Não tenciono meter-me muito nisso. Eu é que vou, com certeza.
Os restantes estavam de acordo com as palavras do companheiro, mas não gostaram de lhas ouvir - pareceu-lhes, e talvez tivessem razão, que o Barros fizera do seu projecto a única força para suportar o pasmo daquela vida africana.
Num fim de certa tarde perceberam ainda melhor a confirmação dessa hipótese.
Ouviram-no cantar ao fundo da escada e depois a correria, os saltos de dois em dois degraus, como se lhes tivesse saído a sorte grande. (Ah! é verdade! Todas as semanas jogavam num vigésimo de número certo e o número terminado em sete não parecia muito enguiçado - já dera três terminações em sete semanas. Um dia sai, as bolas estão todas lá dentro.)
Sempre bisbilhoteiro, o Silvério foi abrir a porta, o que foi? o que foi, pá?, e aí aparece o Barros, triunfante, com uma
186
molhada de papéis na mão, sem que os outros atinassem nas causas daquele delírio. Só o Freitas ainda não chegara; vinha sempre mais tarde, aquela Albina dava-lhe volta ao miolo.
- Vejam isto, caraças ! - disse o Barros, por fim, depois de gozar bem a expectativa dos amigos.
E atirou para cima da mesa grande os papéis que trazia.
- A agência mandou-me estes folhetos todos... É mais bonito ainda do que eu pensava... Uma maravilha! Uma maravilha, caraças!
Cada um dos três pegou, ao acaso, num dos impressos coloridos, e sorriam todos, olhando-se à furteta, acenavam a cabeça, formidável, pá! maravilha, uma maravilha!, enquanto o Barros parecia demente, em passadas largas, de um lado para o outro.
- Vejam-me esses lagos... Ó Sousa! Já viste um lago?
- Um lago?!...
- Sim, um lago.
Era um mundo de fantasia, de cores e de sugestões. Raparigas sorriam-lhes com
187
braçados de flores, maravilhosas, tudo maravilhoso !, borboletas garridas nas páginas de um dos livrinhos, montanhas e montanhas, pinheiros bizarros, aldeias, olhos azuis, teleféricos e neve, neve e frescura, caminhos cheios de sombras, e lagos.
- Não, nunca vi um lago. Andar de barco aqui deve ser um sonho...
O Lago de Lucerna. O Lugano. A região do Leman.
- Ih, que coisa bonita! - gritou o Silvério.
Andaram de comboio pelas montanhas, fizeram esqui, nadaram em águas azuis e transparentes, encharcados de tudo, uma maravilha! uma maravilha!, deitando-se depois em prados cobertos de flores, tudo eram flores, e neve e montanhas e sorrisos. Foram a Zurique e a Lausana, viram o Monte Branco e o Jungfrau.
- Ih, caramba! 4158 metros! Gaita!...
- Então?! - dizia o Barros, para cada um deles, como se fosse o criador de tudo aquilo. - Tinha ou não tinha razão?
O Sousa queria ir ao Casino Kursaal.
- E se fôssemos a Itália para vermos o Lago Maior? - lembrava o Silvério. - E
188
um pulinho, é mesmo ao pé... Veneza será
longe?
Lá vens tu com Veneza... -desdenhou o Pereira.
Depois ficaram alagados de sonhos, muito quietos, à volta da mesa, a olharem os folhetos, tocando-lhes com a ponta dos dedos ou agarrando-os outra vez para sentirem bem que não se tratava de uma alucinação. E tão calados depois, que o preto, o "Capacho", veio espreitar à porta, inquieto por vê-los naquele pasmo silencioso.
- Pode ir buscar o comida, patrão?
- Ha?
- O comida...
- Vai lá onde quiseres. Deixa-nos, vai para o diabo!
Quando o Freitas apareceu mais tarde, macambúzio, os quatro abraçaram-no a cantar e fizeram-no dançar de roda, ó giga, ó giga, ó giga, não apertes a tarracha, enquanto o outro tentava desembaraçar-se daquela alegria pegajosa e parva.
- Vocês estão parvos! Parvos! O que foi?!... Larguem-me! O que foi?!.
189
Os meses é que custavam a passar. Lentos. Quentes. Chatice! Muito custa a ganhar a reforma!...
Algumas noites, derrancados pela "neura", entre tinham-se ao sete-e-meio, a angolar cada jogada, para ali a moerem o tempo ou a serem moídos por ele, enquanto os folhetos presos na parede lhes acenavam frescura e dias cheios de novidades. Agora só bebiam cerveja quando um deles fazia anos. E as conversas remanchadas, iam e vinham, acabando sempre com o estimulante da certeza do Barros, desvairado como no primeiro dia em que aparecera com os papéis. Esse sabia que a viagem chegaria para ele, não mostrando nunca um sinal de cansaço. A sua conta do Banco subia sempre, certinha, todos os meses setecentos angolares, havia de arranjar mais de vinte contos, claro, se não vier uma biliosa que me rape... O Silvério lá ia ao cinema sem uma falha, mas também fumava menos. O cachimbo era quase só um adorno.
190
De vez em quando um deles perdia a serenidade, chegava mais tarde, mal dava as boas-noites e ia meter-se na cama, de cabeça tapada, toda a noite às voltas. Era sinal de que se perdera na cerveja e procurara mulher branca por um bocado, ou talvez para falar com outra pessoa na viagem à Suíça. O pior era o dinheiro que tinha gasto. Na repartição onde trabalhavam, já eram os cinco conhecidos pelos suíços, mas com essa graça podiam eles bem. O Barros nem tão longe se deixava arrastar. Saía sozinho, enfiava até à Praia do Bispo e conhecia bem o caminho da cubata da Josefa, a negra grande que estava cheia de vinho todas as noites e amava pacificamente. Não, lá os miúdos dos jornais, isso é que não, como faz aí o Pereira...
Uma noite, deviam ser aí três horas, o Pereira voltou com uma "bêbeda" incrível e pôs-se a gritar à volta da cama do Barros, furioso, que fosse para o raio que o partisse mais a Suíça, quero lá saber da Suíça ou da gaita, não estou pra mais, não sou frade, não quero ser frade: bebi cerveja, dez cervejas, pois então.1 o que tens tu com isso? és meu pai? uma gaita! era o que
191
faltava agora; mete lá a Suíça onde quiseres. Os outros brindaram-no com uma apoteose de sapatos para que os deixasse dormir e o Pereira acabara por se deitar na casa de entrada, choroso. Fizera primeiro um alarido de soluços e depois, arrependido, largara num carpir de menino, desculpa, ó Barros, estou bêbedo, mas não bebi cerveja, bebi vinho tinto, palavra d'honra, e nem foi o vinho que me pôs assim, foi uma p. duma azeitona que comi, deu-me volta ao estômago...
Sucediam coisas daquelas uma vez por outra, e ainda bem, pois doutra maneira as férias na Europa teriam descambado num pesadelo, a que nem o Barros poderia resistir.
Dias não são dias, com mil diabos, e há certas datas que em África, sem família, um homem gosta de apaziguar com um pouco de álcool, uma certa alegria partilhada com caras novas, uma mulher, uma ceia de churrasco, qualquer coisa diferente para uma pessoa não se sentir já morta ou disponível para desejar o fim. O álcool dá uma espécie de morte provisória, atenua certas arestas da vida, põe-nos a rir,
192
quando se não tem o vinho triste como o Sousa, que esse só muito bêbedo é que deixava de pensar em desgraças. Mas esse tinha por alcunha o "Fado".
por acaso foi mesmo o Sousa quem trouxe aquela proposta para a república. Um amanuense negro da "Política e Civil" falara-lhe num baile e ele ia aproveitar. Não, não se sentia capaz de aguentar uma noite daquelas metido na mesma casa. Sempre era noite de Natal, lembrava-se da terra e da família, mais da mãe do que dos irmãos. Arranjaria entradas para quem quisesse, a coisa era barata, trinta angolares, baile até de manhã e ceia.
O Pereira e o Silvério acederam logo, trinta angolares não comprometiam nada, e diziam aquilo a olhar para o Barros, um chato aquele tipo, está pior do que um frade e o que faz raiva é que ele se aguenta.
Como esperavam, ele não se interessou pela festa.
Viu-os aperaltarem-se, todos esmerados nos fatos e nas camisas, e o "Capacho" andou numa fona a engraxar sapatos. O Silvério até comprou um laçarote novo, azul com pintas, que já trazia debaixo de
193
olho. Ninguém podia com eles. O Freitas atirara-se para cima da cama, de costas voltadas para os outros, enquanto o Barros se fora sentar à janela dos sonhos, como se fosse o Sousa, que, nessa noite, parecia ter refrescado dez anos.
O baile era nas Ingombotas e com mulatas. Baile com grafonola e discos de música lenta, boa para se andar num lago de prazer, e vinho branco gelado - e sabia-se lá o resto. Nunca se sabe como poderá acabar uma festa com mulatas.
- Vocês ainda acabam cafuzos de todo.
- E tu acabas na Suíça numa casa de saúde -respondeu o Pereira, entusiasmado, saindo a cantarolar à frente do grupo.
O Barros ficou a ouvir-lhes as vozes pela calçada abaixo e depois voltou-se para a baía com o queixo apoiado sobre as mãos. A Lua adormecera por instantes, na ponta da ilha lá estavam as plumas negras das palmeiras, nem um bafo na noite, e o céu ajoujado de estrelas coava uma luz aveludada. E um silêncio...
- A que horas vais ter com a Albina? perguntou lá para dentro.
194
O Freitas não lhe respondeu. Então, levantou-se e foi espreitar o companheiro.
- Estás a dormir?
- Não.
- A que horas vais ter com a Albina?
- Esta noite não vou...
- Zangaram-se ?
- Infelizmente, não.
O movimento brusco que o Freitas fez com a cabeça disse-lhe que o amigo precisava da sua companhia.
- Anda daí jogar ao sete-e-meio. Fazemos cá a nossa festa. Bebemos uns copos e jogamos até dez angolares pra passar o tempo.
Em cima da mesa grande o candeeiro a petróleo piscava uma luz amarela e baça.
- Sentes-te mal?
- Não.
- Estás a pensar na família, já sei. É uma noite danada. Mesmo sem querer, um homem sente-se mais sozinho. E a verdade é que está sozinho. Se ao menos adivinhássemos o que vai lá por casa...
- Não tenho família que m'importe. O meu pai não quer saber de mim pra nada.
195
- Isso é o que a gente julga. Vem daí jogar...
O Freitas acabou por se sentar na cama e levantou-se. Havia no seu corpo uma modorra- "talvez alguma ponta de febre", pensou o Barros.
- Vamos lá!
E foi logo sentar-se à mesa, subindo a chama do candeeiro.
- A cinco escudos cada jogada?
- Estás maluco, íamos agora esfolar-nos para aqui, não? Só para entreter um bocado.
E o Barros foi buscar a garrafa de vinho com dois copos. Encheu o do companheiro e depois o seu, pondo-se a mirá-lo à transparência. O Freitas baralhava as cartas.
- Vamos ver quem fica com a banca. O Barros teve um rei.
- Uma carta coberta - pediu o Freitas mostrando a que o outro lhe distribuíra. Outra... Mais outra... Toma, rebentei.
O banqueiro virou a sua carta e pôs-se a baralhar.
- Era bom se a gente pudesse rebentar-se
196
com a mesma facilidade - largou o Freitas, com raiva.
- Tem calma, pá. Já sabemos que são trinta anos disto...
- O Diogo Cão é que não devia ter nascido - insistiu o outro no mesmo tom de voz e mandando virar cartas até rebentar novamente. - Não queres a cinco escudos? Podes ganhar mais dinheiro para ires à Suíça.
O Barros encarou-o com estranheza.
- Não é só isso que te interessa?
- Mas diz lá o que tens? Ou queres pegar comigo? Tem paciência, não te dou troco. Nesta noite, não. Estou a fazer-te companhia...
- Não aceito favores de ninguém. Já sabes que não gosto de favores...
Virou o copo numa golada, encheu outro e bebeu-o também com o mesmo frenesi. Depois levantou-se, atirando com a cadeira.
- Estou farto disto, farto disto tudo! Até da Suíça! Já não os posso ouvir com essa chatice. Chateado até à ponta dos dedos. As coisas de que se gosta só aparecem em latas. Tudo de conserva. Até as
197
mulheres. E a gente a apodrecer para aqui por causa da reforma. Pede-se a demissão da vida por causa da reforma, que a maior parte das vezes só chega quando estamos podres.
- Andas doente...
- Antes andasse. Não, não estou doente. Estou bera, estou lixado com isto tudo!
- Vai ter com a Albina.
- Já te disse que esta noite não posso. Vieram os gajos do mato, percebes? E de resto não preciso dos teus conselhos... A mim não me guardas tu...
O Barros levantara-se irritado.
- Estás a falar comigo?
- Não está aqui mais ninguém, parece-me.
- Porque não vais falar com o Pedro Alexandrino? Sim, com a estátua do Pedro Alexandrino? -Não sabes onde fica?!... Lá em baixo, ao pé dos Correios... Pois fala com ele.
O Freitas caiu em si e sussurrou um "desculpa-me"; foi de seguida até à janela e o Barros via-lhe as pernas trémulas, o corpo jogado para a frente sobre a varanda
198
e a cabeça metida entre os ombros, como se a quisesse ocultar.
Um cão ladrou nas barrocas.
Devia ladrar à Lua que surgira redonda, como um buraco aberto no céu.
- Precisas de ter cuidado com esses nervos, pá.
- Já te pedi desculpa - disse o Freitas, lamentoso.
- Sabes que sou teu amigo... Tens alguma queixa de mim?
- Não... Mas a viagem à Suíça...
O Freitas voltou-se. Os olhos brilhavam-lhe.
O outro não o entendeu. Afagou o queixo e bebeu depois o seu vinho, voltando a mirá-lo à luz, antes de emborcar a segunda golada.
- Não entendo o que queres dizer com a tua. Ninguém te obriga a ir... Se preferes ir a Paris, vai, homem! Vai pra onde te der na gana. Não mando em ti... Não mando em ninguém... Lembrei-me da Suíça e depois?!... Queres-me mal por isso? Gostava que fôssemos os cinco, mas se vocês não quiserem ir que hei-de fazer?
E sorriu, aproximando-se da janela.
199
- Paris é mais divertido, com certeza. Mas sabes... são manias! Todos temos as nossas manias ! Nunca vi um lago e gostava de passear num lago ao pé daquelas montanhas com neve. É mania! Claro, todos temos as nossas...
Voltado para a noite, o Freitas disse:
- Eu faço tudo isso mais barato. No sábado... falta pouco...
Percebendo que a voz do amigo se embargava, o Barros agarrou-o pelos ombros e fê-lo voltar-se. O outro sacudiu o corpo, mas ele torceu-o para si e encarou-o.
- O que é que tens, pá? Ha!... No sábado o quê? O que é que se passa no sábado?
E não o deixava baixar a cabeça, segurando-lhe agora o queixo.
- O que é que se passa no sábado?
- A inspecção... Percebes agora? gritou o Freitas.
- O que tem a inspecção a ver contigo? O Barros fez aquela pergunta, mas
pressentiu o que havia quando o amigo lhe fugiu para junto da janela. Queria ter a certeza de tudo, precisava que o outro lhe dissesse o que se passara, ao menos que
200
fosse capaz de lhe confessar, talvez ainda pudesse fazer qualquer coisa por ele, para que servem os amigos? Sentia-se atingido pela dúvida, preferia ainda pensar que era tudo uma dúvida, talvez para não se sentir culpado com a falta do Freitas, que no fundo sempre fora um fraco com bazófias de fura-paredes. Mas porque não dizia qualquer coisa? sim, qualquer coisa que o justificasse - foi por causa da Albina, foi por causa de ti com essa ideia danada de irmos à Suíça, eu não queria que vocês percebessem que não era capaz de juntar dinheiro, jogava todas as semanas na lotaria de Lisboa para ver se me saía a "grande", e agora lixo-me, vem a inspecção no sábado e que contas vou dar?
- Mas o que se passou, Freitas? Desabafa, homem, diz qualquer coisa... Sabes que sou teu amigo...
- De que me serve tudo isso agora? respondeu o outro, de voz embargada.
O Barros estendeu a mão para o reanimar, mas percebeu a inutilidade do gesto, doeu-lhe o vazio das palavras, e começou a mover-se de um lado para o outro da casa, como se o perseguissem a chicote,
201
evitando olhar o amigo, evadindo-se da lembrança daquelas folhas coloridas que a agência de viagem lhe mandara e ele próprio afixara na parede. Mais de vinte estâncias para férias, desporto e curas, entre
375 e 2000 metros de altitude. Cruzeiros sobre os lagos, Riviera Suíça, Montreux, Vevey, Villars...
- Por causa duma gaja daquelas... Parece impossível... Diz que foi por causa dela, pá, diz que foi por causa dela! Fala, ao menos, caraças!...
Encostado à janela de vidro, para ali, o Freitas sentia-se incapaz de inventar uma palavra, tudo era demasiado simples e evidente, tinha no bolso a nota exacta do que lhe faltava no cofre, bastaria mostrá-la ao amigo, mas sabia também que os outros não deviam importar-se com isso, cada um deles tinha a sua vida, estavam ali a gramar aquilo para terem a reforma e uma velhice mais sossegada, e ele não podia, ele não devia metê-los naquele sarilho, naquele grande sarilho, que iria acabar na Outra Costa com o fato de ganga e o número de degredado em cima do coração e à frente da fita preta do chapéu de palha, se lho
202
deixassem usar. Aí estava o fim da sua aventura iniciada há doze anos, a mãe é que tinha razão em lhe dizer que não embarcasse, ora o dinheiro, para que servia o dinheiro, chegara a ajoelhar-se a seus pés, a pedir-lhe que ficasse. E ele a querer mostrar-se um homem, a nossa terra é onde ganhamos a vida, isto aqui é uma piolheira, mas quebrado por dentro, exactamente como se sentia agora, lasso, um desejo enorme de chorar, de chorar aos gritos naquela noite de Natal para que a mãe o ouvisse lá de longe; tinha a certeza de que ela choraria a lembrar-se dele, choraria pelos dois, já que um homem não pode mostrar-se fraco, mesmo que seja fraco por causa duma mulher que lhe preencha a vida numa terra estranha, onde tudo chega em latas, menos as biliosas e a solidão. E a angústia da inutilidade. Este sabor amargo da inutilidade quando um homem se põe a pensar no que é existir só para sobreviver.
Sentiu que o agarravam, que o sacudiam, pensou ainda libertar-se e defrontar o outro, o Barros, esse gajo infecto que inventara aquela ideia estúpida de passearem
203
pela Europa, sabia que se abrisse os braços se veria livre dele, era um fraco de corpo, um trinca-espinhas, e afinal nem isso lhe apetecia fazer agora, porque o destino estava talhado na barra do tribunal quando o levassem à presença do juiz, levante-se o réu, como se um réu se pudesse levantar alguma vez depois de ter feito o que ele fizera. E porquê?! E para quê? !... A pagar cervejas, a jogar ao sete-e-meio, a queimar o tempo, como quem está à espera dalguma coisa que nunca sucede, e o vencimento, 1275 angolares, uma miséria, devorado pelos vales que passava durante o mês, era só pôr o nome debaixo do papel da despesa, e vamos adiante!
- Eh pá, fala! - gritava-lhe o Barros. - Diz, ao menos, o que pensas fazer! Joga à porrada comigo, caraças! Mas faz qualquer coisa... diz qualquer coisa...
Voltou-se. Moveu primeiro o corpo, ficando ainda a olhar para a noite, e depois virou a cabeça lentamente, ainda de olhar baixo; a luz do candeeiro pesava-lhe nos olhos, queimava-lhos, só via os pés do amigo junto dele, junto da mesa, onde só comeria até sábado, sábado de manhã...
204
Chegam-te dez contos ? - sussurrou
o Barros, como se receasse que o ouvissem.
Agora era ele que fugia, não era capaz de ficar quieto um momento, todo o corpo se queixava, arrependido do que dissera, que tenho eu a ver com isso? mas também que gosto há em passear se um amigo está preso? se nada mais há que os amigos...
Enfiou pela porta da camarata, agora nem sequer percebia onde era a sua cama, andava tonto, e falava para si, talvez para se cansar, iria ter uma insónia toda a noite a pensar no mesmo, e os outros a divertirem-se, o Silvério já devia estar bêbedo, e os outros também, amanhã cada um contaria a paródia à sua maneira, era sempre um divertimento quando saíam em grupo. Mas amanhã todos teriam conhecimento do que se passava com o Freitas.
- Freitas !... Ó Freitas !...
Que necessidade tinham os outros de saber aquilo?...
205
Noite Esquecida
O barco vai a subir o rio e a água do rio é barrenta
Quem a teria sujado?
SUJAM tudo!... Esta gente suja tudo em
que mexe...
Que tenho com isso?!... Essa é boa! Quando eu era pequeno, a minha mãe disse que me dava o rio, se eu comesse a sopa toda e não pusesse os bocados de cenoura na borda do prato, e o rio é meu, portanto, se nunca mais deixei de comer cenoura. Mas era azul quando o deixei, e lá porque saí da minha terra durante este tempo, vocês acharam que o deviam sujar, vocês sujam tudo, e agora talvez o barco não possa romper com o rio tão barrento.
Eh arrais! Dê um bordo junto a terra. Dê, homem! Preciso de embarcar...
O barco chega-se, vem com a proa direita a mim e eu não posso fugir, estou agora preso à terra, quem me teria amarrado?, e as árvores fogem, as ervas riem e fogem, as flores assustam-se e voam, tudo abala, tudo foge, e só eu aqui fico
209
agarrado à margem, não sei que raízes me nasceram nos olhos, raízes tão fundas que não há força capaz de as soltar da terra, que afinal é lodo, terra e lodo;
vem um pássaro, pousa-me na cabeça e começa a cantar, é um pássaro vermelho, tão vermelho que se põe a arder, parece uma faúlha da forja do meu avô, o meu avô fazia pássaros e estrelas quando se punha a bater o ferro na bigorna, e se calhar eu vou arder, era bom que me fizesse em estrelas e pássaros;
talvez os homens do barco me acudam, talvez eles percebam que sou outro homem e só não consigo fugir exactamente porque sou homem, vim aqui ganhar a vida e a vida já não se ganha, perde-se todos os dias, todos os dias a vida se esvai e se cansa, e eu agora quero embarcar, gostava de voltar para a minha terra, tenham paciência, deixem-me voltar, caibo aí num cantinho qualquer, num cantinho da proa...
Mas que barco é este? Digam: que barco é este?!...
O barco está pintado de preto e o arrais não é o Canito, não, não é o Canito, que foi
210
meu companheiro na escola, é o preto da repartição que está agora ao leme, e o barco vem cheio de secretárias, pois é, lá está a minha vazia, estão todos à minha espera; o chefe, o Horácio, tem a cabeça encostada à mão, se calhar a mão é de pau, e é capaz de escrever um relatório para o director a dizer que deixei o serviço atrasado e que sem mim a Colónia toda é capaz de parar; ah, sim, é muito importante o meu trabalho! faço as contagens do tempo de serviço dos funcionários, é uma grande alhada! há os que contam a cinquenta por cento, e até a cem por cento, cada dia vale dois, em certos sítios, lá para o interior, um homem envelhece mais depressa, fica com o dobro da idade, mas só a mim ninguém conta o tempo que fico aqui, preso à lama, danado porque me deixam ficar, agora que tudo fugiu da margem e estou só, é triste ficar só e ainda por cima ver as flores a voar, lá vão elas num grande bando, se calhar abalam para a minha terra onde a Primavera já chegou.
O rio é meu! O rio azul é meu!
211
Eles riem, é uma paródia! e a proa está agora mais perto de mim, toda a proa é uma espada de alto a baixo, estiveram a passá-la com lixa fina, vem toda a brilhar, parece de prata, e dentro do barco começam todos a gritar por mim, querem todos que eu me afaste,
Eh arrais! Manobre lá o leme, seu homem!
também eles não se podem afastar, estão cegos, ficam todos cegos quando cumprem ordens, se calhar o Horácio mandou-me cortar ao meio e eles não se podem negar, são funcionários, um processo disciplinar não é brincadeira, pode levar à reforma compulsiva, agora que tudo é compulsivo; o rio está barrento e faz ondas,
Ih, que grandes ondas!
e uma delas passa-me por cima da cabeça e leva o pássaro que estava a arder, já veio tarde, tenho a cabeça toda queimada, agora fico com a cabeça preta como o arrais que vai ao leme e não é capaz de fazer a manobra ;
212
vou ficar partido em dois, quis ser sempre só um e nunca pude, andamos todos divididos, e agora até essa vontade se acaba, fico aberto ao meio, esgalhado como uma árvore fendida por um raio.
Ainda se viesse o vento...
Mas o que é o vento? O vento pode ser o Horácio, os que mandam no Horácio e em mim, na gente todos, essa é gente danada com poder para tudo, o vento tem muita força, leva folhas e leva gente, países inteiros duma vez, agarrou em mim, arrancou-me da minha terra e veio largar-me aqui tão longe, sem um regaço para descansar, agora a gente já não pode descansar...
Que vela é essa, arrais?
Uma vela de papel selado? Ora bolas!
Uma vela de trinta e cinco linhas para uma viagem destas...
Se calhar é algum requerimento que veio de Dalatando, dalgum desgraçado que está a morrer de biliosa e quer pedir uma licença graciosa, quando aqui nada é gracioso, tudo se paga, e bem, e eu ainda por cima com as raízes dos olhos metidas pelo
213
lodo dentro sem o poder ajudar, sem poder ir ao boletim oficial para ver bem se o não poderei mandar à Junta. E a mim quem me ajuda?
Pare lá com isso, arrais!
Pronto, acabou-se!
Acabou-se ou agora é que vai começar?...
Estou partido ao meio, isto é que é uma gaita!
e o coração cheio de medo saltou para cima da proa em gume de espada, é para isto, afinal, que servem as espadas, só para fazerem mal a um homem como eu, que vim atirado pelo vento desde a minha terra, onde era dono de um rio azul, mais azul do que o céu, e até o rio me sujaram; um rio tão bonito que a minha mãe me deu, era ainda menino quando ela mo deu, a primeira vez que o vi ia com o meu avô, o meu avô ferreiro, ele saía da oficina e levava-me todas as tardes pela mão, se calhar já receava que o vento me arrastasse; quando vi o rio pela primeira vez, nunca vira uma coisa tão bonita, e pus-me a gritar, a bater palmas, se o meu avô não
214
me segura eu atirava-me, e foi então que apareceu uma vela cor de laranja, quase vermelha, assim da cor do pássaro que me queimou a cabeça, se calhar o pássaro era a vela do barco que me vinha buscar, e eu não percebi, a gente já pouco percebe do que se passa à nossa volta.
Faça a manobra à ré, homem! Faça a manobra à ré, seu negro!
vou ficar partido ao meio e sei lá, quando sair daqui, se a parte que pode andar é a metade que morreu... A gente nunca sabe quando morre, pode-se falar e já não se estar vivo, estar vivo é outra coisa...
bom, outra coisa, eu não quis dizer mais nada do que isto, sou um homem pacato, não me meto nessas histórias...
Mas não me levem! Não, não me levem!...
O Jerónimo põe-lhe a mão na testa que escalda, o doente abre os olhos, assusta-se e tapa a cabeça. Todas as tardes delira; a febre sobe, não há meio de ceder, aquilo é
215
ainda capaz de dar para o torto, e ele começa a recear as consequências da sua teimosia em não deixar que levassem o amigo para o hospital. Quere-lhe como a um filho, pela diferença de idades bem podia ser seu pai, mas nem esse pretexto a vida lhe deixou.
Ainda ontem lhe mandaram oferecer um emprego para o mato, e preciso, caramba! se preciso de um emprego!, metade caixeiro, metade enfermeiro, e respondera que não lhe interessava por agora. Sim, estava farto da vida no mato, vida estúpida entre o jogo de esfolar, qualquer coisa servia, o sete-e-meio ou a pedida eram bons, ganhava-se e perdia-se depressa, autêntica vida de malandro entre a batota e o vinho quinado ou sem ser quinado. Andavam todos ali para quinar na primeira altura. Uma biliosa nunca mandava cartão... Havia de ter graça uma biliosa ser mais educada do que aqueles quintandeiros que andara a gramar pelo interior, ele que fora empregado de fazendas em Évora, na melhor loja de panos de toda a cidade.
Saudades de Évora-Cidade, claro que as tinha, e mais ainda dele próprio que sabia
216
receber uma senhora com todas as etiquetas. Mulheres de lavradores com terras que eram condados, e fidalgas, e meninas de governadores civis e tropas, todo mesuras e vossas excelências, que manda hoje, Vossa Excelência, Senhora Dona Matilde?, e algumas estranhavam porque não arranjava emprego em Lisboa.
"Lisboa, porquê, minha Senhora? Évora é a capital do Alentejo... E Portugal sem o Alentejo seria um país?... Quem está na capital sou eu. Já cá estou..."
Ele gostava de dizer aquilo e elas gostavam de o ouvir. E não eram só palavras, não. Nesse tempo pedia meças aos caixeiros de Lisboa, e já não falava nos das Ruas da Betesga ou dos Fanqueiros, caixeirada de província que vem à porta, na foçanga, mal um passante lhe pára perto da vista e deita a ponta dos dedos a um estambre ou a uma cetineta. Ele só saía fora do balcão, é bom não esquecer, quando a Dona Mariquinhas Barahona lhe parava à porta no breque e lhe acenava com a mão enluvada. Era uma verdadeira rainha! Sou ainda capaz de me lembrar... Deixa ver... Sim, as duas éguas eram pigarças, bem tratadas
217
e lustrosas; uma delas tinha uma malha branca na testa, uma grande malha que parecia pintada, e chamavam-lhe a Estrela, era arisca... Não, mais arisca era ainda a outra, a Malvadinha, como lhe chamava o cocheiro, o Zé Murta, compadre do meu pai que Deus tem...
Dá ao ombro e sorri triste, puxa uma fumaça do cigarro e vai até à janela. O quinino e as febres ainda não lhe tiraram a memória. De que lhe servia a memória?... Para estar ali a ver o amigo...
Está sozinho em casa. Sozinho é como quem diz. O outro continua lá dentro a arder em febre, aquilo ainda vai dar biliosa ou coisa pior, e o criado, o Zé, deve malandrar no quintal com o outro calcinhas que é cozinheiro do Barnabé da "Política e Civil". Não, não grama os calcinhas, não gosta de pretos que armam em brancos.
A noite está quente, é um forno.
Salta para o peitoril da janela, encosta a cabeça e continua a pensar em Évora-Cidade. De olhos fechados vê melhor as coisas do passado. Já sabe, daí por instantes estará a falar consigo, em voz alta, e os pretos acabarão por se rir quando o ouvirem.
218
A imaginação não lhe basta. Parece que tem ali com ele um companheiro da república, a quem conta certas passagens da vida. Da vida autêntica de outros tempos.
Aquilo de fazendas não são mercearias ; engana-se quem pensar que tudo são caixeiros da mesma fornada. Vender um mono, pondo-o na mão para lhe dar realce ao desenho e à cor, deixando-o cair em pregas largas, baixar levemente a cabeça como um toureiro, saber compor um sorriso onde se insinue um cumprimento à senhora que compra, assim como quem diz "se és boa, com isto ainda ficarás melhor", não é coisa para todos. Um mono só se vende com arte. Aí está o segredo: arte. Faz-se-lhe uma montra especial, abrindo-se o tecido em leque, numa mancha de cor que venha do tecto até baixo, espalham-se umas flores no chão, ou folhas de árvore, atira-se para o outro lado com uma fotografia de Paris, e o resto é luz e imaginação. Agora vendo peixe seco aos pretos, e missanga... Nem vendo, permuto... Os monos acabavam todos na sua mão. Sabia escolher com prudência quem os devia levar. E não
219
eram uma nem duas, bem longe disso, as senhoras que se vestiam ao seu gosto.
Os maridos ou os pais pagavam as contas, mas era ele quem dizia o que deviam comprar. Era um regalo vê-las passar depois, a pisar bem, de sombrinha aberta, deixando um rasto de pasmo e de prazeres ocultos nos moinantes que enxameavam as arcadas da praça. Ah! sim, algumas vezes julguei que eram minhas... E muitas dormiam comigo à noite, salvo seja! Levava-as nos olhos para o quarto. Inteirinhas. A Dona Crisália tinha um sinalzinho na orelha esquerda e nunca me esqueci disso quando lhe punha a cabeleira negra em cima da travesseira. Podia cobrir-se toda com o cabelo... com essa dormi mais de um ano. E fui-lhe sempre fiel. Tinha uma boca bonita, uma tentação, e quando ia à rua das raparigas afeiçoei-me à Beiroa, à Georgina, só por causa da boca. Era uma boca que se abria para beijar, e era assim uma laranja, gostosa e sumarenta como uma laranja, e ao mesmo tempo uma flor, daquelas que se abrem com o sol e se fecham à tardinha. Uma laranja talvez não, tem sumo a mais: uma pêra marquesinha.
220
Doce. Muito doce. Aqui, nesta terra maldita, nem uma pêra nem uma mulher que se veja! Nada!
Talvez por dormir com tanta senhora é que acabara solteiro.
Agora ia a caminho dos cinquenta, estava sozinho, e não era bonito dizer que ainda não se arrependera. Talvez não parecesse... Um homem quando perde o cabelo e os dentes se vão e se desfeiam, amarelos do tabaco e tortos com a falta dos outros, já não é uma sombra do que foi. Talvez não parecesse, mas tivera muita rapariga a querê-lo para marido. E bem boas coisas, por sinal.
Fizera-se fino, pusera-as de parte, tinha lá uma ideia secreta acerca da mulher que lhe convinha. Não, isso não digo, é um segredo que vai comigo para a cova. Todos gostamos de guardar os nossos segredos.
Não era homem de bazófias.
Tinha lá dentro, na mala grande do porão, dois retratos seus a lembrarem o que já fora. Um nadinha mais magro, ainda sem óculos, cabelo bem apartado, todo passadinho a brilhantina, os punhos da camisa
227
três dedos fora da manga do casaco, luvas na mão, sapatos de polimento, calça de fantasia, laço com pintas, e polainas. Era raro largar as polainas; o que ele gostava de usar polainas... Tornavam-no distinto, poucos as traziam em Évora-Cidade. O laço de um dos retratos era azul com pintinhas brancas. Nunca poderia esquecê-lo, embora as cores não estivessem no retrato. Mas fora por causa dele que deixara o emprego e a cidade. Parece impossível, por causa de um simples laço.
Não, arrependido não estou. Se fosse hoje fazia exactamente o mesmo. Nunca gostei de equívocos nestas coisas com mulheres. Como foi?!... bom... A gente nunca sabe bem como certas coisas se passam. Há pormenores importantes que se perdem com o tempo.
A Dona Emília, a Dona Locas, como lhe chamavam, entrara na loja em certa manhã de Inverno, devia ser mais ou menos por este tempo. Sim, era em Dezembro, devíamos estar a poucos dias do Natal.
Hoje é noite de Natal e nem parece. Está um calor que atabafa. Os outros quatro não vieram jantar por causa do Ribeiro
222
que está doente. Devem voltar bêbedos aí pelas tantas.
A Dona Locas entrou na loja com o seu casaco verde-garrafa e de gola preta, apertou-lhe a mão e ele ficou com as dela entre as suas, a aquecê-la. Estava fria, muito fria, pôs-se a esfregá-la, primeiro com força, depois de mansinho, e ela fingiu-se zangada, dizendo-lhe que era comprometida. O marido era sargento, segundo-sargento, e um batoteiro como outro não havia por ali. Chegava tarde todas as noites, não aquecia a cama lá em casa, e batia-lhe.
A malta da república brincava com a história do laço e o Jerónimo não gostava. A brincadeira, às vezes, ia a mais.
A verdade é que a Locas lhe falara do laço, gostava de um assim para o marido, e ele respondera-lhe que talvez houvesse mais no armazém. O patrão não chegara ainda, o marçano saíra com umas amostras para a senhora do escrivão, e os dois estavam sós, desconsolados ambos, e ambos de mãos frias. Quando lhe falou em irem ao armazém, ela abriu os olhos malandros e começou a dizer que não, o que havia de
223
pensar quem os visse, embora só seja comida quem se deixe comer.
"Por isso mesmo, Dona Emília.
- Não os pode trazer aqui ao balcão?
- Posso, lá isso posso. Mas escusava de me dar tanto trabalho.
- Faz-lhe bem. Está frio... Você precisa é de se mexer...
- Nisso tem razão - respondera com segundo sentido.
- Tem frio?
- E a Dona Emilinha não tem?
- Tenho, claro que tenho.
- E a senhora é casada. Veja lá que hei-de dizer eu que durmo sozinho!
- E eu?!...
- Não me diga, Dona Emilinha. Desculpe o que lhe vou dizer. Posso dizer?
- Não sei bem o que está a pensar... Mas diga lá! Depois logo se vê se fico zangada consigo. Olhe que eu não gosto de atrevimentos!"
O pior é que os olhos dela negavam tudo o que dizia.
Ele estendera-se um pouco sobre o balcão, a dar intimidade às palavras, en-
224
quanto ela voltara a cara, pondo o ouvido mais a jeito.
"Se tivesse a sorte de ser seu marido, palavra de honra, só saía de casa para darmos uma voltinha, e depois ninguém me tirava do quentinho...
- Dizem todos o mesmo...
- Dou-lhe a minha palavra d'honra, Dona Emília!
- Diga lá isso sem se rir..." Espalmara a mão no peito em sinal de
jura sagrada, o que lhe servia também para afiançar que certa seda era mesmo italiana, que um corte de fato fora fabricado em Coimbra, não se fazia melhor em Inglaterra, e que o patrão vendia tudo pelo preço de Lisboa. Mão espalmada no peito do Jerónimo era coisa mais sólida do que a Sé de Évora.
"Então traga o laço e deixe-se de baboseiras. Só quero igual.
- Venha ajudar-me, então. É um instante. Um instantinho.
- E o patrão?
- com este frio o patrão só aparece lá pelas onze.
- bom - dissera ela, olhando bem a
225
rua toda pelos vidros da montra. - Mas tem de me fazer um desconto."
Dera-lhe o laço. Dera-lhe o laço, é uma maneira de dizer. Nunca outro lhe custou tanto dinheiro!
Atirara-lhe o laço e ela caíra-lhe nos braços, muito gulosa por beijos, toda tremeliques e suspiros. Uma mulher danada, que fazia arraial de sete quando lhe tocavam. Uma verdadeira cana verde toda cheia de campainhas.
O Jerónimo fez o que pôde para dar descanso ao sargento, mas tantas vezes vai a bilha à fonte que um dia lá fica. Ficou em cacos, numa noite, e tantos, tantos, que o Jerónimo teve de saltar em ceroulas pela janela do primeiro andar. Torceu um pé e torceu o resto da vida. O patrão, o Folgado, João Marques Folgado, Sucessores, não arranjou outra maneira de sossegar a cidade, senão o de chamá-lo a capítulo:
- Tenha paciência, Jerónimo, mas a minha casa é uma casa de respeito, foi feita à custa de muitos sacrifícios desde o tempo do meu avô, e a minha freguesia, como sabe, é a melhor de todo o Alentejo. Tome lá dois meses de ordenado, leia essa
226
carta era que dou todas as referências que lhe podem interessar para a vida do comércio, mas safe-se daqui para fora. Não me desgrace. Você meteu-se com a tropa...
Quando percebi que aquilo não tinha jeito nenhum, não teimei. Estive em Setúbal seis meses, fui empandeirado com uma crise das conservas, e um dia apareceu-me uma oferta para África. Vim sempre a descer. Tenho sido caixeiro de permuta em aldeias de negros, enfermeiro de roças, desempregado quando o café baixa de cotação e bebedor de "champagne" quando o café do Brasil tem bicho. Ando ao gosto do café. Posso dizer que sou um homem?! É isto, por acaso, que dá direito a dizer que sou um homem?!...
Recusara o lugar que lhe ofereciam para o mato, lá para as bandas da Lunda. Não é aos cinquenta anos que um homem se enche de ambições para recomeçar vida. Agora era gastá-la até ao fim, quanto mais depressa melhor.
Não aceitara também pela solidão, por aquela vida parada do interior, uma chatice, só jogo e cerveja, mas principalmente
227
por causa do Ribeiro. Claro que em Luanda havia futebol, dessem-lhe um bom jogo, e se houvesse pancada ainda melhor. Futebol sem lenha é jogo de senhoras. Na bola um homem grita, provoca os outros, arranca coisas fundas que fermentam dentro de si, e ninguém o chama à ordem, ninguém lhe diz: tenha cautela com a língua senão lixa-se.
O Jerónimo dera agora em homem de impulsos. De impulsos violentos. Já não parece o mesmo que as senhoras conheceram em Évora-Cidade, um cavalheiro, um dandy, como ele queria ser. Caiu-lhe o cabelo, ficou gordo e sumiu-se-lhe a delicadeza. Agora vocifera contra tudo, já foi duas vezes à Polícia por incidentes provocados nas bancadas do estádio do Bungo e ganhou fama de arruaceiro, ele que é ainda, lá muito no fundo, um cidadão pachorrento.
E um homem de gratidão, deve dizer-se. Ainda, e talvez sempre, um homem de gratidão.
Por bem jazem tudo o que querem de mim. Não sei o que é isto. Cobardia não é; nunca voltei a cara a ninguém. Esta noite
228
estou Pra aqui a remoer, embora não goste de pensar no que já lá vai. Os outros três companheiros saíram, mas a verdade é que eu não podia deixar o Ribeiro sozinho com o preto. Umas febres destas pediam hospital e eu não quis que ele fosse; sei como se tratam estas malditas, quanto mais tarde se agarram pior e hoje ainda a temperatura não desceu dos trinta e nove. Este rapaz podia ser meu filho à vontade, são quase trinta anos de diferença, e não é por isso que estou aqui. Nem ele percebe, e os outros muito menos, as razões desta fidelidade de cão. Tenho passado os dias e as noites à sua beira, agora é uma luta entre mim e a morte; vamos ver quem vence.
Que me leva então a fazer isto?!...
É simples e é complicado: devo-lhe o maior favor da minha vida. Da minha vida em África. Sou um homem com quase cinquenta anos, conheci mulheres, bastantes, muitas até, posso dizê-lo sem proa, e deitei na minha cama não sei quantos dobros dessas, mercê do meu gosto em imaginar facilmente o que desejo. Só fui fiel à Dona Crisália e a essa nem a mão apertei. Que
229
mulher!... Os miúdos têm raivas de dentes e eu sinto as minhas raivas quando a fêmea me falta. Cai-me em cima um peso terrível, uma dor por todo o corpo e uma tristeza que me chora no corpo todo, tudo é desgraça para mim, custa-me a andar, e é tão simples andar...
Aqui na república todos são meus amigos, é a pura verdade. Dão-me cama, como com eles e oferecem-me tabaco. O resto do dinheiro que trouxera do mato, já se sumira com umas idas a casa da Albina e mais umas cervejas. Comecei a sentir-me triste. Fiz cenas por coisas de nada, cheguei a provocar o Barros, atirando-lhe à cara os favores que lhe devo. Até me zanguei com o Ribeiro, quase uma criança...
Era a solidão. A solidão mais só que um homem pode ter. Um homem depois dos quarenta, aqui em África, e sem futuro, quer dizer sem dinheiro, não pode pensar em ter mulher por amor. O amor morre cedo por estas bandas. A dizer a verdade, tudo morre cedo por aqui, talvez porque se vive mais depressa. Então, quando isto me sucede, quando a solidão entra dentro de mim, meto-me todo o dia na cama e
230
fico quieto, muito quieto. E então deixo os olhos chorarem. Sim, choro sempre sem soluços. Fecho os olhos e as lágrimas correm-me; é assim uma carícia que alguém me faz, uma carícia sem pagamento. E as amarguras desfazem-se, a calma, sim, talvez seja a resignação que acabe por vir.
Andava assim há oito dias. A meio de uma tarde ouvi abrir a porta da rua, o preto não estava em casa, perguntei se era ele, e o Ribeiro respondeu-me lá do fundo. Percebi que vinha acompanhado. Meti-me no quarto, fechei a porta e tapei a cabeça com a roupa para os não ouvir. Depois, de vez em quando, apetecia-me perceber o que se passava no quarto dele, e ia até ao corredor. E logo voltava para a cama, mal percebia ruídos. Aquilo era um Inferno. Daí por um bocado a porta bateu. Senti-me aliviado. Sentia-me aliviado, mas ouvi passos no corredor. Pés descalços. O preto, afinal, já estava em casa. Se calhar fora ele quem trouxera a rapariga para o Ribeiro. Depois mexeram na porta do meu quarto, eu estava sem óculos e não via bem. Não podia ver bem aquilo que me parecia estar ali. Pus os óculos precipitadamente, sentei-me
231
na cama e vi uma rapariga dentro do meu quarto.
- O que foi?
- O outro branco mandou-me aqui... Nessa noite, quando o Ribeiro voltou,
olhei-o com um sorriso, assim para lhe agradecer o bem que me fizera. Ele fingiu que não entendera o que eu lhe queria dizer. E nunca falámos nisso. Ele nunca me perguntou: então? E eu nunca lhe disse: obrigado, meu rapaz. Nunca lhe disse por palavras, porque não há palavras capazes para se agradecer a um homem que não vexa outro, quando lhe manda uma rapariga ao quarto. Homens destes não podem ir para um hospital...
A luta agora é entre mim e a morte. Ficarei aqui com ele até isto acabar. Se ainda soubesse rezar, pediria a Deus que o não matasse ainda. Ele é novo. Não vai ficar aqui por muito tempo. Já mo disse. E nisso não estamos de acordo. Ele acha que a gente explora os negros e não quer partilhar dessa espoliação. com outro qualquer, mesmo que fosse um irmão meu, aquela conversa não teria acabado assim. Um
232
preto é um preto, um branco é um branco... Ou não será?!...
- Patrão !... O branco doente está a chamar...
O Jerónimo saltou da janela e foi até junto da cama onde o amigo definhava. O Ribeiro, mal o viu, franziu os lábios para sorrir e ergueu-lhe a mão de dentro do lençol. Uma mão branca, de dedos compridos e finos. E trémula.
- Estás melhor?
- Doi-me a cabeça...
- Estiveste variado. Toda a tarde... Falavas de um rio, devias julgar que andavas de barco.
- Devia ser o rio da minha terra; temos lá um grande rio. E eu sonho muitas vezes com ele.
- Sim, um rio é bonito. Na minha terra não há...
- Eu gosto sempre de ver um rio. Passei há tempos no Cuanza; não m'importava de lá ficar...
- Conforme o sítio. No Cuanza há regiões danadas...
O Jerónimo mete-lhe o termómetro debaixo da axila e senta-se na cama. O cheiro
233
da febre embaça, chega-lhe às pernas o suor dos lençóis. O amigo não parece o mesmo. Em menos de um mês a malária derreteu-o. Só lhe ficaram uns olhos grandes e esverdeados, uns olhos que eram castanhos antes de ter o primeiro ataque.
- Chegou algum barco com correio?
- Não.
- Que dia é hoje?
- Não sei bem, pá. É raro ler o jornal. Os dias também são todos iguais. (Para que hei-de dizer-lhe que estamos na noite de Natal?)
- Mas é ainda Dezembro...
- Ah! isso é! Sim, Dezembro, com certeza.
- No Puto é agora tempo frio. Há frio na tua terra?
- De estalarem as pedras. Na minha terra há tudo de mais: o calor, o frio, a fome... É uma terra de fartura.
- Já viste neve?
- Só em retratos...
- Eu vi uma vez. É bonito.
- Mas é frio... não fales que te cansas.
- Não, agora estou melhor. Pode ser que me apague, mas agora estou melhor.
234
- Mas cansas-te... Queres um caldo de galinha?
- Roubaste mais alguma?
- Dia sim, dia não.
- E a velha não desconfia da gente?
- Não.
- Deve estar em boa altura de ver a febre. - Pede o termómetro ao outro, que o tira e tenta adivinhar quanto subiu. - "Não preciso - pensa depois o Ribeiro. Bem a sinto."
- Então?
- Baixou. Estás melhor.
- Sim, estou mais fresco. O que tenho é sede.
- Aguenta um bocado. vou levar a luz para dormires...
- Não, estou farto de dormir. Tenho muito tempo para dormir.
O tom de voz é significativo. O Ribeiro sente pena de morrer. Também eu tenho pena que ele morra. Seria desgraçado se morresse. É uma criança...
- A malta?
- A malta não veio jantar.
O doente fica calado e pensativo durante uns instantes. Cerra os olhos, puxa
235
depois o lençol para o peito e faz sinal para lhe porem o cobertor. O criado chega à porta do quarto.
O Jerónimo irrita-se de repente:
- Você é mesmo preto matumbo.
- Eu, patrão?
- Sim, você mesmo. Não disse já para trazeres malga de caldo?... Seu negro!
- Eu não é negro, patrão, é preto.
- Ah seu...
Assustado, o preto abala com o gesto do Jerónimo. O Ribeiro sorri e suspira depois.
- Gostava de falar com a malta...
- Eles devem chegar tarde. Falas amanhã.
- Tu podias dizer... Põe-me um bocadinho mais direito.
Agarrando no amigo em peso, depois de levantar as almofadas e encostá-las às grades da cama, o Jerónimo aconchega-o na roupa. O outro agarra-lhe na mão e fica com ela segura na sua mão molhada. O Jerónimo percebe que ele não a quer largar.
- Eu queria que vocês todos soubessem...
- O quê?!
236
- Que não vim para cá por aquilo que disse.
- Já não me lembro...
- Disse que vim por causa de desgostos de família. Não é verdade. Vim para ganhar a vida. As coisas corriam-me mal por lá.
- E então?
- Fui falso para vocês. Não está certo.
- Todos dizem que vêm para África por causa de uma mulher ou por vida de borga. Dizem sempre que vêm para se esquecer ou regenerar? Achas que alguém é capaz de se regenerar numa terra destas?
- Talvez tu... Nunca mais posso esquecer o que tens feito por mim... Tanto como se fosses meu pai.
- Cala-te lá com isso, anda.
- Mas...
- Queres que me vá embora daqui?
O Ribeiro segura-lhe a mão com força.
Calam-se por instantes. Uma algazarra de negros chega da rua e ambos ficam a ouvi-la. O doente molha os lábios crestados, pensa na febre que o destruiu e sente receio de voltar a dormir.
237
- Está a doer-me a cabeça. Apetece-me fechar os olhos...
- É da luz do petróleo.
- Quando eles voltarem...
- Já sei. Quando voltarem vais dizer-lhes que mentiste. E depois?!... Eles largam-se a rir. Também te mentiram. Todos aqui têm a mania das grandezas, talvez por se acharem tão insignificantes.
- Eu disse que o meu pai era rico, quando afinal vim para Luanda por causa duma casa que temos e que lhe querem tirar. Gostava que a minha mãe não sentisse esse desgosto. Ela gosta muito da nossa casa... A minha irmã nasceu lá.
- Não tens nada que falar nessas coisas.
- Eles andam sempre a dizer que eu sou um unhas de fome, que não gasto dinheiro.
- E depois?!...
O doente está a pensar que irá pagar-lhes uma ceia no Canelas, lá em cima no Alto das Cruzes, uma ceia de churrasco, se conseguir arribar. Mandará menos dinheiro para casa, paciência! Mas há-de oferecer-lhes uma ceia.
238
- Se conseguisse estar melhor na noite de Natal, íamos fazer uma farra.
- Ainda faltam uns dias... Não, não lhe digo que esta é a noite de Natal.
- Quantos dias faltam?
- Nem sei; talvez dez...
- Achas que em dez dias consigo pôr-me de pé?
- Se comeres com apetite, talvez.
- Estou um bocado fraco. O que sinto mais é as pernas.
O Zé entra com a malga de canja e o doente agradece-lhe com o olhar. O Jerónimo ampara-o.
- Tens de comer tudo.
- vou oferecer uma ceia a vocês todos. Gostas de filhos?
- Gosto.
- A minha avó fazia-os bem. com abóbora e ovos... Mas cá nunca vi.
- Pede-se à velha das galinhas; ela deve saber.
- És capaz ?
- A gente dá-se bem. Ainda ontem esteve a fazer-me queixa que lhe roubaram a galinha pedrês. Era uma bela galinha. Deu esse caldo...
239
- O preto não desconfia?
- Não. Eu enterro as penas no quintal. Se a gente pudesse enterrar também
as penas que traz consigo! Há uma cantiga na minha terra... Como é?
O doente desiste de pensar naquilo e volta a lembrar-se da velha das galinhas.
-O que achas que devo dar à velha no dia de Natal?
- Sei lá. Quanto queres gastar?
- Diz lá tu...
- Oferece-lhe uma moldura bonita. Ela tem um retrato do filho em cima da mesa e está sempre a olhar para ele. Na "Salvador Correia" vi ontem umas molduras bonitas.
- Então compra-lhe a melhor de todas. Grande... Uma grande. Ela deve gostar de molduras douradas.
O Ribeiro fecha os olhos. com um sinal de cabeça, o Jerónimo manda o preto levar o candeeiro.
- Fizeste bem. Estavam a doer-me os olhos.
- Esta luz de petróleo cansa muito os olhos.
240
- Pois cansa. Ou então sou eu que já tenho os olhos cansados.
- És ainda uma criança...
- Não sou mas gostava de ser. Quebra-se-lhe a voz. Põe-se a sacudir a
cabeça, como se quisesse afastar qualquer coisa que se lhe agarrou e o molesta.
- vou dormir - diz o doente. - E tu?!...
- vou ler um bocado.
- Se por acaso tiver a pouca sorte...
- Cala-te aí, já falaste de mais... Até logo!
- Adeus, pá!
Agora vou dormir. Tenho a impressão de que vou dormir por muito tempo...
- Fecha a janela. Sim, a janela. Não, não feches. Desculpa... Fica aqui mais um bocado. Já não me apetece dormir...
- Fazia-te bem.
- O que me faz bem é saber que estou acordado.
- Então, fala.
- Em que queres tu que eu fale? Demora-se o silêncio entre os dois.
O luar galga a janela e vem rojar-se no fundo do quarto.
241
- Tu achas que vou melhorar?
- com certeza.
- bom, então, sempre vou ver se durmo.
O Jerónimo faz um gesto para se levantar, puxa a mão, mas o outro segura-lha com ansiedade.
- Deixa-me adormecer assim... Quando eu era pequeno adormecia sempre com a mão da minha mãe agarrada. Assim... Tem paciência... Quando ela ficava ao pé de mim nunca tinha medo de nada. E agora preciso de não ter medo... Percebes?
- Anda, dorme.
- Percebes?...
- Percebo, sim.
242
Algumas Maneiras de um Homem sem Família Passar a Noite de Natal
CLARO que não tenho a mania de ser mais esperto do que os outros, embora o seja. Vamos por partes. Sempre gostei das coisas bem arrumadas; foi uma virtude que me ficou dos tempos em que na repartição era eu quem sabia sempre de tudo. Não, não estou a exagerar. Disse realmente de tudo e não receio que me desmintam. Cheguei a ter aqui dentro, na cabeça, um ficheiro completo de todos os números das pastas do nosso arquivo. E não era brincadeira nenhuma, não. Eram duzentas e quinze pastas todas escritas com a minha caligrafia na capa e na lombada. Na capa em letra francesa e na lombada em cursivo inglês, tudo em finos e grossos que parecia mesmo impresso numa tipografia. Que digo eu? Melhor do que numa tipografia. Mas vamos por partes. Se há livros que explicam com minúcia as mil maneiras de cozinhar bacalhau, uma coisa bem reles e vulgar, se já se divulga
245
também por aí o processo de irmos à Lua em foguetão, o que não me interessa, devo dizer, se há também formas práticas e eficientes de tirar todas as nódoas nas virtudes, acrescentando-lhes medalhas, se for preciso, eu peço-lhes que me digam, por favor, se não será igualmente prestimoso que me tenha resolvido a explicar a todos os homens sós, como eu, algumas das maneiras de se passar a noite de Natal. Sem gastar muito, é claro. com dinheiro à larga, qualquer resolve tudo, sem necessidade de recorrer à imaginação.
Devo esclarecer, é claro, para nos entendermos como amigos, como bons amigos, que sou um homem imaginativo, o que me tem causado alguns dissabores, mas o que também, por outro lado, me facilitou esta vida ronceira de que hoje desfruto, não só pela reforma, mas por mais uns centos de escudos de rendimentos mensais, muito esmifrados, com que pretendo manter-me até ao fim da vida. Uma vida longa, como espero, pois não sofro, na verdade, de qualquer doença grave.
bom, já percebi a vossa curiosidade quanto aos meus rendimentos. Mas o segredo
246
é a alma do negócio, embora não se possa dizer propriamente que sou um negociante. Não, isso não sou.
Fui funcionário público, como já o revelei, hoje estou reformado, não por limite de idade, mas por uma pequena manobra que fiz na junta médica, o que não consegui inteiramente mercê da minha imaginação engenhosa, mas à sombra de uns dinheiros que despendi em vaselina...
Não, não se trata dessa vaselina; deixemo-nos de enigmas. Eu chamo vaselina àquilo a que os outros, impropriamente, chamam luvas. Pois reformei-me com vaselina, a coisa não foi fácil de todo, e com umas facilidades que dei a certas pessoas (facilidades legais, é evidente!), pude juntar uns contitos de réis, emprestados depois a alguns colegas, a certos chefes de repartição e até a muita gente com senhoria, que hoje finge não me conhecer. bom! Creio que já fui longe de mais e não esperem que lhes apresente uma lista dessas tais pessoas. Não sou vingativo. Considero os meus empréstimos como verdadeiros serviços à causa pública, e, tal qual como
247
o Estado, devo ser cego, surdo e mudo para esses aspectos.
Há muita gente que tem comendas de benemerência, não receio afirmá-lo, que merecem o título de comendador bem menos do que eu. Mas já estou habituado a injustiças. Salvei muita gente da cadeia, disso tenho plena consciência: evitei que dois funcionários de tesouraria se suicidassem, facilitei alguns casamentos com empréstimos por pagamentos suaves, embora sem bónus, e também ajudei um amigo a divorciar-se, o que pode parecer uma contradição.
Nisso, devo confessar que fui bastante minucioso, pois só quando tive a certeza de que o Elisiário era enganado, é que me decidi a emprestar-lhe o dinheiro para desatar as grilhetas. (Gostei sempre desta palavra grilheta, desde que a encontrei uma vez num poema de Vítor Hugo.) Vi tudo em pormenor com os meus próprios olhos e até com as minhas próprias mãos. O Elisiário não era, realmente, um dissoluto, como a mulher dizia, e ela não era, de forma alguma, aquela pobre vítima de tez pálida que todos lamentavam. Só ainda
248
hoje não entendo como o Elisiário não foi capaz de perceber o meu escrúpulo, o meu honrado escrúpulo, é bom acrescentar, levando a mal, quando soube, que eu também andara muito perto da sua cama matrimonial. Não fui capaz de lhe macular a cama, isso não, porque conheço os amigos, e acho a cama matrimonial um lugar sagrado.
Pois o Elisiário, o malandrete, apegou-se àquela e ainda me deve quatro prestações do empréstimo que lhe concedi, além de seis meses de juros a vinte por cento. Claro, vinte por cento em seis meses! O quê, parece-lhes exagero?!... Lá estamos nós!
Vinte por cento, em seis meses, quando se está de corda na garganta, é uma insignificância. Eu sou dos que não dão importância ao dinheiro. E o dinheiro, meus amigos, deixem-me tratá-los assim, uma vez que já nos conhecemos há alguns minutos, o dinheiro não vale pelos números que mandam pôr nas notas, tanto mais que há notas falsas, mas pelos serviços prestados em certos momentos. Sem querer ainda lembrar que os riscos são muitos, uma vez que há muito boa gente incapaz de cumprir
249
o que combina. Isto quer dizer em linguagem financeira que os incobráveis são bastantes.
Julgo que o caso do meu amigo Elisiário vale largamente para demonstrar que não sou um negociante e, muito menos, um prestamista. Vejo tudo muito bem, desço aos mais pequenos pormenores, como já verificaram, e só depois largo a corda de salvação. Uma corda de salvação não é coisa que haja por aí como as bruxas ou as casas de reeducação de raparigas.
Faz-se uma letra, um papel, tudo regular, tudo legal, e aí está como vivo. Aqui e acolá tenho os meus agentes, as minhas sondas, a quem pago, e "voilà", como dizem os franceses, e muito bem. A França é um grande país. Mas vamos por partes.
Já disse, portanto, quais os elementos materiais que contribuem para esta vida honrada e limpa, não devendo também ficar na ignorância os sacrifícios consentidos por mim para continuar solteiro e ser inteiramente livre. Nesta idade, solteiro, e nestes tempos perturbados, livre, é qualquer coisa de significativo e de heróico.
250
E de triste também quando chegam estes dias alumiados e se vive num quarto interior, sem querer dar confiança à dona da casa, não venha ela contar-me de lágrima no olho, preparando-se para me comover com algum adiantamento, certa história que eu bem conheço de um rapazola, seu afilhado, como ela lhe chama, e que anda de moto por essas ruas de Lisboa a espantar as pessoas sossegadas.
Embora sem dizer o meu nome, que não interessa, julgo ter dado acerca da minha pessoa certos dados fundamentais de comportamento e de carácter, bastantes, só por si, para que me julguem habilitado a sugerir algumas maneiras de um homem sem família passar a noite de Natal.
Os pobres não vêm aqui para o caso. Que se amanhem!
Eu se fosse rico, e se Deus me conservasse esta imaginação prodigiosa, vestia-me de pobre no dia de Natal e ia, por essas estradas fora, mostrar aos pobres como na humildade se pode viver sem rancores, quanto é feio o mal ruim da inveja, e que todos somos irmãos, embora de pais diferentes, o que é muito mais saboroso
251
do que ser irmão por actos irreflectidos do mesmo pai.
Se fosse rico, dispunha, com certeza, de quatro automóveis, uma vez que o automóvel é nos nossos dias o brasão insofismável do poder social. Mesmo empenhado, o automóvel substitui perfeitamente a inteligência, a cultura e a dignidade, coisas que não se podem reparar quando não funcionam bem, ao contrário do "espada", susceptível de levar peças novas ou de ser trocado.
Desculpem estes desvios, tão próprios, quero lembrar, dos rios impetuosos, que sempre devaneiam pelas margens mais próximas do seu curso. Voltemos, pois, à minha fantasia. Vestia-me de pobre, como já disse; e para que sentissem bem a minha resistência às canseiras, às dores e às mesquinhas solicitações do corpo, ordenaria aos quatro condutores dos meus carros e das minhas duas "roulottes", que me perguntassem, de quarto em quarto de hora, se eu queria uma boleia.
- Não, não quero. Sou pobre e mal agradecido! - respondia eu com pedras na voz, já que não as podia levar na mão,
252
não fosse alguém julgar que eu as queria atirar aos automóveis e daí resultasse a minha prisão, o que não cabe nas minhas hipóteses.
Devia ser divertido e bizarro este passeio. Caminhar horas sem conta, por essas estradas, com um dos meus fatos novos todo roto, de propósito, suportando estòicamente o convite malandro e cínico dos motoristas, apostados então em me vexarem. Era uma maneira simbólica e bela, digamos, de demonstrar que a pobreza guarda as suas virtudes e os seus pergaminhos.
Só uma coisa me embaraçaria, estou certo. E não é fácil resolvê-la, mesmo com a minha imaginação. Depois de andar quatro ou cinco horas a pé, alimentado a sumos de frutos e a pedir esmola (sempre gostava de saber quanto ganha um bom pedinte !), em qual dos carros é que deveria regressar a casa?
Ora vejamos!
No "grand sport" seria escandaloso. De belo efeito, sem dúvida, mas via-se pouco, e o objectivo desta digressão seria o de me mostrar bem. com a roncadeira e a velocidade
253
poucas pessoas poderiam verificar que a humildade e o luxo cabem no mesmo assento. A não ser que atropelássemos um ciclista ou um peão, e já seria possível harmonizar o belo efeito do meu regresso, pois teríamos de interromper a marcha para indicarmos o nome da companhia de seguros, responsável pelo incidente.
Julgo, sem dúvida, que a "limousine" com motorista e trintanário (será assim que se chama ao homem fardado que abre a porta?) seria muito mais significativo. O automóvel a trinta à hora, para que me vissem bem os outros pobres, podendo parar-se em certas terras do percurso, de maneira a que eles se consolassem com o meu caso e percebessem que a qualquer outro poderá um dia suceder o mesmo.
Depois, quando chegasse, recebido com música e discursos, ofereceria um bodo aos ricos da minha freguesia, indo eu próprio servi-los em malgas de barro. Os jornais mandariam repórteres e fotógrafos para fixarem o acontecimento (disporia de amigos para tratar do caso) e talvez as agências estrangeiras se interessassem pela novidade, não esquecendo, é claro, a rádio e
254
a televisão, sempre atentas a manifestações deste tipo.
Que lhes parece?
Isto é uma das muitas maneiras de que dispõe um homem rico, e só, de passar um Natal acompanhado, se não preferir esfalfar-se em Saint-Tropez ou passear-se pelo Médio Oriente montado num camelo, uma vez que por aqui não há camelos disponíveis para o efeito.
Mas os outros homens como eu?!...
Sim, os que pertencem a esta classe remediada, tão mal vista pelos pobres e pelos ricos? Os que comem numa casa de pasto e só têm como família o galego da mesa e o galego da cozinha? E mesmo esses só em função duma gorjeta, mal agradecida, se não roça pelos vinte por cento da despesa.
As coisas realmente não estão bem. Desculpem que lhes diga, mas o quadro do nosso serviço social ficará sempre incompleto, enquanto não se resolver o caso dos homens sós que precisam de carinho por uma noite, ao menos. Sim, se fosse para todas as noites, vamos lá, com a breca, podia parecer abuso, e era-o de facto. Mas
255
uma noite, meus senhores... Uma noite é incompreensível.
Se um dia fosse Governo, faria um decreto muito simples:
Todos os homens solteiros, munidos do seu cartão de identidade, e só a partir dos quarenta e oito anos, para evitar alguns abusos dos que ainda viessem a ter lar, poderiam escolher à vontade, sem coacções de qualquer espécie, a casa ou a instituição onde desejassem fazer o seu jantar de Natal. Desta obrigação ninguém estaria isento, ficando revogada toda a legislação em contrário.
Um decreto, vinte linhas quando muito, e aí tínhamos resolvido um grave problema de saúde espiritual. Sim, porque a saúde espiritual é bem mais importante do que a outra. Uma epidemia neste órgão precioso, que é o espírito, pode trazer consequências terríveis para todos. Vejam-se certas demências colectivas... Não lhes parece?
A pergunta que me estão a fazer, desculpem a franqueza, não é leal.
Onde passaria eu a Noite Maior?...
A interrogação leva-me a precisar melhor
256
a índole e a regulamentação do decreto que promulgaria, se chegasse a ser Governo em qualquer país civilizado. Seria conveniente criar-se uma repartição pública, onde quinze dias antes do Natal, todos os solteiros, nas condições já atrás indicadas, fizessem a sua inscrição, na qual constaria a casa ou instituição onde pretendiam passar a noite, de maneira a evitarem-se acumulações, agora proibidas, em certos lugares mais disputados. O anfitrião daria o jantar e uma prenda ao seu hóspede, prenda essa que era obrigatória e tanto poderia estar pendurada no pinheiro engalanado, como na prateleira ou em cima de um móvel.
Para o efeito haveria fichas de todas as famílias, instituições, restaurantes, hotéis e pousadas. É evidente! Os hotéis e as pousadas não poderiam ficar isentos desse serviço social, tanto mais que para alguns deles todos pagamos a nossa contribuição. Eu, por exemplo, não me interessava por uma hipótese dessas, o que não quer dizer que outro homem, ou mulher, claro, não quisesse ir passar a sua noite ao Ritz, sim, a uma "suite" do Ritz, ou ao Estoril...
257
Posto isto, se passasse o Natal em Lisboa, e uma vez que teria a prioridade de escolha, atendendo à minha qualidade de autor do projecto-lei, posso declarar que na minha inscrição escreverei o seguinte : - Desejo passar o Natal no cofre forte de um Banco.
Não há aí que comer, bem sei, mas eu próprio levaria umas sanduíches, se os administradores não entendessem, por cortesia, mandar-me servir uma boa refeição. Bastava-me o supremo, o inefável gozo de olhar aquele dinheiro todo, aos maços, às pilhas, e de esperar, emocionado, qual dos pacotes me dariam como lembrança. Seria uma coisa magnífica e esplendorosa!
O decreto nunca poderia admitir uma hipótese dessas? É boa!...
Peço que ordeiramente discorde de tal decisão, afirmando com humildade, se tanto me é permitido, que o significado do nosso serviço social se diminuirá muito com essa excepção. Sim, não me digam que o remédio para os homens sem família é a distribuição de quatro ou cinco pastilhas sedativas para dormirem a noite inteira.
Porque não me casei?!...
258
A pergunta é ofensiva.
Mas se confessar que o não fiz por ter medo do futuro, os senhores ainda são capazes de me acreditar? Exactamente: por recear que os meus filhos não dispusessem daquele mínimo que os homens devem contar para que a vida não se torne num fardo pesado e triste. Foi uma luta tremenda, podem crer!...
Tive juventude, sim, e sonhos também... E um desejo enorme de ter casa minha, não direi com jardim, mas, ao menos, com uma varanda onde pudesse criar flores. Gosto de rosas, sim, das brancas... Brancas e pequenas. Não me interessa o perfume, mas gosto de rosas pequenas e brancas. Levei muitas à Ermelinda...
Quem é a Ermelinda?...
Uma rapariga que namorei. Agora não parece que alguém tenha podido gostar de mim, mas a verdade é que nos amámos. E só eu sei o que sofri quando arranjei um pretexto para acabarmos. Aqui para nós estou arrependido, mas já é tarde. Não seria bonito... Já tenho dificuldade em vê-la na imaginação.
Sim, era um nadinha baixa, talvez forte,
259
mas a voz parecia um berço. Tinha cabelo negro, ondulado, olhos ternos, mãos maravilhosas... Não teria uma boca bonita, concedo, mas aos dezanove anos era fresca como a água de uma fonte de que bebi, há já muitos anos, quando estive em Alpedrinha a tratar de uma fraqueza.
Só sei que ela casou. Nunca mais nos vimos... Desconheço a vida que leva, nem isso já me pode interessar.
A minha é esta: viver em quartos alugados, comer por aí e emprestar dinheiro. A sensualidade foi-se-me toda para o dinheiro que juntei. Também não tenho mais nada.
Que penso fazer desse dinheiro? É uma pergunta sensata.
Não vou durar muito, talvez, a máquina já não está para grandes andanças. O coração não me parece bom... não me deixa dormir. Anda pesado, é assim uma pedra com muitas arestas um bocado duras.
Não, não estou a desviar a conversa. Gosto um pouco de magicar, mas não sou matreiro, embora o pareça.
Se de todo me interditam a passagem da Noite Maior no cofre forte de um Banco,
260
concedo alternativa, mas desta não arredarei. É ainda mais bonita: vou à minha terra fazer a festa de Natal. Escrevi a um amigo dizendo-lhe que desejo oferecer um cheque de cem contos aos velhos da minha freguesia, mas que quero entregá-lo ao presidente da Junta num banquete que me oferecerem. Ele respondeu-me ontem, tenho aqui a carta no bolso, e dá-me conta que a fanfarra me vai esperar à estação do caminho de ferro, que há proposta para que seja dado o meu nome à rua onde nasci, e que a inscrição para o banquete já vai em mais de cem pessoas - tudo gente grada.
Preciso de escrever um discurso. Receio emocionar-me e não dizer tudo o que me comove nessa festa de gratidão, em que vamos agradecer uns aos outros a ventura desse encontro depois de tantos anos de ausência. Hei-de pedir para me levarem à escola onde aprendi a ler. Aí quero que não haja sessão solene nem foguetes. Hei-de entrar sozinho e tenho a certeza de que serei capaz de ir sentar-me, mesmo de olhos fechados, na carteira onde fiz o meu exame. Deram-me dezanove valores, sim senhor,
261
soube o reinado de Dom Pedro I, o Cruel, sem trocar uma data disse a passagem do Cabo Bojador, a batalha dos Montes Claros, o terramoto de Lisboa, não dei um erro nos problemas, e um deles, com laranjas, não era nada fácil, e só me enganei no ditado, uma coisa de nada, um assento numa palavra esdrúxula, que, aqui para nós, é um palavrão que não se devia ensinar às crianças.
Passemos adiante.
No banquete de homenagem mostrarei toda a modéstia de que sou capaz, dizendo vários "não apoiados" quando me elogiarem, embora sorria sempre. Finalmente, chegada a ocasião do meu gesto nobre, entregarei o cheque de cem contos, todo escrito pelo meu punho em cursivo inglês, à autoridade máxima da freguesia que agradecerá, como lhe compete, em nome dos velhos pobres, ou dos pobres velhos, tanto faz, entre os quais estarão muitos amigos meus a quem recusarei as mãos, se mas quiserem beijar. Não aguento coisas dessas ! Enojam-me as subserviências...
E logo ao fim da tarde regressarei a Lisboa no primeiro comboio que passar,
262
cansado de música, de discursos, de foguetes e de vivas, das crianças das escolas e dos velhos agradecidos, das flores que me entregarão e dos lenços que hão-de encher de acenos aquela mesma estação donde parti, sozinho, há mais de trinta anos. Hei-de sempre recordar esses dois dias tão diferentes até ao fim da vida!... E com a certeza do dever cumprido dormirei na minha cama de solteiro, à espera dos jornais da manhã que hão-de trazer o meu retrato e os elogios que me tecerem (que verbo tão feio !) na homenagem às minhas excelsas virtudes de cidadão honrado. Não sairei do quarto à espera que me venham buscar...
Não, nada disso! Porquê a morte?!... A morte virá, é claro, mas vamos por partes. Nada de atropelar os acontecimentos. Antes da morte terá que aparecer a polícia... Sim, a polícia. Não gostam da polícia? !... A verdade é que a polícia não pode deixar de entrar neste final de festa. É pena, mas é fatal. Eu explico: a polícia deve aparecer, forçosamente, uma vez que não tenho cem contos depositados no Banco. O cheque está sem cobertura. Disparate!
263
Pensei agora que o cheque é capaz de ter frio sem sobretudo.
É lamentável este gracejo, sem dúvida.
Mas é ainda mais lamentável que me venham prender depois de tudo o que fiz. A gente passa um cheque com boa intenção e não há, e aqui é que se põe a gravidade do problema, quem pague um centavo por uma boa intenção...
Ou pagam?!...
264
A Festa de Natal
O facto de ser estrábico, ligeiramente estrábico, não quer dizer que o Silveira, o Raul Silveira, gerente principal da Cerâmica da Pontinha, Limitada, seja um homem de ideias vesgas ou de vistas curtas. Pressente até os riscos dos negócios, à distância, ele mesmo diz que se increspa por dentro como os gatos por fora, o que se deduz sem esforço, se nos lembrarmos que nunca perdeu um chavo com certos construtores civis da Amadora ou de Almada, antigos trolhas ao serviço de conceituados prestamistas, galifões de juros altos e de golpes brandos, já que a brandura é a escola nova de todas as mortes serenas mas irremediáveis.
Esta percepção quase divina dos grandes perigos deu-lhe um prestígio enorme entre a miuçalha da sua indústria. E porque não lhe falta a palavra fácil para esconder bem o que almeja, há quem o trate por senhor engenheiro, o que está certo, de tais
267
engenhos se vem valendo para navegar neste mar eriçado, expressão muito sua, talvez por ter desejado, quando jovem, entregar-se à marinhagem. Foi por isso, talvez, que o Raul Silveira entendeu tão rigorosamente certo discurso cheio de violentas branduras: - "A hora da industrialização não se compadece com formas antiquadas de exploração fabril, mais de oficinas de artesanato do que de unidades válidas, e há que empreender desde já todas as reformas das estruturas, de maneira a que o nosso barco aponte a proa para uma nova viagem, onde se encontrará o progresso e o bem-estar."
O Silveira gostou da imagética maruja, mas disse logo consigo: - Agora é que são elas! Estou lixado!
Isto significa que entendeu perfeitamente a mensagem do seu breve fracasso, se não conseguisse pôr a fábrica a trabalhar a um ritmo mais vivo, coisa que não se processa só com boas intenções. "E dinheiro para o barco andar?" interrogava-se preocupado, recordando-se depois que a antiga sabedoria popular, mal preparada para os tempos de hoje, dizia com pavoneio
268
"grande nau grande tormenta", o que era, em boa verdade, uma forma habilidosa e canalha dos idiotas preferirem as naus pequenas, deixando só a alguns as viagens nas naus maiores.
Vendo bem as perspectivas, propunham-lhe uma espécie de batalha de Lepanto, o que era uma grandessíssima gaita, pois as cartas de marear destes oceanos das indústrias estão nos cofres de uns tantos e mais ninguém se serve delas.
O Silveira não se ilude. Talvez por ser pequeno, como os frascos de perfume concentrados, o Raul pensa bem com o corpo todo, o que não quer dizer que pense com os pés, mas que o seu raciocínio não tem de fazer grandes viagens para vir de um extremo ao outro, o que lhe traz vantagens apreciáveis para as resoluções prontas. Isto confirma que o Silveira discorre com inteligência, o que não admira, se se souber que ainda o pai levara a vida inteira a puxar com os bicos da enxada o céu para a terra. Sem lhe deixar mais do que a enxada.
O Raul Silveira é, pois, um destes portentosos homens do nosso tempo que se
269
fazem a si próprios, já que Deus não pode agora fazer todos os seres humanos à sua imagem e semelhança.
Dar o balanço à situação não significa nesta passagem, mesmo para gente de veia marinheira, que o Raul tivesse de prever se o balanço do barco se dava da proa para a ré ou de bombordo para estibordo, embora em nau pequena sejam de recear todos os devaneios das ondas. Tratava-se aqui de meditar em profundidade nos perigos e nas boas marés que o discurso lhe reservava, manobrando a tempo para entrar em águas mansas, o que dá sempre jeito e proveito.
Mas o que lhe dizia o estudo da situação, era de molde a enchê-lo desta melancolia profunda que esbandalha as classes médias, nem carne nem peixe, permanentemente receosas de que um golpe de azar as atire para o lodo de baixo, e sempre sonhadoras de que um bambúrrio da sorte as ponha a voar, sem asas, no céu magnífico da abastança eterna. Neste constante saltar do banho turco para o chuveiro de águas frias, quase sem pausas, a classe média ataranta-se, enche-se de recalques,
270
cumprimenta Vossa Excelência, mas também sorri certas complacências para o servo que lhe pode dar um jeito, desarranja o coração, encortiça as artérias e anda sempre com o credo na boca, o que quer dizer que lá vai andando ao sabor do crédito.
O Silveira tem uma noção exacta deste drama.
Não ignora, portanto, que a pequena ou a média empresa é uma espécie de Belzebu da nossa época, a última maldição dessa praga do meio termo, tão incómoda se revela para os assalariados que precisam de mais jorna, como para os grandes senhores da indústria que precisam de mais lucros e de melhores preços. Não dispondo de dinheiro próprio ou a prazos largos, vive de letras a sessenta e noventa dias e não pode comprar máquinas modernas. Precisa de vender alguma coisa para se iludir e vai de cambulhada atrás dos preços dos grandes que esperam a sua falência para se encherem na volta. Quanto mais vende mais se encalacra. Os juros comem consigo à mesa, até que lhe levam a mesa. Antes disso, porém, obriga-se a meter mais pessoal
271
para fazer o trabalho que as máquinas caras resolvem quase sozinhas. Dá mais trabalho aos homens, mas paga mal e com má cara, não consegue racionalizar o andamento das máquinas velhas e do pessoal. E como tem mais gente ao serviço paga mais descontos. E não há descontos que lhe perdoem. Afoga-se em pagamentos, mas pagam-lhe a más horas, não lhe têm respeito, nem medo, nem vergonha. Assina letras diariamente, substitui umas por outras, precisa de dar lucros aos sócios, paga contribuições, e é sobre estas que atira todos os males de que sofre. É como o pobre que sofre de tudo e só se queixa de reumático, quando está velho. Acabam por lhe oferecer, por esmola, uma cadeira de rodas que ele próprio pagou desde o berço e que ele próprio tem de mover.
O Raul Silveira tem uma noção exacta de tudo isto.
Sabe também que a grande indústria oferece dividendos curtos aos accionistas, a boa maquia fica entre os administradores e no pagamento do chamado tráfego de influências que facilitam os melhores negócios,
272
às vezes simples cheques distribuídos para os pobrezinhos de Vossa Excelência, não se poupa na compra de máquinas mais expeditas para dispensar mão-de-obra, deixa os contactos com o pessoal a encargo dos empregados superiores, mas ao operário que conserva dá casa, campo de futebol e equipamento, missa aos domingos e festa anual em Dezembro. É o patrão ideal. Até pensa pelo servo. E nisso é de uma exigência avassaladora.
Por isso mesmo o Silveira já propôs a entrada para a Cerâmica da Pontinha, Limitada, a um capitalista das Áfricas, e aquilo vai tudo levar uma volta. Já recebeu os catálogos e os preços das máquinas novas, aumentará o rendimento fabril no quíntuplo da produção e dispensará dois terços do pessoal que tem ao serviço. O outro prometeu-lhe estudar todas as possibilidades do negócio, embora aguarde que o Silveira rache para lhe comprar a fábrica em praça. Mas está enganado, porque o Raul já preparou um relatório com muitos mapas para apresentar no banco novo, e está convencido de que, se o africanista se fizer fino, o caso será resolvido pela outra via,
273
antes que o tal barco se safe sem ele para a viagem onde encontrará o progresso e o bem-estar.
O jornal da terra estragou-o com mimos, aqui há tempo, quando lhe caçou um anúncio de página e resolveu tratá-lo, em artigo de fundo, por "espírito dinâmico e empreendedor, verdadeiro exemplo fecundo desta época de paz social", publicando-lhe ainda por cima o retrato, de perfil, é claro, para que se não percebesse o estrabismo do Silveira.
A sua serenidade habitual transtornou-se. E vá de meter o carro antes dos bois, ele que sempre fora até aí um padrão de equilíbrio, tomando em conta, é evidente, o desequilíbrio permanente em que se angustiam, na corda bamba, os homens da sua classe. Como é pequeno não deu muitas voltas ao pensamento. Mandou emoldurar dois exemplares do artigo, colocou-os um no refeitório do pessoal e outro no seu gabinete, e chamou o guarda-livros
274
e o mestre da fábrica, já a gozar com o espanto destes quando lhes dissesse o seu plano. Uma coisa natural.
Interrogavam-se ainda os outros com o olhar, quando ele se ergueu da cadeira e lhes despejou em cima a cornucópia das surpresas.
- Embora as coisas não corram pelo melhor, como sabem, quero dar uma prova de confiança no futuro... Eu acredito no futuro (era uma fé!). Quero dar ao mesmo tempo uma prova pública do apreço em que tenho o meu pessoal. Nem todos o merecem... Vocês percebem o que quero dizer com isto. Mas pode ser que até esses compreendam as boas intenções de que estou possuído.
Na boca do Silveira as palavras pareciam engraxadas de novo e ganhavam lustro. A sua voz cantava-as e dava-lhes uns boleios, uns pequenos toques subtis, como se lhes pusesse bandeiras de todas as cores a engalaná-las. Os dois ainda não o tinham ouvido no melodrama. Para o exterior ele era todo optimismo, como os retratos dos políticos de hoje, mesmo nas horas ásperas. De resto não vem aqui a propósito
275
falar-se da voz encharcada de plangências do Silveira.
- Vamos fazer este ano uma festa de Natal... O que é para mim uma festa de Natal?
Os dois chefes arregalaram os olhos miúdos, e mais ainda o guarda-livros do que o mestre de fabrico, pois aquele bem sabia o preço de venda do tijolo e da telha, e assim nada feito, já o dissera ao patrão Raul com os mapas ali na mão. Mapas que falavam como gente.
- Uma festa de Natal deve dizer amor... Amor tem quatro letras, tantas letras como Deus.
O Gonçalves, o guarda-livros, pensava que as letras com que se escrevia a situação da Cerâmica andava aí pelas cem, todas muito bem registadas no livro de letras a pagar.
- Confraternização autêntica entre todos nós, um lanche, uma árvore com brinquedos para as crianças...
- E um pequeno sarau - acrescentou o guarda-livros que era todo teatro e música, ambos ligeiros, para lhe não bulirem com a úlcera do duodeno.
276
- E um baile - disse o Silveira. Quero ver a confraternização em pleno.
O mestre torceu a cara.
- Lá isso de baile, não concordo. Dá-se-lhes confiança a mais e depois quem os aguenta sou eu..Na, lá o baile, não !
Convincente, o Silveira insistiu no baile, enquanto o outro resmungava que não poria lá os pés, tivesse santa paciência, porque era a ele a quem pediam contas das indisciplinas. O gerente fez ouvidos de mercador e voltou-se para o Gonçalves, radiante com a ideia do sarau. O gosto ao retrato no jornal desvairara-o e já se via rodeado da sua gente, numa fotografia a duas colunas, numa santa família exemplar, que provocaria nova girândola do director do "Mensageiro da Serra".
Era esse um dos trunfos com que contava para impressionar o africanista, convidando-o como hóspede de honra. E se a cajadada saísse certeira, tinha o futuro resolvido.
Acabavam-se nesse dia os seus dramas de sobrevivência.
O Gonçalves atrasou a escrita depois de se ver em dificuldades para explicar que a
277
festa era colectiva, sim, de todos, e que a fábrica nada teria a pagar pelas horas dos ensaios, "era o que faltava, divertimo-nos todos, pois claro, e o senhor Raul vai oferecer um lanche ao pessoal e à família, quer dizer aos que vivam debaixo da mesma telha, e ainda brinquedos para os nossos filhos, quer dizer para os que tiverem filhos, eu não os tenho, graças a Deus!" O pessoal parecia não o compreender lá muito bem, torcia-se "ora o senhor Gonçalves tem cada uma, a gente agora feitos cómicos", mostrava-se difícil em decorar os papéis da peça, uma farsa em um acto do repertório do Ginásio, destoava no coro d'A Mulher do Padeiro e nos números individuais, e só mostrou resignação quando ele lhe propôs a compra de um retrato do Silveira para inaugurar na cantina.
O mestre, o João Gregório, desconfiado com tantos luxos, ria-se para o Gonçalves e todas as tardes vinha comunicar ao escritório que o pessoal andava mais lento. As raparigas do enxugo do material queixavam-se de que a cantoria cansava muito, o ajudante do forno, pelo contrário, passava os dias, descuidado, a afinar a garganta
275
para quatro fados que iria cantar, dois homens dos barreiros tinham-se pegado ao soco por causa da farsa: o que fazia de marido enganado começou a embirrar com o papel, os companheiros entenderam que lhe deviam dar, por extenso, o nome que merecia a pachorra da situação teatral, e o outro foi à serra e virou o camionista com um murro no meio dos olhos. Este gritou, "ai Jesus que estou cego", fizeram-se dois partidos, quer dizer dois grupos, porque propriamente partidos ficaram alguns cinco, e a peça teve de ser cortada do programa, não fosse a farsa dar em tragédia antes da festa. O único que sabia o papel dele e dos outros era o alimentador dos fornos, e esse acabou por se zangar também, pois foi propor ao senhor Gonçalves para ele sozinho dizer a peça toda. E não houve razões que o demovessem.
- Não sei porquê o senhor não me grama, o senhor nunca me gramou.
- Ora essa! O Artur está a ser incorrecto...
- Ainda por cima. Querem levar a peça, sei-a toda na ponta da língua e o senhor agora diz que a peça não vai.
279
- Oh homem !... Você não está a ver...
E, desejoso de contemporizar, ainda sugeriu um trecho dos Lusíadas ou a Balada da Neve. O Felício virou costas e o mestre, o João Gregório, só dizia: eu não o avisei? No fim da festa temos de correr com o pessoal todo, é o que lhe digo. Ficamos todos a fabricar telha sem barro. O senhor vai ver...
O patrão não sabia destes dramas e só pensava nos brinquedos e nos discursos. Já escrevera o seu e o do operário que lhe haveria de agradecer em nome de todos, depois do descerramento do retrato. Escolhera-se o Caetano que era fiel de armazém, um serviçal antigo e homem de boa voz, de voz grave, como o Silveira gostava.
O carpinteiro fez o estrado, as raparigas perderam meio dia de trabalho a preparar os festões de verdura com rosas de papel para alegrar o refeitório, e o grupo musical apareceu duas horas mais cedo para afinar com as vozes que cantavam, pois os ensaios tinham-se feito sem música. E aquilo não havia meio de dar certo: umas vezes sobejava voz, outras vezes sobejava música, uns começavam em agudo
280
e acabavam esganiçados, outros, nervosos, principiavam num tom grave e ninguém os ouvia, e a pobre úlcera do Gonçalves é que pagava tudo, azeda, azeda de todo, pois era nela que passavam as fífias e o receio do fiasco.
Por causa do africanista que veio com a família no automóvel, trombudo, o Silveira não atendeu desculpas e ralhou. E deu início ao lanche, castigando os "artistas" com o ruído da coparia, sinal evocativo dos prazeres da gula, que era de toda a festa o número mais importante, enquanto os pobres lá continuavam a ensaiar no armazém, ante o desespero do Gonçalves que só pedia pianinho, pianinho, e os ouvia vada vez mais berrões, como se gritassem por pão.
Já só com migalhas na mesa apareceram, lívidos, os "artistas", trazendo o Gonçalves, feito varejeira, ainda à perna. - Não te esqueças: depois da música fazer perlipipi é que tu entras.
Ganhou duas alcunhas - uns chamavam-lhe o "Pianinho" e outros o "Perlipipi".
com o seu olho azul e malandrete, o
281
mestre João Gregório gozava de longe, a encolher os ombros.
E lá se deitaram músicos e cantores aos restos da comida, porque vinho não faltava, enquanto a esposa do africanista distribuía brinquedos e sorrisos pela molecada, como ela dizia para a filha, toda Silvana nos cantos dos olhos e nos ademanes do casaco de peles. A miuçalha gritava e grunhia, riam-se uns, choravam outros com despeito, e os pais juntavam-lhe a sua galhofa ruidosa, enquanto o fotógrafo disparava o magnésio em posições difíceis por causa dos ângulos. O Silveira sorria. Sorria por ter ali o africanista e sorria porque assim os retratos ficavam ainda mais festivos.
- Isto é uma família, uma verdadeira família - dizia em segredo para o africanista, que pensava lá consigo: "quando tomar conta disto, acabam-se as festas, lá isso acabam".
Então o Gonçalves veio pedir licença para começar o sarau, que ele próprio abriu com uma explicação e uma saudação em verso, a sua surpresa. Os versos estavam bonitos. Um nadinha anchos, mas
282
muito bonitos. Depois foi a vez da menina do escritório que cantou e dançou o Baião da Ana, toda requebros e olhos catrapiscadores, ante a vergonha das raparigas dos enxugos e a exaltação dos homens, entre eles o Silveira que dizia em voz alta "muito bem, muito bem, sim senhor", e lá por dentro se interrogava com espanto, "onde é que a rapariga tinha aquelas ancas metidas que nunca dei por elas"?
O refeitório desabou com palmas e assobios à americana.
O coro d'A Mulher do Padeiro começou num salto, por cima da música, e para ali andaram engalfinhados, qual de cima qual de baixo, como dois gatos miadores. Mas acabou bem. Acabou antes de tempo. As raparigas calaram-se e o grupo musical fez o resto. E as palmas taparam tudo. O fadista deu o sucesso mais graúdo: cantou os quatro fados por duas vezes, à segunda deu-lhe mais força e acabou rouco, o que agradou particularmente à filha do africanista que lhe achou muito sabor, "parecia o velho Alfredo".
Vieram mais números de canto, o rapaz das contas-correntes recitou duas poesias
283
exaltadas com mar e caravelas, e o Artur, o alimentador do forno, já bem encharcado em vinhos doces e amargos, teimou em fazer a peça sozinho, subindo ao estrado com o Gonçalves agarrado ao casaco, como se rabejasse algum toiro bravio. Houve rebuliço, porque uns teimavam em ouvi-lo e outros assobiavam o guarda-livros quando ele teimava explicar a "inoportunidade, a infeliz inoportunidade do Artur". O olho azul do mestre só sorria, o malandrim.
O próprio Silveira é que teve de pôr cobro à algazarra, mandando o Artur para o fundo do refeitório, o pobre diabo, que pensava deslumbrar o amo com o seu talento. Amuado, para ali ficou que nem um trapo. Fazia pena. Mas a matulagem é que perdera o respeito à festa.
E assim que apareceu o Rogério das prensas, todo vestido de preto, um nadinha a saltar do fato apertado, anunciando Saudade, Vai-te embora, os outros, que estavam fartos de o ouvir no trabalho cantar o mesmo, desataram a pedir outra:
- Canta outra, canta outra, essa já tem ranço...
A música deu a introdução, o Gonçalvês
284
fez o gesto de entrada, e o Rogério, atrapalhado, começou a cantar debaixo de água, muito baixinho. Depois enganou-se na letra, parou e pediu para a orquestra voltar ao princípio. A orquestra fez-lhe a vontade, ele distraiu-se com a entrada e a matula largou em gargalhadas de arrebenta, uns a pedirem bis, outros a exigirem a Rosa Arredonda a Saia. O Rogério é que os percebia, "queriam gozo, os malandros", e fazendo costas para o lado do patrão e dos convidados saudou-os, convenientemente, num gesto repetido e rápido dos dois braços.
Pararam os músicos com a apoteose do cantor, e este saltou do estrado que nem gamo, levando na frente quem lhe barrou o caminho até à porta da saída. Lá fora, pegou na sua bicicleta e pedalou que nem um possesso até à vila.
O sarau ficou por ali e chegou a hora das solenidades.
Distraído, o Caetano do armazém beberricava ainda com o seu compadre Tormentas, o Chico Tormentas, metidos numa aposta de quem aguentava mais. O Caetano ia em vencedor, mas esquecera-se do encargo.
285
Ficou zonzo quando o chamaram para junto do patrão e dos senhores de fora, e lá foi empurrado e beliscado até junto do retrato. O Gonçalves percebeu logo como ele ia, mas fiou-se no discurso que o patrão lhe entregara e deu uma breve explicação da homenagem. Uma menina, toda de branco, puxou pela bandeira portuguesa, a orquestra tocou o hino e o Silveira mostrou-se espantado e comovido, recebendo um meio abraço do africanista, já quase derreado com tanta festa.
Era a vez do Caetano.
O Caetano piscou os olhos, esfregou as mãos, a desfazerem-se em bagas de suor, deu volta aos bolsos, uma volta rápida, e julgou que não tinha o discurso. E disse num grito: - Estou desgraçado! Roubaram-me o papel.
Ajudou-o o Gonçalves na emergência, perante a expectativa de todos, desconhecedores do segredo daquele número inesperado. O Caetano metera o discurso no bolso traseiro das calças, não o perdesse, e esquecera-se com a aposta do vinho. Já de papel na mão, começou a tossir, jogou-o para a direita, jogou-o para a esquerda, e
286
as danadas das letras pareciam bolas, a correrem de um lado para o outro e a embrulharem-se todas umas nas outras que não havia olhos que as separassem.
O Silveira estava para morrer. Mas não podia intervir, porque doutra maneira trairia a espontaneidade da homenagem.
- Não percebo nada disto - largou o Caetano, de bom humor, abrindo os braços.
Perto dele, o africanista tirou-lhe o papel da mão, leu as primeiras linhas, e perguntou-lhe :
- O que quer você dizer?
O Caetano sorriu, piscou os olhos papudos e explicou que queria agradecer ao patrão.
- Então agradeça, homem. Você não sabe agradecer?
- Pois sei. Lá isso é que eu sei.
Quis o Gonçalves salvar a situação, pedindo o papel ao hóspede para que outro o lesse. Mas a tábua falhou, porque o africanista deu em achar graça ao Caetano e incitava-o, ao que depois aderiu o Silveira, resignado.
- Meus senhores ! - disse o orador. Começava a recordar-se dalgumas frases
287
que conseguira decorar e o seu rosto iluminou-se.
- Nesta hora... (olhou o relógio e sorriu.) Às seis horas e meia propriamente ditas, estamos todos aqui para agradecer ao nosso patrão Raul todos os favores... Favores e obrigações que este homem que aqui está, não é um patrão, mas é um pai.
Percebeu o Caetano que baralhava palavras suas com as do discurso escrito. Fez uma pausa longa e recomeçou:
- Isto agora é depressa. O pão estava bom, sim senhor. E o vinho... para melhor dizer, os vinhos eram todos de primeira, que o diga o meu compadre Tormenta que já não se aguenta nas canetas. Isto é tudo uma homenagem... Quem é que pode viver sem isso?... Eu sou uma homenagem, tu és uma homenagem, ele é uma homenagem... E assim sucessivamente... Viva o patrão! Viva a homenagem!
Tomado de balanço com os aplausos, sucedeu ao Caetano o que se dá com os oradores emotivos - já eram as palavras que mandavam nele.
- Já agora aproveito nesta hora de homenagem...
288
tenho a impressão que estou a dizer homenagens a mais...
O africanista (o gozão, pensava o Silveira) ia incitando o orador:-Muito bem! Muito bem!
- Pois eu acho muito mal, desculpe Vossa Excelência. A gente ganha pouco... É como quem diz... a gente vê-se, vê-se... (à brocha, não; não posso dizer à brocha) olhe, vê-se e não se acredita. São coisas do diabo! (O patrão está mal encarado e eu lixo-me com esta.) Mas a gente ganha pouco, é bem feito, porque o patrão, esse, coitado, ainda ganha menos. Sou eu que estou a falar... E este homem que aqui está não é um patrão, mas é um pai. E há certas alturas em que os filhos têm de trabalhar para os pais, doa a quem doer, para a frente é que é andar, assim é que é, seu Raul. Viva o seu Raul!
O Silveira agradeceu os aplausos com uma vénia, mas não puxou do papel. Fez o mesmo que o Caetano.
- Obrigado, isto é uma grande família, farei tudo o que estiver ao meu alcance para os tornar felizes, e quero agradecer em primeiro lugar a presença deste já
289
nosso grande amigo, grande figura ultramarina, que nos honrou com a sua presença. Viva a Cerâmica da Pontinha, Limitada!
- Viva!
O director do "Mensageiro" tomava notas de tudo, mas nos discursos embrulhou-se. Beijou a mão da senhora do africanista, disse à filha que nunca vira rosas de tanto viço em Dezembro e pediu uma biografia ao pai, o que ficou aprazado para um almoço íntimo.
Quando o automóvel partiu entre os aplausos de alguns, o Silveira voltou-se para o guarda-livros e só disse: - Ponha o Caetano no olho da rua!
290
A Noite Tranquila
É horrenda coisa cair nas mãos do Deus vivo. Epístola de S. Paulo Apóstolo aos Hebreus
É preciso aguentar E viver e lutar
Guillevic
TINHAM-SE estendido sobre o divã onde ele dorme, muito aconchegados os dois,
a tarde está fria e o pior é o vento que
o lembra,
um vento que geme e vibra como um
xilofone,
e a porta interior da janela de sacada deixa entrar a luz do crepúsculo que os vem acariciar àquele canto. Uma luz doce, difusa e doce, pensam ambos na modorra deste fim de dia de Dezembro, não, não é preciso o calendário para lho lembrar, nem sequer o bulício do outro quarto fronteiro ao deles, para onde Maria viu entrar um ramo de pinheiro.
Ficam sempre na mesma posição quando ela vem ali deitar-se, deixando o outro divã colocado em ângulo com aquele, de maneira a que a divisão alugada ( só paredes, são quinhentos escudos mas só a
293
vista para o Tejo vale o dinheiro) não pareça mais do que uma sala de visitas quando é todo o palácio onde habitam, ah!, o Júlio e a Maria têm um quarto muito giro, havias de ver, pá, fizeram um guarda-fato com dois corpos, e a porta, a porta, pá, é mesmo um achado, uma coisa gira a valer: levanta-se a porta dos gavetões, põem-lhe dois pés que prendem com fechos e serve de mesa para comer ou de secretária; o pior é que o puxador fica à mostra, pá, vê-se o volume debaixo da toalha, mas a Maria diz, sim, a Rainha Gimba é muito gira, ela diz que aquela altura é um dos seios da fortuna que o pai lhe vai deixar. E a sacada que deita para o Tejo? É um museu, pá, aquilo vale o Museu de Arte Contemporânea, um museu que muda em cada minuto.
Maria é muito serena, talvez tímida, gostava de ser mãe.
E como ainda não tem filhos, trata o marido como tal; anda sempre a embalá-lo nos olhos. Tira uma almofada do guarda-fato, ampara-a na parte do divã que faz de costas à estante onde arrumam os livros e as sebentas, estende-se, meio sentada, e
294
o marido pousa-lhe a cabeça em cima do peito. Ela afaga-lhe os cabelos crespos com a mão direita, entretém-se a desenrolá-los, e ele agarra-lhe a outra pelo pulso, coloca-a em cima da sua boca e começa a mordiscá-la, como se estivesse a comer bagos de uva de um cacho suspenso da videira. E trata-a por Ethel, só em casa é que a trata assim, não vão os outros chamar-lhes românticos, o Osório já o diz, e gosta que ela se vista de verde, sempre que possa, de verde-seco é mais bonito. A outra Ethel levava um vestido dessa cor quando a conduziram à cadeira eléctrica, eram vinte horas e onze minutos, e ambos juraram manter-se firmes até ao fim, haja o que houver, eles sabem bem o que é cair nas mãos do Deus vivo, e foi Maria que o disse nessa manhã quando choraram ao saber a notícia, sim, Júlio, no reino da suspeita e do medo que é agora o mundo, nunca nos separaremos, nunca, porque a verdade faz todos os dias o seu caminho.
- A verdade faz todos os dias o seu caminho...
- Mesmo que julguem matá-la.
295
- Quando julgam matá-la é que ela marcha mais depressa...
- Tu sabes dizer bem o que pensas sublinha Júlio, deixando a mão dela sobre o queixo.
- Só o sei dizer ao pé de ti. E ao fim de muitos dias, quando consigo coar todas as coisas que se atropelam dentro de mim.
- És a voz dos dois... A voz sensata dos dois.
- E tu a coragem.
- Ora! A coragem... O que é a coragem? Já aviste?...
- Encontro-a aqui (e corre-lhe os dedos pelo rosto) todos os dias.
- Quem há-de gabar o cavalo senão a dona...
- Tu és formidável! Lucidamente formidável...
- Tenho um metro e oitenta...
-...não, não brinques, de coragem. Saberes que não te consentem que faças o internato e seres capaz, logo a seguir, de arranjar um mostruário de caixas para amêndoas e de postais para boas-festas e ires oferecê-los pelas casas da Baixa... E sem uma recriminação...
296
- Sou transmontano. Fazemos a terra que não temos das pedras com que julgaram esmagar-nos. Os meus avós saibraram o Douro...
- Mas agora és médico.
- Somos médicos. As caixas de amêndoas e os postais pintados são também uma boa terapêutica para curar a solidão. Sabes que eu gostava de ser neurologista...
- És formidável!
- Estás a repetir-te, Ethel! Não amues... Eu sou formidável, pois então, mas tu... Tu és a força maior do homem forte. A maior!
- Por causa do que o meu pai nos fez?
Maria sabe que não, mas gosta de o ouvir negar, nunca se cansa do que ele lhe responde, embora perceba que os olhos do marido entristecem.
- O teu pai não é mais do que uma pequenina veia de todo o corpo que nos oprime.
- Mas tem sido terrível com a sua incompreensão. Habituou-se a ser obedecido por toda a gente... É um mal dos homens que foram pobres para África e se sabem ricos.
297
- Nós caímos nas mãos do Deus vivo, minha querida. E isso é terrível, como diz a Bíblia. Mas seremos capazes de lhas abrir?
- Tu pensas que o meu pai...
- O quê?!
- Se foi ele que moveu influências...
- Não, não o julgo com essa força toda. São contas velhas. Coisas de 49.
- Julguei agora perceber uma amargura na tua voz.
- Talvez.
- Estás arrependido?
- Arrependido de quê?!...
- Agora quando me respondeste, aposto, apertaste os maxilares - insinuou Maria numa gargalhada breve.
- Não me vi.
- O Osório diz que tu és dos duros.
- Ah!, pois sou! E não tenho outra alternativa. Não temos outra alternativa. O Osório é dos espíritos superiores, dos poucos espíritos superiores, felizmente, que passam a mão pela pata que o agarra e julga que já a domina. Tem a inteligência da ambiguidade... E é feliz.
- Pensas isso de verdade?
298
- Agora não me obrigues a pensar. Repete comigo: "O nosso amor é grande, estamos estreitamente unidos e isso enriqueceu-me a vida." De acordo?
- De inteiro acordo.
- E ainda não te aborreceste destas palavras ?
- Está o bom julgador a pensar dos outros...
- Já sabes que de mim não há a recear. Tu é que vais tentar o internato. E na intimidade do internato...
- vou saber uma vez mais, e melhor, que não há no mundo outro homem como tu.
- Assim seja! E que Alá te proteja como protegeu o Suez.
- Alá está velho e doente...
- E desempregado, minha filha.
- A nossa época é espantosa. Realmente espantosa. Por isso os pintores que não confiam no homem, o expulsaram dos seus quadros.
- O abstraccionismo não será só isso, mas também define esse drama.
- São muitos os dramas do nosso tempo.
299
Calam-se. O diálogo prossegue no silêncio. Cada um deles fica a pensar nesta noite tranquila, oficialmente tranquila, entre todas as outras convulsivas e ansiosas. Maria percebe no corpo do marido que ele está a olhá-la por entre as trevas do quarto e espera a sua boca para lhe lembrar ainda o que juraram há quase sete anos, em pleno reino da suspeita e do medo.
Lá ao fundo do corredor o telefone retine e não o ouvem. A noite cai assolapada para além da janela. Uma noite fria. O vento tortura-se a ganir o desespero de não derrubar o que lhe impede a violência à solta. O ruído da cidade baixa sobe até eles.
Percebem depois que alguém bate à porta do quarto, parece que com frenesi. O que será? Que mais será?... Maria assusta-se, não entende bem porquê, há sempre o mesmo receio secreto dentro dela, pronto a desprender-se ao primeiro sinal. Senta-se enervada no divã, segurando a cabeça do marido com as duas mãos.
- Senhor doutor! Senhora doutora!...
- Não respondas - diz-lhe Júlio, em voz baixa.
300
- Chamam o senhor doutor - grita a criada, que insiste nas pancadas.
- É melhor lá ir, Júlio.
- Não é, com certeza, nenhum doente. Seria o nosso primeiro doente. (Começa a ser obsessiva esta ideia de que sou médico.)
- Egoísta!
E beija-o, esgueirando as pernas do casaco com que se haviam tapado. Ele agarra-a pelo busto, afaga-lhe as costas e depois deixa-se cair sobre o divã, procurando o maço de cigarros que pusera no chão. A criada continua a chamar. "Já lá vou, Ivone, obrigada!" responde Maria, ao acender a luz.
Júlio volta a cara para se habituar à claridade, ouve os passos da mulher no corredor e fica atento, quem será?, querendo perceber pelas palavras dela a razão do telefonema. Mas no quarto fronteiro devem estar a experimentar as luzes da pequena árvore; a Babá começa a bater as palmas, os pais riem muito com a alegria da filha e não consentem que ele adivinhe o que se passa ao telefone. Um doente não é possível, apesar da tabuleta, e seria isso
301
o mais natural quando ambos somos médicos e há gente que precisa... O que sabemos nós afinal? Que sensação se terá com o primeiro doente, quando se fica sozinho com ele, sem o Mestre e os camaradas para criticarem o diagnóstico? Será que podemos ficar assim toda a vida? A Maria é melhor do que eu, é mais inteligente, os sacrifícios dela não se podem comparar aos meus.
A porta do quarto abre-se.
Júlio volta a cabeça e fixa o olhar no dístico que pintara e pusera sobre o outro divã. PAZ, PÃO E ROSAS.
- Fizemos um sucesso.
- Não percebo.
- Sim, um autêntico sucesso, Júlio. Da papelaria da Rua do Ouro querem mais cinquenta postais pintados...
- Ah! Mais cinquenta postais ! E para quando ?
- Para amanhã...
- Amanhã não, é impossível. Disseste que não podíamos, claro !
Maria aproxima-se. Percebe que ela se sente envergonhada, quer sorrir-lhe, também não consegue, e oferece-lhe o cigarro
302
que começara a fumar. Ela pega-lhe, tira uma fumaça longa e inclina a cabeça para expelir o fumo.
- Como vamos fazer agora?
- Disseste que sim?
- Disse. Julguei que ficavas satisfeito.
- Mas como podia ficar satisfeito, Maria?
- Trata-me por Ethel...
Ele fica confundido com a dureza das palavras que não pudera dominar, baixa os olhos e depois sorri-lhe.
- Vamos passar a noite inteira...
- Pois é. Tu é que tens o trabalho todo.
- Não, não é por isso. Como te enganas ! O trabalho é igual para os dois. Mas queria que ceássemos aqui na nossa mesa, sem pensarmos...
- Sabes que não é possível. Teremos sempre de pensar no mesmo.
- Mas era pedir muito, Ethel? Eu julgo que não; era tão natural que ficássemos os dois...
- Somos os dois.
- A falarmos de coisas...
- Que não nos permitem.
303
- Mas que ambos queremos e havemos de ter. Não achas? !...
- com certeza que acho, Júlio. Mas talvez...
- Em que estás a pensar?
- Em não entregarmos os postais. Temos ali uns quinze... Eu levo amanhã esses quinze e digo que adoeceste, que não te foi possível...
- Sabes que não é solução.
- Se todos faltam, porque não havemos nós de faltar uma vez? E não é importante...
- Nunca é bom faltar, mesmo que seja por uma coisa de nada. Depois falta-se às coisas mais importantes. E tu disseste...
- Queres que te peça desculpa? Puxa-a para si e começa a pôr-lhe os
cabelos por cima das orelhas; gosta de a ver assim, ela tem umas orelhas bonitas. Depois beija-a nos olhos. Maria fecha-os e os lábios tremem-lhe, a flor da sua boca palpita. Lá fora acendem-se as luzes da rua, e há luzes na Outra Banda e no Tejo. Um navio passa na noite tranquila. Ele levanta-se e vai com ela até às vidraças.
- Temos cartão?
304
- Eu posso telefonar, ainda não fecharam... É fácil.
- Não, não tem importância. Estava com a preguiça e saiu-me aquele desabafo.
- Mas eu posso telefonar, Júlio.
- Será menos um cliente.
- Mas tu pensas que para o ano...
- Para o ano só tenho uma certeza: é que continuarei a gostar de ti, a estar apaixonado por ti. Do resto nada sei, É bom não fecharmos nenhum dos poucos caminhos que ainda nos ficaram.
-Como entenderes. Queres que vá buscar o cartão?
- Vamos os dois.
Voltam-se enlaçados e os olhares fixam-se na parede, naquele dístico pintado por ele e colocado entre um auto-retrato de Van Gogh e uma alegoria de Léger.
Sobre a mesinha do centro, perto dos dois divãs onde dormem, uma jarra de vidro acolhe meia dúzia de rosas vermelhas que ele lhe trouxera.
- Só temos as rosas... De tudo, só temos as rosas.
- E a verdade privada.
305
Estavam no primeiro ano da Faculdade, olhavam-se com simpatia e nada mais. Ele era alto e magro, usava óculos, dobrava-se sobre os seus passos, parecia que receava andar, pé aqui, pé ali, chamavam-lhe o "Calmiças"; ela era baixa, um pouco para o redondo, chamavam-lhe a "Rainha Gimba", o pai tinha roças em Angola, Angola valia mais para ela do que o Brasil, era o país do futuro, e vestia-se com elegância, embora parecesse simples. Viviam ambos no Conde Redondo e encontravam-se numa leitaria com outros colegas, às voltas com os nomes rebarbativos da anatomia, ciência de empinanço, dizia o Silva Pereira, quem tiver a cabeça -fica sem ela e não paga nada, é entrar, meus senhores, os doentes que se lixem, à volta de um osso pode falar-se durante uma hora e depois aparece um tipo com uma gripe e a coisa complica-se
306
quando ele não pode comprar os remédios.
E de repente, mesmo à beira dos exames, aquela quinzena de terror e angústia:
vão salvá-los,
matam-nos,
não, isto é um assassínio,
qual assassínio!
não pode ser, é impossível
que mundo é este?
onde estamos nós?
são dois espiões,
espiões como?
olha, pois não!
o doutor Urey afirma que um simples mecânico nunca poderá comunicar um só elemento científico dos muitos que se ligam com a bomba atómica,
há espiões por toda a parte,
estamos no reino da suspeita e do medo,
para onde vamos nós?
para o cemitério, todos para o cemitério,
onde estamos nós?
na selva da ciência,
307
o homem vai destruir-se, mesmo que não haja guerra vai destruir-se, a vida faz-se a um ritmo que o homem não poderá suportar, e um dia aparecemos todos na rua aos saltinhos, a ladrar como os cães ou a escoicinhar como os cavalos ou os burros, todos doidos, a vida faz-se depressa de mais para a medida do homem,
nós estamos perto de Rilhafoles, é só bater à porta,
O PIOR É QUE OS DOIS VÃO MORRER - disse ela.
Foi só o que Maria disse.
Estava-se em Junho de 53, e já sabiam então que havia mais de dois anos que os tinham condenado, e ambos não dormiram naquela quinzena, souberam isso depois quando falaram no jardim, de manhã, na manhã do dia 20, do dia 20 de Junho de 53, pelos jornais da manhã, estava uma manhã radiosa e cálida feita para a vida.
"Já sabe?
- Já sei..."
Sentaram-se num banco, afastados, voltaram a cara em sentido oposto e depois encararam-se, e depois repararam que ambos
308
tinham os olhos encharcados de lágrimas; ele ainda levou a mão aos olhos e Maria agarrou-lha, não deixou que ele os limpasse e disse-lhe: "Não, Júlio, deixe os olhos chorarem, não tenha vergonha..."
Perderam o ano.
"Ganhámos o amor" - lembrou Maria, recordando como em tão pouco tempo, ali naquele banco, à sombra de uma árvore baixa e de copa redonda, puderam resolver tanta coisa importante para a vida dos dois. Nessa mesma manhã, também ela lhe dissera: "Sim, Júlio, no reino da suspeita e do medo, nunca nos separaremos, nunca, porque a verdade faz todos os dias o seu caminho."
Só não lhe confessou que aquelas palavras eram de Ethel, da mulher que foi morta às 20 horas e 11 minutos do dia 19 de Junho de 1953 e que levava um vestido verde,
... Alegre e verde, meus filhos, alegre e verde será o mundo por cima das nossas campas...
e falava do seu amor como de um canto interrompido nos versos que escreveu. O Osório chamou àquilo um amor romântico,
309
e queria significar com essa frase que ambos estavam fora do nosso tempo, do nosso tempo cínico, exaltado de violência, de ansiedade, de solidão, de espanto, de medo, de esperança, de terror, de verdades privadas, de mentiras colectivas, de verdades colectivas, de mentiras organizadas, de amores frustrados, de amores sublimes, de ódios perpétuos, de perpétuas esperanças, de receios de felicidade, de ânsias de felicidade...
O Osório esquecia lamentavelmente que podem desejar-se nos nossos dias, pão, paz e rosas, e quando se diz rosas se fala de amor, de amizades, de gosto pela vida, e que um homem pobre de tudo, menos de esperança, pode agarrar num ramo de rosas, num pobre ramo de rosas e significar com esse gesto que está pronto a morrer para que os outros as tenham. Em 1959, cada um já foi obrigado a destruir todos os seus mitos, a olhar as verdades profundas nos olhos e a aprender outra vez, sempre de novo a aprender, que os caminhos mais ásperos e longos são os únicos que podem levar o homem à entrevista marcada com o homem na profundeza dos dias
310
inconcretos, e terrivelmente concretos, embora voltem muitos a querer mistificá-los.
Maria falava a Júlio em tudo isto. E iam ambos de mãos dadas, como se receassem perder-se um do outro nesta noite de Dezembro (agora já é noite, às cinco horas é quase noite) em que todos compram alguma coisa para passar um serão tranquilo entre os seus. Lentos, a gozar a certeza de estarem juntos, os dois regressam também com o cartão branco, e pensam, os românticos, que continuam a vida daqueles que morreram há mais de seis anos.
311
"O nosso amor é grande, estamos estreitamente unidos e isso enriqueceu-me a vida", repetem ambos, palavra a palavra, enquanto sobem a escada do prédio onde habitam. Maria comprou um brinquedo para a menina do quarto fronteiro ao seu, naquele mesmo corredor em ângulo e a que chamam a rua da aldeia.
Vivem numa aldeia em Lisboa, cada quarto alberga uma família ou o resto duma família, como a Senhora Dona Branca que mora lá ao fundo à espera do marido ausente, perdido na cidade com uma rapariga por quem se apaixonou vai para dois anos. Não há fora de Lisboa aldeia tão civilizada: com telefone, electricidade, telefonias várias, elevador e gás. A verdade é que ninguém dispõe de casa própria - nem os que a têm em seu nome, pois são os últimos a servirem-se da casa de banho quando todas as manhãs se chega
312
a hora dos empregos. O senhor Loureiro para não perder o ponto lava-se na cozinha. Mal abrem a porta, a dona da casa vem a correr ao seu encontro:
- Os senhores doutores ficam convidados para a nossa ceia...
Maria olha para Júlio e percebe-lhe na ruga da testa que a ideia lhe desagrada. Vai em seu auxílio, antes que ele se embarace.
- Ah, não, muito obrigado, não pode ser...
- Temos muito que trabalhar... acrescenta Júlio, a sorrir.
- Esta noite é pecado trabalhar - insiste Dona Esmeralda a arregalar os olhos bonitos de menina espantada. Parece mais ingénua do que a filha de três anos e já vai no segundo casamento. (Trocou o primeiro por este que estava mais para a sua idade, mas recorda com frequência o tempo em que o senhor visconde a levava a Paris e Madrid.)
Maria responde que mesmo naquela noite precisam de trabalhar, o que os deixam vender só se compra naqueles dias, e a Dona Esmeralda volta à mesma, como
313
se não ouvisse os argumentos dela. Faz uma espécie de beicinho (devia ser com aquela expressão que convencia o senhor visconde) e acaba por se comprometer a não lhes roubar mais de cinco minutos.
- Os senhores fazem agora parte da nossa família, aqui dentro, salvo seja!, somos todos da mesma família...
Júlio sorri com acanhamento, embora perceba que o "salvo seja" se refere à rapariga do quarto de gaveto, frequentadora de bares do Chiado e imediações e que passa o dia a comer gemadas para se aguentar, como diz às outras senhoras quando as encontra na cozinha. Acha-lhe piada, já o confessou a Maria, e tem o desejo secreto de que ela o chame quando estiver doente. Sonha muitas noites com o seu seio que adivinha rosado e pequeno.
Talvez por isso, enfia pela porta do quarto e deixa-se cair no cadeirão de madeira forrado com duas almofadas azuis. A luz acende-se e Maria toma-lhe a mão magra. Depois caminham ambos para a janela donde se vê o rio, lá em baixo, ao fundo, um tanto irreal nas luminárias e nas sombras do porto.
314
Júlio já despiu o casaco, ficou de camisola com gola alta, tirou os óculos por um instante e continua com a mão sobre o ombro carnudo de Maria, que ali entre eles é Ethel, Ethel condenada à morte, Ethel já morta na cadeira eléctrica... Aquele abraço quente de ternura torna-a mais pequena - ela gosta que assim seja quando o marido a puxa para o peito.
- Vamos começar? - pergunta-lhe com a voz mimalha a insinuar outros encontros.
Ele percebe o mistério da interrogação e conduz-lhe a mão para a algibeira; Maria começa a rir, só ela sabe porquê. Júlio responde de súbito:
- Vamos, sim.
- Se quiseres desistir...
- Não, sabes que nunca desisto.
- Já temos quinze. Faltam trinta e cinco. Podemos entregar os cinquenta até ao fim da tarde de amanhã...
- Cinquenta são cento e cinquenta escudos. Precisas de uns sapatos...
- Ainda preciso mais de um filho.
- Um filho é mais caro do que um casaco de vison. Temos de esperar...
315
Júlio abre a caixa das aguarelas e dispõe os frascos das tintas, enquanto Maria limpa os pincéis e experimenta os aparos.
- O homem disse que queria postais
com neve...
- Inconscientemente as pessoas sentem-se mais confortadas na noite de hoje e querem dizer que o mundo está frio...
- O frio que vai pelo mundo é uma indústria rendosa...
com os dedos longos e brancos, Júlio desenha num cartão o telhado de uma casa isolada, porque querem eles paisagens nórdicas? é estranho, só agora reparo nisso, não lhe marca os traços verticais das casas de madeira; depois, sem saber porquê, deixa o aparo correr à vontade, erguem-se dois arranha-céus, vão sempre a subir até ao extremo do cartão, e junto à porta da casa isolada desenha uma rosa grande, uma rosa impossível, não, ninguém vai comprar isto, não faz mal, se não quiserem fica para mim, eles gostariam que eu pintasse ali o vulto de um homem ausente que regressa.
- Achas que vão gostar deste? - pergunta com o fumo do cigarro a queimar-lhe os olhos de míope.
316
- Tem neve? - indaga Maria.
- Neve e uma rosa grande... Uma grande rosa vermelha...
-Que pensaste ao pô-la aí?
- Que o mundo precisa de rosas... Maria continua a cortar rectângulos de
cartão; Júlio olha-a com enlevo e os cabelos negros da companheira exaltam o vermelho do ramo que lhe trouxe naquela tarde. Sorriem. Ela ergue a mão direita
num aceno.
Quanto tempo passou?... Quantas aguarelas faltarão ainda?
- vou fritar uns ovos; já é tarde...
- Tens que aprender a fazer outra coisa; começo a ficar farto de ovos...
- Ou de mim?...
Júlio acha que ela lhe põe uma pergunta absurda, mas não responde. Parece distraído com o trabalho, talvez pense no que sonharam há muitos anos e no tempo que passou, entretanto, no tempo frustrado que passou para todos nós, entretanto...
Maria está a fitá-lo, talvez pense no mesmo ou no facto dele não lhe ter respondido.
317
-Quantos cartões já acabaste?
- Não gosto de contar... Custa-me mais quando os conto...
- Devem ser dez horas...
- Tanto faz dez ou onze: vou passar a noite inteira nisto...
- Enfadado?
- Chateado !... Terrivelmente chateado!...
Sobressaltada, Maria encara-o e suspira com pudor. Sente que tem a culpa; precisa de lhe dizer qualquer coisa que descarregue a tensão da fadiga. Levanta-se depois de tesoura nos dedos e vai espreitar o trabalho. Sobre a mesa há um cartão ein branco. Acaricia-lhe o cabelo crespo, beija-lhe a orelha e Júlio encolhe-se.
- Uma árvore ao fundo, um par de mãos agarradas - segreda-lhe Maria ao ouvido.
- Uma árvore negra?
- Uma árvore muito verde...
- Um símbolo?
- Sim, talvez... Há sempre uma sombra para os que a procuram...
- Estamos a precisar de sol - responde
318
Júlio, que se volta num impulso e a puxa para si. Maria cerra os olhos.
No corredor, lá ao fundo, junto do quarto do hóspede misterioso que ninguém conhece, a campainha do telefone toca. O telefone retine e a aldeia suspende-se em interrogações. Será para a rapariga que só sai à noite? Ou alguma má notícia?!... Atentos, erguem ambos a cabeça.
- Queres que atenda?...
- Não, agora vou lá eu - diz Júlio, com um sorriso.
- Pensas que é para ti?
- Não, não espero telefonemas. Mas preciso de desentorpecer as pernas.
Sai a correr do quarto; de repente, não entende porquê, julga que deve ir depressa, tem as pernas grandes e pode chegar depressa. Maria ouve a rangedeira dos sapatos ; a campainha continua a tocar lá ao fundo e do quarto fronteiro ao deles chegam-lhe gargalhadas.
Perto do telefone, Júlio afrouxa o passo, pega no auscultador, mas não o leva ao ouvido. Que vim aqui fazer? Devem-me pedir para chamar a Dona Esmeralda... Deve ser a mãe da Dona Esmeralda. Uma voz de
319
mulher interroga. com a insistência, Júlio acaba por responder de mau humor.
- Sim, é do terceiro andar. Da aldeia do terceiro andar...
- Não percebo; não se ouve nada. Nestes momentos o telefone nunca se percebe... Alô, alô... Mora aí um médico, não é assim?
- Um médico? Ah sim, mora um médico...
Sente uma alegria nova que não consegue explicar, um calor, sim, talvez um calor que o inunda e o envolve, um desejo irreprimível de gritar lá para dentro, vem depressa, Ethel, vem depressa!, tapa o bocal irreflectidamente, como se do outro lado a senhora pudesse ver-lhe o sorriso e a perturbação. É o meu primeiro doente... O que será?... Quem será?... A voz continua a falar, insiste, alô, alô, não mora aí um médico? E Ethel?... Maria está lá dentro e eu não sou capaz de lhe dizer, não, não sou capaz...
Fica inquieto, move os ombros e a cabeça, parece bailar no corredor, um pé aqui outro pé acolá, andando à volta, enquanto
320
marca com os dedos na perna o compasso dum ritmo de "jazz".
- Sim, exactamente. Exactamente o quê?
- Então faça o favor de lhe dizer para vir com urgência, imediatamente, ao primeiro andar do prédio do lado... Número 124, a casa do senhor Queirós... Lado esquerdo... Primeiro andar, esquerdo... Não toque a campainha, por favor: bata com os dedos...
- Muito bem, muito bem... Muito obrigado, vai já.
Pousa devagar o telefone no descanso, abre depois os braços e bate palmas por detrás das costas até sentir os ossos e os músculos. Porque não há-de assobiar? Esfrega e aperta os músculos dos braços e pensa no que vai dizer a Maria, no que vai dizer a Ethel, sim, meu amor, talvez se acabem os postais com aguarelas, talvez, talvez, talvez, sempre talvez...
Entra a assobiar no quarto e encosta-se à janela. Acha que as luzes na noite, lá em baixo no fundo da noite, se acenderam para eles.
321
A voz de Maria pergunta-lhe :
- Quem era, Júlio? Era para ti?...
- Talvez... (Depois emenda.) Não, não era para mim...
- Queres que chame alguém ?
- Não...
- Que estás aí a fazer?
Apetece-lhe escorregar no chão encerado (em rapaz gostava tanto de patinar!), e experimenta, experimenta e desequilibra-se, vai de encontro à parede e começa a rir. Ethel vem a correr, assustada, não entende o que se passa, e ele agarra-a, puxa-a com força para si e beija-a longamente.
- Mas que foi? - pergunta Maria, sem compreender.
- Ora o que foi ? Chamaram por ti, é um doente para ti...
- Para mim porquê ?
- Disseram o teu nome...
- Não pode ser, Júlio, ninguém sabe...
- Esqueces que temos agora uma tabuleta? Perguntaram pela doutora Maria Silveira... Não és tu ?!...
- Mas quem?...
322
- Do primeiro andar, esquerdo... No número cento e vinte e quatro...
Beija-lhe os cabelos e leva-a à sua frente, apertando-lhe bem os ombros. Ela sente-se incapaz de se voltar.
- Será um doente que posso salvar ou que vai morrer? - consegue dizer depois.
-Que vais salvar, com certeza.
- Tenho medo...
- Medo de quê?!...
- Parece que esqueci tudo o que aprendi...
- Ora! Recordarás tudo num instante. Maria está atarantada, não sabe o que
deve levar. Acaba por ir ao espelho, vê-se muito jovem, passa os dedos no rosto como se quisesse marcá-lo.
- Eles vão achar-me nova de mais.
- Leva os meus óculos. Carregam um pouco...
- Não devo ver nada com eles...
- Tira-os depois. A primeira impressão é que interessa. Vivemos na civilização do rótulo.
Ele ajuda-a a vestir o casaco, mete-lhe o estojo debaixo do braço, põe-lhe os óculos e condu-la até a porta. Maria olha ainda
323
para as sebentas e os livros que estão na estante, como a pedir-lhes ajuda.
- Vem comigo até lá abaixo, Júlio! Não me deixes ir sozinha... É tão bom tudo isto e levo tanto receio!... Porque não vais tu por mim?
- Disseram o teu nome...
- E tu? O que vais fazer?...
- O cartão que me pediste com um casal de mãos dadas e uma árvore...
- Mas a árvore vai ficar mais perto.
- Eles estão quase a chegar à sombra da árvore... Quando acabar, esperarei que tu chegues.
Do outro quarto percebem que vão sair e uma cabeça espreita: - Então, os senhores doutores já se esqueceram?
- Não, voltamos já - diz Maria.
- A Babá não lhes perdoava. Está doida com o brinquedo...
- Ela vai agora ver um doente - cicia Júlio, a sorrir.
- Mas agora reparo... Não é o senhor doutor que costuma trazer os óculos?
Encaram-se mais uma vez e largam a rir. As gargalhadas contaminam a senhora
324
que viera interrompê-los. Os dois esgueiram-se e começam a descer as escadas.
- vou só até ao piso de baixo...
- Porquê?!...
- Terei dificuldade em voltar sem os óculos.
- Tu ainda tens o corrimão. Agora eu vejo todas as coisas turvas, maiores, mas turvas.
- Põe-nos só quando chegares...
- E se tropeço e caio?
- Era uma boa partida.
- E um castigo ao mesmo tempo. (Hesita ainda, mas resolve-se.) Não, toma lá! Toma lá os teus óculos...
Ele aperta-lhe o braço para lhe dar alento e depois começa a subir as escadas. Quando chegará a minha vez? A voz de Maria obriga-o a parar.
- Se me demorar um pouco mais não estranhes. vou comprar uma garrafa de espumoso...
- E bolos... Os bolos pago eu. Traz bolos...
- Não preferes broas?
- Compra o que te apetecer, mas não te esqueças do meu bolo.
- Sim, já sei, um pastel de nata.
Volta-se no patamar para lhe fazer um aceno com a mão, mas já não o vê. Júlio pensa nos dois que morreram e acha ridículo supor que os prolongam.
Que têm feito para o merecerem?...
Alves Redol
O melhor da literatura para todos os gostos e idades